sexta-feira, 7 de outubro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> anexo: Vargas Llosa - A casa verde


A CASA VERDE

Mario Vargas Llosa

Publicado em 1971


Obs: a paginação é inferior.

Nota da edição: todas as notas de pé de página são do tradutor.

PRIMEIRA PARTE

O sargento lança um olhar à Madre Patrocínio e a varejeira continua lá. A lancha cabeceia sobre as águas turvas, entre duas

muralhas de árvores que exalam um bafo
abrasador, pegajoso. Encolhidos sob a tolda, nus da cintura para cima, os guardas dormem abrigados pelo esverdeado, amarelado

sol do meio-dia: a cabeça de Chiquito
jaz sobre o ventre do Pesado, o Rubio sua em bicas, o Oscuro ressona com a boca aberta. Uma nuvenzinha de mosquitos escolta

a lancha, entre os corpos evoluem borboletas,
vespas, moscas gordas. O motor ronca igual, entope, ronca e o prático
Nieves segura o timão com a esquerda, com a direita
fuma, e seu rosto, muito lustroso, permanece
inalterável sob o chapéu de palha. Essa gente da selva não era normal, por que não suava como os demais cristãos?. Empertigada
na popa, Madre Angélica está com
os olhos fechados, em seu rosto há pelo menos mil rugas, de vez em quando estica uma pontinha de língua, sorve o suor do

buço e cospe. Pobre velhinha, não dava mais
para essas proezas. A varejeira bate as asinhas azuis, salta com suave impulso da testa rosada de Madre Patrocínio, perde-se

traçando círculos na luz branca, e
o prático ia apagar o motor, sargento, já estavam chegando, atrás dessa quebrada vinha
Chicais'. Mas o coração dizia ao
sargento não haverá ninguém. Cessa o ruído
do motor, as madres e os guardas abrem os olhos, levantam as cabeças, olham. De pé, o prático Nieves ladeia o remo à direita
e à esquerda, a lancha se aproxima da
margem silenciosamente,
' Povoado indígena, à margem do Piura, Peru.
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os guardas se levantam, põem as camisas, os quepes, ajustam as perneiras. A paliçada vegetal da margem direita se interrompe
bruscamente, passado o cotovelo do
rio, e aparece um barranco, um breve parêntese de terra avermelhada, que desce até uma minúscula enseada de lama, calhaus,
matos de bambus e de samambaias. Não se
vê nenhuma canoa na margem, nenhuma silhueta humana no barranco. A embarcação encalha, Nieves e os guardas saltam, chapinham
no lodo plúmbeo. Um cemitério, o coração
não enganava, tinham razão os mangaches'. O sargento está curvado sobre a proa, o prático e os guardas arrastam a lancha
para a terra seca. Que ajudassem as madrezinhas,
fizessem cadeirinha-de-mão, que não se molhassem. Madre Angélica permanece muito séria nos braços do Oscuro e do Pesado,
Madre Patrocínio vacila quando o Chiquito
e o Rubio unem as mãos para recebê-la e, ao se deixar cair, enrubesce como um camarão. Os guardas atravessam a praia bamboleando,
depositam as madres onde acaba
a lama. O sargento salta, chega ao pé do barranco, e Madre Angélica está subindo a ladeira, muito expedita, seguida pela
Madre Patrocínio, ambas engatinham, desaparecem
entre redemoinhos de pó vermelho. A terra do barranco é solta, cede a cada passo, o sargento e os guardas avançam afundados
até os joelhos, agachados, afogados no
pó, o lenço na boca, o Pesado espirrando e cuspindo. No alto, limpam as fardas uns dos outros e o sargento observa: uma
clareira circular, um punhado de cabanas
de teto cônico, pequenas plantações de mandioca e bananas e, em toda a volta, mata fechada. Entre as cabanas, pequenas árvores
com bolsas ovaladas, que pendem dos
ramos; ninhos de xexéus. Ele havia dito, Madre Angélica o constatava, nenhuma alma, já iam ver. Madre Angélica anda de um
lado para outro, entra em uma cabana, sai
e mete a cabeça na do lado, espanta com palmadas as moscas, não pára um segundo e, assim, à distância, esfumada pelo pó,
não é uma anciã, mas um hábito ambulante,
ereto, uma sombra muito ativa. Em contrapartida, Madre Patrocínio está imóvel, as mãos escondidas no hábito, e seus olhos
percorrem uma e outra vez o povoado vazio.
Uns ramos se agitam e há guinchos, uma esquadrilha de asas verdes, bicos negros e peitos azuis revoluteia sonoramente sobre
as desertas cabanas de Chicais, os guardas
e as madres seguem-na até que a selva a engula, sua gritaria dura ainda um instante. Havia papagaios, era bom saber, caso
faltasse comida.
' Habitantes da Mangachería, subúrbio de Piura.
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Mas davam disenteria, madre, quer dizer, afrouxavam o estômago da gente. No barranco aparece um chapéu
de palha, o rosto queimado do prático Nieves:
quer dizer que os aguarunas' se espantaram, madrezinhas. De pura teimosia, quem mandou não lhe darem ouvidos. Madre Angélica
se aproxima, olha aqui e ali com os
olhinhos enrugados, e suas mãos nodosas, rígidas, de sardas castanhas, agitam-se diante do rosto do sargento: estavam perto
daqui, não levaram suas coisas, tinham
que esperar até que voltassem. Os guardas se entreolham, o sargento acende um cigarro, dois xexéus vão e vêm pelo ar, suas
plumas negras e douradas reluzem com
brilhos úmidos. Também passarinhos, havia de tudo em Chicais. Menos aguarunas, e o Pesado ri. Por que não pegá-los desprevenidos?
Madre Angélica está ofegante, por
acaso não os conhecia, madrezinha? o penacho de pêlos brancos de seu queixo treme suavemente, tinham medo dos cristãos e
se escondiam, nem sonhasse que iam voltar,
enquanto estivessem aqui não veriam nem o rastro deles. Pequena, roliça, Madre Patrocínio está ali também, entre o Rubio
e o Oscuro. Mas no ano passado eles não
se esconderam, vieram recebê-los e até serviram um tambaqui fresquinho, não se lembrava, sargento? É que então não sabiam,
Madre Patrocínio, agora sim, que entendesse
isso. Os guardas e o prático Nieves sentam-se no chão, se descalçam, o Oscuro abre o cantil, bebe e suspira. Madre Angélica
levanta a cabeça: que armem as barracas,
sargento, um rosto desbotado, ponham os mosquiteiros, um olhar líquido, esperariam que voltassem, uma voz alquebrada, e
que não ficasse com essa cara, ela tinha
experiência. O sargento joga o cigarro, enterra-o a pisadelas, que importava, rapazes, que se mexessem. E nisso brota um
cacarejo e um matagal cospe uma galinha,
e o Rubio e o Chiquito gritam de alegria, negra, perseguem-na, com pintas brancas, capturam-na, e os olhos da Madre Angélica
chispam, bandidos, que é que estavam
fazendo, seu punho vibra no ar, mas era sua? que a soltassem, e o sargento, que a soltassem, mas, madres, se iam ficar,
necessitavam comer, não estavam para passar
fome. Madre Angélica não permitiria abusos, que confiança podiam ter neles se roubavam seus animaizinhos? E Madre Patrocínio
concorda, sargento, roubar era ofender
a Deus, com seu rosto redondo e saudável, não conhecia os mandamentos?
' Selvagens que, com os huambisas, formam a grande tribo dos jívaros, no Peru. Vivem nas margens do Marañón e na região
do Nieva.
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A galinha toca o chão, cacareja, bate as asas, foge requebrando, e o sargento encolhe os ombros: por que se iludiam? elas
os conheciam, tanto ou mais que
ele. Os guardas afastam-se até o barranco, nas árvores gritam de novo os papagaios e os xexéus, há zumbidos de insetos,
uma brisa leve agita as folhas de jarina
dos telhados de Chicais. O sargento afrouxa as perneiras, rosna entre dentes, tem a boca torcida, e o prático Nieves lhe
dá um tapinha no ombro, sargento: que não
ficasse de mau humor e considerasse as coisas com calma. E o sargento aponta para as madres furtivamente, Dom Adrián, esses
trabalhinhos arrebentavam sua alma.
Madre Angélica tinha muita sede e talvez um pouco de febre, o espírito continuava forte, mas o corpo já estava cheio de
achaques, Madre Patrocínio e ela, não, não,
que não dissesse isso, Madre Angélica, agora que os guardas se foram tomaria uma limonada e se sentiria melhor, ia ver.
Falavam mal de sua pessoa? o sargento olha
os arredores com olhos distraídos, pensavam que era um babaca? abana-se com o quepe, esse par de
urubus'! e de repente volta-se
para o prático Nieves: segredos
diante dos outros era falta de educação, e ele, olhe, sargento, os guardas voltavam correndo. Uma canoa? e o Oscuro, sim,
com aguarunas? e o Rubio, sim, meu sargento,
e o Chiquito, sim, e o Pesado e as madres, sim, sim, vão e perguntam e vêm sem rumo, e o sargento, que o Rubio voltasse
ao barranco e avisasse se subiam, que os
demais se escondessem e o prático Nieves recolhe as perneiras do chão, os fuzis. Os guardas e o sargento entram numa cabana,
as madres continuam na clareira, madrezinhas,
que se escondessem, Madre Patrocínio, rápido, Madre Angélica. Elas se olham, cochicham, dão pulinhos, entram na cabana da
frente e, do mato que o oculta, o Rubio
aponta o rio com um dedo, já desciam, meu sargento, amarravam a canoa, já subiam, meu sargento, e ele, medroso, que viesse
e se escondesse, Rubio, não durma no
ponto. Estendidos de bruços, o Pesado e o Chiquito espiam o exterior pelas fendas do tabique de lascas de juçara, o Oscuro
e o prático Nieves estão de pé no fundo
da cabana e o Rubio chega correndo, acocora-se junto ao sargento. Aí estavam, Madre Angélica, já aí estavam, e Madre Angélica
podia ser velha mas tinha boa vista,
Madre Patrocínio, via-os, eram seis.
' No original, gallinazas, alusão ao hábito das freiras e à Gallinacera, favela de negros em Piura, de onde viera o sargento.
Gallinazo, no caso, é uma espécie de
corvo negro, aura.
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A velha, cabeluda, veste uma tanga esbranquiçada e dois tubos de carne mole e escura lhe pendem até a cintura. Atrás dela,
dois homens de idade imprecisa,
baixos, barrigudos, de pernas esqueléticas, o sexo coberto com retalhos de fazenda ocre, seguros por cipós, as nádegas peladas,

os cabelos cortados até as sobrancelhas.
Carregam cachos de banana. Depois vêm duas meninas com diademas de fibras, uma leva argola no nariz, a outra, aros de couro

nos tornozelos. Estão nuas como o menino
que as segue, ele parece menor e é mais magro. Olham a clareira deserta, a mulher abre a boca, os homens sacodem as cabeças.

Vão falar com eles, Madre Angélica?
e o sargento, sim, aí vão as madres, atenção, rapazes. As seis cabeças giram ao mesmo tempo, permanecem paradas. As madres

avançam para o grupo a passos iguais,
sorrindo, e simultâneos, quase imperceptíveis, os aguarunas aproximam-se uns dos outros, logo formam um só corpo terroso

e compacto. Os seis pares de olhos não se
afastam das duas figuras de pregas negras que flutuam em sua direção, e se ficassem bravos tinham que sair correndo, rapazes,

nada de tirinhos, nada de assustá-los.
Deixavam as freiras se aproximar, meu sargento, o Rubio pensava que fugiriam ao vê-las. E que delicadinhas eram as crianças,

que novinhas, não é, meu sargento? este
Pesado não tinha cura. As madres param e, ao mesmo tempo, as meninas recuam, estendem as mãos, agarram as pernas da velha,

que começou a bater nos próprios ombros
com a mão aberta, cada tapa estremece as compridíssimas tetas, balança-as: que o Senhor estivesse com eles. E Madre Angélica

dá um grunhido, cospe, lança um jorro
de sons rangentes, rudes e sibilantes, se interrompe para cuspir, e magnífica, marcial, continua grunhindo, suas mãos evolucionam,

desenham traços solenes ante os
imóveis, pálidos, impassíveis rostos aguarunas. A madrezinha falava com eles em pagão, rapazes, cuspia igualzinho às selvagens.

Isso tinha que agradar àquela gente,
meu sargento, que uma cristã falasse no idioma deles, mas que fizessem menos barulho, se ouvissem, eles se espantariam.

Os grunhidos de Madre Angélica chegam à cabana
nítidos, fortes, destemperados, e também o Oscuro e o prático Nieves espiam agora a clareira, as caras grudadas no tabique.
Metera-os no bolso, rapazes, que sabida
era a freirinha, e as madres e os dois aguarunas sorriem, trocam reverências. E ainda mais, cultíssima, o sargento sabia
que na missão ficavam o tempo todo estudando?
Seria melhor rezando, Chiquito, pelos pecados do mundo. Madre Patrocínio sorri para a
velha,
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ela desvia os olhos e continua muito séria, as mãos nos ombros das meninas. Que estariam dizendo, meu sargento, como falavam.
Madre Angélica e os dois homens
fazem caretas, trejeitos, cospem, se interrompem e, logo, as três crianças afastam-se da velha, correm, riem alto. O menino

estava olhando para eles, rapazes, não
tirava o olho daqui. Que magrinho era, o sargento tinha notado? uma tremenda cabeçorra e tão pouquinho corpo, parecia aranha.

Sob a mata de cabelos, os olhos grandes
do menino apontavam fixamente para a cabana. Está queimado como uma formiga, suas pernas são curvas e magrelas. De repente,

levanta a mão, grita, rapazes, filho
da puta, meu sargento, e há uma violenta agitação atrás do tabique, palavrões, encontrões, e estalam vozes guturais na clareira

quando os guardas a invadem, correndo
e tropeçando. Que baixassem esses fuzis, burros ', Madre Angélica mostra aos guardas as mãos iracundas, ah, já se queixaria

ao tenente. As duas meninas escondem
a cabeça no peito da velha, aplastam seus seios moles, e o menino continua desorientado, a meio caminho entre os guardas

e as madres. Um dos aguarunas solta o cacho
de banana, nalgum lugar cacareja a galinha. O prático Nieves está na entrada da cabana, o chapéu de palha para trás, um

cigarro entre os dentes. Que estava pensando
o sargento, e Madre Angélica dá um pulinho, por que se metia onde não era chamado? Mas se baixavam os fuzis virariam picadinho,

madre, ela mostra o punho sardento,
e ele, que baixassem os máuseres, rapazes. Suave, contínua, Madre Angélica fala aos aguarunas, as mãos tensas desenham figuras

lentas, persuasivas, pouco a pouco
os homens perdem a rigidez, agora respondem com monossílabos, e ela, risonha, inexorável, não pára de grunhir. O menino

aproxima-se dos guardas, examina os fuzis,
apalpa-os, o Pesado dá um tapinha na testa dele, ele se agacha e grita, era desconfiado o puto, e o riso sacode a flácida

cintura do Pesado, sua papada, as bochechas.
Madre Patrocínio se altera, desavergonhado, o que estava dizendo, por que os desrespeitava assim, seu grosseiro, e o Pesado,

mil desculpas, meneia a confusa cabeça
de boi, escapou sem querer, madre, tem a língua solta. As meninas e o menino circulam entre os guardas, examinam, tocam

neles com a
ponta dos dedos.
' No original, alcomoques; alcomoque é, em espanhol, ao mesmo tempo, uma árvore (fagácea), de madeira duríssima, e uma pessoa
ignorante, burra. O autor usa alcomoque
para um jogo de palavras, adiante, neste mesmo capítulo.
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Madre Angélica e os dois homens grunhem amistosamente e o sol brilha ainda distante, mas os arredores estão encobertos e
sobre a mata amontoa-se
outra mata de nuvens brancas e copadas: choveria. Madre Angélica os insultara antes, madre, e eles, o que tinham dito? Madre

Patrocínio sorri, pedaço de asno, alcomoque
não era um insulto, mas uma árvore dura como a cabeça dele, e Madre Angélica volta-se para o sargento: comeriam com eles,

que trouxessem os presentinhos e as limonadas.
Ele concorda, dá instruções ao Chiquito e ao Rubio, aponta o barranco, as bananas verdes e peixe cru, rapazes, um banquetaço

filho da puta. As crianças vadiam em
volta do Pesado, do Oscuro e do prático Nieves, e Madre Angélica, os homens e a velha arrumam folhas de bananeira no chão,

entram nas cabanas, trazem recipientes
de barro, mandioca, acendem uma pequena fogueira, envolvem bagres e bocachicas com as folhas que amarram com cipós, e os

aproximam da chama. Iam esperar os outros,
sargento? Seria um nunca acabar, e o prático Nieves joga seu cigarro, os outros não voltariam, foram embora, não queriam

visitas, e esses caras aí fugiriam ao primeiro
descuido. Sim, o sargento sabia, só que era inútil discutir com as madrezinhas. Chiquito e Rubio voltam com bolsas e garrafas

térmicas, as madres, os aguarunas
e os guardas estão sentados em círculo, diante das folhas de bananeira, e a velha afugenta os insetos com palmadas. Madre

Angélica distribui os presentes que os
aguarunas recebem sem dar mostras de entusiasmo, mas logo, quando as madres e os guardas começam a comer pedacinhos de peixe,

que cortam com as mãos, os dois homens,
sem se olhar, abrem as bolsas, acariciam espelhinhos e colares, repartem as contas coloridas, e nos olhos da velha acendem-se

súbitas luzes cobiçosas. As meninas
disputam uma garrafa, o menino mastiga com raiva, e o sargento adoeceria do estômago, merda, viriam diarréias, incharia

como um sapo barrigudo, apareceriam bolotas
no corpo, rebentariam e sairia pus. Tem o pedaço de peixe à beira dos lábios, seus olhinhos piscam, e o Oscuro, o Chiquito

e o Rubio fazem caretas também, Madre
Patrocínio fecha os olhos, engole, o rosto se crispa, e só o prático Nieves e Madre Angélica estendem as mãos constantemente

até as folhas de bananeiras, e, com
uma espécie de regozijo pressuroso, esmiuçam a carne branca, limpam-na de espinhas, levam-na à boca. Todos os da selva eram

um pouco bárbaros, até as madres, como
comiam. O sargento arrota, todos olham para ele e ele tosse. Os aguarunas
puseram os colares,
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mostram-nos um ao outro. As bolinhas de vidro são granadas e contrastam com a tatuagem que adorna o peito do que usa seis
pulseiras de continhas
num braço, três no outro. A que horas partiriam, Madre Angélica? Os guardas olham o sargento, os aguarunas deixam de mastigar.

As meninas estendem as mãos, tocam
timidamente os colares ofuscantes, as pulseiras. Tinham de esperar os outros, sargento. O aguaruna da tatuagem grunhe e

Madre Angélica, sim, sargento, estava vendo?
que comesse, ofendia-os com tanto nojo. Ele não tinha apetite, mas queria lhe dizer uma coisa, madrezinha, não podiam ficar

mais tempo em Chicais. Madre Angélica
tem a boca cheia, o sargento viera para ajudar, sua mão miúda e pétrea abre uma garrafa térmica de limonada, não para dar

ordens. O Chiquito também ouvira o tenente,
que foi que dissera? e ele, que voltassem antes de oito dias, madre. Já levavam cinco, e quantos para voltar, Dom Adrián?

Três dias, desde que não chovesse, compreendia?
eram ordens, madre, que não se zangasse com ele. Junto ao rumor da conversa entre o sargento e Madre Angélica há outro,

áspero: os aguarunas dialogam em voz alta,
batem os braços e comparam suas pulseiras. Madre Patrocínio engole e abre os olhos, e se os outros não voltassem? e se demorassem

um mês para voltar? claro que era
só uma opinião, e fecha os olhos, talvez se enganasse, e engole. Madre Angélica franze o cenho, brotam novas rugas no seu

rosto, a mão acaricia a mechinha de pêlos
brancos do queixo. O sargento bebe um gole do seu cantil: pior que purgante, tudo ficava quente nesta terra, não era como

o calor de sua terra, o daqui apodrecia
tudo. O Pesado e o Rubio deitam-se de costas, os quepes sobre o rosto, e o Chiquito queria saber se alguém sabia disso,

Dom Adrián, e o Oscuro, é verdade, que continuasse,
que contasse, Dom Adrián. Eram meio peixe e meio mulher, estavam no fundo das lagunas, esperando os afogados, e nem bem

virava uma canoa vinham e agarravam os cristãos
e os levavam para seus palácios no fundo. Punham-nos em umas redes, que não eram de juta mas de cobras, e aí se davam ao

prazer com eles e a Madre Patrocínio, já
estavam falando de superstições? eles não, não, e pensavam ser cristãos? nada disso, madrezinha, falavam sobre se ia chover.

Madre Angélica inclina-se para os aguarunas,
grunhindo docemente, sorrindo com obstinação, tem as mãos enlaçadas, e os homens, sem se mexer do lugar, endireitam-se pouco

a pouco, esticam os pescoços como as
garças quando tomam banho de sol, à beira do rio, e aparece um
vaporzinho,
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e algo os assombra, dilata suas pupilas e o peito de um deles incha, a tatuagem se destaca, apaga, destaca e, aos
poucos, eles se adiantam até Madre Angélica,
muito atentos, graves, mudos, e a velha cabeluda abre as mãos, agarra as meninas. O menino continua comendo, rapazes, chegava

a parte mais dura, atenção. O prático,
o Chiquito e o Oscuro se calam. O Rubio levanta-se com os olhos avermelhados e sacode o Pesado, um aguaruna olha o sargento

de viés, depois o céu e agora a velha
abraça as meninas, incrusta-as em seus seios abundantes e riscados, e os olhos do menino giram da Madre Angélica para os

homens, destes para a velha, desta para
os guardas e para a Madre Angélica. O aguaruna da tatuagem começa a falar, o outro o acompanha, a velha, uma tormenta de

sons afoga a voz de Madre Angélica, que
agora nega com a cabeça e com as mãos e, imediatamente, sem deixar de roncar nem de cuspir, lentos, cerimoniosos, os dois

homens despojam-se dos colares, das pulseiras,
e há uma chuva de continhas sobre as folhas de bananeiras. Os aguarunas estendem as mãos para os restos do peixe, entre

os quais percorre um delgado rio de formigas
pardas. Já tinham ficado xucros, rapazes, mas eles estavam prontos, meu sargento, quando ele mandasse. Os aguarunas limpam

as sobras de carne branca e azul, agarram
com as unhas as formigas, esmagam-nas e, com muito cuidado, envolvem a comida nas folhas venosas. Que o Chiquito e o Rubio

se encarregassem das crianças, o sargento
as recomendava, e o Pesado, que sortudos. Madre Patrocínio está muito pálida, move os lábios, os dedos apertam as contas

negras de um rosário, isso mesmo, sargento,
que não esquecessem que eram meninas, já o sabia, já o sabia, e que o Pesado e o Oscuro mantivessem os pelados quietos,

e que a madre não se preocupasse, e Madre
Patrocínio, ai deles se cometessem brutalidades, e o prático se encarregaria de levar as coisas, rapazes, nada de brutalidades:

Santa Maria, Mãe de Deus. Todos contemplam
os lábios exangues de Madre Patrocínio, e ela, Rogai por nós, tritura com os dedos as bolinhas negras, e Madre Angélica,

acalme-se, madre, e o sargento, já, era
a hora. Põem-se de pé, sem pressa. O Pesado e o Oscuro sacodem as calças, agacham-se, pegam os fuzis e há correrias agora,

gritos, e na hora, pisadelas, o menino
esconde o rosto, de nossa morte, os dois aguarunas ficam rígidos, amém, seus dentes batem e seus olhos olham, perplexos,

os fuzis que lhes apontam. Mas a velha está
de pé, lutando com o Chiquito, e as meninas debatem-se como enguias entre os braços do Rubio.
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Madre Angélica cobre a boca com um lenço, a poeira cresce e se espessa, o Pesado espirra e o sargento, pronto, podiam ir
para o barranco, rapazes, Madre Angélica.
E quem ajudava o Rubio, o sargento, não via que escapavam? O Chiquito e a velha rolam pelo chão abraçados, que o Oscuro

fosse ajudá-lo, o sargento o substituiria,
vigiaria o pelado. As madres caminham para o barranco, levadas pelo braço, o Rubio afasta duas figuras entrelaçadas e gesticulantes,

e o Oscuro sacode furiosamente
a cabeleira da velha até que solte o Chiquito e ele se levante. Mas a velha salta atrás deles, alcança-os, arranha-os, e

o sargento, pronto, o Pesado, se foram.
Sempre apontando para os dois homens, recuam, deslizam sobre os calcanhares, e os aguarunas levantam-se ao mesmo tempo e

avançam imantados pelos fuzis. A velha pula
como um barrigudo, cai e prende dois pares de pernas, o Chiquito e o Oscuro cambaleiam, Mãe de Deus, caem também, e que

Madre Patrocínio não desse esses gritos.
Uma rápida brisa vem do rio, escala a ladeira, há ativos e envolventes torvelinhos alaranjados e grãos de terra pesada,

aéreos como varejeiras. Os dois aguarunas
se mantêm dóceis frente aos fuzis, e o barranco está muito próximo. E se escapassem, o Pesado podia atirar? e Madre Angélica,

estúpido, podia matá-los. O Rubio pega
pelo braço a menina da argola, por que não desciam, sargento? a outra, pelo pescoço, escapavam, agorinha mesmo escapavam,

e elas não gritam, mas se debatem, e suas
cabeças, ombros, pés e pernas lutam e golpeiam e empurram, e o prático Nieves passa carregado de garrafas térmicas: que

se apressasse, Dom Adrián, não esquecera
nada? Não, nada, quando o sargento quisesse. O Chiquito e o Oscuro seguram a velha pelos ombros e cabelos, e ela está sentada,

gritando, de vez em quando bate sem
força nas pernas deles, e bendito era o fruto, madre, madre, de seu ventre, e escapavam do Rubio, Jesus. O homem da tatuagem

olha o fuzil do Pesado, a velha grita
e chora, dois fios úmidos abrem finíssimos canais na crosta de pó de seu rosto, e que o Pesado não se fizesse de louco.

Mas se fugia, sargento, partia o seu crânio,
ainda que a coronhadas, sargento, e se acabava a brincadeira. Madre Angélica tira o lenço da boca: estúpido, por que dizia

maldades? por que o sargento permitia
isso? e Rubio, podia ir descendo? essas bandidas o esfolavam. As mãos das meninas não alcançam o rosto do Rubio, só seu

pescoço, cheio de risquinhos violáceos, e
rasgaram sua camisa e arrancaram os botões. Parecem desanimar às vezes, afrouxam o corpo e gemem, e de novo atacam,
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seus pés descalços chocam-se contra as perneiras do Rubio, ele pragueja e as sacode, elas continuam a resistir em silêncio,
e que a madre descesse, o que esperava,
e também o Rubio, e Madre Angélica, por que as apertava assim se eram crianças? de seu ventre Jesus, madre, madre. Se o

Chiquito e o Oscuro soltassem a velha, ela
se atiraria em cima deles, sargento, que fariam? e o Rubio, que ela as pegasse, então, madre, não via como o arranhavam?

O sargento mexe com o fuzil, os aguarunas
resmungam, dão um passo atrás, e o Chiquito e o Oscuro soltam a velha, ficam com as mãos prontas para se defender, mas ela

não se move, esfrega os olhos apenas,
e aí está o menino como que segregado pelos redemoinhos: fica de cócoras e afunda o rosto entre as tetas meladas. O Chiquito

e o Oscuro vão costa abaixo, uma muralha
rosada engole-os logo, e como, merda, o Rubio podia descê-las sozinho, que acontecia, sargento, por que é que aqueles já

estavam indo? e Madre Angélica aproxima-se
dele, sacudindo os braços com decisão: ela o ajudava. Estende as mãos até a menina da argola, mas nem toca nela e se dobra,

e o pequeno punho bate outra vez, e
o hábito se rasga, e Madre Angélica solta um gemido e encolhe-se: não estava dizendo? e o Rubio sacode a menina como um

trapo, madre, não era uma fera? Pálida e
enrugada, Madre Angélica insiste, pega o braço com as duas mãos, Santa Maria, e agora uivam, Mãe de Deus, esperneiam, Santa

Maria, arranham, todos tossem, Mãe de
Deus, e em vez de tanta reza que fossem descendo, Madre Patrocínio, por que diabos se assustava tanto, e até que hora, e

até quando, que descessem, que o sargento
já se esquentava, merda. Madre Patrocínio volta-se, lança-se pela ladeira e se esfuma, o Pesado avança o fuzil e o da tatuagem

recua. com que ódio olhava, sargento,
parecia rancoroso, filho da puta, e orgulhoso: assim deviam ser os olhos do
Chulla-Chaqui', sargento. As grandes nuvens
que envolvem aqueles que descem estão mais
distantes, a velha chora, se contorce, e os dois aguarunas observam o cano, a culatra, as bocas redondas dos fuzis: que

o Pesado não tremesse o pulso. Não tremia
o pulso, sargento, mas que modo de olhar era este, porra, com que direito. O Rubio, Madre Angélica, e as meninas se desvanecem

também entre ondas de pó e a velha
rasteja até a beira do barranco,
' Personagem de conhecida lenda peruana: é um coxo que tem uma perna de cabra. Os que vivem na selva têm mais medo do Chulla-
Chaqui que do Diabo.
17
olha para o rio, seus mamilos tocam a terra, e o menino profere sons estranhos, ulula como uma ave lúgubre, e ao Pesado
não agradava ter os pelados tão
perto, sargento, que é que faziam para descer, agora que estavam sozinhos. E nisso ronca o motor da lancha: a velha se cala

e levanta o rosto, olha o céu, o menino
a imita, os dois aguarunas a imitam, e os babacas estavam procurando um avião. Pesado, estavam distraídos, era a hora. Recuam

o fuzil e o avançam bruscamente, os
dois homens pulam para trás e gesticulam, e agora o sargento e o Pesado descem de costas, sempre apontando, afundando até

os joelhos, e o motor ronca cada vez mais
alto, envenena o ar de soluços, gargarejos, vibrações e sacudidelas, e no barranco não é como na clareira, não há brisa,

só o bafo quente e o pó avermelhado e ardido
que faz espirrar. Confusamente, lá no alto do barranco, umas cabeças peludas exploram o céu, balançam suavemente procurando

algo entre as nuvens, e o motor estava
aí e as crianças chorando, Pesado, e ele, o quê, meu sargento? não agüentava mais. Atravessam a lama correndo e quando chegam

à lancha arquejam e têm as línguas
de fora. Já era hora, por que se demoraram tanto? Como queriam que o Pesado subisse, como se acomodaram bem, os sacanas,

que dessem lugar a ele. Mas ele tinha que
emagrecer, que tivessem cuidado, se o Pesado subisse a lancha afundava, e não era momento para brincadeiras, que partissem

de uma vez, sargento. Agorinha mesmo partiam,
Madre Angélica, de nossa morte, amém.
18

I.

Uma porta bateu, a superiora levantou o rosto da escrivaninha, Madre Angélica irrompeu como uma tromba-d'água no gabinete,
suas mãos lívidas caíram sobre o espaldar
de uma cadeira.
- Que há, Madre Angélica? Por que está assim?
- Fugiram, madre! - balbuciou Madre Angélica. Não ficou uma só, meu Deus!
- Que está dizendo, Madre Angélica - a superiora levantara-se de um salto e caminhava para a porta. - As pupilas?
- Meu Deus, meu Deus! - concordava Madre Angélica, com movimentos de cabeça curtos, idênticos, muito rápidos, como uma galinha
bicando grãos.
Santa Maria de Nieva' levanta-se na desembocadura do Nieva, no alto
Marañón, dois rios que abraçam a cidade e são seus limites.
Frente a ela, emergem do Marañón
duas ilhas que servem aos vizinhos para medir as enchentes e as vazantes. Da povoação, quando não há névoa, percebem-se,
atrás, colinas cobertas de vegetação e,
adiante, águas abaixo do largo rio, os vultos da cordilheira que o Marañón cinde no Pongo de
Manseriche': dez quilômetros violentos de redemoinhos, pedras e torrentes,
que começam numa guarnição militar, a do Tenente Pinglo, e acabam noutra, a de
Borja'.
' Povoado às margens do rio Nieva, afluente do Marañón, no departamento do Amazonas (Peru).
' Garganta de mais de um metro e dez de altura, próxima à cordilheira dos Andes.
' Guarnições militares de Tenente Pinglo e Borja, às margens dos rios Santiago e Marañón, respectivamente.
19
- Foi por aqui, madre - disse Madre Patrocínio. Veja, a porta está aberta, foi por aqui.
A madre superiora levantou o lampião e inclinou-se: o mato era uma sombra uniforme inundada de insetos. Apoiou a mão na

porta entreaberta e voltou-se para as madres.
Os hábitos haviam desaparecido na noite, mas os véus brancos resplandeciam como plumagens de garças.
- Procure Bonifacia, Madre Angélica - sussurrou a superiora. - Leve-a ao meu gabinete.
- Sim, madre, já, já. - O lampião iluminou por um segundo a barbicha trêmula de Madre Angélica, seus olhinhos que pestanejavam.
- Avise Dom Fábio, Madre Griselda - disse a superiora. - E a senhora, o tenente, Madre Patrocinio. Que saiam para procurá-las

agora mesmo. Apressem-se, madres.
Dois halos alvos afastaram-se do grupo em direção ao pátio da missão. A superiora, seguida das madres, caminhou para a residência,

junto ao muro da horta, onde um
grasnar afogava, a intervalos iguais, o bater de asas dos morcegos e o cricrilar dos grilos. Entre as árvores frutíferas

surgiam piscadelas e cintilações, vaga-lumes?
olhos de coruja? A superiora parou diante da capela.
- Entrem as senhoras, madres - disse suavemente.
- Roguem à Virgem para que não aconteça nenhuma desgraça. Eu voltarei logo.
Santa Maria de Nieva é como uma pirâmide irregular e sua base são os rios. O cais está sobre o Nieva e em torno do molhe
flutuante balançam as canoas dos aguarunas,
os botes e lanchas dos cristãos. Mais acima está a praça quadrada, de terra ocre, em cujo centro elevam-se dois troncos
de capirona *, lisos e corpulentos. Num deles
os guardas hasteiam a bandeira em feriados nacionais. E ao redor da praça estão o comissariado, a casa do governador, várias
casas de cristãos e a cantina do Paredes,
que é ao mesmo tempo comerciante, carpinteiro e sabe preparar puçangas, uns amavios que incitam ao amor. E mais acima ainda,
em duas colinas que são como vértices
da cidade, estão os prédios da missão: tetos de zinco, vigas de barro e de palmeira, paredes rebocadas de cal, tela nas
janelas, portas de madeira.
- Não percamos tempo, Bonifacia - disse a superiora. - Conte tudo.
' Bela árvore que solta a casca em grandes pedaços (Calicophilluni spruceanum).
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- Estava na capela - disse Madre Angélica. - As madres a encontraram.
- Eu lhe fiz uma pergunta, Bonifacia - disse a superiora. - Que está esperando?
Vestia um hábito azul, um estojo que ocultava seu corpo desde os ombros até os tornozelos, e seus pés descalços, da cor

das tábuas cobreadas do chão, jaziam juntos:
dois animais chatos, policéfalos.
- Você não ouviu? - perguntou Madre Angélica. Fale de uma vez.
O véu escuro que emoldurava seu rosto e a penumbra do gabinete acentuavam a ambigüidade de sua expressão, entre estranha

e indolente, e seus olhos grandes olhavam
fixamente a escrivaninha; às vezes, a chama do pavio, agitada pela brisa que vinha da horta, descobria sua cor verde, sua

suave cintilação.
- Roubaram suas chaves? - perguntou a madre superiora.
- Você jamais se emendará, descuidada! - a mão de Madre Angélica esvoaçou sobre a cabeça de Bonifacia. Está vendo no que

deram suas negligências?
- Deixe-a para mim, madre - disse a superiora. Não me faça perder mais tempo, Bonifacia.
Os braços pendiam às suas costas e ela mantinha a cabeça baixa, o hábito mal revelava o movimento do peito. Seus lábios

retos e grossos estavam soldados num esgar
carrancudo e seu nariz se dilatava e franzia ligeiramente, num ritmo muito igual. »
- vou ficar aborrecida, Bonifacia, eu lhe falo com consideração e você fica como se ouvisse chover - disse a superiora.

- A que horas você deixou as pupilas sozinhas?
Não fechou à chave o quarto?
- Fale de uma vez, demônio! - Madre Angélica agarrou o hábito de Bonifacia. -- Deus há de castigar esse orgulho.
- Você tem todo o dia para ir à capela, mas de noite o seu dever é cuidar das pupilas - disse a superiora. Por que saiu

do quarto sem permissão?
Dois breves toques soaram na porta do gabinete, as madres voltaram-se, Bonifacia levantou um pouco as pálpebras e, por um

segundo, seus olhos ficaram maiores, verdes
e intensos.
Das colinas da cidade, se vêem, cem metros adiante, na margem direita do rio Nieva, a cabana de Adrián Nieves,
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sua chacrinha, e depois só um dilúvio de cipós, matos, árvores de galhos tentaculares e altíssimos cumes. Não distante da
praça está o povoado indígena, aglomeração
de cabanas erigidas sobre árvores decapitadas. O lodo devora ali o capim selvagem e circunda charcos de água fedorenta,

que fervilham de sapinhos e minhocas. Aqui
e ali, diminutas e quadriculadas, há plantações de mandioca, milho, pequenas hortas. Da missão, um caminho escarpado desce

até a praça. E atrás da missão um muro
de barro resiste à pressão da mata, a furiosa acometida vegetal. Nesse muro há uma porta clausurada.
- É o governador, madre - disse Madre Patrocínio.
- Podemos entrar?
- Sim, faça-o entrar, Madre Patrocinio - disse a superiora.
Madre Angélica levantou a lamparina e resgatou duas figuras imprecisas da escuridão da entrada. Envolto numa manta, lanterna

na mão, Dom Fábio entrou fazendo reverências:
- Estava deitado e saí deste jeito, madre, desculpe-me esta cara - deu a mão à superiora, à Madre Angélica. Como pôde acontecer

isso, juro que não conseguia acreditar.
Imagino como se sentem, madre.
Seu crânio calvo parecia úmido, seu rosto magro sorria para as madres.
- Sente-se, Dom Fábio - disse a superiora. -Agradeço-lhe por ter vindo. Traga uma cadeira para o governador, Madre Angélica.
Dom Fábio se sentou, a lanterna que pendia de sua mão esquerda se acendeu: um círculo dourado sobre o tapete de tucum.
- Já foram procurá-las, madre - disse o governador.
- O tenente também foi. Não se preocupe, com certeza vão encontrá-las esta noite mesmo.
- Aquelas pobres crianças por aí, entregues à sua própria sorte, Dom Fábio, imagine - suspirou a superiora.
- Felizmente não está chovendo. Não imagina que susto levamos.
- Mas como aconteceu isso, madre? - perguntou Dom Fábio. - Ainda me parece mentira.
- Um descuido dela - disse Madre Angélica, apontando Bonifácia. - Ela as deixou sozinhas e foi à capela. Deve ter-se esquecido

de fechar a porta.
O governador olhou para Bonifácia e seu rosto assumiu um ar severo e
condoído.
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Mas um segundo depois sorriu e fez uma reverência à superiora.
- As meninas não sabem o que fazem, Dom Fábio
- disse a superiora. - Não têm noção dos perigos. Isso é o que mais nos inquieta. Um acidente, um animal.
- Ah, que meninas - disse o governador. - Veja, Bonifácia, você tem que ser mais cuidadosa.
- Peça a Deus que não aconteça nada a elas - disse a superiora. - Senão, que remorsos você terá por toda a vida, Bonifácia.
- Não as ouviram sair, madre? - perguntou Dom Fábio. - Pelo povoado não passaram. Devem ter ido pela mata.
- Saíram pela horta, por isso é que não ouvimos nada
- disse Madre Angélica. - Roubaram a chave dessa boba.
- Não me chame de boba, mãezinha - disse Bonifácia, os olhos muito abertos. - Não me roubaram.
- Boba, boba rematada - disse Madre Angélica. Ainda se atreve? E não me chame de mãezinha.
- Eu abri a porta para elas - Bonifácia mal desgrudou os lábios. - Eu é que deixei que fugissem, vê como não sou boba?
Dom Fábio e a superiora esticaram as cabeças para Bonifácia. Madre Angélica fechou, abriu a boca, roncou antes de poder

falar:
- Que é que você está dizendo? - e roncou de novo. - Você deixou que elas fugissem?
- Sim, mãezinha - disse Bonifácia. - Eu deixei.
- Você já está ficando triste outra vez, Fushía disse Aquilino. - Não seja assim, homem. Ande, converse um pouco para que

a tristeza passe. Conte logo como foi que
você fugiu.
- Onde estamos, velho? - perguntou Fushía. Falta muito para entrar no
Marañón'?
- Faz pouco que entramos - disse Aquilino. Você nem percebeu, roncava como um frade.
- Foi de noite? - perguntou Fushía. - Como é que não senti as corredeiras, Aquilino?
' O rio Marañón tem sua origem no lago Lauricocha, zona andina do Peru; tem mil e trezentos quilômetros de extensão e é
um dos principais formadores do Amazonas.
23
- Estava tão claro que até parecia madrugada, Fushía
- disse Aquilino. - O céu estava pura estrela e o tempo era o melhor do mundo, não se mexia uma só folha. De dia há pescadores,
às vezes uma lancha da guarnição;
de noite é mais seguro. E como é que você podia sentir as corredeiras se eu as conheço de memória? Mas não fique com essa
cara, Fushía. Pode se levantar se quiser,
deve estar com calor aí debaixo dos cobertores. Não há ninguém, somos os donos do rio.
- vou ficar aqui - disse Fushía. - Estou sentindo frio e o meu corpo treme todo.
- Claro, homem, como for melhor para você - disse Aquilino. - Mas ande, conte logo como foi que fugiu. E por que o prenderam?
Que idade você tinha?
Estivera na escola e por isso o turco lhe deu um trabalhinho no seu armazém. Fazia as contas, Aquilino, nuns livrinhos que
chamam de Deve e Haver. E ainda que fosse
honrado então, já sonhava em ficar rico. Como economizava, velho, só comia uma vez por dia, nada de cigarros, nada de bebidas.
Queria um capitalzinho para fazer
negócios. E assim são as coisas, o turco meteu na cabeça que ele o roubava, pura mentira, e fez com que o prendessem. Ninguém
quis acreditar que era honrado e o
meteram num calabouço com dois bandidos. Não foi a coisa mais injusta, velho?
- Mas isso você já me contou quando saímos da ilha, Fushía - disse Aquilino. - Quero que você me diga como conseguiu fugir.
- com esta gazua - disse Chango. - Foi o Iricuo que a fez com o arame do catre. Já experimentamos, ela abre a porta sem
fazer ruído. Quer ver, japonesinho?
Chango era o mais velho, estava ali por essas coisas de drogas, e tratava Fushía com carinho. Iricuo, entretanto, sempre

zombava dele. Uma fera que tinha logrado
muita gente com o conto da herança, velho. Foi ele quem fez o plano.
- E deu tudo certo, Fushía? - perguntou Aquilino.
- Tudo certo -- disse Iricuo. - Você não sabe que no Ano-Novo todos os guardas vão embora? Só ficou um no pavilhão, é preciso

tirar as chaves dele antes que jogue
para o outro lado da grade. Depende disso, rapazes.
- Abra logo, Chango - disse Fushía. - Não agüento mais, Chango, depressa.
- Você deveria ficar, japonesinho - disse Chango.
24
Um ano passa logo. Nós não perdemos nada, mas se
falhar você se azara, vai pegar mais uns dois anos.
Mas ele insistiu e saíram, e o pavilhão estava vazio. Encontraram o carcereiro dormindo junto à grade, com uma garrafa na

mão.
- Dei nele com o pé do catre e ele se desmanchou no chão - disse Fushía. - Acho que matei o cara, Chango.
- Então voe, idiota, já tenho as chaves - disse Iricuo. - É preciso atravessar o pátio correndo. Você tirou o revólver

dele?
- Me deixe passar primeiro - disse Chango. - Os da porta principal também devem estar bêbados como este.
- Mas estavam acordados, velho - disse Fushía. Eram dois e jogavam dados. Abriram uns olhos deste tamanho quando entramos.
Iricuo apontava o revólver para eles: abriam o portão ou começava a chuva de balas, putos. E ao primeiro grito que dessem

começava, e que se apressassem ou começava,
seus putos, a chuva de balas.
- Amarre esses caras, japonesinho - disse Chango.
- com os cinturões. E enfie as gravatas na boca deles. Depressa, japonesinho, depressa.
- Não abrem, Chango - disse Iricuo. - Nenhuma dessas é a do portão. Nos queimamos na porta do forno, rapazes.
- Uma dessas tem que ser, continue experimentando
- disse Chango. - Que está fazendo, rapaz, por que está batendo neles?
- E por que você batia neles, Fushía? - perguntou Aquilino. - Não entendo, nesse momento a gente pensa em fugir e em mais

nada.
- Eu tinha raiva de todos aqueles cachorros - disse Fushía. - Como tratavam a gente, velho. Sabe que tiveram de ir para

o hospital? Nos jornais diziam crueldade
de japonês, Aquilino, vinganças de oriental. Me dava vontade de rir, eu nunca havia saído de Campo Grande e era mais brasileiro

que qualquer um.
- Agora você é peruano, Fushía - disse Aquilino.
- Quando o conheci em Moyobamba' você ainda podia ser brasileiro, falava meio esquisito. Mas agora você fala como os cristãos

daqui.
' Província do departamento de San Martin.
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- Nem brasileiro nem peruano - disse Fushía. Um pobre merda, velho, um lixo, isso é o que sou agora.
- Por que você é tão violento? - perguntou Iricuo.
- Por que bateu neles? Se pegam a gente, nos matam a pauladas.
- Tudo está saindo bem, não há tempo para discutir
- disse Chango. - Vamos nos esconder, Iricuo, e você, japonesinho, corra, roube o carro e venha voando.
- No cemitério? - perguntou Aquilino. - Isso não é coisa de cristãos.
- Não eram cristãos, mas bandidos - disse Fushía.
- Os jornais diziam, foram ao cemitério para abrir túmulos. Assim é a gente, velho.
- E você roubou o carro do turco? - perguntou Aquilino. - Como foi que pegaram o Iricuo e o Chango, e a você não?
- Ficaram toda a noite no cemitério me esperando disse Fushía. - A polícia prendeu os dois ao amanhecer. Eu já estava longe
de Campo Grande.
- Quer dizer que você os traiu, Fushía - disse Aquilino.
- E por acaso não traí todo mundo? - perguntou Fushía. - Que foi que eu fiz com o Pantacha e os
huambisas'? Que foi que
eu fiz com Jum, velho?
- Mas então você não era mau - disse Aquilino. - Você mesmo me disse que era honrado.
- Antes de entrar na cadeia - disse Fushía. - Lá deixei de ser.
- E como é que você chegou ao Peru? - perguntou Aquilino. - Campo Grande deve ser muito longe.
- No Mato Grosso, velho - disse Fushía. - Os jornais diziam, o japonês está indo para a Bolívia. Mas eu não era bobo, estive

por todas as partes, um tempão fugindo,
Aquilino. Até que cheguei a Manaus. Daí era fácil passar para Iquitos.
- E foi lá que você conheceu o Senhor Júlio Reátegui, Fushía? - perguntou Aquilino.
- Naquela vez não o conheci pessoalmente - disse Fushía. - Mas ouvi falar dele.
- Que vida a sua, Fushía - disse Aquilino. - Quanta coisa você viu, quanto viajou. Gosto de ouvi-lo, não sabe
como é divertido.
' Ou huambisas, selvagens da família dos jívaros que vive no rio
Santiago, na bacia do Marañón (departamento de Loreto).
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Você não tem prazer em contar tudo isso? Não sente que assim a viagem passa mais depressa?
- Não, velho - disse Fushía. - Só sinto frio.
Ao cruzar a região das dunas, o vento que desce da cordilheira se abrasa e endurece: armado de areia, segue o curso do rio

e quando chega à cidade aparece entre
o céu e a terra como uma deslumbrante couraça. Ali esvazia suas entranhas: todos os dias do ano, à hora do crepúsculo, uma

chuva seca e fina como serragem de madeira,
que só pára à alvorada, cai sobre as praças, os telhados, as torres, os campanários, as sacadas e as árvores, e assoalha

de branco as ruas de Piura'. Os forasteiros
se enganam quando dizem "As casas da cidade estão a ponto de cair"; os estalidos noturnos não provêm das construções, que

são antigas mas sólidas, mas dos invisíveis,
incontáveis, minúsculos projéteis de areia, que se estilhaçam contra as portas e as janelas. Enganam-se, também, quando

pensam: "Piura é uma cidade estranha, triste".
O povo se recolhe ao lar à caída da tarde para se livrar do vento sufocante e da acometida da areia que fere a pele como

uma pontada de agulhas e a avermelha e incomoda,
mas nas rancharias de Castilla, nas choças de barro e cana-brava na Mangachería, nas picanterías e chicherías da
Gallinacera',
nas residências dos graúdos do Malecón
e na Plaza de Armas, diverte-se como a gente de qualquer outro lugar, bebendo, ouvindo música, conversando. O aspecto abandonado

e melancólico da cidade desaparece
à entrada de suas casas, inclusive nas mais humildes, esses frágeis casebres construídos em linha, às margens do rio, no

outro lado do Camal'.
A noite piurana está cheia de histórias. Os camponeses falam de almas do outro mundo; no seu canto, enquanto cozinham, as
mulheres contam mexericos, desgraças. Os
homens bebem cabaças de chicha amarelinha', ásperos copos de aguardente.
' Departamento e capital no litoral peruano. Limita-se com o Equador, Cajamarca, Lambayeque e Tumbes.
' Espécies de restaurantes e bares que servem comidas à base de pimenta e chicha. Gallinacera, no original, favela de Piura
habitada por negros.
' Matadouro.
' A chicha é o produto da fermentação do milho, conhecida em todo o Peru. É feita do milho fermentado, durante vinte e um
dias, em buracos cavados no chão, a vinte
centímetros de profundidade,
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Uma aguardente serrana é muito forte: os forasteiros choram quando a provam pela primeira vez. Os meninos se espojam na
terra, lutam, fecham os buraquinhos
das minhocas, fabricam armadilhas para as iguanas ou, imóveis, os olhos muito abertos, ouvem as histórias dos velhos: bandoleiros

que se desafiam nas quebradas de
Canchaque, Huancabamba e Ayabaca', para roubar os viajantes e, às vezes, degolá-los; mansões onde penam espíritos; curas

milagrosas dos feiticeiros; tesouros de
ouro e prata escondidos, que se revelam pelo ruído de correntes e gemidos; grupos de guerrilheiros que dividem os fazendeiros

da região em duas facções e percorrem
o areal em todas as direções, perseguindo-se, investindo no seio da poeira descomunal, e ocupam casarios e distritos, confiscam

animais, alistam homens à força e
pagam tudo com papéis que chamam bônus da pátria; grupos de guerrilheiros que mesmo os adolescentes viram entrar em Piura,

como um furacão de ginetes, armar tendas
de campanha na Plaza de Armas e derramar fardas vermelhas e azuis pela cidade; histórias de duelos, adultérios e catástrofes,

de mulheres que viram a Virgem da catedral
chorar, levantar a mão para Cristo, sorrir furtivamente para o Menino Deus.
Nos sábados, geralmente, organizam festas. A alegria percorre como uma onda elétrica a Mangachería, Castilla, Gallinacera,

as choças da beira do rio. Em toda Piura
ressoam toadas e pasillos, valsas lentas, os huaynos que os serranos dançam batendo no chão com os pés descalços, estilizadas

marineras, tristes con fuga de tondero'.
Quando a embriaguez se propaga e cessam os cantos, o rasgado da guitarra, o troar das caixas e o choro das harpas, das rancharias

que abraçam Piura como uma muralha
surgem sombras fugazes que desafiam o vento e a areia: são casais jovens, ilícitos, que deslizam até o ralo bosque de algarobeiras

que ensombrece o areal, vão às
praiazinhas escondidas do rio,
'' dois metros de comprimento e um metro e meio de largura. Após a fermentação, esse milho é moído e a farinha que daí resulta,
chamada de winapo, será a chicha, após fervê-la
pelo espaço de seis a oito horas. Quando está frio o cozimento, a ele se mistura o fermento, ou koncho, da chicha do dia
anterior, numa nova fermentação que dura
doze horas. De cada arroba de winapo, obtém-se quarenta litros de boa chicha. Seu principal centro de fabricação é Arequipa.
' Cidades próximas a Piura.
' Danças peruanas, que se dançam aos pares, com músicas alegres ou melancólicas, estribilho ou sapateado.
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às grutas que olham para Catacaos', os mais audazes vão até o começo do deserto. Lá se amam.
No coração da cidade, nos quadriláteros que cercam a Plaza de Armas, em casarões de muros caiados e sacadas com gelosias,

vivem os fazendeiros, os comerciantes,
os advogados, as autoridades. De noite, eles se reúnem nas hortas, sob as palmeiras, e falam sobre pragas que ameaçam o

algodão e os canaviais este ano, sobre se
o rio desaguará em tempo e virá caudaloso, sobre o incêndio que devorou uns roçados de Chápiro Seminário, da rinha de galos

do domingo, do assado que organizam para
recepcionar o recém-formado médico da cidade: Pedro Zevallos. Enquanto jogam cartas, dominó ou voltarete nos salões cheios

de tapetes e penumbras, entre quadros
ovalados, grandes espelhos e móveis com forro de damasco, as senhoras rezam o rosário, negociam os futuros noivados, programam

as recepções e as festas de beneficência,
sorteiam entre si as obrigações para a procissão e o adorno dos altares, preparam quermesses e comentam os mexericos sociais

do jornal local, uma folha em cores
que se chama Ecos y Notícias.
Os forasteiros ignoram a vida interior da cidade. Que é que detestam em Piura? Seu isolamento, os vastos arcais que a separam

do resto do país, a falta de estradas,
as extensíssimas travessias a cavalo sob um sol abrasador e as emboscadas dos bandidos. Chegam ao Hotel La Estrella del

Norte, que está na Plaza de Armas e é uma
mansão desbotada, alta como o coreto onde se toca a retreta dos domingos, e a cuja sombra se instalam os mendigos e os engraxates,

e devem permanecer ali encerrados,
desde as cinco da tarde, vendo através das cortinas como a areia se apossa da cidade solitária. No bar do La Estrella del

Norte bebem até cair bêbados. "Aqui não
é como em Lima", dizem, "não há onde se divertir: a gente piurana não é má, mas como é austera, como é diúrna." Gostariam

de antros que fervessem toda a noite para
queimar seus lucros. Por isso, quando partem, costumam falar mal da cidade, chegam à calúnia. E há por acaso gente mais

hospitaleira e cordial que a piurana? Recebe
os forasteiros em triunfo, disputa-os quando o hotel está cheio. A esses negociantes de gado, aos corretores de algodão,

a cada autoridade que chega, os graúdos
divertem o melhor que podem:
' Cidade próxima a Piura.
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organizam em sua honra caçadas de veado nas serras de Chulucana', levam-nos a passear pelas fazendas, oferecem-lhes assados.
As portas de Castilla e da Mangachería
estão abertas para os índios que emigram da
serra e chegam à cidade esfomeados e atemorizados, para os feiticeiros expulsos das aldeias pelos padres, para os mercadores

de bugigangas que vêm tentar fortuna
em Piura. Chicheras, aguateros, regadores' acolhem-nos familiarmente, dividem com eles sua comida e seus ranchos. Os forasteiros
levam sempre presentes quando vão
embora. Mas nada os contenta, têm fome de mulher e não suportam a noite piurana, onde só está acordada a areia que cai do

céu.
Tanto desejavam mulher e diversão noturna esses ingratos, que por fim o céu ("o Diabo, o maldito chifrudo", diz o Padre

Garcia) acabou por lhes fazer a vontade.
E assim foi que nasceu, buliçosa e frívola, noturna, a Casa Verde.
O Cabo Roberto Delgado anda algum tempo diante do gabinete do Capitão Artemio Quiroga, sem se decidir. Entre o céu cinza

e a guarnição de Borja passam lentamente
nuvens escuras e, na esplanada vizinha, os sargentos exercitam os recrutas: sentido, porra, descanso, porra. O ar está carregado

de uma névoa úmida. Em suma, quando
muito, uma esculhambação, e o cabo empurra a porta e saúda o capitão, que está em sua mesa, abanando-se com a mão: que foi,

que queria, e o cabo, uma licença para
ir a Bagua', podia? Que é que havia com o cabo, o capitão se abana agora furiosamente com as duas mãos, que bicho o tinha

mordido? Mas os bichos não mordiam o
Cabo Roberto Delgado, porque era da selva, meu capitão, de Bagua: queria uma licença para ver a família. E aí estava, de

novo, a maldita chuva. O capitão fica de
pé, fecha a janela, volta à sua cadeira, com as mãos e o rosto molhados. Quer dizer que os bichos não o mordiam, não era

porque tinha sangue ruim? não queriam se
envenenar, por isso não o mordiam, e o cabo concorda: podia ser, meu capitão. O oficial sorri como um autômato, e a chuva
impregnou o gabinete de ruídos: as gotas
grandes caem como pedradas sobre o zinco do teto, o vento assobia nas fendas da parede. Quando é que o cabo
tivera a última licença?
' Capital da província de Morropón, departamento de Piura.
' Chicheras, donas ou mulheres que atendem nas chicherías; aguateros, vendedores de água; regadores, homens encarregados
de molhar as ruas para evitar o pó.
' Província do departamento do Amazonas.
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no ano passado? Ah, bom, esse era outro papo, e o rosto do capitão se crispa. Então tinha direito a uma licença de três
semanas, e sua
mão se levanta, ia a Bagua? faria umas compras para ele, e bate na face, que fica vermelha. O cabo está com uma expressão

muito séria. Por que não ria? não era
engraçado que o capitão desse tapas na cara? e o cabo, não, mas que idéia, meu capitão, imagine. Uma chispa alegre brilha

nos olhos do oficial, adoça sua boca amarga,
caboclinho: ria a gargalhadas ou não ganhava licença. O Cabo Roberto Delgado olha confuso para a porta, para a janela. Então,

abre a boca e ri, a princípio com
um riso amarelo e artificial, depois naturalmente e, por fim, com alegria. O pernilongo que picara o capitão era uma femeazinha,

e o cabo está estremecido de riso,
só as fêmeas picavam, sabia? os machos eram vegetarianos, e o capitão, vá embora logo, o cabo emudece: cuidado para que

os bichos não o comam no caminho para Bagua
por ser engraçadinho. Mas não era piada, era uma coisa científica, só as femeazinhas chupavam sangue: o Tenente de La Flor

explicara a ele, meu capitão, e ao capitão,
que porra que fossem fêmeas ou machos, se ardia do mesmo jeito, e quem foi que lhe perguntara, bancava o sabichão? Mas o

cabo não estava brincando, meu capitão,
e olhe, tinha um remédio que não falhava, uma pomada que os urakusas' usavam, traria para ele uma vasilha, meu capitão,

e o capitão queria que falasse em língua
de gente, quem são esses urakusas? Como é que o cabo podia falar de outro jeito, se é assim que chamavam os aguarunas, esses

que viviam em Urakusa, e o capitão vira,
por acaso, um bicho picar a um selvagem? Eles tinham seus segredos, faziam suas pomadas com as resinas das árvores e se

lambuzavam, zângão que se aproximava morria,
e ela traria, meu capitão, uma vasilha, palavra que trazia. Que bom humor tinha o cabo nessa manhã, queria ver que cara

faria se os pagãos diminuíssem sua cachola'
e o cabo, essa é boa, essa é boa, meu capitão: já estava vendo sua cabeça deste tamanhinho. Que é que o cabo ia fazer em
Urakusa? Só para trazer essa pomadinha?
e o cabo, claro, claro, e depois cortava caminho, meu capitão. Senão, passaria a licença viajando, e não poderia estar com

a família e os
amigos.
' Tratamento dado aos aguarunas que vivem em Urakusa, na selva amazônica.
' No original, achicar la tutuma, a redução da cabeça humana, prática conhecida pelos índios da região.
31
Toda a gente de Bagua era como o cabo? e ele, pior, tão viva? muito pior, meu capitão, nem podia imaginar, e o capitão ri
gostosamente, e o cabo imita-o, observa-o,
mede-o com seus olhos quase fechados e, de súbito, podia levar um prático, meu capitão? um criado? poderia? e o Capitão
Artemio Quiroga, como? O cabo pensa que
é muito sabido, não? acalmava-o com palhaçadas, o capitão ria e ele queria passá-lo para trás, não? Mas sozinho o cabo ia
demorar horrores, meu capitão, por acaso
havia estradas? como podia ir e vir a Bagua em tão poucos dias sem um prático, e todos os oficiais fariam encomendas, fazia
falta alguém que ajudasse com os pacotes,
que o deixasse levar um prático e um criado, palavra que ele traria essa pomadinha matamosquitos, meu capitão. Agora trabalhava
o seu moral: o cabo sabia todas;
e o cabo, o senhor é uma grande pessoa, meu capitão. Entre os recrutas que chegaram na semana passada havia um prático,
que levasse esse, e um criado que fosse da
região. Escute aqui, três semanas, nem um dia mais, e o cabo, nenhum mais, meu capitão, jurava. Bate os calcanhares, faz
continência e na porta pára, perdão, meu
capitão, como se chamava o prático? e o capitão, Adrián Nieves, e o cabo, já estava indo, tinha trabalho atrasado. O Cabo
Roberto Delgado abre a porta, sai, um vento
úmido e ardente invade a sala, agita levemente os cabelos do capitão.
Bateram na porta, Josefino Rojas foi abri-la e não encontrou ninguém na rua. Já escurecia, ainda não haviam acendido os
lampiões do Jirón Tacna', uma brisa circulava
tepidamente pela cidade, Josefino deu uns passos em direção à Avenida Sánchez Cerro e viu os
León, num banco da pracinha,
junto à estátua do pintor Merino. José
tinha um cigarro entre os lábios, Mono limpava as unhas com um palito de fósforo.
- Quem morreu? - perguntou Josefino. - Por que essas caras de enterro?
- Agarre-se bem para não cair de costas, invencível - disse Mono. - Lituma chegou.
' Jirón, no Peru, é um correr de ruas, como uma ampla avenida, ao qual se dá um nome geral e, a cada um dos quarteirões

que o formam, um nome particular.
' Em um grupo de amigos, o modo como se tratam. O autor, em Os chefes (edição Nova Fronteira), trata de outras turmas de

meninos, que se fazem adultos mas continuam
usando o tratamento dos primeiros anos.
32
Josefino abriu a boca mas não falou; ficou piscando por alguns segundos, com um sorriso perplexo e apático, que franzia
todo o seu rosto. Começou a esfregar as
mãos, suavemente.
- Há umas duas horas, no ônibus da Roggero disse José.
As janelas do Colégio San Miguel estavam iluminadas e, do portão, um inspetor apressava os alunos da noite batendo palmas.

Rapazes em uniforme vinham conversando
sob as sussurrantes algarobeiras da Calle Libertad. Josefino enfiara as mãos nos bolsos.
- Seria bom que você viesse - disse Mono. - Está nos esperando.
Josefino voltou a atravessar a avenida, fechou a porta de sua casa, retornou à pracinha, e os três começaram a andar, em

silêncio. Uns metros depois do Jirón Arequipa,
passaram pelo Padre Garcia que, enrolado no seu cachecol cinza, avançava, dobrado em dois, arrastando os pés e ofegante.

Mostrou-lhes o punho e gritou "Ateus!" "Incendiário!",
retrucou Mono, e José "Incendiário, incendiário!" Iam pela calçada da direita. Josefino no meio.
- Mas os ônibus da Roggero chegam de manhãzinha, ou de noite, nunca a esta hora - disse Josefino.
- Ficaram retidos na Cuesta de Olmo' - disse Mono. Furou um pneu. Trocaram, e depois furaram outros
dois. Que gente de sorte.
- Ficamos gelados quando o vimos - disse José.
- Queria sair logo para festejar - disse Mono. Nós o deixamos registrando-se no hotel, para vir buscar você.
- Que azar - disse Josefino. - Me pegou desprevenido.
- Que vamos fazer agora? - perguntou José.
- O que você mandar, primo - disse Mono.
- Tragam o coleguinha, então - disse Lituma. Tomaremos uns traguinhos com ele. Vão buscá-lo, digam a ele que o invencível

número quatro voltou. Vamos ver que cara
faz.
- Está falando sério, primo? - perguntou José.
- Muito sério - disse Lituma.
' Litoral do departamento de Lambayegue, ao norte do Peru.
33
- Trouxe aí umas garrafas de Sol de Ica!, esvaziaremos uma com ele. Tenho vontade de vê-lo, palavra. Vão, enquanto mudo
de roupa.
- Cada vez que fala de você diz o coleguinha, o invencível - disse Mono. - Gosta tanto de você como de nós.
- Imagino que encheu vocês de perguntas - disse Josefino. - Que foi que contaram a ele?
- Você se engana, não falamos disso de jeito nenhum
- disse Mono. - Nem sequer a mencionou. Talvez tenha esquecido dela.
- Logo que a gente chegar, ele descarrega um montão de perguntas - disse Josefino. - É preciso acertar isso hoje mesmo,
antes que lhe contem histórias.
- Você se encarregará - disse Mono. - Eu não me atrevo. Que lhe dirá você?
- Não sei - disse Josefino -, depende de como se apresentem as coisas. Se pelo menos tivesse avisado que vinha. Mas aparecer
assim, de supetão. Que azar, eu não
o esperava.
- Deixe de esfregar tanto as mãos - disse José. Assim você me contagia com seus nervos, Josefino.
- Mudou muito - disse Mono. - A gente já nota um pouco os anos, Josefino. Mas agora não está tão gordo.
Os lampiões da Avenida Sánchez Cerro acabavam de se acender e as casas eram ainda grandes, suntuosas, de paredes claras,
sacadas de madeira lavrada e aldravas de
bronze, mas ao fundo, nos estertores azuis do crepúsculo, aparecia já o perfil encurvado e confuso da Mangachería. Uma caravana
de caminhões desfilava pela pista,
em direção ao Puente Nuevo e, nas calçadas, havia casais encolhidos contra os portões, grupos de rapazes, lentos anciãos
com bengalas.
- Os brancos ficaram valentes - disse Lituma. Agora passeiam pela Mangachería como em sua casa.
- A culpa é da avenida - disse Mono. - Tem sido uma verdadeira foda contra os mangaches. Quando a estavam construindo, o
harpista dizia nos foderam, acabou-se a
liberdade, todo mundo virá meter o nariz aqui no bairro. Dito e feito, primo.
- Não há branco que não acabe agora suas festas nas chicherías - disse José. - Você já viu como Piura cresceu,
primo?
' Marca de pisco, uma aguardente de uva, elaborada tradicionalmente no departamento de Ica e exportada pelo seu porto de
Pisco; é um tipo de bagaceira.
34
Há edifícios novos por toda parte. Embora isso não chame a sua atenção, vindo de Lima.
- vou dizer uma coisa a vocês - disse Lituma. Acabaram-se as viagens para mim. Todo este tempo tenho pensado e percebi
que me dei mal por não ter ficado na minha
terra, como vocês. Pelo menos isso aprendi, quero morrer aqui.
- Pode ser que mude de idéia quando souber o que se passa - disse Josefino. - Terá vergonha quando as pessoas o apontarem
com o dedo na rua. E então irá embora.
Josefino parou e tirou um cigarro. Os León fizeram uma proteção com as mãos para que a brisa não apagasse o fósforo. Continuaram
andando, devagar.
- E se não vai? - perguntou Mono. - Piura ficará pequena para os dois, Josefino.
- Acho difícil que Lituma vá embora, ele voltou piurano até a medula - disse José. - Não é como quando voltou da montanha,
que tudo aqui cheirava mal. Em Lima despertou
nele o amor pela terra.
- Nada de comidas chinesas - disse Lituma. Quero pratos piuranos. Um bom assado de cabrito novo, tira-gosto e muita chicha
clarinha.
- Vamos então até a Angélica Mercedes, primo disse Mono. - Continua sendo a rainha das cozinheiras. Você não se esqueceu
dela, não é mesmo?
- Melhor a Catacaos, primo - disse José. - No Carro Hundido, lá a chicha clarinha é a melhor que conheço.
- Que contentes vocês ficaram com a volta de Lituma
- disse Josefino. - Os dois até parecem felizes.
- Apesar de tudo, é nosso primo, um invencível
- disse Mono. - Sempre dá prazer ver de novo a alguém da família.
- Temos que levá-lo a algum lugar - disse Josefino.
- Prepará-lo um pouco, antes de lhe contar.
- Calma, Josefino - disse Mono -, não terminamos de contar.
- Amanhã iremos à Dona Angélica - disse Lituma.
- Ou à Catacaos, se preferem. Mas hoje já sei onde festejar o meu regresso, vocês têm de me fazer a vontade.
- Aonde merda quer ir? - perguntou Josefino. Ao Reina, ao Três Estrellas?
- À casa da Chunga Chunguita - disse Lituma.
- Que coisa - disse Mono. - Nada menos que à Casa Verde. Imagine só, invencível.
35

II.


- Você continua o mesmo demônio de sempre disse Madre Angélica, e inclinou-se para Bonifácia, estendida no chão, como uma
escura, compacta alimária. - Uma malvada
e uma ingrata.
- A ingratidão é o pior, Bonifácia - disse a superiora, lentamente. - Até os animais são agradecidos. Você já reparou nos
micos, quando jogam bananas para eles?
Os rostos, as mãos, os véus das madres pareciam fosforescentes na penumbra da despensa; Bonifácia continuava imóvel.
- Algum dia você entenderá o que fez e se arrependerá - disse Madre Angélica. - E se não se arrepender, você irá para o
inferno, perversa.
As pupilas dormem num quarto comprido, estreito, fundo como um poço; nas paredes nuas há três janelas que dão para o Nieva,
a única porta comunica com o largo pátio
da missão. No chão, apoiados contra a parede, estão os catrezinhos dobráveis de lona: as pupilas dobram-nos ao se levantar,

desdobram-nos e os estendem de noite.
Bonifácia dorme num catre de madeira, no outro lado da porta, num quartinho que é como uma cunha entre o dormitório das

pupilas e o pátio. Sobre seu leito há um
crucifixo e, ao lado, um baú. As celas das madres estão no outro extremo do pátio, na residência: uma construção branca,

com teto de duas águas, muitas janelas
simétricas e uma sólida varanda de madeira. Junto à residência estão o refeitório e a sala de costura, que é onde as pupilas

aprendem a falar língua cristã, a soletrar,
somar, coser e bordar. As aulas de religião e de moral são dadas na capela.
36
Num canto do pátio há uma construção parecida com um hangar, que confina com a horta da missão; sua alta chaminé avermelhada

destaca-se entre os ramos invasores
da mata: é a cozinha.
- Você era deste tamanho, mas já se podia adivinhar o que seria - a mão da superiora estava a meio metro do chão. - Sabe

do que falo, não é verdade?
Bonifácia virou-se, levantou a cabeça, os olhos examinaram a mão da superiora. Até aquele canto da despensa chegava a tagarelice

dos papagaios na horta. Pela janela,
já aparecia a ramada escura das árvores, inextricável. Bonifácia apoiou os cotovelos no chão: não sabia, madre.
- Também não sabe tudo o que temos feito por você, não é? - estourou Madre Angélica, que andava de um lado para outro, os
punhos fechados. - Nem sabe como era quando
nós a recolhemos, não é?
- Como quer que eu saiba - sussurrou Bonifácia. Era muito pequena, mãezinha, não me lembro.
- Olhe só a vozinha que ela faz, madre, que dócil parece - gritou Madre Angélica. - Você pensa que pode me enganar? Por

acaso não a conheço? E com permissão de
quem você continua a me chamar de mãezinha?
Depois das orações da noite, as madres entram no refeitório e as pupilas, precedidas por Bonifácia, dirigem-se ao dormitório.

Estendem suas camas e, quando estão
deitadas, Bonifácia apaga as lamparinas, fecha a porta à chave, ajoelha-se ao pé do crucifixo, reza e se deita.
- Você corria para a horta, cavoucava a terra e logo que achava uma minhoca, um verme, metia-o na boca disse a superiora.

- Andava sempre doente, e quem curava e
cuidava de você? Também não se lembra disso?
- E vivia nua - gritou Madre Angélica - e eu tinha prazer em fazer vestidos para você; e você os arrancava e saía mostrando
as vergonhas para todo mundo, e já
devia ter mais de dez anos. Tinha maus instintos, demônio, você só sentia prazer na imundície.
Terminara a estação das chuvas e anoitecia depressa: atrás do encrespamento de ramos e folhas da janela, o céu era uma constelação
de formas sombrias e de brilhos.
A superiora estava sentada sobre um fardo, muito ereta, e Madre Angélica ia e vinha, agitando o punho, às vezes sungava

a manga do hábito e aparecia o braço, uma
delgada viborazinha branca.
- Nunca poderia imaginar que você fosse capaz de uma coisa assim
37
- disse a superiora. - Como foi, Bonifácia? Por que é que você fez isso?
- Será que não se lembrou de que podiam morrer de fome ou se afogar no rio? - perguntou Madre Angélica. Que pegariam febres?
Não pensou em nada, bandida?
Bonifácia soluçou. A despensa estava impregnada por um cheiro de terra ácida e vegetais úmidos que vinha e se acentuava
com as sombras. Um cheiro espesso e picante,
noturno, parecia atravessar a janela misturado ao cricrilar de grilos e cigarras, muito nítido já.
- Você era como um animalzinho e aqui ganhou um lar, uma família, um nome - disse a superiora. - Também demos um Deus a
você. Isso não significa nada para você?
- Não tinha o que comer nem o que vestir - grunhiu Madre Angélica - e nós a criamos, vestimos, educamos. Por que você fez
isso com as meninas, malvada?
De quando em quando, um estremecimento percorria o corpo de Bonifácia, da cintura aos ombros. O véu estava solto e os cabelos
lisos ocultavam parte de sua testa.
- Pare de chorar, Bonifácia - disse a superiora. Fale logo.
A missão desperta à alvorada, quando ao rumor dos insetos sucede o canto dos pássaros. Bonifácia entra no dormitório agitando
uma campainha: as pupilas saltam dos
catrezinhos, rezam ave-marias, vestem os guardapós. Logo se repartem em grupos pela missão, de acordo com as obrigações:
as menores varrem o pátio, a residência,
o refeitório; as maiores, a capela e a sala de costura. Cinco pupilas carregam latas de lixo para o pátio e esperam Bonifácia.
Guiadas por ela, descem o caminho,
atravessam a Plaza de Santa Maria de Nieva, as plantações e, antes de chegar à cabana do prático Nieves, internam-se por
um atalho que serpenteia entre capanahuas,
juçaras e tucuns e desemboca em uma pequena garganta, que é a lixeira do povoado. Uma vez por semana, os criados do Prefeito
Manuel Aguilla fazem uma grande fogueira
com o lixo. Os aguarunas dos arredores vêm toda tarde pilhar por ali, e uns esgaravatam o lixo em busca de coisas comíveis

e de objetos caseiros, enquanto outros
espantam a gritos e a pauladas as aves carniceiras que planam cobiçosamente sobre a garganta.
- Não se importa que essas meninas voltem a viver na indecência e no pecado? - perguntou a superiora. Que percam tudo o
que aprenderam aqui?
- Sua alma continua pagã,
38
ainda que você fale como cristã e já não ande nua -- disse Madre Angélica. - Não só não se importa, madre, mas ela as fez
fugir porque queria que voltassem a ser
selvagens.
- Elas queriam ir - disse Bonifácia; - saíram ao pátio e vieram até a porta, e em seus rostos vi que também queriam ir com

aquelas duas que chegaram ontem.
- E você fez a vontade delas! - gritou Madre Angélica. - Porque tinha raiva delas! Porque lhe davam trabalho e você odeia

o trabalho, preguiçosa! Demônio!
- Acalme-se, Madre Angélica - a superiora levantou-se.
Madre Angélica levou a mão ao peito, tocou na testa: as mentiras a tiravam do sério, madre, sentia muito.
- Foi por causa das duas que você trouxe ontem, mãezinha - disse Bonifácia. - Eu não queria que as outras fossem embora,

só aquelas duas, porque fiquei com pena.
Não grite assim, mãezinha, depois você adoece, sempre que você se zanga, adoece.
Quando Bonifácia e as pupilas que carregam o lixo regressam à missão, Madre Griselda e suas ajudantes já prepararam a refeição

da manhã: fruta, café e um pãozinho
que se faz no forno da missão. Depois da refeição, as pupilas vão à capela, recebem lições de catecismo e história sagrada

e aprendem as orações. Ao meio-dia, voltam
à cozinha e, sob a direção de Madre Griselda - vermelha, sempre agitada e loquaz - preparam o almoço: sopa de legumes,
peixe, mandioca, dois pãezinhos, fruta e
água do filtro. Depois, as pupilas podem brincar uma hora pelo pátio e a horta, ou sentar-se à sombra das árvores frutíferas.
Em seguida, sobem à sala de costura.
Às recém-chegadas Madre Angélica ensina o castelhano, o alfabeto e os números. A superiora tem a seu cargo os cursos de

história e de geografia, Madre Ângela, o
desenho e as artes domésticas, e Madre Patrocinio, as matemáticas. Ao entardecer, as madres e as pupilas rezam o rosário

na capela, e essas voltam a se repartir
em grupos de trabalho: a cozinha, a horta, a despensa, o refeitório. A refeição da noite é mais leve que a da manhã.
- Contavam coisas do seu povo para me convencer, madre - disse Bonifácia. - Me ofereciam tudo e fiquei com pena.
- Você nem sequer sabe mentir, Bonifácia - a superiora desenlaçou as mãos, que revoaram brancamente nas trevas azuis, e

se juntaram de novo numa forma redonda.
39
- As meninas que Madre Angélica trouxe de Chicais não falavam língua cristã, vê como você peca em vão?
- Eu falo como os pagãos, madre, só que você não sabia - Bonifácia levantou a cabeça, duas chaminhas verdes cintilaram um

segundo sob um mato de cabelos. Aprendi
de tanto ouvir as pagãzinhas e não lhe contei nunca.
- Mentira, demônio - gritou Madre Angélica, e a forma redonda se desfez e adejou suavemente. - Veja só o que inventa agora,

madre. Bandida!
Foi, porém, interrompida por uns grunhidos que brotaram como se na despensa estivesse escondido um animal que, subitamente

enfurecido, se delatasse uivando, roncando,
ronronando, provocando ruídos altos e rangentes, vindos da escuridão, numa espécie de desafio selvagem.
- Vê, mãezinha? - disse Bonifácia. - Você não entendeu o meu pagão?
Todos os dias há missa, antes da refeição da manhã. Oficiam-na os jesuítas de uma missão vizinha, geralmente o Padre Venancio.

A capela abre suas portas laterais
nos domingos para que os habitantes de Santa Maria de Nieva possam assistir ao ofício. As autoridades nunca faltam e às

vezes vêm agricultores, caucheiros da região
e muitos aguarunas, que permanecem às portas, seminus, espremidos e contidos. À tarde, Madre Angélica e Bonifácia levam

as pupilas à beira do rio, deixam-nas botar
os pés na água, pescar, subir nas árvores. Nos domingos, o almoço é mais abundante e costuma incluir carne. As pupilas são

umas vinte, de idades que vão de seis
a quinze anos, todas aguarunas. Às vezes, há entre elas uma moça guambisa e até uma
shapra'. Mas não é comum.
- Não gosto de me sentir inútil, Aquilino - disse Fushía. - Queria que fosse como antes. A gente se revezaria, você se lembra?
- Me lembro, homem - disse Aquilino. - Se foi por sua causa que me tornei o que sou.
- É verdade, você ainda estaria vendendo água de casa em casa se eu não tivesse chegado a Moyobamba disse Fushía. - Que

medo que você tinha do rio, velho.
' índios jívaros que vivem nas margens do rio Morona, no departamento de Loreto.
40
- Só do Mayo, porque quase me afoguei nele, quando moço - disse Aquilino. - Mas eu nadava sempre no Rumiyacu'.
- O Rumiyacu? - perguntou Fushía. - Passa por Moyobamba?
- Aquele rio mansinho, Fushía -- disse Aquilino -, o que atravessa as ruínas, perto de onde vivem os
lamistas'. Tem muitos laranjais. Você não se lembra nem das
laranjas mais doces do mundo?
- Tenho vergonha de ver você suando todo o dia, e eu aqui, como um morto - disse Fushía.
- Mas não é preciso remar, homem -- disse Aquilino -, só seguir o rumo. Agora que passamos os pongos, o Marañón faz o trabalho
sozinho. O que eu não gosto é que
você fique calado, e que se ponha a olhar o céu como se estivesse vendo o Chulla-Chaquí.
- Mas eu nunca vi - disse Fushía. - E aqui na selva todos viram, pelo menos uma vez, menos eu. Falta de sorte também nisso.
- Melhor dizer boa sorte - disse Aquilino. - Você sabia que ele apareceu uma vez ao Senhor Reátegui? Numa quebrada do Nieva,
dizem. Mas viu que mancava muito, e numa
dessas descobriu-lhe a pata pequeninha e correu com ele a balaços. A propósito, Fushía, por que é que você brigou com o
Senhor Reátegui? Você deve ter feito uma
boa para ele.
Fizera muitas, e a primeira, antes de conhecê-lo, recém-chegado a Iquitos, velho. Muito depois é que contou a ele e Reátegui
ria, quer dizer que foi você que logrou
o pobre do Dom Fábio? e Aquilino, o Senhor Dom Fábio, o governador de Santa Maria de Nieva?
- Para servi-lo, senhor - disse Dom Fábio. - O que deseja? Ficará muito tempo em Iquitos?
Ficaria um bom tempo, talvez definitivamente. Um negócio de madeira, sabia? ia instalar uma serraria perto de
Nauta'
e esperava uns engenheiros. Tinha trabalho
atrasado e pagaria mais, mas queria um quarto grande, cômodo, e Dom Fábio, não faltava mais nada, senhor, estava ali para

servir os clientes, velho: engoliu-a inteira.
- Me deu o melhor quarto do hotel - disse Fushía.
' Rios do departamento de São Martin.
' De lamas, selvagens da região central peruana.
' Capital da província de Loreto, no departamento de Loreto. Fica na confluência dos rios Amazonas e Ucayali.
41
- Com janelas sobre um jardim onde havia palmeiras. Me convidava para almoçar com ele e falava pelos cotovelos do seu patrão.
Eu mal o entendia, meu espanhol
era muito ruim nesse tempo.
- O Senhor Reátegui não estava em Iquitos? - perguntou Aquilino. - Já era rico?
- Não, ficou rico de verdade depois, com o contrabando - disse Fushía. - Mas já tinha aquele hotelzinho e começava a negociar

com as tribos, por isso se meteu
em Santa Maria de Nieva. Comprava caucho, couros, e vendia em Iquitos. Foi lá que tive a idéia, Aquilino. Mas é sempre a

mesma coisa, era necessário um capitalzinho
e eu não tinha um centavo.
- E você roubou muito dinheiro, Fushía? - perguntou Aquilino.
- Cinco mil soles', Dom Júlio - disse Dom Fábio. Meu passaporte e uns talheres de prata. Estou amargurado, Senhor Reátegui,

calculo o mal que o senhor pensará de mim.
Mas eu pagarei tudo, juro, com o suor da minha testa, Dom Júlio, até o último centavo.
- Você nunca teve remorsos, Fushía? - perguntou Aquilino. - Faz um montão de anos que estou para perguntar isso a você.
- Por roubar do cachorro do Reátegui? - disse Fushía. - Ele é rico porque roubou mais que eu, velho. Mas ele começou com

alguma coisa, e eu não tinha nada. Esse
foi sempre o meu azar, ter que começar do zero.
- E para que serve a cabeça? - perguntou Júlio Reátegui. - Como é que não pensou sequer em pedir os documentos dele, Dom

Fábio?
Mas ele pedira e o passaporte parecia novinho, como podia saber que era falso, Dom Júlio? E, além disso, chegou tão bem-vestido

e falando de um jeito que convencia.
Ele, inclusive, dizia quando o Senhor Reátegui voltar de Santa Maria de Nieva eu o apresentarei e juntos farão grandes negócios.

Como tinha sido ingênuo, Dom Júlio.
- Que é que levava naquela maleta, Fushía? - perguntou Aquilino.
- Mapas da Amazônia, Senhor Reátegui - disse Dom Fábio. - Enormes, como os que há no quartel. Pregou-os no seu quarto e

dizia é para saber de onde extrairemos a
madeira.
' Moeda peruana.
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Tinha feito marcas e anotações em português, veja só que estranho.
- Não tem nada de estranho, Dom Fábio - disse Fushía. - Além de madeira, também me interessa o comércio. E, às vezes, é

útil ter contatos com os índios. Por isso
assinalei as tribos.
- Até as do Marañón e as do Ucayali', Dom Júlio disse Dom Fábio -, e eu pensava, que homem empreendedor, ele fará uma boa
dupla com o Senhor Reátegui.
- Você se lembra de quando queimamos seus mapas?
- perguntou Aquilino. - Puro lixo, os que fazem mapas não sabem que a Amazônia é como uma mulher ardente, nunca fica quieta.

Aqui tudo se altera, os rios, os animais,
as árvores. Eta terra louca a que nos tocou, Fushía.
- Ele também conhece a selva a fundo - disse Dom Fábio. - Quando voltar do alto Marañón eu o apresentarei e serão bons amigos,

senhor.
- Aqui em Iquitos todos me falam maravilhas dele
- disse Fushía. - Tenho muita vontade de conhecê-lo. Não sabe quando vem de Santa Maria de Nieva?
- Tem seus negócios por lá e, depois, o governo lhe toma tempo, mas sempre dá suas escapadinhas - disse Dom Fábio. - Uma

vontade de ferro, senhor. Herdou-a do pai,
outro grande homem. Foi um dos grandes do caucho, na grande época de Iquitos. Na depressão, se matou. Perderam até a camisa.

Mas Dom Júlio se levantou, sozinho.
Uma vontade de ferro, eu garanto.
- Uma vez, em Santa Maria, ofereceram um almoço a ele e ouvi um discurso seu - disse Aquilino. - Falou do pai com muito

orgulho, Fushía.
- O pai era um de seus temas - disse Fushía. Para mim também falava dele a propósito de tudo, quando trabalhamos juntos.

Ah, aquele cachorro do Reátegui, rabudo
de merda. Sempre tive inveja dele, velho.
- Tão branquinho, tão carinhoso - disse Dom Fábio.
- E pensar que o agradava, que lambia seus pés, ele entrava no hotel e o Jesus Cristo abanava o rabinho, contentíssimo.

Que homem mau, Dom Júlio.
- Em Campo Grande, batendo nos guardas, e em Iquitos, matando um gato - disse Aquilino. - Que belas despedidas, Fushía.
- Na verdade, Dom Fábio, isso não me parece tão grave
' Afluente do Amazonas, atravessa o departamento de Loreto.
43
- disse Júlio Reátegui. - O que sinto é que levasse meu dinheiro.
Mas ele sentia muito. Dom Júlio, enforcado no mosquiteiro por um lençol, e entrar no quarto e de repente vê-lo, dançando

no ar, teso, com seus olhinhos saltados.
A maldade pela maldade era coisa que não compreendia, Senhor Reátegui.
- O homem faz o que pode para viver e eu compreendo os seus roubos - disse Aquilino. - Mas por que fazer isso ao gato?,

foi de raiva, porque você não tinha um capitalzinho
para começar?
- Também por isso - disse Fushía. - E depois o bicho cheirava mal, e mijou na minha cama um montão de vezes.
E também coisa de asiáticos, Dom Júlio, tinha uns costumes canalhas, ninguém entendia e ele procurava saber e por exemplo

os chineses de Iquitos criavam gatos em
gaiolas, engordavam-nos com leite, e depois os metiam na panela, e os comiam, Senhor Reátegui. Mas ele queria falar agora
das
compras, Dom Fábio, para isso viera de
Santa Maria de Nieva, que esquecessem as coisas tristes, tinha comprado?
- Tudo o que o senhor encomendou, Dom Júlio disse Dom Fábio -, os espelhinhos, as facas, os tecidos, as miçangas, e com

bons descontos. Quando é que o senhor volta
ao alto Marañón?
- Não podia entrar sozinho na selva para fazer comércio, precisava de um sócio - disse Fushía. - E tinha que buscar um longe

de Iquitos, depois daquela confusão.
Por isso é que você foi a Moyobamba - disse Aquilino. E ficou meu amigo, para que o acompanhasse às
tribos. Foi assim que você começou a imitar Reátegui antes mesmo de vê-lo, antes de ser seu empregado. Você só falava de

dinheiro, Fushía, venha comigo, Aquilino,
num ano você fica rico, me deixava louco com aquela cantilena.
E você está vendo, tudo por gosto - disse Fushía.
- Me sacrifiquei mais que qualquer um, ninguém arriscou tanto como eu, velho. É justo que acabe assim, Aquilino?
- São coisas de Deus, Fushía - disse Aquilino. Isso não cabe a nós julgar.
Numa calorenta madrugada de dezembro, um homem chegou a Piura. Sobre uma mula que se arrastava
penosamente,
44
surgiu de repente entre as dunas do sul: uma silhueta com chapéu de abas largas, envolta num poncho leve. Através da avermelhada

luz da madrugada, quando
as línguas de sol começam a rastejar pelo deserto, o forasteiro descobriria alvoroçado a aparição dos primeiros matagais

de cactos, as algarobeiras calcinadas, as
casas brancas de Castilla, que se apinham e multiplicam à medida que se aproximam do rio. Avançou através de um ar denso

até a cidade, que já via, na outra margem,
reverberando como um espelho. Atravessou a única rua de Castilla, deserta ainda e, ao chegar ao Viejo Puente, desmontou.

Esteve uns segundos contemplando as construções
da outra margem, as ruas calçadas, as casas com sacadas, o ar coalhado de grãozinhos de areia, que desciam suavemente, a

maciça torre da catedral, com seu redondo
sino cor de fuligem, e, para o norte, as manchas esverdeadas das chácaras, que seguem o curso do rio em direção a Catacaos.

Tomou as rédeas da mula, atravessou o
Viejo Puente e, batendo nas pernas com o chicote de quando em quando, percorreu a rua principal da cidade, aquela que segue

reta e elegante, do rio até a Plaza
de Armas. Ali parou, atou o animal a um tamarindeiro, sentou no chão, baixou as abas do chapéu para se defender da areia

que fustigava seus olhos sem piedade. Devia
ter realizado uma longa viagem: seus movimentos eram lentos, fatigados. Quando, acabada a chuva de areia, os primeiros piuranos

apareceram na praça inteiramente
iluminada pelo sol, o estranho dormia. A seu lado jazia a mula, o focinho coberto de baba esverdeada, os olhos em branco.

Ninguém se atrevia a acordá-lo. A notícia
se propagou pelos arredores, logo a Plaza de Armas ficou cheia de curiosos que, às cotoveladas, murmuravam sobre o forasteiro,

empurravam-se para chegar junto a
ele. Alguns subiram ao coreto, outros o observaram empoleirados nas palmeiras. Era um jovem atlético, de ombros quadrados,

uma barbicha crespa cobria seu rosto e
a camisa sem botões deixava ver um peito cheio de músculos e pêlos. Dormia com a boca aberta, roncando suavemente; entre

os lábios ressequidos apareciam dentes
como os de um mastim: amarelos, grandes, carnívoros. Suas calças, suas botas, o poncho desbotado estavam em tiras, muito

sujos, a mesma coisa com o chapéu. Não
estava armado. Ao acordar, pôs-se em pé de um salto, em atitude defensiva: sob as pálpebras inchadas, os olhos perscrutavam

cheios de inquietação a multidão de rostos.
De todos os lados brotaram sorrisos, mãos espontâneas,
45
um ancião abriu caminho até ele aos empurrões e entregou-lhe uma cabaça de água fresca. Então, o desconhecido sorriu. Bebeu

devagar, saboreando a água com avidez,
os olhos aliviados.
Havia um murmúrio crescente, todos se esforçavam para conversar com o recém-chegado, interrogavam-no sobre a viagem, lamentavam

a morte da mula. Ele agora ria abertamente,
apertava muitas mãos. Logo, deu um tirão, arrancou os alforjes da sela do animal e perguntou por um hotel. Rodeado de piuranos

solícitos, atravessou a Plaza de Armas
e entrou no La Estrella del Norte: estava cheio. Eles o tranqüilizaram, muitas vozes lhe ofereceram hospitalidade. Alojou-se

na casa de Melchor Espinoza, um velho
que vivia só, no Malecón, perto do Viejo Puente. Tinha uma pequena chácara distante, nas margens do
Chira', para onde ia duas vezes por mês. Naquele ano, Melchor
Espinoza obteve um recorde: hospedou cinco forasteiros. Normalmente, eles permaneciam em Piura o tempo indispensável para

comprar uma colheita de algodão, vender
umas reses, colocar uns produtos: quer dizer, uns dias, umas semanas quando muito.
O estranho, ao contrário, ficou. Os piuranos descobriram poucas coisas sobre ele, quase todas negativas: não era comerciante

de gado, nem arrecadador de impostos,
nem agente de viagens. Chamava-se Anselmo e dizia ser peruano, mas ninguém conseguiu reconhecer a procedência do seu sotaque:

não tinha a fala arrastada e afeminada
dos limenhos, nem a cantante entonação de um chiclayano'; não pronunciava as palavras com a viciosa perfeição da gente de

Trujillo', nem deveria ser serrano, pois
não estalava a língua nos erres e nos esses. Seu sotaque era diferente, muito musical e um pouco lânguido, insólitos os

circunlóquios e modismos que empregava e,
quando discutia, a violência de sua voz fazia pensar em um capitão de guerrilhas. Os alforjes, que constituíam toda a sua

bagagem, deviam estar cheios de dinheiro:
como é que atravessara o areal sem ser assaltado pelos bandidos? Ninguém conseguiu saber de onde vinha, nem por que havia

escolhido Piura por destino.
No dia seguinte à sua chegada, apareceu na Plaza de Armas barbeado, e a juventude do seu rosto surpreendeu
a todo mundo.
' Rio que atravessa o departamento de Piura, na província de Paita e Sullana; desemboca no oceano Pacífico.
' Natural de Chidayo, província de Chiclayo, departamento de Lambayeque.
' Capital do departamento de La Libertad; situada na província de Trujillo, às margens do oceano Pacífico.
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No armazém do espanhol Eusebio Romero, comprou umas calças novas e botas; pagou à vista. Dois dias mais tarde, encomendou

a Saturnina, cérebre tecedeira
de Catacaos, um chapéu de palha branca, desses que se podem guardar no bolso, e depois ficam sem nenhum amassado. Todas

as manhãs, Anselmo ia à Plaza de Armas e,
instalado no terraço do La Estrella del Norte, convidava os passantes a beber. Assim fez amigos. Era conversador e brincalhão,

e conquistou os piuranos celebrando
os encantos da cidade: a simpatia do seu povo, a beleza das mulheres, seus esplêndidos crepúsculos. Logo aprendeu o jeito

da linguagem local e sua toada quente,
preguiçosa: em poucas semanas dizia "guá" para demonstrar espanto, chamava "churres" às crianças, "piajenos" aos burros,

formava superlativos de superlativos, sabia
distinguir a clarinha da chicha espessa e as variedades de pimentas, sabia de cor os nomes das pessoas e das ruas, e dançava

o tondero como os mangaches.
Sua curiosidade não tinha limites. Mostrava um interesse insaciável pelos costumes e usos da cidade, informava-se, com luxo

de detalhes, sobre vidas e mortes. Queria
saber tudo: quem eram os mais ricos, e por que, e desde quando; se o governador, o prefeito e o bispo eram íntegros e queridos,

e quais eram as diversões do povo,
que adultérios, que escândalos inquietavam as beatas e os padres, de que modo os piuranos cumpriam seus deveres para com

a religião e a moral, que formas adotava
o amor na cidade.
Ia todos os domingos ao Coliseo e exaltava-se nas rinhas de galo como um velho aficionado, de noite era o último a abandonar

a cantina do La Estrella del Norte,
jogava cartas com elegância, apostando alto, e sabia ganhar e perder sem se alterar. Assim conquistou a amizade de comerciantes

e fazendeiros e se fez popular.
Os graúdos convidaram-no para uma caçada em Chulucanas e ele deslumbrou a todos com sua pontaria. Ao passar por ele, na

rua, os camponeses chamavam-no familiarmente
pelo nome e ele lhes dava palmadas ásperas e cordiais. O povo apreciava seu espírito jovial, a desenvoltura de suas maneiras,

sua liberalidade. Mas todos viviam
intrigados com a origem do seu dinheiro e com seu passado. Começaram a circular boatos sobre ele: quando chegavam a seus

ouvidos, Anselmo saudava-os com gargalhadas,
não os desmentia nem os confirmava. Às vezes percorria com amigos as chicherías mangaches e terminava sempre na Angélica

Mercedes,
47
porque ali havia uma harpa e ele era um harpista consumado, inimitável. Enquanto os outros sapateavam e bebiam, ele, horas
a fio, num canto, acariciava as cordas
brancas, que
lhe obedeciam docilmente e, a seu mando, podiam sussurrar, rir, soluçar.
Os piuranos deploravam apenas que Anselmo fosse descortês e olhasse as mulheres com atrevimento quando estava bêbado. Às

criadas descalças que atravessavam a Plaza
de Armas em direção ao mercado, às vendedoras que, com cântaros ou vasilhas de barro na cabeça, iam e vinham, oferecendo

sucos de sapoti e de manga, e queijinhos
frescos da serra, às senhoras com luvas, véus e rosários, que desfilavam para a igreja, a todas fazia propostas em voz alta

e improvisava rimas de apurado colorido.
"Cuidado, Anselmo", diziam-lhe os amigos, "os piuranos são ciumentos. Um marido ofendido, um pai genioso o desafiará para

um duelo no dia em que menos esperar; mais
respeito com as mulheres." Anselmo, porém, respondia com uma gargalhada, levantava o copo e brindava por Piura.
Não aconteceu nada no primeiro mês de sua estada na cidade.
Não é para tanto e, além disso, tudo se arranjava neste mundo, o sol cintila nos olhos de Júlio Reátegui e as garrafas estão

em uma talha cheia de água. Ele mesmo
serve os copos; a espuma branca borbulha, infla-se e rompe em crateras: não deviam se preocupar e, antes de tudo, outro

copinho de cerveja. Manuel Aguila, Pedro
Escabino e Arévalo Benzas bebem, enxugam os lábios com as mãos. Através da tela metálica das janelas vê-se a Plaza de Santa

Maria de Nieva, um grupo de aguarunas
mói mandioca em uns recipientes bojudos, vários garotinhos correm ao redor dos troncos de capirona. No alto, nas colinas,

a residência das madres é um retângulo
ígneo e, em primeiro lugar, era um projeto a longo prazo, e, aqui, os projetos não prosperavam, Júlio Reátegui achava que

se alarmavam em vão. Mas Manuel Aguila
não, nada disso, governador, fica de pé, eles tinham provas, Dom Júlio, um homenzinho baixo e calvo, de olhos saltados,

aqueles dois caras tinham corrompido os selvagens.
E Arévalo Benzas também, Dom Júlio, fica de pé, perdia a esperança, ele dissera, atrás daquelas bandeiras e daquelas cartilhas

há outra coisa, e ele se opôs a que
os professores viessem, Dom Júlio, e Pedro Escabino bate na mesa com o
copo,
48
Dom Júlio: a cooperativa era um fato, os aguarunas é que iam vender em Iquitos, os caciques se reuniram em Chicais para

tratar disso, e aquela
era a verdadeira situação, e o resto, ilusão. Só que Júlio Reátegui não conhecia um único aguaruna que soubesse o que é

Iquitos ou uma cooperativa, de onde é que
Pedro Escabino tirara semelhante história? e pedia que falassem um de cada vez, senhores. O copo soa seco e surdo de novo

contra a mesa, Dom Júlio, ele passava muito
tempo em Iquitos, tinha muitos negócios, e não percebera que a região andava agitada desde que aqueles dois caras chegaram.

A voz de Júlio Reátegui é sempre suave,
Dom Pedro, o governo fizera com que perdesse tempo, e dinheiro, mas seus olhos endureceram, e ele não quisera aceitá-lo,

e Pedro Escabino foi um dos que mais insistiram,
que fizesse o favor de medir suas palavras. Pedro Escabino sabia quanto deviam a ele e não queria ofendê-lo; só que acabava

de chegar de Urakusa e, pela primeira
vez em dez anos, Dom Júlio, seco e surdo, duas vezes contra a mesa, os aguarunas não quiseram vender uma bolinha de caucho,

apesar dos adiantamentos, e Arévalo Benzas:
mostraram-lhe até a cooperativa. Dom Júlio, que não risse, construíram uma cabana especial e mantinham-na cheia de caucho

e de couros, e não quiseram vender a Escabino
e disseram que iam vendê-las em Iquitos. E Manuel Aguila, baixo e calvo atrás dos olhos saltados: o governador entendia?

Aqueles caras não deveriam ter ido nunca
às tribos, Arévalo tinha razão, só queriam corrompê-los. Mas não viriam mais, senhores, e Júlio Reátegui enche os copos.

Ele não ia a Iquitos só por seus negócios,
também pelos deles, e o ministério tinha anulado o plano de extensão cultural silvícola, e acabara com as turmas volantes

de professores. Mas Pedro Escabino, seco
e surdo pela terceira vez: já tinham vindo e o mal estava feito, Dom Júlio. De modo que não poderiam nem se entender com

os selvagens? Ia ver que se entenderiam
muito bem, trouxeram o intérprete que aqueles dois caras levaram a Urakusa, e ele contaria, Dom Júlio, e ele veria. O homem

acobreado e descalço, que está acocorado
junto à porta, levanta-se, avança confuso para o governador de Santa Maria de Nieva, e Bonino Pérez, por quanto lhe compravam

o quilo do caucho, que lhe perguntasse
isso. O intérprete começa a rugir, movimenta muito as mãos, cospe, e Jum escuta em silêncio, os braços cruzados sobre o

peito nu. Duas aspas finas e avermelhadas
decoram seus pômulos esverdeados, e no seu nariz quadrado há tatuadas três barras
horizontais,
49
finas como minhoquinhas, sua expressão é séria, solene sua postura: os urakusas, apinhados na clareira, estão imóveis, e

o sol lanceta as árvores, as
cabanas de Urakusa. O intérprete se cala, e Jum e um velho diminuto gesticulam e gaguejam ruidosamente, e o intérprete,

se for de boa qualidade, dois, de regular,
um sol o quilo, patrão, dizendo, e Teófilo Canas pisca, custando, um cachorro ladra longe. Bonino Pérez sabia, irmão, puta

que os pariu, que grandíssimos comos,
e, para o intérprete: maus peruanos, eles vendiam a vinte o quilo, os patrões sacaneando todos, que não deixassem, homem,

que levassem o caucho e os couros a Iquitos,
nunca mais comercio com esses patrões: traduza isso a ele. E o intérprete, dizendo-lhes? e Bonino, sim, patrões roubando-lhes

dizendo-lhes e Teófilo, sim, maus
peruanos dizendo-lhes? sim, sim, patrão sacaneando, dizendo? e eles, sim, sim, porra, sim: diabos, ladrões, maus peruanos,

que não deixassem, sim, porra, sem medo,
traduzindo isso. O intérprete grunhe, ruge, dá cuspidas e Jum grunhe, ruge, dá cuspidas, e o velho bate no peito, sua pele

tem ruguinhas ásperas, e o intérprete
Iquitos não vindo nunca, patrão Escabino vindo, trazendo faca, machete, tecido, e Teófilo Canas é assim, irmão, pensam que

Iquitos é um homem, não levariam nada,
Bonino, e o intérprete dizendo, trocando por caucho. Mas Bonino Pérez aproxima-se de Jum, aponta a faca que ele tem na cintura,

vamos ver, quantos quilos de caucho
ela custou: perguntei-lhe isso. Jum puxa sua faca, levanta-a, o sol inflama a lâmina branca, dissolve suas bordas e Jum

sorri com arrogância, e atrás dele os urakusas
sorriem, e muitos puxam suas facas, levantam-nas e o sol as incendeia, e as desfaz, e o intérprete: vinte bolas pela faca

do Jum, dizendo, os outros, dez, quinze
bolas, custando, e Teófilo Canas queria voltar a Lima, irmão. Tinha febre, Bonino, e estas injustiças e estes selvagens

que não compreendiam, melhor esquecer e Bonino
Pérez soma e diminui com os dedos, Teófilo, nunca se dera bem com os números, saía por uns quarenta soles a faca de Jum,

não? e o intérprete, dizendo? traduzindo?
e Teófilo não, e Bonino antes fosse isto: patrão diabo, essa faca não custava nem uma bola, se achava uma igual no lixo,

Iquitos não era patrão mas cidade, rio abaixo,
Marañón abaixo, que levassem para lá o caucho, que o venderiam cem vezes melhor, comprariam as facas que quisessem, ou o

que fosse, e o intérprete, senhor? não entendia,
repetindo devagarinho, e Bonino tinha razão: é preciso explicar tudo a eles, irmão,
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desde o princípio, não desanime, Teófilo, e talvez tivessem razão, mas Júlio Reátegui insistia: não podiam perder a cabeça.

Aqueles caras não tinham ido embora?
Nunca voltariam, e só os aguarunas é que andavam sestrosos, ele negociara com os shapras como sempre, e além disso, tudo

tinha remédio. Só que ele pensava que ia
terminar tranqüilo sua gestão de governador, senhores, e estavam vendo, e Arévalo Benzas: isso não era tudo, Dom Júlio.

Não soubera o que aconteceu em Urakusa a
um cabo, um prático e um criado da guarnição de Borja? Na semana passada, agora mesmo, Dom Júlio, e ele, o quê, o que acontecera?
- Alegrem-se, já estamos na Mangachería - disse José.
- A areia arranha, faz cócegas. vou tirar os sapatos
- disse o Mono.
com a Avenida Sánchez Cerro terminavam o asfalto, as fachadas brancas, os sólidos portões e a luz elétrica, e começavam

os muros de cana-brava, os tetos de palha,
lata ou papelão, o pó, as moscas, os meandros. Nas janelinhas quadradas e sem cortinas das choças, resplandeciam as velas

de sebo e os candeeiros mangaches, famílias
inteiras tomavam a fresca da noite no meio da rua. A toda hora, os León levantavam a mão para cumprimentar os amigos.
- Por que estão assim orgulhosos? De que a elogiam tanto? - perguntou Josefino. - Cheira mal e o povo vive como animais.

Pelo menos quinze em cada casebre.
- Vinte, contando os cachorros e a foto de Sánchez Cerro' - disse o Mono. - Essa é outra coisa boa da Mangachería, não há

diferenças. Homens, cachorros, cabras,
todos iguais, todos mangaches.
- E estamos orgulhosos porque nascemos aqui disse José. - Nós a elogiamos porque é nossa terra. No fundo, você morre

de inveja, Josefino.
- Toda Piura está morta a essas horas - disse o Mono. - E aqui, não ouve? a vida está começando.
- Aqui somos todos amigos ou parentes, e valemos pelo que valemos - disse José.
' Sánchez Cerro foi presidente do Peru durante vários anos. Chegou ao poder através de um golpe militar, transformando-se,

porém, em um dos presidentes mais benquistos
pelo povo peruano; quase todas as residências tinham sua fotografia na parede.
51
- Em Piura só consideram a gente pelo que se tem, e se você não é branco, é puxasaco de brancos.
- Cago para a Mangachería - disse Josefino. Quando acabarem com ela, como com a Gallinacera, vou tomar um porre de contente.
- Você está nervoso e não sabe com quem desabafar
- disse o Mono. - Mas se quer anarquizar com a Mangachería, é melhor que fale baixinho, ou os mangaches arrancam a sua alma.
- Parecemos crianças - disse Josefino. - Como se este momento fosse para discussões.
- Façamos as pazes, cantemos o hino - disse José. O povo sentado na areia estava silencioso, e todo o
ruído - cantos, brindes, música de guitarras, palmas saía das chicherías, cabanas maiores que as outras, mais bem iluminadas,

e com bandeirinhas vermelhas ou brancas
flamejando sobre a fachada na ponta de uma taquara. O ambiente fervilhava de cheiros tépidos e opostos e, à medida que
as ruas se iam desvanecendo, surgiam cachorros,
galinhas, porcos, que, grunhindo tristemente, espojavam-se na terra, cabras de olhos enormes presas a estacas, e era mais

numerosa e sonora a fauna aérea suspensa
sobre suas cabeças. Os invencíveis caminhavam sem pressa pelos tortuosos sendeiros da jângal mangacke, esquivando-se dos

velhos que tinham estendido suas esteiras
ao ar livre, contornando as choças intempestivas que brotavam no meio do caminho, como cetáceos. O céu ardia de estrelas,

algumas grandes e de luz intensa, outras
como chaminhas de fósforos.
- Já saíram as Três-Marias - disse Mono; apontava três pontos altíssimos, reluzentes, paralelos. - E como piscam. Domitila

Yara dizia que quando se vêem as TrêsMarias
tão clarinhas, a gente pode pedir graças. Aproveita, Josefino.
- Domitila Yara! - disse José. - Pobre velha. Me dava um pouco de medo, mas, desde que morreu, eu me lembro dela com carinho.

Se é que nos perdoou a confusão no
seu velório.
Josefino ia calado, as mãos nos bolsos, o queixo metido no peito. Os León murmuravam todo o tempo, em coro, "boa noite,

dom", "boa noite, dona", e do chão vozes
invisíveis e sonolentas devolviam o cumprimento e os chamavam por seus nomes. Pararam diante de uma choça e o Mono empurrou

a porta: Lituma estava de costas, vestido
com uma roupa cor de abóbora, o casaco se avolumava nos quadris,
52
e tinha os cabelos úmidos e brilhantes. Sobre sua cabeça bailava um recorte de jornal, pendurado por um alfinete.
- Aqui está o invencível número três, primo - disse o Mono.
Lituma girou como um pião, atravessou a sala risonho e rápido, os braços abertos, e Josefino saiu ao seu encontro. Abraçaram-se

com força, e estiveram um bom tempo
dando-se palmadas, quanto tempo irmão, quanto tempo Lituma, e que prazer ver você aqui de novo, esfregando-se como dois

perdigueiros.
- Que belo terno você está usando, primo - disse o Mono.
Lituma recuou para que os invencíveis contemplassem à vontade suas vestes flamantes e multicoloridas: camisa branca de colarinho

duro, gravata rosada com pintas
cinza, meias verdes e sapatos de bico fino, lustrados como espelhos.
- Gostam dele? Estou estreando em homenagem a minha terra. Comprei-o faz três dias, em Lima. E também a gravata e os sapatos.
- Você está que é um príncipe - disse José. Bacanérrimo, primo.
-- O terno, é só o terno - disse Lituma, beliscando as lapelas do seu casaco. - O guarda-roupa começa a criar traças. Mas

ainda posso fazer alguma conquista. Agora
que estou solteirinho, chegou minha vez.
- Quase não o reconheci - interrompeu Josefino.
- Tanto tempo que não via você à paisana, colega.
- É melhor dizer que faz tanto tempo que não me vê - disse Lituma, e seu rosto se animou, sorriu de novo.
- Também nós tínhamos esquecido como você era à paisana, primo - disse José.
- Assim está melhor que disfarçado de tira - disse o Mono. - Agora você volta a ser um invencível de verdade.
- O que esperamos? - perguntou José. - Cantemos o hino.
- Vocês são meus irmãos - riu Lituma. - Quem ensinou vocês a mergulhar no rio do Viejo Puente?
- E também a mamar e a ir às putas - disse José.
- Você nos corrompeu, primo.
Lituma agarrava os León, sacudia-os afetuosamente. Josefino esfregava as mãos e, ainda que sua boca sorrisse,
53
em seus olhos imóveis brilhava algo furtivo e assustado, e a postura de seu corpo, os ombros atirados para trás, o peito

saliente, as pernas ligeiramente arqueadas,
era ao mesmo tempo forçada, inquieta e cautelosa.
- Temos que provar esse Sol de Ica -- disse o Mono.
- Você prometeu e promessa é dívida.
Sentaram-se em duas esteiras, sob um lampião de querosene pendurado do teto, e que, balançando, resgatava das paredes de

adobe, sumidas na penumbra, curtas rachaduras,
inscrições, e um nicho em ruínas, no qual, aos pés de uma Virgem de gesso com o Menino nos braços, estava um candelabro.

José acendeu a vela e, à sua luz, o recorte
do jornal mostrou a silhueta amarelecida de um general, uma espada, muitas condecorações. Lituma aproximara uma maleta das

esteiras. Abriu-a, tirou uma garrafa,
desarrolhou-a com os dentes, e o Mono o ajudou a encher quatro copinhos até a borda.
- Parece mentira, estar de novo com vocês, Josefino
- disse Lituma. - Senti muita falta dos três. E também da minha terra. Bebo pelo prazer de estarmos juntos de novo.
Bateram os copos e beberam ao mesmo tempo, até esvaziá-los.
- Porra, é puro fogo! - berrou o Mono, os olhos cheios de lágrimas. - Você está certo de que não é álcool
40, primo?
- Mas está fraquinho - disse Lituma. - O pisco é para limenhos, mulheres e crianças, não é como a aguardente. Já esqueceu
quando tomávamos aguardente como se fosse
refresco?
- O Mono sempre foi fraco para o trago - disse Josefino. - Dois copos e já está tonto.
- Me embriago logo, mas tenho mais resistência que qualquer um - disse o Mono. - Posso continuar assim um montão de dias.
- Você era sempre o primeiro a cair, irmão - disse José. - Você se lembra, Lituma, de como a gente o arrastava até o rio

e o ressuscitava a mergulhos?
- E, às vezes, no puro tabefe - disse o Mono. Por isso não tenho barba, de tanto sopapo que me deram para curar as bebedeiras.
- vou fazer um brinde - disse Lituma.
- Antes, deixe que eu encha os copos, primo.
O Mono pegou a garrafa de pisco, começou à servir e o
rosto de Lituma foi se entristecendo, duas rugas enviesaram levemente seus olhinhos, seu olhar pareceu andar.
54
- Vamos ver esse brinde, invencível - disse Josefino.
- Por Bonifácia - disse Lituma. E levantou o copo, devagar.
55

III.


- Pare de bancar a criança - disse a superiora. Você teve toda a noite para choramingar à vontade.
Bonifácia agarrou a barra do hábito da superiora e o beijou:
- Prometa que Madre Angélica não virá. Prometa, madre, a senhora é boa.
- Madre Angélica repreende você com razão - disse a superiora. - Você ofendeu a Deus e traiu a nossa confiança.
- Para que não fique com raiva, madre - disse Bonifácia. - Não sabe que sempre adoece quando tem raiva? E eu não me importo

que me repreenda.
Bonifácia bate palmas e o cochicho das pupilas diminui mas não pára, bate mais forte e se calam: agora só o roçar das sandálias

contra as pedras do pátio. Abre o
dormitório e, depois de a última pupila passar, fecha e encosta o ouvido à porta: não é o barulho de todos os dias, além

da azáfama doméstica há esse cochichar surdo,
secreto, assustado, o mesmo que ouviu quando as meninas chegaram, ao meio-dia, entre Madre Angélica e Madre Patrocínio,

o mesmo que aborreceu a superiora durante
o rosário. Bonifácia escuta um momento ainda e volta à cozinha. Acende uma lamparina, pega um prato de latão cheio de bananas

fritas, corre a tranca da despensa,
entra e, ao fundo, na escuridão, há como que uma correria de ratos. Levanta a lamparina, explora o aposento. Estão atrás

das sacas de milho: um tornozelo fino, cingido
por um aro de couro, dois pés descalços que se esfregam e torcem, queriam se ocultar mutuamente?
56
O espaço entre as sacas e a parede é muito estreito, devem estar incrustadas uma na outra, não choram.
- Acho que o Demônio me tentou, madre - disse Bonifácia. - Mas eu não percebi. Só senti pena, acredite.
- De que sentiu pena? - perguntou a superiora. E que tem isso a ver com o que você fez, Bonifácia, não se faça de boba.
- Das duas pagãzinhas de Chicais, madre - disse Bonifácia. - Estou dizendo a verdade. A senhora não viu quando choraram?
Não viu como se abraçavam? E que nem comeram
nada quando Madre Griselda as levou à cozinha, não viu?
- Não têm culpa por ficarem assim - disse a superiora. - Não sabiam que era para o bem delas que estavam aqui, pensavam
que íamos fazer mal a elas. Não é assim sempre,
até que se acostumam? Elas não sabiam, mas você, sim, sabia que era pelo bem delas, Bonifácia.
- Mas mesmo assim me dava pena - disse Bonifácia.
- O que queria que fizesse, madre?
Bonifácia ajoelha-se, ilumina as sacas com a lamparina, e ali estão: unidas como duas enguias. Uma tem a cabeça enterrada
no peito da outra, que, de costas para
a parede, não pode esconder o rosto quando a luz invade seu esconderijo, só fecha os olhos e geme. Nem as tesouras da Madre
Griselda, nem o ardente desinfetante
avermelhado passaram por ali. Vastas, escuras, fervendo de pó, de palhinhas, sem dúvida de piolhos, as cabeleiras chovem
sobre suas costas e coxas nuas, são montinhos
de lixo. Por entre fios sujos e embaraçados, delineiam-se à claridade da lamparina os membros enfraquecidos, tiras de pele
cor de mate, as costelas.
- Foi sem querer, madre, sem pensar - disse Bonifácia. - Não tinha a intenção, nem sequer pensara, é verdade.
- Não pensou nem tinha a intenção, mas deixou fugirem - disse a superiora. - E não só àquelas duas, também às outras. Você
planejou tudo com elas há muito tempo,
não é verdade?
- Não, madre, juro que não - disse Bonifácia. Foi anteontem à noite, quando trouxe comida para elas aqui na despensa. Quando
me lembro, me assusto, virei outra,
e pensava que era por pena, mas talvez o Diabo me tentasse como a senhora diz, madre.
- Isso não é desculpa - disse a superiora -, não se ampare tanto no Diabo. Se a tentou foi porque você se
deixou tentar.
57
Que é que você quer dizer com isso de ter virado outra?
Sob os matos de cabelos, os pequenos corpos misturados se põem a tremer, seus estremecimentos se comunicam e esse bater

de dentes parece o dos apavorados barrigudos
quando são enjaulados. Bonifácia olha para a porta da despensa, inclina-se e, muito devagar, desafinadamente, persuasivamente,

começa a grunhir. Algo muda no ambiente,
como se uma lufada de ar puro refrescasse de súbito a escuridão da despensa. Sob os monturos, os corpos deixam de tremer,

duas cabecinhas iniciam um prudente, mal
perceptível movimento, e Bonifácia continua grasnando, crepitando suavemente.
- Ficaram nervosas desde que viram as meninas disse Bonifácia. - Andavam de segredos e, se eu me aproximava, falavam de

outra coisa. Disfarçando, madre, mas eu sabia
que falavam das pagãzinhas. Não se lembra como ficaram na capela?
- Por que ficaram nervosas? - perguntou a superiora. - Por acaso era a primeira vez que viam chegar à missão duas meninas?
- Não sei por quê, madre - disse Bonifácia. Eu conto o que se passava, não sei por que era assim. Decerto se lembraram de

quando vieram, e disso deviam estar falando.
- Que houve na despensa com aquelas crianças? perguntou a superiora.
- Prometa primeiro que não me manda embora, madre - disse Bonifácia. - Rezei toda a noite para que não me mande embora.

Que faria eu sozinha, madre? Eu mudo se a
senhora prometer. E então conto tudo.
- Você impõe condições para se arrepender de seus erros? - perguntou a superiora. - Era só o que faltava. E não sei por

que quer ficar na missão. Você não deixou
fugir as meninas porque tinha pena de elas estarem aqui? Deveria estar feliz por ir embora.
Bonifácia aproxima o prato de latão e elas não tremem, estão imóveis e a respiração levanta seus peitos num ritmo idêntico

e pausado. Bonifácia põe o prato à altura
da menina sentada. Grunhe sempre, a meio tom, familiarmente e, logo, a cabecinha se levanta, atrás da cascata de cabelos

surgem duas luzes breves, dois peixinhos
que vão dos olhos de Bonifácia ao prato de latão. Um braço emerge e se estende com infinita cautela, a mão medrosa aparece

à luz da
lamparina,
58
dois dedos sujos pegam uma banana, sepultam-na sob a floresta.
- Mas eu não sou como elas, madre - disse Bonifácia. - Madre Angélica e a senhora me dizem sempre, você já saiu da escuridão,

já é civilizada. Para onde vou, madre,
não quero ser paga outra vez. A Virgem era boa, não é verdade? perdoava tudo, não é verdade? Tenha compaixão, madre, seja

boa, para mim a senhora é como a Virgem.
- Você não me compra com bajulações, eu não sou a Madre Angélica - disse a superiora. - Se você se sente civilizada e cristã,

por que deixou fugir as meninas? Como
não se importou com que elas voltassem a ser pagãs?
- Mas vão encontrá-las, madre - disse Bonifácia. A senhora vai ver como os guardas vão trazê-las de novo. Não me jogue a

culpa por elas, se saíram ao pátio e quiseram
ir embora, eu nem percebia bem as coisas, madre, acredite que virei outra.
- Você tinha era ficado louca - disse a superiora.
- Ou idiota, para não perceber que estavam saindo debaixo do seu nariz.
- Pior que isso, madre, uma pagã igualzinha às de Chicais - disse Bonifácia. - Agora penso e me assusto, a senhora tem que

rezar por mim, quero me arrepender, madre.
A menina mastiga sem afastar a mão da boca e vai acrescentando pedacinhos de banana frita à medida que engole. Afastou seus

cabelos, que agora emolduram o rosto
em duas bandas e, ao mastigar, a argola do nariz oscila, ligeiramente. Seus olhos espiam Bonifácia e, de repente, a outra

mão agarra a cabeleira da menina aninhada
contra seu peito. A mão livre vai ao prato de latão, captura uma banana e a cabecinha oculta, obrigada pela mão que empunha

seus cabelos, gira: esta não tem o nariz
perfurado, as pálpebras são duas pequenas bolsas irritadas. A mão desce, coloca a banana junto aos lábios fechados, que

se franzem ainda mais, desconfiados, obstinados.
- E por que você não veio me avisar? - perguntou a superiora. - Você se escondeu na capela porque sabia que havia agido

mal.
- Não tinha medo da senhora, mas de mim, madre
- disse Bonifácia. - Parecia um pesadelo quando não as vi mais, e por isso entrei na capela. Dizia não é verdade,
59
não se foram, não houve nada, eu sonhei. Prometa que não vai me mandar embora, madre.
- Você mesma se mandou embora - disse a superiora. - Para você fizemos o que não fizemos para nenhuma outra, Bonifácia.

Você teria ficado toda a vida na missão.
Vai embora tão logo as meninas voltem, não podem mais ver você aqui. Eu também sinto, apesar de você ter-se portado mal.
E sei que Madre Angélica vai sentir muito.
Mas pelo bem da missão é necessário que você vá embora.
- Deixe-me ficar como criada, pelo menos, madre disse Bonifácia. - Não cuidarei mais das pupilas. Só varrerei e tirarei

o lixo e ajudarei Madre Griselda na cozinha.
Eu lhe peço, madre.
A menina que está deitada resiste: tensa, os olhos fechados, morde os lábios, mas os dedos da outra escavam implacáveis,

porfiam contra essa boca obstinada. As duas
suam com o esforço, têm mechinhas de cabelo aderidas à pele brilhante. E, de repente, os lábios se abrem: velozes, os dedos

introduzem na boca aberta os restos
quase dissolvidos de banana, e a menina começa a mastigar. com a banana entraram na boca umas pontas de cabelo. Bonifácia

mostra isso, com um gesto, à menina da
argola e ela levanta a mão outra vez, seus dedos recolhem os cabelos apanhados e delicadamente os retiram. A menina deitada

agora engole, uma bolinha sobe e desce
por sua garganta. Segundos depois, abre a boca de novo e fica assim, com os olhos fechados, esperando. Bonifácia e a menina

da argola olham-se à claridade oleosa
da lamparina. Sorriem ao mesmo tempo.
- Você não quer mais? - perguntou Aquilino. Tem que se alimentar um pouco, homem, você não pode viver só de ar.
- Me lembro daquela puta o tempo todo - disse Fushía. - A culpa é sua, Aquilino, faz duas noites que passo vendo e ouvindo

aquela puta. Mas de como era quando moça,
quando eu a conheci.
- Como foi que você a conheceu, Fushía? - perguntou Aquilino. - Foi muito depois que nos separamos?
- Faz um ano, Doutor Portillo, mais ou menos - disse a mulher. - Vivíamos então em Belén, e com a cheia a água entrava na

nossa casa.
- Sim, claro, senhora - disse o Doutor Portillo. Mas me fale do japonês, está bem?
60
Justamente, o rio tinha subido, o bairro de Belén parecia um mar, e o japonês passava todos os sábados na frente da casa,

Doutor Portillo. E ela, quem será, e que
estranho
que sendo tão bem-vestido venha ele mesmo embarcar sua mercadoria, e não tenha quem se ocupe disso. Aquela fora a melhor

época, velho. Começava a ganhar dinheiro
em Iquitos, trabalhando para o cachorro do Reátegui, e um dia uma mocinha não podia atravessar a rua inundada, e ele pagou

a um carregador para que a atravessasse,
e a mãe veio e lhe agradeceu: uma caftina terrível, Aquilino.
- E sempre parava para conversar conosco, Doutor Portillo - disse a mulher. - Antes de ir ao cais, ou depois, e todas as

vezes muito amável.
- A senhora já sabia em que negócio andava? perguntou o Doutor Portillo.
- Parecia muito decente e muito elegante, apesar de sua raça - disse a mulher. - Trazia-nos presentinhos, doutor. Roupa,

sapatos e uma vez até um canário.
- Para essa pé-no-chão da sua filha, senhora - disse Fushía. - Para que ele a desperte cantando.
Entendiam-se às mil maravilhas, ainda que sem se dar por entendidos, velho; a caftina sabia o que ele queria, e ele sabia

que a caftina queria dinheiro, e Aquilino,
e Lalita? o que dizia ela de tudo isso.
- Já tinha os cabelos compridíssimos - disse Fushía.
- E então seu rosto era limpo, nem sequer uma espinhazinha. Que bonita era, Aquilino.
- Vinha com um chapéu de sol, vestido com ternos brancos e sapatos brancos também - disse a mulher. Nos levava a passear,

ao cinema, uma vez levou Lalita àquele
circo brasileiro que veio, se lembra?
- Dava-lhe muito dinheiro, senhora? - perguntou o Doutor Portillo.
- Muito pouco, quase nada, doutor - disse a mulher. - E muito raramente. Só nos dava presentinhos.
E Lalita já estava grande para ir ao colégio: daria um emprego a ela no seu escritório, e o salário seria uma grande ajuda

para as duas, não é que Lalita gostava
da idéia? Ela tinha pensado no futuro da filha, e nas necessidades, Doutor Portillo, nas dificuldades que passavam: em resumo,

Lalita foi trabalhar com o japonês.
- Viver com ele, senhora - disse o Doutor Portillo.
- Não tenha vergonha, o advogado é como um confessor para seus clientes.
61
- Juro que Lalita dormia sempre em casa - disse a mulher. - Pergunte às vizinhas se não me acredita, doutor.
- E em que foi que ele fez sua filha trabalhar, senhora? - disse o Doutor Portillo.
Em um trabalho fácil, velho, que o teria feito rico para sempre se durasse uns dois aninhos mais. Mas alguém denunciou a

coisa, e Reátegui ficou são e salvo de culpa,
e ele teve que suportar tudo, fugir, e aí começou o pior de sua vida. Um trabalho fácil, velho: receber o caucho, armazená-lo

com muito talco, para tirar o cheiro,
embalá-lo como tabaco e despachá-lo.
- Você estava apaixonado por Lalita nessa época?
- perguntou Aquilino.
- Eu a comi virgenzinha - disse Fushía - sem saber nada de nada da vida. Só fazia chorar, e se eu estava num mau dia dava

um sopapo nela, e se estava bom comprava
caramelos. É como ter uma mulher e uma filha ao mesmo tempo, Aquilino.
- E por que você joga em Lalita a culpa disso também? - disse Aquilino. - Estou certo de que ela não denunciou vocês. Talvez

a mãe.
Mas ela só soube pelos jornais, doutor, jurava por todos os santos. Era pobre mas honrada como a que mais fosse, e no depósito

esteve apenas uma vez, e ela, o que
tem aí, senhor, e o japonês, tabaco, e ela, inocente, acreditou.
- Tabaco, coisa nenhuma, senhora - disse o Doutor Portillo. - Isso é o que se marcava nos caixotes, mas a senhora sabe que

dentro tinha caucho.
- A caftina nunca soube de nada - disse Fushía. Foi um daqueles cachorros que me ajudavam a pôr talco e a encaixotar. Nos

jornais diziam que ela era outra das minhas
vítimas, porque roubei sua filha.
- Pena que você não guardou esses jornais e também os de Campo Grande - disse Aquilino. -- Seria engraçado ler agora, e

ver como você foi famoso, Fushía.
- Você aprendeu a ler? - disse Fushía. - Quando a gente trabalhava junto você não sabia, velho.
- Você teria lido para mim - disse Aquilino. Mas como é que não aconteceu nada ao Senhor Júlio Reátegui? Por que você teve

que fugir, e ele ficou tão tranqüilo?
- Injustiças da vida - disse Fushía. - Ele entrava com o capital e eu com o corpo. O
caucho aparecia como
meu,
62
ainda que só me tocassem as sobrinhas. Apesar disso, teria ficado rico, Aquilino, o negócio era fácil.
Lalita não lhe contava nada, ela a crivava de perguntas e a moça, não sei, não sei, era a pura verdade, Doutor Portillo,

por que devia maliciar? O japonês estava
sempre
de viagem, mas tanta gente sempre está viajando, e depois, como é que ela podia saber que embarcar caucho era contrabando

e tabaco, não.
- O tabaco não é material estratégico, senhora disse o Doutor Portillo. - O caucho, sim. Temos que vendê-lo só aos nossos

aliados, que estão em guerra com os alemães.
Não sabe que o Peru também está em guerra?
- Então você devia ter vendido o caucho aos gringos, Fushía - disse Aquilino. - Não teria tido encrencas, e eles pagariam

em dólares.
- Nossos aliados compram o caucho a um preço de guerra, senhora - disse o Doutor Portillo. - O japonês vendia escondido

e recebia quatro vezes mais. Também não sabia
disso?
- É a primeira vez que ouço falar disso, doutor disse a mulher. - Eu sou pobre, não me interessa a política, nunca teria

deixado que minha filha saísse com um contrabandista.
E será verdade que ele era também um espião, doutor?
-- Sendo tão mocinha, teria pena de deixar a mãe disse Aquilino. - Como foi que você convenceu Lalita, Fushía?
Lalita podia gostar muito da mãe, mas com ele comia e usava sapatos, em Belén acabaria como lavadeira, puta ou criada, velho,

e Aquilino, histórias, Fushía: você
tinha que estar apaixonado por ela ou não a teria levado. Era muito mais fácil fugir só do que arrastando uma mulher, se

não a queria, não a roubava.
- Selva adentro, Lalita valia seu peso em ouro disse Fushía. - Não disse que era bonita? Atraía qualquer um.
- Seu peso em ouro - disse Aquilino. - Como se você tivesse pensado em fazer negócio com ela.
- Fiz um bom negócio com ela - disse Fushía. Aquela puta nunca lhe contou? Tenho a certeza de que o cachorro do Reátegui

não me perdoou nunca. Foi a minha vingança.
- E uma noite não voltou, nem na seguinte, e depois chegou uma carta dela - disse a mulher.
63
- Contando que ia ao estrangeiro com o japonês, e que se casariam. Eu trouxe a carta, doutor.
- Eu a guardarei, me dê - disse o Doutor Portillo. Por que não deu parte à polícia de que sua filha tinha fugido, senhora?
- Eu pensei que era coisa de amor, doutor - disse a mulher. - Que ele fosse casado e que por isso fugia com minha filha.

Só uns dias depois saiu no jornal que o
japonês era um bandido.
- Quanto dinheiro Lalita mandou na carta? - perguntou o doutor.
- Muito mais do que valiam juntas as duas cadelas
- disse Fushía. - Mil soles.
- Duzentos soles, olhe que mesquinharia, doutorzinho - disse a mulher. -- Mas já gastei, pagando dívidas.
Ele conhecia a alma da velha: mais miserável que a do turco que o botou na cadeia, Aquilino, e o Doutor Portillo queria

saber se o que declarou na polícia era o
mesmo
que contara a ele, senhora, com pontos e vírgulas?
- Menos sobre os duzentos soles, doutor - disse a mulher. - Eles me teriam tomado, o senhor sabe como são no comissariado.
- vou estudar o assunto com calma - disse o Doutor Portillo. - Eu a chamarei logo que haja alguma novidade. Se a citarem

em juízo ou na polícia, eu a acompanharei.
Não faça nenhuma declaração se eu não estiver presente, senhora. A ninguém, entende?
- Como o senhor mandar, doutor - disse a mulher.
- Mas e os danos e prejuízos? Todos dizem que tenho direito. Ele me enganou e tirou minha filha, doutor.
- Quando o prenderem pediremos uma reparação disse o Doutor Portillo. - Eu me encarregarei disso, não se preocupe. Mas se

não quer complicações, já sabe, nenhuma
palavra
se o seu advogado não estiver presente.
- Quer dizer que você voltou a ver o Senhor Júlio Reátegui? - perguntou Aquilino. - Eu pensei que de Iquitos você tinha
ido
direto à ilha.
Mas como queria que eu fosse: nadando? atravessando a pé toda a selva, velho? Não tinha mais que uns poucos soles e ele

sabia que o cachorro do Reátegui lavaria
as mãos, porque ele não aparecia em nada. Sua sorte é que levou Lalita, que o homem tinha suas fraquezas, e Júlio Reátegui

estava ali, ouvira tudo, mas era certo
que a velha não sabia de nada? Tinha um jeito que dava para desconfiar,
compadre.
64
E além disso, preocupava-se porque Fushía levava uma mulher, os apaixonados fazem loucuras.
- Lá sim, ele faz loucuras - disse o Doutor Portillo. Mas não pode comprometê-lo ainda que queira. Tudo está bem estudado.
- Não me disse uma só palavra sobre a tal Lalita disse Júlio Reátegui. - Você sabia que ele vivia com aquela moça?
- Nunca soube - disse o Doutor Portillo. - Deve ser ciumento, devia tê-la sob sete chaves. O importante é que essa bendita

velha está no mundo da lua. Não acho que
haja perigo, os noivos já devem estar no Brasil. Jantamos juntos hoje?
- Não posso - disse Júlio Reátegui. - Chamam-me com urgência de
Uchamala'. Chegou um peão, não sei que diabo acontece. Tentarei voltar no sábado. Acho que Dom Fábio
já chegou a Santa Maria de Nieva, preciso mandar dizer que não compre mais caucho. Até que a coisa se acalme.
- E onde você foi se esconder com Lalita? - perguntou Aquilino.
- Em Uchamala - disse Fushía. - Numa casa de campo no Marañón, daquele cachorro do Reátegui. Vamos passar perto, velho.
As reses saem das fazendas depois do meio-dia e entram no deserto com as primeiras sombras. Embuçados em ponchos, com amplos

chapéus para resistir à investida
do vento e da areia, os peões tangem toda a noite até o rio os pesados, lentos animais. Ao alvorecer, divisam Piura: uma

miragem cinza no outro lado da ribeira,
uma aglomeração imóvel. Não entram na cidade pelo Viejo Puente, que é frágil. Quando o leito está seco, atravessam-no, levantando

uma grande nuvem de poeira. Nos
meses de enchente, aguardam na margem do rio. Os animais exploram a terra com seus largos focinhos, derrubam a chifradas

as algarobeiras novas, lançam lúgubres
mugidos. Os homens falam sossegadamente enquanto quebram o jejum com um fiambre e traguinhos de aguardente, ou cochilam

enrolados em ponchos. Não têm de esperar
muito, às vezes Carlos Rojas chega ao cais antes do gado. Sulcou o rio do outro confim da cidade, onde tem
seu rancho.
' Povoado às margens do Marañón.
65
O barqueiro conta os animais, calcula seu peso, decide o número de viagens para baldeá-los. Na outra margem, os homens do

Camal aprontam sogas, serras
e facas, e o barril onde ferverá esse espesso caldo de cabeça de boi, que só os.do matadouro podem tomar sem desmaiar. Terminado

seu trabalho, Carlos Rojas amarra
a lancha em um dos suportes do Viejo Puente e vai a uma cantina da Salinacera, onde vão os madrugadores. Naquela manhã já

havia um bom número de aguadeiros, varredores
e vendedoras do mercado, todos eles gallinazos'. Serviram-lhe uma cabaça de leite de cabra, perguntaram por que estava com

aquela cara. Sua mulher estava bem? E
seu filho? Sim, estavam bem, e Josefino já estava andando e dizia papai, mas tinha que contar uma coisa. E continuava com

a bocarra aberta e os olhos saltados de
assombro, como se acabasse de ver o Chifrudo. Dez anos que trabalhava na barca e nunca encontrara ninguém na rua ao se levantar,

sem contar o pessoal do Camal.
O sol ainda não apareceu, está tudo escuro, é quando a areia cai mais forte, quem vai pensar, então, em passear a essas

horas? E os gallinazos, você tem razão, homem,
ninguém pensaria. Falava com ímpeto, suas palavras eram como tiros, e se ajudava com gestos enérgicos; nas pausas, sempre,

a bocarra aberta e os olhos saltados.
Foi por isso que se assustou, porra, era estranho. Que é isso? E escutou outra vez, nítido, os cascos de um cavalo. Não

estava ficando louco, sim, olhara para todos
os lados, que esperassem, que o deixassem contar: vira-o entrando no Viejo Puente, reconheceu-o aí mesmo. O cavalo de Dom

Melchor Espinoza? Aquele que é branco?
Sim, senhor, por isso mesmo, porque era branco, brilhava na madrugada e parecia fantasma. E os gallinazos, decepcionados,

teria se soltado, não é novidade, ou Dom
Melchor pegou a caduquice de viajar no escuro? Foi o que ele pensou, aí está, o animal fugiu, é preciso pegá-lo. Saltou

da barca e a trancos subiu a ladeira, ainda
bem que o cavalinho não ia apressado, foi se aproximando devagar para não espantá-lo, agora ficaria adiante dele e o pegaria

pelas crinas, e com a boca
tom, tom,
não fique arisco, montaria em pêlo e o devolveria a seu dono. Ia a passo, já pertinho, e mal o via tal a quantidade de areia,
' O autor chama de gallinazos os moradores da Gallinacera, em Piura, favela de negros. Em várias outras ocasiões, jogará

com as palavras gallinazos e urubus, para
falar dos favelados ou das aves de rapina, freqüentes na paisagem de Piura e personagens importantes de um fato da trama

deste romance.
66
entraram juntos em Castilla, e ele então atravessou à sua frente e zás. Interessados de novo, os gallinazos, que houve,

Carlos, que é que você viu? Sim, senhor,
viu Dom Anselmo, que olhava para ele de cima da montaria, palavra de honra. Tinha um lenço no rosto e, instantaneamente,

seus cabelos ficaram de pé: perdão, Dom
Anselmo, pensei que o animal fugia. E os gallinazos, que fazia lá? para onde ia? fugia de Piura às escondidas, como um ladrão?

Que o deixassem acabar, porra. Riu
gostosamente, olhava para ele e morria de rir, e o cavalinho cabriolava. Sabiam o que foi que disse? Não faça essa cara

de medo, Rojas, não conseguia dormir e saí
para dar uma volta. Ouviram? Bem assim como contava. O vento era puro fogo, chicoteava duro, duríssimo e ele teve vontade

de perguntar a Dom Anselmo se tinha cara
de bobo, pensava que ia acreditar? E um gallinazo, mas você não diria isso a ele, Carlos, não se chama de mentiroso um homem,

e depois, aquilo não era da sua conta.
Mas não terminava aí a história. Um pouco depois ele o viu, à distância, no atalho para Catacaos. É uma gallinaza, no areal?

coitado, deve estar com a cara maltratada,
e os olhos e as mãos. Pelo que ventara nesse dia. Mas se não o deixavam falar ia embora. Sim, continuava a cavalo e dava

voltas e mais voltas, olhava o rio, o Viejo
Puente, a cidade. E depois desmontou e brincava com a manta. Parecia uma criança contente, brincava e saltava como Josefino.

E os gallinazos, será que Dom Anselmo
ficou louco? seria uma pena, sendo tão boa pessoa, talvez estivesse bêbado? E Carlos Rojas, não, não estava louco nem bêbado,

ao se despedir lhe dera a mão, perguntou
pela família e pediu que o recomendasse. Dissessem se tinha ou não razão de vir assombrado.
Nessa manhã Dom Anselmo apareceu na Plaza de Armas, sorridente e loquaz, à hora de costume. Via-se que estava muito alegre,

a todos que passavam à frente do terraço
do La Estrella del Norte propunha brindes, possuído por uma incontida necessidade de gracejar; sua boca expulsava, uma após

outra, histórias de duplo sentido, que
Jacinto, o garçom, aplaudia, torcendo-se de riso. E as gargalhadas de Dom Anselmo retumbavam na praça. A notícia do seu

passeio noturno já tinha circulado por toda
parte, e os piuranos o acossavam com perguntas: ele respondia com gracejos e expressões ambíguas.
A história de Carlos Rojas intrigou a cidade e foi tema de conversação durante dias. Alguns curiosos foram a Dom Melchor

Espinoza em busca de informações.
67
O velho agricultor não sabia de nada. E, além disso, não faria nenhuma pergunta a seu hóspede, porque não era impertinente
nem intrigante. Encontrara seu cavalo
desencilhado
e limpo. Não queria saber de mais nada, que fossem embora e o deixassem
tranqüilo.
Quando o povo deixava de falar daquele passeio, sobreveio uma notícia ainda mais surpreendente. Dom Anselmo comprara à municipalidade

um terreno situado no outro
lado do Viejo Puente, mais além dos últimos ranchos de Castilla, em pleno areal, lá por onde o barqueiro o encontrara brincando

naquela madrugada. Não era estranho
que o forasteiro, se decidira radicar-se em Piura, quisesse construir uma casa. Mas no deserto! A areia devoraria qualquer

casa em pouco tempo, ela a engoliria como
as velhas árvores podres ou os gattinazos mortos. O areal é instável, inconsistente. As dunas mudam de paradeiro a cada

noite, o vento as cria, aniquila e movimenta
a seu capricho, diminui-as e aumenta-as. Aparecem ameaçadoras e múltiplas, cercam Piura como uma muralha, branca ao amanhecer,

vermelha no crepúsculo, parda durante
as noites, e no dia seguinte fugiram e as vemos dispersas, distantes, como uma rala erupção na pele do deserto. Nos entardeceres,

Dom Anselmo ficaria ilhado e à
mercê do pó. Efusivos, numerosos, os piuranos trataram de impedir essa loucura, foram exuberantes em argumentos para dissuadi-lo.

Que adquirisse um terreno na cidade,
que não fosse teimoso. Mas Dom Anselmo desdenhava todos os conselhos e respondia com frases que pareciam enigmas.
A lancha com soldados chega por volta do meio-dia, quer atracar de ponta e não de lado como manda a razão, a água a leva

e a traz, chefes, agüentem-se: Adrián Nieves
ia ajudá-los. Atira-se à água, agarra o remo, encosta a lancha na margem, e os soldados, sem dizer obrigado nem nada, laçam-no,

deixam-no amarrado, e correm para
o povoado. É tarde, chefes, quase todos os cristãos tiveram tempo de fugir para a mata, só agarram meia dúzia, e quando

chegam à guarnição de Borja o Capitão Quiroga
se aborrece, como resolveram trazer um inválido? e para Vilano, desapareça, coxo, você não serve para o exército. A instrução

começa na manhã seguinte: levantam-nos
cedinho, cortam seus cabelos, dão a eles calças e camisas caqui e uns sapatões que apertam os pés. Depois, o Capitão Quiroga

fala sobre a pátria e divide-os em grupos.
68
Um cabo pega Adrián Nievis e outros onze e exercita-os: perfilar, continência, marchar, atirar-se, alto, sentido, porra,

descanso, porra. E assim todos os dias,
e não há maneira de fugir,
a vigilância é rigorosa, chovem murros por qualquer coisa, e o Capitão Quiroga, não há desertor que a gente não pegue e

então o serviço é dobrado. E uma manhã chega
o Cabo Roberto Delgado, um passo adiante o recruta que for prático, e Adrián Nieves, às suas ordens, meu cabo, ele era.

Conhecia bem a região, rio acima? e ele,
como esta mão, meu cabo, rio acima e também rio abaixo, e então que se preparasse, que iam a Bagua. E ele, chegou o momento

Adrián Nieves, agora ou nunca. Partem
na manhã seguinte, eles, a lanchinha, e um criado aguaruna da guarnição. O rio anda cheio e vão devagar, evitando bancos

de areia, plantas enormes, troncos atorados
que saem ao seu encontro. O Cabo Roberto Delgado viaja contente, fala sem parar, chegou um tenente da costa, que quis conhecer

o pongo, e eles, é perigoso, meu tenente,
tem chovido muito, mas ele quis, e foi, e a lancha virou, e se afogaram todos, e o Cabo Delgado se salvou porque inventou

uma terça para não ir, fala sem parar.
O criado não abria a boca, meu cabo, .o Capitão Quiroga era da selva? Adrián Nieves era quem perguntava. De jeito nenhum,

faz dois meses foram em missão pelo Santiago
' e os pernilongos incharam as pernas do capitão. Ficaram vermelhas, cheias de bolotas, levava-as metidas na água, e o cabo

assustava-o: cuidado com as mães-d'água,
cuidado que o deixam mocho, meu capitão, elas vêem que a gente não sente, abrem a bocarra e comem uma perna de uma dentada.

E o capitão, que viessem e comessem.
Tanta ardência até tirava o gosto pela vida, só a água aliviava, porra, que maldita era sua estrela, merda. E o cabo, as

pernas estavam sangrando, meu capitão, o
sangue chama as piranhas, e se elas lhe arrancavam uma porção de fatias? Mas o Capitão Quiroga se esquentou, filho da puta,

chega de me meter medo, e o cabo, tinha
nojo de ver: gordas, cheias de crostas, com o roçar de um raminho se abriam e gotejavam uma agüinha branca. E Adrián Nieves,

por isso é que as piranhas não apareceram,
meu cabo, sentiam que se mordessem aquelas pernas morriam envenenadas. O criado vai calado, de ponteiro, medindo o fundo

com o remo, e dois dias mais tarde chegam
a Urakusa: não há um aguaruna, todos se esconderam na selva.
' Rio que nasce no Equador e entra no Peru pelo departamento do Amazonas.
69
Tinham levado até os cachorros, que sabidos. O Cabo Roberto Delgado está no centro da clareira, a boca aberta de par em

par, urakusas! urakusas! sua dentadura é
de cavalo, forte,
muito branca, não têm fama de machos? o sol do crepúsculo despedaça-a em raios azuis, venham, veados, voltem! Mas para o

criado, não machos, meu cabo, cristãos assustando,
e o cabo, que revistassem suas cabanas, fizessem um pacotinho com o que houvesse de comível, vestível ou vendável, agorinha

mesmo, e voando. Adrián Nieves não aconselhava,
meu capitão, eles podiam estar vendo, e se roubassem cairiam em cima da gente, e eles eram só três. Mas o cabo não queria

conselhos de ninguém, merda, perguntaram
alguma coisa a ele? e depois, que viessem, encarregava-se dos urakusas sem necessidade do revólver, de mãos limpas, e senta

no chão, cruza as pernas, acende um cigarro.
Eles vão às cabanas, voltam e o Cabo Roberto Delgado dorme pacificamente, a guimba se consome na terra, rodeada de formigas

curiosas. Adrián Nieves e o criado
comem mandiocas, bagres, fumam, e quando o cabo desperta vai se arrastando até eles e bebe do cantil. Em seguida, examina

o embrulho: um courinho de lagarto, lixo,
colares de contas e de conchas, era tudo o que havia? pratos de barro, braceletes, e o que ele prometeu ao capitão? tornozeleiras,

diademas, nem um pouquinho de
resina mata-insetos? um cesto de tucum e uma cabaça cheia de masato', puro lixo. Esgaravata o embrulho com o pé, e queria

saber se eles viram alguém enquanto dormia.
Não, meu cabo, ninguém. Achava que andavam perto, e o criado aponta com o dedo a mata, mas o cabo, isso não tinha nenhuma

importância: dormiriam em Urakusa e viajariam
amanhã cedo. Resmunga ainda, que história era essa de se esconderem como se eles estivessem pesteados? fica de pé, mija,

tira as perneiras e vai até uma cabana,
os outros o seguem. Não faz calor, a noite é úmida e rumorosa, uma brisa lenta traz até a clareira um cheiro de plantas

apodrecidas e o criado, melhor indo, meu
cabo, fodido aqui, dizendo, não ficando, não gostando, e Adrián Nieves encolhe os ombros: e quem podia gostar, mas que não

se cansasse, o cabo não o ouvia, já estava
dormindo.
' Espécie de cbicha de mandioca, banana ou milho, obtida por fermentação. No Peru é mais propriamente a fermentação da mandioca,

que é mastigada por mulheres selvagens,
servindo a ptialina como fermento para produzir uma espécie de cbicha, ou cerveja de elevado teor alcoólico.
70
- Como é que foi por lá? - perguntou Josefino. Conte, Lituma.
- Como podia ir, coleguinha? - disse Lituma, os olhinhos surpresos. - Muito mal.
- Batiam em você, primo? - perguntou José. Passava a pão e água?
- Nada disso, me tratavam bem. O Cabo Cárdenas fazia com que me dessem mais comida que a qualquer um. Foi meu subordinado

na selva, um bom mulato, que a gente
chamava de Oscuro. Mas era uma vida triste, de qualquer maneira.
O Mono tinha um cigarro nas mãos e, de repente, pôs a língua e piscou um olho para Lituma. Sorria, alheio aos outros, e

fazia caretas que abriam covinhas nas bochechas
e rugas na testa. E mostrava alegria por isso.
- Me admiravam um pouco - disse Lituma -, diziam, você tem culhões, caboclo.
- Tinham razão, primo, claro que sim, ninguém duvida.
- Toda Piura falava de você, colega - disse Josefino. - As crianças, a gente grande. Muito tempo depois que você foi embora

continuavam discutindo.
- Que fui embora? - perguntou Lituma. - Não fui por minha vontade.
- Nós temos os jornais - disse José. - Você vai ver, primo. Em El Tiempo só tinha insultos, diziam que você era um perverso,

mas em Ecos y Notícias e em La Indústria,
nem reconheciam você como valente.
- Você foi machão, colega - disse Josefino. - Os mangaches ficaram orgulhosos.
- E de que me serviu isso? - Lituma encolheu os ombros, cuspiu e pisou no cuspe. - E depois, foi coisa de bebedeira. A seco

não me atreveria.
- Aqui na Mangachería somos todos urristas' - disse o Mono, pondo-se de pé de um salto. - Fanáticos do General Sánchez Cerro

até o fundo da alma.
Parou diante do recorte de jornal, fez uma continência e voltou à esteira, ria a gargalhadas.
- O Mono já está bêbado - disse Lituma. - Vamos à casa da Chunga antes que durma.
' Partidários do General Eloy Ureta, que foi candidato à presidência do Peru.
71
- Temos uma coisa para contar a você, colega disse Josefino.
- No ano passado, um aprista' veio viver aqui, Lituma - disse o Mono. - Um desses caras que mataram o general. Me dá um

ódio!
- Em Lima conheci muitos apristas - disse Lituma.
- Também estavam presos. Falavam mal à beça de Sánchez Cerro, diziam que ele foi um tirano. Alguma coisa para me contar,

colega?
- E você deixava que falassem mal daquele grande mangache na sua frente? - perguntou José.
- Piurano, não mangache - disse Josefino. - Essa é outra das invenções de vocês. Uma coisa é certa, Sánchez Cerro nunca

pisou neste bairro.
- Que é que você tem para me contar? - perguntou Lituma. - Fale, homem, você me deixou curioso.
- Não era um, mas toda uma família, primo - disse o Mono. - Construíram uma casa perto de onde vivia Patrocínio Naya, e

botaram uma bandeira aprista na porta. Imagine
só, que sacanagem.
- De Bonifácia, Lituma - disse Josefino. - A gente lê na sua cara que não quer saber. Por que você não perguntou, invencível?

Tinha vergonha? Mas se somos irmãos,
Lituma.
- Então, aí, botamos aquela gente no seu lugar disse o Mono -, a vida ficou impossível para eles. E tiveram que ir embora,

apitando como trem.
- Nunca é tarde para perguntar - disse Lituma; endireitou-se um pouco, apoiou as mãos no chão e ficou imóvel. Falava com

muita calma. - Não me escreveu uma só carta.
Que houve com ela?
- Dizem que o jovem Alexandre era aprista desde pequeno - disse José, rapidamente. - Que quando Haya de Ia Torre esteve

aqui uma vez, ele desfilou com um cartaz
que dizia: "Professor, a juventude o saúda".
- Calúnias, o jovem é um grande sujeito, uma das glórias da Mangachería - disse o Mono, com voz frouxa.
- Calem-se, vocês não estão vendo que estamos conversando? - Lituma deu um tapa no chão, e uma nuvenzinha de pó se levantou.

O Mono deixou de sorrir,
' Partidário da APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, liderada por Victor Haya de La Torre.
72
José baixara a cabeça e Josefino, muito tenso e com os braços cruzados, piscava sem parar.
- Que houve, colega? - perguntou Lituma, com suavidade quase afetuosa. - Eu não tinha perguntado nada e você me puxou a

língua. Continue agora, não fique mudo.
- Algumas coisas ardem mais que a aguardente, Lituma - disse Josefino, a meia voz.
Lituma interrompeu-o com um gesto:
- vou abrir outra garrafa, então. - Nem sua voz, nem seus gestos revelavam qualquer emoção, mas sua pele começara a transpirar

e ele respirava fundo. - O álcool
ajuda a receber as más notícias, não é verdade?
Abriu a garrafa com os dentes e encheu os copos. Esvaziou o seu de um gole, seus olhos se avermelharam e ficaram molhados,

e o Mono, que bebia a golinhos, os olhos
fechados, todo o rosto contraído numa careta, de repente se engasgou. Começou a tossir e a bater no peito com a mão aberta.
- Este Mono, sempre tão desajeitado - murmurou Lituma. - Vamos ver, colega, estou esperando.
- O pisco é a única bebida que volta ao mundo pelos olhos - cantarolou o Mono. - As outras, pelo pipi.
- Virou puta, irmão - disse Josefino. - Está na Casa Verde.
O Mono teve outro acesso de tosse, seu copo rolou no chão e, na terra, uma manchinha úmida se encolheu, desapareceu.
73


IV


- Os dentes delas batiam, madre - disse Bonifácia -, falei em pagão para que não tivessem medo. Queria que a senhora visse

com o que se pareciam.
- Por que você nunca nos disse que sabia aguaruna, Bonifácia? - perguntou a superiora.
- A senhora não vê que, por qualquer coisa, as madres dizem que voltei a ser selvagem? - disse Bonifácia. Não vê que dizem

já está comendo com as mãos, pagã? Eu
tinha vergonha, madre.
Ela as traz pela mão da despensa e, na entrada do seu estreito quarto, pede que esperem. Elas se juntam, transformam-se

num novelo, coladas à parede. Bonifácia entra,
acende a lamparina, abre o baú, revista-o, tira o velho molho de chaves e sai. Volta a pegar as meninas pela mão.
- É verdade que penduraram o pagão na capirona?
- perguntou Bonifácia. - Que cortaram o cabelo dele, e ficou com a cabeça pelada?
- Parece louca - disse Madre Angélica -, de repente sai com cada coisa.
Mas ela sabia, mãezinha: os soldados o trouxeram num bote, amarraram-no à árvore da bandeira, as pupilas subiam ao teto

de residência para olhar, e Madre Angélica
surrava-as. As bandidas continuam com essa história? Quando foi que a contaram a Bonifácia?
- Foi um passarinho amarelo que veio voando e me contou - disse Bonifácia. - É verdade que cortaram o cabelo dele? Como

a Madre Griselda fez com as pagãzinhas?
- Os soldados é que cortaram, boba - disse Madre Angélica. - Não é a mesma coisa.
74
Madre Griselda corta os cabelos das meninas para acabar com os piolhos. O dele foi por castigo.
- E que foi que o pagão fez, mãezinha? - perguntou Bonifácia.
- Maldades, coisas feias - disse Madre Angélica. Tinha pecado.
Bonifácia e as meninas saem nas pontas dos pés. O pátio está partido em dois: a lua ilumina a fachada triangular da capela

e a chaminé da cozinha; o outro setor
da missão é uma aglomeração de sombras úmidas. O muro de tijolos recorta-se, impreciso, sob a arcada opaca de cipós e de

galhos. A residência das madres desapareceu
na noite.
- Você tem uma maneira muito injusta de ver as coisas - disse a superiora. - Sua alma é que importa às madres, não a cor

da sua pele, nem o idioma que você fala.
Você é ingrata, Bonifácia. Madre Angélica não fez outra coisa senão mimá-la desde que você chegou à missão.
- Eu sei, madre, por isso peço que reze por mim disse Bonifácia. - É que nessa noite voltei a ser selvagem, vai ver como

foi horrível.
- Pare de chorar - disse a superiora. - Já sei que você voltou a ser selvagem. Agora, o que quero é saber o que fez.
Larga suas mãos, pede silêncio com um gesto e começa a correr, sempre nas pontas dos pés. A princípio leva certa vantagem,

mas a meio pátio as duas meninas correm
a seu lado. Chegam juntas diante da porta fechada. Bonifácia inclina-se, experimenta as grossas, enferrujadas chaves do

molho, uma após outra. A fechadura chia,
a madeira está molhada e soa como se estivesse oca quando elas batem com a mão aberta, mas a porta não se abre. A respiração

das três é difícil.
- Eu era muito pequena então? - perguntou Bonifácia. - De que tamanho, mãezinha? Mostre com sua mão.
- Assim, deste tamanho - disse Madre Angélica. Mas já era um demônio.
- E desde quando estava na missão? - perguntou Bonifácia.
- Pouco tempo - disse Madre Angélica. - Só uns meses.
Pronto, já estava com o diabo no corpo, mãezinha. Que estava dizendo esta louca? Vamos ver que história contaria agora,

e Bonifácia fora trazida para Santa Maria
de Nieva com aquele pagão. As pupilas contaram a ela,
75
agora Madre Angélica tinha que ir confessar a mentira. Senão iria para o inferno, mãezinha.
- E então por que me pergunta, manhosa? - perguntou Madre Angélica. - É falta de respeito e, além disso, pecado.
- Estava brincando, mãezinha - disse Bonifácia. Eu sei que a senhora vai para o céu.
A terceira chave gira, a porta cede. Mas fora deve haver uma tenaz concentração de troncos, mato e plantas trepadeiras,

ninhos, teias de aranha, fungos e madeixas
de cipó que resistem e atacam a porta. Bonifácia apoia todo seu corpo na madeira e empurra - há suavíssimos, múltiplos dilaceramentos

e um ruído fraco - até que
se forma uma abertura suficiente. Ela segura a porta entreaberta, sente no rosto o roçar de suaves filamentos, escuta o

murmúrio da folhagem invisível e, logo, em
suas costas, outro murmúrio.
- Voltei a ser como elas, madre - disse Bonifácia.
- A da argola no nariz comeu e, à força, fez a outra pagãzinha comer. Empurrava a banana na boca com os dedos, madre.
- E o que tem isso a ver com o Demônio? - perguntou a superiora.
- Uma agarrava a mão da outra e chupava os dedos
- disse Bonifácia -, e depois a outra fazia o mesmo. Viu só a fome que tinham, madre?
E por que não teriam? As pobrezinhas não tinham comido nada desde Chicais, Bonifácia, a superiora sabia que tivera pena

delas. E Bonifácia mal as entendia, madre,
porque falavam esquisito. Aqui iam comer todos os dias, e elas, queremos ir embora, aqui iam ser felizes, e elas, queremos

ir embora, e começou a contar aquelas
histórias do Menino Jesus, que agradavam tanto às pagãzinhas, madre.
- É o que você faz de melhor - disse a superiora.
- Contar histórias. E que mais, Bonifácia?
E ela tem os olhos como dois vaga-lumes, vão embora, verdes e assustados, voltem ao dormitório, dá um passo até as pupilas,

com que licença saíram? e empurrada
pela mata a porta se fecha sem ruído. As pupilas olham para ela caladas, duas dezenas de pirilampos e uma só silhueta larguíssima

e disforme, a escuridão desfigura
rostos, aventais. Bonifácia olha para a residência: nenhuma luz se acendeu. De novo, ordena que voltem ao dormitório, mas

elas não se movem nem respondem.
76
- Aquele pagão era meu pai, mãezinha? - perguntou Bonifácia.
- Não, não era seu pai - disse Madre Angélica. Você nasceu em Urakusa, mas é filha de outro, não daquele malvado.
Não lhe estava mentindo, mãezinha? Mas Madre Angélica nunca mentia, louca, por que mentiria a ela? Para que não tivesse

pena agora, mãezinha? Para que não se envergonhasse?
E não acreditava que seu pai também foi malvado?
- E por que devia ser? - perguntou Madre Angélica. - Podia ter bom coração, há muitos pagãos assim. Mas por que você se

preocupa com isso? Por acaso não tem agora
um pai muito maior e muito bom?
Nem desta vez obedecem, vão embora, voltem ao dormitório, e as duas meninas estão a seus pés, tremendo, agarradas a seu

hábito. Subitamente, Bonifácia dá meia-volta,
corre até a porta, empurra, abre-a, aponta a escuridão da mata. As duas meninas estão junto dela mas não se decidem a passar

o umbral, suas cabeças oscilam entre
Bonifácia e a sombria abertura, e agora os pirilampos avançam, suas silhuetas delineiam-se diante de Bonifácia, começam

a murmurar, algumas a tocá-la.
- Catavam piolho uma na outra, madre - disse Bonifácia -, pegavam e matavam com os dentes. Não por maldade, mas brincando,

madre, e antes de morder, mostravam o
piolho e diziam, olhe o que eu tirei de você. Brincando, e também fazendo carinho, madre.
-- Se já tinham confiança em você, podia tê-las aconselhado - disse a superiora. - Dizer que não fizessem essas sujeiras.
Mas ela só pensava no dia seguinte, madre: que não chegasse amanhã, que Madre Griselda não corte os cabelos delas, não irá

cortar, não porá desinfetante e a superiora,
que bobagens são essas?
- A senhora não vê como ficam, eu tenho que segurá-las e vejo - disse Bonifácia. - E também quando dão banho nelas e o sabão

entra nos seus olhos.
Tinha pena que Madre Griselda as livrasse dos bichos que devoravam suas cabeças? Aqueles bichos que as comem e as deixam

doentes e incham suas barriguinhas? E é
porque ela ainda sonhava com as tesouras da Madre Griselda. Daquilo que lhe doeu tanto, madre, talvez fosse por isso.
- Você não parece inteligente, Bonifácia - disse a superiora.
77
- Devia era sentir pena vendo essas crianças convertidas em animaizinhos, fazendo o que fazem os macacos.
- A senhora vai se aborrecer ainda mais, madre disse Bonifácia. - Vai me odiar.
Que queriam? por que não a atendiam? e uns segundos depois, falando mais alto, ir também? voltar a ser pagãs de novo? e

as pupilas envolveram as duas meninas, diante
de Bonifácia há só a massa compacta de aventais e olhos ávidos. Que lhe importava, então, Deus saberia, elas saberiam, que

voltassem ao dormitório ou fugissem ou
morressem e olha a residência: sempre às escuras.
- Cortaram-lhe o cabelo para tirar o Diabo que tinha dentro - disse Madre Angélica. - E agora basta, não pense mais no pagão.
É que ela sempre se lembrava, mãezinha, de como seria quando cortaram o cabelo dele, e o Diabo era como os piolhinhos? Que

coisas dizia esta louca? A ele, para livrá-lo
do Diabo; às pagãzinhas, para livrá-las dos piolhos. Quer dizer que os dois se metiam pelos cabelos, mãezinha, e Madre Angélica,

que boba era, Bonifácia, que menina
mais boba.
Saem, uma atrás da outra, em ordem, como nos domingos quando vão ao rio, ao passar por Bonifácia algumas estendem a mão

e apertam carinhosamente seu hábito, seu
braço nu, e ela, depressa, Deus as ajudaria, rezaria por elas. Ele cuidaria delas, e sustenta a porta com as costas. Cada

pupila que pára no umbral e volta a cabeça
para a oculta residência, ela empurra, obriga a afundar-se no boqueirão vegetal, a pisar a terra lamacenta e a se perder

nas trevas.
- E de repente se soltou da outra e veio até onde eu estava - disse Bonifácia. - A menorzinha, madre, e pensei que ia me

abraçar, mas começou também a catar na minha
cabeça, com seus dedinhos, e era para isso, madre.
- Por que não levou as meninas para o dormitório?
- perguntou a superiora.
- De agradecida, pelo que dei de comer a elas, sabe?
- disse Bonifácia. - Seu rosto ficou triste porque não achava um piolho, e eu, tomara tivesse, tomara a pobre encontrasse

unzinho.
- E depois você protesta quando as madres chamam você de selvagem - disse a superiora. - Por acaso está falando como uma

cristã?
E ela também catava piolho no cabelo das meninas e não sentia nojo, madre, e cada um que encontrava matava
com seus dentes.
78
Asquerosa? sim, podia ser e a superiora, você fala como se estivesse orgulhosa dessa porcaria e Bonifácia
estava, isso é que era horrível, madre,
e a pagãzinha fazia como se tivesse encontrado um piolho na sua cabeça e o mostrava com a mão, e depressa metia-o na boca,

como se fosse matá-lo. E a outra também
começou a catar, madre, e ela também na outra.
- Não me fale desse jeito - disse a superiora. - E agora chega, não quero que me conte mais nada, Bonifácia.
E ela, que entrassem as madres e a vissem, Madre Angélica e também a senhora, madre, e até as teria insultado, que furiosa

estava, que ódio tinha, madre, e as duas
meninas já não estão mais lá: devem ter saído entre as primeiras, engatinhando velozmente. Bonifácia atravessa o pátio,

pára ao passar junto à capela. Entra, senta-se
em um banco. A luz da lua chega obliquamente até o altar, morre junto à grade que separa as pupilas dos fiéis de Santa Maria

de Nieva na missa do domingo.
- E, além disso, você era uma ferazinha - disse Madre Angélica. - Era preciso correr atrás de você por toda a missão. Em

mim, você deu uma mordida na mão, bandida.
- Não sabia o que fazia - disse Bonifácia -, não vê que era pagãzinha? Se der um beijo aí onde mordi, a senhora me perdoará,

mãezinha?
- Você diz tudo com um tom de deboche e um olhar maroto que me dão vontade de surrá-la - disse Madre Angélica. - Quer que

eu conte outra de suas histórias?
- Não, madre - disse Bonifácia. - Estou rezando aqui faz tempo.
- Por que não está no dormitório? - perguntou Madre Ângela. - com que licença você veio à capela a estas horas?
- As pupilas fugiram - disse Madre Leonor -, Madre Angélica está procurando por você. Ande, corra, a superiora quer falar

com você, Bonifácia.
- Devia ser bonita quando moça - disse Aquilino. Seus cabelos tão compridos chamavam a atenção quando a conheci. Pena que

saíram tantas espinhas nela.
- E aquele cachorro do Reátegui, ande, vá, pode vir a polícia, você vai me comprometer - disse Fushía. Mas aquela puta se
oferecia a ele todo o tempo, e ele foi
se embeiçando.
79
- Mas se você mesmo é que a mandava, homem disse Aquilino. - Não era coisa de
putaria, mas obediência. Por que você a insulta?
- Porque você é linda - disse Júlio Reátegui. Comprarei um vestido na melhor loja de Iquitos. Você gostaria? Mas afaste-se
dessa árvore; aproxime-se, não tenha medo
de mim.
Ela tem os cabelos claros e soltos, está descalça, sua silhueta destaca-se diante do imenso tronco, sob uma espessa copa

que vomita folhas como labaredas. A base
da árvore é um coto de barbatanas de casca rugosa, impenetrável, cinzenta, e no seu interior há madeira de lei para os cristãos,

duendes malignos para os pagãos.
- Também tem medo da lupuna, patrão? - perguntou Lauta. - Não pensava isso do senhor.
Olha-o com olhos brincalhões e ri jogando a cabeça para trás: os cabelos compridos varrem seus ombros queimados e seus pés

brilham entre as samambaias úmidas, mais
morenos que os ombros, de tornozelos grossos.
- E também sapatos e meias, menina - disse Júlio Reátegui. - E uma bolsa. Tudo o que você quiser.
- E você, o que fazia enquanto isso? - perguntou Aquilino. - Apesar de tudo, ela era sua companheira. Não tinha ciúmes?
- Eu só pensava na polícia - disse Fushía. - E ela o deixou louco, velho, tremia-lhe a voz quando falava com ela.
- O Senhor Júlio Reátegui se babando por uma cristã disse Aquilino. - Lalita! Custo a acreditar, Fushía. Ela nunca me contou

isso, e entretanto eu era seu confessor
e seu pano de lágrimas.
- Velhas sábias essas horas - disse Júlio Reátegui;
- não há jeito de saber como preparam as tinturas. Olhe que forte o vermelho, o preto. E já têm uns vinte anos, talvez mais.

Ande, menina, vista isso, deixe ver
como fica em você.
- E para que queria que Lalita pusesse a manta? disse Aquilino. - Que idéia, Fushía. Mas não entendo como é que você ficou

tão tranqüilo. Qualquer outro puxava a
faca.
- O cachorro estava na sua rede e ela na janela disse Fushía. - Eu ouvia toda a sua lábia e morria de rir.
' Selvagens que habitam desde o rio Iguaparana, afluente do Potumayo, até o Cahuinari, em Loreto.
80
- E por que agora não faz o mesmo? - perguntou Aquilino. - Por que tanto ódio de Lalita?
- Não é a mesma coisa - disse Fushía. - Desta vez foi sem minha licença, às escondidas, de sacanagem.
- Nem sonhe com isso, patrão - disse Lalita. Nem que rezasse e chorasse.
Mas ela a veste e o abanador de madeira, que funciona com o balanço da rede, emite um som entrecortado, uma espécie de gaguejo

nervoso e, enrolada na manta preta
e vermelha, Lalita permanece imóvel. A tela metálica da janela está constelada de nuvenzinhas verdes, quase amarelas, e,

à distância, entre a casa e a mata, aparecem
os pezinhos de café, certamente cheirosos.
- Você parece um bicho-da-seda no seu casulo disse Júlio Reátegui. - Uma dessas borboletinhas da janela. Não custa nada

a você, Lalita, faça a minha vontade, tire-a.
- Coisa de louco - disse Aquilino. - Primeiro que a ponha e depois que a tire. Que idéias as desse ricaço.
- Você nunca teve tesão, Aquilino? - perguntou Fushía.
- Darei o que você quiser - disse Reátegui. Peça, Lalita, seja o que for, venha, chegue para cá.
A manta, agora no chão, é uma redonda vitória-régia e dela brota, como a orquídea de uma planta aquática, o corpo da moça,

miúdo, de seios garbosos com corolas
pardas e botões como flechas. Através da blusa transparecem um ventre liso, umas coxas firmes.
- Entrei fazendo que não via - disse Fushía -, rindo para que o cachorro não se sentisse envergonhado. Saiu da rede de um

pulo e Lalita cobriu-se com a manta.
- Mil soles por uma moça não é coisa de cristãos prudentes - disse Aquilino. - É o preço de um motor, Fushía.
- Vale dez mil - disse Fushía. - Só que estou apressado, o senhor sabe de sobra por quê, Dom Júlio, e não posso carregar

mulheres. Queria partir hoje mesmo.
Mas assim desse jeito não iam lhe tomar mil soles, ainda mais que o tinha escondido. E além disso, Fushía estava vendo que

o negócio do caucho tinha ido para o diabo,
e com as cheias era impossível extrair madeira este ano e Fushía, essas
lorelanas', Dom Júlio, sabia bem: são uns vulcões que incendeiam tudo. Ficava com pena
de deixá-la,
' Naturais do departamento de Loreto.
81
porque não era só bonita: cozinhava e tinha bom coração. Decidia-se, Dom Júlio?
- É verdade que você sentia pena por deixar Lalita em Uchamala com o Senhor Reátegui? - perguntou Aquilino.
- Ou era só por dizer?
- E então devia ter pena? - perguntou Fushía. Nunca amei aquela puta.
- Não saia da laguna - disse Júlio Reátegui -, vou tomar banho com você. Mas está nua, e se vierem as sanguessugas? Vista

algo, Lalita, não, espere, ainda não.
Lalita está acocorada no remanso e a água vai subindo, a seu redor brotam ondas, circunferências concêntricas. Há uma chuva

de cipós à flor da água, e Júlio Reátegui
já os estava sentindo, Lalita, cubra-se: eram finas, espetavam, metiam-se pelos buraquinhos, menina, e dentro arranhavam,

infeccionavam tudo e teria que tomar os
chás dos horas e agüentar uma semana de diarréia.
- Não são sanguessugas, patrão - disse Lalita -, não está vendo que são peixes pequeninos? E as plantas que estão no fundo,

isso é o que a gente sente. Que morna
que está a água, que boa, não é verdade?
- Entrar no rio com uma mulher, os dois pelados disse Aquilino. - Nunca pensei nisso quando era moço e agora me arrependo.

Deve ser uma coisa muito boa, Fushía.
- Entrarei no Equador pelo Santiago - disse Fushía.
- Uma viagem difícil, Dom Júlio, não nos veremos mais. Já pensou nisso? Saio esta noite mesmo. Ela só tem quinze anos, e

eu fui o primeiro que a comeu.
- Às vezes penso por que não me casei - disse Aquilino. - Mas com a vida que levo, não podia. Sempre viajando, no rio é

que não ía encontrar mulher. Você, sim,
que não pode se queixar, Fushía. Elas nunca lhe faltaram.
- Estamos de acordo - disse Fushía. - Sua lanchinha e as conservas. É um bom negócio para os dois, Dom Júlio.
- O Santiago está muito longe e você nunca chegará sem que o vejam - disse Júlio Reátegui. - E, além disso, sem parar, e

nesta época, demorará um mês e pouco. Por
que não vai para o Brasil, não é melhor?
- Lá estão me esperando - disse Fushía. - Deste lado da fronteira e também do outro, por um negócio de Campo Grande. Não

sou bobo, Dom Júlio.
- Você não chegará nunca ao Equador - disse Júlio Reátegui.
82
- E você não chegou, de verdade - disse Aquilino.
- Ficou no Peru mesmo.
- Sempre foi assim, Aquilino - disse Fushía. Todos os meus planos saíram às avessas.
- E se ela não quiser? - perguntou Júlio Reátegui.
- Você mesmo tem que convencer Lalita antes que eu lhe dê a lancha.
- Ela sabe que minha vida será correr de um lado para outro - disse Fushía -, que mil coisas podem acontecer. Nenhuma mulher

gosta de andar atrás de um homem fodido.
Se sentirá feliz por ficar, Dom Júlio.
- E, apesar disso, você vê - disse Aquilino. - Seguiu-o e o ajudou em tudo. Teve uma vida de cão, a seu lado, e sem se queixar.

Ruim por ruim, Lalita foi uma boa
mulher, Fushía.
Foi assim que nasceu a Casa Verde. Sua construção demorou muitas semanas; as tábuas, as vigas e os tijolos tinham de ser

arrastados do outro lado da cidade, e as
mulas alugadas por Dom Anselmo andavam penosamente pelo areal. O trabalho começava de manhã, ao parar a chuva seca, e terminava

ao aumentar o vento. De tarde, de
noite, o deserto engolia os cimentos e enterrava as paredes, os iguanos roíam as madeiras, os urubus armavam seus ninhos

na incipiente construção e, a cada manhã,
era preciso refazer o iniciado, corrigir os planos, repor os materiais, num combate mudo que foi empolgando a cidade. "Em

que momento o forasteiro se dará por vencido?"
perguntavam os piuranos. Mas os dias passavam e, sem se deixar abater pelos percalços nem contagiar pelo pessimismo de conhecidos

e de amigos, Dom Anselmo continuava
desenvolvendo uma assombrosa atividade. Dirigia os trabalhos seminu, o mato de pêlos de seu peito úmido de suor, a boca

cheia de alegria. Distribuía aguardente e
chicha entre os peões, e ele mesmo carregava tijolos, fincava vigas, ia e vinha pela cidade açulando as mulas. E certo dia

os piuranos admitiram que Dom Anselmo
venceria, ao perceber, no outro lado do rio, diante da cidade, como o seu mensageiro no umbral do deserto, um sólido, invicto

esqueleto de madeira. A partir de então,
o trabalho foi rápido. O povo de Castilla e das rancharias do Camal vinha todas as manhãs presenciar os trabalhos, aconselhavam

e, às vezes, espontaneamente, davam
uma mão aos peões. Dom Anselmo oferecia bebidas a todo mundo.
83
Nos últimos dias, um ambiente de feira popular reinava em torno da obra: vendedoras de chicha, fruteiras, vendedoras de

queijos, doces e refrescos, vinham oferecer
sua mercadoria a trabalhadores e curiosos. Os fazendeiros paravam ao passar por ali e, de seus cavalos, dirigiam a Dom Anselmo

palavras de estímulo. Um dia, Chápiro
Seminário, o poderoso agricultor, deu um boi e uma dezena de cântaros de chicha. Os peões prepararam um churrasco.
Quando a casa ficou pronta, Dom Anselmo decidiu que fosse inteiramente pintada de verde. Até as crianças riam às gargalhadas

ao ver como seus muros cobriam-se de
uma pele esmeralda, onde estalava o sol e retrocediam reflexos cheios de escama. Velhos e jovens, ricos e pobres, homens

e mulheres zombavam alegremente do capricho
de Dom Anselmo de lambuzar sua morada daquela maneira. Batizaram-na de imediato: a Casa Verde. Mas não só a cor os divertia,

também a sua extravagante anatomia.
Constava de dois andares, mas o inferior mal merecia esse nome: um espaçoso salão dividido por quatro vigas, também verdes,

que sustentavam o teto; um pátio descoberto,
com chão de pedrinhas polidas pelo rio e um muro circular, alto como um homem. O segundo andar compreendia seis quartos

minúsculos, alinhados diante de um corredor
com balaustrada de madeira, que encimava o salão. Além da entrada principal, a Casa Verde tinha duas portas traseiras, uma

cavalariça e uma grande despensa.
No armazém do espanhol Eusebio Romero, Dom Anselmo comprou esteiras, lamparinas, cortinas de cores berrantes, muitas cadeiras.

Certa manhã, dois carpinteiros da
Gallinacera anunciaram: "Dom Anselmo encomendou-nos uma escrivaninha, um balcão igualzinho ao do La Estrela del Norte e

meia dúzia de camas!" Então, Dom Eusébio
Romero confessou: "E para mim, seis pias, seis espelhos, seis bacias". Uma espécie de efervescência apossou-se de todos

os bairros, uma ruidosa e agitada curiosidade.
Brotaram as suspeitas. De casa em casa, de salão em salão, as beatas cochichavam, as senhoras olhavam para seus maridos

com desconfiança, os vizinhos trocavam sorrisos
maliciosos e, um domingo, na missa do meio-dia, o Padre Garcia afirmou do púlpito: "Prepara-se uma agressão contra a moral

desta cidade". Os piuranos atacavam Dom
Anselmo na rua, exigiam que falasse. Mas era inútil: "É um segredo", dizia-lhes alvoroçado como um colegial; "um pouco de

paciência, já vão saber". Indiferente à
agitação dos bairros,
84
continuava vindo todas as manhãs ao La Estrella del Norte, e bebia, brincava e distribuía brindes e galanteios às mulheres

que atravessavam a praça. De tarde, fechava-se
na Casa Verde, para onde se mudara, depois de dar a Dom Melchor Espinoza uma caixa de garrafas de pisco e uma sela de couro

cinzelado.
Pouco depois, Dom Anselmo partiu. Em seu cavalo negro, que acabava de comprar, abandonou a cidade como havia chegado, numa

manhã de madrugada, sem que ninguém o
visse, com rumo desconhecido.
Tanto se tem falado em Piura sobre a Casa Verde original, aquela casa matriz, que já ninguém sabe com exatidão como era

realmente, nem os verdadeiros pormenores
de sua história. Os sobreviventes da época, muito poucos, atrapalham-se e se contradizem, acabaram por confundir o que viram

e ouviram com suas próprias mentiras.
E as testemunhas estão já tão decrépitas, e é tão obstinado o seu mutismo, que de nada valeria interrogá-las. Em todo caso,

a primitiva Casa Verde já não existe.
Até há alguns anos, no lugar onde foi levantada - a extensão de deserto limitada por Castilla e Catacaos - encontravam-se

pedaços de madeira e objetos domésticos
carbonizados, mas o deserto, e a estrada que construíram, e as chácaras que surgiram nos arredores, acabaram por apagar

todos aqueles restos e agora não há piurano
capaz de precisar em que parte do areal amarelado foi construída, com suas luzes, sua música, seus risos, e o resplendor

diúrno de suas paredes que, à distância
e de noite, a convertia num quadrado, fosforescente réptil. Nas histórias mangaches conta-se que existiu nas proximidades

da outra margem do Viejo Puente, que era
muito grande, a maior das construções de então, e que tinha tantos lampiões de cores suspensos em suas janelas que sua luz

feria a vista, tingia a areia em derredor
e até iluminava a ponte. Mas sua principal virtude era a música que, pontualmente, rompia no seu interior ao começar a tarde,

durava toda a noite e se ouvia até
mesmo na catedral. Dom Anselmo, dizem, percorria incansável as chicherías dos bairros, e ainda as dos povoados vizinhos,

em busca de artistas, e de todas as partes
trazia violonistas, tocadores de caixa, raspadores de queixada, flautistas, mestres do bombo e da corneta. Mas nunca harpistas,

pois ele tocava harpa, e seu instrumento
presidia, inconfundível, a música da Casa Verde.
- Era como se o ar estivesse envenenado - diziam as velhas do Malecón. - A música entrava por todas as
partes,
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ainda que fechássemos portas e janelas, e a ouvíamos enquanto comíamos, enquanto rezávamos e enquanto dormíamos.
- E precisava ver a cara dos homens quando a ouviam
- diziam as beatas afogadas em véus. - E precisava ver como os arrancava do lar, e os levava à rua e os empurrava para o

Viejo Puente.
- De nada valia rezar - diziam as mães, as esposas, as noivas -, nem nosso choro, nossas súplicas, nem os sermões dos padres,

nem as novenas, nem mesmo os trisâgios.
- Temos o inferno às nossas portas - trovejava Padre Garcia -, qualquer um poderia ver, mas vocês estão cegos. Piura é Sodoma

e é Gomorra.
- Talvez seja verdade que a Casa Verde trouxe má sorte - diziam os velhos, estalando a língua. - Mas como a gente se divertia

na maldita.
Poucas semanas após Dom Anselmo ter voltado a Piura com a caravana de mulheres, a Casa Verde já impusera seu domínio. No

princípio, seus visitantes saíam da cidade
às ocultas; esperavam a penumbra, discretamente atravessavam o Viejo Puente e submergiam no areal. Logo as incursões aumentaram

e os jovens, cada vez mais imprudentes,
não se importavam mais de ser reconhecidos pelas senhoras postadas atrás das gelosias do Malecón. Em ranchos e salões, nas

fazendas, não se falava de outra coisa.
Os sermões multiplicavam advertências e exortações, o Padre Garcia estigmatizava o desregramento com referências bíblicas.

Um Comitê de Obras Pias e Bons Costumes
foi criado e as damas que o compunham visitaram o governador e o prefeito. As autoridades concordavam, cabisbaixas: certamente,

elas tinham razão, a Casa Verde era
uma afronta a Piura, mas, que fazer? As leis ditadas nessa podre capital que é Lima amparavam Dom Anselmo, a existência

da Casa Verde não violava a Constituição
nem era proibida pelo Código Penal. As damas cortaram o cumprimento às autoridades, fecharam a elas seus salões. Entretanto,

os adolescentes, os homens e até os
pacíficos anciãos se precipitavam em bandos até o buliçoso e refulgente edifício.
Perderam-se os piuranos mais sóbrios, os mais trabalhadores e honestos. Na cidade, antes tão silenciosa, instalaram-se como

pesadelos o ruído, o movimento noturno.
De madrugada, quando a harpa e os violões da Casa Verde silenciavam, um ritmo indisciplinado e variado elevava-se da cidade

até o céu: os que voltavam, sós ou em
grupos,
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percorriam as ruas, rindo às gargalhadas e cantando. Os homens mostravam a noite não dormida nos rostos avariados pela mordedura

da areia, e no La Estrella del Norte
contavam estrambóticas anedotas, que corriam de boca em boca, e os menores repetiam.
- Está vindo, está vindo - dizia, trêmulo, o Padre Garcia -, só falta chover fogo sobre Piura, todos os males do mundo estão

caindo sobre nós.
Porque é certo que tudo isso coincidiu com desgraças. No primeiro ano o rio Piura ' cresceu e continuou crescendo, despedaçou

as cercas das chácaras, muitas plantações
do vale se inundaram, alguns animais morreram afogados e a umidade manchou extensas áreas do deserto de
Sechura': os homens
praguejavam, as crianças faziam castelos
com a areia molhada. No segundo ano, como em represália contra as injúrias que os donos das terras inundadas proferiram,

o rio não voltou a seu leito; cobriu-se
de ervas e abrolhos, que morreram pouco depois de nascer, e só ficou uma extensa fenda ulcerada: os canaviais secaram, o

algodão brotou prematuramente. No terceiro
ano, as pragas dizimaram as colheitas.
- São as desgraças do pecado - rugia o Padre Garcia. - Ainda há tempo, o inimigo está em suas veias, matem-no com orações.
Os feiticeiros dos ranchos regavam as plantações com sangue de cabritos novos, chafurdavam sobre os sulcos, proferiam esconjuros

para atrair a água e afugentar
os insetos.
- Deus meu, Deus meu - lamentava-se o Padre Garcia. - Há fome e há miséria e, em vez de escarmentar, pecam cada vez mais.
Porque nem a inundação, nem a seca, nem as pragas detiveram a glória crescente da Casa Verde.
O aspecto da cidade mudou. Aquelas tranqüilas ruas provincianas povoaram-se de forasteiros que, nos fins de semana, viajavam

a Piura, de Sullana, Paita, Huancabamba
e, ainda, Tumbes e Chiclayo', seduzidos pela fama da Casa Verde,
' Esse rio atravessa o departamento de Piura e deságua no oceano Pacífico.
' No departamento de Piura.
' Sullana, província do departamento de Piura; capital Sullana. Paita, província do departamento de Piura, litorânea; capital

Paita. Tumbes, departamento e província
litorânea; ao norte faz limite com Piura e o Equador. Chiclayo, província do departamento de Lambayeque, litorânea; capital

Chiclayo.
87
que se havia propagado através do deserto. Passavam ali a noite e quando vinham à cidade mostravam-se vis e descomedidos,

passeavam sua bebedeira pelas ruas
como uma proeza. Os piuranos odiavam essa gente e, às vezes, havia brigas, não de noite e no cenário dos desafios, o campinho

que está debaixo da ponte, mas à plena
luz e na Plaza de Armas, na Avenida Grau e em qualquer outra parte. Rebentaram lutas coletivas. As ruas se tornaram perigosas.
Quando, apesar da proibição das autoridades, alguma das mulheres se aventurava pela cidade, as senhoras arrastavam suas

filhas para o interior do lar e corriam as
cortinas. O Padre Garcia saía ao encontro da intrusa, transtornado; os piuranos tinham de segurá-lo para impedir uma agressão.
No primeiro ano, a casa abrigou apenas quatro mulheres, mas no ano seguinte, quando aquelas partiram, Dom Anselmo viajou

e voltou com oito e dizem que em seu apogeu
a Casa Verde chegou a ter vinte mulheres. Vinham à casa diretamente dos arredores. Do Viejo Puente via-se a sua chegada,

ouviam-se seus gritos e atrevimentos. Seus
vestidos coloridos, seus lenços e enfeites cintilavam como crustáceos na árida paisagem.
Dom Anselmo, entretanto, freqüentava a cidade. Percorria as ruas no seu cavalo negro, ao qual havia ensinado cabriolas:

sacudir alegremente o rabo quando passava
uma mulher, dobrar uma pata em sinal de cumprimento, executar passos de dança ao ouvir música. Engordara, vestia-se de modo

extravagante: chapéu de palha mole, cachecol
de seda, camisas de linho, cinto com incrustações, calças ajustadas, botas de salto alto e esporas. Suas mãos ferviam de

anéis. Às vezes parava para beber uns tragos
no La Estrella del Norte, e muitos graúdos não vacilavam em sentar-se à sua mesa, falar com ele e acompanhá-lo até os arredores.
A propriedade de Dom Anselmo traduziu-se em ampliações laterais e verticais da Casa Verde. Esta, como um corpo vivo, foi

crescendo, amadurecendo. A primeira inovação
foi um muro de pedra. Coroado de cardos, cascalhes, puas e farpas para desanimar os ladrões, envolvia a parte térrea e a

ocultava. O espaço encerrado entre o muro
e a casa foi primeiro um patiozinho pedregoso, logo um saguão nivelado com vasos de cactos, depois um salão circular com

chão e teto de esteiras e, por fim, a
madeira substituiu a palha, o salão foi lajeado e o teto cobriu-se de telhas. Sobre o segundo andar surgiu outro, pequeno

e cilíndrico como um torreão de vigia.
Cada pedra acrescentada,
88
cada telha ou tábua era automaticamente pintada de verde. A cor escolhida por Dom Anselmo acabou por imprimir à paisagem

uma nota refrescante, vegetal, quase líquida.
De longe,
os viajantes avistavam a construção de muros verdes, quase diluídos na viva luz amarela da areia, e tinham a sensação de

se aproximar de um oásis de palmeiras e
coqueiros hospitaleiros, de águas cristalinas, e era como se aquela distante presença prometesse todo tipo de recompensas

para o corpo fatigado, permanentes estímulos
para o ânimo deprimido pelo mormaço do deserto.
Dom Anselmo, dizem, ocupava o último andar, aquela fina ponta, e ninguém, nem seus melhores clientes - Chápiro Seminário,

o prefeito, Dom Eusebio Romero, o Doutor
Pedro
Zevallos -, tinha acesso àquele lugar. Dali, sem dúvida, Dom Anselmo devia observar o desfile dos visitantes pelo areal,

veria as silhuetas que os torvelinhos de
areia faziam imprecisas, aqueles animais esfomeados que vagam ao redor da cidade desde que cai o sol.
Além das mulheres, a Casa Verde hospedou, nos seus bons tempos, Angélica Mercedes, jovem mangache que herdara de sua mãe

a sabedoria, a arte dos temperos. com ela,
Dom Anselmo ia ao mercado, aos armazéns, encomendando víveres e bebidas: comerciantes e vendedoras do mercado dobravam-se

à sua passagem como bambus ao vento. Os
cabritos, cobaias, porcos e cordeiros que Angélica Mercedes guisava com misteriosas ervas e condimentos chegaram a ser um

dos atrativos da Casa Verde, e havia velhos
que juravam: "Vamos só para saborear aquela comida fina".
Os arredores da Casa Verde estavam sempre animados por uma multidão de vagabundos, mendigos, vendedores de bugigangas e

fruteiras que assediavam os clientes que
chegavam ou saíam. As crianças da cidade fugiam de suas casas à noite e, escondidas atrás dos matagais, espiavam os visitantes

e escutavam a música, as gargalhadas.
Alguns, arranhando mãos e pernas, escalavam o muro e olhavam cobiçosamente o interior. Certo dia (que era santo de guarda),

o Padre Garcia postou-se no areal, a
poucos metros da Casa Verde, e, um por um, investia contra os visitantes, e exortava-os a retornar à cidade e a se arrepender.

Mas eles inventavam desculpas: um
encontro para negócios, uma desgraça que é preciso afogar porque senão envenena a alma, uma aposta que compromete a honra.

Alguns gracejavam e convidavam o Padre
Garcia a acompanhá-los e houve quem se ofendesse e puxasse o revólver.
89
Novos boatos sobre Dom Anselmo surgiram em Piura. Para alguns, ele fazia viagens secretas a Lima, onde guardava o dinheiro

acumulado e adquiria propriedades. Para
outros, era o simples testa-de-ferro de uma empresa que contava entre seus sócios o governador, o prefeito e fazendeiros.

Na fantasia popular, o passado de Dom Anselmo
se enriquecia, e cada dia acrescentavam-se à sua vida feitos sublimes ou sangrentos. Velhos mangaches asseguravam identificar

nele um adolescente que, anos atrás,
cometera assaltos no bairro, e outros afirmavam: "É um presidiário foragido, um antigo guerrilheiro, um político em desgraça".

Só o Padre Garcia é que se atrevia
a dizer: "Seu corpo cheira a enxofre".
E de madrugada levantam-se para seguir viagem, descem o barranco e a lanchinha desapareceu. Começam a procurá-la, Adrián

Nieves de um lado, do outro, o Cabo Roberto
Delgado e o criado e, de repente, gritos, pedras, pelados, e aí está o cabo, rodeado dê aguarunas, chovem pauladas nele,

também no criado, e agora o viram, e os
selvagens correm para ele, merda, Adrián Nieves, chegou a sua hora, e se atira à água: fria, rápida, escura, não tire a

cabeça para fora, mais para o fundo, que
a corrente o leve, flechas? que o puxe rio abaixo, balas? pedras? merda, os pulmões querem ar, a cabeça roda como um pião,

cuidado com as cãibras. Tira a cabeça
e ainda vê Urakusa e, no barranco, a farda verde do cabo, os selvagens estão machucando o cabo, era culpa dele, avisara,

e o criado, escaparia? vão matá-lo? Deixa-se
ir flutuando águas abaixo, agarrado a um tronco, e depois, quando sobe à margem direita do rio, o corpo está dolorido. Ali

mesmo dorme, na praia, desperta, ainda
não lhe voltaram as forças, e um escorpião morde-o à vontade. Tem que acender uma fogueira e pôr a mão em cima, assim, que

transpire um pouco, mesmo que queime tanto,
chupa a ferida, cospe, enxágüe a boca, nunca se sabe com essas picadas, escorpião filho da puta. Segue depois, pela selva,

não há selvagens em parte alguma, mas
é melhor ir pelo Santiago, e se o pega uma patrulha e o devolve à guarnição de Borja? Também não pode voltar ao povoado,

ali os soldados o descobririam amanhã ou
depois e, sem perder tempo, é preciso fazer uma balsa. Demora muito, ah! se você tivesse um machete, Adrián Nieves, as mãos

estão cansadas e as forças não chegam
para derrubar troncos grossos.
90
Escolhe três árvores mortas, brancas e bichadas, que ao primeiro empurrão vêm abaixo, amarra-as com cipós e faz duas varas,

uma para levar como sobressalente. E
agora
nada de ir ao rio grande, procura canais e lagunas para atravessar, e não é difícil, toda a zona é de igapós. Só que não

tem como se orientar, essas terras altas
não são as suas, as águas subiram muito, chegará assim até o Santiago? uma semanazinha mais, Adrián Nieves, você era um

bom prático, abra o nariz, o cheiro não
engana, essa é a direção certa, e coragem, homem, muita coragem. Mas onde está agora, o canal parece girar à sua volta e

navega quase às escuras, a mata é densa,
o sol e o ar mal entram, cheira a madeira podre, a lama, e depois tanto morcego, doem os braços, tem a garganta rouca de

espantá-los, uma semanazinha mais. Nem para
trás nem para a frente, nem como voltar ao Marañón, nem como chegar ao Santiago, a corrente leva-o à sua vontade, o corpo

não agüenta de fadiga, chove ainda por
cima, dia e noite chove. Mas o canal termina e aparece uma lagoa, uma laguna pequenina com tucuns
espinheiros nas margens,
o céu está escurecendo. Dorme em uma ilha,
ao acordar mastiga umas ervas amargas, segue viagem e só dois dias mais tarde mata a pauladas uma anta novinha, come carne

meio crua, os músculos não podem mais
movimentar a vara, os mosquitos picam muito, a pele arde, tem as pernas como as do Capitão Quiroga, do jeito que o cabo

contara, o que seria dele, os urakusas o
soltariam? estavam furiosos, será que o matariam? Talvez tivesse sido melhor voltar à guarnição de Borja, preferível ser

soldado que cadáver, triste morrer de fome
ou de febre na selva, Adrián Nieves. Está de borco na balsa e assim um montão de dias, e quando acaba o canal e sai em uma

laguna enorme, o que será, tão grande
que parece o lago, o que será, o lago Rimache'? Não podia ter subido tanto, impossível, e no centro está a ilha e no alto

do barranco há uma parede de lupunas. Empurra
o remo sem se levantar e, até que enfim, entre as árvores cheias de corcovas, silhuetas nuas, merda, serão aguarunas? me

ajudem, serão civilizados? abana para eles
com as duas mãos, e eles se agitam, guincham, me ajudem, saltam, apontam-no, e ao atracar vê o cristão, a cristã, esperam-no,

e diz a ele, quase fico louco, patrão,
não imagine que alegria ver um cristão. Salvara sua vida, patrão, pensava que tudo tinha
acabado,
' Lago formado pelo rio Chapuli, próximo ao Pastaza, no departamento de Loreto.
91
e o patrão ri e dá a ele outro trago, o sabor doce, áspero do anis, e atrás do patrão está uma cristã jovem, bonita sua
cara, bonitos seus cabelos compridos,
e era como se sonhasse, patroa, a senhora também me salvou: agradecia em nome do céu. Quando acorda eles ainda estão ali,

a seu lado, e o patrão, que coisa, já era
hora, homem, dormira um dia inteiro, finalmente abria os olhos, sentia-se bem? E Adrián Nieves, sim, muito bem, patrão,

mas não havia soldados por aqui? Não, não
havia, por que queria saber, que havia feito? e Adrián Nieves, nada de mau, patrão, não matei ninguém, só que desertou,

não podia viver fechado num quartel, para
ele não havia nada como o ar livre, chamava-se Nieves, e antes que os soldados o agarrassem era prático. Prático? Então

devia conhecer bem a selva, saberia levar
uma lancha a qualquer parte, e com qualquer tempo, e ele, claro que podia, patrão, era prático desde que nascera. Agora

se perdeu porque se metera nos igapós em
plena cheia, não queria que os soldados o vissem; não poderia ficar, patrão? E o patrão, sim, poderia ficar na ilha, teria

trabalho. Aqui estaria seguro, nem soldados
nem guardas viriam nunca: esta era sua mulher, Lalita, e ele, Fushía.
- Que é que há, colega? - perguntou Josefino. Não se apavore.
- vou à casa da Chunga - rugiu Lituma. - Vocês vêm comigo? Não? Não fazem falta, vou sozinho.
Mas os León o seguraram pelos braços e Lituma permaneceu no seu lugar, vermelho, suado, os olhinhos revoluteando angustiadamente

pelo aposento.
- Para quê, irmão? - perguntou Josefino. - Aqui estamos bem. Fique calmo.
- Só para ouvir o harpista dos dedos de prata gemeu Lituma. - Só para isso, invencíveis. Tomamos um trago e voltamos, palavra.
- Você sempre foi tão macho, colega. Não fraqueje agora.
- Sou mais homem que qualquer um - balbuciou Lituma. - Mas tenho um coração deste tamanho.
- Trate de chorar - disse o Mono, carinhosamente.
- Isso desafoga, primo, não tenha vergonha.
Lituma olhava o vazio e seu terno cor de abóbora estava cheio de nódoas de terra e de saliva. Ficaram calados um bom tempo,

bebendo como se não estivessem juntos,
92
sem brindar, e até eles chegavam os sons de tonderos e de valsas, e o ambiente se impregnava com cheiro de chicha e fritura.
O balanço do lampião aumentava e diminuía,
em ritmo igual, as quatro silhuetas projetadas sobre as esteiras, e a vela do nicho, pequena, desprendia um vaporzinho anelado

e escuro que envolvia a Virgem de
gesso como uma comprida cabeleira. Lituma levantou-se com grande esforço, sacudiu a roupa, passeou uns olhos perdidos pela

peça e, de súbito, levou um dedo à boca.
Esteve esgaravatando a garganta sob o atento olhar dos outros, que o viram empalidecer, e afinal vomitou, ruidosamente,

com ânsias que estremeciam todo o corpo.
Em seguida, voltou a sentar-se, limpou o rosto com o lenço e, exausto, olheiras fundas, acendeu um cigarro com as mãos trêmulas.
- Já estou melhor, colega. Continue contando.
- Sabemos muito pouco, Lituma. Quer dizer, sobre como aconteceu a coisa. Quando prenderam você, fomos embora. Como éramos

testemunhas, podiam complicar a gente,
você sabe que os Seminário são gente rica, com tantas influências. Eu fui para Sullana e seus primos para Chulucanas.

Quando voltamos, ela tinha deixado a casinha
de Castilla e ninguém sabia onde estava.
- Então a coitada ficou sozinha - murmurou Lituma. - Sem um tostão e ainda grávida?
- Por isso não se preocupe, irmão - disse Josefino.
- Não teve o filho. Em pouco tempo soubemos que andava pelas chicherías, e certa noite nós a encontramos no Rio Bar com

um sujeito, e já não estava grávida.
- Que fez ela quando viu vocês?
- Nada, colega. Cumprimentou muito alegre. Depois topamos com ela aqui e ali, e sempre estava acompanhada. Até que um dia

a vimos na Casa Verde.
Lituma passou o lenço no rosto, chupou o cigarro com força e soprou uma grande baforada de fumo espesso.
- Por que não me escreveram? - sua voz era cada vez mais rouca.
- Você já tinha bastantes problemas, preso, longe da terra. Para que amargurar mais a sua vida, colega? Não se dão essas

notícias a quem já anda fodido.
- Chega, primo, parece que você gosta de sofrer disse Josefino. - Vamos mudar de conversa.
Dos lábios de Lituma corria até o colarinho um fio de saliva brilhante. Sua cabeça se mexia lenta, pesada, mecânica, seguindo

a mesma oscilação das sombras nas esteiras.
93
Josefino encheu os copos. Continuaram bebendo, sem falar, até que a vela do nicho se apagou:
- Já faz duas horas que estamos aqui - disse José, mostrando o castiçal. - É o tempo que dura a mecha.
- Estou contente porque você voltou, primo - disse o Mono. - Não faça uma cara assim. Ria, todos os mangaches vão ficar

felizes por ver você. Ria, priminho.
Aproximou-se de Lituma, abraçou-o e ficou olhando para ele com seus olhos grandes, vivos e ardentes, até que Lituma deu

um tapinha na sua cabeça e sorriu.
- Assim é que eu gosto, primo - disse José. - Viva a Mangachería, cantemos o hino.
E subitamente os três começaram a falar, eram três crianças e pulavam os muros de tijolos da escola pública para tomar banho

no rio ou, montados num burro roubado,
percorriam caminhos arenosos, entre chácaras e algodoais, em direção às ruínas de Narihualá', e ali estava o bulício dos

carnavais, as cascas de ovos e os balões
choviam sobre os enfurecidos transeuntes, e eles molhavam também os tiras, que não se atreviam a ir buscá-los nos seus esconderijos

dos terraços e das árvores, e
agora, nas manhãs quentes, disputavam fogosas partidas de futebol com uma bola de pano no campo infinitamente grande do

deserto. Josefino escutava mudo, os olhos
cheios de inveja, os mangaches censuravam Lituma, é verdade que você se alistou na guarda civil? seu renegado, seu vira-casaca,

e os León e Lituma riam. Abriram
outra garrafa. Sempre calado, Josefino fazia rodelas de fumaça, José assobiava, o Mono guardava o pisco na boca, simulava

mastigá-lo, fazia gargarejos, caretas,
não sinto náuseas nem fogo, só esse calorzinho que não se confunde.
- Calma, invencível - disse Josefino. - Aonde vai, agarrem-no.
Os León alcançaram-no na porta, José segurava-o pelos ombros e o Mono abraçava-o pela cintura, sacudia-o com força, mas

sua voz estava atordoada e chorosa:
- Para quê, primo. Não vá, seu coração vai sangrar. Você tem que me ouvir, Lituma, priminho.
Lituma acariciou lentamente o rosto do Mono, revolveu seus cabelos crespos, afastou-o sem grosseria e saiu, cambaleando.

Eles o seguiram. Do lado de fora, à frente
de suas casas de cana-brava, os mangaches dormiam sob as estrelas,
' Ruínas de antiga civilização.
94
formavam silenciosos cachos humanos na areia. O bulício das chicherías aumentara, o Mono repetia as toadas entre
dentes e, quando escutava uma harpa, abria
os braços: como Dom Anselmo não há! Ele e Lituma iam na frente, de braços dados: ziguezagueantes, às vezes da escuridão

subia um protesto, "Cuidado, não pisem em
mim", e eles, em coro, "Desculpe, dom", "mil perdões, dona".
- Essa história que você contou a ele parecia um filme - disse José.
- Mas acreditou nela - disse Josefino. - Não me lembrei de outra. E vocês não me ajudaram, nem sequer abriram a boca.
- Pena que não estamos em Paita, primo - disse o Mono. - Me jogaria na água com roupa e tudo. Que bom seria.
- EmYacila' há ondas, é um mar de verdade - disse Lituma. - Paita é um laguinho, o Marañón é mais bravo que esse mar. No
domingo iremos a Yacila, primo.
- Levemos Lituma à casa de Felipe - disse Josefino.
- Eu tenho dinheiro. Não podemos deixar que vá, José.
A Avenida Sánchez Cerro estava deserta, nos caixilhos de vidro brilhante de cada lampião zumbiam os insetos. O Mono sentara-se

no chão para amarrar os sapatos. Josefino
aproximou-se de Lituma:
- Olhe, colega, a casa de Felipe está aberta. Quantas lembranças nessa cantina. Venha, deixe-me convidá-lo para um trago.
Lituma livrou-se dos braços de Josefino, falou sem olhá-lo:
- Depois, irmão, na volta. Agora, para a Casa Verde. Quantas lembranças de lá, mais que de qualquer outra parte. Não é

verdade, invencíveis?
Mais tarde, ao passar diante do Três Estrellas, Josefino fez uma nova tentativa. Correu em direção à porta iluminada do

bar, gritando:
- Até que enfim, um lugar para afogar a sede! Venham, colegas, eu pago.
Mas Lituma continuou caminhando, inabalável.
- Que vamos fazer, José?
- Que é que podemos fazer, irmão? Ir à casa da Chunga Chunguita.
' Litoral peruano.
95

SEGUNDA PARTE

Uma lancha pára roncando junto ao cais e Júlio Reátegui salta à terra. Sobe até a Plaza de Santa Maria de Nieva
- um guarda civil atira para o ar um pedaço de pau, um cachorro captura-o no vôo e o traz - e quando chega perto dos troncos

de capirona um grupo de pessoas sai
da cabana do governo. Levanta a mão e saúda: eles o vêem, animam-se, correm ao seu encontro, quanto prazer, que surpresa,

Júlio Reátegui aperta as mãos de Fábio Cuesta,
por que não avisara que vinha? de Manuel Aguila, não o perdoavam, de Pedro Escabino, teriam se preparado para recebê-lo,

de Árévalo Benzas, quantos dias ficaria
desta vez, Dom Júlio? Nenhum, era uma visita relâmpago, seguia viagem agora mesmo, sabiam bem que vida levava. Entram na

sede do governo, Dom Fábio abre umas cervejas,
brindam, iam bem as coisas em Nieva? em Iquitos? problemas com os pagãos? Nas portas e janelas da cabana estão aguarunas

de bocas grandes, olhos frios e pômulos
salientes. Pouco depois, Júlio Reátegui e Fábio Cuesta saem, na praça o guarda continua brincando com o cachorro, sobem

o barranco até a missão, observados de todas
as casas, ah, Dom Fábio, as mulheres, perder um dia por causa deste assunto, chegaria ao acampamento de noite, e Dom Fábio,

para que servem os amigos, Dom Júlio?
Tivesse escrito umas linhas e ele se encarregava de tudo, mas, Dom Fábio, a carta demoraria um mês, e quem aturava a Senhora

Reátegui enquanto isso? Mal tocam e
a porta
da residência se abre, como vai, um avental engordurado, Madre Griselda, um hábito, olhe só quem chegou, uma cara vermelha,

não o reconhecia? mas, sim, era o Senhor
Reátegui, um gritinho, entre, uma mão risonha, entre, Dom Júlio, que
prazer,
97
e ele, não estranhava que não o reconhecessem, com a fachada com que vinha, madre. Mancando, falando sem parar, Madre Griselda

guia-os por um corredor
escuro, abre uma porta, aponta umas cadeiras de lona, que alegria para a madre superiora, e mesmo que tivesse muita pressa

devia visitar a capela, Dom Júlio, veria
quantas modificações, voltava em seguida. Na escrivaninha está um crucifixo e uma lamparina, no chão uma esteira de fibras

de tucum e na parede uma imagem da Virgem;
pelas janelas entram magníficas, atraentes línguas de sol que lambem as vigas do teto. Toda vez que estava numa igreja ou

num convento, Júlio Reátegui sentia sensações
estranhas, Dom Fábio, a alma, a morte, esses pensamentos que preocupam tanto a gente quando moço, e ao governador acontecia

igualzinho, Dom Júlio, visitava
as madres e saía com a cabeça cheia de coisas profundas: e se no fundo os dois fossem um pouco místicos? Isso mesmo pensara

ele, Dom Fábio acaricia a careca, que
engraçado, um pouco místicos. A Senhora Reátegui riria se os ouvisse, ela que sempre dizia, você irá para o inferno por

heresia, Júlio, e a propósito, no ano passado
tinha afinal feito a sua vontade, foram a Lima em outubro, à procissão? sim, do Senhor dos
Milagres'. Dom Fábio vira fotos, mas estar lá devia ser muito melhor,
verdade que todos os negros se vestiam de roxo? E também os zambos, e os caboclos e os brancos, meia Lima de roxo, uma coisa

terrível, Dom Fábio, três dias nesse
aperto, que falta de comodidade e que cheiro, a Senhora Reátegui queria também que ele pusesse o hábito, mas sua fé não

chegava a tanto. Vozes, risos, corridas invadem
a peça, e eles olham para as janelas: vozes, risos, corridas. Certamente estavam em recreio, eram muitas agora? pelo ruído

pareciam cem, e Dom Fábio, umas vinte.
No domingo houve um desfile e elas cantaram o hino nacional, muito afinadas, Dom Júlio, num espanhol caprichado. Não tinha

dúvida, Dom Fábio estava contente em Santa
Maria de Nieva, com que orgulho contava as coisas daqui, isso era melhor que administrar o hotel? se tivesse continuado

lá, em Iquitos, teria agora uma boa situação,
Dom Fábio, quer dizer, economicamente. Mas o governador já estava velho e, embora parecesse mentira ao
Senhor Reátegui, não era homem de ambições. Então, quer dizer
que não agüentaria nem um mês em Santa Maria de Nieva?
' Procissão realizada durante o mês de outubro. O andor, com a imagem do Senhor dos Milagres, percorre todas as igrejas

da cidade, pernoitando em cada uma e saindo
em nova procissão no dia seguinte.
98
Dom Júlio, via agora que agüentou e, se Deus permitisse, não sairia nunca mais daqui. Por que se empenhou tanto por esta

nomeação?
Júlio Reátegui não entendia, por que quis substituí-lo, Dom Fábio? que desejava? e Dom Fábio ser, que não risse, respeitado,

seus últimos anos em Iquitos tinham
sido tão tristes, Dom Júlio, ninguém podia calcular as vergonhas, as humilhações, quando ele o levou para o hotel vivia

de caridade. Mas que não ficasse triste,
aqui em Nieva todos o queriam bem, Dom Fábio, não conseguiu o que desejava? Sim, respeitavam-no, o salário não era grande

coisa, mas com o que o Senhor Reátegui dava
para ajudá-lo bastava para viver tranqüilo, também isso devia a ele, Dom Júlio, ah, não tinha palavras. Entre risos, as

vozes, as corridas na horta, escorrem murmurações,
tagarelices de papagaios. Júlio Reátegui fecha os olhos, Dom Fábio fica pensativo, a mão lenta, carinhosamente, percorre

a careca: ah, é verdade, Dom Júlio, sabia
que Madre Asunción morrera? recebeu sua carta? Tinha recebido, e a Senhora Reátegui escreveu às madres dando pêsames, ele

juntou umas linhas, aquela freirinha foi
uma
boa pessoa, e Dom Fábio, fizera uma coisa que não era muito legal, pôs a bandeira da sede do governo a meio-pau, Dom Júlio,

para se associar de algum modo ao luto,
e Madre Angélica estava bem? sempre forte como uma rocha aquela velhinha? Ouvem passos, ficam de pé, vão ao encontro da

superiora, Dom Júlio, madre, uma mão branca,
era uma 'honra para esta casa receber aqui de novo o Senhor Reátegui, que contente estava de vê-lo, por favor, que sentassem,

e eles, justamente estavam falando, madre,
recordando a pobre Madre Asunción. Pobre? Nada de pobre, estava no céu, e a Senhora Reátegui? quando veriam de novo a madrinha

da capela? A Senhora Reátegui sonhava
em
vir, mas chegar até aqui, de Iquitos, era tão complicado, Santa Maria de Nieva estava fora do mundo, e além disso não era

horrível viajar pela selva? Não para Dom
Júlio Reátegui, a superiora sorri, que conhecia a Amazônia como a palma da mão, mas Júlio Reátegui não fazia isso por prazer,

se a gente mesmo não está em cima de
tudo, madre, as coisas vão para o diabo, que perdoasse essa expressão. Não dissera nada de impróprio, Dom Júlio, aqui também,

se alguém se descuidava, o Demônio
fazia das suas, e agora as pupilas cantam em coro. Alguém as dirige, em cada silêncio Dom Fábio aplaude com as pontas dos

dedos, sorri, aprova: a madre recebera
a mensagem da Senhora Reátegui? Sim, no mês passado,
99
mas não pensava que Dom Júlio quisesse levá-la tão logo. Em geral, preferia que saíssem da missão no fim do ano, não em

pleno curso, mas, já que se deu ao trabalho
de vir
pessoalmente, fariam uma exceção, por se tratar dele, naturalmente. E ele, na verdade, estava matando dois coelhos de uma

só cajadada, madre, tinha que dar uma olhada
ao acampamento do Nieva, os mateiros encontraram pau-de-rosas, parecia, por isso aproveitou para dar um pulinho, e a superiora

concorda: iam encarregá-la das meninas?
a Senhora Reátegui dissera algo sobre isso. Ah, as meninas, madre, se as visse, estavam uma beleza, Dom Fábio imaginava,

e a madre, ela as conhecia, a Senhora Reátegui
mandou fotos das menininhas, a maiorzinha, uma boneca, e a pequena, que olhões. Tinham a quem sair, decerto, a Senhora Reátegui

era tão bonita, e Dom Fábio dizia
isso
com todo o respeito, Dom Júlio. Faz tempo que a ama das meninas tinha casado, madre, e ela não imaginava como a Senhora

Reátegui era apreensiva, fazia restrições
a
todas as moças, que eram sujas, que iam contagiar as meninas com suas enfermidades, sempre as piores coisas, e ali estava,

fazendo-se de ama há dois meses. Se fosse
por isso, Dom Fábio avança na cadeira, a Senhora Reátegui podia estar bem tranqüila, dá uma palmadinha, daqui ninguém sai

doente nem suja, sorri, não é verdade,
madre?
faz uma mesura, dava gosto ver como viviam limpinhas, e Reátegui, a propósito, madre, a esposa do Doutor Portillo. Também

em dificuldades com a criadagem? Sim, Dom
Fábio, era cada vez mais difícil encontrar gente capaz em Iquitos, seria possível levar para ele também uma das mocinhas,

madre? Sim, era possível, a superiora franze
ligeiramente os lábios, Dom Júlio, mas que não falasse assim, sua voz fica aguda, a missão não era uma agência de domésticas,

e agora Reátegui fica imóvel, sério,
a mão nervosa bate no braço da cadeira, não interpretara mal suas palavras, não? quer dizer, a superiora olha o crucifixo,

Dom Fábio esfrega a careca, balança na
cadeira, pisca, madre, não interpretara mal as palavras de Dom Júlio, não? Ele sabia de onde vinham essas crianças, como

viviam antes de entrar na missão, Júlio
Reátegui garantia, madre, tinha havido um engano, não o compreendera, e depois de sair daqui as meninas não tinham para

onde ir, as aldeias indígenas não estavam
em paz, mas ainda se pudessem localizar as famílias as crianças já não se acostumariam, como iam viver nuas de novo? a superiora

faz um gesto amistoso, a adorar
serpentes? mas seu sorriso é glacial, a comer piolhos? Era culpa dele, madre, expressou-se mal e ela tomava suas palavras

em outro
sentido,
100
mas também as meninas não podiam ficar na missão, Dom Júlio, não seria justo, não era verdade? deviam deixar lugar para

outras. A idéia era que eles ajudassem
as madres a incorporar aquelas meninas ao mundo civilizado, Dom Júlio, que facilitassem o seu ingresso na sociedade. Era

precisamente nesse sentido que o Senhor Reátegui,
madre, por acaso ela não o conhecia? e na missão recolhiam aquelas crianças e as educavam para ganhar umas almas a Deus,

não para proporcionar criadas às famílias,
Dom Júlio, que desculpasse a sua franqueza. Ele sabia de sobra, madre, por isso ele e sua senhora sempre colaboraram com

a missão, se havia algum inconveniente
não tinha importância, madre, não disse nada, por favor que não se preocupasse. A superiora não se preocupava por eles,

Dom Júlio, sabia que a Senhora Reátegui era
muito piedosa, e que a menina estaria em boas mãos. O Doutor Portillo era o melhor advogado de Iquitos, madre, ex-deputado,

se não se tratasse de uma família decente,
conhecida, Júlio Reátegui teria se atrevido a fazer essa gestão? Mas insistia, que não pensasse mais nisso, madre, e a superiora

sorri de novo: zangara-se com ela?
Não importava, todo mundo precisa de um sermão de quando em quando, e Júlio Reátegui acomoda-se na cadeira, puxara suas

orelhas, madre, fizera-o sentir-se em falta
e se ele se responsabilizava por aquele senhor, Dom Júlio, tinha confiança nele, não se importava se fizesse algumas perguntas?

Todas as que quisesse, madre, e ele
entendia bem essas preocupações, era natural, mas tinha que confiar nele, o Doutor Portillo e sua esposa eram gente muito

boa e a moça seria muito bem tratada, roupa,
comida, até salário, e a superiora não duvidava, Dom Júlio. Seus lábios finos, furtivos, se franzem de novo: e o resto?

Preocupar-se-iam com que a menina conserve
o que recebeu aqui? Não destruiriam por negligência o que lhe tinham dado na missão? Falava disso, Dom Júlio, e era verdade

que a madre não conhecia os Portillo,
Angelita organizava todos os anos o Natal dos pobres, ela mesma ia pedir donativos às lojas e distribuí-los nas favelas,

madre: podia estar certa de que Angelita
levaria a moça a quanta procissão houvesse em Iquitos. A superiora não queria importuná-lo mais, tinha, porém, outra coisa,

ele tomaria a responsabilidade pelas
duas? Para qualquer reclamação ou o que houver, madre, não faltava mais nada, ele a assumiria e assinaria o que fosse necessário,

com muito prazer, em seu nome
e no do Doutor Portillo. Então estavam de acordo, Dom Júlio, e a superiora, ia buscá-las; e depois,
certamente,
101
Madre Griselda teria preparado uns refrescos, não viriam mal, não é verdade? com o calor que fazia, e Dom Fábio levanta

as mãos alvoroçadas: elas eram
sempre tão amáveis. A superiora sai, as franjas de sol que abraçam as vigas não são mais brilhantes mas opacas, na horta

próxima as pupilas continuam cantando, homem,
o que significava isso? Não tinha o direito, que mau momento a freira me fez passar, Dom Fábio, e ele, Dom Júlio, formalidades,

as madres queriam muito àquela orfãzinha,
sentiam que se fosse, isso era tudo; mas faziam as mesmas perguntas aos oficiais de Borja? e a esses engenheiros que passam

por aqui, vêm com os mesmos conselhos?
que lhe fizesse o favor, Dom Fábio. O governador tem o rosto desolado, a madre devia estar mal-humorada por alguma coisa,

que não fizesse caso, Dom Júlio, e a mim,
não me digam que os milicos vão tratálas melhor que eles, fariam elas trabalhar como animais, certo, e não lhes pagariam

um tostão, sem dúvida, Dom Fábio sabia a
miséria que os milicos ganhavam? E depois, a ele conheciam de sobra, e se recomendava o Portillo era por alguma coisa, Dom

Fábio, por favor, onde é que já se viu?
O coro na horta pára de súbito, e o governador, não compreendia, a superiora sempre tão gentil, tão educada, já passou,

Dom Júlio, que não ficasse com raiva; e
ele, não ficava com raiva, mas as injustiças o revoltavam, como a qualquer um: acabara o recreio, as juntas dos dedos de

Dom Fábio tamborilam na cadeira, a ele
também a madre deixara nervoso, Dom Júlio, sentiu-se no confessionário, eles se voltam e a porta se abre. A superiora traz

uma travessa, uma pirâmide de bolachas
de lados ásperos, e Madre Griselda, uma bandeja de barro, copos, uma jarra cheia de um líquido espumoso, as duas pupilas

permanecem junto à porta, assustadiças,
estranhas em seus aventais creme: suco de mamão, muito bem! Essa Madre Griselda, sempre tão gentil, Dom Fábio ficou de pé

e Madre Griselda ri, tapando a boca com
a mão, ela e a superiora servem os copos, enchem-nos. Da porta, uma contra a outra, as pupilas olham de viés, uma tem a

boca entreaberta e exibe seus dentes minúsculos,
limados em ponta. Júlio Reátegui levanta seu copo, madre, agradecia-o de verdade, estava morto de sede, mas tinham de provar

as bolachinhas, não adivinhavam de quê,
hem? vamos ver, hem, Dom Fábio? Não sabiam de quê, madre, que coisa tão levezinha, de milho? tão delicada, de batata? e

Madre Griselda dá uma gargalhada: de mandioca!
Ela mesma é que inventara, quando trouxesse a Senhora Reátegui daria a receita,
102
e Dom Fábio bebe um golinho, girando os olhos: Madre Griselda tinha mãos de anjo, só por isso merecia o céu, e ela, cale-se,

cale-se, Dom Fábio, que se servissem
de mais suco. Bebem, tiram seus lenços, limpam as finas marcas alaranjadas, Reátegui tem gotinhas de suor na testa, a careca

do governador brilha. Finalmente, Madre
Griselda recolhe a bandeja, a jarra e os copos, da porta sorri para eles travessamente, sai, Reátegui e o governador olham

as pupilas imóveis, elas baixam a cabeça
ao mesmo tempo: boa tarde, jovenzinhas. A superiora dá um passo para elas, vamos ver, aproximem-se, por que ficavam aí?

A dos dentes limados arrasta os pés e pára
sem levantar a cabeça, a outra não sai do lugar, e Júlio Reátegui, você também, filha, não deve ter medo dele, não era a

velha cuca. A pupila não responde e a superiora
assume então uma expressão enigmática, zombeteira. Olha Reátegui, nos olhos dele nasce uma pequena luz inquieta, o governador

acena com a mão para que a menina
se aproxime e a superiora, Dom Júlio, não a reconhecia? Aponta para a que está junto à porta e seu sorriso se acentua, um

sinal afirmativo, e Júlio Reátegui volta-se
para a menina, examina-a piscando, mexe os lábios, estala os dedos, ah, madre, era ela? sim. Que surpresa, nem sequer lhe

passara pela cabeça; tinha mudado muito,
Dom Júlio? tanto, madre, que se tivesse vindo com ele a Senhora Reátegui estaria encantada. Mas se eram velhos amigos, filha,

por acaso não se lembrava dele? A dos
dentes limados e o governador olham um para o outro com curiosidade, a pupila da porta levanta um pouco a cabeça, seus olhos

verdes contrastam com a tez escura,
a superiora suspira, Bonifácia: estavam falando com ela, que modos eram esses. Júlio Reátegui não deixa de examiná-la, madre,
puxa, quase quatro anos, a vida voava,
filha, como você cresceu, era um pedacinho de mulher e agora vejam. A superiora concorda, Bonifácia, vamos, cumprimente
o Senhor Reátegui, suspira de novo, tinha que
respeitá-lo muito, e o mesmo com sua senhora, eles seriam muito bons. E Reátegui, que não tivesse vergonha, filha, iam conversar
um pouco, devia falar muito bem
o espanhol, não é verdade? E o governador dá um pulinho na sua cadeira, a menina de Urakusa! bate na testa, claro, que bobo,
agora se lembrava. E a superiora, deixe
de bancar a boba, Dom Júlio ia pensar que tinham cortado a língua de Bonifácia. Mas filha, estava chorando, que é que tinha,

filha, por que esse choro, e Bonifácia
tem a cabeça levantada, as lágrimas molham suas faces, seus grossos lábios tenazmente
fechados,
103
e Dom Fábio, ora, ora, bobinha, inclinado e bondoso, devia estar contentíssima, teria um lar e as crianças do Senhor Reátegui

eram dois primores. A superiora
empalideceu, essa menina! seu rosto agora está branco como suas mãos, essa boba! por que chorava? Bonifácia abre os olhos

verdes, úmidos, desafiantes, atravessa
a esteira, filha, cai de joelhos diante da superiora, bobinha, pega uma de suas mãos, aproxima-a de seu rosto, a dos dentes

limados ri por um segundo, e a superiora
balbucia, olha para Reátegui, Bonifácia, acalme-se: tinha prometido, e à Madre Angélica. Sua mão luta por afastar-se do

rosto que se esfrega nela, Reátegui e Dom
Fábio sorriem confusos e benevolentes, os grossos lábios beijam vorazmente os dedos pálidos e rebeldes, e a dos dentes limados

ri agora sem dissimular: não via que
era por seu bem? onde podiam tratá-la melhor? Bonifácia, não prometera fazia só meia hora? e à Madre Angélica, era assim

que cumpria? Dom Fábio se põe de pé, esfrega
as mãos, assim eram as meninas, sensíveis, choravam por tudo, filhinha, que fizesse um esforço, veria logo que bonita era

Iquitos, que boa, a santa que era a Senhora
Reátegui e a superiora, Dom Júlio, rogava-lhe, sentia muito. Essa menina nunca foi difícil, não a reconhecia assim. Bonifácia,

acalme-se e Júlio Reátegui, não faltava
mais nada, madre. Afeiçoara-se à missão, não tinha nada de estranho, e era preferível que não viesse contrariada, preferível

que ficasse com as madres. Levaria
a outra, e que Portillo buscasse uma ama em Iquitos, mas, sobretudo,-que não se preocupasse, madre.
104
- Olhem - disse o Pesado. - Já parou de chover.
Extensas, azuis, umas nesgas dividiam o céu, entre aglomerações cinzentas ressoava ainda, dissolvida, a tormenta, e tinha

deixado de chover. Mas à volta do sargento,
dos guardas e de Nieves, a mata continuava pingando: gotonas quentes rolavam das árvores, das bordas da barraca e das raízes

adventícias até a praia de seixos convertida
em pântano, e, ao recebê-las, a lama se abria em diminutas crateras, parecia ferver. A lancha balançava na margem.
- Esperemos que esvazie um pouco, sargento - disse o prático Nieves. - com a chuva os pongos devem estar raivosos.
- Sim, claro, Dom Adrián, mas não há razão para que continuemos como sardinhas - disse o sargento. - Vamos armar a outra

barraca, rapazes. Podemos dormir aqui.
Tinham as camisetas e as calças empapadas, crostas de barro nas perneiras, a pele reluzente. Esfregavam o corpo, torciam

as roupas. O prático Nieves caminhou chapinhando
pela praia e quando chegou à lancha era uma figurinha de piche.
- É melhor pelados - disse o Rubio. - Porque a gente vai se enlamear.
O Pesado estava sem cueca e eles riam de suas nádegas gordas. Saíram da barraca, o Chiquito tropeçou, caiu sentado, levantou

praguejando. Atravessaram o lamaçal
de mãos dadas. Nieves passava os mosquiteiros, as latas, as garrafas térmicas, eles carregavam os pacotes nos ombros até

a barraca, voltavam e, de repente, começaram
as palhaçadas: corriam gritando, mergulhavam na lama, atiravam-se bolas de
barro,
105
meu sargento, não ficará uma só bolacha seca, pegue esta, talvez o anis também tenha se estragado, e para o Chiquito já
chegava de selva, Oscuro, já estava
de saco cheio. Lavaram a sujeira toda no rio, empilharam a carga sob uma árvore e ali mesmo cravaram as estacas, estenderam
a lona e amarraram as cordas em raízes
que irrompiam da terra, pardas e torcidas. Às vezes, sob uma pedra, apareciam larvas rosadas se retorcendo. O prático Nieves
preparava a fogueira.
- Fizeram a barraca bem debaixo da árvore - disse o sargento. - Vai chover aranha sobre nós toda a noite
O montão de lenha crepitava, começava a fazer fumaça e, um pouco depois, nasceu uma chaminha azul, outra
vermelha, uma labareda. Sentaram-se ao redor do fogo.
As bolachas
estavam molhadas, o anis, quente.
- Não escapamos, meu sargento - disse o Oscuro. Vamos ter de agüentar agora uma boa bronca em Nieva.
- Foi uma coisa de louco sair assim - disse o Rubio.
- O tenente devia ter visto.
- Ele sabia que era inútil - encolheu os ombros o sargento. - Mas não viram como estavam as madres e Dom Fábio? Ele nos
mandou para fazer a vontade delas,
só por isso.
- Eu não sou guarda civil para andar de ama-seca disse o Chiquito. - Essas coisas não o incomodam, meu sargento?
Mas o sargento tinha dez anos de serviço, estava curtido, Chiquito, e mais nada o incomodava. Pegara um cigarro e o secava
junto à chama, fazendo-o girar entre os
dedos.
- E para que você entrou na Guarda Civil? - perguntou o Pesado. - Ainda é novinho, está nascendo. Para nós, toda essa agitação
é café pequeno, Chiquito. Logo se
acostumará.
Não é bem isso, Chiquito estivera um ano em Juliaca ', e o planalto era mais duro que a selva, Pesado. Os insetos e as chuvaradas
não incomodavam tanto quanto mandá-lo
procurar crianças na mata. Bem feito que não as encontrassem.
- Vai ver, essas ranhetas voltaram sozinhas - disse o Oscuro. - Talvez até estejam em Santa Maria de Nieva.
- As mais vivas - disse o Rubio - são capazes. Dava uma surra nelas.
O Pesado, ao contrário, faria uns carinhozinhos nelas, e riu,
' Capital da província de San Román, no departamento de Puno (às margens do lago Titicaca).
106
meu sargento: não é verdade que as maiorzinhas estavam no ponto? Eles já as tinham visto, nos domingos, quando iam tomar
banho no rio?
- Você não pensa em outra coisa, Pesado - disse o sargento. - Desde que se levanta até que se deita, sempre as mulheres.
- Mas é verdade, meu sargento. Aqui elas crescem tão depressa, aos onze anos estão maduras para qualquer coisa. Não me diga
que não faria uns carinhozinhos nelas
se tivesse ocasião.
- Não me abra o apetite, Pesado - bocejou o Oscuro.
- Olhe que agora tenho de dormir com o Chiquito.
O prático Nieves alimentava o fogo com raminhos. Escurecia. O sol agonizava longe, adejando entre as árvores como uma ave
avermelhada, e o rio era uma prancha imóvel,
metálica. Nos matagais da margem coaxavam as rãs e no ar havia vapor, umidade, vibrações elétricas. Às vezes, um inseto
era colhido pelas chamas da fogueira, devorado
num estalido surdo. com as sombras, a mata levava até as barracas cheiros de germinação noturna e música de grilos.
- Não gosto, em Chicais quase adoeço - repetiu o Chiquito, com um trejeito de desagrado. -- Não se lembram da velha das
tetas? Foi malfeito arrancar suas crias
daquele jeito. Sonhei duas vezes com elas.
- E olhe que não arranharam você como a mim disse o Rubio, rindo, mas ficou sério e acrescentou: - Foi para o seu bem, Chiquito.
Para ensiná-las a se vestir, a ler
e a falar como cristãos.
- Ou você prefere que fiquem selvagens? - perguntou o Oscuro.
- E além disso têm o que comer, são vacinadas e dormem em camas - disse o Pesado. - Em Nieva vivem como não viveram nunca.
- Mas longe de sua gente - disse o Chiquito. Vocês não sofreriam se não vissem mais a família?
Não era a mesma coisa, Chiquito, e o Pesado sacudiu compassivamente a cabeça: eles eram civilizados e as selvagenzinhas
nem sequer sabiam o que queria dizer família.
O sargento levou o cigarro à boca e acendeu-o, curvando-se até o fogo.
- Afinal, só sofrerão no princípio - disse o Rubio.
- Para isso existem as madrezinhas, que são muito boas.
- Quem é que sabe o que acontece dentro da missão?
- resmungou o Chiquito. -- Talvez sejam muito más.
107
Alto lá, Chiquito: que lavasse a boca antes de falar das madres. O Pesado permitia tudo, mas calma, mais respeito com as
crenças. Chiquito também levantou a voz:
claro que era católico, mas falava mal de quem tivesse vontade, e que é que tinha.
- E se eu me incomodo? - perguntou o Pesado. E se eu lhe desse um murro?
- Nada de brigas - o sargento atirou uma baforada de fumo. - Deixe de bancar o machão, Pesado.
- Eu entendo razões, não ameaças, meu sargento
disse o Chiquito. - Por acaso não tenho o direito de dizer o que penso?
o que penso?
- Tem - disse o sargento. - E em parte estou de acordo com você.
Chiquito olhou os guardas zombeteiramente, estavam vendo? e à queima-roupa para o Pesado: quem é que tinha razão?
- É uma coisa para discutir - disse o sargento. Eu acho que se as crianças fugiram da missão é porque não se acostumam lá.
- Mas, meu sargento, que é que isso tem a ver? protestou o Pesado. - O senhor não fez travessuras quando era pequeno?
- O senhor também prefere que elas continuem sendo selvagens, meu sargento? - perguntou o Oscuro.
- Está certo que eduquem as meninas - disse o sargento. - Mas por que à força?
- Mas o que é que podem fazer as pobres madres, meu sargento? - perguntou o Rubio. - O senhor sabe como são os pagãos. Dizem
sim, sim, mas na hora de mandar suas
filhas à missão, dão uma banana, e desaparecem.
- E se eles não querem se civilizar, que é que a gente tem com isso? - perguntou o Chiquito. - Cada um com seus costumes,
o resto que vá à merda.
- Você tem pena das criaturas porque não sabe como são tratadas nos povoados - disse o Oscuro. - Abrem furos no nariz, na
boca das recém-nascidas.
- E quando os selvagens estão embriagados, fodem elas diante de todo mundo - disse o Rubio. - Não se importam nem com a
idade delas, e pegam a primeira que encontram,
as filhas, as irmãs.
- E as velhas furam as mocinhas com as mãos disse o Oscuro. - E depois comem seus cabaços para ter sorte. Não é verdade,
Pesado?
108
- É verdade, com as mãos - disse o Pesado. - Eu que o diga. Até agora não me tocou nenhuma virgenzinha. E olhe que já comi
selvagens.
O sargento sacudiu as mãos: estavam todos fazendo carga contra o Chiquito, e isso não valia.
- O senhor, porque está do seu lado, meu sargento disse o Rubio.
- O que acontece é que eu tenho pena daquelas crianças - confessou o sargento. - De todas as que estão na missão, porque
certamente devem sofrer longe de sua gente.
E as outras, porque vivem mal em seus povoados.
- Bem se vê que o senhor é piurano, meu sargento disse o Oscuro. - Todos os da sua terra são uns sentimentais.
- E com muita honra - disse o sargento. - E ai daquele que falar mal de Piura.
- Sentimentais e também bairristas - disse o Oscuro.
- Mas nisso os arequipenses' ganham dos piuranos, meu sargento.
Era noite e a fogueira crepitava, o prático Nieves continuava jogando nela raminhos, folhas secas. A garrafa térmica de
anis passava de mão em mão e os guardas tinham
acendido cigarros. Todos suavam, e em seus olhos se repetiam, minúsculas, dançantes, as línguas da fogueira.
- Mas são as mais limpas que existem - disse o Chiquito. - E em compensação, vocês viram as madres tomarem banho alguma
vez durante a viagem a Chicais?
O Pesado se engasgou: outra vez com as madres? começou a tossir fortemente, porra, outra vez se metia com as madres?
- Você me esculhamba mas não responde - disse o Chiquito. - É verdade ou não o que digo?
- Que burro que você é - disse o Rubio. - Queria que as freirinhas tomassem banho diante de nós?
- Talvez tenham tomado banho às escondidas disse o Oscuro.
- Eu nunca vi - disse o Chiquito. - Nem vocês. - Nem tampouco as viu fazendo necessidades - disse
o Rubio. - Isso não significa que agüentassem a caca e as mijadinhas toda a viagem.
Um momento, o Pesado vira: quando estavam deitados,
' Naturais do departamento de Arequipa, no litoral sul do Peru.
109
elas se levantavam sem fazer ruído e iam ao rio como fantasminhas. Os guardas riram, e o sargento, este Pesado, ele as espiava?
queria vê-las peladas?
- Meu sargento, por favor - disse o Pesado, confuso.
- Não diga barbaridades, como é que pode pensar nisso. É que eu tenho insônia, foi por isso que vi.
- Mudemos de conversa - disse o Oscuro. - Não se deve brincar com as madres. E além disso não vamos convencê-lo. Você é
teimoso como uma mula, Chiquito.
- E um bobão - disse o Pesado. - Comparar as selvagens com as freirinhas, você me dá pena, palavra de honra.
- Agora, sim, acabou - disse o sargento, interrompendo o Chiquito, que ia falar. - Vamos dormir para partir cedo.
Ficaram calados, os olhos parados nas chamas. A garrafa térmica de anis ainda deu uma volta. Em seguida levantaram-se, entraram
nas barracas, mas, um momento depois,
o sargento voltou para junto do fogo com um cigarro na boca. O prático deu a ele uma palhinha acesa.
- Sempre tão calado, Dom Adrián - disse o sargento.
- Por que não discutiu também?
- Estive ouvindo - disse Nieves. - Não me agradam as discussões, sargento. E, além disso, prefiro não me meter com eles.
- com os rapazes? - perguntou o sargento. - Eles fizeram alguma coisa ao senhor? Por que não me avisou, Dom Adrián?
- São orgulhosos, desprezam quem nasceu aqui disse o prático, em voz baixa. - Não viu como me tratam?
- São presunçosos como todos os limenhos - disse o sargento. - Mas não deve se importar com eles, Dom Adrián. E se alguma
vez o desconsiderarem, avise-me e eu os
ponho no seu lugar.
- Em compensação, o senhor é uma boa pessoa, sargento - disse Nieves. - Faz tempo que estou para dizer isso. O único que
me trata com educação.
- Porque o estimo muito, Dom Adrián - disse o sargento. - Sempre disse que gostaria de ser seu amigo. Mas o senhor não se
liga a ninguém, é um solitário.
- Agora será meu amigo - sorriu Nieves. - Um dia destes virá comer em minha casa e o apresentarei a Lalita. E àquela que
fez as meninas fugirem.
110
- Como? Bonifácia vive com vocês? - perguntou o sargento. - Pensei que tivesse ido embora do povoado.
- Não tinha para onde ir, nós a recolhemos - disse Nieves. - Mas não diga a ninguém, ela não quer que saibam onde está,
porque é meio freira ainda, morre de medo
dos homens.
- Você contou os dias, velho? - perguntou Fushía.
- Eu perdi a noção do tempo.
- Que importa a você o tempo, para que lhe serve isso? -- perguntou Aquilino.
- Parece que faz mil anos que saímos da ilha - disse Fushía. - Além disso, sei que é por gosto, Aquilino, você não conhece
os homens, você vai ver, em San Pablo'
vão chamar a polícia e tomar o dinheiro da gente.
- Você está ficando triste outra vez? - perguntou Aquilino. - Eu sei que a viagem é longa, mas o que quer, é preciso viajar
com cuidado. Não se preocupe com San
Pablo, Fushía, disse a você que conheço um cara de lá!
- É que estou esgotado, homem, não é brincadeira andar correndo assim, você tirou a loteria comigo - disse o Doutor Portillo.
- Olhe a cara de cansaço do pobre Dom
Fábio. Mas ao menos já estamos em condições de informá-lo. Enquanto isso, pegue uma cadeira, você cairá sentado com as notícias.
- As plantações estão muito bem, muito bonitas, Senhor Reátegui - disse Fábio Cuesta. - O engenheiro é amabilíssimo e já
terminou o desmatamento e a semeadura. Todos
dizem que é uma região ideal para o café.
- Por esse lado tudo anda normal - disse o Doutor Portillo. - O que está falhando é o negócio do caucho e dos couros. Uma
história de bandidos, compadre.
- Portillo? Não me diz nada, Fushía - disse Aquilino. -- É um médico de Iquitos?
- Um advogado - disse Fushía. - O que ganhava todas as causas para Reátegui. Um orgulhoso, Aquilino, um vaidoso.
- Não é culpa dos patrões, Senhor Reátegui, posso jurar
- disse Fábio Cuesta. - Eles estão mais furiosos que ninguém; não vê que são os maiores prejudicados? Parece que os bandidos
existem de verdade.
' Povoado onde isolam leprosos, às margens do rio Amazonas.
111
O Doutor Portillo também pensara, a princípio, que os patrões estivessem negociando às ocultas, Júlio, que eles tivessem
inventado os bandidos para não vender o
caucho.
Mas não eram eles, a verdade é que dá cada vez mais trabalho conseguir a mercadoria, compadre; ele e Dom Fábio foram a todos
os lugares, investigaram, há bandidos,
e Dom Fábio se portou como um homem, adoeceu com tanta viagem, mas apesar de tudo continuou com ele, Júlio, e claro que
foi útil ir de braço com a autoridade,
o governador de Santa Maria de Nieva inspirava respeito por ali.
- Tratando-se do Senhor Reátegui, qualquer coisa - disse Fábio Cuesta. - Isso e muito mais, o senhor sabe, Dom Júlio. O
que mais lamento é o que os bandidos fizeram,
pois custou muito convencer os patrões a não vender ao banco mas ao senhor.
- Você tinha que ver como me tratava - disse Fushía -, com que superioridade. Pensa que me convidou uma só vez para
ir à sua casa em Iquitos? Não sabe que
ódio eu tinha desse advogadinho, Aquilino.
- Sempre cheio de ódios, Fushía - disse Aquilino. Acontece alguma coisa e você já está odiando alguém. Deus vai castigá-lo
por isso também.
- Mais ainda? - perguntou Fushía. - Já está me castigando muito antes de eu lhe fazer qualquer coisa, velho.
- Na guarnição de Borja nos ajudaram muito - disse o Doutor Portillo. - Deram guias, práticos. Você tem que agradecer ao
coronel, Júlio, escreva umas linhas a ele.
- O coronel é uma excelente pessoa, Senhor Reátegui disse Fábio Cuesta. - Muito prestimoso, muito dinâmico.
Eles podiam agir contra os bandidos se recebessem uma ordem de Lima, compadre, o melhor é que Reátegui desse um pulo à capital
e fizesse gestões, se os milicos interviessem,
tudo se resolveria. Sim, homem, claro que era para tanto.
- Não queríamos acreditar neles, Senhor Reátegui - disse Fábio Cuesta. - Mas todos os patrões juraram a mesma coisa. Não
era possível que estivessem de acordo.
Era muito simples, compadre: quando os patrões chegavam às tribos não encontravam nada, nem caucho nem couros, só selvagens
chorando e esperneando, nos roubaram,
nos roubaram, bandidos, ladrões, etc.
- Subiu pelo Santiago com Dom Fábio, que era governador de Santa Maria de Nieva, e com soldados de Borja
112
disse Fushía. - Antes, estiveram com os aguarunas, e também com os achuales', investigando.
- Sei disso, eu os encontrei no Marañón - disse Aquilino. - Não contei isso a vocês? Estive dois dias com eles. Era a segunda
ou terceira viagem que fazia à ilha.
E Dom Fábio, e aquele outro, como é que você disse? Portillo? me crivavam de perguntas, e eu pensava, agora você vai pagar
tudo, Aquilino. Tinha medo.
- Pena que não chegaram - disse Fushía. - Que cara teria feito o advogadinho se me visse, o que teria contado ao cachorro
do Reátegui. Mas o que é feito de Dom Fábio,
velho? Morreu?
- Não, continua como governador de Santa Maria de Nieva - disse Aquilino.
- Não sou tão bobo - disse o Doutor Portillo. '- A primeira coisa em que pensei, se não forem os patrões são os selvagens,
estão repetindo a brincadeira de Urakusa,
aquilo da cooperativa. Por isso fomos até as tribos. Mas também não eram os selvagens.
- As mulheres nos recebiam chorando, Senhor Reátegui
- disse Fábio Cuesta. - Porque os bandidos não levam só o caucho, o látex e os couros, mas também as mocinhas, claro.
Não estava mal pensado como negócio, compadre: Reátegui adiantava o dinheiro aos patrões, os patrões adiantavam o dinheiro
aos selvagens, e quando os selvagens voltavam
da mata com o caucho e com os couros, os cornos caíam em cima deles e ficavam com tudo. Sem ter investido um centavo, compadre,
não era um negócio garantido?
que fosse a Lima e fizesse gestões, Júlio, quanto mais cedo melhor.
- Por que você sempre procura negócios sujos e perigosos? - perguntou Aquilino. - É como uma mania sua, Fushía.
- Todos os negócios são sujos, velho - disse Fushía.
- O que acontece é que eu não tive um capitalzinho para começar, se você tem dinheiro, pode fazer os piores negócios sem
perigo.
- Se eu não o tivesse ajudado, você teria de ir para o Equador - disse Aquilino. - Não sei por que o ajudei.
' Tribo de índios nômades do interior do Equador e que, às vezes, penetram no Peru. Há muitos achuales nas altas vertentes
dos rios Pastaza, Tigre e Morona.
113
Você me fez passar uns anos terríveis. Tenho vivido assustado, Fushía, com o coração na boca.
- Você me ajudou porque é bom - disse Fushía. O melhor que conheci, Aquilino. Se fosse rico, deixaria para você todo o meu
dinheiro, velho.
- Mas você não é, nem será nunca - disse Aquilino.
- E de que me serviria o seu dinheiro, se morrerei de uma hora para outra. Nisso nos parecemos um pouco, Fushía, estamos
chegando ao fim tão pobres como nascemos.
- Já há uma lenda sobre os bandidos - disse o Doutor Portillo. - Até nas missões nos falaram deles. Mas nem os frades nem
as freiras sabem grande coisa.
- Num povoado aguaruna do Cenepa', uma mulher nos contou que os vira - disse Fábio Cuesta. - E que havia huambisas entre
eles. Mas suas informações não valem muito.
Os selvagens, o senhor sabe, Senhor Reátegui.
- Que há huambisas entre eles é um fato - disse o Doutor Portillo. - Todos concordam sobre isso, reconheceram os
huambisas pelo idioma e as vestes. Mas eles
só estão ali para as violências, você sabe como gostam de brigar. Só que não há jeito de saber quem são os brancos que os
dirigem. Dois ou três, dizem.
- Um deles é serrano, Dom Júlio - disse Fábio Cuesta. - Foi o que os achuales nos disseram, que engrolam um pouco de
quíchua'.
- Mas mesmo que você negue, teve sorte, Fushía disse Aquilino. - Nunca o agarraram. Sem essas desgraças, você teria podido
passar a vida na ilha.
- Devo isso aos huambisas - disse Fushía -, depois de você, foram eles os que mais me ajudaram, velho. E você viu como eu
lhes paguei.
- Mas teve motivos de sobra, nem a eles nem a você convinha que ficasse na ilha - disse Aquilino. - Como você é, Fushía.
Só se lamenta por abandonar o Pantacha e
os huambisas, não acha que as maldades que cometeu são maldades.
Também aquilo estava devidamente comprovado, compadre: as compras de caucho não tinham baixado na região, tinham inclusive
aumentado em Bagua, embora eles não
vendessem agora nem a metade.
' Afluente do rio Marañón localizado no departamento do Amazonas.
' Língua própria do império dos incas, originária do departamento de Cuzco, mas que se estendeu pelo norte do Peru até o
Equador, e ao sul até a Bolívia e a província
argentina de Catamarca.
114
Os bandidos eram muito vivos, Senhor Reátegui, sabe o que faziam? Vendiam longe seus roubos, na certa através de terceiros.
Não tinha
nenhuma importância vender baratinho o caucho, que para eles saía grátis. Não, não, compadre, os administradores do Banco
Hipotecário não viram novas caras, os fornecedores
eram os de sempre. Faziam bem as coisas, os vigaristas, não se arriscavam. Deviam ter conseguido uns dois patrões que compravam
deles os roubos a preços baixos,
e esses revendiam ao banco; porque eram conhecidos, não havia controle possível.
- Valia a pena tanto perigo por tão pouco lucro? perguntou Aquilino. - Na verdade, não acredito, Fushía.
- Mas não foi por minha culpa - disse Fushía. Eu não podia trabalhar como os demais, a polícia não os perseguia, eu tinha
que pegar o primeiro negócio que me aparecia.
- Cada vez que me falavam de você, suava frio disse Aquilino. - Que teriam feito se pegassem você com as tribos, Fushía.
Mas talvez fosse pior se os patrões o
pegassem. Não sei quem tinha mais raiva de você.
- Uma coisa, velho, de homem para homem - disse Fushía. - Agora pode ser franco comigo. Você nunca pegou suas comissõezinhas?
- Nem um só centavo - disse Aquilino. - Palavra de honra.
- Isso é uma coisa que contraria a razão, velho disse Fushía. - Sei que não mente, mas não me entra na cabeça, palavra.
Eu não faria isso por você, sabe?
- Claro que sei - disse Aquilino. - Você teria roubado até minha alma.
- Registramos queixas em todos os comissariados da região - disse o Doutor Portillo. - Mas isso é o mesmo que nada. Tome
o avião para Lima, é preciso que o Exército
intervenha, Júlio. Isso dará um susto neles.
- O coronel disse que ajudaria com muito prazer, Senhor Reátegui - disse Fábio Cuesta. - Só esperava ordens. E eu, em Santa
Maria de Nieva, ajudarei também, no que
for possível. A propósito, Dom Júlio, todos se lembram do senhor com muito carinho.
- Por que você parou? - perguntou Fushía. Ainda não é noite.
- Porque estou cansado - disse Aquilino. - Vamos dormir nessa praiazinha. E depois, você não está vendo o céu? Agorinha
mesmo começa a chuva.
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No extremo norte da cidade há uma pequena praça. É muito antiga e, em outros tempos, seus bancos foram de vime polido e
de metais lustrosos. A sombra de algarobeiras
esbeltas caía sobre eles e, em seu abrigo, os velhos da vizinhança recebiam o calor das manhãs e viam as crianças brincando
à volta do chafariz: uma circunferência
de pedra e, no centro, na ponta dos pés, as mãos levantadas como que para voar, uma mulher envolta em véus, derramando água
pelos cabelos. Agora os bancos estão
rachados, o chafariz, sem água, a bela mulher tem o rosto fendido por uma cicatriz e as algarobeiras curvam-se sobre si
mesmas, moribundas.
Nessa pracinha brincava Antônia quando os Quiroga vinham à cidade. Eles viviam na fazenda de La Huaca, uma das maiores de
Piura, um mar ao pé das montanhas. Duas
vezes ao ano, por ocasião do Natal e da procissão de junho, os Quiroga viajavam à cidade e instalavam-se no casarão de tijolos
que faz esquina precisamente com
essa praça, que agora tem seu nome. Dom Roberto usava grossos bigodes, mordia-os levemente ao falar e tinha modos aristocráticos.
O agressivo sol da região preservara
as feições de Dona Lúcia, mulher pálida, frágil, muito devota: ela mesma armava as coroas de flores que depositava no andor
da Virgem, quando a procissão parava
à porta de sua casa. Os Quiroga celebravam uma festa na noite de Natal, da qual participavam muitos graúdos. Havia presentes
para todos os convidados e, à meia-noite,
das janelas, choviam moedas para os mendigos e vagabundos amontoados na rua. Vestidos de escuro, os Quiroga acompanhavam
a procissão, quatro lentíssimas horas através
de bairros e subúrbios. Levavam Antônia pela mão, discretamente ralhavam com ela quando se descuidava das ladainhas. Durante
sua estada na cidade, Antônia aparecia
muito cedo na pracinha e, com os meninos da vizinhança, brincava de polícia e ladrão, jogava prendas, subia nas algarobeiras,
atirava bolas de barro na mulher de
pedra ou tomava banho no chafariz, nua como um peixe.
Quem era esta menina, e por que a protegiam os Quiroga? Eles a trouxeram de La Huaca em um mês de junho, quando ainda não
sabia falar, e Dom Roberto contou uma história
que não convenceu muita gente. Os cães da fazenda tinham latido certa noite e quando, assustado, saiu ao pátio, encontrou
a menina no chão, debaixo de uns cobertores.
Os Quiroga não tinham filhos, e os parentes cobiçosos aconselharam o asilo, alguns até se ofereciam para criá-la.
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Mas Dona Lúcia e Dom Roberto não seguiram os conselhos nem aceitaram os oferecimentos e nem pareceram incomodados com os
falatórios. Certa manhã, em meio a uma
partida
de rocambor, no Centro Piurano, Dom Roberto anunciou distraidamente que decidira adotar Antônia.
Mas isso não aconteceu porque nesse fim de ano os Quiroga não chegaram a Piura. Nunca ocorrera isso: houve preocupação.
Temendo um acidente, a 25 de dezembro, um
pelotão de cavaleiros saiu pela estrada do norte.
Foram encontrados a cem quilômetros da cidade, ali onde a areia apaga o rastro e destrói todo sinal e só imperam a desolação
e o calor. Os ladrões tinham espancado
selvagemente os Quiroga, roubaram suas roupas, os cavalos, a bagagem, e também os dois criados jaziam mortos, com pestilentas
feridas que ferviam de vermes. O sol
continuava ulcerando os cadáveres nus e os cavaleiros tiveram que afastar a tiros os urubus que bicavam a menina. Então,
viram que ela estava viva.
- Por que não morreu? - perguntavam os piuranos.
- Como é que ficou viva se arrancaram sua língua e seus olhos?
- É difícil saber.- respondia o Doutor Pedro Zevallos, mexendo a cabeça perplexo. - Talvez o sol e a areia tenham cicatrizado
as feridas e evitado a hemorragia.
- A Providência - afirmava o Padre Garcia. - A misteriosa vontade de Deus.
- Um iguana lambeu a menina - diziam os feiticeiros dos ranchos. - Porque sua baba verde não só evita o aborto, também seca
as feridas.
Os ladrões não foram encontrados. Os melhores cavaleiros percorreram o deserto, os mais hábeis rastreadores exploraram os
matos, as grutas, chegaram até as montanhas
de Ayabaca l sem encontrá-los. Muitas vezes, o prefeito, a Guarda Civil, o Exército organizaram expedições para revistar
as aldeias e casarios mais retirados. Tudo
em vão.
Os bairros derramaram gente no cortejo que acompanhava o féretro dos Quiroga. Nas sacadas das casas dos graúdos havia crepom
negro, e o bispo e as autoridades assistiram
ao enterro. A desgraça dos Quiroga se espalhou por toda parte, perdurou nas conversas e nas lendas dos mangaches e dos gallinazos.
' Montanhas localizadas na província de Ayabaca, que faz limite com o Equador.
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La Huaca foi dividida em muitas partes e, à frente de cada uma, ficou um parente de Dom Roberto ou de Dona Lúcia. Ao sair
do hospital, Antônia foi recolhida por
uma lavadeira da Gallinacera, Juana Baura, que servira os Quiroga. Quando a menina aparecia na Plaza de Armas, varinha na
mão para detectar os obstáculos, as mulheres
a acariciavam, davam-lhe doces, os homens punham-na sobre o cavalo e a levavam a passear pelo Malecón. Certa vez esteve
doente. Chápiro Seminário e outros fazendeiros
que bebiam no La Estrella dei Norte obrigaram a banda municipal a ir até a Gallinacera, para tocar a retreta na frente da
choça de Juana Baura. No dia da procissão,
Antônia ficava imediatamente atrás do andor, e dois ou três voluntários faziam um anel para separá-la do tumulto. A menina
tinha um ar dócil, taciturno, que comovia
a todos.
Já tinham sido vistos, meu capitão, o Cabo Roberto Delgado aponta para o alto do barranco, já tinham ido avisar os outros:
as lanchas encalham uma após outra, os
onze homens pulam para terra, dois soldados amarram as embarcações a umas pedras, Júlio Reátegui bebe um gole do seu cantil,
o Capitão Artemio Quiroga tira a camisa,
o suor empapa seus ombros, suas costas, e torce-a, Dom Júlio, esse maldito calor assaria os miolos deles. Enxames de mosquitos
assediam o grupo, no alto ouvem-se
latidos: vinham aí, meu capitão, que olhasse para cima. Todos levantam o olhar: nuvens de pó e muitas cabeças apareceram
no alto do barranco. Algumas silhuetas de
troncos imprecisos já deslizam pela encosta arenosa e, entre as pernas dos urakusas, brincam cães barulhentos, os caninos
à mostra. Júlio Reátegui volta-se para
os soldados, andem, que saudassem os selvagens, e o senhor, cabo, abaixe a cabeça, fique lá atrás, que não o reconhecessem,
e o Cabo Roberto Delgado, sim, senhor,
governador, já o vira, ali estava Jum, meu capitão. Os onze homens agitam as mãos e alguns sorriem. Na ladeira há cada vez
mais urakusas; descem quase de cócoras,
gesticulando, grunhindo, as mulheres são as mais buliçosas, e o capitão, iam ao encontro deles, Dom Júlio? porque não se
fiava nada neles. Não, nada disso, capitão,
não estava vendo como desciam contentes? Júlio Reátegui conhecia aquela gente, o importante era ganhar sua confiança, deixasse
para ele, cabo, qual deles era Jum?
O da frente, senhor, o que tinha a mão levantada, e Júlio Reátegui, atenção:
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iam correr como cabritos, capitão, que não escapasse nenhum, e sobretudo muito cuidado com Jum. Amontoados ao pé do barranco,
num estreito aterro, seminus, tão
excitados quanto
os cães que pulam, sacodem os rabos e latem, os urakusas olham os expedicionários, apontam para eles, cochicham. Misturado
com os cheiros do rio, da terra e das
árvores, há agora um cheiro de carne humana, de peles tatuadas com zarcão. Os urakusas batem nos braços, nos peitos, ritmadamente
e, em seguida, um homem atravessa
a poeirenta barreira, era aquele, meu capitão, aquele, e caminha sólido e decidido para a margem. Os outros o seguem e Júlio
Reátegui, que era o governador de Santa
Maria de Nieva, intérprete, que viesse falar com ele. Um soldado se adianta, grunhe e gesticula com desenvoltura, os urakusas
param. O homem sólido concorda, descreve
com a mão uma linha lenta, circular, indicando aos expedicionários que se aproximem, eles o fazem, e Júlio Reátegui: Jum,
de Urakusa? O homem sólido abre os braços,
Jum! respira: piuranos! O capitão e os soldados se olham. Júlio Reátegui concorda, dá outro passo em direção a Jum, ambos
ficam a um metro de distância. Sem pressa,
os olhos tranqüilamente pousados no urakusa, Júlio Reátegui tira a lanterna que leva no cinturão, segura-a com toda a mão,
ergue-a devagar, Jum estende a mão para
recebê-la, Reátegui golpeia: gritos, corridas, pó que cobre tudo, a estentórea voz do capitão. Entre os uivos e as nuvens
de pó, corpos verdes e ocre circulam, caem,
levantam-se, como um pássaro prateado, a lanterna golpeia uma vez, duas, três. Em seguida, o vento limpa a praia, desvanece
a nuvem de poeira, leva os gritos. Os
soldados estão postos em círculo, seus fuzis apontam para uma centopéia de urakusas ligados, amarrados, trançados uns aos
outros. Uma menina soluça, abraçada às
pernas de Jum, e este cobre o rosto, por entre os dedos seus olhos espiam os soldados, Reátegui, o capitão, e a ferida de
sua testa começou a sangrar. O Capitão
Quiroga faz girar o revólver num dedo, governador, ouvira o que ele gritou? Piuranos queria dizer peruanos, não? E Júlio
Reátegui pensava onde é que este sujeito
ouviu essa palavrinha, capitão: seria melhor levá-los para cima, no povoado estariam melhor que aqui, e o capitão, sim,
haveria menos pernilongos: já ouviu, intérprete,
ordene, faça com que subam. O soldado grunhe e gesticula, o círculo se abre, a centopéia começa a andar, pesada e compacta,
novamente se levantam as nuvenzinhas
de pó. O Cabo Roberto Delgado se põe a rir: já o reconhecera, meu capitão,
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parecia querer comê-lo com os olhos. E o capitão, Jum também, cabo, que espera para subir. O cabo empurra Jum, que caminha
muito teso, as mãos sempre no rosto.
A menina continua
presa às suas pernas, estorva seus movimentos e o cabo pega-a pelos cabelos, saia, trata de separá-la, solte-se, do cacique,
e ela resiste, arranha, guincha como
um sagüi, merda, o cabo bate nela com a mão aberta, e Júlio Reátegui, que é que há, porra? como é que tratava assim a uma
menina, porra? com que direito, porra?
O cabo solta-a, senhor, não queria bater nela, só fazer que soltasse Jum, não se ofenda, senhor, e além disso ela o arranhara.
- Já se ouve a harpa - disse Lituma. - Ou estou sonhando, invencíveis?
- Nós todos a ouvimos, primo - disse José. - Ou todos estamos sonhando.
O Mono escutava, o rosto torcido, os olhos enormes e admirados.
- É um artista! Quem diz que não é o maior?
- Pena que esteja tão velho - disse José. - Seus olhos já não lhe valem mais, primo. Nunca anda só, o Joven e o Bolas têm
de levá-lo pelo braço.
A casa de Chunga fica atrás do estádio, pouco antes do descampado que separa a cidade do Quartel Grau', não longe do matagal
das curras. Ali, nesse lugar de capim
calcinado e areia fina, sob os nodosos ramos das algarobeiras, nos amanheceres e crepúsculos, postam-se os soldados ébrios.
As lavadeiras que voltam do rio, as criadas
do bairro de Buenos Aires que vão ao mercado, vários deles agarram-nas, deitam-nas sobre a areia, jogam a saia sobre o rosto
delas, abrem suas pernas e, um após
o outro, fodem-nas e fogem. Os piuranos chamam de atropellada a vítima, à operação, fusilico, e ao rebento resultante de
filho de atropellada, fusiliquito,
sieteleches'.
- Maldita a hora em que fui para a selva - disse Lituma. - Se tivesse ficado aqui, eu me casaria com Lira e seria um homem
feliz.
;' Esse quartel tomou o nome do Almirante Miguel Grau, nascido em
Piura.
' Atropellada, vítima de uma agressão sexual do tipo que se conhece
no Brasil por curra (gíria); fusilico, a curra propriamente dita; hijo
de atropellada, fusiliquito, sieteleches, correspondam, respectivamente,
a "filho das macegas", "curradinho" e "filho de ninguém".
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- Não tão feliz, primo - disse José. - Se visse como Lira está agora.
- Uma vaca leiteira - disse o Mono. - Uma pança que parece um bombo.
- E parideira como uma coelha - disse José. - Já tem umas dez crianças.
- Uma é puta, a outra é vaca leiteira - disse Lituma.
- Que olho bom para as mulheres, invencível.
- Colega, você me prometeu e está faltando com a palavra - disse Josefino. - O passado passou. Senão, a gente não acompanha
você à casa da Chunga. Vai ficar calminho,
não é verdade?
- Como um operado, palavra de honra - disse Lituma. - Só estou brincando.
- Não vê que você se iode pela mínima coisa que fizer, irmão? - perguntou Josefino. - Tem antecedentes, Lituma. Prenderiam
você de novo, e quem sabe por quanto tempo
desta vez.
- Como você se preocupa comigo, Josefino - disse Lituma.
Entre o estádio e o descampado, a meio quilômetro da estrada que sai de Piura e se bifurca, em seguida, em duas retas superfícies
escuras que atravessam o deserto,
uma em direção a Paita, a outra para Sullana, há uma aglomeração de choças de adobe, latas e papelões, um subúrbio que não
tem nem os anos nem a extensão da Mangachería,
mais pobre que esta, mais desprotegido, e é ali onde se ergue, singular e central como uma catedral, a casa da Chunga, também
chamada a Casa Verde. Alta, sólida,
seus muros de tijolos e seu teto de zinco são vistos do estádio. Nos sábados à noite, durante as lutas de boxe, os espectadores
conseguem ouvir os pratos de Bolas,
a harpa de Dom Anselmo, a guitarra do Joven Alejandro.
- Juro que a ouvia, Mono - disse Lituma. - Nitidamente, era de partir a alma. Como a ouço agora, Mono.
- Que vida ruim você levava, priminho - disse o Mono.
- Não falo de Lima, mas de Santa Maria de Nieva
- disse Lituma. - Noites como a morte, Mono, quando estava de guarda. Ninguém com quem falar. Os rapazes estavam roncando,
e de repente não ouvia mais os sapos
nem os grilos, só a harpa. Em Lima, não a ouvi nunca.
A noite estava fresca e clara, na areia se desenhavam, de trecho em trecho, os perfis retorcidos das algarobeiras.
121
Caminhavam numa mesma linha, Josefino esfregando as mãos, os León assobiando, e Lituma, cabisbaixo, as mãos nos bolsos,
levantava o rosto de quando em quando e
examinava o céu com uma espécie de raiva.
- Uma corrida, como quando éramos crianças - disse o Mono. - Um, dois, três.
Saiu disparado, sua pequena figura simiesca desapareceu nas sombras. José ultrapassava obstáculos invisíveis, empreendia
uma corrida, ia e voltava, encarava Lituma
e Josefino:
- A aguardente é nobre, o pisco, traidor - rugia. Quando é que cantamos o hino?
Perto da favela, encontraram o Mono, estendido de costas, resfolegando como um boi. Ajudaram-no a se levantar.
- O coração me sai pela boca, merda, parece mentira.
- Os anos não passam em vão, primo - disse Lituma.
- Então viva a Mangachería - disse José.
A casa da Chunga é cúbica e tem duas portas. A principal dá para o quadrado, amplo salão de baile cujas paredes estão crivadas
de nomes e de emblemas: corações,
flechas, tetas, sexos femininos como meias-luas, picas que os atravessam. Há também fotografias de artistas, boxeadores
e modelos, uma folhinha, uma imagem panorâmica
da cidade. A outra, portinha baixa e estreita, dá para o bar, separado da pista de danças por um balcão de' tábuas grandes,
atrás do qual está a Chunga, uma cadeira
de balanço de palha e uma mesa coberta de garrafas, copos e talhas. E frente ao bar, a um canto, estão os músicos. Dom Anselmo,
instalado sobre um banquinho, utiliza
a parede como espaldar e sustenta a harpa entre as pernas. Usa óculos, os cabelos varrem sua testa, entre os botões da camisa,
no pescoço e nas orelhas aparecem
mechas cinza. O que toca o violão e tem a voz muito afinada é o estranho, o lacônico Joven Alejandro, que além de músico
é compositor. O que ocupa a cadeira de vime
e manipula um tambor e uns pratinhos, o menos artista, o mais musculoso dos três, é Bolas, um ex-chofer de caminhão.
- Não me abracem assim, não tenham medo - disse Lituma. - Não estou fazendo nada, estão vendo? Só estou procurando por ela.
Que há de mau em querer vê-la? Soltem-me.
- Já deve ter ido embora, priminho - disse o Mono.
- Que importância tem? Pense noutra coisa. Vamos nos divertir, festejar sua volta.
122
- Não estou fazendo nada - repetiu Lituma. - Só me lembrando. Por que me abraçam assim, invencíveis?
Estavam à entrada da pista de danças, sob a espessa luz derramada por três lâmpadas envoltas em celofane azul, verde e violeta,
diante de uma comprimida massa de
casais. Grupos imprecisos abarrotavam os cantos e deles vinham vozes, gargalhadas, batidas de copos. Uma fumaça imóvel,
transparente, flutuava entre o teto e as
cabeças dos dançarinos, e cheirava a cerveja, suores e fumo negro. Lituma se balançava sem sair do lugar, Josefino segurava-o
sempre pelo braço, mas os León já o
haviam soltado.
-- Qual foi a mesa, Josefino? Aquela?
- Aquela mesma, irmão. Mas já passou, você agora começa outra vida, esqueça.
- Ande, cumprimente o harpista, primo - disse o Mono. - E ao Joven, ao Bolas, que sempre se lembram de você com carinho.
- Mas não a vejo - disse Lituma. - Por que se esconde de mim, não vou fazer nada. Só vou olhar para ela.
- Eu me encarrego disso, Lituma - disse Josefino.
- Palavra que a trago. Mas você tem que cumprir sua palavra: o passado passou. Ande, vá falar com o velho. Eu vou buscá-la.
A orquestra tinha deixado de tocar, os pares da pista eram agora uma massa compacta, imóvel e balbuciante. Alguém discutia
aos gritos junto do bar. Lituma caminhou
para os músicos, tropeçando, Dom Anselmo da minha alma, com os braços abertos, velho, harpista, escoltado pelos León, não
se lembra mais de mim?
- Ele não o vê, primo - disse José. - Diga quem é você. Adivinhe, Dom Anselmo.
- Que é isso? - a Chunga se levantou de um salto e a cadeira de balanço continuou se mexendo. - O sargento? Você o trouxe?
- Não teve jeito, Chunga - disse Josefino. - Chegou hoje mesmo e ficou teimando, não pudemos segurá-lo. Mas já sabe e não
deu a menor bola.
Lituma estava nos braços de Dom Anselmo, o Joven e o Bolas davam-lhe tapas nas costas, os três falavam ao mesmo tempo e
podia-se ouvi-los do bar, excitados, surpresos,
comovidos. O Mono sentara-se diante dos pratinhos, fazia-os tilintar, e José examinava a harpa.
- Ou chamo a polícia - disse a Chunga. - Leve-o agora mesmo.
123
- Está embriagadíssimo, Chunga, mal pode caminhar, não está vendo? - disse Josefino. - Nós cuidamos dele. Não haverá nenhum
problema, palavra.
- Vocês são a minha desgraça - disse a Chunga. - Você sobretudo,
Josefino. Mas hoje não vai se repetir o que houve na última vez, juro
que chamo a polícia. - Nenhum problema, Chunguita - disse Josefino. -
Palavra. A selvática está lá em cima? - Onde poderia estar? Disse a
Chunga. - Mas se houver problema, puta que o pariu, você vai ver.
124


II.


- Aqui me sinto bem, Dom Adrián - disse o sargento. - Assim são as noites da minha terra. Mornas e iluminadas.
- É que não há nada como a selva - disse Nieves.
- O Paredes esteve no ano passado na serra e voltou dizendo que lá é triste, nem uma árvore, só pedras e nuvens.
A lua, muito alta, iluminava o terraço, e no céu e no rio havia muitas estrelas; atrás da mata, suave muro de sombras, os
contrafortes da cordilheira eram uns molhes
violáceos. Ao pé da cabana, entre juncos e samambaias, chapinhavam as rãs e, dentro, ouvia-se a voz de Lalita, o crepitar
do fogão. Na chácara, os cães ladravam
alto: brigavam pelos ratos, sargento, e como os caçavam, queria que visse. Ficavam debaixo das bananeiras, fazendo-se de
adormecidos e, quando um rato se aproximava,
bum, no cangote. O prático os ensinara.
- Em Cajamarca', o povo come cobaias - disse o sargento. - Servem com unhas, olhinhos e bigodes. São igualzinhas aos ratos.
- Uma vez, Lalita e eu fizemos uma viagem muito longa, pela mata - disse Nieves. - Tivemos que comer ratos. À carne cheira
mal, mas é molinha e branca como a do
peixe. O Aquilino se intoxicou, quase o perdemos.
- Chama-se Aquilino o maiorzinho? - perguntou o sargento. - O que tem olhinhos de chinês?
- Esse mesmo, sargento - disse Nieves. - E na sua terra há muitos pratos típicos?
' Departamento ao norte do Peru.
125
O sargento levantou a cabeça, ah, Dom Adrián, ficou uns segundos extasiado, se entrasse em uma picantería mangache e provasse
um assado de cabrito. Morreria de
prazer, palavra, nada no mundo podia se comparar, e o prático Nieves concordou: nada como a terra da gente. Sargento, não
tinha, às vezes, vontade de voltar a Piura?
Sim, todos os dias, mas a gente não faz tudo o que quer quando é pobre, Dom Adrián: e ele, nascera aqui, em Santa Maria
de Nieva?
- Mais embaixo - disse o prático. - O Marañón é muito largo lá, e com a névoa não se vê a outra margem. Mas já me acostumei
em Nieva.
- Já está pronta a comida - disse Lalita, da janela. Seus cabelos soltos caíam em cascata sobre o peitoril, e seus braços
fortes pareciam molhados. - Quer comer
aí fora, sargento?
- Gostaria, se não for incômodo - disse o sargento.
- Em sua casa me sinto como na minha terra, senhora. Só que o nosso rio é mais estreitinho e nem sequer tem água durante
todo o ano. Em vez de árvores, tem arcais.
- Não se parece em nada, então - riu Lalita. - Mas acredito que Piura é tão linda como aqui.
- Quer dizer que tem o mesmo calorzinho, os mesmos ruídos - disse Nieves. - A terra não significa nada para as mulheres,
sargento.
- Foi de brincadeira - disse Lalita. - Mas o senhor não se incomodou, não é, sargento?
Que idéia, gostava de brincadeiras, faziam com que ganhasse intimidade e, a propósito, a senhora é de Iquitos, não é verdade?
Lalita olhou Nieves, de Iquitos? e,
por um instante, mostrou seu rosto: pele metálica, suor, espinhas. Parecera ao sargento pela maneira de falar, senhora.
- Saiu de lá faz muitos anos - disse Nieves. - Estranho que notasse o sotaque dela.
- É que tenho um ouvido de seda, como todos os mangaches - disse o sargento. - Eu cantava muito bem quando rapaz, senhora.
Lalita tinha sabido que os do norte tocavam bem violão e que tinham bom coração, verdade? e o sargento, claro: nenhuma mulher
resistia às canções de sua terra,
senhora. Em Piura, quando um homem se enamorava, ia buscar os amigos, todos levavam violões e a moça caía à força de serenatas.
Havia grandes músicos, senhora, ele
conhecia muitos, um velho que tocava harpa, uma maravilha, um compositor
de valsas,
126
e Adrián Nieves apontou o interior da cabana para Lalita; e ela, não vai sair? Lalita encolheu os ombros:
- Tem vergonha, não quer sair - disse. - Não me ouve. Bonifácia é como um veadinho, sargento, por qualquer coisa levanta
as orelhas e se assusta.
- Que ao menos venha dar boa-noite ao sargento disse Nieves.
- Deixem-na - disse o sargento. - Não deve sair se não tem vontade.
- Não se pode mudar de vida tão depressa - disse Lalita. -- Só esteve entre mulheres, a coitada tem medo dos homens. Diz
que são como víboras, isso é o que as madrezinhas
devem ter ensinado a ela. Agora foi se esconder na chácara.
- Têm medo do homem até que o provam - disse Nieves. - Então mudam, ficam devoradoras.
Lalita se meteu na cabana e, um momento depois, sua voz voltou lá de dentro, nada tinha a ver com isso, ligeiramente aborrecida,
nunca tivera medo dos homens e
não era devoradora, para quem dizia isso, Adrián? O prático riu às gargalhadas, e se virou para o sargento: Lalita era uma
boa mulher, mas, é verdade, tinha o seu
gênio. Pequeno, muito magro, de pele clara e olhos rasgados e vivos, Aquilino veio ao terraço, boa noite, trazia a lamparina
porque estava escuro, e colocou-a sobre
o parapeito. Atrás dele, outros dois meninos, calças curtas, cabelos finos, pés descalços, carregavam uma mesinha. O sargento
chamou-os e, enquanto fazia cosquinhas
e ria com eles, Lalita e Nieves trouxeram frutas, peixes defumados, mandioca, que boa cara tinha tudo isso, senhora, umas
garrafas de anis. O prático distribuiu
porções de comida aos três meninos, que saíram em direção à escadinha da chácara: suas crias são muito bonitas, Dom Adrián,
assim chamavam as crianças em Piura,
senhora, e as crianças, em geral, agradavam ao sargento.
- Saúde, sargento - disse Nieves. - Pelo prazer de tê-lo aqui.
- Bonifácia se assusta com tudo, mas é muito trabalhadora - disse Lalita. - Ajuda-me na chácara e sabe cozinhar. E costura
muito bem. Viu as calcinhas dos meninos?
Ela é que fez, sargento.
- Mas você tem que aconselhá-la - disse o prático.
- Assim, tão tímida, nunca encontrará marido. O senhor não sabe como é calada, sargento, só abre a boca quando a gente pergunta
alguma coisa a ela.
127
- Isso me parece bom - disse o sargento. - Eu não gosto das tagarelas.
- Então vai gostar muito de Bonifácia - disse Lalita.
- Pode passar a vida sem dizer um ai.
- vou contar um segredo ao senhor, sargento - disse Nieves. - Lalita quer casá-lo com Bonifácia. É o que ela vem me dizendo,
por isso fez-me convidá-lo. Cuide-se,
ainda está em tempo.
O sargento assumiu uma expressão entre risonha e nostálgica, senhora, ele estivera uma vez por se casar. Acabava de entrar
na Guarda Civil e encontrou uma mulher
que gostava dele, e ele também dela, um pouquinho. Como se chamava? Lira, que houve? nada, senhora, transferiram-no de Piura
: Lira não quis acompanhá-lo, e assim
acabou o romance.
- Bonifácia iria com seu companheiro a qualquer parte - disse Lalita. - Na selva, as mulheres são assim, nós não impomos
condições. Tem que se casar com alguma
daqui, sargento.
- O senhor está vendo, quando Lalita mete uma coisa na cabeça não pára até que a consiga - disse Nieves. - As loretanas
são umas bandidas, sargento.
- Que simpáticos são vocês - disse o sargento. Em Santa Maria de Nieva dizem que os Nieves são intratáveis, nunca se ligam
a ninguém. E, no entanto, senhora, há
tanto tempo aqui, vocês são os primeiros que me convidam à sua casa.
- É que ninguém gosta de guardas, sargento - disse Lalita. - Não vê como são abusados? Eles desgraçam as moças, embarrigam
as que se apaixonam e dão o fora.
- Então por que você quer casar Bonifácia com o sargento? - perguntou Nieves. - Uma coisa não bate com a outra.
- Por acaso você não disse que o sargento é diferente?
- disse Lalita. - Mas quem sabe se é verdade?
- É verdade, senhora - disse o sargento. - Sou um homem direito, um bom cristão, como dizem aqui. E um amigo como não existem
dois, vai ver. Estou muito agradecido,
Dom Adrián, de verdade, porque me sinto muito contente em sua casa.
- Pode voltar quando quiser - disse Nieves. - Venha visitar Bonifácia. Mas não se meta com Lalita, porque sou muito ciumento.
128
- E com razão, Dom Adrián - disse o sargento. - A senhora é tão bonitona, que eu também seria ciumento.
- Muito gentil de sua parte, sargento - disse Lalita.
- Mas sei que diz por dizer, já não sou bonitona. Antes sim, quando mais moça.
- Mas a senhora é moça ainda - protestou o sargento.
- Eu não confio - disse Nieves. - Será melhor que não venha quando eu não estiver, sargento.
Na chácara, os cães continuavam ladrando e, de quando em quando, ouviam-se as vozes dos meninos. Os insetos revoavam em
volta da lamparina de óleo, os Nieves e o
sargento bebiam, conversavam, brincavam; prático Nieves! os três viraram a cabeça para a ramaria da margem: a noite ocultava
o atalho que subia até Santa Maria de
Nieva. Prático Nieves! E o sargento: era o Pesado, que chato, que é que há, por que vinha incomodá-lo a estas horas, Dom
Adrián. Os três meninos invadiram o terraço.
Aquilino caminhou até o prático e falou em voz baixa: que subisse.
- Parece que temos de viajar, sargento - disse o prático Nieves.
- Deve estar bêbado - disse o sargento. - Não faça caso do Pesado, quando bebe, diz coisas estranhas.
A escadinha rangeu, atrás de Aquilino surgiu a grossa silhueta do Pesado, puxa, meu sargento, até que enfim o encontrava,
o tenente e os rapazes o estavam procurando
por toda parte, e que tivessem boa noite.
- Estou de folga - grunhiu o sargento. - Que querem comigo?
- Encontraram as pupilas - disse o Pesado. - Um grupo de mateiros, perto de um acampamento, rio acima. Faz umas duas horas
chegou um próprio à missão. As madres
acordaram todo mundo, sargento. Parece que uma das crianças está com febre.
O Pesado estava em mangas de camisa, abanava-se com o quepe, e agora Lalita acossava-o com perguntas. O prático e o sargento
ficaram de pé, sim, que brincadeira,
senhora, deviam ir buscá-las agora mesmo. Eles queriam esperar até amanhã, mas as freirinhas convenceram Dom Fábio e o tenente,
e o sargento, viajar de noite? Sim,
meu sargento, as madres tinham medo de que os mateiros passassem pelas armas as maiorzinhas.
- As madrezinhas têm razão - disse Lalita. - As coitadas, tantos dias na mata. Apresse-se, Adrián, ande.
- Que vamos fazer? - perguntou o prático.
129
- Beba um trago com o sargento, enquanto vou pôr gasolina na lancha.
- Vai me cair bem, obrigado - disse o Pesado. Que vida nos dão, não é verdade, sargento? Desculpe ter interrompido no meio
da comida.
- Encontraram todas? - perguntou uma voz, vinda do tabique. Eles olharam: uma cabeleira curta, um perfil confuso, um busto
de mulher recortado junto à janela. A
luz da lamparina chegava fracamente até ali.
- Menos duas. - disse o Pesado, voltando-se para a janela. - Menos aquelas de Chicais.
- Por que não as trouxeram em vez de mandar avisar?
- perguntou Lalita. - Ainda bem que as encontraram, graças a Deus que as encontraram.
Mas não tinham como trazê-las, senhora, e o Pesado e o sargento avançavam as cabeças em direção ao tabique, mas a silhueta
se movera e agora só aparecia um fragmento
de rosto, uma sombra de cabelos. Do outro lado do parapeito Adrián Nieves dava ordens e ouviam-se os meninos agitando a
água, chapinhando, idas e vindas entre as
samambaias. Lalita serviu anis e eles beberam à sua saúde, meu sargento, e o sargento, à saúde da senhora, antes, seu mal-educado.
- Já sei que o tenente me encarregou do trabalhinho
- disse o sargento. - Imagino que não irei só, não é, buscar aquelas crianças? quem me acompanha?
- Chiquito e eu - disse o Pesado. - E vai também uma freirinha.
- Madre Angélica? - disse a voz do tabique, e eles voltaram a torcer os pescoços.
-- Certamente, porque Madre Angélica entende de medicina - disse o Pesado. - Para curar a doentinha.
- Dêem a ela quinino - disse Lalita. - Mas uma viagem só não chega, não cabem todas na lancha, vão ter que fazer duas ou
três.
- Sorte que há lua - disse o prático Nieves, da escadinha. - Em meia hora estarei pronto.
- Vá avisar o tenente que já vamos, Pesado - disse o sargento.
O Pesado fez que sim, deu boa-noite e saiu pelo terraço. Ao passar junto à janela, a vaga silhueta recuou, desapareceu e
reapareceu quando ele já descia a escadinha,
assobiando.
- Venha, Bonifácia - disse Lalita. - Vou apresentar você ao sargento.
130
Lalita pegou o sargento pelo braço, levou-o até a porta e, segundos depois, surgiu um contorno de mulher na entrada. O sargento
ficou com a mão estendida, observando,
confuso, umas chispinhas imóveis, até que uma pequena forma sombria cortou a penumbra, uns dedos roçaram os seus, muito
prazer, e escaparam: às suas ordens, senhorita.
Lalita
sorria.
- Pensei que ele era como você - disse Fushía.
- E está vendo, velho, que terrível engano.
- A mim ele também enganou um pouco - disseAquilino. - Não pensava que Adrián Nieves fosse capaz disso. Parecia tão despreocupado
com tudo. Ninguém viu como começou
a coisa?
- Ninguém - disse Fushía -, nem Pantacha, nem Jum, nem os huambisas. Maldita hora em que aqueles cachorros nasceram, velho.
- O ódio já está outra vez em sua boca, Fushía disse Aquilino.
E então Nieves a viu, encurralada entre a jarra de barro e o tabique: grande, felpuda, negríssima. Levantou-se muito devagar
da esteira, sua mão procurou, roupas,
uns sapatos de borracha, uma corda, porongos, uma cesta de tucum, nada que servisse. Ela continuava no canto, encolhida,
sem dúvida espiava-o por debaixo de suas
patas finas e retintas, refletidas como uma trepadeira na superfície avermelhada da jarra. Deu um passo, desembainhou o
machete, e ela não tinha fugido, continuava
espreitando, certamente percebia cada movimento seu com os olhinhos perversos, a pança vermelha latejando. Nas pontas dos
pés caminhou até o canto, ela se encolheu,
com súbita angústia, ele golpeou e houve como que estalidos de folhas caindo. Em seguida, o tapete ficou com um risco e
manchinhas negras, vermelhas; as patas
estavam intactas, seu pêlo era negro, comprido, sedoso. Nieves embainhou o machete e, em vez de voltar à esteira, permaneceu
junto à janela, fumando. Recebia na
cara o sopro e os rumores da selva, com a brasa do cigarro tentava queimar as asas dos morcegos que rondavam pela tela metálica.
- Nunca ficaram sozinhos na ilha? - perguntou Aquilino.
- Uma vez, porque aquele cachorro adoeceu - disse Fushía.
131
- Mas ainda no começo. Naquele tempo não pôde começar a história, não se atreveriam, tinham medo de mim.
- Há alguma coisa que assuste mais que o inferno? perguntou Aquilino. - E, mesmo assim, a gente faz maldades. O medo não
freia o homem em todas as coisas, Fushía.
- Ninguém viu o inferno - disse Fushía. - Mas eles me viam o tempo todo.
- Mesmo assim, quando um cristão e uma cristã se querem, não há quem os segure - disse Aquilino. - O corpo queima, como
se tivesse chamas dentro. Você, por acaso,
nunca sentiu isso?
- Nenhuma mulher me fez sentir isso -- disse Fushía.
- Mas agora sim, velho, agora sim. É como se tivesse brasas sob a pele, velho.
À direita, entre as árvores, Nieves via fogueiras, instantâneos perfis de huambisas; à esquerda, ao contrário, onde Jum
armara sua cabana, tudo era escuridão. No
alto, contra um céu anil, agitavam-se os penachos das lupunas e a lua branqueava o atalho que, depois de descer em uma ladeira
de arbustos e de samambaias, contornava
o tanque das tartarugas e continuava até a praiazinha; a laguna devia estar azul, quieta, deserta. As águas do tanque continuavam
baixando? Já estariam no seco as
estacas, a rede? Logo apareceriam as tartarugas encalhadas na areia, seus rugosos pescoços estirando-se para o céu, os olhos
cheios de asfixia e remelas, e seria
preciso fazer saltar suas carapaças com o fio do machete, cortar a carne branca em quatro pedaços e salgá-la antes que o
sol a estragasse, a umidade. Nieves tirou
o cigarro e ia soprar a lamparina quando bateram na parede. Levantou a tranca da porta e Lalita entrou, enrolada em uma
túnica huambisa, os cabelos até a cintura,
descalça.
- Se tivesse que escolher um dos dois para me vingar, seria ela, Aquilino - disse Fushía -, aquela cadela. Porque foi ela
que começou, quando me viu doente.
- Você a tratava mal, batia nela, e depois as mulheres têm orgulho, Fushía - disse Aquilino. - Que cristã teria agüentado?
A cada viagem você trazia uma mulher,
e obrigava-a a engoli-las.
- Você acha que ela tinha raiva das selvagens? - perguntou Fushía. - Que bobagem, velho. A cadela estava corrida porque
eu não podia mais com ela.
- Melhor que não fale disso, homem - disse Aquilino. - Já sei que você fica triste.
- Mas começou assim, porque não podia mais satisfazer Lalita
132
- disse Fushía. - Você vê que desgraça, Aquilino, que coisa horrível.
- Não o acordei, não é? - perguntou Lalita, com voz sonolenta.
- Não, não me acordou - disse Nieves. - Boa noite. Que é que manda?
Trancou a porta, abotoou as calças e cruzou os braços sobre o torso nu, mas logo descruzou-os e continuou de pé, indeciso.
Por fim, apontou para a jarra de barro:
uma caranguejeira tinha-se metido ali e acabava de matá-la. Fazia só uma semana que tapara os buracos, Lalita sentou-se
na esteira, mas a cada dia as caranguejeiras
abriam outros.
- É porque têm fome - disse Lalita -, é assim nesta época. Uma vez acordei e não podia mexer a perna, só vendo. Tinha uma
manchinha, que depois inchou. Os huambisas
punham minha perna sobre um braseiro para que suasse. Ficou a marca.
Suas mãos desceram até a roda da túnica, levantaram-na, apareceram as coxas, lisas, cor de mate, firmes, e uma cicatriz
como uma pequena cobrinha.
- Por que se assusta? - perguntou Lalita. - Por que se vira, diga?
- Não me assusto - disse Nieves. - Só que está nua e eu sou homem.
Lalita riu e soltou a túnica; o pé direito brincava com um porongo, acariciava-o distraidamente com o peito, os dedinhos,
o calcanhar.
- Cadela, puta, as piores coisas, o que você quiser disse Aquilino. - Mas eu tenho amizade por Lalita e não me importa.
É como minha filha.
- Uma mulher que faz isso porque seu homem está morrendo é pior que cadela, pior que puta - disse Fushía.
- Não existe palavra para dizer o que é.
- Morrer? Em San Pablo, a maioria morre de velho, não de doença, Fushía - disse Aquilino.
- Você não diz isso para me consolar, é porque não gosta quando eu a insulto - disse Fushía.
- Ele disse à senhora na minha frente - sussurrou Nieves. - Outra vez sem nada debaixo da túnica e faço você engolir pelos
olhos, não se lembra mais?
- Outras vezes você diz, dou você aos huambisas, arranco seus olhos - disse Lalita. - Ao Pantacha, diz a toda hora, eu mato
você, você a está espiando.
133
Quando ameaça não faz nada, a raiva vai embora com as palavras. O senhor tem pena quando ele bate em mim, não é assim?
- E também raiva - Nieves bateu lentamente na tranca da porta -, sobretudo quando a insulta.
Quando estavam sozinhos era ainda pior, porra, você está perdendo os dentes, porra, tem a cara toda furada, porra, seu corpo
não é mais como antes, porra, já está
de regras, logo você ficará como as velhas huambisas, porra, e tudo o que lhe dava na veneta; tinha pena? e Nieves, cale-se.
- Mas acreditava em você, e olhe que o conhecia disse Aquilino. - Eu chegava à ilha e Lalita, ele logo me tirará daqui,
se este ano der muito caucho iremos para
o Equador e nos casaremos. Seja bonzinho, Dom Aquilino, venda a mercadoria a bom preço. Pobre Lalita.
- Não fugiu antes porque esperava que eu ficasse rico
- disse Fushía. - Que burra, velho. Não me casei com ela quando era novinha e sem espinhas, e pensava que ia casar quando
ela não esquentasse mais ninguém.
- Ela esquentou Adrián Nieves - disse Aquilino. Senão, não a teria levado.
- E elas, o patrão também vai levá-las para o Equador? - perguntou Nieves. - Também vai se casar com elas?
- Sua mulher sou eu só - disse Lalita. - As outras são criadas.
- Diga o que disser, eu sei que isso dói - disse Nieves. - Não teria alma se não se importasse com o fato de ele pôr outras
mulheres em sua casa.
- Não estão na minha casa - disse Lalita. - Dormem no curral com os animais.
- Mas ele as fode na sua frente - disse Nieves. Não se faça de desentendida.
Voltou-se para olhá-la e Lalita se aproximara da esteira, tinha os joelhos juntos, os olhos baixos e Nieves não queria ofender,
gaguejou e olhou de novo pela janela,
tinha ficado com raiva quando disse que ia com o patrão para o Equador, o céu cor de anil, as fogueiras, os pirilampos faiscantes
entre as samambaias: pedia perdão,
ele não queria ofender, e Lalita levantou os olhos:
- Por acaso ele não as dá a você e ao Pantacha quando enjoa delas? - perguntou. - Você faz o mesmo que ele.
- Eu vivo sozinho - balbuciou Nieves. - Um cristão precisa andar com mulheres, por que me compara com o Pantacha, e, depois,
gosto que me trate por você.
134
- Só no começo, se aproveitando das minhas viagens
- disse Fushía. - Ela as arranhava, deixou sangrando uma das achuales. Depois se acostumou, e eram como suas amigas. Ensinava
espanhol, distraía-se com elas. Não
é como você pensa, velho.
- E ainda se queixa - disse Aquilino. - Todos os cristãos sonham com isso que você teve. Quantos você conhece que trocaram
assim de mulher, Fushía?
- Mas eram selvagens - disse Fushía -, selvagens, Aquilino, aguarunas, achuales, shapras, puro lixo, homem.
- E, além disso, são como animaizinhos - disse Lalita -, se apegam a mim. Sinto pena do medo que elas têm dos huambisas.
Se você fosse o patrão, seria como ele,
até me insultaria.
- Por acaso me conhece o bastante para dizer isso? perguntou Nieves. - Eu não faria isso à minha companheira. Menos ainda
se fosse a senhora.
- O corpo delas estraga logo aqui - disse Fushía.
- Foi por minha culpa que Lalita envelheceu? E depois teria sido burrice desperdiçar a ocasião.
- Por isso você as roubava tão novas - disse Aquilino. - Para que fossem rijas, não?
- Não só por isso - disse Fushía -, eu gosto das virgenzinhas, como qualquer homem. Só que esses pagãos cachorros não as
deixam crescer sãs, as maiorzinhas, já as
violaram; a shapra foi a única inteira que encontrei.
- O que me dói é lembrar como eu era em Iquitos disse Lalita. - Os dentes brancos, iguaizinhos, e nenhuma mancha na cara.
- Gosta de imaginar coisas para sofrer - disse Nieves. - Por que é que o patrão não deixa que os huambisas se aproximem
daqui? Porque todos a comem com os olhos
quando a senhora passa.
- Nem o Pantacha, nem você - disse Lalita. - Mas não é porque seja bonita, é porque sou a única cristã.
- Sempre fui delicado com a senhora - disse Nieves.
- Por que me compara com o Pantacha?
- Você é melhor que o Pantacha - disse Lalita. Por isso vim visitá-lo. Já não tem febre?
- Você não se lembra de que não desci ao cais para recebê-lo? - perguntou Fushía. - Que você veio e me encontrou na cabana
do caucho? Foi naquela vez, velho.
- Se me lembro - disse Aquilino.
135
- Você parecia estar dormindo acordado. Pensei que o Pantacha lhe tivesse dado um cozimento.
- E não se lembra que me embriaguei com o anis que você trouxe? - perguntou Fushía.
- Também me lembro - disse Aquilino. - Você queria queimar as cabanas dos huambisas. Parecia o Diabo, tivemos que amarrá-lo.
- É que tentei fodê-la durante uns dez dias e não podia com a cadela - disse Fushía -, nem Lalita, nem as selvagens, velho,
coisa de ficar louco, velho. Chorava
sozinho, velho, queria me matar, qualquer coisa, dez dias seguidos e não podia fodê-la, Aquilino.
- Não chore, Fushía - disse Aquilino. - Por que você não me contou o que estava acontecendo? Talvez o tivesse curado, então.
Teríamos ido a Bagua, o médico lhe daria
umas injeções.
- E as pernas ficavam dormentes, velho - disse Fushía -, pegava nelas e nada, encostava fósforos acesos, e pareciam mortas,
velho.
Não se amargure com essas coisas tristes - disse
Aquilino. - Olhe, aproxime-se da borda, olhe quantos peixinhos voadores, desses que têm eletricidade. Olhe como nos seguem,
que bonitas aparecem as chispinhas no
ar e debaixo da água.
- E depois as equimoses, velho - disse Fushía -, e não podia mais tirar a roupa diante daquela cadela. Ter que me esconder
todo o dia, toda a noite, e não ter a
quem contar, Aquilino, engolir aquela desgraça sozinho.
E nisso arranharam o tabique e Lalita se pôs de pé. Foi até a janela e, o rosto encostado na tela, começou a grunhir. Do
lado de fora, alguém grunhia também suavemente.
O Aquilino está doentinho - disse Lalita -, coitadinho, vomita tudo o que come. vou vê-lo. Se amanhã o patrão ainda não
tiver voltado, virei fazer sua comida.
- Tomara que não volte - disse Nieves. - Não preciso que a senhora cozinhe, fico contente que venha me ver.
Se eu o trato por você, pode me tratar também por
você - disse Lalita. - Pelo menos quando não houver mais ninguém.
Poderia pegá-los aos montes se tivesse uma rede,
Fushía - disse Aquilino. - Você quer que o ajude a se levantar para ver?
E depois os pés - disse Fushía. - Caminhar
mancando, velho, e então descascar como as serpentes,
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mas nelas sai outra pele, em mim não, velho, eu estava que era pura chaga, Aquilino; não é justo, não é justo.
- Já sei que não é justo - disse Aquilino. - Mas venha, homem, olhe que lindos os peixinhos elétricos.
Todos os dias, Juana Baura e Antônia deixavam a Gallinacera à mesma hora, faziam sempre o mesmo caminho. Duas quadras retas,
poeirentas, e estavam no mercado: as
vendedoras começavam a estender seus cobertores ao pé das algarobeiras, a ordenar suas mercadorias. À altura da loja Lãs
Maravillas - pentes, perfumes, blusas, saias,
cintas e brincos - dobravam à esquerda e, duzentos metros adiante, aparecia a Plaza de Armas, uma compacta ronda de palmeiras
e de tamarindeiros. Alcançavam-na pela
esquina oposta ao La Estrella del Norte. Durante o trajeto, uma das mãos de Juana Baura cumprimentava os conhecidos, a outra
ia no braço de Antônia. Ao chegar à
praça, Juana examinava os bancos de vime e escolhia o mais sombreado para a jovem. Se a moça permanecia impassível, a lavadeira
retornava a casa, caminhando suavemente,
desatava o burro, reunia a roupa por lavar e empreendia a marcha para o rio. Se, pelo contrário, as mãos de Antônia agarravam
as suas com ansiedade, Juana sentava-se
a seu lado e acalmava-a com carinhos. Repetia sua silenciosa interrogação até que a moça a deixasse partir. Voltava para
buscá-la ao meio-dia, a roupa já lavada,
então, às vezes, Antônia retornava à Gallinacera montada no burro. Não era raro que Juana Baura encontrasse a jovem passeando
à volta do coreto com uma vizinha
carinhosa, não era raro que um engraxate, um mendigo ou Jacinto lhe dissessem: levaram-na à casa do fulano, à igreja, ao
Malecón. Então Juana Baura voltava só à
Gallinacera e Antônia aparecia ao entardecer, pela mão de uma criada, de um guarda caridoso.
Naquele dia saíram mais cedo, Juana Baura devia levar um uniforme de parada ao Quartel Grau. O mercado estava deserto, uns
urubus dormitavam sobre o telhado de Las
Maravillas. Os varredores ainda não tinham passado e o lixo e as poças desprendiam mau cheiro. Na solitária Plaza de Armas
corria uma brisa tímida e o sol aparecia
em um céu sem nuvens. Já não caía areia. Juana Baura limpou o banco com sua saia, achou as mãos da moça sossegadas, bateu
de leve no seu rosto e partiu. No caminho
de volta, encontrou a mulher de Hermógenes Leandro, o do Camal,
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e juntas continuaram andando enquanto o sol crescia no céu, já alanceava os tetos altos da cidade. Juana ia encurvada, esfregando,
de quando em quando, a cintura,
e sua amiga,
você está doente? e ela, tenho cubras há muito tempo, sobretudo de manhã. Falavam de enfermidades e remédios, da velhice,
do quanto é trabalhosa a vida. Em seguida,
Juana se despediu, entrou em casa, saiu puxando o burro carregado de roupa suja e, debaixo do braço, o uniforme enrolado
em velhos números de Ecos y Notícias. Foi
ao Quartel Grau bordeando o areal e a terra estava quente, rápidas e inesperadas lagartixas corriam entre seus pés. Um soldado
veio ao seu encontro, o tenente ia
se zangar, por que não trouxera o uniforme mais cedo. Tomou-lhe o pacote, pagou e Juana foi então para o rio. Não até o
Viejo Puente, onde costumava lavar, mas a
uma praiazinha redonda, acima do Camal, onde encontrou duas outras lavadeiras. E as três estiveram toda a manhã ajoelhadas
na água, esfregando roupa e conversando.
Juana terminou primeiro, partiu, e as ruas agora, deslumbrantes sob um sol vertical, estavam repletas de moradores e forasteiros.
Não estava na praça, nem os mendigos
nem Jacinto a tinham visto, e Juana Baura voltou à Gallinacera; suas mãos batiam no animal e esfregavam a cintura alternadamente.
Começou a estender a roupa, em
meio ao trabalho foi se deitar no seu colchão de palha. Quando abriu os olhos, já caía areia. Resmungando, saiu para o quintal:
algumas peças se haviam sujado.
Correu o toldo que protegia as cordas, terminou de pendurar a roupa, voltou ao quarto, procurou o remédio sob o colchão.
Empapou um pano com o líquido, levantou
a saia, esfregou vigorosamente os quadris e o ventre. O remédio cheirava a mijo e a vômitos, Juana esperou que a pele secasse
tapando o nariz. Preparou um guisado
e quando estava comendo bateram à porta. Não era Antônia, mas uma criada com uma cesta de roupa. De pé, à entrada, conversaram.
Chovia suavemente, não se viam os
grãozinhos de areia, mas podia-se senti-los no rosto e nos braços como perninhas de aranha. Juana falava de cãibras, de
maus remédios, e a criada protesta, que lhe
dê outro ou devolva o dinheiro. Logo se foi, colada ao muro, sob os beirais. Só, sentada no colchão, Juana continuava a
falar, irei domingo a seu rancho, pensa que
porque sou velha você vai me enganar? seu remédio faz tremer minha cintura, ladrão. Então se deitou e, ao despertar, escurecera.
Acendeu uma vela, Antônia não tinha
chegado. Saiu ao quintal, o burro endireitou as orelhas, zurrou. Juana apanhou a manta,
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atirou-a sobre os ombros já na rua: estava escuro, pelas janelas da Gallinacera viam-se castiçais, lampiões, o fogo. Caminhava
muito rápido, tinha os cabelos revoltos
e perto do mercado, de uma porta, alguém lhe gritou: alma do outro mundo! Ela apurava o passo, ou você me dá outro remédio
para este sono que eu tenho a toda hora
ou me devolve o dinheiro. Havia pouca gente na praça. Aproximou-se de todos e ninguém sabia. A areia descia agora densa,
visível, e Juana cobriu a boca e o nariz.
Percorreu muitas ruas, bateu em muitas portas, repetiu vinte vezes a mesma pergunta, e quando voltou à Plaza de Armas corria
com dificuldade, apoiava-se nas paredes.
Dois homens, com chapéus de palha, conversavam num banco. Ela perguntou, onde está Antônia, e o Doutor Pedro Zevallos, boa
noite, Dona Juana, que faz na rua a estas
horas? E o outro, com voz de forasteiro, há tanta areia que vai nos quebrar a cabeça. O Doutor Zevallos tirou o chapéu,
deu-o a Juana e ela o pôs; era grande, escondia
suas orelhas. O doutor disse, o cansaço não a deixa falar, sente-se um pouco, Dona Juana, conte-nos, e ela, onde está Antônia.
Os dois homens se olharam e o outro
disse que seria bom levá-la para casa, e o doutor, sim, eu sei onde é, é pela Gallinacera. Tomaram-na pelos braços, levaram-na
quase no ar e, sob o chapéu, Juana
Baura rugia, aquela que é cega, viram-na? e o Doutor Zevallos, fique tranqüila, Dona Juana, logo que chegarmos a senhora
nos conta, e o outro, está cheirando a quê?
e o Doutor Zevallos, a remédio de curandeiro, pobre velha.
Júlio Reátegui limpa a testa, olha o intérprete, desrespeitara-o e isso não se fazia e custava caro: traduza isso para ele.
A clareira de Urakusa é pequena e triangular,
a selva abraça-a de perto, ramas e cipós balançam sobre as cabanas suspensas por pilares de palmeiras e terminadas em circunferências
achatadas como rabos de pato:
o intérprete ruge e gesticula, Jum escuta atentamente. Há umas vinte cabanas, idênticas: tetos de jarina, tabiques de lascas
de juçara ligadas por cipós, escadinhas
toscamente lavradas em troncos. Dois soldados conversam diante da cabana cheia de urakusas prisioneiros, outros levantam
barracas perto do barranco, o Capitão Quiroga
luta contra os pernilongos e a menina permanece quieta junto ao Cabo Roberto Delgado, de quando em quando olha para Jum,
tem os olhos claros e em seu torso novo
já se insinuam duas pequenas corolas escuras.
139
Agora fala Jum, seus lábios roxos disparam ruídos ásperos e saliva, Júlio Reátegui desvia as pernas para evitar aquela chuva,
e o intérprete, cabo roubando, quer
dizer
querendo, que pau, porra, e depois fugindo, fora, nunca mais ficando com canoa, sua canoa mesmo, de Jum, e que o prático
fugindo, não vendo, que se atirou na água,
dizendo, senhor. E o Cabo Delgado dá um passo em direção a Jum: mentira. O Capitão Quiroga pára-o com um gesto: mentira,
senhor, se ele ia ver a família em Bagua,
perderia tempo roubando coisas desses aí? e que poderia roubar, mesmo querendo, meu capitão, não via que miserável era Urakusa?
E o capitão: então não era verdade
que mataram o recruta. Era verdade ou não que se atirou no Marañón? Porra, porque se não estava morto era desertor, e o
cabo cruza os dedos e beija-os: mataram-no,
meu capitão, e sobre o roubo era a maior mentira. Só tinham revistado um pouquinho, mas buscando aquele remédio contra os
pernilongos que ele falara, e esses caras
o amarraram e espancaram, a ele, ao criado, e mataram o prático e enterraram para que ninguém descobrisse, meu capitão.
Júlio Reátegui sorri para a menina e ela
o olha de viés, assustada? curiosa? Veste a tanga aguaruna e seus cabelos abundantes e empoeirados agitam-se suavemente
quando mexe a cabeça; não tem enfeites no
rosto nem nos braços, só nos tornozelos: duas cabaças anãs. E Júlio Reátegui: por que não negociara com Pedro Escabino?
por que não vendeu caucho este ano como
das outras vezes? Que traduzisse isso a ele, e o intérprete grunhe e gesticula. Jum escuta, os braços cruzados, e o governador
faz sinal para que a menina se aproxime,
ela se vira de costas, e o intérprete, senhor, nunca mais, dizendo: Escabino, diabo, que vá embora, fora, nem Urakusa, dizendo,
nem Chicais, nenhum povoado aguaruna,
patrão sacaneando-os, senhor, e Júlio Reátegui, o que iam os aguarunas fazer com o caucho que não queriam vender ao patrão
Escabino? suavemente, olhando sempre
para a menina, e o que com os couros? traduza isso a ele. O intérprete e Jum grunhem, cospem e gesticulam, e agora Júlio
Reátegui observa-os, um pouco voltado para
o urakusa, e a menina dá um passo, olha a testa de Jum: a ferida inchou mas não sangra mais, o olho direito do cacique está
muito inflamado, e Júlio Reátegui, cooperativa?
Essa palavra não existia em aguaruna, filho, tinha dito cooperativa? e o intérprete: ele a disse em espanhol, senhor, e
o Capitão Quiroga, sim, ele a ouvira. Que
embrulhada era essa, Senhor Reátegui? Por que não iam mais negociar com Escabino?
140
De onde tiraram isso de ir vender em Iquitos o caucho, se nunca souberam o que era Iquitos? Júlio Reátegui parece distraído,
tira o capacete, alisa os cabelos, olha
o capitão: fazia
dez anos que Pedro Escabino trazia para eles fazendas, espingardas, facas, capitão, tudo o que necessitaram para entrar
na selva e extrair borracha. Depois Escabino
voltava, recebia o caucho reunido e completava o pagamento com fazendas, comida, o que fazia falta, e este ano também receberam
adiantamentos, mas não quiseram
vender: essa era a história, capitão. Os soldados que levantaram as barracas se aproximaram, um estende a mão e toca na
menina, que dá um pulo, as cabaças se agitam,
ruído de metal, e o capitão: puxa, abuso de confiança, não estava informado, espancavam um militar, roubavam de um civil,
não era de duvidar que, na verdade, tivessem
matado o recruta; e o governador, agarrem-na, que não fuja. Três soldados correm atrás da menina, que é ágil, escorregadia.
Pegam-na no meio da clareira, levam-na
até o governador, que passa a mão no rosto dela: tinha um olhar esperto, e algo gracioso em suas maneiras, não achava, capitão?
era uma pena que a pobre crescesse
aqui, e o oficial: efetivamente, Dom Júlio, e seus olhos eram verdinhos. Era sua filha? que perguntasse isso a Jum, e o
capitão: não tinha nem a barriguinha inchada,
porque isso era horrível nestas crianças, a quantidade de parasitas que engoliam, e o Cabo Roberto Delgado: no vinha e bem-servida,
boa para mascote da companhia,
meu capitão, e os soldados riem. Era sua filha? e o intérprete, não sendo, senhor, nem urakusa, mas aguaruna, nascendo em
Pato Huachana ', senhor, dizendo, e Júlio
Reátegui chama dois soldados: que a levassem às barracas e cuidadinho se bancassem os vivos com ela. Um soldado pega a menina
pelo braço e ela se deixa levar sem
resistir. Júlio Reátegui volta-se para o capitão, que luta de novo contra invisíveis, talvez imaginários inimigos aéreos:
aqui estiveram uns caras que se diziam
professores, capitão. Meteram-se pelas tribos com a história de ensinar espanhol aos pagãos e agora estava vendo o resultado,
davam uma sova num cabo, arruinavam
o negócio de Pedro Escabino. O capitão imaginava o que aconteceria se todos os pagãos decidissem lograr os patrões que fizeram
adiantamentos. O capitão coça o queixo,
gravemente: uma catástrofe econômica? O governador concorda: os que vinham de fora é que traziam problemas, capitão.
' Povoado aguaruna.
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Da outra vez foram uns estrangeiros, uns ingleses, com a história da botânica; meteram-se na selva e levaram sementes da
árvore do caucho, e um dia o mundo se encheu
de
caucho saído das colônias inglesas, mais barato que o peruano e o brasileiro; essa tinha sido a ruína da Amazônia, capitão;
e ele: é verdade, Senhor Reátegui, que
vinham
óperas a Iquitos e que os caucheiros acendiam seus charutos com dinheiro? Júlio Reátegui sorri, seu pai tinha um cozinheiro
para os cachorros, imagine, e o capitão
ri, os soldados riem, mas Jum continua sério, braços cruzados, às vezes espia a cabana abarrotada de urakusas prisioneiros,
e Júlio Reátegui suspira: então se trabalhava
pouco e se ganhava muito, agora tinham que suar sangue para receber umas misérias, e ainda ter que lidar com essa gente,
resolver problemas tão idiotas. O capitão
agora fica sério, Dom Júlio, acreditava nele, a vida era dura para os homens da Amazônia, e Reátegui, a voz bruscamente
severa, ao intérprete: o aguaruna não podia
vender em Iquitos, tinha de cumprir seus compromissos, que aqueles caras que estiveram aqui tinham enganado a todos, que
nada de cooperativas nem de sacanagens.
Patrão Escabino voltaria e negociariam como sempre, traduzindo isso, mas o intérprete, muito rápido, senhor, repetindo melhorzinho;
e o capitão, ele falou devagar,
nada de brincadeiras. Júlio Reátegui não tinha pressa, capitão, faria a vontade dele. O intérprete grunhe e gesticula, Jum
escuta, corre uma brisa ligeira sobre
Urakusa e a ramagem da mata ronrona fracamente, ouve-se um riso: a menina e o soldado estão brincando diante das barracas.
O capitão perde a paciência, até quando?
sacode o ombro de Jum, nem desta vez tinha entendido? queria zombar deles? Jum levanta a cabeça, seu olho bom examina o
governador, sua mão o aponta, sua boca grunhe,
e Júlio Reátegui, o que tinha dito? e o intérprete: insultando, senhor, você Diabo sendo, dizendo, senhor.
Não havia ninguém no corredor, só o ruído no salão, o lampião pendurado no teto tinha celofane azul, e uma luz de amanhecer
banhava o engrouvinhado papel das paredes
e as portas gêmeas. Josefino se aproximou da primeira e escutou, na segunda, na terceira alguém respirava, um catre rangia
levemente, Josefino bateu com os nós
dos dedos e a voz da Selvática, que é? e uma desconhecida voz masculina, que é? Correu até o fundo do corredor, e ali não
estava o amanhecer más o crepúsculo. Permaneceu
imóvel,
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escondido na discreta penumbra e logo uma fechadura rangeu, uma cabeleira negra invadiu a luz azul, uma mão recolheu-a como
a uma cortina, brilharam uns olhos verdes.
Josefino
se mostrou, fez um sinal. Minutos depois saiu um homem em mangas de camisa, que se afundou cantarolando na boca da escada.
Josefino atravessou o corredor e entrou
no quarto: A Selvática abotoava uma blusa amarela.
- Lituma chegou esta tarde - disse Josefino, como se desse uma ordem. - Está lá embaixo, com os León.
Um repentino tremor agitou o corpo da Selvática, suas mãos ficaram quietas, encolhidas entre as casas dos botões. Mas não
se voltou nem falou.
- Não tenha medo - disse Josefino. - Não fará nada a você. Já sabe e não dá a menor bola. Vamos descer juntos.
Ela ainda não disse nada e continua abotoando a blusa, mas agora com extrema lentidão, torcendo desajeitadamente cada botão
antes de enfiá-lo, como se tivesse os
dedos rígidos de frio. Entretanto, todo o seu rosto transpirava e umas manchas úmidas tingiam a blusa nas costas e nas axilas.
O quarto é minúsculo, sem janelas,
iluminado por uma só lâmpada avermelhada, e o ondulante zinco do teto roça a cabeça de Josefino. A Selvática vestiu uma
saia creme, forçou um pouco o fecho antes
que a obedecesse. Josefino abaixou-se, pegou do chão uns sapatos brancos de salto alto, passou-os à Selvática.
- Está suando de medo - disse. -- Limpe o rosto. Não há por que se assustar.
Voltou-se para fechar a porta e quando se virou de novo ela o olhava nos olhos, sem piscar, os lábios entreabertos, as narinas
trêmulas, como se lhe desse trabalho
respirar ou sentisse inesperadamente exalações fétidas.
- Está bêbado? - perguntou logo, a voz medrosa e vacilante, enquanto esfregava furiosamente a boca com um lencinho.
- Um pouco - disse Josefino. - Estivemos festejando sua chegada com os León. Trouxe um bom pisco de Lima.
Saíram e, no corredor, a Selvática andava devagar, a mão apoiada na parede.
- Parece mentira, você ainda não se acostumou com os saltos - disse Josefino. - Ou é a emoção, Selvática?
Ela não respondeu. Na tênue luz azul, seus lábios retos e grossos pareciam um punho fechado e suas feições eram
duras e metálicas.
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Desceram a escada e a seu encontro vinham lufadas de ar morno e de álcool, a luz diminuía e quando surgiu a seus pés o salão
de danças, sombrio,
ruidoso e abarrotado, ela parou, ficou quase dobrada sobre o corrimão, e seus olhos tinham crescido e revoavam sobre as
silhuetas difusas com um brilho selvagem.
Josefino apontou o bar.
- Junto ao balcão, os que estão brindando. Não o reconhece porque emagreceu muito. Entre o harpista e os León, aquele de
terno brilhante.
Tensa, presa ao corrimão, a Selvática tinha a cara meio encoberta pelos cabelos, e uma respiração ansiosa e sibilante inchava
seu peito. Josefino pegou-a pelo braço,
submergiram entre os pares abraçados, e foi como se mergulhassem em águas lodosas ou devessem abrir caminho através de uma
asfixiante muralha de carne suada, mau
cheiro e ruídos irreconhecíveis. O tambor e os pratos do Bolas tocavam um corrido e, de quando em quando, intervinha o violão
do Joven Alejandro, e a música se animava,
mas quando as cordas calavam voltava a ser destemperada e de uma lúgubre marcialidade. Emergiram da pista de danças diante
do bar. Josefino soltou-a, a Chunga se
endireitou na cadeira de balanço, quatro cabeças voltaram-se para olhá-los e eles pararam. Os León pareciam muito alegres,
Dom Anselmo estava despenteado, com os
óculos caídos, e a boca de Lituma, cheia de espuma, torcia-se, sua mão procurava o balcão para largar o copo, seus olhinhos
não se afastavam da Selvática, a outra
mão começara a alisar os cabelos, a assentá-los, pressurosa e mecanicamente. De súbito, encontrou o balcão, a mão livre
afastou o Mono e todo o seu corpo avançou,
mas só deu um passo e ficou tremendo como um pião sem forças, no mesmo lugar, os olhinhos aturdidos; os León o seguravam
quando já caía. Seu rosto não se alterou,
continuava olhando para a Selvática, respirou fundo e só enquanto caminhava para eles, lentíssimo, com uma baba de espuma
e saliva, sustentado pelos León, um pouco
emperrado, forçado e dolorido, um simulacro de sorriso desprendeu-se de seus lábios e o queixo tremeu. Prazer em vê-la,
chininha, e seu rosto virou uma careta, seus
olhinhos mostravam agora um mal-estar insuportável, prazer em vê-lo, Lituma, disse a Selvática, e ele, prazer em vê-la,
chininha, bamboleando. Os León e Josefino
cercavam-no, em seus olhinhos bruscamente apareceu um brilho, uma espécie de libertação, e Lituma inclinou-se, apoiou-se
em Josefino, olá, querido colega, caiu em
seus braços, que prazer em vê-lo, irmão.
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Permaneceu abraçado a Josefino, proferindo frases incompreensíveis e, de quando em quando, um surdo mugido, mas quando se
afastou parecia mais sereno, já tinha terminado
essa
nervosa dança interior em seus olhinhos e também a careta, agora sorria de verdade. A Selvática estava parada, as mãos presas
diante da saia, o rosto emboscado atrás
dos tufos negros e brilhantes de cabelo.
- Nos encontramos, chininha - disse Lituma, mal podendo falar, o sorriso cada vez mais largo. - Venha por aqui, brindemos,
temos de festejar o meu regresso, eu sou
o invencível número quatro.
A Selvática deu um passo para ele, sua cabeça se mexeu, seus cabelos se afastaram, duas chaminhas verdes cintilaram suavemente
em seus olhos. Lituma estendeu a mão,
tomou-a pelos ombros, levou-a assim até o balcão, e ali estavam os olhos abúlicos e impertinentes da Chunga. Dom Anselmo
acomodara os óculos, suas mãos buscavam
no espaço, e quando encontraram Lituma e a Selvática deram neles carinhosos tapinhas, assim é que eu gosto, rapazes, paternalmente.
- A noite dos encontros, velho querido - disse Lituma. - O senhor viu como me portei bem. Encha os copos, Chunga Chunguita,
e para você também, encha um.
Entornou seu copo de um gole e ficou arquejando, o rosto úmido de cerveja, da saliva que gotejava até as lapelas imundas
do casaco.
- Que coração, primo - disse o Mono. - Grande como um sol!
- Alma, coração e vida - disse Lituma. - Quero ouvir essa valsa, Dom Anselmo. Seja bonzinho, faça a minha vontade.
- Sim, não se descuide da orquestra - disse a Chunga. - Lá no fundo estão protestando, reclamam.
- Deixe-o um pouco conosco, Chunguita - disse a voz de José, pegajosa, melosa, derretida. - Que este grande artista tome
uns traguinhos com a gente.
Mas Dom Anselmo dera meia-volta e retornava docilmente ao canto dos músicos, tateando na parede, arrastando os pés, e Lituma,
sempre abraçado à Selvática, bebia
sem
olhá-la.
- Cantemos o hino - disse o Mono. - Um coração como um sol, primo!
A Chunga também estava bebendo. Indolentes e opacos, semimortos, seus olhos observavam uns e outros,
145
os invencíveis e a Selvática, a massa escura de homens e mulheres que oscilava entre murmúrios e risos na pista de danças,
os pares que subiam a escada, e os grupos
esfumados dos cantos. Josefino, com os cotovelos no balcão, não bebia, olhava de viés os León, que batiam os copos. E então
soaram a harpa, o violão, o tambor,
os pratos, um estremecimento percorreu a pista de dança. Os olhinhos de Lituma se entusiasmaram:
- Alma, coração e vida. Ah, essas valsas trazem tantas recordações. Vamos dançar, chininha.
Arrastou a Selvática sem olhá-la, os dois se perderam entre corpos aglomerados e sombras, e os León acompanhavam o compasso
com as mãos e cantavam. Quieto e desagradável,
o olhar da Chunga estava agora posto em Josefino, como se quisesse contagiá-lo com sua infinita preguiça.
- Que milagre, Chunguita - disse Josefino. - Está bebendo.
- Você tem mais medo que eu - disse a Chunga e, num instante, um brilho brincalhão apareceu em seus olhos. -- Como você
se assustou, invencível.
- Não há motivo para susto - disse Josefino. Você está vendo como eu tenho palavra, não houve nenhum problema.
- Um medo que não fica bem em você - a Chunga riu sem vontade -, que faz sua voz tremer, Josefino.
146

III.

As pernas nuas do sargento pendiam da escadinha do posto e ao redor tudo ondulava, as colinas tomadas pelo mato, as capironas
da Plaza de Santa Maria de Nieva, até
as cabanas balançavam-se como ondas ao soprar do vento morno e sibilante. O povoado era pura treva e os guardas roncavam,
nus, debaixo dos mosquiteiros. O sargento
acendeu um cigarro e dava as últimas tragadas, quando, de repente, por trás do matinho de juncos, silenciosa, trazida pelas
águas do Nieva, apareceu a lancha, sua
choça cônica na popa, umas silhuetas andando pela coberta. Não havia bruma e, do posto, o cais aparecia claramente à luz
da lua. Uma figurinha pulou da lancha, correu
esquivando-se das estacas da pequena praia, desapareceu nas sombras da praça e, um momento depois, já muito próxima do posto,
reapareceu, e agora o sargento podia
reconhecer o rosto de Lalita, seu caminhar resoluto, sua cabeleira, os braços rijos sacudindo-se em torno dos amplos quadris.
Levantou-se um pouco e esperou que
ela chegasse ao pé da escadinha:
- Boa noite, sargento - disse Lalita. - Que sorte encontrá-lo acordado.
- Estou de guarda, senhora - disse ele. - Boa noite. Peço desculpas.
- Por que está de cuecas? - riu Lalita. - Não se preocupe, os selvagens não andam pior?
- com este calor, têm razão de andar pelados o sargento, quase de perfil, escudava-se no parapeito. - O pior é que os mosquitos
se banqueteiam com a gente, meu
corpo está todo ardendo.
Lalita tinha a cabeça atirada para trás e a luz do
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lampião do posto iluminava seu rosto de incontáveis e ressequidas espinhas e seus cabelos soltos que ondulavam, às costas,
como um manto de finíssimas fibras de
palma.
- Estamos indo a Pato Huachana - disse Lalita Há um aniversário lá e a festa começa de manhãzinha. Não pudemos sair antes.
- Mas que ótimo, senhora - disse o sargento. Tomem uns copinhos à minha saúde.
- Também levamos os filhos - disse Lalita. - Mas Bonifácia não quis vir. Não conseguimos tirar o seu medo de gente, sargento.
- Que moça tão boba - disse o sargento. - Perder uma oportunidade assim, tão raras que são as festinhas por aqui.
- Estaremos lá até quarta-feira - disse Lalita. - Se a coitada precisar de alguma coisa, poderia ajudá-la?
- com todo o prazer, senhora - disse o sargento.
- Só que a senhora já viu, nas três vezes em que fui à sua casa nem saiu à porta.
- As mulheres são muito manhosas - disse Lalita -, ainda não se deu conta? Agora que está sozinha, não tem outro remédio
senão atender. Dê uma voltinha por lá, amanhã.
- com toda a certeza, senhora - disse o sargento.
- Sabe que quando a lancha apareceu pensei que era o barco fantasma? Aquele dos esqueletos, que carrega os sonâmbulos. Eu
não era supersticioso, mas aprendi a ser
aqui com vocês.
Lalita se persignou, fez que se calasse com a mão, sargento, não via que iam viajar de noite? como falava dessas coisas.
Até quarta-feira então, ah, e Adrián mandava
lembranças. Afastou-se como tinha vindo, correndo, e, antes de entrar no posto para se vestir, o sargento esperou que a
figurinha se desenhasse outra vez entre as
estacas e saltasse à lancha: companheiro, estavam lhe preparando a cama. Vestiu a camisa, as calças e os sapatos, devagar,
cercado pela respiração tranqüila dos
guardas, e a lancha estaria já se afastando em direção ao Marañón, entre as canoas e as barcaças e, na popa, Adrián Nieves
afundando e puxando a vara. Essa gente
da selva viajava com casa e tudo, como aquele velho, o Aquilino, seria verdade que contava vinte anos nos rios? que costumes.
Ouviu-se o roncar do motor, um bramido
poderoso que apagou o bater de asas e os rumores,
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o cricrilar dos grilos, e em seguida foi diminuindo, distanciando-se, e os ruídos da mata ressuscitaram, um após outro,
reconquistaram a noite: agora, uma
vez mais, reinava só o rumor vegeto-animal. Um cigarro entre os lábios, a camisa arregaçada até os cotovelos, o sargento
desceu a escadinha olhando em todas as direções,
e foi até a cabana do tenente: uma respiração sufocada, quase trêmula, atravessava a tela metálica. Caminhou pelo atalho,
depressa, entre grasnidos indistinguíveis,
pupilas luminosas de mochos ou corujas, e a miúda, exasperada melodia dos grilos, sentindo na pele furtivos roçares, picadas
como de alfinete, esmigalhando o mato
novo que rangia, folhas secas que sussurravam, desfazendo-se sob seus pés. Ao chegar à frente da cabana do prático Nieves,
voltou-se: umas transparências esbranquiçadas
cobriam o povoado, mas no alto das colinas a residência das madres luzia nitidamente suas paredes claras, seu zinco brilhante,
e também se notava a fachada da capela
e sua torre esguia e acinzentada, empinada para o vasto vazio azul. A muralha circular da mata, agitada sempre por um suave
tremor, proferia, sem trégua, um ronroneio
idêntico, uma espécie de inacabável bocejo gutural, e no charco onde o sargento tinha os pés afundados, sanguessugas de
corpos quentes e gelatinosos chocavam-se
furtivamente contra seus tornozelos. Abaixou-se, molhou a testa, subiu a escadinha. O interior da cabana estava às escuras
e um cheiro intenso, diferente do da mata,
subia dos mourões como se ali estivessem restos de comida ou algum cadáver em decomposição, e então, na chácara, latiu um
cachorro. Alguém podia estar observando
o sargento da abertura que separava o tabique do teto, duas dessas ciciantes luzinhas podiam ser olhos de mulher e não vaga-lumes:
era ou não um mangache? onde se
metera a sua coragem? Percorria, nas pontas dos pés, o terraço, olhando para todos os lados, o cachorro continuava uivando
à distância. A cortina estava corrida
e a garganta negra da cabana exalava densos odores.
- É o sargento, Dom Adrián - gritou. - Perdoe se o acordo.
Um aturdimento, um instantâneo correr ou um gemido e de novo o silêncio. O sargento chegou-se à entrada, levantou a lanterna
e acendeu-a: uma pequena lua amarela
e redonda vagava nervosamente sobre jarras de barro, maçarocas, panelas, um balde d'água, Dom Adrián: o senhor está aí?
Precisava falar com ele, Dom Adrián,
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e enquanto o sargento balbuciava, a lua escalava o tabique, ligeira e pálida, mostrando prateleiras repletas de latas, arrastava-se
pelas tábuas e avidamente ia
de um braseiro
apagado a uns remos, de uns cobertores a um rolo de cordas e, logo, uma cabeça que se escondia, uns joelhos, dois braços
se encolhendo: boa noite, Dom Adrián não
estava? A lua parará sobre o volume que a mulher encolhida formava, sua luz desbotada tremia sobre uns quadris imóveis.
Por que fingia estar dormindo? O sargento
falava e ela não respondia, por que era assim, deu dois passos e a cabeça afundou-se um pouco mais sob os braços, por quê,
senhorita? a pele era tão clara quanto
o disco que a percorria, uma túnica cor de couro cru cobria seu corpo, dos joelhos aos ombros. O sargento sabia tratar as
pessoas, por que tinha medo dele, por acaso
vinha roubar? O sargento passou a mão na testa e a lua vibrou, enlouqueceu, a mulher tinha desaparecido, e agora a auréola
amarela procurava-a, resgatava uns pés,
uns tornozelos. Continuava na mesma posição, mas agora o corpo estendido mostrava um calafrio, um movimento que se repetia
em rajadas brevíssimas. Ele não era ladrão,
sargento não era pouca coisa, tinha soldo, casa e comida, não necessitava roubar ninguém, e também não estava doente. Por
que era assim, senhorita? Que se levantasse,
só queria que conversassem um pouco, para se conhecerem melhor, que tal? Deu dois passos e se agachou. Ela deixara de tremer
e era agora uma forma rígida, parecia
não respirar, por que tinha medo dele? vamos ver, e o sargento estendeu a mão, vamos ver, cautelosamente, até os cabelos,
não devia ter medo dele, chininha, o contato
de uns filamentos ásperos nos nós dos dedos e, como uma revolução na sombra, uma coisa dura se levantou, golpeou e o sargento
caiu sentado, gesticulando às escuras.
A lua desenhou, por um segundo, uma silhueta que passava pela porta, no terraço rangiam as tábuas sob os pés precipitados
que fugiam. O sargento saiu correndo e
ela estava no outro extremo, inclinada sobre o parapeito, sacudindo a cabeça como uma louca, chininha, não vá se atirar
no rio. O sargento escorregou, merda, e continuou
correndo, que foi que você pensou, venha, chininha, e ela continuava dançando, pulando sobre o parapeito, aturdida como
um inseto prisioneiro no vidro de um lampião.
Não se atirava ao rio, nem respondia, mas, quando o sargento agarrou-a pelos ombros, agitou-se e o enfrentou como um tigrinho,
chininha, por que o arranhava? o tabique
e o parapeito começaram a ranger, por que o mordia?
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amortecendo o resfolegar surdo dos dois corpos que lutavam, por que o arranhava, chininha? e a ansiosa, rechinante voz da
mulher. A pele, a camisa e as calças do
sargento
estavam úmidas, o bafo da mata era como uma onda quente que o ia inundando, empapando, chininha. Já conseguira segurar suas
mãos, com todo o seu corpo achatava-a
contra a parede e, logo, calçou-a e fez com que caísse, e caiu junto com ela, não se machucara, bobinha? No chão, ela mal
se defendia mas gemia mais forte, e o
sargento parecia excitado, chininha, chininha, praguejava apertando os dentes, viu? e ia se encarapitando pouco a pouco
sobre ela, mãezinha. Ele só vinha para conversar,
e ela havia sido, bandida, ela o tinha deixado assim, chininha, e sob o corpo do sargento o corpo dela se mostrava resvaladiço
mas resignado. Mexeu-se levemente
quando a mão do sargento puxou a túnica e a arrancou, e logo ficou quieta, enquanto ele acariciava seus ombros molhados,
os seios, a cintura, chininha: deixava-o
louco, sonhava com ela desde o primeiro dia, por que fugira? tolinha, não estava também com vontade? Ela às vezes soluçava,
mas não lutava mais, e permanecia dura
e inerte, ou mole e inerte, mas juntava as coxas com obstinação, boba, chininha, por que fazia isso, hem? que o abraçasse
um pouquinho, e a boca do sargento lutava
para separar esses lábios soldados, e todo o seu corpo se pusera a ondular, a bater contra o outro, chininha, que ruim que
era, que importância tinha, por que não
queria e abria sua boquinha, suas pernas, mãezinha: sonhava com ela desde o primeiro dia. Logo, o sargento sossegou e sua
boca afastou-se dos lábios fechados, o
corpo de lado, ficou estendido de costas sobre as tábuas, respirando com fadiga. Quando abriu os olhos, ela estava de pé,
olhando-o, e seus olhos fosforesciam na
penumbra, sem hostilidade, com uma espécie de assombro tranqüilo. O sargento se ergueu, apoiando-se no parapeito, estendeu
a mão e ela se deixou tocar nos cabelos,
no rosto, chininha, olhe só como ficara, que tolinha era, tirando o corpo, ela o deixara na mão, e abraçou-a e beijou-a
agressivamente. Ela não resistiu e, após
um momento, com timidez, suas mãos pousaram nas costas do sargento, sem força, como descansando, chininha: você não conheceu
homem até agora, diga? Ela se endireitou,
ficou nas pontas dos pés, juntou a boca ao ouvido do sargento: não tinha conhecido até agora, patrãozinho, não.
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- Estávamos no rio Apaga', e os huambisas encontraram uns rastros - disse Fushía. - Deixei que aqueles cachorros me enganassem:
é preciso segui-los, patrão, devem
estar carregados de caucho, vão entregar o que extraíram durante o ano. Eu acreditei, e seguimos os rastros, mas aqueles
cachorros não iam atrás do caucho, iam atrás
de briga.
- São huambisas - disse Aquilino. - Você já devia conhecê-los, Fushía. Foi assim que encontraram os shapras?
- Sim, nas margens do Pushaga - disse Fushía. Não tinham uma só bola de caucho e mataram um huambisa antes de desembarcar.
Os outros se enfureceram e não podíamos
segurá-los. Você não imagina, Aquilino.
- Claro que imagino, seria uma carnificina terrível disse Aquilino. - São os mais vingativos dos pagãos. Mataram muitos?
- Não, quase todos os shapras tiveram tempo de fugir para a selva - disse Fushía. - Só havia duas mulheres quando entramos.
Cortaram a cabeça de uma, a outra é a
que você conhece. Mas não foi fácil levá-la para a ilha. Tive que puxar o revólver, queriam matar aquela também. Assim é
que começou o assunto da shapra, velho.
Tinham chegado dois huambisas? Lalita correu ao povoado, Aquilino agarrado à sua saia, e umas mulheres choravam gritando:
mataram um deles no Pushaga, patroa, os
shapras o mataram com uma seta envenenada. E o patrão e os outros? Não acontecera nada a eles, chegariam mais tarde, vinham
devagar, traziam muita carga, que tinham
recolhido em um povoado aguaruna do Apaga. Lalita não voltou à cabana, ficou junto às lupunas, olhando a laguna, a boca
do canal, esperando que aparecessem. Mas
se cansou de esperar e esteve andando pela ilha. Aquilino sempre agarrado à sua saia: o tanque das tartarugas, as três cabanas
dos cristãos, o povoado huambisa.
Os pagãos já não tinham medo das lupunas, viviam entre elas, tocavam nelas, e as parentas do morto continuavam chorando,
revirando-se no chão. Aquilino correu até
onde umas velhas trançavam folhas de mutambo. É preciso trocar os tetos, diziam, ou virá a chuva, entrará e nos molhará.
- Quantos anos tinha a shapra quando você a levou para a ilha? - disse Aquilino.
- Era uma menina, teria uns doze anos - disse Fushía. - E era virgem, Aquilino, ninguém tocara nela.
' Afluente do Marañón, no alto Amazonas, departamento de Loreto.
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E não se portava como um animal, velho, correspondia ao carinho, era mimosa como um cãozinho.
- Pobre Lalita - disse Aquilino. - Que cara fazia ao ver você chegar com a shapra, Fushía.
- Não tenha pena daquela cadela - disse Fushía. O que eu sinto é não ter feito com que aquela cadela ingrata sofresse bastante.
Eram ferozes, brigadores? Talvez, mas bons para o Aquilino. Eles o ensinaram a fazer flechas, arpões, deixavam-no brincar
com as estacas que aplainavam para fazer
suas zarabatanas, e podiam ser incapazes para certas coisas, mas não fizeram eles as cabanas, a semeadura e os cobertores?
não traziam comida quando acabavam as
conservas de Dom Aquilino? E Fushía, sorte que sejam pagãos e se contentem com brigas e vinganças, se tivesse que repartir
os lucros com eles ficaríamos pobres,
e Lalita, se ficassem ricos, Fushía, algum dia, deveriam isso aos huambisas.
- Quando rapaz, em Moyobamba, íamos todos espiar as mulheres dos lamistas - disse Aquilino. - Às vezes uma se afastava e
caíamos sobre ela, sem ver se era jovem
ou velha, bonita ou feia. Mas nunca é a mesma coisa, uma selvagem não é uma cristã.
- É que com aquela houve uma coisa diferente, velho - disse Fushía. - Eu não gostava só de fodê-la, mas também de
ficar deitado com ela na rede e fazê-la
rir. E dizia, pena não ser shapra para a gente conversar.
- Puxa, Fushía, você está sorrindo - disse Aquilino. - Você se lembra dela e fica contente. Que coisas você tinha vontade
de dizer a ela?
- Qualquer coisa - disse Fushía -, como é seu nome, fique de costas, ria outra vez. Ou que ela fizesse perguntas sobre a
minha vida, e eu respondesse.
- Puxa, homem - disse Aquilino. - Você se apaixonou pela selvagenzinha.
No começo era como se não a vissem ou ela não existisse. Lalita passava e eles continuavam amassando o tucum, extraindo
as fibras, e não levantavam a cabeça. Depois,
as mulheres começaram a virar o rosto, a rir dela, mas não respondiam, e ela, será que não a entendiam? Fushía teria proibido
que falassem com ela? Mas brincavam
com o Aquilino e, certa vez, uma huambisa correu, alcançou-os, pôs em Aquilino um colar de sementes e conchas, aquela huambisa
que partiu sem se despedir e não
voltou nunca mais. E Fushía, isso era o pior de tudo, vinham quando
queriam,
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iam quando tinham vontade, voltavam depois de meses como se nada tivesse acontecido: era uma desgraça lidar com pagãos,
Lalita.
- A coitada tinha muito medo deles, via um buambisa e se atirava aos meus pés, me abraçava tremendo disse Fushía. - Tinha
mais medo dos huambisas que do Diabo, velho.
- Talvez a mulher que mataram no Pushaga fosse sua mãe - disse Aquilino. - Além disso, não é verdade que todos os pagãos
odeiam os huambisas? Porque são orgulhosos,
desprezam a todos, e são mais malvados que os de qualquer outra tribo.
- Eu prefiro os huambisas aos outros - disse Fushía.
- Não porque me ajudaram. Gosto de sua maneira de ser. Você já viu um huambisa como criado ou peão? Não se deixam explorar
pelos cristãos. Só gostam de caçar e de
lutar.
- Por isso todos vão desaparecer, não ficará um como amostra - disse Aquilino. - Mas você os explorou à vontade, Fushía.
Todo o prejuízo que causaram no Morona',
no Pastaza e no Santiago era para que você ganhasse dinheiro.
- Eu é que conseguia espingardas para eles e os levava até seus inimigos - disse Fushía. -- Não me viam como patrão, mas
como aliado. Que vão fazer com a shapra
agora? Na certa já a tomaram do Pantacha.
As parentas do morto continuavam chorando e se afligiam com espinhos até que brotasse sangue, patroa, para descansar, com
o sangue ruim iam-se as penas e os sofrimentos,
e Lalita, talvez desse certo, no dia em que sofresse se afligiria assim e saberia. E de imediato homens e mulheres levantaram-se
e correram para o barranco. Trepavam
nas lupunas, apontavam para a laguna, chegavam por ali? Sim, da boca do canal saiu uma canoa, um ponteiro, Fushía, muita
carga, outra canoa, Pantacha, Jum, mais
carga, huambisas e o prático Nieves. E Lalita, olhe, Aquilino, quanto caucho, nunca vira tanto antes. Deus ajudava, ficariam
ricos logo e iriam para o Equador, e
Aquilino berrava, será que já entendia? mas coitado do huambisa que mataram.
- Ficou sem mulher e sem patrão - disse Fushía. Coitado, deve ter-me procurado por toda parte, chorando e gritando de dor.
- Você não pode ter pena do Pantacha - disse Aquilino.
' Afluente do Marañón, departamento de Loreto, no alto Amazonas.
154
- É um cristão perdido, os cozimentos o deixaram louco. Não deve ter notado que você foi embora. Quando cheguei à ilha,
nesta última vez, nem me reconheceu.
- Quem você pensa que me deu de comer desde que aqueles desgraçados foram embora? - perguntou Fushía. Cozinhava, ia caçar
e pescar para mim. Eu não podia me levantar,
velho, e ele todo dia junto da minha cama, como um cachorro. Chorou, velho, garanto a você.
- Até eu tomei cozimento, uma vez - disse Aquilino. - Mas Pantacha ficou viciado e vai morrer logo.
Os huambisas descarregavam as bolas negras, couros, chapinhavam entre as canoas, Lalita abanava do barranco, e então ela
apareceu: não era huambisa nem aguaruna,
e parecia vestida para uma festa: colares verdes, amarelos, vermelhos, um diadema de plumas, aros nas orelhas, e uma túnica
comprida com desenhos pretos. As huambisas
do barranco também a olhavam, shapra? shapra, murmuravam, e Lalita pegou Aquilino, correu até a cabana e sentou-se na escadinha.
Demoravam, longe se viam os huambisas
passarem com o caucho no ombro, e Pantacha, que os mandava estender os couros ao sol. Por último, apareceu o prático Nieves,
chapéu de palha na mão: tinha ido longe,
patroa, e encontraram muitos redemoinhos, por isso demorou tanto a viagem, e ela, mais de um mês. Mataram um huambisa, no
Pushaga, e ela, já sabia, os que chegaram
de manhã contaram. O prático pôs o chapéu e entrou em sua cabana. Mais tarde chegou Fushía, e a shapra o seguia. Também
sua cara era de festa, muito pintada, e ao
caminhar soavam os aros, os colares, Lalita: trouxera esta criada para ela, uma shapra do Pushaga. Andava assustada com
os huambisas, não entendia nada, teria que
ensinar um pouco de cristão a ela.
- Você sempre fala mal do Pantacha - disse Fushía.
- Você tem um bom coração para todos, velho, menos para ele.
- Eu o recolhi e o levei à ilha - disse Aquilino. Se não fosse por mim, estaria morto há muito tempo. Mas me dá nojo. Parece
um -animal, Fushía. Pior que isso, olha
sem olhar, ouve sem ouvir.
- Eu não tenho nojo dele porque conheço sua história - disse Fushía. - Pantacha não é valente, mas quando sonha se sente
forte, e esquece umas desgraças que lhe
aconteceram e um amigo que morreu no Ucayali. Onde é que você o encontrou, velho? Por aqui, mais ou menos?
- Mais abaixo, numa praiazinha - disse Aquilino.
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- Estava sonhando, meio nu e morto de fome. Fiquei sabendo que andava fugindo. Dei a ele de comer e me lambeu as mãos, como
um cachorro, como você dizia antes.
- Me serve um traguinho - disse Fushía. - E agora vou dormir vinte e quatro horas. Fizemos uma péssima viagem, a canoa do
Pantacha virou antes de entrar no canal.
E no Pushaga tivemos um choque com os shapras.
- Você deve dá-la ao Pantacha ou ao prático - disse Lalita. - Já tenho criadas, não preciso desta. Para que é que você a
trouxe?
- Para que ajude você - disse Fushía. - É porque esses cachorros queriam matá-la.
Mas Lalita se pusera a choramingar, será que não tinha sido uma boa mulher? Não o tinha acompanhado sempre? pensava que
era boba? não tinha feito o que ele queria?
e Fushía se despia, tranqüilo, atirando as peças para o alto, quem é que manda aqui? desde quando discutia suas decisões?
E por último, que merda: o homem não era
como a mulher, tinha que variar um pouco, e não gostava de choradeiras e, além disso, por que se queixava se a shapra não
ia tirar nada dela, já dissera, seria criada.
- Você a deixou desmaiada, deu um banho de sangue nela - disse Aquilino. - Eu cheguei um mês depois e Lalita ainda estava
cheia de equimoses.
- Contou a você que bati nela, mas não que ela queria matar a shapra - disse Fushía. - Quando eu estava dormindo, vi que
agarrava o revólver e me deu raiva. Depois
a cadela se vingou bem das vezes em que bati nela.
- Lalita tem um coração de ouro - disse Aquilino.
- Se fugiu com Nieves, não o fez para se vingar de você, mas por amor. E se quis matar a shapra, foi por ciúmes, não por
ódio. Também ficou amiga dela, depois?
- Mais que das achuales - disse Fushía. - Você não viu? Não queria que eu a desse ao Nieves, e dizia é melhor que fique,
é só ela que me ajuda. E quando Nieves passou-a
ao Pantacha, ela e a shapra choraram juntas. Ensinou-a a falar como cristão e tudo.
- As mulheres são estranhas, às vezes é difícil entendê-las - disse Aquilino. - Agora vamos comer um pouco. Só que se molharam
os fósforos, não sei como vou acender
esse fogareiro.
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Já era uma velha, vivia só e seu único companheiro era o animal, aquele burro de pelagem amarelenta e andar lento e pomposo,
no qual, todas as manhãs, carregava
cestas com a roupa recolhida na véspera nas casas dos graúdos. Mal parava a chuva de areia, Juana Baura saía da Gallinacera,
uma vara de algarobeira na mão, com
a qual, de quando em quando, espicaçava o animal. Virava onde se interrompe a amurada do Malecón, descia aos pulinhos a
costa poeirenta, passava debaixo dos suportes
metálicos do Viejo Puente e instalava-se ali onde o Piura gastou a margem e forma um pequeno remanso. Sentada numa pedra
do rio, a água até os joelhos, começava
a esfregar a roupa, e o burro, enquanto isso, como faria um homem ocioso ou muito cansado, deixava-se cair na fofa praia,
dormia, banhava-se de sol. Às vezes havia
outras lavadeiras com quem conversar. Se estava só, Juana Baura torcia uma toalha, cantarolava, umas anáguas, curandeiro
ladrão, quase me mata, ensaboava um lençol,
amanhã é a primeira sexta-feira do mês, Padre Garcia, me arrependo dos meus pecados. O rio embranquecera seus tornozelos
e suas mãos, conservava-os lisos, frescos
e jovens, mas o tempo enrugava e escurecia cada vez mais o resto do seu corpo. Ao entrar no rio, seus pés costumavam afundar
em um fofo leito de areia; às vezes,
em lugar da débil resistência habitual, encontravam uma matéria sólida, ou alguma coisa viscosa e resvaladiça como um peixe
preso ao lodo: só essas minúsculas diferenças
alteravam a idêntica rotina das manhãs. Mas naquele sábado ouviu logo um soluço às suas costas, lacerante e muito próximo:
perdeu o equilíbrio, caiu sentada na água,
a cesta que levava na cabeça virou, as peças saíram flutuando. Resmungando, batendo com as mãos na água, Juana recuperou
a cesta, as camisas, as cuecas e os vestidos,
e então viu Dom Anselmo: tinha a cabeça caída entre as mãos e a água da margem molhava suas botas. A cesta caiu de novo
no rio e, antes que a corrente a enchesse
e a fizesse submergir, Juana estava na praia, junto dele. Confusa, balbuciou algumas palavras de surpresa e de consolo,
e Dom Anselmo continuava a chorar sem levantar
a cabeça. "Não chore", dizia Juana, e o rio se apoderava das peças, afastava-as silenciosamente. "Por Deus, acalme-se, Dom
Anselmo, que aconteceu, está doente? O
Doutor Zevallos mora aí em frente, quer que o chame? não sabe que susto me deu". O burro abrira os olhos, olhava para eles
obliquamente. Dom Anselmo devia estar
ali
há bastante tempo, suas calças,
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sua camisa e seus cabelos estavam salpicados de areia e o chapéu, caído junto a seus pés, estava quase coberto pela terra.
"Pelo que mais queira, Dom Anselmo", dizia
Juana, "que é que tem, deve
ser uma coisa muito triste para que chore como as mulheres." E Juana se persignou quando ele levantou a cabeça: pálpebras
inchadas, grandes olheiras, a barba crescida
e suja. E Juana, "Dom Anselmo, Dom Anselmo, me diga se posso ajudá-lo", e ele, "senhora, eu a estava esperando", e sua voz
se interrompeu. "A mim, Dom Anselmo?",
disse Juana, os olhos muito abertos. E ele concordou, devolveu a cabeça aos braços, soluçou, e ela, "mas, Dom Anselmo",
e ele gritou, "Toninha morreu, Dona Juana",
e ela, "que está dizendo, meu Deus, que está dizendo?", e ele, "vivia comigo, não me odeie", e a sua voz se interrompeu.
Estendeu então, com grande esforço, um
de seus braços e apontou para o areai: a verde construção relampejava sob o céu azul. Mas Juana Baura não a via. Aos tropeções
chegava ao Malecón, corria e gritava
espavorida, à sua passagem abriam-se janelas e apareciam rostos surpresos.
Júlio Reátegui levanta a mão: já chega, que fosse embora. O Cabo Roberto Delgado endireita-se, solta a correia, limpa o
rosto vermelho e suado, e o Capitão Quiroga,
você se excedeu, é surdo ou não entende as ordens? Aproxima-se do urakusa estendido no chão, mexe nele com o pé, o homem
se queixa fracamente. Estava fingindo,
meu capitão, queria dar uma de vivo, já ia ver. O cabo pragueja, esfrega as mãos, toma impulso, chuta e, ao segundo pontapé,
como um felino o aguaruna pula, puxa,
o cabo tinha razão-, que sujeito resistente, e corre veloz, acobreado, agachado, o capitão pensava que tinham se excedido.
Só sobrava um, Senhor Reátegui, e, além
disso,
Jum, ele também? Não, levariam para Santa Maria de Nieva esse cabeça dura, capitão. Júlio Reátegui bebe um gole do seu cantil
e cospe: que trouxessem o outro e acabassem
logo, capitão, não estava cansado? queria um golinho? O Cabo Roberto Delgado e dois soldados vão até a cabana dos prisioneiros,
pelo centro da clareira. Um soluço
quebra o silêncio do povoado e todos olham para as barracas: a menina e um soldado lutam perto do barranco, apagados contra
um céu que escurece. Júlio Reátegui fica
de pé, faz uma concha com as mãos: que foi que lhe dissera, soldado? Não entendia, por que não a metia na barraca, e o capitão,
seu porra! o punho no alto: que
brincasse com ela,
158
que a distraísse. Uma chuva miúda cai sobre as cabanas de Urakusa e do barranco sobem nuvenzinhas de vapor, a mata envia
para a clareira baforadas de ar quente,
o céu já está cheio de estrelas. O soldado e a menina desaparecem numa barraca, e o Cabo Roberto Delgado e dois soldados
vêm arrastando um urakusa, param diante
do capitão e ele resmunga algo. Júlio Reátegui faz um sinal para o intérprete: castigo por desrespeitar a autoridade, nunca
mais bater num soldado, nunca enganando
patrão Escabino, senão voltariam e o castigo seria pior. O intérprete ruge e gesticula e, enquanto isso, o cabo respira
fundo, esfrega as mãos, pega a correia, senhor.
Traduzindo? sim, entendendo? sim, e o urakusa, baixinho, barrigudo, anda de um lado para outro, pula como um grilo, olha
de viés, trata de furar o círculo, e os
soldados se balançam, são um redemoinho, pegam-no, levam-no. Por fim, o homem fica quieto, tapa o rosto e se encolhe. Agüenta
firme um bom tempo, rugindo a cada
correada, logo desaba, e o governador levanta a mão: que fosse embora, já estavam prontos os mosquiteiros? Sim, Dom Júlio,
tudo pronto, mas com mosquiteiros ou
não, tinham comido o rosto do capitão durante toda a viagem, ardia-lhe, e o governador, cuidado com Jum, capitão, que não
o deixassem só. O Cabo Delgado ri: não
fugiria nem que fosse bruxo, senhor, estava amarrado, e depois teria guarda durante toda a noite. Sentado no chão, o urakusa
olha de viés para uns e outros. Já não
chove, os soldados trazem lenha seca, acendem uma fogueira, brotam chamas altas junto ao aguaruna, que esfrega levemente
o peito e as costas. Que estava esperando,
mais açoites? Há risos entre os soldados, e o governador e o capitão olham para eles. Estão acocorados diante do fogo, a
faiscação avermelha e deforma seus rostos.
Por que esses risinhos? Ei, você, e o intérprete se aproxima: maredo ficando. Meu capitão. O oficial não entendia, que falasse
mais claro, e Júlio Reátegui sorri:
era o marido de uma das mulheres da cabana, e o capitão, ah, por isso o bandido não ia embora, agora entendia. É verdade,
Júlio Reátegui também esquecera daquelas
damas, capitão. Sigilosos, simultâneos, os soldados levantam-se e se aproximam, amontoados, do governador: olhos parados,
bocas tensas, olhares ardentes. Mas o governador
era a autoridade, Dom Júlio, a ele cabiam as decisões, o capitão era um simples executor. Júlio Reátegui examina os soldados
encaixados uns nos outros; sobre os
corpos indiferenciáveis, as cabeças avançaram para ele,
159
o fogo da fogueira reluz em suas faces e testas. Não sorriem nem baixam os olhos, esperam imóveis, as bocas entreabertas:
bah, o governador encolhe os ombros, já
que insistiam
tanto. Impreciso, anônimo, um murmúrio vibra sobre as cabeças, a roda de soldados rompe-se em silhuetas, sombras que atravessam
a clareira, ruídos de passos, o capitão
tosse e Júlio Reátegui 'faz uma careta desanimada: estes já eram meio civilizados, capitão, e como ficavam por causa de
uns espantalhos cheios de piolhos, jamais
conseguiria entender os homens. O capitão tem um acesso de tosse, e, por acaso, não passavam tantas privações na selva,
Dom Júlio? abana frenético à volta da cabeça,
na selva não havia mulheres, agarra-se o que se encontra, dá uma palmada na testa, e afinal ri nervoso: as jovenzinhas tinham
tetas de negras. Júlio Reátegui levanta
o rosto, busca os olhos do capitão, que está sério: naturalmente, capitão, isso também é verdade, talvez estivesse ficando
velho, talvez, se fosse mais moço teria
ido com os soldados até onde estavam aquelas damas. O capitão golpeia agora o rosto, os braços, Dom Júlio, ia dormir, os
bichos o estavam comendo, pensava até ter
engolido um, às vezes tinha pesadelos, Dom Júlio, em sonhos, nuvens de mosquitos caíam em cima dele, Júlio Reátegui dá um
tapinha no braço do capitão: em Nieva conseguiria
algum remédio, era pior que estivesse do lado de fora, de noite havia tantos, que dormisse bem. O Capitão Quiroga afasta-se
a passos largos até as barracas, sua
tosse perde-se entre as gargalhadas, os palavrões e os prantos que explodem na noite de Urakusa como ecos de uma distante
bacanal. Júlio Reátegui acende um cigarro:
o urakusa continua sentado à sua frente, observando-o de viés. Reátegui joga a fumaça para cima, há muitas estrelas e o
céu é um mar de tinta, a fumaça sobe, se
estende, se desvanece, e a seus pés a fogueira já está bocejando como um cachorro velho. Agora o urakusa se mexe, vai se
afastando de rastros, tomando impulso com
os pés, parece nadar sob a água. Mais tarde, quando a fogueira está apagada, ouve-se um grito, do lado da cabana? brevíssimo,
não, das barracas, e Júlio Reátegui
sai correndo, a mão segurando o chapéu, atira a guimba para cima, sem se deter, entra na barraca, e os gemidos param, range
um catre, e na escuridão há uma respiração
espantada: quem está aí? o senhor, capitão? A menina estava assustada, Dom Júlio, e ele viera ver, parece que o soldado
assustou-a, mas o capitão já o tinha xingado.
Saem da barraca,
160
o capitão oferece um cigarro ao governador, que recusa: ele se encarregaria dela, capitão, não devia se preocupar, que fosse
dormir logo. O capitão entra na barraca
vizinha e Júlio
Reátegui, às apalpadelas, volta ao catre de campanha, senta-se à sua beira. Sua mão toca suavemente num pequeno corpo rígido,
percorre umas costas nuas, uns cabelos
ressequidos: pronto, pronto, não devia ter medo daquele bruto, aquele bruto já fora embora, felizmente tinha gritado, em
Santa Maria de Nieva ficaria muito contente,
iria ver, as freirinhas seriam muito boas, cuidariam dela, a Senhora Reátegui também cuidaria muito dela. Sua mão acariciava
os cabelos, as costas, até que o corpo
da menina se solta e sua respiração se tranqüiliza. Na clareira continuam os gritos, os palavrões, mais excitados e grotescos,
e há correrias e bruscos silêncios:
pronto, pronto, pobre criança, que dormisse agora, ele vigiaria.
A música terminara, os León aplaudiam, Lituma e a Selvática voltaram ao balcão, a Chunga enchia os copos, Josefino continuava
bebendo, sozinho. Sob os anódinos esguichos
de luz azul, verde e violeta, uns poucos pares continuavam na pista, evoluindo com ar maquinal e letárgico, ao compasso
dos murmúrios e dos diálogos ao redor. Também
nas mesas dos cantos permanecia pouca gente; o grosso de homens e mulheres e toda a euforia da noite concentraram-se no
bar. Amontoados e ruidosos, tomavam cerveja,
as gargalhadas da mulata Sandra pareciam alaridos, e um gordo de bigode e óculos empinava o copo amarelo como uma bandeira,
participara da campanha do Equador
como soldado raso, sim, senhor, e não se esquecia da fome, dos piolhos, do heroísmo dos caboclos, nem dos bichos-de-pé que
se metiam debaixo das unhas e não queriam
sair nem a tiro de canhão, sim, senhor, e o Mono, subitamente, em altos brados: viva o Equador! Homens e mulheres emudeceram,
os risonhos olhões do Mono distribuíam
piscadas marotas à direita e à esquerda e, depois de uns segundos de indecisão e de assombro, o gordo afastou José, pegou
o Mono pela gola, sacudiu-o como a um trapo,
por que se metia com ele? que repetisse aquilo se usava calças, que fosse macho, e o Mono, um sorriso enorme: viva o Peru!
Todos riam agora, Sandra como se fosse
uma pantera,
' Conflito entre o Peru e o Equador por questões de fronteira, em
1941, no qual se destacou o General Eloy Ureta.
161
o gordo mordiscando o bigode, Josefino e José estavam misturados ao grupo e o Mono ajeitava a roupa.
- Não admito brincadeiras com o patriotismo, amigo - o gordo dava tapinhas amistosos no Mono. -• Você me enganou, vamos
tomar um trago.
- Como eu gosto da vida! - disse José. - Cantemos o hino.
Reuniram-se todos em um só grupinho e, esmagados contra o balcão, reclamaram mais cervejas. Assim, exultantes e gregários,
os olhos ébrios, a voz esganiçada, molhados
de suor, beberam, fumaram, discutiram, e um jovem vesgo, de cabelos esticados como uma escova, abraçava a mulata Sandra,
apresento-lhe a minha futura, companheiro,
e ela abria a boca, mostrava as gengivas vermelhas e vorazes, os dentes de ouro, estremecida de riso. Logo, caiu sobre o
jovem como um grande felino, beijou-o avidamente
na boca, e ele se debatia entre os braços negros, era uma mosca na teia de aranha, protestava. Os invencíveis trocaram olhares
cúmplices, zombeteiros, pegaram o
vesgo, imobilizaramno, aí está, Sandra, tome-o de presente, coma-o cru, ela o beijava, mordia e uma espécie de entusiasmo
convulsivo apossou-se do grupo, novos pares
se juntavam e até os músicos abandonaram seu lugar. De longe, o Joven Alejandro sorria languidamente e Dom Anselmo, seguido
do Bolas, ia de um lado para outro, excitado,
farejando o bulício, o que há, o que está acontecendo, me conte. Sandra soltou sua presa, ao passar o lenço na cara o vesgo
ficou borrado de ruge como um palhaço,
deram-lhe um copo de cerveja, que ele virou de uma vez, aplaudiram-no, e, de repente, Josefino começou a procurar algo no
tumulto. Levantava-se, agachava-se, terminou
por sair do grupo e ficou procurando por todo o salão, virando cadeiras, desaparecendo e voltando a aparecer no ambiente
viciado e fumarento. Voltou correndo ao
balcão.
- Eu tinha razão, invencível - disse a boca sem lábios da Chunga. - Você está apavorado.
- Onde estão, Chunguita? Subiram?
- Que é que você tem com isso? - os olhos hirtos da Chunga o esquadrinhavam como se fosse um inseto. Está com ciúmes?
- Ele a está matando - disse José, parecendo um fantasma, puxando Josefino por um braço. - Venha, voando.
Romperam o grupo a empurrões, o Mono estava na porta,
162
com a mão estendida, apontando a escuridão, em direção ao Quartel Grau. Saíram correndo desabaladamente por entre as choças
da favela, que pareciam desertas,
e logo entraram no areal, e Josefino tropeçou, caiu, levantou-se, continuou correndo, e agora seus pés afundavam-se na terra,
havia vento contra e escuros redemoinhos
de areia, e era preciso correr com os olhos fechados, contendo a respiração para que o peito não rebentasse. "A culpa é
de vocês, seus merdas", rugiu Josefino,
"vocês se descuidaram", e, um momento depois, com a voz entrecortada, "mas até onde, porra", quando já surgia à sua frente
uma silhueta intermediária entre a areia
e as estrelas, uma sombra maciça e vingativa.
- Só até aqui, desgraçado, cachorro, mau amigo.
- Mono! - gritou Josefino. - José!
Mas os Léon também tinham se lançado contra Josefino e, tal como Lituma, descarregavam punhos e pés e cabeças contra ele.
Estava de joelhos, à sua volta tudo era
cego e feroz, e quando queria se levantar e escapar da vertiginosa ronda de impactos, um novo pontapé o derrubava, um soco
o encolhia, uma mão puxava seus cabelos
e tinha que levantar o rosto e oferecê-lo aos golpes e às picadas da areia, que parecia entrar às torrentes por seu nariz
e sua boca. Depois foi como se uma matilha
rosnante e extenuada estivesse ali, rondando em torno de um animal vencido, quente ainda, farejando-o, exasperando-se por
momentos, mordendo-o sem vontade.
- Está se mexendo - disse Lituma. - Seja homem, Josefino, quero ver sua cara, levante-se.
- Deve estar vendo as Três-Marias de perto, primo •- disse o Mono.
- Chega, deixe-o, Lituma - disse José. - Você já fez o que queria. Não há maior vingança que esta. Não vê que pode morrer?
- Mandariam você de novo à cadeia, primo - disse o Mono. - Chega, não seja teimoso.
- Bata nele, bata nele - a Selvática se aproximara, sua voz não era forte mas abafada. - Bata nele, Lituma.
Em vez de atendê-la, Lituma voltou-se contra ela, derrubou-a na areia com um empurrão e ficou chutando-a, puta, miserável,
filha da puta, insultando-a até que perdeu
a voz e as forças. Então se deixou cair na areia e começou a soluçar como uma criança.
- Primo, pelo que você mais quer, acalme-se.
163
- Vocês também têm culpa - gemia Lituma. Todos me enganaram. Desgraçados, traidores, deveriam morrer de arrependimento.
- Por acaso não o tiramos da Casa Verde para você, Lituma? Por acaso não o ajudamos a bater nele? Sozinho você não teria
podido.
- Nós o vingamos, priminho. E até a Selvática, não vê como ela o arranha?
- Falo de antes - dizia Lituma, entre soluços e amuos. - Todos estavam de acordo e eu lá, sem saber nada, como um babaca.
- Primo, os homens não choram. Não fique assim. Nós sempre gostamos de você.
- O que passou, passou, irmão. Seja homem, seja mangache, não chore.
A Selvática afastara-se de Josefino, que, encolhido no chão, queixava-se fracamente, e ela e os León conformavam Lituma,
que tivesse forças, os homens crescem diante
das desgraças, abraçavam-no, limpavam sua roupa, tudo esquecido? para começar de novo? irmão, primo, Lituma. Ele balbuciava,
meio consolado, às vezes se enfurecia
e chutava o estendido, logo sorria, se entristecia.
- Vamos, Lituma - disse José. - Acho que nos viram da favela. Se chamam os tiras, teremos problemas.
- Vamos à Mangachería, priminho - disse o Mono.
- Acabaremos o pisco que você trouxe, vai levantar o seu ânimo.
•- Não - disse Lituma. - Voltemos à casa da Chunga.
Foi-se pelo areai, a largas e resolutas passadas. Quando a Selvática e os León o alcançaram, entre as choças da favela,
Lituma começara a assobiar desesperadamente,
e Josefino aparecia à distância, mancando, queixando-se e vociferando.
- Isto ainda está pegando fogo. - O Mono segurou a porta para que os outros passassem primeiro. - Só faltava a gente.
O gordo de bigode e óculos veio recebê-los:
- Saúde, saudinha, companheiros. Por que desapareceram? Venham, a noite está começando.
- Música, harpista - exclamou Lituma. - Valsas, tonderos, marineras.
Aos trambolhões chegou até a orquestra, caiu nos braços do Bolas e do Joven Alejandro,
164
enquanto o gordo e o vesgo arrastavam os León até o bar e lhes ofereciam copos de cerveja. Sandra ajeitava os cabelos da
Selvática, Rita e Maribel enchiam-na de
perguntas, e as quatro
cochichavam como vespas. A orquestra começou a tocar, o balcão ficou livre, meia dúzia de pares dançavam na pista entre
auréolas de luz azul, verde e violeta. Lituma
chegou ao balcão morrendo de rir:
- Chunga, Chunguita, a vingança é doce. Está me ouvindo? Ele está berrando como um danado e não se atreve a entrar. Nós
o deixamos meio morto.
- Não me interesso pelos assuntos de ninguém disse a Chunga. - Mas vocês são a minha desgraça. Por causa de vocês me multaram
na última vez. Ainda bem que a encrenca
agora não foi na minha casa. Que é que lhe sirvo? Aqui, quem não consome vai embora.
- Que grosseira para responder, Chunguita - disse Lituma. - Mas estou contente, sirva o que quiser, para você também, eu
convido.
E agora o gordo queria levar a Selvática à pista de danças, mas ela resistia, mostrava os dentes.
- Que é que há com esta mulher, Chunga? - perguntou o gordo, bufando.
- Que é que você tem? - perguntou a Chunga. Estão convidando você para dançar, não seja malcriada, por que não aceita este
senhor?
Mas a Selvática continuava resistindo:
- Lituma, diga a ele que me solte.
- Não a solte, companheiro - disse Lituma. - E a senhora faça o seu trabalho, puta.
165

TERCEIRA PARTE

O tenente pára de dar adeus quando a embarcação é só uma luzinha branca sobre o rio. Os guardas atiram as maletas ao ombro,
chegam ao cais, param na praça de Santa
Maria de Nieva, e o sargento aponta para as colinas: entre as dunas cobertas de mato reverberam uns muros brancos, e o zinco,
aquela era a missão, meu tenente, a
ladeirinha pedregosa estava vazia, chamavam isso de residência, ali viviam as freirinhas, meu tenente, e à esquerda, a capela.
Silhuetas de índios circulam pelo
povoado, os tetos das cabanas são de fibra de palmeira e parecem grandes capuzes. Mulheres de corpos enlameados e olhos
indolentes moem algo ao pé de dois troncos
pelados. Continuam caminhando e o oficial volta-se para o sargento: quase não pudera falar com o Tenente Cipriano, por que
não ficou só até informá-lo de tudo?
Se não aproveitava a lancha, teria que esperar um mês, meu tenente, e o Tenente Cipriano estava louco para ir embora. Mas
que não se preocupasse, o sargento o poria
a par de tudo num segundo, e o Rubio põe a maleta no chão e mostra a cabana: aí estava, meu tenente, o comissariado mais
pobre do Peru, e o Pesado, essa da frente
seria a sua casa, meu tenente, e o Chiquito, mais tarde conseguiriam umas duas criadas aguarunas, e o Oscuro, as criadas
eram a única coisa que sobrava neste povoado
perdido. O tenente bate na placa que está pendurada em uma viga e dela brota um som metálico. A escadinha da cabana não
tem corrimão, as tábuas do chão e da parede
são grossas, desiguais, e na primeira peça há cadeiras de palha, uma escrivaninha, uma bandeirinha descolorida. Uma porta
está aberta ao fundo: quatro redes, uns
fuzis, um forno, uma lixeira, que miséria.
167
O tenente tomava uma cervejinha? Deviam estar frescas, eles as puseram num balde d'água desde a manhã. O oficial concorda,
o Chiquito e o Oscuro saem
da cabana - o governador se chama Fábio Cuesta? sim, um velhinho simpático, mas que fosse cumprimentá-lo mais tarde, meu
tenente, a estas horas dormia a sesta -
e voltam com copos e garrafas. Bebem, o sargento brinda pelo tenente, os guardas perguntam por Lima, o oficial quer saber
como é a gente de Santa Maria de Nieva,
quem é quem, as freirinhas da missão são boa gente? e se os selvagens dão dores de cabeça. bom, continuariam conversando
à noite, o tenente queria descansar um
pouco. Eles tinham encomendado uma comidinha especial ao Paredes, meu tenente, para comemorar sua chegada, e o Rubio era
o dono da cantina, meu tenente, onde comiam
todos, e o Oscuro, era carpinteiro também, e o Pesado, ainda por cima, meio feiticeiro, já o apresentariam a ele, boa gente
o Paredes. Os guardas levam as maletas
à cabana da frente, o oficial segue-os bocejando, entra e atira-se no catre que ocupa o centro do quarto. com voz sonolenta
despede o sargento. Sem se levantar,
tira o quepe, os sapatos. Cheira a pó e a fumo negro. Não há muitos móveis: uma cômoda, dois banquinhos, uma mesa, uma lamparina
que pende do teto. As janelas têm
telas metálicas: as mulheres continuam moendo na praça. O tenente se levanta, o outro cômodo está vazio e tem uma pequena
porta. Abre-a: a terra está dois metros
mais abaixo, oculta pelo capim, e a uns passos da cabana já há mato cerrado. Desabotoa as calças, mija, e quando volta ao
primeiro quarto, o sargento está ali de
novo: outra vez aquele sacana, meu tenente, um aguaruna que se chama Jum. E o intérprete: diabo dizendo, aguaruna, soldado
mentindo, e cartilhalima e limagoverno',
senhor. Arévalo Benzas olha para cima, protegendo os olhos com as mãos, não era nenhum bobo, Dom Júlio, o pagão queria que
pensasse que estava louco, mas Júlio
Reátegui nega com a cabeça: não era isso, Arévalo, repetia a mesma cantilena todo o tempo, e ele já a sabia de cor. Alguma
coisa meteram na sua cabeça com essa
história de cartilha, mas quem diabo podia entender. O sol avermelhado e ardente abrasa Santa Maria de
Nieva,
' Os selvagens, sem poder expressar coisas ou instituições que lhes são estranhas, juntam as palavras em espanhol e as proferem,
muitas vezes, sem nexo. O autor
registra exemplos disso com cartilhalima, limagoverno, caboelgado, Escabinodiabo, etc., algumas delas ofensivas, eqüivalendo
a palavrões.
168
e os soldados, indígenas e patrões, aglomerados ao redor das capironas, piscam, suam e murmuram. Manuel Aguila abana-se
com um leque de palha: estava muito
cansado, Dom Júlio? Deram-lhe muito trabalho em Urakusa? Um pouco, já contaria com vagar, agora Reátegui tinha que subir
à missão um instante, já voltava, e eles
concordam: vão esperá-lo na cabana do governo, o Capitão Quiroga e Escabino já estavam lá. E o intérprete: indo e vindo,
prático escapando, urakusapátria, porra,
bandeiragoverno. Manuel Aguila utiliza o leque como um escudo contra o sol, mas mesmo assim lacrimeja: que não se cansasse,
era por prazer, aqui se faz, aqui se
paga, intérprete, traduzindo isso a ele. O tenente abotoa as calças calmamente, e o sargento passeia pelo quarto, as mãos
nos bolsos: não era a primeira vez que
vinha, meu tenente. Um montão de vezes já, até que uma vez o Tenente Cipriano se esquentou, dera um susto nele e assim o
pagão deixou de vir. Que sabido, certamente
soube que o Tenente Cipriano saía de Santa Maria de Nieva e veio correndo ver se com o novo tenente conseguia alguma coisa.
O oficial acaba de amarrar os sapatos,
levanta-se. Pelo menos era tratável? O sargento faz um gesto vago: não ficava furioso, mas, lá isso era, a teimosia ambulante,
uma mula, ninguém lhe tirava o que
tinha na cachola. Quando é que aconteceu esse problema? Quando era governador o Senhor Júlio Reátegui, antes que Nieva tivesse
um comissariado, e o tenente fecha
a
porta da cabana com raiva, era o máximo, não chegara há duas horas e já tinha trabalho, o selvagem podia ter esperado até
amanhã, não? E o intérprete: caboelgado
diabo! Diabo capitã-artêmio! Meu cabo. Mas o Cabo Roberto Delgado não se incomoda, ri como os soldados e alguns índios também
riem: que fosse bancando o louco, insultando,
a ele e ao capitão, que continuasse, ia ver quem ri por último. E o intérprete: esfomeado, meu cabo, tonto, porra, barriga
dançando, meu cabo, sede dizendo, davam
água a ele? Não, primeiro o cabo, e levanta a voz: se alguém desse água ou comida ao selvagem, se entenderia com ele, que
traduzisse isso a todos os pagãos de Santa
Maria de Nieva, porque podiam se fazer de loucos e de sabidos, mas no fundo estavam com raiva. E o intérprete: a putasuamãe,
meu cabo, Escabinodiabo, insultando.
Agora os soldados mal sorriem, olham para o cabo disfarçadamente, e ele, muito bem, que puteasse a sua mãe outra vez, que
ele veria só quando o descessem da capirona.
Um homem magro e bronzeado vem ao encontro deles, tira o chapéu de
palha,
169
e o sargento faz as apresentações: Adrián Nieves, meu tenente. Sabia aguaruna e às vezes servia de intérprete, era o melhor
prático da região e há dois
meses trabalhava para o comissariado. O tenente e Nieves cumprimentam-se e o Oscuro, o Chiquito e o Rubio afastam-se da
escrivaninha, aí estava, meu tenente, este
era o pagão - assim chamavam aqui os selvagens -, e o oficial sorri: ele pensava que essa gente deixava crescer a cabeleira
até os pés, não esperava encontrar um
carequinha. Uma miúda penugem cobre a cabeça de Jum e uma cicatriz reta e rosácea secciona sua testa minúscula. É de estatura
mediana, retaco, veste uma túnica puída
que lhe cai da cintura até os joelhos. No peito pelado, um triângulo roxo envolve três riscos paralelos que atravessam suas
faces. Tem tatuagens também em ambos
os lados da boca: duas aspas pretas, pequeninas. Sua expressão é tranqüila mas nos olhos amarelos há vibrações indóceis,
meio fanáticas. Desde que lhe pelaram a
cabeça, continua se pelando sozinho, meu tenente, e era estranhíssimo, porque nada doía mais a eles que tocar na sua cabeleira.
O prático Nieves podia explicar isso,
meu tenente: era coisa de orgulho deles, justamente disso tinham estado falando enquanto esperavam que viesse. E o sargento,
vamos ver se com Dom Adrián se entendiam
melhor com o pagão, porque da última vez, com o feiticeiro Paredes de intérprete, ninguém entendia nada; e o Pesado, é que
o cantineiro faz que sabe aguaruna,
mas não era verdade, mal o arranhava. Nieves e Jum rugem e gesticulam, tenente, ele não podia retornar a Urakusa até que
devolvessem tudo o que tiraram dele, mas,
porque sentia vontade de voltar, cortava a cabeleira para não poder voltar nem querendo; e o Rubio, não era uma coisa de
louco? Sim, e agora que explicasse logo
o que queria que lhe devolvessem. O prático Nieves aproxima-se do aguaruna, grunhe para ele apontando o oficial, gesticula,
e Jum, que escuta imóvel, concorda e
cospe: espere aí! isto não é um chiqueiro, que não cuspisse. Adrián Nieves volta a pôr o chapéu, era para que o tenente
visse que dizia verdade, e o sargento, um
costume dos selvagens, quem não cuspia ao falar mentia, e o oficial, não faltava mais nada, ia lavá-los com saliva. Acreditavam
nele, Nieves, que não cuspisse.
Jum cruza os braços e os círculos do seu peito se deformam, o triângulo se enruga. Começa a falar vigorosamente, quase sem
pausas, e continua cuspindo à sua volta.
Não afasta os olhos do tenente, que bate o pé e observa com desagrado a trajetória de cada cusparada.
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Jum agita as mãos, sua voz é muito enérgica. E o intérprete: roubando porra, urakusacaucho, menina, soldadomireátegui, meu
cabo. Cabeça quente! Para proteger os
olhos
do sol, o Cabo Roberto Delgado tirou o casquete e o mantém levantado junto à testa: que continuasse bancando o melindrado,
que chiasse, que se matava de rir. E que
perguntasse a ele onde aprendeu tantos palavrões. E o intérprete: contra toécontra to, pronto, patrão Escabino, entende,
pronto, descendo, meu cabo. Os soldados
estão se despindo e alguns já estão correndo para o rio, mas o Cabo Delgado continua ao pé das capironas: descendo? Uma
porra, ia ficar ali e que agradecesse, porque
o Capitão Artemio Quiroga era boa gente, que, se dependesse dele, se lembraria toda a vida. Por que não puteava a sua mãe
de novo? Que se atrevesse, que se fizesse
de macho diante de seus companheiros, que o estavam olhando, e o intérprete: bom, a putasuamãe. Meu cabo, outra vez, que
a puteasse de novo, que para isso ficara
ali; e o tenente cruza as pernas e atira a cabeça para trás: história absurda, sem pé sem cabeça, de que cartilhas falava
esse bendito? Uns livros com figuras;
meu tenente, para ensinar o patriotismo aos selvagens; na casa do governo ainda sobravam alguns, comidos por traça, Dom
Fábio podia mostrá-los. O tenente olha indeciso
para os guardas e, enquanto isso, o aguaruna e Adrián Nieves continuam grunhindo a meia voz. O oficial se dirige ao sargento,
era verdade o que dizia sobre a menina?
e Jum, menina! violentíssimo, porra! e o Pesado, pissst, que estava dizendo o tenente? e o sargento, pissst, quem é que
sabia, aqui se roubam meninas todos os dias,
podia ser verdade, não diziam que aqueles bandidos do Santiago tinham feito um harém? Mas o pagão confundia tudo, e a gente
não sabia o que as cartilhas tinham que
ver com o caucho que reclamava, e com aquilo da menina, o compadre tinha um enredo dos mil diabos na cachola. E o Chiquito,
se haviam sido os soldados, eles não
tinham nada que ver, por que não se queixava na guarnição de Borja? rugem e gesticulam, e o prático Nieves: já tinha ido
duas vezes lá e ninguém dera bola, tenente.
E o Rubio tinha que ser muito rancoroso para continuar com esse assunto depois de tanto tempo, meu tenente, já podia ter
esquecido. Rugem e gesticulam, e Nieves:
que em seu povoado ele é o culpado e não queria voltar a Urakusa sem o caucho, os couros, as cartilhas e a menina, para
que vissem que Jum tinha razão. Jum fala
de novo, devagar agora, sem levantar as mãos.
171
As duas aspas minúsculas mexem-se com seus lábios, como duas hélices que não podem arrancar de vez, começam a girar e retrocedem
e outra vez giram e retrocedem.
De
que falava agora, Dom Adrián? e o prático: estava se lembrando, e também insultando os que o penduraram na capirona, e
o tenente deixa de bater com o pé: fora
pendurado? Chiquito aponta vagamente para a Plaza de Santa Maria de Nieva: daquelas capironas, meu tenente. Paredes podia
contar, ele estava lá, parecia um pirarucu,
assim é que os penduravam para secar. Jum despeja um monte de grunhidos. Dessa vez não cospe, mas faz gestos frenéticos:
só porque lhes dizíamos verdades é que o
penduraram da capirona, tenente, e o sargento, tome que tome com a mesma história, e o oficial, verdades? e o intérprete:
piruanos! piruanos, porra! Meu cabo! Mas
o Cabo Delgado já sabia, não precisava que traduzissem isso, podia não falar pagão mas tinha ouvidos, pensava que era um
pobre coitado? Meu Deus, o tenente bate
na escrivaninha, que droga, não acabariam nunca desse jeito, piruanos queria dizer peruanos, não? essas eram as verdades?
E o intérprete: pior que sangrando, pior
que morrendo, meu cabo. E boninopérez e teófilocanas, não entende. Meu cabo. Mas o Cabo Delgado, sim, entendia: assim se
chamavam aqueles subversivos. Que não adiantava
nada chamá-los, que estavam muito longe, e que se também aqueles dois viessem, também os pendurariam. O Oscuro está sentado
numa ponta da escrivaninha, os outros
guardas continuam de pé, meu tenente, tinha sido um castigo, diziam. E que todos os patrões e os soldados estavam furiosos,
queriam se encarregar deles, mas que
o governador de então, o Senhor Júlio Reátegui, não deixou. Mas quem era essa gente? não tinham voltado aqui? Uns agitadores,
parecia, que se fizeram passar por
professores,
meu tenente, e convenceram essa gente de Urakusa e os pagãos ficaram valentes e lograram o patrão que comprava caucho; e
o Pesado, um tal de Escabino, e Jum. Escabino!
ruge, porra, e o oficial, silêncio, Nieves, faça com que se cale. Onde está esse cara? Podia falar com ele? Muito difícil,
meu tenente, Escabino morreu, mas Dom
Fábio o conheceu, e o melhor é que falasse com ele: contaria a ele os detalhes, e além disso o governador era amigo de Dom
Júlio Reátegui. Nieves também não estava
aqui quando aconteceram esses incidentes? Também não, tenente, ele só tinha uns dois meses em Santa Maria de Nieva, vivia
longe antes, pelo Ucayali, e o Oscuro:
não lograram só o patrão, tinha também o assunto do cabo de Borja,
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juntaram as duas coisas. E o intérprete: caboelgado diabo! porra! O Cabo Delgado desdobra todos os dedos das mãos e mostra:
dez puteadas à mãe, estavam contadinhas.
Que podia continuar gozando quanto quisesse, aqui ficava para que continuasse puteando sua mãe. É verdade, um cabo que ia
a Bagua de licença, e com ele um prático
e um criado, os aguarunas assaltaram em Urakusa, espancaram o cabo e o criado, o prático desapareceu, e uns diziam que o
mataram e outros que desertou, meu tenente,
aproveitando a ocasião. E por isso haviam organizado uma expedição, soldados de Borja e o governador daqui, e por isso o
trouxeram, e o castigaram na capirona. Não
tinha sido assim, mais ou menos, Dom Adrián? O prático concorda, sargento, era o que ouvira, mas como ele não estava aqui,
como podia saber? com que então, o tenente
olha para Jum e Jum para Nieves, não era tão santinho como parecia. O prático grunhe e o urakusa replica, áspero e gesticulante,
cuspindo e esperneando: o que ele
contava era muito diferente, tenente, e o tenente, lógico, qual era a versão do meu compadre? Que o cabo estava roubando
coisas e que eles o obrigaram a devolver,
o prático fugiu nadando, e que o patrão era vigarista com o caucho, e que por isso não quiseram vender. Mas o tenente parece
não escutar, seus olhos examinam o
aguaruna dos pés à cabeça, com curiosidade e certo assombro: quanto tempo ficou pendurado, sargento? Um dia, e depois levou
uns açoites, segundo o feiticeiro Paredes,
e o Oscuro, aquele mesmo cabo de Borja é que os havia aplicado, e o Rubio, de vingança pelos que os pagãos de Urakusa teriam
dado nele, meu tenente. Jum avança um
passo, fica diante do oficial, cospe. A expressão de seu rosto é quase risonha agora e seus olhos amarelos mexem-se maliciosamente,
uma careta brincalhona rasga
seus lábios. Toca na cicatriz da testa e, lento, cerimonioso como um mágico, gira sobre os calcanhares, mostra as costas:
dos ombros descem até a cintura uns sulcos
pintados de zarcão, retilíneos, paralelos e brilhantes. Essa era outra de suas loucuras, meu tenente, sempre que aparecia
vinha lambuzado assim, e o Chiquito, coisa
dele, porque os aguarunas não costumam pintar as costas, e o Rubio, os horas sim, meu tenente, as costas, a barriga, os
pés, o traseiro, pintavam o corpo todinho,
e o prático Nieves, para não esquecer os açoites que levou, essa era a explicação que dava, e Arévalo Benzas seca os olhos:
seus miolos ficaram assados lá em cima,
o que estava gritando? Piruanos, Arévalo,
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Júlio Reátegui está apoiado de costas na capirona, passara toda a viagem gritando piruanos. E o Cabo Roberto Delgado concorda,
senhor, não parava de insultar
todo mundo, o capitão, o governador, ele mesmo, não conseguia baixar sua crista por nada. Júlio Reátegui lança um olhar
rápido para cima, já veria, e quando inclina
a cabeça tem os olhos molhados, um pouco de paciência, cabo, que sol fazia, cegava qualquer um. E o intérprete: seu cabelo,
dizendo, cartilha, menina. Senhor. Sacaneando
diz, e Manuel Aguila: parecia bêbado, assim deliravam quando estavam dopados, mas era melhor que fossem logo, que as madres
estavam esperando, queria que ele o acompanhasse?
Não, as madres não podiam se meter, meu tenente, não via que eram estrangeiras? Mas o feiticeiro Paredes dizia que a Madre
Angélica
- a mais velhinha da missão, meu tenente, agora que tinha morrido a Madre Asunción - viera de noite à praça para pedir que
baixassem Jum, e que inclusive brigou
com os soldados. A velhinha devia estar penalizada, era a mais renegada de todas, pura ruga, e o Oscuro: para completar,
queimaram as axilas dele com ovos quentes,
o cabo, aquele, queriam que saísse voando até o céu, e Jum, porra! piruanos! O tenente bate o pé de novo, aquilo não eram
modos, puxa, e com os nós dos dedos bate
na escrivaninha, tinham cometido excessos, mas que é que eles podiam fazer agora, tudo isso terminara. O que dizia agora?
Queria só que devolvessem o que tiraram
dele, tenente, e voltaria para Urakusa, e o sargento, não disse que era teimoso? Aquele caucho até já virará sola de sapatos,
e os couros, bolsas, malas, e quem
sabe onde andava a menina: tinham explicado a ele umas cem vezes, meu tenente. O oficial pensa, o queixo sobre o punho:
sempre podia se dirigir a Lima, reclamar
ao ministério, talvez a Diretoria de Assuntos Indígenas o indenizasse, vamos ver, que Nieves sugerisse isso a ele. Grunhem
e, logo, Jum concorda muitas vezes, limagoverno!
os guardas sorriem, só o prático e o tenente permanecem sérios: cartilbalima! O sargento descruza os braços: não via que
era um selvagem, meu tenente? Como podiam
meter na sua cabeça semelhantes coisas, o que queria dizer para ele Lima, o ministério, entretanto Adrián Nieves e Jum grunhem
com vivacidade, trocam cusparadas
e gestos, o aguaruna se cala por instantes e fecha os olhos, como meditando, logo pronuncia cautelosamente umas frases,
apontando o oficial: que o acompanhasse?
Homem, imagine como gostaria de dar um pulinho até Lima, mas não era
possível,
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e agora Jum aponta para o sargento. Não, não, nem o tenente, nem o sargento, nem os guardas, Nieves, não podiam fazer nada,
que procurasse esse Reátegui,
voltasse a Borja ou o que fosse, o comissariado não estava ali para desenterrar os mortos, não? resolvendo os problemas
do passado, não? Ele estava morrendo de cansaço,
não tinha dormido, sargento, que acabassem logo com aquilo. Além disso, se os que o tinham açoitado eram soldados da guarnição,
e autoridades daqui, quem daria
razão a ele? Adrián Nieves interroga com os olhos o sargento, que é que dizia a ele, afinal? e ao tenente: tudo isso? O
oficial boceja, entreabre preguiçosamente
a boca desalentada e o sargento se inclina para ele: melhor dizer que está bem, meu tenente. Que lhe devolveriam o caucho,
os couros, as cartilhas, a menina, tudo
o que quisesse, e o Pesado, em que estava pensando, meu sargento, quem devolveria aquilo se Escabino já era defunto, e o
Chiquito, não seria dos seus soldos, não?
e o sargento, para maior segurança, dariam a ele um papelzinho assinado. Já tinham feito isso outra vez, com o Tenente Cipriano,
meu tenente, dava resultado. Poriam
um selo de papel e pronto: agora, com isso, vá buscar o Senhor Reátegui e o Escabinodiabo, para que devolvam tudo a você.
E o Oscuro, uma sacanagem em regra, meu
sargento?
Mas essas coisas não agradavam ao tenente, ele não podia assinar nenhum papel sobre um assunto tão velho, e além disso,
mas o sargento, só um papel de jornal, uma
assinatura de mentirinha, e assim iria tranqüilo. Eram teimosos mas acreditavam no que a gente dizia, ele passaria meses
e anos procurando Escabino e o Senhor Reátegui.
Bem, e que agora dessem a ele alguma coisa de comer e que fosse embora sem que ninguém pusesse um dedo em cima dele, capitão,
por favor, que ele mesmo desse essa
ordem. E o capitão, com muito prazer, Dom Júlio, chama o cabo: entendido? O castigo se acabara, nem um dedo nele, e Júlio
Reátegui: o importante era que voltasse
a Urakusa. Nunca mais batendo em soldados, nunca mais enganando patrão, se os urakusas se portam bem, os cristãos se portam
bem, se os urakusas se portam mal, os
cristãos se portam mal: que traduzisse isso, e o sargento dá uma gargalhada que alegra todo o seu rosto redondo: não disse,
meu tenente? Sim, tinha se livrado dele,
mas o oficial não gostava daquilo, não estava acostumado com esses procedimentos, e o Pesado, a selva não era Lima, meu
tenente, aqui tinha que lidar com selvagens.
O tenente fica de pé, sargento, este problema deixara sua cabeça zonza,
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que não o acordassem ainda que caísse o mundo. Não queria outra cervejinha antes de dormir? não, que lhe levassem uma talha
com água? mais tarde.
O tenente faz uma continência para os guardas e sai. A Plaza de Santa Maria de Nieva está cheia de índios, as mulheres que
moem, sentadas no chão, formam uma grande
roda, algumas levam crianças presas às mamas. O tenente pára no meio do atalho e, atacando o sol com a mão, contempla as
capironas por um momento: robustas, altas,
masculinas. Um cachorro magro passa perto e o oficial o segue com o olhar, e então vê o prático Adrián Nieves, que se aproxima
dele e lhe mostra, na mão, os pedacinhos
pretos e brancos do papel de jornal, tenente: não era tão babaca como pensava o sargento,
tinha feito em tiras o papel, e o atirara na praça, ele acabava de encontrá-lo.
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- Um segredo com que o senhor nem sonha, meu sargento - disse o Pesado, baixando a voz. - Mas que os outros não ouçam.
O Oscuro, o Chiquito e o Rubio conversavam no balcão com Paredes, que servia umas doses de anis. Um menino saiu da cantina
com três panelinhas de barro, atravessou
a deserta Plaza de Santa Maria de Nieva e desapareceu na direção do comissariado. Um sol forte dourava as capironas, os
tetos e as paredes das cabanas, mas não chegava
à terra porque uma bruma esbranquiçada, flutuante, que parecia vir do rio Nieva, continha-o ao rés-do-chão e o enfraquecia.
- Não estão ouvindo - disse o sargento. - Qual é o segredo?
- Já sei quem é a que está na casa dos Nieves - o Pesado cuspiu umas sementes pretas de mamão e limpou, com o lenço, a cara
suada -, aquela que nos deixou tão curiosos
na outra noite.
- Ah, sim? - disse o sargento. - E quem é?
- A que tirava o lixo da missão - sussurrou o Pesado olhando de viés para o balcão -, a que mandaram embora porque ajudou
as pupilas a fugir.
O sargento revistou os bolsos, mas seus cigarros estavam sobre a mesa. Acendeu um e tragou fundo, atirou uma baforada de
fumaça: uma mosca revoou angustiada dentro
da nuvem e escapou zumbindo.
-- Como foi que você soube? - perguntou o sargento. - Os Nieves apresentaram você a ela?
Como quem não quer nada, meu sargento,
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o Pesado foi dar umas voltinhas pela cabana do prático, e esta manhã ele a tinha visto, trabalhando na chácara com a mulher
de Nieves: Bonifácia, assim é que se
chamava. Não
se enganara, Pesado? Por que ela estaria com os Nieves, por acaso rião era meio freira? Não, desde que a mandaram embora
já não era mais, não vestia o hábito, e
o Pesado a reconhecera logo. Um pouco retaca, meu sargento, embora tivesse formas. E devia ser virgenzinha, mas, por favor,
que não dissesse nada aos outros.
- Você pensa que sou xereta? - disse o sargento. Pare com essas recomendações bobas.
Paredes trouxe copinhos de anis e ficou junto à mesa, enquanto o sargento e o Pesado bebiam. Em seguida, limpou a mesa com
um pano e voltou ao balcão. O Oscuro,
o Rubio e o Chiquito saíram da cantina e, na porta, uma soalheira vermelha acendeu seus rostos, seus pescoços. A bruma havia
crescido e, de longe, os guardas pareciam
agora mutilados, ou cristãos vadeando um rio de espuma.
- Não se meta em problemas com os Nieves, que são meus amigos - disse o sargento.
E quem é que se meteria com eles? Mas seriam loucos se não aproveitassem a ocasião, meu sargento. Só eles sabiam, de modo
que, como bons companheiros, não? o Pesado
se encarregava do trabalhinho, meio a meio, está bem? depois a passava, de acordo? Mas o sargento começou a tossir, não
gostava dessas divisões, soltava fumaça pelo
nariz e pela boca, que merda, por que é que as sobras tocariam a ele?
- E por acaso não fui eu que a vi primeiro, meu sargento? - perguntou o Pesado. - E verifiquei quem era e tudo. Mas olhe,
o que é que o tenente faz por aqui?
Apontou para a praça, por ali vinha o tenente, meio corpo fora da mancha gasosa, piscando sob o sol, com a camisa limpa.
Quando emergiu da bruma, a metade inferior
de suas calças e as botas estavam úmidas.
- Venha comigo, sargento - ordenou da escadinha.
- Dom Fábio quer nos ver.
- Não se esqueça do que eu disse, meu sargento murmurou o Pesado.
O tenente e o sargento afundaram-se na bruma até a cintura. O cais e as cabanas baixas dos arredores já tinham sido devorados
pelas ondas de névoa, que arremetiam
agora, altas e ondulantes, contra os telhados e os terraços. Em contrapartida, uma luz diáfana cingia as colinas,
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os prédios da missão resplandeciam intactos, e as árvores de troncos diluídos pela névoa luziam suas copas limpas e as suas
folhas, seus ramos, e suas prateadas
teias de aranha
faiscavam.
- Foi à casa das madrezinhas, meu tenente? - perguntou o sargento. - Devem ter dado uma surra nas crianças, não é?
- Já as perdoaram - disse o tenente. - Esta manhã foram ao rio. A superiora me disse que a doentinha estava melhor.
Na escadinha da cabana do governador, sacudiram as calças molhadas e esfregaram as solas cheias de barro contra os degraus.
O quadrado de tela metálica que protegia
a porta era tão diminuto que ocultava o interior. Uma aguaruna velha e descalça abriu a porta, entraram, e, lá dentro, estava
fresco e cheirava a verde. As janelas
estavam fechadas, o quarto permanecia na penumbra; distinguiam-se confusamente os arcos, fotografias, zarabatanas e flechas
presas às paredes. Cadeiras de balanço
floreadas circundavam o tapete de chamiça e Dom Fábio aparecera na entrada do quarto contíguo, tenente, sargento, risonho
e enxuto sob a careca luminosa, a mão estendida:
chegara a ordem, imaginem! Deu um tapinha no ombro do oficial, como estavam? fazia gestos amáveis, que achavam da notícia?
mas antes, um refresco? umas cervejinhas,
não parecia mentira? Deu uma ordem em aguaruna e a velha trouxe duas garrafas de cerveja. O sargento virou o copo de um
gole, o tenente passava o seu de uma mão
para a outra e tinha os olhos errantes e preocupados, Dom Fábio bebia, como um passarinho, aos golinhos.
- Comunicaram a ordem por rádio às madres? disse o tenente.
Sim, nesta manhã, e elas tinham avisado Dom Fábio imediatamente. Dom Júlio dizia sempre, aquele ministro está torpedeando
a coisa, é o meu pior inimigo, não sairá
nunca. E era a pura verdade, agora viam, mudou o ministério e a ordem veio voando.
- Depois de tanto tempo - disse o sargento. - Eu tinha até me esquecido dos bandidos, governador.
Dom Fábio Cuesta sorria sempre: deviam partir o quanto antes para estar de volta antes das chuvas, não aconselhava as cheias
do Santiago, as barreiras e os redemoinhos
do Santiago, quantos cristãos aquelas cheias já tinham sacrificado?
- Só temos quatro homens no posto e isso não é suficiente
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- disse o tenente. - E depois, um guarda tem que ficar aqui, cuidando do comissariado.
Dom Fábio piscou um olho velhacamente, mas se o novo ministro era amigo de Dom Júlio, amigo. Tinha dado todas as facilidades,
e não iriam sozinhos, mas com soldados
da guarnição de Borja. E eles também já haviam recebido a ordem, tenente. O oficial bebeu um gole, ah, e concordou sem entusiasmo:
bom, essa era outra conversa.
Mas não entendia, e mexia a cabeça perplexamente, esse assunto agora era como a ressurreição de Lázaro, Dom Fábio. Assim
andavam as coisas em nossa pátria, tenente,
mas em que estava pensando ele, aquele ministro demorava, pensando que só prejudicava Dom Júlio, sem perceber o terrível
dano que causava a todos. Mas, antes tarde
do que nunca, não é?
- Mas já não há mais denúncias contra aqueles ladrões, Dom Fábio - disse o tenente. - A última foi quando eu mal tinha chegado
a Santa Maria de Nieva, veja só quanto
tempo passou.
E que importância tinha isso, tenente? Não havia denúncias aqui, mas do outro lado, sim, e depois aqueles criminosos tinham
que pagar sua dívida, aceitava mais uma
cervejinha? O sargento aceitou e, novamente, esvaziou seu copo de um gole: não era por isso, governador, mas talvez fizessem
uma viagem inútil, os ladrões não estariam
mais lá. E se as chuvas chegassem antes, quanto tempo podiam ficar enterrados na mata. Nada, nada, sargento, deveriam estar
na guarnição de Borja dentro de quatro
dias, e outra coisa que o tenente precisava saber: esse era um assunto que Dom Júlio tomava muito a peito. Os criminosos
fizeram com que perdesse muito tempo e
paciência, uma coisa que Dom Júlio não perdoava. O tenente não dizia que sonhava sair daqui? Dom Júlio o ajudaria se tudo
corresse bem, a amizade daquele homem valia
ouro, tenente, Dom Fábio sabia por experiência própria.
- Ah, Dom Fábio - sorriu o oficial -, como o senhor me conhece bem. Pôs o dedo na ferida.
- E também o sargento sairá beneficiado - replicou o governador, batendo palmas, feliz. - Claro! Não estou dizendo a vocês
que Dom Júlio e o novo ministro são amigos?
Muito bem, Dom Fábio, fariam o que fosse possível. Mas que os convidasse a tomar outro copo, para reagir, a notícia os deixara
meio estonteados. Acabaram as cervejas
e falaram e brincaram na fresca e cheirosa penumbra, em seguida o governador acompanhou-os até a escadinha e dali
acenou para eles.
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A bruma cobria tudo agora e, entre seus véus e danças ambíguas, as cabanas e as árvores flutuavam suavemente, escureciam
e iluminavam-se, e havia
fugazes silhuetas circulando pela praça. Uma voz miúda e tristonha cantarolava ao longe.
- Primeiro, correr atrás das crianças, e agora isto disse o sargento. - Eu não acho graça navegar no Santiago nesta época,
vai ser uma canseira horrível, meu tenente.
Quem é que vai ficar no posto?
- O Pesado, que se cansa por tudo - disse o tenente. - Você gostaria de ficar, não é?
- Mas o Pesado tem muitos anos de selva - disse o sargento -, isto dá experiência, meu tenente. Por que não deixa o Chiquito,
que é tão dado a doenças?
- O Pesado - disse o tenente. - E não fique com essa cara. Eu também não gosto desta droga, mas você ouviu o governador,
de repente, depois desta viagenzinha, muda
a sorte e saímos daqui. Ande, vá chamar o Nieves e traga os outros a minha casa, para fazer o plano de trabalho.
O sargento ficou um momento imóvel na bruma, as mãos nos bolsos. Logo, cabisbaixo, atravessou a praça, passou junto ao cais,
debaixo de uma densa capa de névoa,
internou-se pelo atalho e caminhou por uma paisagem enfumaçada e escorregadia, carregada de eletricidade e de grasnidos.
Quando chegou à frente da cabana do prático,
falava só, as mãos espremiam o quepe e as perneiras, as calças e a camisa estavam salpicadas de barro.
- Que milagre a estas horas, sargento - Lalita escorria os cabelos, inclinada sobre o parapeito; o rosto, os braços e o
vestido pingavam. - Mas, entre, suba, sargento.
Indeciso, pensativo, sempre mexendo os lábios, o sargento subiu a escadinha, no terraço deu a mão a Lalita e, quando se
voltou, Bonifácia estava junto dele, também
empapada. O vestido cor de couro cru aderia a seu corpo, os cabelos úmidos cingiam seu rosto como uma touca, e os olhos
verdes olhavam o sargento contentes, sem
embaraço. Lalita torcia a bainha de sua saia, tinha vindo visitar sua hóspede, sargento? e gotinhas transparentes rolavam
sobre seus pés: aí a tinha. Estiveram pescando
e se meteram no rio com aquela névoa, imagine, não viam nada, mas a água estava morninha, gostosa, e Bonifácia aproximou-se:
comida? anis? Em vez de responder,
Lalita deu uma gargalhada e entrou na cabana.
- Você deixou que o Pesado a visse esta manhã - disse o sargento.
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- Por quê? Não disse a você que não queria?
- Lá vem o senhor com ciúme dela, sargento - disse Lalita, da janela, entre risos. - Que importância tem que a vejam. Não
está querendo que a coitada passe a vida
se escondendo, não?
Bonifácia examinava o rosto do sargento, muito séria, e em sua atitude havia algo de assustado e confuso. Ele deu um passo
até ela e os olhos de Bonifácia se alarmaram,
mas não se mexeu, e o sargento levantou um braço, tomou-a pelo ombro, Chininha, não queria que falasse com o Pesado, e nem
tampouco com qualquer cristão, Senhora
Lalita.
-- Eu não posso proibir - disse Lalita, e Aquilino, que aparecera na janela, riu. - E o senhor também, sargento, por acaso
é seu irmão? Só sendo marido poderia.
- Eu não o vi - gaguejou Bonifácia. - É mentira, não me viu, eu contaria.
- Não se humilhe, não seja boba - disse Lalita.
- Em vez disso, faça com que ele tenha ciúme, Bonifácia.
O sargento trouxe Bonifácia para junto do seu corpo, era melhor que ele nunca a visse com o Pesado, e com dois dedos levantou
seu queixo, que nunca a visse com
nenhum homem, senhora, e Lalita deu outra gargalhada, e junto ao rosto do Aquilino apareceram outros dois. Os três meninos
comiam o sargento com os olhos, e com
ninguém ele a haveria de ver, Bonifácia agarrou a camisa do sargento, e seus lábios tremiam: prometia.
- Você é uma boba - disse Lalita. - Logo se vê que não conhece os cristãos, ainda mais os fardados.
- Tenho de sair de viagem - disse o sargento, abraçando Bonifácia. - Não voltaremos antes de três semanas, talvez um mês.
- Comigo, sargento? - Adrián Nieves, de cuecas, estava na escadinha, esfregando com a mão o corpo brilhante e ossudo. -
Não me diga que as pupilas fugiram outra
vez.
E quando voltasse se casariam, Chininha, e sua voz se cortou, e ele se pôs a rir como um idiota, enquanto Lalita gritava
e irrompia no terraço, resplandecente, os
braços abertos, e Bonifácia saía a seu encontro e se abraçavam. O prático Nieves apertou a mão do sargento, que falava gaguejando,
Dom Adrián, é que se emocionara
um pouco: queria que eles fossem padrinhos, claro. Estava vendo, Senhora Lalita, caíra na sua armadilha, e Lalita, sabia
desde o princípio que o sargento era um
cristão
correto, que a deixasse abraçá-lo.
182
Fariam uma grande festa, ia ver como festejariam. Bonifácia, aturdida, abraçava o sargento, Lalita, beijava a mão do prático,
levantava os meninos, e eles, com
muito prazer seriam padrinhos, sargento, que ficasse para comer esta noite. Os olhos verdes relampejavam, e Lalita, construiriam
sua casa aqui mesmo ao lado, entristeciam-se,
eles os ajudariam, alegravam-se, e o sargento, tinha que cuidar muito dela, senhora, não queria que ela visse ninguém enquanto
ele estivesse de viagem, e Lalita,
é claro, nem à porta sairia, eles a amarrariam.
- E agora, para onde vamos? - perguntou o prático. - Outra vez por causa das madrezinhas?
- Quem me dera que fosse por isso - disse o sargento. - Vão nos tirar o couro, Dom Adrián. Imagine que chegou a ordem. Vamos
pelo Santiago, para procurar aqueles
bandidos.
- Pelo Santiago? - disse Lalita. Desfigurara-se, estava rígida e boquiaberta, e o prático Nieves, apoiado no parapeito,
examinava o rio, a bruma, as árvores. Os
meninos continuavam correndo à volta de Bonifácia.
- com gente da guarnição de Borja - disse o sargento. - Mas por que ficaram assim? Não há perigo, seremos muitos. E talvez
aqueles ladrões já tenham até morrido
de velhos.
- O Pintado vive ali embaixo - disse Adrián Nieves, apontando o rio oculto pela névoa. - Conhece bem a região e é um prático
dos bons. É preciso avisá-lo agorinha
mesmo, às vezes sai para pescar a estas horas.
- Mas como? - disse o sargento. - O senhor não quer vir conosco, Dom Adrián? São mais de três semanas, ganhará um bom dinheiro.
- É que estou doente, com as febres - disse o prático. - Vomito tudo, e a cabeça está rodando.
- Mas, Dom Adrián - disse o sargento. - Não me diga isso, então o senhor está doente? Por que não quer ir?
- Está com as febres, vai se deitar agora mesmo disse Lalita. - Vá rápido à casa do Pintado, sargento, antes que saia para
pescar.
E ao anoitecer ela fugiu como ele ensinara, desceu o barranco, e Fushía, por que você se demorou tanto, depressa, para a
lanchinha. Afastaram-se de Uchamala com
o motor desligado, quase às escuras, e ele, todo o tempo,
183
não terão visto você, Lalita? pobre de você se a viram, estou arriscando o pescoço, não sei por que faço isso, e ela que
fosse na frente, cuidado, um redemoinho,
e à esquerda
pedras. Afinal, refugiaram-se em uma praia, esconderam a lancha, atiraram-se na areia. E ele, estou ciumento, Lalita, não
me fale do cachorro do Reátegui, mas necessitava
de uma lancha e comida, dias amargos nos esperam, mas você há de ver, eu me sairei bem, e ela, sairá, ajudarei você, Fushía.
E ele falava da fronteira, todos vão
dizer, foi para o Brasil, cansarão de me procurar, Lalita, quem vai pensar que vim para este lado, se chegamos ao Equador
não há problema. E de repente, tire a roupa,
Lalita, e ela, as formigas vão me morder, Fushía, e ele, mesmo que mordam. Depois choveu toda a noite e o vento arrebatou
o abrigo que os protegia e eles se revezavam
para espantar os pernilongos e os morcegos. Embarcaram ao amanhecer e até que apareceram os rápidos a viagem foi boa: um
barquinho e se escondiam, um povoado, um
quartel, um avião e se escondiam. Passou uma semana sem chuvas; viajavam desde que saía o sol até que se ia e, para economizar
as conservas, pescavam anchovas, bagres.
Durante as tardes procuravam uma ilha, um banco de areia, uma praia, e dormiam protegidos por uma fogueira. Passavam pelos
povoados de noite, sem ligar o motor,
e ele, força, Lalita, e ela, meus braços não agüentam, há muita corrente, e ele, força, porra, que já falta pouco. Perto
de
Barranca' deram de cara com um pescador
e comeram juntos, e eles, estamos fugindo, e o outro, posso ajudar? e Fushía, queremos comprar gasolina, que está acabando,
e o outro, me dê o dinheiro, vou ao povoado
e trago. Demoraram duas semanas para ultrapassar os pongos, em seguida internaram-se por canais, lagunas e igapós, perderam-se,
a lancha virou duas vezes, acabou-se
a gasolina, e certa madrugada, Lalita, não chore, já chegamos, olhe, são huambisas. Lembravam-se dele, pensavam que vinha,
como de outras vezes, comprar caucho.
Deram uma cabana para eles, duas esteiras, e assim passaram muitos dias. E ele, você está vendo o que lhe acontece por estar
grudada em mim? era melhor que tivesse
ficado em Iquitos com sua mãe, e ela, se um dia o matam, Fushía, e ele, então você será mulher de huambisa, andará com as
tetas de fora e se pintará com anil,
rúpia e zarcão, vão botar você a amassar mandioca para fazer masato, imagine só o que a espera. Ela chorava,
' Povoado, às margens do Marañón, departamento de Loreto.
184
os huambisas riam, e ele, boba, era de brincadeira, talvez você seja a primeira cristã que esta gente viu, há um montão
de tempo cheguei aqui com um cara de Moyobamba
e
nos mostraram a cabeça de um cristão que entrou no Santiago procurando ouro; está com medo? e ela, sim, Fushía. Os huambisas
serviam pedaços de cabritos, pacas,
bagres, mandioca e, certa vez, uns bichos verdes, e eles vomitaram, de quando em quando um veado, um tambaqui ou um pacu.
Fushía conversava com eles da manhã à
noite, e ela, conte-me, que está perguntando a eles, que é que eles dizem, e ele, coisas, não se preocupe, a primeira vez
que chegamos aqui com Aquilino, nós os
conquistamos com bebida e vivemos seis meses com eles, trazíamos facas, fazendas, espingardas, anis e eles nos davam caucho,
couros e até hoje não posso me queixar,
eram meus clientes, são meus amigos, sem eles já estaria morto, e ela, sim, mas vamos embora, Fushía, a fronteira não está
perto? E ele, são melhores que os caucheiros,
Lalita, começando por aquele cachorro do Reátegui, e, se não acredita, veja como ele se portou comigo, fiz ele ganhar tanto
dinheiro e não queria me ajudar, é a
segunda vez que os huambisas me salvam. E ela, mas quando é que vamos para o Equador, Fushía, agorinha mesmo começam as
chuvas e então não poderemos. E ele deixou
de falar da fronteira e passava as noites sem dormir, sentado na esteira, caminhava, falava sozinho, e ela, que é que você
tem, Fushía, deixe que eu o aconselhe,
para isso sou sua mulher, e ele, silêncio, estava pensando. E certa manhã ele se levantou, desceu aos pulos o barranco e
ela, lá de cima, não faça isso, eu imploro
pelo Cristo de Bagazán', santo, santo, e ele continuou batendo com o machete na lancha até esburacá-la e afundá-la, e quando
subiu o barranco de volta trazia os
olhos contentes. Ir ao Equador sem roupas, sem dinheiro e sem documentos? Uma loucura, Lalita, as polícias se comunicam
de um país para outro, só ficaremos mais
um tempinho, aqui posso ficar rico, tudo depende dessa gente e de que encontre Aquilino, é o homem que nos faz falta, venha,
vou explicar, e ela, que foi que você
fez, Fushía, Santo Deus. E ele, ninguém passa por aqui e quando saírmos já terão se esquecido de mim, e além disso teremos
dinheiro para tapar a boca de qualquer
um. E ela, Fushía, Fushía, e ele, tenho que encontrar Aquilino, e ela, por que você a afundou, não quero morrer na selva,
e ele, sua louca, precisava apagar os rastros.
' Imagem de Cristo muito venerada pelos peruanos.
185
E um dia partiram numa canoa, com dois remadores huambisas, em direção ao Santiago. Escoltavam-nos os mosquitos, chuvas
de pernilongos, o canto rouco dos trombeteiros,
e durante as noites, apesar do fogo e dos cobertores, os morcegos planavam sobre seus corpos e os mordiam em lugares macios:
nos dedos dos pés, no nariz, na base
do crânio. E ele, longe do rio, por aqui há soldados. Sulcavam canais estreitos, escuros, sob abóbadas de folhagem hirsuta,
igapós pútridos, às vezes lagoas eriçadas
de sapinhos, e também atalhos que os huambisas abriram a machete, levando a canoa ao ombro. Comiam o que encontravam,- raízes,
talos de suco ácido, ervas cozidas,
e um dia caçaram uma anta, carne para uma semana. E ela, não chegarei, Fushía, não tenho mais pernas, arranhei meu rosto,
e ele, falta pouco. E então o Santiago
apareceu, foi quando comeram cascudos, que capturavam debaixo das pedras do rio e defumavam, e um tatu caçado pelos huambisas,
e ele, viu como chegamos, Lalita?
esta terra é boa, tem comida e tudo está saindo como queríamos, e ela, o rosto me arde, Fushía, juro que não posso mais.
Acamparam por um dia e depois continuaram,
Santiago acima, parando para dormir e comer em povoados huambisas de duas, três famílias. Uma semana mais tarde abandonaram
o rio e durante horas navegaram por um
canal estreito onde o sol não entrava, e tão baixo que suas cabeças tocavam a mata. Saíram, e ele, Lalita, a ilha, olhe,
o melhor lugar que há, entre a mata e os
pântanos, e antes de desembarcar fez com que os huambisas dessem voltas por todo o contorno, e ela, vamos viver aqui? e
ele, está escondida, em todas as margens
há mato alto, aquela ponta está boa para o cais. Desembarcaram e os huambisas reviravam os olhos, mostravam os punhos, grunhiam,
e Lalita, o que há com eles, Fushía,
por que estão raivosos, e ele, medrosos de merda, querem voltar, assustaram-se com as lupunas. Porque no alto do barranco
e à volta de toda a ilha, como um compacto
e altíssimo muro, havia lupunas de troncos ásperos, inchados de corcovas e grandes asas rugosas, que lhes serviam de base.
E ela, não grite tanto com eles, Fushía,
vão ficar bravos. Estiveram discutindo, grunhindo e gesticulando, e por fim convenceu-os a entrar atrás dele na mata que
cobria a ilha. E ele, você ouve, Lalita?
está cheia de pássaros, tem araras, não ouve? e quando encontraram um carcará comendo uma cobrinha preta os huambisas chiaram,
e ele, cachorros medrosos, e ela,
você está louco, isso tudo é selva, Fushía, como é que vamos viver aqui, e ele,
186
você pensa que eu não calculo tudo? aqui vivi com Aquilino e aqui viverei de novo e aqui ficarei rico, você verá como consigo.
Regressaram ao barranco, ela voltou
à
canoa, e ele e os huambisas internaram-se na mata novamente e, de repente, por cima das lupunas, subiu uma coluna de fumaça
cor de chumbo, e começou a cheirar a
queimado. Ele e os huambisas voltaram correndo, pularam para a canoa, atravessaram a laguna e acamparam na outra margem,
junto à boca do canal. E ele, quando acabar
a queimada ficará uma clareira grande, Lalita, que não chova, e ela, que não haja vento, Fushía, que o fogo não venha até
aqui e pegue na mata. Não choveu e o fogo
durou quase dois dias, e eles permaneceram no mesmo lugar, recebendo a fumaça espessa, fedorenta, das lupunas e catahuas,
as cinzas que iam e vinham pelo ar, olhando
as chamas azuis, pontiagudas, as chispas que se estilhaçavam crepitando na laguna, ouvindo como rangia a ilha. E ele, está
pronto, queimaram-se os diabos, e ela,
não os provoque, são suas crenças, e ele, não me entendem, e além disso estão rindo, curei-os para sempre do medo de lupunas.
O fogo ia limpando a ilha, despovoando-a:
de dentro da fumaceira saíam bandos de pássaros e nas margens apareciam barrigudos, micos, sagüis, preguiças que chiando
saltavam para os troncos de árvores e ramos
flutuantes; os huambisas entravam na água, pegavam-nos aos montes, abriam suas cabeças a machete, e ele, que banquete estão
tendo, Lalita, já passou a raiva deles,
e ela, eu também quero comer, mesmo que seja carne de macaco, estou com fome. E quando voltaram à ilha havia muitas clareiras,
mas o barranco continuava intacto
e em muitos lugares sobreviveram redutos de mato cerrado. Começaram o desmatamento, todo dia lançavam à laguna troncos mortos,
aves carbonizadas, cobras, e ele,
me diga se está contente, e ela, estou, Fushía, e ele, você acredita em mim? e ela, sim. E logo ficou um setor de terra
plana e os huambisas cortaram árvores e uniram
as lascas de madeira com cipós, e ele, olhe, Lalita, é como uma casa, e ela, nem tanto, mas melhor que dormir na mata. E
na manhã seguinte, quando despertaram,
um xexéu fazia seu ninho diante da cabana, suas plumas negras e amarelas reluziam entre a folhagem, e ele, bom sinal, Lalita,
esse pássaro é sociável, se veio é
porque sabe que aqui ficaremos.

187
E nesse mesmo sábado uns vizinhos recuperaram o cadáver e, envolto em um lençol, levaram-no ao rancho da lavadeira. O velório
reuniu muitos homens e mulheres da
Gallinacera na casa de Juana Baura, e ela chorou toda a noite, beijou muitas vezes as mãos, os olhos, os pés da morta. Ao
amanhecer, umas mulheres tiraram Juana
do quarto, e o Padre Garcia ajudou a instalar o corpo no caixão comprado graças a uma coleta popular. Naquele domingo, o
Padre Garcia oficiou a missa na capela
do mercado, e encabeçou o cortejo fúnebre, e do cemitério voltou à Gallinacera com Juana Baura: os moradores viram quando
ele atravessou a Plaza de Armas rodeado
de mulheres, pálido, os olhos fulminantes, os punhos crispados. Mendigos, engraxates, vagabundos somaram-se ao cortejo,
que, ao chegar ao mercado, ocupava toda a
largura da rua. Lá, trepado em um caixote, o Padre Garcia começou a vociferar e, pelos arredores, abriam-se portas, as vendedoras
do mercado abandonavam suas bancas
para ouvi-lo, e insultaram e apedrejaram dois guardas municipais que tentavam evacuar o lugar. Os gritos do Padre Garcia
eram ouvidos no Camal e, no La Estrella
del Norte, os forasteiros ficaram calados, surpresos: de onde vinha aquele rumor, para onde iam tantas mulheres? Secreto,
feminino, pertinaz, corria um rumor pela
cidade, e, enquanto isso, sob um céu de turvos urubus, o Padre Garcia continuava falando. A cada vez que se interrompia,
ouvia-se Juana Baura gritar, ajoelhada a
seus pés. Então, as mulheres começaram a se agitar surdamente, a murmurar. E quando chegaram os guardas com seus paus da
lei, um mar encapelado saiu ao seu encontro,
o Padre Garcia à frente, iracundo, um crucifixo na mão direita, e quando quiseram fechar o caminho às mulheres, houve uma
chuva de pedras, ameaças: os guardas retrocediam,
refugiavam-se nas casas, outros caíam, e o mar investia contra eles, afundava-os, deixava-os para trás. Assim entraram as
enfurecidas ondas na Plaza de Armas, rugidoras,
enfurecidas, armadas de paus e de pedras e, à sua passagem, caíam as trancas das portas, fechavam-se os postigos, os graúdos
precipitavam-se para a catedral e os
forasteiros, abrigados nos pórticos, presenciavam atônitos o avanço da torrente. O Padre Garcia tinha lutado com os guardas?
Eles o tinham agredido? Sua batina
rasgada mostrava um peito magro e leitoso, uns braços compridos e ossudos. Levava o crucifixo sempre no alto e falava com
voz rouca. Assim passou a torrente por
La Estrella del Norte, jogou pedras e os vidros da cantina voaram em
pedaços,
188
e quando as mulheres entraram no Viejo Puente seu esqueleto rangeu, bamboleou como um bêbado e, ao franquear o Rio Bar e
pisar Castilla, muitas mulheres
já tinham tochas nas mãos, corriam, e das bocas das chichertas saía mais gente, mais rugidos, mais tochas. Chegaram ao areal,
e cresceu uma poeirada, um gigantesco
pião, sutil e dourado, e no coração da espiral viam-se rostos de mulheres, punhos, chamas.
Encolhida sob a nívea, ofuscante claridade do meio-dia, portas e janelas fechadas, a Casa Verde parecia uma mansão deserta.
Os muros vegetais cintilavam docemente
na soalheira, desvaneciam-se nas esquinas com uma espécie de timidez e como um veado ferido, na mansidão do local havia
algo de indefeso, dócil, temeroso, diante
da multidão que se aproximava. Padre Garcia e as mulheres aproximaram-se das portas, a gritaria parou e houve uma súbita
imobilidade. Mas então escutaram-se os gritos
e, assim como as formigas abandonam seus labirintos quando o rio os inunda, surgiram as mulheres, empurrando-se e uivando,
mal pintadas, seminuas, e a palavra do
padre elevou-se, troou sobre o mar e, entre as ondas e os balanços, incontáveis tentáculos alargavam-se, agarravam as mulheres,
derrubavam-nas e, no chão, batiam
nelas. Em seguida o Padre Garcia e as mulheres inundaram a Casa Verde, encheram-na em alguns segundos, e do seu interior
provinha um estrondo de destruição: estalavam
copos, garrafas, quebravam-se mesas, rasgavam-se lençóis, cortinas. Do primeiro andar, do segundo e do torreão, começou
um minucioso dilúvio doméstico. Pelo ar calcinado
voavam vasos, peniquinhos, pias lascadas e bandejas, pratos, colchões estripados, cosméticos e uma salva de vivas saudava
cada projétil que descrevia uma parábola
e se cravava no areal. Muitos curiosos, e também mulheres, disputavam os objetos e as peças de roupas, e havia encontrões,
disputas, violentíssimos diálogos. Em
meio à desordem, machucadas, sem voz, tremendo ainda, as mulheres levantavam-se, caíam umas nos braços das outras, choravam
e se consolavam. A Casa Verde ardia:
purpúreas, agudas, deslocadas, viam-se as chamas dentro da fumaça cinzenta que ascendia até o céu piurano em lentos redemoinhos.
A multidão começou a retroceder,
os gritos foram amainando; pelas portas da Casa Verde, as invasoras e o Padre Garcia abandonaram o local correndo, sacudidos
pela tosse, chorando por causa da fumaça.
Do parapeito do Viejo Puente, do Malecón, das torres das igrejas,
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dos tetos e sacadas, grupos de pessoas contemplavam o incêndio: uma hidra de cabeças encarnadas e celestes crepitando sob
um toldo enegrecido. Só quando
o esbelto torreão desabou, e fazia pouco que, impelidos por uma brisa leve, choviam sobre o rio carvões, lascas e cinzas,
apareceram os guardas e vigilantes municipais.
Misturaram-se com as mulheres, impotentes e atrasados, confusos e fascinados, como os demais, pelo espetáculo do fogo. E
de repente houve cotoveladas, movimentação,
mulheres e mendigos sussurravam, e diziam, "Está chegando, vem aí".
Vinha pelo Viejo Puente: gallinazas e curiosos voltavam-se para olhá-lo, afastavam-se do seu caminho, e ninguém o detinha
e ele avançava, tenso, os cabelos desarrumados,
a cara suja, incrivelmente espantados os olhos, a boca trêmula. Fora visto na véspera, bebendo em um bar mangache, onde
apareceu ao entardecer, a harpa debaixo do
braço, choroso e lívido. E lá passou a noite cantarolando entre soluços. Os mangaches aproximavam-se dele, "Como foi, Dom
Anselmo? que aconteceu? é verdade que o
senhor vivia com Antônia? que a mantinha na Casa Verde? verdade que morreu?" Ele gemia, queixava-se e, por fim, rolou ao
chão, bêbado. Dormiu, e ao acordar pediu
mais um trago, continuou bebendo, beliscando a harpa, e assim estava quando uma criança entrou no bar: "A Casa Verde, Dom
Anselmo! Eles a estão queimando! As gallinazas
e o Padre Garcia, Dom Anselmo!"
No Malecón alguns homens e mulheres saíram ao seu encontro, "você roubou Antônia, você a matou", e rasgaram sua roupa, e
quando fugia atiraram pedras nele. Só no
Viejo Puente é que começou a gritar e a implorar, e toda a gente, é conversa, tem medo de que o linchem, mas ele continuava
clamando e as assustadas mulheres, com
a cabeça, que sim, que era verdade, que talvez estivesse lá dentro. Ele se ajoelhara no areai, suplicava, dava o céu por
testemunho e, então, brotou uma espécie
de mal-estar entre todos, os guardas e os vigilantes interrogavam as gallinazas, surgiam vozes contraditórias, e se fosse
verdade? que fossem ver, que se mexessem,
que chamassem o Doutor Zevallos. Enrolados em couros molhados, uns mangaches mergulharam na fumaça e emergiram, instantes
depois, sufocados, derrotados, não se podia
entrar, era o inferno lá dentro. Homens, mulheres, fustigavam o Padre Garcia, e se fosse verdade? Padre, padre, Deus o castigaria.
Ele olhava para uns e outros distraído,
Dom Anselmo debatia-se entre os guardas, queria um couro, ele entraria, que tivessem piedade.
190
E quando Angélica Mercedes apareceu e todos comprovaram que era verdade, que estava ali, ilesa, nos braços da cozinheira,
e viram como o harpista se emocionava,
agradecia ao
céu, e beijava as mãos de Angélica Mercedes, muitas mulheres se enterneceram. Em voz alta lastimavam a criança, consolavam
o harpista, ou se encolerizavam com o
Padre Garcia e o censuravam. Estupefata, aliviada, comovida, a multidão cercava Dom Anselmo, e ninguém, nem as mulheres,
nem as gallinazas, nem os mangaches olhavam
mais para a Casa Verde, para a fogueira que a consumia e que agora a pontual chuva de areia começava a apagar, a devolver
ao deserto, onde havia, fugazmente, existido.
Os invencíveis entraram como sempre: abrindo a porta com um pontapé e cantando o hino: eram os invencíveis, não sabiam trabalhar,
só mamar, só jogar, eram os invencíveis
e agora iam foder.
- Só posso contar o que ouvi naquela noite, moça disse o harpista -, você já notou que eu quase não enxergo? Isso me livrou
da polícia, eles me deixaram tranqüilo.
- O leite já está quente - disse a Chunga, do balcão. - Me ajude, Selvática.
A Selvática levantou-se da mesa dos músicos, foi até o bar e ela e a Chunga trouxeram uma jarra de leite, pão, café em pó
e açúcar. As luzes do salão ainda estavam
acesas, mas agora o dia entrava pela janelas, quente, claro.
- A moça não sabe como foi, Chunga - disse o harpista, bebendo o leite aos golinhos. - Josefino não contou a ela.
- Pergunto e muda de conversa - disse a Selvática.
- Por que é que você se interessa tanto, ele me diz, não insista que fico com ciúme.
- Além de sem-vergonha, hipócrita e cínico - disse a Chunga.
- Só havia dois clientes quando eles entraram - disse o Bolas. - Naquela mesa. Um deles era Seminário.
Os León e Josefino tinham se instalado no bar e gritavam e brincavam, faziam muitas palhaçadas: nós amamos você, Chunga,
Chunguita, você é a nossa rainha, a nossa
mãezinha, Chunga, Chunguita.
- Parem com essas babaquices e consumam, ou vão embora - disse a Chunga. E para a orquestra: - Por que não tocam?
191
- Não podíamos - disse o Bolas. - Os invencíveis faziam um barulho dos diabos. A gente via que estavam contentíssimos.
- É que naquela noite eles estavam forrados de dinheiro - disse a Chunga.
- Olhe, olhe - o Mono mostrava um leque de notas e lambia os lábios. - Quanto calcula?
- Que avarenta que você é, Chunga, que olhares você pôs no dinheiro - disse Josefino.
- Vai ver que é roubado - replicou a Chunga. Que é que lhes sirvo?
- Deviam estar embriagados - disse a Selvática. Sempre ficam fazendo bobagens e cantam.
Atraídas pelo ruído, três mulheres apareceram na escada: Sandra, Rita, Maribel. Quando viram os invencíveis, porém, pareceram
desiludidas, abandonaram suas poses
presumidas e ouviu-se a gigantesca gargalhada da Sandra, eram eles, que logro, mas o Mono abriu os braços para elas, que
viessem, que pedissem qualquer coisa, e
mostrou-lhes o dinheiro.
- Sirva alguma coisa também para os músicos, Chunga - disse Josefino.
- Rapazes amáveis - sorriu o harpista. - Estão sempre nos convidando a beber. Eu conheci o pai de Josefino, moça. Era barqueiro
e atravessava as reses que vinham
de Catacaos. Carlos Rojas, um cara muito simpático.
A Selvática encheu de novo a xícara do harpista e pôs açúcar. Os invencíveis sentaram-se à mesa com Sandra, Rita e Maribel
e recordavam uma partida de pôquer que
jogaram no Reina. O Joven Alejandro tomava seu café com ar lânguido: eram os invencíveis, não sabiam trabalhar, só mamar,
só jogar, eram os invencíveis e agora
iam foder.
- Ganhamos deles limpamente, Sandra, palavra. A sorte nos ajudava.
- Seqüência real três vezes seguidas, alguém já viu coisa igual?
- Ensinavam a letra para as moças - disse o harpista, com voz risonha e benévola. - E depois vieram para cá conosco, para
que tocássemos seu hino. Eu por mim tocaria,
mas peçam primeiro permissão à Chunga.
- E você fez sinais concordando, Chunga -- disse o Bolas.
- Estavam consumindo como nunca
192
- a Chunga explicou à Selvática. - Por que não devia fazer a vontade deles?
- É assim que as desgraças começam às vezes - disse o Joven, com um gesto melancólico. - com uma canção.
- Cantem, para pescarmos a melodia - disse o harpista. - Vamos ver, Joven, Bolas, abram bem os ouvidos.
Enquanto os invencíveis cantavam em coro o hino, a Chunga balançava-se em sua cadeira como uma tranqüila dona-de-casa, e
os músicos seguiam o compasso com o pé
e repetiam a letra entre dentes. Depois, todos cantaram em voz alta, com acompanhamento de violão, harpa e pratos.
- Agora acabou - disse Seminário. - Chega de cantorias e de desrespeitos.
- Até então não se importara com o barulho e estava muito calmo, tranqüilo, conversando com um amigo - disse o Bolas.
- Eu vi quando ele se levantou - disse o Joven.
- Estava furioso, pensei que ia se atirar sobre nós.
- Não tinha voz de bêbado - disse o harpista. Nós o atendemos, calamos, mas ele não se acalmava. Desde que hora estava aqui,
Chunga?
- Desde cedo. Veio de perto, de sua fazenda, com botas, calças de montar e armado.
- Um touro de homem aquele Seminário - disse o Joven. - E um olhar cruel. Mas você é mais forte, mais homem que ele.
- Obrigado, irmão - disse o Bolas.
- Você é uma exceção, Bolas - disse o Joven. Corpo de boxeador e alminha de ovelha, como diz o maestro.
- Não fique assim, Senhor Seminário - disse o Mono.
- Só estamos cantando o nosso hino. Permita que a gente o convide a uma cerveja.
- Mas ele estava com raiva - disse o Bolas. - Tinha sido mordido por alguma coisa e queria briga.
- Então vocês são os galinhos que criam problemas pelas ruas e praças? - disse Seminário. - Por que não se metem comigo?
Rita, Sandra e Maribel afastaram-se nas pontas dos pés até o bar. O Joven e o Bolas protegiam com seus corpos o harpista,
que, sentado no seu banquinho, a expressão
tranqüila, ajustava as claves da harpa. Seminário continuava, ele também era um boêmio, bamboleando, e sabia se divertir,
batendo no peito, mas trabalhava, dobrava
o lombo na terra, não gostava de vagabundos, corpulento e loquaz debaixo da
lâmpada violeta,

193
os mortos de fome. os que se fazem de loucos.
- Somos jovens, senhor. Não estamos fazendo nada de errado.
-- Já sabemos que o senhor é muito forte, mas isso não é razão para insultar a gente.
- É verdade que uma vez levantou um burro' à força e o atirou sobre o teto de uma casa? É verdade, Senhor Seminário?
- Eles se rebaixavam tanto? - disse a Selvática.
- Não pensava isso deles.
- Que medo eles têm de mim - ria Seminário, aplacado. - Como me puxam o saco.
- Na hora da verdade, os homens sempre se cagam
- disse a Chunga.
- Nem todos, Chunga - protestou o Bolas. - Se ele se metesse comigo, ia ver.
- Estava armado, os invencíveis tinham razão de se assustar - sentenciou o Joven, suavemente: - O medo é como o amor, Chunga,
coisa humana.
- Você pensa que é um sábio - disse a Chunga. Mas comigo suas filosofias não pegam, se é que ainda não sabe.
- Pena que os rapazes não foram embora naquele momento - disse o harpista.
Seminário voltara à mesa, e também os invencíveis, sem as marcas da alegria de um momento atrás: que se embriagasse e veria,
mas não, andava com revólver, melhor
agüentar a raiva até outro dia, mas por que não queimar sua camioneta? estava ali fora, junto ao Clube Grau.
- Será melhor sair, deixá-lo fechado aqui e meter fogo na Casa Verde - disse Josefino. - Umas duas latas de querosene e
um fosforozinho chegariam. Como o Padre Garcia
fez.
- Queimaria como palha seca - disse José. - E também a favela e até o estádio.
- É melhor queimar toda Piura - disse o Mono.
- Uma fogueira grandíssima, que se veja de Chiclayo. Todo o areal ficaria muito escuro.
- E cairiam cinzas até em Lima - disse José. - Mas teríamos que salvar a Mangachería.
' No original, catacaos: os peruanos costumam chamar o burro, animal, de catacaos, que é, também, o natural de Catacaos,
em Piura.
194
- Claro, não faltava mais nada - disse o Mono. Encontraríamos o jeito.
- Eu tinha uns cinco anos quando houve o incêndio
- disse Josefino. - Vocês se lembram de alguma coisa dele?
- Não do começo - disse o Mono. - Fomos no dia seguinte, com umas crianças do bairro, mas os tiras nos correram daqui. Parece
que os que chegaram primeiro roubaram
muitas coisas.
- Eu só me lembro do cheiro de queimado - disse Josefino. - E que ainda se via fumaça, e que muitas algarobeiras tinham
virado carvão.
- Vamos pedir ao velho que nos conte - disse o Mono. - A gente o convida para umas cervejas.
- Mas não era de brincadeira? - disse a Selvática.
- Ou estavam falando de outro incêndio?
- Coisas de piuranos, moça - disse o harpista. Não acredite quando eles falarem disso. É pura invenção.
- Não está cansado, maestro? - disse o Joven. São quase sete horas, poderíamos ir embora.
- Não tenho sono ainda - disse Dom Anselmo. Espere até digerir o café.
Acotovelados no balcão, os invencíveis tentavam convencer a Chunga: que o deixasse parar um instantinho, que é que custava,
para conversar um pouco, que a Chunga
Chunguita não fosse mazinha.
- Todos gostam muito do senhor, Dom Anselmo disse a Selvática. - Eu também, me faz recordar um velhinho da minha terra,
que se chamava Aquilino.
- Tão generosos, tão simpáticos - disse o harpista.
- Me levaram à sua mesa e ofereceram uma cervejinha.
Estava suando. Josefino pôs um copo na sua mão, ele o tomou de uma virada e ficou bocejando. Logo, com seu lenço colorido,
secou a testa, as densas sobrancelhas
brancas
e se assoou.
- Um favor de amigos, velho - disse o Mono. Conte como foi o incêndio.
A mão do harpista procurou o copo e, em vez do seu, agarrou o do Mono; esvaziou-o de um gole. De que falavam, qual incêndio,
e voltou a assoar-se.
- Eu era criança e vi as chamas do Malecón. E toda gente correndo com couros e baldes de água - disse Josefino. - Por que
não nos conta, harpista? Que é que sente,
depois de tanto tempo?
195
- Não houve nenhum incêndio, nenhuma Casa Verde
- afirmava o harpista. - Invenções do povo, rapazes.
- Por que nos goza? - perguntou o Mono. - Coragem, harpista, conte, mesmo que não seja tudo.
Dom Anselmo levou dois dedos à boca e simulou fumar. O Joven deu a ele um cigarro e o Bolas o acendeu. A Chunga apagara
as luzes do salão e o sol entrava ali abundantemente,
pelas janelas e fendas. Havia marcas amarelas nas paredes e no chão, o zinco do teto reverberava. Os invencíveis insistiam,
é verdade que umas mulheres se queimaram?
é verdade que foram as gallinazas que a incendiaram? ele estava lá dentro? o Padre Garcia fez aquilo por pura maldade ou
por causa da religião? é verdade que Dona
Angélica salvou a Chunguita de morrer queimada?
- Puro boato - assegurava o harpista -, conversas do povo só para fazer o Padre Garcia ficar com raiva. Deveriam deixá-lo
em paz, pobre velho. E agora tenho que
trabalhar, rapazes, com licença.
Levantou-se e, a passos curtos, as mãos adiante, voltou ao lugar da orquestra.
- Estão vendo? Ele se faz de babaca como sempre -- disse Josefino. - Eu sabia que era de propósito.
- Nessa idade o cérebro amolece - disse o Mono -, talvez tenha esquecido tudo. Temos que perguntar ao Padre Garcia. Mas
quem se atreve?
E nisso abriu-se a porta e entrou a ronda.
- Esses sacanas - murmurou a Chunga. - Vinham filar um trago.
- A ronda, quer dizer, o Lituma e mais dois tiras, Selvática - disse o Bolas. - Apareciam aqui todas as noites.
196

II.

Sob a curva sombra das bananeiras, Bonifácia endireitou-se e olhou para o povoado: homens e mulheres atravessavam correndo
a Plaza de Santa Maria de Nieva, agitando
as mãos muito excitadas em direção ao cais. Inclinou-se de novo sobre os sulcos retilíneos da terra, mas, um momento depois,
voltou a erguer-se: fluía gente sem
cessar, alvoroçada. Espiou a cabana dos Nieves; Lalita continuava cantarolando lá dentro, uma serpentina de fumaça cinzenta
escapava por entre as fendas da parede,
ainda não aparecera no horizonte a lancha do prático. Bonifácia contornou a cabana, invadiu os matagais da margem, e, com
água até os tornozelos, avançou em direção
ao povoado. As copas das árvores confundiam-se com as nuvens, os troncos, com as línguas ocre das ribeiras. Tinha começado
a cheia, o rio arrastava correntes parasitas,
de águas mais avermelhadas ou mais escuras, e também arbustos, flores decepadas, algas e .formas que podiam ser pedregulho,
excremento ou ratos mortos. Olhando para
todos os lados, devagar, cautelosamente, como um rastreador, percorreu um bosquezinho de juncos e, ao passar um cotovelo,
viu o cais: todos estavam imóveis entre
as estacas e as canoas e havia uma balsa parada a alguns metros do molhe flutuante. O crepúsculo azulava as túnicas e os
rostos dos aguarunas, e também havia homens,
as calças levantadas até os joelhos, o torso nu. Podia ver a corda que cedia ou se esticava com o vaivém da balsa do recém-chegado,
a estaca da proa e, muito nítida,
a choça armada na popa. Uma revoada de garças sobrevoou o bosquezinho, e Bonifácia ouviu, muito próximo, o bater de asas,
levantou a cabeça e viu os pescoços finos,
alvos,
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os corpos rosados afastando-se. Então, continuou caminhando, mas muito abaixada e agora não pela margem mas metida no mato,
arranhando os braços, o rosto
e as pernas com o fio das folhas, os espinhos e os ásperos cipós, entre zumbidos, sentindo viscosas carícias nos pés. Quase
onde terminava o mato, a pouca distância
da gente aglomerada, parou e se pôs de cócoras: a vegetação fechou-se sobre ela e agora podia vê-lo através de uma complicada
geometria verde de losangos, cubos
e ângulos inverossímeis. O velho não tinha nenhuma pressa; ia e vinha pela balsa calmamente, acomodando com minuciosa exatidão
os caixotes e a mercadoria diante
dos espectadores que cochichavam e faziam gestos de impaciência. O velho entrava na choça e voltava com uma mercadoria,
uns sapatos, uma enfiada de colares e miçangas
e, sério, cuidadoso, cheio de manias, ordenava-as sobre os caixotes. Era muito magro, quando o vento alargava sua camisa
parecia um corcunda; em seguida, porém,
o peito e as costas afundavam quase até se tocar e revelavam sua verdadeira silhueta, fina, estreitíssima. Vestia umas calças
curtas e Bonifácia viu suas pernas,
magras como os braços, seu rosto de pele queimada, quase preta, e a fantástica, sedosa cabeleira branca, ondulada sobre
os ombros. O velho ainda ficou por um bom
tempo trazendo utensílios domésticos e enfeites multicoloridos, empilhando cerimoniosamente fazendas estampadas. O cochichar
crescia cada vez que o velho tirava
alguma coisa da choça, e Bonifácia podia ver a admiração das pagãs e das cristãs, seus fascinados, cobiçosos olhares às
bugigangas, travessas, espelhinhos, pulseiras
e talcos, e os olhos dos homens fixos nas garrafas alinhadas no canto da balsa, junto a latas de conservas, cinturões e
machetes. O velho avaliou seu trabalho por
um instante, voltou-se para aquela gente e todos correram, em tumulto, chapinhando à volta da embarcação. Ele sacudiu a
melena branca e os conteve com as mãos.
Brandindo sua vara como uma lança, obrigou-os a retroceder, a subir em ordem. A primeira foi a mulher do Paredes. Gorda,
desajeitada, não conseguia subir a bordo,
o velho teve de ajudá-la e ela esteve mexendo em tudo, cheirando os frascos, manuseando nervosamente as fazendas e sabonetes,
e toda a gente murmurou e protestou
até que ela regressou ao cais, água pela cintura, segurando no alto um vestido estampado, um colar, uns sapatos brancos.
Assim foram subindo à balsa, uma após outra,
as mulheres. Algumas eram lentas e desconfiadas ao escolher, outras discutiam o preço interminavelmente
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e havia quem chorasse e ameaçasse pedindo abatimento. Todas, entretanto, voltavam da balsa com alguma coisa nas mãos, alguns
cristãos com sacas repletas de provisões,
e algumas pagãs com apenas uma bolsinha de contas. Quando o cais ficou deserto, anoitecia: Bonifácia levantou-se. O Nieva
estava em plena cheia, ondinhas crespas
e espumosas corriam sob a ramagem e morriam junto a seus joelhos. Tinha o corpo manchado de lama, folhas presas aos cabelos
e ao vestido. O velho guardava a mercadoria,
metódico e preciso dispunha os caixotes na proa e, sobre Santa Maria de Nieva, o céu era uma constelação de alcatrão e olhos
de mocho, mas do outro lado do Marañón,
sobre a cidadela sombria do horizonte, uma franja azul ainda resistia à noite e a lua despontava atrás dos prédios da missão.
O corpo do velho era uma esquálida
mancha, na penumbra, sua cabeleira prateada brilhava como um peixe. Bonifácia olhou para o povoado: havia luz na cabana
do governo, na casa de Paredes, e umas lamparinas
tremeluziam sobre as colinas, nas janelas da residência. A escuridão engolia a lentos bocados as cabanas da praça, as capironas,
o caminho escarpado. Bonifácia abandonou
seu refúgio e correu agachada até o cais. A lama da margem estava macia e quente, a água do remanso parecia imóvel, e ela
sentiu-a subir pelo corpo, e só a uns metros
da ribeira começava a corrente, uma moderada força obstinada que a obrigou a bracejar para não se desviar. A água chegava
ao seu queixo, quando tocou a balsa, viu
as calças brancas do velho, a roda de sua cabeleira: era tarde, que voltasse amanhã. Bonifácia alçou-se um pouco sobre a
borda, apoiou nela os cotovelos, e o velho,
inclinado para o rio, examinou-a: falava cristão? entendia?
- Sim, Dom Aquilino - disse Bonifácia. - Boa noite.
- É hora de dormir -- disse o velho. - Já fechou a loja, volte amanhã.
- Seja bonzinho - disse Bonifácia. - Me deixa subir um pouquinho?
- Você tirou dinheiro do seu marido e por isso vem a estas horas - disse o velho. - E se ele reclama amanhã?
Cuspiu na água e riu. Estava de cócoras, seus cabelos caíam espumosos e livres em volta do rosto, e Bonifácia via sua testa
escura, limpa de rugas, seus olhos parecendo
dois animaizinhos ardentes.
- Que me importa - disse o velho -, eu só faço meu negócio. Ande, suba.
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Estendeu a mão; Bonifácia, porém, já subira, elasticamente, e sobre a coberta torcia o vestido e esfregava os braços. Colares?
Sapatos? Quanto dinheiro tinha? Bonifácia
começou a sorrir com timidez, não precisava de um trabalhinho, Dom Aquilino? e seus olhos vigiavam a boca do velho com ansiedade,
que lhe fizessem a comida enquanto
ficava em Santa Maria de Nieva? que fossem colher frutas para ele? não precisava que limpassem sua balsa? O velho se aproximou
dela, de onde a conhecia? e a examinou
de cima a baixo: já a vira antes, não é verdade?
- Gostaria de uma fazendinha - disse Bonifácia, e mordeu os lábios. Apontou para a choça e, por um instante, seus olhos
se iluminaram. - Aquela amarela que guardou
por último. Pago-a com um trabalhinho, o senhor me diz qual, e eu faço.
- Nada de trabalhinhos - disse o velho. - Não tem dinheiro?
- É para um vestido - sussurrou Bonifácia, suave e tenaz. - Quer frutas? Prefere que lhe salgue um peixe? E rezarei para
que não aconteça nada em suas viagens, Dom
Aquilino.
- Não preciso de rezas - disse o velho; olhou para ela muito de perto e logo estalou os dedos. - Ah, já a reconheci.
- vou me casar, não seja ruim - disse Bonifácia. com essa fazendinha farei um vestido, eu sei costurar.
- Por que não está vestida de freira? - disse Dom Aquilino.
- Já não vivo com as madres - disse Bonifácia. Me mandaram embora da missão e agora vou me casar. Me dê aquela fazendinha;
eu lhe faço um trabalhinho e, na próxima
vez que vier, eu lhe pago com dinheiro, Dom Aquilino.
O velho pôs a mão no ombro de Bonifácia, fez com que retrocedesse para que o clarão da lua batesse no seu rosto, examinou
minuciosamente os seus ardentes olhos
verdes, o miúdo corpo que pingava: já era mulher. As madres a mandaram embora porque se complicou com algum cristão? com
esse é que ia se casar? Não, Dom Aquilino,
tinha se complicado depois, e ninguém sabia no povoado onde estava, e onde estava? Os Nieves a receberam; afinal, podia
fazer um trabalhinho para ele?
- Você está vivendo com Adrián e Lalita? - perguntou Dom Aquilino.
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- Eles me apresentaram ao homem que vai ser meu marido - disse Bonifácia. - Têm sido muito bons para mim, como se fossem
meus pais.
- Eu vou agora à casa dos Nieves - disse o velho.
- Venha comigo.
- E a fazendinha? - disse Bonifácia. -- Não se faça de rogado, Dom Aquilino.
O velho desceu à água sem ruído, Bonifácia viu a cabeleira flutuar até o cais, viu-a voltar. Dom Aquilino subiu com a corda
ao ombro, enrolou-a e com a vara levou
a balsa rio acima, pegado à margem. Bonifácia levantou a outra vara e, de pé na borda oposta, imitou o velho, que afundava
e puxava a sua com destreza, sem esforço.
À altura do matinho de juncos a corrente era mais forte e Dom Aquilino teve de manobrar para que a embarcação não se afastasse
da margem.
- Dom Adrián saiu cedo para pescar, mas deve ter voltado - disse Bonifácia. - Eu o convidarei para o casamento, Dom Aquilino,
mas me dará a fazendinha, não? vou
me casar com o sargento, o senhor o conhece?
- com um tira? Então não dou - disse o velho.
- Não fale assim, ele é um cristão de bom coração disse Bonifácia. - Pergunte aos Nieves, eles são amigos do sargento.
Lamparinas brilhavam na cabana do prático e percebiam-se silhuetas junto ao parapeito. A balsa atracou diante da escadinha,
vieram vozes de boas-vindas, e Adrián
Nieves entrou na água para pegar a corda e amarrá-la a um mourão. Subiu logo na balsa e ele e Dom Aquilino abraçaram-se,
e depois o velho subiu ao terraço e Bonifácia
viu-o pegar Lalita pela cintura e oferecer-lhe o rosto, e viu que ela o beijava muitas vezes na testa, fizera boa viagem?
nas faces, e os três meninos prenderam-se
às pernas do velho, gritando, e ele acariciava suas cabeças: algumas chuvinhas, sim, vieram antes do tempo as bandidas.
- Então você andava por aí? - perguntou Lalita. Nós procuramos você por toda parte, Bonifácia. Direi ao sargento que você
foi ao povoado e viu homens.
- Ninguém me viu - disse Bonifácia. - Só Dom Aquilino.
- Não importa, nós diremos para que ele fique com ciúmes - riu Lalita.
- Foi ver as mercadorias - disse o velho; tinha posto no colo o menor dos meninos e agora os dois se
despenteavam os cabelos.
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- Estou cansado, fizeram-me trabalhar o dia todo.
- vou lhe servir um traguinho, enquanto fica pronta a comida - disse o prático.
Lalita trouxe uma cadeira para Dom Aquilino, voltou ao interior da cabana, ouviu-se o crepitar do braseiro e começou a cheirar
a fritura. Os meninos subiam aos joelhos
do velho, que fazia carinhos neles enquanto brindava com Adrián Nieves. Tinham acabado a garrafa quando chegou Lalita, secando
as mãos na saia.
- Sua cabeça é tão linda - disse, acariciando os cabelos de Dom Aquilino. - Cada vez mais branca, mais suavezinha.
- Quer fazer ciúme a seu marido também? - perguntou o velho.
A comida logo ficaria pronta, Dom Aquilino, preparara coisas que lhe agradariam, e o velho sacudia a cabeça tratando de
se livrar das mãos de Lalita: se não o deixasse
em paz, cortaria os cabelos. Os meninos estavam perfilados diante dele, olhavam para ele agora mudos e com os olhos inquietos.
- Já sei o que esperam - disse o velho. - Não me esqueço, há presentes para todos. Para você, uma roupa de homem, Aquilino.
Os olhos rasgados do maiorzinho brilharam, e Bonifácia estava apoiada no parapeito. Dali viu o velho levantar-se, descer
a escadinha, retornar ao terraço com pacotes,
que os meninos arrebataram de suas mãos, e o viu, em seguida, aproximar-se de Adrián Nieves. Ficaram conversando em voz
baixa e, de quando em quando, Dom Aquilino
olhava de viés para ela.
- Você tinha razão - disse o velho. - Adrián diz que o sargento é um bom cristão. Ande, pegue a fazendinha, é presente de
casamento.
Bonifácia quis beijar a mão de Dom Aquilino, que a retirou com um gesto de aborrecimento. E enquanto voltava à balsa, remexia
entre os caixotes e tirava a fazenda,
ouvia o velho e o prático sussurrando misteriosamente, e via as duas caras juntas, falando e falando. Subiu ao terraço e
eles se calaram. Agora a noite cheirava
a peixe frito e uma brisa veloz estremecia a mata.
- Amanhã vai chover - disse o velho, cheirando o ar. - Péssimo para o negócio.
- Já devem estar na ilha - disse Lalita mais tarde,
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enquanto comiam. - Partiram faz mais de dez dias. Adrián lhe contou?
- Dom Aquilino encontrou-os no caminho -- disse o prático Nieves. -- Além dos guardas, iam alguns soldados de Borja. Era
verdade o que o sargento dissera.
Bonifácia viu que o velho olhava para ela de viés, sem deixar de mastigar, parecendo intranqüilo. Um momento depois, sorria
de novo e contava histórias de suas viagens.
Da primeira vez que saíram em expedição, regressaram após quinze dias. Ela estava no barranco, o sol avermelhava a laguna
e, de repente, apareceram à saída do canal:
uma, duas, três canoas. Lalita levantou-se de um pulo, era preciso esconder-se, mas os reconheceu: na primeira, Fushía,
na segunda, Pantacha, na terceira, huambisas.
Por que voltaram tão depressa, se ele falou um mês? Desceu correndo até o cais, e Fushía, Aquilino chegou, Lalita? e ela,
ainda não, e ele, que o velho vá à puta
que o pariu. Só traziam uns poucos couros de lagarto, Fushía estava furioso, vamos morrer de fome, Lalita. Os huambisas
riam enquanto descarregavam, suas mulheres
revoluteavam entre eles, loquazes, grunhidoras, e Fushía, olhe como estão contentes, esses cachorros, chegamos ao povoado
e os shapras não estavam, e esses caras
queimaram tudo deles, cortaram a cabeça de um cachorro, nada, pura perda, viagem inútil, nenhuma bola de caucho, só esses
couros que não valem nada, e estes caras
felizes. Pantacha estava de cuecas, coçando as axilas, é preciso ir mais para dentro, patrão, a selva é grande e está cheia
de riquezas, e Fushía, burro, para ir
mais longe precisamos de um prático. Foram até a cabana, comeram bananas e mandioca frita. Fushía falava o tempo todo de
Dom Aquilino, que terá acontecido ao velho,
nunca me falhou até agora, e Lalita, choveu muito estes dias, deve ter-se abrigado em algum lugar para não molhar o que
encomendamos. Pantacha, deitado na rede,
coçava a cabeça, as pernas, o peito, e se sua lancha afundou nos pongos, patrão? e Fushía, então estamos fodidos, não sei
o que faremos. E Lalita, não se assuste
tanto, os huambisas semearam toda a ilha, fizeram até cercados, e Fushía, pura merda, isso não dá para nada, e depois, os
selvagens podem viver de mandioca, não
um cristão, esperaremos dois dias, e se Aquilino não chegar terei de fazer alguma coisa. Um instante depois Pantacha fechou
os olhos e começou a roncar, e Fushía
sacudiu-o,
203
que os huambisas estendam os couros antes que se embriaguem, e Pantacha, primeiro uma sestinha, patrão, ando moído de tanto
remar, e Fushía, burro, você
não entende? me deixe só com minha mulher. Pantacha, a boca aberta, quem me dera fosse como o senhor, que tem mulher de
verdade, patrão, os olhos desconsolados,
faz anos que não sei o que é uma branca, e Fushía, fora, ande, vá embora. Pantacha se foi resmungando e Fushía, pronto,
agora, vai sonhar, tire logo a roupa, Lalita,
que está esperando, ela, estou de regras, e ele, que importância tem isso? E ao entardecer, quando Fushía acordou, foram
ao povoado, que cheirava a masato, os huambisas
caíam de bêbados e Pantacha não estava em parte alguma. Encontraram-no no outro extremo da ilha, levara sua esteira para
a margem da laguna, e Fushía, eu não disse?
está sonhando tranqüilo. Falava entre dentes, a cara escondida nas mãos, o fogo continuava ardendo sob a panelinha repleta
de ervas. Uns besouros caminhavam por
suas pernas, e Lalita, ele nem sente. Fushía apagou o fogo, com um pontapé atirou a panelinha na água, vamos ver se o acordamos,
e os dois o sacudiram, beliscaram,
esmurraram, e ele, entre dentes, era cusquenho' por casualidade, sua alma nasceu no Ucayali, patrão, e Fushía, você está
ouvindo? Ela, estou ouvindo, parece louco,
e Pantacha, o coração estava triste. Fushía sacudia-o, chutava-o, serrano de merda, isso não é hora de sonhar, ele está
no outro mundo, Fushía. E ele, entre dentes,
vinte anos no Ucayali, patrão, se encheu de peixe, tinha o corpo duro como a juçara, nem os mosquitos furam. Ele esperava
as bolhinhas, os paiches estão saindo para
tomar ar, passe o arpão, Andrés, duro, faça força, fure-o, eu o amarro, patrão, adormecia os paiches com a primeira pazada,
e a canoa virou no Tamaya, ele escapou
e Andrés não escapou, você se afogou, irmão, as sereias arrastaram você para o fundo, agora você será marido delas, por
que é que você morreu,
charapita' Andrés?
Sentaram-se para esperar que despertasse de todo, e Fushía, tenho tempo, não quero perder este caboclo, é sonhador mas serve,
e Lalita, por que anda sempre com
essas infusões? e Fushía, para não se sentir só. Baratas e besouros passeavam pela esteira e por seu corpo; e ele, por que
virará mateiro, patrão, coisa ruim a vida
na mata,
' Natural de Cuzco, departamento ao sul do Peru.
' Tartaruguinha. Aplicado aí, em tom carinhoso, ao nascido no
departamento de Loreto.
204
eram preferíveis a água e os paiches. Eu sei o que são as terças, Pantacha, essa tremedeira, você vem comigo, eu pago mais,
tem cigarros, convido você a um trago,
você
é meu homem, me leve até os cedros, pau-rosa, me arranje habilitados', madeira de balsa, e ele ia com eles, patrão, quanto
me adianta, e queria ter uma mulher,
filhos, viver em Iquitos como os cristãos. E de repente Fushía, Pantachita, que aconteceu no Aguaytía? conte-me que sou
seu amigo. E Pantacha abriu os olhos e fechou-os,
estavam vermelhos como traseiro de macaco e, entre dentes, aquele rio levava sangue, patrão, e Fushía, sangue de quem, caboclo?
e ele, quente, espesso ocmo borracha
espirrando da seringueira, e também os canais, as lagunas dali, uma verdadeira ferida, patrão, acredite se quiser, e Fushía,
claro que acredito, caboclo, mas de
quem era tanto sangue quente? e Lalita, deixe-o, Fushía, não lhe pergunte nada, está sofrendo, e Fushía, cale-se, puta,
ande, Pantachita, quem sangrava, e ele entre
dentes, o vigarista do Bákovic, aquele iugoslavo que os enganou, pior que o Diabo, patrão, e Fushía, por que você o matou,
Pantacha? e como, caboclo, com quê? e
ele, não queria pagar, não há bastante cedro, vamos mais para dentro, e puxava a winchester, e também surrou um carregador
que lhe roubou uma garrafa. E Fushía,
você deu um tiro nele, caboclo? e ele, com meu machete, patrão, seu braço ficara dormente de tanto dar nele, e começou a
espernear e chorar, e Lalita, veja como
ficou, Fushía, está furioso, e Fushía, arranquei dele um segredo, agora já sei do que andava fugindo quando Aquilino o encontrou.
Voltaram a sentar-se junto à esteira,
esperaram, ele se acalmou e acabou por acordar. Levantou tropeçando, coçando-se com força, patrão, não se zangue, e Fushía,
os cozidinhos vão pôr você louco, e
um dia o mandava embora a pontapés, e Pantacha, não tinha ninguém, sua vida era triste, patrão, o senhor tem a sua mulher,
e os huambisas também, e até os animais,
mas ele estava só, que não se zangasse, patrão, a senhora também, patroa.
Esperaram mais dois dias, Aquilino não chegava, os huambisas foram até o Santiago para ver e voltaram sem notícias. Então
buscaram um lugar para o tanque, e
Pantacha,
' Habilitado é, especialmente, o peão rural, ao qual se adiantou dinheiro por conta de trabalho ou produção; no Peru é,
também, o homem habilitado a comprar a produção
dos selvagens; um intermediário entre o patrão e o selvagem.
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do outro lado do cais, patrão, o barranco é mais inclinado e assim a água das lupunas jorrará em cima, as cabeças dos huambisas
fazem que sim, e Fushía, está
bem, vamos fazê-lo aí. Os homens derrubaram as árvores, as mulheres capinavam, e quando surgiu a clareira os huambisas fizeram
estacas, apontaram-nas e as cravaram
em círculo. A terra era negra na superfície, vermelha embaixo, e as mulheres recolhiam-na em suas túnicas, atiravam-na na
laguna, enquanto os homens cavavam o poço.
Logo choveu e em poucos dias o tanque ficou cheio, pronto para as tartarugas. Saíram ao amanhecer, o canal andava cheio,
as raízes e os cipós vinham ao encontro
deles para arranhá-los, e no Santiago Lalita tremeu, teve febres. Viajaram dois dias, Fushía, até quando, e os huambisas
apontavam para a frente com os dedos. Por
fim, um banco de areia, e Fushía, dizem que é ali, tomara, e atracaram, esconderam-se entre as árvores, e Fushía, não se
mexa, não respire, se a vêem não virão,
e Lalita, tenho enjôos, acho que estou grávida, Fushía, e ele, porra, cale-se. Os huambisas tinham-se convertido em plantas,
imóveis entre as ramas brilhavam seus
olhos, e assim escureceu, começaram a cantar os grilos, a coaxar as rãs e um sapo gordíssimo subiu ao pé de Lalita, que
vontade de esmagá-lo, suas remelas, sua pança
esbranquiçada, e ele, não se mexa, já saiu a lua, e ela, não posso continuar como morta, Fushía, tenho vontade de chorar
e gritar, A noite estava clara, tíbia, corria
uma brisa leve e Fushía, eles nos enganaram, não se vê nenhuma, esses cachorros, e Pantacha, não fale, patrão, não está
vendo? estão saindo. com as ondinhas do
rio chegavam como rodelas, escuras, grandes, ficavam paradas, e logo andavam, avançavam devagarzinho e suas carapaças acendiam-se
com luzes douradas, duas, quatro,
seis, aproximando-se, arrastando-se sobre a areia, as cabeçotas para fora, rugosas, balançando-se, estarão nos vendo, farejando?
e algumas já escavavam para fazer
seus ninhos, outras saíam da água. E então, silenciosamente, surgiram de entre as árvores rápidas silhuetas bronzeadas,
e Fushía, vamos, corra, Lalita, e quando
chegaram à praia, Pantacha, veja, patrão, mordem, quase me tiram um dedo, as fêmeas são as mais ferozes. Os huambisas tinham
virado muitas e grunhiam, contentes.
Tombadas, a cabeça recolhida, as tartarugas mexiam as patas, e Fushía, conte, ela, são oito, e os homens abriam buracos
nas suas carapaças, enfiavam-nas em cipós,
e Pantacha, vamos comer uma, patrão, a espera lhe dera fome. Aí dormiram e no dia seguinte viajaram de novo e, à noite,
outra
praiazinha,
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cinco tartarugas, outro colar, e dormiram, viajaram, e Fushía ainda bem que é época da desova, e Pantacha, o que fazemos
é proibido, patrão? e Fushía, passava
a vida fazendo coisas proibidas, caboclo. A volta foi muito lenta, as canoas iam de sulcada rebocando os colares, e as tartarugas
resistiam, freavam e Fushía, que
estão fazendo, cachorros? não batam nelas, vão matá-las, e Lalita, você me ouviu? olhe, estou com ânsia de vômito, Fushía,
estou esperando um filho, e ele, você
sempre se lembra das piores coisas. No canal, as tartarugas enganchavam-se nas raízes do fundo e a cada momento tinham de
parar. Os huambisas saltavam à água, eram
mordidos pelas tartarugas e subiam à canoa rugindo. Ao entrar na laguna viram a lancha e Dom Aquilino no cais, saudando
com o lenço. Trazia conservas, panelas,
machetes, anis, e Fushía, velho querido, pensei que tinha se afogado, e ele, encontrara uma lancha cheia de soldados e os
acompanhara para despistar. E Fushía, soldados?
e Aquilino, houve um problema em Urakusa, os aguarunas bateram num cabo, parecia, e assassinaram um prático, o governador
de Santa Maria de Nieva ia com eles para
tomar uma satisfação, arrancariam suas almas se não fugissem. Os huambisas puseram as tartarugas no tanque e as alimentaram
com ervas, cascas, formigas, e Fushía,
quer dizer que o cachorro do Reátegui anda por aqui? e Aquilino, os soldados queriam que ele lhes vendesse as conservas,
teve que enganá-los, e Fushía, não diziam
que esse cachorro do Reátegui voltava a Iquitos e deixava o governo? e Aquilino, sim, diz que depois de resolver esse problema
vai embora, e Lalita, que bom que
chegou, Dom Aquilino, não me agradava nada isso de comer tartaruga o inverno todinho.
E assim Dom Anselmo virou mangache. Mas não da noite para o dia, como um homem que escolhe um lugar, faz sua casa e se instala;
foi lento, imperceptível. No começo,
aparecia nas chicherías, a harpa debaixo do braço e os músicos (quase todos tinham tocado para ele alguma vez) aceitavam-no
como acompanhante. O povo gostava de
ouvi-lo, aplaudia-o. E as donas das chicherías, que o estimavam, ofereciam-lhe comida e bebida e, quando estava bêbado,
uma esteira, um cobertor e um canto para
dormir. Nunca era visto por Castilla, nem atravessava o Viejo Puente, como se estivesse decidido a viver distante das lembranças
do areal. Nem sequer freqüentava
os bairros próximos ao rio,
207
a Gallinacera, o Camal, só a Mangachería: entre seu passado e ele se interpunha a cidade. E os mangaches o adotaram, a ele,
e à hermética Chunga, que,
encolhida em uma esquina, o queixo nos joelhos, olhava estranhamente o vazio enquanto Dom Anselmo tocava ou dormia. Os mangaches
falavam de Dom Anselmo, pessoalmente,
porém, tratavam-no de harpista, de velho. Porque desde o incêndio havia envelhecido: seus ombros desmoronaram, afundou-se
o peito, brotaram gretas em sua pele, inchou-lhe
o ventre, as pernas se curvaram e ele ficou sujo, descuidado. Ainda arrastava as botas do seu bom tempo, poeirentas, muito
usadas, as calças em fiapos, a camisa
sem um botão, tinha o chapéu esburacado e as unhas compridas, negras, os olhos cheios de estrias e de remelas. Sua voz enrouqueceu,
suas maneiras se tornaram relaxadas.
Logo no início, alguns graúdos o contrataram para tocar em seus aniversários, batizados e casamentos; com o dinheiro ganho
assim, convenceu Patrocínio Naya a que
os alojasse em sua casa e lhes desse de comer uma vez por dia, a ele e à Chunga, que começava a falar. Mas andava sempre
tão maltrapilho e tão embriagado que os
brancos deixaram de chamá-lo, e passou a ganhar a vida de qualquer maneira, ajudando numa mudança, carregando volumes ou
limpando portas. Aparecia nas chicherías
ao escurecer, de repente, arrastando a Chunga pela mão, na outra, a harpa. Era uma personagem popular na Mangachería, amigo
de todos e de ninguém, um solitário que
tirava o chapéu para cumprimentar meio mundo, mas mal trocava palavras com os outros, e a harpa, a filha e o álcool pareciam
ocupar toda a sua vida. De seus antigos
costumes, só o ódio aos urubus perdurou: via um e buscava pedras, apedrejava-o e o insultava. Bebia muito, mas era um bêbado
discreto, jamais brigão, nada barulhento.
Via-se que estava bêbado por seu andar, não ziguezagueante nem desajeitado, mas cerimonioso: as pernas abertas, os braços
tesos, o rosto grave, os olhos fixos no
horizonte.
Seu sistema de vida era simples. Ao meio-dia abandonava a choça de Patrocínio Naya e, às vezes levando a Chunga pela mão,
às vezes só, saía à rua parecendo ter pressa.
Percorria o labirinto mangache a passo rápido, ia e vinha pelos tortuosos, oblíquos caminhos, e assim subia até a fronteira
sul, o areal que se prolonga até Sullana,
ou descia até os umbrais da cidade, aquela fileira de algarobeiras que guarnece um canal. Ia, retornava, voltava, fazendo
breves paradas nas chicherías. Sem o menor
constrangimento entrava
208
e, quieto, mudo, sério, esperava que alguém o convidasse a uma chicha clarinha, um copo de pisco: agradecia com a cabeça
e logo saía, e prosseguia em sua caminhada
ou passeio ou penitência, sempre no mesmo ritmo febril até que os mangaches o viam parar em algum lugar, deixar-se cair
à sombra de um beiral, acomodar-se na areia,
tapar a cara com o chapéu, e permanecer assim horas, impávido diante das galinhas e cabras, que farejavam seu corpo, roçavam
suas penas e barbas, cagavam nele.
E não estranhavam quando ele parava gente na rua para pedir um cigarro, e quando negavam, não se enfurecia: continuava seu
caminho, altivo, solene. À noite, regressava
à casa de Patrocínio Naya em busca da harpa, e voltava às chicherías, mas dessa vez para tocar. Demorava horas afinando
as cordas, repassando-as com delicadeza
e, quando estava muito bêbado, as mãos não obedeciam e a harpa desafinava, resmungava, seus olhos se entristeciam.
Às vezes ia ao cemitério e ali foi visto furioso, pela última vez, num 2 de novembro, quando os guardas municipais o atacaram
na porta. Insultou-os, lutou com eles,
atirou pedras e, afinal, uns vizinhos convenceram os guardas a que o deixassem entrar. E foi no cemitério, em outro 2 de
novembro, que Juana Baura viu a Chunga,
que estaria por fazer seis anos, suja, em farrapos, brincando entre os túmulos. Chamou-a, fez carinhos nela. Desde então,
a lavadeira vinha, de quando em quando,
à Mangachería, tocando o burro carregado de roupa, e perguntava pelo harpista e pela Chunga. Para ela, trazia comida, um
vestido, sapatos, para ele, cigarros e umas
moedas que o velho corria a gastar na chichería mais próxima. E um dia não viram mais a menina nos becos mangaches, e Patrocínio
Naya contou que Juana Baura levara-a,
para sempre, à Gallinacera. O harpista continuava sua vida, suas caminhadas. Ficava mais velho a cada dia, mais ensebado
e esfarrapado, mas todos se habituaram a
vê-lo assim, ninguém lhe virava o rosto quando passava, calmo e duro, ou quando tinham que se desviar para não pisar em
seu corpo caído na areia, sob o sol.
Só anos depois o harpista começou a se aventurar para fora dos limites da Mangachería. As ruas da cidade cresciam, transformavam-se,
endureciam-se com paralelepípedos
e calçadas altas, engalanavam-se com novas casas e ficavam ruidosas, as crianças corriam atrás dos automóveis. Havia bares,
hotéis e rostos forasteiros, uma nova
estrada para
209
Chiclayo e uma estrada de ferro de trilhos lustrosos unia Piura a Paita, passando por Sullana. Tudo mudava, os piuranos
também. Já não eram vistos pelas ruas com
botas e calças de montar, mas com ternos e até gravatas, e as mulheres, que tinham renunciado às saias escuras até os tornozelos,
vestiam-se com cores claras,
não eram mais escoltadas por criadas nem ocultas em véus e mantas, e andavam sozinhas, o rosto descoberto, os cabelos soltos.
Cada vez havia mais ruas, casas mais
altas, a cidade dilatava-se, retrocedia o deserto. A Gallinacera desapareceu e em seu lugar surgiu um bairro de ricaços.
Uma madrugada, as choças superlotadas atrás
do Camal pegaram fogo; chegaram os guardas municipais, policiais, o governador e o prefeito à frente; com caminhões e paus
expulsaram todo mundo e no dia seguinte
começaram a traçar ruas retas, quarteirões, a construir casas de dois andares, e em pouco tempo ninguém imaginaria que naquele
asseado lugar residencial, habitado
por brancos, tinham vivido peões. Também Castilla cresceu, converteu-se numa pequena cidade. Pavimentaram suas ruas, chegou
o cinema, abriram colégios, avenidas
e os velhos se sentiam transportados a outro mundo, protestavam incomodidades, indecências, abusos.
Um dia, a harpa debaixo do braço, o velho caminhou por aquela cidade renovada, chegou à Plaza de Armas, instalou-se sob
um tamarindeiro, começou a tocar. Voltou
na tarde seguinte, e em muitas outras, sobretudo nas quintasfeiras, e nos sábados, dias de retreta. Os piuranos acudiam
às dezenas à Plaza de Armas, para escutar
a banda do Quartel Grau, e ele se adiantava, oferecia sua própria retreta uma hora antes, passava o chapéu e apenas reunia
alguns soles, voltava à Mangachería. Esta
não mudara, nem os mangaches. Ali continuavam as choças de barro e cana-brava, as velas de sebo, as cabras e, apesar do
progresso, nenhuma patrulha da guarda-civil
se aventurava, de noite, por suas ásperas ruas. E, sem dúvida, o harpista se sentia mangache de coração, porque o dinheiro
ganho nos concertos da Plaza de Armas
ele gastava no bairro. Noite adentro continuava tocando na casa da Tula, de Gertrudes ou de Angélica Mercedes, sua ex-cozinheira,
agora dona de uma chichería. Ninguém
podia mais imaginar a Mangachería sem ele, nem os mangaches pensariam que, na manhã seguinte, não estaria rondando hieraticamente
pelos becos, apedrejando urubus,
saindo das choças de bandeira vermelha, dormindo ao sol,
210
ou que não escutariam mais sua harpa, à distância, na escuridão. Até em sua maneira de falar, nas poucas vezes em que falava,
qualquer piurano reconhecia nele um
mangache.
- Os invencíveis convidaram-no à sua mesa - disse a Chunga. - Mas o sargento fazia que não via.
- Sempre tão educado - disse o harpista. - Veio me cumprimentar e abraçar.
- com suas brincadeiras, estes sacanas vão fazer com que meus subordinados percam o respeito por mim, velho disse Lituma.
Os dois guardas tinham permanecido no bar, enquanto o sargento conversava com Dom Anselmo; a Chunga serviu cerveja e os
León e Josefino falavam sem parar.
- É melhor que não continuem, a Selvática está ficando triste - disse o Joven. - E além disso é tarde, maestro.
- Não fique triste, moça - a mão de Dom Anselmo esvoaçou sobre a mesa, derrubou uma xícara, tocou no ombro da Selvática.
- A vida é assim, e não é culpa de ninguém.
Esses traidores, quando se fardavam, não se sentiam mais mangaches, nem cumprimentavam, nem olhavam mais para a gente.
- Os guardas não sabiam que era pelo sargento disse a Chunga. - Tomavam sua cerveja bem tranqüilos, conversando comigo.
Mas ele, sim, sabia e os fuzilava com o
olhar, e com a mão, parem com isso, calem-se.
- Quem convidou esses fardados? - perguntou Seminário. - Vamos ver, já estão se despedindo. Chunga, faça o favor de mandá-los
embora.
- É o Senhor Seminário, o fazendeiro - disse a Chunga.
- Não se importem com ele.
- Já o reconheci - disse o sargento. - Não olhem ele, rapazes, deve estar bêbado.
- Agora se mete com os tiras - disse o Mono. - Está se fazendo de machão.
- Nosso primo poderia se encarregar dele, que a sua farda sirva para alguma coisa - disse José.
O Joven Alejandro tomou um golinho de café:
- Chegava aqui calmo, mas no segundo copo se enfurecia. Devia ter algum desgosto terrível no coração, e desabafava assim,
com palavrões e murros.
211
- Não fique assim, senhor - disse o sargento. Estamos fazendo nosso trabalho, para isso é que nos pagam.
- Já inspecionaram bastante, já viram que tudo está em ordem - disse Seminário. - Agora andem e deixem esta gente decente
festejar em paz.
- Não se incomode com a gente - disse o sargento.
- Continue festejando, senhor.
O rosto da Selvática estava cada vez mais aflito e, em sua mesa, Seminário se retorcia de cólera, também o tira enchia o
seu saco, já não havia machos em Piura,
que foi que fizeram a esta terra, que desgraça, não era justo. E então, Hortênsia e Amapola aproximaram-se dele e com agradinhbs
e brincadeiras o acalmaram um pouco.
- Hortênsia, Amapola - disse Dom Anselmo. Cada nome que você põe nelas, Chunguita.
- E eles, que é que faziam? - perguntou a Selvática.
- Devem ter ficado furiosos com aquilo que disse de Piura.
- Botavam bílis pelos olhos - disse o Bolas. Mas que é que podiam fazer? Morriam de medo.
Eles não pensavam que Lituma fosse tão maricas, estava armado e devia prendê-lo, Seminário se fazia de vivo, imaginem, procurar
três pernas no gato sabendo que tem
quatro, e Rita, mais devagar, agorinha mesmo ia ouvir, e Maribel, vai haver problema, e Sandra com suas gargalhadas. E,
em pouco tempo, a ronda saiu, o sargento
acompanhou os dois guardas até a porta e voltou só. Sentou-se à mesa dos invencíveis.
- Teria sido melhor que ele fosse embora também disse o Bolas. - Coitado.
- Coitado por quê? - protestou a Selvática, com veemência. - É um homem, não precisa que tenham pena dele.
- Mas você sempre o chama de coitadinho, Selvática
- disse o Bolas.
- Mas eu sou sua mulher - explicou a Selvática, e o Joven esboçou um vago sorriso.
Lituma fazia sermões, por que mexiam com ele diante de sua gente? e eles, você tem duas caras, faz-se de sério diante deles
e depois os despede para farrear à vontade.
com a farda, tinham pena dele, era outra pessoa, e ele, vocês me dão mais pena e, um pouquinho depois, reconciliaram-se
e cantaram: eram os invencíveis, não sabiam
trabalhar, só mamar, só jogar, eram os invencíveis e agora iam foder.
212
- Compor um hino só para eles - disse o harpista. -- Ah, esses mangaches não têm igual.
- Mas você não é mais invencível, primo - disse o Mono. - Você se deixou vencer.
- Não sei como não caiu a sua cara, primo - disse José. - Nunca se viu um mangache virar tira.
- Deviam estar contando anedotas ou falando de suas bebedeiras - disse a Chunga. - De que é que você queria que falassem,
senão disso?
- Dez anos, coleguinha - suspirou Lituma. - É terrível como a vida passa.
- Saúde, pela vida que passa - propôs José, o copo no alto.
- Os mangaches são um pouco filósofos quando estão tocados. Aprenderam com o Joven - disse o harpista.
- Acho que falavam da morte.
-- Dez anos, parece mentira - disse o Mono. Você se lembra do velório de Domitila Yara, primo?
- Um dia depois que cheguei da selva, encontrei o Padre Garcia e ele não respondeu ao meu cumprimento disse Lituma. - Não
perdoou a gente.
- Nada de filósofo, maestro - disse o Joven, ruborizando-se. - Um modesto artista, só isso.
- Na certa, estavam se lembrando de coisas - disse a Selvática. - Sempre que se juntavam, ficavam contando o que faziam
quando crianças.
- Você está falando como uma piurana, Selvática disse a Chunga.
-- Nunca se arrependeu, primo? - perguntou José.
- Tira ou qualquer coisa, tanto faz - Lituma encolheu os ombros. - Como invencível, muita farra e muito jogo, e também muita
fome, colegas. Agora, pelo menos, como
bem, de manhã e de tarde. Já é alguma coisa.
- Se fosse possível, tomaria um pouquinho mais de leite - disse o harpista.
A Selvática levantou-se, Dom Anselmo: ela o preparava para ele.
- A única coisa que invejo é que você correu mundo, Lituma - disse Josefino. - Nós vamos morrer sem sair de Piura.
- Fale só por si - disse o Mono. - A mim não enterram sem eu conhecer Lima.
- Boa moça - disse Anselmo.
213
- Está sempre se oferecendo para tudo. Que serviçal, que simpática. É bonita?
- Não muito, é retaca - disse o Bolas. - E quando está de salto alto, é engraçado como anda.
- Mas tem lindos olhos - afirmou o Joven. Verdes, grandalhões, misteriosos. Agradariam ao senhor, maestro.
-- Verdes? - disse o harpista. - Claro que me agradariam.
- Quem teria acreditado que você ia acabar casado e tira? - disse Josefino. - E logo, logo depois pai de família, Lituma.
- É verdade que na selva as mulheres andam atiradas? - perguntou o Mono. - São tão sensuais como dizem?
- Muito mais do que dizem -- afirmou Lituma. É preciso a gente andar se defendendo. Se a gente se descuida, elas nos sugam
até o bagaço, não sei como não saí de
lá com os pulmões furados.
- Então a gente pode comer quantas tenha vontade?
- perguntou José.
- Principalmente se é da costa - disse Lituma. O pessoal daqui as deixa loucas.
- Pode ser moça, mas é preciso ver que sentimentos
- disse o Bolas. - Faz a vida para sustentar o amigo do marido, e o pobre Lituma na cadeia.
- Não se deve julgar tão depressa, Bolas - disse o Joven penalizado. - É preciso saber o que foi que houve. E não é fácil
conhecer o que há por trás das coisas.
Não atire a primeira pedra, irmão.
- E depois diz que não é filósofo - disse o harpista.
- Escute-o só, Chunguita.
- Em Santa Maria de Nieva tinha muitas fêmeas, primo? - insistia o Mono.
- A gente podia trocar todo dia - disse Lituma. - Muitas, e quentes como quê. De todo tipo
e por atacado, brancas, pretinhas, bastava esticar a mão.
- E se eram tão bonitonas, por que você se casou com
aquela? - riu Josefino. - Não me diga que não, Lituma,
ela é só olho, o resto não vale nada.
- Deu um murro na mesa que se ouviu na catedral
- disse o Bolas. - Discutiram por alguma coisa, parecia que Josefino e Lituma iam brigar.
- São chispinhas, fosforozinhos, acendem-se e se apagam,
214
a raiva deles nunca dura - disse o harpista. - Todos os piuranos têm bom coração.
- Você não sabe mais agüentar brincadeiras? - perguntava o Mono. - Como você mudou, primo.
- Mas se ela é minha irmã, Lituma - exclamava Josefino. - Você pensa que eu falava de verdade? Sente-se, colega, brinde
comigo.
- O que há é que eu gosto dela - disse Lituma. E não é pecado.
- Não há nada de mais que você goste dela - disse
o Mono. - Desça mais cerveja, Chunga.
- A coitada não se acostuma, anda assustada entre tanta gente - dizia Lituma. - Isso é muito diferente de sua terra, vocês
têm de compreendê-la.
- Claro que compreendemos - disse o Mono. Vamos ver, um brinde pela nossa prima.
- É incrível com que bondade nos trata, que comidonas nos prepara - disse José. - Sim, nós três a queremos muito, primo.
- Está bom assim, Dom Anselmo? - perguntou a Selvática. - Não ficou muito quente?
- Muito bem, muito bom - disse o harpista, saboreando. - É verdade que você tem olhos verdes, moça?
Seminário voltara-se para eles com cadeira e tudo, que bagunça era aquela, não se podia mais conversar tranqüilo? e o sargento,
com todo o respeito, que estava
acontecendo, ninguém se metia na sua vida, que não se metesse com eles, senhor. Seminário levantou a voz, quem era ele para
responder, e claro que se metia com
eles, com os quatro, e também com a puta que os havia parido, ouviram?
- Ofendeu a mãe deles? - perguntou a Selvática, piscando.
- Várias vezes naquela noite, aquela foi a primeira
- disse o Bolas. - Esses ricos, só porque tên terras, pensam
que podem ofender a mãe de qualquer um. Hortênsia e Amapola saíram voando,
e, do balcão, Sandra, Rita e Maribel espichavam as cabeças. O sargento
ficou com a voz cortada de raiva, a família não tinha nada que ver com
isso, senhor.
- Se você não gostou, venha e conversemos, caboclinho
- disse Seminário.
- Mas Lituma não foi - disse a Chunga. - Nós o seguramos, com a Sandra.
- Por que ofender a mãe quando a discussão é entre homens?
215
- perguntou o Joven. - A mãe é a coisa mais sagrada que existe.
Hortênsia e Amapola tinham voltado à mesa de Seminário.
- Então não os ouvi mais rir nem voltaram a cantar
o hino - disse o harpista. - Os rapazes ficaram desmoralizados com aquela ofensa.
- Eles se consolaram bebendo - disse a Chunga. Não cabiam mais garrafas na mesa deles.
- Por isso eu acredito que os desgostos que a gente tem dentro explicam tudo - disse o Joven. - Por isso uns acabam bêbados,
outros padres, outros assassinos.
- vou molhar a cabeça - disse Lituma. - Esse cara me estragou a noite.
- Teve razão de se aborrecer, Josefino - disse o Mono. - Ninguém gostaria que lhe dissessem que sua mulher é feia.
- Me enche com tanta prosa - disse Josefino. Comi cem fêmeas, conheço meio Peru, tenho levado uma grande vida. Passa o dia
nos chateando com suas viagens.
- No fundo, você tem tanto ódio dele porque não consegue nada com a mulher - disse José.
- Se sabe que você a persegue, ele o mata - disse o Mono. - Está enamorado de sua fêmea como um bezerro,
- A culpa é dele - disse Josefino. - Por que é tão convencido? Na cama é puro fogo, se mexe assim, assado. Que se foda,
quero ver se essas maravilhas são verdadeiras.
- Apostamos um par de libras' que ela não liga para você, irmão? - perguntou o Mono.
- Logo a gente vê - disse Josefino. - Na primeira vez, quis me esbofetear, na segunda só me insultou, e na
terceira nem sequer se fez de aborrecida, e
até pude boliná-la um pouco.
Já está afrouxando, eu conheço a minha gente.
- Se se entrega, já sabe - disse José. - Onde passa um invencível,
passam os três, Josefino.
- Não sei por que tenho tanto tesão por ela - disse Josefino.
Na verdade, não vale nada. - Porque é de fora - disse o Mono. - a gente
sempre gosta de descobrir
que segredos, que costumes trazem de suas terras. - Parece um
animalzinho - disse José. - Não entende nada, passa a vida perguntando
por que isto, por que aquilo.
' o equivalente a vinte soles.
216
Eu não teria me atrevido a provar primeiro. E se contasse a Lituma, Josefino?
- É das assustadiças - disse Josefino. - Eu senti na hora. Não tem personalidade, morreria de vergonha, mas não contaria
a ele. Pena é que ele a emprenhou. Agora
é preciso esperar que dê à luz para fazer o trabalhinho.
- Depois ficaram dançando como se não tivesse acontecido nada - disse a Chunga. - Parecia que tudo estava terminado.
- As desgraças vêm de repente, quando a gente menos espera - disse o Joven.
- com quem é que ele dançava? - perguntou a Selvática.
- com Sandra - a Chunga olhava para ela com seus olhos apagados e falava devagar: - grudadinhos. E se beijavam. Você tem
ciúmes?
- Foi só por perguntar - disse a Selvática. - Eu não sou ciumenta.
E Seminário, de repente, forte, que se fossem, destemperado, ou os botava para fora a pontapés, rugindo, os quatro juntos.
217
- Nenhum ruído durante toda a noite, nenhuma luz
- disse o sargento. - Não parece estranho, meu tenente?
- Devem estar do outro lado - disse o Sargento Roberto Delgado. - A ilha parece grande.
- Já está clareando - disse o tenente. - Tragam as lanchas, mas não façam barulho.
Entre as árvores e a água, as fardas tinham uma aparência vegetal. Apinhados no estreito reduto, molhados até os ossos,
os olhos ébrios de fadiga, guardas e soldados
endireitavam calças e perneiras. Envolvia-os uma claridade esverdeada que se filtrava pela labiríntica ramagem e, entre
as folhas, ramos e cipós, muitos rostos mostravam
picadas, arranhões violeta. O tenente avançou até a beira da lagoa, afastou a folhagem com uma das mãos, com a outra levou
o binóculo aos olhos e esquadrinhou
a ilha: um barranco alto, ladeiras cinzentas, árvores de troncos robustos e copas frondosas. A água reverberava, já ouviam
os pássaros. O sargento chegou até o
tenente, agachado sob seus pés o mato rangia e estalava. Atrás deles, as silhuetas
difusas de guardas e soldados mal se mexiam no matagal, silenciosamente
abriam cantis e acendiam cigarros.
- Não discutem mais - disse o tenente. - Ninguém diria que passaram a
viagem brigando.
- A noite ruim fez com que ficassem amigos - disse o sargento. - o
cansaço, a falta de conforto. Nada como isso para que os homens se
entendem bem, meu tenente. - Vamos preparar um bom cerco antes que seja
dia - disse o tenente. - É preciso colocar um grupo na margem da frente.
218
- Sim, mas para isso temos de atravessar a laguna
- disse o sargento, apontando a ilha com um dedo. - São uns trezentos metros, meu tenente. Vão nos caçar como pombinhas.
O Sargento Roberto Delgado e os outros tinham se aproximado. O barro e a chuva tornavam iguais as fardas e só os casquetes
e os quepes distinguiam os guardas dos
soldados.
- Mandemos um próprio, meu tenente - disse o Sargento Roberto Delgado. - Não têm outro remédio senão se render.
- É difícil que não tenham visto a gente - disse o sargento. - Os huambisas têm o ouvido apurado, como todos os selvagens.
Pode ser que agora mesmo estejam apontando
para nós das lupunas.
- Vejo e não acredito - disse o Sargento Delgado.
- Pagãos vivendo entre lupunas, com o medo que têm delas.
Soldados e guardas escutavam: peles lívidas, pequenos abscessos de sangue coagulado, olheiras, pupilas inquietas. O tenente
coçou a bochecha, era preciso ver, junto
a sua fronte três espinhas formavam um triângulo arroxeado, os dois sargentos se cagavam de medo? e uma mecha de cabelos
sujos caía na testa semi-oculta sob a pala
do quepe. O quê? Talvez seus guardas estejam com medo, meu tenente, o Sargento Roberto Delgado não sabia como engolir isso.
Brotou um murmúrio e, num único movimento,
que agitou a folhagem, o Chiquito, o Oscuro e o Rubio afastaram-se dos soldados: era ofensa, meu tenente, não permitiam,
com que direito? e o tenente tocou no coldre:
isso podia custar caro, se não estivessem em missão veria.
- Foi só de brincadeira, meu tenente - tartamudeou o Sargento Roberto Delgado. - No exército logramos os oficiais e eles
nunca se embravecem. Pensei que na polícia
era a mesma coisa.
Um rumor de água invadida abafou suas vozes e ouviu-se um cuidadoso bater de remos, um deslizar. Sob a cascata de cipós
e de juncos, apareceram as lanchas. O prático
Pintado e o soldado, que as conduziam, estavam sorridentes e nem seus gestos, nem seus movimentos revelavam fadiga.
- Depois de tudo, talvez seja melhor pedir que se rendam - disse o tenente.
- Claro, meu tenente - disse o Sargento Roberto
219
Delgado. - Não aconselhei não por medo, mas por estratégia. E se querem fugir, daqui faremos tiro ao alvo neles.
- Por outro lado, se vamos até lá, podem fazer sopa da gente, mal atravessemos a laguna - disse o sargento.
- Nós somos só dez e eles quem sabe quantos são. E que armas têm.
O tenente se voltou, guardas e soldados ficaram tensos: quem é o mais antigo? Ansiedade em todos os rostos, rictos nas bocas,
piscar de olhos cheios de susto, e
o Sargento Roberto Delgado apontou para um soldado baixinho e acobreado, que deu um passo à frente: Soldado Hinojosa, meu
tenente. Muito bem, que o Soldado Hinojosa
levasse os homens de Borja para o outro lado da lagoa e os colocasse em frente à ilha, sargento. O tenente ficaria aqui
com os guardas, vigiando a boca do canal.
Para que é que tinha vindo o Sargento Roberto Delgado, meu tenente? o oficial tirou o quepe, para quê? alisou os cabelos
com a mão, ia dizer e, ao pôr de novo o
quepe, a mechinha de sua testa desaparecera: os dois sargentos vão pedir a rendição. Que tirassem as armas e formassem no
barranco, as mãos na cabeça, sargento,
Pintado os levaria. Os sargentos se olharam, sem falar, soldados e guardas, misturados outra vez, sussurravam, e em seus
olhos não havia mais temor mas alívio, chispas
zombeteiras. Precedidos por Hinojosa, os soldados subiram a uma das lanchas, que balançou e afundou um pouco. O prático
levantou a vara e, de novo, um delicado estalido,
a vibração da ramagem, os casquetes desapareceram sob as samambaias e os cipós, e o tenente examinou as camisas dos guardas,
Chiquito, tire a sua: era a mais branca.
O sargento amarraria a camisa no fuzil e, já sabia, se ficassem enraivecidos, bala, sem contemplações. Os sargentos já estavam
na lancha e quando o Chiquito deu
a eles a camisa, Pintado impulsionou a embarcação com o remo. Deixou-a flutuar lentamente entre a folhagem mas, mal ingressaram
na lagoa, ligou o motor e, com
o ruído monótono, o ar se povoou de aves que fugiam das árvores, buliçosamente. Um resplendor alaranjado crescia atrás das
lupunas, também na frondosa mata dos arredores
refletiam-se as primeiras lanças de sol, e as águas da laguna apareciam límpidas e quietas.
- Ah, companheiro, eu estava para me casar - disse o sargento.
- Está bem, mas levante mais esse fuzil - disse o Sargento Delgado -, para que eles vejam bem a camisa.
Atravessaram a lagoa sem tirar os olhos do barranco e das lupunas.
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Pintado mantinha o rumo com uma das mãos e com a outra coçava a cabeça, o rosto, os braços, atormentado por uma repentina
e generalizada comichão.
Já viam uma praiazinha estreita, lodosa, com arbustos pelados e uns troncos flutuantes, que deviam servir de cais. Na margem
oposta, atracava a lancha dos soldados,
e eles desciam correndo, ocupavam lugar a descoberto, apontavam para a ilha com seus fuzis. Hinojosa tinha boa voz, bonitos
aqueles huaynitos que cantara em quíchua
na noite passada, não? Sim, mas que é que estava acontecendo que não podiam vêlos, por que não saíam? O Santiago estava
cheio de huambisas, companheiro, aqueles
que os viram chegar avisariam os outros, que teriam tido tempo de sobra para fugir pelos canais. A lancha embicou para o
cais. Amarrados com grossos cipós, os troncos
flutuantes estavam cobertos de musgo, fungos e algas. Os três contemplavam o barranco quase vertical, as lupunas curvas
e corcundas: não havia ninguém, meus sargentos,
mas que susto passaram. Os sargentos saltaram, chapinharam no barro, começaram a subir, os corpos aplastados contra a ladeira.
O sargento levava o fuzil no alto,
um vento quente fazia ondular a camisa do Chiquito e, quando pisaram o cume, um sol agressivo fez com que fechassem e esfregassem
os olhos. Trancas de cipós cobriam
os espaços entre as lupunas, um denso bafo putrefato banhava seus rostos cada vez que espiavam entre a ramagem. Finalmente,
encontraram uma abertura, avançaram enterrados
até a cintura em mato selvagem e rumoroso, logo seguiram por um atalho que se estirava, perdia-se e reaparecia junto a um
matagal ou a um penacho de samambaias.
O Sargento Delgado ficava nervoso, porra, que levantasse bem esse fuzil e para que vissem que iam com bandeira branca. As
copas das árvores formavam uma compacta
abóbada que só filamentos de sol perfuravam de quando em quando, franjas douradas que eram como vibrações, e havia vozes
de invisíveis pássaros por toda parte. Os
sargentos protegiam o rosto com as mãos, mas recebiam sempre espetadas, arranhões ardidos. O atalho terminou logo, em uma
clareira de superfície lisa e arenosa,
limpa de mato, e eles viram as cabanas: ah, companheiro, olhe isso. Altas, sólidas, estavam, entretanto, meio devoradas
pela mata. Uma delas tinha perdido o teto
e um buraco, como uma chaga redonda, tisnava sua fachada; da outra emergia uma árvore, que disparava impetuosamente seus
braços peludos pelas janelas, e os tabiques
de ambas desapareciam sob crostas de hera.
221
Nos arredores havia mato alto; as escadinhas desmoronadas, prisioneiras de trepadeiras, serviam de assento a troncos e raízes,
e nos degraus e estacas viam-se também
ninhos, grandes formigueiros. Os sargentos andavam à volta das cabanas, esticavam os pescoços para ver o interior.
- Não foram embora esta noite, foram há muito tempo - disse o Sargento Delgado. - A mata quase as engoliu.
- Não são choças de huambisas, mas de cristãos disse o sargento. - As dos pagãos não são tão grandes e, além disso, quando
se mudam, levam as casas nas costas.
- Aqui havia uma clareira - disse o Sargento Delgado. - As árvores são novinhas. Aqui vivia muita gente, compadre.
- O tenente vai ficar furioso - disse o sargento. Estava certo de agarrar uns quantos.
- Vamos chamá-lo - disse o Sargento Delgado; apontou com seu fuzil para uma cabana, disparou duas vezes e o eco repetiu
os disparos, à distância. - Vão pensar que
os ladrões estão nos cozinhando.
- Para dizer a verdade, prefiro mesmo que não haja ninguém - disse o sargento. - vou me casar, não estou aí para que me
arranquem a cabeça na minha idade.
- Vamos revistar isso antes que os outros cheguem
- disse o Sargento Delgado. - Talvez tenha ficado algo que valha a pena.
Só encontraram pedaços de objetos enferrujados, convertidos em aposentos de aranhas, e as madeiras roídas, minadas pelas
formigas, rachavam sob seus pés, afundava-mnos
suavemente. Saíram das cabanas, percorreram a ilha e, aqui e ali, abaixavam-se sobre troncos carbonizados, latas enferrujadas,
pedaços de cântaros. Num declive havia
uma poça de água estagnada e, entre cheiros fétidos, planavam nuvens de mosquitos. Duas fileiras de estacas cercavam-na
como uma afiada rede, e isso o que era, o
Sargento Delgado nunca tinha visto. O que seria? coisas de selvagens, mas era melhor que se fossem daqui, cheirava mal e
tinha tanta vespa. Voltaram às cabanas e
o tenente, os guardas e os soldados caminhavam como sonâmbulos na clareira, apontavam para as árvores, inquietos e perplexos.
- Dez dias de viagem! - gritou o tenente. - Tanta esperteza para isso! Quando calculam que eles se foram?
- Para mim, há meses, meu tenente - disse o sargento. - Talvez mais de um ano.
222
- Não eram duas, mas três cabanas, meu tenente disse o Oscuro. - Aqui havia outra, uma ventania arrancou-a pela raíz. Ainda
se podem ver os mourões, olhe.
- Para mim, faz muitos anos, meu tenente - disse o Sargento Delgado. - Por aquela árvore que cresceu lá dentro.
Depois de tudo, que importância tinha, o tenente sorriu desencantado, um mês ou dez anos, fatigado: afinal, eles foram logrados.
E o Sargento Delgado, vamos ver,
Hinojosa, uma boa revista e que empacotassem o comível, o bebível e o vestível, e os soldados se derramaram pela clareira
e se perderam entre as árvores, e que o
Rubio fizesse um pouco de café para tirar o gosto ruim da boca. O tenente agachou-se, ficou a escavar o chão com um galhinho.
Os sargentos acenderam cigarros; enxames
zumbidores passavam sobre suas cabeças enquanto conversavam. O prático Pintado partiu galhos secos, fez uma fogueira e,
enquanto isso, das cabanas, dois soldados
jogavam para cima garrafas, jarras de barro, cobertores desfiados. O Rubio encheu uma garrafa térmica, serviu café fumegante
em copinhos de latão, e o tenente e
os sargentos estavam acabando de beber quando ouviram gritos, quê? e apareceram dois soldados correndo, um sujeito? o oficial
levantara-se de um salto, que foi que
disse? e o soldado Hinojosa: um morto, meu tenente, que encontraram numa praiazinha ali embaixo. Huambisa? Cristão? Seguido
de guardas e soldados, o tenente corria
e, durante uns momentos, só se ouviu o crepitar da folharada pisoteada, o suave rumor do mato agredido pelos corpos. Velozes
e em grupo contornaram as estacas, lançaram-se
pelo declive, pularam um buraco salpicado de pedregulhos e, ao chegar à praiazinha, pararam de chofre, em torno do estendido.
Estava de boca para cima, suas calças
rasgadas mal ocultavam os membros ensebados e débeis, a pele escura. Suas axilas eram duas matas escuras, compactas, e tinha
as unhas das mãos e dos pés muito compridas.
Crostas e feridas secas cortavam seu torso, seus ombros, um pedaço de língua esbranquiçada pendia-lhe dos lábios gretados.
Guardas e soldados o examinavam e, logo,
o Sargento Roberto Delgado sorriu, agachou-se e aspirou, seu nariz junto à boca do estendido. Então sorriu, levantou-se
e deu um pontapé nas costelas do homem: ouça,
estúpido, que não chutasse assim o morto, e o Sargento Delgado, chutando outra vez, qual morto qual nada, então não estava
vendo, meu tenente?

223
Todos se inclinaram, cheiraram o corpo rígido e impassível. Nada de morto, meu tenente, meu compadre estava sonhando. com
uma espécie de crescente, enfurecida
alegria, descarregou mais pontapés e o estendido se contraiu, algo rouco e fundo escapou de sua boca, puxa: era verdade.
O tenente empunhou os cabelos do homem,
sacudiu-o e, de novo, debilmente, aquele ruído interior. Esse sacana estava sonhando, e o sargento, sim, olhem, ali tinha
o seu cozimento. Junto às cinzas prateadas
e aos pedacinhos de lenha de uma extinta fogueira, estava uma panela de barro, chamuscada, repleta de ervas. Dezenas de
saúvas de antenas compridas e barriga negríssima
a escalavam, enquanto outras, formadas em círculo, protegiam o assalto. Se estivesse morto, os bichos já o teriam comido,
meu tenente, não ficariam senão os ossos,
e o Rubio, mas já tinham começado, pelas pernas. Algumas saúvas subiam pelas curtidas plantas de seus pés e outras inspecionavam
o peito dos pés, os dedos, os tornozelos,
tocavam na pele com suas finas antenas e, em sua passagem, deixavam um rastro de pontos arroxeados. O Sargento Roberto Delgado
chutou-o de novo, no mesmo lugar.
Uma inchação tinha brotado nas costelas do estendido, um montinho oblongo de cume escuro. Continuava imóvel mas, de quando
em quando, soltava uma ronqueira oca e
sua língua se levantava, lambia os lábios com dificuldade. O maldito estava no paraíso, não sentia nada, e o tenente, água,
rápido, e que limpasse os pés dele,
porra, as formigas o estavam comendo. O Chiquito e o Rubio livraram-no das saúvas, dois soldados trouxeram água da lagoa
em seus casquetes e borrifaram a cara do
homem. Ele agora tentava mexer os membros, o rosto estava encolhido, crispado, a cabeça caía à direita e à esquerda. De
repente, arrotou e um dos seus braços se
dobrou lenta, vagarosamente, a mão esfregou o corpo, apalpou a inchação, acariciou-a. Agora respirava com ansiedade, tinha
o peito crescido, sumido o ventre, e
a língua se estirava, branca, com coágulos de saliva verde. Seus olhos continuavam selados, e o tenente, para os soldados,
mais água: estava vai não vai, rapazes,
era preciso despertá-lo. Soldados e guardas iam à lagoa, voltavam e vertiam sobre o homem pequenos jorros de água e ele
abria a boca para recebê-los, afanosamente,
ruidosamente, sua língua sorvia as gotinhas. Seu gemido já era mais natural e contínuo, e também as contrações do corpo,
que parecia liberado de invisíveis ataduras.
- Dêem a ele um pouco de café, reanimem esse cara de qualquer jeito
224
- disse o tenente. - E continuem jogando água.
- Não acredito que chegue até Santa Maria de Nieva como está, meu tenente - disse o sargento. - Morre pelo caminho.
- Eu o levo a Borja, que fica mais perto - disse o tenente. - Volte agora mesmo com os rapazes a Nieva e diga a Dom Fábio
que pegamos um. Que os outros cairão logo.
Eu vou com os soldados à guarnição e lá farei com que o médico o veja. Não deixo este sujeito morrer nem amarrado.
Afastados uns metros do grupo, o tenente e o sargento fumavam. Guardas e soldados movimentavam-se em torno do estendido,
molhavam-no, sacudiam-no e ele parecia exercitar
com desconfiança a língua, sua voz, ensaiava teimosamente novos movimentos e sons.
- E se não é do bando, meu tenente? - disse o sargento.
- Por isso vou levá-lo a Borja - disse o tenente. Lá há aguarunas de povoados que foram saqueados pelos bandidos, veremos
se o reconhecem. Diga a Dom Fábio que avise
Reátegui.
- O sujeito já está falando, meu tenente - gritou o Chiquito. - Venha ouvi-lo.
- Entenderam o que disse? - perguntou o tenente.
- De um rio que sangra, de um cristão que morreu
- disse o Oscuro. - Coisas assim, meu tenente.
- Só me falta agora que esteja louco, tenho uma sorte de merda - disse o tenente.
- Sempre soltam um pouco a língua quando estão sonhando - disse o Sargento Roberto Delgado. - Depois passa, meu tenente.
Anoitecia, Fushía e Dom Aquilino comiam mandioca cozida, tomavam aguardente no bico da garrafa, e Fushía, já escurece, Lalita,
segure a lamparina, ela se agachava
e ai ai ai, a primeira dor, não podia endireitar-se, caiu ao chão chorando. Levantaram-na, foi para a rede, Fushía acendeu
a lamparina, e ela, acho que chegou a
hora, tenho medo. E Fushía, nunca vi uma mulher morrer parindo, e Aquilino, eu também não, não se assuste, Lalita, era o
melhor parteiro da selva, podia pegá-la,
Fushía? não tinha ciúme? e Fushía, você está velho para que eu tenha ciúme, ande,
pegue-a.
225
Dom Aquilino tinha levantado a saia dela, ajoelhava-se para ver quando Pantacha entrou correndo, patrão, estavam brigando,
e Fushía, quem? e Pantacha, os
huambisas com o aguaruna que Dom Aquilino trouxe, Dom Aquilino, com Jum? Pantacha abria muito os olhos, e Fushía esmurrou-o,
cachorro, olhando a mulher dos outros.
Ele esfregava o nariz, perdãozinho, patrão, só viera avisar, os huambisas querem que Jum vá embora, o senhor sabe que eles
odeiam os aguarunas, estavam com raiva,
e ele e Nieves não podiam segurá-los, a patroa estava doente? E Dom Aquilino, é melhor que você vá ver, Fushía, que não
o matem, com o trabalho que me custou convencê-lo
a vir à ilha, e Fushía, puta merda, é preciso embriagá-los, que se embriaguem juntos, matam-se ou ficam amigos. Saíram e
Dom Aquilino aproximou-se de Lalita, massageou
suas pernas para relaxar os músculos, a barriga, e a criança saía suavemente, você vai ver, e ela, rindo, chorando, ia contar
a Fushía que ele estava se aproveitando
para bolinar, ele ria, e ai ai ai, outra vez, nos ossos das costas, ai ai ai, estavam se quebrando, e Dom Aquilino, tome
um golinho para acalmar, ela tomou, vomitou,
sujou Dom Aquilino, que estava embalando a rede, nana Lalita, mocinha bonita, e a dor ia passando. Umas luzes vermelhas
bailavam à volta da lamparina, veja, Lalita,
os vaga-lumes, as mariposas, a gente morre e o espírito vira vaga-lume, sabia? e anda à noite iluminando a mata, os rios,
as lagunas, quando eu morrer, Lalita, você
terá sempre a seu lado um vaga-lume, servirei de lamparina para você. E ela, tenho medo, Dom Aquilino, não fale da morte,
e ele, não se assuste, balançava a rede
para distraí-la, com um pedaço de pano molhado refrescava a testa dela, não acontecerá nada, nascerá antes do amanhecer,
quando toquei em você vi que era homem.
A cabana se impregnara de cheiro de baunilha e o vento úmido trazia também murmúrios de mata, o cantar das cigarras, latidos,
e as vozes de uma briga generalizada.
E ela, o senhor tem mãos suaves, Dom Aquilino, isso me descansa um pouco, e como cheira bem, mas não está ouvindo os huambisas?
vá ver, Dom Aquilino, e se matam
Fushía? e ele, era a única coisa que não podia acontecer, Lalita, você não sabe que ele é como o Diabo? E Lalita, há quanto
tempo se conhecem, Dom Aquilino? e ele,
lá se vão dez anos, nunca se saiu mal apesar de buscar as piores confusões, Lalita, coisas feíssimas, escapole de seus inimigos
como cobra de rio. E ela, ficaram
amigos em Moyobamba? e Dom Aquilino, eu era aguadeiro,
226
ele me fez comerciante, e ela, aguadeiro? e Dom Aquilino, de casa em casa com seu burro e suas moringas, Moyobamba é pobre,
o pouco lucro se ia em comprar metileno
para
melhorar a água, e senão, multas, e uma manhã chegou Fushía, foi viver num rachinho junto ao meu, e assim se fizeram amigos.
E ela, como era ele então, Dom Aquilino?
e ele, de onde viria, perguntavam, e ele, puro mistério e mentira, mal falava cristão, Lalita, fazia umas misturanças com
o brasileiro. E Fushía, anime-se, homem,
você vive como um cachorro, não está cheio? vamos fazer comércio, e ele, é verdade, como cachorro. E Lalita, que fizeram,
Dom Aquilino? e ele, uma grande balsa e
Fushía comprava sacas de arroz, fazendas de algodão, percais e sapatos, a balsa afundava com tanto peso, e se nos roubam,
Fushía? e Fushía, cale-se, puto, comprei
também um revólver. E Lalita, foi assim que começaram, Dom Aquilino? e ele, íamos pelos acampamentos, e os caucheiros, os
mateiros e os garimpeiros, tragam-nos isto
e aquilo na próxima viagem, e levavam, e depois foram até as tribos. bom comércio, o melhor, miçangas por bolas de caucho,
espelhinhos e facas por couros, e assim
conheceram os huambisas, Lalita, e se fizeram grandes amigos de Fushía, você já viu como o ajudam, é um deus para eles.
E Lalita, então a coisa ia muito bem? e ele,
teria saído melhor se Fushía não fosse o Diabo, roubava de todos e, então, eles eram corridos dos acampamentos, e os guardas
os buscavam, precisaram separar-se e
ele teve de ficar com os huambisas algum tempo, e depois foi para Iquitos, e lá começou a trabalhar com Reátegui, foi lá
que você o conheceu, Lalita? E ela, que
fez o senhor, Dom Aquilino? e ele, entrara no seu sangue o gosto pela vida livre, Lalita, aquilo de andar com a casa nas
costas como uma tartaruga, sem lugar fixo,
e continuou fazendo comércio sozinho, mas de maneira honrada. E Lalita, esteve por toda parte, não é verdade, Dom Aquilino?
e ele, no Ucayali, no Maranón e no Huallaga,
e, no princípio, não ia ao Amazonas pela má fama que Fushía deixou lá, mas depois de uns meses voltou e, um dia, num acampamento
do Itaya, não podia acreditar, ainda
que estivesse vendo, encontrei Fushía, Lalita, transformado em negociante, com habilitados, e ele me contou seu negócio
com Reátegui. E Lalita, que contentes teriam
ficado ao se verem de novo, Dom Aquilino, e ele, choramos, nos embriagamos recordando, Fushía, a sorte sorri para você,
agora assente a cabeça, seja limpo, não se
meta em mais encrencas, e Fushía, fique comigo, Aquilino, você é como uma loteria,
227
tomara que dure a guerra, e ele, quer dizer que o negócio é caucho para contrabando? e Fushía, por atacado, homem, eles
vêm a Iquitos buscá-lo, levam-no escondido
em caixotes
que passam por tabaco, Reátegui ficará milionário e eu também, não deixo você ir, Aquilino, contrato você; e ela, por que
não ficou com ele? e ele, já estava ficando
velho, Fushía, não queria sustos nem ir para a cadeia, e ai ai ai, estou morrendo, as costas, agora sim está vindo, que
não se assustasse, onde tinha uma faca, e
a esquentava na lamparina quando Fushía entrou. Dom Aquilino, não fizeram nada ao Jum? e Fushía, agora estão mamando juntos,
com o Pantacha e o Nieves também. Não
deixaria que o matassem, precisava dele, seria um bom contato com os aguarunas, mas em que estado o deixaram, quem queimou
suas axilas? esguicham pus, velho, e
as feridas nas costas, é pena se infeccionam e morre de tétano, e Dom Aquilino, em Santa Maria de Nieva, os soldados e os
patrões de lá, e quem lhe quebrou a testa
foi seu amigo Reátegui, você sabia que ele se mudou para Iquitos? E Fushía, rasparam também sua cabeça e estava mais feio
que um girino, e ai ai ai, os ossos, muito,
muito, e Dom Aquilino, bancou o vivo e disse não ao patrão que lhe comprava o caucho, nós mesmos vamos vendê-lo em Iquitos,
um tal Escabino, parece, e para cúmulo
espancaram um cabo que chegou a Urakusa e mataram seu prático, e Fushía, sacanagens, ele está vivinho e sacudindo o rabo,
por aí, é o Adrián Nieves, este que eu
recolhi no mês passado, e Dom Aquilino, já sei, mas é o que dizem, e ela, se quebrava em dois, me dê alguma coisa, Fushía,
pelo que você mais quer. E Fushía, odeia
os cristãos? muito melhor, então que convença os aguarunas a me darem caucho, grandes projetos, velho, antes de dois anos
voltaria a Iquitos, rico, você verá como
me recebem os que me voltaram as costas, e Dom Aquilino, ferva água, Fushía, ajude, nem parece que você é o pai. Fushía
encheu a tina, acendeu o fogão, e ela, cada
vez mais fortes, seguidinhas, respirava se asfixiando, tinha o rosto inchado e olhos de peixe morto. Dom Aquilino ajoelhou-se,
massageou-a, já se abria um pouquinho,
Lalita, estava vindo, não se impaciente. E Fushía, aprenda com as huambisas, que vão à mata sozinhas e voltam depois de
parir. Dom Aquilino fervia a faca e as vozes
de fora se perdiam entre estalidos e silvos, Fushía, estão vendo? já não brigam, estão íntimos, e o velho, seria homem,
Lalita, que foi que lhe disse, ouça, as capironas
estavam cantando, não se enganava nunca. E Fushía, é um pouco calado,
228
e Dom Aquilino, mas prudente, ele o ajudou durante toda a viagem, dizia que dois cristãos desgraçaram Urakusa com seus logros,
e Fushía, velho, na próxima viagem
você ganhará horrores, Dom Aquilino, quando é que você deixará de sonhar, e ele, não progredira desde a primeira vez? E
Aquilino, não voltaria à ilha se não fosse
por você, Lalita, simpatizara com ela; e ela, quando o senhor chegou nós morríamos de fome, Dom Aquilino, lembra-se como
chorei ao ver as conservas e as massas?
e Fushía, que banquete, velho, até adoeceram por falta de costume, e como tive que implorar, por que não queria ajudá-lo?
se além disso você ganhará dinheiro. E
o velho, mas são roubados, Fushía, vão me prender, não venderei aquele caucho nem àqueles couros, e Fushía, todo mundo sabe
que você é honrado, por acaso os caucheiros,
os mateiros e os selvagens não pagam a você em couros, em caucho e em pepitas de ouro? Se perguntassem, diria, são meus
lucros, e o velho, nunca tive tantos, e Fushía,
você não levará tudo numa viagem, aos pouquinhos, e ai ai ai, de novo, Dom Aquilino, as pernas, as costas, Fushía, ai ai
ai. E Dom Aquilino, não quero, os selvagens
se queixariam, cedo ou tarde, viria a polícia, e os patrões não ficariam coçando o saco enquanto ele atravessava o seu negócio,
e Fushía, shapras, aguarunas e huambisas
se matam uns aos outros, não se odiavam? ninguém pensaria em cristãos metidos nisso, e o velho, não, de jeito nenhum, e
Fushía, levaria para longe a mercadoria,
bem escondida, Aquilino, você a venderá para os mesmos caucheiros mais barato, e ficarão felizes. E o velho, por fim, aceitou,
e Fushía, pela primeira vez lhe acontecia
isso, Lalita, depender da honradez de um cristão, se o velho quer, ele me logra, vendia tudo e embolsava o dinheiro, sabe
que estou preso aqui, e pode até arrematar
dizendo à polícia esse que procuram está numa ilhazinha, Santiago acima. Demorou perto de dois meses e Fushía mandava remadores
até o Maranón e os huambisas voltavam,
não há, não está, não vem, aquele cachorro, e uma tarde apareceu, sob um aguaceiro, na boca do canal, e trazia roupa, comida,
machetes e quinhentos soles. E Lalita,
podia abraçá-lo? beijá-lo como a seu pai? e Fushía, nunca vira isso, velho, como era honrado, não esqueceria, Aquilino,
como você se porta comigo, ele em seu lugar
fugia com o dinheiro, e o velho, você não tem alma, para ele valia mais a amizade que o negócio, o agradecimento, Fushía,
por sua causa deixei de ser o cachorro
de Moyobamba, o coração não esquecia, ai ai ai, ai ai ai,
229
e Dom Aquilino, começara de verdade, Lalita, força, força para que não se sufoque saindo, força com todinha a sua alma,
grite. Tinha a faca na mão, e ela, reze,
ai ai
ai, Fushía, e Dom Aquilino, ia massageá-la, mais força, força. Fushía aproximou a lamparina e olhava, o velho, console-a
um pouco, agarre sua mão, homem, e ela,
queria água, estava se rasgando, que a Virgem a ajudasse, que o Cristo de Bagazán a ajudasse, santo, santo, que lhe prometia,
e Fushía, aqui está a água, não grite
tanto, e quando Lalita abriu os olhos Fushía olhava para a esteira, e Dom Aquilino, estou secando suas pernas, Lalita, já
terminou, você viu que rápido? E Fushía,
sim, velho, é macho, mas está vivo? não se mexe nem respira. Dom Aquilino agachou-se, levantou-o da esteira, e era escuro
e engordurado como um macaquinho, e sacudiu-o
e ele gritou, Lalita, olhe-o, quanto medo por nada, e que dormisse agora, e ela, sem o senhor teria morrido, queria que
o filho se chamasse Aquilino, e Fushía, que
seja pela amizade, mas que nome tão feio, Dom Aquilino, e Fushía? E ele, que estranho ser pai, velho, temos que festejar
um pouco, e Dom Aquilino, descanse, moça,
queria pegá-lo? tome-o, estava sujo, limpe-o um pouco. Dom Aquilino e Fushía sentaram-se no chão, tomavam aguardente no
bico da garrafa, e fora continuavam os ruídos,
os huambisas, o aguaruna, Pantacha, o prático Nieves deviam estar vomitando e o quarto ardia de mariposinhas, os vaga-lumes
ricocheteavam nas paredes, quem diria
que ia nascer tão longe de Iquitos, na mata, como os selvagenzinhos.
A orquestra nasceu na casa de Patrocínio Naya. O Joven Alejandro e o chofer de caminhão Bolas iam almoçar lá, encontravam
Dom Anselmo, que estava acordando e, enquanto
Patrocínio cozinhava, os três se punham a conversar. Dizem que o Joven foi o primeiro a se fazer seu amigo; ele, que era
tão solitário como Dom Anselmo, também músico
e triste, viu no velho uma alma gêmea. Teria lhe contado sua vida, seus desgostos. Depois de comer, Dom Anselmo pegava a
harpa, o Joven o violão, e tocavam: o Bolas
e Patrocínio ouviam, emocionavam-se, aplaudiam. Às vezes, o chofer de caminhão acompanhava-os tocando num caixote. Dom Anselmo
aprendeu as canções do Joven e começou
a dizer: "É um artista, o melhor compositor mangache", e Alejandro, "não há harpista como o velho, ninguém o supera", e
o chamava de maestro. Os três ficaram inseparáveis.
230
Logo correu, na Mangachería, notícia sobre a nova orquestra e, por volta do meio-dia, as moças vinham em grupos passear
à frente da choça de Patrocínio Naya, para
escutar a música. Todas olhavam para o Joven com olhos lânguidos. E um belo dia soube-se que o Bolas deixaria a Empresa
Feijó, onde trabalhou de chofer dez anos,
para ser artista, como seus dois companheiros.
Naquele tempo, Alejandro era jovem de verdade, tinha o cabelo retinto, muito comprido, crespo, a pele pálida, os olhos fundos
e desconsolados. Era magro como um
bambu e os mangaches diziam "não esbarrem nele, morre ao primeiro encontrão". Falava pouco e devagar, não era mangache de
nascimento, mas por escolha, como Dom Anselmo,
o Bolas e tantos outros. Era de família de graúdos, nascido no Malecón, educado no Salesiano, e estava para ir a Lima e
entrar na universidade quando uma moça, de
boa família, fugiu com um forasteiro que passou por Piura. O Joven cortou os pulsos e esteve muitos dias no hospital, entre
a vida e a morte. Saiu decepcionado
com o mundo e boêmio: passava as noites em claro, bebendo, jogando cartas com gente da pior espécie. Até que a família se
cansou dele, mandou-o embora e, como
tantos desesperados, naufragou na Mangachería e aqui ficou. Começou a ganhar a vida com o violão no bar de Angélica Mercedes,
parente do Bolas. Assim conheceu o
chofer de caminhão, assim se fizeram irmãos. O Joven Alejandro bebia muito, mas o álcool não o incitava a brigar nem a se
apaixonar, só a compor canções e versos
que contavam sempre uma decepção e chamavam as mulheres de ingratas, traidoras, insinceras, ambiciosas e cruéis.
Desde que se fez amigo do Bolas e do Joven Alejandro, o harpista mudou de hábitos. Tornou-se um homem agradável e sua vida
pareceu ordenar-se. Já não perambulava
como uma alma penada todo santo dia. À noite ia à casa de Angélica Mercedes, o Joven exigia que tocasse e faziam duetos.
O Bolas entretinha os fregueses com histórias
de suas viagens e, entre uma música e outra, o velho e o violonista juntavam-se ao Bolas em uma mesa, bebiam um pouco, conversavam.
E quando o Bolas estava tocado,
os olhos cheios de estrelas, sentava-se diante de um caixote, ou pegava uma tábua e marcava o compasso, chegava a cantar
com eles e sua voz, embora rouca, não soava
mal. Era um homenzarrão: costas de boxeador, mãos enormes, testa estreita, a boca como um funil. Na choça de Patrocínio
Naya, Dom Anselmo e o violonista ensinaram-no
a tocar,
231
afinaram seu ouvido e suas mãos. Os mangaches espiavam por entre os bambus, viam o harpista enfurecer-se quando o Bolas
perdia o compasso, esquecia a letra ou desafinava,
e escutavam o Joven Alejandro instruir melancolicamente o chofer de caminhão sobre as misteriosas frases de suas canções:
olhos de rosicler, vermelhas nuvens do
amanhecer, veneno que você espalhou um dia, malvada mulher, com seu amor, no meu dorido coração.
Era como se a proximidade daqueles dois jovens tivesse devolvido a Dom Anselmo o gosto pela vida. Ninguém mais o encontrava
dormindo atirado na areia, não andava
mais com os sonâmbulos, e até seu ódio pelos gallinazos diminuiu. Os três andavam sempre juntos, o velho entre o Joven e
o Bolas, abraçados como crianças. Dom Anselmo
parecia menos sujo, menos esfarrapado. Um dia, os mangaches viram-no estrear umas calças brancas e pensaram que era presente
de Juana Baura, ou de algum daqueles
velhos ricaços que, ao encontrá-lo num bar, o abraçavam e convidavam para beber, mas tinha sido um presente do Bolas e do
Joven, no Natal.
Foi por aquela época que Angélica Mercedes contratou a orquestra de maneira formal. O Bolas conseguira um tambor e uns pratos,
manejava-os com habilidade e era
incansável: quando o Joven e o harpista abandonavam seus lugares para molhar a garganta e endireitar o corpo, o Bolas continuava,
executava solos. Talvez fosse o
menos inspirado dos três, mas era o mais alegre, o único que se aventurava, de quando em quando, a uma canção humorística.
À noite tocavam na casa de Angélica Mercedes, pela manhã dormiam, almoçavam juntos na casa de Patrocínio Naya e lá ensaiavam
à tarde. No ardente verão iam rio acima,
até Chipe *, nadavam e discutiam as novas composições do Joven. Tinham conquistado o coração de todos, os mangaches tratavam-nos
por você e eles tratavam por você
a grandes e pequenos. E quando a Santos, parteira e aborteira, se casou com um guarda municipal, a orquestra foi à festa,
tocou de graça, e o Joven Alejandro estreou
uma valsa pessimista sobre o casamento, que ofende o amor, seca-o e o consome. E desde então, em cada batizado, crisma,
velório ou noivado mangache, a orquestra
tocava infalivelmente e de graça. Os mangaches, então, retribuíam com presentinhos, convites e algumas mulheres chamaram
seus filhos de
Anselmo,
' Povoado às margens do rio Piura.
232
Alejandro, até de Bolas. A fama da orquestra se consolidou e aqueles que se chamavam invencíveis popularizaram-na pela cidade.
À casa de Angélica Mercedes
acudiam graúdos, forasteiros e, certa tarde, os invencíveis trouxeram à Mangachería um branco, vestido de linho, que queria
oferecer uma serenata. Veio buscar a
orquestra de noite numa camioneta que levantou pó. Mas, passada meia hora, os invencíveis voltaram sozinhos: "O pai da moça
embraveceu, se esquentou, chamou os tiras,
foram todos para o comissariado". Ficaram presos durante uma noite e, na manhã seguinte, Dom Anselmo, o Joven e o Bolas
voltaram contentes; tinham tocado para os
guardas e tomaram café e ganharam cigarros. Pouco tempo depois, aquele mesmo branco raptou a moça da serenata, e, quando
voltou com ela para o casamento, contratou
a orquestra para tocar na festa. De todas as choças saíram mangaches, foram à casa de Patrocínio Naya para que Dom Anselmo,
o Joven e o Bolas pudessem ir bem-vestidos.
Uns emprestavam sapatos, outros camisas, os invencíveis ofereceram roupas e gravatas. Desde então virou costume os brancos
contratarem a orquestra para suas festas
e serenatas. Muitos conjuntos mangaches se desfaziam e logo se refaziam com novos integrantes, mas esse continuou sendo
o mesmo, não cresceu nem diminuiu, e Dom
Anselmo tinha os cabelos brancos, as costas curvas, arrastava os pés, e o Joven deixara de ser jovem, mas sua amizade e
sua sociedade conservavam-se intactas.
Anos depois morreu Domitila Yara, a santeira que vivia em frente à chichería de Angélica Mercedes, Domitila Yara, a beata
sempre vestida de negro, rosto velado e
meias escuras, a única santeira que nasceu no bairro. Domitila Yara passava e os mangaches, ajoelhados, lhe pediam a bênção:
ela murmurava umas rezas, benzia-os
na testa. Tinha uma imagem da Virgem com fitas vermelhas, azuis e amarelas que faziam de cabeleira, forrada em papel celofane.
Pendiam da imagem umas flores de
arame e serpentina e, sob o seu coração lacerado, via-se uma oração manuscrita, apertada numa plaquinha de lata. A imagem
balançava na ponta de um cabo de vassoura,
que Domitila Yara levava sempre, no alto, como um estandarte. Onde havia partos, mortes, doenças, desgraças, acudia a santeira
com sua imagem e suas rezas. De seus
dedos apergaminhados caía até o chão um rosário de contas enormes como baratas. Diziam que Domitila Yara fizera milagres,
que falava com santos e,
de noite, se açoitava.
233
Era amiga do Padre Garcia e, às vezes, passeavam juntos, lentos e sombrios, pela Plazuela Merino e a Avenida Sánchez Cerro.
Padre Garcia
foi ao velório da santeira. Não podia entrar, a empurrões afastava os mangaches, amontoados em frente à choça, e já desistia
quando conseguiu chegar à entrada. Viu
então a orquestra, tocando tristes junto à morta. Ficou furioso: furou o tambor do Bolas com um pontapé e quis também arrebentar
a harpa e arrancar as cordas do
violão, e, enquanto isso, gritava para Dom Anselmo, "peste de Piura", "pecador", "fora daqui". "Mas, padre", balbuciava
o harpista, "tocávamos em sua homenagem",
e o Padre Garcia, "profanam uma casa limpa", "deixem em paz a defunta". E os mangaches se irritaram, não era justo, insultava
o velho sem motivo, não permitiam.
E por fim entraram os invencíveis, suspenderam o Padre Garcia, e as mulheres, pecado, pecado, todos os mangaches seriam
condenados. Levaram-no até a avenida, debatendo-se
no ar, como uma tarântula, e as crianças gritando incendiário, incendiário, incendiário. Padre Garcia não voltou a pisar
na Mangachería, e desde então, do púlpito,
fala dos mangaches como modelos de maus exemplos.
A orquestra continuou por muito tempo na casa de Angélica Mercedes. Ninguém teria acreditado que um dia iriam tocar na cidade.
Mas assim foi e, no princípio, os
mangaches censuraram a deserção. Depois, compreenderam que a vida não era como a Mangachería, mudava. Desde que começaram
a abrir prostíbulos, choviam propostas
sobre a orquestra, e há tentações a que não se resiste. Além disso, ainda que tivessem ido tocar em Piura, Dom Anselmo,
o Joven e o Bolas continuaram vivendo no
bairro e tocando de graça em todas as festas mangaches.
Desta vez ficou feio de verdade: a orquestra deixou de tocar, os invencíveis ficaram imóveis na pista, sem soltar seus pares,
olhando para Seminário, e o Joven Alejandro
disse:
- Aí começou verdadeiramente a desgraça, porque então brilharam os revólveres.
- Bêbado! - gritou a Selvática. -- Provocava-os todo o tempo. Bem feito que morresse. Abusado!
O sargento soltou Sandra, deu um passo, pensa que está falando com seus criados, senhor, e Seminário, engasgando, quer dizer
que você é respondãozinho, deu também
um passo,
234
seu pedaço de! outro, sua formidável silhueta ondulou nas tábuas banhadas de luz azul, verde e violeta e parou de súbito,
o rosto cheio de assombro. A
gargalhada de Sandra virou grito.
- Lituma apontava para ele o revólver - disse a Chunga. - Puxou-o tão rápido que ninguém percebeu, como um mocinho nas
fitas de cowboys.
- Tinha direito - balbuciou a Selvática. - Não podia se rebaixar mais.
Invencíveis e mulheres tinham corrido para o bar, o sargento e Seminário mediam-se com os olhos. Lituma não gostava de brigões,
senhor, não estavam fazendo nada
a ele e eram tratados como criados. Sentia muito, mas à força é que não levava, senhor.
- Não me jogue fumaça na cara, Bolas - disse a Chunga.
- E ele também puxou o revólver? - perguntou a Selvática.
- Só passava a mão pelo coldre - disse o Joven. Fazia carinhos nele como se fosse um cachorrinho.
- Tinha medo! - exclamou a Selvática. - Lituma baixou a crista dele.
- Pensei que não havia mais homens na minha terra
- disse Seminário. - Que todos os piuranos ficaram afeminados ou maricas. Mas ainda resta este caboclo. Agora só falta você
ver quem é Seminário.
- Por que têm sempre que brigar, por que não podem viver em paz e aproveitar a vida juntos? - perguntou Dom Anselmo. - Que
linda seria a vida.
- Mas quem é que sabe, maestro? - perguntou o Joven. - Talvez fosse aborrecidíssima e mais triste que agora.
- Você acabou com a pose dele de um golpe só, primo - disse o Mono. - Muito bem.
- Mas não se fie, coleguinha - disse Josefino. - É só você se descuidar que ele puxa o revólver.
- Não sabe quem sou eu - repetia Seminário. Por isso é que você teima, caboclinho.
- O senhor também não sabe quem sou eu - disse o sargento -, Senhor Seminário.
- Se você não tivesse esse revólver, não seria tão teimoso, caboclinho - disse Seminário.
- Acontece que o tenho - disse o sargento. - E a mim ninguém faz de criado, Senhor Seminário.
235
- E então a Chunga veio correndo e ficou entre eles. Você era mais valente! - disse o Bolas.
- E vocês, por que não impediram? - a mão do harpista fez uma tentativa para tocar na Chunga, mas ela afastou-se no assento
e os dedos do velho só roçaram nela.
- Estavam armados, Chunguita, era perigoso.
- Já não era, porque tinham começado a discutir disse a Chunga. - A gente vem aqui para se divertir, nada de brigas. Façam
as pazes, venham ao balcão, tomem uma
cerveja, é por conta da casa.
Obrigou Lituma a guardar o revólver, fez com que se apertassem as mãos e levou-os ao bar, pelo braço, deviam ter vergonha,
portavam-se como crianças, sabiam o que
eram? dois babacas, andem, vamos, que não puxassem suas pistolinhas, podiam matá-la, e eles riram. Chunga, Chunguita, mamãezinha,
rainhazinha, cantavam os invencíveis.
- Ficaram bebendo juntos, apesar dos insultos? perguntou a Selvática, espantada.
- Você estranha por que eles não se balearam logo?
- pergunta o Bolas. - Como são as mulheres, como gostam de sangue.
- Mas foi a Chunga que convidou - disse o harpista. - Não podiam fazer desfeita, moça.
Bebiam apoiados no balcão, muito amigos, e Seminário beliscava as bochechas de Lituma, era o último macho da sua terra,
caboclinho, e todos os demais uns veados,
covardes, a orquestra iniciou uma valsa e o cacho humano do bar desmanchou-se, invencíveis e mulheres invadiram a pista
de danças, Seminário tirara o quepe do sargento
e o experimentava, que tal ficava, Chunga? não tão horrível como este caboclo, claro, mas não se zangue.
- Pode ser um pouco gordo, mas não é horrível disse a Selvática.
- Quando moço era magrinho como o Joven - recordou o harpista. - E um verdadeiro Diabo, pior que seus primos.
- Pegaram três mesas e sentaram-se juntos - disse o Bolas. - Os invencíveis, o Senhor Seminário, seu amigo e as mulheres.
Parecia que tudo estava resolvido.
- Mas notava-se que aquilo era coisa forçada e que não ia durar - disse o Joven.
- Forçada coisa nenhuma - disse o Bolas. - Estavam contentíssimos e o Senhor Seminário até cantou o hino dos invencíveis.
Depois dançaram e fizeram brincadeiras.
236
- Lituma continuava dançando com a Sandra? perguntou a Selvática.
- Não me lembro mais, porque começaram a discutir de novo - disse a Chunga.
- Por essas coisas de machismo - disse o Bolas. Seminário não parava de falar no assunto, que já não havia homens em Piura,
e tudo para elogiar seu tio.
- Não fale mal de Chápiro Seminário, que era um grande homem, Bolas - disse o harpista.
- Em Narihualá encarregou-se de três ladrões, a mão limpa, e os trouxe a Piura, amarrados pelo pescoço - disse Seminário.
- Apostou com os amigos que ainda podia foder, e veio aqui, e ganhou a aposta - disse a Chunga. - Pelo menos, foi o que
Amapola nos contou.
- Não estou falando mal dele, maestro - disse o Bolas. - Mas já estava ficando chato.
- Um piurano tão grande como o Almirante Grau disse Seminário. - Vão a Huancabamba, Ayabaca, Chulucanas, de toda parte saem
caboclas orgulhosas de haverem dormido
com meu tio Chápiro. Teve pelo menos mil bastardos.
- Não era mangache? - perguntou o Mono. - No bairro há muita gente assim.
Então Seminário ficou sério, sua mãe é que é mangache, e o Mono, claro e com muita honra, e Seminário, furibundo, Chápiro
era um senhor, só raramente ia à Mangachería,
para tomar chicha e trepar com uma mulatinha, e o Mono deu um murro na mesa: já estava ofendendo de novo, senhor. Tudo ia
muito bem, como entre amigos, e de repente
ele começava a insultar, senhor, os mangaches não gostavam que se falasse mal da Mangachería.
- O velhinho sempre vinha direto até onde o senhor estivesse, maestro - disse o Joven. - com que sentimento ele o abraçava.
Parecia o encontro de dois irmãos.
- Nos conhecemos faz muitíssimo tempo - disse o harpista. - Eu gostava de Chápiro, tive muita pena quando morreu.
Seminário levantou-se, eufórico: que a Chunga fechasse a porta, essa noite seriam os donos, seus roçados estavam carregados
de algodão, que o harpista falasse de
Chápiro, o que esperavam? carregados de algodão, que trancassem a porta, ele pagava.
237
- E se os clientes batessem na porta, o sargento despachava - disse o Bolas.
- Aquele foi o erro, não deveriam ficar sozinhos disse o harpista.
- Não sou adivinha - disse a Chunga. - Quando os clientes pagam, a gente faz a vontade.
- Claro, Chunguita - desculpou-se o harpista. Não falei por você, mas por todos nós. Claro que ninguém podia adivinhar.
- Nove horas, maestro - disse o Joven. - Vai fazer mal ao senhor, vou logo buscar um táxi.
- É verdade que o senhor e meu tio se tratavam por você? - perguntou Seminário. - Conte a esta gente alguma coisa daquele
grande piurano, velho, daquele homem como
não haverá outro.
- Os únicos homens que restam estão na Guarda Civil
- afirmou o sargento.
- Já se enchera de Seminário, com tanta bebida disse o Bolas. - E era um tal de falar de machismo, ele também.
O harpista pigarreou, tinha a garganta seca, queria um golinho. Josefino encheu um copo e Dom Anselmo soprou a espuma antes
de beber. A boca aberta, respirando forte:
o que mais chamava a atenção da gente era a resistência de Chápiro. E que fosse tão honrado. Seminário ficou contente, abraçava
o harpista, que vissem, que ouvissem,
não foi isso mesmo que dissera a eles?
- Era um brigão e um pobre-diabo, mas tinha o orgulho da família - reconheceu o Joven.
Vinha do campo em seu cavalo, as moças subiam à torre para vê-lo, e isso era proibido, mas Chápiro deixava-as meio loucas,
e Dom Anselmo bebeu outro golinho, e em
Santa Maria de Nieva, o Tenente Cipriano também deixava as selvagens meio loucas, e também o sargento bebeu um golinho.
- Quando a cerveja subia, só falava naquele tenente
- disse a Selvática. - Ele o admirava.
Muito fanfarrão, vinha levantando pó, freava o cavalo e o fazia ajoelhar-se diante das moças. com Chápiro entrava a vida,
as que estavam tristes alegravam-se, as
contentes ficavam mais, e que resistência, subia, descia, mais jogo, mais bebida, subia de novo, com uma, com duas, e assim
a noite inteira, e ao amanhecer voltava
à sua chácara, para trabalhar, sem haver pregado olho, era um homem de ferro;
238
e Dom Anselmo pediu mais cerveja, e certa vez fez roleta-russa, diante dele, o sargento bateu no peito e olhou à sua volta,
como esperando aplausos. O único, além
disso,
que correspondia sempre à confiança, o único que o pagou até o último centavo, o dinheiro foi feito para gastar, dizia,
era o que mais convidava e, por ruas e praças,
o mesmo sermão: foi Anselmo que trouxe a civilização a Piura. Mas não foi por aposta, foi porque se aborrecia, a selva desesperava
o Tenente Cipriano.
- Parece que foi de mentira - disse a Selvática -, que seu revólver não tinha balas e que só o fez para que os guardas o
respeitassem mais.
E o melhor dos amigos topou com ele na porta do Reina, abraçou-o, soubera muito tarde, irmão, se tivesse estado em Piura
não a queimariam, Anselmo, ele poria o
padre e as gallinazas no seu lugar.
- De que desgraça falava Chápiro, artista? - perguntou Seminário. - Por que o confortava?
Estava chovendo a cântaros, e ele, aqui a gente já não é mais humano, não havia mulheres nem cinema, se alguém ficava dormindo
na mata crescia uma árvore na barriga,
ele era da costa, que metessem a selva na bunda, ele a dava de presente, não agüentava mais e puxou o revólver, deu duas
voltas no tambor e disparou na cabeça, o
Pesado dizia, não tem balas, é truque, mas tinha, constava a ele: o sargento bateu de novo no peito.
- Uma desgraça, Dom Anselmo? - perguntou a Selvática. - Alguma coisa que aconteceu ao senhor?
- Estávamos recordando um grande homem, moça - disse Dom Anselmo. - Chápiro Seminário, um velho que
morreu há três anos.
Ah, harpista, o senhor é um grande mentiroso - disse o Mono. - Não quis nos contar sobre a Casa Verde,
mas agora, sim. Ande, como foi o incêndio?
- Ora, rapazes - disse Dom Anselmo. - Que disparates, que bobagens.
- Está teimando outra vez, velho - disse José. - Se agorinha mesmo falou da Casa Verde. Aonde era então
que Chápiro chegava com seu cavalo? Que moças eram essas que saíam para vê-lo?
- Chegava à sua chácara - disse Dom Anselmo. E as que saíam para vê-lo eram as apanhadoras de algodão.
Bateu na mesa, pararam os risos, a Chunga trazia outra bandeja de cervejas, e o Tenente Cipriano, tranqüilo,
239
soprou o cano de sua arma, eles riam e não acreditavam, e Seminário quebrou um copo contra a parede: o Tenente Cipriano
era um filho da puta, não podia tolerar que
esse
caboclo o interrompesse tanto.
- Ofendeu a mãe dele de novo? - perguntou a Selvática, piscando muito depressa.
- Não a dele, mas a daquele tenente - disse o Joven.
- O senhor em nome do tal Chápiro, eu no do Tenente Cipriano - propôs o sargento com toda a calma. Uma roleta-russa, vamos
ver quem é mais homem, Senhor Seminário.
240


IV

- O senhor pensa que o prático fugiu, meu tenente?
- perguntou o Sargento Roberto Delgado.
- Claro, mesmo que fosse bobo - disse o tenente. Agora já sei por que se fez de doente e não veio conosco. Deve ter fugido
mal nos viu sair de Santa Maria de Nieva.
- Mas cedo ou tarde cairá - disse o Sargento Delgado. - Grande sabido, nem sequer mudou de nome.
- O que me interessa é o outro - disse o tenente.
- O peixe grande. Como se chama mesmo? Tushía? Fushía?
- Talvez não saiba onde está - disse o Sargento Delgado. - Talvez seja verdade que foi devorado por uma jibóia.
- Bem, vamos continuar- disse o tenente. - Ande, Hinojosa, traga aquele sujeito.
O soldado, que dormitava de cócoras, encostado à parede, levantou-se como um autômato, sem pestanejar nem responder, e saiu.
Mal passou a porta, a chuva o empapou,
levantou as mãos, caminhou pela lama, tropeçando. O aguaceiro fustigava selvagemente o lugar e, entre as trombasd'água e
as rajadas de vento sibilante, as choças
aguarunas pareciam animais xucros, sargento. Na selva, o tenente se tornava fatalista, esperava todos os dias que uma surucucu
o mordesse, ou que as febres o derrubassem.
Agora se lembrava de que a maldita chuva continuaria, e que ficariam aqui um mês, como ratos na toca. Ah, tudo estava indo
para o diabo por causa dessa espera, e
quando sua voz azeda parou, ouviu-se de novo o estalido do aguaceiro na mata, o minucioso gotejar das árvores e das cabanas.

241
A clareira era um grande charco cinzento, dezenas de mananciais corriam até o barranco, o ar e mata estavam nublados, fediam
e aí vinha Hinojosa, puxando por uma
corda
um vulto que tropeçava e grunhia. O soldado subiu aos saltos a escadinha da cabana, o prisioneiro caiu de bruços diante
do tenente. Tinha as mãos atadas às costas
e ergueu-se, apoiando-se nos cotovelos. O oficial e o Sargento Delgado, sentados numa prancha, apoiada em dois cavaletes,
ainda continuaram conversando, sem olhá-lo,
e logo o tenente fez um sinal para o soldado: café e bebida, ficavam? sim, e que fosse para onde estavam os outros, apenas
eles o interrogariam. Hinojosa voltou
a sair. O prisioneiro gotejava como as árvores, à volta de seus pés já havia uma pocinha. O cabelo cobria suas orelhas e
a testa, umas olheiras de raposa circundavam
seus olhos, dois carvões desconfiados e saltados. Fiapos de pele lívida e arranhada apareciam entre as dobras de sua camisa
e as calças, também em pedaços, deixavam
nua uma nádega. Um tremor sacudia seu corpo, Pantachita, e seus dentes batiam: não podia se queixar, cuidaram dele como
de um neném de peito. Primeiro o haviam curado,
não era verdade? depois, o defenderam dos aguarunas, que queriam fazer papinha dele. Vamos ver se hoje se entendiam melhor.
O tenente tivera muita paciência com
você, Pantachita, mas também não devia abusar. A corda abraçava o pescoço do prisioneiro como um colar. O Sargento Delgado
abaixou-se, recolheu a ponta da corda
e obrigou Pantacha a dar um passo até a prancha.
- No Sepa' você estará bem alimentado e terá onde dormir - disse o Sargento Delgado. - Não é uma cadeia como as outras,
não tem paredes. Talvez você até possa fugir.
- Isso não é melhor que um balaço? - perguntou o tenente. - Não é melhor que lhe mande ao Sepa do que dizer aos aguarunas,
dou o Pantachita de presente para vocês,
vinguem-se nele de todos os ladrões? Já viu a gana que eles têm de você. Por isso, não se faça de louco hoje.
Pantacha, o olhar evasivo e quente, tremia muito, seus dentes batiam com força, e ele encolhia, escondia e inchava o estômago.
O Sargento Delgado sorriu para ele,
Pantachita, não seria tão bobo de se responsabilizar por tanto roubo e tanta morte de selvagens, não? E o tenente sorriu:
' Colônia penal localizada na confluência dos rios Maranón e Ucayali; é chamada de Inferno Verde.
242
era melhor que acabassem rápido, Pantachita. Depois lhe dariam as ervas de que gostava e ele mesmo faria o seu cozimento,
que tal? Hinojosa entrou na cabana, deixou
sobre a prancha uma térmica de café e uma garrafa, saiu correndo. O tenente desarrolhou a garrafa e a estendeu para o prisioneiro,
que aproximou o rosto dela, murmurando.
O sargento deu um forte puxão na corda, sacana, e o Pantacha caiu entre as pernas do tenente: ainda não, primeiro falar,
depois beber. O oficial pegou a corda, fez
girar em sua direção a cabeça do prisioneiro. O emaranhado de cabelos agitou-se, os carvões continuavam presos na garrafa.
Fedia como o tenente nunca sentira antes,
Pantachita, seu cheiro o deixava tonto, e agora abria a boca, um golinho? e respirava roncando, senhor, para o frio, estava
gelando por dentro, senhor? só queria
unzinho, e o tenente, certo, mas que fossem por partes, onde se escondera aquele Tushía? tudo no seu devido tempo, ou Fushía?
onde estava? Mas ele já contara, senhor,
tremendo da cabeça aos pés, fugiu ao escurecer e não o viram, e parecia que seus dentes iam se quebrar, senhor: que perguntassem
aos huambisas, a mãe-d'água teria
vindo de noite, diziam, e entrara e o levara para o fundo da laguna. Por causa de suas maldades, devia ser, senhor.
O tenente olhava o prisioneiro, a testa enrugada, os olhos deprimidos. Em seguida, afastou-se, sua bota golpeou a nádega
descoberta, e Pantacha caiu com um grunhido.
Mas do chão continuou olhando obliquamente a garrafa. O tenente puxou a corda, a cabeça desgrenhada chocou-se contra o chão
duas vezes, Pantachita, já chegava de
espertezas, não? Onde se metera? e por sua própria iniciativa Pantacha, ao escurecer, senhor, rugiu, bateu com a cabeça
no chão outra vez: devagarzinho viria e
subiria pelo barranco, e entraria na sua cabana, com seu rabo, taparia a boca dele, senhor, e assim o levaria, pobrezinho,
e que lhe desse um golinho que fosse,
senhor. Assim era a mãe-d'água, caladinha, e a laguna, certo que se abriria, e os huambisas diziam voltará e nos engolirá,
e por isso eles também tinham ido embora,
senhor, e o tenente o chutou. Pantacha se calou, se pôs de joelhos: ficara sozinho, senhor. O oficial bebeu um gole da garrafa
térmica e passou a língua pelos lábios.
O Sargento Roberto Delgado brincava com a garrafa, e o Pantachita queria que o mandasse ao Ucayali, senhor, rugiu de novo
e as caretas afundavam suas bochechas,
onde tinha morrido seu amigo Andrés. Ali ele também queria morrer.
- Quer dizer que seu patrão foi levado pela mãe-d'água
243
- disse o tenente, com voz pausada. - Quer dizer que o tenente é um babaca e o Pantachita pode enganá-lo à vontade. Ah,
Pantachita.
Incansáveis, quentes, os olhos de Pantacha contemplavam a garrafa e, lá fora, o aguaceiro embravecera, à distância retumbavam
os trovões e os relâmpagos iluminavam,
de quando em quando, os tetos flagelados pela água, as árvores, o barro do lugar.
- Me deixou só, senhor - gritou Pantacha, e sua voz se enfureceu, mas seu olhar era sempre quieto e arrebatado -, eu dei
de comer a ele, que não saía de sua rede,
pobrezinho, e ele me deixou, e os outros também se foram. Por que não acredita, senhor?
- Talvez esteja mentindo sobre o nome - disse o Sargento Delgado. - Não conheço ninguém na selva que se chame Fushía. Este
cara não o deixa nervoso com seus delírios?
Eu daria logo um balaço nele, meu tenente.
- E o aguaruna? - disse o tenente. - A mãe-d'água também levou Jum?
- Foi embora, senhor - roncou Pantacha -, já não disse? Ou também levou, senhor, quem sabe.
- Esse Jum de Urakusa esteve na minha frente toda uma tarde - disse o tenente -, e o outro espertalhão servia de intérprete,
e eu ouvia e engolia suas histórias.
Ah, se tivesse adivinhado. Aquele foi o primeiro selvagem que conheci, sargento.
-- A culpa é daquele que foi governador de Nieva, meu tenente, o Reátegui - disse o Sargento Delgado. Nós não queríamos
soltar o aguaruna. Mas ele ordenou, e o senhor
já viu.
- O patrão se foi, Jum se foi, se foram os huambisas
- soluçou Pantacha. - Só com minha tristeza, senhor, e um frio terrível que estou sentindo.
- Mas juro que agarro o Adrián Nieves -- disse o tenente. - Tem gozado debaixo de nossas barbas, tem vivido com o nosso
dinheiro.
E todos tinham suas mulheres, lá. As lágrimas corriam entre seus cabelos e suspirava fundo, senhor, com muito sentimento,
e só tinha querido uma cristã, ainda que
fosse só para falar com ela, umazinha, e até a shapra eles levaram também, senhor, e a bota subiu, chutou, e Pantacha ficou
encolhido, rugindo. Fechou os olhos
por uns segundos, abriu-os e, mansamente agora, olhou a garrafa: só unzinho, senhor, para o frio, estava gelando por dentro.
244
- Você conhece bem esta região, Pantachita - disse o tenente. - Quanto tempo ainda vai durar esta maldita chuva, quando
poderemos partir?
- Amanhã clareia, senhor - balbuciou Pantacha. Peça a Deus e verá. Mas tenha pena, me dá unzinho. Para o frio, senhor.
Não havia quem agüentasse, maldita seja, não havia quem agüentasse, e o tenente levantou a bota, mas desta vez não chutou,
apoiou-a no rosto do prisioneiro até que
a face de Pantacha tocou o chão. O Sargento Delgado bebeu um golinho da garrafa, e um golinho da térmica. Pantacha separara
os lábios e sua língua, pontiaguda e
avermelhada, lambia, senhor, delicadamente, unzinho só, a sola da bota, para o frio, a biqueira, senhor, e alguma coisa
ardente, marota e servil bulia nos carvões
esbugalhados, unzinho? enquanto sua língua molhava o couro sujo, senhor? para o frio, e beijou a bota.
- Você conhece todas - disse o Sargento Delgado.
- Quando você não trabalha o nosso moral, se faz de louco, Pantachita.
- Diga onde está Fushía e dou a você a garrafa disse o tenente. - E além disso o deixo livre. E ainda por cima, dou dinheiro.
Responda logo ou desisto.
Mas Pantacha se pusera a choramingar de novo e todo o seu corpo aderia ao chão de areia, buscando calor, e era percorrido
por breves espasmos.
- Leve-o - disse o tenente. - Está me deixando nervoso com suas loucuras, está me dando vontade de vomitar, já estou vendo
até a mãe-d'água, e a chuva continua
linda, filha da puta.
O Sargento Roberto Delgado pegou a corda e correu, Pantacha ia atrás dele, de quatro pés, como um cachorro bailarino. Na
escadinha, o sargento gritou e apareceu
Hinojosa. E ele levou Pantacha, brincando, entre jorros de água.
- E se sairmos apesar da chuva? - perguntou o tenente. - Afinal, a guarnição não está tão longe.
- Viramos em dois minutos, meu tenente - disse o Sargento Delgado. - Não viu como está o rio?
- Quero dizer, a pé, pela mata - disse o tenente.
- Chegaremos em três ou quatro dias.
- Não se desespere, meu tenente - disse o Sargento Delgado. - Vai parar de chover logo. Não tem outro jeito, convença-se,
não podemos nos mexer com este tempo.
Assim é a selva, é preciso ter paciência.
245
- Já vão duas semanas, porra! - disse o tenente. Estou perdendo uma transferência, uma promoção, você não percebe?
- Não fique bravo comigo - disse o Sargento Delgado. - Não é por minha culpa que chove, meu tenente.
Ela estava sozinha, sempre esperando, para que contar os dias, choverá, não choverá, voltarão hoje? ainda é muito cedo.
Trarão mercadoria? Que tragam, Cristo de
Bagazán, santo, santo, muita, caucho, couros, que Dom Aquilino chegue com roupa e comida, quanto vendeu? e ele, bastante,
Lalita, a bom preço. E Fushía, velho
querido. Que ficassem ricos, Virgenzinha, santa, santa, porque então sairiam da ilha, voltariam para onde vivem os cristãos
e se casariam, não é, Fushía? certo,
Lalita. E que ele mudasse e a quisesse de novo, e de noite, na sua rede? sim, nua? sim, para chupá-la? sim, gostava dela?
sim, mas e as achuales? sim, e a shapra?
sim, sim, Lalita, e que tivessem outro filho. Olhe, Dom Aquilino, não se parece comigo? olhe como cresceu, fala huambisa
melhor que cristão. E o velho, você sofre,
Lalita? e ela, um pouco, porque ele já não a queria, e ele, é muito ruim para você? as achuales, a shapra, você tem ciúme
delas? e ela, raiva, Dom Aquilino, mas
eram sua companhia, na falta de amigas, sabia? e tinha pena que ele as desse ao Pantacha, a Nieves ou aos huambisas; voltarão
hoje? Mas nessa tarde eles não chegaram,
só o Jum, e era hora da sesta quando a shapra entrou na cabana gritando, sacudiu a rede e suas pulseiras dançavam, seus
espelhinhos e seus guizos, e Lalita, já chegaram?
e ela, não, chegou o aguaruna que fugiu. Lalita foi procurá-lo e aí estava, no tanque das tartarugas, salgando uns bagres,
e ela, Jum, aonde você foi, por quê, que
tinha feito todo esse tempo? e ele calado, pensavam que você não voltaria, e ele respeitoso, Jum, deu a ela os bagres, isto
eu te trouxe. Vinha como quando se foi,
a cabeça pelada, riscos de zarcão imitando chicotadas nas costas, e ela, saíram em expedição, precisavam tanto dele, rio
acima, por que você não se despediu? para
o lago Rimachi, conhecia os muratos'? são xucros? lutariam com o patrão ou lhe dariam o caucho sem
problemas? Jum.
' Muratos ou muratas, tribo de jívaros que habita a região de Pastaza (Loreto). Há muratos que vivem nas bacias do alto
Napo e do Tigre, em Oriente (Equador).
246
Os huambisas foram procurar você, e Pantacha, talvez o tenham matado, patrão, eles o odeiam, e o prático Nieves, não acredito,
já são amigos, e Fushía,
aqueles cachorros são capazes, e Jum, não me mataram, fui por aí e voltei agora; ia ficar? sim. O patrão brigará com você,
mas não se vá, Jum, ele se acalmava logo,
e além disso, no fundo, não o estimaria? E Fushía, um pouco louco, Lalita, mas útil, um conversador. Verdade, diabos cristãos,
aguaruna aj? discursava para eles?
Jum, patrão sacaneando, mentindo, aj? Lalita, se você visse como trabalha com eles, grita com eles, pede, engana, e eles,
sim, sim, aguaruna aj, com as mãos e
as cabeças, aj, e sempre lhe davam caucho por bem. Que é que você diz a eles, Jum, me conte como você os convence, e Fushía,
mas um dia o matariam e quem, merda,
ia substituí-lo. E ela, verdade que não quer voltar a Urakusa? você odeia tanto assim os cristãos, é? também a nós? e Pantacha,
sim, patroa, porque bateram nele,
e Nieves, então por que não nos mata dormindo? e Fushía, somos a sua vingança, e ela, era verdade que o penduraram de uma
capirona? e ele, é louco, Lalita, não burro,
você gritou quando o queimaram? e sabidíssimo para trapacear, ninguém ganhava dele caçando e pescando, tinha mulher? mataram?
e se não tem comida Jum se mete na
selva e traz mutuns, cotias, perdizes; você se pinta para lembrar-se das chicotadas? e certa vez o viram matar uma jararaca
com sua zarabatana, Lalita, ele sabe
que seus inimigos são aqueles, não é, Jum? os que Fushía deixa sem mercadoria, não pense que ele me ajuda pela minha linda
cara. E Pantacha, hoje eu o vi junto ao
barranco, tocou na cicatriz da testa, falava para ninguém, e Fushía, melhor para mim que trabalhe assim, a vingança não
custa nada, e ele, em aguaruna, não entendi.
Porque, quando chegava a lancha de Dom Aquilino, os huambisas caíam das lupunas no cais como uma chuva de bugios, e gritando
e brincando recebiam suas rações de
sal e de anis, e os machados e os machetes que Fushía repartia entre eles, mostravam olhos embriagados de alegria, e Jum
se foi, para onde? por aí, já voltei, não
queria? não, uma camisa? não, aguardente? não, machete, não, sal? não, e Lalita, o prático ficará contente porque você voltou,
Jum, ele, sim, é seu amigo, não? e
ele, sim, e ela, obrigado pelos peixinhos, pena que você os salgou. E o prático Nieves não sabia seus nomes, patroa, não
havia dito, só dois cristãos fizeram Jum
ter ódio dos patrões e dizia que o desgraçaram, e ela, enganaram você? roubaram? e ele, me aconselharam,
247
e ela, gostaria de falar com você, Jum, por que virava as costas quando o chamava? e ele, calado, tinha vergonha? e ele,
trouxe para ti, e as huambisas estavam
limpando o sangue, e ela, um veadinho? e ele, um veadinho, respeitoso, sim, e Lalita, vamos, eles o comeriam, que cortasse
lenha, e Jum, tens fome? e ela, muita
muita, desde que se foram não comia carne, Jum, e depois voltaram, e ela entra na cabana, olha para Àquilino, não cresceu,
Jum? e ele, sim, e falava pagão melhor
que cristão, e ele, sim, e Jum tinha filhos? e ele, tinha mas não tem mais, e ela, muitos? e ele, poucos, e então começou
a chover. Nuvens espessas e escuras, imóveis
sobre as lupunas, derrubaram uma água escura dois dias seguidos, e toda a ilha se transformou num charco lodoso, a laguna
numa névoa turva, e muitos pássaros caíam
mortos à porta da cabana, e Lalita, coitados, estarão viajando, que cubram os couros, o caucho, e Fushía, depressa, porra,
cachorros, despedia todos, naquela praiazinha,
procurem um refúgio, uma gruta para fazer fogo, e Pantacha, cozinhando suas ervas, e o prático Nieves, mascando tabaco como
os huambisas. E Lalita, desta vez também
ganharia colares? pulseiras? plumas? flores? gostava dela? e ela, se o patrão soubesse, e ele, mesmo que soubesse, pensaria
nela de noite? e ele, não é por mal,
é só um presentinho, porque a senhora foi boa quando estive doente; e ela, é limpo, educado, tira o chapéu para me cumprimentar,
e que Fushía não me insulte tanto,
era espinhenta? podia vingar-se, Fushía, os olhos do prático pegam fogo quando passo perto, sonhava com ela? queria pegá-la?
abraçá-la? dispa-se, venha para minha
rede, que ela o beijasse? na boca? nas costas? santo, santo, que voltem hoje mesmo.
Aconteceu naquele ano milionário: os agricultores comemoravam, manhã e tarde, suas doze cargas de algodão, e no Centro Piurano
e no Clube Grau brindava-se com champanha
francês. Em junho, para comemorar o aniversário da cidade e nos feriados nacionais, houve corso, bailes populares, meia
dezena de circos levantaram suas barracas
no areal. Os ricaços traziam orquestras limenhas para seus bailes. Foi também ano de acontecimentos: a Chunga começou a
trabalhar no barzinho de Doroteu, morreram
Juana Baura e Patrocínio Naya, o Piura entrou caudaloso, não houve pragas. Vorazes, em enxames, caíam sobre a cidade os
caixeiros viajantes, os corretores de algodão,
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as colheitas mudavam de dono nas cantinas. Apareciam lojas, hotéis, bairros residenciais. E um dia correu a notícia: "Perto
do rio, atrás do Camal, há uma casa
de mulheres".
Não era uma casa, mas um imundo beco, fechado ao exterior por um portão de garagem com quartinhos de adobe nas calçadas;
uma lâmpada vermelha iluminava a fachada.
Ao fundo, em tabuões estendidos sobre barris, estava o bar; e as mulheres eram seis: velhas, moles, estranhas. "Voltaram",
diziam os brincalhões, "são as que se
salvaram do incêndio!" Desde o princípio, a Casa do Camal teve muita concorrência. Seus arredores tornaram-se masculinos
e alcoólicos, e em Ecos y Notícias, El
Tiempo e La Indústria apareceram tópicos alusivos, cartas de protesto, exortações às autoridades. E então surgiu, inesperadamente,
uma segunda casa de mulheres,
em plena Castilla, não um beco, mas um chalé, com jardins e sacadas. Desmoralizados, os párocos e as senhoras que recolhiam
assinaturas pedindo o fechamento da
Casa do Camal desistiram. Só o Padre Garcia, do púlpito da igreja da Plaza Merino, destemperado e persistente, continuava
reclamando sanções e prevendo catástrofes:
"Deus lhes deu um bom ano, agora virão tempos de vacas magras para os piuranos". Mas não aconteceu assim, e no ano seguinte
a colheita de algodão foi tão boa como
a anterior. Em vez de dois, havia então quatro prostíbulos; um deles a poucas quadras da catedral, luxuoso, mais ou menos
discreto, com mulheres brancas, não de
todo maduras e, ao que parece, da capital.
E nesse mesmo ano, a Chunga e Doroteu brigaram a garrafadas e, na polícia, documentos na mão, ela demonstrou que era a única
dona do barzinho. Que história havia
por trás disso, que misteriosos negócios? Em todo caso, desde então, ela ficou sendo a proprietária. Dirigia o negócio,
amável e firmemente, sabia se fazer respeitar
pelos bêbados. Era uma jovem sem formas, de escasso humor, de pele mais para o escuro e coração metalizado. Era vista atrás
do balcão, os cabelos negros lutando
para escapar de uma redinha, a boca sem lábios, olhos olhando tudo com uma indolência que desanimava a alegria. Usava sapatos
sem salto, meias curtas, uma blusa
que também parecia de homem, e nunca pintava os lábios nem as unhas, nem punha ruge nas faces, mas, apesar dos vestidos
e modos, tinha algo muito feminino na voz,
mesmo quando dizia palavrões. As mãos grandes e quadradas levantavam mesas, cadeiras, desarrolhavam garrafas ou esmurravam
os atrevidos com igual facilidade.
249
Diziam que era áspera e de alma dura por causa dos conselhos de Juana Baura, que lhe havia ensinado a desconfiar dos homens,
o amor ao dinheiro e o costume da solidão.
Quando
a lavadeira morreu, Chunga fez um velório suntuoso: licor fino, caldo de galinha, café, toda a noite e à vontade. E quando
a orquestra chegou, o harpista à frente,
os que velavam Juana Baura espiaram, tensos, os olhos cheios de malícia. Mas Dom Anselmo e a Chunga não se abraçaram, ela
lhe deu a mão, como ao Bolas e ao Joven.
Mandou-os entrar, atendeu-os com a mesma cortesia distante que dispensava aos demais, escutou com atenção quando tocaram
tristes. Via-se que era dona de si mesma
e sua expressão era austera mas muito tranqüila. O harpista, em compensação, parecia melancólico e confuso, cantava como
se rezasse, quando uma criança veio dizer
que na Casa do Camal impacientavam-sex a orquestra devia começar às oito e passava das dez. Morta Juana Baura, diziam os
mangaches, a Chunga irá viver com o velho
na Mangachería. Mas ela se mudou para o barzinho, contam que dormia num colchão de palha sob o balcão. Na época em que a
Chunga e Doroteo se separaram, e ela ficou
sendo a única proprietária, a orquestra de Dom Anselmo não tocava mais na Casa do Camal, mas em Castilla.
O barzinho da Chunga fez rápidos progressos. Ela mesma pintou as paredes, decorou-as com fotografias e cartazes, cobriu
as mesas com oleados de florzinhas multicoloridas
e contratou uma cozinheira. Virou restaurante de operários, motoristas, sorveteiros e guardas municipais. Doroteo, depois
da briga, foi viver em Huancabamba. Anos
depois voltou a Piura e, "coisas da vida", dizia a gente, acabou como freguês do barzinho. Devia sofrer vendo os progressos
da casa que fora sua.
Mas um dia o bar-restaurante fechou suas portas e a Chunga desapareceu. Uma semana depois, voltou à favela, capitaneando
um grupo de operários, que puseram abaixo
as paredes de adobe e levantaram outras de tijolos, puseram zinco no teto e abriram janelas. Ativa, sorridente, ela estava
todo dia na obra, ajudava os trabalhadores,
e os velhos, muito excitados, trocavam olhares loquazes, retrospectivos, "Ela a está ressuscitando, irmão", "Tal pai tal
filho", "Quem sai aos seus não degenera".
Nesse tempo a orquestra não tocava mais na Casa de Castilla, mas no bairro de Buenos Aires, e, a caminho de lá, o harpista
pedia ao Bolas e ao Joven Alejandro que
parassem na favela. Subiam pelo areal e,
250
diante da obra, o velho, já quase cego, como vai o trabalho? puseram as portas? fica bonita de perto? com que se parece?
Sua ansiedade e suas perguntas denotavam
certo
orgulho, que os mangaches estimulavam com brincadeiras: "Que tal a Chunguita, harpista, está ficando rica, viu a casa que
ela está construindo?" Ele sorria com
gosto mas, por outro lado, quando os velhos sensuais vinham ao seu encontro, "Anselmo, ela a está ressuscitando para nós",
o harpista se fazia de perplexo, misterioso,
desentendido, não sei de nada, tenho que ir, o que estão dizendo, qual Casa Verde?
O ar decidido e próspero, os passos firmes, a Chunga apareceu, certa manhã, na Mangachería e caminhou pelas ruazinhas poeirentas
perguntando pelo harpista. Encontrou-o
dormindo, na choça que fora de Patrocínio Naya. Estendido sobre o catre, o braço atravessado sobre o rosto, o velho roncava
e tinha os pêlos brancos do peito molhados
de suor. A Chunga entrou, fechou a porta e, mesmo assim, o rumor da visita se espalhou. Os mangaches vieram passear pela
vizinhança, olhavam entre os bambus, colavam
as orelhas na porta, comunicavam-se as descobertas. Um momento depois, o harpista saiu à rua com o rosto pensativo, melancólico,
e pediu às crianças que chamassem
o Bolas e o Joven; a Chunga sentara-se no catre e estava risonha. Logo chegaram os amigos do velho, a porta foi fechada
outra vez, "Não é uma visita ao pai, mas
ao músico", murmuravam os mangaches, "a Chunga quer algo da orquestra". Permaneceram na choça por mais de uma hora e, quando
saíram, muitos mangaches já tinham ido
embora, aborrecidos de esperar. Mas viram-nos das choças. O harpista caminhava outra vez como sonâmbulo, tropeçando, fazendo
esses, boquiaberto. O Joven parecia
conformado e a Chunga dava o braço ao Bolas, e via-se que estava contente e tagarela. Foram à casa de Angélica Mercedes,
comeram tira-gostos, e depois o Joven e
o Bolas tocaram e cantaram algumas composições. O harpista olhava o teto, cocava as orelhas, a cara mudava a cada momento,
sorria, entristecia-se. E quando a Chunga
saiu, os mangaches rodearam-nos, ávidos de explicações. Dom Anselmo continuava distraído, abobalhado, o Joven encolhia os
ombros, só o Bolas respondia às perguntas.
"Não pode se queixar, velho", diziam os mangaches, "É um bom contrato, e depois terá todas as vantagens trabalhando para
a Chunguita, ela também pintará a casa
de verde?"
251
- Estava bêbado e não o levamos a sério - disse o Bolas. - O Senhor Seminário riu, zombando.
Mas o sargento puxara o revólver outra vez, agarrava-o pela coronha e pelo cano e fazia força para abri-lo. A seu redor
todos começaram a se olhar e a rir sem vontade,
a se mexer em seus assentos, subitamente incômodos. Só o harpista continuava bebendo, uma roletinha-russa? de golinhos,
que era isso, rapazes?
- Uma coisa para provar se os homens são homens disse o sargento; - já vai ver, velho.
- Fiquei sabendo que era de verdade pela tranqüilidade do Lituma - disse o Joven.
Olhar fincado na mesa, Seminário estava mudo e tenso, e seus olhos, sempre provocadores, agora pareciam também desconcertados.
O sargento abrira finalmente o revólver
e tirava os cartuchos, ordenava-os, verticais, paralelos, entre copos, garrafas e cinzeiros, atopetados de guimbas. A Selvática
soluçou.
- A mim, pelo contrário, ele enganou com sua tranqüilidade - disse a Chunga; - senão eu teria arrancado o revólver dele
quando o descarregava.
- Que há com você, tira - perguntou Seminário -, que graças são essas?
Tinha a voz entrecortada, e o Joven concordou, sim, desta vez baixaram sua crista. O harpista pôs o copo na mesa, cheirou
o ar, inquieto, estavam brigando de verdade,
rapazes? Que não fossem assim, que continuassem conversando amigavelmente sobre Chápiro Seminário. Mas as mulheres fugiam
da mesa, Rita, Sandra, Maribel, pulando,
Amapola, Hortênsia, gritando como passarinhos e, emboladas junto à escada, ciciavam, arregalavam os olhos, assustadíssimas.
O Bolas e o Joven pegaram o harpista
pelos braços, levaram-no quase no ar até o lugar da orquestra.
- Por que não falaram com ele? - balbuciou a Selvática. - Se dizem as coisas de boas maneiras, ele entende. Por que nem
ao menos tentaram?
A Chunga tentou, que guardasse o revólver, a quem queria meter medo?
- Você ouviu como me puteou a mãe antes, Chunguita - disse Lituma -, e também ao Tenente Cipriano, que nem sequer conhece.
Vamos ver se os que puteiam a mãe têm
sangue-frio e bom pulso.
- Que há com você, tira - uivou Seminário -, para que tanta palhaçada?
252
Então Josefino interrompeu-o: era inútil disfarçar, Senhor Seminário, para que se fazer de bêbado? que confessasse que tinha
medo, e o dizia com todo o respeito.
- E também o amigo tentou contê-los - disse o Bolas. - Vamos embora daqui, irmão, não se meta em problemas. Mas Seminário
já se encorajara e lhe deu um empurrão.
- E em mim outro - protestou a Chunga. - Me largue, que atrevimento, puta que o pariu, me largue!
- Machorra de merda - disse Seminário. - Fora, ou eu faço um furo em você também.
Lituma tinha agarrado o revólver com as pontas dos dedos, o pançudo tambor de cinco orifícios diante de seus olhos, a voz
era parcimoniosa, didática: primeiro a
gente vê se está vazio, quer dizer, se não ficou nenhuma bala dentro.
- Não falava para nós, mas para o revólver - disse o Joven. - Dava essa impressão, Selvática.
E então a Chunga se levantou, atravessou a pista de danças correndo e saiu, batendo a porta com força.
- Quando a gente precisa deles nunca aparecem disse; - tive de ir até o Monumento Grau para encontrar dois tiras.
O sargento pegou uma bala, levantou-a com delicadeza, exibiu-a à luz da lâmpada azul. Tinha que pegar o projétil e introduzi-lo
na arma, e o Mono perdeu o controle,
primo, já chegava, que fossem logo à Mangachería, primo, a mesma coisa fez José, quase chorando, que não brincasse com esse
revólver, que fizessem o que o Mono
disse, primo, que fossem embora.
- Não perdôo vocês porque não me contaram o que estava acontecendo - disse o harpista. - Os gritos de León e das moças me
deixavam aflito, mas nunca imaginei, pensei
que estivessem se esmurrando.
- Quem é que tinha a cabeça fria, maestro? - perguntou o Bolas. - Seminário também tinha puxado seu revólver, quase o esfregava
na cara de Lituma, estávamos esperando
que, a qualquer momento, escapasse um tiro.
Lituma, sempre tão tranqüilo, e o Mono, não deixem, impeçam, haveria uma desgraça, o senhor, Dom Anselmo, eles atenderiam.
A Selvática, Rita e Maribel estavam chorando,
e Sandra disse a ele que pensasse em sua mulher, e José, no filho que estava esperando, primo, não seja teimoso, vamos à
Mangachería. com um golpe seco, o sargento
juntou a coronha e o cano: fechava-se a arma: calma,
253
tranqüilamente, e tudo está pronto, Senhor Seminário, que esperava para se preparar?
- Como esses apaixonados a quem a gente fala e fala, mas é inútil, porque andam no mundo da lua - suspirou o Joven. - O
revólver enfeitiçara Lituma.
- E ele nos enfeitiçara a todos - disse o Bolas -, e Seminário obedecia-lhe como se fosse o seu caboclinho. Mal Lituma ordenou,
abriu o revólver e tirou todas as
balas, menos uma. Os dedos do coitado tremiam.
- Talvez o coração lhe dissesse que ia morrer disse o Joven.
- Está pronto, agora apoie a mão no tambor, sem olhar, e dê voltas nele até não saber onde está a bala, voltas rápidas,
como numa roleta - disse o sargento. - Por
isso se chama assim, harpista, entende?
- Chega de conversa fiada - disse Seminário. Comecemos, caboclo de merda.
- Esta é a quarta vez que me insulta, Senhor Seminário
- disse Lituma.
- Dava calafrios a maneira como faziam girar o tambor - disse o Bolas. - Pareciam duas crianças enrolando um pião.
- Está vendo como são os piuranos, moça - disse o harpista. - Jogar a vida por puro orgulho.
- Orgulho coisa nenhuma - disse a Chunga. De bêbados e para me estragar a vida.
Lituma soltou o tambor, era preciso sortear para ver quem começava, mas que importa, ele o convidou logo que puxou o revólver,
cabia-lhe a vez, pôs a boca do cano
na fronte; fecha-se os olhos e fechou os olhos, e se dispara, e apertou o gatilho: tac, e um bater de dentes. Ficou pálido,
todos ficaram pálidos, e abriu a boca,
e todos abriram a boca.
- Cale-se, Bolas - disse o Joven. - Não vê que está chorando?
Dom Anselmo acariciou os cabelos da Selvática, deu a ela o lenço colorido, moça, que não chorasse, eram coisas passadas,
já não importavam, e o Joven acendeu um
cigarro e ofereceu. O sargento colocara o revólver na mesa e estava bebendo, devagar, de um copo vazio, sem que ninguém
risse. Sua cara parecia saída da água.
- Nada, não fique nervoso - suplicava o Joven. Vai lhe fazer mal, maestro, juro que não houve nada.
- Você me fez sentir o que nunca senti
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- tartamudeou o Mono. - Agora estou lhe pedindo, primo, vamos.
E José, como despertando, isso seria lembrado, que grande se fizera, da escada se levantou o zumbido das mulheres, Sandra
ululou, o Joven e o Bolas, acalme-se, maestro,
fique tranqüilo, e Seminário sacudiu a mesa, silêncio, iracundo, porra, é minha vez, calem-se. Levantou o revólver, chegou-o
à fronte, não fechou os olhos, o peito
inchou.
- Ouvimos o tiro ao entrar na favela com os tiras
- disse a Chunga. - E a gritaria. Chutávamos a porta, os guardas quase a puseram abaixo com seus fuzis, e vocês não abriam.
- Acabava de morrer um sujeito, Chunga - disse o Joven. - Quem podia pensar em abrir a porta?
- Caiu de bruços sobre Lituma - disse o Bolas -, e com o choque foram os dois ao chão. O amigo ficou gritando, chamem o
Doutor Zevallos, mas ninguém podia se mexer
com o susto. E além disso, tudo era inútil.
- E ele? - perguntou a Selvática muito baixinho. Ele olhava o sangue que salpicara, e examinava todo
o corpo, pensando certamente que era seu o sangue, e não se lembrava de se levantar, e ainda estava sentado, apalpando-se,
quando entraram os tiras, fuzis na mão,
apontando para todo mundo, ninguém se mexa, vocês nos pagam se aconteceu alguma coisa ao sargento. Mas ninguém se importava
com eles e os invencíveis e as mulheres
corriam atropelando-se entre as cadeiras, o harpista ia e voltava, pegava um, quem foi, sacudia outro, quem morreu, e um
tira ficou diante da escada e obrigou a
retroceder os que queriam fugir. A Chunga, o Joven e o Bolas inclinaram-se sobre Seminário: de bruços, ainda conservava
o revólver na mão e uma viscosa mancha crescia
entre seus cabelos. O amigo, de joelhos, escondia a cara, Lituma continuava se apalpando.
- Os guardas, que houve, sargento? ele o desrespeitou e teve que despachá-lo? - contou o Bolas. - E ele, tonto, dizendo
que sim a tudo.
- Este senhor se suicidou - disse o Mono -, nós não temos nada com isso, deixem a gente sair, nossas famílias estão esperando.
Mas os guardas tinham trancado a porta e a guardavam, o dedo no gatilho do fuzil, e atiravam cobras e lagartos pela boca
e pelos olhos.
- Sejam humanos, sejam cristãos, deixem a gente sair
255
- repetia José. - A gente só estava se divertindo, não nos metemos em nada. Por que querem que juremos?
- Traga um cobertor lá de cima, Maribel - disse a Chunga. - Para cobri-lo.
- Você não perdeu a cabeça, Chunga - disse o Joven.
- Depois tive de jogá-lo fora, as manchas não saíam com coisa alguma - disse a Chunga.
- As coisas mais estranhas acontecem a eles - disse o harpista. - Vivem diferente, morrem diferente.
- De quem está falando, maestro? - perguntou o Joven.
- Do Seminário - disse o harpista. Tinha a boca aberta, como se ainda fosse dizer alguma coisa, mas não disse mais nada.
- Acho que o Josefino não vem mais me buscar disse a Selvática. - É tardíssimo.
A porta estava aberta e por ela entrava o sol como um incêndio voraz, todos os cantos do salão brilhavam. Sobre os tetos
da favela, o céu aparecia altíssimo, sem
nuvens, muito azul, e se via também a lombada dourada do areal e as achatadas e ralas algarobeiras.
- Nós levamos você, moça - disse o harpista. Assim economiza o táxi.
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QUARTA PARTE


Silenciosas, impelidas pelas varas, as canoas aproximam-se da margem e Fushía, Pantacha e Nieves saltam à terra. Internam-se
uns metros na mata, acocoram-se, falam
em voz baixa. Enquanto isso, os huambisas fundeiam as canoas, ocultam-nas sob a folhagem, apagam as pisadas na lama da margem,
e, por sua vez, entram na mata. Levam
zarabatanas, machados, arcos, hastes e virotes pendurados no pescoço e, na cintura, facas e canudos alcatroados de curare.
Seus rostos, torsos, braços e pernas desaparecem
sob tatuagens e, como nas grandes festas, eles pintaram também os dentes e as unhas. Pantacha e Nieves levam espingardas,
Fushía, um revólver. Um huambisa fala com
eles, logo se agacha e, elasticamente, afunda-se no mato. O patrão estava melhor? O patrão nunca estivera mal, quem inventava
isso. Que o patrão não levantasse a
voz: os homens ficariam nervosos. Silhuetas mudas, esparramadas sob as árvores, os huambisas exploram à direita e à esquerda,
seus movimentos são lentos e só o brilho
de suas pupilas e as furtivas contrações de seus lábios revelam o anis e os cozimentos que estiveram bebendo toda a noite,
à volta do fogo, no baixio onde acamparam.
Alguns molham no curare os vértices forrados de algodão dos virotes, outros sopram as zarabatanas para expulsar as sobras.
Quietos, sem se olhar uns aos outros,
esperam um longo tempo. Quando o huambisa que se afastou surge como um suavíssimo felino entre as árvores, o sol já está
alto e suas línguas amarelas derretem os
riscos de porongo e de zarcão dos corpos nus. Há uma complicada geografia de luzes e de sombras, acentuou-se a cor dos matagais,
257
as cascas parecem mais duras, mais enrugadas, e vem de cima um ensurdecedor vozerio de pássaros. Fushía levanta-se, fala
com o recém-chegado, volta até Pantacha
e Nieves:
os muratos estão caçando na mata, só há mulheres e crianças, não se vê caucho nem couros. Valerá a pena ir assim mesmo?
O patrão pensa que sim, nunca se sabe, talvez
esses cachorros tenham escondido tudo. Os huambisas falam agora, reunidos em torno do recém-chegado. Interrogam-no sem pressa,
com monossílabos, e ele responde
a meia voz, apoiando suas palavras com gestos e ligeiros movimentos de cabeça. Dividem-se em três grupos, o patrão e os
cristãos se põem à frente e assim caminham,
sem pressa, paralelos, precedidos pelos huambisas, que vão abrindo a folhagem com machetes. A terra murmura à sua passagem
e, ao contato de seus corpos, o mato
mais alto e os ramos afastam-se com um único estalido, e logo após eles se endireitam e se juntam. Continuam a marcha por
longo tempo e, de repente, a luz é mais
selvagem e próxima, os raios atravessam obliquamente a vegetação que rareia e é mais baixa, menos monótona, mais clara.
Param e, à distância, já se vê o fim da selva,
uma grande clareira, umas cabanas e as águas quietas do lago. O patrão e os cristãos ainda dão alguns passos e olham. As
cabanas se aglomeram sobre uma elevação
de terra nua e acinzentada, a pouca distância do lago, e atrás do povoado, que parecia deserto, estende-se uma praia plana,
de cor ocre. Pelo flanco direito, um
braço de mata se estira e chega quase até as cabanas; por ali, que Pantacha se fizesse ver e os muratos viriam por este
lado. Pantacha dá meia-volta, explica, faz
gestos, rodeado de huambisas, que o escutam concordando. Saem em fila indiana, agachados, afastam os cipós com as mãos e
o patrão, Nieves e os outros voltam os
olhos uma vez mais para o povoado. Agora há indícios de vida: entre as cabanas adivinham silhuetas, movimentos e umas figuras
que vão lentamente para o lago, em
grupo, com embrulhos na cabeça, que devem ser rodilhas ou cântaros, escoltadas por sombras minúsculas, talvez cachorros,
talvez crianças. Nieves vê alguma coisa?
Não vê caucho, patrão, mas aquelas coisas estendidas sobre os mourões podem ser couros secando ao sol. O patrão não entende,
na região há seringais, os patrões já
não terão vindo para recolher o caucho? Esses muratos, sempre tão vagabundos, é difícil que morram de trabalho. Os diálogos
dos huambisas são cada vez mais roucos,
mais enérgicos. De cócoras ou de pé, ou encarapitados nos arbustos,
258
olham fixamente as cabanas, as silhuetas esfumadas na praia, as sombras mais baixas, e agora seus olhos não são dóceis mas
indomáveis, e há neles alguma coisa
da cobiçosa temeridade que dilata as pupilas do puma esfaimado, e até suas peles tensas ganharam o lustroso brilho do jaguar.
Suas mãos denotam exasperação, apertam
as zarabatanas, apalpam os arcos, as facas, batem nas coxas, e os dentes lambuzados de porongo, limados como pregos, batem
ou mordem cipós, pedaços de tabaco. Fushía
se aproxima, fala e eles grunhem, cospem, e suas caretas são ao mesmo tempo risonhas, beligerantes, exaltadas. Perto de
Nieves, um joelho no chão, Fushía observa.
As figuras voltam do lago, caminham sem ânimo, pesadas, entre as cabanas, e em algum lugar acenderam uma fogueira: um arvorezinha
cinza sobe até o céu brilhante.
Late um cachorro, Fushía e Nieves se olham, os huambisas aproximam as zarabatanas dos lábios e, nos umbrais da mata, seus
olhos buscam, mas o cachorro não aparece.
Late de quando em quando, invisível, a salvo. E se um dia entrassem e nas cabanas estivessem os soldados, esperando-os?
O patrão nunca pensara nisso? Nunca pensara.
Mas, em vez disso, e a cada viagem, pensava que quando voltassem à ilha os soldados estariam apontando para eles do barranco.
Encontrariam tudo queimado, mortas
as mulheres dos huambisas e a patroa roubada pelos soldados. No princípio, tinha um pouco de medo, agora não, só ficava
nervoso. O patrão nunca teve medo? Nunca
teve, porque os pobres que têm medo ficam pobres toda a vida. Mas isso não era com ele, patrão, Nieves sempre fora pobre
e a pobreza não lhe tirava o medo. É que
Nieves se conformava, e o patrão, não. Tinha tido má sorte, mas passaria, cedo ou tarde passaria para o lado dos ricaços.
Quem duvidava, patrão, ele conseguia sempre
o que queria. E uma explosão de vozes sacode a manhã: uivantes, inesperados, nus, emergem da língua da mata e correm até
o povoado, gesticulando sobem a ladeira,
e entre os velozes corpos distantes se vêem as cuecas brancas do Pantacha, se ouvem seus gritos, que recordam a sarcástica
gargalhada da gralha, e agora latem muitos
cachorros e as cabanas expulsam sombras, gritos e uma constante agitação, uma espécie de ebulição abala a ladeira por onde
fogem tropeçando, pulando, esbarrando
uma na outra, figuras que vêm para a mata e se destacam, afinal, nitidamente: são mulheres. Os primeiros corpos pintados
chegaram ao cume. Atrás de
Nieves e Fushía,
os huambisas soltam alaridos, pulam,
259
toda a folhagem vibra, e não escutam mais os pássaros. O patrão se volta, aponta o descampado e as mulheres fugitivas: podem
ir. Mas eles permanecem no mesmo lugar
ainda
uns segundos, estimulando-se com rugidos, ofegando e esperneando, e logo um deles levanta a zarabatana, começa a correr,
atravessa a mata pouco densa que os separa
da clareira e, quando chega ao terreno descoberto, os demais também correm, pescoços inchados pelos gritos. O prático e
Fushía seguem-nos, e, no descampado, as mulheres
levantam os braços, olham para o céu, misturam-se, dispersam-se em grupos e os grupos em solitárias silhuetas que pulam,
vão e vêm, caem ao chão e depois desaparecem,
uma após outra, submersas pelas peles de brilhos negros e avermelhados. Fushía e Nieves caminham, e os gritos os seguem
e os precedem, parecem vir do pó luminoso
que os cerca enquanto sobem a ladeira. No povoado murato, os huambisas revoluteiam entre as cabanas, pulverizam a pontapés
os frágeis tabiques, derrubam a machete
os tetos de jarina, um deles apedreja o vazio, outro apaga o fogo e todos cambaleiam, ébrios? estonteados? mortos de cansaço?
Fushía vai atrás deles, sacode-os,
interroga-os, dá ordens, e Pantacha, sentado sobre um cântaro, suarento, os olhos esbugalhados, boquiaberto, aponta uma
cabana incólume ainda: lá estava um velho.
Sim, por mais que ele falasse, patrão, cortaram-na. Alguns huambisas acalmaram-se e esgaravatam, aqui e ali, passam carregados
de couros, bolas de caucho, cobertores
que amontoam na clareira. A gritaria se concentrou agora, brota das mulheres encurraladas entre um esqueleto de bambus e
três huambisas que as vigiam, inexpressivos,
a uns passos de distância. O patrão e Nieves entram na cabana e, no chão, entre dois homens ajoelhados, há umas pernas
curtas e enrugadas, um sexo oculto por um
estojo de madeira, um ventre, um torso magro e sem pêlos, de costeletas que marcam a pele terrosa. Um dos huambisas volta-se,
mostra a cabeça que só agora goteja
pontos vermelhos. Mas o buracão aberto entre os ombros ossudos verte sempre, esses cachorros, golfadas intermitentes
de sangue grosso, que visse bem suas caras.
Mas Nieves saiu da cabana, pulando para trás como um caranguejo, e os dois huambisas não mostram entusiasmo algum e têm
os olhos como que intumescidos. Escutam mudos,
impassíveis, Fushía, que grita e faz gestos e segura o revólver, e quando ele se cala saem da cabana e ali está Nieves,
apoiado na parede, vomitando. Era mentira,
não perdera o medo ainda,
260
mas que não o envergonhasse, qualquer um ficava com o estômago embrulhado, esses cachorros. Para que servia o Pantacha?
Que adiantava que o patrão desse ordens?
Nunca aprenderiam, porra, qualquer dia seria a cabeça deles que cortariam. Mas ainda que fosse a tiros, porra, a pontapés,
porra, esses porras lhe obedeceriam. Voltam
à clareira e os huambisas afastam-se e tudo foi colocado no chão: couros de lagarto, veado, serpente e javali, cabaças,
colares, caucho, feixes de barbasco. Sempre
emboladas e ruidosas, as mulheres mexem os olhos, os cachorros latem, e Fushía examina os couros à contraluz, calcula o
peso do caucho, e Nieves recua, senta-se
em um tronco caído, e Pantacha vem para seu lado. Seria o feiticeiro? Quem podia saber? mas, na verdade, não tentou fugir,
e quando entraram estava sentadinho, queimando
umas ervas. Gritou? Quem podia dizer, ele não o ouviu e primeiro quis impedi-los e depois quis ir embora e se foi e tremiam
suas pernas e se cagou e não sentiu que
se cagava. De fato, o patrão estava furioso, não tanto porque o mataram, por que não o obedeceram? Sim. E quase não havia
nada, aqueles couros estavam avariados,
e o caucho era da pior qualidade, ficaria furioso. Mas por que se fazia de indiferente? Não estava doente também? Eram cristãos,
na ilha a gente esquecia que os
selvagens eram selvagens, mas agora compreendia, não podia viver assim, se tivesse masato se embriagaria. E veja, preste
atenção, discutiam com o patrão, ficaria
furioso, ficaria furioso. Oculto pelos huambisas que o amuralham, a voz de Fushía soa fracamente na manhã ensolarada, e
eles falam com veemência, agitam os punhos,
cospem e vibram. Sobre suas cabeleiras lassas, aparece a mão do patrão com o revólver, aponta para o céu e dispara, e os
huambisas murmuram por um segundo, calam-se,
outro disparo, e as mulheres também se calam. Só os cachorros continuam latindo. Por que o patrão queria partir logo? Os
huambisas estavam cansados, Pantacha também
estava cansado, e eles queriam comemorar, era justo, eles não se atiravam à imundície pelo caucho nem pelos couros, só por
prazer, um dia se esquentariam e matariam
a gente. É que o patrão está doente, Pantacha, queria demonstrar que não, mas não podia. Antes não ficava de bom humor?
Não gostava de comemorar também? Agora nem
olhava para as mulheres e sempre andava irritado. Estaria enlouquecendo porque não ficava rico como queria? Fushía e os
huambisas dialogam agora com animação, sem
violência, não há rugidos mas um cochichar vivo,
261
nervoso, circular, e alguns rostos mostram-se joviais. As mulheres estão silenciosas, grudadas umas às outras, abraçadas
às suas crias e a seus
cachorros. Doente? Claro, uma noite antes de Jum sair da ilha, Nieves entrou e viu, as achuales estavam esfregando suas
pernas com resina, e ele, porra, fora, se
enfureceu, não queria que soubessem que estava doente. Fushía dá instruções, os huambisas enrolam os couros, jogam aos ombros
as bolas de caucho, pisoteiam e destroem
tudo aquilo que o patrão eliminou, e Pantacha e Nieves se aproximam do grupo. Estavam cada vez pior esses cachorros, não
queriam obedecer, estavam insolentes, porra,
mas ele os ensinaria. É que queriam festejar, patrão, e além disso havia tantas mulheres. Por que o patrão não os deixava?
Tamanho imbecil, ele também? a região
não estava cheia de tropa? serrano burro, se eles se embriagam, aquilo duraria dois dias, babaca, começando por ele, os
muratos podiam voltar, e os soldados, surpreendêlos.
O patrão não queria problemas por tão pouca coisa, que levassem a mercadoria ao rio, babaca, e bem depressa. Vários huambisas
já descem a ladeira e Pantacha vai
atrás deles, coçando-se, apressando-os, mas os homens caminham sem pressa e sem vontade, em silenciosas e morosas filas
desordenadas. Os que permanecem no povoado
murmuram, andam confusamente de um lado para outro, evitam Fushía, que os vigia, revólver na mão, do centro da clareira.
Finalmente, uns tabiques começam a se queimar.
Os huambisas param de caminhar, esperam, como que apaziguados, que as chamas abracem, num único torvelinho, a casa. Em seguida,
empreendem a volta. Ao descer a ladeira
pelada, viram-se para olhar as mulheres que, no cume, jogam punhados de terra à cabana em chamas. Chegam à mata e têm que
abrir de novo um caminho a machete e avançar
por um delgado, precário corredor sombreado, entre troncos, cipós, trepadeiras e curtos igapós. Quando invadem a praia,
Pantacha e seus homens já tiraram as canoas
da ramagem e nelas instalaram a carga. Embarcam, partem, na frente a canoa do prático, que vai medindo com o remo a profundidade
do leito. Navegam toda a tarde,
com uma breve parada para comer, e quando escurece atracam numa praia, semioculta por tucuns gêmeos, eriçados de espinhos.
Acendem o fogo, cortam fiambres, assam
mandiocas, e Pantacha e Nieves chamam o patrão: não, não quer comer. Deitou-se na areia, de costas, usa os braços de travesseiro.
Eles comem e se atiram um junto
ao outro, cobrem-se com um cobertor murato.
262
Dava não sei o quê, ver o patrão tão mudado, não só não comia, mas não falava. Seria aquilo das pernas, tinha notado? mal
podia caminhar e sempre ficava
para trás. Deviam doer, claro, e, além disso, não tirava as calças nem as botas para nada. Os murmúrios se cruzam e se descruzam
na escuridão, percorrem-na em todas
as direções: vozes de insetos, vozes do rio que bate nas pedras, na grama e na margem. Nas trevas dos arredores os vaga-lumes
brilham como fogos-fátuos. Pantacha
viu quando ele pegou aquele akitai1 dos muratos, era mais bonito, tinha mais cores que os dos huambisas, viu como ele o
escondia nas calças. Ah, sim? E em que estava
pensando o Pantacha, por que Jum fugiria da ilha? Que não mudasse de conversa; levava o akitai para z.shapra? tinha se apaixonado
por ela? Como poderia se apaixonar,
se nem sequer a entendia, e nem sequer lhe agradava? Passaria para ele então? Quando chegassem? Na mesma noite? Sim, na
mesma noite que chegassem, se quisesse. Para
quem, então, daria o akitai? Para uma das achuales? O patrão ia lhe passar uma achual? Para ninguém, só para ele, gostava
de plumas, e depois seria uma lembrança.
' Vestimenta indígena.
263

I.

Bonifácia esperou o sargento ao pé da cabana. O vento levantava seus cabelos como uma crista, e pareciam também de um galinho
sua atitude satisfeita, a postura
de suas pernas plantadas na areia e a bundinha firme e saliente. O sargento sorriu, acariciou o braço nu de Bonifácia, palavra
de honra, ficara emocionado ao vê-la
de longe, e os olhos verdes se dilataram um pouco, o sol se refletia como uma vibração de dardos minúsculos em cada pupila.
- Você lustrou as botas - disse Bonifácia. - Sua farda parece nova.
Um sorriso satisfeito arredondou a cara do sargento e quase escondeu seus olhos:
- Foi a Senhora Paredes que a lavou - disse. - Tinha medo de que chovesse, mas que sorte, nem uma nuvenzinha. Parece um
dia piurano.
- Você nem notou - disse Bonifácia. - Não gosta do meu vestido? É novo.
- É verdade, não tinha notado - disse o sargento.
- Está bem em você, o amarelo fica muito bem nas moreninhas.
Era um vestido sem mangas, com decote quadrado e saia rodada. O sargento examinava Bonifácia, risonho, sua mão continuava
acariciando o braço dela, que permanecia
imóvel, os olhos nos do sargento. Lalita lhe emprestara os sapatos brancos, experimentou-os de noite e machucavam, mas ela
os calçaria para ir à igreja, e o sargento
olhou os pés de Bonifácia, descalços, afogados na areia: não gostava que andasse descalça, aqui não tinha importância, chininha,
mas quando se fossem, teria que
andar sempre calçada.
264
- Primeiro tenho de me acostumar - disse Bonifácia. - Você não sabe que na missão só usei sandálias? Não são a mesma coisa,
não apertam.
Lalita apareceu no parapeito: o que sabia do tenente, sargento. Uma fita prendia seus cabelos compridos, e no pescoço brilhava
um colar de pérolas. Tinha os lábios
pintados, que bonitona estava a senhora, ruge nas faces, com ela é que o sargento gostaria de casar e Lalita, o tenente
não chegara? que é que sabia?
- Nenhuma notícia - disse o sargento. - Só que ainda não chegou à guarnição de Borja. Parece que chove muito, terão virado
no meio do caminho. Mas por que se preocupam
tanto com ele, até parece que o tenente é filho de vocês.
- Vá embora, sargento - disse Lalita, de mau humor. - Dá azar ver a noiva antes da missa.
- Noiva? - explodiu Madre Angélica. - Você quer dizer concubina, companheira.
- Não, madrezinha - insistiu Lalita, com voz humilde. - Noiva do sargento.
- Do sargento? - perguntou a superiora. - Desde quando? Como foi isso?
Incrédulas, surpresas, as madres inclinaram-se para Lalita, que assumira uma atitude reservada, as mãos juntas, a cabeça
baixa. Mas espiava as madres com o rabo
do olho, e seu meio sorriso era enganador.
- Se não prestar, a senhora e Dom Adrián serão os culpados - disse o sargento. - Vocês me meteram neste buraco, senhora.
Ria com a boca aberta, muito alto, e seu corpo, também regozijado, estremecia dos pés à cabeça. Lalita fazia esconjuros
com os dedos para espantar a má sorte,
e Bonifácia se afastara alguns passos do sargento.
- Vá para a igreja - repetiu Lalita. - Está se desgraçando e desgraçando-a só por prazer. Que é que veio fazer aqui?
E para o que queria, senhora, e o sargento estendeu as mãos para Bonifácia, para ver a sua chininha, e ela correu, então
viera na frente, e tal como Lalita, cruzou
os dedos e exorcizou o sargento, que, cada vez de melhor humor, bruxas, bruxas, ria a gargalhadas: ah, se os mangaches vissem
essa dupla de bruxas. Mas elas não
estavam de acordo, e o pequeno punho trêmulo de Madre Angélica escapou
da manga,
265
esmurrou o ar e desapareceu entre as pregas do hábito: não poria os pés naquela casa. Estavam no pátio, frente à residência
e, ao fundo, as pupilas
corriam entre as árvores da horta. A superiora parecia ligeiramente desatenta.
- É da senhora que ela mais sente falta, Madre Angélica - disse Lalita. - Tenho mais sorte que qualquer outra, diz,
tenho muitas mães, diz, e a primeira é
a mãezinha Angélica. Acho que ela pensava que a senhora me ajudaria a pedir à superiora, madrezinha.
- É um demônio cheio de tretas e maldades - o punho apareceu e desapareceu. - Mas a mim não engana facilmente. Que vá embora
com o seu sargento, se quiser, aqui
não entrará.
- Por que em vez de mandar você não veio ela mesma? - perguntou a superiora.
- Tem vergonha, madrezinha - disse Lalita. - Não sabia se a senhora a receberia ou a mandaria embora de novo. Não é porque
nasceu pagã que não tem orgulho. Perdoe-lhe,
madre, olhe que vai se casar.
- Ia procurá-lo, sargento - disse o prático Nieves.
- Não sabia que estava aqui.
Tinha saído ao terraço e se apoiava no parapeito, junto a Lalita. Vestia umas calças de algodão branco e uma camisa de mangas
compridas, sem colarinho. Estava sem
chapéu, calçava uns sapatos de sola grossa.
- Andem logo - disse Lalita. - Adrián, leve-o agora mesmo.
O prático desceu a escadinha, as pernas duras como estacas, o sargento fez uma continência para Lalita e piscou um olho
para Bonifácia. Caminharam para a missão,
não pelo caminho paralelo ao rio, mas entre as árvores da colina. Como se sentia, sargento? Até que hora foi a festa de
despedida de ontem na casa dos Paredes? Até
as duas, e o Pesado se embriagou e se jogou na água com roupa, Dom Adrián, ele também ficou um pouco tocado. Já sabia alguma
coisa do tenente? Mas, outra vez, Dom
Adrián? Não sabia nada, vai ver que as chuvas o prenderam lá, devia estar fazendo espuma. Então, que sorte que não ficaram
com ele. Sim, talvez ainda ficassem um
bom tempo por lá, diziam que no Santiago havia um verdadeiro dilúvio. Vamos ver, aqui entre nós, estava contente por se
casar, sargento? e o sargento sorriu, por
uns segundos seus olhos se arregalaram,
266
e, em seguida, bateu no peito: aquela mulher se metera aqui, Dom Adrián, por isso casava com ela.
- O senhor se portou como um bom cristão - disse Adrián Nieves. - Aqui só se casam os que vivem há muitos anos juntos; as
madres e o Padre Vilâncio se matam aconselhando
essa gente e nada. A moça está contente. Ontem à noite prometia: vou ser uma boa mulher.
- Na minha terra falam que o coração nunca engana - disse o sargento. - E meu coração me diz que será boa mulher, Dom Adrián.
Caminhavam devagar, evitando as poças, mas as perneiras do sargento e as calças do prático já estavam cheias de respingos.
As árvores da colina filtravam a luz do
sol, que se agitava e ganhava certo frescor. Aos pés da missão, Santa Maria dê Nieva jazia quieta e dourada entre os rios
e a mata. Pularam um montículo, subiram
o caminho pedregoso e, lá em cima, na porta da capela, um grupo de aguarunas chegou à beira do barranco para vê-los: mulheres
de peitos caídos, crianças nuas, homens
de olhos esquives e cabeleiras profusas. Afastaram-se para deixá-los passar e alguns meninos estenderam as mãos e grunhiram.
Antes de entrar na igreja, o sargento
limpou a farda com o lenço e ajeitou o quepe; Nieves desdobrou a bainha das calças. A capela estava cheia, cheirava a flores
e a lamparina de azeite, a careca de
Dom Fábio Cuesta reluzia como uma fruta na penumbra. Tinha posto gravata e, de seu banco, acenou para o sargento, que levou
a mão ao quepe. Atrás do governador,
o Gordo, o Chiquito, o Oscuro e o Rubio bocejavam, as bocas azedas, os olhos injetados, e os Paredes e seus filhos ocupavam
dois bancos: incontáveis meninos de cabelos
molhados. Na ala oposta, atrás de uma grade onde a penumbra se convertia em escuridão, uma formação de aventais e cabeleiras
idênticas: as pupilas. Ajoelhadas, imóveis,
seus olhos, como uma nuvem de vaga-lumes curiosos, perseguiam o sargento que nas pontas dos pés ia apertando as mãos dos
presentes, e o governador tocou na careca,
sargento: tinha que tirar o quepe na igreja e ficar com a cabeça descoberta, como ele. Os guardas sorriam, e o sargento
alisava os cabelos alvoroçados pelo ímpeto
com que havia tirado o quepe. Foi sentar-se na primeira fila, junto ao prático Nieves. Arrumaram bonito o altar, não? Muito
bonito. Dom Adrián, eram simpáticas
as freirinhas. Os jarrões de barro vermelho brilhavam de flores, e também havia orquídeas trançadas em colares, que desciam
do
267
crucifixo de madeira até o chão; de ambos os lados do altar, vasos de altas samambaias alinhavam-se em filas duplas até
chegar às paredes, e o chão da capela fora
lavado e estava brilhando. Dos castiçais acesos, rolos de fumaça transparente e cheirosa ascendiam pelo ar escuro e iam
alimentar a capela densa de vapor que flutuava
junto ao teto: já chegaram, sargento, a noiva e a madrinha. Houve um murmúrio, as cabeças giraram até a porta. Empinada
nos sapatos brancos de salto alto, Bonifácia
tinha agora a mesma altura de Lalita. Um véu negro ocultava seus cabelos, seus olhos percorriam os bancos, grandes e assustados,
e Lalita cochichava com os Paredes,
seu vestido estampado dava àquele setor da capela uma animação bizarra e juvenil. Dom Fábio inclinou-se para Bonifácia,
disse alguma coisa ao seu ouvido e ela sorriu,
coitada: estava atrapalhada a chininha, Dom Adrián, que cara envergonhada tinha. Dariam depois um trago a ela e se alegraria,
sargento, acontece que morria de medo
de encontrar as madres, pensava que iam brigar com ela, não é verdade que eram bonitos seus olhos, Dom Adrián? O prático
levou um dedo à boca, e o sargento olhou
o altar e se persignou. Bonifácia e Lalita sentaram-se junto a eles e, um momento depois, Bonifácia ajoelhou-se e ficou
a rezar, as mãos juntas, os olhos fechados,
os lábios mal mexendo. Continuava assim quando a grade rangeu e as madres entraram na capela, a superiora na frente. De
duas em duas, iam até o altar, ajoelhavam-se,
persignavam-se, sem ruído dirigiam-se aos bancos. Quando as pupilas começaram a cantar, todos ficaram de pé, e entrou o
Padre Vilâncio, as vermelhíssimas barbas
como
um peitilho sobre o hábito roxo. A superiora fez sinais para Lalita, indicando o altar, e Bonifácia, ainda de joelhos, secava
os olhos com o véu. Logo se levantou
e caminhou entre o prático e o sargento, muito empertigada, sem olhar para os lados. E durante toda a missa esteve retesada,
o olhar cravado em um ponto intermediário
entre o altar e os colares de orquídeas, enquanto as madres e as pupilas rezavam em voz alta e os demais ajoelhavam-se,
sentavam-se e se levantavam. Depois Padre
Vilâncio se aproximou dos noivos, o sargento ficou em posição de sentido, as vermelhas barbas estavam a milímetros do rosto
de Bonifácia, interrogou o sargento,
que bateu os calcanhares e disse sim, com decisão, e Bonifácia, mas não se ouviu a resposta dela. Agora Padre Vilâncio sorria
cordialmente e estendia a mão para
o sargento, para Bonifácia, que a beijou. O ambiente da capela pareceu mais
leve,
268
as pupilas pararam de cantar e havia diálogos a meia voz, sorrisos, movimentos. O prático Nieves e Lalita abraçaram os noivos
e, na roda formada em torno deles,
Dom Fábio brincava, as crianças riam, o Gordo, o Chiquito, o Oscuro e o Rubio esperavam, um atrás do outro, para felicitar
o sargento. Mas a superiora dispersou-os,
senhores, estavam na capela, silêncio, que saíssem ao pátio, e sua voz dominava as outras. Lalita e Bonifácia passaram a
grade, em seguida os convidados, por fim
madres, e Lalita, boba, que a soltasse, Bonifácia, as madrezinhas tinham posto uma mesa com toalha branca, cheia de sucos
e pasteizinhos, que a soltasse, que todos
queriam felicitá-la. As pedras do pátio faiscavam e, nos muros brancos da residência, atormentados pelo sol, as sombras
pareciam trepadeiras. Que vergonha tinha
delas, madrezinhas, nem a olhá-las se atrevia, e hábitos, sussurros, risos, fardas revoluteavam ao redor de Lalita. Bonifácia
continuava abraçada a ela, a cabeça
escondida no vestido estampado e, enquanto isso, o sargento recebia e distribuía abraços: estava chorando, madrezinhas,
que boba. Por que ficava assim, Bonifácia?
Era por causa das senhoras, madres, e a superiora, boba, não chore, venha, quero abraçá-la. Bruscamente, Bonifácia soltou
Lalita, virou-se e caiu nos braços da superiora.
Agora passava de uma madre a outra, tinha que rezar sempre, Bonifácia, sim, mãezinha, ser boa cristã, sim, não se esquecer
delas, nunca as esqueceria, e Bonifácia
as abraçava com força e elas também com muita força, e grossas, involuntárias, invencíveis lágrimas corriam pelas faces
de Lalita, borravam o ruge, sim, sim, não
deixava de querê-las, e revelavam os estigmas de sua pele, tinha rezado tanto por elas, espinhas, manchas, cicatrizes. Essas
madres não têm preço, Padre Vilâncio,
quanta coisa haviam preparado. Mas, atenção, o chocolate estava esfriando, e o governador estava com fome. Podiam começar,
Madre Griselda? A superiora resgatou
Bonifácia dos braços de Madre Griselda, claro que podiam, Dom Fábio, e a roda se abriu: duas pupilas abanavam a mesa cheia
de travessas e de jarras, e, entre elas,
havia uma silhueta escura. Quem lhe preparara tudo isso, Bonifácia? Tinha que adivinhar, e Bonifácia choramingava, madre,
diga que me perdoou, puxava o hábito da
superiora, que lhe desse esse presente, madre. Fino, rosado, o indicador da superiora apontou para o céu: pedira perdão
a Deus? arrependera-se? Todos os dias, madre,
e então estava perdoada, mas tinha que adivinhar, quem foi? Bonifácia se lamuriava, quem
podia ser,
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seus olhos procuravam entre as madres, onde estava, aonde tinha ido. A silhueta escura afastou as duas pupilas e avançou,
arrastando os pés, o rosto
mais estranho que nunca: até que enfim lembrava-se dela essa ingrata, essa mal-agradecida. Mas já Bonifácia se lançara em
seus braços, e Madre Angélica cambaleava,
o governador e os outros começaram a comer pasteizinhos, e ela, fora a sua mãezinha, e Madre Angélica, nunca viera vê-la,
demônio, mas sonhara com ela, pensando
em cada dia e cada noite em sua mãezinha e Madre Angélica, que provasse daqueles, destes, que tomasse um suco.
- Nem me deixou entrar na cozinha, Dom Fábio dizia a Madre Griselda. - Desta vez tem que elogiar Madre Angélica. Ela preparou
tudo para a sua mimosa.
- Que é que eu não fiz por ela? - perguntou a Madre Angélica. - Fui sua ama-seca, sua criada, agora sua cozinheira.
Seu rosto empenhava-se em continuar emburrado e rancoroso, mas sua voz já estava alquebrada, roncava como uma pagã, e de
repente seus olhos se molharam, torceu a
boca, e rompeu em soluços. Sua velha mão curva batia levemente em Bonifácia e as madres e os guardas trocavam as travessas,
enchiam os copos, o Padre Vilâncio e
Dom Fábio riam às gargalhadas, e um dos meninos do Paredes trepara na mesa, a mãe dava palmadas nele.
- Como gostam dela, Dom Adrián - disse o sargento. - Como a mimam.
- Mas por que tanto choro? - disse o prático. Se no fundo estão contentes.
- Posso levar alguma coisa para elas, mãezinha? disse Bonifácia. Apontava para as pupilas, formadas em três filas na frente
da residência. Algumas sorriam para ela,
outras davam adeusinhos tímidos.
- Elas também têm sua refeição especial - disse a superiora. - Mas vá abraçá-las.
- Elas prepararam presentes para você - grunhiu a Madre Angélica, o rosto deformado pelas lágrimas e as caretas. - E nós
também, eu fiz um vestidinho para você.
- Todos os dias virei ver a senhora - disse Bonifácia. - Eu a ajudarei, mãezinha, eu continuarei tirando o lixo.
Separou-se de Madre Angélica e foi até as pupilas, que debandaram e foram a seu encontro, em meio a uma gritaria. Madre
Angélica abriu caminho entre os convidados
e,
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quando chegou junto ao sargento, seu rosto estava menos pálido, escuro de novo.
- Você vai ser bom marido? - grunhiu, sacudindo-o pelo braço. - Ai de você se der nela, ai de você se andar com outras mulheres.
Você se portará bem com ela?
- Claro que sim, madrezinha - respondeu o sargento, confuso. - Pois eu gosto tanto dela.
- Ah, você acordou - disse Aquilino. - É a primeira vez que dorme assim desde que saímos. Até agora, era você que ficava
me olhando, quando eu abria os olhos.
- Sonhei com Jum - disse Fushía. - Toda a noite vendo a cara dele, Aquilino.
- Várias vezes ouvi você se queixar, e uma vez achei que até chorava - disse Aquilino. - Era por isso?
- Que coisa estranha, velho - disse Fushía -, eu não fazia nada no sonho, só o Jum.
- E o que é que você sonhava com o aguaruna? perguntou Aquilino.
- Que estava morrendo, na praiazinha onde o Pantacha preparava seus cozimentos - disse Fushía. - E alguém se aproximava
e dizia, venha comigo, e ele, não posso,
estou morrendo. E assim todo o sonho, velho.
- Talvez até estivesse acontecendo - disse Aquilino. -- Talvez tenha morrido de noite e se despediu de você.
- Os huambisas devem ter matado o Jum, eles o odiavam muito - disse Fushía. - Mas espere, não seja assim, não se vá ainda.
- É de propósito - disse Lalita, arquejando -, você me chama e sempre é de propósito. Para que me faz vir se você não pode,
Fushía?
- Posso, sim - gritou Fushía -, só que você quer fazer tudo correndo, nem sequer me dá tempo, e fica furiosa. Posso, sim,
puta.
Lalita virou-se e ficou de costas na rede, que rangia ao balançar. Uma claridade azul entrava na cabana pela porta e pelas
rendas, com os vapores cálidos e os murmúrios
da noite, mas não chegava até a rede; estes, sim.
- Você pensa que me engana - disse Lalita. Pensa que sou boba.
- Tenho preocupações na cabeça - disse Fushía -, preciso esquecê-las, mas você não me dá tempo. Sou um homem, não um animal.
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- O que há é que você está doente - sussurrou Lalita.
- O que há é que essas suas espinhas me dão nojo
- gritou Fushía -, o que há é que você ficou velha. Só com você é que não posso, com qualquer outra, quantas vezes quiser.
- Você as abraça e beija, mas também não pode com elas - disse Lalita, muito devagar. - As achuales me contaram.
- Você fala de mim com elas, puta? - o corpo de Fushía transmitia à rede um ansioso e contínuo tremor. Fala de mim para
as pagãs? Está querendo que eu a mate?
- Você quer saber aonde ia cada vez que desaparecia da ilha? - perguntou Aquilino. - A Santa Maria de Nieva.
- Para Nieva? E o que ia fazer lá? - perguntou Fushía. - Como é que você sabe que o Jum ia a Santa Maria de Nieva?
- Soube faz pouco - disse Aquilino. - A última vez que fugiu faz uns oito meses?
- Quase não faço mais a conta do tempo, velho disse Fushía. - Mas, talvez, há uns oito meses. Você encontrou o Jum e ele
lhe contou?
- Agora que estamos longe você pode saber - disse Aquilino. - Lalita e Nieves estão vivendo lá. E o Jum foi vê-los pouco
tempo depois de chegarem a Santa Maria de
Nieva.
- Você sabia onde estavam? -- suspirou Fushía. Você os ajudou, Aquilino? Você também foi um cachorro? Você também me traiu,
velho?
- É por isso que você tem vergonha e se esconde e não se despe na minha frente - disse Lalita, e a rede deixou de ranger.
- Por acaso não sinto como fedem? Suas
pernas estão apodrecendo, Fushía, isso é pior que minhas espinhas.
O vaivém da rede era outra vez mais ativo e, de novo, rangiam as estacas, longamente, mas agora não era ele quem tremia,
era Lalita. Fushía se encolhera, e era uma
forma rígida e como que aniquilada entre os cobertores, uma garganta quebrada tentando falar, e na sombra de seu rosto havia
duas luzinhas vivas e espantadas na
altura dos olhos.
- Você também me insulta - balbuciou Lalita. E se lhe acontece alguma coisa, eu é que tenho a culpa;
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agora me chamou e ainda fica bravo. Eu também fico com raiva e não sei. o que digo.
- São os pernilongos, puta - gemeu Fushía baixinho e seu braço nu golpeou, sem forças. - Me picaram, e infeccionou.
- Sim, são os pernilongos e é mentira que estejam fedendo, você vai se curar logo - soluçou Lalita. - Não fique assim, Fushía,
com raiva a gente não pensa, diga
qualquer coisa. Trago água?
- Eles estão construindo uma casa? - perguntou Fushía. - Aqueles cachorros vão ficar para sempre em Santa Maria de Nieva?
- Os guardas dali contrataram Nieves como prático
- disse Aquilino. - Chegou outro tenente, mais jovem que aquele que se chamava Cipriano. E Lalita esperando um filho.
- Tomara que morra na sua barriga, e morra ela também - disse Fushía. - Mas me diga, velho, não foi lá que o penduraram?
Que é que o Jum ia fazer em Santa Maria
de Nieva. Queria se vingar?
- Ia por causa daquela história tão velha - disse Aquilino. - Para reclamar o caucho que o Senhor Reátegui tomou dele, quando
foi a Urakusa com os soldados. Mas
não
o ouviram, e Nieves soube que não era a primeira vez que ele ia reclamar, que todas as suas escapadas da ilha eram para
isso.
- Ia reclamar dos guardas enquanto trabalhava para mim? - perguntou Fushía. - Será que não entendia? Esse burro podia nos
foder, velho.
- Acho que era coisa de louco - disse Aquilino.
- Continuar teimando depois de tantos anos. Deve estar morrendo sem tirar da cabeça o que aconteceu. Não conheci nenhum
pagão tão teimoso como o Jum, Fushía.
- Me picaram quando entrei na laguna para tirar a tartaruga que morreu - gemeu Fushía. - Os pernilongos, as aranhas-d'água.
Mas as feridas já estão secando, burra,
você não sabe que quando a gente se coça infeccionam? Por isso fedem.
- Não fedem, não fedem - disse Lalita -, eu disse aquilo porque estava com raiva, Fushía. Antes você queria a toda hora
e eu tinha que inventar coisas, estou de
regras, não posso. Por que você mudou, Fushía?
- Você ficou mole, está velha, um homem só tem tesão por mulheres rijas - gritou Fushía, e a rede
começou a pular,

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- isso não tem nada que ver com as picadas dos pernilongos, cadela.
- Não estou falando mais dos pernilongos - sussurrou Lalita -, sei que está se curando. Mas meu corpo dói de noite. Para
que é que você me chama então, se sou como
você diz? Não me peça para vir à sua rede se não pode.
- Posso, sim - gritou ele -, quando quero, posso, mas com você não quero. Saia daqui, fale de novo dos pernilongos e, bem
aí onde está lhe doendo tanto, meto um
balaço. Fora, saia daqui.
Continuou gritando até que ela afastou o mosquiteiro, levantou-se e foi deitar-se na outra rede. Então, Fushía se calou,
mas as estacas continuavam rangendo de quando
em quando, com violentas sacudidas, como atacadas de febres, e só muito tempo depois a cabana ficou apaziguada, envolta
pelas murmurações noturnas da mata. Estendida
de costas, os olhos abertos, Lalita acariciava com as mãos as cordas de tucum da rede. Um de seus pés escapou do mosquiteiro
e minúsculos e alados inimigos atacaram-no
às dezenas, vorazmente pousaram em suas unhas e dedos. Esgaravatavam a pele com suas armas finas, compridas e zumbidoras.
Lalita bateu o pé contra a estaca e eles
fugiram, aturdidos. Um segundo depois tinham voltado.
- Então o cachorro do Jum sabia onde estavam disse Fushía. - E ele também não me disse nada. Todos ficaram contra mim, Aquilino,
até o Pantacha talvez soubesse.
- Isso quer dizer que ele não se acostumou, e que tudo o que faz é para voltar a Urakusa - disse Aquilino.
- Deve sentir muito a falta de seu povo, deve gostar muito dele. É verdade que quando ia com você ele fazia discursos aos
pagãos?
- Ele os convencia a me entregarem o caucho sem briga - disse Fushía. - Ameaçava-os e sempre contava a história daqueles
dois cristãos. Você os conheceu, velho.
Qual era o negócio deles? Nunca pude saber.
- Os que foram viver em Urakusa? - perguntou Aquilino. - Uma vez ouvi o Senhor Reátegui falar disso. Eram estrangeiros
que vinham levantar os selvagens, aconselhá-los
a matar todos os cristãos daqui. Por acreditar neles é que Jum se desgraçou.
- Eu não sei se odiava ou se gostava deles - disse Fushía. - Às vezes falava de Bonino e Teófilo como se
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quisesse matá-los, e outras como se tivessem sido seus amigos.
- Adrián Nieves falava o mesmo - disse Aquilino.
- Que o Jum mudava de opinião sobre aqueles cristãos todo o tempo, e que não se decidia, um dia eram bons, no seguinte,
maus, malditos diabos.
Lalita atravessou a cabana nas pontas dos pés, e saiu; fora, o ar estava carregado de um vapor que umedecia a pele e que,
ao entrar pela boca e pelo nariz, estonteava.
Os huambisas tinham apagado as fogueiras, suas cabanas eram bolsas negras, muito espessas, quietas sobre a ilha. Um cachorro
veio se coçar a seus pés. No alpendre,
junto ao curral, as três achuales dormiam sob um só cobertor, os rostos brilhantes de óleo. Quando Lalita chegou à frente
da cabana do Pantacha e espiou, a túnica,
molhada de suor, grudava no seu corpo: uma perna musculosa emergia das sombras, entre as coxas lisas e sem pêlos da shapra.
Ficou observando, a respiração ofegante,
a boca entreaberta, a mão no peito. Correu, em seguida, até a cabana vizinha e empurrou a porta de cipós. No canto escuro,
onde estava a esteira de Adrián Nieves,
um ruído. O prático devia ter acordado, reconhecia sua silhueta na entrada, delineada contra a noite, os dois rios de cabelos
que enquadravam seu corpo até a cintura.
Depois rangeram as tábuas e um triângulo branco avançou até ela, boa noite, um contorno de homem, que aconteceu? uma voz
sonolenta e surpresa. Lalita não dizia nada,
só respirava e esperava, exausta, como ao final de uma longa corrida. Faltavam muitas horas para que trinados e rumores
alegres substituíssem os grasnidos noturnos
e, sobre a ilha, revoluteassem pássaros, borboletas coloridas, e a luz clara do amanhecer iluminasse os troncos carbonizados
das lupunas. Era ainda a hora dos pirilampos.
- Mas vou dizer uma coisa a você - disse Fushía. O que mais me dói em tudo, Aquilino, o que mais me desgosta, é ter tido
tanto azar.
- Cubra-se, não se mexa - disse Aquilino. - Aí vem um barquinho, é melhor que você se esconda.
- Depressa, velho - disse Fushía. - Aqui não posso respirar, me asfixio. Passe logo por ele.
Está claro como no verão, o sol dispara raios, os olhos lacrimejam ao fixá-los. E o coração sente esse calor, quer atravessar
a rua, passar sob os tamarindeiros,
sentar-se em seu bando.
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Levanta-te' logo, para que serve a cama se o sono não vem, uma areinha fina como os cabelos dela estará caindo sobre Viejo
Puente, anda a sentar-te no
La Estrella del Norte, baixa o chapéu, espera-a, já chegará. Não te impacientes assim, e Jacinto, é triste a cidade vazia,
veja, Dom Anselmo, os varredores já passaram
e a areia sujou tudo de novo. Olha a esquina do mercado, aí vem o burro carregado de cestos, não é agora que a cidade desperta?
Aí está, leve, silenciosa, entra
na praça como que deslizando, olha como a leva para junto do coreto, senta-a, pega suas mãos, seus cabelos, e ela, dócil,
os joelhos grudados, os braços cruzados:
aí está a tua recompensa por tanto desvelo. E então a gallinaza vai embora, dando varadas no burro, endireita-te na cadeira,
acomoda-te melhor, continua olhando-a.
Vem de frente o amor, o rosto descoberto, vem dissimulado? E tu, é pena, ternura, compaixão, vontade de lhe dar presentes.
Deixa-lhe a rédea solta e que se vá como
quiser, a passo, a trote, a galope, ele sabe aonde, é cedo. Enquanto isso faz apostas: tanto que estará de branco, tanto
de amarelo, tanto com a fita, verei suas
orelhas, tanto sem a fita, os cabelos soltos, hoje não as verei, tanto com sandálias, tanto descalça. E se ganhas, é Jacinto
quem vai ganhar, e ele, por que tanta
gorjeta hoje e ontem a metade, se consumiu a mesma coisa, como entenderia? Não sabe nada, o senhor está com cara de sono,
nunca dorme, Dom Anselmo? tu, é um velho
costume, não me deitar sem tomar o café, o ar da madrugada limpa o cérebro, lá tudo cheira a farra, fumo e álcool, agora
volto e começa para mim a noite. E ele irei
visitá-lo logo, tu, claro rapaz, procura-me, tomaremos um copo, tens crédito, já sabes. Mas agora que se vá, que queres
ficar só, que ninguém ocupe tua mesa, que
a manhã entre logo, que cheguem os fregueses, que uma branca qualquer se aproxime dela e a leve a passear, que a traga ao
La Estrella del Norte e que lhe pague um
doce. E então, de novo, a tristeza, o ódio no coração, o tempo não os aplacou. E então, retira o café, Jacinto, um traguinho,
e depois outro, e por fim meia garrafa
do especial. E, ao meio-dia, Chápiro, Dom Eusébio, o Doutor Zevallos, é preciso montá-lo no cavalo que o levará até o areal,
as mulheres se encarregarão de deitá-lo.
' Manteve-se o tratamento na segunda pessoa neste belo e poético delírio de Anselmo, na certeza de que facilitará o entendimento
do texto traduzido.
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Segura-te à montaria, pois, cabeceia entre as dunas, rola como um fardo ao solo, chega ao salão engatinhando, e elas, que
durma aqui mesmo, pesa muito levá-lo à
torre, tragam
uma baciazinha que está vomitando, desçam um colchão, tirem-lhe as botas. E então, violentas, amargas, as ânsias, os riozinhos
de bílis e de álcool, a comichão das
pálpebras, o fedor, a maciez ébria dos músculos. Sim, vem dissimulado, no princípio parecia compaixão: deve ter só dezesseis
anos, a desgraça que lhe aconteceu,
o escuro de sua vida, o silêncio de sua vida, seu rostinho. Tenta imaginar: como teria sido, os gritos que teria dado, o
terror que teria sentido e quanto assombro
haveria em seus olhos. Tenta ver: os cadáveres, o sangue aos borbotões, as feridas, os vermes, e então, Doutor Zevallos,
conta-me de novo, não pode ser, é horrível,
já estaria desmaiada? como é que não morreu? Tenta adivinhar: primeiro, círculos aéreos, enegrecidos entre as dunas e as
nuvens, sombras que se refletem na areia,
em seguida, corpos emplumados na areia, bicos curvos, dolorosos grasnidos, e então puxa teu revólver, mata-o, e ali tem
outro e mata-o, e as mulheres, que é que
tem, patrão, por que tanto ódio dos urubus', que lhe fizeram, e tu, bala, porra, derruba-os, fura-os. Disfarçado de pena,
de carinho. Aproxima-te tu também, que
há de mal, compra-lhe doce de leite, pão de mel, balas. Fecha os olhos e então, de novo, o redemoinho dos sonhos, tu e ela
na torre, será como tocar harpa, junta
a ponta dos teus dedos e sente-a, mas será mais suave ainda que a seda e o algodão, será como uma música, não abras os olhos
ainda, continua tocando em suas faces,
não acordes. Primeiro curiosidade, depois algo que parecia pena e, de repente, medo de perguntar. Elas falam, os bandidos
de Sechura, assaltaram e mataram os Quiroga,
a senhora estava nua quando a encontraram, inesperadamente falam dela, dizem pobrezinha, e então esse súbito calor, a língua
que se enrola, que há comigo, as mulheres
vão maliciar, que houve. Ou, em vez disso, é um graúdo que a traz ao La Estrella del Norte, pede-lhe um refresco, sufoca-se,
inveja, preciso ir, bom dia, o areal,
o portão verde, uma garrafa de aguardente, leva a harpa à torre, toca. Afeto, compaixão? Já estava tirando seus disfarces.
E nessa manhã está, como agora, diáfano.
Ela é velha, não a aceite, talvez doente, que o Doutor Zevallos a examine antes, tu,
' No original gallinazos, que são também os habitantes da favela Gallinacera.
277
como disseste que te chamas? tens que mudar de nome, Antônia não. E ela, como o senhor quiser, patrão, era assim que se
chamava a mulher que o senhor amava? e então,
de novo, o rubor, o tépido fruir sob a pele e, intempestiva, a verdade. A noite é preguiçosa, insone, sempre igual o espetáculo
da janela: no alto, as estrelas,
no
ar o lento dilúvio da areia e, à esquerda, Piura, muitos olhos na sombra, as brancas formas de Castilla, o rio, o Viejo
Puente como um grande lagarto entre as duas
margens. Mas que passe logo a noite ruidosa, que amanheça, pega a harpa, não desças por mais que te chamem, toca na
escuridão, canta-lhe baixinho, doce, muito
devagar, vem, Tonita, esta serenata é para ti, escutas? O espanhol não está morto, aí vem, pela esquina, da catedral, lenço
azul no pescoço, as botinas como espelhos,
o colete sob a levita branca, outra vez o calorzinho, as ondas que engordam as veias, o pulso agitado, o olhar alerta,
vai ao coreto? sim, aproxima-se de ti? sim,
te sorri? sim. E de novo ela, expondo-se ao sol, imóvel, inconsciente, muito tranqüila, a seu redor engraxates e mendigos,
Dom Eusébio à frente do seu banco. Agora
já sabe, está sentindo uma mão no seu queixo, endireitou-se no assento? sim, ele está falando com ela? sim. Imagina o que
lhe diz: bom dia, Tonita, linda manhã,
o sol esquenta sem queimar, pena que vente areia, ou se pudesse ver como está este dia, como o céu está azul, tanto quanto
o mar de Paita, e então, o latejar das
fontes, as ondas se atropelando, o coração saindo pela boca, a insolação interior. Vêm juntos? sim, à terraça? sim, de braço
dado? sim, e Jacinto, não está se sentindo
bem, Dom Anselmo? ficou pálido, tu, um pouco cansado, traz outro café e um copinho de pisco, direto à tua mesa? sim, levanta-se,
estende a mão, Dom Eusébio, como
está, ele, meu querido, esta senhorita e eu vamos lhe fazer companhia, nos permite? Aí a tens agora, junto a ti, olha-a
sem temor, esse é seu rosto, essas pequenas
aves, suas sobrancelhas, e atrás de suas pálpebras fechadas reina a penumbra, e atrás de seus lábios fechados há também
uma minúscula morada deserta e escura, esse
o seu nariz, essas as suas faces. Olha seus longos braços morenos e as pontas de cabelo claro, que ondulam sobre seus ombros,
e sua testa que é lisa mas, por instantes,
se franze. E Dom Eusébio, vamos ver, vamos ver, um cafezinho com leite? mas já deves ter tomado café, quem sabe um doce,
isso agrada os jovens, o senhor não foi
guloso? digamos, marmelada, e um suquinho de mamão, vamos ver, Jacinto. Concorda,
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condescende, fui guloso, essa fina coluna é o meu pescoço, dissimula a ebulição, boceja, fuma, essas flores de caule frágil,
suas mãos, e as breves sombras que ao
receber o sol parecem loiras, suas pestanas. E fala-lhe, sorri, para ela, de modo que afinal comprou a casa do lado, então
aumentará o negócio e porá mais empregados,
interessa-te e estimula-o, abrirá sucursais em Sulluna? e em Chiclayo, como te alegras, só uma voz e um olhar, verdade que
faz tempo que não nos vemos, sua expressão
é distante e grave, está concentrada na bebida, umas gotinhas de luz alaranjadas brilham em sua boca e é por isso, o trabalho
é assim, as obrigações, a família,
mas dê uma escapada, Dom Eusébio, uma mecha de cabelo branco esvoaçando de quando em quando, seus dedos se abrem, pegam
uma marmelada, levantam-na, como vão as mulheres?
sentindo sua falta, perguntando pelo senhor, quando quiser ir, eu o atenderei, olha-a agora que está mordendo, vê que vorazes
e limpos são seus dentes. E então o
burrico e as cestas, baixa o chapéu, sorri, conversa sempre, e então a gallinaza fazendo reverências, os senhores são tão
bons, Tonita, diga adeus a estes senhores,
eu lhes agradeço por ela, e então, de novo, o viço fugaz, cinco contatos suaves na tua mão, algo que entra no corpo e o
sossega. Que calma agora, não é verdade?
que paz, e veja, Dom Eusébio, essa é a razão e o senhor não sabia, nem a soube quando morreu. E ele, não faltava mais nada,
tenho vergonha, Anselmo, deixe-me pagar
pelo menos uma rodada, faz-me sentir como. . . tu, nunca, nem um centavo, aqui tudo é seu, está na sua casa, o senhor me
tirou o medo, trouxe-a à minha mesa, e as
pessoas não fizeram cara feia, nem lhes chamou a atenção. E então, a exaltação. Agora sim, atreve-te, vai ao seu banco todas
as manhãs, acaricia seus cabelos, compra-lhe
frutas, leva-a ao La Estrella del Norte, passeia com ela sob o sol ardente, ama-a tanto como nesses dias.
- Os burrinhos - disse Bonifácia - passam todo o dia aqui na frente e não me canso de olhar.
- Não há burros na selva, prima? - perguntou José.
- Eu sempre achei que lá havia mais animais que gente.
- Mas não burrinhos - disse Bonifácia. - Só um ou outro, nunca como aqui.
- Está chegando - disse o Mono, da janela. - Os sapatos, prima.
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Bonifácia calçou os sapatos velozmente, o esquerdo não entrava, puxa, levantou-se, foi até a porta, insegura, temerosa sobre
os saltos, abriu-a, e Josefino estendia
a mão, uma lufada de ar quente, Lituma, jorros de luz. A peça ficou escura de novo. Lituma tirava a túnica, vinha meio morto,
primos, o quepe, que tomassem um pouco
de algarobina'. Atirou-se numa cadeira e fechou os olhos, Bonifácia foi para o quarto ao lado e Josefino, deitado em uma
esteira junto a José, esse calor desgraçado
embrutecia a gente. Os postigos filtravam prismas de luz crivados de pó e de insetos, e fora tudo parecia silencioso e desabitado,
como se o sol tivesse dissolvido
as crianças e os cachorros vira-latas com seus brancos ácidos. O Mono afastou-se da janela, eram os invencíveis, não sabiam
trabalhar, só jogar, só foder, eram
os invencíveis, e agora iam mamar, mas os outros só cantaram depois do primeiro copo de algarobina.
- Estávamos falando de Piura com a prima - disse o Mono. - O que mais chama a atenção dela são os burros.
- E tanta areia e tão poucas árvores - disse Bonifácia. - Na selva tudo é verde e aqui, tudo amarelo. E o calor, também,
muito diferente.
- O diferente é que Piura é uma cidade com edifícios, carros e cinemas - explicou Lituma, bocejando. - E Santa Maria de
Nieva, um povoadinho com uns caras pelados,
mosquitos e chuvas que apodrecem tudo, começando pela gente.
Duas ferazinhas esconderam-se atrás de umas mechas de cabelos soltos e, verdes, hostis, espreitaram. O pé esquerdo de Bonifácia,
meio saído do sapato, forçava para
entrar de
novo.
- Mas em Santa Maria de Nieva há dois rios que têm água todo o ano, e bastante - disse Bonifácia, suavemente, um momento
depois. - O Piura tem muito pouquinha e

no verão.
Os invencíveis deram gargalhadas, dois e dois, três; três e dois, quatro; e Bonifácia já se esquentou. Suado, sem abrir
os olhos, gordo, Lituma se mexia vagarosamente
na
cadeira.
- Você não se acostuma à civilização - suspirou afinal. - Espere um tempinho e verá as diferenças. Você nem vai querer ouvir
falar da selva e terá vergonha de dizer
que é selvagem.
' Bebida extraída do fruto da algarobeira ou algarobo, árvore, subfatntlia mimosácea.
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Quatro e dois são cinco, cinco e dois são seis, e o primo Lituma já lhe respondeu. O pé entrara no sapato, de mau jeito,
esmagando selvagemente o calcanhar.
- Não terei vergonha nunca - disse Bonifácia. Ninguém pode ter vergonha de sua terra.
- Somos todos peruanos - disse o Mono. - Por que você não nos serve mais algarobina, prima?
Bonifácia levantou-se e, muito devagar, foi de um a outro enchendo de novo seus copos, mal levantando os pés desse chão
resvaladiço, que as humilhadas ferazinhas
observam do alto, com desconfiança.
- Se tivesse nascido em Piura, não andaria pisando em ovos - riu Lituma, abrindo os olhos. - Você estaria acostumada aos
sapatos.
- Não brigue com a prima - disse o Mono. - Não fique com raiva dela, Lituma.
As gotinhas douradas da algarobina caíam no chão inimigo, não no copo de Josefino, e a boca e o nariz de Bonifácia, como
suas mãos, também se haviam posto a tremer,
mas não era pecado, e inclusive sua voz: Deus a fizera assim.
- Claro que não é pecado, prima, nem pense nisso disse o Mono. - Nem as mangaches se acostumam com os saltos.
Bonifácia deixou a garrafa em uma sapata, sentou-se, as ferazinhas sossegaram e, de súbito, silenciosos, rebeldes, rapidíssimos,
ajudando-se um ao outro, seus pés
se livraram dos sapatos. Abaixou-se, sem pressa colocou-os sob a cadeira, e agora Lituma deixara de se mexer, os invencíveis
não cantavam mais, e uma viva, beligerante
agitação comovia as figurinhas verde-escuras que se mostravam com atrevimento.
- Ela não me conhece ainda, não sabe com quem se mete - disse Lituma aos León; e levantou a voz: - Você não é mais uma selvagem,
mas a mulher do Sargento Lituma.
Ponha os sapatos!
Bonifácia não respondeu, nem se mexeu quando Lituma se pôs de pé, a cara molhada e colérica, nem se esquivou da bofetada
que soou curta, sibilante, e os León pularam
e os apartaram: não era para tanto, primo. Seguravam Lituma, que não fosse assim, e o repreendiam brincando, que controlasse
esse gênio mangache. O suor tingira
o peito e as costas de sua camisa caqui, que só nos braços e nos ombros continuava clara.
- Tem que aprender - disse, sacudindo-se outra vez, ainda mais depressa, no ritmo de sua voz.
281
- Em Piura não pode se portar como uma selvagem. E além disso, quem é que manda na casa?
As ferazinhas espiavam entre os dedos de Bonifácia, quase invisíveis, chorosas? e Josefino pôs no seu copo um pouco mais
de algarobina. Os León sentaram-se, não
há amor sem murros, diz o povo, e as caboclas chulucanas dizem, meu marido quanto mais me bate mais me quer, mas talvez
na selva as mulheres pensem de outra forma;
e uma, duas e três, que a prima lhe perdoe, que levante o rostinho, que seja boazinha, um sorrisinho. Mas Bonifácia continuou
com a cara escondida, e Lituma se
levantou, bocejando.
- vou dormir uma sestazinha - disse. - Fiquem ainda, acabem essa garrafa, depois sairemos por aí. - Olhou de lado para Bonifácia,
modulou virilmente a voz: - Se
não há amor em casa, a gente procura fora.
Fez um aceno entediado para os invencíveis e entrou no outro quarto. Ouviu-se assoviar uma canção, chiaram umas molas. Eles
continuaram bebendo, um copo, calados,
dois copos, e ao terceiro, começaram os roncos: fundos, metódicos. Aí estavam as ferazinhas de novo, ásperas, crispadas
atrás dos cabelos.
- Esses serviços a noite inteira estragam o seu humor
- disse o Mono. - Não faça caso, prima.
- Que maneiras são essas de tratar a mulher - disse Josefino, buscando os olhos de Bonifácia, mas ela olhava para o Mono.
- É um verdadeiro tira.
- Você, sim, sabe tratá-las, primo, não é verdade? perguntou José, atirando um olhar à porta: roncos prolongados, profundos.
- Claro que sim - Josefino sorria e engatinhava sobre a esteira em direção a Bonifácia. - Se ela fosse minha mulher, eu
nunca poria a mão nela. Quer dizer, não para
bater nela, só para fazer carinhos.
Agora tímidas, assustadiças, as ferazinhas examinavam as paredes descoloridas, as vigas, as moscas azuis zumbindo junto
à janela, os grãozinhos de ouro imersos nos
prismas de luz, as nervuras do assoalho. Josefino parou, sua cabeça tocava nos pés descalços, que retrocederam, e os León,
você é o homem-minhoca, e Josefino, a
serpente que tentou Eva.
- Em Santa Maria de Nieva não há ruas como aqui
- disse Bonifácia. - São de areia e chove tanto, é puro barro. Os saltos se afundariam e as mulheres não poderiam caminhar.
- Pisando em ovos, que burrice tão grande - disse Josefino.
282
- E depois, mentira. Caminha tão elegante, quantas gostariam de caminhar como ela.
Os León olhavam sincronizadamente para a porta: uma cabeça ia, outra voltava. E, uma vez mais, Bonifácia estava tremendo,
obrigada pelo que lhe dizia, suas mãos,
sua boca, mas ela sabia que era só por dizer, e sobretudo sua voz, no fundo não pensava assim. E os pés retrocederam. Josefino
afundou a cabeça sob a cadeira, e
sua voz vinha morosa e abafada, pensava assim com toda a sua alma, todinha, palavras lentas, cheias de mel, e mil coisas
mais ele diria se não houvesse mais ninguém.
- Não se preocupe comigo, invencível - disse o Mono. - Está em sua casa, e aqui só há um par de surdos-mudos. Se quiser,
vamos ver se está chovendo. Como vocês quiserem.
- Vão, vão - palavras melosas, musicais -, me deixem com Bonifácia, para consolá-la um pouco.
José tossiu, levantou-se, e nas pontas dos pés chegou à porta. Voltou risonho, de verdade, estava entregue, dormia como
um frade, e as curiosas, inconstantes ferazinhas
exploravam incansáveis as tábuas da sapata, as pernas das cadeiras, o fio da esteira, o comprido corpo deitado.
- A prima não gosta de galanteios - disse o Mono -, ficou vermelha, Josefino.
- Você ainda não conhece os piuranos, prima - disse José. - Não pense em nada de mau. Nós somos assim, as mulheres puxam
nossa língua.
- Ande, Bonifácia - disse Josefino. - Mande esses caras lá fora, para ver se está chovendo.
- Se você insistir, ela contará a Lituma - disse o Mono. - E o primo vai se esquentar.
- Que conte - pegajosas, mornas -, não me importa. Vocês me conhecem, se gosto de uma mulher eu digo, seja quem for.
- A algarobina te deixou bêbado - disse José. Fale mais baixo.
- E eu gosto de Bonifácia - disse Josefino. - Que fique sabendo logo.
As mãos de Bonifácia fecharam-se sobre os joelhos e seu rosto se levantou: os lábios sorriam heroicamente sob as espantadas
ferazinhas.
- Como você corre, primo! - disse o Mono. - Campeão dos cem metros rasos.
283
- Não continue por esse caminho - disse José. Você a está assustando.
- Se ele o ouvisse, se zangaria - balbuciou Bonifácia; olhou para Josefino, ele lhe atirou um beijo, e ela olhou para o
teto, a sapata, o chão. - Se soubesse, se
zangaria.
- Que se zangue, tanto faz - disse Josefino. - Querem saber de uma coisa, rapazes? Bonifácia não escapa de ser minha mulher
um dia.
Agora olha o chão, fixamente, e seus lábios murmuram algo. Os León tossiam, não tiravam os olhos do quarto vizinho: uma
pausa, um ronco, outro mais longo, tranqüilizador.
- Chega, Josefino - disse o Mono. - Não é piurana,
mal nos conhece.
- Não se assuste, prima - disse José. - Dê mais corda a ele, ou uma bofetada.
- Não me assusto - sussurrava Bonifácia -, mas se souber, e se ouvir. . .
- Peça desculpas a ela, Josefino - disse o Mono -, diga que é brincadeira, olhe só como ficou.
- Era brincadeira, Bonifácia - riu Josefino, engatinhando para trás. - Juro a você. Não fique assim.
- Não fico assim - balbuciava Bonifácia. - Não fico assim.
284

II.

- Por que tanta palhaçada, desde quando andam tão cheios de frescuras por aqui? - perguntou o Rubio. - Por que não juntar
a patota e tirá-lo de lá por bem ou por
mal?
- É que o sargento está somando pontos - disse o Chiquito. - Você não viu como está obediente? Quer fazer tudo como Deus
manda. Será que o casamento o estragou,
Rubio?
- Esse casamento vai é matar o Pesado de inveja disse o Rubio. - Parece que ontem à noite ele mamou outra vez, no Paredes,
e outra vez se amaldiçoava por não ter
chegado antes, outra vez perdi a minha última chance de encontrar mulher. Essa mulherzinha deve ter suas coisinhas, mas
o Pesado exagera.
Estavam em posição entre os cipós e apontavam para a cabana do prático, suspensa sobre a ramagem, a poucos metros deles.
Um débil resplendor oleoso crescia em seu
interior e chegava a iluminar um canto do parapeito. Não tinha saído ninguém, rapazes? Uma silhueta abaixou-se sobre o Rubio
e o Chiquito: não, meu sargento. O Pesado
e o Oscuro já estavam do outro lado, só podia escapar voando. Mas que não se precipitassem, rapazes, o sargento falava devagar,
se precisasse deles chamaria, seus
movimentos eram também pausados e, em cima, umas nuvens pouco densas filtravam a luz sem ocultá-la. Longe, limitada pelas
trevas da mata e o suave cintilar dos rios,
Santa Maria de Nieva era um punhado de luzes e de brilhos furtivos. Sem se apressar, o sargento abriu o coldre, puxou o
revólver, destravou-o, sussurrou algo mais
para os guardas. Sempre lento, tranqüilo, afastou-se em direção à cabana, desapareceu engolido
285
pelos cipós e pela noite, e pouco depois reapareceu junto à esquina iluminada do parapeito; seu rosto se revelou rapidamente
na macilenta claridade que escapava
do tabique.
- Você viu como anda e como fala? - perguntou o Oscuro. - Está meio abobalhado. Tem alguma coisa, antes não era assim.
- A selvagem está espremendo ele como um limão disse o Pesado. - Vai ver, ele a trepa três vezes de dia e três de noite.
Então não vê que, por qualquer pretexto,
ele deixa o posto? É para ir à cama com a selvagem, claro.
- Estão em lua-de-mel, é justo - disse o Oscuro. Você morre de inveja, Pesado, não disfarce.
Também estavam estendidos, em uma faixa minúscula de praia, atrás de uma trincheira de matagais, muito perto da água. Tinham
os fuzis na mão, mas não apontavam para
a cabana, que, dali, se via oblíqua e ensombrecida, alta.
- Ficou todo convencido - disse o Pesado. - Por que a gente não veio prender Nieves logo que chegou a ordem do tenente,
hem? Esperemos que escureça, é preciso fazer
um plano, vamos cercar a casa, onde é que você ouviu tantas besteiras juntas. Para impressionar Dom Fábio, Oscuro, para
se dar importância, nada mais.
- O tenente se preparou, vai lhe dar outro galão disse o Oscuro. - E para nós nada, você vai ver. Não viu quando chegou
aquele próprio de Borja? O governador, que
o tenente fez isto, que fez aquilo, e por acaso não fomos nós que encontramos o louco na ilha?
- A selvagem deve ter dado puçanga a ele, Oscuro disse o Pesado. - Quer que fique louco com aquelas beberagens. Por isso
anda tão cansado, dormindo de pé.
- Que desgraça, que desgraça - disse o sargento. Que faz aqui, o que está acontecendo?
Lalita e Adrián Nieves olhavam-no, imóveis, do catre. A seus pés, um prato estourava de bananas, a lamparina soltava uma
fumacinha branca e cheirosa, e na entrada
prosseguia o atônito piscar do sargento sob a pala, Aquilino não o avisara? tinha a voz aflita, mas já fazia umas duas horas,
Dom Adrián, que disse à criança, corra,
é questão de vida ou morte, e sua mão mexia o revólver com dificuldade: que desgraça, que desgraça. Sim, dera o recado,
sargento, o prático falava como que mastigando:
mandara os filhos à casa de um conhecido, no outro lado do rio. Dos cantos de sua boca duas estrias avançavam gravemente
pelas faces. E agora? Por que não fugira
também? Não eram as crianças que tinham de se esconder,
286
mas ele, Dom Adrián: o sargento bateu com o revólver na coxa. Agüentara a coisa várias horas, senhora, arriscando-se, que
mais queria que fizesse? tivera
tempo de sobra, Dom Adrián.
- Está passando a conversa nele - disse o Chiquito.
- Depois, dirá a Dom Fábio, entrei sozinho, tirei-o sozinho. Quer repartir o mérito com o tenente. Está trabalhando sua
transferência como uma formiga, o piurano.
com a claridade, da cabana saía agora um sussurro que mal perturbava a noite, flutuava nela sem feri-la, como uma onda solitária
em águas paradas.
- Mas quando o tenente chegar contaremos - disse o Rubio. - Que nos mandem a Iquitos com os prisioneiros. Assim, pelo menos,
a gente ganha mais uns dias de licença.
- Pode ser um pouco bruxa, um pouco retaca e o que você quiser - disse o Oscuro. - Mas, não diga que não, Pesado, qualquer
um teria comido aquela selvagem, e você
seria o primeiro. Cada vez que toma um porre, só fala dela, homem.
- Eu a comeria, claro - disse o Pesado. - Mas você se casaria com uma pagã? Nunca na vida, irmão.
-- É bem capaz de matá-lo e dizer me enfrentou, tive de liquidá-lo - disse o Chiquito. - O piurano é capaz de qualquer coisa
para ganhar a sua medalha.
- E se no fim são histórias? - perguntou o Rubio.
- Quando o próprio de Borja chegou e li a parte do tenente nem podia acreditar, Chiquito. Nieves não tem cara de bandido
e parecia boa gente.
- Hum, ninguém tem cara de bandido - disse o Chiquito. - Ou melhor, todas as caras são de bandido. Mas eu também fiquei
espantado quando li a parte. Quantos anos
pegará?
- Quem é que sabe? - disse o Rubio. - Muitos, na certa. Roubaram de todo mundo e o pessoal daqui os marcou. Você vê, quanto
tempo estiveram enrolando para que a
gente fosse buscá-los, só agora, quando não roubam mais.
- O que não acredito é que ele fosse o chefe - disse o Chiquito. - Além disso, se roubou tanto como dizem, não seria um
morto de fome.
- Quem era então o chefe? - perguntou o Rubio. -
- Mas isso é o de menos, se os outros não aparecem, farão Nieves e o louco pagar por todos.
- Já chorei, sargento, já implorei - disse Lalita. -

287
Desde que vocês foram à ilha, estou chorando, vamos nos esconder, Adrián. E agora que o senhor mandou avisar, os meninos
colheram frutas, enrolamos as coisas dele,
Aquilino também pediu. Mas ele não ouve nada, não faz caso de ninguém.
A luz da lamparina caía de cheio sobre o rosto de Lalita, iluminava a abrupta superfície de suas faces, os furúnculos, as
crateras do pescoço, e o cabelo desgrenhado
e oscilante que cobria sua boca.
- Apesar de sua farda, o senhor tem bom coração disse Adrián Nieves. - Por isso aceitei ser seu padrinho.
Mas o sargento não o escutava. Dera meia-volta e, agachado, esquadrinhava o terraço, um dedo nos lábios, Dom Adrián, se
joga agorinha mesmo, pelo gradeado, sem fazer
ruído, o rio, ele contaria até dez, o céu, e atirava para cima, saía correndo, rapazes, fugiu por aquele lado, e levava
os guardas para a mata. Que empurrasse a
lancha pelo escuro, Dom Adrián, e não ligasse o motor até o Maranón, e que corresse depois como alma que o Diabo persegue,
e não se deixasse agarrar, Dom Adrián,
principalmente isso, ele podia se foder também, que não se deixasse agarrar, e Lalita, sim, sim, ela soltaria a lancha,
tirava os remos, iria com ele, e as palavras
se atropelavam em seus lábios, a testa se esticava e havia um inusitado e rápido rejuvenescimento de sua pele, Adrián, a
roupa estava pronta, e a comida, não faltava
nada, e remariam, e antes de chegar à guarnição se esconderiam na mata. E o sargento, alto, explorando o exterior: se estenderiam
contra o fundo da lancha, cuidado
para não levantar a cabeça, se os rapazes vissem, disparariam, e o Chiquito acertava sempre no alvo.
- Eu lhe agradeço, mas já pensei muito e não se pode sair pelo rio - disse Adrián Nieves. - Não há quem passe agora o pongo,
sargento, nem sendo bruxo. Já viu como
o tenente ficou preso no Santiago, que não é nada perto do Maranón.
- Mas, Dom Adrián - disse o sargento. - O que quer, então, não o entendo.
- A única chance é me esconder na mata, como me escondi na última vez - disse Nieves. - Mas não quero, sargento, já pensei
até me cansar, desde que vocês foram à
ilha. Não vou passar o que me resta de vida correndo pela mata. Eu era só o prático, só manobrava a lancha dele, como para
vocês, não podem me fazer nada. Sempre
me portei bem aqui
288
e todos sabem disso, as madres, o tenente, o governador também.
- Não estão brigando - disse o Chiquito. - A gente ouviria os gritos, parece que conversam.
- Acho que o encontrou dormindo e deve estar esperando que se vista - disse o Rubio.
- Ou estará fodendo a Lalita - disse o Pesado. Amarrou o Nieves e está comendo a mulher na sua frente.
- As coisas que você imagina, Pesado - disse o Oscuro. - Parece que você tomou puçanga, anda com tesão dia e noite. Além
disso, quem quer comer a Lalita, com tanta
espinha?
- Mas ela é branca - disse o Pesado. - Eu prefiro uma cristã com espinhas a uma selvagem sem. E depois, só a cara é assim,
já a vi tomando banho, tem boas pernas.
Agora vai ficar sozinha e precisará que a consolem.
- A falta de mulher deixa você louco - disse o Oscuro. - É verdade que a mim também, às vezes.
- Para que tem cabeça, Dom Adrián? - perguntou o sargento. - Se não se atirar à água agora, vai entrar bem, não vê que vão
culpá-lo por tudo? A parte do tenente
diz que o louco está morrendo, não seja teimoso.
- Vão me prender por uns meses, mas depois viverei tranqüilo e poderei voltar aqui - disse Adrián Nieves. Se me esconder
na mata, não verei nunca mais minha mulher
e meus filhos, e não quero viver como um animal até a morte. Eu não matei ninguém, e Pantacha e os pagãos sabem disso. Aqui
me portei como um bom cristão.
- O sargento o aconselha por seu bem - disse Lalita -, ouça o que ele diz, Adrián. Pelo que você mais quer, por seus filhos,
Adrián.
Escavava o chão, batia nas bananas, perdia a voz, e Adrián Nieves começara a se vestir. Vestia uma camisa desbotada, sem
botões.
- Não sabe como me sinto - disse o sargento. - O senhor continua sendo meu amigo, Dom Adrián. O pior vai ser com Bonifácia.
Ela pensava que o senhor já estava longe,
eu também.
- Tome, Adrián - soluçou Lalita. - Calce.
- Não preciso - disse o prático. - Guarde até que eu volte.
- Não, não, calce - insistiu Lalita, gritando. - Ponha os sapatos, Adrián.
Uma expressão de embaraço alterou o rosto do prático
289
durante um segundo: olhou confusamente o sargento, mas pôs-se de cócoras e calçou os
sapatões de grossas solas, Dom Adrián
faria o que pudesse para cuidar de sua
família, pelo menos que não se preocupasse com isso. Ele já estava de pé, e Lalita se aproximara dele e o tinha preso pelo
braço. Não ia chorar, não? Tinham passado
tantas coisas juntos e nunca chorou, agora também não devia chorar. Eles o soltariam logo, então a vida seria mais tranqüila
e, enquanto isso, que cuidasse bem dos
meninos. Ela concordava como um autômato, velha de novo, o rosto crispado e os olhos esbranquiçados. O sargento e Adrián
Nieves saíram ao terraço, desceram a escadinha
e, quando pisavam nos primeiros cipós, um grito de mulher cortou a noite e, nas sombras da direita, aí vinha o pássaro!
a voz do Rubio. E o sargento, porra, mãos
na cabeça: calminho ou fuzilava-o. Adrián Nieves obedeceu. Ia na frente, os braços para cima, e o sargento, o Rubio e o
Chiquito o seguiam, caminhando devagar, entre
os sulcos da chácara.
- Por que demorou tanto, meu sargento? - perguntou o Rubio.
- Eu o interroguei um pouco - disse o sargento. E deixei que se despedisse da mulher.
Ao chegarem ao matinho de juncos, o Pesado e o Oscuro vieram ao seu encontro. Somaram-se ao grupo sem dizer nada e, assim,
em silêncio, percorreram o atalho até
Santa Maria de Nieva. Nas cabanas imprecisas ouviam-se cochichos à sua passagem, também entre as capironas e sob os mourões
havia gente que observava. Ninguém, porém,
se aproximou deles, nem perguntou nada. Frente ao cais, ouviu-se, muito próxima, uma correria de pés descalços, meu sargento:
era Lalita, viria brava, criaria problemas.
Mas ela passou ofegante pelos guardas e só parou uns segundos junto ao prático Nieves: esquecera-se da comida, Adrián. Entregou
a ele um atado e afastou-se, correndo
como tinha vindo; seus passos perderam-se na escuridão e, longe, quando chegavam ao posto, soou um lamento, que pareceu
de mocho.
- Você está vendo, eu não falei. Oscuro? - perguntou o Pesado. - Tem um bom corpo ainda. Melhor que o de qualquer selvagem.
- Ah, Pesado - disse o Oscuro. - Você não pensa noutra coisa, você é um bom sacana.
290
- com bom tempo, amanhã à tarde, Fushía - disse Aquilino. - Eu irei primeiro, para ver. Há um lugar perto, onde você pode
ficar escondido na lancha.
- E se não aceitam, velho? - perguntou Fushía. Que vou fazer, que vai ser da minha vida, Aquilino?
- Não fique imaginando o que pode acontecer - disse Aquilino. - Se encontro aquele cara que eu conheço, ele nos ajudará.
Além disso, o dinheiro ajeita tudo.
- Você vai dar todo o dinheiro? - perguntou Fushía.
- Não seja bobo, velho. Guarde um pouco para você, pelo menos, para ajudar o seu negócio.
- Não quero o seu dinheiro - disse Aquilino. - Eu voltarei depois a Iquitos, para recolher mercadoria, e vou fazer um pouco
de comércio pela região. Quando vender
tudo, irei a San Pablo visitar você.
- Por que você não fala comigo? - perguntou Lalita. - Por acaso fui eu que comi as conservas? Dei todas elas a você. Não
é por minha culpa que acabaram.
- Não tenho vontade de falar com você - disse Fushía. - E nem vontade de comer. Vista isto e chame as achuales.
- Você quer que elas esquentem água? - perguntou Lalita. - Já estão fazendo isso, eu pedi. Coma só um pouquinho de peixe,
Fushía. É savelha, Jum o trouxe agora.
- Por que você não me fez a vontade? - perguntou Fushía. - Eu queria ver Iquitos de longe, ainda que só as luzes.
- Você ficou louco, homem? - perguntou Aquilino.
- E a polícia marítima? Além disso, todo mundo me conhece por aqui. Eu quero ajudar você, mas não ir para a cadeia.
- Como é San Pablo, velho? - disse Fushía. - Você já foi lá muitas vezes?
- Algumas, de passagem - disse Aquilino. - Chove pouco e não tem pântanos. Mas há dois San Pablo, eu só estive na Colônia,
fazendo comércio. Você viverá do outro
lado. Uns quilômetros daqui.
- Há muitos cristãos? - perguntou Fushía. - Uns cem, velho?
- Acho que há mais - disse Aquilino. - Passeiam pelados pela praia quando faz sol. O sol deve fazer bem a eles, ou é para
impressionar o pessoal das lanchas que
passam. Pedem comida e cigarros aos gritos. Se a gente não atende, insultam, atiram pedras.
291
- Você fala deles com nojo - disse Fushía. - Tenho certeza de que me deixará em San Pablo e que não vou mais ver você, velho.
- Eu prometi - disse Aquilino. - Por acaso não cumpri sempre o que prometi?
- Será esta a primeira vez em que não cumprirá disse Fushía. - E também a última, velho.
- Quer que ajude você? -- perguntou Lalita. - Me deixe tirar suas botas.
- Saia daqui - disse Fushía. - Não volte mais até que a chame.
As achuales entraram, silenciosas, trazendo duas grandes vasilhas fumegantes. Colocaram-nas junto à rede, sem olhar Fushía,
e saíram.
- Sou sua mulher - disse Lalita. - Não se envergonhe. Por que tenho que sair?
Fushía virou a cabeça, olhou-a, e seus olhos eram duas lasquinhas ígneas: loretana puta. Lalita deu meia-volta, saiu da
cabana e tinha escurecido. O ar carregado
parecia próximo a romper em trovões, chuva e raios. No povoado huambisa crepitavam fogueiras, sua luz brilhava entre as
lupunas e revelava uma crescente agitação,
deslocamentos, gritos, vozes roucas. Pantacha, sentado na varanda de sua cabana, balançava as pernas.
- Que há com eles? - perguntou Lalita. - Por que há tantas fogueiras? Por que fazem tanto barulho?
- Voltaram os que foram caçar, patroa - disse Pantacha. - Não viu as mulheres? Passaram o dia fazendo masato, vão festejar.
Querem que o patrão vá, também. Por que
ele está tão furioso, patroa?
- Porque Dom Aquilino não chegou - disse Lalita.
- Acabaram-se as conservas e a bebida também.
- Faz uns dois meses que o velho não vem - disse Pantacha. - Desta vez não vem mais, patroa.
- Para você, tudo dá no mesmo agora, não é? perguntou Lalita. - Já tem mulher e não se importa com mais nada.
Pantacha deu uma gargalhada, e, na porta da cabana, apareceu a shapra, cheia de enfeites: diadema, pulseiras, caneleiras,
tatuagens nas faces e nos seios. Sorriu
para Lalita e sentou-se na varanda, junto dela.
- Aprendeu o cristão melhor que eu - disse Pantacha. - Gosta muito da senhora, patroa. Está assustada agora
292
porque chegaram os huambisas que foram caçar. Não perde o medo deles por mais que eu faça.
A shapra apontou os matagais que ocultavam o barranco: o prático Nieves. Vinha com o chapéu de palha na mão, sem camisa,
as calças arregaçadas até o joelho.
- Ninguém viu você todo o dia - disse Pantacha. Esteve pescando?
- Sim, desci até o Santiago - disse Nieves. - Mas não tive sorte. Vai cair tormenta, e os peixes fogem ou se escondem bem
no fundo.
- Os huambisas já voltaram - disse Pantacha. Vão festejar esta noite.
- Por isso é que o Jum foi embora - disse Nieves.
- Eu vi quando saiu da laguna, em sua canoa.
- Ficará fora dois ou três dias - disse Pantacha. Aquele pagão também não perde o medo dos huambisas.
- Não é medo, só não quer que cortem a sua cabeça
- disse o prático. - Sabe que, quando estão bêbados, cresce o seu ódio contra ele.
- Você também vai festejar com os pagãos? -- perguntou Lalita.
- A viajada me deixou muito cansado -- disse Nieves.
- vou dormir.
- É proibido, mas às vezes saem - disse Aquilino.
- Quando querem reclamar algo. Constróem suas canoas, entram na água e ficam diante da Colônia. Fazem o que pedimos ou desembarcamos,
dizem.
- Quem vive na Colônia, velho? - perguntou Fushía. - Há policiais?
- Não, não vi nenhum - disse Aquilino. - Vivem as famílias. As mulheres, os filhos. Fizeram suas chacrinhas.
- E as famílias têm tanto nojo deles? - perguntou Fushía. - Mesmo sendo parente, Aquilino?
- Há casos em que o parentesco não influi - disse Aquilino. - Deve ser porque não se acostumam, devem ter medo de se contagiar.
- Então ninguém vai visitá-los - disse Fushía. -- As visitas devem ser proibidas.
- Não, não, ao contrário, vão muitas visitas - disse Aquilino. - A gente precisa se lavar numa lancha antes de entrar, e
dão um sabão para o banho, e você tem de
tirar a roupa e pôr um avental.
- Por que você quer que eu acredite que virá me ver, velho? - perguntou Fushía.
293
- Do rio a gente vê as casas - disse Aquilino. Boas casas, algumas como as de Iquitos, de tijolos. Aí você viverá melhor
que na ilha, homem. Terá amigos e estará
tranqüilo.
-. Me deixe numa praiazinha, velho - disse Fushía.
- Você passará, de tempo em tempo, para me trazer comida. Viverei escondido, ninguém me verá. Não me leve para San Pablo,
Aquilino.
- Mas você mal pode caminhar, Fushía - disse Aquilino. - Não entende, homem?
- Como foi que você deixou que o bruxo dos huambisas curasse a sua febre, se continua tendo medo deles? perguntou Lalita.
A shapra sorriu, sem responder.
- Trouxe-o mesmo ela não querendo, patroa - disse Pantacha. - Cantou para ela, dançou, cuspiu tabaco no nariz dela, e ela
não abria os olhos. Tremia mais de medo
que das febres. Acho que se curou com o susto.
Retumbou o trovão, começou a chover, e Lalita se abrigou sob o telhado. Pantacha continuou na varanda, recebendo a água
nas pernas. Minutos depois a chuva parou,
e a clareira se encheu de névoa. A cabana do prático já não tinha luz, patroa, devia estar dormindo, e aquilo foi só um
aviso, o aguaceiro de verdade cairia sobre
os huambisas em plena festa. Na certa Aquilino se assustara com os trovões, e Lalita pulou da escadinha, ia vê-lo, atravessou
a clareira e entrou na cabana. Fushía
tinha as pernas afundadas na água e a pele de suas coxas, como a argila das vasilhas, era rosada, escamosa. Batia no mosquiteiro
sem deixar de olhá-la, Fushía, por
que tinha vergonha? e o arrancou e se cobriu, e agora grunhia, que tinha de mal que ela o visse? e dobrado em dois tentava
alcançar a bota, Fushía, se ela não se
importava, e por fim agarrou-a e a jogou nela, sem fazer pontaria: passou perto de Lalita, chocou-se contra o catre, e a
criança não chorou. Lalita voltou a sair
da cabana. Caía uma chuva fina, agora.
- E os que morrem, velho? - perguntou Fushía. São enterrados lá mesmo?
- Claro que lá mesmo - disse Aquilino. - Não vão atirá-los no Amazonas, não seria coisa de cristãos.
- Você vai andar dum lado para outro nos rios, Aquilino? - perguntou Fushía. - Você não pensou que um dia pode morrer na
lancha?
- Gostaria de morrer no meu povoado - disse Aquilino. - Mas não tenho mais ninguém em Moyobamba, nem
família,
294
nem amigos. Gostaria que me enterrassem no cemitério de lá, não sei por quê.
- Eu também gostaria de voltar a Campo Grande disse Fushía. - Saber o que aconteceu com meus parentes, com meus amigos de
menino. Alguém deve se lembrar de mim
ainda.
- Às vezes me arrependo de não ter sócio - disse Aquilino. - Muitos se ofereceram para trabalhar comigo, pôr um capitalzinho
para uma lancha nova. Todos sonham passar
a vida viajando.
- E por que você não aceitou? - perguntou Fushía.
- Teria companhia, agora que está velho.
- Eu conheço os cristãos - disse Aquilino. - Teria ido bem com o sócio enquanto ensinava os negócios e o apresentava à clientela.
Então o outro pensaria, por que
continuar dividindo o que dá tão pouco dinheiro? E como sou velho, teria sido sacrificado.
- Sinto não continuarmos juntos, Aquilino - disse Fushía. - Pensei nisso toda a viagem.
- Não era negócio para você - disse Aquilino. Você era muito ambicioso, não se contentaria com as misérias que se ganha
com isso.
- E você vê para o que me serviu a ambição - disse Fushía. - Para acabar mil vezes pior que você, que nunca teve ambições.
- Deus não ajudou você, Fushía - disse Aquilino.
- Tudo o que acontece depende disso.
- E por que não me ajudou e a outros sim? - perguntou Fushía. - Por que me sacaneou e ajudou o Reátegui, por exemplo?
- Pergunte-lhe isso quando morrer - disse Aquilino.
- Como é que você quer que eu saiba, Fushía?
- Vamos lá um pouquinho, antes que caia o aguaceiro, patrão - disse Pantacha.
- Está bem, mas só um pouco -- disse Fushía. Para que esses cachorros não se ofendam. O Nieves não vai?
- Estava pescando no Santiago -- disse Pantacha. Agora dormiu, patrão. Faz pouco que apagou a lamparina.
Afastaram-se das cabanas em direção ao brilho avermelhado do povoado huambisa, e Lalita esperou, sentada junto aos mourões
da cabana, que gotejava. O prático apareceu
pouco depois, de calças e camisa: estava tudo pronto. Mas Lalita não queria mais, amanhã, agora ia cair tormenta.
- Amanhã, não, agora mesmo - disse Adrián Nieves.
295
- O patrão e o Pantacha ficarão festejando e os huambisas devem estar bêbados. Jum está no canal, esperando, ele nos levará
até o Santiago.
- Não vou deixar Aquilino aqui - disse Lalita. Não quero abandonar meu filho.
- Ninguém falou que ele ia ficar - disse Nieves. Eu também quero levá-lo.
Entrou na cabana, saiu com um volume nos braços e, sem dizer nada a Lalita, caminhou em direção ao tanque das tartarugas.
Ela o seguiu, choramingando, mas logo,
no barranco, acalmou-se e se agarrou ao braço do prático. Nieves esperou que ela subisse primeiro à canoa, passou para ela
a criança e, pouco depois, a embarcação
rasgava suavemente a superfície escura da laguna. Atrás da paliçada sombria das lupunas assomava, tenuemente, a luz das
fogueiras e se ouviam cantos.
- Para onde estamos indo? - perguntou Lalita. Você não me diz nada, faz tudo sozinho. Não quero ir mais com você, quero
voltar.
- Fique calada - disse o prático. - Não fale até a gente deixar a laguna.
- Já está amanhecendo - disse Aquilino. - Não pregamos os olhos, Fushía.
- É a última noite que ficamos juntos - disse Fushía.
- Sinto um fogo aqui dentro, Aquilino.
- Eu também tenho pena - disse Aquilino. - Mas não podemos ficar mais tempo aqui, temos que continuar. Você está com fome?
- Uma prainha, velho - disse Fushía. - Pela nossa amizade, Aquilino. Para San Pablo, não, me deixe em qualquer lugar. Não
quero morrer lá, velho.
- Tenha mais coragem, Fushía - disse Aquilino. Olhe, estive contando. Faz trinta dias justos que saímos da ilha.
As coisas são como são, a realidade e os desejos se confundem e se não fosse assim por que teria vindo essa manhã? Reconhecia
tua voz, teu cheiro? Fala-lhe e vê
como em seu rosto se levanta algo risonho e ansioso, retém sua mão por uns segundos e descobre sob sua pele esse discreto
temor, o delicado sobressalto de seu sangue,
vê como se franzem seus lábios, como se agitam suas pálpebras. Queria saber? Por que apertas assim meu braço, por que brincas
com meus
cabelos,
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por que tua mão na minha cintura e, quando falas, teu rosto tão perto do meu. Explica-lhe: para que não me confundas com
os outros, porque quero que me
reconheças, Tonita, e esse ventinho e esses ruídos da minha boca são as coisas que estou te dizendo. Mas sé prudente, atenção,
cuidado com as pessoas e agora não
há ninguém, pega sua mão, larga-a depressa, tu te assustaste Tonita, por que ficaste tremendo? pede-lhe que te perdoe. E
então, de novo, o sol que doura suas pestanas
e ela, certamente pensando, duvidando, imaginando, tu, não é nada ruim, Tonita, não tenhas medo de mim, e ela esforçando-se
confusamente, imaginando, por quê, como,
e então os outros, Jacinto limpa as mesas, Chápiro fala do algodão, dos galos e das caboclas que come, umas mulheres oferecem
doce de leite e ela, empenhada, angustiadamente
esgaravatando nas trevas mudas, por quê, como. Tu, estou louco, é impossível, faço-a sofrer, tem vergonha, salta do cavalo,
outra vez o areal, o salão, a torre.
Fecha as cortinas, que a Mariposa suba, que tire a roupa sem abrir a boca, vem, não te mexas, és uma menina, beija-a, tu
queres, suas mãos são flores, ela, que coisas
lindas, patrão, é verdade que lhe agrado tanto? Que se vista, que volte ao salão, por que falaste, Mariposa, vai embora,
nenhuma mulher voltará à torre. E de novo
a solidão, a harpa, a aguardente, embriaga-te, atira-te à cama e procura tu também, cava na escuridão, tem direito a que
a amem? tenho o direito de amá-la? me importaria
se fosse pecado? A noite é lenta, em claro, oca sem a presença dela, que acaba com as dúvidas. Embaixo riem, brindam e troçam,
entre violões buliçosos insinua-se
o fino assovio de uma flauta, excitam-se, dançam. Foi pecado, Anselmo, vais morrer, arrepende-te, tu, não foi, padre? não
me arrependo de nada, dó de que ela morresse.
E ele foi de má-fé, pela força, tu, não foi de má-fé, nos entendíamos sem que me visse, nos amávamos sem que me falasse,
as coisas eram o que eram. Deus é grande,
Tonita, não é verdade que me reconheces? Tira a prova, aperta sua mão, conta até seis, ela aperta? até dez, vês que não
solta tua mão? até quinze e então continua
na tua, confiada e suave. E enquanto isso já não chove areia, um vento fresco sobe do rio, vem ao La Estrella del Norte,
Tonita, tomaremos alguma coisa e, qual braço
procurava sua mão? em quem se apoiava para atravessar a praça? tu, o meu e não o do Dom Eusébio, em mim e não em Chápiro,
então te ama? Sente o que sentias: a carne
adolescente e morena, a fina pelugem do seu braço e, debaixo da mesa, seu joelho junto
297
ao teu joelho, gostoso o suco de lucuma, Tonita? e seu joelho continua, e então dissimula e goza, quer dizer que vão bem
os negócios de Dom Eusébio, quer dizer
que a loja que abriu em Sullana é a mais próspera, então Arrese está morrendo, Doutor Zevallos, que desgraça para Piura,
era o homem mais culto, e então, agradavelmente
o calorzinho entre as veias e os músculos, uma chaminha no coração, outra nas fontes, duas minúsculas crateras supurando
sob os pulsos. Não apenas o joelho agora,
o pé também, logo aparecerá e indefeso junto à grossa bota, e o tornozelo, e a coxa esbelta paralela à tua, teu Deus é grande
mas talvez nem entenda, será por acaso?
Tira outra prova, empurra, afasta-se? se mantém grudada à tua? ela também empurra? tu, não estás brincando, menininha? que
sentes por mim? Então, de novo, o ambicioso
desejo: estarem sozinhos algum dia não aqui mas na torre, não de dia mas de noite, não vestidos mas nus, Tonita, não te
afastes, continua tocando em mim. E então,
a sufocante manhã de verão, os engraxates, os mendigos, as vendedoras, a gente que sai da missa, La Estrella del Norte com
seus homens e suas conversas, o algodão,
as cheias, o churrasco do domingo e, de repente, sente sua mão que busca, que encontra e apanha a tua, atenção, cuidado,
não a olhes, não te mexas, sorri, o algodão,
as apostas, as caçadas, a dura carne dos veados e as pragas traiçoeiras e, entretanto, ouve sua mão na tua, sua misteriosa
mensagem, decifra essa voz de secretas
pressões e suaves beliscões, e todo o tempo, Tonita, Tonita, Tonita. Agora chega de dúvidas, amanhã mais cedo ainda, esconde-te
na catedral e espia, escuta o minúsculo
canto da areia na copa dos tamarindeiros, espera tenso, os olhos fixos na esquina semi-oculta pelo coreto e as árvores.
E então, de novo, o tempo parado sob a abóbada
e os arcos, os ásperos tijolos, os bancos despovoados, e a implacável vontade e uma fria secreção nas costas, o brusco vazio
no estômago: o burrinho, a gallinaza,
as cestas, uma silhueta que avança flutuando. Que não chegue ninguém, que vá embora logo, que não apareça o padre, e agora,
depressa, correndo, a luz exterior, o
átrio, os largos degraus, a rua, o quadrilátero sombreado. Abre os braços, recebe-a, olha como sua cabeça se reclina no
teu ombro, acaricia seus cabelos, limpa-os
da areia loura e, ao mesmo tempo, cuidado, La Estrella del Norte vai abrir e Jacinto aparecerá bocejando, virão os da cidade
e os forasteiros, apressa-te. Nada de
enganos, beija-a e, enquanto seu rosto se inflama, não te assustes, és bonita, eu te amo, não chores, sente tua boca na
sua
face e nota,
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seu arrebatamento vai passando, sua postura é outra vez dócil, e a superfície que cede sob teus lábios é fugaz como a chuva
no verão mais forte, assim
também como quando o arco-íris ilumina o céu. E então rouba-a: não podemos continuar assim, vem comigo, Tonita, cuidarás
dela, tu a endeusarás, será feliz contigo,
um tempinho e irão para longe de Piura, viverão sem precisar se esconder. Corre com ela, os beirais ainda gotejam areia,
as pessoas dormem ou se espreguiçam na
cama, mas olha, observa os arredores, dá-lhe a mão, monta-a no cavalo. Não a faças ficar nervosa, fala-lhe com calma: agarra-te
à minha cintura, firme, só um pouquinho.
E, de novo, o sol que se instala sobre a cidade, a temperatura agradável, as ruas desertas, a pressa doida e, de repente,
olha como se prende, agarra tua camisa,
como seu corpo se gruda ao teu, olha esse fogaréu no seu rosto: entende? apressa-te? que não nos vejam? vamos? quero ir
contigo? tu, Tonita, Tonita, sabes para onde
vamos, para que vamos, o que somos? Atravessa o Viejo Puente mas não entres na madrugadora Castilla, segue rapidamente as
algarobeiras da margem, e agora sim, o
areal, esporeia com raiva, que pule, que galope, que seus cascos maltratem as lisas costas do deserto e se levante uma poeirada
protetora. Então, os relinchos,
a fadiga do animal, na tua cintura seu braço e, de Vez em quando, o sabor de seus cabelos que o vento incrusta na tua boca.
Esporeia sempre, estão chegando, usa
o relho e, de novo, aspira o cheiro dessa manhã, a poeira e a louca excitação dessa manhã. Entra sem fazer ruído, carrega-a,
sobe a estreita escada da torre, sente
seus braços no teu pescoço como um colar vivo, e então os gemidos, a aflição que separa seus lábios, o brilho de seus dentes,
tu, ninguém nos vê, gente que dorme,
acalma-te, Tonita. Dize-lhe seus nomes: Luciérnaga, Ranita, Flor, Mariposa. E ainda mais: estão entregues, beberam e fizeram
amor e não nos ouvem nem dirão nada,
tu, explicarás a elas, elas compreendem as coisas. Mas continua, como lhes dizem, mulheres da vida. Conta-lhe da torre e
do espetáculo, pinta-lhe o rio, os algodoais,
o pardo perfil das distantes montanhas e o cintilar dos telhados de Piura ao meio-dia, as casas brancas de Castilla, a imensidão
do areal e do céu. Tu, eu olharei
por ti, emprestarás teus olhos a ela, tudo o que tenho é teu, Tonita. Que imagine quando o rio entra; essas serpentes fininhas
que, num dia de dezembro, chegam rastejando
pelo leito, e como se unem e se avolumam, e sua cor, tu, verdemarrom, e vão engordando e se estendendo.
299
Que ouça o dobrar dos sinos e adivinhe a gente que vai recebê-lo, as crianças que estouram foguetes, as mulheres que espargem
flores e serpentinas, e as saias roxas
do bispo
que abençoa as águas viageiras. Conta-lhe como se ajoelham no Malecón e descreve-lhe a feira - os quiosques, as tendas,
os sorvetes, os pregões -, fala-lhe dos graúdos
felizardos que se expõem com seus cavalos à corrente e dão tiros para o alto e também dos gallinazos e mangacbes que tomam
banho de cuecas e dos valentes que mergulham
do Viejo Puente. E conta-lhe como o rio é rio agora, e como noite e dia corre para Catacaos, espesso e sujo. Conta-lhe também
quem é Angélica Mercedes, que será
sua amiga, e as comidas que lhe fará, tu, as que mais te agradem, Tonita, picantes, guisados com batata, ovo e queijo, assados
e tira-gostos, e até chicha, mas
não quero que te embriagues. E não esqueças a harpa, tu, toda noite uma serenata só para ti. Fala-lhe ao ouvido, senta-a
nos teus joelhos, não à força, tem paciência,
acaricia-a de leve, ou melhor, cheira-a sem tocá-la, sem pressa, suavemente espera que busque teus lábios. E fala-lhe sempre,
ao ouvido, com ternura, o peso de
seu corpo é leve e de sua pele flui um morno perfume, toca nos cabelos dos seus braços como nas cordas da harpa. Fala-lhe,
murmura-lhe, descalça-a com delicadeza,
beija seus pés, e então, de novo, claros e lentos, seus calcanhares, a curva do peito do seu pé, seus pequenos dedos ágeis
na tua boca, seu riso fresco na penumbra.
Ri também, estou te fazendo cosquinhas? beija-a todo o tempo, aí estão seus tornozelos tão finos e seus duros joelhos redondos.
Deita-a, então, com cuidado, acomoda-a,
e muito lentamente, muito docemente, abre sua blusa e toca-a, seu corpo endurece? solta-a, toca-a de novo, e fala-lhe, tu
a amas, será mimada como uma criança, viverás
para ela, não a apertes, não a mordas, cinge-a apenas, guia sua mão até sua saia, que ela mesma a desabotoe. Tu, eu te ajudo,
Tonita, eu a tiro, menininha, e deita-te
a seu lado. Dize-lhe que sentes que são seus seios, tu, dois coelhinhos, beija-os, tu os desejas, via-os em sonhos, de noite
entravam na torre, brancos e saltitantes,
ias pegá-los e eles escapavam, tu, mas são mais doces e mais vivos, e então, a discreta penumbra, o esvoaçar das cortinas,
as apagadas silhuetas dos objetos, e a
pureza e o resplendor imóvel do seu corpo. Acaricia-o uma, outra vez e diz-lhe teus joelhos são, e teus quadris são, e teus
ombros são, e o que sentes, e que a amas,
sempre que a amas. Tu, Tonita, menininha, criança, e aperta-a contra ti, agora sim busca suas coxas, separa-as timidamente,
sê cuidadoso, sê obediente,
300
não a apresses, beija-a e afasta-te, volta a beijá-la, tranqüiliza-a, sente como tua mão se umedece e seu corpo se abandona
e afrouxa, a preguiçosa modorra que o
invade
e como se ativa sua respiração e seus braços te chamam, sente como a terra começa a girar, a abrasar-se, a desaparecer entre
dunas quentes. Dize-lhe és minha mulher,
não chores, não te abraces a mim como se fosses morrer, diz-lhe começas a viver, e agora diverte-a, brinca com ela, seca
suas faces, canta-lhe, embala-a, dize-lhe
que durma, tu, serei teu travesseiro, Tonita, velarei teu sono.
- Levaram Lituma para Lima hoje de manhã - gemeu Bonifácia. - Dizem que por muitos anos.
E daí? A cadeia de Piura não era pior que um chiqueiro? Josefino deu uns passos pelo quarto, viviam na imundície, apoiou-se
no peitoril da janela, matavam-nos de
fome, à fraca luz de um lampião o Colégio San Miguel, a igreja e as algarobeiras da Plaza Merino apareciam como em sonhos,
e aos rebeldes davam merda em vez de comida,
e Lituma era rebelde, e ai deles se não a comiam: era melhor que o tivessem mandado a Lima.
- Mas nem sequer me deixaram despedir-me dele gemeu Bonifácia. - Por que não me avisaram que o levariam?
As despedidas não eram tristes? Josefino aproximou-se do sofá onde ela acabara de se sentar, os pés de Bonifácia se descalçaram
com raiva, seu corpo sofria bruscas
sacudidas. Era preferível assim também para Lituma, que teria ficado triste, e ela, de onde ia tirar dinheiro, a passagem
era caríssima, disseram na Empresa Roggero.
Josefino passou o braço pelos ombros dela. Que é que a coitada ia fazer em Lima? Ficaria aqui em Piura, e ele cuidaria dela,
e ele faria com que se esquecesse de
tudo.
- É meu marido, tenho que ir - gemeu Bonifácia. Apesar de tudo, irei visitá-lo todos os dias, levarei comida.
Mas em Lima era diferente, que boba, davam boa comida e eram bem tratados. Josefino apertou o braço em volta de Bonifácia,
ela resistiu um pouco, cedeu, e por fim
já estava embravecendo, o tira não era um grosseiro? e ela, mentira, não fazia sua vida um inferno? e ela, não é verdade,
mas se deixou apertar por ele, e de novo
começou a chorar. Josefino acariciou seus cabelos. E depois, para que isso, era uma
sorte,
301
ao pão, pão e ao vinho, vinho, Selvática: tinham se livrado dele.
- Eu não presto, mas você é pior que eu - choramingou Bonifácia. - Nós vamos ser condenados, mas por que me chama de Selvática,
se sabe que não me agrada, vê, vê
como você não presta?
Josefino afastou-a com suavidade, ficou de pé, e isso era o cúmulo, não teria morrido de fome sem ele? não teria vivido
esmolando? Procurou em seus bolsos, apoiado
na janela, como em sonhos, e agora vinha e chorava pelo tira na sua frente, puxou um cigarro e o acendeu: um homem tinha
o seu orgulho, que diabo.
- Agora já está me tratando por você - disse, de súbito, voltando-se para Bonifácia. - Antes, só na cama; fora, era sempre
senhor. Como você é estranha, Selvática.
Voltou para o seu lado e ela iniciou um movimento de retirada, mas se deixou abraçar e Josefino riu. Tinha vergonha? Coisas
que as freirinhas do povoado meteram
na sua cachola? Por que só na cama o tratava por você?
- Eu sei que é pecado, mas apesar disso continuo soluçou Bonifácia. - Você não dá bola, mas Deus vai me castigar, e a você
também, e tudo por sua culpa.
Que hipócrita era, nisso sim se parecia com as piuranas, a todinhas as mulheres, que hipócrita era, caboclinha, sabia ou
não que seria sua mulher naquela noite
mesmo em que ele a trouxe? e ela, não sabia, fazendo beicinho, não teria vindo, não tinha para onde ir, Josefino cuspiu
o cigarro no chão, e Bonifácia estava aninhada
junto a ele, e Josefino podia falar ao seu ouvido. Mas gostava, que fosse sincera, Selvática, que confessasse, só uma vez,
devagarzinho, dele só, chininha, gostou
ou não gostou, caboclinha?
- Gostei porque não presto - sussurrou ela. - Não me pergunte, é pecado, não me fale disso.
Melhor que com o tira? que jurasse, ninguém a ouvia, ele a amava, verdade que gozava mais? beijou-a no pescoço, mordeu sua
orelha, sob a saia tudo era apertado,
tenso e morno; verdade que o tira nunca a fez gritar? e ela, com voz sumida, sim, na primeira vez, mais de dor; verdade
que ele, sim, a fazia gritar, quando lhe
dava na veneta? e só de gozo, não era mesmo? e ela, que se calasse, Josefino, Deus estava ouvindo, e ele, toco em você e
logo você muda, gosta de mim porque é quente.
Soltou-a, ela deixou de ronronar e, um pouco depois, chorava de novo.
- Ele estava estragando você, Selvática - disse Josefino.
302
- Você perdia seu tempo com o tira. Por que tem tanta pena dele?
- Porque é meu marido - disse Bonifácia. - Tenho que ir a Lima.
Josefino abaixou-se, apanhou a guimba do chão, acendeu-a, e umas crianças corriam na Plaza Merino, uma trepara na estátua
e os postigos da casa do Padre Garcia estavam
iluminados, não devia ser tão tarde, sabia que ontem empenhou o relógio? esquecera-se de contar, Selvática, e verdade, verdade,
que cabeça: tudo estava acertado
com Dona Santos, amanhã cedo.
- Agora não quero mais - disse Bonifácia. - Não quero, não vou.
Josefino jogou a guimba em direção à Plaza Merino, mas não chegou sequer à Avenida Sánchez Cerro, e saiu da janela, e ela
estava tensa, e ele, que há com você,
queria matá-lo com o olhar? já sabia que tinha olhos bonitos, porque os abria tanto e que história era essa. Bonifácia não
chorava e tinha um ar agressivo, uma
vez decidida: não queria, era o filho do seu marido. E com o que ia dar de comer ao filho do seu marido? E o que ia comer
ela até que nascesse o filho do seu marido?
E que ia Josefino fazer com um enteado? O pior de tudo é que a gente nunca pensa nas coisas, que faziam com a cachola que
Deus lhes pôs sobre o pescoço, que merda
faziam?
- Trabalharei de criada - disse Bonifácia. - E depois irei vê-lo em Lima.
De criada, barriguda? Estava sonhando, ninguém a empregaria, e se por acaso alguém quisesse, seria para esfregar chão e,
com tanto esforço, o filho do seu marido
se perderia, ou nasceria morto, ou monstro, que perguntasse a um médico, e ela, que morra se tiver de morrer, mas ela não
queria matá-lo: estava decidido.
Começou a choramingar de novo, e Josefino sentou a seu lado e passou o braço nos seus ombros. Era mal-agradecida, ingrata
com ele. Tratava-a bem, sim ou não? Por
que a trouxe para sua casa? porque a amava, por que lhe dava de comer? porque a amava, e, em troca, e depois de tudo, e
apesar disso um enteado para que toda a gente
se risse dele? Merda, um homem não é um palhaço. E além disso, quanto ia cobrar a Santos? Uma barbaridade de dinheiro e,
em vez de agradecer, chorava. Por que era
assim com ele, Selvática? Parece que não o queria, e ele gostava tanto dela, caboclinha, e beliscava o seu pescoço e soprava
atrás de sua orelha,
303
e ela gemia, seu povoado, as madrezinhas, queria voltar, mesmo que fosse terra de selvagens, mesmo que não tivesse edifícios
nem automóveis, Josefino, Josefino,
voltar a Santa Maria de Nieva.
- Você precisa de mais dinheiro para voltar a seu povoado que para fazer uma casa, caboclinha - disse Josefino.
- Você fala sem saber o que está dizendo. Não precisa ser assim, amor.
Tirou o lenço e limpou seus olhos, e beijou-os e fez com que meio corpo dela se virasse, abraçou-a com paixão, ele se preocupava
com ela, por quê? fazia tudo
pensando no seu bem, por quê, infeliz, por quê? porque a amava. Bonifácia suspirava, o lenço na boca; por seu bem, mas queria
matar o filho de seu marido?
- Isso não é matá-lo, boba, por acaso já nasceu? perguntou Josefino. - E por que você fala tanto do seu marido, se não é
mais seu marido?
Sim, era, casaram-se na Igreja, e para Deus era o único que valia, e Josefino, que mania, por que meter Deus em tudo, Selvática?
e ela, vê, vê? e ele, caboclinha,
boba, que lhe desse um beijo, e ela, não, e ele, não se importaria se não a quisesse tanto, sacudindo-a, procurando suas
axilas, impedindo-a de se levantar, boba,
teimosinha, sua Selvatiquita, vê, vê? e entre um suspiro e um soluço ria, e, por uns momentos, sua boca ficava quieta e
ele a beijá-la. Amava-o? uma vez, só uma
vez, boba, e ela, não amo você, e ele, mas eu muito, Selvática, só que você se envaidece e abusa de mim por isso, e ela,
você diz mas não me quer, e ele, que tocasse
no seu coração e visse como batia por ela, e além disso, se o quisesse, faria sua vontade em tudo, e sob a saia tudo era
apertado, morno, escorregadio, como debaixo
da blusa, e também nas costas, morno, sedento, espesso, e a voz de Josefino começava a vacilar e a ser, como a dela, muito
baixa, não iria à casa da Santos mesmo
que quisesse, e contida, mesmo que a matasse não iria, e preguiçosa, mas gostava dele, e desigual e quente.
304

III.

- Você está com uma cara - disse o sargento -, parece que a tiraram daqui à força. Por que não está contente?
- Mas estou - disse Bonifácia. - Sinto só um pouco de pena por causa das madrezinhas.
- Não ponha essa maleta tão no canto, Pintado disse o sargento. - E as caixas não estão seguras, cairão na água ao primeiro
solavanco.
- Lembre-se de nós quando estiver no paraíso, meu sargento - disse o Chiquito. - Escreva, conte como é a vida na cidade.
Se é que ainda existem cidades.
- Piura é a cidade mais alegre do Peru, senhora disse o tenente. - Vai gostar muito dela.
- com certeza, senhor - disse Bonifácia. - Se é tão alegre, vai me agradar.
O prático Pintado já instalara toda a bagagem na lancha e agora examinava o motor, ajoelhado entre duas latas de gasolina.
Corria uma brisa suave e as águas do Nieva,
cor de uva, avançavam para o Marañón, alvoroçadas de ondinhas, balanços e curtos redemoinhos. O sargento ia e vinha pela
lancha, diligente, risonho, verificando
os volumes, as amarras, e Bonifácia parecia interessada nessa movimentação, mas, às vezes, seus olhos afastavam-se da embarcação
e espiavam as colinas: a missão
resplandecia entre as árvores, sob o céu limpo, seus zincos e muros reverberavam mansamente na clara luz da madrugada. O
caminho pedregoso, por outro lado, aparecia
dissimulado por fiapos de bruma que flutuavam quase ao rés-do-chão, incólumes: a mata desviava a brisa que os teria desagregado.
305
- Não é verdade que já estamos com coceira para chegar a Piura, chininha? - perguntou o sargento.
- É verdade - disse Bonifácia. - Queremos chegar logo.
- Deve ser longíssimo - disse Lalita. - E a vida, tão diferente desta.
- Dizem que é cem vezes maior que Santa Maria de Nieva - disse Bonifácia -, com casas iguais às que a gente vê nas revistas
das madres. Há poucas árvores, dizem,
e areia, muita areia.
- Tenho pena porque vai embora, mas fico contente por você - disse Lalita. - As madres já sabem?
- Me deram muitos conselhos - disse Bonifácia. Madre Angélica chorou. Como está velhinha, não ouve mais o que se diz, tive
que gritar. Mal caminha, Lalita, parece
que seus olhos vivem dançando todo o tempo. Me levou à capela e rezamos juntas. Agora nunca mais a verei, tenho certeza.
- É uma velha má, perversa - disse Lalita. - Não varreu isso, não lavou as panelas, e me assusta com o inferno; e toda manhã,
você se arrependeu dos pecados? E
também me diz coisas horríveis de Adrián, que é um bandido, que enganava todo mundo.
- Tem um gênio difícil porque está velhinha - disse Bonifácia. - Deve saber que vai morrer logo. Mas comigo é boa. Gosta
de mim e eu também gosto dela.
- Algarobeiros, burros e tonderos - disse o tenente.
- E conhecerá o mar, senhora, não está longe de Piura. Aquilo é melhor que se banhar no rio.
- E também dizem que lá estão as mulheres mais lindas do Peru, senhora - disse o Pesado.
- Ah, Pesado - disse o Rubio. - E que importa à senhora que haja mulheres lindas em Piura?
- Estou lhe avisando para que tome cuidado com as piuranas - disse o Pesado. - Senão, ficará sem marido.
- Ela sabe que sou sério - disse o sargento. - Só tenho vontade de ver meus amigos, meus primos. De mulheres, a minha me
chega e sobra.
- Ah, caboclo cínico - riu o tenente. - Cuidado com ele, senhora, e se escapar, pau nele.
- Se for possível, embrulhe uma piurana e mande-a para mim, meu sargento - disse o Pesado.
Bonifácia sorria para uns e outros, mas, ao mesmo tempo, mordia os lábios e, a intervalos regulares,
306
uma expressão diferente voltava a seu rosto e o abatia, empanava seu olhar por uns segundos e agitava sua boca com um leve
tremor, e logo desaparecia e seus olhos
sorriam
de novo. O povoado já despertava, havia cristãos reunidos na loja do Paredes, a velha criada de Dom Fábio varria o terraço
da sede do governo e, sob as capironas,
passavam aguarunas jovens e velhos em direção ao rio, com varas e arpões. O sol acendia os tetos de jarina.
- Seria bom partir logo, sargento - disse o Pintado.
- É melhor passar agora o pongo, depois haverá mais vento.
- Escute primeiro, e depois diga não - disse Bonifácia. - Pelo menos deixe que lhe explique.
- É melhor que você nunca faça planos - disse Lalita. - Depois, se não se concretizam, é pior. Pense só no que está acontecendo
no momento, Bonifácia.
- Já lhe falei, ele está de acordo - disse Bonifácia.
- Me dará um sol por semana, e eu farei trabalhos para fora, não sabe que as madres me ensinaram a costurar? Mas não roubarão
de você? Tem que passar por tantas
mãos, talvez nem chegue.
- Não quero que me mande - disse Lalita. - Para que preciso de dinheiro?
- Já sei qual o jeito - disse Bonifácia, batendo na cabeça. - Mandarei para as madres, quem vai se atrever a roubar delas?
E as madres o entregarão a você.
- Apesar da vontade que a gente tem de ir, sempre dá um pouco de tristeza - disse o sargento. - Me deu agorinha mesmo, rapazes,
pela primeira vez. A gente se apega
aos lugares, mesmo que não valham nada.
A brisa se transformara em vento e as copas das árvores mais altas inclinavam seus penachos, sacudiam-nos sobre as árvores
pequenas. Lá em cima, a porta da residência
se abriu, a silhueta escura de uma madre saiu apressada e, enquanto atravessava o pátio em direção à capela, o vento alargava
seu hábito, encrespava-o como uma onda.
Os Paredes tinham saído à porta de sua cabana e, debruçados no parapeito, olhavam o cais, davam adeus.
- É humano, meu sargento - disse o Oscuro. Tanto tempo aqui e, além disso, casado com uma daqui. A gente compreende que
tenha um pouco de pena. A senhora terá mais
ainda.
- Obrigado por tudo, meu tenente - disse o sargento. - Se puder servi-lo em Piura, já sabe, estou às suas
ordens,
307
para qualquer coisa. Quando é que o senhor estará em Lima?
- Dentro de um mês, mais ou menos - disse o tenente. - Tenho que ir a Iquitos antes, para liquidar este assunto. Desejo-lhe
tudo de bom em sua terra, caboclo, apareço
por lá um dia desses.
- É melhor que você guarde o dinheiro para quando tiver filhos - disse Lalita. - Adrián dizia, no mês que vem começamos,
e, em seis meses, teremos para um motor
novo. E nunca juntamos um só centavo. Mas ele não gastava quase nada, era tudo para a comida e os filhos.
- E então você poderá ir a Iquitos - disse Bonifácia.
- Faça as madres guardarem o dinheiro que vou mandar, até que seja bastante para a passagem. Então você irá vê-lo.
- O Paredes me disse que não voltarei a vê-lo disse Lalita. - E também que morrerei aqui, como criada das madres. Não me
mande nada. Vai fazer falta lá, precisará
de muito dinheiro na cidade.
Permitia, caboclo? O sargento concordou, e o tenente abraçou Bonifácia, que piscava muito e mexia a cabeça como que aturdida,
mas seus lábios e seus olhos úmidos
sorriam ainda, insistentemente, senhora: agora era a vez deles. Primeiro, abraçaram-na o Pesado e o Oscuro, puxa, que abraço
demorado, e ele, meu sargento, não pense
mal, era um abraço de amigo, e o Rubio, e o Chiquito. O prático Pintado soltara as amarras e mantinha a lancha junto ao
cais, curvado sobre a vara. O sargento e
Bonifácia subiram e instalaram-se entre os volumes, Pintado levantou a vara e a corrente apoderouse da embarcação, começou
a balançá-la, a levá-la sem pressa rumo
ao Marañón.
- Você tem de ir vê-lo - disse Bonifácia. - Eu lhe mandarei, mesmo que não queira. E quando estiver livre, irão a Piura,
ajudarei vocês, como me ajudaram. Lá ninguém
conhece Dom Adrián, ele poderá trabalhar no que quiser.
- Você mudará de cara quando vir Piura, chininha disse o sargento.
Bonifácia tinha a mão fora da lancha, seus dedos tocavam a água turva e abriam retos, efêmeros canais, que desapareciam
na espumosa confusão que a hélice ia semeando.
Às vezes, sob a opaca superfície do rio, aparecia um peixe pequeno e veloz. Sobre eles, o céu se mostrava limpo, mas, longe,
em direção à cordilheira, flutuavam
nuvens gordas que o sol fendia como um cutelo.
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- Você está triste só por causa das madres? - perguntou o sargento.
- Também por Lalita - disse Bonifácia. - E penso o tempo todo na Madre Angélica. Ontem à noite prendeu-se a mim, não queria
me soltar, e não lhe saíam as palavras.
- As freirinhas se portaram bem - disse o sargento.
- Quantos presentes deram a você.
- Voltaremos um dia? - perguntou Bonifácia. Uma vez que seja, a passeio?
- Quem sabe - disse o sargento. - Mas é um pouco longe para vir até aqui a passeio.
- Não chore - disse Bonifácia. - vou lhe escrever e contar tudo o que fizer.
- Desde que saí de Iquitos não tive amigas - disse Lalita. - Desde que era menina. Lá na ilha, as achuales, as huambisas
quase não falavam cristão, e a gente não
se entendia senão em certas coisas. Você foi a minha melhor amiga.
- E você também a minha - disse Bonifácia. Mais que amiga, Lalita. Você e Madre Angélica são o que mais quero aqui. Ande,
não chore.
- Por que você demorou, Aquilino? - perguntou Fushía. - Por que demorou, velho?
- Não pude vir mais depressa, homem, acalme-se disse Aquilino. - O cara me crivava de perguntas, e falava sobre as freiras
e que o doutor, e eu não conseguia convencê-lo.
Mas convenci, Fushía, já está resolvido.
- As freiras? - perguntou Fushía. - Lá também tem freiras?
- São enfermeiras, cuidam de todos - disse Aquilino.
- Me leve para outro lugar, Aquilino - disse Fushía -, não me deixe em San Pablo, não quero morrer lá.
- O cara ficou com todo o dinheiro, mas me prometeu um montão de coisas - disse Aquilino. - Vai conseguir papéis para você,
arranjará tudo para que ninguém saiba
quem é você.
- Você deu a ele tudo o que juntei nestes anos? perguntou Fushía. - Foi para isso tanto sacrifício, tanta luta? Para que
um cara qualquer fique com tudo?
- Tive que ir subindo aos pouquinhos - disse Aquilino. - Primeiro, quinhentos, e não e não, depois mil, e não e não, nem
queria discutir, dizia, a cadeia é mais
cara.
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Também me prometeu que dará a você a melhor comida, os melhores remédios. Que podíamos fazer, Fushía, teria sido pior se
não aceitasse.
Chovia a cântaros e o velho, molhado até os ossos, amaldiçoando o tempo, tirou a lancha do canal a golpes de remo. Já perto
do cais viu silhuetas nuas no alto do
barranco. Gritando, ordenou em huambisa que descessem para ajudá-lo, e eles desapareceram atrás das lupunas que o vento
sacudia, e depois surgiram, avermelhados,
dando pulinhos, escorregando no barro da ladeira. Amarraram a lancha em umas estacas e, chapinhando sob os gotões que salpicavam
em suas costas, levaram Dom Aquilino
para terra, nas mãos. O velho começou a se despir enquanto subia o barranco. Ao chegar no alto, já tirara a camisa e, no
povoado, sem responder aos sinais amistosos
que faziam crianças e mulheres das cabanas, as calças. Assim, só com o chapéu de palha e umas cuecas curtas, atravessou
o mato até a clareira dos cristãos, e ali,
um tanto simiesco e cambaleante, pendurou-se a um parapeito, Pantacha abraçou-o, você está sonhando, e balbuciou fracamente
em seu ouvido, cheio de erva e nem sequer
pode falar, solte-me. Pantacha tinha os olhos atormentados e fiozinhos de baba escorriam de sua boca. Muito agitado, fazia
gestos apontando as cabanas. O velho viu
a shapra no terraço, fosca, imóvel, o pescoço e os braços ocultos por enfiadas de colares e braceletes, a cara muito pintada.
- Fugiram, Dom Aquilino - grunhiu, finalmente, Pantacha, virando os olhos. - E o patrão com raiva, encerrado ali, faz meses,
não quer sair.
- Está na sua cabana? - perguntou o velho. - Solte-me, tenho de falar com ele.
- Quem é você para mandar em mim? - perguntou Fushía. - Vá de novo, que o cara devolva o dinheiro. Me leve para o Santiago,
prefiro morrer entre gente que conheço.
- Temos que esperar até a noite - disse Aquilino.
- Quando todos estiverem dormindo, levarei você até a lancha onde fazem as visitas se lavar, e aí o cara leva você. Não
seja assim, Fushía, agora trate de dormir
um pouco. Ou quer comer algo?
- Assim como você está me tratando, vão me tratar lá - disse Fushía. - Nem me ouve, você decide tudo e eu tenho que obedecer.
É a minha vida, Aquilino, não a sua,
não quero, não me abandone naquele lugar. Tenha um pouco de compaixão, velho, voltemos à ilha.
- Nem querendo podia atender você - disse Aquilino.
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- De sulcada até o Santiago e nos escondendo, são meses de viagem, e não há mais gasolina, nem dinheiro para comprar. Trouxe
você para cá por amizade, para
que morra entre cristãos, e não como um pagão. Ouça o que lhe digo, durma um pouco.
O corpo mal enchia os cobertores que o cobriam até o queixo. O mosquiteiro só protegia meia rede, e reinava uma grande desordem
em volta: latas esparramadas, cascas,
cabaças com restos de masato, de comida. Havia uma horrível pestilência e muitas moscas. O velho tocou no ombro de Fushía,
ele roncou, e então o velho sacudiu-o
com as duas mãos. As pálpebras de Fushía se abriram, duas brasas sanguinolentas pousaram fatigadamente no rosto de Aquilino,
apagaram-se, acenderam-se várias vezes.
Fushía ergueu-se um pouco sobre os cotovelos.
- A chuva me pegou no meio do canal - disse Aquilino. - Estou empapado.
Falava e espremia a camisa e as calças, torcia com força; em seguida, pendurou-as na corda do mosquiteiro. Lá fora continuava
a chover muito forte, uma luz turva
descia às poças e a lama cinza da clareira, o vento investia rugindo contra as árvores. Às vezes, um ziguezague multicolorido
iluminava o céu e, segundos depois,
vinha o trovão.
- Aquela puta se foi com o Nieves - disse Fushía, os olhos fechados. - Aqueles cachorros fugiram juntos, Aquilino.
- E que lhe importa que tenham ido? - perguntou Aquilino, secando o corpo com a mão. - Hum, antes só do que mal-acompanhado.
- Aquela puta não me importa - disse Fushía. Mas fugir com o prático, isso ela tem de me pagar.
Sem abrir os olhos, Fushía virou o rosto, cuspiu, homem, puxou os cobertores até a boca, é melhor que olhasse onde cuspia,
tinha passado raspando.
- Há quantos meses que você não vem? - perguntou Fushía. - Faz séculos que o estou esperando.
- Você tem muita carga? -- perguntou Aquilino. Quantas bolas de caucho? Quantos couros?
- Estamos com azar - disse Fushía. - Só encontramos povoados abandonados. Desta vez não tenho mercadoria.
- Mas você não podia viajar mais, as pernas não agüentavam andar pela mata - disse Aquilino.
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- Morrer entre conhecidos! Pensa que os huambisas iam continuar com você? A qualquer momento se mandariam.
- Eu podia dar ordens da rede - disse Fushía. Jum e Pantacha levariam os huambisas aonde eu mandasse.
- Não se faça de bobo - disse Aquilino. - Odeiam Jum e só não o mataram até agora por sua causa. E o Pantacha está abarrotado
de infusões, mal podia falar quando
o deixamos. Aquilo tinha acabado, homem, perca a esperança.
- Vendeu bastante? - perguntou Fushía. - Quanto dinheiro você trouxe?
- Quinhentos soles - disse Aquilino. - Não vire a cara, o que levei não valia mais, e tive que fazer força para que me dessem
isso. Mas, o que lhe aconteceu? é a
primeira vez que não tem mercadoria.
- A região está queimada - disse Fushía. - Esses cachorros andam prevenidos e se escondem. Irei mais longe, entrarei até
nas cidades, mas vou encontrar caucho.
- Lalita roubou todo o seu dinheiro? - perguntou Aquilino. - Deixaram um pouco para você?
- Que dinheiro? - Fushía segurava os cobertores perto da boca, mais encolhido ainda. - De que dinheiro você fala?
- Do que eu venho lhe trazendo, Fushía - disse o velho. - Do lucro dos seus roubos. Eu sei que você o guarda. Quanto sobrou?
Cinco mil soles? Dez mil?
- Nem você, nem sua mãe, nem ninguém vai tirar o que é meu - disse Fushía.
- Não me faça ter mais pena do que já tenho - disse Aquilino. - E não me olhe assim, seus olhos não me assustam. Em vez
disso, responda ao que estou lhe perguntando.
- Ela devia estar com tanto medo, ou com tanta pressa, que até se esqueceu de me roubar o dinheiro disse Fushía. - Lalita
sabia onde estava guardado.
- Também pode ser que tivesse pena - disse Aquilino. - Teria pensado, está fodido, vai ficar só, vamos deixar-lhe pelo menos
o dinheiro para que se console um pouco.
- Era melhor que aqueles cachorros tivessem me roubado - disse Fushía. - Sem dinheiro, esse cara não teria aceitado. E você,
que tem bom coração, não teria me largado
na mata. Me levaria até de volta à ilha, velho.
- Puxa, até que enfim você está mais calmo - disse Aquilino. - Sabe o que vou fazer? Esmagar umas bananas
e cozinhá-las.
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A partir de amanhã, você comerá como os cristãos, vai se despedir da comida pagã.
O velho riu, atirou-se na rede vazia e começou a se balançar, impelindo-se com um pé.
- Se eu fosse seu inimigo, não estaria aqui - disse.
- Ainda tenho esses quinhentos soles, teria ficado com eles. Tinha certeza de que desta vez você não teria mercadoria.
i A chuva varria o terraço, chicoteava surdamente o teto, o ar quente que vinha de fora levantava o mosquiteiro, mantinha-o
esvoaçando como uma cegonha branca.
- Você não precisa se cobrir tanto - disse Aquilino.
- Já sei que está perdendo a pele das pernas, Fushía.
- Aquela puta contou a você dos pernilongos? murmurou Fushía. - Me cocei e infeccionaram, mas já está passando. Eles pensam
que não irei buscá-los porque estou assim.
Vamos ver quem ri por último, Aquilino.
- Não mude de conversa - disse Aquilino. - É verdade que você está se curando?
- Me dê um pouquinho mais, velho - disse Fushía.
- Ainda tem?
- Tome o meu, não quero mais - disse Aquilino. -- Eu também gosto. Nisso sou como um huambisa, todas as manhãs, quando acordo,
esmago umas bananas e cozinho.
- vou sentir saudade da ilha, mais que de Campo Grande, mais que de Iquitos - disse Fushía. - Parece que a ilha é a única
pátria que eu tive. Até dos huambisas vou
sentir falta, Aquilino.
- Você vai sentir falta de todos, mas não do seu filho
- disse Aquilino. - É só dele que você não fala. Não se importa que Lalita o tenha levado?
- Talvez não fosse meu filho - disse Fushía. Talvez a cadela. . .
- Cale-se, cale-se, faz anos que conheço você, e é muito difícil que me engane - disse Aquilino. - Diga a verdade, estão
sarando ou estão pior que antes?
- Não me fale nesse tom - disse Fushía. - Não permito, merda.
Sua voz, sem convicção, extinguiu-se numa espécie de uivo. Aquilino levantou-se da rede, foi até ele, e Fushía cobriu a
cara: era um volumezinho tímido e amorfo.
- Não tenha vergonha de mim, homem - sussurrou o velho. - Deixe-me ver.
Fushía não respondeu, Aquilino pegou uma ponta do cobertor e levantou-o. Fushía estava sem as botas,
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o velho ficou olhando, a mão incrustada como uma garra no cobertor, a testa pregueada de rugas, a boca aberta.
- Sinto muito, mas já é hora, Fushía - disse Aquilino. - Temos de ir.
- Um pouquinho mais, velho - gemeu Fushía. Olhe, acenda um cigarro para mim, fumo e você me leva até esse cara. Só dez minutos,
Aquilino.
- Mas fume rápido - disse o velho. - Ele deve estar esperando.
- Olhe tudo de uma vez - gemeu Fushía, sob o cobertor. - Nem eu me acostumo, velho. Olhe mais em cima.
As pernas se dobraram e, ao se esticarem, os cobertores caíram no chão. Agora Aquilino podia ver, também as coxas translúcidas,
as virilhas, o púbis pelado, o pequeno
gancho de carne que tinha sido o sexo, e o ventre: ali a pele estava intacta. O velho se abaixou precipitadamente, pegou
os cobertores, cobriu a rede.
- Está vendo? - soluçou Fushía. - Nem homem sou mais, Aquilino.
- Também prometeu que dará cigarros quando você quiser - disse Aquilino. - Já sabe, quando tiver vontade de fumar, peça
a ele.
- Gostaria de morrer agora mesmo - disse Fushía -, sem sentir, de repente. Você me enrolaria num cobertor e me penduraria
numa árvore, como fazem com os huambisas.
Só que ninguém choraria por mim todas as manhãs. De que é que você está rindo?
- Porque você faz que está fumando, para que o cigarro dure mais e o tempo passe - disse Aquilino. - Que é que adianta,
se de qualquer maneira nós vamos até lá,
que diferença faz para você dois minutos mais ou menos, homem?
- Como é que vou viajar até lá, Aquilino? - perguntou Fushía. - É muito longe.
- É melhor morrer lá - disse o velho. - Lá cuidarão de você e a doença não continuará aumentando. Conheço um cara, com o
dinheiro que você tem, ele o receberá sem
pedir papéis nem nada.
- Não chegaremos, velho, me pegarão no rio.
- Prometo a você que chegaremos - disse Aquilino.
- Ainda que seja viajando só de noite, procurando os canais. Mas é preciso partir hoje mesmo, sem que o Pantacha nos veja,
nem os pagãos. Ninguém pode saber, só
assim você estará seguro lá.
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- A polícia, os soldados, velho - disse Fushía. Não vê que todos estão me procurando? Não posso sair daqui. Há muita gente
que quer se vingar de mim.
- San Pablo é um lugar onde nunca irão buscar você
- disse o velho. - Ainda que soubessem que você está lá, não iriam. Mas ninguém saberá.
- Velho, velho - soluçou Fushía. - Você é bom, estou pedindo, você acredita em Deus? Faça isso por Deus, Aquilino, você
tem de me compreender.
- Claro que compreendo, Fushía - disse o velho, levantando-se. - Mas faz pouco que escureceu, tenho de levá-lo logo, ele
vai se cansar de esperar.
É noite outra vez, a terra é fofa, os pés se afundam até os tornozelos e são sempre os mesmos lugares: a ribeira, o sendeiro
que se afina entre as chácaras, um bosquezinho
de algarobeiras, o areai. Tu, por aqui, Tonita, por ali não, alguém pode ver-nos de Castilla. A areia cai sem misericórdia,
cobre-a com a manta, põe nela teu chapéu,
baixe sua cabecinha se não quer que lhe arda o rosto. Os mesmos ruídos: o rumor do vento nos algodoais, música de violão,
cantos, gritos e, ao alvorecer, os profundos
mugidos das reses. Tu, vem, Tonita, sentemo-nos aqui, descansarão um pouco e continuarão passeando. As mesmas imagens: uma
cúpula negra, estrelas que piscam, brilham
fixas ou se apagam, o deserto de pregas e dunas azuis e, ao longe, a construção ereta, solitária, suas lívidas luzes, sombras
que saem, sombras que entram e, às
vezes, na madrugada, um cavaleiro, uns peões, um rebanho de cabras, a lancha de Carlos Rojas e, na outra margem do rio,
as portas cinzentas do Camal. Fala-lhe do
amanhecer, tu, estás me ouvindo, Tonita? adormeceste? como se podem ver os campanários, os telhados, os balcões, se choverá
e se há neblina. Pergunta-lhe se sente
frio, se quer voltar, abriga-lhe as pernas com teu casaco, que se apoie em teu ombro. E então, de novo, o alvoroço intempestivo,
o estranho galope dessa noite,
o sobressalto do seu corpo. Levanta-te, olha, quem corre? um desafio? Chápiro, Dom Eusébio, os gêmeos Temple? Tu, escondamo-nos,
agachemo-nos, não te mexas, não
te assustes, são dois cavalos e então, na escuridão, quem, por quê, como. Tu, passaram perto e em cavalos xucros, que gente
louca, vão até o rio, agora voltam, não
tenhas medo, menina, e então seu rosto girando, interrogando, sua ansiedade, o tremor de sua boca,
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suas unhas como com espinhos, e sua mão por quê, como, e sua respiração junto à tua. Agora acalma-a, tu, eu te explico,
Tonita, já se foram, iam tão depressa,
nem pude ver suas caras e ela insistente, ansiosa, explorando na negrura, quem, por quê, como. Tu, não fiques assim, quem
podia ser, que importa, que bobinha. Uma
brincadeira para distraí-la: enfia-te debaixo da manta, esconde-te, deixa que te cubra, aí vêm, são muitos, se nos vêem
nos matam, sente sua agitação, sua fúria,
seu terror, que se aproxime, que te abrace, que se afunde em ti, tu, mais. Tonita, chega-te mais, e diz-lhe agora que é
mentira, não vem ninguém, me dá um beijo,
te enganei, menina. E hoje não lhe fales, escuta-a a teu lado, sua silhueta é um barco, o areal, um mar, ela navega, tranqüilamente
evita dunas e arbustos, não a
interrompas, não pises na sombra que projeta. Acende um cigarro e fuma, pensa que és feliz e que darias qualquer coisa para
saber se ela é feliz também. Fala com
ela e brinca, tu, estou fumando, ensinarás a ela quando crescer, as crianças não fumam, se engasgaria, ri, que se ria, roga-lhe,
tu, não fique sempre tão séria.
Tonita, eu te suplico. E então, de novo, a incerteza, esse ácido que destrói a vida, tu, já sei, se aborrece muito, as mesmas
vozes, a clausura, mas espera, falta
pouco, viajarão para Lima, uma casa só para os dois, não será preciso esconder-se, comprarás tudo para ela, verás, Tonita,
verás. Sente outra vez essa amarga emoção,
tu nunca te zangas, menina, que seja diferente, que se zangue uma vez, que quebre as coisas, chore gritando, e então, ausente,
igual a expressão de seu rosto, o
suave latejar de suas fontes, suas pálpebras caídas, o segredo de seus lábios. Agora só recordações e um pouco de melancolia,
tu, por isso te mimam tanto, como se
portaram, não disseram nada, te trazem doces, te vestem, te penteiam, parecem outras, entre elas brigam tanto, quanta maldade,
contigo são tão boas e tão prestativas.
Diz-lhes eu a trouxe, eu a roubei, que a amas, vai viver contigo, têm que te ajudar e então, de novo, sua excitação, seus
protestos, nós lhe juramos, prometemos,
corresponderemos à sua confiança, seus cochichos, sua agitação, olha-as, comovidas, curiosas, risonhas, sente seu desespero,
para subir à torre, para vê-la e falar-lhe.
E outra vez ela, e tu, todas gostam de ti, porque és jovem? porque não falas, porque têm pena? E então, nessa noite, o rio
flui sombriamente e na cidade não restam
luzes, a lua ilumina o deserto, as plantações são manchas apagadas e ela está longe e desamparada. Chama-a, pergunta-lhe,
Tonita, me ouves? o que estás
sentindo?
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por que tua mão puxa assim, será que se assustou com a areia que cai tão forte? Tu, vem, Tonita, abriga-te, vai passar logo,
pensas que vai nos cobrir, que
vai nos enterrar vivos? por que tremes, o que sentes, te falta ar? queres voltar? não respires assim. E não entendias, tu,
sou tão burro, que terrível não compreender,
menina, não saber nunca o que te acontece, não adivinhar. E então, de novo, teu coração como um manancial, e as perguntas,
seu bater, como imaginas que sou, como
as mulheres, e as caras e o chão que pisas, de onde sai o que ouves, como és tu, que significam essas vozes, pensas que
todos são como tu? que ouvimos e não respondemos?
que alguém nos dá comida, deitanos e nos ajuda a subir a escada? Tonita, Tonita, que sentes por mim? sabes o que é o amor?
por que me beijas? Faz um esforço agora,
não lhe transmitas tua angústia, baixa a voz e suavemente diz, a ela não importa, meus sentimentos são teus sentimentos,
queres sofrer quando ela sofrer. Que esqueça
esses ruídos, tu, nunca mais, Tonita, fiquei nervoso, conta-lhe coisas da cidade, da pobre gallinaza que chora suas penas,
do burrinho e das cestas, e do que diz
a gente no La Estrella del Norte, tu, todos perguntam, Tonita, te procuram, estão de luto, coitadinha, será que a mataram?
um forasteiro a teria roubado? o que inventam,
suas mentiras, suas murmurações. Pergunta-lhe se ela se lembra, gostaria de voltar à praça? tomar sol junto ao coreto? se
sente falta da gallinaza, tu, gostarias
de vê-la de novo? nós a levamos para Lima? Mas ela não pode ou não quer ouvir, algo a isola, atormenta-a e então, sempre,
sua mão, seu tremor, seu espanto, tu, o
que é, está te doendo? queres que te massageie? Faz sua vontade, toca onde ela te indica, não apertes muito, examina seu
ventre, acaricia o mesmo lugar, dez vezes,
cem vezes, e agora já sei, está doendo, a comida, queres fazer pipi? ajuda-a, cocôzinho? que se agache, que não se preocupe,
tu serás seu abrigo, abre a manta, interrompe
a chuva sobre sua cabeça, que a areia a deixe em paz. Mas é em vão, e agora suas faces estão úmidas, aumentou o susto em
seu corpo, a crispação de seu rosto e saber
se está chorando e não adivinhar é terrível, Tonita, que podes fazer, que quer que faças. Leva-a em teus braços, corre,
beija-a, tu, já chegamos, está bem perto,
ela tomará um mate, tu a porás na cama e amanhã despertará boa, e que não chore, que por Deus não chore. Chama a Angélica
Mercedes, que a cure, ela, é uma eólica,
patrão, tu, um chá quente? umas ventosas? ela, não é nada grave, não se assuste, tu, erva-doce? macela? e sua
mão aí,
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apalpando, acariciando o mesmo lugar, e que burro, que burro, não entendias. E então, as mulheres, seu regozijo, seus corpos que entulham a torre, seus cheiros,
cremes, talco, vaselina, seus gritos e pulos, o patrão não entendeu, que inocente, que ingênuo. Olha para elas, amontoadas, vê, cercam-na, agradam-na e lhe dizem
coisas. Deixa que a entretenham e desce ao salão, abre uma garrafa, atira-te numa poltrona, brinda por ti, sente a confusa emoção, alvoroçada, fecha os olhos e tenta
ouvi-las: pelo menos duas, a Mariposa, três, a Luciérnaga, quatro, e puxa, como é bobo, patrão, por que pensava que as regras dela não vinham? quando é que pararam,
patrão? assim saberemos certinho. Sente o álcool, sua mitigada efervescência que afrouxa as pernas e o remorso, e como afasta as aflições, e tu, nunca fiz a conta.
Que importância tinha, que te importa que nasça amanhã ou dentro de oito meses, a Tonita engordará, e depois isso a fará contente. Ajoelha-te junto à sua cama, tu,
não era nada, festejemos, tu o mimarás, mudarás fraldas, e se for mulherzinha que se pareça com ela. E que elas vão à loja de Dom Eusébio, amanhã mesmo, que comprem
tudo o que for preciso e certamente os empregados vão gozá-las, quem vai parir? e de quem? e se for machinho que se chame Anselmo. Vai à Gallinacera, procura os
carpinteiros, que tragam tábuas, pregos e martelos, que construam um quartinho, inventa-lhes qualquer história. Tonita, Tonita, tens desejos, vômitos, mau humor,
sê como as outras, podes tocá-lo? Já se mexe? E uma última vez pergunta-te se foi melhor ou pior, se a vida deve ser assim, e o que teria acontecido se ela não,
se tu e ela, se foi um sonho ou se as coisas são sempre diferentes dos sonhos, e ainda um esforço final, e pergunta-te se alguma vez te resignaste, e se é porque
ela morreu ou porque és velho que estás tão conformado com a idéia de tu mesmo morreres.
- Você vai esperá-lo, Selvática? - perguntou a Chunga. - Talvez esteja com outra mulher.
- Quem é? - perguntou o harpista, seus olhos brancos voltados para a escada. - Sandra?
- Não, maestro - disse o Bolas. - Aquela que começou anteontem.
- Ficou de me buscar, senhora, mas talvez tenha se esquecido - disse a Selvática. - Irei assim mesmo.
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- Primeiro tome o café, moça - disse o harpista. Ande, Chunguita, convide-a.
- Sim, claro, traga uma xícara - disse a Chunga.
- A leiteira tem leite quente.
Os músicos tomavam café numa mesa próxima ao balcão, à luz da lâmpada violeta, a única que permanecia acesa. A Selvática sentou-se entre o Bolas e o Joven Alejandro:
até agora quase não tinham ouvido sua voz, que caladinha que era; todas as mulheres eram assim em sua terra? Pelas janelas via-se a favela, às escuras, e no alto
três estrelas débeis, as Três-Marias? Não, senhora, falam muito, pareciam papagaios. O harpista mordiscava uma fatia de pão, papagaios? e ela, sim, um pássaro que
havia em sua terra, e ele parou de mastigar, como, moça? não nascera em Piura? Não, senhor, era de muito longe, da selva. Não sabia onde nascera, mas vivera sempre
num lugar que se chama Santa Maria de Nieva. Pequena, senhor, sem carros nem edifícios, nem cinemas como em Piura, conhecia? O harpista continuou mastigando, a selva?
papagaios? a cabeça levantada, surpresa, e logo pôs os óculos, rapidamente, moça: já esquecera que isso existia. À margem de que rio estava Santa Maria de Nieva?
perto de Iquitos? longe? a selva, que estranho. Idênticas e contínuas, ao sair da boca do Joven, as rodelas de fumaça cresciam, deformavam-se, desvaneciam-se sobre
a pista de danças. Ele também teria gostado de conhecer a Amazônia, escutar a música dos selvagens. Não se parecia em nada com a piurana, não é verdade? Em nada,
senhor, os de lá cantavam pouco, e seus cantos não eram alegres como a marinera ou a valsa, eram mais tristes, e tão estranhos. Mas o Joven gostava de música triste.
E como eram as letras de suas canções? Muito poéticas? Porque ela devia entender o idioma deles, não? Não, ela não falava o idioma deles, e baixou os olhos, dos
selvagens, gaguejou, uma ou outra palavrinha apenas, de tanto ouvi-los, sabe? Mas que não pensasse, lá havia brancos também, muitos, e quase não se vêem selvagens,
porque ficam na mata.
- E como você foi cair nas mãos desse? - perguntou a Chunga. - Que foi que viu no pobre-diabo do Josefino ?
- Isso não interessa, Chunga - disse o Joven. São coisas do amor, e o amor não entende razões. Nem aceita perguntas, nem dá respostas, como dizia o poeta.
- Não se assuste - riu a Chunga. - Perguntava por perguntar, de
brincadeira.
319
Eu pouco me importo com a vida dos outros, Selvática.
- Que é que há, maestro? Por que ficou tão pensativo? - perguntou o Bolas. - Está esfriando o seu leite.
- O seu também, senhorita - disse o Joven. Tome-o logo. Quer mais pão?
- Até quando você vai tratar de senhora as mulheres da vida? - perguntou o Bolas. - Que engraçadinho que você é, Joven.
- Trato todas as mulheres igual - disse o Joven.
- Mulheres da vida ou freiras, para mim não há diferença, respeito-as do mesmo modo.
- E então por que você as insulta tanto em' suas canções? - perguntou a Chunga. - Você parece um compositor veado.
- Não insulto, canto verdades - disse o Joven. E sorriu levemente, lançando uma última rodela de fumaça, branca e perfeita.
A Selvática pôs-se em pé, senhora, tinha bastante sono, já ia embora, e muito obrigada pelo café, mas o harpista agarrou-a pelo braço, moça, sacudiu-a, que esperasse.
Ia à casa do invencível, ali, pela Plaza Merino? Eles a levariam, e que o Bolas fosse buscar um táxi, ele também estava com sono. O Bolas levantou-se, saiu à rua,
e um resto de ar fresco veio até a mesa ao se fechar a porta: a favela continuava às escuras. Viam como era caprichoso o céu de Piura? Ontem, a estas horas, o sol
estava alto e abrasador, não caía areia e as choças pareciam lavadas. E hoje, a noite preguiçosa não ia embora, como se fosse ficar ali para sempre, e o Joven apontou
com a mão o quadradinho do céu recortado na janela: ele, por seu gosto, feliz, mas muitos não gostavam. A Chunga bateu na sua testa: as coisas que o preocupavam,
que cara doido. Eram seis? A Selvática cruzou as pernas e apoiou os cotovelos na mesa, na selva amanhecia cedinho, a estas horas todo mundo estava acordado, e o
harpista, sim, sim, o céu ficava vermelho, verde, azul, de todas as cores, e a Chunga, como? e o Joven, como, maestro, conhecia a selva? Não, coisas que imaginava,
e se sobrava leite na leiteira tomaria com prazer. A Selvática serviu-o e pôs açúcar, a Chunga olhava o harpista com desconfiança e agora sua expressão era carrancuda.
O Joven acendeu outro cigarro e, de novo, transparentes, efêmeras, flutuantes, umas rodelas cinzentas saíam de sua boca em direção ao quadradinho negro da janela,
alcançavam-se a meio caminho,
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e a ele acontecia o contrário que a outras pessoas com aquela história da luz, misturavam-se e eram como nuvenzinhas, uns ficavam contentes e otimistas com o sol
e
a noite os entristecia, e, por fim, adelgaçavam-se tanto que se tornavam invisíveis, mas ele, em contrapartida, de dia se sentia amargo e só ao anoitecer se levantava
o seu espírito. É que eles eram noctívagos, Joven, como as raposas e as corujas: a Chunguita, o Bolas, ele e agora ela também, moça, e ouviram bater à porta. Na
entrada, o Bolas segurava Josefino pela cintura, que vissem quem encontrara, a Selvática levantou-se, falando sozinho, na estrada.
- Que boa vida você leva, Josefino - disse a Chunga. - Está caindo de bêbado.
- bom dia, rapaz - disse o harpista. - Pensávamos que não viria mais buscá-la. Nós íamos levá-la conosco.
- Não adianta falar, maestro - disse o Joven. Está nas últimas.
A Selvática e o Bolas trouxeram-no à mesa, e Josefino, não estava nas últimas, que sacanagem, o último gole quem pagava era ele, que ninguém saísse, e que a Chunguita
trouxesse uma cervejinha. O harpista se punha de pé, rapaz, agradecia a sua intenção, mas era tarde e o táxi estava esperando. Josefino fazia caretas, eufórico,
iam se enferrujar todos, gritão, tomando leite, alimento de crianças, e a Chunga, sim, está bem, até logo, que o levassem. Saíram, e em direção ao Quartel Grau já
apontava uma estria azul horizontal e, na favela, sonolentas silhuetas movimentavam-se atrás da cana-brava, ouvia-se o crepitar de um braseiro, e o ar conduzia cheiros
rançosos. Atravessaram o areal, o harpista levado nos braços pelo Bolas e o Joven, Josefino apoiado na Selvática e, na estrada, entraram todos num táxi, os músicos
no banco de trás, Josefino ria, a Selvática estava enciumada, velho, dizia por que você bebe tanto, e onde você esteve, e com quem? queria fazê-lo confessar, harpista.
- Bem feito, moça - disse o harpista. - Os mangaches são o pior que há, nunca se fie neles.
- Que é? - disse Josefino. - Quer se fazer de esperto? Que é? Não toque nela, companheiro, pode correr sangue, companheiro, que é?
- Eu não me meto com ninguém - disse o chofer.
- Não tenho culpa se o carro é estreito. Por acaso toquei na senhorita? Eu faço meu trabalho, não procuro problemas.
Josefino riu com a boca aberta, não entendia as brincadeiras, companheiro, às gargalhadas, que tocasse nela se
desejasse,
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tinha o seu consentimento, e o chofer riu também, senhor: tinha acreditado de verdade. Josefino virou-se para os músicos, era o aniversário do Mono,
que viessem com eles, comemorariam juntos, os León gostavam tanto dele, velho. Mas o maestro estava cansado, tinha de descansar, Josefino, e o Bolas deu um tapinha
nele, Josefino lamentava, lamentava e bocejou e fechou os olhos. O táxi passou na frente da catedral e os lampiões da Plaza de Armas já estavam apagados. As silhuetas
terrosas dos tamarindeiros cercavam austeramente o coreto circular, de teto curvo, como o de um guarda-chuva, e a Selvática, que não fosse assim mau, tanto que lhe
tinha pedido. Verdes, grandes, assustados, seus olhos buscavam os de Josefino, é ele estendeu zombeteiramente a mão, era mau, comia-os crus e de uma abocanhada.
Teve um acesso de riso, o chofer olhou-o de viés: baixava pela Calle Lima, entre La Industria e as grades da prefeitura. Ela não queria, mas o Mono fez ontem cem
anos, e a estava esperando, e os León eram seus irmãos, e ele fazia a vontade dela em tudo.
- Não incomode a moça, Josefino - disse o harpista. - Deve estar cansada, deixe-a quieta.
- Não quer ir para minha casa, harpista - disse Josefino. - Não quer ver os invencíveis. Diz que tem vergonha, imagine. Pare, companheiro, ficamos aqui.
O táxi freou, a Calle Tacna e a Plaza Merino estavam às escuras, mas a Avenida Sánchez Cerro brilhava com os faróis de uma caravana de caminhões que ia em direção
ao Viejo Puente. Josefino desceu de um salto, a Selvática não se mexeu, começaram a se puxar, e o harpista, não briguem, rapazes, façam as pazes, e Josefino, que
viessem todos, e o chofer também, o Mono estava velhíssimo, fazia mil anos. Mas o Bolas deu uma ordem ao chofer e ele partiu. Agora, também, a avenida estava no
escuro e os caminhões eram umas piscadelas vermelhas e rugidoras afastando-se em direção ao rio. Josefino começou a assoviar entre dentes, pegou a Selvática pelos
ombros e ela agora não oferecia qualquer resistência, caminhava a seu lado muito tranqüila. Josefino abriu a porta, fechou-a atrás deles e, dobrado em uma poltrona,
a cabeça sob um abajur, estava o Mono, roncando. Um cheiro picante errava pelo quarto, sobre garrafas vazias, taças, guimbas e restos de comida. Estavam entregues,
eram esses os mangaches? Josefino dava pulos, os invencíveis mangaches? e uma voz incoerente saiu do quarto vizinho: José se deitara em sua cama, matava-o. O Mono
levantou-se sacudindo a cabeça.
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Quem, merda, se entregara, e sorriu, e brilharam seus olhos, mas, meu Deus, e aflautou a voz, quem estava aqui, e levantou-se, mas há quanto
tempo, e caminhou tropeçando, mas que prazer vê-la, primínha, afastando as cadeiras com as mãos, as garrafas do chão com os pés, com a vontade que tinha de vê-la
de novo, e Josefino, cumpro ou não cumpro? sua palavra valia ou não valia tanto quanto a de um mangache? Os braços abertos, despenteado, um largo sorriso na boca,
o Mono avançava sinuosamente, tanto tempo e, além disso, que bonitona estava, e por que fugia, priminha, tinha que felicitá-lo, não sabia que era seu aniversário?
- É verdade, faz um milhão de anos - disse Josefino. - Chega de manha, Selvática, dê um abraço nele.
Deixou-se cair numa poltrona, agarrou uma garrafa e a levou à boca, e bebeu, e a bofetada ressoou como um pedregulho na água, priminha má, Josefino riu, o Mono se
deixou esbofetear outra vez, priminha má, e agora ela ia de um lado para outro, quebravam taças, o Mono atrás dela, escorregando e rindo, e no quarto vizinho, eram
os invencíveis, não sabiam trabalhar, só mamar, e a voz de José se perdia, e Josefino cantarolava também, enroscado sob o abajur, a garrafa escapava de sua mão devagarzínho.
Agora, a Selvática e o Mono estavam parados, num canto, e ela seguia esbofeteando-o, priminha má, priminha má, doía de verdade, por que batia nele? e ria, era melhor
que o beijasse, e ela também ria das palhaçadas do Mono, e até o invisível José ria, priminha bonita.
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EPÍLOGO

O governador dá três suaves toques com os nós dos dedos, a porta da residência se abre: o rosto vermelho de Madre Griselda teima em sorrir para Júlio Reátegui,
mas seus olhos desviam-se cheios de susto em direção à Plaza de Santa Maria de Nieva, e sua boca treme. O governador entra, a menina segue-o docilmente. Caminham
por um corredor sombreado até o gabinete da superiora, e o vozerio do povoado é agora apagado e distante, como o bulício dos domingos, quando as pupilas vão ao rio.
No gabinete, o governador se deixa cair em uma das cadeiras de lona. Suspira com alívio, fecha os olhos. A menina permanece na porta, a cabeça baixa, mas, um pouco
depois, ao entrar a superiora, corre para Júlio Reátegui, madre, que se levantou: bom dia. A superiora responde com um sorriso glacial, indica-lhe com a mão que
volte a sentar, e ela fica de pé, ao lado da escrivaninha. Tivera pena de vê-la feito uma selvagenzinha em Urakusa, madre, com os olhos inteligentes que tinha,
Júlio Reátegui pensava que na missão poderiam educá-la, fizera bem? Muito bem, Dom Júlio, e a superiora fala como sorri, fria e distante, sem olhar a menina: para
isso elas estavam aqui. Não entendia nada de espanhol, madre, mas aprenderia logo, era muito esperta e não dera nenhum trabalho em toda a viagem. A superiora escuta-o
com atenção, tão imóvel como o crucifixo de madeira cravado na parede, e, quando Júlio Reátegui se cala, ela não concorda, nem pergunta, espera, com as mãos enlaçadas
sobre o hábito e a boca levemente franzida, madre: então ele a deixava. Júlio Reátegui fica de pé, precisava ir agora, e sorri para a superiora. Fora muito difícil
tudo isso, muito duro, tiveram chuvas e problemas de toda ordem,
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e ainda não podia ir dormir como gostaria, os amigos prepararam um almoço e, se não fosse, se ofenderiam, o pessoal era tão sensível. A superiora
estende a mão e, nesse instante, o ruído aumenta de volume, ressoa muito próximo por uns segundos, como se exclamações e gritos não subissem da praça mas estalassem
na horta, na capela. Logo diminui, e continua como antes, moderado, difuso, inofensivo, e a superiora pisca uma vez, pára antes de chegar à porta, volta-se para
o governador, Dom Júlio, sem sorrir, pálida, os lábios úmidos: o senhor levaria em conta o que fazia por esta menina, a voz aflita, ela só queria lembrar-lhe que
um cristão deve saber perdoar. Júlio Reátegui concorda, baixa um pouco a cabeça, cruza os braços, sua posição é, ao mesmo tempo, grave, mansa e solene, Dom Júlio:
que o fizesse por Deus. A superiora fala agora com veemência, e também por sua família, e suas faces se afoguearam, Dom Júlio, por sua esposa, que era tão boa e
tão piedosa. O governador concorda de novo, não era por acaso um pobre homem, um infeliz? o rosto cada vez mais preocupado, por acaso fora
educado? sua mão esquerda
acariciava reflexivamente a face, sabia o que fazia? e brotaram umas rugas em sua testa. A menina olha-as de viés, entre os cabelos brilham seus olhos, assustadiços,
verdes e selvagens: ele sentia mais que ninguém, madre. O governador fala, sem levantar a voz, era algo que contrariava sua natureza e suas idéias, com certa tristeza,
mas não se tratava dele, que já estava saindo de Santa Maria de Nieva, mas daqueles que ficavam, madre, de Benzas, de Escabino, de Aguila, dela, das pupilas e da
missão: não queria que esta fosse uma terra habitável, madre? Mas um cristão tem outras armas para corrigir as injustiças, Dom Júlio, ela sabia que ele tinha bons
sentimentos, não podia estar de acordo com aqueles métodos. Que tratasse de fazê-los voltar à razão, aqui todos lhe obedeciam, que não fizessem aquilo com o infeliz.
Ia decepcioná-la, madre, sentia muito, mas ele também achava que era a única maneira. Outras armas? As dos missionários, madre? Há quantos séculos estavam aqui?
Quanto se progredira com aquelas armas? Só tratavam de evitar futuras queixas, madre, aquele criminoso e sua gente espancaram barbaramente um cabo de Borja, assassinaram
um recruta, lograram Dom Pedro Escabino e, de repente, a superiora, não, nega com raiva, não, não, eleva a voz: a vingança não é humana, é coisa de selvagens, e
isso é o que estavam fazendo eles com o infeliz.
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Por que não julgá-lo? Por que não pô-lo na cadeia? Não via que era horrível, que não podiam tratar assim um ser humano? Não era vingança, nem
sequer um castigo, madre, e Júlio Reátegui baixa a voz e acaricia, com a ponta dos dedos, os cabelos sujos da menina: tratavam de prevenir. Ficava triste por ir
daqui deixando essa má recordação na missão, madre, mas era necessário, pelo bem de todos. Ele tinha amor por Santa Maria de Nieva, a administração fizera com que
se descuidasse de seus assuntos, perdera dinheiro, mas não se arrependia, madre, não era verdade que fizera o povoado progredir? Agora havia autoridades, logo se
instalaria ali um posto da Guarda Civil, o povo viveria em paz, madre: não podiam perder isso. A missão era a primeira a agradecer pelo que fizera por Santa Maria
de Nieva, Dom Júlio, mas que cristão podia compreender que matassem um pobre infeliz? Que culpa tinha ele que ninguém lhe ensinasse o que era bom e o que era mau?
Não vão matá-lo, madre, nem o poriam na cadeia, não duvidava que ele também preferia isso a que o prendessem. Não tinham ódio dele, madre, só queriam que os aguarunas
aprendessem isso, o que era bom e o que era mau, e se só entendiam assim, não era culpa deles, madre. Ficam em silêncio, por uns segundos, logo o governador dá
a mão à superiora, sai, e a menina o segue, mas, mal dá uns passos, a superiora pega-a pelo braço e ela não trata de se livrar, mas baixa a cabeça, Dom Júlio, tinha
nome? porque era preciso batizá-la. A menina, madre? Não sabia, de qualquer modo não teria um nome cristão, que elas lhe dessem um. Faz uma reverência, sai da residência,
atravessa a passos largos o pátio da missão e desce rapidamente. Ao chegar à praça, olha para Jum: as mãos atadas sobre a cabeça, pendurado das capironas como uma
chumbada, e, entre seus pés suspensos no vazio e as cabeças dos curiosos, há um metro de luz. Benzas, Aguila, Escabino já não estão ali, só o Cabo Roberto Delgado,
uns soldados, e aguarunas velhos e jovens, reunidos num grupo compacto. O cabo já não vocifera, Jum está calado também. Júlio Reátegui observa o cais: as lanchas
balançam vazias, já terminaram de descarregar. O sol é cruel, vertical, de um amarelo quase branco. Reátegui dá uns passos em direção à sede do governo, mas ao passar
diante das capironas pára, e volta a olhar. Suas duas mãos alongam a pala do capacete e, ainda assim, os raios fortes cravam-se nos seus olhos. Só se vê sua boca,
está desmaiado? que parece aberta,
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ele o vê? vai gritar piruanos outra vez? vai insultar o cabo de novo? Não, não grita nada, talvez nem esteja com a boca aberta. A posição em que está fez sumir
seu estômago e crescer seu corpo, parecia um homem magro e alto, não o pagão fortudo e gorducho que é. Algo estranho escorre dele, assim como está, quieto e aéreo,
convertido pelo sol numa esbelta forma incandescente. Reátegui continua andando, entra na sede do governo, a névoa adensa o ar, tosse, aperta algumas mãos, abraça
e o abraçam. Ouvem-se brincadeiras e risos, alguém põe em suas mãos um copo de cerveja. Bebe-o de um gole e senta-se. À sua volta há diálogos, cristãos que suam,
Dom Júlio, sentiriam falta dele, iam sentir saudades. Ele também, muita, mas já era tempo que voltasse a se ocupar de suas coisas, descuidara-se de tudo, das plantações,
da serraria, do hotelzinho de Iquitos. Aqui perdera dinheiro, amigos, e também envelhecera. Não gostava de política, seu elemento era o trabalho. Mãos solícitas
enchem seu copo, dão tapinhas, recebem seu capacete, Dom Júlio, toda a gente viera cumprimentá-lo, até os que viviam do outro lado do pongo. Estava cansado, Arévalo,
há duas noites não dormia e doíam-lhe todos os ossos. Seca a testa, o pescoço, as faces. Aos poucos, Manuel Aguila e Pedro Escabino afastam-se e, entre os dois corpos,
aparece a redinha metálica da janela, à distância, as capironas na praça. Os curiosos ainda estão ali, ou o calor já os afugentou? Não se vê Jum, seu corpo terroso
dissolveu-se em jorros de luz ou se confunde com a acobreada casca dos troncos, amigos: que não morresse. Para que fosse um bom castigo, o pagão tinha que voltar
a Urakusa e contar aos outros o que lhe acontecera. Não morreria, Dom Júlio, até que faria bem a ele tomar um banho de sol: Manuel Aguila? Que não deixasse de pagar
sua mercadoria, Dom Pedro, para que não dissesse que houve abusos; só tinham posto as coisas no seu lugar. Por certo, Dom Júlio, ele pagaria a diferença àqueles
vigaristas, e Escabino, a única coisa que pedia era poder continuar o comércio com eles, como antes. Garantia que o tal Dom Fábio Cuesta era homem de confiança,
Dom Júlio? perguntou Arévalo Benzas. Se não fosse, não teria feito com que o nomeassem. Fazia anos que trabalhava com ele, Arévalo. Um homem algo apático, mas
leal e serviçal como poucos, eles se dariam muito bem com Dom Fábio, assegurava. Tomara que não haja mais problemas, uma coisa horrorosa o tempo que se perdia,
e Júlio Reátegui já estava melhor, amigos: quando entrou sentiu-se
tonto.
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Não seria fome, Dom Júlio? Melhor ir almoçar logo, o Capitão Quiroga os esperava. E, a propósito, que tipo de gente era aquele capitão, Dom Júlio? Tinha suas
fraquezas, como qualquer ser humano, Dom Pedro: mas, afinal, gente boa.
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- Há mais de um ano que você não vem - grita Fushía.
- Não ouço - diz Aquilino, a mão na orelha, como uma buzina; seus olhos vagam sobre as copas entreveradas das juçaras e das capanahuas, ou, furtivos e temerosos,
perscrutam as cabanas que aparecem atrás de um muro de samambaias, no fundo do caminho. - Que é que você está dizendo, Fushía?
- Que há mais de um ano - grita Fushía. - Há mais de um ano que você não vem, Aquilino.
Dessa vez o velho concorda, e seus olhos, cobertos de remelas, pousam em Fushía por um instante. Logo voltam a errar pela água lodosa da margem, as árvores, os meandros
do caminho, o mato: não fazia tanto, homem, só uns meses. Das cabanas não vem ruído algum, e tudo parece deserto, mas ele não confiava, Fushía, e se aparecessem
como daquela vez, ululantes, pelados, e impedissem o caminho, e corressem para ele e tivesse que se lançar à água? Garantido que não viriam, Fushía?
- Um ano e uma semana - diz Fushía. - Conto todos os dias. Na hora em que você sair, começo a contar de novo, a primeira coisa que faço, a cada manhã, são os risquinhos.
No começo não podia, agora manejo o pé como se fosse a mão, agarro o palito com os dedos. Quer ver, Aquilino?
O pé bom avança, esfrega a areia, escava um montinho de pedras, os dois dedos intactos se separam como a tenaz de um escorpião, fecham-se sobre uma pedrinha, elevam-se,
o pé se mexe veloz, roça a areia, retira-se e fica um risquinho,
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reto e minúsculo, que o vento cobre em poucos segundos.
- Para que essas coisas, Fushía? - diz Aquilino.
- Você viu, velho - diz Fushía. - Assim, todos os dias, risquinhos pequenos, cada vez menores para que caibam na parede que me toca, os deste ano são um monte, são
por volta de vinte fileiras de risquinhos. E quando você chega dou minha comida ao enfermeiro, e ele pinta a parede com cal e as apaga, e eu posso marcar de novo
os dias que faltam. Esta noite eu lhe darei minha comida e amanhã ele pintará com cal.
- Sim, sim - a mão do velho pede a Fushía que se acalme -, como você quiser, faz um ano, está bem, não fique nervoso, não grite. Não pude vir antes, já não é fácil
para mim estar viajando, fico dormindo, os braços não agüentam. Você não vê que os anos passam? Não quero morrer na água, o rio é bom para viver, não para morrer,
Fushía. Por que você grita assim todo o tempo, sua garganta não dói?
Fushía dá um pulo, fica na frente de Aquilino, põe seu rosto sob o do velho e este retrocede, fazendo caretas; mas Fushía grunhe e pula até que Aquilino o olha:
pronto, já tinha visto, homem. O velho tapa o nariz, e Fushía volta a seu lugar. Por isso não entendia o que falava, Fushía; podia comer assim, com a boca vazia?
Os dentes não faziam falta, não se engasgava? Fushía nega com a cabeça várias vezes.
- A freira molha tudo para mim - grita. - O pão, as frutas, tudo na água, até que amoleçam e se desfaçam, então posso engolir. Mas para falar é foda, a voz não sai.
- Não se zangue se tapo o nariz - Aquilino oprime as narinas com dois dedos, e sua voz soa fanhosa. - Fico tonto com o cheiro, faz minha cabeça dar voltas. A última
vez levei o cheiro comigo, Fushía, me dava vômitos de noite. Se soubesse que lhe custa tanto comer, não teria trazido bolachas para você. Vão arranhar suas gengivas.
Na próxima vez, vou trazer umas cervejinhas, umas tônicas. Tomara que me lembre, porque, olhe, minha cabeça não está boa, esqueço as coisas, tudo vai embora. Já
estou velho, homem.
- E isso porque agora não há sol - diz Fushía. Quando tem e saímos à praia, até as freiras e o doutor tapam os narizes, dizem que fede muito. Eu não sinto nada,
já me acostumei. Você sabe o que é?
- Não grite tanto - Aquilino olha as nuvens: grossos rolos grisáceos e manchinhas brancas salpicadas aqui e ali ocultam o céu, uma luz plúmbea desce lentamente sobre
as árvores.
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- Acho que vai chover, mas ainda que chova tenho que ir. Não vou dormir aqui, Fushía.
- Você se lembra daquelas flores que havia na ilha?
- Fushía pula, como um macaquinho pelado e vermelho. Aquelas amarelas, que se abrem com o sol e se fecham ao escurecer, aquelas que os buambisas diziam que são
espíritos. Você se lembra?
- vou mesmo que chova torrencialmente - diz Aquilino. - Não dormirei aqui.
- Assim, igualzinho a essas flores - grita Fushía. Abrem-se com o sol e sai uma baba, isso é que fede, Aquilino. Mas faz bem, já não comicha, a gente se sente melhor.
Ficamos contentes e não brigamos.
- Não grite tanto, Fushía - diz Aquilino. - Olhe como o céu está nublado, e corre tanto vento. A freira disse que isso faz mal, você tem que voltar à cabana. E eu
vou embora logo, é melhor.
- Mas nós não sentimos nem com o sol nem quando está nublado - grita Fushía -, nunca sentimos nada. Cheiramos assim todo o tempo e nem parece que fede, mas que
o cheiro da vida é que é assim. Você me entende, velho?
Aquilino solta o nariz e respira fundo. Finas rugas dividem seu rosto, franzem-no sob o chapéu de palha. O vento agita sua camisa de algodão e, aos poucos, descobre-lhe
o peito esquálido, as costelas salientes, a pele brilhante. O velho baixa os olhos, olha de viés: continua ali, em repouso, como um grande caranguejo.
- É parecido com o quê? - grita Fushía. - com peixe podre?
- Eu lhe suplico, não continue gritando - diz Aquilino. - Agora tenho que ir. Quando voltar, vou trazer coisas moles, para que você engula sem mastigar.
vou procurar nas lojas.
- Sente-se, sente-se - grita Fushía. - Por que está de pé, Aquilino? Sente-se, sente-se.
Pula de cócoras, à volta de Aquilino, e procura seus olhos, mas o velho teima em olhar as nuvens, as palmeiras, as sonolentas águas do rio, as ondinhas sujas. Rio
abaixo, uma ilhota de terra ocre fende orgulhosamente a corrente. Fushía está agora junto às pernas de Aquilino. O velho se senta.
- Um pouquinho mais, Aquilino - grita Fushía. Não ainda, velho, mal acaba de chegar.
- Agora me lembro, tenho de contar uma coisa a você
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- o velho bate na testa e, por um instante, olha: o pé bom está escavando a areia. - Em abril, estive em Santa Maria de Nieva. Viu como está a minha cabeça? Já
ia embora sem contar. A polícia marítima me contratou, estavam com um prático doente, e me levaram num desses barcos que voam sobre a água. Estivemos lá dois dias.
- Você tinha medo de que eu o agarrasse - grita Fushía. - Que me abraçasse nas suas pernas, por isso você se sentou, Aquilino. Senão, você ia sair devagarzinho.
- Vamos, não grite mais, me deixe contar - diz Aquilino. - A Lalita engordou muito, no princípio não nos reconhecemos. Ela pensava que eu tinha morrido. Chorou de
emoção.
- Antes você ficava todo o dia - grita Fushía. - Ia dormir na lancha e, no dia seguinte, voltava e conversava comigo, Aquilino. Você ficava dois ou três dias. Agora
mal chega e já quer ir.
- Me hospedaram na casa deles, Fushía - diz Aquilino. - Têm um montão de filhos, não me lembro quantos, muitos. E o Aquilino está um homem. Era lancheiro e agora
foi trabalhar em Iquitos. Já não é como era quando pequeno, não tem os olhos tão rasgados. Quase todos são homens e se você visse Lalita não pensaria que é ela,
tão gorda. Você se lembra como eu a fiz parir com estas mãos? O Aquilino é um homão, e simpático. E os filhos de Nieves também, e também os do policial. Não há
quem os distinga, todos se parecem com Lalita.
- Todos tinham inveja de mim - grita Fushía. Porque você vinha me ver, e ninguém vem vê-los. E depois me gozavam porque você demorava tanto a voltar. Ele já vem,
é porque faz viagens, anda comerciando pelos rios, mas virá, amanhã, ou depois de amanhã, mas virá de qualquer jeito. Agora é como se você não viesse nunca, Aquilino.
- Lalita me contou sua vida - diz Aquilino. - Ela não queria mais filhos, mas o guarda queria e a embarrigou um monte de vezes, e em Santa Maria de Nieva chamam
os meninos de Pesados. Mas não só aos filhos do guarda, também aos do Nieves e ao seu.
- Lalita? - grita Fushía. - Lalita, velho?
Brota uma agitação rosácea, gemidos e exalações fétidas, e o velho fecha o nariz, atira a cabeça para trás. Começou a chover e o vento assobia entre as árvores,
a mata se agita no outro lado, há um crepitar sussurrante de folhas. A chuva é ainda fina, invisível. Aquilino fica de pé:
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- Está vendo, começou a chover, tenho que ir - fanhoso. - Terei que dormir na lancha, me molhar toda a noite. Não posso ir de sulcada com essa chuva, se o motor
falhar não terei forças, e a corrente me arrastará, já me aconteceu isso. Por que não grita mais, Fushía?
Ele está mais encolhido que antes, curvo, ovóide, e não responde. Seu pé bom brinca com os pedregulhos espalhados na areia: derruba e empilha, derruba e empilha,
alinha-os, e em todos esses movimentos, minuciosos e lentos, há uma espécie de melancolia. Aquilino dá dois passos, agora não tira o olhar daquelas costas afogueadas,
daqueles ossos que a água está molhando. Recua um pouco mais, e agora não distingue as chagas e a pele, tudo é uma superfície entre azul-violácea e roxa, furta-cor.
Destapa o nariz e respira fundo.
- Não fique triste, Fushía - murmura. - Virei no ano que vem, ainda que esteja muito cansado, palavra. vou trazer para você coisas moles. Você se zangou porque falei
da Lalita? Você se lembrou de outros tempos? Assim é a vida, homem, pelo menos, para você foi melhor que para outros, veja só o Nieves.
Murmura e vai recuando, já está no caminho. Há poças nos desníveis, e um cheiro vegetal muito forte invade o ar, um cheiro de seiva, resinas e plantas que germinam.
Uma bruma morna, rarefeita ainda, eleva-se em camadas ondulantes. O velho continua recuando, o montinho de carne viva e sangrenta está imóvel lá longe, desaparece
atrás das samambaias. Aquilino dá meia-volta, corre para as cabanas, Fushía, viria no próximo ano, sussurrando, que não ficasse triste. Agora chove a cântaros.
334

II.

- Depressa, padre - disse a Selvática. - Tenho um
táxi esperando aí.
- Um momento - pigarreou o Padre Garcia, esfregando os olhos. - Tenho de me vestir.
Meteu-se na casa, e a Selvática fez sinais para que o chofer esperasse. Punhados de insetos revoluteavam crepitando em volta dos lampiões da deserta Plaza Merino,
o céu estava alto e estrelado, e pela Avenida Sánchez Cerro apareciam, rugindo, os primeiros caminhões e ônibus noturnos. A mulher permaneceu na calçada até que
a porta voltou a se abrir e o Padre Garcia saiu, o rosto escondido por um cachecol cinza, um chapéu de pano enterrado até as sobrancelhas. Subiram no táxi, que partiu.
- Ande rápido, mestre - disse a Selvática. - A toda
a velocidade, mestre.
- É longe? - perguntou o Padre Garcia, e sua voz se transformou num largo bocejo.
- Um pouquinho, padre - disse a Selvática. - Perto
do Clube Grau.
- Então por que você veio até aqui? - grunhiu o Padre Garcia. - Para que existe a paróquia de Buenos Aires? Por que você tinha que me acordar e não ao Padre
Rubio?
O Três Estrellas estava fechado, mas havia luz no interior, padre: a senhora queria que fosse ele. Três homens abraçados cantarolavam na esquina, e outro, um pouco
mais adiante, mijava na parede. Um caminhão sobrecarregado de caixotes avançava impavidamente pelo meio da rua, o chofer do táxi pedia passagem em vão, a buzinadas,
335
apagando e acendendo os faróis e, logo, o chapéu de pano adiantou-se até quase a boca da mulher: que senhora queria que ele fosse? O caminhão se afastou, finalmente,
e o táxi
pôde passar, padre, a Senhora Chunga, um sobressalto brusco, o quê? quem estava morrendo? a batina começou a se agitar e uma espécie de arranco estrangulava a voz
do
Padre Garcia, sob o cachecol: quem estava indo confessar?
- O Senhor Dom Anselmo, padre - sussurrou a Selvática.
- O harpista está morrendo? - exclamou o chofer.
- Que houve? Era ele?
O carro, freado bruscamente, rechinou sobre a Avenida Grau, em seguida partiu com mais impulso e, a luz alta ligada, continuou aumentando a velocidade, nos becos
não a reduzia, limitava-se a anunciar sua passagem veloz com fortes buzinadas. Enquanto isso, o chapéu de pano oscilava aturdido diante do rosto da Selvática e
a garganta do Padre Garcia parecia empenhada em uma rouca batalha contra alguma coisa que a obstruía e asfixiava.
- Estava tocando muito alegre e, de repente, caiu no chão - suspirou a Selvática. - O pobre ficou todo roxo, padre.
Uma mão saiu apressada da sombra, sacudiu a Selvática pelo ombro e ela gemeu, estavam indo ao prostíbulo? assustada, e se resguardou contra a porta do táxi: não,
padre, não, à Casa Verde. É lá que ele estava morrendo, por que a empurrava assim, que lhe fizera, e o Padre Garcia soltou-a, e com puxões arrancou o cachecol do
pescoço. Respirando penosamente, aproximou a boca da janela e ficou assim por um momento, inclinado, os olhos fechados, aspirando com angústia o ar leve da noite.
Em seguida deixou-se cair de costas contra o banco, e voltou a pôr o cachecol.
- A Casa Verde é o prostíbulo, infeliz - roncou. Já sei quem é você, já sei por que está meio nua e tão pintada.
- Não chamaram um médico? - perguntou o chofer.
- Que notícia tão triste, senhorita. Perdão se me meto, mas é que conheço bem o harpista. Quem não o conhece, e todos nós gostamos muito dele.
- Chamaram, sim - disse a Selvática. - O Doutor Zevallos já está lá. Mas ele disse que seria um milagre ele não morrer. Todos estão chorando, padre.
O Padre Garcia encolhera-se no banco e não falava, mas, intermitente, débil, longo, o ruído escapava do cachecol.
336
O táxi parou diante da grade do Clube Grau; o motor continuou rugindo e lançando fumaça.
- Eu iria até a favela - disse o chofer -, mas a areia está muito solta. Se for, atolo. Sinto muito, de verdade.
Enquanto a Selvática desatava um lenço, tirava o dinheiro e pagava, o Padre Garcia desceu e fechou a porta com raiva. Começou a caminhar pelo areal, a passos largos.
Escorregava de quando em quando, afundava e subia na superfície desigual e, na noite clara, avançava por entre as dunas amarelentas, encurvado e escuro como um grande
urubu. A Selvática o alcançou a meio caminho.
- O senhor o conhecia, padre? - sussurrou. - Pobrezinho, não é verdade? Se visse como tocava, que bonito. E olhe que mal enxergava.
O Padre Garcia não respondeu. Caminhava encolhido, com as pernas muito abertas, a um ritmo muito rápido, a respiração cada vez mais ansiosa.
- Que estranho, padre - disse a Selvática. - Não se ouve nenhum ruído, e todas as noites a música da orquestra chegava até aqui. Lá adiante, também, da estrada,
a gente ouvia bem claro.
- Cale-se, infeliz - rugiu o Padre Garcia, sem olhála. - Feche essa boca!
- Não se zangue, padre - disse a Selvática. - Nem sequer sei o que falo. É que estou com pena, o senhor não sabe como era Dom Anselmo.
- Sei de sobra, infeliz - murmurou o Padre Garcia.
- Eu o conheço desde muito antes de você nascer.
Disse algo mais, incompreensível, e de novo voltou o estranho som rouco e anelante. Nas portas das choças da favela havia gente, e, à sua passagem, eles ouviam murmúrios,
boas-noites, algumas mulheres se persignavam. A Selvática bateu na porta, e, no mesmo instante, uma voz de mulher: estava fechado, não se atendia; senhora, era ela,
aqui estava o padre. Houve um silêncio, passos precipitados, a porta se abriu, e uma luz enfumaçada iluminou o rosto magro e decrépito do Padre Garcia, o cachecol
que dançava em seu pescoço. Entrou, seguido pela Selvática, não respondeu ao cumprimento que duas vozes masculinas lhe dirigiram do balcão, talvez nem tivesse escutado
o respeitoso murmúrio que se elevara de duas mesas rodeadas de figuras imprecisas. Permaneceu azedo e imóvel, em frente à pista de danças vazia, e quando surgiu
diante dele uma silhueta sem rosto, onde está? grunhiu rapidamente, e a Chunga,
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que estendera a mão para ele, desviou-a e apontou a escada: onde, que o levassem. A Selvática pegou-o pelo braço, padre, ela mostraria. Atravessaram o salão, subiram
ao primeiro andar e, no corredor, o Padre Garcia livrou-se com um safanão da mão da Selvática. Ela bateu muito suavemente em uma das quatro portas gêmeas e abriu-a.
Ficou de lado e, quando o Padre Garcia entrou, fechou-a e voltou ao salão.
- Fazia frio lá fora? - perguntou o Bolas. - Você está tremendo.
- Tome um pouco - disse o Joven Alejandro. Você se sentirá melhor.
A Selvática pegou o copo, bebeu e secou os lábios com a mão.
- O padre ficou furioso de repente - disse. - No táxi, me agarrou pelo ombro, me sacudiu. Pensei que ia bater em mim.
- Tem um mau humor danado - disse o Bolas. Eu não pensava que viesse.
- O Doutor Zevallos continua lá, senhora? - perguntou a Selvática.
- Desceu faz pouco, para tomar um café - respondeu a Chunga. - Disse que continuava na mesma.
- vou tomar outro gole, Chunguita, é para os nervos
- disse o Bolas. - Não tenho dinheiro, posso pendurar?
A Chunga concordou e encheu os dois copos. Em seguida, com a garrafa na mão, foi até as mesas da beira da pista de danças, onde as mulheres cochichavam discretamente:
queriam tomar algo? Não queriam, senhora, obrigado, e também não valia a pena ficarem, podiam ir. Um novo cochicho retrucou, mais prolongado, uma cadeira rangeu,
senhora, se não se importava, preferiam ficar, podiam? e a Chunga, claro, como quisessem, e voltou ao balcão. As sombras continuaram nos seus diálogos abafados,
e os músicos bebiam em silêncio, olhando, de quando em quando, a escada.
- Por que não tocam alguma coisa? - perguntou a Chunga, a meia voz, com um gesto vago. - Se ele pode ouvir, talvez goste; saberá que o estão acompanhando.
O Bolas e o Joven achavam que não, a Selvática, sim, sim, a senhora tinha razão, ele gostaria, e as sombras deixaram de murmurar: está bem, tocariam para ele. Foram
até o lugar da orquestra, devagar, o Bolas instalou-se no banquinho, contra a parede, e o Joven levantou o violão
do chão.
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Começaram com um triste, e só um bom tempo depois é que se encorajaram a cantar, entre dentes, sem convicção, mas, pouco a pouco, foram subindo de
tom e acabaram por recuperar a desenvoltura e a vivacidade habituais. Quando interpretavam alguma composição do Joven, notava-se que ficavam mais comovidos, diziam
os
versos com voz arrastada e sentimental, e o Bolas, às vezes, desafinava e se calava. A Chunga serviu mais bebida. Ela também parecia triste e não andava com o
aprumo ligeiramente arrogante de sempre, mas nas pontas dos pés, sem mexer os braços nem olhar para ninguém, como que atemorizada ou confusa, senhora: aí vinha o
Doutor Zevallos. O Bolas e o Joven pararam de tocar, as mulheres se levantaram, a Chunga e a Selvática correram também à escada.
- Dei uma injeção nele - o Doutor Zevallos enxugava a testa com o lenço. - Mas não devem ter muitas esperanças. O Padre Garcia está com ele. É do que precisa agora,
que rezem por sua alma.
Passou a língua pelos lábios, Chunga, tinha uma sede horrível; fazia calor lá em cima. A Chunga foi ao bar e voltou com um copo de cerveja. O Doutor Zevallos estava
sentado a uma mesa com o Joven, o Bolas e a Selvática. As mulheres tinham voltado a seus lugares e segredavam de novo, monotonamente.
- Assim é a vida - o Doutor Zevallos bebeu, suspirou, fechou e abriu os olhos. - Isso vai acontecer a todos um dia. E a mim, muito antes do que a vocês.
- Está sofrendo muito, doutor? - perguntou o Bolas, com voz de bêbado; mas seu olhar e seus gestos eram serenos.
- Não, por isso é que lhe dei a injeção - disse o doutor. - Perdeu os sentidos. Recobra-os aos poucos, por uns segundos. Mas não sente nenhuma dor.
- Estavam tocando para ele - sussurrou a Chunga, com voz também mudada e olhos vacilantes. - Achamos que gostaria.
- Lá do quarto não se ouve - disse o doutor. Mas eu tenho ouvido ruim, talvez Dom Anselmo possa ouvir. Gostaria de saber exatamente que idade tem. Mais de oitenta,
certamente. É mais velho que eu, que já ando pelos setenta. Sirva outro copinho, Chunga.
Logo se calaram e assim estiveram por longo tempo. A Chunga se levantava de quando em quando, ia ao balcão e trazia cervejas e copinhos de pisco.

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O cochichar das mulheres continuava sempre ali, às vezes áspero e nervoso, às vezes dissimulado e quase inaudível. E de repente todos se levantaram outra vez e correram
até a escada,
pois o Padre Garcia descia, sem chapéu e sem cachecol, penosamente, fazendo sinais com a mão para o Doutor Zevallos. O médico subiu os degraus agarrado ao corrimão,
perdeu-se no corredor, padre, que acontecera, muitas perguntas brotaram de uma vez, e como se o ruído os tivesse assustado, todos se calaram ao mesmo tempo: o Padre
Garcia murmurava algo, engasgado. Seus dentes batiam muito forte e seu olhar errante não se detinha em nenhum rosto. O Joven e o Bolas estavam abraçados, e um deles
soluçava. Pouco depois as mulheres começaram a esfregar os olhos, a gemer, a se lamentar em voz alta, a se jogar umas nos braços das outras, e só a Chunga e a Selvática
ampararam o Padre Garcia, que tremia e virava os olhos de um modo insistente e atormentado. As duas arrastaram-no até uma cadeira, e ele, inerte, se deixava acomodar,
esfregar a testa, e bebia, sem se rebelar, o copo de pisco que a Chunga esvaziava em sua boca. O corpo tremia sempre, mas seus olhos tinham serenado e estavam parados
no vazio, rodeados de grandes olheiras escuras. Pouco depois, o Doutor Zevallos apareceu na escada. Desceu sem pressa, cabisbaixo, coçando lentamente o pescoço.
- Morreu em paz com Deus - disse. - Isso é o que importa agora.
As sombras das mesas do fundo também se haviam acalmado e o cochichar renascia, tímido ainda, doído. Os dois músicos, abraçados, choravam, o Bolas muito alto, o
Joven sem ruído e estremecendo os ombros. O Doutor Zevallos sentou, uma expressão melancólica atravessou seu rosto gordo, padre: chegara a falar com ele? O Padre
Garcia
negou com a cabeça. A Selvática acariciava sua testa, e ele, muito encolhido no assento, fazia esforço para falar, não o reconhecera, e um assobio rouco nascia
de sua boca e, uma vez mais, seu olhar recomeçou a extraviada, incessante exploração dos arredores: e dizia sem parar, La Estrella del Norte, era só o que se entendia.
Sua voz, afogada pelo choro do Bolas, mal se ouvia.
- Foi um hotel que havia aqui, quando eu era jovem
- disse o Doutor Zevallos, com certa saudade, para a Chunga, mas ela não escutava. - Na Plaza de Armas, onde está, agora, o Hotel de Turistas.
340

III.

- Você passa o tempo todo dormindo, mal aproveita a viagem - diz Lalita. - E agora vai perder a chegada.
Ela está debruçada na borda e Huambachano, no chão, as costas contra uns cabos enrolados, abre os olhos esbugalhados, antes fosse dormindo, sua voz soa débil e
doente,
fechava os olhos para não vomitar mais, Lalita: já botara para fora tudo o que tinha dentro, mas as ânsias não paravam. Era culpa dela, ele queria ficar em Santa
Maria de Nieva. Meio corpo para fora da amurada, Lalita devora com os olhos o horizonte de telhados vermelhos, as fachadas brancas, as altas palmeiras que arrepiam
a cidade, e as silhuetas, já bem definidas, movimentando-se pelo molhe. O pessoal da coberta trata de ganhar um lugar junto à amurada.
- Pesado, não seja fraco, você vai perder o melhor
- diz Lalita. - Olhe minha terra, Pesado, que grande, que linda. Me ajude a encontrar o Aquilino.
O rosto abatido de Huambachano esboça um simulacro de sorriso, seu corpo rechonchudo se contorce e levanta por fim, trabalhosamente. Uma grande azáfama ganha a coberta;
os passageiros examinam suas maletas, atiram-nas aos ombros e, contagiados pela excitação, os porcos grunhem, as galinhas cacarejam e batem asas frenéticas, e os
cachorros vão e vêm, latindo, as orelhas em pé, os rabos sacudidos. Uma sirena perfura o ar, a fumaça negra da chaminé se espessa, e chovem partículas de carvão
sobre todos. Já entraram no porto, avançam por um arquipélago de lanchas a motor, balsas carregadas de bananas, canoas, Pesado, estava vendo? preste atenção, tinha
que estar ali, mas o Pesado piorava outra vez: que sorte desgraçada.
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Tem um acesso de ânsias, mas não vomita, limita-se a cuspir com raiva. Seu rosto gorducho está contraído e violáceo, seus olhos ficaram muito vermelhos. Da ponte
de
comando, um homenzinho grita ordens, gesticulando, e dois marinheiros descalços, o torso nu, encarapitados na proa, jogam os cabos para o molhe.
- Você estraga tudo, Pesado - diz Lalita, sem deixar de olhar para o porto. - Volto a Iquitos depois de tanto tempo e você adoece.
No vaivém das águas oleosas, balançam latas, caixas, jornais, lixo. Estão rodeados de lanchas, algumas recém-pintadas e com bandeirinhas nos mastros, de botes,
balsas, bóias e barcaças. No molhe, junto à passarela de tabuões, uma pequena turba amorfa de carregadores ruge e grita em direção aos passageiros, dizem seus nomes,
batem no peito, todos procuram ocupar o primeiro lugar na ponta da passarela. Atrás deles há um alambrado e uns telheiros de madeira sob os quais se apinha a gente
que espera os viajantes: ali estava, Pesado, o de chapéu. Que alto, que bonitão, que acenasse para ele, e Huambachano abre os olhos vidrados, que o cumprimentasse,
Pesado, levanta a mão e a sacode, frouxamente. A embarcação está parada e os dois marinheiros saltam ao molhe, manipulam os cabos, amarram-nos a umas estacas. Agora,
os carregadores berram, pulam e, com caretas e palhaçadas, tratam de chamar a atenção dos passageiros. Um homem de uniforme azul e quepe branco passeia indiferente
em frente aos tabuões. Atrás do alambrado, todos agitam as mãos, riem e, em meio ao bulício, a intervalos regulares, ressoa a estridente sirena: Aquilino! Aquilino!
As cores voltam ao rosto de Huambachano, e seu sorriso é agora mais natural, menos patético. Abre caminho entre as mulheres carregadas de embrulhos, arrastando uma
maleta cheia e uma bolsa.
- Engordou, está vendo? - pergunta Lalita. - E como se vestiu bem para nos receber, Pesado. Fale alguma coisa, não seja mal-agradecido, por acaso você não entende
tudo o que ele faz por nós?
- Sim, está gordo e pôs camisa branca - diz, mecanicamente, Huambachano. - Já era tempo, não fui feito para a água. Meu corpo não se acostuma, vim sofrendo toda
a viagem.
O homem de uniforme azul recebe os bilhetes e livra cada passageiro, com um ligeiro empurrão, dos simiescos, desesperados carregadores, que se atiram sobre ele,
342
arrebatam seus animais e pacotes, suplicando, increpando-o se resiste em soltar sua bagagem. São só uns dez, mas parece que são cem, pelo ruído que fazem: sujos,
melenudos,
esqueléticos, vestem apenas umas calças cobertas de remendos e, um ou outro, camisetas em tiras. Huambachano afasta-os a empurrões, patrão, o que quisesse dar, fora,
e eles voltam à carga, seus merdas, cinco redes, patrão, e ele, fora, saiam. Deixa-os para trás e chega à barreira, cambaleante. Aquilino vem ao seu encontro e se
abraçam.
- Você deixou crescer o bigode - diz Huambachano -, pôs brilhantina. Como mudou, Aquilino.
- Aqui não é como lá, é preciso estar bem vestido sorri Aquilino. - Que tal a viagem? Estou esperando vocês desde a manhã.
- Sua mãe fez uma boa viagem, sempre contente diz Huambachano. - Mas eu enjoei muito, passei todo o tempo vomitando. Há tantos anos sem subir num barco.
- Isso se cura com um trago - diz Aquilino. Que está fazendo minha mãe, por que ficou ali?
Sólida, os compridos cabelos grisalhos soltos nas costas, Lalita está rodeada de carregadores. Inclinou-se até um deles, seus lábios se movem, e observa-o muito
de perto, com uma curiosidade quase agressiva: aqueles merdas, não viam que estava sem mala? Que queriam? carregá-la? Aquilino ri, puxa um maço de Inca, oferece
um cigarro a Huambachano e acende-o. Agora Lalita pôs a mão no ombro do carregador e fala com animação; ele escuta em atitude reservada, nega com a cabeça, e em
seguida afasta-se e se mistura com os outros, começa a brincar, a gritar, a correr atrás dos viajantes. Lalita vem até o alambrado, muito ligeira, com os braços
abertos. Enquanto ela e Aquilino se abraçam, Huambachano fuma, e seu rosto, entre as espirais de fumaça, aparece recuperado e plácido.
- Você está um homem, vai se casar, logo me dará netos - Lalita aperta Aquilino, obriga-o a recuar e a se voltar. - E como está elegante, tão bonitão.
- Sabem onde vão ficar hospedados? - pergunta Aquilino. - Na casa dos pais da Amélia, eu tinha procurado um hotelzinho, mas eles, não, colocamos uma cama na sala.
São boas pessoas, ficarão amigos.
- Quando é o casamento? - pergunta Lalita. Trouxe um vestido novo, Aquilino, para estreá-lo no dia. E o Pesado tem que comprar uma gravata, a que tinha era muito
velha, não deixei que a trouxesse.
343
- No domingo - diz Aquilino. - Já está tudo pronto, a igreja paga, e uma festinha na casa dos pais de Amélia. Amanhã é a despedida de solteiro. Mas a senhora não
me falou dos irmãos. Estão todos bem?
- Bem, mas sonhando em vir a Iquitos - diz Huambachano. - Até o menorzinho quer se mandar, como você.
Saíram do Malecón, e Aquilino leva a mala ao ombro e a bolsa debaixo do braço. Huambachano fuma, e Lalita olha com cobiça o parque, as casas, os transeuntes, os
automóveis, Pesado, não é uma linda cidade? Como tinha crescido, nada disso existia quando ela era pequena, e Huambachano, sim, a cara apática: à primeira vista
parecia linda.
- O senhor nunca esteve aqui quando era guarda civil? - pergunta Aquilino.
- Não, só em lugares da costa - diz Huambachano.
- E depois em Santa Maria de Nieva.
- Não podemos ir a pé, os pais de Amélia moram longe - diz Aquilino. - Vamos tomar um táxi.
- Um dia quero ir aonde nasci - diz Lalita. - Minha casa ainda existe, Aquilino? vou chorar quando vir Benén, talvez exista e esteja igualzinha.
- E seu trabalho? - pergunta Huambachano. Você ganha bem?
- Por enquanto, pouco - diz Aquilino. - Mas o dono do curtume vai nos aumentar no ano que vem, foi o que nos prometeu. Ele me adiantou o dinheiro para a viagem de
vocês.
- Que é curtume? - pergunta Lalita. - Você não trabalhava numa fábrica?
- Onde se curtem os couros de lagarto - diz Aquilino. - Para fazer sapatos, bolsas. Quando entrei não sabia nada, agora eles me põem para ensinar os novos.
Ele e Huambachano chamam aos gritos cada táxi que passa, mas nenhum pára.
- Já me passou o enjôo da água - diz Huambachano. - Agora estou com enjôo de cidade. Também me desacostumei disso.
- O problema é que para o senhor não há nada como Santa Maria de Nieva - diz Aquilino. - É só do que gosta no mundo.
- É verdade, não viveria mais na cidade - diz Huambachano. - Prefiro a chacrinha, a vida tranqüila. Quando pedi minha baixa na Guarda Civil disse à sua mãe que morreria
em Santa Maria de Nieva, e vou cumprir.
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Um velho calhambeque freou diante deles com um estrondo de latas, rechinando como se fosse desarmar-se. O chofer coloca a mala no teto, amarra-a com uma corda,
e Lalita e Huambachano sentam-se atrás, Aquilino junto ao chofer.
- Procurei o que a senhora me pediu, mãe - diz Aquilino. - Tive muito trabalho, ninguém sabia, me mandavam para toda parte. Mas finalmente descobri.
- O quê? - pergunta Lalita. Olha embriagada para as ruas de Iquitos, um sorriso nos lábios, os olhos comovidos.
- Sobre o Senhor Nieves - diz Aquilino, e Huambachano, com empenho repentino, olha pela janelinha. - Eles o soltaram no ano passado.
- Ficou preso tanto tempo? - perguntou Lalita.
- Deve ter ido para o Brasil - diz Aquilino. - Os que saem da cadeia vão para Manaus. Aqui não conseguem trabalho. Lá, talvez tenha conseguido, se é que era tão
bom prático como dizem. Só que tanto tempo longe do rio, talvez tenha até esquecido o ofício.
- Não acredito que tenha esquecido - diz Lalita, outra vez interessada no espetáculo das ruas estreitas e cheias de gente, de altas calçadas e casas com sacadas.
- Pelo menos, ainda bem que o soltaram.
- Qual é o sobrenome da noiva? - pergunta Huambachano.
- Marín - diz Aquilino. - É uma moreninha. Também trabalha no curtume. Não receberam a foto que mandei?
- Anos sem pensar nas coisas passadas - diz Lalita, de súbito, voltando-se para Aquilino. - E hoje vejo Iquitos de novo, e você me fala de Adrián.
- O carro também me deixa enjoado - interrompe-a Huambachano. - Falta muito para chegar, Aquilino?
345

IV

Já amanhece entre as dunas, atrás do Quartel Grau, mas as sombras ainda escondem a cidade quando o Doutor Zevallos e o Padre Garcia atravessam o areal, de braços
dados,
e entram no táxi estacionado na estrada. Embuçado em seu cachecol, o chapéu caído, o Padre Garcia é um par de olhos inflamados, um nariz carnudo que cresce debaixo
das sobrancelhas espessas.
- Como se sente? - pergunta o Doutor Zevallos, sacudindo a bainha da calça.
- A cabeça continua dando voltas - murmura o Padre Garcia. - Quando me deitar, passa.
- Não pode ir para a cama assim - diz o Doutor Zevallos. - Tomaremos um café antes, algo quente nos fará bem.
O Padre Garcia faz um gesto de aborrecimento, não havia nada aberto a estas horas, mas o Doutor Zevallos interrompe-o, aproximando-se do chofer: estaria aberta a
casa
da Angélica Mercedes? Devia estar, patrão, e o Padre Garcia grunhe, ela abria cedinho; lá não, e sua mão treme diante do rosto do Doutor Zevallos, lá não, treme
outra
vez e volta a seu covil de cobras.
- Deixe de contrariar-me todo o tempo - diz o Doutor Zevallos. - Que importa o lugar. O principal é esquentar um pouco o estômago depois de uma noite ruim. Não disfarce,
o senhor sabe que não pregará olho se for agora para a cama. Na casa da Angélica Mercedes comeremos alguma coisa e falaremos.
Um bafo azedo atravessa o cachecol, o Padre Garcia, se mexe em seu assento sem responder. O táxi entra no bairro
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de Buenos Aires, passa na frente de chalés de amplos jardins, alinhados em ambos os lados da estrada, contorna um opaco monumento e desliza até o maciço sombrio
da catedral. Algumas vitrinas da Avenida Grau cintilam na madrugada, o caminhão do lixo está na frente do Hotel de Turistas, e homens em macacões vão até ele carregados
de latas, O chofer dirige com um cigarro na boca, uma esteira cinzenta escapa de seus lábios em direção ao banco traseiro, e o Padre Garcia começa a tossir. O Doutor
Zevallos abre um pouco a janelinha.
- Não voltou à Mangachería desde o velório de Domitila Yara? - pergunta o Doutor Zevallos; não há resposta, o Padre Garcia está com os olhos fechados e ronca estranhamente.
- O senhor sabe que quase o matam naquela vez, no velório? - pergunta o chofer.
- Cale-se, homem - sussurra o Doutor Zevallos. - Se ouvir, vai ficar com raiva.
- É verdade que o harpista morreu, patrão? - pergunta o chofer. - Por isso é que foram chamados à Casa Verde?
A Avenida Sánchez Cerro se prolonga como um túnel e, na penumbra das calçadas, se delineia, de trecho em trecho, a silhueta de uma arvorezinha. No fundo, sobre o
difuso horizonte de telhados e areias, uns reflexos circulares aparecem piscando.
- Morreu esta madrugada - diz o Doutor Zevallos. Ou você pensa que o Padre Garcia e eu ainda estamos em idade de passar a noite com a Chunga?
- Para isso não há idade, patrão - ri o chofer. Um colega levou uma das mulheres para buscar o Padre Garcia, aquela que chamam de Selvática. Ele me contou que o
harpista estava morrendo, patrão, que desgraça.
O Doutor Zevallos olha, distraído, os muros caiados, os portões com aldravas, o edifício novo de Solari, as algarobeiras recém-plantadas nas calçadas, frágeis e
garbosas,
nos seus quadriláteros de terra: como voavam as notícias nesta terra. Mas ele tinha de saber, patrão, e o chofer baixa a voz, era verdade o que o povo contava? espia
o Padre Garcia pelo espelho retrovisor, era verdade que o Padre Garcia queimara a Casa Verde do harpista? Tinha conhecido aquele puteiro, patrão? Era tão grande
como diziam, tão formidável?
- Por que é que os piuranos são assim?
347
- pergunta o Doutor Zevallos. - Não se cansaram, trinta anos depois, de repetir a mesma história? Estragaram a vida do pobre padre.
- Não fale mal dos piuranos, patrão - diz o chofer.
- Piura é minha terra.
- Também a minha, homem - diz o Doutor Zevallos.
- E depois não estou falando, mas pensando em voz alta.
- Mas deve haver alguma coisa de verdade, patrão
- insiste o chofer. - Senão, por que é que o povo falaria, por que essa história de incendiário, incendiário?
- E eu sei? - pergunta o Doutor Zevallos. - Por que você não se atreve a perguntar ao padre?
- com o gênio que ele tem! Nem de brincadeira ri o chofer. - Mas, pelo menos, me diga se aquele puteiro existia ou se são invenções do povo.
Passam agora pelo novo setor da avenida: a velha estrada se encontrará logo com esta pista asfaltada, e os caminhões que vêm do sul e seguem viagem para Sullana,
Talara e Tumbes não terão mais que atravessar o centro da cidade. As calçadas são largas e baixas, os postes de luz cinzentos estão recém-pintados, esse altíssimo
esqueleto de cimento armado será, talvez, um arranha-céu maior que o Hotel Cristina.
- O bairro mais moderno se juntará com o mais velho e pobre - diz o Doutor Zevallos. - Não acredito que a Mangachería dure muito.
- Vai acontecer o que houve com a Gallinacera, patrão - diz o chofer. - Vão trazer tratores e farão casas como estas para brancos.
- E para onde diabo irão os mangaches com suas cabras e burros? - pergunta o Doutor Zevallos. - Onde se poderá tomar uma boa chicha em Piura?
- Os mangaches vão ficar tristíssimos, patrão - diz o chofer. - O harpista era um deus para eles, mais popular que Sánchez Cerro. Agora também vão acender velas
para Dom Anselmo, e rezarão para ele como para a santeira Domitila.
O táxi deixa a avenida e, aos pulos, solavancos, avança por uma ruazinha de terra, entre choças de cana-brava. Levanta uma poeirada e enfurece os cachorros vira-latas
que correm, grudados aos pára-lamas, latindo, patrão, os mangaches tinham razão, aqui amanhecia mais cedo que em Piura. Na claridade azul, através de nuvens de pó,
distinguem corpos atirados sobre esteiras, às portas das casas,
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mulheres com cântaros na cabeça que viram esquinas, burros de olhar sonolento e apático. Atraídas pelo rugido do motor, crianças saem das choças e, nuas ou esfarrapadas,
correm atrás do táxi, dando adeus, o que havia, bocejando, o que estava acontecendo: nada, padre, já estavam em terra proibida.
- Deixe-nos aqui - diz o Doutor Zevallos. - Caminharemos um pouco.
Descem do táxi e, de braços dados, devagar, amparando-se um no outro, percorrem um caminho oblíquo, escoltados por crianças que brincam, incendiário! gritam e riem,
incendiário! incendiário! e o Doutor Zevallos finge apanhar uma pedra e lançá-la: merda, crianças de merda, ainda bem que estavam chegando.
A cabana de Angélica Mercedes é maior que as outras e as três bandeirinhas que drapejam sobre sua fachada de adobe dão a ela um ar gracioso e imponente. O Doutor
Zevallos
e o Padre Garcia entram espirrando, escolhem dois banquinhos e uma mesa de tábuas largas, sentam-se. O chão foi regado há pouco e cheira a terra úmida, coentro e
salsa. Não há ninguém nas outras mesas, nem no balcão. Aglomeradas na porta, as crianças continuam gritando, esticam suas cabeças sujas e eriçadas, Dona Angélica!
seus braços magros, Dona Angélica! riem mostrando os dentes. O Doutor Zevallos esfrega as mãos, pensativo, e o Padre Garcia, entre bocejos, olha a porta com o rabo
dos olhos. Angélica Mercedes aparece, por fim, fresca, roliça, matutina, a barra da saia roçando nos banquinhos. O Doutor Zevallos se levanta, doutor, abre os braços
para ele, mas que prazer, que milagre vê-lo aqui a estas horas, há tantos meses que não vinha, e ela estava cada dia mais bonitona, Angélica, como fazia para não
envelhecer? qual era o seu segredo? E então deixam de se bater nas costas, Angélica, não vira quem trouxera, não o reconhecia? Como que atemorizado, o Padre Garcia
junta os pés e esconde as mãos, bom dia, o cachecol muge asperamente e o chapéu se agita, por um segundo, Virgem Santa! era o Padre Garcia. As mãos juntas sobre
o coração, os olhos alvoroçados, Angélica Mercedes abaixa-se, padrezinho, que alegria tinha em vê-lo, nem sabia, que bom que o trouxera, doutor, e a mão ossuda
e desconfiada se levanta sem afeto até Angélica Mercedes, e se retira antes que ela a beije.
- Você pode preparar algo quente, comadre? - pergunta o Doutor Zevallos. - Estamos meio mortos, passamos a noite em claro.
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- Claro, claro, agora mesmo - Angélica Mercedes limpa a mesa com a saia -, um caldinho e um tira-gosto? Umas chichas clarinhas também? Não, é muito cedo para isso,
vou fazer uns suquinhos e café com leite. Mas, por que não se deitaram ainda, doutor? O senhor está pondo o Padre Garcia no mau caminho.
Um sarcástico grunhido subiu do cachecol e o chapéu se endireita, os olhos fundos do Padre Garcia fitam Angélica Mercedes e ela deixa de sorrir, volta o rosto intrigado
para o Doutor Zevallos, que, com o queixo entre dois dedos, tem agora uma expressão melancólica: onde estiveram, doutorzinho? Sua voz é tímida, a mão empunha a barra
da saia a uns milímetros da mesa, e está imóvel: na casa da Chunga, comadre. Angélica Mercedes solta um gritinho, na casa da Chunga? desfigura-se, na casa da Chunga?
põe a mão na boca.
- Sim, comadre, Anselmo morreu - diz o Doutor Zevallos. - Uma triste notícia para você, eu sei. Para todos nós. Que vamos fazer, assim é a vida.
Dom Anselmo? gagueja Angélica Mercedes, a boca entreaberta, a cabeça caída, morreu, padrezinho? e seu nariz palpita rapidamente, umas covinhas aparecem em suas faces,
as crianças da porta saíram correndo, e ela sacode a cabeça, esfrega os braços, morreu, doutor? chora.
- Todos têm que morrer - ruge o Padre Garcia, batendo na mesa; o cachecol se abre e sua cara lívida, com a barba por fazer, está deformada pelo tremor de sua boca.
- Você, eu, o Doutor Zevallos, a morte virá para todos, ninguém se livra.
- Acalme-se, homem - o Doutor Zevallos abraça Angélica Mercedes, que soluça, apertando a saia contra os olhos.
- Acalme-se você, também, comadre. O Padre Garcia ficou muito nervoso, é melhor não falar com ele, não pergunte nada. Ande, prepare algo quente, não chore.
Angélica Mercedes concorda sem deixar de chorar, e se afasta, o rosto entre as mãos. No outro aposento, eles a ouvem falar sozinha, suspirar. O Padre Garcia recolheu
o cachecol, novamente enrosca-o no pescoço, e tira o chapéu: eriçadas, cinza, as mechas de cabelos de sua fronte mal ocultam o crânio liso e cheio de sinais. Apoia
o queixo no punho, uma ruga de apreensão rasga sua testa, e a barba crescida dá às suas faces um aspecto de coisa gasta e suja. O Doutor Zevallos acende um cigarro.
É dia já, e o sol que inunda o local e doura os bambus secou o chão,
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moscas azuis e ciciantes invadem o ar. No exterior, as vozes, latidos, balidos, zurros e ruídos domésticos aumentam gradualmente e, ao lado, Angélica Mercedes está
rezando,
murmura o nome da santeira misturado a invocações a Deus e à Virgem, doutor: aquela machorra fizera de propósito.
- Mas por que santo?- murmura o Padre Garcia.
- Por que santo, doutor?
- Que importa? - pergunta o Doutor Zevallos, vendo a fumaça se desvanecer. - E depois, talvez não tenha sido de propósito. Pode ter sido por acaso.
- Bobagem, mandou chamar o senhor e a mim por alguma coisa - diz o Padre Garcia. - Queria nos fazer passar um mau momento.
O Doutor Zevallos encolhe os ombros. Recebe um raio de sol no meio da testa, e metade do seu rosto está dourado e brilhante; a outra metade é uma nódoa plúmbea.
Tem
os olhos sumidos numa suave modorra.
- Não sou nada perspicaz - diz, depois de um momento. - Nem sequer pensei nisso. Mas o senhor tem razão, talvez tenha querido nos fazer passar um mau momento. A
Chunga é uma mulher estranha. Pensei que ela não sabia.
Volta-se para o Padre Garcia e a nódoa ganha terreno, ocupa todo o rosto, só uma orelha e a mandíbula recebem agora o banho amarelo: que não sabia o quê? O Padre
Garcia olha o Doutor Zevallos de viés.
- Que eu a trouxe ao mundo - o Doutor Zevallos levanta a cabeça, que se ilumina, sua calva se destaca, luzente e espinhenta. - Quem terá contado isso a ela? Anselmo
não, estou certo. Ele pensava que a Chunga vivia sem saber.
- Neste povoadinho mexeriqueiro tudo se sabe com o tempo - grunhe o Padre Garcia. - Ainda que seja trinta anos depois, sabe-se tudo o que acontece.
- Jamais foi ao meu consultório - diz o Doutor Zevallos. - Jamais me chamou para qualquer coisa, e agora sim. Se queria me fazer passar um mau momento, conseguiu.
Me
fez reviver tudo de repente.
- Sobre o senhor está evidente - grunhe o Padre Garcia, como se falasse com a mesa. - Aquele sujeito viu minha mãe morrer, que veja morrer meu pai também. Mas por
que aquela machorra tinha de me chamar também?
- Que quer dizer isso? - pergunta o Doutor Zevallos.
- Que é que tem?
- Venha comigo, doutor - a voz sai da direita,
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retumba no alto do saguão. - Agorinha, assim como está, doutor, não há tempo.
- Pensa que eu não o reconheço? - pergunta o Doutor Zevallos. - Saia daí, Anselmo. Por que se esconde? Ficou louco, homem?
- Venha, doutor, depressa - uma voz cansada, na escuridão do saguão, que o eco repete, no alto. - Está morrendo, Doutor Zevallos, venha.
O Doutor Zevallos levanta o lampião, procura e o encontra afinal, não distante da porta: não está bêbado nem louco, mas crispado de medo. Seus olhos dançam loucamente
nas órbitas inchadas, e suas costas estão pegadas à parede como se quisesse derrubá-la.
- Sua mulher? - pergunta o Doutor Zevallos, atônito.
- Sua mulher, Anselmo?
- Os dois podem estar mortos, mas eu não aceito o Padre Garcia golpeia a mesa e seu banquinho range. Não posso aceitar aquela baixeza. Daqui a cem anos ainda direi
que é uma baixeza.
A porta do vestíbulo se abriu, e o homem recua como se visse uma fantasma, foge do cone de luz do lampião. A figurinha envolta em um chambre branco dá uns passos
pelo pátio, filhinho, pára antes de chegar ao saguão: quem estava aí? por que não entravam? Era ele, mamãe, o Doutor Zevallos baixa o lampião, esconde Anselmo com
seu corpo: tinha que sair um momento.
- Me espere no Malecón - sussurra. - vou pegar minha maleta.
- Vão tomando o caldinho. - Angélica Mercedes põe duas cabaças fumegantes sobre a mesa. - Já tem sal, num instantinho trago o tira-gosto.
Já não chora, mas sua voz é lamuriosa, e pôs a manta preta sobre os ombros. Afasta-se para a cozinha, agora banboleia de leve ao caminhar. O Doutor Zevallos mexe
o
caldo pensativamente, o Padre Garcia levanta a cabaça com quatro dedos, aproxima-a do nariz, cheira o aroma quente.
- Eu também nunca o entendi, e naquele tempo achei que era uma infâmia - diz o Doutor Zevallos. - Agora estou velho, muitas águas rolaram e nada mais me parece infâmia.
Se o senhor estivesse lá naquela noite, não teria odiado tanto o pobre Anselmo, Padre Garcia, tenho a certeza.
- Que Deus lhe pague, doutor - choraminga o homem, enquanto correm, dando encontrões nas árvores, nos
bancos,
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no parapeito do Malecón. - Eu farei o que me pedir, lhe darei todo o meu dinheiro, doutor, toda a minha vida, doutor.
- Quer me comover? - grunhe o Padre Garcia, olhando o Doutor Zevallos, entrincheirado atrás da cabaça, que continua cheirando. - Tenho que chorar também?
- Na verdade, nada disso importa agora - sorri o Doutor Zevallos. - Coisas que o vento levou, meu amigo. Mas por culpa da Chunguita, nesta noite, elas me voltaram
à
cabeça e continuam aqui. Falo delas para livrar-me delas, não se importe comigo.
O Padre Garcia toma a temperatura do caldo com a ponta da língua, sopra, bebe um golinho, arrota, resmunga uma desculpa, e continua tomando aos golinhos e soprando.
Pouco depois, volta Angélica Mercedes com uma bandeja de tira-gosto e sucos de lucuma. Cobriu a cabeça com o cachecol, doutor, não estava bom? e sua voz se esforça
por ser natural, comadre, muito bom. Um pouquinho quente, logo que esfriasse ele o tomaria, e que boa cara tinha o tira-gosto que fizera. Agora esquentava o café,
qualquer outra coisa que a chamassem, padrezinho. O Doutor Zevallos embala a cabaça com um dedo, examina meticulosamente a turva e redonda superfície que oscila,
e
Padre Garcia começou a trinchar pedacinhos de carne e a mastigar com empenho. Mas, de repente, interrompe-se, todos já sabiam? e a boca fica aberta: as perdidas
e os perdidos que estavam lá?
- Elas sabiam do romance desde o princípio, como é lógico - murmura o Doutor Zevallos, acariciando a borda da cabaça -, mas não acredito que alguém mais soubesse.
Havia
uma escadinha que dava para o pátio de trás, e por ali subimos à torre, os do salão não nos viram. Vinha uma bulha selvagem lá de baixo, e Anselmo devia tê-las instruído
para que entretivessem os freqüentadores, e não os deixassem maliciar sobre o que acontecia.
- Que bem o senhor conhecia o lugar - o Padre Garcia mastiga de novo. - Não tinha sido a primeira vez que ia lá, acredito.
- Tinha ido dezenas de vezes - diz o Doutor Zevallos, com um brilho fugaz nos olhos. - Eu tinha trinta anos então. A flor da idade, meu amigo.
- Sujeiras, tolices - grunhe o Padre Garcia, mas sua mão desce o garfo que levava à boca. - Trinta anos? Eu teria essa idade mais ou menos.
- Claro, somos da mesma geração
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- diz o doutor Zevallos. - Anselmo também, embora um pouco mais velho que nós.
- Já não restam muitos daquela época - diz o Padre Garcia com mau humor. - Nós os enterramos todos.
Mas o Doutor Zevallos não o escuta. Está mexendo os lábios, piscando, agitando a cabaça até derramar gotinhas de caldo sobre a mesa, homem, como é que ele podia
imaginar,
nem quando viu o vulto na cama adivinhou, homem, quem teria adivinhado?
- Não fique a falar para dentro - resmunga o Padre Garcia -, não se esqueça de que estou aqui. Que é que não podia imaginar?
- Que a mulher dele era aquela criança - diz o Doutor Zevallos. - Quando entrei, vi na cabeceira uma gorda ruiva, que chamavam de Luciérnaga, e não me pareceu doente,
e eu ia fazer uma brincadeira, e então, vi o vulto e o sangue. Não calcula, meu amigo, nos lençóis, no chão, todo o quarto era pura mancha. Parecia que tinham degolado
alguém.
O Padre Garcia não trincha, tritura ferozmente os pedaços de carne, enfia-os no garfo, retorce-os contra o prato. O pedaço gotejante não sobe até sua boca, a criança
se esvaía em sangue? fica tremendo no ar, como sua mão e a toalha da mesa, sangue por toda parte? e uma brusca ronqueira afoga-o, sangue daquela menina? Um fiozinho
de baba clara desce por seu queixo, imbecil, que a soltasse, não era hora para beijos, ele a estava afogando, tinha de fazê-la gritar, imbecil: melhor que a esbofeteasse.
Mas Josefino leva um dedo à boca: nada de gritos, não vê que há tantos vizinhos? não os ouvia conversando? Como se não o ouvisse, a Selvática grita com mais força
e Josefino tira o lenço, abaixa-se sobre o catre e tapa sua boca. Sem se perturbar, Dona Santos continua esgaravatando, manipulando habilmente as coxas morenas.
E aí então, viu-lhe o rosto, Padre Garcia, e começaram a tremer suas pernas e mãos, esqueceu que ela estava morrendo e que ele estava ali para tentar salvá-la, sim,
sim, só atinava a olhá-la, não tinha dúvida: era Antônia, meu Deus. Dom Anselmo já não a beijava, desmoronado aos pés da cama oferecia dinheiro de novo, Doutor Zevallos,
sua vida, salve-a! e Josefino assustou-se, Dona Santos, não tinha morrido? Que não a matasse, que não a matasse, Dona Santos, e ela, psiu: só desmaiara. Era melhor,
não faria barulho e acabaria mais depressa, que molhasse sua testinha com o pano. O Doutor Zevallos passou-lhe a bacia bruscamente,
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que fervessem mais água, imbecil, choramingando em vez de ajudar. Está em mangas de camisa, o colarinho aberto e, agora, muito sereno. Anselmo não consegue segurar
a bacia, cai de suas mãos, doutor, que não morresse, apanha a bacia e, de gatinhas, chega à porta, doutor, era sua vida, e sai.
- A puta que o pariu - murmurou o Doutor Zevallos.
- Que loucura, Anselmo, como é que você pôde, homem, que bestialidade você cometeu, Anselmo.
- Me passe a bolsa - diz Dona Santos. - E agora dou um chazinho e acorda. Leve isso, e enterre-a bem, e que ninguém o veja.
- Havia alguma esperança? - grunhe o Padre Garcia, esmagando os pedaços de carne, fisgando-os e arrastando-os de um lado para outro. - Era impossível salvar a menina?
- Talvez num hospital - diz o Doutor Zevallos. - Mas não se podia transferi-la. Precisei operá-la quase às escuras, sabendo que estava morrendo. Acho que foi um
milagre
que a Chunguita se salvasse, nasceu quando a mãe já estava morta.
- Milagre, milagre - grunhe o Padre Garcia. Tudo é milagre aqui. Também diziam milagre quando mataram os Quiroga, e a criança se salvou. Teria sido melhor para ela
morrer então.
- Não se lembra da moça quando passa pelo coreto?
- pergunta o Doutor Zevallos. - Eu sim, sempre me parece vê-la sentada ali, tomando sol. Mas esta noite cheguei a sentir mais pena do Anselmo do que de Antônia.
- Não o merecia - ronca o Padre Garcia. - Nem pena, nem compaixão, nem nada. Toda essa tragédia foi culpa dele.
- Se o senhor o tivesse visto esperneando, beijando-me os pés para que salvasse a moça, também teria se apiedado - diz o Doutor Zevallos. - Sabe que, se não fosse
pela
minha comadre, a Chunguita teria morrido também? Ela me ajudou a atendê-la.
Ficam em silêncio e o Padre Garcia leva um pedaço de carne à boca, mas faz uma careta de nojo e solta o garfo. Angélica Mercedes volta com outra jarrinha de suco,
vem espantando as moscas com a mão.
- Você não ouviu, comadre? - diz o Doutor Zevallos.
- Estávamos lembrando da noite em que a Antônia morreu. Já parece sonho, não? Dizia ao padre que você me ajudou a salvar a Chunga.
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Angélica Mercedes olha-o muito séria, sem espanto nem susto, como se não tivesse entendido.
- Não me lembro de nada, doutor - diz em voz baixa, finalmente. - Eu era cozinheira, mas não me lembro. Não se deve falar disso agora. vou à missa das oito para
rezar por Dom Anselmo, para que descanse na morte. E depois irei velá-lo.
- Que idade você tinha? - grunhe o Padre Garcia.
- Não me lembro de como você era. De Anselmo e das perdidas, sim, mas não de você.
- Era uma criança, padrezinho. - A mão de Angélica Mercedes é um rápido, eficiente abanador: nenhuma mosca se aproxima do prato de tira-gosto, nem dos sucos.
- Não mais de quinze anos - diz o Doutor Zevallos. E que bonita, comadre. Nós todos olhávamos para você e Anselmo, porém, ainda não é mulher, olha-se mas não se
toca,
cuidando de você como de sua filha.
- Eu era virgenzinha, e o Padre Garcia não acreditava - um brilho maroto anima os olhos de Angélica Mercedes, mas seu rosto é sempre uma severa máscara. - Ia me
confessar tremendo, e o senhor, sempre, saia daquela casa do Diabo, você já está condenada. Também não se lembra, padre?
- O que se fala no confessionário é segredo - grunhe o Padre Garcia, com uma espécie de rouquidão alegre.
- Guarde essas histórias para você.
- Casa do Diabo - diz o Doutor Zevallos. - Ainda acredita que Anselmo era o Diabo? É verdade que cheirava a enxofre, ou era para assustar os beatos?
Angélica Mercedes e o doutor sorriem e, sob o cachecol, logo em seguida, soa algo inesperado e rude, híbrido como um acesso de tosse e riso sufocante.
- Naquele tempo só estava lá, na Casa Verde - diz o Padre Garcia pigarreando. - O Chifrudo está agora por toda parte. Na casa da machorra, e na rua e nos cinemas,
toda Piura virou a casa do Chifrudo.
- Mas não a Mangachería, padrezinho - diz Angélica Mercedes. - Aqui não entrou nunca, não o deixamos, Santa Domitila nos ajuda nisso.
- Ainda não é santa - diz o Padre Garcia. - Você não ia nos fazer café?
- Sim, já está pronto - diz Angélica Mercedes. vou trazê-lo.
- Faz pelo menos vinte anos que não passava uma noite em claro
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- diz o Doutor Zevallos. - E agora perdi o sono de todo.
As moscas, logo que Angélica Mercedes dá meia-volta, retornam e caem sobre o prato de tira-gosto, salpicam-no de pontos escuros. De novo, crianças esfarrapadas correm
diante da porta e, através dos bambus, se vê passar gente falando alto, e um grupo de velhos que toma sol e conversa diante da cabana da frente.
- Pelo menos se sentia arrependido? - grunhia o Padre Garcia. - Percebia que aquela menina morrera por sua culpa?
- Saiu correndo atrás de mim - diz o Doutor Zevallos.
- Espojava-se no areal, queria que o matasse. Levei-o para minha casa, dei uma injeção nele e o mandei embora. Não sei nada, não vi nada, vá para casa. Mas não foi,
desceu o rio e ali ficou esperando a lavadeira, como se chamava? Aquela que criou a Antônia.
- Sempre foi louco - grunhe o Padre Garcia. Espero que tenha se arrependido e que Deus lhe tenha perdoado.
- E ainda que não se arrependesse, teve bastante castigo com o que sofreu - diz o Doutor Zevallos. - Além disso, seria preciso saber se realmente merecia castigo.
E se Antônia, ao invés de vítima, foi sua cúmplice? Se não se apaixonou por ele?
- Não diga disparates - grunhe o Padre Garcia. vou pensar que está caducando.
- É uma coisa que tenho me perguntado sempre diz o Doutor Zevallos. - As mulheres diziam que ele a mimava, e que a moça parecia contente.
- Agora já lhe parece normal? - grunhe o Padre Garcia. - Raptar uma cega, metê-la em um prostíbulo, engravidá-la. Estava certo que fizesse isso? A coisa mais natural
do mundo? Deveriam recompensá-lo por esse favor?
- Não tem nada de normal - diz o Doutor Zevallos -, mas não levante a voz, cuidado com sua asma. Só digo que ninguém sabe o que ela pensava. Antônia não sabia o
que
era bom nem mau, e depois de tudo, graças a Anselmo, foi uma mulher completa. Eu sempre pensei. . .
- Cale-se, homem! - o Padre Garcia lança-se com as mãos contra as moscas, que fogem, espavoridas. - Uma mulher completa! As freiras são incompletas? Os padres são
incompletos, porque não fazem porcarias? Não permito heresias tão estúpidas.
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- O senhor está lutando contra fantasmas - sorri o Doutor Zevallos. - Só queria dizer que acredito que Anselmo a amou de verdade, e que provavelmente ela o amou
também.
- Esta conversa não me agrada - grunhe o Padre Garcia. - Não vamos chegar a um acordo, e não quero brigar com o senhor.
- Só faltava isto - murmura o Doutor Zevallos. - Olhe quem chega.
Eram os invencíveis, não queriam trabalhar, só beber, só jogar, eram os invencíveis e vinham tomar café, puxa: quem estava ali.
- Vamo-nos - grunhe o Padre Garcia, -exasperado. - Não quero ficar junto desses bandidos.
Mas os León não lhe dão tempo de se levantar e caem sobre ele batendo palmas, Padre Garcia, os cabelos emaranhados, padrezinho, os olhos cheios de ressacas noturnas.
Pulam em volta do Padre Garcia, hoje cairia neve em Piura e não areia, procuram apertar sua mão, era o milagre dos milagres, batem em suas costas, era feriado para
os mangaches receberem visita. Estão de camisetas, sem meias, os sapatos desamarrados, cheiram a suor, e o Padre Garcia, escondido atrás do cachecol, sob o chapéu,
que pôs apressadamente, permanece imóvel, olha fixamente o tira-gosto, atacado de novo pelas moscas.
- Não admito que lhe faltem com o respeito - diz o Doutor Zevallos. - Cuidado com a língua, rapazes. É um homem de batina e encanecido.
- Mas ninguém está faltando com o respeito, doutor
- diz o Mono. - Estamos felicíssimos de vê-lo aqui, palavra, só queremos que nos dê a mão.
- Nunca se viu um mangache quebrar a hospitalidade, doutor - diz José. - bom dia, Dona Angélica. É preciso comemorar o acontecimento, traga algo para brindar com
o Padre Garcia. Vamos fazer as pazes com ele.
Angélica Mercedes chega com duas xícaras de café nas mãos, muito séria.
- Por que essa cara zangada, Dona Angélica? - pergunta o Mono. - Não está contente com esta visita?
- Vocês são o pior que há nesta cidade - grunhe o Padre Garcia. - O pecado original de Piura. Nem que me matem tomarei alguma coisa com vocês.
- Não se enfureça, Padre Garcia - diz o Mono.
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- Não o estamos gozando, estamos contentes de verdade que tenha voltado à Mangachería.
- Corruptos, vagabundos - o Padre Garcia iniciou uma nova ofensiva contra as moscas. - com que direito me falam, seus perdidos!
- Veja o senhor, Doutor Zevallos - diz o Mono. Quem está faltando com o respeito.
- Deixem o padre tranqüilo - diz Angélica Mercedes. - Dom Anselmo morreu. O padre e o doutor foram atendê-lo, não dormiram toda a noite.
Põe a xícara sobre a mesa, volta à cozinha, e, quando sua silhueta desaparece na peça do fundo, só se ouve o tilintar das colherinhas, os sorvos de café do Doutor
Zevallos,
a ofegante respiração do Padre Garcia. Os León se olham, estonteados.
- Estão vendo, rapazes - diz o Doutor Zevallos. - Não é dia para brincadeiras.
- Dom Anselmo morreu - diz José. - Perdemos o harpista, Mono.
- Era um grande homem, doutor - balbucia o Mono. - Era um grande artista, doutor, uma glória de Piura. E o melhor de todos. Minha alma está partida, Doutor Zevallos.
- Como se fosse o pai de todos nós, doutor - diz José. - O Bolas e o Joven devem estar morrendo de dor, Mono. Os seus discípulos, doutor, unha e carne com o harpista.
O senhor não sabe como cuidavam dele, doutor.
- Não sabíamos de nada, Padre Garcia - diz o Mono. - Nós lhe pedimos perdão por estas brincadeiras.
- Morreu assim, de repente? - perguntou José. Ontem estava muito-bem. À noite comemos com ele aqui, Doutor Zevallos, e ele ria e brincava.
- Onde está, doutor? - perguntou o Mono. - Temos de ir vê-lo, José, temos de arranjar gravatas pretas.
- Está lá, onde morreu - diz o Doutor Zevallos. - Na casa da Chunga.
- Morreu na Casa Verde? - perguntou o Mono. Nem sequer levaram o harpista a um hospital?
- Isso é um terremoto para a Mangachería, doutor
- diz José. - Não será mais a mesma sem o harpista.
Balançam as cabeças, consternados, incrédulos, e prosseguem em seus monólogos e diálogos, enquanto o Padre Garcia bebe seu café, sem afastar a xícara dos lábios,
que mal saem do cachecol. O Doutor Zevallos tomou o seu, e agora brinca com a colherinha, tenta mantê-la em equilíbrio na
ponta de um dedo.
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Os León se calam, finalmente, e sentam-se em uma mesa vizinha. O Doutor Zevallos oferece cigarros. Quando Angélica Mercedes entra, pouco depois, eles
fumam em silêncio, igualmente deprimidos e carrancudos.
- Por isso é que o Lituma não veio - diz o Mono.
- Deve estar fazendo companhia à Chunguita.
- Fazia-se de indiferente, de mulher fria - diz José.
- Mas no fundo deve estar sofrendo também. Não acha, Dona Angélica? O sangue chama o sangue.
- Deve estar com pena, talvez - diz Angélica Mercedes. - Mas com aquela nunca se pode saber, por acaso era uma boa filha?
- Por que diz isso, comadre? - pergunta o Doutor Zevallos.
- O senhor acha que era certo ter o pai como empregado? - pergunta Angélica Mercedes.
- Tudo parece certo ao Doutor Zevallos - grunhe o Padre Garcia. - com a velhice, descobriu que não há nada de mau no mundo.
- O senhor diz isso com sarcasmo - sorri o Doutor Zevallos. - Mas, veja bem, há um pouco de verdade nisso.
- Dom Anselmo teria morrido se não tocasse, Dona Angélica - diz o Mono. - Os artistas vivem de sua arte. Que tinha de errado que tocasse lá? A Chunguita pagava bem.
- Tome depressa o café, meu amigo - diz o Doutor Zevallos. - O sono me veio de repente, meus olhos estão se fechando.
- Aí está nosso primo, Mono - diz José. - Que cara aflita ele tem.
O Padre Garcia afunda o nariz na xícara de café, solta um grunhido surdo quando a Selvática, os sapatos na mão, os olhos muito maquilados e a boca sem pintura, abaixa-se
até ele e beija sua mão. Lituma sacode o pó que suja seu terno cinza, a gravata de pintas verdes, os sapatos amarelos. Tem os cabelos despenteados e brilhantes de
vaselina, as feições extenuadas, e cumprimenta muito sério o Doutor Zevallos.
- Vão velá-lo aqui, Dona Angélica - diz. - A Chunga me encarregou de avisar.
- Na minha casa? - pergunta Angélica Mercedes.
- E por que não o deixam onde está? Para que vão mexer com o coitado?
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- Você quer que o velem num prostíbulo? - ronca o Padre Garcia. - Onde é que você tem a cabeça?
- Fico feliz por emprestar minha casa, padre - diz Angélica Mercedes. - Mas pensei que era pecado andar com o defunto de um lado para outro. Não é sacrilégio?
- E por acaso você sabe o que quer dizer sacrilégio?
- grunhe o Padre Garcia. - Não fale do que não entende.
- O Bolas e o Joven foram comprar o caixão e tratar da questão do cemitério - Lituma sentou-se entre os León.
- Vão trazê-lo depois. A Chunga pagará tudo, Dona Angélica, os licores, as flores, pede que a senhora empreste a casa.
- Eu acho muito bom que o velório seja na Mangachería - diz o Mono. - Era um mangache, que seus irmãos o velem.
- Ela gostaria que o senhor rezasse a missa, Padre Garcia - diz Lituma, tratando de ser natural, mas sua voz é muito lenta. - Fomos à sua casa dizer isso, mas não
atenderam. Que sorte encontrá-lo aqui.
A cabaça vazia cai no chão e há um torvelinho de pregas negras sobre a mesa, com que licença, o Padre Garcia golpeia o prato de tira-gosto, quem o autorizara a
lhe dirigir a palavra, e Lituma levanta-se de um salto, incendiário, que
tom era esse: incendiário. O Padre Garcia tenta se levantar e gesticula entre os braços
do Doutor Zevallos, seu canalha, chacal, e a Selvática puxa o casaco de Lituma, que ficasse calado, dando gritinhos, que não o desrespeitasse, era um padre, que
tapassem
sua boca. Logo iria para o inferno, seu canalha, aí pagaria por tudo, sabia o que era o inferno, seu canalha? O rosto inflamado, a boca torcida, o Padre Garcia treme
como uma vara verde, e Lituma sacode a Selvática sem poder afastá-la, incendiário, não o estava insultando, não o chamava de canalha, incendiário, e Padre Garcia
perde, recupera a voz, era pior que aquela perdida que o sustentava, e estende suas mãos exasperadas no vazio, um parasita da imundície, um chacal, e agora também
os León seguravam Lituma: ia quebrar o focinho daquele velho, não agüentava, ainda que fosse padre, incendiário de merda. A Selvática começou a chorar, e Angélica
Mercedes tem um banquinho nas mãos, balança-o na frente de Lituma, disposta a quebrá-lo na cabeça dele se avançasse um milímetro. Na porta, atrás dos bambus, em
toda a redondeza, há cabeças atentas e excitadas, olhos, cabeleiras, cotovelaços e um vozerio crescente que parece propagar-se até o resto do bairro,
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e os nomes do harpista, dos invencíveis e do Padre Garcia despontam, às vezes, entre o coro berrado das crianças: incendiário, incendiário. Agora o Padre Garcia
tosse, os braços no alto, olhos esbugalhados, vermelho como uma brasa, a língua para fora, e espalha saliva à sua volta. O Doutor Zevallos segura suas mãos no alto,
a Selvática abana, Angélica Mercedes dá batidinhas suaves nas suas costas, e Lituma parece agora confuso.
- Qualquer um solta a língua quando é insultado assim - diz com voz vacilante. - Não é por minha culpa, vocês viram que foi ele que começou.
- Mas você o desrespeitou, e, além disso, é velhinho, primo - diz o Mono. - Passou toda a noite sem pregar os olhos.
- Você não devia, Lituma - diz José. - Peça desculpas, homem, olhe como você o fez ficar.
- Peço desculpas - gaguejou Lituma. - Agora acalme-se, Padre Garcia. Também, não é para tanto.
Mas o Padre Garcia continua estremecido de tosse e de arrancos, e tem o rosto empapado de ranho, baba e lágrimas. A Selvática limpa sua testa com a saia, Angélica
Mercedes tenta fazê-lo beber um copinho de água, e Lituma empalidece, estava pedindo desculpas, padre, e fica a gritar, que mais queriam que fizesse, amedrontado,
se ele não queria que morresse, que desgraça, e retorce as mãos.
- Não se assuste - diz o Doutor Zevallos. - É a asma e a areia que se meteram em sua garganta. Vai passar logo.
Mas Lituma não pode dominar mais os nervos, insultava-o, e ele mesmo se alterava, e se lamenta quase chorando entre os León, que o abraçam, andava amargurado com
tanta desgraça, faz beicinho e, por um momento, parece que ia romper em soluços, primo, tranqüilo, eles compreendiam, e ele, batendo no peito: tinham despido o harpista,
lavado, vestido de novo, não havia quem resistisse, era humano. E eles, que se acalmasse, primo, coragem, mas ele não podia, porra, porra, não podia, e desaba sobre
um banquinho, a cabeça entre as mãos. O Padre Garcia deixou de tossir e, embora respire com esforço, está com o rosto mais sereno. A Selvática está ajoelhada junto
dele, padrezinho, estava melhor? e ele concorda, pensava que fosse uma perdida, isso era com ela, grunhindo, infeliz, mas tinha que ser burra, condenando-se por
sustentar um inútil, um assassino, tinha que ser burra, e era sim, padrezinho, mas que não se zangasse, que se acalmasse, já tinha passado.
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- Deixe que ele o insulte se isso o tranqüiliza, primo
- diz o Mono.
- Está bem, deixo, me agüento - sussurra Lituma.
- Que me insulte, chame de assassino, inútil, que continue, tudo o que quiser.
- Cale-se, chacal - grunhe o Padre Garcia, sem ímpeto, com evidente repugnância, e na porta, atrás dos bambus, há uma onda de risos. - Silêncio, chacal.
- Estou calado - ruge Lituma. - Mas não me insulte mais, sou um homem, não me agrada, feche sua boca, Padre Garcia. Peça a ele, Doutor Zevallos.
- Já passou, padrezinho - diz Angélica Mercedes.
- Não diga palavrões, no senhor parece pecado, padre, não se enfureça assim. Quer outro cafezinho?
O Padre Garcia tira um lenço amarelado do bolso, está bem, outro cafezinho, e se assoa com força. O Doutor Zevallos ajeita as sobrancelhas, limpa a saliva das lapelas
com um gesto de aborrecimento. A Selvática passa a mão pela testa do Padre Garcia, assenta suas mechas das frontes, e ele está enfadado e dócil.
- Meu primo quer lhe pedir perdão, Padre Garcia diz o Mono. - Sente muito o que aconteceu.
- Que peça perdão a Deus, e deixe de explorar as mulheres - resmunga tranqüilamente o Padre Garcia, completamente apaziguado. - E vocês também peçam perdão a Deus,
seus vadios. Você sustenta também esta dupla de vagabundos?
- Sim, padrezinho - diz a Selvática, e há uma nova onda de risos na rua. O Doutor Zevallos ouve com ar divertido.
- Não se pode dizer que não seja franca - diz o Padre Garcia, esgaravatando o nariz com o lenço. - Que idiota completa você é, infeliz.
- Eu digo isso para mim muitas vezes, padre - reconhece a Selvática, esfregando a testa rugosa do Padre Garcia. - E digo isso na cara deles, não pense que não.
Angélica Mercedes traz outra xícara de café, a Selvática volta à mesa dos León, e a gente amontoada na porta e atrás dos bambus, após um momento, começa a se desagregar.
As crianças retornam às suas correrias empoeiradas, de novo se ouvem suas vozes finas e estridentes. Os transeuntes param diante do bar, metem a cabeça, miram o
Padre Garcia, que, curvado, bebe seu café a golinhos, partem. Angélica Mercedes, os invencíveis e a Selvática falam, a meia voz, de carnes e bebidas,

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calculam quanta gente virá ao velório, murmuram nomes, cifras, e discutem preços.
- Acabou seu café? - pergunta o Doutor Zevallos. Já tivemos agitação de sobra por hoje, vamos para a cama.
Não há resposta: o Padre Garcia dorme aprazivelmente, a cabeça caída sobre o peito, uma ponta do cachecol mergulhada na xícara.
- Adormeceu - diz o Doutor Zevallos. - Não sei se devo acordá-lo.
- Quer que preparemos uma caminha para ele? pergunta Angélica Mercedes. - No outro quarto, doutor. Nós o abrigaremos bem, não faremos barulho.
- Não, não, quando acordar eu o levo - diz o Doutor Zevallos. - Ele não dá nunca seu braço a torcer, mas eu o conheço. A morte do Anselmo o abateu bastante.
- Devia estar contente - sussurrou o Mono, desolado. - Sempre que via Dom Anselmo na rua o insultava. Tinha ódio dele.
- E o harpista não respondia, fazia como se não tivesse ouvido e ia para a outra calçada - diz José.
- Não o odiava tanto - diz o Doutor Zevallos. - Pelo menos nestes últimos anos, só que era um costume nele, um vício.
- Quando devia ser o contrário - diz o Mono. Dom Anselmo, sim, tinha razões para odiá-lo.
- Não diga isso, é pecado - diz a Selvática. - Os padres são os ministros de Deus, não se pode odiá-los.
- Se é verdade que pôs fogo na sua casa, por aí se vê a alma grande que tinha o harpista - diz o Mono. - Nunca ouvi dele nem meia palavra contra o Padre Garcia.
- É verdade que queimaram a casa de Dom Anselmo, doutor? - pergunta a Selvática.
- Já não lhe contei essa história cem vezes? - pergunta Lituma. - Por que tem de perguntar ao doutor?
- Porque você sempre me conta diferente - diz a Selvática. -- Pergunto porque quero saber como foi de verdade.
-- Cale-se, deixe os homens conversarem em paz diz Lituma.
- Eu também gostava do harpista - diz a Selvática.
- Tinha mais afinidade com ele do que você; por acaso, não era meu conterrâneo?
- Seu conterrâneo? - pergunta o Doutor Zevallos, interrompendo um bocejo.
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- Claro, moça - diz Dom Anselmo. - Como vê, mas não de Santa Maria de Nieva, nem sei onde fica esse povoado.
- É mesmo, Dom Anselmo? - pergunta a Selvática.
- O senhor também nasceu lá? Não é verdade que a selva é linda, com tantas árvores e tantos passarinhos? Não é verdade que a gente de lá é melhor?
- A gente é igual em toda parte, moça - diz o harpista. - Mas é verdade que a selva é linda. Já me esqueci de tudo o que tem, menos da cor, por isso pintei de verde
a harpa.
- Aqui todos me desprezam, Dom Anselmo - diz a Selvática. - Me chamam de Selvática como um insulto.
- Não pense assim, moça - diz Dom Anselmo. - É como um carinho. Eu não me incomodaria se me chamassem de Selvático.
- É curioso - o Doutor Zevallos coça o pescoço enquanto boceja. - Mas é possível, afinal de contas. É verdade que tinha a harpa pintada de verde, rapazes?
- Dom Anselmo era mangache - diz o Mono. Nasceu aqui, no bairro, e nunca saiu daqui. Mil vezes ouvi ele dizer, sou o mais velho dos mangaches.
- Claro que era - afirma a Selvática. - E sempre fazia o Bolas pintá-la de novo.
- Anselmo, selvático? - pergunta o Doutor Zevallos. É possível, afinal de contas, por que não, mas que estranho.
- São mentiras desta mulher, doutor - diz Lituma.
- Para nós, a Selvática nunca disse isso, acaba de inventar. Vamos ver, por que só agora conta?
- Ninguém me perguntou - diz a Selvática. - Você não fala que as mulheres têm de viver com a boca fechada?
- E por que ele contou isso a você? - pergunta o Doutor Zevallos. - Antes, quando a gente queria saber onde tinha nascido, mudava de conversa.
- Porque eu também sou selvática - diz ela, e lança um olhar orgulhoso à sua volta. - Porque éramos conterrâneos.
- Você está nos gozando, noviça - diz Lituma.
- Noviça, mas bem que você gosta do meu dinheiro
- diz a Selvática. - Meu dinheiro também tem jeito de noviça?
Os León e Angélica Mercedes sorriem, Lituma enrugou a testa,
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o Doutor Zevallos continua coçando o pescoço, com olhos melancólicos.
- Não me irrite, chininha - Lituma sorri artificialmente. - Não é dia para discussões.
- Cuidado para que ela não se irrite - diz Angélica Mercedes. - E o abandone e você morra de fome. Não se meta com o homem da família, invencível.
Os León aplaudem-na, seus rostos não estão mais de luto, mas muito alegres, e Lituma acaba rindo também, Dona Angélica, com bom humor, que se fosse quando quisesse.
Ela andava grudada neles como um carrapato, e tinha mais medo de Josefino que do Diabo. E se o abandonasse, Josefino a mataria.
- Nunca mais Anselmo falou da selva, moça? pergunta o Doutor Zevallos.
- Era mangache, doutor - assegura o Mono. - Esta mulher inventou que era seu conterrâneo porque ele está morto e não pode se defender, só para se fazer de importante.
- Uma vez perguntei se tinha família lá - diz a Selvática. - Quem sabe, disse, já devem ter morrido todos. Mas outras vezes negava e me dizia, nasci mangache e morrerei
mangache.
- Está vendo, doutor? - pergunta José. - Se alguma vez contou que era seu conterrâneo, foi de brincadeira. Afinal, agora você diz a verdade, prima.
- Não sou sua prima - diz a Selvática. - Sou uma puta e uma noviça.
- Que o Padre Garcia não a ouça, porque terá outro ataque de raiva - diz o Doutor Zevallos, um dedo sobre os lábios. - E o que é feito do outro invencível, rapazes?
Por que não andam mais com ele?
- Brigamos, doutor - diz o Mono. - Nós proibimos a sua entrada na Mangachería.
- Era um mau-caráter, doutor - diz José. - Gente ruim. Não soube que se afundou na vida? Esteve até preso por ser ladrão.
- Mas antes eram inseparáveis e andavam com ele chateando a paciência de toda Piura - diz o Doutor Zevallos.
- O que acontece é que ele não era mangache - diz o Mono. - Um mau amigo, doutor.
- É preciso contratar um padre - diz Angélica Mercedes. - Para a missa, e também para que venha ao velório e reze por ele.
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Ao ouvi-la, os León e Lituma simultaneamente espertam os rostos, franzem o cenho, concordam.
- Algum padre do Salesiano, Dona Angélica - diz o Mono. - Quer que a acompanhe? Há um simpático, que joga futebol com as crianças. O Padre Doménico.
- Sabe futebol mas não sabe espanhol - grunhe, afonicamente, o cachecol. - O Padre Doménico, que disparate.
- Como o senhor quiser, padre - diz Angélica Mercedes. - Era para ter um velório como Deus manda, o senhor entende? A quem poderíamos chamar, então?
O Padre Garcia se levantou e está ajeitando o chapéu. O Doutor Zevallos também se levantou.
- Virei eu - o Padre Garcia faz um gesto impaciente.
- Aquela machorra não pediu que eu viesse? Para que tanta conversa fiada, então?
- Sim, padrezinho - diz a Selvática. - A Senhora Chunga preferia que o senhor viesse.
O Padre Garcia caminha até a porta, curvado e escuro, sem levantar os pés do chão. O Doutor Zevallos tira sua carteira.
- Não faltava mais nada, doutor - diz Angélica Mercedes. - É convite meu, pelo prazer que me deu trazendo o padre.
- Obrigado, comadre - diz o Doutor Zevallos. - Mas deixo isso, de qualquer maneira, para os gastos do velório. Até a noite, eu também virei.
A Selvática e Angélica Mercedes acompanham o Doutor Zevallos até a porta, beijam a mão do Padre Garcia e voltam ao bar. De braços dados, o Padre Garcia e o Doutor
Zevallos
caminham dentro de uma nuvem de pó, sob um sol brilhante, entre burros carregados de lenha e de moringas, cachorros peludos e crianças, incendiário, incendiário,
incendiário, incendiário, de vozes agressivas e infatigáveis. O Padre Garcia não se perturba: arrasta os pés com dificuldade e vai com a cabeça pendurada sobre
o peito, tossindo e pigarreando. Ao tomar uma ruazinha reta, um poderoso rumor vem a seu encontro, e eles têm que se encostar a um tabique de bambus para não serem
atropelados pela massa de homens e mulheres que escolta um velho táxi. Uma buzina raquítica e desafinada atravessa o ar o tempo todo. Das choças, sai gente que se
soma ao tumulto, e algumas mulheres se lamentam e outras levantam seus dedos em cruz para o céu. Uma criança se põe à frente deles, sem os olhar, os olhos vivos
e aturdidos,
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morreu o harpista, puxa a manga do Doutor Zevallos, estavam trazendo-o no táxi, com sua harpa, e todos o acompanhavam, e sai disparado, gesticulando.
Afinal, termina de passar a multidão. O Padre Garcia e o Doutor Zevallos chegam à Avenida Sánchez Cerro, com passinhos muito curtos, exaustos.
- Eu virei buscá-lo - diz o Doutor Zevallos. - Iremos juntos ao velório. Trate de dormir umas oito horas, pelo menos.
- Está bem, está bem - grunhe o Padre Garcia. Não fique me dando conselhos o tempo todo.
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HISTÓRIA SECRETA DE UM ROMANCE'
CARLOS FUENTES
' Esta conferência, originalmente escrita num inglês um tanto rudimentar, porém mais tarde purificado por meu amigo Robert B. Knox, foi lida na Washington State
University (Pullman, Washington) no dia 11 de dezembro de 1968.


Escrever um romance é um ritual semelhante ao striptease. Como a moça que sob impudicos refletores se desfaz das roupas e mostra, um a um, seus íntimos segredos,
o romancista também desnuda sua intimidade em público através de seus romances. Mas, logicamente, existem diferenças. O que o romancista revela não são seus encantos
ocultos, como o faz a desembaraçada moça, senão demônios que o atormentam e o obsediam, ou seja, a parte mais feia de si mesmo: suas nostalgias, culpas e rancores.
Outra diferença é que num strip-tease a moça está vestida no princípio e no final, despida. No caso do romance a trajetória é inversa: no começo o romancista está
despido e no final, vestido. As experiências pessoais (vividas, sonhadas, ouvidas e lidas) que se constituíram no primeiro estímulo para escrever a história ficam
tão maliciosamente disfarçadas durante o processo da criação que quando o romance está terminado quase sempre ninguém, nem o próprio romancista, pode escutar com
facilidade esse coração autobiográfico que bate fatalmente em toda ficção. Escrever um romance é um striptease invertido, e todos os romancistas, discretos exibicionistas.
Pensei que poderia ser interessante para vocês, leitores de romances, assistir a um desses strip-teases dos quais resulta uma ficção. Gostaria de reconstituir
esta noite, numa rigorosa síntese, o processo através do qual nasceu um romance que escrevi entre 1962 e 1965: A Casa Verde. Não pretendo contar-lhes os problemas
técnicos
que tive ao escrevê-lo, mas os fatos que foram as raízes desse romance e o curioso modo pelo qual estas experiências,
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ocorridas em diferentes períodos e circunstâncias, convergiram, se misturaram, transformaram-se mutuamente e, de certa forma, se emanciparam de mim para uma história
verbal.
O romance se passa em dois lugares muito diferentes de meu país. Um é Piura, ao extremo norte da costa, uma cidade cercada por grandes arcais. O segundo, muito longe
de Piura, no outro lado dos Andes, é um pequeno povoado da região amazônica chamado Santa Maria de Nieva. Esses lugares representam dois mundos históricos, sociais
e geográficos completamente opostos e encontram-se isolados um do outro, pois as comunicações entre ambos são dificílimas. Piura é o deserto, a cor amarela, o algodão,
o Peru espanhol, a "civilização". Santa Maria de Nieva é a selva, a exuberância vegetal, a cor verde, tribos que ainda não entraram na história, instituições e costumes
que parecem sobrevivências medievais. Nesses dois cenários fixos, principalmente, passa-se A Casa Verde; há também outro, móvel, o rio Marañón, com o qual corre
outro trecho da história.
A origem deste romance na minha vida ocorreu há vinte e três anos, em 1945, quando minha família chegou a Piura pela primeira vez (e desde o começo eu nem suspeitava).
Ali vivemos apenas um ano, e em seguida minha mãe e eu nos mudamos para Lima. Esse ano que passei em Piura, quando era um garoto de nove anos, foi decisivo para
mim. As coisas que fiz, as pessoas que conheci, as ruas, as pracinhas, as igrejas, o rio e as dunas onde meus companheiros do Colégio Salesiano e eu íamos brincar
ficaram gravados a fogo em minha memória. Creio que nenhum outro período, antes ou depois, me marcou tanto quanto esses meses em Piura. Qual a razão? Por que me
lembro desse ano, com tanta nitidez, com essa excessiva riqueza de detalhes? O assunto intriga-me e tentei compreendê-lo várias vezes. Segundo minha mãe, a razão
talvez esteja no fato de que nesse ano vi pela primeira vez o mar. Até então vivêramos em Cochabamba, uma cidade mediterrânea. No meu entender, a descoberta do oceano
Pacífico excitou-me mais que a Balboa, a tal ponto que durante muito tempo sonhei ser marinheiro. Ou talvez tivesse sido a descoberta de meu país, já que 1945 foi
o primeiro ano que passei no Peru (minha família levara-me à Bolívia poucos meses depois que nasci). Nessa época, entre os nove e dez anos, eu era um nacionalista
exaltado. Acreditava que ser peruano era preferível a ser, digamos, equatoriano ou chileno.
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Ainda não havia compreendido que a pátria era uma casualidade irrelevante na vida. Mas talvez a principal razão pela qual essa temporada em Piura afetou-me tão profundamente
tenha se originado do fato de que nesse ano alguns amigos solícitos, numa tarde em que tentávamos nos banhar nas águas já quase moribundas do rio Piura, comunicaram-me
algo que se constituiu num terremoto emocional para mim: que os bebês não vinham de Paris, que não era certo que brancas cegonhas os traziam à vida vindas de exóticas
paragens. Suponho que até então vivia convencido de haver chegado ao mundo nas fogosas asas desse lindo pássaro (que jamais vira) e de que a cegonha me havia depositado
nos braços de minha mãe. O certo é que fiquei seriamente ofendido quando descobri que as coisas haviam corrido de maneira mais terrestre, e foi muito difícil resignar-me
a aceitar a verdadeira origem dos bebês. Ocorre-me ter sido essa a razão: como fiz a explosiva descoberta em Piura, talvez todos os fatos relacionados no espaço
e no tempo com esse acontecimento capital tenham-se instalado, por contágio, com a mesma tenacidade que ele em minha memória. Seja como for, quando parti de Piura
para Lima, no verão de 1946, tinha a cabeça constelada de imagens. com o tempo algumas se foram apagando, outras sobreviveram, tornando-se fracas e descoloridas.
Mas duas delas adquiriram a cada dia mais peso e mais vida e se converteram em duas inseparáveis companheiras e em dois mitos secretos. A primeira era a silhueta
de uma casa erguida nas cercanias de Piura, na outra margem do rio, em pleno deserto, e que podia ser vista do Viejo Puente, solitária entre as dunas de areia. A
casa exercia uma atração fascinante sobre mim e meus companheiros. Era uma construção rústica, mais uma choça que uma casa, tendo sido inteiramente pintada de verde.
Tudo nela era diferente: o fato de estar tão afastada da cidade e sua inusitada cor. A vegetação era rara na Piura de então, as casas não tinham jardins, havia poucas
árvores nas ruas (os algodoais estavam distantes da cidade, só algumas escassas algarobeiras agitavam o areal de vez em quando), e os muros, portas e janelas eram
quase sempre brancos, amarelos, ocre, quase nunca verdes. Talvez tivesse sido sua solidão e sua pele úmida que primeiro despertaram a curiosidade de meus amigos
e a minha em torno dela. Porém, coisas mais inquietantes logo vieram avivar essa curiosidade. Havia algo maligno e enigmático, um orvalho diabólico em torno dessa
habitação que batizáramos de "Casa Verde".
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Tinham-nos proibido que nos aproximássemos dela. Segundo os mais velhos, era perigoso e pecaminoso acercar-se desse lugar, e entrar nele, impensável. Diziam que
era como morrer
ou entrar no inferno. Os adultos envergonhavam-se quando lhes perguntávamos sobre a Casa Verde. O que ocorria em seu interior? Nada, coisas más e perversas, não
façam perguntas tolas, calem-se, vão jogar futebol. Meus amigos e eu nos sentíamos inquietos com essas advertências. Falávamos o tempo todo disso, nossa imaginação
trabalhava tentando adivinhar o que se escondia por trás de tanto mistério. Eu suspeitava que havia algum vínculo entre a Casa Verde e a destruição do mito de Paris
e das brancas cegonhas, mas não era capaz de saber qual, nem como ou por quê. Meus amigos e eu não nos atrevíamos a acercar-nos muito da Casa Verde porque, ao mesmo
tempo em que nos atraía, também nos assustava. Mas todo o tempo íamos espiá-la. Tínhamos um formidável posto de observação no Viejo Puente. Observar a Casa Verde
de noite era verdadeiramente divertido, uma vez que durante o dia essa pequena construção era quieta, pacífica e inofensiva. Parecia um lagarto dormindo na areia,
uma árvore tomando sol. Mas ao anoitecer a Casa Verde tornava-se um ser vivente e lúcido, alegre e barulhento. Podíamos ver as luzes e apreciar a música: porque
nas noites da Casa Verde se cantava e se dançava. Mas do Viejo Puente meus companheiros e eu podíamos também e isso era ainda mais excitante - reconhecer os visitantes
da Casa Verde. Porque, assim que desciam as sombras sobre Piura, a Casa Verde começava a receber muitas visitas e, curiosamente, só masculinas. Espiávamos e disfarçávamonos
quando reconhecíamos nossos irmãos, nossos tios, nossos próprios pais atravessando sigilosamente o Viejo Puente. Ao nos ver surgir diante deles, alarmavam-se e confundiam-se.
Enlouqueciam de raiva ao nos ouvir gritar seus nomes. Não queriam que soubéssemos que freqüentavam a Casa Verde, e para silenciar-nos tentavam nos subornar ou nos
castigavam. Outra brincadeira que eu e meus amigos costumávamos fazer era reconhecer uma das senhoras que viviam na Casa Verde quando ia à cidade fazer compras,
à igreja ou ao cinema, já que nessa estranha habitação havia mais um mistério: só existiam mulheres. Não recordo qual de nós, talvez eu mesmo, começou um dia a chamar
de "habitantes" as enfeitadas senhoras da Casa Verde. Desde então só as chamávamos assim. Logo que reconhecíamos uma dessas elegantes e orgulhosas senhoras na rua,
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corríamos atrás dela rodeando-a e gritando: "Ei, habitante, moradora da Casa Verde!" Então a senhora perdia a compostura, enrubescia, vinha ao nosso encalço, atirava
pedras, espantava-nos
com furiosas grosserias. Tampouco as "habitantes" queriam que soubessem que viviam na Casa Verde. Tínhamos no colégio um professor de religião, o Padre Garcia,
um padre velho e mal-humorado que perdia as estribeiras quando se inteirava que estivéramos espiando a Casa Verde ou provocando alguma "habitante". Então repreendia-nos
e nos castigava. Era um apaixonado colecionador de estampas religiosas e seus castigos consistiam sempre em mandar obter alguma peça rara para sua coleção. Bem,
essa era uma das imagens que levei a Lima e que perdurou, marcando obstinadamente minha memória.
A outra imagem que, como a Casa Verde, viveu e cresceu comigo era a de um bairro piurano, um setor curiosíssimo da cidade. O bairro chamava-se Mangachería. Vivia
nele uma gente muito pobre, e a maioria de suas casas eram frágeis cabanas de barro e cana-brava, erguidas na areia, porque a Mangachería se achava também no deserto,
exatamente no ângulo da cidade oposto ao da Casa Verde. Esse bairro miserável era o mais alegre e o mais original de Piura. Em muitas de suas choças uma haste rústica
desfraldava bandeirinhas vermelhas ou brancas sobre os telhados. Estas choupanas eram as chicherías e as picanterías, onde se podiam beber todas as variedades da
chicha, desde a clarinha até a mais espessa, e saborear os inúmeros pratos da cozinha local. Todos os conjuntos musicais, todas as orquestras piuranas haviam nascido
na Mangachería. Os melhores violonistas, os melhores harpistas, os melhores compositores de valses e tonderos, os melhores cantadores da cidade eram mangaches. O
bairro tinha uma personalidade poderosa e diferente. Todos os mangaches sentiam-se orgulhosos de haverem nascido e de viverem no bairro. Primeiro eram mangaches,
depois piuranos, e só então peruanos. A rivalidade da Mangachería com outro bairro da Piura, a Gallinacera, fora algo lendário e provocara combates corpo a corpo
e a faca, desafios individuais e lutas coletivas. Entretanto, nessa ocasião a Gallinacera já se havia dissolvido no que poderíamos chamar, com um pouco de ironia,
de civilização. Era um bairro modesto, de empregados, comerciantes e artesãos, e só a Mangachería representava ainda a antiga, colorida e ruidosa vida bárbara da
cidade. Uma lenda circulava em Piura sobre a Mangachería:
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que os mangaches jamais haviam permitido que uma patrulha da Guarda Civil entrasse à noite no bairro. Os mangaches odiavam os policiais. O homem fardado que se aventurasse
pelo bairro
era insultado, sofria zombarias, era apedrejado pelos meninos e quase sempre agredido. Os mangaches odiavam a polícia, entre outras razões porque a Mangachería era
também o berço dos ladrões mais audazes, dos mais inventivos e eficazes delinqüentes de Piura. Nesse ano de 1945 li vários romances de Alexandre Dumas que me encantaram
(e ainda me fascinam), e os lia com essa paixão tão pura e ardente de quem os lê aos dez anos de idade. Recordo muito bem que, quando aparecia nos romances de Dumas
o Pátio dos Milagres, esse alucinante bairro (segundo a visão que dele nos deram os românticos) da antiga Paris, refúgio de aventureiros e criminosos, imediatamente
pensava na Mangachería. Essa identificação perdurou em minha mente. Não posso ouvir mencionar o Pátio dos Milagres sem deixar de visualizar, no mesmo instante, as
choças, as chicherías, os cachorros vira-latas, os burrinhos (chamados piajenos), os mangaches ruidosos e brigões.
Outra característica dos mangaches consistia em serem eles "urristas", ou seja, filiados ou simpatizantes do Partido União Revolucionária, fundado pelo General Sánchez
Cerro e por Luis A. Flores, um dos poucos entusiastas que teve o fascismo no Peru. Os mangaches não eram urristas por adesão à ideologia fascista, que ignoravam,
mas sim por devoção pessoal ao General Sánchez Cerro, o qual, segundo um mito falso e pertinaz, nascera em uma choça da Mangachería. Diziam que, lá pelos anos 30,
Flores organizara manifestações urristas nas quais os mangaches desfilaram com camisas e trapos negros, fazendo a saudação imperial pelas ruas de Piura. Em 1945,
a União Revolucionária dissimulava com afinco esses antecedentes totalitários e se apresentava como um partido democrático. Para essa época o urrismo era uma curiosidade
arqueológica no Peru. Só em Piura tinha certa raíz popular, pela lealdade pitoresca e irracional da Mangachería à figura de Sánchez Cerro, morto já há vários anos.
Também num sentido político, Piura significava um caso à parte no país: era o único lugar onde se podia falar de um certo equilíbrio de partidos, ao passo que no
resto do Peru todo o povo organizado, ou quase todo ele, era aprista. Os outros partidos só reuniam comitês e grupos reduzidos. Em Piura eram partidos de massas:
o urrismo, o aprismo e o Partido Socialista,
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este último também por lealdade pessoal de bom número de camponeses e operários à admirável figura de Hildebrando Castro Pozo, um grande lutador social piurano.
Certos bairros eram
apristas, outros socialistas e a Mangachería era urrista. Em todas as choças mangaches havia fotos recortadas de jornais e revistas, já amareladas, do General Sánchez
Cerro.
Outro orgulho do bairro era jamais ter admitido em seu seio uma família aprista. Os mangaches, em suas boêmias e farras, se não cantavam valses e tonderos, davam
vivas a Sánchez Cerro e insultavam o Apra. As brigas políticas eram também, nesse ano de 1945-1946 (um dos mais democráticos e livres de toda a história peruana),
espetáculo cotidiano da cidade. A Mangachería foi outra grande recordação que levei de Piura.
Em Lima ingressei no Colégio La Salle. Cresci. Nos anos seguintes (como vocês poderão imaginar) ocorreram-me coisas mais importantes que os próprios ensinamentos
escolares. Sete anos depois voltei a Piura. Foi em 1952, e também dessa vez, tal como a primeira, vivi um ano nessa cidade. Tinha então dezesseis anos quando terminei
o colégio. A Casa Verde ainda estava lá, no mesmo lugar. E também a Mangachería. A coleção de estampas religiosas do Padre Garcia aumentara, como também seu mau
humor. Ele era um velhinho rabugento que, bradando e agitando os braços, perseguia os meninos que brincavam fazendo algazarra na Plazuela Merino. Já nessa época
eu admitia que a verdadeira origem dos bebês não era tão terrível, e que, inclusive, a coisa tinha certa graça. Meus companheiros de classe (em vez de regressar
ao Salesiano ingressei no Colégio Nacional de San Miguel, e ali reencontrei muitos colegas de classe da época de 1945, que por sua vez também tinham mudado de colégio)
continuavam muito interessados na Casa Verde, e eu também. Os adultos ainda insistiam que não convinha aproximar-se desse lugar, que era perigoso para o corpo e
pernicioso pbra a alma. Contudo, nessa época já não éramos obedientes, já não temíamos o inferno e os perigos físicos e espirituais nos atraíam. Ousávamos dela acercar-nos
e também nela entrar. Assim conheci a Casa Verde por dentro, assim se desfez o mistério de tantos anos. Confesso que senti uma certa desilusão. A realidade encontrava-se
abaixo dos mitos e caminhos com que a fantasia povoara o verde palácio das dunas.
De fato, o palácio revelava-se agora primitivo e paupérrimo. A mansão dos sonhos era apenas um modestíssimo
bordel.
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As senhoras pareciam menos orgulhosas, menos altivas, menos elegantes, mais folclóricas e vulgares que há sete anos. Mas ainda que a imagem que eu forjara
fosse tão diferente, havia algo de feiticeiro e memorável nesse bordel. Era uma instituição subdesenvolvida, nada confortável, mas verdadeiramente original. Consistia
numa só e enorme habitação, cheia de portas que davam para o deserto. Havia uma orquestra de três homens: um velho quase cego que tocava harpa, um violonista e cantor
muito jovem, e uma espécie de gigante, levantador de pesos ou lutador profissional, que tocava o tambor e os pratos. Num canto do salão via-se o bar, um balcão sobre
dois cavaletes onde atendia uma mulher sem idade, de cara amarrada e puritana. Entre o bar e a orquestra estavam as "habitantes", caminhando de um lado para outro,
ora fumando, ora sentadas em toscos bancos, apoiadas na parede, à espera dos visitantes noturnos. Estes chegavam com as sombras. Os visitantes e as "habitantes"
então conversavam, brincavam, dançavam e bebiam. Mais tarde os casais saíam para se amar na areia, ao pé das dunas, sob as fosforescentes estrelas noturnas. Não
havia problema algum: em Piura quase nunca chove, as noites são mornas e estimulantes. Nisso consistia, exceto algumas esporádicas brigas de bêbados ou alguma suntuosa
festa financiada por um grande senhor que celebrava uma colheita notável, todo o mistério da Casa Verde. Quando deixei Piura, nos primeiros meses de 1953, essa nova
imagem do lugar coexistiu com a antiga. Desde então, nunca mais voltei a essa cidade.
Retornei a Lima e ingressei na universidade. Minha família estava convencida de que eu deveria ser advogado porque possuía forte espírito de contradição e detestava
matemática. Coerente com esse espírito de contradição, logo troquei as leis pelas letras e filosofia. Até então eu já vinha há algum tempo escrevendo contos, poemas
e até concluíra uma peça teatral versando sobre os incas. Mas a primeira coisa que julguei escrever seriamente, trabalhando com afinco durante várias semanas, foi
um curto romance ou um extenso relato onde procurei construir uma história inspirada justamente nessas recordações provenientes de Piura: a Casa Verde e a Mangachería.
Mas não recordo o relato: as personagens e a história me fugiram. Só sei que era uma espécie de tragédia, injetada de sangue e fanatismo. Sentime um pavão real quando
a terminei. Pensei que já me tornara um escritor. Dei-a a ler a um amigo, cujo juízo literário
respeitava,
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e ele abriu-me os olhos sem contemplações. "Prefiro o original", disse-me. "Teu relato se parece muito com A letra escarlate, de Hawthorne." E com
efeito provou-me que minha história repetia com fidelidade alguns detalhes de A letra escarlate. Foi um golpe bastante duro. Eu estava confuso, angustiosamente
consciente das marcas que Darío, Neruda, Vallejo deixavam nos poemas que escrevia, mas com esse relato tive a certeza de que escrevera algo bem pessoal. Não havia
nem remotamente suspeitado, enquanto trabalhava esse texto, que imitava Hawthorne. Como efetivamente me impressionara muito com seu romance, pensei que tinha poucas
esperanças como escritor. Furioso comigo mesmo e com todos, reduzi a pedaços o manuscrito e esqueci a Casa Verde, as "habitantes" e os mangaches. Pensei que os
esquecera, mas o certo é que permaneceram ali no fundo da minha memória, obstinados e invictos.
Apesar dessa lamentável experiência como criador, continuei escrevendo enquanto estudava na universidade, mas não com a idéia de um dia chegar a me tornar escritor.
É muito difícil pensar em "ser um escritor" quando se nasce num país onde quase ninguém lê: os pobres porque não sabem ou porque não possuem os meios para adquirir
conhecimentos, e os ricos porque não sentem vontade. Numa sociedade assim, querer ser escritor não é optar por uma profissão, mas sim por um ato de loucura. Nesses
anos sequer me atrevia a alimentar a ambição de ser somente um escritor. Um dia disse a mim mesmo: apesar de tudo, por que não ser advogado? No dia seguinte tentei
convencer-me de que seria professor, já no outro, que talvez fosse mais sensato dedicar-me ao jornalismo. Mudava minhas decisões e profissões a todo instante e,
paralelamente, continuava escrevendo em segredo, como quem pratica uma vocação vergonhosa. Assim se passaram cinco anos. Em 1957 terminei meus estudos. Havia começado
a trabalhar como auxiliar do curso de literatura peruana na Universidade de San Marcos e tudo indicava que me tornaria professor. No ano seguinte obtive uma bolsa
de estudos para realizar o curso de doutorado em Madri. Já estava preparando as malas quando chegou a Lima um antropólogo mexicano, o Doutor Juan Comas. Vinha ao
Peru
para proceder a certas pesquisas nas tribos da Amazônia. Juntamente com a Universidade de San Marcos, o Instituto Lingüístico de Verano organizou uma expedição
à região, e graças à amizade com uma das organizadoras, Rosita Corpancho,
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tive a sorte de participar do pequeno grupo que acompanhou o Doutor Comas. Estivemos na selva durante várias semanas viajando num pequeno hidroavião e de canoa,
sobretudo pela região do
alto Marañón, onde se encontram, disseminadas num amplo território, as tribos aguarunas e huambisas. Foi assim que conheci essa pequena localidade, Santa Maria de
Nieva, o outro cenário de A Casa Verde. Essa viagem pelo Peru amazônico impressionou-me profundamente. Descobri um rosto de meu país que desconhecia por completo;
até então a selva era um mundo que eu só conhecia através das leituras de Tarzã e de certos seriados cinematográficos. Como alguém que nunca se afastou de Lima ou
da costa, descobri ali que o Peru não somente era um país do século XX com enormes problemas, e que também participava, embora de maneira caótica e desigual, dos
avanços sociais, científicos e técnicos do nosso tempo, mas também que o Peru era a Idade Média e a Idade da Pedra. Descobri que nessa afastada região (afastada
pela ausência de comunicações, embora situada a poucas horas de vôo de Lima) a vida era para os peruanos algo atrasado e selvagem, que a violência e a injustiça
eram ali a primeira lei da existência, não com o refinamento e a sofisticação de Lima, porém de modo mais imediato e descarado. Quando o antropólogo mexicano e
seus acompanhantes voltaram a Lima, eu trazia comigo um pequeno lagarto embalsamado pelos skapras, arco e flechas shipibos e, sobretudo, uma infinidade de recordações
da viagem. Nos anos seguintes, dessa massa de coisas vistas e ouvidas prevaleceriam três, destacando-se como as imagens mais agressivas. A primeira era a missão
de Santa Maria de Nieva. Segundo a tradição, o povoado surgira em redor dessa missão, fundada na década de 40 por freiras espanholas que chegaram a essa inóspita
região com o propósito de catequizar os huambisas e os aguarunas. Tivemos oportunidade de conhecê-las de perto e de presenciar a dura vida que levavam nesse lugar.
Durante os meses de chuvas, quando os riachos que a cercam se convertem em torrentes homicidas, essa localidade ficava isolada do mundo. Assistimos ao enorme sacrifício
que representava para as freiras permanecer em Santa Maria de Nieva. As caras gordas e rosadas das freiras galegas e os rostos morenos das andaluzas haviam sido
feridos pelos insetos e pelas febres, e algumas delas, principalmente as mais velhas, começavam a esquecer sua língua, arranhando o espanhol empobrecido dos indígenas.
Sem dúvida alguma o caso pessoal dessas missionárias era
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digno de respeito e até de admiração. Mas, ao mesmo tempo, percebemos como todos esses heroísmos, em vez de alcançarem a meta que os inspirava, logravam exatamente
o contrário, e como as boas freiras nem sequer remotamente percebiam isso. O que acontecia então? As freiras tinham construído uma escola para os aguarunas. Queriam
ensinarlhes a ler e a escrever e a falar o castelhano, a não viverem nus, a adorarem o verdadeiro Deus. O problema surgira pouco depois de aberta a escola: as meninas
aguarunas não iam à missão e seus pais não se davam ao trabalho de mandá-las; embora a distância entre os povoados aguarunas e Santa Maria de Nieva não fosse grande,
o único meio de transporte era o rio, por isso a viagem demorava horas e, em certos casos, dias. Essa era uma das razões pelas quais a escola das missionárias tinha
poucas alunas. Entretanto, a principal razão provavelmente vinha do fato de as famílias aguarunas não desejarem que suas filhas fossem "civilizadas" pelas irmãs.
E por que motivo se opunham então? Porque desconfiavam que, uma vez "civilizadas", as meninas se afastariam de suas tribos e de suas famílias. Esse era o motivo,
indubitavelmente, pelo qual se negavam a confiar suas respectivas filhas às esforçadas freiras. Contudo, o problema foi resolvido de maneira policial. Ocasionalmente
um grupo de freiras saía acompanhado por uma patrulha de guardas para recolher alunas nas choças dos bosques. As freiras entravam nas aldeias, escolhiam as meninas
em idade escolar e as levavam à missão de Santa Maria de Nieva, tendo os guardas por incumbência neutralizar qualquer resistência. As meninas permaneciam na missão
dois, três ou quatro anos e efetivamente eram civilizadas. Aprendiam a linguagem da civilização, os costumes "civilizados", ler, escrever, coser, bordar, e, naturalmente,
a "verdadeira religião". Aprendiam a vestir-se, a usar sapatos, a cortar os cabelos, a odiar sua condição anterior e a envergonhar-se de suas antigas crenças e costumes.
Mas o que acontecia tão logo essas meninas estivessem devidamente preparadas para a civilização? O problema que se apresentava às freiras era enorme, porque em Santa
Maria de Nieva não havia nada que se assemelhasse à vida civilizada; ali imperava a barbárie. O que fazer dessas meninas? Devolvê-las às tribos, a suas famílias?
Teria sido absurdo e cruel restituí-las a um sistema de vida que lhes haviam sistematicamente ensinado a repudiar e do qual já se lembravam com certo espanto. Dificilmente
se adaptariam à vida de outrora, andando seminuas,
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adorando serpentes ou árvores, sendo uma das duas ou três mulheres-escravas de um cacique. Mas essas meninas tampouco podiam permanecer indefinidamente
com as freiras, pois era preciso dar lugar às novas alunas. Como resolviam as freiras esse segundo problema? Confiavam muitas dessas meninas aos representantes
da civilização que apareciam em Santa Maria de Nieva: oficiais das guarnições da fronteira, comerciantes de Bagua, Contamana ou Iquitos, engenheiros e técnicos que
faziam prospecções petrolíferas na região. As freiras lhes entregavam essas meninas para que fossem trabalhar como empregadas, com toda sorte de recomendações.
Queriam estar seguras de que as meninas não perderiam, em suas novas e afastadas residências, o que haviam adquirido na missão. Faziam-nos prometer que nas novas
famílias as moças continuariam a receber instrução, civilizando-se. Então os oficiais, comerciantes e engenheiros faziam todos os juramentos necessários: naturalmente
que aos domingos iriam à missa; estariam sempre bem-vestidas e, evidentemente, seriam bem tratadas. Em vez de uma, os representantes da civilização às vezes levavam
duas e até três aguarunas, para amigos e parentes. Assim partiam essas moças da selva rumo às cidades, principalmente para Lima, onde, com certeza, terminariam
seus dias como cozinheiras ou babás nas casas miseráveis dos subúrbios ou nas "casas verdes". Inadvertidamente, à custa de tremendos trabalhos, as freiras de Santa
Maria de Nieva estavam fazendo o papel de provedoras de domésticas para famílias da classe média, e povoando com novas inquilinas o inferno dos subúrbios e os prostíbulos
da civilização. A extraordinária ambigüidade de tudo isso pareceu-me quase tão impressionante quanto o invisível drama pelo qual as amáveis freiras missionárias
eram cegas responsáveis.
Não gostaria de lhes dar a impressão de ser ingênuo conservador da teoria voltairiana do bom selvagem corrompido pela civilização cristã. A vida nas tribos está
longe de ser ideal. Tenho bem presente as imagens dos meninos de barrigas-d'água, o fantasma da desnutrição, as cabeleiras cheias de lêndeas, as mulheres deformadas
pelo trabalho animal, as chocantes estatísticas sobre a mortalidade na Amazônia, as histórias de populações dizimadas por uma simples gripe. Estou muito longe de
compartilhar da atitude temível de certos antropólogos que pretendem conservar a todo custo, fielmente intacta, a vida pré-histórica das tribos, para (como o lobo
com Chapeuzinho Vermelho) "estudá-la melhor".
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Nada disso. Só direi que a solução proposta pelas freiras ao drama aguaruna não passava de uma maneira de acrescentar problemas (com abnegada cegueira)
à vida dessa maltratada gente.
Nessa expedição viajava Efraín Morote Best, professor da Universidade de Cuzco, que alguns anos antes fora coordenador do Ministério da Educação na selva. Sua função
era supervisionar e ajudar as escolas indígenas da Amazônia. Durante dois anos Morote percorrera praticamente toda a selva em condições muito difíceis. Às vezes
acompanhado por um guia e outras sozinho, cruzou de canoa os rios amazônicos, dormindo onde o surpreendia a noite, no meio do bosque ou em praias, alimentando-se
do que os indígenas lhe ofereciam. Vangloriava-se de ter feito a barba todos os dias durante essas viagens, de nunca ter cedido à tentação de adotar uma aparência
de "aventureiro" ou "explorador". Morote não se limitara a fornecer material de trabalho aos professores indígenas e a organizar escolas nas tribos. Folclorista
e sociólogo, estudara as condições de vida nos povoados, seus sistemas de trabalho, suas crenças, e também compilara lendas e canções. A presença de Morote Best
foi muito útil para nós: era uma fonte de informação inestimável. Ademais, graças a ele foi-nos possível conversar com os aguarunas, os huambisas e os shapras,
que o conheciam e confiavam nele. Se nos poucos dias que durou nossa viagem pela selva vimos tanta dor, provocava-nos certa angústia imaginar tudo o que já havia
visto Morote em seus dois anos amazônicos. Pequenino, cerimonioso, cultivando o hábito da dicção perfeita como todos os intelectuais cuzquenhos, uns olhos vivos
que demonstravam sua energia, Morote, nesses dois anos, tornara-se mais um defensor das tribos do que um simples inspetor de educação. O Ministério de Educação e
da Guerra e as prefeituras e subprefeituras da selva haviam sido bombardeados durante esses vinte e quatro meses com cartas e informes de Morote, denunciando raptos,
roubos, abusos de autoridade e atentados contra as escolas. Algumas vezes esse homenzinho assustado (como o hidroavião era pequeno, cada vez que íamos decolar o
Doutor Comas costumava erguer sobre os ombros Morote para que a cauda do aparelho ficasse livre de peso) enfrentara pessoalmente os autores das confusões e, logicamente,
conquistara inimigos. Quando estávamos no povoado aguaruna de Urakusa chegou um homem procedente de Santa Maria de Nieva. Ao avistar Morote, deu mostras de uma agitação
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desconcertante e de verdadeiro terror. Pouco depois soubemos a razão. As autoridades desse povoado convenceram os aguarunas e os huambisas da região de que Morote
fora torturado por tê-los enfrentado. Montaram toda uma pantomima: transmitiam aos indígenas um programa de rádio de Lima, com choros, gritos e gemidos, no qual
se dizia: "Estão ouvindo? Esse homem que pede auxílio é Morote, estão matando-o por ter-se metido conosco". Ao se deparar com Morote em Urakusa o homem acreditou
estar diante de um ressuscitado.
Em outro povoado aguaruna onde estivemos numa noite conhecemos Esther Chuwik. Era uma menina de uns dez ou doze anos, alta, abestalhada, de olhos claros e voz suave.
Falava um pouco o espanhol e tivemos oportunidade de conversar com ela durante uma festa que os aguarunas organizaram em nossa honra. Como outras meninas da selva,
fora raptada alguns anos atrás. Seus raptores a levaram primeiramente a Chiclayo e em seguida para Lima, onde a mantiveram como empregada. Morote Best, quando exercia
o cargo de coordenador do Ministério de Educação na selva, chegou certo dia a Chicais, tendo o professor dos índios lhe mostrado um casal, que chorava. Tratava-se
dos pais de Esther Chuwik. Morote seguira a pista dos raptores, conseguindo resgatar a menina e devolvê-la a seu povo. Esther não podia ou não queria recordar nada
sobre sua passagem por Chiclayo e por Lima. Mas as coisas que me contou, sua timidez e seus olhos vivos ficaram gravados em minha memória. Sua história não era excepcional,
o rapto de crianças ocorria com freqüência na selva. Só na minúscula aldeia de Chicais, Morote registrara vinte e nove raptos nos últimos anos. Os patrões, os engenheiros,
os oficiais, os comerciantes, todos os "embaixadores da civilização", quase sempre levavam alguma menina indígena para dedicar-se aos trabalhos domésticos. Por uma
Esther Chuwik que conseguira localizar, Morote fracassara em dezenas de outros casos. Mas, de qualquer forma, soube ganhar a simpatia e o reconhecimento das tribos.
Era comovedor assistir a como o recebiam nas aldeias. Aguarunas, huambisas, shapras o rodeavam, barulhentos e gesticulantes, começavam a contar-lhe suas queixas
e a pedir-lhe coisas. Esse espetáculo durava todo o tempo que permanecíamos no lugar. Era divertido vê-lo - belo, baixinho, narigudo - anotando tudo numa cadernetinha
e explicando aos indígenas, com cortês solenidade,
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que, embora já não fosse coordenador, faria todo o possível para "resolver o assunto".
A missão de Santa Maria, as freiras, as meninas aguarunas, Esther Chuwik seriam uma persistente recordação dessa viagem pela selva.
Outra recordação refere-se à história de um homem que conhecemos nessa viagem. Havíamos saído de Chicais em direção a Urakusa de canoa porque o hidroavião não podia
decolar no porto fluvial do povoado, já que o rio estava raso. Tivemos que navegar durante algumas horas. Nunca esquecerei o caminho dos canos, estreitos cursos
d'água cobertos pelas árvores, túneis escuros que unem rio a rio, ou lago a lago, e que às vezes tinham a largura da canoa. Era necessário, por momentos, atravessar
encolhidos até tocar o rosto com os joelhos. Em Urakusa, situada a pequena distância de Santa Maria de Nieva, conhecemos a história de Jum, o alcaide desse povoado
aguaruna. Ele aparecera para receber-nos com a cabeça raspada, o rosto machucado e cicatrizes nas costas e nas axilas. A história começara algumas semanas atrás,
quando um cabo da guarnição de Borja, chamado Roberto Delgado Campos, pediu a seus chefes licença para ir a sua terra natal, Bagua. O cabo empreendeu a travessia
para Borja acompanhado de sete homens. Quando souberam em Urakusa que o grupo se aproximava, os aguarunas, temerosos de que se tratasse de uma leva de soldados,
internaram-se nas montanhas. O cabo e seus homens pernoitaram aquela noite na comunidade abandonada. Delgado Campos e os outros partiram no dia seguinte com as
malas repletas de provisões e objetos de valor que encontraram no povoado. Quando os urakusas regressaram e perceberam que haviam sido roubados, saíram em busca
dos ladrões. Alcançaram-nos alguns dias depois quando Delgado Campos e seus homens dormiam no bosque. O cabo e três de seus soldados foram capturados, agredidos
e recambiados para Urakusa; lá chegando, encontraram-se com Jum, que voltava de uma viagem de vários dias pela selva. O alcaide, que até aquele momento ignorava
o ocorrido, ordenou a liberdade de Delgado Campos, emprestando-lhe inclusive sua canoa para que retornasse a Borja. Alguns dias mais tarde desembarcava em Urakusa,
procedente de Santa Maria de Nieva, uma expedição oficial para pedir ao povoado contas do ocorrido. Encabeçava-a o tenente-governador de Nieva, Júlio Reátegui, e
integravam-na onze homens. Ao vê-los chegar à aldeia,
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Jum dela se aproximou para dar as boas-vindas ao governador. Este, em vez de estender-lhe a mão para cumprimentá-lo, jogou-lhe a lanterna no rosto. Os aguarunas
começaram a
correr, mas além de Jum foram capturados cinco homens, duas mulheres e várias crianças. O restante do povoado desapareceu no bosque. Os seis prisioneiros ficaram
amarrados numa cabana de Urakusa, que os vizinhos nos mostravam excitados e loquazes. Ali os prisioneiros foram amarrados, açoitados e golpeados a pontapés pelos
soldados que acompanhavam o governador. As duas aguarunas foram violentadas. Uma delas, mulher de um homem chamado Tandím (lembro-me dele, um homem desconfiado e
triste, com uma grande barriga-d'água e hermeticamente silencioso), que se encontrava amarrado com Jum e que também fora ferido no rosto, foi maltratada oito vezes
diante do marido e dos filhos. No dia seguinte Jum foi transportado, sozinho, a Santa Maria de Nieva. Penduraram-no despido numa árvore da praça e açoitaram-no até
perder os sentidos. Chegaram até a queimar-lhe as axilas com ovos quentes (nunca consegui entender como o fizeram). Depois da tortura veio a humilhação: rasparam-lhe
a cabeça. Assistiram ao castigo o tenente-governador de Santa Maria de Nieva, Júlio Reátegui, o juiz de paz Arévalo Benzas, o alcaide Manuel Aguila, um tenente do
Batalhão de Engenheiros n.° 5, Ernesto Bohórquez Rojas, a professora do lugar, Alicia de Reátegui, e um missionário jesuíta. Após três dias de torturas, Jum foi
posto em liberdade, regressando então a Urakusa. Como falava castelhano muito bem, pôde contar-nos a história detalhadamente. Quando vacilava, Morote Best, que tinha
alguns conhecimentos de aguaruna, vinha em sua ajuda. Vez por outra Jum dava um gritinho histérico e apontava para as árvores dizendo: "paiche, paiche". Era uma
metáfora: queria dizer que o haviam pendurado numa árvore como na Amazônia são pendurados os paiches, peixes mamíferos cujas maminhas fizeram com que os primeiros
espanhóis que navegaram pelos rios da selva acreditassem haver chegado ao mitológico reino das amazonas.
O incidente com o Cabo Delgado Campos não explica totalmente a violência que sofreram Urakusa e Jum. A razão profunda da brutalidade das autoridades de Santa Maria
de Nieva era econômica. Os aguarunas haviam tratado, pouco antes desse episódio, de organizar uma cooperativa para escapar ao domínio dos "patrões", homens que controlavam
o comércio da borracha e das peles na região.
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As tribos do alto Marañón viviam então - temo que as coisas não se tenham modificado muito - da borracha que vendiam aos "patrões" ou intermediários, que, por sua
vez, a revendiam
aos centros industriais ou ao Banco de Desenvolvimento Agropecuário. O "patrão" comprava o quilo da borracha a um preço que oscilava entre um sol e vinte e cinco
soles e a revendia em Contamana por uma quantia três a quatro vezes maior. Esse era apenas um filão do negócio. A maioria dos aguarunas e huambisas fornecedores
da borracha não sabia ler nem escrever, e menos ainda usar as balanças em que se pesava a mercadoria. Assim, ao receber a borracha era o "patrão" quem determinava
seu peso, e, naturalmente, este resultava sempre inferior ao real: as balanças estavam astuciosamente preparadas... E havia ainda mais: a transferência não se fazia
por meio de dinheiro, e sim em espécie. O "patrão" pagava em machadinhas, espingardas, vestidos, cujo preço ele mesmo fixava. Assim, ao entregar a borracha o aguaruna
ficava sempre em dívida com o intermediário. A machadinha, a espingarda, os víveres e a roupa que recebia não chegavam nunca a ser pagos pelas bolas de borracha,
de modo que ele tinha que penetrar de novo na floresta a fim de extrair mais borracha, e, alguns meses depois, em uma nova transação com o intermediário, teria
sua dívida aumentada. Esse sistema imperava há dezenas de anos, era uma sobrevivência da época de ouro da selva (fins do século passado e começos deste), quando
a "febre da borracha" se espalhou. Essa época já findara. Os "patrões" eram agora pobres e miseráveis, descalços, semi-analfabetos e de costumes primários. A borracha
e as peles da Amazônia deixaram de ser um bom negócio. No alto Marañón a exploração do homem pelo homem alcançava limites de violência bestial, mas os beneficiários
desse horror não obtinham dele a riqueza, nem sequer o bemestar, mas apenas uma sombria sobrevivência. A pobreza da região e o anacronismo dessa sociedade provocavam
uma exploração feita a nível desumano. Dentro do "Plano de Educação" para a selva, idealizara-se nesses anos um sistema que consistia em levar os homens mais vivos
e esforçados das tribos a freqüentar um curso de alguns meses de duração em Yarinacocha (perto de Pucallpa), onde está a central do Instituto Lingüístico de Verano,
a fim de que logo retornassem a suas tribos e abrissem escolas. Jum recebera esse treinamento em Yarinacocha. Não sei se essa temporada na "civilização" transformaria
o grupo de aguarunas em bons professores.
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Mas alertou alguns sobre um problema muito concreto: compreenderam, ao constatar o verdadeiro valor do dinheiro e das coisas, o abuso de que
eram vítimas por obra dos "patrões". Descobriram que, se em vez de vender as bolas de borracha e as peles aos intermediários, as vendessem diretamente nas cidades,
obteriam benefícios muitíssimo maiores. Aprenderam também que os objetos recebidos dos "patrões" em troca da borracha lhes custariam muito menos se adquiridos nas
lojas. Assim nasceu a idéia de organizar uma cooperativa aguaruna, e Jum fora um dos promotores dessa idéia. Em Chicais havia sido celebrada uma reunião de alcaides
de dez ou doze povoados pelos quais estão dispersos os aguarunas no alto Marañón. Ali Jum e os outros professores convenceram seu povo a que deixassem de comerciar
com os "patrões" e reunissem a borracha e as peles de todas as tribos em Chicais para, uma vez por ano, realizar uma expedição até Iquitos a fim de vendê-las diretamente
aos industriais. Uma grande cabana foi construída para servir de depósito. Nós a visitamos e a cobrimos com os mosquiteiros na noite em que estivemos em Chicais,
mas não conseguimos pegar no sono (devido ao cheiro forte das bolas de borracha, das peles de anta, jaguar e jacaré). O projeto da cooperativa aguaruna era uma sentença
de morte para o negócio dos "patrões". Era esta, na realidade, a causa do castigo de Jum e de Urakusa ordenado pelas autoridades de Santa Maria de Nieva. Os "patrões"
da região, sob o pretexto do incidente do Cabo Delgado Campos, avisaram Jum, enquanto o torturavam e quando o libertaram, "que os aguarunas se esquecessem de vender
suas mercadorias na cidade". Quando passamos por Urakusa e ficamos sabendo da história, não poderíamos prever se o castigo exemplar sofrido por esse aguaruna e seu
povoado daria exatamente os resultados esperados pelos verdugos. O rosto e a história de Jum seriam uma das mais detestáveis recordações dessa viagem pela selva.
Outra recordação foi também a de um homem que nunca cheguei a conhecer, só ouvi falar em sua lenda. Todos o mencionavam, era a figura mais popular, o centro dos
comentários e das intrigas em todos os povoados e aldeias do alto Marañón por onde passávamos. Suas façanhas eram mitos narrados em todos os lugares com picardia
e ampliados pela fantasia local. Todos diziam tratar-se de um demônio, porém falavam dele sem esconder a admiração. Quem era esse homem, qual a sua história?
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Reconstruo como posso um redemoinho de dados contraditórios que fomos recolhendo aqui e ali. Ele fora visto, muitos anos atrás, subindo o rio Marañón. Nos lugares
onde se detinha,
anunciava seu propósito de percorrer o rio Santiago, onde se encontram desagregados os huambisas. Ninguém sabia de onde ele vinha nem por que escolhera essa difícil
comarca para instalar-se. Chamava-se Tushía, e era japonês. Como durante a Segunda Guerra Mundial os japoneses foram hostilizados no Peru, Tushía vinha fugindo dessa
perseguição, segundo alguns, ou de delitos porventura cometidos em Iquitos, segundo outros. Todos tentaram dissuadi-lo de continuar em direção a essa região inóspita
e distante. Nesse tempo os huambisas quase não tinham contato com o "mundo civilizado", e em torno deles, como de todas as tribos jívaras peruano-equatorianas,
corriam lendas de ferocidade e sangue. "Não vá lá, não seja louco, os huambisas são perigosos", diziam a Tushía os "cristãos" dos povoados que cruzava. "Vão devorá-lo,
vão matá-lo." O misterioso japonês não ouviu os conselhos, adentrou o rio Santiago e instalou-se numa pequena ilha na parte mais inacessível da região, muito perto
da fronteira com o Equador, ali permanecendo até a morte. Esta extraordinária personagem converteu-se em poucos anos em um corrupto senhor feudal, um herói macabro
de romance de aventuras. Os huambisas não o mataram, mas foi um verdadeiro milagre que ele não matasse todos os huambisas. Tushía formou um pequeno exército pessoal,
com aguarunas e huambisas desgarrados, homens que por alguma razão haviam sido expulsos das tribos, com soldados desertores das guarnições da fronteira e com
outros "cristãos" aventureiros como ele. Tushía e seu bando assaltavam periodicamente as tribos aguarunas e huambisas nas épocas que sabiam que a borracha e as peles
estavam para serem entregues aos "patrões". Logo, através de terceiros (era evidente que entre seus cúmplices figuravam alguns "patrões"), vendia sua mercadoria
nas cidades. Tushía e seu bando não só levavam a borracha e as peles, mas também as moças. Era essa, sobretudo, a causa da sua popularidade na região, do invejoso
culto que merecia: as meninas que raptara. Todos falavam do mito do harém de Tushía, uns diziam que tinha dez meninas, outros, vinte ou mais: cada homem povoava
o harém com o número que almejava para si.
Quando estivemos em Chicais, uma das mulheres de Tushía - na realidade uma menina de doze anos,
389
a quem Morote Best havia conhecido -- acabara de passar por ali. Fugira da ilha do depravado japonês e retornara a seu povoado. Vários anos depois, numa segunda
viagem
à selva, ouvi no povoado de Nazareth o testemunho de um homem que conhecera Tushía e o tinha visto em ação quando invadia uma tribo com o seu bando. Era uma cerimônia
barroca e sensual, algo mais complexo e artístico que um simples ato de pilhagem. Ocupado o povoado, vencida a resistência dos indígenas, Tushía se vestia de aguar
una, pintava a cara e o corpo com achiote e rupina como os nativos, e presidia uma grande festa, na qual dançava e se embebedava com masato até cair inerte. Aprendera
os dialetos aguaruna e huambisa com perfeição e gostava de dançar, cantar e embriagar-se com aqueles de quem roubara a borracha e a mulher. Essa história não remontava
ao passado: ocorria na mesma hora em que nos contavam. Repetia-se há vários anos, na mais absoluta impunidade, quase diante dos nossos olhos. A missão de Santa Maria
de Nieva, o castigo de Jum, a lenda de Tushía são as três imagens que essa viagem pela selva deixou gravadas em minha mente. Meus sentimentos estavam então definidos.
Agora entendo melhor, mas há alguns anos envergonhava-me confessá-lo. Por um lado, toda esssa barbárie enfurecia-me: tornava patentes o subdesenvolvimento, a injustiça
e o atraso cultural de meu país. Por outro, fascinava-me: que formidável material para contar! Nesse tempo comecei a descobrir esta áspera verdade: a matéria-prima
da literatura não é a felicidade mas a infelicidade humana, e os escritores, como os urubus, alimentam-se preferivelmente de carniça.
Desde o princípio pensei escrever algo sobre tudo isso e conservei um caderno cheio de apontamentos tomados nessa viagem. Estive umas semanas em Lima e logo parti
para a Europa, via Brasil. Lembro-me de ter perdido um par de dias no esplendoroso Rio de Janeiro, fechado num quarto de hotel, escrevendo uma crônica de viagem
sobre a selva que me havia pedido José Florez Araoz, outro integrante da expedição, para a revista Cultura Peruana. Esse despretensioso artigo e a novidade da Europa
esfriaram temporariamente a decisão de escrever algo a respeito da curta mas profunda experiência amazônica. Ao chegar a Madri esquecera-me de Santa Maria de Nieva,
de Jum e de Tushía. Entretanto, foi ali em Madri, enquanto acompanhava sem interesse os cursos de doutoramento na faculdade de letras e devorava arrebatadores romances
de cavalaria na Biblioteca Nacional
390
(havia adquirido o vício desde que li Tirant Io Blanch1, em Lima), que senti pela primeira vez a ambição de ser um escritor e nada mais que um escritor.
Cheguei a essa conclusão pelo método eliminatório assim que descobri que tampouco queria lecionar. Nem advogado, nem jornalista e nem professor: a única coisa que
me interessava era escrever, e tinha a certeza de que, se me propusesse a me dedicar a qualquer outra coisa, seria sempre um infeliz. Que ninguém deduza que a literatura
garante a felicidade: diria que quem renuncia à sua vocação por "razões práticas" comete a idiotice menos prática. Além da ração normal de infelicidade que lhe corresponde
na vida como ser humano, terá por complemento a dor de consciência e a dúvida. Assim, em fins de 1958, numa pensão da Calle del Doctor Castelo, não longe do Retiro,
foi perpetrado o ato de loucura: "vou procurar ser um escritor". Tudo o que havia escrito até então - um opúsculo de teatro, um punhado de poemas, alguns contos,
imensos artigos - era muito ruim. Decidi que a razão dessa mediocridade era minha indecisão e covardia anteriores de não ter assumido a literatura como o primordial.
Terminara um livro de contos que encontrou editor em Barcelona (misteriosamente, essa cidade seria o berço da publicação de todos os meus livros), e o resultado
era por assim dizer deprimente. Havia escrito quase todos em Lima, nos intervalos de tempo livre que me deixavam inúmeros e cansativos trabalhos de ganha-pão. Justifiquei
assim esse fracasso: só me seria possível ser um escritor se organizasse a minha vida em função da literatura. Se pretendesse, como fizera até então, organizar a
literatura em função de uma vida consagrada a outras tarefas, o resultado seria catastrófico. Completei essas justificações com uma teoria voluntarista: a inspiração
não existia. Era algo que, talvez, guiava as mãos de escultores e pintores e ditava imagens e notas aos ouvidos dos poetas e músicos, mas ao romancista não visitava
jamais. Ele era o desprezado das musas e estava condenado a substituir essa negada colaboração com teimosia, trabalho e paciência. Não me restava outra alternativa:
se a inspiração existia para os romancistas, eu nunca seria um deles. Sobre mim jamais caía essa força divina: cada sílaba escrita custava-me um esforço brutal.
' Sartre, escritor a quem lia por esses anos com agressivo fervor
' Romance de cavalaria do escritor catalão Johanot Martorell, considerado pela crítica precursor do romance moderno.
391
(Luís Loayza zombava de mim: "o sartrezinho valente"), foi uma ajuda importante nesse momento: ninguém nascia romancista mas sim se tornava escritor. Também em
literatura é-nos dado escolher o que seremos.
Para provar essa teoria escrevi um romance sem inspiração, à base de puro empenho e suor. A teoria funcionava, chegava-se a um rendimento literário respeitável,
mas o preço era alto. Demorei cerca de três anos para acabar esse livro. Tentei reescrevê-lo várias vezes e, sobretudo no princípio, custava-me muito respeitar os
horários de trabalho que estabelecia e permanecer muitas horas diante da máquina de escrever, mesmo que não escrevesse uma só linha. O único momento de alívio vinha
a cada tarde, quando ia à Jute, uma pensão na esquina da Doctor Castelo com a Menéndez y Pelayò, para rever o escritor. Um camareiro vesgo, de cujo nome não me
recordo, surpreendia-me ao se aproximar nas pontas dos pés para ler sobre meus ombros. Às vezes dava-me uma palmada nos ombros dizendo-me: "E como vai indo esse
livrinho?" Quando terminei esse primeiro romance senti-me doente, desgostoso da literatura. Concebi então o projeto - curiosa terapêutica - de escrever dois romances
simultaneamente. Supunha que escrever dois seria menos angustioso que um só, porque passar de um livro para outro seria gratificante e rejuvenescedor. Gravíssimo
equívoco: ocorria justamente o contrário. Em vez de diminuírem as dores de cabeça, os problemas e a ansiedade duplicaram.
Naquela época eu vivia em Paris e ganhava a vida (bela ironia) como jornalista e professor. Foi assim que, em
1962, em um apartamento barulhento e glorioso (porque no andar abaixo tinha morado Gérard Philippe) da Rue de Tournon, essas recordações de Piura - a Casa Verde,
a Mangachería - e da selva - a missão de Santa Maria de Nieva, Jum, Tushía - retornaram à minha memória. Raras vezes pensara nelas durante os anos anteriores, mas
agora essas imagens voltavam de maneira impetuosa e pujante. Decidira escrever dois romances, como já disse, um situado em Piura, a partir de minhas recordações
dessa cidade, e outro localizado em Santa Maria de Nieva, aproveitando como material de trabalho o que recordava das freiras, de Urakusa e de Tushía. Comecei a trabalhar
segundo um plano bastante rígido: um dia um romance, no dia seguinte outro. Avancei algumas semanas (ou talvez meses) com as histórias paralelas. Logo em seguida
o trabalho começou a se tornar árduo.
392
À medida em que o mundo de cada romance se ia soltando e tomando corpo tornava-se necessário um esforço maior para manter cada qual separado e soberano
em minha mente.
Na realidade não o consegui. A cada dia (cada noite) deparava-me com uma tremenda confusão. De uma maneira absurda, meu esforço maior consistia em manter cada personagem
em seu lugar. Não consegui: os piuranos invadiam Santa Maria de Nieva, os indígenas lutavam para invadir a Casa Verde. Cada vez tornava-se mais difícil manter cada
um em seu mundo respectivo. Um dia acordava certo de que Bonifácia (personagem da história da selva baseada vagamente em Esther Chuwik, a menina aguaruna resgatada
por Morote Best) era uma das "habitantes" da Casa Verde, outro, de que um dos guardas de Santa Maria de Nieva era mangache. Estava escrevendo a história de Piura
e de repente surpreendia-me reconstruindo penosamente a perspectiva que oferecia o povoado a partir do local onde se situava a missão. Estava escrevendo o romance
sobre a selva e de repente minha cabeça enchia-se de areia, algarobeiras e burrinhos. Por fim sobreveio uma espécie de caos: o deserto e a selva, as "habitantes"
da Casa Verde e as freiras da missão, o harpista cego e o aguaruna Jum, o Padre Garcia e Tushía, as dunas e os caminhos dos rios misturavam-se num sonho raro e confuso
em que não era fácil saber onde estava cada um, quem era quem, onde terminava um mundo e onde começava outro. Era cansativo demais seguir lutando para separá-los.
Decidi então não mais fazê-lo. Melhor seria fundir esses dois mundos, escrever um só romance que aproveitasse toda essa gama de recordações. Custoume outros três
anos e grandes atribulações ordenar semelhante desordem.
Conservava duas imagens diferentes da Casa Verde. A primeira, esse maravilhoso palácio das dunas que eu só vira de fora e de longe, mais com a imaginação que com
os olhos, quando era apenas um menino de nove anos. Esse objeto insinuante que aguçava nossa fantasia e nossos primeiros desejos e que era alimentado pelos rumores
misteriosos e comentários maliciosos das pessoas adultas. A segunda, um bordel pobretão, aonde iam, sete anos mais tarde, nos sábados de bons ganhos, os alunos do
quinto ano do Colégio San Miguel. Essas duas imagens converteram-se em duas casas verdes no romance, duas casas separadas no espaço e no tempo, erguidas, além disso,
em diferentes planos da realidade.
393
A primeira, a Casa Verde fabulosa, projetouse num remoto e lendário prostíbulo cuja sangrenta história seria conhecida unicamente através das recordações,
das fantasias, das intrigas e das mentiras do povo da Mangachería. A segunda seria algo real e objetivo, algo assim como a outra face, o reverso vulgar e imediato
da mística, duvidosa instituição: um bordel de preços modestos onde os mangaches iam se embriagar, conversar e comprar o amor. Lembrava-me bem dos rostos e (embora
não esteja agora totalmente seguro disso) dos nomes dos três componentes da orquestra: Anselmo, o harpista velho e cego; o Joven Alejandro, violonista e cantor,
e o Bolas, o musculoso tocador do tambor e dos pratos. Conservei esses rostos e nomes no romance mas tive que acrescentar a esses perfis umas biografias repletas
de anedotas. O Joven Alejandro tinha nome e rasgos românticos: inventei-lhe uma comovente história de amor como as que são narradas nas valses que ele cantava. O
físico imponente do Bolas sugeriu-me de imediato uma personagem clássica convencional: o gigante de coração terno e bondoso como o Porthos de Oi três mosqueteiros
ou o Lothar de Mandrake, o mágico. Em Anselmo ressuscitei uma personagem amada de todo entusiasta de romances de cavalaria e de filmes de aventuras (sobretudo westerns):
o forasteiro que chega a uma cidade e a conquista. Eu sempre tive uma queda pelos melodramas mexicanos. Para humanizar um pouco o "desconhecido solitário", acrescentei
à história de Anselmo um episódio sentimental, sem dúvida alguma cruel. Para isso me aproveitei da lembrança de um romance de Paul Bowles, O céu protetor. Num trecho
desse romance um homem diz (de verdade ou sonhando) a uma mulher algo assim como: "Eu gostaria que fosses cega, para assustar-te e amar-te com surpresa, brincar
contigo". Desde que a li, senti a perversa necessidade de escrever alguma vez uma história de amor cuja protagonista fosse cega. Para tornar ainda mais tenebrosa
a paixão de Anselmo, decidi que Antônia, a menina da qual se enamora, além de cega seria muda. Recordava que em Piura os raptos matrimoniais eram freqüentes, às
vezes com o consentimento discreto das respectivas famílias. O noivo levava a amada para uma fazenda, os amigos despediam-se do casal na estrada, e um mês depois
formalizavam-se as bodas de acordo com a lei. Anselmo raptaria Antônia e a levaria para viver na Casa Verde, onde a moça morreria. Isso, ademais, tinha ressonâncias
faulknerianas, e Faulkner era para mim o paradigma do romancista
394
(ainda o é). Pareceu-me muito difícil narrar os amores de Anselmo e de Antônia: a história era tão exagerada que chegava a levantar dúvidas quanto
à sua credibilidade. Procurei narrá-la de acordo com o ponto de vista de Anselmo, com o de Antônia, com o indireto de um grupo de mangaches que evocavam o episódio
na mesa de um bar, mas nenhum chegou a ser convincente. Um dia, já não recordo como, encontrei a fórmula que me pareceu adequada para traduzir em palavras esse "romance
terrível". A idéia era esta: a história de Anselmo e Antônia seria narrada não como efetivamente sucedeu (isso nunca se poderia saber), mas como os mangaches supunham
ou queriam que esse fato tivesse sucedido. A existência dessa aventura sentimental teria no romance o mesmo caráter vacilante e subjetivo que o da primeira Casa
Verde. Ocorreu-me então - na verdade só depois de lançar à cesta de papel vários rascunhos é que essa forma tomou corpo - introduzir uma voz, diferente da do narrador,
que representaria a consciência ou a alma da Mangachería e que iria literalmente ordenando, mediante imperativos, os amores de Anselmo e Tonita. Tudo isso deveria
ser cuidadosamente ambíguo. A voz estaria tão perto da do próprio Anselmo que por momentos pareceria misturada com a dele, ser a dele mesmo. Porém ao mesmo tempo
teria uma liquidez, uma certa intemporalidade, um suspeitoso tom solene que denotariam de alguma maneira a estirpe mítica dessa história. Esses três episódios do
romance são os que menos me desgostam de todo o livro, talvez por aquele masoquismo que nos leva a preferir sempre aquilo que nos custa mais. Eu estava muito contente
com o ponto de vista a partir do qual esses amores eram narrados. Parecia-me bastante original. O fato é que passou despercebido aos críticos, que atribuíram a
voz desses três episódios ao próprio Anselmo, lendo-os como monólogos tradicionais.
Castiguei meu antigo professor de religião por ser maucaráter e por todos os santinhos que acrescentei à sua coleção, convertendo-o num incendiário que amotinara
as mulheres da cidade e as fizera queimar a Casa Verde, e que por isso era odiado na Mangachería. O Padre Garcia
tornar-se-ia um dos "heróis negativos" do romance,
uma personagem que serviria para criticar e desenhar com traços caricaturais o espírito dogmático e clerical. Mas, como já me ocorrera antes, quando escrevia batismo
de fogo - uma personagem, o Tenente Gamboa, concebido como um dos mais
odiáveis do livro,
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tornou-se um dos mais simpáticos -, comprovei outra vez que uma coisa é o romance projetado e outra é o romance realizado. Foi por essa época que
descobri que os romances eram escritos principalmente com obsessões e não com convicções, que a contribuição do irracional era, pelo menos, tão importante quanto
a do racional na realização de uma ficção. Enquanto escrevia o livro, o fanático incendiário foi se transformando, pouco a pouco, inexplicavelmente, num sofrido
e terno ser humano, e também numa vítima atormentada pela garotada nas ruas de Piura, que o chamava de "incendiário", um velhinho um pouco chato, mas ainda capaz
de despertar um sentimento de solidariedade. No quinto ano do San Miguel eu era bastante amigo de dois irmãos, a quem chamei de León: viviam na Mangachería, eram
uns incorrigíveis e precoces "jaranistas", de uma alegria transbordante e inesgotável. Sabiam dançar, cantar, tocar violão, enfim, ninguém os sobrepujava na invenção
de loucuras. Eles me fizeram conhecer o bairro e sua gente: serviram-me de modelo para criar esse quarteto autodenominado no romance "os invencíveis". Mas, na realidade,
o nome foi usurpado de outro grupo - quatro ou cinco - que conhecera em Piura somente de longe: os verdadeiros "invencíveis" eram uma quadrilha de jovens pertencentes
a famílias mais ou menos abastadas, que se tornaram célebres na cidade por suas farras e escândalos. Sempre davam maus exemplos aos meninos de minha idade e, logicamente,
isso fazia com que os admirássemos mais.
Foi por essa época, submerso em pleno trabalho de A Casa Verde, que li L'éducation sentimentale, de Flaubert. Já nutria grande admiração por ele e alguns amigos
provocavam-me porque afirmava, batendo o punho na mesa: "Também Salammbô é uma obra-prima". Mas Uéducation sentimentale provocou-me um entusiasmo infinitamente maior
que todos os seus outros livros. Ainda é o romance que eu levaria à ilha deserta, se dispusesse de uma. Talvez o último segredo dessa devoção tenha sido o fato de
eu ter lido comovido, no final do livro, a passagem em que Frédéric e seu amigo Deslauriers relembram o passado e descobrem que uma das recordações comuns mais ricas
que conservam de sua juventude é a "maison de la Turque", um prostíbulo com os muros pintados de verde que ansiosamente iam espiar durante as noites: "Ce lieu
de perdition projetait dans tout l'arrondissement un éclat fantastique. Ou
le désignait par des périphrases:
'l'endroit que vous savez -
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une certaine rue - au bas des ponts'. Les fermières des alentours en tremblaient pour leurs maris,
les bourgeoises le redoutaient pour leurs bonnes, parce que
la cuisinière de M. le sous-préfet y avait été surprise; et c'était, bien entendu,
l'obsession secrète de toas les adolescents'".
Trabalhava de maneira disciplinada e com incessante entusiasmo. Meu ganha-pão, a Rádio-Televisão Francesa, ocupava-me as noites, mas tinha todo o dia para mim.
Acordava ao meio-dia e, mal saía do banho, sentava-me à máquina de escrever até as sete ou oito da noite. Não tinha a menor dificuldade em evocar Piura. Bastava-me
fechar os olhos para ver suas ruas largas, suas altas veredas, suas casas de amplas janelas, e escutar a maneira de falar da sua gente, com um cantar saltitante
e pegajoso, um pouco parecido com o dos mexicanos. Recordava as conversas, e meu quarto enchia-se de churres, de piajenos, de guás, e também desses inesquecíveis
superlativos: grandissíssimo, trabalhosíssimo, putíssimo. Tudo estava ali, na minha memória, palpitando. . . Porém invocar Santa Maria de Nieva e a Amazônia exigia-me
um grande esforço: eram apenas alguns fatos, certas situações, alguns rostos e um punhado de anedotas o material com o qual eu devia tentar reconstituir esse mundo.
Atormentava-me muito minha ignorância do meio: nada sabia sobre árvores ou animais e quase nada sobre usos e costumes locais. Durante um ano inteiro só li livros
relativos à Amazônia, todos os que indiscriminadamente encontrava nas livrarias e bibliotecas de Paris. Posso dizer, sem orgulho, que li a pior, a mais absurda literatura
do mundo: crônicas de frades espanhóis do século XVII afirmando terem visto com seus próprios olhos as amazonas preparando suas flechas nas margens do rio ao qual
deram o nome; um volumoso e truncado tratado de León Pinelo demonstrando com abundantes citações bíblicas que o paraíso terrestre esteve situado na selva peruana;
um livro de um extravagante explorador belga (também era marquês) que apresentava os tímidos aguarunas como ferozes caçadores de cabeças e comedores de carne humana.
Recordo um folheto de um ambicioso coronel de polícia que propunha
' Esse lugar de perdição projetava por todo o bairro um brilho fantástico. Era designado por perífrases: 'O lugar que o senhor conhece
- certa rua - abaixo das pontes'. As granjeiras dos arrabaldes temiam por seus maridos, as burguesas temiam por suas empregadas, pois a cozinheira do subdelegado
fora surpreendida ali; e era, logicamente, a obsessão secreta de todos os adolescentes.
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civilizar os indígenas das tribos incorporando-os ao Exército, e recordo também uma extensa tese de geografia, com a qual um sacerdote tinha se doutorado na Universidade
de San Marcos, onde se descreviam em termos supostamente científicos animais "selvagens" que só existem em lendas e relatos fantásticos. Recordo sobretudo os incríveis
"romances amazônicos", com sua fauna e flora demagógicas: borboletas do tamanho de águias, árvores canibais, serpentes aquáticas compridas como serpentinas. Pensei
até em escrever um ensaio sobre essa literatura amazônica, quase desconhecida, pouco interessante do ponto de vista literário, mas curiosa como símbolo dos vícios
mais comuns a certa narrativa latino-americana, pois conseguira assimilá-los todos: predomínio da ordem natural sobre o social, o pitoresco, o dialetismo, o frenesi
descritivo, a truculência. Mas logo desisti porque não me sentia com forças para remexer novamente nessa feira amazônia de horrores literários. Uma vez por semana
ia ao Jardin dês Plantes * para ver árvores e flores da Amazônia, e talvez algum dos guardas me tomasse por um aplicado estudante de botânica. Na realidade, as leituras
amazônicas me vacinaram contra o vício descritivo e, finalmente, no meu livro só descreveria uma árvore que nunca pude ver em Paris, a lupuna, enorme, com corcovas,
que aparece nos contos selvagens como residência de espíritos malignos. Ia também de vez em quando ao zoológico do Bois de Vincennes ver animais da selva e recordava,
cada vez que avistava o puma ou a vicunha, o que contava outro escritor peruano que também vivera muitos anos em Paris, Ventura Garcia Calderón: que ao passar pelo
curral da lhama, os olhos do animal umedeciam-se de melancolia ao reconhecer um compatriota.
Troquei a lenda indefinida de Tushía que conhecera por uma história mais sórdida e concreta: um patético aventureiro perseguido pela obsessão de chegar a ser rico,
e que no decorrer de sua vida pratica as piores atrocidades para alcançar essa meta, mas fracassa em todas as suas empresas e termina seus dias no leprosário de
San Pablo, uma colônia perdida às margens do rio Amazonas, já perto da fronteira brasileira. Minha intenção era conservar o nome verdadeiro do modelo no romance,
mas num dado instante, misteriosamente, o "T" do seu sobrenome converteu-se em "F", e ele passou a se chamar Fushía.
' Jardim Botânico.
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Quando viajava de Lima para o Rio de Janeiro, em 1958, o aviãozinho que me transportava (da Força Aérea Brasileira) se viu obrigado a aterrissar em Campo Grande,
uma cidade de Mato
Grosso, e tivemos que permanecer ali dois dias. Guardava uma leve lembrança desse lugar; ali presenciara uma interminável procissão, mas, sobretudo, lembrava-me
dos mosquitos que me tinham devorado dos pés à cabeça. Decidi que Fushía começara sua trajetória de bandido em Campo Grande. Quando pequeno, em Cochabamba, ouvira
contar, de maneira censurável e reticente, a história de um tio que durante a Segunda Guerra Mundial ganhara dinheiro contrabandeando borracha e outros materiais
estratégicos entre a Bolívia e a Argentina. Agreguei essa história à vida de Fushía, que se tornou, nos seus primeiros anos, contrabandista de borracha e de fumo
entre o Peru e o Brasil. Decidi que fosse leproso porque essa doença ainda era possível na Amazônia e por umas esplêndidas páginas do diário de Flaubert sobre sua
viagem ao Oriente, onde narra com prolixidade seu intempestivo encontro, num beco sem saída egípcio, com um grupo de leprosos. Nunca tinha visto um leproso; meu
trabalho de jornalista na ORTF permitiu-me entrar no pavilhão de leprosos do hospital Saint-Paul de Paris, onde, com o pretexto de fazer uma reportagem, consegui
que um jovem e amável doutor me levasse para ver alguns doentes e me desse algumas explicações técnicas sobre a doença. Esse era um tópico em todos os romances situados
na Amazônia e que tinha, por sua rica tradição literária, uma grande fonte. Para amenizar um pouco esse perigo decidi não mencionar no romance a palavra lepra em
momento algum. Lembro-me nitidamente de que o momento em que fiquei mais comovido enquanto escrevia o livro foi quando concebia esse episódio final em que Fushía,
já um escombro humano, conversa com o velho Aquilino, que viera visitá-lo depois de muito tempo e, indubitavelmente, pela última vez. Nunca senti tanta ternura
por uma personagem como nesse episódio. Por vezes tive que afastar-me da máquina de escrever, perturbado pela emoção; Fushía era, além disso, uma das poucas personagens
que eu vira em sonhos.
Propusera-me contar em A Casa Verde, com a máxima fidelidade, a história de Jum, da cooperativa aguaruna, e da humilhação infligida a Urakusa. No plano inicial
e no primeiro capítulo do romance, Jum aparece como uma das personagens centrais, talvez a principal. Fui incapaz de pôr em prática esse propósito: muitas vezes
tentei reconstruir
399
o que poderia ter sido a vida de Jum, a partir do instante em que foi lançado ao mundo em pleno bosque ou às margens de um rio até aquele momento, quando o penduraram
numa árvore como um paiche, e, para não alongar-me muito no relato, tentei contar de acordo com o seu próprio ponto de vista o trágico episódio de sua vida que
conheci. Acabei finalmente percebendo que essas páginas tornavam-se sempre artificiais, falsas, desajeitadamente folclóricas. Já o suspeitava, mas então soube de
maneira flagrante e carnal: a "verdade real" é uma coisa, e a "verdade literária", outra, e não há nada tão difícil quanto querer que ambas coincidam. Por fim resignei-me
à evidência: não tinha capacidade suficiente para apresentar o mundo, as abjetas injustiças, os outros homens, com os olhos e a consciência desse homem cujo idioma,
costumes e crenças eu ignorava. Resignei-me a reduzir a importância de Jum no romance e fracionei sua história em vários episódios curtos que seriam narrados não
a partir do seu ponto de vista, mas sim da perspectiva de intermediários e testemunhas, a quem poderia conceber com mais facilidade.
Os pontos de contato entre Piura e Santa Maria de Nieva eram, segundo o projeto do livro, o Sargento Lituma, um piurano mangache, designado durante algum tempo para
um posto de polícia na selva e logo retornando a Piura, e Bonifácia, uma menina aguar una educada pelas freiras de Santa Maria de Nieva, mais tarde esposa do Sargento
Lituma, e que acabava por se tornar "habitante" da Casa Verde com o nome de guerra de Selvática. Entretanto, quando dava os últimos retoques no manuscrito, descobri
que havia outro vínculo, menos evidente mas talvez mais profundo, e em todo caso imprevisto, entre esses dois mundos. Dom Anselmo surpreendera os piuranos com sua
predileção pela cor verde: de verde pintara o prostíbulo e a sua harpa. Por outro lado, no princípio, sua maneira de falar não surpreendera realmente os piuranos,
que nunca conseguiram identificar seu sotaque, que não parecia ser serrano, nem da costa. Foi um desses impactos mágicos que sobrevêm de quando em quando durante
a construção de um romance que nos deixa espantados e felizes: não há dúvida, Dom Anselmo amava a cor verde porque essa cor era a da sua terra, e os piuranos não
puderam reconhecer sua maneira de falar porque em Piura jamais chegava gente da selva.
Quando terminei o romance, em 1964, senti-me inseguro, cheio de temor em relação ao livro.
400
Desconfiava principalmente dos capítulos passados em Santa Maria de Nieva. Minha intenção não fora, desde o princípio, escrever um documento sociológico, um ensaio
disfarçado de
romance. Mas tinha a incômoda sensação de que, apesar dos meus esforços, idealizara (para bem e para mal) o ambiente e a vida da região amazônica. Tomei a determinação
de não publicar o livro enquanto não tivesse retornado à selva. Nesse ano voltei a Lima. Dessa vez não foi tão fácil chegar a Santa Maria de Nieva, devido à falta
de comunicações. Seis anos antes viajara pela selva com muita comodidade, no confortável hidroavião do Instituto Lingüístico de Verano. Agora viajava por minha
própria conta, acompanhado de um amigo, o antropólogo José Matos Mar, que participara da expedição anterior. Planejávamos ir de Lima a Pucallpa de avião e ali pedir
ajuda ao mesmo instituto, a fim de alcançar o alto Marañón. Mas as dificuldades começaram antes de saírmos de Lima. Por dois ou três dias consecutivos fomos ao aeroporto
em vão. Certa vez tivemos de regressar após meia hora de vôo, pois o mau tempo não permitia que os aviões atravessassem a cordilheira. Lembramos de ir até Chiclayo,
acreditando ingenuamente que a estrada Olmos-Rio Marañón que figurava nos mapas estivesse de fato em funcionamento e que de lá poderíamos chegar até Bagua de ônibus
ou caminhão. Em Chiclayo descobrimos que a famosa estrada ao Marañón ainda estava por terminar, e que acabava num posto situado a vinte quilômetros do rio. Lá tampouco
havia serviço de ônibus e caminhão a Lambayeque e Bagua. Em Chiclayo explicaram-nos que a única maneira sensata de chegar ao alto Marañón era com a ajuda do Exército.
Meu primeiro romance, passado num colégio militar', tivera problemas e dois oficiais (o General José del Carmen Marín e o General Felipe de la Barra) tinham-no acusado
publicamente de subversivo e antipatriótico, de modo que era improvável a essas alturas que eu recebesse ajuda militar, precisamente para um outro romance. Discutimos
o assunto e por fim decidimos converter-nos em dois engenheiros destacados pelo presidente da República para estudar as possibilidades agropecuárias na região do
alto Marañón. Apresentamo-nos na chefia do Estado-Maior do Exército em Chiclayo, e o oficial que nos atendeu ficou impressionado com nossas explicações.
' Batismo de fogo (La ciudad y los perros).
401
Imediatamente ordenou que nos emprestassem um jipe e um motorista para nos levar a Bagua e em seguida ao acampamento militar de Montenegro, local até onde tinha
chegado
a estrada, cuja construção, como as demais coisas, estava a cargo do Exército. Também nos ofereceu anunciar pelo rádio nossa chegada ao acampamento a fim de que
nos fornecessem mantimentos e um guia para podermos seguir até o Marañón. Efetivamente, num jipe conduzido por um sargento loquaz, cruzamos a fronteira e chegamos
a Bagua, onde passamos a noite. No dia seguinte pela manhã entramos no acampamento militar de Montenegro, do Batalhão de Engenharia de Construção Morro Solar n.
1. Estivemos ali durante vinte e quatro horas, representando da melhor maneira possível o nosso papel de engenheiros em viagem profissional ao alto Marañón. O coronel-chefe
do acampamento teve a gentileza de preparar uma recepção em nossa honra. O mais difícil foi agüentar durante uma sessão de trabalhos no restaurante as perguntas
técnicas sobre os planos do governo para o alto Marañón, que tivemos de responder num período de duas ou três horas. Recordo muito bem o grande alívio que me causou
enfiar-me na cama essa noite após semelhante prova. Na manhã seguinte iniciamos muito cedo, com um guia, a marcha inicial para o Marañón, por uma estreita trilha
que ziguezagueava pelo bosque e a cada momento nos precipitava em lodaçais, tornando-se cada vez mais impenetrável, a tal ponto que num determinado momento estivemos
perto da desistência. Ao entardecer, por fim, chegamos às margens do Marañón. O guia despediu-se de nós ali, numa hospitaleira aldeia aguaruna, onde entramos exaustos
e crivados de picadas de mosquitos. No dia seguinte nos levaram de canoa até Nazareth, outro povoado aguaruna, e, finalmente, dois ou três dias depois, desembarcamos
em Santa Maria de Nieva. Leváramos uma semana para chegar.
À primeira vista quase nada mudara nesses seis anos, o tempo não parecia ter transcorrido naquela região. As autoridades, os professores, as freiras e os problemas
eram os mesmos. O negócio da borracha e das peles devia ser ainda mais medíocre que antes, pois os "patrões", os mesmos que haviam torturado Jum e humilhado Urakusa,
viviam meio mortos de fome, quase no mesmo desamparo e no mesmo estado miserável que os aguarunas. Alojaram-nos na missão e vimos que, ao menos no que se referia
ao sistema de recolhimento de alunas,
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alguma coisa mudara: o problema da missão era agora a falta de espaço e de professoras, o local não tinha capacidade para receber todas as meninas
que chegavam das tribos. Aparentemente a desconfiança e a hostilidade dos nativos em relação à missão tinham terminado, e agora empenhavam-se em que seus filhos
fossem "cristianizados". Mas o problema com as ex-alunas era o mesmo: ou regressavam para morrer de fome na mata ou partiam para a "civilização", como empregadas
dos cristãos. Recordo como algo terrível a noite que passamos, Matos e eu, na cabana de um dos patrões do lugar, não recordo se a de Arévalo Benzas ou a de Júlio
Reátegui, bebendo cerveja morna e ouvindo esses pobres-diabos contar-nos como uma divertida anedota do passado a história de Jum. Matos e eu íamos levando a conversa,
com infinitas precauções, em direção a esse tema, mas nossa prudência era inútil. com a maior naturalidade, muito amáveis, tirando a palavra de uns e de outros,
se referiam a tudo o que queríamos saber. Sua versão não era diferente da que tínhamos ouvido seis anos atrás em Urakusa. Não mentiam, não tratavam de ocultar o
ocorrido nem de justificar-se. A única diferença era que para esse punhado de homens não havia nada de condenável no sucedido: as coisas eram assim, a vida era assim.
Jum continuava alcaide do pequeno povoado de Urakusa e não havia forma de fazê-lo recordar esse episódio negro do passado; deu-nos a impressão, inclusive, de que
se sentia envergonhado e culpado do que ocorrera. Para ele e para os seus a vida tinha recobrado sua atroz normalidade. Ainda recolhiam peles e borracha na mata,
para os mesmos patrões, e suas relações com eles eram seguramente boas. Mas Tushía acabava de morrer em sua remota ilha do rio Santiago. Algumas semanas antes de
sua morte enviara uma carta por meio de um de seus homens à missão de Santa Maria de Nieva e que nos foi mostrada por um jesuíta. Senti uma extraordinária emoção
enquanto tentava decifrar essa carta demente, garrancheada numa linguagem quase incompreensível, por meio da qual Tushía, já prevendo a morte, pedia às freiras que
ouvissem a sua confissão. Explicava que não se sentia bem e que não estava em condições de ir até a missão; fazia uma espécie de exame de consciência, declarava-se
pecador e pedia a absolvição por correspondência. Além disso também queria que o casassem por carta, e a parte mais inesquecível desse testamento era aquela em que
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tratava de descrever a menina ou a mulher de sua ilha com quem pretendia casar, para evitar qualquer confusão. Em meu romance Fushía morria de lepra. Tushía morrera,
na realidade, de algo não menos espetacular: varíola negra. Os mitos e as lendas na selva são como suas árvores e flores: nascem velozes, adquirem, num abrir e fechar
de olhos, uma opulenta vitalidade, e com a mesma rapidez apodrecem e desaparecem para dar lugar a outros. Há cerca de dois anos, Luis Alfonso Diez, ex-aluno do
King's College da Universidade de Londres, que preparava uma tese, percorreu a região do alto Marañón e contou-me ter encontrado pouca gente que se lembrava de Tushía,
e que os poucos que não o tinham esquecido referiam-se a ele como uma obscura personagem sem história. Diez esteve também em Urakusa e conversou com Jum, ainda
na função de alcaide do povoado.
Ao regressar a Paris, entretanto, introduzi no manuscrito algumas alterações - menos do que havia temido - e o livro acabou sendo publicado em meados de 1966. Encontrava-me
novamente em Lima quando a obra foi editada. Lancei-me então à tarefa de escrever mais um romance. Surpreendi-me um dia ao ver a foto da Casa Verde, no diário La
Prensa. Não se tratava do livro, mas da verdadeira Casa Verde, que a jornalista Elsa Arana Freyre fotografara havia pouco. Já não era mais o rústico e solitário
casebre que eu recordava: crescera, tornara-se então uma mansão moderna e funcional, de dois pavimentos, com um próspero jardim, e não se achava mais no deserto.
A cidade havia se expandido e a Casa Verde, outrora cercada pelas dunas, via-se agora rodeada de outras casas. Pouco tempo depois recebi um convite para ir a Piura.
Alguns amigos publicitários organizaram um extenso programa: uma conferência, uma visita ao Colégio San Miguel e, naturalmente, uma visita comemorativa à Casa Verde.
Mas não cheguei a ir. Apesar de já ter comprado as passagens, decidi subitamente cancelar a viagem. Desde então, em uma ou outra ocasião estive prestes a viajar
para Piura, porém sempre desisti no último momento. Seria difícil explicar a razão. De qualquer maneira, tenho certeza de que não consegui livrar-me dessa cidade,
de sua gente e de suas dunas. Se por acaso algum de vocês for um dia a Piura, percorrer a Mangachería e entrar na Casa Verde, digam-lhes, por favor, aos mangaches
e às "habitantes", que eu não consigo esquecê-los.
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Digam-lhes que passei três anos empenhado em escrever sobre eles e que agora vou pelo mundo fazendo propaganda deles, e que ainda continuam intactos em meu coração.
Lluch Alcaire, Mallorca, junho de 1971.
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Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado...

Resignação para aceitar o que não pode ser mudado...

E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.

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