sexta-feira, 7 de outubro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> anexo: Vargas Llosa - O falador

O Falador

MÁRIO VARGAS LLOSA

Título original: El hablador

ROMANCE

Contracapa

Duas narrativas alternam-se, em O falador, para nos contar o verso e o reverso de uma história singular. De um lado, o narrador principal (da mesma forma que em
Tia Julia e o escrivinhador ou História de Mayta parece identificar-se com o autor) evoca as recordações de um companheiro de juventude em Lima, apelidado Mascaríta,
fascinado por uma pequena cultura primitiva; de outro, um anônimo contador ambulante de histórias - um "falador" -, testemunha da memória coletiva dos índios machiguengas
da Amazônia peruana, conta-nos, em uma linguagem incomum de poesia e de magia, a própria existência, a história e os mitos de seu povo. A confluência final das duas
histórias, ao revelar sua secreta unidade, mostra as misteriosas relações da ficção com as sociedades e os indivíduos, sua razão de ser, seus mecanismos e suas
conseqüências na vida. Por seu domínio expressivo e a problemática abordada, O falador é uma das mais significativas e originais contribuições da obra de Mario Vargas
Llosa.
Francisco Alves
qualidade há mais de um século

Orelhas:

MARIO VARGAS LLOSA nasceu em Arequipa, Peru, em 1936. Fez os primeiros estudos em Cochabamba, Bolívia, e os secundários em Lima e Piura. Licenciou-se em Letras
na Universidade de São Marcos de Lima e doutorou-se pela de Madri. Residiu durante alguns anos em Paris e posteriormente em Londres e Barcelona. Embora tenha estreado
em 1952 um drama em Piura e publicado um livro de contos, Os Chefes (Los Jefes), que obteve o prêmio Leopoldo Alias, sua carreira ganhou notoriedade com a publicação
do romance Batismo de Fogo (La Ciudady los Perros, 1963), que obteve o prêmio Biblioteca Breve de 1962, o Prêmio de Crítica de 1963 e foi quase imediatamente traduzido
para cerca de 20 idiomas. Em 1966 apareceu seu segundo romance, A Casa Verde (La'Casa Verde), que também obteve o Prêmio da Crítica em 1966 e o Prêmio Internacional
de Literatura Rómulo Gallegos em 1967. Posteriormente publicou a narrativa Os Filhotes (Los Cachorros), edição definitiva
junto com Os Chefes (Los Jefes) em 1980, o romance Conversa na Catedral (Conversgción en Ia Catedral, 1969), o ensaio Garcia Marquez: História de um Deicídio (Garcia
Marquez: Historia de un Deicidio, 1971), o romance Pantaleão e as Visitadoras (Pantaleón y Ias Visitadoras,
1973), o ensaio A Orgia Perpétua (La Orgia Perpetua: Flaubert y "Madame Bovary", 1975), o romance Tia Júlia e o Escrivinhador (La Tia Julia y ei Escribidor,
1977), as peças teatrais A Senhorita de Tácna (La Senorita de Tacna, 1981), Kathie e o Hipopótamo (Kathie y ei Hipopótamo, 1983) e A Chunga (La Chunga, 1986)
e os romances A Guerra do Fim do Mundo (La Guerra dei Fin dei Mundo,
1981), História de Mayta (Historia de Maytá, 1980) e Quem Matou Palomino Molero? (Quién Mato a Palomino Molero?, 1986). Reuniu seus textos ensaísticos do período
1962-1982 no volume Contra Vento e Maré (Contra Viento y Marea,
1983).


MARIO VARGAS LLOSA
O Falador
ROMANCE
Tradução de Remy Gorga, filho
Francisco Alves
1987, Mario Vargas Llosa
1988, Tradução, Remy Gorga, filho
Título original: El hablador
Capa: "Paisagem tropical, índio lutando com um macaco" (fragmento). Henri Rousseau - 1910.
Revisão tipográfica: Henrique Tarnapolsky
Impresso no Brasil Printed in Brazil
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Vargas Llosa, Mario, 1936-
V426f O falador / Mario Vargas Llosa; tradução de Remy Gorga, filho. - Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
(Coleção Grandes autores internacionais) j-JV
Tradução de: El hablador ISBN 85-265-0126-7
1. Romance peruano, l. Gorga, Remy, 1933- II. Título. 111. Série.
CDD - 868.99353
88-0402 CDU - 860(85)-3


A Luís Llosa Ureta, em seu silêncio, e aos kenkitsatatsirira machiguengas.
Todos os direitos desta edição reservados à
LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
Rua Sete de Setembro, 177 • Centro
Tel.: 221-3198
20050 • Rio de Janeiro • RJ
Não é permitida a venda em Portugal.
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I
VIM a Florença para esquecer-me por um tempo do Peru e dos peruanos e eis que o malfadado país me veio ao encontro esta manhã da maneira mais inesperada. Havia visitado
a reconstruída casa de Dante, a igrejinha de San Martino dei Vescovo e a ruazinha onde a lenda diz que ele viu Beatriz pela primeira vez, quando, na Rua de Santa
Margherita, uma vitrina me deteve de brusco: arcos, flechas, um remo lavrado, um cântaro com desenhos geométricos e um manequim embutido em uma cushma* de algodão
silvestre. Mas foram três ou quatro fotografias que me devolveram, de chofre, o sabor da selva peruana. Os largos rios, as corpulentas árvores, as frágeis canoas,
as fracas cabanas sobre palafitas e os viveiros de homens e mulheres, seminus e lambuzados de tinta, contemplando-me fixamente de suas brilhantes cartolinas.
Naturalmente, entrei. com uma estranha excitação e o pressentimento de estar fazendo uma burrice, arriscando-me por uma curiosidade banal a frustrar, de algum modo,
o projeto tão bem planejado e executado até agora
- ler Dante e Maquiavel e ver pintura renascentista durante dois ou três meses, em irredutível solidão -, a provocar uma dessas discretas hecatombes que, de quando
em quando, põem minha vida de cabeça para baixo. Mas, naturalmente, entrei.
* Cushma, túnica longa e tosca, usada pelos índios da Amazônia peruana. (N. do T.)
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A galeria era minúscula. Uma só peça de teto rebaixado e ao qual, para poder exibir todas as fotografias, tinham acrescentado dois painéis, atulhados também de imagens
em ambos os lados. Uma rapariga magra, de óculos, sentada atrás de uma mesinha, olhou-me. Podia visitar a exposição "I nativi delia foresta amazônica"?
- Certo. Avanti, avanti.
Não havia objetos no interior da galeria, só fotografias, pelo menos umas cinqüenta, a maioria bastante grandes. Careciam de legendas, mas alguém, talvez o próprio
Gabriele Malfatti, escrevera duas laudas para indicar que as fotografias foram feitas durante uma viagem de duas semanas pela região amazônica dos departamentos
de Cusco e Madre de Dios, no Oriente peruano. O artista propusera-se a descrever, "sem demagogia nem esteticismo", a existência quotidiana de uma tribo que, até
há poucos anos, vivia quase sem contato com a civilização, disseminada em unidades de uma ou duas famílias. Só em nossos dias começava a agrupar-se naqueles lugares
documentados pela mostra, mas muitos deles permaneciam ainda na floresta. O nome da tribo estava espanholizado sem erros: os machiguengas.
As fotografias materializavam bastante bem o propósito de Malfatti. Ali estavam os machiguengas lançando o arpão da margem do rio, ou, semi-ocultos no mato,
preparando o arco em busca da capivara ou da huangana; ali estavam, recolhendo mandioca nas diminutas hortas esparramadas à volta de suas novas aldeias - talvez
as primeiras
de sua longa história -, roçando o mato a facão e entrelaçando as folhas das palmeiras para cobrir suas vivendas. Uma roda de mulheres tecia esteiras e cestos, outra
preparava cocares, engastando vistosas penas de papagaio e arara em aros de madeira. Ali estavam, decorando minuciosamente suas caras e seus corpos com tinta do
urucu, fazendo fogo, secando couros, fermentando mandioca para o masato em recipientes em forma de canoa. As fotografias mostravam com eloqüência como eram poucos
naquela imensidade de céu, água e vegetação que os cercava, sua vida frágil e frugal, seu isolamento,
seu
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arcaísmo, sua vulnerabilidade. Era verdade: sem demagogia nem esteticismo.
Isto que vou dizer não é uma invenção a posteriori nem uma falsa recordação. Estou certo de que passava de uma fotografia à seguinte com uma emoção que, em dado
momento, se tornou angústia. Que há com você? Que poderia encontrar nestas imagens que justifique semelhante ansiedade?
Desde as primeiras fotografias tinha reconhecido as clareiras onde se levantam Nueva Luz e Nuevo Mundo não fazia três anos que havia estado neles - e, inclusive,
ao ver uma panorâmica do último destes lugares, a memória me ressuscitou no ato a sensação de catástrofe com que vivi a aterrissagem acrobática que fizemos lá,
naquela manhã, no Cessna do Instituto Lingüístico, para desviar de crianças machiguengas. Também me parecera reconhecer algumas caras dos homens e mulheres com
quem, ajudado por Mr. Schneil, conversei. E isto se fez certeza quando, em outra das fotografias, vi, com a mesma barriguinha inchada e os mesmos olhos vivos que
a minha lembrança conservava, o menino de boca e nariz comidos pela uta.* Mostrava à câmera,. com a mesma inocência e naturalidade com que mostrara a nós, esse
buraco com caninos, céu da boca e amígdalas que lhe dava um ar de fera misteriosa.
A fotografia que esperava desde que entrei na galeria apareceu entre as últimas. Ao primeiro olhar percebia-se que aquela comunidade de homens e mulheres sentados
em círculo, à maneira amazônica - parecida à oriental: as pernas em cruz, flexionadas horizontalmente, o tronco erecto -, e banhados por uma luz que começava a ceder,
de crepúsculo tornando-se noite, estava hipnoticamente concentrada. Sua imobilidade era absoluta. Todas as caras orientavam-se, como os raios de uma circunferência,
para o ponto central, uma silhueta masculina que, de pé, no coração da roda de machiguengas imantados por ela, falava,
*Uta, do quéchua, Peru, enfermidade que provoca úlceras faciais, comum nos vales do Maranhão (leishmaniasis americana). (N. do T.)
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movendo os braços. Senti um frio nas costas. Pensei: "Como foi que este Malfatti conseguiu que lhe permitissem, como fez para...?" Baixei-me, aproximei muito meu
rosto da fotografia. Estive examinando-a, cheirando-a, perfurando-a com os olhos e a imaginação até que notei que a moça da galeria levantava-se de sua mesinha
e vinha até mim, inquieta.
Fazendo um esforço para me serenar, perguntei-lhe se as fotografias eram vendidas. Não, acreditava que não. Eram da Editora Rizzoli. Publicaria um livro com elas,
achava. Pedi-lhe que me pusesse em contato com o fotógrafo. Não seria possível, infelizmente:
- signore Gabriele Malfatti è morto.
Morto? Sim. De umas febres. Um vírus contraído naquelas selvas, forse. O coitado! Era um fotógrafo de modas, tinha trabalhado para Vogue, para Uomo, revistas assim,
fotografando modelos, móveis, jóias, vestidos. Passara a vida sonhando com fazer algo diferente, mais pessoal, como esta viagem à Amazônia. E quando afinal pôde
realizá-lo e iam publicar um livro com seu trabalho, morria! E, agora, lê dispiaceva, mas era a hora do pranzo e tinha que fechar.
Agradeci-lhe. Antes de sair e enfrentar-me uma vez mais com as maravilhas e as hordas de turistas de Florença, pude ainda dar uma última olhada à fotografia. Sim
Sem a menor dúvida. Um falador.
II
SAUL ZURATAS tinha uma mancha roxa-escura, vinho avinagrado, que lhe cobria todo o lado direito da cara, e uns cabelos vermelhos e despenteados como as cerdas de
um escovão. A mancha não respeitava a orelha nem os lábios nem o nariz, aos quais também marcava com um inchaço venoso. Era o rapaz mais feio do mundo; mas simpático
e boa gente. Não conheci outra pessoa que desse, de saída, como ele, essa impressão de pessoa tão franca, sem arestas, desprendida e de bons instintos, ninguém que
mostrasse uma simplicidade e um coração semelhantes em qualquer circunstância. Eu o conheci quando prestávamos exames para ingresso na Universidade e fomos muito
amigos - na medida em que se pode ser amigo de um arcanjo - sobretudo nos dois primeiros anos, que cursamos juntos na Faculdade de Letras. No dia em que o conheci
ele me advertiu, morrendo de rir e apontando para a sua mancha:
- Todos me chamam de Mascarita, compadre. E aposto que não sabe por quê.
Nós também o chamávamos por este apelido em San Marcos.
Tinha nascido em Talara e tratava todo mundo de compadre. Palavras e ditos da fala das ruas brotavam em cada frase que dizia, dando à sua conversa íntima inclusive
um ar de chacota. Seu problema, dizia, era que o pai ganhara demais com o armazém lá no povoado, tanto que um belo dia decidiu mudar-se para Lima. E desde que tinham
vindo para a capital o velho dera-se ao judaísmo.
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Não era muito religioso, lá no porto piurano, que Saul se lembrasse. Uma vez ou outra vira-o lendo a Bíblia, sim, mas nunca se preocupou em inculcar a Mascarita
que pertencia a outra raça e a outra religião diferente das dos rapazes do povoado. Aqui em Lima, entretanto, sim. Que porra! Na velhice, espinhas. Ou, melhor dizendo,
a religião de Abraão e Moisés. Porra! Nós éramos uns sortudos sendo católicos. A religião católica era um pão com manteiga de tão fácil, uma missinha de meia hora
cada domingo e comunhões cada primeira sexta-feira do mês que passavam voando. Ele, em troca, tinha que se enfiar nos sábados na sinagoga, horas a fio, segurando
os bocejos e fingindo interessar-se pelos sermões do rabino - que não entendia patavina - para não decepcionar o pai, que, afinal de contas, era um velhote muito
boa gente. Se Mascarita lhe tivesse dito que fazia tempo deixara de acreditar em Deus e que, em poucas palavras, isso de pertencer ao povo eleito não o interessava
em nada, o pobre Dom Salomón teria tido um faniquito.
Conheci Dom Salomón não muito depois que Saul, um domingo. Saul tinha me convidado a almoçar. A casa ficava em Brena, atrás do Colégio La Salle, em uma transversal
sombria da Avenida Arica. Era uma casa extensa, repleta de móveis velhos, e com um papagaio falador de nome e sobrenome kafkianos, que repetia todo o tempo o apelido
de Saul: "Mascarita! Mascarita!" Pai e filho viviam sozinhos, com uma criada que viera com eles de Talara e que, além de cozinhar para eles, ajudava Dom Salomón
no mercadinho que abrira em Lima. "Aquele, o da grade de ferro com uma estrela de seis pontas, compadre. Chama-se La Estrella por causa da estrela de Davi, já pensou?"
Fiquei impressionado com o afeto e as atenções que Mascarita prodigalizava a seu pai, um ancião encurvado, barba crescida, que arrastava uns pés deformados pelos
joanetes em sandálias que pareciam coturnos romanos. Falava espanhol com forte pronúncia russa ou polonesa, e isso que, me disse, já estava há mais de vinte anos
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no Peru. Tinha um ar velhaco e simpático: "Eu, quando pequeno, queria ser trapezista de circo, mas a vida acabou me fazendo mercador, veja o senhor que decepção."
Era
Saul seu único filho? Sim, era.
E a mãe de Mascarita? Morrera dois anos depois que a família se mudara para Lima. Cara, que pena; por essa fotografia de sua mãe, vê-se que devia ser muito moça,
não é, Saul? Sim, era. Bem, de um lado, claro que Mascarita sentia a morte dela. Mas, de outro, talvez tivesse sido melhor para ela mudar de vida. Porque sua pobre
velha sofria muitíssimo em Lima. Ele me fez sinais para que eu me aproximasse e baixou a voz (precaução inútil porque tínhamos deixado Dom Salomón profundamente
adormecido em uma cadeira de balanço da sala de jantar e nós conversávamos no quarto dele) para dizer:
- Minha mãe era uma crioulinha de Talara que o velho arranjou logo que chegou como refugiado. Parece que viviam amigados, até que eu nasci. Só então se casaram.
Você imagina o que é para um judeu casar-se com uma cristã, com o que chamamos uma goyel Não, você não sabe o que é isso.
Lá em Talara a coisa não tinha tido a menor importância porque as duas famílias judias do lugar estavam meio misturadas na sociedade local. Mas ao se instalar em
Lima, a mãe de Saul teve muitos problemas. Sentia muito a falta de sua terra, desde o calorzinho e o céu sem nuvens, de sol radiante todo o ano, até seus parentes
e amigos. De outra parte, a comunidade judia de Lima nunca a aceitou, por mais que ela, para agradar a Dom Salomón, tivesse concordado em tomar o banho da purificação
e se instruir pelo rabino a fim de cumprir com todos os ritos da conversão. Na verdade - e Saul me piscou um olho travesso a comunidade não a aceitava nem tanto
por ser uma goye como por ser uma crioulinha de Talara, uma mulher simples, sem educação, que mal sabia ler. Porque os judeus de Lima tinham se tornado uns burgueses,
compadre.
Ele me dizia isto sem qualquer traço de raiva ou dramatismo, com a aceitação tranqüila de alguma coisa que,
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pelo visto, não teria podido acontecer de outra maneira. "Eu e minha velha éramos como unha e carne. Ela também se aborrecia na sinagoga e, sem que Dom Salomón notasse,
para que aqueles sábados religiosos passassem mais depressa, jogávamos disfarçadamente o Yan-KenPo. A distância. Ela se sentava na primeira fila da galeria e eu
embaixo, com os homens. Mexíamos as mãos ao mesmo tempo e às vezes tínhamos ataques de riso que espantavam os piedosos." Um câncer fulminante a levou, em poucas
semanas. E desde a morte dela, Dom Salomón viu o mundo desabar.
- Esse velhinho que você viu ali, dormindo a sesta, era há uns dois anos um homem inteiro, cheio de energia e amor pela vida. A morte da minha velha o demoliu.
Saul tinha entrado na San Marcos, para cursar Direito e fazer o gosto de Dom Salomón. Por ele, teria ficado para ajudá-lo em La Estrella, que dava muitas dores de
cabeça ao pai e lhe exigia mais esforços do que merecia, em sua idade. Mas Dom Salomón foi terminante. Saul não poria os pés atrás desse balcão. Saul jamais atenderia
a um freguês. Saul não seria um comerciante como ele.
- Mas por quê, velhinho? Está com medo de que, com esta cara, eu espante sua freguesia? - Ele me dizia isto entre gargalhadas. - A verdade é que, agora que pôde
economizar algum dinheirinho, Dom Salomón quer que a família fique importante. E já está me vendo levar o sobrenome Zuratas à diplomacia ou à Câmara dos Deputados.
Poxa!
Fazer ilustre o nome de família, exercendo uma profissão liberal, era alguma coisa com que Saul não se iludia muito. Que lhe interessava na vida? Ainda não sabia,
de fato. Mas o foi descobrindo naqueles meses e anos da nossa amizade, na década dos cinqüenta, naquele Peru que ia passando - enquanto Mascarita, eu, nossa geração,
nos tornávamos adultos - da mentirosa tranqüilidade da ditadura do general Odría às incertezas e novidades do regime democrático, que renasceu em 1956, quando Saul
e eu estávamos no terceiro ano.
Naquele tempo, sem a menor dúvida, já tinha descoberto o que lhe interessava na vida. Não de maneira relampejante, nem com a segurança de depois, mas, em todo caso,
o extraordinário mecanismo já estava em marcha e, passo a passo, empurrando-o um dia para cá, outro para lá, ia traçando esse labirinto onde Mascarita entraria para
não sair nunca mais. Em 1956 estudava Etnologia ao mesmo tempo que Direito e já tinha estado várias vezes na selva. Já sentia essa fascinação de enfeitiçado pelos
homens da floresta e a Natureza intocada, pelas culturas primitivas, minúsculas, dispersas nas colinas silvestres da montanha e na planície da Amazônia? Já ardia
nele esse fogo solidário, brotado sombriamente do mais profundo de sua personalidade, por esses nossos compatriotas que desde tempos imemoriais viviam lá, acossados
e incomodados, entre os largos e lentos rios, com tangas e tatuagens, adorando os espíritos da árvore, a serpente, a nuvem e o relâmpago? Sim, tudo isso já tinha
começado. E eu o notei a partir daquele incidente no bilhar, ocorrido dois ou três anos depois que nos conhecemos.
íamos, de quando em quando, entre duas aulas da Universidade, jogar uma partida na arrebentada sala de bilhar, que era também cantina, do Jirón Azángaro. Andando
pela rua com Saul descobria-se como devia ser dura a vida dele, pela insolência e a maldade das pessoas. Viravam-se ou paravam à frente dele para olhá-lo melhor,
e abriam muito os olhos, sem disfarçar o espanto ou a repulsão que lhes inspirava sua cara, e não era raro que, os meninos sobretudo, lhe dissessem asneiras. E ele
parecia não se chatear com isso; reagia às impertinências sempre com alguma tirada engraçada. O incidente, quando entrávamos no bilhar, não foi ele que provocou,
mas eu, que nada tenho de anjinho.
O bêbado estava bebendo no balcão. Mal nos viu, veio ao nosso encontro, cambaleante, e parou diante de Saul. os braços na cintura:
- Puta merda, que monstro! De que zoológico você fugiu, cara?
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- De qual seria, compadre, do único que há, o de Barranco - respondeu-lhe Mascarita. - Se você for correndo, ainda encontrará minha jaula aberta.
E tentou continuar caminhando. O bêbado, porém, esticou as mãos na direção dele, fazendo com os dedos o que os meninos fazem quando lhes ofendem a mãe.
- Você não entra, monstro. - Tinha se enfurecido subitamente. - com essa cara, não devia sair à rua, você assusta as pessoas.
- Mas eu não tenho outra, que é que você quer? Saul sorriu para ele. - Deixe a gente passar e não seja chato.
Eu, então, perdi a paciência. Agarrei o bêbado pelas lapelas e comecei a sacudi-lo. Houve um princípio de tumulto, gente agitada, empurrões, e Mascarita e eu tivemos
que ir embora sem jogar nossa partida.
No dia seguinte recebi dele um presente, com umas linhas. Era um ossinho branco, em forma de losango, gravado com umas figuras geométricas cor de tijolo puxando
para ocre. As figuras representavam dois labirintos paralelos, compostos de barras de diferentes tamanhos, separadas por distâncias idênticas, as pequenas como que
abrigando-se nas grandes. A cartinha dele, risonha e enigmática, dizia algo assim:
Compadre:
Vamos ver se esse osso mágico acalma seus ímpetos e você deixa de andar soqueando os pobres gambazinhos. O osso é de tapir e o desenho não é a sacanagem que parece,
uns riscos primitivos, mas uma inscrição simbólica. Foi ditada por Morenanchiite, o senhor do trovão, a um tigre, e este a um bruxo amigo meu das selvas do Alto
Picha. Se acredita que esses símbolos são de redemoinhos de rio ou duas jibóias enrascadas dormindo a sesta, pode ser que tenha razão. Mas são, fundamentalmente,
a ordem que reina no mundo. Aquele que se deixa vencer pela raiva entorta essas linhas e elas, tortas, não podem mais sustentar a terra. Não vai querer que por sua
culpa a vida se desintegre e voltemos ao caos original

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do qual nos tiraram, aos sopros, Tasurinchi, o deus do bem, e Kientibakori, o deus do mal, não é, compadre? De modo que não tenha mais essas raivas e menos ainda
por minha culpa. De qualquer maneira, obrigado. Tchau,
Saul
Pedi-lhe que me contasse um pouco mais sobre aquela história de trovão, o tigre, as linhas tortas, Tasurinchi e Kientibakori, e ele me reteve uma tarde inteira em
sua casa de Brena, muito contente, falando-me das crenças e costumes de uma tribo espalhada pelas selvas de Cusco e Madre de Dios.
Eu estava atirado sobre a cama dele e ele sentado em um baú, com o lourinho no ombro. O lourinho mordiscava os cabelos vermelhos de Saul e o interrompia seguidamente
com um berro mandão: "Mascarita!" "Quieto, Gregório Samsa", acalmava-o ele.
Os desenhos de seus utensílios e suas blusas, as tatuagens de suas caras e corpos não eram arbitrários nem decorativos, compadre. Eram a escritura cifrada, que continha
o nome secreto das pessoas e fórmulas sagradas para proteger os objetos da deterioração e do malefício que, através deles, podia chegar até seus donos. Os desenhos
eram ditados por uma divindade barbada e ruidosa, Morenanchiite, o senhor do trovão, que, do alto de um morro, em meio a uma tempestade, comunicava a mensagem a
um tigre. Este a transmitia ao curandeiro ou chamán no curso de uma "mareada" de ayahuasca,* esses talos alucinógenos cujos cozimentos eram bebidos em todas as cerimônias
nativas. Aquele bruxo do Alto Picha - "sábio, isto sim, porra, digo bruxo para que você me entenda" -já o tinha instruído sobre a filosofia que permitiu à tribo
sobreviver até o presente. O mais importante, para eles, era a serenidade. Não deviam afogar-se nunca em um copo de
* "Mareada" de ayahuasca, demarcar, embriagar-se com ayahuasca, ou ayahuasa, planta narcótica que os índios da Amazônia peruana põem em infusão para se embriagar.
(N. do T.)
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água nem em uma inundação. Deviam conter todo arrebatamento passional, pois há uma correspondência fatídica entre o espírito do homem e os da Natureza, e qualquer
transtorno violento naquele acarreta alguma catástrofe nesta.
- A raiva de um sujeito pode fazer que um rio transborde, e um assassinato, que o raio queime a aldeia. Talvez o acidente com o Expresso, na Avenida Arequipa, esta
manhã, seja culpa do soco que você deu ontem naquele bêbado. Não lhe dói a consciência?
Fiquei espantado com o muito que sabia sobre essa tribo. E ainda mais ao sentir a simpatia que derramava torrencialmente desse conhecimento. Falava daqueles índios,
de seus usos e seus mitos, de sua paisagem e seus deuses, com o respeito de admiração com que eu me referia a Sartre, Malraux e Faulkner, meus autores preferidos
daquele ano. Nem sequer de seu admirado Kafka eu o ouvi falar nunca com tanta emoção.
Devo ter suspeitado já então que Saul nunca seria advogado e, também, que o interesse dele pelos índios da Amazônia era algo mais que "etnológico". Não um interesse
profissional, técnico, senão muito mais íntimo, embora não simples de precisar. Algo mais emotivo que racional certamente, ato de amor antes que curiosidade intelectual
ou que esse apetite de aventura que parecia abrigar na vocação de tantos companheiros seus do Departamento de Etnologia. A atitude de Saul em relação a sua nova
carreira, a devoção que demonstrava em relação ao mundo da Amazônia, foram freqüentemente motivo de conjecturas entre nós, seus amigos e colegas, no Pátio da Faculdade
de Letras de San Marcos.
Sabia Dom Salomón que Saul estudava Etnologia ou o pensava concentrado nos cursos de Direito? A verdade é que, embora Mascarita estivesse ainda matriculado na Faculdade
de Direito, descuidava-se totalmente de suas aulas. com exceção de Kafka, e, sobretudo, de A metamorfose, que tinha lido incontáveis vezes e quase decorado, todas
as suas leituras eram agora antropológicas. Lembro de sua consternação pelo pouquíssimo que se tinha escrito

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sobre as tribos e de seus protestos diante das dificuldades que enfrentava para consultar essa bibliografia pulverizada em separatas e revistas que nem sempre chegavam
a San Marcos ou à Biblioteca Nacional.
Tudo tinha começado, ele me contou, certa ocasião, com uma viagem a Quillabamba, no Dia da Pátria. Tinha ido lá a convite de um primo-irmão de sua mãe, um tio chacareiro,
emigrado de Piura àquelas terras, que também comerciava em madeiras. O homem internava-se na selva em busca de mogno e pau-vermelho e tinha mateiros e cortadores
indígenas que trabalhavam para ele. Mascarita fizera boas relações com estes nativos - bastante ocidentalizados a maioria deles -, que o tinham levado em suas incursões
e alojado em seus acampamentos ao longo da vasta região banhada pelo Alto Urubamba, o Alto Madre de Dios e seus respectivos afluentes. Toda uma noite esteve me contando,
entusiasmado, o que foi para ele atravessar em balsa o Pongo de Mainique, onde o Urubamba, apertado entre dois contrafortes da cordilheira, se tornava um labirinto
de corredeiras e redemoinhos.
- O terror de alguns carregadores é tão grande que é preciso amarrá-los à balsa, como fazem com as vacas, para que desçam o Pongo. Você nem imagina o que é isso,
compadre!
Um missionário espanhol, da Missão Dominicana de Quillabamba, mostrara-lhe misteriosos petroglifos espalhados pela zona, e tinha comido carne de macaco, tartaruga,
minhocas, e tomara um grande porre com masato de mandioca.
- Os nativos da região acreditam que o mundo começou no Pongo de Mainique. E eu juro a você que naquele lugar há um nevoeiro sagrado, um não sei quê, que levanta
nossos cabelos. Você nem imagina o que é isso, compadre! Porra!
A experiência teve conseqüências que ninguém poderia sequer imaginar. Nem mesmo ele, estou certo disso.
Voltou a Quillabamba no Natal e ali passou o verão todo. Regressou nas férias de julho e no dezembro seguinte. Cada vez que havia uma greve em San Marcos,
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embora de poucos dias, voava para a selva de qualquer maneira: em caminhão, trem, lotações, ônibus. Voltava dessas viagens exaltado e loquaz, os olhos brilhantes
de
admiração pelos tesouros que tinha descoberto. Tudo o que fosse de lá o interessava e o excitava de maneira excessiva. Ter conhecido o lendário Fidel Pereira, por
exemplo. Filho de um cusquenho branco e de uma machiguenga, era uma mistura de senhor feudal e cacique aborígine. No último terço do século XIX, um cusquenho de
boa família, fugindo da justiça, internou-se naquelas selvas, onde os machiguengas o acolheram. Casou-se com uma mulher da tribo. O filho, Fidel, tinha vivido à
vontade entre as duas" culturas, passando-se por branco entre os brancos é por machiguenga entre os machiguengas. Tinha várias esposas legítimas e infinidade de
concubinas e uma constelação de filhas e filhos, através dos quais explorava todos os cafezais e chácaras entre Quillabamba e o Pongo de Mainique, nos quais fazia
trabalhar, pouco menos que de graça, a gente de sua tribo. Mascarita, apesar disso, sentia certa benevolência por ele:
- Aproveita-se deles, naturalmente. Mas, pelo menos, não os despreza. Conhece a cultura deles a fundo e se orgulha dela. E quando outros querem explorá-los, ele
os defende.
Nos relatos que me fazia, o entusiasmo de Saul dotava o mais trivial dos episódios - o roçado de um mato ou a pesca de uma gamitana - de contornos heróicos. Mas
era sobretudo o mundo indígena, com seus costumes elementares e sua vida frugal, seu animismo e sua magia, o que parecia tê-lo enfeitiçado. Agora sei que aqueles
índios, cuja língua tinha começado a aprender com a ajuda dos alunos indígenas da Missão Dominicana de Quillabamba
- uma vez me cantou uma triste e repetitiva canção incompreensível, acompanhando-se com o ritmo de uma cabaça cheia de sementes -, eram os machiguengas. Agora sei
que aqueles cartazes com desenhozinhos, mostrando os perigos de pescar com dinamite, que vi empilhados em sua casa de Brena, ele os tinha feito para distribuí-los
entre brancos e mestiços do Alto Urubamba - os filhos, netos,

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sobrinhos, bastardos e enteados de Fidel Pereira com a intenção de proteger as espécies que alimentavam a esses mesmos índios que, um quarto de século mais
tarde, fotografaria agora o falecido Gabriele Malfatti.
Visto com a perspectiva do tempo, sabendo o que aconteceu depois - pensei muito nisto -, posso dizer que Saul experimentou uma conversão. Em um sentido cultural
e talvez também religioso. É a única experiência concreta que me tocou observar de perto que parecia dar sentido, materializar, isso que os religiosos do colégio
onde estudei queriam explicar nas aulas de catecismo com expressões como "receber a graça", "ser tocado pela graça", "cair nos laços da graça". Desde o primeiro
contato que teve com a Amazônia, Mascarita foi pego em uma emboscada espiritual que fez dele uma pessoa diferente. Não só porque se desinteressou do Direito e se
matriculou na Escola de Etnologia, e pela nova orientação de suas leituras, nas quais, salvo Gregório Samsa, não sobreviveu perspnagem literário algum, mas porque,
desde então, começou a preocupar-se, a obstinar-se com dois assuntos que, nos anos seguintes, seriam seu único tema de conversa: o estado das culturas amazônicas
e a agonia das florestas que as hospedavam.
- Você se tornou um homem de idéias fixas, Mascarita. Não se pode falar outra coisa com você.
- Ora, é verdade, meu velho, não deixei você abrir a boca. Fale-me um pouco, se tiver vontade, de Tolstoi, da luta de classes ou dos romances de cavalaria.
- Não está exagerando um pouco, Saul?
- Não, compadre, acho que nem sei o que dizer. Juro. O que estão fazendo na Amazônia é um crime. Não tem justificativa, do ângulo que for examinado. Acredite em
mim, cara, não se ria. Ponha-se no lugar deles, ainda que por um segundo. Para onde podem continuar indo? Expulsam-nos de suas terras há séculos, atiram-nos cada
vez mais para dentro, mais para dentro. O extraordinário é que, apesar de tantas calamidades, não tenham desaparecido. Lá estão sempre, resistindo. Não é de tirar
o chapéu? Porra, lá estou eu outra vez. Falemos'de Sartre, vá.
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O que me revolta é que ninguém se importa com o que está acontecendo lá.
Por que ele se importava tanto? Não por razões políticas, em todo caso. Mascarita achava que a política era a coisa menos interessante do mundo. Quando falávamos
de política, notava que ele se violentava só para me agradar, pois eu, naquela época, tinha ímpetos revolucionários e me entregara a ler Marx e falar das relações
sociais da produção. Saul se aborrecia com esses assuntos tanto como com os sermões do rabino. Mas talvez também não fosse exato dizer que aqueles temas o interessavam
por uma razão ética geral, pelo que a condição dos indígenas da selva refletia sobre as iniqüidades sociais de nosso país, pois Saul não reagia do mesmo modo ante
outras injustiças que tinha pela frente, talvez nem sequer as percebia. A situação dos índios dos Andes, por exemplo - que eram vários milhões, em vez dos poucos
milhares da Amazônia -, ou como os peruanos das classes média e alta remuneravam e tratavam seus criados.
Não, era só aquela específica manifestação de inconsciência, irresponsabilidade e crueldade humanas, a que se abatia sobre os homens e as árvores, os animais e os
rios da selva, que, por uma razão que então me era difícil compreender (talvez a ele também), transformou Saul Zuratas, tirando de sua cabeça toda outra inquietação
e tornando-o um homem de idéias fixas. Ao extremo de que se não houvesse sido uma pessoa tão boa, tão generosa e serviçal, provavelmente teria deixado de freqüentá-lo.
Porque é verdade que se tornou monótono.
Às vezes, para ver até onde podia levá-lo "o tema", eu o provocava. O que propunha, afinal de contas? Que, para não alterar as condições de vida e as crenças de
umas tribos que viviam, muitas delas, na Idade da Pedra, se abstivesse o resto do Peru de explorar a Amazônia? Deveriam dezesseis milhões de peruanos renunciar aos
recursos naturais de três quartas partes de seu território para que os sessenta ou oitenta mil indígenas amazônicos continuassem trocando flechas tranqüilamente
entre eles, reduzindo cabeças e adorando à jibóia constritora? Devíamos ignorar

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as possibilidades agrícolas, pastoris e comerciais da região para que os etnólogos do mundo se deleitassem estudando ao vivo o potlatch, as relações de parentesco,
os ritos da puberdade, do matrimônio, da morte, que aquelas curiosidades humanas vinham praticando, quase sem evolução, há centenas de anos? Não, Mascarita,
o país
tinha que se desenvolver. Não dissera Marx que o progresso viria jorrando sangue? Por triste que fosse, havia que aceitá-lo. Não tínhamos alternativa. Se o preço
do desenvolvimento e da industrialização para os dezesseis milhões de peruanos era que esses poucos milhares de pelados tivessem que cortar o cabelo, lavar as tatuagens
e se tornarem mestiços - ou, para usar a mais odiada palavra do etnólogo: aculturarem-se -, que remédio.
Mascarita não se zangava comigo, porque não se zangava nunca por nada e com ninguém, e tampouco adotava um ar superior de perdôo-você-porque-não-sabe-o-quediz.
Mas eu sentia, quando lhe fazia estas provocações, que doíam nele como se houvesse falado mal de Dom Salomón Zuratas. Ele disfarçava muito bem, é verdade. Tinha
conseguido então, talvez, o ideal machiguenga de não sentir jamais raiva para que as linhas paralelas que sustentam o mundo não cedam. Não aceitava, além disso,
discutir este ou qualquer outro assunto de maneira geral, em termos ideológicos. Tinha uma resistência congênita a todo tipo de pronunciamento abstrato. Os problemas
sempre se apresentavam para ele de maneira concreta: o que havia visto com seus olhos e as conseqüências que qualquer um, com um pouco de miolo na moleira, podia
deduzir que aquilo teria no futuro.
- A pesca com explosivos, por exemplo. Supõe-se que está proibida. Mas, vá e olhe, compadre. Não há rio ou quebrada em toda a selva onde os serranos e os viracochas
- assim chamam os brancos - não poupem tempo, pescando a granel, com dinamite. Poupem tempo! Você imagina o que isso significa? Cartuchos de dinamite pulverizando
dia e noite os bancos de peixes. As espécies estão desaparecendo, velhinho.
Discutíamos em uma mesa do Bar Palermo, em La
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Colmena, tomando cerveja. Fora havia sol, gente apressada, desconjuntados automóveis de agressivas buzinas e nos cercava essa atmosfera enfumaçada, com cheiro a
banha frita e a urina, dos botequins do centro de Lima.
- Mas e a pesca com venenos, Mascarita? Não foi por acaso inventada pelos índios? Também eles são uns depredadores da Amazônia.
Eu disse isso para que descarregasse sua artilharia pesada contra mim. E ele a disparou, naturalmente. Era falso, completamente falso. Eles pescavam com barbasco
e cumo, mas nos canais ou braços de rio e nas poças que ficam nas ilhas quando as águas baixam. E só em certas épocas do ano. Jamais nos períodos de desova, que
conheciam como a palma de suas mãos. Nessas datas pescavam com redes, arpões e armadilhas, ou com as mãos nuas; você ficaria louco se os visse, compadre. Em compensação,
os crioulos usavam o barbasco e o cumo todo o ano, em qualquer lugar. Águas envenenadas milhares e milhares de vezes, ao longo de decênios. Compreendia isso? Não
só liquidavam as crias nos tempos de desova, também apodreciam as raízes das árvores e das plantas das margens.
Ele os idealizava? Estou certo que sim. E também, talvez sem desejá-lo, exagerava as devastações para fortalecer seus argumentos. Mas era evidente que essas crias
de sável e bagre envenenados pelo caule do barbasco e do cumo, e os peiches destroçados pelos explosivos dos pescadores de Loreto, Madre de Dios, San Martin ou Amazonas,
doíam-lhe tanto quanto se a vítima tivesse sido seu papagaio falador. E era a mesma coisa, naturalmente, quando se referia ao desmatamento maciço ordenado pelos
madeireiros - "Meu tio Hipólito é um deles, ainda que me custe admiti-lo" - que estavam acabando com as árvores mais valiosas. Falou-me longamente dos procedimentos
dos viracochas e dos serranos, que desceram dos Andes para conquistar a selva, de limpar o mato mediante incêndios que carbonizavam imensas extensões de terras,
que, logo após uma ou duas colheitas, pela falta de húmus vegetal e pela erosão causada pelas águas, tornavam-se

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estéreis. E o que dizer, compadre, do extermínio dos animais, da cobiça frenética pelos couros, que, por exemplo, fizera de jaguares, lagartos, pumas, serpentes
e
dezenas de animais, raridades biológicas em vias de extinção? Foi um longo discurso, que recordo muito bem por alguma coisa que surgiu, já ao final de nossa conversa,
quando tínhamos despachado várias garrafas de cerveja e uns sanduíches de lingüiça (de que ele gostava muito). Das árvores e dos peixes voltava sempre, em sua peroração,
ao motivo central de suas apreensões: as tribos. Também elas, neste andar, se extinguiriam.
- Sério: você acha que a poligamia, o animismo, a redução de cabeças e a feitiçaria com cozimentos de tabaco representam uma forma superior de cultura, Mascarita?
Um serraninho atirava baldes de serragem sobre as cusparadas e demais sujeiras do chão de pedra vermelha do Bar Palermo e um chinês ia atrás, varrendo. Saul ficou
me olhando um bom tempo, sem responder. Afinal, negou, sacudindo a cabeça.
- Superior, não. Nunca disse isso, nem acreditei, irmãozinho. - Tinha ficado muito sério. - Inferior, talvez, se isso se mede em termos de mortalidade infantil,
de situação da mulher, de monogamia ou poligamia, de artesanato e indústria. Não pense que eu os idealizo. De modo nenhum.
Calou-se, como que distraído por alguma coisa, talvez por aquela discussão na mesa vizinha, que se exaltava ou esfriava simetricamente desde que estávamos ali. Mas
não era isso. As lembranças é que o tinham distraído. E achei que, de repente, se entristecia.
- Há entre os homens que andam e os de outras tribos, coisas que o chocariam muito, meu velho. Não e nego.
Por exemplo: os aguarunas e huambisas do Alto Maranhão arrancam o hímen de suas filhas com as mãos e o comem ao primeiro sinal de sangue; em muitas tribos existe
a escravidão e em algumas comunidades se deixa morrer os velhos ao primeiro sintoma de fraqueza, a
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pretexto de que suas almas foram chamadas e seu destino estava cumprido. Mas o pior de tudo, talvez o mais difícil de aceitar do nosso ponto de vista, era isso que,
com um pouco de humor negro, se podia chamar o perfeccionismo das tribos da família arawak. O perfeccionismo, Saul? Sim, uma coisa que, à primeira vista, me pareceria,
como tinha parecido a ele, tão cruel, companheirinho: as crianças que nasciam com defeitos físicos, coxos, mancos, cegos, com mais ou menos dedos que os devidos,
ou o lábio leporino, as próprias mães matavam, atirando-as ao rio ou enterrando-as vivas. Quem não se chocaria com esses costumes?
Examinou-me longamente, em silêncio, pensativo, como se estivesse procurando as palavras exatas daquilo que queria me dizer. De repente, tocou no seu imenso sinal.
- Eu não teria passado no exame, compadre. Eu teria sido liquidado - sussurrou. - Dizem que os espartanos faziam o mesmo, não é? Que atiravam os monstrinhos e os
gregórios samsas do monte Taigeto, não é?
Riu, eu ri, mas ambos sabíamos que não estava brincando e não havia razão alguma para rirmos. Explicou-me que, curiosamente, esses implacáveis com os recém-nascidos
defeituosos eram, entretanto, muito tolerantes com os que, já crescidos ou adultos, eram vítimas de algum acidente ou enfermidade que os afetava fisicamente. Saul,
pelo menos, não tinha notado hostilidade em relação aos inválidos ou aos loucos nas tribos. A mão dele continuava sempre sobre a escama arroxeada de seu meio-rosto.
- Mas isso é o que são e devemos respeitá-los. Ser assim os ajudou a viver centenas de anos, em harmonia com suas florestas. Embora não entendamos suas crenças
e alguns de seus costumes nos repugnem, não temos o direito de acabar com eles.
Acho que aquela manhã, no Bar Palermo, foi a única vez em que aludiu, não de brincadeira mas a sério, inclusive com dràmatismo, àquilo que, por mais que o dissimulasse
com tanta elegância, tinha que ser uma tragédia em sua vida, a excrescência que fazia dele um motivo

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ambulante de zombaria e nojo, e que devia afetar todas as suas relações, especialmente com as mulheres. (Era com elas de uma grande timidez; eu tinha notado, na
Universidade,
que as evitava e só tentava conversar com alguma de nossas colegas quando ela lhe dirigia a palavra.) Retirou, afinal, a mão do rosto com um gesto de tédio, como
que arrependido de ter tocado no sinal, e se lançou a um novo sermão:
- Nossos carros, canhões, aviões e Cocas-Colas nos dão direito a liquidá-los porque não têm nada disso? Ou você acredita na história de "civilizar os selvagens",
compadre? Como? Fazendo-os soldados? Pondo-os a trabalhar nas chácaras, de escravos dos crioulos tipo Fidel Pereira? Obrigando-os a mudar de língua, de religião,
de costumes, como querem os missionários? Que é que se ganha com isso? Que possam ser melhor explorados, nada mais. Que se convertam em zumbis, nas caricaturas
de homens que são os indígenas semi-aculturados das ruas de Lima.
O serraninho que atirava baldes de serragem no Palermo calçava esses sapatos - uma sola e duas tiras de borracha de pneu - que os ambulantes fazem e segurava a calça
remendada com um pedaço de corda. Era um menino com cara de velho, cabelos lisos, unhas negras e uma crosta avermelhada no nariz. Um zumbi? Uma caricatura? Teria
sido melhor para ele permanecer em sua aldeia dos Andes, calçando um pé só de sandália e poncho e não aprender nunca o espanhol? Eu não o sabia, eu ainda tenho dúvidas.
Mas Mascarita sim, o sabia. Falava sem veemência, sem cólera, com uma firmeza tranqüila. Durante muito tempo explicou-me o outro lado daquelas crueldades ("que
são, dizia, o preço que pagam pela sobrevivência"), o que lhe parecia admirável naquelas culturas. Era uma coisa que, por mais diferenças que houvesse entre elas,
todas tinham em comum: a boa inteligência com o mundo em que viviam imersas, essa sabedoria, nascida de uma prática antiqüíssima, que lhes tinha permitido, através
de um elaborado sistema de ritos, proibições, temores, rotinas, repetidos e transmitidos de pais a filhos, preservar
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aquela Natureza aparentemente tão exuberante, mas, na realidade, tão frágil e perecível, da qual dependiam para subsistir. Haviam sobrevivido porque seus usos e
costumes afeiçoaram-se docemente aos ritmos e exigências do mundo natural, sem violentá-lo nem subvertê-lo profundamente, apenas o indispensável para não serem destruídas
por ele. Exatamente o contrário do que estávamos fazendo os civilizados, que esbanjávamos esses elementos sem os quais terminaríamos murchando como as flores privadas
de água.
Eu o escutava e simulava interessar-me por suas palavras. Mas, em vez disso, pensava em seu sinal. Por que tinha recorrido a ele, de repente, enquanto me explicava
o que sentia pelos nativos da Amazônia? Estava aí a chave da conversa de Mascarita? Esses shipibos, huambisas, aguarunas, yaguas, shapras, campas, mashcos, representavam
na sociedade peruana algo que ele podia entender melhor que ninguém: um horror pitoresco, uma excepcionalidade que os outros compadeciam ou escarneciam, mas sem
conceder-lhe o respeito e a dignidade que só mereciam aqueles que se ajustavam em seu físico, costumes e crenças à "normalidade". Ambos eram uma anomalia para o
resto dos peruanos; seu sinal provocava neles, em nós, um sentimento parecido ao que, no fundo, alimentávamos por esses seres que viviam, lá longe, seminus, comendo
seus piolhos e falando dialetos incompreensíveis. Era essa a raiz do amor à primeira vista de Mascarita pelos selvagens? Tinha inconscientemente se identificado
com esses seres marginais devido a seu sinal, que o convertia também em um marginal cada vez que punha os pés na rua?
Eu lhe propus esta interpretação, para ver se melhorava o humor dele, e, de fato, pôs-se a rir.
- Você passou em Psicologia com o Doutor Guerrinha? - brincou comigo. - Eu teria reprovado você.
E, sempre rindo, contou-me que Dom Salomón Zuratas, mais esperto que eu, tinha lhe sugerido uma leitura judaica do assunto.

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- Eu identifico os índios da Amazônia com o povo judeu, sempre minoritário e sempre perseguido por sua religião e seus costumes diferentes dos do resto da sociedade.
Que é que você acha? Uma interpretação mais nobre que a sua, que se poderia chamar
a síndrome de Frankenstein. Cada louco com sua mania, compadre.
Repliquei que ambas as interpretações não se excluíam. Ele terminou fantasiando, divertido.
- Sim, é possível que você tenha razão. Talvez o fato de ser meio judeu e meio monstro tenha me feito mais sensível que um homem tão espantosamente normal como você
à sorte dos selvagens.
- Pobres selvagens! Você os usa para secar as lágrimas. Você também se serve deles, está vendo?
- Muito bem, fiquemos por aqui, porque tenho uma aula agora - despediu-se, levantando-se, sem sombra do desânimo de um momento atrás. - Mas me lembre para na próxima
vez corrigir essa história de "pobres selvagens". vou contar a você algumas coisas que o deixarão preocupado, compadre. Por exemplo, o que fizeram com eles na época
da febre da borracha. Se agüentaram aquilo, não se pode chamá-los de pobres. Mas de super-homens, isso sim. Você vai ver, vai ver.
Pelo visto, falava de seu "tema" com Dom Salomón. O velhinho acabara por aceitar que, em lugar de tê-lo no Foro, Saul prestigiasse o sobrenome Zuratas nas classes
universitárias e nos domínios da investigação antropológica. Era isso o que tinha decidido ser na vida? Um catedrático? Um estudioso? Que tinha condições para tanto,
eu o ouvi dizer, certa tarde, de um dos seus professores, o Doutor José Matos Mar, que então dirigia o Departamento de Etnologia de San Marcos.
- Aquele rapaz, o Zuratas, é de primeira ordem. Passou três meses de férias no Urubamba, fazendo trabalho de campo com os machiguengas e trouxe um excelente material.
Ele o dizia a Raul Forras Barrenechea, um historiador com quem eu trabalhava à tarde e tinha um santo horror
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pela Etnologia e a Antropologia, que acusava de substituir o homem pelo utensílio como protagonista da cultura, e de aleijar a prosa castelhana (que ele, diga-se
de passagem, escrevia às mil maravilhas).
- Muito bem, então façamos desse jovem um historiador e não um colecionador de pedrinhas, Doutor Matos. Seja altruísta, transfíra-o ao Departamento de História.
O trabalho que Saul fez no verão de 56, entre os machiguengas, foi mais tarde, ampliado, sua tese de doutorado. Apresentou-a quando estávamos no quinto ano da Faculdade,
e eu me lembro muito bem da expressão de orgulho, de íntima alegria, de Dom Salomón. Em traje de noite, com uma camisa de peito engomado sob o casaco, acompanhou
a cerimônia da primeira fila do Salão de Atos, e seus olhinhos brilhavam enquanto Saul lia suas conclusões, respondia às perguntas dos examinadores presididos por
Matos Mar -, era aprovado e colocavam nele a faixa acadêmica correspondente.
Dom Salomón convidou-nos a almoçar no Raimondi, no centro de Lima, para festejar o acontecimento. Mas ele não comeu nada, talvez para não transgredir
involutariamente a dieta judaica. (Uma das brincadeiras de Saul, quando pedia lingüiça ou mariscos era: "E, depois, o fato de estar cometendo um pecado ao comê-los,
dá a
eles um gostinho muito especial, compadre, que você nunca saberá como é.") Dom Salomón não cabia em si de contente com o título do filho. Enquanto comíamos, dirigindo-se
a mim com sua mastigada pronúncia centro-européia, pediu-me, com veemência:
- Convença seu amigo a aceitar a bolsa. - Vendo minha cara de surpresa, explicou-me: - Não quer ir à Europa para não me deixar sozinho, como se eu não fosse bastante
grande para saber cuidar de mim. Eu já lhe disse: se ficar teimando, vai me obrigar a morrer para que ele possa ir tranqüilo à França especializar-se.
Assim fiquei sabendo que Matos Mar tinha conseguido para Saul uma bolsa para fazer o Doutorado na Universidade de Bordéus. Mascarita a recusara, pois não queria

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deixar o pai sozinho. Essa foi a razão pela qual não viajou a Bordéus? Então acreditei nela; agora estou certo de que mentia. Agora sei que, ainda que não o confessasse
a ninguém e o tivesse guardado sob sete chaves, aquela conversão tinha ido fermentando em seu interior até ganhar as características de um rapto místico, talvez
de uma busca de martirológio. Não tenho dúvida, agora, de que aquele título de bacharel em Etnologia ele ganhou, dando-se ao trabalho de redigir uma tese, sabendo
que nunca seria um etnólogo, só para dar essa satisfação ao pai. Eu que, por aqueles dias, me cansava em gestões para conseguir qualquer bolsa que me permitisse
ir à Europa, tentei várias vezes convencê-lo de que não desperdiçasse tal oportunidade. "É uma coisa que não voltará a acontecer, Mascarita. A Europa! A França!
Não seja bárbaro, cara!" Foi categórico: não podia ir, ele era a única pessoa que Dom Salomón tinha no mundo e não ia abandoná-lo por dois ou três anos, sabendo
o quanto estava velho.
É natural que eu acreditasse nele. Quem não acreditou nele completamente foi aquele que lhe tinha conseguido a bolsa e alimentara muitas ilusões a seu respeito,
seu professor Matos Mar. E numa daquelas tardes, como costumava acontecer, ele apareceu na casa de Forras Barrenechea, para trocar idéias e tomar chá com biscoitos.
Melancólico, ele anunciou:
- Prepare-se, Doutor Forras. O Departamento de História pode usar a bolsa de Bordéus. Nosso candidato a recusou. Que acha disso?
- Que eu saiba, é a primeira vez na história de San Marcos que alguém recusa uma bolsa para a França disse Forras. - Que foi que mordeu esse rapaz?
Eu, que estava catalogando os mitos sobre El Dorado e as Sete Cidades de Cibola nos cronistas do descobrimento e conquista, na mesma peça onde conversavam, meti
a colher para dizer que a razão da recusa era Dom Salomón, a quem Saul não queria deixar sozinho.
- Essa é a razão que Zuratas dá, sim, e tomara que seja verdadeira - concordou Matos Mar, fazendo um gesto cético. - Temo, porém, que haja alguma razão mais
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forte. Saul está tendo dúvidas sobre a investigação e o trabalho de campo. Dúvidas éticas.
Forras Barrenechea esticou o queixo e mostrou os olhinhos maliciosos que mostrava cada vez que ia dizer uma maldade.
- Bem, se Zuratas compreendeu que a Etnologia é uma pseudociência inventada pelos gringos para destruir as Humanidades, é mais inteligente do que podia se esperar.
Matos Mar, porém, não sorriu.
- Estou falando sério, Doutor Forras. É uma pena, porque o rapaz tem magníficas condições. É inteligente, perceptivo, muito bom investigador e com muita capacidade
de trabalho. Agora está afirmando, imagine só o senhor, que o trabalho que fazemos é imoral.
- Imoral? Enfim, vá se saber o que fazem vocês entre os bons selvagens com o pretexto de averiguar seus costumes - riu Forras. - Eu, é claro, não poria minhas mãos
no fogo pela virtude dos etnólogos.
- E que nós os estamos agredindo, violentando a cultura deles - prosseguiu Matos Mar, sem lhe prestar atenção. - E que com os nossos gravadores e canetas esferográficas
somos o verme que entra na fruta e a apodrece.
Contou que, fazia poucos dias, tinha havido uma discussão no Departamento de Etnologia. Saul Zuratas escandalizou todos os que lá estavam proclamando que as conseqüências
do trabalho dos etnólogos eram semelhantes à ação dos caucheiros, madeireiros, recrutadores do Exército e demais mestiços e brancos que estavam dizimando as tribos.
- Disse que retomamos o trabalho onde os missionários o deixaram na Colônia - acrescentou. - E que nós, com a história da ciência, como aqueles com a da evangelização,
somos a ponta de lança dos exterminadores de índios.
- Ressuscita o indigenismo fanático dos anos trinta nos pátios de San Marcos? - suspirou Forras. - Eu não estranharia, pois isso acontece por estações, como os

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catarros. Já estou vendo Zuratas a escrever panfletos contra Pizarro, a conquista espanhola e os crimes da Inquisição. Não o quero no Departamento de História! Espero
que aceite essa bolsa, se nacionalize francês e faça carreira promovendo a Lenda Negra.
Não dei muita importância ao que, naquela tarde, ouvi Matos Mar dizer, entre as empoeiradas estantes cheias de livros e estatuetas de Quixotes e Sancho Panças da
casa miraflorina de Forras Barrenechea, na Rua Colina. Penso que não falei com Saul sobre aquilo. Mas agora, aqui, em Florença, enquanto recordo e faço anotações,
esse episódio adquire retroativamente uma grande significação. Aquela simpatia, solidariedade, feitiço, fosse o que fosse, tinha então alcançado um clímax e mudado
de natureza. Se questionava os etnólogos, de quem o menos que se podia dizer era que, com todas as miopias que tivessem, estavam perfeitamente conscientes da necessidade
de entender, em seus próprios termos, a maneira de ver o mundo dos indígenas da selva, o que defendia então Mascarita? Algo tão quimérico como, reconhecendo-lhes
uns direitos inalienáveis sobre suas terras, o resto do Peru declarar a selva em quarentena? Nunca ninguém mais deveria lá entrar a fim de evitar a contaminação
dessas culturas com os miasmas degenerantes da nossa? Havia chegado a esses extremos o purismo amazônico de Saul?
A verdade é que não nos vimos muito nos últimos meses que passamos na Universidade. Eu andava também muito ocupado, escrevendo minha tese. Ele praticamente tinha
abandonado o Direito. Eu o encontrava, muito raramente, nas poucas vezes em que aparecia pelo Departamento de Literatura, contíguo então ao de Etnologia. Tomávamos
um café ou fumávamos um cigarro, conversando, sob as palmeiras amarelecidas do casarão do Parque Universitário. Ao crescer, tomando o rumo de ocupações e projetos
distintos, nossa amizade, bastante estreita nos primeiros anos, tinha-se convertido em uma relação esporádica e superficial. Eu lhe perguntava por suas andanças,
pois ele estava sempre retornando ou a ponto de
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partir para a selva e eu associava isso, até aquele comentário de Matos Mar ao Doutor Forras, a seu trabalho universitário, a uma especialização crescente de Saul
nas culturas amazônicas. Mas é verdade que, salvo aquela última conversa - a de nossa despedida e a de sua catilinária contra o Instituto Lingüístico e o casal Schneil
-, acredito que naqueles últimos meses não voltamos a ter os diálogos intermináveis, de confidencias libérrimas, o coração na mão, que celebramos muitas vezes entre
1953 e 1956.
Se os tivéssemos mantido, teria ele aberto seu peito, deixando-me entrever o que ia fazer? Provavelmente não. Esse gênero de decisão, a dos santos e dos loucos,
não se torna pública. Ela vai sendo forjada pouco a pouco, nas dobras do espírito, contrariando a própria razão e ao abrigo de olhares indiscretos, sem submetê-la
à aprovação dos outros - que jamais a concederiam - até que é posta em prática. Imagino que no curso desse processo - a construção do projeto e sua mutação em ato
- o santo, iluminado ou louco, vai se isolando, fechando-se em uma solidão que os demais não estão em condições de penetrar. Eu, de minha parte, não suspeitei sequer
que Mascarita podia estar vivendo, naqueles últimos meses de nossa vida universitária - já éramos homens os dois - uma revolução interna semelhante. Que era uma
pessoa mais retraída que o resto dos mortais, ou, melhor, que tinha se tornado mais reservado ao deixar para trás a adolescência, eu o percebi, sim. Mas o atribuí
exclusivamente a seu rosto, que interpunha essa tremenda fealdade entre ele e o mundo, dificultando suas relações com as outras pessoas. Continuava sendo esse ser
jovial, simpático, boa gente, dos anos anteriores? Tinha-se tornado mais sério e lacônico, menos solto que antes, me parece. Embora não me fie muito de minha memória
quanto a isto. Talvez continuasse sendo o mesmo Mascarita risonho e conservador que conheci em 1953, e minha fantasia o mude para que se encaixe melhor com o outro,
o dos anos futuros, esse que já não conheci e a quem - uma vez que cedi à maldita tentação de escrever sobre ele - devo inventar.
A memória não me trai, entretanto, estou certo, no que concerne a seu aspecto e a seu físico. Aqueles cabelos vermelhos, com um redemoinho no alto do crânio, rebeldes
ao pente, andavam sempre flamejando, remexendo-se, dançando sobre essa cara bifronte, que, no lado sadio, era de uma tez pálida e sardenta. Tinha olhos e dentes
direitos. Era alto, magro, e estou certo de que, exceto no dia de sua formatura, nunca o vi com uma gravata. Andava sempre com umas camisas esporte baratas, de
algodão cru, sobre as quais, no inverno, metia um suéter de qualquer cor, e calças jeans desbotadas e amassadas. Sobre seus sapatos jamais deve ter passado uma escova.
Não acredito que tivesse confidentes nem que estreitasse uma amizade íntima com ninguém. Provavelmente suas outras amizades foram parecidas à que nos uniu, cordialíssimas
mas bastante epidérmicas. Conhecidos, sim, teve muitos, na Universidade e, sem dúvida, no bairro, mas juraria que ninguém chegou a saber, de sua boca, o que estava
lhe acontecendo nem o que se propunha fazer. Se é que aquilo ele planejou cuidadosamente e não aconteceu de maneira gradual, insensivelmente, por obra das circunstâncias
mais que por escolha sua. É algo em que tenho pensado muito nestes anos e que, naturalmente, nunca chegarei a saber.
in
DEPOIS, os homens da terra puseram-se a andar direto até o sol que caía. Antes, permaneciam quietos eles também. O sol, seu olho do céu, estava fixo. Desvelado,
sempre aberto, olhando-nos, aquecia o mundo. Sua luz, ainda que fortíssima, Tasurinchi podia resistir. Não havia dano, não havia vento, não havia chuva. As mulheres
pariam crianças puras. Se Tasurinchi queria comer, afundava a mão no rio e tirava, rabeando, um sável; ou, disparando a flecha sem apontar, dava uns passos pela
mata e logo se encontrava com uma peruazinha, uma perdiz ou um trompetero * flechados. Nunca faltava o que comer. Não havia guerra. Os rios transbordavam de peixes
e os bosques de animais. Os mashcos não existiam. Os homens da terra eram fortes, sábios, serenos e unidos. Estavam quietos e sem raiva. Antes que depois.
Os que iam, voltavam, metendo-se no espírito dos melhores. Assim, ninguém costumava morrer. "Toca a mim ir", dizia Tasurinchi. Descia à margem do rio e fazia sua
cama de folhas e ramos secos e uma cobertura de ungurabi Levantava ao redor uma paliçada de bambus pontiagudos para que a capivara, em suas andanças pela margem,
não comesse seu cadáver. Deitava-se, ia embora e, pouco depois, voltava, abrigando-se no que havia caçado mais, lutado melhor ou respeitado os costumes. Os homens
da terra viviam juntos. Quietos. A morte não era a morte. Era ir e regressar. Em lugar de debilitá-los, robustecia-os,
*Trompetero, pássaro parecido com o pardal, de belo canto. (N. do T.)

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somando aos que ficavam a sabedoria e a força dos idos. "Somos e seremos, dizia Tasurinchi. Parece que não vamos morrer. Os que vão, voltaram. Estão aqui. Eles são
nós."
Por que, então, se eram tão puros, puseram-se a andar os homens da terra? Porque, um dia, o sol começou a cair. Para que não caísse mais, para ajudá-lo a se levantar.
É o que diz Tasurinchi.
É, pelo menos, o que eu soube.
Já tinha tido o sol sua guerra com Kashiri, a lua? Talvez. Pôs-se a piscar, a se movimentar, sua luz se apagou e mal se podia vê-lo. As pessoas começaram a esfregar
o corpo, tremendo. Isso era o frio. Assim começou depois, parece. Então, na quase escuridão, desacostumados, assustados, os homens caíam em suas próprias armadilhas,
comiam carne de veado pensando que era de anta e não reconheciam o caminho de regresso do mandiocal a sua casa. Onde estou?, desesperavam-se, ambulando às cegas,
tropeçando, onde estarão meus parentes? Que está acontecendo no mundo? Tinha começado a soprar o vento. Uivando, agitando, levava as palmas das palmeiras e arrancava
pela raiz as lupunas. A chuva caía com estrépito, provocando inundações. Via-se manadas de huanganas afogadas, flutuando de patas para cima na corrente. Os rios
mudavam de curso, as paliçadas rebentavam as balsas, os charcos viravam rios. As almas perderam a serenidade. Isso não era mais ir. Era morrer. É preciso fazer alguma
coisa, diziam. E, olhando à direita e à esquerda, que coisa? que faremos? diziam. "Pôr-se a andar", ordenou Tasurinchi. Estavam em plena treva, rodeados de dano.
A mandioca começara a faltar, a água fedia. Os que iam já não voltavam, afugentados pelas calamidades, perdidos entre o mundo das nuvens e o nosso. Sob o solo que
pisavam ouviam correr, espesso, o Kamabiría, rio dos mertos. Como que se aproximando, como que os chamando. Pôrse a andar? "Sim, disse o seripigari, engasgando-se
de tabaco na mareada. Andar, andar. E, lembrem-se, o dia que deixarem de andar, irão definitivamente. Trazendo abaixo o sol."
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Assim começou. O movimento, a marcha. Avançar com ou sem chuva, por terra ou por água, subindo o morro ou descendo a ladeira. Nas florestas, tão espessas, era noite
sendo dia, e as planícies pareciam lagoas porque não tinham qualquer vegetação, como cabeça de homem que o diabinho kamagarini deixou sem cabelo. "O sol não caiu
ainda, animava-os Tasurinchi. Tropeça e se levanta. Cuidado, está dormindo. Vamos despertá-lo, vamos ajudá-lo." Temos sofrido danos e mortes, mas continuamos andando.
Bastariam todas as faíscas do céu para contar as luas que se passaram? Não. Estamos vivos. Nós nos movemos.
Para viver andando, eles, antes, precisaram se tornar leves e se despojar do que tinham. Eles. Casas,
animais, plantações, a abundância que os rodeava. A prainha
onde iam virar as tartarugas de carne salobra; o mato fervilhando de pássaros cantores. Ficaram com o indispensável e se puseram a andar. Foi castigo a marcha pela
selva? Antes uma celebração, como ir à pesca ou à caça na estação seca. Conservaram flechas e arcos, os
cornos com o veneno, seus canudos de tinta de urucu, as
facas, os tambores, as blusas que vestiam, as bolsas e as tiras de fazenda para carregar as crianças. Os recém-nascidos nasciam andando, os anciãos morriam andando.
Quando assomava a luz já estava mexendo-se a galharia com a passagem de seus corpos, já estavam eles, um atrás do outro, andando, andando, os homens com as armas
preparadas, as mulheres carregando as gamelas e os cestos, os olhos de todos postos no sol. Ainda não perdemos o rumo. O desapego nos terá mantido puros, então.
O sol não caiu, não acaba de cair. Vai e volta, como as almas com sorte. Aquece o mundo. As pessoas da terra não caíram, também. Aqui estamos. Eu no meio, vocês
me rodeando. Eu falando, vocês escutando. Vivemos, andamos. Isso é a felicidade, parece.
Mas eles, antes, deveriam sacrificar-se pelo mundo daqui. Suportar catástrofes, padecimentos e danos que a qualquer outro povo o teriam aniquilado.

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Essa vez, os homens que andam fizeram alto para descansar. Na noite rugiu o tigre e o senhor do trovão roncou com rouca voz. Havia maus sinais. As borboletas metiam-se
pelas moradias e as mulheres deviam afastá-las das gamelas de comida sacudindo as esteiras. Ouviram piar a coruja e a chícua. O que é que vai acontecer?, diziam,
assustados. Na noite, o rio cresceu tanto que ao amanhecer eles se encontraram rodeados de águas revoltas, armadas de paus, arbustos, mato e cadáveres que se desfaziam
estalando contra as margens. Depressa cortaram madeiras, improvisando balsas e canoas antes que a inundação engolisse a ilhota em que se tinha convertido a terra.
Tiveram que se lançar às águas lodosas e remar. Remavam, remavam, e, enquanto uns empurravam as pértigas, os outros iam gritando, apontando, à direita, as investidas
das paliçadas, à esquerda, a boca dos redemoinhos, e, aqui, aqui, a rabanada da yacumama * que espera, manhosa, quietinha, sob a água, o momento de virar a canoa
para engolir os remadores. Dentro da floresta, o senhor dos demônios, Kientibakori, louco de alegria, bebia masato, dançando entre a multidão de kamagarinis. Muitos
se foram afogados nas enchentes, quando algum tronco afundado, invisível, rachava a balsa e roubava as famílias.
Esses, não voltavam. Seus corpos, inchados, mordidos pelas piranhas, apareciam às vezes em uma praia, ou pendurados em pedaços nas raízes de uma árvore da margem.
Não devemos nos enganar com as aparências. Os que vão assim, vão e não voltam. Sabiam disso então os seripigaris? Quem sabe se já havia chegado a sabedoria. Uma
vez que os pássaros e as alimárias comam sua casca, a alma não encontra o caminho de regresso, parece. Fica perdida em algum mundo, torna-se um diabinho kamagarini
e desce até os mais de baixo ou se torna deusinho saankarite e sobe aos mundo de cima. Por isso, eles, antes, desconfiavam do rio, da lagoa, até do canal pouco fundo.
Tinham-lhes inimizade. Por isso, só sulcavam os rios quando
*Yacumama (Eunectes murinus), cobra anfíbia que vive nos rios da Amazônia. (N. do T.)
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todos os caminhos se fechavam. Seria porque não queriam morrer, talvez. As águas são traiçoeiras, dizem. Ir nas águas será morrer.
Isso é, pelo menos, o que eu soube. O fundo do rio, no Gran Pongo, está repleto de nossos cadáveres. Serão muitíssimos, talvez. Aí os sopraram e aí regressariam
para morrer. Aí estarão, embaixo, ouvindo o pranto da água que cabeceia contra as pedras e se desfaz nas rochas pontiagudas. Por isso não haverá tartarugas depois
do Pongo, nas terras montanhosas. São boas nadadoras e, apesar disso, nenhuma terá podido ir de sulcada nessas águas. As que tentaram, teriam se afogado. Agora também
elas estarão no fundo, ouvindo estremecer o mundo de cima. Ali começamos e ali acabaremos, nós, os machiguengas, parece. No Gran Pongo.
Outros se foram lutando. Há muitas maneiras de lutar. Dessa vez, os homens que andam tinham feito alto para ganhar forças. Estavam tão cansados que mal podiam falar.
Tinham ficado em um pedaço de morro que parecia seguro. E eles o tinham limpado e tinham construído suas casas, tecido seus tetos. Era alto e eles achavam que as
águas mandadas por Kientibakori para afogá-los não chegariam até ali ou que, se viessem, eles as veriam a tempo e poderiam escapar. Depois de roçar e queimar o
mato, plantaram mandioca e semearam milho e banana. Havia algodão silvestre para tecer as blusas e pés de fumo, cujo cheiro mantinha afastadas as cobras. As araras
vinham acomodar-se nos ombros das pessoas. Os filhotes da onça mamavam nas tetas das mulheres. As mães iam até o mais fundo da selva e pariam, banhavam-se e voltavam
com crianças que mexiam mãos e pés, choramingando, contentes com o calorzinho do sol. Não havia mashcos. Kashiri, a lua, não provocava danos ainda; já tinha estado
na terra, ensinando a cultivar a mandioca. Tinha deixado sua má semente, talvez. Não o sabiam. Tudo parecia bem.
Então, uma noite um vampiro mordeu Tasurinchi enquanto dormia. Cravou suas duas presas na cara dele e ainda que ele o golpeasse com os punhos, não quis se desprender.
Teve que despedaçá-lo, sujando-se com seus ossos

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macios, pegajosos como cocô. "É um aviso", disse Tasurinchi. Que dizia o aviso? Ninguém o entendeu. Perdera-se ou não havia começado a sabedoria. Não se foram.
Ali continuaram, amedrontados, esperando. Antes que crescessem os mandiocais e os milharais, antes que dessem frutos as bananeiras, chegaram os mashcos. Não os sentiram
vir, não ouviram a música de seus tambores de couro de macaco. De repente, choveram flechas sobre eles, dardos e pedras. De repente, grande labaredas incendiaram
suas casas. Antes que soubessem defender-se, os inimigos já tinham cortado muitas cabeças, já tinham roubado bastante mulheres. E tinham levado todos os cestos de
sal que eles foram encher no Cerra. Os que iam assim, voltavam ou morriam? Quem sabe? Morreriam, talvez. Seu espírito iria dar mais fúria e mais força aos que os
roubaram, talvez. Ou aí estarão ainda dando voltas pela selva, desamparados.
Quem sabe quantos não terão voltado. Os flechados, os apedrejados, os caídos em tremedeira pelo veneno dos dardos e pelas mareadas ruins. Cada vez que os mashcos
atacavam e via diminuírem as pessoas, Tasurinchi apontava o céu: "O sol está caindo, dizendo. Algo de mau temos feito. Nós nos teremos corrompido, ficando tanto
tempo em um mesmo lugar. Há que respeitar o costume. Há que voltar a ser puros. Continuemos andando." E a sabedoria voltava, felizmente, quando eles iam desaparecer.
Então, esqueciam-se de suas plantações, de suas casas, de tudo o que não se pudesse guardar nas bolsas. Punham-se os colares, os cocares, queimavam o resto, e, tocando
os tambores, cantando, dançando, começavam a andar. Outra vez, outra vez. Então, o sol se detinha em sua queda por entre os mundos do céu. Logo sentiam que despertava,
que se enfurecia. "Já está aquecendo de novo a terra", diziam. "Estamos vivos", diziam. E eles continuavam andando.
Assim chegaram ao Cerro aquela vez, os homens que andam. Aí estava. Altíssimo, puro, subindo, subindo até o Menkoripatsa, o mundo branco das nuvens. Cinco rios corriam
bailando entre as pedras salgadas. Rodeavam o
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Cerro uns matinhos de palha amarela, com pombinhas e perdizes, ratinhos brincalhões e formigas de gosto de mel. As rochas eram de sal, o solo era de sal, o fundo
dos rios era também de sal. Os homens da terra enchiam os cestos, as bolsas, as redes, tranqüilos, sabendo que o sal nunca se acabaria. Estavam contentes, parece.
Partiam, voltavam e o sal se havia multiplicado. Sempre havia sal para o que subisse para buscá-lo. Subiam muitos. Ashaninkas, amueshas, piros, yaminahuas.
Os mashcos subiam. Todos conheciam o Cerro. Nós chegávamos e os inimigos estavam aí. Não brigávamos. Não havia guerras nem caçadas, mas respeito, dizem. Isso é,
pelo menos, o que eu soube. Será verdade, talvez. Igual que nas collpas, igual que nos bebedouros. Por acaso nesses lugares escondidos da selva, onde a terra é salgada
e a vão lamber, os animais lutam? Quem já viu em uma collpa o sajino investir contra o majaz ou a capivara morder o shimbillo? Nada se fazem. Aí se encontram e aí
ficam, cada um em seu lugar, lambendo tranqüilamente do solo seu sal ou sua água, até que se fartam. Por acaso não é tão bom descobrir uma collpa ou um bebedouro?
Como é fácil caçar os animais, então. Ali estão, descuidados, confiantes, lambendo. Não sentem a pedra, não fogem quando silva a flecha. Caem fácil. O Cerro era
a collpa dos homens, era seu grande bebedouro. Tinha sua magia, quem sabe. Os ashaninkas dizem que é sagrado, que, dentro da pedra, conversam os espíritos. Talvez
seja, talvez conversassem. Eles chegavam com os cestos e as bolsas e ninguém os caçava. Olhavam-se apenas. Havia sal e respeito para todos.
Depois já não se podia mais subir ao Cerro. Depois, eles ficaram sem sal. Depois, o que subia era caçado. Amarrado, era levado aos acampamentos. Isso era a sangria
de árvores. Força, porra! Depois, a terra se encheu de viracochas procurando e caçando homens. E os levavam e eles sangravam a árvore e carregavam o caucho. Força,
porra! Nos acampamentos foi pior que na escuridão e nas chuvas, parece, pior que quando o dano e os mashcos. Tivemos muitíssima sorte. Não estamos andando? Eram
espertos os viracochas, dizem. Sabiam que as

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pessoas subiriam com seus cestos e redes para recolher o sal do Cerro. Esperavam-nos com armadilhas e escopetas. Levavam o que caísse. Ashaninka, piro, amahuaca,
yaminahua, mashco. Não tinham preferências. O que caísse, se não faltariam mãos para sangrar a árvore, dedos para abrir-lhe feridas, colocar sua lata e recolher
seu leite, ombros para carregar e pernas para correr com as bolas de caucho ao acampamento. Alguns escapavam, quem sabe. Muito poucos, dizem. Não era fácil. Mais
que correr, havia que voar. Morra, merda! Ao que fugia, derrubava-o o balaço. Machiguenga morto, porra! "É inútil fugir dos acampamentos, dizia Tasurinchi. Os viracochas
têm sua magia. Algo está nos acontecendo. Algo teremos feito. A eles os espíritos amparam, e a nós, nos abandonam. Somos culpados de alguma coisa. Melhor cravar-se
uma espinha de chambira ou tomar o suco do cumo. Indo assim, com espinho ou veneno, por vontade própria, há esperanças de voltar. O que vai de tiro não volta, fica
flutuando no rio Kamabiría, morto entre os mortos, para sempre." Parecia que os homens iam desaparecer. Mas, não somos afortunados? Aqui estamos. Ainda andando.
Sempre felizes. Desde então não mais voltaram a recolher o sal do Cerro. Aí estará sempre, altíssimo, sua alma limpa, olhando ao sol a sua cara.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Tasurinchi, o que vive no cotovelo do arroio, o que antes vivia na lagoa onde, ao se desaguar, na estação seca, ficam tantas tartarugas meio mortas, está andando.
Fui e o vi. Soprei o como de longe, para anunciar-lhe que vinha visitá-lo, e, já mais perto, eu o fiz saber a gritos: "Eu vim! Eu vim!" Meu lourinho repetiu: "Eu
vim! Eu vim!" Não veio me receber e eu pensei que, talvez, tivesse ido viver em outro lugar e que minha caminhada até ali era inútil. Não. Aí continuava a casa dele,
junto ao cotovelo do arroio. Parei de costas diante dela, para esperar que me recebesse. Tive que esperar muito. Ele estava lá embaixo, no rio, escavando um tronco
para fazer uma canoa.
Enquanto o esperava, estive observando sua mulher. Aí, pertinho, sentada junto ao tear, tingia umas fibras de
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algodão com as raízes esmagadas do palilho. Não se levantou nem me olhou. Continuou trabalhando como se eu não tivesse chegado ou fosse invisível. Tinha posto mais
colares que da última vez. "Você usa tantos colares para que os diabinhos kamagarinis não se aproximem de você ou para que o bruxo machikanari não possa enfeitiçá-la?",
perguntei-lhe. Mas ela não me respondeu e continuou tingindo as fibras como se também não me ouvisse. Levava também muitos adornos nos braços, nos tornozelos e nos
ombros e no peito de sua blusa. O alto de sua cabeça era um arco-íris de penas de arara, tucano, papagaio, paujil e pavita kanari.
Afinal chegou Tasurinchi. "Eu vim", disse-lhe. "Está aí?" "Aqui estou", me respondeu, contente por me ver, e meu lourinho repetiu: "estou, estou". Então, a mulher
dele se pôs de pé e desenrolou duas esteiras para que nos sentássemos. Trouxe uma panela de mandiocas assadas há pouco e que esvaziou em folhas de bananeira e uma
vasilha de masato. Também ela parecia contente por me ver. Estivemos falando até a lua seguinte, sem parar.
A mulher está prenha e desta vez o filho nascerá no tempo devido e não se irá. Um deusinho disse isso ao seripigari na mareada. E lhe fez saber que se desta vez
o filho morre antes de nascer, como das outras vezes, será culpa da mulher e não de um kamagarini. Nessa mareada o seripigari verificou muitas coisas. Nas outras
vezes, os filhos nasceram mortos porque ela tinha tomado beberagens para que morressem dentro dela e botá-los antes do tempo. "É verdade isso?", perguntei à mulher
dele. E ela me respondeu: "Não me lembro. Talvez seja. Quem sabe." "Sim, é verdade", garantiu-me Tasurinchi. Preveniu-a de que se desta vez o filho nascer morto,
ele a matará. "Se nascer morto, cravará em mim uma seta envenenada e me porá junto ao arroio, para que as capivaras me comam", me confirmou a mulher. E ria, não
estava assustada, antes parecia estar zombando de nós.
Perguntei a Tasurinchi por que queria tanto que sua mulher parisse. O filho não o preocupa, é ela sua inquietação. "Não é estranho que todos os filhos dela nasçam

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mortos?", diz. Perguntou-lhe de novo, diante de mim: "Você os botou mortos porque tomou beberagens?" Ela lhe repetiu o que me havia dito: "Não me lembro." "Às vezes
penso que não é uma mulher mas uma diaba, uma sopai", confessou-me Tasurinchi. Não só o assunto dos filhos o faz maliciar que ela tem uma alma diferente. Também
essas pulseiras, colares e adornos de cabeça que usa. E é verdade, nunca vi ninguém usar tantas coisas no corpo e na blusa. Quem sabe como pode andar com todo esse
peso em cima. "Olhe o que tem agora", me disse Tasurinchi. Fez que a mulher se aproximasse e foi apontando: soalhas de sementes, colares de ossos de perdiz, dentes
de capivara, canelas de macaquinhos, caninos de majaz, conchas e muitas outras coisas que não me lembro. "Diz que esses colares a protegem contra o bruxo mau, o
machikanari, contou-me Tasurinchi. Mas em certos momentos, vendo-a, parece que ela é, antes, o próprio machikanari e está preparando feitiço contra alguém." Ela,
rindo, disse que não acreditava ser bruxa nem diaba, mas apenas uma mulher, como as outras.
Tasurinchi não se importaria de ficar só, se matasse sua mulher. "É preferível, a continuar vivendo com alguém que pode roubar todos os pedaços de minha alma",
explicou-me. Mas pensava que não aconteceria, uma vez que, segundo averiguou o seripigari na mareada, desta vez o filho nascerá andando. "Talvez seja assim", ouvi
a mulher dele dizer, rindo a gargalhadas, sem levantar o olhar das fibras de algodão. Estão bem os dois. Andando. Tasurinchi me deu esta redinha de fibras. "Para
que você pesque um pouco", disse-me. E me deu, também, mandioca e milho. "Não tem medo de viajar só?", perguntou-me. "Nós, machiguengas, sempre atravessamos a selva
acompanhados, pelo que se possa encontrar no caminho." "Eu também viajo acompanhado", respondi a ele. "Não está vendo meu lourinho, por acaso?" "Lourinho, lourinho",
repetiu o papagaio.
Contei tudo isto a Tasurinchi, o que vivia antes no rio Mitaya e vive agora mato adentro do rio Yavero. Pensativo, refletindo, ele comentou: "Não o compreendo. Teme
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que sua mulher seja uma sopai porque pariu crianças mortas? Mas estas também seriam diabas, então, porque não só parem mortos mas, às vezes, sapos e lagartixas.
Quem ensinou que uma mulher é bruxa má porque usa muitos colares? Desconheço essa sabedoria. O machikanari é bruxo mau porque serve ao soprador dos demônios, Kientibakori,
e porque os kamagarinis, seus diabinhos, ajudam-no a preparar feitiços, assim como ao seripigari, bruxo bom, os deusinhos que Tasurinchi soprou ajudam-no a curar
danos, desfazer feitiços e descobrir a verdade. Mas tanto o machikanari como o seripigari usam colares, que eu saiba.
As mulheres se puseram a rir, ouvindo-o. Não deve ser verdade que tenham filhos mortos porque havia um formigueiro de meninos, aí, na casa do Yavero. "São muitas
bocas", queixava-se Tasurinchi. Antes, no rio Mitaya, sempre caíam peixes na rede, ainda que a terra não fosse boa para a mandioca. Mas onde foi se meter agora,
remontando bem acima um dos canais que deságuam no Yavero, não há peixes. É um lugar escuro, cheio de sapos e tatus. Uma terra úmida que apodrece as plantas.
Sempre soube que a carne do tatu não se deve comer, pois o tatu tem mãe impura, traz danos e o corpo do que o come cobre-se de manchas. Mas, aí, eles o comiam. As
mulheres tiraram o couro de um tatu e logo assaram sua carne, cortada em pedacinhos. Tasurinchi me enfiou um pedaço na boca com seus dedos. Custei e engoli-lo,
pela apreensão que sentia. Não parece que tenha me acontecido nada. Se não, não estaria aqui andando, talvez.
"Por que você veio tão longe, Tasurinchi?, pergunteilhe. Custei a encontrá-lo. Além disso, por esta região, aí pertinho, vivem os mashcos." "Você esteve em minha
casa do Mitaya e não encontrou os viracochas?", espantou-se. "Estão por toda parte, lá. Sobretudo, na região oposta ao lugar onde eu vivia."
Os forasteiros começaram a passar pelo rio, subindo e descendo, descendo e subindo, há muitas luas. Havia punarunas, vindos da serra, e muitos viracochas. Não estavam
de passagem. Ficaram. Fizeram casas, derrubaram árvores. Caçam animais a tiros que retumbam na selva.

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Vinham com eles, também, alguns homens que andam. Desses que vivem lá em cima, do outro lado do Gran Pongo, esses que já deixaram de ser homens e são também um
pouco viracochas pela maneira como se vestem e falam. Vinham ajudá-los, lá, no Mitaya. Chegaram a visitar Tasurinchi. Queriam convencê-lo de que fosse trabalhar
com eles, roçando o mato e carregando pedras para um caminho que estão abrindo, pegado ao rio. "Não farão nada a você", animavam-no, dizendo-lhe. "Traga também
as mulheres, para que preparem sua comida. Olhe para nós: nos fizeram alguma coisa, por acaso? Não é mais como a sangria de árvores. Então, sim, esses viracochas
eram diabos, queriam nos dessangrar como às árvores, queriam roubar nossas almas. Agora é diferente. com estes, você trabalha o tempo que quiser. Eles nos dão comida,
dão faca, dão facão e até arpão para pescar. Se ficar, pode ter uma escopeta."
Os que tinham sido homens pareciam contentes, talvez. "Somos gente afortunada", dizendo. "Olhe para nós, toque em nós. Você também não quer ser assim? Aprenda, então.
Faça como nós, então." Tasurinchi deixou-se convencer. "Muito bem", disse-lhes, vou ver." E, atravessando o rio Mitaya, acompanhou-os ao acampamento dos viracochas.
Na hora, ao chegar, descobriu que tinha caído em uma armadilha. Estava rodeado de diabos. Como é que você notou, Tasurinchi? Porque o viracocha que estava lhe explicando,
de uma maneira difícil de entender, o que queria que fizesse, de repente, sem mais nem menos, mostrou-lhe a sujeira de sua alma. Mas como, Tasurinchi? Que foi que
houve, então? Estava lhe perguntando: "Você é bom mateiro?"... e se calou de súbito, a cara desfigurada, franzida. Abriu muito a boca e atchim! atchim! atchim!
Três vezes seguidas, parece. Seus olhos se molharam, vermelhos como fogo. Tasurinchi nunca havia tido tanto medo, antes. "Estou vendo um kamagarini", pensou. "Essa
é sua cara, esse seu ruído. Hoje mesmo vou morrer." Pensando "é diabo, diabo", sentiu que a pele se enchia de gotinhas, como se saísse da água. O frio fez com que
seus ossos rangessem e ele se viu por dentro,
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como na mareada. Teve que fazer o maior esforço de sua vida, diz, para se mexer. As pernas não lhe respondiam de tanto tremer. Pôde, afinal. O viracocha estava falando
de novo, sem saber que se tinha delatado. Um fiozinho de ranho verde corria dos buracos de seu nariz. Falava como se não tivesse acontecido nada, falava como falo
eu agora. Assustou-se, certamente, ao ver que Tasurinchi saía correndo e o deixava com a palavra na boca. Os que tinham sido homens e estavam por ali, tentaram
segurá-lo. "Não se assuste, não acontecerá nada a você", enganavam-no. "É só espirro. Eles não morrem disso. Têm remédios." Tasurinchi entrou em sua canoa, disfarçando:
"Sim, bem, hei de voltar, volto logo, esperem-me." Ainda se chocavam seus dentes, parece. "São diabos", pensava. "Hoje hei de morrer, talvez."
Mal chegou à outra margem, reuniu-se com as mulheres e os filhos. "Já chegou o dano, estamos rodeados de kamagarinis", anunciou-lhes. "Temos que ir longe. Vamos,
talvez não seja tarde, talvez possamos andar, ainda." Assim o fizeram e agora vivem nesse canal, mato adentro do rio Yavero. Os viracochas não chegarão até ali,
segundo ele. Tampouco os mashcos, nem mesmo eles se acostumariam em um lugar assim. "Só os homens que andam podemos viver em lugares como este", dizia, orgulhoso.
Estava contente por me ver. "Temi que nunca viria me visitar aqui", dizia. As mulheres, enquanto catavam os cabelos uma da outra, repetiam: "Sorte que escapamos,
o que seria de nossas almas se não." Pareciam contentes por me ver, também. Comemos, bebemos e conversamos muitas luas. Não queriam que me fosse. "Como é que pode
ir, ora", dizia Tasurinchi, "se ainda não acabou de falar. Fale, fale, ainda tem muito para me dizer." Por ele, me teria ainda no Yavero, falando.
Não terminou de fazer sua casa ainda. Mas já limpou o terreno e cortou a madeira e as folhas e preparou os atados de palha para o teto. Teve que
trazê-la lá de baixo,
porque onde está não há palmeiras nem palha. Um jovem que quer se casar com uma das filhas dele está vivendo ali, perto, e ajuda Tasurinchi a buscar uma terra na
parte mais

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alta, para semear mandioca. Abundam os escorpiões e eles os fazem ir embora fumando nos buracos de seus esconderijos. Também há muitos morcegos, de noite; já morderam
uma das crianças que, no sono, afastou-se do fogo. Diz que os morcegos dali saem a buscar comida até com chuva, uma coisa que nunca se viu em outra parte. É uma
terra onde os animais têm diferentes costumes, essa do Yavero. "Ainda estou conhecendo tudo isso", disseme Tasurinchi. "A vida fica difícil quando a gente muda de
lugar", comentei com ele. "Assim é", replicou ele. "Ainda bem que sabemos andar. Ainda bem que temos andado há tanto tempo. Ainda bem que sempre estivemos mudando
de lugar. Que seria de nós se fôssemos desses que não se movimentam? Teríamos desaparecido quem sabe para onde. Assim aconteceu a muitos, durante a sangria de árvores.
Não há palavras para dizer que afortunados somos."
"Quando voltar a visitar Tasurinchi, recorda-lhe que é diabo o que faz atchim! e não a mulher que pare crianças mortas ou usa muitos colares de contas de vidro",
zombou Tasurinchi, fazendo rir as mulheres. E me contou esta história que agora vou lhes contar. Aconteceu há muitas luas, quando os primeiros Padres Brancos começaram
a aparecer por este lado do Gran Pongo. Eles já estavam vivendo do outro, lá em cima. Tinham suas casas em Koribeni e Chirumbia, mas não tinham vindo por aqui, rio
abaixo. O primeiro que atravessou o Gran Pongo foi ao rio Timpía sabendo que lá havia gente que anda. Tinha aprendido a falar. Falava, parece. A gente entendia o
que queria dizer. Fazia muitas perguntas. Ali ficou. E o ajudaram a limpar o terreno, a levantar sua casa, a começar a chácara. Ia e voltava. Trazia comida, anzóis,
facões. Os homens que andam entendiam-se bem com ele. Pareciam contentes. O sol estava em seu lugar, tranqüilo. Mas ao regressar de uma de suas viagens, o Padre
Branco já tinha mudado de alma, mesmo que a cara fosse a mesma. Tinha virado kamagarini e trazia dano. Mas ninguém percebia, e, por isso, ninguém saiu a andar. Tinham
perdido a sabedoria, quem sabe. Isso é, pelo menos, o que eu soube.
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O Padre Branco estava estirado em sua esteira e o viam fazer caretas. Atchim! Atchim! Quando se aproximavam para perguntar-lhe "O que é que tem? Por que entorta
assim a cara? Que ruídos são esses?", respondia: "Não é nada, já vai passar." O dano tinha se metido na alma de todos. Crianças, mulheres, anciães. E também, dizem,
as araras, os paujiles, os porquinhos-do-mato, as perdizes, todos os animais que tinham. Eles também: Atchim! Atchim! Riam, no princípio. Achavam que era como uma
mareada alegre. Batiam no peito e se empurravam, brincando. E, entortando as caras: Atchim! Saía o ranho de seus narizes, saía a baba de suas bocas. Cuspiam e riam.
Mas não podiam mais andar. Tinha passado o tempo. Já suas almas, quebradas em pedaços, tinham começado a sair de seus corpos pelo alto de suas cabeças. Só lhes restava
resignarem-se ao que sucederia.
Sentiam como se dentro do corpo tivessem acendido fogueiras. Ardiam, chamejando. Banhavam-se no rio mas a água, em vez de apagar o fogo, aumentava-o. Depois sentiam
um frio terrível, como se tivessem recebido o aguaceiro toda a noite. Mesmo que o sol estivesse ali, olhando com seu olho amarelo, eles tremiam, tontos, assustados,
não vendo o que viam, sem reconhecer o conhecido. Enfureciam-se, adivinhando que tinham o dano metido dentro, como o bicho-de-pé na unha. Não haviam entendido o
aviso, não saíram a andar ao primeiro atchim! do Padre Branco. Morreram até os piolhos, parece. As formigas, os escaravelhos e as aranhas que passavam por ali também
morreram, dizem. Nunca ninguém voltou a viver naquele lugar do rio Timpía. Ainda que já não se saiba bem qual é, porque o mato o tapou de novo. Não convém passar
por ali, melhor dar uma volta, evitando-o. Pode ser reconhecido por uma fumacinha branca que fede e uns assobios estridentes. E as almas dos que vão assim, voltam?
Quem sabe. Talvez voltem. Ou, talvez, fiquem flutuando no Kamabiría, caminho de água dos mortos.
Eu estou bem. Andando. Agora estou bem. Estive com dano há algum tempo e pensei que tinha chegado a hora de armar meu refúgio de ramos junto ao rio. Ia a caminho
da

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casa de Tasurinchi, o cego, o que vive no rumo do Cashiriari. De repente, aquilo foi me saindo, enquanto andava. Só me dei conta quando vi minhas pernas manchadas.
Que dano é este? Que foi que se meteu dentro do meu corpo? Continuei andando, mas ainda faltava muito para chegar ao Cashiriari. Quando sentei para descansar, me
veio a tremedeira. Estive vendo que podia fazer, espiando os arredores. Por fim, encontrei uma árvore de floripôndio * e arranquei dela todas as folhas que pude.
Fiz um cozimento e salpiquei meu corpo com ele. Amornei outra vez a água da vasilha e meti dentro dela, fervendo, a pedra que o seripigari tinha me dado. Respirei
seu vapor até que o sono me veio. Estive assim muitas luas, quem sabe quantas, estendido sobre a esteira, sem forças para andar, sem forças nem sequer para me sentar.
As formigas passeavam pelo meu corpo e eu não as afastava; quando alguma se aproximava muito de minha boca eu a engolia, e essa foi toda a minha comida. Entre sonhos,
ouvia o lourinho, chamando-me: "Tasurinchi! Tasurinchi!" Meio dormido meio acordado e sempre morto de frio. Sentia uma grande tristeza, talvez.
Nisso, apareceram uns homens. Vi a cara deles em cima de mim, agachando-se para me olhar. Um me mexeu com seu pé e eu não podia falar com ele. Não eram homens
que andam. Não eram mashcos também, felizmente. Ashaninka, pode ser, acho, porque pude entender um pouco do que diziam. Estiveram me observando, me fazendo perguntas
que eu não tinha forças para responder, ainda que as ouvisse, longe. E me parecia que discutiam sobre se eu seria um kamagarini. E também o que se deve fazer quando
a gente encontra um diabinho na selva. Discutiam. Um disse que lhes traria dano o ter visto alguém como eu em seu caminho e que o prudente era me matar. Não chegavam
a um acordo. Conversaram e pensaram muito tempo. Por fim, decidiram tratar bem de mim, para
* Floripôndio, estramônio do Peru, da família das solanáceas, tem propriedades tóxicas e medicinais, folhas grandes e flores alvas ou azuladas. (N. do T.)
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minha sorte. Eles me deixaram umas mandiocas e como viram que eu não tinha forças para pegá-las, um deles me meteu um pedaço na boca. Não era veneno. Era mandioca.
Envolveram as outras em uma folha de bananeira e a puseram nesta mão. Talvez tenha sonhado tudo isso. Não sei. Mas, depois, quando me senti melhor e as forças voltaram,
ali estavam as mandiocas. Eu as comi e também o lourinho comeu. Pude recomeçar a viagem. Ia devagar, parando a todo instante para descansar.
Quando cheguei à casa de Tasurinchi, o cego, o do rio Cashiriari, contei-lhe o que me tinha acontecido. Ele jogou fumo sobre mim e preparou um cozimento de tabaco.
"O que aconteceu a você foi que sua alma se dividiu em muitas", explicou-me. "O dano entrou no seu corpo, porque algum machikanari o mandou ou porque, só de desprevenido,
você se atravessou no caminho dele. O corpo é a blusa da alma, só isso. A envoltura dela, como a do bicho-da-seda. Já lá dentro o dano, a alma tratou de se defender.
Deixou de ser uma e se converteu em muitas, para confundir o dano. Este roubou as que pôde. Uma, duas, várias. Não terá levado muitas, porque você teria ido todo.
Foi bom que tomasse um banho com água de tohé e aspirasse seu vapor. Mas devia ter feito algo mais esperto. Esfregar com tintura de urucu o alto da cabeça, até
que ficasse bem vermelho. Então, o dano não teria podido sair de seu corpo com o carregamento de almas. Por aí é por
onde sai, essa é a porta dele. O urucu fecha-lhe
o caminho. Ao se sentir prisioneiro, lá dentro, perde a força e morre. No corpo é igual que nas casas. Os diabos que entram nas casas não roubam as almas escapando
pela parte mais alta, pela cumeeira do teto? Para que arrumamos com tanto cuidado essa madeira, no alto do teto? Para que o diabo não possa escapar, levando as
almas dos que dormem. Igual com o corpo, então. Você se sentiu fraco pelas almas que perdeu. Mas elas já voltaram para você de novo e por isso está aqui. Teriam
escapado de Kientibakori, aproveitando um descuido de seus kamagarinis. Regressariam para procurar você, pois você não é a casa delas? e o encontrariam ali, no mesmo
lugar, agonizando,
moribundo. Entraram no seu corpo e você renasceu. Agora, dentro de você, todas as almas já se juntaram. Agora são de novo uma só."
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Tasurinchi, o cego, o que vive pelo Cashiriari, está bem. Ainda que não veja quase nada a maior parte do tempo, pode limpar sua chácara. Anda. Diz que na mareada
agora, vê mais coisas que antes de ficar cego. Será uma sorte o que aconteceu a ele, talvez. Nisso acredita. Está domesticando as coisas de maneira que sua cegueira
cause o menor dano a ele e aos seus. O filho menor, o que engatinhava da última vez que fui vê-lo, se foi. Uma víbora picou a perna dele. Quando notaram, Tasurinchi
preparou um cozimento e fez o que pôde para salvá-lo, mas já tinha se passado muito tempo. Foi mudando de cor, ficou preto como o huito e se foi.
Mas seus pais tiveram a alegria de vê-lo uma vez mais.
Aconteceu assim.
Foram ao seripigari e lhe disseram que estavam muito tristes com a partida da criança.
Pediram-lhe: "Averigua o que foi feito dele, em qual dos mundos está, dizendo-lhe.
E pede-lhe que volte a nos visitar, pelo menos uma vez." O seripigari assim o fez. A alma dele, na mareada, guiada por um saankarite, viajou até o rio dos espíritos
puros, o Meshiareni. Lá encontrou a criança. Os saankarites o tinham lavado, tinha crescido, tinha uma casa e logo teria também uma esposa. Contando-lhe como tinham
ficado tristes seus pais, o seripigari convenceu-o de que voltasse a esta terra para fazer-lhes uma última visita. Prometeu e cumpriu.
Tasurinchi, o cego, diz que na casa do Cashiriari apresentou-se logo um jovem, vestido com uma blusa nova. Todos o reconheceram, apesar de que já não era criança
mas um jovem. Tasurinchi, o cego, soube que era ele pelo perfume que exalava. Sentou-se entre eles e provou um pedaço de mandioca e umas gotas de masato. Esteve
contando sua viagem, desde que sua alma escapou de seu corpo pelo alto da cabeça. Estava escuro mas ele pôde reconhecer a entrada da cova por onde se desce ao rio
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dasalmas mortas. Atirou-se ao Kamabiría e flutuou nas águas espessas, sem afundar. Não necessitava mexer os pés nem as mãos. A corrente, prateada como teia de aranha,
levava-o devagar. À sua volta, outras almas viajavam também pelo Kamabiría, rio largo em cujas margens, talvez, haja rochas mais escarpadas que as do Gran Pongo.
Por fim chegou ao lugar onde as águas se dividem, arrastando por seu despenhadeiro de cascatas e redemoinhos os que descem ao Gamaironi, a sofrer. A própria corrente
do rio ia separando uns dos outros. Aliviado, o filho de Tasurinchi, o cego, sentiu que as águas o afastavam do despenhadeiro; feliz, soube que ele seguiria viajando
pelo Kamabiría, com os que iam subir, pelo rio Meshiareni, até o mundo mais acima, o mundo do sol, o Inkite. Para chegar lá, viajou muito ainda. Teve que passar
pelo fim desta terra, o Ostiake, onde deságuam todos os rios. É uma região pantanosa, cheia de monstros; Kashiri, a lua, baixa às vezes para urdir ali seus malefícios.
Esperaram que o céu estivesse limpo de nuvens e que as estrelas se refletissem nas águas, nítidas. Então, o filho de Tasurinchi pôde ascender com os companheiros
de viagem, pelo Meshiareni, que é uma escada de luzeiros, até o Inkite. Os saankarites o receberam com uma festa. Comeu um fruto de sabor doce, que o fez crescer,
e lhe mostraram a casa onde viveria. Agora, ao regressar, teriam preparada uma esposa para ele. Estava contente, parece, no mundo mais de cima. Não se lembrava da
picada da víbora.
"Não sente falta de nada desta terra?", perguntaram-lhe seus parentes. Sim, de algo. A felicidade que sentia quando a mãe lhe dava de mamar. E então, contou-me o
cego do Cashiriari, pedindo-me licença para fazê-lo, o jovem se aproximou de sua mãe, abriu sua blusa e, com muita delicadeza, chupou os peitos dela, como fazia
de recém-nascido. Saiu dela o leite? Quem sabe? Mas ele se sentiu feliz, talvez. Despediu-se deles, contente.
Também se foram as duas irmãs mais jovens da mulher de Tasurinchi. Uma delas foi raptada por uns punarunas que apareceram pelo rumo do Cashiriari e a mantiveram

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para cozinhar, usando-a como mulher, muitas luas. Era o período em que devia estar pura, com os cabelos cortados, sem comer, sem falar com ninguém e sem que o
marido a tocasse. Disse Tasurinchi que ele não a envergonhou pelo que lhe tinha acontecido. Mas ela se atormentava com sua morte. "Já não mereço que ninguém fale
comigo, dizendo. Não sei, também, se mereço viver." À noitinha, foi devagarinho até a margem, fez sua cama com raminhos e cravou em seu corpo uma espinha de chambira.
"Estava tão triste que eu suspeitava que faria isso", disse-me Tasurinchi, o cego. Envolveram-na em duas blusas, para que os abutres não a biquem, e, em vez de soltá-la
em uma canoa no meio do rio ou enterrá-la, penduraram-na no alto de uma árvore. De uma maneira muito sábia, pois os raios do sol da manhã e da tarde lambem seus
ossos. Tasurinchi mostrou-me onde e eu me espantei. "Que alto! Como pôde chegar até lá?" "Não terei vista, mas para subir uma árvore não se precisa de olhos, mas
de pernas e braços, e os meus estão ainda fortes", respondeu-me.
A outra irmã da mulher de Tasurinchi, o cego do Cashiriari, caiu de uma quebrada, voltando do mandioca!. Tasurinchi mandara-a ver as armadilhas que põe ao redor
da chácara e nas quais, diz, sempre caem os porquinhos-daíndia. Passava a manhã e ela não voltava. Saíram para buscá-la e a encontraram no fundo da quebrada. Tinha
rolado, resvalando talvez, por um deslizamento sob seus pés. Mas eu me surpreendi. Não é um barranco profundo. Qualquer um poderia saltar ou rolar até o fundo, sem
se matar. Ela morreu antes, talvez, e seu corpo vazio, sem alma, rolaria quebrada abaixo. Tasurinchi, o cego do Cashiriari, diz: "Sempre pensamos que essa moça iria
sem explicação." Passava a vida cantarolando umas canções que ninguém tinha ouvido. Tinha delírios estranhos, falava de lugares desconhecidos, e, ao que parece,
os animais lhe contavam segredos quando não havia ninguém perto para escutá-los. Esses são indícios de que uma pessoa vai logo, segundo Tasurinchi. "Agora que essas
duas se foram, há mais comida para repartir, que sorte temos", brincava.
Ensinou os filhos pequenos a caçar. Ele os mantém
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praticando todo o dia, pelo que possa lhe acontecer. Pediu-lhes que me mostrassem o que tinham aprendido. É verdade, já manejam o arco e a faca, mesmo os que começam
a andar. Também são hábeis fazendo armadilhas e pescando. "Como você pode ver, não lhes faltará o que comer", disse-me Tasurinchi. Gosto da coragem que ele tem.
É um homem que nada entristece. Estive vários dias com ele, acompanhando-o a preparar seus anzóis, a armar suas armadilhas, e o ajudei a limpar sua chácara. Trabalhava
dobrado em dois, arrancando a erva, como se seus olhos vissem. Também fomos a uma lagoa onde há súngaros, mas nada pescamos. Não se cansava de me escutar. E me fazia
repetir as mesmas histórias: "Assim, quando você se for, voltarei a contar-me eu mesmo o que agora me conta", dizendo.
"Que miserável deve ser a vida dos que não têm, como nós, pessoas que falem, pensava. Graças ao que você conta, é como se o que passou voltasse a passar muitas vezes."
A uma de suas filhas, que dormiu enquanto eu falava, ele despertou com um golpe: "Escute, não desperdice estas histórias, crianças, dizendo-lhe. Conheça as maldades
de Kientibakori. Aprenda os danos que nos têm feito e ainda podem fazer os seus kamagarinis."
Agora sabemos muitas coisas de Kientibakori que, eles, antes, não sabiam. Sabemos que tem muitos intestinos, como o renacuajo inkiro. Sabemos que nos odeia, os machiguengas.
Já tentou nos destruir muitas vezes. Sabemos que ele soprou todo o mal que existe, dos mashcos até o dano. As rochas pontiagudas, as nuvens escuras, a chuva, o barro,
o arco-íris, ele soprou. E os piolhos, as pulgas, os bichos-de-pé, as cobras e as víboras venenosas, os ratões e os sapos. Ele soprou as moscas, os mosquitos, os
pernilongos, os morcegos e os vampiros, as formigas e os urubus. Ele soprou as plantas que fazem a pele arder e as que não se podem comer; e as terras vermelhas,
que servem para fazer vasilhas mas não para plantar a mandioca. Isto eu aprendi no rio Shivankoreni, pela boca do seripigari. Aquele que mais sabe sobre as coisas
e os seres soprados por Kientibakori, talvez.

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A vez em que esteve mais perto de nos destruir foi essa vez. Já não era tempo da abundância. Também não da sangria de árvores. Antes que este e depois que aquele,
parece. Veio um kamagarini disfarçado de gente e disse aos homens que andam: "Quem necessita verdadeiramente de ajuda não é o sol. Mas Kashiri, a lua, que é o pai
do sol." Deu-lhes suas razões, com palavras que os deixaram desconfiados. O sol, tão forte, não fazia chorar aqueles que se atreviam a olhá-lo fixamente, sem piscar?
Que ajuda ia necessitar, então? Isso de que caía e levantava era manha. Kashiri, em compensação, com sua luz tênue, bondosa, estava sempre lutando contra as trevas,
em condições difíceis. Se a lua não estivesse ali, nas noites, espiando no céu, a escuridão seria completa, uma trava espessa: o homem cairia no precipício, pisaria
na víbora e não poderia encontrar sua canoa nem sair para cultivar a mandioca ou caçar. Viveria prisioneiro em um mesmo lugar e os mashcos poderiam cercá-lo, flecha-Io,
cortar-lhe a cabeça e roubar-lhe a alma. Se o sol caía de todo seria noite, talvez. Mas enquanto houvesse lua, a noite nunca seria noite de todo, só meia escuridão,
e a vida continuaria, talvez. Não deviam os homens ajudar a Kashiri, em vez disso? Não era essa a sua conveniência? Se o faziam, a luz da lua brilharia mais intensa,
e a noite seria menos noite, uma penumbra boa para andar.
Aquele que lhes dizia essas coisas parecia um homem mas era um kamagarini. Um desses que Kientibakori soprou para que andem por este mundo semeando desgraças. Eles,
antes, não o reconheciam. Apesar de que chegou em meio de uma grande tormenta, como chegam sempre os diabinhos às aldeias. Eles, antes, não o entendiam, talvez.
Se alguém aparece quando o senhor do trovão está rugindo e caem trombas-d'água, não é homem, é kamagarini. Agora sabemos. Eles não o reconheciam ainda. Deixaram-se
convencer. E, mudando seus costumes, começaram a fazer de noite o que faziam antes de dia e. de dia o que faziam antes de noite. Pensando que, assim, Kashiri, a
lua, brilharia mais.
Mal assomava seu olho do sol no céu punham-se sob
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teto, dizendo-se uns aos outros: "É hora de descansar", "É hora de acender o fogo", "É hora de sentar para escutar ao que fala.' Assim o faziam: descansavam com
o sol ou se reuniam para ouvir o falador até que começava a escurecer. Então, espreguiçando-se, diziam: "Chegou o momento de viver." De noite viajavam, de noite
caçavam, de noite construíam suas moradias e de noite roçavam o mato e limpavam de capim os mandiocais. E foram se acostumando ao novo modo de vida. Tanto, que já
não resistiam estar ao ar livre nas horas de luz. O calor do sol fazia a pele deles arder e o fogo de seu olho os cegava. Coçando-se, diziam: "Não vemos, que horrível
é esta luz, nós a odiámos." Em compensação, de noite, os olhos deles tinham se acostumado à escuridão e viam nela como vocês e eu durante o dia. Diziam: "Era verdade,
Kashirí, a lua, agradece-nos a ajuda que lhe prestamos." Começaram a se chamar, já não homens da terra, já não homens que andam, já não homens que falam. Senão homens
da treva.
Tudo estava muito bem, talvez. Pareciam contentes, quem sabe. A vida transcorria sem ocorrências.
Sentiam-se serenos. Os que se iam, voltavam, e, bem ou mal, não
lhes faltava comida. "Fomos sábios fazendo o que fizemos", diziam. Estavam enganados, parece. Haviam perdido a sabedoria. Todos estavam virando kamagarinis, mas
não o suspeitavam. Até que começaram a acontecer-lhes certas coisas. Em Tasurinchi, um belo dia, amanheceram escamas e um rabo onde tinha os pés. Parecia uma enorme
carachama. Sim, esse peixe que vive na água e na terra, esse peixe que nada e anda. Arrastando-se com dificuldade, foi meter-se no lago, murmurando pesaroso que
não podia suportar a vida na terra, pois sentia falta da água. Em Tasurinchi, ao despertar, umas luas depois, tinham saído asas no lugar dos braços. Deu um pequeno
pulo e viram que se elevava e desaparecia sobre as árvores, batendo asas como um beija-flor. Em Tasurinchi cresceu uma tromba e seus filhos, desconhecendo-o, gritaram
desatinados: "Um sajino, vamos comê-lo." Quando tentou dizer-lhes quem era, emitiu um ronco e grunhiu. Teve que

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fugir, trotando. Torpe trotava nas quatro patas que mal de fato sabia usar, perseguido pela gente esfomeada que lhe atirava flechas e pedras, "Vamos pegá-lo, vamos
caçálo", dizendo.
Esta terra foi ficando sem homens. Uns viravam pássaros, outros peixes, outros tartarugas,- outros aranhas, e iam fazer a vida dos diabinhos kamagarinis. "Que é
que está nos acontecendo, que desgraças são estas?", perguntavam-se, aturdidos, os sobreviventes. Estavam amedrontados e cegos, não compreendiam. Uma vez mais, tinha
perdido a sabedoria. "Vamos desaparecer", lamentavam-se. Tristes, talvez. Então, em meio de tanta confusão, os mashcos lhes caíram em cima e fizeram uma grande matança.
Cortaram as cabeças de muitos deles e levaram suas mulheres. Parecia que as catástrofes não terminariam nunca. Então, em seu desespero, um deles lembrou-se: "Vamos
visitar Tasurinchi."
Era um seripigari já velho, que vivia só, pelo rio Timpía, atrás de uma cascata. Ouviu-os sem dizer nada. Foi com eles até o lugar onde viviam. com seus olhos
remelentos contemplou o desamparo e a desordem que reinavam no mundo. Jejuou várias luas, mudo, abstraído, meditando. Preparou os cozimentos para mareada. Esmagou
tabaco verde no pilão, espremeu as folhas sobre um coador, colocou água e pôs a vasilha a ferver até que o cozimento engrossou e ferveu. Amassou a raiz do ayahuasca,
espremeu seu suco pardo, ferveu-o e deixou que esfriasse. Apagaram o fogo, rodearam a casa com folhas de bananeira para que a escuridão fosse completa. O seripigari
fumou-os um por um, a todos, e cantou, e eles lhe responderam, cantando. Logo, tomou seus cozimentos, sempre cantando. Eles aguardavam, ansiosos. Ele continuava
agitando o molho de folhas e cantando. Não entendiam o que dizia. Por fim, já tornado espírito, viram sua sombra escalar o pau do centro da choça e desaparecer no
teto, pelo mesmo lugar por onde o diabo leva as almas. Pouco depois, voltou. Tinha seu mesmo corpo, mas já não era ele, era um saankarite. E os repreendeu, furioso.
Recordou-os o que tinham sido, o que tinham feito, tantos sacrifícios
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desde que começaram a andar. Como tinham podido deixar-se enganar pelas astúcias do inimigo de sempre? Como tinham podido trair o sol por Kashiri, a lua? Ao mudarem
sua maneira de viver, perturbaram a ordem do mundo, desorientando as almas dos que se foram. Na escuridão em que se movimentavam, as almas não os reconheciam, não
sabiam se estavam erradas. Por isso ocorriam as desgraças, talvez. Os espíritos dos que se iam e voltavam, confundidos com as mudanças, se iam de novo. Erravam
pela floresta, órfãos, gemendo no vento. Nos corpos abandonados, sem o sustento das almas, o kamagarini se metia para corrompê-los; por isso lhes saíam penas, escamas,
focinhos, garras, aguilhões. Mas ainda estavam a tempo. A dissolução e a impureza tinham sido trazidas por um diabo, vivendo entre eles vestido de homem. Saíram
em sua busca, decididos a matá-lo. Mas o kamagarini já havia fugido para o fundo da floresta. Eles então, compreenderam. Envergonhados, voltaram a fazer o que haviam
feito antes, até que o mundo, a vida, foram o que eram e deviam ser. Desolados, arrependidos, puseram-se a andar. Não deve fazer cada qual o que lhe corresponde?
Não lhes tocava andar, ajudando o sol a se levantar? Sua obrigação eles a têm cumprido, talvez. Nós a estamos cumprindo? Andamos? Vivemos?
Entre todas as classes de kamagarinis que Kientibakori soprou, o pior dos diabinhos é o kasibarenini, parece. Pequeninho como criança, se aparece com sua blusa
cor de areia por algum lugar, é porque ali há algum doente. Quer se apoderar de sua alma para obrigá-lo a fazer crueldades. Por isso não se deve deixar os enfermos
nem um momento sozinhos. E basta um pequeno descuido para que o kasibarenini faça das suas. Tasurinchi diz que isso aconteceu a ele. Aquele que voltou, aquele que
está vivendo agora pelo rio Camisea. Tasurinchi. Segundo ele, um kasibarenini teve a culpa do que lhe aconteceu lá em Shivankoreni, onde ainda a gente se enfurece
lembrando-o. Fui vê-lo, na prainha do Camisea onde fez sua casa. Assustou-se ao me ver aparecer. Pegou a escopeta. "Vem me matar?", dizendo. "Cuidado, olhe o que
tenho nas mãos." Não estava enraivecido, mas triste. "Venho visitar você", tranqüilizei-o. "E para falar com você, se quiser me ouvir. Se prefere que me vá, irei."
"Como não vou querer
que me fale?", respondeu-me, estendendo duas esteiras. "Venha, venha. Coma toda minha comida, leve toda a mandioca que tenho. Tudo é seu." Queixou-se amargamente
de que não lhe permitam regressar a Shivankoreni. Aproxima-se e li seus antigos parentes vêm ao seu encontro com flechas e
pedras, gritando-lhe: "Diabo, maldito diabo."
- Além disso, pediram a um bruxo mau, um machikanari,
que lhe faça dano. Tasurinchi surpreendeu-o, metendo-se
às escondidas em sua casa, de noite, para roubar uma mecha de seus cabelos, ou alguma coisa sua, e assim conseguir fazê-lo enfermar e morrer de morte horrível.
Teria podido matar o machikanari, mas só o fez correr, disparando para o ar. Isso prova, segundo ele, que sua alma i está de novo pura. "Não é justo que tenham tanto
ódio de mim", diz. Contou-me que foi até Tasurinchi, rio acima,
levando-lhe comida e presentes. Oferecendo-se para lhe
abrir uma chácara nova na floresta, pediu que lhe desse por mulher qualquer das filhas dele. Tasurinchi insultou-o: "Lêndea, cocô, falso, como se atreve a vir aqui?
vou matar você agora mesmo." E tinha tentado esfaqueá-lo.
Queixou-se, chorando, de sua sorte. Disse que não era
verdade que fosse um diabo kasibarenini disfarçado de
homem. Tinha-o sido por um tempo, talvez, antes. Mas, agora, é igual a qualquer dos machiguengas de Shivankoreni que não o deixam aproximar-se. Sua desgraça começou
aquela vez que teve o dano. Estava tão magro e tão fraco que não podia levantar-se da esteira. Também não
podia falar; abria a boca e não lhe saía a voz. "Estarei virando peixe", parece que pensava. Mas via e entendia o
que acontecia a sua volta, nas outras moradias de Shivan koreni. Assustou-se muito quando percebeu que todos, na casa, tiravam as pulseiras e os adornos de pulsos,
braços e tornozelos. Ouvia-os dizendo: "Vai morrer logo.
Mas, antes de ir, seu espírito tirará as veias e, com elas, quando estivermos dormindo, nos amarrará pelas partes do corpo onde tínhamos adornos." Ele queria
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tranqüilizá-los, dizer-lhes que nunca faria isso com eles e que também não estava morrendo. Mas não lhe saía a voz. E, nisso, avistou-o sob a chuva. Andava pelo
povoado, fazendo-se
de inocente. Era uma criança com uma blusa cor de areia e parecia entretido brincando com umas sementes de floripôndio e imitando, com a mão, o revoar de um colibri.
Tasurinchi não pensou que podia ser um diabinho. Por isso, não se assustou quando seus parentes partiram para pescar rumo ao lago. Então, quando o viu sozinho, o
kasibarenini transformou-se em formiga e meteu-se no corpo de Tasurinchi pelo buraquinho do nariz por onde se aspira o suco do tabaco. Aí mesmo sentiu-se curado
do dano que tinha, aí mesmo voltaram-lhe as forças e engordou. Mas sentiu, também, um impulso irresistível de fazer o que fez. E, sem mais nem menos, correndo, uivando,
batendo-se no peito como um macaco, começou a queimar as moradias de Shivankoreni. Diz que não era ele, mas o diabinho, o que acendia a palha e espalhava o fogo
de um lado a outro, rugindo e pulando, feliz. Tasurinchi lembra-se do berreiro dos papagaios e da sufocação que sentia, entre as nuvens de fumaça, enquanto à frente,
atrás, à direita e à esquerda, tudo ardia. Se não tivessem chegado os demais, hoje, Shivankoreni não existiria. Diz que mal viu vir as pessoas, arrependeu-se do
que tinha feito. Teve que fugir, assustadíssimo, dizendo-se: "Que está me acontecendo?" Queriam matá-lo, perseguiam-no gritando-lhe: "Diabo, diabo."
Mas, segundo Tasurinchi, isso é história velha. O diabinho que o fez botar fogo em Shivankoreni foi sugado por um seripigari de Koribeni: tirou-o pela axila e o
vomitou, depois. Tasurinchi viu-o: tinha a forma de um ossinho branco. Diz que, desde então, ele é de novo como eu ou como qualquer de vocês. "Por que pensa que
não me deixam viver em Shivankoreni?", perguntou-me. "Porque desconfiam de você", expliquei-lhe. Todos se lembram daquele dia em que você se curou só para queimar
as casas deles. E, além disso, sabem que você andou vivendo, lá, do outro lado do Gran Pongo, entre os viracochas." Porque Tasurinchi não estava vestido com blusa,

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mascalça e camisa. "Lá, entre eles, eu me sentia um órfão", disse-me. "Sonhava com voltar a Shivankoreni. E agora que estou aqui meus parentes me fazem sentir um
órfão
também. Viverei sempre em uma solidão assim, sem família? A única coisa que eu quero é uma mulher que asse a mandioca e tenha filhos."
Estive com ele três luas. É um homem estranho e distraído, que, às vezes, fala sozinho. Alguém que viveu com um diabo kasibarenini dentro do corpo não pode voltar
a ser o que era, talvez. "Que você tenha vindo me visitar é o princípio de uma mudança, quem sabe", disse-me. "Você acredita que dentro de pouco os homens que andam
me permitirão andar com eles?" Quem sabe?, respondi-lhe. "Não há nada mais triste que sentir-se alguém que já não é um homem", disse-me, quando nos despedimos.
Quando já ia pelo rio Camisea eu o vi, de longe. Subira a um montinho e me seguia com o olhar. Eu me lembrava de sua cara carrancuda, desamparada, mas não a via
mais.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.

IV
CONHECI a selva amazônica em meados de 1958, graças a minha amiga Rosita Corpancho. Suas funções na Universidade de San Marcos eram indefinidas; seu poder, incomensurável.
Andava entre os professores sem ser um deles e todos faziam o que Rosita lhes pedia; graças às suas habilidades, as enferrujadas portas da administração se abriam
e os trâmites se facilitavam.
- Há um lugar numa expedição pelo Alto Maranhão, organizada pelo Instituto Lingüístico para um antropólogo mexicano - me disse ela, um dia em que a encontrei no
pátio da Faculdade de Letras. - Você quer ir?
Eu tinha conseguido, afinal, a ansiada bolsa na Europa e devia viajar à Espanha no mês seguinte. Mas, sem hesitar um segundo, aceitei.
Rosita é loretana e, se alguém prestar atenção, ainda nota nela um restinho do saboroso cantado dos peruanos do Oriente. Era - continua sendo, sem dúvida - protetora
e promotora do Instituto Lingüístico de Verão, uma instituição que, nos quarenta anos de vida no Peru, tem sido objeto de virulentas controvérsias. Entendo que agora,
enquanto escrevo estas linhas, faz as malas para sair do país. Não porque a tenham expulsado (isto esteve a ponto de ocorrer-lhe quando da ditadura do General Velasco);
de motu próprio, porque considera que cumpriu a missão que a levou a Yarinacocha, sua base de operações, às margens do Ucayali, a uns dez quilômetros de Pucallpa,
e, dali, estendeu-o praticamente por todas as depressões e meandros da Amazônia.

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Em que consiste a missão do Instituto? Segundo seus inimigos, é um braço do imperialismo norte-americano, que, sob o pretexto da pesquisa científica, realiza trabalhos
de inteligência e uma ação de penetração cultural neocolonialista entre os indígenas amazônicos. Estas acusações procedem, sobretudo, da esquerda. Mas também são
seus adversários alguns setores da Igreja Católica - principalmente, os missionários da selva -, que o acusam de ser nada mais que uma falange de evangelizadores
protestantes disfarçados de lingüistas. Entre os antropólogos, há quem lhe reprove o fato de perverter as culturas aborígines, tratar de ocidentalizá-las e incorporá-las
a uma economia de mercado. Alguns conservadores criticam a presença do Instituto no Peru alegando razões nacionalistas e hispânicas. Era desses últimos meu professor
e chefe de então, o historiador Forras Barrenechea, que, ao se inteirar de que eu partia naquela expedição, me passou um sermão: "Tenha cuidado, esses gringos tentarão
comprálo." Para ele, era intolerável que, por culpa do Instituto, os indígenas das selvas aprendessem provavelmente a falar inglês antes que espanhol.
Seus amigos, como Rosita Corpancho, defendiam o Instituto com argumentos pragmáticos. A ação dos lingüistas - estudar as línguas e os dialetos da Amazônia, estabelecer
vocabulários e gramáticas das diferentes tribos
- servia ao país, e, além disso, pelo menos em teoria, estava controlada pelo Ministério da Educação, que devia aprovar seus projetos e recebia cópias de todo o
material recolhido pelo Instituto. Enquanto o próprio Ministério ou as Universidades peruanas não fizessem o esforço de realizar esse trabalho, convinha ao Peru
que alguém o fizesse. De outra parte, a infra-estrutura montada pelo Instituto na Amazônia, com uma linha de hidroaviões e um sistema de comunicações pelo rádio
entre a base de Yarinacocha e a rede de lingüistas vivendo nas tribos, também era aproveitada pelo país, uma vez que os professores, funcionários e militares de
remotas localidades da selva costumavam, e não apenas em casos de emergência, recorrer a ela.
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A controvérsia não acabou nem acabará, naturalmente. Aquela expedição de poucas semanas, em que tive a sorte de participar, causou-me uma impressão tão grande que,
vinte e sete anos depois, ainda a lembro com luxo de detalhes e ainda escrevo sobre ela. Como agora, em Florença. Estivemos primeiro em Yarinacocha, conversando
com os lingüistas, e, logo, a uma grande distância de lá, na região do Alto Maranhão, percorrendo uma série de casarios e aldeias de duas tribos de origem jíbaro:
aguarunas e huambisas. Depois, subimos até o lago de Morona para visitar os shapras.
Viajávamos em um pequeno hidroavião e, em certos lugares, em canoas indígenas, através de estreitos canais de águas submersas sob uma vegetação tão embaraçada que,
em pleno dia, parecia noite. A força e a solidão da Natureza - as altíssimas árvores, as tersas lagoas, os rios imutáveis - sugeriam um mundo recém-criado, virgem
de homens, um paraíso vegetal e animal. Quando chegávamos às tribos, em compensação, tocávamos na pré-história. Ali estava a existência elementar e primeira dos
distantes ancestrais: os caçadores, os agricultores, os flecheiros, os nômades, os irracionais, os mágicos, os animistas. Também isso era o Peru e só então tomava
eu cabal consciência disso: um mundo ainda não domado, a Idade da Pedra, as culturas mágico-religiosas, a poligamia, a redução de cabeças (em uma localidade shapra,
de Moronacocha, o cacique Tariri explicou-nos, através de um intérprete, a complicada técnica de recheio e cozimentos que a operação exigia), isto é, o despontar
da história humana.
Ao longo de todo o trajeto, estou certo de que pensei continuamente em Saul Zuratas. E também falei muito sobre ele com seu professor, o Doutor Matos Mar, que participava
da expedição e de quem, desde aquela viagem, nos fizemos amigos. Matos Mar contou-me que convidara Saul a vir conosco mas que este se negou porque opunhase severamente
à ação do Instituto.
A viagem permitiu-me entender melhor o deslumbramento de Mascarita com aquelas terras e aquela gente,

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adivinhar a força do impacto que mudou o rumo da vida dele. E, além disso, deu-me experiências concretas para justificar muitas das discrepâncias que, mais por intuição
que por conhecimento real do assunto, tinha tido com Saul sobre as culturas amazônicas. Que ilusão era aquela de querer preservar estas tribos tal como eram, tal
como viviam? Em primeiro lugar, não era possível. Umas de modo mais lento, outras mais rápido, todas estavam sendo contaminadas por influências ocidentais e mestiças.
E, depois, era desejável aquela quimérica preservação? De que serviria àquelas tribos continuarem vivendo como o faziam e como os antropólogos puristas, tipo Saul,
queriam que continuassem vivendo? Seu primitivismo fazia-as, antes, vítimas dos piores espólios e crueldades.
Na aldeia aguaruna de Urakusa, onde chegamos em um entardecer, vimos, das janelas do hidroavião, o espetáculo costumeiro, cada vez que aquatizávamos nas proximidades
de alguma tribo: o povo inteiro de homens e mulheres seminus e pintados, atraídos pelo ruído do motor, seguindo as evoluções do aparelho, enquanto se golpeavam caras
e peitos, com ambas as mãos (para espantar os insetos). Mas, em Urakusa, além dos corpos acobreados, tetas penduradas, crianças de ventres inchados pelos parasitas,
peles riscadas de vermelho ou preto, esperava-nos um espetáculo que nunca esqueci: o de um homem há pouco torturado. Tratava-se do cacique do lugar, chamado Jum.
Uma expedição de brancos e mestiços de Santa Maria de Nieva - uma feitoria às margens do rio Nieva, onde também estivemos, alojados em uma missão católica - tinha
chegado umas semanas antes de nós a Urakusa.'Todas as autoridades civis do povoado, mais um militar de uma guarnição de fronteira, a integravam. Jum, que foi recebê-los,
teve a testa partida com uma lanternada violenta. Em seguida, queimaram as cabanas de Urakusa, bateram nos indígenas que puderam pegar e violaram várias de suas
mulheres. Levaram Jum para Santa Maria de Nieva, onde o submeteram à humilhação de raspar seu cabelo. Depois o torturaram em público. Foi açoitado; queimaram
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suas axilas com ovos quentes e, finalmente, içaram-no a uma árvore, como se faz com os paiches do rio para que toda a água escorra. Depois de mantê-lo ali por
algumas horas, soltaram-no e permitiram que ele voltasse ao seu povo.
A causa imediata desta selvageria era um incidente menor, ocorrido em Urakusa, entre os aguarunas e um grupo de soldados que passou por lá. Mas no fundo, a razão
era que Jum tinha tentado organizar uma cooperativa entre os povos aguarunas do Alto Maranhão. O cacique era um homem disposto, de mente ágil, e o lingüista do Instituto
que trabalhava entre os aguarunas encorajou-o a fazer um curso em Yarinacocha, para ser um professor bilíngüe. Este era um programa planejado pelo Ministério da
Educação, com a ajuda do Instituto Lingüístico. Levava-se a Yarinacocha homens das tribos que, como Jum, pareciam capacitados a desenvolver um trabalho pedagógico
em sua aldeia. Em Yarinacocha recebiam um treinamento
- bastante sumário, imagino -, dado pelos lingüistas e professores peruanos, para que pudessem alfabetizar os seus em sua própria língua. Depois, eram devolvidos
ao lugar de origem com material didático e o título, um pouco otimista, de professor bilíngüe.
O programa não alcançou o objetivo a que se havia proposto - a alfabetização dos indígenas da Amazônia -, mas, no que concerne a Jum, teve conseqüências imprevisíveis.
Sua passagem por Yarinacocha, seu contato com a "civilização", fez o cacique de Urakusa descobrir - por si mesmo ou com a ajuda de seus instrutores - que ele e
os seus eram iniquamente explorados pelos patrões com quem comerciavam. Os patrões, brancos ou mestiços da Amazônia, percorriam periodicamente as tribos para comprar
seu caucho e seu couro. Eles mesmos fixavam o preço do que compravam e pagavam com mercadorias facões, anzóis, roupas, espingardas -, cujos preços também fixavam
à sua vontade e conveniência. A passagem por Yarinacocha fez Jum compreender que se, em vez de comerciar com os patrões, os aguarunas assumissem o trabalho de ir
vender o caucho e os couros nas cidades -

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nos escritórios do Banco Hipotecário, por exemplo -, receberiam por essas mercadorias um preço muito mais elevado. E que lá poderiam comprar mais barato aqueles
produtos que os patrões lhes vendiam.
Descobrir o valor do dinheiro foi trágico para os urakusas. Jum fez os patrões saberem que não continuaria mais comerciando com eles. Esta decisão significava,
pura e simplesmente, a ruína daqueles viracochas de Santa Maria de Nieva que nos tinham recebido tão cordialmente. Uns brancos e mestiços miseráveis, além do mais,
semianalfabetos e descalços, que viviam em condições quase tão ruins como suas vítimas. Os excessos ferozes que perpetravam com os aguarunas não os faziam ricos,
eram apenas para sobreviver. A exploração, nesse canto do mundo, acontecia a um nível pouco menos que subumano. Por isso organizara-se a expedição punitiva contra
Urakusa e por isso, enquanto supliciavam Jum, tinham-lhe repetido: "Esqueça-se da cooperativa."
Aquilo acabava de acontecer. As feridas de Jum ainda supuravam. O cabelo não lhe tinha crescido. Enquanto, na aprazível clareira de Urakusa, nos traduziam esta história
- Jum mal arranhava uma que outra frase em espanhol eu pensava: "Tenho que contar isto a Saul." O que diria Mascarita? Admitiria que, em um caso assim, via-se muito
claro, que o que convinha a Urakusa e a Jum não era o movimento para trás mas para a frente? Isto é, estabelecer uma cooperativa, comerciar com as cidades, prosperar
econômica e socialmente, de modo que não mais pudessem fazer com eles o que tinham feito os "civilizados" de Santa Maria de Nieva. Ou Saul me diria, com irrealidade,
que não, que a verdadeira solução era que aqueles viracochas fossem embora dali e deixassem os urakusas retomarem sua vida tradicional?
Naquela noite, Matos Mar e eu passamos acordados, conversando sobre a história de Jum e o horror que ele mostrava sobre a condição do fraco e do pobre em nosso país.
Invisível e mudo, participou dessa conversa o fantasma de Saul Zuratas, a quem ambos gostaríamos de ter ali, opinando e discutindo. Matos Mar acreditava que, da
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desgraça de Jum, Mascarita extrairia razões para afirmar suas teses. Não provava aquilo que a coexistência era impossível, que fatalmente convertia-se em domínio
de víracochas sobre indígenas, em gradual e sistemática destruição da cultura mais frágil? Esses bêbados selvagens de Santa Mana de Nieva não abririam nunca, em
nenhum caso, aos urakusas, o caminho da modernidade, só o de sua extinção; sua "cultura" não tinha mais títulos à hegemonia que a dos aguarunas, que, por primitivos
que fossem, tinham desenvolvido os conhecimentos e as artes suficientes para coexistir - eles sim - com a Amazônia. Por razões de antigüidade, de história e de
moral era preciso reconhecer-lhes soberania sobre esse território e expulsar dali os forasteiros intrusos de Santa Mana de Nieva.
Eu não estava de acordo com Matos Mar; pensava que, antes, a história de Jum talvez induzisse Saul a considerações mais práticas, a resignar-se ao mal menor. Havia,
talvez, a mais remota probabilidade de que algum governo peruano, da orientação que fosse, concedesse às tribos um direito de extraterritorialidade na selva? Era
óbvio que não. Por que então não mudar os viracochas, para que sua maneira de tratar os indígenas fosse outra?
Dormíamos no chão de terra, dividindo um mosquiteiro, em uma cabana impregnada pelo cheiro do caucho (era o depósito de Urakusa), cercados pela respiração de nossos
companheiros e dos rumores desconhecidos da selva. Matos Mar e eu compartilhávamos também, naquele tempo, entusiasmos e idéias socialistas e no curso da conversa
compareceram, é claro, essas famosas relações sociais da produção que, como uma varinha mágica, serviam para explicar e resolver todos os problemas. O dos urakusas
o de todas as tribos - devia-se entendê-lo como parte do programa geral derivado da estrutura classista da sociedade peruana. O socialismo - ao substituir a obsessão
do lucro econômico - a ganância individual - pela noção de serviço à coletividade como incentivo do trabalho e reintroduzir um sentido solidário e humano nas relações
sociais, permitira aquela coexistência entre o Peru moderno e o Peru primitivo que Mascarita acreditava impossível e

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indesejável. No novo Peru, inspirado na ciência de Marx e de Mariátegui, as tribos amazônicas poderiam, simultaneamente modernizar-se e conservar o essencial de
sua tradição e seus costumes dentro desse mosaico de culturas que constituiria a futura civilização peruana. Acreditávamos, de verdade, que o socialismo garantiria
a integridade de nossas culturas mágico-religiosas? Não havia já bastante provas de que o desenvolvimento industrial, fosse capitalista ou comunista, significava
fatidicamente o aniquilamento daquelas culturas? Havia uma só exceção no mundo a esta terrível, inexorável lei? Pensando-o bem e desde a perspectiva dos anos transcorridos
e da galeria desta Florença calorosa - éramos tão irreais e românticos como Mascarita com sua utopia arcaica e anti-histórica.
Essa longa conversa com Matos Mar, debaixo do mosquiteiro, olhando arquearem-se umas bolsas escuras, penduradas do teto de folhas de palmeira que misteriosamente
desapareceram ao amanhecer - eram centenas de araras, soubemos depois, que vinham encolher-se à noite, ao calor do fogo da cabana - é uma das imagens imorredouras
daquela viagem. Outra: a lembrança de um prisioneiro, de uma tribo inimiga, a quem os shapras do lago de Morona mantinham em liberdade, permitindo-lhe andar tranqüilamente
pela aldeia. Em compensação, o cachorro dele estava preso em uma jaula e era objeto de uma cuidadosa vigilância. Capturado e captores estavam evidentemente de acordo
com o sentido daquela metáfora; para aqueles e para este, o animal enjaulado impedia que o prisioneiro fugisse, amarrava este a seus captores com mais força -
a força do rito, da crença, da magia - que uma corrente de aço. E outra mais: os rumores e as fantasias que nos perseguiram em toda a viagem em torno de um aventureiro,
malandro e senhor feudal, um japonês chamado Tushía, de quem se dizia que morava em uma ilha do rio Pastaza com um harém de meninas roubadas por toda a Amazônia.
Mas, fora de dúvida, a lembrança mais memorável e recorrente daquela viagem - uma lembrança que, nesta tarde florentina, arde quase com a mesma violência que o
braseiro do sol estival da Toscana - seria o que ouvi, em
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Yarinacocha, de um casal de lingüistas: os Schneil. No princípio, achei que era a primeira vez que ouvia mencionar aquela tribo. Mas, em seguida, compreendia que
era a mesma sobre a qual tinha ouvido Saul contar tantas histórias, aquela com que entrou em contato desde sua primeira viagem a Quillabamba: os machiguengas. E,
entretanto, exceto no nome, ambas não pareciam ter muita coisa em comum.
Pouco a pouco, fui adivinhando a razão da discordância de imagens. Embora se tratasse da mesma tribo, os machiguengas - cujo número se calculava, no escuro, entre
quatro e cinco mil - estavam desigualmente vinculados ao resto do Peru e entre si mesmos. Era um povo fraturado. Uma linha divisória, que tinha como marco principal
o Pongo de Mainiqui, diferenciava os machiguengas dispersos no cume de montanha, confinante com a serra - zona montanhosa, onde a presença de brancos e mestiços
era abundante -, dos machiguengas da zona oriental, mais além do Pongo, onde começa a planície amazônica. O acidente geográfico, aquela passagem estreita entre montanhas
onde o Urubamba se embravecia e enchia de espuma, redemoinhos e ruídos, separava àqueles, de cima, que tinham contatos com o mundo branco e mestiço e haviam entrado
em um processo de aculturação, dos outros, espalhados nas selvas da planície, que viviam quase em total isolamento e conservavam mais ou menos intacta sua forma
de vida tradicional. Os dominicanos tinham erguido missões entre aqueles - como Chirumbia, Koribeni e Panticollo -, e nessa zona havia, também, chácaras de viracochas,
nas quais alguns machiguengas trabalhavam. Esses eram os domínios do célebre Fidel Pereira e o mundo machiguenga a que se referiam as evocações de Saul: o mais ocidentalizado
e exposto ao exterior.
O outro setor da comunidade - mas, podia-se falar, em tais condições, de uma comunidade? -, disseminado no extensíssimo território dos leitos dos rios Urubamba e
Madre de Dios, mantinha-se ainda, no final dos anos cinqüenta, cuidadosamente isolado e resistia a todo tipo de comunicação com os brancos. Até eles não tinham
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chegado os missionários dominicanos e naquela zona não havia, então, nada que atraísse os viracochas. Mas nem mesmo esse setor era homogêneo. Havia, entre os machiguengas
mais primitivos, um pequeno grupo ou fração ainda mais arcaico, inimizado com o resto. Os chamados "kogapakori". Concentrados na zona banhada por dois afluentes
do Urubamba - os rios Timpía e Tikompinía -, os kogapakoris andavam totalmente nus, exceto alguns homens que usavam estojos fálicos feitos de bambu, e atacavam a
quem penetrasse em seus domínios, mesmo se fossem da mesma etnia. Seu caso era excepcional, porque, comparados com qualquer outra tribo, os machiguengas tinham
sido tradicionalmente pacíficos. Seu caráter suave, dócil, fez deles as vítimas privilegiadas da época do caucho, durante as grandes caçadas de índios para prover
de braços os estabelecimentos caucheiros - período em que a tribo foi literalmente dizimada e esteve a ponto de extinguir-se -, e por isso tinham levado sempre a
pior nas escaramuças com seus inimigos inveterados, os yaminahuas e os mashcos, sobretudo estes últimos, famosos por sua belicosidade. Estes eram os machiguengas
de que nos falavam os Schneil. Há dois anos e meio faziam esforços para serem admitidos no meio deles mas ainda encontravam desconfiança e, às vezes, hostilidade
nos grupos com os quais tinham conseguido contatar.
Yarinacocha, à hora do crepúsculo, quando a boca vermelha do sol começa a afundar atrás das copas das árvores e o lago de águas verdosas fulgura sob o céu azul anil,
onde palpitam as primeiras estrelas, é um dos espetáculos mais belos que eu já vi. Estávamos na sotéia de uma casa de madeira e contemplávamos, por sobre o ombro
dos Schneil, o horizonte da selva, escurecendo. A visão era belíssima. Mas todos, acredito, nos sentíamos desconfortáveis e deprimidos. Porque aquilo que nos contava
o casal - ambos bastante jovens e com o ar esportivo, inocente, puritano e diligente que mostravam, como um uniforme, todos os lingüistas - era uma história lúgubre.
Até mesmo os dois antropólogos do grupo - Matos Mar e o mexicano Juan Comas - estavam supresos pelo grau de
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prostração e pessimismo em que, segundo os Schneil, se achava a dividida sociedade machiguenga. A julgar pelo que ouvíamos, parecia estar virtualmente desintegrando-se.
Quase não tinham sido estudados. Exceto um pequeno livro, publicado em 1943 por um dominicano, o Padre Vicente de Cenitagoya, e alguns artigos de outros missionários
sobre seu folclore e sua língua, aparecidos nas revistas da Ordem, não existia um trabalho etnográfico sério sobre eles. Pertenciam à família arawak e confundiam-se
um pouco com os campas dos rios Ene e Perene e o Gran Pajonal, pois seus idiomas tinham raízes semelhantes. Sua origem era um mistério total; sua identidade, confusa.
Vagamente denominados Antis, pelos Incas, que os expulsaram da parte oriental do Cusco mas não puderam nunca invadir seus domínios selváticos nem subjugá-los, figuravam
nas Crônicas e Relações da Colônia, com nomes arbitrários - Manaríes, Opataris, Pilcozones - até que no século XIX, por fim, os viajantes começaram a chamá-los
por seu nome. Um dos primeiros foi o francês Charles Wiener, que, em 1880, encontrou "dois cadáveres machiguengas abandonados ritualmente no rio", aos quais decapitou
e incorporou à sua coleção de curiosidades recolhidas na selva peruana. Estavam em movimento desde tempos remotos e era provável que jamais houvessem vivido de maneira
gregária, em coletividades. O fato de terem sido desalojados, de tempos em tempos, por tribos mais aguerridas, e pelos brancos - nos períodos das "febres": a do
caucho, a do ouro, a do pau-vermelho, a da colonização agrícola - para regiões cada vez mais insalubres e estéreis, onde era impossível a sobrevivência para grupos
numerosos, tinha acentuado sua fragmentação e desenvolvido neles um individualismo quase anárquico. Não existia um só povoado machiguenga. Não tinham caciques e
não pareciam conhecer outra autoridade que a de cada pai na própria família. Estavam pulverizados em minúsculas unidades de, no máximo, uma dezena de pessoas, nesse
vastíssimo perímetro que abarcava todas as selvas do Cusco e de Madre de Dios. A pobreza da zona obrigava a estas células humanas a se movimentarem continuamente,

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conservando uma considerável distância uma das outras, a fim de não se consumir a caça. Devido à erosão e ao empobrecimento da terra, deviam mudar suas plantações
de mandioca
a cada dois anos, no máximo.
O que os Schneil tinham podido averiguar de sua mitologia, crenças e costumes, insinuava a dureza da existência que tinham levado e deixava entrever migalhas de
sua história. Tinham sido soprados pelos deus Tasurinchi, criador de todo o existente, e careciam de nomes próprios. O nome deles era sempre provisório, relativo
e transitório: o que chega ou o que se vai, o esposo da que acaba de morrer ou o que desce da canoa, o que nasceu ou o que disparou a flecha. O idioma deles só admitia
estas quantidades: um, dois, três e quatro. Todas as outras expressavam-se com o adjetivo "muitas". A noção do Paraíso era modesta: um lugar onde os rios tinham
peixes e as selvas, animais para caçar. Associavam sua vida nômade ao trânsito dos astros pelo firmamento. O índice de mortes voluntárias entre eles era altíssimo.
Os Schneil relatavam-nos alguns casos que tinham presenciado de machiguengas - homens e mulheres, mas, principalmente, estas últimas - que se matavam cravando espinhas
de chambira no coração ou nas fontes, ou tomando beberagens venenosas, por motivos fúteis, como uma discussão, errar o disparo com a flecha ou haverem sido repreendidos
por um familiar. Uma contrariedade insignificante podia impelir um machiguenga ao suicídio. Era como se a vontade deles de viver, seu instinto de sobrevivência,
se tivesse reduzido a sua mínima expressão.
A mais leve das doenças costumava acabar com eles. Tinham um medo enorme do catarro, como muitas tribos da Amazônia - espirrar diante deles significava, sempre,
espantá-los - mas, diferente de outras, negavam-se a se curar quando caíam enfermos. À primeira dor de cabeça, hemorragia, acidente, dispunham-se a morrer. Recusavam-se
a tomar remédios ou a serem tratados. "Para que, se de qualquer maneira temos de ir", respondiam. Seus bruxos e curandeiros - os seripigaris - eram consultados e
procurados para exorcizar os maus espíritos e
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os danos da alma; mas uma vez que estes se manifestavam em males do corpo, consideravam-nos pouco menos que irreparáveis. Era um espetáculo freqüente, entre eles,
ver o enfermo deitar-se junto ao rio, a esperar pela morte.
A suscetibilidade e a desconfiança dos machiguengas em relação aos forasteiros eram extremadas, assim como seu
fatalismo e timidez. Os sofrimentos experimentados
pela comunidade durante a época do caucho, quando eram caçados pelos "habilitadores" dos estabelecimentos ou pelos índios de outras tribos que, deste modo, pagavam
suas dívidas com os patrões, tinham deixado uma imagem de horror em seus mitos e lendas que se referem àquela época, a que chamavam de a sangria de árvores. Talvez
fosse verdade, como sustentava um missionário dominicano, o Padre José Pio Aza - o primeiro a estudar o idioma dos machiguengas -, que eles eram os últimos vestígios
de uma civilização pan-amazônica (sobre a qual testemunhariam os misteriosos petroglifos dispersos pelo Alto Urubamba) que, desde seu choque com os Incas, vinha
sofrendo derrota após derrota e paulatinamente extinguindo-se.
Os Schneil tiveram muito trabalho para estabelecerem os primeiros contatos. Só um ano depois de iniciarem suas tentativas, conseguiu, ele, ser hospedado por uma
família machiguenga. E ele nos contou a delicada experiência que foi, a aflição e a expectativa daquela manhã, em uma das cabeceiras do rio Timpía, quando, totalmente
nu, avançou rumo à solitária cabana de tiras de casca de árvore e teto de palha, onde já havia estado antes, em três ocasiões, para deixar presentes - sem encontrar
ninguém, mas sentindo às suas costas os olhares dos machiguengas que o observavam da floresta - e viu que a meia dúzia de habitantes, desta vez, não corria.
Desde então, os Schneil tinham passado curtas temporadas - separados ou juntos - com aquela e outras famílias machiguengas do Alto Urubamba e afluentes. Tinham
acompanhado os grupos, na estação seca, quando saíam para pescar ou caçar, e realizaram gravações que nos fizeram ouvir. Uma crepitação sonora, com súbitas notas

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agudas, e, às vezes, uma grande desordem gutural que, nos explicaram, eram cantos. Tinham a transcrição e a tradução de uma daquelas canções, feita por um missionário
dominicano, nos anos trinta, e que os Schneil tinham voltado a escutar, um quarto de século depois, em uma quebrada do rio Sepahua. O texto ilustrava admiravelmente
aquele estado de ânimo da comunidade que nos haviam descrito. Tanto que o copiei. Desde então, eu o tenho levado comigo, dobrado em quatro, em um canto de minha
carteira, como amuleto. Ainda pode ser decifrado: opampogyakiena shinoshinonkarintsi
está me olhando a tristeza opampogyakiena shinoshinonkarintsi
está me olhando a tristeza ogakyena kabako shinoshinonkarintsi
está me olhando bem a tristeza ogakyena kabako shinoshinonkarintsi
está me olhando bem a tristeza okisabintsatana shinoshinonkarintsi
muito me desagrada a tristeza okisabintsatana shinoshinonkarintsi
muito me desagrada a tristeza amakyena tampia tampia tampia
me trouxe ar, vento ogaratinganaa tampia tampia
me levantou o ar okisabintsatana shinoskinonkarintsi
muito me desagrada a tristeza okisabintsatana shinoshinonkarintsi
muito me desagrada a tristeza amaanatyomba tampia tampia
me trouxe o ar, o vento onkisabintsatenatyo shinonka
muito me desagrada a tristeza shinoshinonkarintsi
tristeza amakyena popyenti pogyentima pogyenti
me trouxe vermezinho vermezinho tampia tampia tampia o ar, o vento, o ar.
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Embora tivessem suficientes conhecimentos da língua machiguenga, faltava ainda muitos aos Schneil para dominar os segredos de sua estrutura. Era uma língua arcaica,
de vibrante sonoridade e aglutinante, na qual uma única palavra, composta de muitas outras, podia expressar um vasto pensamento.
A senhora Schneil estava grávida. Essa era a razão pela qual os dois se encontravam na base de Yarinacocha. Uma vez que tivesse nascido o primeiro filho, o casal
voltaria ao Urubamba. O menino ou a menina, diziam, se criaria lá e dominaria o machiguenga melhor e, talvez, antes que eles.
Os Schneil tinham recebido seu diploma, assim como os demais lingüistas, na Universidade de Oklahoma, mas eram, acima de tudo, como seus colegas, seres animados
por um projeto espiritual: a difusão da Bíblia. Não sei qual era sua exata filiação religiosa, pois há entre os lingüistas do Instituto membros de diferentes igrejas.
A intenção que os induzia a estudar as culturas primitivas era religiosa: traduzir a Bíblia para aquelas línguas a fim de que esses povos pudessem ouvir a palavra
de Deus nos compassos e inflexões de sua própria música. Este foi o desígnio que levou o Doutor Peter Townsend - um interessante personagem, mistura de missionário,
amigo do Presidente mexicano Lázaro Cárdenas e autor de um livro sobre ele
- a fundar o Instituto, e o incentivo que move ainda os lingüistas a realizarem o paciente trabalho que realizam. O espetáculo da fé sólida, inabalável, que leva
um homem a dedicar-lhe sua vida e a aceitar por ela qualquer sacrifício, sempre me comoveu e assustou, pois desta atitude resultam por igual o heroísmo e o fanatismo,
ações altruístas e crimes. Mas, no caso dos lingüistas do Instituto, sua fé me pareceu, naquela viagem, benigna. Ainda me lembro daquela mulher - quase uma menina
- que vivia há anos entre os shapras do Morona, e daquela família instalada entre os huambisas cujos filhos - uns gringuinhos ruivos
- mergulhavam nus, nas margens do rio, com as acobreadas crianças da aldeia, falando e cuspindo como estas. (Os huambisas cospem enquanto falam para mostrar que

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dizem a verdade. Um homem que não cospe ao falar é para eles um mentiroso.)
A verdade é que, por primitivas que fossem as condições em que viviam nas tribos, gozavam de uma
infraestrutura que os protegia: aviões, aparelhos de rádio, médicos,
remédios. Mas, mesmo assim, havia neles uma convicção profunda e uma capacidade de adaptação nada comum. Os lingüistas que vimos instalados nas tribos, com a diferença
de estarem vestidos e seus hospedeiros seminus, viviam quase da mesma maneira: em idênticas choças ou na quase-intempérie, sob um pamacari, compartilhando a dieta
frugal e o regime espartano dos nativos. Havia em todos eles, também, algo dessa predisposição pela aventura - a atração da fronteira - tão freqüente na mentalidade
norte-americana e que é denominador comum de pessoas da mais diversa condição e profissão. Os Schneil eram muito jovens, estavam começando sua vida matrimonial,
e pelo que nos deram a entender naquela conversa, não consideravam sua vinda à Amazônia algo transitório mas um compromisso vital de longo alcance.
O que nos contaram sobre os machiguengas ficou martelando em minha cabeça em todo nosso percurso pelo Alto Maranhão. Era um assunto que eu queria comentar com Saul;
precisava ouvir suas críticas e observações ao testemunho dos Schneil. Daria a ele uma surpresa, além do mais. Porque aprendi de memória o texto daquela canção e
a recitaria em machiguenga. E ficava imaginando seu espanto, a grande gargalhada cordial...
As tribos que visitamos, no Alto Maranhão e em Moronacocha, eram muito diferentes das do Urubamba e do Madre de Dios. Os aguarunas mantinham contatos dom o resto
do Peru e algumas de suas aldeias experimentavam um processo de mestiçagem evidente ao simples olhar. Os shapras estavam mais isolados e, até há pouco - sobretudo
porque reduziam cabeças - tinham fama de violentos, mas não se percebia neles nenhum desses sintomas de desânimo, de colapso moral, que os Schneil tinham descrito
nos machiguengas.
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Quando retornamos a Yarinacocha, para começar a volta a Lima, passamos uma última noite com os lingüistas. Foi uma sessão de trabalho, quando estes interrogaram
Matos Mar e Juan Comas sobre suas impressões de viagem. Ao terminar a reunião, perguntei a Edwin Schneil se não se importava que conversássemos um pouco. Levou-me
a sua casa. A esposa preparou-nos uma taça de chá. Viviam em uma das últimas cabanas, onde o Instituto terminava e começava a selva. A chiadeira regular, harmoniosa,
simétrica, dos insetos do exterior, serviu de música de fundo a nossa conversa, que durou bastante e da qual, por momentos, participou também a senhora Schneil.
Foi ela que me falou da cosmogonia fluvial do machiguenga, onde a Via-Láctea era o rio Meshiareni pelo qual desciam os inúmeros deuses e deusinhos de seu panteão
para a terra e pelo qual subiam ao paraíso as almas de seus mortos. Perguntei-lhes se tinham fotografias das famílias com que tinham vivido. Disseram-me que não.
Mas me mostraram muitos objetos machiguengas. Tamborins e bumbos de couro de macaco, flautas de bambu e uma espécie de pífaro, composto de tubinhos de cipó, amarrados
em gradiente com fibras vegetais, que, apoiado no lábio inferior e soprado, dava uma rica escala de sons, do agudo extremo a um grave profundo. Peneiras de folhas
de junco em tirinhas e tecidas em trança, como cestas, para coar a mandioca com que faziam masato. Colares e brincos de sementes, dentes e ossos. Tornozeleiras,
pulseiras. Cocares de penas de papagaio, arara, tucano e paujil, enfiadas em aros de madeira. Arcos, pontas de flechas lavradas em pedra e uns comos onde guardavam
o curare para envenenar as flechas e as tinturas da tatuagem. Os Schneil tinham feito uns desenhos, em cartolinas, reproduzindo as figuras que os machiguengas pintavam
em suas caras e corpos. Eram geométricas, algumas muito simples e outras como arrevesados labirintos; explicaram-me que eles os pintavam segundo as circunstâncias
e a condição da pessoa. Sua função era atrair a boa sorte e conjurar a má. Estas correspondiam aos solteiros, estas aos casados, estas eram para ir à caça e sobre
outras ainda não tinham uma idéia
muito clara. A simbologia machiguenga era sumamente sutil. Havia uma figura - dois riscos cruzados como um xis, dentro de meia circunferência - que, pelo visto,
pintavam-se os que iam morrer.
Foi só já ao final, quando buscava um intervalo na conversa para me despedir, que, de maneira casual, surgiu o assunto que, de longe, torna menos importantes todos
os outros daquela noite e é, certamente, a razão de que eu dedique agora meus dias de Florença não tanto a Dante, Maquiavel e à arte renascentista, mas a tecer as
lembranças e fantasias desta história. Não sei como brotou. Eu lhes fazia muitas perguntas e algumas delas devem ter versado sobre os bruxos e curandeiros machiguengas
(havia-os de duas espécies: os benéficos, seripigaris, e os maléficos, machikanaris). Talvez isto o suscitou. Ou, talvez, quando lhes perguntei sobre os mitos, lendas,
histórias, que teriam podido recolher em suas viagens, produziu-se a as-sociação de idéias. Não sabiam grande coisa sobre as práticas de feitiçaria de seripigaris
e machikanaris, exceto que ambos, como acontecia com os chamanes de outras tribos, serviam-se do tabaco, o ayahuasca e outras plantas alucinógenas - a casca do
kobuiniri, por exemplo - no curso de suas sessões, que chamavam de mareada, nem mais nem menos que a simples bebedeira de masato. Os machiguengas eram por natureza
muito loquazes, magníficos informantes, mas os Schneil não tinham querido insistir demais sobre o assunto dos bruxos, temerosos de
violentá-los.
- Bem, é, além do seripigari e do machikanari, há também entre eles esse personagem estranho, que não parece curandeiro nem sacerdote - disse, de repente, a senhora
Schneil. Virou-se para o marido, hesitando. Bem, talvez seja um pouco das duas coisas, não é verdade, Edwin?
- Ah, você se refere ao... - disse o senhor Schneil, e vacilou. Articulou um forte ruído, longo, gutural e com esses. Ficou em silêncio, procurando. - Como se poderia
traduzir?
Ela semicerrou os olhos e levou um nó dos dedos à boca.
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Era loira, de olhos muito azuis e lábios finíssimos; tinha um sorriso infantil.
- Talvez conversador. Ou, melhor, falador - disse, afinal. E pronunciou de novo o ruído: rude, sibilante, longuíssimo.
- Sim - sorriu ele. - Acho que é o mais apropriado. Falador.
Nunca tinham visto nenhum. Por sua exigente discrição - seu temor a irritá-los - nunca haviam pedido a seus hospedeiros uma explicação detalhada das funções que
cumpria entre os machiguengas, nem que lhes definissem se se tratava de um ou de muitos, ou, inclusive, embora tendessem a descartar esta hipótese, se, em vez de
seres concretos e contemporâneos, tratava-se de alguém fabuloso, como Kientibakori, senhor dos demônios e criador de todo o venenoso e não comestível. O certo é
que a palavra "falador" se pronunciava com extraordinárias demonstrações de respeito por todos os machiguengas e cada vez que alguém a tinha proferido diante dos
Schneil, os outros mudavam de assunto. Mas não acreditavam que se tratasse de um tabu. Pois o fato era que a famosa palavrinha vinha-lhes muito freqüentemente, o
que parecia indicar que o falador estava sempre em suas mentes. Era um chefe ou mentor de toda a comunidade? Não, não parecia exercer nenhum poder específico sobre
aquele arquipélago tão lasso, tão disperso: a sociedade machiguenga. Além do mais, esta sociedade carecia de autoridades. Sobre isso os Schneil não tinham a menor
dúvida. Só tinham tido caciques quando os viracochas lhes impuseram, como nas pequenas aglomerações de Koribeni e Chirumbia, organizadas pelos dominicanos, ou na
época das fazendas e dos estabelecimentos caucheiros, quando os patrões designavam um deles como chefe para controlá-los melhor. Talvez o falador exercesse uma liderança
espiritual, talvez realizasse certas práticas religiosas. Mas, por alusões captadas aqui e ali, em uma frase solta de um e na resposta de outro, a função do falador
parecia ser sobretudo aquela inscrita em seu nome: falar.

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À senhora Schneil tinha acontecido um curioso fato, há poucos meses, às margens do rio Kompiroshiato. Subitamente, a família machiguenga com que estava vivendo
oito pessoas: dois anciãos varões, um adulto, quatro mulheres e uma menina - desapareceu, sem lhe dar qualquer explicação. Ela estranhou muito, pois nunca antes
tinham feito nada semelhante. Os oito voltaram alguns dias depois, tão misteriosamente como se foram. Para onde tinham ido daquela maneira? "Para ouvir o falador",
disse a menina. O sentido da frase era claro, mas a senhora Schneil não conseguiu saber mais, porque ninguém acrescentou mais detalhes nem ela os pediu. Entretanto,
nos dias seguintes, os oito machiguengas tinham estado sumamente excitados, cochichando sem cessar. E a senhora Schneil, vendo-os concentrados em seus intermináveis
conciliábulos, sabia que estavam lembrando do falador.
Os Schneil tinham feito conjecturas, misturado hipóteses. O falador, ou os contadores, deviam ser um pouco assim como os correios da comunidade. Personagens que
se deslocavam de um a outro casario, pelo vasto território onde estavam espalhados os machiguengas, referindo a uns o que faziam os outros, informando-lhes reciprocamente
sobre os acontecimentos, as aventuras e desventuras desses irmãos a quem viam muito raramente ou nunca. O nome os definia. Falavam. Suas bocas eram os vínculos aglutinantes
dessa sociedade a que a luta pela sobrevivência tinha obrigado a dividir-se e dispersar-se aos quatro ventos. Graças aos faladores, os pais sabiam dos filhos, os
irmãos das irmãs, e graças a eles informavam-se das mortes, nascimentos e demais acontecimentos da tribo.
- E, também, de alguma coisa mais - disse o sonhor Schneil. - Tenho a impressão de que o falador não traz só notícias atuais. Também do passado. É provável que seja,
ao mesmo tempo, a memória da comunidade. Que realize uma função parecida à dos trovadores e jograis medievais.
A senhora Schneil interrompeu-o para esclarecer-me que aquilo era difícil de estabelecer. O sistema verbal
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machiguenga era intrincado e desorientador, entre outras razões porque confundia facilmente o passado e o presente. Assim como a palavra "muitos" - tobaiti - servia
para expressar todas as quantidades superiores a quatro, o "agora" abrangia, freqüentemente, o hoje e o ontem e o verbo no tempo presente era usado com freqüência
para referir-se a ações do passado próximo. Era como se só o futuro fosse para eles algo nitidamente delimitado. A conversa derivou para o tema lingüístico e acabou
com um rosário de exemplos que eles me deram sobre as risonhas e inquietantes implicações de uma maneira de falar na qual o antes e o agora pouco se diferenciavam.
A idéia desse ser, desses seres, nas florestas insalubres do Oriente cusquenho e de Madre de Dios, que faziam extensíssimas travessias de dias e semanas levando
e trazendo histórias de uns machiguengas a outros, recordando a cada membro da tribo que os demais viviam, que, apesar das grandes distâncias que os separavam, formavam
uma comunidade e compartilhavam uma tradição, umas crenças, uns ancestrais, uns infortúnios e algumas alegrias, a silhueta furtiva, talvez lendária, desses faladores
que com o simples e antiqüíssimo expediente - trabalho, necessidade, capricho humano - de contar histórias, eram a seiva circulante que fazia dos machiguengas uma
sociedade, um povo de seres solidários e comunicados, comoveu-me extraordinariamente. Comove-me ainda, quando penso neles, e, agora mesmo, aqui, enquanto escrevo
estas linhas, no Caffè Strozzi da velha Florença, sob o calor tórrido de julho, fico todo arrepiado.
- Mas por que fica todo arrepiado? - disse Mascarita. - Que é que chama tanto a sua atenção? Que têm de particular os faladores?
De fato, por que não podia tirá-los da cabeça, desde aquela noite?
- São uma prova palpável de que contar histórias pode ser algo mais que uma mera diversão - ocorreu-me dizer-lhe. - Algo primordial, algo de que depende a própria
existência de um povo. Talvez tenha sido isso o que me impressionou tanto. A gente nem sempre sabe por que

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as coisas nos comovem, Mascarita. Tocam em uma fibra secreta, e pronto.
Saul riu, dando-me um tapinha no ombro. Eu tinha lhe falado a sério, mas ele o tomou por brincadeira.
- Ah, é pelo lado literário que o assunto interessa você - exclamou, decepcionado, como se essa conexão desvalorizasse minha curiosidade. - Bem, não alimente ilusões.
O mais provável é que aqueles que contaram a você a história dos contadores de histórias sejam esses gringos. As coisas não podem ser como eles pensam que são. Garanto
a você que os gringos entendem os machiguengas menos ainda que os missionários.
Estávamos em um pequeno café da Avenida Espanha, comendo um pão com lingüiça. Já se tinham passado vários dias do meu regresso da Amazônia. Logo que voltei, por
mais que o procurasse na Universidade e lhe deixasse recados em La Estrella, não pude encontrá-lo. E já estava temendo que viajaria à Europa sem me despedir de Saul,
quando, na véspera de minha partida para Madri, eu o encontrei, saindo de um ônibus, em uma esquina da Avenida Espanha. Fomos até aquele café onde, disse, ele me
ofereceria uma despedida de sanduíches de lingüiça e cerveja gelada cuja lembrança me acompanharia durante toda a estada na Europa. A lembrança que me ficou gravada,
porém, foi a das evasivas dele e seu incompreensível desinteresse por um assunto, os faladores machiguengas, que, eu tinha pensado, o entusiasmaria muitíssimo. Era
um desinteresse real? Naturalmente que não. Agora sei que fingia não se interessar pelo tema e que mentiu quando, acossado por minhas perguntas, assegurou-me não
haver ouvido jamais uma palavra sobre os tais faladores.
A memória é uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o passado em função do presente. Tenho tentado tantas vezes reconstruir aquela conversa de agosto
de 1958 com meu amigo Saul Zuratas, naquele botequinho de cadeiras furadas e mesas bambas da Avenida Espanha, que agora já não estou certo de nada, salvo, talvez,
de sua grande mancha cor de vinho-vinagre, que imantava os olhares dos outros fregueses, de sua alvoroçada mecha de
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cabelos vermelhos, de sua camisinha de flanela, quadriculada em vermelho e azul, e de seus sapatões de grande caminhador.
Mas minha memória não pode ter fabricado totalmente a feroz catilinária de Mascarita contra o Instituto Lingüístico de Verão, que me parece estar ouvindo vinte e
sete anos depois, nem meu espanto ao ver a insensível cólera com que falava. Foi a única vez que o vi assim: lívido de fúria. Naquele dia soube que também o angélico
Saul era capaz, como o resto dos mortais, de ceder àquelas raivas que, segundo seus amigos machiguengas, podiam desestabilizar o universo. Eu disse isso a ele, tentando
distraí-lo:
- Você vai provocar um apocalipse com essa explosão, Mascarita.
Mas ele não me ouviu.
- Eles são os piores de todos, esses seus apostólicos lingüistas. Eles se incrustam nas tribos para destruí-las de dentro, igualzinho que os bichos-de-pé. Em seus
espíritos, em suas crenças, em seu subconsciente, nas raízes de seu modo de ser. Os outros tiram deles o espaço vital e os exploram ou empurram para o interior.
No pior dos casos, eles os matam fisicamente. Esses seus lingüistas são mais refinados, querem matá-los de outro modo. Traduzindo a Bíblia para o machiguenga; que
é que você acha?
Eu o vi tão alterado, que não discuti. Várias vezes, ouvindo-o, mordi a língua para não contradizê-lo. Sabia que no caso de Saul Zuratas as objeções ao Instituto
não eram frívolas nem inspiradas em preconceitos políticos; que, por discutíveis que parecessem, refletiam um ponto de vista profundamente meditado e sentido. Por
que a tarefa do Instituto parecia-lhe ainda mais nociva que a daqueles dominicanos barbudos e daquelas freirinhas espanholas de Quillabamba, Koribeni e Chirumbia.
Deve ter demorado a resposta dele, pois a senhora que atendia aproximou-se naquele momento com uma nova rodada de sanduíches. Depois de colocar o prato na mesa,
ficou olhando um bom tempo o sinal de Saul, enfeitiçada. Eu a vi retirando-se em direção ao fogão, persignando-se.

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- Não me parece mais nociva, você se engana respondeu-me afinal, com sarcasmo, sempre frenético. Eles também querem roubar-lhes a alma, naturalmente. Mas, a selva
está engolindo os missionários, como ao Arturo Cova de La vorágine.* Você não os viu, em sua viagem? Meio mortos de fome e, além disso, pouquíssimos. Vivem num tal
desamparo que já não estão em condições de evangelizar a ninguém, felizmente. O isolamento embotou neles o espírito catequizador. Não fazem mais que sobreviver.
A selva cortou-lhes as unhas, compadre. E, do jeito que vão as coisas na Igreja Católica, logo não haverá mais curas nem para Lima, o que dizer da Amazônia.
Os lingüistas eram alguma coisa muito diferente. Tinham, atrás de si, um poder econômico e uma engrenagem eficientíssima, que lhes permitiria talvez implantar seu
progresso, sua religião, seus valores, sua cultura. Aprender as línguas aborígines, ora que logro! Para quê? Para fazer dos índios amazônicos bons ocidentais, bons
homens modernos, bons capitalistas, bons cristãos reformados? Nem mesmo isso. Só para apagar do mapa suas culturas, seus deuses, suas instituições e adulterar-lhes
até seus sonhos. Como tinham feito com os peles-vermelhas e os outros, lá no país deles. Isso é o que eu queria para nossos compatriotas da selva? Que se convertessem
no que eram, agora, os aborígines da América do Norte? Que se tornassem criados e engraxates dos viracochas?
Fez uma pausa porque notou que, na mesa vizinha, três homens tinham deixado de falar para escutá-lo, atraídos por seu sinal e seu furor. A metade sadia do rosto
dele estava congestionada; tinha a boca entreaberta e o lábio inferior, espichado, tremia. Levantei-me para
urinar sem ter vontade, pensando que minha ausência
o acalmaria. A senhora do fogão perguntou-me, quando passei, baixando a voz, se o que meu amigo tinha na cara era muito grave.
*La vorágine, romance do colombiano José Eustasio Rivera (1889-
1928), edição Francisco Alves (A voragem), tradução dê Reinaldo Guarany (N. do T.)
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Sussurrei-lhe que não, era só um sinal, nem mais nem menos que o que a senhora tem no braço. "Coitadinho, que pena dá vê-lo assim", murmurou. Retornei à mesa e Mascarita
tentou sorrir enquanto levantava o copo:
- Saúde, compadre. Desculpe que a mostarda me tenha subido um pouco.
Mas, na verdade, não se acalmara e a gente o via tenso, a ponto de explodir de novo. Disse-lhe que sua animação trazia-me à memória um poema e lhe recitei, em machiguenga,
os versos que recordava daquela canção sobre a tristeza.
Consegui que sorrisse, um momento.
- Você fala o machiguenga com um leve sotaque californiano - brincou. - Por que será?
Um instante depois voltou à carga contra aquilo que o tinha inflamado. Sem querer, tinha eu revolvido em algo profundo, que o angustiava e feria. Falou sem pausas,
como que segurando a respiração.
Até agora ninguém o tinha conseguido, mas podia ser que desta vez os lingüistas tivessem sucesso. Em quatrocentos, quinhentos anos de tentativas, todos os outros
tinham fracassado. Nunca tinham podido submeter essas tribos pequeninas que desprezavam. Eu teria lido isto nas Crônicas que fichava com Forras Barrenechea, não
é, compadre? O que aconteceu aos Incas, cada vez que mandaram exércitos ao Antisuyo. A Túpac Yupanqui, sobretudo, não o tinha lido? Como seus guerreiros se desvaneceram
na selva, como os Antis escorreram por entre seus dedos. Não tinham submetido a um só e, despeitados, os civilizados cusquenhos começaram então a menosprezá-los.
Por isso inventaram todos esses vocábulos pejorativos em quíchua contra os índios amazônicos: selvagens, depravados. E, apesar disso, o que aconteceu a Tahuantinsuyo
quando precisou enfrentar uma civilização mais poderosa? Os bárbaros do Antisuyo, pelo menos, continuavam sendo o que eram, não? E por acaso os espanhóis tinham
tido mais êxito que os Incas? Todas as suas "entradas" não tinham sido um fracasso absoluto? Matavam-nos quando conseguiam pegá-los, o que


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aconteceu muito raramente. Os milhares de soldados, aventureiros, fugitivos, missionários que desceram ao Oriente entre
1500 e 1800, puderam, por acaso, incorporar uma única tribo à muito ilustre civilização cristã e ocidental? Tudo isso não significava nada para mim?
- Diga-me, em vez disso, o que'isso significa para você, Mascarita - respondi-lhe.
- Que essas culturas devem ser respeitadas - disse, suavemente, como se, por fim, começasse a ficar sereno.
- E a única maneira de respeitá-las é não se aproximar delas. Não tocá-las, Nossa cultura é forte demais, agressiva demais. No que toca, devora. É preciso deixá-las
em paz. Já não demonstraram de sobra que têm o direito de continuar sendo o que são?
- Você é um indigenista quadrado, Mascarita brinquei com ele. - Bem o tipo daqueles dos anos trinta. Como o Doutor Luis Valcárcel, quando jovem, pedindo que se
demolissem todas as igrejas e conventos coloniais porque representavam o anti-Peru. Quer dizer que temos que ressuscitar o Tahuantinsuyo? Também os sacrifícios humanos,
os quipos, a trepanação dos crânios com facas de pedra? É engraçado que o último indigenista do Peru seja um judeu, Mascarita.
- Bem, um judeu está melhor preparado que outros para defender o direito a existir das culturas minoritárias
- retrucou-me. - Afinal de contas, como diz meu velho, o problema dos boras, dos shapras, do piros, é o nosso problema há três mil anos.
Ele disse isso assim? Podia-se, no mínimo, do que ia me dizendo, inferir uma idéia desta natureza. Não estou certo. Talvez seja pura elucubração minha, posterior.
Saul não era praticante, nem sequer crente, muitas vezes ouvi-o dizer que ia à sinagoga só para não decepcionar Dom Salomón. De outra parte, aquela associação, leve
ou profunda, deve ter existido. O fato de haver ouvido, em casa, no colégio, na sinagoga, nos inevitáveis contatos com outros membros da comunidade, tantas histórias
de perseguição e de diáspora, as tentativas de submissão da fé, da língua e dos costumes judeus por culturas mais fortes,
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tentativas às quais, ao preço de grandes sacrifícios, o povo judeu havia resistido, preservando sua identidade, não explicava, pelo menos em parte, a defesa recalcitrante
que Saul fazia da vida que levavam os peruanos da Idade da Pedra?
- Não, não sou indigenista à maneira daqueles dos anos trinta. Eles queriam restabelecer o Tahuantinsuyo e eu sei muito bem que para os descendentes dos Incas não
há volta atrás. A eles só resta integrarem-se. Que essa ocidentalização, que ficou pela metade, se acelere, e quanto mais rápido acabe, melhor. Para eles, agora,
é o mal menor. Está vendo, não sou um utópico. Na Amazônia, entretanto, é diferente. Não se produziu ainda o grande trauma que converteu os Incas em um povo de sonâmbulos
e de vassalos. Nós temos batido muito neles, mas não estão vencidos. Agora sabemos a atrocidade que significa isso de levar o progresso, de querer modernizar um
povo primitivo. Simplesmente, acaba-se com ele. Não cometamos esse crime. Deixemo-los com suas flechas, penas e tangas. Quando você se aproxima deles e os observa,
com respeito, com um pouco de simpatia, percebe que não é justo chamá-los de bárbaros nem atrasados. Para o meio em que estão, para as circunstâncias em que vivem,
a cultura deles é suficiente. E, além disso, têm um conhecimento profundo e sutil de coisas que nós temos esquecido. A relação do homem e a natureza, por exemplo.
O homem e a árvore, o homem e o pássaro, o homem e o rio, o homem e a terra, o homem e o céu. O homem e Deus, também. Essa harmonia que existe entre eles e essas
coisas nós nem sabemos o que é, pois a rompemos para sempre.
Isto sim, ele o disse. Não com estas palavras, certamente. Mas em uma forma que se poderia transcrever assim. Falou de Deus? Sim, estou certo de que falou de Deus
porque recordo-me de lhe haver perguntado, surpreso pelo que disse, tentando levar na brincadeira algo que era sumamente sério, se aquilo queria dizer que agora
tínhamos que também acreditar em Deus.

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Ficou em silêncio, cabisbaixo. Uma varejeira metera-se café adentro e atirava-se aos encontrões contra as paredes sujas. A senhora que atendia não parava de observar
Mascarita do balcão. Quando Saul levantou a vista, parecia desagradado. A voz dele soava mais alto:
- Bem, eu não sei mais se acredito ou não acredito em Deus, compadre. É um dos problemas da nossa cultura tão poderosa. Ela fez de Deus algo prescindível. Para eles,
Deus é o ar, a água, a comida, uma necessidade vital, algo sem o que não seria possível a vida. São mais espirituais que nós, ainda que você não o acredite. Inclusive
os machiguengas, que, comparados com os demais, acabarn sendo bastante materialistas. Por isso é tão grande o dano que lhe faz o pessoal do Instituto, tirando-lhes
seus deuses para substituí-los pelo seu, um Deus abstrato que não lhes serve para nada na vida diária. Os lingüistas são os destruidores de idolatrias do nosso tempo.
com aviões, penicilina, vacinas e tudo o que faz falta para derrotar a selva. E, como são fanáticos, quando lhes acontece o que aconteceu àqueles gringos no Equador,
sentem-se mais inspirados. Nada como o martírio para estimular os fanáticos, não é, compadre?
O que havia acontecido no Equador, semanas atrás, era que três missionários norte-americanos, de alguma igreja protestante, tinham sido assassinados por uma tribo
jíbara, onde um dos três vivia. Os outros dois estavam de passagem. Não se conhecia detalhes do episódio. Os cadáveres, decapitados e flechados, teriam sido encontrados
por uma patrulha militar. Como os jíbaros eram redutores de cabeças, o motivo da decapitação era óbvio. Isto havia provocado um grande escândalo na imprensa. As
vítimas não pertenciam ao Instituto Lingüístico. Perguntei a Saul, intuindo o que me responderia, o que pensava daqueles três cadáveres.
- Pelo menos, posso garantir uma coisa a você disse-me. - Foram decapitados sem crueldade. Não ria! Foi assim, pode acreditar. Sem o ânimo de fazê-los sofrer. Quanto
a isso, apesar de serem diferentes as tribos, todas
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se parecem. Só matam por necessidade. Quando se sentem ameaçados. Quando se trata de matar ou morrer. Ou quando têm fome. Mas os jíbaros não são canibais, não mataram
para comer. Alguma coisa disseram, alguma coisa fizeram os missionários que fez os jíbaros
sentirem-se de repente em grande perigo. Uma história triste, naturalmente.
Mas não tire conclusões apressadas. Nada nessa história se parece com as câmaras de gás dos nazistas ou a bomba atômica sobre Hiroshima.
Estivemos juntos bastante tempo, talvez três ou quatro horas. Comemos muitos sanduíches e, ao final, a dona do café nos serviu uma mazamorra morada * "como brinde
da casa". Quando nos despedimos, sem poder conter-se, a senhora perguntou a Saul, apontando-lhe o sinal, "se essa sua desgraça doía muito".
- Não, senhora, felizmente não dói nada. Nem noto que ela está aí - Saul sorriu para ela.
Demos uma caminhada, falando ainda do único tema daquela tarde, e sobre isso também não tenho dúvidas. Despedimo-nos, na esquina da Plaza Bolognesi com o Paseo
Colón, e nos abraçamos.
- Tenho que pedir desculpas a você - disse-me, de repente, compungido. - Falei como uma caturrita e não o deixei abrir a boca. Você não pôde sequer me contar seus
planos para a Europa.
Ficamos de nos escrever, ainda que um postal de quando em quando, para não perder o contato. Eu o fiz três vezes, nos anos seguintes, mas ele nunca me respondeu.
Essa foi a última vez que vi Saul Zuratas. A imagem sobrenada, indene, o turbilhão dos anos. A atmosfera cinzenta, o céu encoberto e a umidade corrosiva do inverno
de Lima, servindo-lhe de fundo. Atrás dele, a multidão confusa de carros, caminhões e ônibus enroscados no monumento a Bolognesi, e Mascarita, com sua grande
* Mazamorra morada, papa à base de farinha de batata-doce, farinha de milho e diversas frutas secas e frescas; a mazamorra é feita, em geral, com os restos de biscoitos
ou biscoitos envelhecidos. (N. do T.).

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mancha escura na cara, seus cabelos flamíferos e sua camisa quadriculada, dando-me adeus com a mão e gritando:
- Vamos ver se você volta um madrilenho, falando con vosotros y con zetas* Olhe, uma boa viagem! Que tudo lhe saia bem por lá, compadre!
Passaram quatro anos sem que soubesse dele. Nunca, ninguém, entre os peruanos de passagem por Madri ou Paris, onde vivi depois de terminar a pós-graduação, soube
dar-me notícias de Saul. Eu me lembrava dele com freqüência, sobretudo na Espanha, e não só pelo apreço que lhe tinha, mas por causa dos machiguengas. A história
dos faladores que ouvi dos Schneil voltava sempre à minha memória, cheia de incitações. Excitava minha fantasia e meus desejos como uma bela mulher. Ia à Universidade
só na parte da manhã; à tarde, costumava passar umas horas na Biblioteca Nacional, na Castellana, lendo romances de cavalaria. Um dia lembrei-me do nome do missionário
dominicano que tinha escrito sobre os machiguengas: Frei Vicente de Cenitagoya. Procurei no catálogo e lá estava o livro.
Eu o li de uma sentada. Era breve e ingênuo e os machiguengas, a quem o bom dominicano chamava freqüentemente de selvagens e aos quais repreendia paternalmente
por serem infantis, indolentes e bêbados, e por suas bruxarias - que Frei Vicente qualificava de "conciliábulos noturnos" -, apareciam vistos de fora e de muito
longe, embora o missionário tenha vivido entre eles mais de vinte anos. Mas Frei Vicente elogiava sua honradez, seu respeito à palavra empenhada e sua delicadeza
de maneiras. E, além disso, o livro corroborava algumas informações que acabaram por me decidir. Tinham uma propensão pouco menos que doentia para escutar e contar
histórias, eram uns conversadores incorrigíveis. Não podiam estar quietos, não sentiam o menor apego pelo lugar onde viviam e se poderia
dizê-los possuídos pelo
demônio da locomoção. A selva exercia sobre eles uma espécie de
* Con vosotros y con zelas, menção ao modo de falar dos madrilenhos, distante, formal e cheio de zès na pronúncia. (N. do T.).
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feitiço. Os missionários, valendo-se de todo tipo de engodos, atraíam-nos para os centros de Chirumbia, Koribeni e Panticollo. Cansavam-se tentando enraizá-los.
Davam-lhes
espelhos, comida, sementes, instruíam-nos sobre as vantagens de viver em comunidade do ponto de vista de sua saúde, de sua educação, de sua mera sobrevivência. Pareciam
convencidos. Levantavam suas casas, faziam suas chácaras, aceitavam mandar os filhos à escolhinha da missão e eles mesmos compareciam, lambuzados de tinta e pontuais,
ao rosário das tardes e à música das manhãs. Acreditava-se que estavam rumando pela senda da civilização cristã. Mas, de repente, um belo dia, sem dizer obrigado
nem adeus, desapareciam na selva. Era mais forte que eles: um instinto ancestral empurrava-os irresistivelmente à vida errante, dispersava-os pelas emaranhadas florestas
virgens.
Naquela mesma noite escrevi a Mascarita, comentando o livro do Padre Cenitagoya. Contava-lhe que decidira escrever um conto sobre os faladores machiguengas. Me ajudaria?
Aqui, em Madri, quem sabe se por saudade ou porque dera muitas voltas a nossas conversas, as idéias dele não me pareciam mais tão disparatadas nem tão irreais. No
meu conto, em todo caso, faria o máximo esforço para mostrar a intimidade machiguenga da maneira mais autêntica. Você me dará uma mão, compadre?
Pus-me a trabalhar com muito entusiasmo. Os resultados, porém, foram pobríssimos. Como se poderia escrever uma história sobre os faladores sem ter um conhecimento
sequer sumário de suas crenças, mitos, usos, história? O convento dos dominicanos, na Rua Cláudio Coello, proporcionou-me uma ajuda utilíssima. Conservavam ali a
coleção completa de Misiones Dominicanas, órgão dos missionários da Ordem no Peru, e ali encontrei abundantes artigos sobre os machiguengas, bem como os estudos
sobre a língua e o folclore da tribo, do Padre José Pio Aza, sumamente valiosos.
Mas, talvez, a colaboração mais instrutiva foi a conversa, na vasta e retumbante biblioteca do convento - de teto altíssimo, onde o eco nos devolvia o que dizíamos
-,

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com um missionário barbudo; Frei Elicerio Maluenda tinha vivido muitos anos no Alto Urubamba e interessara-se pela mitologia machiguenga. Era um ancião atento e
erudito, com os modos um pouco silvestres de quem passou a vida à intempérie, vivendo a vida rude da selva. A cada instante, como que para me impressionar mais,
entremeava seu castiço espanhol com palavras machiguengas.
Fiquei encantado com suas informações sobre a cosmogonia da tribo, riquíssima em simetrias e - descubro-o agora, em Florença, lendo pela primeira vez a Commedia
em italiano - com reverberações dantescas. A terra era o centro do cosmos e havia duas regiões em cima dela e duas embaixo. Cada uma com seu próprio
sól, sua lua e seu emaranhado de rios. Na mais elevada, Inkite, vivia Tasurinchi, o que tudo pode, o soprador das pessoas, e por ali circulava, banhando férteis
margens, com
árvores carregadas de frutos, o Meshiareni ou rio da imortalidade, que se podia divisar da terra pois era a Via-Láctea. Debaixo de Inkite, flutuava a leve região
das nuvens ou Menkoripatsa, com seu rio transparente, o Manaironchaari. A terra, Kipacha, era a vivenda dos machiguengas, povo peripatético. Por debaixo, aninhava-se
a lôbrega região dos mortos, coberta quase toda ela pelo rio Kamabiría, onde navegavam as almas dos falecidos antes de se instalarem em sua nova morada. E, finalmente,
a região mais temível e profunda, a do Gamaironi, rio de águas negras, sem peixes, e de paramos onde tampouco havia nada que comer. Eram os domínios de Kientibakori,
criador de imundícies, espírito do mal e chefe de uma legião de demônios: os kamagarinis. O sol de cada região ia perdendo força, brilho, em relação com a precedente.
O de Inkite era um sol fixo e radiante, branco. O de Gamaironi, um sol escuro e gelado. O hesitante sol da terra ia e voltada: sua sobrevivência estava miticamente
vinculada ao comportamento machiguenga.
Quanto haveria de verdade nisto e nos outros dados que Frei Maluenda me deu? Não teria o amável missionário procedido a acréscimos e adaptações demais no
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material que recolheu? Perguntei-o a Mascarita, em minha segunda carta. Também não teve resposta.
Enviei-lhe a terceira, mais ou menos um ano depois, e agora de Paris. Repreendia-o por seu silêncio contumaz e confessava-lhe que tinha renunciado a escrever meu
conto sobre os faladores. Fizera borrões e passara muitas horas na Place de Trocadero, na Biblioteca e nas vitrinas do Musée du L'Homme, tentando entendê-los e adivinhá-los,
em vão. Inventadas por mim, as vozes dos faladores desafinavam. De modo que me resignei a escrever outras histórias. Mas e ele, o que estava fazendo, como ia, o
que andava fazendo todo este tempo, que projetos tinha?
Foi só em fins de 1963, quando Matos Mar apareceu por Paris, convidado de um congresso de antropologia, que tive notícias do paradeiro de Saul. O que ouvi, deixou-me
atônito.
- Saul Zuratas foi viver em Israel?
Estávamos no Old Navy, em Saint-Germain-des-Prés, tomando um grog * para resistir ao frio e à tristíssima tarde cinzenta de dezembro. Fumávamos e eu o comia de perguntas
sobre os amigos e os assuntos do remoto Peru.
- Coisa do pai, parece - explicou-me Matos Mar, encolhido dentro de um cachecol e um sobretudo tão volumosos que parecia um esquimó. - Dom Salomón, o talarenho,
você o conheceu? Saul gostava muito dele. Você se lembra que ele recusou a bolsa para Bordéus para não deixar o pai sozinho? Depois, o velhinho decidiu morrer em
Israel, pelo visto. E, com a devoção que lhe tinha, claro que Mascarita fez a vontade dele. Decidiram tudo muito depressa, da manhã para a noite. Quando Saul me
disse, já tinham vendido a lojinha de Brena, La Estrella, e estavam de malas prontas.
Mas Saul acharia alguma graça nessa história de se instalar em Israel? Porque, lá, teria tido que aprender hebreu, fazer o serviço militar, reordenar toda sua vida.
Matos Mar pensava que, talvez, pela mancha seria dispensado do serviço militar. Procurei na memória, tentando
recordar se alguma vez o tinha ouvido falar de sionismo, de fazer uma alia.* Nunca.
- Bem, talvez não tenha sido uma coisa muito ruim para Saul começar tudo do zero - especulou Matos Mar.
- Deve ter-se adaptado a Israel, uma vez que já se passaram quatro anos e, que eu saiba, não voltou ao Peru. Eu o imagino vivendo muito bem em um kibbutz. A verdade
é que Saul não fazia nada em Lima. Tinha-se decepcionado com a Etnologia e a Universidade por uma razão que nunca pude entender. Deixou inacabada sua tese de doutorado.
E até acho que desapareceu sua paixão pelos machiguengas. "Você não sentirá falta dos pelados do Urubamba?", perguntei-lhe, quando nos despedimos. "com certeza
que não", disse-me ele. "Eu me adapto a tudo. Lá em Israel deve haver, também, muita gente pelada."
Ao contrário do que Matos Mar pensava, achei que não teria sido tão fácil para Saul fazer uma alia. Porque estava visceralmente integrado ao Peru, dilacerado e instigado
demais por assuntos peruanos - por um deles, pelo menos - para desprender-se de tudo isso da manhã para a noite, como quem muda de camisa. Muitas vezes tentei imaginá-lo
no Oriente Médio. Conhecendo-o, era previsível supor que deviam ter se apresentado ao cidadão israelense Saul Zuratas, na nova pátria, todo tipo de dilemas morais
sobre a questão palestina e os territórios ocupados. Divaguei, tentando vê-lo no novo ambiente, engrolando na nova língua, exercendo uma nova profissão - qual? -
e pedi a Tasurinchi que nenhuma bala tivesse tropeçado nele nas guerras e incidentes fronteiriços de Israel desde que Mascarita estava lá.
Grog, bebida à base de rum quente. (N. do T.)
*Aliá, significa, em hebreu, subir; fazer uma alia é viajar para Israel, em caráter definitivo; radicar-se em Israel. (N. do T.)
UM K.AMAGARINI travesso, disfarçado de vespa, picou a ponta do pênis de Tasurinchi enquanto urinava. Ele está andando. Como? Não sei. Mas anda, eu o vi. Não o mataram.
Pôde perder os olhos e a cabeça, pôde sair sua alma pelo que fez, lá, entre os yaminahuas. Nada lhe aconteceu, parece. Está bem, andando, contente. Sem raiva e rindo,
talvez. "Não há razão para tanto alvoroço", dizendo. Enquanto ia rumo ao rio Mishahua para visitá-lo, eu pensava: "Não o encontrarei. Se é verdade que fez isso,
terá fugido para bem longe, onde os yaminahuas não o achem. Ou já o terão matado, talvez, a ele e a seus parentes." Mas aí estava e a mesma coisa sua família e a
mulher que ele roubou. "Está aí, Tasurinchi?" "Eê, eê, estou aqui."
Ela está aprendendo a falar. "Vamos, que o falador veja que você também fala", ordenou-lhe. Mal se compreendia o que a yaminahua dizia, e as outras mulheres, zombando,
"que ruídos são esses que estamos ouvindo?", fazendo que procuravam, "que animal terá se metido na casa?", levantando as esteiras. Elas a fazem trabalhar e a tratam
mal. "Quando abre as pernas, dela também devem sair peixes, como a Pareni", dizendo. E coisas piores ainda. Mas, é verdade, está aprendendo a falar. Algumas coisas
que dizia, entendi. "O homem anda", entendi.
"Então, é verdade, você roubou uma yaminahua", comentei com Tasurinchi. Diz que não a roubou. Trocou-a por uma sachavaca, uma saca de milho e outra de mandioca,
é verdade. "Os yaminahuas deveriam estar

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contentes, isso que dei a eles vale mais que ela", garantiu-me. E perguntou à yaminahua na minha frente: "Não é assim?" E ela concordou: "Sim, é", dizendo. Também
isso entendi ela dizer.
Desde que o kamagarini travesso picou o pênis dele, Tasurinchi tem que fazer coisas de que, bruscamente, sente vontade, sem saber como nem por quê. "É uma ordem
que ouço e tenho que a obedecer",-diz. "Deve vir de um deusinho ou de um diabinho, de algo que se meteu pelo meu pênis, lá bem dentro, como não sei." Roubar aquela
mulher foi uma dessas ordens, parece.
O pênis está igual a antes. Mas ficou com ele, na alma, um espírito que lhe manda ser diferente e fazer coisas que os outros não compreendem. Mostrou-me onde estava
urinando quando o kamagarini o picou. Ai!, ai!, e o fez gritar, o fez pular, e logo não pôde mais continuar urinando. Espantou a vespa com um tapa e a ouviu rir,
talvez. Um instante depois, seu pênis começou a crescer. Cada noite inchava mais, cada manhã mais. Todos riam dele. Envergonhado, fez com que tecessem uma cushma
maior para ele. Escondia-o em seu bolso grande. Mas o pênis continuava crescendo, e não pôde mais ocultá-lo. Doía-lhe quando se mexia, arrastava-o como o animal
seu rabo. Às vezes a gente pisava nele só para ouvi-lo gritar: Ai! aiaiai! Teve que enrolá-lo e colocá-lo no ombro, como eu ao meu lourinho. Iam assim nas viagens,
cabeça com cabeça, acompanhando-se. Tasurinchi falava-lhe, para se distrarir. O outro o ouvia, calado, atento, como vocês ouvem a tuim, olhando-o com seu olho
grande. Vesgo! vesguinho! E o olhava firme, então. Tinha crescido muitíssimo. Acreditando que fosse árvore, os pássaros pousavam nele para cantar. Quando Tasurinchi
urinava, saía de sua bocarra uma cascata de água quente, espumante como as cataratas do Gran Pongo. Tasurinchi podia banhar-se, e a família dele, talvez. Servia-lhe
de assento quando se detinha para descansar. Nas noites, de cama. E se saía à caça, de estilingue e de lança. Podia dispará-lo até a copa da árvore para derrubar
os shimbillos e, usando-o como uma pedra, matar com ele o puma.
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Para purificá-lo, o seripigari embrulhou o pênis dele em folhas de samambaia aquecidas nas brasas. O suco do cozimento ele o fez tomar aos golinhos, cantando, toda
uma noite, enquanto ele bebia tabaco e ayahuasca, dançava, desaparecia pelo teto e voltava, transformado em saankarite. Então, pôde chupar-lhe o mal e cuspi-lo.
Era amarelo, espesso e cheirava a vômito de bebedeira. De manhãzinha, o pênis começou a afinar, e umas luas depois era o anãozinho de antes. Mas desde então Tasurinchi
ouve aquelas ordens. "Em algumas de minhas almas, há uma mãe caprichosa", diz. "Por isso eu trouxe a yaminahua, então."
Parece que ela se acostumou ao novo marido. Ali está, no Mishahua, tranqüila, como se houvesse sido sempre mulher de Tasurinchi. As outras, em compensação, andam
brigando, insultando-a, e a qualquer pretexto batem nela. Eu as vi e as ouvi. "Esta não é como nós", dizendo, "não é gente, mas quem será, ora? Talvez uma macaca,
talvez o peixe que se atravessou na garganta de Kashiri." Ela continuava mastigando a mandioca como se não as ouvisse.
Outra vez, estava trazendo um cântaro com água e, sem notar, deu um encontrão em uma criança, derrubando-a. Então, todas voltaram-se contra ela. "Você fez isso
de propósito, quis matar essa criança", dizendo. Não era verdade mas assim elas diziam. Ela pegou um porrete e as enfrentou, sem se enfurecer. "Um dia a matarão",
eu disse a Tasurinchi. "Sabe defender-se", respondeu-me. "Caça animais, coisa que nunca soube que as mulheres fizessem. E é a que agüenta mais carga nas costas,
quando trazemos as mandiocas da chácara. Meu medo é de que ela, e não as outras, mate todas. Os yaminahuas são gente de briga, igual que os mashcos. As mulheres
deles também, quem sabe."
Disse-lhe que, por isso mesmo, deveria estar inquieto. Precisava se mudar para outro lugar quanto antes. Os yaminahuas deviam estar furiosos com o que fez. E se
vinham vingar-se? Tasurinchi ficou rindo. Tudo estava certo, parece. O marido da yaminahua veio vê-lo, com dois

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outros. Conversaram, bebendo masato. Entendiam-se, ora. Não queriam a mulher mas uma escopeta, além da sachavaca, do milho e da mandioca que lhes deu. Os Padres
Brancos tinham dito a eles que tinha uma escopeta. "Procurem", ofereceu-lhes. "Se a encontrarem, podem levar." Ao final, foram embora. E contentes, parece. Tasurinchi
não vai devolver a yaminahua aos parentes. Porque ela já está aprendendo a falar. "As outras se acostumarão a ela quando tiver um filho", diz Tasurinchi. Porque
as crianças já se acostumaram. E a tratam como se fosse gente, mulher que anda, "Mãe", chamando-a.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Quem sabe se essa mulher dará felicidade a Tasurinchi, o do Mishahua? Pode trazer-lhe desgraça, também. A Kashiri, a lua, descer a este mundo para se casar com
uma machiguenga o desgraçou. Isso é o que dizem, pelo menos. Não deveríamos nos lamentar, talvez. As desditas de Kashiri nos dão de comer e nos permitem aquecer-nos.
Não é a lua o pai do sol em uma machiguenga?
Isso era antes.
Jovem forte, sereno, Kashiri aborrecia-se no céu de mais em cima, o Inkite, onde ainda não havia estrelas. Os homens, em vez de mandioca e banana, comiam terra.
Era sua única comida. Kashiri desceu pelo rio Meshiareni, vogando com seus braços, sem pértiga. A canoa esquivavase dos redemoinhos e das pedras. Descia, flutuando.
O mundo estava às escuras, ainda, e soprava muito vento. Chovia a cântaros. No Oskiaje, onde esta terra se junta com os mundos do céu, onde vivem os monstros e
vão morrer todos os rios, Kashiri pulou para a margem. Olhou à sua volta. Não sabia onde estava mas via-se que estava contente. Começou a andar. Não muito depois
viu, sentada, tecendo uma esteira, cantando baixinho uma canção para afugentar a cobra, a machiguenga que lhe traria a felicidade e a infelicidade. Tinha as faces
e a testa pintadas; dois riscos vermelhos subiam de sua boca às fontes. Era, então, solteira; aprenderia, então, a cozinhar e fazer masato.
Para agradá-la, Kashiri, a lua, mostrou-lhe o que é a
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mandioca, o que é a banana. Mostrou-lhe como eram plantadas, colhidas e comidas. Desde então há no mundo comida e masato. Assim começou depois, parece. Logo, Kashiri
apresentou-se na casa do pai da jovem. Levava os braços carregados de animais que tinha pescado e caçado para ele. Finalmente, ofereceu-se para abrir-lhe uma chácara
na parte mais alta da selva e trabalhar, semeando e arrancando erva, até que as mandiocas crescessem. Tasurinchi aceitou que levasse a filha, mas tiveram que esperar
o primeiro sangue da jovem. Demorou a chegar e, enquanto isso, a lua roçou, queimou e limpou o mato e semeou banana, milho, mandioca, para aquela que seria sua família.
Tudo ia muito bem.
A jovem começou, então, a sangrar. Permaneceu encerrada, sem dizer uma palavra aos parentes. A anciã que a protegia não se separava dela nem de dia nem de noite.
A jovem fiava sem parar as fibras do algodão, sem descanso. Nem uma única vez aproximou-se do fogo nem comeu pimentão, para não atrair desgraças sobre ela e seus
parentes. Nem uma só vez olhou para o que seria seu marido nem tampouco lhe falou. Assim esteve até que deixou de sangrar. Em seguida, cortou os cabelos e a anciã
ajudou-a a se banhar em água morna; ia molhando o corpo dela com os esguichos do cântaro. Por fim, a jovem pôde ir viver com Kashiri. Por fim, pôde ser mulher
dele.
Tudo continuava andando. O mundo estava tranqüilo. Os bandos de papagaios passavam sobre eles, ruidosos e contentes. Mas no casario havia outra jovem que não era,
talvez, mulher mas um itoni, esse diabinho perverso. Agora se veste de pomba mas, então, vestia-se de mulher. Encheu-se de raiva, parece, vendo os presentes de Kashiri
aos novos parentes. Ela teria querido que ele fosse seu marido, ela teria querido, pois, parir o sol. Porque a mulher da lua tinha parido essa criança robusta que,
crescendo, daria calor e luz ao nosso mundo. Para que todos soubessem de sua fúria, ela pintou a cara de vermelho, com tintura de urucu. E foi colocar-se em um
lugar do caminho por onde Kashiri tinha que passar regressando do mandiocal. Acocorada, esvaziou seu corpo. Fazia força, inchan-
do-se. Logo enterrou as mãos na sujeira e esperou, derramando raiva. Quando o viu aproximar-se, atirou-se sobre Kashiri, do meio das árvores. E antes que a lua pudesse
escapar, esfregou-lhe na cara o cocô que acabava de cagar.
Kashiri soube na mesma hora que nunca se apagariam essas manchas. O que ia fazer neste mundo com semelhante vergonha? Entristecido, voltou ao Inkite, o céu de mais
em cima. Ali ficou. Sua luz se apagou por causa dessas manchas. Mas o filho resplandece, é verdade. Não brilha o sol? Não esquenta? Nós o ajudamos andando. Levante-se,
dizendo-lhe, cada noite que cai. A mãe dele foi uma machiguenga, então.
Isso, pelo menos, é o que eu soube. Mas o seripigari de Segakiato conta-o de outra rnaneira.
Kashiri desceu à terra e viu a jovem no rio. Banhavase, cantando. Aproximou-se dela e jogou um punhado de terra que lhe bateu no ventre. Zangada, ela começou a apedrejá-lo.
Começara a chover, de repente. Kientibakori estaria na selva, dançando, cheio de masato. "]yíümer louca", dizia a lua à jovem, "atirei barro em você Para que tenha
um filho." Todos os diabinhos estavam felizes entre as árvores, peidando. E assim aconteceu. A jovem ficou prenhe. Mas, quando lhe tocou parir, morreu. Também morreu
o filho dela. Os machiguengas teriam ficado furiosos, então. Apanhariam suas flechas, suas facas. Iriam até Kashiri e dizendo-lhe "Tem que comer este cadáver" eles
o cercariam. E o ameaçariam com seus arcos, fariam com que cheirasse seus enjeitados. A lua resistiria, tremendo. E eles: "Coma-o, tem que comer o morto-"
Por fim, chorando, com uma faca abriria o ventre de sua mulher. Ali estava a criança, faiscando. Tirou-a * e*a ressuscitou, parece. Mexia-se e berrava, agradecida.
Viva estava. Ajoelhado, Kashiri começou a comer o corpo da esposa pelos pés. "Está bem, já pode ir", lhe disseram os machiguengas, quando tinha chegado à barriga.
Então, a lua, atirando ao ombro os restos, regressou ao céu de mais em cima, caminhando. Lá estará, olhando-nos.
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Ouvindo-me, estará. As manchas dele são os pedaços que não comeu.
Furioso pelo que fizeram com Kashiri, seu pai, o sol, manteve-se quieto, queimando-nos. Secava os rios, fazia arderem as chácaras e as florestas. Aos animais matava
de sede. "Nunca mais vai se mover", diziam os machiguengas, arrancando os cabelos. Estavam medrosos. "Terá que morrer", cantando, tristes. Então, o seripigari subiu
ao Inkite. Falou com o sol. Convenceu-o, parece. Ele se moveria de novo, então. "Andaremos juntos", dizem que lhe disse. A vida foi desde então assim, sendo como
é. Aí terminou antes e começou depois. Por isso continuamos andando.
"Por isso é tão fraca a luz de Kashiri?", perguntei ao seripigari do rio Segakiato. "Sim", respondeu-me. "A lua é um homem pela metade, só isso. Outros dizem que,
comendo um peixe, uma espinha se cravou na garganta dele. E desde então se apagou."
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Quando estava vindo, embora conhecesse o caminho, me perdi. Seria culpa de Kientibakori, de seus diabinhos ou de algum machikanari com muitos poderes. A chuva começou
de repente, sem aviso, sem que antes escurecesse o céu e sem se tornar úmido o ar. Eu estava vadeando um rio e a chuva já caía com tanta força que não me deixava
subir à margem. Dava dois ou três passos, escorregava, a terra se desmanchava sob meus pés e me devolvia ao fundo do leito. Assustado, o lourinho se pôs a adejar
e, gritando, fugiu. Logo, a margem foi torrente. Lodo e água, também pedras, ramos, mato, árvores quebradas pela tormenta, cadáveres de pássaros e insetos. Tudo
rolando contra mim. O céu ficou negro; de quando em quando havia um incêndio de raios. Estrondava como se todos os animais da selva tivessem começado a rugir. Quando
o senhor do trovão se enfurece assim, coisa grave está acontecendo. Eu continuava querendo subir para a margem. Poderia? Se não subo a uma árvore muito alta, serei
levado, pensava. Logo tudo isto será um fervedouro de água do céu. Já não tinha forças para forcejar; minhas
pernas e braços estavam cheios de feridas das batidas que sofria nas quedas. Engolia água pelo nariz e pela bocaAté pelos olhos e pelo ânus estaria entrando água
no meu corpo. Será seu fim, Tasurinchi, sua alma escapará queifl sabe para onde. E tocava no meu cocuruto para senti-la sair.
Não sei quanto tempo estive assim, subindo, rolando, voltando a subir, voltando a cair. O canal tornara-se um rio larguíssimo, depois de engolir as margens. Até
que, de tão cansado, eu me deixei afundar. "vou descansar", dizendo, "basta de luta inútil." Mas os que se vão assim descansam? Não é afogar-se a pior maneira de
ir? Logo. logo estaria flutuando no rio dos mortos, o Kamabiría, ern direção ao abismo sem sol e sem peixes que é o mundo de mais embaixo, a terra escura de Kientibakori.
Enquanto isso, sem perceber, minhas mãos tinham se prendido a um tronco que a tormenta teria atirado no rio, talvez. Não sei como pude me encarapitar. Também não
sei se naquele mesmo momento fiquei adormecido. O sol tinha caído. A escuridão estava fria. Sobre minhas costas, as gotas pareciam pedras.
No sono, descobri a armadilha. O que eu pensava ser um tronco era um jacaré, ora. Aquela crosta tão dura, tão pungente, que casca podia ser? É o lombo de um jacaré,
Tasurinchi. Tinha percebido o jacaré que me tinha sobre ele? Teria começado a rabear, talvez. Ou teria mergulhado para obrigar-me a soltá-lo e me morder debaixo
da água, como fazem sempre os jacarés. Estaria morto, talvez? Se estivesse, flutuaria de patas para cima. Que é que vai fazer, Tasurinchi? Deslizar para a água,
devagarinho, e nadar até a margem? Nunca teria chegado, com aquela tempestade. Nem sequer as árvores se podia ver. Talvez nerU restasse mais terra neste mundo.
Tentar matar o jacaré? Não tinha com quê. Lá no canal, enquanto lutava para subir à margem, tinha perdido minha sacola, minha faca c minhas flechas. Melhor ficar
quieto, montadinho no jacaré. Melhor esperar que alguém ou algo decidisse.
Estivemos flutuando, ao capricho da água. Sentia muito frio, tremia e meus dentes batiam. "Onde estará
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lourinho", pensando. O jacaré não mexia as patas nem o rabo, deixava-se levar para onde quisesse o rio. Pouco a pouco foi clareando. Águas lodosas, cadáveres de
animais, palhiçadas de tetos, de casas, árvores e canoas. De quando em quando, homens meio comidos pelas piranhas e outras feras da água. Havia grandes nuvens de
mosquitos, havia aranhas da água caminhando por meu corpo. Eu as sentia me picarem. Tinha muita fome e teria podido, talvez, pegar um daqueles peixes mortos que
a água arrastava, mas, e se chamava a atenção do jacaré? Beberia, só. Para aplacar a sede não precisava mexer-me, só abrir a boca. A chuva enchia-a de água fresquinha.
Então, pousou no meu ombro um passarinho. Pela crista vermelha e amarela, as penas, o peito dourado e o bico tão pontiagudo, parecia um kirigueti. Mas era, talvez,
um kamagarini ou, quem sabe, um saankarite. Porque, quem já viu passarinho falando? "Você está em uma situação muito difícil", disse a vozinha estridente dele. "Se
se solta, o jacaré o descobrirá. Os olhinhos tortos dele vêem longe. Ele deixará você tonto com uma rabanada, pegará pela barriga com sua bocarra dentuda e o comerá.
com ossos e cabelos, ele o comerá, porque está com tanta fome como você. Mas, você pode ficar preso a esse jacaré toda sua vida?"
"De que me serve que diga o que já sei de sobra?", respondi a ele. "Não poderia, em vez disso, me dar um conselho? Diga-me o que faço para sair da água."
"Voando", piou, agitando a crista aurirrubra. "Não há outro jeito, Tasurinchi. Como seu lourinho fez na margem ou, assim, como eu." E, dando um pulinho, fazendo
círculos, desapareceu.
Por acaso é tão fácil voar? Os seripigaris e os machikanaris voam, na mareada. Mas eles têm a sabedoria; os cozimentos, deusinhos e diabinhos ajudam-nos. Eu, que
tenho eu? As coisas que me contam e que eu conto, nada mais. Isso, talvez, não fez ainda ninguém voar. Estava amaldiçoando o kamagarini vestido de kirigueti quando
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Uma garça no rabo do jacaré. Vi suas compridas patas rosadas, vi seu bico torcido. Escarvava em meus pés, buscando vermes ou pensando talvez que fosse comida. Esfomeada
também ela estava. Por mais medo que sentisse, veio o riso. Não pude me conter, então. Comecei a rir. Assim como vocês, agora eu ria. Torcendo-me e me retorcendo
de gargalhadas. Igualzinho a você, Tasurinchi. E o jacaré acordou, então. Ali mesmo notou que nas suas costas aconteciam coisas que não via nem entendia. Abriu a
bocarra, roncou, rabeou raivoso e eu, sem saber o que fazia, já estava agarrado à garça. Como um macaquinho da macaca, como um recém-nascido da mãe que está lhe
dando de mamar. Assustada com as rabanadas, a garça tentava ir embora, voando. Mas, como não podia, pois eu estava agarrado a ela, guinchava. Seus guinchos assustavam
ainda mais o jacaré, e também a mim. Os três berrávamos, parece. Era só guincho e berro, qual dos três fazia mais barulho?
E, de repente, vi, mais embaixo, afastando-se, o jacaré, o rio, a lama, e um vento fortíssimo mal me deixava respirar. Aí estava eu. Sim, no ar, lá em cima. Aí ia
Tasurinchi, o falador, voando. A garça voava e eu, pendurado a seu pescoço, minhas pernas enroscadas nas patas dela, também. Lá embaixo via-se a terra, amanhecendo.
Brilhava de água por todas as partes. Aquelas manchinhas escuras seriam as árvores; aquelas serpentes, os rios. Fazia mais frio que nunca. Tínhamos saído da terra?
Isto devia ser, então, Menkoripatsa, o mundo das nuvens. Não apareceu seu rio? Onde estava o Manaironchaari, de águas de algodão? Era verdade que estava voando?
A garça teria crescido para poder me sustentar. Ou talvez eu teria me tornado do tamanho de um rato. Quem sabe como seria? Ela voava, tranqüila, mexendo as asas,
deixando-se levar pelo vento. Sem que sentisse meu peso, talvez. Fechei os olhos para não ver quão longe tinha ficado a terra. Tão fundo, tão embaixo. Sentindo tristeza
por ela, talvez. Quando os abri, vi suas asas brancas, de beiras rosadas, e o adejar compassado. O calorzinho de
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suas penas me defendia contra o frio. Ela expectorava de quando em quando, esticando o pescoço, levantando o bico, como que falando consigo mesma. Este era o Menkoripatsa,
então. Até este mundo subiam os seripigaris nas mareadas; entre estas nuvens consultavam com os deusinhos saankarites sobre os danos e as complicações dos maus
espíritos. Como teria querido ver um seripigari ali, flutuando. "Ajude-me, tire-me deste aperto, Tasurinchi", dizendo-lhe. Porque, ali em cima, voando entre as nuvens,
não estava ainda pior que montado sobre um jacaré?
Quem sabe quanto tempo estive voando com a garça? E agora, Tasurinchi? Não resistirá muito. Os braços e as pernas já estão ficando cansados. Você se soltará, seu
corpo, no ar, irá se desfazendo e quando chegar à terrra será água. Tinha parado de chover. O sol estava se levantando. Isso me deu ânimos. Força, Tasurinchi! Dei
chutes, puxões, cabeçadas e até mordi a garça para obrigá-la a descer. Não entendia, ela. Assustada, já não expectorava; começou a guinchar, bicando aqui e ali.
Fazendo piruetas, assim, assim, para me soltar. Quase me vence na força, então. Várias vezes esteve a ponto de se livrar de mim. Mas, de repente, eu percebi que
quando apertava a asa dela, caíamos, como se tropeçasse no ar. Isso me salvou, talvez. com as forças que me restavam, enredei meus pés em uma de suas asas parando-a.
Aquela asa não pôde adejar, quase. Força, Tasurinchi! Aconteceu o que eu queria, então. Movimentando só a outra, por mais que o fizesse rapidinho, rapidinho, não
voava mais como antes. Cansou-se, começou a descer. Descendo, descendo, entre guinchos; desesperada, quem sabe. Eu, em troca, feliz. A terra aproxima vá-se. Mais,
mais. Que sorte você tem, Tasurinchi. Aí está, agora. Quando rocei na copa das árvores, soltei-me. Caindo, caindo, vi a garça. Tagarelando, adejando feliz outra
vez com suas duas asas, elevando-se. Ia repicando entre os galhos, quebrava-os, descascava os troncos e sentia que estava me quebrando também. Tentava me segurar
em alguma coisa, com as mãos, com os pés. "Que sorte têm os macacos, se tivesse um rabo para me pendurar", pensando. As folhas, os ramos, os cipós,
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as trepadeiras, as teias de aranha, iriam me parando na queda, talvez. Quando me estatelei no chão o golpe não me matou, acho. Que alegria, sentindo a terra sob
o meu corpo Era macia, morna. Úmida, também. Ehé, aqui estou, cheguei. Este é meu mundo. Esta é minha casa. O melhor que me aconteceu é viver aqui, nesta terra,
não na água, não no ar.
Quando abri os olhos, aí estava Tasurinchi, o seripigari, olhando-me. "Seu lourinho o esperou muito tempo", disse-me. E aí estava ele, resmungando. "Como sabe que
é o meu?", zombei. "Há muitos papagaios na selva." "Este se parece com você, ora", respondeu-me. Era o meu lourinho, sim. Tagarelava, contente por me ver. "Você
dormiu não sei quantas luas", contou-me o seripigari.
Aconteceram-me muitas coisas nesta viagem, vindo para ver você, Tasurinchi. Foi difícil chegar até aqui. Nunca poderia ter chegado, não fosse por um jacaré, um
kirigueti e uma garça. Vamos ver se você me explica como isso foi possível."
"O que salvou você foi não ter raiva durante toda a aventura", comentou ele, depois que lhe contei o que acabo de contar a vocês. E assim deve ser, então. A raiva
é um desarranjo do mundo, parece. Se os homens não tivessem raiva, a vida seria melhor do que é. "Ela é culpada de que haja cometas - kachiborérine - no céu", garantiu-me.
"com seus rabos de fogo e suas corridas, eles são uma ameaça de confusão para os quatro mundos do Universo."
Esta é a história de Kachiborérine.
Isso era antes.
O cometa era um machiguenga, no princípio. Jovem e sereno. Andava. Contente estaria. A mulher dele morrera, deixando-lhe um filho, que cresceu sadio e forte. Ele
o criou e tomou uma mulher nova, irmã menor da que tinha perdido. Um dia, quando retornava de pescar boquichicos, encontrou o jovem montado sobre sua segunda esposa.
Os dois estavam ofegantes, bem contentes. Kachiborérine afastou-se da cabana, preocupado. "Tenho que con-
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seguir uma mulher para meu filho", pensando. "Necessita de uma esposa, então."
Foi consultar o seripigari. Este falou com o saankarite e regressou: "O único lugar onde você pode conseguir uma esposa para seu filho é na região onde vivem os
chonchoites", dizendo-lhe. "Mas, tenha cuidado, já sabe por quê."
Kachiborérine foi lá, sabendo muito bem que os chonchoites afiam os dentes com facas e comem carne humana. Logo que entrou no território deles, foi só atravessar
o lago onde começa, sentiu que o engolia a terra. Viu tudo escuro. "Caí em uma tseibarintsi", pensou. Sim, ali estava, em um buraco disfarçado no chão com galhos
e folhas e lanças para que nelas se enfiem o javali e a anta. Os chonchoites tiraram-no dali ferido e amedrontado. Tinham máscaras de diabos que deixavam ver suas
faces esfomeadas. Estavam contentes, cheirando-o e o lambendo. Por todas as partes eles lhe passavam os narizes e as línguas. Sem mais nem menos, tiraram dele os
intestinos, como a um peixe. E no ato eles os puseram para assar sobre pedras quentes. Enquanto os chonchoites, aturdidos, felizes, comiam as tripas dele, a pele
semivazia de Kachiborérine fugiu e atravessou o lago.
Na viagem de volta à casa, preparou cozimento de tabaco. Também era seripigari, talvez. A mareada o fez saber que sua mulher estava esquentando uma poção com veneno
de cumo, para matá-lo. Sem se deixar ainda dominar pela raiva, Kachiborérine mandou a ela um mensageiro, aconselhando-a. "Por que quer matar seu marido?", dizendo.
"Não faça isso. Sofreu muito. Em vez disso, prepare-lhe um cozimento para repor os intestinos que os chonchoites comeram." Ela escutava sem dizer nada, olhando de
lado o jovem que agora era marido dela. Contentes estavam os dois vivendo juntos.
Pouco depois, Kachiborérine chegou a sua casa. Cansado de tanto viajar; triste por seu fracasso. A mulher passou a ele uma vasilha. O líquido amarelado parecia masato
mas era chicha de milho. Soprando a espuminha da superfície, ele bebeu, ansioso. Mas o líquido saiu de seu corpo,
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que era pura pele, misturado com jorros de sangue. Chorando, Kachiborérine compreendeu que estava vazio; chorando, que era um homem sem tripas nem coração.
Então, teve raiva.
Choveu, houve relâmpagos. Todos os diabos sairiam à selva para dançar. Assustada, a mulher saiu correndo. Na direção da chácara, morro acima, tropeçando ela corria.
E lá ocultou-se no tronco de uma árvore que o marido tinha escavado para fazer uma canoa. Kachiborérine procurava-a, gritando raivoso: "you despedaçá-la." Perguntava
pelo paradeiro dela às mandiocas do mandiocal e, como não sabiam responder-lhe, ele as arrancava aos puxões. Perguntava à maguna, ao floripôndio: não sabemos. Nem
as plantas nem as árvores diziam-lhe o paradeiro dela. Então, com seu facão ele as cortava e depois as esmigalhava. No fundo da selva, bebendo masato, Kientibakori
dançava, feliz.
Por fim, tonto de procurar, cego de tanta raiva, Kachiborérine voltou para casa. Pegou um pedaço de bambu, esmagou uma de suas pontas, empapou-a bem com resina
da árvore de ojeé e lhe pôs fogo. Quando a chama aumentou, pegou o bambu pela outra ponta e o enfiou no ânus, bem dentro. Olhava o chão, olhava a selva, pulando
e rugindo. Por fim, afogado de raiva, apontando para o céu, exclamou: "Para onde hei de ir, então, que não seja neste mundo maldito? Lá para cima irei, lá estarei
melhor, talvez." Já feito diabo, começou a subir, a subir. E, desde então, lá está. Desde então é esse que vemos, de quando em quando, no Inkite: Kachiborérine,
o cometa. Não se vê a cara dele. Não se vê o corpo dele. Só o bambu chamejante que leva no ânus. Deve andar sempre rabiando, talvez.
"Ainda bem que não se encontrou com ele, quando voava agarrado à garça", zombou de mim Tasurinchi, o seripigari. "Ele o teria queimado com o rabo, então." Segundo
ele, Kachiborérine desce a este mundo, às vezes, para recolher cadáveres de machiguengas, das margens dos rios. Carrega-os nas costas e os leva para cima, para lá.
E os transforma em estrelas furtivas, dizem.

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Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Estávamos conversando naquela região onde há tantos vaga-lumes. Tinha anoitecido enquanto falava com Tasurinchi, o seripigari. A selva se acendia por lá, apagava-se
por aqui, acendia-se mais adiante. Piscando-nos, parecia. "Não sei como pode viver neste lugar, Tasurinchi. Eu não viveria aqui. Indo de um lado a outro, vi muitas
coisas entre os homens que andam. Mas eu garanto a você que em nenhuma parte vi tantos vaga-lumes. Todas as árvores estão faiscando. Não será anúncio de desgraça?
Cada vez que venho visitar você, tremo lembrando-me destes vagalumes. Parece que estão nos olhando, ouvindo o que digo a você."
"Claro que estão nos olhando", garantiu-me o seripigari. "Claro que ouvem com atenção o que você fala. Assim como eu, esperam sua vinda. E se alegram vendo-o chegar
e ouvindo suas histórias. Têm boa memória, diferente do que acontece comigo. Eu estou perdendo a sabedoria ao mesmo tempo que as forças. Eles se conservam jovens,
parece. Quando você se vai, eles me entretêm, recordando-me do que ouviram você contar."
"Você está zombando de mim, Tasurinchi? Tenho visitado muitos seripigaris e de todos tenho ouvido algo extraordinário. Mas nunca soube de nenhum que conversasse
com vaga-lumes."
"Pois aqui está vendo um", disse-me Tasurinchi, rindo com a minha surpresa. "Para ouvir, é preciso saber escutar. Eu aprendi. Se não, teria deixado de andar há
tempo. Lembre-se, eu tinha uma família. Todos se foram, mortos pelo dano, o rio, o raio e o tigre. Como pensa que pude resistir a tantas desgraças? Escutando, falador.
Aqui, neste ponto da selva, nunca vem ninguém. Muito de quando em quando, algum machiguenga das quebradas lá de baixo, procurando ajuda. Vem, vai embora e volto
a ficar só. Ninguém virá me matar aqui; não há viracocha, mashco, punaruna ou diabo que suba este morro. Mas a vida de um homem tão só acaba rápido.
"Que podia fazer? Rabiar? Desesperar-me? Ir à margem do rio e cravar em mim mesmo uma espinha de

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chambira? Fiquei pensando e me lembrei dos vaga-lumes. Em mim também davam certa inquietação, como a você. Por que havia tantos, então? Por que em nenhuma outra
parte da selva eles se reuniam como neste lugar? Na mareada eu averiguei. Perguntei ao espírito de um saankarite, lá no teto de minha casa. "Não será por-você?",
respondeu-me. "Não terão vindo para acompanhar você? Um homem precisa de sua família, para andar." Deixou-me pensando, então. E, então, falei com eles. Eu me sentia
estranho, falando a umas luzes que se apagavam e acendiam, sem me responder. "Soube que estão aqui para me fazer companhia. O deusinho me explicou. Burro fui por
não adivinhar antes. Agradeço a vocês por terem vindo, e estejam a minha volta." Passou uma noite, outra noite e outra. Cada vez que a selva escurecia e se enchia
de luzinhas, eu me purificava com água, preparava o tabaco, os cozimentos, e falava com eles, cantando. Toda a noite cantava para eles. E, ainda que não me respondessem,
eu os escutava. com atenção. com respeito. Logo fiquei certo de que me entendiam. "Compreendo, compreendo. Estão provando a paciência de Tasurinchi." Calado,
imóvel, sereno, fechando os olhos, esperando. "Eu os escutava, sem ouvir. Por fim, uma noite depois de muitas, aconteceu. Aí, agora. Uns ruídos diferentes dos ruídos
da selva quando anoitece. Está ouvindo? Murmúrios, sussurros, queixas. Uma cascata de vozes baixinhas. Redemoinhos de vozes, vozes que se atropelam e se atravessam,
vozes que mal se podem ouvir. Escute, escute, falador. Sempre é assim, no princípio. Como uma confusão de vozes. Depois, já se entende. Tinha ganho a confiança deles,
talvez. Logo, pudemos conversar. E agora são meus parentes."
Assim foi, parece. Acostumaram-se eles e Tasurinchi. Agora passam as noites conversando. O seripigari contalhes dos homens que andam e eles lhe contam sua história
de sempre. Não estão contentes, os vaga-lumes. Antes, estariam. Perderam a felicidade há muitas luas, embora continuem faiscando. Porque todos os vaga-lumes daqui
são machos. Essa é a desgraça deles, então. Suas fêmeas são as luzes lá de cima. Sim, as estrelas do Inkite. Que fazem
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elas no mundo lá de cima e eles neste? Essa é a história que contam, segundo Tasurinchi. Olhem, olhem-nas. Luzinhas que aparecem e desaparecem? Suas palavras, talvez.
Agora mesmo, aqui, à nossa volta, devem estar contando como perderam as mulheres. Não se cansam de falar nisso, diz ele. Vivem recordando sua desgraça e amaldiçoando
Kashiri, a lua.
Esta é a história dos vaga-lumes.
Isso era antes.
Nesse tempo formavam uma só família, os machos tinham suas fêmeas e as fêmeas seus machos. Havia paz, comida e os que se iam voltavam soprados por Tasurinchi.
Nós, os machiguengas, ainda não começávamos a andar. A lua vivia entre nós, casado com uma machiguenga. Insaciável, só queria estar em cima dela. Emprenhou-a e
nasceu o sol. Kashiri montava-a mais e mais. O seripigari advertiu-o: "Um dano ocorrerá, neste mundo e nos de cima, se continua assim. Deixe descansar sua mulher,
não seja tão esfomeado." Kashiri não lhe deu importância, mas os machiguengas assustaram-se, ora. O sol perderia sua luz, talvez. A terra ficaria às escuras, fria;
a vida iria desaparecendo, quem sabe. E assim foi. Houve transtornos terríveis, de repente. O mundo tremeu, os rios transbordaram, do Gran Pongo emergiram seres
monstruosos que devastaram as regiões. Os homens que andam, confundidos, mal-aconselhados, estavam vivendo à noite, fugidos do dia, para agradar a Kashiri. Porque
a lua, invejosa do filho, detestava o sol. íamos todos morrer? Parecia. Então, Tasurinchi soprou. Soprou de novo. Continuou soprando. Não matou Kashiri mas apagou-o,
deixando-o com a luz fraca que agora tem. E o despachou de volta a Inkite, de onde tinha descido à procura de mulher. Assim começaria depois.
Mas para que a lua não se sentisse solitária, "Leve uma companhia, a que quiser", disse-lhe seu pai, o sol. Kashiri, então, apontou às fêmeas destes vaga-lumes.
Porque brilhavam com luz própria? Recordariam a luz que perdeu, talvez. A região do Inkite para onde o pai do sol foi expulso, será a noite. As estrelas de lá em
cima, as fêmeas destes vaga-lumes. Ali estarão elas, lá em cima. Deixando-se montar pela lua, macho insaciável, devem estar. E eles, aqui, sem suas mulheres, esperando-as.
Será por isso que quando se vê uma estrela caindo, rolando, os vaga-lumes enlouquecem? Por isso chocam-se uns com os outros, estatelam-se contra as árvores, revoluteando?
"É uma de nossas mulheres", pensarão. "Escapou de Kashiri", dizendo. Todos os machos sonhando: "A que está fugindo, a que está vindo, é minha mulher."
Assim começaria depois, talvez. O sol vive sozinho, também; ilumina e dá calor. Por culpa de Kashiri houve noite. O sol gostaria de ter família, às vezes. Estar
perto do pai, por malvado que tenha sido. E irá buscá-lo. Então, cai, uma vez, outra vez. Essas são as quedas do sol, parece. Por isso começamos a andar. Para pôr
ordem no mundo e evitar a confusão. Tasurinchi, o seripigari, está bem. Contente. Andando. Rodeado de vaga-lumes, está.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Muito aprendo em cada viagem, escutando. Por que os homens podem plantar e colher a mandioca no mandiocal e não as mulheres? Por que as mulheres podem plantar e
arrancar o algodão na chácara e não os homens? Até que, uma vez, lá pelo rio Poguintinari, escutando os machiguengas, eu entendi. "Porque a mandioca é macho e o
algodão é fêmea, Tasurinchi. As plantas gostam de tratar com seu igual, ora." Fêmea com fêmea, macho com macho. Essa é a sabedoria, parece. Verdade, lourinho?
Por que a mulher que perdeu o marido pode pescar e, em compensação, não pode caçar sem que perigue o mundo? Quando flecha um animal, a mãe das coisas sofre, dizem.
Sofrerá, talvez. Nas proibições e nos perigos eu pensava enquanto vinha. "Não tem medo de viajar sozinho, falador?", perguntam-me. "Acompanhe-se com alguém*, é
melhor." Estou acompanhado, às vezes. Se alguém vai na minha direção, andamos juntos. Se vejo uma família andando, ando com ela. Mas nem sempre é fácil achar companhia.
"Não tem medo, falador?" Não tinha, antes, porque não sabia. Agora tenho. Agora sei que poderia me encontrar, em uma quebrada, em um canal, com um
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kamagarini ou com um dos monstros de Kientibakori. Que faria então? Não sei. Às vezes, quando já preparei o refúgio, finquei os paus na margem do rio, pus em cima
as
folhas de palmeiras, começa a chover. E se aparece o diabinho, o que fará?, penso. E passo a noite acordado. Até agora não apareceu. Quem sabe as ervas de minha
bolsa o espantem; quem sabe o colar que o seripigari pendurou em mim, dizendo: "Protegerá você contra os demônios e as manhas do machikanari." Nunca o tirei desde
então. Aquele que vê um kamagarini perdido na selva, ali mesmo morre, garantem. Não devo ter visto nenhum ainda. Talvez.
Também não é bom viajar só pela selva por causa das proibições de caça, explicou-me o seripigari. "Como fará quando caçar um macaco ou flechar uma peruazinha?",
dizendo. "Quem há de recolher o cadáver, então? Se tocar no animal que matou, você se corromperá." É perigoso, parece. Escutando, aprendi o que se deve fazer. Limpar
o sangue primeiro, com ervas ou água. "Limpe bem o sangue e pode tocar nele. Porque a corrupção não está na carne nem nos ossos, mas no sangue do que morreu." Assim
o faço e aqui estou. Falando. Andando.
Graças a Tasurinchi, o seripigari dos vaga-lumes, nunca me aborreço quando estou viajando. Também não sinto tristeza, "Quantas luas faltarão ainda para encontrar
o primeiro homem que anda", pensando. Antes, fico a escutar. E aprendo. Escuto com atenção, como ele fazia. com cuidado, com respeito, escutando. Um pouco depois
a terra se solta a falar. Tal como na mareada, solta-se a língua de todos e de todas. As coisas em que a gente menos acreditaria, falam. Aí estão: falando. Os ossos,
as espinhas. Os pedregumos, os cipós. Os arbustos e as folhas que estão brotando. O escorpião. A fila de formigas que arrasta a mosca-varejeira ao formigueiro. A
borboleta com arco-íris nas asas. O beija-flor. Fala o rato trepado no galho e falam os círculos da água. Quietinho, deitado, com os olhos sem abrir, o falador
está escutando. Que todos se esqueçam de mim, pensando. Uma de minhas almas se vai, então. E vem me visitar a mãe de algo que me rodeia. Ouço, começo a ouvir. Já
estou entendendo. Todos têm
algo que contar. Isso é, quem sabe, o que aprendi escutando. O escaravelho, também. A pedrinha que mal se vê, sobressaindo-se do barro, também. Até o piolho do cabelo
que a gente parte em dois com a unha, tem uma história a contar. Oxalá recordasse tudo o que vou ouvindo. Não se cansariam de me ouvir, talvez.
Algumas coisas sabem sua história e as histórias das demais; outras, só a sua. O que sabe todas as histórias terá a sabedoria, sem dúvida. De alguns animais eu aprendi
a história. Todos foram homens, antes. Nasceram falando, ou, melhor dizendo, do falar. A palavra existiu antes que eles. Depois, o que a palavra dizia. O homem falava
e o que ia dizendo, aparecia. Isso era antes. Agora, o falador fala, e só ele. Os animais e as coisas já existem. Isso foi depois.
O primeiro falador seria Pachakamue, então. Tasurinchi tinha soprado Pareni. Era a primeira mulher. Banhouse no Gran Pongo e vestiu uma blusa branca. Aí estava:
Pareni. Existindo. Depois, Tasurinchi soprou o irmão de Pareni: Pachakamue. Banhou-se no Gran Pongo e vestiu uma blusa cor de areia. Aí estava ele: Pachakamue. Aquele
que, falando, nasceria tantos animais. Sem notar, parece. Da vá-lhe um nome, pronunciava a palavra e os homens e as mulheres tornavam-se o que Pachakamue dizia.
Não quis fazê-lo. Mas tinha esse poder.
Esta é a história de Pachakamue, de cujas palavras nasciam animais, árvores e rochas.
Isso era antes.
Uma vez foi visitar sua irmã, Pareni. Quando começavam a tomar masato, sentados nas esteiras, ele lhe perguntou por seus filhos. "Estão brincando lá, trepados na
árvore", disse ela. "Cuidado para que não virem macaquinhos", riu Pachakamue. E, foi só dizer, que os que tinham sido crianças, agora peludos, agora com rabo, estremeceram
o dia de tanto berrar. E presos dos galhos com seus rabos, balançavam-se, contentes.
Em outra visita à irmã, Pachakamue perguntou a Pareni: "E sua filha?" A jovem tinha tido o primeiro sangue e estava purificando-se, em um refúgio de folhas e bambus,
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nos fundos de sua casa. "Você a mantém encerrada como uma sachavaca", comentou Pachakamue. "Que quer dizer sachavaca?", exclamou Pareni. Naquele instante escutaram
um mugido e um escarvar de patas na terra. E aí saiu, apavorada, farejando o ar, rumo à selva. "Isso há de querer dizer, então", murmurou Pachakamue, apontando-a.
Então Pareni e seu marido Yagontoro assustaram-se. com as palavras que dizia, Pachakamue não desarrumava o mundo? Era prudente matá-lo. Que danos aconteceriam se
continuasse falando! Convidaram-no a tomar masato. Quando ficou bêbado, com manhas levaram-no à beira de um barranco. "Olhe, olhe", disseram-lhe. Ele olhou e então
o empurraram. Pachakamue rolou. Ao chegar ao fundo, nem sequer tinha acordado. Continuava dormindo e arrotando, a blusa vomitada de masato.
Ao abrir os olhos surpreendeu-se muito. Pareni espiava-o da beira. "Ajude-me a sair daqui, ora!", pediulhe. "Transforme-se em um animal e escale o precipício", zombou
ela. "Você não faz isso com os machiguengas?" Seguindo o conselho dela, Pachakamue pronunciou a palavra "Sankori". E aí mesmo ele se transformou em formiga sankori,
a que constrói galerias suspensas nos troncos e nas rochas. Mas, desta vez, as construções da formiguinha tinham algum mistério; desfaziam-se cada vez que se aproximavam
do topo do barranco. "Que faço agora?", gemeu o falador, desesperado. Pareni aconselhou-o: "Falando, faça crescer algo entre as pedras. E suba por aí." Pachakamue
disse "Carriço" e um carriço brotou e cresôeu. Mas cada vez que ele se içava, o carriço se partia em dois e o falador rolava ao fundo da quebrada.
Então, Pachakamue saiu em outra direção, seguindo a curva do precipício. Estava cheio de raiva. "Hei de causar desgraças", dizendo. Yagontoro perseguiu-o para matá-lo.
Foi uma perseguição difícil, longa. Passavam as luas e o rastro de Pachakamue se perdia. Uma manhã, Yagontoro encontrou um pé de milho. Na mareada, soube que a planta
tinha crescido de uns grãos de milho torrado que Pachakamue levava na bolsa; teriam caído ao chão sem

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que ele o notasse. Já o estava alcançando, por fim. E, de fato, não muito depois ele o viu. Pachakamue represava um rio, fechado-o com árvores e pedras que fazia
rolar. Queria desviá-lo para inundar um casario e afogar os machiguengas. Peidava, cheio de raiva. Lá na floresta, Kientibakori e seus kamagarinis estariam dançando,
bêbados de felicidade.
Yagontoro, então, falou-lhe. E o fez reconsiderar, convencendo-o, parece. Convidou-o a voltarem juntos até Pareni. Mas, pouco depois de iniciada a viagem, matou-o.
Houve uma tormenta que enfureceu os rios e arrancou muitas árvores pela raiz. Choveu a cântaros, com trovões. Yagontoro, impassível, continuava cortando a cabeça
do cadáver de Pachakamue. Depois, transpassou a cabeça com dois espinhos de chonta, um vertical, outro horizontal, e enterrou-a em um lugar secreto. Esqueceu-se,
porém, de lhe cortar a língua, e esse erro nós o pagamos ainda. Até que a cortemos, continuaremos em perigo, parece. Porque aquela língua às vezes fala, desarrumando
as coisas. Onde estará enterrada essa cabeça, não se sabe. O lugar fede a peixe podre, dizem. E as samambaias das proximidades fumegam sempre, como uma fogueira
apagando-se.
Yagontoro, depois de decapitar Pachakamue dispôs-se a retornar para junto de Pareni. Estava contente, acreditava ter salvo este mundo da desordem. Agora todos viverão
tranqüilos, pensaria. Mas, com pouco de estar andando, sentiu-se pesado. E por que, além disso, tão lerdo? Assustado, notou que seus pés eram patas; as mãos, antenas;
os braços, asas. Em vez de homem que anda, era já carachupa,* como seu nome indica. Debaixo do mato, engasgando-se com terra, através das duas setas, a língua de
Pachakamue teria dito: "Yagontoro." E Yagontoro tinha virado, então, yagontoro.
Morto e decapitado, Pachakamue continuava transformando as coisas para que se parecessem a suas palavras. Que seria deste mundo, assim? Por então, Pareni
*Carachupa, ou muca, peruanismo: tatu. (N. do T.)
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tinha outro marido e estava andando, contente. Uma manhã, enquanto ela tecia uma blusa, laçando e entrelaçando as fibras do algodão, o marido aproximou-se para lamber
o suor que lhe corria pelas costas. "Você parece uma abeIhinha chupadora de flores", disse uma voz de dentro da terra. Ele não pôde mais escutá-la, porque revoluteava
e zumbia, leve no ar, abelha feliz.
Pareni casou-se pouco depois com Tzonkiri, que ainda era homem. Ele notou que sua mulher lhe dava de comer, cada vez que voltava de desmaiar o mandiocal, uns peixe?
desconhecidos: os boquichicos. De que rio, de que lagoa saíam? Pareni jamais provava pedaço deles. Tzonkiri desconfiou que algo grave acontecia. Em vez de ir à chácara,
escondeu-se no mato e espiou. Assustou-se muito com o, que viu: os boquichicos saíam de entre as pernas de Pareni. Ela os paria, como a filhos. Tzonkiri encheu-se
de raiva. E atirou-se sobre ela para matá-la. Mas não pôde fazê-lo, porque uma voz remota, subida da terra, disse antes o nome dele. E acaso os beija-flores podem
matar uma mulher? "Nunca mais comerá boquichicos, zombou Pareni. Agora andará de flor em flor, sorvendo pólen." Tzonkiri é, desde então, o que é.
Pareni não quis mais ter outro marido. Acompanhada de sua filha, saiu a andar. Subiu em uma canoa e remontou os rios; subiu quebradas, atravessou florestas emaranhadas.
Depois de muitas luas, chegaram ao Cerro do Sal. Ali, ambas escutaram, pronunciadas longe, longe, as palavras da cabeça enterrada que as petrificaram. Agora são
duas rochas enormes, cinzentas, cobertas de musgo. Ainda estarão lá, quem sabe. À sombra delas sentavamse, para tomar masato e conversar, os machiguengas, parece.
Quando subiam para apanhar o sal.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Tasurinchi, o ervateiro, o que vivia pelo rio Tikompinía, está andando. As ervas que levo em minha bolsa foi ele que me deu. para que serve cada folhinha e cada
molho, explicando-me. Esta, a das beiras queimadas, fecha o nariz do tigre, que não poderá farejar o homem que anda. Esta outra, a amarelenta, protege contra a víbora.

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São tantas que me confundem. Cada uma serve para uma coisa diferente. Contra o dano e os forasteiros. Para que os peixes do lago entrem na rede. Para que a flecha
não se
desvie do alvo. E, esta, para não tropeçar nem cair do barranco.
Fui visitar o ervateiro sabendo que essa região encheu-se de viracochas. É verdade; aí estão ainda. E há muitos. Quando me aproximava, vi botes no rio, roncando,
de sulcada e de descida, repletos de viracochas. Nos bancos de areia, de onde saíam as tartarugas à noite para porem as crias e onde iam os homens para virá-Ias,
vivem agora os viracochas. E, também, onde ficava a casa do ervateiro. Mas estes não foram para lá pelas tartarugas nem para fazer chácaras ou cortar árvores, parece.
Mas para levar as pedrinhas e a areia do rio. Procurando ouro, parece. Não me aproximei, não me deixei ver. Mas, embora distante, notei que eram muitos. Fizeram
suas casas. Estão ali para ficar, quem sabe.
Não encontrei rastro de Tasurinchi, o ervateiro, nem dos parentes dele nem de nenhum homem que anda pelos arredores. "Você fez uma viagem inútil", pensei. Estava
inquieto com tantos viracochas perto. E se topava com algum deles, o que aconteceria? Por isso me escondi, até que fosse noite, para afastar-me de Tikompinía.
Subi em uma árvore e, oculto entre os ramos, fiquei espiando-os. Nas margens do rio tiravam terra e pedras, com mãos, paus e enxadas. E as coavam em umas peneiras
grandes, como se coa a mandioca para o masato. Moíam também as pedrinhas em uma bateia. Alguns entravam na floresta para caçar e se ouvia os tiros que davam. O ruído
estremecia as árvores e os pássaros piando espantavam-se. com tanto ruído, logo não restará um animal nessa região. Todos se irão, como Tasurinchi, o ervateiro.
Uma vez que escureceu, desci da árvore e afastei-me rápido. Quando estava bastante longe, fiz um refúgio de folhas de ungurabi, e dormi.
Ao despertar, vi, acocorado, um dos filhos do ervateiro. "Que faz aqui?", perguntei a ele. "Esperando que acorde", disse-me. Tinha me seguido desde que, na véspera,
vira eu me aproximar do rio onde estão os viracochas.
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A família dele mudou-se, a três luas de caminho, águas acima de um canal do Tikompinía. Fizemos a viagem devagar, para não encontrar com os forasteiros. A floresta,
lá, é difícil de atravessar. Não há caminho.-As árvores estão juntinhas e se enredam umas nas outras, brigando. A gente cansa os braços de tanto cortar ramos e mato
que se fecham como quem diz,"Você não há de passar". Estava tudo enlameado. Nas ladeiras, escorregadias com a chuva, afundávamos e rolávamos. Rindo, por nos ver
tão sujos e arranhados. Por fim, chegamos. Aí estava, então, Tasurinchi. "Você está aí?" "Ehé, aqui estou." A mulher dele estendeu esteiras para que sentássemos.
Comemos mandioca e bebemos masato.
"Você andou tão para dentro que aqui, sim, não chegarão nunca os viracochas", disse-lhe. "Chegarão", respondeu-me. "Pode ser que tardem, mas aparecerão também por
aqui. Você tem que aprender isso, Tasurinchi. Eles chegam sempre onde estamos. Tem sido assim desde o princípio. Quantas vezes tive que ir embora porque chegavam?
Desde antes de nascer, parece. E assim será quando me vá e volte, se é que minha alma não fica nos mundos de lá. Sempre estamos indo porque alguém está vindo. Em
quantos lugares vivi? Quem sabe?, mas foram muitos. "Vamos procurar um lugar tão difícil, tão emaranhado, ao qual nunca chegarão", dizendo. "Ou, se chegarem, no
qual nunca hão de querer ficar." E eles sempre chegavam e sempre queriam ficar. É coisa sabida. Não há engano. Virão e eu irei. Isso é mau? bom, eu acho. Será nosso
destino, Tasurinchi. Não somos os que andam? Será preciso agradecer aos mashcos e aos punarunas, então. Também aos viracochas. Invadem os lugares onde vivemos? Obrigam-nos
a cumprir nossa obrigação. Sem eles nos corromperíamos. O sol cairia, talvez. O mundo seria escuridão; a terra, de Kashiri. Não haveria homens e sim muito frio."
Tasurinchi, o ervateiro, fala como um falador.
O tempo pior foi o da sangria de árvores, segundo ele. Não o viveu, mas o pai e as mães, sim. E ouviu tantas histórias que é como se o tivesse vivido. "Tantas que
às vezes me parece que eu também feri os troncos para tirardeles

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o leite, e que também me caçaram como a um sajino para me levarem ao acampamento." Quando acontecem coisas assim, não desaparecem. Permanecem, em algum dos quatro
mundos, e o seripigari pode ir vê-las na mareada. Os que as vêem, retornarão perturbados, os dentes batendo de asco. O medo era tão grande e tanta a confusão que
se perdeu confiança. Ninguém acreditava em ninguém, os filhos desconfiando que os pais iam caçá-los e os pais que os filhos, ao menor descuido, os levariam
amarrados aos acampamentos. "Não precisarão de magia para roubarem as pessoas que lhe fazem falta. com esperteza, não mais, conseguiram toda a que queriam. Os viracochas
devem ser sábios", disse Tasurinchi, admirado.
Ao princípio, eles percorriam a terra caçando gente. Entravam nos casarios, atiravam com suas escopetas. Seus cães ladravam e mordiam: eram caçadores, também. Assustados
com o ruído, os homens que andam espantavam-se, como os pássaros que vi no rio. Mas eles não podiam voar. Então os laçavam nas casas; laçavamnos nos caminhos e
nas canoas se estavam fugindo pelo rio. Força, porra! Força, machiguenga! Levavam os que tinham mãos para tirar o sangue da árvore. Mas não os recém-nascidos ou
os velhos. "Estes não servem", dizendo. Levavam as mulheres também, para cuidarem das chácaras e fazerem a comida. Força! Força! Amarrados pelos pescoços entravam
nos acampamentos. Aí estavam todos os que rrviam caído. Força, machiguenga! Força, piro! Força, ya ,iin. ma! Força, ashaninka! Aí ficavam, misturados. Servam-iies
bem, parece. Estavam contentes os viracochas. Dos acampamentos poucos saíam. Depressa eles se irúim, tão enraivecidos ou tão tristes que suas almas não voltariam,
talvez.
O pior, conta Tasurinchi, o ervateiro, foi quandp nos acampamentos começou a faltar gente por tantos que se iam. Força, porra! Já não tinham, ora. Tinha-se acabado.
Sem poder levantar os braços, morriam. Os viracochas ficavam furiosos. "Que faremos sem braços?", dizendo. "Que vamos fazer?" Mandavam os amarrados, então, para
caçar mais gente. "Compre sua liberdade, dizendolhes. E presentes. Aí está comida. Aí estão roupas. Aí
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está escopeta, também. É bom para você?" Todos achavam que sim, parece. Ao piro, aconselhando-o: "Cace uns quantos piros e pode voltar para casa, levando a mulher
e estes presentes. Tome o cachorro, para que o ajude." Estavam felizes, talvez. Desde que pudessem sair do acampamento, tornavam-se caçadores de homens. Igual que
as árvores, as famílias começaram a sangrar. Todos caçavam todos. com escopeta, com flecha, com armadilhas, com laço e faca. Força, porra! E apareciam nos acampamentos:
"Aí está, cacei-os para você. Me dê minha mulher", dizendo. "Me dê minha escopeta. O presente. Agora vou embora."
Perdeu-se a confiança, assim. Todos eram inimigos de todos, então. Kientibakori estava dançando, feliz? Tremeria a terra? Os rios levariam as casas? Quem sabe. "Todos
ainda vamos rir", diziam eles, assustados. Tinham perdido o conhecimento também. "Fazendo com que nos corrompêssemos tanto, então", choravam. Havia matanças cada
dia. Os rios andariam vermelhos e as árvores salpicadas de sangue, também. As mulheres pariam crianças mortas; eles iam antes de nascer, não querendo viver onde
tudo era dano e confusão. Muitos eram os homens que andam, antes; depois, poucos. Isso era a sangria de árvores. "O mundo se tornou desordem", enfureciam-se. "O
sol caiu."
As coisas que aconteceram podem voltar a acontecer? O ervateiro diz que sim. "Estão aí em algum dos mundos, e, como as almas, podem regressar. Será nossa culpa se
acontece, talvez." Melhor ser prudente e ter a memória esperta.
Três dos filhos de Tasurinchi, o ervateiro, já se foram desde que vive lá em cima. Ao ver que se iam um atrás do outro, pensou: "Estará voltando o dano que levava
família inteiras?" Não pôde averiguar se as almas deles voltaram. "Como será, isso?", disse-me. Ainda não conhece bem o lugar em que vive e não sabe por que ocorrem
certas coisas. Tudo é ainda misterioso ali, para ele. Mas há muitas ervas, também. Algumas, ele já conhecia; outras, não. Está aprendendo a conhecê-las. Ele as recolhe,

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passa muito tempo observando-as, comparando-as, cheirando-as, e, às vezes, mete-as na boca. Mastiga-as e cospe, ou as engole. "Esta serve", dizendo.
Os três filhos dele foram da mesma maneira. Acordando aturdidos, tremendo e suando. E tão fracos como se houvessem estado bêbados. Não podiam se manter em pé. Tentavam
andar, dançar, e caíam. Nem sequer podiam falar, parece. Tasurinchi, quando isso aconteceu ao maior, pensou que era um aviso para que se fosse. O lugar não devia
ser bom para viver, talvez. "Não pude saber", diz. "Era um dano diferente dos outros, não havia erva contra isso." Maldades de kamagarini, quem sabe. Esses diabinhos
sempre saem para fazer danos quando chove. Kientibakori os espia da boca da floresta, rindo-se. Tinha havido trovões e caído muita água na véspera e é sabido que
quando isso acontece há algum kamagarini aproximando-se.
Quando esse filho se foi, a família de Tasurinchi subiu um pouco mais para cima, no morro. Em pouco tempo começou o segundo filho a tontear e a cair. Igual que o
primeiro, foi. Quando este morreu, novamente mudaram de lugar. E então aconteceu a mesma coisa ao terceiro. Decidiu não andar mais. "Os que se foram vão se encarregar
de nos proteger contra o kamagarini que quer nos tirar daqui", dizendo. Assim terá sido, pois. Ninguém mais voltou a ficar tonto e a cair, desde então.
"Isso tem uma explicação", diz o ervateiro. "Tudo tem. A caçada de homens quando da sangria de árvores, também. Mas não é fácil averiguá-la. E nem o seripigari a
averigua sempre. Quem sabe os três se foram para conversar, lá, com as mães deste lugar. com três mortos aqui, elas não nos olharão como intrusos. Somos daqui,
agora. Não nos conhecem estas árvores, estes pássaros? Não nos conhecem a água e o ar daqui? Talvez essa seja a explicação. Desde que se foram, não temos sentido
inimizade. Como se nos tivessem aceitado, aqui."
Estive muitas luas com ele. Pouco faltou para que ficasse vivendo lá, perto do ervateiro. Ajudava-o a pôr armadilhas para as peruazinhas e ia com ele à lagoa,
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para pescar boquichicos. Trabalhei com Tasurinchi roçando o mato, onde vai fazer uma nova chácara para quando a que tem agora necessite descansar. Nas tardes, falávamos.
Enquanto as mulheres se matavam as lêndeas, fiavam, teciam as esteiras e as blusas, e mastigavam e cuspiam a mandioca, preparando masato, conversávamos.
O ervateiro fazia com que eu lhe contasse sobre os homens que andam. Sobre os que conheceu e os que nunca viu, também. Sobre vocês, contei a ele, como a vocês sobre
ele. Passavam as luas e eu não tinha vontade de ir embora. Estava acontecendo uma coisa que não tinha me acontecido antes. "Está cansado de andar?", perguntou-me.
"Isso acontece a muitos. Você não deve se preocupar, falador. Se é assim, mude de costumes. Fique em um lugar e crie família. Levante uma casa, roce o mato, cuide
da chácara. Filhos terá. Deixe de andar e, também, de falar. Aqui não pode ficar, em minha família somos muitos. Mas pode ir mais para cima, de sulcada, a duas ou
três luas de viagem. Há uma quebrada que está esperando você, acredito. Posso acompanhá-lo até lá. Quer uma família? Também posso ajudá-lo, se é o que quer. Leve
esta mulher. É velha e tranqüila e o ajudará, porque sabe cozinhar e fiar como poucas. Ou, se preferir, aí está a menor de minhas filhas. Não poderá tocar nela ainda,
porque não sangrou. Se montasse nela agora, alguma desgraça ocorreria, quem sabe. Mas, espere um pouco, e enquanto isso ela irá aprendendo a ser sua mulher. As mães
dela a ensinarão. Depois que sangre, você me trará um sajino, uns peixes, frutos da terra, mostrando-me reconhecimento e respeito. É isso o que quer, Tasurinchi?"
Estive pensando na proposta dele. Senti vontade de aceitá-la. Até sonhei que aceitaria e mudava de vida. Esta que levo é uma boa vida, eu sei. Os homens que andam
me recebem com alegria, me dão de comer e me fazem festas. Mas vivo viajando, e quanto tempo mais poderei fazê-lo? As distâncias entre as famílias são cada vez
maiores. Ultimamente penso muito, enquanto ando, que um dia as forças me faltarão. Não é, lourinho? E eu ficarei aí, esgotado, em um caminho qualquer. Por onde não
passará

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nenhum machiguenga, talvez. Minha alma se irá e meu corpo vazio começará a apodrecer enquanto os pássaros o bicam e as formigas o caminham. Crescerá o mato entre
meus ossos, quem sabe. A capivara comerá a veste de minha alma, também. Quando a um homem lhe vem esse temor, deve mudar de costumes? Assim pensa Tasurinchi, o ervateiro.
"Aceito sua proposta, sim", disse-lhe. Ele me acompanhou até o lugar que estava me esperando. Demoramos duas luas para chegar. Era preciso subir e descer por umas
florestas onde se perdia o rumo, e, ao subir uma ladeira, do alto de uns galhos, uns macacos shimbillos, que faziam um berreiro terrível, nos atacaram com cascas.
Na quebrada, encontramos um filhote de tigre enredado em um mato cheio de espinhos. "Esse tigrinho quer dizer alguma coisa", preocupou-se o ervateiro. Mas não soube
averiguar o quê. Por isso, em vez de matá-lo e arrancar sua pele, soltou-o na floresta. "Não é este um lugar para viver?", perguntou-me, mostrando-o. "Pode preparar
o mandiocal naquele morro alto. Lá não haverá nunca inundação. Há muitas árvores e pouco mato, assim que a terra deve ser boa e a mandioca crescerá bem." Sim, era
um lugar onde se podia viver. Embora, à noite, fizesse mais frio que o que jamais senti em outro lugar. "Antes que você se decida, vamos ver se há animais para caçar",
disse Tasurinchi. Pusemos armadilhas. Caíram uma capivara e um majaz. Depois, de um abrigo na copa de uma árvore, flechamos uma perua kanari. Decidi ficar ali e
fazer minha casa.
Mas antes de começar a derrubar árvores, apareceu o filho do ervateiro, o mesmo que tinha me guiado até sua nova casa. "Aconteceu algo", dizendo. Regressamos. A
velha que Tasurinchi me daria como mulher estava morta. Tinha moído barbasco e preparado cozimento, murmurando: "Não quero que tenham raiva de mim, dizendo 'Por
causa dela ficamos sem falador'. Dirão que fiz astúcias, que lhe dei encantamentos para que me tomasse por mulher. Prefiro ir."
Ajudei o ervateiro a queimar a casa, a blusa, as
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panelas, os colares e as demais coisas que pertenciam à mulher. Nós a enrolamos em várias esteiras e a pusemos em uma balsinha de pedaços de chonta. E a empurramos
até
que a corrente do rio a levou, águas abaixo.
"É um aviso que você deve aceitar ou recusar", disse-me Tasurinchi. "Se eu fosse você, não o recusaria. Cada homem tem sua obrigação, então. Para que andamos? Para
que haja luz e calor, para que tudo esteja em paz. Essa é a ordem do mundo. Aquele que conversou com os vaga-lumes faz o que deve fazer. Eu mudo de lugar quando
aparecem os viracochas. Será meu destino, talvez. E o seu? Visitar as pessoas, falando-lhes. É perigoso desobedecer ao destino. Preste atenção, já se foi a que ia
ser sua mulher. Se eu fosse você, começaria a andar o quanto antes. O que decide?"
Decidi o que Tasurinchi, o ervateiro, me aconselhou. E na manhã seguinte, quando o olho do sol começou a olhar este mundo do Inkite, já estava eu andando. Agora
penso naquela machiguenga que se foi para não ser minha mulher. Agora falo a vocês. Amanhã como será?
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
VI
EM 1981 tive, seis meses, na televisão peruana, um programa intitulado "La Torre de Babel". O dono do canal, Genaro Delgado, um velho amigo, embarcou-me nessa aventura
fazendo brilhar diante de meus olhos três bugigangas; a necessidade de melhorar o nível dos programas, que, nos doze anos precedentes, enquanto a televisão permanecia
estatizada pela ditadura militar, tinham tocado fundo no que concerne a burrice e vulgaridade; o excitante de experimentar com um meio de comunicação que, em um
país como o Peru, era o único capaz de chegar simultaneamente aos públicos mais diversos; e um bom salário.
Foi, de fato, uma experiência extraordinária para mim, embora, também, a mais cansativa e enervante que jamais tive. "Se você se organiza bem e dedica meio dia ao
programa, será suficiente", Genaro previra. "Poderá continuar escrevendo à tarde." Também neste caso a prática não esteve de acordo com a teoria. Na verdade, tive
que dedicar a "La Torre de Babel" todas as manhãs, tardes e noites daqueles meses, e, sobretudo, as horas em que aparentemente não fazia nada determinado, senão
angustiar-me recordando o que tinha saído ao contrário no programa anterior e tentando antecipar o que sairia pior no seguinte.
Fazíamos "La Torre de Babel" quatro pessoas: Luis Llosa, que cuidava da produção e da direção de câmeras; Moshé dan Furgang, que era o editor; o câmera Alejandro
Pérez e eu. Quanto a Lucho e Moshé, eu os levei à televisão. Ambos tinham experiência de cinema - os dois tinham feito curtas-metragens - mas, como eu, também
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não tinham trabalhado na televisão. O título do programa revelava suas ingênuas ambições; tratar de tudo, fazer um caleidoscópio de temas. Pretendíamos provar aos
telespectadores que um programa cultural não tinha que ser obrigatoriamente anestésico, esotérico ou pedante, mas podia ser divertido e ao alcance de qualquer um,
já que "cultura" não era sinônimo de ciência, literatura ou qualquer outro conhecimento especializado, sendo, antes, uma maneira de aproximar-se das coisas, um ponto
de vista suscetível de abordar todos os assuntos humanos. Nossa intenção era, na hora semanal do programa - hora que com freqüência alongava-se para hora e meia
-, tratar de dois ou três assuntos, os mais opostos um do outro, para mostrar ao público que um programa cultural não estava brigado, digamos, com o futebol ou
o boxe, nem com a música salsa ou o humor, e que uma reportagem política ou um documentário sobre as tribos da Amazônia podia ser ameno ao mesmo tempo que instrutivo.
Quando, com Lucho e Moshé, fazíamos listas de temas, pessoas e lugares dos quais se deveria ocupar "La Torre de Babel" e planejávamos a maneira mais ágil de apresentá-los,
tudo funcionava às mil maravilhas. Estávamos cheios de idéias e com muita vontade de descobrir as possibilidades criativas do mais popular meio de comunicação do
nosso tempo.
O que descobrimos foram, em vez disso, as servidões do subdesenvolvimento, o modo sutil com que desnaturaliza as melhores intenções e frustra os mais árduos esforços.
Sem exagerar, posso dizer que a maior parte do tempo que Lucho, Moshé e eu dedicamos a "La Torre de Babel" foi gasto - desperdiçou-se - não em trabalhos criativos,
tentando enriquecer intelectual e artisticamente o programa, mas tentando resolver problemas verdadeiramente insignificantes, indignos de serem levados em consideração.
Como fazer, por exemplo, para que as camionetas da TV nos recolhessem na hora certa, de modo que não perdêssemos os encontros, os aviões, as entrevistas? A solução
foi ir acordar pessçalmente os motoristas

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em suas casas, acompanhá-los à estação para recolher o equipamento de gravação e, logo, ao aeroporto ou para onde fosse. Mas essa era uma solução que nos tirava
horas de sono e também nem sempre funcionava, pois podia acontecer, além do mais, que as benditas camionetas estivessem com a bateria arriada ou que a administração
não tivesse ordenado, a tempo, a troca do cárter, do cano de descarga ou da roda, furada, na véspera, nos buracos homicidas da Avenida Arequipa...
Desde a primeira reportagem que gravamos, notei que as imagens saíam prejudicadas por umas estranhas manchas. O que eram aquelas meias-luas sujas? Alejandro Pérez
explicou-nos que se tratava de um problema dos filtros da câmera. Estavam gastos e era preciso trocá-los. Muito bem, que os trocassem, então. Que armas empregar
para consegui-lo? Fora matar, tentamos todas e nenhuma serviu. Enviamos memorandos à Manutenção, suplicamos, fizemos gestões telefônicas e de viva voz, com os engenheiros,
técnicos, administradores e chegamos, acredito, até o próprio dono da estação. Todos nos deram razão, todos se indignaram, todos ordenaram de modo peremptório que
os filtros fossem trocados. Mas as meias-luas acinzentadas mancharam todos os nossos programas, do primeiro ao último. Ainda as vejo, às vezes, aquelas sombras intrusas,
com certa melancolia, quando ligo o televisor e penso: "Ah, a câmera de Alejandro Pérez."
Não sei quem decidiu na estação que Alejandro Pérez trabalhasse conosco. Acabou sendo uma boa decisão, porque - levando em consideração, é claro, as servidões do
subdesenvolvimento, que ele aceitava com imperturbável filosofia - Alejandro é um homem muito hábil com uma câmera nas mãos. Seu talento é totalmente intuitivo,
um senso da composição, do movimento, do ângulo, da distância, que lhe são inatos. Porque Alejandro acabou câmera por acaso. Era um pintor de paredes, vindo de Huánuco,
e alguém lhe propôs um dia ganhar algum dinheiro extra ajudando a carregar o equipamento de TV, no estádio, nos dias de futebol. De tanto carregá-lo, aprendeu
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a manejar as carne rãs. Um dia substituiu um câmera que faltara, outro dia a outro, e como quem não quer nada, acabou sendo o primeiro câmera da estação.
No começo, seu mutismo me deixava nervoso. Só Lucho conseguia conversar com ele. Ou, em todo caso, entendiam-se subliminarmente, porque eu não recordo haver ouvido
jamais, naqueles seis meses, Alejandro pronunciar uma frase inteira, com sujeito, verbo e predicado. Só pequenos grunhidos, de aprovação ou desencorajamento, e
uma exclamação, que eu temia como à peste bubônica, porque queria dizer que tínhamos sido - uma vez mais derrotados pelos imponderáveis todo-poderosos e ubíquos:
"Já se fodeu!" Quantas vezes se "fodeu" o gravador, a fita, o refletor, a bateria, o monitor? Tudo podia "foder-se" inumeráveis vezes: era uma propriedade das coisas
com as quais trabalhávamos, talvez a única a que todos mostraram sempre uma fidelidade canina. Quantas vezes projetos minuciosamente planejados, pesquisados, entrevistas
acertadas após extenuantes gestões, foram para o diabo porque o lacônico Alejandro pronunciou o seu fatídico grunhido: "Já se fodeu!"?
Recordo sobretudo o que nos aconteceu em Puerto Maldonado, uma cidade da Amazônia, onde tínhamos ido fazer um pequeno documentário sobre a morte do poeta e guerrilheiro
Javier Heraud. Alaín Elias, companheiro de Heraud e chefe do destacamento guerrilheiro que foi desbaratado ou capturado no dia em que mataram o poeta, tinha concordado
em contar, diante das câmeras, tudo o que acontecera naquela ocasião. Seu depoimento foi interessante e emocionado - Alaín estava com Javier Heraud na canoa onde
este foi baleado e ele próprio acabou saindo ferido no tiroteio - e tínhamos decidido completá-lo com imagens dos lugares onde aconteceram os fatos e, se fosse
possível, com testemunhos de moradores de Puerto Maldonado que lembrassem do episódio ocorrido vinte anos atrás.
Além de Lucho, Alejandro Pérez e eu, até Moshé que sempre ficava em Lima adiantando os trabalhos de edição dos programas - viajou conosco à selva. Em

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Puerto Maldonado, várias testemunhas aceitaram ser entrevistadas. Nosso grande achado foi um dos policiais que tinha participado, primeiro, no incidente inicial,
no centro da cidade, que revelou às autoridades a presença em Puerto Maldonado dos guerrilheiros - episódio no qual morreu um policial civil - e, em seguida,-na
perseguição e tiroteio de Javier Heraud. Era um homem já aposentado do serviço policial, que trabalhava em uma chácara. Persuadi-lo a se deixar entrevistar foi dificílimo,
pois o ex-policial estava cheio de reticências e temores. Por fim, nós o convencemos. E conseguimos, inclusive, que nos autorizassem a realizar a entrevista na repartição
policial de onde tinham saído as patrulhas, naquela ocasião.
No exato instante em que começava a entrevista com o ex-policial, começaram a estourar, como balões do carnaval, os refletores de Alejandro Pérez. E quando rebentaram
todos, para que não restasse dúvida de que os deuses manes da Amazônia estavam contra "La Torre de Babel", arriou a bateria do nosso motorzinho portátil e o registrador
de sons ficou afônico. Já se fodeu! Sim, e também um dos furos do programa. Tivemos que retornar a Lima com as mãos vazias.
Exagero as coisas para fazê-las mais visíveis? Talvez. Mas acho que não muito. Poderia contar dezenas de histórias como esta. E, também, outras, para ilustrar o
que é talvez o emblema do subdesenvolvimento: o divórcio entre a teoria e a prática, as determinações e os fatos. Durante aqueles seis meses nós experimentamos esta
irredutível distância em todas as fases do nosso trabalho. Havia umas tabelas que distribuíam eqüitativamente as ilhas de edição e os estúdios de gravação entre
os diferentes realizadores de programas. Mas, na verdade, não eram aquelas tabelas, mas o engenho e a esperteza da cada produtor ou técnico o que determinava que
se dispusesse de mais ou menos tempo para editar e gravar e contasse com a melhor equipe.
Aprendemos rapidamente, é claro, as armadilhas, astúcias, pilhérias ou graças de que era preciso se valer para conseguir, nada que fosse um privilégio, mas, apenas,
fazer
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com um mínimo de decoro aquilo pelo que nos pagavam. Todas eram estratagemas exeqüíveis, mas todas tinham o defeito de privar-nos de um tempo precioso, que poderíamos
ter dedicado ao puramente criativo. Depois de haver passado por aquela experiência, quando me acontece, alguma vez, ver na televisão um programa bem gravado e editado,
ágil, original, minha admiração não tem limites. Porque sei que, atrás disso, há muito mais que empenho e talento: feitiçaria, milagre. Algumas semanas, logo depois
de haver conferido a edição do programa uma última vez, em busca do retoque final, nós nos dizíamos: "Muito bem, afinal saiu redondo." E, entretanto, naquele domingo,
na tela do televisor, desaparecia o som, a imagem corria, irrompiam vazios... O que é que tinha se "fodido" desta vez? O técnico de plantão, encarregado de passar
as fitas, teria se embriagado ou adormecido, apertado o botão errado ou programado tudo ao contrário? Para quem tem uma mania perfeccionista em seu trabalho, a televisão
é perigosa, causa de infinitas insônias, taquicardia, úlcera, ataques cardíacos...
E, entretanto, fazendo o balanço, aqueles seis meses foram apaixonantes e intensos. Recordo com emoção a entrevista com Borges, em seu apartamento do centro de
Buenos Aires - não me perdoou nunca, ao que parece, ter dito que sua casa era modesta e tinha goteiras -, onde o quarto da mãe conservava-se tal como ela o deixou
no dia de sua morte (um vestido violeta, de senhora de idade, estendido sobre a cama); e os retratos de escritores pintados por Sábato, que este nos deixou filmar,
em sua casinha de Santos Lugares onde fomos visitá-lo. Desde que morei na Espanha, no início dos setenta, tinha querido entrevistar uma escritora de melodramas e
romances corde-rosa, Corín Tellado, cujas histórias eram devoradas em livros, radionovelas, foto no velas e telenovelas por uma incomensurável multidão na Espanha
e na América Espanhola. Aceitou aparecer em "La Torre de Babel" e passei uma tarde com ela, nas cercanias de Gijón, em Astúrias mostrou-me o sótão com milhares
de novelinhas arrumadas: terminava uma cada dois dias, sempre de cem páginas
-, onde permanecia em reclusão porque, naquele momento, era vítima de uma tentativa de extorsão, não estava claro se de parte de um grupo político ou de delinqüentes
comuns.
Das casas de escritores, levávamos as câmeras aos estádios - fizemos um programa sobre um dos melhores clubes do futebol brasileiro, o Flamengo, e entrevistamos
Zico, o craque do momento, no Rio de Janeiro - ou ao Panamá, onde investigamos, percorrendo os ringues de amadores e profissionais, como e por que esse pequeno país
centro-americano tinha sido o berço de tantos campeões latino-americanos e mundiais de boxe em quase todas as categorias. No Brasil, metemo-nos na exclusiva clínica
do atlético Doutor Pitangui, cujos bisturis tornavam belas e jovens todas as mulheres do mundo em condições de pagar seus serviços, e em Santiago do Chile conversamos
com os Chicago Boys de Pinochet e com os oposicionistas democrata-cristãos que, em meio a uma severíssima repressão, resistiam à ditadura.
Fomos à Nicarágua, para fazer uma reportagem sobre os sandinistas e seus adversários, no segundo aniversário da revolução, e à Universidade de Berkeley, em São Francisco,
onde, em um pequeno cubículo do Departamento de Línguas eslavas, trabalhava um grande poeta, Czeslaw Milosz, recente Prêmio Nobel de Literatura. Estivemos em Coclecito,
no Panamá, na casa que tinha lá o general Ornar Torrijos, um homem que, embora em teoria afastado do governo, continuava sendo o amo e senhor do país. Passamos todo
o dia com ele, e, ainda que se mostrasse muito amável comigo, não me deu a impressão tão grata que deixou em outros escritores seus hóspedes. Pareceu-me o típico
caudilho latino-americano de ingrata memória, o "homem forte" providencial, autoritário e machista, ao qual toda uma corte de civis e militares (que, durante o dia,
foram desfilando pelo lugar) adulava com um servilismo que dava náuseas. O personagem mais atraente, na casa de Coclecito, era uma das amantes do general, uma loura
curvilínea que descobrimos atirada em uma rede. Estava ali como um objeto a mais do mobiliário,
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porque o general nem lhe dirigia a palavra nem a apresentava a nenhum dos comensais que entravam e saíam...
Dois dias depois de haver chegado a Lima, de volta do Panamá, Lucho Llosa, Alejandro Pérez e eu ficamos frios: Torrijos acabava de se matar no pequeno avião no qual
nos mandou levar de Coclecito à cidade do Panamá. O piloto era o mesmo com quem tínhamos viajado.
Em Puerto Rico, um dia, logo após terminar de gravar uma pequena reportagem sobre a maravilhosa reconstrução do velho San Juan, guiados pelo homem que foi seu animador,
Ricardo Alegria, caí desmaiado. Estava desidratado por causa de uma intoxicação contraída nas chicherías de um povoadinho do norte peruano, Catacaos, onde fomos
fazer um programa sobre os fabricantes de chapéus de palha - uma arte que os cataquenhos cultivam há séculos -, sobre os segredos do tondero, uma dança regional,
e sobre suas casas de boa chicha e comidas picantes (foram estas últimas que me intoxicaram, naturalmente). Não tenho palavras para agradecer a todos os amigos porto-riquenhos
que, praticamente, ameaçaram os amáveis médicos do Hospital São Jorge a me curarem a tempo para que "La Torre de Babel" fosse ao ar pontualmente naquele domingo.
Os programas sempre foram ao ar, cada semana, e, levando-se em conta como trabalhávamos, aquilo pode ser considerado uma grande façanha. Escrevia os roteiros nas
camionetas ou nos aviões e dos aeroportos passava aos estúdios de gravação ou às ilhas de edição e saía de lá para tomar outro avião e fazer centenas de quilômetros
a fim de estar em uma cidade ou um país às vezes menos tempo do que levara para chegar lá. Naqueles seis meses esqueci-me de dormir, de comer, de ler e, é claro,
de escrever. Como a verba de produção de que dispunha era limitada, várias daquelas viagens ao estrangeiro eu as fazia coincidir com algum convite para participar
de um congresso literário ou dar conferências, de modo que assim aliviava a TV com minhas passagens e estada. O problema era que este sistema obrigava-me a uma
divisão esquizofrênica da personalidade, pois tinha que mudar, em segundos, do papel de

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conferencista a jornalista, de escritor ao qual ofereciam o microfone para que falasse a entrevistador que, como em represália, entrevistava seus entrevistadores.
Ainda que tenhamos feito um bom número de programas sobre o estrangeiro, a maioria tratou de temas peruanos. Danças e festas populares, problemas universitários,
centros arqueológicos pré-hispânicos, um velho sorveteiro cujo triciclo, depois de meio século, continua percorrendo as ruas de Miraflores, a lenda de um prostíbulo
piurano, o submundo penitenciário. Descobrimos que "La Torre de Babel" tinha chegado a ter boa audiência pelas recomendações e pressões que começávamos a receber
de personalidades e instituições diversas para que nos ocupássemos delas. A mais inesperada foi, talvez, a da Polícia de Investigações (PIP). Um coronel compareceu
um dia a meu escritório para propor que dedicasse uma "Torre de Babel" à PIP, a pretexto de algum aniversário: para que o programa fosse movimentado, a instituição
simularia uma operação de captura de traficantes de cocaína com tiros e tudo...
Um dos telefonemas que recebi, já quando o prazo de seis meses a que me havia comprometido com a TV estava por terminar, foi o de uma amiga que não via há um século:
Rosita Corpancho. Ali estava sua voz calorosa, com vestígios preguiçosamente loretanos, nem mais nem menos que como nos meus anos universitários. E aí estava, intacto
e talvez aumentado, o zelo entusiástico de Rosita Corpancho pelo Instituto Lingüístico de Verão. Lembrava-me do Instituto, não é verdade? Mas, Rosita... Muito bem,
então. O Instituto estava por fazer não sei quantos anos no Peru, e, além disso, logo arrumaria as malas, dando por encerrada sua missão na Amazônia. Não seria possível,
quem sabe, que a "Torre de Babel"...? Interrompi-a para dizer que sim. com muito prazer faria um documentário sobre o trabalho dos lingüistas-missionários. E aproveitaria
a viagem à selva, também, para fazer uma reportagem sobre alguma das tribos menos conhecidas, coisa que figurava em nossos planos desde o princípio. Feliz, Rosita
disse-me que coordenaria tudo com o Instituto a fim de que pudéssemos movimentar-nos pelo interior da
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selva. Tinha idéia de alguma tribo em especial? Sem pensar duas vezes, respondi-lhe: "Os machiguengas."
Desde minhas frustradas tentativas, no começo dos anos sessenta, de escrever uma história sobre os faladores machiguengas, o tema continuara sempre me rondando.
Voltava, cada certo tempo, como um velho amor nunca apagado de todo, cujas brasas se acendem de repente em uma labareda. Continuara tomando notas e garatujando borrões
que invariavelmente rasgava. E lendo, cada vez que conseguia pôr a mão em cima, os estudos e artigos que apareciam, aqui e ali, em revistas científicas, sobre os
machiguengas. O desconhecimento de que tinham sido vítimas dava passagem a uma curiosidade diferente. Uma antropóloga francesa, France-Marie Casevitz-Renard e outro
norte-americano, Johnson Allen, tinham passado longo período entre eles e descrito sua organização, seus métodos de trabalho, seu sistema de parentesco, seus símbolos,
seu sentido do tempo. Um etnólogo suíço, Gerhard Baer, que também viveu entre eles, tinha estudado a fundo sua religião, e o Padre Joaquín Barriales começava a publicar,
traduzida ao espanhol, uma copiosa recopilação de mitos e canções machiguengas. Alguns antropólogos peruanos, companheiros de Mascarita, como Camino Díez Canseco
e Víctor J. Guevara, também tinham investigado os usos e as crenças da tribo.
Mas nunca, em nenhum destes trabalhos contemporâneos, encontrei a menor informação sobre os faladores. Curiosamente, as referências a eles interrompiam-se aí pe,los
anos cinqüenta. Tinha definhado até desaparecer a instituição do falador, justamente na época em que os Schneil a descobriram? Nos textos dos missionários dominicanos
que escreveram sobre eles nos anos trinta e quarenta - os Padres Pio Aza, Vicente de Cenitagoya e Andrés Ferrero
- havia abundantes alusões ao falador. E, também, antes, em alguns viajantes do século XIX. Uma das primeiras menções figurava no livro do explorador Paul Marcoy,
que, na margem do Urubamba, encontrou-se com um orateur, a quem o viajante francês viu literalmente hipnotizar um auditório de "antis" durante horas a fio. "Você

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acredita que aqueles antis eram os machiguengas?" perguntou-me o antropólogo Luís Román, mostrando-me a citação. Eu estava certo de que sim. Por que os etnólogos
modernos
jamais mencionaram os faladores? Era uma pergunta que me fazia cada vez que chegava a minhas mãos alguns desses estudos ou trabalhos de campo e descobria que tampouco
desta vez se mencionava, sequer de passagem, aqueles ambulantes contadores de histórias que a mim pareciam o traço mais delicado e precioso daquele pequeno povo
e o que, em todo caso, havia forjado esse curioso vínculo sentimental entre os machiguengas e minha própria vocação (para não dizer simplesmente minha vida).
Por que tinha sido incapaz, no curso de todos aqueles anos, de escrever um conto sobre os faladores? A resposta que costumava dar a mim mesmo, toda vez que despachava
para o lixo o manuscrito pela metade daquela fugidia história, era a dificuldade que significava inventar, em espanhol e dentro de esquemas intelectuais lógicos,
uma forma literária que verossimilmente sugerisse a maneira de contar de um homem primitivo, de mentalidade mágicoreligiosa. Todas as minhas tentativas acabavam
sempre em um estilo que me parecia tão obviamente fraudulento, tão pouco persuasivo como aqueles nos quais, no século XVIII, quando entrou na moda na Europa o "bom
selvagem", faziam falar seus personagens exóticos os filósofos e romancistas do Iluminismo. Mas, apesar dos fracassos, talvez por causa deles, a tentação estava
sempre ali e cada certo tempo, reavivada por uma circunstância fortuita, ganhava brios e a silhueta rumorosa, transeunte, selvática do falador invadia minha casa
e meus sonhos. Como não seria emocionante a perspectiva de ver, por fim, a cara dos machiguengas?
Desde aquela viagem de meados de 1958, que me fez descobrir a selva peruana, tinha estado várias vezes na Amazônia: em Iquitos, em San Martin, no Alto Maranhão,
em Madre de Dios, em Tingo Mana. Mas não voltara a Pucallpa. Nos vinte e três anos intermediários, aquela localidade pequeninha e empoeirada; que eu -
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recordava cheia de casas funerárias e igrejas evangélicas, experimentara um boom industrial e comercial, depois uma crise, e, naquele meio-dia de setembro de 1981
em
que Lucho Llosa, Alejandro Pérez e eu aterrissamos nela para fazer o que seria o penúltimo programa de "La Torre de Babel", começava a viver um novo boom, mas desta
vez por maus motivos: o tráfico de cocaína. O bafo de calor e a luz ígnea, em cujo abraço as pessoas e as coisas se perfilam tão nítidas (à diferença de Lima, onde
até o sol radiante tem algo de cinzento), é uma coisa que, tão logo piso na Amazônia, me faz sempre o efeito de um tônico do entusiasmo.
Entretanto, mais ainda que a paisagem amazônica e sua temperatura, impressionou-me descobrir naquela manhã, no aeroporto de Pucallpa, as pessoas que o Instituto
tinha enviado para nos esperar: o casal Schneil. Eles mesmos, em pessoa. Tinham feito um quarto de século na Amazônia e, sempre, trabalhando entre os machiguengas.
Surpreenderam-se de que eu me lembrasse deles - tenho a impressão de que eles, em absoluto, lembravam-se de mim - e de que conservasse na memória tantos detalhes
do que me contaram, aquela vez, nas duas conversas na Base de Yarinacocha. Enquanto sacolejávamos no jipe rumo ao Instituto, mostraram-me fotografias dos filhos,
um grupo de jovens, alguns já formados, que viviam nos Estados Unidos. Todos falavam o machiguenga? Naturalmente, era o segundo idioma da família, antes mesmo que
o espanhol. Alegrou-me saber que os Schneil nos serviriam ae guias e tradutores nas aldeias que visitaríamos.
O lago de Yarina continuava sendo uma vista de cartãopostal e seus crepúsculos ainda mais belos. A suas margens, os bangalôs do Instituto tinham se multiplicado.
Logo que deixamos o jipe, com Lucho e Alejandro começamos a trabalhar e acertamos que, ao anoitecer, como uma antecipação da viagem às selvas do Alto Urubamba,
os Schneil nos dariam alguma informação sobre os lugares e pessoas que lá veríamos.
Além dos Schneil, não permanecia em Yarinacocha nenhum dos lingüistas que eu tinha conhecido na viagem

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anterior. Alguns tinham voltado aos Estados Unidos, outros estavam fazendo trabalho de campo em outras selvas do mundo, e, um, como o fundador do Instituto, o Doutor
Townsend, tinha falecido. Mas os lingüistas que conhecemos e entrevistamos, e nos serviram de cicerones enquanto fazíamos diferentes imagens do lugar, pareciam irmãos
gêmeos dos que eu recordava. Eles, com os cabelos muito curtos e um semblante atlético e saudável, de pesoas que fazem exercícios diariamente, comem de acordo com
as instruções de um dietista, não fumam nem bebem álcool nem tomam café, e, elas, embutidas em vestidos tão simples como pudicos, sem traço de maquiagem nem sinal
de coqueteria e um ar incômodo de eficiência. Mas uns e outras com esses olhares sempre risonhos e como que inquebrantáveis de pessoas que acreditam, que estão
fazendo o que acreditam e sabem verdadeiramente sua parte, que a mim sempre têm fascinado e assustado.
Todo o tempo que o permitiram a luz e os caprichos do equipamento de Alejandro Pérez estivemos reunindo material para o programa sobre o Instituto. Um seminário
de professores bilíngües de diferentes aldeias que se realizava naqueles dias; as cartilhas e gramáticas elaboradas pelos lingüistas; testemunhos destes e um panorama
da pequena cidade que era a Base de Yarinacocha, com escola, hospital, campo de esportes, biblioteca, igrejas, centro de comunicações e aeroporto.
Ao anoitecer, após um jantar também de trabalho, quando encerramos a parte do programa dedicada ao Instituto, começamos a preparar a outra, a que gravaríamos . nos
dias seguintes: os machiguengas. Em Lima, eu tinha desenterrado e consultado a documentação que acumulara sobre eles há anos. Mas foi sobretudo a conversa com os
Schneil - outra vez na cabana deles, outra vez enquanto tomávamos uma taça de chá com bolachinhas feitas pela senhora Schneil - a que nos proporcionou um material
de primeira mão sobre o estado daquela comunidade que eles conheciam como a palma de sua mão, pois tinha sido o lar deles nos últimos vinte e cinco anos.
Tinham mudado bastante as coisas para os machiguengas
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do Alto Urubamba e de Madre de Dios desde o dia em que, nu, Edwin Schneil aproximou-se daquela família e ela não fugiu. Tinham sido as mudanças para melhor?
Estavam firmemente convencidos de que sim. E, naturalmente, também para os machiguengas de além Pongo de Mainique tinha cessado em boa parte a dispersão em que antes
viviam, essa diáspora em grupinhos errantes espalhados aqui e ali, quase sem contato entre eles, lutando isolada e penosamente pela sobrevivência, que, a continuar
assim, teria significado pura e simplesmente a desintegração da comunidade, a deliqüescência de seu idioma, a assimilação de seus membros a outros grupos e culturas.
Depois de muitos esforços, de parte das autoridades, missionários católicos, antropólogos e etnólogos, e do próprio Instituto, os machiguengas foram aceitando a
idéia de formar aldeias, de se congregarem em lugares aparentes para trabalhar a terra, criar animais e desenvolver o comércio com o resto do Peru. As coisas estavam
evoluindo rapidamente. Havia já seis povoados, alguns de recentíssimo nascimento. Nós visitaríamos dois: Nuevo Mundo e Nueva Luz.
Dos cinco mil machiguengas - cálculo aproximado cerca da metade vivia já naquelas aldeias. Uma destas, além disso, era metade machiguenga e metade campa (ashaninka)
e, até agora, a convivência de naturais dessas duas tribos não suscitava o menor problema. Os Schneil eram otimistas e acreditavam que os restantes machiguengas,
inclusive os mais ariscos entre eles - os chamados kogapakori -, à medida que vissem como o haver formado comunidades trazia a seus irmãos uma série de benefícios
- uma vida menos incerta, a possibilidade de receber ajuda em caso de emergência - iriam também abandonando seus refúgios no interior das florestas para formar novos
assentamentos. com verdadeiro entusiasmo, os Schneil nos relataram os passos concretos que tinham sido dados nos povoados para integrá-los ao país. As escolas e
as cooperativas agrícolas, por exemplo. Tanto em Nuevo Mundo como em Nueva Luz funcionavam escolas bilíngües, com professores nativos. Já os veríamos.
Significava isso que os machiguengas começavam a
deixar de ser o povo primitivo, fechado sobre si mesmo, pessimista, derrotado, que me tinham descrito em 1958? De certa forma, sim. Havia neles, pelo menos nos machiguengas
que agora viviam em comunidade, menos reticências a experimentar o novo, a progredir, talvez mais amor à vida. Mas, quanto ao isolamento, não se podia ainda falar
de mudanças radicais. Porque, embora pudéssemos chegar a seus povoados em duas ou três horas, nos aviões do Instituto, uma viagem por rio até aquelas aldeias, de
qualquer localidade importante da Amazônia, era coisa de dias e às vezes de semanas. De modo que, o fato de se haverem incorporado ao Peru era, agora, algo menos
remoto que no passado, mas ainda não uma realidade.
Poderia entrevistar em espanhol alguns machiguengas? Sim, alguns, ainda que poucos. Por exemplo, o cacique ou governador de Nueva Luz falava-o fluentemente. Como?
Agora havia caciques entre os machiguengas? Não tinha sido, por acaso, distinção maior da tribo não haver tido nunca uma organização política hierárquica, com chefe
e subordinados? Sim, certo. Antes. Mas esse sistema anárquico que era o deles explicava-se pela dispersão em que viviam; agora, reunidos em aldeias, necessitavam
autoridades. O administrador ou chefe de Nueva Luz era um homem jovem e um magnífico líder comunitário, formado na Escola Bíblica de Mazamari. Pastor protestante,
então? Bem, de certa forma. Existia já uma tradução da Bíblia ao machiguenga? Naturalmente, e era obra deles. Em Nuevo Mundo e Nueva Luz poderíamos filmar os exemplares
do Novo Testamento em machiguenga.
Lembrei-me de Mascarita, de nossa última conversa naquele bar da Avenida Espanha. Tornei a ouvir seus insultos e profecias. Segundo o que nos contavam os Schneil,
os temores de Saul Zuratas, naquela tarde, vinham se confirmando. Tal como outras tribos, os machiguengas encontravam-se em pleno processo de aculturação: a Bíblia,
escolas bilíngües, um líder evangelizador, a propriedade privada, o valor do dinheiro, o comércio, sem dúvida roupas ocidentais... Tudo isso tinha sido para o bem?
Trouxera-lhes benefícios concretos como indivíduos
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e como povo, segundo asseguravam os Schneil? Ou, ao contrário, de "selvagens" livres e soberanos tinham começado a se converter em "zumbis", caricaturas de ocidentais,
segundo a expressão de Mascarita? Uma visita de dois ou três dias seria suficiente para que eu conhecesse o problema? Não, naturalmente que não seria suficiente.
Naquela noite, no bangalô de Yarinacocha, permaneci muito tempo acordado, refletindo. Pela tela metálica na janela via um pedaço do lago, com uma esteira dourada,
mas a lua - que imaginava redonda e brilhante - estava coberta por um maciço de árvores. Era bom ou mau sinal que Kashiri, esse astro macho, maligno às vezes e
outras benfazejo, da mitologia machiguenga, ocultasse de mim com manchas sua cara? Tinham passado vinte e três anos desde que dormi em um desses bangalôs a primeira
vez, e, em todo esse tempo, não só eu tinha mudado, vivido mil experiências, envelhecido. Também esses machiguengas que conhecia, mal, por dois breves testemunhos
deste casal de norte-americanos, minha conversa madrilenha com um dominicano e uma porção de trabalhos etnológicos, tinham experimentado grandes mudanças. Pelo
visto, já não se encaixavam naquelas imagens que eu formara deles. Já não eram esse punhado de seres indômitos e trágicos, essa sociedade fraturada em minúsculas
famílias, fugindo, fugindo sempre, do branco, do mestiço, do serrano, de outras tribos, esperando e aceitando estoicamente a fatídica extinção individual e comunitária,
mas sem renunciar a seu idioma, a seus deuses, a seus costumes. Uma irreprimível tristeza apossou-se de mim ao pensar que essa sociedade pulverizada no seio das
úmidas e imensas florestas, para a qual uns contadores de histórias migrantes serviam de seiva circulante, estaria desaparecendo.
Quantas vezes, nestes vinte e três anos, tinha pensado nos machiguengas? Quantas vezes tinha tentado adivinhálos, escrevê-los, quantos projetos tinha feito para
viajar a suas terras? Por culpa deles, todos personagens ou instituições que pudessem parecer-se ou de alguma maneira associarem-se no mundo com o falador machiguenga
tinham exercido uma instantânea fascinação sobre mim.

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Como os trovadores ambulantes dos sertões baianos, que, acompanhados pelo bordão de seu violão, misturavam, nas empoeiradas aldeias do Nordeste brasileiro, velhos
romances medievais e bisbilhotices da região. Bastou-me ver um deles, naquela tarde, no mercado de Uauá, para reconhecer, sobrepondo-se à silhueta do caboclo com
casaco e chapéu de couro que contava, cantando, diante de uma roda brincalhona, a história da Princesa Magalona e os doze Pares de França, a pele amarelo-verdosa,
decorada com simétricos traços vermelhos e manchas escuras, do falador seminu que, longíssimo dali, em uma prainha oculta sob a ramagem do Madre de Dios, referia
a uma família atenta, de cócoras, a disputa a sopros de Tasurinchi e Kientibakori da qual resultaram todos os seres bons e maus deste mundo.
Mas ainda mais que o trovador do sertão, foi o seanchaí irlandês quem me havia evocado, e com que força, os faladores machiguengas. Seanchaí: "dizedor de velhas
histórias", "aquele que sabe coisas", traduziu ao inglês, distraidamente, alguém, em um bar de Dublin. Como explicar, se não é pelos machiguengas, aquela emoção,
aquele aceleramento brusco no peito, que me levou a intrometer-me, a perguntar e, mais tarde, a insistir e enlouquecer conhecidos e amigos irlandeses até que me
puseram frente a um seanchaíl Relíquia viva dos velhos aedos de Hibérnia, que, como aqueles antepassados seus cujas silhuetas se confundem, na noite dos tempos,
com os mitos e as lendas célticas que são os alicerces culturais da Irlanda, o seanchaí ainda conta, em nossos dias, no calor enfumaçado de umpub, em uma festa
suspensa de repente ante o feitiço de sua palavra, ou em uma casa de família, junto à lareira, enquanto fora goteja a chuva ou ruge a tormenta, antiqüíssimas fábulas,
histórias épicas, paixões terríveis, inquietantes milagres. É um dono de bar, um motorista de caminhão, um pastor, um mendigo, alguém misteriosamente tocado pela
varinha mágica da sabedoria e a arte de contar, de recordar, de reinventar e enriquecer o já contado ao longo dos séculos, um mensageiro dos tempos do mito e da
magia, anteriores à história, a quem
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os irlandeses contemporâneos escutam ainda, horas a fio, maravilhados. Sempre soube que aquela emoção intensa com que vivi essa viagem à Irlanda graças ao seanchaí,
foi metafórica, uma maneira de escutar, através dele, o falador e de viver a ilusão de fazer parte, apertado entre seus ouvintes, de um auditório machiguenga.
E, afinal, amanhã, desta maneira não premeditada, e guiado nada menos que pelo próprio casal Schneil, conheceria os machiguengas. A vida tinha elementos de romance,
então? Sim senhor, tinha. "Já disse a você que quero terminar com um zoom, porra, Alejandro!", delirou Lucho Llosa, na cama ao lado, remexendo-se sob o mosquiteiro.
Partimos ao amanhecer, em dois monomotores Cessna do Instituto, com três passageiros em cada um. O piloto do avião em que eu ia, apesar da cara de adolescente,
tinha vários anos com os lingüistas missionários e, antes de pilotar seus aviões na Amazônia, fizera-o nas selvas da América Central e nas de Bornéu. Era uma manhã
diáfana, que, lá de cima, nos permitia acompanhar com perfeição todos os meandros do Ucayali, primeiro, e, depois, do Urubamba - suas ilhotas, suas lanchas gaguejantes
com motor fora da borda ou peque-peques, suas canoas, seus canais, seus pongos, seus afluentes - e as diminutas aldeias que, muito espaçadamente, abriam uma clareira
de cabanas e de terra vermelha na interminável planície verde. Passamos sobre a Colônia Penal do Sepa e a missão dominicana de Sepahua e logo abandonamos o curso
do Alto Urubamba, para seguir a arrevesada trajetória do rio Mipaya, uma serpente lodosa a cujas margens, aí pelas dez da manhã, avistamos nosso primeiro destino:
Nuevo Mundo.
O nome do Mipaya ressoava historicamente. Sob este emaranhado vegetal proliferaram, há um século, empresas caucheiras. Depois da terrível mortandade sofrida pela
tribo, passivamente, nos anos do caucho, os ex-caucheiros arruinados tentaram, na década de vinte, instalar fazendas nesta zona, provendo-se de braços.mediante o
velho sistema de caça aos indígenas. Foi então que, aqui, às mar-

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gens do Mipaya, produziu-se o único caso conhecido na história de resistência machiguenga. Quando um fazendeiro da região veio para levar os jovens e as mulheres,
os machiguengas os receberam a flechadas e mataram e feriram vários viracochas, antes de serem exterminados. A selva tinha coberto o cenário com sua espessa massa
de troncos, galhos, folhagens, e não ficara mais rastro daquelas ignomínias. Antes de aterrissar, o piloto traçou vários círculos sobre a vintena de cabanas de tetos
cônicos a fim de que os machiguengas de Nuevo Mundo retirassem as crianças da única rua do povoado, que servia de pista de aterrissagem.
Os Schneil vinham no mesmo avião que eu, e, mal os viram descer do aparelho, uma centena de vizinhos cercou-os, dando mostras de muita excitação e alegria. Todos
lutavam por tocar neles, dar tapinhas amistosos, e uns e outros falavam ao mesmo tempo em uma linguagem cadenciada, áspera, cheia de modulações extremas. Exceto
a professora, que vestia saia e blusa e calçava sandálias, todos os machiguengas andavam descalços, eles com uma curta tanga ou com blusa, e elas também com essa
túnica de algodão, cor de areia ou cinzenta, comum a muitas tribos. Só algumas anciãs usavam a pampanilla, fina manta apanhada na cintura que lhes deixava os peitos
de fora. Quase todos, homens e mulheres, mostravam tatuagens avermelhadas ou negras.
Aí estavam, então. Esses eram os machiguengas.
Não tive nem tempo de me comover. Para aproveitar ao máximo a luz, começamos a trabalhar de imediato e, felizmente, nenhuma catástrofe impediu-nos de fazer as imagens
das cabanas - todas idênticas: uma simples plataforma de troncos sustentada por estacas, uns frágeis tabiques de bambu, que cobriam apenas a metade do* lados, o
penacho de folhas de palmeira que era o teto, e uns interiores austeros, pois só albergavam esteiras enroladas, gamelas, redes de pescar, arcos e flechas e punhadinhos
de mandioca, milho e porongos - ou entrevistar a professora, a única que podia expressar-se, embora com dificuldade, em espanhol. Ela era também a administradora
da
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loja do povoado, até onde, duas vezes por mês, chegava uma lancha trazendo provisões. Minhas tentativas de obter dela alguma informação sobre os faladores foram
inúteis. Conseguia entender a quem eu me referia? Parecia que não. Olhava-me com uma expressão de surpresa, ligeiramente inquieta, como que pedindo para me fazer
inteligível.
Ainda que não pudéssemos conversar diretamente com eles, senão através dos Schneil, os outros machiguengas mostraram-se bastante serviçais e pudemos gravar alguns
cantos e danças e a refinada operação mediante a qual uma anciã ia pintando, na cara, desenhos geométricos, com tintura de urucu. Filmamos suas plantações, gaiolas
de aves, a escola, e a professora empenhou-se em que escutássemos os alunos cantando o Hino Nacional em machiguenga. Uma das crianças tinha a cara destruída por
essa espécie de lepra que é a uta - os machiguengas a atribuem à picada de um vaga-lume de cor avermelhada, com o abdome fervilhando de pontinhos brilhantes - e,
pela maneira desinibida e natural com que agia e corria entre os outros menininhos, não parecia, à simples vista, pelo menos, objeto de discriminação e brincadeiras
por causa de sua deformação.
Quando, ao começar a tarde, carregávamos já nosso equipamento para empreender viagem ao povoado onde pernoitaríamos - Nueva Luz -, soubemos que Nuevo Mundo, provavelmente,
teria que mudar logo sua localização. O que tinha acontecido? Uma dessas arbitrariedades geográficas que são o pão de cada dia na selva. O rio Mipaya, na última
estação de chuvas, por causa da grande enchente, tinha modificado radicalmente seu curso, afastando-se tanto de Nuevo Mundo que, agora, quando as águas desceram
a seu nível invernal, os vizinhos tinham que fazer uma longuíssima caminhada para chegar a suas margens. Estavam, assim, procurando outro lugar, sujeito a menos
contingências, para instalar a aldeia. Não seria complicado para aqueles que tinham passado a vida mudando-se - as cidades deles, pelo visto, nasciam também sob
o signo atávico da marcha, do destino peripatético
-, e, de outra parte, essas cabanas de troncos, bambu e folhas de palmeira, eram mais fáceis de desarmar e de tornar a armar que as casinhas do mundo civilizado.
Explicaram-nos que os vinte minutos de vôo que levamos para ir de Nuevo Mundo a Nueva Luz eram enganosos, pois, andando pela selva, essa distância exigia, no mínimo,
uma semana de viagem, e, em canoa, uns dois dias.
Nueva Luz era o mais antigo dos povoados machiguengas - acabava de comemorar seu segundo aniversário - e tinha um pouco mais do dobro de cabanas e de moradores que
Nuevo Mundo. Também aqui, só Martin, o cacique governador e professor da escola bilíngüe, vestia camisa, calça e sapatos e tinha os cabelos cortados à maneira ocidental.
Era bastante jovem, miúdo, de uma seriedade funeral, e falava um espanhol ágil, solto e sincopado, cheio de apócopes. Igual que na aldeia anterior, em Nueva Luz
a recepção dos machiguengas aos Schneil foi exuberante e ruidosa, e todo o resto do dia e boa parte da noite vimos grupos e indivíduos esperando pacientemente que
outros se despedissem para se aproximarem deles e então estabeleceram uma conversa crepitante, adornada de gestos e trejeitos.
Também em Nueva Luz gravamos danças, cantos, solos de bombo, a escola, a loja, as plantações, os teares, as tatuagens, e uma entrevista com o dirigente egresso
da Escola Bíblica de Mazamari, um homem jovem, muito magro, com o cabelo cortado quase rente, de gestos cerimoniosos. Era um discípulo diligente de seus professores,
pois, antes que dos machiguengas, preferia falar da Palavra, do Verbo, do Espírito Santo. Tinha um modo grosseiro de sair pela tangente e eternizar-se em imprecisões
bíblicas, toda vez que não queria responder a uma pergunta. Duas vezes tentei puxar a língua dele sobre o tema dos faladores e, nas duas, olhando-me sem compreender,
voltou a explicar que aquele livro que tinha sobre os joelhos era a palavra de Deus e seus apóstolos na língua machiguenga.
Terminado o trabalho, fomos nos banhar em uma quebrada
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do Mipaya, a uns quinze minutos de marcha do povoado, guiados pelos dois aviadores do Instituto. Era o começo do crepúsculo, a hora mais misteriosa e mais
bela da Amazônia desde que não esteja sob um aguaceiro. O lugar era um verdadeiro achado. Um braço do Mipaya desviava-se, por obra de um arrecife natural de rochas,
formando uma espécie de enseada, na qual se podia nadar em águas calmas e mornas, ou, se se preferisse, receber, protegido pela defesa de pedras, o impacto da corrente.
Até o lacônico Alejandro Pérez começou chapinhar e a rir, louco de felicidade naquele jacuzzi amazônico.
Quando retornamos a Nueva Luz, o jovem Martin (sua cortesia era extraordinária e os gestos de uma elegância real) convidou-me a uma infusão de erva-cidreira, em
sua cabana, contígua à escola e à loja do povoado. Tinha um transmissor de rádio, com o qual se comunicava com a Base de Yarinacocha. Estávamos os dois sozinhos
no quarto cujo asseio era tão meticuloso como o do próprio Martin; Lucho Llosa e Alejandro Pérez tinham ido ajudar os pilotos a descarregar as redes e os mosquiteiros
em que dormiríamos. A luz caía rapidamente e cresciam as manchas de sombra à nossa volta. A selva inteira tinha começado a zumbir sincronicamente, igual que sempre
a esta hora, recordando-nos que, sob sua maranha verde, miríades de insetos dominavam o mundo. Logo, o céu se encheria de estrelas.
Acreditavam de verdade os machiguengas que as estrelas eram o fulgor expedido pelas coroas dos espíritos? Martin, imutável, assentiu. Que as estrelas cadentes eram
as flechas de fogo desses deusinhos-crianças, os Ananeriite, e o orvalho do amanhecer, sua urina? Martin riu desta vez: sim, acreditavam nisso. E, agora que os machiguengas
haviam deixado de andar, para deitar raízes em aldeias, o sol cairia? Certamente que não: Deus se encarregaria de sustentá-lo. Examinou-me um momento, com expressão
divertida: como tinha eu conhecimento dessas crenças? Disse-lhe que os machiguengas me interessavam há quase um quarto de século; que, desde então, procurava ler
tudo o que se escrevia sobre eles. E lhe contei por

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quê. Enquanto eu falava, sua cara, benevolente e risonha ao princípio, foi se tornando grave, desconfiada. Escutou-me com severa atenção, sem mexer um músculo do
rosto.
- Está vendo que minhas perguntas sobre os faladores não eram uma simples curiosidade, mas uma coisa muito mais séria. Eles são muito importantes para mim. Talvez
tanto como para os machiguengas, Martin. - Ele permanecia mudo e quieto, com uma luzinha vigilante no fundo das pupilas. - Por que não quis me contar nada sobre
eles? A professora de Nuevo Mundo também não quis me dizer uma única palavra. Por que tanto mistério com os faladores, Martin?
Garantiu-me que não compreendia o que estava lhe dizendo. Que era isso de "faladores"? Nunca tinha ouvido falar deles, nem neste povoado nem em nenhum outro da comunidade.
Talvez existissem em outras tribos, mas não entre os machiguengas. Estava me dizendo isto, quando os Schneil entraram. Não tínhamos tomado toda essa ervacidreira,
que era a mais perfumada da Amazônia, não? Martin mudou de assunto e achei prudente não insistir.
Mas, uma hora mais tarde, quando nos despedimos de Martin, e, logo após armar minha rede e o mosquiteiro na cabana que nos tinham emprestado, saí com os Schneil
para tomar o fresco da noite, passeando pelo descampado cercado pelas vivendas de Nueva Luz, o assunto voltou a meus lábios outra vez, irresistível.
- Nas poucas horas que estive entre os machiguengas não pude entender muitas coisas - disse a eles. - Mas, pelo menos uma, sim, eu entendi. Uma coisa importante.
O céu era um bosque de estrelas e uma mancha de nuvens ocultava a lua, que só se pressentia por um difuso resplendor. Em Nueva Luz tinham acendido uma fogueira numa
das extremidades da aldeia, e, em seu contorno, insinuavam-se de repente fugitivas silhuetas. Todas as cabanas estavam às escuras, com exceção daquela que nos tinham
emprestado, iluminada, a cinqüenta metros de nós, com a luz verdosa de uma lâmpada portátil. Os Schneil esperavam que eu continuasse. Caminhávamos devagar,
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sobre areia macia e grama alta. Apesar das botas, começara a sentir, nos tornozelos e peitos dos pés, as picadas dos mosquitos-pólvora.
- E qual é? - perguntou, afinal, a senhora Schneil.
- Que tudo isto é muito relativo - prossegui, desorientado. - Quero dizer, isso de batizar este povoado com o nome de Nueva Luz e o cacique com o de Martin. Isto
de escrever o Novo Testamento em machiguenga, isto de enviar os nativos às escolas bíblicas e transformálos em pastores. A transição da vida nômade à sedentária.
A ocidentalização e a cristianização aceleradas. A suposta modernização. Compreendi que é pura aparência. Por mais que hajam começado a comerciar, a se servirem
do dinheiro, o peso de sua própria tradição é muito mais forte neles que tudo isso.
Calei-me. Eu os estava ofendendo? Eu mesmo não sabia que conclusão tirar de todo esse discurso arrebatado.
- Sim, é claro - tossiu Edwin Schneil, um pouco confuso. - Naturalmente. Centenas de anos de crenças, costumes, não desaparecem do dia para a noite. Levará tempo.
O importante é que começaram a mudar. Os machiguengas de agora já não são o que eram quando chegamos aqui, eu lhe garanto.
- Percebi que há um ponto para eles ainda intocável
- interrompi-o. - Tanto para a professora de Nuevo Mundo como, aqui, para Martin, eu perguntei sobre os faladores. E a reação de ambos foi idêntica: negar que existissem,
aparentar não saber sequer do que lhes falava. Isto quer dizer que, mesmo nos machiguengas mais ocidentalizados, como a professora e Martin, resta um reduto de lealdade
em relação às crenças próprias. Certos tabus aos quais não estão dispostos a renunciar. Por isso eles os mantêm rigorosamente ocultos dos forasteiros.
- Os faladores? - perguntou Edwin Schneil. A surpresa dele parecia genuína.
Houve uma longa pausa, durante a qual o zumbir dos invisíveis insetos noturnos pareceu tornar-se ensurdecedor. Iria ele me perguntar quem eram os faladores? Também
os Schneil me diriam, como a professora e o

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cacique-pastor, que nunca tinham ouvido falar deles? Pensei que, de verdade, os faladores não existiam: eu os tinha inventado e localizado em falsas recordações
para lhes dar realidade.
- Ah, os faladores! - exclamou a senhora Schneil, por fim. E crepitou esse vocábulo ou frase como folhas pisoteadas. Pareceu que vinha até mim, atravessando o
tempo, do bangalô à margem do lago de Yarina onde o tinha ouvido pela primeira vez quando era pouco mais que um adolescente.
- Ah - repetiu Edwin Schneil, arremedando a crepitação, uma, duas vezes, com um ressaibo de espanto. Os faladores. Os speakers. Sim, claro, é uma tradução possível.
- Mas, como é que sabe deles? - disse a senhora Schneil, virando um pouco a cabeça até onde eu estava.
- Pela senhora, por vocês dois - murmurei. Adivinhei que, na penumbra, abriam muitos os olhos e
trocavam um olhar entre eles, sem entender. Revelei-lhes então que, desde aquela noite, em seu bangalô, na margem do lago de Yarina, em que me haviam contado sobre
eles, os faladores machiguengas tinham vivido comigo, intrigando-me, intranqüilizando-me, e que desde então mil vezes tentei imaginá-los em suas peregrinações através
da floresta, recolhendo e levando histórias, contos, mexericos, invenções, de uma ilhota machiguenga a outra, nesse mar amazônico onde flutuavam, à deriva da adversidade.
Disse-lhes que, por uma razão difícil de explicar, a existência desses faladores, saber o que faziam e a função que isso tinha na vida de seu povo, tinha sido nesses
vinte e três anos um grande estímulo para meu próprio trabalho, uma fonte de inspiração e um exemplo que teria gostado de imitar. Senti que falava com exaltação
e me calei.
Sem que o tivéssemos decidido, tínhamos parado junto a uma pilha de troncos e galhos, amontoados no centro da clareira como que para acender uma fogueira. Nós nos
tínhamos sentado ou recostado nessa lenha. Agora se via Kashiri, em quarto crescente, de um amarelo-alaranjado, rodeada de seu vasto harém de vaga-lumes faiscantes.
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Além dos mosquitos-pólvora havia muitos pernilongos e tínhamos que nos dar tapas todo o tempo para afastá-los de nossos rostos.
- Muito bem, que curioso, quem poderia imaginar que se lembrasse disso, e, sobretudo, que chegasse a ter tanta significação em sua vida? - disse afinal, para dizer
alguma coisa, Edwin Schneil. Parecia perplexo e um pouco desconfortável. - Eu nem me lembrava que aquela vez tínhamos falado do tema dos contadores, não,
dos faladores, verdade? Que curioso, que curioso.
- Não me surpreende nada que Martin e a professora de Nuevo Mundo não tenham querido dizer-lhe nada sobre eles - interveio, quase em seguida, a senhora Schneil.
- É um tema que nenhum machiguenga gosta de tratar. Um assunto muito privado, muito secreto. Nem conosco, que os conhecemos há tanto tempo, que vimos nascer muitíssimos
deles. Eu não o entendo. Porque eles contam tudo, suas crenças, seus ritos com o ayahuasca, seus bruxos. Não têm reservas sobre nada. Mas sobre os faladores, sim.
É o único tema que evitam sempre. Edwin e eu temos nos perguntado muitas vezes por que esse tabu.
- Sim, é uma coisa estranha - concordou Edwin Schneil. - Não se compreende, porque eles são muito comunicativos e jamais hesitam em responder a qualquer pergunta.
Os melhores informantes do mundo, pergunte a qualquer antropólogo que tenha estado por aqui. Talvez não gostem de falar deles, nem queiram que a gente os conheça,
porque os faladores são depositários dos segredos da família. Sabem todas as intimidades dos machiguengas. Como é mesmo aquele ditado? Roupa suja só deve ser lavada
em casa, não é isso? Talvez o tabu sobre os faladores corresponda a um sentimento parecido.
No escuro, a senhora Schneil riu.
- Muito bem, é uma teoria que a mim não convence
- disse. - Porque os machiguengas não são nada reservados a respeito de coisas íntimas. Se soubesse as vezes que me deixaram atônita e com o rosto ardendo pelo
que me contavam...

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- Mas, em todo caso, garanto-lhe que se engana se acredita que é um tabu religioso - afirmou Edwin Schneil. - Não é. Os faladores não são bruxos nem
sacerdotes, como o seripigari ou o machikanari. São simplesmente isso, faladores.
- Eu sei - disse a ele. - Já me explicou na primeira vez. Mas é isso, precisamente, o que me comove. Que os machiguengas considerem tão importantes, a ponto de
guardá-los em segredo, uns simples contadores de histórias.
De quando em quando, uma sombra silente passava junto a nós, crepitava brevemente, os Schneil crepitavam uma resposta que devia eqüivaler a um "boa noite", e a sombra
desaparecia na treva. Nenhum ruído vinha das cabanas. Dormia já todo o povoado?
- Mas em todos estes anos não ouviram nunca a um falador? - perguntei-lhes.
- Eu não tive essa sorte - disse a senhora Schneil.
- Nunca tive esta oportunidade até agora. Mas Edwin, sim.
- E duas vezes - riu ele. - Ainda que, em um quarto de século, não seja muito, não é mesmo? Espero que isto que lhe digo não o vá decepcionar, mas acho que não gostaria
de repetir a experiência.
A primeira vez tinha sido por pura casualidade, e acontecera há pelo menos dez anos. Os Schneil estavam há alguns meses vivendo em um pequeno assentamento machiguenga
no rio Tikompinía, quando, certa manhã, lá deixando a esposa, Edwin foi fazer uma visita a outra família da comunidade, a algumas horas de canoa, rio acima. Viajou
acompanhado de um garotinho, que o ajudava a remar. Quando chegaram, viram que, em vez dos cinco ou seis machiguengas que ali viviam, e a quem Edwin Schneil conhecia,
havia pelo menos uns vinte, alguns vindos de casarios distantes. Estavam acocorados em meio-círculo, velhos e crianças, homens e mulheres, em torno de um homem que
perorava, sentado e com as pernas cruzadas, encarando-os. Era um falador. Ninguém se opôs a que Ed-
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win Schneil e o menino se sentassem também para escutar. E o falador não interrompeu seu monólogo enquanto eles se incorporavam ao auditório.
- Era bastante velho e falava tão rápido que tive trabalho para acompanhá-lo. Já devia estar falando há tempo. Não parecia cansado. O espetáculo durou várias horas
ainda. De quando em quando, passavam-lhe uma cabaça de masato para que limpasse a garganta com um golinho. Não, nunca tinha visto antes esse falador. Muito velho,
à primeira vista, embora, se saiba que, na selva, se envelhece rápido. Velho, entre os machiguengas, pode significar trinta anos. Era um homem baixo, robusto, muito
expressivo. Eu, você, qualquer um que fale esse tempo todo, ficaria rouco e extenuado. Mas ele, não. Falava sem pá-, rar, com muita energia. Enfim, era seu ofício
e sem dúvida ele o fazia bem.
De que falava? Bem, impossível lembrar. Que confusão! De tudo um pouco, das coisas que lhe vinham à cabeça. Do que tinha feito na véspera e dos quatro mundos do
cosmos machiguenga, de suas viagens, de ervas mágicas, das pessoas que tinha conhecido e dos deuses, deusinhos e seres fabulosos do panteão da tribo. Dos animais
que tinha visto e da geografia celeste, um labirinto de rios cujos nomes não há quem recorde. E Edwin Schneil tinha trabalho para acompanhar, concentrado, aquela
torrente de palavras em que se pulava de uma colheita de mandiocas aos exércitos de demônios de Kientibakori, o espírito do mal, e dali aos partos, matrimônios e
mortes nas famílias ou as iniqüidades do tempo da sangria de árvores, como chamavam eles a época do caucho. Muito cedo, Edwin Schneil ficou mais interessado que
no falador, na atenção fascinada, estática, com que os machiguengas o escutavam, comemorando suas anedotas com grandes gargalhadas ou entristecendo-se com ele.
As pupilas ávidas, boquiabertos, as cabeças erguidas, não perdiam uma pau sã, uma inflexão, daquilo que o homem dizia.
Eu escutava o lingüista como eles àquele homem. Sim. existiam, e se pareciam aos dos maus sonhos.
- Na verdade, lembro-me pouco do que contava -
- disse Edwin Schneil. - Dou-lhe só uns exemplos. Que misturada! Lembro-me, sim, que contou a cerimônia de iniciação de um jovem chamán, com o ayahuasca, sob a
direção de um seripigari. Relatou as visões que teve. Estranhas, incoerentes, como certos poemas modernos. Falou, também, das propriedades de um passarinho, o chobíburiti;
se se enterram os ossinhos da asa dele, moídos, no chão da casa, está garantida a concórdia familiar.
- Usamos a receita e, de fato, nos deu tão bons resultados - brincou a senhora Schneil. - Você não acha, Edwin?
Ele riu.
- Eles os entretêm, são seus filmes, sua televisão acrescentou, agora sério, depois de breve pausa. - Seus livros, seus circos, essas diversões dos civilizados.
Para eles, a diversão é uma só no mundo. Os faladores não são nada mais que isso.
- Nada menos que isso - eu o corrigi, suavemente.
- Sim? - disse ele, desconcertado. - Pois bem, sim. Mas, desculpe-me se insisto, não acredito que haja nada de religioso atrás disso. E é por isso que chama a atenção
todo esse mistério, o segredo com que os cercam.
- Cerca-se de mistério o que para uma pessoa é importante - ocorreu-me dizer.
- Sobre isso não há a menor dúvida - afirmou a senhora Schneil. - Para eles, os faladores são muito importantes. Mas não descobrimos por quê.
Passou outra sombra furtiva, crepitou e os Schneil crepitaram. Perguntei a Edwin se tinha conversado, naquela vez, com o velho falador.
- Mal tive tempo. Na verdade, quando terminou de falar, já estava esgotado, me doíam todos os ossos. Por isso, não me demorei a dormir. Veja bem, quatro ou cinco
horas sentado, sem mudar de posição, depois de remar contra a corrente quase o dia inteiro. E ouvindo esse estridor de histórias. Não tinha coragem para mais nada.
Dormi e, quando acordei, o falador já tinha ido embora.
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Como os machiguengas não gostam de falar do assunto, não voltei a saber dele.
Aí estava. Na rumorosa escuridão de Nueva Luz que me envolvia, eu o vi: a pele cobreada e verdosa, encolhida pelos anos em pregas incontáveis; os pômulos, o nariz,
a testa engalanada com riscos e círculos cuja função era protegê-lo das garras e dos dentes da fera, das inclemências dos elementos e da magia e dos dardos do inimigo;
baixinho, pernas curtas e marcadas, um pequeno pano na cintura, e, sem dúvida, um arco e um bolsão cheio de flechas na mão. Aí estava: andando entre o matagal e
os troncos, semi-invisível na espessa vegetação, andando, andando, depois de haver falado dez horas, até seu próximo auditório, para continuar falando. Quantos
anos fazia isso? Como tinha começado? Era aquele um mister que se herdava? Uma pessoa podia escolhê-lo? Era imposto pelos demais?
A voz da senhora Schneil apagou a imagem:
- Conte-lhe do outro falador - disse. - Aquele que foi tão agressivo. O albino. Vai interessá-lo, sem dúvida.
- Bem, não sei se era realmente um albino - riu, no escuro, Edwin Schneil. - Nós o chamávamos o gringo, entre nós.
Daquela vez não tinha sido por acaso. Edwin Schneil estava em um assentamento do rio Timpía, com uma família de antigos conhecidos, quando surpreendentemente
chegaram ali outras famílias das proximidades, em estado de grande excitação. Edwin notou cochiches; apontavam-no, afastavam-se para discutir. Adivinhou o motivo
da apreensão deles. Disse-lhes que não se preocupassem, iria embora imediatamente. Houve um momentâneo consenso apesar de tudo, mas, a insistência dos donos da casa,
indicaram-lhe que podia permanecer. Quando, porém, chegou aquele que esperavam, surgiu uma nova discussão, áspera, longa, porque o falador exigiu de maus modos,
gesticulando, que o forasteiro fosse embora, enquanto a família do lugar empenhava-se em que ficasse. Edwin Schneil optou por se despedir de seus hóspedes, dizendolhes
que não queria ser a causa de uma briga. Embrulhou

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suas coisas e saiu. Ia a caminho de outro assentamento, por um atalho, quando os machiguengas onde estivera alojado vieram buscá-lo. Podia regressar, podia ficar.
Tinham convencido o falador.
- Na verdade, não estavam convencidos, uns e outros, de que eu ficasse e menos ainda o falador - acrescentou. - Este não achava nenhuma graça em minha presença ali.
Fez com que eu sentisse sua hostilidade não me olhando uma única vez. Esse é o costume machiguenga: tornar uma pessoa invisível com seu ódio. Mas essa família
do Timpía e nós tínhamos uma relação estreita, um parentesco espiritual, nós nos tratávamos de "pais" e "filhos"...
- É muito forte a lei de hospitalidade entre os machiguengas?
- A lei do parentesco, essa sim - disse a senhora Schneil. - Se uns "parentes" vão se hospedar na casa de outros, são tratados como príncipes. Não acontece com
freqüência, pelas grandes distâncias que os separam. Por isso fizeram Edwin voltar e se resignaram a que ouvisse o falador. Não queriam ofender um "parente".
- Melhor que tivessem sido menos hospitaleiros e tivessem me deixado partir - suspirou Edwin Schneil. Ainda me doem os ossos, e, sobretudo, a boca, de tanto bocejar,
recordando aquela noite.
O falador começara seus relatos ao entardecer, antes que o sol se ocultasse, e falou todo o resto da noite, sem interrupção. Quando se calou, a luz acendia as copas
das árvores. E pela metade da manhã, Edwin Schneil tinha as pernas com tais cãibras, tantas pontadas pelo corpo, que precisaram ajudá-lo para se levantar, dar alguns
passos, aprender de novo a andar.
- Nunca senti tão grande mal-estar em minha vida murmurou. - Não suportava mais a fadiga, aquele desconforto. Toda uma noite resistindo ao sono, à dor dos músculos.
Se me tivesse levantado, eles teriam se ofendido muitíssimo. Só na primeira hora, ou talvez nas duas primeiras, fiquei acompanhando as histórias. Depois, não fiz
outra coisa que lutar comigo mesmo para não dormir.
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Mas, apesar dos meus esforços, todo o tempo minha cabeça andou de um lado a outro, como o badalo de um sino.
Riu, baixinho, mergulhado em suas lembranças.
- Edwin ainda tem pesadelos, lembrando daquela noite acordada, contendo os bocejos e cocando as pernas
- riu a senhora Schneil.
- E o falador ? - perguntei.
- Tinha um grande sinal - disse Edwin Schneil. Fez uma pausa, procurando suas lembranças ou as palavras para descrevê-las. - E uns cabelos mais vermelhos que os
meus. Um tipo estranho. O que os machiguengas chamam um serigórompi. Quer dizer um excêntrico, alguém diferente do normal. Por esses cabelos cor de cenoura nós q
chamamos o albino, o gringo, entre nós.
Nos meus tornozelos, os mosquitos-pólvora estavam fazendo estragos. Sentia seus aguilhões e me parecia vêlos, afundando-se na pele, que agora se incharia em pequenos
abscessos de intolerável ardência: era o preço que tinha que pagar cada vez que vinha à selva. A Amazônia não deixara nunca de cobrá-lo de mim.
- Um grande sinal? - balbuciei, com dificuldade. Quer dizer, a utal Como a daquele menino que vimos esta manhã em Nuevo Mundo?
- Não, não, um sinal, um grande sinal escuro - interrompeu-me Edwin Schneil, levantando a mão. - Cobria-lhe todo o lado direito da cara. Uma aparência impressionante,
eu lhe garanto. Não tinha visto um homem com um sinal assim, nunca, nem entre os machiguengas nem em outro lugar. E não voltei a vê-lo mais, também.
Senti, também, as picadas dos pernilongos em todas as partes descobertas do corpo: a cara, o pescoço, os braços, as mãos. As nuvens que a ocultavam tinham andado
e, agora, Kashiri estava ali, incompleta e lúcida, olhandonos. Um calafrio percorreu meu corpo, da cabeça aos pés.
- Tinha os cabelos vermelhos? - murmurei, muito lentamente. Minha boca ficara seca e minhas mãos, em compensação, suavam.
- Mais que eu - riu ele. - Um verdadeiro gringo, eu juro. Talvez um albino, afinal de contas. Mas não tive muito tempo para observá-lo. Já lhe disse em que estado
fiquei, depois daquela sessão de histórias. Como que anestesiado. E quando acordei, ele já tinha ido embora, naturalmente. Para não ter que falar comigo nem me ver
mais
a cara.
- Que idade podia ter ele? - articulei, com um grande cansaço, como se fosse eu que houvesse falado toda a noite.
Edwin encolheu os ombros.
- Quem sabe? - suspirou. - Já terá notado como é difícil adivinhar a idade deles. Eles não sabem, não a calculam como nós, e, além disso, todos alcançam muito depressa
a idade média. A idade machiguenga, vamos dizer. Mas mais jovem que eu, certamente. Como você, talvez, ou, quem sabe, menos.
Tossi, sem vontade, duas ou três vezes, dissimulando minha ansiedade. E senti, de repente, uma vontade feroz, insuportável, de fumar. Como se todos os poros do corpo
tivessem se aberto de repente exigindo aspirar uma, mil tragadas de fumaça. Fazia cinco anos que tinha fumado aquele que pensei seria meu último cigarro, estava
certo de me haver livrado para sempre do fumo, fazia já bastante que o simples cheiro do cigarro me irritava, e eis aqui que, de repente, na noite de Nueva Luz,
de não sei que profundidades misteriosas, surgia, avassalador, urgentíssimo, o desejo de fumar.
- Falava bem o machiguenga? - eu me ouvi dizer,
baixinho.
- Bem? - perguntou Edwin Schneil. - bom, falava, falava sem parar, sem pausas, sem pontos. - Riu, exagerando. - Como falam os faladores. Contando todas as coisas
havidas e por haver. Era o que era, então.
- Sim - disse eu. - Quero dizer, o machiguenga, ele o falava bem? Não podia ser...?
- Sim? - disse Edwin Schneil.
- Nada - disse eu. - Uma bobagem. Nada, nada.
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Ainda, como em sonhos, pensando estar muito atento às picadas dos mosquitos-pólvora e dos pernilongos e à vontade de fumar, devo ter perguntado a Edwin Schneil,
com uma estranha dor nas mandíbulas e na língua, como se as tivesse extenuadas de tanto usá-las, quanto tempo fazia que aconteceu aquilo - "Oh, deve fazer uns três
anos e meio", respondeu - e se tornara a ouvi-lo, ver ou saber dele, e tê-lo escutado responder que não às três perguntas: eu já o sabia, era um assunto sobre o
qual os machiguengas não se mostravam loquazes.
Quando me despedi dos Schneil - dormiam na casa de Martin, eles - e fui à cabana onde estava minha rede, acordei Lucho Llosa, para pedir-lhe um cigarro. "Desde quando
você fuma?", estranhou ele, entregando-me um, com mãos lentas de sono.
Não o acendi. Fiquei com ele entre os dedos, nos lábios, imitando os gestos de fumar, no curso dessa longa noite, enquanto me balançava suavemente na rede, ouvia
a respiração pausada de Lucho, de Alejandro e dos pilotos, ouvia estridular a floresta e sentia passar, um por um, lentos, solenes, inverossímeis, impregnados de
pasmo, os segundos.
Retornamos a Yarinacocha muito cedo. Tivemos que fazer uma aterrissagem imprevista, na metade do vôo, porque um temporal nos surpreendeu. No pequeno povoado campa
onde nos refugiamos, às margens do Urubamba, havia um missionário norte-americano, que parecia um daqueles personagens faulknerianos de uma só idéia, teimosia intrépida
e alarmante heroísmo. Vivia naquelas solidões há anos, com a mulher e vários filhos pequenos, e, na memória, vejo-o ainda, sob o aguaceiro torrencial, dirigindo,
com enérgicos movimentos dos braços, uns hinos que ele mesmo, para dar o exemplo, entoava gritando, sob um telhado que as trombas-d'água ameaçavam arrancar a qualquer
momento. Os vinte campas mexiam de leve os lábios, dando a impressão de que não emitiam som algum, mas olhavam para ele fixamente, com a atenção e o encantamento
com que certamente os machiguengas olhavam para seus faladores.

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Quando recomeçamos o vôo, os Schneil perguntaram se não me sentia bem. Respondi que estava muito bem, embora um pouco cansado, pois tinha dormido pouco. Em Yarinacocha
estivemos apenas os minutos indispensáveis para entrar em um jipe que nos levasse a Pucallpa, a fim de alcançar o vôo da Faucett para Lima. No avião, Lucho me perguntou:
"Que cara é essa? Que foi que saiu errado desta vez?" Estive a ponto de lhe revelar por que eu andava mudo e abobalhado, mas logo que abri a boca compreendi que
não poderia. Não cabia numa história; era demasiado irreal e literário para ser verossímil e demasiado sério para brincar como se se tratasse de um simples acontecimento.
Agora sabia a razão do tabu. Sabia? Sim. Podia ser possível? Sim, podia. Por isso evitavam falar deles, por isso os haviam ocultado cuidadosamente dos antropólogos,
lingüistas, missionários dominicanos nos últimos vinte anos, por isso não apareciam nos trabalhos escritos dos etnólogos contemporâneos sobre os machiguengas. Não
protegiam a instituição, o falador em abstrato. Protegiam-no. A pedido dele mesmo, sem dúvida. Não despertar a curiosidade do viracocha sobre esse extraordinário
enxerto na tribo. E eles vinham fazendo como ele lhes pedira, há tantos anos, guarnecendo-o dentro de um tabu que foi se comunicando à instituição toda, ao falador
em abstrato. Se tinha sido assim, eles o respeitavam muito. Se era assim, para eles ele já era um deles.
Começamos a editar o programa naquela mesma meia-noite, na TV, depois de termos ido a nossas casas pá- . rã um banho, mudar de roupa, e, eu, a uma farmácia
em busca de pomadas e antialérgicos para as picadas dos i mosquitos-pólvora. Decidimos que o programa teria a | forma de um diário de viagem, onde eu iria
misturando comentários e lembranças com as entrevistas feitos em Yarinacocha e no Alto Urubamba. Como sempre, Moshé, enquanto via o material, brigava conosco por
não havermos feito essas imagens daquela outra maneira ou feito desta. Então, lembrei-me que ele também era judeu.
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- Como é que você se dá com o povo escolhido, aqui no Peru?
- Como a macaca, naturalmente - disse-me ele. Por quê? Você quer se circuncidar?
- Será que me faz um favor? Haveria um jeito de saber onde anda uma família da comunidade que se mudou para Israel?
- Vamos fazer uma "Torre de Babel" sobre os kibbutzim? - perguntou Lucho. - Então vamos ter que fazer outro sobre os refugiados palestinos. Mas, como; o programa
não termina na próxima semana?
- Os Zuratas. O pai, Dom Salomón, tinha uma lojinha em Brena. Eu era amigo do filho dele, Saul. Foram para Israel no início dos anos sessenta, parece. Se fosse possível
saber o endereço deles, seria um grande favor.
- Verei o que posso fazer - respondeu-me Moshé.
- Imagino que na comunidade há um registro dessas coisas.
O programa sobre o Instituto Lingüístico e os machiguengas saiu mais longo que o previsto. Quando o entregamos, advertiram-nos que naquele domingo havia um espaço
vendido, a hora determinada, de modo que se não o reduzíamos nós mesmos a uma hora certa, o operador o faria no momento de levá-lo ao ar, e de qualquer modo. Tivemos
que cortá-lo às pressas e de mau humor, pois o tempo era curto. Então já estávamos editando o último "La Torre de Babel", do domingo seguinte. Tínhamos combinado
que este programa seria uma antologia dos vinte e quatro anteriores. Mas, como sempre, tivemos que mudar de planos. Desde que iniciamos o programa, eu tinha tentado
convencer Doris Gibson a dar uma entrevista e nos ajudar a fazer uma nota sobre sua vida de fundadora e diretora de revistas, mulher de empresa, inimiga de ditaduras
e vítima delas - em uma célebre ocasião, esbofeteara os policiais que tinham ido requisitar números de Caretas - e sobretudo de mulher que, em uma sociedade então
muito mais machista e preconceituosa que a de agora, tinha sido capaz de abrir caminho e obter êxito em domínios que se pensavam monopólio do homem. Ao mesmo

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tempo, Doris tinha sido uma das mulheres mais belas de Lima, cortejada por milionários e musa de pintores e poetas célebres. A impetuosa Doris, que apesar de tudo
é muito tímida, negou-se a atender meu pedido, pois, dizia, a câmera a intimidava. Mas naquela nossa última semana mudou de opinião e mandou dizer-me que aceitava
aparecer no programa.
Entrevistei-a, então, e essa entrevista, junto com a antologia, encerrou a série "La Torre de Babel". Fiel a seu destino, o último programa, que Moshé, Lucho, Alejandro
e eu vimos em minha casa, à volta de uma mesa com pratos chineses e copos de cerveja gelada, fui vítima de um imponderável técnico. Por uma dessas misteriosas razões
- a sabotagem celeste - que eram o pão de cada dia na TV, no momento da transmissão uma inesperada música de jazz se fez presente e acompanhou, como fundo musical,
todos os episódios que Doris contava sobre a ditadura do General Odría, os seqüestres policiais de Caretas ou a pintura de Sérvulo Gutiérrez.
Quando terminou o programa e estávamos brindando por sua morte e não-ressurreição, o telefone tocou. Era Doris, para perguntar-me se não teria sido mais apropriado
que, em vez daqueles compassos de jazz um tanto insólitos, tivéssemos animado a entrevista dela com yaravíes arequipenhos* (ela é, entre outras coisas, uma arequipenha
fanática). Quando Lucho, Moshé e Alejandro acabaram de rir das explicações que eu tinha inventado para justificar a presença do jazz no programa, Moshé disse:
- A propósito, ia-me esquecendo. Já completei a investigação.
Tinha-se passado mais de uma semana e eu nem me lembrava mais, porque imaginava a resposta e me assustava um pouco que ele a confirmasse.
- Parece que não foram para Israel - disse. - De onde você teve essa informação?
*Yaravíes areqiiipenos, de yaraví (do quéchua, cantar doce e melancólico, de origem indígena (Peru, Equador, Bolívia); e de Arequipa, no Peru. (N. do T.)
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- Os Zuratas? - perguntei-lhe, sabendo muito bem do que falava.
- Pelo menos, Dom Salomón Zuratas não foi. Morreu aqui. Está enterrado no cemitério judeu de Lima, o da Avenida Colonial. - Moshé tirou um papelzinho do bolso e
leu. - A 23 de outubro de 1960. Foi sepultado nesse dia, se você precisar de mais dados. Meu avô o conhecia e esteve no enterro dele. A respeito do filho, seu amigo,
talvez ele tivesse ido a Israel, mas não pude saber nada. Todos os que perguntei, não sabem de nada.
Mas eu sim, pensei. Eu sei tudo.
- Tinha uma grande mancha na cara? - perguntou Moshé. - Meu avô se lembra até disso. Era chamado de fantasma da ópera?
- Um enorme. Nós o chamávamos de Mascarita.
A Luís Llosa Ureta, em seu silêncio, e aos kenkitsatatsirirfr-machiguengas.
VII
ACONTECEM coisas boas e acontecem coisas más. Uma coisa má é que se esteja perdendo a sabedoria. Antes, abundavam os seripigaris e se tinha dúvida sobre o que comer,
a maneira de curar o dano, as pedras que protegem contra Kientibakori e seus diabinhos, o homem que anda ia perguntar. Sempre havia algum seripigari perto. Fumando,
bebendo cozimento, pensando e conversando com o saankarite nos mundos de mais em cima, ele verificava a resposta. Agora há poucos e alguns não deveriam se chamar
seripigaris, pois, por acaso sabem dar conselhos? A sabedoria deles secou como raiz bichada, quem sabe. Isto está trazendo muita confusão. Assim dizem, por onde
vou, os homens que andam. Será que não nos movemos bastante?, dizendo. Teremos ficado, talvez, preguiçosos? Estaremos faltando com nossa obrigação, quem sabe.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
O seripigari mais sábio que eu conheci já se foi. Talvez terá voltado; talvez não. Vivia do outro lado do Gran Pongo, aí pelo rio Kompiroshiato. Tasurinchi era o
nome dele. Não havia segredos para ele neste mundo nem nos outros. Sabia diferenciar os gusanos que a gente pode comer pela cor de seus anéis e sua maneira de se
arrastar. Olhava-os assim, enrugando os olhos, com seu olhar profundo. Um bom tempo ele os olhava. E, então, sabia. Tudo que sei de gusanos soube por ele. O que
se cria no ubá, chakokieni, é bom, e mau o que vive na lupuna. bom, o dos troncos podres, shigopi, e o dos ramos da mandioca. Malíssimo o que se aninha na carapaça
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da tartaruga. O melhor e o mais saboroso, o do bagaço da mandioca e do milho esmagados para fazer masato. Esse gusano, kororo, adoça a boca, limpa o estômago, tira
a fome
e faz dormir sem inquietações. Em compensação, o do cadáver do jacaré encalhado à margem do lago, abre feridas no corpo e provoca as visões de uma mareada ruim.
Tasurinchi, o do Kompiroshiato, melhorava a vida das pessoas. Tinha receitas de tudo e para tudo, é. Ele me ensinou muitas. Agora me lembro desta. Aquele que morre
picado de víbora deve ser queimado depressa; se não, o cadáver dele criará répteis e a floresta à volta fervilhará de animais venenosos. E desta outra. Não basta
queimar a casa do que se vai, deve-se fazê-lo de costas. Olhar para as chamas traz desgraça. Falar com aquele seripigari dava medo. A gente via o muito que não
sabia. Da ignorância seus perigos, talvez. "Como aprendeu tantas coisas?", perguntava-lhe eu, dizendo: "Parece que você teria vivido desde antes que começássemos
a andar e teria visto tudo e provado tudo."
"O importante é não impacientar-se e deixar que o que tem que acontecer, aconteça, ele me respondia. Se o homem vive tranqüilo, sem se impacientar, tem tempo de
refletir e recordar", dizendo. Assim encontrará seu destino, talvez. Viverá contente, quem sabe. O aprendido, ele não esquecerá. Se se impacienta, adiantando-se
ao tempo, o mundo se perturba, parece. E a alma cai em uma teia. Isso é a confusão. O pior, dizem. Neste mundo e na alma do homem que anda. Então não sabe o que
fazer, para onde ir. Não sabe defender-se, também; o que farei? O que hei de fazer? dizendo. Então os diabos e os diabinhos intrometem-se em sua vida e brincam com
ela. Como as Crianças fazendo as rãs pularem. Os erros são cometidos sempre pela confusão, parece.
"O que se deve fazer para não perder a serenidade, Tasurinchi?" "Comer o devido e respeitar as proibições, falador." Caso contrário, a qualquer um pode acontecer
o que aconteceu a Tasurinchi, aquela vez.
O que aconteceu a ele? ' 'r!
Isto aconteceu a ele. Isso foi antes. ;;;,;'

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Era um grande caçador. Sabia o tamanho da armadilha para o javali, o nó de corda para o paujil. Sabia dissimular a jaula para que entrasse a capivara. Mas sabia,
principalmente, manejar o arco. As flechas dele acertavam no alvo na primeira, sempre.
Um dia que saíra de caça, depois de se alimentar e se pintar como devia, sentiu que as folhas se mexiam a pouca distância. Pressentiu uma forma e se levantou - um
animal grande! dizendo. Aproximava-se devagar" desprevenido. Sem verificar o que era, rapidamente, atirou a flecha. Correu para ver. Ali estava, morto. O que tinha
caído? Um veado. Assustou-se muito, naturalmente. Agora lhe aconteceria algum dano. O que acontece a quem mata um animal proibido? Não havia nenhum seripigari perto
para perguntar. Seu corpo se encheria de bolhas? Seria atormentado por dores horríveis? Os kamagarinis lhe arrancariam uma alma essa noite e a levariam para o alto
de uma árvore para que os abutres a bicassem? Passaram muitas luas e nada aconteceu a ele. Então, Tasurinchi se envaideceria. "Isso de que não se deve matar veados
é engano", parentes dele ouviram-lhe dizer, "conversa fiada de medrosos, e só". "Como se atreve a dizer isso?", brigavam com ele, olhando-o pelos lados, pelo alto
e por baixo, assustados. "Eu matei um e me sinto tranqüilo e feliz", respondia-lhes.
Dizendo, dizendo, Tasurinchi passou a fazer o que dizia. Começou a caçar veados. Seguia-lhes o rastro até a collpa onde iam lamber terra salobre. Seguia-os até o
remanso onde se reuniam para beber. Procurava as covas onde as fêmeas iam pari-los. Metia-se em um esconderijo e, vendo o veado, flechava-o. Eles agonizavam olhando-o
com seus grandes olhos tristes, como que lhe perguntando: "o que foi que você me fez?" Então ele os punha sobre o ombro. Contente, talvez. Sem se importar com
as manchas do sangue do animal que havia caçado. Nada mais o importaria, agora. Nada temeria. Levava-o para casa e ordenava à mulher: "Cozinha-o. Como a sachavaca,
igual", dizendo-lhe. Ela o obedecia tremendo de medo. Às vezes, tentava preveni-lo. "Esta comida vai nos
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trazer danos", choramingando. "A você e a mim e a todos, talvez. É como se você comesse seus filhos e suas mães, então, Tasurinchi. Somos chonchoites, por acaso?
Quando o machiguenga comeu carne humana?" Ele zombava dela. Engasgando-se com os nacos de carne, mastigando, dizia: "Se os veados são gente transformada, os chonchoites
têm razão. É alimento, é saboroso. Olhe só o banquete que me dou, olhe como gozo com esta comida." E soltava muitos peidos. Na floresta, Kientibakori bebia masato,
dançando na festa. Os peidos dele pareciam trovões; o arroto, o rugido do jaguar.
E, efetivamente, apesar dos veados que flechava e comia, nada acontecia a Tasurinchi. Algumas famílias assustavam-se; outras, alertadas pelo exemplo dele, começaram
a comer carne proibida. O mundo se tornou confuso, então.
Um dia, Tasurinchi encontrou um rastro na floresta. Ficou contentíssimo. Era grande, podia segui-lo sem dificuldade e a experiência indicou-lhe que era uma manada
de veados. Percorreu-a durante muitas luas, iludido, o coração batendo forte. "Quantos caçarei?", sonhava. "Quem sabe tantos quantas flechas levo. E eu vou arrastá-los
um por um até minha casa, e lá vou cortá-los, vou salgá-los e teremos comida para muito tempo."
O rastro terminava em um pequeno lago de águas escuras; a um canto, caía uma cascata meio oculta pelos galhos e folhas das árvores. A vegetação abafava o ruído da
água e o lugar não parecia deste mundo mas do Inkite. Tão aprazível, talvez. Aqui vinha a manada para beber. Aqui se reuniriam os veados para comer os despojos do
dia. Aqui dormiriam, aquecendo-se uns contra os outros. Excitado com seu achado, Tasurinchi examinou os arredores. Ali estava, aquela era a melhor árvore. Lá teria
uma boa visão, dali expediria suas flechas. Subiu, fez seu esconderijo com ramos e folhas. Quietinho, quietinho, como se suas almas tivessem escorrido e seu corpo
fosse um pelego vazio, esperou.
Não muito tempo. Pouco depois, seu fino ouvido troc troc de grande caçador percebeu, longe, o tambor das pa-

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tas do veado na floresta: troc troc troc. Logo o viu aparecer: um veado alto, arrogante, e seu olhar triste de homem que foi. Brilharam os olhos de Tasurinchi, então.
Seus lábios, quem sabe, teriam se umedecido, "que macio, que saboroso", pensando. Apontou e disparou. Mas a flecha passou silvando junto ao veado, como que se desviando
para não tocá-lo, e foi perder-se no fundo da floresta. Quantas vezes pode morrer um homem? Muitas, parece. Aquele veado não morreu. Nem se espantou. O que é que
estava acontecendo? Em vez de fugir, dispôs-se a beber. Esticando o pescoço até a beira do lago, metendo e tirando o focinho da água, estalando a língua, bebia shh
shh. Shh, shh, contente. Como se não houvesse sentido o perigo. Tranqüilo. Seria surdo, talvez? Seria um veado >em olfato? Já então Tasurinchi estava com a segunda
flecha pronta. Troc, troc. Aí descobriu que outro veado chegava, abrindo os galhos, mexendo as folhas. Foi esse colocar-se junto ao primeiro e se pôs a beber. Contentes
pareciam os dois, tomando água. Shh shh shh. Tasurinchi arremessou a flecha. Também desta vez não acertou. O que é que estava acontecendo? Os dois veados continuavam
bebendo, sem se assustarem, sem fugir. Então, o que é que está acontecendo a você, Tasurinchi? A mão estará tremendo? Terá perdido a vista? Não saberá mais calcular
a distância? O que faria? Hesitava, incrédulo. O mundo tornara-se treva para ele. E ele assim esteve, disparando. Disparou todas as flechas que tinha. Troc, troc.
Troc, troc. Os veados continuavam chegando. Mais e mais, tantos, muitíssimos. Nos ouvidos de Tasurinchi, os tambores de seus cascos ressoavam sempre. Troc, troc.
Não pareciam vir deste mundo mas do debaixo ou do de cima. Troc, troc. Então, compreenderia. Quem sabe. Eram eles ou você, Tasurinchi, os que tinham caído na armadilha?
Ali estavam os veados, tranqüilos e sem raiva. Bebendo, comendo, preguiçando, acasalando-se. Esfregando-se os pescoços, dando-se cabeçadas. Como se nada houvesse
acontecido nem fosse acontecer. Mas Tasurinchi sabia que eles sabiam que ele estava aí. Assim vingariam seus mortos? Fazendo-o sofrer com esta espera? Não, este
era
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só o começo. O que tinha que acontecer não aconteceria com o sol no Inkite, mas depois, à hora de Kashiri. O ressentido, o manchado. Escureceu. O céu encheu-se
de estrelas. Kashiri mandou sua luz pálida. Tasurinchi via faiscar nos olhos dos veados essa nostalgia de não ser mais homens, a tristeza de não andar. Os animais,
de repente, como que ouvindo uma ordem, começaram a se movimentar. Ao mesmo tempo, parece. Vinham todos até a árvore de Tasurinchi. Aí estavam a seus pés. Havia
muitíssimos. Uma floresta de veados, era. Um após o outro, de maneira ordenada, sem se impacientar, sem se estorvar, marravam a árvore. Primeiro como que brincando,
depois mais forte. Mais forte. Ele estava triste. "Assim vou cair", dizendo. Nunca poderia acreditar que, antes de ir, estaria igual a um macaco shimbillo agarrado
a um galho, tentando não afundar naquela escuridão de veados. Resistiu toda a noite, entretanto. Suando e gemendo ele resistiu, antes que se cansassem seus braços
e suas pernas. Ao amanhecer, extenuado, deixou-se escorregar. "Devo aceitar minha sorte", dizendo.
Agora é um veado ele também, como os outros. Por aí andará, assim, para cima e para baixo na floresta, troc troc. Fugindo do tigre, medroso da serpente. Troc troc.
Cuidando-se do puma e da flecha do caçador que, por ignorância ou maldade, mata e come seus irmãos.
Quando encontro um veado, lembro da história que ouvi do seripigari do rio Kompiroshiato. Mas, e se esse fosse Tasurinchi, o caçador? Quem poderia sabê-lo? Eu, pelo
menos, não saberia dizer se um veado foi ou não, antes, homem que anda. Eu me afasto, olhando-o. Talvez me reconheça; talvez, vendo-me, pensará: "Eu fui como ele."
Quem sabe.
Em uma mareada ruim, um machikanari do rio do arco-íris, o Yoguieto, transformou-se em tigre. Como foi que soube? Pela urgência que sentiu, de repente, de matar
veados e comê-los. "Cego de raiva fiquei", dizia. E, rugindo de fome, saiu correndo pela floresta, no rastro deles. Até que deu com um e o matou. Quando voltou
a ser machikanari, tinha restos de carne nos dentes e as unhas san-
grando de tanto usá-las. "Kientibakori deveria estar contente, então", dizia ele. Estaria, talvez.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Como o veado, cada animal da floresta terá sua história. O pequeno, o médio e o grande. O que voa, como o beija-flor. O que nada, como o boquichico. O que corre
sempre em manada, como a huangana. Todos foram antes uma coisa diferente do que são agora. A todos teria acontecido alguma coisa que se pode contar. Gostariam de
saber as histórias deles? Eu também. Muitas das que sei, ouvi do seripigari do Kompiroshiato. Se fosse por mim, ainda o estaria escutando, lá, como vocês aqui, agora.
Mas ele, um dia, me mandou embora de sua casa: "Até quando vai ficar aqui, Tasurinchi?", brigando comigo. "Tem que ir embora. Você é falador, eu seripigari, e agora,
tanto perguntar, tanto me fazer falar, está me fazendo ser o que você é. Gostaria de se tornar seripigari? Teria que nascer de novo, então. Passar por todas as provas.
Purificar-se. Ter muitas mareadas, boas e más, e, sobretudo, sofrer. Chegar à sabedoria é difícil. Você já é velho, não acredito que a alcançaria. Além disso, quem
sabe se será esse seu destino. Vá embora, vá andar. Fale, fale. Não mude a ordem do mundo, falador."
É verdade, eu sempre estava fazendo perguntas a ele. Sabia tudo e isso aumentava minha curiosidade. "Por que os homens que andam pintam o corpo com urucu?", perguntei-lhe
uma vez. "Por causa do moritoni", respondeu-me. "Desse passarinho, você quer dizer?" "Sim, desse mesmo." E, então, ele me fez pensar. Por que pensa que os machiguengas
evitam matar o moritoni, então? Por que, quando o encontram nas pastagens, procuram não pisá-lo? Por que, quando aparece na árvore e vê suas patinhas brancas, seu
peito negro, você se sente agradecido? Graças à planta do urucu e ao passarinho moritoni andamos, Tasurinchi. Sem ela, sem ele, os homens que andam teriam desaparecido.
Fervido, teriam, ardendo de bolhas, rebentando-lhes as borbulhas, então. Isso foi antes. O moritoni era, então, criança que anda. Uma de suas
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mães seria Inaenka. Sim, o dano que desmancha a carne era então mulher. O dano que queima a cara deixando-a cheia de buracos. Inaenka. Ela era esse dano e ela era
a mãe do moritoni também. Parecia uma mulher igual às outras, mas mancava. Todos os diabos mancam? Parece que sim. Dizem que Kientibakori também. A manqueira fazia
Inaenka padecer; vestia uma túnica longa, longuíssima, e nunca se via os pés dela. Não era fácil reconhecê-la, saber que não era mulher mas o que era.
Tasurinchi estava pescando à margem do rio. De repente, um súngaro enorme meteu-se na rede. Ele ficou contentíssimo. Poderia tirar uma gamela de óleo, talvez. Nisso
viu, à frente, sulcando as águas, uma canoa. Distinguiu uma mulher remando, e várias crianças. Um seripígari, que aspirava tabaco sentado na cabana de Tasurinchi,
ali mesmo adivinhou o perigo. "Não a chame", advertiuo. "Não está vendo que é Inaenka?" Mas já Tasurinchi, impaciente, tinha assobiado, já tinha feito o seu cumprimento.
As íanganas que impulsionavam a canoa se levantaram. Tasurinchi viu aproximar-se a embarcação da margem. A mulher saltou à praia, contente.
"Que lindo súngaro você pescou, Tasurinchi", aproximou-se dele, dizendo. Caminhava devagarinho e ele não notava a manqueira dela. "Ande, leve-o para casa, eu vou
cozinhá-lo. Para você, ora."
Tasurinchi obedeceu, vaidoso. Atirou o peixe ao ombro e tomou o caminho de sua cabana, ignorante de que tinha encontrado seu destino. Sabendo o que lhe aconteceria,
o seripigari olhava-o triste. Faltando uns passos para chegar, o súngaro escorregou do ombro, atraído por um kamagarini invisível. Tasurinchi viu que, tocando o
chão, o animal começava a perder a pele, como se lhe tivessem jogado água fervendo. Estava tão surpreso que não atinava a chamar o seripigari nem a se mexer. Isso
era o medo. Os dentes deles chocavam-se, talvez. Aturdia-o, impedia-o de perceber que a ele também começava a acontecer a mesma coisa que ao súngaro.
Só quando sentiu um ardor e cheirou a carne queimada, olhou seu corpo: estava se pelando ele também. Em alguns lugares, já podia ver

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seu interior sanguinolento. Caiu ao chão, aterrorizado, gritando. Esperneando e chorando estava Tasurinchi. Então, Inaenka aproximou-se dele e o olhou com sua verdadeira
cara, uma bolha de água fervendo. Molhou-o bem, de cima para baixo, gozando ao ver como Tasurinchi, assim como o súngaro, se pelava, fervia e morria com o dano.
Inaenka começou a dançar, contente. "Sou a dona da enfermidade que mata rápido", gritava, desafiando os homens. Aumentava muito a voz, para que toda a floresta o
soubesse. "Eu os matei e, agora, cozidos e preparados com urucu, vou comê-los", dizendo. Kientibakori e seus diabinhos dançavam também, alegres, empurrando-se e
se mordendo pela floresta. "Ehé, ehé, ela é Inaenka", cantando.
Só então percebeu a mulher com cara de bolha fervendo que ali estava também o seripigari. Olhava sereno o que acontecia, sem raiva, sem medo, aspirando o tabaco
pelo nariz. Espirrava, tranqüilo, como se ela não estivesse ali nem houvesse acontecido nada. Inaenka decidiu matálo. Aproximou-se dele e já ia espalhar um pouco
de água fervendo quando o seripigari, imperturbável, mostrou-lhe duas pedras brancas que dançavam penduradas no seu pescoço.
- Não pode me fazer nada enquanto eu tiver estas pedras", lembrou-lhe. "Elas me protegem de você e de todos os danos do mundo. Por acaso não sabe disso?"
"É verdade", respondeu Inaenka. "Esperarei aqui, a seu lado, que você durma. Então, tirarei estas pedras, jogarei no rio e molharei você à vontade. Nada o salvará.
Vai se pelar igual ao súngaro e sua pele rebentará em bolhas como a do Tasurinchi."
Assim sucederia, talvez. Por mais que lutasse contra o sono, o seripigari não poderia resistir. À noite, estonteado com a luz mentirosa de Kashiri, o manchado,
ele dormiu. Inaenka aproximou-se dele mancando. com muita delicadeza tirou-lhe as duas pedras e as largou à corrente. Então, já pôde salpicar-lhe água da grande
bolha que era sua cara e gozou vendo como o corpo do seripigari fervia,
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desmanchava-se em incontáveis bolhas e começava a pelar, a rebentar.
"Que bom banquete me darei agora", ouvia-se ela gritar, saltando e dançando. Os filhos, da canoa atracada na margem, viram as desgraças de Inaenka. Preocupados
estariam, quem sabe. Tristes, quem sabe.
Havia por ali perto um pé de urucu. Um dos filhos da mulher-dano notou que a plantinha estendia seus ramos e agitava suas folhas na direção dele. Queria dizer-lhe
alguma coisa, talvez? O menino aproximou-se dela e se abrigou sob o bafo ardente de seus frutos. "Eu sou Potsotiki", ouviu-a dizer com voz trêmula. "Inaenka, sua
mãe, acabará com o povo que anda se não fazemos alguma coisa." "Que podemos fazer?", entristeceu-se o menino. "Ela tem esse poder, ela é a enfermidade que mata
rápido." "Se quer ajudar-me a salvar os homens que andam, podemos. Se eles desaparecem, o sol cairá. Deixará de aquecer este mundo. Ou prefere que tudo seja treva
e os demônios de Kientibakori se apoderem de tudo?" "Eu a ajudarei, disse o menino. Que devo fazer?"
"Coma-me", ensinou-lhe a planta do urucu. "Mudará de cara e sua mãe não o reconhecerá. Você se aproximará dela e lhe dirá: "Conheço um lugar onde os imperfeitos
se tornam perfeitos; os monstros, homens. Lá, seus pés serão como os das outras mulheres." E, então, você a levará a este lugar." Agitando com sabedoria suas folhas
e ramos, fazendo dançarem alegremente seus frutos, Potsotiki explicou ao menino o rumo que devia seguir.
Inaenka, ocupada em despedaçar os restos dos que havia matado, vendo aparecer suas tripas, seu coração, não percebia o que tramavam. Uma vez que cortou os pedaços,
assou-os e os temperou como urucu, que lhe agradava muito. Por aí o menino já tinha comido a Potsotiki. Tornara-se um menino vermelho, vermelho terra, vermelho da
cor do urucu. Aproximou-se da mãe e esta não o reconheceu. "Quem é você?", perguntou-lhe. "Como se aproxima de mim sem tremer? Não sabe, por acaso, quem sou?"

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"Claro que sei", disso o menino-urucu. "Vim buscar você, porque conheço um lugar onde pode ser feliz. Basta que alguém pise essa terra e se banhe em seus rios e
o torto que tem se endireita. Então, todos os membros que perdeu voltam a crescer nele. Eu levarei você lá. Acabará essa manqueira. Será feliz, Inaenka. Venha, siga-me."
Falava com tanta segurança que Inaenka, maravilhada com aquele menino de cor estranha, que não a temia e lhe prometia o que mais ansiava - uns pés normais -, seguiu-o.
Fizeram uma viagem interminável. Atravessaram florestas, rios, lagos, pongos; subiram e desceram montes e de novo outras florestas. Choveu em cima deles muitas vezes.
O raio relampejou sobre suas cabeças e a tormenta roncou, ensurdecendo-os. Depois de um lamaçal fumegante, com borboletas que sibilavam, eles chegaram. Era o Oskiaje.
Ali se juntam todos os rios deste mundo e dos outros; o Meshiareni desce até ali do céu das estrelas e o Kamabiría, cujas águas arrastam as almas dos mortos para
os mundos profundos, passa também por ali. Havia monstros de todas as formas e tamanhos, chamando Inaenka com suas trombas e garras. "Venha, venha, você é uma de
nós", grunhindo.
"Para que me trouxe aqui?", murmurou Inaenka, inquieta, zangando-se, farejando o engano. "Pisei esta terra e meus pés continuam tortos."
"Trouxe você aqui por conselho de Potsotiki, a planta do urucu, revelou-lhe o filho. Para que não continue destruindo o povo que anda, então. O sol não cairá por
sua culpa."
"Muito bem", disse Inaenka, resignando-se a sua sorte. "Você pode tê-los salvo, quem sabe. Mas a você, eu perseguirei dia e noite. Dia e noite, até molhá-lo com"minha
água de fogo. vou cobrir você de bolhas. Verei você se pelar, esperneando. E de seus sofrimentos vou me rir. Não poderá se livrar de mim."
Mas ele se livrou. É verdade, mas para escapar de Inaenka a alma dele teve que renunciar à sua envoltura de
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homem. Afastou-se e, vagando, vagando em busca de refúgio, foi hospedar-se nesse passarinho negro, de patas brancas. Agora é moritoni. Agora vive junto ao rio e
dorme nas pastagens, abrigadinho na grama. Graças a ele e a Potsotiki, os homens que andam salvaram-se do dano que pela, queima e mata rápido. Por isso nós pintamos
o corpo com tintura de urucu, parece. Buscando a proteção de Potsotiki, então. Ninguém pisa no moritoni que encontra adormecido na pastagem; em vez disso, afasta-se.
Quando um moritoni é apanhado na vara de resina que o caçador coloca nos bebedouros, o homem o desgruda, tiralhe o frio e o medo com sua respiração e as mulheres
o acalentam entre seus peitos até que possa voar. Por isso será, então.
Nada do que passa, passa porque sim, dizia Tasurinchi, o seripigari do Kompiroshiato. Tudo tem sua explicação, tudo é causa ou conseqüência de alguma coisa. Talvez.
Há mais deusinhos e diabinhos que gotas de água nos maiores lagos e rios, dizia. Andam misturados com as coisas. Os filhos de Kientibakori para desordenar o mundo
e os de Tasurinchi para lhe conservar a ordem. O que sabe as causas e as conseqüências tem a sabedoria, talvez. Eu ainda não a alcancei, dizendo, embora seja um
pouco sábio e possa fazer coisas que o resto não pode. Quais, Tasurinchi? Voar, falar com a alma do morto, visitar os mundos de baixo e de cima, meter-me no corpo
dos vivos, adivinhar o futuro e entender o idioma de certos animais. É muito. Mas outras muitíssimas não sei. Isso é, pelo menos, o que eu soube. É verdade, ele
o adivinhou: se não fosse falador, teria gostado de ser seripigari. Dirigir as mareadas com sabedoria para que fossem sempre boas. Uma vez, lá, no rio da anta,
o Kimariato, tive uma mareada ruim e vivi, nela, uma história que não gostaria de recordar. Mas, apesar de tudo, sempre a recordo. Esta é a história. Isso foi depois,
no rio da anta.
Eu era gente. Eu tinha família. Eu estava dormindo. E nisso me acordei. Mal abri os olhos compreendi, ai, Tasu-
rinchi! Tinha me transformado em inseto, então. Uma eigarra-machacuy, talvez. Tasurinchi-gregório era. Estava deitado de costas. O mundo teria se tornado maior,
então. Entendia tudo. Essas patas cabeludas, an.eladas, eram minhas patas. Essas asas cor de barro, transparentes, que estalavam com meus movimentos, doendo-me
tanto, teriam sido antes meus braços. A pestilência que me envolvia, meu cheiro? Via este mundo de uma maneira diferente: seu embaixo e seu em cima, seu adiante
e seu atrás, eu via ao mesmo tempo. Porque agora, sendo inseto, tinha vários olhos. Mas o que aconteceu a você, Tasurinchi-gregório? Um bruxo mau, comendo uma mecha
de seus cabelos, mudou você? Um diabinho kamagarini, entrando em você pelo olho do seu traseiro, mudou-o assim? Senti muita vergonha reconhecendo-me. Que diria minha
família? Porque eu tinha família como os demais homens que andam, parece. O que pensariam ao me verem convertido em um animalzinho imundo? Uma cigarra-machacuy só
se esmaga. Por acaso serve para comer? Para curar os danos serve? Nem para preparar as beberagens sujas do machikanari, talvez.
Mas meus parentes nada diziam. Dissimulando, iam e vinham pela cabana, pelo rio, como se não percebessem a desgraça que me acontecia. Eles se envergonhariam, também.
Como o mudaram!, dizendo, e por isso não me mencionariam. Quem sabe. E, enquanto isso, eu via tudo. O mundo parecia contente, igual que antes. Via as crianças levantarem
as pedras dos formigueiros e comerem, felizes, brigando por elas, as formigas de casca doce. Via os homens, indo limpar o mato do mandiocal ou pintando-se com urucu
e muito antes da caça. Via as mulheres cortando a mandioca, mastigando-a, cuspindo-a, deixando-a repousar nas tigelas de masato e desenredando o algodão para tecer
as blusas. Ao anoitecer, os velhos preparavam o fogo. Eu os via cortar dois cipós e abrir um buraquinho perto da ponta do menor, colocá-lo no chão, segurá-lo com
os pés, apoiar o outro cipó no buraco e fazê-lo girar, com paciência, até que se desprendia afinal a
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fumacinha. Via-os apanhar o pó em uma folha de bananeira, embrulhá-la em algodão, agitá-la até que o fogo brotava. Então acendiam as fogueiras e à volta dormiam
as famílias. Os homens e as mulheres entravam e saíam, continuando sua vida, contentes, talvez. Sem comentar minha mudança, sem demonstrar descontentamento ou surpresa.
Quem perguntava pelo falador? Ninguém. Alguém levava uma bolsa de mandioca e outra de milho ao seripigari dizendo "Transforme-o de novo em homem que anda"? Ninguém.
Muitos passavam ao largo. Evitando olhar para o lugar onde eu estava. Tasurinchi-gregório, ai, coitado! Mexendo as asas e as patas com raiva, então. Tentando me
dar a volta, lutando por me levantar, ai, ai!
Como pedir ajuda sem falar? Não sabia. Esse seria o pior tormento, quem sabe. Sabendo que ninguém viria me endireitar, sofreria. Nunca voltaria a andar? Lembrava-me
das tartarugas. Quando as ia caçar, na prainha onde vão enterrar as crias. Como as virava, pegando-as pela carapaça. Assim estava eu agora, como elas, esperneando,
chutando o ar sem poder me endireitar. Era cigarra-machacuy e me sentia tartaruga. Igual que elas, tinha sede, tinha fome e depois minha alma se iria. A alma de
uma cigarra-machacuy volta? Talvez voltasse.
De repente, notei. Tinham me encerrado. Quem,
quais? Meus parentes, então, eles. Tinham fechado a ca-
bana, tapado todos os buracos por onde podia escapar.
Como as moças no primeiro sangue eles me tinham. Mas a
Tasurinchi-gregório, quem viria banhá-lo, tirá-lo logo da
vida, uma vez puro, já limpo? Ninguém viria, talvez. Por
que tinham feito isso comigo? Pela vergonha seria. Para
que nenhuma visita pudesse ver-me e sentir asco de mim e
zombar deles. Meus parentes tinham arrancado de mim
uma mecha de cabelos, e a tinham levado ao machikanari
para que me tornasse Tasurinchi-gregório? Não, algum
diabinho seria, ou talvez Kientibakori. Alguma culpa teria
eu, talvez, para que, ainda por cima de semelhante dano,
me encerrassem como a um inimigo. Por que não traziam
um seripigari para que devolvesse minha envoltura? Tal-
vez tivessem ido ao seripigari, talvez tenham me encerrado para não sofrer dano saindo à intempérie.
Esta esperança ajudava-me. Não se resigne, Tasurinchi-gregório, ainda não, um raiozinho de sol no meio da tormenta era. E, enquanto isso, continuava tentando virar-me.
Doíam-me as patas de tanto mexê-las de um lado para outro e as asas estalavam com meus esforços, parecendo racharem-se. Quanto tempo passaria assim, quem sabe?
Mas, de repente, eu o consegui. Força, Tasurinchigregório! Faria um movimento mais enérgico, estenderia bastante uma das patas. Não sei. Mas meu corpo se contraiu,
ficou de lado, girou e aí o senti, debaixo de mim, duro. Firme, sólido. Isso era o chão. Fechei os olhos, bêbado. Mas a alegria de me haver endireitado aí mesmo
desapareceu. E essa dor fortíssima nas costas? Como se me tivessem queimado, então. Ao saltar tão bruscamente, ou antes, enquanto forcejava, a asa direita despedaçara-se.
Aí estava, pendurada, partida em duas, arrastando-se. Isso era minha asa, talvez. Comecei a sentir fome, também. Tinha medo. O mundo tornara-se desconhecido. Perigoso,
quem sabe. A qualquer momento poderiam esmagar-me. Pisar-me. Podiam comer-me. Ai, Tasurinchi-gregório! As lagartixas! Tremendo, tremendo. Não tinha visto, por acaso,
como comiam as baratas, os escaravelhos, todos os insetos que caçavam? A asa quebrada doía sempre mais e mal deixava eu me mexer. E sempre da fome o espinho, rasgando-me
o ventre. Tentei engolir a palha seca metida no tabique, mas me arranhou a boca, sem se desmanchar, por isso a cuspi. Comecei a escarvar, aqui e ali, na terra úmida,
até que, depois de muito tempo, encontrei um ninho de larvas. Pequeninas, movimentavam-se, querendo escapar. Eram larvas de poço, o bicho das madeiras. Engoli-os
devagar, fechando os olhos, feliz. Sentindo que retornavam ao meu corpo os pedaços de alma que estavam indo. Sim, feliz.
Não tinha acabado de engolir as larvas quando um fedor diferente me fez dar um grande salto, tentando voar. Sentia um ofegar estranho, perto. O calor desse ofegar
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metia-se pelo meu nariz. Cheirava e era perigo, talvez. A lagartixa! Aparecera, então. Aí estava sua cabeça triangular, entre dois tabiques carcomidos. Aí seus olhos
remelentos, olhando-me. De fome, brilhando. Apesar da dor eu batia asas, sem poder me elevar, tentando, tentando. Uns pulinhos desajeitados eu dei, parece. Perdendo
o equilíbrio, mancando. Aumentara a dor de minha ferida. Aí vinha, aí. Encolhendo-se como cobra, ladeando-se, passou o corpo por entre os tabiques e entrou. Aí estava
a lagartixa, então. Foi se aproximando de mim devagarinho e sem me perder de vista. Como parecia grande! Rápida, rápida em suas duas patas, corria para mim. Eu a
vi abrir a bocarra. Vi as duas fileiras de seus dentes, curvos, brancos, e seu bafo me cegou. Senti seu mordisco, senti que me arrancava a asa ferida. Tinha tanto
medo que a dor se foi. Ficava mais mareado, como que dormindo eu ia. Mas via sua pele verde, desbotada, o bucho que latejava, digerindo, e como entrecerrava seus
olhões ao engolir esse pedaço de mim. Eu me resignaria a minha sorte, então. Era isso. com tristeza, quem sabe. Esperando que acabasse de me comer. Logo, já comida,
pude ver, de seu interior, de sua alma, através de seus olhos esbugalhados, tudo era verde, que minha família regressava.
Entravam na cabana com a apreensão de antes. Não estava mais! Para onde teria ido, então?, dizendo. Aproximavam-se do canto da cigarra-machacuy, olhando, procurando.
Vazio! Respiravam aliviados, como se livres de um perigo. Sorririam, contentes. Já nos teremos livrado de tanta vergonha, pensando. Não teriam nada que ocultar mais
às visitas. Já poderiam retomar a vida de todos os dias, talvez.
Assim terminou a história de Tasurinchi-gregório, lá pelo Kimariato, rio da anta.
Perguntei a Tasurinchi, o seripigari, o significado do que vivi nessa mareada ruim. Refletiu um instante e fez um gesto como que para afastar um invisível. "Sim,
foi uma mareada ruim", reconheceu, por fim, pensativo. "Tasurinchi-gregório! Como será isso. Mau deve ser. Virar cigarra-machacuy será obra de kamagarini. Não -

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saberia dizer a você com certeza. Teria que subir pelo pau da cabana e perguntar ao saankarite no mundo das nuvens. Ele o saberia, talvez. O melhor é que você esqueça.
Não fale mais disso. O que se recorda, vive, e pode voltar a passar." Mas eu não pude esquecer-me e ando contando-o.
Nem sempre fui como estão me vendo. Não me refiro a minha cara. Esta mancha cor de milho roxo eu sempre tive. Não riam, estou dizendo a verdade. Nasci cí>m ela.
De verdade, não há motivo para riso. Já sei que não acreditam em mim. Já sei o que estarão pensando. "Se você tivesse nascido assim, Tasurinchi, suas mães o teriam
atirado no rio, então. Se está aqui, andando, é porque nasceu puro. Só depois, alguém ou algo tornou você como é." E isso o que pensam? Estão vendo, adivinhei sem
sei" adivinho e sem necessidade de fumo nem de mareada.
Ao seripigari tenho perguntado muitas vezes: "O que significa ter uma cara como a minha?" Nenhum saankarite soube dar uma explicação, parece. Por que Tasurinchi
me sopraria assim? Calma, calma, não se zanguem. Por que gritam? Muito bem, não foi Tasurinchi. Seria Kientibakori, então? Não? Muito bem, ele também não. Não diz
o seripigari que tudo tem sua causa? Não encontrei ainda a da minha cara. Algumas coisas não terão, então. Aconteceriam, apenas. Vocês não estão de acordo, já sei.
Posso adivinhar isso só olhando os olhos de vocês. Sim, é verdade, não conhecer a causa não significa que ela não exista.
Antes, esta mancha me importava muito. Não o dizia. A mim, apenas, a minhas almas. Eu o guardava e esse segredo me comia. Aos pouquinhos ele ia me comendo, aqui
dentro. Triste vivia, parece. Agora não me importa. Pelo menos, acho que não. Graças a vocês, há de ser. Assim foi, talvez. Pois percebi que aqueles que ia visitar,
para lhes falar, também não se importavam. Perguntei isso a primeira vez, há muitas luas, a uma família com qiíe estava vivendo pelo rio Koshireni. "Vocês se importam
de me ver? Que seja assim como sou, vocês se importam?" "O que as pessoas fazem e o que não fazem,
importa, explicou-me Tasurinchi, o mais velho. Dizendo: "Se
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andam, cumprindo com seu destino, importa. Se o caçador não toca o que caçou, nem o pescador o que pescou. O respeito às proibições, então. Importa se são capazes
de andar, para que o sol não caia. Para que o mundo esteja em ordem, então. Para que não voltem a escuridão, os danos. É o que importa. As manchas da cara, não,
talvez." Isso é a sabedoria, dizem.
Queria dizer-lhes em vez disso que eu, antes, não fui o que sou agora. Tornei-me falador depois de ser isso que são vocês neste momento. Escutadores. Isso era eu:
escutador. Ocorreu sem o querer. Pouco a pouco sucedeu. Sem sequer me dar conta fui descobrindo meu destino. Lento, tranqüilo. Apareceu aos pedacinhos. Não com
o suco do tabaco nem o cozimento de ayahuasca. Nem com a ajuda do seripigari. Só eu o descobri.
Ia de um lado a outro, procurando os homens que andam. Está aí? Ehé, aqui estou. Alojava-me nas casas deles e os ajudava a limpar o mandiocal do mato e a colocar
armadilhas. Logo que me inteirava em que rio, em que quebrada havia uma família de homens que andam, ia visitála, então. Ainda que tivesse que fazer uma viagem muito
longa e atravessar o Gran Pongo, ia. Chegava, por fim. Aí estavam. Você veio? Ehé, vim. Alguns me conheciam, outros foram me conhecendo. Faziam-me entrar, davam-me
de comer e de beber. Uma esteira para dormir, me emprestavam. Muitas luas ficava com eles. Eu me sentia um da família. "Para que você veio até aqui?", perguntavam-me.
"Para aprender como se prepara o tabaco antes de aspirá-lo pelos buracos do nariz, eu lhes respondia. Para saber como se pega com breu as pernas da peruazinha kanari
para poder aspirar o tabaco", dizendo-lhes. Eles me deixavam escutar o que falavam, aprender o que eram. Eu queria conhecer a vida deles, então. Ouvi-la de suas
bocas. Como são, o que fazem, de onde vêm, como nascem, como se vão, como voltam. Os homens que andam. "Está bem" eles me diziam. "Andemos, então."
Ficava maravilhado de ouvi-los. Recordava tudo o que diziam. Deste mundo e dos outros. O de antes e o de depois. As explicações e as causas, eu recordava. No

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princípio, os seripigaris não tinham confiança em mim. Depois, sim. Deixavam-me escutá-los também. As histórias de Tasurinchi. As iniqüidades de Kientibakori. Os
segredos
da chuva, do raio, do arco-íris, da cor e das linhas com que os homens se pintam antes de sair de caça. Nada do que ia ouvindo eu esquecia. Às vezes, à família
que ia visitar, eu contava o que tinha visto e aprendido. Nem todos sabiam tudo e, ainda que o soubessem, gostavam de ouvir de novo. E eu também. A primeira vez
que ouvi a história de Morenanchiite, o senhor do trovão, me impressionou muito. Perguntava a todos por ela. Fazia com que a contassem uma vez, muitas vezes. Tem
o senhor do trovão um arco? Sim, um arco. Mas em vez de soltar flechas, solta trovões. Anda rodeado de tigres? Sim. De pumas também, parece. E sem ser viracocha,
tem barba? Sim, barba. Eu repetia a história de Morenanchiite por onde ia, então. Eles me escutavam e ficariam contentes, talvez. "Contenos isso mesmo de novo",
dizendo. "Conte-nos, contenos." Pouco a pouco, sem saber o que estava acontecendo, comecei a fazer o que agora faço.
Um dia, ao chegar à cabana de uma família, às minhas costas disseram: "Aí chega o falador. Vamos ouvi-lo." Eu escutei. Fiquei muito surpreendido. "Falam de mim?",
perguntei-lhes. Todos sacudiram as cabeças "Ehé, ehé, de você falamos", concordando. Eu era, então, o falador. Fiquei cheio de susto. Assim fiquei. Meu coração
um tambor parecia. Batendo no peito: bum, bum. Tinha me encontrado com meu destino? Quem sabe. Assim seria, aquela vez. Em uma quebradinha do rio Timpshía, onde
havia machiguengas, foi lá. Já não há mais nenhum por lá. Mas cada vez que passo perto dessa quebrada, meu coração volta a dançar. "Aqui nasci a segunda vez", pensando.
"Aqui voltei sem ter ido", dizendo. Assim comecei a ser o que sou. Foi o melhor que me aconteceu, talvez. Nunca me acontecerá nada melhor, acredito. Desde então
estou falando. Andando. E continuarei até que me vá, parece. Porque sou o falador.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
É dano uma cara como a minha? Nascer com mais ou
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menos dedos do que os devidos, é dano? Desgraça, parecer monstro não o sendo? Será desgraça e dano ao mesmo tempo. Talvez. Aparentar, não o sendo, um desses tortos,
inchados, corcundas, chagados, armados de caninos e garras que Kientibakori soprou no dia da criação, lá no Gran Pongo. Aparentar ser demônio ou diabinho sendo só
homem soprado por Tasurinchi, dano e desgraça há de ser. E será, então.
Quando começava a andar, ouvia que uma mulher tinha afogado no rio a filha recém-nascida porque lhe faltava um pé ou o nariz, porque tinha manchas ou porque tinha
tido dois filhos em vez de um. Não entendia, parece. "Por que faz isso? Por que o matou?" "Não era perfeito, então. Tinha que ir." Eu não entendia. "Tasurinchi só
soprou mulheres e homens perfeitos", explicavam-me. "Os monstros, foi Kientibakori que soprou." Nunca entenderia bem, quem sabe. Por ser como sou, tendo a cara que
tenho, será difícil para mim. Quando ouço "Atirei-a no rio porque nasceu diabinha, matei-o porque nasceu demônio", volto a não entender. De que estão rindo?
Se os imperfeitos eram impuros, filhos de Kientibakori, por que havia homens que mancavam, marcados na pele, cegos, com as mãos rígidas? Como estavam aí, andando?
Por que não os tinham matado, então? Por que não me matavam, com minha cara? Eu perguntava a eles. Riam eles também: "Como vão ser filhos de Kientibakori, como
vão ser diabos ou monstros! Por acaso nasceram assim? Eram puros; perfeitos nasceram. Ficaram assim depois. Por sua culpa, ou de algum kamagarini ou outro demônio
de Kientibakori. Quem sabe por que os mudaram? Só a envoltura deles é de monstros, por dentro serão sempre puros."
Embora vocês não creiam, não foram os diabinhos de Kientibakori que me fizeram assim. Nasci monstro. Minha mãe não me atirou no rio, ela me deixou viver. Isso que,
antes, me parecia uma crueldade, agora me parece sorte. Cada vez que vou visitar uma família que ainda não conheço, imagino que se assustará! "Este é monstro, este
é diabinho", dizendo, ao me ver. Já estão rindo outra vez.

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Assim riem todos quando pergunto: "Serei diabo? Esta cara quererá dizer isso?" "Não, não, não é, nem também monstro. Você é Tasurinchi, é o falador." E me fazem
sentir tranqüilo. Contente, talvez.
A alma das crianças que as mães afogam nos rios e nos lagos desce ao fundo do Gran Pongo. Isso dizem. Para baixo, ao profundo. Para dentro dos redemoinhos e das
cascatas de água suja, a umas covas repletas de caranguejos. Ali estarão, entre rochas enormes, surdos com tanto ruído, padecendo. Ali se reunirão as almas daquelas
crianças com os monstros que Kientibakori soprou quando brigou com Tasurinchi. Esse foi o princípio, parece. Antes, o mundo em que andamos, estaria vazio. O que
se afoga no Gran Pongo, regressa? Afunda, vai afundando no estrépito das águas, um redemoinho apanha sua alma e, fazendo-a girar, girar, desce-a. Até o fundo escuro,
lodoso, descerá, aí onde vivem os monstros. Ali se sentará entre as almas das outras crianças afogadas, então. E escutará o lamento dos diabos, dos monstros, lembrando
aquele dia em que Tasurinchi começou a soprar. Naquele dia em que apareceram tantos machiguengas.
Esta é a história da criação.
Esta é a luta de Tasurinchi e Kientibakori.
Isso era antes.
Ali aconteceu, no Gran Pongo. Ali o princípio principiou. Tasurinchi desceu do Inkite pelo rio Meshiareni com uma idéia na cabeça. Inchando o peito, começaria a
soprar. As boas terras, os rios carregados de peixes, as florestas repletas, tantos animais para comer, iriam aparecendo. O sol estava fixo no céu, aquecendo o mundo.
Contente, olhando o que aparecia. Então Kientibakori teve uma raiva terrível. Vomitaria cobras e lagartos vendo o que acontecia lá em cima. Tasurinchi soprava e
tinham começado a aparecer também os machinguengas. Então, Kientibakori abandonou o mundo de águas e nuvens negras do Gamaironi e subiu por um rio de urina e cocô.
com raiva, fumegando de cólera: "Eu hei de fazer melhor", dizendo. Logo que chegou ao Gran Pongo, pôs-se a soprar. Mas de seus sopros não saíam machiguengas.
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terras apodrecidas onde não crescia nada, isto sim; lagoas pantanosas onde só os vampiros podiam resistir ao ar tão fétido. Cobras saíam. Víboras, lagartos, ratos,
mosquitos e morcegos. Formigas, urubus. Todas as plantas que produziam ardência saíam, as que queimam a pele, as que não se pode comer. Kientibakori continuava soprando
e, em lugar de machiguengas, apareciam os kamagarinis, os diabinhos de pés curvos e pontudos, com esporões. As diabas apareciam com suas caras de asno, comendo
terra e musgo. E os homens quadrúpedes, achaporo, tão peludos e sanguinários. Kientibakori enfurecia-se. Tanta raiva tinha que os seres que ia soprando saíam, como
os danos e as alimárias, mais impuros, mais malvados. Quando terminaram de soprar e voltaram, Tasurinchi ao Inkite e Kientibakori ao Gamaironi, este mundo era o
que é agora. Assim começou depois, parece. Assim começamos a andar. No Gran Pongo. Desde então estamos andando, então. Resistindo aos danos, sofrendo as crueldades
dos diabos e diabinhos de Kientibakori estamos. O Gran Pongo era proibido, antes. Só retornavam para lá os mortos, almas que iam voltar. Agora são muitos; viracochas
e punarunas vão. Também machiguengas. com medo e com respeito irão. Pensarão: esse ruído fortíssimo é só água se chocando contra as rochas ao cair? Só rio ao se
fechar entre paredes de pedra é? Não, parece. É ruído que sobe de baixo, também. Gemidos e choro de crianças afogadas será. Sobe das covas do fundo. Nas noites de
lua se ouve. Estarão gemendo, tristes. Os monstros de Kientibakori os maltratarão, talvez. E os farão pagar com tormentos por estarem ali. Não os acreditarão impuros
mas machiguengas, quem sabe. Isso é, pelo menos, o que eu soube. Um seripigari me disse: "O pior dano não é nascer com uma cara como a sua; é não saber sua obrigação."
Não se encontrar com seu destino, então? Isso me ocorria antes de ser o que sou agora. Era só envoltura, uma casca, corpo daquele que a alma saiu pelo alto da cabeça.
Também para uma família e para um povo será o pior dano não

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saber sua obrigação. Família-monstro, povo-monstro será, ao que lhe faltam ou lhe sobram mãos, pés. Nós estamos andando, o sol lá em cima está. Será a nossa obrigação.
E a estamos cumprindo, parece. Por que sobrevivemos aos danos de tanto diabo e diabinho? Por isso será. Por isso estaremos aqui agora, eu falando, vocês escutando.
Quem sabe?
O povo que anda é agora o meu. Antes, eu andava com outro povo e pensava que era o meu. Não havia nascido ainda. Nasci de verdade desde que ando como machiguenga.
Esse outro povo ficou para lá, atrás. Tinha sua história, também. Era pequeno e vivia muito longe daqui, em um lugar que tinha sido o seu e já não era, mas de outros.
Porque foi ocupado por uns viracochas espertos e fortes. Como na sangria de árvores? Assim mesmo. Apesar da presença do inimigo em sua floresta, eles viviam dedicados
a caçar a anta, a semear a mandioca, a preparar o masato, a dançar, a cantar. Um espírito poderoso os havia soprado. Não tinha cara nem corpo. Era Tasurinchijeová.
Ele os protegia, parece. Tinha ensinado a eíes o que deviam fazer e também as proibições. Sabiam sua obrigação, então. Viveriam tranqüilos. Contentes e sem raiva
viveriam, quem sabe.
Até que um dia, em uma quebradinha perdida, nasceu uma criança. Era diferente. Um serigórompi? Sim, talvez. Começou a dizer: "Sou o sopro de Tasurinchi, sou o filho
de Tasurinchi, sou Tasurinchi. Sou essas três coisas ao mesmo tempo." Isso dizia. E que tinha descido do Inkiíe a este mundo, enviado por seu pai, que era ele mesmo,
para mudar os costumes pois as pessoas tinham se corrompido e já não sabiam andar. Eles o escutariam, surpreendidos. "Será um falador", dizendo. "Serão histórias
que conta", dizendo. Ele ia de um lado a outro, como eu. Falando, falando ia. Enredava e desenredava as coisas, dando conselhos. Tinha outra sabedoria, parece. Queria
impor novos costumes porque, segundo ele, os que as pessoas praticavam eram impuros. Danos eram. Desgraça traziam. E a todos repetia: "Sou Tasurinchi." Devia ser
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obedecido, então; respeitado, então. Só ele, ninguém mais que ele. Os outros não eram deuses mas diabos e diabinhos soprados por Kientibakori.
Era um bom Cfonvencedor, dizem. Um seripigari com muitos poderes. Tinha sua magia, também. Seria um bruxo mau, um machikanari? Seria um bom, um seripigari? Quem
sabe? Podia converter umas poucas mandiocas e uns quantos bagres em muitíssimos, em muitíssimas mandiocas e peixes para que toda a gente comesse. Devolvia os braços
aos manetas, os olhos aos cegos e até fazia regressar a seu mesmo corpo as almas que tinham ido. Impressionados, alguns começaram a segui-lo e a obedecer ao que
dizia. Renunciavam a seus costumes, não obedeciam às antigas proibições. Eles se tornariam outros, talvez.
Os seripigaris assustaram-se muito. Viajaram, se reuniram na casa do mais velho. Tomaram masato, sentados nas esteiras, formando círculo, "nosso povo vai desaparecer",
dizendo. Ele se desmancharia como uma nuvem, talvez. Vento seria, no final. "O que nos diferenciará dos outros?", assustavam-se. Seriam como os mashcos? Seriam ashaninka
ou yaminahua? Ninguém saberia quem era quem, nem eles nem os outros saberiam. "Não somos o que cremos, os riscos que nos pintamos, a maneira como preparamos as
armadilhas?", discutiam. Sim, levando em conta, esse falador, tudo faziam diferente, tudo ao revés, o sol não cairia? O que os manteria unidos se se tornavam iguais
aos demais? Nada, ninguém. Tudo seria confusão? Os seripigaris então, por haver vindo a empanar a claridade do mundo, o condenaram. "É um impostor, dizendo, um mentiroso;
um machikanari será."
Os viracochas, os poderosos, também se inquietavam. Havia muita desordem, as pessoas andavam agitadas, hesitantes com o falatório desse falador. "Verdade ou mentira
será? Devemos obedecer-lhe?" E ficavam pensando no que contava. Então, acreditando que assim se livrariam dele, os que mandavam o mataram. Segundo seu costume, quando
alguém fazia uma maldade, roubava ou quebrava a proibição, os viracochas o açoitaram e puseram nele uma coroa de espinhos de chambira. Depois, como os paiches

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do rio, para que escorra sua água, cravaram-no em dois troncos de árvore cruzados, deixando-o dessangrar. Enganaram-se. Porque, depois de ir, esse falador regressou.
Para continuar desarrumando este mundo ainda mais que antes ele regressaria. Começaram a dizer entre eles: "Era verdade. Filho de Tasurinchi é, o sopro de Tasurinchi
será, é o próprio Tasurinchi. As três coisas juntas, então. Veio. Foi e tornou a vir." E, então, começaram a fazer o que lhes ensinou e a respeitar suas proibições.
Desde que esse seripigari ou deus morreu, se é que morreu, terríveis desgraças aconteceram ao povo em que tinha nascido. Aquele, o soprado por Tasurinchi-jeová.
Os viracochas o expulsaram da floresta onde até então viveu. Fora, fora! Como os machiguengas, teve que sair a andar pelos montes. Os rios, os lagos e as quebradas
deste mundo o viram chegar e partir. Sem segurança de que poderia ficar no lugar ao qual chegava, acostumou-se a viver andando ele também. A vida se tornou perigo,
como se a qualquer momento pudesse o tigre saltar sobre ele ou a flecha do mashco. Viveriam assustados eles, esperando o dano. Os feitiços dos machikanaris esperando.
Lamentando sua sorte eles viveriam, talvez.
De todos os lugares onde acampavam vinham expulsálos. Armavam suas cabanas e aí apareciam os viracochas. Os punarunas, os yaminahuas apareciam, acusando-os. De todas
as maldades e desgraças os acusavam. Até de haver matado Tasurinchi. "Ele se fez homem, veio a este mundo e vocês o traíram", diziam-lhes, apedrejando-os. Se por
algum lugar Inaenka passava espalhando sua água fervendo sobre as pessoas e estas se pelavam e morriam, ninguém dizia: "São as calamidades da bolha fervente, os
espirros e peidos de Inaenka são." "A culpa é desses malditos forasteiros que mataram Tasurinchi, diziam. Agora fizeram feitiço, para cumprir com seu senhor que
é Kientibakori." Por todas as partes havia corrido essa crença: que ajudavam os diabinhos, dançando e bebendo masato juntos, quem sabe. Então, iam às cabanas dos
soprados por Tasurinchi-jeová. Então, batiam neles; tiravam o que tinham, flechavam-nos, queimavam vivos. E eles
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tinham que correr. Escapando, escondendo-se. Esparrramados por todas as florestas do mundo andavam. "Quando virão nos matar?", pensariam, "Quem nos
matará
desta vez? Os viracochas? Os mashcos?" Em nenhuma parte queriam alojá-los. Quando apareciam de visita e perguntavam ao dono da casa: "Você está aí?", a resposta
sempre era: "Não, não estou." Igual que o povo que anda, tiveram que se separar uma das outras as famílias para que fossem aceitas. Se eram poucos, se não faziam
sombra, outros povos deixavam-lhes um lugar para semear, caçar e pescar. Às vezes ordenavam a eles: "Podem ficar mas sem semear. Ou sem caçar. Esse é o costume."
Assim duravam uma lua; muitas, talvez. Mas sempre terminavam mal. Se chovia muito ou se havia seca, se alguma catástrofe ocorria, começavam a odiá-los. "Vocês têm
a culpa", dizendo. "Fora!" E os expulsavam de novo e parecia que iam desaparecer.
Porque esta história foi se repetindo em muitos lugares. Sempre a mesma, como um seripigari que não pode regressar de uma mareada má e fica dando voltas, desorientado,
entre as nuvens. E, entretanto, apesar de tantas desgraças, não desapareceu. Apesar de seus sofrimentos, sobreviveu. Não era guerreiro, jamais ganhava as guerras,
e aí está. Vivia disperso, suas famílias espalhadas pelas florestas do mundo, e ficou. Povos maiores, de guerreiros, povos fortes, de mashcos, de viracochas, de
seripigaris sábios, povos que pareciam indestrutíveis, foram. Desaparecendo, então. Nem rastro restava deles neste mundo; ninguém os recordava, depois. Eles, em
compensação, aí continuariam. Viajando, indo e vindo, escapando. Vivos e andando, então. Ao longo do tempo e ao largo do mundo, também.
Seria porque, apesar de tudo o que lhe aconteceu, o povo de Tasurinchi-jeová não se desencontrou de seu destino. Cumpriria sua obrigação, sempre. Respeitando as
proibições, também. Por ser diferente dos demais seria odiado? Por isso os povos entre os que esteve não o aceitariam? Quem sabe? As pessoas não gostam de viver
com pessoas diferentes. Desconfiarão, talvez. Outros costumes, outra

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maneira de falar devem assustá-las, como se o mundo fosse confuso, escuro, de repente. As pessoas gostariam que todos fossem iguais, que os outros esquecessem seus
costumes, matassem seus seripigaris, desobedecessem às proibições e imitassem as delas. Se o tivesse feito, o povo de Tasurinchi-jeová teria desaparecido. Não teria
ficado dele nem um falador para contar sua história. Eu não estaria aqui, falando, talvez.
"E bom que o homem que anda, ande", diz o seripigari. Isso é a sabedoria, acredito. bom será. Que o homem seja o que é, então. Não somos os machiguengas agora
como éramos faz muitíssimo tempo? Como naquele dia, no Gran Pongo, em que Tasurinchi começou a soprar, somos. Por isso não desaparecemos, então. Por isso continuamos
andando, quem sabe.
Isso aprendi com vocês. Antes de nascer, pensava: "Um povo deve mudar. Fazer seus os costumes, as proibições, as magias, dos povos fortes. Apoderar-se dos deuses
e deusinhos, dos diabos e diabinhos, dos povos sábios. Assim todos se tornarão mais puros", pensava. Mais felizes, também. Não era verdade. Agora sei que não. E
o aprendi de vocês, sim. Quem é mais puro e mais feliz renunciando a seu destino, então? Ninguém. Seremos o que somos, melhor. O que deixa de cumprir sua obrigação
para cumprir a de outro, perderá sua alma. E sua envoltura também, quem sabe, como o Tasurinchi-gregório que se tornou cigarra-machacuy naquela mareada má. Será
que quando uma pessoa perde a alma, os seres mais repugnantes, as alimárias mais daninhas farão sua guarida no corpo vazio? A mosca é comida pela vespa; a vespa
pelo passarinho; o passarinho pela víbora. Queremos que nos comam? Não. Queremos desaparecer sem deixar rastro? Também não. Se acabamos, se acabará o mundo também.
Melhor continuar andando, parece. Segurando o sol no céu, o rio no seu leito, a árvore na raiz e o mato na terra, então.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Tasurinchi está bem. Andando. Ia visitá-lo em sua casa, no rio Timpinía, quando o encontrei no caminho. com
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dois de seus filhos regressava de onde residem os Padres Brancos, os que vivem nas margens do Sepahua. Tinha levado para eles sua colheita de milho. Está fazendo
isso faz tempo, me contou. Os Padres Brancos lhe dão sementes, facões para roçar o mato, pás para trabalhar a terra e semear batata, batata-doce, milho, fumo, café
e algodão. Depois, ele lhes vende o que não necessita e assim compra mais coisas. Mostrou-me as que tinha: roupa, comida, um lampião a óleo, anzóis, uma faca. "Talvez
da próxima vez poderei comprar também uma escopeta", dizendo, e então caçaria de tudo pelo mato. Mas Tasurinchi não estava contente. Preocupado, isso sim; sua testa
com rugas e os olhos duros, assim. "Nessas terras do Timpinía só se pode semear duas vezes no mesmo lugar, nunca mais", lamentando-se. "E em algumas partes, só
uma vez. É terra ruim, parece. A última plantação de mandioca e batata deu uma colheita pobríssima." É uma terra que se cansa logo, parece. "Está querendo que a
deixe em paz", dizia Tasurinchi. Queixou-se a mim amargamente. "Terras preguiçosas são estas do Timpinía", dizendo. "Mal a gente as faz trabalhar e já pedem descanso.
Assim são."
Conversando sobre essa e outras coisas, chegamos à casa dele. Saiu ao nosso encontro sua mulher, muito agitada. Tinha pintado a cara de luto e, sacudindo as mãos,
apontando, disse que o rio era ladrão. Roubara uma de suas três galinhas, então. Ela a tinha nos braços para aquecê-la, porque parecia enferma, enquanto apanhava
água com a vasilha. E, de repente, tudo começou a tremer. A terra, a floresta, a casa, tudo, a tremer. "Como com dano", dizia. "Como que dançando tremia." com
o susto, soltou a galinha e viu que a corrente a levava e a comia, sem lhe dar tempo de resgatá-la. Nessa quebrada do Timpinía, a água é muito torrencial, é verdade.
Até nas margens anda alvoroçada, então.
Tasurinchi começou a surrá-la, furioso. "Não a surro por tê-la deixado cair no rio, isso acontece a qualquer um", dizendo. "Mas por mentir. Por que, em vez de inventar
que a terra tremeu não diz que ficou adormecida? Escorregou de seus braços, não é verdade? Ou você a

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teria deixado na margem e ela rolou. Ou você a atirou no rio porque ficou com raiva. Não diga o que não aconteceu. Você é falador? Não fazem mal às famílias as mentiras?
Quem vai acreditar que a terra se pôs a dançar? Eu o teria sentido também, então."
E, quando Tasurinchi estava gritando com ela assim, enfurecido e surrando-a, a terra começou a tremer. Não riam. Não é invenção, não sonhei com isso. Aconteceu.
Pôs-se a dançar. Ouvimos primeiro um ronco, fundo, como se o senhor do trovão estivesse aí embaixo fazendo rugir seus jaguares. Um rumor de guerra, uns tambores
batidos ao mesmo tempo, embaixo, no interior da terra. Um ruído profundo; ameaçador, foi. E aí sentimos que o mundo já não estava em paz. A terra se movia, dançava,
pulando como se tivesse se embriagado. Mexiam-se as árvores, a casa de Tasurinchi, as águas do rio vinham aos borbotões, agitadas, como a mandioca fervendo na gamela.
Havia raiva no ar, talvez. O céu encheu-se de pássaros apavorados, de papagaios berrando nas árvores, e da floresta vinham grunhidos, assobios, grasnidos, de animais
assustados. "Outra vez, outra vez", gritava a mulher de Tasurinchi. E nós, confusos, olhávamos para um lado e outro, não sabendo se ficar ou correr. Os pequenos
tinham começado a chorar; agarrados a Tasurinchi choravam. E ele também se assustou, eu também. "O mundo estará acabando?", dizia, "Virá outra vez a escuridão, o
caos virá?"
Quando afinal deixou de tremer, o céu ficou escure como se o sol tivesse começado a cair. Rápido escureceu, rapidíssimo. E levantou-se uma grande poeirada, de todas
as partes, cobrindo este mundo da cor da cinza. Quase não podia ver Tasurinchi e sua família naquele temporal de terra. Tudo era cinzento. "Está acontecendo algo
muito grave e não sabemos o que é", dizia Tasurinchi, amedrontado. "Será o fim dos que andamos? Chegou a hora de nos irmos, talvez. O sol caiu. Já não se levantará
mais, então."
Agora sei que não caiu. Agora sei que, se tivesse caído, não estaríamos aqui. A poeirada passou, o céu ficou
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limpo de novo e a terra, afinal, aquietou-se. Havia um cheiro a salmoura e a plantas apodrecidas, um cheiro que dava náuseas. O mundo não estaria contente, quem
sabe. "Está vendo que não menti, está vendo que tremeu. Foi por isso que o rio comeu a galinha", dizia a mulher de Tasurinchi. Mas ele teimou, dizendo: "Não é verdade."
Estava raivoso: "Você mentiu", gritava à mulher, "talvez por isso a terra tremeria agora." Voltou a surrá-la, inchando-se, rugindo de tanta força que fazia. Tasurinchi,
o do Timpinía, é um homem muito teimoso. Não é a primeira raiva que tem. Outras eu tenho visto. Por isso será que poucos vão visitá-lo. Não reconheceu que tinha
se enganado, mas eu percebi, qualquer um teria percebido que a mulher dele tinha dito a verdade.
Comemos, fomos descansar nas esteiras, e, pouco depois, muito antes do amanhecer, senti que ele se levantava. Vi que ia sentar-se sobre uma pedra, a poucos passos
da cabana. Ali estava Tasurinchi, à luz da lua, pensativo. Levantei-me na semi-escuridão e fui conversar com ele. Estava moendo pó de fumo para aspirar. Eu o vi
depositar o pozinho na canela oca da perua e me pediu que o soprasse. Eu a pus primeiro no buraco de seu nariz e a soprei; ele aspirava forte, com ânsia, fechando
os olhos. Em seguida fiz o mesmo no outro. Depois, o pó que sobrava, ele o soprou no meu nariz. Estava inquieto, Tasurinchi. Atormentado, estava. "Não posso dormir",
dizendo, com a voz de um homem muito cansado. "Aconteceram duas coisas que dão o que pensar. O rio roubou uma de minhas galinhas e a terra começou a tremer. Escurecendo-se
o céu, além disso. Que devo fazer?" Eu não sabia, eu estava tão espantado como ele. Por que me pergunta isso, Tasurinchi? "Que tenham acontecido essas coisas, uma
juntinho da outra, quase ao mesmo tempo, significa que devo fazer algo", disse-me. "Mas não sei o quê. Não há por aqui a quem perguntar. O seripigari está a muitas
luas de marcha, águas acima do Sepahua."
Tasurinchi permaneceu todo o dia sentado naquela pedra, sem falar com ninguém. Sem beber nem comer. Quando a mulher foi levar-lhe umas bananas amassadas,

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nem sequer deixou-a aproximar-se; ameaçou-a com a mão, como se fosse surrá-la de novo. E nessa noite não entrou em casa. Kashiri brilhava muito acima e eu o via
sem se mexer do lugar, a cabeça afundada no peito, esforçando-se por entender aquelas desgraças. O que lhe mandavam fazer, então? Quem sabe? Todos na família estavam
mudos, inquietos, até as crianças. Espiando-o, quietinhos, ansiosos. O que vai acontecer?, pensando.
Por volta do meio-dia, Tasurinchi, o do rio Timpinía, levantou-se da pedra. "Vamos andar. Agora mesmo. Devemos ir para longe daqui. Isso é o que significa. Se ficamos,
danos virão, catástrofes acontecerão. Essa é a mensagem. Por fim, eu a entendi. Este lugar está farto de nós. Temos que ir, então."
Difícil tinha sido para ele decidir. Pela cara das mulheres, dos homens, pela tristeza de seus parentes, via-se quanto lhe custava ir embora. Já estavam há um bom
tempo no rio Timpinía. com as colheitas que vendiam aos Padres Brancos do Sepahua estavam comprando coisas. Pareciam contentes, talvez. Tinham encontrado seu destino,
quem sabe? Não era assim, parece. Estariam se corrompendo por se manterem parados tanto tempo? Quem sabe? Deixar tudo isso, assim, de repente, sem saber para onde
iriam, sem saber se voltariam a ter o que deixavam, grande sacrifício seria. Dor para todos, assim.
Mas ninguém na família protestou; nem a mulher, nem os filhos, nem o jovem que estava vivendo ali perto porque queria se casar com a filha mais velha de Tasurinchi,
queixaram-se. Grandes e pequenos começaram naquele mesmo momento os preparativos. "Depressa, depressa, precisamos sair daqui, este lugar se tornou inimigo", apressava-os
Tasurinchi. Notava-se que estava resoluto, impaciente por partir. "Sim, depressa, andemos, vamos escapar, agora", dizendo, apressando-se, empurrando-se.
Eu os ajudei nos preparativos e parti com eles, também. Antes, queimamos as cabanas e tudo o que não se podia carregar, como se houvesse morrido alguém. "Aqui fica
todo o impuro que temos", assegurou Tasurinchi a sua família. Estivemos andando várias luas. Havia pouca
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comida. Os animais não caíam nas armadilhas. Por fím, em um lago, pescamos uns bagres. Comemos. De noite, nos sentamos e falamos. Toda a noite eu lhes falei, quem
sabe.
"Agora eu me sinto mais tranqüilo", disse-me Tasurinchi, quando me despedi deles, algumas luas depois. "Não terei mais raiva, acho. Já tive muita, ultimamente. Agora
não mais, talvez. Fiz bem em sair a andar, parece. Aqui no peito eu o sinto." "Como soube que tinha que sair de lá?", perguntei-lhe. "Eu me lembrei de uma coisa
que nasci sabendo", respondeu-me. "Ou teria aprendido na mareada, talvez. Se um dano acontece na terra é porque a gente não lhe presta mais atenção, porque não a
cuida como se deve cuidá-la. Pode a terra falar, como nós? Para dizer o que quer, algo terá que fazer. Tremer, quem sabe. Não se esqueçam de mim, dizendo. Eu também
vivo, dizendo. Não quero que me maltratem. Disso estaria queixando-se enquanto balançava, então. Talvez eu a tenha feito suar demais. Talvez os Padres Brancos não
sejam o que parecem, mas kamagarinis aliados de Kientibakori, e aconselhando-me que vivesse sempre ali queriam fazer mal à terra. Quem sabe? Mas, se ela se queixava,
alguma coisa tinha que fazer eu, então. Como ajudamos o sol, os rios? Como ajudamos este mundo, e o que vive? Andando. Cumpri a obrigação, acho. Olhe, já estará
dando resultado. Escute o solo debaixo dos pés; pise nele, falador. Que quieto e que firme está! Teria ficado contente, agora que de novo nos sente andando sobre
ele."
Onde estará agora Tasurinchi? Não sei. Terá ficado por aquela região onde nos despedimos? Quem sabe? Algum dia eu o saberei. Bem deve estar. Contente. Andando, talvez.
Isso é, pelo menos, o que eu soube.
Quando me separei de Tasurinchi, dei meia-volta e comecei a andar rumo ao rio Timpinía. Não tinha ido lá visitar os machiguengas há muito tempo. Mas antes de chegar,
aconteceram-me várias surpresas e tive que mudar de rumo. Por isso estarei aqui, com vocês, quem sabe. ...

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Tentando pular um matagal de urtigas, um espinho se cravou em mim. Aqui, neste pé. Eu o chupei e o cuspi. Algum dano ficaria lá dentro, porque, em pouco tempo, começou
a me doer. Muito me doía, então. Parei de andar e me sentei. Por que tinha me acontecido isto? Procurei na minha bolsa. Ali continuavam as ervas que o seripigari
me deu contra a picada da víbora, contra a doença, contra coisas estranhas. E no fundo da bolsa estava o iserepito que protege contra o mau feitiço. Esta pedrinha,
então, que ainda levo comigo. Por que nem as ervas nem o iserepito me defenderam contra o diabinho da urtiga? O pé inchara-se muito; parecia outro. Estaria me transformando
em monstro? Fiz fogo e pus o pé perto da chama para que, suando, saísse o dano de seu interior. Doía muito; rugindo, tentei assustar a dor. Tanto suar e gritar,
teria eu dormido. E, no sonho, estive ouvindo tagarelice e risadas de papagaios, então.
Tive que ficar muitas luas naquele lugar enquanto meu pé desinchava. Tentava andar e ai ai me doía muitíssimo. Não me faltou de comer, felizmente; na minha bolsa
tinha mandioca, milho e algumas bananas. Além disso, a sorte me ajudaria. Ali mesmo, sem necessidade de me levantar, arrastando-me, cravei um pauzinho mole e o curvei
com uma corda que escondi no chão. Em pouco tempo uma perdiz caiu na armadilha. Deu para comer uns dois dias. Mas dias de tormento foram, não pelo espinho, mas
pelos papagaios. Por que havia tantos, então? Por que aquela vigilância? Eram muitos os bandos; tinham se instalado em todos os galhos e arbustos dos arredores.
A cada momento chegavam mais. Todos me olhavam. Estaria acontecendo alguma coisa? Por que gritariam tanto? Essa tagarelice teria que ver comigo? Estariam falando
de mim? De quando em quando, davam risadas, dessas que dão os papagaios mas que parecem de gente. Estariam zombando de mim? Daqui não sairá nunca, falador, dizendo?
Atirei pedras para espantá-los. Inútil, alvoroçavam-se um momento e voltavam a seus lugares. E lá estavam, muitíssimos, sobre minha cabeça. O que querem? O que é
que vai acontecer?
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No segundo dia, de repente, eles se foram. Assustadíssimos partiram os papagaios. Todos de uma vez, gritando, perdendo penas, chocando-se uns nos outros, como se
o inimigo se aproximasse. Tinham farejado o perigo, parece. Porque aí mesmo passou sobre mim, saltando de árvore em árvore, um macaco falador. O yaniri. Sim, ele
mesmo, esse macaco vermelho, grande e berrão, o yaniri. Enorme, ruidoso, rodeado por seu bando de fêmeas. Elas pulavam, agitavam as mãos, felizes de estar com ele.
Felizes de ser suas fêmeas, quem sabe. "Yaniri, yaniri!", gritei para ele. "Ajude-me! Você não foi antes um seripigari? Desça, cure-me este pé, quero seguir meu
caminho." Mas o macaco falador não me deu importância. Será verdade que foi, antes, seripigari que andava? Por isso não se deve caçá-los nem comê-los, talvez. Quando
se assa um macaco falador o ar se enche de cheiro a tabaco, dizem. O que aspirou e bebeu nas mareadas o seripigari que foi.
Logo que desapareceu o yaniri e seu bando de fêmeas, voltaram os papagaios. Acompanhados de outros mais. Fiquei então a observá-los. Eram de todos os tipos. Grandes,
pequenos, pequeninos; de bicos curvos e muito grandes e de bicos achatados; havia periquitos, tucanos e papagaios. Mas, acima de tudo, caturritas. Tagarelavam ao
mesmo tempo, alto, sem parar, entrava-me pelos ouvidos um trovão de papagaios. Inquieto estava eu, olhando. Olhava-os devagarinho. Que faziam ali? Alguma coisa
ia acontecer, com certeza, apesar de minhas ervas contra coisas estranhas. "O que querem, o que estão dizendo?", comecei a gritar. "Do que falam, do que zombam?"
Assustado, mas ao mesmo tempo curioso. Nunca tinha visto tantos assim juntos. Não era por acaso, tinha um motivo. Qual era o motivo, então? Quem os tinha mandado
até mim?
Lembrando-me de Tasurinchi, o amigo dos vaga-lumes, tentei entender a conversa deles. Se estavam ali, a minha volta, falando com tanta insistência, não teriam vindo
por mim? Alguma coisa quereriam me dizer? Fechava os olhos, prestava atenção, concentrava-me em sua

201
conversa. Tentando sentir-me papagaio então. Difícil era. Mas o esforço fazia-me esquecer a dor do pé. Imitei seus guinchos, seus gargarejos; seus murmúrios imitei.
Todos
os seus ruídos. E, entre uma pausa e outra, aos pouquinhos, palavrinhas soltas, luzinhas na escuridão, comecei a ouvir. "Acalme-se, Tasurinchi", "Não se assuste,
falador", "Ninguém vai fazer mal a você, então." Entendendo o que diziam, talvez. Não riam, não estava sonhando. O que eles falavam, sim. Cada vez mais claro entendi.
E me senti tranqüilo. Meu corpo deixou de tremer. O frio se foi. Não estariam ali mandados por Kientibakori, então. Nem por feitiços de machikanari. Por curiosidade,
então? Para me fazer companhia?
"Isso mesmo, Tasurinchi", tagarelou uma voz, destacando-se das outras. Agora não havia mais dúvida. Falava e eu a entendia. "Aqui estamos para acompanhar você, para
lhe dar coragem enquanto sara. Por que se assustou de nós? Seus dentes rangiam, falador. Já viu acaso um papagaio comer um machiguenga? Em compensação, nós temos
visto muitos machiguengas comerem papagaios. Você está rindo, não é, Tasurinchi? Já faz muito que o seguimos. Por toda parte para onde vai, aí estamos. Só agora
é que notou?"
Só agora é que notava. com a voz tremendo perguntei-lhe: "Está zombando de mim?" "Digo a verdade", insistiu o papagaio, agitando a folhagem com o bater de suas
asas. "Você teve que cravar um espinho no pé para descobrir seus acompanhantes, falador."
Tivemos uma longa conversa, parece. Todo o tempo que estive ali, esperando que o dano fosse embora, conversamos. Enquanto fazia meu pé suar no fogo, para que a dor
saísse, falávamos. com aquele papagaio; também com os outros. No palavrório, todos se atropelavam. Seguidamente, não entendia o que me diziam. "Calem-se, calemse.
Falem mais devagar, ora, e um de cada vez." Não me obedeciam. Eram como vocês, igual. Do que estão rindo tanto? Parecem papagaios, então. Não esperavam que um terminasse
para falarem todos. Estavam contentes de que,
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por fim, nós nos entendêssemos. Atropelavam-se, batendo asas. Eu me sentia aliviado. Contente. "Que coisa extraordinária o que está acontecendo, então", pensava.
"Muito bem, ainda bem que você compreendeu que somos faladores", disse, de repente, um deles. E ficaram mudos os demais. Havia um grande silêncio na floresta. "Agora
você entenderá por que estamos aqui, acompanhando-o. Agora você entenderá por que, desde que voltou a nascer e começou a andar, a falar, nós o seguimos. Dia e noite,
então; pelas florestas e pelos rios, então. Você também é falador, não é, Tasurinchi? Não nos parecemos, por acaso?"
Lembrei-me, então. Todo homem que anda tem seu animal que o segue, não é assim? Ainda que ele não o veja nem chegue a adivinhá-lo. Segundo o que é, segundo o que
faz, a mãe do animal o escolhe, dizendo à cria: "Este homem é para você, cuide dele." O animal torna-se a sombra dele, parece. O meu era o papagaio? Sim, era. Não
é o animal falador? Eu o soube e me pareceu que desde antes eu o vinha sabendo. Por que, não fosse assim, senti sempre preferência pelos papagaios? Muitas vezes,
em minhas viagens, fiquei ouvindo a tagarelice deles, rindo do seu bater de asas e sua assuada. Éramos, pois, parentes, quem sabe.
bom foi saber que meu animal é o papagaio. Agora, viajo mais confiado. Nunca mais me sentirei só, talvez. Se vem o cansaço, o temor, se vem a raiva por alguma coisa,
já sei o que fazer. Levantar os olhos para as árvores e esperar. Não me falhará, acho. Como chuvinha depois do calor, brotará o tagarelar. Ali estarão os papagaios,
então. "Sim, aqui, não o abandonamos", dizendo. Por isso terei podido viajar sozinho tanto tempo. Porque não viajava só, então.
Quando comecei a vestir a blusa e a me pintar com huito e urucu, a aspirar tabaco pelo nariz e a andar, muitos estranhavam que viajasse sozinho. "É uma temeridade",
advertiam-me. "Não está cheia a selva dos demônios horríveis e das diabas imundas que Kientibakori soprou? O que você fará se eles vêm a seu encontro? Viaje como

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machiguenga, é melhor. com uma criança e, pelo menos, uma mulher. Carregarão os animais que você caçar, tirarão os que caírem na armadilha. Não se corromperá, apanhando
o cadáver dos que você matou. Terá com quem conversar, além do mais. Vários se ajudam melhor se aparecem os kamagarinis. Onde já se viu um raachiguenga sozinho
na selva!" Eu não fazia caso porque nunca me senti só em minhas andanças. Aí, entre os galhos, confundidos com as folhas das árvores, olhando-me com seus olhões
verdes, meus companheiros me seguiram. E eu os sentiria ainda que não o soubesse, talvez.
Mas não é essa a razão pela qual tenho esse lourinho. Essa é outra história, parece. Eu posso contá-la agora que ele dormiu. Se de repente eu me calar e falar bobagens,
não pensem que perdi a cabeça. Será, só, por que o lourinho acordou. É uma história que não lhe agrada ouvir, uma que deve lhe doer tanto como me doeu o espinho
da urtiga.
Isso foi depois.
Estava indo ao Cashiriari para visitar Tasurinchi e tinha caçado um paujil, com uma armadilha. Eu o assei e comecei a comê-lo, quando senti um palavrório perto
de minha cabeça. Havia um ninho, entre os galhos, meio oculto por uma grande teia de aranha. Este aqui acabava de nascer. Não tinha aberto os olhos ainda; estava
envolto em seu muco branco, como todas as crias ao romper a casca. Eu o estive espiando, sem me mexer, quietinho, para não irritar a papagaia, para não deixá-la
com raiva aproximando-me muito de sua cria. Mas a papagaia não se preocupava comigo. Estava examinando o recém-nascido, muito séria. Desgostosa, parecia. E, de
repente, começou a dar bicadas nele. Sim, bicadas com seu bico curvo. Queria tirar-lhe o muco branco? Não. Queria matá-lo. Estaria com fome? Eu a apanhei pelas
asas, não a deixei bicar-me, afastei-a do ninho. E para que se acalmasse, eu lhe dei umas sobras do paujil. Contente comeu; tagarelando e batendo asas esteve comendo.
Mas os grandes olhos dela continuavam furiosos. Uma vez que terminou a comida, retornou voando ao ninho. Fui ver e estava dando bicadas
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outra vez na cria. Você acordou, lourinho? Não acorde, deixe-me terminar antes esta história. Por que queria matar a cria? Não era por fome, então. Peguei a papagaia
pelas asas e a lancei ao ar com força. Depois de dar algumas voltas, voltou. Para me enfrentar. Raivosa, bicando e berrando, voltou. Tinha se obstinado em matar
a cria, parece. Só aí compreendi por quê. Não tinha nascido como ela esperava, talvez. Tinha a pata torta e os três dedinhos cotos. Até então eu não tinha aprendido
isso que todos vocês sabem: que os animais matam as crias que nascem diferentes. Por que o puma crava as garras no filhote manco ou vesgo? Por que o gavião despedaça
a cria de asa quebrada? Adivinharam que, não sendo perfeitos, a vida deles será difícil, com sofrimento, pois não saberão se defender, voar, caçar, fugir nem cumprir
sua obrigação. E viverão pouco, pois outros animais vão comê-los logo. "Para isso, como-a eu, e, pelo menos, que me alimente", dizendo. Ou será que, como os machiguengas,
também eles não aceitam a imperfeição? Também eles acreditarão que a cria imperfeita foi Kientibakori que soprou? Quem sabe?
Esta é a história do lourinho. Sempre está assim, encolhido no meu ombro. Que me importa que não seja puro, que tenha a pata avariada, que manque, que mal se eleve
a esta altura e caia. Porque também as asas lhe saíram muito curtas, parece. Sou eu perfeito? Parecendo-nos, nos entendemos e nos acompanhamos. Viaja neste ombro
e, de tempo em tempo, para distrair-se, trepando por minha cabeça, ele passa para o outro. Vai e volta, vem e vai. Agarra-se aos meus cabelos quando está trepando.
Puxando-me os cabelos, como que me advertindo: "Cuidado que caio, cuidado não me recolha do chão." Não pesa nada, nem o sinto. Dorme aqui, dentro da minha túnica.
Como não posso chamá-lo pai, nem parente, nem Tasurinchi, eu o chamo com uma palavra que inventei para ele. Um rumor de papagaios, então. Vamos ver, imitem-no.
Vamos acordá-lo, vamos chamá-lo. Ele o aprendeu e o repete muito bem: Mas-ca-ri-ta, Mas-ca-ri-ta, Mas-ca-ri-ta...
VIII
OS FLORENTINOS têm fama, na Itália, de serem arrogantes e odiarem os turistas que os inundam, cada verão, como um rio amazônico. Neste momento é difícil comprovar
se isso é verdade porque quase não restam nativos em Florença. Eles têm viajado, pouco a pouco, à medida que aumentava o calor, cessava a brisa das tardes, secavam
as águas do Amo e os pernilongos tomavam conta da cidade. Estes são verdadeiras miríades volantes que resistem vitoriosamente a repelentes e inseticidas e se encarniçam
contra suas vítimas dia e noite, sobretudo nos museus. São as zanzare de Florença os animais totêmicos, anjos protetores de Leonardos, Cellinis, Botticellis, Filippos
Lippis, Fray Angélicos? Pareceria. Porque é ao pé destas estátuas, afrescos e quadros onde recebi a maior parte das picadas que têm me avariado braços e pernas tanto
quanto cada vez que viajo à selva amazônica.
Ou são os pernilongos os instrumentos de que se valem os florentinos ausentes para tratar de afugentar seus detestados invasores? Em todo caso, é inútil. Nem os
insetos nem o calor, nada no mundo serviria de dique à multitudinária invasão. São apenas seus quadros, seus palácios, a pedras de seu intrincado bairro antigo o
que magnetiza deste modo em Florença, apesar do desconforto do verão, a nós, as hordas de estrangeiros? Ou é esse contubérnio de fanatismo e excesso, devoção e
crueldade, espiritualismo e refinamento sensual, de corrupção política e ousadia da inteligência, de seu passado, o que nos mantém nesta cidade sufocante, desertada
por seus habitantes?
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Nestes dois meses, tudo foi se fechando: as lojas, as lavanderias, a incômoda Biblioteca Nacional perto do rio, os cinemas que eram meu refúgio das noites, e, finalmente,
os cafés onde ia ler Dante e Maquiavel e pensar em Mascarita e os machiguengas das cabeceiras do Alto Urubamba e Madre de Dios. Fechou primeiro o agradável Caffè
Strozzi, com seus móveis e sua decoração art-déco, que, além disso, tinha ar-condicionado, maravilhoso oásis para as tardes sufocantes; fechou depois o Caffè Paszkowski,
onde, ainda que suando, era possível isolar-se, no seu segundo andar de velha aparência démodé, com suas poltronas de couro e cortinas de veludo sangrento; fechou
em seguida o Caffè Gillio, e, por último, o mais turístico e abarrotado, o Caffè Rivoire, da Piazza delia Signoria, onde tomar um café macchiato me custava tanto
como um jantar em uma trattoria de bairro. Como não é nem remotamente possível ler ou escrever em uma gelateria ou em uma pizzeria (são poucos os lugares hospitaleiros
que estão abertos), tive que resignar-me a ler em minha pensão do Borgo dei Santi Appostoli, transpirando abundantemente, à fraca luz de um velho lampião que parece
desenhado com o propósito de dificultar a leitura ou castigar b teimoso leitor com uma instantânea cegueira. São incômodos que, como teria dito o terrível fradinho
de San Marcos
- uma inesperada conseqüência desta estada em Florença terá sido, para mim, descobrir, graças a seu biógrafo Rodolfo Ridolfi, que o desprestigiado Savonarola era,
afinal de contas, uma figura interessante e talvez melhor que a dos que o queimaram -, predispõem favoravelmente o espírito para entender melhor, para quase vivê-los,
os suplícios dantescos durante a peregrinação infernal ou para meditar, com a devida calma, sobre as aterrorizantes conclusões que, sobre a cidade dos homens e
o governo de seus assuntos, tirou de suas experiências como funcionário desta república, Maquiavel, o glacial analista de sua história.
Fechou também, naturalmente, a pequena galeria da Rua Santa Margherita onde, entre uma ótica e um armazém, face a face com a chamada igreja de Dante,

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estiveram expostas as fotografias machiguengas de Gabriele Malfatti. Mas eu pude vê-las várias vezes ainda, antes de sua chiusura estivale. Na terceira vez que me
viu
entrar, a moça magra, de óculos, encarregada da galeria, me fez saber abruptamente que tinha um fidanzato. Tive que garantir-lhe, em meu mau italiano, que minha
assiduidade a respeito daquela exposição era desinteressada, de certo modo patriótica, e que nada tinha a ver com sua beleza mas unicamente com as fotografias
de Malfatti. Não conseguiu nunca engolir a história de que eu passava tantos minutos contemplando-as por pura nostalgia de minha terra. E por que, sobretudo, aquela,
a do grupo de índios sentados em uma posição parecida com a oriental, que escutavam embevecidos aquele homem gesticulante? Estou certo que nunca levou a sério minhas
afirmações de que essa fotografia era uma definitiva obra-prima, alguma coisa que se devia degustar lentamente, como nos Uffizi se contempla A alegoria da primavera
ou A batalha de São Romano. Mas, enfim, depois da quarta ou quinta vez que me viu na solitária galeria, a desconfiança dela cedeu um pouco e um dia, inclusive, teve
um gesto cordial, avisando-me que diante da Chiesa de San Lorenzo, toda noite, "um conjunto de Incas" tocava música peruana com instrumentos típicos: por que não
ia vê-los, me traria lembranças da Pátria. (Eu a obedeci, fui e descobri que os Incas eram dois bolivianos e dois portugueses de Roma que tentavam uma mistura de
fados e carnavalitos.) Há uma semana a galeria de Santa Margherita fechou e a magrinha de óculos veraneia agora em Ancona, na casa de seus genitori.
Aquela fotografia, em todo caso, não preciso mais vêla. Eu a aprendi de memória, em todos os seus detalhes, milímetro a milímetro. E já pensei tanto sobre ela que,
curiosamente, sei que suas figuras nuas, sentadas, de cabeleiras lassas, a silhueta do falante de pé e o horizonte de copas de árvores de grossos troncos e galhos
entreverados sob um manancial de nuvens cinzentas e pançudas, serão a mais perene recordação deste verão florentino. Mais duradouro e comovente talvez que as maravilhas
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arquitetônicas e plásticas do Renascimento, o harmonioso murmúrio da terza rima dantesca ou os selvagens ritornellos (em seu caso sempre compatíveis com a inteligência
luciferina)
da prosa de Maquiavel.
Estou certo que a fotografia retrata um falador machiguenga. E a única coisa sobre a qual não guardo a menor dúvida. O homem que perora, ante aquele auditório extasiado,
quem poderia ser senão aquele personagem encarregado de atiçar ancestralmente a curiosidade, a fantasia, a memória, o apetite de sonho e de mentira do povo machiguenga?
Como conseguiu Gabriele Malfatti estar presente a essa sessão e que lhe permitissem tirar fotografias? Talvez a razão do segredo que cercava os faladores na época
contemporânea - o forasteiro mudado em machiguenga - já não existisse quando o italiano visitou a região. Ou, talvez, nestes últimos anos, a situação no Alto Urubamba
evoluiu tão rapidamente que os faladores não cumprem mais a função secular, perderam autenticidade e se transformaram, como as cerimônias com o ayahuasca e as curas
dos chamanes de outras tribos, em uma pantomima organizada para turistas.
Mas duvido que seja assim. A vida mudou naquela região, sim, mas não em direção ao incremento do turismo. Surgiram primeiro os poços de petróleo, aqueles acampamentos
para os quais foram contratados como peões muitos campas, yaminahuas, piros e também, certamente, machiguengas. Depois, ou ao mesmo tempo, o tráfico de drogas
começou a se estender pela Amazônia, como uma peste bíblica, sua rede de plantação de coca, laboratórios e aeroportos clandestinos e, conseqüência lógica, sobrevieram
as periódicas matanças, os acertos de contas entre bandos rivais de colombianos e peruanos, a queima de plantações, as expedições de caça e busca da polícia. E,
finalmente - ou, talvez também ao mesmo tempo -, o terrorismo e a ação antiterrorismo. Os destacamentos revolucionários do Sendero Luminoso, reprimidos com rigor
nos Andes, desceram para a selva e também operam por essa região da Amazônia que é, por isso mesmo,

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periodicamente invadida pelo Exército e se diz que, inclusive, bombardeada pela Aeronáutica.
Que efeito causou tudo isto sobre o povo machiguenga? Acelerou seu desmembramento ou dissolução? Existem ainda os povoados que começaram a congregá-los há cinco
ou seis anos? Aquelas aldeias, é claro, terão acabado expostas ao irresistível mecanismo perturbador dessa civilização contraditória, representada pelos bons salários
da Shell e da Petro Peru, os baús cheios de dólares do tráfico da coca e os riscos de se verem envolvidos na carnificina da guerra de traficantes, guerrilheiros,
policiais e soldados, sem entender uma palavra do que está em jogo. Como quando os invadiram os exércitos incas, os exploradores, conquistadores e missionários espanhóis,
os caucheiros e madeireiros republicanos, os buscadores de ouro e os imigrantes das montanhas do século XIX. Para os machiguengas, a história não avança nem retrocede:
gira, se repete. Mas, embora os estragos causados à comunidade tenham sido muito grandes por causa de tudo isto, o provável é que uma boa parte deles, face aos transtornos
dos últimos anos, tenha optado para sobreviver pela imagem tradicional: a diáspora. Começar uma vez mais a andar, como no mais persistente de seus mitos.
Anda entre eles, com esse passinho curto, de palmípede que assenta de uma vez toda a planta do pé, típico dos homens das tribos amazônicas, meu ex-amigo, o exjudeu,
ex-branco e ex-ocidental Saul Zuratas? Decidi que o falador da fotografia de Malfatti seja ele. Pois, objetivamente, não tenho maneira de sabê-lo. Verdade que a
figura de pé denota na cara uma sombra mais intensa - no lado direito, onde ele tinha o sinal -, que poderia ser a chave para identificá-lo. Mas, a essa distância,
a impressão pode ser enganadora, e se tratar de mera sombra do sol (a cara está de lado e de tal modo que a luz do crepúsculo, caindo do lado oposto, sombreia todo
o lado direito de homens, árvores e nuvens). Talvez a pista mais segura seja a forma da silhueta. Ainda que esteja distante, não há dúvida: essa não é a arquitetura
típica de um índio da selva,
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homem em geral baixo, de pernas curtas e ovaladas e largo tórax. Quem está falando tem um corpo alongado e juraria que uma pele - está nu da cintura para cima
muito mais clara que a dos que o escutam. Mas os cabelos dele mostram, é verdade, o corte singular, como capuz medieval, de um machiguenga. Decidi, também, que esse
vulto que há no ombro esquerdo do falador da fotografia seja um papagaio. Não seria a coisa mais natural do mundo que um falador percorra as florestas com um papagaio
de totem, companheiro ou sacristão?
Depois de dar muitas voltas e combiná-las umas com as outras, as peças do quebra-cabeça combinam. Delineiam uma história mais ou menos coerente, com a condição
de se limitar no episódio em si mesmo e não se perguntar pelo que Frei Luís de León chamava "o princípio próprio e escondido das coisas".
Desde aquela primeira viagem a Quillabamba, à casa do chacareiro parente de sua mãe, Mascarita entrou em contato com um mundo que o intrigou e o seduziu. O que
deve ter sido, no princípio, um movimento de curiosidade intelectual e de simpatia pelos hábitos de vida e a condição machiguenga, foi, com o tempo, à medida que
os conhecia melhor, aprendia o idioma deles, estudava sua história e começava a compartilhar de sua existência por períodos cada vez mais longos, tornando-se uma
conversão, no sentido cultural e também religioso do termo, uma identificação com seus costumes e tradições nas quais - por motivos que posso intuir mas não entender
completamente Saul encontrou um sustento espiritual, um estímulo, uma justificação de vida, um compromisso, que não tivera nas outras tribos de peruanos - judeus,
cristãos, marxistas, etc. - entre as quais tinha vivido.
A transformação deve ter sido muito lenta, alguma coisa que foi se operando de maneira inconsciente, naqueles anos dedicados a estudar Etnologia em San Marcos. Que
se desencantasse dos estudos, que visse na atitude científica do etnólogo uma ameaça àquela cultura primitiva e arcaica (ele, então, já não teria concordado com
estes qualificativos), uma intromissão nela da destruidora mo-

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dernidade, uma forma de adulteração, é uma coisa que posso compreender. A idéia do equilíbrio entre o homem e a terra, a consciência do estupro do meio ambiente
pela cultura industrial e a tecnologia moderna, a reavaliação da sabedoria do primitivo, obrigado a respeitar seu habitat sob pena de extinção, é uma coisa que naqueles
anos, se ainda não era uma moda intelectual, já começava a deitar raízes por toda parte, inclusive no Peru. Mascarita deve ter vivido tudo isto com uma intensidade
particular, ao ver com seus próprios olhos as grandes devastações que os civilizados perpetravam na selva e a maneira como, em compensação, os machiguengas conviviam
harmoniosamente com o mundo natural.
O fato decisivo para o grande passo foi, sem dúvida, a morte de Dom Salomón, a única pessoa a que Saul estava ligado e a que sentia obrigação de prestar contas de
sua vida. É provável, pela maneira como mudou de conduta no segundo ou terceiro ano de Universidade, que houvesse decidido com antecedência, que, uma vez morto
o pai, abandonaria tudo e se mudaria para o Alto Urubamba. Até aquele momento não há nada de extraordinário em sua história. Nos anos sessenta e setenta - anos da
rebelião estudantil contra a moral do consumo - muitos jovens de classe média abandonaram Lima, estimulados por uma mistura de desejo de aventura e desgosto da vida
capitalina, e foram para a serra ou para a selva, a viver em condições às vezes muito precárias. Um dos programas de "La Torre de Babel" - infelizmente prejudicado
em grande parte pelas crônicas anomalias da câmera de Alejandro Pérez - foi dedicado precisamente a um grupo de rapazes limenhos que emigraram para Cusco, onde sobreviviam
realizando pitorescas tarefas. Que, como eles, Mascarita decidisse renunciar a um futuro burguês e ir à Amazônia, à aventura - o regresso ao elementar, às fontes
-, não tem por que chamar muito a atenção.
Mas Saul não foi como eles. Ele foi apagando os rastros de sua partida e suas intenções, fazendo crer aos que o conheciam que partia para Israel. Que outra coisa
podia querer dizer toda aquela coarctada do judeu que faz uma
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alia senão que, ao deixar Lima, Saul Zuratas tinha decidido já, irreversivelmente, mudar de pele, de nome, de costumes, de tradição, de deus, de tudo o que havia
sido até então? É evidente que saiu de Lima com a intenção de não voltar e de ser outro para sempre jamais.
Ainda que com certo esforço, até aqui consigo acompanhá-lo. Acho que sua identificação com a pequena comunidade errante e marginal da Amazônia teve alguma coisa
que ver - muito que ver -, como conjecturava seu pai, com o fato de que fosse judeu, membro de outra comunidade também errante e marginal ao longo de sua história,
pária entre as sociedades do mundo, nas quais, como os machiguengas no Peru, viveu inserida mas não misturada nem nunca aceita de todo. E certamente também naquela
solidariedade influiu, como costumava eu brincar com ele, aquele enorme sinal, que fazia dele um marginal entre os marginais, um homem cujo destino estaria, sempre,
acossado por um estigma de fealdade. Posso chegar a aceitar que entre os adoradores do espírito da árvore e do trovão, os ritualistas do tabaco e o cozimento de
ayahuasca, Mascarita se sentisse mais aceito - dissolvido em um ser coletivo - que entre os judeus ou os cristãos de seu país. De uma maneira muito pessoal e sutil,
indo ao Alto Urubamba para nascer de novo, Saul fez sua alia.
Onde encontro uma dificuldade intransponível para segui-lo - uma dificuldade que me aflige e me frustra - é no estádio seguinte: a transformação do converso em falador.
É, naturalmente, o fato que mais me comove em toda * "a história de Saul, o que faz com que pense nela continuamente, que a ate e a desate mil vezes, e o que me
motivou a escrevê-la, para ver se assim me livro de seu acossamento.
Porque converter-se em um falador era acrescentar o impossível ao que era só inverossímil. Retroceder no tempo, da calça e da gravata à tanga e à tatuagem, do castelhano
à crepitação aglutinante do machiguenga, da razão à magia e da religião monoteísta ou o agnosticismo ocidental ao animismo pagão, é difícil de engolir mas ainda
possível, com certo esforço de imaginação. O outro, entretanto, põe

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diante de mim uma treva que, quanto mais tento perfurar mais se adensa.
Porque falar como fala um falador é haver chegado a sentir e viver o mais íntimo dessa cultura, haver calado em suas entranhas, chegado ao tutano de sua história
e sua mitologia, somatizado seus tabus, imagens, apetites e terrores ancestrais. É ser, da maneira mais essencial possível, um machiguenga radical, mais um da antiqüíssima
estirpe que, já naquela época em que esta Florença onde escrevo produzia sua efervescência entulhada de idéias, imagens, edifícios, crimes e intrigas, percorria
as florestas do meu país levando e trazendo os fatos, as mentiras, as fabulações, os mexericos e as piadas que fazem desse povo de seres dispersos uma comunidade
e mantém vivo entre eles o sentimento de estar juntos, de constituir algo fraterno e compacto. Que meu amigo Saul Zuratas renunciasse a ser tudo o que era e teria
podido chegar a ser, para, há mais de vinte anos, andar pelas selvas da Amazônia, prolongando, contra tudo e todos - e, sobretudo, contra as próprias noções de modernidade
e progresso a tradição dessa invisível linhagem de contadores ambulantes de histórias, é uma coisa que, de tempo em tempo, me volta à memória e, como aquele dia
em que o soube, na escuridão sem estrelas do povoado de Nueva Luz, dispara meu coração com mais força que o tenham feito nunca o medo e o amor.
Escureceu mas há também estrelas, ainda que não tão lúcidas como as da selva, na noite de Florença. Pressinto que a qualquer momento acabará a tinta (as lojas da
cidade onde poderia encontrar nova carga para minha caneta estão também em chiusura estivale, naturalmente). O calor é intolerável e o quarto da Pensão Alejandra
fervilha de mosquitos que zumbem e esvoaçam à volta de minha cabeça. Poderia tomar uma ducha e sair para dar uma volta, em busca de distração. É possível que no
Lungarno haja um pouco de brisa, e, se o percorro, o espetáculo dos molhes, pontes e palácios iluminados, sempre belo, desemboca em outro espetáculo, mais truculento,
o do Cascine, de dia beatífíco passeio de senhoras e crianças, e, a
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estas horas, antro de putas, pederastas e vendedores de drogas. Poderia ir misturar-me com os jovens ébrios de música e maconha da Piazza dei Santo Spirito ou à
Piazza delia Signoria que, a estas horas, é uma multicolorida Corte dos Milagres onde se improvisam simultaneamente quatro, cinco e às vezes dez espetáculos: conjuntos
de maraqueiros e tumbadores caribenhos, equilibristas turcos, engolidores de fogo marroquinos, uma tuna espanhola, mímicos franceses, jazzmen norte-americanos, adivinhadoras
ciganas, guitarristas alemães, flautistas húngaros. Às vezes é agradável perder um instante nessa multidão variada e juvenil. Mas esta noite, fosse para onde fosse,
seria em vão. Sei que nas pontes de pedras ocres sobre o Amo, sob as árvores prostibulares do Cascine ou sob os músculos da fonte de Netuno e o bronze cagado de
pombas do Perseu de Cellini, onde quer que me refugie tentando aplacar o calor, os mosquitos, a exaltação do meu espírito, continuarei ouvindo, próximo, sem pausas,
crepitante, imemorial, esse falador machiguenga.
Florença, julho de 1985 Londres, 13 de maio de 1987
RECONHECIMENTO
Como todos os que tenho escrito, este romance deve muito à ajuda, voluntária ou involuntária, de diversas instituições e pessoas. Quero mencionar o Instituto Lingüístico
de Verão, a Missão Dominicana do Urubamba e o CIPA (Centro de Investigação e Promoção Amazônica) e agradecer-lhes a hospitalidade que me brindaram na selva; a Vicente
de Szyszlo e a Luis Román, tão bons companheiros de viagem pela Amazônia; e ao Padre Joaquín Barriales, O.P., recopilador e tradutor de muitas canções e mitos machiguengas
que aparecem em meu livro.

Atendemos também pelo Reembolso Postal LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S A Rua Sete de Setembro, 177 - Centro
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Rua Sargento Silva Nunes. 154 • Ramos - Tel : 270-3946
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Digitalizado e revisto por virgínia Vendramini

Rio de Janeiro, maio de 2008








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Resignação para aceitar o que não pode ser mudado...

E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.

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