terça-feira, 27 de setembro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> [livro] Jack London - O Apelo Da Selva

Rumo ao primitivo

Erguem-se velhos anseios nômades, contra a corrente do hábito;
De novo, do seu sono brumoso, desperta a estirpe ferina.

Buck não lia os jornais, por isso não sabia que iriam surgir problemas, não
só para si próprio como para todos os cães de grande porte, com músculos
poderosos e pêlo longo e quente, de Puget Sound a San Diego. E isso porque os
homens, tateando na escuridão ártica, tinham encontrado um metal amarelo e,
tendo em vista o enorme valor atribuído à descoberta pelas companhias de
navegação e transportes, precipitavam-se aos milhares para as terras do Norte.
Esses homens queriam cães, cães possantes, com músculos fortes para o
trabalho e pêlo espesso que os protegesse do gelo.

Buck vivia numa casa no ensolarado vale de Santa Clara. Chamavam-lhe
Casa do Juiz Miller. Estava afastada da estrada, semi-escondida entre as árvores,
através das quais se podia entrever a grande varanda fresca que corria a toda a
volta da construção. O acesso fazia-se por caminhos de cascalho que
serpenteavam ao longo de vastos relvados e sob os ramos entrelaçados de
grandes choupos. Os fundos eram ainda mais espaçosos que a frente. Aí ficavam
os grandes estábulos, onde imperava a algazarra de uma dúzia de moços de
cavalariça e mais rapazes, filas de casas de criados forradas de trepadeiras, um
infindável e ordenado conjunto de anexos, extensas vinhas, pastagens verdes,
pomares, plantações de grão. Mais adiante perfilavam-se as instalações da bomba
para o poço artesiano e o grande tanque de cimento onde os filhos do juiz Miller
davam o seu mergulho matinal e encontravam frescura no calor da tarde.

Eram esses os domínios de Buck. Ali tinha nascido e vivido os quatro anos
da sua vida. Era verdade que havia outros cães -tinha de haver outros cães,
numa propriedade tão vasta -, mas esses não contavam.

Iam e vinham, residiam nos populosos canis ou levavam vidas obscuras
nos recessos da casa, tal como Toots, o cãozinho japonês, e Ysabel, a cadela
mexicana sem pêlo, criaturas estranhas que raramente punham o nariz fora das
portas ou os pés no campo e que, protegidas por uma legião de criadas armadas
de vassouras e esfregões, espreitavam pelas janelas a boa vintena de fox terriers
que lhes ladrava terríveis ameaças.

Buck não era cão de casa nem de canil, todo o território lhe pertencia.
Mergulhava no tanque e caçava com os filhos do juiz, acompanhava Mollie e Alice,
as filhas, em longos passeios ao crepúsculo e de manhãzinha, nas noites de
Inverno deitava-se aos pés do juiz, diante da lareira crepitante da biblioteca,
levava os netos do juiz às costas, brincava com eles na relva e guardava-os nas
suas perigosas aventuras até à fonte, no pátio dos estábulos e mais longe ainda,
até junto das cercas dos cavalos e das plantações de grão. Caminhava
imperiosamente entre os terriers e, quanto a Toots e Ysabel, procedia como se
não existissem, porque era rei - rei sobre todas as coisas rastejantes, trepadoras,
voadoras na Casa do Juiz Miller, incluindo as pessoas.

O seu pai, Elmo, um enorme São Bernardo, tinha sido o companheiro
inseparável do juiz e Buck prometia seguir-lhe as pegadas. Não era tão grande só
pesava 63 kg - porque a sua mãe, Shep, era uma cadela pastor-escocês. No


entanto, 63 kg, acrescidos da dignidade que advém de uma vida farta e do
respeito geral, permitiam-lhe manter um porte verdadeiramente real.

Gozava desde cachorro a vida de um aristocrata saciado, era orgulhoso,
mesmo um pouco egoísta, como acontece a certos senhores rurais devido à sua
posição quase insular. Mas soubera preservar-se, não se transformando num
mero cão mimado. A caça e o gosto pelo ar livre tinham-no mantido esbelto e
enrijecido os seus músculos, o amor pela água, próprio da sua raça, agira como
tônico e conservara-lhe a saúde.

Assim era Buck no Outono de 1897, quando a descoberta do KIondike
arrastou homens de todo o mundo para o Norte gelado. Mas Buck não lia os
jornais nem sabia que Manuel, um dos ajudantes de jardineiro, era um
conhecimento indesejável. Manuel tinha um grande defeito: adorava jogar loteria
chinesa. No seu jogo tinha uma grande fraqueza: fé em um sistema e isso
representava ruína certa, porque jogar com um sistema exige dinheiro e o salário
de um ajudante de jardineiro não ultrapassa as necessidades de uma mulher e de
numerosa prole.

O juiz estava numa reunião da Associação de Cultivadores de Uvas Passas
e os rapazes ocupados em organizar um clube desportivo na noite memorável da
traição de Manuel. Ninguém o viu sair com Buck pelo pomar, no que este
imaginava ser um simples passeio. E ninguém, a não ser um homem solitário, os
viu chegar à pequena estação conhecida por College Park. Esse homem
conversou com Manuel e passou-lhe dinheiro para as mãos.

- Podia embrulhar a mercadoria antes de entrega-la - disse o estranho com
rudeza, e Manuel atou uma grossa corda ao pescoço de Buck por baixo da coleira.
-É só rodá-la que o esgana à vontade - anunciou, e o estranho grunhiu
uma pronta aprovação.
Buck aceitara a corda com uma dignidade tranqüila. Embora aquele fosse
um ato inusitado, ele tinha aprendido a confiar nas pessoas da casa e a
reconhecer-lhes uma sabedoria superior à sua. No entanto, quando as pontas da
corda foram colocadas nas mãos do estranho, rosnou ameaçadoramente.
Manifestava o seu descontentamento, convencido, no seu orgulho, de que
exprimir um desejo era mandar. Para sua grande surpresa, a corda estreitou-se no
seu pescoço, sufocando-o. Tomado de cólera, lançou-se sobre o homem mas este
antecipou-se, agarrou-o com firmeza pela garganta e arremessou-o de costas com
um empurrão. Então, a corda apertou sem piedade e Buck lutou com fúria, a
língua pendendo-lhe da boca e o peito largo arquejando em vão. Nunca na sua
vida tinha sido tão maltratado e nunca na sua vida tinha estado tão zangado. Mas
as forças faltaram-lhe, os olhos ficaram vidrados e já tinha perdido os sentidos
quando o trem arrancou e os dois homens o atiraram para dentro de um furgão.

Ao voltar a si, sentia a língua dolorida e compreendeu que estava sendo
levado aos solavancos num veículo desconhecido. O silvo rouco de uma
locomotiva num cruzamento revelou-lhe onde estava. Tinha viajado muitas vezes
com o juiz para não conhecer a sensação de ser transportado num furgão. Abriu
os olhos e neles faiscou a ira incontida de um rei raptado.

O homem quis agarrar-lhe a garganta, mas Buck foi mais rápido: cravou os
dentes na mão que o atacava e não abrandou até que a falta de ar o fez perder de
novo os sentidos.


- Sim, tem ataques - disse o homem, escondendo a mão ferida do
bagageiro, que fora atraído pelo barulho da luta. - O patrão mandou-me levá-lo a
Frisco. Há um médico de cães lá que diz que pode curá-lo.
Mais tarde, num barracão nos fundos de uma taberna do porto de S.
Francisco, o homem lançou-se num eloqüente panegírico de si mesmo.

-Só recebo cinqüenta por isto - resmungou - e não voltaria a fazê-lo por mil,
dinheiro contado.
Tinha a mão embrulhada em um lenço ensangüentado e as calças estavam
rasgadas na perna direita, do joelho ao tornozelo.

-Quanto é que o outro cara recebeu? - quis saber o taberneiro.
- Cem - foi a resposta. - Não aceitou um tostão menos, juro por Deus.
- Isso faz cento e cinqüenta - declarou o taberneiro - e ele os vale, ou eu
sou um idiota.
O raptor desembrulhou o lenço ensangüentado e olhou para a mão
lacerada:

- Se eu não ficar com raiva...
-... será porque nasceu para a forca - troçou o taberneiro, acrescentando: -
Vá, me ajude antes de ir receber.
Aturdido, sofrendo dores insuportáveis na garganta e na língua, semimorto
por estrangulamento, Buck tentou enfrentar os seus algozes. Mas foi derrubado e
esganado repetidas vezes, até eles conseguirem cortar a pesada coleira de latão
que trazia no pescoço. A corda foi então retirada e Buck metido numa espécie de
jaula.

Ali ficou o resto da noite, com a sua cólera e o seu orgulho ferido. Não
conseguia compreender o que lhe acontecia. O que queriam dele aqueles homens
estranhos? Porque o manteriam encolhido naquela grade apertada? Oprimia-o um
pressentimento de desgraça iminente. Diversas vezes durante a noite se levantou
de um salto, ao ouvir abrir-se a porta do barracão, na esperança de ver o juiz ou
pelo menos os rapazes. Mas era apenas o rosto redondo do taberneiro, que o
espreitava à luz doentia de uma vela de sebo e o latido alegre que tremia na
garganta de Buck transformava-se num rosnado selvagem.

Contudo, o taberneiro deixou-o em paz e, pela manhã, quatro homens
entraram e pegaram a grade. Mais algozes, concluiu Buck, vendo que eram
criaturas de aspeto maldoso, andrajosos e desleixados, enfureceu-se e arremeteu
contra eles através das grades. Eles riam e atiçavam-no com paus, que ele de
pronto estraçalhava até que compreendeu não estar senão fazendo o que eles
queriam. Deitou-se então com solenidade e consentiu que a grade fosse levada
para uma carroça. Aí principiou, para si e para a grade na qual estava aprisionado,
uma passagem de mão em mão. Mensageiros especiais encarregaram-se dele: foi
levado em outra carroça; transportado para um vapor juntamente com um sortido
de caixas e pacotes, levado do vapor para um grande armazém ferroviário e,
finalmente, depositado num vagão expresso.

O vagão arrastou-se dois dias e duas noites, atrelado a locomotivas
estridentes e todo esse tempo Buck não comeu nem bebeu. Na sua fúria, tinha
reagido, rosnando, aos primeiros gestos dos mensageiros especiais e eles haviam
retaliado provocando-o. Quando se atirava contra as grades, tremendo e
espumando, os homens riam, escarneciam-no. Rosnavam e ladravam como cães


odiosos, miavam, batiam os braços e grasnavam. A consciência que tinha de que
tudo aquilo era absurdo tornava mais grave ainda o ultraje feito à sua dignidade e
a sua raiva não parava de crescer. Não se importava muito com a fome, mas a
falta de água causava-lhe um sofrimento atroz e levava-o a uma fúria febril.
Sendo, como era, emotivo e muito sensível, os maus tratos tinham-lhe provocado
febre, a qual era agravada pela inflamação da garganta e língua, secas e
inchadas.

Uma coisa o alegrava, já não tinha a corda ao pescoço. Isso dera uma
vantagem injusta aos seus inimigos, mas agora, liberto, iria enfrentá-los. Nunca
mais lhe atariam outra corda. Era ponto acertado. Por dois dias e duas noites não
comeu nem bebeu e durante esses dois dias e noites de tormento acumulou um
fundo de cólera que não augurava nada de bom à primeira pessoa que o
incomodasse. Os seus olhos injetaram-se de sangue e Buck transformou-se num
demônio enfurecido. Estava tão mudado que nem o próprio juiz o reconheceria e
os mensageiros especiais respiraram de alívio quando o descarregaram do trem
em Seattle.

Quatro homens transportaram cautelosamente a grade para um pátio
pequeno, rodeado por muros altos. Um homem entroncado, envergando uma
camisa vermelha que lhe pendia solta à volta do pescoço, saiu e assinou o registro
de entrega. Intuindo que aquele homem seria o seu próximo algoz, Buck atirou-se
selvagemente contra as grades. O homem torceu os lábios num sorriso
ameaçador e foi buscar uma machadinha e um bastão.

- Não vai solta-lo agora? - perguntou o condutor.
- Claro - replicou o homem, principiando a quebrar a grade com a
machadinha.
Houve uma debandada imediata dos quatro carregadores, que,
empoleirados a salvo no topo de um muro, se dispuseram a assistir ao espetáculo.
Buck precipitou-se para a madeira estilhaçada, mordendo, puxando,
lutando com ela. Onde a machadinha caísse no exterior, estava ele no interior,
mostrando os dentes e rosnando, tão furiosamente ansioso por sair como o
homem de camisa vermelha determinado em fazê-lo sair.

-Agora, seu demônio de olhos vermelhos! - exclamou o homem quando
alargou uma abertura suficiente para dar passagem ao corpo de Buck. Ao mesmo
tempo, largou a machadinha e passou o bastão para a mão direita.
Buck era na verdade um demônio de olhos vermelhos ao preparar o salto,
com o pêlo eriçado, a boca espumando e um brilho enlouquecido nos olhos
injetados de sangue. Atirou-se direto ao homem, os seus 63 kg de fúria
multiplicados pelo desespero reprimido de dois dias e noites. Estava em pleno
vôo, as mandíbulas prontas a cerrar-se sobre o seu adversário, quando recebeu
uma pancada que o suspendeu no ar. Os dentes bateram uns contra os outros
com um estalo agonizante, o corpo rodopiou e estatelou-se de costas no solo.
Nunca antes fora atingido por um bastão e não o compreendia. Com um rosnado,
quase grito, pôs-se de novo em pé e lançou-se sobre o homem. E outra vez a
pancada o arremessou ao chão. Agora sabia que era o bastão, mas a sua loucura
não conhecia prudência. Doze vezes avançou e doze vezes o bastão quebrou a
carga e o derrubou.


Após um golpe particularmente violento ergueu-se com dificuldade, muito
aturdido para atacar. Cambaleou, fios de sangue escorriam-lhe do nariz, boca e
orelhas, o seu belo pêlo estava manchado de espuma sanguinolenta. O homem
avançou então e, deliberadamente, vibrou-lhe um golpe brutal no nariz. Toda a dor
que já tinha suportado nada era, comparada com esta extrema agressão. Com um
rugido quase leonino na sua ferocidade, atirou-se de novo ao seu algoz. Mas este,
passando o bastão para a mão esquerda, agarrou-o friamente pelo maxilar
inferior, torcendo para baixo e para trás. Buck descreveu um círculo a meio no ar e
aterrou sobre a cabeça e o peito.

Foi a sua última carga. O homem vibrara o golpe fatal, que retivera
propositadamente durante tanto tempo, e Buck levantou-se para logo tombar, num
desmaio total.

- Não é nada ruim domando cães, não senhor - gritou um dos homens,
entusiasmado, do alto do muro.
- Bichos destes, come-os o Druther todos os dias no café da manhã replicou
o condutor, enquanto subia para a carroça e incitava os cavalos.
Entretanto, Buck recuperava os sentidos, mas não as forças. Estava
estendido no lugar onde caíra e daí observava o homem de camisa vermelha.

- Atende pelo nome de Buck -dizia o homem para si mesmo, citando a
carta com que o taberneiro anunciara o envio da grade e seu conteúdo.
-Bem, Buck, meu rapaz - prosseguiu numa voz jovial -, tivemos o nosso
confrontozinho e o melhor a fazer é pararmos por aqui. Aprendeu qual é o teu
lugar e eu conheço o meu. Seja um bom cão e tudo vai correr bem, sem
problemas. Porte-se mal e eu dou-lhe uma surra das antigas. Entendeu?
Ao falar, acariciava sem medo a cabeça que tão sem piedade surrara e,
embora o seu pêlo se eriçasse sob o toque, Buck suportou as carícias sem
protestar. Quando homem lhe trouxe água, bebeu-a com vontade e, mais tarde,
comeu uma generosa refeição de carne crua, pedaço a pedaço, da mão do
homem.

Fora derrotado (sabia disso), mas não quebrara. Tinha compreendido, de
uma vez por todas, que não podia vencer um homem armado com um bastão.
Tinha aprendido a lição e a recordaria pelo resto da vida. Aquele bastão fora uma
revelação. Era a sua iniciação no universo da lei primitiva e Buck era um bom
aprendiz. A vida adquiria uma nova ferocidade que, sendo enfrentada sem medo,
despertava a astúcia latente na sua natureza. Com o correr dos dias, outros cães
foram chegando, em grades ou na ponta de cordas, uns dóceis, outros rugindo
enfurecidos como ele chegara. E, um após outro, todos passaram pelo domínio do
homem de camisa vermelha. A cada repetição desse espetáculo brutal, a lição
ganhava corpo em Buck: um homem com um bastão era lei, um senhor a quem
não se podia recusar obediência, embora não fosse necessário dedicar-lhe
amizade. Buck nunca cedeu a tal baixeza, apesar de ter visto cães espancados
que bajulavam o homem, abanavam as caudas e lhe lambiam a mão. Viu também
um cão, que não se dispunha a obedecer nem a cativar o homem, ser morto na
luta impiedosa pelo poder.

De vez em quando chegavam estranhos que se dirigiam ao homem de
camisa vermelha com excitação, de modo lisonjeiro, em toda a espécie de tons.
Nas ocasiões em que trocavam dinheiro, os estranhos levavam um ou mais cães


consigo. Vendo que estes nunca regressavam, Buck interrogava-se onde iriam e
sentia um medo crescente do futuro que o deixava contente por não ser escolhido.

No entanto, a sua vez acabou por chegar, na forma de um homenzinho
seco de carnes, de pele curtida, que cuspia um inglês mascavado e soltava
exclamações estranhas e pedantes, que Buck não compreendia.

-Sacredam! - exclamou o homem, quando deu com os olhos em Buck. -
Aquele é que é um cão valente! Quanto custa?

- Trezentos e é de graça - foi a resposta pronta do homem de camisa
vermelha. - E como é o Governo que paga, não tem nenhum susto, hein, Perrault?
Perrault sorriu. Sabendo que a procura descontrolada fizera subir em flecha

o preço dos cães, a soma pedida por um animal com tão boa aparência não lhe
parecia excessiva. O Governo canadense não ficaria perderia e as suas
mensagens não seguiriam mais devagar por isso. Perrault era um conhecedor e
ao olhar para Buck achou que um cão como aquele haveria um em mil.
- Um em dez mil - comentou mentalmente.
Buck viu dinheiro nas mãos dos dois homens e não ficou surpreso quando
ele e Curly, uma terra-nova com bom feitio, foram levados pelo homenzinho de
pele curtida. Não voltaria a ver o homem de camisa vermelha e, quando ficou com
Curly no convés do Narwhal, com Seattle a afastar-se, estava vendo as terras
quentes do Sul pela última vez. Os dois cães foram depois levados para baixo por
Perrault e entregues a um gigante de rosto negro chamado François. Perrault era
canadense francês e moreno, François canadense francês mestiço, duas vezes
mais moreno. Representavam um tipo de homem que era novo para Buck, mas
que o destino viria a pôr diversas vezes no seu caminho e, embora nunca se
tivesse afeiçoado a eles, Buck veio a dedicar-lhes verdadeiro respeito. Depressa
concluiu que Perrault e François eram homens justos, calmos e imparciais na
administração de justiça, demasiado conhecedores dos hábitos dos cães para se
deixarem enganar por eles.

No Narwhal, Buck e Curly juntaram-se a dois outros cães. Um deles era um
grande cão de Spitzbergen, branco como a neve, que fora trazido pelo capitão de
um baleeiro e acompanhara uma expedição geográfica às Barrens. Era amigável,
mas traiçoeiro, capaz de sorrir enquanto lograva os companheiros, o que fez logo
na primeira refeição, roubando a comida de Buck. Este saltou para castigá-lo, mas

o chicote de François antecipou-se, estalando sobre o culpado, e Buck teve de se
contentar com recuperar o osso. Concluiu que François procedera com justiça e
assim principiou a ascensão do mestiço na sua consideração.
O outro cão não fazia, nem aceitava, qualquer tentativa de aproximação,
como também não fazia qualquer esforço para roubar os recém-chegados. Era um
bicho sombrio e taciturno, que logo mostrou a Curly que não desejava senão que

o deixassem em paz e que muito se aborreceria caso fosse incomodado.
Chamava-se Dave, comia e dormia, bocejava de quando em vez e não
demonstrava interesse por coisa alguma. Mesmo quando, ao atravessar o estreito
da Rainha Carlota, o Narwhal rolou, balançou, cabriolou como possesso, enquanto
Buck e Curly, presos de uma excitação crescente, ficavam meio loucos de medo
Dave apenas levantou a cabeça, enfastiado, lançou-lhes um olhar indiferente,
bocejou e adormeceu de novo.

Dia e noite o navio vibrava à infatigável cadência da hélice e, embora cada
dia fosse muito semelhante ao anterior, era evidente para Buck que o clima ia
esfriando sem cessar. Por fim, uma manhã a hélice ficou silenciosa e uma
atmosfera de excitação perpassou pelo Narwhal. Ele sentiu-a, tal como os outros
cães, e soube que se avizinhava uma mudança. François colocou-lhes as trelas e
levou-os para o convés. Ao primeiro passo sobre a superfície fria, as patas de
Buck afundaram-se numa coisa branca e macia, muito semelhante a lama. Buck
recuou, rosnando. Havia mais daquela coisa branca caindo do ar. Sacudiu-se,
mas a coisa voltou a cair sobre o seu corpo, Cheirou-a, com curiosidade, depois
recolheu um bocadinho com a língua. Aquilo mordia como o fogo e num instante
desapareceu. Ficou perturbado. Provou de novo, com os mesmos resultados. As
pessoas à sua volta riam ruidosamente e ele sentiu vergonha sem saber por quê.
Era a sua primeira neve.

Bastão e presas

Buck viveu como um pesadelo o primeiro dia na praia de Dyea. As horas
sucediam-se prenhes de choque e surpresa. Fora arrancado do cerne da
civilização para ser lançado no mais primitivo dos mundos. Esta já não era uma
vida de lazer, passada preguiçosamente e entediando-se sob um sol risonho. Aqui
não havia paz, nem descanso, nem um só momento de tranqüilidade. Tudo era
ação e confusão, cada instante punha a vida e a integridade em risco. Era
imperioso permanecer alerta, porque homens ou cães, aqui, em nada se
assemelhavam a homens ou cães das cidades. Eram selvagens, todos eles e não
conheciam lei que não fosse a do bastão e das presas.

Nunca vira um cão lutar como estas criaturas ferozes lutavam e a sua
primeira experiência serviu-lhe de inesquecível lição. Em verdade, tratou-se de
uma experiência indireta, caso contrário ele não teria vivido para aproveitá-la. Foi
Curly a vítima. Estavam parados junto ao armazém e ela, com a sua amigável
maneira de ser, procurou entabular relações com um husky, que, sendo embora
do tamanho de um lobo adulto, não atingia sequer metade do volume dela. Não
houve qualquer aviso: apenas um salto fulminante, um bater metálico de dentes,
um recuo igualmente veloz e o focinho de Curly estava rasgado do olho à
mandíbula.

Era o modo de lutar dos lobos, ferindo e recuando, mas havia mais: trinta
ou quarenta huskies correram para o local, fechando os contendores num círculo
silencioso e atento. Buck não compreendia aquele silêncio tenso, o modo
impaciente como lambiam os beiços. Curly carregou sobre o seu antagonista, que
mais uma vez a feriu e saltou para o lado. O ataque seguinte foi rechaçado por ele
com o peito, de forma a fazê-la cair. Não mais se levantou. Era o que os outros
huskies esperavam. Cerraram o círculo, rosnando e uivando, e ela foi submergida,
latindo de agonia, pela massa hirsuta de corpos.

Foi tudo tão repentino e inesperado que Buck ficou paralisado de surpresa.
Viu a língua escarlate de Spitz mover-se em ar de riso e viu François, brandindo
um machado, saltar para o emaranhado de cães. Três homens com bastões foram
em seu auxílio. Foram rápidos: dois minutos após a queda de Curly, o último dos
seus antagonistas era afastado à bastonada. Mas ela estava estendida, flácida e


sem vida, o corpo despedaçado sobre a neve espezinhada e ensangüentada,
enquanto o mestiço, de pé diante dela, praguejava horrivelmente. Buck iria reviver
aquela cena em sonhos pelo resto da vida. Portanto, era assim. Não havia regras.
Cair era morrer. Pois bem, ele trataria de nunca cair. Spitz voltou a deslizar a
língua, rindo, e, a partir desse momento, Buck votou-lhe o mais profundo e amargo
dos ódios.

Ainda não tinha se recuperado do choque causado pela trágica morte de
Curly, já um novo choque o esperava. François fixava um conjunto de correias e
fivelas à sua volta. Eram arreios, semelhantes aos que ele via colocar nos cavalos,
em casa. E, tal como os cavalos trabalhavam, era agora a sua vez de trabalhar,
puxando François num trenó em direção à floresta que bordejava o vale e
regressando com uma carga de lenha. Embora se sentisse profundamente ferido
na sua dignidade ao ver-se transformado em animal de tiro, era muito sensato
para se rebelar. Empenhou-se em fazer o seu melhor, apesar de tudo lhe parecer
tão novo e estranho. François era firme, exigindo obediência imediata e obtendo-a
com o chicote, por seu lado Dave, que era um experiente cão de varais, mordia-
lhe os quartos traseiros sempre que ele se enganava. Spitz, não menos
experimentado, ocupava o posto de chefe, e, embora nem sempre conseguisse
chegar a Buck com os dentes, ora rosnava uma veemente reprovação ora atirava
judiciosamente o seu peso sobre os tirantes, de modo a empurrá-lo na direção
certa. Buck aprendia com facilidade e, sob o estímulo combinado da instrução de
François e dos seus dois companheiros, fez progressos notáveis. Antes do fim do
percurso já sabia o bastante para parar ao som de "Ho", avançar ao som de "Vai",
seguir um trajeto largo nas curvas e evitar o cão atrelado atrás de si quando o
trenó, carregado, acelerava sobre eles nas descidas.

-Três cães muito bons - disse François a Perrault.
-Aquele Buck puxa bem como touro. Vou ensiná-lo enquanto o diabo
esfrega um olho.
Perrault, que tinha pressa de se pôr a caminho com as suas mensagens,
voltou à tarde com dois outros cães. Chamavam-se Billee e Joe, eram irmãos e
verdadeiros huskies. Contudo, e apesar de filhos da mesma mãe, formavam um
par de opostos. Billee tinha, como único defeito, um feitio excessivamente bom, ao
passo que Joe era azedo e introvertido, com uma rosnado perpétuo na boca e um
olhar perverso. Buck recebeu-os amistosamente, Dave ignorou-os e Spitz ocupou-
se em surrar primeiro um, depois o outro. Billee abanou a cauda
apaziguadoramente, voltou-se para fugir ao ver que o seu gesto era inútil, e ganiu
(ainda apaziguadoramente) quando os dentes aguçados do chefe se cravaram no
seu flanco. Mas, quanto a Joe, por muito que Spitz girasse à sua volta, ele
enfrentou-o. Rodando sobre si mesmo, o pêlo eriçado, as orelhas recuadas, os
lábios repuxados, mostrando os dentes e rosnando, estalando as mandíbulas
numa veloz sucessão de dentadas, um brilho diabólico nos olhos, era a
encarnação beligerante do medo. Tão terrível era o seu aspeto que Spitz se viu
obrigado a renunciar a discipliná-lo. Para disfarçar o seu vexame, voltou-se contra

o inofensivo e lastimoso Billee e expulsou-o até aos limites do acampamento.
Ao anoitecer, Perrault arranjou outro cão, um velho husky, comprido, magro
e lúgubre, com o focinho marcado pelas cicatrizes de inúmeras batalhas e um
único olho, onde brilhava uma intrepidez que impunha respeito. Chamava-se


Solleks, o Zangado. Tal como Dave, não pedia, não dava, não esperava nada e
quando avançou, lenta e deliberadamente, pelo meio deles, até Spitz lhe respeitou
a solidão. Tinha uma peculiaridade que Buck teve o azar de descobrir: não
gostava que se aproximassem dele pelo seu lado cego, Buck foi o culpado
involuntário dessa ofensa e tomou consciência da sua indiscrição quando Solleks
se virou contra ele e lhe retalhou a espádua até ao osso. Desde então, Buck
cuidou de evitar o seu lado cego e nesta camaradagem não voltou a haver
qualquer conflito. A única aspiração aparente de Solleks, tal como de Dave, era
ser deixado em paz; contudo, como Buck viria a descobrir, ambos alimentavam
uma outra ambição mais vital.

Essa noite veio colocar a Buck a grave questão de dormir. A tenda,
iluminada por uma candeia, brilhava convidativa na planura branca, quando ele,
muito naturalmente, lá entrou, tanto Perrault como François o bombardearam com
uma chuva de insultos e utensílios de cozinha, até que ele se recuperou da sua
consternação e fugiu, envergonhado, para a friagem exterior. Soprava um vento
gelado que o atravessava como agulhas e cortava com particular crueldade a sua
espádua ferida. Estendeu-se na neve e tentou dormir, mas depressa o gelo o fez
levantar, tremendo. Infeliz e desconsolado, perambulou por entre as muitas
tendas, apenas para concluir que cada lugar era tão frio como o anterior. Aqui e ali
era ameaçado por cães selvagens, mas, porque estava aprendendo depressa,
Buck eriçava o pêlo do pescoço e rosnava e eles deixavam-no seguir o seu
caminho sem o molestar.

Por fim, teve uma idéia. Regressaria e veria como os seus companheiros
de equipagem estavam de acertando. Para sua grande surpresa, verificou que
todos haviam desaparecido. Mais uma vez perambulou pelo grande
acampamento, procurando-os, e mais uma vez regressou. Estariam na tenda?
Não, isso não podia ser, se não ele não teria sido expulso. Mas, então, onde
poderiam estar? Com a cauda caída e o corpo tremendo, totalmente
desamparado, contornou a tenda sem saber para onde ir. De súbito, a neve cedeu
sob as suas patas e ele afundou. Em baixo, algo se mexia. Buck recuou de salto,
rosnando, com o pêlo eriçado, temeroso do invisível e do desconhecido, mas um
latido amigável acalmou-o e ele adiantou-se para investigar. Um bafo de ar quente
atingiu-lhe as narinas e lá em baixo, enrolado numa bola sob a neve, estava Billee.
Latiu apaziguadoramente, meneou-se e enroscou-se, para demonstrar as suas
boas intenções - e acabou por se atrever a lamber o focinho de Buck com a sua
língua quente e úmida, em penhor de paz.

Outra lição. Com que então, era assim que se fazia? Buck escolheu
confiadamente um lugar e, com grande espalhafato e desperdício de esforço,
tratou de cavar uma cova para si. Num abrir e fechar de olhos, o espaço fechado
encheu-se do calor do seu corpo e ele adormeceu. O dia tinha sido longo e árduo
e ele dormiu profunda e confortavelmente, apesar de rosnar, ladrar e lutar, com
pesadelos.

Mas não abriu os olhos até ser acordado pelos ruídos do acampamento que
despertava. A princípio, não soube onde estava. Tinha nevado durante a noite e
ele estava inteiramente soterrado. As paredes de neve comprimiam-no e um
súbito terror o tomou: o medo do animal selvagem na armadilha. Era um penhor
recebido das vidas dos seus antepassados, sendo um cão civilizado,


indevidamente civilizado, não tinha qualquer experiência própria de armadilhas e
não podia receá-las por si mesmo. O instinto contraiu-lhe os músculos em
espasmos, os pêlos do pescoço e espáduas puseram-se em pé e, rosnando com
ferocidade, Buck lançou-se para cima, para a luz crua do dia, numa nuvem
flamejante de neve. Mal tocara com os pés no chão, viu o acampamento estender-
se diante de si e recordou onde estava e tudo o que sucedera, desde que saíra
para um passeio com Manuel até à cova que cavara para si próprio na noite
anterior.

Um brado de François saudou a sua aparição:

- O que é que eu disse? - gritou o condutor a Perrault. -Aquele Buck
aprende depressa como um raio!
Perrault acenou gravemente. Consciente da sua responsabilidade de
correio do Governo, transportando mensagens importantes, procurava sempre os
melhores cães e a posse de Buck dava-lhe particular satisfação.

Decorrida uma hora, a equipagem tinha sido acrescida de três novos
huskies, num total de nove cães, e, menos de um quarto de hora depois, estavam
atrelados ao trenó e a caminho, em direção a Dyea Cafion. Buck ficou contente
por partir e concluiu que, embora árduo, o trabalho não era desprezível. O
entusiasmo que animou a equipagem surpreendeu-o e contagiou-o. Mas mais
surpreendente ainda foi a transformação operada em Dave e Solleks: eram novos
cães, inteiramente mudados pelos arreios.

Passividade e indiferença haviam desaparecido, deixando-os ativos e
interessados, empenhando-se em que o trabalho corresse bem e irritando-se
ferozmente contra tudo o que pudesse confundi-los ou atrasar. A labuta no trilho
parecia a expressão suprema do seu ser, aquilo que dava sentido às suas vidas e

o seu único verdadeiro prazer.
A equipagem era atrelada em fila indiana: Dave entre os varais, Buck à sua
frente, Solleks em seguida e assim por diante, até ao chefe, posto que pertencia a
Spitz.

Buck fora atrelado entre Dave e Solleks de propósito, para que o
ensinassem. Era bom aluno, mas eles eram igualmente bons professores, nunca
lhe permitindo que incorresse em erro por muito tempo e reforçando as suas lições
com os dentes afiados. Dave era justo e muito sábio. Nunca mordia sem razão e
nunca deixava de morder quando essa necessidade se impunha. Como o chicote
de François apoiava aquelas iniciativas, Buck concluiu que era preferível corrigir-
se a retaliar. Quando, durante uma breve parada, se emaranhou nos tirantes,
retardando a partida, tanto Dave como Solleks se viraram contra ele e lhe
administraram um sólido corretivo. O emaranhado daí resultante foi ainda pior,
mas a partir de então Buck tratou de manter os tirantes direitos e, ainda o dia não
terminara, já ele aprendera tão bem o seu trabalho que os seus companheiros
deixaram de importuná-lo. O chicote de François estalava com menos freqüência
e Perrault chegou a honrá-lo, levantando-lhe as patas e examinando-as com
cuidado.

Foi um dia de percurso árduo, subindo o Cânion atravessando Sheep
Camp, passando as Scales e a zona de floresta, ao longo de glaciares e fendas de
neve com centenas de metros de profundidade e contornando a grande bacia do
Chilcoot, onde águas salgadas e doces se tocam, formando a proibitiva fronteira


do solitário e triste Norte. Fizeram em boa velocidade o percurso pela cadeia de
lagos que ocupam as crateras de vulcões extintos e, noite dentro, chegaram ao
gigantesco acampamento no topo do lago Bernet, onde milhares de
pesquisadores de ouro construíam barcos, prevenindo o degelo da Primavera.
Buck fez a sua cova na neve e dormiu o sono dos justos exaustos, mas muito
cedo ainda, na escuridão gelada, viu-se acordado e atrelado ao trenó com os seus
companheiros.

Nesse dia fizeram sessenta e quatro quilômetros, pois a pista estava
aberta, mas nos dias seguintes tiveram de abrir o seu próprio trilho, esgotando-se
na dureza do trabalho e avançando mais devagar. Perrault viajava à frente do
grupo, calcando a neve com sapatos apropriados, de modo a facilitar-lhes o
caminho. Raras vezes trocava de lugar com François, que, se encarregava de
conduzir o trenó. Perrault tinha pressa e orgulhava-se do seu conhecimento do
gelo, indispensável a quem caminhava sobre aquela finíssima camada de gelo de
Outono que desaparecia nos pontos onde a água corria em rápidos.

Dia após dia, por dias sem fim, Buck labutava ao longo dos trilhos.
Levantavam o acampamento ainda na escuridão e a primeira luz do dia
encontrava-os a caminho, com alguns quilômetros já feitos atrás de si. E
acampavam sempre noite fechada, comendo o seu pedaço de peixe e
enroscando-se para dormir na neve. Buck andava faminto. A libra e meia de
salmão seco que constituía a sua ração diária parecia desaparecer sem deixar
rastro. Nunca comia o bastante e sofria contínuas ânsias de fome. Contudo, os
outros cães, mais leves e nascidos naquela vida, recebiam apenas uma libra de
peixe e mantinham-se em boa forma.

Depressa abandonou os requintes que trouxera da sua antiga vida.
Gostando de tomar o paladar à comida, descobriu que os seus companheiros, que
terminavam mais cedo, lhe roubavam a sua refeição inacabada. Não havia como
defendê-la. Enquanto afastava dois ou três cães, ela desaparecia pela goela dos
outros. O único remédio era passar a comer tão depressa como eles e tão
imperiosa era a fome que ele próprio não estava acima da tentação de tirar o que
não lhe pertencia. Via e aprendia. Viu Pike, um dos novos cães, dissimulado e
gatuno, furtar uma fatia de bacon nas costas de Perrault, copiou a façanha no dia
seguinte, levando todo o naco. Ergueu-se um grande tumulto, mas Buck passou
insuspeitado e Dub, um pobre desajeitado que estava sempre sendo apanhado,
pagou pelo seu crime.

O seu primeiro roubo definiu Buck como apto a sobreviver no ambiente
hostil das terras do Norte. Foi prova da sua adaptabilidade, da capacidade de se
ajustar a condições diferentes, cuja falta acarretaria morte rápida e terrível.
Representou também a decadência da sua natureza moral, a qual se afigurava vã,
mera desvantagem na luta impiedosa pela sobrevivência. No Sul, sob a lei do
amor e do companheirismo, podia-se respeitar propriedade e sentimentos; mas no
Norte, sob a lei do bastão e das presas, quem se prendesse com tais
considerações não passava de um idiota e, tanto quanto Buck podia observar, não
prosperaria.

Não que Buck raciocinasse nesses termos. Estava apto, era tudo e
acomodava-se ao seu novo modo de vida sem pensar. Outrora nunca evitava uma
luta, quaisquer que fossem as probabilidades. Mas o bastão do homem de camisa


vermelha tinha-lhe incutido um código mais primitivo e fundamental. Civilizado,
Buck poderia dar a vida por uma questão de ordem moral, por exemplo a defesa
da chibata do juiz Miller; agora, aferindo-se por valores mais primordiais, fugia de
qualquer consideração moral, de modo a assegurar a sobrevivência, Não roubava
por prazer, mas para acalmar o seu estômago faminto. Não roubava abertamente,
mas às escondidas, com astúcia, por respeito ao bastão e às presas. Em suma,
fazia o que tinha de ser feito e escolhia sempre o modo mais fácil de fazê-lo.

A sua evolução (ou regressão) foi rápida. Os seus músculos ficaram duros
como pedra e ele tornou-se insensível a toda a dor vulgar. Alcançou uma extrema
economia, tanto interior como exterior. Comia tudo, por muito repugnante ou
indigesto que fosse, e, uma vez engolido, os sucos do seu estômago extraíam a
mais ínfima partícula nutriente do alimento e o seu sangue levava-a aos pontos
mais distantes do seu corpo, transformando-a no mais firme e robusto dos tecidos.
Vista e faro ganharam uma acuidade notável e a sua audição desenvolveu-se a
ponto de, mesmo no seu sono, ouvir o mais fraco dos sons e distinguir se era
portador de paz ou perigo. Aprendeu a partir com os dentes o gelo que se
acumulava entre os dedos e, quando sentia sede e encontrava a poça de água
coberta por uma camada espessa de gelo, quebrava-o, empinando-se e batendo-
lhe com as patas da frente bem hirtas. A sua característica mais notável era a
capacidade de farejar o vento e prevê-lo com uma noite de antecedência, Por
muito parado que estivesse o ar quando ele cavava o seu ninho à beira de uma
árvore ou de um talude, o vento que viesse a soprar encontrava-o invariavelmente
protegido, aconchegado e confortável.

Não aprendia só por experiência, mas velhos instintos mortos há muito
renasciam nele. As gerações domésticas esbatiam-se. De um modo vago, ele
recordava a juventude da espécie, o tempo em que os cães selvagens vagueavam
em matilha pelas florestas primitivas e caçavam para comer. Não lhe requeria
qualquer esforço lutar cortando e rasgando com a dentada rápida do lobo. Assim
haviam lutado os seus remotos antepassados. Eram eles que intensificavam a
antiga forma de vida dentro dele e os velhos hábitos que tinham ficado marcados
na hereditariedade da espécie eram os seus. Voltavam à superfície sem qualquer
esforço, como se sempre lhe tivessem pertencido. E quando, nas noites ainda
frias, ele erguia o focinho para uma estrela e uivava longamente, como um lobo,
eram os seus antepassados, mortos e feitos em pó, que apontavam o focinho às
estrelas e uivavam através dos séculos e através dele. E os seus ritmos eram os
deles, ritmos que davam voz aos seus lamentos e àquilo que eles sentiam perante

o silêncio, o frio e a escuridão.
Assim, ilustrando quanto de fortuito constitui a vida, a antiga canção elevou-
se nele e ele retornou aos seus, e retornou porque os homens tinham descoberto
um metal amarelo no Norte e porque Manuel era um ajudante de jardineiro cujo
salário não ultrapassava as necessidades da mulher e dos filhos.

O despertar da fera

A fera primordial despertara em Buck e crescia sem cessar nas condições
extremas da vida nos trilhos. Mas esse crescimento permanecia secreto. Na sua


recém-adquirida astúcia, Buck encontrava aprumo e autodomínio. A adaptação à
nova vida não lhe consentia que agisse livremente - e não só não procurava lutas
como as evitava sempre que possível. As suas atitudes eram pautadas por uma
certa circunspeção. Não se entregava a atos precipitados ou irrefletidos e, no ódio
amargo que o separava de Spitz, não mostrava impaciência, fugia a qualquer
atitude ofensiva.

Por seu lado, talvez porque adivinhasse em Buck um rival perigoso, Spitz
nunca perdia uma oportunidade de lhe mostrar os dentes. Chegava a dar-se a
incômodos para maltrata-lo, esforçando-se por precipitar a luta de morte que sabia
inevitável entre ambos e que só um acidente inesperado impediu que acontecesse
pouco depois do início da viagem. No fim desse dia tinham montado um
acampamento desabrigado e miserável na margem do lago Lê Barge. Um nevão,

o vento, cortante como faca ao rubro, e a escuridão tinham-nos obrigado a tatear
em busca de um lugar para acampar. Dificilmente poderiam ter escolhido pior. Nas
suas costas erguia-se uma escarpa vertical e Perrault e François viram-se
forçados a acender a fogueira e estender o equipamento sobre a camada de gelo
do próprio lago. Tinham abandonado a tenda em Dyea para aliviar a bagagem.
Uns poucos paus de madeira à deriva arderam num fogo que derreteu o gelo e os
deixou ceando às escuras.
Buck fez o seu ninho na base da escarpa protetora. Ficou de tal forma
quente e aconchegado que se sentiu relutante em sair quando François distribuiu

o peixe, previamente descongelado no fogo. Quando acabou de comer e
regressou, encontrou o ninho ocupado. Um rosnado de advertência informou-o de
que o transgressor era Spitz. Até esse momento, Buck tinha evitado confrontos
com o seu inimigo, mas aquilo era demais. A fera dentro de si rugiu. Saltou sobre
Spitz com uma fúria que surpreendeu ambos, principalmente o chefe, cuja
experiência com Buck servira apenas para convence-lo de que o seu rival era um
cão extraordinariamente tímido, que apenas se mantinha graças ao seu grande
tamanho e peso.
A surpresa tomou também François, quando viu os dois cães irromperem
engalfinhados do ninho destruído e adivinhou a causa do problema.

-A-a-ah! -bradou a Buck. -Dê-lhe forte, vamos! Chega-lhe, a esse porco
gatuno!
A Spitz não faltava vontade. Soltava latidos de pura raiva e impaciência
enquanto avançava e recuava em círculos, procurando um ponto vulnerável. Buck
não se mostrava menos ansioso, nem menos prudente, avançando e recuando
num movimento semelhante, em busca de uma vantagem. Foi então que o
inesperado sucedeu, esboçando a sua batalha pela supremacia com vista a um
futuro ainda distante, afastado por muitos e exaustos quilômetros de trilho e
trabalho.

Uma imprecação de Perrault, o impacto de um bastão sobre o osso e um
estridente ganido de dor anunciaram o rebentar do pandemônio. O acampamento
fora subitamente invadido por esquivos vultos peludos: huskies esfaimados, quatro
ou cinco dúzias deles, que haviam farejado a sua presença. Vindos de alguma
aldeia índia empobrecida, tinham-se esgueirado para dentro do acampamento
enquanto Buck e Spitz lutavam e, quando os dois homens saltaram para o meio
deles, armados de bastões, mostraram os dentes e enfrentaram-nos,


enlouquecidos como estavam pelo cheiro da comida. Perrault encontrou um deles
com a cabeça enfiada no caixote das provisões. O bastão caiu pesadamente
sobre as costelas e o caixote tombou no chão. No mesmo instante, uma dúzia de
feras famintas disputava o pão e o bacon. Os bastões caíam sobre os animais
indefesos, que latiam e uivavam sob a chuva de golpes, mas não deixaram de
lutar loucamente até a última côdea ter sido devorada.

Nesse meio tempo, os atônitos cães da equipagem tinham saltado dos seus
ninhos apenas para serem atacados pelos ferozes invasores. Buck nunca vira
cães como aqueles. Parecia que os ossos lhes furariam a pele, Eram meros
esqueletos, envoltos em peles pendentes, com olhos chamejantes e presas
espumantes. A loucura da fome tornava-os aterrorizadores e irresistíveis. Não
havia forma de enfrenta-los. À primeira investida os cães da equipagem foram
rechaçados contra a escarpa. Buck viu-se a contas com três huskies e num
momento ficou com cabeça e espáduas retalhadas. O barulho era ensurdecedor.
Billee gania como de costume, Dave e Solleks, escorrendo sangue de inúmeras
feridas, lutavam lado a lado com bravura, Joe mordia como um demônio. Agarrou
a perna de um huskie entre os dentes e cerrou-os até esmagar o osso. Pike, o
manhoso, saltou sobre o animal ferido e quebrou-lhe o pescoço num clarão de
caninos afiados. Buck mordeu a garganta de um adversário, sentiu o sangue
correr da jugular rasgada e salpicá-lo. O sabor do sangue quente incitou-o a uma
maior ferocidade. Lançou-se sobre outro adversário e, no mesmo momento, sentiu
dentes cravando-se na sua própria garganta. Era Spitz, que atacava
traiçoeiramente pelo flanco.

Perrault e François, vencida a batalha do seu lado do acampamento,
corriam para salvar os seus cães. A vaga selvagem de bestas famintas recuava à
frente dos homens e Buck libertou-se. Mas foi só um momento. Os dois homens
foram obrigados a voltar atrás para salvar as provisões, e os huskies reataram o
ataque à equipagem. Billee, com a coragem do desespero, rompeu através do
círculo feroz e fugiu pelo gelo. Me e Dub correram no seu encalço e o resto da
equipagem os seguiu. Ao preparar-se para saltar atrás deles, Buck viu pelo canto
do olho que Spitz se precipitava para ele com a intenção manifesta de derruba-lo.
Uma vez caído, e sob a massa de huskies, estaria perdido. Assim, agüentou a
carga do seu rival e juntou-se ao grupo que fugia pelo lago.

Mais tarde, os nove cães da equipagem juntaram-se e procuraram abrigo
na floresta. Embora não tivessem sido perseguidos, estavam em triste estado.
Não havia um único que não ostentasse quatro ou cinco feridas, algumas delas
graves. Dub tinha ferimentos sérios numa perna traseira, Dolly, o último husky a
juntar-se à equipagem em Dyea, tinha a garganta rasgada, Joe perdera um olho e,
quanto a Billee, o de bom feitio, ganiu e choramingou a noite toda com uma orelha
feita em tiras.

Ao nascer do dia, coxearam com dificuldade de regresso ao acampamento,
de onde os assaltantes já tinham partido e onde os dois homens estavam de muito
mau humor. Uma boa metade da sua reserva de provisões havia desaparecido.
Os huskies tinham comido até pedaços dos arreios e das coberturas de lona. De
fato, nada, por muito remotamente comestível que fosse, lhes escapara. Tinham
comido um dos pares de mocassins de pele de alce de Perrault, grandes pedaços
das correias de couro e até meio metro da ponta do chicote de François. Este


interrompeu uma lastimosa contemplação desse objeto para cuidar dos seus cães
feridos.

-Ah, meus amigos - dizia com suavidade -, talvez ficaram com raiva dessa
quantidade de mordidas. Talvez ficaram todos raivoso, raios! Que é que acha,
Perrault?

O correio abanou a cabeça, hesitante. Com seiscentos e quarenta
quilômetros de pista por percorrer até chegar a Dawson, uma epidemia de raiva
entre os seus cães era impensável. Ao fim de duas horas de imprecações e
esforços, os arreios estavam reparados e a equipagem, ferida e hirta, a caminho,
lutando penosamente contra o trilho mais difícil que até aí tinham encontrado, por
sinal o mais difícil de todo o percurso até Dawson.

O rio Thirty Mile corria aberto. As suas águas violentas desafiavam o frio e
só nos pontos de refluxo e nas zonas calmas se podia encontrar alguma placa de
gelo. Foram necessários seis dias de trabalho exaustivo para vencer aqueles
terríveis cinqüenta quilômetros. E bem terríveis eram, cada metro coberto com
risco de vida para homens e cães. Por doze vezes o gelo estalou sob os pés de
Perrault, que caminhava à frente e apenas se salvou graças à longa vara que
transportava de modo a ficar atravessada sobre o buraco aberto pelo seu corpo.
Havia uma vaga de frio, os termômetros registravam cinqüenta graus negativos, e,
cada vez que Perrault caía, era necessário acender uma fogueira que lhe secasse
as roupas ou ele morreria gelado.

Nada o detinha. Era justamente por isso que ele havia sido escolhido para
correio do Governo. Corria todo o tipo de riscos, expondo resolutamente a sua
pequena cara chupada ao frio e lutando desde a primeira luz pálida da alvorada
até ser noite fechada. Contornava as margens sombrias sobre um gelo fino que
dobrava e estalava sob os seus pés e onde se não atreviam a parar. Uma vez, o
gelo quebrou sob o trenó, engolindo Dave e Buck, que estavam semi-gelados e
pouco menos que afogados quando foram por fim içados. Como de costume, foi
preciso acender uma fogueira para salva-los. O gelo tinha solidificado em agulhas
no seu pêlo, e os dois homens fizeram-nos correr à roda da fogueira, transpirando
e degelando, tão perto do fogo que ficaram chamuscados.

Em outra ocasião, foi Spitz a cair pelo gelo, arrastando consigo toda a
equipagem até Buck, que se firmou com todas as suas forças as patas da frente
deslizando no rebordo escorregadio, enquanto estilhaços de gelo saltavam por
toda parte. Atrás dele, Dave, igualmente fincado no chão e, por fim, François,
cujos tendões estalavam no esforço de segurar o trenó.

Mais uma vez, a fenda de gelo alargava em todas as direções. A única
salvação era subir o penhasco. Perrault escalou-o, num milagre pelo qual François
rezava, e, com uma corda feita de todas as correias, tiras de couro e pedaços de
arreio que puderam encontrar, içaram os cães, um a um, até o alto. François subiu
em último, a seguir ao trenó e à carga. Depois, foi a busca de um lugar por onde
descer, acabando por o fazer de novo com auxílio da corda e a noite encontrou-os
de volta ao rio, uns simples quatrocentos metros percorridos num dia inteiro de
trabalho.

Quando alcançaram Hootalinqua e acharam bom gelo, Buck estava
arrasado. O resto da equipagem não estava melhor, mas Perrault, que queria
recuperar o tempo perdido, fazia-os trabalhar de sol a sol. No primeiro dia,


percorreram cinqüenta e cinco quilômetros até Big Salmon; no dia seguinte, mais
cinquenta e cinco quilômetros até Little Salmon e, no terceiro dia, sessenta e cinco
quilômetros que os levaram às proximidades de Five Fingers.

As patas de Buck não eram tão rijas e compactas como as dos huskies.
Haviam amolecido ao longo das muitas gerações desde o dia em que algum
homem das cavernas, ou pescador primitivo, domesticara o seu último
antepassado selvagem. Coxeava o dia inteiro numa agonia e, uma vez o
acampamento montado, tombava como morto. Embora estivesse esfomeado, não
se mexia para ir buscar a sua ração de peixe, que tinha de lhe ser levada por
François. Todas as noites, depois de jantar, o condutor passava meia hora
massageando-lhe as patas e acabou por sacrificar o couro dos seus próprios
mocassins para fabricar quatro mocassins para o cão. Isso revelou-se um grande
alívio e Buck fez com que mesmo a cara curtida de Perrault se torcesse num
sorriso quando, uma manhã em que François se esqueceu de lhe pôr os
mocassins, se deitou de costas, as quatro patas acenando no ar, e se recusou a
mexer sem estar calçado. Com o tempo, as suas patas endureceram e os
mocassins gastos foram jogados fora.

Estavam aparelhando, uma manhã bem cedo em Pelly, quando DoIly, cuja
presença fora sempre discreta, apareceu subitamente com raiva. Soltou um uivo,
longo e desolado, que deixou todos os cães arrepiados de medo, e saltou sobre
Buck. Este nunca vira um cão raivoso e não tinha nenhuma razão especial para
recear a raiva, contudo, sentiu o horror que ali havia e fugiu, em pânico. Corria
para diante o mais depressa que podia, com Dolly arquejando e espumando atrás
de si. Nem ela conseguia alcança-lo, tal era o terror dele, nem ele conseguia
adiantar-se, tal era a loucura dela. Fugiu pela faixa de bosque da ilha, voou até à
parte baixa, saltou pelas placas de gelo que cobriam um canal secundário até
outra ilha, alcançou uma terceira ilha, regressou ao rio principal e, desesperado,
principiou a atravessá-lo. E sempre, embora não olhasse para trás, a ouvia rosnar
sobre os seus passos. François chamava-o a uns quatrocentos metros de
distância e ele retrocedeu, sempre com um só corpo de vantagem, respirando com
dificuldade e concentrando toda a sua esperança em que François o salvaria. O
condutor tinha o machado pronto na mão e, quando Buck passou por ele como
uma seta, a lâmina abateu-se sobre a cabeça raivosa de Dolly.

Buck cambaleou até ao trenó, exausto, sorvendo o ar em grandes golfadas,
indefeso. Era a oportunidade de Spitz. Atirou-se a Buck e por duas vezes
mergulhou os dentes no seu inimigo, sem encontrar resistência, rasgando a carne
até ao osso. Nesse momento o chicote de François caiu sobre ele e Buck teve a
satisfação de ver o seu rival ser açoitado como nenhum cão da equipagem o fora
até então.

- Um diabo, esse Spitz -declarou Perrault -, um dia destes dá cabo do
Buck.
-Buck vale dois diabos - replicou François -, vejo-o todo o tempo e sei.
Ouça, um destes dias vai ficar danado como um raio e então mastiga esse Spitz
inteiro e cospe-o picado na neve. Pode crer, eu sei.
A partir desse momento foi guerra declarada entre os dois cães. Spitz,
como chefe de equipagem oficial, sentia a sua supremacia ameaçada por aquele
estranho cão do Sul. E bem estranho lhe parecia Buck porque, de todos os cães


vindos do Sul que ele tinha conhecido, nenhum mostrara ser de qualquer
préstimo, quer no acampamento quer no trilho. Eram muito fracos, morriam com o
trabalho, o frio e a fome. Buck era a exceção. Só ele tinha sabido sobreviver e
prosperar, equiparando-se ao husky em força, selvajaria e astúcia. Era também
um cão dominador, perigoso, porque o bastão do homem de camisa vermelha
tornara o seu desejo de domínio isento de todo o impulso temerário ou precipitado.
Buck era preeminentemente astuto e sabia esperar a sua hora com uma paciência
verdadeiramente primitiva.

O choque pela chefia era inevitável. Buck desejava-o. Desejava-o porque
era da sua natureza, porque tinha sido dominado por aquele orgulho indefinível,
incompreensível, do trilho e do arreio, orgulho que mantém os cães presos ao
trabalho até o último estertor; orgulho que os leva a morrer com alegria entre os
arreios e lhes quebra o coração quando têm de ser afastados do trenó. Era o
orgulho de Dave, correndo entre os varais, de Solleks, ao puxar com toda a sua
força, esse orgulho que os tomava ao levantar do acampamento, transformando-
os de brutos amargos e taciturnos em criaturas esforçadas, estimuladas,
ambiciosas, aquele orgulho que os fazia correr o dia inteiro e os abandonava ao
montar do acampamento à noite, deixando-os numa melancolia inquieta e
insatisfeita. Era o orgulho no qual Spitz encontrava forças com que maltratar os
cães que se enganavam e esquivavam ao trabalho, ou que se escondiam de
manhã à hora de aparelhar, era o orgulho que o fazia recear Buck enquanto
possível chefe de equipagem. E era o orgulho de Buck que ameaçava
abertamente a chefia do outro. Metia-se de permeio entre ele e os preguiçosos
que devia castigar. E fazia-o ostensivamente. Uma noite caiu um nevão grande e,
pela manhã, Pike, o manhoso, não aparecia. Estava bem escondido no seu ninho,
debaixo de dois palmos de neve. François chamou-o e procurou-o em vão. Spitz
estava encolerizado. Percorreu o acampamento numa fúria, farejando e
escavando todos os lugares prováveis, rosnando de um modo tão aterrorizador
que Pike o ouviu e tremeu no seu esconderijo.

Mas quando, por fim, foi desalojado e Spitz voou para o castigar, Buck
atravessou-se com igual fúria entre os dois. Tão inesperado e bem conseguido foi
que Spitz, projetado para trás, caiu desamparado. Pike, que ficara tremendo num
medo abjeto, ganhou coragem perante o motim declarado e atirou-se ao chefe
derrubado. Buck, para quem luta leal não passava de um conceito esquecido,
atacou Spitz do mesmo modo. Mas François, rindo embora entredentes com o
incidente, era inabalável na administração de justiça e a ponta do seu chicote
abateu-se energicamente sobre Buck. Como tal não bastasse para afasta-lo do
seu rival prostrado, o condutor optou por bater com o cabo. Entontecido pelo
golpe, Buck recuou e o chicote caiu sobre ele vezes sem conta, enquanto Spitz
castigava com firmeza o prevaricador.

Nos dias seguintes, à medida que Dawson se aproximava, Buck continuou
a interferir entre Spitz e os indisciplinados, mas tinha de faze-lo apenas quando
François não estava nas imediações. O motim encoberto provocou uma
insubordinação geral e crescente. Dave e Solleks comportavam-se como sempre,
mas o resto da equipagem ia de mal a pior. As coisas já não corriam bem.
Sucediam-se questiúnculas e altercações. Havia sempre algum problema e na sua
origem estava Buck. Dava trabalho a François, que vivia em preocupação


constante sobre a luta de morte que sabia ser mera questão de tempo entre os
dois cães. Por mais de uma vez foi arrancado dos seus cobertores por sons de
conflito entre os cães, temendo que a hora de Buck e Spitz tivesse chegado.

Mas a oportunidade não surgiu e numa tarde sombria chegaram a Dawson
com a grande batalha por travar. Estavam ali muitos homens e inúmeros cães e
Buck encontrou-os todos trabalhando. Parecia ser da ordem natural das coisas
que os cães trabalhassem. Subiam e desciam a rua principal o dia inteiro, em
grandes equipagens, e de noite ainda se ouvia o tinido dos seus guizos passando.
Transportavam lenha e troncos para cabanas, levavam coisas para as minas,
faziam todas as tarefas que no vale de Santa Clara cabiam aos cavalos. Aqui e
além, Buck encontrava alguns cães do Sul, mas a maioria pertencia à raça husky,
cruzada de lobo. Todas as noites sem falta, às nove, à meia-noite, às três,
erguiam a sua ária noturna, cântico estranho e misterioso ao qual Buck se juntava
com deleite.

Ante o brilho frio da aurora boreal e a dança de gelo das estrelas cadentes,
com a terra adormecida e gelada sob a sua mortalha de neve, o cântico dos
huskies podia ter representado o desafio da vida, mas afinava-se por um tom
baixo, em lamentos prolongados e meios-soluços, e era mais a súplica da vida, o
sofrimento elaborado da existência. Era um cântico antigo, como a própria espécie

- uma ária vinda de um mundo jovem, de um tempo em que as canções eram
tristes. Trazia consigo o lamento de inúmeras gerações, lamento que lançava
Buck numa estranha perturbação. Cantando, gemia e soluçava a dor de viver que
fora a de seus pais selvagens, o sentimento de medo e de mistério que os tomava
perante o frio e a escuridão. E que isso o perturbasse demonstrava quão
completamente ele havia recuado através das eras de conforto do lar até aos
duros princípios da vida, aos tempos do uivo.
Sete dias depois da sua chegada a Dawson desceram o talude escarpado
que conduzia à pista de Yukon e partiram em direção a Dyea e Salt Water.
Perrault levava mensagens ainda mais urgentes do que aquelas que trouxera.
Além disso, tinha sido vencido pela vaidade do viajante e propunha-se bater o
recorde de viagem daquele ano. Tinha vários pontos a seu favor: a semana de
repouso tinha restabelecido os cães, que se achavam em perfeitas condições, o
trilho que tinham aberto através da região tinha sido reforçado por viajantes
posteriores e, por último, tendo a polícia construído dois ou três depósitos de
provisões para cães e homens ao longo do percurso, não viajavam carregados.

Chegaram a Sixty Mile no primeiro dia, percorrendo oitenta quilômetros, e o
segundo dia viu-os lançados ao longo do Yukon, aproximando-se de Pelly. Mas
tempos tão esplêndidos só se obtinham à custa de grandes dificuldades e
vexames para François. A revolta insidiosa conduzida por Buck tinha destruído a
solidariedade da equipagem. Já não corriam como um só cão entre os arreios. O
encorajamento que Buck dava aos rebeldes levava-os a cometer toda a espécie
de pequenos delitos. Spitz já não era um chefe que inspirasse temor. O antigo
respeito tinha desaparecido e todos desafiavam a sua autoridade. Uma noite, Pike
roubou-lhe metade da ração de peixe e engoliu-a, sob a proteção de Buck. Outra
noite, Dub e Joe enfrentaram Spitz, obrigando-o a desistir de lhes administrar o
castigo que mereciam. Até Billee, o de bom feitio, se mostrava menos bem-
disposto e de modo algum tão apaziguador como em outros tempos. Buck nunca


se aproximava de Spitz sem rosnar e eriçar o pêlo de modo ameaçador. Na
verdade, a sua conduta chegava a ser arruaceira e ele dava-se ao luxo de se
pavonear de um lado para o outro mesmo debaixo do nariz do chefe.

A quebra de disciplina também afetava as relações dos cães uns com os
outros. Altercavam e brigavam mais do que nunca, até o acampamento se
assemelhar a uma casa de doidos aos uivos. Só Dave e Solleks permaneciam
fiéis a si mesmos, embora as questiúnculas constantes os tornassem irritáveis.
François soltava pragas estranhas e pagãs, batia com os pés na neve numa fúria
vã e arrepelava os cabelos. O seu chicote assobiava sem cessar, mas de pouco
valia. Mal voltava costas, os cães recomeçavam. François apoiava Spitz com o
chicote, Buck apoiava todos os outros. François sabia que Buck era a verdadeira
origem do problema, e o cão sabia que ele sabia, mas era muito astuto para se
deixar apanhar em falso uma segunda vez. Trabalhava fielmente nos arreios,
porque o trabalho se tornara num prazer, mas um prazer ainda maior era provocar
dissimuladamente uma luta entre os seus companheiros e emaranhar os tirantes.

Estavam acampados na foz do Tal-ikeena quando, a seguir à ceia, Dub
levantou uma lebre, tropeçou e falhou. Num segundo toda a matilha estava em
movimento. A uns cem metros de distância ficava um acampamento da Polícia do
Noroeste, de onde cinquenta cães, todos huskies, correram ajuntar-se à caçada. A
lebre fugiu ao longo do rio, virou para um pequeno ribeiro e continuou a correr ao
longo do seu leito gelado. Corria com leveza pela superfície da neve, enquanto os
cães tinham de abrir caminho à força. Buck corria à frente da matilha de sessenta
cães, seguindo a lebre curva após curva, não conseguindo, contudo, apanhá-la.
Baixava o dorso na corrida, emitia um som ansioso, o seu corpo esplêndido
projetava-se em frente, salto após salto, envolto no luar branco e pálido. E, salto
após salto, como um fantasma de gelo, a lebre ia mantendo velozmente a
distância.

Os velhos instintos que, por vezes, se agitam nos homens e os levam a
trocar as suas cidades ruidosas por florestas e planícies, a fim de matar criaturas
com bolas de chumbo quimicamente projetadas, o desejo de sangue, o prazer de
matar - tudo isso se encontrava em Buck, mas de um modo infinitamente mais
íntimo. Tomara o seu lugar à cabeça da matilha, perseguia uma criatura selvagem,
carne viva, para matar com os próprios dentes e mergulhar o focinho até aos olhos
no sangue quente.

Há um êxtase que marca o apogeu da vida, além do qual a vida não se
pode elevar mais. E tal é o paradoxo da existência, que esse êxtase surge quando
se está mais vivo e surge sob a forma do completo esquecimento da própria vida.
Esse êxtase, esse esquecimento de si, atinge o artista, surpreendido, em transe,
num lençol de chamas, atinge o soldado, enlouquecido pela guerra, que numa
batalha perdida recusa trégua e atingiu Buck, ao conduzir a matilha, soltando o
antigo brado do lobo, perseguindo o alimento vivo que corria velozmente à sua
frente, sob o luar. Estava explorando o que de mais profundo havia na sua
natureza e, além de si mesmo, recuava até às entranhas do próprio tempo.
Dominava-o uma pura explosão de vida, uma onda de euforia, a alegria perfeita de
cada músculo, de cada articulação, a plenitude do sentimento de não estar morto,
de ser pleno de cor e exuberância, exprimindo-se pelo movimento, voando
exultante sob as estrelas e sobre a face da matéria morta e imóvel.


Mas Spitz, frio e calculista mesmo no auge do entusiasmo, abandonou a
matilha e tomou um atalho num ponto onde o ribeiro descrevia uma curva larga.
Buck não reparou e, quando saiu da curva, o pequeno fantasma de gelo da lebre
correndo sempre à sua frente, viu um outro fantasma de gelo, maior, saltar da
margem oposta e interceptar o percurso da lebre. Era Spitz. A lebre não teve
tempo de fugir e guinchou como um homem ferido quando os dentes brancos do
cão lhe quebraram a coluna a meio, de um salto. Ao som daquele grito, da vida
que se extingue no amplexo da morte, toda a matilha atrás de Buck ergueu um
coro infernal de prazer.

Buck não gritou. Não suspendeu a corrida, avançou direito a Spitz, espádua
contra espádua, com tal impulso que não conseguiu agarrar-lhe a garganta.
Rolaram juntos na neve solta. Spitz pôs-se em pé como se não tivesse chegado a
cair, rasgou a espádua do adversário e saltou para o lado. Por duas vezes os seus
dentes se fecharam como as mandíbulas de aço de uma armadilha, enquanto
recuava à procura de um bom ponto de apoio, arreganhando os lábios e rosnando.

Como iluminado por um relâmpago, Buck soube. A hora tinha chegado. Era
até à morte. Foi tomado por uma sensação de familiaridade enquanto andavam
em círculos, rosnavam, espreitavam as possíveis vantagens, com as orelhas
tensas e recuadas. Parecia lembrar-se de toda aquela cena - os bosques brancos,
a terra, o luar, a excitação do combate. Uma calma fantasmagórica pairava sobre
a brancura e o silêncio. Não havia o menor sussurro no ar, nada se movia, nem
uma folha tremia, o bafo visível da respiração dos cães erguia-se lentamente e
parecia ficar suspenso no ar gelado. Aqueles cães, que não eram senão lobos mal
domesticados, tinham acabado com a lebre e formavam um círculo, na
expectativa. Também eles estavam em silêncio, só os olhos brilhavam e os bafos
flutuavam no ar. Buck nada achava de novo ou estranho nesta cena de outros
tempos. Era como se sempre assim tivesse sido - era a ordem natural das coisas.

Spitz era um lutador experiente. Desde Spitzbergen, ao longo do Ártico, do
Canadá e das Barrens, tinha sabido defender-se contra todo o tipo de cães e
impor o seu domínio sobre eles. A sua cólera era amarga, mas nunca cega. Sua
febre de lacerar e destruir, nunca esquecia que o seu inimigo sentia febre igual.
Nunca avançava sem estar pronto para receber uma carga, nunca atacava sem
ter primeiro repelido um ataque.

Buck esforçava-se em vão por cravar os dentes no pescoço do grande cão
branco. Onde quer que as suas presas filassem em busca da carne macia, iam
chocar com as presas de Spitz. Presa chocava com presa, os lábios estavam
cortados e em sangue e Buck não conseguia penetrar as defesas do adversário.
Por fim, aqueceu, envolvendo Spitz num turbilhão de ataques. Procurava a
garganta branca de neve, onde a vida fervilhava perto da superfície, mas era
sempre o outro quem feria e se esquivava. Buck passou então a simular ataques à
garganta, recuando a cabeça e deitando o corpo no último momento, de modo a
lançar a espádua contra a espádua do adversário, como um aríete destinado a
derrubá-lo. Mas de todas as vezes era a sua espádua a ser rasgada pelos dentes
de Spitz e este escapava com ligeireza.

Spitz permanecia intacto, enquanto Buck escorria sangue e respirava com
dificuldade. A luta tornava-se desesperada. E o círculo feroz ali estava, silencioso,


à espera, pronto para acabar com o cão que caísse. À medida que Buck perdia o
fôlego, Spitz intensificava os ataques, fazendo-o cambalear. Chegou a perder o
equilíbrio e o círculo de cães ergueu-se de imediato, mas ele se recuperou, em
pleno ar, e o círculo sentou-se de novo e esperou.

Contudo, Buck possuía uma qualidade que determina a grandeza,
imaginação. Lutava por instinto, mas sabia também lutar pensando, Atacou
simulando a habitual finta da espádua e no último momento baixou-se sobre a
neve e mordeu. Agarrou a pata esquerda de Spitz. Ouviu-se o estalo do osso
quebrando e o cão branco enfrentou-o sobre três pernas. Por três vezes Buck
tentou derrubá-lo, depois repetiu o truque e quebrou-lhe a perna direita. Apesar da
dor e da impotência, Spitz lutou loucamente para se manter de pé, via o círculo
silencioso que se fechava em seu redor, olhos brilhantes, línguas pendentes e
bafos prateados flutuando no ar, tal como no passado vira círculos semelhantes
fechar-se sobre os seus antagonistas derrotados. Mas desta vez a derrota fora
sua.

Não havia salvação para ele. Buck era inexorável. Misericórdia era
qualidade para climas moderados. Manobrou para o golpe final. O círculo tinha-se
cerrado a ponto de ele sentir a respiração dos huskies no seu flanco. Via-os, atrás
de Spitz, pelos lados, os corpos encolhidos para o salto, os olhos fixos nele. O
tempo pareceu parar, cada animal estava imóvel, como que petrificado. Só Spitz
tremia e eriçava o pêlo, cambaleando para trás e para frente, rosnando numa
ameaça terrível, como se quisesse assustar a morte inevitável. Buck saltou então
e recuou, mas, ao saltar, a espádua encontrou finalmente a outra espádua. O
círculo escuro transformou-se num nó sobre a neve inundada de luar. Spitz
desapareceu e Buck ficou de lado, olhando, vencedor - fera primitiva que tinha
morto a sua presa e gostara de fazê-lo.

O chefe da matilha

-Então? Que é que eu disse? Falei a verdade, quando afirmei que esse
Buck valia dois diabos.
Assim falava François na manhã seguinte, quando deu pela falta de Spitz e
viu Buck coberto de feridas. Puxou-o para junto da fogueira e apontou-as à luz das
chamas.

- Aquele Spitz lutou como um raio - comentou Perrault, observando a carne
rasgada e cortada.
-E este Buck lutou como dois raios - foi a resposta de François. - E agora
vamos andar a boa velocidade, com certeza. Nada de Spitz, nada de problemas.
Enquanto Perrault arrumava as coisas e carregava o trenó, o condutor
cuidou de aparelhar os cães. Buck trotou para a posição que Spitz, como chefe,
teria ocupado, mas François ignorou-o e trouxe Solleks para o posto cobiçado. Na
sua opinião, este seria o melhor chefe de equipagem entre os cães que restavam.
Buck, enfurecido, atirou-se ao companheiro, e o fez recuar e ocupou o seu lugar.

- Hein? Hein? - gritou François, batendo alegremente nas coxas. - Olhe
para este Buck! Matou Spitz, quer o lugar! Sai daí, xô! - bradou, mas o cão não se
mexeu.

François agarrou-o pelo cachaço e, embora ele rosnasse
ameaçadoramente, arrastou-o para o lado e repôs Solleks à frente. O velho cão
não estava satisfeito e mostrou abertamente que receava Buck. François obstinou-
se, mas mal o homem voltou costas, Buck desalojou de novo o companheiro, que
se deixou ir de boa vontade.

François estava zangado. Agarrou um pesado bastão e gritou:

- Agora vou endireita-lo, você vai ver!
Buck recordou-se do homem de camisa vermelha, bateu lentamente em
retirada e nem tentou avançar quando Solleks foi de novo trazido para frente. Mas
andava em círculos, fora do alcance imediato do bastão, rosnando com amargura
e raiva - e enquanto o fazia não tirava os olhos do bastão, de modo a evitá-lo se
François o arremessasse, pois estava ficando experiente no que dizia respeito a
bastões.

O condutor continuou o seu trabalho e chamou Buck quando chegou o
momento de o atrelar no seu antigo posto, à frente de Dave. Buck recuou dois ou
três passos. François seguiu-o e ele voltou a recuar. Ao cabo de alguns minutos,
vendo que a cena se repetia, François deitou fora o bastão, julgando que o cão
temia uma sova. Mas ele estava em plena revolta. Pretendia não fugir a algumas
bastonadas, mas obter a chefia. Era sua por direito. Tinha-a conquistado e não se
satisfaria com menos.

Perrault foi ajudar: perseguiram-no acampamento por cerca uma hora,
atiraram-lhe bastões, ele se esquivou, amaldiçoaram-no, bem como a todos os
seus avôs e avós e a toda a sua descendência até à última geração e a cada pêlo
do seu corpo e pingo de sangue nas suas veias, ele respondia às maldições
rosnando e mantinha-se fora do alcance dos homens. Não tentou fugir, mas ia
recuando sempre em redor do acampamento, tornando claro que, quando o seu
desejo fosse satisfeito, tomaria o seu lugar e se portaria bem.

François sentou-se e coçou a cabeça. Perrault olhou para o relógio e
praguejou. O tempo voava e já deviam estar a caminho havia uma hora. François
coçou de novo a cabeça. Abanou-a e sorriu timidamente ao correio, que encolheu
os ombros em sinal de derrota. François dirigiu-se então a Solleks e chamou Buck,
que riu - como os cães riem -, mas mantendo-se à distância. François desatrelou
Solleks e voltou a atrelá-lo na sua antiga posição. A equipagem estava atrelada ao
trenó numa linha contínua, pronta para a pista. Não havia lugar para Buck senão à
frente. Mais uma vez François chamou, e mais uma vez o cão riu e ficou quieto.

- Largue o bastão - ordenou Perrault.
François obedeceu, o cão trotou para eles, rindo triunfante, e colocou-se no
seu posto à frente da equipagem. Foi atrelado, o trenó solto e, com os dois
homens em corrida, lançaram-se pela pista ao longo do rio.

Por muito elevada que tivesse sido a sua avaliação de Buck, com os seus
dois diabos, o condutor concluiu, ainda o dia ia no princípio, que o tinha
subestimado. Num ressalto, assumiu os deveres inerentes à chefia e, quando se
tornava necessário mostrar discernimento, pensar e agir depressa, Buck revelava-
se superior ao próprio Spitz. E François nunca encontrara um cão igual a Spitz!

Mas era a fazer a lei e a impô-la aos seus companheiros que Buck atingia a
excelência. Dave e Solleks não se incomodavam com a mudança de chefe. Não


era assunto que lhes dissesse respeito. O que lhes interessava era trabalhar,
vigorosamente, nos trilhos. Não lhes importava o que acontecesse, desde que não
interferissem com eles. Por eles, até Billee, o de bom feitio, poderia ser chefe,
contanto que mantivesse a ordem. Contudo, os outros cães tinham ficado
indisciplinados durante os últimos tempos de Spitz e foram tomados de surpresa
quando Buck tratou de mete-los na ordem.

Pike, que puxava atrás do chefe e nunca se esforçava mais do que o
estritamente necessário, recebeu diversos e decididos safanões por mandriar e,
antes do fim do primeiro dia, estava puxando como nunca antes fizera. Na
primeira noite no acampamento, Joe, o mal-humorado, foi severamente castigado,
coisa que Spitz nunca conseguira fazer. Buck asfixiou-o sob o seu peso,
consideravelmente superior, e assim o manteve até ele deixar de morder e
começar a ganir por piedade.

A moral da equipagem melhorou imediatamente. Recuperou a sua antiga
solidariedade e os cães voltaram a correr como um só entre os arreios. Ao
chegarem aos rápidos de Rink, dois huskies locais, Teek e Koona, foram
acrescentados à equipagem e a rapidez a que Buck os submeteu deixou François
estupefato:

- Nunca vi um cão como este Buck! - exclamava. - Não, nunca! Vale bem
uns mil dólares, puxa! Heim!? Que é que você acha, Perrault?
Perrault concordou com a cabeça. Estavam já adiantados em relação ao
recorde e ganhavam tempo cada dia.
A pista estava em excelentes condições, bem calcada e dura, e não havia
neve fresca contra a qual lutar. Não estava muito frio. A temperatura caíra a
cinqüenta graus negativos e assim permanecera toda a viagem. Os dois homens
alternavam-se no trenó e na corrida - e os cães mantinham-se em bom
andamento, com raras paradas.

O rio Thirty Mile estava relativamente coberto de gelo e num só dia
percorreram o trilho que à ida lhes custara dez. Cobriram numa única etapa os
noventa e três quilômetros entre o lago Le Barge e os rápidos White Horse. Ao
longo de Marsh, Tagish e Bennett (cento e dez quilômetros de lagos) atingiram tal
velocidade que o homem a quem cabia correr tinha de ser rebocado por uma
corda ligada ao trenó. E na última noite da segunda semana ultrapassaram White
Pass e desceram em direção ao mar, com as luzes de Skaguay e dos navios ao
fundo.

Foi uma viagem recorde. Em catorze dias fizeram uma média de sessenta e
cinco quilômetros diários. Durante três dias, Perrault e François pavonearam-se
pela rua principal de Skaguay, os convites para beber choviam, enquanto a
equipagem se tornava o centro venerado das atenções de treinadores de cães e
condutores de trenó. Depois, três ou quatro meliantes do Oeste tiveram a idéia de
assaltar a cidade, foram crivados de balas e o interesse público voltou-se para
novos ídolos. Chegaram então ordens oficiais. François chamou Buck, abraçou-o
e chorou. E assim acabaram François e Perrault. Como outros homens, saíram da
vida de Buck para sempre.

Um mestiço escocês tomou conta dele e dos seus companheiros e,
juntamente com uma dúzia de outras equipagens, retomaram o esgotante trilho
para Dawson. Desta vez viajavam carregados, não corriam para um recorde, ao


contrário labutavam duramente todos os dias, arrastando um pesado
carregamento nos trenós, porque pertenciam agora ao trem do correio, levando
notícias do mundo aos homens que procuravam ouro à sombra do Pole.

Buck não gostava, mas agüentava bem o trabalho, orgulhando-se dele à
maneira de Dave e Solleks, e zelava para que os seus companheiros, quer
partilhassem esse orgulho, quer não, cumprissem com a parte de esforço que lhes
competia. Era uma vida monótona, regular como um mecanismo. Cada dia era
muito semelhante ao anterior. Todas as manhãs, à mesma hora, os cozinheiros
saíam, acendiam-se as fogueiras e tomava-se o café da manhã. Depois, enquanto
uns levantavam o acampamento, outros atrelavam os cães, e punham-se a
caminho cerca de uma hora antes da escuridão começar a desvanecer-se,
anunciando o amanhecer. À noite montavam o acampamento. Uns erguiam os
toldos, outros cortavam lenha e galhos para as camas e outros ainda acarretavam
água ou gelo para os cozinheiros. Os cães eram alimentados. Este era o grande
prazer do seu dia, embora também fosse agradável vadiar com os outros cães,
depois de comido o peixe. Ao todo, contavam uma boa centena. Havia alguns
lutadores ferozes entre os cães, mas três combates com os mais ferozes
bastaram para estabelecer a supremacia de Buck, que não tinha mais que eriçar o
pêlo e mostrar os dentes para que lhe abrissem caminho.

Para Buck, o melhor de tudo era estender-se diante do fogo, as patas
traseiras dobradas debaixo do corpo, as patas dianteiras esticadas, cabeça
erguida e os olhos sonhadores piscando para as chamas. Por vezes, pensava na
grande casa do juiz Miller, no ensolarado vale de Santa Clara, no tanque de
cimento, em Ysabel, a mexicana sem pêlo, e em Toots, o cãozinho japonês, mas
com mais freqüência recordava o homem de camisa vermelha, a morte de Curly, o
grande combate com Spitz e as coisas boas que tinha comido ou desejava comer.
Não tinha saudades de casa. A terra do Sol parecia-lhe muito esbatida e distante,
eram recordações que não tinham peso nele. Bem mais potentes eram as
recordações da sua hereditariedade, que davam uma aparência de familiaridade a
coisas que nunca vira antes, os instintos (que não eram senão as recordações dos
antepassados transformadas em hábitos), desvanecidos ao longo do tempo,
despertavam e renasciam nele.

Por vezes, estendido diante do fogo, pestanejando sonhador perante as
chamas, parecia-lhe que estas pertenciam a outra fogueira e que, estendido ao
lado dessa outra fogueira, via outro homem, diferente do mestiço, cozinhando
diante dele. Esse outro homem tinha pernas mais curtas e braços mais longos,
músculos fibrosos e nodosos em lugar dos arredondados e volumosos do mestiço.
O cabelo desse homem era comprido e emaranhado e a sua cabeça prolongava-
se em forma oblíqua até aos olhos. Emitia sons estranhos e parecia ter muito
medo da escuridão, que perscrutava continuamente, comprimindo na mão, que
pendia a meia distância entre o joelho e o tornozelo, um pau a cuja extremidade
se fixava uma pedra pesada. Estava seminu, apenas uma pele rota e chamuscada
lhe cobria parcialmente as costas, mas tinha o corpo coberto de pêlos, Em alguns
pontos, sobre o peito e ombros e pelo exterior dos braços e coxas, esses pêlos
assentavam-se quase como os de um animal. Em pé, não ficava ereto, o seu
tronco inclinava-se para a frente a partir das ancas, as pernas arqueavam à altura
dos joelhos. Todo o seu corpo espelhava uma espécie de elasticidade, uma felina


rapidez de reação e um estado de vigilância constante, como alguém que vive no
terror perpétuo de coisas conhecidas e desconhecidas.

Outras vezes, esse homem peludo acocorava-se diante do fogo, com a
cabeça entre as pernas, e dormia. Nesses momentos, apoiava os cotovelos nos
joelhos, entrelaçava as mãos sobre a cabeça, como se quisesse proteger-se da
chuva com os braços cabeludos. E para lá do fogo, pela escuridão circundante,
Buck via diversos tições brilhantes, dois a dois, sempre dois a dois, que sabia
serem os olhos de grandes predadores. Ouvia-os abrir caminho ruidosamente pelo
matagal, escutava os barulhos que faziam na noite. E ali, nas margens do Yukon,
sonhando com olhos preguiçosos que pestanejavam à luz das chamas, esses
sons e visões de outro mundo faziam eriçar o pêlo do seu dorso pelas espáduas e
pescoço, até que ele reprimia um gemido baixo, rosnava suavemente e o
cozinheiro mestiço gritava:

-Buck, acorda!
Então esse outro mundo desaparecia, o mundo real surgia-lhe diante dos
olhos e ele levantava-se, bocejava e espreguiçava-se como quem tivesse estado
dormindo.

Foi uma viagem dura, transportando o correio, e o trabalho pesado
esgotou-os. Estavam magros e em más condições ao chegar a Dawson e teriam
precisado de dez dias, ou pelo menos de uma semana de descanso. Mas
decorridos dois dias partiram das BarTacks, descendo a margem do Yukon,
carregados com cartas para o exterior. Os cães estavam cansados, os homens
descontentes e para maior dificuldade, nevava todos os dias. Isto significava um
trilho mole, maior esforço para os corredores que abriam caminho e trabalho mais
pesado para os cães. Mas os condutores mantinham o seu sentido de justiça e
faziam o que podiam pelos animais.

Todas as noites, eram os cães os primeiros a ser cuidados. Comiam antes
dos condutores e nenhum homem se deitava sem ter primeiro tratado das patas
dos cães do seu trenó. Apesar disso, as forças faltavam. Desde o princípio do
Inverno tinham percorrido dois mil e novecentos quilômetros, rebocando trenós ao
longo de toda a esgotante distância, e dois mil e novecentos quilômetros deixam
marcas no mais resistente. Apesar do seu próprio cansaço. Buck agüentava,
mantinha os seus companheiros à altura do trabalho e impunha a disciplina. Billee
latia e gania no seu sono todas as noites. Joe estava mais mal-humorado que
nunca e Solleks não permitia que ninguém se aproximasse dele, pelo lado cego ou
não.

Mas era Dave que mais sofria. Não estava bem. Mostrava-se cada vez
mais taciturno e irritável, fazia o seu ninho assim que montavam o acampamento e
lá era alimentado. Uma vez desaparelhado e deitado, não se levantava até ser
tempo de aparelhar de manhã. Uivava de dor com o esforço de fazer arrancar o
trenó ou quando alguma guinada mais brusca o sacudia. O mestiço examinou-o,
sem resultado. Todos os condutores se interessaram pelo seu caso. Discutiam-no
à hora das refeições, durante as últimas cachimbadas ao serão, e uma noite
fizeram-lhe um exame. Trouxeram-no do seu ninho para perto da fogueira,
sondaram-no e apalparam-no até que ele gritou diversas vezes. Algo não estava
bem no interior do corpo de Dave, mas os condutores não descobriam qualquer
osso partido e não conseguiam compreender o que seria.


Quando atingiram Cassiar Bay, o cão estava tão fraco que caía
repetidamente entre os arreios. O mestiço escocês parou e desatrelou-o,
colocando o cão seguinte, Solleks, entre os varais. Pretendia deixar Dave
descansar, correndo livremente atrás do trenó. Doente como estava o cão
ressentiu-se de ser desatrelado, rosnou e mostrou os dentes enquanto os arreios
eram desatados e ganiu desesperado quando viu Solleks ocupar o posto que era
seu, onde servira por tanto tempo. Porque tinha o orgulho do trilho e do arreio e
mesmo mortalmente doente não suportava ver outro cão fazer o seu trabalho.

Quando o trenó arrancou, patinhou na neve fresca ao lado da pista rija,
mordendo Solleks, atacando-o e tentando empurrá-lo para a neve mole do outro
lado, esforçando-se para saltar para dentro dos tirantes e colocar-se entre Solleks
e o trenó, sempre ganindo, latindo e gemendo de desgosto e dor. O mestiço
tentou afastá-lo com o chicote, mas ele ignorou a ferroada do açoite e o homem
não teve coragem para bater mais forte. Dave recusou-se a correr tranquilamente
pela pista atrás do trenó, por onde era fácil caminhar, e continuou pela neve solta,
por onde o caminho era mais difícil, até que caiu exausto e aí ficou, uivando
tristemente, enquanto o longo trem de trenós passava à sua frente.

Cambaleou atrás deles com o que lhe restava de forças, até que fizeram
nova parada. Avançou entre os trenós até encontrar o seu e colocou-se ao lado de
Solleks. O condutor deteve-se um momento pedindo fogo para o seu cachimbo ao
homem do trenó seguinte. Quando voltou e fez avançar os cães, eles saltaram no
trilho sem esforço, voltaram as cabeças, admirados, e estacaram. O condutor não
estava menos surpreendido: o trenó não se movera. Chamou os seus camaradas
para que testemunhassem o fenômeno: Dave tinha roído os arreios de Solleks e
estava imóvel, à frente do trenó, no seu lugar habitual.

Suplicava com os olhos que o deixassem ficar. O condutor estava perplexo.
Os seus camaradas falavam de como se podia destroçar o coração de um cão ao
qual não se deixava fazer o trabalho que o estava matando. Contavam casos
conhecidos, de cães muito velhos para o trabalho, ou feridos, que tinham morrido
por serem desatrelados. Visto que Dave iria morrer de qualquer modo, entendiam
que seria um ato de misericórdia deixá-lo morrer nos arreios, com o coração leve e
satisfeito. Assim, o cão foi de novo atrelado e puxou com o orgulho de sempre,
embora as suas dores internas o fizessem por vezes gritar. Caía, os tirantes
arrastavam-no, chegou a ser atropelado pelo trenó e passou a coxear de uma
perna traseira.

Mas agüentou tudo até chegarem ao acampamento, onde o mestiço lhe
arranjou um lugar perto do fogo. A manhã veio encontrá-lo muito fraco para viajar.
À hora de aparelhar, tentou arrastar-se para o seu condutor. Com um esforço
convulsivo, levantou-se, cambaleou, caiu. Rastejou então penosamente para onde
os seus companheiros estavam sendo atrelados. Adiantava as patas da frente,
puxava o corpo com um tranco e recomeçava, uma e outra vez, avançando
centímetro a centímetro. As forças faltaram-lhe e a última vez que os seus
companheiros o viram, Dave arquejava, estendido na neve, olhando anelante na
sua direção. Ouviram-no uivar lamentosamente até desaparecer atrás de um
renque de árvores à beira do rio.

O trem parou, o mestiço escocês voltou lentamente sobre os seus passos


até ao acampamento que tinham acabado de deixar. Os homens pararam de falar,
ouviu-se um tiro de revólver e o homem regressou depressa. Os chicotes
estalaram, os guizos tiniram alegremente, os trenós deslizaram pela pista, mas
Buck sabia, todos os cães sabiam, o que tinha acontecido atrás do renque de
árvores à beira do rio.

A pista e o arreio

Trinta dias após a sua partida de Dawson, o correio de Salt Water chegava
a Skaguay, com Buck e os seus companheiros à frente. Estavam num estado
lastimoso, gastos e exaustos. Os 63 kg de Buck tinham descido para 52 kg. Os
outros cães, embora mais leves, tinham perdido proporcionalmente mais peso que
ele. Pike, o manhoso, que na sua vida de mentiras fingira diversas vezes ter uma
perna magoada, estava realmente coxo. Solleks também coxeava e Dub tinha
uma omoplata deslocada.

Todos tinham as patas terrivelmente doloridas. Não lhes restava qualquer
leveza, qualquer agilidade. As patas caíam pesadamente na pista, abalavam-lhes

o corpo, duplicavam a fadiga de cada dia de viagem. Não estavam doentes, mas
tomados de uma exaustão mortal. Não a exaustão que resulta de um esforço
breve e excessivo, da qual se recupera numa questão de horas, mas a que provém
do lento e prolongado desgaste de forças provocado por meses de labuta.
Já não havia capacidade de recuperação, nenhuma reserva de forças à qual
recorrer. Tinham consumido até o último vestígio de energia. Cada músculo, cada
fibra, cada célula estavam esgotados, mortalmente exaustos. E havia razões para
isso: em menos de cinco meses tinham viajado quatro mil quilômetros, durante os
últimos dois mil e novecentos apenas haviam tido cinco dias de repouso. Quando
chegaram a Skaguay, pareciam estar no fim. Mal conseguiam manter os tirantes
direitos e nas descidas apenas evitavam ser atropelados pelo trenó.
- Vão andando, pobres coitados -encorajava-os o condutor enquanto
trotavam pela rua principal de Skaguay. Está acabando. Depois vamos ter um bomdescanso. É garantido. Um valentíssimo descanso.
Os condutores aguardavam confiadamente uma longa parada. Também
eles tinham percorrido mil e novecentos quilômetros com apenas dois dias de
repouso e por direito e justiça mereciam um intervalo reparador. Mas tantos eram
os homens que tinham acorrido ao KIondike, e tantas eram as namoradas,
mulheres e parentes que os não tinham acompanhado, que o correio amontoado
assumia proporções gigantescas. Havia, além disso, ordens oficiais. Novas
fornadas de cães frescos de Hudson Bay viriam tomar o lugar dos cães
inutilizados pelo trilho. Estes, dada a pouca importância atribuída a cães em
comparação com dólares, deveriam ser vendidos.

Decorreram três dias, durante os quais Buck e os seus companheiros
compreenderam até que ponto estavam fracos e esgotados. Até que, na manhã
do quarto dia, dois americanos chegaram e compraram-nos, com arreios e tudo,
por tuta e meia. Os homens tratavam-se mutuamente por Hal e Charles. Charles
era um homem de meia-idade, de compleição clara, com olhos fracos e aguados e
um bigode garbosamente voltado para cima, numa tentativa de disfarçar a moleza


dos seus lábios pendentes. Hal era um jovem de dezenove ou vinte anos, que
usava um grande revólver Colt e uma faca de mato num cinturão repleto de
cartuchos. Esse cinturão era a coisa mais notável nele. Proclamava a sua
inexperiência, total e inexprimível. Ambos os homens estavam manifestamente
deslocados e as razões que poderiam ter levado tal par a aventurar-se no Norte
pertencem à natureza dos mistérios insondáveis.

Buck ouviu o regateio, viu o dinheiro passar do homem para o
representante do Governo e percebeu que o mestiço escocês e os condutores do
trem do correio saíam da sua vida, na esteira de Perrault, François e todos os que
tinham passado antes. Chegados ao acampamento do novo dono, Buck e os seus
companheiros encontraram negligência e desmazelo por toda parte, a tenda mal
esticada, pratos sujos, tudo em desordem. E também lá se encontrava uma
mulher. Os homens chamavam-lhe Mercedes. Era mulher de Charles e irmã de
Hal - e os três constituíam uma bela reunião familiar.

Buck observou com apreensão o modo como eles desarmavam a tenda e
carregavam o trenó. Aparentavam grande esforço, mas não tinham nenhum
método. A tenda foi enrolada num fardo três vezes maior do que deveria ser. Os
pratos de estanho foram guardados sujos. Mercedes agitava-se entre os seus
homens e produzia uma cadeia ininterrupta de admoestações e conselhos.
Quando eles puseram um saco de roupa na parte da frente do trenó, ela declarou
que ele iria melhor na parte de trás, e, uma vez o saco carregado atrás e debaixo
de alguns outros fardos, ela descobriu artigos esquecidos que não podiam ir
senão nesse preciso saco, pelo que os dois homens descarregaram tudo de novo.

Três homens de uma tenda próxima saíram e ficaram olhando, sorrindo e
piscando o olho uns aos outros.

- Têm uma bela carga assim como está -disse um deles. - E não serei eu
quem os ensine o seu trabalho, mas no seu lugar eu não levava essa tenda.
-Nem pensar! -exclamou Mercedes, erguendo as mãos numa
consternação graciosa. - Como eu poderia passar sem tenda?
- É Primavera, já não vão apanhar tempo frio - respondeu o homem.
Ela abanou a cabeça com decisão e Charles e Hal colocaram o que faltava
no topo do volumoso carregamento.

-Acham que vai andar? - perguntou um dos homens.
- E porque não? - replicou Charles em tom brusco.
- Oh, está bem, está bem! - apressou-se a contemporizar o outro. - Estava
só pensando, mais nada. Parecia-me um pouco desequilibrado.
Charles virou costas e fez o seu melhor para esticar as correias que
seguravam a carga, mas o seu melhor não era de modo algum suficiente.

- E, claro, os cães vão poder andar o dia todo com essa engenhoca atrás...
- disse um segundo homem.
- Com certeza - respondeu Hal com uma polidez gelada, agarrando o timão
com uma mão e estalando o chicote com a outra.
- Vai! - gritou. - Vai, embora!
Os cães saltaram contra as faixas peitorais, forcejaram Por alguns
momentos e pararam. Não conseguiam deslocar o trenó.

- Brutos preguiçosos, eu já lhes canto! -gritou Hal, preparando-se para
chicoteá-los.

Mas Mercedes interferiu, tirando-lhe o chicote das mãos e gritando:

- Não, Hal, não faça isso! Os pobres queridos! Tem que me prometer que
não vais ser duro com eles durante a viagem, ou eu não dou um passo.
- Grande coisa que você sabe sobre cães - troçou o irmão. - Faça o favor
de me deixar em paz. São preguiçosos, e temos de lhes bater para conseguiralguma coisa deles. É assim que eles são. Pergunte a quem quiser. Pergunte a
um daqueles homens.
Mercedes, com toda a repugnância pela dor estampada no seu lindo rosto,
lançou-lhes um olhar suplicante.

- Estão sem forças, se é isso que querem saber - foi o comentário de um
dos homens. - Completamente exaustos, é o que é. Precisam de descanso.
- O diabo carregue o descanso! -disse Hal com os seus lábios finos e
Mercedes soltou um oh! pesaroso ao ouvir a praga.
Mas, imbuída de espírito de clã, saltou em defesa do irmão:

- Não ligue àquele homem - declarou claramente. - Você é que conduz os
nossos cães e faça o que achar melhor com eles.
O chicote de Hal caiu de novo sobre os cães. Eles comprimiram-se contra o
arreio peitoral, cravaram as patas na neve endurecida, baixaram-se rente ao chão
e empregaram toda a sua força. O trenó manteve-se imóvel como uma âncora.
Após dois esforços os cães pararam arquejantes. O chicote assobiava
selvagemente e Mercedes voltou a interferir. Ajoelhou diante de Buck, com
lágrimas nos olhos e os braços à volta do pescoço do cão, choramingando
compreensivamente:

- Meus pobres, pobres queridos, porque não puxam com força? Não serão
chicoteados...
Buck não gostava dela, mas sentia-se muito infeliz para resistir e aceitava
tudo como parte do miserável trabalho desse dia..
Um dos homens, que estivera observando, rangendo os dentes para não
disparatar, não se conteve:

- Não é que me importe com o que lhes possa acontecer, mas pelo bem
dos cães, sempre digo que podem lhes dar uma valente ajuda se soltarem esse
trenó. Os patins estão colados ao gelo. Carreguem no timão de um lado e outro e
soltem-no.
Fizeram uma terceira tentativa, mas desta vez, seguindo o conselho, Hal
soltou os patins soldados à neve. O trenó, sobrecarregado, avançou
pesadamente, Buck e os seus companheiros puxaram com frenesi sob uma chuva
de chicotadas. Ao cabo de cem metros, o caminho descrevia uma curva e descia
abruptamente até a rua principal. Seria necessário um homem experimentado
para manter o equilíbrio do trenó mal carregado, e Hal não era tal homem. O trenó
voltou-se na curva, derramando o seu conteúdo pelas correias lassas. Os cães
continuaram a correr, arrastando o trenó tombado atrás deles. Estavam zangados,
por causa dos maus tratos e do peso injusto. Buck estava verdadeiramente
furioso. Partiu em corrida e toda a equipagem o seguiu. Hal gritou em vão que
parassem, tropeçou e foi derrubado. O trenó encalhou no seu corpo e os cães
precipitaram-se rua acima, provocando a hilaridade de Skaguay ao espalhar o que
restava de equipamento ao longo da rua principal.


Alguns cidadãos, condoídos, seguraram os cães e apanharam os pertences
dispersos. E deram conselhos. Metade da carga e o dobro dos cães se queriam
chegar a Dawson, diziam. Hal, a irmã e o cunhado ouviram de má vontade,
armaram a tenda e vistoriaram a bagagem. Apareceram enlatados, que, sendo
absurdos no longo trilho, provocaram risos nos homens presentes. Um deles ria e
ajudava, enumerando:

- Cobertores para um hotel. Metade já é demais, livrem-se deles. Joguem
fora essa tenda e os pratos todos quem é que vai lava-los? Deus do Céu, pensam
que vão em cruzeiro?!
E assim continuou a inexorável eliminação do supérfluo. Mercedes chorou
quando os seus sacos de roupa foram despejados no chão, peça após peça
rejeitada. Chorava por tudo em geral e cada coisa em particular. Torcia as mãos
nos joelhos, balançava-se para trás e para diante, mostrava-se destroçada.
Afirmou que não dava mais um passo, nem por uma dúzia de Charles. Apelou a
tudo e todos, acabando por limpar os olhos e deitar mãos à obra, jogando fora até
artigos de primeira necessidade. E, embalada no seu zelo, mal concluiu a escolha
dos seus pertences atacou os dos seus homens como um tornado.

Quando acabaram, o equipamento reduzido a metade formava ainda um
volume formidável. Charles e Hal saíram à tardinha e trouxeram seis cães do
exterior. Estes, juntamente com a equipagem original e Teek e Koona, os huskies
comprados nos rápidos de Rink quando da viagem recorde, totalizavam uma
equipagem de catorze cães. Mas, apesar de treinados desde a sua chegada, os
cães do exterior não valiam muito. Três eram pointers de pêlo curto, um era terra-
nova e os outros dois cruzados de raça indeterminada. Eram recém-chegados que
pouco sabiam. Buck e os seus companheiros olharam-nos com repugnância e,
embora Buck se apressasse a pô-los no seu lugar e a mostrar-lhes o que não
deviam fazer, não podia ensinar-lhes como proceder corretamente. Iam para os
arreios de má vontade, com exceção dos dois rafeiros, todos estavam perturbados
e de ânimo quebrado pelo ambiente estranho e hostil em que se encontravam e
pelos maus tratos que tinham sofrido. Os dois rafeiros não tinham qualquer
espécie de ânimo, ossos eram a única coisa que neles havia para quebrar.

Com os recém-chegados desesperados e desamparados e a velha
equipagem esgotada por quatro mil quilômetros consecutivos de pista, o aspeto
geral não era de modo algum brilhante. Os dois homens, no entanto, mostravam-
se muito bem-dispostos e orgulhosos. Estavam fazendo a coisa em grande estilo,
com catorze cães. Tinham visto outros trenós partir a caminho de Dawson, ou
chegar de Dawson, mas nenhum com tal número de cães. Há uma razão, inerente
à viagem ártica, para não pôr catorze cães a puxar um trenó: é que um trenó não
pode levar a comida necessária para catorze cães. Mas Charles e Hal não sabiam
disso. Tinham preparado a viagem com papel e lápis, tanto por cão, tantos cães,
tantos dias, Mercedes olhava por cima dos ombros deles e concordava, era tudo
tão simples.

Na manhã seguinte, o Sol já ia alto, partiram com Buck à frente da longa
equipagem. Não havia qualquer vivacidade, vigor ou alegria nos animais. Partiam
com um cansaço mortal. Buck tinha percorrido a distância entre Salt Water e
Dawson quatro vezes e saber que enfrentava esse percurso de novo, esgotado
como estava, tornava-o amargo. Não punha o coração no trabalho, nem ele nem


qualquer dos outros cães. Os do exterior estavam intimidados e assustados, os da
equipagem não confiavam nos donos.

Buck pressentia que aqueles homens e aquela mulher não eram dignos de
confiança. Não sabiam fazer nada e com o passar dos dias tornou-se evidente que
não conseguiriam aprender. Eram desleixados em tudo, não tinham sentido de
ordem ou disciplina. Demoravam metade da noite para armar um péssimo
acampamento e metade da manhã para levantá-lo e a carregar o trenó com tanta
falta de jeito que passavam o resto do dia parando para arrumar melhor a carga.
Havia dias em que não chegavam a andar quinze quilômetros, outros em que nem
sequer conseguiam partir. E em nenhum dia cumpriram mais do que metade da
distância diária em que os homens haviam baseado os cálculos para alimentação
dos cães.

Era inevitável que a comida dos animais viesse a faltar. Para agravar as
coisas, estavam sendo superalimentados, o que apenas antecipava o dia em que
a subalimentação teria de começar. Os cães do exterior, cujos aparelhos
digestivos ainda não tinham se adaptado à fome perpétua, aprendendo a extrair o
máximo de nutrição do mínimo de alimento, tinham apetites vorazes. E, vendo que
os huskies esgotados não tinham força suficiente para puxar, Hal decidiu que a
ração habitual era muito pequena. Dobrou-a. Para cúmulo, quando as lágrimas
dos seus lindos olhos e a sua voz trêmula não conseguiam convencer o irmão a
dar ainda mais comida aos animais, Mercedes roubava dos sacos de peixe seco e
alimentava-os às escondidas. Mas não era comida o que faltava a Buck e aos
huskies, era descanso. E embora estivessem andando pouco, a carga que
levavam era de tal modo pesada que as suas forças se exauriam rapidamente.

Chegou por fim a subalimentação. Um belo dia, Hal acordou para o fato de
que as provisões para os cães estavam reduzidas a metade e havia ainda três
quartos do percurso por fazer. Além disso, nem amizade, nem dinheiro lhes
podiam trazer mais comida naquelas paragens. Hal reduziu então até mesmo a
ração habitual e tentou aumentar a velocidade diária. A irmã e o cunhado
apoiavam-no, mas as suas intenções eram frustradas pelo excesso de
equipamento e pela incompetência. Era fácil dar menos comida aos cães, mas era
impossível fazê-los viajar mais depressa quando a sua própria lentidão ao levantar

o acampamento de manhã os impedia de viajar mais horas. Não só não sabiam
fazer trabalhar os cães como não sabiam trabalhar eles próprios.
O primeiro a morrer foi Dub. Pobre gatuno desajeitado que era, sempre
apanhado em flagrante, era também um trabalhador fiel. A sua omoplata
deslocada, sem tratamento nem repouso, foi de mal a pior até que Hal acabou por
matá-lo com um tiro do seu grande Colt. Na região dizia-se que um cão do exterior
passava fome com a ração de um husky. Os seis cães do exterior que tinham sido
integrados na equipagem não podiam, pois senão morrer de fome com metade da
ração de um husky. O primeiro foi o terra-nova, seguido pelos três pointers. Os
dois rafeiros agarraram-se à vida com mais tenacidade, mas acabaram por morrer
também.

Por essa altura, toda a amenidade e gentileza do Sul tinham desaparecido
daquelas três pessoas. Despida da aura de mistério e romance, a viagem ártica
surgia-lhes em toda a sua realidade demasiado áspera para os seus caracteres
fracos. Mercedes deixou de chorar pelos cães, muito ocupada em chorar por si


própria e em discutir com marido e com o irmão. Discutir parecia mesmo ser a
única coisa que eles nunca estavam muito cansados para fazer. A irritabilidade
causada pelo sentimento de infelicidade aumentou, duplicou, excedeu a própria
infelicidade. A maravilhosa paciência que caracteriza os homens que trabalham
duramente, sofrem amargamente e permanecem calmos e amistosos, não se
formou naquela gente. Não tinham a menor noção do que tal paciência pudesse
ser. Sentiam-se hirtos e doloridos, doíam-lhes os músculos, os ossos, o próprio
coração e isso tornava a sua conversa agressiva, as suas palavras duras desde o
princípio da manhã até à hora de deitar.

Charles e Hal brigavam sempre que Mercedes o permitia. Cada um estava
firmemente convencido de que trabalhava mais do que devia e não perdia
qualquer oportunidade de dize-lo. Mercedes ora tomava o partido do marido ora o
do irmão. O resultado era uma bela e interminável zanga familiar. De uma
discussão sobre qual deles deveria ir rachar uns quantos paus de lenha para a
fogueira - assunto que só a Charles e a Hal dizia respeito - em breve surgia uma
questão sobre o resto da família, mães, pais, tios, primos, gente que estava a
milhares de quilômetros de distância, alguns já mortos. A relação entre as idéias
de Hal sobre arte, ou o tipo de peças sociais que o irmão da sua mãe escrevia, e a
necessidade de rachar meia dúzia de paus de lenha era totalmente
incompreensível. No entanto era tão provável que a discussão derivasse para
esse tema como para o dos preconceitos políticos de Charles. E que a língua
viperina da irmã de Charles tivesse alguma importância para acendê-lo de uma
fogueira no Yukon era óbvio apenas para Mercedes, que debitava abundantes
opiniões a respeito dessa e de outras características menos agradáveis da
parentela do marido. Nesse meio-tempo a fogueira continuava por acender, o
acampamento por montar e os cães por alimentar.

Mercedes alimentava um desgosto particular - o desgosto do seu sexo. Era
bonita e frágil e toda a sua vida fora tratada com cavalheirismo.

Ora, o tratamento que agora recebia do marido e do irmão nada tinha de
cavalheiresco. Era seu hábito mostrar-se desamparada, eles queixaram-se.
Perante tal desrespeito por aquilo que ela considerava ser a mais essencial
prerrogativa do seu sexo, Mercedes fazia-lhes a vida um inferno. Já não se
importava com os cães e, como estava amargurada e cansada, insistia em viajar
no trenó. Era bonita e frágil, mas pesava 55 kg - uma vigorosa última gota a
acrescentar à carga transportada pelos animais enfraquecidos e esfomeados.
Viajou assim dias a fio, até que os cães caíram entre os arreios e aí ficaram.
Charles e Hal imploraram-lhe que descesse e fosse a pé, rogaram, suplicaram,
enquanto ela chorava e desfiava perante os céus o rosário das brutalidades que
sofria.

Uma vez fizeram-na descer à força. Não voltaram a fazê-lo. Ela deixou-se
cair como uma criança mimada e ficou sentada no chão. Eles prosseguiram, mas
ela não se mexeu. Ao cabo de cinco quilômetros descarregaram o trenó, voltaram
atrás e tiveram que pegar nela em peso para instalá-la de novo no veículo.

Dominados pela infelicidade que sentiam, eram cruéis perante o sofrimento
dos animais. Hal perfilhava a idéia, que aplicava aos outros, de que era necessário
endurecer perante as circunstâncias. Começou por pregar essa teoria à irmã e ao
cunhado, mas, tendo falhado, tratou de incuti-la nos cães à bastonada. Quando


chegaram a Five-Fingers, acabaram-se as provisões para os animais e uma índia
desdentada propôs-lhes a troca de alguns quilos de couro de cavalo congelado
pelo revólver Colt que acompanhava a grande faca de mato no cinturão de Hal.
Este couro era um pobre substituto para alimento, tendo sido cortado de cavalos
mortos de fome havia seis meses. Congelado, assemelhava-se a tiras de ferro
galvanizado e quando os cães o conseguiam meter no estômago, desfazia-se em
fitas finas, coriáceas e pouco nutritivas e numa massa de pêlo impossível de
digerir.

E Buck continuava cambaleando à frente da equipagem, como se
caminhasse num pesadelo. Puxava enquanto podia - quando lhe faltavam forças
com que puxar caía e ficava estendido até que as pancadas do chicote ou do
bastão o faziam erguer outra vez. O seu belo pêlo perdera brilho e volume, pendia
flácido e sujo, manchado de sangue seco onde o bastão de Hal o ferira. Os seus
músculos tinham-se transformado em cordéis nodosos e a carne desaparecera, de
modo que cada costela, cada osso, se delineava com nitidez sob a pele pendente
e enrugada em dobras vazias. Era de partir o coração, mas o coração de Buck era
inquebrável. O homem de camisa vermelha o tinha provado!

O que acontecia a Buck, acontecia aos seus companheiros. Estavam
reduzidos a esqueletos móveis. Eram sete ao todo, incluindo Buck. A sua imensa
miséria tornara-os insensíveis ao golpe do chicote e à pancada do bastão. A dor
das pancadas era embotada e distante, tal como tudo o que os seus olhos viam e
os seus ouvidos captavam. Não estavam apenas semimortos: eram meros sacos
de ossos onde algumas fracas centelhas de vida flutuavam ainda. Em cada
parada, tombavam entre os arreios como cadáveres e as centelhas esmoreciam,
empalideciam, pareciam se apagar. E quando o bastão ou o chicote caíam sobre
eles, as centelhas reacendiam-se ligeiramente, eles punham-se em pé, vacilantes,
e prosseguiam, cambaleando.

Um dia, Billee, o de bom feitio, caiu e não se levantou. Hal tinha trocado o
revólver, portanto pegou no machado e vibrou um golpe na cabeça de Billee -
ainda entre os arreios -, depois desatrelou o corpo e arrastou-o para o lado. Buck
viu, os outros cães viram, e todos sabiam que era algo que lhes tocava de muito
perto. No dia seguinte foi Koona e já só restavam cinco cães: Joe, muito exausto
para ser maldoso, Pike, aleijado e coxo, semi-inconsciente e não mais capaz de
usar de manha; Soleks, o zarolho, sempre fiel ao trilho e ao arreio, triste por ter tão
pouca força para puxar; Teek, que não viajara tanto como os outros naquele
Inverno e apanhava agora mais pancada porque estava mais fresco e Buck, ainda
à frente da equipagem, mas sem fazer qualquer esforço para impor a disciplina,
meio cego de fraqueza, orientando-se na pista apenas pelo seu brilho vago e
tateando com os pés.

Estava um belo tempo de Primavera, mas nem homens nem cães tinham
consciência disso. Todos os dias o Sol nascia mais cedo e se punha mais tarde.
Amanhecia por volta das três da manhã e o crepúsculo durava até às nove da
noite. O sol brilhava todo o dia. O silêncio fantasmagórico do Inverno dera lugar ao
grande murmúrio primaveril a vida renovada, que se fazia ouvir por toda a parte,
plena de alegria de viver. Provinha de tudo o que voltava a viver e a mover-se,
tudo o que tinha estado imobilizado e como morto durante os longos meses de
gelo. A seiva corria nos pinheiros. Os salgueiros e as faias floresciam em novos


rebentos. Arbustos e trepadeiras revestiam-se de verde. Grilos cantavam na noite
e durante o dia toda a espécie de criaturas se arrastavam para o sol. Perdizes e
pica paus tamborilavam e restolhavam na floresta. Os esquilos conversavam, os
pássaros cantavam e no ar soava o grasnido das aves migratórias que
regressavam do Sul em bandos, rasgando o céu.

De cada encosta vinha o som de água corrente, a música de fontes
escondidas. Tudo derretia, vergava, irrompia. O Yukon lutava para partir o gelo
que o reprimia, gastava-o por baixo, o sol gastava-o por cima. Formavam-se
bolhas de ar, abriam-se fissuras que se espalhavam e grandes pedaços de gelo
fino caíam inteiros no rio. E através deste florescer, abrir, pulsar da vida, sob um
Sol brilhante e entre brisas suaves, os dois homens, a mulher e os huskies
avançavam como caminhantes da morte.

Com os cães caindo, Mercedes chorando e viajando no trenó, Hal
praguejando sem objetivo e Charles com os olhos melancolicamente aguados,
cambalearam pelo acampamento de John Thornton na foz do rio Branco. Assim
que pararam, os cães tombaram como mortos. Mercedes limpou os olhos e olhou
para John Thornton. Charles sentou-se num tronco para descansar. A rigidez do
seu corpo fazia-lhe os movimentos lentos e penosos. Hal fez as despesas da
conversa. John Thornton estava dando os últimos retoques num cabo de machado
que fizera de um ramo de vidoeiro. Aparava e ouvia, respondia por monossílabos
e dava conselhos concisos quando os pediam. Conhecia aquele tipo de gente e
fazia as suas recomendações com a certeza de que não iriam ser seguidas.

- Disseram-nos lá em cima que o trilho estava degelando e que o melhor
que tínhamos a fazer era esperar - disse Hal em resposta ao aviso de Thornton de
que não se deveriam arriscar mais no gelo estalado, -Disseram-nos que não
íamos conseguir chegar ao rio Branco e aqui estamos! -concluiu com um toque
escarninho de triunfo.
- E disseram-lhes a verdade - respondeu John Thornton. - O gelo vai ceder
a qualquer momento. Só tolos, com a sorte louca dos tolos, conseguiriam chegar
aqui. Digo de cara, nem todo o ouro do Alasca me faria arriscar a carcaça naquele
gelo.
- Isso é porque você não é tolo, calculo eu - comentou Hal. - De qualquer
maneira, nós seguimos para Dawson e, desenrolando o chicote, bradou:
-De pé, Buck! Vá! De pé! Andando! Vai!
Thornton continuou a aparar o seu cabo de machado. Sabia que era inútil
meter-se entre um louco e a sua loucura, além de que dois ou três loucos a mais
ou a menos não iam alterar o esquema das coisas.

Mas a equipagem não se levantou ao ouvir a ordem, Havia muito que
tinham chegado ao ponto em que só pancada os fazia pôr em pé. O chicote
estalou, caindo aqui e ali na sua função impiedosa. John Thornton comprimiu os
lábios. Solleks foi o primeiro a erguer-se com dificuldade.

A seguir Teek, depois Joe, ganindo com dores. Me fez esforços dolorosos.
Por duas vezes, já meio levantado, voltou a cair. Conseguiu, por fim, ficar de pé à
terceira tentativa. Buck não tentou. Ficou estendido no lugar onde caíra. O chicote
feriu-o uma e outra vez, mas ele nem gania nem lutava. Diversas vezes, Thornton
fez menção de falar e desistiu. Tinha os olhos úmidos e, enquanto o cão
continuava a ser açoitado, levantou-se e pôs-se a caminhar com ar irresoluto para


a frente e para trás.

Era a primeira vez que Buck falhava, o que só por si bastava para enfurecer
Hal. Trocou o chicote pelo bastão. Buck não se moveu, apesar da chuva de
pancadas, agora mais fortes, que continuava a cair sobre ele. Como os seus
companheiros, mal conseguia pôr-se em pé, mas, ao contrario deles, estava
decidido a não o fazer. Tinha um vago pressentimento de desgraça iminente, que
lhe surgira ao seguir pela margem do rio e esse pressentimento não
desaparecera. O gelo fino e quebradiço que sentira debaixo dos pés o dia inteiro
causava-lhe uma sensação de desastre próximo e era exatamente para esse gelo
que o seu dono queria leva-lo. Recusou a mexer-se. Tinha sofrido tanto, estavatão inconsciente, que as pancadas pouco lhe doíam. À medida que elas caíam, a
centelha de vida nele tremeu e diminuiu. Estava quase apagada. Buck sentia-se
estranhamente entorpecido. Sabia que estavam lhe batendo, mas era como um
sonho distante. A última sensação de dor abandonou-o. Nada sentia, ouvia
apenas o som enfraquecido do impacto do bastão no seu corpo, mas nem era
bem o seu, tão distante lhe parecia.

De súbito, John Thornton soltou um grito rouco que mais parecia o de um
animal e arremeteu contra o homem que empunhava o bastão. Hal foi atirado para
trás, como se tivesse sido atingido pela queda de uma árvore. Mercedes gritou.
Charles olhou com tristeza, secou os olhos, mas o seu corpo hirto não o deixou
levantar.

John Thornton parou ao lado de Buck, lutando para se controlar, tão furioso
que não conseguia falar.

- Se voltar a bater neste cão, eu o mato! - disse por fim numa voz sufocada.
- O cão é meu - respondeu Hal, que se erguia limpando o sangue da boca. -
Saia da minha frente, ou dou cabo de você. Vou para Dawson.
Thornton estava entre Hal e Buck e não manifestava qualquer intenção de
se afastar. Hal puxou da sua grande faca de mato. Mercedes gritava, ria, chorava,
abandonava-se a todo o caos da histeria. Thornton vibrou uma pancada seca com

o cabo do machado nos nós dos dedos de Hal e a faca tombou. Voltou a bater-lhe
nos nós dos dedos quando Hal tentou apanha-la, curvou-se, pegou ele a faca e,
com dois golpes, cortou os arreios de Buck.
Hal perdera a vontade de lutar. Além disso, tinha as mãos ou melhor, os
braços muito ocupados pela irmã, e quanto a Buck, estava muito próximo da morte
para ser de qualquer utilidade com o trenó. Minutos depois, saíam da margem e
corriam pelo rio. Buck ouviu-os partir e levantou a cabeça para vê-los. Pike ia à
frente, Solleks nos varais e Joe e Teek no meio. Coxeavam e cambaleavam.
Mercedes viajava no trenó carregado. Hal conduzia e Charles seguia-os aos
tropeções.

Enquanto Buck os olhava, Thornton ajoelhou ao seu lado e procurou ossos
partidos com as suas mãos ásperas e bondosas. Quando concluiu que não havia
senão uma quantidade de feridas e um terrível estado de fraqueza, o trenó estava
a quinhentos metros de distância. Cão e homem ficaram a vê-lo avançar
lentamente sobre o gelo. De súbito, viram a parte de trás inclinar-se como se
tivesse caído num sulco profundo e o timão ao qual Hal se agarrava foi projetado
no ar. Ouviram o grito de Mercedes. Viram Charles virar-se e dar um passo para
fugir, depois o gelo cedeu e pessoas e cães desapareceram. Tudo o que restava


era um buraco. O trilho tinha degelado. John Thornton e Buck olharam um para o
outro.

- Seu pobre diabo - disse John Thornton.
E Buck lambeu-lhe a mão.
Por amor de um homem

Quando os pés de John Thornton tinham gelado, em Dezembro do ano
anterior, os seus companheiros tinham-no instalado confortavelmente, deixando-o
ficar para que se recompusesse e prosseguindo eles a viagem rio acima para ir
buscar os toros para serração destinados a Dawson. Ele ainda coxeava
ligeiramente quando salvou Buck, mas a continuação do tempo quente acabou de
curá-lo. Foi nesse acampamento, estendido à beira-rio durante os longos dias de
Primavera, olhando a água corrente, ouvindo preguiçosamente o canto dos
pássaros e o murmúrio da natureza, que Buck recuperou as forças.

Um repouso sabe muito bem depois de se ter caminhado quase cinco mil
quilômetros e torna-se necessário confessar que Buck se abandonou à preguiça
enquanto as suas feridas saravam, os músculos se avolumavam e a carne voltava
a lhe cobrir os ossos. De fato, todos preguiçavam (Buck, John Thornton, Skeet e
Nig), enquanto esperavam a jangada que havia de leva-los para Dawson. Skeet,
uma pequena setter irlandesa, depressa se fez amiga de Buck, que, moribundo,
não conseguia rejeitar os seus avanços. Ela possuía as características de
curandeira de certos cães e, como uma gata com a sua ninhada, lambia e limpava
as feridas dele. Todas as manhãs, depois do café da manhã, executava a tarefa
que se impusera, até que ele passou a procurar tanto os seus cuidados como os
de Thornton. Nig, igualmente amistoso embora menos expansivo, era um enorme
cão negro, meio sabujo, meio galgo, com olhos risonhos e um inabalável bom
feitio.

Para grande surpresa de Buck, os outros cães não manifestavam qualquer
ciúme a seu respeito. Pareciam partilhar da bondade e generosidade de John
Thornton. À medida que ele se restabelecia, faziam-no participar de toda a
espécie de jogos ridículos aos quais o próprio Thornton acabava por se juntar - e
foi desse modo brincalhão que Buck fez a sua convalescença e começou uma
nova vida. Pela primeira vez sentia amor, um amor genuíno e apaixonado. Nunca
experimentara tal sentimento na casa do Juiz Miller, no ensolarado vale de Santa
Clara: com os filhos do juiz, caçando e passeando, era uma relação de trabalho,
com os netos do juiz, uma proteção pomposa e, com o próprio juiz, uma amizade
formal e digna. Mas amor, fervoroso e ardente, amor que era adoração, que era
loucura, só John Thornton tinha sabido despertar.

Esse homem tinha salvo a sua vida, o que era muito, mas era, além disso,

o dono ideal. Outros homens cuidavam dos seus cães por sentido de dever ou
necessidade profissional, ele cuidava dos seus como se de filhos se tratasse,
porque não podia evitar. E mais: nunca faltava com uma saudação bondosa ou
uma palavra alegre e tinha tanto prazer como os próprios cães em sentar-se com
eles para uma longa conversa - para tagarelar, como ele dizia. Tomava a cabeça
de Buck nas mãos, encostava-lhe a sua, balançava-o docemente e ia-lhe

chamando de nomes feios, que para ele eram palavras de amor. Nada havia que
desse a Buck mais alegria que aquele abraço rude e o som das pragas
murmuradas, e a cada balanço parecia que o coração ia lhe saltar do peito, tão
grande era a sua felicidade. Quando Thornton o largava e ele saltava, o riso na
boca, os olhos eloqüentes, a garganta a vibrar de sons mudos e ficava assim, sem
se mexer, John Thornton exclamava com admiração:

- Meu Deus! Só te falta falar!
Buck tinha uma forma peculiar de exprimir o seu amor: agarrava a mão de
Thornton com a boca e comprimia-a de tal modo que lhe deixava a marca dos
dentes. E tal como o cão recebia as pragas como palavras de amor, também o
homem entendia a dentada fingida como sendo uma carícia.

A maior parte do tempo, no entanto, o amor de Buck exprimia-se em
adoração. Embora ficasse louco de alegria quando Thornton o acariciava ou falava
com ele, não procurava manifestações de afeto. Ao contrário de Skeet, que tinha

o hábito de enfiar o focinho debaixo da mão do dono e se agitava até que ele a
acariciasse, ou de Nig, que avançava solenemente e pousava a enorme cabeça
nos joelhos do homem, Buck contentava-se em adorá-lo à distância. Ficava
estendido horas a fio aos pés de Thornton, absorto nele, olhando-lhe o rosto,
contemplando-o, estudando-o, bebendo cada expressão fugaz, cada movimento,
cada alteração nas feições. Ou, ao sabor do acaso, deitava-se mais longe, ao
lado, atrás, observando as formas do homem e todos os movimentos do seu
corpo. E tal era a comunhão em que viviam, que frequentemente a força do olhar
de Buck fazia John Thornton voltar a cabeça e devolver o olhar, sem falar, o
coração brilhando-lhe nos olhos tal como o coração do cão brilhava nos seus.
Muito tempo depois do seu salvamento, Buck ainda não gostava que
Thornton saísse da sua vista. Colava-se aos seus calcanhares desde que ele saía
da tenda até que voltasse a entrar. A transitoriedade dos seus donos desde que
viera para o Norte incutira-lhe o medo de que nenhum fosse permanente. Receava
que Thornton saísse da sua vida tal como Perrault, François e o mestiço escocês.
Esse receio perseguia-o mesmo em sonhos. Então acordava e arrastava-se pela
friagem até à entrada da tenda e aí ficava, ouvindo o som da respiração do dono.

O grande amor que devotava a John Thornton poderia tê-lo abrandado com
a sua influência civilizadora, mas a estirpe primitiva, ressuscitada nele pelo Norte,
mantinha-se viva e ativa. Fidelidade e devoção, nascidas nas eras de conforto
doméstico, eram características suas, mas mantinha a sua selvajaria e a sua
astúcia. Mais do que um cão das suaves terras do Sul, moldado por gerações de
civilização, ele era um ente selvagem, saído da selva para se sentar ao fogo de
John Thornton. Devido ao seu grande amor, era incapaz de roubar esse homem,
mas roubava qualquer outro, em qualquer acampamento, sem hesitar e com tal
habilidade que sempre escapava insuspeito.

Corpo e focinho ostentavam as marcas dos dentes de muitos cães e ele
lutava com a ferocidade de sempre e mais astúcia. Skeet e Nig eram muito bemhumorados
para brigas, além de que pertenciam a John Thornton


- mas qualquer cão desconhecido, qualquer que fosse a sua raça ou a sua
coragem, era obrigado a reconhecer rapidamente a supremacia de Buck, ou dava
por si a lutar pela própria vida com um terrível antagonista. E Buck era impiedoso.
Tinha aprendido bem a lei do bastão e das presas e nunca desprezava uma
vantagem nem poupava um adversário que tivesse iniciado o caminho da morte.
Tivera Spitz e os principais cães lutadores da polícia e do correio por mestres e
sabia que uma luta não se concluía pela metade. Era preciso dominar ou ser
dominado, mostrar misericórdia era fraqueza: não havia piedade no mundo
primitivo, era tomada por medo e uma tal confusão podia ocasionar a morte. Mate
ou seja morto, coma ou seja comido, era essa a lei, vinda da profundeza do tempo
e a ela obedecia.
Era mais velho que os dias que tinha vivido, um elo entre passado e
presente. A eternidade que continha em si pulsava com um ritmo poderoso e
comandava-o como comanda as marés e as estações. Sentava-se junto ao fogo
de John Thornton, um cão de peito largo, presas brancas e pêlo longo, mas atrás
dele espreitavam as sombras de toda a espécie de cães, semi-lobos e lobos
selvagens, impacientes e insistentes, saboreando a carne que ele comia,
sequiosos da água que ele bebia, farejando o vento com ele, ouvindo com ele os
sons da vida selvagem na floresta e revelando-lhos, ditando-lhe os seus humores
e dirigindo as suas ações, deitando-se com ele para dormir quando ele se deitava,
sonhando com ele e para além dele até se tornarem na própria substância dos
sonhos dele.

Tão peremptório era o chamado destas sombras que cada dia a
humanidade e as suas pretensões lhe pareciam mais distantes. Um apelo soava
no interior da floresta e sempre que ouvia esse apelo, misteriosamente
estimulante e atraente, era compelido a virar costas ao fogo e à terra batida em
redor e a mergulhar na floresta, cada vez mais longe, sem saber para onde nem
por que e sem se preocupar em saber, sentindo o apelo que soava imperioso nas
profundezas do mato. Mas mal atingia o interior do bosque sombreado de verde, o
amor por John Thornton trazia-o de volta à fogueira.

Só Thornton o prendia. O resto da humanidade não contava. Viajantes que
passavam pelo acampamento podiam elogiá-lo e acariciá-lo, mas ele mantinha-se
frio e quando algum dos homens se mostrava mais extrovertido, levantava-se e
afastava-se. Quando os sócios de Thornton, Hans e Pete, chegaram na tão
esperada jangada, Buck recusou-se a reconhecer a sua presença até perceber
que eram amigos de Thornton, passou então a tolerá-los, de uma maneira
passiva, aceitando favores deles como se essa aceitação fosse um favor. Tal
como Thornton, eram homens grandes e práticos, de pensamento simples e
compreensão clara e antes de lançarem os toros no turbilhão da serração de
Dawson, já tinham entendido Buck e as suas maneiras e não insistiram em obter
dele uma intimidade semelhante àquela de que gozavam com Skeet e Nig.

O seu amor por Thornton, no entanto, não parava de crescer. Thornton era

o único homem que conseguia atar um pacote às costas de Buck para as viagens
de Verão. Nada era muito difícil para ele desde que Thornton o desejasse. Um dia
(tinham gasto o dinheiro dos toros e deixado Dawson em direção às nascentes do
Tanana), homens e cães estavam sentados no topo de uma escarpa que descia
até um leito de rocha noventa metros mais abaixo John Thornton estava sentado à

beira do precipício com Buck a seu lado. Foi tomado por um capricho e, sem
pensar, chamou a atenção de Hans e Pete para a experiência que tinha em
mente:

-Salte, Buck! - ordenou, estendendo o braço sobre o abismo.
Um instante depois, agarrava Buck firmemente sobre a borda, enquanto
Hans e Pete os arrastavam de volta a terreno firme.

- É esquisito - declarou Pete, quando recobraram a fala depois de tudo
passado. Thornton abanou a cabeça.
- Não, é esplêndido... e terrível também. Sabe, às vezes me mete medo.
- Não queria estar na pele de um homem que te ponha as mãos em cima
estando ele por perto - proclamou Pete à laia de conclusão, indicando Buck com a
cabeça.
-Com certeza, eu também não! - reforçou Hans.
Foi em CircIe City, antes do fim do ano, que as apreensões de Pete se
realizaram. O negro Burton, homem maldoso e mal-humorado, estava implicando
com um rapaz fracote no bar. Thornton meteu-se bondosamente no meio. Buck
estava estendido num canto com a cabeça entre as patas e, como de costume,
não tirava os olhos do dono. Burton atirou um soco repentino com toda a sua
força. Thornton rodopiou e só evitou a queda agarrando o corrimão do balcão, os
homens que olhavam ouviram algo que não era latido nem uivo, mas rugido, e
viram o corpo de Buck elevar-se no ar, direito à garganta de Burton. O homem
salvou-se levantando instintivamente o braço, mas foi atirado ao chão com o cão
em cima dele. Buck soltou o braço e voltou a procurar o pescoço. Desta vez o
homem só pôde se defender parcialmente e a garganta foi rasgada. Por essa
altura, a multidão rodeava Buck e arrastava-o dali, não sem que ele se debatesse,
rosnasse furiosamente e tentasse atacar, recuando apenas perante uma barreira
hostil de bastões, enquanto um cirurgião estancava a hemorragia do homem. Um
tribunal sumário, convocado no momento, decidiu que o cão tinha sido
suficientemente provocado e absolveu-o. Mas o episódio fez a sua reputação e
desde esse dia o seu nome correu célebre pelos acampamentos do Alasca.

Mais tarde, no Outono, salvou John Thornton de um modo bem diferente.
Os três sócios navegavam à vara, num bote longo e estreito, através de uma difícil
extensão de rápidos no Forty-Mile Creek. Hans e Pete caminhavam pela margem,
amarrando um cabo fino de árvore em árvore, enquanto Thornton, no bote,
orientava a descida com a vara e gritava instruções para a margem. Buck,
preocupado e ansioso, mantinha-se a par do bote, sem tirar os olhos do dono.

Numa passagem particularmente difícil, onde uma saliência rochosa se
delineava no rio, à flor da água, Thornton manobrou o bote para o meio da
corrente, enquanto Hans dava corda e corria pela margem com a ponta na mão de
modo a amarrar de novo o bote do outro lado da saliência. Assim fez, o bote
voava na corrente, rápido como a roda de um moinho e, quando Hans esticou a
amarra, o fez com demasiada brusquidão. O bote inclinou-se e deslizou de borco
para a margem, enquanto Thornton, projetado à distância, era levado pela
corrente em direção à parte mais perigosa dos rápidos, uma extensão de água
tumultuosa na qual era impossível nadar, Buck mergulhou no mesmo instante e
alcançou Thornton uns trezentos metros mais adiante, num louco turbilhão de


água. Quando sentiu o dono agarrar-lhe a cauda, nadou para a margem com toda
a sua esplêndida força. Mas o progresso em direção a terra era muito lento,
enquanto a corrente os levava rio abaixo com uma rapidez surpreendente. Mais
abaixo ouvia-se o rugido fatal das águas revoltas que explodiam em gotículas nas
rochas que perfuravam o rio como dentes de um pente gigantesco. A água sugava
com uma força tremenda ao arremessar-se contra o último desfiladeiro e Thornton
sabia que não era possível alcançar a margem. Raspou brutalmente contra uma
rocha, bateu numa segunda e foi esmagado contra uma terceira. Agarrou-se ao
topo escorregadio com ambas as mãos, soltando Buck, e gritou através do
estrondo da água espumante:

-Vá, Buck! Vá!
Buck não conseguiu manter a sua posição e foi arrastado pela corrente,
lutando desesperada e inutilmente para voltar atrás. Quando ouviu Thornton
repetir a ordem, ergueu-se na água, levantou a cabeça bem alto como para um
último olhar, depois obedeceu e nadou para a margem. Nadava poderosamente e
foi puxado por Pete e Hans no último momento, no ponto onde a força da corrente
se tornava irresistível e a morte certa.

Sabiam que um homem não conseguiria manter-se agarrado a uma rocha
escorregadia contra a força das águas por mais que poucos minutos e correram
pela margem o mais depressa que puderam, só parando bastante acima do lugar
onde Thornton se agarrava à sua rocha. Aí ataram a amarra do bote ao pescoço e
espáduas de Buck cuidando que ela não o estrangulasse nem lhe impedisse os
movimentos, e lançaram-no na corrente. O cão mergulhou com ímpeto, mas não o
suficiente. Descobriu o seu erro muito tarde, quando se viu passar impotente
diante de Thornton, a poucas braçadas de distância, Hans amarrou logo a corda,
como se tratasse fosse um barco. A amarra esticou bruscamente em torno de
Buck, virou-o contra a corrente e puxou-o debaixo de água até que o seu corpo
bateu na margem e o arrastaram para terra. Estava meio afogado e Hans e Pete
precipitaram-se para ele, bombeando o ar para dentro e a água para fora. Tentou
levantar-se, cambaleou e tombou. O som abafado da voz de Thornton chegou até
eles e, embora não conseguissem distinguir as palavras, compreenderam que ele
estava no limite das forças. A voz do dono atingiu Buck como um choque elétrico.
Pôs-se em pé de um salto e correu pela margem à frente dos homens até ao
ponto do mergulho anterior.

A corda foi de novo atada e ele lançado, mais uma vez nadou, mas agora
direto para a corrente. Tinha cometido um erro de cálculo uma vez, não o faria
segunda. Hans dava corda, mantendo-a tensa, e Pete evitava que ela se
enrolasse. Buck flutuou até ficar paralelo a Thornton, depois se voltou e nadou
para ele com a velocidade de um trem expresso. Thornton viu-o chegar e, quando

o cão bateu nele como um aríete -com toda a força da corrente somada à sua
Thornton estendeu os braços e lançou-os em volta do pescoço hirsuto do animal.
Hans prendeu a corda a uma árvore e cão e homem foram puxados para debaixo
da água. Estrangulados, sufocados, ora um em cima, ora o outro, arrastados
sobre o fundo irregular, raspando em rochas e pedaços de madeira, rumaram para
a margem.
Thornton voltou a si de barriga para baixo, enquanto Hans e Pete o
massageavam com violência sobre um tronco. O seu primeiro olhar foi para Buck:


Nig uivava ao lado do corpo flácido e aparentemente sem vida e Skeet lambia-lhe

o focinho molhado e os olhos fechados. Thornton, que estava ferido e dolorido,
observou com cuidado o corpo do seu cão assim que ele recuperou a consciência
e, encontrou três costelas quebradas.
- Está resolvido - declarou Thornton. - Acampamos aqui mesmo.
E assim fizeram até que as costelas de Buck sararam e ele pôde viajar.
No Inverno seguinte, em Dawson, Buck realizou outra proeza, não tão
heróica mas que nem por isso deixou de elevar o seu nome aos píncaros da fama
no Alasca. Essa proeza foi particularmente gratificante para os três homens, que
tinham grande necessidade do equipamento que ela lhes proporcionou e
obtiveram assim a oportunidade de fazer uma muito desejada viagem às terras
virgens do Leste, onde os mineiros ainda não tinham chegado. Tudo começou
com uma conversa no Eldorado Saloon, onde os homens se gabavam dos seus
cães favoritos. Devido à sua reputação, Buck era o alvo da conversa dos outros
homens e Thornton saiu resolutamente em sua defesa. Ao cabo de meia hora um
dos homens afirmou que o seu cão era capaz de fazer arrancar um trenó com 200
kg de carga e puxá-lo, outro homem reclamou 250 kg para o seu cão e, um
terceiro, 350 kg.

- Pfut! - fez John Thornton. - Buck é capaz de fazer arrancar 500 kg.
- E soltar o trenó? E puxá-lo por cem metros? - perguntou Matthewson,
novo-rico e fanfarrão, o homem dos 350 kg.
- E soltá-lo, e puxá-lo por 100 metros - respondeu John Thornton com
frieza.
-Bem - disse Matthewson, devagar e pausadamente, de modo que todos o
ouvissem. - Aposto mil dólares que ele não consegue. Aqui estão!
Com estas palavras arremessou uma bolsa de pó de ouro do tamanho de
um salpicão para cima do balcão. Ninguém falou. A fanfarronada de Thornton, se
fanfarronada era, fora desafiada. Ele sentiu uma onda de sangue subir-lhe ao
rosto. Perdera-se pela língua. Não sabia se Buck seria capaz de fazer arrancar
500 kg. Meia tonelada! A enormidade da idéia esmagava-o. Tinha uma grande fé
na força do seu cão e muitas vezes o julgara capaz de se haver com uma tal
carga, mas nunca até então se tinha visto obrigado a encarar essa possibilidade.
Sentia os olhos de uma dúzia de homens silenciosos e expectantes fixos nele!
Além disso, nem e ele, nem Hans, nem Pete tinham mil dólares.

-Tenho um trenó à porta neste momento, com vinte sacos de farinha de
vinte e cinco quilos cada um - insistiu Matthewson, com uma franqueza brutal. -
Não seja esse o problema...
Thornton não respondeu. Não sabia o que dizer. Ficou olhando para os
rostos em volta com a expressão ausente de um homem que perdeu a faculdade
de pensar e procura qualquer coisa capaz de a devolver. O rosto de Jim O'Brien,
homem abastado e velho companheiro, chamou-lhe a atenção. Foi como que uma
deixa que o encorajasse a fazer algo que normalmente nem se atreveria a sonhar.

- Pode me emprestar mil dólares? - perguntou, quase num sussurro.
- Claro! - respondeu O'Brien, deixando cair uma bolsa imponente ao lado da
de Matthewson. - Embora não acredite muito, John, que o bicho faça a coisa.
Os ocupantes do Eldorado espalharam-se pela rua, a fim de assistir à
prova. As mesas esvaziaram-se, jogadores e banqueiros saíram para ver o


resultado da aposta e fazer os seus próprios palpites. Centenas de homens,
embrulhados em peles e com luvas nas mãos, amontoaram-se a pequena
distância do trenó. Este, carregado com quinhentos quilos de farinha, estava
parado havia algumas horas e, no frio intenso (sessenta graus abaixo de zero), os
patins haviam ficado firmemente soldados à neve solidificada. Os homens
apostavam dois contra um em como Buck não conseguiria soltar o trenó. Debatia-
se a expressão "soltar o trenó". O'Brien era de opinião que Thornton tinha o direito
de libertar os patins, deixando ao cão a tarefa de solta-lo a partir da imobilidade
total. Matthewson insistia que a expressão implicava destravar os patins da neve
endurecida. A maioria dos homens que tinham testemunhado a aposta votaram a
seu favor e as probabilidades subiram para três para um contra Buck.

Ninguém aceitava apostar nele. Nem um só homem o considerava capaz
de tal feito. Thornton fora pressionado a apostar, cheio de dúvidas, agora que
olhava o trenó, com habitual equipagem de dez cães enrolados na neve à sua
frente, esta realidade insofismável mais impossível lhe fazia parecer a tarefa.
Matthewson rejubilava e proclamava:

- Três contra um! Aposto mais mil dólares nessa base, Thornton! Que diz?
As dúvidas de Thornton transpareciam-lhe no rosto, mas o seu espírito
combativo fora desperto - o espírito combativo que se eleva acima das
probabilidades, recusa admitir o impossível e não ouve senão o clamor da batalha.
Chamou Hans e Pete. As suas bolsas eram magras e os três juntos não
conseguiram mais do que duzentos dólares. No declínio que as suas fortunas
atravessavam, essa soma era tudo o que possuíam, no entanto apostaram-na
sem hesitar contra os seiscentos dólares de Matthewson. A equipagem de dez
cães foi retirada e Buck atrelado ao trenó com o seu próprio arreio. Fora
contagiado pela excitação geral e sentia que devia fazer alguma coisa
extraordinária por John Thornton. O seu esplêndido aspecto arrancou murmúrios
de admiração. Estava em perfeita forma sem um só grama de carne supérflua, e
os sessenta e oito quilos que pesava eram outros tantos quilos de virilidade e
energia. O seu pêlo brilhava com o esplendor da seda. Mesmo em repouso
parecia que os pêlos mais longos, que lhe cobriam o pescoço e as espáduas, se
levantavam a cada movimento, como se o excesso de vigor se transmitisse a cada
cabelo individual, dando-lhe vida própria. O largo peito e as sólidas patas
dianteiras eram proporcionais ao resto do corpo, cujos músculos se viam rolar sob
a pele. Alguns homens apalparam-nos e proclamaram-nos duros como aço, e as
probabilidades desceram para dois contra um.

- Caramba, senhor! Caramba, senhor! - gaguejou um homem de Skookum
Benches, verdadeiro rei da última dinastia de novos-ricos. - Ofereço-lhe oitocentos
por ele senhor, antes da prova, senhor! Oitocentos aí onde o vê.
Thornton abanou a cabeça e caminhou para Buck.

- Tem que ficar longe dele - protestou Matthewson. Liberdade e muito
espaço.
A multidão ficou silenciosa, só as vozes dos jogadores se faziam ouvir,
propondo dois contra um em vão. Todos reconheciam em Buck um magnífico
animal, mas vinte sacos de vinte e cinco quilos de farinha formavam, a seus olhos,
um volume muito imponente para que se dispusessem a abrir os cordões das
bolsas.


Thornton ajoelhou ao lado de Buck. Tomou-lhe a cabeça entre as mãos e
encostou a sua face à dele. Não o balançou na brincadeira, como de costume,
nem murmurou insultos amorosos, mas segredou-lhe ao ouvido:

- Por amor de mim, Buck. Por amor de mim!
Nada mais disse. Buck soltou um ganido de desejo contido.
A multidão olhava com curiosidade. O caso tornava-se misterioso, como
uma conspiração. Quando Thornton se levantou, Buck agarrou a sua mão
enluvada entre os dentes, comprimiu-a e soltou-a devagar, com relutância. Era a
resposta, na sua linguagem sem palavras, na sua expressão de amor. Thornton
recuou.

-Agora, Buck !
O cão esticou os tirantes, depois afrouxou-os alguns centímetros.
Aprendera assim.

- Direita! - a voz de Thornton soou aguda no silêncio tenso.
Buck balançou para a direita, concluindo o movimento com um mergulho
que esticou os tirantes em todo o comprimento e o deteve com um tranco. A carga
estremeceu e debaixo dos patins ouviu-se um rangido seco.

- Esquerda! - bradou Thornton.
O cão repetiu a manobra, agora para a esquerda. O estalido transformou-se
no som de gelo quebrando o trenó deslizou sobre si mesmo, os patins derraparam
e fugiram para a esquerda. O trenó estava solto. Os espectadores retinham a
respiração sem se dar conta.

-Agora, VAI!
A ordem de Thornton soou como um tiro de pistola. Buck arremessou-se
para frente, os tirantes ficaram tensos a ponto de estalar. O seu corpo arqueava
no esforço tremendo, os músculos moviam-se e contorciam-se como se
estivessem vivos sob o pêlo sedoso. O peito largo estava paralelo ao chão, a
cabeça baixa e estendida para frente, as patas voavam como loucas, as garras
gravavam sulcos simétricos na neve endurecida. O trenó balançou e estremeceu,
quase avançou. Uma das patas do cão escorregou e um homem gemeu alto.
Então o trenó começou a guinar para frente, no que parecia uma rápida sucessão
de trancos, sem mais se imobilizar... um centímetro... dois centímetros... três
centímetros... os trancos diminuíram visivelmente. À medida que o trenó embalava
foram desaparecendo, até que o aparelho deslizou num movimento regular.

Os homens arquejavam e recomeçavam a respirar, sem saber que por
momentos haviam deixado de fazê-lo. Thornton corria atrás do trenó, gritando
alegres palavras de encorajamento. A distância tinha sido previamente medida e,
enquanto Buck se aproximava da pilha de lenha que assinalava o fim dos cem
metros, ergueu-se um bramido de aplauso que se transformou num rugido quando
a meta foi passada e o cão parou à ordem de Thornton. Todos pulavam de
entusiasmo, incluindo Matthewson. Chapéus e luvas voavam pelo ar. Apertavam-
se mãos, não interessava de quem, e todos falavam ao mesmo tempo, numa
incoerência de Babel.

Mas Thornton ajoelhou ao lado de Buck, cabeça contra cabeça, e balançou-

o para a frente e para trás. Os que se aproximaram ouviram-no insultar Buck
longamente, fervorosamente, com doçura e amor.

- Caramba, senhor! Caramba! - O rei de Skookum Benches berrava
atabalhoadamente. - Dou-lhe mil por ele, senhor! Mil, senhor... mil e duzentos,
senhor!
Thornton pôs-se em pé. Tinha os olhos úmidos. As lágrimas corriam-lhe
livremente pelas faces.

-Caro senhor - disse ele ao homem de Skookum -, não senhor. Pode irpara o diabo, caro senhor. É o melhor que posso fazer por você, caro senhor.
Buck agarrou a mão de Thornton entre os dentes. Thornton sacudia-o para
um e outro lado. Como que dominados por um impulso comum, os espectadores
recuaram para uma distância respeitosa. E não voltaram a cometer a indiscrição
de interrompê-los.

O som do apelo

Ao ganhar mil e seiscentos dólares para John Thornton em cinco minutos,
Buck permitiu que o seu dono pagasse algumas dívidas e partisse com os seus
sócios para leste, em busca de uma fabulosa mina perdida, cuja história era tão
antiga como a história da região. Muitos a tinham procurado, poucos a tinham
encontrado e não tão poucos como isso haviam desaparecido na sua busca. Essa
mina perdida estava impregnada de tragédia e envolta em mistério. Ninguém
sabia quem a encontrara, nem a mais antiga tradição chegava tão longe. Desde
sempre que se falava de uma antiga e decrépita cabana que havia lá. Homens
moribundos atestavam a verdade desse fato, assim como a existência da mina -
cujo local era assinalado pela cabana -e fundamentavam os seus testemunhos
com pepitas que não se assemelhavam a quaisquer outras conhecidas no Norte.

Mas nenhum homem vivo tinha acedido a esse tesouro, e os mortos,
mortos estavam, portanto, John Thornton, Pete e Hans, com Buck e meia dúzia de
outros cães, rumaram a leste por um trilho desconhecido, para tentar a sua sorte
onde outros homens e outros cães, não menos capazes que eles, haviam
fracassado. Subiram o Yukon numa extensão de cento e dez quilômetros,
tomaram a esquerda no rio Stewart, atravessaram o Mayo e o McQuestion e
esperaram até o próprio Stewart estar reduzido a um riacho, abrindo caminho
entre os altos picos que formam a espinha dorsal do continente.

John Thornton pouco pedia aos homens ou à natureza. Não receava a
floresta. Uma mão-cheia de sal e uma espingarda eram quanto lhe bastava para
mergulhar no rio desconhecido e sobreviver onde lhe apetecesse, por quanto
tempo quisesse. Sem pressa, à moda dos índios, caçava o seu jantar durante o
percurso diário e quando falhava continuava o seu caminho, tal como os índios,
com a certeza de que, mais tarde ou mais cedo, haveria de encontrá-lo. Assim,
nessa longa viagem rumo a leste a ementa consistia em carne fresca. O trenó
levava principalmente munições e ferramentas e o limite de tempo era o futuro
ilimitado.

Buck deliciava-se com essa vida passada a caçar, pescar e perambular
indefinidamente por lugares desconhecidos. Ora avançavam continuamente, dia
após dia, durante semanas seguidas, ora acampavam aqui e ali, semanas sem
fim, os cães vagueando, os homens abrindo buracos através de lixo e cascalho


congelados e peneirando quantidades imensas de terra ao lado da fogueira. Umas
vezes tinham fome, outras se banqueteavam desenfreadamente, dependendo da
abundância de presas e da sorte da caça. O Verão chegou e cães e homens, com
a bagagem às costas, atravessaram de jangada os lagos azuis das montanhas,
subiram e desceram rios desconhecidos, navegando em esbeltos barcos feitos à
mão com a madeira das árvores da floresta.

Os meses iam passando e eles iam perambulando, para trás e para diante,
na vastidão inexplorada onde não se viam agora homens mas onde estes já
tinham estado, a acreditar na lenda da cabana perdida. Atravessaram ravinas sob
tempestades de Verão, tiritaram sob o sol da meia-noite em montanhas nuas,
entre a linha da floresta e as neves eternas, desceram a vales de Verão por entre
enxames de moscas e mosquitos e colheram, à sombra dos glaciais, morangos e
flores tão maduros e belos como os que faziam o orgulho das terras do Sul. Pelo
Outono penetraram numa estranha região de lagos, triste e silenciosa, por onde
haviam passado galinholas, mas onde já não restava qualquer espécie de vida -
os primeiros gelos formavam-se em lugares protegidos e apenas se ouvia o
assobio de ventos gelados e o melancólico quebrar das ondas em praias
solitárias.

Passaram mais um Inverno caminhando pelos trilhos apagados de homens
que aí tinham vagueado outrora. Um dia encontraram uma pista marcada nas
árvores ao longo da floresta, uma pista antiga, e a cabana perdida pareceu-lhes
muito próxima. Mas a pista não tinha principio nem fim e conservou o mistério que
partilhava com o homem que a traçara e a razão por que o fizera. Em outra
ocasião deram com as ruínas de um refúgio de caça, enterradas pelo tempo, e
John Thornton encontrou o fecho de pederneira de uma espingarda entre os
restos de cobertores apodrecidos. Identificou-a como sendo uma arma da Hudson
Bav Company, dos primeiros tempos do Noroeste, quando uma dessas armas
valia a sua altura em peles de castor bem acamadas. E, era tudo - não havia
qualquer indicação sobre o homem que em tempos idos ali havia construído um
abrigo e deixado a arma entre os cobertores.

A Primavera voltou, no fim de toda essa caminhada encontraram, não a
cabana perdida mas um aluvião aurífero pouco profundo num vale largo onde o
ouro encontrado parecia uma camada de manteiga no fundo das peneiras. Não
procuraram mais. Cada dia de trabalho rendia-lhes milhares de dólares em pó e
pepitas e eles trabalhavam todos os dias. Guardavam o ouro em bolsas de pele de
alce, vinte e cinco quilos por saco, e os sacos empilhavam-se como lenha ao lado
da cabana feita de ramos de abeto. Trabalhavam quais gigantes aumentando o
seu tesouro, por dias e dias que se sucediam como sonhos.

Os cães nada tinham para fazer, exceto acarretar de quando em vez a
carne que Thornton caçava, Buck passava horas esquecidas, absorto, à luz da
fogueira. A visão do homem peludo de pernas curtas voltava-lhe com maior
freqüência agora que pouco trabalho o ocupava e muitas vezes, pestanejando
perto do fogo, caminhava com ele por esse mundo distante que recordava.

A coisa mais notável nesse outro mundo parecia ser o medo. Quando via o
homem peludo dormir ao lado da fogueira, com a cabeça entre os joelhos e as
mãos crispadas sobre o cabelo, Buck notava que ele dormia inquieto, acordava
assustado e erguia-se diversas vezes para perscrutar a escuridão e colocar mais


lenha no fogo. Se caminhavam à beira-mar, onde o homem ia recolhendo e
comendo crustáceos, era com olhos que nunca paravam, sempre em busca de
qualquer perigo oculto e com pernas prontas a correr, como o vento, ao primeiro
sinal. Atravessavam a floresta sem ruído e Buck ia colado aos calcanhares do
homem peludo, cada um tão alerta e vigilante como o outro, ambos de orelhas
atentas e narinas frementes, porque o homem tinha ouvido e faro tão apurados
como o cão. Aquele homem peludo era capaz de saltar para as árvores e avançar
por elas tão depressa como pelo chão, balançando os braços de ramo em ramo -
saltando por vezes distâncias superiores a três metros -, largando-os e logo os
agarrando, nunca caindo, nunca falhando a mão. De fato parecia tão à vontade
nas árvores como no chão e Buck recordava noites de vigília passadas debaixo
das ramadas onde o homem peludo, empoleirado, dormia.

Parecido com as visões do homem peludo era o apelo que soava nas
profundezas da floresta. Enchia-o de inquietação, de estranhos desejos.
Provocava-lhe uma alegria vaga e doce, a consciência de uma agitação selvagem
e de ansiar não sabia o quê. Por vezes, seguia o apelo, internando-se na floresta,
procurando-o como se fosse uma coisa palpável, ladrando suavemente ou em tom
de desafio, conforme o seu humor. Enterrava o nariz no musgo frio, no solo negro
onde cresciam ervas altas e aspirava com prazer os odores ricos da terra,
agachava-se horas a fio, como se estivesse escondido, atrás de troncos de
árvores caídas, cobertas de fungos, com olhos e ouvidos atentos a tudo o que se
movia e ouvia em redor. Talvez esperasse surpreender, assim escondido, aquele
apelo que não compreendia. Mas não sabia por que fazia todas essas coisas. Era
impelido a fazê-las e não procurava razões.

Era tomado por impulsos irresistíveis. Podia estar estendido no
acampamento, cochilando preguiçosamente no calor do dia, e, de repente, a
cabeça erguia-se, as orelhas levantavam-se, fitas e atentas, e ele punha-se em pé
de um salto e largava a correr, sempre para frente, horas a fio, pelos caminhos da
floresta e através das clareiras onde os animais se juntavam. Adorava descer
leitos de ribeiros secos e ocultar-se a espiar a vida das aves nos bosques. Era
capaz de passar um dia inteiro escondido na vegetação rasteira de onde podia ver
as perdizes bicando e a pavoneando-se de um lado para o outro. Mas adorava
muito especialmente correr - ao crepúsculo pálido das meias-noites de Verão -,
ouvindo os murmúrios abafados e sonolentos da floresta, lendo sinais e sons
como um homem pode ler um livro e buscando a coisa misteriosa que o chamava,
chamava, no sono e na vigília, o chamava sempre.

Uma noite acordou sobressaltado, olhos ansiosos, narinas frementes, o
pêlo eriçando-se em ondas contínuas. Da floresta vinha o apelo (ou uma das suas
notas, porque o apelo percorria toda uma escala), distinto e definido como nunca
até então acontecera - um uivo longo, semelhante e no entanto diferente do som
emitido pelos cães huskies. Ele reconheceu-o, pelo modo que se tornara familiar,
como algo que já ouvira antes. Deixou o acampamento adormecido e correu
silenciosamente pelos bosques. Foi reduzindo o andamento, aproximando-se do
som com movimentos cautelosos, até que chegou a uma clareira e viu um lobo
cinzento, comprido e magro. Estava reto, apoiado sobre os quadris e apontava o
nariz ao céu.

Não fizera qualquer ruído, no entanto o lobo suspendeu o uivo e tentou


farejar a sua presença. Buck avançou para o espaço aberto, o corpo agachado
contraído numa forma compacta, a cauda rígida e reta, as patas pisando com
especial cuidado. Cada movimento exprimia uma mistura de ameaça e de
amizade oferecida. Era a trégua combativa, que pauta o encontro de dois
predadores selvagens. Mas o lobo fugiu ao vê-lo. Buck seguiu-o, dando grandes
saltos, num frenesi para ultrapassá-lo. Desviou-o para um beco sem saída, no leito
de um ribeiro onde um emaranhado de toros barrava o caminho. O lobo voltou-se,
rodando sobre as patas traseiras tal como Joe ou qualquer husky encurralado,
rosnou e eriçou o pêlo, batendo os dentes numa rápida sucessão de dentadas.

Buck não atacou, girou em volta dele, cercando-o de movimentos
amistosos. O lobo estava desconfiado e assustado, porque o cão tinha três vezes

o seu peso e ultrapassava-o uma boa cabeça em altura. Espreitando uma
oportunidade, fugiu de novo e a perseguição recomeçou. De quando em vez era
encurralado e a cena repetia-se. Estava em más condições, caso contrário Buck
não conseguiria alcançá-lo com tanta facilidade. Corria até a cabeça do cão estar
a par com o seu flanco, virava-se na defensiva e voltava a escapar na primeira
oportunidade.
Por fim, a persistência de Buck foi recompensada: concluindo que as suas
intenções não eram más, o lobo acabou por aceder em roçar o nariz no dele.
Fizeram então amizade e brincaram, com os gestos nervosos, algo tímidos, com
que os animais ferozes desmentem a sua ferocidade. Decorrido algum tempo, o
lobo afastou-se num passo elástico, de uma forma que mostrava claramente que
tinha um lugar de destino. Deu a entender a Buck que este devia acompanha-lo e
correram lado a lado no crepúsculo sombrio, subiram o leito do ribeiro até à
nascente e atravessaram a bacia que o alimentava.

Chegados à margem oposta encontraram-se num terreno plano, com
grandes extensões de floresta e diversas torrentes, e por aí seguiram numa
passada regular, hora após hora, enquanto o Sol subia cada vez mais alto e o dia
aquecia. Buck sentia uma extraordinária alegria. Sabia que estava por fim
correspondendo ao apelo, correndo ao lado do seu irmão do bosque em direção
ao lugar de onde ele provinha. A memória antiga voltava-lhe em catadupas,
turbando-o como antes o turbavam as realidades de que essa memória era a
sombra. Já tinha feito aquilo, em algum lugar naquele outro mundo que recordava
obscuramente, e fazia-o agora de novo: corria em liberdade pelo espaço aberto,
com a terra solta sob os pés e o vasto céu sobre a cabeça.

Pararam num regato para beber e Buck lembrou-se de John Thornton.
Sentou-se. O lobo avançou em direção ao lugar de onde provinha o apelo, voltou
atrás, roçou o nariz no seu e tomou atitudes encorajadoras. Mas Buck fez meia
volta e partiu lentamente sobre os seus passos. O irmão selvagem correu a seu
lado perto de uma hora, ganindo com suavidade. Depois sentou-se, apontou o
nariz ao céu e uivou. Foi um uivo lamentoso. Ao prosseguir o seu caminho, Buck
ouviu-o esmorecer até que se perdeu na distância.

John Thornton estava jantando quando o cão irrompeu pelo acampamento
e saltou para ele num frenesi de afeto, fazendo-o cair, trepando por cima dele,
lambendo-lhe o rosto, mordendo-lhe a mão - fazendo figura de bobo, nas palavras
do dono, que o balançava e insultava amorosamente.

Nos dois dias e noites que se seguiram, Buck não saiu do acampamento,


nunca perdeu Thornton de vista. Seguia-o enquanto ele trabalhava, via-o comer,
deitar-se nos cobertores à noite e levantar-se de manhã. Mas ao fim de dois dias,

o apelo da floresta tornou-se mais imperioso que nunca. A sua inquietação
regressou e ele viu-se perseguido por recordações do irmão selvagem e da terra
risonha do outro lado da bacia, da corrida lado a lado através das amplas
extensões de floresta. Voltou a perambular pelos bosques, mas o irmão selvagem
não apareceu e, embora ele gastasse longas vigílias à escuta, não voltou a ouvir o
uivo lamentoso.
Começou a dormir fora, passando dias seguidos longe do acampamento, e
uma vez atravessou a bacia a montante do ribeiro e entrou na terra das árvores e
das torrentes. Aí vagueou uma semana, procurando em vão sinais do seu irmão
selvagem, caçando para comer enquanto caminhava e caminhando com o passo
longo e elástico que parecia não conhecer fadiga. Pescou salmões numa torrente
larga que desaguava em algum lugar no mar e, perto da mesma torrente, matou
um grande urso preto que fora cego pelos mosquitos ao pescar e corria enfurecido
pela floresta, impotente e terrível. Apesar disso, foi uma dura luta, que completou
a ressurreição da ferocidade latente em Buck. Dois dias mais tarde, quando
regressou junto da sua presa e encontrou uma dúzia de texugos disputando-a,
dispersou-os como moscas e os fugitivos deixaram atrás de si dois companheiros
que nada mais poderiam disputar.

O desejo de sangue tornou-se mais forte que nunca. Era um matador, um
predador que se alimentava de criaturas vivas, independente e solitário, que
triunfava pela sua força e coragem num ambiente hostil onde só os fortes
sobreviviam. Adquiriu por isso um grande orgulho em si próprio, que se
comunicava contagiosamente a todo o seu ser físico. Era patente em cada
movimento, transparecia no jogo de cada músculo, estava escrito no seu porte,
tornava o seu glorioso pêlo ainda mais glorioso. Não fora o tom castanho do seu
focinho e da cabeça e a mancha de pêlo branco que lhe corria ao longo do peito,
poderia ser tomado por um lobo gigantesco, maior que o maior exemplar da
espécie. Do seu pai são-bernardo tinha herdado o peso e a corpulência, mas fora
a sua mãe -cão-pastor que lhe dera a forma. O seu longo focinho era o de um
lobo, mas maior que o de qualquer lobo, e a sua cabeça, um tanto mais larga, era
a cabeça. de um lobo, numa escala maior.

A sua astúcia era a astúcia selvagem dos lobos, a sua inteligência
combinava a de um cão-pastor e de um são-bernardo e essas características,
acrescidas da experiência adquirida na mais feroz das escolas, transformavam-no
numa das mais formidáveis criaturas da selva. Carnívoro, desabrochava com uma
dieta exclusiva de carne, estava no apogeu da vida, transbordava de vigor e
virilidade. Quando a mão de Thornton lhe deslizava pelo dorso numa carícia, era
seguida pelo zumbido do magnetismo reprimido em cada cabelo, que se
descarregava ao seu contato. Cada órgão, nervo, tecido ou fibra, estava afinado
com exatidão e todos perfeitamente equilibrados e ajustados entre si. Reagia com
a rapidez do relâmpago a qualquer objeto, som ou acontecimento que exigisse
ação. Por muito rápido que fosse o salto de defesa ou ataque dos huskies, o seu
era duas vezes mais veloz. Via o movimento ou ouvia o som e reagia em menos
tempo que aquele de que outro cão necessitava para compreender o que via ou
ouvia. Buck observava, decidia e agia no mesmo instante. De fato, os três atos de


observar, decidir e agir eram seqüenciais, mas os espaços de tempo entre eles
eram de tal modo infinitesimais que pareciam simultâneos. Os seus músculos
estavam sobrecarregados de vitalidade e saltavam para a ação num momento,
como molas de aço, A vida tumultuava nele numa torrente esplêndida, alegre e
impetuosa, a ponto de parecer que o ia fazer explodir de puro êxtase e derramar-
se generosamente pelo mundo.

- Nunca houve um cão assim - declarou John Thornton um dia em que os
três companheiros observavam Buck caminhando, imponente, para fora do
acampamento.
- Depois de feito, partiu-se o molde -corroborou Pete.
- Com a breca, também acho! - afirmou Hans.
Viram-no sair do acampamento, mas não viram a transformação terrível e
imediata que se operou nele assim que desapareceu no coração da floresta. O
modo de andar modificou-se. Tornou-se imediatamente uma criatura da selva,
avançando suavemente com um pisar felino, esquivo como uma sombra que
aparecesse e desaparecesse entre as sombras. Sabia como tirar partido de cada
acidente do terreno, como rastejar sobre o ventre como uma serpente e, tal como
a serpente, saltar e atacar. Era capaz de arrancar uma ptarmiga do seu ninho, de
surpreender uma lebre no sono e de apanhar em pleno ar os pequenos esquilos
que procuravam o refúgio das árvores com um escasso segundo de atraso. Os
peixes nos lagos abertos não eram muito rápidos para ele, nem os castores que
arranjavam as suas represas muito cautelosos. Matava, não por prazer, mas para
comer, pois preferia comer a sua própria caça. Um misterioso humor manifestava-
se nos seus atos: deliciava-se a surgir de surpresa aos esquilos, fazia menção de
apanhá-los e deixava-os depois fugir - chilreando num susto de morte -- para o
topo das árvores.

Com o Outono chegaram os alces em grande número, migrando
lentamente para sul para enfrentar o inverno nos vales mais baixos e menos
rigorosos. Buck já tinha abatido um novilho tresmalhado, mas ansiava por uma
presa maior e mais temível e encontrou-a um dia na bacia da nascente do ribeiro.
Uma manada de vinte alces tinha chegado das terras de árvores e torrentes e
entre eles havia um macho enorme. Estava com uma disposição feroz e, com os
seus dois metros de altura, era um antagonista tão formidável quanto Buck podia
desejar. O alce agitava de um para outro lado os seus grandes chifres
espalmados, que se abriam em catorze pontas e ultrapassavam os dois metros de
envergadura nas extremidades. Os seus pequenos olhos chisparam com um brilho
cruel e amargo quando bramiu com fúria à vista de Buck.

Do flanco do alce, logo a seguir à espádua, emergia o cabo emplumado de
uma seta, o que explicava a sua ferocidade. Guiado por aquele instinto que
provinha dos velhos dias de caça no mundo primitivo, Buck tratou de afastar o
animal da manada. Não era tarefa fácil: ladrava e dançava à frente dele, no limite
do alcance dos grandes chifres e dos terríveis cascos achatados que podiam
matá-lo de um só golpe. A impossibilidade de virar costas àquele perigo de
caninos aguçados e prosseguir o seu caminho levava o alce a paroxismos de
raiva, carregava então e Buck recuava com astúcia, atraía-o simulando não poder
escapar. Mas mal conseguia afastar o grande macho dos seus companheiros por
esse processo, dois ou três alces mais jovens carregavam também sobre o cão,


permitindo que o animal ferido se juntasse de novo à manada.

Há uma paciência da selva -obstinada, incansável, persistente como a
própria vida -que imobiliza horas sem fim a aranha na sua teia, a serpente nos
seus anéis, a pantera na sua emboscada. Essa paciência é particularmente
notável no ser que caça o seu alimento vivo - e era com ela que Buck se armava
para permanecer nos flancos da manada, retardando-lhe a marcha, irritando os
machos jovens, enchendo as fêmeas de preocupação pelos vitelos e levando o
alce ferido à loucura da fúria impotente. Assim decorreu metade do dia. Buck
multiplicava-se, atacava por todos os lados, envolvia a manada num turbilhão
ameaçador, afastava a sua vítima mal ela se juntava aos companheiros,
desgastava a sua paciência de caçados, que é sempre inferior à dos caçadores.

À medida que o dia se extinguia e o Sol baixava sobre o horizonte a
noroeste (a escuridão voltara e as noites de Outono duravam seis horas), os
machos jovens mostravam uma crescente relutância em voltar atrás em defesa do
seu chefe assediado. O Inverno próximo empurrava-os para os pastos mais baixos
e parecia que nunca iriam se livrar daquela criatura incansável que lhes retardava
a marcha. Além disso, não era a vida da manada que estava ameaçada, nem a
dos machos jovens. Uma única vida era exigida e isso importava menos que as
vidas de todos, acabaram por pagar o preço de boa vontade.

Ao cair do crepúsculo, o velho macho contemplava, de cabeça baixa, os
seus companheiros - as fêmeas que conhecera, os vitelos que gerara, os machos
que dominara afastando-se em passo rápido, na luz que esmorecia. Não podia
segui-los, porque à sua frente saltava o terror impiedoso de caninos aguçados que

o não deixava em paz. Pesava bem mais de meia tonelada, tinha vivido uma vida
longa e robusta, plena de lutas e batalhas e no fim enfrentava a morte que lhe
chegava através dos dentes de uma criatura cuja cabeça não ultrapassava os
seus joelhos nodosos.
Daí em diante, noite e dia, Buck não mais deixou a sua presa, não lhe
concedeu um só momento de descanso, não lhe permitiu pastar as folhas das
árvores nem os tenros rebentos dos vidoeiros e salgueiros. Também não
consentiu que o alce ferido mitigasse a sede ardente nas finas correntes de água
que gotejavam no seu percurso. Por vezes, desesperado, o alce lançava-se em
fuga. Buck não tentava detê-lo, limitava-se a seguir facilmente na sua esteira,
satisfeito com o jogo que jogavam, deitando-se quando o alce parava, atacando-o
ferozmente quando ele tentava comer ou beber.

A grande cabeça pendia cada vez mais baixa sob os galhos dos chifres e o
trote trôpego enfraquecia sem cessar. O alce principiou a parar por longos
períodos, com o nariz no chão e as orelhas pendendo desconsoladas, e Buck teve
mais tempo para encontrar água para si próprio e repousar. Nessas ocasiões,
enquanto arquejava com a língua vermelha de fora e os olhos fixos no grande
bovino, parecia-lhe que a face das coisas estava mudando. Sentia uma agitação
nova na região. Outras formas de vida tinham chegado, seguindo a migração dos
alces. Floresta, água e ar pareciam palpitar com a sua presença. A novidade não
se revelava através da vista, do ouvido ou do olfato, mas através de um outro
sentido mais sutil, Não ouvira nem vira nada de extraordinário, mas sabia que a
região estava de algum modo diferente, que novas coisas se erguiam e instalavam
nela. Resolveu investigar assim que concluísse a tarefa que tinha entre mãos.


Por fim, ao cair do quarto dia, abateu o grande alce. Passou um dia e uma
noite ao lado da carcaça, comendo e dormindo, dormindo e comendo. Depois,
sentindo-se repousado, retemperado e robusto, rumou direito ao acampamento e
a John Thornton. Caminhava com o passo longo e fácil e continuou, hora após
hora, sem nunca se perder no caminho emaranhado, avançando direto para casa
através de terreno desconhecido com uma segurança que envergonharia o
homem e a sua agulha magnética.

A consciência de uma agitação nova na região tornava-se mais premente à
medida que a ia percorrendo. Nela se movimentava vida que lá não estivera
durante o Verão. Já não se tratava de uma intuição misteriosa e sutil, mas sim de
um fato. As aves falavam nele, os esquilos chilreavam sobre ele, a própria brisa o
soprava. Parou diversas vezes para farejar o ar fresco da manhã em grandes
tragos, lendo nele uma mensagem que o fazia correr cada vez mais depressa.
Oprimia-o uma sensação de calamidade talvez já consumada e quando
atravessou o último curso de água, chegando ao vale próximo do acampamento,
principiou a caminhar com maior precaução.

Percorridos cinco quilômetros encontrou uma pista fresca que lhe fez eriçar

o pêlo do pescoço. A pista conduzia diretamente ao acampamento e a John
Thornton. Buck apressou-se, veloz e dissimulado, com todos os nervos tensos,
atento à multidão de detalhes que lhe contavam uma história da qual só não sabia
o fim. O seu nariz dava-lhe uma descrição diversificada da passagem da vida que
ele perseguia. Notou o silêncio pesado da floresta. Os pássaros tinham fugido. Os
esquilos haviam se escondido. Viu apenas um: era um sujeito cinzento e macio
que se achatara contra um tronco seco cinzento, de tal modo que parecia fazer
parte dele, ser uma excrescência lenhosa da própria madeira.
Buck deslocava-se como uma sombra escorregadia quando o seu nariz se
voltou subitamente para o lado, como se tivesse sido agarrado e puxado por uma
força consciente. O novo cheiro conduziu-o até um matagal onde encontrou Nig.
Estava deitado de lado, morto no lugar para onde se arrastara, com uma seta
emplumada cravada de cada lado do seu corpo.

Cem metros mais adiante, deu com o corpo de um dos cães de trenó que
Thornton comprara em Dawson. O cão revolvia-se no caminho, no estertor da
morte, e Buck passou por ele sem parar. Do acampamento chegava o som
abafado de muitas vozes, que subiam e desciam numa espécie de cântico. Ao
rastejar em direção à clareira deparou com Hans, deitado de barriga para baixo,
eriçado de setas como um porco espinho. No mesmo instante olhou para o lugar
onde antes estava a cabana de ramos de abeto e viu algo que lhe pôs o pêlo do
pescoço e espáduas em pé. Foi tomado por uma onda incontrolável de cólera.
Rosnou alto com uma ferocidade imensa, sem se dar conta do que fazia. Pela
última vez na sua vida consentiu que a paixão se sobrepusesse à astúcia e à
razão e foi pelo seu grande amor por John Thornton que perdeu a cabeça.

Os yeehats dançavam em torno dos destroços da cabana de ramos de
abeto quando ouviram um rugido assustador e viram um animal, que não se
parecia com nenhum outro que eles conhecessem, precipitar-se para eles. Era
Buck, verdadeiro furacão enfurecido, que se arremessava num frenesi de
destruição. Atirou-se ao homem da frente (era o chefe dos yeehats) e rasgou-lhe a


garganta, de cuja jugular estralhaçada jorrou um rio de sangue. Não se deteve na
sua vítima, feriu passando e abriu no salto seguinte a garganta de um segundo
homem. Era impossível enfrentá-lo. Mergulhou entre os índios, rasgando,
lacerando, destruindo, num movimento constante e terrível que desafiava as setas
descarregadas sobre ele. De fato, os seus movimentos eram tão
inconcebivelmente rápidos e os índios estavam de tal modo próximos, que se
feriam uns aos outros.

Um jovem caçador, tentando acertar Buck no meio de um salto, cravou a
arma no peito de um dos seus companheiros com tal força que a ponta saiu pelas
costas do homem ferido. O pânico dominou então os yeehats, que fugiram
aterrorizados para o bosque, proclamando o advento do espírito mau.

Buck era uma verdadeira encarnação do inimigo, perseguindo os índios e
abatendo-os como veados enquanto eles corriam entre as árvores. Aquele foi um
dia fatal para os yeehats. Dispersaram em todas as direções e só uma semana
mais tarde os últimos sobreviventes se reuniram num vale a sul e contaram as
suas baixas. Quanto a Buck, cansado da perseguição, regressou ao
acampamento, desolado. Encontrou Pete no lugar onde o tinham morto,
surpreendido ainda entre os cobertores.

A luta desesperada de Thornton estava escrita na terra, e o cão farejou
cada pormenor até à beira de um charco profundo. Aí tombara Skeet, com a
cabeça e as patas dianteiras dentro de água, fiel até ao fim. O charco, que o
trabalho das calhas tinha tornado descolorido e lamacento, escondia eficazmente

o seu conteúdo, que não era senão John Thornton. Buck seguira a pista até à
água e não encontrara sinais além dela.
Passou o dia, ora cismando à beira do charco ora perambulando inquieto
pelo acampamento. Conhecia a morte, como ausência de movimento, como
passagem para longe das vidas dos que viviam, e sabia que John Thornton estava
morto. Deixava um grande vazio dentro dele, semelhante ao da fome, mas que
doía, doía e a comida não conseguia preencher. Por vezes, quando parava para
contemplar os corpos dos yeehats, esquecia a dor e tinha consciência de um
grande orgulho em si próprio, um orgulho como nunca antes experimentara.
Matara o homem, a mais nobre das caças, e fizera-o à face da lei do bastão e das
presas. Farejava os corpos com curiosidade. Tinham morrido tão facilmente. Era
mais difícil matar um hiísk. Não fora as suas setas, lanças e bastões e não
estariam à sua altura. Daí em diante não os temeria, a menos que empunhassem
as suas setas, as suas lanças, os seus bastões.

A noite caiu e a lua cheia ergueu-se bem acima das copas das árvores,
subindo no céu até que a sua luz banhou a terra num dia fantasmagórico.
Cismando e carpindo à beira do charco ao cair da noite, Buck sentiu a agitação de
uma nova vida na floresta, diferente da que os yeehats tinham trazido. Levantou-
se, escutando e farejando. Ao longe soava um uivo fraco e agudo, logo seguido de
um coro de uivos igualmente agudos. Aproximavam-se, tornavam-se mais nítidos.
Mais uma vez Buck os reconheceu como algo que ouvira nesse outro mundo que
trazia na memória. Dirigiu-se ao centro da clareira e escutou. Era o apelo, o apelo
de múltiplas notas, que soava mais atraente e irresistível do que nunca. E, como
nunca até então, Buck estava pronto a obedecer. John Thornton morrera,
rompera-se o último laço. O homem e as suas pretensões não o prendiam mais.


Caçando como os yeehats o seu alimento vivo nos flancos das manadas de
alces em migração, a alcatéia tinha finalmente partido da terra de árvores e
torrentes e invadido o vale de Buck. Derramou-se como uma enchente prateada
pela clareira banhada de luar, no centro da qual Buck a esperava imóvel como
uma estátua. O seu tamanho e a sua imobilidade impressionaram os lobos, que
pararam por um momento, até que o mais corajoso atacou. Buck partiu-lhe o
pescoço com a rapidez do relâmpago e voltou a imobilizar-se, enquanto o lobo
ferido rolava agonizando atrás de si, Três outros lobos tentaram a sua sorte, em
rápida seqüência, acabando por recuar, um após outro, escorrendo sangue de
gargantas ou espáduas rasgadas. Era quanto bastava para que toda a alcatéia
avançasse, densa e desordenada, bloqueada e confusa na sua ânsia de abater a
presa. Valeram a Buck a sua maravilhosa rapidez e agilidade. Rodando sobre as
patas traseiras, mordendo e cortando, estava em toda a parte ao mesmo tempo,
apresentava-se sempre de frente, pois tão depressa se voltava e defendia de um
lado como do outro. Mas a necessidade de evitar que o atacassem pelas costas o
fez recuar para lá do charco e ao longo do leito do ribeiro, até que encontrou um
talude alto de cascalho. Procurou uma reentrância feita pelos homens no decurso
do seu trabalho e aí se abrigou, protegido por três lados, tendo apenas a frente
para defender.

E tão bem a defendeu que ao fim de meia hora os lobos recuaram
descompostos. Todos tinham a língua pendente brilhavam com uma brancura
cruel ao luar. Alguns, deitados, mantinham as cabeças erguidas e as orelhas fitas,
outros permaneciam de pé e observavam-no, outros, ainda, bebiam água no
charco. Um lobo, comprido, esbelto e cinzento, adiantou-se cautelosamente,
exibindo uma atitude amistosa, e Buck reconheceu o irmão selvagem com o qual
correra uma noite e um dia. Gania baixinho e, quando Buck ganiu em resposta,
roçaram os narizes.

Avançou então um lobo velho, descarnado e coberto de cicatrizes. Buck
arreganhou os lábios num preliminar de rosnado, mas roçou o nariz com ele. Feito
isto, o velho lobo sentou-se, ergueu o focinho à Lua e lançou o longo uivo da sua
espécie. Todos os lobos se sentaram e uivaram e o apelo chegou a Buck, em tons
inconfundíveis. Também ele se sentou e uivou. Terminado este rito, saiu da sua
reentrância e a alcatéia juntou-se em seu redor, cheirando-o, meio amistosa, meio
selvagem. Os chefes soltaram o grito da alcatéia e partiram em direção ao
bosque. Os outros lobos seguiram, uivando em coro. E Buck correu e uivou com
eles, lado a lado com o irmão selvagem.

Acabemos assim a história de Buck.

Não se passaram muitos anos até os yeehats notarem alterações na raça
dos lobos cinzentos: viam-se alguns com manchas castanhas na cabeça e no
focinho e com uma lista branca ao longo do peito. Mas mais notável ainda é a
lenda que os yeehats, contam de um cão-espírito que corre à frente da alcatéia.
Eles temem este cão-espírito, porque é mais astuto que eles, rouba-lhes os
acampamentos nos Invernos mais duros, assalta-lhes as armadilhas, mata-lhes os
cães e desafia os seus mais bravos caçadores.

Não, a lenda é pior ainda. Caçadores há que não regressam ao
acampamento e caçadores houve que foram encontrados pela tribo com as
gargantas cruelmente rasgadas, tendo na neve em seu redor pegadas de lobo


maiores que as de qualquer lobo. E há um vale onde os yeehats nunca passam,
quando seguem a migração de Outono dos alces. E algumas mulheres
entristecem quando se fala, em volta do fogo, de como o espírito mau escolheu
aquele vale para sua morada.

Todos os Verões, no entanto, chega a esse vale um visitante de que os
yeehats não têm conhecimento. É um lobo grande, com um pêlo glorioso, igual e
no entanto diferente de todos os outros lobos. Vem sozinho da terra risonha das
florestas e desce até uma clareira aberta entre as árvores. Aí, uma torrente
amarela escorre de um monte de sacos de pele de alce apodrecidos e afunda-se
na terra, com ervas altas crescendo através dela e o húmus a cobri-la,
escondendo do Sol o seu tom amarelo. E aí o lobo passa algum tempo, cismando,
soltando um longo e lamentoso uivo antes de partir.

Mas esse lobo nem sempre está só. Quando chegam as longas noites de
Inverno e os lobos perseguem o seu sustento até aos vales do Sul, ele pode ser
visto correndo à frente da alcatéia, envolto no luar pálido ou no brilho das auroras
boreais, sobressaindo entre os seus companheiros como um gigante, a garganta
ressonante ao cantar a canção do mundo jovem que é a canção da alcatéia.

FIM


Jack London - O Apelo Da Selva



 

"O Apelo da Selva" é a narrativa da vida de um cão que retrata, na verdade, a luta do Homem. Buck reinava sobre seus parentes animais e enfrentava o frio brutal e ainda mais brutais eram os homens, duros, que, literalmente, lhe batiam e chicoteavam, sua vida é extremamente triste e incomodativa.

Triste era também a vida dos outros cães ao seu redor, que preenchiam as vagas do trenó. Caurly, Dave, Spitz são seus companheiros de viagem, o primeiro nunca tem uma boa hipótese, o segundo é insuportável e indomável e o último foi forçado a ser selvagem.

Apesar dos trabalhos de Buck serem longos e duros, o personagem é um herói e guarda a nobreza de espírito, apesar de seus instintos serem primitivos.

A história de London não é feliz, mas é bela, poderosa e sombria, se aproximando infinitamente do real.


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Boa leitura
Abraços.

M. Loureiro

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"Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos."

Henry Miller





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