terça-feira, 27 de setembro de 2011 By: Fred

Lançamento Arcanjo Micael - A Terrorista - Doris Lessing


Doris Lessing

A Terrorista

CÍRCULO DO LIVRO

A casa ficava afastada da barulhenta rua principal, no que
parecia ser uma área sem valor. Uma casa grande. Sólida.
Telhas pretas se projetavam sobre a calha, e de uma falha
junto à base de uma chaminé gorda um pássaro voou,
carregando em sua esteira um pedaço de relva que tinha
várias vezes o seu tamanho.
— Eu diria que a construção é de 1910 — comentou Alice.
— Repare como as paredes são grossas.
Era o que se podia perceber pela janela quebrada logo acima
deles, no segundo andar. Ela não obteve resposta, mas isso
não a impediu de tirar a mochila, deixando-a cair sobre um
tapete vivo de urtigas, que tentava digerir latas enferrujadas e
copos de plástico. Deu um passo para trás, a fim de ter uma
vista melhor do telhado. O movimento fez com que Jasper
entrasse em seu campo de visão. Como ela já esperava, seu
rosto assumira uma expressão crítica, com a intenção de ser
notado. Por sua vez, não precisava que Jasper lhe dissesse
que ela estava exibindo sua cara, que ele descrevia como
tola.
— Pare com isso — ordenou ele.
Jasper estendeu a mão bruscamente e agarrou-a pelo pulso,
com toda a firmeza. Doeu. Alice fitou-o, sem qualquer
desafio, mas confiante, e disse:
— Será que vão nos aceitar?
E, como ela já previa, Jasper respondeu:
— Toda a questão é saber se nós vamos aceitá-los.
Ela resistira ao teste, a dor que se irradiava pelo osso, e Jasper
largou seu pulso, encaminhando-se para a porta. Era uma
porta sólida e segura, numa pequena rua transversal, repleta
de jardins suburbanos e confortáveis casas similares. Não
tinham telhas faltando e janelas quebradas.
— Por quê, por quê, por quê? — indagou Alice, furiosa,
endereçando a pergunta provavelmente ao próprio universo,
com o coração transbordando de angústia por causa da casa
ampla, bela e desamada.
Arrastando a mochila pela alça, foi se juntar a Jasper na porta
da frente.
— Uma questão de lucro, é claro — disse ele, apertando o
botão da campainha, que não tocou.
Jasper deu um empurrão brusco na porta e os dois entraram
num vestíbulo grande e escuro, do qual subia uma escada,
que virava num patamar largo e depois continuava a se
elevar, até onde a vista não podia alcançar. Um lampião
colocado no chão, a um canto, fornecia toda a iluminação do
local. De uma sala ao lado vinha o som de um suave
tamborilar. Jasper foi abrir a porta. As janelas estavam
tapadas por cobertores, não deixando entrar qualquer
claridade. Um jovem negro levantou os olhos de sua família
de tambores, as faces e os dentes brilhando à luz da vela.
— Oi — disse ele, todos os dedos das mãos e os pés em ação,
de tal forma que parecia estar dançando sentado ou talvez
fosse alguma espécie de aparelho de ginástica.
Aquele negro risonho e jovial, que parecia um anúncio de
férias maravilhosas no Caribe, afetou o órgão de
credibilidade de Alice com um tom de falsidade. Ela compôs
um pequeno memorando para si mesma, dizendo para não
esquecer a primeira impressão de ansiedade ou até pesar, que
era a verdadeira mensagem que seus nervos recebiam do
negro. E descobriu-se prestes a dizer: "Está tudo bem, está
tudo bem, não precisa se preocupar!" Mas, enquanto isso,
Jasper estava perguntando:
— Onde está Bert?
O jovem deu de ombros, indiferente, ainda sorrindo e não
parando por um instante sequer o vigoroso ataque aos
instrumentos. Jasper segurou Alice pela parte superior do
braço, apertando com força, e levou-a de volta ao vestíbulo,
onde ela comentou:
— Este lugar fede.
— Imagino que você vai dar um jeito nisso — disse ele, no
seu desajeitado modo apaziguador, que Alice sabia ser uma
manifestação intencional de amor.
Sentindo a vantagem, ela tratou de dizer, no mesmo
instante:
— Não se esqueça de que você tem vivido na moleza nos
últimos quatro anos. Não vai achar nada fácil depois disso.
— Não me chame de mole — disse ele, chutando-a no
tornozelo.
Não com força, é claro, mas apenas o suficiente para ela
sentir.
Dessa vez Alice seguiu na frente e abriu uma porta que
julgava ser a da cozinha. A luz iluminou a desolação. Pior do
que isso, o perigo: deparou com fios de eletricidade
arrancados das paredes e espalhados por toda parte,
desencapados. O fogão estava caído de lado no chão. As
janelas quebradas permitiam a passagem da água da chuva,
que se acumulava em poças por toda parte. Havia um
passarinho morto no chão. O cheiro era horrível. Alice
começou a chorar, de pura raiva.
— Filhos da puta! — murmurou ela. — Fascistas nojentos e
asquerosos!
Eles já sabiam que a prefeitura, a fim de evitar a possibilidade
de estranhos invadirem a casa e se instalarem, havia enviado
operários para tornar o lugar inabitável.
— Eles nem mesmo deixaram esses fios seguros. Nem
mesmo...
Subitamente cheia de energia, Alice virou-se e começou a
abrir portas. Dois banheiros naquele andar, os vasos
obstruídos com cimento. Ela continuou a murmurar
imprecações, as lágrimas escorrendo pelas faces.
— Os porcos de merda, os fascistas escrotos...
Era ódio que lhe proporcionava toda aquela energia. Estava
completamente incrédula, porque nunca fora capaz de
acreditar, em algum canto de sua mente, que alguém, ainda
mais um membro das classes operárias, pudesse obedecer a
uma ordem para destruir uma casa. Nesse canto de seu
cérebro, em que reinava uma incredulidade perpétua,
começou o monólogo que Jasper nunca ouvia, pois não o
teria autorizado: "Mas eles são pessoas. Foram pessoas que
fizeram tudo isso. Para impedir outras pessoas de viver. Não
posso acreditar. Quem poderiam ser? Como será que são?
Jamais conheci alguém que pudesse fazer uma coisa assim.
Ora, devem ter sido pessoas como Len, Bob e Bill, amigos.
Eles fizeram isso. Vieram aqui e encheram os vasos com
cimento, arrancaram todos os fios, bloquearam o gás".
Jasper estava parado, observando-a. Sentia-se satisfeito.
Aquela fúria de energia banira sua cara, a expressão de Alice
que ele tanto detestava, quando toda ela parecia inchada e
brilhando, como se não apenas o rosto mas o corpo inteiro
se enchesse de lágrimas, que vertiam de todos os poros.
Sem consultá-lo, ela subiu correndo a escada. Jasper seguiu-
a, devagar, ouvindo-a bater nas portas e depois, como não
houvesse resposta, abrindo-as bruscamente. Ali, no segundo
andar, havia a ordem, não o caos. Cada quarto tinha sacos de
dormir, um, dois ou três. Velas ou lampiões. Cadeiras com
mesinhas. Livros. Jornais. Mas nenhuma pessoa à vista.
O cheiro no andar era forte. Vinha lá de cima. Subiram ainda
mais devagar a escada generosamente larga e se
confrontaram com um fedor que levou Jasper a ter uma
momentânea ânsia de vômito. O rosto de Alice manteve-se
firme e orgulhoso. Ela abriu uma porta para um cenário de
baldes de plástico com merda até a borda. Mas parecia que
aquele quarto fora considerado devidamente cheio e haviam
iniciado o processo no que ficava ao lado. Cerca de dez
baldes vermelhos, amarelos e laranja estavam reunidos ali,
esperando.
Havia outros cômodos naquele andar, mas nenhum era usa-
do. Nem poderia, tão forte era o cheiro.
Eles desceram em silêncio, observando onde pisavam, pois
havia detritos por toda parte e era mínima a claridade que
entrava pelas janelas sujas.
— Não estamos aqui para ter conforto — declarou Jasper,
antecipando-se a qualquer comentário de Alice. — Não é
para isso que viemos.
Ela comentou:
— Não entendo como alguém pode optar por viver assim,
quando é tão fácil dar um jeito.
Agora ela parecia apática, esvaziada, extinta toda a
incandescência do acesso de fúria.
Jasper preparou-se para iniciar um discurso sobre as suas
inclinações burguesas, mas a porta da frente abriu-se antes
que tivesse tempo de começar. Um vulto de aparência
militar delineou-se contra a luz do sol.
— Bert! — exclamou ele, descendo o resto da escada de três
em três degraus. — Bert! Sou eu, Jasper...
Alice pensou maternalmente, escutando aquela voz tão ale-
gre: E por causa da porra do seu pai. Mas isso era parte de
suas reflexões particulares, já que Jasper obviamente não lhe
concedia o direito de acalentar tais pensamentos.
— Jasper — reconheceu Bert, erguendo os olhos em seguida
para fitá-la, na semi-escuridão.
— Alice... como eu lhe contei — murmurou Jasper.
— Camarada Alice — disse Bert, a voz brusca, firme e pura,
insistindo nos padrões.
A voz de Jasper acompanhou o ritmo quando ele informou:
— Acabamos de chegar. Não havia a quem nos apresen-
tarmos.
— Falamos com o cara que está lá dentro — comentou Alice,
terminando de descer a escada e indicando a sala de onde
vinha o tamborilar suave.
— Ah, Jim... — murmurou Bert, desdenhosamente.
Encaminhou-se para uma porta que os dois não haviam
inspecionado e abriu-a com um pontapé, já que não tinha
maçaneta; entrou na sala, sem olhar para verificar se eles o
seguiam.
Era uma sala quase normal. Com a porta fechada, dava até
para imaginar que era a sala de estar de uma casa comum,
embora tudo ali — cadeiras, um sofá, o tapete — estivesse
sujo e encardido. O mau cheiro parecia quase excluído, mas
Alice tinha a sensação de que uma película invisível de fedor
grudara em tudo e o contato seria escorregadio, se seus
dedos encostassem em qualquer coisa.
Bert parou, empertigado, um pouco inclinado para a frente,
observando-a. Mas Alice sabia que ele não a via. Era more-
no, magro, provavelmente com vinte e oito ou trinta anos.
Seu rosto estava coberto por cabelos pretos reluzentes, entre
os quais brilhavam a boca vermelha e os dentes brancos.
Usava uns jeans novos azul-marinho e um blusão azul-
escuro bastante apertado, todo abotoado e imaculado. Jasper
estava com uma calça de linho azul-clara e uma camisa
listrada, como a de um marinheiro; mas Alice sabia que em
breve ele estaria com roupas como as de Bert, que eram na
verdade a sua indumentária habitual. Jasper tivera um breve
flerte com a frivolidade, por alguma influência.
Alice sabia que os dois homens começariam a conversar ago-
ra, sem se preocuparem com ela. Contentou-se em ficar
zelando por seus interesses, enquanto olhava pela janela
grande que dava para o jardim, onde detritos de todo tipo se
amontoavam até a altura do peitoril. Pardais estavam
ocupados na pilha, escavando e procurando. Um pássaro
preto estava empoleirado numa caixa de leite, olhando em
sua direção. Além dos passarinhos, avistou um gato
descarnado, agachado sob uma hortênsia, com folhas verdes
ainda novas e botões rosa e azuis, que em breve seriam
flores. O gato também a observava, com olhos brilhantes e
famintos.
Bert foi até um armário e pegou uma garrafa térmica do
tamanho de um balde e três canecas.
— Quer dizer que tem eletricidade aqui? — perguntou Alice.
— Não. Um camarada da rua seguinte enche para mim todas
as manhãs.
Observando a cena com metade de sua atenção, reparou co-
mo Jasper olhava para a garrafa térmica e o café sendo
servido. Sabia que ele estava morrendo de fome. Por causa
da briga com a mãe dela, Jasper saíra da casa furioso, sem
comer nada no desjejum. E não tivera tempo de tomar o café
que ela lhe levara. Alice pensou: Esse deve ser o suprimento
de Bert para o dia inteiro. Ela indicou que queria apenas
metade de uma caneca. E Bert serviu-a exatamente de
acordo com sua especificação.
Jasper tomou logo todo o café e ficou olhando para a garrafa
térmica, querendo mais. Bert não notou.
— A situação mudou — começou Bert, como se fosse a
continuação de alguma reunião anterior. — Minha análise
estava incorreta, como se pôde constatar. Subestimei a
maturidade política dos quadros. Quando submeti a questão a
votação, a metade decidiu contra e saiu daqui
imediatamente.
Jasper declarou:
— Teriam demonstrado que não mereciam confiança. Boa
viagem para todos.
— Exatamente.
— Qual era a questão? — indagou Alice.
Ela usou a sua "voz de reunião", pois já aprendera que isso
era necessário, se queria sair-se bem. Soava-lhe falsa e fria,
sempre a deixava constrangida; por causa do esforço que isso
exigia, ela parecia indiferente, até mesmo distraída. Contudo,
seus olhos absorviam a cena à sua frente com firmeza e
atenção: Bert olhando para ela, ou melhor, para o que
acabara de dizer; Jasper olhando para a garrafa térmica.
Abruptamente, ele não foi mais capaz de se conter e
inclinou-se para a garrafa. Bert empurrou-a em sua direção,
murmurando:
— Desculpe.
— Você sabe qual era a questão — disse Jasper, em tom
áspero. — Eu lhe contei. Vamos nos juntar ao IRA.
— Está querendo dizer que vocês votaram se deviam ou não
se juntar ao IRA?
— Por que não procuramos a prefeitura? — indagou Alice,
irritada.
Jasper murmurou:
— Ela já vai começar mais uma vez...
A porta se abriu e uma moça entrou. Tinha cabelos pretos
curtos e brilhantes, cortados com elegância, olhos negros
irrequietos, lábios vermelhos e uma pele muito branca. Era
firme e reluzente como uma cereja fresca. Olhou
atentamente para Bert, Jasper e Alice, que sentiu que estava
sendo vista de fato.
— Sou Pat — anunciou ela. — Bert me falou sobre vocês
dois. — Uma pausa. — São irmãos?
Jasper se apressou em protestar, a voz um tanto áspera:
— Não, não somos!
Mas Alice gostava quando as pessoas cometiam o erro e
comentou:
— Muitas vezes nos tomam por irmãos.
Pat tornou a examiná-los. Jasper ficou nervoso sob a inspe-
ção e desviou o rosto, as mãos nos bolsos do casaco, como se
tentasse parecer indiferente a um ataque.
Os dois eram louros, com reflexos avermelhados nos cabe-
los, que tendiam a se dispor em anéis e mechas. Os de Jasper
eram muito curtos, os de Alice um pouco menos curtos,
cheios e fáceis de arrumar. Ela mesma os cortava. Ambos
tinham pele rosada e sardenta. Os pequenos olhos azuis de
Jasper fixavam- se em brancos redondos e rasos, o que lhe
dava uma aparência de franqueza, angelical. Era muito magro
e usava roupas bem justas. Alice era corpulenta e tinha uma
aparência atarracada, informe. Às vezes uma garota de doze
anos, até de treze, antes de ser iluminada pela puberdade,
mostra-se como será na meia- idade. Um grupo de mulheres
está parado na plataforma do metrô. Mulheres de meia-
idade, com sacolas de compras, conversando. Mulheres
muito baixas, não é? Não. São meninas, de doze anos ou por
aí. Quarenta anos sendo mulher vão transcorrer e deixá-las
como são agora, corpulentas e cautelosas, ansiosas por
agradar.
Alice podia parecer uma garota gorducha e desajeitada ou, às
vezes, uma mulher de cinqüenta anos, mas nunca
aparentava a sua idade, que era trinta e seis anos. Agora foi a
garota quem retribuiu o olhar de Pat, com curiosidade
amistosa, através de olhos azul-cinzentos, sob sobrancelhas
ruivas.
— Já soube que esta pequena e feliz comunidade está se
desfazendo? — indagou Pat, encaminhando-se para a janela,
a fim de ficar ao lado de Alice.
Ela parecia muito mais velha do que Alice, mas era dez anos
mais moça. Ofereceu um cigarro a ela, que foi recusado;
fumou o seu com necessidade, vorazmente.
— Já, sim, e indaguei: Por que não negociar com a prefeitura?
— Ouvi seu comentário. Mas eles preferem a miséria
romântica.
— Romântica... — repetiu Alice, com evidente desdém.
Alice parecia aturdida. Bert achou que era medo e declarou,
com um desdém sonoro e frio:
— Eles ficaram com o maior cagaço. E fugiram como coelhos
apavorados.
Alice insistiu:
— Como foi formulada a votação?
Depois de uma pausa, Bert respondeu:
— Que este grupo deveria procurar a liderança do IRA e
oferecer nossos serviços como uma organização sediada na
Inglaterra.
Alice digeriu a informação por um momento, parecendo
tensa devido ao esforço, pois lhe custava acreditar. Então,
comentou:
— Mas Jasper me disse que esta casa era da União do Centro
Comunista.
— Correto. Esta é uma casa ocupada pela UCC.
— A liderança da UCC decidiu oferecer todos os seus ser-
viços ao IRA? Não consigo entender!
Alice falou com veemência, não de todo em sua voz "polí-
tica". Bert respondeu bruscamente, porque estava
contrafeito, como ela bem podia perceber:
— Não.
— Então como pode um setor da UCC oferecer seus servi-
ços?
Ela observou nesse momento que Jasper procurava atrair a
atenção de Bert com sua expressão de "Não dê importância a
ela" e tratou de se antecipar, acrescentando:
— Não tem sentido.
— De certa forma, você está correta — admitiu Bert. — O
ponto foi discutido. Ficou combinado que o contato não
poderia ser feito como uma representação oficial da UCC,
mas seria permitido que um grupo de membros assumisse a
iniciativa, como indivíduos associados.
— Mas...
Alice perdeu o interesse. Lá vão eles de novo, pensou ela.
Fazendo besteira. Tornou a concentrar sua atenção na pilha
de lixo um metro além da janela. O pássaro preto
desaparecera. O pobre gato farejava pelas beiras da pilha, por
onde as moscas zumbiam.
— O que se come por aqui? — perguntou ela.
— Só comida de fora.
— O lixo lá fora é um risco para a saúde. Deve haver ratos.
— Foi o que a polícia disse.
— A polícia?
— Estiveram aqui ontem à noite.
— Ahn... Então foi por isso que os outros resolveram ir
embora.
— Não foi, não — garantiu Bert. — Eles foram embora por-
que ficaram com cagaço. Por causa do IRA.
— O que a polícia disse?
— Eles nos deram quatro dias para sair daqui.
— É contra a natureza negociar com o sistema — protestou
Bert.
— Quer dizer que esta comuna está se dissolvendo? —
perguntou Jasper abruptamente.
Ele parecia tão garotinho que Alice apressou-se em olhar
para os outros, a fim de verificar se alguém percebera. A
atitude fora notada: por Pat, que levava o cigarro aos lábios
entre dois dedos, depois afastava, tornava a aproximar, a fim
de poder tragar e soprar a fumaça, tragar e soprar a fumaça.
Olhando para Jasper. Fazendo seu diagnóstico.
Alice tratou de falar, o coração invadido por uma ansiedade
suave e familiar, por causa de Jasper:
— Não é contra a minha natureza. Já fiz isso várias vezes.
— É mesmo? — disse Pat. — Eu também. Onde foi?
— Em Birmingham. Éramos sete e procuramos a prefeitura
para nos instalar numa casa. Pagávamos as contas de luz, gás
e água. Ficamos lá por treze meses.
— Bom para você.
— E em Halifax fiquei numa casa abandonada com autori-
zação da prefeitura durante seis meses. E quando eu vivia em
Manchester... no tempo em que estava na universidade...
havia uma casa cheia de estudantes, pelo menos uns vinte.
Começou com uma casa invadida, a prefeitura chegou a um
acordo e acabou como pensão estudantil.
Os dois homens limitaram-se a ouvir essa conversa, sua
conferência suspensa. Jasper tornou a encher a caneca. Bert
indicou a Pat que a garrafa térmica estava vazia, mas ela
limitou-se a sacudir a cabeça, prestando atenção a Alice.
— Por que não procuramos a prefeitura? — indagou Alice,
dirigindo-se diretamente a Pat.
— Eu faria isso, mas estou indo embora.
Alice reparou que Bert se empertigava, embora continuasse
sentado, furioso e calado. Pat acrescentou para ele:
— Eu disse a você ontem à noite que ia embora.
Alice já chegara à conclusão de que o problema era mais do
que político. Havia um relacionamento pessoal que estava se
rompendo por causa de alguma divergência política! Todos
os seus instintos repudiavam tal decisão.
Pensou, involuntariamente: Mas que absurdo deixar que a
política interfira em um relacionamento pessoal! Não era
assim que ela pensava: não teria resistido, se fosse desafiada.
Mas pensamentos similares muitas vezes passavam por sua
cabeça. Pat disse a Bert, que estava com o rosto parcialmente
desviado:
— O que você esperava? Numa reunião ordinária como
aquela... dois caras que eram de fora, nada sabíamos a respei-
to deles. E também não sabíamos nada sobre o casal que
chegou na semana passada. Jim estava na sala e ele nem
mesmo é da UCC. E de repente aquela resolução é submetida
a votação.
— Não foi de repente.
— Quando discutimos antes, resolvemos fazer contatos
individuais. Debater o problema com cada um, tomando
todas as precauções.
A voz de Pat estava impregnada de desprezo. Ela olhava para
seu amante — presumivelmente — como se ele fosse algo
que devia ser jogado logo na lata de lixo.
— Seja como for, você mudou de idéia — declarou Bert, os
lábios vermelhos brilhando em fúria no meio da barba. —
Havia concordado que o apoio ao IRA era a posição lógica
para esta etapa.
— É a única atitude correta — interveio Jasper. — A Irlanda
é o fulcro do ataque imperialista.
— Não mudei de idéia — protestou Pat. — Mas se vou
trabalhar com o IRA ou qualquer outra organização, tenho
de saber com quem estou operando.
— Você não nos conhece — lembrou Alice, com uma pon-
tada de compreensão angustiada de que ela e Jasper eram
parte do motivo do rompimento daquele casal.
— Sem ressentimentos — disse Pat. — Não há nada de
pessoal. Mas é verdade. Só ouvi falar de vocês quando Bert
contou que se encontrara com Jasper no comício de sábado.
E aposto que Bert nem conheceu você.
— Não, não conheceu — confirmou Alice.
— Lamento muito, mas não é assim que se deve agir.
— Entendo o seu ponto de vista — murmurou Alice.
Silêncio. As duas mulheres continuaram paradas ao lado da
janela, envoltas pela nuvem aromática do cigarro de Pat. Os
dois homens estavam sentados em cadeiras, no meio da sala.
O barulho parecido com chuva dos tambores de Jim ainda
soava no outro lado do vestíbulo. Alice perguntou:
— Quantas pessoas restam aqui, agora?
Pat não respondeu, e Bert finalmente informou:
— Contando com vocês dois, sete. — Uma pausa e ele
acrescentou: — Não sei sobre você, Pat.
— Sabe, sim — respondeu ela, ríspida e fria.
Mas os dois estavam agora se fitando, e Alice pensou: Não
será fácil eles se separarem. Ela disse:
— Se somos sete, então quatro de nós se encontram aqui
neste momento. Cinco, se Pat... Onde estão os outros dois?
Quero chegar a um acordo para eu poder procurar a
prefeitura.
— Os vasos estão cheios de cimento, os fios de eletricidade
foram arrancados, os canos esmagados — disse Bert, em tom
de desdém crescente.
— Não é difícil endireitar tudo — garantiu Alice. — Fizemos
isso em Birmingham. A prefeitura deixou a casa em ruínas
para que ninguém a ocupasse. Arrancaram os vasos. E todos
os canos. Encheram a banheira com cimento. Havia lixo
empilhado nos cômodos. Limpamos tudo.
— E quem vai pagar? — indagou Bert.
— Nós.
— Com que dinheiro?
— Daremos um jeito — interveio Pat. — Custa muito mais
correr de um lado para outro para filar banheiros do que
pagar as contas de luz e gás.
— E um argumento — disse Bert.
— E a polícia não ficaria de olho na gente — arrematou
Alice.
Silêncio. Ela sabia que algumas pessoas — e desconfiava de
que Bert era assim, mas não Pat — lamentariam saber disso.
Adoravam as confrontações com a polícia. Inesperadamente,
Bert declarou:
— Se pretendemos desenvolver nossa organização, não va-
mos querer a atenção da polícia.
— Tem toda a razão — concordou Pat. — E o que eu sempre
disse.
Silêncio outra vez. Alice compreendeu que tudo estava agora
em suas mãos. E ressalvou:
— Só tem um problema. Nesta comunidade eles exigem o
nome de alguém para garantir o pagamento das contas de luz
e gás. Quem está empregado?
— Três dos camaradas que foram embora ontem à noite
estavam.
— Camaradas! — exclamou Bert. — Uns oportunistas de
merda!
— Eram bons e honestos comunistas — insistiu Pat. —
Acontece apenas que não querem trabalhar com o IRA.
Bert começou a se sacudir numa teatral risada silenciosa, e
Jasper acompanhou-o.
— Ou seja, estamos todos vivendo da previdência social —
comentou Alice.
— O que significa que não adianta procurar a prefeitura —
acrescentou Bert.
Alice hesitou por um instante, mas acabou dizendo, an-
gustiada:
— Eu poderia pedir à minha mãe...
Jasper explodiu numa risada rouca, que deixou seu rosto
vermelho.
— A mãe dela, uma porca burguesa...
— Cale essa boca! Estamos vivendo com minha mãe há qua-
tro anos — explicou Alice, numa voz ofegante e controlada,
que lhe parecia agressivamente fria e hostil. — Quatro anos.
Burguesa ou não.
— Arranque tudo o que puder da classe média rica — disse
Jasper. — Tudo e mais alguma coisa. E assim que eu penso.
— Está bem, está bem — murmurou Alice. — Concordo.
Mas ela nos sustentou por quatro anos. — Depois, capitulou.
— E por que não deveria? Afinal, é minha mãe.
A última frase foi pronunciada em voz débil, trêmula e
angustiada.
— E isso mesmo — disse Pat, examinando-a curiosa. — Mas
não adianta pedir à minha. Há anos que não a vejo.
— Muito bem — disse Bert, levantando-se subitamente e in-
do se postar na frente de Pat, em atitude de desafio. — Quer
dizer que você não vai mais embora?
— Precisamos discutir o assunto, Bert — ela se apressou a
ressalvar.
Pat se adiantou e parou diante de Bert, fitando-o nos olhos.
Ele passou o braço por seus ombros e os dois saíram.
Alice correu os olhos pela sala. Observando tudo. Fora uma
sala de estar de uma família. Confortável. A pintura não
estava tão ruim assim; as cadeiras e o sofá provavelmente
continuavam nos mesmos lugares em que estavam antes.
Havia uma lareira, que nem mesmo fora tapada.
— Vai mesmo pedir à sua mãe? Vai falar com ela para ser
nossa fiadora? — Jasper parecia desolado. — E quem vai
pagar os consertos?
— Pedirei aos outros para contribuírem.
— E se eles não quiserem? — indagou Jasper sabiamente,
partilhando experiência, num momento cordial.
— Alguns não vão querer, e sabemos disso. Mas daremos um
jeito. Sempre damos, não é?
Mas isso era um apelo muito direto à intimidade, e no mes-
mo instante ele recuou para a posição crítica.
— E quem vai fazer todo o trabalho?
Era o que ele vinha dizendo há catorze anos. Quinze anos.
Na casa em Manchester que partilhara com quatro outros
estudantes, Alice fora a encarregada de tudo, cuidando da
cozinha e das compras, providenciando a arrumação. Ela
adorava. Tirara seu diploma, mas nem mesmo tentara
arrumar emprego. Ainda estava na casa quando chegara a
nova leva de estudantes, e ficara para cuidar deles. Fora
assim que Jasper a conhecera, ao aparecer uma noite para o
jantar. Ele não era mais estudante, formara-se sem qualquer
distinção e fracassara em seus esforços meio desanimados
para conseguir um trabalho. Permanecera na casa, não
vivendo ali formalmente, mas como um "hóspede" de Alice.
Afinal, fora somente graças ao empenho de Alice que a casa
se tornara uma pensão estudantil; antes, era uma casa
abandonada que fora invadida. E Jasper não ia embora. Alice
sabia que ele se tornava extremamente dependente dela. Mas
já naquele tempo e desde então Jasper se queixava de que ela
não passava de uma criada, desperdiçando sua vida a servir
aos outros. Ao se mudarem de uma casa para outra, de uma
comuna para outra, o padrão persistira: ela cuidava de Jasper
e ele protestava que as outras pessoas a exploravam.
Ele dissera a mesma coisa até na casa da mãe de Alice:
— Ela está apenas explorando você. Obrigando-a a cozinhar e
fazer as compras. Por que se sujeita a esse papel?
Agora, Alice anunciou:
— Temos quatro dias. Vou começar a agir.
Não olhou para Jasper, passando por ele e saindo para o
vestíbulo. Levou sua mochila para a sala em que Jim tocava
os tambores e disse:
— Fique de olho nisso para mim, camarada. — Ele acenou
com a cabeça e Alice acrescentou: — Se eu conseguir
permissão da prefeitura para vivermos aqui, você vai
contribuir para as despesas?
As mãos se afastaram dos tambores. O rosto redondo e afável
assumiu uma expressão de pesar e ele comentou:
— Eles dizem que eu não posso ficar aqui.
— Por que não?
— Só porque não me meto com política. Quero apenas viver.
— Uma pausa e Jim acrescentou, em tom de incredulidade:
— Mas cheguei aqui primeiro. Antes de qualquer um de
vocês. Esta casa era toda minha. Eu a descobri. E disse a todo
mundo: Pode vir, cara, pois é o Palácio da Liberdade.
— Isso não é justo — concordou Alice.
— Eu já estava aqui há oito meses. Isso mesmo, oito meses. A
polícia não sabia. Ninguém sabia. Eu me mantinha limpo e
cuidava de minha própria vida, mas de repente...
Ele estava chorando. Lágrimas brilhantes escorriam pelas
faces negras e pingavam no tambor maior. Limpou-as com o
lado da palma.
— Continue por aqui e incluirei o problema na agenda da
próxima discussão — decidiu Alice.
Ao sair da casa, ela pensava: Todos aqueles baldes de merda
lá em cima devem ter sido enchidos por Jim. Ou quase
todos. E também pensou: Se eu não mijar, vou acabar
estourando... Porém não tinha coragem de subir e usar um
daqueles baldes. Foi para o metrô, pegou um trem para uma
estação que tinha banheiros decentes e usou-os. Lavou o
rosto, escovou os cabelos e foi para a estação da mãe, onde
entrou na fila de uma cabine telefônica.
Três horas depois de ter saído da casa a gritar insultos, ela
ligou para a mãe.
— Oi, mãe. Aqui é Alice.
Silêncio.
— Sou eu, Alice.
Uma pausa.
— O que você quer?
A voz apática, sem qualquer inflexão. Empenhada na
necessidade de superar os obstáculos por conta de todos,
Alice disse:
— Preciso conversar com você, mamãe. Encontramos uma
casa. Eu poderia obter uma licença da prefeitura para
ficarmos lá, numa base temporária e controlada... como em
Manchester, entende? Mas precisamos de uma pessoa para
ser fiadora das contas de luz e gás.
Ela ouviu um murmúrio inaudível e depois:
— Não acredito!
— Só estamos querendo a sua assinatura, mamãe. Vamos
pagar tudo.
Um silêncio, em seguida um suspiro ou um ofego, depois a
linha ficou muda.
Alice, agora fervendo com uma raiva intensa, tornou a dis-
car. Ficou escutando o barulho da campainha, imaginando a
cozinha em que estava tocando, a cozinha grande e
aconchegante, as janelas altas e faiscando (ela as limpara na
semana passada, com a maior satisfação), a mesa comprida à
qual a mãe estava sentada naquele momento, tinha certeza.
Depois de cerca de três minutos, a mãe atendeu e disse:
— Sei que não vai adiantar, Alice, mas falarei assim mesmo.
Mais uma vez. Tenho de sair daqui. Está me entendendo?
Seu pai não quer mais pagar as contas. E não tenho
condições de continuar a morar aqui. Terei dificuldades para
pagar as minhas próprias contas. Está me entendendo?
— Mas você tem uma porção de amigas ricas.
Outro silêncio. Então, Alice começou, em tom maternal,
gentil, de quem fazia um sermão:
— Por que você não é como a gente, mamãe? Nós partilha-
mos o que temos. Ajudamos uns aos outros quando
deparamos com problemas. Será que não percebe que seu
mundo está liquidado? Os tempos da burguesia rica e egoísta
acabaram. Vocês estão condenados...
— Não duvido disso — declarou a mãe de Alice, o que
redespertou na filha o sentimento de mais pura afeição, pois
lá estava outra vez o tom de ironia familiar e confortador,
desaparecendo a horrível apatia e o vazio. — Mas você
precisa compreender que seu pai não está mais disposto a
partilhar seus ganhos indecorosos com Jasper e todos os
amigos dele.
— Pelo menos ele está disposto a reconhecer que são
indecorosos.
Um suspiro.
— Vá embora, Alice — disse a mãe. — Simplesmente suma.
Não quero mais vê-la. Não quero ter notícias suas. Procure
compreender que não pode dizer às pessoas as coisas que me
falou esta manhã e depois aparecer como se nada tivesse
acontecido, com um sorriso jovial, pedindo mais um favor.
A linha ficou muda.
Alice estava atordoada com o choque. Sua cabeça
transbordava com sombras e luzes estonteantes. Alguém
atrás dela na fila disse:
— Se já acabou...
O homem empurrou-a para o lado e começou a discar.
Alice deixou a estação e ficou vagueando a esmo pela área ao
redor, agora cercada por ferro corrugado. Até bem pouco
tempo atrás ali funcionara uma feira livre, com incontáveis
pessoas vendendo e comprando. Ela própria se instalara ali
no verão passado; primeiro vendera bolos, biscoitos e doces,
depois sopa quente e sanduíches. Comida apropriada, tudo
de trigo integral e açúcar mascavo, legumes cultivados sem
inseticidas. E tudo preparado na cozinha da mãe. Mas depois
a prefeitura fechara a feira. Para construir mais um de seus
enormes prédios, aqueles porras daqueles elefantes brancos
que ninguém queria, a não ser as pessoas que ganhavam
lucros fabulosos com a construção. Corrupção por toda
parte. Chorando alto, debulhada em lágrimas, Alice passou
cambaleando para o outro lado da cerca de ferro, como uma
cerca de campo de concentração; e pensar que ainda no
verão passado...
Um apito soou estridentemente. Alguma fábrica... uma hora
da tarde. E ela ainda não fizera coisa alguma... Parada nos
degraus compridos e rasos que levavam à biblioteca pública,
enxugou os olhos e fez com que olhassem para fora e não
mais para dentro. Era um lindo dia. O sol estava brilhando.
Nuvens brancas corriam pelo céu, e o azul parecia
deslumbrante e promissor.
Voltou à cabine telefônica na estação de metrô e ligou para o
escritório do pai, pela linha particular.
Ele atendeu no mesmo instante.
— Aqui é Alice.
— A resposta é não.
— Nem sabe o que eu ia dizer.
— Pode falar.
— Quero que seja o fiador das contas de luz e gás de uma
casa abandonada que pretendemos ocupar.
— Não.
Ela desligou, a ira ardente voltando. Sua energia levou-a para
a rua. Subiu a avenida até um prédio grande, um pouco
recuado, com alguns degraus. Foi até a porta e ficou
apertando a campainha até que uma voz de mulher, não a
que esperava, disse:
— Sí?
— Puta merda, a empregada! — exclamou Alice. — Onde
está Theresa?
— Está trabalhando.
— Deixe-me entrar.
Alice empurrou a porta ao som da campainha, quase caiu ao
entrar no saguão, subiu quatro lances de escada atapetados
até uma porta em que uma mulher morena, baixa e
atarracada, a esperava.
— Quero entrar — disse Alice, com veemência,
empurrando-a para o lado.
A espanhola não disse nada, apenas ficou parada, atordoada,
tentando encontrar as palavras certas.
Alice foi para a sala de estar em que estivera tantas vezes
com sua amiga Theresa, sua amiga desde que ela, Alice,
nascera, a gentil e adorável Theresa. Uma sala grande,
tranqüila e ordenada, as janelas grandes dando para os
jardins... Parou, ofegando. Vou arrancar esses quadros e
vender, pensou. Vou levar esses pequenos netsukes. Quanto
será que valem? Vou quebrar tudo...
Alice pegou o telefone e ligou para o escritório. Theresa
estava em reunião.
— Chame-a — ordenou ela. — Imediatamente. E uma
emergência. Avise que é Alice.
Ela não tinha a menor dúvida de que Theresa atenderia, e foi
o que aconteceu.
— O que foi, Alice? Qual é o problema?
— Quero que seja a fiadora de uma casa abandonada que
pretendemos ocupar. Não, não precisa pagar nada. Quero
apenas a sua assinatura.
— Estou no meio de uma reunião, Alice.
— Estou cagando para a sua reunião. Quero que você seja a
fiadora de nossas contas de luz e gás.
— Você e Jasper?
— Isso mesmo. E mais alguns outros.
— Lamento, minha cara, mas a resposta é não.
— Qual é o problema com Jasper? Por que você está se
comportando assim? Por quê? Ele é tão bom quanto você.
Theresa declarou, calma e jovial como sempre:
— Não, Alice, ele não é tão bom quanto eu. Muito ao
contrário. E justamente esse o problema. Mas eu posso lhe
dar cinqüenta libras, se quiser aparecer.
— Já apareci. Estou no seu apartamento. Mas não quero o seu
dinheiro nojento.
— Sendo assim, minha cara, lamento muito.
— Você gasta cinqüenta libras num vestido. Numa refeição.
— E você partilhou a última refeição, não é? Mas já chega
dessa bobagem. Desculpe, estou muito ocupada. Todos os
compradores estão aqui.
— Não tem nada de bobagem. Quando você me viu gastar
cinqüenta libras numa refeição? Se minha mãe quer gastar
cinqüenta libras de comida com todas aquelas suas amigas
ricas escrotas e eu cozinho, isso não significa...
— Se você quiser aparecer para conversar esta noite, Alice,
será bem-vinda. Mas terá de ser bem tarde, pois ficarei
trabalhando pelo menos até as onze horas.
— Você... você... você não passa de uma rica de merda —
murmurou Alice, subitamente apática.
Desligou e já se preparava para ir embora quando se lembrou
de uma coisa. Foi ao banheiro e se aliviou, tornou a lavar o
rosto, com todo o cuidado, escovou os cabelos. Estava com
fome. Foi para a cozinha e preparou um sanduíche
reforçado. Lisa seguiu-a e ficou parada à porta, observando,
de mãos cruzadas sobre o cabo de um espanador, como em
oração. Um rosto moreno, paciente, cansado. Sustentava a
família em Valencia, dissera a Theresa. Ficou olhando Alice
comer o salame e o patê com grossas fatias de pão. E
continuou a olhar enquanto Alice inspecionava a geladeira e
tirava uma sobra de arroz temperado, que comeu com uma
colher, de pé. Ao se retirar, Alice disse:
— Ciao.
Ouviu a resposta enquanto saía:
— Buenos dias, senorita.
Havia alguma coisa naquela voz, um tom de crítica, que
tornou a atear a raiva de Alice. Desceu correndo a escada e
saiu para a rua.
Já passava de duas horas da tarde.
Seus pensamentos turbilhonavam. Jasper... por que eles o
odiavam tanto? Era porque tinham medo dele. Medo de sua
verdade... Percebeu que se encaminhara para um ponto de
ônibus e que o ônibus a levaria à prefeitura. Embarcou,
subitamente fria, concentrada e cuidadosa.
Começou a ensaiar mentalmente suas negociações anteriores
bem-sucedidas. Sabia que muita coisa dependeria da pessoa
com quem falasse... sorte... Tivera sorte antes. E, além do
mais, o que ia sugerir era razoável, no melhor interesse de
todos, os contribuintes, o público em geral.
Na vasta sala, repleta de mesas, pessoas e telefones, Alice
sentou em frente a uma moça, mais jovem do que ela.
Compreendeu no mesmo instante que estava com sorte. No
lado esquerdo do peito de Mary Williams estava um button
de "Salvem as baleias!" O desenho alegre do animal fez com
que Alice se sentisse terna e protetora. Mary Williams era
uma boa pessoa. Como ela, como Jasper, como todos os seus
amigos. Ela se importava com as coisas.
Alice deu o endereço da casa, confiante, e enunciou sua
intenção. Ficou esperando, enquanto a moça apertava alguns
botões. A informação veio logo.
— Está marcada para demolição — informou Mary Williams.
Ela ficou sorrindo. Não havia mais nada a dizer. Alice não
esperava por isso. E descobriu que não era capaz de falar. Era
a angústia que a dominava, mas transformando-se
lentamente em raiva. O rosto que Mary Williams
contemplava logo estava estufando e brilhando, o que a
levou a balbuciar, contrafeita:
— Mas... mas... o que houve?
— Não pode ser demolida... não pode... — murmurou Alice,
a voz vazia, apática. E no instante seguinte a raiva preva-
leceu. — É uma casa maravilhosa! Perfeita! Como podem
demoli-la? E um escândalo!
— Sei que algumas vezes...
Mary Williams suspirou. Seu olhar para Alice era uma sú-
plica para que não fizesse uma cena. Alice percebeu e
compreendeu que as cenas não eram raras naquela mesa.
— Deve ter havido algum engano — disse ela. — Tenho
certeza de que não destroem casas como aquela... Por acaso
a conhece? E uma boa casa. Um bom lugar.
— Acho que planejam construir no terreno um prédio de
apartamentos.
— Mas é claro! O que mais poderia ser?
As duas mulheres riram, os olhos se encontrando.
— Espere um instante — disse Mary Williams.
Levando o papel com as estatísticas vitais da casa, ela foi
conferenciar com um homem que ocupava uma mesa na
extremidade da sala. Voltou pouco depois e disse:
— Tem havido uma porção de reclamações sobre o estado da
casa. Inclusive da polícia.
— Está mesmo uma nojeira — concordou Alice. — Mas
poderíamos limpar num instante.
Mary acenou com a cabeça. — Continue! — E sentou,
rabiscando um papel enquanto Alice falava.
E Alice falou. Sobre a casa. Seu tamanho, solidez, situação.
Disse que toda a estrutura estava intacta, exceto por algumas
telhas faltando. Disse que era preciso muito pouco para
torná- la habitável. Falou sobre a casa abandonada em
Birmingham e o acordo de ocupação que fizera lá; sobre
Manchester, onde um cortiço marcado para demolição fora
salvo e se tornara uma pensão para estudantes oficialmente
reconhecida.
— Não estou dizendo que isso não poderia acontecer aqui —
murmurou Mary.
Ela ficou pensando, a caneta esferográfica em ação numa
estrutura de células, como uma colméia. Alice adivinhara.
Mary era uma boa pessoa, estava do lado deles. E verdade
que Mary não era o seu estilo, de saia escura, blusa branca
engomada, o sutiã contornando os seios modestos, onde a
baleia balançava, a cauda erguida para o céu, preta sobre o
mar azul. Mesmo assim, os cabelos escuros de Mary, caindo
em cachos sobre a testa, e as mãos roliças e brancas faziam
com que Alice se sentisse confortada e segura. Sabia que se
Mary pudesse fazer alguma coisa, tudo acabaria bem.
— Espere um minuto — disse Mary, e foi outra vez
conferenciar com o colega.
O homem agora lançou um longo olhar de inspeção a Alice,
que continuou sentada, confiante. Sabia como parecia: a lin-
da filha de sua mãe, cabelos curtos e crespos, bem-
escovados, rosto alvo e rosado, um pouco sardento, olhos
francos, azul- cinzentos. Uma moça de classe média, com
sua segurança, seu conhecimento das coisas, sentada com
decoro; e se usava uma túnica militar azul, por baixo havia
uma blusa estampada em branco e rosa. Mary Williams
voltou e anunciou:
— Haverá uma decisão sobre as casas na próxima quarta-
feira.
— A polícia nos deu quatro dias para sair de lá.
— Nesse caso, creio que não podemos fazer nada.
— Tudo o que precisamos é de uma declaração, por escrito,
de que o assunto está sendo estudado, para mostrar à polícia.
Mais nada.
Mary Williams não disse nada. Por sua postura e por seus
olhos — que não fitavam Alice —, ficou patente que, no
final das contas, ela era muito jovem e provavelmente tinha
medo de perder o emprego.
Alice podia perceber que havia ali alguma espécie de confli-
to: era mais do que uma funcionária que às vezes não gostava
do que tinha de fazer. Alguma coisa pessoal fervilhava em
Mary Williams, dando-lhe uma expressão obstinada e
furiosa. Ela levantou-se e foi procurar pela terceira vez o
homem cuja função era dizer sim e não. Ao voltar, Mary
Williams disse, falando por seu colega:
— Quero que compreenda que a carta diria apenas que a casa
está na pauta da reunião de quarta-feira.
Alice indagou, inspirada:
— Por que não vai visitá-la? Você e...?
— Bob Hood. E ele que...
— Eu sei, eu sei — interrompeu-a Alice. — Por que vocês
dois não vão conhecer a casa?
— Acho que Bob já visitou as casas, mas há algum tempo.
Talvez devêssemos mesmo ir...
Mary estava escrevendo as palavras que salvariam a casa,
Alice tinha certeza. Por todo o tempo que Alice e os outros
precisassem. Talvez para sempre... por que não? O pedaço de
papel foi metido num envelope com o timbre da prefeitura e
Alice recebeu-o.
— Tem telefone na casa?
— Foi arrancado.
Alice já ia descrever o estado da casa: cimento nos vasos, fios
elétricos soltos, todo o resto. Mas o instinto lhe disse que era
melhor não o fazer. Sabia que Mary ficaria tão furiosa e
repugnada quanto qualquer pessoa normal pelos danos
deliberados, mas estes haviam sido causados pelas
autoridades, e aquela moça era uma autoridade. Não se devia
fazer coisa alguma para provocar a besta implacável que era a
burocracia.
— Quando devo lhe telefonar? — perguntou ela.
— Na quinta-feira.
Era o dia em que a polícia dissera que eles seriam expulsos da
casa.
— Estará aqui na quinta-feira?
— Se eu não estiver, pode falar com Bob.
Mas Alice sabia que as coisas não correriam tão bem com
Bob.
— E uma questão de rotina — explicou Mary Williams. —
Ou vão demolir as casas imediatamente ou adiarão a decisão.
Já adiaram várias vezes.
Foi nesse instante que ela ofereceu a Alice o sorriso da
cumplicidade e arrematou:
— Boa sorte.
— Obrigada. Até breve.
Alice foi embora. Eram apenas cinco horas da tarde. Em um
dia, ela conseguira. Em oito horas.
Tudo estava em movimento na suave tarde de primavera, as
nuvens claras, as folhas novas, as superfícies tremeluzentes
dos gramados; e quando chegou à sua rua, encontrou-a
repleta de crianças, gatos e jardineiros. A cena de
prosperidade e tranqüilidade suburbanas provocou-lhe um
ímpeto de violento desdém, como uma ameaça secreta a
tudo o que via. Ao mesmo tempo, paralela a essa emoção,
mas sem afetá-la, havia outra corrente, de desejo, anseio.
Alice parou na calçada. Do alto de sua casa, um jato amarelo
era lançado sobre o lixo que entulhava o jardim. Do outro
lado da sebe, na casa vizinha, uma mulher estava parada,
segurando uma pá em que havia diversas mudas, enraizadas
em terra preta fofa. Olhava para a casa vergonhosa e
comentou:
— Uma coisa nojenta. Já falei com a prefeitura.
— Oh, não! Por favor, não... — Mas vendo o rosto e os olhos
da mulher se endurecerem, Alice acrescentou: — Estou
vindo da prefeitura. Vai acabar tudo bem. Estamos
negociando um acordo.
— E o que vão fazer com todo esse lixo — a mulher mais
declarou do que perguntou.
Ela virou as costas a Alice, inclinando-se para a terra fra-
grante de seu canteiro de flores.
Alice encaminhou-se para a sua porta num tumulto de
identificação fervorosa com a casa criticada, dominada pela
ira contra o responsável por aquele esguicho amarelo —
provavelmente Jasper — e com a necessidade de iniciar de
imediato o trabalho de reconstrução.
A porta não se mexeu quando a empurrou. O calor vermelho
da raiva dominou-a por completo, e ela esmurrou a porta,
gritando:
— Como se atrevem a me trancar do lado de fora?
Com a visão lateral, ela percebeu a mulher na casa ao lado
se empertigar e observar a cena por cima da sebe.
A ira se desvaneceu, enquanto ela dizia a si mesma: Preciso
fazer alguma coisa em relação a essa mulher o mais depressa
possível; ela tem de ficar do nosso lado.
Alice ofereceu à mulher um sorriso conciliador e um aceno
de mão, um pouco como o abano de rabo de um cachorro se
desculpando, mas a vizinha se virou sem qualquer reação.
Subitamente a porta foi aberta e os dedos de Jasper apertaram
seu pulso. O rosto dele tinha um sorriso frio que ela sabia ser
de medo. De quem?
Enquanto ele a puxava para o interior, Alice disse, numa voz
que soou como um grito abafado:
— Largue-me. Não seja estúpido.
— Onde você esteve?
— O que você acha?
— O que andou fazendo durante o dia inteiro?
— Ora, não enche!
Alice sacudiu o pulso para restaurar a circulação quando ele a
soltou, ao ver que as portas haviam sido abertas. Ali no
vestíbulo estavam Jim, Pat, Bert e duas moças, vestidas de
maneira idêntica, em macacões azuis folgados e casacos de
malha brancos, com expressões críticas.
— Sempre mantemos essa porta trancada e com uma barra
por causa da polícia — explicou Bert, num jeito apressado,
apaziguador.
Alice pensou: Ora, não há necessidade de me preocupar tan-
to com ele. E disse:
— Não estava trancada esta manhã, quando chegamos. E a
polícia não aparece a esta hora, não é?
Ela disse isso porque precisava dizer alguma coisa, sabia que
seu acesso de raiva fora lamentável.
Os cinco a fitavam, os rostos ensombreados pela luz difusa
do lampião. E Alice acrescentou, em sua voz mansa habitual:
— Estive na prefeitura e está tudo certo.
— Como assim? — indagou Bert, afirmando seus direitos.
Alice disse:
— Todo mundo está aqui e quero discutir o assunto. Por que
não agora?
— Alguém contra? — perguntou Jasper jovialmente, mas
saindo em proteção de Alice, como ela percebeu, com
gratidão.
Os sete foram para a sala de estar, ainda plenamente
iluminada pela luz do dia.
Os olhos de Alice se concentraram ansiosos nas duas moças
desconhecidas. Como se incapazes ou indispostas a dispensar
muita atenção ao problema, elas se empoleiraram nos braços
de uma poltrona velha e puída. Estavam partilhando um
cigarro. Uma delas era loura, de traços delicados, os cabelos
presos num rabo-de-cavalo, com pequenos anéis
emoldurando todo o rosto. A outra moça, não, mais do que
isso, mulher, era corpulenta, cabelos curtos, crespos e
negros, com um brilho de prateado. Seu rosto era forte, os
olhos diretos. Fitou Alice atentamente, reservando-se
qualquer julgamento, e disse:
— Esta é Faye. Eu sou Roberta.
Ela estava informando também que as duas constituíam um
casal, mas Alice já vira essas coisas antes.
— Alice... Alice Mellings.
— Muito bem, camarada Alice, devo dizer que você não
perde tempo. Pessoalmente, eu gostaria que tivesse discutido
o assunto primeiro.
— Eu também penso assim — acrescentou Faye. — Gosto de
saber o que está sendo dito em meu nome.
Ela falava em cockney, numa voz viva e atraente. Alice
compreendeu no mesmo instante que era uma afetação, a
moça adotara o estilo, como tantas outras pessoas. O que se
apresentava a todo mundo era uma linda e risonha jovem
cockney, mas Alice observou-a atentamente, tentando
descobrir o que ela era de fato.
Essa inspeção intensa e avaliadora fez com que Faye se
remexesse no braço da poltrona e se mostrasse um pouco
amuada, o que levou Roberta a interferir, apressadamente:
— Em que nos comprometeu, camarada Alice?
— Já entendi — disse Alice. — Vocês estão querendo ficar
na moita.
Roberta deixou escapar um grunhido breve e divertido, com
que reconhecia a percepção de Alice, e então disse:
— É isso mesmo. Quero passar algum tempo na moita.
— Eu também — acrescentou Faye. — O pessoal da segu-
rança de Clapham está procurando pela gente, mas é melhor
não perguntar por quê. Quanto menos se disser, melhor.
Ela concluiu jovialmente, sacudindo a cabeça.
— E o que você não sabe não pode lhe fazer mal — comen-
tou Roberta.
— Não faça perguntas e não ouvirá mentiras — gracejou
Faye.
— Mas a verdade é mais estranha do que a ficção — sugeriu
Roberta.
— Bem que pode repetir isso — concordou Faye.
A pequena encenação das duas fez com que todos rissem,
divertidos. Como um bom número de music-hall: Faye, a
garota cockney, e seu parceiro. Roberta não estava falando
cockney, mas tinha uma voz tranqüila e prosaica, com um
sotaque do norte. Sua própria voz? Não, era fabricada.
Provavelmente modulada na Coronation Street.
— Esse é mais um motivo para não querermos a polícia
aparecendo aqui a todo instante — declarou Bert. — Fico
satisfeito de que a camarada Alice esteja tentando regularizar
nossa situação nesta casa. Apresente seu relatório, camarada
Alice.
Bert também modificara a voz. Alice podia perceber em
alguns momentos os tons elegantes de uma escola pública
das classes superiores, mas a voz fora encrespada para se
parecer com a de um membro legítimo das classes operárias.
Era muito azar, pois ele se denunciava facilmente.
Alice falou. (Sua própria voz datava dos dias na escola
feminina em North London, uma voz correta, insípida.
Houvera uma ocasião em que se sentira tentada a usar o
sotaque nortista do pai, mas acabara chegando à conclusão
de que seria uma desonestidade.) Não contou que ligara para
a mãe e o pai, mas informou que poderia conseguir
cinqüenta libras a curto prazo. Depois, resumiu sua visita à
prefeitura, avaliando o que via em sua imaginação: as
expressões de Mary Williams, revelando a Alice que a casa
ficaria com eles, por causa de algum problema ou atitude
pessoal da jovem. Mas tudo o que Alice disse a esse respeito,
a essência da entrevista com Mary, foi o seguinte:
— Ela é legal. Está do nosso lado. E uma boa pessoa.
— Está querendo dizer que arrumou alguma coisa para
mostrar à polícia? — indagou Jim.
Alice entregou-lhe o envelope amarelo, ele tirou a carta e
examinou-a. Ela podia perceber que Jim era uma dessas
pessoas cujo destino é determinado por documentos,
relatórios, cartas oficiais. E a voz de Jim era mesmo cockney,
autêntico. Alice perguntou abruptamente:
— A polícia tem alguma coisa contra você?
Jim fitou-a primeiro com uma expressão de surpresa, depois
defensiva e finalmente amargurada. Ele amarrou o rosto
infantil e franco e disse:
— E se tiver?
— Nada — murmurou Alice.
Enquanto isso, um olhar para Faye e Roberta revelara que as
duas não queriam encontros com a polícia. Devia ser algo
pior. Isso mesmo, provavelmente pior. Isso mesmo,
certamente pior. Estariam fugindo?
— Não sabia que você estava nessa situação — comentou
Bert. — Até recentemente a polícia também queria falar
comigo.
— E comigo também — proclamou Jasper no mesmo ins-
tante, não querendo ficar de fora.
A voz de Jasper era quase a de suas origens. Ele era filho de
um advogado de uma pequena cidade de Midlands, que fora
à falência quando Jasper estava no meio da escola primária.
Concluíra sua instrução com uma bolsa de estudos. Jasper era
muito inteligente, mas considerara a bolsa uma caridade.
Sentia muito ódio do pai, que fora bastante estúpido para se
manter em investimentos escusos. Sua voz de classe média,
como a de Bert, fora adulterada. Com os camaradas das
classes operárias podia falar como eles e o fazia, em
momentos emocionais.
— Está ficando escuro — interveio Pat, levantando-se.
Ela riscou um fósforo e acendeu duas velas que estavam no
console da lareira, em castiçais de latão um tanto finos.
Estavam opacos de gordura. A luz do dia minguava cada vez
mais além das janelas, e os sete se encontraram no meio de
uma poça de suave luz amarelada, nas profundezas de uma
sala de teto alto e escura.
Pat apoiou o cotovelo no console da lareira, assumindo agora
o comando da situação. À luz romântica, com seus trajes
militares escuros, as botas pretas, parecia — como
certamente devia saber — uma guerrilheira ou soldado de
algum exército. Contudo, a luz realçava as suas feições
delicadas, as linhas suaves das mãos; na verdade, ela parecia
mais com a imagem idealizada de um soldado do sexo
feminino num cartaz de recrutamento. Talvez uma recruta
do exército israelense, com um livro numa das mãos e um
rifle na outra.
— Dinheiro — disse Pat. — Precisamos conversar sobre
dinheiro.
Sua voz era típica da classe média, mas Alice sabia que não
fora assim que Pat começara. Ela se esforçava muito para
apresentar aquela voz.
— Tem toda a razão — disse Jim. — Concordo.
A única outra pessoa naquela sala, além de Alice, que
conservava sua própria voz, sem qualquer modificação, era
Jim, o cockney autêntico.
— Vai custar muito mais do que podemos imaginar — disse
Bert —, mas estaremos comprando paz e sossego.
— Não precisa custar tanto assim — protestou Alice. — Por
um lado, a comida sairá pela metade do preço. Posso falar
por experiência própria.
— É verdade — confirmou Pat. — Também tenho
experiência. Comer por aí custa muito mais.
— Alice sabe como alimentar as pessoas bem baratinho —
informou Jasper.
Era visível que enquanto os cinco enunciavam suas posições,
todos eles, talvez sem o perceberem, olhavam para Roberta e
Faye. Ou, mais precisamente, para Faye, que estava sentada
ali sem fitá-los, mas olhando para qualquer outro lugar — o
teto, seus pés, os pés de Roberta, o chão —, enquanto
soprava a fumaça do cigarro que mantinha entre os lábios.
Sua mão, pousada no joelho, tremia um pouco. Ela dava a
impressão de que tremia ligeiramente por todo o corpo. Mas
sorria, embora não fosse o melhor dos sorrisos.
— Esperem um pouco, camaradas — disse ela. — Vamos su-
por que eu goste de comida de fora. E eu gosto, entendem? E
se me der vontade de sair para comer em algum lugar? O que
acontece, então?
Ela riu e sacudiu a cabeça, exibindo — como se sua vida
dependesse disso — uma insolência cockney, como já fora
mostrada em mil filmes.
— Eles têm um argumento forte, Faye — comentou Roberta,
parecendo neutra, a fim de não irritar a amiga.
Ela estava atenta a Faye, incapaz de se controlar, lançando-
lhe olhares rápidos e nervosos.
— Ora, que se foda — disse Faye, assumindo de vez o papel
de cockney, porque tinha medo de sua ira, como todos po-
diam perceber. — Ontem, pelo menos para mim, tudo
estava correndo quase perfeito, e hoje a coisa toda mudou.
Não gosto de ser organizada, entendem?
— E ela fazia tudo à sua maneira — disse Bert, no tom frio
das classes superiores, sorrindo, como se fosse um gracejo.
Ele não gostava de Faye e aparentemente não se importava
com que isso ficasse patente. Pat apressou-se em aliviar a
situação com bom humor:
— Se você não quer participar, então não precisa. Pode co-
mer por nossa conta!
Ela fez o comentário sem rancor. Até riu, esperando que
Faye a acompanhasse; mas Faye sacudiu a cabeça, seu rosto
se contraiu, perdendo a beleza, os lábios empalideceram,
enquanto ela os comprimia. O cigarro e a mão tremiam
violentamente, a cinza espalhando-se por toda parte.
— Esperem um instante — interveio Roberta. — É preciso
esfriar um pouco a cabeça.
Aparentemente, a exortação foi dirigida aos cinco que
olhavam para Faye. Mas Faye sabia que o comentário estava
destinado a ela. E se obrigou a sorrir.
— Foi dita alguma coisa sobre a maneira como deveríamos
pagar? — perguntou Roberta.
— Não, mas conheço as várias maneiras como costumam
fazer isso — respondeu Alice. — Em Birmingham, por
exemplo, fixaram uma taxa pela casa toda, a fim de se
cobrirem os impostos. E pagávamos luz e gás em separado.
— Luz... — murmurou Faye. — Quem vai querer pagar a
luz?
— Não se paga nada ou então se paga apenas a primeira conta
— explicou Jasper. — Alice é boa nessas coisas.
— Todos podemos ver em que Alice é boa — comentou
Faye.
— Por que não adiamos a discussão até sabermos de tudo
com certeza? — sugeriu Pat. — Se fizerem uma avaliação
para o aluguel e impostos e cobrarem tudo do nosso seguro
social, numa base individual, então seria conveniente para
alguns e não para outros. Seria para mim, por exemplo.
— Não seria para mim, entende? — informou Faye, doce mas
veemente.
— Nem para mim — acrescentou Roberta. — Não quero me
tornar uma residente oficial desta casa. Nem Faye.
— Faye com toda a certeza não quer — disse Faye. — Ontem
eu era livre como um passarinho, indo e vindo. Não vivia
aqui, apenas entrava e saía quando queria. E agora, de
repente...
— Está bem, está bem — interveio Bert, irritado. — Você
não quer ser contada, não tem problema.
— Está me dizendo para ir embora? — indagou Faye, com
uma risada estridente.
Seu rosto pareceu de novo se transformar por completo,
sugerindo alguma outra Faye, uma Faye pálida, assustadora,
violenta, a prisioneira involuntária da linda cockney. Jim riu
subitamente e comentou:
— Já me disseram para ir embora. Por que não Faye e Ro-
berta, se o problema é esse?
Faye concentrou toda a força de sua fúria pálida em Jim, e
Roberta apressou-se em interferir:
— Ninguém vai embora. Absolutamente ninguém. — Fitou
Jim nos olhos. — Mas devemos ser muito claros sobre o que
vamos ou não vamos fazer. E temos de ser claros agora. Se
uma quantia certa for fixada para a casa, podemos discutir
então quem vai contribuir com o quê. Se pedirem uma
contribuição individual, tirada do nosso seguro social, a
resposta é não, não e não.
O tom era afável, mas não muito.
— Não vou contribuir — anunciou Faye. — Por que deveria?
Gosto das coisas como estavam.
— Como podia gostar? — indagou Bert. — Aturar as coisas
como estavam é diferente.
E de repente todos souberam por que era a Faye que haviam
observado tão nervosamente, Faye que dominara tudo.
Ela se empertigou, montada no braço da cadeira, assumiu
uma expressão ainda mais furiosa, tremeu toda e disse, numa
voz que não tinha qualquer relação com a linda cockney:
— Seus Hitlers nojentos de merda, seus porcos fascistas,
quem são vocês para nos dizerem o que fazer? Quem são
vocês para nos darem ordens?
Essa voz saía das profundezas de Faye, de alguma terrível
privação. Era rude, rouca, sofrida, como se as próprias
palavras exigissem um esforço árduo e ela só conseguisse
arrancá-las com dificuldade, passando só Deus sabia por que
obstáculos de mente e língua. Que sotaque era aquele? De
onde vinha? Todos ficaram olhando-a fixamente, estavam
todos silenciados por ela. E Roberta, passando o braço pelos
ombros trêmulos da amiga, murmurou "Faye, Faye, querida
Faye", até que a moça subitamente teve um sobressalto e
depois pareceu ficar inerte, arriando em seus braços.
Silêncio.
— Qual é o problema? — perguntou Bert, que se recusava a
perceber que ele era a causa da explosão do outro eu de
Faye. Ou seriam outros eus? — Se Faye não quer contribuir,
muito bem. Sempre fazem a avaliação por baixo, pelo menos
em casas abandonadas como esta. E outras pessoas virão, é
claro, para substituir os camaradas que foram embora ontem.
E teremos de fazer com que aceitem o acordo que fizemos
com a prefeitura.
Meio escondida nos braços de Roberta, Faye parecia se
contorcer e debater, mas foi ficando quieta. Alice disse:
— Se não limparmos a casa, teremos de deixá-la de qualquer
maneira. Podemos arrumar tudo, mas para conservar a casa
precisamos da prefeitura. Tem havido reclamações. A
mulher da casa ao lado disse que já se queixou...
— Joan Robbins — interveio Faye. — Uma vaca fascista. Eu
vou matá-la.
Mas foi na voz cockney que ela falou agora, não na outra, a
verdadeira. Faye tornou a se empertigar, desvencilhando-se
da solícita Roberta, e acendeu outro cigarro. Não olhava para
os outros.
— Não vai, não — disse Roberta, suavemente.
Ela reafirmou seus direitos sobre Faye, tornando a passar o
braço por seus ombros. Faye submeteu-se, com o afetado
balanço da cabeça e um sorriso.
— Está tudo uma nojeira — comentou Alice.
— Tudo estava bem até que você chegou — disse Jim.
Não era um protesto ou uma acusação, mas uma indagação.
No fundo, ele estava dizendo: Como foi tão fácil para você,
quando era impossível para mim?
— Não se preocupe — murmurou Alice, sorrindo para ele.
— Depois que estiver tudo limpo, seremos como as outras
pessoas na rua e ninguém nos notará. Vai ver só.
— Se quer jogar dinheiro fora, o problema é seu — disse
Faye.
— Temos de pagar pelo menos a primeira conta de luz e gás
— comentou Bert. — Se conseguirmos persuadi-los a
restabelecer a ligação.
— Isso é fácil — declarou Alice.
— Os medidores ainda estão aqui — acrescentou Pat.
— Eles sempre esquecem de tirá-los — disse Jim.
— E com que vamos pagar? — indagou Faye. — Não estamos
todos vivendo do seguro-desemprego?
Houve outro momento de silêncio. Alice sabia que haveria
dinheiro suficiente se o aluguel fosse baixo. Isto é, se as
pessoas tivessem bom senso para administrar seu dinheiro.
Ela e Jas- per, morando com sua mãe e sem pagar nada,
recebiam cerca de oitenta libras por semana da previdência
social. Mas não guardavam coisa alguma, porque Jasper
gastava toda a sua parte e ainda uma boa parcela do que ela
recebia, sempre lhe exigindo:
— Para o partido — dizia ele... ou qualquer outra causa que
estivessem apoiando no momento.
Mas Alice sabia que boa parte do dinheiro ia para o que
descrevia para si mesma, afetadamente, como "a vida
emocional de Jasper".
Sabia também que em comunidades como aquela havia os
que pagavam e os que se recusavam a fazê-lo, e não havia
nada que se pudesse fazer para remediar tal situação. Sabia
que Pat contribuiria; que Pat faria com que Bert também
contribuísse... pelo menos enquanto ela estivesse ali. Já as
duas garotas não abririam mão de um único penny. Quanto a
Jim... era melhor esperar para ver. Ela disse:
— Tem uma coisa que podemos fazer agora: desobstruir os
vasos.
Roberta riu. Era uma risada orquestrada, com a intenção
evidente de ser notada. Faye disse:
— Estão cheios de concreto.
— Também estavam assim numa das casas que conheci. Não
é difícil. Mas precisamos de ferramentas.
— Poderia ser esta noite? — perguntou Pat, que parecia
interessada, com uma admiração relutante.
— Por que não? Temos de começar — respondeu Alice, com
alguma veemência. Sua voz exprimia toda a intensidade de
sua necessidade. Eles ouviram, reconheceram, cederam. —
Não será tão difícil quanto estão pensando agora. Já dei uma
olhada nos banheiros. Se as caixas estivessem cheias de
concreto seria difícil... provavelmente teriam rachado... mas
não é tão difícil assim desobstruir os vasos.
— Os operários concretaram o registro principal — informou
Bert.
— O que é ilegal — disse Alice, amargurada. — Aposto que o
Departamento de Agua não sabe. Tem alguma ferramenta
por aqui?
— Não — respondeu Bert.
— Você não disse que tem um amigo que mora aqui perto?
Ele não teria ferramentas?
— Ela, Felicity. Seu namorado tem. Ferramentas de eletri-
cista. Tudo. E o seu trabalho.
— Então poderíamos pagar a ele para endireitar toda a parte
elétrica.
— E com que vai pagar? — perguntou Faye, a voz agora
melodiosa. — Com que vamos pagar a ele, minha cara Alice?
Com quê?
— Vou buscar aquelas cinqüenta libras. E você, Bert, vá
procurar seu amigo. — Alice já estava na porta. — Diga a ele
que precisamos consertar o encanamento e a parte elétrica.
O encanamento primeiro. Se ele tiver uma talhadeira e um
malho, podemos começar pelo banheiro aqui do vestíbulo.
Voltarei num instante.
Ela ouviu Jasper gritar, enquanto passava pela porta:
— Traga alguma coisa para comer. Estou faminto.
Nas asas do sucesso, Alice voou para o metrô. No trem,
pensou na casa, imaginando-a limpa e arrumada. Subiu
correndo a avenida até o prédio de Theresa. E somente
quando ouviu a voz de Anthony é que lembrou que Theresa
chegaria tarde.
— Sou eu, Alice — disse ela pelo interfone.
— Pode entrar, Alice.
A voz firme, controlada e sensual de Anthony lembrava-a
dos inimigos com que se defrontava, e ao chegar à porta do
apartamento, sabia que estava usando a sua cara.
— E um prazer, Alice — disse Anthony, em tom caloroso
mas falso, pois Theresa é que era sua amiga.
Ela entrou, sabendo que era indesejável. Anthony estava de
roupão e tinha um livro na mão. Ele está ansioso por uma
noite tranqüila, pensou Alice. Mas pode muito bem me
dispensar dez minutos.
— Sente-se, Alice. Quer beber alguma coisa?
— Não, Anthony. Nunca bebo. — Ela foi direto ao assunto.
— Theresa disse esta manhã que poderia me emprestar
cinqüenta libras.
— Ela ainda não chegou. Está em uma de suas reuniões.
— Pensei que você poderia me dar o dinheiro. Estou
precisando.
O tom era veemente e incisivo, uma acusação. Anthony fi-
tou atentamente a mulher que estava parada ali, no meio da
sala de estar, usando roupas que ele considerava militares, o
rosto inchado pelas lágrimas e pela hostilidade.
— Não tenho cinqüenta libras.
Uma mentira, reconheceu Alice, fitando-o com tanto ódio
que ele murmurou:
— Sente-se, por favor, minha cara Alice. Acho que vou to-
mar um drinque, embora você não queira.
Anthony estava tentando fazer com que a situação se tor-
nasse divertida, mas ela percebeu sua intenção. Continuou
de pé, observando, enquanto o corpulento e moreno
Anthony se virava para se servir do uísque de uma garrafa de
cristal. Durante toda a sua vida, parecia a Alice, tivera
momentos em que o imaginara e a sua amiga Theresa nus na
mesma cama, à noite, o que lhe causava profunda
repugnância.
Sabia por sua mãe que a vida sexual daqueles dois era intensa,
variada e tempestuosa, apesar das urbanidades opressivas e
jocosas de Anthony, das palavras carinhosas sussurrantes e
risonhas de Theresa. Cara Alice, querida Alice, mas à noite...
Era mesmo repulsivo.
E Alice pensou, como fazia quando era pequena: E eles são
tão velhos! Observando as costas largas do homem, cobertas
pela grossa seda cinza, a cabeça lisa, negra como petróleo e
pequena para o corpo, pensou também: Eles têm feito sexo
todas as noites, durante todos esses anos.
Anthony virou-se para ela num movimento rápido, o copo
na mão, depois de ter pensado o que deveria dizer.
— Vou telefonar para Theresa. Se ela não estiver mais em
reunião...
E encaminhou-se rápido e inexorável para o telefone. Alice
correu os olhos pela sala grande e luxuosa. E pensou: Vou
pegar um desses pequenos netsukes e fugir, eles vão achar
que foi a espanhola. Mas Anthony voltou nesse instante e
anunciou:
— Disseram que já encerraram o expediente. Ela está vindo
para casa. Vou preparar alguma coisa para o jantar. Theresa
fica muito cansada para cozinhar quando tem essas reuniões.
Com licença.
Ele estava contente pela oportunidade de virar as costas,
pensou Alice. No instante em que Anthony desaparecia na
cozinha, a porta foi aberta. Era Theresa. Por um momento,
Alice não a reconheceu, pensou que fosse outra mulher
cansada e de meia-idade. Depois, refletiu: Ela parece gasta.
Theresa parou, exausta, o rosto vincado. Usava óculos es-
curos, o que deixava seus olhos piscando e ansiosos quando
os tirava.
— Oh, Alice... — murmurou ela, encaminhando-se apressada
para a cadeira perto dos drinques e ali arriando.
Serviu-se de um drinque, meio desajeitada, continuou sen-
tada com o copo aninhado contra o peito, a respiração lenta,
os olhos fechados.
— Só um instante, Alice, só um instante, Alice querida...
Quando Anthony voltou à sala, inclinando sua corpulência
para beijá-la, ela levantou o rosto para seus lábios, os olhos
ainda fechados, e disse:
— Graças a Deus terminamos mais cedo. Mais uma noite
trabalhando até onze horas e eu estaria liquidada.
Ele pôs a mão em seu ombro e apertou-o. Theresa sorriu-lhe,
espichou os lábios no movimento de um beijo, os olhos
sempre fechados. Anthony retornou à cozinha, dizendo:
— Providenciei uma sopa e uma salada.
— Oh, Anthony querido... obrigada... uma sopa... é
justamente o que estou precisando.
O que Alice sentiu nesse instante foi uma dor fria e
penetrante — inveja; mas não sabia que era isso e disse, para
se livrar da cena, para se livrar dos dois:
— Você disse que me daria cinqüenta libras. Posso levar,
Theresa?
— Acho que sim, querida — murmurou Theresa, vagamente.
E no instante seguinte ela se empertigou, abriu a bolsa
elegante e espiou dentro. — Cinqüenta... cinqüenta... onde
foi que eu guardei? Ah, sim, aqui está...
Tirou cinco notas de dez libras e entregou-as a Alice.
— Obrigada. — Alice tinha vontade de sair correndo com o
dinheiro, mas não achava isso certo; sentia uma profunda
afeição por Theresa, que parecia tão cansada e confusa, que
sempre fora boa para ela. — Você é a minha predileta e a
melhor, a tia mais querida.
Ela falou com um sorriso contrafeito, como sempre fazia
quando era pequena e se empenhavam naquele jogo. Os
olhos de Theresa estavam abertos agora e fitavam os de
Alice.
— Alice, minha querida... — Ela suspirou. Empertigou- se
outra vez na cadeira. Esticou a saia vermelha. Levantou a
mão para alisar os cabelos escuros. Pintados, é claro. — Sua
pobre mãe... ela me telefonou esta manhã. Estava muito
transtornada, Alice.
— Ela estava transtornada — disse Alice no mesmo instante.
— Sempre está.
Theresa suspirou.
— Alice, por que você continua com ele... com Jasper... por
que... Não, espere. Não vá embora, por favor. Você é tão
bonita e simpática, minha querida... — Nesse ponto, ela deu
a impressão de oferecer a Alice sua expressão especial, como
se num beijo. — E uma boa moça. Por que não pode
escolher alguém... deveria ter um relacionamento verdadeiro
com alguém.
Ela terminou constrangida, por causa da expressão fria e
desdenhosa de Alice.
— Eu amo Jasper — declarou Alice. — E amo muito. Por que
vocês não podem compreender isso? E não me importo...
com o que você se importa. O amor não é apenas sexo. Sei
que é isso o que você pensa...
Mas os anos de afeição, de amor, travaram sua língua, ela
sentiu as lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Oh, Theresa, obrigada! Muito obrigada! Virei visitá-la em
breve. Prometo. Mas agora tenho de ir. Estão me
esperando...
E Alice correu para a porta, soluçando violentamente. Saiu
batendo a porta. Desceu a escada, as lágrimas voando de seu
rosto, saiu para a rua, e só então se lembrou que as notas
ainda estavam em sua mão, havia o perigo de serem levadas
pelo vento ou roubadas. Guardou-as no bolso da túnica e
seguiu apressada e segura para a estação de metrô.
Enquanto isso, no lindo apartamento, eles estavam
conversando sobre Alice. Anthony manteve uma expressão
irônica e divertida, até que Theresa reagiu:
— O que é, meu amor?
— Que garota — respondeu ele; a aversão que sentia por
Alice transparecia em sua voz.
— Eu sei, eu sei... — murmurou Theresa, irritada, a exaustão
começando a se manifestar.
— Uma garota... que idade tem ela agora?
Theresa deu de ombros, não querendo se incomodar com o
problema, mas mesmo assim interessada.
— Tem razão, querido. A gente está sempre esquecendo.
— Quase quarenta?
— Oh, não! Não é possível!
Uma pausa, o vapor do prato de sopa que Anthony trouxera
e pusera na mesinha a seu lado subia entre os dois. Eles se
fitavam através do vapor.
— Acho que ela está com trinta e cinco... não, trinta e seis
anos — disse Theresa finalmente.
— Um caso típico de desenvolvimento suspenso — comen-
tou Anthony, insistindo em seu direito de não gostar de
Alice.
— Acho que tem razão... mas Alice... ela é tão meiga... uma
coisinha tão doce...
Na rua de Alice as casas estavam repletas de luzes e pessoas,
o meio-fio atulhado com os carros dos que haviam voltado
do trabalho; e sua casa, assomando na extremidade, era
escura, poderosa, silenciosa, misteriosa, definida apenas pelas
luzes e o barulho da rua principal, além. Ao chegar ao
portão, divisou três vultos prestes a passar pela entrada
escura. Jasper, Bert. Quem seria o terceiro? Alice aproximou-
se depressa, e Jasper e Bert viraram-se bruscamente para
confrontarem o perigo. Viram que era ela e disseram ao
garoto que os acompanhava:
— Está tudo bem, Philip. Esta é Alice... camarada Alice.
Estavam agora no vestíbulo, e Alice constatou que não era
um garoto, mas um rapaz, pálido e franzino, com grandes
olhos azuis entre os cabelos claros e brilhantes, que pareciam
refletir toda a claridade difusa do lampião. Sua primeira
reação foi: Mas ele está doente, não é forte o suficiente! Pois
compreendera que aquele era seu salvador, o restaurador da
casa.
Philip disse, fitando-a, com uma obstinação que Alice
reconheceu ser o resultado de um esforço, uma pressão
contra as chances desfavoráveis:
— Terei de cobrar. Não posso fazer de graça.
— Cinqüenta libras — disse Alice, percebendo um ligeiro
movimento involuntário de Jasper em sua direção,
informando que ele daria um jeito nela, se não tomasse
cuidado.
Philip disse, na mesma voz suave e obstinada:
— Quero ver o trabalho primeiro. Preciso calcular o custo.
Alice percebeu que aquele rapaz já fora ludibriado no que
lhe era devido. Mas com aquela aparência, de um pequeno
órfão inocente, ele estava convidando! Ela declarou,
maternal e orgulhosa:
— Não estamos pedindo favores. E um trabalho.
— Por cinqüenta libras — interveio Bert, com uma aspereza
jocosa —, dá até para bloquear um ninho de ratos. Pelo me-
nos hoje em dia.
Alice viu seus lábios vermelhos faiscarem na moita escura do
seu rosto. Jasper soltou uma risadinha.
A aliança dos dois homens contra ela — pois era isso o que
acontecia agora, pelo menos momentaneamente — deixou-a
satisfeita. Enquanto voltava correndo para casa, estivera
pensando se Bert seria um daqueles homens a que Jasper se
afeiçoava, como já acontecera, da mesma forma que um
irmão menor, demonstrando uma necessidade ansiosa que
fazia o coração de Alice se apertar em angústia, para não
ficar de fora nas aventuras. Tais manifestações sempre a
consternavam, não por ciúme — ela insistia com veemência
para si mesma e às vezes para outras pessoas —, mas porque
tinha medo de que um dia pudessem terminar de maneira
desastrosa.
Umas poucas vezes, homens que Jasper conhecera durante
essas excursões a um mundo de que ele lhe falava, enquanto
apertava seu pulso e a fitava atentamente à procura de sinais
de fraqueza, haviam chegado a uma casa ou outra em que
eles estavam instalados, sendo recebidos pela prestimosidade
amistosa e fraternal de Alice.
— Jasper? Ele voltará ao anoitecer. Não quer esperar?
Porém os homens sempre iam embora.
Mas quando havia por perto um homem como Bert, a quem
ele podia se ligar, então Jasper não saía bordejando... uma
palavra que ela costumava usar, casualmente.
— Por onde você andou bordejando ontem à noite, Jasper?
Tome cuidado. A situação já é bastante ruim, com a polícia
de olho na gente por motivos políticos.
Esse era o poder que ela tinha sobre Jasper, os controles que
podia usar. Ele respondia em tom afável e orgulhoso:
— Tem toda a razão, Alice, mas eu sei me virar.
E ele podia contemplá-la com um dos seus súbitos sorrisos
genuínos, bastante raros, que reconhecia que eles eram
aliados, numa guerra desesperada.
Agora, Alice sorriu por um instante para Jasper e Bert e
tornou a concentrar sua atenção em Philip.
— O mais importante são os banheiros — disse ela. — Vou
lhe mostrar.
Conduziu-o ao banheiro de baixo, levantando o lampião,
enquanto paravam à porta. Desde o dia em que os operários
da prefeitura despejaram concreto no vaso, o pequeno
banheiro se encontrava deserto. Estava empoeirado, mas
normal.
— Filhos da puta — balbuciou Alice, com lágrimas na voz.
Philip parecia indeciso, e ela compreendeu que tudo depen-
dia de sua pressão. Por isso, acrescentou:
— Vamos precisar de uma britadeira. Tem uma? — Alice
percebeu que ele não sabia muito bem do que se tratava. —
Uma dessas máquinas que os operários usam para quebrar
concreto nas estradas, só que menor.
— Acho que conheço alguém que tem.
— Pode arrumá-la esta noite?
Aquele era o momento, Alice sabia, em que ele podia sim-
plesmente ir embora, abandoná-la, sentindo a opressão —
como acontecia com ela — daquela casa violada; mas ela
sabia também que assim que Philip começasse... E se
apressou em acrescentar:
— Já fiz isso antes. Sei como se deve trabalhar. E posso
garantir que não é tão difícil quanto parece.
Ele continuou imóvel, sua pose ressentida e relutante
revelando de novo que se sentia sufocado, e Alice insistiu:
— Vai descobrir que não sairá perdendo. Sei que é disso que
tem medo. Prometo.
Estavam agora bem próximos um do outro, na entrada do
pequeno banheiro. Ele fitou-a da distância de poucos
centímetros da intimidade súbita, viu seu rosto autoritário e
tranqüilizador como o de uma irmã mais velha mandona,
mas gentil, e sorriu de repente, um sorriso franco e terno,
dizendo:
— Tenho de ir para casa, ligar para meu amigo, descobrir se
ele tem mesmo a tal britadeira, pegar emprestado o carro de
Felicity...
Ele estava zombando de Alice com a enormidade da tarefa.
— Está certo — murmurou ela. — Eu ficaria muito
agradecida.
Philip acenou com a cabeça e um momento depois passou
pela porta da frente e desapareceu. Quando foi para a sala de
estar, onde Jasper e Bert estavam, esperando — como
demonstravam pela maneira como sentavam, passivos e
tranqüilos — que ela fizesse milagres, Alice anunciou,
confiante:
— Ele foi buscar algumas ferramentas. Voltará logo.
Ela tinha certeza de que isso aconteceria; e em menos de
uma hora Philip estava de volta, com uma caixa de
ferramentas, britadeira, bateria, lanternas, tudo o que era
necessário.
O concreto no vaso, ali posto há anos, estava se encolhendo
nos lados e não demorou a partir. O banheiro, arranhado e
descolorido, estava agora usável. Isto é, desde que a água
corresse. Pois havia um bloco de concreto vedando o
registro geral. Philip rompeu essa couraça com a broca
ruidosa e nervosa e o registro apareceu, reluzente como uma
coisa nova. Philip e Alice, sorridentes e triunfantes, ficaram
olhando para o registro recém-nascido.
— Vou verificar se todas as torneiras estão fechadas, mas
deixarei uma aberta — sugeriu ela suavemente.
Alice queria ter certeza absoluta antes de anunciar a vitória
para os que esperavam na sala de estar, conversando sobre
política. Circulou pela casa inteira, verificando as torneiras, e
desceu correndo.
— Depois de quatro anos, se não houver ar nos canos...
Ela apelou para Philip. Ele virou-se para o registro geral e
girou-o. No mesmo instante, os canos começaram a tremer e
fazer barulho.
— Ainda funciona! — exclamou Alice.
Ele foi verificar as caixas, enquanto Alice ficava no vestíbu-
lo, com lágrimas de gratidão escorrendo pelo rosto.
Duas horas depois a água corria por toda a casa, os três
banheiros estavam disponíveis e no vestíbulo se concentrava
um grupo de comunitários incrédulos e exultantes, que
haviam sido informados, voltando de diversas partes de
Londres, sobre o que estava acontecendo e que, de modo
geral, não acreditaram. E agora, Alice esperava, estavam
envergonhados.
— Mas podíamos ter feito tudo isso antes, há muito tempo!
— Foi Jim quem falou, entre pesaroso, incrédulo e alegre,
para depois acrescentar: — Vou buscar todos os baldes que
estão lá em cima. Podemos nos livrar da...
— Espere um pouco! — gritou Alice. — Não pode ser assim.
Tem de ser um de cada vez, ou podemos entupir todo o
sistema, depois de tantos anos, quem sabe quanto tempo?
Fizemos isso uma vez em Birmingham, despejamos coisa
demais de uma só vez... havia um cano rachado em algum
lugar lá por baixo e no dia seguinte tivemos de abandonar a
casa. Afinal, estamos apenas começando.
No comando dos outros e de si mesma, Alice estava parada
no último degrau da escada, exausta, suja, coberta de fuligem
e poeira do concreto se desintegrando, até nos cabelos, que
estavam cinza. Todos aclamaram-na a sério, mas também
com algum escárnio. E havia um tom de advertência, que ela
não percebeu ou não deu importância.
— Já temos a água, Philip — ela disse. — Agora, vamos cui-
dar da luz.
E, em silêncio, Philip fitou-a, com uma expressão obstinada
e gentil, aquele frágil garoto — não, homem, pois ele já tinha
vinte e cinco anos, como Alice descobrira, entre todas as
outras coisas a seu respeito que precisava saber —, e
subitamente todos estavam calados, porque haviam
discutido, enquanto ele e Alice trabalhavam, quanto tudo
aquilo custaria e com quanto teriam de contribuir.
— Se tivessem chamado um bombeiro — disse Philip —,
sabe quanto teriam de pagar?
— Umas duzentas libras — sugeriu Pat, que não interferira na
operação delicada de Alice, Philip e a casa, mas estivera mais
envolvida do que os outros, acompanhando os estágios do
trabalho à medida que eram realizados e fazendo
comentários, dizendo como ela também já fizera isso e
aquilo numa casa e outra.
Alice tirou as cinqüenta libras do bolso e entregou a Philip,
dizendo:
— Receberei minha pensão da previdência depois de ama-
nhã.
Ele virou as notas, um total de cinco, pensando, Alice sabia,
que se encontrava numa situação já conhecida. Depois,
levantou os olhos, sorriu e anunciou:
— Voltarei amanhã de manhã. Só posso cuidar da parte
elétrica à luz do dia.
E se retirou, acompanhado não por Bert, que o trouxera, mas
por Alice, que o levou até o portão, o lixo malcheiroso ao
redor. Philip disse, com o sorriso meigo e dolorido que já
atingira o coração de Alice:
— Bom, pelo menos é para camaradas.
Afastou-se pela rua, onde as casas estavam agora mais escu-
ras, depois que as pessoas haviam ido para a cama. Passava de
uma hora da madrugada.
Alice voltou ao vestíbulo deserto e ouviu a descarga no
banheiro. Prendeu a respiração, parada ali, pensando: Os
canos... Mas pareciam estar funcionando direito. Jasper veio
ao seu encontro e avisou:
— Vou dormir.
— Onde?
Era um momento delicado. Na casa de sua mãe Jasper tinha
seu próprio quarto, apropriando-se do que pertencia ao ir-
mão de Alice, onde se eriçava todo, um ouriço-cacheiro
zelando por seu direito de ficar sozinho à noite. Ela dizia que
não se importava; sabia o que sentia; mas se importava e
muito com os pensamentos dos outros, não a seu respeito,
mas sobre Jasper. Agora, porém, estavam sozinhos no
vestíbulo, podiam enfrentar a decisão juntos. Jasper fitava-a
com a expressão opressiva que indicava que se sentia
ameaçado, como Alice muito bem sabia. Pat se aproximou e
avisou-os:
— O quarto ao lado do nosso está vazio. Provavelmente
precisa de alguma limpeza. Os dois que o ocupavam não
eram muito...
No vasto vestíbulo escuro, onde o lampião projetava a sua
poça indecisa de claridade, os três ficaram parados, as
mulheres olhando para Jasper, Alice sabendo por quê, mas
Pat ainda não. Alice sabia que Pat, de inteligência ágil e
perspicaz, compreenderia tudo num instante... e de repente
Pat comentou:
— Seja como for, é o melhor quarto vazio disponível...
Ela percebera tudo num instante, mas parecia que Jasper
não notara coisa alguma, pois disse, em tom efusivo:
— Muito bem, Alice, vamos lá.
Pat acrescentou, enquanto eles subiam em silêncio:
— Alice, não pense que não achamos você uma tremenda
maravilha!
E ela riu. Alice, sem se importar, entrou atrás de Jasper no
quarto grande e vazio. Ele já mexera em sua mochila,
estendendo o saco de dormir junto da extremidade da parede
da direita, de maneira impecável, o mais longe possível.
Alice disse:
— Vou buscar minhas coisas.
Ela continuou parada por um momento, esperando que Jas-
per a repudiasse, mas ele permaneceu imóvel, de costas, sem
dizer nada. Desceu correndo para o vestíbulo, torcendo para
que Pat não estivesse mais lá. Mas estava, sozinha, em
silêncio, como se esperasse que Alice descesse, querendo
fazer o que fez então, que foi se adiantar, abraçar Alice e
encostar o rosto no dela. Conforto. A garantia da
camaradagem. E também compaixão. Alice sentiu, desejando
poder dizer em voz alta: "Mas eu não me importo. Você não
compreende".
— Obrigada — murmurou, contrafeita.
Pat soltou um grunhido de riso e aceno, enquanto voltava
para a sala de estar, onde — como não podia deixar de ser —
os camaradas estavam discutindo Alice, Jasper e aquela
explosão de ordem em suas vidas.
Lá em cima, no quarto, estava escuro, mas entrava um pouco
de claridade, do céu e do tráfego. Alice estendeu seu saco de
dormir com a base fina de espuma de borracha e um instante
depois estava deitada de costas, junto à parede, do lado
oposto àquele em que se encontrava Jasper, enroscado como
sempre, numa solidão feroz, que a fazia se angustiar por ele.
Jasper não estava dormindo, mas não demorou a mergulhar
no sono, como ela pôde perceber pelo relaxamento do
corpo, como se tivesse sido arrastado pelas ondas para uma
praia e lá ficasse abandonado.
Cansada demais para dormir, Alice ficou prestando atenção
ao modo como as pessoas iam para a cama. Boa-noite, boa-
noite, no patamar e no corredor. Roberta e Faye no mesmo
quarto, é claro. Jim em outro. E, no quarto ao lado daquele,
Pat e Bert. Oh, não, ela não queria isso, não queria o que
sabia que ia acontecer. E aconteceu, os grunhidos, sussurros,
movimentos e gemidos — bem do outro lado da parede,
perto de seu ouvido. Era demais. O amor era demais; o que
todos diziam que ela era uma tola por dispensar; até
lamentavam por ela. Theresa e Anthony, todas as noites,
sem falta, assim dizia sua mãe, depois de anos de casamento,
grunhindo e ofegando, gemendo e querendo. Alice ficou
completamente rígida, olhando para as sombras no teto, por
onde as luzes dos carros na rua corriam e se perseguiam, seus
ouvidos agredidos, a mente consternada. Obrigou-se a
pensar: Amanhã vamos cuidar de toda a parte elétrica...
Dinheiro. Precisava de dinheiro. Onde? Daria um jeito. Não
tinha a menor intenção de enganar Philip.
Philip, despedido seis meses atrás da empresa construtora —
o primeiro a ser despedido, e Alice sabia o motivo, por causa
de sua constituição franzina: é claro que qualquer patrão
pensaria que ele era fraco demais —, estabelecera-se por
conta própria. Era agora um decorador e, assim esperava,
empreiteiro. Ele possuía duas escadas compridas, uma
pequena, um cavalete (mas precisando e muito de outro),
brochas, algumas ferramentas; e podia pegar emprestadas
outras coisas de seu amigo em Chalk Farm. Fora contratado
para reformar uma casa, apesar de sua aparência frágil, e
talvez por causa disso; recebera apenas a metade do
pagamento, sendo informado de que não fizera o trabalho
direito. Sabia que não lhe pagariam o resto; para isso, teria de
recorrer à justiça, e não tinha condições. Estava vivendo da
pensão do governo. Achava que poderia arrumar um tra-
balho em breve, reformando um pub em Neasden. Ele
dissera que tinha certeza de que conseguiria fechar o
contrato, mas Alice não acreditava muito. Morava com
Felicity (sua namorada?) no apartamento dela, a duas ruas
dali. Ele tinha de ser pago.
Os ruídos do outro lado da parede haviam cessado, mas agora
recomeçaram. Alice arrastou seu saco de dormir para a outra
parede, com medo de despertar Jasper, que acharia que a sua
proximidade era uma intrusão. E, como era inevitável, no
momento em que ela se acomodou Jasper acordou. Ela pôde
vê-lo fitando-a com uma expressão furiosa, rangendo os
dentes.
— Você está no meu espaço — disse ele. — Sabe que não
nos intrometemos no espaço um do outro.
Alice disse:
— Não gosto daquela parede.
Tal situação já ocorrera antes, muitas vezes, ela não precisava
explicar. Soerguendo-se, apoiado no cotovelo, o rosto
contraído em fúria e repulsa, Jasper escutou o que se podia
ouvir claramente através da parede; depois, tornou a se
estender, a respiração acelerada. Alice acrescentou:
— Preciso levantar cedo para tentar arrumar algum dinheiro.
Ele não disse nada. Dali a pouco a casa ficou em silêncio.
E Jasper tornou a adormecer.
Alice cochilou um pouco. Em sua mente, já estava vivendo
o dia seguinte. Ficou esperando pela claridade, que entrou
sombria pelas janelas imundas e revelou a sujeira do quarto.
Ansiava agora por um chá, alguma coisa para comer. Desceu
para o vestíbulo, que ainda pertencia à noite e ao lampião,
foi para a sala de estar, na esperança de que a garrafa térmica
estivesse ali. Mas bebeu água fria de um jarro, depois usou o
banheiro, com orgulho mas também com cautela, pensando
nos canos que haviam ficado sem qualquer cuidado durante
um número desconhecido de invernos. Dirigiu-se então para
a estação de metrô, parando para o desjejum no Fred's Caff.
Havia espaço para oito ou dez mesas, quase grudadas. Um
local aconchegante, para não dizer íntimo. Quase todos os
fregueses eram homens. Havia duas mulheres sentadas à
mesma mesa. A princípio pareciam ser de meia-idade, por
causa de sua apatia e calma; depois, podia-se perceber que
eram mais jovens, mas cansadas. Provavelmente faxineiras,
depois de uma madrugada de trabalho em escritórios
próximos. No balcão, Alice pediu chá e — com um ar de
desculpa — torrada de pão de centeio; foi informada pela
própria esposa de Fred, provavelmente, pois a mulher tinha
um jeito de proprietária, de que não serviam torradas de pão
de centeio. Alice foi procurar um lugar para sentar, levando
o chá, um prato de torradas de pão branco pingando
manteiga e uma fatia de bolo. Como uma concessão à saúde,
voltou para buscar um suco de laranja. Era evidente que
naquele estabelecimento seria melhor sentar com as duas
mulheres, e foi o que fez.
As duas comiam torradas e tomavam um café aguado. Esta-
vam sentadas em atitudes descontraídas e vazias de mulheres
relaxando conscientemente; nos rostos que viraram para
Alice havia sorrisos vagos e afáveis, como escudos. Não
queriam conversar, apenas ficar ali sentadas.
O sal da terra!, Alice disse a si mesma, respeitosa, observan-
do aquela cena de operários se abastecendo para um dia de
trabalho duro com pratos de ovos, batatas fritas, salame, pão
frito, vagens cozidas — tudo, enfim. Colesterol, refletiu
Alice, agoniada. Todos pareciam tão doentios! Tinham uma
aparência pálida e gordurosa, como bacon frito ou batatas
fritas que não ficaram no fogo o tempo necessário. No bolso
de cada um ou sobre a mesa, sendo lidos, estavam o Sun ou o
Mirror. Meros extraviados, pensou Alice, aliviada porque
não tinha a obrigação de admirá-los. Eram operários da
construção civil ou trabalhavam na abertura de estradas,
talvez até fossem autônomos, trabalhando por conta própria;
não eram aqueles os homens que salvariam a Inglaterra de si
mesma! Alice recostou-se para saborear a torrada encharcada
de manteiga e logo sentiu-se melhor. Mesmo sem vontade
de tomar o suco de laranja meio ácido, obrigou-se a bebê-lo,
entre goles do chá amargo. As duas mulheres observavam-na
com a mesma atenção indiferente que dispensariam aos
hábitos exóticos de um estrangeiro, registrando tudo nela,
sem darem a impressão de que o faziam. Ela tinha lindos
cabelos crespos, podia-se ouvir as duas pensando; por que
então não cuidava deles direito? Estavam cobertos de poeira!
Era uma pena que usasse aquela grossa túnica militar, que a
fazia parecer um homem! E olhe só para as mãos: ela não se
dá o trabalho de manter as unhas limpas! Depois de
condenarem, elas perderam o interesse, levantaram-se e
foram embora, com gritos de despedida para a mulher atrás
do balcão.
— Ciao, Liz.
— Até amanhã, Betty.
Elas apareciam ali todas as manhãs, depois de três ou quatro
horas de faxina em escritórios. Aqueles homens passavam
pelo café a caminho do trabalho. Todos se conheciam, Alice
podia perceber; era como um clube. Ela terminou
rapidamente e foi embora. Lá fora, junto à banca de jornais
da esquina, as duas mulheres com quem ela estivera sentada
estavam paradas, em companhia de uma terceira. Todas
usavam calças informes, blusas e casacos de lã, e carregavam
pesadas sacolas de compras. As ferramentas de trabalho.
Conversavam animadas, ocupando o menor espaço que
podiam, porque a maré cheia do movimento matutino de
pessoas indo para o trabalho espalhava-se pelas calçadas.
Ainda era muito cedo. Passava apenas um pouco das oito
horas. Sua mãe devia estar tomando banho. Se Alice fosse
até lá agora, poderia entrar sem fazer barulho e preparar o
café, fazendo uma surpresa à mãe, quando ela descesse, de
roupão. Poderiam então sentar à mesa grande na cozinha,
comer muesli e tomar café. Dorothy leria seu Times e ela, o
Guardian. Todos os dias eram entregues naquela casa o
Times, o Guardian, o Morning Star e o Socialist Worker, os
dois últimos para ela e Jasper. Jasper dizia que lia o Worker
porque era preciso sempre saber o que a oposição estava
fazendo; mas Alice sabia que, secretamente, ele tinha
tendências trotskistas. Não que ela se importasse com isso;
achava que os socialistas de todos os credos deviam se unir
pelo bem comum. Na casa da mãe ela lia o Guardian.
Durante anos esse jornal fora o único que entrara na casa.
Até que um dia a mãe fora visitar sua grande amiga Zoé
Devlin e a encontrara usando um avental do Guardian, a
palavra "Guardian" estava impressa em vários tamanhos, pre-
to sobre branco. Isso provocara um choque em Dorothy
Mellings; ela dissera que tivera uma revelação por causa da
cena. Que Zoé Devlin, entre todas as pessoas do mundo,
estivesse disposta a pôr o uniforme, a proclamar seu
conformismo!
Fora o começo do período de lindas declarações forçadas da
mãe — um período que ainda não acabara. E o começo
também de uma série de reuniões entre as duas mulheres,
com o objetivo de reavaliarem o que pensavam.
— Nós nos demos muito bem por décadas — Alice ouvira a
mãe dizer ao telefone, iniciando a primeira discussão —,
presumindo que concordávamos numa porção de coisas. O
que não acontece. Uma ova que concordamos sobre tudo!
Vamos ter de decidir se você e eu temos alguma coisa em
comum, Zoé. O que me diz?
A típica merda intelectual, opinara Jasper, falando bastante
alto, com a intenção de Dorothy ouvir.
Lembrando Jasper, Alice compreendeu que não podia
simplesmente aparecer agora, fazer café e cumprimentar a
mãe com um sorriso.
Pegou um trem e acabou encontrando outro café, onde
ninguém a julgaria extraordinária. Estava quase vazio; o
movimento maior não começaria antes de mais duas horas,
quando apareceriam as pessoas fazendo compras, homens e
mulheres. Alice comeu agora bolinhos de trigo integral e
mel, recuperando o estado de graça. Com um olho no
relógio, deixou o tempo passar. A mãe provavelmente sairia
para fazer compras por volta de nove e meia, dez horas.
Tinha por hábito fazer isso logo cedo, pois era uma coisa que
detestava.
Alice fizera as compras durante quatro anos. E adorava. Ao
voltar para a cozinha grande, carregando as caixas com
alimentos que viajavam no carro, guardava tudo com
extremo cuidado. A mãe quase sempre estava presente (se
Jasper não estivesse!) e ficavam conversando, como amigas.
Sempre se deram bem. Em casa, Alice era uma boa moça,
uma boa filha, como sempre gostara de ser. Era ela quem
cuidava da cozinha... E é claro que a mãe tinha o maior
prazer em deixá-la fazer isso. (Havia um pequeno
pensamento inquietante escondido em algum lugar por ali,
mas Alice resolveu ignorá-lo.) Durante os quatro anos em
que Alice e Jasper residiram na casa, ela fizera as compras e
cozinhara. E também cozinhava — às vezes requisitando a
cozinha por dois ou três dias consecutivos — as comidas que
vendia na feira.
Jasper costumava entrar rapidamente, aproveitando as
oportunidades em que Dorothy não estava presente, e se
empanturrar com qualquer coisa que ela estivesse
cozinhando naquele dia — "sua" sopa, por exemplo, bolos,
pão natural. Ou, se ela não estivesse cozinhando, saíra para a
feira, ele entrava furtivamente e tirava da geladeira qualquer
coisa que lhe agradasse. Alice sempre a mantinha abastecida
com presunto, salame e picles para ele. Jasper preparava
enormes sanduíches, levava para o seu quarto e lá ficava,
sem descer por horas a fio. No início, Dorothy ainda
perguntava, apreensiva:
— O que Jasper faz lá em cima o dia inteiro?
— Estuda — Alice sempre respondia, orgulhosa e
intimidativa.
Ela sabia que, às vezes, Jasper não fazia absolutamente nada
durante o dia inteiro. Ele podia ler o Socialist Worker ou o
Morning Star. Afora isso, escutava música popular, com fone
nos ouvidos; podia dançar pelo quarto sozinho, sem fazer
barulho. Era muito gracioso, Alice o sabia, mas detestava ser
visto, o que era uma pena. Jasper devia ter sido dançarino,
quem sabe de balé?
Depois ele tornava a descer, sempre em silêncio, para buscar
mais comida. Nunca entrava de bom grado na cozinha se
Dorothy estivesse lá. Nunca sentava para comer com elas.
Quando Alice o censurara, dizendo que sua mãe não gostava
disso, Jasper respondera que era ela que não gostava dele (o
que era verdade, como se constatou depois, embora Dorothy
não o dissesse expressamente no começo). Por sua vez, ele
achava que Dorothy era uma vigarista vulgar. Esse epíteto,
tão despropositado, deixara Alice atordoada, e por isso ela
apenas balbuciara:
— Como pode dizer uma coisa dessas, Jasper?
Ao que ele emitira ruídos sonoros, estalando os lábios. E
claro que Jasper não estava presente quando Dorothy recebia
convidados. No fundo, era como se ele nunca estivesse em
casa, a não ser pelo constante furto de comida da cozinha.
Qualquer um pensaria que Dorothy lhe negava comida.
Alice brigara com ele muitas vezes por causa disso e depois
se punha a chorar quando ele reagia com injúrias.
Agora, sentada naquele café aconchegante, onde as pessoas
que entravam podiam cumprimentá-la, comendo mais
bolinhos, mais mel (para passar o tempo, agora, não por
fome), Alice pensava: A verdade é que ela odeia Jasper,
sempre odiou; as pessoas costumam odiá-lo. E
provavelmente lhe negava mesmo comida... se o odiava.
Alice finalmente pensou, com um sentimento que beirava o
pânico: Como ela devia se sentir por não poder ocupar sua
própria cozinha, nem sequer poder entrar, com medo de
esbarrar em Jasper? E mais: Eu simplesmente fazia tudo,
preparava todas as refeições. E ela adora cozinhar...
Ás nove e meia Alice deixou o café, gritando uma despedida
para Sarah, que trabalhava ali há anos. Outrora uma refugiada
da Áustria, era agora uma mulher idosa, com fotografias dos
netos crescidos pregadas na parede, por trás do balcão. Alice
encaminhou-se, não muito depressa, para a casa da mãe.
Parou na frente por algum tempo, depois refletiu que
qualquer vizinho que observasse poderia estranhar aquele
comportamento. Entrou, usando a chave que não entregara à
mãe quando fora embora, no dia anterior. Parou no
vestíbulo, aspirando a casa, o lar, a casa grande,
aconchegante, tranqüila, que recendia a amizade. Foi para a
cozinha e seu coração disparou. Havia caixas no chão cheias
de pratos e travessas, pires, xícaras e copos estavam
empilhados em cima da mesa, já acondicionados em folhas
de jornal. Ora, mas é claro! Agora que ela e Jasper tinham
ido embora, a mãe resolvera dar a louça e outras coisas
desnecessárias para um leilão de caridade. Só podia ser isso.
Uma criança pequena, ameaçada, olhos arregalados e
frenética, Alice ficou olhando para as caixas por um longo
tempo, antes de subir correndo para seu quarto. Estava como
o deixara no dia anterior. Sentiu-se melhor. Subiu mais um
andar, até o quarto que Jasper usara. Havia no chão um
tapete, um Bokhara. Antes estava na sala de estar, mas
começara a ficar puído e encontrara um refúgio por baixo.de
uma mesa naquele quarto, que quase não era usado, até que
Jasper o requisitara. O tapete era lindo. Alice enrolou-o
ternamente e levou-o para a cozinha. Esperava agora não
deparar com a mãe. Olhou ao redor, encontrou papel e
caneta, escreveu: "Levei o tapete. Alice". Colocou o bilhete
entre os copos embrulhados. Sentiu-se outra vez em perigo
pela visão das caixas, mas fez um esforço para esquecê-las e
saiu de casa. A mãe se aproximava do final da rua, sob um
toldo de verde intenso. Andava devagar, a cabeça baixa.
Parecia cansada e velha. Alice seguiu apressada na outra
direção, até perder a mãe de vista, depois passou a andar cada
vez mais devagar, até Chalk Farm. A loja de tapetes acabara
de ser aberta. Uma mulher de meia-idade sentava-se a uma
escrivaninha, com uma xícara de café à frente; baixou os
óculos escuros para fitar Alice por cima.
— Quer vender? — perguntou ela. E quando Alice estendeu
o tapete no chão, ela acrescentou, a respiração acelerada:
— Lindo!
Juntas, as duas ficaram imóveis, contemplando o tapete,
fascinadas e acalmadas pela poça de cores suaves no chão. A
mulher inclinou-se, pegou o tapete, suspendeu-o contra a
luz. Alice deu a volta para ficar a seu lado e viu a luz passar
pelo tapete, parecendo arder em um ponto. Sentiu um
aperto na garganta e pensou, angustiada: "Vou levá-lo para a
casa. E tão lindo... " Mas esperou, enquanto o tapete era
largado no chão, caindo em dobras. A mulher disse, então:
— Está muito puído. Teria de ser remendado. Eu não poderia
lhe dar mais que trinta.
— Trinta? — repetiu Alice, em tom de lamúria. Não sabia o
que poderia esperar. Sabia apenas que o tapete era ou fora
valioso. E balbuciou, pensando que não valera a pena levá-lo:
— Trinta.
— Meu conselho é o de que você deve ficar com o tapete e
aproveitá-lo — disse a mulher, voltando à mesa, deixando os
óculos escuros retornarem ao lugar e tomando um gole de
café.
— Não posso — murmurou Alice. — Preciso do dinheiro.
Ela pegou as três notas e, depois de um último olhar
prolongado para o tapete, ali abandonado, deixou a loja.
Depois de comprar comida para Jasper, foi para a casa. A rua
estava com uma aparência matutina, vazia, as pessoas tinham
ido trabalhar ou estavam na escola; as mulheres, dentro das
casas, arrumavam tudo ou cuidavam das crianças. Não
esperava encontrar ninguém acordado em casa; em comunas
como aquela, ninguém levantava cedo.
Mas Pat estava na sala de estar, sozinha, tomando café, da
garrafa térmica. Indicou com um gesto que Alice devia se
servir, mas Alice ainda estava com a barriga cheia do lauto
desjejum e sacudiu a cabeça.
— Arrumei algum dinheiro, mas não o suficiente — in-
formou.
Pat não disse nada. A claridade intensa da manhã, ela parecia
mais velha, toda flácida e consumida, não mais com o brilho
de cereja. Os cabelos ainda não haviam sido escovados, ela
recendia a sexo e suor. Alice pensou: Hoje vamos limpar os
banheiros. Eram dois.
Pat continuava calada. Acendeu um cigarro e começou a
fumar, como se planejasse se afogar em fumaça.
Alice já percebera que Pat era uma dessas pessoas que
precisam de tempo para despertar completamente pela
manhã e não iria dizer nada por algum tempo. Ela sentou,
também em silêncio, avaliou o estado em que se encontrava
a sala. As cortinas eram trapos, e não se podia esperar que
resistissem a uma lavagem. Talvez sua mãe... O carpete ainda
era aproveitável. Mas como arrumar um aspirador de pó?
Ela sabia que Pat a observava, mas não enfrentou seu olhar.
Sentia que Pat era uma aliada e não queria desafiar essa
impressão. Pat disse finalmente, tossindo um pouco por
causa da fumaça:
— Apenas vinte e quatro horas! E esse o tempo em que você
está aqui!
E ela riu. Não com hostilidade. Mas reservando-se um jul-
gamento. Bastante justo, pensou Alice. Em política, era
sempre assim que se devia agir...
Houve um súbito ruído na rua e o caminhão de lixo parou.
Soltando uma exclamação, Alice saiu correndo e foi direto
para os dois homens que carregavam as latas de lixo do
jardim vizinho.
— Por favor, por favor, por favor...
Eles pararam, lado a lado, fitando-a, homens enormes, fortes
por causa de seu trabalho, confrontados por aquela mulher
que se mostrava ao mesmo tempo obstinada em sua decisão
de não sair da frente e frenética. Alice balbuciou:
— O que será preciso para vocês limparem este jardim? Eu
sei, eu sei...
Os dois exibiam expressões de desdém repugnado, enquanto
olhavam da sórdida imundície para ela, de volta à sujeira,
outra vez para Alice, retornando ao jardim, avaliando a
tarefa.
— Deveria ligar para a prefeitura — disse um dos homens.
— Vocês são a prefeitura — insistiu Alice. — Não, por fa-
vor... chegamos a um acordo. Temos autorização para ficar
nesta casa. Pagaremos as despesas.
— Dê um pulo até aqui, Alan — gritou um dos homens, para
o caminhão, que não parava de vibrar, pronto para mastigar
qualquer quantidade de caixas de plástico, latas, papel, o lixo
que atulhava o jardim de sua casa, até a altura das janelas.
Outro homem enorme saltou do caminhão, de macacão azul,
usando grossas luvas de couro. Alan, árbitro do destino de
Alice, como Philip, como Mary Williams.
— O que será preciso para vocês tirarem esse lixo? —
perguntou ela.
Alice falou com calma confiante, como convinha à filha de
sua mãe, e ao mesmo tempo com desespero. Eles ficaram
olhando para ela, sem pressa, observando o rosto inchado,
informe e infantil, os olhos azuis, redondos e ansiosos, jeans
desbotados de tanta lavagem mas impecáveis, a túnica grossa,
a blusa com um estampado de flores. E tudo, absolutamente
tudo, impregnado de uma poeira cinzenta, que fora abanada
e escovada, mas persistia teimosamente, como um
obscurecimento da cor.
Deram de ombros, como um só. Três pares de olhos
conferenciaram.
— Vinte libras — disse Alan, o motorista.
— Vinte? — lamuriou-se Alice. — Oh, não, vinte libras!
Uma pausa. Eles pareciam, como um só, constrangidos. A
pausa se prolongou.
— Ponha todo esse lixo em sacos plásticos, minha querida, e
pegaremos amanhã. Por quinze.
Alice sorriu. Depois deu uma risada. E a seguir soluçou,
murmurando:
— Obrigada, muito obrigada...
— Espere pela gente amanhã, querida — disse Alan, paternal.
Os três se afastaram, como um só, para a casa do outro lado
da rua e suas latas de lixo.
Alice verificou se o dinheiro continuava em seu bolso e
entrou na casa. Pat ainda estava no mesmo lugar, num transe
de fumaça. Jim descera e estava comendo as coisas que ela
trouxera para Jasper. Ela anunciou:
— Se metermos tudo em sacos plásticos, eles levarão o lixo
amanhã.
— Dinheiro — disse Pat.
— Dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro — disse Jim,
metendo uma banana na boca.
— Tenho o dinheiro. Se arrumar os sacos plásticos...
Ela se calou, com uma expressão suplicante.
— Pode deixar que eu ajudo — prometeu Jim.
— Tudo isso é ótimo, mas o que vamos fazer com a outra
casa? — indagou Pat. — Podemos limpar tudo aqui, mas a
situação lá é muito pior.
Alice ficou olhando para ela, a boca rosada entreaberta, a
expressão triste, e Pat acrescentou:
— Será possível que não notou a casa ao lado?
Alice saiu correndo de novo e olhou pela primeira vez para
o jardim do qual a vizinha lhe falara. Ordem suburbana. Mas
havia uma sebe alta naquele jardim e mais além... Saiu para a
rua, andou um pouco e viu, como não acontecera antes,
porque fazia suas pequenas excursões por outro percurso,
uma casa idêntica à que estava reivindicando, com janelas
quebradas, telhas faltando, um ar de abandono, o jardim
cheio de lixo. O mau cheiro era horrível.
Ela voltou pensativa e amargurada para a sala de estar e
perguntou:
— Aquela casa está vazia?
— A polícia esvaziou-a há três meses, mas está outra vez
ocupada.
— Não é problema nosso — declarou Alice, desconfiando
que poderia se tornar. — Vou providenciar os sacos
plásticos.
A quantidade suficiente custou dez libras. Pat olhou para a
pilha preta lustrosa nos degraus e comentou:
— Deve ter custado uma boa nota. — Mas ela não se ofere-
ceu para contribuir. — Vamos recolher o lixo com as mãos?
Sem a menor hesitação, Alice foi para a casa ao lado, tocou a
campainha, conversou com Joan Robbins e voltou com duas
pás e um forcado.
— Como consegue essas coisas? — indagou Pat, com uma
ironia cansada, mas pegando o forcado e um saco e
começando a trabalhar.
Era muito pior do que parecia, pois as camadas inferiores
estavam comprimidas, apodrecidas e repugnantes. Um saco
preto lustroso depois de outro recebeu a sua carga horrível.
Foram sendo colocados lado a lado, até que o jardim estava
atulhado de sacos pretos, quase transbordando de detritos
em decomposição. O gato magro observava da sebe, os olhos
fixos em Alice. Incapaz de suportar por mais tempo, ela foi
encher um pires com leite e outro com sobras de queijo, pão
e batatas fritas frias. Levou para o gato, que se adiantou
cautelosamente e comeu.
Pat estava parada, olhando para Alice. Que olhava para o
gato. Jim apoiou-se numa pá e disse:
— Eu tinha um gatinho. Foi atropelado.
Pat esperou por mais, mas não houve. Deu de ombros e
comentou:
— É a vida de um gato.
E continuou a trabalhar. Mas os olhos de Jim estavam
marejados de lágrimas e Alice murmurou:
— Sinto muito, Jim.
— Eu jamais teria outro gato... não depois daquele.
E Jim também voltou a trabalhar, furiosamente. Não de-
morou muito para que os jardins, o da frente e o dos fundos,
estivessem limpos. A relva pálida parecia disposta a uma
nova arremetida para a vida. Uma roseira, há muito
submersa, exibia galhos finos e esbranquiçados.
— Era um lindo jardim — disse Jim, satisfeito.
— Estou fedendo — reconheceu Alice, amargurada. — O
que vamos fazer agora? E ainda nem pensei na água quente.
Se Philip chegar, avisem a ele que não vou demorar.
Ela entrou, encheu baldes com água fria no banheiro. Agua
quente, pensava Alice, essa é a próxima etapa. Dinheiro.
Philip não apareceu.
Bert e Jasper desceram juntos, entretidos numa conversa
responsável sobre as perspectivas políticas. Disseram a Alice
e Pat que iam comer alguma coisa, notaram o jardim limpo e
as fileiras de sacos, comentaram "Bom trabalho" e partiram
para o Fred's Caff.
Pat teria partilhado uma risada com Alice, porém Alice não
estava disposta a enfrentar seus olhos. Nunca trairia Jasper,
para quem quer que fosse! Mas Pat insistiu:
— Deixei uma comuna antes porque tinha de fazer todo o
trabalho. E diga-se de passagem que não eram apenas os
homens... éramos seis, três mulheres, mas eu sozinha fazia
tudo.
Ao ouvir isso, Alice olhou muito séria para Pat, fazendo uma
pausa em seu trabalho de limpar uma janela.
— É sempre assim. Há sempre uma ou duas pessoas que
assumem todo o trabalho.
Ela ficou esperando que Pat comentasse, discordasse,
levantasse uma questão de princípio.
— Você não se importa — disse Pat.
Ela parecia outra vez aprumada, tendo se lavado e escovado
os cabelos. Alice pensava: Está tudo ótimo, ela ajeitou os
olhos, os lábios vermelhos e ele pode então... Sentiu-se
amargurada e murmurou:
— É sempre assim.
— Que revolucionária — comentou Pat em seu jeito especial,
que era amistoso, mas com uma mordacidade que sugeria,
aparentemente, um julgamento seu, permanente e profundo,
uma maneira intimamente arraigada cie encarar a vida.
— Mas eu sou mesmo uma revolucionária — declarou Alice,
muito séria.
Pat não disse nada, mas puxou a fumaça para o fundo de seus
pobres pulmões e espichou a boca num beicinho vermelho
para soltar o jato, que flutuou em tentáculos para o teto sujo.
Seus olhos acompanharam a fumaça em espiral, até que ela
disse finalmente:
— Eu acho que você é, mas há quem não tenha tanta certeza.
— Está se referindo a Roberta e Faye? Ora, elas são apenas...
facínoras!
— Como assim? — disse Pat, rindo.
— Você sabe muito bem.
Com absoluta franqueza, Alice desafiou Pat a assumir uma
posição, pois sabia que a outra não era facínora, mas uma
pessoa séria, como ela própria. Pat não recuou da
confrontação. Era um momento, as duas sabiam, de grande
importância.
Um momento de silêncio, mais fumaça invadiu seus pul-
mões, foi expelida, devagar, sibariticamente, as duas
observando as espirais exuberantes.
— Seja como for — disse Pat —, elas estão preparadas para
qualquer coisa. Podem enfrentar tudo. Até o pior, se for
necessário.
— E daí? — reagiu Alice, calma e confiante. — Eu também
enfrentaria. Estou pronta para tudo.
— Acredito em você.
Jim entrou na sala.
— Philip chegou.
Alice saiu correndo e viu-o à luz do dia pela primeira vez.
Um garoto franzino, um tanto encurvado — mas era um ho-
mem —, com as faces pálidas e encovadas, olhos azuis
grandes e brilhantes, as mãos compridas, brancas e elegantes,
cabelos louros lustrosos. Trazia suas ferramentas.
— A instalação elétrica? — disse Alice, seguindo na frente
para a cozinha devastada, sabendo que havia mais uma coisa
que precisava enfrentar e resolver.
Philip foi atrás, fechou a porta e perguntou:
— Se eu acabar o trabalho, Alice, posso vir morar aqui?
Ela compreendeu agora que já esperava por isso. Afinal, to-
das as vezes que surgira o assunto, seu acordo com a
namorada, alguma coisa ficara por dizer. Philip explicou:
— Estou querendo ser independente. Viver por conta pró-
pria. — Sabendo que Alice estava pensando nos outros, em
seus planos, ele acrescentou: — Sou da UCC. Por que
haveria problema?
Mas não do IRA, refletiu Alice, sabendo que deveria cuidar
disso depois.
— Se depender de mim, a resposta é sim — disse ela.
Isso seria o suficiente? Philip julgara que era ela quem
mandava ali... e quem não pensaria assim?
Ele concentrou sua atenção nos fios que haviam sido
arrancados do reboco e no fogão, que fora derrubado e
estava caído de lado.
Havia amargura em seu rosto: a mesma raiva incrédula que
Alice sentia. Estavam unidos, achando que poderiam destruir
com suas mãos o que aqueles homens haviam feito com a
casa.
Homens como os lixeiros, refletiu Alice, obrigando-se a
pensar. Homens simpáticos. Fizeram tudo aquilo. Mas depois
que abolirmos o imperialismo fascista, não haverá mais gente
assim.
A esse pensamento surgiu uma imagem mental da mãe, que
suspirava, ria, parecia exausta, quando Alice falava em tais
coisas. Na semana passada mesmo, ela dissera, em seu novo
ânimo, amargo, lacônico e incisivo:
— Contra a estupidez, os próprios deuses.
— Como? — indagara Alice.
— Contra... a... estupidez... os... próprios... deuses... lutam...
em vão — declarara a mãe, separando as palavras,
apresentando-as não como se esperasse alguma coisa de Ali-
ce, mas lembrando a si mesma a inutilidade de tudo.
A amargura que Alice sentia contra a prefeitura, os operá-
rios, o sistema, agora incluía também a mãe. Foi dominada
por uma raiva intensa, que a deixou tonta e a fez cerrar as
mãos. Recuperando o controle, percebeu que Philip a
observava com uma expressão curiosa. Por causa de seu
estado, que ele julgava mais violento do que o vandalismo
dos operários merecia?
— Eu seria capaz de matá-los — murmurou Alice.
Ouviu a própria voz, implacável. E ficou surpresa. Sentiu as
mãos doerem e descerrou-as.
— Eu também — declarou Philip, só que de uma maneira
diferente.
Ele largara no chão as ferramentas e estava parado, espe-
rando. Fitava-a com aquela obstinação, agora familiar e
comovente. A assassina em Alice se desvaneceu e ela disse,
oferecendo a promessa que Philip precisava ter, antes de
iniciar qualquer coisa:
— Nada mais justo, se você fizer o trabalho.
Ele balançou a cabeça, acreditando em Alice; depois
concentrou sua obstinação na atenção à parede mutilada.
— Não está tão ruim assim — anunciou Philip, depois de um
longo tempo. — Parece que arrebentaram tudo numa
explosão de raiva, mas não causaram muitos danos.
— Como? — indagou Alice, incrédula, pois lhe parecia que a
cozinha... ou pelo menos duas paredes... estavam
germinando cabos e fios elétricos pendentes, além do reboco
que se acumulava na base dessas paredes desbotadas, com
um aspecto lamentável.
— Já vi coisas piores. — Uma pausa. — Terei de levantar as
tábuas do assoalho. Não posso trabalhar de outra maneira.
O reboco caído endurecera, e Alice teve de quebrá-lo. A
cozinha estava coberta por uma fina poeira branca. Ela
trabalhava ao nível do chão, enquanto Philip se mantinha
por cima, na mesa grande que arrastara para junto da parede.
Não demorou muito para que o reboco e outros detritos
estivessem em sacos, e Alice varreu tudo, com uma escova e
uma frigideira, que eram as únicas coisas de que dispunha.
Estava irritada e chorosa, pois sabia que cada centímetro do
teto e das paredes teria de ser lavado e pintado. A casa inteira
estava assim e ainda havia o telhado... o que encontrariam
quando finalmente tirassem do horrível terceiro andar
aqueles baldes fétidos? Alice escovava e escovava, cada
movimento levantava mais sujeira para o ar, e ela pensava.
Tenho de procurar o Departamento de Energia Elétrica, mas
como poderei ir até lá neste estado?
Ela levantou-se, uma aparição no ar saturado de poeira
branca, e disse:
— Sua amiga... está em casa? Será que ela me deixaria tomar
um banho?
Philip não respondeu: examinava um cabo, com a ajuda de
uma lanterna. Alice acrescentou, furiosa:
— Havia banhos públicos até o ano passado, muito bons,
perto daqui, na Auction Street. Amigos meus os usavam...
eles estão numa casa abandonada na Belsize Road. Mas a
prefeitura os fechou.
Ela sentiu as lágrimas quentes escorrerem pelas faces
esbranquiçadas e ficou olhando, exausta, suplicante, para as
costas franzinas de Philip, quase femininas.
— Tivemos uma tremenda briga quando saí de casa —
informou Philip.
Alice pensou: Ela expulsou-o.
— Ora, não importa. Darei outro jeito. Vou me limpar e
depois procurar o Departamento de Energia Elétrica. Por
isso, tome cuidado, pois eles podem ligar a corrente a
qualquer momento.
— Acha que pode convencê-los?
— Já consegui outras coisas, não é?
Ao pensar nisso e em outras vitórias, Alice sentiu que a
depressão se dissipava, e voltou a transbordar de energia.
No vestíbulo, as duas mulheres desesperadas estavam se
preparando para sair para o mundo de ruas, jardins, vizinhos,
gatos, carros e pardais.
Pareciam-se com as outras pessoas, pensou Alice,
observando-as virar o rosto, a linda e loura Faye muito
delicada, dentro do ambiente protetor quase tangível da
morena Roberta, forte como um tanque — tão forte quanto
eu, concluiu Alice, parada ali, sabendo que estava com a
aparência de um palhaço que acabara de tomar um banho de
farinha de trigo.
— Ora, ora... — murmurou Faye, divertida.
— Essa é ótima — comentou Roberta.
As duas riram e passaram pela porta, como se não tivessem
nada a ver com todo aquele trabalho árduo.
— Não adianta esperar coisa alguma — disse Alice para si
mesma, estoicamente, depois de muita experiência com as
pessoas que faziam e com as que não faziam.
Subiu para o banheiro e ficou nua, desolada, enquanto a
banheira se enchia de água fria, até o nível da marca de
sujeira, que indicava onde já fizera a mesma coisa no início
daquele dia. E mais uma vez ela entrou na água, esforçando-
se para limpar a sujeira, a filha de sua mãe, pensando
morbidamente nos quatro anos que passara na casa da mãe,
onde a água quente saía obediente ao toque de um botão.
Eles não sabem quanto isso custa, pensou Alice, furiosa.
Tudo isso vem do suor dos operários, de nós.
Fez o melhor que pôde; vestiu uma saia limpa e impecável,
que tomara emprestada da mãe, com o gracejo apropriado:
precisava às vezes de uma saia para ter respeitabilidade, pois
algumas pessoas se sentiam mais tranqüilas assim. Pôs outra
blusa limpa, dessa vez a de algodão azul, que a fazia sentir-se
confiante. Arrumou da melhor forma possível os cabelos,
ainda gordurosos e cheios de poeira, apesar de tê-los
mergulhado num balde de água fria. Desceu para a sala de
estar. Pat, relaxada numa poltrona, dormia. Alice aproximou-
se sem fazer barulho e contemplou aquela desconhecida,
que era sua aliada. E pensou: Ela não irá embora por
enquanto. Não quer ir. Não tem Bert em alta conta, mas vai
ficar por causa de todo o seu amor.
Pat estava esparramada na poltrona como se tivesse caído do
teto, a cabeça inclinada para trás, o rosto levantado e expos-
to. Os olhos e os lábios tremiam, prestes a se abrirem. Alice
ficou esperando que ela despertasse e sorrisse. Mas Pat conti-
nuou adormecida, vulnerável sob a inspeção meticulosa de
Alice. Ela sentiu que possuía Pat naquele olhar — sua vida, o
que ela era e o que seria. Nunca se permitiria dormir assim,
exposta a qualquer um que entrasse e olhasse. Era uma
atitude descuidada e tola, como andar na rua com dinheiro
solto na mão. Alice adiantou-se e inclinou-se sobre Pat, a
fim de observar melhor aquele rosto inocente, com os olhos
fechados, por trás dos quais uma habitante se embrenhara
por território desconhecido. Sentiu-se curiosa. Com que Pat
estaria sonhando, parecendo um bebê tirando um cochilo,
depois de tomar uma mamadeira? Alice começou a sentir-se
protetora, querendo que Pat despertasse, caso os outros
entrassem e a vissem assim, indefesa. Mas, a seguir pensou:
Provavelmente será Bert, não é mesmo? A Bela Adormecida!
Agora era desdém o que sentia, por causa da necessidade de
Pat. Se ela tem esse problema, então não há saída, disse Alice
a si mesma, ponderada, dando os descontos necessários. E,
procurando não fazer barulho, deixou a sala de estar,
atravessou o vestíbulo e saiu para o mundo exterior. Eram
cerca de três horas de uma tarde de primavera fresca e
revigorante. Alice pegou o ônibus para ir ao Departamento
de Energia Elétrica, com a maior confiança.
O departamento ficava num prédio grande e moderno,
recuado da rua, onde enxameavam, em carros e a pé, pessoas
animadas, poliglotas e necessitadas, cuja vida sustentavam
com luz, chaleiras fervendo, vigorosos aspiradores de pó...
energia. O prédio parecia consciente de seu papel: quase um
milhão de pessoas dependia de suas atividades. Era sólido e
confiável. As janelas faiscavam. Os carros dos funcionários
estavam estacionados em filas ordenadas, reluzentes.
Alice subiu os degraus e, conhecendo o caminho por já ter
visitado prédios similares, foi direto para o segundo andar,
constatando que se encontrava no lugar certo, pois havia
uma sala em que cerca de dez pessoas esperavam. Contas
atrasadas, novas ligações, ameaças de corte, uma pequena e
paciente multidão de solicitantes. Havia duas outras portas
na sala, e Alice sentou-se numa posição que lhe permitia ver
através de ambas. Quando as portas se abriam para emitir um
consumidor e admitir outro, Alice examinava o rosto
daqueles novos árbitros. Havia somente mulheres, sentadas
por trás de suas respectivas mesas. Depois de um único
olhar, ela compreendeu que havia uma que devia evitar.
Aquela mulher cumpria a lei ao pé da letra, calculou Alice,
percebendo uma certa satisfação na competência. Rosto e
lábios finos, cabelos louros ondulados e impecavelmente
escovados, um sorriso que Alice não tinha a intenção de
ganhar. Mas a outra mulher poderia aceitar seus argumentos,
embora à primeira vista... Ela era grande, e o vestido grosso e
justo mantinha-a compacta e segura, desempenhando as
funções de um espartilho, mas daquela fortaleza de vestido
emergia um rosto largo, suave, um tanto infantil, e mãos
enormes e também suaves. Alice procurou a posição
adequada e no momento devido viu-se sentada diante
daquela mulher maternal, que sabia que várias vezes por dia
contornava um pouco o rigor da lei, pois sentia pena das
pessoas.
Alice contou sua história e descreveu — sabendo exatamen-
te o que estava fazendo — a casa grande e sólida, que
inexplicavelmente seria demolida, a fim de dar lugar a mais
um repulsivo bloco de apartamentos. Depois, exibiu o
envelope oficial da prefeitura, com a carta dentro.
Aquela autoridade, a senhora Whitfield, apenas correu os
olhos pela carta e disse:
— Estou vendo que a casa foi incluída na agenda para
discussão, mas isso é tudo. Ainda não houve uma decisão. —
Ela levantou um cartão no pequeno arquivo a seu lado. —
Número 43? Conheço a casa. Tem a 43 e a 45. Passo por lá
todos os dias, a caminho da estação do metrô. E as casas me
deixam enojada.
Ela olhou embaraçada para Alice, até corou.
— Já começamos a limpar a 43. Os lixeiros vão levar todo o
lixo amanhã.
— Quer que eu providencie a religação agora, antes de saber
a decisão da prefeitura?
— Tenho certeza de que será favorável — disse Alice,
sorrindo.
Ela estava mesmo convencida. A senhora Whitfield
percebeu-o, sentiu-o e meneou a cabeça.
— Quem vai garantir o pagamento? Você? Por acaso tem um
emprego?
— Não — respondeu Alice. — No momento, não.
Ela pôs-se a falar, de maneira calma e séria, sobre as casas em
Halifax, Manchester e Birmingham que haviam sido salvas,
em que a energia elétrica correra obediente através dos fios,
depois de uma longa abstinência. A senhora Whitfield ficou
escutando, sólida e firme em sua cadeira, enquanto a mão
enorme e branca empunhava uma caneta esferográfica por
cima de um formulário: Sim. Não.
— Para autorizar a religação da energia, preciso primeiro de
um fiador — disse ela.
— Mas sabe que essa exigência só existe aqui... talvez em
mais um ou dois outros lugares. Em Lampton, por exemplo,
vocês seriam obrigados a nos fornecer energia de qualquer
maneira. Basta as pessoas pedirem que a ligação tem de ser
feita.
— Você parece conhecer a situação tão bem quanto eu —
comentou a senhora Whitfield, suavemente. — Não sou eu
quem formula a política, apenas a executo. E a política aqui é
exigir um fiador.
Mas os olhos azuis da mulher, fixados em Alice, não eram
combativos ou hostis, muito ao contrário; ela parecia estar
apelando para que Alice apresentasse alguma solução.
— Meu pai vai garantir o pagamento — declarou Alice. —
Tenho certeza.
A senhora Whitfield já começara a preencher o formulário.
— Então não há problema. Qual é o nome dele? Endereço?
Telefone? Precisamos de um depósito.
Alice tirou dez libras e pôs sobre a mesa. Sabia que não era
suficiente. A senhora Whitfield assumiu uma expressão
cautelosa e assinou o formulário. Não olhou para Alice. Um
mau sinal. Não pegou o dinheiro. Finalmente, ergueu os
olhos para Alice e pareceu surpresa com o que viu.
— Quantos vocês são? — perguntou ela, apressada, como
quem queria ganhar tempo, olhando para a nota e depois
fazendo um esforço para confrontar o rosto de Alice, aquele
rosto que não aceitaria uma negativa.
Não era justo!, a senhora Whitfield parecia estar sentindo.
Eram impróprias e erradas as emoções que Alice introduzira
naquele escritório ordenado e sensato. Provavelmente o que
a senhora Whitfield devia estar fazendo era dizer a Alice que
fosse embora e voltasse depois com provas suficientes de sua
posição como cidadã. Porém a senhora Whitfield não podia
fazer isso. De jeito nenhum. Alice podia perceber pelo modo
como o busto enorme arfava, pelo rosto um pouco corado e
chocado, que estava prestes a sair vitoriosa.
— Está bem — a senhora Whitfield acabou dizendo.
Ela permaneceu imóvel por um momento, não tanto em
dúvida, pois já tomara sua decisão, mas preocupada. Por
Alice.
— Aquelas casas são enormes — comentou ela, querendo
dizer que consumiam muita energia.
— Não haverá problemas — garantiu Alice, sabendo que
haveria. — Pode fazer a ligação esta tarde? Temos um
eletricista trabalhando na casa e isso ajudaria muito...
A senhora Whitfield acenou com a cabeça. Alice foi embo-
ra, sabendo que a mulher a observava, perturbada, talvez já
especulando por que cedera.
Em vez de seguir direto para casa, Alice parou numa cabine
telefônica, na esquina, e ligou para a mãe. Não reconheceu a
princípio a voz que atendeu; mas era a mãe. Aquela voz
horrível e sem qualquer inflexão... Ela quase disse "Aqui é
Alice", mas não foi capaz. Repôs o fone no gancho
gentilmente e ligou para o pai. Mas foi o sócio dele que
atendeu.
Comprou uma garrafa térmica grande (que sempre seria útil,
até em manifestações e piquetes), pediu à mulher de Fred
para enchê-la com um chá forte e foi para casa.
A nuvem de poeira branca na cozinha se dissipara. Ela disse
a Philip, agora agachado no chão, com metade das tábuas do
assoalho levantada:
— Tome cuidado, pois eles podem ligar a corrente a qualquer
momento.
— Já ligaram. Acabei de testar.
Philip presenteou-a com um sorriso que fez com que tudo
valesse a pena. Sentaram-se à mesa grande e tomaram o chá
forte, felizes, num clima de companheirismo. Era uma
cozinha grande. Houvera um tempo em que uma família ali
centralizava a sua vida, aquecida, segura e inabalável.
Sentavam-se juntos em torno daquela mesa. Mas Alice sabia
que era preciso dinheiro antes que tudo isso pudesse
recomeçar.
Ela deixou Philip e foi para a sala de estar, onde Pat estava
acordada, não mais esparramada e exposta à sua curiosidade
ansiosa. Estava lendo. Um romance. De algum autor russo.
Alice conhecia o nome do autor como conhecia o nome de
muitos autores — ou seja, como se fossem objetos numa
prateleira, sólidos e fixos, reluzentes, com vida e luz
próprias. Como bolinhas de gude, que se podia revirar entre
os dedos pelo tempo que se quisesse, mas jamais revelavam
seus segredos, jamais se submetiam.
Alice nunca lia outra coisa além de jornais.
Quando criança, insistiam muito com ela: Alice tem um
bloqueio contra os livros. Era uma leitora relutante, algo que
não podia ser ignorado numa casa impregnada de livros. Seus
pais, especialmente a mãe, as visitas, todas as pessoas que ela
conhecia já tinham lido tudo. Nunca paravam de ler. Os
livros entravam e saíam de sua casa em ondas.
— Eles se reproduzem nas prateleiras — gracejavam os pais,
e depois seu irmão, na maior felicidade.
Mas Alice acalentava seu bloqueio. Era um mundo em que
podia optar por não entrar. Podia polidamente recusar. E
persistia nessa atitude, sempre polida, mas firme, saboreando
secretamente o poder que possuía de inquietar os pais.
— Não vejo o menor sentido em toda essa leitura — dizia.
E continuara a dizê-lo, mesmo na universidade, estudando
política e economia, ainda mais porque os livros que deveria
ler não possuíam a qualidade inacessível e zombeteira
daqueles outros.
— Estou interessada apenas nos fatos — ela sempre afirmava,
durante esse período, quando não havia escapatória e tinha
de ler pelo menos um mínimo de livros.
Mas, depois, aprendera que não podia dizer isso. Sempre
houvera livros de todos os tipos nas casas ocupadas e nas
comunas. Costumava especular como era possível que um
camarada com uma visão lúcida e correta da boa vida
estivesse disposto a arriscar tudo pela leitura de todos aqueles
textos perigosos e equívocos, nos quais podia mergulhar por
um instante, mas logo se retirava, como que escaldada.
Chegara a ler em segredo, quase até o fim, um romance que
fora recomendado como um instrumento útil na luta, mas
experimentara a mesma sensação do tempo de criança: se
perseverasse, deixando que um livro levasse a outro, poderia
se descobrir perdida, sem mapas.
Mas ela sabia as coisas certas para dizer. E comentou agora,
sobre o livro que Pat estava lendo:
— Ele é um escritor muito humanista.
Pat fechou o Riso na escuridão e empertigou-se na poltrona,
com expressão pensativa, olhando para Alice.
— Nabokov um humanista? — indagou ela.
Alice compreendeu que havia o grave risco do que temia
mais do que qualquer outra coisa: a conversa literária.
— Eu acho que sim — insistiu ela, com um sorriso modesto e
o ar de uma pessoa disposta a defender uma posição
impopular, alcançada depois de muita reflexão. — Ele se
importa realmente com as pessoas.
Alguém — algum camarada, em alguma ocasião, em alguma
comuna — recomendara: "Quando em dúvida, pode tachá-
los de humanistas".
A expressão firme, interessada e pensativa de Pat lembrava
uma coisa a Alice. Uma pessoa. Isso mesmo: Zoé Devlin. Era
assim que ela olhava para Alice quando se falava em
literatura; Alice não tinha então qualquer alternativa senão
oferecer uma contribuição.
E, subitamente, Alice lembrou mais uma coisa. Zoé Devlin.
Isso mesmo.
Uma briga ou pelo menos uma discussão entre Dorothy
Mellings e Zoé Devlin. Recentemente. Não muito antes de
Alice partir.
Ela se concentrava com tanto empenho na recordação que
sentou, mal notando o que fazia e esquecendo Pat.
A mãe queria que Zoé lesse algum livro e Zoé dissera que
não, pois achava que sua visão política era reacionária.
— Como sabe se ainda não leu? — indagara Dorothy, rindo.
— Há uma porção de livros assim, não é? — insistira Zoé. —
Provavelmente escritos pela CIA.
— E você mesma quem está falando, Zoé? — dissera
Dorothy, parando de rir. — E de fato Zoé Devlin? Minha
grande amiga, a destemida e incorruptível Zoé Devlin, uma
pessoa de mente aberta?
— Espero que sim.
— Eu também espero — continuara Dorothy, cada vez mais
séria. — Será que ainda temos alguma coisa em comum?
— Ora, Dorothy, pare com isso. Não quero discutir, mesmo
que você esteja com vontade.
— Não está disposta a discutir sobre algo tão importante
quanto um livro? Uma visão da vida?
Zoé acabara gracejando sobre a situação. E fora embora pou-
co depois. Teria voltado à casa? Claro que sim, pois estava
sempre entrando e saindo daquela casa há... desde que Alice
nascera.
Zoé era uma das "tias" de Alice, como Theresa.
Por que não pensara em procurá-la para conseguir dinheiro?
Espere um pouco, havia alguma coisa no fundo de sua
mente... o quê? Isso mesmo, houvera aquela tremenda briga
entre Dorothy e Zoé. E fora recente, não tinha mais de uma
semana ou por aí. Apenas uma briga? Não, mais. Uma
porção.
Dorothy dissera que Zoé era mole, como um sorvete de
chocolate.
Haviam gritado uma com a outra. Zoé saíra correndo. Ela,
Alice, gritara para a mãe:
— Você não vai ter mais nenhuma amiga se continuar assim!
Alice estava se sentindo enjoada. E muito. Acabaria
vomitando, se não tomasse cuidado. Continuou sentada,
imóvel, comprimindo os olhos, mas falou normalmente,
como se nada tivesse acontecido:
— Estou com receio de que a polícia possa aparecer de novo.
Era isso o que ela viera dizer.
— A polícia? Por quê?
— Precisamos tomar uma decisão. Vamos supor que a polícia
apareça de novo e entre na casa.
— Já sobrevivemos a isso antes.
— O problema são os baldes... todos aqueles baldes lá em
cima. Não podemos esvaziá-los no sistema. Não tudo de uma
vez. Seria um risco. Só Deus sabe como os canos estão lá
embaixo, onde não podemos ver. E se esvaziarmos um de
cada vez... um por dia, por exemplo... vai levar uma
eternidade. Mas se cavarmos um buraco...
— Tem os vizinhos — disse Pat no mesmo instante.
— Conversarei com a mulher da casa ao lado.
— Não posso imaginar Joan Robbins pulando de alegria.
— Mas vai acabar com a coisa de uma vez por todas, não é
mesmo? E todos ficarão satisfeitos por isso.
— Todo o trabalho teria de ser feito por você, Jim e eu.
— Sei disso. Vou falar agora com Joan Robbins. Peça a Jim
para ajudar.
Uma pausa. Pat bocejou, contorceu-se na poltrona, levantou
o livro, tornou a baixá-lo e disse:
— Está bem.
No jardim ao lado, que era bastante largo, dividido por um
caminho de cascalho, Joan Robbins trabalhava num canteiro
com um forcado. Debaixo de uma árvore, do outro lado,
estava sentada uma velha, olhando para o céu.
Joan Robbins empertigou-se quando Alice apareceu,
assumindo uma atitude defensiva. Mas Alice não lhe deu
tempo para um protesto, pois foi logo dizendo:
— Senhora Robbins, pode nos emprestar suas ferramentas
por algum tempo? Queremos escavar um buraco. Bem
grande. Para o lixo.
Joan Robbins, que já agüentara a irritação da casa 43 por
muito tempo, deu a impressão de que ia dizer não, que já
estava cansada de tudo aquilo. O rosto simpático estava
furioso e corado.
Mas a velha sentada numa cadeira debaixo da árvore
inclinou-se para a frente nesse momento. Seu rosto era
encovado e arroxeado, os cabelos brancos eriçados. E ela
disse, numa voz engrolada, velha, um pouco trêmula:
— Vocês são muito porcos.
— Não somos, não — protestou Alice, firmemente. —
Estamos limpando tudo.
— Pessoas porcas e desagradáveis — insistiu a velha, embora
já não com tanta segurança, depois de avaliar uma moça tão
simpática parada no gramado verde, com os narcisos por
trás.
— Sua mãe? — perguntou Alice.
— Uma inquilina — respondeu a senhora Robbins, sem
moderar a voz. — Ocupa o apartamento de cima.
Alice compreendeu a situação num relance. Aproximou-se
da velha e disse:
— Como tem passado? Sou Alice Mellings. Acabei de me
mudar para a casa 43. Estamos arrumando tudo e tirando o
lixo.
A velha se encolheu: seus olhos pareceram ficar vidrados
pelo esforço.
— Até breve — acrescentou Alice.
Voltou para junto da senhora Robbins, que indagou,
carrancuda, indicando as fileiras de sacos pretos lustrosos,
todos cheios:
— O que vão enterrar?
Ela sabia!
— Vai acabar com o mau cheiro, de uma vez por todas —
respondeu Alice. — Pensamos em cavar o buraco esta tarde
e nos livrarmos de tudo esta noite... para sempre.
— E uma coisa horrível — disse a senhora Robbins, chorosa.
— E uma rua muito agradável.
— Amanhã, a esta hora, já não haverá mais lixo. O mau
cheiro vai desaparecer.
— E o que me diz da outra casa, a 45? As moscas são demais
no verão. Não deveria ser permitido. A polícia bem que tira
o pessoal de lá... mas eles sempre voltam.
Ela poderia ter dito "vocês". Alice insistiu:
— Se começarmos a cavar agora...
Joan Robbins sugeriu:
— Se cavassem bastante fundo...
Alice voltou correndo para a casa. Na sala em que o vira pela
primeira vez, Jim tocava seus tambores. A princípio ele não
sorriu, mas acabou por fazê-lo, porque era essa a sua natu-
reza. Mas ressaltou:
— Daqui a pouco estarão me dizendo: Jim, você tem de ir
embora...
— Ninguém vai dizer isso — garantiu Alice, fazendo outra
promessa.
Ele levantou-se e seguiu-a; encontraram Pat no vestíbulo. Na
parte do jardim mais distante da rua, escondida pela casa,
havia um lugar que já fora um depósito de adubo.
Começaram a cavar, enquanto do outro lado da sebe a
senhora Robbins trabalhava no canteiro, sem olhar para eles.
Mas ela era a barreira contra o resto da rua abelhuda, que
obviamente observava de suas janelas, trocando
comentários, achando até mesmo que estava na hora de
chamar a polícia de novo.
A terra estava macia. Encontraram o esqueleto de um
cachorro grande, duas moedas antigas, uma faca quebrada,
um forcado de jardim enferrujado, que seria bastante útil
quando fizessem a limpeza, depois uma garrafa... e outra
garrafa. E logo estavam tirando uma garrafa depois de outra.
De uísque, conhaque e gim, garrafas de todos os tamanhos,
centenas, estavam afundados até a altura da cintura no
buraco na terra, cercados por garrafas, anos de ressacas e
esquecimento de alguém.
Pessoas voltavam do trabalho, paravam, olhavam,
comentavam. Um homem disse, jovialmente:
— Vão enterrar um cadáver?
— Daqui a pouco a polícia vai aparecer — comentou Jim,
amargo, experiente.
— Oh, Deus, essas garrafas! — praguejou Pat.
— O banco de garrafas — murmurou Alice. — Se tivéssemos
um carro... Quem tem um carro?
— O pessoal da outra casa tem.
— Da 45? Será que nos emprestariam? Precisamos nos livrar
dessas garrafas.
— Você é demais, Alice — protestou Pat.
Mas ela encostou sua pá na parede da casa — sabiam que do
outro lado ficava a sala de estar, onde Bert e Jasper
conversavam —, saiu para a rua transversal e encaminhou-se
para a principal. Voltou pouco depois num velho Toyota.
Eles estenderam sacos de plástico vazios nos assentos e
encheram o carro com garrafas: atrás até o teto, a mala, o
espaço na frente ao lado do motorista, deixando apenas lugar
para Alice se agachar, enquanto Pat guiava até os grandes
depósitos de cimento, onde trabalharam por quarenta e
cinco minutos, quebrando as garrafas.
— Já chega por hoje — disse Pat, falando sério, enquanto
estacionava o carro diante da casa 45.
Saltaram, e Alice olhou para o jardim, consternada.
— Não vai querer limpar esse também! — acrescentou Pat,
outra vez mais uma declaração do que uma pergunta.
Ela foi para a casa, sem olhar para trás, subiu para o segundo
andar e entrou no banheiro.
Não fez qualquer comentário sobre a lâmpada nova,
derramando alguma claridade pelo vestíbulo.
Alice pensou: Quantos cômodos a casa tem? Vamos pôr uma
lâmpada em cada um? Mas isso custaria libras e mais libras,
pelo menos dez. Preciso arrumar dinheiro...
Estava escuro lá fora. Uma noite úmida, ventando bastante.
Alice foi para a sala de estar. Bert e Jasper não estavam ali.
Ela pensou: Nesse caso, seremos eu e Jim...
Jim estava outra vez com seus tambores. Ela entrou na outra
sala e disse:
— Vou buscar os baldes. Você fica ao lado do buraco e joga a
terra. Bem depressa, antes que a rua inteira comece a
reclamar.
Jim hesitou, parecia prestes a protestar, mas acabou
concordando.
Ela nunca tivera de fazer nada tão repulsivo, em toda a sua
história de comunas e casas abandonadas. O quarto que tinha
apenas uns poucos baldes já estava horrível, mas o outro,
maior, cheio de baldes transbordando, deixou-a com
vontade de vomitar antes mesmo de abrir a porta. Trabalhou
depressa, carregando dois baldes de cada vez, controlando o
estômago embrulhado, num miasma que não parecia
diminuir, mas em vez disso se espalhava da casa para o
jardim e a rua. Ela esvaziava os baldes, enquanto Jim
rapidamente jogava terra por cima. O rosto dele tinha uma
expressão horrível. Do jardim em frente vieram gritos de
"Porcos!" Alice saiu para a pequena rua e parou junto a uma
sebe, bastante alta, dizendo a alguém que observava do outro
lado, um homem:
— Estamos limpando tudo. Não haverá mais qualquer cheiro
depois desta noite.
— Vocês deviam ser denunciados à prefeitura.
— A prefeitura sabe — declarou Alice. — Está a par de tudo
o que fazemos aqui.
Sua voz era serena, confiante, no tom de um proprietário
para outro proprietário. Retornou sob os lampiões para seu
jardim escuro, com uma pose tranqüila, quase indiferente. E
recomeçou o trabalho de descer os baldes.
Por volta das onze o buraco estava cheio, completamente
coberto, e o mau cheiro já começava a se dissipar.
Alice e Jim ficaram parados no escuro, cercados pelas moitas
confortadoras. Ele tirou um cigarro do bolso e acendeu-o;
embora não costumasse fumar, Alice aceitou um. Fumaram
juntos, tragando as nuvens de fumaça e soprando com força,
tentando preencher o ar do jardim com aquela fragrância.
Jim comentou, com uma risada consternada:
— Era tudo merda minha. Ou quase tudo. Havia também de
Roberta e Faye.
— Sei disso. Não importa, agora.
— Já pensou, Alice... alguma vez já parou para pensar a
respeito... quanta merda fazemos ao longo da vida? Só estou
aqui há oito meses, mais ou menos. Se toda a merda que
fazemos na vida fosse posta num tambor... ou num tanque
grande... precisaríamos de um tanque grande como o da
usina de energia elétrica de Battersea para todo mundo. —
Ele estava rindo, mas parecia assustado. — Vai tudo para os
esgotos, por baixo dos nossos pés. Mas já pensou o que
aconteceria se os esgotos ficassem entupidos?
— Isso não vai acontecer — garantiu Alice, esquadrinhando
na escuridão o rosto escuro de Jim, procurando descobrir o
que o estava realmente assustando.
— E por que não? Dizem que nossos esgotos são velhos e
apodrecidos. E se explodissem, com o gás de esgoto?
Ele tornou a rir. Alice não sabia o que dizer.
— E a gente continua a viver nesta cidade — acrescentou
Jim, dominado pelo desespero. — Continuamos a viver...
Jim estava agora muito diferente de seu jeito habitual.
Desaparecera a expressão doce e cordial. Era agora
amargurada, irada e assustada.
— Esqueça tudo isso, Jim. Vamos tomar um chá. O serviço já
acabou.
— É justamente o que eu estava querendo dizer — insistiu
Jim, soturno. — Você diz vamos tomar um chá e acha que é
o fim de tudo. Mas não é. De jeito nenhum.
Ele largou a pá e foi se trancar sozinho em sua sala.
Alice também entrou na casa. Pela terceira vez naquele dia
ela foi para o banheiro encardido, fazendo um esforço para
se lavar com água fria.
Depois, ela subiu. Todas as janelas do último andar estavam
abertas, deixando entrar o ar fresco. Chovia. Os sacos de lixo
ficariam com bastante água, o que poderia deixar os lixeiros
irritados.
Meia-noite. Alice desceu, bocejando, avaliando a casa
mentalmente, a disposição dos cômodos, tudo o que
precisava ser feito. Onde estava Jasper? Ela queria Jasper. A
necessidade de Jasper a dominava de vez em quando, como
naquele momento. Apenas saber que ele estava por ali, em
algum lugar; ou, se não estava, chegaria em breve. Mas
quando chegou ao último degrau houve uma batida na porta,
como um aríete em ação. A polícia. Sua mente disparou.
Jasper? Se ele estava na casa, ficaria escondido? Bastava à
polícia dar uma olhada em Jasper para agarrá-lo. Haviam
gracejado muitas vezes que se a polícia avistasse Jasper a cem
metros de distância, no escuro, partiria para o bote. Devia
haver alguma coisa nele que era inadmissível. E Roberta e
Faye? Por favor, Deus, faça com que elas ainda estejam no
piquete. A polícia só teria de dar uma olhada nelas também
para entrar em ação. O tipo errado de policial acharia
irresistível o seu jeito infantil. Mas Pat não seria problema.
Nem Bert... Onde estava Jim?
Enquanto ela pensava em tudo isso, Pat passou pela porta da
sala de estar e fechou-a, de um jeito que revelou a Alice que
os dois homens se encontravam lá dentro; e Philip estava na
porta da cozinha, segurando uma lanterna grande, acesa, e
um alicate.
Alice correu para a porta da frente e abriu-a, tão depressa
que os homens que a martelavam cambalearam para dentro,
quase caindo em cima dela.
— Entrem — disse ela calmamente, avaliando a situação num
olhar.
Os policiais exibiam a expressão de caçadores, que ela
conhecia muito bem; mas a situação não era tão má assim,
pois eles não estavam com o sangue quente, à exceção talvez
de um, cujo rosto era familiar a Alice. Não como indivíduo,
mas como um tipo. Um rosto frio, aprumado, com um
bigodinho felpudo. Um rosto de criança, de olhos cinzentos,
duros e frios. Ele gosta disso, refletiu Alice; e percebendo o
olhar do homem ao redor, como se estivesse ansioso por
atacar, mal contido por uma coleira, ela sentiu calafrios
descendo pelas coxas. Tomou cuidado para evitar que o
homem percebesse sua expressão e foi postar-se na frente de
outro policial, grande e largo, que devia pesar pelo menos
cem quilos. Um sargento. Ela também conhecia o tipo. Não
era dos piores. Teve de levantar os olhos para fitá-lo, e o
homem contemplou-a de cima, com olhar avaliativo.
— Mandamos vocês saírem daqui — disse esse homem, com
o mesmo tom que os lixeiros haviam usado, um desdém
duro, mas ao mesmo tempo fazendo um gesto para dois
homens que estavam prestes a empurrar Pat para o lado e
entrar na sala de estar, o que os levou a desistir.
Alice estendeu o papel amarelo e disse:
— Estamos aqui com autorização.
— Não estão, não — disse o sargento, percebendo no mesmo
instante o ponto principal.
— Ainda não, mas faltam apenas dois dias para isso — insistiu
Alice. — Já fiz isso antes. Não há problemas, desde que se
paguem as contas e se mantenha a casa limpa.
— Limpa, hem? — disse ele, inclinando-se para Alice, com
as mãos nos quadris, como um sargento de teatro. — O lugar
está uma nojeira.
— Viu todo o lixo lá fora. A prefeitura vai levá-lo amanhã. Já
combinei com eles.
— Combinou, hem? Então por que recebemos vários
telefonemas de que vocês tinham aberto um buraco no
jardim para enterrar estrume?
— Estrume é mesmo a palavra — confirmou Alice. — Os
operários da prefeitura encheram os vasos com cimento, e
por isso havia baldes lá em cima. Precisávamos nos livrar
deles. E cavamos um buraco.
Uma pausa. O homem enorme ficou parado ali, um pouco
inclinado para a frente, deixando que o rosto largo e
vermelho expressasse uma incredulidade controlada.
— Vocês cavaram um buraco — murmurou ele.
— Isso mesmo.
— No meio de Londres. Vocês abriram uma fossa.
— Foi justamente o que fizemos — concordou Alice, sempre
polida.
— E depois de abrirem uma fossa, vocês a encheram com...
O homem hesitou.
— Merda — completou Alice.
Os cinco outros policiais riram, sorriram, prenderam a
respiração, de acordo com suas naturezas, mas o jovem bruto
a quem Alice prestava alguma atenção desde o início chutou
subitamente a porta do armário debaixo da escada,
quebrando-a.
Philip deixou escapar uma exclamação, e o homem avançou
para ele no mesmo instante.
— Você disse alguma coisa? — indagou o policial, assomando
sobre Philip, que estava parado, em seu macacão branco, e
podia ser facilmente desmontado com um chute.
— Isso não importa — interveio o sargento, com plena
autoridade.
Ele queria cuidar do crime principal. O policial rancoroso
deu um passo para trás e parou, os punhos cerrados, os olhos
fixados agora em Pat, que se mantinha relaxada, observando
Alice. Avaliando o olhar dele, Alice compreendeu que Pat
podia esperar o pior se encontrasse aquele homem em
alguma manifestação. E experimentou novamente a sensação
de calafrio.
— Quer dizer que vocês abriram um buraco no jardim e
fizeram uma fossa, sem qualquer autorização? — indagou o
sargento.
— O que mais podíamos fazer? — respondeu Alice, em tom
moderado. — Não podíamos despejar ao mesmo tempo
dezenas de baldes de merda no sistema de esgoto. Não numa
casa que estava vazia. Haveria então motivos maiores para
reclamações, não é?
Outra pausa.
— Não podem fazer esse tipo de coisa — declarou o sar-
gento.
Batendo em retirada. Por favor, Deus, pensou Alice, não
deixe que Pat ou Philip diga "Mas fizemos!"
Silêncio. A coisa estava na balança. Por favor, Deus, por
favor, pensou Alice, não permita que nada aconteça, que as
duas garotas não entrem — o que seria a pá de cal — ou que
Jasper não resolva se intrometer... Pois Jasper, num certo
ânimo, podia muito bem sair e provocar uma confrontação.
Mas a situação se manteve. Os cinco policiais que estavam
dispersos pelo vestíbulo voltaram a se concentrar em torno
de seu líder, como uma posse. Alice disse:
— Com licença, mas pode me devolver isso?
O sargento ainda estava com o papel amarelo. Ele tornou a
ler, solene, depois entregou-o.
— Terei de comunicar a abertura do buraco ao Departamento
de Agua — disse ele.
— Não havia canos onde cavamos — declarou Alice. — Ab-
solutamente nenhum.
— Apenas um esqueleto — comunicou Pat, em tom
negligente. Os seis homens se viraram em sua direção, como
um só, com expressões iradas, e ela acrescentou: — De um
cachorro. Era a sepultura de um cachorro.
Os homens relaxaram. Mas continuaram a olhar para Pat. Ela
os provocara, mas suavemente. A luz difusa da única lâm-
pada, Pat estava descontraída, uma moça morena e bonita,
com um sorriso polido.
— Vamos voltar — declarou o sargento, sacudindo a cabeça
para a porta.
Todos saíram, o ameaçador por último, com um olhar frio e
frustrado para Philip e Pat, mas sem dispensar muita atenção
a Pat, uma pessoa comum, que não oferecia qualquer desafio.
A porta foi fechada. Ninguém se mexeu. Todos ficaram
olhando para a porta; a polícia podia entrar de novo,
arromban- do-a. Uma armadilha. Mas os segundos foram
passando. Ouviram um carro ser ligado. Alice acenou com a
cabeça para Philip, que parecia prestes a romper numa
efusão de sentimento. E a porta foi aberta. Era o sargento.
— Dei uma olhada naqueles sacos — disse ele. — Disse que
serão levados amanhã?
Mas seus olhos vasculhavam o vestíbulo, detendo-se com
um ligeiro franzido da testa na porta quebrada do armário
sob a escada.
— Isso mesmo, amanhã. — Com voz desapontada, Alice
acrescentou: — Não foi muito legal quebrar aquela porta sem
motivo algum.
— Apresente queixa — disse o sargento, lacônico, quase jo-
vial, para desaparecer em seguida.
— Fascistas de merda! — disse Pat, quase numa explosão.
Todos permaneceram onde estavam. Era quase como se
brincassem de "estátuas".
Eles deixaram passar dois ou três minutos e depois, como
uma só pessoa, ressuscitaram, enquanto Jim emergia das
sombras de sua sala, sorrindo. Os quatro foram para a sala de
estar, onde Jasper e Bert estavam refestelados, tomando
cerveja. Alice compreendeu, pelo jeito dos dois, que Jasper
estivera contando a Bert como ela era boa nessas coisas...
refletindo crédito sobre si mesmo; e que Pat estava
impressionada e Jim incrédulo com a aparente facilidade de
tudo. Ela sabia que aquele era o momento em que podia
impor sua vontade em qualquer coisa, e em sua mente, no
alto da longa agenda de dificuldades a serem superadas, um
item se destacava: Philip e Jim.
Ela aceitou uma garrafa de cerveja oferecida por Bert, que a
acompanhou com o sinal do polegar para cima. Logo todos
estavam sentados num grupo compacto no centro da sala
alta. Ainda não houvera tempo para substituir a luz de vela
por uma lâmpada. Mas Philip manteve-se um pouco
apartado, hesitante.
— Primeiro — disse Pat —, a Alice!
Todos beberam a ela, que se manteve em silêncio, sorrindo,
com medo de chorar.
Agora, pensou ela, vou resolver o problema de Philip. E de
Jim. Vamos acertar tudo.
Mas no vestíbulo, subitamente, soaram vozes, risos. Um
momento depois as duas garotas entraram na sala, acesas
com a exaltação que deriva de um dia satisfatório em
piquetes, manifestações e marchas.
Roberta, rindo, aproximou-se do engradado, pegou uma
garrafa, levou à boca, tomou um longo gole de cerveja.
Estendeu a garrafa para Faye, que também bebeu.
— Que dia! — exclamou Roberta, indo se instalar no braço
de uma poltrona, enquanto Faye ocupava o outro.
Uma dupla apartada, elas contemplaram o resto, como
aventureiras, e iniciaram seu relato, Roberta liderando, Faye
completando os detalhes.
Eram cerca de duzentos ou trezentos piqueteiros — os
números variaram, já que muitas pessoas apareciam e iam
embora — evitando que os caminhões com jornais
passassem pelos portões para serem distribuídos. A polícia
estava presente para providenciar que os caminhões
passassem incólumes.
— Duzentos guardas! — disse Roberta, desdenhosa. —
Duzentos guardas escrotos!
— Mais guardas do que piqueteiros — acrescentou Faye,
rindo.
Roberta olhou para ela, cheia de afeto. Animada e exultante,
Faye era bonita de verdade. Sua aparência de apatia, até
mesmo de depressão, desaparecera por completo. Parecia
cintilar na sala escura.
— Tive de impedir que Faye ficasse muito exaltada —
informou Roberta. — Caso contrário ela estaria lá na frente.
E com nós duas tendo de nos manter escondidas...
— Houve prisões?
— Cinco — respondeu Roberta. — Levaram Gerry. Mas ele
não foi quietinho.
— Não foi mesmo — acrescentou Faye, orgulhosa.
— Quem mais?
— Não conhecíamos os outros. Acho que eram da turma dos
militantes.
Uma pausa. Alice sabia que perdera a vantagem e sentiu-se
desanimada. E, percebendo a expressão de Jasper, enquanto
observava as duas garotas, ela pensou: Ele estará lá amanhã,
se bem o conheço.
— Vou para lá amanhã — anunciou Jasper.
Ele olhou para Bert, que disse:
— Certo.
Bert olhou para Pat e ela murmurou:
— Estou nessa.
Silêncio. Faye rompeu-o, muito excitada:
— Eu gostaria de acabar com um daqueles camburões.
Quando vi aquela coisa parada ali, blindada, toda iluminada,
com uma tela no pára-brisa, senti o maior ódio... parecia a
própria essência do mal.
— Tem razão — concordou Bert. — Simboliza tudo o que
odiamos.
— Eu gostaria... eu gostaria... — Percebendo como o amante
a fitava, Faye bancou a coquete nesse momento, acres-
centando com um tremor provocante: — Eu gostaria de
cravar os dentes no camburão!
Roberta deu-lhe um tapinha afetuoso no ombro e depois
abraçou-a por um instante.
— Mesmo assim, nós duas não devemos aparecer lá outra vez
— ressaltou ela. — Não podemos ser apanhadas.
— Por que não? — protestou Faye. — Basta a gente tomar
cuidado.
— É claro que eles fotografaram todo mundo — interveio
Jim, muito excitado. — Devem ter os retratos de vocês.
— Mas não estávamos fazendo nada — insistiu Faye. — E
muito azar ter de ficar na moita...
— Eu irei — anunciou Jim. — Terei o maior prazer. Sacanear
os porcos.
Falou com sinceridade e algum pesar, o que fez com que
Faye e Roberta o fitassem, curiosas. Bert disse:
— A polícia esteve aqui esta noite.
— Ainda bem que não estávamos — comentou Roberta.
— Alice cuidou deles — explicou Pat. — Ela é uma verda-
deira maravilha.
Porém ela não falou com a mesma cordialidade que teria se
as duas mulheres não tivessem aparecido para dividir as
fidelidades.
Tudo arruinado, pensou Alice, amargurada, surpreendendo a
si mesma. Um momento antes, ela refletira: Aqui estou eu a
me preocupar com uma casa, enquanto elas estão fazendo
algo sério.
— Ora, muito bem — disse Faye, descartando a visita da
polícia à casa como algo sem importância, em comparação
com os grandes problemas. — Tenho de dormir agora, se
quiser acordar cedo amanhã.
As duas se levantaram. Roberta olhou para Philip, que ainda
estava sentado ali, apartado, esperando.
— Vai passar a noite aqui? — perguntou ela.
Philip olhou para Alice, que se apressou em dizer:
— Eu disse a Philip que pode ficar aqui.
Ela ouviu o tom de apelo em sua voz, sabia que estava com a
sua cara, sabia que podia a qualquer momento perder o
controle e desatar a chorar.
O corpo de Roberta mudara sutilmente, parecia mais duro,
indignado, embora ela se esforçasse para manter uma
expressão imparcial. Philip dava a impressão de que estava
recebendo golpes invisíveis.
Roberta olhou para Bert, alteando as sobrancelhas. A
expressão de Bert era neutra; ele não tomaria partido. Mais
uma vez, Alice pensou: Ele não é grande coisa. Não presta.
Alice olhou para Pat e percebeu algo que poderia salvar a
situação. Pat esperava por Bert; isso mesmo, algo fora dito,
discutido, quando ela não estava presente. Uma decisão? Pat
finalmente falou, já que Bert não se manifestava:
— Philip, Alice não pode tomar decisões individualmente.
Alice, você sabe disso. Precisamos discutir o assunto.
Nesse ponto ela olhou para Jim, que declarou no mesmo
instante:
— Cheguei aqui antes de qualquer um de vocês. Esta casa era
minha. — Ele parecia furioso, estava furioso, a jovialidade
risonha desaparecera. — Eu disse a vocês que podiam ficar,
que esta era a Casa da Liberdade.
Ali estava uma questão de princípio. Alice a reconheceu e
pensou: "E Jim quem vai salvar Philip!" Jim acrescentou:
— E depois vocês vêm me dizer: "Este não é o seu lugar, tem
de sair daqui". Não dá para entender!
Roberta e Faye se levantaram. Roberta disse:
— Devemos convocar uma reunião de verdade e discutir o
assunto direito.
Philip também se levantou e disse:
— Estou trabalhando aqui há dois dias. As cinqüenta libras
não pagariam a fiação que já usei.
Alice olhou desesperada para Jasper. Que estava esperando
uma manifestação de Bert. Que sorriu calmamente, os dentes
brancos e os lábios vermelhos brilhando na barba preta.
Pat levantou-se. E disse bruscamente, desapontada com Bert:
— Não vejo qualquer motivo para que Philip não possa ficar.
Por que não? E Jim já estava aqui antes de qualquer um de
nós chegar. Agora vou me deitar. Se queremos participar do
piquete amanhã, então devemos levantar até as oito horas, o
mais tardar.
— Eu estarei no piquete — declarou Philip.
Alice respirou fundo e conteve um gemido. Depois,
murmurou:
— Arrumarei o dinheiro. Terei amanhã à noite.
Philip soltou uma pequena risada desapontada.
— E possível — disse ele. — Mas não é essa a questão. Se eu
me preocupasse apenas com o dinheiro, nem estaria aqui.
— Tem toda a razão — concordou Pat. — Bom, acho que
todos estaremos no piquete amanhã.
Ela bocejou e espreguiçou-se, vigorosamente, sensualmente,
lançando um olhar para Bert, que reagiu se levantando e
passando um braço por seus ombros.
Oh, não, pensou Alice, não de novo!
Roberta e Faye saíram, de mãos dadas. Boa noite. Boa noite.
Bert e Pat também deixaram a sala, enlaçados.
Jasper foi atrás deles. Alice ouviu-o subir a escada correndo,
fazendo o maior barulho. E disse a Philip e Jim:
— Está tudo acertado.
— Mas você não pode dizer que está, não individualmente —
ressaltou Philip.
— Isso mesmo — acrescentou Jim.
Ele perdera sua agressividade irada. Voltara à sua
personalidade sensata, sorridente. Mas Alice pensou: Se o
expulsarmos, ele voltará uma noite e arrebentará toda a casa.
Ou algo parecido. Ela ficou surpresa porque os outros não
haviam percebido isso, não haviam sentido.
Philip disse a Alice, assumindo uma posição que já tivera de
adotar muitas vezes antes, como ela desconfiava:
— Não vou trabalhar aqui amanhã. Irei com os outros. Afi-
nal, a luta contra os capitalistas é mais importante que o
nosso conforto.
Sem pagamento, não há trabalho! Ele saiu e foi possível ou-
vir seus passos na escada.
Jim também saiu, sem dizer boa-noite, e foi se refugiar em
sua sala. Começou a tocar seus tambores, baixinho, em tom
emocional, como uma ameaça.
Alice estava sozinha. Deu a volta pela sala, apagando as velas.
Ficou esperando que os olhos se ajustassem, a fim de poder
ver na escuridão irregular os contornos assumindo forma, o
encosto de uma poltrona, a quina dura de uma mesa. E
pensou: A próxima coisa que farei será...
Ao deixar a sala, sentia-se preocupada: Será que Jasper levou
suas coisas para outro quarto? Seu coração pareceu se con-
trair. Pois se Jasper a excluísse, ela sabia que, com a presença
de Bert, seria difícil manter com ele a ligação que era o
sentido e propósito de sua vida. Tinha certeza de que Jasper
não a deixaria, mas podia se afastar muito.
Passou para o vestíbulo, agora vazio e enorme, sem
ninguém. Apagou a luz. Subiu no escuro, sentindo o carpete
puído bastante escorregadio, na escada e no patamar do
andar em que os outros estavam, por trás das portas
fechadas. Até Philip se encontrava ali, no quarto pequeno,
depois do grande que Roberta e Faye ocupavam. Jim sempre
dormia lá embaixo, onde estava sua música — e também
porque seria mais fácil pular pela janela e fugir, se fosse
necessário.
Alice abriu a porta de seu quarto e constatou, com um alívio
que deixou seus joelhos bambos, que Jasper ali estava,
enroscado contra a parede, parecendo um bicho na semi-
escuridão.
O saco de dormir de Alice estava junto à mesma parede; no
passado, ele já o afastara muitas vezes. Foi se deitar,
completamente vestida.
— Jasper...
— O que é?
— Boa noite.
Ele não disse nada. Os dois ficaram em silêncio, prestando
atenção para descobrir se Pat e Bert recomeçariam. E foi o
que aconteceu. Mas Alice sentia-se esgotada. Pegou no sono
imediatamente e quando acordou já era dia claro. Jasper já
saíra, e ela sabia que todos os outros também. Estava sozinha
na casa, à exceção talvez de Philip. Foi verificar. Nem Philip;
e suas ferramentas estavam perto do buraco no assoalho,
onde estivera trocando os fios.
Ela precisava arrumar dinheiro. De qualquer maneira.
Eram nove horas da manhã.
Alice pensou: Se eu falar com mamãe, explicar a situação...
Mas a perspectiva dissolveu-se num poço de consternação.
Não lembrava exatamente o que a mãe dissera, mas sua voz
vazia, como se toda a vida tivesse sido sugada... disso ela
recordava. O que será que está acontecendo com mamãe?,
pensou Alice, indignada.
O pai. Mas ele tem de me dar algum dinheiro! E vai dar! Essa
perspectiva também morreu; não podia sobreviver...
Descobriu que estava pensando na casa nova do pai. Isto é,
não era tão nova assim; o pai já morava lá há mais de cinco
anos, pois ela e Jasper só tinham ido se instalar com a mãe
depois que ele saíra há mais de um ano. Uma nova esposa.
Dois novos filhos. Alice imaginou a casa, em que já estivera
várias vezes. O jardim: Jane. Jane Mellings, com seus dois
lindos bebês no jardim enorme, abundando agora com as
flores da primavera.
Alice pareceu ressuscitar, desceu correndo, pegou a túnica e
saiu para a rua, onde as pessoas começavam a ligar seus
carros para ir ao trabalho. Enquanto corria, pensava: Os
lixeiros disseram que viriam! Mas ela só se ausentaria por
uma hora. Eles não virão tão cedo... mas como posso ter
certeza? Se aparecerem e não encontrarem ninguém...
Mesmo assim, continuou a andar, o mais depressa que podia,
pensando: Mas eles não vão aparecer por enquanto. Tenho
certeza absoluta.
Ela ofegava ao entrar na estação do metrô, arrancou um
bilhete da máquina, desceu a escada e chegou à plataforma
no instante em que um trem parava. Não ficou surpresa,
sabendo que as coisas estavam transcorrendo a seu favor
naquela manhã. Ficou se remexendo inquieta, de pé, no
trem apinhado, subiu correndo a escada na outra estação,
avançou rapidamente pelas ruas arborizadas e foi parar na
frente da casa do pai, que ficava a menos de um quilômetro
da casa da mãe.
Avistou no jardim, como já esperava, a nova esposa do pai,
Jane, sentada na grama, sobre uma manta grande, de listras
vermelhas e verdes, em companhia de duas crianças
pequenas, cujas cabeças louras refletiam os raios do sol.
Alice desviou os olhos da cena, como se o olhar pudesse ter
a força de obrigar Jane a fitá-la. Encaminhou-se para a porta
da frente, descobriu que estava trancada, deu a volta para os
fundos. Estava agora à plena vista de Jane, se ela virasse a
cabeça. Alice entrou na cozinha, que fez seu coração se
confranger, por ser espaçosa, com uma vasta mesa de
madeira, sobre a qual assentavam tigelas com frutas e flores,
coisas que para ela eram o símbolo da felicidade.
Foi para o vestíbulo e subiu a escada, pensando que se o pai
estivesse atrasado para o trabalho — o que nunca acontecia
— ela diria: Olá, papai, finalmente o encontrei! Abriu
calmamente a porta do quarto e deparou, como já esperava,
com uma enorme cama de casal, as cobertas empurradas para
um lado, a camisola de Jane (de seda vermelha), o pijama do
pai, uma bola listrada de criança, um ursinho de pelúcia.
Alice foi direto para as portas corrediças por trás das quais
estavam penduradas as roupas do pai. De maneira impecável:
o pai era um homem metódico. Revistou os bolsos, sabendo
que encontraria alguma coisa, pois sempre fora uma piada,
em sua casa, que Dorothy Mellings sempre descobria
dinheiro nos bolsos do marido e o gastava com
extravagâncias. Ele, o pai de Alice, indagava:
— Afinal, em que gastou o dinheiro?
E a mãe de Alice respondia:
— Pêssegos conservados em conhaque.
Ou marrons glacês. Ou uísque Glenfiddich.
As mãos de Alice entravam e saíam rapidamente dos bolsos,
e ela orava. Oh, Deus, faça com que haja algum dinheiro,
faça com que haja bastante. Seus dedos encontraram um
maço grosso e ela tirou-o, sem acreditar em sua sorte. Um
enorme maço de notas. E notas de dez libras. Meteu-as no
bolso da túnica e saiu do quarto. Desceu a escada, atravessou
a cozinha e saiu para o quintal dos fundos. Nem parou para
verificar se Jane estava olhando para o outro lado. Sabia que
estava.
Afastou-se apressada pela rua, e um momento depois a casa
estava fora de vista. Parou então, virada para uma sebe alta, e
contou as notas. Não queria acreditar, mas era verdade.
Trezentas libras.
O pai daria por falta daquele dinheiro; não era apenas um
vidro de gengibre ou de pêssegos em conserva. Trezentas
libras. O pai pensaria que ela roubara... Jane roubara. Pois
que pensasse assim! Alice experimentou um prazer frio e
azedo, tornou a guardar as notas e saiu correndo. Os lixeiros!
Cerca de quarenta e cinco minutos depois de sair ela estava
de volta à casa e viu o caminhão do lixo virar a esquina.
Sabia, tinha certeza, que tudo correria bem. Ficou parada ali,
sorrindo, o coração disparado, fazendo o sangue latejar em
seus ouvidos.
Os mesmos três homens do dia anterior saltaram do cami-
nhão do lixo. Reconheceram-na, acenaram com a cabeça e
começaram a carregar os sacos pretos e lustrosos. Não
disseram uma só palavra sobre a chuva, que tornara ainda
mais pesados os sacos com o lixo.
Levaram cerca de vinte minutos; Joan Robbins veio se postar
diante de sua porta e ficou observando, de braços cruzados.
Quem mais estava observando? Alice não olhou, mas fez
questão de ir até a sebe para falar com Joan Robbins e sorrir:
vizinhas trocando comentários, seria isso que os
observadores veriam. Depois, foi até o portão, por onde o
último saco de lixo acabara de passar, e entregou quinze
libras a Alan, o motorista, com o sorriso de uma dona-de-
casa. Entrou. Passava um pouco de dez horas. O dia inteiro
estendia-se pela frente, e cada minuto seria ocupado com
alguma atividade útil. E seria mesmo, assim que começasse.
Pois seu vapor se esgotara. Estava agora pensando neles, seus
amigos, sua família; deviam estar diante das oficinas em
Melstead, misturados com os outros piqueteiros, avaliando a
disposição da polícia, circulando confiantes, trocando
comentários que os guardas tinham de ouvir e ignorar...
ignorar até poderem se desforrar mais tarde.
Bert, Jasper e Pat, Jim e Philip, Roberta e Faye... ela esperava
que as duas tomassem todo o cuidado. Ora, eram todos
politicamente amadurecidos, sabiam até que ponto podiam
ir. Jasper? Bom, Jasper não participava de uma confrontação
há muito tempo; por um lado, ele acabara de cumprir em
liberdade uma pena de dois anos. Ela não queria mantê-lo
sempre em segurança, mas apenas que as coisas fossem feitas
da maneira certa. Jasper era incontrolável, fora condenado a
dois anos não por alguma coisa útil — na opinião de Alice —
, mas apenas por descuido.
Sentou-se sozinha, envolta confortavelmente pela sala de
estar grande e surrada, e viu que estava com fome. Não tinha
energia para sair de novo. Havia junto à parede um malote
amarrotado de estafeta, com um pão e um pouco de salame.
Só Deus sabia há quanto tempo estavam ali, mas ela não se
importou. Comeu devagar, tomando cuidado com as
migalhas. Precisaria de ajuda para aquela sala: era muito
grande e o teto bastante alto. Mas a cozinha... Precisou de
uma hora para se decidir a entrar em ação; estava mesmo
cansada. Além do mais, desfrutava mentalmente o prazer de
gastar o dinheiro, que podia sentir num volume grande e
macio logo abaixo do coração. Mas acabou fazendo um
esforço e se levantou, foi para a cozinha. Enchendo os
baldes com água fria — infelizmente —, começou a
trabalhar. Esfregou o teto e as paredes, deslocando a escada
em torno do fogão, que ainda estava caído de lado no chão.
Em determinado momento, sentiu que as lágrimas escorriam
pelo rosto... pensava nos outros, todos juntos, gritando em
uníssono:
— Abaixo Thatcher! Abaixo Thatcher! Abaixo Thatcher!
E mais:
— Abaixo a polícia! Abaixo a polícia! Abaixo a polícia!
Podia ouvi-los entoar:
— Os operários unidos jamais serão vencidos!
Pensou como um deles — Philip, isso mesmo, seria Philip -
iria a um pub e compraria sanduíches e cerveja para os
outros. Talvez houvesse até uma cantina ambulante àquela
altura; devia haver, já que o piquete operava há algum
tempo.
Pensou no clima denso e carregado, no momento em que os
carros blindados — o símbolo de tudo o que abominavam -
começariam a avançar, e a multidão lutaria unida, tornando-
se uma muralha contra a polícia.
Alice chorou um pouco, alto, fungando e engolindo em se-
co, enquanto limpava o chão. Se eles decidissem que Philip
não podia ficar na casa, então... aqueles ladrilhos no teto,
aqueles ladrilhos...
Por volta das quatro horas da tarde a cozinha estava limpa,
sem qualquer mancha de terra ou poeira. A mesa grande se
encontrava no lugar apropriado, com as pesadas cadeiras de
madeira ao redor, tendo em cima um pote de geléia de vidro
com alguns junquilhos recolhidos do jardim. Só o pobre
fogão continuava caído de lado, uma lembrança da
desordem. Alice pensou em pegar o metrô e ir se encontrar
com os outros — tinha direito a isso, era veterana de uma
centena de batalhas —, mas sentou para descansar um pouco
na sala de estar e pegou no sono. Acordou para descobrir
que os outros estavam chegando, fazendo um grande
barulho, rindo e conversando, exultantes com seus feitos.
Alice, sonolenta na poltrona grande, manteve-se humilde,
quase penitente, enquanto fazia um esforço para se levantar
e cumprimentá-los. Sentiu que não precisava fazer isso
quando a comida e a bebida foram arrumadas no chão e
convidaram-na a participar do banquete.
E foi só então que se lembrou. Tirou do bolso o grosso rolo
de notas e, rindo, entregou cento e cinqüenta libras a Philip.
— Por conta — disse ela.
Silêncio. Todos a fitavam. E depois riram, puseram-se a
abraçá-la e uns aos outros. Até mesmo Jasper abraçou-a
rapidamente, enquanto ria, dando a impressão de que se
exibia para os outros.
— Sei que é melhor não perguntar de onde veio o dinheiro,
mas meus parabéns assim mesmo — disse Roberta.
— Espero que tenha sido ganho honestamente — acrescen-
tou Faye, afetada.
Todos recomeçaram a se abraçar e rir, mas Alice sabia que
era mais pelos excessos exuberantes de emoção das vigorosas
confrontações com a Autoridade naquele dia do que por
satisfação com seu empenho...
— De qualquer forma, ainda temos de tomar uma decisão
coletiva — declarou Faye.
Mas Roberta protestou:
— Ora, Faye, não enche. Está tudo certo...
As duas mulheres trocaram um olhar, e Faye compreendeu:
haviam discutido o assunto e discordado. Bert disse,
sumariamente, como se não tivesse a menor importância:
— Para mim, está tudo bem.
Jasper ecoou:
— Eu concordo.
E Pat disse:
— Claro que está tudo bem.
Philip não podia falar, pois acabaria chorando; brilhava de
alívio, de felicidade. E Jim... ora, ele simplesmente aceitava,
Alice podia perceber, como uma moratória; ela sabia que
nada poderia ser mais do que um bem temporário para Jim.
Mas ele estava bastante satisfeito. Havia na sala um clima
agradável, aconchegante. Uma família...
Esse clima perdurou durante a refeição e enquanto Alice os
levava à cozinha para mostrar a limpeza.
— Ela é mesmo uma maravilha — entoou Faye. — Alice, a
maravilha; a maravilhosa Alice...
Ela estava inebriada e exultante, todos sentiam prazer em
contemplá-la.
Sem que Alice pedisse, Bert e Jasper levantaram o fogão e o
puseram em seu lugar, junto à parede.
— Vou consertá-lo amanhã — prometeu Philip, feliz da vida.
Subiram juntos a escada, relutantes em se separar pela noite,
de tão unidos que se sentiam num grupo.
Deitada no chão, ao longo da parede, no escuro, seus pés a
um metro dos pés de Jasper, Alice indagou, sonhadora:
— O que você e Bert decidiram?
Um movimento brusco de Jasper, que ela notou, pensando:
Eu não sabia que ia dizer isso.
Ele estava tenso, exposto; era a sua reação às palavras de
Alice.
— Ora, Jasper, eu não me importo — acrescentou ela,
impaciente, mas conciliadora. — Mas vocês discutiram o
assunto, não é?
Uma pausa.
— Discutimos.
— Afeta a todos nós.
Outra pausa. E depois, relutante:
— Achamos que talvez não seja má idéia ter os outros aqui.
Mas eles precisam ser da UCC. Jim terá de se alistar.
— Ou seja, Philip e Jim serão uma cobertura.
Jasper não disse nada. Quem cala consente. Alice acres-
centou:
— É claro que haverá mais pessoas chegando e...
Ele se apressou em dizer, nervosamente:
— Você não pode deixar qualquer um entrar. Não podemos
aceitar qualquer um.
— Eu não falei em qualquer um... e os outros não precisam
saber que somos do IRA.
— Exatamente.
Então Alice comentou, com uma voz sonhadora e para sua
própria surpresa:
— Com os camaradas na outra casa, fico pensando...
Ela parou. Interessada no que dissera. Com um sentimento
de respeito.
Mas Jasper se soerguera; apoiado num cotovelo, observava- a
na semi-escuridão, os faróis da rua correndo pelo teto, pare-
des e chão, iluminando-os a intervalos irregulares. Ele ficou
calado. Não perguntou "Como sabe da outra casa?", nem
disse "Como se atreve a me espionar?", coisas que dissera
com freqüência no passado, até aprender que Alice possuía
aquela capacidade: saber sem que lhe contassem.
Ela pensava depressa, escutando o que dissera. Então Bert e
Jasper tinham ido à outra casa, não é? Há camaradas ali? Mas
é isso mesmo!
— Vocês apenas foram até lá contando com a sorte ou... o
que aconteceu? — indagou Alice.
Ele respondeu tensamente, depois de uma pausa:
— Houve um contato. Eles mandaram uma mensagem.
— Para você? Para você e Bert?
Pela hesitação de Jasper, Alice compreendeu que ela estava
incluída, mas não tinha a menor intenção de transformar
isso num cavalo de batalha.
— Recebemos uma mensagem — insistiu ele secamente,
tornando a se estender no saco de dormir.
— E você, Bert e... os camaradas de lá decidiram que
deveríamos ter mais pessoas aqui, como cobertura.
Silêncio. Mas Alice sabia que ele não estava dormindo. Dei-
xou passar alguns minutos, enquanto pensava. Depois,
mudou de assunto, comentando:
— Daqui a pouco os outros vão ter de começar a contribuir.
Até agora fui eu quem pagou tudo.
— Onde arrumou aquele dinheiro? — perguntou Jasper no
mesmo instante, lembrando o fato, como era intenção de
Alice.
Ela estava preparada; inclinou-se no escuro e entregou-lhe
algumas notas.
— Quanto? — perguntou Jasper.
— Cinqüenta.
— Com quanto você ficou?
— Não faça perguntas.
Alice teria respondido se ele insistisse, mas Jasper limitou- se
a comentar:
— Está bem, pode espremer ao máximo.
Alice disse:
— Tenho de ir à prefeitura amanhã. Pode me dar meu cartão
da previdência?
— Claro.
Os dois aguardavam os sons de amor no quarto ao lado, mas
Bert e Pat deviam estar exaustos e dormiram logo. Jasper e
Alice estavam tensos, mas relaxaram agora, num silêncio
cordial. Alice pensou: Estamos juntos... E como um
casamento: uma conversa antes de dormir. Espero que ele
comece a me contar o que aconteceu hoje.
Alice não queria perguntar, mas sabia que Jasper sabia que
ela ansiava por ouvir tudo. E ele foi generoso: começou a
falar. Ela o amava quando estava assim. Jasper relatou tudo,
desde o início: como os sete viajaram no metrô, como
compraram sanduíches e café na estação, instalaram-se em
dois bancos de frente uns para os outros, partilharam o
desjejum. Como foram de táxi até as oficinas. O motorista
estava do lado deles e dissera, antes de partir:
— Boa sorte.
— Isso foi maravilhoso — comentou Alice baixinho, sor-
rindo no escuro.
E assim continuaram a conversar, aos sussurros, Jasper
descrevendo tudo, pois era muito bom nisso, projetando em
palavras imagens de um evento, uma ocasião. Ele é muito
inteligente, deveria ter sido jornalista, refletiu Alice.
Ela poderia conversar a noite inteira, pois dormira até mais
tarde. Jasper, no entanto, logo adormeceu; e ela se
contentou em ficar deitada ali, no silêncio, formulando seus
planos para o dia seguinte, que sabia que não seria fácil.
Quando acordou, Jasper não estava mais no quarto. Ela subiu
para o topo da casa e examinou os quatro quartos que deixara
com as janelas abertas. Os dois quartos em que estavam os
horríveis baldes já eram apenas quartos que em breve esta-
riam ocupados por outras pessoas. Mas não fora por isso que
subira. Havia manchas úmidas e marrons nos tetos de dois
quartos. Localizando no patamar o alçapão para o sótão,
subiu no peitoril da janela para alcançá-lo. Mal conseguiu
alcançar, mas sentiu o alçapão se levantar sob seus dedos.
Não haveria nenhum problema ali!
Desceu correndo para a cozinha, onde soavam vozes. E o
que ali encontrou fez com que seus olhos se enchessem de
lágrimas. Estavam sentados em torno da mesa: Bert e Pat,
bem juntos; Jasper; Jim, sorridente e feliz; e Philip, já
trabalhando no fogão, inclinando-se por trás, com uma
xícara de café em cima. Bert fora à casa da namorada de seu
amigo Philip, Felicity, enchera a garrafa térmica, comprara
croissants, manteiga e geléia. Era uma refeição de verdade.
Ela sentou em seu lugar, à cabeceira da mesa, em frente a
Bert, e disse:
— Se esta cozinha tivesse umas cortinas...
Todos riram.
— Antes de falar em cortinas, é melhor você acertar tudo
com a prefeitura.
Quem falou foi Jasper, um tanto prepotente, mas apenas
porque estava com ciúme de Pat, que disse:
— Eu apoiaria Alice... apoiaria em qualquer coisa.
Café e croissants apareceram à sua frente, e Alice indagou:
— Alguém já notou como está o teto lá em cima?
— Eu notei — respondeu Pat.
Philip protestou:
— Não posso fazer tudo ao mesmo tempo.
Ele parecia melindrado, e Pat disse:
— Não se preocupe. Não é difícil consertar as telhas. Já fiz
isso uma vez, em outra casa.
— Farei isso junto com você quando terminar aqui —
prometeu Philip.
Pat disse a Bert:
— Se alguém pudesse tirar as telhas que caíram na calha...
— Não gosto de alturas — respondeu Bert, com a maior
tranqüilidade.
— Eu posso cuidar disso — declarou Alice. E acrescentou
para Jasper, não para Bert: — Se conseguisse emprestado o
carro da outra casa, não poderia procurar alguns móveis nas
lojas? Vi quatro lojas de móveis de segunda mão na rua em
que meu pai mora, todas com coisas boas.
Uma pausa, e ela acrescentou, com veemência:
— Refugo. Tudo aquilo é refugo. — Ela sabia que estava
prestes a assumir sua cara especial, e tratou de continuar: —
Esta casa, com todos os seus cômodos... e pessoas jogando
coisas fora por toda parte, quando ainda estão boas e usáveis.
Alice ficou lutando contra si mesma, sabendo que Pat a
examinava, fazia um diagnóstico. E Pat disse a Bert:
— Aí está o seu trabalho para hoje, Bert. Você e Jasper. —
Enquanto ele ria de alguma piada antiga sobre sua indolência,
ela acrescentou, irritada: — Mas que merda! Alice tem feito
todo o trabalho até agora.
— E arrumado todo o dinheiro — comentou Philip, do
fogão.
— É isso aí — murmurou Bert.
— É isso aí — concordou Jasper, satisfeito, já se movimen-
tando de um lado para o outro, irrequieto, querendo sair
com Bert, procurar, vasculhar as ruas...
Os dois saíram no instante em que Roberta e Faye entraram
na cozinha, encontraram os remanescentes dos croissants e
sentaram-se para consumi-los.
Alice arrastou a pesada escada de Philip para a frente da casa
e subiu. Por sorte a casa era atarracada, afundando na terra,
não alta e assustadora. Quando ela chegou lá em cima, Pat já
estava no telhado, sentada perto da chaminé, pela qual
passava um braço: passara pelo sótão e uma clarabóia. O
telhado parecia erodido e esburacado em torno da base da
chaminé. Muitas telhas haviam deslizado e estavam presas na
calha. Para onde ia toda a água? Ainda não haviam
examinado o sótão direito.
Alice começou a se inclinar, pegando as telhas e pondo-as
no telhado à sua frente. Pat parecia não estar com a menor
pressa de começar; desfrutava a vista, contemplando os
telhados e janelas superiores. E é claro que também os
vizinhos, que observavam as duas mulheres trabalhando no
telhado. Onde estavam os homens?, quase que se podia ouvir
aquelas pessoas pensando — Joan Robbins, a velha sentada
debaixo de uma árvore, o homem olhando irritado de uma
janela superior.
— Pegue! — gritou Alice, pronta para jogar a primeira telha.
Mas Pat disse:
— Espere um instante.
Ela virou-se de bruços e espiou através do telhado.
— Tem um ninho nesta viga — acrescentou, em voz abafada,
como se receasse incomodar os pássaros.
— Oh, não, que coisa horrível!
Alice parecia subitamente histérica, e Pat fitou-a friamente,
por cima do braço estendido sobre o telhado.
— Pelo amor de Deus! — exclamou Alice, começando a
chorar.
— Um pássaro —- protestou Pat. — Um pássaro, não uma
pessoa.
Ela arrancou punhados de palha e outras coisas e jogou lon-
ge. Depois, alguma coisa bateu ruidosamente nas telhas: um
ovo. O pequeno embrião de um pássaro ficou esparramado
ali. Mexendo-se.
Alice continuou a chorar, pequenos arrancos de soluços
ofegantes, os olhos fixos no telhado.
Outro ovo se arrebentou nas telhas.
Olhos infantis e frenéticos imploraram a Pat, que ainda
enfiava o braço pelo buraco no telhado. Mas Pat,
deliberadamente, não estava olhando para Alice, enquanto
continuava a arrancar o que havia ali embaixo.
Um terceiro ovo voou em arco por cima do telhado e foi cair
no jardim.
— Já acabei — anunciou Pat, olhando para Alice. — Pare
com isso!
Alice fungou até o choro acabar. E, a um aceno de cabeça de
Pat, começou a lhe jogar as telhas. Pat pegava-as com extre-
mo cuidado, uma após outra.
Roberta e Faye apareceram lá embaixo e saíram para a rua,
acenando em despedida.
— Divirtam-se — disse Pat, lacônica, irônica, mas com um
sorriso revelando que ela, como Alice, não esperava outra
coisa.
Pouco depois Philip subiu para ajudar Pat. Alice, depois de
ter limpado todas as calhas até onde podia alcançar, desceu
para deslocar a pesada escada por alguns passos. Continuou a
trabalhar assim, contornando toda a casa, removendo massas
de folhas em decomposição e telhas caídas. Lá em cima,
Philip e Pat repunham as telhas nos lugares.
Alice sentia-se desanimada e traída. Por alguém. Os dois
minúsculos passarinhos parcialmente formados estavam
caídos no telhado, o pescoço estendido, olhos fechados, sem
que ninguém olhasse. Os pais circulavam pelos galhos altos
nas proximidades, queixando-se.
Alice tentou se concentrar no que tinha de ser feito em
seguida. A faxina. Uma limpeza completa! Janelas e
assoalhos, paredes e tetos, depois a pintura, muita tinta,
custaria...
No meio da tarde foi telefonar para a prefeitura, como se isso
não tivesse a menor importância, como se tudo estivesse
acertado.
Foi informada de que Mary Williams não estava e sentiu um
aperto no coração.
Bob Hood, uma autoridade incomodada em seu trabalho
importante, disse bruscamente que a decisão sobre a 43 e a
45 fora adiada para o dia seguinte.
— Quer dizer que está tudo certo? — indagou Alice.
— Claro que não — respondeu Bob Hood. — Não ficou
acertado que você ou qualquer outra pessoa poderá ocupar
essas casas.
Alice declarou, em voz tão incisiva e autoritária quanto a
dele:
— Deveria visitar a casa. É uma desgraça que tenha sido
considerada apropriada para demolição. A cabeça de alguém
vai rolar por causa disso. Tenho certeza de que cabeças
rolarão. São duas casas perfeitamente sólidas, em bom
estado.
Uma pausa. Um pouco irritado — mas já batendo em reti-
rada —, ele disse:
— E recebemos mais reclamações. Não podemos permitir
que essa situação continue.
— Mas já limpamos a 43... a casa que ocupamos. A polícia
pode confirmar.
Alice esperou, confiante. Conhecia o tipo, sabia como
funcionava a mente mesquinha e covarde de gente assim,
sabia que o dominara por completo. Podia ouvir sua
respiração, podia sentir como as engrenagens mentais se
ajustavam.
— Muito bem — disse Bob Hood. — Darei um pulo até aí.
Estava mesmo querendo dar uma olhada nessas duas
propriedades.
— Pode me dizer a que horas mais ou menos vai aparecer? —
pediu Alice.
— Não é preciso. Temos chaves.
— Sei disso, mas não podemos deixar que desconhecidos
entrem aqui sem mais aquela, não é? Gostaria que nos
indicasse a hora aproximada.
Era tanta desfaçatez que ela ficou espantada consigo mesma.
Mas sabia que não era um exagero por causa de sua atitude,
tão autoritária quanto a dele. E não ficou surpresa quando
Bob Hood anunciou:
— Irei até aí agora.
— Ótimo. Estaremos à espera.
Alice desligou. Voltou correndo para a casa. Gritou para
Philip e Pat lá em cima que o homem da prefeitura estava
vindo e que eles não deveriam parar de jeito algum, porque
seria ótimo se o fiscal visse gente trabalhando. Depois,
entrou, foi inspecionar a sala de estar e a cozinha. Subiu para
os quartos em que todos dormiam. Ficou impressionada ao
descobrir que o quarto de Roberta e Faye era um genuíno
refúgio de feminilidade, com penteadeira, almofadas, uma
colcha estendida sobre o saco de dormir duplo, fotografias —
tudo meio encardido, é verdade, mas causaria uma boa
impressão. Ela alisou a saia. Ajeitou os cabelos, as unhas.
Ouviu uma batida na porta antes do que esperava e desceu
correndo a escada, quase tropeçando, com um sorriso frio já
fixado no rosto, a fim de abrir a porta da maneira correta.
— Bob Hood? Sou Alice Mellings.
— Espero que aqueles dois no telhado saibam o que estão
fazendo.
— Eu também. Ele é empreiteiro e ela o está ajudando. Como
amadora. Mas já trabalhou nisso antes.
Alice o silenciara. Ah, seu homenzinho repulsivo, pensava
ela por trás do sorriso de boa moça, seu burocrata
insignificante e nojento!
— Quer dar uma olhada aqui embaixo primeiro? Claro que
isso não lhe dará uma idéia do estado em que a casa se
encontrava há apenas três dias. Por um lado, os operários da
prefeitura encheram os vasos com concreto e arrancaram os
fios das paredes... criando um grande risco de incêndio.
— Não tenho a menor dúvida de que eles estavam apenas
cumprindo ordens.
— Está querendo dizer que receberam instruções para deixar
os fios perigosos e concretar o registro geral da água? Será
que o Departamento de Agua sabe disso?
Bob Hood ficou vermelho e furioso. Sem olhar para ele,
Alice foi abrindo uma porta após outra no primeiro andar,
demorando-se na cozinha.
— O eletricista já consertou tudo aqui, mas tiveram sorte de a
casa não pegar fogo. Mary Williams me informou que você
já esteve aqui antes. Como foi que não notou os fios soltos e
desencapados?
Lá em cima, ela disse, sabendo que para aquele homem
qualquer coisa incorreta, até mesmo um colchão no chão em
vez de numa cama, deveria ser uma afronta eterna:
— Terá de aceitar a minha palavra, é claro... mas a verdade é
que esses quartos se encontravam no pior estado possível
quando chegamos aqui. E mal começamos a trabalhar.
— Encontra-se no pior estado possível agora — comentou
ele, rispidamente, dando uma olhada no quarto em que Alice
e Jasper dormiam, os dois sacos de dormir encostados na
parede, como peles de cobra descartadas.
— E relativo. Acho que ficará surpreso quando voltar a visitar
a casa dentro de um mês.
Bob Hood tratou de aproveitar a vantagem:
— Eu disse que não deve esperar coisa alguma.
— Se esta casa ficar vazia outra vez, vai se encher de vânda-
los e mendigos dentro de uma semana, e você sabe disso.
Tem sorte por sermos nós que estamos aqui. Vamos deixar a
casa em ordem, sem qualquer despesa para os contribuintes.
Ele não disse nada. Em silêncio, inspecionaram os quartos do
último andar, agora com um cheiro agradável, o ar circulan-
do. Instintivamente, Bob Hood fechou uma janela depois de
outra, com um ar meticuloso, virtuoso e irritado. Como uma
porra de uma dona-de-casa, pensou a sorridente Alice.
Desceram.
— Tenho de concordar com você... não há motivo para que
essas casas sejam demolidas, ao que eu posso ver — disse ele.
— Vou examinar o assunto.
— A menos que alguém vá ganhar muito dinheiro com isso
— comentou Alice, suave e implacável. — Leu o artigo do
Guardian, "O escândalo da reforma urbana"?
— Li, sim. Mas não é relevante para este caso.
— Ahn...
Eles estavam na porta.
Alice ficou esperando. Merecia uma capitulação; e foi o que
aconteceu. A autoridade declarou, de expressão sisuda, mas
com todo o corpo manifestando uma cumplicidade
involuntária:
— Defenderei sua posição amanhã. Mas não prometo nada. E
não apenas esta casa, mas também a outra. Vou até lá agora.
Mais uma vez, Alice esquecera a outra casa.
Bob Hood se afastou e ela subiu correndo para uma pequena
janela pela qual podia observar a outra casa. Com irada
frustração, viu o jovem limpo, bem-penteado e bem-vestido
parar diante das pilhas de lixo no jardim, e percebeu que sua
expressão era a mesma dos lixeiros: um nojo exasperado e
incrédulo.
Incapaz de suportar as batidas fortes do coração, o estômago
em polvorosa, Alice desceu, devagar, subitamente sem
qualquer energia, e foi arriar na sala de estar, no momento
em que Pat entrava, acompanhada por Philip.
— E então? — indagou Pat.
O rosto de Philip estava contraído de ansiedade, havia uma
oração em seus olhos.
— Estamos perdidos — respondeu Alice, começando a cho-
rar, o que a deixou furiosa. — Oh, Deus, mas que merda!
Não é possível!
Pat, ajeitando-se no braço da poltrona em que Alice estava
encolhida, passou um braço por seus ombros encurvados e
disse:
— Você está cansada. Surpresa! Você está cansada.
— Vai acabar tudo bem! — soluçou Alice. — Tenho certeza!
Posso sentir!
No silêncio, ela compreendeu que, por cima de sua cabeça,
Philip e Pat trocavam olhares, dizendo um ao outro que ela,
Alice, tinha de ser consolada, afagada, que era preciso servir-
lhe café da garrafa térmica e conhaque de uma garrafa
guardada para ocasiões especiais. Mas sabia também que o
interesse de Pat podia ser genuíno, mas não era como o de
Philip e o seu. O coração de Pat nunca haveria de disparar
nem seu estômago embrulharia... Por esse motivo, não
aceitou a fraternidade envolvente de Pat, permaneceu
sozinha, triste e isolada, tomando o café, o conhaque. Philip
era seu pupilo, sua responsabilidade: sua família, porque era
igual a ela. Mesmo assim, sentia-se satisfeita por ter Pat como
aliada.
E foi então que Jasper e Bert voltaram com os despojos de
Londres, essa autêntica caverna dos tesouros. Alice correu
para o vestíbulo, a fim de receber uma carga de coisas que
precisavam ser separadas e que desviaram suas emoções para
outro circuito.
— Oh, mas que desperdício vergonhoso! — exclamou ela,
furiosa, vendo os sacos de plástico cheios de cortinas, que ali
estavam só porque alguém se cansara delas, uma geladeira,
bancos, mesas, cadeiras, tudo ainda aproveitável, embora
algumas coisas precisassem de uns poucos minutos de
trabalho para serem consertadas.
Bert e Jasper tornaram a sair; estavam exultantes e gostando
da missão. Uma dupla, uma dupla de verdade, uma equipe;
unidos por aquele empreendimento, de mobiliar a casa. E
como tinham o carro para o dia inteiro, precisavam
aproveitar ao máximo.
Philip e Pat deixaram o trabalho no telhado para ajudar Alice
a arrumar os móveis e foram comprar os acessórios para as
cortinas, com dinheiro que ela tirou de sua reserva.
Correram de um lado para outro, subiram e desceram,
carregando móveis, pendurando cortinas, estendendo no
vestíbulo um tapete grande, que só precisava de uma
limpeza para se tornar perfeito.
Bert e Jasper, depois de vasculharem Mayfair e St. John's
Wood, chegaram ao final da tarde com outro carregamento e
anunciaram que por aquele dia bastava... e os ocupantes da
casa sentaram-se na cozinha, para tomar chá e comer ovos
com bacon, já feitos no fogão, tendo por companhia o
zumbido da geladeira.
E no meio desse banquete, que era um delicado equilíbrio de
interesses, o resultado de boa vontade cuidadosa e calculada,
houve uma batida na porta. Porém era uma batida hesitante,
não um chamado autoritário. Todos se viraram como um só;
da cozinha, podiam avistar a porta da frente, que estava se
abrindo. Uma jovem apareceu; enquanto os outros olhavam
aturdidos — De quem ela é amiga? —, o coração de Alice
começou a disparar. Já sabia de tudo, pela maneira como a
visitante correu os olhos pelo vestíbulo, agora atapetado,
aconchegante, com uma iluminação fraca mas adequada,
depois observou a escada sólida e finalmente contemplou-os.
Ela era toda determinação e propósito.
— Ela é da prefeitura — tranqüilizou Alice. — Mary
Williams. A colega daquele fascista que esteve hoje aqui.
Mas é uma boa pessoa...
Ela sabia que o último comentário provocaria uma discussão
que ocorreria mais tarde, talvez ainda naquela noite. Talvez
não uma discussão acirrada, mas pelo menos uma conversa
amistosa... Oh, Deus, faça com que esteja tudo bem, orou
Alice, levantando-se e dizendo aos outros:
— Não se preocupem. Vou conversar com ela...
Saiu, fechando a porta da cozinha, para um riso que a ta-
chava de autoritária, mas não insuportavelmente assim. Oh,
por favor, por favor, suplicava interiormente — talvez ao
Destino —, enquanto se encaminhava sorrindo para Mary.
Que estava sorrindo em súplica para Alice. E como Alice
esperava, Mary começou:
— Passei pelo escritório... estive o dia inteiro num curso, pois
eles sempre mandam a gente fazer cursos, o que estou fa-
zendo agora é de relações sociais... e encontrei com Bob
Hood, que estava saindo. Ele me contou que esteve aqui...
Alice estava abrindo a porta da sala de estar, que parecia com
a de qualquer outra casa, aconchegante, embora um tanto
velha e gasta; viu o rosto de Mary se enternecer, ouviu-a
suspirar.
Elas se sentaram. Agora, Mary era a suplicante e Alice a juí-
za. Alice procurou ajudar:
— Não acha que é uma ótima casa? Seria loucura demoli-la.
Mary não pôde conter a explosão:
— Pois eles estão loucos! (Alice não pôde deixar que o "eles"
fosse pronunciado num tom irônico familiar, seco, até
mesmo resignado.) Quando optei pelo setor de habitação,
pensava que estaria providenciando casas para as pessoas,
ajudando os desabrigados. Mas se eu soubesse... Estou
completamente decepcionada agora. Se você soubesse o que
costuma acontecer...
— Mas eu sei.
— Nesse caso...
Mary estava corando, os olhos suplicantes.
— Vou direto ao ponto. Acha que eu poderia vir morar aqui?
Estou precisando. E não apenas eu. Queremos casar... eu e
meu namorado, Reggie. Ele é químico industrial.
Essa parte do químico foi introduzida para me tranqüilizar,
pensou Alice, com os primórdios de um desdém que tratou
de reprimir e esconder.
— Estávamos juntando dinheiro para comprar um
apartamento e ele perdeu o emprego. A firma em que Reggie
trabalhava foi fechada. Por isso, tivemos de renunciar à idéia
do apartamento. Poderíamos morar com minha mãe ou com
os pais dele, mas.. . se ficássemos aqui teríamos condições de
guardar algum dinheiro...
Ela se obrigara a dizer tudo, odiando seu papel de suplicante;
e o resultado do esforço era uma determinação intensa, co-
mo uma ordem.
Mas Alice estava pensando: Oh, merda, é pior do que eu
imaginava. O que os outros dirão? Procurou ganhar tempo.
— Não quer dar uma olhada na casa?
— Oh, Deus! — balbuciou Mary, as lágrimas escorrendo. —
Bob disse que tem uma porção de quartos lá em cima, todos
vazios.
— Ele não vai morar aqui! — protestou Alice, sem saber se
ela própria iria e manifestando uma aversão tão profunda a
Bob Hood que Mary parou de chorar, aturdida.
— Ele é uma boa pessoa — murmurou Mary. — Apenas sua
atitude é esquisita.
— Não é apenas a atitude — insistiu Alice.
— Acho que tem razão...
O reconhecimento da hediondez de Bob fez com que Alice
se sentisse mais cordial, e ela disse, gentilmente:
— Já viveu em alguma comuna? Não, claro que não. Pois eu
já vivi. Em muitas. Não é fácil. As pessoas têm de se ajustar a
esse tipo de vida.
Os olhos brilhantes e famintos de Mary — como os do pobre
gato, pensou Alice — refletiam o anseio de ser tudo o que
Alice quisesse.
— Ninguém jamais disse que sou uma pessoa de convivência
difícil — comentou ela, suspirando, fazendo um esforço para
parecer engraçada.
— A maioria das pessoas aqui se interessa por política —
declarou Alice, muito formal.
— E quem não se interessa? Hoje em dia, todos têm o dever
de ser políticos.
— Somos socialistas.
— Não tem problema.
— União do Centro Comunista.
— Comunistas?
Alice pensou: Se ela for à reunião amanhã e disser que so-
mos comunistas... E bem capaz de fazê-lo e com um lindo
sorriso democrático! Alice ressaltou:
— Não comunista como o Partido Comunista da Grã-
Bretanha.
Mantendo os olhos firmemente fixos no rosto de Mary, pois
sabia que tudo o que Mary via no seu era tranqüilizador — a
menos que estivesse usando sua cara, o que tinha certeza de
que não acontecia —, Alice acrescentou, firmemente:
— Os camaradas na Rússia perderam o caminho. Já se
extraviaram há muito tempo.
— Quanto a isso, não pode haver a menor dúvida —
murmurou Mary, com um desprezo evidente, enxugando os
olhos com um lenço de papel.
Ela parecia recuperada, uma jovem simpática e comum, os
cachos castanhos brilhando, a pele viçosa. Como um
anúncio de sabonete de qualidade média. Mas no dia
seguinte ela podia decidir o destino de todos eles, pensou
Alice, examinando-a com curiosidade. Se ela dissesse a Bob
na manhã seguinte, enquanto tomassem um café, antes da
reunião, "Passei pela casa 43 na Old Mill Road ontem à noite
e aquilo é uma verdadeira pocilga", ele poderia mudar de
idéia com a maior facilidade, ainda mais se lembrasse a
sujeira da outra casa.
Alice perguntou:
— Bob Hood disse alguma coisa sobre a casa ao lado?
— Disse apenas que não há nada de fundamentalmente
errado.
— Então por quê? — explodiu Alice, incapaz de se controlar.
— Por quê?
— O projeto era construir dois blocos de apartamentos no
lugar em que estão estas casas. Não apartamentos horríveis.
Ao contrário, até muito bons. Mas não combinariam com
todas as casas ao redor.
Mary fez uma pausa e depois acrescentou, amargurada,
esquecendo sua posição:
— Mas algum construtor ganharia muito dinheiro com isso.
— E, depois, deu um passo ainda pior. — Um negócio entre
amigos.
Chocada por suas palavras, ela lançou um olhar embaraçado
para Alice e arrematou com um sorriso social.
— Não podemos deixar que façam isso — murmurou Alice.
— Concordo. Seja como for, o que conta é o que Bob diz. E
ele está furioso e vai brigar. Diz que é um crime derrubar
estas casas. — Mary hesitou por um instante e depois saltou
para um mergulho no que julgava obviamente ser uma
indiscrição ainda maior. — Fui da Tendência Militante por
algum tempo, mas seus métodos não me agradavam e por
isso fui embora.
Alice estava espantada. Mary na Militante! Mas é claro que
ela não poderia gostar dos métodos da Militante. E também
não gostaria dos métodos de Alice, Jasper, Pat, Roberta ou
Faye. Nem dos de Jim, diga-se de passagem (era do que Alice
desconfiava). Mas já era uma impossibilidade Mary ter
sequer se aproximado da Tendência Militante. Alice
perguntou, cautelosa:
— E Reggie?
— Ele também deixou a Tendência Militante pelo mesmo
motivo. Fiquei chocada com o que vi por lá, empregos para
os camaradas e tudo mais... — Outra vez o breve sorriso
social, como um pedido de desculpa sempre pronto. —
Concluímos que não era o nosso lugar. E aderimos ao
Greenpeace.
— Mas se vocês são trotskistas... — murmurou Alice,
esperançosa.
Com um pouco de sorte, Mary diria que sim, que eram
trotskistas, o que tornaria impossível a presença dos dois na
casa... Mas Alice ouviu outra coisa:
— Não somos nada no momento, apenas do Greenpeace.
Pensamos em entrar para o Partido Trabalhista, mas
precisamos de algo mais...
— Dinâmico — arrematou Alice, escolhendo uma palavra
lisonjeiramente vigorosa, mas não ideológica. — Talvez a
UCC seja o que estão procurando. Seja como for, venha
conhecer a casa.
Ela se levantou e Mary também... era como o encerramento
de uma entrevista. Alice já concluíra que gostava de Mary. A
jovem se ajustaria. Mas o que dizer de Reggie? Pensamentos
em Reggie acompanharam as duas mulheres enquanto elas
circulavam rapidamente pelos andares superiores. Alice
abriu as portas dos quartos vazios, escutando Mary suspirar
ansiosamente. Não ficou surpresa ao ouvi-la informar,
enquanto desciam:
— Para dizer a verdade, Reggie está me esperando no pub
que fica aqui perto.
Ela riu, uma risada vigorosa de menina. Depois de um
momento, Mary acompanhou-a, com um trinado meio
ofegante.
— O problema é que temos de discutir o assunto —
comunicou Alice. — Todos nós. Uma decisão coletiva.
— Podemos voltar daqui a meia hora?
— Precisamos de mais tempo. — Uma pausa, e Alice
acrescentou, por causa dos olhos suplicantes de Mary: —
Farei o melhor possível.
Alice voltou à cozinha, onde todos se encontravam num
ambiente de conforto (criado por ela), e expôs a situação.
Devido a toda a comida, a conversa, a cordialidade e a união,
houve uma explosão de risos. Mas havia na reação um
aspecto teatral que não agradou muito a Alice.
A seguir, houve um longo momento de silêncio, rompido
por Pat:
— Está querendo dizer que não vamos ficar com a casa se
não deixarmos eles virem para cá, Alice?
Ela demorou a responder.
— Tenho certeza de que Mary não faria qualquer coisa
rancorosa de propósito. Mas se ela vier morar aqui, tomará
todo o cuidado com o que disser. È da natureza humana.
Alice concluiu sem muita convicção, usando uma frase que
obviamente estava além do razoável.
— O que ela pode dizer que venha a fazer uma grande
diferença? — insistiu Pat.
— Se ela disser que somos um bando de vermelhos, Bob
Hood logo encontrará um motivo para nos expulsar. Ela não
se importa porque também o é.
— Aquela garota é uma revolucionária? — indagou Bert,
rindo.
— Ela é uma espécie de trotskista. Ou foi.
— Então como eles poderiam ficar aqui, Alice? — pressionou
Bert, firme mas gentil.
— Não creio que ela seja muita coisa no momento. Em ter-
mos ideológicos. Além do mais — persistiu Alice
corajosamente, sabendo o que seu argumento lhe custara no
passado, provocando todas as acusações —, não somos todos
assim, de certa forma? Afinal, não proclamamos que Trótski
nunca existiu. Nós lhe concedemos todo o crédito por suas
realizações. E dizemos que Lênin é que foi o verdadeiro
líder do proletariado. Depois, os camaradas por lá
enveredaram por um caminho errado, aceitando Stálin. Se
dizer que Trótski foi um bom camarada e depois seguiu por
um caminho errado transforma alguém num trotskista, então
todos nós o somos, não é? E pelo que me lembro, não
estabelecemos uma linha definida em relação a Tróts- ki.
Pelo menos não na UCC.
— A ideologia não é mesmo a sua linha, Alice — declarou
Jasper, com um ar de superioridade.
— Creio que este não é o momento para definir nossa atitude
em relação ao camarada Trótski — disse Pat, depois de trocar
olhares eficientes com Bert. — Há algo de procedente no
que Alice argumentou, mas isso não é o importante agora.
Acho que esse negócio de ter uma casa limpa e um teto
sobre nossas cabeças está começando a nos definir. E o que
nós fazemos.
— Levou quatro dias — ressaltou Alice, apelando por justiça.
— Apenas quatro dias.
— Mas agora parece que precisamos ter aqui duas novas
pessoas só para mantermos a casa.
Jim interveio:
— Por que não os convidamos a entrar na UCC? Eu vou
entrar.
— E por que não? — disse Bert, depois de uma pausa
prolongada.
Alice percebeu que ele e Jasper trocavam um olhar demo-
rado e pensativo. Sabia que eles estavam pensando se não
deveriam ir à outra casa para pedir a alguém — quem? — um
conselho. Ou instrução.
— Precisamos decidir esta noite — disse ela. — A reunião
será amanhã.
E agora ela tinha a sua cara. A voz assim lhe dizia; e os ou-
tros também, ao se virarem para observá-la, sentada ali,
estofada e sofredora.
Bert e Jasper ainda olhavam um para o outro, distraídos. O
que eles faziam, na verdade, era reconstituir mentalmente o
que fora dito por alguém na casa ao lado, especulando como
enquadrar aquela nova situação. Bert acabou dizendo:
— Não vejo por que não poderíamos convidá-los. Sempre
dizemos que queremos recrutar mais gente, e os dois podem
estar maduros. Com um pouco de educação política...
E, com essas palavras, ele e Jasper se levantaram ao mesmo
tempo e saíram. Jasper avisou, antes de se retirarem:
— Voltaremos num minuto.
Pat anunciou:
— Também vou sair. Tenho de visitar uma pessoa.
— Não quer conhecer Mary e Reggie?
Pat deu de ombros, sorriu e saiu. Alice fora lembrada —
como tinha certeza ser a intenção da outra — de que Pat não
se importava realmente, iria embora de qualquer maneira.
Restavam Alice, Philip e Jim.
Pouco depois Mary apareceu, em companhia de um homem
sobre quem Alice se descobriu pensando, à primeira vista,
"Mas é claro!". Com isso, estava querendo dizer que ele e
Mary formavam uma dupla. Não na aparência, pois o
homem era alto, magro, de pele muito branca, olhos
pequenos e pretos sob sobrancelhas pretas e espessas,
cabelos pretos lisos e abundantes. Ficaria calvo muito cedo.
Onde ele combinava com Mary era no ar de moderação, de
bom senso e de proporções adequadas. Mais precisamente,
adequadas ao círculo em que viviam, aos amigos, à
sociedade. Alice contemplava — e sabia disso — a respei-
tabilidade. Não que não apreciasse esse tipo de bom senso,
mas não seria apropriado ali, naquela casa. Era com um
infinito sentimento de tolerância que ela admitia que outras
pessoas precisavam de suportes e apoios. Pensou: Santo
Deus, eles nasceram para ser dois pequeno-burgueses
simpáticos, numa casinha simpática. Mais um pouco e
estarão preocupados com suas pensões.
Vendo-os juntos, ela sentiu que um erro estava sendo
cometido. Aqueles dois não deveriam estar ali. A sós com
Mary, podia até gostar dela. Vendo-a com seu companheiro,
Reggie, Alice sentia-se alienada, com os primórdios de uma
intensa hostilidade.
— Sentem-se — convidou ela, sorrindo.
Alice pôs a panela no fogão e ligou a eletricidade. Era uma
pena: um fogão a gás seria muito melhor. Mas encontrariam
algum ainda aproveitável num ferro-velho ou comprariam
um recondicionado, por cerca de dez libras.
Virou-se para observar Reggie examinando Jim e pensou:
Com um pouco de sorte, ele terá preconceito racial e não vai
querer ficar aqui. Mas não houve tal sorte: ele parecia
simpatizar com Jim. Ou, se não gostava de negros, sua
atitude nada revelava. Mas é claro, refletiu Alice, que com
essa turma, esse maldito pessoal de classe média, não se pode
descobrir nada por sua atitude, mesmo com a polidez e tudo
mais. A simpatia, porém, era genuína, ela tinha certeza; a
linguagem do corpo — algo que o instinto preparara Alice
para compreender,- muito antes que houvesse um nome
específico — dizia que Reggie não tinha qualquer problema
com outra cor de pele. Pelo menos isso. Ela ficou escutando
a conversa, Reggie com Jim, Mary com Philip. Encheu
canecas com café e pôs na mesa, junto com um bolo.
Conversa inconseqüente. Como ela, Alice, acertara tudo
com o Departamento de Energia Elétrica e também
resolveria qualquer problema com a Companhia de Gás. O
Departamento de Água também seria informado, é claro.
Alice não disse que o departamento não descobriria por
vários meses que a ligação de água fora restabelecida e que
não tinha a menor intenção de atrair a atenção deles.
Aqueles dois eram pagadores e ao mesmo tempo guardiães
das contas. Ela advertiu-os:
— Já vivi em muitas comunas e vocês terão de aceitar uma
coisa: algumas pessoas simplesmente não contribuem, não
entram com nada.
O que levou Jim a declarar, magoado:
— Até vocês chegarem aqui não havia nada para pagar, não
é?
— Não estou me referindo a você, mas à situação em geral —
ressalvou Alice. — Não é bom os dois virem para cá pensan-
do que tudo funciona certinho.
Mary comentou:
— Mas com tanta gente aqui, ainda será mais barato do que
em qualquer outra parte, sem o aluguel.
— Exatamente. — E Reggie acrescentou, indo direto ao pon-
to: — Não querem nos falar sobre a UCC? Nunca ouvimos
falar. Mary e eu ficamos conversando no pub. Não nos
lembra qualquer coisa.
— Ainda não é um partido grande — respondeu Alice. —
Mas está crescendo. Quando começamos, não tínhamos a
intenção de transformá-lo num partido de massa. Não
queremos que isso jamais aconteça. Os partidos de massa
perdem o contato com o povo.
— É verdade — concordou Reggie.
Mas ele falou com extremo cuidado, como se pudesse dizer
outras coisas. Alice pensou: Ele e Mary vão trocar olhares...
Não aconteceu, mas apenas por um esforço tão patente que
ela pensou, com desdém: As pessoas são espantosas. Trocam
olhares como se ninguém pudesse perceber, não imaginam
que assim se denunciam... Qualquer um pode interpretar o
que as pessoas estão pensando.
Reggie disse:
— UCC... União do Centro Comunista?
— Centro porque queremos mostrar que não somos
desvionistas da esquerda nem revisionistas.
— União... dois partidos juntos, dois grupos?
— Não. Uma união de posições. Sem divisões sutis. Não
queremos isso.
— E vocês iniciaram a UCC?
— Estou entre os fundadores. E Jasper Willis também. Já
ouviram falar dele? — Enquanto Reggie e Mary sacudiam a
cabeça, Alice pensava: Vão ouvir. — Éramos vários. Foi em
Birmingham. Temos uma seção lá. E um camarada escreveu
na semana passada para comunicar que abriu uma seção em
Liverpool. E tem quatro membros novos. Sem falar na seção
aqui em Londres.
A essa altura, Mary e Reggie não conseguiram mais evitar
que seus olhos se encontrassem. Alice experimentou um
ímpeto de desprezo autêntico, como ódio, e acrescentou:
— Todos os partidos políticos têm de começar, não é? E
sempre começam com uns poucos membros. Começamos só
há um ano e já temos trinta membros aqui em Londres.
Incluindo os camaradas nesta casa.
Ela resistiu à tentação de dizer: "E há também alguns na casa
ao lado".
— Qual é a posição política? — indagou Reggie, ainda com o
mesmo jeito cuidadoso que indica que não vai permitir que
se inicie uma discussão genuína porque prefere manter sua
opinião em reserva.
Pois esperem só que ainda vão ouvir falar, e muito, da UCC!,
pensou Alice. De qualquer forma, vocês vão se juntar a nós,
porque querem morar aqui. Oportunistas! Ao mesmo tempo,
pensava: Vamos educá-los. Matéria-prima é matéria-prima.
O que conta é o que vocês serão daqui a um ano. Se não
tiverem economizado o suficiente para se mudarem antes. E,
pelo menos vocês dois, não terão qualquer pressa para ver
esta comuna acabar. Disse:
— Temos um manifesto político. Eu lhes darei uma cópia.
Mas vamos promover uma conferência no próximo mês e
definiremos todos os detalhes.
Alice percebeu que eles não estavam prestando atenção.
Pensavam em quando poderiam se mudar.
Perguntaram se poderiam trazer alguns móveis, ofereceram
panelas e uma chaleira elétrica.
— Aceitamos com a maior satisfação — declarou Alice.
Continuaram a conversar, até que Jasper e Bert voltaram
da outra casa. Alice percebeu no mesmo instante que não
haveria qualquer problema para a vinda de Reggie e Mary.
Pelo menos não daquele lado; já Roberta e Faye seriam outra
coisa.
Reggie ficou em silêncio, recostado na cadeira, avaliando
Jasper, avaliando Bert. Alice percebeu que ele sentia alguma
simpatia por Bert. Os dois eram da mesma espécie. Ele não
foi muito com Jasper. Ela lembrou que também sentira um
alerta instintivo, alguma repulsa, quando se encontrara pela
primeira vez com Jasper, há tantos e tantos anos. E depois
descobrira que estava completamente enganada.
Mary e Reggie foram embora às onze horas; tinham medo de
perder o último trem do metrô para voltarem a Muswell Hill
e Fulham, onde moravam, respectivamente, tão separados.
Philip disse que estava exausto e foi se deitar.
Jim foi para sua sala e eles ouviram a música baixa do seu
toca-discos, acompanhada pelos tambores, ainda mais baixos.
— O que aconteceu com Faye e Roberta? — perguntou
Alice.
Foi Bert quem respondeu:
— Há uma comuna só de mulheres em Paddington. Elas
estão sempre lá.
— Por que elas não se mudam para lá?
— Gostam daqui — disse Bert, com uma careta que dizia não
faça perguntas e...
Bert subiu para dormir, e Alice e Jasper ficaram a sós na
cozinha.
— Está bem — disse Jasper. — Contarei tudo, se me der uma
chance.
Subiram para o seu quarto. Jasper não dissera que ela deveria
sair ou que ele sairia. Alice meteu-se em seu saco de dormir
como um cachorro se esgueira para o seu canto predileto,
evitando olhares, torcendo para que ninguém percebesse.
Podiam ouvir Bert se movimentando de um lado para outro
no quarto adjacente. Jasper disse:
— Bert e Pat vão passar o fim de semana fora.
Dava angústia ouvir sua voz.
— Apenas o fim de semana — murmurou Alice, procurando
confortá-lo pela perda de Bert. Quanto a ela, seu coração
entristecido informava que sentiria falta de Pat mesmo pelo
fim de semana. — Para onde eles vão?
— Não me disseram, e eu não perguntei.
Eles ficaram num silêncio impregnado de companheirismo,
os pés quase se tocando. Ainda não haviam encontrado
cortinas para aquele quarto, e as luzes dos carros passando lá
fora continuavam a correr pelo teto. Toda a casa tremia com
a passagem dos caminhões pesados que seguiam para o
norte, proporcionando a Alice um sentimento confortador
de familiaridade, como se há meses morassem ali, não há
dias; tinha a impressão de haver passado toda a sua vida em
casas que tremiam com o tráfego.
— Gostaria de ir para o piquete amanhã? — perguntou Jasper.
— Mas eu preciso realmente ficar aqui — lamentou Alice.
— Então podemos ir na noite de sábado e pintar alguns
slogans.
Ela controlou a voz, a fim de não deixar transparecer o ím-
peto de satisfação, de gratidão.
— Seria ótimo, Jasper.
— Providencie as latas de spray.
Ele virou-se para a parede. Alice não ouviria coisa alguma
sobre a outra casa naquela noite. Mas amanhã, à noite... ela
poderia ouvir. E no sábado...
Ela acordou junto com Jasper, às sete horas da manhã, mas
ficou imóvel, observando-o, os olhos quase fechados. O
corpo magro mas vigoroso de Jasper transbordava com a
energia da expectativa. Tudo nele, dos cabelos cor de
gengibre (que particularmente Alice achava mais para cor de
canela) aos pés pequenos e ágeis, que ela adorava, porque
eram tão alvos e esguios, estava cheio de vida. Jasper parecia
dançar enquanto se vestia, o rosto pálido tinha uma
expressão inocente e doce quando parou por um momento
junto à janela, a fim de verificar como estava o tempo para o
piquete do dia. Exibia um ar exaltado e sonhador quando
passou por Alice, aparentemente adormecida,
encaminhando-se para a porta. Não olhou para ela.
Alice relaxou, deitada de costas, e ficou escutando. Jasper
bateu na porta ao lado e ela ouviu o resmungo relutante de
Bert e a resposta imediata de Pat:
— Já acordamos.
Depois, a batida na porta de Roberta e Faye. Philip? Oh, não,
Philip não, pois precisava dele na casa! Mas não houve outra
batida, e Alice passou a ter outra preocupação: Será que
Philip não vai se sentir excluído, desprezado? Uma batida na
porta por baixo — a sala grande que Jim usava como quarto,
que talvez devesse ser usada como sala mesmo... Não, não
seria justo. Um grito sobressaltado de Jim e ela não pôde
saber se ele estava ou não satisfeito por ser acordado.
Os sons da casa adquiriam vida. Alice podia descer se qui-
sesse, podia sentar com o grupo animado e despachá-lo com
sorrisos, mas estava com a boca ressequida e os olhos
ardendo. Por algum motivo — talvez um sonho? —, queria
chorar, voltar a dormir. Desistir. Desconfiava do que sentia,
pois esse sentimento a acompanhava desde que podia se
lembrar: ser excluída, deixada de fora. Indesejável. O que era
uma tolice, pois bastaria dizer que também ia. Mas como
poderia, quando o destino de todos seria decidido naquela
manhã na prefeitura e não estava absolutamente certo de se
ficariam com a casa? Ao se despedir, Mary dissera "Farei o
melhor que puder", e era evidente que não podia ir além
disso. Alice projetou Bob Hood em sua imaginação e,
contemplando o jovem correto e ponderado, desejou que ele
fizesse tudo o que ela queria. "Defenda-nos", disse ela, em
sua mente. "Faça com que eles concordem. E nossa casa."
Manteve essa projeção por alguns minutos, enquanto escu-
tava os outros se movimentando na cozinha. Quase que no
mesmo instante, porém, eles saíram. Iam comer num café.
O que era um absurdo, pensou Alice, furiosa: desperdiçar
todo aquele dinheiro! Todos teriam de aprender a comer em
casa. Conversaria com eles, discutiria o assunto.
Ah, como ela se sentia deprimida e triste!
Por algum motivo, pensou no irmão, Humphrey. A incré-
dula raiva familiar a dominou. Como ele pudera se contentar
em aceitar o jogo deles? Um emprego seguro, controlador de
tráfego aéreo... quem poderia imaginar que alguém optaria
por consumir sua vida assim? E a mãe dissera que ele
escrevera para anunciar um filho. O primeiro.
Abruptamente, Alice pensou: Isso significa que sou tia.
Nunca lhe ocorrera antes. A raiva se desvaneceu e ela
pensou: Talvez eu vá visitá-lo para conhecer o bebê.
Continuou deitada, sorrindo, por mais algum tempo, na casa
silenciosa, embora o barulho do tráfego lá fora a envolvesse.
Depois, controlando-se conscientemente, com uma ex-
pressão determinada, saiu do saco de dormir, vestiu os jeans
e desceu. Havia cinco xícaras de café por lavar na mesa —
haviam se demorado para isso, o que significava que não
passariam pelo café; fariam outra refeição no trem, durante a
viagem; não, não pense nisso. Lavou as xícaras, pensando:
Preciso providenciar água quente. Os operários da prefeitura
deviam ter roubado o boiler e não tinham dinheiro para
comprar um novo. Um boiler de segunda mão? Philip deve
saber onde e como conseguir... Hoje ele vai consertar as
janelas, se eu conseguir os vidros. Ele dissera que precisaria
de outra manhã para as telhas. Sete janelas — quanto custaria
o vidro para tudo isso?
Ela pegou o dinheiro que restava: menos de cem libras. E
com tanta coisa a comprar, a pagar... Jasper prometera rece-
ber o seguro-desemprego dela, mas não podia reclamar, pois
ele trabalhara muito no dia anterior, trazendo todas aquelas
coisas para casa. Foi nesse instante que ela viu no peitoril da
janela um envelope em que estava escrito "Alice" e,
embaixo, "Tenha um dia maravilhoso!" Assinado: "Amor,
Jasper". Seu dinheiro estava lá dentro. Ela conferiu
rapidamente. Jasper costumava ficar com a metade, dizendo:
Devemos fazer sacrifícios pelo futuro. Mas lá estavam quatro
notas de dez libras.
Sentou-se à mesa, enternecida de amor e gratidão. Jasper a
amava. De verdade. E fazia aquelas coisas doces e
maravilhosas.
Alice relaxou, à cabeceira da enorme mesa de madeira. Se
quisessem vendê-la, poderiam conseguir cinqüenta libras.
Ou mais. A cozinha era comprida, mas não muito larga. A
mesa ficava perto de uma janela com um peitoril largo. Da
mesa podia avistar a árvore, o lugar em que ela e Jim haviam
enterrado a merda, agora uma mancha saudável de terra
escura, a cerca além, que era da casa de Joan Robbins. Era
uma cerca alta de madeira, com arbustos aparecendo por
cima, florescendo. Uma explosão amarela de forsítia.
Passarinhos. O gato subiu na cerca e abriu a boca num miado
silencioso, olhando para ela. Alice abriu a janela, que faiscava
ao sol. O gato veio para o peitoril, bebeu um pouco de leite e
comeu algumas sobras. Ficou sentado ali por algum tempo,
os olhos experientes fixos em Alice. Depois, começou a se
lamber.
Encontrava-se em péssimo estado e deveria ser levado a um
veterinário.
Tanta coisa que precisava ser feita... Mas Alice sabia que não
faria nada enquanto não recebesse notícias de Mary.
Continuaria sentada ali, sozinha, ociosa. Engraçado: ela era
descrita como desempregada, nunca tivera um emprego e
estava sempre ocupada. Ficar sentada calmamente, sem fazer
nada, era um regalo excepcional. Ficar sozinha — isso era
ótimo. O sentimento de culpa ameaçou uma invasão com
esse pensamento: era uma deslealdade para com seus amigos.
Não queria ser como a mãe: egoísta. A mãe costumava
reclamar e importunar para ter uma tarde só sua e
descarregava nos filhos. Privacidade. Gente assim dava muita
importância à privacidade: noventa e nove por cento da
população do mundo não sabia o que a palavra significava. Se
é que alguma vez a tinham ouvido. Não, era melhor assim,
mais saudável, um grupo de camaradas. Partilhando. Mas,
nesse ponto, a preocupação voltou a atormentá-la, e ela
pensou: E por isso que estou tão transtornada esta manhã.
Por causa de Mary. Por causa de Reggie. Eles não são dos
nossos. Nunca poderão se soltar completamente para se
fundirem conosco. Permanecerão um casal. Terão suas
opiniões particulares a respeito de todos os outros. Mas isso
também se aplicava a Roberta e Faye, que formavam um
casal: elas deixavam patente que possuíam suas próprias
atitudes e opiniões; não gostavam do que estava acontecendo
agora, com a casa. E Bert e Pat? Não, eles não tinham
opiniões próprias, que levantavam contra os outros; mas, na
verdade, Pat só estava ali porque gostava de ser trepada (a
palavra certa para o relacionamento!). Jim? Philip? Ela e
Jasper?
Quando se chegava ao fundo, ela e Jasper eram os únicos
revolucionários autênticos ali. Horrorizada com tal
pensamento, mesmo assim Alice analisou-o. E Bert? Jasper o
aprovava. A afeição de Jasper a homens que eram como
irmãos mais velhos nada tinha a ver com política, mas com
suas naturezas: sempre eram do mesmo tipo.
Condescendentes. Gentis. Era isso. Bert era uma boa pessoa.
Mas seria um revolucionário? E injusto dizer que Faye e
Roberta não eram revolucionárias autênticas só porque não
gosto delas, pensou Alice... Aonde aqueles pensamentos a
levavam? Qual era o sentido? O grupo, sua família, era
fragmentado, diminuído, criticado para fora da existência.
Alice pensou: Se não ficarmos com esta casa, vamos para a
comuna em Brixton.
Um som lá em cima, imediatamente por cima. Faye e Ro-
berta não haviam ido com os outros. Alice escutou como
elas acordavam e se levantavam: movimentos bruscos, os
sacos de dormir sendo arrastados pelas tábuas do assoalho,
uma risada, uma risadinha abafada. Silêncio. Depois passos e
um momento depois as duas estavam na cozinha.
Alice levantou para pôr a panela para esquentar e tornou a
sentar. As duas recendiam a maduro — suadas e fêmeas. Não
iam se lavar com água fria, não aquelas duas!
Sorriram para Alice, sentaram juntas de costas para o fogão,
onde podiam olhar pela janela, e ver o sol da manhã.
Sabendo que não havia outro jeito, Alice fez um esforço para
relatar o que acontecera na noite anterior, sobre Mary e
Reggie. Não atenuou coisa alguma. As duas continuaram
sentadas lado a lado, esperando pelo café, sem olhar uma
para a outra, pelo que Alice sentiu-se grata. Viu aparecer em
seus rostos a ironia que ouvia em sua própria voz.
— Quer dizer que a UCC tem dois novos recrutas? —
perguntou Roberta, desatando a rir.
— São boas pessoas — comentou Alice, com um tom de
censura, mas rindo também.
Faye não riu; os pequenos dentes brancos seguravam o lábio
inferior rosado; a testa brilhante franzida e toda a sua pessoa
anunciavam a desaprovação. Roberta parou de rir.
Ei, pensou Alice, já vi isso antes: pensava-se que Roberta era
a forte — parecia maternal, a galinha com seu pintinho —,
mas não era esse o caso, pois Faye é quem o era, apesar de
suas maneiras afetadas e implicantes. E ela observou Faye
com atenção e respeito, pois ela estava prestes a se
pronunciar. Roberta também esperou.
— Escute, Alice, quero que preste toda a atenção, pois vou
dizer o que penso...
E Alice compreendeu que ela tinha dificuldade para se
expressar, era por isso que recorria a tantos truques e
artimanhas, afetações e hesitações, a olhares cautelosos e
sorrisos para Roberta e para si mesma; mas por baixo era
ferro, era formidável.
— De uma vez por todas, não me importo com toda essa
felicidade doméstica, com toda esta casa e o jardim limpo...
— Nesse ponto ela esperou, polidamente, enquanto primeiro
Roberta e depois Alice, percebendo que Roberta o fazia,
riam um pouco. Continuou: — Houve um tempo em que
esta casa teria me parecido um palácio. Para mim, todo esse
negócio é classudo demais. Já vivi em pelo menos mil casas
abandonadas, buracos, cantos, quartos, barracos e residências
legais... e aqui é a melhor de todas. Mas não me importo.
Sacudiu um dedo para Alice, impertinente, jovial. Roberta
olhava fixamente para a amada, como uma irmã mais velha:
Será que ela está indo longe demais? Longe demais, Alice
sabia, com toda aquela apresentação, a atitude, os meios que
lhe permitiam dizer o que pensava. Roberta não queria que
Alice pensasse que aquela garota era frívola ou tola.
Mas Alice não pensava assim, absolutamente.
— A qualquer momento vamos ter água quente e assoalho
vitrificado. Eu não ficaria surpresa. Para mim, no entanto,
tudo isso é merda, entende? Merda!
Alice levantou-se, despejou água quente nas três canecas que
já tinham o café solúvel, levou-as para a mesa, pôs a garrafa
de leite e o açúcar perto de Faye. Fez tudo isso como uma
espécie de demonstração e percebeu que Faye, ao estender a
mão para o café, que ia beber puro e sem açúcar, podia
compreender, até mesmo apreciar, a julgar por seu rápido e
astuto sorriso. Mas Faye ia continuar, com determinação.
Também abandonara seu estilo cockney e a voz que o
acompanhava. Falava agora o inglês da BBC.
— Não me importo com essas coisas, Alice. Será que não
entende? Se você quer me servir, então sirva. Se não quer,
não sirva. Não me importo com uma coisa nem outra.
Roberta se apressou em dizer, protetora:
— Faye tem levado uma vida terrível, uma vida de merda...
E não pôde mais continuar, virou o rosto para o outro lado.
— É verdade, mas não dê maior importância a isso — de-
clarou Faye. — Eu não dou.
Roberta sacudiu a cabeça, incapaz de falar. Pôs a mão,
hesitante, pronta para ser rejeitada, no braço de Faye, que
acrescentou:
— Se tenciona relatar a Alice a minha horrível infância, o
problema é seu, mas não conte nada enquanto eu estiver
aqui.
Ela tomou o café amargo, fez uma careta, pegou um biscoito,
deu uma mordida, mastigou e engoliu, como se fosse uma
dose de remédio. Outro gole de cafeína. Roberta desviara o
rosto. Alice sabia que ela se sentia infinitamente triste por
alguma coisa; se não pelo passado de Faye, então por seu
presente; sua mão, ignorada por Faye, deixara o braço de
Faye e descaíra para seu próprio colo, onde se encontrava
inerte, trêmula e lamentável, enquanto sua cabeça abaixada,
com os anéis de cabelos pretos, fazia Alice pensar num
cachorro humildemente apaixonado. Roberta irradiava amor
e anseio. Naquele momento, pelo menos, Faye não precisava
de Roberta, mas Roberta morria de necessidade de Faye.
Faye provavelmente tem ocasiões em que deseja se livrar de
Roberta, acha que é tudo demais — é isso mesmo, pensava
Alice. Pois aposto que Roberta nunca deseja se livrar de
Faye! Oh, Deus, toda essa coisa pessoal interferindo em tudo,
o tempo todo! Pelo menos Jasper e eu resolvemos essa parte.
Faye continuava a falar. Por Deus, preste atenção, ela pode
arrumar um emprego na BBC, pensou Alice. Quando será
que ela aprendeu a falar tão bem? E para quê?
— Já conheci pessoas como você antes, Alice. Durante a
minha longa carreira. Não pode deixar as coisas como estão.
Está sempre arrumando tudo, fazendo as coisas funcionarem.
Se há um pouco de poeira num canto, você entra em pânico.
Nesse ponto Roberta deixou escapar uma risada áspera e
Alice sorriu afetada... pensando em todos aqueles baldes.
— Ora, riam, podem rir à vontade!
Parecia que Faye poderia ter parado por aí, pois hesitou, e o
estilo cockney quase se restabeleceu, com um sorriso
insinuante. Mas ela tratou de se controlar, empertigou-se
com uma solidão fria e feroz, tão auto-suficiente que a mão
de Roberta, outra vez solícita, procurando, se afastou.
— Só me importo com uma coisa, Alice. E você, preste
atenção, Roberta, pois está sempre esquecendo o que eu sou,
como eu sou. Quero acabar com esse sistema de merda,
nojento, mentiroso, cruel, hipócrita. Está me entendendo,
Alice? Você também, Roberta?
Ela não estava absolutamente bonita ou atraente naquele
instante, mas pálida e irada, a boca contraída, os olhos duros;
e isso — a maneira como parecia — retirava qualquer
sentimentalismo do que disse em seguida:
— Quero acabar com tudo isso para que as crianças não so-
fram tanto quanto eu sofri.
Roberta estava isolada, repudiada, incapaz de falar. Alice
disse:
— Mas você acha que não sou uma revolucionária, Faye?
Concordo com tudo o que disse.
— Não sei nada a seu respeito, camarada Alice. A não ser que
é uma maravilha com uma casa. E com a polícia. Gosto disso.
Mas antes de sua chegada, tomamos uma decisão, uma
decisão conjunta. Resolvemos que vamos trabalhar com o
IRA. Já esqueceu?
Alice ficou calada. Estava pensando. Mas Jasper e Bert não
haviam discutido as coisas na outra casa? Disse finalmente,
com todo o cuidado:
— Soube que um camarada da outra casa indicou que...
— Que camarada? — indagou Roberta, ressuscitando. — Não
sabemos de nada disso.
— Ahn. . . — murmurou Alice. — Pensei...
— E tudo besteira de amador — interveio Faye. — De repen-
te alguma autoridade desconhecida na casa ao lado diz isso e
aquilo.
— Não pensei...
Alice não tinha nada a dizer. Estava pensando: Fora Bert
quem levara Jasper para...? Fora Jasper quem...? Não me
lembro de Jasper jamais ter feito qualquer coisa assim antes...
Depois de algum tempo, embora ninguém dissesse nada, mas
todas acalentassem seus pensamentos em separado, Alice
disse:
— Muito bem, concordo. Está na hora de a gente se reunir e
discutir tudo. Da maneira correta.
— Inclusive os dois novos camaradas? — indagou Faye,
amargurada.
— Não, não, apenas nós. Apenas você, Roberta, Bert, Jasper,
Pat e eu.
— Sem Philip e sem Jim — acrescentou Roberta.
— Nós seis poderíamos ir a um café ou a outro lugar para
uma discussão — sugeriu Alice.
— Isso mesmo — concordou Faye. — Não podemos ter uma
discussão aqui, com tantos elementos estranhos.
Exatamente.
— Talvez pudéssemos conseguir um quarto emprestado na
outra casa — aventou Alice.
— E por que não podemos fazer um lindo piquenique no
parque? — indagou Faye, com veemência.
— Por que não? — concordou Roberta, rindo.
Podia-se perceber que ela recuperava a ascendência, sentia-
se forte e confiante, lançava para Faye olhares que em breve
seriam retribuídos.
Outro silêncio, sociável, sem ressentimentos. A seguir, Alice
disse:
— Tenho de perguntar isso, é um assunto que precisa ser
levantado. Vocês duas estão dispostas a contribuir com
alguma coisa para as despesas?
Faye, como se podia esperar, soltou uma risada. Roberta se
apressou em dizer, como uma censura a Faye, o que revelava
a Alice as discussões que as duas tiveram sobre aquele
assunto:
— Vamos pagar pela comida e coisas assim. Você tem de nos
dizer como funciona.
— Sai muito barato, com tanta gente.
— Isso é justo — comentou Faye. — Mas podem me deixar
de fora de todos os arranjos. Não estou interessada. Roberta
pode fazer o que quiser.
Ela se levantou, sorriu jovialmente para as outras duas e saiu.
Roberta fez um movimento instintivo para acompanhá-la,
mas continuou onde estava.
— Darei uma contribuição, Alice. Não sou como Faye... não
sou indiferente ao ambiente em que vivo. E pode estar certa
de que ela é realmente assim.
Roberta falou em tom de premência, sorrindo, insistindo , na
diferença de Faye, como ela era singular e preciosa.
— Sei disso.
Roberta estendeu duas notas de dez libras, que Alice pegou,
sem nenhuma expressão, sabendo que seria só isso.
Agradeceu a Roberta, que ficou se remexendo por mais um
instante e depois, incapaz de suportar por mais tempo,
levantou-se e foi atrás de Faye.
Ainda não eram dez horas. Mary dissera para telefonar à uma
da tarde. Persuadida pelos odores deixados no ar da cozinha
por Faye, por Roberta, ela subiu para o banheiro e forçou-se
a tomar um banho frio. Agachou-se na banheira, incapaz de
baixar as nádegas para a água, esfregando-se e ensaboando-
se. Satisfeita, vestiu roupas limpas, fez uma trouxa com o que
tirara e com as roupas de Jasper que precisavam de uma
lavagem — o que determinou ao cheirá-las — e saiu para a
lavanderia. Avistou a velha sentada debaixo da árvore no
jardim ao lado, os membros descarnados e projetados, como
um monte de galhos secos dentro de um saco de saia e
casaco de lã. Ela gesticulou ansiosamente para Alice, que saiu
para a rua, avançou pela calçada e passou pelo portãozinho
branco da outra casa, sorrindo. Esperava que os vizinhos
estivessem observando.
— Ela saiu e me deixou — anunciou a velha, fazendo um
esforço para se empertigar de sua posição arriada. — Eles não
se importam. Ninguém se importa.
Quando ela se pôs a falar em voz rouca sobre os crimes de
Joan Robbins, Alice ajeitou-a numa posição em que podia
respirar direito, pensando que a velha não devia pesar mais
do que a sua trouxa de roupa suja. Ficou escutando, com um
sorriso, até que não agüentou mais e inclinou-se para gritar,
em ouvidos possivelmente surdos:
— Mas ela é muito gentil ao trazê-la para sentar aqui fora, no
jardim. Não é obrigada a fazer isso, não é? — E depois, quan-
do o rosto da velha parecia prestes a irromper em protesto,
Alice acrescentou: — Não tem importância. Vou buscar uma
boa xícara de café.
— Chá, chá — balbuciou a velha.
— Terá de tomar café. Estamos sem bule para o chá. Fique
sentada aqui esperando.
Alice voltou à casa, serviu um café com açúcar, levou-o para
a velha.
— Qual é o seu nome?
— Senhora Jackson, Jackson... só me chamam assim.
— Meu nome é Alice, e moro na casa 43.
— Mandou embora todas aquelas pessoas sujas, no que fez
muito bem — disse a senhora Jackson, já escorregando outra
vez pela cadeira, como uma velha boneca bêbada, a caneca
virando para o lado em sua mão.
— Virei vê-la de novo dentro de poucos minutos — pro-
meteu Alice, antes de partir apressada.
A lavanderia ocupou-a por quarenta e cinco minutos. Foi
buscar a xícara com a senhora Jackson e depois ficou
escutando Joan Robbins, que veio da cozinha para dizer que
Alice não devia acreditar na velha, que estava caduca; não
havia uma única razão no mundo para que ela, Joan Robbins,
devesse fazer alguma coisa pela velha, muito menos ajudá-la
a descer a escada para o jardim e tornar a subir, servir café
e... As queixas continuaram, enquanto a senhora Jackson
gesticulava para as duas, insistindo que sua história era a
certa. A cena estava sendo testemunhada por várias pessoas,
nos jardins e janelas; Alice deixou que desfrutassem tudo.
Com um aceno de mão, ela voltou para sua casa.
Eram onze horas, e uma frágil aparição cambaleou na escada:
Philip, que disse:
— Não me sinto bem, Alice. Não me sinto...
Ele chegou lá embaixo, precariamente, e seu rosto, de um
anjo triste mas embaraçado, foi apresentado a Alice para
diagnóstico e julgamento, com uma confiança absoluta na
justiça, o que ela lhe dispensou.
— Não estou surpresa, depois de todo aquele trabalho no
telhado. Não pense em fazer qualquer coisa hoje. Trate de
descansar.
— Eu bem que gostaria de ir com os outros, mas...
— Vá para a sala de estar. Relaxe. Levarei um café para você.
Alice sabia que aquela doença precisava apenas de afeição.
Philip acomodou-se numa poltrona e ela levou-lhe café, e
sentou- se também, pensando: Não tenho nada melhor para
fazer.
Ela soubera que em alguma ocasião teria de escutar uma
história de iniqüidades: aquele era o momento, Philip
recebera promessas de empregos que não haviam se
concretizado; fora despedido sem aviso prévio; não recebera
pagamento por trabalhos realizados. Tudo isso lhe foi
contado na voz veemente e magoada de alguém que sofrera
um azar inexplicável e até maligno, enquanto o motivo de
tudo — que ele era frágil como uma marionete — não era
mencionado; nunca poderia ser mencionado, Alice tinha
certeza.
— E quer saber de uma coisa, Alice? Ele me disse: "Esteja
aqui na próxima segunda-feira e terei um emprego para
você". Mas sabe que emprego era? Queria que eu carregasse
enormes caixas de tinta e outras coisas para um furgão! Sou
um construtor e decorador, Alice! Mas aceitei o emprego,
trabalhei por quatro dias e fiquei com as costas arrebentadas.
Passei duas semanas no hospital e depois fiz fisioterapia por
um mês. Quando fui procurá-lo para cobrar os quatro dias de
trabalho, ele disse que eu é que fora o errado e...
Alice escutava e sorria, sentia o coração confrangido por ele.
Parecia-lhe que muita coisa fora pedida a seu coração na-
quela manhã, uma pobre vítima depois de outra. Ora, não ti-
nha importância, um dia a vida não seria mais assim; era o
capitalismo que se mostrava tão implacável e pernicioso, não
se importava com o sofrimento de suas vítimas.
Ao meio-dia e meia, quando pensava em ir à cabine
telefônica, ela ouviu alguém chegando e correu para
interceptar a polícia, a prefeitura... quem seria desta vez?
Era Reggie, que depositava caixas no vestíbulo, sorrindo.
Informou que Mary deixara a reunião por um momento para
lhe telefonar e dar a boa notícia. E ela estaria ali com outro
carregamento na hora do almoço. O alívio deixou Alice
meio tonta; e, depois, chorou. Encostada na parede, ao lado
da porta, na sala de estar, levou as mãos à boca, como numa
dor profunda, suas lágrimas se despejando dos olhos
fechados.
— Ora, Alice, por quê? — murmurou Reggie, aproximando-
se para espiar seu rosto trágico, obrigando-a a repelir os
afagos amistosos e um braço estendido por seus ombros.
— Reação — sussurrou ela, correndo para o banheiro, a fim
de vomitar.
Quando saiu, Philip e Reggie estavam parados lado a lado,
fitando-a, prontos para sorrir, esperando que ela lhes
permitisse.
E, finalmente, Alice sorriu, depois riu, não pôde mais parar.
Philip a fitava fixamente, enquanto Reggie, constrangido,
sentava-se.
Alice também se sentia constrangida: O que há de errado
comigo? Devo estar doente também.
Mas Philip não estava mais doente. Saíra para contar as
janelas quebradas, antes de comprar o vidro. Reggie subiu
para dar uma olhada nos quartos. Alice ficou na cozinha.
Foi lá que Mary a encontrou, quando chegou com uma caixa
cheia de panelas, louça de barro e uma chaleira elétrica.
Sentou-se do outro lado da mesa. Estava corada e exultante.
Alice ouvira-a rir com Reggie da mesma maneira que
Roberta e Faye riam, e, às vezes, Bert e Pat. Dois contra o
mundo. Intimidade. Alice foi logo perguntando:
— Quais são as condições?
— Será apenas por um ano.
Alice sorriu e, diante da expressão de Mary, explicou:
— É uma vida.
— Mas é claro que eles podem prorrogar o prazo. Se não
decidirem demolir a casa, no final das contas.
— Não vão demoli-la — declarou Alice, confiante.
— Não tenha tanta certeza.
Mary estava agora se mostrando suscetível por conta de seu
outro eu, a prefeitura. Alice deu de ombros. Esperou,
olhando para Mary, que parecia não saber realmente porquê.
Alice acabou perguntando:
— Mas o que foi decidido sobre o pagamento?
— Ora, uma ninharia — respondeu Mary, vagamente. —
Ainda não fixaram a quantia exata, mas não será grande
coisa. Apenas um valor simbólico.
— Sei disso — insistiu Alice, paciente. — Mas quero saber
como. Uma soma redonda por toda a casa?
— Oh, não! — exclamou Mary, como se isso fosse uma
extorsão inconcebível (tal é a força de uma decisão oficial
para uma mentalidade oficial). — Nada disso. O benefício
será ajustado individualmente para todos na casa. Ninguém
aqui está trabalhando, não é?
— Não é esse o problema, Mary — comentou Alice, espe-
rando que Mary percebesse o problema.
Mas isso não aconteceu. Nem podia; o que em sua expe-
riência poderia prepará-la para a situação?
— Creio que seria mais fácil se fosse uma quantia fixa e
dividida por todos. Ainda mais por ser tão pequena. O
suficiente para cobrir os impostos e taxas, não mais do que
dez ou quinze libras por semana. Mas não é assim que
costumamos fazer.
Era outra vez a autoridade se manifestando, na maneira
decisiva de quem sabe que tudo o que se faz deve ser feito da
melhor forma possível.
— Tem certeza de que não há nenhuma possibilidade de
mudar essa decisão? — indagou Alice com muito cuidado,
depois de uma breve pausa.
— Absolutamente nenhuma.
No fundo, o que Mary dizia era o seguinte: É um problema
tão insignificante que não há sentido em desperdiçar mais
um minuto sequer com o assunto.
E era tão insignificante para Mary que ela começou a circular
pela cozinha, examinando-a, com um sorriso feliz, como se
desembrulhasse um presente.
Alice continuou sentada, ajustando-se à situação. Faye e
Roberta não concordariam, iriam embora imediatamente.
Jim também. Jasper não gostaria... exigiria que tanto ele
como Alice partissem. Muito bem, todos iriam embora. Por
que não? Ela já fizera isso muitas vezes! Havia aquela casa
vazia em Stockwell... Jasper e ela vinham falando há meses
em ocupá-la. Seria conveniente para Faye e Roberta, pois a
comuna de mulheres que elas freqüentavam era por aquelas
bandas. Só Deus sabia que outros lugares, refúgios,
esconderijos elas usavam. Alice tinha a impressão de que
eram muitos.
Mas era uma pena ter de deixar aquela casa. E enquanto
pensava em partir, o pesar contraiu a garganta de Alice,
levou-a a fechar os olhos, sofrendo.
E ela disse, parecendo fria e autoritária, por causa da rigidez
na garganta:
— E isso aí. Lamento muito, mas não tem outro jeito.
— Como assim? — Mary se virara e estava imóvel, como
uma atriz trágica, a mão na garganta. — Não estou
entendendo!
— Não faz a menor diferença para vocês, não é? Você e
Reggie podem ficar aqui sozinhos. E tenho certeza de que
poderão facilmente trazer amigos para ocupar a casa.
Mary arriou numa cadeira. Da garota mais feliz do mundo,
ela passara a uma pobre criatura, pálida e frágil, uma
suplicante.
— Não compreendo! Que diferença isso faz? E é claro que
Reggie e eu não podemos ficar aqui sozinhos.
— Por que não?
Mary ficou vermelha e balbuciou:
— E claro... nem precisa dizer... eles não podem saber que
estou morando aqui. Bob Hood e os outros não podem saber
que estou morando numa casa emprestada.
— Ah, então é isso... — murmurou Alice vagamente, porque
já pensava nos problemas de outra mudança.
— Não compreendo — repetiu Mary. — Qual é o problema?
Alice suspirou e explicou, sem entrar em detalhes, que al-
guns deles não queriam que sua presença na casa fosse
registrada.
— Eles são criminosos? — indagou Mary.
Ela exibia agora uma tonalidade rosa brilhante e parecia
indignada. Alice percebeu que aquele momento já ocorrera
antes, com a Tendência Militante. Métodos! E disse,
parecendo sarcástica, por causa do esforço que fazia para ser
paciente:
— Política, Mary. Política, entende?
Alice tinha a impressão de que no caso de Jim era algum
problema criminal, mas achou melhor ignorar esse detalhe.
E provavelmente também havia um problema criminal com
Faye e Roberta, por falar nisso.
— Será que não entende, Mary? As pessoas recebem o
seguro-desemprego em um distrito, mas residem em outro
lugar. As vezes em vários outros lugares.
— Ahn... estou entendendo...
Mary refletiu sobre a perspectiva: revolucionários eficientes
e perigosos em fuga, sempre escondidos. Mas parecia inca-
paz de absorver. E disse, com alguma irritação:
— Talvez a decisão possa ser ajustada. Mas ainda bem que a
prefeitura não sabe disso.
— Quer dizer que pode dar um jeito de alterar a decisão?
— Aliviada, a casa recuperada, Alice começou a sorrir, entre
lágrimas. — Oh, Deus, então está tudo bem!
Mary fitava-a atentamente. Alice, constrangida por causa da
profundidade de sua emoção, sorriu-lhe. Aquele era o
momento em que Mary, por sua repugnância a qualquer
coisa que não conferia com o padrão invisível do que era
certo, conveniente e apropriado, um sistema rígido que
partilhava com Reggie, poderia se levantar, balbuciar
algumas desculpas rígidas e ressentidas e ir embora. Para
dizer a Bob Hood que a prefeitura cometera um erro, que
aquelas pessoas na casa 43... Mas ela apenas sorriu e
murmurou:
— Falarei com Bob. Espero que não haja qualquer problema.
Todos vão rachar as despesas? Pedirei que mandem as contas
todos os meses, em vez de semanalmente. Será mais fácil
controlar os pagamentos.
Ela conversou por mais algum tempo, a fim de restaurar a
sua autoridade e a da prefeitura, depois comentou que seria
preciso fazer alguma coisa com a casa 45. Havia reclamações
constantes.
— Falarei com eles — sugeriu Alice.
Outra vez a autoridade interveio:
— Não é da sua conta, não é? Por que deveria se intrometer?
— Vendo Alice dar de ombros, aparentemente indiferente,
Mary apressou-se em acrescentar: — Mas talvez seja uma
boa idéia...
Ela subiu, com uma expressão tão irritada quanto a de Alice.
As duas pensavam que não seria fácil a combinação de tantas
pessoas na casa.
Pouco depois Mary saiu com Reggie. Ele a deixaria no
trabalho e mais tarde voltariam juntos, com outro
carregamento. Trariam alguns móveis também, se ninguém
se importasse. Uma cama, por exemplo.
Alice ficou sentada, sozinha. Philip apareceu, pegou o
dinheiro para o vidro e saiu para comprá-lo.
Alice contemplava a si mesma durante os últimos quatro dias
e pensou: Tenho me comportado como uma louca? Afinal, é
apenas uma casa... e o que venho fazendo? Aqueles dois,
Reggie e Mary... revolucionários? Eles eram da Tendência
Militante? Que absurdo!
Foi se recuperando lentamente. A energia voltou. Pensou
nos outros, no campo de batalha em Melstead. Trabalhavam
pela causa; e ela devia fazer isso também. Alice acabou
saindo, tomando cuidado para não verificar se a velha estava
ou não lhe acenando. Caminhou junto à sebe que separava
sua casa primeiro da rua e depois da 45. Entrou na ruazinha
transversal que era igual à sua e parou no mesmo lugar em
que vira Bob Hood parar no dia anterior, olhando para o
jardim cheio de lixo.
Avançou decidida pelo caminho, preparada para ser
examinada por quem quer que estivesse ali e se interessasse.
Bateu na porta. Esperou um bom tempo para que abrissem.
Deu uma olhada no vestíbulo, igual ao de sua casa, mas com
caixas empilhadas. Havia uma lâmpada. Então eles tinham
energia elétrica.
A sua frente estava um homem que a impressionou no mes-
mo instante como sendo estrangeiro. Não era por alguma
coisa específica em sua aparência, mas havia nele algo
diferente. Era russo, Alice teve certeza, o que lhe
proporcionou um frisson de satisfação. Era poder, a idéia de
poder, que a excitava. O homem em si não tinha nada de
extraordinário: largo, não gordo, embora pudesse facilmente
se tornar, e não muito alto; na verdade, era apenas um pouco
mais alto do que ela. Tinha um rosto largo e um tanto rude,
olhos pequenos, cinzentos e penetrantes. Usava uma calça
cinza de sarja que parecia nova e cara e uma camisa também
cinza, abotoada e imaculada.
Podia ter sido um soldado.
— Sou Alice Mellings. Da casa ao lado.
Ele acenou com a cabeça, muito sério.
— Entre.
O homem levou-a por entre as pilhas de caixas para o cô-
modo que na outra casa era a sala de estar. Ali, tinha a
aparência de um escritório ou estúdio. Havia uma mesa junto
à janela grande, a cadeira de costas para a janela. Alice
compreendeu o motivo dessa disposição: o homem queria
saber quem entrava e saía pela porta.
Ele sentou nessa cadeira e acenou com a cabeça para a outra,
em frente. Alice sentou.
Ela pensava, impressionada: Este é o homem, a coisa real.
Ele ficou esperando que ela falasse.
A única coisa que Alice sabia agora que não podia falar era
"Você andou dizendo a Jasper e Bert o que devem fazer?",
justamente o que desejava saber.
— Acabamos de receber autorização da prefeitura para ocu-
par a casa, por um prazo curto — disse ela. O homem
acenou com a cabeça. — Pensamos que vocês deveriam
tentar a mesma coisa. Torna a vida muito mais fácil,
entende? E significa que a polícia os deixará em paz.
Ele pareceu relaxar, recostou-se, estendeu um maço de
cigarros na direção de Alice, acendeu um para si enquanto
ela sacudia a cabeça, prendeu a fumaça nos pulmões por um
instante, depois expeliu num sopro único e rápido, antes de
dizer:
— Depende dos outros. Não vivo aqui.
Isso era tudo o que ele ia dizer? Parecia que sim. E a verdade
é que dissera tudo o que era necessário. Confusa, Alice
apressou-se em acrescentar:
— Há o problema do lixo. Terão de pagar aos lixeiros...
Ela hesitou. O homem a fitava atentamente. Alice sabia que
ele estava percebendo tudo. Era um exame frio e meticuloso.
Mas não hostil, não inamistoso, não é?
— Deram-nos um prazo de um ano para ocupar a casa. Isso
significa que depois que o lugar estiver arrumado poderemos
concentrar toda a nossa atenção na... — Alice evitou a pala-
vra "revolução" — política.
O homem parecia não ter ouvido. Esperava por mais? Que
ela continuasse? Atrapalhada, Alice acrescentou:
— E claro que nem todos em nossa casa... Por exemplo,
Roberta e Faye não acham que. . . Mas por que saberia quem
são elas? Vou explicar...
Ele interrompeu-a:
— Sei quem são Roberta e Faye. Como são os dois novos?
Alice respondeu, concedendo a Reggie e Mary o crédito
devido:
— Já foram membros da Tendência Militante, mas não
gostaram dos métodos.
Nesse ponto ela se atreveu a oferecer um sorriso, esperando
uma retribuição, mas o homem apenas indagou:
— Ela trabalha na prefeitura? Em que nível?
— Ela não toma decisões.
O homem balançou a cabeça.
— E qual é a situação dele? E químico, não é?
— Químico industrial. Perdeu o emprego.
— Onde trabalhava?
— Não perguntei. — Uma pausa, e Alice acrescentou: —
Vou descobrir.
O homem tornou a balançar a cabeça. Continuou a fumar.
Estava empertigado na cadeira, os antebraços sobre a mesa,
com um papel na frente, em que seus olhos pareciam fazer
anotações. Ele era como Lênin!
Alice pensou: A voz. Americana. Mas com algo estranho
para uma voz americana. Não, não era a voz nem o sotaque,
mas alguma outra coisa. Nele.
O homem não dizia nada. A dúvida e a ansiedade que se
acumulavam em Alice acabaram por aflorar.
— Jasper e Bert foram para Melstead. Saíram cedo.
Ele acenou com a cabeça. Pegou um jornal impecavelmente
dobrado e abriu-o à sua frente, virando as páginas.
— Já viu o Times de hoje?
— Não leio a imprensa capitalista.
— O que talvez seja uma pena — comentou o homem, de-
pois de uma pausa.
Ele empurrou o jornal, indicando um parágrafo.
"Indagado se eram bem-vindos esses reforços para o piquete,
Crabit, o porta-voz dos grevistas, declarou que gostaria que
os trotskistas e a turma do piquete-de-aluguel se
mantivessem a distância. Não eram desejados. Os
trabalhadores podem resolver seus problemas sozinhos."
Alice sentiu que poderia recomeçar a chorar com a maior
facilidade.
— Mas este é um jornal capitalista — alegou ela. — Estão
tentando dividir as forças democráticas, querem nos desunir.
Ela já ia acrescentar "Será que não pode perceber isso?", mas
não foi capaz.
O homem pegou o jornal de volta e ajeitou-o no lugar em
que se encontrava antes. Agora não olhava para Alice.
— Camarada Alice, há meios mais eficientes de fazer as coi-
sas. — Ele se levantou. — Tenho o que fazer.
Ela estava dispensada. O homem saiu de trás da mesa e
acompanhou-a até a porta da frente.
— Obrigado por ter vindo me procurar.
Alice balbuciou:
— Haveria um cômodo nesta casa que pudéssemos usar para
uma... uma discussão? Alguns de nós não têm muita certeza
sobre... sobre alguns dos outros.
— Vou perguntar — respondeu o homem.
Ele não reagira como Alice receava. A conversa parecia tão
descabida...
O homem balançou a cabeça mais uma vez e, finalmente,
ofereceu-lhe um sorriso. Alice saiu, completamente
atordoada. Dizia a si mesma: Mas ele é a coisa real, tenho
certeza.
O homem não dissera seu nome.
Alice foi andando devagar porque à sua frente, no meio da
calçada, havia uma garota com um bebê num carrinho. A
criança parecia um embrulho de plástico estofado, com uma
cabeça pálida e rechonchuda na extremidade. Choramingava
numa nota alta e persistente que deixou Alice nervosa. A
garota parecia cansada e desesperada. Tinha cabelos claros e
lisos, que davam a impressão de precisarem de uma lavagem.
Alice percebeu, pelo empinar irado de seus ombros, que ela
estava com vontade de bater na criança. Esperava poder
andar mais depressa quando chegasse à sua rua, mas a garota
virou ali, ainda ocupando o meio da calçada. Parou, olhando
para as casas, demorando-se em particular na 43. Alice
seguiu adiante e empurrou o portão. E foi nesse instante que
ouviu a garota dizer:
— Você mora aqui? Nesta casa?
— Moro — respondeu Alice, sem se virar, em tom brusco.
Sabia o que estava para acontecer. Foi avançando pelo
caminho e ouviu as rodas do carrinho rangerem em seu
encalço.
— Com licença — insistiu a garota.
Pela vozinha obstinada, Alice compreendeu que não tinha
como escapar. Virou-se abruptamente, bloqueando a
passagem para a porta da frente. Confrontava agora a garota
com um não estampado na cara. Não era a primeira vez, é
claro, que se encontrava em tal situação. E pensou: É injusto
que eu tenha de lidar com esse problema.
A garota era uma pobre coitada. Provavelmente em torno
dos vinte anos. Já desgastada por tudo, e a única energia que
lhe restava era a irritação com a criança chorona.
- Soube que esta casa foi aberta à ocupação a curto prazo.
Ela não desviava os olhos do rosto de Alice. Eram grandes,
cinzentos, até bonitos, mas Alice não queria a pressão que
lhe aplicavam. Virou-se para a porta e abriu-a.
— Onde soube disso?
A garota não respondeu. Disse apenas:
— Estou enlouquecendo. Tenho de arrumar um lugar para
ficar. De qualquer maneira.
Alice passou para o vestíbulo e ia fechar a porta, mas
descobriu que o pé da garota a impedia. Ficou surpresa, pois
não esperava tal iniciativa. Mas essa determinação tornou-a
mais forte; afinal, se a garota possuía tanto espírito, então sua
situação não era tão ruim assim.
A porta ficou aberta. A criança agora chorava ruidosamente,
com a maior animação, dentro de sua mortalha de plástico
transparente, os olhos azuis arregalados, derramando
lágrimas. A garota enfrentou Alice, que percebeu que ela
tremia de raiva.
— Tenho tanto direito de ficar aqui quanto você — declarou
ela. — E se houver lugar, virei para cá. E tem bastante espa-
ço, não é? Basta olhar para o tamanho desta casa!
A garota correu os olhos pelo vestíbulo grande, com o tapete
reluzente que dava uma aparência de luxo discreto, observou
as várias portas, dando para cômodos e mais cômodos, um
autêntico tesouro. A seguir contemplou a escada larga, que
subia para outro andar. Mais portas, mais espaço. Alice, em
agonia, fitou-a nos olhos.
— Estou num daqueles hotéis... sabe como são? Pois todo
mundo devia saber. A prefeitura nos jogou lá, meu marido,
Bobby e eu. Um cômodo só. Estamos lá há sete meses.
Alice podia sentir pelo tom, incrédulo por tanto horror,
como haviam sido aqueles sete meses.
— Pertence a alguns estrangeiros nojentos — continuou a
garota. — Uma coisa repulsiva. Por que eles deveriam ter um
hotel e nos ordenar o que fazer? Não temos permissão para
cozinhar. Pode imaginar uma coisa assim com um bebê? Um
cômodo só. E o chão é tão sujo que não posso pô-lo para
engatinhar.
Essa informação foi fornecida a Alice em voz emocionada e
trêmula, enquanto a criança continuava a chorar, firme e
sonora.
— Não pode vir para cá — insistiu Alice. — Não é um lugar
adequado. Para começar, não tem aquecimento. Não há nem
água quente.
— Agua quente! — exclamou a garota, tremendo de raiva. —
Agua quente! Passamos três dias sem água quente e com o
aquecimento desligado. A gente liga para a prefeitura e
reclama, eles dizem que estão providenciando. Quero um
pouco de espaço. Um quarto. Posso esquentar água numa
panela para lavar a criança. Tem fogão aqui, não é? Nem
posso dar uma comida decente a meu filho. Só aquelas
porcarias que se compram prontas.
Alice não respondeu. Estava pensando: Por que não? Que
direito tenho eu de dizer não? E foi nesse instante que ela
ouviu um ruído lá em cima. Virou-se para deparar com Faye
no patamar, observando. Havia alguma coisa nela que
prendeu a atenção de Alice; algum propósito inabalável, um
ânimo implacável. A criatura linda e frágil, Faye, tornara a
desaparecer; em seu lugar havia uma mulher maligna, de
rosto branco, olhos frios e punitivos, que desceu a escada
rapidamente, como se fosse atacar a garota, que a princípio
se manteve firme, mas depois, aturdida, deu um passo para
trás. E logo Faye estava em cima dela, inclinando-se para a
frente e sussurrando:
— Saia. Saia. Saia.
A garota balbuciou:
— Quem é você? O que...
Faye empurrou-a, pela força de sua presença, seu ódio, de
volta à porta, passo a passo. A criança agora berrava.
— Como se atreve? — disse Faye. — Como pode entrar aqui
desse jeito? Ninguém disse que podia entrar. Sei como você
é. Depois de se instalar, trataria de se apropriar de tudo o que
pudesse. É desse tipo.
Tamanha insanidade manteve Alice em silêncio e a garota
boquiaberta e de olhos arregalados fitando sua algoz,
enquanto batia em retirada para a porta. Ali, Faye lhe deu
um empurrão de verdade, o que a fez tropeçar para cima do
carrinho e quase derrubá-lo.
Faye bateu a porta estrondosamente. Depois, abriu-a e tor-
nou a bater, com toda a força. Tudo indicava que continuaria
a fazer isso, mas Roberta entrou em cena nesse instante.
Nem mesmo ela se atrevia a tocar em Faye, mas pôs-se a
falar, em voz baixa, premente, persuasiva:
— Faye, Faye, Faye querida, pare com isso, não, tem de
parar. Está me escutando? Pare com isso, Faye...
Faye ouviu-a, o que se podia perceber pela maneira como
manteve a porta aberta, hesitante, antes de batê-la outra vez.
Mais além podia-se ver a garota, afastando-se devagar pelo
caminho, a criança berrando. Ela olhou para trás a tempo de
avistar Faye ser envolvida pelos braços de Roberta e, assim,
mantida prisioneira. E Faye gritou, a voz rouca, ofegante:
— Largue-me!
A garota parou, a boca escancarada, os olhos frenéticos. Oh,
não, aqueles olhos pareciam dizer, enquanto ela se virava
outra vez e corria desajeitada para longe daquela casa dos
horrores.
Alice fechou a porta e os gritos da criança cessaram. Roberta
arrulhava:
— Faye, Faye, calma, querida, não, meu amor, está tudo
bem...
Faye soluçava como uma criança, com grandes ofegos para
respirar, e arriou sobre Roberta. Gentilmente, Roberta levou-
a para cima, passo a passo, sempre murmurando:
— Calma, calma, não, Faye, por favor, está tudo bem...
Elas entraram em seu quarto, a porta foi fechada, o vestíbulo
ficou vazio. Alice continuou parada ali por mais algum
tempo, atordoada; depois, foi para a cozinha e sentou, com o
corpo todo tremendo.
Em sua mente, acompanhava a garota na calçada. Não sentia
culpa, mas uma identificação com ela. Imaginou-se seguindo
com a criança pesada e incômoda para o ponto de ônibus,
esperando e esperando, o rosto impassível, dizendo às outras
pessoas na fila que não se importava com o que pensavam do
berreiro de seu filho. Depois, subindo no ônibus com
dificuldade por causa do carrinho, sentando com a criança,
que talvez não estivesse mais chorando, mas seria uma massa
informe de sofrimento exausto. E saltando do ônibus,
tornando a ajeitar a criança no carrinho, encaminhando-se
para o hotel. Alice conhecia aqueles hotéis, sabia o que
acontecia.
Depois de algum tempo, obrigou-se a fazer um chá forte e
bebeu como se fosse conhaque. Silêncio no piso de cima.
Roberta teria posto Faye para dormir?
Mais tarde, Roberta entrou e sentou. Alice sabia como devia
estar parecendo, pela avaliação de Roberta. E pensou: No
fundo, ela é uma dessas mulheres maternais, cheia de
compreensão e peitos enormes; quer bancar a machona e
durona, mas, para seu azar, não passa de uma mamãezinha.
Não queria se incomodar com o que sabia que estava para
acontecer. E quando Roberta disse:
— Imagino que impressão deve ter causado, Alice, mas...
Ela tratou de interrompê-la:
— Não me importo. Está tudo bem.
Roberta hesitou, depois se forçou a continuar:
— Faye às vezes fica assim, mas está muito melhor, e há
bastante tempo não tinha um acesso desses. Há mais de um
ano.
— Certo.
— E é claro que não podemos ter crianças aqui.
Alice não disse nada.
Tendo necessidade de alguma reação que não estava obten-
do, levantou-se e foi se ocupar com saquinhos de chá e uma
caneca. Disse, em voz baixa, rápida, vibrante:
— Se soubesse da infância de Faye, se soubesse de tudo o que
lhe aconteceu...
— Não estou interessada na porra da infância dela —
comentou Alice.
— Mas eu tenho de contar, para o bem de Faye... Ela foi
constantemente espancada quando criança...
— Não quero saber — gritou Alice subitamente. — Acho
que você não compreende. Já tive todas as infâncias infelizes
que vou ouvir. As pessoas continuam e continuam... Para
mim, infâncias infelizes são a grande desculpa, o grande
álibi.
Chocada, Roberta murmurou:
— Um bebe maltratado... e bebês maltratados crescem para
se tornar adultos.
Ela voltara a seu lugar, sentara, agora inclinava-se para a
frente, os olhos fixados em Alice, determinada a fazê-la
reagir.
— Conheço uma coisa — disse Alice. — Comunas. Casas
ocupadas como esta. Se não se toma cuidado, viram isso...
pessoas falando sobre suas infâncias de merda. Nunca mais.
Não estamos aqui para isso. Ou é o que você quer? Uma
espécie de encontro de grupo permanente. Tudo acaba se
transformando nisso, se a gente deixar.
Roberta, convencida de que Alice não ia escutar, ficou em
silêncio. Tomou o chá ruidosamente, e Alice estremeceu.
Havia alguma coisa vulgar e grosseira em Roberta, Alice
estava pensando, perturbada e irritada demais para censurar
seus pensamentos. Ela ainda não se lavara, embora a água já
saísse das torneiras. Havia nela aquele cheiro metálico de
sangue. Ou Roberta ou Faye, se não as duas, estava
menstruada.
Alice fechou os olhos, refugiando-se num lugar em seu ín-
timo que descobrira há muitos anos — não sabia quando,
mas ainda era uma criança pequena. Lá dentro estava segura,
o mundo ao redor podia explodir quanto quisesse. E ouviu-se
dizer, naquela sua voz sonhadora e desligada:
— Acho que Faye acabará morrendo um dia desses. Ela já
tentou o suicídio, não é?
Silêncio. Abriu os olhos para deparar com Roberta em
lágrimas.
— Já, mas não depois que eu...
— Todas aquelas pulseiras... — murmurou Alice. — Ci-
catrizes por baixo das pulseiras.
— Ela só tem uma cicatriz pequena. No pulso esquerdo.
Alice tornara a fechar os olhos e tomava o chá, sentindo
que seus nervos estariam em breve retornando à vida.
— Um dia desses vou lhe contar a infância infeliz de minha
mãe. Sua mãe era louca e o pai, peculiar. Isso mesmo,
"peculiar" é a palavra. Ah, se eu lhe contasse... — Ela não
tinha a menor intenção de falar da mãe. — Mas não importa.
Alice começou a rir. Era um riso saudável, até jovial,
demonstrando como apreciava os caprichos e a riqueza da
vida.
— Por outro lado, meu pai. . . era farinha de outro saco.
Quando criança, ele se sentia feliz o dia inteiro. E por isso
ele diz que foi a época mais feliz de sua vida. Mas podemos
acreditar nele? Eu me sinto propensa a acreditar. Ele é tão
obtuso e estúpido que não notaria se fosse infeliz. Poderiam
tê-lo espancado à vontade e ele nem notaria.
Ela abriu os olhos. Roberta a examinava com um sorriso
sugestivo. Contra sua vontade, Alice sorriu em resposta.
— Para mim, esse é o ponto final — acrescentou Alice. —
Tem um conhaque ou algo parecido?
— Que tal um baseado?
— Não, obrigada. Não acontece nada comigo. E não gosto.
Roberta saiu e voltou um momento depois com uma garrafa
de uísque. Ficaram bebendo na cozinha, cada uma sentada
numa extremidade da mesa comprida. Quando Philip
chegou, cambaleando ao peso dos vidros para as janelas,
pronto para começar a trabalhar, recusou um trago, alegando
que estava passando mal. Subiu para o seu saco de dormir. O
que realmente quisera dizer foi que Alice devia estar
trabalhando também, e não sentada ali, sem fazer nada,
deixando o tempo passar.
Roberta, depois de beber muito, subiu para junto de Faye.
Houve silêncio lá em cima.
Alice resolveu tirar um cochilo. Havia no vestíbulo um
envelope, e ela achou que era uma correspondência
comercial qualquer. Pegou-o para jogar fora, descobriu que
era do Departamento de Energia Elétrica e sentiu-se gelada e
enjoada; decidiu se dar algum tempo antes de abri-lo. Foi
para a cozinha. Em mãos. A senhora Whitfield dissera que
passava por ali no caminho entre sua casa e o trabalho.
Deixara o envelope pessoalmente, ao voltar para casa. Era
muita gentileza... Alice abriu-o e leu a carta:
"Prezada senhorita Mellings,
Entrei em contato com seu pai para tratar da garantia do
pagamento das contas da Old Mill Road, 43, de acordo com a
nossa conversa. Lamento dizer que a resposta dele foi
negativa. Não poderia aparecer para discutir o problema nos
próximos dias?
Atenciosamente,
D. Whitfield."
A carta humana e cordial fez Alice sentir-se apoiada a
princípio, mas depois a raiva dominou-a. Por sorte não havia
ninguém ali para testemunhar sua explosão interior, os
dentes rangendo, os olhos esbugalhados, os punhos cerrados
como se empunhassem facas. Circulou pela cozinha,
fervendo de ódio, como uma mosca enorme trancada num
quarto numa tarde quente, esbarrando nas paredes, cantos da
mesa, fogão, sem saber o que fazia, soltando grunhidos,
choramingando, rosnando — o que não demorou a ouvir.
Assustada, sentou à mesa, ficou completamente imóvel,
reprimindo o que sentia. O sossego absoluto depois de tanta
violência, por alguns minutos. E então irrompeu em
movimento, saiu da cozinha, subiu a escada, foi bater com
toda a força na porta de Philip. Movimentos no quarto, mas
nenhuma resposta. Alice gritou:
— Sou eu, Philip! Alice!
— Pode entrar.
Ela entrou e encontrou-o saindo do saco de dormir e ves-
tindo o macacão.
— Oh, desculpe...
Alice descartou esse embaraço sem maior importância e foi
direto ao assunto:
— Philip, você pode ser fiador de nossas contas de luz? —
Como ele fizesse uma cara de quem não estava entendendo,
Alice acrescentou: — A conta desta casa. Minha mãe não
quer ser fiadora e meu pai também não. Nem a miserável da
Theresa e o miserável do Anthony...
Ele estava de pé na sua frente, a claridade intensa e amarela-
da do final da tarde por trás, um vulto pequeno e escuro,
numa pose rígida e desajeitada. Alice não podia ver seu
rosto, e foi para o lado do quarto. Philip virou-se em sua
direção e ela viu-o confrontá-la, pequeno, pálido, mas
obstinado. Diante de sua expressão, Alice compreenderia
que fracassaria, mas mesmo assim disse, bruscamente:
— Tem um negócio, papel timbrado, pode ser o fiador das
contas.
— Como, Alice? Não tenho condições de pagar, e você sabe
disso.
Falando como se ele tivesse de pagar, pensou Alice, furiosa
outra vez. Mas Philip teria ouvido o seu gracejo de que o
primeiro pagamento seria também o último? Ela disse, em
tom autoritário:
— Ora, Philip, não diga bobagem. Não teria de pagar nada,
não é? E apenas para manter a luz ligada.
Ele resistiu, tentando se manter jovial:
— E se eu tivesse de pagar, Alice?
— Claro que não teria!
Alice percebeu que ele estava pronto para rir com ela, po-
rém ela não tinha como rir.
— O que vou fazer agora, Philip? Não tenho a menor idéia!
— Não acredito, Alice — disse ele, rindo agora, mas
gentilmente.
Em voz normal, Alice insistiu:
— Precisamos de um fiador, Philip. E você é o único,
entende?
Mas ele continuou a resistir:
— Não é possível, Alice. Para começar, aquele endereço no
papel timbrado é do lugar em que eu morava antes de
Felicity... e foi demolido. Não existe mais.
Os dois ficaram se olhando com expressões consternadas
idênticas, como se as tábuas do assoalho começassem a ceder
sob o peso; pois ambos eram invadidos, ao mesmo tempo,
por uma visão de impermanência: casas, prédios, ruas,
bairros inteiros, demolidos, derrubados, desaparecendo, uma
ilusão. Suspiraram juntos e, num repente, abraçaram-se
ternamente, confortando um ao outro.
— Ela não quer que a luz seja desligada — explicou Alice. —
Deseja ajudar. Só precisa de uma desculpa, mais nada... Ei,
espere um pouco... acho que encontrei a solução...
— Eu tinha certeza de que encontraria — comentou Philip.
Alice continuou, muito excitada:
— Isso mesmo. Meu irmão. Direi ao departamento que ele
será o fiador, mas que está ausente, numa viagem de
negócios... em Bahrein, não importa o lugar. E a senhora
Whitfield vai aceitar. Tenho certeza.
E fazendo o sinal do polegar para cima, Alice saiu correndo
do quarto, rindo, exultante.
Era tarde demais para telefonar para a senhora Whitfield
agora, mas cuidaria disso no dia seguinte e não haveria mais
problemas.
Não havia necessidade de falar a respeito com Mary e
Reggie. E claro que se Mary quisesse poderia garantir o
pagamento das contas; era a única que tinha um emprego.
Mas Alice sabia que ela jamais concordaria em ser a fiadora.
Alice precisava dormir. Estava abalada e trêmula por dentro,
onde sua ira residia.
Estava escurecendo quando Alice acordou. Ouviu a risada de
Bert na cozinha, um profundo "rô rô rô". Não é o seu riso
habitual, pensou ela. E como seria? Mais provavelmente "ri ri
ri". Isso mesmo, Bert inventara aquela risada para seu uso
comum. Confiável e confortável. Viril. Vozes e risos,
sempre os inventamos... A voz inventada de Roberta,
segura. A voz e a risada rápidas e leves de Pat. E a sua própria
risada? Talvez. Então os dois estavam de volta, o que
significava que Jasper também se encontrava ali. Alice saiu
do saco de dormir, pôs um suéter, fixou no rosto um sorriso
que acompanhava seus sentimentos por Jasper: admiração e
amor suplicante.
Mas Jasper não estava na cozinha com os outros dois, que se
mostravam felizes, realizados, comendo peixe com batatas
fritas.
— Está tudo bem, Alice — disse Pat, puxando uma cadeira
para ela. — Eles o prenderam, mas não é sério. Será levado a
um tribunal de Enfield amanhã de manhã. Estará de volta
amanhã até a hora do almoço.
— E se ele receber uma pena de detenção? — indagou Bert.
— Recebeu uma de dois anos com sursis em Leeds, mas o
prazo terminou no mês passado.
— No mês passado? — repetiu Pat.
Seus olhos procuraram os de Bert, não encontraram reflexo
para o que estava pensando — provavelmente contra a sua
vontade, calculou Alice —, e, para não enfrentarem os de
Alice, concentraram-se na tarefa de comer uma batata frita
dourada após outra. Não era a primeira vez que Alice
deparava com insinuações de que Jasper gostava de ser
detido... precisava acrescentar essa emoção à sua vida. Ela
comentou:
— Ele teve de tomar cuidado com o que fazia durante muito
tempo, vigiar cada passo. Acho...
Alice examinava Bert; sabia que ele poderia lhe contar o que
precisava saber sobre a prisão. Jasper fora agarrado pela
polícia e Bert não; bastava isso...
Pat empurrou as batatas fritas em sua direção, e Alice comeu
uma ou duas, cautelosa, pensando no colesterol.
— Quantos foram presos?
— Sete. Não conhecíamos três. Os outros foram John, Cla-
rissa e Charlie. E Jasper.
— Nenhum dos camaradas das lideranças sindicais?
— Nenhum.
Silêncio. Rompido por Bert:
— Eles têm multado as pessoas em vinte e cinco libras.
Alice ressaltou, automaticamente:
— Então devem pedir cinqüenta libras por Jasper.
— Ele achou que seria uma multa de vinte e cinco. Dei-lhe
vinte libras, e portanto ele deve ter o suficiente.
Alice, que estava prestes a se levantar, pronta para se retirar,
perguntou:
— Ele não quer que eu vá até lá? Por que não? O que ele
disse?
Pat respondeu com uma cautela evidente:
— Ele me pediu para dizer a você que não fosse.
— Mas eu sempre estava presente todas as vezes que o
agarraram. Sempre. E compareci ao tribunal em todas as
ocasiões.
— Foi o que ele disse — insistiu Bert. — "Digam a Alice que
não precisa se incomodar."
Alice continuou sentada, tão concentrada em seus
pensamentos que a cozinha, Bert e Pat, até mesmo a casa ao
redor, desapareceram. Encontrava-se no cenário do piquete.
O furgão carregado com jornais apareceu nos portões, a
aparência lustrosa e sinistra avisando a todos para odiá-lo; o
piquete avançou, todos gritando; e lá estava Jasper, como ela
o vira tantas vezes, o rosto pálido distorcido por um ódio
intenso, os cabelos avermelhados. Jasper era sempre o
primeiro a ser preso, pensou Alice, orgulhosa, sempre
dedicado, sempre obviamente — até para a polícia —
disposto ao auto-sacrifício. Puro.
Mas havia alguma coisa que não se ajustava.
— Você achou que era melhor não ser preso também por
algum motivo, Bert?
Porque, se era esse o caso, poder-se-ia esperar que Jasper
também voltasse para casa.
— Jasper descobriu lá alguém que pode nos ser muito útil —
respondeu Bert.
No mesmo instante tudo se ajustou na mente de Alice.
— Era um dos três que vocês não conheciam?
— Exatamente. — Bert bocejou. — Detesto ter de pedir, mas
poderia me dar as vinte libras? Jasper disse que eu deveria
pedir a você.
Alice contou o dinheiro. Não deixou que seu olhar se
desviasse da tarefa. Pat comentou, suavemente:
— Esse pequeno maço de notas não vai durar muito tempo se
continuar assim.
— Tem razão.
Alice estava orando: Faça com que Bert saia. Faça com que
ele suba. Preciso conversar com Pat. Pensava isso com tanto
afinco que não ficou surpresa quando ele se levantou e
anunciou:
— Vou visitar Felicity para tomar um banho.
— Irei também daqui a pouco — disse Pat.
Bert saiu, e as duas continuaram sentadas. Alice perguntou:
— Qual é o nome do homem da outra casa?
— Lênin?
Agradecida, Alice riu com ela, sentindo-se especial e
privilegiada naquela intimidade com Pat, que a admitia numa
conspiração importante. Pat acrescentou:
— Ele diz que seu nome é Andrew.
— De onde você acha que ele vem?
— Boa pergunta.
— Ele tem até sotaque americano, Pat.
— A linguagem do Novo Mundo.
— Isso mesmo.
Elas trocaram um olhar sugestivo.
Depois de dizerem tudo o que era necessário sobre aquele
assunto, as duas o abandonaram. Após uma pausa, Alice
informou:
— Fui até lá esta tarde. Para pedir a eles que tomem alguma
providência com a sujeira.
— Boa idéia.
— O que tem em todas aquelas caixas?
— Folhetos. Livros. Pelo menos é o que dizem.
— Mas com a polícia por aqui a todo instante?
— Não estavam lá anteontem. E aposto que não estarão
amanhã. Talvez até já tenham sido removidas.
— Chegou a ver os folhetos?
— Não, mas perguntei. Foi o que ele disse... o tal de Andrew.
Material de propaganda.
Outra vez um assunto foi deixado de lado, por consenti-
mento tácito. Pat comentou:
— Aposto que Bert acha que o tal camarada... com quem
Jasper conversou em Melstead... pode nos fornecer algumas
informações úteis.
— Para o IRA?
— Isso aí.
— Ouviu alguma coisa da conversa?
— Não. Mas Bert participou durante algum tempo.
A essa altura, Alice poderia ter perguntado: O que Bert acha
dele? Mas não se importava com o que Bert pensasse. A
avaliação de Pat é que era importante.
— Como ele parecia? Talvez eu o conheça. Não era alguém
da turma habitual?
— Tenho certeza que nunca o vi antes. Nada de especial para
informar.
— Foi... foi o camarada Andrew quem disse a vocês para
participarem dos piquetes? Ele disse alguma coisa sobre
Melstead? Quantas vezes já estiveram na outra casa?
Pat sorriu e respondeu, embora indicasse por sua atitude que
não havia motivo para que o fizesse:
— Já estive lá duas vezes. Bert e Jasper têm ido com mais
freqüência. Quanto a Melstead, tenho a impressão de que o
camarada Andrew... — ela enfatizou um pouco a palavra
"camarada", como se achasse que Alice devia pensar bastante
a respeito — que o camarada Andrew não é muito favorável
a que os quadros de fora participem dos piquetes.
Alice declarou, com veemência:
— Mas é nossa luta também! E uma luta de todas as forças
progressistas do país! Melstead é um ponto focal do
imperialismo fascista, não apenas um problema dos
sindicalistas de Melstead!
— Você perguntou. — Uma pausa, e Pat acrescentou: — Na
minha opinião, o camarada Andrew tem peixe mais graúdo
para fritar.
Uma emoção intensa invadiu Alice, como aconteceria com
alguém que tivesse passado a vida inteira falando em
unicórnios e de repente vislumbrasse um. Ela fitou Pat com
um excitamento especulativo, mas Pat parecia não perceber
o que acabara de dizer. Se ela não estava insinuando que os
camaradas na Old Mill Road, 43 haviam se aproximado
involuntariamente de grandes acontecimentos, o que então
quisera sugerir? Mas Pat se levantava nesse instante.
Encerrando a conversa. Alice queria que ela ficasse. Não
podia acreditar que Pat estivesse disposta a se retirar logo
agora, naquele momento emocionante, quando eventos
fabulosos pareciam iminentes. Mas Pat se espreguiçava e
bocejava. Seu sorriso era de satisfação, seus olhos se
encontraram com os de Alice num relance; ela parecia estar
zombando, provocando. Ela é sensual demais, pensou Alice,
indignada. Mas disse:
— Perguntei... ao camarada Andrew se poderíamos usar um
cômodo naquela casa para reuniões... reuniões do grupo
interno.
— Nós também pedimos. Ele disse que sim.
Pat sorriu, baixou os braços. Ficou olhando para Alice, não
mais sorrindo, dizendo com o corpo que a conversa já fora
mais do que suficiente e queria ir embora.
— Onde estão os novos camaradas?
Ela já se encaminhava para a porta.
— Estão lá em cima.
Pat saiu e Alice ficou sentada, até ouvi-la subir, entrar no
quarto e fechar a porta.
Só então Alice saiu da casa, apressada. Era muito cedo para o
que ia fazer. A rua, embora escura, tinha o clima de final de
dia, com carros chegando para estacionar, outros partindo
para as diversões noturnas, uma inquietação de luzes. Mas o
tráfego na rua principal conservava a intensidade da luz do
dia. Foi dar uma olhada na casa 45. Teve a impressão de que
já haviam começado a remover o lixo; isso mesmo, lá
estavam alguns sacos cheios junto à sebe, o plástico preto
brilhando. Divisou dois vultos inclinados para a terra, nos
fundos, não muito longe do buraco que ela, Pat e Jim tinham
escavado, embora uma sebe grande se interpusesse. Estariam
cavando uma fossa também? A escuridão era profunda lá
atrás. Luzes das janelas superiores de Joan Robbins
iluminavam o topo da casa 45, mas não desciam até o jardim.
Alice espreitou por algum tempo, não viu ninguém entrar ou
sair; não podia divisar o camarada Andrew pelas janelas do
primeiro andar porque as cortinas estavam fechadas.

Foi para a estação do metrô, pegou um trem e ficou
planejando o que ia fazer. Subiu pela rua arborizada em que
Theresa e Anthony moravam. Parou na calçada, olhando
para as janelas da cozinha no terceiro andar. Imaginou que
eles estavam sentados ali, em lados opostos da mesa pequena
que usavam quando se encontravam sozinhos. Uma comida
deliciosa. Sentiu a boca ficar aguada ao pensar na comida que
Theresa preparava. Se tocasse a campainha, ouviria a voz de
Theresa: Alice, querida, é você? Pode entrar. Ela subiria, se
juntaria aos dois na noite comprida e tranqüila, aproveitaria a
comida. Sua mãe talvez aparecesse. Mas a raiva dominou-a
ante esse pensamento e sacudiu-a com mãos em brasa, a tal
ponto que sua vista escureceu e descobriu-se a caminhar
mais depressa pela rua, virando em outra, e mais outra,
andando como se pudesse explodir caso parasse. Caminhou
por muito tempo, enquanto o sentimento das ruas mudava
para a noite fechada. Encaminhou-se para a rua do pai. Foi
avançando casualmente. As luzes estavam acesas no
primeiro andar; todas as janelas despejavam um jorro de luz.
Lá em cima havia uma claridade difusa no quarto em que as
crianças dormiam. Muito cedo. Continuou a andar, deu a
volta, passou de novo pela casa de Theresa e Anthony, que
estava agora escura, subiu a ladeira, desceu, tornou a entrar
na rua do pai. As luzes de baixo estavam apagadas, mas
acesas as do quarto. Há cerca de uma hora encontrara uma
pedra do tamanho e formato certos na beira de um jardim e
a guardara no bolso. Olhou para um lado e outro da rua
sossegada, onde os lampiões projetavam manchas douradas
nas árvores. Um casal, de braços dados, vinha lentamente da
direção da estação do metrô. Velhos. Um casal idoso.
Estavam absorvidos no esforço de andar, não viram Alice.
Que mesmo assim foi até a extremidade da rua e voltou
depressa, no ímpeto de sua necessidade, de sua decisão. Não
havia agora ninguém na rua. Ao chegar à casa do pai, ela
seguiu direto para o portão, que não se deu o trabalho de
abrir sem fazer barulho, e jogou a pedra com toda a força de
que era capaz na janela do quarto. Esse movimento, a linha
firme e contínua do arremesso, com toda a força do corpo
por trás, e depois a volta completa no balanço do impulso,
com a saída para a calçada, a rapidez e a violência, a
eficiência, nada disso poderia ser deduzido da maneira como
Alice era, em qualquer outra ocasião do dia ou da noite, a
boa menina Alice, a filha de sua mãe... Ela ouviu a janela se
espatifar, um grito estridente, o berro do pai. Mas já se
afastara; correu pelas sombras densas das árvores para uma
rua transversal, percorreu-a e saiu na rua principal, sessenta
segundos depois de ter arremessado a pedra. A respiração era
ofegante, ruidosa demais... Parou, olhando para uma vitrine,
a fim de normalizar a respiração. Percebeu que estava cheia
de aparelhos de televisão e foi para a vitrine seguinte,
calmamente, examinando vestidos, até poder entrar no
supermercado sem que ninguém reparasse em sua
respiração. Ali ficou por uns vinte minutos, escolhendo e
rejeitando. Levou a cesta branca carregada para a caixa,
pagou, encheu os sacos e voltou para casa de metrô. Desde
que a pedra deixara sua mão, mal pensara no que podia estar
acontecendo na casa do pai.
Agora, vendo a sóbria luz azulada da delegacia de polícia, ela
entrou. Não havia ninguém na mesa de recepção, mas podia
ouvir vozes em parte da sala que estava fora de sua vista.
Tocou a campainha. Ninguém veio atender. Tocou de novo,
autoritária. Uma jovem policial apareceu, avaliou-a, decidiu
se mostrar contrariada e sumiu. Alice tocou de novo. Agora,
a jovem, tão aprumada em seu uniforme escuro quanto Alice
no dela — jeans e blusão —, aproximou-se devagar, uma
expressão irritada e decidida, indicando que estava
escolhendo as palavras para pôr Alice em seu lugar.
— Podia ser uma emergência — disse Alice. — Como ia sa-
ber? Por acaso não é. Portanto, você está com sorte.
O rosto da policial ficou subitamente vermelho, ela ofegou,
os olhos se arregalaram. Alice acrescentou:
— Vim comunicar a ocupação autorizada de uma casa... uma
licença a curto prazo... deve conhecer o processo...
— A esta hora da noite? — indagou a mulher habilmente,
numa tentativa de recuperar o controle da situação.
— Não devem ser mais do que onze horas, não é? Não sabia
que havia um horário determinado para tratar dessas coisas.
— Já que você está aqui, vamos resolver logo o problema. O
que quer comunicar?
Alice disse:
— Vocês estiveram lá... uma batida, há três noites. Não
sabiam que era uma ocupação autorizada... pela prefeitura.
Expliquei a situação. E agora vim confirmar. Ficou tudo
acertado numa reunião na prefeitura hoje.
— Qual é o endereço?
— Old Mill Road, 43.
Um pequeno brilho se insinuou no rosto da policial.
— Espere um instante.
Ela desapareceu e Alice escutou vozes, de homem e de
mulher. A policial voltou, acompanhada por um homem.
Alice reconheceu-o: era um dos que haviam estado na casa.
Ficou desapontada porque não era o que chutara a porta.
— Boa noite — disse ela, gentilmente. — Deve se lembrar,
pois já esteve na Old Mill Road, 43.
— Claro que lembro. — Ainda havia em seu rosto vestígios
das risadas de que desfrutara com os companheiros. — Fo-
ram vocês que enterraram a. . . que abriram uma fossa...
— Isso mesmo. Enterramos as fezes que outras pessoas
deixaram lá em cima. Em baldes.
Alice estudou os rostos afetados e repugnados à sua frente.
Macho e fêmea. Do mesmo tipo.
— Não consigo imaginar por que vocês reagem assim. As
pessoas enterram seus excrementos em buracos há milhares
de anos. E ainda hoje continuam a fazê-lo, na maior parte do
mundo... — Como isso parecesse não os alcançar, ela
acrescentou: — Neste país só temos esgotos sanitários há
cerca de cem anos. Menos até, em algumas áreas.
— Mas agora temos — comentou a mulher, incisiva.
— Isso mesmo — concordou o homem.
— Creio que adotamos a providência responsável e higiênica.
A natureza cuidará do resto muito em breve.
— Mas não façam isso de novo — disse o homem.
— Não temos mais necessidade, não é? — murmurou Alice
gentilmente. — O que vim comunicar é que podem verificar
com a prefeitura: a casa 43 tem agora uma ocupação
autorizada, a curto prazo.
A mulher pegou um formulário. O homem voltou para junto
dos companheiros. Pouco depois houve uma explosão rui-
dosa de risos escandalizados. E mais outra. A mulher, preen-
chendo diligentemente o formulário, contraiu os lábios.
Alice não pôde definir se era ou não uma reação de crítica.
— Pequenas coisas divertem mentes pequenas — comentou
ela.
A policial lançou um olhar que dizia que Alice não devia
dizer tais coisas, mesmo que ela própria estivesse pensando
assim. Alice sorriu-lhe, de mulher para mulher.
— E isso aí. A ocupação da casa agora é legal, na mais perfeita
ordem. Mais alguma batida e estarão ultrapassando os limites.
— Creio que somos nós que decidimos isso — declarou a
policial com um sorriso tenso.
— Não são, não — contestou Alice. — Tenho certeza de que
não. Sei que não haverá mais reclamações dos vizinhos.
— Vamos torcer para que não — murmurou a mulher,
retirando-se para o convívio dos seus no fundo da sala.
Satisfeita, Alice saiu e foi para casa, passando pela 45. Não
havia ninguém no jardim, agora. Mas na sombra mais densa,
no encontro das duas sebes, ela percebeu que um buraco
fora escavado. Não pôde resistir. Pela segunda vez naquela
noite, abriu furtivamente um portão de jardim. A casa
parecia deserta, todas as janelas estavam escuras. O buraco
tinha cerca de um metro e meio de profundidade. Havia um
cheiro intenso de terra revolvida nas encostas ao redor. O
fundo parecia plano... água? Alice inclinou-se para verificar.
Uma caixa ou algo parecido fora colocado ali. Ela
empertigou-se, olhando ao redor. Desfrutando
conscientemente da situação, da sensação de perigo e de
ameaça, pensou: Eles estão observando de trás das cortinas
ou lá de cima... eu faria isso, no lugar deles. Mas é um risco.
Virou- se para avaliar a estratégia da operação. Não, talvez
não houvesse problema. Enquanto a abertura da fossa do
outro lado podia ser observada pelos ocupantes de três casas
e por qualquer um que passasse pela casa de Joan Robbins, ali
dois lados estavam resguardados pela sebe e pela cerca alta, e
um terceiro pela casa. Entre aquele lugar e o portão havia
moitas e arbustos. As janelas superiores da casa de Joan
Robbins estavam escuras. Do outro lado da rua, recuada,
atrás de seu jardim, uma casa; e certamente qualquer um
podia ver o que quisesse das janelas de cima. Que estavam
escuras; as pessoas ainda não haviam subido para deitar. Ela
já vira o que precisava ver. Gostaria de ficar, o cheiro
agradável da terra revolvida e o ímpeto do risco incendiando
seu sangue, mas afastou-se, rápida como uma sombra, foi até
a porta da frente e bateu, gentilmente. Foi aberta no mesmo
instante. Por Andrew.
— Eu sabia que você devia estar observando — comentou
Alice. — Vim avisar que já comuniquei à polícia que a 43 é
uma ocupação autorizada. Por isso, eles estarão propensos a
acreditar quando vocês aparecerem e disserem a mesma
coisa.
Seu pulso estava acelerado, o coração batia forte, cada célula
pulsando e alerta. Sabia que sorria; ah, aquilo era o oposto de
"sua cara", quando se sentia assim, como se tivesse bebido
uma essência de perigo destilada extrafina e pudesse andar
nas nuvens ou correr cinqüenta quilômetros.
Viu o vulto baixo e poderoso sair da escuridão do vestíbulo
para um ponto em que podia divisar seu rosto, à luz dos
lampiões da rua. Estava sério e determinado, a visão lhe
proporcionou um agradável sentimento de submissão a seus
poderes superiores.
— Enterrei uma coisa... uma emergência — disse ele. — Sairá
daqui dentro de um ou dois dias. Deve compreender.
— Claro que compreendo.
Alice sorriu. Ele hesitou. Adiantou-se mais um pouco. Ela
sentiu mãos vigorosas segurarem seus braços. Estava
cheirando a bebida? Vodca? Uísque.
— Estou pedindo para guardar segredo.
Alice balançou a cabeça.
— Claro.
— Ninguém mais deve saber.
Ela tornou a balançar a cabeça, pensando que só uma pessoa
podia saber na 43, mas quantos não saberiam naquela casa?
— Vou confiar totalmente em você, Alice. — Ele concedeu-
lhe um sorriso tenso e breve. — Porque não tenho outro
jeito. Sou o único que sabe nesta casa. Todos os outros
saíram. Aproveitei a oportunidade para... para usar um
esconderijo muito conveniente. Um esconderijo temporário.
Ia cobrir com uma camada de terra e depois espalhar um
pouco de lixo por cima.
Alice ficou sorrindo, desapontada com ele, embora não em
seu estado normal; ainda flutuava. Pensava que tudo o que
ele dissera provavelmente era inverídico, em parte ou no
todo, mas não era da sua conta. O homem ainda a segurava
pelos braços, que estavam prestes a rejeitar aquela
persistente pressão masculina de advertência. Ele pareceu
percebê-lo, pois baixou as mãos.
— Devo dizer que tenho uma opinião diferente de algumas
pessoas de sua casa. Confio em você.
Alice não disse nada. Apenas acenou com a cabeça.
Ele entrou, também lhe acenando com a cabeça, mas sem
sorrir.
Alice teria de pensar a respeito. Melhor até, dormir com o
problema.
Sua exultação se desvanecia rapidamente. Ela pensou: "Mas
amanhã Jasper e eu vamos sair juntos e então... " Seria uma
noite inteira daquela emoção inebriante.
Mas o pobre Jasper não se sentiria assim, provavelmente,
depois de passar um dia na cadeia. Como era a delegacia de
polícia de Enfield? Ela não se lembrava de qualquer
informação a respeito.
Na rua principal, avistou um vulto franzino e encurvado
diante do portão da casa 43. Uma estranha postura... era a
garota daquela tarde e ia jogar alguma coisa na janela da sala
de estar. Uma pedra! Alice pensou: jogando com a mão
abaixo dos ombros, patético! O desdém a reabasteceu.
Exuberante, ela se aproximou da moça, que se virou para
fitá-la, soltando um "Oh!"
— E melhor largar isso — advertiu Alice.
A moça obedeceu. Aquela claridade, ela tinha uma aparência
desbotada: cabelos e rosto descoloridos, lábios e olhos
apáticos. Com as pupilas enormes.
— Onde está seu filho? — perguntou Alice.
— Meu marido está lá. De porre.
Ela gemeu por um instante, mas logo parou. Tremia toda.
— Por que não procura o pessoal do sistema habitacional? —
indagou Alice. — Tem gente para aconselhar sobre a
ocupação a curto prazo de casas abandonadas.
— Já fiz isso.
Ela começou a chorar, um choro desamparado, rápido,
soluçante, como uma criança que já derramou lágrimas por
horas. Alice sentiu os primórdios de uma pressão muito
familiar.
— Você é que tem de fazer alguma coisa por si mesma. Não
adianta apenas ficar esperando que os outros ajudem. Deve
encontrar a sua casa abandonada. Mude-se. Ocupe-a. E
depois procure a prefeitura... Pare com isso!
Ela arrematou com raiva quando a garota desatou a chorar.
Reprimindo o choro, a garota ficou parada na frente de
Alice, cabeça baixa, esperando pelo veredicto ou sentença.
Oh, Deus!, pensou Alice. De que adianta? Conheço esta por
dentro e por fora. E igualzinha à Sarah, de Liverpool, e à
pobre coitada da Mabel. Basta que uma autoridade lance um
olhar e saberá que ela vai ceder no mesmo instante.
Uma autoridade... Ora, havia uma autoridade ali, naquela
casa; havia Mary Williams. Alice sentiu-se maravilhada com
um pensamento: apenas dois dias antes Mary Williams
parecia ter seu destino — o de Alice — nas mãos; e agora
Alice tinha dificuldade até para se lembrar da posição dela.
Sentia por Mary, na verdade, o desprezo que se concede a
alguém ou a uma instituição que cedeu muito fácil. Mas
podia-se fazer um apelo a Mary por conta daquela... criança.
Alice tornou a contemplar a expressão desolada da garota, a
passividade, e pensou: De que adianta? Ela não é dessas
pessoas que...
Era exasperação o que a impulsionava agora.
— Qual é o seu nome?
A cabeça vergada se ergueu, os olhos mortiços se
apresentaram, chocados, para Alice.
— O que você acha que vou fazer? — indagou Alice. —
Procurar a polícia e comunicar que você ia jogar uma pedra
em nossa janela?
E subitamente ela se pôs a rir, enquanto a garota observava,
espantada, dando um passo involuntário para trás, afastando-
se daquela lunática.
— Acabei de pensar numa coisa. Conheço alguém na
prefeitura que talvez possa... apenas talvez...
A garota parecia ter ressuscitado, inclinava-se para a frente, a
mão trêmula apertando o antebraço de Alice.
— Meu nome é Mônica — balbuciou.
— Mónica só não é suficiente. — Alice fez um esforço para
não se afastar simplesmente em impaciência. — Preciso
saber seu nome completo e endereço.
A garota baixou a mão e começou a tatear pela saia. Tirou
uma bolsa pequena e espiou o conteúdo.
— Não se preocupe — disse Alice. — Basta falar. Não vou
esquecer.
A garota disse que se chamava Mônica Winters e o hotel -
de que Alice já ouvira falar — era tal e tal, o número dela o
556. O número produziu-lhe uma imagem de miséria con-
centrada, centenas de casais com filhos pequenos, cada
família em um cômodo, sem os confortos mínimos, uma
sordidez absoluta. Perdendo toda a exultação e excitamento,
Alice ficou sóbria, parada ali, consternada.
— Pedirei a essa pessoa para lhe escrever — disse Alice. —
Até lá, se eu fosse você, circularia por aí, examinando as
casas vazias que encontrasse. Verifique tudo. Entre, descubra
como estão as instalações. . . os encanamentos...
Ela parou de falar, desolada, sabendo que Mônica não era
capaz de arrombar uma janela de uma casa vazia, a fim de
entrar para dar uma olhada, e que o marido provavelmente
era igual.
— Até breve — acrescentou Alice.
Ela virou as costas à garota e entrou, sentindo que os 556
— no mínimo —, jovens casais, com seus bebês sarapintados
e frustrados, lhe haviam sido encaminhados pelo destino,
como sua responsabilidade.
— Oh! Deus! — murmurava, enquanto fazia o chá na cozi-
nha vazia. — Oh, Deus, o que vou fazer?
Alice poderia chorar tão ruidosa e inutilmente quanto
Mônica. Jasper não estava ali!
Subiu para o segundo andar e viu que havia uma luz acesa lá
em cima. Continuou a subir. A claridade saía por baixo da
porta do quarto ocupado por Mary e Reggie. Alice esqueceu
que era meia-noite e que ali se instalara um casal respeitável.
Bateu na porta. Alguns movimentos e uma voz:
— Entre.
Alice contemplou uma cena de conforto. Móveis, lindas
cortinas, uma cama de casal em que Mary e Reggie estavam
deitados, lado a lado, lendo. Eles olharam por cima de seus
livros com idênticas expressões cautelosas, que diziam: "Até
aqui e nem mais um passo além!" Uma onda de riso
incrédulo ameaçou Alice. Ela reprimiu-a, enquanto pensava:
Não veremos muito estes dois, eles estarão sempre...
— Mary, uma garota esteve aqui, desesperada. Está no
Shaftwood Hotel...
— Não fica em nosso distrito — disse Mary no mesmo
instante.
— Sei disso. Mas ela...
— Conheço o Shaftwood — acrescentou Mary.
Reggie examinava a própria mão, virando-a de um lado e
outro, aparentemente com interesse. Alice sabia que era a
situação que ele examinava; Reggie não estava acostumado
àquele informalismo, à vida em grupo, mas agora dispensava
alguma consideração.
— Não conhecemos todos? Mas essa garota... seu nome é
Mónica... parece que é suicida, capaz de fazer qualquer coisa.
Mary disse, depois de uma pausa:
— Alice, verei o que posso fazer amanhã. Mas deve
compreender que há centenas ou milhares de pessoas nessa
situação.
— Claro que sei. — Uma pausa. — Boa noite.
Alice desceu, pensando: Estou bancando a idiota. E não se
pode dizer que não conheço o tipo. Se arrumar um lugar
para ela, a garota vai encontrar um jeito de estragar tudo
num instante. Lembra de Sarah? Tive de lhe encontrar um
apartamento, providenciar a mudança, procurar o
Departamento de Energia Elétrica e depois seu marido...
Mónica é uma dessas pessoas que precisam de uma mãe,
alguém que cuide dela... E ocorreu a Alice uma idéia de tanta
beleza e simplicidade que ela começou a rir.
Estava agora no quarto que ocupava junto com Jasper.
Sozinha. O saco de dormir de Jasper era um emaranhado
azul.
Ela foi endireitá-lo. Pensou: Tem sido maravilhoso partilhar
um quarto com Jasper. E pensou também: Mas ele só está
aqui porque Bert fica do outro lado da parede. Ela escutou:
silêncio. Pat e Bert dormiam. Esse pensamento, do motivo
pelo qual Jasper consentia que ela dormisse ali, em vez de
subir para outro quarto ou lhe pedir que saísse, lançou sua
mente numa vertigem, como se estivesse — a mente —
nauseada. Sentou em seu saco de dormir, tirou o blusão, a
calça jeans, pôs uma camisola antiquada que fora de sua mãe.
Sentia-se confortável e confortada naquela camisola.
E recomeçou a rir: sua mãe gostava de cuidar das pessoas!
Alice entrou no saco de dormir. Os faróis dos carros corriam
pelo teto. Pensou com inveja em Jasper na sua cela. Ele
estaria com seu novo e misterioso contato... Bom, saberia de
tudo amanhã. Jasper voltaria para casa até a hora do almoço.
Alice acordou tarde. Quando desceu para a cozinha, oito
canecas no escorredor indicavam que alguém lavara tudo; ela
era a última. Havia na mesa um bilhete para ela: "Vamos
passar o fim de semana fora. Voltamos na noite de domingo.
Jasper sabe." Pat assinara "Pat e Bert".
Philip trabalhava na fiação elétrica no último andar com o
jeito tranqüilo e contemplativo de um operário. Alice,
agachando-se prestativa a seu lado, pensou: Este aqui nunca
daria um patrão; é um empregado típico; não pode trabalhar
sem alguém segurando sua mão. Philip mostrou-se
obsequioso, sabendo que não o fora no dia anterior. Falou de
tudo o que ainda precisava ser feito e de como faria, pouco a
pouco; disse que era preciso antes de mais nada examinar o
sótão, pois tanta chuva entrando devia ter afetado as vigas.
Alice declarou que o acompanharia lá em cima, mas
primeiro tinha de telefonar para o Departamento de Energia
Elétrica. E onde estava Jim? Ele podia ajudar no sótão. Alice
pensou: Jim é grande e forte, Philip não é; juntos,
precisariam da metade do tempo. Mas Philip informou que
pedira a Jim para ajudá-lo, naquela manhã mesmo. Jim era
um cara esquisito, não era? Não gostava que lhe pedissem
qualquer coisa. Na opinião de Philip, havia mais coisas em
Jim do que os olhos podiam perceber. Nesse ponto Alice e
Philip trocaram, com seus olhos, sentimentos a respeito de
Jim; exatamente como pessoas olhavam, mas não falavam,
apreensões a propósito de Faye — como se alguma coisa
fosse perigosa demais para palavras ou pelo menos volátil,
como se fosse um artefato eletrônico arriscado que poderia
ser acionado por uma combinação descuidada de sons.
— Talvez eu devesse conversar com ele — sugeriu Alice,
vagamente.
Ela desceu para inspecionar seu território, antes de sair para
telefonar.
Mary, é claro, estava no trabalho. E Reggie? Enquanto Alice
especulava, ele apareceu, carregando mais caixas. Parecia
exultante, como convém a um homem que conquistou
território, mas também embaraçado, por causa de todas
aquelas provas de preocupação com o material. Reggie teria
preferido, em suma, não esbarrar com Alice. Disse agora que
ele e Mary estavam guardando móveis e outras coisas num
segundo quarto, mas tirariam tudo se alguém precisasse se
instalar ali.
— Há o sótão — comentou Alice. — Ou haverá, depois que
o ajeitarmos.
Esperou que Reggie se oferecesse para ajudar, mas isso não
lhe ocorreu. Ele saiu para buscar outro carregamento.
Alice pensou que era melhor telefonar logo para o
Departamento de Energia Elétrica. Ressentia-se por ter de
sair em busca de um telefone, no meio de tanta atividade
útil, desperdiçando tempo com algo que não passava de
rotina.
Mas assim que ouviu a voz da senhora Whitfield,
compreendeu que devia dispensar à situação mais tempo e
atenção do que previra. A senhora Whitfield estava, se não
hostil, pelo menos formal na censura. Disse que em sua
opinião seria desejável que Alice comparecesse ao escritório
o mais depressa possível. Alice respondeu que iria agora
mesmo, o escritório era perto, numa voz animada e afável
que insistia em que não havia qualquer problema, nada
estava errado. Ela desligou gentilmente, de um modo que
acompanhava a voz. Mas estava sendo atacada por um dos
seus acessos de ira. O pai! O que ele dissera? Devia ter sido
terrível, para que a senhora Whitfield mudasse tanto.
Alice sentia-se furiosa demais para ir conversar com a mu-
lher. Precisava acalmar-se, andando depressa pelas ruas,
adiando os pensamentos sobre o pai. Mas mostraria a ele; o
pai não devia pensar que ficaria impune.
Na ante-sala do Departamento de Energia Elétrica, ela sorriu
e acenou para a senhora Whitfield: Aqui estou, uma boa
moça! Mas a senhora Whitfield desviou os olhos. Quatro
pessoas entraram antes de Alice. Uma perda de tempo.
Sentou-se à frente da autoridade, na sala grande e clara.
Percebeu no mesmo instante que a senhora Whitfield não
cortaria a luz. Ou pelo menos não queria fazê-lo. Tudo
dependeria de Alice. Que começou a falar sobre o pai. Ele
era rico, possuía uma gráfica. Claro que poderia pagar as
contas sem a menor dificuldade, se fosse necessário. Mas ele
estava, admitiu Alice, numa fase difícil naquele momento.
— Ele tem tido muitos problemas — murmurou Alice, com a
expressão de uma pessoa que contempla compadecida a
miséria humana, absolvendo-a de culpa. E, naquele
momento, era mesmo o que sentia. — O rompimento com
minha mãe... e depois todos os tipos de dificuldades... a nova
esposa é simpática, muito amiga minha, mas não é legal...
está me entendendo? Meu pai fica com muita coisa nas
costas.
Continuou a falar assim, sentindo desolada que não adiantava
muito, enquanto a senhora Whitfield escutava, olhos
abaixados, rabiscando com a caneta esferográfica no canto
superior esquerdo do formulário de Alice.
— Seu pai foi categórico ao declarar que não estava disposto a
garantir o pagamento — comentou ela finalmente.
Não queria fitar Alice, que se empenhava em fazer com que
ela levantasse os olhos. O que Cedric Mellings dissera?
— Somos dez pessoas na casa, agora. O que significa que um
bocado de dinheiro entra a cada semana.
— Mas será que uma parte virá para nós? — A senhora
Whitfield ainda estava muito seca para abrandar. — Nenhum
de vocês tem emprego?
— Só uma. — Uma pausa e Alice acrescentou, numa
inspiração súbita: — Mas é funcionária da prefeitura.
Trabalha na Belstrode Road e não quer dar aquele endereço.
Não conseguia encontrar um lugar para morar, estava
desesperada.
A senhora Whitfield suspirou.
— Sei como as coisas podem se tornar terríveis. — Mas agora
ela ergueu os olhos e fitou Alice de maneira diferente; ali
estava uma colega de casa de uma funcionária da prefeitura
que trabalhava no escritório central para aquela área. — O
que vamos fazer?
Ela vencera! Alice mal podia evitar que sua exultação
transparecesse. E disse, humildemente:
— Tenho um irmão. Ele trabalha na Ace Airways. Pedirei a
ele para ser o fiador. — A senhora Whitfield acenou com a
cabeça, aceitando o irmão. — Mas ele está em Bahrein no
momento.
A senhora Whitfield suspirou outra vez. Não de irritação,
mas porque sabia que era mentira e sentia-se triste por Alice.
Baixou os olhos de novo. Um segundo desenho surgiu ao
lado do primeiro, no formulário de Alice. Ela perguntou,
gentilmente:
— E seu irmão estaria disposto a garantir as contas de luz para
dez pessoas?
— Mas ele saberia que não teria de pagá-las, não é? — Alice
apressou-se em acrescentar, para evitar que a senhora
Whitfield se sentisse na obrigação de responder à pergunta:
— Tenho certeza de que ele vai concordar.
— Quando voltará de Bahrein?
— Daqui a um mês. Irei procurá-lo e explicar tudo. Foi onde
errei com meu pai. Deveria ter falado com ele antes, em vez
de simplesmente presumir...
Sua voz tremia. Parecia patético, mas ondas ardentes de
homicídio se esboroavam dentro de Alice. Explodirei aquela
casa, pensava, matarei os dois.
— Creio que seria uma boa idéia — disse a senhora
Whitfield.
Uma pausa longa. Não porque ela estivesse indecisa: a deci-
são já fora tomada. Queria que Alice dissesse mais alguma
coisa que melhorasse a situação ou pelo menos fizesse com
que parecesse melhor. Mas Alice limitou-se a esperar.
— Muito bem — acrescentou a senhora Whitfield,
empertigando-se no espartilho do vestido marrom grosso, de
mangas curtas, braços roliços e morenos, mãos roliças com
pequenos anéis faiscando, tudo disposto de maneira
simétrica, inclusive os pés, com toda a certeza, embora Alice
não pudesse vê-los, colocados lado a lado. — Eu lhe darei
cinco semanas. E tempo suficiente para falar com seu irmão.
— Ela não olhava para Alice. — E precisarei de mais alguma
coisa como depósito.
Alice tirou uma nota de dez libras — não era o suficiente e
ela sabia — e colocou-a na frente da senhora Whitfield, que
a pegou, alisou-a, guardou-a numa antiquada caixa de
dinheiro, numa gaveta, depois escreveu um recibo.
— Espero-a daqui a cinco semanas. — Tornou a suspirar. —
Até lá.
Era a própria mulher bondosa e decente; sua aflição pelas
coisas deste mundo cruel estampava-se em toda a sua pessoa.
Quase que certamente nos olhos também, porém não estava
olhando para Alice e não olharia, limitando-se a arrematar:
— Diga ao próximo para entrar.
Alice murmurou, em tom um pouco indiferente, a fim de
não dar muita importância à situação, embora se sentisse
enternecida de gratidão e alívio.
— Obrigada. Adeus.
Ela saiu. Cinco semanas eram uma vida inteira, qualquer
coisa podia acontecer... e aconteceria. Mas estava numa
maré de sorte; iria à Companhia de Gás para acertar as coisas.
Ali, ela disse que a Old Mill Road, 43 era uma ocupação
autorizada, Mary Williams da Belstrode Road podia
confirmar; a luz estava ligada, a senhora Whitfield do
Departamento de Energia Elétrica podia confirmar; e seu
irmão, no momento em Bahrein, seria o fiador. Esperara que
o homem idoso, de aparência simpática, paternal, ficasse
livre, e então, suplicou:
— Gostaríamos que o gás fosse ligado logo... está muito frio...
não temos água quente... é horrível...
Ah, a expressão preocupada e chocada do homem! Não po-
dia conceber a vida sem água quente, pelo menos para
pessoas como ele e Alice.
Um depósito?
Alice pôs vinte libras na mesa e fitou-o com olhos afáveis e
infantis.
Ele pegou o dinheiro. Aceitou-o. Mas sentia-se infeliz com a
situação. Como a senhora Whitfield na primeira entrevista,
não entendia por que estava sendo compelido por Alice.
— Precisamos de um fiador — disse ele, mais para si mesmo.
— Seu irmão voltará dentro de um mês, não é? Está certo.
Mais um problema resolvido. Alice saiu, recatadamente
agradecida.
Precisava arrumar algum dinheiro. De qualquer maneira.
Onde?
Sóbria, foi para casa e informou a Philip que o gás seria
religado. Se encontrassem um boiler de segunda mão, ele
poderia instalá-lo?
Estavam agachados de frente um para o outro, no patamar do
último andar, à luz intensa de abril, que entrava pela janela
na escada, um pouco obscurecida pela sujeira. Philip sorria,
satisfeito com ela, com aquela casa, com o lugar que ocupava
ali; disposto a continuar a trabalhar. Mas Alice sabia que o
pesar e o ressentimento persistiam, apenas estavam
subjugados no momento; e muito em breve teria de arrumar
dinheiro para Philip. Para o boiler. Para as tábuas novas do
assoalho no vestíbulo, num canto em que a água pingara de
um cano vazando. Para... para... para...
— Philip, sei que se você aceitasse o trabalho em bases
profissionais teria de cobrar centenas de libras. Não se
preocupe com isso... só quero que espere um pouco.
Arrumarei o dinheiro.
Ele balançou a cabeça, sorriu, continuou a trabalhar, no meio
de um emaranhado de fios pretos, como uma espécie de
duende entre raízes urbanas. Frágil... podia-se derrubá-lo
com um sopro, pensou Alice, o coração se confrangendo por
ele.
E onde estava Jasper? Será que, no final das contas, não fora
levado ao tribunal naquela manhã? Ou bancara o idiota e
continuara na cadeia?
Preocupações, preocupações e mais preocupações; Alice
sentia-se oprimida por tantas preocupações.
Foi sentar à mesa da cozinha. E pensou, contemplando o
lugar tão aprazível: já estou assumindo tudo como favas con-
tadas!
Fazendo um esforço, trabalhou por uma ou duas horas na
pilha de coisas trazidas por Jasper e Bert e largadas num
canto do vestíbulo; ajustou uma cortina aqui, estendeu um
tapete ali. Tudo precisava de uma boa limpeza! Tiraria todas
as cortinas quando tivesse tempo e levaria para a lavanderia,
mas por enquanto. . . Encontrou um banco pequeno e
sólido, descartado só porque estava com uma perna solta.
Colou-a e pôs o banco no canto da cozinha, saiu para o
jardim, cortou alguns ramos de forsítia. A velha dormia em
sua cadeira, debaixo da árvore. Joan Robbins estava a apenas
um metro de distância, do outro lado da cerca. Parecia
contente por ver Alice e começou a falar com a voz cansada
sobre a maneira como a velha a obrigava a subir e descer a
escada correndo, até a acordara no meio da noite. O que
podia fazer? Ela já não agüentava mais.
Alice, que conhecia aquela situação de algum lugar do seu
passado bem-abastecido, sabia que havia muito pouco que se
pudesse fazer; na verdade, as coisas ficariam cada vez piores.
Perguntou se a senhora Robbins estava a par dos serviços
disponíveis aos idosos. Estava, mas não gostava da
perspectiva de uma porção de pessoas entrando e saindo de
sua casa, o dia inteiro. Quem eram tais pessoas? Não teria
como controlá-las.
Ela falou e falou, enquanto escavava violentamente a terra
no limite de seu jardim. Por anos a casa fora civilizada e
ordenada; ela e o marido lá embaixo, com o jardim; a
senhora Jackson, uma viúva, ocupando o apartamento de
cima. Mas agora era como se ela estivesse morando com a
senhora Jackson! Como se fosse sua filha! Era o que a velha
parecia pensar.
Alice, com todo o tempo do mundo e nada melhor para
fazer, com os ramos amarelos de forsítia nos braços,
escutando e aconselhando. Não podia haver a menor dúvida
de que seria melhor ter a Ajuda Doméstica, Refeições sobre
Rodas e tudo mais, além de uma assistente social para
aconselhar e assumir a responsabilidade, em vez de cuidar de
tudo sozinha.
Joan Robbins respondeu que talvez fosse mesmo, pensaria a
respeito... Com um sorriso de genuína gratidão para Alice,
uma expressão de boa vizinha, ela comentou que se sentia
contente por Alice estar ali, por finalmente haver gente
decente no pobre número 43.
Alice entrou, pôs as forsítias num vaso e ajeitou-o no banco
que estava no canto da cozinha; sentou-se.
Onde estava Jasper?
Aquela era a noite em que sairiam para pintar slogans com
spray. Ela tinha a tinta — duas latas, vermelha e preta — à
espera, num canto do vestíbulo.
Sentada à mesa da cozinha, rabiscou slogans num envelope.
Qual era a mensagem que queriam transmitir? A mensagem
completa, exata — era por aí que devia começar.
O Uso de Alcagüetes Desmascara a Verdadeira Natureza da
Democracia Britânica. Uma Lei para a Inglaterra, Outra para
a Irlanda do Norte, Colônia da Inglaterra.
Era isso. Talvez encontrassem um bom espaço, como uma
parede ou um muro comprido e baixo para escrever tudo.
Tinha de encontrar algo mais curto.
Alcagüetes Ameaçam a Democracia!
Não, muito abstrato.
Alcagüetes — Injustiça!
Alcagüetes — Uma Mancha Vergonhosa para a Inglaterra!
Alcagüetes — Vergonha para Nós!
Alice ficou imóvel, o brilho das forsítias em seus olhos.
Fechou-os, o amarelo turvou-se e agitou-se na escuridão.
Começou a sorrir, recordando a última ocasião em que ela e
Jasper haviam saído juntos. Apenas duas semanas antes. Em
vermelho e preto, escreveram "Todo o Apoio às Mulheres
de Gree- nham" sobre a pintura opaca verde-cinzenta de
uma ponte, a duzentos metros de uma delegacia de polícia.
Ela escrevera, Jasper ficara de vigia, do outro lado da
delegacia. Encerrara ao ouvir o sinal de Jasper, um grito que
ele aperfeiçoara para parecer uma buzina de carro. Guardara
a lata de tinta na sacola. Sem olhar para trás, afastara-se pela
calçada, pensando que Jasper devia estar passando pela
delegacia. Entre um e outro, provavelmente dois guardas.
Mas os passos que se aproximaram dela eram os de Jasper —
leves e apressados. Isso significava que os guardas tinham ido
para o outro lado, mas poderiam vê-los se se virassem, Jasper
e ela fitaram-se, animados e deliciados, sabendo que
qualquer um que os olhasse naquele momento poderia
adivinhar, apenas pelas ondas de energia que irradiavam. Os
olhos de Jasper diziam: Vamos...
Ela correra de volta à ponte, iluminada por um lampião, a
dez metros de distância. Os guardas continuavam a se afastar,
calmamente. Jasper esperara onde estava. Alice pegara o
spray vermelho e começara a escrever, em letras de trinta
centímetros de altura, "Mulheres de Greenham... "
Mantinha apenas a metade de sua atenção no que fazia,
concentrando a outra em Jasper, que levantara os braços
subitamente. Sem se virar para olhar, ela disparara em sua
direção, ouvindo passos pesados correndo em seu encalço.
Estava agora bufando: animais nojentos, fascistas, porcos,
porcos, porcos... Alcançara Jasper, que a pegara pelo pulso,
correram juntos para a estação do metrô. Mas antes de
chegarem lá viraram numa rua transversal e depois, torcendo
para que os guardas ainda não tivessem alcançado a esquina,
em outra. Conheciam alguém que morava numa casa ali. Mas
o sangue estava acelerado, sentiam- se inspirados; ela não
ficara surpresa quando Jasper balbuciou:
— Vamos correr o risco...
Voltaram à rua principal, que estava apinhada, as pessoas
circulando por pequenas lojas que vendiam peixe e batatas
fritas, lanchonetes, uma discoteca, um supermercado ainda
aberto. Poderiam entrar no supermercado, mas estavam
convencidos de que os guardas os reconheceriam; por isso,
avançaram depressa através da multidão, que não lhes
dispensara maior atenção, como já esperavam, atravessaram
a rua no instante em que o sinal mudava, de tal forma que os
carros, começando a andar, desataram a buzinar.
Desceram para a estação do metrô. Não olharam para veri-
ficar se os guardas haviam desembocado na rua principal a
tempo de vê-los. Os olhos de Jasper outra vez exigiram que
assumissem o risco; subiram pelo outro lado da estação e
avistaram dois guardas — diferentes — se aproximando.
Tranqüilos e indiferentes. Alice e Jasper passaram por eles. E
tornaram a descer para o metrô. Saltaram duas estações
depois, onde Alice vira uma ponte comprida e baixa sobre as
linhas do trem. Já eram dez horas e chovia um pouco. Ali, a
delegacia ficava a uma boa distância. Do outro lado, os carros
passavam regularmente. Na ponte já estava escrito, em letras
brancas que haviam escorrido, "As Mulheres Estão Furiosas".
Pararam, de braços dados, de costas para o tráfego, como se
olhassem por cima das linhas do trem. Alice, virando a lata
de spray para baixo, escrevera: "Estamos Todas... " Fora o
máximo que pudera escrever sem mudar de posição.
Deslocaram-se uns poucos passos, tornaram a parar juntos,
ela escrevera "Furiosas. Furiosas com... " Outro desloca-
mento. "Irlanda. Com Machismo. Com... " Mais um deslo-
camento. E fora então que ouviram — os ouvidos alertas à
menor variação no fluxo de tráfego — um carro diminuindo
a marcha logo atrás. Olharam para trás: não era um carro da
polícia. Mas dois homens sentados no banco da frente os ob-
servavam.
"... Trident", concluíra Alice. E se afastaram, devagar,
sabendo que o carro os acompanhava. A sensação
inebriante, a exultação: prazer. Não havia nada igual!
Agora, recordando, Alice ansiava por outra noite assim.
Torcia para que Jasper não se atrasasse, não se sentisse
cansado, estivesse disposto a sair. Ele prometera...
... Haviam percorrido talvez uns cento e cinqüenta metros.
Sorte! Uma rua de mão única! O carro, é claro, não os
seguira. Ao final da rua, seguiram para o ponto de ônibus e
para Kilburn, onde haviam trabalhado antes.
"Não ao Cruise! Não ao Trident!"
Ninguém os notara até então.
Cansados, a exultação se desvanecendo, resolveram parar e
pegaram um táxi para a casa da mãe de Alice, onde ela fizera
café e ovos mexidos para os dois.
Eram agora seis e meia.
Mary entrou na cozinha, sentou por um instante com Alice,
disse que ela e Reggie iam ao cinema. Falara a respeito da tal
garota, Mónica; não havia nada, absolutamente nada. Fizera
o máximo possível, Alice devia compreender.
— Não tem importância — disse Alice. — Pensei em outra
coisa.
Mary viu o envelope rabiscado, sorriu e informou:
— Reggie e eu vamos à manifestação da Greenpeace amanhã.
— Bom para vocês.
— Mas é chocante, é terrível, a destruição de nossos
campos...
— Sei disso — murmurou Alice. — Já estive em algumas
manifestações deles.
— É mesmo?
Alice percebeu que Mary sentia-se aliviada por saber que as
duas partilhavam isso; mas Reggie chamou-a do vestíbulo e
ela saiu, com um sorriso.
Onde estavam Roberta e Faye? Provavelmente na tal co-
muna de mulheres. E Philip? Ele podia ter sido despejado
pela namorada, mas ainda ia lá tomar banho e fazer as
refeições, contara Bert. E Jim? Era um problema sério: Onde
estava? O rosto risonho, a voz suave... mas, afinal, o que
estava acontecendo?
Além de sua casa, seu lugar ter sido usurpado daquela
maneira.
Preocupações, preocupações, refletiu Alice, sentada a se
preocupar.
Jasper entrou, sorridente, exuberante, andando como um
dançarino e exclamando prontamente, ao ver as forsítias:
— Mas que lindas!
Aí estava: as pessoas diziam isso e aquilo a seu respeito, mas
ninguém sabia como ele era sensível, como era gentil. Jasper
inclinou-se agora e beijou-a no rosto; foi um beijo de leve,
superficial, mas ela compreendeu; e compreendia também
quando, em raras ocasiões, tinha de abraçá-lo por uma
exuberância de amor, e Jasper se encolhia, como se estivesse
diante de uma alma penada, algo frio e lamentoso, uma
criança perdida. E ele tentava agüentar, aquele súbito sopro
de seu amor; Alice podia sentir a brava determinação de
suportar, até mesmo uma intenção mínima de retribuir. O
que, é claro, ele não podia fazer — não em termos físicos;
Alice sabia que tudo o que ela sentia como uma efusão de
afeição era experimentado por Jasper como uma demanda.
Ele parou perto dela, radiante, positivamente inebriado com
o excesso de orgulho e satisfação.
— Então correu tudo bem.
— Trinta libras.
— Não foi muito?
— Eles me conheciam — explicou Jasper, orgulhoso.
— Como era a cela?
— Não era das piores. Deram-nos comida... não era das
piores. Mas fiquei com Jack. . . um pseudônimo, entende?
— Claro — respondeu Alice, também radiante. — O que eu
não sei...
— ... não pode prejudicá-la.
Ele esfregou as mãos e começou a dançar em passos ágeis pe-
la cozinha: foi até as forsítias e acariciou-as delicadamente,
até a janela, e voltou para junto dela. Alice pôs a chaleira
com água para esquentar, colocou café solúvel numa caneca
e parou junto ao fogão, apenas para ficar de pé, não sentar,
enquanto ele se movimentava, elétrico.
— Bert também não sabe. Por falar nisso, onde está Bert?
— Ele avisou-o: foi passar o fim de semana fora com Pat.
— Ah, sim... o fim de semana... Até quando?
Jasper estava agora imóvel, ameaçado, o rosto franzido.
— Domingo à noite.
— Vamos fazer uma viagem. Ele sabia que ia, mas não tão
cedo. Jack diz...
— Um belo nome irlandês — comentou Alice.
Ele riu, adorando provocá-la.
— Claro que há Jacks na Irlanda. — Uma pausa. — E como
soube... Mas você sempre sabe, não é?
O comentário tinha um tom ácido.
— Onde mais poderia ser? — murmurou Alice, jovial, no
tom que sempre assumia quando Jasper se surpreendia com
algo que era óbvio para ela. — Você, Bert e Jack vão para a
Irlanda porque Jack é do IRA?
— Tem contato. Pode promover uma reunião.
— Finalmente! — exclamou Alice, entregando-lhe uma
caneca de café puro e tornando a sentar.
Ele ficou em silêncio, quieto por um momento.
— Preciso de algum dinheiro, Alice.
Ela pensou: "Então é isso" — significando o fim daquela
maravilhosa cordialidade. Preparou-se para uma briga.
— Dei a Bert o dinheiro que ele deu a você para a multa.
— Preciso comprar a passagem para Dublin.
— Mas não pode ter gastado a sua parte da pensão!
Jasper hesitou. Teria gastado? Como? Nunca poderia
compreender o que ele fazia com o dinheiro, para onde ia —
não tivera tempo... para uma outra vida, pois estava com
Bert, com Jack!
— Eu disse que pagaria a passagem de Jack. . . A multa
deixou-o duro.
— Ele também foi multado em trinta libras?
— Não. Quinze.
— Tenho gastado e gastado — protestou Alice. — Ninguém
entra com nada... apenas um pouco aqui e ali.
Ela pensou: Pelo menos Mary e Reggie vão contribuir, é o
mínimo que se pode dizer de sua espécie... Até a quantia
exata, não mais, não menos.
— Não pode ter gastado tudo. — Jasper parecia que a estava
punindo deliberadamente. — Eu vi. Eram centenas de libras.
— Quanto acha que tudo isso está custando?
Então — como Alice já esperava —, a mão de Jasper fechou-
se em torno de seu pulso, apertando, machucando.
— Enquanto você fica brincando de casa e jardim, esban-
jando dinheiro em porcarias, a Causa tem de sofrer, ficar sem
nada.
Os pequenos olhos azuis de Jasper, nas depressões rasas de
carne muito branca e brilhante, fixavam-na, sem piscar, a
pressão no pulso aumentando. Mas há muito que Alice já
adquirira imunidade daquela acusação em particular. Sem
resistir, deixando o pulso inerte no círculo de osso, ela
sustentou o olhar e disse:
— Não vejo motivo para você pagar a passagem do camarada
Jack. Ou as despesas. Se ele não encontrasse você, como
arrumaria a passagem?
— Mas ele só vai até lá por nossa causa... para promover o
contato.
Alice fez um esforço para combatê-lo:
— Você pegou nos últimos dias o dinheiro de três semanas.
Tinha cento e vinte libras ou mais. E ainda por cima paguei
sua multa. Não pode ter gastado mais de vinte libras de
transporte e lanches.
Quando Alice fazia isso, deixava-o saber que fazia aquele
cálculo silencioso e eficiente dos seus gastos, do que ele
devia estar fazendo, Jasper odiava-a totalmente e não
escondia. Ficou branco de ódio. Os lábios finos e rosados,
que Alice normalmente adorava pela delicadeza e
sensibilidade, estavam esticados numa linha lívida, na qual
apareciam os dentes pequenos. Jasper parecia um rato,
pensou ela, sabendo que seu amor por ele não diminuía um
átomo sequer.
— Por que não arranca mais algum dinheiro da porra da sua
mãe? Ou de seu pai?
Alice não explicara exatamente de onde tirara todo o di-
nheiro que gastara tão prodigamente na casa, mas é claro que
ele adivinhara.
— É o que pretendo fazer. Quando sentir que posso. Mas
agora não adiantaria.
Jasper largou seu pulso.
Agora ele vai me punir, vai pegar suas coisas e passar a dor-
mir em outro quarto.
Um silêncio prolongado, Jasper se remexendo, descon-
solado.
— Vamos sair para comer — sugeriu ele, tristemente.
— Está bem.
O ânimo de Alice tornou a melhorar, embora ele não fizesse
qualquer menção à excursão com os sprays e tivesse visto os
slogans rabiscados no envelope sobre a mesa. Mas, então,
Jasper disse:
— Lamento não poder sair com você para pichar esta noite,
Alice. O motivo é que não quero atrair atenção pouco antes
de uma coisa importante.
— Tem toda a razão.
Alice refletiu que em anos de pichação, circulando perto da
polícia, escarnecendo da sua proximidade, só haviam sido
apanhados quando queriam. Essa era a pura verdade.
Jasper queria falar sobre os dois dias em Melstead, os pi-
quetes, a emoção, a prisão, a noite na cela — e Jack. Foram a
um restaurante indiano, onde ele falou e falou, Alice
escutando com toda a atenção, projetando imagens de tudo.
Ela pagou a refeição. Foram a um pub, Jasper tomou o vinho
branco habitual, Alice pediu suco de tomate.
De volta à casa, ela esperou, tensa, na expectativa de Jasper
pegar suas coisas e levar para outro quarto. Mas ele não disse
nada a respeito, apenas entrou no saco de dormir, com um
suspiro que a deixou aliviada; era o suspiro de uma criança
encontrando um lugar seguro.
Jasper não voltara a falar sobre dinheiro, mas agora
recomeçava. Era por isso que não tinha levado suas coisas
para outro quarto.
Discutiram, incessantemente, no quarto escuro, enquanto as
luzes disparavam pelo teto. Ao final, Alice concordou em
dar o dinheiro para a passagem de "Jack". Sabia que por
algum motivo era importante que Jasper recebesse o
dinheiro dela. Essencial. Sempre havia aqueles momentos
entre os dois em que ela tinha de ceder, contra a razão,
contra o bom senso: Jasper tinha de vencer de qualquer
maneira. Alice sabia que ele tinha cem libras, provavelmente
mais. Talvez muito mais. Jasper lhe disse em certa ocasião,
no ânimo de crueldade irônica que às vezes o dominava, que
vinha guardando dinheiro discretamente durante todos
aqueles anos, o suficiente "para me livrar de você para
sempre".
Isto não fazia o menor sentido: que ela pudesse perceber
quando pensava a respeito, mas sentia a força da ameaça.
A mãe de Jasper... ora, Alice não ia se envolver nem mesmo
em pensamento com toda aquela melancólica psicologia,
mas não era de admirar que ele tivesse problemas com as
mulheres.
Pela manhã, depois do café, ele ficou perto de Alice, calado
e sombrio, até que ela lhe deu o dinheiro da passagem para
Dublin. Disse então que ia se encontrar com Jack e acertar
tudo. Se não voltasse naquela noite, estaria em casa no dia
seguinte. Alice devia avisar a Bert que viajariam para a
Irlanda na terça-feira, bem cedo.
E Jasper saiu. Ela pensou: Ele vai fazer uma de suas coisas,
como passear, bordejar...? Ela achava que não. Jasper não se
arriscaria, não com toda a sua alma empenhada na viagem à
Irlanda. Mas "Jack" não seria como ele? Não, Alice tinha
certeza de que não. Falando sobre Jack, era como se ele
estivesse falando sobre Bert, como falara sobre os homens
com os quais tivera aquele relacionamento específico: de
admiração, dependência, podia-se dizer até passivo... mas
quem estava agora imprimindo o ritmo, fazendo com que
Bert fosse para a Irlanda, fazendo com que Jack os levasse?
Não era tão simples assim aquela história de irmão mais
moço.
Ela tinha o dia inteiro. Sozinha, podia-se dizer.
Philip subira para o sótão — devia ir ajudá-lo, ficar a seu
lado, ou ele começaria a se sentir mal outra vez. Jim — onde
estava Jim, qual era o problema? Ele não aparecia desde o dia
anterior.
Faye e Roberta? Ouvira-as chegar muito tarde. Pat dissera
que haviam ido ao cinema e depois a festas. Uma outra vida
— mulheres. O fechado, enjoativo, repulsivo — pelo menos
para Alice — e claustrofóbico mundo das mulheres. Não
para ela! Mas elas eram bem-vindas. Deixe que mil flores
desabrochem e todo o resto... Dez horas da manhã, e Mary e
Reggie ainda estavam na cama. Mary descera, fizera café,
levara para cima. Sem dúvida continuavam deitados naquela
espantosa cama de casal, que tinha uma cabeceira e mesinhas
embutidas dos lados. Só pensar naquela cama, a vida que
insinuava, fazia com que Alice se sentisse ameaçada. Metidos
juntos naquela cama pela vida inteira, tomando café,
olhando de uma maneira cautelosa para as pessoas que eram
diferentes, como que avisando para se manterem a distância.
Onde ela ia arrumar dinheiro? Tinha de conseguir. Precisava
de dinheiro. De qualquer maneira.
Domingo.
Puxa, era apenas domingo, seis dias depois que ela e Jasper
haviam deixado a casa da mãe. Ela fizera muita coisa, em tão
pouco tempo. Cheia de energia, Alice foi para o sótão, ao
encontro de Philip, que estava num macacão branco,
circulando sob as vigas do telhado. Havia um cheiro horrível
de podre.
— Duas vigas devem ser trocadas — anunciou Philip. — Es-
tão completamente podres. Ou toda a casa pode desmoronar.
Dinheiro. Ela precisava arrumar dinheiro.
Muito cedo para pedir a Mary e Reggie. Em algum momento
haveria uma negociação. Ela já podia ver seus rostos, os
rostos da maldita classe média, quando o assunto de dinheiro
fosse levantado. Oh, Deus, como os odiava, toda aquela
gente da classe média, avarenta, contando migalhas, sempre
concentrada em economizar e acumular, economizar —
pensou Alice, a boca cheia de bílis, contemplando uma viga
de trinta centímetros de largura, que parecia cinzenta e
escamosa, com fibras amarelas esbranquiçadas. A própria
podridão, que estenderia seus tentáculos insinuantes por
toda a madeira, se fosse permitido, depois desceria pelas
paredes, para o chão, espalhando-se como uma doença...
Ela pensou: Venho vivendo assim há anos. Quantos? Doze?
Não, catorze anos — não, mais... O trabalho que já fiz por
outras pessoas, arrumando coisas, fazendo coisas acontece-
rem, abrigando os desabrigados, proporcionando-lhes
alimento —e muitas vezes pagando por isso. Vamos supor
que eu tivesse guardado um pouco, um pouquinho só, desse
dinheiro para mim, o que teria agora? Mesmo que fossem
apenas umas poucas centenas de libras, quinhentas, não
estaria agora angustiada de preocupação.
— Quanto custará trocar essas duas vigas?
— A madeira, em torno de cinqüenta... de segunda mão. Mas
talvez eu possa encontrar o que preciso num depósito de
material usado, se conseguirmos o carro emprestado de
novo. Quanto à mão-de-obra...
Philip soltou uma risadinha desafiadora.
— Não se preocupe.
Alice estava pensando: E ele precisará de ajuda: Não tem
força para ajeitar vigas enormes no lugar, carregá-las até aqui;
haverá necessidade de andaimes ou algo parecido. O que
significa dinheiro.
Ela desceria e pediria a Mary e Reggie.
Um bilhete na mesa: "Fomos à manifestação da Greenpeace.
Amor. Reggie e Mary". A letra de Reggie. "Amor"! Alice
sentou à mesa e contou o que ainda tinha. Só trinta e cinco
libras.
Tornou a subir e trabalhou com Philip, removendo a sujeira
do sótão. De onde vinha tanta coisa, lixo e mais lixo, mais
outros sacos, roupas velhas, a maioria apenas trapos. Tudo
porcaria. Só porcaria? No fundo de um velho baú preto, por
baixo de sapatos rachados, havia camadas de tecido macio,
vestidos envoltos em papel de seda preto. Vestidos de baile.
Ela jogou- os pelo alçapão e pulou em seguida para examiná-
los. Ei, olhe só para isso! Três vestidos muito bonitos,
envoltos em separado em papel de seda preto. Início dos
anos 30. Um deles era rendado, preto, laranja e amarelo,
com fios dourados. O corpete era simples e liso, descendo
até os quadris e se abrindo em pequenas pontas, como
pétalas. O cheiro metálico da renda dourada deixou-a com
vontade de espirrar.
Alice afastou-se do alçapão, a fim de ficar fora do alcance da
vista de Philip, que continuava no sótão, e tirou a blusa de
malha. Enfiou o vestido brilhante por cima da cabeça. Não
passou pelos quadris, ficou preso numa massa na cintura.
Como não havia espelho na casa, não podia ver como
ficaram seus braços e ombros, mas via suas mãos fortes e
sardentas afagarem o tecido e compreendeu que o vestido a
reclamava, como uma impostora exigindo reconhecimento.
Tirou-o, furiosa, tornou a pôr a blusa de malha, recuperando
com isso um sentimento de conveniência e até de virtude,
como se tivesse sido tentada por um momento pelo
proibido. Não experimentou o vestido de chiffon cor de
damasco, com tiras de contas prateadas na frente e atrás,
algumas soltas, outras faltando, como se um inseto comedor
de contas tivesse agido ali. Levantou o vestido verde ren-
dado contra o corpo. Era justo em cima, com um recatado
decote rosa em V, mas descendo nas costas até o cóccix. E
vestidos para a tarde, o new look, lustrosos e ainda bons.
Quem os guardara lá em cima, incapaz de jogá-los fora?
Quem os esquecera e fora embora, deixando todos aqueles
baús no sótão? Ela mostrou os vestidos a Philip, que riu
muito ao contemplá-los. Mas quando Alice disse que
conseguiria algum dinheiro pelos vestidos, talvez bastante,
ele deu de ombros, involuntariamente respeitoso.
Guardou tudo numa mala e pegou um ônibus para a Bell
Street, até uma loja para a qual a mãe já vendera alguns
vestidos. E recebera mais de cem libras.
Sábado. As lojas estavam apinhadas. A mulher na loja que
vendia roupas antigas estava ocupada com uma freguesa que
examinava um vestido branco de crepe-da-china da década
de 20, com lantejoulas douradas formando rosas em torno
dos quadris. Pagou noventa libras pelo vestido. E tinha uma
mancha no ombro, que ela disse que esconderia com uma
rosa dourada.
Alice adiantou-se com a mala, percebeu os olhos da mulher
se estreitarem em cobiça ao tirar o que havia lá dentro.
Estava determinada a conseguir o máximo de dinheiro
possível, até o último penny. Barganhou cada vestido,
observando os olhos da mulher, que sempre a denunciavam.
Eram olhos estreitos, espertos, acostumados a verificarem os
menores pontos, um minúsculo rasgão, o jeito de um
bordado. Quando Alice tirou o vestido de chiffon, com as
contas prateadas, a mulher até suspirou, sua língua, grande e
pálida, deslizou sobre os lábios.
Por esse vestido Alice obteve sessenta libras, embora a mu-
lher insistisse que uma costureira competente teria de substi-
tuir as contas que faltavam e isso custaria... Alice não tinha
idéia de quanto custaria. Sorriu polidamente, balançou a
cabeça e manteve-se irredutível.
Foi para casa com duzentas e cinqüenta libras, sabendo que a
mulher venderia as roupas por quatro vezes mais. Mas estava
satisfeita.
Não contaria a Jasper. Isso significava que a lealdade a proibia
de contar a Philip — que de qualquer maneira não acredita-
ria. Disse a ele que conseguira cento e cinqüenta libras, deu-
lhe cem e ouviu-o suspirar um pouco; um suspiro muito
diferente do ofego brusco da mulher na loja. Como uma
criança — como Jasper entrando em seu saco de dormir na
noite passada, de volta ao lar, são e salvo.
Bom, aquele dinheiro daria para manter as coisas em
andamento, mas não por muito tempo. Philip e ela gastaram
sessenta libras naquela tarde num boiler a gás de segunda
mão. E mais cinco libras pela entrega. Ao final da semana
haveria água quente. Até mesmo aquecimento, se os
radiadores que não haviam sido roubados não estivessem
avariados pelo abandono.
Não que Alice se importasse com o aquecimento, mesmo
depois de quatro anos na casa aquecida da mãe. Acabara se
acostumando a se adaptar a temperaturas diferentes. Antes
da casa da mãe, passara um inverno numa casa ocupada que
não tinha qualquer aquecimento. Simplesmente usara muitas
roupas, mantendo-se em movimento. Jasper se queixara,
tivera frieiras, mas até ele agüentara; fora esse, porém, um
dos motivos pelos quais Jasper se mostrara satisfeito ao ir
morar na casa quente de sua mãe, depois de um inverno frio.
Ela ficou trabalhando até tarde com Philip, como sua
assistente, entregando as ferramentas, segurando firme o
facho de uma potente lanterna. Observou suas mãos esguias
e ágeis esbranquiçadas pela luz e viu que Philip podia ter
sido, devia ser, um artífice extraordinário e meticuloso,
nunca deveria perder tempo com canos e tábuas de assoalho,
que pareciam mais pesadas do que ele. Aquele desperdício
abasteceu a indignação que a mantinha em movimento,
povoou sua mente com pensamentos que justificavam tudo
o que fazia: um dia seria impossível que pessoas como Philip
fossem mal-empregadas, humilhadas, insultadas pelas
circunstâncias; um dia — e por causa dela, Alice, e seus
camaradas — as coisas seriam diferentes.
A meia-noite ela compreendeu que Jasper não viria mais.
Seu coração iniciou um pequeno lamento particular, o que a
deixou envergonhada, tratando de reprimi-lo. Fez ovos com
bacon para Philip. Depois que ele foi dormir, continuou
esperando, não apenas por Jasper, mas também por Jim.
Encrenca! Podia sentir que se aproximava.
Mary e Reggie chegaram, sorrindo, radiantes, com aquela
expressão especial dos manifestantes bem-sucedidos.
Sentados com Alice, tomando café, eles contaram como
centenas de pessoas marcharam contra a poluição de uma
determinada praia. Deixaram Alice com uma pequena pilha
de panfletos; ao saber que em breve a água quente seria um
dos confortos da casa, Reggie comentou que precisavam ter
uma conversa sobre finanças. Mas naquela noite sentiam-se
exaustos, precisavam dormir. Subiram enlaçados. Alice sabia
que eles iam fazer sexo. Pois então ela ficaria mais um pouco
ali embaixo.
Mary e Reggie tornaram a descer, desmanchando-se em
sorrisos, indagando sobre as roupas, todas aquelas coisas
velhas espalhadas no patamar do último andar. Alice
esquecera de arrumar e disse que o faria no dia seguinte.
Mais sorrisos, e os dois subiram de novo.
E se eu não arrumar?, pensou Alice. Claro que eles não
arrumariam! Nem pensaram nisso! Eu fiz aquilo e por isso eu
tenho de arrumar. Conheço essa gente, conheço esses dois,
conheço a classe média... Quero mais que todos se fodam.
Mas sentada ali, pensando em todo aquele entulho, que teria
de ser metido em sacos, trazido para baixo e deixado no
jardim, para ser levado pelos lixeiros, que teriam de ser
pagos, um novo pensamento surpreendeu sua mente. Ao ver
aqueles requintados vestidos, jogara-os pelo alçapão e
descera para examiná-los. Mas não acabara de inspecionar o
que havia no sótão. Ainda havia lá em cima outras caixas,
baús, trouxas amarradas. Podia haver mais roupas antigas lá
em cima, mais coisas que seriam convertidas em dinheiro.
Alice subiu correndo, esquecendo Mary e Reggie no quarto
por baixo do sótão. A escada ainda estava em posição, pois
Philip não terminara. Lá em cima, ela acendeu a potente
lanterna. A maioria das caixas havia sido aberta, mas na beira
do sótão, sob a parte mais baixa do telhado, havia três baús
antiquados, do tipo que as pessoas costumavam levar em
cruzeiros, "para uso na viagem". Eram de alguma espécie de
fibra, pintados de um castanho lustroso, agora opaco, com
tiras de madeira como reforço. Ela abriu-os, um, dois, três, o
coração martelando no peito. Dentro do primeiro, jornais.
Jornais? Alice ajoelhou-se junto ao baú, empurrando os
jornais para os lados, vasculhando mais fundo, rebuscando
nos cantos. Pilhas de jornais amarelados, e só. Por quê? Para
quê? Que lunático... O segundo tinha jornais cobrindo livros.
Não livros especiais, nenhum tesouro ali, apenas a coleção
de alguma família. Livros velhos, esmaecidos. O talismã, a
capa marrom corroída. Pequenas jóias da Bíblia... Ela amou e
perdeu... O tesouro de Sierra Madre... O crochê mais
simples. Uma coleção de Dickens.
Poderia obter umas poucas libras pelo lote todo. Mas havia
outro baú. Rezando, verificou o interior. Vazio, a não ser por
meia dúzia de velhos potes de geléia.
Uma tempestade de raiva a dominou. Levantou-se chutando
os baús, depois jogando livros, jornais e potes pelo sótão,
gritando insultos para as pessoas que haviam deixado aquele
lixo ali.
— Merdas nojentos! Porcos fascistas! Vou matar todos vocês!
Vou bater... até virarem... polpa...
O acesso continuou e ela ouviu gritarem seu nome lá de
baixo:
— Alice! Alice! O que houve?
— Uns porcos nojentos de classe média que ficam acumu-
lando coisas...
Jornais, potes, botinas e trapos caíam pelo alçapão para os
pés de Mary e Reggie.
— Qual é o problema? Podemos ajudar?
Alice viu os dois rostos agitados e preocupados de cidadãos
responsáveis virados para cima, iluminados por sua lanterna
em bruscos movimentos; subitamente, desatou a rir. Parou
por cima deles, cambaleando e rindo.
— Oh, Alice! — exclamou Mary.
— Oh, Alice! — protestou Reggie.
Os dois exibiam um ar de censura, petulante. Alice soltou-se,
rolou para a beira do alçapão, segurou-se com as mãos fortes,
balançou e caiu bem diante de Mary e Reggie, rindo e
apontando para eles.
— Se pudessem ver a cara de vocês, se pudessem ver...
E ela continuou a rir e cambalear, entre as pilhas sórdidas,
chutando sapatos e roupas para todos os lados. Cacos de
vidro espalharam-se pelo chão.
Mary e Reggie olharam um para o outro, para ela, e voltaram
apressados para seu quarto. O barulho da porta fechando,
polido e contido, apesar de tudo, fez com que Alice risse de
novo. Ela arriou no chão, entre todo aquele lixo, e
continuou a rir até o silêncio. Levantou os olhos para o
alçapão e viu o brilho da lanterna acesa lá em cima.
Iluminava as vigas enviesadas do telhado, mostrava duas
vigas podres, que mesmo lá de baixo, com aquela claridade,
pareciam estar se dissolvendo.
Alice tornou a subir. Recusando-se a olhar para as vigas
perigosas, começou muito sóbria a fechar os baús, arrumar
um pouco. Ia mesmo arrumar tudo lá em cima? Para quê?
Para quem?
Apagou a lanterna, deixando-a exatamente onde a encon-
trara, para Philip. Deixou o sótão, dessa vez pela escada, em-
purrou todo aquele refugo com os pés para uma pilha grande
ao lado do corrimão. Fazia o maior barulho, mas não se
importava. Seria uma boa lição para eles, pensou. Um dia,
Mary e Reggie dirão: Bem que tentamos viver numa
comuna, fizemos o maior esforço, mas ficamos com medo...
Ela estava outra vez tremendo de riso. Desceu, gritando,
soluçando com o riso. Se é que era mesmo riso; já ouvira
aqueles lamentos tristes. E pensou: Estou rindo pelo lado
errado da boca...
As três horas da madrugada foi se deitar, desolada,
prometendo a si mesma que cuidaria da pintura de pelo
menos um cômodo no dia seguinte. Talvez o quarto que
ocupava. Sabia que Jasper ficaria satisfeito, mesmo que
parecesse escarnecer. Pensando em Jasper, no que ele estava
fazendo, com quem, Alice mergulhou num sono irrequieto,
levantou muitas horas antes do que qualquer outro, tirou as
poucas coisas que havia no quarto, foi buscar os cavaletes,
tintas e rolos de Philip, limpou o teto e as paredes com um
espanador amarrado na ponta de uma vassoura, varreu do
chão a poeira resultante. Ainda eram apenas sete horas da
manhã.
Sentada sozinha na cozinha, tomando café, olhando para as
forsítias amarelas, Alice irradiava saúde, energia,
determinação. Não poderia ter feito aquilo se Jasper estivesse
ali, teria de adaptar-se seu ritmo ao dele... Às vezes, muito
raramente, o pensamento lhe ocorria: Se eu estivesse
sozinha, se não precisasse me preocupar com Jasper... Era
excepcional, e ali estava uma dessas ocasiões. Sabia que
estava presa a Jasper pelo que parecia uma corda esticada de
ansiedade, que vibrava com as necessidades dele, nunca com
as suas; sabia como era afligida por Jasper, como ele a
sufocava. E se ela o deixasse? (Pois Jasper nunca a deixaria!)
Se encontrasse um lugar para si, com outros camaradas, é
claro — já mudara tantas vezes que isso nada significava,
poderia fazê-lo outra vez com a maior facilidade. Sem Jasper.
Ficou imóvel, a mão de garota sardenta não chegando a
envolver completamente a caneca marrom, os olhos fixos
nas bem-aventuradas forsítias que povoavam toda a cozinha
com energia, com prazer. Sem Jasper? Alice começou a fazer
pequenos movimentos, inquietos, apreensivos, a respiração
acelerando, depois se reduzindo a um suspiro. Como poderia
viver sem Jasper? Era verdade o que as pessoas diziam: eles
eram como irmão e irmã. Mas vamos supor... O pensamento
de outro homem levou-a a balançar a cabeça, incrédula. Não
que muitos não tivessem se aproximado para perguntar: Por
que Jasper, por que não eu? Ele não lhe dá coisa alguma.
Mas ele dava. E quanto dava! Como poderia deixá-lo?
Alice levantou-se lentamente, lavou a caneca, ficou parada
por algum tempo, imóvel, o olhar fixo. Pensou: Sempre
esqueço que o tempo está passando. Já tinha mais de trinta
anos. Muito mais... Para ser mais exata, trinta e seis. Se
queria algum dia ter um filho... Não, não; os autênticos
revolucionários responsáveis não devem ter filhos. (Mas
tinham!)
Ela tratou de se desvencilhar de todo esse emaranhado de
pensamentos e subiu correndo, como se alguma delícia ou
prazer a aguardasse no quarto, não a tarefa árdua de pintar.
Trabalhou sem parar, até acabar de passar a primeira mão.
Teto e paredes estavam cobertos por tinta branca fresca,
onde antes havia sujeira e encardimento. Algumas pessoas
deixariam assim, mas não Alice: haveria uma segunda mão.
Circulou sobre os jornais espalhados pelo chão, alguns deles
datados dos anos 30, do tempo da guerra. "Segunda frente!",
em letras pretas garrafais, deslizou para baixo de outra folha.
"Attlee promete... " Não estava interessada no que Attlee ou
qualquer outro prometera. Voltando à cozinha, descansou e
pensou: Terminarei nosso quarto por volta de meio-dia,
poderia pintar outro. Precisaria de ajuda para a sala de estar.
O pior é o quarto das garotas, Faye e Roberta. Terei de dar
uma olhada rápida agora...
Tinha certeza de que as duas não estavam em casa, mas
mesmo assim bateu na porta para se certificar. Silêncio. Ela
entrou e, porque seus olhos se dirigiram para o teto e as
paredes, não percebeu logo que as duas estavam ali, no final
das contas, duas massas por baixo de cobertores, xales, uma
porção de coisas, quase todas floridas. Roberta, perturbada
mas sem saber por quê, esticou os braços para bocejar,
depois sentou, os seios balançando, e olhou com desprazer
para Alice. Que disse:
— Desculpe. Pensei que não estavam em casa.
— E não estamos!
Mas a expressão de aversão, que Alice receava ser o que
Roberta sentia por ela, foi substituída por outra mais amável.
Roberta tateou à procura de cigarro. Pela aparência tensa do
fardo que era Faye, Alice compreendeu que ela estava
acordada. Explicou:
— Estou pintando nosso quarto. Acabarei em duas horas.
Pensei em pintar também o quarto de vocês ainda hoje, se
quiserem.
Nesse instante Faye sentou, jogando as cobertas para o lado,
em um só movimento, como uma nadadora aflorando à
superfície. Lançou um olhar furioso para Alice, como o que
apresentara à pobre Mônica.
- Não — disse ela, em voz fria e implacável. — Você não vai
pintar este quarto. Não vai mesmo. E agora nos deixe em
paz.
— Está tudo bem, Faye — murmurou Roberta.
— Não está, não — gritou Faye, em tom estridente. — Pinte
a porra do seu quarto, Alice. Mas mantenha essas suas
mãozinhas de merda longe da gente, está me entendendo?
Acostumada a tais situações, Alice manteve-se firme, sem se
sentir magoada ou ofendida ou qualquer das coisas que sabia
que Faye queria que ela ficasse. Estava pensando: Nota dez
para Roberta. Não deve ser fácil aturar Faye o tempo todo.
— Está bem, Faye — disse Alice. — Claro que não vou pintar
nada, se vocês não quiserem. Mas não acha que o quarto está
sujo demais?
E olhou com interesse para as paredes, onde, à luz forte da
manhã — o sol ainda brilhava sobre uma —, parecia que
poderiam começar a brotar cogumelos.
Elas ficaram sentadas ali, Faye e Roberta, olhando para Alice,
tão diferentes de Mary e Reggie que Alice achou até graça —
interiormente, é claro, sem deixar transparecer. E seu
coração se confrangeu por elas. Mary e Reggie — aqueles
chefes de família, como Alice desdenhosamente pensava
neles — sentados lá em cima, em sua cama conjugal,
examinando Alice, sabiam que nada poderia realmente
ameaçá-los. Mas Roberta, apesar de toda a sua solidez bonita
e morena, de seu instinto maternal, e Faye, como um
pintinho frágil aconchegando-se sob o ombro forte da
amada, eram vulneráveis. Sabiam que qualquer coisa, até
mesmo Alice, podia atropelá-las como um trator, reduzi-las a
fragmentos.
— Está tudo bem — repetiu Alice gentilmente, com uma
infinita compaixão. — Não se preocupem. Desculpem.
E saiu, ouvindo a voz estridente de Faye enquanto a porta
era fechada, ouvindo a voz consolada de Roberta.
Alice voltou ao trabalho de passar a segunda mão de tinta,
equilibrada sobre os cavaletes. Pensou pela primeira vez: Sou
uma idiota. Elas gostam assim. Roberta, Faye, com toda a
certeza, gostam de viver na imundície. Refletiu sobre isso
por algum tempo, enquanto passava mais tinta branca para
reforçar a que já estava ali, por cima de sua cabeça, a outra
mão encostada no teto, para se firmar. Elas gostam disso.
Precisam disso. Se não gostassem, já teriam feito alguma
coisa há muito tempo. E fácil endireitar e limpar as coisas;
portanto, se não o fizeram é porque preferem assim.
Concedeu a esse pensamento bastante tempo e profundida-
de. Mas não era esse o caso de Jim. Ele não gostava. Bastava
ver como ficou satisfeito quando comecei a limpar tudo. Ele
não gostava de todos aqueles horríveis baldes lá em cima,
apenas não sabia como... Jim, ele não tem a capacidade da
classe média (quantas vezes ouvira isso na casa de sua mãe);
é desamparado, não sabe como as coisas funcionam. Mas
Faye e Roberta — bom, elas não são da classe média, para
exprimir em termos suaves, mas com toda a certeza... isso
mesmo, elas teriam aprendido o know-how, a competência;
portanto, se não endireitaram as coisas foi porque não
queriam.
Imagine só querer viver naquele quarto, naquele quarto
repulsivo, com paredes que parecem montes de esterco; o
que aconteceu ali, o que fizeram no quarto? Provavelmente
não foi Roberta. Faye: qualquer coisa errada, qualquer coisa
lamentável e pavorosa teria de ser Faye, nunca Roberta.
Provavelmente quando Faye tivera um de seus acessos...
todos os tipos de coisas terríveis acontecendo e depois
Roberta agüentando firme: Faye querida, está tudo bem; não
faça isso; por favor, Faye; relaxe, querida...
Alice terminou de passar a segunda mão ao meio-dia, lavou o
rolo, tampou as latas de tinta e levou tudo para um quarto de
cima. Enquanto Philip dormia, enquanto Mary e Reggie
dormiam, enquanto Roberta e Faye dormiam (elas não
saíram do seu quarto), ela pintara um quarto inteiro. E
realizara um bom trabalho, sem manchas nem cantos
matados, os jornais estavam comprimidos, prontos para os
latões de lixo, que em breve estariam cheios outra vez.
Fez ovos, tomou chá, lavou-se com água fria, de pé na
banheira. Toda limpa e arrumada, com uma blusa impecável,
de pequenas flores rosa e gola redonda, Alice saiu da casa e
foi para a 45, como se tivesse planejado fazer isso durante o
dia inteiro.
Tinha certeza de que o camarada Andrew não estaria na
cama, mesmo que todos os outros ainda estivessem deitados.
Cerca de dois terços dos sacos de refugos haviam
desaparecido, e o buraco que ela vira antes parecia nunca ter
existido, coberto por uma camada de folhas mortas, em que
dois passarinhos procuravam alimento.
A porta foi aberta por uma jovem que era ao mesmo tempo
alta e esguia e inflada e volumosa, pois usava um uniforme
de combate em cáqui e verde, parecido com um traje que
Alice vira recentemente numa loja de excedentes militares.
— Sou Alice.
Ela falou ao mesmo tempo em que a jovem dizia:
— Você é Alice. — E acrescentou: — Sou Muriel.
Com um sorriso cordial, Muriel deu um passo para o lado,
deixando Alice entrar no vestíbulo em que não restava mais
qualquer vestígio das caixas de panfletos ou o que quer que
fossem. Ali não havia tapete no chão; afora isso, o vestíbulo
era igual ao da outra casa. Havia até mesmo uma vassoura
encostada num canto.
— Posso falar com o camarada Andrew?
Muriel respondeu, para desapontamento de Alice:
— Acho que ele está dormindo. — Lendo o comentário no
rosto de Alice, ela se apressou em ressaltar: — Mas ele só
voltou às três horas da madrugada, e os barcos do canal da
Mancha. . .
Depois de fornecer essa informação, a que Alice achou que
não tinha direito, Muriel disse, com uma expressão irritada
de culpa, por causa do rosto crítico de Alice, que ia verificar.
Encaminhou-se para a porta da sala onde Alice estivera e
levantou a mão, como se fosse bater. Mas arranhou a porta
delicadamente, para não dizer com intimidade, usando
apenas o dedo indicador. Alice foi dominada pela angústia
fria e terrível que nunca dizia a si mesma que era ciúme.
Poderia até desfalecer por causa disso. Certamente sentia-se
tonta e, quando sua cabeça desanuviou, Muriel ainda estava
ali, sorrindo complacente, o dedo ainda levantado,
parecendo um bico de passarinho. Isso mesmo, ela parecia
um ganso, ou melhor ainda, um ganso novo, atarracado e
informe. E virou o rosto para Alice, com um sorriso
satisfeito.
— Posso ouvi-lo agora. Ele está se mexendo.
Ela falou como se os movimentos do camarada Andrew
fossem por si mesmos uma prova de sua superioridade, que
estava disposta a partilhar generosamente com Alice. A porta
foi aberta, e o camarada Andrew apareceu, piscando, os
olhos avermelhados. Vestia uma calça amarrotada e uma
camisa de malha branca que precisava de uma lavagem.
Alice sentiu o cheiro de álcool e reprimiu a desaprovação:
ele devia estar cansado, tendo chegado tão tarde. Ele sorriu
para Muriel de uma maneira que Alice não se sentiu
propensa a analisar, depois viu Alice e acenou- lhe com a
cabeça amavelmente, indicando que ela devia entrar.
Alice entrou na sala, e o camarada Andrew fechou a porta,
sorrindo para Muriel, a fim de excluí-la.
A sala também fora esvaziada e só restavam dois pacotes.
Uma cama dobrável baixa estava encostada a uma parede,
com apenas um cobertor vermelho em cima. Estava
desarrumada, mas também ele saíra direto da cama para
atender ao arranhão na porta. Havia um travesseiro sem
fronha, e o tecido listrado parecia gorduroso. Aquela
pequena cena da cama era diferente da impessoalidade do
resto da sala e sugeria uma masculinidade rude, até mesmo
brutal.
Bocejando, sem tentar disfarçar, o homem sentou numa
poltrona antiga, ao lado da lareira apagada. Alice sentou na
poltrona em frente.
— Estive na França — informou o camarada Andrew. —
Apenas uma pequena viagem.
Alice descobriu-se a olhar discretamente para a cama, que
dava a impressão de ser do exterior. Ou talvez de algum
clima moral diferente, como uma guerra ou uma revolução.
O camarada Andrew percebeu que ela examinava a cama.
Ainda estava acordando. Levantou-se abruptamente, foi até a
cama, esticou o cobertor vermelho, escondendo o
travesseiro horrível. Tornou a sentar. E comentou:
— Já me livrei do que você viu naquele buraco. Foi para o
lugar onde pode ter alguma utilidade.
— Ótimo — murmurou Alice, indiferente.
Ele podia ou não ter mandado ou levado a "coisa", mas e daí?
Ela não queria saber.
— Deve estar especulando o que era. Tudo o que posso lhe
dizer é que se trata de algo de que uma quantidade muito
pequena percorre um longo caminho.
Um intenso desdém aflorava em Alice por causa da
inabilidade do homem. E ela disse, em voz firme:
— Na minha opinião, quanto menos pessoas souberem a
respeito, melhor.
Significando: quanto menos ela soubesse. Os olhos do
camarada Andrew se estreitaram e ficaram duros, mas logo
ele sorriu.
— Tem toda a razão, camarada. Acho que estou com a guarda
baixa. Sou um homem que precisa dormir. Sete em vinte e
quatro horas, ou funciono abaixo do melhor nível.
Alice balançou a cabeça, mas analisava-o com uma visão
crítica. Achava-o pouco impressionante. Um homem baixo
e corpulento. Os cabelos curtos achatados aqui e ali, como o
pêlo de um animal quando está irritado. Um bafo rançoso
saía de sua boca, azedo, não apenas porque ele podia ter
bebido demais. Era um homem que precisava vigiar o peso.
— Fico contente por ter aparecido, camarada Alice. Estava
querendo conversar sobre algumas coisas com você.
Ele se levantou, foi até a mesa à procura de cigarros, ficou de
costas para Alice, ocupado em pôr um na boca e acendê-lo.
Esse procedimento durante o qual ele parecia estar acabando
de despertar, numa série de movimentos rápidos, eficientes
e ponderados, sufocou o espírito crítico de Alice. Ela
pensou: Apesar de tudo, ele é a coisa real. Permitiu-se
confiar no homem.
Teve início então uma conversa extraordinária, que se
prolongou por algum tempo; eram quase cinco horas quando
ela foi embora. Alice sabia que o camarada Andrew estava
arrancando dela o que precisava saber — sondando-a —, e
que ele devia saber também que ela o permitia, compreendia
todo o processo. Ela se encontrava numa espécie de estado
sonhador, pensativa, passiva mas alerta, acumulando todos os
tipos de impressões e idéias, que analisaria mais tarde.
O camarada Andrew queria que ela rompesse com "toda
aquela turma de lá, você é muito superior a eles", e se
lançasse numa carreira de... respeitabilidade. Ela devia se
candidatar a um emprego numa certa firma, de importância
nacional. Conseguiria o emprego porque ele tomaria as
providências necessárias, através de contatos que já tinha na
firma. Referiu-se várias vezes à "nossa rede". Alice
trabalharia em computadores — ele, Andrew, daria um jeito
para que ela fizesse um rápido curso de treinamento, que
seria uma base suficiente para que uma mulher inteligente
como ela pudesse se desenvolver. Enquanto isso, ela moraria
num apartamento, não numa casa ocupada a título precário,
levaria uma vida normal... e esperaria.
Alice escutou tudo isso com uma atitude de modéstia, as
pálpebras abaixadas.
Estava pensando: E quem é ele? Para quem eu trabalharia?
Tinha uma boa idéia... mas será que isso fazia alguma
diferença? O ponto principal era outro: ela achava ou não
que toda a superestrutura terrível devia ser derrubada e
destruída, de uma vez por todas? Uma limpeza completa,
isso é que era necessário. E Alice contemplou uma paisagem
arrasada, árida e desolada, talvez com um pouco de cinza
pálida sendo soprada por toda a extensão. Isso mesmo. Era
preciso se livrar da superestrutura podre para abrir caminho
a algo melhor. Para o novo. Tinha alguma importância quem
fazia a limpeza, quem derrubava tudo? Rússia, Cuba, China,
tio Tom Cobbley, todos eram bem-vindos, em sua opinião.
Mas ela disse, depois de algum tempo, numa pausa que ali
estava para que preenchesse:
— Não posso, Andrew. — E, subitamente, aflorando de suas
profundezas: — Uma vida burguesa? Quer que eu leve uma
vida de classe média?
Alice ficou sentada ali rindo dele — escarnecendo mesmo
—, carregada com a energia do desdém, do desprezo.
Ele a observava com atenção, agora não mais cansado ou
atordoado de sono. Sorriu gentilmente.
— Camarada Alice, não há nada de errado em uma vida
confortável... tudo depende do objetivo. Não seria viver
assim por causa do conforto, por causa da segurança... —
Andrew parecia estar fazendo um esforço para desprezar
essas palavras tanto quanto ela — mas sim por causa do seu
objetivo. Nosso objetivo.
Os dois se fitavam. Através de um abismo. Não de ideologia,
mas de temperamento, de experiência. Alice sabia, pela
maneira como ele dissera "não há nada de errado em uma
vida confortável", que Andrew não sentia uma repulsa como
a sua. Ao contrário, ele até gostaria de uma vida assim. E
como sabia? Ela não tinha como explicar por que sabia de
tais coisas sobre os outros. Apenas sabia. Aquele homem
explodiria uma cidade sem cinco segundos de remorso — e
ela não o criticava por isso —, mas exigiria um bom uísque,
comeria em bons restaurantes, gostaria de viajar em primeira
classe. Era da classe operária na origem, pensou ela; a vida
lhe fora difícil. Era por isso. Não lhe cabia criticá-lo. E Alice
declarou, categórica:
— Não adianta, camarada Andrew. Eu não poderia. Não
suportaria a espera... das ordens... não importa quanto tempo
levasse.
— Acredito em você — murmurou ele, balançando a cabeça.
— Não me importaria com o perigo. Mas não poderia viver
assim. Acabaria enlouquecendo.
Ele tornou a balançar a cabeça, ficou em silêncio por um
momento. E depois, parecendo divertido pela primeira vez,
até mesmo cômico:
— Mas tenho recebido relatórios diários, camarada Alice, até
mesmo de hora em hora, sobre as transformações que
promoveu naquela pocilga.
A aversão com que ele ressaltou a última palavra era tão
intensa quanto poderia ser a dos pais de Alice. Inclinando-se
para a frente, Andrew pegou-lhe a mão, sorrindo
jovialmente, e virou-a, o dorso para cima, em sua mão forte
e quadrada. A mão de Alice se encolhera um pouco, mas ela
deixou-a ali, firme. Não gostava de ser tocada, em nenhuma
circunstância! Mas o contato de Andrew não era tão ruim
assim. A firmeza o tornava suportável. Nas articulações de
Alice havia uma crosta de tinta branca. Ele repôs
gentilmente a mão no joelho dela e acrescentou:
— Em pouco tempo vai transformar aquela casa num palácio.
— Não está entendendo. Não vamos viver naquela casa como
eles fazem. Não vamos consumir e gastar, amolecer e ficar
acordados nos preocupando com nossas pensões. Não somos
como eles, que são repulsivos.
A voz de Alice estava quase sufocada de asco. Seu rosto se
contorceu em ódio.
Houve um silêncio prolongado, durante o qual ele resolveu
deixar aquele assunto inauspicioso. (Mas, pensou Alice, não
o abandonaria por muito tempo!) Ofereceu um café. Havia
uma chaleira elétrica, canecas, açúcar e leite numa bandeja
no chão. Ele aprontou o café com rapidez e eficiência.
Depois, começou a falar sobre as pessoas do número 43.
Alice constatou que a avaliação era a mesma que ela fizera. O
que a agradou e lisonjeou, confirmando a convicção em si
mesma.
Ele falou muito bem sobre Jim, sobre Philip, mas não se
demorou em perguntas. Pareceu descartar Bert. Queria saber
mais a respeito de Pat, onde ela trabalhara, qual era o seu
treinamento. Alice respondeu que não sabia, não perguntara.
— Mas isso é importante, camarada Alice — censurou-a
Andrew, da forma mais gentil possível. — Muito
importante.
— Por quê? Não tenho um emprego desde que deixei a uni-
versidade. E venho fazendo tudo direito.
O comentário acarretou um obstáculo no fluxo da conversa;
Andrew estava reprimindo uma necessidade de repreendê-
la. Há muito de burguês nele, pensava Alice, mas apenas um
pouco crítica, por causa do respeito agora consolidado que
sentia pelo camarada Andrew.
Jasper... ele não falaria sobre Jasper. Por causa de seu vínculo
comigo, pensou Alice. Mas ela não precisava perguntar: o
camarada Andrew não tinha muito tempo para Jasper. Pois
ele ia ver uma coisa!
Roberta e Faye. Ele fez muitas perguntas sobre as duas, mas
o que o interessava mesmo era o lesbianismo. Não por
lascívia ou qualquer outra coisa que Alice pudesse detestar:
havia ali uma total incompreensão. Ele simplesmente não
tinha a menor idéia a respeito. Nenhuma experiência,
concluiu Alice. Queria saber como era a comuna de
mulheres que Roberta e Faye freqüentavam. Qual a relação
entre lésbicas e as formulações revolucionárias das mulheres
políticas. Alice sugeriu panfletos e livros, que providenciaria
para ele. Andrew acenou com a cabeça, mas continuou:
como mulheres do tipo de Faye e Roberta viam as relações
entre homens e mulheres depois da revolução? Alice
suprimiu o impulso de dizer: Elas querem liquidar todos os
homens. Lembrava as discussões longas e acaloradas com
Molly e Helen, em Liverpool, durante as quais ela, Alice,
alegara que a atitude das duas equivalia a um desprezo tão
total aos homens, que na verdade eliminava todo e qualquer
pensamento sério a respeito deles. Mas o que ela disse agora
foi o seguinte:
— Há muitas formulações diferentes no Movimento
Feminista. Eu diria que Faye e Roberta representam um
extremo.
Havia ainda Mary e Reggie; e, como Alice já esperava, o
camarada Andrew recusou-se a descartá-los, como ela
queria. Justamente o que ela mais detestava nos dois era o
que mais o interessava: Alice sabia que ele especulava se
Mary e Reggie não poderiam ser persuadidos a se tornarem
parceiros latentes da revolução, uma expressão que ela usou
e Andrew aprovou com um sorriso seco e um aceno de
cabeça.
Alice não sabia. Duvidava muito. Eles eram naturalmente
conservadores. (Não que ela tivesse alguma coisa contra o
Green- peace. Ao contrário.) Em suma, eram burgueses. Na
sua opinião, Andrew deveria discutir o assunto
pessoalmente. Não podia responder por eles.
Alice sabia que isso cortava a premissa tácita da conversa: a
de que ela estava disposta a agir de bom grado como sua
assistente na avaliação de possíveis recrutas. Por algum
motivo ou outro. Não declarado. Tácito.
Eles planejavam — o pessoal do número 43 — aceitar mais
gente em sua comuna?
— Por que não? Há bastante espaço.
— Concordo. Quanto mais, melhor.
E assim eles continuaram, remontando, por alguns minutos
bastante tensos, à infância de Alice. A mãe de Alice não
interessava ao camarada Andrew, mas Cedric Mellings era
outro caso. Sua empresa era muito grande? Quantos
empregados? Como eles eram?
O irmão de Alice: ela resolveu não dizer que Humphrey
trabalhava numa importante companhia de aviação. E
limitou- se a comentar:
— Não perca seu tempo com ele.
Mais café e uma conversa muito satisfatória sobre a situação
da Inglaterra. Podre como uma maçã estragada, pronta para
ser derrubada pelos tratores da história.
Quando Alice disse que precisava ir, pois esperava por
Jasper, e levantou-se, ele também ficou de pé e pareceu
hesitar. Então disse rapidamente, parecendo contrafeito pela
primeira vez:
— Está há muito tempo com Jasper, não é?
— Quinze anos.
Sabendo o que estava para vir, reconhecendo muitos
momentos assim no passado, Alice virou-se para sair.
Andrew estava a seu lado, e ela sentiu o braço se estender de
leve sobre seus ombros.
— Camarada Alice, não é fácil compreender... por que optou
por esse... relacionamento.
A parcela habitual de afronta, ressentimento e até raiva
aflorou em Alice. Mas ali estava o camarada Andrew, e ela já
decidira que qualquer coisa que partisse dele tinha de ser
diferente.
— Você não compreende — murmurou ela. — Não é capaz
de compreender Jasper.
O braço continuava em seus ombros, tão gentilmente que
Alice não sentia qualquer pressão. E ele disse, insinuante:
— Mas certamente, Alice, você poderia...
Obter algo melhor era o que ele queria dizer. Alice virou-se
para fitá-lo, com um sorriso firme.
— Está tudo bem — murmurou ela, como uma colegial. —
Eu amo você.
A incredulidade tornou o sorriso de Andrew irônico,
paciente.
— Bom, camarada Alice... — Fez uma pausa, divertido. —
Apareça quando quiser.
— Por que não vai visitar nosso palácio?
— Obrigado. Irei mesmo.
E Alice foi para a casa, atordoada com indagações.
Tencionava subir para admirar seu quarto recém-pintado,
mas alguma coisa levou-a à porta de Jim. Bateu. Não houve
resposta, e ela entrou. Jim estava estendido em cima de seu
saco de dormir, virado para ela, de olhos abertos.
— Você está bem, Jim?
Ele não respondeu. Parecia horrível... Alice aproximou- se,
ajoelhou-se, pôs a mão na dele. Estava seca, muito quente.
— Jim! O que você tem?
— Ora, que importa? — balbuciou ele, num soluço abafado,
pondo o braço sobre o rosto.
Por baixo da manga havia um ferimento avermelhado que se
estendia do cotovelo ao pulso. Largo. Repulsivo. Parecia
cheio de geléia vermelha.
— O que aconteceu, Jim?
— Meti-me numa briga. — As palavras saíram num soluço de
frustração e raiva. — Não se preocupe que vai sarar. Não é
nada. Já está limpo.
Jim parecia estar lutando contra si mesmo, estendido ali,
batendo com o punho na cabeça, contraindo as pernas,
depois esticando-as bruscamente.
— Mas a polícia não o pegou.
— Não, mas a esta altura já devem saber que eu estava lá. Há
alguém para cuidar disso. De que adianta? Não há a menor
possibilidade de você me livrar desta encrenca. Sendo assim,
de que adianta?
— Tentou arrumar um emprego?
— Tentei, mas de que adianta?
Ele virou-se e ficou deitado de costas, os braços inertes nos
lados do corpo.
Alice podia compreender. Havia uma certa fúria frenética
em estar desempregado, perseverar para arrumar um
trabalho e ser rejeitado. Era diferente de assumir o
desemprego.
— O que estava tentando?
— Uma gráfica em Southwark. Mas não conheço toda essa
nova tecnologia... aprendi com as máquinas antigas. Fiz um
curso de um ano, pensei que me valeria alguma coisa.
— Não disse nada a respeito. Mas deve haver centenas de
pequenas gráficas por todo o país que ainda usam máquinas
antigas.
— Então devo ter me candidatado a um emprego em metade
delas nos últimos quatro anos.
— Meu pai tem uma gráfica. Pequena. Fazem todos os tipos
de trabalho. Panfletos, folhetos e catálogos.
— Ele não continuará a usar máquinas antigas por muito
tempo.
— Escreverei para ele. Por que não? Ele se diz socialista.
— De que adianta? Sou negro.
— Espere um instante. Estou pensando.
Jim estava tenso, quente e desesperado, mas já um pouco
melhor, pensou Alice. Como uma freira ou sua irmã, ela
ficou sentada a segurar-lhe a mão, sorrindo gentilmente.
— Isso mesmo — acabou murmurando. — Escreverei para
meu pai. Farei isso. Vou obrigá-lo a praticar o que prega.
Além do mais, ele já teve empregados negros.
Alice percebeu que, contra a vontade, ele voltava a sentir
esperança.
— E vou escrever agora — acrescentou ela.
Na mochila em que parecia guardar metade de sua vida,
Alice procurou e encontrou uma caneta esferográfica e um
bloco.
"Querido papai,
Este é Jim..."
— Qual é o seu nome todo, Jim?
— Mackenzie.
— Tenho um primo que casou com uma Mackenzie.
— Meu avô era Mackenzie. De Trinidad.
— Então talvez sejamos parentes.
Um pequeno acesso de riso sacudiu-o e deixou-o com um
sorriso. Ele suspirou, relaxou, virou-se para Alice, apoiou a
cabeça na mão. Estaria adormecido em breve.
Ela escreveu:
"Este é Jim Mackenzie. Não consegue arrumar emprego. E
um gráfico. Por que não lhe dá emprego? Não se intitula um
progressista? Há quatro anos que ele está desempregado. Em
nome da Revolução.
Alice"
Ela dobrou o bilhete com todo o cuidado, meteu num
envelope azul (escolhendo o azul em vez do creme por
algum motivo) e endereçou-o.
As pálpebras de Jim estavam caindo.
— Por que não vai até lá amanhã? O ferimento não estará
mais aparecendo.
Alice levantou a manga de sua camisa gentilmente. Ela não
encontrou resistência. Era um corte horrível e deixaria uma
cicatriz grande. Precisava levar alguns pontos. Mas isso não
importava agora.
— Gosto de você, Alice. É uma pessoa realmente sincera...
Entende o que estou querendo dizer?
Ele não acrescentou "ao contrário dos outros". Alice poderia
ter chorado, sabendo que era verdade o que ele dizia,
sentindo-se confirmada e apoiada. Continuou ali até que ele
dormiu; depois saiu para o vestíbulo escuro, acendeu a luz
com orgulho e com a consciência do que esse pequeno ato
significava, quanto custara e ainda custaria; ela apertou um
pequeno botão na parede e os elétrons obedientemente
correram pelos cabos, porque a mulher no Departamento de
Energia Elétrica assim decidira.
Dinheiro. De onde?
Parada ali, contemplando o vestíbulo, tão agradável agora
(embora ela soubesse que precisava limpar todo o tapete, que
ficara muito tempo dobrado na poeira do depósito), Alice
constatou que Philip consertara o armário pequeno por baixo
da escada, quebrado pelo policial.
Nesse momento houve uma batida na porta. Com uma
premonição Alice foi até ela, já fixando no rosto uma
expressão de autoridade.
Era a policial que ela encontrara na delegacia. Seu parceiro
estava no portão, um jovem que Alice nunca vira antes.
— Boa noite — disse Alice. — Em que posso servi-la?
Ela deixou a porta aberta às suas costas, a fim de que a ordem
do vestíbulo pudesse ser observada. Percebeu que a mulher
fazia uma avaliação. Alice não ficou surpresa ao reparar que a
policial tentava localizar com os olhos o lugar no jardim em
que aqueles malucos haviam enterrado...
— Um tal de James Mackenzie mora aqui?
— Mora, sim.
— Posso falar com ele?
— Poderia, mas ele não está.
— Quando voltará?
— Talvez não volte esta noite. Foi visitar amigos em
Highgate.
— Quer dizer que ele não esteve aqui neste fim de semana?
— Estava aqui ontem à noite.
— E passou a noite inteira na casa?
— Passou, sim. Por quê?
— Estava aqui desde o anoitecer?
— Estava. Jantamos aqui e depois ficamos jogando cartas.
Havia um ligeiro tremor na voz de Alice; ela ia dizer "Todos
passamos a noite aqui", mas lembrou-se a tempo de que nem
"todos" podiam estar dispostos a arriscar o pescoço por Jim,
se fosse possível alcançar "todos" e avisá-los a tempo.
— Você e ele estavam aqui?
— E mais um amigo dele. Um garoto branco. William
qualquer coisa.
Alice sabia que a policial percebera a pequena hesitação,
mesmo que apenas de maneira subliminar. Mas estava tudo
bem, ela concluiu; era o que podia deduzir da indecisão da
mulher. Alice bocejou, levou a mão à boca e disse:
— Desculpe-me, mas já é tarde...
Ela tornou a bocejar, oferecendo o sorriso certo à policial.
Que sorriu em retribuição, enquanto tornava a olhar com
toda a atenção para o vestíbulo tranqüilizador.
— Obrigada.
A mulher encaminhou-se para o portão e saiu, a fim de
retornar com seu parceiro à ronda vigilante pelas ruas
culpadas.
Alice foi dar uma olhada em Jim, sem fazer barulho. Ele
estava dormindo.
Seguiu para a cozinha e escreveu uma carta para a mãe.
Ficaria à espera de Mónica Winters, que com toda a certeza
apareceria dentro de um ou dois dias.
Enquanto se ocupava com isso, eles chegaram, a intervalos
de poucos minutos, primeiro Jasper, depois Pat e Bert,
finalmente Roberta e Faye. Os seis sentaram em torno da
mesa na cozinha com um sortimento de comidas, trazidas
separadamente e que agora seriam consumidas junto: pizzas,
peixe com batatas fritas, tortas. Alice fez café, distribuiu as
canecas, sentou à cabeceira da mesa. Sua felicidade por
aquela cena era tão intensa que fechou os olhos, a fim de que
não irradiassem grandes jatos de brilho, denunciando-a para
a severidade dos outros.
Bert queria saber sobre Jack. Jasper fez um relatório. Os
olhares trocados por Faye e Roberta disseram a Alice que
havia problemas.
E foi o que aconteceu. Faye indagou, em sua maneira afeta-
da, mas que nada escondia de sua seriedade, por que aqueles
planos haviam sido formulados sem uma reunião para a
aprovação por todos. Pat declarou que concordava: Jasper
não tinha o direito de assumir as coisas pessoalmente...
Isso, Alice sabia, era dirigido em parte a Bert, que fora
cúmplice de Jasper.
Jasper e depois Bert disseram que ninguém estava
comprometido com coisa alguma. Todo o plano até agora era
realizar uma pequena viagem exploratória à Irlanda,
encontrar um representante do IRA e oferecer a cooperação
de um grupo ali.
— Que grupo? — indagou Faye, mostrando os lindos dentes.
— Isso mesmo — acrescentou Pat, com uma ponta de ironia
que indicou a Alice que tudo acabaria bem. — Vamos
empenhar todos os vastos recursos da UCC ou apenas nós
mesmos?
Alice percebeu que Roberta teria rido de tal intervenção se o
ânimo de Faye permitisse.
Bert, como queria se reconciliar com Pat, assumiu o coman-
do e disse, os dentes brancos aparecendo por entre a barba
escura, num sorriso firme, responsável e convincente:
— Posso compreender as restrições das camaradas. Mas na
natureza das coisas... — nesse ponto ele contraiu os lábios
vermelhos para indicar e partilhar com todas as perspectivas
daquela operação — determinados contatos devem ser
especulativos e até mesmo, aparentemente, ad hoc. Afinal, o
encontro com Jack foi fortuito. Foi puro acaso, e tornou-se
produtivo, graças ao camarada Jasper. Foi ele quem fez o
contato inicial...
Alice podia perceber que não seria fácil para qualquer deles
admitir alguma obrigação para com Jasper, embora ele se
mantivesse corretamente impessoal, um pouco apartado da
cena, aguardando a aprovação geral, a própria imagem de um
camarada responsável.
Mas nesse momento houve um barulho no vestíbulo e a
porta da frente foi fechada. Jasper levantou-se de um pulo
para verificar e informou que era Philip, saindo para a rua. O
fato de ele não ter vindo para a cozinha significava que se
sentia indesejável, o que levou Faye a comentar:
— Não há lugar onde possamos conversar nesta casa agora.
Alice cuidou disso.
Pat se apressou em intervir:
— Podemos ir para a outra casa. Mas certamente é seguro
conversar aqui por algun» minutos.
— Daqui a pouco Jim vai aparecer. Por que não? — indagou
Faye, suavemente. — "Oh, Jim", podemos dizer, "estamos
apenas tendo uma conversinha sobre o IRA."
— Ou Mary e Reggie — sugeriu Roberta, aliando-se a Faye
por amor.
Na verdade, como os outros sabiam, ela concordava com
eles, não precisava da condenação furiosa que Faye tinha de
usar como combustível para seguir em frente.
— Por que não definimos logo, agora, alguns pontos básicos?
— sugeriu Pat. — Não há muita coisa para discutir, não é?
— Nada disso — protestou Faye. — Estou falando sério,
mesmo que todos os outros estejam apenas brincando.
E com pequenos movimentos petulantes dos lábios e olhos
ela desafiou-os; depois, pegou um cigarro, acendeu-o e
soprou a fumaça com irritação.
Em seu apoio, vieram sons do vestíbulo: Mary e Reggie,
falando e rindo, abriram a porta da cozinha e ficaram em
silêncio no mesmo instante. Sem qualquer motivo para não
entrarem — já que o espírito da casa era de que as pessoas
deviam conversar à mesa da cozinha —, eles deram a
impressão de sentir uma unidade, de saber que não eram
desejados. Sorrindo polidamente, disseram:
— Oh, estávamos apenas...
E apesar dos convites para que ficassem — de Alice, de Pat
—, eles subiram.
— Maravilhoso! — exclamou Faye.
— Concordo — disse Pat. — Isso não foi nada bom. Sugiro
que alguém dê um pulo até a outra casa para saber se podem
nos emprestar um cômodo... isto é, se todos acham que
precisamos discutir mais alguma coisa.
— Preciso discutir muita coisa ainda — declarou Faye.
Jasper foi, ficou lá aparentemente por um minuto apenas,
voltou para anunciar que eles seriam bem-vindos.
Ele foi o primeiro a seguir para a outra casa. Depois foi a vez
de Alice, em seguida Bert e Pat. E, finalmente, Faye e
Roberta.
A garota que parecia um ganso abriu-lhes a porta, indicando
um quarto no alto da escada — no mesmo lugar do quarto
que na outra casa era ocupado por Jasper e Alice. Fora um
quarto de criança, tinha cordeirinhos, patos, Mickey
Mouses, dinossauros engraçados, robôs, bruxas em vassouras
e outras necessidades da infância de classe média.
— Santo Deus, quanta merda! — exclamou Faye, com a
maior veemência.
Ela estendeu as mãos bonitas, mostrando as unhas finas,
pintadas de um vermelho forte, como se pudesse arranhar as
ilustrações nas paredes. Mas sorriu, se é que se podia chamar
aquilo de sorriso.
O que se constatou, no final das contas, é que não havia
muita coisa a mais para se falar.
O que ficou evidente é que todos esperavam que o camarada
Andrew participasse da conversa, até mesmo Alice, que sa-
bia que ele desaprovava. O que exatamente especulou ela
agora? O contato com o IRA? Não, claro que não. A
cooperação com o IRA? Como poderia? Então só poderiam
ser eles, aquele grupo, entrando em contato com os
camaradas irlandeses daquela maneira. Ou este grupo. E
ponto final.
Mas não a ela, Alice. Andrew a aprovava. Secretamente
satisfeita, apoiada por tal pensamento, que não podia
partilhar com ninguém, Alice manteve-se retraída,
observando o desenvolvimento da "reunião", percebendo
nos rostos de Jasper e Bert como eles ansiavam por ouvir
passos, ouvir uma batida na porta, ouvir "Posso participar da
reunião, camaradas?"
Mas nada disso aconteceu.
Foi reiterado que Bert e Jasper fariam a viagem apenas como
reconhecimento. Poderiam descobrir que tipo de apoio os
camaradas irlandeses esperavam. Isso foi considerado um
tanto insosso, um tanto insatisfatório, a formulação foi
corrigida e tornou-se: Bert e Jasper estavam autorizados
pelos presentes a oferecer apoio aos revolucionários
irlandeses e pedir que indicassem missões concretas.
Não ficaram muito tempo. Ninguém se sentia à vontade
naquele quarto, que continha os fantasmas de crianças
privilegiadas... de crianças amadas?
Concluíram rapidamente e se retiraram, voltando para o
número 43. Roberta e Faye foram ao cinema. Gostavam de
filmes violentos, até pornográficos, havia um passando no
cinema próximo. Os outros quatro encontraram Mary e
Reggie na cozinha, comendo em pratos, com todo o decoro.
Os restos de pizza, batatas fritas, latas de cerveja e papéis
haviam sido jogados na lata de lixo. Mary e Reggie disseram:
— Sentem-se e comam conosco.
Mas assim como os seis haviam repelido Mary e Reggie, ago-
ra os dois pareciam cercados por uma corrente invisível:
Mantenham distância. Provavelmente eles ainda estão
irritados com a noite passada, pensou Alice. Acho que fui
longe demais. Ora, o problema é deles.
Com muitos sorrisos e murmúrios de boa-noite, os quatro
subiram. Outra reunião foi realizada no quarto recém-
pintado, onde sentaram no chão e discutiram o problema de
Faye e Roberta, que não gostavam da intervenção do
camarada Andrew em suas atividades. Era por isso que
esperavam que ele participasse da reunião na outra casa.
"Quem era o camarada Andrew?", elas queriam saber.
Quando os quatro terminaram de discutir sobre as duas
mulheres, eles formavam uma unidade intima, camaradas até
a morte. E, no entanto, Alice não podia deixar de pensar que
Pat, por mais que parecesse empenhada agora, não concedia
todo o seu apoio a Bert. A jovem atraente e animada,
afetuosa e descontraída com Bert depois do fim de semana
juntos, presumivelmente a sós, não convencia Alice. Lábios
cor de cereja lustrosos e faces brilhantes seriam
comprimidos contra os lábios vermelhos e sensuais de Bert,
aqueles dentes brancos morderiam e arranhariam a
abundante barba preta de Bert... Apesar disso, porém,
pensou Alice, apesar disso... E era óbvio que Pat não gostava
da idéia de Bert ir à Irlanda em companhia de Jasper. Ela não
gostava de Jasper. Na verdade, não constituíam uma unidade,
apenas davam essa impressão. Alice, interiormente apartada,
refletiu que era mais do que provável que Pat sentisse a
mesma coisa.
O cheiro de tinta era muito forte. Jasper acabou dizendo que
não poderia dormir ali e subiu. Seu tom foi tão incisivo que
Alice não se atreveu a acompanhá-lo. Desceu para passar a
noite na sala de estar.
Ela dormiu mal, acordando várias vezes para escutar, a fim
de não perder a partida de Jasper pela manhã. Ouviu os dois
homens descerem e irem para a cozinha. Seguiu-os; já se
sentia excluída, indesejável. Eram apenas seis horas de uma
manhã fria e ensolarada de final de primavera.
Alice teve a impressão de que Jasper mal a via ao sair. Ace-
nou para ela no portão, onde estava parada, como qualquer
dona- de-casa vendo seu homem partir.
Ela voltou para seu saco de dormir, com o pressentimento de
que passaria muito tempo antes que Jasper voltasse para casa.
Mas os dias foram passando de forma bastante agradável. Pat
estava sempre à disposição de Alice, ajudando-a a pintar e
limpar; as duas fizeram milagres, transformando cavernas
sórdidas em cômodos limpos e aconchegantes. Pat era
divertida, meiga, simpática. Alice se abria e expandia nessa
normalidade, nessa descontração, e pensava muitas vezes em
quanto consumia de seu tempo com o coração apertado e na
sombria expectativa de mais uma afronta de Jasper. Mas
durante o tempo todo, enquanto desfrutava da situação,
gostava de Pat, sentia que nunca fora tão feliz, não podia
deixar de refletir: E assim que as pessoas se comportam
quando decidem ir embora; num certo sentido, ela já partira.
Philip, com o apoio afetuoso das duas mulheres, pôs em
funcionamento o sistema de água quente. Todos tomaram
banhos em comemoração. Até mesmo Faye, encorajada por
Roberta. Philip voltou ao telhado e terminou de arrumar as
telhas. Trocou tábuas de assoalho e substituiu o reboco
caído, consertou as engrenagens das caixas dos vasos e
providenciou canos novos para pôr no lugar dos velhos,
tomando emprestado o carro da outra casa. Descobriu um
painel descartado de aquecimento central ainda aproveitável
e a casa passou a ter aquecimento de verdade. Localizou duas
vigas de madeira boa num depósito de refugos a um
quilômetro de distância, mas não conseguiu levantá-las;
teriam de esperar por Bert e Jasper para ajudá-lo.
Alice, Mary e Reggie realizaram uma reunião de
contabilidade para determinar as contribuições regulares.
Mary, que sabia exatamente o que teria de ser pago, já
definira as cotas sua e de Reggie. Era bem pouco. Luz, gás?
Com dez pessoas na casa, quanto poderia dar? Foi feita uma
avaliação. Agua? O Departamento de Agua ainda não os
procurara. Parecia que o casal só pensara nisso, como se não
houvesse mais nada. Alice lembrou-se secamente de todas as
melhorias.
— Mas todas as coisas foram trazidas de depósitos de refugos
— ressaltou Mary, indicando que não deixara de perceber
tudo o que estava sendo feito.
A reunião era à mesa da cozinha. Reggie e Mary sentavam
de frente um para o outro, amáveis e seguros; Alice estava à
cabeceira da mesa, esperando pelo que sabia ser inevitável.
Tinha certeza. Podia ver nos olhos de Mary um brilho que
indicava que ela estava fazendo contas, não do que podia
dever a Alice, mas o que acumulava, claro que no momento
apenas na imaginação, para a aquisição de um apartamento
ou casa.
— Tivemos de pagar o boiler, uma porção de fios, ferramen-
tas, madeira e vidro — comentou Alice.
Ela não esperava muito. E tinha razão. Reggie e Mary
trocaram olhares, a quantia de vinte libras foi oferecida e
aceita.
Não houve qualquer menção ao trabalho de Philip. Alice
pôde ouvir nitidamente o pensamento: Mas é claro que ele
não faria o serviço se não viesse morar aqui.
Sorrindo, até recatada, Alice aceitou o chá que Mary se
ofereceu para fazer — por sentimento de culpa, sem a
menor dúvida —, contemplou os dois e pensou: Por Deus,
como eu odeio pessoas como vocês. Como odeio as suas
mentes mesquinhas, avarentas, gananciosas. Porque sabia
que estava estufando e empalidecendo, dominada por sua
cara, ela sorriu ainda mais e depois convidou-os a falar sobre
seus planos para a futura casa, o que eles fizeram no mesmo
instante, deixando de prestar atenção à sua presença.
Jim levou a carta para Cedric Mellings e voltou trêmulo,
quase chorando de felicidade. Começaria a trabalhar no dia
seguinte. Por sorte, alguém estava saindo da firma. Por sorte,
Jim seria bastante conveniente a Cedric Mellings. E ainda
podia aguardar a possibilidade de treinamento nos novos
mistérios técnicos. Alice comentou, incisiva:
— Consciência culpada. Toda essa turma... o problema deles
é o remorso.
— Ele é muito simpático, Alice. E me tratou muito bem.
Estavam na cozinha. Jim, sentado — ou melhor, empolei-
rado numa cadeira —, não conseguia ficar quieto, a todo
instante se levantava e cambaleava ao redor, rindo,
incontrolável; tornava a sentar, encostava a cabeça na mesa,
ria, batia com os punhos nos lados da cabeça, num excesso
de felicidade e gratidão; as batidas se transformavam num
ritmo firme e exultante. Ele acabou abrindo os braços,
revirando os olhos, o rosto negro se abrindo num sorriso
largo, os dentes brancos à mostra.
Alice, com mil coisas terríveis para dizer a respeito do pai,
tratou de reprimi-las, porque amava Jim, amava seu
desamparo, sua vulnerabilidade e a participação que ela tinha
em aliviar suas mágoas, porque sabia que aquele homem ou
rapaz — ele tinha vinte e dois anos — era realmente doce,
tinha gentileza e ternura; e sabia também que um período de
felicidade, de sucesso, o transformaria. Podia imaginar como
ele seria se ganhasse dinheiro, assumisse o controle de sua
vida. Podia vê-lo nitidamente: Jim como era agora, mas
transbordando de confiança e novas habilidades. Por isso,
não disse mais nada sobre seu pai de merda, mas apenas
escutou, partilhando o que sabia ser um momento na vida de
Jim que ele nunca mais esqueceria.
Depois, ela levou-o para jantar fora, em comemoração;
Philip e Pat acompanharam. A noite tornou-se uma daquelas
em que os participantes precisam fazer uma pausa e dizer a si
mesmos: É verdade, sou eu mesmo quem está aqui... A
felicidade sentou com eles à mesa do Seashell Fish-and-
Chips; não conseguiam parar de sorrir, Jim ria e suspirava a
todo instante. Houve um momento em que ele comentou:
— Não posso acreditar que seja de fato eu.
Os outros se entreolharam, não suportando a incapacidade
de exprimir o que sentiam por ele; mas podiam rir e — era
Pat quem sentava a seu lado — afagá-lo ou abraçá-lo. Os
demais fregueses do restaurante, que em outras ocasiões
podiam ter pensamentos rígidos sobre raça ou sobre
mulheres brancas abraçando publicamente homens negros
(ou pelo menos não com tanta desinibição), estavam
abrandados, como se podia ver por seus rostos, que também
mostravam tendências ao riso sem motivo, pela demanda da
ocasião, que era de um abandono total e espontâneo à
felicidade.
Os quatro voltaram à casa como um grupo unido e terno, Jim
como o rei, o vitorioso; não querendo que a noite se per-
desse, eles sentaram à mesa da cozinha, tendo como
sentinelas as forsítias amarelas, relutantes em se separarem.
Alice já pensava: Esta noite é de se pensar que seremos ami-
gos pelo resto da vida, que nunca poderemos fazer mal um
ao outro, mas tudo isso pode mudar de repente. Ela sabia, já
vira acontecer. Seu coração poderia se confranger, arrastá-la
para o fundo do poço, mas ela não permitiu, manteve-o
numa corrente curta e cruel, como se fosse um cachorro
perigoso.
Um cartão-postal mostrando as montanhas Wicklow foi
enviado por Jasper, com a mensagem: "Gostaria que você
estivesse aqui!" Alice conhecia exatamente o ânimo
extravagante em que ele estava, e seu rosto assumiu o sorriso
que o pensamento de Jasper tantas vezes evocava: modesto,
ansioso e admirador, como se os caprichos do gênio ficassem
para sempre além de seu alcance. Não mostrou o cartão a
ninguém, porque sabia que os outros não compreenderiam.
Descendo cedo, muito antes dos outros, ela o encontrara no
chão, junto à porta da frente.
Jim saiu para seu primeiro dia de trabalho num ânimo de
terna incredulidade, ainda incapaz de parar de sorrir.
Pat, em vez de ajudar Alice a limpar e pintar, saiu para visitar
"uma amiga" e voltou com a informação de que Bert
telefonara, transmitindo um recado. Estava tudo bem e eles
voltariam em breve.
O que eles estão fazendo para arrumar dinheiro? Foi esse o
pensamento que Alice guardou para si. E também pensou:
Quando Bert voltar, Pat não estará mais aqui. Era o que podia
perceber no rosto dela. Mas também guardou esse
pensamento para si.
Naquela noite, uma batida na porta, furtiva e apressada,
informando a Alice quem era, levou-a a encontrar Mônica
no caminho, perto do portão — não junto da porta, pois a
moça ficara com medo de que Faye pudesse abrir.
Vendo Alice, ela se adiantou rapidamente, fitando-a com
olhos sequiosos.
Faye se encontrava na cozinha com Roberta, e por isso Alice
fechou a porta, sem fazer barulho. Saiu com Mónica para a
rua e foram andando até um ponto em que as saudáveis
plantas de Joan Robbins as escondiam da vista da casa.
— Soube de alguma coisa? — indagou Mónica, já soturna e
desolada, aparentemente percebendo pelo rosto de Alice que
não havia qualquer notícia.
Ela parecia inchada e pálida. Os cabelos estavam
desgrenhados e gordurosos. Exalava um cheiro de derrota
tão intenso que Alice teve de fazer um esforço para suportar.
— Não dá para esperar nada da prefeitura. — Percebendo um
desdém ou rosnado de Eu já sabia!, Alice acrescentou: —
Mas tive outra idéia.
Pediu que Mónica a esperasse ali, voltou furtivamente para a
casa como se fosse culpada de alguma coisa, tornou a sair
com a carta que escrevera para a mãe. Mônica se afastara
pela metade do caminho para a rua principal, talvez
esperando que Alice não retornasse.
— Pensou que eu não ia voltar? Se está sempre esperando o
pior, então é isso que vai ter.
Um sorriso fraco, constrangido.
— Leve esta carta ao endereço no envelope. E vá com o
bebê.
— Mas já é muito tarde. Deus sabe como é difícil para ele
dormir naquele lugar, e está dormindo agora.
— Vá amanhã. E a casa de minha mãe. Ela gosta de bebês. E
gosta de cuidar das pessoas.
A dúvida no rosto de Mónica não diminuiu de forma alguma
a confiança absoluta que Alice sentia. Olhe só o que conse-
guira com Jim! Estava numa maré de competência e sorte,
não podia cometer erros. Tinha certeza de que a mãe seria
boa para com a pobre Mônica. E acrescentou, incisiva:
— Não se preocupe, Mónica. E, afinal de contas, vale a pena
tentar, não é?
Olhando desconfiada para o envelope, Mónica encaminhou-
se para o ponto de ônibus, enquanto Alice ia se juntar aos
outros à mesa da cozinha. Ela preparara um guisado ou sopa
grossa, sua especialidade, desenvolvida até a perfeição em
anos de vida comunitária. Quantas pessoas já haviam
gracejado que Alice podia alimentar multidões com aquele
prato! Como os pães e os dois peixes da Bíblia.
Quantas pessoas já haviam entrado naquela casa ocupada ou
em outra e indagado: "Restou um pouco de sua sopa, Alice?",
sentando para jogar pedaços de pão dentro e depois
estendendo os pratos para comer mais. Não havia
deficiências dietéticas nas pessoas que se alimentavam com
sua sopa! E nos tempos em que havia bem pouco dinheiro,
fora o que os mantivera sobrevivendo, a Jasper e a ela, por
meses a fio.
Alice instalou-se em seu lugar e disse aos rostos inquisitivos,
prontos para qualquer emergência:
— Não era nada demais. Está tudo bem.
Roberta e Faye, Mary e Reggie, Philip e Jim, Pat e Alice
ficaram sentados ali noite afora, compelidos a serem como
uma família pela magia daquela sopa, o vinho tinto com que
Reggie contribuíra e o pão excelente, saudável, de trigo
integral, assim como o frívolo pão branco que Faye exigira.
Foi outra noite de prazer, e Jim tinha muitas histórias para
contar sobre o pai de Alice e os outros que trabalhavam com
ele, doze ou mais, como ela era afortunada por ter um pai
assim — enquanto ela se limitava a sorrir e mantinha a
língua sob controle.
Na manhã seguinte, ela estava sozinha na casa quando houve
um tumulto de batidas violentas na porta, uma voz gritando:
— Saia daqui! Quero falar com você!
Alice foi ao encontro de Mónica, que estava transformada
pela fúria, disposta a matar. A criança no carrinho, uma
coisinha miserável e feia, choramingava sem parar.
— Por que fez isso? Por que me mandou até lá? O que eu fiz
a você?
E Mônica começou a chutar as pernas de Alice, esmurrar
seus braços.
— Qual é o problema? O que aconteceu? Ela não a aceitou?
— Não havia ninguém! — berrou Mónica. — Por que me
mandou lá?
Ela deve ter saído para fazer compras. Mas vai voltar.
Mónica parou de gritar, parou de agredi-la com os braços e
pernas. Olhou consternada para Alice e disse:
— A casa está vazia. Ninguém mora ali. E tem uma placa de
"Vende-se".
— Você foi à casa errada — sugeriu Alice, vagamente.
Alguma coisa aflorava em sua mente, um pensamento, uma
lembrança: caixas na mesa da cozinha, cheias de louça
embrulhada em jornal. Ela olhou para Mónica e acrescentou,
agora também pálida e ofegante:
— Há um engano. Alguma coisa está errada.
— Você é que está errada — disse Mónica, com uma risada
brusca e repulsiva. Ainda olhava fixamente para Alice, como
se incapaz de acreditar no que via. — Por que fez isso
comigo? Para quê? Imagino que se divertiu com essa
brincadeira cruel. Você é a própria essência do mal, uma
louca nessa casa.
Explodindo em gemidos, ela saiu correndo, empurrando e
sacudindo o carrinho, a tal ponto que a criança desatou a
chorar. Seguiram para o ponto de ônibus, fazendo o maior
barulho, deixando Alice na porta, atordoada e olhando sem
ver para a carta que escrevera à mãe e que Mónica metera
em sua mão.
"Querida mamãe,
Esta é a Mónica. Ela vive com seu bebê num daqueles hotéis
horríveis que você já deve conhecer. E se não conhece,
deveria. Por que não a aceita em sua casa? E o mínimo que
pode fazer. Tem três quartos vazios, agora. Mónica e o bebê
vivem num quarto nojento, sem um lugar onde ela possa
cozinhar ou fazer qualquer outra coisa.
Sua filha, Alice.
P. S.: E há também um marido."
Ela entrou e sentou no último degrau da escada. Ali ficou
por um longo tempo, a mente vazia. Depois, iniciou um
movimento curioso, esfregando a mão sobre o rosto, como
se sentindo ou querendo alguma coisa. Era um movimento
vigoroso, arrastando a carne para um lado ou outro, e
prolongou-se por uns dez minutos. Uma tarefa que tinha de
realizar, uma necessidade; um observador poderia pensar
que ela recebera ordem de fazer isso, sentar naquele degrau
com os dedos empurrando a carne por todo o rosto.
Depois, muito metódica, Alice pegou a bolsa e encaminhou-
se à estação do metrô. Foi até a casa da mãe e parou, olhando
para a placa de "Vende-se". Era como se alguma coisa tivesse
sugado os móveis, mas deixado intacto o espírito da casa. O
fogão continuava na cozinha, embora a geladeira tivesse
desaparecido. As cortinas continuavam penduradas na
janela, aconchegantes. Parecia que se ela virasse a cabeça
poderia reaparecer a mesa a que tantas vezes sentara, em que
servira sopa à mãe e aos convidados da mãe. O resto da casa
se encontrava na mesma situação. Nos quartos estavam as
cortinas que ela conhecera por toda a sua vida, e os carpetes
permaneciam no chão, mas camas e armários haviam
sumido. Alice foi para o seu quarto e agachou-se no canto
em que ficava a cama branca e estreita onde dormira desde
os dez anos de idade. Na janela estava o pavão vermelho e
azul que ela desenhara numa tarde de chuva, quando o
jardim se encontrava quase escondido pela neblina cinzenta.
Um calendário de 1980 estava pendurado na parede; ela o
guardara porque gostava da ilustração: Bar no Folies-Bergère,
de Manet. Identificava-se com a garota que ali estava,
cercada por garrafas, tangerinas, espelhos, o balcão, um
paredão de pessoas com rostos horríveis.
Havia sol no jardim e gatos num gramado que precisava ser
aparado.
Alice desceu como uma sonâmbula. Depois, num frenesi,
despertada, furiosa, traída, arrancou as cortinas de um
cômodo após outro, enrolou-as, saiu cambaleando da casa,
esquecendo de trancar a porta, mal conseguindo andar com
a carga. Viu uma mulher olhando de uma janela e pensou:
Qual é o problema? Elas são minhas, não são? Conseguiu
chegar à esquina, sempre cambaleando. Fez sinal para um
táxi, voltou à casa, mandou que o motorista esperasse,
enquanto entrava para buscar as cortinas que ainda restavam.
Seguiu para o número 43, onde passou a tarde inteira
pendurando cortinas onde antes não existia nenhuma ou
substituindo cortinas que não lhe despertavam sentimento
algum. De qualquer forma, aquelas cortinas eram mil vezes
melhores do que as trazidas dos depósitos de refugos: de
linho genuíno, seda ou veludo grosso, forradas e com
entretela, com franjas e borlas.
Como a mãe tivera coragem de abrir mão daquelas cortinas
sem ao menos consultá-la?
Quando foi para a cozinha, Philip estava lá. Alice
compreendeu no mesmo instante, por sua atitude, que ele
tinha alguma coisa a dizer.
Ele imprimira um volante, que distribuiria em hotéis,
restaurantes, lojas, anunciando sua firma: "Philip Fowler,
construtor e decorador"; precisava arrumar trabalho de
verdade em breve; achava que já contribuíra com mais do
que sua parte para aquela casa, que agora se encontrava em
condições de funcionamento. Se "eles" quisessem que Philip
fizesse mais, então teriam de pagar; claro que não aos preços
normais, mas pelo menos o suficiente para que valesse a
pena.
O que ainda precisava ser feito ali era trocar as calhas.
Também uma parte do cano de escoamento exterior (ele
aconselhou que isso devia ser feito em breve, porque a
parede estava bastante encharcada e acabaria se esfarelando).
A caixa-d'água no sótão estava quase que completamente
enferrujada, em sua opinião podia arrebentar a qualquer
momento, inundando a casa. Os peitoris das janelas no
último andar estavam apodrecidos, deixando a chuva entrar.
E ainda havia o problema das duas vigas podres no sótão.
Ele apresentou a Alice uma lista dessas necessidades, em
ordem de urgência, a caixa-d'água em primeiro lugar.
Dinheiro. Ela teria de arrumar algum.
Alice permaneceu sentada, sozinha, por um longo tempo,
olhando para as forsítias. Estavam murchando. Pétalas
amarelas haviam caído no chão. Saiu, cortou mais alguns
ramos, jogou fora os secos e ficou sentada durante a tarde
inteira, pensando.
Onde estava sua mãe, para começar? Imaginava que podia
escapar de Alice desse jeito? Estaria louca? Devia estar, sem
avisar a Alice e Jasper... Nesse ponto, em algum lugar no
fundo de sua mente, um pensamento começou a vibrar e
incomodar, qualquer coisa que a mãe dissera. Se tal
acontecera, não fora de uma maneira que Alice pudesse
registrar.
Conseguiria arrancar da mãe algum dinheiro emprestado?
Não, se ela acabara de se mudar. Com todas as despesas
inevitáveis. Além disso, a mãe provavelmente ainda não
superara a raiva; precisava de tempo para esfriar.
E Theresa e Anthony?
Alice pensou sobre essa possibilidade por muito tempo.
Theresa poderia lhe dar outras cinqüenta libras, mas isso não
seria suficiente. De que adiantariam apenas cinqüenta libras?
Recebera as quarenta e tantas libras da previdência naquela
semana, que se derreteram em coisas de que Philip
precisava. Pensou que se fosse lá enquanto a empregada
estivesse trabalhando, numa ocasião em que Theresa e
Anthony se encontrassem fora, no trabalho, poderia pegar
os netsukes. Se fosse rápida e eficiente, a empregada não
notaria. Mas o pensamento não persistiu; foi eliminado pela
afeição. Theresa sempre fora boa para ela, não podia fazer
isso agora. Anthony era diferente. Se fosse apenas
Anthony... ela se apropriaria de qualquer coisa que perten-
cesse a ele!
Zoé Devlin? Por algum motivo, Alice não foi capaz de se
aprofundar nessa possibilidade. Sentia-se repugnada, como se
Zoé tivesse brigado violentamente com ela também, não
apenas com a mãe.
Não poderia escolher uma casa conveniente e roubá-la? Não
era desprovida de talentos nessa área. Sentia-se confiante de
que teria sucesso.
Mas tornar-se uma ladra, uma ladra de verdade — seria um
passo além do que ela era. Como poderia se considerar uma
revolucionária, uma pessoa séria, se fosse uma ladra? Além
do mais, seria prejudicial à Causa, se fosse apanhada. Não. E
sempre fora honesta, nunca roubara coisa alguma, nem
mesmo quando era criança. Nunca passara por aquela fase de
tirar coisas da bolsa da mãe ou dos bolsos do pai, como
acontecia com algumas crianças. Nunca.
Pôde se imaginar a escolher uma casa propícia, espreitar a
saída dos moradores, entrar, apoderar-se de coisas valiosas —
afinal, sabia o que era valioso e o que não era. Não fora uma
dessas crianças pobres que entravam por uma janela aberta
ou uma porta trancada de maneira imperfeita e depois não
sabiam mais do que roubar uma televisão ou um vídeo. Mas
não pôde se imaginar com qualquer coisa que fosse, vaso,
tapete ou colar, tentando vendê-lo.
Não, essa possibilidade estava excluída.
Precisava conseguir dinheiro. Todas aquelas pessoas toman-
do e tomando... embora Jim tivesse anunciado orgulhoso, na
noite anterior, que agora contribuiria de forma apropriada;
pagaria sua estada, Alice não precisava se preocupar com
isso.
Ela só podia pensar no pai. Não a casa: era muito cedo para
tentar isso de novo. A firma. Fechando os olhos, Alice
visualizou o interior do prédio que alojava a C. Mellings,
Printers and Stationers. O cofre no escritório do pai tinha
cheques, mas não era isso o que ela queria. Na pequena
papelaria, que o pai começara em pequena escala, como uma
experiência, tornando-se tão bem-sucedida que às vezes ele
gracejava que financiava tudo, havia um cofre cheio de
dinheiro. Mas apenas durante o dia, quando a loja estava
cheia de gente. Todas as noites o dinheiro era levado para o
outro cofre, lá em cima. E na manhã seguinte era levado para
o banco. Como podia pegar esse dinheiro? Não conhecia a
combinação e não tinha a menor intenção de virar uma
profissional, com explosivos ou qualquer outra coisa que eles
usassem.
Nada disso. Precisava de outra coisa; precisava de ousadia.
Era sexta-feira. As vendas lá eram melhores na sexta-feira do
que em qualquer outro dia. A loja fechava às cinco horas, e o
dinheiro era levado direto para cima, a fim de ser contado. E
permanecia no cofre até a manhã de segunda-feira. As
sextas- feiras, o pai muitas vezes ia mais cedo para casa,
porque ele, Jane e as crianças gostavam de passar os fins de
semana em Kent, onde tinham amigos. Um típico arranjo
burguês: Cedric e Jane ficavam com os Boults; os Boults
usavam a casa de Cedric e Jane em suas viagens a Londres.
Nada disso jamais acontecera enquanto Cedric vivera com
Dorothy! Não poderia. A mãe estava impregnada da noção
do meu e seu: não se podia imaginá-la partilhando sua casa
com outra família. Por algum motivo, os fins de semana no
campo e as visitas dos Boults a Londres deixavam Alice
fervendo de raiva.
Mas, com um pouco de sorte, o pai iria embora às três horas
da tarde.
Para chegar à gráfica, ela teve de saltar duas estações do me-
trô depois daquela em que ficavam a casa do pai e a da mãe
— ou melhor, a antiga casa da mãe. Foi andando, fazendo
um esforço deliberado para não pensar muito, entrou na loja,
onde foi devidamente cumprimentada, a filha do patrão.
Atravessou a loja, dizendo que queria falar com o pai, subiu
para o escritório. Os empregados arrumavam suas mesas para
o fim de semana. Ela cumprimentou-os e foi para a sala do
pai, onde sua secretária, Jill, estava sentada na cadeira dele,
contando o dinheiro da loja.
— Oh, ele já saiu — murmurou Alice, sentando-se.
Jill, contando, folheou algumas notas de dez libras, sorriu,
acenou com a cabeça, a boca se mexendo para indicar que
não podia parar. Alice também sorriu e acenou com a
cabeça, levantou-se e foi até a janela, olhou para fora.
Indolente e privilegiada, filha do sistema, ela apoiou-se no
peitoril, observando o movimento na rua, escutando os sons
de papel deslizando sobre papel.
Deveria dizer que o pai combinara lhe dar algum dinheiro?
Se dissesse, Jill não poderia recuar; e na segunda-feira, ao ser
informado, o pai não a denunciaria, não diria: Minha filha é
uma ladra. Alice já ia falar: Ele disse que eu poderia ficar com
quinhentas libras. Mas foi então que aconteceu, a sorte
incrível e milagrosa que agora sempre esperava, já que
ocorria com tanta facilidade e freqüência: o telefone tocou
na sala ao lado. Jill continuou a contar. O telefone tocava e
tocava.
— Mas que droga! — murmurou Jill, delicada, pois era o tipo
de boa moça que o pai sempre escolhia para secretária.
Ela correu para atender. Alice viu em cima da mesa um saco
de lona branca em que já haviam sido guardadas pilhas de
notas. Enfiou a mão, tirou um maço grosso e depois outro,
meteu dentro da túnica e voltou a se debruçar na janela, de
costas para a sala. Jill voltou, informando que era a senhora
Mellings, querendo falar com seu pai. Alice levou alguns
momentos para compreender que devia ser sua mãe, não a
nova senhora Mellings, que naquele momento já devia estar
a caminho dos prazeres de um fim de semana em Kent.
Não queria perguntar: "Sabe qual é o seu endereço?", pois
assim se trairia; mas indagou, em tom de indiferença:
— De onde ela estava ligando?
Mais uma vez, Jill demorou a responder, porque continuava
a contar o dinheiro.
— Acho que de casa.
Ela não estava notando coisa alguma. Alice esperou até Jill se
levantar, com três sacos de lona branca, notas, cheques e
moedas separados, indo guardar no cofre.
— Bom, vou embora.
— Avisarei a seu pai que esteve aqui.
Ao chegar em casa, Alice contou o dinheiro. Mil libras.
Pensou no mesmo instante: Eu poderia ter tirado duas ou
três mil... seria a mesma coisa. De qualquer forma, quando
descobrirem que o dinheiro desapareceu, quando se
lembrarem de que estive lá, saberão que fui eu. Perdida por
um, perdida por mil.
Teria de se arrumar com aquela quantia.
Pensou por um momento no lugar em que poderia guardar o
dinheiro. Não contaria a Jasper. Acabou abrindo seu saco de
dormir, meteu os dois maços lá dentro, refletiu que só por
muito azar alguém tocaria ali, descobriria o que ela tinha.
Noite de sexta-feira. Jasper e Bert estavam ausentes há dez
dias. Haviam dito que voltariam naquele fim de semana.
Alice pensou em Pat. Onde estava ela? Desceu e encontrou-
a na cozinha, de túnica e echarpe, com a mochila de lona
vermelha. Ela escrevia um bilhete e parou quando viu Alice,
com um sorriso que era ao mesmo tempo severo e frágil —
revelando a Alice que Pat não gostava de despedidas e se
apressaria agora.
— Estou indo embora, Alice — murmurou ela, mal
permitindo que seus olhos se encontrassem.
— Acabou com Bert?
As lágrimas afloraram aos olhos de Pat. Ela virou a cabeça.
— Em algum momento eu teria de romper. Chegou esse
momento.
— Uma pessoa de fora não pode fazer comentários.
O coração de Alice estava contraído pela perda, o que a
surpreendeu. Parecia que se afeiçoara a Pat.
— Tenho de ir, Alice. Por favor, compreenda. Não é por
causa de Bert. Continuo a amá-lo. E a política.
— Está querendo dizer que não concorda com a nossa linha
em relação ao IRA?
— Não é isso. Não tenho qualquer confiança em Bert.
Pelo menos ela não acrescentou "e em Jasper".
— Aqui está meu endereço, Alice. Não vou desaparecer. Não
quero fazer rompimentos dramáticos, nada disso. Estarei
trabalhando à minha maneira... no mesmo tipo de coisa, só
que em algo que considero mais... sério.
— Sério?
— Isso mesmo, sério. Não vejo nada de sério nessa viagem à
Irlanda, baseada apenas na palavra de alguém chamado Jack.
— Ela parecia cansada e repugnada, a palavra "Jack" foi
pronunciada desdenhosamente. — É tudo muito amador. E
não posso mais aceitar.
— Eu já imaginava que você iria embora.
Pat desviou a cabeça abruptamente. Porque estava chorando.
— Ficamos juntos por tanto tempo...
A voz se tornara rouca e um pouco engrolada.
— Não importa — murmurou Alice, tristemente.
— Eu me importo. E também me importo por deixar você,
Alice.
As duas mulheres se abraçaram, chorando.
— Voltarei — prometeu Pat. — Falamos sobre um congresso
da UCC. Voltarei para ele. E por tudo o que sei, não
suportarei me separar de Bert. Já tentei uma vez, antes.
Ela saiu, correndo, a fim de deixar as emoções para trás.
Os dois homens voltaram na noite de domingo. Alice
percebeu no mesmo instante que haviam fracassado. Jasper
estava apático, e Bert soturno, antes mesmo de ler a carta
que Pat lhe deixara.
Ela fez jantar para Jasper, que logo depois subiu para seu
quarto de dormir, no último andar. Bert disse que estava
cansado, mas Alice seguiu-o e encontrou-o de pé no quarto
que antes partilhava com Pat, sozinho. Ela entrou e disse,
embora fosse evidente que Bert não estava pensando na
Irlanda:
— Eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas. Jasper costuma
ficar esquisito quando sofre um desapontamento.
— É o que também me acontece. — Mas Bert abrandou e
ficou parado, as mãos pendendo. — Não conseguimos nada.
— Sei disso. Mas por quê?
Alice pensava que aquela rejeição fazia emergir o melhor em
Bert. Sem a afabilidade fácil, sem o brilho constante dos
dentes brancos entre os lábios vermelhos e a barba preta, ele
parecia sóbrio e responsável. E sacudindo a cabeça,
murmurou:
— Como vou saber? Simplesmente nos disseram não.
Ela não sairia enquanto Bert não contasse tudo. E foi o que
ele acabou fazendo, Alice escutando com toda a atenção, a
fim de projetar uma imagem em que pudesse confiar.
"Jack", em Dublin, estivera em bares e pontos de encontro,
fizera indagações, reunira-se com um homem e outro, sem-
pre informando a Bert e Jasper que tudo corria da melhor
forma possível. Depois, Bert e Jasper — mas não Jack, um
fato que para Alice devia dar o que pensar — encontraram-
se com um certo camarada, numa certa casa secreta, num
subúrbio. Ali, foram interrogados por um longo tempo, de
uma maneira que — Alice podia perceber pela expressão de
Bert, enquanto relatava a história — não apenas
impressionara os dois, mas também os deixara mais
moderados. Assustara-os, concluiu Alice, satisfeita por isso,
pois achava que Jasper era às vezes um pouco negligente
com as coisas.
Quase ao final desse encontro ou entrevista, um segundo
homem aparecera, sentara sem dizer nada, limitando-se a
escutar. Bert comentou, com uma risada curta e um balanço
de cabeça:
— Esse segundo cara parecia não ser de brincadeira. Eu não
gostaria de enfrentá-lo.
O homem que conduzira a conversa ao final dissera, falando
em nome do IRA, que se sentiam agradecidos pelo apoio
oferecido, mas eles — Bert e Jasper — deviam compreender
que o IRA não operava como uma organização política
comum, e o recrutamento era efetuado com extremo
cuidado, atendendo a necessidades específicas.
Jasper interrompera para declarar que é claro que
compreendia:
— Todos compreendem.
O camarada repetira então, palavra por palavra, o que acabara
de dizer. E acrescentara que era útil para a causa republicana
ter aliados e partidários no próprio país opressor e que
Jasper, Bert "e seus amigos" poderiam desempenhar um
papel importante, mudando a opinião pública, fornecendo
informações. Poderiam ser abastecidos, por exemplo, com
folhetos.
Jasper aparentemente se tornara excitado e fizera um longo
discurso sobre o imperialismo fascista. Os dois homens, o
que falara e o que se mantivera em silêncio, escutaram sem
qualquer comentário e sem expressão.
A seguir, o homem silencioso simplesmente deixara a sala,
com um sorriso e um aceno de cabeça. O sorriso, ao que
parecia, impressionara Bert e Jasper.
— Ele sorriu, ao final — repetiu Bert, com o pesar que
impregnara todo o relato.
Podia-se até dizer que Bert estava embaraçado. Por si mesmo
e por Jasper? Por Jasper? Alice esperava que não fosse por
causa de Jasper, embora, obviamente, fazer o discurso
emocional não tivesse sido uma boa idéia.
Alice gostaria de continuar a conversa, mas Bert disse:
— Já agüentei demais por hoje. Esse negócio com Pat...
— Lamento muito — murmurou Alice. — E sei que ela
também lamenta.
— Obrigado — disse Jasper, secamente. — Muito obrigado.
E começou a tirar a túnica, como se Alice já tivesse se
retirado.
Ela resolveu dormir na sala de estar outra vez, porque
escolher um quarto agora seria a separação final. Jim
apareceu no momento em que ela se acomodava. Ele passara
o fim de semana com amigos, exultante. Eram amigos que
não via há muito tempo, visitados agora porque havia algo
para comemorar. Alice percebeu que, depois de apenas três
dias, Jim já parecia alerta e competente; ele se tornara
embotado e lerdo com o desemprego. E claro que todos
sabiam que isso acontecia, mas testemunhar os resultados tão
depressa...
Satisfeita com Jim, apreensiva por Jasper, Alice ficou acor-
dada por um longo tempo, na sala silenciosa. Não se podia
ouvir o tráfego da rua principal naquele lado da casa.
Sabia que nem Jasper nem Bert acordariam cedo, mas fez um
esforço para se levantar a tempo de fazer companhia a Jim
durante o chá com flocos de milho. Pensou que era um
pouco parecida com a mãe, cuidando para que um filho
comesse antes de sair para a escola. E não teve escrúpulos
em dizer:
— Tem certeza de que já comeu o suficiente? Não há cantina
na gráfica. Seria melhor levar alguns sanduíches.
E Jim, como um filho com uma mãe desvelada, respondeu:
— Não se preocupe, Alice. Estou muito bem.
Depois Philip apareceu e foi discutido o problema da nova
caixa-d'água. Ou melhor, uma boa caixa-d'água de segunda
mão. Alice tinha alguma idéia de quanto custaria uma nova?
Não, mas podia imaginar! Philip iria naquela manhã à sua
fonte para tais coisas; se houvesse alguma disponível, ele
gostaria de comprar; nesse caso, teria dinheiro para isso?
Alice autorizou-o a comprar a caixa-d'água, o pedaço do
cano de escoamento e a calha. Entrando e saindo
rapidamente da sala de estar, ela pegou trezentas libras no
saco de dormir, não querendo que Philip soubesse quanto
havia ali — mas apenas porque não queria que ninguém
soubesse. Um pensamento desconcertante e até mesmo
vergonhoso insinuara-se em sua mente. Depois de adquiridas
as necessidades daquela lista final, ela deveria guardar algum
dinheiro numa poupança. Para si mesma. Um dinheiro de
que ninguém teria conhecimento. Não era certo dispor de
alguma reserva? Isso mesmo, abriria uma poupança e não
contaria a Jasper.
Philip e Jim saíram. Roberta e Faye deviam estar dormindo
ou na comuna das mulheres. Mary e Reggie haviam passado
fora um fim de semana prolongado e não voltariam antes do
anoitecer. Bert e Jasper dormiam ou se mantinham em
silêncio nos seus respectivos quartos. Alice sentou na
extremidade da mesa, na cozinha em sossego. O gato,
ausente há dias, reapareceu no peitoril da janela, recebeu
permissão para entrar, aceitou flocos de milho e leite,
lambeu todo o prato e depois foi embora.
Alice sentia-se pesarosa. Aquela história do IRA fora o ím-
peto de Jasper por meses. Muito antes da saída dramática da
casa de sua mãe já era o IRA... o IRA... o dia inteiro. A
princípio, ela não levara a sério. Mas depois tivera de fazê-lo.
Agora, tudo isso ruíra. Distribuir panfletos não poderia
satisfazer Jasper.
Nem Bert, a quem ela vira no dia anterior como um
camarada potencialmente responsável. Nunca passara pela
cabeça de Jas- per ou de Bert a possibilidade de serem
recusados. Por não serem considerados bastante bons. O
IRA não levara Jasper e Bert a sério? Obrigando-se a analisar
esse pensamento, devagar, de modo meticuloso, Alice
revirou-o na mente, reconstituindo a cena, vendo com
nitidez Jasper e Bert com os dois homens do IRA. Não pôde
deixar de admitir que Bert e Jasper haviam causado uma
péssima impressão. E podia acontecer! Com Jasper, acontecia
sempre.
Outra possibilidade era a de Jasper, Bert e os outros —
inclusive ela própria — serem testados. Isso mesmo, era bem
possível. Alguém os vigiaria, sem que o soubessem. (O
camarada Andrew surgiu vigorosamente diante de Alice a
esta altura, e ela sorriu à imagem.) Mas certamente Jasper e
Bert não haviam pensado nisso; e os camaradas irlandeses
não lhes deram nada de específico para fazer.
Isso significava — Alice tinha de enfrentar o inevitável —
alguns dias terríveis com Jasper. Quase não o veria. Ele sairia
de casa, talvez voltando à noite para comer alguma coisa e
saindo outra vez. Certa ocasião, num momento de crise,
Jasper assumira essa atitude por várias semanas, mais de um
mês; ela vivera no terror da polícia batendo à porta e a
notícia sobre Jasper temida desde que o conhecera. Quando
ele estava daquele jeito, não era muito cuidadoso.
A única esperança era seu vínculo com Bert. Cada vez mais
firme. Bert podia salvar a situação sem sequer saber que
havia uma crise.
Duas horas se passaram, Alice cada vez mais deprimida.
Philip voltou, satisfeito, anunciando que seu amigo no
depósito de refugos, com contatos em todas as demolições,
dispunha de tudo o que a 43 precisava; o material se
encontrava num furgão lá fora. Mas gastara as trezentas libras
e precisava de dinheiro para pagar o carreto. No momento
em que ele explicava isso, atravessando o vestíbulo junto
com Alice, Jasper apareceu, descendo a escada quase
correndo. Alice ficou imóvel, contemplando-o, o coração
disparando. Sempre esquecia, quando passava algum tempo
sem vê-lo, como Jasper a afetava. A sua leveza — cada passo
dava a impressão de que ele poderia decolar! — e a maneira
como parou ali, ao pé da escada, esguio e empertigado: era
de pensar que ele era de outro mundo, tão pálido e gracioso,
os cabelos curtos brilhando... Mas Jasper estava com a cara
amarrada. Sob seu olhar, Alice teve de ir à sala de estar, onde
dormira, enquanto ele sabia por que ela o fazia e se ajoelhava
junto ao saco de dormir, que mal ficava fora de seu campo
de visão. Ela se arriscava à sua entrada na sala; e tinha aquele
sentimento ansioso e descontrolado que era fatal com Jasper.
Ele compreenderia que ela fora pegar dinheiro. O que devia
fazer? Alice pôs o que restava de um maço e outro ainda
intacto dentro da blusa, onde ficaram visíveis. Colocou um
casaco, embora Jasper fosse perceber no mesmo instante o
motivo pelo qual o vestira, e saiu para o seu olhar frio e
furioso, que a dissecava por completo. Bert aparecera na
escada, parecendo cansado e desmoralizado. Que contraste
entre Jasper e Bert: um parecia o anjo vingador — o
pensamento aflorou compulsivo à mente de Alice —, o
outro se mostrava abatido e debilitado. Philip pediu
jovialmente aos dois homens:
— Podem me dar uma ajuda?
Jasper não se mexeu. Bert não se mexeu. Envergonhada por
eles, Alice murmurou:
— Eu ajudo.
Ela saiu com Philip. O motorista, Philip e ela tiveram muita
dificuldade com a caixa-d'água, que era pesada e grande, mas
conseguiram tirá-la do furgão e levá-la para a casa. O
motorista declarou que sua responsabilidade acabava ali.
Philip foi buscar a calha e o pedaço do cano de escoamento e
tornou a entrar. Bert e Jasper estavam na cozinha, a porta
fechada. Alice entrou assim mesmo e disse:
— Mas que merda! Será que vocês não podem nos ajudar a
levar aquelas coisas lá para cima?
Os dois comunicavam desaprovação e ira por trás daquela
porta fechada. Agora, Jasper disse:
— Alice, você ficou louca ou o quê? O que pensa que está
fazendo? Para que todo esse lixo?
Ela se obrigou a enfrentá-lo.
— A caixa-d'água está podre, completamente enferrujada.
Quer só Deus sabe quantos galões de água desabando em
cima da gente?
— Não me importo — respondeu Jasper. — Se cair, iremos
para outro lugar, como sempre fizemos.
Essa traição fria e cruel penetrou até o mais fundo de Alice,
deixando seus olhos obscurecidos. Quando se recuperou,
descobriu que agarrava a beira da mesa para manter o
equilíbrio. Fitou Jasper, ignorando Bert, que punha a chaleira
para esquentar, cortava pão.
— Você sabe que gosto de um lugar decente para morar, um
lugar agradável. E claro que sabe...
— Mas que merda! — exclamou Jasper, melodramático,
porque Alice estava destruindo a imagem que ele gostava de
apresentar a Bert. — Não vou me envolver com essa
história. E quanto está custando? Quanto gastamos desta vez?
Os olhos azuis, duros e redondos, que naquela manhã
pareciam se projetar dos lagos cremosos e rasos ao redor,
estavam repletos de ódio. Alice sabia o que podia esperar no
momento em que ficassem a sós.
Apelou para Bert:
— Ajude-nos, por favor. Philip e eu não podemos carregar
tudo sozinhos. Olhe só para Philip!
Lentamente, sem qualquer mudança na expressão, Bert pas-
sou manteiga no pão e sentou. Depois, erguendo os olhos e
vendo o rosto de Alice, ele se levantou inesperadamente, tão
ágil e transbordando de energia quanto antes estava apático
(mas era a energia de raiva), e saiu com ela para o vestíbulo,
onde Philip, frágil como uma folha, esperava junto à caixa-
d'água. Sem dizer uma só palavra, Bert inclinou-se e
levantou um lado da caixa- d'água, deixando Philip e Alice se
ajustarem da melhor forma possível. Com ela esbarrando em
toda parte, de tão furioso, os dentes brancos agora
aparecendo entre os lábios vermelhos contraídos, numa
careta de esforço, a caixa foi levada lá para cima, com muitos
danos para o corrimão. No último andar, Bert simplesmente
largou a caixa e desceu apressado. Alice e Philip ouviram a
porta da cozinha bater de novo, excluindo-os. Ela olhou para
Philip com uma expressão de desculpa. Mas ele não a fitava.
A caixa precisava ser deslocada para a extremidade do peque-
no patamar. A outra, a enferrujada, estava no sótão. Não
havia como passar aquela caixa pelo alçapão. Mistério! Como
os construtores da casa pensavam que uma nova caixa
poderia ser levada para cima, quando a caixa original,
presumivelmente instalada antes de o telhado ser concluído,
chegasse a seu fim natural? Deviam acreditar que as caixas-
d'água tinham uma vida eterna.
Mas a distância entre o lugar onde a nova caixa se encontra-
va agora, bloqueando a passagem no alto da escada, e o lugar
em que devia ficar era grande demais para que a
deslocassem.
Alice viu Philip aflito, envergonhado, vulnerável.
— Espere aqui — murmurou ela.
Alice desceu e viu Jasper saindo da sala de estar, onde
obviamente estivera procurando por seu dinheiro. Parando
no último degrau, ela disse isto, sem saber que o faria:
— Já agüentei demais, Jasper. Se você não é capaz de ajudar
numa coisa tão pequena, quando eu faço tanto, então vou
embora.
Como se não estivesse a caminho da cozinha, ele se virou
abruptamente e subiu correndo a escada. Quando Alice
chegou lá em cima, ele deslocava a caixa junto com Philip
para o lugar em que deveria ficar. Ali estava o outro Jasper,
inteligente, rápido, engenhoso. Pois Philip dissera que
tábuas, pedaços de papelão, qualquer coisa, precisavam ser
colocados por baixo da caixa para levantá-la, por causa dos
canos se projetando, e Jasper, vendo as pilhas de jornais que
haviam descido do sótão, recolheu tudo num instante e
transformou numa plataforma de quase meio metro. Alice
percebeu que, enquanto ajuntava os jornais rapidamente, ele
separava alguns, como se fossem cartas de um baralho num
jogo qualquer, com manchetes interessantes: "Os
Manifestantes de Jarrow... " "Hitler Invade... " "A Batalha de
El Alamein... "
Se os camaradas irlandeses pudessem vê-lo agora!, pensou
Alice, observando seu trabalho eficiente e rápido; e depois
como ele, Philip e ela própria levantaram a enorme caixa,
como se nada pesasse, para cima dos jornais...
Jasper não a fitara. Ela estava quase desfalecendo com a
violência de seu coração. Era perigoso demais ameaçar
Jasper. E se ele a deixasse? Oh, não, ele não a deixaria. Alice
tinha certeza absoluta. Não podia deixá-la.
Jasper desceu a escada correndo, sem um sorriso ou olhar, e
ela tornou a ficar a sós com Philip. Que estava aflito. Pela
atmosfera em que se envolvera, que Alice sabia ser veneno
puro.
E sabia também que Philip pensava: Se eu não tivesse me
esforçado tanto nesta casa, talvez fosse melhor ir embora.
Além do mais, ele estava transtornado pela partida de Pat.
Alice deixou Philip concentrado no trabalho, pensando que
dessa vez lhe dera o dinheiro para os materiais, mas não pela
mão-de-obra. Ela quase voltou para lhe entregar o dinheiro
que tinha... Desceu alguns degraus... e quase tornou a subir,
hesitou e depois — a sorte estava do seu lado — acabou
fazendo-o. Deu a Philip o que restava do pacote já usado —
não chegava a duzentas libras, é verdade, muito longe do
que deveria ser — e desceu para a cozinha, abrindo a porta
ousadamente, sem se importar que tivesse sido fechada para
excluí-la.
Bert se fora.
Jasper a esperava.
— De onde tirou aquele dinheiro?
— Não é seu dinheiro, por isso cale a boca.
— Está nos deixando enojados, Alice. Achamos que ficou
insuportável. Só se preocupa com o seu conforto.
— O que é uma pena.
Alice sentou. A luz forte da manhã, Jasper, parado à sua
frente, parecia um tanto vulgar e até mesmo feio — foi o que
pensou Alice, que há apenas poucos momentos se derretia
num êxtase familiar de admiração por ele.
Jasper olhava para sua cintura. O blusão, posto às pressas,
estava aberto. Na frente, por dentro da blusa de algodão,
aparecia a protuberância do maço de dinheiro.
Por um momento, Alice temeu que ele pudesse avançar,
agarrar seu pulso e arrancar o dinheiro. Jasper não fez isso;
apenas se aproximou da janela e ficou olhando para fora. E
declarou:
— Não precisa pensar que vou desistir, aceitar a palavra deles
como a decisão final!
Alice demorou um momento para compreender: ele estava
falando sobre os camaradas irlandeses. Ela murmurou:
— Claro que não.
Alice acreditava, com um abrandar do seu pobre coração,
que agora poderia começar a discussão objetiva e responsável
que tanto gostava de ter com Jasper. Mas a porta foi aberta e
ela se virou para deparar com Jim. Que a princípio pensou
que não era Jim. A pele marrom lustrosa estava pálida e
áspera, os olhos pareciam vidrados.
— O que aconteceu? Qual é o problema?
Ela se aproximou de Jim, que tratou de se desvencilhar.
— Fui despedido.
— Oh, não! Ele não pode ter feito isso!
A respiração de Jim era ofegante. Um som alto, angustiante.
— Disseram que roubei dinheiro.
— Oh, não! — Uma pausa e Alice repetiu, mas agora num
tom diferente: — Oh, não!
Jasper observava a cena em silêncio.
— De que adianta? — indagou Jim, aos céus, não a ela,
parecendo histriónico, mas não o sendo, pois a indagação
tinha toda a sua vida por trás. Ele olhou direito para Alice,
vendo-a. — De qualquer maneira, Alice, obrigado. Sei que
você tentou. Mas não adianta.
E saiu, a cambalear e chorar. Alice foi em seu encalço.
— Espere um pouco. Vou até lá imediatamente. Darei um
jeito. Vai ver só.
fim sacudiu a cabeça, foi para a sua sala e fechou a porta.
Alice ficou parada do lado de fora, pensando. Jasper veio na
cozinha. Exibia um sorriso de cumplicidade, até mesmo de
congratulações. Claro que ele não adivinhara toda a verdade,
pois ninguém poderia imaginar a sua sorte, fazendo com que
o telefone tocasse naquele exato momento. Mas Jasper
compreendera, sendo tão inteligente, a essência do que
acontecera.
— Vou conversar com meu pai.
— É melhor não ir com isso aí — sugeriu Jasper, acenando
com a cabeça para a sua cintura.
Ele falou suavemente, como um camarada num momento
difícil. Sem pensar, como se não houvesse mais nada que
pudesse fazer, Alice enfiou a mão por baixo da blusa. O
maço de notas ficara preso na cintura do blusão e ela ficou
puxando. Os dedos deslizaram pela pele sedosa e quente e
num relance doce e íntimo de lembrança ou advertência seu
corpo (seu corpo secreto e vivo, que ela ignorava durante
quase todo o tempo, fazendo um esforço para esquecê-lo)
adquiriu vida e falou-lhe. Os dedos comicharam com o calor
e ela ficou imóvel, parecendo perplexa ou indecisa, o maço
de notas solto na mão. Dava a impressão de que tentava se
lembrar de alguma coisa. Jasper tirou o dinheiro de sua mão
e guardou-o no bolso da túnica.
— Vou conversar com meu pai — repetiu Alice, falando bem
devagar, ainda desconcertada com a mensagem do seu eu
sepultado, que vibrava na ponta dos dedos e subia pelo
braço.
Desceu lentamente pelo caminho até o portão, saiu pela rua
principal a caminho da estação do metrô, ainda sonhando,
ainda envolta por uma teia de insinuações, lembranças,
estímulos. Levou os dedos seduzidos ao nariz e cheirou,
parecendo ainda mais perplexa e consternada. Percebeu que
parara na calçada, com as pessoas passando, o tráfego
correndo para um lado e outro — há quanto tempo estava
ali, imóvel? Não pôde deixar de olhar para a casa, refletindo
que Jasper poderia estar espionando-a. E estava mesmo.
Vislumbrou sua palidez na janela do banheiro no primeiro
andar. Mas ele desapareceu no instante seguinte.
Suas energias voltaram num ímpeto, ao pensamento de que
agora, com todo aquele dinheiro, Jasper poderia ir para
algum outro lugar: se quisesse alcançá-lo, tinha de se
apressar.
Em C. Mellings, Printers and Stationers, Alice passou direto
pela loja e subiu para a sala do pai. Ele estava sentado à sua
escrivaninha, enquanto Jill, a secretária, sentava à mesa do
outro lado. Alice parou na frente do pai e perguntou:
— Por que despediu Jim? Por que fez uma coisa dessas? Foi
uma atitude nojenta de fascista. Só porque ele é negro, mais
nada.
Ao ver a filha, Cedric Mellings ficara vermelho, depois
empalidecera. Inclinou-se para a frente, apoiado nos
antebraços, os punhos cerrados.
— O que está fazendo aqui?
— O quê? Vim porque você despediu Jim. Como pôde fazer
isso? Foi uma injustiça!
E Alice chutou a frente da mesa, com toda a força, várias
vezes.
— Dei um emprego a Jim Mackenzie porque nossa política
sempre foi a de contratar negros, indianos, qualquer um.
Sempre operamos aqui numa base de política não-racial.
Como você sabe muito bem. Mas eu já devia imaginar que
era melhor não aceitar ninguém recomendado por você.
A voz de Cedric era agora baixa e amargurada, ele parecia
estar se sentindo mal.
— Vá embora, Alice. Saia daqui. Já agüentei tudo o que podia
suportar de você.
— Vai me escutar! — gritou ela, estridente. — Jim não pegou
o dinheiro! Fui eu! Como se é capaz de tamanha estupidez?
— O último comentário foi endereçado a Jill. — Eu estive
no escritório, não estive? Você é cega, idiota ou qualquer
coisa parecida?
Jill levantou-se, papéis e canetas esferográficas caindo para
todos os lados. Ficou olhando para Alice, atordoada, tão
pálida quanto o patrão.
— Não fale assim com Jill! — interveio Cedric Mellings. —
Como se atreve a entrar aqui e... Que história é essa de que
foi você quem levou o dinheiro? Como poderia...
Nesse ponto ele pôs a cabeça nas mãos e soltou um gemido.
Jill teve uma ânsia de vômito e correu para o banheiro.
Alice sentou na cadeira à frente da mesa do pai e esperou
que ele se recuperasse.
— Você levou o dinheiro? — indagou Cedric finalmente.
— Claro que fui eu. Estive aqui, não estive? Jill não contou?
— Não me passou pela cabeça. Ela também não pensou nessa
possibilidade. Por que deveria?
Ele se recostou agora, os olhos fechados, fazendo um esforço
para se controlar. As mãos tremiam, em cima da mesa.
Vendo isso, Alice experimentou um ímpeto de triunfo e
depois de compaixão. Sentia-se contente pela oportunidade
de observar o pai sem que ele percebesse.
Sempre pensara no pai como um homem atraente, até mes-
mo bonito, embora soubesse que nem todos pensavam
assim. A mãe, por exemplo, tinha o hábito de chamá-lo de
"Medonho", nos momentos críticos.
Cedric era compacto, com tendência para engordar, a pele
bem clara, um pouco sardento, cabelos louros sempre curtos,
que pareciam avermelhados sob algumas luzes. Seus olhos
eram azuis. Alice sentia um orgulho sincero de sua história,
de sua carreira.
Cedric Mellings era o caçula de vários filhos. A família vinha
das proximidades de Newcastle. Havia ligações escocesas. O
avô de Cedric fora clérigo. O pai era jornalista e longe de ser
rico. Todos os filhos tiveram de se esforçar ao máximo para
obter instrução e se lançar na vida. Cedric era jovem demais
para a guerra e por isso nunca perdoara o destino.
Ao contrário dos irmãos, não parecia capaz de se arrumar na
vida; desperdiçara seu tempo na universidade, casara muito
cedo, viera para Londres, tivera diversos empregos;
escrevera um livro, que fora notado mas não dera dinheiro,
depois outro, um relato animado e irreverente sobre a
carreira de um jornalista na província. Era baseado na vida
do pai e fizera bastante sucesso para lhe render cinco mil
libras, um bocado de dinheiro em meados dos anos 50.
Compreendera — com os conselhos e apoio de Dorothy —
que era uma oportunidade que talvez não se repetisse.
Comprara uma gráfica que fora à falência e logo, graças a
seus contatos no Partido Trabalhista e todos os tipos de
grupos políticos de esquerda, tinha um movimento
suficiente para sustentá-lo, com a produção de panfletos,
pequenas brochuras e volantes, seguindo-se dois pequenos
jornais. A firma prosperara com os bons tempos dos anos 60,
e Cedric iniciara a seção de papelaria como uma especulação,
mas dera certo imediatamente. Na maior felicidade, a família
deixara o apartamento pequeno e miserável em Stockwell e
comprara uma casa confortável em Hampstead. Bons
tempos! Era o que todos lembravam dos anos 60, uma época
áurea, em que se conseguia tudo com facilidade. Tempos de
amizades fáceis, empregos, oportunidades, dinheiro; as
pessoas sempre entrando e saindo, longas refeições de
família à mesa grande na cozinha enorme, vitórias na escola,
festas, férias por toda a Europa.
Cedric Mellings tivera uma ou duas ligações extraconjugais, e
o mesmo acontecera com Dorothy Mellings. Choques,
tempestades, acessos de raiva, acusações; longas discussões
familiares, as crianças envolvidas, coisas remendadas e
abafadas, a família unida. Mas, a essa altura, as crianças
estavam crescendo, crescendo, saindo de casa — Alice para
o norte, de volta ao território do pai, embora a princípio não
percebesse isso.
Cedric Mellings e Dorothy Mellings ficaram sozinhos na
enorme casa. Que não deixara de ficar repleta de visitas,
entrando e saindo, comendo e bebendo. Cedric apaixonara-
se por Jane. E fora viver com ela. Dorothy continuara na
casa enorme.
Tudo acabara. Explodiram e desapareceram os bons tempos,
os empregos fáceis, parecia que até as conquistas, os amigos,
afeição, dinheiro.
Cedric e Dorothy pareciam um centro, talvez mesmo
essencial; muitas pessoas famosas freqüentavam a casa, com
suas conversas sobre política, livros, causas, marchas a favor
disso e daquilo, manifestações. Parecia haver um brilho ou
lustro em Cedric e Dorothy, uma aura ou atmosfera de
sucesso, de confiança em torno deles. Mas depois... o que
acontecera com tudo aquilo? Cedric com Jane era muito
diferente. Por um lado, a casa era muito menor, porque, no
final das contas, C. Mellings Printers and Stationers tinha de
sustentar duas famílias; a casa de Cedric e Jane não possuía
aquele clima esquivo mas inequívoco de descontração, de
sucesso. Dorothy, sozinha na casa grande por algum tempo e
depois com Alice e Jasper, parecia ter cada vez menos
amigos. As pessoas que apareciam para uma refeição com
Dorothy Mellings — enquanto Alice lá estava, com Jasper —
tendiam a vir sozinhas ou aos pares, a maioria mulheres,
talvez precisando dos conselhos de Dorothy ou mesmo de
tomar dinheiro emprestado; amigas divorciadas — muitos
dos casais que freqüentavam os Mellings nos bons tempos
haviam se separado. Óu era um casal que ficava relembrando
os bons tempos do passado, como tudo estava diferente
agora. Se Dorothy oferecia uma festa, era sempre pequena,
um grande esforço. Ela dava a impressão de estar cansada de
tudo, de ter esquecido como as festas aconteciam
espontaneamente nos anos 60 e início dos 70. Tomavam a
casa de assalto, sugavam as pessoas de todas as partes, os
telefones retiniam com convites informais e encomendas de
vinho e comidas.
Por algum tempo, Cedric Mellings fora o patinho feio da
família que se transformara em cisne — pois quem mais
entre os seus irmãos levava uma vida tão cintilante e
glamourosa? —, mas agora se restabelecera a qualidade de
patinho feio. Mas o que tudo aquilo representava?, pensou
Alice, desdenhosa e triunfante, contemplando o rosto muito
pálido do pai, ansioso e ten- so, com gotas de suor na testa:
imprimir um lixo nojento para esta ou aquela facção nojenta
do fascista e nojento Partido Trabalhista, imprimir jornais
asquerosos para os asquerosos liberais e revisionistas,
explorar os políticos de merda oportunistas e o lixo burguês,
coisas que estavam de qualquer forma fadadas a serem
varridas para as latas de lixo da história?
Tudo fora lixo, sem exceção. O que Alice não podia se per-
doar era deixar-se embalar por tudo aquilo... Mas tivera o
bom senso de sair a tempo e conhecer pessoas que podiam
levá-la pelo rumo certo...
Cedric Mellings finalmente suspirou, abriu os olhos e, tendo
definido sua posição, inclinou-se para a frente e disse, sem
fitar Alice:
— Muito bem, você pegou o dinheiro, se é o que afirma.
Lamento muito pelo rapaz. Diga a ele para voltar e... Tenho
certeza de que poderemos endireitar tudo. E agora vamos
falar de você, Alice. Imagino que será uma surpresa para
você, já que vive num mundo de sonho, mas aquelas mil
libras não são uma quantia que a firma esteja em condições
de perder. Também estamos sofrendo com a recessão. Os
tempos são incertos... talvez tenhamos de fechar. A gráfica,
não a papelaria.
Ele deu a risada incrédula e admirada que costumava
acompanhar qualquer referência à papelaria.
— Cartões de cumprimentos! Esse é o grande negócio. Sem
falar nos doces, chocolates e todas essas porcarias.
Cedric fitou Alice agora e foi capaz de sustentar o olhar,
embora fosse evidente que isso exigia algum esforço, manter
os olhos nos olhos da filha; ele não podia compreender o
que estava vendo.
— Posso supor que não adianta lhe pedir para devolver o
dinheiro? — ele quase suplicou.
Ao ouvir isso, Alice riu. O riso reconhecido, de admiração,
alguma espécie de necessidade que Cedric, o pobre tolo, não
podia sequer começar a entender. Mas ele acenou com a
cabeça, como se compreendesse, e acrescentou:
— Imagino que o seu Jasper já se apropriou do dinheiro.
Bom, sei que não adianta dizer qualquer coisa a respeito dele
para você. É completamente cega nesse ponto. Mas precisa
compreender uma coisa: não terá mais qualquer dinheiro
meu. Não vejo motivo para que eu deva sustentar aquele...
Vamos deixar por aqui. Estou apertado em matéria de
dinheiro, Alice... pode entender isso? E não foram as mil
libras. Há poucos dias algum desgraçado entrou em nosso
quarto, meu e de Jane, e levou...
E de repente, enquanto o pensamento lhe ocorria, ele
sacudiu-se para trás na cadeira, como se tivesse levado um
pequeno choque elétrico, depois ficou olhando atordoado
para Alice, a boca literalmente escancarada. Até aquele
momento, esse furto não fora relacionado com Alice. Ela
limitou-se a sorrir, sem admitir nada, mas sabendo que não
precisava perder tempo com negativas.
Outra vez Cedric ficara chocado até o fundo do coração, não
podia falar, empenhou-se angustiado em ordenar os
pensamentos. A respiração era rasa, ofegante. Tateou à
procura de um cigarro, acendeu-o desajeitado, pôs-se a tragar
como se a fumaça fosse um narcótico. E, finalmente,
murmurou:
— Alice, não sei... Agora você virou ladra? E isso? E assim
que vive? Não posso entender. — Cedric apagou o cigarro,
esmagando-o como se quisesse fazer a mesma coisa com
Alice. — Pensei que fosse algum vagabundo, esses garotos
que entram numa casa num impulso súbito...
Foi a essa altura que o pensamento seguinte atingiu-o,
deixando-o outra vez atordoado.
— Foi você? Também jogou aquela pedra?
Ele sabia que fora; não era uma pergunta. E continuou, de-
pois de uma pausa:
— Aquela pedra não acertou Deborah por menos de um
palmo. Havia vidro por toda parte. . . um estilhaço acertou
na perna de Jane...
Cedric sacudiu a cabeça, como um cachorro com dor nos
ouvidos. Estava se livrando de Alice — para sempre.
— Claro que você acertou em todos os seus cálculos, Alice.
Concluiu que eu não chamaria a polícia porque é minha
filha. E não vou fazê-lo desta vez. Mas na próxima chamarei.
Para mim, você se transformou numa espécie de animal
selvagem. Está além do julgamento normal.
Alice levantou-se. Não sentia angústia por aquela repulsa;
achava que já fora rejeitada e abandonada há muito tempo.
— Qual é o endereço de minha mãe?
Cedric levou algum tempo para registrar a pergunta. Preci-
sava se dar tempo para que o pensamento o alcançasse.
— Quer dizer que perdeu o endereço dela?
— Nunca tive. Ela foi embora, não é? Simplesmente deixou a
nossa casa, abandonou-a.
A voz de Alice era uma acusação furiosa.
— Do que está falando? Há meses que ela planeja se mudar.
— Porque você não a sustenta.
— Porque eu não sustento vagabundos como você e Jasper.
— Mas qual é o endereço dela?
— Descubra você mesma. Daqui a pouco estará roubando da
pobre Dorothy e jogando pedras em suas janelas.
Mas o comentário foi feito em voz hesitante; ele ainda não
podia acreditar.
Alice deixou a sala e atravessou o corredor até o escritório
geral na frente. Perguntou à moça encarregada dos arquivos:
— Qual é o endereço de minha mãe? Dorothy Mellings. Qual
é seu endereço?
A moça, é claro, não fora informada do escândalo da filha do
patrão e de bom grado foi ao arquivo, encontrou a ficha e leu
para Alice, que memorizou o endereço e se retirou. Passou
por Jill, que a fitou atentamente, com uma expressão quase
suplicante, como se ela fosse uma assassina ou assaltante que
pudesse atacá-la.
Alice passou pela papelaria, cheia de idiotas comprando
revistas sobre a vida graciosa e romântica, romances de
aventuras e lindos cartões que diziam "Para um Amigo
Especial", "Amor no Seu Aniversário" ou "Estou Pensando
em Você". Ou caixas de papel de carta com desenhos de
narcisos ou rosas. Ou... tudo merda, um verdadeiro lixo.
Foi para um café na Finchley Road e ali sentou por um longo
tempo, sozinha, tomando um café forte. Precisava pensar.
Concluiu que era improvável que o vínculo com Bert
impedisse Jasper de se lançar numa de suas bebedeiras; que
teria de sentar e esperar; que Bert quase que certamente
partiria à procura de Pat; que a melhor coisa que ela podia
fazer era organizar um Congresso da UCC o mais cedo
possível. O trabalho para isso fomentaria na casa o
sentimento, o clima apropriado, acabando com a atmosfera
desagradável do último dia. Acabara de salvar a situação de
Jim. Mas Philip, uma alma gentil e até tímida, iria embora se
ela não fizesse alguma coisa.
Quando chegou em casa, encontrou aberta a porta da sala
que Jim ocupava; todas as suas coisas haviam desaparecido.
Foi um golpe duro. Alice chorou, parada ali, olhando para a
sala em que nada restara de Jim. Nem os instrumentos
musicais — tambores, guitarra, acordeão —, nem o saco de
dormir, as roupas, o toca-discos... nada. Jim sumira daquela
sala como se nunca tivesse estado ali.
Ela não tinha endereços de amigos ou família.
Ficou na porta aberta, levantando os punhos cerrados para os
lados da cabeça e batendo, batendo com força, enquanto se
lamuriava:
— Não, não, não, oh, não...
Passos desceram a escada correndo; era Faye, indignada,
ultrajada.
— Qual é o problema?
— Jim... ele se foi... sumiu...
— Boa viagem! — exclamou Faye, rindo. — Nós não
gostávamos mesmo dele.
Levantando os olhos, Alice avistou Philip, acima de Faye.
Seu rosto dizia que ouvira o comentário, como Faye — sem
dúvida — queria que acontecesse. Mas ela também viu
Roberta, que se encaminhou apressada para Faye, agarrou
seus braços e puxou-a para longe. O rosto de Roberta era
grave e chocado — magoado por causa de Faye.
A voz baixa e persuasiva de Roberta; a risada alta e estridente
de Faye. Uma porta foi batida. Roberta desceu correndo,
segurou Alice, começou a confortá-la no choro.
— Calma, calma, calma...
— A culpa é minha — soluçou Alice. — Toda minha. Fui eu
que fiz. Tudo por minha causa.
— Calma, calma... Não tem importância.
Ela levou Alice para a sala de estar e obrigou-a a se meter no
saco de dormir. Foi buscar um copo de uísque, fê-la beber,
para dormir, esquecer.
Alice histérica, como Faye tantas vezes histérica, estava sen-
do dopada para se tornar inofensiva.
Ela dormiu até a noite. Depois, encontrou na cozinha Ro-
berta e Faye, Mary e Reggie. Jasper não estava ali. Bert saíra
para tentar persuadir Pat a voltar. Sentando, Alice disse:
— Acho que devemos organizar um Congresso da UCC.
— Outra decisão democrática? — indagou Faye, rindo.
— Estou sugerindo. Apresentando a proposta.
— Eu sou a favor — declarou Roberta. — Há uma porção de
membros que nunca conhecemos. Uma nova seção, novos
grupos... devemos nos encontrar.
— Parece uma boa idéia — comentou Reggie, no tom
ponderado de alguém que sempre aprecia os congressos,
discussões, quaisquer manifestações do processo
democrático.
— Também concordo — acrescentou Mary. — Estive
pensando que pode ser o tipo de partido político que venho
procurando. Não tenho tempo para os grandes partidos
burocráticos.
— Quando? — perguntou Faye.
— Muito em breve — respondeu Alice. — Quanto mais cedo
melhor. O partido está crescendo depressa. Precisamos
consolidar e formular as políticas agora.
Concordância geral, embora Faye só aceitasse porque Ro-
berta aderira à proposta.
Cinco dias e cinco noites seguiram-se sem Jasper. Bert vol-
tou, sem conseguir o que queria e com uma aparência
encovada e amargurada que Alice continuou a encarar como
uma melhoria. Bert perguntou onde Jasper estava; Alice,
como sempre encobrindo, respondeu que Jasper decidira
visitar um irmão. Bert, que no final das contas passara
bastante tempo em companhia de Jasper, mostrou-se
surpreso porque nunca fora mencionado um irmão. Alice
explicou que Jasper visitava o irmão porque era seu único
"parente viável". A expressão fez com que Bert a olhasse de
maneira estranha, mas ela explicou que Jasper tinha uma
família de merda e o irmão era o único decente. (As visitas
de Jasper ao irmão de fato aconteciam, embora raramente.)
Bert, Alice ficou satisfeita ao constatar, sentia falta de Jasper,
tendia a se mostrar desorientado, sem saber o que fazer. Mas
estavam numa fase de atividade intensa, pois o congresso
seria realizado no fim de semana depois do seguinte, ali mes-
mo, naquela casa, número 43. Mensagens eram despachadas
e cartas escritas, sempre havia idas apressadas às cabines
telefônicas na estação do metrô.
Alice assumiu a maior parte do trabalho, mas Bert visitou a
seção em South London, a fim de providenciar que todos ali
se sentissem inspirados a comparecer. Foi indagado ao
número 45 se as pessoas não queriam participar, se não
como membros ou membros em potencial, pelo menos
como delegados ou observadores. Alice sabia que era
inevitável a presença de observadores; e não ficou surpresa
quando a mulher-ganso Muriel declarou que estaria
presente. O camarada Andrew comunicou que gostaria de
comparecer, mas estaria ausente na ocasião.
As duas casas poderiam ser usadas como dormitórios, se o
número 43 fosse insuficiente.
Alice deveria providenciar comida farta, mas barata. Para
variar, foram garantidas algumas contribuições a seus fundos,
já que se cobrariam aos delegados taxas mínimas pela
alimentação e alojamento. Depois de alguma contribuição,
fixou-se a quantia de duas libras por pessoa para o fim de
semana.
Alice também disse que seria ótimo se todo o lixo que ainda
restava no número 45 fosse removido, pois causava uma
péssima impressão. Como nada fosse feito, ela tomou o carro
emprestado e fez várias viagens, com a ajuda de Philip, ao
vazadouro de lixo.
As apreensões de Philip e sua mágoa por causa de Jim foram
aliviadas pelo congresso e o clima feliz que estava criando.
Bert visitou o número 45 várias vezes durante aqueles cinco
dias. Conversava com o camarada Andrew, como Alice o
sabia, pois também visitava o camarada Andrew, que parecia
querer conversar sobre Bert, não fazendo segredo de seu
plano para ele, que era o caminho de um emprego,
segurança e respeitabilidade. É um "treinamento especial",
não-especificado, mas compreendido. Alice não podia deixar
de especular sobre a escolha de Bert; por que Andrew
mudara de idéia a seu respeito? Ela própria não confiava
muito em Bert. Ele se deixava levar com muita facilidade,
por exemplo. Haveria alguma outra coisa que Bert discutia
com Andrew? Alice estava ansiosa por saber, pois se o IRA
não aceitara Bert e Jasper (e, por extensão, o resto deles,
inclusive Alice), então alguma outra coisa do mesmo tipo
tinha de aparecer. Todos queriam ser úteis, servir de alguma
forma! Alice sondou Andrew, mas ele não estava disposto a
revelar coisa alguma ou ignorava as idéias alternativas de Bert
e Jasper. Alice sondou Bert, mas parecia que ele esperava por
Jasper para "formular um compromisso de acordo com
nossos recursos". Mais uma vez, Alice pensou: "Ah, as im-
pressões fáceis!" — nesse caso, a impressão, como ela sabia
que muitas pessoas tinham, era a de que Jasper era o
dependente de Bert, seu discípulo.
Jasper se referira várias vezes a Muriel, o que poderia
constituir uma indicação para Alice, se sua aversão a Muriel
não aflorasse prontamente, impedindo-a de prestar atenção
ao que poderia fazer. Jasper comentara que Muriel estava
deixando a 45. Começaria a trabalhar. "Um trabalho de
verdade", enfatizara ele, com um sorriso orgulhoso, mas
discreto, convidando Alice com os olhos e a atitude a
compreendê-lo. Mas o que ela precisava ouvir de Jasper era a
declaração de que ele considerava Muriel tão insignificante
quanto ela achava; com toda a certeza, Jasper não gostava
dela, e Alice sabia disso.
— O camarada Andrew já acertou tudo, o treinamento e o
resto.
O respeito que ele tinha por Andrew fazia com que aquilo
que pudesse sentir em relação a Muriel não tivesse a menor
importância.
Alice tentou até descobrir por intermédio de Muriel quais
podiam ser os planos de Jasper. Mas assim que ouviu o nome
de Jasper, Muriel disse incisivamente que em sua opinião
Andrew era "basicamente" um membro de confiança e útil.
O que pareceu a Alice inteiramente despropositado. E ela
especulou: Seria por causa de suas dúvidas ocasionais em
relação a Andrew?
Tais dúvidas, difíceis de definir, porque a razão sempre as
pulverizava, cristalizavam-se no fato de que o camarada
Andrew muitas vezes cheirava a bebida; não podia criticá-lo
por sua parcialidade para com a mulher-ganso, porque
aprendera há muito a não se aventurar por essa área. Sabia
que as pessoas precisavam de todo aquele sexo, e o
encontravam com pessoas surpreendentes e às vezes de
maneiras surpreendentes. Só porque o camarada Andrew
era... o que ele era, isso significava que devia fazer um voto
de celibato? Não! Mesmo assim. . . Garrafas de vodca e
uísque se acumulavam no consolo da lareira da sala que ele
ocupava, muitas vezes substituídas.
Havia outra moça, Caroline, que aparentemente também
vivia na 45, embora quase não fosse vista. Alice gostaria de
conversar com ela, pois se sentia atraída por alguma espécie
de afinidade; mas, ao que tudo indicava, Caroline não sentia
a mesma coisa. De qualquer forma, ela permanecia apartada.
Era uma mulher — ou moça, pois ainda tinha vinte e poucos
anos — baixa e um tanto gorducha, não desprovida de
atrativos, que dava a impressão de sorrir com freqüência.
Talvez fosse esse sorriso fácil que atraía Alice, embora os
olhos, sempre vigilantes, fossem duros como botões
castanhos. A impressão geral, no entanto, era de boa índole,
de vontade de agradar. Caroline, disse a mulher-ganso
friamente, não estava disposta a seguir as determinações do
camarada Andrew para se tornar um membro útil, mas tinha
(Muriel achava e, por isso, Andrew devia pensar igual)
tendências para o idealismo liberal.
Caroline tinha uma amiga chamada Jocelin, que costumava
visitar a 45 e que talvez até decidisse viver ali. Ao contrário
de Caroline, ela era desagradável. Corpulenta, podia-se
mesmo dizer que atarracada, com cabelos louros lisos,
repartidos no meio e afora isso desgrenhados, andava em
passos firmes e deliberados, sem olhar muito para as outras
pessoas, sorrindo tão facilmente quanto Caroline, porém
acenando com a cabeça indiferente quando Alice a
vislumbrava através de uma porta ou atravessando o
vestíbulo com toda a sua eficiência.
Havia também uma dupla de rapazes que viviam na 45 e que
Alice não chegara a conhecer. A mulher-ganso disse que
Andrew estava "trabalhando" os dois — ao que parecia, com
sucesso. Eram do norte da Inglaterra, da classe operária,
desempregados — mas, assim se julgava, apenas
temporariamente. Os quatro — Caroline, Jocelin, Paul e
Edward — recusaram-se a comparecer ao Congresso da
UCC, mas iriam à festa, na noite de sábado. Em suma,
haveria muitos observadores durante aquele fim de semana;
mas, refletia Alice, por que não?
Jasper voltou na noite de domingo. Como sempre acontecia
depois de suas excursões, parecia doente. Emagrecera, estava
mais esguio do que o habitual. A pele sedosa estava opaca e
manchada, os olhos injetados, a aparência debilitada, como
se o seu eu essencial tivesse sido atacado ou exaurido.
Procurou Alice imediatamente, e ela alimentou-o com sua
sopa, um bom pão e um copo após outro de leite gelado, que
ela guardara na geladeira, à sua espera. Não houve qualquer
comentário sobre o dinheiro.
Informado sobre o congresso, ele se mostrou a princípio
indiferente, depois perguntou por Bert, que gracejou sobre
sua aparência e disse que o irmão não devia ter lhe dado
coisa alguma para comer. Jasper gracejou em resposta que o
irmão não era cozinheiro, ao contrário de Alice. Embora
fosse patente que devia estar na cama, ele insistiu em subir
com Bert para conversar no alto da casa. Algum plano ou
decisão amadurecera em Jasper, mesmo enquanto
mergulhava nas emoções do mundo homossexual. Tinha de
conversar a respeito imediatamente.
Quando decidiu se deitar, ele foi para o quarto no último
andar, como Alice já esperava.
Ela voltara a dormir no quarto que partilhara com Jasper, ao
lado do quarto de Bert. Pois sabia que se Pat voltasse, Jasper
também voltaria.
Na segunda-feira, Philip anunciou que recebera uma resposta
séria a toda a sua propaganda. Mas precisava de ajuda. O
problema era que muitas vezes se apresentava para oferecer
seus serviços; as pessoas viam como ele era e davam
desculpas para recusá-lo. Mas ele era capaz de fazer o
trabalho muito bem — como todas as pessoas na casa
podiam confirmar. Queria que Bert o acompanhasse, como
seu parceiro. Podia ficar calado, se assim desejasse; e era
apenas na primeira entrevista. Depois que tudo ficasse
acertado, não seria fácil para os clientes rejeitarem-no,
mesmo que fosse trabalhar sem Bert. O plano provocou
muitos comentários divertidos à mesa do jantar. Bert
concordou e tudo deu certo. O trabalho na 43 foi
considerado encerrado, embora ainda houvesse no sótão
duas vigas podres que espalhavam a podridão por toda a casa.
Philip prometeu que cuidaria delas assim que terminasse
aquele trabalho, pelo qual seria devidamente remunerado.
Recusara-se a começar sem um bom adiantamento e não
terminaria se não recebesse parcelas periódicas. Era um novo
restaurante de comida para viagem que ficava a cerca de um
quilômetro de distância.
Os primeiros delegados chegaram no meio da semana. Eram
Molly e Helen, da seção de Liverpool. Militantes do
Movimento Feminista haviam escrito para comunicar que
estavam dispostas a organizar uma creche. Se não houvesse
creche, as mães com filhos pequenos não poderiam
comparecer; era uma questão de princípio. Devia ficar claro,
no entanto, que elas só cuidariam de meninas; era outro
princípio, aparentemente aplicado com sucesso em todas as
creches que já tinham instalado.
Alice imaginara vagamente que haveria crianças vindo com
os pais; mas agora lembrou-se dos problemas de princípios e
também das prováveis reações de Faye, o que desencadeou
uma segunda remessa de mensagens e cartas, em todas as
direções, comunicando que não se podia trazer crianças.
Molly e Helen tinham muita coisa a dizer sobre isso quando
chegaram, e Alice ficou aliviada quando elas resolveram
aproveitar ao máximo a estada na capital, com seu conforto,
saindo para passar o dia com os piquetes em Melstead. Elas
passaram outro dia visitando a comuna de mulheres
freqüentada por Faye e Roberta, de onde voltaram rindo,
irrequietas, com excesso de vitalidade — era melhor não
perguntar de que tipo — e famintas. Entregando duas libras
cada uma, elas disseram que não fariam compras com Alice
no dia seguinte, pois precisavam comprar roupas, mas depois
a ajudariam a cozinhar.
Enquanto isso, quatro camaradas chegaram de Birmingham,
dois homens e duas mulheres, que passaram um dia com os
piquetes e uma noite na cadeia. Como todo o dinheiro que
traziam foi gasto nas multas, não podiam contribuir para as
despesas do fim de semana. Mais dois camaradas chegariam
de Liverpool na noite de sexta-feira — tinham emprego e
não podiam vir antes. Haveria mais seis de Birmingham,
também chegando na sexta-feira, também porque
trabalhavam. Quatro pessoas de Halifax pensando em criar
uma seção ali viriam na sexta-feira.
Todos os trinta e tantos membros da seção de Londres só
viriam na manhã de sábado e dormiriam onde pudessem, na
43 ou na 45, na noite de sábado para domingo.
Alice estava aperfeiçoando sua sopa. Mas precisava de um
panelão, e não queria comprar. A mãe tinha algo assim.
Deixando as assistentes a cortar legumes e pôr lentilhas de
molho, ela foi de metrô e andou até deparar mais uma vez
com o cartaz de "Vende-se". Esquecera que a mãe se
mudara. O que a deixou impaciente e furiosa; estava outra
vez com raiva da mãe. O novo endereço se encontrava
devidamente arquivado em sua mente. E acarretava um
sentimento de vergonha, de pesar. Não era numa das
melhores áreas; Alice calculou que ainda podia ser
considerado Hampstead por alguém caridoso. Logo ela es-
tava parada na frente de um bloco de apartamentos de quatro
andares, com um jardim pequeno e imundo. A mãe não
podia estar morando ali! Mas lá estava seu nome num pedaço
de papel inserido numa fenda ao lado do número 8:
Mellings. Um interfone. Alice foi dominada por um pânico
inexplicável, não tinha coragem de tocar. Mas uma velha
parou a seu lado, enfiando a chave na porta.
— Com licença — improvisou Alice. — Estou procurando
pela senhora Forrester. Número 2.
— Não vai encontrar nenhuma senhora Forrester no número
2, queridinha. Eu sou a moradora do número 2 e meu nome
é senhora Wood.
— Mas que coisa estranha — murmurou Alice, animada e
jovial, o sonho de uma avó. — Sabe se há alguma senhora
Forrester morando neste prédio?
— Tenho certeza de que não tem nenhum Forrester aqui.
A velha riu e Alice acompanhou-a. Uma pausa e, como
Alice
rezava para que acontecesse, a velha acrescentou:
— Vou pôr uma chaleira no fogo. Não quer entrar para tomar
um chá?
Claro que sim; e Alice entrou, puxando o carrinho de
compras. A porta do número 2 foi aberta e ela acompanhou
a velha até a pequena cozinha, ajudando na arrumação das
compras. Parte de sua mente formulava uma censura
rigorosa: Como pode fazer uma coisa dessas, deixar que uma
desconhecida entre em seu apartamento? Eu podia ser uma
ladra. Outra parte bradava: Mjnha mãe não pode estar
morando aqui, não pode! E ainda outra sussurrava: Vou
explodir este prédio. Vou mesmo. Não se devia permitir a
construção de um lugar assim.
O apartamento da senhora Wood — e presumivelmente o
apartamento de Dorothy Mellings — tinha dois cômodos
não muito grandes e uma cozinha que mal dava para uma
mesa pequena, a que ela e Alice sentaram, bem perto uma da
outra, olhando para uma parede amarela encardida, tomando
chá e comendo dois biscoitos cada uma. A senhora Wood
vivia de uma pensão. Classe operária. Tinha um filho em
Barnet que visitava aos domingos. Não gostava da nora, que
Deus a perdoasse. Tinha um neto de cinco anos.
Dorothy Mellings não tinha família para visitar nos fins de
semana; esse pensamento aflorou à superfície da mente de
Alice, mas foi rejeitado com um ímpeto de emoção: se a mãe
decidira morar num lugar assim, então devia ter
enlouquecido!
Quando Alice se retirou, sabia com exatidão o que a mãe,
três andares acima, teria no armário da cozinha; e
certamente não haveria espaço suficiente para um panelão
de alumínio.
Alice ficou uma hora ou mais e partiu com promessas de
voltar. Foi a uma loja de ferragens e comprou o panelão
necessário, pensando que, no final das contas, haveria
muitos outros congressos e reuniões no número 43; e se
tivesse de mudar, levaria o panelão.
Mas recebera um golpe; seu coração se lamuriava e doía; não
tinha mais um lar de verdade. Não havia mais nenhum lugar
onde soubessem quem ela era, onde pudessem reconhecê-la
e aceitá-la.
Subitamente, todo um exército de recordações a invadiu.
Alice estava parada no meio da calçada, na hora de maior
movimento, enlaçando um panelão de alumínio, bastante
grande para cozinhar um pequeno arbusto, o olhar fixo e
aparentemente em estado de choque.
Recordava as festas da mãe. Haviam acontecido durante toda
a sua infância e adolescência. Depois que Alice partira para a
universidade, raramente voltando para casa, as festas ainda
continuaram; ouvia comentários de alguém, provavelmente
de Theresa.
— Uma das festas de sua mãe... foi maravilhosa.
Sempre aconteciam da mesma maneira. A mãe comentava,
com uma expressão irrequieta e mortificada:
— Está na hora de oferecermos uma festa... Oh, não, eu não
poderia agüentar!
E ela começava então a tomar as providências, convidando
esta e aquela pessoa, com um mês de antecedência. Sua
relutância em relação à festa se desvanecia, e ela começava a
brilhar de tanta energia. Convidava os colegas políticos de
Cedric, todas as pessoas que trabalhavam na C. Mellings,
Printers and Stationers, as incontáveis pessoas que ela
conhecia e que de alguma maneira pareciam estar sempre
entrando e saindo da casa. Conhecia todas as pessoas na rua e
as convidava. Convidava uma mulher que conhecera na
mercearia e com quem puxara conversa, o homem que fora
consertar o telhado, um novo au pair da Finlândia (que
conhecera no ônibus) que devia estar solitário. No dia da
festa, que começava ao meio-dia, havia até uma centena de
pessoas se acotovelando por toda a casa; à meia-noite,
provavelmente a metade ainda se encontrava na casa, sendo
alimentada pelo panelão de Dorothy, do tamanho de uma
tina. Eram festas maravilhosas. Todos diziam isso. E Alice
também.
— Ah, que bom, vamos ter outra festa! — exclamava ela.
E se punha a ajudar, na maior animação. Quando ficou mais
velha, depois dos dez anos ou por aí, podia perceber que era
útil, mas quando criança era apenas tolerada por aquele
turbilhão de eficiência que era sua mãe organizando uma
festa. Ainda assim, insistia em arrumar frutas num prato ou
distribuir cinzeiros pela casa, enquanto a mãe reduzia seu
ritmo ao da filha. Pelo menos enquanto "ajudava", Alice não
se sentia tanto como uma criatura minúscula numa grande
onda, fazendo sinais desesperados e frenéticos para a mãe,
que permanecia indiferente na praia, sem notá-la.
Quando havia festas, quando havia pessoas na casa, parecia
que Alice se tornava invisível para a mãe, não tinha lugar em
sua própria casa.
Havia sempre pessoas passando a noite depois das festas: as
embriagadas, as que não queriam beber e guiar ou as que
tinham vindo de outras cidades. E Dorothy dizia a Alice, na
voz confiante que acompanhava o sucesso no controle
daquele ajuntamento de pessoas que fazia a casa inteira —
para não dizer a rua — explodir com barulho e música por
horas e horas:
— Alice, você terá de abrir mão de seu quarto. Pode ir dor-
mir com Anne? (A melhor amiga de Alice durante a maior
parte da infância.) Não? Por que não? Ora, Alice, não banque
a difícil. Mas se não quer, então é melhor levar seu saco de
dormir para o nosso quarto.
Alice sempre protestava, reclamava, ficava zangada, fazia
uma cena — manifestações que quase não eram percebidas,
como se podia prever, com tantas outras coisas acontecendo
no palco da festa: mulheres na cozinha lavando a louça,
conversas íntimas entre casais por toda a casa, os últimos
dançarinos embriagados circulando pela sala. Quem podia se
importar se Alice estava de mau humor mais uma vez?
Dormir no quarto dos pais deixava-a violentamente emotiva,
e não podia se controlar.
Quatro horas da madrugada e ela estava em seu saco de dor-
mir, com uma camada de espuma de borracha, junto à
parede, sob a janela. Cedric Mellings, num pijama vistoso,
vermelho- escuro, azul-escuro, estava bêbado ou tenso; de
qualquer forma, expansivo. Adorava as festas da esposa e
orgulhava-se dela. Sempre preparava os drinques, alugava os
copos — cuidava de toda essa parte. Dorothy Mellings usava
uma das coisas bonitas que costumava pôr para dormir,
talvez uma bata larga no estilo conhecido como "mother
Hubbard", um quimono ou uma kanga do Quênia, enrolada
no corpo das maneiras mais diferentes. Também estava
tensa, embora não muito, mas não precisava ficar assim, pois
sentia-se inebriada, exaltada, flutuando, não conseguia parar
de sorrir, enquanto se estendia na cama ao lado de Cedric e
se punha a gemer dramaticamente:
— Oh, Deus, meus pés!
Ele a enlaçava, Dorothy se aconchegava — um rápido olhar,
um lembrete de um ou de outro de que Alice se encontrava
no quarto —, alguns beijos sonolentos e ambos dormiam.
Mas Alice não dormia. Permanecia acordada, tensa, na casa
silenciosa — finalmente — e naquele quarto tão distante do
silêncio porque... quanto barulho faziam duas pessoas
dormindo! Não era apenas a respiração, profunda e
imprevisível, regular por algum tempo e depois mudando
num ofego ou ronco. Cedric tendia a roncar, mas
aparentemente ele próprio se apercebia disso, virava para o
lado e passava a dormir de forma mais decorosa. Mas não
silenciosamente.
A respiração dos dois se elevando, no escuro... Alice não
podia parar de escutar, pois parecia que estava dizendo
alguma coisa que ela precisava compreender — mas que não
conseguia absorver. Duas respirações diferentes, aspirar e
expirar, aspirar e expirar, prolongando-se
interminavelmente, tendo de continuar — mas podiam parar
de modo imprevisível, pelo que pareciam minutos, embora
Alice soubesse que isso era um absurdo, era apenas porque
ela aguçava os ouvidos com tanta fúria de concentração que
o tempo se tornava mais lento. Enquanto um deles, Dorothy
ou Cedric, se mantinha num intervalo da respiração, o outro
continuava, aspirando e expirando, fazendo a vida
prosseguir. Não demorava muito para que o silencioso
respirasse fundo e retornasse ao diálogo que parecia ocorrer
entre os dois. Uma conversa, era essa a impressão da criança
escutando ali, como se os pais falassem um ao outro, não em
palavras, agora, mas numa linguagem que Alice não
conhecia. Aspirar e expirar, aspirar e expirar com tantas
pequenas pausas, hesitações e mudanças de ritmo que era
como se estivessem questionando um ao outro — e a seguir
(Alice esperava por isso) o estágio em que a respiração se
tornava regular, profunda e distante, afastando-se mais e
mais a cada minuto.
Aquelas duas pessoas ali, as duas pessoas enormes e podero-
sas na cama imensa que constituía o outro foco da casa (a
mesa grande na cozinha era o primeiro)... era como dormir
no mesmo quarto com duas criaturas que mal chegavam a
ser humanas, tão estranhas e secretamente perigosas
pareciam a Alice quando era criança e depois quando estava
mais velha, com onze ou doze anos, e ainda em seus quinze
anos ou por aí. Ela mudou, cresceu, ou pelo menos ficou
mais velha, mas a impressão era de que os pais continuavam
como antes. Nada mudava. Era sempre a mesma coisa,
aquela cena depois da festa, com os dois se acomodando na
cama imensa, enlaçados, resvalando para o sono que os
levava para tão longe que Alice sempre se soerguia, apoiada
no cotovelo, aguçando os olhos através da escuridão do
quarto para as duas elevações, compridas, volumosas, que
eram seus pais. Porém naquele momento não eram seus pais,
haviam se tornado impessoais e se afastado de Alice. Não
podiam ser alcançados. A não ser que ela deixasse o saco de
dormir e fosse tocar em um deles, acordando-o. Ao que
Cedric ou Dorothy despertavam, voltavam a ser eles
próprios; como se impostores, sinistros, ameaçadores e
misteriosos habitassem aqueles corpos adormecidos, mas
fossem expulsos pelo contato de Alice. Então, Dorothy ou
Cedric, sonolento e sobressaltado, murmurava:
— Qual é o problema, Alice? Durma.
E eles já se afastavam, retornando depressa àquele outro país
— e os impostores lá estavam, não eram mais Cedric e
Dorothy. Alice ficava acordada, escutando as respirações, as
fungadelas, murmúrios engrolados e incompreensíveis
saindo daquele sono que acontecia por cima dela, no platô da
cama; e escutando seu próprio sangue ser bombeado e correr
pelo corpo, pensando como galões de sangue turbilhonavam
ali, naqueles dois corpos... Não conseguia dormir; ou dormia
e acordava na maior ansiedade. No instante em que havia
qualquer claridade por trás das cortinas silenciosas e atentas,
que pendiam ali durante a noite inteira, testemunhas junto
com ela da ausência de Dorothy e Cedric de sua cama, seu
quarto, sua casa, seus filhos, Alice se levantava e saía. A casa,
é claro, estava mergulhada no caos. Por toda parte pessoas
ainda dormiam, de tal forma que ela mal tinha coragem de
abrir uma porta, com medo do que poderia encontrar. Mas a
cozinha era um lugar seguro, e ali ela trabalhava. Gostaria de
contar com alguma ajuda — do irmão, Humphrey, por
exemplo. Mas ele sempre se mostrava feliz em aproveitar o
convite dos pais para arrumar um outro teto sob o qual
dormir e raramente estava em casa.
Depois dos doze anos ou por aí, Humphrey permanecia em
casa cada vez menos, passando não apenas uma noite em
outra casa da rua, mas com amigos por todo o país, às vezes
durante semanas a fio. Para Alice, a impressão era de que as
festas haviam desencadeado esse processo. Sentindo-se
como ela (não que alguma vez houvessem conversado a
respeito, mas Alice sabia), como alguma pequena criatura do
mar aderindo por sua vida a um rochedo, mas sendo atacada
e golpeada por enormes ondas, até se desprender e se afastar
à deriva. Como ela também fizera, mais tarde. Mas
separadamente; eles mal se viam. Indagada se tinha irmãos,
Alice precisava fazer um esforço para se lembrar de
Humphrey.
Há anos que ela não pensava em tudo isso; foram os braços
estendidos em torno do panelão prateado que trouxeram
tudo de volta. E poderia continuar parada ali se alguém não
tocasse em seu ombro: um homem, um operário, pois usava
um macacão branco e carregava uma bolsa com ferramentas
— isso mesmo, a loja de ferragens fazia uma liquidação.
— Você está bem, querida? — perguntou o homem.
— Estou, sim.
Foi como se ela respondesse: "Por que alguém deveria pen-
sar que não estou?"
— Já começávamos a nos preocupar com você. Parecia ter
criado raízes na calçada, do jeito como estava!
O homem riu, esperando que Alice o acompanhasse; seu
rosto gentil — quase que certamente de um pai, para não
falar de um marido — mostrava preocupação para com ela. E
Alice riu também e foi para o número 43, onde entrou sob
aplausos, por causa das dimensões magníficas e do potencial
evidente do panelão. Ela sorria na cozinha, preparando sua
sopa, enquanto camaradas entravam e saíam para provar,
fazer sanduíches ou comer alguma coisa trazida de fora.
Estava dissolvida no pesar, por causa da perda de sua
verdadeira casa e pelo que recordara, parada na calçada. Oh,
Deus, pensava, enquanto trabalhava na cozinha, sempre
sorrindo (a Alice de todos, confiável, prestativa, um
tesouro), como eles foram capazes de fazer isso comigo?
Tiraram meu quarto, sem mais aquela, como se não fosse
meu quarto, como se apenas tivessem me emprestado:
"Alice, você terá de abrir mão de seu quarto mais uma vez".
Há anos que acontecia. O que eles pensavam que faziam? A
cada vez sentira que não era realmente sua a casa, que não
tinha direito a um lugar ali e a qualquer momento os pais
poderiam expulsá-la.
Mas tudo isso é bobagem, pensava Alice, cortando, picando,
misturando, sorrindo. A maioria das pessoas do mundo não
tem a metade do que eu tive, e quanto a seus próprios
quartos...
Ora, tudo isso não importa, o congresso exigiria muito
trabalho e teria de parar de pensar a respeito, graças a Deus.
Na noite de sexta-feira, depois que todos chegaram e havia
vinte e quatro pessoas na casa, o espantoso caldeirão de sopa
alimentou todo mundo e foi reabastecido, à uma hora da
madrugada, quando os outros já estavam deitados, a fim de
ficar pronto para o dia seguinte.
Por volta das nove e meia da manhã seguinte, todos os
camaradas de Londres chegaram. Circularam por toda a casa,
a soltar exclamações, por seu tamanho e conforto. Não
foram poucos, de casas ocupadas não tão confortáveis, os
que aproveitaram para tomar um banho. As pilhas de pão na
cozinha diminuíram imediatamente, e Alice saiu correndo
para comprar mais. Aquele fim de semana custaria... ela não
queria pensar sobre isso.
Todos elogiaram também a decoração da sala de estar.
Por cima da lareira havia uma enorme bandeira vermelha, o
emblema da UCC num canto, bordado na noite anterior pe-
las duas garotas de Birmingham. Num canto do vermelho-
vivo havia uma foice e um martelo em dourado e, em outro,
um galo e uma rosa em verde.
Um retrato de Lênin estava pendurado em frente à bandeira.
Ao lado de Lênin e várias vezes maior havia um cartaz de
uma baleia: "Salvem as baleias!" Nas outras paredes havia car-
tazes dizendo "Salvem a Inglaterra da poluição!", "Salvem os
nossos campos!", "Lembrem-se das mulheres de Greenham
Common!", e mais um cartaz do IRA, mostrando um soldado
britânico espancando um garoto com os braços amarrados.
Numa mesa no vestíbulo estavam os panfletos: Em defesa do
IRA, toda a propaganda do Greenpeace, vários livros sobre
Lênin, um longo poema em versos livres sobre Greenham
Common, uma ampla variedade de folhetos do Movimento
Feminista e sobre antivivissecção, vegetarianismo, o uso de
agentes químicos em alimentos, Cruise, Trident, o despejo
do lixo radioativo no mar, o tratamento cruel de bezerros e
galinhas e as condições nas prisões da Inglaterra.
No clima familiar e inebriante mas confortador que
caracteriza o início de tais eventos, quarenta e tantas pessoas
se espremeram na sala de estar, sentando nos lugares que
encontravam, no chão ou nos peitoris das janelas. Lá fora,
era um dia de sol intermitente. Lá dentro, o novo sistema de
aquecimento tornou-se demais para alguns e tiveram de abrir
as janelas.
Quase todos tinham menos de trinta anos. Alice calculava
que era de longe a mais velha. Isto é, à exceção de Roberta,
que se limitava a rir quando perguntavam sua idade.
Foi para Bert e Jasper que todos olharam, embora tivesse
combinado que Pat, se aparecesse, faria o discurso de
abertura.
Há muitos dias que Bert a aguardava ansioso, como sabiam
todos os moradores da casa.
Agora, Bert postou-se descontraído junto à lareira, apoiou o
cotovelo no consolo, onde havia um vaso com narcisos,
assumindo uma atitude informal, e disse:
— Este é o primeiro Congresso Nacional da União do Centro
Comunista. De pequenas sementes crescem grandes árvores.
Aplausos vigorosos. Sorrisos, risadas satisfeitas. Mary
Williams e Reggie aplaudiam, sóbrios mas enfáticos. Muriel
sentava no chão, num canto. Ela estava ali como espiã, Alice
lembrou a si mesma.
Bert não riu. Nem mesmo sorriu. O problema com Pat
deixara-o abatido, proporcionando-lhe uma expressão de
sofrimento, controlada pelo pensamento. A afabilidade fácil
desaparecera. Acenou com a cabeça brevemente aos
aplausos e continuou para dizer que a UCC se propunha a ser
um partido não-sectário, aproveitando o melhor dos partidos
socialistas existentes, aprendendo com seus erros e fracassos.
A UCC estava determinada a se basear nas grandes tradições
da classe operária britânica, empenhando-se pela mudança
social radical, através de uma revolução, "se for necessário...
e cada dia nos ensina que a classe que controla este nosso
país só se deixará desalojar pela força... " Aplausos, risos e
gritos. Uma revolução que aprenderia com a experiência da
Revolução Russa, da Revolução Chinesa e, se preciso, com a
Revolução Francesa, pois não era exagero afirmar que as
lições da Revolução Francesa não estavam absolutamente
esgotadas. O congresso daquele fim de semana não fora
convocado com o objetivo de formular uma política
detalhada, pois muito mais trabalho teria de ser realizado
nesse sentido, mas sim para definir os princípios gerais. E
agora ele, Bert Barnes, passaria a palavra a um revolucionário
muito mais completo e desenvolvido, o camarada Willis.
Jasper ocupou o lugar de Bert. Não se apoiou no consolo da
lareira, mas ficou empertigado como uma flecha, os braços
baixados nos lados do corpo, os cabelos louro-avermelhados
brilhando, os olhos fixos no retrato de Lênin. Começou o
discurso em voz mais alta do que o habitual, o que fazia com
que parecesse tensa a Alice. Mas também ela estava
acostumada a seu estilo oratório e julgava-o por outros
critérios: por exemplo, sabia que Jasper mal dormira na noite
passada, pois ficara absorvido numa discussão acalorada e
volúvel, e ficar sem dormir não lhe era conveniente.
Seu estilo era o de usar frases familiares do léxico socialista,
mas como se tivesse acabado de descobri-las, naquele
momento mesmo; assim, quando ele começava, havia muitas
vezes um instante em que as pessoas mostravam uma
tendência a rir. Mas isso cessava logo, por causa de sua
seriedade desesperada, até mesmo extasiada.
— Camaradas! Sejam todos bem-vindos, camaradas. Este é
um momento histórico para todos nós. Há bem poucos nesta
sala hoje, mas somos uns poucos eleitos... escolhidos pelo
tempo em que vivemos, escolhidos pela própria história!... e
não há nada que não possamos realizar, se assim nos
empenharmos.
Neste ponto, se Bert ou qualquer outro estivesse falando,
haveria aplausos. Mas houve um silêncio tenso. A verdade
era que os camaradas não esperavam aquele tom de extrema
seriedade; ou pelo menos não tão cedo.
— Todos conhecemos as condições terríveis e criminosas na
Inglaterra. Todos sabemos que o governo fascista-
imperialista deve ser derrubado à força! Não há outro
caminho para o progresso! As forças que vão nos libertar a
todos nós já estão sendo forjadas. Estamos na vanguarda
dessas forças, e a responsabilidade por um futuro glorioso
está em nossas mãos.
Jásper continuou assim por cerca de vinte minutos. Alice
escutava cada palavra com um sorriso doce, confiante, até
mesmo belo; aquele era o Jasper que mais amava, e era
maravilhoso para ela constatar como as outras pessoas
reagiam. Até pessoas que ela sabia que o criticavam passavam
a admirá-lo em momentos assim. Ou pelo menos
reconheciam que ali estava algo extraordinário e muito mais
do que um orador natural, o que no final das contas não
chegava a ser um fenômeno raro. Isso mesmo, ali estava um
líder. A coisa de verdade.
Alice estava de pé ao lado da porta, pronta para sair depressa
quando chegasse o momento de começar a preparar o chá.
Escutava e observava os rostos: como reagiam, como os
níveis de atenção eram levados por Jasper. Aquilo acontecia
com freqüência quando Jasper começava a falar — um
nervosismo, até mesmo uma tendência para risos
reprimidos, talvez para fazer comentários sardónicos — pois
seu estilo não era o comum britânico, simples, bem-
humorado de preferência, sensato. E é claro que Alice seria a
primeira a admirar esse britanismo. Era nosso! As
características nacionais eram preciosas. Mas Jasper era um
caso especial. Tinha de impor sua exaltação sobre os outros
desde o início; e naquele dia não houve risinhos
prontamente abafados por outros, que se situavam num
nível superior, mais digno. As expressões que ela via não
eram de crítica, longe disso; eles não confiavam em si
mesmos para acreditar em alguma linda mensagem ou dádiva
que lhes estava sendo oferecida por Jasper, não se sentiam à
altura. Alice aprendera há muito tempo que enquanto Jasper
falava as pessoas não aplaudiam nem gritavam em aprovação.
Permaneciam absolutamente silenciosas — isto é, depois dos
difíceis momentos iniciais; e quando ele acabasse de falar
haveria um silêncio prolongando-se por cerca de quinze
segundos, talvez mais. E em seguida viriam os aplausos,
súbitos, fervorosos, até mesmo violentos; as pessoas se le-
vantariam, gritariam e aclamariam. Os aplausos
prosseguiriam assim até cessarem de repente.
E foi justamente o que aconteceu. Os aplausos ao final foram
como se alguma coisa se liberasse nas pessoas. Algumas mu-
lheres estavam em lágrimas. Todos pareciam profundamente
comovidos. (Nem todos; Alice notou que a mulher-ganso,
sentada como parte de outra audiência, nem aplaudiu. Seus
olhos se encontraram com os de Alice, mas seguiram
adiante, como se ela não visse Alice, não quisesse ser
chamada a explicar o lapso em sentimento real, para não
falar de boas maneiras.) Depois todos se levantaram, os que
já não estavam de pé, na necessidade de aplaudir mais
calorosamente, de tão inspirados e inflamados por Jasper,
aquele emissário do que ele próprio apregoava como "o
futuro, nosso glorioso futuro". Não suportavam sentar de
novo; embora o intervalo para o chá só estivesse previsto
para dali a uma hora, os preparativos começaram naquele
instante.
O intervalo prolongou-se por bastante tempo, pois havia
muitas pessoas entretidas em conversas. Não eram sobre a
UCC ou sequer sobre alguma coisa que Jasper dissera; seu
discurso de abertura, na verdade, mal foi mencionado.
Quando o intervalo estava terminando — os camaradas
Alice, Roberta e Bert tendo de gritar por cima da algazarra
todos os tipos de ameaças e advertências terríveis, sempre
divertidas, é claro, para fazerem as pessoas voltar à sala de
estar —, Pat apareceu. E tinha uma aparência assustadora.
Igualzinha a Bert, para ser mais exato. Estava pálida e magra,
perdera o brilho de cereja. Bert e ela se abraçaram
rapidamente, de um jeito convulsivo e até culpado; mas Pat
não olhou para ele, e por isso Alice compreendeu que ela
não ficaria por muito tempo.
Escolher Pat e não Jasper para fazer o discurso de abertura
fora uma decisão sensata. O estilo dela era muito diferente
do de Jasper, insinuante, bem-humorado, informativo. Pat
não estava a par do discurso inspirador de Jasper, é claro. Ela
contou como a UCC surgira — não de uma forma que
apelasse para a emoção, mas explicando que fora uma
decorrência da insatisfação com os partidos socialistas
existentes, que passou a analisar. Na verdade, estava fazendo
uma análise curta mas competente da situação econômica na
Inglaterra. As pessoas escutavam com toda a atenção,
embora não como haviam ouvido o discurso de Jasper.
Contribuíam com fatos e dados, riam sarcasticamente em
pontos mais expressivos, havia pequenas ondas de aplausos.
Fora uma tragédia, Alice sabia, Pat não ter chegado a tempo
para o discurso de abertura, deixando Jasper para falar ao
final do dia, como fora planejado. Do jeito como as coisas
ficaram, era quase como se Jasper nem tivesse feito um
discurso; fora tudo desperdiçado; nada parecia fluir do que
ele dissera.
Quando o congresso foi suspenso para a sopa, sanduíches e
comida que os camaradas de Londres haviam trazido, as
conversas durante o longo intervalo, quando abordavam
política, eram estimuladas pelos comentários de Pat. Mas o
fato é que a maior parte das conversas não foi sobre política.
Pessoas que não se viam há algum tempo, talvez anos,
estavam se reencontrando ali. Pessoas de mentalidade
parecida se falavam pela primeira vez no início de amizades
ou ligações amorosas. Pediam- se notícias dos camaradas em
Birmingham, Liverpool e Halifax que não haviam podido
comparecer. E havia também o reencontro de antigos
amantes; o relacionamento interrompido de Pat e Bert não
era o único. Já eram quase três horas da tarde quando eles
voltaram à sessão; e mais uma vez, Bert, Roberta e agora Pat
também tiveram de gritar pela casa toda para interromper as
muitas conversas em andamento, a fim de que o congresso
prosseguisse.
A mulher-ganso não compareceu à sessão da tarde; já havia
desaparecido antes mesmo do almoço. Ficara patente que ela
aprovara o discurso de Pat, tanto quanto desaprovara o de
Jasper, o que Alice lamentava no seu íntimo. Ela estava
absolutamente convencida de que Muriel teria outro
sentimento se ouvisse Jasper falar no momento oportuno, ao
final, quando poderia exemplificar e resumir as emoções de
todos.
Depois do almoço (embora já fosse quase a hora do chá), o
primeiro ponto da agenda foi discutido: quais as tendências
na atual situação britânica que indicavam o caminho para o
futuro? As tendências apontadas foram: um, "a insatisfação
com o desemprego, que tem de ser explorada"; dois, "a
repulsa em massa do povo britânico pela política do governo
em relação aos armamentos nucleares"; e três, "a rejeição
florescente e ainda não expressa do povo britânico à política
tory1 na Irlanda do Norte".
Depois do chá, que não ocorreu antes das cinco horas,
discutiu-se de que forma essas três tendências podiam ser
enfatizadas e exploradas. Antes mesmo de terminarem de
definir isso, chegaram mais pessoas, de diversas partes de
Londres, que haviam ouvido falar do congresso e estavam
interessadas... e também sabiam da festa depois. Apareceram
camaradas de Liverpool e Birmingham que por um motivo
ou outro não puderam chegar mais cedo. E veio um grupo da
45 (mas não o camarada Andrew). Havia de repente sessenta
pessoas na sala, e estava desconfortável. Algumas se
retiraram para o vestíbulo, onde sentaram a conversar, com
muito riso e barulho. O congresso foi encerrado cedo, antes
das sete horas, restando ainda o segundo ponto da agenda a
ser discutido. Era "O futuro da Grã-Bretanha: socialismo
pleno".
A festa noturna começou. Como uma explosão. A algazarra
era impressionante, antes mesmo de a luz do dia se
desvanecer. Apareceram os penetras, tornando impossível
qualquer conversa política séria. Alice, Jasper, Pat e Bert
corriam a todo instante para providenciar mais comida e
bebida. Reggie e Mary contribuíram com um galão de sidra
de Devon. A polícia chegou às onze horas, não encontrou
qualquer evidência de transgressão, foi recebida com calma e
eficiência por Alice; entre eles estava a policial, que parecia
agora quase uma velha amiga. Alguns vizinhos bateram na
porta à uma hora da madrugada, queixando-se de que não
conseguiam dormir. Alice disse que lamentava muito, mas
havia setenta pessoas na casa e com tanta gente tinha de
haver barulho. Não gostariam de entrar e participar da festa?
Só às quatro horas da madrugada é que os exaustos camaradas
se meteram em seus sacos de dormir, espalhados pelas duas
casas. Ninguém se levantou antes do meio-dia, quando já
estava na hora, pelo menos para alguns, de partirem de volta
para suas cidades no norte. Isto é, ninguém se levantou mais
cedo, com exceção de Alice, que arrumava tudo.
Ficou ocupada a servir sopa, sanduíches, chá e café durante a
tarde inteira e início da noite. Uns poucos foliões passaram a
noite de domingo na casa e foram embora na manhã de
segunda-feira, bem cedo.
Pat também partiu. Estava chorando. E o mesmo acontecia
com Bert. Alice comentou, irritada:
— Mas que merda! Por que vocês não param com essa
besteira?
Sentiu depois que devia pedir desculpas. Mas não beijou Pat
na despedida, limitando-se a dizer:
— Oh, Deus, estou cheia de tudo isso!
E desatou a chorar. Deixou para os outros o encargo de lavar
tudo e foi deitar, sem se importar se Jasper estava por perto
ou não.
Mas ele estava ali quando Alice acordou, agachado a seu la-
do, com uma xícara de café na mão. Exibia uma expressão
radiante, como um garoto que sabia que se comportara
muito bem.
— O que foi, Jasper?
— A esperta Alice — murmurou ele, gentilmente. — Foi
maravilhoso o que você fez.
Mas ela permaneceu deitada, os braços nos lados do corpo,
os pés estendidos. Não estava pensando em Jasper, no
congresso ou na diversão e jogos do fim de semana. Havia
um vazio em Alice, um poço, uma cova; sabia que sonhara
com a casa agora trancada e com a placa de "Vende-se" na
frente. E sabia que devia estar brilhando com lágrimas não-
derramadas.
— Preciso lhe dizer uma coisa, Alice.
— Estou escutando — respondeu ela, formal e remota.
Percebeu que ele hesitava, estremecia. Jasper sentia-se
esnobado. Ela deveria se importar, mas isso não acontecia.
— Bert e eu... vamos para a União Soviética.
Depois de registrar a informação, Alice comentou:
— Os camaradas irlandeses não quiseram aceitar vocês, e os
soviéticos aceitarão?
Não era absolutamente um comentário desdenhoso — ape-
nas uma declaração de posição —, mas lhe valeu um olhar de
ódio. Jasper levantou-se, pairando acima dela, um anjo
furioso, pronto a lançar raios vingativos.
— Não quero atitudes negativas e destrutivas de sua parte,
Alice.
Pausa. Ela não se mexeu nem falou.
Indeciso, Jasper tornou a se agachar, disposto a conquistá-la.
— Como podem ir tão depressa? Não se pode viajar para a
União Soviética de um momento para outro.
— Na noite de sábado, um dos camaradas de Manchester
disse que sabia de um grupo de turistas que partiria para
Moscou esta semana. Havia algumas vagas, porque várias
pessoas desistiram, por causa da gripe. Podemos obter os
vistos através do organizador da excursão. Já mandamos
nossos passaportes e vamos recebê-los no momento da
partida.
— Isso é ótimo.
Uma pausa.
— Alice...
Jasper começou hesitante, mas parou. Ia pedir dinheiro, mas
sentia agora que seria inútil.
— Você já me levou até o último penny, Jasper. E gastei o
dinheiro da pensão da semana passada na festa. Não adianta
tentar me arrancar qualquer coisa. — Percebendo o rosto
dele começar a assumir uma expressão ávida e cruel, Alice
acrescentou, indiferente: — E é impossível para mim
arrancar mais dinheiro de Dorothy ou de meu pai.
Ele permaneceu ali, agachado, uma das mãos no chão,
estudando o rosto de Alice. Depois levantou-se e
encaminhou-se para a porta. Quando Jasper estava saindo,
ela comentou:
— Se Pat voltar antes da partida, Bert não irá com você.
Ele bateu a porta; Alice não virou a cabeça para observá-lo,
mas continuou imóvel, como uma pedra ou um cadáver,
sem vida, olhando pela janela, agora emoldurada pelas lindas
cortinas de brocado, verdes e douradas, que antes estavam
penduradas na sala de estar da casa de sua mãe.
Ela dormiu. Acordou ao final da tarde numa casa vazia, to-
mou um banho, pôs uma saia que fora da mãe, de lã macia,
com enormes rosas sobre um fundo marrom-claro, e um
suéter rosa que Pat lhe dera.
Saiu direto da casa e foi para a 45, onde entrou sem bater; o
fim de semana fizera com que as duas casas se tornassem
uma só. Da cozinha — um buraco sórdido, não alegre e
decorado com flores como a da 43 — saiu Muriel-ganso, que
lhe ofereceu um sorriso pós-festa rigorosamente racionado.
— Se Andrew está, quero falar com ele.
A fim de evitar mais arranhões insinuantes na porta, Alice
acompanhou Muriel e bateu.
— Entre.
Alice entrou, fechando a porta a Muriel. O camarada An-
drew estava deitado, esticado como um soldado, como Alice
se postara antes, em sua cama baixa, mas com os braços
cruzados sobre o peito.
Ele virou as pernas e baixou-as, sentou, abriu um espaço para
Alice sentar ao seu lado. Ela assim o fez, mantendo uma
distância apropriada.
— Preciso saber algumas coisas — anunciou ela.
— Está certo.
Mas ela ficou calada, apática, não continuou.
Andrew estudou-a por algum tempo, abertamente, sem
qualquer tentativa de disfarçar, depois tornou a deitar na
cama estreita, quase encostado na parede. Puxou Alice pelo
braço; sem resistir, ela estendeu-se a seu lado. Havia pelo
menos uns quinze centímetros entre os dois. Ele não a
tocou.
— Sabia que Bert e Jasper vão para Moscou?
— Sabia.
Uma pausa. Alice pensava. Como sempre fazia: uma defi-
nição lenta e meticulosa das possibilidades latentes em tudo.
— Mas não foi você quem sugeriu.
— Não, não fui eu.
— Não.
O silêncio prolongou-se. Andrew chegou a especular se ela
não viera até ali para dormir, de tão pálida e exausta que
parecia. Examinou-a, virando um pouco a cabeça, depois
pegou-lhe o pulso direito gentilmente, com a mão esquerda.
Alice ficou tensa, depois relaxou: era muito diferente do
aperto assassino que Jasper usava.
— Você devia se livrar logo dessa gentalha, Alice.
— Gentalha! — explodiu ela, com toda a energia que lhe
restava. — São pessoas!
Andrew insistiu, deliberadamente:
— Gentalha.
Ela prendeu a respiração, mas deixou escapar suavemente:
— O que Muriel lhe contou?
— O que acha que ela me disse? Você não é estúpida, Alice.
Ela podia sentir que estava inchando e se derretendo.
Calculou que lágrimas escorriam por suas faces.
— E o que me diz da festa? — ela quase soluçou. — Não
estava lá!
Andrew permaneceu calado. Depois, gentilmente, passou o
braço sob o pescoço de Alice, pondo a mão esquerda na
parte superior de seu braço. Parecia, ao mesmo tempo, estar
amparando-a e cuidando para que ela não pudesse escapar.
— Você deve se afastar daquelas pessoas, Alice.
— Está se referindo a Jasper.
— A Jasper, Bert e os outros. Todos se ocupam apenas com
joguinhos sem importância.
— Eles não pensam assim.
— Não, mas tenho certeza de que você pensa.
Outro silêncio. Alice quase relaxara agora no braço de
Andrew, que estendeu a mão direita e a colocou em sua
cintura, por baixo dos seios. Mas ela não queria e não podia
ter aquele contato, e afastou a mão, irritada.
— Eles estão brincando, Alice, como crianças com explosi-
vos. São muito perigosos. Perigosos para si mesmos e para os
outros.
— E você não é perigoso?
— Não, não sou.
Ela deu uma risada breve, desdenhosa, mas também
impregnada de admiração.
— Não sou mesmo, Alice. Se você faz as coisas direito e com
todo o cuidado, então as únicas pessoas que saem machu-
cadas são as que deveriam se machucar.
Alice pensou sobre isso por um longo tempo e ele não a
interrompeu.
— De quem você recebe ordens, Andrew?
— Eu recebo ordens. E as dou.
Ela pensou um pouco.
— Foi treinado na União Soviética?
— Fui.
— Você é russo.
— Meio russo. Meu pai era irlandês. Mas não vou entediá- la
com a minha interessante história.
Houve agora uma pausa prolongada, cerca de dez minutos.
Alice poderia facilmente adormecer, pois sua respiração era
lenta e profunda, mas manteve os olhos abertos.
Andrew se virou um pouco para ela; no mesmo instante,
Alice ficou tensa e se afastou, embora ainda envolvida pelo
seu braço.
— É uma mulher pura e boa — murmurou o camarada
Andrew. — É o que me agrada em você.
Isso, ao que parecia, poderia levar Alice a uma reflexão ainda
mais demorada da que acontecera com relação aos
comentários anteriores. O que Andrew podia ver em seu
rosto era uma expressão distraída, quase aturdida, em
decorrência da exaustão, mas havia também um certo recato,
que quase o estimulou a esforços adicionais. Quase: alguma
coisa o conteve, talvez o fato de que o recato encobria uma
reação surpreendentemente violenta à palavra "pura". Será
que ela, Alice, era mesmo pura? E fora assim durante todo
aquele tempo, sem o saber? Talvez devesse pensar a respeito;
se era pura, então teria de conviver com isso! Essa era a
palavra! Não se podia mais usar a palavra "pura" na Inglaterra
daquele jeito, estava fora de moda, era um absurdo. E se ele
não sabia disso, então... Como eram treinadas as pessoas
como Andrew? Talvez não importasse que ele fosse tão
estranho, tão diferente; afinal, a Inglaterra estava cheia de
estrangeiros. Tivera importância ali, na 43 e 45? Mas tudo
dependia do que ele queria fazer. Apresentar-se como Lênin
não incomodara ninguém (com exceção de Faye e Roberta),
mas também ela, Alice, só conhecia uma parte da história. O
que mais havia? Finalmente, ele rompeu o silêncio:
— Acho que você deveria tirar umas férias, Alice.
O que a surpreendeu tanto que ela tentou sentar, mas An-
drew tornou a puxá-la para baixo.
Alice estava agora junto dele, e o corpo forte e quente de
Andrew começou a irradiar ondas de sensação por todo o
seu corpo. Ela sentia-se fascinada e repugnada. Mantinha os
olhos fixados no teto, porque sabia o que veria se os baixasse
pelo corpo de Andrew. Não ia se envolver com aquilo, pura
ou não!
— Não entendo por que está sempre querendo que eu faça
coisas de classe média.
— O que há de classe média em férias? Todo mundo tem
direito a férias. A vida moderna é muito ruim para todos.
Alice pensou que ele estava zombando, mas um olhar
confirmou que não era esse o caso.
— Mas para onde eu poderia ir? Você despreza todas as
pessoas que conheço.
— Eu não disse todas. De jeito nenhum.
— Pelo que me lembro, não gosta de Pat. Sabia que ela dei-
xou Bert porque também acha que ele não é uma pessoa
séria?
— Sabia. Ela é uma pessoa séria, Alice. Como você.
— Mas queria que Bert fizesse alguma coisa.
— Mudei de idéia a respeito dele. Foi um erro de julgamento.
— Não sei... — murmurou Alice, cansada, depois de uma
pausa, começando a se sentir uma garotinha a fungar.
— Pois eu sei. Está cansada, camarada Alice. Trabalha e
trabalha, mas a maioria daquelas pessoas não vale a pena.
A essa altura ela deixou escapar um gemido genuíno, como
uma criança, aconchegada contra Andrew, que murmurava
para confortá-la e acalmá-la. E Alice chorou.
— Pobre Alice... Mas não adianta chorar. Terá de tomar uma
decisão. Aqueles dois Errol Flynns vão para Moscou. Por que
você não vai embora antes de eles voltarem?
— Errol Flynn!
— Não gosta de Errol Flynn? Sempre adorei os seus filmes.
— Há uma grande diferença entre nossas duas culturas —
declarou Alice, falando para o peito de Andrew.
Os dois estavam deitados de tal maneira que a protuberância
dura de Andrew se mantinha a distância e por isso não a
incomodava.
— Isso é verdade. Mas as pessoas gostam de Errol Flynn, não
é? Se não fosse assim, por que ele seria um astro famoso?
— Vou pensar sobre tudo isso.
— Deve mesmo.
— E quando você vai voltar?
— Como soube que eu ia viajar?
— Pensei que poderia.
Andrew hesitou.
— Tem razão. Vou me ausentar, provavelmente por algumas
semanas... — Sentiu que Alice parecia encolher e acres-
centou: — Ou talvez apenas por uma ou duas semanas. —
Outra pausa. — E você deve se separar, Alice. Acredite em
mim. Tenho um pouco de experiência com esse tipo de
gente. Onde pessoas assim estão, há sempre encrenca.
Depois de alguns minutos, ela se sentou, afastando as mãos
de Andrew, de uma maneira escrupulosa, como uma dona-
de- casa.
— Obrigada, camarada Andrew. Pensarei com muito cuidado
a respeito de tudo o que me disse.
— Eu também lhe agradeço, camarada Alice. Tenho certeza
de que vai pensar bastante.
Da porta, Alice virou-se para oferecer-lhe um sorriso
contrafeito e depois saiu, apressando-se para não ter de falar
com Muriel, que podia ser uma pessoa séria, mas não era
alguém de quem estivesse disposta a gostar, nem mesmo por
ordem do camarada Andrew.
Os poucos dias que se seguiram foram os mais felizes que
Alice já conhecera.
De modo geral, quando Jasper estava a reboque — uma
expressão que outras pessoas usavam, não ela — de uma
figura de irmão, como Bert, Alice quase não o via. Mas agora
eles a convidavam para acompanhá-los em tudo o que
faziam. Ao cinema, mais de uma vez. Ao National Theatre
— Bert comentou que Shakespeare tinha muitas lições para a
luta e que deviam aprender a usar cada arma que a vida lhes
oferecia, se não queriam ser marxistas primitivos. Passaram
uma noite num pub que Alice sabia que fora escolhido com
todo o cuidado por Jasper, a fim de não mostrar a ela nada de
sua outra vida. Nem a Bert...
Mas o melhor de tudo, embora não saíssem para pichações,
que era a atividade predileta de Alice, foi a sugestão de Jasper
para uma manifestação. Alice sabia que ele fazia aquilo para
agradá-la e compensar sua ausência.
As discussões sobre o local e contra quem se manifestariam
foram tão agradáveis quanto a própria expedição. É claro que
naquele estágio fascista da história britânica não podia haver
carência de alguma coisa contra a qual protestar, mas por
acaso o fim de semana próximo era rico em opções. O
secretário de Defesa falaria em Liverpool, a primeira-
ministra em Milches- ter, e um certo professor americano
fascista em Londres. Sua "linha" — a de que as diferenças
entre os seres humanos eram determinadas pela genética,
não pela cultura — enfureceu o Movimento Feminista,
como era de esperar. Faye ficava histérica à simples menção
de seu nome. Na noite de sexta-feira, depois de um bom
jantar da sopa de Alice e de pizza, eles sentaram e
conversaram sobre o dia seguinte.
A cozinha estava alegre, transbordando de vida. O vaso no
banquinho tinha tulipas e lilases. Reggie e Mary
contribuíram com duas garrafas de vinho tinto, sobre o qual
Reggie — naturalmente — falou como um entendido.
Embora o dia seguinte já fosse maio, eles pareciam envoltos
por uma chuva fria e incessante, o que fazia com que a cena
e a companhia se tornassem ainda mais agradáveis. Era o que
Alice pensava, risonha e grata, apesar de sentir um aperto no
coração. Seu pobre coração parecia levar uma vida própria
nos últimos dias, recusando-se a dar atenção ao que ela
pensava. Mas ficar ali noite afora, com bons amigos, era
agradável. Pois desde a festa que os unira muitas das tensões
pareciam ter se dissipado.
Até Philip, que trabalharia durante o fim de semana e não
poderia acompanhá-los na manifestação, contribuiu com
pensamentos úteis. Por exemplo, o de que a manifestação do
Green- peace seria sua escolha: só por causa dos esforços do
Greenpeace é que o governo fora forçado a admitir a
extensão da poluição radiativa; se não fosse por isso,
continuaria a mentir a respeito. Reggie e Mary, que no dia
seguinte viajariam para Cumberland, gostaram da sugestão:
fora dito o que eles sentiam. Pois os dois — e não podiam
evitar a impressão de que pensavam assim — achavam que a
manifestação sobre questões específicas, como a poluição
costeira, era mais eficaz do que um protesto geral, "como
berrar e gritar contra Maggie Thatcher".
Demonstrando assim o que sentia em relação à política dos
outros ou pelo menos de seus métodos, Reggie esfriou um
pouco o bom humor, embora ainda fosse bastante intenso
para levá-los a zombar do casal do Greenpeace com um coro
vigoroso de vaias, e resmungos.
— E isso mesmo — interveio Mary, pondo a mão na de
Reggie, para lhe dar apoio —, vocês não vão mudar as idéias
dela com algumas vaias. Mas os fatos poderão mudá-las.
— Concordo — murmurou Philip.
Era um esforço para ele fazer isso, desafiar os verdadeiros
detentores do poder na comuna (como agora se intitulavam,
não mais os meros ocupantes autorizados de uma casa
abandonada). Parecia ainda mais frágil e menor do que antes
de começar o novo trabalho. Dava a impressão de definhar.
Seus olhos estavam avermelhados. Mas havia também uma
expressão dura e irada; passava por maus momentos no
trabalho, que ia muito devagar, segundo o grego que o
contratara.
Todo aquele amor e harmonia eram bastante precários,
pensava Alice, enquanto sorria; bastava que acontecesse uma
coisinha qualquer e tudo desaparecia. Pôs as mãos em torno
da caneca com café, sentindo o calor espalhar-se pelo corpo,
e refletiu: E como uma família.
Faye estava dizendo, os dentes à mostra, em sua expressão
característica e excitação fria:
— Vaias? Gritos? Eu vou matar aquele desgraçado! Que di-
reito tem ele de vir para cá com todo o seu veneno nojento
contra as mulheres? Já temos os nossos próprios reacionários
em quantidade suficiente!
— Todos saindo de seus buracos e mostrando as suas
verdadeiras cores — acrescentou Roberta. — Vai conosco,
Jasper? E você, Bert? Vão demonstrar sua solidariedade às
mulheres?
Uma pausa. Era para Milchester que Alice desejava ir. Para a
senhora Thatcher. Mas havia uma carona para Liverpool e
não custaria nada. Jasper sabia que ela preferia Milchester. E
Bert também. Alice dissera que não tinha dinheiro. O que
era verdade, contava apenas com a pensão. Estava disposta a
ir para Liverpool. Odiava o secretário de Defesa, e não
apenas por causa de sua política... havia alguma coisa naquela
sua cara insidiosa e maligna de tory...
Quanto ao professor americano fascista, ela não podia
entender o que Roberta, Faye e os outros estavam querendo.
Jamais pudera compreender por que a palavra "genética"
provocava tanta raiva. Achava que elas bancavam as tolas,
até mesmo frívolas. Se as coisas eram assim, então... então
eram e ponto final. Era preciso desenvolver o resto a partir
daí.
Certa ocasião, há muito tempo, em seus dias de estudante,
ela comentara — a sério, inquisitiva (numa tentativa sincera
de harmonia, baseada em opiniões partilhadas) — que as
mulheres tinham seios "e todo esse tipo de coisas", enquanto
os homens "eram equipados de maneira diferente", isso não
era genético? E se assim era, então as glândulas e hormônios
não deviam ser diferentes? Geneticamente? Isso causara uma
tempestade de ressentimentos, da qual a comuna levara dias
para se recuperar. Todo aquele negócio de sexo, pensava
Alice, era sempre assim! Qualquer coisa relacionada com
sexo! Deixava as pessoas desequilibradas. Fora de si. Era
preciso aprender a ficar quieta e deixar que os outros se
envolvessem. Só queria que a deixassem de fora...
Há vinte anos ou mais, sua mãe, em seu jeito descuidado,
amistoso, clamoroso, maternal-prosaico, informara a Alice
que ela iria em breve menstruar, mas tinha certeza de que de
qualquer maneira a filha já sabia de tudo a respeito. Claro que
Alice estava a par de tudo pela escola, mas o fato de a mãe
lhe falar incluía em sua agenda, por assim dizer, fazia com
que se tornasse real. Ficara furiosa, não com a natureza, mas
com a mãe. Daí por diante, sua atitude em relação "à praga"
— a mãe insistira em usar essa palavra espirituosa, alegando
que era acurada — fora de eficiência neutra. Não permitiria
que qualquer coisa tão tediosa se intrometesse em sua
maneira de viver.
Quando as pessoas a sondavam sobre suas atitudes em rela-
ção ao feminismo e à política sexual, era sempre a esse
começo (como o considerava) que ela remontava.
"Claro que as pessoas devem ser iguais", comentava, já
começando a parecer um pouco irritada. "Nem é preciso
dizer."
Em suma, ela sempre se descobria numa posição falsa.
Agora, em silêncio, aninhando o café a esfriar depressa, ela
sorria e esperava que o assunto do professor fascista ficasse
para trás. Foi o que aconteceu, e Bert comentou:
— Sempre gostei de Milchester.
Isso pareceu completamente despropositado a várias pessoas.
Será que ele estava bêbado? Sem dúvida já havia bebido mais
do que a sua cota habitual. Todos o tratavam com
indulgência nos últimos tempos, por causa de Pat. Talvez
inconscientemente. Sua aparência, seu estado reclamavam
isso das pessoas. Bert andava esquelético, apático, até mesmo
distraído; era como se outros pensamentos corressem
paralelos aos que ele expressava. E Bert acrescentou:
— Sempre foi uma cidade com guarnição militar.
Exclamações de incredulidade. Faye disse:
— Oh, Deus, você ficou louco? Gosta dessas coisas? Guerra,
soldados?
— E interessante — insistiu Bert. — Porque as cidades
continuam iguais por séculos e séculos. Milchester já era
uma cidade-guarnição no tempo dos romanos.
Silêncio. Atordoados com o rumo tão diferente do habitual,
os outros lembraram que Bert estudara história na
universidade.
— E o mesmo acontece com os países, diga-se de passagem
— continuou Bert. — A Inglaterra é sempre igual. A Rússia
também. A Alemanha...
— A qualquer momento vamos ter o caráter nacional, como
o destino genético — interveio Faye, furiosa.
Retornando à realidade pelo tom de Faye, Bert deu de om-
bros e se calou.
— Vamos para Milchester — declarou Jasper.
Olhando para Alice, ele sorriu e depois piscou.
Orgulhosamente: ele sentia orgulho por tratá-la tão bem.
Isso significava que Jasper pagaria para ela a passagem de
trem. Tarifa de fim de semana. Onze libras. Pelos três, trinta
e três libras. Com esse dinheiro poderiam comprar... Mas
isso era absurdo, as pessoas precisavam de um descanso.
Férias. O camarada Andrew assim dissera.
Ela sorriu com intimidade para Jasper, lágrimas de gratidão
iminentes, mas os olhos dele desviaram-se da pressão de sua
emoção, Faye disse a Roberta, com a maior veemência:
— Parece que nós duas ficaremos sozinhas!
— Nunca sozinhas, querida. Tenho certeza de que vai apa-
recer uma porção de gente.
Faye deu uma risadinha, olhando acusadora para os
camaradas, depois acrescentou:
— Vou dormir.
E saiu sem se despedir. Roberta sorriu, pedindo a todos
tolerância para com Faye, e saiu em seu encalço. Puderam
ouvir Faye dizer na escada que eram todos fascistas e
machistas. Sorriram uns para os outros.
Reggie e Mary disseram que viriam buscá-los às cinco horas
da manhã seguinte para chegarem a Cumberland a tempo
para a manifestação, e por isso queriam dormir cedo.
Philip também saiu; começaria a trabalhar às oito horas da
manhã.
Jasper, Bert e Alice continuaram na cozinha, discutindo o
dia seguinte. Alice compreendeu que Jasper não queria que
ela jogasse ovos ou frutas na senhora Thatcher. Ele não
chegou a dizê-lo, mas era óbvio. O que significava que ele a
queria a seu lado, não na prisão. Isso a deixou na maior
felicidade e gratidão. Impulsos afetuosos atacavam seus
braços incessantemente: ansiavam por abraçá-lo. Beijos
fraternais habitavam seus sorrisos. Jasper sentiu isso e passou
a se dirigir pessoalmente a Bert, embora explicasse os planos
a ela. Não deixaria que o prendessem, porque em breve
partiria com Bert para a União Soviética. Os vistos seriam
concedidos a qualquer momento, mas se não desse para
aquela viagem, então haveria outra com vagas dentro de uma
semana.
Alice estava desapontada por ter de ficar na parte ordeira da
multidão, mas não tinha importância, pois sempre haveria
outras ocasiões.
Bert anunciou que ia deitar. Jasper se levantou no mesmo
instante e disse que também ia. Alice compreendeu que
Jasper não queria ficar a sós com ela, embora soubesse que
ele se sentia feliz por tê-la ali, quando Bert também estava.
Ela subiu para o quarto que partilhara com ele, ao lado do
quarto de Bert. Sem a companhia de Pat, é claro que Bert
fazia menos barulho, mas andava dormindo mal, como Alice
podia ouvir. E naquela noite, mesmo com a porta fechada,
ela pôde ouvir que Faye estava tendo um dos seus ataques.
"Faye teve um dos seus ataques ontem à noite", Roberta
poderia dizer, esquecida de que a frase antiquada —
vitoriana? — uma vez usada jocosamente por Faye ("Eu
estava tendo um dos meus ataques, minha cara"), tinha o
objetivo de ser cômica e por isso se tornara parte do
linguajar comum. Nos momentos em que Roberta a usava,
adquiria uma aparência corriqueira, passada, era como uma
serva ou pessoa da classe mais inferior falando numa peça.
Teatral. Quando Faye e Roberta eram autênticas? Só quando
se sentiam derrotadas, abatidas, por alguma pessoa ou
situação, pressionadas a se tornarem pessoas que usavam
aquelas vozes desgraciosas, rudes e impetuosas, que faziam
com que parecessem assumidas por estranhas lamentáveis...
e não se podia esperar que tais estranhas conhecessem Faye
e Roberta.
Alice dormiu mal. Acordou para ouvir Reggie e Mary des-
cerem; suas vozes joviais soavam altas, como se fossem as
únicas pessoas na casa, que lhes pertencia. Ouviu Roberta e
Faye descerem, quietas, sem falar. Eram nove horas quando
Bert acordou, no quarto ao lado. Ele pôs-se a acender um
cigarro depois de outro. Alice pensou: Talvez acabemos não
comparecendo à manifestação contra a desgraçada da
Thatcher hoje. E desceu para a cozinha, determinada a não
deixar transparecer seu desapontamento. Em seguida Bert
apareceu, foi acordar Jasper, que poderia cancelar a excursão
com a maior facilidade, como Alice logo percebeu. Chovia
muito.
Mas eles deixaram a casa e foram pegar o trem, ficaram
observando Londres dar lugar aos campos, através das janelas
sujas do vagão e das mortalhas cinzentas de chuva. Bert
mantinha-se em silêncio, acalentando seus pensamentos,
que — Alice desconfiava — partilharia com Jasper, se ela
não estivesse presente. Jasper a tratava com extrema polidez.
Saltaram na estação e pegaram um ônibus para a universi-
dade. Os prédios enormes e frios assomaram através do agua-
ceiro. Alice sentiu um ódio assassino povoar seu coração.
Conhecia a maioria das novas universidades; visitara-as, lá
participara de manifestações. Quando contemplava uma,
sentia que se confrontava com a personificação visível do
mal, algo que desejava esmagar e reduzir a nada. O inimigo.
Se eu pudesse pôr uma bomba debaixo de todos esses
prédios, pensou, se eu pudesse... Um dia desses...
Estavam atrasados. Diante da entrada principal se agrupavam
cerca de sessenta manifestantes, sob capas de plástico e
guarda-chuvas, vigiados por oitenta e tantos guardas. Ao
deparar com a cena, Jasper se animou e correu para a frente,
gritando:
— Porcos fascistas! Porcos! Porcos! Covardes! Quantos de
vocês são necessários para cada manifestante?
Alice correu para alcançá-lo, a fim de se manter a seu lado,
pronta para acalmá-lo. Bert se foi atrás, devagar, andando,
não correndo.
Os carros oficiais se aproximaram. Antes que Alice, Jasper e
Bert pudessem alcançar a multidão, a senhora Thatcher sal-
tou e foi levada rapidamente para o interior. Frutas e —
como Alice esperava — ovos voaram pelo ar e se espatifaram
com um barulho abafado. A senhora Thatcher já entrara.
Os manifestantes entoaram um coro de: "Fora os mísseis
nucleares, fora, fora! Fora os mísseis nucleares, fora, fora!"
E continuaram, bravamente. A senhora Thatcher ficaria lá
dentro pelo menos por duas horas.
Os guardas estavam entediados e ressentidos, obrigados a
ficar parados ali, sob a chuva; estavam prontos para a menor
provocação. Uma garota perto de Alice pegou uma laranja
grande no chão e arremessou-a num guarda, cujo capacete
foi derrubado. Na maior satisfação, dois guardas avançaram
para ela. A garota esquivou-se pela multidão por um
momento, mas eles acabaram agarrando-a e arrastaram-na,
inerte, os cabelos castanhos compridos encharcados em sua
esteira, para um camburão. Os dois guardas voltaram sob um
coro de vaias. Alice podia sentir que Jasper a seu lado vibrava
com uma excitação frustrada. Ele ansiava por uma luta de
verdade. E Alice também. Até os guardas, que sorriam com
um ar de desafio para os manifestantes. Alice, lembrando seu
papel, disse a Jasper:
— Tome cuidado com aquele ali. É um carrasco e está an-
sioso pela oportunidade de acertar você. — Como Jasper
parecia prestes a explodir em ação, ela acrescentou: — Não
se esqueça de que hoje é sábado. Não queremos passar o fim
de semana na cadeia. E não se esqueça também de sua
viagem.
Outros, menos onerados pelas circunstâncias, jogaram frutas
e ovos nos guardas e foram prontamente levados para os
camburões à espera.
— A porra do Estado policial! — berrou Jasper, quase
descontrolado de tanta excitação.
Ele corria pela multidão, como se estivesse sendo persegui-
do. A multidão aproveitou sua deixa, gritando também:
— Estado policial! Estado policial!
Alice percebeu que os policiais trocavam um sinal com os
olhos; compreendeu que todos seriam presos à menor
provocação. Ansiava por isso, ansiava pelo momento em que
sentiria a violência rude das mãos dos guardas em seus
ombros, ficaria inerte, seria arrastada para o camburão... Mas
ela disse a Jasper:
— Vamos correr.
E os dois se afastaram, de mãos dadas. Bert, parado sozinho à
beira da multidão, também se afastou quando começaram as
prisões. Mas logo parou e ficou observando. Acabaria sendo
preso dentro de mais um momento. Alice, o sangue em
fogo, o rosto distorcido pela excitação, saiu correndo,
esgueirando-se entre os guardas, admirando a própria
habilidade. Agarrou Bert e gritou:
— Vamos sair daqui!
Despertado, Bert murmurou:
— Ah, sim... Isso mesmo, Alice.
E ele seguiu-a.
— Agarrem-nos! — gritou um guarda, enquanto os três se
afastavam em disparada.
Cinco ou seis guardas foram atrás deles, mas um escorregou
numa poça, caiu e deslizou pela lama, tentou se levantar e
caiu de novo. Os outros se agruparam ao seu redor.
Desapontados porque a perseguição fora tão breve, Bert,
Jasper e Alice encaminharam-se para o ponto do ônibus. A
chuva era intensa e fria.
Sentiam-se deprimidos, agora que não havia mais o desafio
da polícia. Não fora uma confrontação das mais satisfatórias.
Todos pensavam que haviam gastado muito dinheiro por
pouca coisa.
Entraram num café. Os homens comeram salsichas e batatas
fritas. Alice pediu uma saudável sopa de legumes.
Debateram se deveriam voltar à universidade para a saída da
senhora Thatcher. Alice era a favor, embora temesse o efeito
sobre Jasper daquele rosto tory, rosa e branco, seguro e
complacente. Se ele passasse o fim de semana na cadeia, a
passagem não teria mais validade, e as tarifas para a segunda-
feira eram o dobro.
Mas ela sentia que não fizera o suficiente pelo dinheiro
investido.
Concordaram em voltar, a fim de demonstrar solidariedade
aos outros — se é que ainda restava algum manifestante por
lá. Mas a chuva apertou. Um autêntico dilúvio tropical, se é
que uma chuva tão fria merecia o nome de tropical.
Foram para a estação e, deprimidos, voltaram para Londres.
Lá chegando, foram ao cinema. Em casa, encontraram Faye
e Roberta na cozinha e trocaram informações. Ficou
evidente que eles — Jasper, Bert e Alice — teriam feito
muito melhor se comparecessem à manifestação contra o
professor, que fora um tremendo sucesso. Cerca de mil
pessoas, garantiu Faye — automaticamente Alice corrigiu
para "seiscentas". A maioria de mulheres, mas também
muitos homens. Empurraram o professor de um lado para
outro, quase o derrubaram, deixaram-no completamente
abalado.
— Isso pelo menos fará com que ele pense um pouco —
comentou Roberta, feliz, lembrando como gritara que ele era
um machista nojento, a soldo dos fascistas.
Até mesmo a manifestação contra Thatcher parecia eficaz,
em retrospectiva. Afinal, algumas pessoas haviam sido
presas. Reggie e Mary tinham uma televisão no quarto, como
não podia deixar de ser. Todos subiram e se apinharam lá
dentro, fazendo piadas sobre a cama enorme, os móveis
impecáveis, os tapetes. Sentaram na cama e assistiram aos
noticiários. Não houve qualquer referência ao professor
fascista, mas exibiram um breve filme dos manifestantes
lutando com a polícia na universidade. Os três ficaram
desapontados por não aparecerem na tela. O locutor
informou que em determinado momento a polícia receara
que tivesse sido lançada uma bomba.
— Foi uma laranja! — gritou Alice.
Todos riram e escarneceram, desceram para mais conversa
na cozinha, levando quatro garrafas de vinho de uma caixa
que Mary e Reggie tinham guardada sob a cômoda.
— Eles não vão se importar — disse Faye, rindo, mas de uma
forma que indicava que todos sabiam que eles se importa-
riam e muito.
Philip chegou, mas estava cansado e foi logo deitar.
Os cinco ficaram bebendo e conversando até tarde.
As manifestações pareciam cada vez melhores à medida que
a noite passava. Beberam aos camaradas nas celas da polícia.
Alice sentia-se triste por não estar lá. Há algum tempo que
não era presa, e já começava a achar que não estava se
empenhando ao máximo na Luta. Mas ainda bem que isso
não aconteceu, pois na segunda-feira Jasper e Bert foram
informados de que os vistos haviam sido concedidos e
podiam viajar. Eles partiram naquela tarde. Alice murmurou,
no momento da despedida:
— Espero vocês dentro de dez dias.
Percebeu que os dois trocavam um olhar — mais uma vez, o
ridículo, insultuoso e absolutamente óbvio olhar "secreto"
que as pessoas sempre usavam. Ocorreu-lhe, de maneira
desconcertante, que eles não esperavam voltar em dez dias.
Ela pensou em tudo isso com muito cuidado, dormiu com o
problema, no dia seguinte mandou um recado para o endere-
ço que Pat lhe deixara.
"Bert e Jasper viajaram", escreveu ela. "Por que você não
vem passar um ou dois dias comigo? Se não vier, escreva,
por favor. Sabe alguma coisa sobre a viagem? Bert por acaso
disse que não voltaria em dez dias?"
A carta provocou um cartão em resposta: "Telefone para
mim às nove horas de quinta ou sexta-feira. Muito amor,
Pat". Esse "muito amor" magoou Alice e fê-la chorar um
pouco.
Quando ouviu a voz exuberante, firme e agradável de Pat,
Alice suplicou:
— Volte, por favor, Pat.
— Estou sem dinheiro.
— Pagarei sua passagem. Venha logo.
Pat disse que iria e Alice compreendeu, pela melhoria em
seu ânimo, quão pouco se sentia à vontade com Faye e
Roberta, quão pouco tinha em comum com os respeitáveis
Reggie e Mary.
Pat chegou no dia seguinte, e as duas requisitaram a sala de
estar, ali se instalaram, conversando, trocando as novidades.
Pat encontrara, na comuna em que agora vivia, pessoas que
Alice conhecia. Ela teve de contar a manifestação anti-
Thatcher. Também mencionou, delicadamente, o professor
fascista, esperando algum apoio de Pat para seus
pensamentos particulares. Mas no rosto de Pat surgiu aquela
expressão desamparada e ressentida que Alice meio que
esperava. Ela pegou o cigarro e pôs-se a fumar furiosamente.
— Não pode imaginar que é por acaso que toda essa história
de diferença genética está sendo apregoada agora, Alice!
— Por quê? — indagou Alice, tímida, mas obstinada. — Está
querendo dizer que ele é pago para isso? Por quem? Pela
CIA?
Pat sacudiu a cabeça, cada vez mais furiosa, soprou nuvens
amargas e disse, vagamente:
— E por que não?
Alice resolveu parar por aí; não havia sentido em continuar.
Em vez disso, perguntou a Pat por que seria que ela, Alice,
tinha a impressão de que Bert e Jasper não planejavam voltar
para casa tão cedo. Pat suspirou e fitou a amiga com uma
compaixão inequívoca.
— Eles estarão em casa, Alice, no dia marcado — disse ela,
gentilmente. — Mas pensam que não voltarão tão cedo,
entende?
Alice compreendia. Mais do que isso, percebera tudo no
momento em que Jasper falara a respeito pela primeira vez.
Mas depois bloqueara o pensamento, porque era
dolorosamente ridículo.
— É a Irlanda outra vez. Eles planejaram tudo. Dirão ao guia
da Intourist: "Camarada, queremos falar com alguém que
tenha autoridade".
— Santo Deus! — murmurou Alice, envergonhada. — Essa
não!
— É exatamente o que vai acontecer. E é claro que o guia da
Intourist vai responder: "Com quem gostariam de conversar,
camaradas? Com o camarada Andropov?" Jasper e Bert dirão,
modestamente: "Oh, não, não é preciso tanto. Alguém
menos importante servirá para nós".
Pat estava rindo, mas não feliz, já que escarnecia de Bert; e
Alice sofria por Jasper.
— No mesmo instante camaradas importantes vão aparecer e
dizer: "Camarada Willis, camarada Barnes? Ao seu dispor!"
Jasper e Bert explicarão que resolveram fazer o treinamento
para espiões, de preferência na Tchecoslováquia ou Lituânia.
"Mas é claro! Que idéia excelente! Precisaremos apenas de
uma ou duas horas para acertar tudo. Esperem um pouco
pela minha volta, camaradas."
Alice riu irresoluta, parou de rir e comentou:
— Tem toda a razão. Mas o que me diz do camarada
Andrew?
— O que tem o camarada Andrew?
— Não acha que ele é descuidado demais? Pergunta a qual-
quer pessoa com quem simpatiza se não quer fazer um
pequeno treinamento.
— Ele não foi muito feliz em sua escolha.
— Bert?
— Bert recusou. Mas tente imaginar Bert sob disciplina em
algum lugar. Em alguma espécie de situação estruturada. Ele
tem muitas qualidades.
— E eu? — indagou Alice, hesitante. — Vai dizer que preciso
de uma situação estruturada?
— Claro que não. O que precisa é...
— Está bem, está bem, já sei. Livrar-me de Jasper.
— Pobre Alice...
— E pobre Pat!
— Isso também!
Alice encostou a cabeça no braço da poltrona, esvaída de
toda a energia, como acontecia nos momentos em que
contemplava Jasper claramente.
As duas permaneceram em silêncio por alguns minutos.
Alice não se mexia; Pat fumava, irrequieta.
— Além disso, há muita gente sabendo, Pat. O que impediria
as pessoas de informar?
— Informar à polícia?
— Isso mesmo.
— Qual de nós faria isso?
Alice deixou que os rostos das pessoas conhecidas desfilas-
sem diante de seus olhos. Empertigou-se, de olhos fechados,
contemplando aqueles retratos mentais. Faye. Roberta. Bert.
Jasper. Pat. Ela própria. Muriel. Caroline? Jocelin?
— Acho que ninguém.
Mas continuou como estava, empertigada, olhando. Agora
era a sua cena com Andrew depois que ela vira o... o que
quer que havia no fundo do buraco no jardim da 45. Pat não
sabia disso. Somente ela, Alice, sabia... Somente ela, Alice,
sabia, porque não contara a ninguém e jamais contaria. Era
de confiança. Porque isso era verdade, e sentia confiança em
sua absoluta discrição, também sentia confiança no camarada
Andrew.
— Isso mesmo, acho que concordo com você, Pat.
Falou com modéstia, com um ar de discrição, de julgamento
ponderado. Pat sorriu com afeição, porque era uma atitude
típica de Alice; e disse, mudando deliberadamente de
assunto e de ânimo:
— E agora vamos nos divertir! Foi para isso que vim até aqui!
Pat sugeriu então uma porção de pequenos prazeres em que
Alice nunca pensaria pessoalmente.
Foram tomar chá no Savoy, para começar. Pat fez tudo para
agradar Alice. Usava uma saia preta de lã muito bonita, que
comprara numa liquidação, parecia mais atraente e elegante
que qualquer outra mulher no Savoy de muitas colunas,
dourado e romântico. Alice vestira uma saia, mas afora isso
estava como sempre. Comeram muito e Pat foi exigente com
o chá. Saíram como piratas vitoriosos.
Depois, passaram uma manhã na Harrods, comprando com
os olhos. Ou melhor, Pat agiu; Alice não se importava com o
luxo, mas apreciou a satisfação de Pat, que usava de novo a
espetacular saia preta de lã, que a fazia parecer exótica, muito
pouco britânica. No dia seguinte, com a chuva passando,
foram ao Regent's Park e passearam por entre as poças e
lilases e cerejeiras em flor.
Pat finalmente anunciou que precisava voltar para casa. E
Alice percebeu que ela disse "casa" com uma ênfase toda
especial.
— Voltará a me visitar, Pat? Muito em breve?
Pat parecia constrangida. Riu e respondeu:
— Acho que não tornaremos a nos encontrar, Alice. Ou
melhor, talvez sim. E também talvez não...
Ela procurava gracejar a respeito, como era seu jeito, mas os
olhos transmitiam uma mensagem de pesar.
— Por quê? — indagou Alice. — Por quê? Por quê?
Pat ficou séria no mesmo instante.
— Já lhe disse que sou séria, Alice, ao contrário daqueles
nossos dois lunáticos.
E, com isso, ela beijou Alice, lágrimas nos olhos, e saiu
correndo para o metrô. E saiu também — Alice podia
compreender — de sua vida.
Alice dormiu com esse problema, mas não se sentia
esclarecida quando despertou pela manhã. Talvez não
quisesse ficar.
Parecia ter perdido o ímpeto, não sentia vontade de fazer
coisa alguma. Joan Robbins estava no jardim. Alice
conversou com ela por algum tempo. Entre outras coisas,
descobriu que as duas casas estavam vazias há seis anos.
— Isto é, não exatamente vazias — comentou Joan Robbins,
embaraçada.
Falou das pessoas que moravam lá antes de a prefeitura
desapropriar as casas, famílias com filhos e netos, muitos
visitantes. Eram excelentes jardineiros: os dois jardins
estavam maravilhosos.
Pouco depois apareceu uma espécie de assistente social e
trouxe a velha para sentar no jardim. Alice conversou com
ela também. Como sempre acontecia quando saía de sua
própria vida para o mundo das pessoas comuns, sentia-se
dividida, confusa. Assim se sentira durante o tempo todo em
que vivera com Jasper na casa da mãe; fora por isso que não
quisera continuar lá, estava sempre pressionando Jasper para
irem embora. Agora, depois de semanas com sua própria
gente, camaradas de um tipo ou outro, a convicção de que
sua espécie de vida era a única (para ela agora, para todos
mais tarde) estava reforçada. Joan Robbins parecia-lhe
patética, mexendo nas clematites com seus fungicidas e
sprays; a velha era meio demente, levando Joan Robbins à
loucura com exigências contínuas. Pensando firmemente "A
vida não pode ser assim!", Alice voltou ao número 43 e na
porta deparou com Caroline, da outra casa. Ela tinha um
embrulho para Alice. Entregou-o, disse que não queria
entrar e seguiu para o ponto de ônibus. Alice abriu o
embrulho. Era dinheiro. No vestíbulo, contou rapidamente.
Quinhentas libras. Com um bilhete de Muriel: "O camarada
Andrew disse que isto era para você".
Alice guardou o pacote no saco de dormir e foi ao número
45. Muriel saía no instante em que ela chegou, carregando
uma valise. Mas, a princípio, Alice não a reconheceu.
Depois, percebeu que Muriel não se sentia feliz ao vê-la, pois
provavelmente contava em ir embora antes que Alice
chegasse.
— Preciso falar com você, Muriel.
— Acho que não tenho nada a dizer.
As duas foram para a sala usada pelo camarada Andrew, ago-
ra convertida em quarto, pois havia quatro sacos de dormir
arrumados junto às paredes.
Muriel parou no meio da sala, esperando que Alice come-
çasse. Largou a valise a seu lado.
Ela não estava usando o seu uniforme de batalha ou qualquer
outro traje parecido. Em vez disso, vestia um elegante
costume de linho azul. Da Harrods. Alice o vira lá
anteontem.
E usava o corte de cabelo da princesa Diana.
Alice sabia que Muriel era uma garota de classe superior, por
isso a detestava tanto. Como todos de sua laia, Muriel tinha a
mesma atitude desdenhosa e altiva, implícita em cada palavra
e olhar. Em sua escola democrática progressista, Alice
conhecera muitas garotas assim e decidira logo na primeira
semana que as odiava e sempre odiaria.
Outro pensamento que lhe ocorrera era o de que o camarada
Andrew tivera uma ligação amorosa com Muriel por causa
da atração que garotas assim exerciam sobre os homens das
classes operárias, que professavam desprezá-las.
— Por que o camarada Andrew deixou aquele dinheiro para
mim?
— Não tenho nada a ver com isso — respondeu Muriel,
incisiva e áspera, como Alice já esperava. — Absolutamente
nada.
— Ele deve ter dito alguma coisa.
As duas ficaram se olhando na sala grande, cheia de claridade
e dominada pelo ruído do tráfego na rua principal.
— Esse maldito tráfego... — murmurou Muriel.
Ela foi até as janelas, uma, duas, três, e fechou-as com uma
batida estrondosa.
Voltou a se postar diante de Alice, aproveitando o intervalo
(para isso fora até as janelas) para decidir o que falar. Alice
antecipou-se com uma pergunta:
— O que devo fazer em troca?
Ao ouvir isso, a camarada Muriel exibiu uma irritação bem
controlada.
— Não acha que é um problema que deve discutir com o
camarada Andrew?
— Mas ele não está aqui. Quando voltará?
— Não sei. Se ele não aparecer, haverá algum outro. — E
como Alice continuava a confrontá-la, obstinada, ela definiu
a situação como a via: — Alice, você está conosco ou contra
nós.
— Eu estaria com vocês... com o camarada Andrew... sem o
dinheiro, não é?
— Ou prefere ser um daqueles idiotas úteis?
Alice não reagiu, persistindo na postura de interrogatório
infinitamente paciente e obstinado.
— Lênin — acrescentou Muriel. — Um idiota útil: vago e
incontrolado entusiasmo pelo comunismo. Pela União
Soviética. Mas você sabe de tudo isso.
Alice, na verdade, mal lera Lênin. Sentia por ele uma espécie
de reverência de todo o seu ser, como uma genuflexão, co-
mo se fosse o Homem Perfeito. E espantoso que tal gigante
possa ter vivido!, esse era o seu sentimento, mais do que
suficiente. E por falar nisso, não lera muito mais de Marx
além do Manifesto comunista. Sempre dizia de si mesma:
"Não sou uma intelectual!", com um sentimento de
superioridade.
Agora, sentia que a mulher-ganso estava sendo irrelevante,
além de ofensiva.
— Não creio que o camarada Lênin desprezasse as pessoas
que admiravam sinceramente as conquistas da classe operária
nos países comunistas — declarou Alice, tão incisiva e
autoritária quanto a camarada Muriel.
Que se manteve em silêncio, fitando Alice com olhos azul-
claros um pouco protuberantes. Só depois de algum tempo é
que disse:
— O camarada Andrew tem o seu potencial em alta conta.
O relance de prazer que a invadiu tornou Alice imune a
qualquer coisa que Muriel pudesse pensar. E ela disse,
humildemente:
— Fico contente por isso.
— Creio que não há mais nada a dizer.
Muriel pegou a valise.
— Já vai partir para a sua carreira de crime, hem?
Alice riu efusivamente do que acabara de dizer. Muriel sor-
riu polidamente, mas estava furiosa.
— Espero que seja na BBC — comentou Alice, pensativa.
Uma pausa e ela se apressou em acrescentar: — Ou em
algum outro lugar parecido.
Muriel ficou imóvel por um instante, com a valise na mão,
depois largou-a no chão, deu um passo na direção de Alice e
declarou, incisiva:
— Alice, não deve fazer perguntas assim. Não... deve...
fazer... perguntas... assim. Está me entendendo?
Alice sentia-se no estado sonhador em que sabia de tudo, um
estado em que confiara durante a vida inteira.
— Mas imagino que irá primeiro para uma escola de
espionagem na Tchecoslováquia ou Lituânia.
Muriel soltou uma exclamação de espanto, ficou vermelha.
— Quem lhe contou?
— Ninguém me contou. Se vai a algum lugar com essa cara,
então suponho... é só isso, uma suposição.
Alice estava contrafeita, duvidando de si mesma. Muriel a
observava atentamente, os olhos parecendo pistolas.
— Se tem inspirações tão brilhantes, deveria guardá-las só
para si.
— Não sei por que está tão irritada. Todo mundo sabe onde
ficam as escolas de espionagem soviéticas.
— Sei disso, mas...
A mulher-ganso parecia dominada por uma grande
exasperação. Olhava para Alice como ela já se descobrira
observada muitas vezes. Como se fosse uma pessoa em quem
não se podia acreditar, alguém impossível! Com Jasper, em
tais ocasiões, ela dizia, obstinada:
"Não entendo por que tudo isso. Alguma coisa perfeitamente
óbvia está acontecendo, eu faço um comentário e as pessoas
se mostram desconcertadas. Acho que é infantil".
Depois de uma pausa, Muriel concluiu:
— Imagino que foi Andrew quem contou a você. Ele não
devia ter feito isso. — Ela pensou por um momento. —
Estou bastante aliviada por sair desta esfera. Ficarei mais feliz
com alguém num nível superior.
— Ele não está num alto nível?
— Se estivesse, não lidaria com pessoas como a gente —
respondeu Muriel, com um sentimento intenso, súbito e
inesperado.
Alice riu de surpresa por Muriel ser capaz de admitir, mesmo
num instante sentimental, que se encontrava num nível
inferior ao de qualquer outra pessoa.
— E isso mesmo — acrescentou Muriel. — Ele também via-
jou para fazer um treinamento. E, na minha opinião, bem
que está precisando. As vezes há algo de muito errado com o
seu julgamento.
Com isso, ela tornou a pegar a valise e encaminhou-se para a
porta.
— Adeus. Creio que nunca mais tornaremos a nos ver. A não
ser que você resolva aceitar o treinamento. O camarada
Andrew vai sugerir.
Seu tom deixava bem claro o que ela pensava do plano do
camarada Andrew. Mas Alice compreendera subitamente
mais uma coisa.
— Santo Deus, acabei de perceber... Pat também vai, não vai?
— Se ela contou a você, não devia.
— Pat não me contou nada. Eu apenas...
— Estou atrasada.
E Muriel foi embora, demonstrando um grau de alívio que
fez Alice pensar: Ela vai precisar de muito treinamento para
não deixar transparecer cada coisa que passa por sua cabeça.
Alice voltou devagar ao número 43 e sentou-se só à mesa da
cozinha para pensar.
O pensamento mais forte, na verdade mais um sentimento
ou um anseio, era o de que Jasper não lhe dissera que
pensava que se manteria ausente por muitos meses. Isso
mesmo, ele fora "simpático" para compensar. Mas não lhe
contara! Jasper nunca a traíra antes. E verdade que sempre
houvera uma parte de sua vida sobre a qual nada lhe falava;
Alice aceitava tal situação. Mas a parte política... sempre
haviam discutido tudo.
Ele se tornara capaz de ausentar-se por seis meses, um ano,
sem dizer nada. Bert? Seria influência de Bert?
É verdade que havia a questão da segurança, ela podia
compreender. Mas não mudava o que sentia agora.
Algo se rompera entre os dois; Jasper cortara o laço que os
unia.
Faria alguma coisa — iria embora para outra comuna,
renunciaria a Jasper (mas esse pensamento deixou-a
completamente gelada e triste), diria a ele que... diria
qualquer coisa, mas não continuaria assim. As pessoas
estavam certas, Jasper a usava.
Com isso, foi pegar o pacote de dinheiro do camarada An-
drew no saco de dormir e procurou uma agência de
poupança.
Depois, voltou à mesa da cozinha, passou a tarde sentada ali,
observando a luz do céu se apagar, sentindo a casa escurecer
ao seu redor. Não queria conversar com ninguém. Quando
ouviu Mary e Reggie chegarem, saiu e ficou andando
sozinha pelas ruas. Parou por algum tempo diante do prédio
de apartamentos onde a mãe agora morava. Nenhuma das
luzes que podia ver na fachada era de sua mãe, pois o
apartamento dela ficava nos fundos. Foi dar uma olhada no
pequeno cartão em que estava escrito Mellings. Voltou para
casa, torcendo para que a cozinha estivesse vazia. Eram onze
horas.
Não havia ninguém lá. Teria uma boa noite de sono e
decidiria o que fazer na manhã seguinte. Provavelmente
visitaria algumas comunas onde tinha amigos. Ou talvez
fosse ao Festival Marxista de Verão na Holanda. Encontraria
pessoas que sabia que estariam lá; ou então faria novas
amizades.
Uma coisa já estava determinada: não se encontraria ali
quando Jasper e Bert voltassem, dentro de dez dias... não,
em menos de uma semana, agora.
Gostaria de ter mergulhado imediatamente num sono
profundo, a fim de abster-se de qualquer pensamento, mas
ninguém dormiu muito no número 43 naquela noite, pois
Faye gritou e esmurrou as paredes sem parar.
Alice pensou, pela primeira vez, que o motivo de Faye estar
ali e não na comuna das mulheres, onde as duas passavam
tanto tempo, era o fato de ela não ser bem-vinda lá — mais
do que isso, fora expulsa. Não aturariam aquela louca. Já não
suportavam mais. Era óbvio, quando se pensava um pouco a
respeito: ela podia passar o dia na comuna, mas não a noite,
perturbando o sono das pessoas. Mas pobre Roberta! Sua voz
baixa, premente, gentil, pôde ser ouvida durante quase toda a
noite, tranqüilizando e advertindo.
Acordada, escutando o desespero de Faye, seu sofrimento,
Alice pensou, como sempre, que um dia, muito em breve,
não haveria mais pessoas como Faye. Nem como Muriel.
Não mais pessoas avariadas pela vida.
Pensou também — muito firme, deixando a mente se abrir
para uma perspectiva após outra — nas implicações do que
aprendera desde que chegara ali. Não tinha antes a menor
idéia de nada daquilo! Havia pessoas assim por todo o país —
uma rede, para usar a palavra do camarada Andrew. Pessoas
boas e competentes vigiavam e esperavam, julgando quando
outras (como ela, como Pat) estavam maduras, podiam se
tornar úteis.
Sem se tornarem suspeitos dos pequenos burgueses,
dominados pela superestrutura mental da Inglaterra fascista-
imperialista, pobres escravos da propaganda, esses guardiães,
esses observadores, detinham em suas mãos todos os
cordões. Nas fábricas, grandes indústrias (onde o camarada
Andrew queria que ela trabalhasse); no serviço público (que
era o lugar para a camarada Muriel!); na BBC, nos grandes
jornais — por toda parte a rede se espalhava, até mesmo em
lugares insignificantes, como aquelas duas casas, 43 e 45,
ocupações autorizadas, comunas sem importância. Nada era
pequeno demais para ser ignorado, todos com algum
potencial eram notados, observados, avaliados... o que lhe
proporcionou um sentimento de segurança e conforto.
Alice finalmente dormiu quando Faye se calou; continuaria a
dormir manhã afora se Roberta não batesse em sua porta,
gritando que tinha uma coisa importante para dizer.
Alice sentou no mesmo instante, esperando por más
notícias.
Roberta estava com uma aparência horrível, como não podia
deixar de ser. Seus olhos estavam vermelhos, o rosto con-
traído de exaustão. Mais do que isso, ela fora empurrada para
a outra Roberta. Havia nela um aspecto de vulgaridade,
como uma mulher dos cortiços num filme da década de 30,
ainda mais quando pôs um cigarro no canto da boca e
deixou-o pender, enquanto falava, agachada ao lado do saco
de dormir de Alice. Usava um robe imundo.
— Tenho más notícias, Alice. Minha mãe está no hospital em
Bradford. Tenho de ir até lá. Está me entendendo? Tenho de
ir até lá.
Alice percebeu que Roberta ainda argumentava com Faye
em sua mente e perguntou:
— O que ela tem?
— Câncer — respondeu Roberta, a expressão sombria. —
Está doente há muito tempo. Eu já devia ter ido.
Sua voz também regredia: havia agora entonações do North
Country. Será que ela era dos cortiços de alguma cidade
industrial do norte?
Alice já podia adivinhar tudo. Roberta lhe pediria para "ficar
de olho" em Faye, que não podia ser deixada na comuna das
mulheres; sem Roberta, elas não suportariam Faye nem
mesmo durante o dia. Ela, Alice, por um prazo
indeterminado, teria de...
— Eu ia contar a você que acabei de tomar a decisão de fazer
uma viagem.
A voz de Alice parecia dura e soturna, como a de Roberta,
que ao ouvir isso deixou escapar um som de choro. Pegou a
mão de Alice e apertou, fitando-a nos olhos.
— Oh, Alice, por favor, por favor! Não posso deixar Faye
sozinha! O que aconteceria?
Roberta tremia. Alice podia sentir sua exaustão se
transmitindo a ela, através da mão que apertava a sua.
— E não tem a menor idéia de quanto tempo ficará ausente
— murmurou Alice.
Roberta largou a mão de Alice e sentou, o cigarro pendendo
dos lábios, os olhos vazios. O último recurso.
— Oh, Deus! — exclamou Alice. — Acho que não há outro
jeito. Mas não sou você, Roberta. Não vou mimar Faye como
você faz...
Roberta ficou subitamente inerte. Encostou a cabeça nos
joelhos, derrubando o cigarro no saco de dormir. Alice
pegou- o prontamente e ficou olhando para Roberta,
encolhida na posição uterina, os braços em torno dos
joelhos.
— Você não imagina o que isso significa para mim, Alice.
Não pode...
— Claro que compreendo. Sem você, Faye não conseguiria
resistir. Seria internada num hospício. Passa todo o seu tem-
po cuidando para que ela não caia nas mãos deles.
Roberta empertigou-se, as lágrimas escorrendo, suplicante.
— Alice...
— Mas há o outro lado da questão. Ela se comporta pior em
sua companhia do que com qualquer outra pessoa. Porque
você permite.
Enquanto Roberta fazia menção de protestar, Alice
continuou, objetivamente:
— Oh, não, não estou dizendo que ela não é pirada... ela é
mesmo... mas já notei que às vezes alguém assim se compor-
ta de maneira normal com todo mundo, faz tudo, nem se
pensaria que era pirada. Mas existe uma pessoa, uma só, com
quem ela perde o controle. Dá o que pensar.
Roberta a observava atentamente. Um novo cigarro estava
sendo aceso, e, enquanto essa operação se realizava, os olhos
de Roberta não se desviaram do rosto de Alice. Lá estava
outra vez a Roberta do número 43, a pobre Roberta de um
passado terrível fora sepultada de novo. E ela comentou, sem
demonstrar qualquer aborrecimento:
— Já pensei nisso. Não é estranho? Faye é normal com todos
os outros... ou quase sempre... — Nesse ponto, ela convidou
Alice, com um pequeno sorriso pesaroso, a lembrar o
incidente em que Faye descera correndo a escada, aos gritos
estridentes, para expulsar Mónica. E outras coisas. —
Provavelmente ela estará bem com você.
— Se não tentar o suicídio.
Uma expressão intensa de repúdio. Um rápido balanço de
cabeça, que significava, como Alice sabia: Não estou disposta
a sequer pensar sobre isso.
— Precisamos pensar nisso.
— Tenho de me vestir e partir, Alice. Vou pegar o trem
dentro de uma hora.
Roberta saiu correndo. Voltou logo depois, como Alice sabia
que aconteceria, com os vidros de pílulas.
— Se cuidar para que ela tome estas pela manhã e estas antes
de deitar...
Alice pegou os vidros com uma expressão que dizia: Você
sabe muito bem que não posso obrigá-la a nada.
— Sei que não tem sentido dizer obrigada, Alice. Mas se
algum dia eu puder ajudá-la...
Cinco minutos depois Alice ouviu-a descer correndo e dei-
xar a casa.
Faye não acordaria antes de meio-dia ou mais tarde.
Alice demorou-se a tomar banho e se vestir, estava na cozi-
nha tomando café quando Caroline apareceu.
Há algum tempo que queria fazer amizade com Caroline,
mas sentia agora que isso seria a última gota. Pegando a
chaleira e o pote de café, como se já morasse ali, Caroline
disse:
— Alice, vim perguntar se posso me mudar para cá.
Alice limitou-se a dar de ombros, mas estendeu sua caneca
para que Caroline tornasse a enchê-la.
Caroline, depois de uma rápida inspeção de Alice com seus
olhos penetrantes, encheu as duas canecas e foi sentar com a
sua na outra extremidade da mesa.
— Qual é o problema?
Alice contou.
— E apenas um problema a curto prazo — proclamou
Caroline, descartando-o.
Alice riu.
— Está certo. E qual é o problema na outra casa?
Caroline mexia vigorosamente o açúcar em seu café, um ges-
to que anunciava autodeterminação nos dias atuais, quando
as pessoas confessam tomar açúcar, como no passado podiam
fazer com um problema de alcoolismo. Ela servira três
colheres de chá de açúcar e pegou a caneca para tomar com
uma satisfação evidente e voraz.
Alice tornou a rir, só que agora de uma maneira diferente.
Acertara em cheio: ela e Caroline já estavam no início
daquele processo misterioso, conhecido como "dar-se bem".
— A policia deu uma batida lá na noite passada.
— Não tinham acertado tudo com a prefeitura?
— Estávamos sempre para fazer isso, mas não chegamos a
resolver. Mas não faria qualquer diferença.
— Então o que eles estavam procurando?
— Alguma coisa. Rebuscaram tudo.
— E não havia nada?
— Nada.
Caroline ficou esperando pelas perguntas que Alice formu-
lava em sua mente.
— Alguém dedurou?
— Achamos que não. Para dizer a verdade, acho que eles
procuravam por muamba.
— Mas ninguém usa, não é?
— Maconha sim, heroína não. Tenho a impressão de que eles
pensaram que a 45 era um esconderijo. Quilos e mais quilos
de heroína da melhor qualidade por baixo do assoalho.
Alice pensava rapidamente. Seu rosto se contraía, como o de
um cachorro ansioso.
— Ei, relaxe, Alice. Não aconteceu nada demais.
— Por quanto tempo... coisas entraram e saíram da outra
casa?
— Não por muito tempo. Umas poucas semanas. E quase
sempre apenas por um dia ou pouco mais. As vezes apenas
por uma ou duas horas.
— Sempre para o camarada Andrew?
— Ele organizava tudo.
— Como o camarada Andrew se instalou naquela casa?
— Ele conheceu Muriel em algum lugar. Está muito na de
Muriel.
— Está querendo dizer que ele escolheu a 45 para morar
porque Muriel se encontrava lá?
— Ele não mora lá. Está sempre entrando e saindo. Acho que
nunca passou mais que dois ou três dias consecutivos.
— E a camarada Muriel está na de Andrew.
— Para dizer a verdade, acho que ela não está muito
interessada.
— Ora, não me importo com essas coisas — murmurou
Alice, como sempre entristecida e repugnada por tais assun-
tos. — Seja como for, parece muito arriscado.
— Por quê? Não havia como encontrar qualquer prova. A
polícia já apareceu três vezes desde que estou morando lá.
Nunca descobriram nada. Houve uma ocasião em que
metade dos sacos de lixo só tinha lixo suficiente para cobrir o
que realmente continham.
— E era o quê?
— Coisas, entende? — murmurou Caroline vagamente,
tirando com a colher o açúcar úmido e amarelado do fundo
da caneca e lambendo com a língua grossa e rosada.
Alice ficou em silêncio. Registrava tudo o que podia daquela
criatura rechonchuda e saudável, sentada ali a irradiar
satisfação física. Tentava compreender o segredo. Mas,
notou Alice, embora ela pudesse parecer uma foca lustrosa,
sorrindo e falando — presumivelmente — sobre explosivos,
suas pupilas permaneciam contraídas e inflexíveis. Isso lhe
proporcionava uma expressão astuta, até mesmo fria, que
deixou Alice aliviada. Sentiu que se podia contar com
Caroline.
— Acho que eram explosivos — comentou Alice, indiferen-
te. — Foi o que pensei desde o início.
— Qualquer coisa assim. Mas eu disse ao camarada Andrew:
"Algum de nós foi convidado a opinar sobre o que entra e
sai? Não me lembro de ter havido uma votação".
— Chegou lá antes dele?
— Muito antes. Fui morar lá há um ano. Fiquei sozinha por
semanas, até que Muriel apareceu. E depois, subitamente,
Andrew chegou. Nunca soubemos como Muriel teve
conhecimento... eu diria que a camarada Muriel não é mais
habitante natural de uma comuna do mundo.
— Concordo com você nesse ponto.
— Mas ela logo assumiu o comando. E depois vieram Paul e
Edward... e penso agora que ela os chamou porque Andrew
mandou. Convidei então algumas amigas minhas, três
garotas, que viviam numa casa horrível em Camberwell. Mas
Muriel não demorou a se livrar delas.
— Como?
— Não pelo que fez, mas sim pelo que ela é... — respondeu
Caroline, ponderada, sorrindo com a satisfação de falar e ser
compreendida.
Ela esperou que Alice risse. Alice riu, e Caroline
acrescentou:
— Elas não gostavam da maneira como Muriel controlava
tudo e resolveram ir embora quando Andrew chegou.
Alice pensava em tudo aquilo. E pela maneira como Caroline
a fitava, sabia que a outra esperava que ela fizesse justamente
isso, pensar.
— Muito bem — murmurou Alice finalmente. — Então você
não gosta do camarada Andrew.
— E quem é o camarada Andrew? Quem é ele para dar or-
dens e determinar o que pode e o que não pode acontecer?
— Não somos obrigados a fazer o que ele diz. Cabe a nós
dizer sim ou não.
— Mas é difícil dizer não quando um carro aparece com
cinco caixas de panfletos. Ou alguma outra coisa.
Mais café. Mais açúcar. Alice não pôde evitar um pensamen-
to: Seus dentes...
— E quer saber de mais uma coisa? — disse Caroline, amável,
receptiva, porém com os olhinhos castanhos duros e
controlados. — Não me importo com a porra da União
Soviética. Ou com a porra da KGB. Ou com qualquer outra
coisa do gênero.
"KGB" pronunciado assim causou um choque e tanto a Alice;
não chegara a dizer a si mesma: Estou envolvida com a KGB.
Além do mais, as palavras possuíam uma característica
implacável, que era difícil associar com o camarada Andrew.
Depois de um momento de silêncio, ela comentou:
— Mas é uma maneira útil de obter treinamento, pelo menos
para algumas pessoas.
— Só para algumas pessoas. E se quiserem esse tipo de
treinamento.
— Há alguma coisa em tudo isso que não se ajusta — con-
cluiu Alice, com um pouco de dificuldade.
Era difícil criticar o camarada Andrew. Ou pelo menos em
voz alta; em seus pensamentos, não podia se conter.
— Tem toda a razão. E sabe o que é? Tenho dispensado ao
assunto a mais persistente consideração... por mais estranho
que isso possa parecer.
Alice riu, como a outra esperava.
— Isso mesmo. Em minha experiência, que não é das mais
vastas, mas suficiente, tudo se transforma em alguma espécie
de confusão. Fica-se imaginando tramas espantosas e
fantásticas, organizadas até os últimos detalhes
extraordinariamente eficientes, mas quando se descobre a
verdade sobre qualquer coisa, até sobre as conspirações da
KGB, tudo não passa de uma confusão estúpida.
Alice sentia-se agora realmente perturbada, porque sua mãe
já dissera aquilo. E sempre o comentava nos últimos tempos
— parte daquela fase nova e desconcertante em que ela se
encontrava. Durante os últimos quatro anos, Alice ouvira
muitas vezes Dorothy Mellings exclamar, com uma
satisfação tão intensa pelo escândalo que a deixava furiosa:
— Não passa de outra maldita confusão, só isso! Eles meteram
os pés pelas mãos! Não perca seu tempo tentando entender!
E apenas mais uma embrulhada dessa gente!
Quase sempre o comentário era para Zoé Devlin, que ten-
tava argumentar com ela — com Dorothy. Do mesmo jeito
que ela vinha fazendo ultimamente com a mãe, paciente,
perseverante, quando ouvia esse tipo de coisa.
— Nem tudo pode ser apenas uma confusão, Dorothy. O que
deu em você? Será que não quer mais se incomodar em pen-
sar sobre as coisas?
E Dorothy Mellings respondia para Zoé Devlin:
— Quem não está querendo pensar? Acho que é você. Vive
em algum mundo de sonho todo rosado, tudo vai bem, tudo
é sensato e resultado de decisões amadurecidas. Pois não é
nada disso! Tudo é apenas uma tremenda trapalhada!
Ouvir as palavras da mãe saírem de forma tão complacente
do rosto rechonchudo e risonho de Caroline era um golpe
grande demais para Alice, que perdeu uma boa parte do que
a outra acrescentou. E ouviu, quando tornou a prestar
atenção:
— Acho que o nosso camarada Andrew não estava à altura
de suas funções. Tenho a impressão de que o Ocidente lhe
subiu à cabeça. Ou pelo menos a vida farta.
— Então que Deus o ajude — murmurou Alice, repugnada.
— Tem toda a razão. E Muriel era demais para ele, uma
garota da alta-roda, Roedean e todo o resto.
— Roedean?
— E mais escola preparatória, curso de culinária para
gourmets e uma porção de coisas. Não é espantoso como as
classes superiores aderem ao comunismo? Acha que o
camarada Marx previu isso em sua bola de cristal?
— Olha só quem está falando — protestou Alice, sabendo
que não era certo falar assim de Marx.
— Eu? Não sou da classe superior. Apenas da velha e ente-
diada classe média, como você.
— Estou a uma geração da classe operária. Pelo lado de mi-
nha mãe.
— Meus parabéns — disse a camarada Caroline, rindo.
— Apesar de tudo, tenho certeza de que a camarada Muriel
vai se sair muito bem.
— Quem disse que não? Nasceu para isso. Já posso até ler as
manchetes: "Toupeira vermelha apanhada em flagrante em...
" Onde você acha que vai ser?
— BBC — respondeu Alice, incapaz de se conter.
— É possível. Ou no Times. Talvez o Guardian?
— O Times. E o estilo errado para o Guardian. Mas
provavelmente, quando ela concluir o treinamento... Ela é
muito inteligente, tenho certeza.
— Eu também sou, mas o camarada Andrew não foi atraído
para a camarada Muriel por causa de seu potencial para a
espionagem. Os dois quase não saíam da cama. Ou, para ser
mais exata, do chão.
Alice desligou o interruptor, dizendo vagamente:
— Ora, não me importo com essas coisas. E daí? Muriel
partiu. Andrew partiu. Você quer ficar aqui. Isso deixa...
— E Jocelin também quer vir para cá.
— Quer dizer que só restarão Paul e Edward na outra casa?
— Eles vão se mudar para um apartamento esta semana.
Arrumaram emprego. Ou melhor, Andrew conseguiu para
eles. Num lugar dos mais estratégicos.
— O que significa que em breve haverá um novo grupo de
ocupantes na outra casa.
— Só não quero estar lá. Não tem água quente. Um lugar frio
como a Sibéria. Muito diferente desta casa.
Havia um quarto vazio no último andar e outro ao lado do
quarto de Faye e Roberta.
— Não vejo por que não, Caroline.
— Mal posso esperar para vir. Além de tudo, a policia esca-
vou aquele buraco no jardim e o lixo que enterramos está
voando por toda parte.
Por algum motivo, isso pareceu a Alice a última gota que ela
esperava.
— Oh, não! — lamentou ela. — Oh, Deus, não!
— Oh, sim. Voltamos ao ponto de partida. Dissemos para
eles, depois que escavaram tudo: "Não vão pôr o lixo de volta
no lugar?" E eles nos mandaram à merda. Encantadora como
sempre, a polícia. Bom, vou buscar minhas coisas.
Alice foi também até a outra casa, parou no portão e ficou
olhando. Lixo por toda parte, e soprava o vento firme da
primavera. O buraco que ela explorara — e vira o quê? — era
uma vala repulsiva, a terra clara empilhada ao redor em
montinhos irregulares.
Mas ela não podia deixar Faye sozinha, por isso voltou.
Faye só desceu ao anoitecer, pálida e triste, pronta para
chorar. Mas mantinha o controle e estava disposta a
participar do jantar comunitário, com Caroline e Jocelin,
Reggie e Mary, Philip e Alice.
Tudo corria muito bem até às nove horas mais ou menos,
quando houve uma violenta batida na porta.
— Oh, não! — exclamou Caroline. — De novo!
Alice já estava na porta da frente, abrindo-a com um sorriso.
Dois policiais, um deles o jovem de expressão rancorosa.
Estavam de mau humor, incumbidos de fazer alguma coisa
que não desejavam.
— Fomos informados de que vocês têm alguma coisa en-
terrada no jardim — anunciou o jovem mal-encarado. —
Vamos escavar para verificar o que é.
— Vocês já sabem o que é. Nós avisamos.
Alice não estava rindo. Sabia que por muito pouco aqueles
dois começariam a quebrar a casa toda.
— Sabemos apenas o que você nos contou — protestou o
outro policial, que Alice nunca vira antes.
— Vou pegar uma pá para vocês — sugeriu Alice.
— Trouxemos a nossa, obrigado.
Alice conduziu-os ao lugar onde fora aberta a fossa. A luz da
cozinha incidia ali.
— E aqui mesmo que a terra foi revolvida — disse o jovem
rancoroso ao companheiro.
Alice tratou de se retirar apressada para o interior da casa. E
recomendou aos outros, que pareciam prestes a explodir em
risadas:
— Não façam isso ou eles se vingarão em cima da gente! —
Para Faye, que soltava risadinhas abafadas e balançava, à
beira da histeria, ela acrescentou: — Fique quieta, Faye!
Alice sabia que se o pequeno psicopata lá fora fosse provo-
cado por Faye, seria capaz de fazer qualquer coisa. E
arrematou:
— Podemos rir depois, não agora.
— Ela está certa — concordou Caroline.
Eles sentaram, os rostos impassíveis, contendo uma angústia
de riso.
Lá fora, à luz que vinha da cozinha, os dois homens cava-
ram. Por não mais que dois ou três minutos. Depois se
empertigaram, apoiaram-se por um momento em suas pás e
desapareceram.
Alice tomara a precaução de deixar a porta da frente aberta, a
fim de que todos fossem visíveis, sentados ao jantar: a co-
zinha confortável, as flores, a comida.
Ela foi até a porta, polida e prestativa.
O jovem rancoroso parecia prestes a explodir num acesso de
raiva.
— Vocês deviam ser processados! — gritou, olhando além de
Alice para a cena na cozinha.
— Comunicamos tudo o que fizemos. Eu estive pessoalmente
na delegacia para apresentar um relatório.
Alice sabia que essa era a expressão correta, "apresentar um
relatório".
O policial ficou parado, literalmente rangendo os dentes para
Alice, preparado para avançar, quebrar e destruir. Mas ela
tomou o cuidado de evitar seus olhos, mostrar-se passiva e
até indiferente.
O outro homem já estava no carro da polícia.
Um minuto depois eles foram embora. Alice saiu, pegou a pá
que os policiais haviam deixado e usou-a para repor a terra
removida. Não estava tão ruim assim. A natureza, como era
de esperar, fazia seu trabalho muito bem.
Quando voltou à cozinha, sua aparência foi o sinal para uma
celebração de risos e gracejos. Parecia que não podiam mais
parar de rir, especialmente Caroline e Jocelin, para as quais
toda a história era novidade. Alice não sentia muita vontade
de rir. Sabia que não era o fim; os visitantes voltariam.
Sabia também, ao olhar para Faye, que era improvável que
ela dormisse muito naquela noite. E já passava de três horas
da madrugada quando Faye subiu, aceitou dois Mogadons de
Alice e despediu-se afavelmente.
Não demorou muito, no entanto, para que ela começasse a
chorar. Não o choro ruidoso e irado que tinha quando Ro-
berta se encontrava presente, mas os soluços desamparados e
desesperados de uma criança. Alice foi ao seu quarto,
sentou-se com ela, segurando sua mão. Faye não pegou no
sono até às sete horas da manhã, e Alice dormiu sentada ali,
ao seu lado.
Vários dias passaram. Faye esforçava-se ao máximo, todos
sabiam disso e a apoiavam. Quando ouvia pessoas na
cozinha, ela descia e sentava-se conversando sobre tudo
com a maior graça, como tão bem sabia fazer, encenando o
seu pequeno número cockney. Mas tendia a cair em silêncio
de repente, com o olhar fixo; alguém tentava então despertá-
la gentilmente, trazê-la de volta ao convívio geral.
Ela se ofereceu para ensinar a Alice como fazer um
ensopadinho econômico, ficou uma delícia, todos gostaram.
Alice especulou como ela podia suportar — se tinha alguma
consciência disso — a maneira como todos viviam em
suspense por seus humores. Mas Faye não teve um colapso
nem chorou. Parecia normal, até mesmo uma pessoa
comum; e Caroline e Jocelin chegaram a comentar que não
compreendiam por que todos se preocupavam tanto com
Faye. Ela era simpática, muito inteligente, conhecia política
a fundo. Acontece que Faye lera muito, mais do que
qualquer ocupante da casa; era especialmente versada em
Althusser. Escrevera parte de uma tese sobre Althusser na
universidade, onde só permanecera por dois períodos, antes
de sofrer um colapso.
Faye só ia deitar muito tarde; quando o fazia, dizia a Alice
que estaria muito bem sozinha.
Alice levantava-se durante a noite com freqüência, para
escutar do lado de fora da porta de Faye. Tinha a impressão
de que Faye quase não dormia; muitas vezes ela chorava,
baixinho, sem querer incomodar os outros. Em outras
ocasiões, Alice podia ouvi-la a andar pelo quarto, acendendo
cigarros, até cantando para si mesma.
Roberta escrevera; tinham o endereço do hospital. Sua mãe
morria lentamente; Roberta voltaria assim que pudesse.
Uma semana passou. Jasper e Bert já deveriam estar de volta.
Então chegou um cartão-postal escrito por Jasper e assinado
pelos dois, remetido de Amsterdam: "Gostaríamos que vocês
estivessem aqui. Voltaremos em breve".
Caroline e Alice passavam muito tempo juntas. Esgotada,
Alice precisava da vitalidade natural dela, de sua animação.
Caroline admirava-a, não parava de falar sobre a maneira
como Alice transformara aquela casa.
Jocelin se mantinha em seu quarto a maior parte do tempo.
Estava no alto da casa. Parecia ter pouco a dizer a eles... ou a
qualquer outra pessoa, diga-se de passagem. Era uma
observadora silenciosa — e, pensava Alice, assustadora. O
que fazia no quarto? Caroline dizia que ela estudava manuais
para aprender a ser uma boa terrorista. Fazia o comentário
rindo, como era o seu estilo.
O fim de semana se aproximou.
Na sexta-feira, Reggie e Mary partiram para Cumberland,
assim que Mary saiu do trabalho, para outro sábado de
manifestações. Jocelin também deixou a casa, limitando-se a
dizer:
— Até segunda.
Caroline avisou que passaria o fim de semana com um antigo
namorado, que casara com outra, se separara e ainda desejava
casar com ela. As vezes ela pensava em aceitar; com mais
freqüência, pensava que não. Apesar disso, gostava da
companhia do antigo namorado; haviam se divertido muito
juntos. Ela convidara Alice a acompanhá-los. Alice teria
concordado, se não fosse por Faye. Sentia-se amargurada,
sentada sozinha à mesa da cozinha; Faye subira para se
deitar, e Philip também estava em cima.
Se tudo estivesse correndo bem — ou seja, sem Faye —, ela
teria ido embora sem deixar um endereço para Jasper; não
importava para onde. Precisava fazer pé firme, declarar que
já era demais. Podia até abandoná-lo.
Repetindo para si mesma como estaria melhor sozinha, sen-
tiu o coração gelar e entristecer; parou, limitando-se a
concluir: "Vou apenas dar uma lição nele, e mais nada".
Mas como poderia lhe ensinar alguma coisa se continuava
ali, obediente, esperando por sua volta? O que quase
certamente aconteceria dentro de um ou dois dias.
Aquela história da mãe de Roberta fora um desastre, tanto
para ela quanto para Roberta e Faye.
E assim ela remoía, tomando café e mais café, sentada
sozinha.
Ainda não era meia-noite quando subiu. Parou diante da
porta de Faye, escutando: não havia qualquer som. O que era
muito estranho. Faye nunca dormia antes das duas ou três
horas da madrugada.
Alice viu a si mesma, parada ali, o ouvido encostado numa
porta, no patamar escuro. Ficou furiosa, consigo mesma,
com todo mundo: uma ira de auto-compaixão. Foi para seu
quarto e decidiu dormir logo. Mas não conseguiu. Quando se
encontrava sã e salva em sua camisola vermelha vitoriana,
foi até a janela e ficou observando o tráfego. Sentia-se
extremamente irrequieta e apreensiva. Vá outra vez até a
porta de Faye, disse a si mesma. Ora, já chega, trate de se
deitar e pare com isso! Mas não o fez. Abriu a porta do outro
quarto silenciosamente, ficou parada ali, como um fantasma,
preparada para ouvir Faye gritar que fosse embora, que a
deixasse em paz, parasse de bisbilhotar... A luz estava
apagada, o quarto mergulhado na escuridão. Podia-se divisar
Faye, uma trouxa no canto. Havia um cheiro forte. Ao
compreender que o cheiro era de sangue, Alice acendeu a
luz e gritou. Faye se encontrava estendida de costas, apoiada
nas almofadas bordadas, muito branca, a boca entreaberta, os
pulsos cortados repousando em cima das coxas. O sangue
encharcava tudo.
Alice continuou a gritar.
Previra aquilo, temera, mais ou menos sabia que era
inevitável. Sempre soubera que não podia suportar a visão de
sangue, que perderia o controle se se descobrisse numa
situação assim. Foi por isso que continuou parada gritando.
Philip chegou. Os gritos dele, abafados e cautelosos,
penetraram em sua mente.
— Alice, Alice, o que aconteceu?
Ela parou de gritar. Em sua volumosa camisola vermelha, era
como uma fêmea num melodrama vitoriano. Apontou um
dedo para a visão horrenda e estremeceu. Philip disse:
— Ela cortou os pulsos.
Ele passou o braço por Alice, que era muito mais alta e pe-
sada, o que o fez cambalear. Juntos, perderam o equilíbrio e
se descobriram a segurar o alizar da porta.
Alice teve de recuperar o bom senso, o controle.
Foi para o lado de Faye. O sangue ainda jorrava, pulsando,
em ondas vermelhas.
— Temos de estancar a hemorragia.
Ela olhou ao redor, encontrou uma echarpe numa cadeira,
amarrou-a em torno dos pulsos de Faye, como algemas. A
hemorragia cessou. Philip, também recuperando o controle,
anunciou:
— Vou chamar uma ambulância.
— Não pode fazer isso! — gritou Alice.
— Por que não? Ela vai morrer.
— Não vai, não! Será que não entende? Ela não pode ir para
um hospital!
— Por que não?
— Roberta nunca nos perdoaria. A polícia, entende? A
polícia...
Philip olhava para Alice como se estivesse diante de uma
louca.
— Tem alguma atadura elástica na casa?
— Por que teríamos isso aqui? — indagou ele, consternado.
— Tem razão. A sua fita isolante. A que usa nos serviços de
eletricista.
Ele já se afastava para buscá-la. Alice ajoelhou-se ao lado de
Faye, que parecia ter se tornado tão leve e vazia quanto uma
folha morta. Como se pode verificar o pulso de uma mulher
que cortou os dois? Onde mais há uma pulsação?, especulou
Alice, frenética, espiando aqui e ali. Aproximou o rosto das
narinas de Faye e sentiu uma ligeira respiração. Faye não
estava morta. Mas tanto sangue perdido, tanto... Tudo estava
encharcado de sangue. Faye se encontrava no meio de uma
poça vermelha.
Philip entrou correndo no quarto, com um rolo de fita
isolante preta. Alice prendeu-a em torno de um pulso, como
uma pulseira, a fim de impedir o sangue de esguichar,
enquanto Philip cobria o ferimento. Fizeram a mesma coisa
no outro pulso, e Alice retirou a echarpe.
— Ela perdeu muito sangue — murmurou Alice.
— Precisa receber uma transfusão — insistiu Philip,
obstinado, o rosto indicando sua crítica a Alice.
— Precisamos lhe dar algum líquido. Não, espere...
Alice desceu correndo até a cozinha. Preparou uma mistura
de água quente, sal e açúcar, já que não havia glicose
disponível. Subiu correndo.
— Ela está inconsciente, Alice — comunicou Philip, ainda
com a expressão de aversão, de hostilidade. — Como pode
beber alguma coisa se está inconsciente?
Alice ajoelhou-se, passou o braço por baixo da cabeça inerte
de Faye, a fim de erguê-la, tentou despejar o líquido por sua
boca.
— Vai entrar nos pulmões — protestou Philip. — Você a está
afogando.
E foi então que, milagrosamente, Faye engoliu.
— Beba isto, Faye — ordenou Alice. — Você tem de beber.
Faye parecia querer sacudir a cabeça, mas engoliu. Era por-
que tinha o hábito de aceitar ordens... as ordens de Roberta.
Alice sabia disso e procurou falar com uma voz suave e
amorosa, como a de Roberta.
— Beba tudo, Faye. Você tem de beber.
Devagar, durante mais de vinte minutos, Alice conseguiu
fazer com que Faye engolisse cerca de meio litro da mistura.
Depois descansou. Estava encharcada de suor. O suor era do
terror, ela sabia.
Philip ajoelhou-se aos pés de Faye, observando. Sua expres-
são de desaprovação, até mesmo de horror, não se atenuara.
Era Alice quem o horrorizava, ela sabia disso e não se impor-
tava.
— Ela não vai morrer — declarou Alice, em voz alta, tanto
para Faye quanto para Philip. — Fique aqui. Faça-a beber
mais um pouco, se puder. Ela deve ter feito isso um minuto
antes de termos entrado. Vou telefonar para Roberta.
Philip ocupou o lugar de Alice, passando o braço sob a ca-
beça de Faye. Estendeu a mão para o jarro cheio de líquido.
Alice pensou, vendo-os assim — a frágil e lívida Faye, o frá-
gil e pálido Philip —, que os dois eram da mesma espécie,
vítimas, nascidos para serem pisoteados e esmagados. Havia
alguma coisa de vingança nesse pensamento em relação a
Philip, pois Alice sabia que ele estava revoltado com sua
atitude.
Ela correu para a casa de Joan Robbins. Não havia luz acesa.
Comprimiu o botão da campainha com um dedo e não mais
o soltou. Podia ouvir o ruído estridente lá dentro. Uma
janela foi levantada por cima de sua cabeça e ela ouviu a voz
ríspida de Joan Robbins:
— O que foi? Quem está aí?
— Deixe-me entrar! — gritou Alice, a voz como a de uma
criança ou a de Faye. E como Joan Robbins não deixasse
imediatamente a janela, ela acrescentou: — Sou eu, Alice!
Alice, da casa ao lado!
As luzes se acenderam no vestíbulo, e Joan Robbins apare-
ceu, num roupão florido e chinelas vermelhas, furiosa,
aturdida e assustada.
— Preciso telefonar... é muito importante... tem uma pessoa
doente — balbuciou Alice.
Joan Robbins deu um passo para o lado. Junto ao telefone,
ela folheou as listas, que Joan tirou de uma capa de plástico e
entregou-lhe. Encontrou o que procurava, ligou para o
hospital em Bradford e deixou um recado para Roberta:
— Avise a ela que sua amiga está doente e que precisa vir
imediatamente.
Recomeçou a folhear as páginas, procurando por outro
número. Só quando viu a palavra "samaritanos" é que
compreendeu o que queria.
— Não quer ligar para 999? — indagou Joan Robbins, curiosa.
Alice sacudiu a cabeça e levantou-se, os olhos fechados, a
respiração irregular, como se estivesse prestes a desmaiar.
Joan correu para a cozinha, a fim de preparar um chá.
Alice ligou para os samaritanos. Uma voz firme e amável
atendeu. Ela não ouviu as palavras, apenas o tom. Ficou em
silêncio, escutando. Teria de dizer alguma coisa ou a voz
pararia, sumiria.
— Quero um conselho. Isso é tudo. Um conselho.
— Qual é o problema?
Ela não disse nada, limitou-se a ouvir a voz moderada e
prestativa, que continuou, dizendo que Alice não devia
desligar, que ninguém a pressionaria ou a qualquer outra
pessoa, ninguém a denunciaria, não importava o que ela ou
qualquer outra pessoa tivesse feito.
Alice manteve-se em silêncio até ouvir Joan Robbins
voltando, quando então disse rapidamente:
— Alguém cortou os pulsos.
Não houve tempo para mais. Joan chegou com duas xícaras
de chá quente.
Alice pegou a sua no mesmo instante, sabendo quão
desesperadamente precisava dela. Tentou beber o líquido
escaldante, enquanto escutava.
— Deve levar sua amiga para o hospital. O mais depressa
possível. Chame a ambulância. Ligue para 999. E uma
questão de vida ou morte. Precisa fazer isso imediatamente.
— E se eu não fizer isso? — disse Alice finalmente, esco-
lhendo suas palavras por causa de Joan, que se mantinha ata-
rantada a seu lado, exortando-a com sorrisos e olhares a
tomar o chá.
— Se não fizer... mas tem de fazer... o mais importante é
manter sua amiga acordada e fazê-la ingerir tanto líquido
quanto possível. Ela consegue beber?
— Consegue.
Alice continuou a escutar, como se fosse alguma música
distante e impossível, que distraía e confortava, acalmava e
oferecia um apoio infinito e inabalável.
Depois de alguns minutos, ela simplesmente desligou,
deixando que aquela voz sensata e gentil desaparecesse no
reino do inacessível. Ajustou o rosto ao brilho habitual, o
sorriso de boa moça, e disse a Joan Robbins:
— Obrigada. Muito obrigada. Eu estava falando com os
samaritanos. Sabe quem eles são?
— Já ouvi falar.
— São pessoas maravilhosas — murmurou Alice vagamente.
— Bom, é melhor eu voltar. Deixei outra pessoa cuidando de
tudo e não creio que esteja muito acostumado a alguém
doente.
Joan acompanhou Alice até a porta, com a expressão de
alguém que sente que não foi dito tudo e que espera que
possa ser dito, mesmo agora.
— Obrigada — repetiu Alice, polidamente. E depois
acrescentou, frenética, agradecida: — Obrigada, obrigada.
Ela saiu correndo pela escuridão. Joan Robbins esperou para
vê-la passar pela porta do número 43. Depois voltou para o
interior de sua casa, examinou as manchas de sangue no
telefone, listas e mesinha. Limpou a mesinha e ficou
pensando por alguns minutos. Decidiu não chamar a polícia
e foi para a cama.
Alice encontrou Philip e Faye exatamente como os deixara.
Mas os olhos de Faye estavam abertos e fixos no teto,
inexpressivos.
— Telefonei para Roberta — informou Alice.
Ela procurou uma camisola limpa ou alguma outra coisa,
encontrou um pijama, foi buscar água quente e panos. Ela e
Philip despiram Faye. Puxaram o saco de dormir
encharcado, tiraram os lençóis, removeram o colchão de
espuma de borracha, embebido de sangue, como uma
esponja. Não demorou muito para que Faye estivesse lavada
e vestida. Durante todo esse processo, ela se manteve inerte
e dócil. Mas Alice não se deixou enganar. Sabia que Faye
esperava pelo momento em que ela e Philip virassem as
costas, a fim de tirar as ataduras dos pulsos.
O saco de dormir de Alice foi trazido, junto com lençóis
limpos. Encontraram uma bolsa de água quente numa
gaveta. Levou algum tempo, mas finalmente Faye estava
deitada e acomodada, no calor e conforto.
Já eram mais de três horas da madrugada.
Alice pensava: Se Roberta se encontrava no hospital, já
recebeu o recado, está a caminho, pode chegar aqui pela
manhã.
Enquanto isso, ela e Philip deviam ficar sentados ali, para o
caso de um pegar no sono.
Ninguém dormiu. Faye permaneceu imóvel, o rosto como o
de um fantasma. Não fechou os olhos. Não olhou para eles.
Não disse nada.
Philip estava ajoelhado aos pés de Faye, Alice sentava-se a
seu lado. De vez em quando Alice levantava Faye, levava a
caneca a seus lábios e a fazia beber.
Philip saiu para preparar mais um pouco da mistura de sal e
açúcar com água, e também um chá para ele e Alice. Mas
não olhava para ela, não a encarava nos olhos.
Ficara bastante chocado por ela, pela situação, a tal ponto
que se desligava de tudo aquilo.
Alice pensou, em desafio, até zombeteira: Então isso define
Philip! E assim que ele é!
A manhã logo chegou, pois já era a segunda metade de maio.
Com o sentimento irritadiço e vazio que acompanha a
exaustão, Alice escutou o coro do amanhecer, refletindo que
gostaria de ouvi-lo com mais freqüência; tentou atrair os
olhos de Philip, partilhar com ele aquele momento de
renovação, de promessa. Mas Philip se manteve apartado,
ajoelhado ali, como um pequeno devoto, paciente, modesto,
pronto para ser útil. E absolutamente isolado. Alice acabou
dizendo:
— Se quiser, Philip, pode ir dormir. Darei um jeito de ficar
acordada. E quando não conseguir mais, eu o chamarei da
escada.
Significando: Não posso deixá-la sozinha aqui, não podemos,
nem por um segundo. Ele compreendeu, acenou com a
cabeça e saiu.
Faye resvalou para o sono ou fingiu dormir... Alice não sabia
qual das duas coisas, mas não estava disposta a correr qual-
quer risco. Continuou sentada, de vez em quando salpicando
água em seu próprio rosto, batendo em suas faces. Quando
fazia isso, tinha a impressão de ver um lampejo de alguma
coisa que podia ser divertimento ou pelo menos um
comentário no rosto passivo de Faye. Os sons de uma manhã
de domingo normal, o leiteiro, crianças brincando na rua,
vozes dos jardins. Eram sons que normalmente ela nunca
escutava...
A pilha ensangüentada no canto começava a deixar Alice
repugnada. Mas não podia se mexer, não devia se mexer.
Sabia que Faye não estava adormecida.
O tempo passou... e passou. Mais de uma vez, teve de se
controlar para não cair no sono, sacudindo-se bruscamente
para continuar acordada. Num momento em que agiu assim,
viu Faye abrir os olhos; trocaram um olhar. Alice: Não vou
deixar você partir; e Faye: Não pode me impedir, se eu
quiser.
Então, por fim, passos subiram correndo a escada, a porta foi
aberta e Roberta ajoelhou-se ao lado de Faye, cujos olhos
estavam agora abertos. E ela disse, numa voz que misturava
amor fervoroso, ira, exasperação, incredulidade:
— Faye, oh, Faye querida, como pôde fazer isso, como pôde!
Alice levantou-se e observou como Roberta pegava Faye,
gentilmente, ternamente, beijava-a, aninhava-a, inclinava-se
para beijar os pulsos cortados.
Faye encostou o rosto no peito da amiga e ali ficou, no seu
lar.
Roberta olhou para Alice por cima de Faye, com lágrimas
escorrendo pelas faces.
Ainda bem que ela chegou, pensou Alice.
— Minha mãe está em coma, por isso não tem problema.
— Então está tudo certo.
Alice recolheu as coisas manchadas de sangue e murmurou:
— Philip está dormindo há algumas horas. Assim, ele pode
descer para ajudá-la, se precisar. Mas eu preciso dormir
agora.
Foi para o quarto, mas não dormiu, por um longo tempo.
Reconstituía interminavelmente a cena em sua mente, a
infinita ternura de Roberta com Faye, a paixão de amor em
seu rosto ao olhar para Alice, o rosto de Faye comprimido
contra seu peito.
Quando acordou, estava determinada a partir. Já agüentara
demais. Se Jasper a quisesse, teria de encontrá-la. E não
deixaria o endereço. Tomaria o café da manhã e iria embora.
Mas é claro que não era mais de manhã. Dormira o dia in-
teiro. Lá embaixo encontrou Philip comendo os
remanescentes de um caldeirão de sua sopa. Percebeu que a
hostilidade da noite anterior se atenuara, modificara. Afinal,
Faye sobrevivera. E verdade que Alice sabia que Faye
poderia não ter sobrevivido. Mas pelo menos mantivera Faye
fora do alcance da Autoridade.
Alice esperou, indiferente, enquanto ele explicava alguma
coisa que planejara dizer, provavelmente ensaiara em sua
mente durante o dia inteiro.
Meio escutando, a mente concentrada em trens para aquela
noite ou para a manhã seguinte, pensando no lugar para
onde iria, Alice ouviu-se suspirar, o que fez com que
tornasse a fixar toda a sua atenção em Philip.
Ele estava com uma aparência horrível, pior do que a falta de
sono na noite anterior podia justificar.
Trabalhando das oito horas da manhã até o anoitecer e
durante os fins de semana, ele ainda não fora capaz de
cumprir o que prometera. A data que fixara para concluir os
trabalhos já passara e ainda restava a pintura, vários dias pela
frente. O grego dissera que fora enganado por Philip, nunca
teria contratado uma pessoa sozinha para realizar aquele
enorme trabalho de reforma e decoração, muito menos
alguém tão frágil quanto Philip. Se Philip não conseguisse
acabar o trabalho em dois dias, ele — o grego — consideraria
que houvera quebra de contrato e não pagaria a segunda
metade do dinheiro. (Philip já se vira em tal situação antes,
mas não esperava que também acontecesse dessa vez.)
O que Philip queria era ajuda da comuna. Reggie não estava
trabalhando! O que Reggie fazia durante o dia inteiro?, Philip
perguntou a Alice com veemência. Nem mesmo tentava
arrumar um emprego. Circulava por leilões, procurando
barganhas. Alice sabia que o sótão estava se enchendo com
móveis de Mary e Reggie, para não falar do quarto ao lado
daquele em que os dois dormiam. O que custaria a Reggie
ajudar Philip por dois dias?
— Mas ele sabe pintar? — indagou Alice, quase
mecanicamente.
A expressão contrafeita de Philip confirmou a convicção que
aflorou subitamente em Alice: Philip queria que ela o
ajudasse. Afinal, fora ela quem pintara a maior parte daquela
casa enorme — e pintara depressa e muito bem. Haviam até
gracejado que um profissional não seria capaz de fazer
melhor. E, na verdade, em um outro momento de seu
passado, Alice pintara casas profissionalmente e ninguém se
queixara.
A aversão a ela que Philip demonstrara na noite passada era
em parte uma decorrência do que vinha pensando há algum
tempo: Alice era a única que poderia resolver todos os seus
problemas, mas parecia não percebê-lo, recusava-se a
reconhecer sua necessidade.
Alice permaneceu em silêncio, os olhos baixos,
resguardando-se do pensamento de Philip. Por que ele
deveria esperar aquilo? Que direito tinha? A resposta era
evidente: ele fizera todo o trabalho naquela casa imensa por
um pagamento absolutamente inadequado. Fora Alice quem
quisera assim; os outros não se importavam. Agora era Alice
quem deveria compensá-lo. Claro que ela podia entender
tudo, a lógica da situação, a justiça. Mas queria ir embora,
sumir dali. Aquela casa, pela qual tanto lutara, parecia agora
uma armadilha, pronta para entregá-la de volta a Jasper, de
quem precisava escapar. (Mesmo que fosse por pouco
tempo, apressou-se em acrescentar seu triste coração.) Mas
sabia que ajudaria Philip, pois tinha de fazê-lo. Nada mais
justo.
E anunciou que ajudaria, viu todo o corpo de Philip, aquele
corpo frágil de pardal, convulsionar-se em soluços, o rosto
iluminado.
Acompanhou-o pela rua para conhecer as instalações. Eram
enormes, não um daqueles cubículos de beira de calçada,
com um balcão em que se serviam algumas fatias de tortas e
sanduíches. No meio da sala havia um balcão largo, acabado
mas sem pintura, com uma área enorme por trás para
preparar e cozinhar alimentos. Fogões, geladeiras e freezers
já haviam sido entregues e aguardavam o momento de
ocuparem seus lugares. Mas a parede nos fundos precisava de
reboco. Três paredes não se encontravam em estado dos
piores, mas precisavam de uma limpeza antes da pintura.
Pelo olhar de Philip, Alice compreendeu que ele tencionara
fazer mais com aquelas paredes do que agora planejava. Em
termos ideais, deveria haver mais de uma mão de tinta.
Philip observava-a, esperando por seu veredicto.
Mas enquanto Alice hesitava, sabendo que se um patrão
procurava por um pretexto para não pagar ou pagar menos
haveria de encontrá-lo lá, ouviu mais alguém ali, no enorme
espaço vazio. Virou-se para deparar com o homem que
contratara Philip. E o primeiro olhar foi suficiente para ter
certeza de que Philip seria enganado, não importava o que
fizesse ou como ela o ajudasse.
O grego era mesmo repulsivo. Os olhos pretos e pequenos
exibiam uma ira exagerada, como a que acompanha a defesa
de uma posição falsa. Ao ver Alice, ele gritou:
— Eu disse outro operário, não a sua namorada!
Ao que Alice respondeu, em sua melhor voz fria:
— Está cometendo um erro. Já fiz esse trabalho muitas vezes.
— Posso imaginar — escarneceu o grego, usando o desdém
com uma teatralidade consciente. — Deve ter passado uma
mão de tinta em sua cozinha.
— Seja como for, você está pagando muito mal — insistiu
Alice. — Pelo dinheiro que vai pagar por este trabalho, não
pode exigir muito.
Ela não sabia quanto Philip estava ganhando, mas bastava
olhar para aquele homem para saber que não era suficiente.
E sabia também que com um tipo desses era preciso ser
igualmente autoritário e arrogante.
Ela virou-lhe as costas e foi se postar diante da parede,
examinando-a. Philip seguiu sua deixa e foi para o seu lado.
O grego fingiu inspecionar o balcão e depois arrematou:
— Darei mais dois dias.
E se retirou. Mas Alice sabia que não havia esperança. Por
sua causa, Philip não seria enganado em muito; mas aquele
homem não tinha a menor intenção de pagar todo o preço
combinado.
Por isso, ela não disse a Philip que aquelas paredes deviam
ser raspadas e limpadas direito. Limitou-se a sugerir que se
Philip tinha um macacão extra, poderia começar a trabalhar
imediatamente; eram apenas dez horas. Ele foi trabalhar no
reboco, enquanto Alice pintava. Trabalharam a noite inteira.
Por duas vezes uma dupla de policiais, nenhum dos quais
conhecia Alice, passou por lá e olhou. O grego apareceu uma
vez, pensando que não estava sendo notado.
Pela manhã, Philip concluíra o reboco e Alice passara a
primeira mão de tinta em três paredes e no teto.
Ela tinha certeza de que o grego apareceria no instante em
que se retirassem e encontraria algum defeito no trabalho.
Alice e Philip voltaram ao número 43; e lá estavam Jasper e
Bert, comendo ovos com bacon. Havia alguma coisa neles
que não agradou a Alice — essa foi a primeira impressão,
antes que todos explodissem em sorrisos e abraços. Pois,
como era de se esperar, a presença de Jasper dissolveu tudo o
que Alice sentira antes; estava feliz, era ela mesma,
completa, quando fora apenas meia pessoa sem ele. E Jasper
também se mostrava satisfeito; até beijou-a, os lábios secos
em sua face, os braços a envolvê-la como um círculo de
ossos, mas significando afeição, significando amor.
Philip não ficou, disse que precisava tirar duas horas de sono.
Era o que se permitia, depois de duas noites e dois dias sem
dormir. Olhou para Alice, suplicante, pois ela dissera que
duas horas de sono eram tudo de que precisava antes de
reiniciar o trabalho.
Mas lá estava Jasper! Philip, da porta, olhou para Jasper; havia
em seu rosto o reconhecimento da inevitabilidade, Jasper
como o destino inexorável, pois é claro que agora Alice não
cumpriria sua palavra...
Mas Alice cumpriria sua palavra, embora soubesse naquele
momento, quando Jasper acabara de voltar e as pressões dele
ainda não haviam começado a se acumular, que tudo estaria
bem enquanto ouvisse o relato de suas aventuras, mas depois
não receberia coisa alguma, além de bruscos sins e nãos.
Havia alguma coisa naqueles dois homens — uma expressão
febril nos olhos, uma espécie perniciosa de excitação — o
que seria exatamente? Não tinha relação com a vida sexual
de Jasper, pois Bert não partilhava isso; mas Bert transmitia a
mesma impressão. Seria ira? Inquietação, sem dúvida.
Apenas exaustão? Talvez. Eles disseram que a travessia de
barco fora péssima e que não dormiam há várias noites.
Subiriam para dormir.
Alice explicou o que estava fazendo; as convenções da vida
comunitária garantiriam um elogio por ajudar um
companheiro.
Mas eles não fizeram qualquer menção a ajudarem também.
E subiram juntos, uma dupla, uma unidade, unidos por suas
experiências, a respeito das quais estavam dispostos a dizer
apenas que a excursão não fora das piores, o problema da
União Soviética era a burocracia; se os camaradas pudessem
aceitar isso, a visita ao país seria um prazer.
E depois da União Soviética? Haviam abandonado a excursão
em Moscou e seguido para a Holanda. Não parara de chover.
Bert foi para o seu saco de dormir no quarto ao lado do que
Alice ocupava. Jasper encontrou seu quarto, em cima, com
as coisas de Jocelin. Houve grandes estrondos no último
andar: Jasper empurrava para o patamar os móveis no quarto
ao lado do de Mary e Reggie. Alice sabia que isso estava
acontecendo, podia compreender, pelo barulho, que Jasper
se encontrava em um dos seus acessos de raiva, quando
podia deslocar armários e caixas como se tivesse a força de
dez homens. Ela dormiu, com seu despertador interno
armado para tocar duas horas depois.
Acordou triste, desesperada; não tinha como deixar de ajudar
Philip, mas sabia também que não podia realmente ajudá-lo.
E queria ficar com Jasper.
As instalações do grego ficaram prontas por volta de meia-
noite. Duas mãos de tinta em tudo. Até mesmo no reboco,
embora ainda fosse cedo demais para isso. Tudo feito às
pressas. E de forma adequada. Mas, pelo menos para Alice,
sem qualquer prazer.
A meia-noite os três estavam ali de novo, sob as luzes de
trabalho ofuscantes, agora cercados por paredes amarelas,
que o grego examinou atentamente, uma a uma,
desprezando-as.
Tudo aconteceu como Alice já sabia que seria inevitável.
O trabalho não estava bom; Alice era apenas uma amadora, e
Philip, um vigarista. Ele teria de pagar a alguém para arre-
matar tudo. (Claro que todos os três sabiam que isso era
mentira; os fregueses veriam um amarelo fresco e atraente
— que muito em breve, no entanto, começaria a descascar.)
Philip podia ir à polícia, se quisesse, mas nem mais um
penny... E assim ele continuou, gritando, dramático,
apontando indicadores em rejeição para o teto, o reboco,
dando de ombros para demonstrar seu desespero com a raça
humana, revirando os olhinhos pretos amargos.
Alice interveio com palavras frias e veementes. Discutiram.
Philip, branco como um ovo, gaguejava ao falar. Ao final,
Philip recebeu dois terços do combinado.
A uma hora da madrugada, Alice e Philip deixaram a loja
carregando escadas e cavaletes, sabendo que tudo seria
confiscado se ficasse ali. Alice ficou montando guarda,
enquanto Philip cambaleava pelo quilômetro até a casa,
carregando uma escada três vezes mais pesada do que ele.
Voltou com Bert e Jasper, que o ajudariam porque não havia
outro jeito. Bert fora arrancado de seu saco de dormir.
O material de Philip foi guardado em segurança na sala do
primeiro andar, que Jim ocupara. Philip lá ficou, num estado
de desespero furioso.
Bert foi se deitar de novo. Risonha e gentil, como uma noi-
va, Alice disse a Jasper que seria maravilhoso se ele pudesse
ficar em sua companhia, enquanto ela comia. Quase não
pusera nada no estômago o dia inteiro. Jasper respondeu
bruscamente que havia mesmo um problema que precisava
discutir com ela, mas seria melhor deixar para o dia seguinte.
E subiu para dormir.
Alice também foi deitar, sem comer; tinha a sensação de que
estava sendo arrastada para uma cachoeira ou um abismo,
sem saber por quê.
Acordando cedo na manhã seguinte por causa da fome, ela
estava comendo na cozinha quando Philip apareceu. Com os
olhos injetados e fora de si. Enlouquecido, julgou Alice.
Philip provavelmente não dormira, passara a noite acordado
ordenando seus pensamentos, preparando-os para apresentar
a Alice no momento em que a encontrasse a sós.
Ele sentou, mas tão de leve que podia se levantar de um pulo
na crista de qualquer onda na discussão. Os punhos pousa-
ram na mesa, à sua frente.
Tinha outro trabalho para assumir, uma loja que seria aberta
em breve. Poderia consegui-lo, mas teria que resolver tudo
em um dia ou dois, no máximo. Não adiantava trabalhar
sozinho. Precisava de um sócio — Alice podia compreender
isso, não é?
Alice devia ir com ele! Formariam uma boa equipe. Ela era
uma excelente pintora, meticulosa e rápida. Os dois juntos,
não haveria trabalho que não fossem capazes de realizar.
Afinal, Alice não estava fazendo nada com seu tempo!
Philip gritava porque sabia que ela recusaria, e a raiva da
rejeição já o dominava. Era como se a estivesse ameaçando,
em vez de sugerir uma sociedade.
— Todos vocês nunca levantam um dedo, nunca trabalham,
são parasitas, enquanto pessoas como eu mantêm tudo em
funcionamento... — Parecia que ia chorar, a voz impregnada
pelo sentimento de traição. — Falam sobre desempregados
por toda parte, pessoas querendo trabalho, mas onde estão?
Não consigo arrumar ninguém para trabalhar comigo. Qual é
a sua resposta, Alice?
A pergunta foi agressiva, acusadora. E é claro que Alice
respondeu não.
Philip gritou então que Alice só se importava consigo mes-
ma, "como todos os outros". Fizera com que Jim fosse despe-
dido e nunca pensara nele desde então. Onde estava Jim? Ela
não sabia, nem se importava. E Mónica — isso mesmo, ele
sabia de tudo a respeito, ouvira a história, Mônica fora
despachada numa busca inútil para uma casa vazia —, ele
calculava que essa era a idéia que Alice tinha de uma
brincadeira. Faye poderia ter morrido, pois ela não queria se
incomodar, nem mesmo chamara uma ambulância. E não se
importava com ele, Philip, depois que lhe arrancara tudo o
que podia, pondo-o para trabalhar dia e noite por uma
ninharia. Agora que Alice tinha sua casa como desejava, ele,
Philip, podia ir para o inferno, que ela não se importava.
E assim ele continuou, aos berros, meio chorando. Alice
sabia que, se levantasse e o abraçasse, ele desabaria em seus
braços como uma pilha de palitos de fósforo, balbuciando:
"Perdoe, Alice, eu não queria dizer essas coisas, seja minha
sócia, pelo amor de Deus".
Mas ela não o fez, permaneceu sentada, pensando que as
janelas estavam abertas e que Joan Robbins poderia ouvir
tudo, se estivesse no jardim.
A fúria de Philip desvaneceu-se em silêncio e aflição. Ele
ficou olhando fixamente, não para Alice, para qualquer outra
coisa, menos ela. E, depois de um momento, saiu correndo
da cozinha e da casa.
Alice ficou esperando que Jasper acordasse. Tinha a sensação
de que passara uma boa parte de sua vida fazendo isso.
Pensou de novo: Mas vou deixá-lo. Devo partir. Não seria
para sempre, mas preciso de algum tempo para mim.
Ela se descobriu subitamente de pé, abrindo a geladeira,
vasculhando os armários. Faria uma de suas sopas. Mas como
estivera trabalhando com Philip, não havia quase nada em
casa. Foi às lojas, comprou comida, demorou-se nos
preparativos, sentou à mesa, enquanto a sopa cozinhava. O
gato apareceu no peitoril da janela, miou através do vidro;
Alice deu-lhe as boas- vindas, ofereceu restos de comida.
Mas o gato não estava com fome; provavelmente Joan
Robbins ou alguma outra pessoa o alimentara. Queria apenas
companhia. Não sentaria no colo de Alice, mas esticou-se
todo no peitoril da janela. Contemplou Alice com seus olhos
de vagabundo e deixou escapar um pequeno som, um
grunhido ou miado de saudação. Alice desatou em lágrimas,
num acesso de gratidão.
A manhã passou. Quando Jasper acordasse, explicaria tudo:
uma pequena pausa, era isso o que ela precisava.
Ao meio-dia, Bert e Jasper desceram juntos, gracejando que
haviam sido acordados pelo aroma da sopa de Alice. O
ânimo de raiva, rebelião ou qualquer outra coisa dos dois
parecia ter desaparecido junto com a exaustão.
Loquazes, joviais, ofereceram a Alice pequenas anedotas da
viagem e louvaram sua sopa. Ela se mantinha apática,
observando-os. Seu ânimo logo se tornou patente para os
dois, que em determinado momento chegaram a trocar
olhares de "Mamãe-está-zangada", o que valeu um sorriso
sarcástico de Alice. Abandonaram as tentativas de apaziguá-
la, e Bert disse:
— Decidimos que está na hora de termos uma discussão am-
pla sobre a nossa política, camarada Alice. Apenas entre os
verdadeiros revolucionários, não com o lixo.
Ele exibiu todos os seus lindos dentes brancos num sorriso
desdenhoso. Alice deixou passar. Jasper inclinou-se para a
frente, também sorrindo, para acrescentar:
— Pensamos em realizar a discussão esta noite. Ou amanhã à
noite, o mais tardar. Mas a questão é a seguinte: onde? Mary
e Reggie não devem saber. Nem Philip!
Ele também ofereceu um sorriso de escárnio. Os dois
pareciam ter adquirido um estilo novo, bastante dramático,
pensou Alice, examinando-os com toda a imparcialidade. E
perguntou, realmente interessada:
— Como vão classificar Faye? Ela é séria ou não?
Os rostos de Bert e Jasper ficaram anuviados; estavam a par
da tentativa de suicídio, mas não se incomodavam com isso.
— Será que ela estará em condições de participar da discus-
são? — indagou Bert, hesitante.
Alice riu. Foi uma risada que a surpreendeu, parecendo tão
natural, até divertida. Estava descobrindo que aqueles dois
eram muito engraçados, por serem tão estúpidos. E disse,
indiferente:
— Se querem convocar uma reunião, então por que não o
fazem?
Alice levantou-se e foi cuidar do caldeirão de sopa,
acrescentando mais ervilhas, sal e depois água. Notou que o
apetite de Jasper e Bert não diminuíra.
Quando se virou, os dois se mostravam desolados, de frente
um para o outro, mas sem se olharem. Nem para ela.
Refletiam, concluiu Alice, que sua ira contra eles era
justificada, que haviam sido tolos por não levarem esse fator
em consideração. E também que sentiam a rejeição dela
como mais uma, numa sucessão de rejeições.
O coração de Alice quase se derreteu. E ela disse a Jasper:
— Sinto muito. Você vai embora, inventando uma porção de
mentiras. E depois aparece desse jeito... Sinto muito.
Encaminhou-se para a porta, e Jasper estava a seu lado. Alice
sentiu o seu aperto frenético no pulso; era tudo o que ele
sabia fazer para trazê-la de volta. Ela desvencilhou a mão
com a maior facilidade.
— Sinto muito, Jasper.
E saiu. No outro lado da porta, abrandou um pouco e
acrescentou:
— Gostaria que me avisasse a hora da reunião.
Alice subiu, pensando em dormir um pouco. Depois poderia
telefonar para a sua antiga comuna em Halifax. Uns poucos
dias ali e voltaria a ser como antes.
Mas houve uma batida na porta da frente, alta e ansiosa. Ela
foi abrir, pronta para a polícia. Mas era uma mulher que não
conhecia e que disse prontamente:
— Sou Felicity, moro aqui perto. A amiga de Philip.
Telefonaram do hospital. Philip sofreu um acidente. Querem
que algumas de suas coisas sejam levadas para lá.
Ela já estava se virando com um sorriso, o dever cumprido,
mas Alice disse:
— Não vai até lá?
Significando: A responsabilidade não é sua?
— Vou visitá-lo — respondeu Felicity vagamente. — Mas
não agora. As coisas de Philip estão aqui, não é?
Ela fora uma extensão do número 43 durante todo aquele
tempo, mas ninguém pensaria assim por sua atitude. Era
pequena, vigorosa, autoritária, tão competente quanto Alice
em firmar sua posição. Estava dizendo que não tencionava
permitir que Philip se tornasse sua responsabilidade.
Alice pensou em Philip naquela manhã, furioso e lamentá-
vel. E disse:
— Muito bem. Ele está mal?
— Não morreu. Mas foi por pouco. Teve sorte. Ossos que-
brados.
Felicity tornou a sorrir e foi embora, apressada.
Alice subiu para o quarto de Philip. Suas roupas estavam em
prateleiras bem pintadas, arrumadas meticulosamente.
Encontrou três pijamas limpos, azul, verde e marrom, fez
uma pilha; um roupão pendurado num gancho atrás da porta;
escova de dentes e uma toalha posta para secar no peitoril da
janela; sabonete, barbeador elétrico. E partiu, limitando-se a
dizer a Bert e Jasper, através da porta aberta da cozinha, que
ia ao hospital, mas sem mencionar Philip. Não queria que
qualquer dos dois descartasse o acidente como haviam feito
com a tentativa de suicídio de Faye. Era terrível, e ela sabia
disso. Representava uma espécie de fim para Philip. Claro
que ele próprio se deixara atropelar ou qualquer outra coisa
que tivesse acontecido, porque precisava ressaltar sua
situação. Fazer-se desamparado, tornar visível seu
desamparo.
No hospital, porém, Alice descobriu que a situação era pior
do que Felicity dissera. Ombro fraturado. Rótula fraturada.
Pulso esquerdo fraturado. Equimoses. Mas também havia
uma fratura de crânio. Philip seria levado para a sala de
operações dentro de poucos minutos. Os médicos
desconfiavam da existência de lesões internas. Ele estava
inconsciente. Como Alice disse que não sabia se Philip ainda
tinha família — e se tinha, não podia fornecer um endereço
—, a irmã da enfermaria escreveu seu nome no formulário
como "parente mais próximo". Tem telefone? Alice decidiu
que Felicity não podia se esquivar totalmente e deu o
telefone dela para emergências. Além do mais, o número 43
não tinha telefone.
Depois, ela parou numa porta, sem saber o que esperar, por-
que não visualizara coisa alguma. Avistou no meio da
enfermaria uma máquina enorme, com roldanas e alavancas,
rodas e tubos, por baixo da qual, meio sentado, mas arriado e
inerte, estava Philip, todo enfaixado. Só o rosto era visível:
com uma palidez cadavérica, veias azuis adejando nas
pálpebras lívidas, lábios brancos que pareciam ter alguma
espécie de tintura rosa ressequida nos cantos. Mais do que
nunca, ele parecia ser um duende, uma criatura inumana. Ali
imóvel, desamparada, com a irmã da enfermaria logo atrás,
Alice não era capaz de se mexer. Pensava que era isso o que
acontecia com as pessoas à margem da sociedade, agarrando-
se à vida, mas apenas por um fio. Bastava uma escorregadela;
podia ser algo insignificante, como o grego, mas fazia parte
da curva descendente de uma vida e não precisava mais nada
— as pessoas não conseguiam mais se segurar e caíam. Fora
o que acontecera com Philip.
Alice virou um rosto tão chocado para a irmã da enfermaria,
que esta disse no mesmo instante:
— Você está bem? — Incisiva, mas indiferente, porque não
queria suportar Alice. — Desça para tomar um chá. Sente-se
um pouco.
Sua expressão indicava que estava disposta a se preocupar
com Alice, mas só se ela apresentasse sintomas que o justifi-
cassem.
— Estou bem — murmurou Alice.
Ela observou a irmã se aproximar de Philip e examiná-lo
atentamente por cerca de um minuto. Por alguma razão,
aquela inspeção meticulosa revelou tudo a Alice. Ela virou e
saiu correndo pelos corredores, esperou pelo elevador e
entrou, sem ter consciência de suas ações. Choramingava
sem parar, o olhar fixo à frente — contemplando o rosto
agonizante de Philip.
E então ocorreu-lhe o pensamento: Philip já estava no fim
do túnel antes de perguntar se podia viver com a gente.
Pensamos ver alguém no início de uma curva ascendente,
com um novo negócio, tudo pela frente, mas não era
absolutamente assim. E bem provável que não tenha sido o
grego quem o fez largar o fio — talvez isso tenha acontecido
no momento em que Felicity o expulsou. (Alice sabia agora
que fora justamente isso, a atitude de Felicity.) Ou talvez
muito antes. E, de repente, Alice sabia. Tudo estava
perfeitamente claro, como um gráfico. Não era uma questão
de Philip não conseguir mais se segurar. Ele nunca se
segurara. Não acontecera algo que deveria ter acontecido:
um professor ou outra pessoa deveria ter dito: Este aqui,
Philip Fowler, deve ser um artesão, fazer coisas pequenas,
delicadas e intrincadas; devemos prepará-lo para isso. Olhem
só a perfeição com que faz as coisas! Não pode dobrar uma
camisa ou arrumar uma posta de peixe com batatas fritas sem
fazer um quadro.
Não acontecera. E Philip começara a trabalhar para uma
firma construtora, como todas as pessoas que não têm uma
especialização. Um pintor numa construtora, perdendo um
emprego após outro, até tomar uma decisão: Trabalharei por
conta própria.
Era tudo inexorável. E terrível...
Mais tarde, Alice não se lembrou de como voltara do hos-
pital. Na cozinha, Roberta deu uma olhada nela e apresentou
seu remédio: conhaque. Roberta passou o braço pelos
ombros de Alice, ajudou-a a subir, ajeitou-a no saco de
dormir, puxou as cortinas.
Alice dormiu durante os dois eventos daquela noite.
O primeiro foi a visita do policial rancoroso, acompanhado
de uma colega, a fim de falar sobre um carro roubado. Jasper
e Bert estavam presentes e as coisas não correram muito
bem, teriam acabado em violência e prisões se, por sorte,
Mary e Reggie não houvessem aparecido e conversado com
os policiais em sua própria linguagem, em seus próprios
termos. Mas depois Mary e Reggie se mostraram frios,
desapontados, argumentando que não havia necessidade de
criar problemas com a polícia, bastava que as pessoas
soubessem lidar com ela. "E também, é claro, se comportar",
estava implícito.
Eles subiram, mas Reggie desceu quase que no instante
seguinte para perguntar se Bert e Jasper não tinham mesmo
nada a ver com o carro roubado.
— Somos revolucionários, não bandidos — respondeu Bert,
furioso.
Mais tarde, quando já passava de meia-noite, Felicity tornou
a aparecer para informar que haviam telefonado do hospital.
Philip morrera. Ela estava bastante transtornada, como
contaram a Alice no dia seguinte. E foi convidada a entrar, a
tomar a sopa de Alice e o conhaque de Roberta.
Alice não soube de nada disso até o dia seguinte. No meio da
manhã. Estavam todos na cozinha, o sol entrando, o gato no
peitoril da janela.
— Ele afundou muito depressa, não foi? — comentou Alice,
visualizando uma coisinha quebrada, como um passarinho
ou um inseto, tentando se segurar a uma palha, um graveto,
mas em vão.
Os outros não compreenderam, porém Faye murmurou,
com um sorriso frio:
— Sorte de Philip.
Mary disse que Philip a impressionara como alguém
extremamente instável.
Alice observou que se a polícia escolhera aquela casa como
um lugar para se divertir um pouco, então não valeria a pena
viver ali. Os outros a fitaram curiosos: a indiferença com que
falara é que causava estranheza.
Alice se levantou e subiu, pôs a escada de Philip na posição e
foi para o sótão. Parou sob as enormes vigas podres,
iluminando-as com a lanterna. Pensava — ou tentava pensar,
a fim de tomar uma decisão, compreender, aceitar — que
Philip cuidara de tudo na casa, todas as ameaças e perigos.
Mas aquela ameaça, a principal, ele não enfrentara. Nem
podia. Apenas por causa do seu tamanho. Porque não
passava de um punhado de ossos frágeis com uma camada de
carne. Alice podia ver em sua imaginação o tipo de homem
que seria capaz de remover aquelas duas vigas podres e
substituí-las por outras. Um homem enorme — podia
contemplá-lo — levantando as vigas para o lugar. Sem
qualquer esforço. Humilhada e sem compreender, por causa
da arbitrariedade, da frivolidade da vida, ela tornou a descer
e disse que, se as vigas não fossem trocadas, a casa começaria
a desabar, lá por cima. Sentou à cadeira que ocupara antes de
subir, no lado da mesa. Na cabeceira e na outra extremidade,
como pai e mãe, estavam Reggie e Mary. Irradiaram
desaprovação. Sabiam disso, mas não estavam dominados
pelo pânico.
— É claro que teremos de consertar as vigas — declarou
Mary.
Jasper, Bert, Faye e Roberta, que vinham observando Alice
endireitar as coisas há semanas, olharam para ela, talvez
esperando que dissesse: "Está tudo bem, já consertei". Jocelin
e Caroline não se envolveram. Alice murmurou:
— Quer dizer que vocês arrumaram um apartamento?
Surpresa, até mesmo afrontada, Mary respondeu:
— Isso mesmo, mas como...
E Reggie:
— Mas ainda não contamos a ninguém porque não está
decidido.
— O que significa que esta casa volta à lista, não é? — insistiu
Alice.
— Não para demolição — garantiu Mary. — Chegou-se à
conclusão de que houve um erro. Tanto esta casa como a 45
serão reformadas. Mas, de qualquer forma, nada acontecerá
tão cedo. Ou seja, vocês terão bastante tempo para encontrar
outro lugar.
— Outra casa vazia para uma ocupação autorizada —
acrescentou Reggie, generoso.
Os outros tornaram a olhar para Alice, que tanto se
empenhara naquela casa; novamente pareceram surpresos ao
verificar que ela se mantinha despreocupada.
Alice examinava Mary, examinava Reggie, abertamente, pois
precisava saber o que acontecia. Podia ver os dois, sentados
lado a lado na cama de casal, discutindo sobre todos, com
idênticas expressões de crítica escandalizada. Jim. A
tentativa de suicídio de Faye. Agora Philip. Alice
compreendeu que eles deviam se sentir acuados entre
lunáticos. Ora, não tinha importância, aquelas duas boas
casas estavam salvas e muitos haviam encontrado abrigo
nelas por algum tempo.
— Arrumou um emprego? — perguntou Alice, certa de que
Reggie o conseguira.
Outra vez irritação: porque a classe média, é evidente, não
gostava de ser tão transparente.
— Arrumei, sim — confirmou Reggie. — E uma firma nova,
em Guildford. Claro que é um risco, o índice de fechamento
de firmas novas está muito elevado no momento. Mas é um
empreendimento promissor. Pode dar certo.
O fato de ele não informar o que era, pensou Alice, signifi-
cava que o "empreendimento" poderia ser criticado pelos
outros. Agentes químicos: Reggie era químico. Mas ela não
estava interessada.
Reggie levantou-se. Mary levantou-se. Uma distribuição de
sorrisos. Mas era alívio o que eles sentiam. Linguagem do
corpo. Estampada neles. Os dois, Mary e Reggie, acharam
que deveriam ficar com os outros durante algum tempo, por
causa da morte de Philip, mas agora já era suficiente, podiam
subir e prosseguir em suas próprias vidas, tão sensatas. Eles
não perderiam o pega na vida para escorregarem e caírem,
serem tragados por alguma sarjeta.
Engraçado, pensou Alice. Sentados em torno desta mesa, há
umas três semanas, todos nós. Não se diria que Philip haveria
de perder a luta. Jim? Possível. E Faye...? Alice teve o cui-
dado de não olhar para Faye, sentindo que um olhar naquele
momento seria como um julgamento, uma sentença. Para
ela, Alice, a cozinha parecia cheia de fantasmas, e seu
coração se contraía pelo pobre Philip, que tanto se
empenhara, fora tão galante. Não era justo.
Bom, com Reggie e Mary partindo em breve não restariam
muitos ali. Jasper, Bert e ela. Caroline e Jocelin, Faye e
Roberta. Sete pessoas.
Pat se fora. Jim se fora. Philip se fora. O camarada Andrew
— desaparecido em algum lugar. Até mesmo a mulher-ganso
parecia a Alice, no ânimo em que se encontrava, uma velha
e boa amiga que lhe fora arrancada. Muito bem, que tirassem
aquela casa. Por que não? Não ia se importar. Sabia que
estava agora com sua cara: podia sentir os olhos de Jasper
observando-a atentamente. Para evitá-los, ela se levantou e
iniciou os preparativos para outro caldeirão de sopa.
— Camarada Alice — disse Bert, em sua voz política —,
estamos todos aqui. Decidimos ter uma reunião assim que
Reggie e Mary se recolhessem.
— E vão se dar ao trabalho de me chamar? — indagou Alice.
Mas voltou ao seu lugar, notando que Bert e Jasper haviam
ocupado as duas extremidades da mesa.
Meio da tarde. Sol. Joan Robbins aparava sua sebe com uma
tesoura antiga. Plaque, plaque, plaque, a intervalos regulares,
que mantinham os ouvidos aguçados. No jarro sobre o
banquinho havia algumas rosas prematuras. Amarelas. O gato
refestelava-se no peitoril da janela, no outro lado do vidro,
olhando. Bert começou:
— Tendo em vista nossas observações em Moscou e
subseqüentes discussões, Jasper e eu concordamos que
deveríamos formular uma nova política. Claro que terá de
ser discutida amplamente em todas as suas implicações, mas,
apenas para indicar para onde nossas conclusões apontam,
fizemos uma formulação provisória: a de que os camaradas
presentes não vêem qualquer motivo para aceitar diretivas
de Moscou.
— Ou de qualquer outra fonte externa — acrescentou Jasper.
Bert inclinou-se para a frente e fitou a todos com um ar de
desafio.
— Isso mesmo — disse Caroline, que descascava uma laranja
e lambia o sumo dos dedos. — Concordo plenamente.
— Eu também — declarou Jocelin no mesmo instante.
— Muito bem — disse Faye. — Mas de quem foi a idéia de
nos envolvermos com aquele merda do camarada Andrew e
suas coisas? Foi sua, camarada Bert. E sua também, camarada
Jasper.
Ela usava a sua voz conveniente da BBC, o que era um
choque, como sempre, depois de seus flertes habituais com a
língua. E parecia fria, transbordante de ódio.
Bert e Jasper ficaram desconcertados. A fúria do
desapontamento em Moscou fora atenuada pelas discussões
sobre política, sobre "formulações", e haviam perdido de
vista a história recente de teorização. Alice pôde perceber
que os dois faziam um tremendo esforço para se lembrarem.
Bert não estava disposto a renunciar aos prazeres das
"implicações" e insistiu:
— Mas é essencial analisar a situação. — Uma pausa, e ele
corrigiu, pouco convincente: — Ou pelo menos
aconselhável.
— Por quê? — indagou Jocelin.
— Isso mesmo, por quê? — acrescentou Faye.
Silêncio.
Rompido por Alice, diplomaticamente:
— Há algumas coisas que eu gostaria de saber antes de
abandonarmos o assunto.
Faye suspirou. De forma exagerada. Fazia um esforço para
estar ali com os outros. Estava muito pálida. Parecia só haver
vida nos cabelos lustrosos, que emolduravam com anéis e
cachos o rosto vazio.
— Eu gostaria de saber como o pessoal da outra casa, do
número 45, envolveu-se com os escrotos dos russos — disse
ela.
— Boa pergunta — concordou Caroline, fazendo pequenas
pilhas de casca de laranja com os dedos brancos e sólidos,
que tinham anéis reluzentes.
— Alguém sabe? — insistiu Alice.
— Jocelin sabe — informou Caroline.
Jocelin deu de ombros, como que irritada por toda a cena.
Todos olhavam para ela. Não era fácil contemplá-la. Não por
sua aparência, que nada tinha de extraordinário. Era loura, a
normalidade ressaltada pela linda Faye, tão delicada e suave,
sempre se apresentando de uma maneira diferente. Jocelin
não se importava se era admirada ou mesmo vista. Olhos
verdes e frios observavam tudo, e ela se mantinha irada o
tempo todo, como se uma raiva generalizada a tivesse
dominado em algum momento e ela passado a acreditar que
era assim que se experimentava o mundo. Não era fácil
suportar essa hostilidade; e as pessoas tendiam a olhar não
para o seu rosto e sim para as mãos, que eram bem-feitas, os
dedos compridos e flexíveis, ou para as roupas, esperando ali
encontrar alguma coisa de interessante. Mas ela sempre
vestia jeans e uma blusa de malha.
— Vou contar o que aconteceu — anunciou Jocelin. — O
que eu sei. Havia uma casa em Neasden que funcionou
muito bem como ponto de intercâmbio, por várias semanas.
Ninguém espera usar um lugar assim por mais de algumas
semanas. Mas de repente a polícia apareceu. Havia um
informante. Ou qualquer coisa assim.
Ela acendeu um cigarro e Alice percebeu que o ato servia
para ganhar algum tempo, a fim de que pudesse determinar
exatamente quanto queria dizer. E tratou de estimulá-la:
— Intercâmbio de quê?
— A mesma coisa que acontecia na outra casa... na 45.
Principalmente material de propaganda. Mas também
matériel.
Essa palavra tão profissional causou, como Alice reparou,
agradáveis frissons em Bert e Jasper, que se inclinaram para a
frente, ansiosos, fitando Jocelin, sem saber que o faziam.
Mas, percebendo sua atitude, apressaram-se em desviar os
olhos, embaraçados.
— Era uma questão de encontrar algum lugar depressa. E
bem depressa. Alguém disse que a 45 estava vazia. Só havia
necessidade de um lugar por dois dias. Era o que se pensava.
— Quem precisava? — indagou Bert, meio brusco.
— Obviamente, o camarada Andrew — respondeu Caroline,
incisiva e desaprovadora.
— Isso mesmo — confirmou Jocelin. — Ele organizava
material de propaganda. Quase tudo para o IRA. E quase
tudo impresso na Holanda. E também... outras coisas. Uma
parte perigosa. E muito.
Nesse ponto ela sorriu friamente para os outros, mas com os
lábios fechados; todos sorriram apreensivos e desviaram os
olhos.
— Mas a casa não estava vazia — explicou Caroline. — Eu só
me ausentara por poucos dias. Voltei e encontrei dois quar-
tos atulhados de coisas. E depois a camarada Muriel
apareceu, seguida pelo camarada Andrew.
Caroline riu sinceramente, e todos, aliviados, riram também.
Mas não Jocelin, que fitou a todos com seus olhos verdes,
um de cada vez, esperando o momento de continuar.
— Parece que não foi fácil encontrar outra casa conveniente.
Não havia nada realmente seguro. Enquanto procuravam,
eles continuaram na 45. E usaram todos os recursos. Houve
uma ocasião em que havia no jardim quatro latões cheios de
panfletos cobertos por lixo. Mais de uma vez, houve sacos de
plástico com matériel. Mas não podia continuar assim. Não
demorou muito para que a maioria dos camaradas fosse
embora, todos de uma vez. E foi então que a camarada Alice
entrou em cena.
Jocelin sorriu, mas seus olhos eram como blocos de pedra
verde.
— A combinação de talentos extraordinários da camarada
Alice era um golpe de sorte. Parece que a camarada Muriel e
o camarada Andrew estavam prestes a seguir o exemplo de
vocês, fazendo da 45 uma ocupação autorizada pela
prefeitura. Mas mudaram de idéia: haveria o risco de visitas
constantes do pessoal da prefeitura, e as coisas continuavam
a chegar e partir nas horas mais inesperadas da noite e do
dia. Concluíram que já era suficiente que houvesse
respeitabilidade na casa ao lado, que contava até com uma
funcionária da prefeitura, Mary Williams. E depois houve
um Congresso da UCC.
Ela riu, deixando claro o que pensava da UCC. E deles?
— Mas como você se envolveu em tudo isso? — indagou
Faye. — Não gostava do camarada Andrew mais do que nós.
— Eu não disse que não gostava dele — protestou Jocelin.
— Gostar... ora, quem se importa com isso? Eu não estava
envolvida com o camarada Andrew ou com qualquer dos
atos. Resolvi me mudar para cá porque Muriel disse que
vocês queriam trabalhar com o IRA.
E agora ela tornou a fitá-los, lentamente, um após o outro,
sem a menor pressa. E acrescentou, muito suave:
— Isso me interessa. Moscou, KGB e todo o resto não me
interessam... mas isso é história, agora que Andrew se foi.
Para onde quer que seja. E eu não gostaria de estar no lugar
dele.
— Nem eu — murmurou Caroline.
Alice sentiu-se magoada pelo camarada Andrew. Parecia que
alguma coisa choramingava baixinho ali, em seu peito. Então
aquele era o fim do camarada Andrew? Elas não se
importavam com o que pudesse acontecer a ele! Ou se
nunca mais tornassem a vê-lo! Jasper estava dizendo:
— Por quê? O que aconteceu? Não entendo o que estão
querendo insinuar.
— O que ele fez? — acrescentou Bert.
Ninguém respondeu. Elas não iam perder tempo com isso. O
camarada Andrew não valia o esforço. Fora embora.
Desaparecera. Jasper informou, com uma veemência que
irrompeu abruptamente:
— Bert e eu estivemos na Irlanda. Conversamos com os
camaradas. Não estavam interessados.
— Foi o que eu soube — comentou Jocelin, calmamente.
— Passaram-me essa informação. Mas e daí? Quem é o IRA
para nos dizer o que fazer em nosso próprio país?
O que impressionou a todos com a força de alguma verdade
óbvia e inelutável, que inexplicavelmente não haviam
percebido até aquele momento. Mas é claro! Quem era o
IRA para lhes dizer o que deviam fazer?
Bert riu baixinho, os dentes brancos aparecendo. Jasper
também riu — e Alice sofreu ao ouvi-lo, pois podia avaliar
pela risada como ele ficara magoado e deprimido pela recusa
de Moscou em levá-los a sério, depois da recusa na Irlanda.
A risada de Jasper era desdenhosa e orgulhosa, a confiança
lhe voltava; ele correu os olhos por todos, justificado.
— Absolutamente certo! — exclamou Faye. — Finalmente.
No que me diz respeito, vocês todos acabaram de ver a luz.
Temos de decidir o que vamos fazer, e nós mesmos
executaremos. Não precisamos pedir permissão a
estrangeiros.
Ela ainda usava sua voz fria e correta.
— Concordo plenamente — declarou Roberta.
— Então está decidido — comentou Alice. — Tudo o que
temos de fazer agora é formular um plano.
Houve nesse momento uma batida na porta da frente. Alice
foi atender e voltou com Felicity. Como Alice estava
registrada como a "parente mais próxima" de Philip, tinha de
ir ao hospital para cuidar de algumas formalidades. Felicity
não queria sentar; não queria, como todos podiam perceber,
ser forçada a se imiscuir nos problemas de Philip.
— Por que eu, Felicity? — indagou Alice, furiosa. — Por que
não você?
— Philip foi para o meu apartamento porque não tinha onde
ficar. Estava desesperado. Para mim, ele era apenas uma
pessoa sem um lugar para morar.
— Mas ele não tem família ou alguém?
— Tem uma irmã.
— Onde?
— Como vou saber? Ele nunca me disse.
As duas se fitavam, como se travassem uma batalha amarga.
Compreendendo como deviam parecer, elas se sentiram
embaraçadas. Felicity explicou:
— Quando eu disse que Philip podia ficar, pensei que fosse
pelo fim de semana, uma semana no máximo. Mas ele ficou
lá mais de um ano.
Alice compreendeu que ela é quem teria de cuidar de tudo e
murmurou, amargurada:
— Ora, está bem...
Tendo conseguido o que queria, Felicity tornou-se
"simpática", recusou um chá com desculpas apressadas e
deixou a casa.
— Pobre Alice — comentou Roberta. — Irei com você.
Alice começou a chorar. Todos ficaram espantados.
— Claro que ela está chorando — acrescentou Roberta. —
Tem mesmo que chorar. Está cansada.
Ela passou o braço pelos ombros de Alice e levou-a para a
porta.
— Não façam coisa alguma que nós não faríamos enquanto
estivermos ausentes — arrematou Roberta jocosamente, para
todos, mas com os olhos fixos em Faye, que, traída, sacudiu a
cabeça e recusou-se a fitar a amiga, voltando a ser de repente
uma donzela cockney.
As duas passaram algumas horas no hospital, assinando
formulários, falando com as autoridades competentes. Alice
concordou em tirar um atestado de óbito. Combinou
verificar os bens de Philip com um representante da
prefeitura, que iria à casa no dia seguinte.
A meia-noite, Roberta reanimou-a com uma xícara de
chocolate quente, deixando patente que isso seria tudo; não
se sentia na obrigação de fazer mais nada por Philip, embora
pudesse ajudar ainda mais se Faye não estivesse tão
necessitada.
Alice passou a manhã providenciando o atestado de óbito e a
tarde verificando as coisas de Philip com um representante
da prefeitura. Foi difícil e angustiante. Ele possuía umas
poucas roupas e cerca de quinhentas libras numa caderneta
de poupança, que pagariam o funeral.
Alice não falou sobre as escadas e os outros equipamentos;
pelo menos não seriam vendidos a algum negociante por um
décimo do valor real. Eles — os ocupantes do número 43 —
possuíam agora suas escadas, cavaletes e ferramentas. Pelo
que isso valia, enquanto valesse alguma coisa.
Por causa da preocupação de Alice com a disposição das coi-
sas de Philip, tudo na casa ficou em compasso de espera. Ou
melhor, todos ficaram aguardando, com exceção de Jocelin,
que trabalhava num quarto de cima numa variedade de
artefatos produzidos com base no que aprendia nos "livros
de receitas", como os chamava, oferecendo conselhos
admiráveis e precisos sobre a fabricação de artefatos
explosivos. Ela tomara de empréstimo um pouco do matériel
que passara pelo número 45. Alice, junto com os outros, foi
ver os artefatos, a convite de Jocelin. Estavam arrumados
numa mesa de cavalete armada com as coisas de Philip, num
quarto trancado — trancado por causa de Mary e Reggie, que
deveriam se mudar dentro de poucos dias, mas continuavam
na casa. O que impressionou Alice nas coisas feitas por
Jocelin foi o fato de parecerem tão insignificantes e até
mesmo frágeis, meras montagens de pedaços disso e daquilo.
Os artefatos eletrônicos que Jocelin exibia com tanto orgulho
não pareciam mais portentosos do que os fragmentos de
circuitos minúsculos encontrados quando se desmonta um
rádio transistorizado.
Havia inclusive clipes de papel, percevejos, dois relógios
ordinários, pedaços de arame, produtos químicos
domésticos, tubos de cobre de tamanhos diversos, bilhas,
tachas, pacotes de explosivo plástico, dinamite antiquada,
rolos de algodão, barbante.
Enquanto Jocelin trabalhava com satisfação ("prazer" não era
uma palavra para ela) naqueles brinquedinhos e Alice cho-
rava por Philip — pois sentia agora como se tivesse perdido
um velho amigo, até mesmo um irmão —, Jasper e Bert
compareceram a algumas manifestações, sempre advertidos
de que tomassem cuidado e não se deixassem prender, pois
havia um trabalho importante a ser feito; e Roberta e Faye
foram para a casa de uma amiga em Brighton, porque a brisa
do mar faria bem a Faye. A mãe de Roberta continuava em
coma.
O dia passou devagar. A casa parecia vazia. Alice descobriu-
se a pensar que Roberta e Faye provavelmente voltariam na-
quela noite. Gostariam de ser recebidas com uma refeição e
tanto, talvez mesmo um banquete? Enquanto ela se
preocupava com isso, sentada na cozinha, em companhia do
gato, Caroline apareceu com sacolas cheias de comida.
Demonstrava uma grande satisfação; não, Alice devia
permanecer sentada, deixar que a servissem por uma vez.
Até então somente Alice providenciara comida. Isto é, co-
mida de verdade, não uma pizza ou porções de batatas fritas.
Só Alice carregava sacolas pesadas com frutas e legumes,
abastecia a geladeira com manteiga e leite, guardava pacotes
de macarrão e latas de cereais nos armários. Agora, sentia-se
profundamente grata, observando Caroline, que trabalhava
com um sorriso, com um contentamento secreto tão intenso
que parecia transbordar. Alice também se sentia ressequida;
fazia aquelas coisas, cozinhar, alimentar, acalentar como se
fosse uma obrigação, um dever. Nunca sentira em toda a sua
vida o que via agora se irradiar de Caroline, que a fitou,
enquanto lambia uma colher para testar o molho, como se
partilhasse um prazer que só mesmo raras pessoas no
mundo, os iniciados, podiam suspeitar. Ela estendeu uma
colher para Alice, com todo o cuidado, contendo — assim
parecia — alguma essência ou destilação, e observou com os
olhos brilhantes Alice provar e proclamar:
— Está fantástico, maravilhoso.
— Sou uma grande cozinheira — Caroline cantou ou
ronronou. — Era isso que eu devia estar fazendo...
Ao lembrar-se do que fazia, a desolação dominou-a por um
momento e ficou calada.
Depois, contou sua história a Alice. Uma boa filha da classe
média, como se descreveu, viu a luz — isto é, que o Sistema
estava podre e precisava de uma mudança radical — quando
tinha dezoito anos. Estava apaixonada por um jovem Che
Guevara, mas ele se tornou respeitável aos olhos dela,
ingressando no Partido Trabalhista. Apesar disso, era o
grande amor de sua vida. Sempre que o visitava — "Angústia
absoluta, minha cara, por que eu faço isso?" —, sabia que
aquele era o homem para ela.
— Mas como eu poderia viver assim? Seria impossível! Um
fim de semana é suficiente. Depois choramos, brigamos e
nos separamos. Até a próxima vez.
E assim Caroline foi falando, ficando corada, parecendo
relaxar e abrandar ao calor da cozinha, farinha de trigo na
face, mangas arregaçadas, as mãos enormes no controle de
tudo. Parecia roliça, suave, contente, com satisfações
secretas e inescrupulosas.
Jasper e Bert voltaram, prontos para um banho quente e
comida. Haviam ido a Nottingham para se juntarem aos
piquetes numa greve de mineiros. Chovera e fazia frio.
Roberta e Faye estavam morrendo de fome, anunciaram no
instante em que chegaram. Faye tinha outra vez um pouco
de cor nas faces, retornara ao mundo dos vivos e exibia sua
personalidade cockney com toda a graça e animação.
Roberta, tão feliz porque seu amor estava melhor, mostrava
uma parte de si que os outros não conheciam. Cantou, muito
bem, numa voz de contralto, cheia e controlada, primeiro
algumas canções operárias, depois diversas canções
portuguesas, espanholas e russas. Ela aprendera canto, mas
encontrara seu lugar na revolução.
Havia bastante vinho, e todos ficaram altos. Mary e Reggie
não apareceram.
Todos já se preparavam para deitar, por volta das duas horas
da madrugada, quando houve uma batida baixa e apressada
na porta da frente.
— Oh, Deus, a polícia! — gritou Alice, a voz estridente.
Ela correu para confrontar os guardas. Mas não era a polícia.
Dois jovens, carregando enormes volumes, estavam parados
ali, sorrindo, encurvados para o lado sob o peso.
— O que é isso? Não podem trazer essas coisas para cá! —
protestou Alice, sabendo o que acontecia, com todo o seu
prazer pela noite se dissipando, sentindo apreensão e
calafrios.
— Essa não! — exclamou um deles, irlandês da cabeça aos
pés. — Disseram para a gente deixar tudo aqui.
— É um engano — insistiu Alice.
Mas o jovem deixou o volume no chão do vestíbulo e foi
embora. Seu companheiro, com um sorriso contrafeito, fez o
mesmo.
— Vocês têm de levar essas coisas de volta! — gritou Alice.
— Estão me entendendo?
Os dois desceram pelo caminho e ela viu-os parar ao lado de
um furgão pequeno e velho. Conferenciaram por um
momento, virando-se para conferir o número da casa. Alice
se adiantou e persistiu:
— Vocês não entenderam. Aquelas coisas não podem ser
deixadas aqui. Devem levar tudo de volta.
— É mais fácil dizer do que fazer — protestou o homem que
falara primeiro.
Ele parecia injuriado. Mais do que isso, assustado. Até correu
os olhos pelas sombras dos jardins e a rua principal, onde o
movimento diminuía, mas ainda existia. Era uma noite escu-
ra e úmida. Os três estavam parados à luz de um lampião,
discutindo.
Alice declarou que aquela era a casa errada, e que já não era
mais seguro deixar qualquer coisa no lugar que procuravam,
o número 45.
Eles responderam que a ordem era para deixar a encomenda
no número 43.
— Vocês têm de levar daqui!
— Não vamos levar nada!
Alice imaginou uma janela sendo levantada às suas costas e
virou-se para olhar o alto às escuras da casa em frente à de
Joan Robbins. Enquanto fazia isso, os dois homens
aproveitaram a oportunidade para embarcar no furgão. Ela
teve de se afastar apressada para o lado, a fim de não ser
atropelada.
— Oh, não! — lamentou-se no escuro, observando o furgão
virar a esquina e desaparecer. — Não é possível! Não é justo!
Continuou parada ali, impotente, sentindo que as coisas
haviam escapado ao controle. Pensou que devia entrar, pois
sempre podia haver um vizinho bisbilhoteiro e interessado.
As duas caixas, lisas e inocentes, estavam no vestíbulo, sem
nada que anunciasse seu conteúdo.
Jasper e Bert se encontravam na escada, olhando,
desconsolados. E também um pouco bêbados. Mais acima,
Jocelin. Roberta e Faye haviam ido para o quarto. Caroline
ainda arrumava a cozinha.
— Não podemos ter isso aqui! — Alice apelou para os
homens.
Mas foi Jocelin quem passou por eles e disse simplesmente:
— Vamos levar para o sótão.
Enquanto as duas subiam com grande dificuldade, eles
finalmente se prontificaram a ajudar. Primeiro a caixa mais
pesada e depois a outra foram guardadas num canto remoto
do sótão.
Jocelin declarou que descobriria o que havia dentro das cai-
xas pela manhã. Talvez até naquela noite: não estava com
sono.
— Tome cuidado para não explodir todos nós — advertiu
Jasper.
Ela não disse nada. Não tinha muita consideração por Jasper
e não tentava disfarçar. Mas parecia gostar de Bert, que, por
sua vez, sentia-se atraído por Caroline, que não percebera
seu interesse ou achava melhor ignorá-lo.
Alice voltou à cozinha, arrumou isso e aquilo, atenta aos
sons de alguém ou de todos retornando para conversar a
respeito. Pois compreendera que alguma coisa ruim
acontecera. Não era apenas mais uma pequena
contrariedade, como uma visita da polícia. Quando concluiu
que ninguém viria, o que significa que não tinham visto o
que àquela altura já deveriam, Alice sentou à cabeceira da
mesa e caiu num estado de torpor. Sentimentos
entorpecidos, mas não um pensamento, pois sua mente
permanecia ativa.
Ninguém lhes dissera que o número 43 se tornaria um ponto
de intercâmbio. A camarada Muriel teria mencionado, se
soubesse. Caroline e Jocelin não esperavam. O camarada
Andrew nem sequer abordara o assunto. (Nesse ponto, o
pensamento do dinheiro, as quinhentas libras, se apresentou,
e Alice considerou tal possibilidade, sem preconceitos.) O
número 43 não podia ter pessoas trazendo coisas e outras
buscando, a qualquer hora do dia ou da noite! Não daria
certo! Mas com quem Alice podia entrar em contato para dar
esse aviso? Ocorreu-lhe que não tinha como falar com Pat
ou Muriel, muito menos com o camarada Andrew. A
irrealidade da situação, aquelas pessoas serem tão vívidas, ali,
naquela casa e também na outra, por semanas — camaradas,
podia-se dizer até íntimos —, e em seguida não estarem mais
lá, desaparecerem por completo, de tal forma que não podia
sequer lhes mandar um cartão-postal... Esse pensamento
aprofundou seu torpor, como uma área branca que se
espalhava lentamente por todo o seu ser.
E havia outra coisa. (Mas claro que isso não era um
pensamento novo.) Ali estavam eles, empenhados em "fazer
finalmente algo concreto", todos prontos para isso — podia-
se agora dizer que o número 43 balançava, como um barco à
beira de uma cachoeira (Alice sacudiu a cabeça
vigorosamente, como um cachorro removendo a água das
orelhas) —, com pessoas que não tinham muita confiança
umas nas outras. (Alice reconstituiu a expressão de Jocelin ao
constatar que Bert e Jasper continuavam parados na escada,
enquanto ela, Jocelin, descia correndo para ajudar a carregar
os enormes pacotes.) Não, com toda a certeza, Jocelin não
admirava Jasper. O que pensava de Faye? Não era difícil
imaginar. Mas não era quase certo que ela devia aprovar
Roberta? E Caroline? Não era fácil imaginar um contraste
maior entre a mulher indolente e sensual e a fria e objetiva
Jocelin. E ela própria, Alice? Será que Jocelin também a
desprezava?
Ocorreu-lhe que estava usando Jocelin como um ponto de
referência, uma base de julgamento. Como se Jocelin fosse a
chave para tudo. Mas, afinal, era ela quem estava trabalhando
nas bombas ou o que quer que fosse.
Alice subiu para o topo da casa, viu que a luz saía por baixo
da porta da oficina de Jocelin, bateu e ouviu um "Entre"
sussurrado.
Jocelin ergueu os olhos do lugar em que estava sentada, atrás
da bancada, as mãos ocupadas com um pedaço de arame de
cobre. Por perto havia pacotes de diversos produtos quími-
cos domésticos, parecendo tranqüilizantes em suas
embalagens coloridas.
Jocelin continuou a olhar para Alice, esperando que ela se
explicasse. E era formidável e assustadora, pensou Alice.
Contudo, o que podia ser mais comum do que Jocelin? Um
estranho veria uma loura um tanto desleixada, os cabelos
claros caindo pelo rosto, manchas de algum pó branco no
suéter cinza e velho. Mas era a sua concentração, o
empenho no que fazia...
Alice balbuciou um "Olá" e Jocelin não respondeu, conti-
nuou a trabalhar, despejando grãos brancos de uma panela
velha num cano de cobre.
— Não gostei do que aconteceu — disse Alice, soando ine-
ficaz até para si mesma.
Jocelin acenou com a cabeça.
— Também não gostei. Mas não sei o que podemos fazer, a
não ser continuar. Devemos fazer o trabalho rapidamente e
depois nos dispersar.
No quarto não havia lugar para sentar, apenas a bancada e o
banco que Jocelin ocupava. As janelas mostravam um céu
cinzento. Os passarinhos começariam a cantar em breve.
Alice ficou de pé na frente de Jocelin, como uma colegial
diante da professora.
— Já pensou no que devemos fazer?
— Claro — respondeu Jocelin. — O que vamos explodir
dependerá dos nossos meios, não é? Tenho uma boa noção
da capacidade destas coisas. Mas precisamos discutir.
— Você já... isto é... já fez...
— Não, nunca fiz nada disso antes. Mas é uma questão de
usar o bom senso.
Jocelin pôs de lado o pedaço de cano de cobre, que tinha
cerca de vinte e cinco centímetros de comprimento e
presumivelmente estava pronto. Pegou outro. Acenou com a
cabeça para o "livro de receitas", aberto ao lado. Aquela
produção partilhava as mesmas qualidades dos artefatos feitos
de acordo com suas receitas. Não era impresso, mas
fotografado, o que lhe proporcionava uma aparência técnica
e sinistra. Era apenas papel de péssima qualidade. Tinha uma
capa de plástico amarelado, como um livro de culinária
ordinário. Tudo naquela bancada parecia ordinário,
improvisado e por algum motivo inacabado. Isto é, tudo
menos as atraentes embalagens dos produtos químicos, que
pareciam brilhar com a quantidade de pensamento e
competência empregada em sua fabricação.
— Não seria uma má idéia se fizéssemos um ensaio — suge-
riu Jocelin, sorrindo.
Como se podia esperar, era um sorriso frio, agressivo.
— Tem toda a razão — murmurou Alice.
— Podemos escolher alguma coisa que mereça ser explodida.
Alice animou-se.
— Isso mesmo. Algo absolutamente nojento... revoltante.
Jocelin fitou-a com curiosidade, por causa daquela súbita
animação.
— Tem alguma sugestão? Quero uma coisa bem definida, se
entende o que estou querendo dizer. Algo concreto, não
muito grande. A fim de que eu possa determinar as
quantidades.
Alice revisava em sua imaginação o que gostaria que fosse
explodido. Teve de descartar as cercas altas de ferro
corrugado em torno do antigo mercado, onde tantos se
divertiam e ganhavam a vida, que era como um festival
durante a semana inteira, especialmente aos sábados e
domingos. Uma cerca não era algo "definido". E ela
continuou a pensar.
— Não uma cabine telefônica — ressalvou Jocelin. — Diz
aqui quanto é preciso exatamente para destruir uma.
— Um carro?
— Podemos usar um carro, por causa da dificuldade de aces-
so. Da possibilidade de nos verem. Mas sei quanto um carro
precisaria. Temos de encontrar outra coisa.
Alice sorriu.
— Já sei o quê. — Uma paixão de aversão a dominara, tão
intensa que se sentia trêmula. — Oh, Deus, é isso mesmo!
Vou mostrar a você. Não fica longe.
— Está certo.
Jocelin deixou seu posto e as duas desceram a escada em
silêncio. O vestíbulo não estava escuro, mas cinzento. Luz
do dia. Em breve haveria pessoas nas ruas, os trabalhadores
que madrugavam.
Caminharam apenas um quilômetro, até uma área de
pequenas ruas, abertas antes da invenção do automóvel.
Agora, caminhões passavam por ali o dia inteiro, fazendo
manobras em marcha a ré para virarem as esquinas, passando
uns pelos outros por poucos centímetros. As calçadas,
construídas para que duas pessoas pudessem passar uma pela
outra, eram bastante estreitas. Em duas daquelas ruas
pequenas, formando um ângulo reto, a calçada fora alargada,
reduzindo as ruas ainda mais, em cerca de um metro. Essa
demonstração de inteligência da autoridade já era bastante
espetacular, mas ainda por cima, para tornar tudo
absolutamente incompreensível para a mente comum, a
prefeitura, depois de conquistar esse metro a mais para o
conforto e satisfação dos cidadãos, instalara na beira da
calçada assim conquistada blocos de cimento, como pilastras
de amarração num cais, de um cinza-amarronzado repulsivo,
com um metro de altura e redondos, parecendo dentes.
Esses objetos repugnantes, inúteis e obstrutivos, vinte ou
mais, nas esquinas da rua afligida, pela qual Alice passava
sempre que ia para a estação do metrô, provocavam-lhe a
raiva impotente tão familiar, violenta e impossível de
apaziguar. Parava ali, contemplando a cena, como fizera ao
imaginar os operários da prefeitura enchendo os vasos com
cimento, quebrando canos, arrebentando casas inteiras, e
dizia a si mesma: Pessoas fizeram isso. Primeiro, em algum
escritório, imaginaram tudo, elaboraram um plano e
ordenaram que operários executassem. Era assustador, como
uma espécie de estupidez invisível que se tornava evidente e
visível. Como os modernos prédios de universidade.
Lado a lado na calçada, que era, por causa dos dentes de
cimento, tão estreita quanto antes do alargamento, Alice e
Joce- lin observaram a cena. Um caminhão em marcha a ré
fazendo uma curva muito fechada derrubara um dos dentes
para o lado. As bases estavam manchadas com urina e cocô
de cachorro. Sob o céu cinzento e baixo do amanhecer, as
casas ainda adormecidas abrigavam pessoas que seriam
insultadas por aquelas calçadas, aqueles dentes de cimento,
cada vez que saíssem. As casas pareciam ternas e inocentes,
o céu puro e triste. E então começou o coro do amanhecer.
Alice chorava de raiva. Jocelin suspirou e disse:
— Entendo o que quis dizer. Mas não é uma locação fácil.
Deve haver pessoas por aqui em quase todos os momentos
do dia e da noite.
— Não há ninguém agora.
— Mas há sempre corujas noturnas espiando pelas janelas ou
mulheres com bebês.
Alice sentiu-se confortada por aquela evidência de normali-
dade em Jocelin.
— Mas isso se aplica também a qualquer outro lugar, o tempo
todo, não é?
Jocelin não respondeu. Observava o dente entortado. Sem
lançar um olhar culpado ao redor ou verificar as fileiras de
janelas, ela se encaminhou apressada até esse bloco e tentou
levantá-lo. Conseguiu mexê-lo um pouco. Alice foi ajudá-la
e, juntas, com bastante dificuldade, levantaram o bloco para
uma posição perpendicular e depois deixaram-no cair de
novo.
Jocelin examinou rapidamente a brecha na base da estrutura,
onde havia apenas alguns arames finos.
— Este servirá. Porei a carga por baixo e deixarei o bloco de
pé. Tudo o que quero saber é a quantidade que precisarei
usar. Amanhã. Faremos tudo amanhã. Cerca de uma hora
mais cedo do que agora.
Já eram quase cinco horas da manhã.
As duas estavam paradas ali pelo menos há dez minutos; não
aparecera ninguém. Mas se encontravam cercadas por jane-
las e, possivelmente, olhos. Um sentimento familiar de
temeridade e excitação invadia Alice. Sua horrível apatia se
desvanecera. A sensação de torpor, como um veneno —
acabara!
E quando viraram a esquina de sua rua, Alice desatou a cor-
rer, por puro excesso de energia, saltou o portão e só foi
parar na porta, que no final das contas tinha de ser aberta.
Com uma chave. Jocelin se aproximou, calmamente,
lembrando:
— E preciso ter todo o controle para esse trabalho. Calma.
Sem qualquer excitação.
Alice murmurou uma desculpa. As duas foram se deitar.
Alice não dormiu muito; experimentava toda a emoção da
expectativa. Descendo por uma casa adormecida, obrigou-se
a andar um pouco para se acalmar, recordando o que Jocelin
dissera.
Foi sentar na cozinha e pensou: Aqui estou de novo,
esperando as pessoas acordarem. Tomou chá, comeu torrada
de trigo integral com mel, lembrou os pacotes no sótão. No
mesmo instante, todo o seu ser parecia afligido pela
confusão, pela divisão. O que se precisava era um carro...
mas não havia carro na casa 45... Como conseguir um?
Depois de verificar primeiro se já não seria muito tarde —
cerca de oito horas, havia tempo de alcançá-la antes que
saísse para o trabalho —, Alice encaminhou-se o mais
depressa que podia para o apartamento de Felicity.
Quando lá chegou, Felicity estava saindo e não escondeu sua
irritação ao ver Alice. Mas Alice não lhe deu tempo de re-
moer o sentimento, pois foi logo dizendo:
— Os problemas de Philip já estão mais ou menos resolvidos.
Mas procuram sua irmã. Se não a encontrarem em dois dias,
marcarão o funeral para segunda ou terça-feira de qualquer
maneira.
Felicity, como era esperado e como devia, parecia
embaraçada, mas também impaciente.
— Obrigada. Foi muita gentileza sua cuidar de tudo.
— Não tive alternativa — lembrou-a Alice, bruscamente.
As duas mulheres se fitaram, mas Felicity parecia
empenhada
num jogo de tentar se esquivar de alguém sem ser tocada.
Alice acrescentou:
— Pode me emprestar seu carro por algumas horas?
Ao que Felicity suspirou e murmurou:
— Vou usá-lo esta manhã.
Ela era assistente social.
— Estou precisando — insistiu Alice, com toda a simpli-
cidade.
Felicity pensou por um momento.
— Pode usá-lo amanhã de manhã, até a hora do almoço.
Ela não poderia dizer mais claramente: E isso é tudo o que
vai conseguir de mim como compensação! Ao que Alice
respondeu:
— Muito bem. Então consideraremos as contas acertadas.
Ouvir isso convertido em palavras fez Felicity corar, mas ela
disse:
— Estou com pressa. A mesma hora amanhã?
E quase correu para seu carro, um Datsun, estacionado à
beira da calçada, junto a todos os outros carros, conformados
e obedientes.
Problema resolvido, refletiu Alice, tirando da cabeça todos
os pensamentos sobre os perigosos pacotes. No dia seguinte,
ela os levaria para o vazadouro de lixo e ponto final. E se
trouxessem mais algum, também se livraria dele.
Diante da porta da casa estava parado um homem de terno
cinza impecável e gravata, a própria essência da autoridade, o
que levou Alice a pensar: Oh, não, não a prefeitura de novo!
Assumiu sua expressão competente, a de estou-pronta-para-
enfrentar-qualquer-coisa.
Mas foi com um sotaque americano que o homem indagou
ou constatou:
— Alice Mellings?
— Isso mesmo.
Ela compreendeu no mesmo instante que precisaria de toda
a sua habilidade para aquela confrontação iminente. O san-
gue excitado assim lhe dizia.
— Posso entrar?
Sem falar, ela abriu a porta e seguiu na frente do homem
para a cozinha; indicou que ele deveria sentar na cadeira à
extremidade da mesa. Pôs a chaleira no fogo e sentou à
cabeceira.
O homem parecia mais jovem do que ela. Mas era do tipo
que sempre parece jovem. Tinha um rosto liso, atencioso e
polido, como um estudante antiquado. Os olhos castanhos,
bastante atraentes, devotavam-se agora a cada movimento de
Alice, examinando-a tão atentamente quanto ela fazia com
ele. Tinha as mãos bem-cuidadas. Mas a característica mais
extraordinária era a ausência de características que pudessem
diferenciá-lo. Não havia nada, absolutamente nada, que
ressaltasse. Um burocrata, alguém que basicamente
trabalhava entre quatro paredes, exposto no máximo a uma
aragem ou a um ar muito frio que entrava por uma janela
aberta. Poderia ser aprovado num exame sobre como ser
comum. Mas havia algo excessivo nisso... E claro que ela,
Alice, só costumava conhecer inconformistas — ou, como
dizia a mãe, em sua maneira antiquada, boêmios; é claro
também que na Inglaterra de hoje, especialmente em Lon-
dres, ninguém dava importância a essas coisas, mas, mesmo
assim... Foi ele quem rompeu o silêncio:
— Camarada Mellings, fui informado esta manhã de que
relutou em aceitar uma entrega de matériel.
Alice ficou atordoada. O uso da palavra matériel agora,
naquele contexto, não a emocionava absolutamente. Naquela
situação (de que ela queria se livrar), a palavra matériel era
ameaçadora demais. Era uma palavra que insistia em ser
levada a sério.
— Isso é verdade, camarada Mellings? Eu gostaria que me
desse alguma explicação.
Ele falava de maneira abstrata, a sua personalidade removida,
mas as palavras usadas eram o suficiente. Alice sentiu-se
subitamente furiosa. Quem ele pensava...
— Claro que é verdade — respondeu ela, calma e fria. — Foi
um absurdo trazer para cá. Nunca houve nenhum acordo
para que essas coisas ficassem na casa.
Ela usou deliberadamente a palavra "coisas", que parecia
indicar algo sem importância. O homem passou a língua
pelos lábios, os olhos se estreitaram um pouco.
— Isso não é possível — declarou ele, depois de uma pausa
prolongada.
Alice percebeu que ele estava perplexo, tentando encontrar
algum fio solto que o guiasse.
— E, sim. Todos os tipos de coisas eram deixados na casa ao
lado e depois apanhados. Mas nada tinha a ver com esta casa.
A situação aqui é muito diferente.
A chaleira começou a apitar, o que permitiu a Alice se
levantar abruptamente. De costas para o homem, ela
despejou café solúvel em duas canecas. Devagar. Alguma
coisa no estranho a perturbava. Ele era um pouco como
aqueles fardos grandes, lisos e lustrosos lá de cima, sem
qualquer marca por fora e só Deus sabia o quê por dentro.
Um americano? Talvez...
Alice demorou para se virar e pôr a caneca na frente do
homem. Não perguntara o que ele tomaria. A seguir
surpreendeu a si mesma ao bocejar, um bocejo profundo e
irresistível. Afinal, quase não dormira. Ele fitou-a,
discretamente, surpreso.
Aquele olhar não estava na agenda; e Alice sentiu-se
subitamente no controle.
Sentou, muito calma; quando o homem parecia procurar por
leite ou açúcar, ela empurrou em sua direção uma garrafa de
leite pela metade e uma xícara velha com açúcar.
Compreendeu que aquelas disposições domésticas não
contavam com a aprovação do estranho.
Alice esperou, a mente trabalhando no que a perturbava no
homem.
— Os revolucionários americanos dependem dessa ligação —
disse ele —, a fim de que sua ajuda possa alcançar os
revolucionários irlandeses.
— Que revolucionários americanos?
— Como sabe, camarada Mellings, muitos americanos
honestos desejam ajudar os irlandeses em sua luta contra o
opressor britânico.
— Mas quase todos são cidadãos comuns, não
revolucionários.
Havia no comentário um considerável desprezo pelo ho-
mem — por sua inexatidão.
Ele olhava agora para a sua caneca, como se o exame de
Alice não tivesse proporcionado a informação de que
precisava e a caneca talvez lhe oferecesse uma inspiração.
— Vamos deixar tudo bem claro — acrescentou Alice. —
Você deve ser um americano que fornece matériel aos
camaradas irlandeses.
Ela não tivera a intenção de parecer tão rude e escarninha.
Ele disse, ainda olhando para a caneca:
— Isso mesmo, sou americano, Gordon O'Leary. Americano
de terceira geração. Uma antiga família irlandês-americana.
Como os Kennedys.
O homem riu, pela primeira vez. A risada oferecia a piada a
Alice como um presente, e ele levantou os olhos para fitá-la,
com toda a confiança.
— O camarada Andrew também é americano? — indagou
ela, a voz impregnada de desdém.
— Claro que sim. Mas acho que sua família veio da Alema-
nha.
— Porra nenhuma. O camarada Andrew é tão americano
quanto... — Alice fitou-o nos olhos, com toda a força de sua
inocência essencial, sua sinceridade. — E você não é
americano. Não poderia ser um americano nem em mil anos.
As faces pálidas e obedientes do homem ficaram coloridas, a
respiração se alterou, enquanto ele baixava os olhos
perigosamente furiosos. Disse, recuperando o controle:
— Mas posso lhe garantir que sou. Por que não deveria ser?
— Você é russo. Como Andrew. Mas é claro que fala com
um sotaque americano perfeito.
Alice riu, de nervosismo. Mas estava imbuída da raiva mais
sincera. Nunca suportara ser tratada como uma idiota. E era
como estava sendo tratada agora.
O homem efetuou algum ajustamento interno, suspirou,
empertigou-se na cadeira, como que lembrado por um
monitor interior de que não devia ficar arriado, olhou para
Alice e murmurou:
— Camarada Mellings, a verdade é que sou mesmo ameri-
cano. De Michigan. Sou engenheiro, e depois que concluir
certas missões aqui, é nisso que voltarei a trabalhar. Está me
entendendo?
Ele esperou pela resposta. Mas Alice, embora o escutasse,
fitando seu rosto, tinha o olhar meio vidrado, porque sua
mente trabalhava vertiginosamente. Por que ele não podia
ser americano? O sotaque era perfeito, melhor que o de
Andrew! O problema estava em seu estilo. Em alguma coisa
nele. Como eram então os americanos? (Alice até fechou os
olhos, permitindo que os americanos que conhecera
aflorassem em sua imaginação, a fim de examiná-los.) Todos
os que encontrara — e ela lembrou a si mesma que a maioria
era de jovens e membros da rede de exploradores e
andarilhos internacionais, mas ainda assim americanos
genuínos — eram muito diferentes. Havia uma certa
qualidade... o que era? Isso mesmo, muita grandeza, fran-
queza, descontração... havia uma liberdade, isso mesmo, essa
era a palavra. Enquanto aquele homem (e ela abriu os olhos
para fazer comparações com o que estivera examinando em
sua tela interior, deparando com ele a observá-la com
extrema curiosidade) era tenso e controlado, dava a
impressão de que não seria capaz de qualquer movimento
espontâneo, mesmo que tentasse. Parecia, embora estivesse
sentado "relaxado" — presumivelmente no que passava por
uma pose informal —, usar uma camisa-de-força invisível,
que jamais tirara em toda a sua vida. As próprias moléculas
haviam adquirido o hábito de se manter vigilantes.
— Você não é americano — concluiu Alice. — Mas isso não
importa. Só quero que não traga aquelas coisas para cá. Não
vamos aceitar.
— Vai fazer o que foi acertado. O que ficou combinado.
Ele falou suave, mas ameaçadoramente. Alice compreendeu
que aquela maneira de transmitir uma ameaça lhe fora
ensinada: método 53 para intimidar o alvo. O desprezo que
sentia pela transparência do homem a estava colocando além
de seu alcance.
— Já disse que não combinaram nada com a gente.
— Foi combinado, sim! E com você, camarada Mellings!
— Quando? Nunca me disseram nada. Nem uma única vez.
— Como não disseram? Aceitou ou não o nosso dinheiro,
camarada Mellings?
Isso fez com que Alice recuasse um pouco, franzindo o ros-
to. Mas ela insistiu:
— Não pedi o dinheiro. Deram porque quiseram.
— Mas recebeu-o — ressaltou o homem, com um desdém
polido, suave, que combinava com seu estilo geral.
— E verdade. Mas só soube de alguma coisa quando a
camarada Muriel... sabe quem é, a mulher que parece um
ganso... me entregou um pacote com quinhentas libras,
pouco antes de partir para o seu curso de espionagem na
Lituânia ou algum outro lugar.
Dessa vez ele ficou vermelho mesmo, como um bife cru,
chegando a lançar um olhar furioso para Alice, antes de
recuperar o controle mais uma vez. Tornou a se empertigar,
lembrando, talvez pela raiva, que mesmo quando se está
sentado é preciso manter os joelhos unidos, permitindo-se
no máximo um cotovelo apoiado na mesa.
— Se o camarada Andrew ou qualquer outra pessoa disse
alguma coisa sobre escolas de espionagem, em qualquer
lugar, foi apenas um monte de besteiras.
Alice pensou a respeito, sem qualquer pressa.
— Não acho que eram besteiras. Para onde Muriel e Pat
foram? Partiram para treinamento em algum lugar. Seja
como for, não tem a menor importância para mim. Não
estou interessada na América, Tchecoslováquia, Rússia ou
Lituânia. Nenhum de nós está. Somos revolucionários
ingleses e decidiremos nossa política e atos de acordo com a
tradição inglesa. A nossa tradição.
Depois de uma pausa considerável, o homem disse:
— Claro que é compreensível que deva primeiro uma leal-
dade à sua própria situação. Mas estamos empenhados numa
luta entre as crescentes forças comunistas do mundo e o
capitalismo nos estertores da morte. E uma situação
internacional, o que significa que as políticas devem ser
formuladas de um ponto de vista internacional. É uma luta
mundial, camarada.
— Tenho a impressão de que você não compreendeu direito
— insistiu Alice. — Não vamos aceitar ordens de você ou de
qualquer outro. Não vamos aceitar ordens de ninguém.
— Não é uma questão do que vocês decidiram ou deixaram
de decidir, camarada — declarou o homem, bem devagar,
enfatizando cada palavra. — Não pode renegar acordos que
já foram feitos.
Alice arrematou a discussão, ao reiterar:
— Mas não por nós.
Os olhos violentamente hostis do homem foram ocultados às
pressas, o olhar baixando mais uma vez para a caneca.
O silêncio prolongou-se por algum tempo, e Alice acabou
comentando, em seu jeito de boa anfitriã, deixando as
pessoas à vontade:
— Tenho a impressão de que o seu camarada Andrew meteu
os pés pelas mãos. Não foi isso? E está tentando remediar as
coisas?
Ela ouviu a respiração do homem sair ruidosamente. E em
seguida, devagar e regular, como se ele a controlasse. Seus
olhos não estavam disponíveis à inspeção de Alice. Tudo
nele estava tenso, contraído, até mesmo a mão, pousada
sobre a mesa.
— Não precisa ficar tão nervoso. Com tanta gente na KGB...
milhões, não é?... isso mesmo, sei que é o que acontece na
Rússia, apenas alguns de vocês não estão de olho na gente...
e assim é inevitável que haja alguns ineptos.
O olhar rápido que o homem levantou abruptamente as-
sustou Alice por um instante, mas ela continuou, firme,
gentil, pois agora desejava com toda a sinceridade deixá-lo à
vontade, se possível, tendo conquistado a vantagem e
fazendo-o aceitar seu ponto de vista.
— Tenho certeza de que a mesma coisa acontece do nosso
lado. E uma turma de merda, se for verdade apenas a metade
do que se lê nos jornais. . .
A última parte era sua mãe, sem tirar nem pôr; Alice
especulou por que a mãe deveria estar falando de forma tão
autorizada e natural através de sua boca. Não que se
importasse. A voz de Dorothy Mellings parecia bastante
apropriada naquela situação. E Alice arrematou:
— Sendo apanhados como acontece o tempo todo. Mas
imagino que não seria provável ouvirmos falar dos seus. Vo-
cês simplesmente os apagam. Esse é um dos problemas de se
ter uma imprensa livre.
Agora ele mudou a posição, aparentemente tentando relaxar,
embora o punho cerrado continuasse em cima da mesa, à sua
frente. O olhar fixo em Alice era firme, sua respiração nor-
mal; algum ponto decisivo fora alcançado na conversa, se é
que se podia chamar aquilo de conversa. Alguma decisão
provavelmente fora tomada. Ou seja, estava tudo bem. O
homem iria embora dentro de um momento e ficaria tudo
resolvido.
Mas o homem ainda não oferecia qualquer sinal de que es-
tava prestes a se retirar.
Pois então que continue sentado aí. O pensamento de Alice
queria focalizar não aquele homem ou o motivo de sua
presença ali, mas aquela noite, a aventura com Jocelin, o que
a aguardava, sentindo agora um vínculo quase fraternal com
ela, em contraste com o sentimento opressivo e complicado
que experimentava em relação àquele russo. Aquele
estrangeiro. E ela comentou:
— Acho que parte do nosso problema... isto é, agora, entre
mim e você... é o que se costuma chamar de choque cultu-
ral! — Nesse ponto ela riu, como Dorothy Mellings teria
feito. — As tradições de vocês são muito diferentes das
nossas. Neste país não se pode abordar as pessoas e dizer o
que devem fazer ou pensar. Não adianta. Temos uma
democracia. E já temos uma tradição democrática há tanto
tempo que está impregnada em nosso sangue.
Alice concluiu gentilmente, com um sorriso. O que acon-
tecia com o homem era que ele estava pensando, como
costuma acontecer, não tão raramente, em conversas: Mas
essa mulher está louca! Pirada! Demente! Pobre coitada,
ficou completamente insana! Como não percebi isso antes?
Em momentos assim, têm de ocorrer reajustamentos rápidos
e totais. Por exemplo, toda uma conversa anterior precisa ser
reavaliada àquela luz nova e lamentável, avaliações devem
ser processadas, como a de determinar se aquela pessoa de
fato pirou ou se apenas demonstrara uma excentricidade um
tanto estimulante, mas não apropriada para a situação
específica.
Alice não desconfiava de que tais pensamentos pairavam na
mente do homem; sentia-se feliz a flutuar, todos os tipos de
frases tranqüilizadoras e convenientes aflorando em sua
mente, como se fosse uma gravação que nem sabia que
existia. Se no entanto Alice pudesse contemplar o próprio
rosto, poderia ser diferente, pois a parte superior —
sobrancelhas e testa — exibia uma expressão preocupada,
talvez mesmo um pouco frenética, como se duvidando do
que dizia, enquanto a boca risonha continuava a produzir
palavras.
— E creio que foi esse provavelmente o problema do ca-
marada Andrew. (Aqui, a cena na cama aflorou-lhe à mente
e Alice teve de sacudir a cabeça vigorosamente para apagá-
la.) Ele parecia ter muita dificuldade para compreender os
padrões da cultura ocidental. Espero que não pense muito
mal dele. Eu o tinha em alta conta.
— Então você tinha, você tinha... — comentou o homem,
não indagou, de uma maneira até bem-humorada.
Tudo nele indicava que estava prestes a se levantar e ir
embora.
— Isso mesmo. Ele me pareceu uma boa pessoa. Um ser
humano dos melhores.
— Fico contente por saber disso — murmurou o camarada
Gordon O'Leary, de Chicago, Smolensk ou qualquer outro
lugar, levantando-se agora, mas em câmara lenta.
Ou talvez fosse assim que Alice via, pois não havia a menor
dúvida de que estava diferente. Falta de sono, era isso!
— Alguém virá buscar o matériel esta noite — prometeu o
homem.
— Não está mais aqui — improvisou Alice.
Não podiam deixar que aquele russo, aquele estrangeiro,
circulasse por toda a casa. Não com todas aquelas bombas e
outras coisas lá em cima. Daqui a pouco ele estaria lhes
dizendo o que deveriam fazer com tudo aquilo. Dando
ordens. Ele jamais compreenderia: era russo; e os russos
tinham toda aquela história de autoritarismo.
— E onde está?
Ele virou-se bruscamente, ficando muito perto de Alice. Ela
se levantara, tinha as mãos no encosto da cadeira. O homem
não parecia agora suave e burocrata, um nada. Todo o terror
que Alice poderia sentir durante a última meia hora invadiu-
a nesse momento. Quase não conseguia ficar de pé. Ele
parecia enorme e sinistro, assomando poderoso por cima
dela, os olhos como pistolas.
—- Está no vazadouro de lixo em Barstone. O vazadouro
municipal.
Os joelhos de Alice pareciam estar derretendo. Sentia frio,
queria estremecer. Compreendera tudo, mas aquela era
realmente uma situação grave e errara em algum momento.
Sem ter a intenção. Não era culpa sua! Mas a maneira como
aquele homem a fitava — jamais algo assim lhe acontecera
antes. Não sabia que podia haver uma situação em que a
sensação fosse de desamparo total.
Ele estava tão furioso! Devia estar tão furioso? Ficara branco,
não vermelho, com o esforço — ela supunha — de se
controlar, o esforço de não a agredir. De não matá-la. Alice
sabia disso.
Não deveria ter dito, de maneira tão indiferente, "vazadouro
de lixo", que as coisas estavam no lixo. Isso mesmo, fora
tolice. Uma precipitação. Talvez ela devesse dizer agora:
Não, eu estava brincando, as caixas se encontram lá em
cima. Mas se o fizesse, ele subiria e encontraria Jocelin
trabalhando e então...
Alice sentiu que podia desmaiar ou mesmo começar a cho-
rar. Podia sentir as lágrimas inundando-a, começando a pres-
sionar e porejar por todo o corpo.
— Estou sozinho — anunciou o homem. — Tenho um carro.
Preciso de alguém... ou melhor, duas pessoas... para ir até
esse lugar e me ajudar a recolher os pacotes.
— Ahn... — murmurou Alice ofegante, a voz soando débil e
tola. — Eu não faria isso. Não em plena luz do dia. Pode
haver gente por lá. Caminhões despejando lixo, para
começar. Seria perigoso.
— Seria perigoso? — Alice sentiu outra vez que o homem
poderia matá-la com a maior facilidade, fazer alguma coisa
que não pudesse evitar. — Mas não podemos deixar tudo
abandonado num depósito de lixo.
— Por que não? Já viu algum? Tem todos os tipos de coisas.
Acres e mais acres. Dois pacotes marrons comuns não
chamariam a atenção.
Alice percebeu que já começava a se sentir melhor outra
vez.
— Dois pacotes novos, grandes, fechados? — insistiu o
homem, o rosto bem perto do de Alice, distorcido pela raiva.
— Mesmo assim, eu esperaria até a noite.
— Não vou esperar. Chame duas pessoas. Homens. Há ho-
mens nesta casa, não?
Alice declarou, com frieza, quase recuperando plenamente o
controle:
— Eu e outra mulher carregamos as caixas... — Ela já ia dizer
"lá para cima", mas conteve-se a tempo — para o carro.
— Então duas mulheres. Não importa.
— Importa, sim. Não nos dê ordens. Será que não entende
que não pode nos dar ordens? Não somos russos.
Os olhos de Alice estavam fechados, não tanto porque não
se sentia bem (ao contrário, sentia-se melhor), mas porque
podia sentir o ódio do homem envolvê-la. Tudo acabara, ele
ia matá-la. Um movimento, o som de passos, ela abriu os
olhos e viu o homem se afastando. Mas ele parou na porta,
virou-se e disse, suavemente, com uma intensidade
extraordinária de desprezo, de aversão pessoal:
— Não pense que é o fim, camarada Mellings. Pois não é
absolutamente o fim, longe disso. Não pode brincar conosco
desse jeito. Espere só para ver, camarada Mellings.
Seu rosto se convulsionou por um instante, naquele
movimento de faces e língua que, se continuado, acabaria na
ação de cuspir. Ele ficou imóvel, os olhos semicerrados,
fixando-a, determinado a marcá-la, sufocá-la, com a força do
que sentia.
Agora ali estava o próprio homem, o que ele era realmente.
Alice sabia disso, compreendeu que o via como era de fato.
Aquele não era o espião suave e conformado que fora
ensinado a controlar cada movimento, gesto, expressão, mas
alguma coisa além disso. Ali havia poder. Não fantasias sobre
poder, pequenos jogos ou inveja, mas o poder de verdade.
Ele personificava as certezas da força, de se encontrar
plenamente no lado certo. Sabia que era superior,
dominante, no controle. Acima de tudo, no lado certo.
O homem saiu, fechando a porta — Alice registrou —
gentilmente. Sem batidas estrepitosas que pudessem alertar
os vizinhos.
Alice correu para a pia e vomitou.
Lavou meticulosamente a sujeira, esfregou e limpou, embora
só pudesse usar uma das mãos, a outra servindo para se
apoiar, de tão fracos que estavam os joelhos. Foi para o
banheiro, cambaleando, pois o terror parecia instalado em
suas entranhas. Segurando-se na beira das portas e nas
maçanetas, voltou à cozinha, arriou numa cadeira, baixou o
rosto para a mesa, os braços esparramados, inerte como um
trapo. Nunca antes sentira algo parecido com aquela fraqueza
física. Permaneceu assim talvez por meia hora, enquanto as
forças lhe voltavam, lentamente.
E então Jocelin apareceu, mal olhou para Alice — portanto,
obviamente não podia se encontrar num estado tão
lamentável — e disse que ela precisava tomar um café bem
forte: ficar sem dormir não combinava com ela. Se
começassem agora, tinha certeza de que poderia aprontar o
artefato explosivo apropriado para o trabalho daquela noite.
Ela falou com indiferença, mas com a satisfação fria, que era
a sua maneira de demonstrar a excitação que, Alice sabia,
muito em breve a deixaria recuperada. A fim de acelerar o
processo, Alice subiu com Jocelin para a oficina, dessa vez
levando uma cadeira. Ficou observando aquelas mãos
meticulosas e inteligentes em ação. Não demorou muito para
que se sentisse tão melhor a ponto de quase esquecer o
camarada Gordon 0'Leary. Pensou vagamente: Precisamos
decidir se devemos ou não levar os pacotes para o vazadouro
de lixo. Como está, ele vai pensar que já foram encontrados
e levados para algum lugar. O terror real lhe parecia agora tão
distante que ela pensou também: Ora, isso fará com que ele
passe por maus momentos. Uma boa lição. Falou a Jocelin
sobre o homem como se fosse alguma espécie de vendedor
importuno a quem despachara.
— Quem eles pensam que são? — concordou Jocelin.
O entusiasmo das duas começou a impregnar a casa inteira,
como os aromas de uma sopa de Alice. Por algum tempo,
todos ficaram lá em cima, observando Jocelin trabalhar,
gracejando como gostariam de usar essa ou aquela bomba.
Blocos de apartamentos. O centro de computação da polícia.
Qualquer sistema de depósito de informações, por falar
nisso. Certos condomínios. Qualquer abrigo nuclear
construído em qualquer lugar, pois beneficiariam apenas os
ricos. Usinas nucleares.
O jogo foi se tornando cada vez mais desenfreado e ruidoso,
até que Caroline lembrou que Reggie e Mary chegariam em
breve. Deixaram Jocelin trabalhando sozinha e se
dispersaram pela casa, mas a todo instante se encontravam
nos patamares, na cozinha, pois era difícil naquele dia não
procurar a companhia uns dos outros, partilhar aquela onda
de excitamento, de poder.
Tudo correu bem naquela noite, uma quinta-feira. Reggie e
Mary voltaram pelo tempo suficiente para pegar algumas
coisas; passariam o fim de semana fora. Um golpe de sorte:
significava que poderiam passar a noite inteira juntos. E
reuniram-se na cozinha, rindo, gracejando, como se
estivessem embriagados. Mas ninguém bebera. E Jocelin
mantinha-se quieta, concentrada, apartada dos outros pelas
necessidades de sua tarefa.
Ela decidiu que seria melhor se três pessoas participassem da
expedição, não duas, porque seria preciso levantar o pesado
bloco de cimento. Todos competiram pela honra, e Jocelin
escolheu Bert. Faye ficou desapontada e um pouco irritada.
Roberta disse:
— Não se preocupe. Haverá outras ocasiões.
Quando faltavam quinze minutos para as quatro horas da
madrugada, Jocelin, Bert e Alice deixaram a casa sem fazer
barulho. Todas as janelas na pequena rua estavam escuras. Na
rua principal os lampiões pareciam recolher sua própria luz;
o amarelo se adensava, enquanto uma claridade cinzenta e
abstrata se insinuava pelo céu. Nas calçadas, entre os
lampiões, estava escuro. Ali embaixo, à frente deles, a
escuridão se agitou e se transformou num cachorrinho preto
e branco, seguindo com um ar modesto e pensativo de
algum lugar para outro. Não havia ninguém naquela rua nem
na ruazinha em que iam trabalhar. Tudo levou apenas um
minuto: Alice e Bert levantaram o bloco de cimento e
Jocelin ajeitou a bomba por baixo. O bloco ficou de pé. Não
saíram correndo; em vez disso, foram andando devagar até
uma esquina, depois aceleraram os passos. Alguns minutos
depois de chegarem em casa, quando tomavam um
chocolate quente na cozinha, ouviram a explosão da bomba.
Mais alta do que esperavam.
Não gracejavam mais agora, sentiam-se tensos, um pouco
irritadiços, ansiando por sair para verificar os estragos, mas
Bert argumentou que os criminosos sempre voltam ao local
do crime e a polícia conta com isso.
Jocelin foi se deitar. O mesmo fizeram Faye e Roberta. Os
outros não foram capazes. Por volta das nove horas, Caroline
saiu, foi andando por ruas movimentadas e encontrou a área
isolada, com fitas vermelhas e amarelas, "como uma feira", e
polícia por toda parte. Parecia não haver muitos danos.
Como vidraças quebradas, por exemplo. Acordaram Jocelin
para informá-la. Ela ficou desolada: sua intenção era
fragmentar o bloco de cimento e uma parte da calçada.
Também foi dar uma olhada e voltou com uma expressão
sombria. Seus cálculos não haviam sido corretos. Foi para a
oficina, dizendo que queria ficar sozinha para pensar.
Alice lembrou que aquela era a manhã em que teria o carro à
disposição para se livrar dos pacotes. Ficou mal-humorada,
até amargurada, por ter de resolver o caso numa manhã
como aquela, num dia em que poderia ficar com os outros,
sem qualquer problema.
Discutiram o assunto. Deveriam sair agora, no meio da
manhã, procurar algum lugar para deixar os pacotes?
Caroline sugeriu indolentemente que não precisavam se
incomodar — afinal, todos deixariam a casa muito em breve.
Que os próximos ocupantes resolvessem o problema.
Bert e Jasper disseram que não. Alice, embora relutante,
concordou.
Os quatro desceram os pacotes do sótão, com alguma
dificuldade e muitos esbarrões. O barulho atraiu Jocelin. Ela
disse que queria verificar o que havia ali, afinal, podia ser
algo útil. As tiras de plástico que envolviam o pacote foram
cortadas com facilidade. O embrulho era de papel encerado.
Por baixo havia um papelão grosso. Dentro, uma camada de
estopa oleosa. E nesse ninho, diversas peças de armas de
fogo. Os cinco conspiradores debruçaram-se sobre o pacote
aberto, atordoados. Os corações batiam forte, os olhos
faiscavam. Empertigaram-se, lentamente, para respirar
melhor. A mão de Caroline, pousada na beira do pacote,
tremia incontrolável; ela retirou-a rapidamente. Os cinco
ficaram parados ali, em torno das peças de armas, que
tinham um brilho opaco à luz insuficiente. A respiração era
meio rouca e sussurrada, podiam ouvir um ou outro suspirar.
Bert acabou dizendo, com uma risada:
— Dá até para pensar que estamos encagaçados... e confesso
que estou mesmo. De repente, a coisa é para valer...
Todos riram também, com exceção de Alice, que levantara
os punhos cerrados, cobrindo a boca entreaberta. Seus olhos
fixavam-se tragicamente em Jocelin, por cima das mãos.
Jocelin lançou-lhe um olhar impaciente e disse:
— Vamos acabar logo com isso.
E ela recomeçou a empurrar o pacote.
— Não! — gritou Jasper, entrando em ação subitamente.
Num frenesi de energia, ele começou a remover as peças
de armas e a montá-las como achava que deveriam ser,
trabalhando por cima das outras peças, ainda enterradas na
estopa.
— Não faça isso — protestou Jocelin, fria e suave... para
grande alívio de Alice.
Que também interveio:
— Não, Jasper, não...
Bert já tentava ajudar Jasper, mas era lento e desajeitado, em
comparação com o amigo.
Embora Jasper se mostrasse rápido e competente, reunindo
as peças, separando-as, procurando outras maneiras de
ajustá- las, não estava conseguindo montar uma arma
completa.
— São metralhadoras? — indagou Alice, quase chorando.
— Pare com isso — disse Jocelin a Jasper. — Mesmo que
conseguisse montar uma arma, o que faria com ela?
— Pode deixar que encontraremos um uso — garantiu Bert,
todos os dentes brancos brilhando, esforçando-se ao máximo
para ser tão eficiente quanto Jasper, que quase terminara de
montar uma coisa preta, reluzente, de aparência sinistra,
como as armas que se vêem em filmes de ficção científica
para crianças.
— Estão deixando impressões digitais em tudo — insistiu
Jocelin, com tanto desdém que Bert e a seguir Jasper
largaram as armas e recuaram. Fixando os olhos frios e
demolidores em Jasper, revelando exatamente o que pensava
dele, ela acrescentou: — Seu idiota. Estúpido rematado. O
que pensa que vai fazer? Deixá-las em qualquer lugar, para
estarem à mão em caso de necessidade?
Ela empurrou os dois para trás com os cotovelos e pôs-se a
trabalhar. Primeiro, desmontou num instante e com eficiên-
cia as armas parcialmente montadas (revelando a todos que
sabia exatamente o que estava fazendo, que tinha
conhecimento de armas assim), depois pegou pedaços de
estopa e limpou as impressões digitais. Caroline comentou:
— Provavelmente não vai adiantar muito só esfregar as
impressões desse jeito... não com os métodos que usam hoje
em dia.
— Talvez não, mas não acha que já é tarde demais para pen-
sar nisso? — respondeu Jocelin. — Temos de nos livrar
destas coisas... só isso, mais nada.
— Por que não enterramos no jardim? — sugeriu Bert,
parecendo um garotinho privado de um brinquedo.
— Neste jardim? Mas que idéia brilhante! — Enquanto
tornava a guardar as peças no ninho de estopa, Jocelin
acrescentou: — Se vocês pensam em alguns trabalhos que
precisam realmente ser feitos, algo concreto... isto é,
inserido no contexto apropriado e organizado de forma
apropriada... então sempre se pode arrumar armas. E vocês
sabem disso, não é?
Bert fitava-a com ressentimento, mas também com admira-
ção, o que concedia a ela o direito de assumir o comando.
Seus olhos ardiam de excitação, e ele não podia parar de
sorrir: dentes, olhos, lábios vermelhos, tudo faiscava.
Jasper se continha, os olhos resguardados pelas pálpebras, a
fim de não revelar quanto estava furioso — o que Alice sabia
que acontecia. Via Jasper e Bert como nunca os vira antes —
soldados, soldados de verdade, numa guerra. E pensou: Ora,
eles adorariam, particularmente Jasper. Apreciaria cada
minuto... O pensamento deixou-a ainda mais consternada, e
ela recuou alguns passos, comprimindo as mãos contra a
boca.
Jocelin avaliou muito bem a situação dela, apesar da
preocupação em fechar o pacote.
— Nunca tinha visto armas de fogo antes, Alice?
— Nunca.
— Sua reação é exagerada.
— Tem toda a razão — interveio Jasper no mesmo instante,
recuperando-se na fúria ostensiva contra Alice. Olhem só
para ela. Parece até que viu um fantasma.
E de repente ele se tornou como um garotinho no recreio
tentando assustar outro, balançando as mãos para ela e
gritando:
— Buuu! Alice viu um fantasma...
— Pare com isso, pelo amor de Deus! — berrou Jocelin,
perdendo a calma. — Temos um trabalho sério a fazer... já
esqueceram? E tenho de voltar ao trabalho. Levem estas
caixas para algum lugar, larguem por lá e esqueçam. Só
criariam problemas.
E, com isso, ela subiu, à sua maneira lenta e determinada,
sem olhar para trás. Todos sabiam que Jocelin estava furiosa
consigo mesma por ter perdido a calma.
E ficaram olhando, em silêncio, até que ela desapareceu, e o
clima se desanuviou um pouco.
— Vamos cuidar logo disso — murmurou Bert.
Indecisão. Com a ausência de Jocelin, que mandava de fato
na situação, por um momento ninguém foi capaz de agir.
Mas Alice acabou se mexendo e declarou:
— Vou buscar o carro.
E saiu correndo. As chaves do carro haviam sido deixadas
com a vizinha de baixo, porque — ela informou irritada,
indicando como Felicity devia estar furiosa — Felicity ficara
esperando que Alice chegasse na hora marcada. Pedidos de
desculpas e sorrisos. Alice trouxe o carro e os quatro
puseram os pacotes dentro. Não era de admirar que fossem
tão pesados.
Ficaram discutindo para onde levar os pacotes. O vazadouro
de lixo? Não, não àquela hora do dia. Jogar no rio? Não,
seriam observados. Era melhor seguir para algum subúrbio
com muita vegetação, como Wimbledon ou Greenwich, e
tentar encontrar um lugar para deixá-los. Estavam a
caminho, passando por Chiswick, andando devagar no
tráfego intenso, quando avistaram, numa rua transversal, um
enorme portão de ferro corrugado e a placa "Warwick &
Sons, Negociantes de Ferro-Velho". Deram a volta ao
quarteirão e passaram pelo portão. O lugar parecia deserto.
Alice estacionou em fila dupla enquanto Bert entrava,
calmamente, como se fosse um freguês, e esperava um
momento. Mas ninguém apareceu. Ele voltou correndo, o
rosto afogueado, os olhos avermelhados, os dentes brancos e
os lábios vermelhos faiscando no meio da barba preta. Jasper
ficou febril no mesmo instante. Alice, admirando-os, passou
pelo portão em marcha a ré e parou. Era um vasto depósito.
Naquela parte de Londres havia terrenos amplos, com casas
grandes e imensos jardins. Mas aquele lugar tinha alguns
galpões quase em ruínas, de tijolos e ferro corroído, nos
fundos, com pesados cadeados nas portas. Afora isso, por
toda parte havia pilhas e mais pilhas de canos de metal,
pedaços de carros, barras de ferro enferrujadas, fragmentos
de metal entortados. Latão e cobre rebrilhavam
inesperadamente, e pilhas de plástico leitoso indicavam que
ali se negociava com outras coisas além de metais. Havia
vigas antigas empilhadas perto do portão, de carvalho a julgar
pela aparência (duas assim viriam a calhar para o telhado da
pobre 43), tendo ao redor refugos de todos os tipos, inclusi-
ve uma porção de caixas de papelão, em rápida
desintegração, contendo mais metal, garrafas de plástico e
outros objetos. Era o lugar certo. Jasper e Caroline saltaram e
ajudaram Bert a tirar os pacotes do carro, largando-os perto
da pilha de vigas. Os olhos de Alice pareciam estar
estourando; ondas negras a sacudiam. Mas tinha de manter o
carro em funcionamento. Através de sua febre, ela viu como
Bert já se empertigava, o trabalho concluído, olhando ao
redor; como Caroline voltara ao carro, tornava a embarcar,
enquanto Jasper, implacável, rápido, eficiente, esfregava
terra nos pacotes e arranhava-os com um pedaço de ferro
que pegara numa pilha, trabalhando num frenesi de intenção
definida. Aquele era Jasper!, pensou Alice, orgulhosa, um or-
gulho que animava todo o seu ser. Quem ainda não vira
Jasper assim, em tal momento, nunca poderia saber! Em
comparação, Bert era um homem rústico, compreendendo
lentamente o que o outro fazia e depois se prontificando a
ajudar, quando Jasper já quase acabara. Os dois pacotes não
pareciam mais os monstros pardos e insidiosos de poucos
minutos antes, já estavam iguais a todos os outros refugos
espalhados por ali, seriam facilmente ignorados.
Jasper e Bert voltaram ao carro, e Alice deu a partida. Pelo
que podiam saber, ninguém os vira.
Seguiram para o centro de Londres e entraram num pub em
Shepherds' Bush. Era meio-dia e meia. Procuraram um lugar
em que podiam observar o aparelho de televisão e sentaram-
se para beber e comer. Estavam esfomeados, todos eles. Não
havia nada no noticiário, e assim que acabou eles deixaram o
pub e foram para casa. Ainda sentiam fome e estavam quase
caindo de sono. Compraram mais comida e foram comer à
mesa da cozinha, junto com Faye, Roberta e Jocelin. A
sensação era de anticlímax. Mas não queriam se separar;
precisavam uns dos outros, tinham necessidade de ficar
juntos. Começaram a beber. Jasper e Bert, Alice e Caroline
saíram para dormir um pouco, por duas ou três horas, em
ocasiões diferentes, mas todos sentiram, sozinhos em seus
quartos, uma atração intensa em relação aos outros para
tornarem a descer. Beberam pelo final da tarde e a noite
afora, não exultantes, mas deprimidos. Não o confessaram,
mas Faye mostrou-se chorosa umas poucas vezes.
Assim que o metrô começou a funcionar, pela manhã, Jasper
foi comprar os jornais. Voltou com todos, do Times ao Sun.
A cozinha fervilhava subitamente com o barulho de páginas
de jornal viradas, que foi se tornando cada vez mais
frenético.
Não havia qualquer notícia sobre a façanha deles! Nem uma
só palavra. Ficaram furiosos. Faye encontrou finalmente um
pequeno parágrafo no Guardian que dizia que alguns
desordeiros haviam explodido a esquina de uma rua na West
Rowan Road, Bilstead.
— Desordeiros — disse Jocelin, fria e letal, os olhos bri-
lhando.
Ela não acrescentou — não havia necessidade, pois era o
pensamento de todos: Vamos dar uma lição nessa gente.
E assim eles foram deitar. Manhã de sábado. Seis horas.
Dormiram o dia inteiro e acordaram com a sensação
agradavelmente alienada que ocorre depois que se fica
desperto por um longo tempo e ao final se desfruta de um
sono longo e reparador.
Discutiram qual seria o local do próximo atentado. Várias
possibilidades, mas Jocelin declarou que precisava de mais
tempo para ter certeza absoluta dos meios. Além disso,
acrescentou Alice, Philip provavelmente seria enterrado na
segunda ou terça-feira; deveriam cuidar disso primeiro. Ela
compreendeu, pelo silêncio subseqüente, pela maneira como
evitaram olhar para ela — pelo menos imediatamente — que
não passara pela cabeça de ninguém ir ao funeral de Philip.
Ela anunciou, na voz polida e indiferente que usava quando
se sentia mais magoada, mais traída:
— Eu vou, mesmo que ninguém mais vá.
Jasper conhecia aquela voz e disse que a acompanharia. Fi-
cou satisfeito e até mesmo acanhado, como um menino,
pelo olhar agradecido que Alice lhe lançou. Faye comentou
que detestava funerais, nunca fora a nenhum. Quando as
pessoas morriam, estavam mortas, arrematou ela. Caroline
lembrou que mal conhecera Philip. E Jocelin acrescentou
que essa era também a sua situação.
Alguém foi comprar cigarros e voltou com o Advertiser local
— o pequeno jornal distribuído nas ruas, posto em caixas de
correspondência ou enfiado por baixo das portas. Ali havia
uma matéria que dizia:
"Uma bomba explodiu na esquina da West Rowan Road no
início da manhã de sexta-feira. Um bloco de cimento foi
destruído e outro ficou avariado. A explosão afetou as
paredes de casas próximas e arrebentou as vidraças em
quatro. A senhora Murray, uma viúva de oitenta e sete anos,
disse que estava sentada à sua janela no segundo andar e
avistou três jovens perto do bloco de cimento. Ainda estava
escuro e ela não pôde vê-los direito. Achou que estavam
fazendo alguma brincadeira. E voltou para a cama, ainda
vestida.
"'Venho dormindo muito mal nos últimos tempos', comen-
tou ela. Ouviu a explosão, e fragmentos de vidro voaram
pelo quarto. 'Foi muita sorte eu não estar mais sentada à
janela", declarou ela a um repórter. A senhora Murray sofreu
pequenos ferimento; dos fragmentos de vidro e ficou em
estado de choque."
— Oh, pobre coitada... — balbuciou Alice.
Ela não olhou para Jocelin, pois sabia que iria deparar com
uma expressão de censura.
— Uma vaca velha e idiota — disse Faye. — E uma pena que
a gente não tenha acabado com ela. Estaríamos lhe fazendo
um favor. A vida não vale a pena para essas velhas megeras.
Estão meio mortas de tédio, mas ainda com anos pela frente.
Os outros resolveram rir, para apaziguá-la. Faye estava
dominada por um dos seus violentos ânimos reminiscentes
— mas provocado por quê? Nunca sabiam. Ela tremeu um
pouco em desafio, sem olhar para os outros, sem olhar
sequer para Roberta, que estava um pouco encurvada, de
cabeça baixa, sofrendo por Faye.
— Acho que já sei o que fazer — anunciou Jocelin. — E
dessa vez tudo dará certo.
Ela parecia zangada, até amargurada. Todos se sentiam
amargurados de frustração. Uma notícia pequena no
Advertiser local! Pensavam que era uma humilhação, mais
uma na longa sucessão de menosprezos do que realmente
eram, de suas verdadeiras capacidades, que começara —
como os acessos de violência de Faye — há tanto tempo que
nem podiam se lembrar. Eram brutais na necessidade de se
imporem, de provarem seu poder.
Continuaram a beber. Alice manteve-se sóbria, como sem-
pre, e apreensiva. Afinal, era sábado. E às onze horas, como
ela meio que esperava, houve uma batida forte na porta da
frente. Levantou-se no mesmo instante e encaminhou-se
para a porta da cozinha, antes que os outros se mexessem. E
disse a Jasper:
— Fique fora de vista, está bem? Não saia daqui, de jeito
nenhum...
A Bert:
— Mantenha Jasper aqui. Não o deixe sair.
A Jocelin:
— Tem alguma coisa que eles possam encontrar?
Jocelin passou correndo por ela e subiu.
— E aquele fascista. Eu sabia que ele voltaria. Veio se vingar.
Eu sabia que ele voltaria.
As batidas na porta continuavam. Ela abriu a porta, dizendo
incisivamente, usando todos os recursos para se impor, para
ser a senhorita Mellings:
— Assim você vai acordar a rua inteira.
Era mesmo ele, o jovem louro e rancoroso, com olhos frios
de bebê, bigode felpudo. Estava sorridente e sádico. Segurava
alguma coisa nas costas e tinha um cheiro repulsivo.
Alice teve uma idéia do que estava para acontecer e sabia
que não poderia fazer nada para detê-lo. Mas o importante
era que Jasper não aparecesse, não no ânimo em que se
encontrava — haveria uma luta, ela tinha certeza.
Por trás do jovem louro havia outro policial. Ambos tinham
risadinhas de colegiais no rosto; nenhum dos dois olhou para
Alice — um mau sinal.
— O que desejam? — perguntou ela.
— É o que você deseja — disse o porco fascista.
Ele e o colega desataram a rir, levando a mão à boca, como
comediantes de teatro.
— É o que você gosta — disse o segundo policial, com um
forte sotaque escocês.
— E o que é de gosto regala a vida — acrescentou o inimigo
de Alice.
Oh, como ela o detestava, como o conhecia, até pelo avesso!
Sabia muito bem o que acontecia nas celas da polícia quando
ele tinha alguém impotente e à sua mercê. Mas não devia ser
Jasper.
A fim de provocá-lo, atrair sua ira, Alice permitiu-se dizer,
numa voz débil e trêmula de garotinha:
— Oh, por favor, vão embora...
Foi o suficiente. A medida certa.
— Não é disso que você gosta? — disse o pequeno fascista,
rindo e arremessando um saco de plástico cheio no
vestíbulo.
— Merda para merda — arrematou o outro.
O cheiro invadiu o vestíbulo, invadiu toda a casa, enquanto
os dois se afastavam a correr, rindo.
E claro que estava por toda parte, salpicara tudo.
Mas o importante era que Jasper permanecera na cozinha.
Avançando com extremo cuidado, Alice foi até a porta da
cozinha e avisou:
— Se eu fosse vocês, ficaria exatamente onde estão.
Mas eles não ficaram, avançaram num grupo furioso e
ruidoso, bradando imprecações e ameaças. Jasper iria agora
mesmo à delegacia. Mataria aquele fascista. Explodiria tudo.
Faye vomitava na pia da cozinha, amparada por Roberta.
Jocelin apareceu no patamar, olhou para baixo, como uma
figura do Juízo Final ou algo parecido, pensou Alice, cansada
de todos eles. Sabia quem ia limpar a sujeira.
— Calem-se! — gritou ela. — Não estão entendendo nada.
Isto é bom, não é mau. Ele precisava se vingar por ter
bancado o idiota no outro dia. Tivemos sorte de que ele
resolvesse fazer uma coisa desse tipo. Poderia ter entrado e
quebrado tudo, não é? Todos nós já vimos isso acontecer
antes!
— Ela tem razão — concordou Jocelin, que também teve
uma ânsia de vômito e controlou-se; depois retornou a seu
quarto.
Alice já pegara um balde com água e jornais. Parou por um
momento, olhando para os três, Jasper, Caroline e Bert, que
ainda se mantinham imóveis na porta da cozinha,
observando-a.
Ela ajoelhou-se na extremidade do vestíbulo e começou a
tarefa lenta de lavar o tapete, palmo a palmo. Quando
acabasse, pediria a Bert e Jasper para levarem tudo e jogarem
nos latões de lixo.
— Por que está perdendo tempo lavando isso? — indagou
Caroline. — Jogue fora.
Alice estava mesmo esperando que alguém dissesse
justamente isso. E foi com uma voz fria que respondeu:
— Se pusermos no jardim como está vai feder, haverá quei-
xas e um pretexto para a polícia voltar.
— Tem razão — murmurou Jasper.
Ela continuou a trabalhar. Estava dominada por uma fúria
implacável. Poderia matar, não apenas os policiais, mas
também Jasper, Bert e até a jovial Caroline, cujo rosto
chocado, espiando da porta, parecia dizer que não se podia
acreditar na estupidez e maldade do mundo.
— Não vá se deitar — Alice ordenou a Jasper. — Quando eu
acabar, você e Bert podem levar tudo para fora.
Levou uma hora ou mais para acabar com o tapete. Os dois
carregaram-no, pesado de água e detergente, cheirando
agora a produtos químicos, para os latões de lixo.
— Imagino que alguém pode estar acordado e vigiando, co-
mo sempre — comentou Alice, amargurada e muito cansada,
parada no centro do vestíbulo.
Faye disse que ia deitar. Roberta acompanhou-a, depois
voltou, pegou outro balde e ajudou a lavar o assoalho e as
paredes. Todos os demais foram deitar.
Enquanto trabalhava, Roberta praguejava incessantemente
em sua outra voz, a voz rude, atrapalhada e opressiva de sua
criação, não a voz lenta, descontraída e confortável da
Roberta de todos os dias que eles conheciam. Não praguejava
muito alto, apenas o suficiente para ser audível: um fluxo
incessante de ódio contra a polícia, o mundo, Deus, por si
mesma e por Faye.
Quando acabaram, as duas foram tomar banho. Depois,
Roberta saiu para comprar os jornais de domingo. Mas não
havia nada neles, nem uma só palavra.
Alice e Roberta dormiram por algumas horas. Faye, acordada
no meio da manhã, ficou furiosa com Roberta por "se deixar
envolver". Como vingança, subiu para conversar com
Jocelin, que trabalhava em suas bombas. Primeiro, como
aprendiz, ajudou Jocelin; depois, descobrindo que possuía
uma aptidão genuína, tentou fazer alguma coisa por conta
própria. Desceu para tomar um chá e levou o manual de
instruções. Nesse momento, Mary e Reggie chegaram do
trabalho, passando por lá antes de seguirem para o novo
apartamento. Achava-se em péssimo estado, disseram eles,
mas tendo visto Alice em ação, sabiam o que se podia fazer
para enfrentar o caos. A maneira como disseram isso indicou
aos outros que estavam dispostos a se mostrarem
"simpáticos" enquanto tivessem de permanecer ali. Mary
pegou na mesa O uso de explosivos num ambiente urbano e
folheou-o, a princípio distraidamente, depois mais devagar,
com mais atenção. Estendeu-o para Reggie, com um olhar
que estava longe de ser "simpático". Na cozinha estavam
Caroline, Jasper, Bert e Faye, todos subitamente tensos,
decididos a não olharem um para o outro, tentando parecer
indiferentes. Reggie estudou o manual por algum tempo e
depois largou-o na mesa. Não olhou para os outros e
continuou sentado, pensando. Logo ele e Mary trocaram
uma longa consulta com os olhos, e Reggie anunciou que
pretendiam se mudar para o novo apartamento
imediatamente, embora ainda não estivesse pronto. Poucos
momentos antes Mary comentara que esperariam pelo
menos até que o apartamento tivesse água quente.
O casal subiu, deixando as canecas de chá pela metade.
— Não foi muito inteligente o que fez, camarada — disse
Bert a Faye, mostrando uma porção de dentes brancos.
Faye sacudiu a cabeça. Respirava depressa, sorria, franzia o
rosto e mordia os lábios.
— Não tem importância — afirmou ela. — Depois que se
livrarem de nós, nunca mais vão querer pensar a nosso
respeito. Somos todos uns merdas para eles.
— Mesmo assim — insistiu Bert, fazendo um esforço para ser
severo, como a ocasião exigia —, foi uma estupidez.
E riu, como se fosse uma piada. Faye riu também, meio
frenética, fitando-o com ressentimento. Depois se levantou
e subiu correndo, para Roberta. E todos lá embaixo puderam
ouvir, por cima de suas cabeças, a voz baixa e maternal de
Roberta, a voz irada e estridente de Faye; suas queixas para
Roberta estavam sendo formuladas na "outra" voz, a de sua
criação; Roberta respondeu em sua voz cotidiana.
Os três continuaram sentados, inquietos. E Jasper disse,
rindo:
— Não sei por que Alice tem que dormir o dia inteiro.
E subiu para acordá-la. O que fez martelando a porta do
quarto em que ela dormia, onde ele também já dormira. Não
houve resposta. Jasper entrou com todo o cuidado, viu a
trouxa amontoada que era Alice virada para a parede;
achando inadmissível a escuridão do quarto, ele foi abrir as
cortinas. Alice ergueu-se abruptamente no saco de dormir,
os olhos contraídos por causa da claridade intensa da tarde.
Divisou um vulto escuro ameaçador à sua frente, delineado
pela claridade, e gritou.
— Mas que merda! — exclamou Jasper, irritado.
— Ah, é você...
Ela tornou a se deitar, como antes, de costas para Jasper. Ele
não podia suportar tal atitude. Ajoelhou-se junto às costas de
Alice, viu as pálpebras tremerem em sua pele sedosa e
sardenta.
— Alice — disse ele, polido mas firme —, você tem de
acordar. Algo aconteceu.
Ela abriu os olhos. Não indagou "O que foi?" Permaneceram
nessa posição por algum tempo, mais de um minuto. Era
como se Alice pensasse que levantar por sua ordem e descer
seria comprometer-se mais do que desejava, comprometer-
se de novo, quando já tomara uma decisão.
Jasper continuava atrás dela. Podia sentir seu calor nos
ombros, na determinação da necessidade que tinha dela.
Alice murmurou, indiferente:
— Está bem. Descerei logo.
Ele ficou ali mais um pouco, esperando que Alice se virasse e
sorrisse. Mas acabou se levantando e saiu, fechando a porta
sem fazer barulho.
— Oh, não! — balbuciou Alice, ofegante, para a parede. —
Oh, não! Não posso!
Mas ela se levantou, pôs os jeans e a blusa de malha, desceu.
A mesa estavam agora Jasper, Bert e Caroline. Jocelin fora
convocada.
Alice serviu-se de chá, em silêncio, sem a menor pressa.
Sentou. Escutou o relato do que acontecera. E proclamou,
confirmando Faye:
— Não tem a menor importância. Eles não vão querer pensar
mais a nosso respeito, assim que forem embora. Além do
mais, não há motivo para relacionar qualquer coisa que
aconteça com a gente. Muitas pessoas têm esses manuais de
terrorismo.
Ela não formulou o comentário final entre aspas, uma piada,
como sempre acontecera na casa até então. A piada se
desgastara, virara um lugar-comum.
— Mas eles são uns asquerosos respeitadores da lei — insistiu
Caroline. — Provavelmente pensarão que é seu dever
comunicar à polícia, quando relacionarem uma coisa com
outra.
Houve um momento de aflição, em que todos se
entreolharam, reconhecendo a verdade dessa declaração.
Mas Bert logo descartou-a, com uma risada.
— Relacionar o que com quê? Ainda nem decidimos coisa
alguma.
— Esta é uma ocasião tão boa quanto outra qualquer para
conversarmos a respeito — propôs Jocelin.
— Nesse caso, teremos de chamar Roberta e Faye — lem-
brou Jasper, apreensivo.
Involuntariamente, ele levantou os olhos para o teto, além
do qual, pelo que se podia presumir, Roberta e Faye haviam
se reconciliado; estavam deitadas ou sentadas.
— Talvez não seja a ocasião mais oportuna — sugeriu Bert.
Por sua careta, Alice deduziu que Faye se encontrava num
dos seus acessos. E disse, vagamente:
— Talvez devêssemos discutir sem a presença de Faye.
Todos a fitaram, prontos para censurá-la. Mas todos pensa-
ram, como ela pôde perceber, que suas palavras tinham
alguma procedência.
Foi Jocelin, que trabalhara com Faye por algumas horas
naquele dia, quem comentou:
— Mas ela é muito inteligente. E tem algumas boas idéias
sobre o local.
— Onde seria? — indagou Bert, rindo mais uma vez. — Diga-
nos. Ela não patenteou seus pensamentos sobre o assunto.
Jocelin respondeu com toda a seriedade:
— Concordo com vocês que Faye é emocional. Mas tive a
impressão esta manhã de que ela seria muito eficiente numa
emergência.
— Quem vai subir para chamá-las? — perguntou Jasper, em
tom jocoso.
Todos olharam para Alice.
Ela continuou como estava, limitando-se a mexer o chá.
— Qual é o problema com você? — perguntou-lhe Jasper.
— Estou cansada.
Alice se levantou, de uma maneira que parecia ao mesmo
tempo impulsiva e mecânica. Parecia surpresa por ter se
levantado e estar se encaminhando para a porta. Jasper foi
atrás e segurou-a pelo pulso.
— Aonde você vai, Alice?
— Dar uma volta.
— Mas estamos discutindo se vamos ou não ter uma reunião
formal. Uma reunião para decidir qual o caminho que
devemos seguir.
Era como o momento em que Jasper se ajoelhara às suas
costas, enquanto ela estava deitada no saco de dormir. Uma
pausa prolongada, e Alice voltou para sua cadeira, continuou
a mexer o chá, como se não tivesse saído dali.
— Vou chamar Faye e Roberta — anunciou Jocelin, dei-
xando a cozinha, decidida.
Todos puderam ouvir um coro de vozes diferentes, a de Faye
estridente, a de Roberta sonora e positiva, a de Jocelin
intervindo. Jocelin teve a última palavra. Desceu,
comunicando que estava tudo bem. Ficaram esperando meia
hora, gracejando a respeito.
E logo estavam todos reunidos. A discussão prolongou-se
por horas a fio. Discutiram os métodos de estações
ferroviárias, restaurantes, monumentos públicos. O
Memorial Albert foi o predileto por alguns minutos, até que
Faye disse que não, que o adorava; não danificaria uma só
pedra de seu edifício. Hotéis. Downing Street, 10. Ministério
do Interior. O centro de computação do MI-5. O Ministério
da Guerra.
E continuaram. Como acontece quando diversas pessoas
escolhem o nome para alguma coisa, entre muitas
possibilidades, as sugestões foram se tornando cada vez mais
desenfreadas e imaginativas, foram se tornando mais
engraçadas, e tudo se converteu numa comédia. De vez em
quando alguém dizia que deviam discutir a sério, mas a
seriedade parecia ser um item que não constava da agenda.
Todos estavam fracos de tanto rir quando finalmente
decidiram qual seria o lugar. E recuperaram a seriedade com
a exigência insistente de Faye de ser a pessoa que colocaria
os explosivos. Era sua vez, alegou ela. Alice, Jocelin e Bert
haviam ficado com toda a diversão na última vez.
A decisão foi de que a "coisa de verdade" seria conduzida por
Faye, Jasper e Jocelin, esta como a responsável pelos
explosivos, com os outros ajudando. A reunião foi encerrada
por volta das oito horas. Comemoraram com a ida a um
restaurante indiano. Depois, Faye e Roberta foram ao
cinema. Bert, Jasper e Caroline — Bert queria que Alice os
acompanhasse — foram visitar a casa ocupada em South
London. Jocelin precisava dar os últimos retoques em seu
trabalho.
Alice disse que não queria ir com os outros, que estava bem,
desejava dar um passeio sozinha. Isso mesmo, queria dar
uma volta, não entendia por que os outros estranhavam
tanto. Gostava de andar sozinha.
Era a primeira vez que alguns deles ouviam falar dessa
inclinação de Alice, e houve comentários jocosos.
Ela partiu, de rosto franzido, pelas ruas escuras. Parou depois
de cerca de cem metros e ficou olhando para um jardim,
onde eram visíveis apenas o contorno das flores, um arbusto,
todas as cores esvaídas. Recuperou o controle com um
suspiro e seguiu para o apartamento da mãe. Ali, tocou a
campainha, e a voz da mãe atendeu quase que no mesmo
instante.
— Sou eu, Alice. — Uma pausa e ela acrescentou, autoritá-
ria, impertinente. — Sou eu, Alice.
Outra pausa. Prolongada. Então, a porta zumbiu e Alice
subiu correndo a escada despojada e horrível. Parecia que
esperava, quando a mãe abriu a porta, entrar na sala grande e
agradável da velha casa dos Mellings, pois adiantou-se como
se o lugar fosse enorme e teve de fazer um esforço para parar
na frente da mãe, encostada na poltrona que obviamente
acabara de deixar. Era uma sala pequena mas bastante
decente, o que não impediu que Alice a considerasse
miserável e horrenda. As duas poltronas, nos lados da
pequena lareira a gás, que na velha casa tinham muito espaço
ao redor, agora eram como prisioneiras surradas e grandes
demais, obrigadas a se confrontarem. Precisavam de uma
reforma; Alice nunca notara isso antes.
E ela disse, em voz escandalizada, hostil:
— O que pensa que está fazendo num lugar como esse?
A sala era fria. Alice não se importava com isso, mas Dor-
othy usava suéter e meias de lã, roupas de inverno. Alice co-
nhecia aquele suéter amarelo folgado e a saia de lã. Eram ve-
lhos. Os cabelos da mãe, totalmente brancos agora, estavam
presos num coque desleixado. O rosto pálido e bonito,
sisudo, confrontava Alice, com um franzido que não dava
sinais de que poderia se atenuar.
Como sempre acontecia quando Alice estava com a mãe,
emoções agradáveis e gentis predominavam sobre as iradas,
que experimentava quando estava longe.
O rosto sofredor e agressivo com que ela entrara já
desaparecera, e ela sorriu. Era o sorriso tímido, ansioso por
agradar, da boa filha. Alice deu uma olhada para verificar
onde podia sentar. A poltrona que a mãe ocupava tinha
livros empilhados ao lado, até a altura do braço. Na prateleira
por cima da pequena lareira a gás havia uma garrafa de
uísque e um copo quase cheio.
A poltrona em frente à da mãe fora ocupada por alguém.
Alice olhou ao redor para ver se a pessoa se escondia em
algum lugar. As almofadas da poltrona estavam comprimidas,
com a aparência de uma ocupação longa e íntima. Ao lado
desse móvel havia uma xícara de chá vazia no chão. Alice
imaginou Zoé Devlin e a mãe sentadas frente a frente, ouviu
suas risadas vigorosas e felizes, que pareciam excluir todas as
outras pessoas. Uma pontada de angústia percorreu seu
corpo, e o olhar que lançou para a mãe era outra vez de
ressentimento.
— Por que está toda agasalhada assim? Está doente?
Uma pausa. Então, Dorothy respondeu, cautelosa, o rosto
ainda franzido:
— Como sabe muito bem, sou friorenta. Ao contrário de
você.
— Então por que não acende a lareira?
Outra pausa.
— Como já deve ter imaginado, preciso ter muito cuidado
com o dinheiro.
Ela falou em voz quase abafada, ainda cautelosa, com medo
do que outro tom, um movimento errado, poderia provocar.
Como uma enfermeira com um paciente intratável.
— Não dá para entender — protestou Alice. — A situação
não pode ser tão ruim que não tenha condições de acender o
fogo se está com frio.
Dorothy Mellings suspirou. Desviou os olhos. Não para as
duas poltronas, que agora pareciam uma promessa de uma
conversa longa e cordial que era devida a Alice, mas para
uma pequena mesa retangular encostada à parede, onde
provavelmente fazia suas refeições. Havia um prato ali, com
uma maçã e uma banana. Alice soltou uma exclamação
furiosa e foi até a geladeira pequena, no recesso que era
chamado de cozinha. Havia na geladeira uma garrafa de leite,
um pouco de queijo, quatro ovos e a metade de um pão
branco.
Alice virou-se bruscamente para a mãe, mas antes de poder
dizer qualquer coisa Dorothy perguntou:
— Quer chá ou alguma outra coisa, Alice? Está com fome?
— Não, não estou com fome — respondeu Alice, com um
tom acusador.
Dorothy sentou numa das cadeiras à pequena mesa, indi-
cando que Alice devia sentar no outro lado. Mas Alice não
era capaz de reconhecer os direitos daquela mesa mesquinha
na vida de sua mãe e sentou no braço da poltrona que fora
ocupada pela amiga de Dorothy.
— Zoé Devlin esteve aqui?
— Não. Como já sabe, Alice, não estamos mantendo boas
relações no momento.
— Ora, não seja ridícula. Você sempre soube como ela é.
— Mas você sabe muito bem que brigamos.
— E Theresa, esteve aqui?
— Ainda não.
— Brigou também com Theresa?
— Não há motivo para que eu tenha de lhe contar coisa
alguma.
Dorothy meio que se levantou — não precisava mais do que
isso —, pegou o copo de uísque e tomou um gole longo, a
boca um pouco contorcida. Uísque Grant's. Dorothy podia
ser pobre, pensou Alice, amargurada, mas não deixaria de
comprar a sua marca predileta de scotch.
Alice observou ansiosamente aquele rosto duro, que parecia
imobilizado para sempre numa carranca, as sobrancelhas
unidas.
E teve a sensação de que não conhecia a mãe. Dorothy
Mellings, nos bons tempos de antigamente, nos dias que
podiam povoar a memória de Alice por horas a fio, fora uma
mulher alta e atraente, cabelos vermelho-dourados presos
num coque, a pele sedosa e delicadamente sardenta, olhos
verde-azulados. Um tanto pré-rafaelita, como todos
costumavam gracejar. Mas como Dorothy nunca se
recostava indolente, não ficava suspirando nem revirava os
olhos, a comparação não ia muito além. Agora, era uma
mulher idosa, alta e forte, com os cabelos brancos
desarrumados. Os olhos eram como pedaços de pedra verde.
Quando estava com outras pessoas — Zoé Devlin, por
exemplo —, era toda vitalidade e riso.
— Então, quem veio visitá-la?
— A senhora Wood, que mora lá embaixo.
Alice levantou-se, aturdida, e tornou a sentar.
— A senhora Wood! Mas como é possível? Ela não é...
— Está insinuando que ela não é bastante boa para mim?
— Mas... — Alice descobriu-se literalmente incapaz de falar.
Todo aquele esplendor de hospitalidade, a casa grande, as
pessoas entrando e saindo, as refeições, a... — A senhora
Wood...
— Não sabia que você a conhecia.
— Mas não pode...
— Só porque ela é da classe operária? Ora, Alice, como pode
alegar uma coisa dessas contra ela? Quanto a mim, retornei
ao meu nível. E quem está sempre se gabando de seu avô da
classe operária? — Pela primeira vez naquela noite, Dorothy
sorriu e olhou de fato para Alice, com uma fúria fria nos
olhos esverdeados. — Ou acha que ela não é bastante
inteligente para mim?
— Mas vocês não têm nada em comum... aposto que ela
nunca leu coisa alguma em toda a sua vida, para começo de
conversa!
— Uma súbita reverência pela literatura, Alice? — Dorothy
tomou outro gole de uísque. — Mas posso lhe garantir que
acho a companhia da senhora Wood tão gratificante
quanto... uma porção de outras pessoas que eu poderia
mencionar. Ela não é cheia de besteiras e pretensões.
Quando Alice lembrou o movimento inexplicável da mãe
para a crítica implacável de coisas que ela considerara
sagradas por toda a sua vida, seus olhos encheram-se de
lágrimas, levando- a a pensar: Tem sido demais para ela; ah,
como a pobre coitada deve estar sofrendo.
— Você nunca deveria ter saído de casa. Bastava dizer que
ficaria lá de qualquer maneira e não precisaria vir para cá.
Parecia um apelo, como se a mãe pudesse dizer mesmo agora
"Tem razão, foi um erro", e voltar para a casa.
Dorothy parecia surpresa. Depois, o olhar cauteloso voltou,
acompanhado pela cara amarrada.
— Mas você sabe o que aconteceu, Alice.
— Que importa o que aconteceu? O fundamental é outra
coisa: o que vai acontecer agora?
— As vezes eu me desespero ao tentar conversar com você
sobre... necessidade. Não adianta. Sempre levou uma vida
tão fácil que não é capaz de compreender. Se quer alguma
coisa, acha naturalmente que pode obter...
Alice deixou escapar um pequeno som de protesto, queren-
do dizer que em sua opinião a mãe se desviara por completo
do assunto. Mas Dorothy continuou:
— Sei que não adianta. Tenho pensado muito em você,
Alice. E cheguei a uma conclusão muito simples. Você foi
estragada por tanto mimo. E o mesmo acontece com os
filhos de Zoé.
Isso foi dito sem emoção. Quase com indiferença. Toda a
paixão fora consumida.
Alice deixou passar, como parte da nova personalidade de
Dorothy ou um momento de loucura. Era melhor ignorar.
Provavelmente passaria logo, como aquela idéia absurda de
morar ali.
— Acho que você deve dizer a Cedric que não quer morar
aqui. Ele tem de lhe dar mais dinheiro.
Dorothy suspirou, mudou de posição na cadeira, deu a
impressão de que queria largar tudo por puro cansaço, mas
recuperou-se e empertigou-se.
— Preste atenção, Alice. E saiba que vou falar pela última
vez. Não sei por que você parece incapaz de entender. Não é
muito complicado.
Dorothy inclinou-se para a frente, os olhos fixos no rosto
rechonchudo, patético e desaprovador de Alice, e falou
devagar, explicando tudo.
— Quando seu pai me deixou, disse que eu poderia ficar na
casa. Reformei o último andar para ser um apartamento
independente. Ia alugá-lo, e assim pagaria as despesas.
Impostos. Luz. Gás.
Alice balançou a cabeça, relacionando-se com o que estava
sendo dito. Encorajada, Dorothy continuou:
— Em vez disso, porém, aceitei você e Jasper na casa. Você
escreveu indagando se poderia passar algum tempo em casa.
— Não me lembro disso. Foi você quem escreveu para
perguntar se eu não queria passar algum tempo lá.
— Está bem, está bem, Alice. Como quiser. Não vou discutir.
Não adianta. Seja como for, aconteceu. Aceitei você e Jasper.
Disse a seu pai que algumas pessoas precisavam de mais
tempo para amadurecer... estava falando de você, é claro.
Não me importo com Jasper.
Um calafrio de rejeição afligiu Alice. E preparou-se, como já
fizera tantas vezes, para assumir o fado de tudo, em defesa de
Jasper.
— Seu pai sempre insistia: "Mande-os embora. Eles já têm
idade suficiente para se defenderem sozinhos. Não sei por
que eu tenho de sustentar aquela dupla de parasitas". Mas eu
não podia, Alice, não podia.
Isso foi dito numa voz diferente, a primeira voz "simpática"
da mãe que Alice ouvia naquela noite. Era baixa, angustiada,
uma súplica. Alice sentiu-se bastante fortalecida para dizer:
— Claro que não. Aquela casa enorme, apenas você morando
ali e suas amigas entrando e saindo.
Dorothy ficou outra vez surpresa com a filha. Observou-a
com atenção, o rosto novamente franzido.
— E curioso como você parece não conseguir entender as
coisas.
Se Alice parecia incapaz de absorver um ponto essencial na
situação, Dorothy também era incapaz de absorver um fato
essencial em relação à filha.
— Por que não compreende? — indagou ela, não a Alice,
mas à sala, ao ar, a uma ou outra coisa. — Não consigo fazer
você entender... O fato é que eu estaria lá agora, na casa, se
não fosse por você e Jasper. Não, Alice, não estou culpando
você, mas a mim mesma.
Outro gole de scotch. Naquele ritmo, ela estaria alta muito
em breve. E Alice teria de ir embora. Detestava quando a
mãe ficava alta; era quando ela começava a dizer todas
aquelas coisas negativas.
— Foi isso o que aconteceu, Alice. E não posso imaginar por
que me dou o trabalho de dizer a você mais uma vez. Não é
a minha pessoa predileta, Alice. Não estou particularmente
interessada em vê-la.
Alice lutava com um pensamento difícil. Seu rosto estava
contorcido. Mordeu os lábios rosados. Parecia ofendida,
como se Dorothy tivesse comentado: "Não gosto da blusa
que está usando".
— Mas quando Jasper e eu fomos embora, por que não
reformou o apartamento e o alugou?
— Porque gastara o dinheiro que Cedric me dera para isso.
Com vocês. Ou melhor, com Jasper, é claro. Além do mais,
como a única maneira de me livrar de vocês parecia ser me
mudar, eu já acertara tudo com o corretor. Como você sabe
muito bem, já que atendeu os telefonemas... — Ela parou,
suspirou. — Não, claro que não foi isso. Seu pai disse que já
era demais. Foi esse o motivo. Cedric disse: "Chega!" E não
posso culpá-lo.
— Espere um pouco — disse Alice. — Que história é essa de
que atendi os telefonemas?
— Claro que você fez isso. Atendeu todos, não é? Querendo
ser prestativa. Como só você sabe ser.
— Eu atendi os telefonemas?
Alice não conseguia se lembrar disso. E Dorothy não podia
acreditar que Alice não lembrasse. Pela milésima vez, ocor-
ria a situação em que Alice dizia "Não me lembro, você está
enganada", pensando que a mãe inventava maldosamente as
coisas, enquanto Dorothy suspirava e acalentava
pensamentos interessantes sobre a patologia da mentira.
— Seja como for, você poderia dizer que mudou de idéia.
Dessa vez o suspiro de Dorothy foi elaborado e teatral.
— No mundo normal, Alice. . . mas você não saberia nada a
respeito... existem coisas como contratos.
— Oh, merda!
— Isso mesmo, Alice, uma merda. Mas havia dois motivos
para que eu não mudasse de idéia, mesmo que Cedric
mudasse. Por um lado, eu queria me livrar de tudo aquilo.
Você me prestou um grande serviço, Alice. Houve um
tempo em que eu poderia torcer seu pescoço... sentia-me
uma visita em minha própria casa, mal podia entrar em
minha própria cozinha... e de repente pensei: Meu Deus,
que alívio! Estou livre de tudo. Quem disse que eu tinha de
passar minha vida comprando comida e cozinhando? Passei
anos e anos de minha vida assim, cambaleando ao peso de
quilos e mais quilos de comida, cozinhando tudo e servindo
a uma porção de pessoas vorazes que comiam demais.
O som de protesto de Alice nesse ponto foi como um ge-
mido, e ela fitou a mãe com olhos frenéticos: Pare, por
favor, pare, antes de destruir tudo, até mesmo as recordações
de nossa casa maravilhosa.
Mas aquela força perigosa e destrutiva que era agora sua mãe
não a ouviu ou decidiu não dar atenção, pois continuou, em
voz dura e fria, mas divertida, como se nada, nada mesmo,
pudesse ser levado a sério.
— E o outro motivo foi que havia um negócio fantástico:
com aqueles alemães... como é mesmo que eles se chamam?
Você sabe, falou com eles... queriam comprar a casa como
estava, com carpetes e cortinas... tudo, enfim. Mas eu
precisava sair depressa para eles se instalarem. E você e
Jasper não iam embora, não importava o que eu dissesse.
A essa altura, Dorothy Mellings inclinou a cabeça para trás e
riu, enquanto Alice, os olhos arregalados, as articulações da
mão esquerda entre os dentes — deixaria marcas ali — dava
a impressão de que iria se dissolver numa poça de lágrimas.
— Foi então que Cedric telefonou para Jasper e disse que
chamaria a polícia se ele não fosse embora. Então, graças a
Deus, vocês saíram. O corretor me pressionou para aprontar
logo a casa para a venda. E assim que a casa ficou vazia,
alguém entrou e levou todas as cortinas.
Dorothy balançou de tanto rir, o tipo de riso que costumava
partilhar com Zoé Devlin, mas que não estava sendo
partilhado com Alice.
— Não sobrou uma única cortina. Com os alemães chegando
em quatro dias. Ficaram furiosos. Tinham fechado o contrato
com as cortinas e queriam cortinas de qualquer maneira. Se
não, o negócio estava cancelado. — Dorothy tomou outro
gole de scotch. — Perdi o apartamento que ia comprar.
Contei o que acontecera. Eles foram muito simpáticos, mas
não podiam esperar. Era um bom apartamento, mas devo
admitir que estou satisfeita. Era grande demais para mim. No
fundo, não preciso de nada maior do que isto. Queria me
livrar de tudo aquilo.
Entendendo, corretamente, "Queria me livrar de você",
Alice sentiu finalmente os olhos se encherem de lágrimas,
que escorreram pelas faces.
— Umas pessoas de Yorkshire ficaram com a casa, sem as
cortinas. Por duas mil libras a menos, mas àquela altura eu já
não me importava mais. Este apartamento estava disponível.
E ótimo. Quanto mais simples melhor. Quando penso em
todos os anos da minha vida que passei naquela agitação...
Alice murmurou, desconsolada, num fio de voz:
— Lamento ter levado o tapete.
— Ah, então foi você... Mas a verdade é que não tem a
menor importância. Não tenho mesmo espaço para aquele
tapete. Pode ficar.
Alice fungou algumas vezes, antes de acrescentar:
— Desculpe ter chamado você de fascista.
— Como? — Dorothy parecia incrédula. — Fascista? Ora,
ora... E todas aquelas outras coisas? Fascista... Mas quem se
importa com seus insultos malcriados?
— O que eu disse? Não...
Em algum lugar, no fundo da mente de Alice, ainda
reverberava a cena da despedida, quando gritara insultos para
a mãe e Jasper fizera a mesma coisa. Ela estava
incandescente. Derretendo de raiva.
— Ainda está com Jasper? — perguntou Dorothy.
Outra Alice, toda integridade e certeza, baniu a criança que
choramingava.
— Claro. Continuo com Jasper. Você sabe disso.
— Oh, Deus, Alice! — exclamou Dorothy Mellings,
oferecendo subitamente à filha a sinceridade simples e
efusiva que era o que Alice lembrava da mãe,
particularmente dos últimos quatro anos em sua casa, e pela
qual estava ansiosa. — Por que não arruma um emprego? Por
que não faz alguma coisa?
— Parece que esqueceu o fato de que temos mais de três
milhões de desempregados — declarou Alice, com ar
virtuoso.
— Ora, não diga bobagem. Você se formou com melhores
notas do que a maioria de sua turma. Todas as filhas de
minhas amigas na sua idade arrumaram empregos e fizeram
uma carreira. Você poderia fazer o mesmo, se quisesse. Mas
nem ao menos tentou. Podia começar agora... talvez seu pai
ajudasse. Tem visto Cedric?
— Não quero isso — protestou Alice. — Não vou levar esse
tipo de vida. Não ficarei sentada num escritório das nove às
cinco.
Subitamente, com exasperação, com perda, com
incompreensão, Dorothy explodiu:
— Ah, eu queria tanto uma coisa para você, Alice! Não tive
uma educação adequada, como sabe... Quantas vezes já lhe
disse isso? Casei quando tinha dezenove anos. Devia haver
uma lei contra isso. E depois limitei-me a cuidar da casa, a
cuidar de você e de seu irmão, só fazia cozinhar e cozinhar e
cozinhar. Sou uma desempregável. Quando você e seu irmão
eram pequenos, eu ficava pensando como minhas amigas
estavam se tornando alguém. E eu empacara. Lembra-se de
Rosemary Holmes? Sabia que ela está no Bart's? E uma
especialista de fama internacional em alguma coisa
relacionada com o fígado. Aí está, sou tão ignorante que
nem mesmo sei o que é. Fomos colegas de escola. Mas ela
foi para a universidade.
A exibição descontrolada de emoção por parte da mãe teve o
efeito de fortalecer Alice, torná-la rígida e desaprovadora.
Observar a mãe ficar alta, em festas ou não, era o motivo
pelo qual Alice nunca bebia. Sempre houvera um momento,
quando Dorothy bebia, em que alguma malevolência terrível
transbordava, como um agente químico pernicioso,
queimando tudo em que tocava. Mas a força destrutiva que
antes só se manifestava quando ela estava embriagada, como
se saísse de algum canto de seu íntimo sob pressão excessiva,
parecia agora tê-la dominado por completo, de tal forma que
nada estava a salvo de sua hostilidade sarcástica: nem os
filhos, nem os amigos, nem o ex- marido ou qualquer coisa
de seu passado.
Alice pensou, enquanto observava Dorothy contemplar com
expressão pesarosa alguma oportunidade perdida: O que ela
pensa que deveria ter feito?
— Tenho certeza de que eu seria uma boa médica —
acrescentou Dorothy. — E você sabe disso. Também daria
uma boa fazendeira. Ou exploradora.
— Exploradora! — escarneceu Alice, debilmente.
— Isso mesmo, exploradora.
O copo estava vazio. Dorothy levantou-se, foi até a prate-
leira, serviu-se de outra dose generosa de uísque, tornou a
sentar. Não olhava para Alice.
— Não fiz nada com a minha vida. — Ela sorria, desdenhosa,
como se assim anulasse Alice. — Eu ficava olhando para vo-
cê quando era pequena e pensava: Pelo menos cuidarei para
que Alice tenha instrução, esteja preparada para enfrentar a
vida. Não vou deixar que Alice fique empacada como eu,
sem qualificação para coisa alguma. Mas, no final das contas,
você consumiu sua vida exatamente como eu. Cozinhando e
cuidando de outras pessoas. O trabalho escravo da mulher.
Ela riu, amargurada, demolindo todos os anos maravilhosos
sobre os quais Alice pensava com tanto anseio, matando a
antiga Dorothy Mellings, que irradiava calor por toda parte,
as pessoas procurando-a, cercando-a, querendo o que ela
tinha: o dom de encher tudo a seu redor com vida.
Alice sentia-se magoada além das palavras, estava toda
encolhida, enquanto a mãe continuava a falar:
— Este mundo é dominado pelas pessoas que sabem como
fazer as coisas. Sabem como as coisas funcionam. Estão
preparadas. Lá no alto, há uma camada de pessoas que
comandam tudo. Mas nós... não passamos de pessoas
rústicas. Não entendemos o que está acontecendo e não
podemos fazer nada.
Alice percebeu que recuperava o controle.
— Não diga bobagem. Podemos fazer qualquer coisa que
quisermos.
— Vocês ficam brincando de revolução, empenhados em
seus joguinhos, pensando que são importantes. Mas não
passam de pessoas rústicas, nunca farão coisa alguma.
— Você não compreende, mãe — declarou Alice, calma e
confiante. — Vamos derrubar tudo. Mas tudo mesmo. Todo
esse lixo nojento em que vivemos. Tudo desabará. Vai ver
só.
O que levou Dorothy a também recuperar o controle. Sua
vigilância cautelosa voltou, ela tratou de aumentar a distância
que a separava da filha, os olhos verdes pareciam pedras
geladas outra vez.
— E depois vão reconstruir tudo à sua imagem! Que
perspectiva! — Ela riu, enquanto Alice começava a ficar
vermelha, a se levantar. — Não me entenda mal, como
provavelmente é inevitável. Com tantos de vocês por aí,
com apenas um pensamento fixo, o de conquistar o poder...
Dorothy riu ainda mais alto, o riso de bêbada que Alice tanto
detestava.
— Já posso imaginar tudo. Jasper deve se tornar o ministro da
Cultura... é o tipo talhado para o cargo. Detesta qualquer
coisa decente e já escreveu um romance horrível que não
conseguiu publicar. E você seria sua assessora prestativa.
Alice ia explodir, de tão furiosa, agora de pé, os punhos
cerrados, o rosto vermelho e contorcido.
— Por Deus, Alice, vá embora! — exclamou Dorothy
Mellings. — Será que não percebe que estou cansada de
você? Não consigo mais suportá-la.
Alice acabou explodindo, a voz estridente:
— Sua velha fascista asquerosa! Você e seus amigos fascistas!
Não se importam com ninguém... — Ela estava incoerente,
ofegante, suando. — Esperem só para ver. Está tudo podre.
Tudo minado. Mas vocês são tão indiferentes e estúpidos que
nem percebem. Vamos derrubar tudo.
Alice se adiantou e empurrou a mãe pelo ombro, de tal for-
ma que Dorothy teve de se segurar na beira da mesa para
manter o equilíbrio.
— Vão ver só! — berrou Alice, para depois sair correndo da
sala, batendo a porta.
Abastecida por uma angústia raivosa, ela desceu a escada e
saiu para a rua, virou a esquina e tornou-se parte da pequena
multidão tardia que se dispersava em torno da estação do
metrô. Um quarteirão depois dois guardas em ronda se
aproximaram e Alice tornou-se no mesmo instante a boa
cidadã, voltando para casa depois de alguma diversão ao final
da tarde. Reconheceu um dos guardas. Ele participara da
primeira batida na casa. Mas ele não a reconheceu. Alice
acenou-lhe com a cabeça e sorriu, a contribuinte que pagava
seu salário. O guarda murmurou:
— Boa noite.
Eles recebiam ordens para confraternizar, pensou Alice,
permitindo que seu rosto e corpo o desprezassem, depois de
se encontrar a uma distância segura. Mas a ira se dissipara na
corrida pela calçada. Pensava agora na mãe com uma intensa
compaixão protetora. Dois pequenos cômodos de merda!
Dorothy parecia enorme naquela sala; se se virasse muito
depressa, poderia derrubar uma parede. Passando as noites a
conversar com Zoé Devlin e ler livros! Alice examinou
agora, de uma imagem mental arquivada, o título dos livros
nas duas prateleiras na parede e na pilha no chão, ao lado da
poltrona. Para que ela queria ler aquele tipo de livros? Era
como se ainda estivesse na escola. Quando Zoé Devlin ia
visitá-la, elas sentavam de frente uma para a outra e
conversavam sobre a vida. Não. Sobre livros. Não, é claro
que isso não mais acontecia, elas haviam brigado. O que era
ridículo; teriam de dar a volta por cima; eram como irmãs,
ou pelo menos assim diziam a si mesmas. Uma briga idiota...
ou melhor, uma sucessão de brigas.
Alice estava parada na calçada, como uma criança brincando
de estátua, aparentemente à espera de um táxi ou de uma
carona. Contemplava — sem o querer — a cena da horrível
briga final entre a mãe e Zoé. Na antiga sala de estar, no
segundo andar, que se estendia da frente aos fundos e de
lado a lado da casa, com muitas janelas, proporcionando
vistas do jardim e das árvores. Dorothy Mellings e Zoé
Devlin se fitavam, pálidas, sérias demais para gritarem ou se
insultarem, como já acontecera antes, embora sempre se
reconciliassem depois, rindo muito.
Duas mulheres idosas, altas, fortes e bonitas, com a sala
aprazível se prolongando ao redor até as janelas, os jardins
mais além.
A visão de Alice se transformou. Duas velhas. Ambas
pareciam cansadas e abatidas. Alice sentiu que o fato de
serem tão velhas era uma afronta a ela. Como haviam ficado
assim tão depressa? E por que ficaram? Por que deixaram que
aquilo acontecesse? Por que não se importaram? Será que
não percebiam como eram ridículas, levando-se tão a sério?
Três dias antes as duas haviam suspendido uma discussão,
alegando que começariam a se agredir se não o fizessem. Na
ocasião, Dorothy dissera:
— Nós nos conhecemos nas charnecas de Aldermaston. E
nos conhecemos por causa de nossas atitudes políticas. Era
isso o que tínhamos em comum.
Ao que Zoé respondera:
— Ah, todo o resto não contava, é claro! E somos amigas há
vinte anos!
— Zoé, será que percebe que agora tenho de censurar tudo o
que digo a você? Que não posso mais falar sobre qualquer
coisa que estou realmente pensando?
— Há muito sobre o que falar.
— Não há, não. Não quero desperdiçar meu tempo em fo-
focas e discutindo se devemos ou não comer manteiga e
bacon. Ou se devemos começar a fazer macarrão em casa. E
sobre isso que conversamos.
— O seu problema é ter se tornado reacionária demais.
— Não comece a me pregar rótulos idiotas. Você e todos os
outros voltaram ao século XIX. Ficam chorando pelos már-
tires de Tolpuddle e cantando Bandiera rossa. Não passam de
uma piada de mau gosto.
— Você não achava que era uma piada.
— Mas acho agora. Sabia que tenho de pensar duas vezes
antes de convidá-la a vir aqui? Não pode ser convidada junto
com alguém que tenha uma opinião política diferente sobre
qualquer coisa, porque começa a dizer que se trata de um
fascista. Nem mesmo quer conhecer alguém que leia um
jornal de direita. Sabia que se tornou uma fanática
insuportável, Zoé?
— E você é uma fascista! Lendo livros sobre a KGB e vendo
vermelhos debaixo de cada cama!
— E há mesmo vermelhos debaixo de cada cama — declarara
Dorothy, muito séria. — Oh, Deus, quando penso que se
dizia isso como uma piada... Está lembrada? O mais engraça-
do é que nós éramos os vermelhos debaixo das camas.
E Dorothy desatara a rir. Zoé permanecera séria, acusando
com veemência:
— Daqui a pouco você estará apoiando a política externa de
Reagan e Thatcher.
— Já me perguntei se não devia fazer isso. Afinal, há qua-
renta anos não era fascista lutar pelo mau contra o pior. Por
que teria de ser agora?
— Vou embora, Dorothy. Se não o fizer, acho que acabarei
agredindo você.
— Tem razão. Acho melhor mesmo você ir embora.
Isso acontecera três dias antes. Nenhuma das duas tomara
qualquer iniciativa para uma reconciliação. Até a manhã em
que Zoé voltara. Jasper estava na cozinha, tomando o
desjejum preparado por Alice. Dorothy Mellings falava ao
telefone, na sala de estar, mantendo-se a distância de Jasper,
como Alice gostava.
Zoé entrara na sala de estar, olhando além de Alice, que
cuidava das flores para a mãe. Parara no meio da sala,
contemplando Dorothy com expressão dramática, que não
se apressara em encerrar a conversa telefônica, pois queria
ganhar tempo — como tanto Alice quanto Zoé puderam
perceber —, a fim de se preparar para a confrontação. E seria
justamente isso, uma confrontação: o rosto e o corpo de Zoé
assim o diziam. Ficara patente para Alice que Zoé viera
provocar uma discussão. Queria alguma espécie de embate
ruidoso com Dorothy; havia algo de acusador em sua
aparência. Preparara todos os tipos de argumentos a serem
usados e como fazê-lo.
Dorothy levantara-se devagar e fora se postar na frente de
Zoé, como se aceitasse o desafio para a luta. Mas agora que o
momento chegara, as duas estavam pálidas e sérias, falando
em voz baixa — o que era muito pior do que berrar, porque
os gritos quase sempre acabavam em risadas —, um tanto
ofegantes pelo horror do que acontecia.
— Tenho de dizer uma coisa e você tem de escutar, Dorothy.
Mesmo que comece a me odiar por isso. Ainda mais do que
já me odeia.
— Não diga besteira — respondera Dorothy, impaciente.
— Tudo se resume nisso, não é? Qualquer coisa que eu faça
ou pense é uma estupidez para você?
— Quer mesmo falar sobre isso? A sério? Que as pessoas com
opiniões políticas diferentes são estúpidas? Claro que era isso
o que eu costumava pensar.
— Não me desvie do assunto, Dorothy. Tenho de dizer tudo.
Percebe o que está fazendo? Só porque Cedric a deixou...
— Já faz cinco anos.
— Deixe-me falar. Cedric a deixou, e você precisa sair desta
casa. Sei que é horrível, você tem de adotar a política da
terra arrasada... destruir tudo ao bater em retirada. Porque
não doerá tanto se deixar tudo arrasado.
Nesse ponto Zoé fizera uma pausa, esperando, ao que pare-
cia, a aceitação agradecida de Dorothy a seu diagnóstico.
— Não pode estar falando sério! — exclamara Dorothy,
mantendo a voz baixa, mas amargamente desdenhosa. —
Veio aqui para me dizer isso?
— Sim. É importante. Você está se tornando tão diferente...
— Por mais estranho que possa parecer, a idéia já me ocor-
reu. Essa sua psicoterapia está fazendo com que se torne
muito obtusa, Zoé. Apresenta uma coisa absolutamente
óbvia como se fosse uma grande revelação.
Zoé dera a impressão de que vibrava de raiva. Mas também
não permitira que sua voz se alteasse.
— Se é tão óbvio, então por que você continua a agir assim?
— Não pode haver maneiras diferentes de encarar a situação?
Será que não pode conceber que existem maneiras diferentes
de se analisar a mesma coisa? Duvido muito, do jeito que
você é... Nem ao menos suporta uma pessoa que leia um jor-
nal diferente... Preste atenção. Minha vida tem de mudar.
Certo? Por mais estranho que possa parecer, já levei em
consideração tudo o que você disse. Mas estou fazendo um
inventário... pode entender? Estou pensando... entende?
Estou pensando em minha vida. O que significa que estou
reavaliando muitas coisas.
Dorothy e Zoé se fitavam, empertigadas, como soldados que
receberam ordem de ficar à vontade ou um casal prestes a
iniciar os passos elaborados de uma dança.
— E tudo o que pode perceber a meu respeito é que não
temos nada em comum — dissera Zoé. — E isso? Depois de
vinte anos de amizade!
— O que temos em comum agora? Só cozinhamos e falamos
sobre os nossos malditos filhos, discutimos o colesterol e a
beleza do corpo, comparecemos a manifestações.
— Não tenho notado a sua presença em nenhuma,
recentemente.
— Deixei de ir quando compreendi que as manifestações e
todo o resto não passavam de diversão.
— Diversão?
— Isso mesmo. As pessoas comparecem às manifestações
porque isso lhes proporciona alguma emoção. Como se
fossem piqueniques.
— Não pode estar falando sério, Dorothy!
— Claro que estou. Ninguém se dá mais o trabalho de indagar
se vai adiantar alguma coisa participar de manifestações e
marchas. Só falam sobre como se sentem. E tudo o que
importa. E apenas pela emoção. Pela diversão.
— Oh, Dorothy, isso é uma perversidade!
— Por quê, se é verdade? Precisa usar seus olhos e observar...
as pessoas em piquetes, marchas ou comícios estão se
divertindo imensamente. E se forem espancadas pela polícia,
ainda melhor.
Silêncio. Zoé olhava para Dorothy, aturdida. Não podia
acreditar que a amiga estivesse mesmo falando sério. E Alice,
parada ali, petrificada, as flores nas mãos, observava as duas e
suplicava interiormente: Oh, não, por favor, não, parem com
isso, por favor, parem com isso. A mãe passara dos limites na
destruição e não havia o menor sentido em escutá-la. Era
melhor não dar atenção.
— Vou lhe dizer uma coisa, Zoé. Todos vocês, marchando de
um lado para o outro, sacudindo bandeiras e entoando
canções patéticas... Ali you need is love... não passam de
uma piada. Para as pessoas que realmente controlam este
mundo, vocês são uns gaiatos. Ficam olhando para vocês e
pensam: Isso é ótimo, serve para manter essa gente ocupada.
— Não posso acreditar que você esteja falando sério.
— Não sei por que não. Estou dizendo que falo sério.
— Quer destruir as coisas, romper com seus amigos.
— Não dá mais para conversar com você. Quando eu digo
uma coisa que realmente penso, você começa a chorar e a se
lamentar.
— Saiba que eu me importo se nossa amizade terminar,
mesmo que você não se importe.
— Não tenho mais energia para todas essas briguinhas e
discussões — declarara Dorothy.
Zoé saíra correndo da sala, murmurando algo furiosa — mas
não alto; em nenhum momento as vozes das duas haviam se
alteado. E Dorothy, com uma expressão melancólica, apática,
voltara para junto do telefone e sentara, pronta para fazer
outra ligação. Mas não discara logo. Ficara imóvel por algum
tempo, a cabeça apoiada na mão, olhando para a parede.
— Quer que eu faça um chá? — perguntara Alice, efusiva.
— Não, obrigada, Alice querida.
Mas ela fora para a cozinha, fizera o chá, levara uma xícara
para a mãe, deixara-a no lugar onde ela ainda estava sentada,
sem se mexer, a cabeça apoiada na mão.
Alite pensou (parada na beira da calçada, embora ainda não
soubesse que estava ali): Dorothy precisa realmente de
alguém para cuidar dela! Sem comida na geladeira, bebendo
sozinha. Seria melhor se ela vivesse com a gente, no número
43. Podia ocupar os dois quartos grandes lá em cima, quando
Mary e Reggie saíssem. Um pensamento aflorou à mente de
Alice, imediatamente censurado: Eu teria então alguém com
quem conversar.
Alice imaginou-se e à mãe à mesa na cozinha grande, jornais
e livros por toda parte. Dorothy falaria sobre os livros, e
Alice escutaria as notícias sobre aquele mundo em que ela
própria, por algum motivo, não era capaz de entrar.
Essa idéia sofreu uma morte rápida e natural.
Alice voltou a si, na beira da calçada. Fazia frio. Um céu
repleto de estrelas enevoadas. No outro lado, um lampião
projetava uma claridade amarelada.
Já passava de meia-noite. Jasper, Bert e Caroline não estariam
em casa naquela noite; ela tivera certeza disso no instante
em que eles se afastaram. Bert e Caroline estariam se
esfregando em algum lugar; todos aqueles olhares e sorrisos
tinham de desaguar em alguma coisa. E Jasper (se pudesse)
estaria no quarto ao lado...
Alice eliminou esse último pensamento de sua mente e en-
trou na casa sem fazer barulho, não querendo ver Faye e Ro-
berta ou Reggie e Mary. Mas não havia ninguém na casa, à
exceção de Jocelin, ainda trabalhando. Alice bateu na porta,
polida, entrou ao ouvir um resmungo que presumivelmente
era um "Entre". Na bancada comprida diante de Jocelin havia
quatro pequenos artefatos de aparência sinistra, idênticos,
enfileirados lado a lado, parecendo latas de sardinhas
descomunais e complexas. Por toda parte havia
componentes de bombas, agora desmontadas, e algumas
tigelas de cozinha contendo produtos químicos.
Presumivelmente esperando para serem levadas de volta a
seus lugares apropriados, na cozinha. Jocelin separava itens
em pequenas pilhas. Acenou com a cabeça para Alice, sem
sorrir. Parecia uma operária inclinada sobre uma linha de
montagem, só que nenhuma operária poderia trabalhar com
os cabelos louros e gordurosos caindo desgrenhados pelo
rosto e com o blusão vermelho e manchado, com um buraco
no cotovelo.
— Vou enterrar estas coisas. Poderemos pegar na próxima
vez em que precisarmos — Jocelin permitiu-se um sorriso
para Alice. — Nenhum policial virá escavar o jardim por
algum tempo.
— Estas quatro são suficientes? — indagou Alice, mas apenas
para demonstrar sua admiração pelo planejamento de Jocelin
para realizar tanto com tão pouco.
Jocelin balançou a cabeça, olhando para os quatro artefatos
com um ar satisfeito de posse. Foi até a janela, parou ali, de
costas para Alice, as mãos nos quadris. Depois, virou-se e
disse:
— Está bastante escuro. Vamos logo.
A coleção de componentes foi despejada — de forma
descuidada, já que não havia qualquer perigo agora — num
saco de plástico, metido dentro de outro e mais outro. As
duas saíram furtivamente para a noite. Sem fazerem qualquer
barulho.
Pararam por um momento no lugar onde a polícia começara
a escavar, ambas pensando que seria o local mais seguro, mas
não poderiam suportar. Uma moita de lilases, perto da cerca
de Joan Robbins, ainda exalava uma fragrância intensa,
embora as flores, pretas na escuridão, estivessem se
desmanchando. A terra estava mole ao redor. Nenhuma luz
incidia ali. Casas escuras ao redor. Usando uma colher de
pedreiro, trabalhando o mais silenciosamente possível, Alice
abriu um buraco de bom tamanho; Jocelin ajeitou o fardo, e
jogaram a terra por cima. Voltaram para dentro da casa,
sentindo um vínculo a ligá-las, cúmplices bem-sucedidas. Na
cozinha, Jocelin disse:
— Eu já ia esquecendo. Tem um recado. Ou melhor, dois.
Primeiro, aqueles irlandeses voltaram.
Ela parecia despreocupada, mas Alice compreendeu que
alguma coisa horrível acontecera.
— Os mesmos que trouxeram aquele... matériel?
— Isso mesmo. Queriam saber em que lugar do vazadouro
foram deixadas as duas caixas.
— O que você disse?
— Que não sabia de nada.
Para Jocelin, ao que parecia, isso era suficiente; ela mexeu o
açúcar no café, provavelmente pensando em sua obra, os
artefatos ainda enfileirados na bancada lá em cima.
— E o que aconteceu depois?
— "Ora, garota, isso não é suficiente para nós. Tem de
compreender. Recebemos ordens e temos de cumpri-las. A
mulher que vimos na última vez tem de nos acompanhar ao
vazadouro e mostrar onde estão as coisas."
Jocelin disse tudo isso com um sotaque irlandês, perfeito na
opinião de Alice — tão acurado que a levou até a pensar:
Será que ela é irlandesa? E se for, o que significa isso? Tem
alguma importância? Aqui está mais uma pessoa nesta casa
com uma voz falsa! Jocelin continuou:
— E eu disse a eles: "Quer dizer que vão voltar?" Eles
responderam: "Claro que vamos. Amanhã de manhã, pode
contar". — Em sua voz normal, Jocelin acrescentou, como
se tudo aquilo não tivesse nada a ver com ela: — Assim,
suponho que eles voltarão.
— Então não estarei aqui — declarou Alice, parecendo cal-
ma, mas dominada pelo pânico.
Ela pensara que a excursão para se livrarem dos pacotes fora
o fim de todo aquele episódio.
— A outra coisa é que Felicity esteve aqui. Disse que
descobriram a irmã de Philip, e o funeral foi marcado para
quarta-feira.
— Então não podemos fazer o que planejamos para esse dia.
Havia decidido que quarta-feira seria o melhor dia para o ato
bélico. Jocelin protestou:
— Primeiro o mais importante.
— Mas alguém deve comparecer ao funeral.
— Você vai. Não é essencial para o plano.
— Mas eu quero estar presente!
Jocelin deu de ombros. Pegou a caneca, levantou-se, disse
"Boa noite" e subiu. Provavelmente para aperfeiçoar os
quatro artefatos explosivos.
Alice já ia deitar quando Mary e Reggie chegaram para avisar
que mudariam na quarta-feira; contratariam um caminhão de
mudança.
Alice quase riu com a idéia do caminhão de mudança, mas
lembrou que dois quartos e parte do sótão estavam atulhados
de móveis e limitou-se a dizer:
— Está certo. Vão precisar de ajuda?
— Não recusaremos — respondeu Reggie.
E os dois subiram. Então não pode ser mesmo na quarta-
feira, pensou Alice. E também foi se deitar. Acordou cedo e
deixou um bilhete na mesa da cozinha, dizendo que se os
irlandeses aparecessem, deviam ser informados de que ela
viajara e ninguém sabia em que lugar do vazadouro estavam
os pacotes, e provavelmente já haviam sido cobertos por
novas cargas de lixo. Ela saiu, refletindo que fora
provavelmente aquele russo que os mandara até a casa. Pois
ela o despachara, não? Daqui a pouco todos estariam
cansados de procurar; era só uma questão de agüentar firme.
E tratou de reprimir e ocultar sua ansiedade.
Era uma manhã agradável, ensolarada, não fria. Alice cir-
culou pelas ruas, descobriu que eram apenas dez horas,
sentou por muito tempo num pequeno restaurante, tomando
um desjejum que não queria realmente. Onze e meia. Ela
pensou em visitar a mãe de novo, chegou a ir até a entrada
do prédio, mas desistiu, lembrando que veria de novo aquela
sala mesquinha, a mãe comprimida lá dentro, com as duas
poltronas outrora esplêndidas e agora surradas. Atravessou
Londres para visitar uma comuna em que vivia uma garota
que conhecera em Birmingham. A garota estivera no
congresso da UCC. Haviam falado em se encontrarem de
novo, talvez no mês seguinte. Era uma casa perfeita para um
congresso, refletiu Alice, sentindo um frio no coração, ao
recordar que todos deveriam deixá-la dentro de um mês:
todos admitiam tacitamente que seria preciso se dispersarem.
E quem podia saber onde todos estariam?
Ela voltou para a casa às cinco horas. Jasper, Bert e Caroline
estavam na cozinha, comendo refeições de viagem. Um
olhar foi suficiente para confirmar a Alice que acertara em
cheio: Bert e Caroline podiam agora ser considerados um
casal. Mas Alice decidiu não se importar.
Foi informada de que os irlandeses não haviam voltado.
Faye e Roberta chegaram, e os seis — as duas e mais Jasper,
Bert, Caroline e Jocelin — resolveram que o trabalho seria
executado, de acordo com os planos, na tarde de quarta-
feira. Pela manhã, ajudariam Reggie e Mary com a mudança.
Alice podia ir ao enterro.
— Mas não sei se o enterro será de manhã ou à tarde —
protestou Alice.
Ninguém respondeu. Não era importante. Alice pensou que
a mesma coisa aconteceria se fosse embora: nunca seria
mencionada, seria esquecida por completo, como Jim, como
Pat. E como Philip. Não, Jasper sairia à sua procura, ela tinha
certeza; os outros podiam esquecê-la, mas Jasper não.
Na terça-feira todos foram ao local do crime — a piada
particular —, circularam pelo enorme hotel, parte da
multidão. Claro que se deram o trabalho de se vestirem à
altura. Jocelin, ao que parecia, possuía outras roupas além de
jeans e blusão. Usava um vestido rosa de linho que dava a
impressão de ter sido comprado em Knightsbridge. Caroline
vestira o disfarce protetor de uma saia bege bem-cortada e
uma blusa amarela. Roberta, por uma questão de princípio,
recusou-se a mudar, mas não chamava atenção em seu
terninho azul-escuro. Faye estava com uma blusa branca e
jeans, e se destacava não apenas pela beleza, mas também
porque ardia com um triunfo secreto, que a levava a falar
muito e se exibir. Era a própria essência de sua personalidade
cockney, espirituosa e escandalosa. Os outros riam, mas
também advertiam-na de que ficasse quieta. Roberta, muito
nervosa, esforçava-se para controlá-la. Jasper também
ostentava um ar de exultação que o tornava até bonito,
pensou Alice. Parecia pairar sereno acima da multidão de
turistas e pessoas que faziam compras, superior a tudo; estava
num deslumbramento de imagens sobre como em breve
provariam do que eram capazes, naquele cenário luxuoso e
desavergonhado. Depois do reconhecimento satisfatório,
todos foram tomar chá.
Ao terminarem, pegaram um táxi para Hammersmith, onde
assistiram a Diva, um filme que alguns já tinham visto mais
de uma vez. Jantaram juntos no restaurante indiano perto da
casa, concordando que deveriam deitar cedo. Explicaram a
Reggie e Mary que era por causa do trabalho árduo que os
aguardava no dia seguinte, quando os ajudariam na mudança
— o que pareceu aceitável para o casal, já que tirar os móveis
da casa, levá-los para o apartamento e arrumá-los lá era a
única coisa com que valia a pena ocupar suas mentes. Mary
comentou, quase que distraidamente, que aquela casa estava
incluída na agenda dos assuntos que seriam discutidos na
semana seguinte e havia uma recomendação de Bob Hood
para que as coisas fossem aceleradas. Era lamentável,
acrescentou Mary, que aquelas lindas casas não estivessem
sendo usadas.
Alice ficou subitamente tão furiosa que mal conseguiu
balbuciar:
— E uma pena que a prefeitura se mostrasse disposta a deixá-
las vazias por seis anos.
Mary poderia se inflamar, como acontecera com Alice. Ela
ficou vermelha, a representante da autoridade e o ser
humano lutando em seu íntimo, e depois disse, soltando
uma risada que mesclava desculpas e um tom ofendido:
— Tem razão. Foi horrível deixarem as coisas esquecidas por
tanto tempo.
— Mas tudo ficará bem agora — insistiu Alice, que não se
sentia absolutamente abrandada. — Haverá algumas pessoas
vivendo nelas.
Mary hesitou por um instante e saiu da cozinha, seguida por
Reggie. Havia um alívio estampado nos dois: graças a Deus
sairemos daqui amanhã!
O funeral de Philip foi às dez horas da manhã de quarta-
feira. As nove, deixando os outros na maior animação a
carregarem os móveis para um caminhão que parecia ocupar
a rua inteira, Alice foi para o apartamento de Felicity, onde
se encontrou com mais duas pessoas que haviam conhecido
Philip no tempo em que morara ali e gostavam dele. Os
quatro foram para o crematório no carro de Felicity. A irmã
de Philip estava lá, com o marido. Ao que parecia, tinham
vindo de Aberdeen. Philip era escocês, um fato que até
aquele momento jamais aflorara.
A irmã era uma coisinha pálida e magra, com uma expressão
obstinada, como a de Philip: determinada a não se deixar
levar pelos ventos hostis da vida. O marido era um jovem
pequeno e pálido com olhos azuis míopes e um bigodinho
ralo. Os dois tinham forte sotaque escocês. O casal parecia
ansioso por evitar os quatro amigos de Philip, ou pelo menos
só falou o mínimo necessário; com a polidez satisfeita, foram
sentar separados na "capela". Foi um serviço religioso
apropriado. Nem Felicity nem Alice, muito menos os outros
dois, um rapaz e uma moça que haviam ajudado Philip a
pintar uma sala, sabiam se ele fora religioso. Talvez fosse
apenas a burocracia seguindo seu curso inexorável. E a irmã
e o cunhado não os esclareceram. O caixão, grande, marrom
e lustroso, que fazia com que qualquer um que conhecera
Philip pensasse na maneira como seu corpo pequeno e frágil
devia estar estendido lá dentro, como uma mariposa morta,
estava bem à vista de todos, enquanto um clérigo da Igreja
Anglicana esforçava-se ao máximo para dar um pouco de
vida às palavras que entoava com tanta freqüência.
E acabou. A irmã de Philip despediu-se apressadamente.
Estava com os olhos vermelhos. O marido limitou-se a
acenar com a cabeça a distância. Os quatro voltaram. O
caminhão da mudança estava outra vez parado na frente do
número 43; já fizera uma viagem e voltara.
— Não pensávamos que tínhamos tanta coisa — comentou
Mary alegremente, parada na traseira do caminhão,
carregando uma caixa com porcelana que Reggie comprara
no leilão de uma casa.
— Conseguimos fazer tudo! — anunciou Bert, ruidoso, jovial
e falso.
O antagonismo, que era a verdade do que sentiam uns pelos
outros — Mary e Reggie por eles, eles por Mary e Reggie —,
estava na superfície, e todos sabiam disso, como indicavam
os rostos hostis. Mas apenas por um instante. Os sorrisos e a
boa vontade voltaram a prevalecer.
— Acho que vou tomar um banho e tirar um cochilo — disse
Bert, ao final das despedidas. — Estou exausto.
— Também vou tomar um banho — murmurou Faye,
insinuante, olhando para Roberta, que esfregaria suas costas
e a enxugaria depois.
— Adeus para vocês todos! — gritaram Mary e Reggie,
embarcando na frente do caminhão com muitos sorrisos e
acenos e partindo, deixando para trás a cena tranqüilizadora
do grupo acenando do jardim.
E claro que, antes de irem embora, eles haviam pago a quan-
tia exata que deviam, até o último penny gorduroso.
Quase histéricos de riso reprimido, os outros correram para a
cozinha, em busca de chá e sanduíches. Era uma hora da
tarde. O momento certo. Tudo absolutamente correto.
As coisas corriam muito bem. Os eventos se sucediam de
maneira favorável, encaixando-se nos devidos lugares, a
sorte quase que ostensivamente do lado deles: o fato de a
prefeitura ter resolvido realizar o funeral de Philip naquela
manhã; o fato de Mary e Reggie terem escolhido aquele dia
para se mudarem — os camaradas não poderiam desejar nada
melhor. E ainda havia o carro: alguém na outra comuna
comentara — ela não podia imaginar quão oportunamente
— que o homem na casa ao lado viajara em férias com a
família e que seu carro, um Escort, estava estacionado junto
ao meio-fio, na frente da casa, há uma semana e lá
continuaria por mais uma.
— Ele está mesmo pedindo que alguém o pegue — sugerira
ela.
É claro que o carro estava trancado, mas para Jasper — era
um dos seus talentos — isso não constituía um obstáculo.
Tarde da noite passada, depois de voltarem do cinema e do
restaurante indiano, Bert, Jasper e Jocelin saíram
furtivamente da 43, foram para o metrô e seguiram até a
outra comuna. Não entraram: não queriam envolver mais
ninguém na operação. Claro que correram o risco de os
amigos voltarem de algum lugar e encontrarem-nos. Mas
três estavam ausentes; haviam comentado que iam viajar.
Para abrir o carro, ligá-lo e partir, Jasper e Bert levaram um
minuto. Circularam por Pimlico e Victoria, mas não
encontraram nada que os agradasse. Precisavam de um lugar
seguro em que pudessem instalar os explosivos. Estavam
atentos ao nível de gasolina: menos de meio tanque, e não
queriam parar num posto. Finalmente, mais longe do "local
do crime" do que queriam, encontraram uma rua de casas
geminadas; uma delas estava sendo reformada ou pelo menos
tinha um cartaz de "Vende-se material de construção". Na
frente de cada casa havia um jardim cheio de arbustos e um
pequeno caminho, não muito mais que um espaço para
estacionar. Os três discutiram o lugar enquanto circulavam
por outras ruas. Não era o ideal, mas não descobriram nada
melhor. A outra casa, geminada, presumivelmente estava
ocupada; embora fossem três horas da madrugada, sempre
havia a possibilidade de insones vigilantes, sem falar nos
guardas fazendo ronda. Mas em breve começaria a clarear...
Jocelin comentara que era uma pena que não pudessem
esperar até o inverno: uma longa noite escura era justamente
o que precisavam. Sofreram até um momento de depressão,
pensando que toda a operação fora mal concebida, ou pelo
menos estava sendo executada de maneira precipitada. Tudo
era tão improvisado! Mas era também essa qualidade que pa-
recia ajudá-los — e que tanto os atraía, aumentando a
emoção, reforçando o segredo, fazendo com que sentissem
vontade de rir sem qualquer motivo específico e soltar
piadinhas, quanto mais tolas melhor.
Ao final, esse ânimo triunfara e voltaram à rua, entraram no
pequeno "caminho" na frente da casa vazia. Jocelin precisava
de cerca de vinte minutos para instalar os explosivos. Bert
correra para uma extremidade da rua, Jasper para a outra, a
fim de vigiarem a possível aproximação de guardas. Na
verdade, Jocelin estava oculta da rua pelos arbustos, se não
mesmo das janelas superiores da casa ocupada. As janelas
continuaram escuras; ela não pudera divisar ninguém lá em
cima. Inserira os quatro artefatos em seus lugares, com
extrema precisão. Estava atenta a qualquer sinal de Jasper ou
Bert, mas não houvera nenhum. Enquanto trabalhava,
sentira um desprezo bem-humorado por aqueles cidadãos
negligentes, que podiam ser enganados com tanta facilidade.
Ao cabo de vinte minutos, Jasper e Bert voltaram; ela não os
ouvira, embora tivessem a respiração ruidosa da corrida. Um
momento depois o carro deixara o abrigo e tornara a circular
pelas ruas. Não havia muito tráfego. O céu começara a
clarear. Parecia não haver um lugar para estacionar em parte
alguma.
Todas as beiras de calçada estavam ocupadas por incontáveis
carros, e outra vez eles tiveram de andar mais do que
desejavam. O marcador de gasolina indicava que estavam
com menos de meio tanque. Como poderiam saber se estava
funcionando? Bert comentara que certa ocasião tivera por
meses um carro que indicava o tanque quase cheio, quando
na verdade estava quase vazio. Finalmente encontraram uma
vaga, outra vez mais distante do que esperavam.
Estacionaram, saltaram e pararam por alguns segundos,
olhando para o carro que era, potencialmente, uma bomba.
Foram para um café que ficava aberto a noite inteira e
partilharam uma refeição, embora a prudência dissesse que
não deviam fazer isso: formavam um grupo ruidoso, que
chamava atenção.
— Ora, que se dane! — exclamara Jocelin.
— Foda-se! — arrematara Bert.
Foram para casa em plena luz do dia, por volta das cinco
horas da manhã. Mary e Reggie não haviam se levantado, o
que era a única coisa que receavam; a sorte estava ao lado
deles, não podiam fazer nada errado!
Tudo isso Alice soube naquele momento, enquanto toma-
vam sua sopa e comiam torradas de pão integral, porque ela
não acordara até às oito horas, e a essa altura Mary e Reggie
já estavam de pé e na cozinha.
Sentia-se como se não fosse uma verdadeira participante
naquela grande operação, como se não fosse considerada
uma parceira. Contudo, não podia dizer isso ou sequer
sugerir, pois não havia nada de específico em que pudesse se
basear para o protesto. Mas enquanto os seis encontravam-se
em torno da mesa, relatando os últimos acontecimentos,
Alice notou que mal a olhavam. Estavam dispensando
atenção uns aos outros exatamente de acordo com os papéis
que cada um desempenhava: Faye e Jasper, Jocelin e Bert.
Depois Roberta, que estava quase tão marginalizada quanto
Alice.
Alice soube que Jasper é quem guiaria o carro para a posição.
O que a deixou apavorada. Ele não era bom motorista e
tendia a entrar em pânico numa emergência. Estava
convencida até aquele momento, por algum motivo, de que
ela é que seria incumbida de guiar o carro. Era uma boa
motorista, cautelosa e hábil. Sentiu vontade de dizer pelo
menos: "Não, Jasper não deve guiar o carro; por que não
Faye? por que não Roberta?" As duas eram boas motoristas.
Mas sua posição na periferia dos acontecimentos parecia
impedi-la de qualquer interferência.
Aparentemente, tudo fora decidido naquela manhã, enquan-
to Mary e Reggie iam buscar o caminhão de mudança e ela
comparecia ao funeral de Philip.
Jasper guiaria o carro. Faye estaria com ele porque — foi essa
a impressão de Alice — assim o exigira, como um direito
seu; Jocelin os acompanharia agora até o lugar em que o
carro estava estacionado, numa rua transversal, armando os
artefatos para explodirem no momento que seria escolhido
na ocasião. Pois não podiam determinar exatamente quanto
tempo levariam para chegar lá nem como estaria o tráfego.
Calculavam que seria mais ou menos às quatro e quarenta e
cinco.
Foi só então que Alice soube que as bombas detonariam por
um mecanismo de tempo, não por um controle eletrônico.
Ficou consternada. Todas as discussões anteriores baseavam-
se na presença de Jocelin nas proximidades, podendo
observar a situação na rua e na calçada e escolhendo o
momento exato.
Alice perguntou, quase timidamente, com a maior dificul-
dade para intervir numa animada troca de gracejos entre
Faye e Jasper:
— Mas se as bombas simplesmente explodirem numa hora
determinada, não poderemos saber quem estará por perto,
não é?
No mesmo instante os outros assumiram uma expressão so-
lene e dedicada. Ela compreendeu que o pensamento estava
em suas mentes, por trás de toda a exultação, mas era
reprimido, mantido lá no fundo. Bert disse, mostrando uma
porção de dentes brancos:
— "A moralidade deve ficar subordinada às necessidades da
Revolução". V. I. Lênin.
Todos riram, e Alice percebeu, pela maneira como
subitamente evitavam que seus olhos se encontrassem, que
se sentiam contrafeitos.
— De qualquer forma, será uma boa lição para eles —
comentou Faye.
Era um dos seus comentários típicos, que todos habitual-
mente ignoravam ou — como Roberta fez agora —
procuravam atenuar.
— Faye querida, não é um comentário dos mais simpáticos.
Faye deu uma risadinha e sacudiu a cabeça. Os olhos
brilhavam, as faces estavam coradas. Alice insistiu,
obstinada:
— Não acho certo. Não foi o que combinamos.
Jocelin respondeu, compenetrada, levando-a a sério:
— Você não estava aqui quando discutimos o assunto. O
problema é que esses controles eletrônicos não são
absolutamente confiáveis. Ou pelo menos não com o
material de que disponho. Claro que existem alguns muito
bons, mas não se esqueça de que tive de trabalhar apenas
com as coisas que conseguimos obter.
— Então, por que não marcamos para detonar no meio da
noite, quando não haverá ninguém por perto?
— Pensamos nisso. Mas há a questão de causar o maior
impacto possível. Umas poucas vidraças quebradas durante a
madrugada... e daí? Desse jeito, porém, estará na primeira
página de todos os jornais de amanhã e nos noticiários da TV
esta noite.
Depois de comentar ou proclamar isso, Jocelin desviou os
olhos de Alice; e nenhum deles tornou a fitá-la. Ela
compreendeu nesse momento que se sentia excluída não
apenas pela ausência na discussão crucial, mas também
porque a discussão crucial ocorrera "às suas costas" — como
pensava —, a fim de que não estivesse ali para dizer coisas
que os outros não queriam ouvir. Eles sabiam — sentiam, se
é que não pensavam — que ela protestaria, diria que não,
que estava errado, obrigando-os a escutar, a refletir. Por isso,
sem que ninguém assim planejasse objetivamente, os cinco
discutiram durante sua ausência.
Onde estava Caroline?
Alice descobriu que Caroline, ao saber que as bombas seriam
detonadas num momento determinado, independentemente
das possíveis mortes, declarara que não queria ter nada a ver
com aquilo.
Foi Jocelin quem contou isso a Alice, em voz neutra, mas
fria de desaprovação. Fria, pensou Alice, por causa da
necessidade de pôr uma distância entre ela e o que sentira no
momento em que Caroline fizera sua declaração. Claro que
Alice sabia o que acontecera; podia reconstituir o momento,
pelo que havia no rosto de todos agora. O plano quase fora
abandonado por causa da determinação de Caroline. Agora,
ao recordarem a discussão — que era o que todos faziam —,
os rostos tinham expressões idênticas de fria inquietação.
Se eu estivesse presente, pensou Alice, poderia apoiar
Caroline; e nós duas poderíamos virar as coisas para o outro
lado.
Alice lançou um olhar furtivo — não se atreveu a mais do
que isso — para Bert, que sabia que provavelmente ela o
fitaria! Era uma repetição de Pat! Pat dissera que Bert era um
amador na reunião em que se tomara a decisão de fazer uma
"aliança com o IRA", quando uma porção de moradores da
casa preferira ir embora. Depois disso, ela ainda o chamara
algumas vezes, afetuosamente, de "amador". Era provável
que Caroline também o tivesse classificado assim.
Alice pensou: Pat, Jim, Philip e agora Caroline. Ela era mi-
nha amiga, uma amiga de verdade.
Eles já estavam conversando de novo. As duas horas,
Jocelin, Faye e Jasper seguiriam de metrô até o carro. Não
havia motivo para supor que o carro não estaria exatamente
onde fora deixado naquela madrugada. Jocelin levaria cerca
de cinco minutos para armar os explosivos. Faye a ajudaria,
com seus dedos rápidos e ágeis. Ninguém prestaria atenção a
três pessoas com o capô de um carro levantado por um
momento, efetuando pequenos ajustamentos em alguma
coisa, arrumando o conteúdo de uma mala, verificando um
estepe.
Jocelin estava dizendo que não havia a menor necessidade
de que os outros estivessem no local. Não havia nada para
fazerem. Seria redundante. Aumentaria o perigo. Sugeriu
que Bert, Roberta e Alice ficassem na casa e pusessem a
chaleira no fogo às cinco e meia. E bem que Alice podia
preparar um pouco de sua sopa: todos estariam famintos
quando voltassem.
— Nada disso — interveio Faye sorrindo, todos os dentes
pequenos e pontiagudos à mostra. — Absolutamente não.
Charmosa e impertinente, mimada e caprichosa, ela revirou
os olhos para Roberta, tornou a fitar os outros e acrescentou:
— Preciso ter minha Roberta. De qualquer maneira.
— Mas é claro! — concordou Bert, efusivo. — E Alice e eu
também estaremos lá. Sem discussão. Proposta aprovada. E
ponto final.
Risos, até mesmo de Alice, que se sentia outra vez parte da
família.
Duas horas da tarde. Jocelin, Faye e Jasper partiram.
Jasper não se lembrou de oferecer um sorriso ou um olhar a
Alice. Estava absorvido numa conversa animada que parecia
um flerte. . . com Faye. Todos riam muito alto ao saírem.
Roberta continuou sentada à mesa, encolhida, silenciosa,
apática. Podia-se perceber agora quanto ela detestava a
situação, não queria que Faye corresse aquele perigo.
Depois que os três partiram, os outros três ficaram nervosos,
calados, distantes de qualquer exultação. Tinham de esperar.
Faye, Jasper e Jocelin levariam dez minutos para chegar à
estação do metrô. Depois, provavelmente meia hora,
dependendo do movimento dos trens, para alcançar o carro.
Cerca de quarenta e cinco minutos, pois haveria necessidade
de duas baldeações. Dez minutos da outra estação do metrô
ao carro. Era difícil calcular quanto tempo exatamente
levariam para guiar o carro até o local do crime. A hora de
maior movimento ainda não teria começado. Mas talvez
houvesse um tráfego intenso; quem podia saber? O percurso
poderia ser coberto em quinze minutos ou, se tivessem azar,
quarenta. Em algum momento entre três e meia e quatro
horas, Jasper e Faye — não Jocelin, ela teria se retirado antes
disso — estariam procurando uma vaga para estacionar do
lado de fora do grande hotel. Poderiam ficar dando voltas
por algum tempo. Havia também o problema dos guardas de
trânsito. Se aparecessem enquanto Jasper e Faye ainda
procurassem uma vaga, eles teriam de se afastar por alguns
minutos, só retornando depois que os guardas tivessem ido
embora. Se os guardas surgissem depois que o carro estivesse
estacionado, não havia problema; o pior que podia acontecer
— dissera Faye — seria eles estarem muito perto quando o
carro explodisse.
As bombas estariam armadas para detonarem quando
faltassem quinze minutos para as cinco horas; mais tarde, só
se o tráfego parecesse particularmente ruim.
Não havia sentido em Alice, Bert e Roberta partirem antes
das três horas, eles pensaram, mas às duas e meia não podiam
mais suportar a espera por um momento sequer. No instante
em que se levantaram, houve uma batida na porta da frente.
Uma batida civilizada, não da polícia.
— Podem deixar que eu atendo — murmurou Alice. — Deve
ser Felicity, trazendo-me alguma coisa de Philip.
Uma mesinha marchetada feita por Philip ficara na casa de
Felicity e ela prometera que a traria, para Alice. Felicity fazia
isso, como Alice sabia, em parte pela necessidade de se livrar
de tudo o que lhe lembrasse Philip e das complexas emoções
que ele evocava, mas também por um impulso generoso:
achava que Philip gostaria que a mesinha ficasse com Alice.
A porta estava um homem que Alice não conhecia. Espe-
rando apenas Felicity, uma mesinha e um breve momento
de emoção, literalmente doente de excitamento e apreensão,
Alice não estava preparada para convidá-lo a entrar, para
confrontá- lo ou para qualquer situação que estivesse
trazendo.
— A senhorita Mellings está? — perguntou o homem.
Automaticamente, Alice efetuou as avaliações habituais de
sua voz: classe média, britânica, provavelmente um servidor
civil ou qualquer coisa assim.
— Sou Alice Mellings, mas peço que me desculpe, pois estou
com muita pressa.
— Eu agradeceria se me concedesse apenas um momento.
Oh, Deus, pensou Alice, mas que merda, temos de partir;
pois agora que fora tomada a decisão de ir logo, ela achava
que não se podia perder nem mais um minuto.
— Não pode voltar mais tarde?
— Claro que posso, e voltarei. Mas, enquanto isso, poderia
me ajudar com algumas informações.
Alice pensou que a visita estava relacionada com a decisão da
prefeitura de reformar as duas casas; talvez o homem fosse
um emissário. Mas ela não estava realmente pensando nisso.
Ainda lhe passou pela cabeça um lampejo de
reconhecimento ou de advertência de que a atitude daquele
homem, seu estilo, a maneira de falar, não condiziam com as
circunstâncias da prefeitura, enquadrando-se em outra coisa
completamente diferente.
— O que deseja saber? — indagou, apressada.
— Tem alguma informação sobre um homem chamado
Andrew Connors?
Alice ficou atordoada, uma risada desvairada e inoportuna
ameaçando dominá-la. E disse, com um súbito desdém:
— Por acaso é mais um falso americano? Não, claro que não.
Sotaque britânico. Mas do que se pode ter certeza por um
sotaque?
O visitante ficou surpreso, o que nada tinha de surpreen-
dente, e demorou um pouco para responder. Finalmente
disse, com uma autoridade suave que não era muito
diferente da que Gordon O'Leary demonstrara:
— Concordo, senhorita Mellings, que nem sempre os sota-
ques são o que parecem. Mas estou aqui para falar de
Andrew Connors... preciso de algumas informações a seu
respeito.
Em seu estado normal, a essa altura Alice diria "E quem é
você?" — ou algo parecido —, mas nesse momento estava
ansiosa para que o homem fosse embora, a fim de que ela e
os outros pudessem partir. Seu estado era febril, de fúria,
impaciência.
— Que tipo de informação? Não sei muita coisa. De qualquer
forma, por que não pergunta a Gordon 0'Leary? Ele parece
saber de tudo.
Uma pausa. Se estivesse atenta, Alice talvez não gostasse da
maneira como o homem a focalizou, estreitando os olhos,
numa inspeção meticulosa e competente.
— Talvez eu faça isso mesmo.
— Ele poderá lhe contar tudo — insistiu Alice. — E agora
peço que me desculpe, mas tenho de ir...
Ela já ia fechar a porta na cara do homem quando a pessoa
hospitaleira que a habitava, que não suportava desapontar ou
parecer hostil, levou-a a acrescentar, de maneira desastrosa:
— E quando o encontrar, avise a ele que se mais alguma
carga de matériel ou qualquer outra coisa for enviada para cá,
nós vamos jogar na rua e deixar lá.
Ela falou jovialmente, até sorrindo, como se dissesse: "Quan-
do o encontrar, transmita meus cumprimentos". E começou
a se virar para fechar a porta e voltar.
— Só mais um momento, senhorita Mellings.
— Oh, Deus, por favor! Tenho de ir!
— Está certo. Já disse isso. Mas há uma coisa que preciso
discutir com você.
— Então vamos discutir, mas não agora. Além do mais, já
disse tudo o que era necessário. E repito: não vamos aceitar
ordens dos russos ou de quaisquer outros. Parece que não
está entendendo isso, camarada... Ainda não me disse seu
nome.
— Meu nome é Peter Cecil.
— Peter Cecil? — Alice poderia ter rido de novo. — Seu
sotaque é mesmo perfeito. Maravilhoso. Meus parabéns.
Nesse ponto, ela deu uma risadinha, infantil e divertida.
Embora não o avaliasse devidamente, por causa do coração
disparado e da excitação excessiva, ela observou-o por tempo
suficiente para constatar que ele parecia de fato a essência de
um inglês, combinando com o nome.
— Obrigado — disse ele, cordialmente. — Não gostaria de
almoçar comigo?
— Está bem. Mas eu ia dizer o que você parece não ser capaz
de aceitar: somos britânicos, entende? Comunistas britâni-
cos. — Alice hesitou e depois acrescentou, já que a situação
parecia exigir um esclarecimento: — Comunistas britânicos
livres.
— Ahn... Onde podemos nos encontrar? Amanhã?
— Amanhã? Por que não? Amanhã está bem. Conhece o Taj
Mahal? O restaurante na High Street?
— Combinado. Amanhã, à uma da tarde. Obrigado por seu
tempo, senhorita Mellings.
— Não há de quê.
Alice esqueceu-o inteiramente ao correr para junto dos
outros, que foram logo dizendo:
— Pelo amor de Deus, Alice, não podemos mais esperar!
Temos de partir imediatamente!
Faltavam vinte minutos para as três horas. Esperaram dez
minutos por um trem na estação do metrô, muito mais do
que calculavam. Ficaram parados na Baker Street, as portas
abertas, pessoas entrando sem qualquer pressa, por mais sete
minutos. Gracejaram que não se lembravam de jamais haver
esperado tanto. Em Green Park esperaram outra vez.
Estavam agora frenéticos de suspense; sentiam que eram
bombas, que podiam explodir a qualquer momento. Saindo
do metrô às três e meia, Bert desatou a correr e as duas
foram atrás, a fim de fazê-lo se controlar.
— Fique calmo — disse-lhe Roberta, irritada. — Lembre-se
de que temos de passar despercebidos.
Quem olhasse para Roberta não poderia deixar de notá-la.
Estava muito pálida, suando, o rosto trágico de tanta
seriedade.
Foram andando depressa em torno do hotel, passando por
outras pessoas na calçada. Os três não olhavam uns para os
outros nem para as possíveis vítimas. Alice pensava: Mas
pessoas podem ser mortas... Oh, não, isso não podia
acontecer! Dentro do seu peito, no entanto, uma pressão
aumentava, dolorosa, como um grito — mas ela não podia
permitir que fosse ouvida. Era como o uivo de um animal
em desespero, mas não podia alcançá-lo e confortá-lo.
O que os outros pensavam? Roberta... ora, era fácil, ela
pensava apenas em Faye. E Bert? Ele parecia não estar muito
diferente de sua personalidade afável, mas devia especular,
como Alice: Será que essa garota vai morrer? Ou essa velha?
Talvez essa ou aquela pessoa?
Não havia sinal de Jasper e Faye. Depois de contornarem o
hotel duas vezes, Roberta disse:
— Não adianta continuar. E não devemos ficar juntos.
Sem sequer olhar para os outros, ela afastou-se sozinha e foi
parar na calçada oposta, de onde podia ver a lateral do hotel
à sua frente, e à esquerda, a rua pela qual Jasper e Faye
deveriam vir.
Bert também se afastou, sem olhar para Alice, e foi para a
outra calçada, na frente do hotel. Alice, logicamente, poderia
se postar no lado em que Roberta não estava, mas decidiu
que a frente era melhor, e foi ficar perto de Bert.
Faltavam quinze minutos para as quatro horas.
Nenhum sinal do carro.
Um ônibus passou, lentamente. Jocelin sentada embaixo, na
janela. Olhou para eles e mexeu a boca para informá-los:
"Quinze... para... as... cinco". Depois, por um breve instante,
ela levantou a mão esquerda, os cinco dedos bem abertos,
balançou-a três vezes para a frente e para trás, tornou a
mexer a boca para informar "Quinze... para... as... cinco", e
passou a olhar fixamente para a frente.
— Acho que será às quatro e quarenta e cinco — comentou
Bert, jocosamente.
Quatro horas.
O grande hotel, com sua aparência sóbria e luxuosa, asso-
mava maciço, pessoas entrando e saindo. Alice pensou:
Talvez tenha havido algum problema e eles não virão mais.
Tudo vai acabar bem.
— Devemos avisar a Roberta que será às quatro e quarenta e
cinco? — indagou Bert. E ele próprio se encarregou de
responder: — Não, não podemos chamar atenção.
Mas acabou mudando de idéia, atravessou a rua correndo,
esgueirando-se por entre os carros. Roberta estava parada na
beira da calçada, absolutamente imóvel. Alice observou Bert
abordá-la, pegá-la pelo braço, aparentemente levando-a a
procurar uma posição mais discreta. Roberta desvencilhou o
braço e continuou exatamente onde estava. Bert
permaneceu a seu lado por um momento, depois voltou
devagar, dessa vez esperando que o sinal de trânsito abrisse
para os pedestres.
Alice pôde ver seu rosto com toda a clareza. Nunca o vira
assim. E, se houvesse visto, talvez não o reconhecesse. Bert
dava uma impressão de se encontrar isolado, apartado, como
se nada pudesse transpor a distância entre ele e as pessoas
que passavam pela rua, como se fosse amaldiçoado ou
desterrado. Tinha uma cor pálida, doentia, como um
cadáver.
O uivo ou grito no peito de Alice forçou-se a sair pela boca
num berro estridente. Ela se descobriu a correr para longe de
Bert e entrar no hotel. Procurava por um telefone. Duas
cabines, uma vazia. Pensou: Oh, Deus, se a lista telefônica
que preciso não estiver aqui! Mas estava; encontrou o
número dos samaritanos e discou, enquanto gritinhos de
choro afloravam por sua boca, incontroláveis, como se o
animal alojado lá dentro estivesse sendo espancado.
A voz afável e neutra do samaritano atendeu.
— Depressa, depressa, uma bomba vai explodir! Venham
depressa! Está num carro!
— E onde está o carro? — perguntou o samaritano, sem se
perturbar. Alice não respondeu logo e ele acrescentou: —
Precisa nos dizer. Não podemos mandar alguém aí se não
nos der essa informação.
Alice pensou: Mas o carro ainda nem chegou aqui! Como
posso saber se chegará? Depois pensou nas pessoas, em todas
aquelas pobres pessoas, e murmurou, desconsolada:
— Talvez já seja tarde demais.
— Mas onde está? Pode nos dizer o local?
Alice não foi capaz de fornecer o endereço.
— Está em Knightsbridge. — Já ia desligar quando teve uma
idéia e acrescentou: — E o IRA. Liberdade para a Irlanda!
Por uma Irlanda unida e paz para toda a humanidade!
Ela desligou, começou a correr de volta, forçou-se a andar.
Encaminhou-se direto para Bert, a fim de que ele pudesse
virar o rosto em sua direção, permitindo-lhe descobrir que
estava normal. Mas quando ele a fitou, Alice constatou que
era um rosto morto e horrível; depois Bert piscou-lhe
lentamente, o que desalojou a visão dele como um cadáver.
Voltou a ser o Bert de sempre, um pouco pálido e tenso, mas
só isso.
Não é tarde demais para evitar, pensou Alice. E tudo um
engano. Devemos planejar com mais cuidado. Talvez Faye e
Jas- per tenham decidido cancelar a operação. Desarmaram
as bombas. E por isso que estão atrasados.
Quatro e quinze.
Em todo aquele tempo, houvera apenas três vagas disponí-
veis para estacionamento.
A seguir Alice notou que Bert olhava para o outro lado,
fixamente, imóvel. Devia ser o carro. Um Escort branco
passou por Bert e depois por Alice, com Jasper e Faye na
frente, Faye ao volante. Pareciam exaltados, mas também
apavorados. O pára-lama traseiro no lado próximo da calçada
estava amassado. Fora por isso que haviam se atrasado. Ela se
aproximou de Bert, que concordou com seu diagnóstico.
Não havia vaga para estacionar em parte alguma. O carro,
confinado pelo tráfego, virou à direita lentamente, arrastou-
se pela rua transversal, onde os veículos se encontravam
quase parados, desapareceu por algum tempo no outro lado,
retornou completando a volta, passou por Roberta, que foi
incapaz de se controlar e levantou os braços para Faye, mas
tornou a baixá-los, devagar, presumivelmente porque o casal
no carro não lhe deu a menor atenção. A possibilidade de
eles terem pelo menos esse bom senso confortou Alice. O
Escort branco passou outra vez por Bert e Alice. Eram
quatro e vinte e cinco. Não havia guardas de trânsito, o que
já era alguma coisa.
Não haviam discutido o que fazer se não houvesse vaga para
estacionar. Enquanto o tempo escoava, será que os dois
conseguiriam encontrar uma vaga e correr a tempo?
Dessa vez Faye não entrou pela rua ao lado do hotel, mas
seguiu por mais um quarteirão e fez a volta.
Inexplicavelmente. Enquanto o Escort branco estava fora de
vista, dois carros partiram da rua transversal, deixando uma
vaga grande. Faye a perceberia, quando completasse a volta?
Quando Faye reapareceu, já passava de quatro e meia.
A essa altura Alice estava doente de tensão, de angústia. Sa-
bia que fungava sem parar, mas não podia se conter.
Faye passava outra vez por Roberta, que agora não se mexeu,
permanecendo completamente imóvel. Desespero. As pes-
soas reparavam em sua presença.
Quando o carro passava por Bert, ele fez um sinal, apon-
tando para a vaga. Faye e Jasper pareciam dois blocos de cera
com os olhos fixos. A princípio não olharam para Bert,
depois Jasper fitou-o e puxou o braço de Faye.
Bem a tempo, Faye virou na rua transversal.
Nesse instante um carro entrou na vaga, vindo pelo outro
lado, mas deixou bastante espaço para que Faye estacionasse.
Já havia carros por trás do Escort branco. A fim de
estacionar, ela tinha de paralisar o tráfego, esperando por
uma brecha para atravessar até o outro lado da rua. O carro,
com outros buzinando atrás, forçou passagem pelo fluxo de
tráfego, sob um coro de buzinas e gritos. Faye entrou com o
carro na vaga em diagonal e parecia prestes a deixá-lo assim,
pois abriu a porta. Mas tornou a fechá-la e subiu
abruptamente com o Escort para a calçada. Uma pausa longa,
marcha a ré, o carro já estava mais bem estacionado, mas não
muito.
Os outros carros ainda buzinavam.
Roberta, vendo as poses rígidas e atentas de Bert e Alice,
observando Faye estacionar, atravessou a rua apressada para
ficar junto deles. Alheios a quaisquer decisões anteriores de
não ficarem juntos para não chamarem atenção, os três
formavam um grupo compacto, olhando para o carro
delinqüente. Agora, no entanto, podia-se dizer que eram
pessoas condenando um péssimo estacionamento.
— Pelo amor de Deus, saiam logo! — balbuciou Roberta, a
voz um tanto alta, áspera, angustiada. — Depressa!
Jasper saltou, abrindo a porta contra o fluxo de tráfego e
inclinando-se a seguir para olhar para dentro do carro e para
Faye.
— Pelo amor de Deus! — suplicou Roberta.
Jasper empertigou-se, fechou a porta e foi andando pelo lado
do carro, tencionando contorná-lo, ir para a calçada e abrir a
porta para Faye. Pelo menos era o que parecia para os três
que observavam. Pois não havia motivo, a não ser que a
porta estivesse emperrada, para que Faye não a abrisse e
saísse também, o mais depressa possível. O tempo estava se
esgotando. Faltavam cinco minutos. Mas o tempo já se
esgotara, pois nesse momento houve a explosão, e parecia
que as janelas do mundo inteiro estavam se despedaçando,
enquanto o carro se fragmentava todo.
— Faye, Faye — soluçou Roberta, enquanto corria pela rua,
sem olhar para os carros.
— Jasper! — choramingou Alice, correndo atrás.
Por todo um lado do hotel a cena era de desastre: corpos
caídos na calçada, alguns imóveis, alguns fazendo um grande
esforço para sentar ou levantar; fragmentos de metal, cacos
de vidro, bolsas, reboco, sangue.
Quando Alice chegou ao local, Jasper não estava lá. Depois
ela o viu, correndo para o outro lado da rua, as mãos na
cabeça. Todo ensangüentado.
Idiota, pensou Alice. Não fuja, é muito melhor esperar aqui,
há uma porção de pessoas feridas; você seria apenas mais um
dos feridos.
Roberta estava parada entre os corpos, olhando fixamente
para os destroços do carro, que parecia ter arriado sobre si
mesmo: um emaranhado de metal. Gemendo, Roberta virou-
se e, inclinando-se, começou a espiar o rosto dos feridos e —
como Alice acabara de compreender — dos mortos na
calçada.
Subitamente Roberta deu um grito e sentou-se no meio-fio,
aninhando uma massa sangrenta que, raciocinou Alice, só
podia ser Faye. Isso mesmo, ela podia divisar um braço,
branco, bonito, intacto, com uma porção de pulseiras
coloridas no punho. Alice aproximou-se de Roberta e disse:
— Pare com isso. Não pode fazer mais nada agora e sabe
disso. Temos de sair daqui.
Roberta fixou os olhos em Alice, sem vê-la ou a qualquer
outra coisa, depois voltou a contemplar a massa vermelha.
Chorava, de uma maneira seca, ofegante, frenética.
— Roberta — insistiu Alice, conseguindo até exibir um sor-
riso amistoso e persuasivo —, levante-se, por favor.
Nesse momento, naquele cenário de desordem, de destrui-
ção, que permanecera mais ou menos o mesmo durante os
últimos cinco minutos, desde a explosão, irrompeu a
Sociedade, irromperam a Lei e a Ordem, sob a forma de
sirenes estridentes de ambulâncias e carros de polícia, que
subitamente estavam por toda parte, centenas de guardas, ao
que parecia. As ambulâncias pararam com a traseira viradas
para a calçada, iniciando o trabalho árduo e cuidadoso de
recolher os feridos e os cadáveres da calçada. Mas a polícia
se encontrava em estado de pânico, descontrolada, os
guardas correndo de um lado para outro, gritando ordens,
empurrando os curiosos, que a essa altura já haviam
aparecido, como não podia deixar de ser, aumentando a
confusão geral.
Alice disse ao homem da ambulância que se debruçou sobre
Roberta:
— Acho que ela não está ferida. Mas ela... — por algum
motivo, Alice não foi capaz de usar o nome de Faye para se
referir àquela massa de carne e sangue — ela estava bem no
caminho da explosão.
— E onde você estava? — indagou o homem da ambulância,
ajudando gentilmente a pobre Roberta a se levantar.
— Estava ali, naquela calçada — respondeu Alice, dizendo a
verdade. — Mas não me machuquei.
A essa altura havia dois homens agachados ao lado de Faye,
enquanto Alice e Roberta estavam de pé. Alice segurava
Roberta, a quem disse, suavemente:
— Ela está morta.
— Sei disso — disse Roberta, em voz normal.
A essa altura um guarda se aproximou e gritou:
— O que estão fazendo aqui? Estão feridas? Então tratem de
se afastar!
Alice passou o braço por Roberta e levou-a para longe. Não
queria que o guarda pensasse um pouco e começasse a
interrogar Roberta, que numa inspeção informal não parecia
anormal, embora estivesse encharcada de sangue da cintura
para baixo.
Ela não pensara no que faria com Roberta, ensangüentada e
naquele estado, quando se afastasse da polícia e da multidão.
Foram detidas por outro guarda, mais controlado, que disse
que Roberta parecia precisar de cuidados médicos.
— Ela se encontra em estado de choque — explicou Alice.
— Pois então leve-a para a ambulância — ordenou o guarda,
virando-se para ajudar os companheiros a afastarem os
curiosos.
Não havia nada a fazer. Alice foi com Roberta na ambu-
lância, junto com dez outras pessoas, todas em estado de
choque ou ligeiramente feridas. Os feridos mais graves
estavam sendo levados para outras ambulâncias.
A delas foi uma das primeiras a partir. Alice e Roberta fica-
ram em silêncio, escutando as pessoas que choravam, se
queixavam ou contavam muito excitadas como passavam
pacificamente pela rua ou entravam e saíam do hotel e de
repente...
Rostos e braços cortados, possíveis fraturas, equimoses. Uma
mulher tivera as roupas rasgadas pela explosão e estava
envolta por um cobertor. Outra fora arremessada por uma
janela que no momento estava se espatifando. Tinha uma
porção de cortes pequenos e profundos e parecia ser a que
estava em piores condições.
Chegaram ao hospital em poucos minutos.
Roberta foi examinada e declarada ilesa.
Alice explicou ao policial simpático que as duas estavam
entrando no hotel quando o acidente acontecera. Depois,
pegaram um táxi e foram para casa. O motorista comentou
que fora uma coisa chocante; provavelmente os árabes, de
novo; não tinham o senso de como a vida era sagrada, não
como os ocidentais; se dependesse dele, os árabes não teriam
mais permissão para vir à Inglaterra.
Roberta e Alice não disseram nada.
Eram sete horas quando chegaram em casa. Bert estava na
cozinha, cuidando de Jasper, que tinha muitos cortes no
rosto e cabeça, mas afora isso estava bem. Bert disse que os
talhos precisavam de pontos; alguns eram bem profundos.
Jasper negou. E estava certo. Devia ter ficado, em vez de
fugir, argumentou Jocelin; podia inventar alguma história e
ser cuidado com as outras vítimas no hospital. Agora, ele não
devia de jeito nenhum ir a um hospital ou sequer procurar
um médico. Mas uma das mulheres na comuna de South
London fora enfermeira; não haveria problemas se o
levassem até lá.
— Não acho certo — insistiu Jasper. — Quanto menos pes-
soas envolvidas, melhor.
Alice achou que essa posição era a mais sensata e tentou
examinar os cortes. Jasper repeliu-a. Mas não pareciam
muito graves, na avaliação de Alice; talvez nem deixassem
cicatrizes. E sempre havia a cirurgia plástica.
Os cinco finalmente sentaram-se ao redor da mesa.
Jasper contou, de maneira objetiva e formal, como calculara
mal uma distância ao deixar a rua em que o carro estava, e
batera no pára-lama dianteiro de um carro estacionado. Teria
ido embora, mas de repente havia um carro imediatamente à
sua frente, bloqueando a passagem, e um homem que
testemunhara a batida de uma janela do segundo andar
descera correndo para anunciar que Jasper não podia escapar
impune. Jasper afirmara que tal idéia não lhe passara pela
cabeça. O homem declarara que ele mentia. Travaram uma
pequena discussão, antes de chegarem ao ponto de trocar as
seguradoras: Jasper, é claro, dissera que informaria o
endereço da sua depois. Descobriram em seguida que o pára-
lama traseiro amassado do Escort branco estava travando a
roda, e ele teve de usar uma chave de roda para afastá-lo. O
homem ficara parado ao lado, como se fossem criminosos
que deviam ser vigiados. A fim de alcançar o amassado,
Jasper tivera que se deitar na rua e bater por baixo. Era difícil
e demorara, estavam retendo o tráfego.
Quando finalmente tornaram a partir, estavam tão atrasados
que até pensaram em cancelar toda a operação. Faye poderia
facilmente desarmar as bombas, mas o problema era que,
àquela altura, teria de trabalhar à vista de todas as pessoas nos
outros carros e passando pelas calçadas. Além do mais,
alegara Faye, fazer ou morrer; ela queria ir até o fim. Seria
lamentável desistir depois de tanto trabalho.
Quando Faye aparecera, na segunda vez, fora porque não
encontrara nenhuma vaga para estacionar. Já haviam
decidido parar o carro em qualquer lugar possível, a fim de
que Faye pudesse desarmar as bombas, independentemente
de quem estivesse olhando. A essa altura, faltavam apenas
doze minutos. Mas não havia vaga alguma na rua.
— Então não há mais nada a fazer — dissera Faye,
bravamente.
Ela tentara guiar mais depressa, mas estava contida pelo
tráfego.
E quando Jasper saltara, mas Faye não, fora porque a porta de
Faye estava emperrada? Ele dera a volta para ajudá-la?
A indagação era de Roberta, e o tom, acusador.
Jasper hesitou. Alice sabia que isso acontecia porque ele
tentava pensar numa maneira de não dizer algo. Quando
ficava assim, muito pálido mas luminoso, com uma expressão
sincera, sofredora e desamparada, significava que ia mentir.
E Jasper começou gaguejando, controlou-se e disse:
— Quando entrou na vaga, Faye avançou muito depressa para
a calçada e freou. Não estava com o cinto de segurança.
Nenhum de nós dois estava, entende?
— Claro que não — respondeu Roberta bruscamente.
— Ela foi jogada para a frente e bateu com a barriga no
volante. Ficou sem fôlego, entende?
Ele falava gentilmente para Roberta, enquanto Alice pen-
sava: Jasper é gentil, muito gentil, não queria contar a
verdade a Roberta...
E Roberta olhava fixamente para Jasper, a boca entreaberta, a
respiração ofegante. Todos sabiam que ela pensava que sua
Faye morrera por causa de alguma insignificância, algo
ridículo; pelo resto de sua vida Roberta pensaria, incrédula,
que Faye morrera porque guiava muito depressa e batera
com força excessiva numa calçada.
— Percebi que ela não podia se mexer — explicou Jasper.
— Engrenei a marcha a ré... estendi o pé por cima e consegui.
E depois disse que ela tinha de saltar depressa. Mas Faye
continuou imóvel. Acho que ela estava se sentindo muito
mal para se mexer. Saltei do carro para dar a volta e tirá-la
pelo outro lado. E foi então que a bomba explodiu.
— Cinco minutos antes do prazo previsto — disse Roberta,
dessa vez acusando Jocelin. Que, como Jasper, manteve-se
em silêncio, hesitante. Havia alguma coisa que ela não queria
dizer. Roberta prontamente indagou:
— Quem marcou o tempo? Faye?
— Isso mesmo.
Roberta sacudiu a cabeça, como se dissesse Não, não, não - a
tudo —, mas depois mergulhou num silêncio opressivo,
dizendo sim ao chá, sim ao açúcar nele, sim a um biscoito.
Porém ela não comeu nem bebeu.
Todos sabiam que ela sairia em algum momento daquele
estado passivo.
Jasper começava a sentir dores intensas. Bert subiu correndo,
trouxe analgésicos para Jasper, sedativos para Roberta e um
rádio.
Ficaram escutando o noticiário:
"Cinco pessoas morreram e vinte e três ficaram feridas,
algumas gravemente, esta tarde, quando um carro explodiu
no lado de fora do Hotel Kubla Khan, quebrando todas as
vidraças daquele lado e avariando diversos carros
estacionados. Esse crime monstruoso e desumano demonstra
mais uma vez a total falta de sentimentos do IRA, que
assumiu a responsabilidade pelo atentado".
— Mas que coisa incrível! — exclamou Jocelin. — Que
absurdo!
— É mesmo — concordou Alice, sem relacionar seu
telefonema com aquela informação.
Depois de alguns minutos escutando a indignação e frustra-
ção dos outros, ela finalmente estabeleceu a ligação e
compreendeu que nunca poderia lhes contar o que fizera.
Jamais, pois perderia para sempre a confiança de todos.
E se Bert se lembrasse de que ela deixara a calçada a seu lado
por um prazo que devia ter sido no mínimo de cinco
minutos?
Mas parecia que ele não se lembrava.
Caroline voltou em torno das dez horas. Mostrou-se arredia,
até mesmo fria. Disse que não se sentaria com eles; estava
cansada e queria dormir.
Ouvira o noticiário, declarou, quando Jasper parecia prestes a
iniciar o relato.
Caroline fez um café, bebeu-o de pé, sem olhar para os
outros.
— Onde está Faye? — perguntou ela, e todos compreende-
ram que não podia mesmo saber.
— Faye morreu — respondeu Roberta, desatando a chorar.
A princípio foi um choro baixinho, desolado, que foi se
tornando mais ruidoso, entremeado de gemidos.
— Podia acontecer — comentou Bert, bruscamente.
— Quer dizer que ela estava no carro? — indagou Caroline,
sem querer parecer interessada.
Roberta começou a uivar, um som igual ao que Alice parecia
carregar no peito: um som terrível, lúgubre.
Verificaram se as janelas estavam trancadas. Deram outro
sedativo a Roberta, e Jocelin e Alice ajudaram-na a subir. Ela
estava pesada, quase inerte. Tiveram de arrastá-la, sustentá-
la, até mesmo ordenar que mexesse as pernas. Alice entrou
primeiro no quarto para se certificar de que as janelas
estavam trancadas. Tarde demais, quando Roberta já se
encontrava deitada na pilha aconchegante de coisas
estampadas e almofadas que partilhara com Faye, elas se
lembraram de que outro quarto seria melhor. Deixaram-na
ali mesmo, torcendo para que o sono silenciasse em breve
aquele choro horrível.
Quando as duas voltaram à cozinha, Bert e Jasper
continuavam à mesa. Caroline sentara-se no peitoril da
janela, mantendo-se a distância dos outros. Ficaram em
silêncio, tentando não se deixar afetar pelo barulho terrível
por cima de suas cabeças. Roberta uivava; não parecia
humana. Podia-se acreditar que havia lá em cima um animal
ferido, agonizante.
Todos estavam pálidos e tensos. A testa de Bert exibia gotas
de suor. No rosto de Jasper havia um sorriso frio. Caroline
parecia estar passando mal. Jocelin era a menos transtornada.
Bert não parava de lançar olhares suplicantes para Caroline,
que se recusava a fitá-lo. Subitamente, ele tirou do bolso da
túnica, onde ficara sobre seu coração, um papel muito
dobrado, onde estavam escritas algumas palavras. Todos
sabiam quais eram as palavras, pois Bert já as lera, mais de
uma vez. Agora, depois de fitá-los, um a um,
cuidadosamente, para lhes chamar a atenção — mas nem
assim Caroline reagiu —, ele leu:
— "A lei não deve abolir o terror; prometer isso seria ilusão
ou impostura; deve ser consolidada e legalizada em princí-
pio, claramente, sem evasivas ou enfeites. O parágrafo sobre
o terror deve ser formulado da maneira mais ampla possível,
já que somente a noção revolucionária de justiça e a
consciência revolucionária podem determinar as condições
de sua aplicação na prática".
Silêncio. Os outros não olhavam para Bert.
— Lênin. — Uma pausa, e ele repetiu, confiante: — Lênin.
Alice observara-o enquanto ele lia, interessada em verificar
se a visão que tivera de Bert diante do hotel poderia ressurgir
— o Bert com aparência de cadáver. Mas, ao contrário, a
leitura o fortaleceu e ele sorriu enquanto lia, os dentes
brancos aparecendo entre saudáveis lábios vermelhos.
— Obrigada — murmurou Jocelin, como que por uma ques-
tão de protocolo, mas prestando atenção a Roberta. Acendeu
um cigarro, as mãos trêmulas. Vendo que todos notavam
isso, ela acrescentou: — Reação, mais nada.
Jasper continuava a sorrir. Era como se escutasse uma música
distante. Alice sabia que ele controlava a necessidade de
vomitar. Pensou que Jasper parecia um soldado ferido, com
suas ataduras ensangüentadas. Caroline saiu do peitoril da
janela e disse:
— O que o Código Penal da Rússia tem a ver conosco? Ou
Lênin, diga-se de passagem — acrescentou ela, desafiando-
os. — Tudo besteira de amador, se querem saber minha
opinião.
Ela estava furiosa e, depois de uma pausa, comunicou a
Alice:
— Tenho um recado para você. Um homem esteve aqui essa
tarde. Um americano. Disse que voltará para falar com você
amanhã. Por volta das quatro horas. Gordon O'Leary.
Ela não olhou para Bert, saindo da cozinha sem qualquer
despedida.
— Gordon O'Leary de novo — comentou Jocelin, como se
isso não tivesse muita importância.
— Mas que atrevimento — murmurou Alice mecanicamen-
te, pensando que teria um dia movimentado, almoço com
Peter Cecil e depois Gordon O'Leary à tarde.
Ninguém disse mais nada. O silêncio foi rompido por Bert:
— Também vou embora. Não adianta ficar por aqui.
— Eu também vou — acrescentou Jasper.
— Você vai partir? — perguntou Alice a Jasper, incrédula.
— Combinamos que iríamos embora no momento em que a
operação fosse concluída — respondeu Jasper, sem fitá-la.
Alice pensou: Ele não pode estar planejando ir com Bert.
Assim que Bert arrumar outra mulher, ele ficará sobrando
mais uma vez.
Ela não disse nada, o que deixou Jasper inquieto. E ele
indagou, truculento:
— Você também vai?
— Acho que não — respondeu Alice, vagamente.
— Mas terá de ir. Mary disse que a casa está outra vez na
agenda.
— Estão sempre dizendo isso.
— Não seja tão estúpida — insistiu Jasper. — Se não for este
mês, será no próximo ou no outro.
— Até lá, continuarei aqui. E alguém tem de ficar com
Roberta.
Como esse era um argumento incontestável, Jasper
manteve- se em silêncio por algum tempo. Mas logo,
pressionado pela intransigência de Alice, disse, espantado,
escandalizado com ela:
— Mas combinamos que deveríamos nos dispersar, Alice. Foi
uma decisão unânime.
Ele até agarrou o pulso de Alice, no aperto firme e premente
de sempre, inclinando-se para observar seu rosto.
O aperto indicava a ela que não ficaria sem Jasper por muito
tempo. Alice sorriu tranqüilamente para aquele rosto, com
os olhos azuis imersos nos lagos cremosos e rasos, em que
sobressaíam as pequenas sardas louras.
— Avise-me onde você estará e manteremos contato, Jasper.
Alguém sabe onde encontrar os parentes de Roberta? Ela
deve ter uma família, não é?
Todos sabiam apenas qual era o hospital em que a mãe de
Roberta estava morrendo.
— Ela não vai continuar aqui — comentou Jocelin.
Alice sabia que ela estava certa. Bert subiu para pegar sua
mochila de lona com as roupas e alguns livros. Jasper
também foi buscar seus pertences. Tinha ainda menos do
que Bert.
Alice continuou sentada à mesa, apática, pensando naquela
casa, naquele lar que ela criara, deserto, vazio, os operários
da prefeitura entrando.
Jocelin disse que partiria pela manhã. Acrescentou que acha-
va que o saco com os componentes de explosivos estaria bas-
tante seguro, até que tornassem a precisar. Riu. E subiu.
Bert e Jasper se demoraram na cozinha, naquele último
momento, relutando em partir. Não querendo deixá-la, ou ao
conforto que ela proporcionara a todos? Alice resolveu não
pensar sobre isso. Comentou que tinha a impressão de que
Roberta estava se acalmando.
Era verdade que os uivos lá em cima já não pareciam tão
intensos. E logo cessaram. A casa ficou em silêncio.
Jasper inclinou-se rapidamente e deu um beijo no rosto de
Alice, como num jogo de "último toque".
— Até breve — murmurou ele.
Jasper saiu sem olhar para verificar se Bert o seguia. Não era
fácil para ele deixá-la, pensou Alice, agradecida.
Ela permaneceu sozinha na cozinha.
Tornou a escutar os noticiários. Estavam de fato obtendo
uma boa cobertura; haviam deixado sua marca.
Cinco mortos. Uma garota de quinze anos se encontrava em
estado desesperador, devia morrer também. Mais de vinte
feridos.
O noticiário da meia-noite dedicou mais de cinco minutos ao
atentado.
Alice dormiu, sentada à mesa, a cabeça nos braços.
Acordou por volta das seis horas para deparar com Roberta,
trêmula, pálida e horrível, fazendo um chá.
Roberta disse que arrumaria suas coisas e iria embora. Vol-
taria para junto da mãe. Já devia ter feito isso, é claro, mas
Faye... Sua voz tremia, ela mordeu os lábios, controlou-SE
tomou o chá. Subiu para buscar seus pertences, desceu com
vários endereços em que Alice poderia encontrá-la, escritos
a lápis num pedaço de papel. Pelo menos Roberta não estava
saindo de sua vida para sempre.
Roberta, ao contrário dos outros, possuía muitas coisas.
Deixaria os móveis, mas levaria as cortinas, tapetes, colchas,
travesseiros, espelhos, cobertores, que estavam reunidos em
duas trouxas grandes, levadas de táxi para a estação.
Alice escutou o noticiário das oito horas da manhã.
O IRA (na Irlanda) declarara que não tinha nada a ver com o
atentado a bomba do dia anterior e liquidaria aqueles que
cometiam tais atos em seu nome. Eles não saíam por aí
assassinando pessoas inocentes.
Essa é muito boa, pensou Alice. E chegou a dar uma risada.
Pelo absurdo da situação.
Mas não importava o que o IRA dizia; não lhes cabia decidir
o que faziam os camaradas naquele país.
Alice especulou: Valeria a pena fazer uma viagem à Irlanda
para explicar aos camaradas irlandeses a posição dos
camaradas ingleses?
A especulação foi interrompida pela descida de Jocelin, com
uma mochila e uma valise. Também tomou um chá e ouviu a
informação de que Roberta já fora embora sem fazer
qualquer comentário, sem sequer indagar se Roberta pedira
para manterem o contato. Não mencionou Bert e Jasper.
Sobre Caroline, disse que era uma boa camarada, mas não
compreendia que era preciso fazer sacrifícios. Disse isso de
pé — não se sentara —, segurando a caneca de chá com as
duas mãos, olhando por cima, com olhos injetados. Alice
pensou que parecia até que ela estivera chorando.
Jocelin foi embora, e Alice ficou sozinha na casa.
Tornou a escutar o noticiário e pensou em sair para comprar
os jornais. Mas não o fez. Deixaria para comprar quando
saísse para o almoço com Peter Cecil. Peter Cecil! Os polires
russos não tinham bom senso suficiente, ao escolherem um
nome tão óbvio. Era quase como uma piada, como se
quisessem se mostrar. (A essa altura, lá no fundo de Alice,
agitou-se uma pequena inquietação, uma dúvida, mas ela não
foi capaz de relacioná-la com qualquer coisa e por isso tratou
de reprimi-la.)
Ainda era muito cedo para ir ao restaurante.
Continuou sentada ali, sozinha, na casa silenciosa. Na casa
traída... Deixou que a mente vagueasse de cômodo em
cômodo, louvando suas realizações, como se alguém mais
tivesse feito tudo aquilo, mas o trabalho não fora
devidamente reconhecido, por isso agora lhe fazia justiça. A
casa podia ser como um animal ferido, de cujos muitos
ferimentos ela cuidara, um a um, limpando e enfaixando;
agora estava bem, recuperada, ela a afagava, satisfeita consigo
mesma e com a casa... Não totalmente saudável, é claro, mas
ela não queria pensar no que acontecia nas vigas do sótão.
Pobre casa, pensou Alice, transbordando de ternura. Espero
que alguém venha a amá-la um dia, cuide dela.
Quando eu for embora. . . Era um absurdo continuar ali,
Jasper estava certo, mas ela não partiria por enquanto, ficaria
mais um pouco: sentia que podia ajeitar as paredes daquela
casa, a sua casa, em torno de sua pessoa como um manto, em
que se aconchegaria, em que estaria segura.
Sentia-se tão estranha, tão diferente do que realmente era!
Mas era natural. Precisava sair para uma longa caminhada ou
talvez bater um papo com Joan Robbins. Não, haveria
comentários sobre o IRA e o atentado. As pessoas comuns
não podiam compreender e não adiantava esperar que... Foi
a essa altura que a ternura que abundava por ali, dentro e
fora de Alice, sem saber a que lugar pertencia, apegou-se às
pessoas comuns. Com lágrimas nos olhos, Alice pensou:
Pobres coitados, pobres coitados, não podem compreender!
Como se os seus braços envolvessem todas as pobres e tolas
pessoas comuns do mundo.
Então, ela começou a pensar, mas com muito cuidado, sobre
os pais. Primeiro, o pai: não, ele era horrível demais para que
desperdiçasse seu tempo, nunca mais pensaria nele. A mãe...
O que Dorothy diria se soubesse que a filha estivera
envolvida no atentado? Não que Alice pensasse que tinha al-
gum motivo concreto para lamentar; afinal, não tivera uma
participação real. Suspirou, uma respiração longa e convulsi-
va, como uma criancinha. Era algo que nunca poderia contar
a Dorothy; saber disso fez com que se sentisse apartada da
mãe, de uma forma que jamais acontecera antes: poderia lhe
oferecer uma despedida final, em vez de ter apenas mais
uma de suas brigas tolas!
Oh, não, era tudo demais, tão difícil... Alice levantou-se
abruptamente; parecia que estava prestes a sair da cozinha e
depois da casa, mas, parando numa pose rígida por um
minuto, mais ou menos, tornou a sentar, porque lembrara de
Peter Cecil. (Peter Cecil, rá, rá!) Não podia ir embora no
momento, porque havia aquele almoço. Mas talvez eu lhe
conte tudo, pensou Alice, ele é um profissional, posso falar
sobre a explosão sem todos os certos e errados para
atrapalhar, apenas como uma operação que foi realizada, mas
de forma um pouco confusa... Engraçado, ela não pensara até
aquele momento que haviam metido os pés pelas mãos. Mas
será que fora isso mesmo? Se publicidade era o objetivo,
então houvera sucesso! E Faye? Mas os camaradas sabiam
que suas vidas corriam perigo; no momento em que
assumiram aquele papel, decidiram se tornar terroristas...
Não podia se lembrar de alguma ocasião em que dissera: "Sou
uma terrorista, não me importo de morrer". (Alice sentiu- se
outra vez impelida a levantar, num movimento de pânico
acuado, mas tornou a sentar.) Durante todo o tempo eu
esperava que alguma coisa começasse, pensou; e em seu
rosto insinuou-se um sorriso assustado, incrédulo, pela
impropriedade de tudo. Então não acreditara que o atentado
a bomba era sério? Não, não realmente; aceitara, embora
sentisse que não era certo — e por trás havia o pensamento
de que o trabalho sério (qualquer que pudesse ser) viria mais
tarde. E o que eles pensariam sobre o atentado? (Eles, os
russos.) Não havia necessidade de indagar o que Andrew
diria. Ou Gordon. Podia imaginar perfeitamente suas
expressões de condenação.
E Peter Cecil? Por alguma razão, ele era diferente. Claro que
não revelaria nomes, pensou Alice. Apenas falaria com mui-
to cuidado, contaria a história. Diria que fui informada por
alguém que está por dentro e queria "saber sua opinião.
Nesse ponto várias advertências que seus nervos haviam
registrado e guardavam, até que delas pudesse cuidar, quase
afloraram, mas tornaram a recuar. Enquanto isso, ela pensava
que Peter Cecil tinha um rosto simpático. Era verdade.
(Alice o contemplava em sua imaginação, como ele lá
estivera no dia anterior, à porta, enquanto ela se encontrava
num frenesi de impaciência para sair.) Um rosto gentil. Não
como o daqueles russos, muito ao contrário, ele era bastante
diferente... E nesse ponto os sinais de alerta retornaram,
num ímpeto, clamando por atenção. Alice não pôde mais
reprimi-los.
Claro que Peter Cecil não era como os russos, porque ele não
era russo. Era... era do MI-6, MI-5, XYZ ou qualquer outra
daquelas siglas miseráveis, não fazia a menor diferença. O
importante é que ele era inglês. Isso mesmo, inglês!
A tal pensamento, a essa palavra, um alívio suave e doce
espalhou-se por Alice, tão intenso que teve de reconhecê-lo
e se sentir embaraçada. Era demais! Inglês ou não, ele era o
inimigo, era — pior do que os russos — era da classe
superior (Cecil!), era um reacionário, era um fascista. Isto é,
não exatamente um fascista, seria um exagero pensar dessa
forma. Mas inglês. Um dos nossos. Pensou sobre o
britanismo de Peter Cecil e o que significava, o que sentia a
respeito: que conversar com ele seria muito diferente de
falar com aqueles russos, que entendiam tudo errado, porque
não sabiam como nós, ingleses, realmente somos. E qual era
o problema de sentir isso? Eles (os camaradas) não haviam
decidido que não teriam negócios com os russos nem com o
IRA, apenas com a nossa própria gente?
Enquanto se imaginava conversando com Peter Cecil, Alice
compreendeu que muitas coisas não precisariam ser ditas,
como acontece entre pessoas do mesmo país, não importava
quanto estivessem divididas sobre determinadas coisas.
(Como política!)
Mas o que ele queria saber? Alice não podia lembrar o que
fora dito no dia anterior. Sua memória era um branco, e só
recordava que ele a interrogara sobre Andrew. (Andrew
Connors? Por que não? Talvez ele fosse mesmo Connors.)
Mas o que ela dissera? Alguma coisa demais fora dita? Não,
tinha certeza de que não, tudo fora açodado, ela se
encontrava num estado febril, queria apenas livrar-se de
Peter Cecil o mais depressa possível. O matériel? Não, não
era provável que ela mencionasse isso, não é? Claro que não
dissera nada a respeito!
Alice continuou sentada, fria, tensa, assustada, tentando
lembrar, ao mesmo tempo em que o pensamento Ele é
inglês vinha em seu socorro. Fazia um grande esforço para
aguçar a memória, obrigá-la a entregar o que continha,
enquanto pensava: Ele é inglês, vai compreender.
Claro que Alice sabia que esquecia coisas, mas não tanto
assim ou com freqüência. Quando a mente começava a ficar
atordoada e perplexa, tentando freneticamente se apegar a
alguma coisa estável, então ela se permitia no mesmo
instante — como o fez então — resvalar para a infância,
onde se detinha agradavelmente em uma cena ou outra, que
atenuava, polia e pintava com novas cores, até que fosse
como entrar numa história que começava assim: "Era uma
vez uma menininha chamada Alice, com sua mãe, Dorothy.
Uma manhã, Alice estava na cozinha com Dorothy, que
fazia a sua torta de maçã predileta, com canela, açúcar
mascavo e creme. A pequena Alice perguntou: 'Mamãe, não
sou uma boa menina?' "
Mas nesse instante sua mente não permaneceu nesse sonho
ou história; insistiu em voltar ao presente, afastar-se da mãe,
que finalmente repudiava Alice por causa do atentado a
bomba.
Ficou sentada, quieta, enquanto o tempo passava, levando-a
para o almoço e Peter Cecil. Estava ansiosa e seu estômago
doía, o coração batia forte e dolorido.
Não havia necessidade de contar coisa alguma a Peter Cecil.
Por que deveria fazê-lo? Talvez falasse um pouco sobre
Andrew. Não seria prejudicial a Andrew; nem mesmo sabia
onde ele se encontrava. "Andrew Connors?", ela diria. "Ele
me disse que era americano. De vez em quando visitava a
outra casa; estava apaixonado por uma garota que vivia lá na
ocasião. Esqueci o nome dela. Isso é tudo o que sei."
Teriam um bom almoço. Talvez ele até se mostrasse amigo,
como Andrew. Afinal, considerava Andrew um amigo, ape-
sar de no presente não pensar tão bem dele como antes.
Havia sempre pessoas decentes, mesmo entre os
reacionários. Alice lembrou-se de um camarada, dizendo em
algum lugar — teria sido em Birmingham? na comuna em
Manchester? — que era marxismo primitivo pensar que
como indivíduos todos os membros da classe dominante
eram maus. Bastaria apenas que tomasse cuidado com o que
dissesse, e não haveria problemas. Basta tomar cuidado — e
confiar na inspiração. Era tolice ficar sentada ali a se
preocupar com o que poderia dizer; sempre sabia, quando
chegava o momento, como controlar as situações.
E isso se aplicava também a Gordon O'Leary... Mas enquanto
pensava nele Alice sentiu a ansiedade no estômago tornar-se
uma pontada de dor, intensa, quase insuportável. Oh, merda,
ela acabara de compreender que precisava tomar cuidado
para não mencionar Gordon a Peter Cecil ou permitir que
Peter Cecil chegasse perto daquela casa depois do almoço.
Mas não importava, tinha certeza de que poderia dar um
jeito em tudo. Cuidaria primeiro de Peter Cecil e depois de
Gordon O'Leary. Mas — ela pensou subitamente —, por que
tinha de se encontrar com Gordon? Depois do almoço podia
simplesmente partir para um passeio em qualquer lugar, só
voltando para a casa mais tarde. Não, isso seria apenas adiar o
problema. Voltaria a tempo do restaurante, depois de se
despedir de Peter Cecil lá, deixaria um bilhete na porta
dizendo... Não, não podia haver nenhum bilhete: os
vizinhos perceberiam e viriam investigar. Era muito melhor
deixar que todos pensassem que as coisas continuavam a
correr normalmente, por tanto tempo quanto possível; por
isso era uma boa idéia que eles a vissem pelo menos entrar e
sair.
Quando voltasse do restaurante, trancaria as portas e janelas
— havia apenas uma janela que não trancava e teria de
prendê- la com pregos antes de partir —, subiria para o alto
da casa, passaria para o sótão, poria um peso no alçapão, a
fim de que ninguém pudesse deslocá-lo. Mesmo que Gordon
O'Leary entrasse na casa de alguma forma — e dificilmente
ele gostaria de ser visto arrombando uma casa em plena luz
do dia —, não saberia que podia subir para o sótão; como
poderia saber?
Esse planejamento e arranjos detalhados faziam com que
Alice se sentisse melhor. Nisso é que era eficiente: sentia-se
outra vez no comando de tudo, a dor no estômago
abrandava, a respiração voltava a ser mais tranqüila.
E estava até ansiosa pelo almoço com Peter Cecil, Sorrindo
gentilmente, uma caneca de chá muito forte na mão,
parecendo naquela manhã uma garotinha de nove anos que
tivera talvez um pesadelo, a pobre criança ficou sentada,
esperando pelo momento de sair para se encontrar com os
profissionais.

 
 
 
 
 
 
Lançamento Arcanjo Micael
A Terrorista - Doris Lessing
 
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
Romance de 1985. Examina a história dos acontecimentos na vida de uma bem-intencionada invasora de propriedades , Alice, que é arrastado para organizar atos de violência.
 
 



PASTAS LANÇAMENTOS Arcanjo Micael:
 
 

Este e-book representa uma contribuição do grupo Arcanjo Micael para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras


 

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