sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> Lançamento Gênesis do Conhecimento - Mouros, Franceses e Judeus - Três Presenças no Brasil - Luís da Câmara Cascudo


LUÍS DA CÂMARA
CASCUDO

MOUROS, FRANCESES E
JUDEUS
Três Presenças no Brasil


São Paulo
2001

A reedição da obra de Câmara Cascudo tem sido um
privilégio e um grande desafio para a equipe da Global
Editora. A começar pelo nome do autor. Com a
concordância da família, foram acrescidos os acentos em
Luís e em Câmara, por razões de normatização bibliográfica,
permanecendo sem acento no corpo do texto quando o
autor cita publicações de sua obra.
O autor usava forma peculiar de registrar fontes. Como não
seria adequado utilizar critérios mais recentes de
referenciação, optamos por respeitar a forma da última
edição em vida do autor. Nas notas foram corrigidos apenas
erros de digitação, já que não existem originais da obra.
Mas, acima de detalhes de edição, nossa alegria é
compartilhar essas "conversas" cheias de erudição e sabor.
Os Editores

Sumário

Preliminar
1. Presença Moura no Brasil
2. Roland no Brasil
3. Temas do Mireio
4. Motivos do Heptaméron
5. Motivos Israelitas

Esses cinco ensaios de indagação na cultura popular
brasileira, e pesquisa bibliográfica confirmadora, pediram
alguns anos de elaboração. "Roland no Brasil" e "Mireio"
saíram na revista Ocidente, vols. LXII e LXIV, Lisboa, 1962
e 1963 - "Roland", com ampliação, reimprimiu-se em Natal,
Tip. Santa Teresinha, do escritor João Carlos de Vasconcelos,
1962. "Heptaméron" apareceu em Douro Litoral, V-VI, 6a
série, Porto, 1954. Foram todos reunidos nos Motivos da
Literatura da França no Brasil, Imprensa Oficial, Recife,
1964, iniciativa do diretor Cleophas de Oliveira, e fora de
mercado.
Para "Heptaméron" escreveu brilhante prefácio o escritor
Américo de Oliveira Costa, da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, meu aluno e
meu mestre.
"Presença Moura no Brasil" divulgou-se na Revista de
Etnografia, n2 9, Porto, 1966, dirigida pelo Dr. Fernando de
Castro Pires de Lima, havendo separata. "Motivos Israelitas
na Tradição Brasileira" circulou na revista Comentário, vol.
7, no1 (25), primeiro semestre de 1966, Rio de Janeiro,
publicação do Instituto Brasileiro-Judaico de Culatra e
Divulgação.
Foram todos desdobrados no plano da informação e
conclusão sociológicas, utilizando-se documentação
desaproveitada quando das primeiras redações. Exponho
algumas "permanentes" temáticas mais ou menos ignoradas,
nos costumes gerais e na literatura oral do Brasil, com
indispensável análise. Repito o que escrevi no prefácio de
Anúbis e Outros Ensaios, em 1951:
Os motivos deste livro foram encontrados na vida cotidiana
do povo brasileiro. Continuam todos existindo e facilmente
registrados por quem deseje procurá-los.
Não serão jamais identificados nas origens iniciais, perdidas
na imensidão milenar e complexa das culturas orientais.
Uma afirmação constituirá opinião pessoal, seja qual for a
altura do opinante.
As palavras de simpatia, espontâneas e numerosas, animaram
o desejo de incluir num tomo único quanto dispersamente
surgira, facilitando leitura curiosa ou amável consulta.
Essa é a intenção que amadrinha o volume.
Esses assuntos foram antiga predileção fiel. Se hóspedes,
velhos hóspedes, quase membros da família mental. Ensinei
Etnografia Geral enquanto existia a cátedra na Faculdade de
Filosofia. Fui o primeiro diretor do Instituto de Antropologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, desde
março de 1965, com meu nome, assim também sua
"Medalha de Mérito", pela generosidade do Magnífico Reitor
Onofre Lopes e voto unânime do Conselho Universitário.
São os meus antecedentes funcionais, excluindo artigos de
revistas e livros, de citação dispensável.
Um uso popular sempre investiguei partindo da constatação
imediata, ou informação fidedigna, e não fidedigna, como
dizia Capistrano de Abreu; estendendo a indagação pelo
aparato bibliográfico, procurando fixar o inevitável
complexo e nunca o ato isolado, sedutor mas
incaracterístico. A interpretação depende da evidência e não
da predileção erudita.
Para os mouros e judeus, povos ecumênicos cujas raízes
comuns e semitas já em 1851, Ernesto Renan recusava
aceitar, a influência no consuetudinário brasileiro não
significará fontes unitárias porque esses grupos humanos
atravessaram espaço e tempo imemoriais, Cronos sem Clio,
assimilando usos e costumes compatíveis com as
necessidades vitais do momento social. Os mouros
abjuraram doze vezes o maometismo e aceitaram-no, ao
final, como uma razão de defesa política, levando para a
doutrina, vertical e dura, quase todas as superstições dos
cultos anteriores, talqualmente Maomé respeitara, numa
religião sem imagens, a Pedra da Caaba e o Poço do
Zemzem, supersticiosas tradições pré-islâmicas.
A falsa unidade cultural de judeus e mouros pode, pela
diversidade temática, denominar-se "multidão", como os
demônios de Gerasa.
Antes tiveram os milênios por séculos, contemporâneos de
todas as civilizações históricas.
Desde quando mouros e judeus conheceram-se? Na Ásia o
tempo está eneveoado de lendas. Na África, se fama est
ventas, estaria em Marrocos grande massa fugitiva, quando
Salmanassar IV da Assíria, o Ouloulai de Babilônia, atacou
Samaria no século VIII a.C. Houve pequenos reinos
israelitas no Maghreb, historicamente provados, e os
cemitérios judeus atestam antigüidade espantosa pelo
interior da terra africana do norte. A pátria de Maomé estava
povoada de judeus no século VI d.C.
Com os pretos africanos o contato fora anterior ao
ressecamento do Saara, então com flora virente, águas vivas,
caça abundante, onde eles viviam, com antílopes, elefantes e
hipopótamos enxundiosos. Jamais deixou de haver
intercomunicação pelas estradas comerciais com a África do
Atlântico. A expansão moura, Península Ibérica, França,
Sicília, as ameaças à Roma papal, o domínio na pirataria do
Mediterrâneo, constituem curriculum ginasial europeu.
Em boa simpatia convencional creio Portugal raça latina,
sentindo a mesma convicção lírica de Lisboa ter sido
fundada por Ulisses. A presença romana foi um enxerto de
galho, utilizando a seiva sem que alcançasse as raízes. Já o
português era "povo formado" pelo lado de dentro, milenar,
"jardim da Europa" com flores de todas as paragens. Diga-se
semelhantemente da vieja Espana, sugerindo a muito
sociólogo a imagem da fronteira africana nos Pirinéus. No
derradeiro ano do século XV, quando Pedro Álvares Cabral
rumou ao Brasil, Portugal contaria mais de dois mil anos de
participação cultural peninsular. Não digo antropológica,
porque essa é muito anterior.
Certamente notam a insistência da "Etnografia" e a ausência
da "Antropologia Cultural". Há meio século, quando fui
estudante de Medicina, a Antropologia limitava-se à
medição do sistema ósseo e comparações para as tentativas
dos "tipos" em que então acreditávamos, como
presentemente ninguém acredita. Não estávamos fami-
liarizados com a rapinagem de Broca, levando para a
Antropologia a clássica definição etnográfica. Para nós,
naquele tempo amável, as culturas eram produtos dos ethnôs
e jamais do unitário anthrôpos. O grupo, a gente, teria
realizado na quarta dimensão o miraculoso programa hoje
doado ao "Homem", promovido a vocábulo coletivo. Daí
meus prejuízos em matéria de citação. A Antropologia
Cultural é, para mim, visita cerimoniosa, imponente, de
indispensabilidade decretada. Não posso, psicologicamente,
ter a mesma facilidade de aproximação tida com a velha
Etnografia. Como dizia Machado de Assis: - Relevai esta
nomenclatura morta; é vicio de memória velha!
Foram possíveis essas pequeninas pesquisas nos livros,
arquivos e vozes antigas e familiares, podendo olhar e ver as
reminiscências fiéis do Povo, porque já não existe a
limitação ciumenta para o auxílio das ciências correlatas,
agindo num plano de convergência informativa. Recorro à
História como à literatura oficial ou vulgar dos povos
estudados, mesmo num ângulo tecnicamente etnográfico.
Comédias e poemas trazem notícias outrora privativas dos
historiadores. Plauto, Terêncio, Aristófanes sabem minúcias
ignoradas por Tito Lívio, Tácito, Heródoto. Aplico,
formalmente, a fórmula do Prof. Baino Schier da
Universidade de Münster:
Precisamos de nos habituar a considerar os fatos triviais de
nossa vida popular como fontes históricas, que, em força
testemunha, em nada ficam atrás dos velhos documentos e
crônicas (Vom Aufbau der cieutschen Volksckiiltiu; 334).
Confirmei tal orientação estudando a mímica no Brasil:
História dos Nossos Gestos, São Paulo, 1976. Crianças
repetem gestos anteriores ao Dilúvio. Fazemos posições mais
velhas que o gênero humano. O Povo é o professor e a
Convivência a Universidade vitalícia.
Verifica-se que cerimônias negras são romanas. Um jogo
infantil dos nossos dias era prova adivinhatória em Babilônia.
Em Superstições Negras e Terapêutica Supersticiosa
examinei alguns desses motivos.
Um exemplo: o presente de Iemanjá quando afunda é
porque Janaina aceitou a oferta. Sobrenadando, é índice de
recusa. Ninguém discute a procedência africana da festa,
característica no exercício da Umbanda, outrora Candomblé,
irradiado da Velha Bahia, sudanesa fiel. Pertence, entretanto,
aos cultos da Grécia Clássica, com dezoito séculos de prova.
Pausânias (Description de la Grèce, III, 23, 5, 8) registrou-a
em Epidauro Limera, Lacônia, Grécia, escrevendo entre 161
e 181 anos depois de Cristo, quando Marco Aurélio era
imperador, reportando-se ao milênio cultural. Num lago
artificial atiravam a oferenda dedicada a Ino-Leucotéia,
deusa protetora dos portos e com o dom profético. Felizes
augúrios, se mergulhava. Maus presságios, boiando. É a
velocidade inicial do "presente de Iemanjá", quanto ao
pormenor da permanência à flor d'água. Sainte-Beuve diz,
logicamente: "L'Antiquité on la dit, est chose nouvelle...".
Nós somos uma contemporaneidade dos milênios.
Mouros e Judeus não foram deparados em livros mas na
vivência de usos-e-costumes brasileiros, mesmo nos sertões
do oeste norte-rio-grandense onde vivi, menino pondo-se
rapaz. Como não se sabe até onde corre o sangue dos
Mouros e Judeus nas veias conterrâneas, era uma surpresa
encontrar nos cimélios sapientes a denúncia da
autenticidade presencial do Oriente em gestos e hábitos nas
regiões de pedra e sol: - o tabu do sangue, repugnância às
carnes dos animais encontrados mortos, balançar o corpo na
oração, a bênção com a mão na cabeça, o horror da
blasfêmia, respeito ao cadáver e aos objetos de uso pessoal
do defunto, pavor aos mistérios da Noite, da Lua Nova, das
Estrelas Cadentes, do Relâmpago, o Trovão, voz de Deus
irado, às perfídias do Anjo Mau... Criei-me temendo as
Sombras, Águas Paradas, torvelinho de folhas secas,
Aleijados de nascença, Velhos de barba-longa, homem de
fala fina. Orientalismo diluído no leite materno e das amas-
pretas, acalentadoras das minhas impaciências infantis.
Mais uma vez os meus Mouros e Judeus procuram olhos
contemporâneos para avivar-lhes as distantes reminiscências
imemoriais, inconscientes, vivas, atrás da cortina do
Passado.
Da imensa literatura oral brasileira, tantos anos investigada,
acreditei oportuno destacar a simultaneidade de temas na
França e no Brasil, numa distância de quatro séculos. Temas
correntes, merecedores da escolha da rainha de Navarra no
Heptaméron. Encontrei variantes brasileiras das nouvelles
VI, XXIV, XXIX, XXX, XXXIV, XXXV, XXXVIII, XLIII,
XLV, LII, na edição de Michel François (Garnier, Paris,
1943). Todas as nossas versões são de origem popular e não
provindas de fontes literárias impressas. Atestam a
continuidade simpática pelos enredos que se impuseram à
marguerite desprincess.
Do Mireio, de Mistral, reuni quarenta e seis coincidências
temáticas, circulando na memória popular do Brasil.
A Provença nos veio através da influência galaico-
portuguesa e não diretamente. Alguns mitos e superstições
são gerais e correntes na Europa. Outros, semi-esquecidos na
Península Ibérica, ganharam vitalidade no Brasil, podendo
incluir-se a América Espanhola. Mireio, centro de interesse
tradicional, poema-síntese da terra e gente do Crau, vale
documento expressivo, na indicação etnográfica do Prof.
Bruno Schier, da Universidade de Münster.
A figura de ROLDÃO, o Roland, Par de França, continua
viva na poesia cantada do sertão do Nordeste. Não ocorre o
mesmo na França, onde viveu, nem na Espanha, onde
sucumbiu em agosto de 778. É inesquecido, atual, vulgar.
Não penetrou nos contos mas é indispensável nos versos,
imagem mais legítima da bravura, da coragem imediata, o
homem-sem-medo, eterno encanto para a velha turbulência
sertaneja. Reaparece até na cantilena dos cegos nas feiras,
agradecendo a esmola. Muitas crianças são batizadas com seu
nome. Um distrito do município de Morada Nova, no Ceará,
intitula-se ROLDÃO. Não ultrapassou as fronteiras do
território brasileiro. Não atuou em nenhuma ex-colônia
francesa. Para nós, notadamente do Norte, é uma presença
habitual, um contemporâneo, como Sherlock Holmes, na
Inglaterra.
É o único motivo popular inspirado por livro impresso.
Creio ter exposto no texto essas origens bibliográficas.
Edições portuguesas do século XVIII e brasileiras desde
princípios do XIX. As reedições, ultimamente resumidas,
não desapareceram nas impressoras do Rio de Janeiro e São
Paulo. Muitos episódios, incluindo o Imperador Carlos
Magno, constituíram dramas, de caráter eminentemente po-
pular por todo o século XIX, mas não recordados. Outras
peripécias motivaram poemas, que eram todos cantados,
agora apenas lidos, em sextilhas e décimas.
Os cantadores e poetas populares nordestinos ignoram o
Roland das chansons de geste ampliadoras e a própria
Chanson de Roland não deixou a companhia de alguns
estudiosos urbanos, leitura que não alcança curiosidade
plebéia. O Roldão brasileiro é uma atualidade. Não era
possível retirá-lo da lembrança coletiva do meu país.
Porque não podemos deixar de falar do que temos visto e
ouvido, é uma razão que encontrei nos Atos dos Apóstolos,
4, 20...
Quando o português veio para o Brasil, o mouro fora expulso
do Algarve duzentos e cinqüenta anos antes. Na Espanha foi
preciso esperar os finais do século XV para que o reino de
Granada fosse castelhano, justamente em janeiro do ano em
que Cristóvão Colombo largaria de Paios para a jornada
deslumbrante. O mouro viajou para o Brasil na memória do
colonizador. E ficou. Até hoje sentimos sua presença na
cultura popular brasileira.
Não dizíamos árabe ou sarraceno mas mouro, o nome mais
constante na Península Ibérica, lembrando os berberes,
mouros históricos, reinando na Espanha, vivos na
recordação lusitana, Ifriqiya e Maghreb.
No Brasil, árabe tomou-se genérico nas últimas décadas do
século XIX com a emigração da Síria e do Líbano, nominal
popularíssimo, inclusive com o falso sinônimo de turco,
vendedor ambulante que seria também o regatão, familiar
nos rios amazônicos. O sarraceno não se aclimataria no
linguajar nacional.
Da figura árabe temos a frase elogiosa: - é das Arábias,
valendo habilidade, astúcia, raridade. Alusão à ave Fênix. As
Arábias eram três: Pétrea, Desértica e Feliz. Explicava-se o
plural. Nenhuma frase ligada ao sarraceno sobrevive no
adagiário brasileiro.
Mouro vale mais. É um mouro para trabalhar! Trabalho de
mouro! Força de mouro! Cara de mouro, impassível,
imperturbável, serena. Trabalho esfalfante e tenaz é
mourejar. A criança pagã é moura. Quem poupa sem mouro,
poupa seu ouro, dizia-se no Portugal velho, e também no
Brasil anterior a 13 de maio de 1888, valorizando o escravo
negro. Do mouro ficou-nos ainda o mourisco, unicamente
aplicado à coloração cinzenta ou vermelha, raiada de matiz
mais claro. Ladrão como gato mourisco! Os mouriscos
aparecidos nas Denunciações do Santo Ofício serão
mestiços.
Creio que o mourão, moirão, esteio, peça de madeira
compacta constituindo as ombreiras da porta do curral,
qualquer tronco que dê imagem de resistência, firmeza
inabalável, provenha de mouro, moiro, no aumentativo, na
idéia associada da solidez material: - forte como um mouro,
diz-se ainda no Brasil. Parece-me mais lógico que o vindo de
muro, murão. O Pe. Jorge Ó Grady de Paiva sugere-me o
latim arcaico moion, de mulione, baliza ou marco.
Terras de mouro significavam o limite extremo, os confins
do mundo conhecido, a região mais longínqua que se
pudesse conceber.
Mourama compreendia o país e a população moura. A
mourama foi tomada, cantava-se no auto dos Congos, e não
na Chegança, onde realmente os mouros intervêm, ausentes
dos Congos, estes de assunto totalmente de Angola, Reino
do Manikongo, no Zaire. E todos sabem do auto de Cristãos
e Mouros, conhecido por Chegança, lutas dos soldados da
Cruz contra o Crescente num barco assaltado por estes:
batalhas de espadas e cantos, acompanhados a rufos de
tambores, findando os infiéis vencidos e batizados, de
acordo com o secular preceito catequístico. Há boa biblio-
grafia na espécie e os autos se espalham, notadamente pelo
Norte do Brasil, nas festas do ciclo do Natal.
Antes da primeira conflagração européia (1914-1918), os
ciganos eram considerados "mouros" pelos sertanejos. São da
terra dos mouros, esclarecia-me, vendo-os passar pela vila de
Caraúbas, meu tio Chico Pimenta (Francisco José Fernandes
Pimenta), no Rio Grande do Norte, alturas de 1911.
Era uma lembrança da parlenda que se declamava
balançando as crianças pelos braços:

Bão-balalão, Senhor Capitão,
Em terras de mouro
Morreu seu irmão...

Uma peça vulgar na indumentária popular brasileira é o
torço, turbante improvisado por um pano estreito,
envolvendo parte da cabeça feminina, ocultando os cabelos.
E comum em quase todo o Brasil. Nenhuma mulher saía de
casa com a cabeça desprotegida, ao léu do vento. Botava o
pano, ato preliminar denunciador da saída. Bote um pano na
cabeça e vã perguntar, registra, num diálogo do seu romance
nordestino, João Alfredo Cortez (Cinzas de Coivara, Rio de
Janeiro, 1954). Catarina Mendez, cristã-nova, confessava,
em agosto de 1951 ao Santo Ofício na cidade do Salvador,
seus hábitos: - pôs na cabeça toalhas lavadas para ir à igreja,
ou envolvia-se toda num manto, como informava Maria
Lourença, cristã-velha, na mesma data e local: - tomou logo
o manto e se uem aqui fazer esta confissão {Primeira
Visitação cio Santo Ofício, Confissões da Bahia, Rio de
Janeiro, 1935). Influência moura nas negras
muçulmanizadas sudanesas, vindas para o Brasil, embarcadas
no Forte da Mina, Lagos, Ajuda (Gana, Nigéria, Daomé), ou
bantas, exportadas via Cabinda ou Luanda em Angola. Cobrir
a cabeça da mulher era exigência por todo o Oriente. O
apóstolo Paulo insiste nessa obrigação. (1. Coríntios, 5-10).
Os extraordinários penteados femininos na África não são
obediência a Jesus Cristo nem a Maomé. São sobrevivências
dos cultos locais. O torço, turbante provisório, tão co-
nhecido no Brasil, é um elemento mouro. As portuguesas
antigas usavam o manto ou a coifa, touca. Dou-te uma touca
de seda, prometia Ana no Auto da índia de Gil Vicente,
1519. O torço enrola a parte superior da cabeça. O pano
cobre-a, alongando-se quase até os pés. Usando o lenço
simples, esse desce pela nuca, amarrado sob o queixo. Assim
usavam os judeus de Mogador. A praga em Sevilha para a
inquietação andeja, incessante, refere-se ao manto: - Corrido
te veas como manto sevilhano! Corresponde à figura da
gente de pano na cabeça, que não demora em casa, no velho
sertão do Nordeste brasileiro.
As nossas MÃES-DÁGUA, sedutoras pelo canto irresistível,
terão parte com as MOURAS-ENCANTADAS. A Sereia já
cantava no Mediterrâneo pelo século XV. No Atlântico
viviam os monstros espantosos, povoando o Mar Tenebroso.
A Sereia ficou algum tempo muda, passando da ave clássica
para ser peixe e morar dentro d'água. As mais famosas da
História e Lenda, aquelas que aparecem tentando a Ulisses e
aos Argonautas, morreram afogadas. Não sabiam nadar.
O ameríndio não conheceu sereias como as possuímos
agora, mas seres bestiais e famintos. MÃE-DÁGUA soprano
e prima-dona é do século XIX.
O português traria, como pensava Henry Walter Bates, a
sereia irmã da Lorelay para o Brasil. Creio ter havido
convergência da MOURA-ENCANTADA, cuja permanência
atrativa não se devia apenas ao canto melodioso, mas à oferta
de valores preciosos, ouro, prata, jóias. Quem desencanta a
moura ficará perpetuamente rico.
AS MOURAS-ENCANTADAS viviam no Algarve, Minho,
Trás-os-Montes, Beiras, regiões de larga e persistente
participação demográfica com o Brasil. Preferem residir
perto dos lagos, córregos, fontes, sempre água doce. Não
havia moura-encantada morando à beira-mar em caráter
definitivo. Tinham os mesmos hábitos das XANAS
asturianas. Uma boa percentagem brasileira canta no mar,
como as sereias literárias. Deduzo não haver tempo para
penetração fixadora. Vieram pelo mar e algumas continuam
no oceano. Mas parte vultosa alcançou o Rio Amazonas e
afluentes, firmando posse e exercendo a magia
enternecedora e falsa da cantilena mortal. A Sereia histórica
atraía para matar. A MÃE-D'ÁGUA, sereia fluvial brasileira,
seduz para o amor e a vida farta e feliz. Tem poderes
dominadores da economia, fator negativo às colegas de
Homero e Ovídio. Há muitos anos defendo essa influência
(Geografia dos Mitos Brasileiros, Rio de Janeiro, 1947). No
Brasil quase todos os entes fabulosos enriquecem seus
devotos: mãe-d'água, saci-pererê, caipora, cachorrinho-
d'água... A MOURA-ENCANTADAdeterminou esse atributo
nas MÃES-DÁGUA.
Na Espanha e Portugal o mouro é mágico, sabedor de
segredos miraculosos, senhor de recursos extranaturais.
Mesmo os fenômenos de erosão são explicados como "obra
dos mouros".
No século XVI havia uma ORAÇÃO DO MOURO-
ENCANTADO possuindo forças maravilhosas para apaixonar
qualquer pessoa masculina. Essa oração veio para o Brasil e
Guiomar d'Oliveira, cristã-velha, casada com Francisco
Fernandes, sapateiro na Bahia, teve-a de Antônia Fernandez,
de alcunha "a Nóbrega", natural de Guimarães, taberneira em
Lisboa e sabendo feitiços. A oração era assim: - Fuão eu te
encanto e reencanto com o lenho da vera cruz, e com os
anjos filósofos que são trinta e seis e com o Mouro-
Encantado, que tu te não apartes de mim e me digas quanto
souberes e me dês quanto tiveres e me ames mais que todas
as mulheres. Dizia-se pela manhã (Confissões da Bahia, Rio
de Janeiro, 1935). Essa oração, popular em 1591, não a
encontrei nas investigações para o Meleagro, "Depoimento e
Pesquisa sobre a Magia Branca no Brasil" (Rio de Janeiro,
1951), quando pesquisei orações-fortes.
No Brasil do Norte o papel cabe ao holandês, mesmo nas
terras onde nunca esteve o seu domínio no século XVII
(Geografia do Brasil Holandês, Rio de Janeiro, 1956). Quem
aparece em sonhos indicando tesouros é normalmente um
holandês, alma de holandês, de olhos azuis e fala atravessa-
da. Deixaram, como os mouros na Península Ibérica, um
rasto faiscante de pedrarias e moedas de ouro.
Uma constante tradicional do holandês fabuloso é a
construção de edifícios sólidos, desafiadores do tempo. Até
mesmo igrejas e conventos o batavo teimou em erguer,
embora bom luterano. Naturalmente os fortes e as fortalezas
dão ao povo uma impressão do esforço flamengo, da espan-
tosa durabilidade. E assim vão contando aos filhos e netos o
esforço holandês que fora realmente lusitano. Em Natal, o
Forte dos Reis Magos foi constando pelos portugueses de
janeiro a junho de 1598 e definitivamente em I6l4-l6l9 pelo
engenheiro Francisco de Frias da Mesquita. É o mesmo que
se mantém na foz do Rio Potengi. Os holandeses tomaram-
no em dezembro de 1633. Abandonaram-no em janeiro de
1654. Sem nenhuma modificação.
Para a imaginação popular o Forte foi um trabalho holandês
e com simples técnica feiticeira. O Prof. Clementino
Câmara, no seu Décadas (Recife, 1936), registrou a lenda: -
"Quando não tínhamos o que fazer, palestrávamos acerca até
de coisas sérias. Foi 'Caiçara' quem me contou primeiro
como se fez a fortaleza. O terreno anoitecera sem indício de
trabalho. De noite, vieram os holandeses, por baixo do chão,
barrete vermelho, iniciaram a obra, de manhã estava
concluída. Ali! povo danado! Exclamava ele diante de nós
boquiabertos!"
Na Europa o mouro fizera semelhantemente. Ce sont même
les Serrasins qui ont construit l'église de Notre-Dame,
informa Pimpurniaux. Esses sarracenos edificaram uma
igreja em Andellene e uma abadia no Val de Saint-Lambert,
perto de Liège. O nome do campo vizinho é denunciante: -
Champs des Maures.
O barrete vermelho, que o moleque Caiçara evocara a
Clementino Câmara, é urna reminiscência do fez
muçulmano, turbante, toque, escarlates, mencionados nas
versões européias sempre que o mouro comparece. Assim
usavam também na Pérsia e na índia. O desembargador Brás
Rodrigues Pereira vira-os em Goa de 1710: - "Os mouros
andam vestidos com a mesma gala de que os dotou a
Natureza, e somente trazem hum pano e hum barrete
vermelho". Idênticos aos nossos antigos CONGOS,
MOÇAMBIQUES, MACULELÊS, barretes cilíndricos ou
cônicos.
O mouro da CHEGANÇA veste vermelho, inclusive o
turbante com a meia-lua. Dos três Reis-Magos, Belchior, o
rei negro, é mouro, de turbante.
O SARAMBEQUE, que Luciano Gallet dizia dança africana
aclimatada em Minas Gerais, considero-a possivelmente
berbere, variante da SARABANDA, não mais em
movimentos lentos e nobres, mas já em Portugal bailada
com meneios indecorosos, popular e lasciva, inicialmente
privativa de mulheres, índice do requinte mouro em não
fatigar-se e ver dançar os corpos juvenis e femininos.
Seiffedin-Bei, da embaixada da Turquia em Washington, a
quem Oliveira Lima sugeria que valsasse, respondia: - Ma foi
non, dans mon pays nous les faisons danser pour nous.
Começara o SARAMBEQUE aos pares, como o minueto e a
gavota, terminando em círculo, ardente e festivo. A
SARABANDA inspirara Haendel, Bach, Corelli. O
SARAMBEQUE ficou nas composições anônimas e jubilosas.
O prestígio da História do Imperador Carlos Magno e dos
Doze Pares de França trouxe inevitavelmente os combatidos
mouros, derrotados pela espada de Roldão (Motivos da
Literatura Oral da França no Brasil, Recife, 1964). Os
episódios da epopéia motivaram representações teatrais,
popularíssimas pelo século XIX no Brasil Central e
Meridional. Os cantadores contemporâneos habituaram-se a
mencionar os guerreiros de Mafoma, adversários do
paladino. Inclusive o príncipe omíada Abd el-Rahman,
primeiro emir independente hispânico:

Roldão pela força
Casou c'uma moça
De Abderramã!

Servir uma refeição no chão limpo, os pratos diretamente no
solo nu, sem uma esteira, uma toalha grosseira de algodão, os
convivas sentados em terra, era comida de mouro. Beber
depois de comer e não durante a refeição, lembrança moura.
Sentar-se sobre as pernas dobradas era feito de mouro. De
cócoras era indígena. Pernas cnizadas, mulherfazendo
renda, é modo japonês e chino.
Uma etiqueta oriental, milenar e simbólica, atravessou
catorze séculos, mais ou menos íntegra. Ainda nos resta,
contemporaneamente, um visível resquício de sua
existência funcional.
Desde os califas omíadas e abássidas, o documento assinado
pelo Comendador dos Crentes obrigava o destinatário,
depois da leitura, a beijá-lo e pô-lo um instante sobre a
cabeça. O beijo era homenagem de veneração submissa. A
missiva na altura da cabeça significava a disposição de perder
a vida antes que desobedecesse e não cumprisse, fiel e
completamente, tudo quanto a ordem contivesse. Esses
gestos se tornaram instintivos, maquinais, inevitáveis.
Do Paquistão, Pérsia, toda a Ásia Menor e África do Norte,
conheceram e acataram a praxe que se transmitiu ao Império
Bizantino. Árabes e mouros levaram-no à Península Ibérica.
Veio ter, oficialmente, ao Brasil.
É de fácil encontro nas coleções das Mil e Uma Noites,
repositório de usos e costumes do mundo islâmico desde o
século X.
Da primeira VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO às partes do
Brasil, julho de 1591, apresenta-se a provisão do Cardeal
Inquisidor-Mor, Arquiduque Alberto, ao Bispo do Brasil,
Dom Antônio Barreiros, e o ditto senhor Bispo leo e depois
de lida a beijou. Levada a provisão ao Paço do Concelho da
Bahia, Martim Afonso Moreira, juiz mais velho, leo e lida a
beijou e pôs na cabeça. Em outubro de 1593 repete-se o
cerimonial na vila de Olinda. O licenciado Diogo do Couto,
Ouvidor Eclesiástico de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba,
leo toda e despois de lida a beijou e pôs na cabeça. Na
Câmara, Francisco de Barros, juiz mais velho, leo toda em
voz que todos ouvirão e despois de lida todas a beijarão e
poserão na cabeça, prometendo obediência e fervor. Mesmo
ato em Itamaracá e Paraíba.
Na Relaçam da Aclamação de D. João IV, na Capitania do
Rio de Janeiro, em 1a de março de 1641, recebendo cartas o
Governador Salvador Correa de Sá e Benevides,
reconhecendo por o sobrescrito serem de sua Majestade,
levantandose em pé abrio bua, e beijando, e podo sobre sua
cabeça a Real firma, que nelle vio, não duvidou em
reconhecer e proclamar o Duque de Bragança legítimo rei
de Portugal. Nesse 1641, na cidade do Salvador, o
Governador D. Jorge de Mascarenhas, Marquês de Mon-
talvão, lê a Ordem Real de sua destituição, e vendo a ordem
de Sua Majestade a beijou, e a pôs sobre a cabeça, e largou o
cargo com alegre semblante (Frei Manuel Calado, O
Valeroso Lucideno, II, Lisboa, 1648).
Não creio ter havido uma lei árabe, moura, turca,
determinando ósculo e toque na cabeça da sigla califal. Seria
um dever consuetudinário, fiel à pragmática do Oriente.
Resta-nos beijar a carta cuja letra é uma projeção afetuosa.
Até as primeiras décadas do século XX as senhoras
brasileiras, em absoluta maioria, cavalgavam em silhão,
sentadas de lado, a perna esquerda na curva saliente do
gancho e a direita pendente, apoiando-se no único e
pequenino estribo. Reprovava-se o raríssimo montar como
homem, escanchando-se. Ninguém previa o calção e as
calças compridas, facilitando a serventia da mesma sela para
o animal utilizado por ambos os sexos.
O transporte feminino, milenar e que ainda alcancei nos
sertões do Nordeste, era a liteira, talqualmente empregavam
as matronas em Roma. Viera do Oriente e os romanos
tiveram-na do Egito. Liteira de Salomão, dez séculos antes
de Cristo. Liteira do Imperador Augusto. Liteira do Cardeal
Richelieu. A do Cardeal D. Henrique, derradeiro rei dos
Aviz. A cadelinha, ainda brasileira em 1890, era neta
sintética da liteira. Mas isto é outra estória, como diria
Kipling. A cadeirinha resistiu no uso feminino até os
primeiros anos do século XX em todo o mundo muçulmano.
Nos finais do século XIX transitavam as andilhas, em cima
das albardas, presas com a cilha resistente, forma usual para a
jornada das velhas donas sertanejas, de categoria social mais
modesta. Rafael Bluteau, em 1721, informava: - Hoje é
pouco usado. Em Lisboa usam d'ella as parteiras, referindo-
se ao Portugal de D.João V. No Brasil nordestino as andilhas
eram vistas à volta de 1900. No Rio Grande do Norte, Filinto
Elísio de Oliveira
Azevedo (1852-1944) e Joaquim Inácio de Carvalho Filho
(1888-1948) viram andilhas no Seridó e pelo Oeste do
Estado, quando rapazes. As liteiras, mais cômodas, foram
contemporâneas. Ainda as vi em 1910, minha mãe viajando
numa delas.
A técnica de montar de lado, privativamente mulheril,
recebemos de Portugal, com os animais de sela, ignorados
no Brasil indígena.
Dizem ser tamém influência moura, porque as damas
viajaram de liteiras ou de carros, pela Europa romana e
medieval.
Debater-se-ia o problema da origem, dando-o por europeu,
comum, histórico e normal. A indumentária não consentia
outro processo, acomodando a vastidão esvoaçante das
longas vestimentas. Coincidia com os trajes volumosos da
mulher oriental, viajando sentada, imóvel, no camelo, ou
deitada nas liteiras.
Vamos excluir as amazonas, desconhecendo saias ou tendo-
as demasiado curtas. A posição na montada, para defender o
pudor, obrigaria a permanecer com as pernas juntas ou
próximas. No Brasil, as damas vestiam as montarias, saias
imensas, cobrindo folgadamente desde a cintura, varrendo o
solo com as fraldas. Mas a lição oriental é a liteira. As rainhas
guerreiras montavam os camelos na hora da batalha,
deixando o transporte comum. De mais a mais as mulheres
muçulmanas, au temps jadis, não jornadeavam com os
esposos, mas em grupo separado, sob a custódia dos eunucos
e guardas fiéis, temendo as surpresas do assalto.
Não será fenômeno difusionista, mas de convergência ou
simultaneidade pela ação de elementos idênticos na
semelhança ecológica.
Um jogo pré-islâmico, azlam, maisirou, maisar, proibido por
Maomé {Alcorão, Suratas II, 216, V, 92), é popular no Brasil.
É a forma de tirar a sorte pela escolha de varetas, flechas,
palhas, com dimensões várias. A mais curta denuncia quem
perdeu. É a courtepaille, denominando uma romança
cantada no Canadá, versão da Nau Catarineta, onde ocorre a
fórmula para eleger quem deva sacrificar-se pela tripulação.
Usa-se nos jogos de prenda e mesmo na eleição de chefia
nas brincadeiras infantis. Uma reminiscência da Caldeia. O
profeta Ezequiel (XXI, 21), seis séculos antes de Cristo, vira
o rei de Babilônia consultando a sorte numa encruzilhada,
misturando as setas, commiscens, sagittas, para decidir-se se
atacaria Rabat, cidade dos amonitas, ou Jerusalém, capital dos
judeus.
Discute-se a reclusão feminina na Península Ibérica, o
ciumento recato que afastava damas e donzelas do contato
social masculino, teria fontes no domínio mouro,
reminiscências do harém. Por todo o século XIX a tradição
comum no Brasil, pelo interior de todas as províncias, era
distanciar a mulher do homem que não fosse intimamente
aparentado, pai, irmão, padrinho, esposo. Semelhantemente
por toda a América Espanhola. Todos os viajantes
estrangeiros registraram o isolamento em que vivia a família,
mesmo abastada, e as raras ocasiões em que o visitante,
generosamente recebido, percebia um vulto de mulher,
rápido e sempre fugitivo aos olhos estranhos. Constituiu
fórmula medieval, etiqueta soberana. O convívio natural nas
cortes dos reis iniciou-o a França dos Valois e a Inglaterra
dos Stuarts. Mesmo assim, fora dos momentos festivos,
saudava-se a rainha indo vê-la no seu aposento, imóvel no
estado, cercada de damas desconfiadas e vigilantes. Há,
nesse particular, uma literatura interminável. Jamais
participavam da refeição havendo hóspedes. O critério
íntimo era daquela fidalga castelhana, recadando ao marido
que a convidava a jantar com os amigos: - Decid al Duque,
qui si me hizo baxilla, no me harci vianda, no que muito
folgou Dom Francisco Manoel de Melo, repetindo,
concordante, apesar de solteirão com bastardo. Em casa de
Mistral, conta Daudet, havendo convidados sa mère ne se
met pas à table. Era 1867. Festa imperial de Napoleão III.
Mesmo na corte de Luís IX de França, a rainha-mãe, Branca
de Castilha, comia dou côté ou le roi o ne mangeait pas,
informa Joinville.
Quanto ao Conde de Nassau, em 1639, as damas portuguesas
do Recife convidadas para jantar respondem que o jantar à
sua mesa haviam por recebida a mercê, porém que não era
uso, nem costume entre os portugueses comerem as
mulheres, senão com seus maridos, e ainda com estes era
quando não havia hóspedes em casa (não sendo pai, ou
irmãos) porque nestes casos não se vinham assentar à mesa,
conta Frei Manuel Calado (O Valeroso Lucideno, Cap. IV,
Lisboa, 1648).
Pela Europa, antes da cavalgata mourisca pelo Sul, já os
romanos, na dura era republicana, guardavam as esposas e
filhas no gineceu. A relativa liberdade grega era rijamente
censurada por Eurípedes e competia às cortesãs o uso da
comunicativa licença.
Não creio que os europeus, e decorrentemente os
descendentes ameríndios, aguardassem a passagem moura
para a fecundação dos zelos e desvelos em que se mostravam
exímios. Mulher em casa e perto da brasa. Homem no
trabalho, mulher no borralho. Mulher jiando, mulher
reinando. En la vida, la mujer tres salidas ha de hacer. al
bautismo, al casamiento y a la sepultura o monumento. Al
hombre, en el brazo dei escudo, y la mujer en el dei huso.
Esta era a LEI VELHA... O ciúme masculino não tem pátria
de origem.
O cúmulo no vocabulário agressivo é dizer o que Mafoma
não disse do toucinho. Proibindo o profeta a carne de porco
(Suratas II, 168; V, 4; XVI, 116), a maldição muçulmana
deveria ser formal.
Misteriosamente (porque não vive noutras regiões da
pastorícia brasileira) resiste no Nordeste o ABOIO,
documento impressionante do canto oriental, marcado em
vogais, ondulante, intérmino, insuscetível de grafação em
pentagrama, mas reduzível às notações melismáticas. Longo
e assombroso testemunho da legítima melodia em neumas,
recordando a prece da tarde, caindo do alto dos minaretes.
Nunca o deparei em Portugal, mesmo pelo Ribatejo, e jamais
o registraram no Rio Grande do Sul. De tradicional cultura
ganadeira no Brasil. Parece-me ter vindo dos escravos
mouros da Ilha da Madeira, trazido o aboiado pelos
portugueses emigrantes e não presença direta do elemento
criador da monopéia. Carlos M. Santos (Tocares e Cantares
da Ilha, Funchal, 1937) é o autorizado informante,
comentando esse canto para tanger gado, entoado numa
série de interjeições semelhantes a vocalises, tendo bastante
acentuado o estilo oriental, principalmente na neuma, a
extraordinária semelhança com a "mourisca", donde parece
ter saído. A explicação mais plausível é o nosso aboio
originar-se dessa modulação com que os prisioneiros mouros
instigavam a boiada em movimento na Ilha da Madeira.
Não lembro os doces mouros no fanatismo do açúcar, por
eles revelado ao Mediterrâneo, plantações da Sicília, de onde
as primeiras mudas viajaram para as possessões portuguesas
no Atlântico. Esses doces são nossos familiares, os mais
fáceis, comuns e preferidos, na base de gema d'ovos, farinha
de trigo e açúcar. Vieram para o Brasil com a portuguesa que
aprendera o modelo mourisco. Onde estiver o mouro, o
árabe, aí estará, infalivelmente, a doçaria.
José Mariano Filho publicou precioso ensaio sobre as
influências Muçulmanas na Arquitetura Brasileira (Rio de
Janeiro, 1943), reixas, muxarabiês, torres de igrejas, dintéis,
molduras de janelas e portas interiores. Recordo, na mobília
tradicional, os sofás amplos e baixos, escabelos, estrados,
palanquins. E os leques, guarda-sóis, véus para o rosto, tinta
para as sobrancelhas, líquidos que dão brilho aos olhos. As
longas unhas esmaltadas. As frutas secas e açucaradas. O
cuzcuz. A linguagem por acenos. Os pátios interiores, com o
pequenino repuxo silencioso. O arroz-doce.
O amor ao cavalo, o mais nobre dos animais úteis, não
tivemos do mouro, mas do árabe, especialmente do nômade.
Mas dos mouros recebemos, via Portugal, muito molde de
equitação: estribo de caçamba, espora de rosetas, chicote de
couro. O árabe cavalgava à estardiota, estribos longos. O
mouro à gineta, estribos curtos. As armas curvas. Acicatar o
animal nas espáduas e não nas ancas, à moda do europeu. As
selas grandes e pesadas, substituídas no século XIX pelos
leves selins do gosto inglês. As "fantasias" cavaleiras.
Apanhar o lenço no galope. Corrida do pato. Os floreios de
alfanjes e cimitarras. As homenagens pela cavalaria.
Na vida pastoril de outrora, séculos XVIII e XLX, quando os
fios de arame farpado não dividiam as pastagens e a gadaria
era criada solta e livre, confusa, indeterminada, difícil a
identificação da propriedade, animais sem ferros e marcas de
posse, existindo o gado de vento, de evento, provindo das
manadas erradias, tresmalhadas nos períodos de guerra, com
os indígenas no Nordeste, com o espanhol na fronteira
meridional, na intimidade psicológica das estâncias e
fazendas, o abigeato não era crime, punível e reprovável.
Seria forma hábil de aquisição oportuna, gratuita e natural.
Deparar reses anônimas nas querencias e malhadas e incluí-
las no lote patronal, constituída quase uma modalidade de
serviço, injustificável quando renunciado. O ladrão de gado,
o desprezível ladrão de cavalo, capitulava-se penalmente se
operasse na limitação da unidade recolhida. Arrebanhando
porções maiores, atendia a um direito consuetudinário, uma
lei antiga, notória e comum. As famas dos velhos sertões
foram incontáveis, remembrando ardis e manobras de
captura, condução e consumo, idênticas em toda a América
onde o gado, bovino e eqüino, constituísse patrimônio
fundamental na economia coletiva.
Eram uma presença árabe, caracteristicamente moura, as
cavalgatas noturnas para a prea dos rebanhos alheios,
pastando ao relento, nos descampados sem pastores. Os
chefes, montando éguas porque essas não rincham,
iniciavam a coluna cauta e sem rumor. Em Marrocos, um
sheik venerando, soberano de grupo destemido, o ruban da
Legião de Honra sangrando na brancura do albornoz,
elogiava ao General Lyautey os benefícios da ocupação
francesa. Caminhos tranqüilos para o trânsito das caravanas,
searas com a garantia das colheitas, aldeias libertas dos
assaltos depredadores. Mas suspirava, olhando as estrelas - É
verdade! Mas que linda noite para roubar cavalos, se o
franceses não estivessem aqui!
Nenhum povo nômade considera o furto de animais
encontrados no campo como um delito. Essa herança
milenar de ação criminosa, tornada lícita pela continuidade
normal, perdurou no Brasil pastoril, flor tropical e ávida,
com raízes mouras e árabes mergulhadas no sem-fim dos
tempos. Os berberes, mouros típicos, vieram da Ásia, filas de
cavaleiros buscando o Ocidente, rumo ao Maghreb, Argélia
e Marrocos, quatro ou cinco séculos antes de Cristo. O
camelo tornou-se utilizável para eles no segundo século da
era cristã, irradiado do Egito e na Cirenaica. O berbere, no
alto do seu camelo, dominou a geografia do Saara.
Lembro a alparcata, alpargata, como escrevia o Padre
Antônio Vieira, alpercata, apragata, para o nordestino, do
árabe alpargat, o mais antigo calçado dos climas tropicais,
muitas vezes milenar e gentilmente contemporâneo. Levou-
o o berbere para Espanha e Portugal desde princípios do
século VIII. É ainda a defesa podálica dos beduínos, como
era calçado dos príncipes guerreiros, almorávidas e
almóadas. O tipo comum no sertão velho era simples, mde,
cômodo, sem a estonteante complicação moderna das
correias e fivelas decorativas. Duas faixas estreitas de couro,
partindo dos lados da palmilha, cruzavam-se no peito do pé,
sustentando uma fina tira de sola que passava entre o polegar
e o segundo dedo. Era o mais antigo calçado do mundo em
pleno uso atual. BAXAE egípcia, PEDILON grego, SOLEA
romana, ponto de partida para as variedades industrializadas.
Popular quatro ou cinco séculos antes de Cristo. Estava nos
pés das deusas e das ninfas. E vive pelo interior da África
Setentrional (Dicionário do Folclore Brasileiro, I, Rio de
Janeiro, 1962). No sertão do Nordeste brasileiro está
rareando a velha alpercata de rabicho, que usei, como os
caravaneiros do Saara, os vaqueiros e os cantadores.
Convenço-me de que o pandeiro e seus descendentes,
mesmo sendo asiáticos, devem os espanhóis e portugueses
aos mourps sua aclimatação. O pandeiro redondo ou
retangular, adufe, o tamborim que os tupiniquins ouviram
soar pelos marinheiros de Pedro Álvares Cabral em maio de
1500 nas praias de Porto Seguro, foram e são instmmentos
inseparáveis dos cantos e danças mouras. Não estavam no
Brasil do século XV, como estavam os tambores e trombetas.
O português trouxera aquela oferta dos mouros, mouriscos,
moçárabes, mudejares, bailarinos e cantadores, quando a
Espanha era muçulmana e Portugal quase agareno. O adufe,
que Maria, irmã de Moisés, com suas companheiras, tocou e
contou, festejando o afogamento egípcio no Mar Vermelho
(Êxodo, 15,20), era percutido na cidade do Salvador no fim
do século XVI e sempre por mão feminina, como ainda
ocorre em Portugal na marcha das romarias e folgares do
arraial.
De sua popularidade portuguesa e quinhentista, é suficiente
o espantoso Gil Vicente, depondo em 1530:

Em Portugal vi eu já
Em cada casa pandeiro!

Há uma superstição curiosa e ainda viva e respeitada entre
brasileiros e mesmo em gente moça de cidade grande. Não
entrar pela porta por onde saiu e não sair pela porta por
onde entrou. A exigência acentua-se nas visitas às casas
amigas, onde a intimidade permite o livre exercício da
crendice. É espantosamente antiga. Veio da Arábia através
da posse moura e árabe na Espanha e Portugal. No ano de
611, o profeta Maomé combatia esse hábito pré-islâmico,
arraigado nas populações pagãs do século VII. Os peregrinos
à Meca, voltando para casa, faziam abrir uma abertura no
muro posterior da residência por onde entrassem. Pela porta
principal, por onde haviam saído, não ousavam penetrar.
Maomé deixou uma alusão expressiva na surata da Vitela (II,
185), tentando fazer desaparecer essa reminiscência
herética, do tempo em que a Oaaba de Meca hospedava 360
ídolos ou fetiches das tribos árabes. O mouro só aceitou a
doutrina do Alcorão impondo a inarredável colaboração dos
seus marabutos. Não ia abandonar uma tradição sugestiva
como essa, que determinava dois caminhos na própria casa
ou tenda, regressando de Meca e despindo o birãm ritual.
Chegou a Espanha nos princípios do século VIII, com a
indispensável bagagem de suas venerandas superstições. No
fim do século XX deparamo-la, íntegra, numa das maiores
cidades do Brasil, num industrial culto, moderno, brilhante.
Alexandre Herculano ensinava que o Portugal muçulmano
constava essencialmente de egípcios e mouros. Muitíssimo
mais destes que daqueles. Esses mouros foram grandes
elementos na dispersão de contos populares orientais
(Pérsia, China, índia), d'África Setentrional para África negra
nas vias comerciais antiquíssimas, fundindo-se com as
populações locais, sudanesas e bantas, e bem anteriores ao
avanço teocrático e militar do arabismo maometano. Muitos
episódios das Mil e Uma Noites, e outras fontes clássicas,
alcançaram o Atlântico por intermédio desses berberes, um
fundamento étnico africano que o cartaginês, o romano, o
vândalo, o bizantino, o árabe, dominaram sem
despersonalizar.
É de crer que muitas estórias trazidas pelos escravos da
África de Oeste, ligadas aos ciclos d'alta antigüidade arábica,
tenham tido esses portadores para a subseqüente
comunicação, terminada no povo brasileiro.
Mouras legítimas são as exclamativas de desesperação e
desabafo, vulgaríssimas entre nós, ARRA! ARRE! IRRA! E a
interjeição RAA, com que os nossos comboideiros e
tangedores fazem deter e movimentar-se a fila de alimárias
nas estradas de tráfico, é a mesma que ocorre na voz dos
cameleiros em toda a orla marítima d'África do
Mediterrâneo, e pelo mundo árabe da Ásia.
Não está dicionarizado o popularíssimo RALA ou ALÁ, de
desprezo, abandono, conformação. Não valendo
absolutamente o vá lá, mas constituindo positiva invocação
divina, ALÁ, "boto para Deus", "entrego a Deus", "faça-se a
vontade de Deus!", é inseparável do vocabulário tradicional
e dou meu testemuho do seu emprego contemporâneo e
normal. Denuncia-se pela guturalização do R.
Tenho na mais alta importância psicológica essas interjeições
e formas comuns de sublimação verbal, significando
processos irreprimíveis de exteriorização temperamental,
depoimentos autênticos do consuetudinarismo social,
imemoriais e genuínos.
No gesto normal de chamar alguém, o europeu movimenta
os dedos para baixo, a mão em pronação. O mouro mexe os
dedos para cima, a mão em supinação. Este é o aceno do
povo. O primeiro, em pessoas de sociedade.
E tradicional a imprecisão, forma vaga, com que os
habitantes no interior do Brasil informam aos viajante o
espaço a percorrer: - É ALI!... indicam, estendendo o lábio e
erguendo o queixo, nas famosas léguas de beiço,
intermináveis. René Basset recorda, na Argélia e Marrocos, a
mesma indeterminação alusiva às distâncias futuras. Os
mouros, invariavelmente, respondiam: - Ba'id cbouia, "é
perto", embora distasse muitos quilômetros.
Beijar a própria mão, como homenagem ao interlocutor ou
carinhosa saudação ao distante, é gesto ainda comum no
cerimonial popular brasileiro. Continua encontradiço e vivo,
da Mauritânia ao Egito, notadamente em Marrocos e Argélia,
e mesmo entre os árabes da Ásia, fonte da cortesia. Em
setembro de I6l8, o Doutor Melchior de Bragança, judeu
marroquino, dizia, na cidade do Salvador, de sua vulgaridade
pela Berbéria. Em maio de 1823, a escritora inglesa Maria
Graham, visitando os escravos negros expostos no mercado
do Valongo no Rio de Janeiro, recordava: -"Fiz um esforço
para lhes sorrir com alegria e beijei minha mão para eles;
com tudo isso pareceram eles encantados" (Diário de uma
Viagem ao Brasil, 254, São Paulo, 1956). Rui da Câmara
descreve um duelo sem armas entre populares numa rua de
Larache em Marrocos: - "Bem surrados e bem cheios de
sangue um e outro, o heraldo interpôs-se entre os
combatentes. Estes deram a mão e cada um beijou a sua".
Outra evocação de uma aula pública de esgrima:
Os cortes e as paradas sucedem-se com uma rapidez e uma
seguridade pasmosa. O que foi tocado dá sinal, saúda o seu
adversário e dá a volta ao círculo saudando os espectadores,
e torna a principiar um novo assalto. Ao findar a lição,
passam a cana à mão esquerda, dão a direito, beija cada um a
sua, e pondo as canas no chão, deixam o lugar aos outros e
vão sentar-se entre os espectadores que os cumprimentam
ao passar... As salas d'esgrima, ainda as mais sérias, teriam
alguma coisa que aprender ali. O espírito dos cavaleiros
omíadas tem-se conservado vivo nove séculos!, Rui da
Câmara escrevia em 1870.
Uma pequenina série diferencial:
O europeu mostra o seu respeito tirando o chapéu, beijando
a mão alheia e passando por detrás; o mouro tirando as
babucbasow chinelas, beijando a própria mão e passando por
diante.
Ainda um traço dos berberes:
O traço mais profundamente característico desta raça é o
seguinte: o dever sagrado de vingar a morte por assassinato
de qualquer membro da família; daqui resulta um duelo
eterno e sucessivo.
As inimizades entre famílias nordestinas, durando séculos,
numa continuidade de vinditas mortais, sangue por sangue,
sertões da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará, atestam a
herança moura da vingança implacável, acima de qualquer
imagem material de indenização compensadora, o preço do
sangue, dos germânicos.
No sertão velho as visitas de passagem ou de negócios
rápidos eram recebidas no alpendre, nas latadas, fora do
corpo da casa. É no lado exterior da residência moura, num
banco de pedra à sombra de trepadeiras, a recepção comum
pela África Setentrional, entre homens fiéis aos costumes
seculares. Mandar entrar, sentar-se são denúncias de usos
ocidentais.
Em assunto de saudação, apenas entre árabes e mouros
encontro o gesto de acenar com todo o braço direito, ou
ambos, nas despedidas. Na Europa e pela América
portuguesa, espanhola, inglesa, agitam a mão ou as mãos, nos
momentos efusivos.
Os cônjuges dormirem em camas separadas é costume
mouro.
Dizem em Portugal: - "Hóspede e pescada aos três dias
enfada". E no Brasil: - "Hóspede de três dias dá azia". É
preceito mouro, impondo limite ao Ed-diaf Al-lah, hóspede
de Deus. Ensina Ibn Khaldun: - Vós sabeis que a
hospitalidade deve ser dada por três dias.
Entortar a boca, lábios de través, boca de solha, é o gesto de
desdém e pouco caso dos mouros, já assinalado no Alcorão,
surata 21, v-17. E nosso também.
O ideal serviço de banquete coletivo, quatro convivas em
cada mesa, diz Ibn Khaldun que os árabes trouxeram da
Pérsia.
Morder os dedos em sinal de cólera, desacordo, protesto,
está registado no Alcorão, Suratas 3, v-115; 14, v-10; 31, v-
17. Jamais deparei noutra fonte. Tão popular no Brasil.
As selas do serviço das fazendas de gado, em todo o
território brasileiro, eram fiéis ao modelo mouro, grandes e
pesadas, com arções dianteiros e traseiros elevados e
semicirculares, destinados a reforçar o equilíbrio do
cavaleiro. John Mawe, viajando por Minas Gerais (1809), e
Henry Koster pelo Nordeste, de Pernambuco ao Ceará
(1810), despertavam intensa curiosidade utilizando os selins
ingleses, pequenos e leves, que ainda não conseguiram fazer
desaparecer as prestigiosas selas de campo, visivelmente
berberes, nos domínios da pastoricia. Diminuíram no
comprimento, do Rio Grande do Sul ao Piauí, mas
denunciam o molde mourisco que espanhóis e portugueses
vulgarizaram no Novo Mundo.
Os velhos sertanejos jamais aparavam as crinas e cauda de
suas montadas, preferindo as cilhas pouco apertadas.
Herança positivamente moura. Os europeus faziam
exatamente o contrário.
Na Ilustre Casa de Ramires (1897), Eça de Queirós descreve
a entrada do Fidalgo e do Governador Civil em Oliveira,
"ambos de chapéus de palha, ambos de polainas altas, ao
passo solene das duas éguas - a de Gonçalo airosa e baia, de
cauda curta à inglesa, a do Cavaleiro pesada e preta, de
pescoço arqueado, a cauda farta rojando as lajes". Esta última
era uma permanência da elegância eqüestre moura.
Conduzir o alforje no arção dianteiro da sela é modo mouro.
O europeu amarra-o habitualmente à ganipa.
Muitos desses motivos capitulados mouros reaparecem no
Brasil através do israelita, filho de Jacó (Israel), neto de
Abraão, pai de Ismael, patriarca dos árabes. Sei muito bem
tratar-se de lenda e jamais acreditei nem vi provas científicas
do parentesco árabe-judaico, sob a égide convencional,
meramente lingüística, dos "semitas". De histórico existem
os contatos remotos pela vizinhança, alianças e guerras
intermitentes, e a fusão administrativa sob o domínio de
Roma Imperial. Não sei dizer desde quando os judeus
estabeleceram-se em terras árabes, impondo presença
econômica e figurando no desenvolvimento cultural. Lugar-
comum é a tradição bíblica, mais ou menos confusa, nas
pregações de Maomé e exposta no Alcorão.
Surpreendente é a tradição do judeu no extremo africano do
Mediterrâneo, visível nos vestígios toponímicos, como
HADJR SOLEIMAN, "pedra de Salomão", nos confins
fronteiriços da Argélia-Marrocos, e mesmo a obstinada
versão oral de que Joab, general do Rei Davi, perseguindo os
filisteus (antepassados dos berberes, segundo Ibn Khaldun),
fora parar em Marrocos, deixando uma estela comprovadora
em Djebel Ben Sliman, durando séculos, informa Gattafossé,
com bom suporte bibliográfico. E muitos guerreiros ficaram,
casando com nativas, há cerca de três mil anos, residindo
n'África Setentrional. E vivem, history and story,
reminiscências de uma das dez tribos, exiladas quando
Salmanassar IV, rei da Assíria, destruiu o reino de Israel
(século VIII a.C.), havendo-se fixado na terra marroquina,
tomando o nome de EFRATINS, do seu primeiro soberano,
Abraão, o Efraímita, da tribo de Efraim, e nunca mais
regressando à região natal.
E ainda recordam a aliança do Rei Salomão com Hirão, rei
de Tiro, negociando com Ofir e Tarsis, esta arrasada pelos
cartagineses no século VI a.C. Maghreb e Ibéria (Argélia-
Marrocos e Espanha) foram sedes de comércio exportador
para o Oriente Médio Próximo. Numerosa a presença israeli-
ta nessa oportunidade econômica.
Renan, no momento de avoir ses heures, nunca suspeitou de
a hora popular francesa possuir minutos muçulmanos.
Serenamente decidiu: - L'Arabe, du moins, et dans un sens
plus général le musulmati, sont aujourd'hui plus éloignes de
nous qu'ils ne l'ont jamais été. Era justamente o que se dizia
em França, naquele fevereiro de 1862: - Chercher midi à
quatorze heures.
Os árabes, mais precisamente os mouros-berberes, passaram
os Pireneus em 719 e Charles Martel deteve a preamar de
Abd el-Rahman em Poitiers (732) quando havia posse da
terça parte do território francês, e o Duque Eudes da
Aquitânia era sogro do mouro Otman. Os vales do Rhôme,
até Lyon, do Garonne, seriam quase mouraria, quando a
algara invadiu o Loire. Até o segundo terço do século VIII,
estabeleceram-se na Septimânia, no domínio de Narbonne,
Agde, Carcassone, Maguelonne (ninho da PRINCESA
NIAGALONA, tão vulgar, outrora, no Brasil), Elme, Nimes,
Uzés. Governavam, cunhavam moedas, plantavam famílias.
Mesmo depois da vitória de Pepino, o Breve (759), os
mouros continuavam relacionados pelo Golfo de Lyon e
Provença, traficando, assaltando, convivendo, com suas
moedas em uso corrente. Os velhos "romances" franceses
conservam esses pormenores românticos, princesas raptadas
pelos sarracenos, valentias de paladinos libertadores,
toponímia, enfim a inclusão mourisca na literatura oral,
superstições, terapêutica, encantos, assombrações. Quando,
1609-1610, Filipe III expulsou os mouros de Espanha,
notável percentagem refugiou-se no Sul da França,
reforçando o fermento influenciador.
Até o século XVIII os corsários barbarescos (Marrocos,
Argélia, Tunísia), na inquieta violência depredadora,
écumaient la Mécliteranée, como evoca Ragelsperger, e seus
prisioneiros resgatados foram divulgadores inesgotáveis das
façanhas atrevidas e dos costumes estranhos reavivando o
respectivo folclore, numa incessante circulação.
Mestre Renan, preocupado com análise dos altos cimos
culturais, bem parcimoniosamente percebeu o movimento
das planícies, palpitantes no anonimato da vida coletiva,
alheia aos interesses especulativos do Institut des
Inscriptions et Belles Lettres ou da Académie Française.
Ainda em 1948, Henri Dontenville observava: - On va au
loin et l'on délaisse ce qui est proche. A Sorbonne, com cem
cátedras e trinta institutos, elle se tait sur ce qui a été l'âme
de notre patrie. Não é de admirar que Renan, voltando da
Fenícia, ignorasse em 1862 a presença moura na França do
Mediterrâneo, mas soubesse maravilhosamente Maçudi, Ibn
Batuta, Averróis e la part des peuples sémitiques dans
l'histoire de la Civilisation.
Escrevia, em 1897, Rui da Câmara (Viagens a Mairocos,
Porto, 1879):
E opinião corrente entre os mouros que, morto um sultão e
em quanto o seu sucessor não é aclamado e reconhecido em
Fez, não existe governo legal, e por tanto não há tribunais de
Justiça, nem autoridade de nenhum gênero. Seguindo este
princípio, ninguém tem o menor escrúpulo de apoderar-se
dos bens do próximo.
Essa tradição transmitiu-se a toda a África negra, na
brutalidade da cupidez violenta. Teria sido reminiscência da
vida romana, cujos contatos, na orla do Mediterrâneo, foram
milenares. Em Roma saqueavam o palácio quando falecia o
imperador, e o mesmo sucedia às residências pontifícias.
Bem de defentuo não tem dono... Inventário de morto
quem faz são os vivos, diz o povo. O Papa João IX, no
Concílio de Ravena, em 989, impôs a excomunhão a quem
praticasse o malfadado hábito secular. Convergiu para a
Península Ibérica, para a Semana Santa, da Quinta-feira
Maior ao Domingo da Ressurreição. Em Portugal mantém-se
a norma que ainda vive no Brasil: "Dia da Malvadeza" em
São Paulo, o inevitável furto de galináceos e frutas na noite
do Sábado da Aleluia no Nordeste (Dicionário do Folclore
Brasileiro, I, 278, II, 449, Rio de Janeiro, 1962). Conhecida
tradição em toda a América. Na Bolívia diz-se K/ESPICHE,
praticando-se no Viernes Santo. A escravaria sudanesa no
Brasil era irresistivelmente atraída para o saque dissimulado
quando morria o senhor. Notadamente a deformação
muçulmana, com alguma percentagem de sangue mouro nas
veias, fiel ao costume, independente da Quaresma, e que
alcançara o poente continental, pelo Sudão. Notório esse
instinto de assalto popular nas comoções sociais.
grandes incêndios, terremotos, revoluções. Não havendo
autoridade repressora, não haverá direito de posse privada
anterior á simples apreensão.
Não vamos esquecer que açúcar, arroz, azeite, azeitonas são
vocabulários árabes, comprovadores do impulso a esses
elementos indispensáveis na alimentação universal.
Devemo-lhes a fidelidade ao trigo, antes que o americano
ZEA MAYZ interrompesse o monopólio preferencial, a
partir do século XVI. Hoje a geografia do Milho é tão
imponente quanto o império do Arroz. O trigo sempre foi
quantitativamente inferior ao arroz em utilização nutritiva.
O pão de trigo, tão caracteristicamente romano, foi uma
imposição portuguesa ao paladar indígena, onde ainda não se
divulgou total, como indispensabilidade alimentar. Uma
superstição referente ao pão é corrente em Portugal e veio
parar ao Brasil, embora com menor prestígio. Se o pão cai ao
chão, beija-se antes de o apanhar. Antônio Caetano do
Amaral (Memórias da Literatura Portuguesa, VII, ed. da
Academia Real das Ciências, Lisboa; o autor era cónego da
Sé de Évora) informava da origem árabe, os quaes, ainda
hoje, vendo no chão qualquer migalha de pão, ou grão de
trigo, o levantão e beijão. No Brasil não há o respeituoso
ósculo mas permanece o cuidado de levantá-lo do solo
porque é sagrado, numa possível indução católica da
Eucaristia.
Outra influência moura é a cautelosa invocação divina no
princípio ou no final dos supersticiosos ensalmos,
condenados e perseguidos mas teimosos portadores da
confiança vulgar. São numerosos os PELO PODER DE
DEUS... PELA GRAÇA DE DEUS... DEUS ME ENSINOU O
QUE EU NÃO SABIA... DEUS QUE TUDO SABE... DEUS
QUE É MESTRE... SABE DEUS... A DEUS QUERER...
QUERENDO DEUS... formulário estridentemente
muçulmano e de fácil encontro por todo o Alcorão: Deus ê
grande. Allah akharf...
Com ouvidos competentes e documentação idônea
verificar-se-á um dia a percentagem sensível da música
oriental, notadamente moura, na música popular brasileira.
Não é mais fácil a pesquisa porque a música em consewa,
como dizia Georges Duhamel, e os rádios, sacudiram raízes e
frondes tradicionais, mudando rumos às soluções melodiosas
e à técnica, invariáveis dos "finais" das "modinhas" em
arrastados e plangentes smorzandos inesquecíveis na
memória auditiva dos coevos. Falo da música cantada no
interior dos sertões nordestinos ainda nos dois primeiros
lustros do século XX e não nas capitais, ouvindo "revistas
teatrais" e sobretudo os gramofones da Casa Édison, Rua do
Ouvidor, 105, Rio de Janeiro.
Quem ouviu as melopéias mouras nos mercados da África
Setentrional recorda a impressão do indefinível, do indeciso,
do inacabável naquelas lamúrias que terminavam quando
julgávamos continuar e continuavam nos momentos de
indiscutível finalização. E a voz aguda, seca, vertical, o
guincho nos agudos e o ronco nos baixos, emitidos na
imperturbável nasalação comum. A disposição do desenho
musical sugeria arabescos, intermináveis no sucessivo
encadeamento, de efeito surpreendente, mas para nós de
uma monotonia acabrunhante e nostálgica, como a paisagem
austera e desolada do deserto circunvizinho.
Semelhantemente ocorre entre os pretos africanos nas áreas
de influência maometana. Heli Chatelain afirmava a difi-
culdade, em Angola, de um estrangeiro deduzir se o negro
canta ou lamenta-se: - For the foreigner it is something very
hard to tell whether a native is whining ou singing.
Essas "constantes" eram indispensáveis no velho canto
sertanejo de outrora: a entonação intencionalmente
lastimosa, a modulação lenta, "molenga" e doce que fazia
suspeitar quarto-de-tom, os finais em rallentandos
intermináveis, o timbre nasal, infalível, natural,
perfeitamente compreensível. Todo cantador era fanhoso.
Recordo meu primo Políbio Fernandes Pimenta, excelente
cantor sertanejo, vindo para Natal prestar o serviço militar,
nosso hóspede: exigiu meses para adaptar-se ao diapasão
normal. Era um oriental, afeito às neumas. livres de
compassos maquinais, com o ad libitum de elevar a voz
quando o motivo o empolgava ou recorrer a um surdo
declamado, querendo salientar a emoção enamorada.
Não é possível conhecer-se o verdadeiro canto sertanejo
pela simples leitura da solfa. Solfa escrita seria raridade e
muitas centenas eram composições locais, transmitidas pela
memória sereneira. Não é moura a inspiração musical, mas a
maneira de cantar.
Outro aspecto dessa música, praticamente apagada e com
fundamentos mouros ainda funcionais, era a ausência do
contracanto. As "modinhas" entoadas com o recurso da
"segunda-voz" figuravam como ensinadas por gente de fora,
moças que haviam estudado nas cidades do litoral, rapazes
ex-colegiais em Natal, caixeiros-viajantes, grandes
semeadores das "novidades".
Tradicional era o uníssono. Havia um leve e fortuito
contracanto, denominado resposta, feito pelos instrumentos
acompanhantes nas serenatas de primeira categoria ou
festinhas familiares mais caprichadas. Além do violão, flauta
e depois o clarinete. Naturalmente os violões foram os
primeiros a responder, pelos bordões. Comumente o
acompanhamento repetia o motivo melódico no interlúdio,
isto é, quando o cantor estava calado. Não é o processo
imutável dos medahs, cantores ambulantes, do Marrocos ao
Egito? e os sírios e libaneses?
Georges de Gironcourt lembra que poderá desaparecer uma
técnica musical na região de origem e permanecer viva
numa longínqua área influenciada. Formas mortas na Núbia
continuaram vivendo na Tunísia ou no Iraque, difundidas
pelo Egito, onde o modelo não mais existia.
Pelo Nordeste brasileiro, as zonas marítimas ou as do
hinterland atravessado pelos rios de curso permanente,
ponteiros das culturas, diversificaram-se, recebendo
influência renovada e sucessiva e daí a variedade dos
gêneros cantados e dançados pelo povo, como observou em
sua jornada de pesquisa o Prof. Oswaldo de Sousa (1949),
pelo São Francisco e alguns afluentes, Corrente e Rio
Grande, registando mais de quinhentos tipos diferentes de
melodias e ritmos.
Nos sertões propriamente ditos, de raras e difíceis
comunicações com a orla do Atlântico, onde milhões de
habitantes viveram e morreram sem ver o mar e sem
movimentos de renovação temática, o processo de entoar,
os timbres, a visão dos compassos, a impostação vocal,
resistiram séculos, até que as rodovias, de 1915 em diante,
iniciassem o final do isolamento, despejando, tumultuosa e
inopinadamente, as sugestões modificadoras de feição
irresistível.
Ainda outras "constantes".
O mouro valorizara no espírito popular a violência mágica
da PRAGA. O português trouxera-a e tê-la-ia recebido de
Roma, a força misteriosa e temível da IMPRECATIO, votos
âs Fúrias, Erínias, aos deuses negros da Terra, da Morte e do
Destino, súplica desesperada para a imediata aplicação da
justiça total. Tiveram-na todos os povos históricos,
acentuadamente os orientais, egípcios, chineses, persas,
assírios, israelitas, os caldeus, cujas execrações assombrosas
lemos em Zimmern, Jastrow, Dhorme, Lenormant. Não
conheço entre os indígenas, e os pretos africanos
aprenderiam com os mouros, árabes, egípcios, judeus,
etíopes. As mais truculentas partem dos muçulmanizados.
É a grande arma, instintiva e natural, do mouro sem defesa.
Dizemos ROGAR PRAGAS porque serão inoperantes sem a
divina intervenção. Requer-se a penalidade. Quem exerce a
função executiva é Deus. Imprecação é o imprecare, pedir,
requerer, orar. A praga significa o golpe, pancada, contusão,
chaga, plagae. A potência maravilhosa do "nome", nomem,
numen, fará o milagre da transmissão maldita (Anúbis e
Outros Ensaios, XV, Rio de Janeiro, 1951). A praga, na
extensão semântica, transmuda-se em quantidade,
abundância, multidão: praga de formigas, gente como praga.
As "pragas do Egito" não foram unidades.
A praga rogada, irrogada, atravessa a distância e persegue o
alvejado como uma sombra, na teimosia do cão de caça. Os
Bambaras, mandingas do Níger, têm uma maldição
denominada kortis, agindo como uma pedrada, como um
tiro de funda. Os mouros, pela Argélia e Marrocos, desmoro-
navam castelos e derretiam pedras no impacto fulgurante das
imprecações.
As nossas "pragas ao meio-dia"! As "Trindades"! Nas "horas
abertas"! Infalíveis. Implacáveis. Fulminantes.

Praga do meio-dia
Esquenta água fria!

Como vocativos familiares na conversa íntima é tradicional
chamarmos o interlocutor HOMEM DE DEUS ou
CRIATURA DE DEUS, e ainda FILHO DE DEUS. Considero
as duas primeiras fórmulas realmente muçulmanas, relativas
ao espírito associativo da fraternidade sobrenatural. No árabe
de Marrocos é comum a exclamativa Aqitilí - Homem de
Deus!
A terceira é diametralmente oposta â teologia do Islã. Para os
maometanos, Alá não pode ter filhos. Surata 112, verseto 3,
na versão do Prof. Edouard Montet: - Il n'apas engendre et
n'apas été engendre. Pode criar mas não procriar. Não gera
porque não foi gerado. Era também a expressão suprema do
monoteísmo judaico. Não se concebia a descendência de
lavé. Uma verdadeira revolução em matéria teológica asiática
foi Jesus Cristo ser "filho de Deus". Determinou a primeira
dissidência cristã, com o cisma dos ebionitas. Nenhum
muçulmano compreendeu a sutileza casuística da
"Trindade", ainda mistério para a inteligência católica.
Quem se assenta no chão, apoiando a cabeça nos joelhos,
dizia-se no sertão velho estar chamando os anjos. Posição
formalmente proibida às crianças e mesmo repudiada aos
adultos. Faz mal. É a posição TARFIQ, na qual os sufis,
notadamente os abdals, místicos do islamismo, concentram-
se para receber as emanações da divina sabedoria. É a atitude
de suprema resignação e abandono da vontade pessoal.
Assim os prisioneiros aguardavam a decisão do faraó,
segundo Maspero.
A maior humilhação para um homem, índice de
rebaixamento e desprezo moral, é apanhar de chinela,
castigo infantil. A babucha levantina, sandália caseira,
representa esse papel aviltante. É suficiente descalçar-se e
atirar a babucha contra o antagonista, para que o símbolo
desonrante tenha sua efetuação dolorosa no mundo oriental.
A preta Nicácia, octogenaria, antiga cozinheira de meus pais
em Natal, e a lavadeira Chica Barrosa, de Augusto Severo
(RN), agradeciam os presentes recebidos com a locução
invariável: - Deus aumente suas coisas. Coisas valendo bens,
posses, recursos, patrimônio. Allah embarque fike, em
marroquino. Que Dieu augmente ton bien, é o que se ouve
por Marrocos, Argélia, Tunísia.
Nenhum mouro recusa esmola pedida durante sua refeição.
É um atroz pecado de orgulho e talvez o mendigo seja o
próprio Deus, provando a caridade do devoto. É também
regra, preceito, obrigação de fé, por todo o sertão brasileiro.
Não se deve deixar faminto quem nos vê comer. Há muitos
exemplos de punição celestial.
Um chefe político pernambucano, Chico Heráclio, de
Limoeiro, a quem o Presidente da República, Juscelino
Kubitschek de Oliveira, fazia oferecimentos, respondeu: -
"Não quero nada. Só quero lhe ver assim, cuspindo de cima"
(Marcos Vinícius Vilaça, Roberto G. de Albuquerque,
Coronel, Coronéis, 142, Rio de Janeiro, 1965). Imagem
fascinante e rude de domínio total, autenticamente moura;
ANA TE TEU, no dialeto marroquino.
Não há expressão mais vulgar e legítima da onipotência
divina que o SÓ DEUS SABE ou SABE DEUS, de uso tão
velho em todos os recantos do Brasil. É a versão portuguesa
do ALLAH A ALANI, ritual no preceito corâmico.
Last but not the least... Dezoito ou vinte vezes no Alcorão,
Maomé refere-se às sublimidades materiais do Paraíso
islâmico. Os elementos mais constantes, além das "esposas
puras", são os regatos d'águas cristalinas e frescas e as
sombras espessas e abrigadoras.
Nous les ferons entrer dans les jardins, sous lesquels courent
des ruisseaux. Nous les ferons entrer sous des ombrages
épais (Surata IV, v-60). O Prof. Edouard Montet, anotando,
informa: - Litt: DES OMBRAGES OMBREUX. Ce verset
résume la description classique du Paradis dans le CORAN.
Na Surata LV, vs. 48, 50: Ces jardins seront ornés des
bosquets... Dans chacun d'eux il aura des sources d'eau
courante.
Na Surata LVI, vs. 29-30: - Et des ombrages étendus... Et
auprès des eaux courantes.
Quai é, para o brasileiro qualiinque, típico, a imagem
popular, nacional e comum, da bem-aventurança,
tranqüilidade, ventura total, ambição lógica de todo ser
vivente? SOMBRA E ÁGUA FRESCA...
Esses elementos, agora reunidos em sensível ramalhete
etnográfico, tiveram o português por condutor incessante na
divulgação funcional. No passar do tempo poderia algum uso
esmaecer ou sumir-se em Portugal, mantendo-se colorido e
vivo no Brasil. Tem acontecido no terreno lingüístico mas
não me cabe a recordação.
A originalidade desta pesquisa consiste na
contemporaneidade da verificação, identificando a presença
radicular de matizes constantes na flora brasileira e que
nasceram de raízes da África Setentrional, conservando, na
vivência americana, a legitimidade das origens milenárias.
Essa aculturação, ou trcmsculturação como propõe Fernando
Ortiz, aprovado por Bronislaw Malinowski, significou uma
transformação atmosférica, mudança de pressão cósmica,
psicológica, de extensão integral, alcançando todas as
manifestações da vida social costumeira, abalos provocados
pela máquina, eletricidade, novas culturas agrícolas,
determinando outros modos de plantio e colheitas pelas
dimensões do terreno utilizado. Outros padrões de
ajustamento econômico. Romperam-se os diques e as águas
da contemporaneidade mergulharam no passado as
sobrevivencias dos séculos XVII, XVIII e XIX, até então
atualidades usuais.
Ficaram resistindo os fundamentos da mentalidade
ambiental, a sensibilidade da população, como certas ilhas
oceânicas são supervivencias de continentes submersos.
Como os rochedos de S. Pedro e S. Paulo são testemunhos
da Atlântida.
Positivo e real é que o mouro é uma "permanente" na
etnografia brasileira.

2

"Roland envahit toutes les races et tous les pays. Sa
renommée a le don de ubiquité."
PAUL DE SAINT-VICTOR

1941 Mercado público de Currais Novos, Rio Grande do
Norte. Um cego esmola cantando. É negro, alto, magro,
cabeça alongada, olhos brancos, voz seca, arrastada,
monótona. Junto, imóvel, silenciosa, espectral, a face e
ombros envolvidos num lençol encardido, lembrando um
albornoz, pernas cruzadas como uma cariátide oriental, está
a mulher dizendo, imperceptível, o valor das moedas e o
tipo do doador para a breve menção elogiosa no
agradecimento, improvisado e rítmico.
Dá-me "as graças" em várias sextilhas. A primeira fica na
lembrança.

Deus lhe pague sua esmola
Que me deu de coração,
Lhe dê cavalo de sela,
Inverno neste sertão,
E lhe dê uma coragem
Como Ele deu a Roldão!

Que mais poderia desejar uma criatura no plano de ventura
integral?
Atravessar os caminhos respirando o perfume da terra
molhada, na fecundidade das safras generosas. Montar um
cavalo famoso, consagrador da masculinidade, animal nobre,
aristocrático, complementar à fidalguia do dono, ivhen men
ivere men and rode on horses, quando os homens eram
homens e montavam cavalos. E sentir no peito a valentia
resplandecente que Nosso Senhor concedeu ao sobrinho do
Imperador Carlos Magno, Par de França, caído em
Roncesvales, há 1183 anos, tão natural e presente na
memória do cego analfabeto de Currais Novos...
Para a evocação da coragem, a figura única, justa, lógica,
insubstituível, era a de Roldão, um contemporâneo,
vencedor da morte e do tempo.
Roland, o brasileiro e português Roldão, não está no conto
popular, na história tradicional. É infalível na cantoria, nos
versos de desafio, na batalha poética, constituindo um
recurso prestante no confronto do supremo destemor. Onze
séculos não o afastaram da citação sertaneja no Nordeste do
Brasil, como no Brasil do centro e do sul.
Inarredável como um acidente geográfico.
Na feira do Alecrim, Natal, em fevereiro de 1961, um
cantador anônimo fazia o auto-elogio comum:

No "repente" sou Inácio,
Na ciência, Salomão,
No improviso, Nogueira,
Pra cantar, Preto Limão,
Na fortaleza, Romano,
E na coragem, Roldão!

Revivia a característica dos velhos cantadores inesquecíveis,
Inácio da Catingueira, Bernardo Nogueira, Francisco Pedro
Limão, Francisco Romano ou "Romano do Teixeira". A
sabedoria sintetiza-se no Rei Salomão. A intrepidez teria um
nome, nome de Roldão, cuja morte em 15 de agosto de 778
nunca diminuiu o fulgor da intervenção heróica.
Numa peleja de Francisco Sales com Manuel Ferreira
(opúsculo de Francisco Sales Areda) reaparece o paladino:

Você em termo polido
Pode até ser um Platão,
E na coragem Oliveiras
Contra o gigante pagão.
Mas agora encontra um braço
Como o pulso de Roldão!

Durandal, a espada de Roldão, diz-se no Brasil durindana, o
nome popular da espada dos militares.
Oliveiros é o companheiro fiel do herói. Dificilmente
surgem isolados. Essa união é secular e documentos
franceses do século XI mencionam irmãos com os nomes de
Roland e Olivier. Há muito brasileiro Roldão e Oliveiros.
Em dezembro de 1949 o leiloeiro Nival Câmara apregoava
em Natal dois botes, "Roldão" e "Oliveiros". Em janeiro de
1952, assisti a uma cavalhada, corrida de argolinha, em
Bebedouro, arredores de Maceió, Alagoas, festa tradicional.
As duas alas de cavaleiros são dirigidas pelos clássicos
mantedores, ditos lá "maquinadores", abrindo garbosamente
as filas. A da direita, Partido Encarnado, é chefiada por
Roldão. A da esquerda, Partido Azul, por Oliveiros.
O falso "monge José Maria" (Miguel Lucena de Boaventura),
que convulsionou as fronteiras do Paraná e Santa Catarina,
1912-1914, batizara a sua escolha pessoal, dos mais valentes
companheiros, "os doze pares de França", embora fossem
vinte e quatro. O subchefe era Roldão, o sem-temor.
No Município de Morada Nova, no Ceará, há um distrito
Roldão.
Num desafio que o meu primo Políbio Fernandes Pimenta
recitava, havia o encontro das imagens sucessivas:

Agarro onça na furna,
Posso pear um leão;
Espalho fogo com os pés
E pego um raio com a mão;
Tenho força do oceano
E coragem de Roldão.

A onça estava dormente,
Estava morto o leão;
O fogo estava apagado,
O raio era foguetão,
O oceano estava seco,
Estava longe Roldão!

Roldão foi o único a ser mantido na virtude alegada. Não se
podia pôr em dúvida a coragem de Roldão.
Mas, curiosamente, essa fama ilustre que se tornou tradição
popular do Brasil não teve fonte oral e sim origem impressa,
perfeitamente identificável. Não a recebemos de Portugal
em versos ou cantos, em prosa memorizada. Nem mesmo
em Portugal e Espanha a ouvi mencionada. Os versos
registrados por Leonardo Mota no Ceará e a função belicosa
dos doze pares no território "contestado" de Paraná-Santa
Catarina, no Sul do Brasil, denunciam a procedência letrada
e culta.
É a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares
de França, nas edições de Lisboa, 1723, 1728, 1789,
tradução de Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor de
Algarve, e que representam recapitulações e edições dos
vários livros sucessivos, antes da forma definitiva que
alcançou nos princípios do século XLX. Já em 1820 editava-
se na Bahia, inoctavo, nas três partes, e as reimpressões
portuguesas e brasileiras foram determinantes informadoras
dessa "cantoria" sertaneja ainda em nossos dias.
Creio ter esclarecido o problema bibliográfico em Cinco
Livros do Povo, AA1-AA9, ed. José Olympio, Rio de
Janeiro, 1953.
A velocidade inicial portuguesa é a História dei Emperador
Carlomagnoy de los Doce Pares de Francia: e de la cmda
batalla que hubo Oliveiras com Fierabrãs, Rey de Alexandria,
bijo dei grande Almirante Balan, ed. de Jacob Cromberger,
alemão, Sevilha, em 25 de abril de 1525, com possíveis
impressões anteriores. Era uma tradução do francês por um
Nicolas de Piamonte, aproveitando edição popular de
Fierabrãs de 1478. A história francesa, constando de
acréscimos, resumos, modificações de vários episódios, era
conhecida desde o século XIII, havendo versão provençal, e
tudo começara por uma canção de gesta nos finais do século
XII.
Menendez y Pelayo acreditava que o Speculum Historiale de
Vicente de Beauvois, o poema francês do Fierabrãs, é acaso
un compendio de la CRÔNICA DE TURPIN, con las fuentes
de este librejo apodado por nuestros rústicos
CARLOMAGNO (Orígenes de la Novela). A citação do
Speculum Historiale é do tradutor Nicolas de Piamonte;
mesmo em espanhol foi o Carlos Magno editado em Lisboa,
Domingos Fonseca, 1615.
A tradução portuguesa de Jerônimo Moreira de Carvalho
acelerou o ritmo circulatório. A edição de 1737 (Lisboa) é
uma ampliação, aproveitando Moreira de Carvalho trechos
de Boiardo (Orlando Innamorato, 1495) e de Ariosto
(Orlando Furioso, 1532) com as passagens mais tumultuosas
e cativantes do gosto popular.
O protonotário apostólico Alexandre Caetano Gomes
Flaviense traduziu e fez crescer a crônica castelhana de
Bernardo dei Carpio, personagem espetacular e fabuloso que
derrotara em Roncesvales os Doze Pares. Publicou-a em
Lisboa, 1745: Verdadeira terceira parte da história de Carlos
Magno, em que se escrevem as gloriosas ações e vitórias de
Bernardo del Carpio. E de como venceu em batalha os Doze
Pares de França, com algumas particularidades dos Príncipes
de Hispânia, seus povoadores e reis primeiros, parte final
que foi sendo esquecida nas reimpressões subseqüentes, por
desinteressante ao leitor plebeu. O editor Simão Tadeu
Ferreira reuniu esta terceira parte do volume de Jerônimo
Moreira de Carvalho em fins do século XVIII. Com essa
feição o volume chegou ao século XX, com algumas
supressões e digressões ao sabor vulgar setecentista,
encantando ou adormecendo os leitores da centúria
posterior.
Daí nasceu a Vicia do Façanhoso Roldão, Lisboa, 1790, com
211 quadrinhas. E há em Senhora das Neves, conselho de
Viana do Castelo, o Auto de Floripes (Cláudio Basto, Silva
Etnográfica, Porto, 1939), onde o "Partido Cristão" é
chefiado por Carlos Magno e o "Partido Turco" pelo
Almirante Balão, e seu filho Ferrabrás que é vencido por
Oliveiros. A Princesa Floripes, filha do Almirante Balão,
apaixona-se pelo cavaleiro Guido de Borgonha, com quem
termina casando. É assunto do livro II, Parte I do Carlos
Magno de Moreira de Carvalho. Era o motivo emocional da
canção de gesta francesa do século XII, Fierabrás,
pertencente a uma outra anterior e perdida, La Destruction
de Roma. O Fierabrás resistiu nas reimpressões da
Bibliothèque Bleue em França, distante e lógico provocador
do Carlos Magno na Espanha e Portugal, o primeiro desde o
século XVI e o segundo no XVIII. No Brasil o Carlos Magno
foi motivo de inspiração popular em muitos episódios que
apareceram versificados, cantados, constituindo folhetos de
ampla divulgação, como a Batalha de Ferrabrás, A Prisão de
Oliveiros, A Morte dos Doze Pares, pelos poetas populares
Leandro Gomes de Barros, João Martins de Ataíde, José
Bernardo da Silva, Marcos Sampaio, editados na Paraíba,
Pernambuco e Ceará, com infalível mercado consumidor
entre o povo e perfeita ignorância dos letrados.
Na Páscoa de 1819 o naturalista João Emanuel Pohl assistiu,
na cidade de Goiás, antiga Vila Boa, à representação, ao ar
livre, de uma comédia de CARLOS MAGNO, na qual as
personagens femininas são representadas por homens. O
traje é efetivamente custoso, em geral veludo, guarnecido de
ouro puro. Foi repetida em dias sucessivos (Viagem no
Interior do Brasil, I, 332. Trad. de Teodoro Cabral, Instituto
Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1951). Saint-Hilaire, no
mesmo 1819, refere-se ao assunto: - O torneio representa,
quase sempre, alguma história do velho romance de Carlos
Magno e dos Doze Pares de França, que é ainda muito
apreciada pelos brasileiros do interior (Viagem às Nascentes
do Rio São Francisco e pela Província de Goiás, 2a, 198,
Brasiliana-78, São Paulo, 1937).
O cartapácio em prosa é reeditado no Rio de Janeiro e em
São Paulo, como continua sendo em Lisboa e Porto. Teófilo
Braga dizia-o em 1881 o mais lido livro em Portugal. Até as
primeiras décadas do século XX poder-se-ia afirmar
semelhantemente do Brasil.
A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de
França, como a conhecemos em Portugal e Brasil, não existe
em espanhol e francês. É uma recomposição portuguesa que
se fixa nos princípios do século XIX em sua fisionomia
movimentada e patética, solidária no amavio emocional.
Era lida nas noites de inverno, como outrora o Amadis de
Gania, em voz alta, para a família embevecida e concordante
com as peripécias dramáticas, fervorosamente comentadas
como atuais. Todos os velhos cantadores profissionais a
sabiam de cor. Era documento comprovador da "ciência",
elemento natural do cantar teoria, sabatina da cultura
popular. Não conhecer a História de Carlos Magno era
ignorância indesculpável, indigna dos bardos sertanejos,
mesmo analfabetos. Faziam-na ler, folha por folha,
escutando, aprendendo, entusiasmando-se, decorando,
repetindo as façanhas, transformando-as em versos, em
perguntas fulminantes e respostas esmagadoras.
Uma presença visível e notável dessa reminiscência ainda
Leonardo Mota (Cantadores, Rio de Janeiro, 1921) registrou
no Ceará; a peleja, em desafio, dos cantadores Manuel
Serrador e Josué Romano:

É como quiser;
Estou preparado...
Dou em quem vier!
Se você tiver Força de Sansão,
Presa de leão,
Coragem dobrada
Encontra uma espada
Igual à de Roldão!

Você falou-me em Roldão...
Conhece dos Cavaleiros,
Dos Doze Pares de França,
Dos destemidos guerreiros?
Falarás-me alguma coisa
De Roldão mais Oliveiros?

Sei quem foi Roldão,
O Duque Reguiné...
E o Duque de Milão
E o Duque de Nemé...
Sei quem foi Galalão,
Bonfim e Geraldo,
Sei quem foi Ricardo
E Gui de Borgonha,
Espada medonha,
Alfanje pesado.

Já sei que o colega sabe
Deste acontecimento,
O que sofreu Carlos Magno,
Os seus enormes tormentos...
Talvez conheça dos Pares
Talvez algum casamento.

Todos conquistaram
Pelejas cruéis,
E aos infiéis,
Todos derrotaram;
Alguns se casaram
Com turca pagã
Pela fé cristã.
Roldão pela força
Casou c'uma moça
De Abderramã!

A influência das novelas tradicionais vive sensivelmente no
Brasil. O Prof. Hélio Viana, da Universidade do Brasil, teve
um colega de estudos chamado João de Calais. O escritor C.
Néri Camelo encontrou em Piracuruca, Piauí, um rapaz de
nome Raimundo Duque Demene Camarazalmão. O Duque
de Naime, da Chanson de Roland, é o Duque Nemé dos
cantadores nordestinos, dando nascimento ao Duque
Demene piauiense. O Camarazalmão é personagem de um
conto das Mil Noites e Uma Noite.
No vocabulário popular conserva-se o vestígio temático.
Ganelon deu Galadão ou Galalau, ente desmesuradamente
alto e magro, desajeitado em andar e gesto, e Ferrabrás, a
bravura insólita e brutal.
Essa permanência sensível e poderosa não ocorre em
Portugal e na Itália. E Roldão, glorificado nos dintéis e
relevos das catedrais francesas, como Rita Lejeune e Jacques
Stiennon carinhosamente estudam na Iconografie de la
Legende de Roland au Moyen-Âge, está morto na memória
folclórica de França, por quem lutou, e na Espanha, onde
morreu.
Vive, valoroso, invencido, incomparável, na poesia cantada
do Nordeste do Brasil.

Jemas do Mireio

"Les choses qu'on croit voir sont-elles sensiblement moins
réelles que celles qui existent?"
LOYS BRUEYRE

Frederico Mistral publicou Mireio em Avignon, imprimerie
Seguin, 1859- Dispenso lembrar-vos a ressonância; livros,
música, estátua, estrela. Poema em XII cantos,
orgulhosamente em provençal, Langue d'Oc, reivindicando
para a semi-olvidada língua a dignidade idiomática,
esquecida e gloriosa. Amor de Mireio, filha de lavrador rico,
com Vicente, cesteiro pobre, a traves de la Crau, vers la mar,
dins li bla, através da Crau, até o mar, pelos trigais. Lenda
humilde, local, esvaecida. En foro de la Crau se
n'esgaireparla. Fora da Crau, pouco se falou.
Crau, do celta craigh, montão de pedras, é região de pouco
mais de meio milhar de quilômetros quadrados, a leste do
baixo Ródano. Arles, Salon, Foz, marcam a triangulação
hostil. O aluvião do Durance consente em obstinada
agricultura. É na base Provence, lendária, ilustre, cheia de
decorações culturais. Terra romana, independente,
dominada pelo árabe que se derramou, vindo de Espanha,
pelo Vale do Rbôme até Lyon e mesmo o Garonne; em
1113 patrimônio dos condes de Provença. Em 1245 é dote
de uma filha de Beranger III, casada com um irmão de Luís
XI, rei de França, Charles d'Anjou, la grand doteprovenzale
citado por Dante Alighieri no Purgatório, XX, 61.
Os poetas provençais foram favoritos pelo Aragão, Castela,
Galícia, queridos em Portugal. Também pela França do
Norte, Itália, Alemanha. Criaram a canzione, o descort, a
tenson, o jeu-parti, a sirvente agressiva. Cultivaram
essencialmente a poesia lírica. O teatro de assunto religioso.
Em 1323 fundaram uma academia, o Gai Savoir, em
Toulouse, com prêmios, disputas, julgamentos,
consagrações. Eram os "Jogos Florais". Fizeram nascer a
nouvelle imortal, roman de moeurs. O debate literário.
Depois caiu a noite de séculos e a Félibrige (1854) tentou
recuperar o sol. Com Joseph Roumanille (1818-91) e
Théodore Aubanel (1829-86) e Mistral.


Mistral foi um dos soberanos desse curto e maravilhoso
renascimento que ainda clareia a fidelidade devocional dos
estudiosos da Langue et Littérature d'Oc. Mas isto é outra
estória.
Interessa-me saber o que de essencial, característico, típico,
Mistral fixou no seu poema, reunindo os provençais que
viviam na Crau, inculta, imensa, pedregosa e árida.

Acampestrido e secarouso,
L'imménso Crau, la Crau peiroso.
Saber o que o poeta trouxe para Mireio em figuras humanas,
expressando-se nos mitos, superstições, costumes. Seriam os
elementos altos, indispensáveis para a movimentação
colorida com que o umble escoiilan dõngran Ouméro
povoou a terra da Crau, centro simpático no Bouches-de-
Rhôme, no romance de Mireio e Vicente.
Frederico Mistral nasceu no Mas du Juge, Maillane (três
curtas léguas de Avignon), 8 de setembro de 1830 e em
Maillane faleceu, 25 de março de 1914. Oitenta e quatro
anos na Provença, fiel à terra, às tradições, à paisagem,
recusando a tentadora Paris, recebendo a glória sem
procurá-la. A informação documental do Mireio é tanto
mais sugestiva e legítima quanto a Crau não é Nimes, Aries,
Aixs, centros demográficos mais abertos e acessíveis às
penetrações da cultura exterior. Se nessas cidades haverá o
interesse pela indagação da marcha aculturativa, na Crau, na
Camargue, com seus pântanos, juncais e touros, a notícia
será mais palpitante e orientadora no plano da quase
revelação. O mesmo dir-se-ia de um folclore das Landes, no
Oeste francês, as planícies de alios impermeáveis, com seus
pastores guardando os pequenos rebanhos, vigilantes do alto
das échasses, andas, pernas de pau de dois metros de
comprimento, os landais, netos de íberos e celtas.
Mistral é um vento frio e seco, soprando do norte e nordeste
no Sul da França. Quem não recorda Alphonse Daudet no
Lettres de mon Moulin, queixando-se: - Cette nuit je n'ai pas
du dormir. Le mistral était en colère, et les éclats de sa
grande voix m'ont tenu éveillé jusqu'au matin.
O Conde de Puymaigre adverte que la Provence n'était pas
conteuse, elle était surtout lyrique. La France du nord, au
contraire, était douée d'une singulière faculté narrative. Les
troubadours n'ont pour ainsie dire tien à opposer aux
chansons de geste, aux innombrables fabliaux des trouvères.
A sugestão objetiva do conto será mais poderosa noutras
regiões. A Provença reserva seu patrimônio de lirismo ao
lado das lendas, das superstições, do respeito ritualístico ao
sobrenatural. O mesmo potencial expresso na inesgotável
literatura oral das demais gentes da França toma na Provença
a forma do canto e do culto fiel por essa obstinada liturgia
tradicional. Ao inverso da Bretanha, da Gasconha, da
Normandia e das populações na orla dos Pireneus.
Mistral teria no Mireio o ensejo mais amplo para reviver o
provençal cantor e crédulo, poeta e devoto de sua longa
história anônima, anterior e posterior a Roma, através do
árabe e das raças depois ocupantes do seu solo, aos dias
presentes. Ele faleceu em março de 1914 e em julho
começaria quase outro mundo para os homens de boa
vontade, o Monde Casse, de Gabriel Marcel.
Teríamos duas expressões legitimadoras e normais do gênio
provençal: a Fêlibrige, escola literária onde vive a vocação
lírica centenária no seu clima de valorização, e a tradição
religiosa e mística, santos, milagres, pavores, respeitos,
esperanças, no fundamento unificador e defensivo do
costume, do hábito, na norma que atualiza venerações
milenárias.
A vida romana e celta, germânica e árabe, a proximidade
castelhana, catalã, dos condes de Barcelona, os sedimentos
étnicos locais, o incessante intercâmbio letrado e popular
com a Península Ibérica, determinariam essas influências
comuns para a América Latina e cristã, criada pela força de
Espanha e Portugal.
Não ocorrerá a nenhum etnógrafo a possibilidade do
encontro de elemento típico do espírito provençal integrado
no consuetudinarismo brasileiro, exceto preceitos de forma
e ritmo poéticos recebidos de Portugal.
Tentou-se registar, aqui, a simultaneidade temática nas duas
tão distantes regiões da cultura geral em que Roma deu o
visível matiz aproximador.
Que haverá de contemporâneo no Brasil conhecido pela
jovem Mireio no Mas di Fallabrego, ouvindo o sopro do
mistral e indo orar âs Santas Marias sagradas?
Não me custa verificar, relendo os doze cantos do Mireio,
livro de cem anos...
Do Canto Primeiro
"La Provence vivia éternellement dans Mireille"
ALPHONSE DAUDET
- Ague parla de sa batudo: falou do seu trabalho. Cada
trabalhador, depois da refeição, evoca a tarefa realizada. Os
dicionários de Portugal e
Brasil não registam batido na acepção de trabalho
quotidiano. Pertence ao vocabulário popular. No batido
diário. Não agüentar o batido. Associação da imagem
mecânica de bater, notadamente no batido da bigorna. Do
latim batuere. No provençal é participio passado de battre.
Battude, no francês, segundo Dauzat. Batudo em provençal.
Batido no português vulgar, esforço diário, o ritmo
obrigatório do trabalho humano. Tem outras significações: -
repreensão, discussão acalorada, pedido insistente.
Dezembro de 1951 dizia-me um garçon de bar: - "A vida
está difícil e o batido é cruel. Tenho de me virar dobrado..."
- Tepourtarian réi sus lou bout dou det! Nós te levaríamos
como um rei, na ponta do dedo. É a canção do Mestre
Ambrósio, recordando o bailio de Sufrem que de Toulon
partiu com quinhentos provençais para combater os
ingleses. O tradutor F. R. Gomes Jr. adverte ser sinônimo do
advérbio respeitosamente. No Brasil vale dizer facilmente,
imediatamente, sem dificuldade. "O que você caçar hoje eu
asso na ponta do dedo" "Sua bagagem é tanta que eu levo na
ponta do dedo."
- QuandMarto fialavos: enquanto Marta fiava. Figura
simbólica do trabalho feminino obstinado. Lucas, X, 40-42.
"Lá se foi tudo quanto Marta fiava!..." Perdeu-se tudo.
Recebemos o provérbio de Portugal. J. Leite de
Vasconcelos, Opúsculos, VIII, 688, estudou o tema
diversamente da intenção comum do Brasil.
- Ero à Nimes, sus VEsplanado. Qu'aquéli courso éron
dounado: era em Nimes, na Esplanada, que se davam as
corridas. Possivelmente a mais antiga manifestação
desportiva do homem. Imitação da disputa espontânea dos
animais em plena lúdica indiscutível. Doze séculos antes da
era cristã constituía elemento indispensável nas
comemorações fúnebres, militares, religiosas {Homero,
Llíada, XXIII). Figurou como característica nas Olimpíadas
(632 antes de Cristo). Dante Alighieri recorda a corrida do
drappo verde em Verona (Inferno, XV, 122). Ocorre em
todos os níveis da cultura humana, em terreno de natureza
favorável para os povos primários e secundários. Era uma
constante entre os indígenas do continente americano. É
uma das contemporaneidades milenárias.
- Que dês cascavéu d'orá l'entour i'éron joun: - a roda do
calção dez guizos de ouro estavam presos. Não eram
ornamentação mas significavam defesa mágica contra as
forças adversas, afastadas pela sonoridade rítmica, lavé
mandara o Sumo Sacerdote, sob pena de morte, costurar
guizos de ouro na orla da sagrada vestimenta (Êxodo,
XXVIII, 31-35). Elemento estimulador e sagrado. Defender-
se pelo som, música, melodia, é ainda uma permanente
popular (Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore
Brasileiro, "Som", James George Frazer, Le Folklore dans
l'Ancien Testament, "Les clochettes d'or").
- Pérque l'alen se lé repausa, Prenén i bouco un brout
desause-. a fim de suster a respiração, pusemos na boca um
broto de salgueiro. Um pedaço de madeira na boca provoca
salivação, espaça a sede e dá ritmo ao fôlego. É tradição
quase universal, o fragmento lígneo, uma pedrinha, folha
verde etc. Idêntico para todo o continente americano.
Viajando em 1810 pelo sertão do Nordeste brasileiro, Henry
Koster utilizou o tradicional processo: - the major told me to
follow his example, and put a pebble into my mouth. ivbich
iras the usual resource of the Sertanejos on thèse occasions
(Traveis in Brazil, I, 126).
- Fer courre vo santa sus l'oueri bondenjla: para correr ou
saltar sobre o odre insuflado. O famoso corredor Lagalante,
derrotado em Nimes pelo moço Cri, nunca mais apareceu
nas competições. Saltar ou equilibrar-se sobre um odre foi
passatempo de Grécia e Roma (Enkotylé, Etredismo) e que
resistiu na Península Ibérica sem que emigrasse para o Brasil,
onde nunca deparei vestígios de seu uso. A Provença seria
dos últimos recantos onde le jeu de l'outre demorou a
desaparecer.
Do Canto Segundo
- Manja de regardello! Comer com os olhos...
- Aubre dóu diable, aubras qu'un divéndre an planta: árvore
do diabo, árvore funesta que plantaram numa sexta-feira. A
sexta-feira, dia fatídico em que morreu Jesus Cristo, é tida
por maléfica e sinistra no folclore dos países católicos.
- Que la marrano t'agarrigue: que a "moléstia" venha a ter
contigo, é a tradução do Sr. F. R. Gomes Jr. Mistral
empregara a figura agoureira e misteriosa do "marrano",
inicialmente o judeu, o mestiço de judeu e mouro,
convertido ao cristianismo mas intimamente fiel à Lei Velha
de Moisés. Em princípios do século XVII espalharam-se de
Espanha e Portugal para Itália e França, onde não
mereceram conceito acolhedor. O nome provinha da
abstinência da marra, porco que terminou o aleitamento,
denúncia clara de judaísmo. Para o "marrano" convergiu a
suspeita de feitiçaria, malvadeza, perversidade astuta e
mesmo, na Provença, enfermidade contagiosa. Que o
marrano te agarre é expressivo. Em Portugal valia maldito,
amaldiçoado, excomungado, identicamente no Brasil. No
Rio Grande do Sul marrano é o gado inferior. Na Satyre
Ménippée (1594), na Harangue de Monsieur d'Aubray, cita-
se a injúria como corrente em Paris: - pourquoy ne me serait
permis de croire que tous ces Marranes, quijont tant de
signes de croix...
- O belèu uno souleiado vous a'mbriado: ou talvez o sol nos
enervasse, ou entontecesse, embriagasse. Vicente sugere a
Mireio consultar a velha Taven que, nas montanhas de
Beaux, conhece um tratamento para a doença. Punha-se
sobre a cabeça um frasco cheio de água, absolvendo o mal.
Era o sol na cabeça. Todos os terapeutas populares de
Espanha e Portugal curam por essa maneira a insolação.
Põem um pano branco, dobrado em nove dobras (novenas),
na cabeça do doente e sobre esta um copo de água. Se há sol
na cabeça, calma, calmaria, a água ferve. Rezam em
Portugal:

Sol, sai da criatura
Com toda a formosura.
Que a Virgem Maria
Tudo me ensinou
Que eu nada sabia.

Ensina Teófilo Braga, O Povo Português nos seus Costumes,
Crenças e Tradições, II, 236. O Prof. Joaquim Roque, Reza e
Benzeduras Populares, regista outra versão portuguesa, do
Alentejo:

Iria pelo mar ia
Nosso Senhor encontrou
E Nossa Senhora le preguntou:
- Onde vás Iria?
- Vou tirar esta calmaria!
- Nossa Senhora le preguntou
- Como a tiraria.
- Com a panai em nove dobras
- E um copo d'água fria.
Em lavor de D'es e da
Virja Maria Padre Nosso e
Amém Maria.

Rezam nove vezes. No Brasil existe a mesma tradição. O
poeta Gregório de Matos (1623-1695) escreveu cinco
décimas a uma Dama, tirando o sol da cabeça por um vidro
cheio de água, evidenciando a antigüidade da crendice no
Brasil do século XVII.
- Vole la Cabro d'or: quero a Cabra de Ouro! Pela Provença
existia a Cabra de Ouro, enterrada em vários lugares,
enriquecendo quem a encontrasse. Uma cabra de tamanho
natural e de ouro puro! A cabra está oculta nas grotas, nas
ravinas, na encosta, multiplicada pela ambição. Mistral,
menino, com os companheiros de escola quantas vezes
nousfuretions auxgrottespoitr clénincher la Chèvre d'Or. A
Cabra de Ouro passou à Espanha. Ambrósio de Salazar
(Tesouro de Diversa Lécion, 195-199, Paris, 1636) resume a
lenda catalã da casa de Marcus que enriqueceu porque halló
una Cabra muy grandey un cabrito de oro maciço. Há pelo
Douro português. Deve viver ou ter vivido no Brasil, no
ciclo da mineração, pelo século XVIII, na zona do ouro.
Do Canto Terceiro
- Pòu un regard lusént eferme, Dòu femelan torse lou
germe, Di vaco poussarudo agouta li maméuf Não pode um
olhar, luzente e fixo, matar o germe da mulher, das vacas
leiteiras secar as tetas? Fascínio, mau-olhado, olho-grande,
olho-de-secar-pimenta, projeção maléfica, esterilizadora e
fatal pelo olhar. Olhar da Górgona, Medusa. Crença
universal e milenar nas culturas clássicas. É o agente
determinador da maioria dos amuletos, opondo as forças
defensivas, o gorgoneion (Luís da Câmara Cascudo, Gor-
goneion, Homenaje a Don Luiz de Hoyos Sainz, I, 67,
Madrid, 1949). A bibliografia é incontável.
- Vaqui moun aneloun de véire, per souvenènço, o béu
jouvent/Eis o meu anel de vidro para lembrança, belo moço!
Mistral lembra as bagues de verre portant ati cbaton un rat,
vendidas na feira do Beaucaire. Os cancioneiros populares
contemporâneos de Portugal e Brasil cantam:

O anel que tu me deste
Era de vidro e quebrou.
O amor que tu me tinhas,
Era pouco e acabou!

Do Canto Quinto
- Lou gairad toucadou subran Varrapo i flane; a la maniero
prou-vençalo te lou bandis darriè Vespalo. O vigoroso
boieiro, rápido o agarrara pelos flancos; à maneira provençal,
o atira para trás das costas! Era uma técnica dos gregos nos
ginásios. Para o Brasil, mesmo entre os indígenas, a fórmula
era idêntica à dos romanos: derrubar o adversário pela
cintura, atiran-do-o ao solo. É a mais popular e vulgar na
Península Ibérica.
- Pourtant un marritpes: levamos um mau peso. As tua
quancum, miserable: tu mataste alguém, miserável! O
vaqueiro Ourrias, recusado por
Mireio, desafia Vicente, o namorado feliz, e é vencido
lealmente. Vinga-se ferindo-a à traição, com o tridente, e
foge, abandonando o ferido. Toma a barca no Ródano, para
Ales, mas a embarcação soçobra e o boieiro sucumbe. O
assassino tem o peso duplicado pelo do morto inseparável. A
maldição da morte caiei e pérfida acompanha o matador. É
tradição viva no Brasil. Teodoro Roosevelt (Através do
Sertão do Brasil, 308, S. Paulo, 1944) anotou a crença em
1914: - O Paixão está seguindo Júlio agora, e o seguirá
sempre, até Júlio morrer; Paixão caiu de bruços, sobre as
mãos e os joelhos, e, quando um morto cai assim, sua alma
acompanha o assassino enquanto este viver.
- Qu'es aniue Sant Medard: que é a noite de São Medard.
Nessa noite de 8 de junho as almas de todos os afogados no
Ródano fazem uma procissão assombrosa pelas margens,
com uma flama na mão, a la man tenien uno jlamo,
procurando orações para que deixem o Purgatório. No Brasil
a procissão dos afogados é na noite de Sexta-feira da Paixão
para Sábado da Aleluia. Notadamente no Atlântico do
Nordeste os velhos pescadores atestam a veracidade
apavorante. "Mestre Filó (Filadelfo Tomás Marinho) via a
procissão dos afogados fazendo penitência numa Sexta-feira
da Paixão. Estava pescando, pecando porque não se pesca
neste dia, na Pedra da Criminosa, com Benjamin e Francisco
Camarão. Na Pedra do Serígado de Baixo estavam fosé
fustino e Manaus. Todos viram. Os afogados apareceram
nadando em filas, silenciosos, os olhos brancos, os corpos
brilhando como prata na água escura" (Luís da Câmara
Cascudo, Jangada, 13-14, Rio de Janeiro, 1957). As fan-
tásticas Procissões de Penitência, longas e vagarosas filas de
espectros, conduzindo velas acesas, constituem uma
constante em todas as populações cristãs, notadamente
latinas, Itália, França, Bélgica, Espanha, Portugal etc. Os
testemunhos da aparição são contemporâneos. Os fantasmas
desfilantes e mudos vivem existência miraculosa desde o
México à Argentina, trazidos pelo colonizador europeu. Não
há, entretanto, dia preferível para a fabulosa exibição, exceto
a dos mortos no mar. Nos países saxónicos confundem-se
com as lendas do caçador fantasma, da caçada infernal, do
exército selvagem, os Wuotans Heet; das ivüttende Heer, a
mesnie Helleqiun, Helleguin, também na Espanha, a güestia
de Astúria, hostis antiquus; ora uma hoste bravia e malévola,
guiada por Satanás, ou uma forma processional das almas
penitentes, como ocorre às margens do Ródano, na noite de
São Medard, pedindo orações e sufrágios. Na Bretanha a
procissão des noyésê na noite do Natal.
Do Canto Sexto
Mireio conduz Vicente agonizante ao Trau di Fado, ã la
coumbo dinfer, à gaita das Fadas, no vale do Inferno,
morada da feiticeira Taven,
Taven la masco. Por alusão ou visão, todo o bestiário
fantástico comparece até que o cesteiro seja curado pela
magia medicamentosa da bondade bruxa.
- De Fouletoum... Veissame vagabound, quilant,
revoulunous. Dos Loucos... o enxame vagabundo, galopante
em turbilhão. Almas perdidas para a salvação, condenadas
eternamente ao fogo maldito, passam num furacão,
revoluteando em ciclo interminável, como Dante Alighieri
evocou no Inferno, V, 46-48: - Em rodopio as almas
volteavam. O folclore de Portugal e Brasil não conhece
personalização da Ventania mas lhe dá consistência mágica,
intenção sinistra e malfazeja, e mesmo explicação diabólica.
- Esperit Fantasti. O mais popular dos duendes provençais.
Corresponde um tanto ao saci-pererê do Sul, caipora do
Nordeste, curupira do extremo Norte brasileiro, auxiliando e
perturbando, amigo dedicado e perseguidor menos por
perversidade que divertimento. Todos os duendes pastoris
têm essa dupla e permanente missão, numa ambivalência
amável e perigosa, tornando-os inseparáveis das mais
vulgarizadas tradições orais. A França é riquíssima nessa
fauna espantosa de korrigans, ponlpicans, lutins, dracs,
fadets, farfadets, gobelins, sotrés, hannequets, annequins,
vauvert, vinte e outros, travessos, inquietos, desnorteantes.
- Counneissés pas la Bugadiero? É a Lavandière do Monte
Ventour, personalização meteorológica. A Bugadiero
comanda as nuvens, amontoando-as, torcendo-as como se
fossem peças de roupa, precipitando as chuvas. Em Portugal
o Nevoeiro é representado por uma velha, mas a figura não
se passou para o Brasil. Não possuímos uma Bugadiero e sim
as lavadeiras da noite, que não anunciam a Morte mas são
ouvidas na sua tarefa sem fim durante a noite tropical.
- Un capelan, pale comme éli, dire la Messo e VEvangéli. É
a missa dos mortos, celebrada por um sacerdote falecido a
uma contrita assistência de defuntos. Muito conhecida na
Europa (Alphonse Daudet, Les trois besses basses) e no
Brasil inteiro. Augusto de Lima Júnior (Histórias e Lendas,
154-156, Rio de Janeiro, 1935) regista uma versão de Ouro
Preto, Minas Gerais, como verídica missa das almas.

- Garrigo. Garrigues, lutinos, bailarinos das trevas,
espalhando aimorés confusos. Explicam os ruídos
inexplicáveis. Não têm denominação especial no Brasil. São,
vagamente, os espíritos.
- Garamaudo. Garamaude. Garache. Fantasma vampiresco,
devorador de cadáveres. Revenant vampiro. É a bruxa, na
acepção mais hedionda e repelente.
- Bambaroucho. Velha que rapta crianças para comer. Furta
meninos insones. Papona, insaciável; feminino de papão,
ogre, viva em todo o Brasil.
- Gripet. O grippm Baixa Bretanha. Gripper por griffer,
arranhar, dilacerar com as garras. É um aliado da Garamaudo.
Espectro de unhas compridas, torturador. Sinônimo satânico
no Brasil: o das unhas grandes, como em Portugal.
- Chaucho-vièio. Pesadelo. É a Pisadeira de São Paulo.
Mulher alta, magra, dedos longos terminados em unhas
enormes, perna curta, cabelo desgrenhado. Desce pelo
telhado e senta-se no tórax dos dormentes depois da ceia,
angustiando-os.
- Escarinche. Correm pelos prados. Elfos, lutinos,
brincalhões e assustadores. Saci-pererê, caiporas, no Brasil.
- Dra. Dracos. Os escarrinchos foliões e numerosos.
Caiporas e sacis.
- Chin de Camhau. O cão de Cambai. Cão negro, faminto,
invulnerável, atacando nas encruzilhadas no Brasil,
perseguindo os tresnoitados vagabundos, companheiro
misterioso e fiel dos ébrios noturnos. Cão é sinônimo
diabólico. Chien à la grande queue, na França.
- Fió de Santa-Eume. Fogo santelmo. Corpo Santo. São
Telmo. Umas das mais poderosas e seculares tradições
supersticiosas em Portugal (Augusto César Pires de Lima,
Estudos Etnográficos, Filológicos e Históricos, 2-, 7-75,
Porto, 1948). De presença vulgar no Brasil.
- Lougalop enrabia dóu Baroun Castilbounfo galope
enfurecido do Barão Castillon" deverá ser na Provença a
passagem do Conde Arnau, a mais popular e prestigiosa
figura dos mitos da Catalunha. Hace relativamente poco se
oía el ruido de las patas y el relicho dei caballo en su loca
carrera (José Romeu Figueiras, El Mito de el Conde Arnau,
166, Barcelona, 1948). É o caçador-fantasma, a caçada
selvagem. Haute chasse. Caçador invisível, no Brasil, terror
dos concorrentes na caça noturna.
- Agnéu negre. Ovelha negra. Brebis noir. Schwarzes Schaf.
Black. Sheep. Aparentemente pacífica, balando, inocente,
atrai o viajante que se perderá tentando capturá-la. Se a
erguer, desfalecerá sob o imprevisto e espantoso peso.
Comum no Brasil. Le Montou pesantxvà França.
Do Canto Sétimo
- Sis auriho, degun Vavié' nearo trauca. Suas orelhas,
ninguém ainda as furara. Refere-se à juventude de
Vinceneto, Vicentinha, filha de Mestre Ambrósio, irmã de
Vicente, o amor de Mireio. Usar de brincos era uma
comprovação da notória nubilidade. Furavam o lóbulo da
orelha â menina ainda criança ou, no comum, guardavam
essa exigência decorativa e mágica para mais tarde,
significando elemento denunciador de um rite depassage.
Era o costume nas antigas famílias brasileiras, maiormente as
do interior, do ciclo pastoril.
- Li cinq det de la man soitn pas tóiitipaire! Os cinco dedos
da mão não são todos iguais. Nem os dedos são iguais. Cada
dedo é diferente e a mão é a mesma. Constam da
paremiologia brasileira.
- Sant Jan! Sant Jan! Sant Jan! crivadon. O grito jubiloso é o
mesmo no Brasil: - Viva São João! A festa da herdade de
Mestre Ramon coincide inteiramente com as nossas
comemorações, sendo estas mais movimentadas e sonoras,
com as comidas de milho, bebidas típicas, bailes tradicionais,
noivados, casamentos, compadrescos simbólicos. Presença
de Portugal no Brasil.
Do Canto Oitavo
- Colime autan Magalouno... Como outrora Maguelonne. A
história de Pierre de Provence et de la belle Maguelonne
diz-se escrita em latim ou provençal pelo Cónego Bernardo
de Treviez, da Igreja de Maguelonne, Port Serrassin, 16
quilômetros de Montpellier, à volta de 1453- Petrarca, então
estudante de universidade, tê-la-ia retocado. Em 1519
corriam versões castelhanas (Sevilha, Burgos) e em Portugal
na edição de 1625 (Antônio Álvares, Lisboa), mas é crível
havê-las desde as primeiras décadas do século XVI, pelo
impressor Jacob Cromberer. No Brasil A História da Princesa
Magalona foi popularíssima, reeditada quase anualmente e
tendo várias redações em versos (Luís da Câmara Cascudo,
Cinco Livros do Povo, 225-280, ed. José Olympio, Rio de
Janeiro, 1953).
- È qu 'es aquéu Trau de la Capo?É o que é a Caverna da
Cape? Domínio de senhor ambicioso, avarento,
desdenhando os preceitos da Igreja, fazendo servos e
animais trabalharem ininterniptamente nos dias santificados.
Uma tempestade varreu a propriedade orgulhosa e as águas
cobriram plantios e eiras. Em certas ocasiões, jour de Nosto-
Damo, eleva-se o confuso nimor das existências submersas
no pântano e são audíveis as vozes dos trabalhadores, trote
de cavalos sobre a eirada, tinidos de campainhas. No Brasil
vivem as lendas das cidades castigadas e palpitantes no fundo
do mar, dos rios e das lagoas: Lagoa Santa em Minas Gerais,
Lagoa Negra, Conceição do Arroio no Rio Grande do Sul, no
Rio Gurupi, perto de Viseu do Pará, Sapucaiaoroca no Rio
Madeira, no Amazonas, na Lagoa de Estremoz, no Rio
Grande do Norte, na Praia de São Vicente, em S. Paulo, no
Rio São Francisco, na Bahia.
Do Canto Nono
- Dóu proumié cop, mestre, me coupe. Com o primeiro
golpe, patrão, firo-me! A tarefa iniciada com um ferimento
no trabalhador é de mau agouro também no Brasil. É o mau
começo, o princípio mim...
- De fournigasso... dou nis e di nistoun venien d s'empara.
As formigas apoderaram-se do ninho ainda habitado pelas
aves. É outro indício de próxima desventura, de negócio
errado, de falha, infelicidade no ensejo imediato. A solução
para evitar a visível ameaça é enterrar ninhos, aves, ovos. É
uma tradição popular do meu tempo de menino no Nordeste
brasileiro.
- Un frejoulun me uèn... léu ai senti la Mort qu'a passa
coume um vent/ Um tremor me vem... Senti a Morte passar
como um vento. Os estremecimentos inopinados, arrepios
súbitos, são explicados pelo povo como a passagem da
Morte.
- Parlo me donne, se siés bono umof Se siés marrido, torno
i/lamo/Se és uma boa alma, fala então! Se tu és u'a má, volta
para as chamas! É a invocação, o esconjuro clássico no
Brasil, vindo de Portugal, com as modificações regionais: "Se
és alma de Deus, dizei o que quereis! Se és alma infernal,
longe de mim sete palmos, com os poderes de Deus!"
- Veses lou camin de Sant Jaque? Vês tu o caminho de São
Jacques? É a Via-Láctea carreiro de Santiago, dizemos no
Brasil como em Portugal. Estrada que as almas percorrem na
peregrinação a Compostela, visitando o túmulo do Apóstolo.
Mira, mira; ecco il barone per cui la giùsi visita Galizia,
cantava Dante Alighieri no Paraíso, XXV, 17-18.
- Esus lou càrri bacelaire. E sobre o carro gemedor. O carro
de Jano Mario, Joana Maria, mãe de Mireio, era a carroça
provençal, puxada por um cavalo, no caso a égua Moureto,
Mourrette, em que viajou para as Sánti Mario, as Santas
Marias, procurando a fugitiva filha. O atrito do eixo devia
provocar a cantilena interminável, avisando a presença do
veículo e afastando os maus espíritos pela sonoridade
intencionalmente produzida; o stridentia plaustra de
Virgílio, Geórgica, III, 536. As rodas cantantes, esquecida a
própria significação mágica do som, ainda resistem na
Anatólia, ao redor do mundo hitita, na Espanha pelo carro
chillón e no Brasil nas rodas maciças do carro de bois
nordestino, e noutras paragens, ibéricas e ameríndias.
Do Canto Décimo Segundo
- M'an vist abra mou cachimbau dins uno gléiso á la viholo?
Viram-me acender o meu cachimbo numa lâmpada da
igreja? A lâmpada ardendo diante do altar do Santíssimo é
tradicionalmente sagrada. Significa a fé vigilante, a fidelidade
devota de todos os crentes, a homenagem visível ao Espírito
Santo. Sempre essa lâmpada está onde guardam, no sacrário,
as hóstias consagradas, o Deus-Vivo. Não pode ser profanada
por contato, e uso alheios à sua destinação litúrgica. Culto de
Vésper. Fedro, IV, X: Fur aram compilans. Levítico, VI-12:
Ignis autem in altari semper ardebit.
- Se'n cop veirés à voste lume quauque sant-féli que
s'alume, bom paire sera iéu! Quando virdes na vossa lâmpada
alguma falena se queimar, bom Pai, serei eu! A borboleta
valer alma dos mortos é crença milenar. Psiké, espírito e
borboleta, valia o mesmo vocábulo para os gregos na
intenção personalizadora que se derramou pelo
Mediterrâneo. As escuras são feiticeiras ou prenúncios de
desgraças. As claras anunciam venturas. Em Portugal é a
coisa má, esvoaçando ao crepúsculo. Identicamente na Itália
e Espanha. Na França, alma de morto em penitência. Na
Rússia, mensageira do infortúnio. Na China, arauto da
Morte. Na Pérsia, visita dos defuntos saudosos. Na Inglaterra
(Devonshire), a criança que morreu sem batismo. Mireio
visitaria a casa paterna sob a forma graciosa e leve de uma
falena, volteando à luz da lâmpada doméstica, inteiramente
no ambiente supersticioso que ainda não desapareceu.
- Nóu véspre-ã-de-réng, tau e tauro van, soluoumbros,
ploura la pauro. Nove noites consecutivas, touros e vacas,
vêm, sombrios, chorar a desgraçada. A rês abatida, se deixa
nódoa de sangue no local da morte, é pranteada pelo gado,
em coro de impressionante insistência aflitiva. Em todos os
povos pastores esse choro de gado tem sido registrado, desde
época antiquíssima. Não há tempo marcado para a fúnebre
homenagem bovina realizar-se. Na Provença, como no
Brasil, o povo encarrega-se de marcar a duração do
cerimonial instintivo e selvagem, sempre em data ímpar,
três, cinco, sete, nove dias, obrigacionais de lamentação.
Numero deus impare gaudet, dizia Virgílio, Égloga, VIII, 75.




4
Motivos do heptaméron

Evidente que não me encontro aqui para prefaciar,
introduzir ou apresentar mestre Luís da Câmara Cascudo.
Seria ato supérfluo, fora de propósito, ou de vila e termo.
Antes, para testemunhar e saudar, no Autor ilustre e
consagrado, cuja companhia é uma honra partilhar este grato
e raro momento intelectual, uma das mais recentes e
curiosas aventuras do espírito, da sensibilidade e da
inteligência investigadora.
Na seqüência de uma obra multiforme, que envolve os mais
vanados setores do estudo, da pesquisa e do conhecimento, -
o histórico, o sociológico, o etnográfico, o antropológico, o
folclórico, - este ensaio sobre os motivos do Heptaméron na
literatura oral do Brasil se reveste de aspectos os mais
fascinantes.
O Heptaméron é da primeira metade do século XVI, mas
somente apareceu publicado em 1558. Livro de uma rainha
renascentista, e, portanto, com repercussão em ambiente
europeu, de corte, fidalgo e limitado, como possível a
reprodução, na boca anônima do povo, embora com as
adaptações inevitáveis de época, lugar, condições pessoais e
circunstâncias, de alguns fatos e histórias ali narrados?
Maravilhoso mistério de identidade, de fundo comum das
naturezas humanas, que possibilita e permite tão estranhas
simbioses, aproximações ou viagens, através do tempo, do
espaço, das culturas, das situações.
Mestre Cascudo, com a sua experiência e as suas antenas
captadoras de ressonâncias as mais imponderáveis e sutis,
arma, no seu trabalho, os diversos quadros em que se
recompõem cenas e casos afins, num levantamento de
coordenadas e referências que impressiona pela variedade,
mobilidade e colorido das fontes e das manifestações. E que
encanto é acompanhar, nas suas revelações, página a página,
toda essa trama pitoresca, e viva, enxameante de humor, de
malícia, de gaietê gauloise, de espirt de tromperie et de ruse,
bem característico dos usos e costumes do tempo, sem
embargo das lições de moral corrente e sabedoria humana
que tantas estórias (para usarmos agora uma expressão
preferida do Autor) contêm, e delas são a conclusão
oportuna e eficaz!
Margarida de Angoulême, rainha de Navarra, irmã do Rei
Francisco I, de França, avó de Henrique IV, protetora do
humanista Amyot e que teve o poeta Clement Maró como
secretário, é considerada uma das animadoras do movimento
de renovação das artes e das letras clássicas, que se rotulou,
na História, de Renascença. Mulher culta e inteligente, com
largos conhecimentos das línguas e das literaturas de sua
época (o grego, o latim, o italiano, o alemão e o espanhol lhe
eram familiares), foi igualmente poetisa, embora os seus
versos não lhe hajam granjeado a mesma fama que os seus
contos. Edmond Jaloux, entretanto, os julga superiores; e ela
os compôs inumeravelmente, numa suprema
espontaneidade de criação, tocados, ora de ardor místico,
ora modelados em delicada contextura lírica, tão distantes,
assim, da substância e do caráter do Heptaméron.
Quanto a este, contos baseados em histórias verdadeiras, a
crer na sua Autora, cujas personagens são, muitas vezes,
figuras de sua própria entourage, ela o escreveu, na maior
parte, como acentua Brantôme, "dans sa lityre en allant par
tous pays". Teve ela, realmente, uma vida movimentada, e
cheia, inclusive, de preocupações e dificuldades, tanto de
ordem íntima e pessoal, quanto decorrentes de sua condição
de princesa e, depois, rainha, que a existência dos nobres da
terra nem sempre é leve e fácil.
Mestre Cascudo, que tanto gosta, insolitamente, de
conversar com bichos nos cantos de muros imprevisíveis, -
amigo pessoal da donzela Teodora e da Princesa Magalona,
donas de amável convívio, expressões eternas da legenda e
do cancioneiro universais, em cuja vasta, acolhedora e
generosa sala de estudo e trabalho do casarão da Junqueira
Aires, como na torre do Castelo de Montaigne, todas as
Musas estão vivas e presentes, - não poderia resistir à
provocação de tema tão rico e excitante, nas suas
implicações folclóricas, e tão magnificamente estruturado na
área de suas tarefas de escritor.
Eis um trabalho feito com ternura e amor, construído sob as
únicas influências e sugestões do gosto pessoal, em que
enidíçâo e memória se irmanam harmoniosamente, e por
isso mesmo bem típico da paixão de seu Autor pelo folclore,
naquele exato sentido em que Sainte-Beuve o chamava de
"poesia espontânea", e que não deixa de ser, por outro lado,
sem pretensões nem metafísica, uma ciência de
compreensão da vida, dos seres e das coisas, nas suas raízes,
na sua essência e nas suas constantes psicológicas universais.
Américo de Oliveira Costa, Margarida de Valois-Angoulême,
Duquesa d'Alençon e do Berry, depois rainha de Navarra, a
marguerite des princesses, irmã de Francisco I de França,
avó materna do Rei Henrique IV, nasceu a 11 de abril de
1492 no Castelo de Angoulême e faleceu no Castelo de
Odos, perto de Tarbes, a 31 de dezembro de 1549. De 1542
em diante começara a escrever uma série de contos,
imitando a técnica então vitoriosa de Boccaccio no
Decameron (1348-1353), lido na biblioteca do avô paterno,
Jean d'Angoulême.
Imaginou que cinco damas e cinco cavalheiros, reunidos em
Notre-Dame de Serrance, voltando das águas de Cauterets,
depois de várias aventuras, impossibilitados de alcançar suas
residências pela invernia que fizera transbordar os rios,
divertiam-se contando estórias diariamente, uma cada
personagem, e em dez dias teriam cem contos narrados.
Cada qual dira chascun quelque historie qu'il aura véus ou
bien dire à quelque homme digne defoy. Deliberou-se sinon
en une chose différente deBocace: c'est de n'escripe nulle
nouvelle qui ne soit véritable histoire.
A Rainha Margarida faleceu antes das cem estórias
terminadas. Ficou em sete dias, com setenta estórias e mais
duas da huitième journée incompletas. Alguns pesquisadores
do Heptaméron crêem que as 28 novelas faltantes foram
escritas e devem existir espalhadas nos arquivos das
bibliotecas da França ou Itália. Pierre de Bourdeille, Siredo
Brantôme, filho de uma dama de companhia de Margarida
de Navarra, cita nitidamente as cent nouvelles como
completas: - Vous avez dans les CENT NOUVELLES de la
reine de Navarre (LES DAMES GALANTES, Premier
Discours).
Michel François diz que sim e Pierre Jourda diz que não.
A primeira edição denominou-se Histoire des Amants
Fortunez (Paris, 1558), sendo coordenador Pierre Boaistnau,
corn 67 novelas dispostas arbitrariamente. No ano seguinte
Claude Gaiget publicou o trabalho completo, com as novelas
que conhecemos e divididas em journées ao sabor do
Decameron. Foi Claude Gniget em 1559 o autor do feliz
título, HEPTAMÉRON DES NOUVELLES de très illustre et
très excelente Princesse Marguerite de Valois, royne de
Navarre etc. As Novelas 11,14 e 46 tinham sido substituidas
por outras. O autor seria a própria rainha ou Gruget?
Edição integral, fiel ao texto e confrontando-o com as
demais copias, é a de A. J. V. Le Roux de Lincy (Paris, 1853-
54). Entre as tantíssimas há uma recente e magnífica de
Michel François (Paris, 1943), divulgando uma novela e um
prólogo inéditos.
Cercada de livros, clássicos e latinos e fabliaux, sabendo seis
línguas, de quem Clement Marot foi secretário e
Bonaventura des Piéres valet de chambre, criou no
Heptaméron um clima propício de credibilidade, de
possibilismo vital ao mundo novelístico palpitante ao
derredor de Alençon, Bouges, Blois, Pau, Nérac. De agosto a
novembro de 1525, visitando o mano rei prisioneiro de
Carlos V, viajara pela Espanha, Madrid, Toledo, Saragoça,
Barcelona e Navarra, onde se irradiavam os bascos para
Espanha e os gascões para a França, e era centro de cultura
oral pela incessante osmose dos Pireneus.
Margarida de Valois-Angoulême, nascida seis meses antes do
descobrimento da América e no ano do desaparecimento do
último reino mouro na Europa, presenciou um dos
momentos de maior intensidade na circulação da literatura
oral pelas guerras da França, Espanha, Itália. Suas novelas te-
riam ampla base nos velhos e saborosos fabliaux, redação de
contos imemoriais, infixos no espaço, alguns posteriormente
ajustados como verídicos e fisicamente personalizados.
A influência do Decarneron foi imprevisível na extensão e
profundidade. Jehcroy qu'il n'y a nidle de vous qui n'iat leu
les cent Nouveles de Bocace, dizia a brilhante Margarida. A
primeira versão francesa, de Antoine Le Maçon, conselheiro
do rei, é de 1545, e dedicada a Margarida de Navarra. No
século XV treze edições italianas foram espalhadas e a rainha
teria o italiano como idioma familiar. Era leitora de Dante
Alighieri, citado num terceto do Inferno, III, v-51, na
nouvelle IN.
De Luís XI a Henrique IV a monarquia francesa fora vivida
popularmente, com a participação da memória anônima e
uso do seu folclore, de que é documento o Cent Nouvelles
Nouvelles, a presença do sal e da graça maliciosa em
episódios possíveis, expostos com verve grivoise, à mesa do
Delfim, e nas horas de convivência plebéia, indistintamente,
numa comunicação incessante por todas as classes, vivendo
as mesmas estórias e canções nas lembranças aristocráticas e
vilãs. Procuravam identificar os figurantes, dando-lhes vida
contemporânea, justificando a coincidência do evento.
Desde a menoridade de Luís XIII, o rei de França ficou
isolado, pomposo, determinando, pela multidão parasita e
fidalga circunjacente no Louvre, outra literatura oral,
inferior em conteúdo humano e mais cerebral na ciência da
exposição crítica. Nascia a fauna ilustre dos memoralistas,
registando os acontecimentos na colmeia fendillante de
Versalhes.
A corte de Francisco I, ambulante e pitoresca como a de um
soberano merovíngio, percorria as cidades do reino como os
reis de Espanha antes de Filipe II e os de Portugal antes de
D. João IV, derramando e recolhendo o gay savoir, de que é
esplendor o Heptaméron. Diante dessas cortes explica-se um
auto de Gil Vicente sem maquinados, luzes e tramas
ilusionistas. Esse ambiente francês de Rei e Povo consagra e
explica Margarida de Navarra, o sire de Brantôme e o Doutor
François Rabelais. A presença erudita não estanca a fonte
popular, suculenta e truculenta em sua grandeza hilariante
ou dramática, sempre nascida de raízes legítimas, condutoras
de seiva tradicional. Não é deliberadamente imoral mas
recordadora de fatos possíveis entre homens e mulheres
temperamentamente naturais. Tanto deparamos no
Heptaméron, "La Chastelaine de Vergi", conto anônimo do
século XIII (nouvelle LXX, como ocorrida en la duché de
Bourgoingnê), como os ligeiros e picantes temas
reaparecidos nos entremezes espanhóis e que resistem no
anedotário ibero-americano.
Assim o Heptaméron é uma exposição de motivos literários
e sociais com os fundamentos imemoriais da literatura oral.
Será sempre curioso e útil o registo de elementos que a
rainha de Navarra escreveu na primeira metade do século
XVI e ainda permanecem comuns e vivos nas regiões
ameríndias, naquele tempo amanhecendo na história do
mundo. Ela faleceu quando Tomé de Souza fundava o
governo-geral no Brasil. As mais notadas "constantes"
figuram nas novelas VI, XXIV, XXIX, XXX, XXXIV, XXXV,
XXXVIII, XLIII, XLV, LII.
A novela VI refere-se à jovem esposa de um fâmulo de
Carlos, Duque de Alençon, primeiro marido da futura rainha
de Navarra. O fâmulo era velho e cego de um olho. Numa
noite a mulher estava com o amante quando o esposo
chegou inesperadamente, batendo à porta como um
desesperado. A mulher foi recebê-lo festivamente, dizendo
ter sonhado com sua cura ocular. Et, en l'embrassant et le
baisant, le printpar la teste, et lui bouchait d'une main son
bon oiel. Cobrindo o olho sadio, deixava-o completamente
às escuras. O amante aproveitou a ocasião para escapar-se
sem perigo de maior.
A estória é contada em Portugal, Espanha, Brasil, com
muitas variantes.
A mulher cobre a vista do marido, ou ambos os olhos se ele
os tem perfeitos, com um lençol sob pretexto de exibir uma
compra feliz. O amante foge.
A mais antiga redação consta do Disciplina Clericalis, de
Pedro Afonso, judeu converso, nascido em 1062 e falecido
depois de 1115. É a fábula IX, Exemplam de vindemiatore,
do texto de Hilka e Sodrehjelm, traduzido para o espanhol
por Angel Gonzales Palencia (Madrid-Granada, 1948),
correspondendo à VII da edição latina de Migne (Patrologie,
CLVII, Paris, 1899). O marido saiu para vindimar e a mulher
recebeu a visita do namorado. Fere-se com um ramo de
videira e regressa à casa antes do tempo previsto. A mulher
oculta o amante num aposento e, abraçando o esposo, pede-
lhe para comprimir o olho são, evitando o contágio. Torna,
desta forma, cego o marido e o amante desaparece,
incólume. Outra versão, popularíssima, consta de a mulher
disfarçar a saída do galã estendendo, com o auxílio da mãe,
um pano, mostrando-o ao marido. É o exemplam de lintheo,
X em Hilka-Sodrehjelm e VIII em Migne. São temas
conhecidos na Espanha desde o século XI.
Victor Chauvin (Bibliographie des Ouvrages Arabes, IX, 20-
21, Liège, 1901) regista as fontes literárias européias que se
utilizaram dos dois episódios: 15 para o primeiro e 10 para o
segundo.
O assunto, picante e saboroso para a época, foi usado pelos
novelistas italianos como Célio Malespini, Sabadino Degli
Arienti, Giuseppe Orologi. Cervantes escreveu o entremez
El Viejo Celoso com o mesmo processo burlador. O galã
entra por detrás do guadamecim que a velha Hortigosa dis-
tende. Joseph Bedier (Les Fabliaux, 320, Paris, 1895) regista
variantes temáticas. Idêntico não aparece nas técnicas da
cocuage, manipuladas por Boccaccio, muitas e nascidas da
criação oral e centenária. Não é fixável desde quando o
motivo passou à estória, de voz em voz, circulando pela
Europa medieval.
A origem oriental positiva-se na presença do Hitopadexa,
conto V do Mitraläbha (tradução de Monsenhor Sebastião
Rodolfo Dalgado, 57, Lisboa, 1897) e no Levieu Marchand
et sa jeune Femme (versão de Edouard Lancereau, 42 , Paris,
1855). No pais de Gauda, na vila de Kausambi, o velho
Tchandanadãsa é casado com a jovem Lilãvati. Esta folga
com o amante quando Tchandanadãsa bate à porta. Lalävati
abraça-o, beija-o, escondendo-lhe os olhos. O namorado
imediatamente foge.
Da popularidade clássica desse tema resta-nos a menção de
Aristófanes no Thesmojbriazuses (Tesmoforias) ou festas de
Ceres e de Proserpina, sobre telle femme qui fair admirer à
son mari la beauté d'un manteau, étendu au soleil, pour
faciliter l'évasion de son amant (Théâtre d'Aristophanes,
trad, de André Charles Brotier, II, 222, Garnier, Paris, sem
data). É comédia representada em Atenas 412 anos antes de
Cristo. Assunto do fabliau LE BORGNE, bem possível inicial
para a rainha redatora. Ainda referências em Joseph Bedier
(Les Fabliaux, 466-467, Paris, 1895). Essas variantes eram
populares e vulgares na Espanha do século XV. Constam do
El Corbacho (Sevilha, 1495) do Arcipreste de Talavera
(Afonso Martinez de Toledo, 1398-1470) no Cuento las
mujeres embusteras. Passariam a Portugal e às terras
americanas.
Difícil algum livro de contos velhos, medievais ou da
Renascença, sem o registro desse episódio que Margarida de
Valois ressunscitou.
A versão brasileira mais divulgada é simples. Voltando o
marido, a mulher tapa-lhe a vista sadia perguntando,
carinhosamente: - "Que é isto, meu filho? Que tens no
olho?" O amante consegue sumir-se, intacto. Noutra
variante a mulher sopra na vista sã do esposo para curá-la. E
dura o sopro até o amante fugir.
Na novela XXIV, tratando-se dos amores platônicos de uma
Royne de Castille com o cavaleiro Elisor, promete este
mostrar a figura de quem ama, a dama mais virtuosa de toda
a Cristandade. Manda fazer un grand mirouer d'acier en
façon de ballecret, pondo-o ao peito, oculto pelo manto
frisão. Indo à caça, o namorado desce a rainha de sua
montada e fá-la olhar-se no espelho de aço, disposto numa
peça de sua brunida armadura. Quando a rainha insiste em
ver a dama dos amores de Elisor, o fidalgo lembra o reflexo
no espelho. A rainha vira unicamente a ela própria. Elisor
explica ter satisfeito o compromisso. Era aquela a doce visão
do impossível amor.
Esse processo é usado, não nas estórias, onde nunca o
encontrei, mas nos jogos de salão, na artificiosa manobra da
declaração de amor de outrora. Anunciava-se mostrar o
retrato da menina mais bonita da cidade, a mais graciosa ou
futura noiva se ela quisesse. Depois estendia-se um
espelhinho de algibeira onde a eleita se reencontrava,
lisonjeada. Numa festa na praia de Areia Preta, dezembro de
1933, em benefício da catedral de Natal, uma das atrações
para a curiosidade pública, de mais efeito, era a fotografia do
rapaz mais elegante e preferido na festividade. Pagavam para
ver e, no fundo do salão, envolto em rendas, com o acesso
difícil, estava um espelho, denunciando a pilhéria que a
todos satisfazia.
Há também o emprego no plano humorístico. Nos diálogos
dos artistas Jararaca e Ratinho (José Luís Calasans e Severino
Rangel de Carvalho), o segundo diz ter visto na residência
do outro o retrato de um cavalo e o primeiro informa não
ser fotografia e sim um espelho.
Recordo anteriormente apenas a passagem na Arcádia de
Sannazaro (Nápoles, 1504), onde o pastor Charino faz uma
zagaia identificar-se como a favorita mirando-se n'agua.
Nenhuma semelhança deduzo do Narciso, de Ovídio
(Metarnorphoseon, III, 339-510). A fonte deve ser oral para
as versões napolitana e francesa.
A novela XXTX evoca a uilaige nommé Carreies, enle conté
du Maine, onde havia um rico lavrador, pesado, rústico,
casado com une belle jeunefemme que, não tendo filhos, se
reconforta à avoir plusieurs amys. Estava com um desses, na
ausência marital, quando chega o dono da casa. Oculta-se o
hóspede no celeiro, coberto com uma peneira. O lavrador
janta copiosamente e adormece ao calor da lareira. O
amante, fatigado da posição contrafeita, atreve-se a olhar,
estende o corpo, perde o equilíbrio e desaba, com a joeira
também. Despeita o marido, e o namorado, recompondo-se,
explica-se: - Mon compere, voylà vostre van, et grand
mercis. Et, ce disant, s'enfouyt. A mulher sossega o marido
dizendo que emprestara a joeira, agora restituída. O marido,
tranqüilo, readonnece.
Meu pai (1862-1935) contou-me uma variante na Vila do
Triunfo (hoje cidade de Augusto Severo, Rio Grande do
Norte) à volta de 1888. Mesma situação. O namorado,
sacristão da localidade, trepa-se num jirau onde há um
cincho, aro para apertar queijos. O marido, dormindo na
rede debaixo do jirau, é despertado pela queda do sacristão
que, falando depressa, entrega o cincho que tombara com
ele, justificando-se: - "Está aqui o cincho que sua mulher
emprestou ao vigário. Ele manda agradecer!" - "Está bem,
mas não precisa botar a casa abaixo!", responde o fazendeiro,
atônito. O sacristão sai e o marido volta ao sono. Alfredo
Russel Wallace regista uma variante, em 1850, no Rio
Capim, São José, Amazonas, entre negros. O amante,
escondido no teto da choupana, cai, dizendo ao marido da
namorada ter vindo do Céu, dando notícias da filhinha do
casal, falecida há pouco tempo. Vira-a assentada aos pés da
Virgem, "fumando num cachimbo de ouro". O fumo no
Paraíso era inferior ao produzido na roça paterna. O marido
negro manda entregar ao namorado duas libras de tabaco
para que presenteie à filha. E o astucioso amante vai embora
CA Narrative of Traveis on the Amazon and Rio Negro,
Londres, Nova Iorque e Melbourne, 1889).
O tema nenhuma coincidência substancial terá com a novela
II da gior-nata oitava do Decameron, mormente a desfaçatez
egoística e cínica do cura de Varlungo, vindo a cobrar à
dama Belcolore a prenda com que pagara seus favores.
A novela XXX trata de caso ocorrido no tempo do Rei Luís
XII (1462-1515), no país de Languedoc, e a personagem
essencial foi dama de lequelle je tairay le nom pour l'amour
de sa race, qui avoit mieulux de quatre mille ducataz de
rente. Bem dizia Lope de Vega que dineros son calidad.
É o repugnante incesto entre mãe e filho e pai e filha,
inconscientes e fatais como no complexo de Jocasta e Édipo.
A dama do Languedoc, viúva, formosa e rica, educava
severamente o filho único. Este apaixona-se por uma
camareira. A dama, ouvindo a confidencia da moça, manda-
a dormir noutro aposento e vai deitar-se na câmara da
demoiselle, esperando a visita amorosa do filho para
exprobar-lhe a conduta. Em vez de repreensões, traída pela
carne despertada pelo contato másculo, a dama cede ao
abraço filial e deixa o leito pela madrugada, cheia de
remorsos e de rancor pela inesperada fraqueza. Sentindo-se
grávida, manda o filho servir com um parente, o capitão de
Montesson, que está às ordens do grão-mestre de
Chaumont, Charles d'Amboise. Nasce uma filha, ao mesmo
tempo sua neta, e a dama a faz educar por um irmão
bastardo sob o maior segredo. A menina cresce e se faz
moça, indo viver na corte da rainha de Navarra, Catarina,
irmã de Gastão Phebus e casada com Jean d'Albret, rei de
Navarra. O filho da dama, terminadas as guerras, recebe
ordem materna de só voltar para casa depois de casado. O
rapaz conhece a jovem, enamora-se e casa. Ela, filha, irmã,
esposa. Ele, pai, irmão, marido. Regressa o casal e a velha
senhora desespera de dor e de vergonha. Recebe-os e vai
consultar o legado do Papa em Avignon, Louis d'Amboise,
Bispo de Albi. O Legado ouve teólogos e aconselha que a
velha sofra em silêncio, car quant à eulx, veu l'ignorance,
Hz n'auoient point peché, mais qu'elle en debvoit toute sa
vie faire pénitence, sans leur en faire ung seul semblant.
O Prof. Aurélio M. Espinosa ouviu em Llanuces, Astúrias,
uma versão idêntica (Cuentos Populares Españoles, I,
Madrid, 1946):

Aqui traigo, Padre Santo, três pecados de ignorancia, que
esta mujer que aqui traigo es mujer, hija y hermana.

Esta era una criada que estaba con una señora. El hijo de la
señora pretendia la criada y ésta le dijo a la señora: - Señora,
yo me marcho mañana porque su hijo me pretende. -
Entonces dijo el ama: - Yo me meterá en tu cama. - El hijo
se metió en la cama creyendo que era la criada y sacó a su
madre embarazada. Parió ella una niña, de la cual al cabo de
alguns años el jovem se enamoró, sin saber que era su hija y
se casó con ella. Cuando llegó a saber con quien estaba
casado se fué a Roma a pedirle perdón al Padre Santo.
O incesto entre irmãos motivara conto tradicional já
registado na Gesta Romanorum - (nQ 81, do Le Violer des
Histoires Romaines, M. G. Bmnet, Paris, 1858) e sobre o
mesmo tema que o poeta alemão Hertmann von Ave
dedicou 3752 versos no século XIII. Juan de Timoneda
aproveitou na patraña V do seu Patrañuelo (edição Joan
Mey, Valência, 1567).
Há bibliografia amplíssima no assunto. As versões mais
populares são: A) - a novela XXX do Heptaméron e a
tradição de Llanuces, Astúrias. B) - a que fixei em Natal e a
de Porto Rico, complexo de Jocasta e Édipo sem a inter-
corrência de o pai casar-se com a filha, como não se
verificou entre Édipo e Antígone, e sim no conto de
Llanuces e no Heptaméron. C) - o incesto, entre mãe e
filho, episódio que se afirmava verídico em Portugal: O Olho
de Vidro, romance histórico, de Camilo Castelo Branco,
Lisboa, 1886; o drama O Enjeitado (1900) de H. Castriciano,
Natal, e o caso de Marta Bounthau em Paris, reconhecendo
no amante Victor Gondor a taaiagem datada de 9 de
novembro de 1882 que fizera no braço do filho quando o
abandonara à porta da igreja de Saint-Germain dAuxerre 04
República, Natal, 30 de julho de 1904. D) - entre irmãos,
motivo português do romance Os Maias, 1888, de Eça de
Queirós.
A variante brasileira é a seguinte:
Uma moça deu à luz uma criança e a mandou educar longe
da cidade em que morava, para que ninguém soubesse
jamais de sua culpa. O menino cresceu. Fez-se homem e
veio visitar a cidade, justamente onde a mãe vivia. O rapaz
viu-a, enamorou-se dela e se casou. Meses depois,
descansando o marido no colo da esposa, reparou esta numa
medalha de ouro, com a efígie de Nossa Senhora da
Conceição, lembrança que pusera no pescoço do filho ao
separar-se dele. Sentindo-se culpada e não querendo
prolongar aquela união sacrílega, contou a história ao
esposo, que era, sem saber, seu filho. Este partiu para longe e
não houve mais notícias. Depois nascia um filho, batizado
com o nome de Tomé, e a mãe mandou oferecer um grande
prêmio a quem decifrasse um enigma apresentado na
ocasião, pagando multa não explicando. A mulher educou o
filho como um príncipe. Foi muito feliz com ele e morreu
rica porque ninguém conseguira esclarecer o problema, que
era assim:

Meu filho Tomé
Que muito me é!
É filho do meu filho,
Irmão do meu marido,
É meu neto e meu cunhado,
Filho feito sem pecado!

Contou-me esta estória a velha Luísa Freire (1870-1953) em
Natal. Publiquei-a com notas nos Contos Tradicionais do
Brasil "O Filho Feito sem Pecado" (Rio de Janeiro, 1946;
segunda edição, Salvador, Bahia, 1955) e com maior
documentação nas Trinta Estórias Brasileiras, Porto, 1955.
No Porto Rico, J. Alelen Mason recolheu uma versão
incompleta (Journal of American Folklore, vol. XXIX, n.
CXIV, 1916):

Tenga, señora, este ramo
De las manos de este niño,
Es su hijo, es su nieto,
Hermano de su marido.
Nasció um niño y muy pequeño lo mandaron a estudiar
fuera de la ciudad. El padre murió, quedó la madre, el niño
se cambió el nombre, vino a donde estaba la madre, ella lo
quiso, se casaron, tuvieron un hijo; cuando nació este niño
le pusieron el ramo en una mano.
O Prof. Aurelio M. Espinosa conhecia sete versões de esta
leyenda medieval, todas espanholas. Há variantes na Itália e
na Alemanha, de cuja popularidade atestam o secular poema
de von Ave e as análises meticulosas de DAncona e
Comparetti. O Sr. Michel François, anotando a edição do
Heptaméron, lembra a existência de epitáfios enigmáticos
em certas igrejas no Norte da França, como na colegiada de
Ecouis, perto de Andelys, significativamente referentes ao
episódio incestuoso, fazendo-lhe matiz de veracidade
histórica, como afirmava Camilo Castelo Branco em sua
versão portuguesa. Os epitáfios franceses dizem:

Ci-git l'enfant, ci-git le père,
Ci-git la soeur, ci-git le frère,
Ci-git la femme et le mari,
Et ne sont que deux corps ici.

Ci-git le fils, ci-git la mère,
Ci-git la fille avec le père,
Ci-git la souer, ci-git le frère,
Ci-git la femme et le mari,
Et net sont que trois corps ici.

A fragilidade feminina ainda possui o caso de Secundas, de
tão larga repercussão temática na Idade Média e
Renascimento. Secundus, depois de vinte anos de estudo,
para comprovar a fraqueza da mulher, consegue uma noite
de amor com sua mãe. Admirada esta de sua impassividade,
reconhece o filho e suicida-se. Secundus nunca mais falou.
Respondia por acenos ou escrevendo. Era o sábio de toda-
ciência. O semi-incesto emprestava-lhe os valores edípicos.
O incesto entre irmão e irmã era motivopopularíssimo e
registeado na Gesta Roinanoruin, no poema de von Ave, na
patrana V de Timoneda, versões ao derredor da lenda que
envolvia o nascimento do Papa Gregório Magno (540-604,
Papa em 590), fábula que o dizia filho de irmãos. Mesmo no
Patranuelo de Timoneda há casamento entre mãe e filhos,
mas não se consuma o matrimônio pela imprevista iden-
tificação do novo esposo, como ocorreu em Secundas.
No drama de H. Castriciano, O Enjeitado, levado à cena em
Natal a 10 de julho de 1900, Luciana torna-se amante do
filho Artur, noivo de Alda, havida em justas núpcias de
Luciana com Gustavo. Este, sabendo-se traído, mata o
sedutor da mulher. Sem a justificação da sobrevivência da
família, como diziam das filhas de Lot, embriagando o pai
para fecundá-las, fundando os moabitas e amonitas (Gênesis,
XIX, 30-38), houve uma voga prestigiosa do incesto, com
seu apogeu na Paris da Regência, sabidas e glosadas as
relações de Filipe d'Orléans com a filha, Marie Louise
Elisabeth, casada com um neto de Luís XIV, Charles, Duque
do Berry. Também a jovem princesa troivait une volupté ci
l'avilissement, deduziu Pierre Gaxotte... Henrique
Castriciano (1874-1947), a quem perguntei da origem do seu
drama, limitou-se a dizer ser uma tradição popular que
dramatizara. Era a mesma "tradição", sem o intuito
dramático, que a velha Luísa Freire ouvira e contava: a
estória do menino Tomé.
Narra Margarida de Navarra, novela XXXIV, que, numa
aldeia entre Nyort e Fors, denominada Grip (Deux-Sèvres),
dois frades franciscanos, cordeliers, vindos de Nyort,
chegaram pedindo agasalho na casa de um açougueiro.
Acomodados num aposentozinho ao quarto do casal,
ouviram, alta noite, o marido dizer à mulher: - Amanhã
cedo vamos ver os nossos franciscanos porcine há um deles
bem gordo e é preciso matá-lo. Franciscano, cordelier, era
no local o nome dado aos porcos. O frade mais nédio,
ouvindo a ameaça, espavorido, procurava escapar ao seu
destino. O companheiro, mais magro, saltou por uma janela
e fugiu buscando o castelo do senhor de Fors para denunciar
a criminosa premeditação. O frade gordo, depois de muitas
tentativas, pulou a janela, mas feriu-se numa perna e
agastou-se até a pocilga onde ficou escondido, tremendo de
medo. Pela madnigada o açougueiro foi buscar o suíno para
matar e deparou-se-lhe o pobre franciscano, pedindo que
não o sacrificassem. Tudo foi explicado entre risos e, quando
chegou o enviado do senhor de Fors para averiguar da
denuncia do outro frade, encontrava-se o gordo cordelieryl
tratado e alimentado, farto e tranqüilo.
No Brasil, notadamente pelo Nordeste, desde a Bahia, os
franciscanos, capuchinhos, são os missionários tradicionais,
conhecidos e familiares ás populações do interior, onde
preparam as SANTAS MISSÕES com linguagem bravia e
profunda impressão no espírito popular. Desse contato
tantas vezes secular (os franciscanos desde o século XVI e os
capuchinhos na centúria imediata) de propaganda cristã,
determina-se um ciclo de estórias de frades, edificantes ou
repulsivas, figurando tipos lascivos, glutões, inescrupulosos,
ao lado dos profetas e videntes, de alta moral santificadora,
com presença taumatúrgica na imaginação coletiva. É um
elemento de prodigiosa sugestão folclórica pela América
Central e do Sul, como na Itália, França, Espanha e Portugal,
misturados, vivendo a vida do povo, aparecendo
indispensavelmente em todo anedotário, melhore pior. O
tema na novela XXXIV viajou da Europa para a América
Latina, onde frutificou em hilariantes variedades. Emprega-
se sempre a confusão numeral ou alusiva à velhice, gordura,
lentidão de um dos frades, desde que não existe entre nós o
porco tendo sinônimo de franciscano, cordelier.
Dois frades pediram arrancho numa fazenda. Foram dormir
depois da ceia e ouviram o filho do dono da casa
recomendar à mãe: - Mamãe, Papai manda lembrar que
amanhã pela madrugada é preciso matar sem falta um dos
dois e que seja o mais velho, que é sempre o mais gordo e
tem vivido mais! Os dois frades, assombrados com a
sentença, com mil orações e precauções deixaram o
aposento mas foram surpreendidos pelo fazendeiro, que lhes
perguntou a razão de tão súbito abandono da hospitalidade.
Lívidos, os religiosos confessaram o pavor. Tratava-se de
dois grandes porcos cevados e o fazendeiro convidou-os
para o almoço de carne fresca de suíno. Os frades aceitaram
e acabou-se a estória.
Noutra variante, ouvida em Natal, os dois frades estão
ceando na casa do fazendeiro, com este e a mulher, quando
chega o filho mais velho. O pai pergunta: - Que mandou
dizer o compadre? Responde o rapaz: - Mandou dizer que
dos dois matasse um sem falta e que fosse o mais velho, que
é o mais gordo e dá mais toucinho. Os frades pretendem
fugir e têm a explicação anterior.
Variante do tema, no plano da confusão numérica, é a faceia
As Orelhas do Abade, que Teófilo Braga incluiu nos Contos
Tradicionais do Povo Português (I, n. 117, 218, 1883,
Porto), provinda da Ilha de S. Miguel.
O caçador convida o amigo abade para comer duas perdizes.
A mulher preparou-as e comeu-as ambas. Chega o abade e a
mulher explica que o mariperdizes eram pretexto. O abade
foge. Nesse momento aparece o caçador a quem a esposa
conta que o abade fugira levando as duas perdizes. O
homem vai à porta e grita para o fugitivo convidado: - Ó
Senhor abade! Pelo menos uma!... O abade, supondo-se
tratar-se das orelhas, respondia distanciando-se: - Nem uma
e nem duas!...
Encontra-se, tal e qual, no Sobremesa y Alivio de
Caminantes, de Juan de Timoneda (Medicina dei Campo,
1563). O licenciado, a quem a mulher do lavrador dissera
que o marido queria cortar-lhe as orelhas, e ao esposo
denunciara falsamente que o convidado fugira com as duas
perdizes, ouvindo o homem dizer: - Compadre, a lo menos
u na! Respondia sem deter-se na corrida: - Ni la una ni jas
dos! (LI, Buenos Aires, 1944). Dessa variante Teófilo Braga
indica bibliografia que não pude verificar se registra o
motivo ou apenas aproximações modificadas, como
indiferentemente fazia o velho mestre português: Fabliau
des Perdix (Recueil de Fabliaux, 159); Passa-Tempo de
Cuiiosi, 22; Nouveaux Contes à Rire, 266; Facetie, Motti et
Burle, de Ch. Zazata, 36; Contes do Sieur D'Ouville, II, 225.
De minha paite informo que Chauvin, Bibliographie des
Ouvrages Árabes, VI, 179, indica versões das Mil e Uma
Noites, com o tema, na série de Bombaim e coleção de
Richard Burton, 11, 397. Não conheço versões no Brasil.
A novela XXV conta a estória de uma dama de Pampelune
en Vaage de trente ans, que lesfemmes ont accoustumé de
quieter le noin des bel/espour estre nomées saiges. A dama
apaixona-se por um frade pregador franciscano e manda uma
carta de amor por um pajem. O menino é surpreendido pelo
marido da dama que responde à missiva como se fosse o
destinatário. Dias depois a dama convida-o para ir vê-la
porque o marido ausentar-se-ia. O marido, autor da troça,
pediu emprestado ao próprio frade, ignorante do afeto que
despertara, sua túnica com burel. Disfarçou-se
convenientemente e correu à entrevista. Com grande
decepção da dama, o frade afastou-a com exorcismos e
exclamações de pudor, e terminou a cena batendo-lhe forte-
mente com o bastão que levara. Saiu o marido restituindo o
hábito ao inocente frade e foi encontrar a esposa doente, de
cama, contundida pela sova. Restabelecida a dama, o marido
avisou-a de ter convidado o frade para cear. A mulher
repeliu veementemente a idéia, dizendo-o o Anticristo e
filho de Satanás. Veio o frade a cear, mas a dama tratou-o
como a um demônio, espavorida com sua presença. Desta
forma o marido soube simuladamente a paixão da dama e
livrou-a, em definitivo, do desvario sexual.
A origem seria um fabliau, origem da estória que emigrou
para o Brasil. Havia também outro, Mari que fist sa femme
confesse, com o elemento comum de o marido vestir-se de
sacerdote, mas não evitando o adultério. Na Itália existia
tema idêntico que Boccaccio utilizou na novela quinta da
sétima jornada, do merccitcmte de Rimini, ricco e di
possessioni e di denari assai, que vive no conto em versos de
La Fontaine, Chevalier confessem. Cem anos depois do
Decameron, Matteo Bandello repetiu o enredo da
quadragésima de suas novelas, dando-lhe, como era de
costume, feição trágica. A protagonista morre apunhalada
pelo marido. Não seria esse o motivo mais divulgado para a
ampliação do fabliau, no Heptaméron e no anonimato da
anedota que se tornou corrente e conhecida.
Ainda no século XVIII o Duque de Frias (Bernardino
Fernandez de Velasco, 1701-1769) registava uma variante
na Espanha, escrevendo no seu Deleite de la Discreción y
Fácil Escuela de Agudeza. A esposa reconhece o marido
sentado no confessionário, com hábitos de monge. Afirma a
mulher haver-se divertido, na sua ausência, com um fidalgo,
um soldado e um frade. Ante a indignação do esposo,
furioso com a traição, sossega-o:
Pensabas que no te habia conocido? Ven acá, ignorante, no
he estado divertida contigo cuando eras ciudadano, después
de soldado y ahora, que eres fraile, lo stoy poco con haberte
enganado? Convencido el buen hombre, la pidió perdón, y
continuaron en paz la vida maridable (Federico Carlos Sains
de Robles, Cttentos Viejos de la Vieja Espana, 596, Madrid,
1943).
Sílvio Romero (1851-1914) ouviu no Rio de Janeiro uma
facécia igualís-sima à novela XXXV do Heptaméron. Não
está na edição de 1885 do seu Contos Populares do Brasil,
impressa em Lisboa com prefácio de Teófilo Braga, e sim na
segunda, Rio de Janeiro, 1897. Denominou-a "A Mulher
Gaiteira". A gaiteiravale dizer demasiado alegre, folgazã,
amiga de farsas e de bródio, pouco séria, devotada de ouvir e
bailar ao som desse instrumento musical. Sílvio Romero
anotou ser um tema que parece de origem européia, porém
profundamente alterado pelo mestiço.
A redação de Sílvio Romero é a seguinte:
Havia uma mulher casada e que não tinha filhos. Defronte
dela morava um padre, pelo qual a mulher apaixonou-se. Ela
chamava-o Rabo de Galo, por ele ter os cabelos muito
bonitos. O padre não correspondia e nem mesmo sabia de
tal paixão. A mulher já não governava mais a casa e só queria
estar na janela para ver o padre. Estava já tão douda, que
chegava a dizer ao marido: - Não é bonito aquele padre? O
marido fingia não compreender e afirmava o que ela dizia.
Não satisfeita de ver o padre só da janela, a mulher não
perdia a missa um só dia, a pretexto de ir rezar, e o marido
suportando tudo calado. Querendo ver até que ponto
chegava aquela mulher, pretextou uma viagem e escondeu-
se perto da casa recomendando à negra que lhe fizesse
sabedor de tudo o que sua mulher praticasse na sua ausência.
Não tardou em que a negra lhe viesse entregar um bilhete
que a senhora ia mandar por ela ao padre, no qual pedia lhe
uma entrevista à noite, visto o marido não estar em casa. O
homem apoderou-se do bilhete, disse à negra que dissesse à
senhora que o tinha entregue ao padre, e escreveu,
disfarçando a letra, outro bilhete, dizendo ser do padre,
aceitando o convite e marcando a hora da dita entrevista.
Trouxe a negra o bilhete e deu-o à senhora. Esta não cabia
em si de contente, e, à hora marcada, entrou o marido, que
se disfarçou no padre, vestido de batina, e com um grande
chicote de couro cru escondido. A mulher convidou-o a
entrar no quarto para descansar. Aí não teve dúvida: o
marido empurrou-lhe o chicote a torto e a direito, ainda
fingindo ser o padre e dizendo: — "Mulher casada, sem ver-
gonha, como é que seu marido não está em casa, e você
manda-me um bilhete convidando-me para vir aqui? Tome
juízo!", dizia o padre, e empurrava o chicote na mulher. Ela,
desesperada, com as bordoadas, dizia: -" Vai-te embora,
padre dos diabos, se eu soubesse que tu eras tão mau, não
tinha caído nesta. Sai, malvado, tu queres me matar? Basta,
não me dês tanto!" O marido, depois que deu-lhe muito,
saiu, deixando a mulher quase morta de pancadas. Mudou
toda a roupa e veio para casa, fingindo ter chegado da
viagem. Perguntou pela mulher e disseram-lhe que ele
estava doente. Ele, muito penalizado, perguntou que
moléstia era aquela, pois ela a tinha deixado tão boa. Ela
respondeu que sentia muitas dores pelo corpo, mas que
também não sabia o que era. Mal pôde dizer estas palavras ao
marido, e começou logo a gritar, tão forte era o seu
sofrimento. Então o marido disse que ela estava muito mal, e
que ele ia mandar chamar aquele padre, que morava
defronte, para confessá-la. A mulher, ouvindo isto,
exclamou: - "Não, marido, por Nossa Senhora, não me
mande chamar aquele padre". O marido replicou: - "Pois
mulher, você não o acha tão bonito, e como não quer que
ele venha lhe confessar?" E, para apreciar bem o efeito da
surra, mandou chamar o Padre do Rabo de Galo, como a
mulher o chamava, e este veio confessá-la, alheio a tudo que
se tinha passado. A mulher, assim que foi vendo o padre, foi
dizendo: - "Sim, seu diabo, ainda achou pouco a surra que
me deu, e ainda se atreve a vir aqui? Sai, diabo, vai-te
embora!" O padre ficou espantado, e acreditou que a mulher
estava com efeito muito doente, que talvez estivesse com o
diabo no corpo, e então benzia-a e dizia: - "Filha, acomoda-
te, lembra-te de Deus, que estás para morrer. Eu esconjuro
este mau espírito, em nome do Padre, do Filho, e do
Espírito Santo. Amém". "Sim, dizia a mulher, eu esconjuro é
a surra que me deste." O padre, depois de muita reza,
retirou-se, e o marido quase que não podia conter o riso.
Passados muitos dias de cama, levantou-se a mulher, curada
da grande surra. A primeira cousa que fez foi pregar a janela
que dava para a casa do padre com uns grandes pregos bem
fortes, o que vendo o marido, disse-lhe que não fizesse
aquilo, que aquela janela era para ela se distrair nas horas
vagas. Por mais que o marido pedisse, a mulher não foi
capaz de deixar de pregar a janela e nunca mais olhou para o
padre.
E, com as acomodações locais, a negra escrava em vez do
pajem, o chicote de couro cai substituindo un gross bastou, a
sintaxe brasileira e o vocabulário do Rio de Janeiro em fins
do século XIX pela linguagem francesa da primeira metade
do século XVI, o mesmo episódio, idêntico e completo. Está
reeditado no Folclore Brasileiro, III, 431-434, Rio de
Janeiro, 1954.
Qual teria sido o veículo desse conto até à capital do Império
do Brasil? Texto literário ou transmissão oral? Certamente
nos veio pela oralidade, através de uma anedota que se
divulgou. O Heptaméron não teve ainda tradução
portuguesa integral e não conheço na língua nacional a
novela XXXV. O tema prestar-se-ia admiravelmente ao
enredo de um entremez. Houve o motivo vivido no teatro?
A novela XXXVIII do Heptaméron conta que em Tours y
avoit une bourgeoise belle et bonneste, laquelle pour ses
vertuz estoit non seullement aymée, mais craincte et
estimée de son maiy. Mas o marido enamorou-se de uma sua
rendeira, mestayere, e, vez por outra, ia visitar seu amor
durante dois e três dias, e quando voltava a Tours il estoit
toujours si morfondu, que sa pauvre femme avoit assez à
faire à le guarir. A dama deliberou verificar pessoalmente o
ambiente visitado pelo esposo e lá encontrou desconforto e
pobreza. Incontinant envoia quérir ung bon lict, garny de
linceux, mante et courtepoincte, selon que son maiy
l'aymoit; jèit accoustrer et tapisser la chambre, lui donna de
la vaisselle bonneste pour le servir à boyre et à manger; une
pippe de bon vin, des dragés et confitures; et pria la
mestayere qu'elle nelui renvoiastplus son maty si morfondu.
Quando o senhor veio ver sua rendeira, encontrou o
aposento mobiliado agradavelmente, servindo-se vinho em
taça de prata e havendo doces e especiarias para restaurar as
forças. O marido ficou abalado e confuso com a indulgência
e bondade da esposa. Deu dinheiro à rendeira e voltou, em
caráter definitivo, para sua mulher, em Tours, onde viveu
sereno e sem experiências campestres.
O conto devia ter-se espalhado há muito tempo pela
Península Ibérica. Em Portugal, na antiga província de
Entre-Douro-e-Minho, resiste o motivo da novela, já
considerado uma tradição local, topográfica e
individualmente identificada.
O Doutor Joaquim Alberto Pires de Lima (1877-1952),
professor da Faculdade de Medicina da Universidade do
Porto, no seu Dobrando o Cabo Tormentório (Porto, 1948,
179-182), registra o episódio com o título de "A Vingança
da Fidalga", com o subtítulo de lenda minhota, elemento
que autentica a antigüidade do tema no Norte de Portugal.
Localiza-se na Quinta da Carvalheira, em Ruivães, cuja
residência atual substituiu o opulento solar de uma das
famílias mais aristocráticas do Reino de Portugal. A família
era poderosa, tão poderosa que o solar tinha direito de
homizio. E muitas vezes ouvi dizer, na minha infância, que
os senhores daquela casa tinham o poder de perdoar os
crimes a qualquer assassino ou ladrão que conseguisse pôr a
mão no portão da Quinta.
O Prof. J. A. Pires de Lima ouviu a tradição a uma senhora
octogenária.
Há muitos anos, vivia o fidalgo na melhor harmonia com sua
esposa, que o enchia de felicidade. Mas, um dia, o fidalgo
começou a abandonar a casa e a deixar sozinha a esposa,
apesar de sua beleza singular e da sua perfeita dignidade. O
seu marido foi transviado pelo olhar magnético de uma
humilde rapariga que vivia numa cabana da encosta do
Monte de S. Miguel-o-Anjo, na pequena freguesia de S.
Miguel do Monte, que depois foi anexa a Delães. A esposa
atraiçoada, com a sua perspicácia de nobre fidalga, depressa
compreendeu o devaneio do marido e logo pensou em
vingar-se dele de maneira digna de sua propásia.
Pouco a pouco, soube a esposa enganada que a sua pobre
rival vivia em miserável choupana e estremeceu ao pensar
que o fidalgo tinha de passar, nas horas e horas que roubava
ao seu convívio, metido em miserável casebre. E o seu plano
foi tremendo.
Certo dia, em que o fidalgo foi para muito longe, para uma
caçada, mandou encher alguns carros de bois com a melhor
mobília do palácio e fez seguir a carreada para a choupana
habitada pela sua rival.
Os melhores criados do solar foram dispor artisticamente
aquele mobiliário tão rico na cabana da amante do fidalgo.
Este, chegando da caçada, depois de breve colóquio com a
esposa, partiu para a casa da pobre camponesa, cujo olhar
ardente lhe transtornara as idéias. Ao chegar lá, percebeu
tudo.
E nunca mais se atreveu a trilhar a casa da sua amante, ao
vê-la mobiliada pelo pérfido bom gosto de nobre dama.
A lição foi eficaz e a tranqüilidade voltou ao lar dos fidalgos.
Em Lisboa contaram-me da singular condescendência da
Rainha D. Maria Pia (1847-1911) pela atriz Rosa
Damasceno, amante do marido, o rei D. Luís I (1838-1889),
tanto mais incompreensível por tratar-se de uma Savóia,
impetuosa, ardente, imperiosa. Raul Brandão (1867-1930)
escreve:
A Maria Pia sabia tudo. Um dia deixou no quarto do Paço,
onde a Rosa costumava ficar, um lenço de rendas a tapar a
fechadura. As vezes o D. Luís apresentava-lhe jóias para ela
escolher e depois levava-as à Rosa. E ia com a rainha ao
teatro, para que ela visse o efeito das jóias no colo da atriz
(Memórias, I, 131, Lisboa, 1925).
No Brasil velho, notadamente no ciclo da pastoricia, o ciúme
das matronas não permitiria essa complacência. As
concorrentes eram, sempre que possível, eliminadas a tiros
de emboscada. Nas regiões do litoral e cidades corriam
lendas com elementos semelhantes às atitudes da burguesa
de Tours e da fidalga do Minho. Envio clandestino de
móveis, toalhados, perfumes, para o conforto do marido
pecador. De uma senhora, esposa de poderoso chefe
republicano nas primeiras décadas do século XX em Natal,
dizia-se haver mandado o próprio leito de jacarandá para a
residência da amásia. Quando o marido perguntou pelo
destino da cama, ouviu a resposta sibilina: - "Você não
precisa mais dela, nesta casa..." Não sei se o homem
corrigiu-se.
Nem uma, porém, teve a indulgência da Rainha Margot
servindo de sage-femme a demoiselle de Montmorency-
Fosseuse, amante oficial do marido, o futuro Henrique IV.
Por isso, falando da burguesa de Tours, resumiu a dama
Parlamente que era a própria Margarida de Navarra-
Angoulême. - Voylà une femme sans cueur, sans fiel et sans
foie!
Da novela XLIII sobrevive o elemento da indiscrição
masculina. A dama Jambicque, do séquito da Rainha
Margarida, dizia-se prudente e austera e a senhora l'estimant
la plus sage et vertueuse damoiselle fui fut poinct de son,
temps. Jambicque era o censor intolerante da corte,
exigente, meticuloso, severíssimo. Mas chegou a hora do
L'Embarquement pour Cythère e a dama ascética apaixonou-
se por um fidalgo do rei, elegante, audacioso, valente. Pondo
sont touret de nez, a dama ia encontrá-lo nas galerias cheias
de penumbra romântica. A meia-máscara era suficiente para
conservar o incógnito aristocrático. Mas o feliz preferido
entendeu conhecer a identidade de quem o amava em meia
luz discreta. Numa dessas entrevistas porta avecq luy de la
craye, dont, en l'embrassant, luy en feit une marque sur
l'espaule, par demère, sans qu'elle s'en apercent. Facilmente,
depois, reconheceu na dama Jambicque a namorada ardente
e furtiva. Tentando confidência verbal direta, recebeu
repulsa de Jambicque, negativa formal e o malfadado
impertinente foi distanciado da corte por inconfidente.
Brantôme, que sabia todo o caso, revela o nome do desastra-
do fidalgo. Era um irmão de sua mãe, seu tio François de
Vivonne La Châteigneraye, favorito do Delfim (Henrique II)
e mais famoso pelo seu duelo infeliz com o Barão Guy
Chabot de Jarnac onde sucumbiu em 1547. C'estoit feu mon
oncle de La Chastaigneraye, qui estoit brusq, prompt et un
peu voilage, informa o sobrinho {Les Dames Galantes,
"Deuxième Discours"). E adianta que o vestido era de veludo
negro. A dama viúva, e La Châteigneraye devoit tous-jours
continuer ses coupe et manger sa viande, aussi bien sans
chandelle qu'avec tout les flaubeaux de sa chambre. Castigo
bem merecido.
O processo para denunciar a dama misteriosa ocorre num
conto etiológico do Brasil, referente à formação da Lua.
Melo Morais Filho aproveitou o tema para a sua "Tapera de
Lua", incluído em Mitos e Poemas (Rio de Janeiro, 1884).
Uma indígena na serra do Tapirê ou Acunã, Amazonas,
enamora-se do irmão e visita-o durante as trevas da noite.
Querendo saber quem era a visitante noturna, o guerreiro
mancha-lhe o rosto com o sumo do unicu (Bixa oreland) e
do jenipapo (Genipa americana). Pela manhã, vendo-se
n'agua do lago, a moça, horrorizada com o incesto, voou
para o céu, transformando-se na Lua. O irmão, que a
persegue, é o Sol. As manchas selenares são as nódoas do
jenipapo e do açafrão. Afonso Arinos escreveu a "Tapera da
Lua" em prosa (Lendas e Tradições Brasileiras, 2-ed., Rio de
Janeiro, 1937) e Octacilio de Azevedo deu nova redação
poética ao motivo C4 Origem da Lua, S. Paulo, I960). Franz
Boas encontrou o mesmo assunto entre os esquimós do
Canadá ("The Eskimo of Baffin Land and Hudson Bay", Bid.
American Museum of Natural PListoty, vol. 15, 1901).
Igualmente existe na índia Central, narrado pelos Khasi das
colinas do Assam (Stith Thompson and Jonas Balys, The
Oral Tales of índia, 13, Bloomington, 1958).
Curioso é ter um gentil-homem de Francisco I preferido
recorrer a uma fórmula folclórica e primitiva para o
reconhecimento da recatada Jambicque.
A novela XLV narra os amores de um tapissier com sua
chambrière na cidade de Tours. Numa noite em que nevava,
o amante levou a camareira para um movimentado folguedo
no jardim da residência. Depois de tudo, advisa savoisine à
sa fenestre, don't ilfutfort many. Despediu a criada e foi
despertar a esposa, levando-a toute en chemise ao parque,
onde repetiu todo o jogo anteriormente executado, et apres
allerent tons deux coucher. Na manhã seguinte a vizinha
encontrou-se com a amiga na igreja e informou o que vira,
aconselhando-a a chasser sa chamberière, et que c'estoit une
três mauvaise et dangereusegarse. A mulher do tapeceiro
desenganou-a de qualquer pecado. Parmafoy, ma commère,
c'estoit moy!'Por mais que a vizinha insistisse nos escabrosos
pormenores, a dama assumia a responsabilidade de toda a
expansão lúdica. Car vous scavez que nous debvons
complaire à nos mariz! Restou à vigilante vizinha resignar-se
com o equívoco. E tudo seguiu calmamente.
Corre a novela XLV como anedota por todo o Brasil e
possuindo representação humana respondendo pela
ocorrência. Contam a estória dando nomes reais e
contemporâneos. Conheço versões do Rio de Janeiro e do
Recife. Evocam como um acontecimento de veracidade
indiscutível. Ninguém associa a manha atual ao conto
quinhentista da rainha de Navarra. A versão carioca serve de
modelo.
O marido passeava de automóvel com a amante e vê numa
esquina de Copacabana uma amiga íntima do casal. Deixa a
amante num cinema. Roda para casa, convencendo a esposa
a vestir-se e vir com ele gozar a tarde que está linda na praia.
Guia o automóvel com o braço no ombro da esposa e refaz o
itinerário antigo. Na mesma esquina onde a amiga estivera
exclama para a mulher: - "Viu fulana? Não? Estava na
esquina. Parece que não nos viu!" Dias depois aparece a
querida amiga para oferecer o libelo-crime-acusatório. Logo
às primeiras denunciações a esposa começa a rir: — "Era eu
mesma, querida. Não me reconheceu?" Nem permitia os
detalhes: - "Era eu, meu bem. Você pensa que ele não gosta
mais de mim?" A outra foi forçada a convir que o marido da
amiga era mais esperto do que parecia. E tudo seguiu
calmamente.
O motivo, em citação mais remota, consta do Çukasaptati, os
contos do papagaio, o Tuti-Nameh, estórias indianas que se
divulgaram numa redação persa de Ziay-ed-Din Nakhchabi,
terminada em 1329, e com resumo menos verboso e amplo
de Mohammed Qâderí, do século XVII, com várias
traduções européias e acréscimos de fontes orientais, como
o Tuti-Nameh turco, de Haji Khalfa, que Georg Rosen
verteu para o alemão. O assunto, na legitimidade dos
elementos expressivos, consta da redação de Nakchabi,
quinta novela ("La moglie dei bottegaia", // Libro dei Sette
Savj de Roma, LXII-LXIII, Pisa, 1864) e conto IX de
Mohammed Qàderi (Touti Nameh ou les Contes du
Perroquet, De la femme d'un paysan, laquelle étant tombée
amoureuse de quelqu'un réussit à tromper son propre beau-
père, 40-42, tradução de Emile Miller, Paris, 1934).
A mulher do aldeão adormecera com o amante, noite alta,
ao pé de uma árvore. O sogro, passando casualmente,
reconheceu-a; retirando-lhe dos pés os khalkhâl, guardou-os
para documentar a infidelidade da nora. Acordando-se, a
mulher notou que estava sem os anéis podálicos. Despediu o
amante. Foi para casa, despertando o marido, dizendo não
ter ainda podido dormir pelo excesso de calor. Convidou-o
para refrescar-se sob uma árvore, ao ar livre. O esposo
aceitou e os dois deitaram-se onde a mulher estivera antes.
Mais tarde, disse ao marido: - "Teu pai passou por aqui e
levou meus anéis dos pés pensando que eu dormia. Que
quererá ele fazer?" Pela manhã o sogro procurou o filho para
denunciar o adultério, exibindo as provas. O filho repeliu a
acusação, afirmando que a mulher estivera em sua
companhia ao relento e o pai estava enganado. Lälessus lé
père fut très honteux de ce qu'il avait fait... Il padre
svergognato deve tacere. E tudo seguiu calmamente.
A novela LU passa-se em Alençon, numa manhã fria de
inverno. O seigneurÚQ Tirelière e o advogado Anthone
Bacheré estão sentados à porta da loja de um boticário. Não
são simpáticos ao rapaz da botica, que ouve o fidalgo dizer
esperar quelque bon desjeuner, mas que cefust aux despens
d'autruy. O valet d'apothicaire resolve de leur donner à
desjeuner. Vai a um beco e depara ung grande estronc toute
debout, sigellé, qu'il sembloit ung petit pain de sucre fin. O
rapaz envolve o achado num beau papier blanc, esconde-o
na manga, passando diante do grupo deixa-o cair como por
descuido. O senhor de la Tirelière apanha-o, convence-se de
ter encontrado um pão de açúcar e encaminha-se para uma
taverna, com um amigo, para saborear o furto, com bon pain
bon vin et bonnes viandes. Mas o calor desgela a falsa
guloseima e o mau cheiro se espalha e com ele a decepção
dos dois senhores de Alençon, naquela manhã qu'il gelloit à
pierre fendant.
O motivo não é apenas uma anedota comum mas um
processo atual e vivo no plano das brincadeiras "de mau
gosto", pulha aos curiosos aproveitadores dos achados jamais
restituídos. Fezes em papel de seda, com fita vistosa,
fingindo embrulho de presente, atraem atenções e revela
vontades irreprimíveis de furto. Era uma boa pilhéria deixar
um desses pacotes tentadores no caminho do mercado e, de
longe, ver o açodamento das criadas ocultando o achado nas
cestas e bolsas de palha, certas da excelente casualidade que
as humilharia depois. E um motivo popular de bom humor e
creio na sua existência por toda a parte, repugnante, mas
provocadora de gargalhadas e recordações hilariantes. Sua
contemporaneidade é insofismável e tantos rapazes, mesmo
na cidade de Natal, podem confessar a repetição do feito do
jovem valet d'apothicaire de Alençon.
Esses episódios tinham prestígio de interesse, tanto assim
que foram escolhidos como os mais expressivos na quarta
década do século XVI. E o foram pela memória de uma
princesa letrada e curiosa do que denominamos o social,
processos múltiplos de ajustamento para convivência
humana.
Acresce em sua valorização seletiva o aviso de tratar-se de
véritable histoire, bem discutível.
Não podemos afirmar ou negar a veracidade dos relatos de
Heptarnéron, qui est un gentil livre pour son estoffe, dizia
Montaigne, se pensarmos na conclusão de Arnold van
Gennep: - Jamais le fait réel ne manque. O fato real poderia
ter coincidido com uma ação subseqüente sem que afastasse
a existência da estória popular anterior e semelhante.
A crítica expositiva salienta a feição moralizante de
Margarida de Navarra e que as novelas composés d'une
moralité austère consue à une récit parfaitement licencieux
(Faguet), donnente d'elle une idée précisé-mente contraire
(Brunetière). Ou a rainha de Navarra, entre o amour
physique dos contistas burgueses e o amour cortoise dos
cavaleiros líricos, notara la pure passion de l'âme, celle des
tragédies de Racine (Lanson). O máximo de atenção é dado
invariavelmente à intenção ética da princesa e nunca à
predileção do instrumento da própria comunicação
doutrinária, os temas componentes do livre d'une honnête
femme qui veut civiliser les âmes et alfiner les moeurs
(Lanson). Os episodios narrados, deduz Edmond Jaloux, ne
sont que des anecdotes comme il s'en échelonne après
diner, mais dites à la perfection. De igual importancia
psicológica, no mínimo, será o processo mental dessas
escolhas, mais presentes e prontas à invocação. Estórias que
possibilitaram, pela potência impulsiva, a transmissibilidade
da missão moral.
Tanto assim que é justa e unicamente o Heptaméron o livro
que sobreviveu.
As novelas de Margarida de Valois não são invenção mas
compilação, como o Decameron de Boccaccio, o
Pentamerone de Giambattista Basile, Le Piacevoli Notti de
Gianfrancisco Straparola, a Disciplina Clericalis de Pedro
Afonso ou El Conde Lucanor de Dom Juan Manoel.
Naturalmente as variantes brasileiras dos folkmotifs
registados no Heptaméron são todas européias e vieram pela
voz do colono e do emigrante e nao na forma impressa.
Foram inicialmente fabliau, contos, casos, anedotas,
tomando as cores locais para o fenômeno da adaptação no
espírito dos idiomas onde circulam.
Não é possível calcular o que o Heptaméron representa
como síntese escrita de tradições orais, vulgares na França
do século XVI, mas denunciando vértice de ângulo de
ternários inumeráveis. Nenhuma sistemática pode
estabelecer a total geografia temática ou o regímen das
intercomunicações permanentes ou interrompidas
presentemente. Interrompidas as seqüências, mas vivos os
elementos componentes.
As documentações impressas são apenas as ondas mais altas
do oceano da literatura oral. Não medem profundidade nem
registram extensão. Denunciam, pela insistência da citação,
uma "constante" na preferência anônima e coletiva.
A figura da rainha de Navarra estava no pensamento dos
escritores do tempo. Dos mais independentes e altivos. Em
Portugal, em 1651, escrevia de Lisboa D. Francisco Manuel
de Melo:
Não cansa a minha Margarida de Valois, rainha que foi de
França e Navarra. Chamo-lhe minha pela grande afeição que
tenho a seus escritos; e porque foi, a meu juízo, a mais
discreta mulher de nossos tempos; cujas ações de muitos
caluniadas, eu espero brevemente defender no meu
Teodósio. Não cansa, digo, esta entendidíssima Senhora de
encarecer o bem que lhe pareceu ver desabotoar-se a
Condessa de Lalaim, estando à mesa com a própria rainha, a
dar de mamar a um filhinho seu, que a seus peitos criava.
Gaba a francesa grandemente aquela caseira ação da
condessa, e diz: que nunca teve inveja a feito de mulher,
como aquele (Carta de Guia de Casados).
Esse sentido emocional do "humano", essa valorização do
"normal", levou a princesa a eleger seus modelos na tradição
oral dos costumes, personalizando os episódios, fixando-os
no tempo, localizando-os no espaço. O inextinguível
encanto do Heptaméron é a possibilidade viva de sua
atualização.

5
Motivos Israelitas

"Le monde civilisé ne compte que des juifs, des chrêtiens ou
des musulmans."
RENAN

O povo ainda vê o judeu pelos olhos quinhentistas. Vê uma
figura abstrata, individualizada mentalmente, somando os
atributos negativos imputados pela antigüidade acusadora.
Não personaliza o cidadão do Estado de Israel e menos ainda
o distingue entre os naturais do Oriente. O comum, no meu
tempo, era dizê-los turcos. A esse judeu de estampa antiga,
padronal, típico, funcionalmente desaparecido, associam as
imagens bárbaras, vividas na mentalidade de outrora, quando
da madrugada histórica do Brasil.
O século XVI fora hostil e cruel na sistemática regressiva ao
prestígio judaico. O Tribunal do Santo Ofício instalou-se
realmente em 1547, como desejava D. João III de Portugal,
tribunal corretor da heterodoxia militante, mas sob a égide
da coroa, nomeadora dos órgãos executivos, executora das
penas de morte nas fogueiras públicas.
Desde antes do século XV estava o hebreu amontoado nas
Judiarias privativas e sujas, Alfama em Lisboa, Porta d'Olival
no Porto, rodela escarlate ou amarela no peito ou no dorso,
judeu de sinal, distinto dos outros súditos, ambiado pela
desconfiança e zombaria das turbas. Responsabilizavam-no
pelas epidemias, terremotos, alagações de rios, incêndios,
tempestades, perdas de safras, doenças de gado, moléstias
infantis. A multidão invadia os bairros judengos, matando,
queimando, destruindo, abatendo todas as idades e sexos,
numa explosão incontida de ódio desvairado, dias e dias,
como sucedeu, abril de 1506, em Lisboa, um São
Bartolomeu espontâneo e feroz, dificilmente contido pela
mão do Rei D. Manoel. Quando houve o tremor de terra,
em janeiro de 1531, os frades em Santarém pregavam,
semeando pavores do Apocalipse. Foi Gil Vicente quem
pacificou a terra e as almas. À primeira pregação, os cristãos-
novos desapareceram e andavam morrendo de temor da
gente. Eram culpados pelo terremoto.


Matar o judeu era uma maneira de orar, penitenciar-se e
agradar a Deus. Processo universal de sublimação interior e
consciência dogmática. Minha mãe, incapaz de matar uma
galinha, apiedada de todos os sofrimentos alheios, opinando
pelo lume do fogão, disse, com a naturalidade das frases
feitas, imemoriais e verídicas: - Tem fogo para assar um
judeu!
A imagem não era criação de minha mãe mas reminiscência
instintiva, associando às chamas a figura convulsa do judeu
supliciado. Minha mãe era sertaneja e morreu, maior de
oitenta anos, ignorando que se queimasse gente viva para
salvar-lhe a alma. Mas a frase lhe veio aos lábios porque era
uma herança lógica do mecanismo intelectual do passado.
A presença do judeu na corte, físico, astrólogo, financista,
conselheiro, não impedia as inopinadas reações coletivas,
satisfazendo o rancor atual contra a raça de cristãos novos, o
povo que teimava em viver, obstinado e prolífero. Atacava-
se o homem da nação, gente misteriosa e tenaz, acusada de
sacrilégios e afrontas à religião a que jurara haver-se
convertido.
A situação de apostasia do converso, reincidente nas práticas
judaicas, estava notavelmente melhorada pela resolução de
12 de outubro de 1535, em que são perdoados de todos os
crimes de heresia e apostasia da Fé, de qualquer caiidade e
graveza que sejam. Estavam prescritos e não podiam ser
denunciados senão os posteriores àquela data. A linguagem
do monitório é bem clara: "Declaramos por essa nossa carta,
e dizemos, que dos ditos crimes, e delitos de heresia, e
apostasia, que até o dito dia cometerão, nos não venhais
dizer, nem notificar, posto caso que os saibais, vísseis ou
ouvísseis... "Fora deliberação do Santo Ofício, com o
beneplácito de D. João III, o Piedoso. Judeu é judeu!
Indeformável na integridade da vida interior nas Judiarias,
Judenviertel, Judengasse, Ghetto, Jewry, poderosos e
lôbregos.
Judeu, dona e homem de coroa, jamais perdoa. Judeu pela
mercadoria, frade pela hipocrisia. Judeus em Páscoas,
mouros em bodas, cristãos em pleitos, gastam seus
dinheiros. Não se ouve judeu comer nem pleito findar.
Judeu surrado mas lucrado. Ouro foge de cristão e persegue
judeu. Judeu negando, judeu ganhando. Com judeu, matar
ou concordar. Judeu (ou cigano) só não engana a Morte.
Praga de frade, reza de beata, conversa de judeu, livre-nos
Deus! De mouro o couro e de judeu o ouro.
O Brasil foi a esperança da salvação vital. Para ele orientava-
se a fuga, escapula, evasão dos suspeitos à Santa Inquisição,
dos seguidos pelos familiares do implacável Tribunal,
destinados aos processos seviciadores para a defesa da Fé.
Rodolfo Garcia anotou:
O Brasil continuava a ser, e continuou por muito tempo, o
refúgio e o lugar de degredo dos cristãos-novos; refúgio para
os que podiam da metrópole escapar às malhas do temeroso
tribunal, degredo para os que, por culpas leves, saíam por ele
penitenciados, esses em menor número do que aqueles. A
colônia vastíssima, despoliciada dos zeladores do credo
oficial, a uns e outros permitia certa liberdade de ação, e sem
receio da repressão imediata, voltavam eles natural e
instintivamente às crenças ancestrais.
No Brasil constituíam multidão, participante de todas as
posições sociais na administração e no sacerdócio, ofícios
humildes e situações decisivas de tratantes de negócios e
senhores de engenho, fundamentos da aristocracia rural
dominadora.
Em I6l7, o cristão-novo Dinis Bravo, rico senhor de
engenho no recôncavo da Bahia de Todos os Santos, dizia ao
licenciado Melchior de Bragança, o doutor hebreu,
degradado pela culpa de bua morte de homem na cidade do
Salvador e que ensinara nas universidades de Alcalá,
Salamanca e Coimbra: - Vós cuidais que todos os que
comem porco são cristãos? Denunciava a clandestinidade
ortodoxa e a incontável vastidão dos judeus no Brasil
amanhecente.
Sabidamente, o Santo Ofício visitou o Brasil em 1591-1593
na Bahia, 1593-1595 em Pernambuco, I6l8-l6l9 na cidade
do Salvador, com os licenciados Heitor Furtado de
Mendonça e Marcos Teixeira, Visitadores Apostólicos. Dessa
verificação na pureza religiosa foram publicados quatro vo-
lumes: Denunciações da Bahia (S. Paulo, 1925), Confissões
da Bahia (Rio de Janeiro, 1925, ambos com estudos de J.
Capistrano de Abreu), Denunciações de Pernambuco (S.
Paulo, 1929). e o Livro das Denunciações, referentes a I6l8-
l6l9 (Rio de Janeiro, 1936, os dois últimos com introduções
de Rodolfo Garcia). Registram os usos e costumes judaicos
na quotidianidade brasileira, os essenciais e característicos,
capitulados no Monitório do Inquisidor Geral, D. Diogo da
Silva, datado de Évora, 18 de novembro de 1536. Era o
código orientador das denúncias e confissões, índice da
falsa-fé, formulário das delações purificadoras, perigoso
ingresso na rede enleadora da casuística inquisitorial.
O Monitório manda denunciar ou confessar os objetos
suspeitos ao exercício da fé legítima:
Se sabeis ou ouvistes, que algumas pessoas, ou pessoa dos
ditos Reinos, e Senhorios de Portugal, ou estantes em eles,
sendo cristãos (seguindo ou aprovando os ritos e
cerimônicas judaicas) guardaram, ou guardam os sábados em
modo e forma judaica, não fazendo, nem trabalhando em
eles cousa alguma, vestindo-se e atavian-do-se de vestidos,
roupas e jóias de festa, e adereçando-se e alimpando-se às
sextas-feiras ante suas casas, e fazendo de comer às ditas
sextas-feiras para o sábado, acendendo e mandando acender
nas ditas sextas-feiras à tarde candeeiros limpos com mechas
novas mais cedo que os outros dias, deixando-os assim
acesos toda a noite, até que eles por si mesmo se apaguem,
tudo por honra, observância e guarda do sábado.
Item, se degolam a carne e aves, que hão de comer, à forma
e modo judaico, atravessando-lhe a garganta, provando e
tentando primeiro o cutelo na unha do dedo da mão, e
cobrindo o sangue com terra por cerimônia judaica.
Item, que não comem toucinho, nem lebre, nem coelho,
nem aves afogadas, nem enguia, polvo nem congro, nem
arraia, nem pescado que não tenha escama, nem outras
cousas proibidas ao judeu na lei velha.
Item, se sabem, viram ou ouviram que jejuaram ou jejuam, o
jejum maior dos judeus, que cai no mês de setembro, não
comendo em todo o dia até noite, que saiam as estrelas, e
estando àquele dia do jejum maior, descalços, e comendo
àquela noite carne e tijeladas, pedindo perdão uns aos
outros.
Outro si, se viram, ou ouviram, ou sabem, alguma pessoa, ou
pessoas, jejuaram ou jejuam o jejum da Rainha Ester por
cerimônia judaica, e outros jejuns que os judeus soíam e
costumavam de fazer, assim como os jejuns das segundas e
quintas-feiras de cada semana, não comendo todo o dia, até
a noite.
Item, se solenizam ou solenizaram as Páscoas dos judeus,
assim como a Páscoa do pão ázimo, e das Cabanas, e a
Páscoa do Corno, comendo o pão ázimo na dita Páscoa do
pão ázimo, em bacios e escudelas novas, por cerimônia da
dita Páscoa, e assim se rezaram ou rezam orações judaicas,
assim como são os salmos penitenciais, sem Glória Patri et
Filio et Spirilu Saneio, e outras orações de judeus, fazendo
oração contra a parede, sabadeando, abaixando a cabeça e
alevantando-a, à forma e modo judaico, tendo, quando assim
rezam, os atafales, que são umas correias atadas nos braços,
ou postas sobre a cabeça.
Item, se por morte dalguns ou de algumas, comeram ou
comem em mesas baixas, comendo pescado, ovos e
azeitonas por amargura, e que estão detrás de porta, por dó,
quando algum ou alguma morre, e que banham os defuntos,
lhes lançam calções de lenço, amortalhando-os com camisa
comprida, pondo-lhe em cima uma mortalha dobrada, à
maneira de capa, enterrando-os em terra virgem e em covas
muito fundas, chorando-os com suas literias cantando, como
fazem os judeus, e pondo-lhes na boca um grão de aljôfar ou
dinheiro d'ouro ou prata, dizendo que é para pagar a
primeira pousada, cortando-lhes as unhas e guardan-do-as,
derramando e mandando derramar água dos cántaros e potes
quando algum ou alguma morre, dizendo que as almas dos
defuntos se vêm aí banhar, ou que o Anjo percuciente lavou
a espada na água.
Item, que lançaram e lançam as noites de S. João Batista, e
do Natal, na água dos cântaros e potes, ferros ou pão ou
vinho, dizendo que àquelas noites se torna a água em
sangue.
Item, se os pais deitam a bênção aos filhos pondo-lhes as
mãos sobre a cabeça, abaixando-lhe a mão pelo rosto abaixo
sem fazer o sinal-da-cruz, ã forma e modo judaico.
Item, que quando nasceram ou nascem seus filhos se os
circuncidam, e lhe puseram ou põem secretamente nomes
de judeus.
Item, se depois que batizaram ou batizam seus filhos, lhes
raparam ou rapam o óleo e a crisma que lhes puseram
quando os batizaram.
O Monitório destacava as solenidades religiosas
indispensáveis do culto judaico: o jejum-maior, em que
pedem perdão uns aos outros, é o IOM KIPUR, dia da
Expiação, festa do jejum do Giijppur, para a qual Filipe
Cavalcânti vira, em 1553, passar os carros de Olinda,
enramados e ruidosos, rumo ao Camaragibe, onde havia uma
esnoga (sinagoga) freqüentada; o jejum da Rainha Ester,
TAANIT ESTHER; a Páscoa do pão asmo, PESSACH,
quando comem o pão ázimo e o carneiro assado,
antecipador do Êxodo. Salvador da Maia era acusado em
1591 porque se empascoara com o carneiro pascal. Cita a
festa das Cabanas, Tabernáculos, SUCOT e a Páscoa do
Corno, ROSCH HA-SCHANÁ, quando soa o schofar,
trombeta de corno de carneiro, anunciando a primeira lua
nova do novo ano israelita.
Belchior Fernandes de Basto, evocando l610-l611,
denunciava ao Santo Ofício, na Bahia, haver muita festa e
traquinada em casa do cristão-novo Simão Nunes de Matos,
motivadas pela toura dos farelos. Seria a KHAMISCHÁ
ASAR BISCH'VAT, o ano-novo-das-árvores, o FEWISH
ARBOR DAY contemporâneo? A toura era o nome vulgar
da TORÁ, o Pentateuco mosaico, escrito em hebraico,
pergaminho ou pele de ovelha, enrolado e oculto na Arca.
Permitia a sugestão mentirosa de imagens bovinas como
ídolos do culto judeu, imaginação que levou às fogueiras
muitos reverenciadores dessa falsidade. Facilmente
encontrável nas Denunciações baianas e pernambucanas as
menções às figuras de bois, touro, bezerros, vultos humanos
com chifres ou cabeça taurina, apontadas como supremas
idolatrias de um povo sem representações materiais da
divindade.
A toura, tourinha, tornou-se vulgarmente bezerra, na
dedução anônima, e João Ribeiro (Frases Feitas, I, Rio de
Janeiro, 1909) explica nessa origem o está pensando na
morte da bezerra, com que zombam pessoas inexpli-
cavelmente meditativas e graves. Todos esses usos e
costumes, advertidos no Monitório, foram comuns e
correntes na Bahia e Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, e
certamente nas Capitanias de baixo, da Bahia para o sul.
As famílias da nação guardavam os sábados com os melhores
trajes, joyas de festa, candeeiros limpos, mecha nova,
ardendo a noite inteira, reunindo-se homens e mulheres em
conversação amistosa quando não podiam comparecer às
esnogas famosas em Matoim e Camaragibe, sabadeando,
como então se dizia. As residências dos cristãos-novos
abastados supriam, simbolicamente, a sinagoga, com suas
luzes, a veneranda Tora e a salmodia ritmada das orações,
vociferadas na exaltação devota. A esse respeito sabático
correspondia o desprezo dominical, trabalhando-se
despreocupadamente no dia do Senhor, pecado referido nas
Denunciações delatoras. Presentemente o sábado voltou a
ser dia de sueto, comércio fechado ao meio-dia e repartições
sem função.
Óbvio que a gente da nação cumpria as restrições
alimentares, não comendo porco, toucinho, eliminando a
gordura da carne, servindo-se de peixe de escama e jamais
dos de couro, recusando lebre, coelho e demais animais
vetados pela Ley Velha. Matavam aves degolando-as e não
sangrando-as, escorrendo totalmente o sangue, proibido
formalmente aos fiéis descendentes de Abraão (Levítico, 11,
Deuteronômio, 14, 2-21). Cobriam de areia o sangue
derramado. Não se deixava nódoa sangrenta na superfície do
solo porque o sangue é a alma. A crença ficou no povo.
Sangue não deve ficar exposto. Chama quantidade maior...
(Leuitico, 17, 10-16). As orações judaicas são recitadas com
acentuado balançamento do busto ou apenas da cabeça,
oscilante em vênias ininterruptas. Essa posição denunciava a
raça da nação e recomendava-se atentar para sua
observância. As orações tradicionais das famílias católicas do
interior, os terços, rosários, ladainhas, sussurradas diante dos
oratórios de jacarandá, provocavam, pela insistência
monótona e sonolenta, o cabecear proibido no Monitório de
1536, e era inevitável o reparo das velhas donas: - Direite a
cabeça, menina! Parece um judeu! Nunca havia visto um
judeu orar, mas a fama secular atravessava o tempo.
Maomé aprendeu com os judeus de Medina e Meca esse
movimento pendular da cabeça no plano vertical para as
orações ao Deus clemente e misericordioso. Há no Oriente
um lagarto, estelião (Stellius vu/garis), que os árabes chamam
hardum e que desfruta de generalizada antipatia. Quando o
encontram no campo ou na cidade, matam-no
infalivelmente. É que o hardum, de ânimo essencialmente
burlador e zombeteiro, diverte-se imitando os movimentos
da cabeça dos maometanos, orando nas mesquitas o raké at.
Aquele balançado do estelião é um desrespeito à pragmática
muçulmana. A mesma técnica das nossas amáveis lagartixas.
No preparo das iguarias, o uso abusivo do azeite doce era
uma constante israelita. Não empregavam manteiga nem
gordura animal. A carne, a galinha, guisadas no óleo, as
cebolas cortadas, fritas no óleo e misturadas no alimento,
valiam como pregões de judaísmo.
Nas cerimônias lutuosas, a exigência era maior e não a
esqueciam. O defunto era lavado, unhas cortadas,
embrulhadas, podendo seguir o corpo ou serem ocultas no
quintal. Usual era a mortalha de manto ou lençol inteiro,
envolvendo todo o cadáver, sem costurar-se mas
amarrando-se com atilhos, como vemos nos quadros da
ressurreição de Lázaro, modelo que os hebreus haviam
trazido do Egito. Assim Jesus Cristo fora envolto por José de
Arimatéia (Mateus, 27, 59; Marcos, 15, 46; Lucas, 23, 53;
João, 19, 40). Para as mulheres, vestiam as longas camisas
brancas. Nos homens, para iludir a vigilância suspicaz do
Santo Ofício, envergavam um hábito de S. Francisco em
cima do traje que o costume sagrara. Não podia acompanhar
o corpo nenhum objeto metálico. Agulhas, alfinetes, a cruz
dos terços, depois os dentes obturados a ouro, eram
retirados, respeito que veio às primeiras décadas do século
XX. Os oficiais eram enterrados com as fardas sem botões
dourados. Dedos sem anéis, para defuntos e defuntas.
Sapatos sem pregos, ou sandálias de feltro, pano grosso, ou
embrulhados os pés numa toalha. Muitos desses pormenores
constituem usos brasileiros. O lençol, vestidura fúnebre,
cobrindo inteiramente o cadáver, inclusive a cabeça, foi uma
tradição respeitada nos sertões e mesmo nas cidades. O sábio
Oswaldo Cruz, falecido em 1917, amortalhou-se dessa
forma.
O pano da mortalha devia ser aproveitado totalmente.
Nenhum retalho podia ser-lhe cortado. Furtava-se ao morto,
e ele voltaria para exigir o débito. Impunha-se, com o
falecimento de parentes próximos, uma abstinência de
carne, notadamente fresca, frutas e doces. Peixe n'água e sal,
pirão de farinha sem cheiros, broas, ovos duros, azeitonas
para os europeus. Durava uma semana. Pouco ou raro vinho.
Nenhuma gulodice. Não havia naquela época o café, e o chá
era bebida de enfermos. Ainda alcancei o preceito de não
comer carne verde antes da missa de Sétimo Dia, e
subseqüente visita de cova. Os enlutados serviam-se em
mesas baixas, onde tocassem o solo com a mão. Refeição
silenciosa ou quase muda. A viúva comia sentada no chão
limpo, arregaçando a saia e pondo as nádegas nuas no
contato da terra ou tijolos, por humildade e preito saudoso.
Algumas deixavam de dormir em cama. Mesmo as mais ricas
ficavam o dia inteiro sentadas e vezes costumavam repousar
nos estrados, de palmo e meio a dois palmos de altura, sem
alcatifa ou tapete. As de exigência maior escolhiam colocar o
estrado detrás das portas, escondendo-se do povo.
A refeição no solo sem forro levou muita gente ao
sambenito e pública exposição degradatória nos autos-de-fé.
Ficou, entretanto, a homenagem: comer no chão limpo por
penitência em favor do morto. Cerimônia mais feminina que
masculina, preferindo os homens as mesas baixas, também
determinantes de prisão, e carocha à porta das igrejas, com
pregão do judiciário eclesiástico. André Lopes Ulhoa foi
denunciado, preso e remetido para Lisboa, onde abjurou de
levi, por ter feito suas refeições, durante seis meses, sobre
uma caixa-da-índia, baixa, em lugar da mesa, e recebera as
visitas, que foram apresentar-lhe as condolências pela morte
de uma tia querida, sentado numa alcatifa, no chão,
desprezando a cadeira. Comer no chão limpo ainda reside
no Brasil sertanejo, em raros mas expressivos testemunhos
antigos, em lembrança oblacional a um morto. Tenho
exemplos na minha família.
Não mudar a camisa, não fazer a barba e cortar os cabelos,
não tomar banho durante determinado tempo penitencial, é
uso no Oriente e os romanos, já no tempo do Imperador
Augusto, praticavam, assim como os portugueses. Os judeus
conheciam como tradição popular e não ordenação legal. Os
nazarenos São Judas Tadeu e Santo Onofre foram modelos
clássicos. Era objeto de comentário, na Bahia dos finais do
século XVI, mas ainda reaparece, como promessa, vez por
vez, entre o povo brasileiro. Depois de vestir o hirâm, o
traje de peregrinação a Meca, o muçulmano não mais toma
banho, apara os cabelos, barbeia-se ou corta as unhas.
Lembro que a Princesa Isabel dÁustria (1566-1633), quando
o marido, Alberto d'Áustria, ex-Cardeal que assinou a carta
creditória da primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil,
cercava Ostende, em 1601, jurou mudar a camisa quando a
praça fosse rendida. Ostende resistiu três anos. A ilustre filha
do Rei Filipe II d'Espanha denominou a cor isabelle,
tonalidade da camisa de Sua Alteza em 1604. Em agosto de
1591, na Bahia, Isabel Serram, cristã-velha, casada e
analfabeta, denunciava ao Santo Ofício:
... e também ouvio dizer geralmente a muitas pessoas que
não lhe lembra averá dous anos pouco mais ou menos que
Violante Antunes cristã-nova, filha do dito Heitor Antunes,
despois que morreu seu marido Diogo Vaz, com nojo nunca
mais mudou a camisa e não queria comer e se deixou morrer
no dito lugar de Matoim.
Parece-me exemplo menos político e mais sentimental que a
sujeira patriótica da princesa em Ostende. O juramento é
antigo na espécie. Heródoto (Teipsicore, CVI) conta ter o
milesiano Histieo prometido a Dario não mudar a túnica,
que vestiria para marchar àjônia, até que dominasse a
Sardenha.
Pôr uma moeda na boca do morto, óbulo de Caronte,
desapareceu no Brasil. Fora comuníssimo em Portugal. Há
uma denúncia contra Simão
Nunes de Matos ter praticado o ato, pondo uma moeda de
ouro na boca do defunto Gaspar Dias de Moura, que se
sepultou com ela na Igreja do Carmo na Bahia, à volta de
1613. Derramar toda a água contida nas jarras, potes e
cântaros quando alguém falecia, foi um dever de uso vulgar,
abundantemente citado em todas as Denunciações.
Constituiu o mais comum dos hábitos judaicos, evitando que
utilizassem água em que o Anjo da Morte levara a espada. A
superstição espalhada e popular, registada no Monitório, é
que as almas dos defuntos vinham banhar-se no líquido. E
algumas mais burlonas, urinar, conspurcando-a. A crendice
continua, explicando-se que o espírito do morto, enquanto o
corpo estiver exposto no velório, não abandonará o recinto
e bebe a água guardada nos recipientes caseiros. Esgotá-la é
livrar a família de ingerir o sobejo de defunto,
contaminando-se mortalmente. O Rev. Rosalino da Costa
Lima, pastor evangélico em Gravata, Pernambuco, permitiu-
se a leitura do seu Superstições e Crendices, então inédito,
onde informa: - Quando morre uma pessoa, costuma-se
jogar fora toda a água das vasilhas, para que a alma não se
utilize dela tomando banho... e fazendo das suas. Adolfo
Coelho e J. Leite de Vasconcelos registaram
semelhantemente em Portugal, Paul Sebillot pela França. É o
aviso do Monitório em novembro de 1536.
Retirado do cadáver para o cemitério, renova-se a provisão
de água. Antes, bebe-se água enviada pelos vizinhos. Todas
as vasilhas devem voltar cheias. Alguma vazia seria agouro
para quem chefiasse a família enlutada. Isabel Antunes,
confessando, em fevereiro de 1592, na Bahia, disse que sua
mãe, Violante Antunes, aconselhava que não era bom,
quando levavam um pote para buscar água fora de casa,
tornarem com ele para casa vazio. Não mudou a suspeita na
segunda metade do século XX. O pote vazio atrai a penúria.
O popular velório, quarto, guarda, sentinela, a vigília fúnebre
durante a noite, não recorda influência israelita e sim
portuguesa, com elementos mouros e negros, fiel aos
costumes do canto lutuoso, como as excelências, entoadas
junto ao defunto, são reminiscências das nêmias, arrastadas,
lentas, em meia-voz lúgubre. O vocero siciliano, a
lamentação convulsa, ululada, furiosa, com boa vulgarização
na Europa, Itália, Grécia, Balcãs não é o choro mercenário e
gritante das carpideiras profissionais, que o Portugal velho
conheceu e exportou, nos elementos típicos, para o Brasil,
onde resistiu até finais do século XIX, sendo proibido em
Portugal desde 1385. O vocero é uma presença oriental,
notadamente moura, e que os ciganos empregaram no Brasil.
Como percorreram todo o imenso território nacional,
deixaram, aqui e além, uma lembrança da estridente
homenagem ao morto. Os judeus eram, historicamente,
mais comedidos, moderados e compostos ante seus defuntos
queridos, embora com lamentações ruidosas e gesticulação
exagerada. Partilhavam do rito das exéquias relativamente
mais silenciosas e meditativas. Bem possivelmente fosse
outra herança dos quatrocentos anos de convivência egípcia.
O judeu desejava sempre enterrar-se em terra virgem, onde
ninguém o houvesse antecedido. Mesmo os sepulcros
coletivos jamais compreendiam, no Oriente, mais de um
depósito em cada canto, exceto para os amantes infelizes. Os
hebreus combatiam a exumação como heresia à
individualidade mortuária. A imponência das pirâmides,
significando apenas um túmulo, valia o dogma do morto-
sagrado, intocável nos direitos de permanência
interminável, guardado pelas maldições assombrosas ao
profanador. O jazigo em terra virgem era uma garantia de
pureza material. Assim Abraão guardara o corpo de Sara na
cova de Machpele, terra dos filhos de Heth em Canaã.
Descrevendo o sepultamento de Jesus Cristo, três dos
evangelistas salientam tratar-se de um sepulcro novo, em
que ainda ninguém havia sido posto (Mateus, 27, 60; Lucas,
23, 53; João, 19, 41). Esse pedido insistente, recomendado
nas últimas vontades expressas pelo moribundo, era
fielmente atendido por onde os judeus residissem. Pelo
Brasil, no documentário do Santo Ofício, os exemplos foram
numerosos. Inumados em terra virgem, a família opunha
obstinada resistência para uma trasladação. As campas eram
sinônimos de eternidade. Ana Roiz, viúva de Heitor
Antunes, não consentiu que retirassem os ossos do marido
das minas da ermida em que fora enterrado. Transferiu-se o
culto religioso, mas não os restos mortais do cristão-novo, da
raça dos Macabeus, na Bahia.
Essa tradição não se dissipou no Brasil. Os sepultamentos na
mesma cova sempre ocorrem entre marido e mulher. O
estilo é lado a lado, nos túmulos próximos. A terra virgem
ainda se acusa preferencial nos aforamentos para as capelas
mortuárias, onde cada membro da família terá o seu lugar
reservado, num inalterável repouso, através dos tempos. O
túmulo próprio era uma afirmativa tranqüila do sono eterno.
Daí a batalha angustiada por uma sepultura, motivo de todos
os trabalhos na vida de escravos gregos e romanos, e pela
Idade Média (Dante Alighieri e a Tradição Popular no Brasil,
"O Morto sem Túmulo", Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1963).
O diplomata e historiador Oliveira Lima (1867-1928), no seu
testamento, Lisboa, outubro de 1923, decidira:

Determino que meu corpo descanse onde ocorrer meu
falecimento, sepultado, ou cremado, de preferência, se
minha religião o não vedar, sendo adquirida pela minha
herdeira, isto é, por minha mulher, ou, na falta desta, pela
Universidade (Católica da América), uma concessão
perpétua em campa rasa, a mais modesta possível, e não
senão em caso algum os meus restos objeto de transporte
post-mortem.
E ficou no cemitério de Mount Olivet, em Washington, ad
peipetuitatem.
Acreditavam os judeus que na noite de S. João e Natal as
águas tivessem misterioso poder. As datas eram católicas,
mas deveriam coincidir com tradições antiquíssimas, do
Egito ou Babilônia, mantidas na memória daquele povo
espantoso. Lançavam pão ou vinho às águas, afirmando-as
tornar-se em sangue. Significaria uma oferta. Persiste a
superstição de essas águas revelarem o futuro, na série de
adivinhações do São João, recebidas de Portugal, estudadas
no Anúbis e Outros Ensaios (XXVI, Rio de Janeiro, 1951).
Em Portugal, na meia-noite de certo dia do ano, as águas dos
rios são sangue vivo.
A bênção patriarcal, impondo as mãos sobre a cabeça do
abençoado, registrava-se no Monitório como ofensiva à
ortodoxia católica. Em 1591, Antônio de Oliveira
denunciava a tia Violante Roiz que lhe pôs a mão na cabeça,
nomeando Abraão. A velha Ana Roiz, que seria queimada
pelo Santo Ofício em Lisboa, confessou: Quando lança a
bênção a seus netos, dizendo a bênção de Deus e minha te
cubra, lhes põem a mão estendida sobre a cabeça depois que
lhe acaba de lançara bênção. Não havia o sinal-da-cruz. É a
forma imutável na família israelita. O poeta Mistral, em
1859, jantando em Paris com o banqueiro Moisés Millaud,
fundador do Petit Journal, viu-o, no final da refeição,
s'incliner devant son père qui, lui imposant les mains à la
façon des patriarches, lui donna sa bénédiction. Assim Jacó
abençoara José e seus filhos no Egito (Gênesis, 48, 14, 17). A
imposição da mão conservou-se no cerimonial do diaconato
católico, quando o bispo põe a mão direita (mão de bênção e
do anel episcopal) na cabeça do ordinando: Accipe Spiritum
Sanctum! Identicamente, na ordenação do presbítero e o
mesmo na sagração dos bispos, sagrante e seus assistentes
pondo a mão na cabeça do novo prelado: Recebei o Espírito
Santo! É a transmissão da graça sacramental da Ordem.
Os sete primeiros diáconos em Jerusalém foram sagrados
pela imposição das mãos dos apóstolos (Atos, 6, 6). Ficou
sendo a imagem popular da aprovação. Gil Vicente, Farsa
dos Físicos, 1519, recorda:

Sobre vos pongo la mano
Como diz el Evangelio.

Uma reminiscência dessa bênção judaica é a frase ainda
contemporânea no Brasil: - passar a mão pela cabeça,
desculpar, perdoar, revelar, concordar, enfim, abençoar,
absolvendo os pecados e culpas. Passou-lhe a mão pela
cabeça vale dizer, tornou-o inculpado. No Purgatório (XXXI,
101), Matelda, a belle donna, leva Dante Alighieri para o
banho no Rio Letes, extinguindo-lhe a recordação,
abraçando-o pela cabeça, abbrac-ciommi la testa e mi
sommerse...
Vemos comumente entre pessoas do povo o gesto de beijar
a própria mão como homenagem ao interlocutor. Ainda em
maio de 1965, um garçom do Bar Potengi, em Natal,
saudou-me dessa maneira. Nas capelas pelo interior do
Nordeste, presenciei as mulheres humildes lançarem o braço
na direção do altar e depois oscular o dorso da mão numa
reverência. Qualquer viajante lembrar-se-á ter visto essa
curiosa vénia por todo o litoral da África do Mediterrâneo,
do Marrocos ao Egito. Não a vi em Portugal ou na Espanha
nem a deparei no Velho Testamento. Deverá, logicamente,
existir na Península Ibérica.
Luís Álvares, na cidade do Salvador, à volta de l6l6, narrava
aos comensais, Melchior de Bragança e Manoel Roiz
Sanches, suas impressões duma sinagoga visitada em
Flandres: "Ao entrar na sinagoga lavavam as mãos e punham
a mão na testa e então beijavam a mesma mão..." O Doutor
Melchior de Bragança, que era marroquino, informou que as
mesmas cerimônias faziam os judeus em Berbéria. Parece-
me estabelecido o vínculo originário da saudação e quem a
trouxe para o Brasil.
Há uma frase vulgar no vocabulário brasilleiro: - lamba as
unhas, valendo dizer, conforme-se com o possuído, dê as
graças por não participar do caso, alegre-se de não estar
envolvido, considere-se feliz. Isabel Davilla, denunciando
em novembro de 1591, noticiava: "Vio mais a dita Mecia
Roiz, que tem por costume, quando ouve dizer alguma
pessoa que outra alguma mulher teve ruim parto, lamber
com a boca as unhas dos dedos de ambas as mãos, e isto lhe
vio fazer por muitas vezes, e perguntando-lhe a razão por
que o fazia, não respondeu nada". É um gesto de exorcismo
popular judeu. Não mais repetem o ato mas a frase ficou,
demonstrando a intenção acauteladora.
Pesquisei as superstições da vassoura (Superstições e
Costumes, Rio de Janeiro, 1958), Roma, Idade Média,
dispersão feiticeira pela Europa e América, até o Brasil, onde
há uma Nossa Senhora da Vassoura, no Maranhão.
As abusões, tão divulgadas e milenares, dificilmente serão
identificadas na geografia das fontes.
Ana Roiz, fevereiro de 1592, na Bahia, explicava que sua
comadre Inês Roiz lhe ensinara, em 1558, em Portugal, que
não era bom a vassoura com que varriam a casa emprestá-la
a nenhuma vizinha para varrer. Diogo Batista, setembro de
1618, denunciava que Francisco Ribeiro, senhor de
engenho e não tem narizes, mandava varrer as casas de
noite da porta para dentro. Os denunciados eram cristãos-
novos. Varrer para fora, "varre a felicidade". D. Francisco
Manoel de Melo registrou em Visita das Fontes (Lisboa,
1657). São crendices popularíssimas no Brasil.
No Brasil, o judeu, não estando segregado nas Judiárias,
normalmente casando com cristã-velha, não se distinguia na
massa populacional. Era vigário, ouvidor, membro da
governança, oficial, mercador, mestre-escola, dono de
engenho, relacionado com todas as classes e participando de
todas.

Com judeus, Livre-nos Deus!

Aplicar-se-ia a um outro tipo de homem, historicamente
adversário, diferenciado das demais criaturas humanas e
normais. Não chegava a ser o cristão-novo que se acusava e
era acusador na mesa confidencial do Santo Ofício, sem que
repercutisse diminuição afetuosa na convivência. Nem
mesmo os penitenciados nas exibições públicas nos adros
das igrejas sofreram perturbações na continuidade cordial
dos amigos, vizinhos e compadres. Um vocabulário
agressivo e feroz dirigia-se ao outro judeu, existente nas
citações retóricas, escapação natural dos ódios surdos
inominados. Judeu era o onzenário, agiota, impiedoso,
insensível, sádico, perverso, cruel. Judiaria, malvadeza,
sadismo, perversidade. Judiar, maltratar, fazer sofrer,
mutilar, seviciar, torturar. Moraes diz judiar, escarnecer;
judaria, covardia. Judiaria, mofa, escárnio acintoso,
zombaria, em Portugal. Na Espanha, judiada é acción
inumana, lucro excessivo, judio, voz de desprecio y cólera.
Essas acepções últimas não são correntes na sinonímia
brasileira, como em Portugal e Espanha. No Brasil,
figuravam nas irmandades e confrarias juízes de festas aos
oragos. Belchior Luís, senhor do engenho "Jabotão", vendo
passar a charola de Nossa Senhora sem que fosse ajudá-la,
explicou que os mordomos erão huns judeus que
crucificarão ho filho e agora querem festejar a mãi. Mas esse
cristão-velho afirmava que a imagem da Senhora era bun
madeiro que elle não podia carregar, e tanto acreditava nas
missas do padre Antônio André e do padre Francisco Pinto
Doutel como em hum pau que erão amancebados! Era assim
a ortodoxia popular do século XVI.
Mas, onde não estava o judeu? D. Frei Joseph de S. Joseph
Queiroz, 4o Bispo do Grão-Pará, escreveu ter o Marquês de
Castelo Rodrigo mandado imprimir em Roma a Nobiliarquia
do Conde de Barcelos, filho do Rei D. Dinis, só para
suprimir aquilo de RiU Capão, judeu de quem descende
muita fidalguia portuguesa.

Quem não assiste Missa do galo,
Ou é judeu
Ou é cavalo!

Mas não havia ausência nas missas solenes e nas
comemorações votivas. O judeu era outro, distante da
freqüência social nas Capitanias do Brasil. A única divisão
notória, palpitando nos registos da vida comunitária
paroquial, a lei de 25 de maio de 1773 anulou, mandando
examinar todos os livros das misericórdias, irmandades,
confrarias e corporações, castigando 05 autores de quaisquer
notas maliciosas postas para Jazer diferença de cristãos-
novos e cristãos-velhos, riscando-se os artigos dos
compromissos ou estatutos que mandarem procederas
inquirições de limpeza de sangue etc. As informações
utilizadas datam de 1591 a l6l9- Provinham das regiões mais
povoadas e ricas do Brasil, na opulência da produção
açucareira, atraindo os assaltos holandeses de 1624 e 1630.
O século XVII seria, especialmente na primeira metade, a
fase de atração judia para Pernambuco, capital do Brasil
Holandês, até janeiro de l654. Teria vindo um possível
milhar, moscas famintas do mel tropical. Tínhamos o judeu
semi-analfabeto, astuto e móbil, mas desprovido de recurso
letrado. Para o Recife enxameou-se o elemento intelectual,
os rabinos explicadores e mestres, os poetas e escritores
hebreus, não somente dos Países Baixos mas da Alemanha e
Balcãs, especialmente da Polônia, ao lado da massa para a
labutação servil. Sob o Conde Nassau, as sinagogas
funcionavam no Recife como em Amsterdam. Não fora
despiciendo o volume das famílias israelitas emigradas,
conduzindo um patrimônio mais puro e mais vasto de
preceitos bíblicos e de preconceitos populares entre o povo
da Diáspora. Feitores de engenhos, fiscais de impostos,
soldados e marinheiros, rendeiros, mercadores, tiveram
maior campo de expansão influenciai. As crendices foram
ratificadas, dispersas e ampliadas pelo Nordeste porque a
Geoctroyerd Westindische Companie governava do
Maranhão a Sergipe. E a transmissão oral, irresistível, seria
muito mais poderosa e penetrante que a deduzível pelo
contato direto, por todo o país. Pode-se afirmar da
superstição o que Ales Hrdlicka disse da migração humana: -
Man does not migrate like birds- be spreads. Os judeus
pobres não emigraram para as Antilhas levando as técnicas
açucareiras, como seus irmãos abastados. Nem fora objeto de
castigo sua presença ao lado do invasor. Nas capitulações da
rendição, em janeiro de 1654, facultou-se a permanência
israelita, obedecendo e acatando as leis portuguesas, o que
sempre prometiam.
Compreende-se que o judeu tenha ficado em Pernambuco e
aproveitado o desenvolvimento do Recife para traficar.
Comércio intermediário e não indústria produtora. O
Coronel Adriaen van der Dussen, num relatório de 1639,
referente às Capitanias conquistadas pelos holandeses,
informa:
Os judeus que emigraram e que se ocupam com agricultura
ou compraram engenhos são poucos; os demais dão-se ao
comércio e a maioria deles mora no bairro do Recife e
souberam dominar todo o movimento de negócios.
Nas sedes urbanas algumas ruas tomaram seu nome: RUA
DOS JUDEUS, no Recife, hoje do BOM JESUS, e no período
batavo dita RUA DO BODE, ou seja, BOCKESTRAET. Bode,
bode-velho, era apelido do judeu idoso, apodo vindo de
Portugal (Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, 1517).
O século XVIII, ouro, diamantes, importação da escravaria
africana, intercâmbio comercial, daria clima animador às
atividades semitas. O judeu ficou nas Companhias de
Navegação e Comércio, açúcar, algodão, plantas medicinais,
mercado de peças negras. Não é crível ausência israelita
entre os mascates. Não apenas presença mas força social
quando o Recife tornou-se opulento, resistindo e vencendo
a aristrocacia de Olinda, os nobres, senhores de engenho,
coronéis de ordenanças e morgados.
Inarredáveis num regímen de incrível poupança, abstêmis,
frugais, renunciando ao conforto, afastados do luxo dos
trajes e das festas pródigas, emprestavam os recursos,
financiando as safras, recebendo as colheitas em pagamento,
guardando-as no fundo dos armazéns escuros, regulando o
mercado pela provocação da procura, explicada na retenção
misteriosa dos produtos. Criaram e divulgaram a carta de
crédito, o pague ao portador, assegurando a circulação
fiduciária, as primeiras promissórias, com datas preventivas,
os devo que pagarei, o câmbio das divisas estrangeiras, o
troco miúdo das moedas de ouro.
Transformaram o dinheiro em mercadoria e não mais
simples e convencional instrumento aquisitivo de utilidades.
Garantia pessoal de poder ocultar as posses quando outrora
não o poderiam fazer com a fazenda. Deram à moeda o valor
que pertencia aos imóveis, ao gado, produção, escravaria,
reduzíveis às espécies metálicas e unicamente calculados na
base relativa ao metal com a efígie do rei ou brasão estatal.
Até certo ponto, no Brasil pastoril e açucareiro, foi uma
democratização do capital. Os escravos inicialmente tudo
obtinham com os frutos dos pequeninos roçados. Raramente
viam uma moeda. Depois, recebiam em moeda quanto
vendiam.
Antigamente o milho, o feijão, a macaxeira, o jerimum eram
permutados nas vendinhas por cachaça, carne assada, peixe
frito. Mesmo as fôrmas de açúcar, furtadas da casa-grande.
Quando o escravo teve a moedinha na mão, pôde escolher o
vendedor, debater o preço, valorizar a predileção pessoal.
Essa divulgação da moeda foi um teimoso e lento trabalho
judaico. Dineros son calidad, diria Lope de Vega.
Ao contrário do indígena, que preferia ser pago em espécies,
rapidamente consumidas, o escravo negro decidiu-se pela
moeda, tendo a impressão econômica da reserva, jamais
sentida pelo ameraba, sempre dependente, acima do tempo
e da previsão. As técnicas de resguardo, então iniciadas,
estabelecem a diferenciação total: o indígena deixa os
"pertences" expostos, metidos nos jiraus e frestas do telhado;
o negro esconde numa caixa fechada, chave em lugar
incerto. Comprara o baú, o depósito das riquezas. O baú
sugeria a incessante aquisição do recheio para enchê-lo. O
indígena ignorou o baú...
Não devemos, evidentemente, limitar às Denunciações da
Bahia e Pernambuco as fontes da irradiação supersticiosa
judaica no Brasil. Tínhamos outras zonas demográficas no
sul, as terras fluminenses farfa-Ihantes de canaviais, o
imenso São Paulo, o mundo das Minas Gerais. As "caçadas" e
autos-de-fé aos judeus nas CAPITANIAS DE BAIXO
ocorrem justamente na era dos setecentos.
A ascensão econômica ao derredor do Rio de Janeiro atraíra
o judeu e lá o envolvera a rede infalível do Santo Ofício. É
arrastado pelo ouro, tornando-se, aos olhos alheios, a flecha
indicadora das farturas.
Havia um incessante desembarque de israelitas na
imensidade territorial, possibilitando apreciável colaboração
ao nascente folclore. O domínio castelhano em Portugal,
com a unidade administrativa que anulava as fronteiras e
dissolvia os ciúmes regionalistas, facilitara no século XVII o
acesso dos judeus espanhóis ao Brasil, com viagem
dificilmente autorizada mas abundantemente clandestina.
Jamais será possívei precisar o número dos que vieram e
como conseguiram vir. Notadamente sob D. João V e D.
José, em Portugal, e da atormentada Espanha, do último
Habsburgo e dos primeiros Bourbons.
Uma influência notória explica a repulsa popular em comer
carne dos animais encontrados mortos. Não comais de
nenhum animal morto por si, advertia o Deuteronômio, 14,
21. Maomé repetira a interdição aos muçulmanos (Alcorão,
XVI, 116). Falando dos Deres ou Farazes, que são os párias
na índia, Garcia de Orta, bom sangue de Israel, escrevia em
Goa, à volta de 1562: - "E há em cada povoação huma gente
desprezada e avorrecida de todos, e não se tocam com
outros; e estes comem tudo, e as cousas mortas" (Colóquios
dos Simples e Drogas da índia, LIV), denunciando a surpresa
pela nauseante refeição, indicativa da mais incontestável
inferioridade. As demais castas indianas não participavam
dessa tolerância.
No Brasil, para os raros insubmissos, a degustação era mais
comum nas proximidades urbanas, mantendo-se firme a
recusa entre os habitantes do campo, defesa instintiva de
higiene e precaução, esquecia a raiz dogmática inicial.
Aproveitar a carne de animal de morte inexplicada, nem
toda a população sertaneja praticava. Come até bicho morto!
era uma acusação humilhadora para os desobedientes da
tradição formal. Enterrava-se o achado. Foi o costume no
sertão nordestino do meu tempo, 1909-1915.
Os indígenas brasileiros e os povos da África negra,
sudaneses e bantos não maometanos, desprezam esses
escrúpulos. As pequenas e grandes peças de caça deparadas
sem vida são motivos de jubiloso repasto, disputadas até às
derradeiras parcelas. Não foram eles, certamente, os padri-
nhos da aversão.
O instinto utilitário do sertanejo excepcionava o gado
bovino. Não deixava a carne para pasto dos umbus, mas a
fazia chegar aos moradores mais pobres para que
aproveitassem. Esses salgavam-na, secavam ao sol, transfor-
mando-a em "carne-do-sertão", e iam vendê-las nas feiras.
Cumpriam o preceito do Deuteronômio, 14, 21: - Não
comais de nenhum animal morto por si. Dá-o para que o
coma ou vende-o ao peregrino... Este teria a isenção do
interdito.
Onde o exemplo judeu falhou foi no obstar o uso da carne
de porco, delícia do paladar brasileiro, em todas as classes. A
maioria dos cristãos-novos acabou adaptando-se e
saboreando-a, sem que julgasse abandonada a fidelidade à
LEY VELHA. Era o argumento do senhor de engenho Dinis
Bravo, em 1617: - Vós cuidais que todos os que comem
porco são cristãos? É que o porco era anterior ao judeu em
Portugal.
Iavé proibira a carne de porco (Levítico, 11, 7-8;
Deuteronômio, 14, 8). Nem poderiam tocar a carne morta.
Este vos será imundo... A proibição veio quando os hebreus
atravessavam o deserto, vindos do Egito, onde tinham
vivido 430 anos (Êxodo, 12, 40). A proibição veio de lá. Pelo
Gênesis não se fala em porco entre os alimentos, comuns ou
recusados, de Israel. E a existência da criação porcina
denunciava utilização lógica.
No Egito, o porco sofria idêntica restrição. Não o comiam.
Era abominável (Heródoto, Euteipe, XLVII). Quem o
roçasse deveria arrojar-se no Nilo, com todos os vestidos,
para purificar-se. O porqueiro não entrava num templo e só
poderia casar-se com as filhas dos companheiros de
profissão. Uma vez por ano, numa noite de plenilúnio, os
egípcios imolavam um porco à Lua e a Dionísio. Nessa
ocasião comiam a carne suína. A cauda, a pata, o redenho, a
gordura dos intestinos, jogavam às chamas. O resto cons-
tituía refeição. Os pobres que não possuíssem um porco
deveriam oferecer aos deuses um simulacro, feito de pasta,
na sagrada intenção. Era assim no Egito.
No tempo do profeta Isaías (século V antes de Cristo), os
judeus realizavam às ocultas uma cerimônia onde
consumiam a carne porcina. Assentando-se junto às
sepulturas, e passando as noites junto aos lugares secretos;
comendo carne de porco, e caldo de coisas abomináveis nos
seus vasos, clamava, indignado, o profeta (65, 4).
Manducavam também a carne do rato (66, 17), igualmente
defesa no Levítico (11, 29). Isaías ameaçava-os: - Serão
consumidos! A tradição egípcia ainda estava muito viva.
Depois, desapareceu. Nenhum outro profeta deparou o
festim sacrílego, com ratos e porcos. Se os egípcios
transmitiram aos judeus a repugnância religiosa ao porco, os
israelitas deram aos muçulmanos a mesma suspeição. A
proibição de Maomé (Alcorão, Suratas, II, 168; V, 4; XVI,
116) originara-se da convivência judaica em Medina e Meca.
Durante muitos anos o ramo simbólico das orações nas
mesquitas não se orientava para a Caaba em Meca, mas o
mibrab estava voltado para Jerusalém.
Quando o português veio para o Brasil, vivera mais de dois
mil anos de uso e regalado abuso da carne de porco. Caçou-o
nas montarias serranas e depois criou-o nas pocilgas. Era o
assado inteiro, o lombo, o pernil suculento, as costeletas, e
também o chouriço, lingüiças, presuntos, morcelas, além das
peças conservadas no fumeiro das lareiras. Trouxe o porco e
suas técnicas de aproveitação para o Brasil. Porcos, bácoros,
capados, leitões, tiveram cuidados e aplicações culinárias
incessantes e meticulosas. É de larga criação, como vemos
no rol de compras do Engenho Sergipe do Conde, 1622-
1653, no recôncavo da Bahia (Documentos para a História
do Açúcar, II, ed. Instituto do Açúcar e do Álcool, Rio de
Janeiro, 1956). Em vez de repeli-lo pelas razões de previsão
profilática, o porco era alimento para velhos e doentes,
aconselhado e disputado. O Padre José de Anchieta, na
Informação da Província do Brasil (dezembro de 1585, na
Bahia), escreveu:
Os doentes comem galinha e carne de porco, que nesta terra
todo o ano é melhor que galinha em saudável e gosto;
porém os que são mais fracos e velhos padecem algo porque
galinhas e porcos não os há para tantos e a vaca lhes faz mal.
O porco do Natal era indispensável na festa tradicional
portuguesa, substituído pelo peru no Brasil, mas integrado
no passado lusitano, tendo incomparável sabor nas mesas do
Norte europeu. Por toda a Europa, enfim. Na Alemanha, ter
um porco, Ich habe schwein, vale dizer "estou com sorte".
O judeu alemão não podia competir com esse prestígio. O
porco ainda é amuleto contemporâneo e figurado nos
monumentos antiquíssimos de Portugal, vestígios de cultos
proto-históricos como a Porca de Murça.
No Brasil, pela força do uso português, popular e milenar, o
porco instalou-se na preferência nacional, apesar de se
afirmá-lo indigesto, pesado, perigoso na lentidão digestiva.
O judeu de sinal e homem da raça mourisca, com a face
ferrada, não se divulgaram no Brasil. A descendência de
ambos os povos foi constantemente confundida. Judeu e
mouro terminaram sendo judeu-mouro, uma entidade. A
observação do Santo Ofício não alcançava as distinções
intransponíveis de Moisés e Maomé. Eram religiões sem
angústia especulativa e a fiscalização teológica exercia-se nos
atos exteriores do culto. O Monitório de 1536 estava muito
parcimoniosamente informado. Alude apenas ao jejum do
Ramadã, abluções antes das rezas, orar descalços, guardar as
sextas-feiras, ostentando trajes decentes e limpos, não comer
carne de porco e não beber vinho.
Os mouriscos nunca foram em número sensível nem
possuíram nível econômico autorizador de exercício
religioso, como ocorria ao cristão-novo. A presença moura
no Brasil foi mais etnográfica que antropológica. Jamais
foram acusados nas visitações do Santo Ofício.
E possível identificar-lhes a projeção nas superstições e
cultura popular, mas não constituíram motivo histórico e
impulso movimentador de momentos sociais, como o
israelita, quinhentista e seiscentista, reagindo contra a
unidade religiosa pela sobrevivência de sua fé, e contra a
continuidade política, aliando-se ao holandês invasor.
No final do século XVII não se ouve falar em mourisco.
Estavam assimilados pela população.
No correr dos séculos XVIII e XIX, o judeu dissolveu-se no
sangue nacional, pelo casamento cristão, pelo abrandamento
temperamental, pela ausência de motivos exasperadores de
sua fé e modos. Acima de tudo, pela conquista social nas
áreas econômicas. Não se tornou, porém, um quisto, mas
um afluente de tranqüila e perene colaboração humana. Em
Minas Gerais, conta-nos Augusto de Lima Júnior, chegaram
a constituir povoados, verdadeiros guetos, que ainda hoje se
reconhecem por não terem capelas em suas minas (A
Capitania das Minas Gerais, Lisboa, 1940). Mas estavam em
todos os postos, profissões, famílias, atividades. Informa o
mesmo historiador:
Deixaram, entretanto, os judeus portugueses muitos hábitos
enraizados em Minas e entre eles a prática geral, que lhes é
devida, de abaterem o gado para consumo sangrando-o
inteiramente, como preliminar na matança. Esse gênero de
comércio ficou em mãos de judeus e seus descendentes até
nossos dias.
O judeu e o mourisco vieram para o Brasil em plena vigência
do "quinto livro" das Ordenações do Reino, as Filipinas
(Lisboa, 1603), como antes eram as Afonsinas. Mas não lhes
foram aplicadas as determinações do art. 94:
Os mouros e judeus, que em nossos Reinos andarem com
nossa licença, assi livres, como captivos, trarão sinal, per que
sejão conhecidos, convém a saber, os judeus carapuça, ou
chapéu amarelo, e os mouros huma lua de pano vermelho
de quatro dedos, cosida no hombro direito na capa e no
pelote.
Ficaram, aos olhos do povo, indeterminados, irmanados pela
suspeita de heresia que pouco a pouco desaparecia no
convívio., A tradição supersticiosa confundiu-se na
impressão portuguesa, mesmo na Metrópole. Não se sabia
bem o que era judeu e o que era mouro. Um letrado como
Filinto Elísio (1734-1819) não distinguia as origens temáticas
de crendices de origem romana, arrumando-as no
patrimônio "semita" comum:
Dizem as nossas velhas que o vinho entornado é agouro de
festa e de alegria; como o é cie perda e de desgraça o
derramamento de sal na mesa. Estas boas superstições lhes
vêm de mouros e judeus, com muitas que fora longo referir,
e mais longo ainda de arrancar.
A história religiosa do povo judeu é um equilíbrio instável
entre o fidelismo mosaico e a sedução dos cultos
estrangeiros. Nem escapou o Rei Salomão, o mais sábio dos
soberanos, esquecido de Iavé e queimando incenso aos
ídolos amonitas, sidônios e moabitas. Essa disponibilidade
crédula explica a versatilidade do cristão-novo, em raro
cristão ou judeu íntegros, participando de ambos os
preceitos e recebendo a colaboração anônima de todos os
pavores ambientais. Foram sempre devotos do Mistério. A
vitalidade judaica, na essência espiritual, possuirá mais esse
fundamento para sua contemporaneidade sadia. Enquanto
tiverdes mistério, tereis saúde, disse Chesterton. Sem
abandonar totalmente a sombra trovejante do Sinai, o judeu
caminha sempre, através de todas as soluções sobrenaturais.
Não há religião que não tenha um "santo" judeu no seu
calendário.
Esse ecumenismo instintivo estabelece a igualdade dos
níveis da percepção psicológica. As heterodoxias judaicas
são fatalmente populares.
J. Lúcio de Azevedo (História dos Cristãos-Novos
Portugueses, 485, Lisboa, 1922) divulga uma oração da
cristã-nova Brites Henriques, presa no Santo Ofício em
Lisboa, assim começando:

Bendita la luz dei dia,
El Señor que la envia...

O eminente etnógrafo português Augusto César Pires de
Lima (1883-1959) recordava seu avô materno rezar
invariavelmente uma oração, transmitida a todos os filhos, e
que era aquela da pobre Brites Henriques:

Bendita seja a luz do dia,
Bendito seja quem la cria...

Essa faculdade judaica para o sobrenatural fê-lo embaixador
das ciências ocultas, disputando com o mouro os segredos
astrológicos, conselheiros dos reis, em Espanha, Portugal,
França, poderosos porque sabiam os roteiros marcados pelas
estrelas e planetas basilando o destino dos homens. Judeus e
mouros afirmaram-se herdeiros legítimos da Caldéia e do
Egito e a técnica, exercida com ademanes reservados e
graves, seduziu soberanos e pontífices.
Uma razão íntima era a "intuição" do judeu, denunciando-
lhe contorno quando ignoravam dimensões exatas. Um
pouco da fórmula do velho Satanás de Lord Byron: - I settle
ali these things by intuition...
A maior habilidade foi embrulhar estrelas e planetas com o
manto da Divina Providência. Ainda as Constituições
Sinodais do Arcebispado de Braga (1639), modelo para as
subseqüentes portuguesas e brasileiras, excluíam da
proibição e da graveza dos delitos a Astrologia Natural que se
chama Astronomia, incluindo a Judiciária, pois será lícito a
qualquer pessoa, pelas influências, e constelações dos Céus,
pelas estações ou movimento dos astros, suas conjunções, e
aspectos, conjecturar os efeitos futuros... como também não
era defeso levantar figura pelos astros, e aspectos dos
planetas, e constelações sobre nascimento das pessoas,
ciência envolvente e confusa, que continua nossa
conterrânea, na imperturbável credulidade coletiva.
Mouros e judeus foram os irresistíveis semeadores dessas
flores murchas e sempre odorosas do mistério oriental.
Tão dessemelhantes, judeus e mouros, criaram a figura
prestigiosa, impenetrável e discreta, do "doutor mágico",
sabendo todas as coisas e falando todas as línguas.
Não se admitia, antigamente, que o judeu letrado não
manejasse a língua árabe. Em novembro de 1492, na ilha de
Cuba, Dom Cristobal Colón enviou a primeira expedição
pesquisadora para o interior insular, procurando terras e
vestígio do Gran Khan; dois indígenas e dois europeus, um
deles, Luís de Torres, que babia sido judio y sabia hebraico y
caldeo, y aun, diz que, arábigo, conta o Padre Bartolome de
Las Casas (História de las índias, XLV).
Aquele babia sido judio, dito por um bispo, castelhano e
teólogo, elementos que se multiplicam em virulência
analítica, explica um pouco por que, fatalmente, nas cortes
de Espanha e Portugal, havia uma Hexalfa salo-mônica ou
um Crescente mouro, pisando os mesmos tapetes do Santo
Ofício.
Os motivos israelitas, fundamentais, circulando na cultura
popular brasileira, datam do século XVI.
Quando o brasileiro nascia...

Na Satyre Ménippée. Paris, 1594, o Arcebispo de Lyon Primal Citales, Pierre d'Espinac, é
acusado publicamente de incestuoso. O Duque d'Epernon denunciara-o ao Rei Henrique
O anotador da edição, Ch. Marcilly, prudentemente avisa: - Ilfaut se tenir eu garde contre
ces bruits.



 
 
 
 
 
 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
Mouros, Franceses e Judeus - Três Presenças no Brasil
Luís da Câmara Cascudo
 
 
 
links ao final da mensagem
 
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
 
Sinopse:
 
Luís da Câmara Cascudo pesquisou profundamente as três presenças no Brasil. Os portugueses nos legaram expressões literárias, usos e costumes mouros que ainda subsistem no país: as Cavalhadas, as Cheganças de Mouros, as superstições e crendices e até a arquitetura mourisca.
A presença francesa é encontrada nas rodas e brinquedos cantados e nos contos tradicionais.
A influência judaica se faz sentir nas lendas, nos ritmos e em certas cerimônias religiosas.
As três presenças no folclore no Brasil estão manifestadas nos usos e costumes do povo brasileiro que continua realizando os fenômenos que se tornaram folclóricos.
O autor expressa, de maneira transparente e correta, o universo da mentalidade brasileira.
 
 
 
 
 
 

 
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