domingo, 9 de outubro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> Lançamento Arcanjo Micael - Terapia Ocupacional - Léa Beatriz Teixeira Soares


LÉA BEATRIZ TEIXEIRA
SOARES

TERAPIA
OCUPACIONAL
Lógica do Capital ou do Trabalho?

Retrospectiva histórica da profissão no Estado brasileiro de
1950 a 1980

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1991


DEDICO ESTE TRABALHO

À dúvida e resistência de terapeutas ocupacionais que, apesar
da alienação de sua prática e do espaço institucional,
souberam abrir o debate e aprofundá-lo fora do espaço
terapêutico específico.
À luta dos trabalhadores em assumir a direção da história
pelo aprendizado da reflexão e ação sobre os conflitos a
serem superados.
Àqueles que direta e indiretamente permitiram que este
trabalho existisse, em especial à Camila e ao Zenon.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se originou da crise do papel profissional
desempenhado pela terapia ocupacional no Brasil nos anos
80. A fundamentação clínica, advinda da formação técnica e
reducionista hegemônica nos cursos de graduação em saúde,
não conseguia justificar os fracassos em programas
reabilitacionais nem tampouco subsidiar a emergente
intervenção em programas educativos e de promoção da
saúde.
A superação dessa crise, sob nosso ponto de vista, só pode
advir do reconhecimento das raízes da atual conjuntura, ou
seja, da inserção histórica e social da terapia ocupacional nas
políticas sociais brasileiras, que delinearam determinadas
práticas institucionais e enfoques terapêuticos. A alienação
da categoria a respeito de seu próprio percurso histórico é
fruto tanto da limitada literatura nacional (Arruda, 1962;
Cerqueira, 1967; Gonçalves, 1964; Lemos, 1985; Silveira,
1976), dos conflitos e ruptura ocorridos nesta trajetória,
quanto pelo fato de a constituição histórica existente ser
factual, quase independente e autônoma do movimento da
sociedade e de suas contradições.
A literatura na área, primordialmente produzida nos Estados
Unidos e Inglaterra (Hopkins, 1983; MacDonald, 1972;
Mosey e Rerek, 1979; Reed e Sanderson, 1980; Scullin,
1975), fundamenta a constituição profissional como decor-
rência dos incapacitados da Primeira e Segunda Guerras
Mundiais e do avanço das práticas médicas. Para estes
autores não existe a produção social das doenças, o governo
é um "mediador neutro" e a clientela não é observada en-
quanto classe social.
Assim, o reconhecimento das tendências e conflitos
contemporâneos esteve prejudicado pela ausência de uma
construção histórica não fragmentada e globalizante.
Pretende-se, com este trabalho, ultrapassar a visão
instantânea da realidade para a identificação da inserção da
terapia ocupacional com seus múltiplos fatores
intervenientes na política de saúde brasileira.
No Brasil a terapia ocupacional iniciou sua intervenção nos
anos 40 com doentes mentais, e na década seguinte, com
incapacitados físicos objetivando a remissão dos sintomas
patológicos e a reabilitação social e econômica dessa cliente-
la. Para tanto, utilizou-se o trabalho, a recreação e o
exercício como meio de desenvolvimento e adaptação do
homem à sociedade. A vinculação destas três formas de
atividade humana numa abordagem terapêutica em resposta
a demandas sociais específicas constituiu historicamente a
terapia ocupacional.
"O termo 'ocupação' tem sido desde muito reconhecido
como um requisito para a sobrevivência e, em graus
variados, como uma fonte de prazer. O termo 'terapia
ocupacional' [...] é [...] o uso do trabalho, exercício e jogo
como formas de tratamento" (Hopkins, 1983:1).
A terapia ocupacional vem intervir no binômio trabalho-
saúde e, sob nosso ponto de vista, assume, enquanto base
fundamental, o caráter subjetivo/objetivo do trabalho como
realização da capacidade humana e inserção do indivíduo à
sua realidade material.
Os terapeutas ocupacionais brasileiros, ao se engajarem no
mercado de trabalho, têm convivido com a crítica realidade
da assistência à saúde : verbas reduzidas para as medidas
preventivas de caráter coletivo e atendimento às populações
marginais; a crise de insolvência dos serviços hospitalares e
ambulatoriais particulares ou estatais mantidos pela
Previdência Social, e a política de subvenção às entidades
beneficentes ou particulares voltadas à reabilitação
conveniadas ao sistema público.
A terapia ocupacional, profissão historicamente ligada à
reabilitação de pessoas portadoras de déficit ou
incoordenação motora (oriundos de traumatismos, doenças
incapacitantes ou degenerativas), problemas psíquicos ou
deficiência mental, vive o dia-a-dia das instituições
conveniadas ou, em menor escala, os programas públicos
ambulatoriais e hospitalares de saúde mental, hanseníase e
reabilitação profissional. A contradição principal no meio
terapêutico ocupacional é a falta de condições de se
concretizar o objetivo último da categoria: a autonomia do
indivíduo em suas atividades de vida diária e sua absorção ao
mundo do trabalho.
Das instituições conveniadas, inúmeras entidades
beneficentes se mantêm em decorrência do vínculo ao
sistema de saúde previsto na Portaria Interministerial 186, de
1978, MEC-MPAS (Ministério da Educação e Cultura e da
Previdência e Assistência Social: Brasil, s.d.:754). Esta
portaria regulamenta o atendimento a excepcionais e
determina os critérios de classificação para a dotação de
verbas, de acordo com os recursos humanos e instalações,
correspondente a cada tipo de clientela. Assim, no item
recursos, o pessoal técnico recebe pontos segundo uma
proporção prevista entre o número de clientes e a
problemática atendida. A desatualização e fiscalização dos
recursos governamentais face à recessão e injunções
políticas têm favorecido a insolvência das entidades
beneficentes que a enfrentam com campanhas de doação,
sócios-contribuintes, promoções especiais, redução do
quadro de pessoal, achatamento salarial e "superlotação" do
atendimento. Assim a terapia ocupacional realizada na
maioria destas entidades focaliza a orientação de professores,
o tratamento neurológico e o treinamento de habilidades
motoras e perceptivas. O enfoque profissionalizante é
raramente abordado por requerer maior infra-estrutura, com
programa a longo prazo e de natureza mais complexa.
Nas clínicas, consultórios ou escolas particulares observa-se,
como tendência, a sofisticação de técnicas e recursos,
requisitando dos profissionais uma constante modernização.
Nestes locais, apesar de a clientela ser de maior poder
aquisitivo, aí também os profissionais necessitam atender
mais pacientes em seu tempo de serviço ou ampliar a jornada
de trabalho para manter seu próprio padrão de consumo e
atualização. O trabalho do terapeuta ocupacional nas
entidades particulares também se assemelha quanto aos
objetivos, e às vezes até quanto à forma, ao planejado nas
entidades beneficentes. A distinção se dá quanto às maiores
chances de concretização deste programa terapêutico nas
instituições particulares.
Por sua vez, a população doente mental é atendida, se for
previdenciária, em hospitais particulares conveniados, ou,
então, em hospitais estatais e, mais recentemente, nos
ambulatórios. O sistema de convênio hospitalar do INAMPS
(Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência
Social) também prevê um sistema de classificação segundo as
instalações e recursos humanos, o RECLAC. Aqui as
distorções também ocorrem. Por exemplo, um terapeuta
ocupacional para cinqüenta pacientes, numa jornada de
vinte horas semanais, vale quarenta pontos, número máximo
atingido por esta classificação. Agora, a contratação do
profissional não é obrigatória, pois "os mesmos quarenta
pontos podem ser obtidos em espécie (geladeiras, por
exemplo)" (Hahn, 1983:5). Em geral, existe somente um
terapeuta ocupacional contratado em um hospital de 250
leitos, cujo trabalho é a ocupação terapêutica de pequena
parcela dos internos sem uma intervenção mais específica e
individualizada sobre o distúrbio afetivo e práxico do
indivíduo (cotidianidade, relacionamento social, prática
profissional). O trabalho ocupacional objetiva basicamente a
redução da sintomatologia do paciente, lidando com os
aspectos mais gerais do indivíduo.
Os Centros de Reabilitação Profissional do INAMPS contam
em sua equipe profissional com terapeutas ocupacionais para
tratamento e avaliação para o trabalho. No entanto, as
perspectivas do previdenciário acidentado (80% dos casos
elegíveis em São Paulo), ao ser recuperado, são, de imediato,
a suspensão do auxílio-doença, sem a respectiva recolocação
no mercado de trabalho. Em contrapartida, o acidentado não
reabilitado vem somar um subemprego ao auxílio-doença, o
qual, geralmente, é superior ao salário original, sem o risco
da rotatividade de mão-de-obra no mercado de trabalho, cuja
flutuação é elevada entre os incapacitados. Essa contradição
promove o abandono do atendimento pelo acidentado ou
ainda seu desestímulo pelo programa de reabilitação.
Esse breve panorama da reabilitação no Brasil, com suas
distintas e díspares instituições, tem como pano de fundo a
mesma realidade: a inexistência de uma política
governamental de reabilitação comprometida e sistemática
para a área integrada aos demais níveis de atenção à saúde e a
uma política de pleno emprego.
O presente trabalho busca estabelecer um estudo sobre a
constituição da terapia ocupacional no Estado brasileiro no
período de 1950 a 1980, adotando o referencial materialista
dialético. Por este referencial, foram relacionadas as políticas
de saúde do século XX na sociedade brasileira,
particularizando as medidas voltadas para a atenção terciária
de saúde. Uma outra parte, imbricada a esta, foi a análise dos
dados coletados e das entrevistas realizadas.
O fenômeno da constituição de uma prática social pode ser
estudado por diferentes óticas. Uma das formas propostas
por Willeski (apud Tambini, 1979:5-6) divide o processo de
constituição de uma profissão em cinco etapas. A primeira
delas se dá com o surgimento de um grupo ocupacional cujo
trabalho responde a necessidades sociais específicas; a se-
gunda ocorre a partir da definição sobre o processo de
seleção e formação deste grupo ocupacional; a terceira é a
constituição de uma entidade da categoria; a quarta se
manifesta na busca da legitimação oficial, do
reconhecimento público e controle do ingresso e exercício
profissional e, por último, na elaboração de um código de
ética.
Essa visão, que parte da necessidade social e percorre um
caminho intrínseco à própria categoria ora constituída, ape-
sar de lógica e seqüencial, não esclarece o movimento mais
amplo entre a emergência de determinadas necessidades na
sociedade, a luta política por seu reconhecimento, a
reorientação do conhecimento científico para alguma destas
necessidades, a constituição de novas modalidades
ocupacionais a partir da revolução técnico-científica e a
absorção e institucionalização dessas novas modalidades ao
conjunto de medidas hegemônicas do Estado.
A complexidade desta última abordagem exigiu o estudo de
parte da literatura marxista sobre a estrutura da sociedade de
classes; a historicidade das necessidades humanas e do
próprio homem; as contradições imanentes a esse processo e
sua superação; as transformações do modelo econômico e
suas repercussões na saúde dos trabalhadores; as
necessidades de saúde da população e as respostas do Estado
via políticas sociais; e o papel econômico, político e
ideológico imbricado nas práticas de saúde.
Por este prisma, o caminho especificamente traçado por uma
dada profissão, a terapia ocupacional, adquire uma nova
dimensão: de síntese das múltiplas determinações a que está
sujeita e sobre as quais exerce influência. Sob este mesmo
enfoque outras profissões já foram analisadas, como a
medicina, o serviço social e a pedagogia (vide,
respectivamente, Gonçalves 1979; Verdes-Leroux, 1986 e
Carvalho, 1989).
A partir da literatura à qual tivemos acesso novas questões se
colocaram: quais teriam sido os determinantes econômicos,
político-ideológicos e as necessidades sociais que vieram
constituir, no Brasil, a terapia ocupacional, uma outra
profissão na área de saúde? A quais necessidades sociais
estará a terapia ocupacional respondendo atualmente? Qual a
função político-ideológica contemporânea desta prática de
saúde? A terapia ocupacional responde ou pode vir a respon-
der às necessidades da classe trabalhadora?
A problematização desses pontos, que dão rumo a este
trabalho, redimensionou a coleta de dados sobre o processo
de constituição e desenvolvimento dos serviços e cursos de
formação de terapeutas ocupacionais no Brasil.
Para tanto foram levantados dados junto às treze
coordenações de cursos de terapia ocupacional do país e
foram realizadas entrevistas com pessoas que tiveram
destaque no processo de formação de terapeutas
ocupacionais em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais,
visando resgatar a história não documentada dos cursos
pioneiros. A maior parte das entrevistas, ao fornecer
elementos da realidade profissional, veio alimentar esta
análise. O presente trabalho incorporou alguns depoimentos
dos entrevistados, que aparecem diretamente no texto. As
entrevistas na íntegra, no entanto, foram transcritas e
permanecem à disposição dos interessados. O Anexo II lista
a totalidade das entrevistas.
A reflexão sobre o processo brasileiro ainda não atingiu um
grau de explicitação que permita uma análise mais profunda,
constituindo um impasse a ser enfrentado por este e tantos
outros trabalhos que estejam sendo realizados. Tentou-se
homogeneizar a linguagem, ainda que, por exemplo, os
termos louco, insano, alienado surjam em vários pontos
alternados, sem a precisão lingüística adequada.
Pela complexidade dos fatores que envolvem a relação
trabalho e saúde, e, especificamente, como o referencial
teórico adotado neste trabalho ainda é pouco veiculado em
terapia ocupacional, decidimos por fazer uma exposição de
caráter introdutório para aqueles que necessitem se inteirar
do método materialista dialético, no Capítulo I, e das políti-
cas de saúde no Brasil, no Capítulo II. A originalidade deste
trabalho se encontra nos Capítulos III e IV.
Para tanto, no Capítulo I, apresentamos os conceitos básicos
envolvidos nesta análise: a concepção histórico-material de
homem e sociedade, o caráter de desenvolvimento e de
alienação da atividade humana; as necessidades de saúde e
respectivas respostas do Estado, e as funções que a medicina,
como prática hegemônica da saúde, cumpre no Estado
monopolista brasileiro.
No Capítulo II buscamos retratar o movimento entre as
transformações da base econômica sobre as políticas sociais
do Estado brasileiro no século XX, destinadas à classe
trabalhadora e às populações marginais, ressaltando as
medidas vinculadas à reabilitação física e mental.
No Capítulo III, o processo de implantação de serviços de
reabilitação e respectivas instituições no Brasil, no período
de 1950 a 1980, são analisados segundo sua independência e
articulação com as políticas sociais do país e do movimento
internacional de reabilitação e revolução técnico-científica
no setor saúde.
No Capítulo IV, buscamos retratar a formação do terapeuta
ocupacional no Brasil, os modelos técnico-científicos da
profissão nos diversos espaços institucionais resultantes de
seu entrelaçamento com as políticas sociais. Este percurso,
sobre a historicidade do emprego de atividades com os
indivíduos doentes, visa resgatar os elementos constitutivos
de uma visão globalizante, unitária, da práxis humana, que
supere a visão reducionista de homem-saúde-atividade e seja
engajada no movimento de construção de uma nova
sociedade.
O presente trabalho não pretende encontrar saídas e
concluir etapas. Ao contrário, quer ser uma contribuição à
reflexão e problematização dessa prática social, ao resgatar o
percurso de constituição da terapia ocupacional no Brasil,
seu caráter assistencialista e suas contradições intrínsecas.
Assim, ao se buscar reconhecer as funções econômicas, polí-
ticas e ideológicas cumpridas por esta prática profissional
pretende-se pôr um pouco mais às claras as contradições da
sociedade capitalista no que tange aos mecanismos de sujei-
ção das classes populares intermediadas pelas instituições de
saúde, visando corroborar com o processo mais amplo de
emancipação dos trabalhadores.


1
TRABALHO, CAPITAL E SAÚDE

O presente capítulo trata das relações entre o trabalho
humano, o sistema capitalista e a forma histórica social que a
necessidade de saúde assume e é satisfeita no bojo da
sociedade de classes. Esses pressupostos imbricam-se com o
problema particular a ser tratado nesta investigação: a
constituição de uma determinada prática social, a terapia
ocupacional, no interior da divisão do trabalho em saúde na
sociedade brasileira.
A caracterização social da clientela neste século pertence
primordialmente ao exército industrial de reserva e às
populações marginais. O surgimento da terapia ocupacional
na segunda década deste século nos Estados Unidos, em
nosso ponto de vista, ocorreu no período de pico da
produção industrial, quando a lógica economicista do capital
requisitava a absorção de incapacitados à força de trabalho.
Assim, criaram-se serviços de reabilitação física e oficinas de
trabalho nos hospitais para a recuperação de inválidos. Já sua
continuidade decorreu da adequação desta prática
profissional, e dos serviços de reabilitação, ao processo global
de divisão do trabalho na área de saúde, da realização de
interesses político-ideológicos das classes hegemônicas com
estas parcelas da população e do atendimento de
determinadas necessidades de saúde que não encontravam
respostas na exclusiva intervenção médica.
A sociedade brasileira, onde se desenvolve o capitalismo
tardio, estruturou de maneira tênue e paulatina um sistema
de saúde para a população, que inclui os serviços de preven-
ção, tratamento e reabilitação. A partir do início do século e
sobretudo no Estado Novo, similar ao processo europeu, que
teve início no século XIX, a saúde dos trabalhadores tornou-
se tarefa do Estado, "instância da sociedade historicamente
responsabilizada pelas condições de saúde da força de
trabalho, [...] através de suas instituições médicas" (Luz,
1979:54).
A identificação das condições de saúde como
presença/ausência relativa de doenças na população tem sido
adotada, aqui e nas demais sociedades capitalistas, de maneira
a não se questionar a determinação que as condições globais
de vida têm sobre a saúde da população.
A análise que Madel T. Luz (1979) faz sobre as instituições
de saúde brasileiras demonstra que a "crise da saúde do
povo", resultante das duras condições de vida das classes
populares no modo capitalista de produção, é "recuperada"
segundo o discurso estatal ao implantarem-se medidas de
saúde para a população, mas, na prática, estas vêm beneficiar,
a nível institucional, os interesses das classes dominantes.
O Estado brasileiro assume a centralização e o planejamento
da saúde como mais um eixo de poder disciplinador da
sociedade. A intervenção direta, maciça e organizada da
estrutura governamental sobre a sociedade, após a Segunda
Guerra Mundial, é fruto da concentração do capital. A autora
fala do poder disciplinador da saúde:
"Ora, uma das formas institucionais mais importantes de
controle das classes pelo Poder dominante faz-se, segundo
Foucault, através da manipulação dos corpos. Para a quase
totalidade das camadas sociais o corpo é, primordialmente,
neste modo de produção, instrumento de trabalho. As
instituições vinculadas à Saúde e instituições médicas
converteram-se progressivamente, desta forma, em todo o
mundo capitalista, em instrumento fundamental de
enquadramento político das classes e, indiretamente, de
manutenção do sistema de produção" (Luz, 1979:50).

As instituições vinculadas à saúde exercem, então, o papel
regulador entre as classes sociais ao definirem a rotina diária:
alimentação, higiene, moradia, os hábitos sociais, as condutas
corretas com a doença, até a avaliação da doença como fator
que permite/impede a execução do trabalho.
Como a sociedade capitalista não é um modelo pronto,
acabado, mas, ao contrário, realiza-se diferenciadamente em
várias nações, com nuanças próprias e contradições internas,
locais e internacionais, então o processo de intervenção do
Estado capitalista sobre as instituições de saúde não pode ser
analisado de maneira estanque, indiscriminada de uma nação
para outra, ou, ainda, autônoma em relação às demais.
As mudanças no modo de ação do Estado capitalista — de
uma postura liberal, antiintervencionista, a uma intervenção
articulada da economia às instituições da sociedade civil — e,
concomitantemente, as várias representações que são
formuladas em cada momento histórico, todas estas questões
são resultantes, fundamentalmente, do modo como os
homens vivem e se relacionam entre si, ou seja, do modo de
produção da sociedade.
A cada modo de produção da vida social e a cada etapa do
processo de transformação deste modo de produção
correspondem relações, estruturas sociais e representações
específicas a este modo de vida que, por sua vez, são
determinadas pelabase econômica, e, ao mesmo tempo,
exercem influências sobre ela.
Portanto, para se dimensionar uma questão específica da
sociedade, particularmente o modo como a saúde/doença é
concretizada numa determinada época e contexto social,
relacionando as condições de saúde desta comunidade com
as determinações da base econômica da sociedade e as
iniciativas da sociedade civil e política em sua complexidade,
faz-se necessário explicitar a relação entre os pressupostos
fundamentais desta pesquisa: a concepção histórico-material
do homem e da sociedade; as contradições intrínsecas a cada
modo de produção; o trabalho como elemento de
desenvolvimento e alienação do homem; a historicidade da
necessidade de saúde em particular; a divisão técnica do
trabalho irradiando-se às práticas de saúde e às funções
ideológicas e econômicas imbricadas nesse modo de
concretização da saúde/doença.

A CONCEPÇÃO HISTÓRICO-MATERIAL DE
HOMEM E SOCIEDADE
A principal premissa adotada é a de que o homem é um ser
essencialmente social e histórico.
O ato histórico que distingue os seres humanos de outros
animais é a produção de seus meios de vida. Ao
responderem coletivamente a suas necessidades e interesses,
os homens produzem sua existência e, ao produzi-la,
condicionam sua própria organização física.
Agora, se para os animais a luta pela existência requer um
desgaste de forças que é determinado por sua estrutura
orgânica, a organização física do homem é que exerce
influência decisiva sobre a luta pela preservação da
existência. Inicialmente, a mão foi para o homem seu
primeiro instrumento, a primeira ferramenta de que se valeu
na luta pela preservação. A fabricação de outros
instrumentos e a estruturação em grupos permitiram ao
homem prescindir da transformação orgânica corporal para
então exercer um domínio sobre a natureza.

"Para ele [Marx] o homem não é uma coisa dada, acabada.
Ele se torna homem a partir de duas condições básicas: "1. o
homem produz-se a si mesmo, determina-se, ao se colocar
como um ser em transformação, como ser da práxis; "2. a
realização do homem como atividade dele próprio só pode
ter lugar na história. A mediação necessária para a realização
do homem é a realidade material" (Gadotti, 1982:42 — grifo
do autor).

A práxis, o trabalho humano
O homem, diferentemente das outras espécies, é um ser em
constante transformação, decorrente não mais de sua
estrutura biológica, orgânica, mas fundamentalmente do
trabalho humano, da produção material da sua existência. As
transformações promovidas pelo homem e sobre o próprio
homem se realizam a partir do e no processo do trabalho
humano.
O homem, a partir de sua prática, antecipa-se a ela, prevê,
planeja sua ação e a modifica no contato direto de sua ação
sobre a realidade material. Ao final deste processo prático-
reflexivo-prático, o homem modifica seu próprio plano,
incorporando os dados adquiridos na experiência prática, ou
melhor, tanto a realidade material (o que é dado) pode ter
sido transformada quanto as relações sociais, as concepções,
ou ainda o próprio homem.
A colocação de finalidades é que caracteriza a práxis, a
atividade propriamente humana e essencialmente
transformadora (Cf. Vasquez, 1975: 185-194). A práxis, por
ser o mecanismo de transformação do homem, ao se
concretizar na produção material da existência atinge sua
máxima potência. A atividade prodiitiva humana, também
chamada trabalho, como forma original da práxis, por sua
dinamicidade, foi o cerne do processo de hominização, ou
seja, de criação da espécie humana.

O processo de hominização"
O processo de hominização de nossos primatas surgiu com o
advento do trabalho e, a partir desta base, edificou-se a
sociedade. No momento em que os macacos passam a fazer
uso premeditado de um osso ou madeira para alcançar
alimentos à distância ou para se defender, que passam a usar
sistematicamente as patas dianteiras como garras,
especializando o uso das mãos e, principalmente, à medida
que, ao antecipar sua necessidade de alimentação, proteção e
preservação, chegam a construir instrumentos, estes
primatas adquirem qualidades e condições que irão modificar
estruturalmente a sua relação com o meio natural adverso.
Esse grupo de símios passa a se adaptar às variações dos
meios naturais, a sobreviver às intempéries, a coletivizar sua
experiência, a transformar a sua vida material, a transformar
sua própria estrutura biológica, sensorial e a criar
necessidades novas ao seu agrupamento. A linguagem se
constitui a partir da necessidade de troca de experiências e
aprendizagens, de explicitar melhor as antecipações e cons-
truções práticas.
A atividade produtiva torna-se a base sobre a qual se assenta
a hominização.

"O aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, condição
primeira e fundamental da existência do homem,
acarretaram a transformação e hominização do cérebro, dos
órgãos de actividade externa e dos órgãos dos sentidos.
'Primeiro o trabalho, escreve Engels, depois dele, e ao
mesmo tempo que ele, a linguagem: tais são os dois
estímulos essenciais sob a influência dos quais o cérebro de
um macaco se transformou pouco a pouco num cérebro
humano'" (Leontiev, 1978:70).

Nessa perspectiva teórica, na qual a hominização é o
resultado da passagem à vida numa sociedade organizada na
base do trabalho, as leis que determinam este desenvolvi-
mento não são as leis biológicas mas as leis sócio-
econômicas. Sobre este processo Leontiev (1978:264)
conclui: "A hominização, enquanto mudanças essenciais na
organização física do homem, termina com o surgimento da
história social da humanidade".
Essa idéia aparentemente paradoxal contém a noção de que
só é possível ao homem e às condições materiais conti-
nuarem modificando-se num outro processo, o de
humanização, a partir da criação da cultura material e
intelectual, e após a superação do processo de criação da
espécie humana, ou seja, da hominização.

O trabalho humano
As aquisições culturais e sociais engendradas no processo de
humanização são transmitidas de geração em geração,
através da cultura material e intelectual, numa forma par-
ticular, específica à espécie humana — o trabalho.

"Esta forma particular de fixação e transmissão às gerações
seguintes das aquisições da evolução deve seu aparecimento
ao facto, diferentemente dos animais, de os homens terem
uma actividade criadora e produtiva. E antes de mais nada o
caso da actividade humana fundamental: o trabalho"
(Ibid.:265 — grifo do autor).

Cada geração de homens apreende a realidade objetiva a
partir de necessidades socialmente determinadas, a partir dos
produtos (materiais e intelectuais) e de fenômenos
historicamente desenvolvidos na atividade das gerações
precedentes. E pelo trabalho que o homem historicamente
transmite a sua produção anterior e engendra elementos para
a criação do novo.
Nesse sentido é que Engels (in Marx & Engels, II, s.d.:269)
afirma: "O trabalho criou o próprio homem". E que Leontiev
(1978:70) alerta: '"Ele [o trabalho] criou também a
consciência do homem".
Através do trabalho os homens produzem o seu meio de
vida, a sua existência, sua consciência, a sua história e a
própria superação destas condições.

A produção da existência humana
O modo de produção da existência humana se concretiza a
partir: — dos meios de produção, constituídos pelos recursos
materiais e instrumentais existentes e a se reproduzir e pela
forma determinada da atividade produtiva dos homens; —
das relações de produção, da mediação estruturada entre os
homens pautada na divisão do trabalho e da propriedade dos
meios de produção.
O homem é a síntese da sua produção: do que e como
produz. A cada modo de produção, ou seja, das condições
materiais da existência, consubstancia-se um determinado
homem.
Ao desenvolvimento das forças produtivas correspondem
novas condições de produção da existência, de onde a
criação de novos materiais e instrumentos, o domínio sobre
os diferentes elementos da natureza e o surgimento de novas
necessidades sociais vêm constituir, posteriormente, nova
estrutura de produção, novas relações de poder (imbricadas
nesta nova estrutura) e, conseqüentemente, novas formas de
existência.
Intrínseca à divisão do trabalho corresponde a forma de
propriedade sobre o material, instrumental e produto do
trabalho, simultânea à etapa de desenvolvimento das forças
produtivas.

"As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do
trabalho são outras tantas formas diferentes de propriedade;
ou seja, cada uma das fases da divisão do trabalho determina
também as relações dos indivíduos entre si no que respeita
ao material, ao instrumental e ao produto do trabalho" (Marx
& Engels, 1981:24).

A historicidade do modo de produção
A vinculação do modo de produção com as relações
intrínsecas a ele deve ser dimensionada a cada período
histórico. Por exemplo, no período medieval, quando a
produção material era baseada primordialmente no
consumo, a propriedade da terra era o elemento
fundamental da divisão do trabalho. De um lado, estão as
classes aristocráticas, proprietárias de terras, de outro lado, os
servos da gleba. Os instrumentos, a terra, os animais, os
servos eram tidos como entes "naturais" de uma realidade
desigual. A desigualdade, por sua vez, era tida como
"racional".
Neste modo de produção, o desenvolvimento das forças
produtivas é limitado à condição de os servos e aristocratas
estarem atados à terra, da realização primitiva e artesanal do
trabalho e da produção voltadas ao estrito consumo do
feudo, sem excedentes. A representação do trabalho era
intimamente ligada a esta forma de organização social.

"[...] o trabalho humano só podia ser concebido como
estigma fatal ou castigo. Em outras palavras, o trabalho só
poderia ser mesmo um TRIPALIUM [três paus], ou seja, um
verdadeiro instrumento de castigo" (Nosella, 1986:5).

Concomitante a cada modo de produção, correspondem
contradições internas à coletividade, que se materializam em
discrepantes condições de existência dos homens. O tecido
social constitui-se, então, de distintas camadas e classes
sociais.
As camadas e classes sociais se discriminam quanto à
propriedade do material, instrumentos e produto do traba-
lho, assim como pelas relações sociais de produção.

O modo de produção capitalista
No capitalismo, a propriedade dos meios e do produto do
trabalho social pelo capitalista determina uma relação de
poder autoritário sobre os assalariados. Cabe ao capitalista
gerir a produção em sua forma e conteúdo assim como
contratar a força de trabalho. Cabe ao assalariado vender a
sua força de trabalho e se organizar coletivamente para
conquistar melhores condições de existência, bem como a
gestão do processo produtivo.
À estrutura do modo capitalista de produção correspondem
duas classes com interesses antagônicos e ao mesmo tempo
complementares; neste modo de produção, as relações de
troca entre os homens são mediatizados pela mercadoria.
Dois fatores são significativos na constituição destas duas
classes: a apropriação pela burguesia do controle do processo
produtivo e do produto do trabalho social; e a alienação da
força de trabalho pela classe assalariada.
Ao trabalhador, espoliado de qualquer propriedade dos
meios de produção e do produto de seu trabalho, restou
alienar sua única propriedade, a força de trabalho. Ao capi-
talista coube o comando industrial e a compra da força de
trabalho, transformada em mercadoria, que se submete às
leis de circulação e do valor.
Contra a concepção aristocrática medieval da propriedade
sobre a terra e o trabalho que nela se realizasse de natureza
mística, metafísica, emergiu a concepção burguesa de
propriedade sobre o próprio corpo e o fruto do trabalho.
Locke, no século XVII, no período de ascensão da burguesia
inglesa ao poder político, afirmava:

"Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a
esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O
trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode-se dizer,
são propriamente dele" (1978:45).

O conceito de propriedade a partir do próprio corpo e do
fruto do trabalho, ao mesmo tempo em que transforma o
servo da gleba em trabalhador livre-proprietário de sua força
de trabalho, transforma o mestre de ofício em capitalista-
proprietário dos meios de produção e do fruto do trabalho
realizado na manufatura. A burguesia chama a si a
propriedade sobre o seu próprio trabalho e daqueles que nele
se engajam gerando e ampliando o capital.
A forma de organização do trabalho na manufatura possui a
peculiaridade de gerar valor, já que o tempo excedente à
manutenção e reprodução da força de trabalho, ou seja, a
mais-valia, é apropriado pelo capital. É neste processo que se
assenta a fonte de acumulação do capital a partir da qual, de
um lado, a burguesia amplia a jornada de trabalho, ou a
intensifica, para obter mais tempo excedente e, portanto,
mais capital, e, de outro lado, a força de trabalho tem o seu
valor oscilante segundo os meios necessários à sua existência
e a luta política entre trabalhadores e capitalistas.

"Como qualquer outra mercadoria, a força de trabalho tem
um valor, e como qualquer outra mercadoria, seu valor está
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário
para sua produção; em outras palavras, o valor dos meios de
vida necessários para sua subsistência e reprodução do
trabalhador" (Cortazzo, 1984:10).

A força de trabalho, diferentemente de outras mercadorias,
requer o consumo de meios de vida (alimentação, moradia
etc.) que são mutáveis assim como o modo de elas serem
atendidas. Além disso, as próprias necessidades da força de
trabalho transformam-se segundo o momento histórico e a
situação espacial (meio físico, cultural etc.). Com isto, o valor
da força de trabalho tampouco é estável e existente a priori,
no que concerne aos meios de vida por ela consumidos,
assim como às relações de classe presentes na sociedade.
A partir do processo produtivo, não só estão definidas as
relações quanto à propriedade, mas também as relações
sociais de produção.

"El resultado general a que llegué [...] puede resumirse así:
en la producción social de su existencia, los hombres
contraem determinadas relaciones necesarias y
independientes de su voluntad, relaciones de producción
que corresponden a una determinada fase de desarollo de sus
fuerzas productivas materiales" (Marx, s.d.:69).

Como nos afirma Marx, as relações de produção são
determinadas pelo estágio das forças produtivas, por sua
materialidade, que intrinsecamente inclui o grau de
consciência e representação dos homens a respeito delas. O
seu desenvolvimento é, então, impulsionado pela
necessidade de ultrapassar as condições materiais objetivas e
contraditórias presentes na sociedade de classes.
O desenvolvimento das forças produtivas é impulsionado,
então, pela necessidade de ultrapassar as condições materiais
objetivas existentes na sociedade de classes.
As condições de existência de cada classe social materia-
lizam-se não somente por sua respectiva capacidade de con-
sumo de bens materiais, cujas necessidades são intrínsecas à
sua práxis social, mas também pelas relações sociais
(dominação/submissão/igualitárias) estabelecidas nas várias
instâncias da superestrutura.
O conjunto de relações de produção condiciona o processo
de vida social, política e intelectual em geral — "as relações
de produção determinam todas as outras relações que exis-
tem entre os homens na sua vida social" (Plekanov, 1980:33
— grifo do autor).
A base econômica que cimenta este homem, ao mesmo
tempo raiz e fruto de sua produção material, determina a sua
existência social, política e intelectual. Essa existência se
manifesta na superestrutura da sociedade.

A superestrutura da sociedade
A existência social dos homens realiza-se em determinado
bloco histórico, ou seja, na relação orgânica entre a base
econômica que os cimenta e as superestruturas da sociedade.
A direção cultural (hegemonia) e a coerção são garantidas
através dos aparelhos culturais, políticos e econômicos que
coesionam os interesses contraditórios de capitalistas,
operários e camponeses.

"A estrutura e a superestrutura formam um 'bloco histórico',
isto é, o conjunto complexo — contraditório e discordante
— das superestruturas é o reflexo conjunto das relações
sociais de produção" (Gramsci, 1981:52).

Os interesses antagônicos de classe perpassam as
superestruturas e nos Estados mais desenvolvidos estão
presentes em duas instâncias do Estado. Gramsci, pensador
italiano do século XX, ampliou a teoria marxista do Estado ao
distinguir as duas instâncias: a sociedade política e a socie-
dade civil. A primeira delas — a sociedade política, classica-
mente conhecida como Estado ou governo — é o aparelho
de poder que se mantém pela coerção (síntese da repressão
com a violência), por intermédio das forças armadas, polícia,
administração, tribunais, burocracia (cf. Buci-Gluckmann,
1980:126). A segunda instância — a sociedade civil — é
constituída pelos aparelhos "privados" de hegemonia (o
consenso obtido pela persuasão) como sindicatos, Igreja,
escola, família, através dos quais a direção intelectual e moral
da classe dominante obtém o consentimento e a adesão das
classes subalternas. Algumas organizações do Estado tanto
podem ser ligadas à sociedade civil ou política como, por
exemplo, o sistema escolar, ou, ainda, podem ser ligadas a
ambas como é o caso do parlamento.

"[..,] neste sentido, poder-se-ia dizer que o Estado = socie-
dade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida
de coerção" (Gramsci, 1980:149).

A hegemonia enquanto direção política é mantida na
sociedade civil a partir da ideologia do grupo dirigente. A
ideologia , apesar de hegemônica, não é assimilada em sua
totalidade pelos demais grupos sociais, que, de fato, a partir
das relações e de sua práxis social, estruturam também suas
concepções de mundo. A consciência dos homens advém da
função, justaposição e contraposição das várias concepções
de mundo: das anteriormente dominantes, da atual e da que
está sendo forjada com vistas à constituição de um novo
bloco histórico.
Agora, como nos delimita Marx:

"Não é a consciência do homem que determina o seu ser
mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua
consciência" (Marx & Engels, v. I, s.d.:301).

Ou seja, são as condições objetivas, materiais, que consti-
tuem a consciência dos homens de uma coletividade e não
supostamente o seu inverso, a consciência que determina o
seu ser, a existência.
A ideologia dominante vem cimentar a consciência e a
práxis social da coletividade buscando encobrir as contradi-
ções da estrutura social ou apresentá-las como naturais,
abstratas, anistóricas. Assim ocorre com as representações
acerca do trabalho, tema central para a presente
investigação.

As representações acerca do trabalho
Na sociedade capitalista, onde o trabalho da classe domi-
nante é gerir a produção, atividade abstraída do ato de
produzir, do contato direto na transformação material, a
ideologia burguesa, de um lado, supervaloriza a atividade do
capitalista, caracterizando-a como "trabalho intelectual" e, de
outro, desqualifica o trabalho operário, daquele que mantém
contato direto com o material, caracterizando-o como
"trabalho manual". É claro que, em ambos os trabalhos, o do
capitalista e o do operário, tanto a habilidade motora quanto
a capacidade mental estão sendo empregadas em sua execu-
ção; no entanto, o que se passa na consciência dos homens
na sociedade capitalista é que a hegemonia burguesa na
sociedade civil divulga maciçamente sua representação social
quanto ao trabalho burguês e operário, a ser assimilada ao
conjunto de outras representações e concepções de mundo
vigente — do TRIPALIUM, já mencionado anteriormente,
ao trabalho criativo, não alienado.
Agora, se a ideologia burguesa consegue, de um lado,
encobrir a interdependência e os antagonismos das classes
sociais, não consegue, de outro, mascarar as contraditórias
condições de existência das classes.
Ora, se os bens materiais e culturais são produzidos a partir
do trabalho e não estão ao alcance de quem os realiza, da
classe trabalhadora em particular, essa contradição fun-
damental é que move as relações e o modo de produção
capitalista.

O caráter alienado do trabalho e suas contradições
Outra das contradições produzidas no desenvolvimento das
forças produtivas foi a alienação do homem em sua atividade
prática. As relações de produção desiguais e a apropriação
por uma classe de produtos do trabalho social têm provocado
a separação entre as aquisições do desenvolvimento histórico
daqueles que criam este desenvolvimento.

"Esta separação", afirma Leontiev (1978:275), "toma antes de
mais nada uma forma prática, a alienação econômica dos
meios e produtos do trabalho em face dos produtores
directos. [...] Ela é, portanto, engendrada pela acção das leis
objectivas do desenvolvimento da sociedade que não
dependem da consciência ou da vontade dos homens"
(grifos do autor).

Do processo de produção realizado nas corporações de
ofícios medievais à manufatura, e desta à grande indústria, o
trabalho foi sendo paulatinamente parcelado, simplificado,
substituído por instrumentos de produção, pela maquinaria,
de maneira que foi possibilitado o aumento da produtividade,
o atendimento de necessidades sociais novas e a extração de
mais-valia da força de trabalho. No entanto:

"A separação do trabalhador das condições objetivas da
produção, ou seja, da terra, do conjunto dos meios de
produção e dos meios de subsistência, gera a abstração do
caráter humano da produção, coisificando o trabalhador. A
sujeição física e mental do operário ao capital se efetiva
através das condições de trabalho que a ele são imputadas"
(Ferreira, 1983:29).

A abstração do caráter humano da produção, o seu
parcelamento, tem gerado a alienação do homem em sua
atividade produtiva, negando o elemento subjetivo do
trabalho, coisificando o homem. A racionalização do
processo de produção advém da divisão do trabalho em
condições de concorrência cujo "[...] resultado é a difusão da
maquinaria industrial e a mecanização do trabalho humano"
(Lukács, 1981:129).
Essa lógica do capital vai permeando as representações e
atividades realizadas na superestrutura. Desta forma,
encontramos a atividade material e intelectual, o prazer e o
trabalho, a produção e o consumo cada vez mais separados e
pertencentes a diferentes homens. De um lado, a
concentração de riquezas na classe dominante, acrescida da
concentração da cultura intelectual e, de outro lado, a massa
da população com acesso ao mínimo de desenvolvimento
cultural necessário à produção de riquezas materiais, no
limiar das funções que lhe foram socialmente atribuídas.
A alienação concretiza-se para a maioria dos homens, não é
"privilégio" de uma classe social ou de outra, de uma
categoria profissional ou de outra, tampouco é específica ao
trabalho, estando igualmente presente no não-trabalho, no
tempo livre, no qual a indústria cultural participa da veicu-
lação de padrões de consumo de mercadorias e concepções
necessárias ao amálgama das classes como um todo social
harmônico. Resulta que as necessidades não satisfeitas no
espaço e tempo de trabalho desenvolvem tensões nos indiví-
duos que o dirigem à realização de atividades "compensató-
rias" no seu tempo livre.
O trabalho realizado no tempo livre, ou o não-trabalho como
também é chamado, não assume necessariamente a condição
de alienação, ao mesmo tempo que é fortemente
determinado pela alienação do processo produtivo . A luta
social pela redução da jornada de trabalho, de liberação do
trabalhador das condições alienadas de produção e, conse-
qüentemente, de maiores condições de usufruir o progresso
socialmente produzido torna-se, muitas vezes, "a única for-
ma possível de resistência" (Nosella, op. cit.:16).
A alienação do homem em suas atividades irá repercutir
fundamentalmente nas práticas sociais que se utilizam da
atividade humana, tanto no espaço educacional quanto no
espaço terapêutico, como ocorre com a terapia ocupacional.
Ora, se o tempo livre do homem for objetivado em ativi-
dades práxicas, criadoras e não se transformar em atividades
"compensatórias" à divisão social de produção poderá reme-
ter o seu realizador à questão essencial: por que o trabalho
produtivo tem de ser parcelar, numa estrutura autoritária,
vertical, à base da disciplina e coação? Não será possível ao
homem objetivar-se, ultrapassando os limites e contradições
atuais destas relações de produção, deste modo de produção?
A alienação, para ser superada, depende da superação das
dicotomias entre teoria e prática, entre a propriedade dos
meios e produtos do trabalho de seus realizadores, entre o
domínio técnico-científico do processo de trabalho e o
corpo coletivo que o realiza. A alienação somente será
totalmente superada através do controle do trabalho sobre a
produção, num novo modo de produção:

"Assim, um autêntico controle pelo trabalhador tem como
seu requisito a desmistificação da tecnologia e a reorga-
nização do modo de produção" (Braverman, 1981:376).

A participação dos trabalhadores, através da autogestão, no
ponto de vista acima, significa ainda pouco em relação a uma
verdadeira democracia dos trabalhadores na fábrica. No
entanto, ao se inserirem no poder participativo , os
trabalhadores vão dimensionar ainda mais a necessidade do
domínio técnico como instrumento de luta na superação da
alienação do trabalho produtivo e, portanto, no rumo da
desalienação da sociedade como um todo.
Assim, a divisão do trabalho poderá vir a ser superada pelo
desenvolvimento das forças produtivas, com a automação
absorvendo a especialização das atividades alienadas antes
realizadas pelo homem, numa condição nova, a de liberação
do homem no trabalho parcelar numa estrutura de poder
igualitária, num novo modo de produção, o comunismo.

"Portanto, se o 'ethos' da era conhecida e antevista por
Smith [Adam — autor de A Riqueza das Nações] estabelecia
corretamente as virtudes da especialização, da divisão,
devemos, na era que se aproxima, reservar um lugar
igualmente consagrado para as vantagens da amplitude, da
síntese" (Weiss, 1976:15 — grifos do autor).

Ao mesmo tempo que o desenvolvimento das forças
produtivas irá emancipar o homem do trabalho alienado
parcelar, a coerção existente, no bojo do processo produtivo,
será também ultrapassada. A tecnologia produzida
historicamente, a compreensão científica e tecnológica da
cultura moderna, torna possível a liberdade ao homem sem
os riscos de uma recaída histórica a níveis mais baixos de
produtividade (cf. Weiss, 1976:12).
A liberdade da escolha da atividade a ser realizada pelo
homem, a oportunidade de ampliar suas atividades produti-
vas não impedirão a necessidade de também as pessoas
contribuírem de maneira ordenada à comunidade. O traba-
lho coletivizado, o domínio do processo de funcionamento
de todo o complexo técnico-social, a abrangência do
entendimento e a criatividade são os desafios colocados ao
novo modo social de produção da sociedade, o comunismo.
Se, de um lado, é fundamental a transformação da base
econômica para revolucionar a organização social, de outro,
anterior e simultâneo a este período, uma nova concepção
de homem e sociedade se tornará hegemônica nesta
formação social.
A "crise de hegemonia", na concepção de Gramsci, ocorre
quando um determinado grupo social, ainda não dominante,
consegue atingir um consenso entre os demais grupos,
coesionando o corpo social e dando-lhes a direção política e
cultural. Essa situação somente ocorre no período de
agudização das contradições, quando a classe dominante
lança mão da força para assegurar o poder e evitar que um
determinado grupo consciente desse processo instaure um
novo bloco histórico, uma nova estrutura orgânica entre a
base econômica e a superestrutura.
O grupo social que conquistar a adesão de outros segmentos
sociais pode obter a hegemonia anterior à conquista do
aparelho governamental. A crise de hegemonia emerge
quando a ideologia da classe dominante não consegue
coesionar a "opinião pública" e se manter sólida entre as
organizações que compõem a sociedade civil e política em
contraposição à ideologia e ação da classe ascendente, que
passa a assumir a direção política.
A solidez da hegemonia da classe dominante depende do
desenvolvimento de ambas as instâncias da sociedade e de
sua íntima vinculação. Em formações sociais cuja sociedade
civil é umbilicalmente ligada e dependente da sociedade
política, a luta de classes volta-se para a conquista e conser-
vação do Estado no sentido clássico (cf. Coutinho, 1985:65),
ou seja, a classe dominante se mantém no poder através de
governos autoritários e centralizados e a luta de classes se
volta diretamente para a conquista do aparato governamental
e não das "frágeis" instituições da sociedade civil. Em
formações sociais do tipo ocidental, onde há o equilíbrio
entre a sociedade civil e a política, a luta de classes se trava
nas e pelas instituições hegemônicas do Estado:

"[...] numa conquista progressiva — ou processual — de
espaços no seio e através da sociedade civil" (Ibid: 65 —
grifo do autor).

No processo de conquista de espaços na sociedade civil, na
obtenção do consenso e na luta pela hegemonia nas
organizações estatais, sindicais, nos conselhos de fábrica, nas
organizações e nos movimentos populares é função do
Partido , no sentido mais amplo de direção de classe,
incentivar e direcionar essas lutas com vistas à obtenção do
espaço governamental para o exercício do poder vinculado a
uma transformação radical da base econômica.
A luta pela hegemonia não é exclusividade do espaço
partidário , sendo também dependente da conquista da
direção nas organizações privadas do Estado. A direção
política de um grupo social realiza-se através do intelectual
orgânico que catalisa o desvelamento da ideologia dominante
e de suas representações e gera ações eficazes sobre os
principais conflitos deste grupo social.

"Nesse sentido é que a tarefa do intelectual é decisiva já que
cabe a ele assumir a direção orgânica do grupo no qual atua"
(Oliveira, 1980:41).

O papel do intelectual orgânico em seu grupo social,
conforme a concepção gramsciana, é fundamental no
direcionamento, organização e síntese das necessidades e
contradições internas ao seu agrupamento.
Ao se estudar um problema da realidade social não basta
identificar as suas contradições internas, tem-se também
que estabelecer a sua interdependência. Ao se dimensionar
as forças contrárias a um dado problema, é possível estabe-
lecer modos de intervenção globalizantes, totalizadores, que
atendam às demandas internas a esse fenômeno.

A SAÚDE NA SOCIEDADE DE CLASSES
A análise até aqui realizada da concepção de homem,
estrutura social e trabalho permite agora enfocar uma ques-
tão específica, a saúde humana, a ser organicamente
dimensionada no interior da sociedade capitalista.
A espécie humana, que se organiza e desenvolve a partir do
trabalho, transforma a necessidade de saúde e o modo de ela
ser satisfeita segundo a sua estrutura econômica e o
momento histórico desta sociedade. Então, faz-se necessário
entender as contradições inerentes ao atendimento da
necessidade de saúde no modo de produção capitalista.
A saúde é uma necessidade humana que historicamente tem
se transformado tanto ao nível conceituai, ou seja, das
representações que se formam sobre o que é saúde, quanto
nas formas como ela é administrada e legitimada
socialmente.
Por exemplo, o conjunto de necessidades denominadas
doenças inicialmente relacionava o instinto e a sensibilidade
do próprio indivíduo que sofre, antes mesmo de expandir-se
a uma rede de relações sociais.

"As experiências advindas destas relações", relata-nos Arouca
(1978:133), "eram comunicadas às outras pessoas, de pais a
filhos, constituindo quase uma experiência coletiva diante do
sofrimento."

A divisão do trabalho não atingia ainda o nível de espe-
cializar e circunscrever o saber sobre a saúde numa única
prática social.
Foucault, em seu livro O Nascimento da Clínica, a partir de
uma perspectiva arqueológica, analisa o processo de
concentração do saber clínico que constituiu a Medicina.
Na Antiguidade, durante o período da propriedade tribal,
quando a divisão do trabalho era pouco desenvolvida e se
limitava à divisão entre os membros da família, os chefes,
patriarcas da tribo, realizavam todos os cultos e tinham
poderes totais sobre os membros da família. A explicação dos
fenômenos era mística e as medidas clínicas adotadas contra
a doença ocorriam nos rituais religiosos.
É somente após a organização das tribos, fratrias e cúrias nas
cidades, quando a divisão social do trabalho se desenvolve e
uma nova ordem social se estrutura, com novos valores e
necessidades, que o saber clínico veio a ser desmistificado,
transformando-se numa atividade leiga, um trabalho prático,
experimental. Nesta etapa a dissecação e as cirurgias se
tornam medidas incorporadas à prática clínica.
Zilboorg, na História da Psicologia Médica (1968:34),
comenta esta mudança no espírito grego.

"O espírito não permaneceu atado muito tempo a sua própria
mitologia [...]. A princípio do século VI a.C., o espírito grego
se voltou para as observações e até um certo grau de
experimentação."

Assim, no campo da saúde, a experiência do sofrimento
requer agora a intervenção de um indivíduo cujos
conhecimentos possam cuidar deste sofrer. A especialização
em uma determinada prática social, a Medicina, cria também
novas formas de formação e transmissão desse saber,
inicialmente não institucionais, mas vinculadas aos
praticantes dessa modalidade de trabalho. A concentração
desse saber provocou, em contrapartida, o desconhecimento
da comunidade como um todo de medidas próprias para o
combate às doenças, que ao ser assistida recebe o cuidado
em si e não o conhecimento sobre o processo
saúde/doença/cuidados de saúde.
Nessa perspectiva, Arouca, no artigo "O trabalho médico, a
produção capitalista e a viabilidade do modelo preventista"
(1978), expõe que:

"[...] médicos e pacientes encontram-se em relação de troca
em que um é portador de necessidades e o outro de
conhecimentos. Mas o que o primeiro recebe não é o
conhecimento e sim o cuidado, forma instrumental deste
conhecimento monopolizado" (p. 133, grifos nossos).

Historicamente, esta relação de troca entre o especialista e o
indivíduo portador de necessidade foi se substantivando
numa atividade econômica determinada, a medicina, corro-
borando a divisão entre o trabalho manual e o trabalho
intelectual, entre as aquisições do desenvolvimento técnico-
científico da sociedade e o afastamento das camadas popula-
res desta produção.
Na sociedade capitalista, onde a força de trabalho tornou- se
a única propriedade do trabalhador, a saúde, por seu turno,
se transforma numa qualidade da força de trabalho que lhe
possibilita maior produtividade e o próprio consumo no
processo de extração da mais-valia. Como nos declara
Arouca (1978:143):

"[...] a saúde, como valor biológico, pode ser considerada
como um atributo da força de trabalho para que ela melhor
possa ser consumida no processo produtivo. Porém,
paradoxalmente, a força de trabalho como mercadoria
incorpora para sua manutenção um 'quantum' de trabalho,
cujo efeito não é aumentar o seu valor, mas sim possibilitar o
aumento da sua exploração"(grifos nossos).

A ausência temporária ou não do atributo saúde penitencia
duplamente o trabalhador: de um lado, pelo sofrimento
decorrente do processo patológico e, de outro, pela privação
econômica resultante do não consumo de sua força de
trabalho.
No processo capitalista de produção, o cuidado de saúde se
transforma de necessidade em meio de vida, similar à
moradia e alimentação; e, como meio de vida, cumpre a
função de garantir a subsistência e reprodução da força de
trabalho.
A medida que avança a acumulação do capital, torna-se mais
complexa a sua composição técnica, devido à centralização e
transformação tecnológica originada pelo próprio trabalho.
Este processo traz conseqüências diretas para o presente
estudo, podendo ser sintetizadas em:
1º) A revolução técnico-científica da produção incide
diretamente sobre as condições de saúde do trabalhador.
2º) A mudança da composição técnica do capital provoca a
diminuição crescente (em relação ao capital total) da de-
manda de trabalho, ampliando o exército de reserva e as
massas marginais.
3º) A expansão do capital para o setor terciário introduz a
divisão técnica na área de saúde.

1º) A revolução técnico-científica e a saúde
A interferência da revolução técnico-científica na produção
sobre a saúde do trabalhador se processa através da
racionalização do trabalho com a crescente simplificação,
parcelamento e coisificação das atividades para a maioria dos
trabalhadores da produção e do escritório e através da
gerência, no planejamento e abstração de atividades para um
certo grupo de empregados.
A racionalização do sistema produtivo promove: a aceleração
da produção; a determinação do ritmo de trabalho pelo
tempo da máquina ou da linha de montagem; a transforma-
ção dos elementos subjetivos em fator humano (mensurável
e previsto tecnicamente); a realização do trabalho em condi-
ções adversas do meio físico; a alienação do homem em sua
atividade produtiva.
A contrapartida ao sistema produtivo assim estruturado se
manifesta a nível individual por meio de: absenteísmo e
"turn-over", ainda como expressões individuais de "resistên-
cia" ao desconforto do trabalho; acidentes de trabalho; doen-
ças ocupacionais (silicose, asbestose e outras); doenças
incapacitantes, cuja ordem de incidência junto à Previdência
Social em 1975 (Cf. DIESAT, 1984:6) são as neuroses,
hipertensão arterial, osteoartrose, epilepsia e tuberculose.
Essas manifestações, mesmo quando interferindo na
produtividade (por exemplo, o absenteísmo), ou ainda que
associadas, direta ou indiretamente, às condições e
ambientes de trabalho, não produzem modificações no
processo de trabalho, que historicamente se consolida como
forma irreversível da produção. De outro lado, a legislação
previdenciária, que pode absorver itens relativos a segurança
e higiene no trabalho, somente se transforma nos momentos
de intensa mobilização social.
A forma de o capital lidar com a força de trabalho já era
explicitada por Marx, ao final do século passado, em O
Capital, Livro I, Vol. I:

"A produção capitalista, que essencialmente é produção de
mais-valia, absorção de trabalho excedente, ao prolongar o
dia de trabalho, não causa apenas a atrofia da força humana
de trabalho, à qual rouba suas condições normais, morais e
físicas de atividade e de desenvolvimento. Ela ocasiona o
esgotamento prematuro e a morte da própria força de
trabalho. Aumenta o tempo de duração do trabalhador num
período determinado, encurtando a duração da sua vida"
(1982:301).

As manifestações da intensidade da exploração da força de
trabalho evidenciam-se pelos índices de mortalidade e
morbidade assim como pela taxa de criminalidade, retratan-
do a "racionalidade" do sistema produtivo.
O antagonismo de interesses das classes sociais, face ao
poderio político-econômico da burguesia, tem provocado,
de outro lado, a resistência e organização dos trabalhadores.
As bandeiras de luta do movimento sindical, segundo o grau
de consciência de classe do conjunto dos assalariados,
avançam dos estritamente econômicos (aumento salarial,
índice de produtividade, descanso semanal remunerado)
para os de cunho político mais acentuado (redução da
jornada de trabalho, proteção ao trabalho do menor,
condições de segurança contra acidentes e insalubridade, co-
gestão).
Nesse contexto se estabelece uma forma específica de
medicina, intimamente ligada à indústria, seja ela assalariada
pela própria indústria ou por uma empresa de prestação de
serviços médicos. As atribuições desta prática médica se
estendem desde seleção de mão-de-obra saudável a ser
contratada, o controle do absenteísmo pela constatação ou
não de ocorrência de doenças/acidentes que impeçam a
realização do trabalho, o diagnóstico, a possível medicação
até o desligamento do trabalhador de acordo com um quadro
"nosológico" (de uma gravidez, às doenças ocupacionais,
crônicas e incapacitantes). Os casos mais complexos, que
requeiram longo tratamento, são geralmente encaminhados
à Previdência Social.
A lógica desse sistema pauta-se na recuperação do tra-
balhador na quantidade necessária que garanta a produtivi-
dade e a extração do trabalho excedente.

"Não se trata de uma garantia de condições gerais de saúde
ao trabalhador, segundo um conceito ideal de saúde e sim de
mantê-lo em condições mínimas de saúde para a produção,
reduzindo o impacto do desgaste na produção sobre o
organismo" (Possas, 1981:XXVI — grifos da autora).

Os cuidados médicos destinados ao nível "necessário" de
saúde aos trabalhadores da empresa, ao serem incorporados à
estrutura produtiva, como um novo elemento na revolução
técnico-científica, favorecem a assimilação da força de
trabalho pelo capital e, paradoxalmente, o atributo de saúde
"necessário" aos trabalhadores exclui da produção parcelas da
força de trabalho caracterizadas como inaptas ao ingresso ou
à permanência no sistema produtivo.
Os assalariados não incluídos no atendimento de empresas
médicas conveniadas ou pelo médico assalariado da própria
indústria são atendidos pela rede previdenciária de
assistência à saúde. O trabalho médico realizado na rede
previdenciária, ao atender a força de trabalho e o exército de
reserva, cumpre a mesma função do médico assalariado da
indústria ou empresa de saúde, ou seja, de recuperar, manter
e reproduzir a força de trabalho.

"Assim, selecionando, mantendo e recuperando a força de
trabalho, aumentando a sua produtividade, diminuindo os
riscos a que ela está submetida, a Medicina participa da
organização do processo produtivo, diminuindo o tempo de
trabalho necessário e aumentando a mais-valia produzida"
(Arouca, 1978:143).

O trabalho do médico e das demais profissões de saúde, ao se
realizar nos serviços beneficentes, centros ou postos de
saúde, que atendem ao exército de reserva e às populações
marginais, está ligado à superestrutura, cumprindo um papel
político-ideológico significativo, ao disciplinar e controlar a
população excedente do capital.

2º) A revolução técnico-científica e a população excedente
Na fase monopolista, o aumento da concentração do capital
permite, através da racionalização, mecanização e au-
tomação, a revolução técnico-científica na indústria, na in-
cessante busca do aumento de produtividade. Essas medidas
provocam a redução na taxa de absorção da força de
trabalho, proporcionalmente ao volume de capital
acumulado. Ou seja, a revolução técnico-científica,
introduzida na indústria ao final do século passado, diminuiu
a força de trabalho contratada por ela própria. Este fato, às
vezes, é encoberto com a expansão da produção de seus
bens ao mercado consumidor, que resulta no aumento global
do número de assalariados, mas a uma proporcionalidade
reduzida.
O processo de liberação contínua da força de trabalho reduz
o número de trabalhadores realmente produtivos, amplia o
número de trabalhadores do exército de reserva, aumenta a
utilização do trabalhador em empregos ociosos ou nenhum
emprego.
Braverman (1981:204-5), ao analisar os dados do censo do
Departamento de Estatística do Trabalho dos Estados
Unidos, verificou que do universo de trabalhadores não agrí-
colas no período de 1920 a 1970 houve uma redução na
porcentagem de trabalhadores contratados pelas indústrias
fabris, de construção e outras "fabricantes de bens". Em
relação ao número total de trabalhadores não agrícolas, a
porcentagem de trabalhadores contratados era de 46,6% em
1920, passando a 33,0% em 1970. De fato, considerando-se
a fonte idônea, pode-se constatar uma redução no índice de
assimilação de trabalhadores na indústria, apesar do aumento
absoluto da população trabalhadora ocupada na fabricação de
bens. A outra face do deslocamento da população está ligada
ao aumento absoluto e relativo do setor terciário.
O excedente de trabalhadores liberados da indústria vai ser
absorvido em novas ocupações, transformando-se a estrutura
ocupacional da classe trabalhadora. Muitas destas ocupações
vão surgir no setor terciário, responsável pela assimilação de
parcelas cada vez maiores da força de trabalho. O setor
terciário, funcionando a uma taxa de exploração maior que a
da indústria, também introduz em determinados setores a
racionalização do trabalho, liberando novo contingente de
trabalhadores. Parte desse contingente liberado, amplamente
não sindicalizada e retirada da reserva de pauperizados da
sociedade, é assimilada por novos setores de baixa
remuneração, que são menos suscetíveis à mudança
tecnológica e requerem pequeno capital inicial. A
intensidade da exploração e opressão nestes setores é
imensamente maior que nos setores mecanizados da
produção.
Outra parcela desse contingente de trabalhadores vai ampliar
o exército de reserva ou população excedente relativa na sua
forma flutuante e na forma estagnada.
A primeira delas, a forma flutuante, é constituída pelos
trabalhadores que vão de função a função e segundo os
movimentos da tecnologia e do capital, sendo contratados é
depois descontratados. O desemprego entremeia esses
períodos de ascenso e refluxo do setor industrial e de
serviços. Nos países onde se estabeleceu o seguro-
desemprego ele funciona como um salário reduzido, a partir
das contribuições cobradas durante os períodos de emprego.

"[...] o sistema de seguro-desemprego [...]; é em parte uma
garantia contra o desemprego prolongado, em parte o
reconhecimento dos papéis desempenhados pelos
trabalhadores, ora como parte dos empregados ora como
parte das reservas do trabalho" (Braverman, 1981:327).

A outra forma, a população excedente relativa estagnada, é
empregada de maneira irregular, eventual, marginal e se
mistura com outro sedimento da população que vive em
condições de miséria — as populações marginais.
A concentração do capital cria (e recria) uma massa de
trabalhadores desempregada, o exército de reserva, que exer-
ce pressão sobre o mercado de trabalho, puxando para baixo
a massa de salários e desempenhando, por isso, um
importante papel no processo de acumulação. "Todo
trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está
desempregado ou parcialmente empregado" (Possas,
1981:48).
Em outro trecho de seu livro Saúde e Trabalho, Cristina
Possas amplia o conceito:

"Assim, o trabalho excessivo da parte empregada da classe
trabalhadora engrossa as fileiras de seu exército de reserva,
enquanto inversamente a forte pressão que este exerce sobre
aquela, através da concorrência, compele-a ao trabalho
excessivo e a sujeitar-se às exigências do capital" (p. 54-5).
Assim, percebe-se que a existência do exército de reserva
não ocorre somente por necessidade de se manter baixa a
massa de salários, mas também de sua sujeição às condições
adversas de ritmo, insalubridade, jornada de trabalho, alie-
nação, ou seja, da produtividade planejada para o setor.
Outra parcela da população categorizada como "excedente"
aos interesses do capital são as populações marginais,
pauperizadas. A acumulação do capital e o progresso técnico
criam e ampliam essa faixa da população que, por sua vez,
está cronicamente afastada do sistema produtivo, cuja par-
ticipação na economia somente ocorre em picos de
aceleração do processo de acumulação.
Nela estão os indivíduos alijados pela divisão do trabalho: os
que ultrapassam a idade normal de um trabalhador, as
vítimas da indústria, os deficientes, enfermos, viúvas etc.
Marx inclui o pauperismo como categoria autônoma a ser
analisada na superpopulação relativa:

"Finalmente, o mais profundo sedimento da superpopulação
relativa vegeta no inferno da indigência, do pauperismo. [...]
O pauperismo constitui o asilo dos inválidos do exército
ativo dos trabalhadores e o peso morto do exército industrial
de reserva" (Marx, L. I, V. II, 1982:746-7).

A "massa marginal", o pauperismo, é ampliada ainda mais
nos países dependentes que, pela industrialização tardia,
tendem a liberar mão-de-obra do campo e das formas de
produção anteriores sem haver a expansão acentuada de
empregos no mercado de trabalho. Elas vêm engrossar as
massas humanas na periferia das cidades.
A proletarização e pauperização de contingentes mais
amplos da sociedade acarretam, por conseqüência, a
elevação das taxas de morbidade (doenças) e a redução do
tempo de vida médio da população. A miséria e a
insegurança tornam-se permanentes no seio das nações
capitalistas, extrapolando a capacidade das entidades
filantrópicas privadas de controlá-las (cf. Braverman, op.
cit.:244).
O papel do Estado no capitalismo m onopolista é ampliado
de modo a. interferir nas lacunas e contradições mais agudas
da acumulação do capital, tornando-se complexo e requinta-
do. Ele intervém no processo de concentração do capital de
universalização d a economia através de medidas
econômicas e políticas, trabalha com um orçamento
absoluto e relativo ampliado e se efetiva pelos mecanismos
repressivos e coercitivos, e pelos mecanismos político-
ideológicos, que se concretizam, por meio de um discurso
igualitário e universal, nas instituições escolares, de saúde, de
comunicações e outros serviços.

"E muitos desses 'serviços' como prisões, polícia e 'assis-
tência social' expandem-se extraordinariamente devido à
amargurada e antagonística vida social das cidades"
(Braverman, 1981:245).

Minimizando as precárias condições de vida da população, o
Estado capitalista implanta serviços de saúde pública e
atendimento de urgência visando à erradicação e controle
das doenças de massa a partir das ações de saúde sobre os
membros da comunidade. O caráter social da doença não é
absorvido pelo Estado. Berlinguer (1980:41) explicita esta
determinação:

"A doença é um sofrimento individual, como sinal de um
sofrimento coletivo, é assim como um sinal de alerta de que
algo não vai bem com a coletividade. Se se cuida unicamente
do sofrimento individual, ela vai se repetir em outros
representantes da comunidade, pois a causa social não foi
abolida."

Ao contrário da perspectiva apontada por Berlinguer, de
transcender o atendimento individual, dirigindo-se da célula
às causas sociais que adoecem o tecido social, as ações de
saúde implementadas pelo Estado capitalista objetivam
manter viva a força de trabalho necessária ao capital, aliviar a
insegurança social, conter as tensões nas populações mar-
ginais e encobrir os imensos contrastes na existência dos
homens, por meio de um discurso igualitário e universal e
uma ação atenuante e pontual. Assim, de um lado, preserva-
se a hegemonia burguesa sobre a sociedade civil, com a
criação de instituições públicas de saúde, a subvenção a
instituições asilares filantrópicas e entidades privadas, enfim,
desenvolve-se um conjunto de medidas que serão chamadas
de políticas sociais; de outro lado, atende-se a reivindicações
e anseios das massas populares quanto à melhoria em suas
condições de vida expressas em movimentos organizados ou
em manifestações espontâneas de descontentamento que,
por vezes, são violentas.
O governo brasileiro, ao formular suas políticas sociais, como
veremos em maior profundidade no capítulo seguinte,
contribui para a acumulação do capital, também a partir do e
no próprio sistema por ele planejado. De forma indireta,
controlando e mantendo a força de trabalho irá gerar mais-
valia ao capitalista e, diretamente, através da inclusão das
empresas privadas de saúde no sistema previdenciário.
As medidas de saúde pública, de assistência curativa
individualizada e de reabilitação de incapacitados e
deficientes vão se articulando no Brasil de maneira paulatina
e contraditória. Urbach (in Moraes, 1973:140) nos alerta:

"Quanto maior o desenvolvimento econômico, e
conseqüentemente quanto maior a complexidade social,
maior é a importância da estrutura médica como elemento
sustentador do edifício social."

3º) A divisão técnica na área de saúde
As determinações da base econômica não se dão apenas na
forma de assimilação do cuidado de saúde ou das relações de
poder institucionais, mas também na estratificação dos
serviços e do acesso aos cuidados de saúde pelas distintas
classes sociais.
A estrutura de saúde, seja a diretamente mantida pelo
Estado, seja a sustentada pelas empresas médicas ou por
entidades filantrópicas, incorpora a revolução técnico-
científica da produção. Ao racionalizar, especializar e
tecnicizar as práticas de saúde introduz novas modalidades
ocupacionais: de um lado, os enfermeiros, psicólogos,
terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, e, de outra parte, os
auxiliares, técnicos, atendentes de enfermagem, psicologia,
terapia ocupacional, fisioterapia etc. Assim, o trabalhador
individual é transformado em força socialmente combinada,
em processo de trabalho coletivo.
O espaço institucional torna-se mais hierarquizado ainda
numa estrutura ocupacional que vai do atendente ao
administrador, numa multiplicidade de instituições como os
centros de saúde, ambulatórios, hospitais, centros de
reabilitação, asilos etc.
A hierarquia, em alguns setores, permanece confusa e
descontrolada, pela transformação de profissionais liberais
em assalariados e pelas disputas interdisciplinares quanto à
supremacia médica e às áreas de fronteira . A medicina,
entretanto, ainda é a prática hegemônica na área de saúde,
cuja autoridade lhe foi conferida historicamente.
As análises sociológicas sobre a questão da saúde
freqüentemente enfocam a prática médica como agente
principal e majoritário do setor. As outras práticas da área da
saúde, até o presente momento, têm sido pouco analisadas
sob a perspectiva sociológica.

A relação da medicina com a base econômica e a
superestrutura
As várias situações de trabalho médico já foram analisadas
por Antonio Sérgio S. Arouca (1978:132-55).
A primeira situação a se defrontar é da transformação de
profissionais liberais em assalariados ou empregadores. As
categorias mais antigas são as que opõem maior resistência ao
assalariamento, à sujeição das condições de trabalho coletivo,
à incorporação a uma equipe multiprofissional. Além disso, a
remuneração paga pelo Estado ou pelas entidades privadas é
inferior à possibilidade de rendimentos a serem obtidos na
relação comercial de venda do cuidado de saúde às classes
hegemônicas. Mas, como a oferta de serviços de saúde se
diversificou e ampliou, foi reduzida a população que paga o
valor integral da consulta.
O profissional liberal, conforme a análise de Arouca, realiza
uma relação simples de troca entre o seu conhecimento
corporificado e a utilização técnica com o paciente. O
processo em si e o produto do ato não são dissociados, não
havendo circulação do resultado deste trabalho. Mas, nesta
relação comercial, não produtiva, existe o consumo de bens
produzidos pelo setor industrial (equipamentos, instrumen-
tos, aparelhos corretivos, medicamentos), cujo custo e sua
dimensão técnica são incorporados ao valor do cuidado.
Portanto, a produção e o consumo do cuidado realizam
simultaneamente o valor das mercadorias deste setor
industrial.
De outro lado, como o trabalho de saúde é dirigido não só a
indivíduos em si mas a classes sociais, o cuidado adquire
significados distintos conforme o paciente, seja força de
trabalho seja detentor dos meios de produção.
No primeiro caso, o cuidado de saúde, ao manter e recuperar
valores vitais, significa valor de uso da força de trabalho e
valor de uso para o seu comprador, o empresário. Para as
classes hegemônicas, o cuidado de saúde significa valor de
uso que é a corporificação do capital no processo de extração
da mais-valia.
Em síntese, as funções específicas que o trabalho médico
desempenha na sociedade capitalista, Souza e Veras
(1983:13) agrupam em dois níveis:

1 - a nível econômico
a) de reparação [reprodução] , e manutenção da força de
trabalho;
b) de consumo de uma indústria farmacêutica e de
equipamentos;
c) do consumo do ato médico devido às especializações que
obrigam um doente passar pelas mãos de vários médicos.
2 - a nível político-ideológico
a) através da prática médica realiza-se um tipo de controle
das condutas das diversas classes sociais. Em relação a
diferentes aspectos das pessoas (alimentação, trabalho,
reprodução, prazer, lazer etc...); "b) trata-se também de
chegar a uma suavização dos conflitos sociais seja
enfatizando uma aparente unidade social, através do
aumento de consumo de serviços médicos, seja
incorporando às políticas sociais alguns interesses efetivos
das classes dominadas sem que isto chegue a ameaçar o
sistema estabelecido."
A medicina, como prática de saúde predominante no setor,
cumpre papéis econômicos ligados à extração de mais-valia,
ao consumo de medicamentos e equipamentos específicos
ao setor saúde e à mercantilização do ato médico em si; além
disso, no plano político-ideológico cumpre o papel de
veicular e cimentar a ideologia dominante no que tange ao
modo de levar a vida e às contradições da existência humana
na sociedade capitalista.
O papel ideológico da prática médica também é analisado por
Donnangelo (1975, 1976) e Maccacaro, in Basaglia e outros
(1980).
A autora Madel Terezinha Luz alerta para a necessidade de
se perscrutar o "longo caminho de mediações a ser retraçado
em meandros muito complexos e contradições a serem
investigadas" (1979:52), ao se analisarem as funções e rela-
ções das práticas de saúde ao nível econômico, político e
ideológico para se evitar uma simplificação e estreitamento
da realidade.
A autora aponta também o papel "organizador" na economia
brasileira das instituições médicas, a partir da centralização e
planificação crescentes dos serviços médicos que, além de
regulamentarem a oferta de serviços privados de saúde,
garantem a contratação permanente destes serviços pelos
órgãos estatais.
Acrescenta-se, ainda, outro papel ideológico à medicina, ao
definir "o verdadeiro saber" em relação à saúde. Na eleição
da representação hegemônica sobre o que é saúde e o que é
doença, a medicina, através de suas instituições, nega a
'Validade científica" a todo outro saber que não seja coerente
com a racionalidade do sistema capitalista.
Por suas funções político-ideológicas e econômicas a me-
dicina vem sustentar o projeto capitalista.

"Nasce assim uma nova medicina científica, fiscalizadora e
burguesa — amplamente vitoriosa nas batalhas contra a
doença infecciosa e parasitária, mas somente onde ela
interfere no desenvolvimento da produção: capaz de
controlar com eficácia a situação higiênico-sanitária mas
somente nos locais e nos momentos que foram definidos
pela escolha do capital" (Maccacaro, in Basagliae outros,
1980:77).

A análise realizada a respeito da medicina, onde foram
explicitadas as determinações do econômico sobre as políti-
cas e sobre esta prática de saúde, e seu respectivo papel
político-ideológico, vem abrir um novo rumo para a
medicina, em particular, e para aqueles que buscam o
atendimento das necessidades de saúde das classes populares.
Por ainda ser um veio de investigação recente, suas
repercussões avançam no entendimento da dimensão social
da saúde/doença, promovendo amplos debates sobre a políti-
ca de saúde atual e a permanente necessidade de sua refor-
mulação . A nível específico, este tipo de investigação pre-
tende atingir repercussões sobre o conhecimento técnico e
as práticas de saúde no sentido de: desmistificar a concepção
de saúde vigente, assimilando a determinação social sobre as
enfermidades; desalienar o homem de seu processo
histórico-social; remodelar as relações terapêuticas; integrar
e filtrar o conhecimento e as ações técnicas e difundir e
direcionar a prática profissional com a clientela e o
movimento popular em busca de respostas às necessidades
de saúde da população.
Os objetivos acima expostos devem partir da dimensão
organizativa e das representações sociais já produzidas na
sociedade, de maneira que a reinvenção desta prática não a
transforme em nova prática autoritária sobre a população.
É nessa perspectiva que o desenvolvimento do monopólio
no Brasil, no século XX, no interior das lutas entre trabalho e
capital, e sua determinação sobre as políticas sociais serão
objeto de estudo do capítulo seguinte, onde serão priorizadas
as medidas destinadas à força de trabalho e população
marginal.

2
POLÍTICAS DE SAÚDE NO SÉCULO XX
FACE ÀS CONDIÇÕES ESTRUTURAIS DA
SOCIEDADE BRASILEIRA

A compreensão das medidas de saúde destinadas à classe
trabalhadora e populações marginais realizadas pelas
instituições de saúde e expressas nas "políticas sociais" do
Estado brasileiro requer o debate sobre o papel, a natureza e
as formas de intervenção do Estado nas sociedades
capitalistas contemporâneas, particularmente no Brasil, onde
se desenvolveu o capitalismo tardio. O estudo das relações
do Estado capitalista com as instituições de saúde foi
realizado por Donnangelo e Pereira (1979), Foucault (1977),
Paula, in Braga e Paula (1980) e Rosen (1979). No mesmo
enfoque, o processo brasileiro foi analisado por Braga e Paula
(1980), Donnangelo (1975), Machado, Loureiro, Luz e
Muricy (1978) e Singer, Campos e Oliveira (1978).
Cabe ressaltar que na sociedade capitalista o Estado
estabelece "políticas sociais" e, especificamente, intervém
sobre a saúde da população à medida que, de um lado, a
conservação e reprodução da força de trabalho é requisitada
pelas classes dominantes e, de outro, a reivindicação das
camadas populares por melhores condições de vida também
se concretiza em necessidades de saúde.
A articulação e contraposição destes dois conjuntos de
interesses se manifestam nos fenômenos de expansão ou
retração das "políticas sociais".

HISTÓRIA DA MEDICINA INSTITUCIONAL NO
BRASIL
A história da medicina institucional no Brasil, desde o início
do século, pode ser vista sob duas formas de organização
social: primeira, as ações de saúde pública, como as
campanhas sanitárias promovidas pelo Estado, de caráter
mais coletivo, destinadas à população em geral e, segunda, a
assistência médica individualizada, mantida tanto pelas
instituições previdenciárias quanto pelas empresas nos seus
serviços médicos, destinada aos trabalhadores urbanos. Na
prática constituem-se três subsistemas de saúde — a saúde
pública, a medicina previdenciária e a medicina do trabalho
— com destinos autônomos e sofrendo determinações
distintas.
Apesar desta relativa autonomia dos três subsistemas, Possas
(1981) nos alerta:

"Uma retrospectiva histórica permite justamente mostrar
como, com a evolução do capitalismo no país, estas formas
de organização tendem a uma complementaridade,
articulando-se e convergindo para uma subordinação
crescente ao sistema previdenciário e, portanto, à lógica da
produção e da privatização das ações de saúde" (p. 184).

A análise das instituições de reabilitação e de asilamento, por
pertencerem, em sua. maioria, à sociedade civil e terem
vínculos esparsos e atuais com o sistema de saúde, não foi
mencionada pela autora acima. Esta investigação busca
associar estes espaços alijados do sistema à análise
institucional da saúde brasileira.
O Estado brasileiro tratará da saúde como questão social a
partir da economia capitalista exportadora cafeeira, quando a
divisão do trabalho implicou o assalariamento da força de
trabalho e condições de sua manutenção e reprodução.
Assim, o trabalho assalariado emerge a partir da dinâmica da
economia exportadora capitalista cafeeira, que, segundo
Cardoso de Mello (1986), se pauta em dois segmentos: um
núcleo agrário-produtor de alimentos exportáveis e para o
consumo interno; e o segmento urbano, a ele acoplado, que
inclui comércio, financiamento, transportes, administração e
indústrias.
No momento do auge exportador, os lucros obtidos pelo
complexo cafeeiro foram investidos em projetos industriais,
principalmente entre 1890-1894.
A política de imigração em massa supria as necessidades do
núcleo produtivo e do segmento urbano do complexo
cafeeiro, fornecendo, ainda, um excedente de força de
trabalho que se tornava disponível ao capital industrial.
Por esse mecanismo "a burguesia cafeeira foi a matriz social
da burguesia industrial" (Cardoso de Mello, 1986:100) e, por
seu turno, os escravos libertos e os imigrantes foram a matriz
social do proletariado urbano e rural.
A indústria nascente destinou-se à produção de bens de
consumo para as classes assalariadas urbanas. Basicamente,
eram fabricadas roupas, calçados e gêneros alimentícios
básicos.
Assim, o processo de industrialização no Brasil elegeu a
produção de bens de consumo assalariado, especialmente o
produto têxtil, além de ativar a agricultura mercantil de
alimentos.
A indústria pesada só foi iniciada após a metade do século, a
partir da grande empresa oligopolista nacional.
A capitalização tardia e a interdependência da produção
brasileira em relação aos países centrais foram condicionan-
tes do processo de desenvolvimento nacional.
A oferta abundante de força de trabalho favoreceu a
exploração das camadas assalariadas por meio de uma
política de baixos salários, longas jornadas de trabalho,
remuneração inferior de mulheres e menores, além de
multas ou castigos corporais imputados aos assalariados por
ocasião de falhas e infrações em serviço.
A crescente industrialização no meio urbano, aliada à
exploração da força de trabalho, introduziram imitações na
vida das camadas populares.

"A formação de favelas, cortiços, vilas operárias confirma
cada vez mais o espaço urbano como espaço social, espaço
político, isto é, desenhado pela lógica da hierarquia social.
Sujeito portanto à organização e ao controle político, isto é, à
instituição da Ordem" (Luz, 1979:55).

Foi nesta conjuntura que, com a criação de sindicatos e
associações mutuárias, o movimento trabalhista assumiu
grandes proporções, promovendo desde greves setoriais até
greves gerais, como as de 1917 e 1919. Em contrapartida,
modificou-se a postura liberal do governo.
Ora, se para a expansão e capitalização do sistema produtivo
era imprescindível a existência do trabalho assalariado, a
baixo custo, em contrapartida, as taxas de exploração da força
de trabalho criavam condições de vida insatisfatórias à
reprodução da força de trabalho. No rol das carências
engendradas no novo modo de produção, temos: os
acidentes, as doenças de massa e a subnutrição. Para
minimizar estas contradições, o Estado adotou medidas que
impediram a redução e o extermínio da força de trabalho
urbano pela morbidade/mortalidade, mantendo assim o fluxo
imigratório e a expansão crescente das camadas assalariadas.
As ações de saúde pública surgiram como respostas
momentâneas a agudos problemas, como a Lei de Vacinação
Obrigatória contra a Varíola, campanhas contra a febre
amarela e a peste bubônica. Os programas sanitários
destinam-se basicamente às áreas portuárias e regiões
produtivas, coadunando-se com a política econômica
agrário-exportadora nacional. As ações de saúde pública
foram garantidas pelos estudos desenvolvidos nos institutos
de pesquisa, como o Instituto Soroterápico de Manguinhoss
— RJ, criado em 1899 (hoje Fundação Osvaldo Cruz), o
Instituto Bacteriológico — SP, de 1892 (hoje Instituto
Adolfo Lutz) e outros que se destinaram a produzir vacinas e
soros antipestosos.
Às duas escolas médicas no início do século (Rio de Janeiro e
Bahia), no período cafeeiro, acrescentaram-se mais sete: no
Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, Distrito Federal,
São Paulo, Pará e Pernambuco. Devido ao aumento da
categoria médica, aliado ao interesse do governo em
centralizar e fiscalizar o setor, ficou definido na Constituição
e no Código Penal de 1890 o monopólio dos médicos sobre
a arte de curar.
No que tange à assistência individualizada de saúde, a prática
médica majoritária, de alto custo, era de cunho liberal.
Excepcionalmente, havia os serviços médicos em
determinadas empresas dirigidos aos seus funcionários. A
medicina do trabalho que se inaugurava, no entanto, era a
mesma praticada nos consultórios particulares dos médicos,
com a distinção de o médico ser, naquele momento, um
técnico assalariado da empresa.
A assistência médica acessível à população pobre ficava
restrita às iniciativas filantrópicas que "fundavam e
mantinham as obras de misericórdia destinadas aos abrigos
de indigentes, viajantes e doentes" (Singer e outros,
1978:96). Além disso, alguns estados federativos mantinham
seus próprios asilos de alienados.
Neste quadro, começaram a surgir, desde a primeira metade
do século XIX, associações mutuárias organizadas no meio
operário inicialmente com "objetivos puramente assis-
tenciais: serviços médico-farmacêuticos, auxílio em caso de
enfermidade, invalidez, velhice e funerais" (Possas, 1981:
197). Esse movimento de solidariedade de classe ampliou-se
quantitativamente, sendo que, em alguns casos, as associa-
ções mutuárias começaram a ultrapassar seus limites assis-
tenciais, ao reivindicar melhores condições de vida e
trabalho aos seus associados.
A passagem do mutualismo ao modelo das Caixas de
Aposentadoria e Pensões deve ser entendida no contexto da
intervenção do Estado nas relações entre capital e trabalho.
Concluindo, este período de transformações de base
econômica com a intervenção estatal e de intensas
mobilizações populares fomentou a tecnologia médico-
sanitária no Brasil. A introdução da "medicina científica" foi
garantida pelos Estados desenvolvidos nos institutos de
pesquisa, que forneceram as bases para a medicalização de
nossa sociedade, ampliando a ação estatal na vida social (cf.
Singer e outros, 1978:114-5).
Neste contexto político, nos anos 20, o Estado modifica a sua
postura marcadamente liberal para inaugurar "um processo
de intervenção crescente do Estado no âmbito da
problemática trabalhista" (Oliveira & Teixeira, 1985:21). Em
1919 (ano da segunda greve geral), é aprovada uma lei sobre
indenizações por acidente de trabalho, por unanimidade
considerada marco histórico da nossa legislação trabalhista.
O movimento previdenciário brasileiro estatal foi projeto da
classe empresarial brasileira, para garantir condições
mínimas de estabilidade aos seus trabalhadores:

"[...] a imigração crescente necessária à expansão da força de
trabalho, se contrapondo às entidades mutualistas. Assim, o
projeto previdenciário pretendia esvaziar o movimento
operário, introduzindo a assistência médica e reduzindo os
efeitos das precárias condições de trabalho e do salário real
próximo ao nível da subsistência" (cf. Braga, op. cit.:46).

A Lei Elói Chaves, de 1923, cria as Caixas de Aposentadoria
e Pensões dos Ferroviários (CAPs, organizadas no âmbito de
cada empresa). Outras leis promulgadas em anos seguintes
criam as CAPs para outros setores vitais: transportes,
exportação, indústria e bancos. A assistência médica e
farmacêutica, além das aposentadorias e pensões destinadas a
todos os empregados e dependentes, passam a ser custeadas
pela arrecadação compulsória de uma taxa fixada de três por
cento por trabalhador, um por cento sobre os lucros da
empresa e uma taxa sobre os serviços, por parte da União.
Essas entidades, formadas nas grandes empresas privadas e
públicas, eram administradas por representantes de
empregados e empregadores. O Estado assume o papel
normatizador entre as classes sociais.

O PRIMEIRO GOVERNO VARGAS E O ESTADO
NOVO
O país enfrenta, ao final da década de 20, uma profunda crise
econômica, em conseqüência da crise internacional e da
maneira como o Brasil estava articulado com o mercado
mundial. E no bojo desta crise que eclode a Revolução de
1930, que leva à presidência Getúlio Vargas. "A Revolução
de 30 marca o fim da hegemonia agrário-exportadora e o
início do predomínio da estrutura produtiva de base urbano-
industrial" (Oliveira, 1972:9), na qual o Estado exerce a
função de catalisador e articulador da acumulação do capital,
destruindo o "excessivo" federalismo da Primeira República,
inaugurando o processo de redução de autonomia dos diver-
sos estados.
As principais medidas adotadas pelo Estado na esfera
econômica, a partir de 1930, foram: a regulamentação das
leis entre o trabalho e o capital; a fixação de preços dos
produtos em geral; a penalização do custo e rentabilidade
para a exportação; os subsídios diretos à indústria e os
investimentos em infra-estrutura urbana.
A legislação trabalhista e aremuneração urbana superior à
rural que vigoram nas cidades, associadas às demais medidas
econômicas, promovem a afluência de grandes parcel as da
população rural para vender sua força de trabalho ao setor
industrial e usufruir as melhorias implementadas nas cidades.
Em decorrência do aumento da força de trabalho urbano,
parcialmente assimilado pelo setor industrial, constituiu-se o
exército industrial de reserva, a partir da forma latente, ou
seja, do incremento de assalariados do campo, conforme
nota de rodapé 10 do capítulo anterior. A existência do
exército de reserva permite não só a redução da massa de
salários na indústria como também favorece o "horizonte
médio para o cálculo empresarial" (Oliveira, 1972:12).
Nesse contexto, o setor terciário — serviços — foi o
responsável pela absorção dos incrementos da força de
trabalho afluentes às cidades, a partir de uma gama variada de
atividades e formas arcaicas de subsistência.
O caráter nacional e orgânico das medidas do Estado ligadas
à questão social inaugura o que hoje chamamos de "políticas
sociais".
No plano das políticas sociais, seguindo a lógica da
centralização federal, cria-se, em 1930, o Ministério da
Educação e Saúde, com dois Departamentos Nacionais, um
de Educação e outro de Saúde.
A política de saúde incorpora e reforma as unidades de
âmbito estadual montadas nos anos 20. O Estado resolve
interferir sobre os recursos das CAPs, criando os Institutos
de Aposentadorias e Pensões — IAPs, passando a arrecada-
ção tripartite a ser igualitária e a hegemonia administrativa
estatal.
Assim, o Estado passa a contribuir com um terço da
arrecadação a partir de impostos cobrados sobre os produtos
em geral, os trabalhadores com um índice variável conforme
a categoria, de três a oito por cento e as empresas deixam de
contribuir com uma parcela de seus lucros para arrecadar
igual percentil ao de seus assalariados.
A contribuição tripartite, paritária, tinha forte apelo
ideológico: o governo Vargas chama a si a administração dos
IAPs na medida em que injeta recursos no setor, as empresas
e os empregados participam igualitariamente na sustentação
da Previdência. A Previdência Social era pensada segundo o
modelo de Seguro Social.
No entanto, a parcela tripartite da União não era repassada, a
não ser de forma irregular e parcial, e a mudança na
arrecadação empresarial significou uma redução imediata e
progressiva em sua contribuição, já que o avanço
tecnológico historicamente vem diminuir a massa de
assalariados por empresa. Além disso, a arrecadação, sendo
pautada na folha salarial, tornou vulnerável o montante de
recursos da Previdência para enfrentar "conjunturas
econômicas recessivas e/ou injunções políticas" (Teixeira,
1986:23). Uma análise dinâmica vem mostrar que são
basicamente os assalariados que sustentam a Previdência
Social, de forma direta, via contribuição compulsória em seu
salário, e, de forma indireta, como consumidores, via
incorporação aos preços da mercadoria dos impostos e da
contribuição empresarial.
Os IAPs foram expandidos ao máximo para outros setores da
economia, ampliando o volume de recursos. O Estado
implanta uma política "contencionista" sobre os recursos,
reduzindo o valor real do pecúlio (aposentadoria ou pensão)
e da cobertura da assistência médica. Enquanto em 1929-30,
o número de aposentadorias correspondia a vinte por cento
dos segurados, em 1944-45 eram menos que seis por cento
(cf. Oliveira, 1985:64).
A orientação "contencionista", difundida pela tecnocracia
que se instala na Previdência Social objetivava a capitalização
de recursos do setor a serem investidos na sustentação de
setores produtivos. O Estado adota a política de "socialização
das perdas" por pressão dos capitalistas. A contenção dos
gastos públicos surge na medida em que foram reduzidas as
arrecadações estatais simultaneamente ao aumento de
atribuições do Estado.
A capitalização do setor de saúde estende-se por todo o
período do governo Vargas, de 1930 a 1945. Desde o início,
as medidas colocadas em prática nos IAPs, "de contenção de
despesas e de aumento das contribuições dos empregados
provocaram protestos e manifestações contrárias dos
trabalhadores" (Oliveira & Teixeira, 1984:108).
A centralização da política de saúde pelo Estado nacional, e,
em 1937, a coordenação efetiva dos Departamentos Esta-
duais de Saúde pelo Departamento Nacional de Saúde e
Assistência Médico-Social, cria uma rede uniforme, onde se
desenvolviam também os programas de higiene materno-
infantil.

"[...] formada por uma Diretoria, uma Organização de Órgãos
Centralizadores (serviços especiais de combate à tuberculose,
à lepra, além de hospitais e laboratórios) e uma Coordenação
de Órgãos Descentralizados (Centros de Saúde nas cidades
maiores e postos de higiene na área rural)" (Braga, op. cit.:
54).

Este complexo de medidas da política social (expansão dos
IAPs a novas categorias profissionais, o avanço da atenção à
saúde para o interior do país), aliado às medidas repressivas
de 1935/37 , o atrelamento das entidades sindicais ao Estado
e a substituição das lideranças operárias), permitiu,
contraditoriamente, que o novo regime — o Estado Novo —
ampliasse a sua base de apoio social, incluindo parcelas da
classe trabalhadora.
O modelo de transição implementado na ditadura de Vargas
produziu um baixo custo de reprodução do trabalhador
urbano também a partir da formação do operariado rural, que
serviu às culturas comerciais do mercado interno e externo.
O operariado rural não ganhou estatuto de proletariado,
mantendo-se num padrão primitivo rural com altas taxas de
exploração da força de trabalho e sem qualquer assimilação à
Previdência Social.
Getúlio adota a política de "conta-gotas" na concessão de
benefícios aos assalariados. Em 1940, a legislação trabalhista
cria o salário mínimo, valor calculado rigorosamente como
"salário de subsistência", isto é, de reprodução:

"Os critérios de fixação do primeiro salário mínimo levavam
em conta as necessidades alimentares (em termos de
calorias, de proteínas etc.) para um padrão de trabalhador
que deveria enfrentar um certo tipo de produção, com um
certo tipo de força mecânica, comprometimento psíquico
etc." (Oliveira, 1972:11).

Neste cálculo não foram incluídas outras necessidades do
trabalhador, como o lazer, os ganhos de produtividade e a
possibilidade de expansão da força de trabalho. Em 1943,
promulga-se uma nova CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho) e se inicia a legislação sobre a assistência aos
incapacitados do aparelho locomotor.
O modelo de transição produziu, em contrapartida, uma
maior concentração de renda a partir do aumento da taxa de
exploração da força de trabalho e do aumento da
produtividade industrial.
Por sua vez, houve uma reorganização no Ministério da
Educação e Saúde, em 1941. O Departamento Nacional de
Saúde foi composto pelos Serviços Nacionais de Doenças
Mentais, Tuberculose, Peste, Malária, Câncer, Febre Ama-
rela, além do Departamento Nacional da Criança, criado em
1940, e outros ligados a questões operacionais (cf. Braga, op.
cit.: 55-6). Esta estrutura será mantida mesmo após a criação
do Ministério da Saúde, em 1953.

O PERÍODO DE TRANSIÇÃO DE 1945-50
O período de democratização que se segue à deposição do
ditador Getúlio Vargas leva à presidência o General Eurico
Gaspar Dutra (de 1946 a 1950), sob a égide de uma nova
Constituição elaborada por uma Assembléia Constituinte, em
1946, e sob a hegemonia das forças políticas oligárquicas e
liberais, organizadas principalmente na União Democrática
Nacional (UDN), adversas ao nacionalismo econômico, ao
dirigismo estatal e à participação das massas no processo
político. Ao nível da economia, em nome da "democracia
representativa", instalaram-se no governo os princípios da
"livre iniciativa" e de "igualdade de direitos para nacionais e
estrangeiros". Foi criada, em 1948, a Comissão Mista
Brasileiro-Americana, conhecida como Missão Abbink, que,
em 1948, desenvolveu a associação entre grupos
econômicos brasileiros e norte-americanos e os vinculou à
Organização dos Estados Americanos — OEA, sob
hegemonia dos Estados Unidos. A visão de desenvolvimento
capitalista nacional foi abandonada em favor da tese da
associação de capitais e interdependência.
Nos anos críticos de 1945-46, a redemocratização do país
permitiu uma politização maciça das massas urbanas, o que
interferiu nos resultados das eleições nacionais, estaduais e
municipais. O Partido Comunista do Brasil tornou-se o quar-
to partido nacional, com fortes relações com as massas urba-
nas, conseguindo importantes resultados nas eleições de
1945 e 1947.
Em 1946, em contrapartida, o governo Dutra inicia o
expurgo do funcionalismo público de membros do Partido
Comunista, passando em seguida à repressão violenta de
trabalhadores, intelectuais e chefes militares, a exemplo do
que acontecia no Estado Novo (cf. Ianni, 1979:102).
Esta política culminou com a colocação do Partido Comu-
nista do Brasil na ilegalidade, em 1947, e a cassação dos
mandatos de seus parlamentares, numa campanha antico-
munista, que se coadunava com a política da Guerra Fria
promovida principalmente pelo governo norte-americano.
Paralelamente, cresce a importância do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), que passa a mobilizar o proletariado
industrial. Com a clandestinidade de Luís Carlos Prestes,
Getúlio Vargas, e seu populismo trabalhista, ressurge como
liderança popular, eliminando do primeiro plano do cenário
nacional o reformismo socialista do PCB (cf. Ianni,
1979:103).
As políticas sociais neste governo só tiveram destaque no
Plano SALTE, que aplicou recursos orçamentários nas áreas
de Saúde, Alimentação, Transportes e Energia. Apesar de ter
sido um projeto para durar cinco anos, foi implementado
parcialmente apenas nos anos de 49 a 51. Em 1952, o plano
já estava praticamente abandonado. Os recursos da área de
saúde foram aplicados em programas médico-assistenciais.
A redemocratização da Previdência Social volta à tendência
de repartição dos recursos arrecadados em benefícios
pecuniários e serviços, minorando as medidas
contencionistas dos anos 30-45.
A transformação que se efetivou na política da Previdência
Social brasileira — de um modelo contencionista de recursos
a um modelo mais amplo de direitos da força de trabalho
ativa e de seus dependentes — significou a adoção de outro
modelo de política social, de caráter político-ideológico mais
explícito. Dadas a influência e a duração deste novo modelo
na Previdência Social brasileira vamos nos deter em sua
análise.
Após a segunda Guerra Mundial, os países capitalistas
centrais esforçam-se em repensar a "Política Social" e as
atribuições do Estado nesta área, superando a visão
neoliberal e anti-intervencionista estatal.
Na Europa, interesses tradicionalmente opostos coincidiram
nesta etapa do desenvolvimento econômico. Do ponto de
vista da base econômica temos, de um lado:

"[...] a passagem da fase concorrencial da acumulação
capitalista para a fase monopolista [..], que passa
crescentemente a se dar em função do aumento da
produtividade do trabalho carecendo de um trabalhador mais
qualificado e hígido (sadio)" (Teixeira, 1986:11-2).

De outro lado, a precária condição de vida da população
européia após a segunda Guerra requeria a universalização da
atenção à saúde a ser mantida pelo Estado, superando o
modelo de cobertura previdenciária — Seguro Social —
restrita aos assalariados, já que grande parte da população se
encontrava pauperizada e os setores produtivos absorviam
paulatinamente a força de trabalho disponível.
No campo político-ideológico, o capitalismo se defrontava,
de um lado, com a ascensão do socialismo (enquanto
ideologia e forma de governo) e de outro com a ideologia
nazi-fascista (esta derrotada militarmente). Ambos os
adversários políticos possuíam medidas dirigidas às
necessidades sociais que encontravam boa ressonância nas
camadas populares.
O projeto capitalista de "Estado de Bem-Estar Social" ou
Seguridade Social, elaborado por Sir William Beveridge em
1942, foi implementado na Europa Ocidental sob os
governos social-democratas e trabalhistas, onde o Estado
assumiu grande parte dos custos do sistema aliado às
contribuições individuais dos assalariados.

"A inclusão de temas 'sociais' na Carta do 'Atlântico',
assinada pelos aliados após a guerra; o papel atribuído ao
Bureau Internacional do Trabalho (mais tarde chamado de
Organização Internacional do Trabalho), e o 'Plano
Beveridge' são marcos deste projeto de hegemonia então em
desenvolvimento. A democracia liberal procurava
demonstrar, em síntese, que, como seus interlocutores
(socialistas e nazistas), também tinha uma proposta avançada
para a satisfação das 'necessidades sociais"' (Oliveira &
Teixeira, 1985:176).

A Seguridade Social defendia a tese de uma concepção ampla
de política social, universal, que favorecesse ações de saúde,
higiene, educação, habitação, garantia de pleno emprego e
redistribuição de renda, além dos benefícios pecuniários
tradicionais. Os direitos sociais deixam de ser vinculados aos
assalariados contribuintes da Previdência para serem direitos
do cidadão, garantidos pelo Estado.
O período pós-45 traz um clima de recolocação da questão
previdenciária ao nível internacional em direção às teses da
"Seguridade Social".
A Organização Internacional do Trabalho — OIT, nessa
época, divulgou a Seguridade Social em suas reuniões
internacionais, em eventos científicos que organizou, em
documentos e nas revisões das Convenções Internacionais
sobre o tema (cf. Oliveira & Teixeira, 1984:178).
Os "intelectuais" da Previdência Social brasileira,
especialmente os do IAPI (Industriários), assimilaram atese
da Seguridade Social e a adaptaram à realidade brasileira. Se,
de um íado, a economia capitalista brasileira também passava
à fase monopolista, requerendo uma força de trabalho mais
sadia, os serviços de saúde dos LAPs, segundo a diretriz
distributivista, deviam ser ampliados e os demais benefícios
deviam ser reajustados e distribuídos entre a população
segurada, encerrando o período contencionista. De outro
íado, estas medidas vieram reforçar a direção sindical popu-
lista além de serem uma medida política e ideológica eficien-
te no esvaziamento das bases operárias de orientação comu-
nista visando à hegemonia sobre os assalariados.
Entretanto, como os institutos preservaram uma relativa
autonomia entre si e a lógica contencionista havia permitido
financiar tanto projetos governamentais e setores da econo-
mia quanto o clientelismo da direção sindical (através da
distribuição de benefícios segundo interesses eleitorais), a
diretriz distributivista foi implementada estritamente por
alguns lAPs. Esta somente foi generalizada a partir de 1960
pela Lei Orgânica da Previdência Social.
Do ponto de vista do governo brasileiro, não havia crise
social e econômica que requisitasse, para sua estabilização,
medidas universais de melhoria das condições de vida da
população. Então, dos princípios gerais da tese da Seguridade
Social alguns pontos nunca foram assimilados: que o Estado
arcasse com o ônus dos planos aos previdenciários; que não
fosse obrigatória a contribuição previdenciária para a
obtenção do benefício; que o benefício não fosse
proporcional ao salário; que houvesse o seguro-desemprego.
Ou seja, o cerne do Plano de Seguridade Social — os direitos
sociais como direitos da cidadania mantidos pelo Estado —
não foi absorvido no Brasil, havendo assim uma ampliação
dos benefícios a serem concedidos aos assalariados-
contribuintes da Previdência.
No interior das medidas de saúde da Seguridade Social foram
incorporadas as medidas para a reabilitação física e mental, a
partir das reivindicações militares e civis, articuladas no
movimento internacional de reabilitação.
O número de veteranos incapacitados na segunda Guerra
veio catalisar o movimento de reabilitação encaminhado por
entidades da sociedade civil integradas na Sociedade
Internacional para o Bem-Estar dos Lesados . Ele
conquistou também o apoio da ONU — Organização da
Nações Unidas, em 1946, além de suas Agências
Especializadas das quais se destacaram a OIT, que incorporou
os serviços de reabilitação às teses da Seguridade Social, e a
OMS — Organização Mundial de Saúde, que forneceu bolsas
aos vários continentes para a formação de técnicos
especializados em reabilitação.
Desde então, várias entidades brasileiras, como o IAPC (dos
Comerciários) de São Paulo e Rio, a ABBR (Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação) e o Hospital das
Clínicas da USP, implementaram pequenos programas de
reabilitação para acidentados do trabalho, pacientes crônicos,
deficientes sensoriais e físicos, com a assessoria de
consultores da ONU, técnicos estrangeiros ou nacionais
formados no exterior via colaboração da OIT ou OMS.
Assim, foram introduzidas práticas especializadas em
reabilitação inexistentes no Brasil. Dentre as novas profissões
estava a terapia ocupacional, cujas raízes advêm do
tratamento humanitário ao doente mental, em fins de 1700,
e cuja expansão vinculou-se à recuperação de incapacitados e
outros doentes crônicos na Primeira e Segunda Guerra
Mundial, quando se criaram cursos de formação nos Estados
Unidos, no Canadá e na Inglaterra.
No Brasil, os programas reabilitacionais introduziram-se, de
um lado, pela lógica distributivista das entidades
previdenciárias que propunha o amplo oferecimento de
serviços de saúde, incluindo reabilitação, visando ao
reengajamento do segurado na força de trabalho ativa e o
fortalecimento das lideranças populistas e, de outro, pela
ideologia assistencialista da burguesia, na qual cabia à
sociedade civil prover recursos que reduzissem problemas
específicos gerados no modo de produção capitalista, na
perspectiva idealista de colaboração de classes e da sociedade
como um todo harmônico, onde o problema social é
desvinculado do sistema econômico.
Em relação à política salarial, em todo o período do governo
Dutra, o salário mínimo não foi aumentado uma única vez,
apesar da crescente inflação de preços, reduzindo bastante o
poder aquisitivo dos assalariados da indústria.

"[...] Os salários ficaram congelados, em sua maioria
(principalmente o salário mínimo), enquanto o custo de
vida, no Rio, subia, entre 1946 e 1951, de 62%" (Paul Singer,
apud Ianni, 1979:101).

A divisão social do trabalho promoveu a melhor configu-
ração e representação das classes sociais no Brasil.

A PARTIR DO SEGUNDO GOVERNO VARGAS —
1950 A 1964
A transição do governo Dutra para o segundo período
governamental de Getúlio Vargas (1951-54) correspondeu a
uma reorientação das relações entre o Estado e a Economia.
"A sociedade brasileira já estava bastante diferenciada,
devido ao crescimento do setor industrial, à expansão do
setor terciário e ao rápido crescimento dos centros urbanos
dominantes (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife,
Belo Horizonte, Salvador e alguns outros)" (Ianni,
1979:110).
O governo getulista introduziu no debate nacional a teoria
do subdesenvolvimento, que assentou as bases do
"desenvolvimentismo". A Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL), criada no Chile em 1948, autora
da teoria desenvolvimentista, recebia a hostilidade de
empresários e governo dos Estados Unidos;
conseqüentemente, o apoio getulista a estas teses e medidas
econômicas elaboradas pela CEPAL o contrapunha aos
interesses do capital estrangeiro, em particular do capital
norte-americano, que em represália encerra a Comissão
Mista Brasil - Estados Unidos, em 1953.
As medidas adotadas entre 52-54 foram delineando a
expansão e diferenciação do sistema econômico brasileiro,
onde o poder público era indispensável.
O salário mínimo sofreu algumas recuperações e oscilações,
conforme o poder político dos trabalhadores, mas não
chegou a atingir o poder aquisitivo do início dos anos 40, já
que a inflação corroía o valor nominal dos salários (cf. Ianni,
1979:120).
O segundo governo getulista assentou-se na política
econômica de caráter nacionalista, e na política social de
caráter trabalhista, onde a mobilização das massas populares
era controlada pelo discurso populista e pela máquina estatal,
num período de crise econômica interna (cf. Vieira,
1985:62-3).
As políticas sociais reduziram-se a medidas setoriais contra
problemas importantes e urgentes, mas sem aprofundamento
e mudanças estruturais. No âmbito da Assistência Social,
destacaram-se o Serviço de Alimentação da Previdência
Social (SAPS), a Legião Brasileira de Assistência (LBA), o
Serviço Social da Indústria (SESI) e o Serviço Social do
Comércio (SESC). A Assistência Social efetivava-se em suas
várias modalidades de caráter particular, público ou semi-
público.
"Aí se localizaram especialmente os asilos, os hospitais, as
associações, que recebiam dotações de acordo com as
possibilidades financeiras do País, em cada ano" (Id. ibid:55).

A política governamental populista, ao promover a
monopolização da economia e, por associação, o aumento
das massas marginais, adotou políticas de assistência dirigidas
a estas camadas sociais, dados o grande contingente
populacional que afluía às cidades e o receio da violência. O
Estado chama a si o papel de controle e fomento das
entidades assistencialistas, criando organismos centrais que
cadastram e subvencionam as entidades, como a LBA. Isto
garantiu que a institucionalização dos problemas sociais ao
nível funcional, pelo fenômeno manifesto, esmorecesse seu
vínculo às contradições da sociedade de classes, expandindo,
ao mesmo tempo, a ideologia assistencialista do Estado, sua
face democrática, humanitária e a hegemonia burguesa sobre
essa população (cf. Quijano, in Pereira, 1978:184).
No âmbito da Saúde Pública, o governo getulista propunha
combater as falhas referentes a nutrição, saneamento,
assistência médica e educação sanitária. Neste período
auxiliou, também financeiramente, o ensino da enfermagem
bem como organizou a criação de novas escolas. Em-
preendeu uma série de campanhas contra as doenças de
massa e pestilenciais, chagas, malária, febre amarela, peste,
verminoses, tracoma e bouba, além de campanhas de
erradicação das doenças venéreas e tuberculose. Junto às
campanhas havia propostas de criação de novos
estabelecimentos hospitalares e ambulatoriais e de ampliação
dos existentes, dentre eles os destinados às doenças mentais
(cf. Vieira, 1985:49).
Em 1953, o governo Vargas cria o Ministério da Saúde de
modo que se tornam específicas as verbas para a saúde
coletiva cujos programas intervinham sobre uma grande
causa de mortalidade da população — as infecções e
parasitoses — predominantes na população infantil das
camadas populares. Neste sentido, se, de um lado, a ascensão
dos programas de saúde coletiva ao nível ministerial
demonstra a atenção especial do Estado para com a saúde da
população, de outro lado, o caráter nitidamente populista
dessa medida revela-se ao se comparar o acréscimo de
atribuições do Ministério da Saúde em relação à respectiva
dotação orçamentária bem como pela não adoção
simultânea de medida eficaz: a elevação de renda dos
assalariados.
Ao mesmo tempo que as medidas de saúde coletiva são
desprestigiadas financeiramente, em 1º de maio de 1954 é
aprovado o Regulamento Geral dos Institutos de Aposenta-
doria e Pensões, que define com visão abrangente o caráter
de previdência e assistência das instituições aos segurados,
ou seja, aos assalariados da ativa. Nessa medida, a ampliação
dos programas de saúde da Previdência Social veio interferir
sobre as doenças circulatórias que, segundo as estatísticas de
saúde do período, já eram causas de morte de outro
segmento populacional, as classes hegemônicas.
"Os Institutos de Aposentadoria e Pensões têm por fim
assegurar aos seus beneficiários os meios indispensáveis de
manutenção, quando não se achem em condições de
angariá-los por motivo de idade avançada, incapacidade, ou
morte daqueles de quem dependiam economicamente, bem
como a prestação de serviços que visem à proteção de sua
saúde e concorram para o seu bem-estar" (Oliveira &
Teixeira, 1985:161).
O Regulamento Geral assumiu a diretriz distributivista para
todos os IAPs, cabendo a cada qual efetivá-lo segundo sua
relativa autonomia, orçamento, estrutura administrativa etc.
A adoção do modelo distributivista na Previdência Social
reforçou as lideranças sindicais populistas e garantiu a base
de sustentação popular do segundo governo getulista. O
populismo de Vargas mostrava às camadas populares a sín-
tese do assistencialismo destinado à população marginal e do
distributivismo nos IAPs voltado à força de trabalho ativa.
A política norte-americana de alianças e absorções, o
processo de internacionalização progressivo da reprodução e
acumulação do capital, os interesses capitalistas locais de
aliança ao capital estrangeiro, a desmobilização das classes
moveram a deposição de Vargas em agosto de 54 e o fim das
estratégias de formação do capitalismo nacional.
No período de transição, entre a deposição e o suicídio de
Vargas até a posse em janeiro de 1956 do candidato eleito,
Juscelino Kubitschek de Oliveira, o poder político brasileiro
esteve em crise, pelo antagonismo de posições gestadas nos
anos anteriores.
O Programa de Metas do Governo Juscelino Kubitschek
acelera a acumulação do capital, de um lado, através da
industrialização "pesada" (bens de produção e bens duráveis
de consumo), com a transferência de tecnologia (ou trabalho
morto externo), a partir do capital estrangeiro, lançando a
capacidade produtiva à frente da demanda e, de outro lado,
por meio do aumento da taxa de exploração da força de
trabalho, quer se compare o salário real com o custo de
reprodução da força de trabalho, quer se compare o salário
real com a produtividade do setor.
O avanço da urbanização aumentou o custo de reprodução
da força de trabalho com a urbanização de vários de seus
componentes: o transporte, a educação, a saúde, a energia
elétrica, além do aumento de preços dos produtos
industrializados, portanto, "o custo da reprodução também se
mercantiliza, se industrializa" (Oliveira, 1972:52).
Ao nível internacional, com a reativação e
internacionalização do sistema econômico, associado à
consolidação da hegemonia norte-americana sobre a Europa
e o Japão, reformularam-se as relações econômicas, políticas
e militares com os povos coloniais e dependentes. Agora, os
governantes norte-americanos reconhecem a intervenção
estatal na economia como uma garantia política e econômica
para as empresas estrangeiras.
O governo de Juscelino Kubitschek voltou-se a uma
valorização extremada da política econômica, em prejuízo da
política social.
"As metas econômicas do governo federal não só convive-
ram com precárias condições de vida da maioria da popu-
lação brasileira, como ainda permitiram ocultá-las, através da
febre desenvolvimentista" (Vieira, 1985:127).
As políticas sociais pouca alteração organizativa tiveram e
algumas medidas setoriais foram implementadas na Edu-
cação, Saúde Pública, Habitação Popular, Previdência Social
e Assistência Social.
Na Educação, em 1960, instala-se a Companhia Nacional de
Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais —
CADEME, primeiro órgão federal específico ao deficiente
mental, com dotação orçamentária própria, mas que
somente inicia um planejamento cuidadoso após alguns anos
de seu funcionamento (cf. Krynski & Clemente Filho,
1969:488).
Em 1961, foi aprovado o Plano de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, que favorecia ainda mais a
mercantilização do ensino privado, a partir da utilização de
fundos públicos. Foi criticado pela Campanha em Defesa da
Escola Pública, campanha da sociedade civil que antevia a
falência do ensino oficial. Nesse plano estava contemplada a
educação especial destinada aos excepcionais.
Na Saúde Pública, com um orçamento ministerial reduzido
(cf. Vieira, 1985:118-9), foram empreendidas campanhas
contra as doenças de massa, sobretudo a malária e a
tuberculose, vinculadas à indigência social, ou seja, a parcelas
da população "excedente" que vivia em condições de
pauperismo (cf. Cap. 1:45-9).
A Previdência Social manteve a diretriz da redemocratização
de modo que a sua arrecadação era quase integralmente
repassada em benefícios e serviços. A assistência médico-
hospitalar destinada a segurados e dependentes absorvia, em
média, uma boa parcela da arrecadação dos IAPs, cerca de
dez por cento.
Em 1960, o Ministério do Trabalho foi transformado em
Ministério do Trabalho e Previdência Social. Assim, a saúde
dos assalariados ficou politicamente caracterizada como
componente da força de trabalho a ser planejada em
conjunto com as políticas trabalhistas. Nesse mesmo ano,
1960, foi aprovada pelo Congresso e Executivo a Lei
Orgânica da Previdência Social (LOPS) que, após muitos
anos de tramitação e reformulação, unifica o sistema
previdenciário a todos os trabalhadores em regime de
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Permaneceram
excluídos da LOPS os trabalhadores rurais, as empregadas
domésticas e, naturalmente, os servidores civis e militares da
União, estados, municípios e territórios, além de autarquias,
que estivessem sujeitos a regimes próprios de previdência.
A uniformização das atribuições dos institutos na LOPS
ocorreu também pela crise do populismo, tanto nas classes
dominantes quanto no sindicalismo populista, de tal forma
que "a simbiose entre sindicatos e previdência social já havia
perdido, em termos relativos, sua eficácia" (Cohn, 1980:33).
A Lei Orgânica modificou os valores de sua arrecadação.
Enquanto nos IAPs a contribuição variava entre três e oito
por cento do salário, a LOPS fixou em oito por cento a
contribuição do segurado, não excedendo a cinco vezes o
valor do maior salário mínimo; para as empresas, quantia
igual ao dos segurados. A arrecadação da União reduziu-se
dos 33% previstos (e não realizados) a um valor variável de
quinze a dez por cento restritos "às despesas de pagamento
de pessoal e de administração geral da previdência bem
como à cobertura de eventuais déficits orçamentários do
sistema" (Possas, 1981:207). Na formulação da LOPS o
Estado institucionalizou a redução de sua responsabilidade
com o sustento da Previdência Social, desobrigando-se da
contribuição igualitária tripartite e das dívidas acumuladas até
então.
Outra mudança radical foi a formulação abrangente da
assistência médica, não sendo mais caracterizada como ser-
viço "complementar", "condicional" aos limites financeiros.
A LOPS prevê a compra de serviços de saúde do setor
privado dos empregados, o financiamento para expansão de
entidades beneficentes de saúde, o credenciamento de
médicos, várias formas de concessão de assistência: via
serviços públicos, privatização do sistema e via convênio
com entidades assistenciais (Cf. Oliveira & Teixeira,
1985:161).
Dentre as novas atribuições incorporadas na LOPS e
destinadas aos beneficiários em geral estava a assistência
reeducativa e de readaptação profissional. Havia, além disso,
a assistência financeira, alimentar e habitacional, auxílio-
reclusão, auxílio-funeral e o pecúlio.
A transformação que se manifesta na política previdenciária,
de um modelo contencionista para um modelo econo-
micista, era justificada "tecnicamente", já que
"a Previdência despendia muito dinheiro com benefícios por
doença e invalidez e que, portanto, serviços médico-
assistenciais e de recuperação podiam não só diminuir estas
despesas como, ainda mais, aumentar a receita, pelo retorno
mais rápido dos segurados em benefício à situação de
segurados ativos" (Oliveira & Teixeira, 1985:174).
O discurso economicista difundido por técnicos da
Previdência Social também era absorvido pelas lideranças
sindicais populistas. Assim, no II Congresso da Previdência
Social, de 1957, o pronunciamento de um representante dos
empregados, favorável à organização do serviço de
readaptação profissional, que reforçaria em termos
financeiros o IAPI, declarava:

"[...] o trabalhador readaptado volta a ser o mesmo
contribuinte para o instituto, 'não ficando eternamente na
dependência do benefício e da assistência médica, sendo
que, do contrário, 'não haverá receita no mundo que possa
cobrir as despesas futuras do Instituto'" (apud Cohn,
1980:90).

A Previdência Social prepara-se para expandir o rol de sua
assistência, à clientela acidentada no trabalho ou com
doenças incapacitantes que, após um tratamento reabilitador,
pudesse ser reincorporada à força de trabalho. Foi nesse
sentido que a LOPS favoreceu a expansão de entidades
beneficentes de saúde e dos serviços de reabilitação nos
IAPs, ambos estruturas pioneiras na introdução de serviços
multidisciplinares de reabilitação no Brasil.
A promulgação da LOPS, de um lado, foi um avanço na
extensão de amplos benefícios aos segurados, derrotando o
modelo contencionista, mas, de outro, não sanou as
dificuldades financeiras crescentes nem criou mecanismos
de estabilidade para os períodos de crise econômica, quando
a baixa arrecadação e o déficit orçamentário vêm ocorrer,
em grande parte, devido a problemas crônicos na
arrecadação. A parcela tripartite do Estado atrasada nunca era
quitada; os empregadores, mesmo processados, não
recolhiam as contribuições de suas empresas ou sequer
repassavam a arrecadação de seus empregados à Previdência.
Em 1956, por exemplo, a arrecadação prevista só foi
realizada em sessenta por cento, já que a União recolheu
parcialmente a sua parcela e as empresas, incluindo a parte
dos segurados, reteve 65% do total devido (cf. Oliveira &
Teixeira, 1985:193). Ou seja, a ampla política previdenciária
assume um caráter estritamente ideológico, já que o
recolhimento das contribuições de capitalistas e governo não
era efetivado nem havia punição para os infratores. O déficit
orçamentário torna-se cada vez maior pelos problemas na
arrecadação e pela elevação dos gastos.
O governo populista que segue a JK é presidido por Jânio S.
Quadros e João Goulart. O esquema inflacionário de
acumulação de renda e acumulação de capital começa a
enfrentar a mobilização de amplos setores da população na
luta econômica. Dentre as classes empresariais ocorria uma
disputa acentuada para que os interesses econômicos seto-
riais não fossem afetados, inexistindo ainda sua consolidação
hegemônica.
A mobilização econômica partiu dos assalariados de baixa
renda e incluiu grupos das camadas médias como juízes,
médicos, professores, atingindo, ao final, os trabalhadores
agrícolas. Esse processo repercutia no plano político na
"conscientização das massas", que eleitoralmente adquiriam
características de classe.
A classe média inicia a sua expansão a partir da nova
estrutura produtiva, que, ao introduzir o maior parcelamento
das atividades de mecanização, criou uma série de novas
ocupações por ela absorvida. A classe média caracterizava-se
pela heterogeneidade em sua composição e contradição de
seus interesses, ora se aproximando aos dos assalariados e ora
aos dos empresários.
As tentativas populistas de conter a inflação sem prejudicar
os variados interesses econômicos hegemônicos limitaram
cada vez mais a utilização de medidas típicas do populismo
para abrandar as reivindicações quanto à carestia de vida.

"Quando a taxa de elevação do custo de vida atingiu níveis
cada vez maiores (acima de 50% ao ano, de 1961 em diante),
a mobilização para a luta econômica não somente se tornou
cada vez mais abrangente [...] mas esta mobilização tornou-
se quase permanente, pois mal um reajustamento havia sido
ganho, impunha-se logo preparar a luta pelo próximo"
(Singer, 1975:30).

O fracasso das medidas antiinflacionárias e a instabilidade
política social levaria Jânio à tentativa de golpe por meio da
renúncia. Fracassada tal iniciativa o governo João Goulart
assume a presidência e paulatinamente vai esgotando a sua
relação com os trabalhadores por não incorporar as
demandas trabalhistas.
Assim, na gestão João Goulart, "em 1963, com a lei que
instituiu o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
buscava o governo estender a assistência médica a
praticamente 100% da população do país" (Luz, 1979:58).
No entanto, não eram sanadas as bases concretas que
garantiriam a sua efetivação, ou seja, respectivamente, a
reposição das perdas salariais havidas pela inflação e pelo
projeto desenvolvimentista e a efetiva arrecadação tripartite
para a Previdência Social (só a partir de 1970 esta lei teve
condições materiais — econômicas e políticas — de ser
aplicada).
Ao final do governo Goulart, em 13/12/63, foi promulgado o
Decreto 53.264, que estabelece as Normas para a Prestação
da Reabilitação Profissional na Previdência Social. Assim, os
serviços de reabilitação profissional já existentes nos IAPs
foram centralizados na SUSERPS — Superintendência dos
Serviços de Reabilitação Profissional da Previdência Social. A
SUSERPS reuniu por regiões o pessoal técnico da área para
prestar assistência e treinamento profissional aos segurados
em gozo de benefício, qualquer que fosse o IAP de origem.
A SUSERPS foi o gérmen dos Centros de Reabilitação
Profissional que surgem após a unificação dos IAPs no INPS.
"Com recursos próprios e centralizada num organismo
único, a Superintendência de Serviços de Reabilitação
Profissional da Previdência Social, a Reabilitação começa na
Previdência, ao contrário da Assistência Médica, com uma
planificação nada demagógica: adstrita às possibilidades
clínicas psicológicas e sociais do cliente e às de pessoal e
material da própria SUSERPS" (Cerqueira, 1965:89).
As iniciativas nas políticas sociais não minimizaram os
efeitos da corrida inflacionária. As tentativas governamentais
fracassaram frente à agressividade dos diferentes grupos de
interesse:

"Os industriais clamavam por mais crédito, os agricultores
exigiam preços mínimos maiores e enfrentavam o
tabelamento de preços dos gêneros com boicotes, os
assalariados reivindicavam aumentos de salários a intervalos
cada vez menores, chegando no limite à escala móvel de
salários, os assalariados agrícolas pediam o salário mínimo e
as donas de casa o congelamento dos preços" (Singer,
1975:31).

Estas foram as condições que antecederam o golpe militar de
1964, que rompeu com as tentativas anteriores de
democratização e com os governos populistas, exercendo
um governo centralizado que ampliou a concentração da
renda e a injeção de capital estrangeiro.

O GOVERNO MILITAR-CIVIL — 1964 A 1980
A ditadura militar efetivou-se no país a partir da
rearticulação da burguesia em torno dos interesses
monopolísticos e contou com o apoio das camadas médias
urbanas (estas se ampliaram consideravelmente a partir de
1964).
O governo militar-civil que se instaura investe o Executivo
de poderes constituintes, cassa mandatos legislativos
federais, estaduais e municipais e retira os poderes políticos,
de quem bem quer, por dez anos, e acaba por dissolver os
partidos políticos. O General Castelo Branco, eleito de forma
indireta, pelo amordaçado e esvaziado Congresso Nacional,
permanece no poder de abril de 1964 a março de 67 . O
próximo mandato presidencial é do Marechal Artur da Costa
e Silva, que não passou seu mandato a outro, pois foi tolhido
por um golpe de Estado. Estes militares, por sua vez, deram
outra redação à Constituição de janeiro de 1967.

"As diretrizes constitucionais legadas por Castelo Branco ao
País já não satisfaziam, dois anos depois, aos partidários do
Movimento de 1964" (Vieira, 1985:189).

Em outubro de 1969, o General Emílio Garrastazu Médici
chega à presidência, sendo substituído pelo General Ernesto
Geisel, em 1974, e pelo General João Batista Figueiredo, em
1979. Ao longo desses anos, as classes subalternas foram
postas de lado na luta política e econômica.
Os poderes Legislativo e Judiciário, que entre 1964 e 1968
passaram por muitas dificuldades, a partir da edição do Ato
Institucional no 5, AI-5, por Costa e Silva, tornaram-se
instáveis. O AI-5 vigorou até Geisel, quando este o trocou
pelo Estado de Sítio, Medidas de Emergência, Estado de
Emergência e outras reformas.
Na obra realizada pelo governo militar, a acumulação
monopolística e o controle inflacionário é resolvido à custa
das classes assalariadas.
"De 1960 a 1970, 70% do crescimento da renda na econo-
mia foi apropriado pelos 5% mais ricos do país" (cf. Oliveira,
1972:63).

Em contrapartida, entre 1958 e 1969, o chefe de uma família
operária perde 39,3% do salário e a família como um todo
perde dez por cento; portanto, se em 1958, para sua
sustentação, era necessário um membro da família
trabalhando, em 1969, a família vem requerer no mínimo
dois membros trabalhando (cf. Oliveira, 1972:57).
As classes assalariadas, sujeitas à legislação do trabalho, ao
padrão de reajustes instituídos pelo governo e a substituição
da estabilidade pelo Fundo de Garantia pelo Tempo de
Serviço — FGTS, vêem como resultado deste período de
amordaçamento e repressão o "turn-over" dos empregados,
a expulsão da força de trabalho ativa dos maiores de quarenta
anos, contribuindo para o aumento da taxa de exploração.
Para implantar essa política de acumulação acelerada, o
aparelho estatal precisou criar as bases financeiras apropria-
das à nova etapa, implementando reformas administrativas,
tributárias, financeiras etc.
O plano econômico imposto a partir de 1964 suspende os
investimentos públicos e privados provocando forte recessão
até 1967. A partir daí define-se uma política seletiva de
combate à inflação, aumentando-se os créditos e gastos
governamentais e, com isso, monopoliza-se a economia
brasileira. Surgem os conglomerados de empresas, unidade
típica da estrutura monopolística.
Com menor arrecadação, a capacidade de gasto público é
ainda mais comprimida e, para suprir esta lacuna, a União
recorre ao endividamento externo. Entre 1969 e 1971, a
dívida externa cresceu 31%.
No plano das políticas sociais, o regime autoritário de 1964
estabeleceu uma nova ordem em suas relações com a
sociedade civil, especialmente com os assalariados, na qual a
Previdência Social faz parte integrante dessa reorganização.
As mudanças ocorridas até o final dos anos 70 vão ser
abordadas nos seguintes tópicos: Previdência Social, Saúde
Pública e Educação, que, apesar de serem dependentes uns
dos outros, preservam uma relativa autonomia.
Castelo Branco, via Ministério do Trabalho, intervém nos
sindicatos e em todos os institutos da previdência. Muitos
dos interventores dos IAPs eram tecnocratas do IAPI. Estes,
em uma comissão específica para tratar da reorganização da
previdência, estendem a assistência ao trabalhador rural e
unificam a organização num novo ministério: o da
Previdência Social. Esse plano foi combatido por vários
setores mas, em 1966, é aprovado em plano menos amplo,
de fusão dos antigos institutos em um Instituto Nacional da
Previdência Social — INPS. As resistências foram as
mesmas, mas a viabilidade financeira garantiu a criação do
INPS, com a fusão dos IAPs, excetuando o Instituto dos
Servidores Públicos (IPASE) e dos militares, extinguindo-se
simultaneamente o Serviço de Alimentação da Previdência
Social.
A reformulação da política previdenciária levou em
consideração que a assistência médica tinha elevado
extremamente o seu custo em conseqüência das inovações
científicas e tecnológicas no setor. O saber e a prática
médica pautavam- se no maior uso de medicamentos, de
serviços para diagnósticos e de equipamentos médicos. O ato
médico se diversificava em especializações, diferenciando a
mão-de-obra empregada. A divisão técnica do trabalho
avança para o setor da saúde no momento de sua
capitalização. Já no final dos anos 50, o hospital havia se
transformado, a partir das inovações científicas e
tecnológicas, no centro dos serviços de atenção
individualizada de saúde por incluir as diferentes
especialidades, os equipamentos e a infra-estrutura
necessária.

"E como se, tardiamente, a atenção à saúde vivesse a sua
Revolução Industrial; o cuidado deixou de ser artesanal ou
manufatureiro — prestado pelo médico isolado e por
serviços simplificados, e passou a assumir características de
grande indústria — papel desempenhado pelo hospital
moderno. Da mesma forma, o capital — enquanto valor que
se reproduz — instalou-se na atenção médica, que passou a
produzir mercadorias no sentido mais estrito da palavra"
(Braga, in — & Paula, 1981:87-8).

Sendo mais elevado o custo da atenção individualizada à
saúde, bloqueou-se o acesso da maioria da população a estes
serviços, requisitando a capitalização do sistema
previdenciário para o custeio da atenção à saúde e a
generalização de seu consumo. As classes assalariadas,
contribuintes dos IAPs, possuíam algumas unidades
hospitalares próprias, mas em número insuficiente para a
demanda global. A intervenção nos IAPs, em 1964, e sua
unificação no INPS permitiram a centralização dos recursos
previdenciários bem como sua transferência ao setor
privado. A unificação dos IAPs foi também uma resposta ao
aumento de demanda de saúde não absorvida pelas
instituições de saúde.

"Essa situação traduziu-se pelas enormes 'filas' de
atendimento dos hospitais e postos municipais, os quebra-
quebras dos ambulatórios; e greves promovidas por
enfermeiros e funcionários" (Almeida & Pêgo, in IBASE,
1983:65).

O processo unificador e centralizador da Previdência Social
vem consolidar o projeto autoritário do governo militar. O
INPS completou a exclusão dos beneficiários da previdência,
extinguindo-se a representação de empregados e
empregadores em seus conselhos. A ideologia da
modernização administrativa das instituições estatais
burocratizou o INPS e facilitou o estabelecimento de
condições para uma privatização dos serviços de saúde
prestados aos previdenciários. A política previdenciária
adotada a partir da década de 60 elegeu a compra dos
serviços das empresas de saúde através do convênio-empresa
e financiou a construção, ampliação e compra de
equipamento para a rede hospitalar privada em detrimento
da rede própria.
O convênio-empresa foi regulamentado em 1964 e
inaugurado no ABC paulista para atender a 72% da demanda
do operariado que não possuía estes serviços pelo IAPI. Esta
medida favoreceu a diminuição do absenteísmo e turn-over
e o aumento da produtividade.
Conforme analisa Cristina Possas, no livro Saúde e Trabalho
(1981:236-7), em 1969, cerca de noventa por cento dos
recursos previdenciários gastos em assistência médica foram
comprados de terceiros e, desse montante, 75% foram pagos
às empresas médicas e hospitais privados. Essa tendência se
manteve durante os anos posteriores, sendo que, em 1978,
os mesmos noventa por cento dos recursos da assistência
médica continuaram sendo comprados de terceiros e, destes,
a maior parte foi transferida ao setor privado. Ou seja, a
expansão da assistência à saúde prestada pela Previdência
Social seguiu um modelo privatizante, de cuidados médicos
individualizados e primordialmente realizados em unidades
hospitalares.
A partir dessa ótica, os leitos da previdência ficaram na
ociosidade, enquanto os da rede particular atingiam sua
capacidade máxima.

"As intervenções nos hospitais próprios da Previdência
Social caíram entre 1970 e 1976 de 4,2% para 2,6% do total
de internações. Enquanto isso, as internações nos hospitais
particulares passavam de 95% para 98%" (Cordeiro, op.
cit.:86).

Uma premissa básica dessa ideologia tecnocrata de segurança
nacional é, segundo Malloy (1976):
"[...] de que um programa de previdência social eficiente e
benéfico diminui a tensão social e eleva o moral do
trabalhador, contribuindo, desse modo, para o
desenvolvimento e a segurança nacional" (p. 21).

A expansão da cobertura do INPS à população rural não
ocorreu ainda neste momento, mas somente em 1971, sob a
forma de um instituto de assistência rural (FUNRURAL),
cujo atendimento era diferenciado dos demais
previdenciários e basicamente se realizava através dos
convênios com as santas casas de misericórdia. Em 1973, os
empregados domésticos são integrados ao INPS, abrangendo
praticamente cem por cento dos assalariados no Brasil.

A abrangência dos serviços, ainda que não padronizada entre
FUNRURAL, INPS, IPASE e os institutos dos militares vem
legitimar o regime junto aos assalariados, como mecanismo
de distensão do aumento da jornada de trabalho, arrocho
salarial etc. (cf. Cordeiro, in IBASE, 1983:83).

Ao mesmo tempo que a política previdenciária elegeu a
privatização na prestação de serviços aos assalariados, em
1967, o governo, no bojo de uma redefinição das áreas de
competência do ministério, determina ao Ministério da Saú-
de as seguintes atribuições: elaboração da política nacional
de saúde e realização de medidas preventivas; vigilância
sanitária de portos e fronteiras; controle de medicamentos,
alimentos e drogas; pesquisa e ensino de Saúde Pública e
atendimento médico e paramédico prestado diretamente à
população.
Conseqüentemente a esta redefinição, em 1968, elaborou-se
o "Plano de Coordenação das Atividades de Promoção e
Recuperação da Saúde", posto em prática em algumas áreas
experimentais.
"O importante no tocante a esse 'Plano' é o fato de que a
dicotomia entre saúde coletiva e individual era assumida pelo
governo e que desta dicotomia resultava a responsabilidade
do MS [Ministério da Saúde], pelas medidas de caráter
coletivo, cabendo ao setor privado conveniado com o
governo a prestação das outras" (Luz, M. T., in Guimarães,
1979:161).
Por sua vez, o Ministério da Saúde teve seu orçamento
reduzido gradativamente; passando de 2,21% do orçamento
global da União, em 1968, para 0,9%, em 1974. As
atribuições de caráter coletivo foram bem prejudicadas,
sendo paralisadas uma série de "[...] serviços de saúde
pública, tais como o controle de doenças endêmicas e o
cuidado à gestante e à população infantil e dos programas de
vacinação, etc." (Cordeiro, op. cit.:84).
A saúde coletiva foi se pauperizando paralelamente à
amplitude orçamentária, tecnocrática e do contingente
atendido pela Previdência Social. Em 1974, o INPS
respondia por quinze milhões de segurados.
Em 1974, no governo Geisel, a crise sanitária manifestada na
epidemia de meningite, no aumento da mortalidade infantil
e do ressurgimento e aumento de certas doenças endêmicas
(como a tuberculose), desmascarava o "milagre econômico",
quando o crescimento da economia não constituía o bem-
estar social tão proclamado pela ditadura militar; ao
contrário, os bolsões de miséria aumentavam em virtude da
concentração de renda, da desvalorização do salário real e do
orçamento reduzido das medidas de saúde coletiva.
A resposta do Estado foi a criação do Ministério da
Previdência e Assistência Social e o Conselho de
Desenvolvimento Social, composto pelos ministérios da área
social (Saúde, Previdência Social, Educação e Trabalho). Este
último "deveria corrigir as distorções do modelo econômico"
(cf. Cordeiro, op. cit.:85).
O Ministério da Previdência e Assistência Social — PAS, por
seu turno, foi composto pelo INPS, IPASE, SASSE, bem
como pela LBA (Legião Brasileira de Assistência), FUNA-
BEM (Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor) e
CEME (Central de Medicamentos), com uma receita
somente inferior ao orçamento da União, superando todos
os outros ministérios. A junção, ao nível ministerial, de
previdência social com assistência social retrata a visão
ideológica do governo. De um lado, a lógica do capital sobre
o atributo saúde como valor da força de trabalho ativa a ser
garantida e dela — o atributo saúde — se extrair mais-valia;
de outro lado, o contingente excluído pelo capital a ser
institucionalizado por entidades públicas, semipúblicas ou
particulares que, ao assumir a custódia, amenizam as tensões
sociais. Assim, a partir da capitalização dos recursos
recolhidos da força de trabalho ativa se extraem parcelas que
mantinham institucionalizados os segmentos do exército de
reserva e as populações marginais.
No mesmo ano de sua criação, o Ministério da Previdência e
Assistência Social estabelece o Plano de Pronta Ação —
PAA, procedendo à expansão do convênio-empresa entre a
empresa de médio e grande porte com as empresas de saúde
e, assim, atendendo à ampliação da demanda. As despesas
neste contrato seriam cobertas em um terço, pela devolução
da contribuição devida à Previdência Social e os dois terços
seguintes pelo abatimento no imposto de renda da firma.
Além do convênio-empresa já existente, o PAA previa o
pagamento — por unidades de serviço (US) — para
contratos e convênios com empresas médicas. Esta
modalidade promoveu o rápido crescimento das empresas de
saúde, onde os atos médicos chegam a ser realizados
desnecessariamente ou ainda são cobrados sem terem sido
concretizados.
Em 1975, aprova-se a Lei 6.229, que cria o Sistema Nacional
de Saúde, definindo as funções do complexo de instituições
de saúde e as áreas de competência dos ministérios e órgãos
federais, estaduais e municipais. No entanto, apesar de a lei
verificar a multiplicidade, concomitância e concorrência
entre as ações de saúde, ela não estabeleceu mecanismos
efetivos de sua integração, permanecendo as disputas entre
as burocracias do Ministério de Saúde — pelo planejamento
e ação coletiva, com precário orçamento e o Ministério da
Previdência e Assistência Social, opulento, e diversificado
nas formas de prestação e níveis de qualificação da
assistência individualizada de saúde.
A inoperância da Lei 6.229 manteve a duplicidade de ação
dos serviços de saúde, sua descoordenação e ineficiência.
Aliadas ao desperdício de recursos nos serviços públicos,
mantinham-se a lucratividade e fraudes nas empresas e nos
hospitais privados cujos resultados não alteram a realidade de
doença das classes populares, mas promovem uma séria crise
financeira na Previdência Social em 1978. Em 1977/78, as
atividades médico-assistenciais foram centralizadas no
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social — INAMPS, "poderoso aparelho burocrático
gerenciando o movimento da medicina empresarial"
(Cordeiro, op. cit.:87).
Em outubro de 1979, no governo Figueiredo, realizou-se o I
Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, com novecentos
participantes. As recomendações apontavam para a uni-
ficação de todo o sistema, direcionamento dos recursos para
a expansão do setor primário de atenção à saúde, fortaleci-
mento do setor público, substituição gradativa do
empresariamento e criação de mecanismos de controle
popular no sistema de saúde .
Essas recomendações foram parcialmente incorporadas ao
Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde — PREV-
SAUDE, proposto pelos ministérios da Saúde e Previdência
Social, para estender a cobertura de serviços básicos para
noventa por cento da população brasileira. Esse atendimento
foi posteriormente mutilado pelo Conselho de
Desenvolvimento Social e teve como inimigos a burocracia
do INAMPS, da Federação Brasileira de Hospitais, da
Associação Médica Brasileira e da Associação Brasileira de
Medicina de Grupos.
A tendência privatizante, burocrática e autoritária dos anos
70 estende-se para a década posterior, que o presente
trabalho não comporta analisar.
Se, de um lado, as instituições de saúde e seus agentes
sofrem as determinações do modelo econômico, políticas
sociais específicas e da conjuntura, de outro lado, as
condições de trabalho, a característica da clientela, as
possibilidades de efetivação do discurso propagado pelas
diretrizes governamentais, a percepção crítica dos
agentes/pessoal/clientela sobre o processo promovem
movimentos — mesmo que individuais ou localizados — de
insatisfação, de reconhecimento da submissão, do
autoritarismo institucional, da necessidade de transformação
dessa realidade, de se transformarem em autores e atores de
uma nova realidade social.
A história do movimento de resistência no interior das
instituições de saúde bem como nos bairros periféricos e
outros espaços onde se buscaram respostas aos problemas de
saúde ainda carece de registro e divulgação. Algumas
experiências iniciadas nos anos 70 têm sido divulgadas,
surgindo algumas publicações (Merhy, s.d.:44-53 e Cortazzo,
1984) não havendo, portanto, uma sistematização dos
movimentos alternativos de saúde e o processo de
ressurgimento da sociedade civil, fato que aponta a
necessidade de pesquisas nesta direção.
Diretriz semelhante à da Previdência, ou seja, a privatização,
foi aplicada pela ditadura militar no setor da Educação, que
abordaremos aqui, pelos desdobramentos em relação à
formação de recursos humanos para a área de saúde.
Preconiza-se a universalização do ensino primário, com a
colaboração empresarial via"salário-educação", o ensino
profissionalizante ao nível médio e a privatização do ensino
superior ao nível médio, pautado no acordo MEC-USAID.
A estrutura universitária é reformulada em 1967 com a
centralização do ensino e pesquisa em departamentos de
uma mesma área de conhecimento, cerceando o trabalho
interdisciplinar. A Reforma Universitária cerceou a
representação estudantil e tornou autoritárias as formas de
decisão que culmina com o Decreto-Lei 477 que coíbe as
manifestações políticas e os protestos dos setores
universitários. Em 1968 vários decretos tratam da expansão
das vagas no ensino superior, a partir do setor privado, em
resposta à demanda das camadas médias.
Nessa conjuntura, a expansão do ensino superior foi
realizada por empresas particulares, a partir de cursos
independentes. A área de saúde, que, nos anos 60, vinha
ampliando as modalidades profissionais, se vê atada aos
interesses econômicos e ideológicos vinculados ao setor para
garantir a formação de seus recursos humanos. A qualidade e
quantidade necessárias dos recursos humanos em saúde
tornaram-se independentes, de um lado, da lucratividade do
curso de investimento necessário à sua realização e, de outro
lado, das necessidades históricas determinadas no modo de
organização dos serviços de saúde.
A demanda das organizações de saúde, que na maioria eram
particulares, aliada "aos anseios de ascensão social das
grandes camadas médias via escolarização sofisticada" (Qua-
dra & Amâncio, in Guimarães, 1978:245), condicionaram a
determinação das escolas e vagas a serem criadas na área de
saúde.
Do modelo privatizante da política de saúde requisitava-se a
absorção de médicos e psicólogos para a área da indústria,
enfermeiros para chefiar as unidades hospitalares e
assistentes sociais. Em escala muito menor, estariam as
necessidades da área preventiva e das unidades semi-públicas
(entidades beneficentes), as quais absorvem uma variedade
de profissionais além dos anteriormente citados, em
condições de trabalho e remuneração mais precárias.
A lucratividade de um curso da área de saúde se determina
pela demanda dos alunos versus o investimento de capital
injetado pela instituição de ensino. O primeiro fator —
demanda de alunos — é determinado pela expansão das
camadas médias urbanas que vêem nas ocupações da saúde
um forte apelo ideológico assistencialista, a expectativa de
ascensão social pelo exercício liberal da profissão ou pela
generalização da assistência de saúde à população e a absor-
ção pelo contingente feminino das carreiras e profissões —
também desconhecidas — em contraposição às carreiras já
desvalorizadas como Pedagogia a Serviço Social ou Letras (cf.
Durand, 1985:7-8). Quanto ao investimento da instituição de
ensino, de um lado vê-se a proliferação de cursos de baixo
custo de investimento em professor, equipamento e recursos
materiais, como Pedagogia, Serviço Social; mas o seu
reverso, um curso de alto custo como Medicina também
teve as vagas expandidas no setor privado de ensino pelo
grande afluxo de alunos que determinou fortemente a
seleção do alunato segundo sua condição financeira de
custeio do curso.
Resultante dessas múltiplas determinações, observa-se um
aumento desproporcional no oferecimento de vagas para
cursos de Psicologia em relação a cursos que requisitassem
laboratórios, estágios e maior proporcionalidade
docente/aluno como Enfermagem, Fisioterapia etc.
Outra questão a ser lembrada é que as universidades públicas,
criadas posteriormente à Reforma Universitária, já foram
constituídas sob a estrutura de fundação, juridicamente meio
caminho andado à privatização e ao controle e determinação
do mercado de trabalho. As verbas para o Ministério da
Educação e Cultura decresceram de 7,6% em 1970, a 4,31%
em 1975, recuperando-se um pouco, em 1978, com 5,2%.
Esta redução provocou a diminuição de vagas no ensino
público e, por sua vez, ampliou a concorrência nos
vestibulares, acabando por reservá-las aos membros das
classes hegemônicas (cf. Vieira, op. cit.:215-6).
Além disso, a participação de técnicos norte-americanos na
elaboração da Reforma Universitária estabeleceu prioridades
técnicas na aplicação destes recursos. A ideologia do
"progresso empresarial" valorizou as ciências aplicadas, a
engenharia, a administração; com isso, algumas áreas do
conhecimento tornaram-se "desvalorizadas", como ocorreu
com a área de saúde, exceção feita à medicina. Ou seja, a
educação universitária foi "requisitada" a participar de um
determinado tipo de desenvolvimento social, onde o
progresso técnico, os conglomerados econômicos,
requisitavam ocupações ligadas à gerência, e as demais áreas
do conhecimento, se não colaboravam diretamente na
produção — como a medicina e a psicologia da indústria —
eram convocadas a cumprir papéis fundamentalmente no
plano político-ideológico da sociedade de classes.
A precariedade no funcionamento de vários cursos de saúde
em instituições públicas ou particulares não impediu a sua
abertura e continuidade.
Os critérios técnicos para abertura e manutenção de cursos
universitários exigidos pelos órgãos fiscalizadores não
contemplavam a qualidade do atendimento prestado à
população. Teoricamente, os Conselhos Profissionais é que
teriam por atribuição zelar pelo nível de assistência prestada
por sua categoria à população; entretanto, é incomum
ocorrerem processos éticos que resultem em punição ou
mesmo exclusão de profissionais desqualificados ou
especuladores.
Finalizando, as políticas sociais realizadas pelo regime
autoritário através de atuação setorial e parcelar nas áreas de
Educação, Saúde Pública e Previdência Social apresentam-se
unidas e bem direcionadas na lógica da privatização dos
serviços do ensino superior ao médio, da assistência à força
de trabalho ativo, onde o Estado mantém a centralização e o
controle, desobrigando-se paulatinamente das medidas
sociais abrangentes que se manifestam na perda da qualidade
do ensino de primeiro grau, das medidas de saúde coletiva e
nas atividades assistenciais.
O conjunto de medidas implementadas, associadas à política
econômica e às medidas coercitivas, promoveu a
desmobilização da sociedade civil no período de maior
pauperização de nossa história.
Entretanto, na segunda metade dos anos 70, a sociedade civil
se fortalece e os movimentos sociais começam a se expressar
em várias vertentes: no meio estudantil, pela reconstrução
da UNE (União Nacional dos Estudantes); no meio sindical,
pela retomada da luta salarial após a greve vitoriosa dos
metalúrgicos da região do ABC, em 1978; no movimento
feminista; no movimento dos negros; no meio popular, via
Comunidades Eclesiais de Base e organizações
independentes; no Movimento pelo Custo deVida; da
Anistia e de Creches; em experiências localizadas de
participação popular na gestão do serviço público, como o
movimento de saúde da Zona Leste, de administrações
municipais participativas (Campinas, Piracicaba, Lajes), além
de manifestações desordenadas de revolta e insatisfação da
população reprimida.
O surgimento de todos esses movimentos mostra que
parcelas crescentes da sociedade civil tomam consciência da
contradição entre suas necessidades como cidadãos e grupos
sociais, e as possibilidades de satisfação existentes dentro da
estrutura social vigente (cf. Singer, in e outros, 1980:28).
O movimento oposicionista também se expressa no plano
eleitoral e parlamentar através do MDB (Movimento
Democrático Brasileiro), partido da "oposição consentida", e
em outros organismos partidários não oficiais, incorporando
forças populares e setores que haviam sido excluídos da
política, de tal forma que, ao final dos anos 70, a sociedade
brasileira conquista o processo de abertura política e nova
organização partidária e civil.
Ao fim da década de 70; a experiência de novas lutas
permitiu que se descobrisse a importância de romper o iso-
lamento político de cada setor e que, para tanto, era neces-
sária a articulação dos movimentos entre si em busca da
democratização e transformações de base para o conjunto da
sociedade.
Concluindo, conforme análise realizada neste capítulo, o
processo de monopolização da economia criou necessidades
novas a serem realizadas pelo Estado. Nas primeiras décadas
deste século, as ações do Estado no campo das políticas
sociais foram implementadas através de medidas de saúde
pública, de caráter coletivo, que mantivessem viva a força de
trabalho no período de expansão das atividades industriais.
Ao fortalecimento das necessidades sociais, iniciativas
mutualistas e reivindicações trabalhistas, o Estado
monopolista responde à pressão popular com a criação das
Caixas de Aposentadorias e Pensões, onde também a
assistência individualizada de saúde era realizada; assim
desaqueciam-se as reivindicações por uma legislação
trabalhista com os CAPs de trabalhadores ligados ao
complexo exportador. Ou seja, o Estado vem responder à
necessidade de manutenção dessa força de trabalho
envolvida em setores vitais da economia numa perspectiva
econômica, ao mesmo tempo que cimentava a igualdade de
oportunidades que essa nova forma de organização social
promovia, numa perspectiva político-ideológica.
Com a diversificação da economia e a expansão da atividade
industrial, o Estado é requisitado a participar ativamente do
processo de hegemonia urbano-industrial. Essa necessidade
político-econômica cria os Institutos de Aposentadoria e
Pensões para outros setores da economia, a partir dos quais o
Estado administra estes recursos, capitalizando e investindo
segundo suas próprias prioridades. A lógica contencionista
na Previdência Social vai basicamente de 1930 a 1945,
durante o primeiro governo Vargas, no qual a expansão do
serviço da Previdência garantiu uma base de apoio popular à
ditadura que se implantou.
Ao processo de democratização da sociedade iniciada em
1946, que foi delimitado pelos governos populistas que se
sucederam, altera-se a lógica contencionista dos IAPs para
uma lógica distributivista. Ela perdura até 64, com grande
diferença entre os serviços e benefícios prestados pelos
diferentes IAPs: IPA Comerciários, IA Marítimos, IA
Bancários, IAP Industriários etc. As irregularidades na
arrecadação empresarial e governamental foram tornando os
orçamentos dos IAPs cada vez mais deficitários, tampouco
conseguindo fazer frente às crises recessivas. A lógica
economicista começa a influenciar os institutos
financeiramente mais sólidos e nos quais grassavam os
interesses político-eleitorais específicos.
A necessidade de reordenamento entre as classes
hegemônicas, vinculando-se ao capital internacional, e das
relações de produção com as classes assalariadas e as
populações marginais gestou o golpe de Estado de 1964.
A uniformização da assistência no INPS, que garantiu as
condições mínimas de reprodução da força de trabalho e
parte do exército de reserva, aliada às medidas coletivas de
caráter preventivo e custodiai, implementadas basicamente
pelo Ministério da Saúde e voltadas às camadas populares e
marginais, acrescidas das práticas de saúde liberais e
beneficentes, vêm cobrir uma ampla gama de camadas
sociais estruturadas a partir do modelo econômico
monopolista, centralizador e autoritário. A integração e
coordenação de todo esse complexo assistencial, pretendida
desde 1975, não se realiza por haver interesses políticos
específicos nas várias tecnocracias estatais, bem como os
interesses econômicos imediatos das empresas de saúde
conveniadas que se expandiram à custa dos recursos públicos
e da ociosidade e ineficiência dos serviços estatais.
As práticas de saúde nesta última década, paulatinamente,
vêm se amalgamando a este complexo sistema de saúde,
onde o atributo saúde é focalizado sob a ótica capitalista, de
maneira que a expansão das modalidades ocupacionais em
saúde se concretizavam a partir das funções desempenhadas
a nível econômico, político e ideológico por cada uma destas
modalidades.
A vinculação das políticas de saúde brasileiras a uma dada
realidade da assistência será tratada no próximo capítulo, em
que se buscará enfocar a seguinte questão: como os serviços
e práticas de reabilitação se articularam historicamente ao
sistema de saúde existente, no período de 1950 a 1980, e
quais funções econômicas, políticas e ideológicas foram
desempenhadas por eles.


3
A REABILITAÇÃO NO ESTADO BRASILEIRO
DE 1950 A 1980

A análise dos serviços de reabilitação no Brasil, nas últimas
três décadas, nos reporta a entidades da sociedade civil,
alguns hospitais e instituições públicas que, em determinadas
conjunturas político-econômicas, absorveram a problemática
de saúde e recuperação dos acidentados, doentes mentais e
deficientes.
As concepções sobre o atendimento a ser prestado a essa
população repercutem na estrutura posterior das instituições,
que são transformadas de unidades asilares em entidades de
reabilitação, nas quais se encontra inserida a terapia
ocupacional. Os primeiros serviços especializados para
deficientes e o atendimento aos doentes mentais serão
tratados com maior profundidade por serem o berço da
terapia ocupacional, além do que serão enfocados para se
captar as práticas decorrentes do movimento internacional
de reabilitação (cf. Soares, 1986c).

AS RAÍZES DA REABILITAÇÃO NO BRASIL
As primeiras instituições brasileiras especializadas no
atendimento de pessoas com incapacidades físicas, sensoriais
ou doenças mentais foram fundadas na segunda metade do
século passado.
Para os deficientes sensoriais, o Imperial Instituto dos
Meninos Cegos(RJ), atualmente chamado Instituto Benjamin
Constant, foi fundado em 1854, tendo sido "a primeira
instituição para a assistência à pessoa com deficiência"
(Santos, 1984:14); logo após, em 1857, foi fundado também
no Rio o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos que, neste
século, recebeu o nome de Instituto Nacional de Educação
dos Surdos. Em São Paulo, no início deste século, foi
fundado o Instituto Padre Chico destinado ao abrigo dos
deficientes visuais.
Além dessas entidades, na sede do Império e na Província de
São Paulo, foram fundados os hospitais de lázaros (de
hanseníase), mantidos pelos governos locais para isolamento
de doentes e familiares.
Para os insanos mentais foi fundado o Hospital D. Pedro II,
no Rio de Janeiro, em 1852: hospital amplo, destinado aos
doentes mentais de todo o país, foi construído na
perspectiva do tratamento humanitário, moral . A província
pioneira no atendimento a seus doentes mentais foi São
Paulo, que, no mesmo ano, inaugura, em uma casa alugada, o
Asilo Provisório de Alienados da Cidade de São Paulo. A
partir daí os insanos brasileiros foram retirados das cadeias e
enfermarias das Santas Casas, sendo "abolidas as correntes
que serviam para conter os furiosos" (Fraletti, 1973:173).
No Hospital D. Pedro II as ocupações eram realizadas nas
oficinas de alfaiataria, marcenaria, sapataria, flores, e
desfiação de estopa. Estas ocupações nos parecem similares
às atividades urbanas ligadas ao setor secundário e terciário
da economia nacional.
Na virada do século (1898) inaugura-se a quarenta
quilômetros de São Paulo o Hospital do Juqueri, com 1.400
alqueires, tendo sido criado e mantido pelo governo estadual
para atender à demanda total de seus alienados. A direção era
do psiquiatra Franco da Rocha, que, junto com Pacheco e
Silva, seu sucessor, sob o nome de praxiterapia, introduziu o
tratamento pelo trabalho, onde as atividades rurais, ligadas ao
setor primário da economia, tiveram destaque.
Em 1911, fundam-se no Rio de Janeiro duas colônias: a
masculina, posteriormente chamada de Colônia Juliano
Moreira, em Jacarepaguá, e a feminina, chamada Centro
Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro. Em ambas
eram realizadas atividades rurais como plantio de frutas,
hortaliças e criação de animais. Além disso, na colônia
masculina funcionavam oficinas de ferraria, mecânica,
elétrica, carpintaria e marcenaria, tipografia e encadernação,
sapataria, colchoaria e vassouraria e, por fim, pintura de
paredes. Na colônia masculina, portanto, as ocupações
realizadas se diversificaram do setor primário ao terciário da
economia nacional.
A partir da terapêutica pelo trabalho realizado no Hospital do
Juqueri, posteriormente chamado de Hospital Franco da
Rocha, o alienista Henrique de Oliveira Matos redigiu a tese
inaugural da Cadeira de Psiquiatria da Faculdade de Medicina
da USP, intitulada Labortherapia nas Affecções Mentaes, em
1929. Esta tese, fundamentada no tratamento moral,
também foi o marco inicial da produção científica brasileira
em terapia ocupacional. Na primeira metade do século, os
termos laborterapia, ergoterapia, praxiterapia e terapia
ocupacional caracterizaram o uso terapêutico da ocupação.
No entanto, após se constituírem a profissão e os cursos no
Brasil, o termo terapia ocupacional tornou-se predominante.
Conforme o registro de Matos (1929:61-2), as ocupações
realizadas pelos 403 dos 1.022 doentes eram múltiplas: a
agricultura (plantações, pomares, hortas), pecuária, oficina
mecânica, carpintaria, colchoaria, rouparia, fabricação de
cigarros, construções de pontes e unidades hospitalares,
limpeza, transporte de alimentos, conserto de roupas,
costura, bordados, banda de música, artesanato, desenhos e
escrita de jornais internos. Dentre todas as ocupações, as
atividades rurais eram as mais desenvolvidas, atendendo a
um maior número de doentes. Matos declara:
"Preferimos o trabalho agrícola ao industrial, pois é mais
higiênico e mais vantajoso no ponto de vista therapeutico;
além disso, a distribuição do trabalho é mais fácil ao
trabalhador agrícola que ao operário industrial,
principalmente nas condições econômicas actuaes do Brasil"
(1929:6).
A ocupação terapêutica predominante para os doentes
mentais de São Paulo foi a atividade agropecuária simples
com baixa utilização de equipamentos. Este fato sugere que o
destino da mão-de-obra tratada no Hospital do Juqueri era o
núcleo agrário da economia capitalista exportadora cafeeira
cujo declínio em sua hegemonia foi marcado pelo êxodo de
trabalhadores rurais às cidades para a estrutura produtiva
urbano-industrial em ascensão (cf. Oliveira, 1972:9 e Cap.
11:58-64).
A opção dos alienistas paulistas, a ser melhor analisada em
trabalhos posteriores, pode traduzir a função econômica
cumprida pelos doentes mentais recuperados no incremento
da força de trabalho rural e/ou de seu exército de reserva no
momento de declínio da hegemonia agrário-exportadora.
A assistência aos deficientes mentais brasileiros teve um
início promissor no Estado de Minas Gerais, por iniciativa do
governo estadual, quando foi introduzido na rede estadual de
ensino, no ano de 1929, a educação especializada para
crianças deficientes mensais e portadoras de problemas
emocionais.
Helena Antipoff, psicóloga russa, foi convidada a integrar o
grupo responsável pela formação e supervisão dos profes-
sores especiais na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico.
Ela se tornou uma agente importante de formação de recur-
sos humanos para o setor, fomentando também a criação de
entidades da sociedade civil destinadas ao atendimento do
deficiente mental.
Em 1931, cria-se um sistema pioneiro de atenção ao doente
mental: a Assistência a Psicopatas para o Estado de
Pernambuco. Este modelo, com oferta diversificada de
serviços, introduziu, também, a ocupação terapêutica no
Nordeste. Ele era mantido por verbas estaduais e foi
elaborado pelo neuro-higienista Ulisses Pernambuco. O
sistema era constituído por um Ambulatório (o primeiro
ambulatório público do país), um serviço aberto, um serviço
de Higiene Mental; ao nível preventivo: um Hospital
Psiquiátrico para casos agudos, um Manicômio Judiciário e
duas Colônias Agrícolas; para crônicos: uma masculina, em
Barreiros; e outra feminina, perto de Recife, depois
denominada Colônia Ulisses Pernambuco. Esses serviços
funcionaram com equipes multiprofissionais numa
perspectiva de intervenção institucional e de ação
comunitária extra-hospitalar (cf. Cerqueira, 1984:27-9), de
modo a integrar a atenção preventiva, curativa e de
reabilitação.
A reabilitação dos doentes mentais na colônia masculina se
pautava no trabalho agropecuário. Lá os doentes moravam
em casas que eles mesmos construíam, cultivavam suas
roças, pescavam e ainda forneciam farinha para os outros
hospitais do estado.
"Na Colônia as porcentagens de pacientes ocupados
aproximavam-se às de Simon, cujo livro Tratamiento
Ocupacional de los Enfermos Mentales, 1937, já traduzido
para o espanhol, todos os discípulos de Ulisses se
consideravam na obrigação de ler" (Cerqueira, 1984:28).
A ocupação terapêutica nos hospitais de alienados no Brasil
foi relatada por Arruda (1962), Brunetto (1975), Castro
(1961), Cerqueira (1965, 1984), Greco (1981), Lancman
(1988) e Silveira (1976).
A ocupação terapêutica vinculada ao tratamento moral se
alastra até as primeiras décadas do século XX, quando a
concepção organicista da doença mental, que atribui etiolo-
gia anatômica, bioquímica ou endócrina às doenças mentais.
torna-se hegemônica na psiquiatria. O doente mental vem a
ser objeto de estudo clínico e cirúrgico, investigando-se as
alterações encefálicas que seriam responsáveis pelas
manifestações na conduta do doente mental. O uso da
ocupação terapêutica torna-se descontínua tanto pela
concepção psiquiátrica dominante que ora a desprestigiava,
quanto pelas políticas públicas que ora continham seus
recursos.
No primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), a
orientação "contencionista" nas políticas sociais, aliada à
centralização da política de saúde do Ministério da Educação
e Saúde, promoveu a expansão de serviços para o interior do
país (cf. Cap. 11:63-7), só que às custas de falta de pessoal,
corte de verbas para os hospitais públicos e superpopulação
hospitalar. Além disso, o crescimento da industrialização
promovida pelo Estado foi decorrente também do aumento
da taxa de exploração da mão-de-obra garantida pela consti-
tuição do exército de reserva. Assim, a expansão da popula-
ção excedente do capital (cf. Cap. 1:45-9) a partir da força de
trabalho rural e urbana deve ter declinado a necessidade
econômica de reassimilação do doente mental à força de
trabalho rural.
O Estado Novo e a mudança na ordem político-econômica
piorou as condições de vida da população e reduziu as verbas
para o setor de saúde. Essas medidas provocaram sérios
prejuízos à assistência psiquiátrica brasileira, em especial ao
serviço em Engenho de Dentro, RJ e à Assistência a Psicopa-
tas de Pernambuco que sofreram, além da repressão, a prisão
e o afastamento de inúmeros civis dos cargos públicos, entre
eles a doutora Nise da Silveira e o doutor Ulisses Pernambu-
co. Com estas medidas, diminuídas as condições de trata-
mento e resistência de profissionais do setor, obteve-se a
superpopulação hospitalar.
O grande aumento da população do Hospital do Juqueri, por
exemplo, que ao final da década de 20 tinha cerca de 1.000
doentes, ocorreu no período de 1939 a 1942 "pela
transferência de todos os alienados das cadeias do interior"
conforme registra Fraletti, psiquiatra organicista, ex-diretor
doHospi- tal (1973:183). Este autor, no entanto, considerou
salutar a atitude do então interventor posto, que "desafogava"
as cadeias separando os loucos dos presos comuns.
Agravando um pouco mais o quadro da superpopulação,
estavam as precárias condições de conservação dos hospitais
e o número restrito e desinformado de funcionários.
A assistência aos doentes mentais foi levemente modificada
somente no final do primeiro governo de Getúlio Vargas,
quando este buscou implementar algumas políticas sociais
visando obter o apoio popular a seu governo.
Em 1944, é promulgado o Regulamento de Lei que estrutura
o Serviço Nacional de Doenças Mentais e reconhece a
existência de serviços abertos, fechados e mistos. Apesar de
a regulamentação prever os ambulatórios psiquiátricos, estes
não foram implantados .
Os programas para os incapacitados físicos só emergem a
partir do movimento internacional de reabilitação, nos anos
40. Segundo a análise da terapeuta ocupacional norte-
americana, Anne C. Mosey (1979:47), o movimento de
reabilitação existiu em função das falhas nas instituições
sociais, família, escola e medicina organizada. A
independência, possibilitada pelos programas de reabilitação,
a vantagem econômica para a sociedade e o aumento no
número de pessoas incapacitadas pelo próprio avanço da
ciência, impulsionado pelos veteranos de guerra
incapacitados, transformaram a reabilitação no terceiro nível
de atenção à saúde, praticada a partir da instalação da
incapacidade (por deficiências congênitas, moléstias
crônicas, acidentes de trabalho, de trânsito, domésticos ou
pelas doenças ocupacionais).
O discurso sobre a Seguridade Social e a visão assistencialista
da incapacidade são assimilados pela Previdência
Social brasileira encobrindo a necessidade dos países euro-
peus de reincorporarem parcela da mão-de-obra acidentada
ou inválida à sua força de trabalho ativa, resultado, em parte,
da mortalidade advinda na Segunda Guerra Mundial e, em
parte, da resposta do Estado à sua crise econômica e social
(ver Cap. 11:69-73).
A leitura das determinações da base econômica sobre este
fenômeno social, a reabilitação do incapacitado, usualmente
não é realizada pela literatura da área da saúde; e, quando
ocorre, o econômico se vincula à reabilitação no interior das
instituições da superestrutura como, por exemplo, na redu-
ção de gastos da Previdência Social com a reabilitação de
seus aposentados por invalidez. Esta lógica, a economicista,
relatada no capítulo anterior (80-1), identifica algumas
relações superestruturais mas, por ser mais mecânica e
superficial, necessita ser reinterpretada à luz de sua relação
primordial com a base econômica.
Na tentativa de fazer esta vinculação, identificamos que os
serviços de reabilitação profissional subsidiados pelo governo
norte-americano foram destinados inicialmente aos
veteranos da Primeira Guerra (lei de 1917), no ano seguinte,
aos acidentados da indústria (lei de 1918 e 1919), e durante a
década seguinte, estes serviços foram ampliados à população
civil (lei de 1920 e de 1923).
No entanto, a depressão econômica dos anos 30 constituiu
um período de crise e desvalorização da reabilitação de
incapacitados, mesmo ao nível legislativo, que estabeleceu
medidas restritivas, de um lado, ao emprego dos
incapacitados na indústria e, de outro, à produtividade das
indústrias hospitalares e oficinas protegidas, que passaram a
funcionar a partir de então através do "princípio de
manufatura para uso do Estado" (Scullin, 1975:9), i.é,
produtos não comercializáveis, para consumo interno. Ora a
força de trabalho dos incapacitados era absorvida na
produção, ora era mantida na retaguarda, nas oficinas
protegidas de trabalho dos hospitais e entidades.
Esse vaivém dos trabalhadores incapacitados no mercado de
trabalho traz evidências de sua dependência direta ao
momento em que se encontra a economia. Quando existe
expansão econômica os incapacitados são absorvidos, caso
contrário, não o são. A força de trabalho dos incapacitados,
portanto, faz parte do exército de reserva e interfere nele,
pois é regulada pelo momento econômico do país.
O papel regulador da força de trabalho dos incapacitados no
exército de reserva se tornou mais nítido durante a Segunda
Guerra Mundial, quando a América do Norte viveu um
aumento na produção de bens (principalmente armamen-
tos), absorvendo maciçamente os incapacitados à população
economicamente ativa.
O relato, ainda que longo, de Salazar y de Agüero (1956:36-
7) é bem elucidativo:
"Frente à escassez de braços e graças às urgências da guerra,
milhares de deficientes foram desempenhar as funções
industriais que ficaram vagas ao irem engrossar as fileiras do
Exército, Marinha e Aeronáutica os indivíduos normais que
antes as ocupavam. (...) Ao final de 1942 — durante a
Segunda Guerra — a indústria absorveu tal número de
lesados que parecia que somente os incapacitados severos
não teriam trabalho; os lesados chegaram a ser vistos mais
como elementos de êxito do que como elemento passivo no
ambiente social e econômico da América do Norte"
(tradução livre).
Durante esse período, os serviços de reabilitação, a medicina
física e a terapia ocupacional voltada às disfunções físicas
tiveram grande expansão nas entidades públicas, Forças
Armadas, instituições filantrópicas e particulares, sustentadas
pelas taxas das companhias de seguro, segundo relatam
Scullin (1975:12) e Salazar y de Agüero (1956:36).
As evidências já apresentadas levam a crer que existe uma
relação diretamente proporcional entre a expansão dos
serviços de reabilitação com a carência de mão-de-obra na
economia, requerendo, entretanto, maiores pesquisas sobre
o vínculo da reabilitação com a base econômica.
Um outro fato que nos alertou para esta vinculação
econômica foi o artigo de Francisca Maltese (s.d.:7), que
descreve o processo de instalação da linha de montagem na
primeira década nos Estados Unidos, na indústria automo-
bilística Ford.
Para vencer a resistência dos assalariados ao parcelamento e
desqualificação técnica dos operários, a empresa contratou
deficientes físicos e sensoriais para a linha de montagem. A
adaptação destes àquela nova forma de produção forjou
argumentos persuasivos que enalteceram a linha de
montagem pela facilidade do trabalho individual. Assim,
obteve-se um enorme afluxo de trabalhadores sadios para
esta atividade industrial em expansão. Desta maneira foi
implantado este novo processo produtivo, destituindo-se os
antigos operários especializados pelos trabalhadores
desqualificados.
A força de trabalho dos incapacitados tem sido usualmente
utilizada em condições insalubres de trabalho, em formas de
produção que enfrentam resistência dos assalariados, em
outras ocupações desvalorizadas pela força de trabalho ou,
ainda, em última instância, no exército de reserva,
conservando os baixos salários da parcela de trabalhadores
contratada, que passa, então, a ser influenciada diretamente
pelas políticas econômicas e sociais capitalistas.
No seu vaivém histórico, a necessidade de reabilitação tem
sido determinada pelo modelo econômico, que, ao promo-
ver condições insalubres de vida e trabalho, ainda favorece o
crescimento da população enferma e de incapazes para o
trabalho e novos contingentes marginais, além de, em
determinados momentos específicos, requisitar a absorção
de parcelas do exército de reserva estagnadas, onde está
parte dos incapacitados.
Em outros momentos, a necessidade de reabilitação cumpre
funções no plano político-ideológico, quando as instituições
e programas governamentais em sua aparente neutralidade
face aos contraditórios interesses de classe se propõem
minorar os efeitos negativos da industrialização, "reparando"
as desigualdades sociais através do atendimento a neces-
sidades específicas de saúde, sem alterar, de outro lado, as
condições e os ambientes de trabalho e de vida que
promovem a incapacidade ou a própria política econômica
que gera o crescente pauperismo.
Na segunda metade deste século surgem os primeiros
serviços de reabilitação brasileiros que se estabeleceram em
alguns hospitais gerais e psiquiátricos, seguidos das entidades
beneficentes para o deficiente e dos programas de reabi-
litação profissional efetivados em alguns institutos da Pre-
vidência Social. O governo brasileiro, diferentemente dos
países centrais, adotou o programa reabilitador anterior a
uma expressiva demanda interna. Esta medida incrementou
a dependência econômico-tecnológica aos países centrais e
veio cumprir funções a nível político-ideológico.
A reabilitação era, então, definida pela Organização
Internacional do Trabalho, OIT, em 1954, como o "conjunto
de medidas físicas, mentais, sociais, profissionais e
econômicas que objetivava o desenvolvimento da
capacidade do indivíduo deficitário de modo que esteja apto
para, por si só, prover sua própria subsistência" (Carvalho,
1960:5).
A finalidade específica da reabilitação, segundo a definição
da OIT, é tornar o indivíduo "deficitário" apto a prover sua
subsistência, ou seja, o indivíduo deve desenvolver sua
capacidade restante de modo que a Previdência Social esteja
isenta de sua manutenção e que ele próprio adquira condi-
ções de se auto-sustentar, ainda que ao nível de subsistência.
Segundo outra definição menos polêmica adotada pelo
Conselho Nacional de Reabilitação dos EUA, em 1953,
"Reabilitação é a restauração do incapacitado ao uso, o mais
completo possível, do que ele for capaz, tanto sob o ponto
de vista físico e mental, como social, profissional e
econômico" (Idem, ibidem:5).
Nesta conceituação, e em muitas outras, são fundamentais as
noções de recuperação, capacidades não desenvolvidas e
enfoque profissional e econômico. Nos países onde a
legislação social assegurou a manutenção pelo Estado das
pessoas incapacitadas, os serviços de reabilitação públicos ou
privados contribuíram para a "autonomia" financeira do
incapacitado ou, pelo menos, do sistema de pensões
previdenciárias.
Quase a totalidade dos locais buscou seguir o modelo
reabilitador estrangeiro chegando-se, mesmo, à cooperação
técnica e orientação direta. Foi assim que a introdução dos
serviços de reabilitação veio corroborar a mudança da
concepção de saúde vigente, de um modelo estritamente
biológico à sua integração ao psicológico e social.
"[...] a saúde não se atém apenas às condições de equilíbrio
fisiológico do indivíduo. Transcende em muito a idéia
estritamente clínica da doença. Nela, o homem deve ser
considerado como um todo indivisível em seus atributos
biológicos e sociais" (Vital, 1978:1-2).
Inerente a esse modelo intervencionista de reabilitação, dois
conceitos são igualmente superados: primeiro, de que as
doenças crônicas, as deficiências físicas e as moléstias men-
tais não possuem tratamento que previna seqüelas ou recu-
pere incapacidades e, segundo, de que o atendimento à
saúde é sinônimo de tratamento médico. A introdução de
outras profissões cuja meta é o trabalho em equipe associa-se
à divisão do trabalho no setor de saúde.
As iniciativas da sociedade civil por meio das entidades
beneficentes adquiriram um papel de destaque, já que a ação
planificada em reabilitação por parte do governo brasileiro
não vem ocorrer a médio ou a longo prazo, de sorte que, até
o presente momento, grande parte da população — das
zonas urbanas e rurais e das distintas regiões — não tem
acesso aos serviços de reabilitação bem como às medidas
profiláticas e educativas específicas, O "desinteresse"
governamental transparece na não-inclusão dos serviços de
reabilitação no rol das políticas sociais e no não-
cumprimento da tênue legislação em vigor.
Outra dificuldade enfrentada pelas entidades de reabilitação
foi a falta de pessoal técnico especializado, que produzisse
uma intervenção multidisciplinar face à problemática da
clientela. De um lado, os médicos, assistentes sociais,
enfermeiros e psicólogos — categorias mais antigas no Brasil
— não contavam com nenhuma formação teórico-prática
em reabilitação. De outro lado, os terapeutas ocupacionais,
fisioterapeutas, fonoaudiólogos, orientadores profissionais e
técnicos em prótese e órtese não existiam no mercado de
trabalho e inexistiam também os respectivos cursos de
formação.
Muitos dos profissionais requeridos foram formados a partir
de supervisão e orientação médica sobre o conhecimento
clínico das patologias e a partir de publicações estrangeiras
que explicitavam os princípios e métodos de tratamento
específicos.
O ressurgimento da ocupação terapêutica e de outras práticas
em reabilitação até o final dos anos 70 será tratado em
tópicos autônomos, porém complementares, a saber:
— a revolução técnico-científica e a reabilitação;
— os serviços de reabilitação na área hospitalar;
— a reabilitação nas entidades filantrópicas e particulares;
— a reabilitação no interior das políticas sociais.

A REVOLUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA E A
REABILITAÇÃO
A racionalização do trabalho traz sérias conseqüências para a
saúde do trabalhador (cf. Cap. I.:42-9) ao aumentar a
produtividade e submeter o assalariado a condições adversas
de trabalho, onde os acidentes e as doenças ocupacionais
emergem, além de expandir o exército de reserva e as
populações marginais pelo decréscimo na taxa de absorção
da força de trabalho.
Além disso, o avanço técnico-científico em saúde, ao
desenvolver novos instrumentos, materiais e técnicas, tem
prolongado o tempo de vida das pessoas acometidas por
doenças crônicas e incapacitantes, criando necessidades no-
vas a serem resolvidas pelas práticas de saúde.
A divisão técnica na área de saúde e o regime de capita
lização do setor privilegiam o hospital como espaço institu-
cional e, apesar de o trabalho em saúde ser de caráter
intensivo, incrementaram ao custo da produção da saúde os
insumos industrializados. E nesta medida que a revolução
técnico-científica encareceu o custo dos serviços de saúde,
ao mesmo tempo que ampliou sua abrangência sobre as
necessidades da população, bem como as funções sociais
desempenhadas por eles.
A revolução técnico-científica fortaleceu o hospital e o
tornou hegemônico em relação aos demais espaços
institucionais, avançou no sentido de transformar o hospital
geral, já fortalecido, em hospital de clínicas especializadas
segundo a problemática da clientela, de incentivar as
especializações médicas e dos demais técnicos, e os
equipamentos e materiais industrializados.
O processo de especialização hospitalar avança rapidamente
em direção ao atendimento de doentes agudos em
detrimento aos crônicos, que exigem longo tempo de
internação. Neste último grupo destacam-se a doença
mental, a tuberculose, que já haviam conquistado seu espaço
institucional próprio, na maioria das vezes sob custeio do
Estado.
Os hospitais particulares absorvem a polêmica norte-
americana sobre o atendimento às doenças crônicas, de
longa permanência hospitalar, e que são mais prevalentes
entre as pessoas idosas.
A Revista Paulista de Hospitais, órgão de divulgação da
Associação Paulista de Hospitais, entidade mantida por
empresários e administradores hospitalares, no ano de 1953
inaugura a seguinte polêmica:
Qual o melhor local para o atendimento dos crônicos — o
hospital geral ou o especializado? O público, com estrutura e
recursos limitados, ou o particular, em maior número,
recebendo subsídios públicos?
Com o incremento da industrialização, urbanização e
concentração de renda, o tempo de vida médio do brasileiro
também aumentou, principalmente nas classes dirigentes.
Desta forma, as doenças crônicas — moléstias do sistema
nervoso (de maior incidência), do aparelho digestivo,
respiratório, locomotor (cf. Hilary, 1953:29) — tornam-se
um "filão de ouro" pretendido pelas empresas médicas junto
à Previdência Social.
Durante toda a década de 50, esta associação promoveu a
ampla divulgação dos serviços existentes em reabilitação,
pessoal técnico necessário e condições para implantação dos
diversos setores.
Ao final dos anos 50, Silas Braga Reis, em artigo publicado
nessa revista, defende a necessidade de hospitais
especializados para as deficiências motoras. Ao analisar o
custo do leito-dia dos pacientes paraplégicos internados na
Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo, hospital
para agudos e crônicos, e dos tuberculosos do Hospital do
Mandaqui de São Paulo, hospital especializado para
tuberculosos, mesmo ponderando as especificidades técnicas
necessárias a cada clientela, ele prova que, no primeiro caso,
o custo unitário do leito era aproximadamente 600%
superior ao custo do paciente internado do hospital
especializado. E as justificativas ficavam entre a existência de
recursos materiais e humanos próprios aos agudos e não
utilizáveis pelos crônicos e a menor produtividade na
utilização dos recursos na assistência do hospital geral.
O autor conclui, apresentando uma proposta global de
estrutura, pela necessidade de criação de hospitais para
pacientes crônicos do aparelho locomotor, a exemplo do que
já ocorrera nos Estados Unidos. E justifica:
"Estamos vivendo dias de especializações em todos os
sentidos. O Hospital não pode afastar-se desta diretriz sem
sofrer sérios prejuízos. A especialização acelera a produção e
melhora a qualidade, conseqüentemente, baixa o custo dessa
mesma produção" (Reis, 1958:30).
A lógica do capital é absorvida pelos administradores
hospitalares, bem como pelos demais técnicos que, por sua
vez, o difundem à população. Outro fator de
desenvolvimento da reabilitação no Brasil, especificamente
da função motora, foi a indústria de equipamentos médico-
hospitalares. Segundo a definição da multinacional Baumer
QBS, desde 1921, no Brasil, esses equipamentos e materiais
(excetuando-se os aparelhos para casos de audição, visão e
lesões cardíacas) eram aqueles destinados [...] à reabilitação
de indivíduos com incapacidades físicas provenientes de
amputações, fraturas e malformações congênitas ou
adquiridas e suas seqüelas" (1959:81).
Os equipamentos e materiais específicos para a área podem
ser subdivididos em três grupos (conforme figura da página
seguinte):
Grupo I — A recuperação — total ou parcial — a partir da
intervenção cirúrgica ou da hospitalização. Este grupo é
constituído de instrumental, próteses inclusas, aparelhos de
tração, pulmão de aço etc.
Grupo II — A reabilitação é realizada através de aparelhos e
equipamentos especializados. Inclui os aparelhos para
mobilização do paciente em centros de reabilitação e
também os aparelhos adaptados aos reabilitandos: de prótese,
órtese e adaptações para as atividades de vida diária e prática
(pratos e talheres adaptados, escovas, calçadeiras, pegadores
de objetos etc.).
Grupo III — Elementos auxiliares que complementam os
grupos anteriores, como as cadeiras de rodas, muletas, barras
para parede, elevadores de pacientes etc.

Figura 1 — Modelos de equipamentos médico-hospitalares
próprios para a reabilitação (Baumer, 1959:81).

No centro da figura acima está o símbolo da Ortopedia,
elaborado em 1749 por N. Andry no livro A Ortopedia ou a
arte de corrigir nas crianças as deformidades do corpo (apud
Fou- cault, 1977:32), que evidencia a relevância desta
especialidade para o setor industrial. Ainda neste artigo, a
empresa afirma:
"Onde a reabilitação e a ortopedia ocupam lugar de destaque
na saúde pública (nos Estados Unidos a indústria médico-
hospitalar é considerada a 'terceira força' industrial do país),
vemos companhias que se especializam na fabricação de um
único item dos milhares que compõem a Reabilitação. Isso é
possível, nesses países, graças ao elevado consumo e onde
'todo cidadão tem direito a um mínimo de conforto e
assistência'" (Baumer, 1959:82).
No Brasil, a Baumer, detentora da tecnologia apropriada, foi a
única indústria voltada à produção e comercialização de
todos os itens descritos anteriormente durante várias déca-
das. Este fato decorreu, segundo ela, da variedade dos itens,
do baixo consumo, do número reduzido de centros de
reabilitação e do baixo poder aquisitivo da população.
Concluindo, este ramo industrial dependeu e requisitou o
desenvolvimento do setor de reabilitação, tanto através da
iniciativa privada quanto pública.

OS SERVIÇOS DE REABILITAÇÃO NA ÁREA
HOSPITALAR
A ocupação terapêutica é retomada nos hospitais psiquiá-
tricos brasileiros agora com o nome de terapia ocupacional,
profissão constituída nos Estados Unidos na segunda década
do século XX, com indicações sistematizadas e atendendo a
casos agudos.
A primeira definição formal da profissão, elaborada em 1922,
e mantida até os anos 70, foi a do médico H. A. Pattison:
"Dr. Pattison definia terapia ocupacional como 'qualquer
atividade, mental ou física, claramente prescrita e orientada
para o objetivo específico de contribuir para o tratamento e
acelerar a recuperação de uma doença ou traumatismo'"
(Reed, 1980:2)
A ocupação terapêutica retorna à baila em psiquiatria pela
incorporação, na corrente organicista, do enfoque
psicoterápico de Simon, ou na absorção da corrente
fenomenológica de Schneider, ou na neurológica de Jackson
(Henry Ey, Paul Sivadon), ou, ainda, nas correntes de base
analítica, a psicanálise de Freud e a psicologia analítica de
Jung (cf. Silveira, 1976:5-18).
Segundo tese de Jaime Gonçalves, Do Asilo à Comunidade
Terapêutica: contribuições para o estudo da terapêutica
ocupacional e esquizofrenia (1964:88-9), o hospital
psiquiátrico limitara-se nas últimas décadas a apenas vigiar e
a custodiar os pacientes, aliás, função precípua deles
mesmos. Os profissionais especializados eram os médicos,
que, por seu turno, também enfrentavam sérias dificuldades.
"[...] O número de médicos em relação aos pacientes é
ínfimo, além do que, boa parte deles não é psiquiatra. [...]
Via de regra, um médico tem, sob sua responsabilidade,
centenas de doentes" (Gonçalves, op. cit., 90).
A predominância de médicos não psiquiatras no Hospital do
Juqueri, por exemplo, foi decorrência da hegemonia da linha
organicista da doença mental que, ao entendê-la incurável,
privilegiava pesquisas anatomopatológicas buscando
desvendar a natureza orgânica da doença e, a partir daí, a
intervenção clínico-cirúrgica apropriada.
Se, de um lado, os médicos nos hospitais psiquiátricos eram
numericamente reduzidos, de outro, para se ampliar as
perspectivas de atendimento dessa superpopulação requeria-
se também o treinamento em serviço de seus funcionários.
A ocupação terapêutica volta a ser aplicada novamente por
funcionários que recebem a supervisão médica.
No ressurgimento da ocupação terapêutica em psiquiatria
tem destaque o trabalho desenvolvido pela psiquiatra Nise da
Silveira, no Serviço de Terapêutica Ocupacional do Centro
Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro, RJ, em 1946.
"A finalidade desse serviço era a de beneficiar o doente com
uma ocupação livremente escolhida, metodicamente dirigida
e só eventualmente útil ao hospital" (Brunetto, 1975:215)
Neste serviço, iniciaram-se trabalhos com pacientes agudos,
superando a visão anterior de que a ocupação terapêutica só
era destinada aos crônicos. As atividades desenvolvidas eram
bem variadas , agrupando-se em oficinas que envolviam o
esforço característico do trabalho (marcenaria, sapataria,
encadernação, costura, trabalhos agrícolas etc.); atividades
expressivas (pintura, modelagem, escultura, música, dança
etc.); atividades recreativas (jogos, festas, passeios, rádio) e
atividades culturais (escola, biblioteca).
A psicologia analítica de Jung era o fundamento teórico
sobre a doença mental aliada às bases psicodinâmicas do uso
terapêutico de atividades, de Fidler.
As atividades são acompanhadas pelo monitor de uma
oficina que, hábil no seu ofício, requer conhecimento de
psiquiatria e teoria da terapia ocupacional para não se entu-
siasmar pelo "doente bom" (aquele que é capaz de uma
produção quase normal) e não desistir do paciente regredido
"por perder tempo e material" (cf. Silveira, 1976:37). Os
monitores do Serviço e demais interessados foram formados
em terapia ocupacional por cursos realizados em 1948, 1953,
1961 e 1979, no próprio local.
Em 1952 foi fundado o Museu de Imagens do Inconsciente,
a partir dos trabalhos plásticos produzidos pelos esquizo-
frênicos nas oficinas,
"Aberto não só a psiquiatras, mas também a antropólogos,
artistas, críticos de arte e educadores interessados pelos
problemas da psicologia profunda e da atividade criadora"
(Id. ibid.:41).
Pelo seu alto valor técnico foi criada a Sociedade Amigos do
Museu de Imagens do Inconsciente de tal modo que ele tem
sobrevivido às intempéries de verbas públicas e se mantido
em atividade.
A Casa das Palmeiras, entidade civil sem fins lucrativos,
criada em 1956, tornou-se a extensão do serviço, atendendo
os egressos a nível ambulatória! Lá o principal método de
tratamento é a ocupação terapêutica em seu amplo sentido.
No ano de 1961, o Decreto 51.169, do Presidente Jânio
Quadros, previa que a Seção de Terapêutica Ocupacional e
de Reabilitação — STOR, de Engenho de Dentro, chefiado
por Nise da Silveira, receberia recurso, estabeleceria planos
de aplicação e formaria pessoal especializado em terapêutica
ocupacional para todos os hospitais psiquiátricos integrados
ao Sistema Nacional de Doenças Mentais, do Ministério da
Saúde. Entretanto, após a renúncia de Jânio, este decreto não
foi implantado, permanecendo os serviços de terapêutica
ocupacional do país, isolados e em número reduzido. Por
outro lado, nesse ano foram instalados alguns ambulatórios-
piloto no país a partir do Regulamento promulgado em 1944.
O trabalho desenvolvido por Nise da Silveira foi divulgado
na Revista Brasileira de Saúde Mental, em 1966, e poste-
riormente foi editado sob o título: Terapia Ocupacional —
Teoria e Prática, em 1976.
Essa abordagem durante muitas décadas foi bastante
marginalizada, quer seja no meio psiquiátrico tradicional
(vide Padovani; Leconte e outros, apud Cerqueira, 1965:130-
5), onde o enfoque medicamentoso da doença mental era
fortalecido pelas multinacionais da indústria farmacêutica ,
quer seja pela visão psicanalítica ortodoxa. A abordagem
junguiana ainda hoje é uma corrente minoritária na área de
saúde mental.
No meio terapêutico ocupacional o trabalho desenvolvido
pela doutora Nise da Silveira e sua equipe foi marginalizado
até adécadade 80, conforme reitera Magalhães (1987:77-81).
Este fato nos parece ser decorrência da orientação organicis-
ta predominante nos cursos de saúde e da lógica privatizante
na política de saúde, que absorveram abordagens
sintomatológicas mais adequadas à rotatividade e pequena
permanência na internação sem retaguarda ambulatorial.
Acrescente- se ainda o corporativismo dos terapeutas
ocupacionais que se viam "ameaçados" pelo volume de
pessoas formadas sob outra concepção teórica, competindo
no mercado de trabalho .
Um outro serviço psiquiátrico no Rio de Janeiro vem
introduzir o Setor de Praxiterapia, o Instituto de Psiquiatria
da Universidade do Brasil (atualmente Universidade Federal
do Rio de Janeiro — UFRJ), em 1957. Após poucos meses de
sua criação, o setor é chefiado pelo psiquiatra Luís Cerqueira,
ex-aluno de Ulisses Pernambuco e, naquela ocasião, há
quinze anos trabalhando com ocupação terapêutica. Nessa
unidade psiquiátrica, vários estudos foram realizados por
docentes, internos e doutorandos, crescendo a produção
científica brasileira em terapia ocupacional. Dentre estes
trabalhos, destacam-se as teses de Arruda (1962), Castro.
(1961), Cerqueira (1965) e o trabalho de Correa (1964).
Em outros Estados da federação, o processo de reintrodução
da ocupação terapêutica ocorre com nomes diversos em
algumas unidades psiquiátricas de escolas médicas como:
praxiterapia, na Clínica Psiquiátrica da Faculdade de
Medicina da Universidade do Recife (Othon Bastos apud
Cerqueira, 1965:108); terapia ocupacional, no Hospital
Diurno do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria
na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (Cione,
Minzone e Azou- bel Neto, 1966:219-30), em 1961; terapia
ocupacional, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (Hauck, 1986:8); pela introdução do trabalho em
hospital público, como no Hospital Colônia de Natal — RN,
encaminhado por Suliano Filho (1963); — pela
ambientoterapia, na Clínica Pinel — RS, por Marcelo Blaya;
— por atividades em geral, como no Sanatório Américo
Bairral, em Itapira — SP; ou, ainda, na Clínica Bela Vista, do
Rio de Janeiro, por Oswaldo dos Santos (1964) (cf.
Cerqueira, 1965:26).
O panorama global da assistência psiquiátrica é modificada a
partir da unificação dos IAPs no INPS, quando os hospitais
particulares são conveniados ao sistema e amplia-se o
número de leitos oferecidos, delimitam-se os dias de
internação pelo quadro nosológico, ao mesmo tempo em
que os doentes passam a rodiziar de hospital a hospital, sem
assistência ambulatorial que evitasse a reinternação e pro-
movesse a saúde mental.
Além disso, em 1971, inspirada no sistema de convênios da
Previdência Social com os hospitais particulares, a Secretaria
de Saúde de São Paulo resolve distribuir de quinze a dezoito
mil pacientes internos dos vários hospitais do Juqueri, em
uma série de hospitais particulares e beneficentes com os
quais passa a se conveniar, cuja capacidade média de lotação
era de duzentos leitos.
O pronunciamento de Milton Sabbag, presidente do
Departamento de Psiquiatria da Federação Brasileira de
Hospitais, é bastante "convincente" quanto à validade dessa
opção política do governo paulista.
"[...] dezenas de pequenos hospitais privados e beneficentes,
que corresponderam a esta convocação e sobre os quais
passou [a Coordenadoria de Saúde Mental] a exercer uma
fiscalização continuada e progressiva. Com isso obteve-se
uma sensível melhora na qualidade da assistência com
acentuada redução de despesas" (1983:12).
Se melhorias houve, conforme o autor faz menção, foram
quanto à dimensão geográfica da institucionalização da
loucura. Ou seja, ao invés de a cronificação institucional
ocorrer num único local, ela passou, a partir de então, a
residir em guetos menores e variados, nos quais assegurou-se
a segregação e mascarou-se a inexistência de programas de
saúde mental vinculados a medidas econômicas favoráveis à
força de trabalho. Estas medidas também foram adotadas por
outras secretarias estaduais.
Outros hospitais, além do psiquiátrico, introduzem atividades
recreativas e trabalhos manuais visando a redução dos efeitos
da hospitalização. O Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo — HC-USP — na
década de 40, realizava com os pacientes internados um
programa de laborterapia sob os cuidados do Serviço Social:
"Então nós, do Serviço Social, verificamos que os pacientes
(que ficavam muito tempo internados) tinham problemas de
adaptação e ficavam na ociosidade. Aí começamos a
desenvolver um programa de laborterapia com os pacientes:
trabalhos manuais, shows, teatro, cinema, inclusive fazíamos
festas na enfermaria" (Hauck, 1986:1).
Pautada nesta experiência, Lourdes F. Carvalho, médica de
orientação organicista, professora do curso de Administração
Hospitalar da Universidade de São Paulo, apresenta uma
proposta de montar o serviço de terapêutica ocupacional,
"[...] individualizado, em estreito entrosamento com o
Serviço Social e o Serviço de Fisioterapia" (Carvalho,
1953:19).
Quanto ao exercício desta nova especialidade, a autora
propunha sua realização por um médico treinado nesse setor
ou por terapeuta ocupacional formado em cursos específicos
de um a três anos de duração.
A partir de 1951, o HC-USP envia alguns de seus técnicos
aos Estados Unidos para se especializarem em reabilitação;
esses técnicos introduziram entre nós, após o regresso,
novas abordagens. Dentre eles, estava a assistente social e
enfermeira Neyde Tosetti Hauck, que foi estudar terapia
ocupacional na New York University, estagiando em vários
hospitais daquele país.
Os técnicos, ao retornarem, eram lotados na Clínica
Ortopédica e Traumatológica do Hospital das Clínicas,
inaugurada em 1953 e dirigida pelo professor Godoy
Moreira. Aí se estruturou um amplo programa de
reabilitação voltado às várias clínicas, além de cursos de
formação técnica (dentre eles o curso, de um ano, de
formação de fisioterapeutas, para as necessidades internas).
O desenvolvimento posterior dos serviços de reabilitação do
Hospital das Clínicas está intimamente ligado à criação e
extinção do Instituto de Reabilitação, centro de demonstra-
ção e formação de pessoal instalado com a assessoria da
Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial de
Saúde e da Organização Internacional do Trabalho e ligado
estatutariamente ao Departamento de Ortopedia e
Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP. O Instituto
de Reabilitação, dado seu papel relevante na formação de
terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e outros técnicos em
reabilitação física durante seu funcionamento — de 1956 a
1968 — quando foi extinto, será analisado no capítulo
seguinte.
Outros hospitais paulistas também empregavam a recreação
com os doentes; por exemplo, o Hospital São Luís Gonzaga,
para tuberculosos, ligado à Santa Casa de São Paulo e os
Hospitais-Sanatórios da Divisão do Serviço de Tuberculose
de São Paulo (cf. Borba, 1954:21); além disso, a recreação era
indicada para hospitais de tuberculose, câncer, lepra,
moléstias nervosas ou, ainda, para idosos (Almuree, 1954:11
e Louzã, 1954:25).
Ao final da década de 50, em Belo Horizonte, era fundado o
Hospital Arapiara, entidade montada por médicos voltados
para a medicina física e de reabilitação. Esta entidade
particular destinou-se à reabilitação física infantil e do
adulto. Para garantir a consecução de um programa
multidisciplinar conveniou-se à Faculdade de Ciências
Médicas de Minas Gerais, em 1961, para a formação de
técnicos em fisioterapia e terapia ocupacional (Pitanguy e
outros, 1986:1), bem como para oferecer residência em
fisiatria (Fonseca, 1973:19). Este tipo de hospital,
especializado em doenças do aparelho locomotor, reforça a
orientação técnico-científica da saúde e o seu processo de
capitalização. A instalação de serviços especializados, a
formação teórica e supervisão de estágios dos alunos de
terapia ocupacional eram feitas pelos médicos; após 1969, e
já com alguns terapeutas formados, essas funções foram
desempenhadas por profissional estrangeiro; de 1969-70, por
Débora Wood (norte-americana) e, de 1971-83, por Joanna
Noordhoek (holandesa).
Ao mesmo tempo em que esses serviços brotam em alguns
hospitais, a rede de hospitais particulares, organizada em
entidades como a Associação Paulista de Hospitais, difundia
a necessidade de melhoria e expansão do atendimento em
reabilitação, reivindicando a prestação desses serviços a
partir de sua ampliação subvencionada pela Previdência
Social. A política de privatização da assistência é promovida,
após 1966, pelo INPS.
Os hospitais privados de clínica geral, na década de 70,
incorporam o serviço de fisioterapia, cuja intervenção se
aproxima mais da conduta clínica, agindo sobre sintomas de
ordem biológica, na remissão de quadros de dor, déficit
respiratório e mobilidade. A terapêutica ocupacional, exceto
na assistência psiquiátrica, é pouco absorvida nos hospitais da
rede particular por seu objeto de trabalho não ser
sintomatológico e de efeito rápido.
Em 1975, cria-se a Divisão de Reabilitação Profissional da
Vergueiro — DRPV, unidade ligada ao Hospital das Clínicas
da USP, retomando-se o trabalho multidisciplinar em
reabilitação, após sete anos da extinção do Instituto de
Reabilitação. Esta unidade foi um dos últimos serviços
hospitalares de grande porte criado nos anos 70, que,
paradoxalmente, não atingiu a plenitude em sua capacidade
de atendimento.

OS SERVIÇOS DE REABILITAÇÃO NAS ENTIDADES
FILANTRÓPICAS E PARTICULARES
A começar da década de 40 foram montadas, em vários
estados brasileiros, instituições filantrópicas — sem fins
lucrativos — e particulares, por iniciativas da sociedade civil.
"Os primeiros esforços para o estabelecimento de serviços de
atenção aos lesados foram feitos quase sempre por entidades
privadas" (Salazar y de Agüero, 1956:64).
O atendimento aos deficientes foi divulgado pelo Rotary
Internacional, que patrocinou a criação da Sociedade
Internacional das Crianças Lesadas (1919) e da Sociedade
Internacional para o Bem-Estar dos Lesados (1922). Estas se
encarregaram de organizar congressos, cursos e cultivar a
opinião pública favorável aos programas de intervenção (cf.
Idem, Ibidem: 64-7 e Silva, 1986a:311).
As instituições nacionais eram voltadas, em sua maioria, ao
atendimento de crianças portadoras de deficiências mentais
e/ou físicas, sendo introduzidas, em determinados locais,
técnicas recentes de reabilitação, havendo também o
atendimento custodial-asilar.
As instituições pioneiras em cada estado, segundo APAE
(1975), Boccolini (1953), Campos (1985), Carvalho (1960),
Crefito-3 (1986), Fundação das Pioneiras Sociais (1980),
Fundação para o Livro do Cego no Brasil (s.d.), Hauck
(1986), Krynski e outros (1969), Lemos (1986), Mello
(1978), Santos (1984), Silva (1986a) e Sociedade Pestalozzi
do Brasil (1975), são apresentadas a seguir.
Os setores de atendimento em terapia ocupacional foram
sendo implantados anos mais tarde, a partir da formação de
técnicos com orientação direta do médico responsável ou
pelos profissionais formados em terapia ocupacional,
basicamente no Instituto de Reabilitação da USP .
Como se pôde observar, todas as instituições destinaram- se
ao atendimento da clientela infantil.
Em 1932, Helena Antipoff e colaboradores fundam a
Sociedade Pestalozzi voltada ao atendimento clínico e
preparação para o trabalho dos excepcionais, através da
experimentação de atividades em oficinas. Este mesmo
trabalho foi implantado no interior do estado.
Essa organização técnico-administrativa foi levada à capital
federal, Rio de Janeiro, sendo criada em 1945 a Sociedade
Pestalozzi do Brasil — SPB — com o propósito de, além do
atendimento ao excepcional, fomentar a abertura de enti-
dades congêneres em outros estados da federação, em 1945.
"[...] visando à educação e ao estudo dos excepcionais —
crianças e adolescentes — portadores de anomalias mentais,
psíquicas ou sociais que afetaram o seu desenvolvimento e,
conseqüentemente, seu ajustamento na escola, na família e
na sociedade" (SPB-RJ, 1975:15).
A Sociedade Pestalozzi do Brasil, além da assistência,
fornecia cursos de recreação e outras atividades formando
professoras e auxiliares de praxiterapia para a região.
Ainda no Rio de Janeiro, em 1948, dirigida por Luís
Cerqueira, psiquiatra defensor da ocupação terapêutica,
funcionou a Instituição Ulisses Pernambuco, em
homenagem ao falecido neuro-higienista nordestino, que
muito influenciou o seu trabalho.
Esta instituição atendia de quinze a vinte adolescentes
excepcionais. Seu programa de tratamento fundamentava-se
na realização de atividades sob orientação das professoras,
variando entre trabalhos em madeira, passeios externos,
atividades musicais e recreação. Nesse processo, sob
supervisão do doutor Cerqueira, foi formada uma terapeuta
ocupacional prática, Octacília Josefa de Mello, que relata sua
vida profissional no livro Terapia Ocupacional: minhas
experiências (1978). Essa entidade foi fechada em 1956, após
a saída de seu diretor.
Em 1954, conforme relato de Lemos (1986) e Soares (1986a)
foi fundada a Associação Brasileira Beneficente de
Reabilitação — ABBR, por Fernando Lemos (arquiteto),
Charles Murray (empresário), cujos filhos eram portadores
de deficiências físicas, médicos da área e simpatizantes.
Essa entidade de caráter filantrópico destinou-se ao
tratamento clínico e cirúrgico de pessoas com poliomielite,
amputações e demais casos de ortopedia e neurologia. Ela foi
construída ao lado do Hospital de Jesus, entidade estadual
cuja unidade de convalescentes de ortopedia, traumatologia
e neurologia, realizava tratamento clínico-cirúrgico, mas não
possuía nenhum serviço de reabilitação.
Para dar início ao centro de reabilitação era necessária a
formação de técnicos em fisioterapia e terapia ocupacional,
visto que não existiam cursos de formação no Brasil e os
profissionais formados no exterior já se encontravam
vinculados a outras instituições (cf. Campos, 1985:1-2). Para
a formação destes técnicos foi então criada a Escola de
Reabilitação do Rio de Janeiro, vinculada à ABBR.
Assim, ao final de 1957, inaugurou-se a ABBR com um
prédio (hoje chamado de Anexo) e alguns barracões, estando
instalados no andar térreo os setores de fisioterapia e terapia
ocupacional e atendendo a quarenta crianças encaminhadas
pelo Hospital Jesus (cf. Lemos, 1985:8-9).
Em 1954, criou-se a APAE do Rio de Janeiro, entidade
beneficente de utilidade pública, sem fins lucrativos, voltada
para o deficiente mental e núcleo inicial da Federação
Nacional das APAEs (fundada em 1963). A APAE realizava
o atendimento psicopeaagógico, estimulação precoce e
possuía oficinas protegidas de trabalho.
"[...] sua finalidade é ocupar e recuperar os pacientes através
de oficinas especializadas, dando-lhes assim, melhores
condições de vida" (Mello, 1978:66).
No Rio de Janeiro, portanto, na década de 50 existiram três
instituições voltadas ao deficiente mental e uma voltada para
a reabilitação física dos incapacitados.
Em São Paulo foram fundados o Lar Escola São Francisco,
voltado às crianças portadoras de deficiências físicas, 1943; a
Fundação para o Livro do Cego no Brasil (s.d.), em 1943;
"iniciando o ensino de crianças cegas, [...] pela professora
especializada Dorina Gouveia Nowill"; a Associação de
Amigos da Criança Defeituosa "destinada a tratar crianças
portadoras de seqüelas de poliomielite, paralisia cerebral ou
defeitos congênitos" (Carvalho, 1960:36), em 1950; o
Instituto de Ortofrenia e a Sociedade Pestalozzi de São
Paulo, para crianças com deficiência mental, ambos em
1952, e a Associação de Pais e Amigos do Excepcional —
APAE de São Paulo, criada em 1961, e desenvolvendo
programas de habilitação profissional desde 1964.
Na Bahia, em 1958, foi criado "à custa da iniciativa particular
um centro de reabilitação, o Instituto Baiano de Reabilitação"
(Carvalho, 1960:39).
Na recém-criada Brasília foi inaugurado o Centro de
Reabilitação Sarah Kubitschek, projetado e instalado em
região central para ser acessível a todos os pontos da cidade.
Bem equipada, a instituição se volta ao atendimento de
doenças do aparelho locomotor. Em 1972, o Centro vem
participar do processo de formação de recursos humanos em
reabilitação, incluindo a residência médica em fisiatria
(Castro, 1974:12) e em terapia funcional.
O subsídio às entidades que trabalham com excepcionais era
fornecido, sem política específica nos anos 60, pela LBA,
FEBEM e CADEME (Campanha Nacional de Educação e
Reabilitação de Deficientes Mentais), esta última criada em
1960 pelo MEC (Cf. Krynski & Clemente Filho, 1969:488-
9). A CADEME deu origem ao CENESP — Centro Nacional
de
Educação Especial, em 1969, que, aliado à Portaria no 20 do
MPAS, de 1975, e à Portaria Interministerial no 186, do
MPAS e MEC, de 1978, estabeleceram as normas para o
subsídio às entidades particulares e beneficentes via LBA e
CENESP (cf. Brasil, s.d. & Vital, 1978:A-4). Assim, as enti-
dades particulares e filantrópicas vão se expandindo à medida
que a LBA, INPS, FEBEM, CENESP, Secretarias Estaduais e
Departamentos Municipais fornecem subsídios aos serviços
multiprofissionais destinados à assistência e/ou educação
especial do menor, deficiente físico, mental e idoso. Os
dados quanto à expansão quantitativa desses serviços não
foram coletados por este trabalho podendo ser tema de pes-
quisas posteriores.

A REABILITAÇÃO NO INTERIOR DAS POLÍTICAS
SOCIAIS
No primeiro governo Vargas, é instituída uma legislação
sobre a participação do poder público na assistência aos
incapacitados do aparelho locomotor, sob a influência da
Organização Internacional do Trabalho. Esta difundia a tese
da Seguridade Social (cf. Cap.11:69-73), que incorporava a
reabilitação profissional a todos cidadãos. No entanto, a
Portaria no 83, de 1943, promulgada pelo Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, através do Conselho Nacio-
nal de Trabalho, determina
"[...] que os Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões
organizassem serviços de Reeducação e Readaptação de
Segurados e Aposentados por Invalidez" (Vital, 1978:4).
Assim, a readaptação e reeducação para o trabalho seria
destinada exclusivamente àqueles previdenciários acidenta-
dos e aposentados por invalidez e não para a totalidade dos
incapacitados; fossem seus dependentes ou, ainda, os não-
previdenciários.
Ainda no ano de 1943 (cf. Carvalho, 1960:31-40), o
Ministério da Educação e Saúde nomeia uma Comissão de
Assistência a Mutilados, que passa no ano seguinte a ser
incorporada à Divisão de Organização Hospitalar. De
concreto, essa comissão nada conseguiu efetivar.
Os anos seguintes foram pródigos na legislação, criando-se,
inclusive, a Comissão de Readaptação dos Incapazes das
Forças Armadas — GRIFA, que foi extinta em 1947 (dois
anos após sua criação), tendo reabilitado um único homem
(cf. Id. Ibid.:40). A legislação, não sendo implementada, não
provocou nenhuma alteração na atenção terciária à saúde.
É interessante notar que, embora a Portaria 83 e outras que a
seguiram, em 1944, 45 e 48 (Vital, 1978: A2-3), dissessem
respeito a todo IAP ou CAP, somente conseguimos
identificar que o IAPC (dos Comerciários) de alguns estados
(São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul) e, possivel-
mente, o IAPI (dos Industriários) chegaram a introduzir
serviços de reabilitação.
A farta legislação sobre reabilitação neste período, de
orientação distributivista, ao não ser efetivada pelos IAPs,
que mantiveram o modelo contencionista de gestão dos
recursos e aplicação segundo injunções políticas específicas
(cf. Cap. 11:76), revela uma dicotomia entre o discurso
oficial e a realidade concreta, característica dos governos
populistas.
Destes IAPs, o serviço de reabilitação que mais se desen-
volveu foi o vinculado ao IAPC (cf. Silva, 1986b e Nowill,
1962:13) que, em São Paulo, tinha também profissionais
formados no exterior. Dentre estes profissionais formados
estava Lila Linhares Blandy, assistente social que se formou
em terapia ocupacional em meados da década de 50 e Wilma
Seabra Mayer, assistente social que se formou orientadora
profissional (Cf. Hauck, 1986:9-10 e Campos, 1985:2). A
primeira delas, Lila L. Blandy, uma das pioneiras em terapia
ocupacional no país, foi cedida, a título de colaboração, para
lecionar no curso de terapia ocupacional da Escola de
Reabilitação do Rio de Janeiro, no período de 1956 a 1958.
De lá voltou a São Paulo, trabalhou no Rio Grande do Sul e,
no início dos anos 70, foi montar o setor e trabalhar no
IAPC de Minas Gerais. A outra, Wilma Seabra Mayer, em
1959, foi trabalhar no Instituto de Reabilitação da USP, onde
participou do treinamento de outros orientadores
profissionais. O serviço do IAPC de São Paulo se ampliou
com o ingresso de novos profissionais formados naquele
período.
O IAPC de São Paulo mantinha também uma pequena
unidade de atendimento hospitalar psiquiátrico, para vinte
internos. O tratamento desenvolvido nesta unidade
psiquiátrica incluía a recreação organizada por um clube
formado por pacientes, funcionários e médicos. Havia a
preocupação de manter todos os pacientes ocupados,
preservando interesses e iniciativas. Os procedimentos do
clube foram relatados no artigo: "A terapêutica pelo clube
em psiquiatria", de Ferrão e outros (1960:115-28).
Assim, o IAPC mantinha o serviço de readaptação e
reabilitação profissional a uma parcela de seus segurados
inválidos para o trabalho por doenças físicas ou mentais, a
partir de seu próprio orçamento e visando a redução das
despesas com pensões e aposentadorias.
O IAPI, apesar da pequena participação dos contribuintes
em sua gestão, de prestar assistência médica a somente 30%
de seus segurados e de a direção populista privilegiar o
financiamento de projetos governamentais, ainda assim, o
seu corpo técnico assimilara a validade dos serviços de
reabilitação. Nos anos 50, o IAPI difundiu a necessidade de
reabilitação profissional baseada na lógica economicista de
reduzir despesas com aposentadorias através da recuperação
dos segurados inválidos (cf. Cap. 11:80).
Através das medidas assistencialistas do estado, criou-se em
1950, o Serviço de Reabilitação do SESI (Serviço Social da
Indústria). Em São Paulo, desde sua fundação, esse serviço é
dirigido pelo fisiatra Fernando Boccolini. Em suas instalações
foram incluídos todos os serviços de reabilitação física e
profissional, com os técnicos especializados formados por ele
mesmo, via treinamento em serviço e cursos de curta
duração. A contratação de terapeutas formados nos cursos
universitários veio acontecer após muitos anos do seu
funcionamento, mantendo-se, entretanto, a rigorosa
hierarquia clínica na equipe. A visão assistencialista é a que
predomina neste serviço, ainda que, em determinados
períodos de expansão econômica, fosse efetivada a colocação
profissional dos operários reabilitados.
A sociedade civil vem desenvolver uma representação
sobre o significado da reabilitação do incapacitado a partir
dos serviços existentes, beneficentes e estatais. Assim, o
reabilitado é visto como um indivíduo produtivo e útil à
sociedade por (re)adquirir independência econômica e em
seu auto-cuidado.
No entanto, como esta concepção é veiculada pelas enti-
dades de reabilitação, majoritariamente assistencialistas, e a
absorção profissional do reabilitado é instável, a reabilitação
em si assume um forte apelo ideológico ao mascarar a
existência do exército de reserva (cf. Cap. 11:74-9). Neste
sentido a relação entre absorção do incapacitado reabilitado
com os períodos de expansão econômica ou com a própria
rotatividade da mão-de-obra não é identificada já que estes
indicadores não são mensurados pelos programas
reabilitacionais e estão fora do alcance de sua interferência.
Desta forma, a responsabilidade social de ser ou não ser
produtivo é deslocada para o próprio indivíduo reabilitado.
Na década seguinte, a Lei Orgânica da Previdência Social —
LOPS, de 1968, estabelece o direito universal àqueles
segurados que recebem auxílio-doença, os aposentados e os
pensionistas inválidos à assistência reeducativa e readaptação
profissional. Esta assistência se efetivou na ABBR e em
outras entidades congêneres, subsidiadas por recursos da
Previdência Social, ou seja, o direito à reabilitação se execu-
tou em instituições beneficentes, corroborando a repre-
sentação social da reabilitação como medida assistencialista.
Ao final do governo João Goulart, em 13/12/63, com
recursos próprios e centralizada na SUSERPS (Superinten-
dência dos Serviços de Reabilitação Profissional
daPrevidência Social), centraliza-se a prestação de serviços
de reabilitação aos segurados em geral, por região e não por
categoria profissional. O planejamento público para o setor
foi elaborado meses depois, já no regime militar.
Este plano reconhece a supervisão médica sobre as demais
atividades e abre uma frente de trabalho aos outros técnicos
de reabilitação: terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas,
proféticos, enfermeiros, assistentes sociais, ortofonistas.
Inclui o treinamento profissional nas oficinas de reabilitação
da Previdência, em empresas ou entidades do ensino
profissional. Para pôr o plano em execução, a SUSERPS
centralizou os profissionais dos IAPs em alguns centros
urbanos.
Luís Cerqueira (1965), ao analisar a regulamentação, exor-
tava a Previdência a se envolver com a formação e
valorização dos profissionais de reabilitação para não tornar
inoperante a proposta por impossibilidade de funcionamento
da equipe multidisciplinar ou por desvios estruturais, ao se
contar
"[...] com auxiliares mal preparados, mal recrutados em quase
todos os institutos; todos mal pagos e insuficientes
numericamente, tendo de atender sem o menor planeja-
mento, com os IAPs divididos e o segurado se sentindo
injustiçado com os altos e baixos assistenciais" (Id., Ibid.:90).
No entanto, o alerta sobre a formação de pessoal e sua
valorização econômica não foi absorvido pelo INPS nem
pelo MEC, sendo que as diretrizes do regime pós-64 foram
de privatização do ensino superior e da assistência à saúde,
garantida no acordo MEC-USAID e na unificação dos IAPs,
de modo que o Estado se desobrigava da consecução integral
dos programas sociais (cf. Cap. II: 86-94).
A crise de saúde da população é tratada pela Previdência
Social com medidas assistencialistas, no atendimento ao
excepcional, previsto em 66, cujo subsídio às entidades é
regulamentado em 69; no atendimento asilar do menor
carente e infrator pela Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor (criada em 1964) e com medidas de privatização da
assistência hospitalar e ambulatorial, expressa no aumento
dos leitos hospitalares da rede privada e das empresas de
medicina de grupo, responsáveis nos anos 80 pelo consumo
de 90% dos gastos em assistência médica.
Ao assumir o atendimento custodiai dos menores, norma-
lizar os serviços de reabilitação nos Centros de Reabilitação
Profissional — CRPs (do INPS), condicionar a aposentadoria
ao seu parecer e, finalmente, instituir o subsídio às entidades
para excepcionais, a Previdência Social amplia sua penetra-
ção em outras instâncias da sociedade sem, contudo, ampliar
suas divisas. Esse processo se cristaliza em 1974, através do
Ministério da Previdência e Assistência Social, onde LBA,
INPS, FUNABEM convivem sob o mesmo teto, e cujas
contradições em suas funções levam a uma crescente
centralização e concentração de recursos institucionais,
processo coroado na criação do Sistema Nacional de
Previdência e Assistência Social, em 1978.
Durante os anos 70, os Centros de Reabilitação Profissional
do INPS vão sendo instalados, tendo como prioridade os
casos de acidentados do trabalho, antes da fase final de seu
tratamento clínico. Por exemplo, em São Paulo, 80% dos
casos atendidos no CRP são acidentados do trabalho. A
reabilitação profissional era definida nos seguintes termos
pelo Ministro da Previdência e Assistência Social:
"A Reabilitação Profissional consiste em um programa
integrado objetivando proporcionar ao trabalhador, quando
incapacitado por doença ou acidente de trabalho, os meios
de reeducação e de readaptação profissional de maneira a
que possa se reintegrar na força de trabalho" (Brasil —
MPAS, 1975).
Assim, a força de trabalho ativa que se acidentou é
recuperada e recolocada no mercado de trabalho pelo CRP.
Entretanto, segundo estudos realizados em 1976 pelo
próprio INPS, dos 3.808 reabilitados entre 72 e 75 somente
1.898 (49,8%) continuaram empregados; destes, só 34,3%
têm mais de um ano de emprego. Com porcentagens
semelhantes, outros estudos do INPS (apud DIESAT,
1984:10) confirmam que somente 50% dos reabilitados
conseguem se empregar novamente e, neste grupo, a
rotatividade da mão-de-obra é muito maior. Os demais
retornam ao auxílio-doença (50%), estão desempregados
(30%) ou deixaram de trabalhar (11,5%). Ou seja, os
incapacitados do trabalho têm um destino: ou constituem
parte do exército de reserva flutuante (através da rotatividade
de sua absorção e do subemprego), ou vão pertencer à
porção estagnada e marginal da população excedente ao
capital (cf. Cap. 1:45-9).
Agora, se os dados anteriores põem em dúvida a eficiência
do serviço, outros argumentos oficiais são apresentados para
justificar a continuidade destes serviços. Assim, segundo
relatório de 1976 do Setor de Avaliação de Benefícios do
INPS (apud Id., Ibid.:10), se o incapacitado reabilitado vier a
contribuir novamente à Previdência por um período de
dezessete meses, a Reabilitação Profissional torna-se auto-
suficiente, e, num prazo de cinco anos, o empreendimento
todo se torna lucrativo. Aqui se evidencia novamente a
lógica economicista dos técnicos da Previdência.
Ao final dos anos 70, catorze Centros de Reabilitação
Profissional funcionavam nas cidades de Porto Alegre,
Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói,
Caxias, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Brasília, Salvador,
Recife, Fortaleza e Belém. Outros quatro foram inaugurados
em 1980, nas cidades de Santos, Campinas, Vitória e João
Pessoa (cf. Pereira, 1978:6).
O economicismo, ao nível do planejamento burocrático-
administrativo da Previdência, e o assistencialismo, ao nível
do discurso das práticas de saúde e das entidades beneficen-
tes conveniadas, se caracterizam como duas faces de uma
mesma política social.
Na década de 70, cresce o número de instituições voltadas à
população marginal e excedente, das unidades da FEBEM às
creches e parques infantis, dos asilos aos presídios. Nesses
locais, para implementarem os programas regulares educa-
tivos e/ou coercitivos, são incluídas outras práticas profissio-
nais, dentre elas a terapia ocupacional. A ênfase na análise
para indicação de atividades, na comunicação interpessoal,
na relação terapêutica construtiva e no apoio aos programas
pedagógicos, disciplinares ou de lazer é enfoque
predominante entre as modalidades de terapêutica
ocupacional efetivadas nestas instituições. A privação
cultural, a alienação econômica, a desagregação familiar são
teorizações que visaram enfrentar as condições complexas
desta realidade social na qual foram confrontados os internos
e profissionais.
A emancipação econômico-social efetiva do incapacitado ou
marginal requisita, além de recursos técnicos e financeiros
para o setor de saúde, uma vinculação efetiva e coordenada a
outras políticas sociais, principalmente a um conjunto de
medidas econômicas que garanta a absorção crescente da
força de trabalho, sem redução da massa salarial.
As transformações do espaço institucional, no qual as
práticas profissionais estão engajadas, o fenômeno da com-
petição no mercado de trabalho, as repercussões desse movi-
mento na orientação teórico-prática especificamente da tera-
pia ocupacional e as funções político-ideológicas cumpridas
por esta prática de saúde serão tema do capítulo seguinte.

4
TERAPIA OCUPACIONAL: DO
REDUCIONISMO A UMA PRAXIS UNITÁRIA

A. atividade de doentes internados no âmbito do auto-
cuidado, da capacidade produtiva e do lazer foi se
transformando tanto ao nível de sua concepção quanto do
seu uso no movimento real das instituições de saúde e
educação, sendo que a forma dominante desta prática social
foi denominada terapia ocupacional.
O papel do terapeuta ocupacional foi se constituindo
historicamente como fruto de sua adequação às contraditó-
rias condições da realidade social, de tal modo que para se
proceder à análise deste papel é necessário se identificar o
tipo de sociedade em que esta prática social foi engendrada e
as conjunturas político-econômicas que deram dimensão e
características próprias ao seu papel técnico-político.
A terapia ocupacional surgiu, basicamente, de dois proces-
sos: ocupação dos doentes crônicos em hospitais de longa
permanência com base em programas recreativos e/ou
laborterápicos e restauração da capacidade funcional dos
incapacitados físicos em programas multidisciplinares de
reabilitação.

CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DA TERAPIA PELA
ATIVIDADE NO BRASIL
O processo inicial foi o de ocupação dos doentes em
instituições asilares de psiquiatria ou tuberculose, efetivado
no Brasil da metade do século XIX até meados deste século,
com vários períodos de refluxo. Esses hospitais eram
geralmente mantidos pelo Estado, sendo que para o
tratamento destas doenças prescrevia-se o isolamento da
vida doméstica e produtiva. A hospitalização dessa clientela
por períodos prolongados de permanência gerava uma
desconexão brusca e quase definitiva dos internos com o
ritmo, os hábitos e as relações sociais. Para reduzir os efeitos
desfavoráveis da hospitalização sobre o comportamento dos
internos (loucos ou tuberculosos) introduziram-se atividades
recreativas, de auto-cuidado, profissionais e de conservação
do espaço institucional, que visavam à ocupação dos
internados.
A aplicação de atividades com internos recebeu vários
enfoques e denominações diversas: laborterapia, ergoterapia,
terapia ocupacional e praxiterapia. Segundo a terapeuta
ocupacional Lídia Brunetto, em 'Terapia Ocupacional —
correlação teórico-prática" (1975), os conceitos estabelecem
certas correlações e equivalências, mas com distinções entre
eles.
Os termos laborterapia e ergoterapia, por exemplo, surgem
na literatura anglo-saxônica e se equivalem.
"A laborterapia tem [...] o caráter de exercitação para o
trabalho. O paciente que por causa da doença perdeu o
hábito de uma atividade de trabalho regular, deve ser
conduzido por meio de laborterapia e fornecer novamente
contribuição contínua e útil. A reintegração na vida de
trabalho normal é o objetivo da laborterapia" (Brunetto,
1975:216).
Neste sentido, a laborterapia e a ergoterapia objetivaram
manter a capacidade produtiva do interno e por isso eram
realizadas pelos pacientes que apresentassem iniciativa,
responsabilidade e constância no trabalho, não sendo
assimiladas pelos negativistas ou aqueles que não tivessem
possibilidades de se engajarem em atividades produtivas.
Nas atividades de laborterapia ou de ergoterapia, os trabalhos
que se concretizam em produtos "comercializáveis" são
privilegiados, ou seja, os trabalhos manuais, artesanais,
profissionalizantes em detrimento da recreação e atividades
expressivas. Há que se acrescentar ainda como característica
deste modelo o controle intenso do técnico sobre a
definição do projeto e a sua execução à medida que o
produto do trabalho se caracteriza como mercadoria a ser
produzida de acordo com os padrões do consumo vigente.
Outra denominação empregada na época era a de
praxiterapia, que, segundo Arruda (1962), se origina da
palavra grega práxis, cuja significação é ação, atividade. Esta
denominação é a mais próxima da terapia ocupacional,
embora o seu emprego se distinga da forma de intervenção
atual.
"Nela, contudo, não está implícito o sentido finalista,
utilitarista de satisfação e de ação moral, que se encontra no
conceito de Ocupação. A ocupação terapêutica é considerada
por muitos uma forma de psicoterapia" (Arruda, 1962:15 —
grifos do autor).
O princípio da ocupação era exercitar o indivíduo para o
trabalho, de modo que a população encaminhada pelo
médico para a laborterapia, ergoterapia ou praxiterapia era
aquela que se encontrava ao final do processo de
recuperação, ou seja, sem delírios, alucinações ou manias, no
caso de doentes mentais, ou após o período de repouso e
cirurgia, no caso de tuberculosos. A instituição asilar inseria
seus doentes nas oficinas de trabalho especialmente
organizadas, no trabalho agrícola, ou ainda nos trabalhos de
conservação do ambiente (limpeza, alimentação, pintura,
transporte de materiais).
As grandes instituições asilares como o Hospital de Engenho
de Dentro (RJ), Hospital do Juqueri (SP), Hospital de
Barbacena (MG), Hospital Colônia Juliano Moreira (PE) e
outros construídos no início deste século no Brasil são
exemplos vivos do grande espaço institucional destinado aos
insanos mentais cuja concepção de tratamento incorporava a
ocupação dos doentes em trabalhos agrícolas e artesanais.
Estas atividades reproduziam as atividades econômicas
primordiais do meio rural e urbano da época. A produção
interna provia a própria instituição. Este período foi
chamado de a fase econômica da profissão (Cf. Scullin,
1975:2).
Segundo Lindemann (apud Brunetto, 1975), a passagem da
laborterapia à terapia ocupacional deu-se nos Estados Unidos
a partir da Primeira Guerra Mundial, quando o emprego de
atividades artesanais foi preconizado para a recuperação de
incapacitados. No entanto, segundo análise materialista
histórica desenvolvida por este trabalho no capítulo anterior,
o gerador deste fato social (cf. Cap. 111:108- 11) foi a
necessidade de absorção de parcela do exército de reserva no
momento de expansão econômica nos Estados Unidos e as
pressões sociais dos veteranos de guerra por autonomia
financeira e valorização social.
Em 1923, no lastro da legislação trabalhista de 1917-18, era
aprovada nos Estados Unidos a Lei Federal de Reabilitação
Industrial que determinou:
"[...] que todo hospital geral que lidasse com acidentes ou
doença industrial adotasse a terapia ocupacional como uma
parte integral de seu tratamento" (Rerek, 1979:41).
A terapia ocupacional vem englobar os conceitos parciais de
ergoterapia e redimensionar a utilização dos exercícios
físicos, da música, dos jogos e brinquedos a uma finalidade
mais específica. A terapia ocupacional, por outro lado, tam-
bém se distingue da laborterapia ao ocupar os doentes desde
o início da manifestação patológica, desenvolvendo o
interesse, sondando habilidades e estimulando a realização
de atividades no âmbito dos auto-cuidados, do lazer e da
produtividade (cf. Reed, 1980:6 e 18).
Nos Estados Unidos esta prática de saúde ampliou-se a partir
de cursos sistemáticos de formação de terapeutas
ocupacionais (desde 1914) e fundação de uma associação
científica nacional, em 1917, expandindo-se, na década se-
guinte, pela crescente divisão do trabalho na área de saúde.
No interior do processo de parcelamento do trabalho na área
de saúde emergia, então, a terapia ocupacional, que tinha por
objetivos tornar produtivos os doentes crônicos, os
incapacitados do trabalho e da guerra, atendendo à demanda
ampliada da força de trabalho. Por intermédio dela, o pacien-
te realizava o trabalho manual, artesanal ou industrial, de
acordo com a sua capacidade produtiva, numa graduação que
ia da atividade mais simples para a mais complexa, até que
numa etapa final estivesse em condições de ingressar no
mercado de trabalho. Nesta primeira etapa da divisão do
trabalho em saúde o paradigma da ocupação (cf. Kielhofner
& Burke, 1985:11-7) era suficiente para embasar a terapia
ocupacional que tinha como objetivo de estudo a ocupação
humana, aqui concebida como "a totalidade da experiência
do homem como um organismo produtivo, estético, jocoso,
criativo e reflexivo" (Id.,Ibid.:16).
Nos anos 30, a grave crise econômica dos países mono-
polistas recrudesceu a legislação social e quase extinguiu a
recuperação da mão-de-obra incapacitada num período de
desemprego desenfreado. Nesta ocasião, a prática profissio-
nal, ainda pouco desenvolvida, teve necessidade de maior
aproximação à medicina por questão de sobrevivência no
período da depressão, de 1929 a 1941 (cf. Rerek, 1979:44-
5). Esta aproximação provocou uma mudança no escopo
conceitual da ocupação para se adequar à concepção de
saúde emergente, já que a especialização crescente da
ciência provocou, por sua vez, a reformulação teórica de
várias práticas de saúde visando criar modelos específicos de
aplicação.
"A medicina, de forma crescente, insistia para que a terapia
ocupacional confrontasse, diretamente, os problemas
motores da incapacidade física e a patologia intra-psíquica da
doença mental" (Kielhofner & Burke, 1985:19).
Neste processo, a profissão buscou definir objetivos e
técnicas terapêuticas diferenciadas, segundo a especialidade
médica correspondente à clientela, sem base teórica ainda
estruturada. Assim, a terapia ocupacional era dividida em
terapia ocupacional física, vinculada à fisiatria, ortopedia e
neurologia, e terapia ocupacional mental, ligada à psiquiatria.
Na década de 40, concomitante ao reaquecimento da
economia e à entrada dos Estados Unidos na Segunda Guer-
ra, são retomados os programas de reabilitação profissional
do incapacitado físico e do doente mental realizados por
equipe multidisciplinar nos quais estava a terapia ocupacional
e orientação profissional. Os programas de reabilitação
profissional foram difundidos os todos em continentes em
decorrência de duas vertentes fundamentais de âmbito
internacional: o movimento de reabilitação e a Seguridade
Social (cf. Cap. 11:69-73 e Cap. 111:107-9).
No Brasil, o declínio da ocupação terapêutica ocorre após os
anos 30, em conseqüência das repercussões da crise
econômica internacional na economia exportadora nacional,
que gestou a orientação "contencionista" do Estado nas
políticas sociais, visando à industrialização e formação do
monopólio econômico nacional. Assim, similar a outros
países, a rede hospitalar pública sofreu um corte de verbas
em todos os itens, foi superlotado de doentes e indigentes
encaminhados das cadeias públicas e perdeu as condições
mínimas necessárias ao oferecimento de tratamento à
doença mental ou tuberculose.
O ressurgimento da ocupação terapêutica no país é a
retomada do processo de redemocratização da sociedade, em
meados dos anos 40, sob a vigência do capital monopolista,
da especialização crescente da ciência, da divisão técnico-
científica em saúde e suas respectivas orientações teórico-
práticas.
No processo de redemocratização da sociedade (final do
primeiro governo de Getúlio Vargas e início do governo
Gaspar Dutra), os movimentos sociais e trabalhistas se
reorganizam e a lógica contencionista nas políticas sociais é
influenciada pela orientação distributivista. Desse modo, os
programas do Departamento Nacional de Saúde são reforça-
dos no Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e
Energia). Dentre eles, o Serviço Nacional de Doenças Men-
tais (criado em 1944) e alguns IAPs (Institutos de Aposenta-
dorias e Pensões) deixam de ser serviços de saúde segundo a
prioridade e disponibilidade orçamentária. No entanto, a
maioria dos IAPs continuou mantendo a diretriz contencio-
nista, não priorizando os serviços de saúde, conforme o
relato dos capítulos anteriores.
A sociedade civil, melhor estruturada em classes, se mobiliza
e toma iniciativas no campo da reabilitação, terceira etapa da
atenção à saúde. São criadas várias entidades beneficentes e
particulares voltadas ao atendimento dos deficientes físicos e
mentais, sob os auspícios do Rotary Internacional, cuja
ideologia assistencialista apregoava a colaboração de classes
(da burguesia e classe média para com as classes populares)
visando à solução de uma necessidade comum (cf. Cap.
111:126-31).
Nesse contexto, a medicina se encontra permeada pelas
especializações clínicas, sob a orientação primordial das
teorias anatomopatológicas, mas limitada por outras
correntes de pensamento. Além disso, outras práticas de
saúde vão sendo implantadas no interior do complexo
hospitalar, local privilegiado para a capitalização da saúde,
onde se dá a conjunção das várias especialidades médicas e
profissionais.
O parcelamento e sofisticação das práticas em saúde permitiu
o assalariamento da categoria médica, o aumento do
consumo de atos "médicos" (aqui empregado no sentido
mais geral do termo, ou seja, de qualquer prática de saúde), a
industrialização dos insumos "médicos" (equipamentos,
exames laboratoriais, medicamentos) e a hierarquização das
práticas de saúde.
Os governos posteriores (Getúlio, Juscelino, Jânio, Jango),
até 1964, seguiram a orientação populista, isto é, um discurso
oficial voltado a toda população aliado a execução de
medidas concretas para a acumulação do capital. No âmbito
das políticas sociais, privilegiaram, de um lado, a força de
trabalho na ativa, via previdência social, assumindo feição
trabalhista, e adotaram, por outro lado, medidas setoriais e
momentâneas na assistência social e saúde pública (vide
criação do Ministério da Saúde, Cap. 11:75-6).
No primeiro caso, os IAPs paulatinamente ofereceram
serviços de saúde aos segurados em detrimento do valor real
de aposentadorias e pensões; no segundo caso, a assistência
social se efetivou via serviços públicos e através de
subvenção às instituições que atendiam às populações
marginais, ampliadas no processo de monopolização da
economia.
Assim, o Estado brasileiro na fase do capital monopolista
veio interferir nas lacunas e contradições do capital, pelas
medidas econômicas e políticas que regulam a força de tra-
balho, o exército de reserva e as populações marginais, pelos
mecanismos coercitivos e repressivos e também pelos
mecanismos político-ideológicos (cf. Cap.1:27-32, 45-9).
Particularmente, na instituição psiquiátrica retoma-se a
ocupação dos internos sob as formas já apresentadas:
ergoterapia, laborterapia e praxiterapia e, agora, terapia
ocupacional.
No Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro,
Nise da Silveira, psiquiatra que não adotara os tratamentos
inovadores dos anos 40 — o eletro-choque e o coma
insulínico —, empregava a terapia ocupacional com os
doentes mentais. Em 1946, como ela mesma declara:
"Enveredei por um outro caminho, pelo caminho muito
modesto da terapêutica ocupacional. Mas essa terapêutica,
como a entendia, era bastante diferente daquela praticada,
correntemente, que visava antes de tudo produtividade em
benefício da economia hospitalar. A terapêutica ocupacional
que procurei adotar era de atividades expressivas que
pudessem dizer algo sobre o interior do indivíduo, e ao
mesmo tempo falar das relações deste com o meio. [...]
Então comecei pouco a pouco a abrir setores e oficinas, a
iniciar atividades, trabalhos manuais, marcenaria, sapataria,
tapeçaria, esportes, teatro, festas e entre estas, em pé de
igualdade, um ateliê de desenho e pintura. Ao todo cheguei a
abrir dezessete setores de atividades, que davam uma vida
peculiar ao hospital, embora atingisse um número pequeno
de pacientes porque não dispunha de pessoal suficiente"
(apud Lisboa, 1986:2).
A terapêutica ocupacional realizada por Nise da Silveira, cuja
concepção de doença mental se baseia na psicologia analítica
de Jung, visava a expressão dos conflitos intrapsíquicos
manifestos nas produções plásticas e artesanais dos internos.
O uso terapêutico de atividades se baseava nos princípios
psicodinâmicos de Fidler que, desde aquela época, se
contrapunha à concepção de exercício para o trabalho da
corrente humanitária do tratamento moral, ao tratamento de
sintomas praticado pela corrente organicista e também ao
trabalho do paciente como fonte de recursos para o hospital.
No Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil, Luís
Cerqueira, chefe do Setor de Praxiterapia e difusor das
correntes socioterápicas, empregava os termos praxiterapia e
terapia ocupacional como sinônimos. No entanto, fazia
questão de diferenciá-los do conceito de reabilitação — fase
final de um programa terapêutico no qual o paciente se torna
aprendiz de um trabalho de cunho econômico, produtivo,
estruturado, ato que deveria ser remunerado para não haver
exploração do interno. Ele alertava aos desavisados para não
começarem o programa de atividades pelo final, ou seja, pela
atividade profissional. Do contrário as atividades seriam
colocadas de fora para dentro, não ocorrendo o tratamento
pelo trabalho, mas sim "[...] a fisioterapia dos trabalhos
manuais" (1965:42).
O alerta do professor Cerqueira se dirigia aos programas de
reabilitação, laborterapia ou ergoterapia que se situavam
neste limiar. As diferenças existentes entre os vários concei-
tos conviveram com o seu uso indiscriminado, que
ultrapassa a linguagem e o próprio fenômeno de realização
de atividades. Para um leigo, a aparência de um setor de
terapia ocupacional não se distingue da aparência de um
setor de laborterapia.
As atividades realizadas no setor de terapia ocupacional
incluem as auto-expressivas, que trabalham a espontaneidade
e a comunicação como desenho, pintura, escultura, gravura,
cerâmica, literatura, poesia, jornal, criação musical, dança
livre etc.; as sociais: festas (folclóricas, religiosas, cívicas,
aniversários), excursões, cinema, teatro, banda, coral, clube;
as psicomotoras: esportes, trabalhos em madeira, couro, me-
tais, recreação, jogos, trabalhos manuais, domésticos, técni-
cos, agropecuários (cf. Cerqueira, op. cit., 34). A classificação
das atividades pode ser muito variada, segundo os objetivos a
que se propõe o seu uso. Já na laborterapia e reabilitação,
conforme relato anterior, as atividades profissionalizantes
são as escolhidas, por produzirem objetos "comercializáveis".
Se para os especialistas na área a distinção entre reabilitação,
laborterapia e terapia ocupacional não é muito clara, para os
demais permanece a dubiedade e sinonímia entre as diversas
concepções da ocupação terapêutica. Isto se verifica no
artigo "Reabilitação em Psiquiatria", da Irmã M. S. T. Iasi, da
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo:
"[...] podemos dizer que as atividades recreacionais, edu-
cacionais e o início de readaptação profissional constituem o
vasto programada 'Laborterapia', o qual contribui para o
reajustamento físico, mental, social e econômico do
paciente" (Iasi, 1957:24).
Aí as várias atividades empregadas interagem com uma visão
global de homem, biopsicossocial, objetivando-se também a
readaptação profissional; no entanto, a denominação adotada
é laborterapia.
A ocupação terapêutica, já reconhecida com seus vários
enfoques na psiquiatria, desde o tratamento humanitário,
vem a ser difundida no Brasil agora na área de ortopedia,
neurologia, fisiologia e na nascente fisiatria, sendo emprega-
da com os doentes de internação prolongada, objetivando-se
a recuperação do déficit físico e o reequilíbrio psicológico e
social, sob a denominação de terapia ocupacional.
A terapia ocupacional é reconhecida, então, por seu em-
prego no campo da doença mental e nas disfunções físicas.
Este caminho — o da terapêutica ocupacional para as
disfunções motoras — foi o responsável pela criação dos
primeiros cursos de formação profissional no país. De um
lado, a medicina se especializava ainda mais, requerendo do
médico o treinamento no exterior ou o autodidatismo, e, de
outro, o tratamento ao incapacitado físico era difundido pelo
movimento internacional de reabilitação, num modelo
integrado de equipe multidisciplinar. Portanto, para se falar
da introdução da terapia ocupacional nas disfunções físicas
há que se relatar o início da formação de terapeutas
ocupacionais no Brasil.

A FORMAÇÃO DE TERAPEUTAS OCUPACIONAIS
Para atender à demanda crescente das entidades e serviços
de reabilitação, foram sendo constituídos alguns cursos de
formação em terapia ocupacional e fisioterapia, substituindo
o treinamento em serviço (como o realizado pelo SESI, em
São Paulo, ou por alguns hospitais, no Rio de Janeiro), ou os
cursos especializados em uma dada clientela, realizados
internamente em algumas instituições (como o Curso
Elementar de Terapia Ocupacional, ministrado por Nise da
Silveira, em 1948,1953, 1961 e 1979, conforme Silveira,
1976:38).
Os primeiros cursos de formação em nível universitário
seguiram o modelo norte-americano que, por sua vez, sofreu
influências diretas do movimento internacional de
reabilitação.
O movimento de reabilitação repercutiu internacionalmente
na década de 40, conquistando uma série de leis
protecionistas para o deficiente físico e mental, de
programas especiais na Previdência Social e nos serviços
hospitalares, custodiais. Também decorre deste movimento a
fabricação de aparelhos proféticos e ortopédicos em
melhores condições de adaptação ao indivíduo (cf. Mosey,
1979:47-9).
O movimento internacional de reabilitação, cujas raízes
foram relatadas no Capítulo III (107-113,127), foi divulgado
por uma série de entidades integradas à Sociedade Interna-
cional para o Bem-Estar dos Lesados. Atualmente denomi-
nada Reabilitação Internacional32, esta entidade conta com
115 organizações filiadas, de 64 países de todos os continen-
tes. Dentre elas destacam-se como pioneiros a Federação
Mundial de Veteranos, o Conselho Mundial para o Bem-
Estar dos Cegos e as entidades profissionais ligadas à área, a
saber, Sociedade Internacional de Medicina Física (ou seja,
fisiatria), a Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais
(criada em 1952) e a Confederação Mundial dos
Fisioterapeutas (cf. Silva, 1986 a: 311 e Salazar y de Agüero,
1965:64-7).
Outras agências não-governamentais também absorveram
reivindicações desse movimento, como a OIT (Organização
Internacional do Trabalho), que difundiu a necessidade de
reabilitação profissional aos acidentados do trabalho, e a
UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura), que difundiu propostas e recursos sobre a
educação especial para o deficiente. As iniciativas autônomas
destas entidades ligadas à ONU (Organização das Nações
Unidas) fomentaram, posteriormente, a necessidade de uma
proposta integrada de ações em reabilitação que evitasse
superposições e lacunas nos seus programas.
Em uma Assembléia Geral da ONU, de dezembro de 1946,
foi adotada a resolução de se elaborar
"[...] um programa de consultoria em diversas áreas do bem-
estar social, nele incluindo a reabilitação das pessoas
deficientes, como uma das principais áreas com
possibilidades de captar recursos financeiros para assistência
técnica a ser colocada à disposição dos países
subdesenvolvidos e interessados no assunto" (Silva ,
1986a:312).
Assim, a ONU assumiu a coordenação, planejamento e o
suprimento de reforços às áreas não cobertas pelas outras
organizações, bem como a formação de pessoal para prótese
e órtoses (cf. Salazar y de Agüero, 1956:68-73). A Organiza-
ção Mundial de Saúde — OMS cabia não só o preparo de
médicos mas dos demais profissionais, na área de reabilita-
ção: enfermeiros, terapeutas ocupacionais, orientadores
profissionais etc. A OIT cuidava da reabilitação profissional
via previdência social, e a UNESCO cuidava da educação
especial, principalmente de deficientes mentais e sensoriais
(cegueira, surdez); somente anos mais tarde a paralisia
cerebral foi incluída no rol da educação especial. Mais
recentemente, o UNICEF (Fundo de Emergência das Nações
Unidas para as Crianças) veio incrementar os esforços no
âmbito da reabilitação.
"No início da década de cinqüenta a ONU [...] resolveu
adotar uma estratégia mais efetiva para a implantação de
projetos de reabilitação nos quatro continentes: provocar a
organização de Centros de Demonstração de Técnicas de
Reabilitação, que acumulassem a responsabilidade de não só
dar atendimento qualificado, mas também desenvolver
cursos para a formação de pessoal básico nessas mesmas
técnicas" (Silva, 1986 a: 319).
Em decorrência, enviaram-se emissários para os quatro
continentes para pesquisarem os locais mais adequados à
instalação dos centros de demonstração, segundo os critérios
já definidos pelas organizações.
A partir de 1951, a ONU enviou para a América Latina
vários emissários (Dr. Paulo Novaes, em 51; Dr. Ling, em 52;
Dr. Gustave Gringas, em 55) a fim de estudar o local mais
adequado para a instalação de um possível Centro de
Reabilitação. Entre São Paulo, Santiago do Chile e Cidade do
México, a cidade selecionada foi São Paulo.
O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP foi
escolhido pelos consultores da ONU para ser o centro latino-
americano, pois nele já funcionava um setor de recuperação
vinculado ao Centro Médico da Faculdade de Medicina de
São Paulo, "a única classificada com o grau A pela Associação
Médica Americana, dentro de toda a América Latina"
(Instituto, 1957:16). Portanto, o fato de o Hospital das
Clínicas ser um complexo hospitalar ligado a um centro
universitário modelo e de renome internacional assegurou a
implantação do projeto; além disso, estava localizado num
grande centro industrial em expansão, onde havia, de um
lado, contingente de acidentados do trabalho e
incapacitados, e de outro, possibilidade de colocação
profissional dos reabilitados no mercado de trabalho.
"[...] uma das principais finalidades do Instituto projetado
pela ONU, [era] a recuperação dos operários acidentados"
(Dr. Ling apud Carvalho, 1959:23).
Outro fator fundamental na escolha foi o apoio do governo
local e federal no que tange aos recursos financeiros e espaço
físico necessário à instalação de um centro de reabilitação
modelo, no qual viesse a funcionar um serviço de
reabilitação integrado por vários setores. Foram todos estes
fatores que permitiram a eleição da unidade ortopédica do
Hospital das Clínicas da USP. Os demais centros de
demonstração foram montados em Bombaim, na índia, para
o continente asiático; em Skopje, na Iugoslávia, para a
Europa, e em Alexandria, no Egito, para o continente
africano (cf. Silva, 1986 a: 320).
O centro latino-americano veio a ser denominado Instituto
Nacional de Reabilitação (INAR) e foi instalado no primeiro
andar da Clínica Ortopédica e Traumatológica, com verbas
do governo estadual para as adaptações e ampliações
indispensáveis à sua instalação. O INAR foi criado em 1956
por decreto estadual e, dois anos mais tarde, a Lei 5.029
(Estado: 1958) o criava oficialmente com o nome
modificado para Instituto de Reabilitação da Universidade de
São Paulo (IR), ligado ao Departamento de Ortopedia e
Traumatologia da Faculdade de Medicina.
O Instituto começou a funcionar com os técnicos de que já
dispunha, muitos formados ou atualizados nos Estados
Unidos, com bolsas da OMS, a saber, terapeuta ocupacional
— Neyde Tosetti Hauck ; assistente social — Luzia
Banducci; psicóloga — Mathilde Neder; enfermeira —
Celina de Arruda Camargo; médicos — professor F. E.
Godoy Moreira, Roberto Taliberti, Waldo Rolim de Moraes,
professor Cantídio de Moura Campos, João D. M. B. A.
Rossi. Além destes profissionais vieram outros ligados às
especialidades já citadas e a outras.
A assistência técnica internacional foi dada, por parte da
ONU, com envio do coordenador do projeto, Paul Albright,
de Nova York, como chefe da missão (de 1/57 a 4/58) e do
técnico em prótese e aparelhos ortopédicos, o dinamarquês
Erik K. Jansen (de 2/57 a 12/60), responsável pela
modernização de toda a Clínica Ortopédica. Pela OMS,
foram enviados o inglês, Dr. Robin F. Hindley-Smith (de
7/58 a 12/61), que sucedeu Albright, enquanto este foi
orientar projetos de reabilitação no Rio de Janeiro e em
outros estados, a fisioterapeuta Karin Lindberg (de 12/56 a
12/60) e, anos mais tarde , a terapeuta ocupacional,
Elisabeth Eagles (de 3/64 a 11/65). Pela OIT, foram enviados
o técnico especializado em reabilitação de cegos, Joseph
Albert Asenjo (de 10/57 a 9/58), e o orientador profissional,
John Alfred Humphreys (de 3/58 a 2/59). A assessoria
internacional funcionava na base da contrapartida, ou seja,
para cada técnico estrangeiro havia um técnico local a ser
preparado, que posteriormente assumia autonomamente o
serviço.
O Instituto de Reabilitação da USP, segundo estudo de
Godoy Moreira e outros (1964:3), atendeu a 2.402 casos até
março de 1963. Destes, 87,1% eram casos com problemas
no aparelho locomotor, sendo que destes 29% eram casos de
paralisia cerebral; 23,64% de amputações; 10,32% de hemi-
plegia e 6,2% de casos de poliomielite. Os demais casos eram
5% de deficiência visual e 3,7% de doenças
cardiorrespiratórias e outros diagnósticos. A classificação dos
casos sob aótica clínica (todos os autores eram médicos) não
discriminou a clientela preferencial definida pela ONU, ou
seja, os acidentados do trabalho. Revendo o levantamento,
ainda que se separassem as doenças perinatais e de
desenvolvimento (paralisia cerebral e poliomielite), não seria
possível identificar entre os outros quadros nosológicos os
que foram causados por acidentes de trabalho ou por
doenças ocupacionais. Ou seja, nos anos que se seguiram à
cooperação internacional, o discurso local sobre o
atendimento realizado no IR privilegiou o aspecto clínico,
nosológico, do tratamento à caracterização social da clientela
ou à reabilitação profissional.
Quanto à procedência da população atendida no Instituto de
Reabilitação, a maioria era originária de outros estados, além
de serem atendidos paraguaios, bolivianos, venezuelanos e
outros pacientes da América Latina.
Quanto ao ensino, o Instituto de Reabilitação, desde 1959,
formou técnicos em fisioterapia e terapia ocupacional e, a
partir de 1960 em diante, técnicos em prótese e órtoses
ortopédicas e em locomoção de cegos. A duração dos dois
primeiros cursos era de dois anos, até 1964, quando passou a
três anos de duração, e dos dois últimos cursos era de um
ano (Moraes, 1959:57). O modelo curricular era estruturado
para cursos técnicos, de curta duração.
Assim, não só foi instituída em São Paulo uma entidade
modelo com toda uma equipe multiprofissional trabalhando,
bem atualizada e equipada, contando com inúmeros técnicos
estrangeiros, como também foram habilitados profissionais
locais para a área de reabilitação. Desta maneira foram
formados os especialistas que inexistiam no país, a saber, os
terapeutas ocupacionais e os fisioterapeutas para as demais
entidades de assistência. Em número reduzido, os
profissionais formados nesses anos eram contratados pelo
próprio Hospital das Clínicas (Psiquiatria, Ortopedia, IR) e
por entidades assistenciais como a Santa Casa, AACD
(Associação de Assistência à Criança Defeituosa), LESF (Lar
Escola São Francisco) etc. (cf. Hauck, 1986:7-8).
Paralelamente, por iniciativas de entidades de outros estados,
com ou sem assessoria direta de consultores da ONU, outros
cursos de formação em fisioterapia e terapia ocupacional
foram instalados no Brasil.
Os cursos realizados no Rio de Janeiro foram promovidos
pela ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilita-
ção) e tiveram início um ano antes dos cursos paulistas, em
1956. Mas como estes foram promovidos por uma entidade
civil, não vinculada ao meio universitário, contou com
menor apoio governamental. A ABBR instalou a Escola de
Reabilitação do Rio de Janeiro — ERRJ, que formou
fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais baseados no modelo
curricular israelita, que, por sua vez, se baseava no modelo
norte-americano, de nível universitário. A primeira turma
de profissionais formou-se no curso de dois anos de duração,
enquanto as seguintes já foram formadas em três anos.
A ERRJ, dirigida por Jorge Faria, um dos médicos fundadores
da ABBR, em contato direto com as associações
internacionais de fisioterapia e terapia ocupacional, contou
com a vinda de profissionais do exterior para a formação de
fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.
A fisioterapeuta irlandesa Edith MacConnel, que trabalhava
num hospital carioca, e a terapeuta ocupacional formada no
exterior, cedida pelo IAPC de São Paulo de 1956 a 58, Lila
Linhares Blandy, foram as professoras da área
profissionalizante de cada um dos cursos. Da primeira turma
de formandos, em fevereiro de 1958, foram escolhidos o
fisioterapeuta Miguel Alves Vieira, também educador físico,
e Hilêde Wanderley Cantanhede, também assistente social,
que permaneceram como professores dos cursos (cf.
Cantanhede, 1985:4). O curso veio a ter colaboração
temporária de duas técnicas canadenses, trazidas pela ABBR,
fisioterapeuta Winter e a terapeuta ocupacional Laurie
Brown (cf. Faria, 1986:5).
Os terapeutas ocupacionais formados no Rio de Janeiro,
também em número reduzido, foram integralmente
absorvidos na própria ABBR ou ERRJ. Somente após alguns
anos foram se engajando em outras entidades, como a
Sociedade Pestalozzi do Rio de Janeiro, o Instituto
Psiquiátrico Nacional, a Clínica Pinel e outros.
Os terapeutas ocupacionais formados nestas primeiras escolas
eram fortemente ligados à reabilitação física e à direção
médica; o aprendizado sobre o atendimento de doentes
mentais era restrito à teoria ou a casos associados à
deficiência física. Alguns anos depois teve início o estágio
curricular supervisionado em unidades psiquiátricas.
Os terapeutas ocupacionais formados a partir da década de 50
seguiram o modelo clínico vigente na medicina que lhes
possibilitou constituir uma determinada identidade e corpo
de conhecimento técnico-científico. A formação do
profissional era, então, eminentemente clínica, ou seja,
aprendia-se a sintomatologia, o processo patológico, a
intervenção médica específica à patologia e alguns princípios
da respectiva terapêutica. Este último item era ministrado
nas poucas disciplinas profissionalizantes do curso. O estágio
se caracterizava como momento do treinamento em serviço
e a atuação profissional posterior à formatura é que permitira
a especialização do profissional em alguma área de atuação
com o seu correspondente fundamento.
Os cursos de formação de terapeutas ocupacionais em outros
estados tiveram início nos anos 60 em Minas Gerais,
Pernambuco e Bahia.
A partir de 1962, em Belo Horizonte, se iniciaram os cursos
de fisioterapia e terapia ocupacional, frutos do convênio
entre as Faculdades de Ciências Médicas de Minas Gerais e a
Fundação Arapiara, ligada ao hospital de mesmo nome,
especializada em doenças do aparelho locomotor. Os primei-
ros profissionais foram formados por médicos do Hospital
Arapiara, onde estagiavam e eram contratados. Ao final dos
anos 60, o hospital contou para atendimento e atividades
didáticas com uma terapeuta ocupacional de formação
estrangeira, a norte-americana Débora Wood, de 1969 a
1971, substituída pela holandesa Johanna Nordhoek, de
1971 a 1983 (cf. Nordhoek, 1987:1-2 e Pitanguy e outros,
1986:2-3). Os poucos profissionais formados nesta
instituição iam trabalhar em instituições da cidade.
Ao final do ano de 1963, o processo de constituição do
currículo mínimo dos cursos de terapia ocupacional e
fisioterapia encaminhado pela Escola de Reabilitação do Rio
de Janeiro — ERRJ é aprovado pelo Conselho Nacional de
Educação (atual Conselho Federal de Educação — CFE). A
definição do currículo mínimo era requisito para o
credenciamento dos cursos. Ele foi aprovado com 2.160
horas, para três anos letivos de duração e em nível
universitário (cf. Brasil, 1964; Campos, 1985:2; Faria,
1986:6-7 e Soares, 1986a). A proposta encaminhada pela
ERRJ se baseou em seu modelo curricular e sobrepujou a
proposta dos médicos do IR de São Paulo, prevista para o
curso técnico, com dois anos de duração. Essa discordância
já havia impedido e retardado o processo decisório sobre as
propostas de currículo mínimo encaminhadas à Câmara dos
Deputados. Essa vitória do modelo universitário para a
formação de ambos os terapeutas, ainda que contasse de
cinco matérias, provocou o aumento de créditos e/ou o
tempo de duração dos cursos de São Paulo, Minas Gerais e
outros estados.
Os terapeutas ocupacionais se organizaram em associações
científicas da categoria nos estados da Guanabara e São Paulo
e na Associação de Terapeutas Ocupacionais do Brasil —
ATOB, fundada em 13/11/1964. Também realizaram
encontros regionais e nacionais onde foi incentivada a troca
de experiências, o crescimento científico e o fortalecimento
da categoria.
Cinco anos depois, o Decreto-Lei 938, de 13 de outubro de
1969 (Brasil, 1969:8658), veio reconhecer os terapeutas
ocupacionais e fisioterapeutas, diplomados por escolas e
cursos reconhecidos pelo MEC, como profissionais de nível
superior, e tornar exclusiva a execução de métodos e
técnicas específicos a cada categoria.
A regulamentação profissional foi decretada pelo então
presidente da República, Arthur da Costa e Silva, por ter se
sensibilizado pela área de reabilitação após o sucesso
terapêutico de seu tratamento na ABBR .
O Decreto-Lei 938, em seu artigo 4, estabeleceu que:
"É atividade privativa do terapeuta ocupacional executar
métodos e técnicas terapêuticas e recreacionais com a
finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade
mental do paciente".
Este artigo se propõe tornar privativa a aplicação de métodos
e técnicas terapêuticas e recreacionais dirigidas à capacidade
mental do paciente. Ele não cita o uso da atividade, não
explicita o que é método ou técnica terapêutica, nem inclui
no objeto da intervenção a capacidade física/motora, que,
por sua vez, foi relacionada aos métodos e técnicas
fisioterápicas e tornada privativa do fisioterapeuta. Consta
ainda neste decreto que a direção dos respectivos serviços, a
assessoria técnica, o magistério nas disciplinas de formação
básica ou profissional e a supervisão de profissionais e alunos
da área serão realizados pelos fisioterapeutas ou terapeutas
ocupacionais com diplomas reconhecidos.
Os avanços legislativos — definição do currículo mínimo e a
regulamentação da profissão — não foram, nas duas ocasiões,
encaminhados pelo conjunto da categoria, que, ainda
dispersa, não se envolveu e nem lutou conjuntamente por
seu reconhecimento. Se isso, de um lado, demonstra a tena-
cidade de segmentos profissionais, de outro, mostra a desar-
ticulação da categoria e seu limitado grau de consciência
profissional e de intervenção coletiva.
Sob um outro ângulo de análise, pode-se depreender que as
novas profissões, prematuras, com número reduzido de
praticantes e de cursos de formação, devessem se expandir
pelo mercado de trabalho para, a posteriori, serem
regulamentadas. Ainda assim, ao se estabelecer a
exclusividade na aplicação destas técnicas aos formados em
cursos regulares, dever-se-ia incorporar os profissionais
autodidatas e aqueles com cursos paralelos de formação, de
modo que estes adquirissem o reconhecimento oficial e o
direito à continuidade de seu trabalho técnico. Entretanto, a
regulamentação das profissões efetivamente não criou
mecanismos de reconhecimento das práticas marginais ou
alternativas ao ensino oficial, ao contrário, buscou vetar o
exercício profissional àqueles que não seguiram o percurso
tradicional do ensino superior.
Em meados dos anos 70, a expansão da rede de ensino
superior, pautada principalmente no setor particular, vem
atender à demanda crescente de escolarização das camadas
médias, promovendo abertura de novos cursos, entre os
quais os de terapia ocupacional. Neste sentido, o ensino
superior veio cumprir um papei regulador do exército de
reserva das camadas médias, e, particularmente, as novas
profissões da área de saúde vieram atender ao contingente
feminino desta população. Esta é uma das razões que podem
explicar a introdução e regulamentação precoce de várias
profissões nas sociedades capitalistas periféricas. A tese
apresentada por Spink (1985:25) é clara:
"Assim, enquanto a regulamentação tende, de maneira geral,
a ser o produto final de um longo processo de formação, no
Brasil, freqüentemente, a legislação precedeu a constituição
dos quadros profissionais".
Conseqüente ao reconhecimento das profissões de
reabilitação, tem início o confronto de setores da categoria
médica, alarmada pela divisão do trabalho, e a nova
constatação hierárquica da equipe de saúde, mantida sob sua
hegemonia.
A regulamentação das profissões, embora ainda contivesse
algumas imprecisões, encontrou um forte adversário: a
Sociedade Brasileira de Medicina Física e Reabilitação. Esta
entidade, ligada à Associação Médica Brasileira, congrega os
médicos fisiatras, ortopedistas, neurologistas,
reumatologistas, enfim, os especialistas no tratamento e
reabilitação de doenças ou traumatismos incapacitantes.
A Sociedade Brasileira de Medicina Física e Reabilitação
reivindicou a supervisão médica sobre o exercício
profissional do fisioterapeuta e terapeuta ocupacional e
contestou juridicamente, em 1970, a regulamentação das
categorias "por hipertrofia de atividade" delas em relação à
categoria médica (cf. Fonseca, 1973:20). Como nas origens
da área da reabilitação cabia ao médico não só o diagnóstico
clínico como também a seleção, indicação, aplicação e
acompanhamento periódico da aplicação destas técnicas,
principalmente as de cunho fisioterápico, setores da
categoria médica se opuseram à nova realidade da área de
saúde. Assim, em inúmeros hospitais, clínicas e consultórios,
as técnicas fisioterápicas (eletroterapia, hidroterapia,
cinesioterapia e outras) continuaram sob estrito controle e
aplicação médicos.
A resistência da categoria médica à privatividade dos
profissionais de fisioterapia e terapia ocupacional coincide
com a redução relativa da competência médica sobre o
diagnóstico e terapêutica, além do que a privatização da
assistência hospitalar impôs limites ao exercício liberal da
medicina e incentivou o assalariamento médico,
repercutindo no auto-prestígio da categoria.
Na passagem dos anos 60 aos 70, no Brasil, a profissão de
terapeuta ocupacional e fisioterapeuta adquirem maior
autonomia em relação à categoria médica, sendo adotados
novos referenciais teóricos, melhor estruturados. Esta rup-
tura foi aceita parcialmente pelos médicos que continuaram
a trabalhar com as demais profissões, ora assimilando sua
relativa autonomia, ora recrudescendo a cobrança teórica da
área e restringindo sua intervenção.
A postura restritiva, no entanto, se fez presente durante os
longos anos em que o processo de privatização dos serviços
hospitalares foi fomentado pelo INAMPS e a rede hospitalar
e educacional pública foi sofrendo os limites orçamentários
de uma política social burocrática, privatizante e elitista.
Em São Paulo, o diretor do Instituto de Reabilitação,
professor Flávio Pires de Camargo, após dez anos de fun-
cionamento do IR-USP e concomitante à Reforma Univer-
sitária, inicia o processo de desligamento do Instituto do
Departamento de Ortopedia e Traumatologia, propondo que
ele fosse transformado numa divisão ligada diretamente ao
Hospital das Clínicas. Entretanto, como a nova estrutura não
foi implantada, irrompe um processo de dissolução das
atribuições do Instituto no que tange à reabilitação de
incapacitados e treinamento de médicos e pessoal técnico-
auxiliar. Os cursos, em contrapartida, foram transferidos para
outro departamento da Faculdade de Medicina da USP,
iniciando um processo de peregrinação da Ortopedia à
Radiologia, desta à Pediatria e até mesmo à Medicina
Nuclear, conforme as injunções políticas às quais os cursos
foram submetidos.
"Desta forma foram suspensas gradativamente as funções
assistenciais do Instituto de Reabilitação, sendo que, a partir
de 60 só restavam as funções de ensino, as quais se tornaram
bastante precárias na parte de aplicação, como conseqüência
da supressão das atividades práticas do Instituto de
Reabilitação" (Alvarenga & Ferrari, 1974:6).
A dissolução do Instituto de Reabilitação ao final dos anos
60, com a dispersão de seus técnicos para outras unidades do
HC e outras instituições, encerra o Centro de Demonstração
de Técnicas de Reabilitação, modelo proposto e assessorado
pela ONU e agências congêneres, assumido pelo governo
estadual e pela área de Ortopedia e Traumatologia da Facul-
dade de Medicina.
Com a desativação do Instituto de Reabilitação da USP os
serviços de reabilitação brasileiros perderam um modelo de
trabalho multidisciplinar integrado e bem equipado cuja
produção de conhecimentos transcendia a área médica. A
justificativa deste padrão de atendimento é explicitado por
um dos integrantes do extinto Instituto de Reabilitação:
"Porque num trabalho técnico dessa natureza, você precisa
de um padrão [...], você precisa de um paradigma, de um
modelo. Não para você copiar, não. E para você se
posicionar" (Silva, 1986b:25).
Nesta medida, a disputa corporativista produzia grandes
repercussões e as profissões não-médicas (oficialmente
chamadas de profissões paramédicas) da saúde tiveram que
caminhar por si e, por vezes, à míngua, no espaço
institucional controlado pela visão médica restritiva.
O modelo integrado de assistência multidisciplinar resistiu
em escala reduzida na Clínica Ortopédica e Traumatológica
do HC, mas os cursos de terapia ocupacional e fisioterapia,
transferidos à Faculdade, sem espaço físico e verbas
adequadas, passaram a ser ministrados por alguns professores
contratados e pela colaboração voluntária e,
conseqüentemente, assistemática de profissionais vinculados
às instituições da cidade. Os cursos de técnicos em prótese e
órtese e de locomoção de cegos são desativados juntamente
com o instituto, sobrevivendo apenas o treinamento em
serviço da Oficina Ortopédica da AACD e no setor de
locomoção da Fundação para o Livro do Cego no Brasil.
Dificuldades financeiras e pressões políticas locais também
estão presentes em outros cursos cujo caso mais gritante foi
o da Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro, que culmina
com a venda dos cursos para um outro estabelecimento de
ensino, em 1978; mas, em menor escala, estão a Faculdade
de Ciências Médicas de Minas Gerais, instituição de ensino
beneficente; a Escola de Medicina e Saúde Pública da Bahia,
instituição de ensino particular, e, ainda, a Universidade
Federal de Pernambuco.
No início dos anos 70 existiam no total cinco cursos de
graduação; em 1980, treze, sendo que os cursos oferecidos
por instituições públicas passaram de dois a quatro do total.
A maior parte dos terapeutas ocupacionais brasileiros era
formada, portanto, pela rede particular de ensino. Por
conseguinte, as condições de oferecimento e manutenção
dos cursos se tornaram diretamente dependentes da sua
lucratividade. Essa condição tornou instável a formação dos
profissionais, principalmente nos períodos recessivos, de
crises internas à categoria ou ao espaço institucional, quando
decresce a demanda de alunos.
Os cursos mantidos nas universidades públicas estavam,
porém, resguardados do fantasma do encerramento,
confrontando-se, outrossim, com as minguadas verbas e a
estrutura administrativa restritiva à área, situação essa muitas
vezes derivada de sua vinculação acadêmica à faculdade de
medicina.
Nos anos 70, no processo de ressurgimento das entidades
representativas e movimentos sociais, as associações
científicas por categoria profissional vão se fortalecendo e
buscando alternativas de reconhecimento oficial face às
políticas de saúde recessivas e privatizantes. Nesse
movimento os terapeutas ocupacionais se uniram aos
fisioterapeutas em busca de maior legitimidade oficial,
conquistando a criação dos Conselhos Federal e Regionais
das categorias, em 17/12/75, e da associação pré-sindical em
São Paulo, em 1978 (transformada em Sindicato em 1980).
O Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (e
respectivos auxiliares) — COFFITO — veio normatizar as
atribuições específicas de cada uma das categorias e
estabelecer o Código de Ética profissional; os Conselhos
Regionais se encarregaram do credenciamento e fiscalização
de entidades mantenedoras dos serviços e profissionais
habilitados ao exercício profissional. Estes mecanismos
vieram ampliar as garantias no mercado de trabalho, ainda
que o controle e participação nas políticas de saúde
estivessem bloqueadas. As entidades de caráter pré-sindicais
fundadas em outros estados buscaram definir piso salarial,
mecanismos de progressão funcional e estabilidade
empregatícia face à recessão econômica e às condições
deficitárias das instituições de saúde.
No que diz respeito à formação acadêmica do terapeuta
ocupacional, a categoria se empenhou na reformulação do
currículo mínimo do curso, baseado nos padrões
internacionais preconizados pela Federação Mundial de
Terapia Ocupacional (WFOT), projetando de 78 a 80 uma
nova proposta.
"Tendo em vista a inadequação do referido modelo (médico,
onde predominam as disciplinas da área biológica) para a
formação do Terapeuta Ocupacional, frente às novas
perspectivas do mercado de trabalho e melhor delimitação
do campo profissional, foi desenvolvido um estudo, [...] em
âmbito nacional, com vistas a redefinir o perfil profissional e
elaborar um novo currículo mínimo compatível com as
novas realidades da atuação prática" (Coordenação, 1985:2).
O projeto enviado ao MEC em 1980 foi aprovado em
13/12/82 (Brasil, 1982). Os cursos passaram de 2.160 para
3.240 horas, de três para quatro anos e de um modelo de
formação clínico-biológica para um modelo de saúde que
integrasse o enfoque psicológico e social ao biológico, e
onde a profissão atuasse da prevenção à reabilitação. O novo
currículo mínimo promoveu inúmeras transformações nos
cursos.
A categoria, após várias ações desencadeadas nos anos 70,
conquistou várias vitórias no que diz respeito à melhoria na
formação do profissional, ao aceite de profissionais em
cursos de pós-graduação, à atualização das práticas com a
clientela nas instituições de saúde e assistência social e à
fiscalização do mercado de trabalho profissional.
Embora a categoria reconhecesse as dificuldades no mercado
de trabalho, a competitividade com a direção clínica na
instituição (centrada na figura do médico, cujo centralismo
das decisões asfixiava a participação dos outros quanto a
encaminhamento e alta dos casos) impregnou as atenções
corporativas obscurecendo o pano de fundo da concorrência
inter-categorias: a política de privatização da assistência à
saúde implementada na década de 70 associada a medidas
recessivas, no final desse período.

A INSERÇÃO DA TERAPIA OCUPACIONAL NO
MERCADO DE TRABALHO

A lógica capitalista, ao se expandir para a área de saúde (cf.
Cap. 1:39-56), transformou as condições de trabalho exis-
tente de tal forma que a reorganização do setor promoveu
confrontos inter-categorias, a alienação dos profissionais
quanto a nova estrutura, redefinição de seus papéis especí-
ficos e assimilação de tecnologias. A limitada absorção dos
terapeutas de cada categoria, a passagem do "status" de
profissionais liberais para assalariados, e o confronto de
interesses "por uma fatia maior no mercado de trabalho"
criaram as condições de batalha entre as várias categorias
(vide Spink, 1985:24-43).
A busca de salvaguardas específicas não reconheceu a
questão essencial — a privatização da assistência à saúde, que
promoveu insolvência das instituições públicas e das
entidades beneficentes de reabilitação — nem o processo de
formação do exército de reserva das camadas médias e o
respectivo achatamento salarial da força de trabalho ativa.
Além do que, nessa alienação, as energias corporativas se
esvaíram no discurso da competência técnica sobre a saúde
da população, não opondo resistência direta e conjunta à
política implantada peio Estado autoritário e, muito menos, à
integração de medidas e práticas alternativas para e com a
população.
Especificamente, o mercado de trabalho apresentava uma
configuração complexa: unidades ligadas ao Ministério da
Previdência e Assistência Social (em cujas instituições o
terapeuta ocupacional está inserido) e unidades ligadas ao
Ministério da Saúde. No primeiro plano, ocorreu a expansão
da rede hospitalar privada em detrimento da criação de
hospitais e serviços próprios promovida pela previdência
social (cf. Cap. 11:87-9). Embutida na capitalização do setor
saúde estava a tecnificação dos atos e insumos de saúde
mediados pelos equipamentos médico-hospitalares e a
diversificação dos serviços de ação rápida. Foi privilegiada,
no sistema de convênio, a realização de uma série de
exames, técnicas terapêuticas e especialidades clínicas
compatíveis ao diagnóstico e tratamento sintomatológico de
curta e média duração.
No rol dos equipamentos adquiridos pelos hospitais de
clínica geral, ortopédica, neurológica, cardiológica, encon-
tram-se os aparelhos de eletroterapia, audiometria, tração,
eletromiografia, termoterapia, hidroterapia e outros. A
prescrição das técnicas fisioterápicas, por exemplo,
geralmente era feita pelo médico. O fisioterapeuta, na
maioria das vezes, não era contratado pelo hospital já que
inexistiam sanções legais e fiscalização que garantisse a
exclusividade ao profissional "habilitado" (no caso específico
o fisioterapeuta formado em curso universitário reconhecido
pelo MEC), conforme determinação do Decreto-Lei 938, de
1969.
A terapia ocupacional, apesar de também ter sua
exclusividade contestada pela fisiatria, não era usualmente
empregada peleis especialidades médicas, pois, praticamente,
não absorvia equipamentos médico-hospitalares e nem era
prescrita para doentes de curta internação, mas somente
àqueles que apresentavam níveis mínimos de movimentação
voluntária e de colaboração para o trabalho ativo. Assim, a
terapia ocupacional praticamente não foi absorvida na rede
hospitalar, exceção feita a alguns hospitais já referidos no
capítulo anterior (hospitais de fisiatria ou hospitais gerais
ligados a escolas médicas).
A terapia ocupacional, ao trabalhar com a clientela que sofre
de acometimento orgânico, enfoca primordialmente a
restauração física, buscando atingir o máximo da capacidade
motora. Só que, com este mesmo objetivo, os hospitais já
empregavam a fisioterapia, cujas técnicas, além desta, tam-
bém atendiam a outros objetivos clínicos, e se adequavam
melhor à política de tratamento sintomatológico, de uso de
equipamentos e técnicas diversificadas. Por outro lado, os
demais objetivos da terapia ocupacional física, a saber, o
treinamento de hábitos de trabalho e o treinamento
vocacional, não eram assimilados pelos hospitais já que estes
priorizavam a redução dos sintomas em curto período de
internação.
A ótica tecnológica era explicitada na tabela de pagamento
por unidades de serviço — US — do INAMPS (Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Pela
tabela no elenco de técnicas fisioterápicas (como
eletroterapia, massoterapia, termoterapia etc.) e de seu
correspondente pagamento, consta a terapia ocupacional em
um único item e uma só equivalência em US.
Em contrapartida, a terapia ocupacional encontrava-se
inserida no programa de assistência à doença mental tanto
no Ministério da Saúde como no da Previdência Social, que
se efetiva, em toda a década de 70, por uma complexa rede
hospitalar constituída por hospitais estatais, basicamente de
doentes crônicos, e hospitais particulares e beneficentes,
conveniados ao INAMPS, ou, ainda, como já foi relatado no
capítulo anterior, às Secretarias de Saúde. Os hospitais
conveniados, com média de 250 leitos, apresentavam alta
rotatividade já que o INAMPS previa um mês de internação
para os casos de neurose e três meses para os casos de
psicose. Com estes parâmetros, a meta da assistência
psiquiátrica era a remissão do quadro agudo da doença, ou
seja, a supressão dos sintomas patológicos obtida,
basicamente, pelo uso intensivo de psico-fármacos e, em
menor escala, do eletro-choque e coma insulínico,
atendendo assim ao limite previsto para cada tipo de
internação. Esta política buscou sanar as internações
prolongadas e fornecer parâmetros técnicos para a
assistência; é claro que os pacientes que não se recuperassem
nesse prazo poderiam continuar internados; entretanto, co-
mo o parecer psiquiátrico necessário à dilatação do prazo
desencadeava um longo processo burocrático para ressarci-
mento financeiro, freqüentemente esta alternativa era pouco
utilizada pelos hospitais.
No sistema de convênio previam-se pontos para os recursos
humanos e instalações que classificavam os hospitais e
determinavam a respectiva remuneração hospitalar — o
RECLAC — inserido na Portaria SAMES 8/74 (cf. Cerqueira,
1984:153 -4). Por esta classificação, o padrão mais elevado
de assistência e, portanto, de remuneração seria de um
hospital que contasse com uma equipe de psiquiatras (um
para cada quarenta pacientes agudos ou sessenta pacientes
crônicos), um assistente social, um psicólogo e um terapeuta
ocupacional, cada um dos três últimos responsáveis
individualmente pelo atendimento de cinqüenta pacientes,
em uma jornada de vinte horas semanais. Por este cálculo,
enquanto o número de psiquiatras variava segundo o
número total de pacientes, os demais profissionais
permaneciam fixos, ou seja, para um hospital com 250 leitos,
os profissionais não-médicos poderiam dispor,
separadamente, de cerca de cinco minutos semanais para
cada doente.
Esta previsão é bem restritiva já que o terapeuta, ainda que
atenda aos cinqüenta pacientes planejados, disporá de, no
máximo, 24 minutos semanais para cada paciente, supondo
realizar os atendimentos ininterruptamente. Estes dados
mostram que não é esperada uma intervenção mais espe-
cífica de qualquer prática terapêutica, mas, talvez, uma
terapêutica multidisciplinar para uma parcela dos internados.
Concluindo, o pagamento previsto pela previdência aos
recursos humanos da instituição determinava um modelo de
intervenção farmacológica generalizada, coerente com a
corrente organicista da psiquiatria, e uma possibilidade, a
poucos pacientes, de receberem outras terapêuticas, mas
num lapso curto de tempo. Assim, na doença mental,
democratizou-se o oferecimento de um tratamento mínimo
— o farmacológico e custodial —, resguardando-se a uma
faixa pequena deste contingente um tratamento bem
diferenciado, com outros especialistas de saúde, ao nível
individual e grupai. Por este mecanismo eram previstos e
realizados dois tipos de atenção e tratamento hospitalar, que
costumavam ter correspondência com o nível sociocultural
e de consumo da clientela, ou seja, aos mais conscientes e/ou
de padrão mais elevado, as diversas abordagens e aos mais
regressivos e de padrão menor, o tratamento medicamentoso
e custodiai. Não obstante, a primazia da orientação
tecnológica na área transparece ao se comparar a pontuação
de equipamentos versus recursos humanos, pois, pelo
sistema classificatório, um profissional recebe os mesmos
pontos que um bebedouro elétrico ou uma geladeira (Cf.
Hahn, 1983:5).
Nos hospitais psiquiátricos, públicos ou conveniados,
observa-se então uma tendência de eleição de laborterapia e,
em menor escala, de uma proposta de terapia ocupacional
que valorizasse o indivíduo, denominada geralmente de te-
rapia ocupacional mental ou psiquiátrica.
No primeiro caso, a adoção da laborterapia era associada à
concepção do tratamento moral francês cujos pilares eram
o isolamento, a vigilância, o controle do tempo e da
ocupação dos internos e a contenção. A ocupação
terapêutica encaminhavam-se os pacientes "que perturbam a
enfermaria", os que estavam próximos da alta hospitalar, para
readquirirem os hábitos de trabalho e os que tinham
habilidade para os trabalhos manuais. Para os pacientes em
geral, organizavam-se festas, jogos e outras atividades.
As atividades mais freqüentes na laborterapia eram as
atividades artesanais e produtivas (cuidados com o ambiente,
oficinas), nas quais o produto final ou deveria ser vendido,
revertendo-se em material de consumo para o setor, ou,
ainda, deveria reverter em serviços para a instituição. O
estudo recente de Lancman (1989a e b), realizado no
Hospital do Juqueri, alerta sobre o papel desempenhado pela
ocupação terapêutica no interior do hospital psiquiátrico. Ela
vem corroborar o sistema de privilégios que disciplinariza a
todos e beneficia àqueles "eleitos" que apresentem melhor
capacidade de trabalho, obediência e grau de consciência.
A terapia ocupacional da área mental ou psiquiátrica tem
suporte na corrente organicista e em correntes humanistas,
como a fenomenologia, a psicanálise.
Do ponto de vista da corrente organicista (linha
predominante nos anos 60), a ocupação de doentes
objetivava a redução dos sintomas clínicos; assim, na terapia
ocupacional, os pacientes agressivos deviam trabalhar com
argila para descarregar os impulsos agressivos, os pacientes
desagregados deviam fazer tecelagem para organizar o
pensamento e os pacientes depressivos trabalhar atividades
recreativas para facilitar a sociabilização. Para cada tipo de
sintoma correspondia um determinado tipo de atividade.
Nesta concepção o treinamento de hábitos de trabalho não
era priorizado e as atividades profissionalizantes eram pouco
utilizadas. O terapeuta ocupacional aplicava atividades
prescritas e informava o médico sobre a evolução do caso.
A terapia ocupacional que enfocava valorização do indivíduo
se pautava em outras correntes de pensamento: a
fenomenológica, a sociocultural e a psicanalítica, conforme a
classificação de Hopkins (1983). Por estas correntes, a rela-
ção terapêutica era reconhecida como um outro instrumento
de intervenção a ser aliado à atividade. Nessa medida, a
empatia devia ser considerada na relação terapeuta-paciente,
bem como as relações estabelecidas no grupo de pacientes.
A escolha da atividade pelo terapeuta levava em considera-
ção o interesse, a iniciativa e a afetividade envolvida na
realização da atividade. Este conteúdo era trabalhado com
um número reduzido de pacientes, a partir de avaliação
ocupacional individual, atividades de livre-escolha do pa-
ciente, atividades grupais e avaliação do andamento
indivíduo-grupo ao final do trabalho diário. Tendo em vista
o tempo de internação, de um a três meses, as possibilidades
de trabalho se fixavam no aqui e agora, ainda que as
reinternações hospitalares se mantivessem constantes pela
inexistência da rede ambulatorial de retaguarda. Este trabalho
se efetivava em hospitais que se propunham oferecer um
tratamento mais humanitário aos pacientes, a partir de um
trabalho mais coeso dos vários especialistas, ou, ainda, em
unidades hospitalares que se propunham assumir um pro-
cesso de humanização, como o iniciado no Instituto de Psi-
quiatria do HC-USP .
Voltando agora a nossa análise para outra parcela da
população assistida pela terapia ocupacional, verifica-se que
as entidades que atendem ao menor deficiente mental ou
físico tiveram um crescimento numérico e qualitativo na
década passada, principalmente as destinadas à educação
especial de deficientes mentais, que foram favorecidas pelo
subsídio governamental. A Portaria Interministerial 186, de
1978, do Ministério de Educação e Cultura e Ministério da
Previdência e Assistência Social, regulamentou o atendi-
mento e o ensino especial aos excepcionais.
As verbas estipuladas pelo MEC/MPAS em seus convênios
estabeleceram uma escala de classificação dos recursos
humanos correspondendo ao tipo de patologia e volume da
clientela. Assim, para o atendimento de quarenta clientes
entre deficientes mentais e deficientes físicos leves (trinta
em período parcial e dez, integral) foi previsto um terapeuta
ocupacional para uma jornada de quarenta horas semanais e
vinte horas para os demais técnicos. Para o atendimento de
quarenta clientes (em mesmo esquema, parcial e integral)
deficientes mentais e deficientes físicos moderados e graves,
além do terapeuta ocupacional também foi previsto um
fisioterapeuta por quarenta horas, permanecendo inalterada a
jornada dos outros técnicos. Agora, para atender quarenta
deficientes físicos, em período integral, era suficiente que a
jornada do terapeuta ocupacional fosse de dez horas sema-
nais (cf. Brasil, 1978: 29-34). Aqui é reforçada a distinção
feita no Decreto-Lei 938: o terapeuta ocupacional cuida da
capacidade mental e o fisioterapeuta cuida da capacidade
física.
Esta classificação governamental previa, no máximo, uma
sessão semanal específica de cinqüenta minutos para cada
cliente portador de deficiência física e/ou mental. Todavia,
como esta clientela requer, em média, duas sessões semanais
e a maioria das entidades possui pelo menos uma centena de
pacientes, constatamos a mesma lógica do programa de
saúde mental, que prevê dois tipos de assistência, na maioria
das vezes reproduzindo a mesma lógica de oferta dos
programas multidisciplinares àqueles de maior padrão sócio-
econômico-cultural.
Por força da desatualização de verbas dos convênios com as
entidades beneficentes, ligada à flutuação dos recursos para
as políticas sociais, as entidades assistenciais menores sofrem
no período recessivo uma séria crise de insolvência, cujas
campanhas financeiras de sócios-contribuintes, promoções e
donativos procuram saldar. Neste quadro, os trabalhadores
da saúde têm sido submetidos a irrisórios níveis salariais e
condições de trabalho, verificando-se a rotatividade dos
profissionais, a busca de outros empregos e a expansão do
exército de reserva profissional.
Por sua vez, nos Centros de Reabilitação Profissional do
INPS, que foram sendo instalados em vários estados, desti-
nados aos acidentados do trabalho, doentes ocupacionais e
incapacitados, a rígida estrutura funcional ladeada pela
supremacia do modelo clínico sobre os demais enfoques
limitou as possibilidades de um trabalho multidisciplinar
integrado. A recuperação da disfunção física do acidentado
do trabalho (80% dos casos atendidos no CRP de São Paulo),
o treinamento de habilidades e o encaminhamento à oficina
profissionalizante têm sido o modelo cinesiológico de terapia
ocupacional que será melhor apresentado posteriormente.
Por sua vez, nos anos 70, o Estado autoritário adotou
medidas assistencialistas. Foram criadas instituições de ca-
ráter total, instituições fechadas destinadas ao atendimento
do menor (carente e infrator) e do idoso, acrescidos de servi-
ços abertos, como creches e jardins de infância. Estas entida-
des públicas e beneficentes mantidas pela FEBEM (Fundação
para o Bem-Estar do Menor), Legião Brasileira de Assistência
e Secretarias Estaduais e Municipais agruparam segmentos da
população pauperizada, fornecendo abrigo e alimentação em
troca da disciplina e segregação .
O terapeuta ocupacional foi se inserindo também nas novas
instituições sociais, acima referidas, nas quais os programas
de intervenção apresentavam espaço para o ingresso de
outros profissionais. A partir de então a categoria ampliou
sua ação da reabilitação e tratamento precoce às medidas
preventivas e estimuladoras destinadas a crianças e idosos
institucionalizados. Nos asilos, creches e FEBEM são
concentradas parcelas da população pauperizada, frutos da
monopolização da economia sem adoção maciça de políticas
sociais saneadoras do processo de destruição das forças
produtivas, dissolução do núcleo familiar e marginalidade
econômica e sociocultural. A criação destas instituições so-
ciais demarca a mediação do Estado sobre o conflito, em
irmã perspectiva de redução da violência, tensões sociais
acrescidas do mascaramento ideológico desta realidade.
O processo de institucionalização das populações marginais
(no sentido empregado por Marx, 1982:746-7 e cf. Cap.
1:48-51) abriu uma nova realidade no âmbito da assistência:
como caracterizar essa população? Como lidar com a margi-
nalidade, linguagem e cultura dessas populações?
Várias teorias foram desenvolvidas, adotando-se o refe-
rencial da psicologia e sociologia, como as teorias da perso-
nalidade marginal e da marginalidade como situação social
(privação cultural, problemas na participação e integração
nas instituições sociais, análises da desviança) conforme a
classificação de Pereira (1978). Dentre as abordagens
empregadas, temos as socioterápicas, as técnicas de
modificação de comportamento, de estimulação precoce, de
desenvolvimento perceptual-cognitivo, de dinâmica de
grupo, de recreação.
A clientela veio a ser atendida por vários especialistas,
incluindo-se o terapeuta ocupacional. Este, ao trabalhar com
a clientela infanto-juvenil, objetivou corrigir as defasagens
do desenvolvimento e acelerar o processo integrativo. Ao
trabalhar com a população idosa, por sua vez, o terapeuta
ocupacional enfocou processos orgânicos degenerativos ou o
apoio aos problemas de ordem emocionais como a solidão, a
morte etc. Em ambas as clientelas, se evidencia o caráter
assistencial do programa e da lógica institucional.
A limitada adequação dos modelos profissionais a esta
realidade gera a seguinte polêmica: há que se elaborar um
novo modelo específico — a terapia ocupacional social? E a
abordagem psicossocial, elaborada pelos profissionais norte-
americanos, responde a estas necessidades? Ou, há que se
enveredar na própria concepção de terapia ocupacional e
nela buscar alternativas?
Nos padrões classificatórios do INAMPS, LBA, FEBEM,
CENESP foi previsto a contratação de um terapeuta
ocupacional (ou assistente social, ou psicólogo) basicamente
para ser responsável por um grupo de quarenta a cinqüenta,
em média, sejam deficientes mentais, físicos ou pacientes
psiquiátricos. Por este parâmetro, a política social já previa
uma atuação mais genérica e, às vezes, superficial sobre os
sintomas e a problemática principal da clientela. Acrescente-
se, ainda, o fato de que cada instituição tem, em média, no
mínimo, 150 clientes. Ora, a instituição ao contratar um
profissional de cada tipo, que se responsabilizasse por um
grupo de cinqüenta pacientes, obtinha o maior nível
classificatório; desta maneira, da clientela total, somente uma
parcela (ao redor de trinta clientes por setor profissional)
receberia tratamento diferenciado do padrão geral.
Em sendo assim, como o terapeuta ocupacional
historicamente teria sido o último profissional a ser
contratado nas instituições, a ele foram enviados,
geralmente, os casos mais complexos ou crônicos, que já
receberam, sem resultado, as ações parciais de outros
técnicos. Atualmente não há dúvida que na área de saúde os
casos mais complexos requerem uma ação combinada de
vários técnicos integrando os vários aspectos parciais
trabalhados por este ou aquele profissional. À medida que o
terapeuta ocupacional foi demonstrando sua atuação,
delineou-se melhor sua clientela, vindo a trabalhar com
pacientes que se encontram em estágios iniciais ou menos
complexos de alteração de comportamento, desenvol-
vimento sensório-motor ou capacidade física. Ao nível mais
geral, todos os profissionais têm trabalhado o ajustamento da
criança ou adulto às condições disciplinares da instituição.
Aliados às funções reabilitadoras e disciplinares, outros
critérios foram incorporados ao encaminhamento de
pacientes à terapia ocupacional. No caso das instituições de
caráter total, a concepção de laborterapia ainda está
impregnada ao senso comum de administradores e outros
técnicos. Nelas, o grau de consciência do paciente, sua
condição social diferenciada e sua disponibilidade em
colaborar com a instituição têm sido critérios utilizados no
encaminhamento de pacientes ao tratamento especializado,
no qual a realização do trabalho manual, o trânsito no espaço
institucional, a atenção diferenciada e outras pequenas
regalias e recompensas (cigarros, enfeites, alimentos e
objetos de uso pessoal) se transformaram num sistema de
privilégios e reforço à disciplina e ao trabalho, criando
estratos diferenciados de pacientes, o trabalho passando a ser
relação de uso entre os internos.
Integrada ao espaço institucional, ao processo de
desenvolvimento técnico-científico da área de saúde, de
maturação e organização das categorias profissionais, a
terapia ocupacional foi formulando modelos de intervenção
a partir do modelo hegemônico da medicina, ou seja, o
modelo clínico de saúde.
A CORRENTE REDUCIONISTA E A TERAPIA
OCUPACIONAL
A partir do método científico adotado pelas ciências da vida,
denominado por Kielhofner & Burke (1985) de
reducionismo, a terapia ocupacional veio constituir uma
identidade e corpo de conhecimento técnico-científico
correspondente.
O reducionismo, método científico desenvolvido nas ciên-
cias exatas, se propõe a reduzir o mundo empírico em seus
diferentes fenômenos para que, a partir do estudo particular
de cada um, sua separação, mensuração e observação, sejam
estabelecidas relações e seja atingida a compreensão do todo
o seu funcionamento intrínseco. No método reducionista,
abdica-se da totalidade e versatilidade, em favor do estudo
em profundidade.
O modelo médico decorrente do reducionismo "[...] engloba
os conceitos de biofísica, bioquímica e a perspectiva
psicanalítica da psiquiatria" (Kielhofner & Burke, 1985:18).
O conceito de saúde e doença caracteriza-se por um
equilíbrio de forças físicas e psíquicas no organismo,
passando o homem a ser aquele analisável no microscópio
ou no divã do analista.
Segundo Perkins (apud Leavell & Clark, 977:11)
"Saúde é um estado de relativo equilíbrio de forma e função
do organismo, que resulta de seu ajustamento dinâmico
satisfatório às forças que tendem a perturbá-lo. Não é um
inter-relacionamento passivo entre a matéria orgânica e as
forças que agem sobre ela, mas uma resposta ativa do
organismo no sentido do reajustamento".
Esta corrente reconhece a dinamicidade da saúde/doença,
privilegia o organismo — o ser vivo — como o alvo de ação
da saúde e identifica os vários determinantes sobre o orga-
nismo: agentes nocivos e meio ambiente. Mas quase os neu-
traliza ao não estabelecer a organicidade e interdependência
das forças entre si e destas para com o organismo, de tal
maneira que não se reconhece a determinação de certos
fatores sobre outros, em determinadas condições. Devido ao
desmembramento dos fatores, acaba-se por identificá-los
isoladamente e, contraditoriamente, trabalha-se a
independência de cada um deles.
A concepção de homem inerente a essa corrente científica é
a de indivíduo biopsicossocial, ou seja, um ser que se
constitui de elementos biológicos (orgânicos), psicológicos e
sociais. A doença advém do desequilíbrio de forças entre os
elementos biológicos, sociais e psicológicos do indivíduo em
relação ao meio ambiente e a intervenção terapêutica ocorre
sobre o indivíduo doente, mais propriamente sobre os ele-
mentos alterados deste organismo. O organismo doente re-
cebe a intervenção do(s) respectivo(s) especialista(s) em
busca do reequilíbrio, da saúde.
As especialidades profissionais que surgem do processo de
parcelamento do conhecimento e fracionamento do homem
em partes constitutivas têm por objetivo a saúde do paciente.
A partir da ação de diversas disciplinas, objetiva-se a síntese,
na somatória dos enfoques parciais, dependentes, mas, ao
mesmo tempo, autônomos entre si.
Pelo trabalho multiprofissional, o paciente é atendido
parceladamente, por cada especialista e em uma determinada
seqüência prevista; observam-se, às vezes, áreas de
superposição, trabalhos independentes uns dos outros, ou,
ainda, necessidades não respondidas pelos diferentes
profissionais. Não obstante, algumas equipes de trabalho
conseguem obter um programa integrado interprofissional e
uma participação efetiva do cliente nesta programação.
No entanto, a falta de organicidade entre os diversos
conhecimentos não dá a visão de conjunto necessária ao
trabalho integrado, em equipe; além do mais, a concorrência
profissional das camadas médias pelo "status" e espaço no
mercado de trabalho conturba as possibilidades deste
trabalho.
A concepção de saúde é alienada das condições estruturais
da sociedade e da produção social da doença, ou seja, as
doenças são vistas como resultado de fatores autônomos
entre si, mesmo os de ordem econômica; as classes sociais
deixam de ser vistas como um fator no processo de saúde e
doença, os indivíduos e seus sintomas são agora estudados
pela ótica clínica.
A terapia ocupacional, ao buscar o "status" científico,
reducionista, e continuar obtendo o respaldo médico,
conforme estudos de Mosey (1979:48), abdicou dos
pressupostos da ocupação terapêutica, reproduzindo o
modelo da especialização do conhecimento e dividindo-se
por áreas clínicas chamadas, no meio profissional, de as
diferentes áreas de atuação do terapeuta ocupacional.
As áreas de atuação profissional foram se diversificando a tal
ponto que as funções de terapia ocupacional só poderiam ser
caracterizadas segundo a especialidade médica junto a qual
ela era aplicada.
No artigo "Terapia Ocupacional", escrito pelas profissionais
paulistas, Nakagawa, Benetton e Takaki (1971:85), o alcance
da profissão variava segundo o "campo médico", a saber,
Ortopedia, Neurologia, Geriatria, Deficiência Visual e
Psiquiatria.
Os modelos reducionistas que se constituíram caracteri-
zavam cada prática profissional segundo o objeto de estudo,
o instrumental e os objetivos; para tanto a clientela atendida
era diferenciada pelo modelo médico a partir dos sintomas
biológicos ou mentais. O desmembramento entre objeto de
estudo, objetivo e instrumento era necessário para justificar
"cientificamente" a multiplicidade de papéis profissionais
voltados ao atendimento da mesma clientela.
O modelo reducionista se implanta na terapia ocupacional de
tal maneira que, para cada tipo de problemática da clientela,
era definido um objetivo específico, uma intervenção
técnica peculiar e uma atividade própria, muitas vezes até
alienados de um significado mais geral, todavia coerente com
os objetivos técnicos traçados.
A profissão, sob a vigência do reducionismo, era definida
pela Associação Americana de Terapia Ocupacional em
1968, da seguinte forma:
"A terapia ocupacional é a arte e a ciência de dirigir a
resposta do homem à atividade selecionada para favorecer e
manter a saúde, prevenir a incapacidade, para valorizar a
conduta e para tratar ou adestrar os pacientes com
disfunções físicas ou psicossociais" (Williard & Spackman,
1973:1).
O objeto de estudo era a destreza e a conduta do indivíduo
(paciente) com problemas de ordem física ou psicossocial. A
atividade era escolhida pelo terapeuta, segundo seus
princípios técnicos e intuitivos (ciência e arte), visando o
tratamento e a reabilitação do desempenho e da conduta
humana, ou seja, da ação humana em si e não dos fatores que
a desencadeavam.
Esta definição, ainda vaga, é parcialmente reformulada em
1972.
Os aspectos sobre os quais recaem a intervenção tornam- se
mais funcionais, a terapia ocupacional objetiva:
"[...] restaurar, reforçar e melhorar o desempenho, facilitar o
aprendizado de habilidades e funções essenciais para
adaptação e produtividade" (Reed, 1980:4).
Nesta retificação, feita pelo mesmo órgão de classe, não se
esclarece, precisamente, a clientela atendida, os meios de se
obterem os resultados terapêuticos e os modelos de
intervenção adotados, ao mesmo tempo em que a adaptação
e a produtividade surgem como necessidades naturais e a
históricas. As lacunas em ambas as definições, que se
manifestam na imprecisão dos termos e nos pontos a
descoberto, retratam a reduzida teorização da área sobre sua
base filosófica, já que a área de terapia ocupacional
privilegiou a formulação de modelos de intervenção
compatíveis com a clientela atendida.
Posteriormente, em 1977, a Associação Americana definia a
terapia ocupacional da seguinte forma:
"A terapia ocupacional é a aplicação da ocupação, (de que
modo) de alguma atividade na qual o ser humano se engaja
para avaliação, diagnóstico e tratamento (processo) de
problemas interferindo com o desempenho funcional
(objetivo) em pessoas debilitadas por doenças ou
traumatismos físicos, desordens emocionais, incapacidades
congênitas ou do desenvolvimento ou processo de
envelhecimento (clientela) com o fim de se alcançar o
funcionamento ótimo e a prevenção e manutenção da saúde
(meta)" (Reed, 1980:4).
Nesta perspectiva se diferenciam o instrumento de trabalho
— a ocupação, o processo, o objetivo, a clientela e a meta do
trabalho terapêutico —, só que, ao mesmo tempo, se reduziu
o significado social de seu objeto de estudo — a atividade
humana — ao "funcionamento ótimo" do organismo, à
produtividade, à ação alijada da reflexão.
Ao se identificar a atividade humana como instrumento do
terapeuta ocupacional, ainda que associada às técnicas
comportamentais, sensório-motoras ou psicoterápicas que
agem sobre a ação humana, esta foi sendo abstraída de sua
concreticidade, tornando-se autônoma do indivíduo que a
realiza e estéril às contradições deste homem, que tem sua
ação social alterada.
Nesse processo técnico, obtém-se como resultado uma nova
atividade, agora revestida do teor terapêutico, cujo poder é
capaz de recuperar o ser humano, de reformular os seus
conflitos e desenvolver suas potencialidades. Entretanto,
este homem precisou ser excluído de seu meio social e ser
colocado na assepsia do espaço institucional, no qual, muitas
vezes, não teve o direito elementar de ir e vir ou de escolha
sobre o uso do seu corpo para, então, ser solicitado a
colaborar nos vários setores técnicos. Esta aquiescência é
fruto de valores introjetados em nossa sociedade, que tem
sido disciplinada a encarar o desconhecido submetendo-se
aos ditames da ciência, da ordem médica, do destino social.
Por esta ótica, as características sociais da pessoa (condições
de vida, cultura, trabalho) têm ingressado como pano de
fundo nas terapias, ainda que estejam à mostra em seus
corpos, suas posturas, seus trajes, suas doenças, sua
linguagem. Mas, na maioria das vezes, quando consideradas,
ingressam com forte carga ideológica, de um lado,
valorizando o "status" social da clientela de poder aquisitivo
e, de outro, desprestigiando a condição de outra classe social
e o correspondente programa terapêutico, através de
argumentos como insalubridade, ignorância e pobreza.
A terapia ocupacional, fomentada inicialmente pela lógica da
produtividade e associada ao assistencialismo,
primordialmente atendeu às vítimas do trabalho e a seus
dependentes. Só que, concomitantemente, as classes
hegemônicas também requisitaram este atendimento
especializado, visando não mais a produtividade, mas a
sociabilização, a aquisição de habilidades educativas, a
independência nas atividades de vida diária (higiene,
vestuário, alimentação, comunicação, locomoção). De um
lado, a terapia para o trabalho e do outro a terapia para o não-
trabalho, constituindo-se praticamente como duas
abordagens técnicas correspondentes a distintas classes e
funções sociais.
A terapia ocupacional desfocalizou, então, a recuperação da
capacidade de trabalho e passou a enfocar a independência
nas atividades de vida diária, a sociabilização, as atividades
escolares e até o treinamento profissional.

OS MODELOS DE INTERVENÇÃO EM TERAPIA
OCUPACIONAL
A primeira diferenciação ocorrida na terapia ocupacional
seguiu a divisão mais clássica da medicina (e da sociedade), a
dicotomia corpo e mente. Ela se expressa na terapia
ocupacional física (para as desordens orgânicas, desde os
anos 30, nos Estados Unidos) e terapia ocupacional mental
(para as desordens psíquicas, desde os anos 40, nos Estados
Unidos). No artigo "Terapêutica Ocupacional", Lourdes de
Freitas Carvalho (1953:19-21), médica do Hospital das
Clínicas de São Paulo, apresenta a divisão inicial da terapia
ocupacional em: terapia ocupacional física e terapia
ocupacional psicológica.
A partir desta primeira divisão constituíram-se outros
modelos. Segundo Kielhofner & Burke (1985), no artigo "A
terapia ocupacional após 60 anos; um relatório sobre a mu-
dança de identidade e do corpo de conhecimento", a
profissão constituiu três modelos, a saber: o modelo
cinesiológico, o modelo psicanalítico e o modelo
neurológico .
Da Terapia Ocupacional da área física ao modelo
cinesiológico
A terapia ocupacional era definida por Carvalho (1953:19) da
seguinte maneira:
"A primeira (terapia ocupacional física) abrange a reabilitação
das incapacidades físicas pós-traumatismo ou doença; a
segunda (terapia ocupacional psicológica) é feita no
tratamento das moléstias mentais. [...] A primeira é
subdividida em três grupos:
a) Terapêutica Ocupacional específica;
b) Não-específica ou laborterápica;
c) Colocação de pacientes em empregos (treinamento
vocacional).
A divisão da abordagem técnica segundo a clientela é clara e
a subdivisão da primeira abordagem terapêutica ocupacional
explicita sua particularidade. A terapêutica ocupacional
específica é aquela que prescreve as atividades próprias à
deficiência (vide Moraes, 1959:57), sendo a grande inovação
aplicada ao tratamento de incapacitados, ou seja, a realização
de atividades com finalidades prioritariamente motoras,
musculares, de movimentação. Ela é, portanto, tratamento,
pois desenvolve a função motora nos casos agudos, aliada ao
programa terapêutico global. As outras formas são a
laborterápica, para os casos de treinamento de hábitos de
trabalho, o treinamento vocacional e profissionalizante.
Estas formas eram indicadas para os incapacitados congê-
nitos, sem formação profissional, para os acidentados que
precisavam ser readaptados à função anterior e, ainda, àque-
les que precisavam ser reabilitados para nova função.
Nessa mesma perspectiva, a terapeuta ocupacional do
Instituto de Reabilitação do HC-USP, Neyde Tosetti Hauck,
no artigo "Terapia Ocupacional", publicado em 1959,
apresenta a seguinte divisão em seu programa terapêutico
para incapacitados físicos: terapia ocupacional médica;
unidade pré-profissional e unidade de terapia ocupacional
recreativa.
Nessa forma de organizar o programa terapêutico cujas
atividades podem atender a duas ou mais unidades,
simultaneamente, o programa profissional engloba os
objetivos laborterápicos e reabilitacionais, destacando as
atividades recreativas voltadas à socialização, ao momento do
não-trabalho (o lazer), e à minimização dos efeitos de uma
internação prolongada. Além disso, quanto ao objetivo e
método de indicação de atividades na unidade de terapia
ocupacional médica, esclarece:
"Esta unidade auxilia o médico, através de meios físicos, a
completar o tratamento médico do paciente. A terapia
ocupacional médica procura assegurar uma restauração física
máxima antes da alta para o trabalho ou da exploração de um
novo emprego [...] O tratamento continua até que o médico
conclua que já foi atingido o máximo de restauração física"
(Hauck, 1959:71 — grifos nossos).
Assim, a atividade humana adquiria, no âmbito da terapia
ocupacional física, um enfoque específico — a restauração
física, que se coadunava com o objetivo central do corpo
clínico. Esse enfoque específico, às vezes dissociado dos
demais, do psicológico e do social, também mencionados
pela autora, conduz ao reducionismo na dimensão do ser
humano e de sua atividade. Como a autonomia desta carreira
profissional era débil ao final dos anos 50, a prescrição de
atividades e sua "alta" eram definidas pelo médico
responsável pelo doente. A atividade passa a ser analisada e
prescrita segundo a movimentação que ela realiza, a
respectiva tonicidade muscular, desenvolvimento de
habilidades, coordenação de movimentos, resistência física e
promoção de estabilidade psicológica através do ajustamento
às limitações "físicas".
O princípio da atividade como exercício constitui o modelo
cinesiológico (a partir do estudo do movimento), uma das
correntes científicas da profissão. As atividades construtivas
e as artesanais eram indicadas aos incapacitados visando o
reforço psicológico e o trabalho produtivo. Este modelo é
quase a transposição linear da linha organicista da doença
mental.
No programa da disciplina Terapia Ocupacional, do curso de
graduação de mesmo nome do Instituto de Reabilitação da
USP, objetivava-se o aprendizado das diferentes atividades
"[...] que encerram os exercícios desejados, quer sob o ponto
de vista terapêutico propriamente dito, como recreativo e
vocacional" (Moraes, 1959:57). O conteúdo programático se
volta ao atendimento de patologias motoras, onde o "obje-
tivo terapêutico propriamente dito" é o exercício desejado,
embutido na prescrição da atividade.
Este modelo foi muito bem analisado por Francisco (1988:
36-42), que o caracteriza como a atividade pelo exercício. O
objetivo último neste modelo era tornar o incapacitado tão
independente quanto possível, usando as habilidades
remanescentes para cuidar de si mesmo e exercer uma
ocupação que o torne economicamente autônomo.
O terapeuta ocupacional deste modelo tornou-se especialista
em análise de equipamentos adaptados (nos países centrais)
ou em confeccionar adaptações (nos países terceiro-
mundistas, como o Brasil), em exercícios progressivos de
resistência, em atividades de vida diária, em treinamento de
hábitos de trabalho, resistência à fadiga, e programa pré-
vocacional.
O modelo cinesiológico em terapia ocupacional encontra
boa assimilação, primeiro, em hospitais gerais e entidades
beneficentes e, segundo, em clínicas e consultórios
particulares. As distinções no trabalho realizado entre os
primeiros e os últimos se encontram mais na variedade de
recursos de suporte — jogos psicopedagógicos, espaço físico
e condições de execução — do que na orientação técnica
propriamente dita. Além destes locais, este modelo se
conforma também ao trabalho nos Centros de Reabilitação
Profissional — CRP do INAMPS e aos asilos de idosos,
enfocando os processos degenerativos e funcionais da
terceira idade.

Da Terapia Ocupacional da área mental ao modelo
psicanalítico
Da concepção laborterápica à terapia ocupacional da área
mental o avanço teórico se deu no que tange ao trabalho
ocupacional na fase aguda da doença mental, às relações
afetivas e sociais, além do uso de atividades plásticas e
expressivas.
Segundo a classificação de Kielhofner & Burke (1985),
terapeutas ocupacionais norte-americanos, o modelo que se
constituiu nesta área profissional foi o modelo psicanalítico.
Esse movimento de terapia ocupacional mental foi
preconizado pelos Fidler e pelos Ázima nos anos 50,
utilizando conceitos psicodinâmicos para a análise e
aplicação terapêutica da atividade. Nesse modelo, as relações
interpessoais em geral e a relação terapeuta-paciente, em
particular, são vistas como o cerne do tratamento. A
atividade como expressão é bem caracterizado por Francisco
(1988:46-50).
O modelo psicanalítico adota as atividades artesanais,
expressivas e outras para a conscientização e compreensão
dos conflitos intrapsíquicos, para darem vazão, sublimação e
catarse a estes sentimentos e pensamentos conflituosos. Ao
terapeuta caberia provocar o comportamento saudável do
paciente.
"Os objetivos do tratamento se tornaram a comunicação
efetiva e a expressão e redução de sintomas" (Kielhofner &
Burke, 1985:23).
Algumas correntes de base analítica vêm adotar o uso de
atividades plásticas ou dramáticas como fonte de expressão
dos conflitos intrapsíquicos, como o trabalho de Nise da
Silveira, nos anos 40. Entretanto, o modelo psicanalítico só
começa a ser difundido entre os graduados em terapia
ocupacional nos anos 70, sendo o pilar de alguns serviços de
saúde mental nos anos 80.
A introdução do modelo psicanalítico em terapia
ocupacional objetiva a promoção de atitudes saudáveis nos
pacientes com quadros de depressão, ansiedade,
negatividade, alucinação etc., ativando os núcleos sadios do
ego, facilitando a expressão de idéias e sentimentos obscuros
e o estabelecimento de relações sociais significativas. As
atividades plásticas — pintura, modelagem (cf. Benetton,
1984), as atividades culturais — festas, jornal, assim como as
artesanais — tecelagem, costura, são bem empregadas
visando à afetividade, socialização e organização do
pensamento.
Esta abordagem tem se implantado em alguns serviços
particulares, obtendo-se bons resultados terapêuticos (a Casa,
1982; Jorge, 1980), ou, ainda, em condições adversas,
"nadando contra a maré", pela tenacidade de sua condução,
como é o caso da terapêutica ocupacional realizada no
Museu de Imagens do Inconsciente, em Engenho de Dentro
- RJ, de orientação psicanalítica, dirigida por Nise da Silveira
e sua equipe.
Assim, o modelo psicanalítico não foi incorporado à maioria
dos hospitais psiquiátricos por sua incompatibilidade com o
curto período de internação e a dosagem maciça de
medicamentos.
Portanto, se a terapia ocupacional psicanalítica não foi o
modelo hegemônico na realidade psiquiátrica nacional, em
dissonância com a realidade norte-americana, outros mode-
los de intervenção, além do laborterápico, tiveram influên-
cias no trabalho brasileiro. Em escala ainda menor, são
encontrados outros modelos de atuação em saúde mental sob
forte influência da corrente fenomenológica, da corrente
sociocultural e da corrente comportamental. Estes modelos
orientaram a terapia ocupacional contemporânea de alguns
setores do atendimento apesar de o modelo organicista de
tratamento ser o prevalente nas políticas de saúde mental.
Os modelos de terapia ocupacional na área mental se
implementaram também com crianças e idosos
institucionalizados visando acelerar o processo integrativo e
dar suporte a problemas emocionais.
Da Terapia Ocupacional da área física ao modelo neurológico
A partir do atendimento de problemas físicos outro modelo
conceitual foi elaborado, o modelo neurológico, baseado no
vínculo entre percepção e motricidade, Esta vinculação se
concretizou ao final dos anos 50 em algumas técnicas de
tratamento: a abordagem sensorial-integradora, elaborada
pela terapeuta ocupacional norte-americana Jean Ayres; a
terapianeuroevolutivados Bobath, originariamente destinada
aos portadores de paralisia cerebral; a técnica de estimulação
sensorial de Rood; e as técnicas de desenvolvimento
perceptivo da Frostig, Costallat ou Ramain.
Os objetivos da terapia ocupacional no modelo neurológico
são estimular o desenvolvimento sensório-perceptivo-motor
seja ao nível preventivo ou no tratamento de desordens do
desenvolvimento, habilitando o indivíduo ao desempenho
de atividades de autocuidados, educacionais e de vida prática.
Hoje, nas entidades beneficentes como as APAEs,
Pestalozzi, Centro de Reabilitação Infantil e, em menor
escala, nos CRP do INPS, nas creches e FEBEMs, o modelo
neurológico em terapia ocupacional é o mais freqüente e
adequado. Ele objetiva, principalmente, a orientação de
professores das classes especiais quanto à programação de
atividades perceptivas, de autocuidados e das atividades de
vida diária — AVD (higiene, vestuário, alimentação,
locomoção e linguagem) e, para uma pequena parcela, realiza
o treino de habilidades motoras, das AVDs e treinamento
perceptivo através de jogos psicopedagógicos visando
corrigir defasagens do desenvolvimento. As oficinas
pedagógicas, nos locais onde elas foram implementadas,
geralmente ficam sob o encargo de pedagogos, e o trabalho
profissionalizante, quando efetivado, fica sob a
responsabilidade do terapeuta ocupacional, que realiza a
seleção de clientes, atividades, treinamento e
acompanhamento na oficina de trabalho abrigada. A
colocação profissional raramente é efetivada pelas condições
do mercado de trabalho e o preconceito social com o
deficiente mental.
A dimensão técnica adquirida pela terapia ocupacional por
meio destes modelos de intervenção promoveu o respeito
das áreas clínicas afins com a profissão e sua prescrição para
novas disfunções, mas, em contrapartida, restringiu a sua
base conceitual, esfacelando o homem para fins de tratamen-
to e delimitando-o em determinados aspectos. Corroborando
esta concepção, Berenice Rosa Francisco é clara:
"Entretanto, como resultado indireto, a terapia ocupacional
sofreu a perda de uma base filosófica, o homem perdeu o seu
valor como 'organismo total' para resumir-se a um membro a
ser recuperado" (Francisco, 1985:11).
O enfoque dos vários modelos recai sobre os aspectos
particulares do indivíduo, criando novos impasses ao
conhecimento e às condições de saúde. Por exemplo, o
terapeuta ocupacional das disfunções físicas (de base
cinesiológica) não trabalha especificamente as alterações de
ordem psicológica ou os hábitos sociais que se imbricam
com a patologia. Mas se os incapacitados sofrem de
problemas emocionais e muitas vezes são estigmatizados pela
sociedade, o enfoque sobre a atividade destes indivíduos não
deveria considerar estes fatores? Na concepção clássica deste
modelo estas questões seriam trabalhadas pelo psicólogo,
ainda que a ansiedade, depressão e angústia adentrem no
atendimento da terapia ocupacional. Por sua vez, o terapeuta
ocupacional de base neurológica não aborda especificamente
as relações afetivas que perpassam o quadro nosológico,
como a relação mãe/filho que interfere no desenvolvimento
psicomotor e emocional da criança. Ou, ainda, o terapeuta
ocupacional da área mental não intervém diretamente sobre
as tensões musculares ou outras alterações orgânicas de seus
pacientes catatônicos ou de pacientes portadores de outras
psicopatologias. E, sob outro ângulo, a relação terapêutica é
um instrumento exclusivo de trabalho do profissional de
saúde mental ou pode e deve ser um recurso para qualquer
terapia, transcendendo os atuais modelos?
Além destas questões, a partir do treinamento
profissionalizante da clientela outra polêmica emerge no
meio terapêutico e social: a utilização da capacidade
laborativa do reabilitado via ingresso no mercado de trabalho
ou na oficina protegida é um indicador suficiente e eficaz da
integração do indivíduo à sociedade? E as outras expressões
socioculturais, de relacionamento social, de lazer, também
não são indicadores da integração do cliente?
As expressões socioculturais têm sido pouco exploradas no
programa terapêutico ocupacional, de modo que ao se eleger
os aspectos físicos ou psicológicos da problemática do
cliente, estes são priorizados minimizando os demais. Afinal,
seria preciso priorizar alguns dos aspectos da problemática
do indivíduo no tratamento, de forma atemporal e a-
histórica, se o indivíduo é um todo indivisível ou ele é um
aglomerado compacto biopsicossocial?
Concluindo, neste período de crise profissional no qual os
modelos profissionais não têm respondido à complexidade
de demandas da clientela, portanto, uma crise resultante do
modelo reducionista de ciência, observou-se a busca de
respostas em outras áreas de conhecimento (educação,
psicologia, saúde pública), ora visando ampliar a concepção
de homem e saúde e, ora visando a absorção de outros
modelos técnicos (também fruto do reducionismo
científico). Desta maneira, a intervenção em cada área foi se
distinguindo ainda mais em relação às outras e, em
decorrência, a atividade humana, o ponto de intersecção, foi
sendo diluído. Assim, se a atividade humana, em seu aspecto
físico, psíquico e social, deixasse de ser a essência da terapia
ocupacional, o que viria a sê-lo?

DA CRISE ATUAL PARA UMA PRÁXIS UNITÁRIA
Para se superar as contradições da atual crise torna-se
necessário perscrutar as várias vinculações que tornaram
possível a consolidação da revolução técnico-científica na
área de saúde. Uma delas foi o processo de formação de
novas carreiras em saúde que, além de absorver parcela da
classe média não inserida na força de trabalho ativa,
favoreceu a constituição do exército de reserva de nível
universitário, tão necessário à redução salarial do conjunto
dos assalariados, bem como a sujeição às condições adversas
de efetivação do trabalho: reduzida Autonomia, recursos
materiais limitados e importação das técnicas e produtos dos
países centrais (cf. Cap. 1:51-2).
Se, de um lado, existiram as determinações das políticas de
saúde sobre o trabalho profissional, conforme análise no
Cap. I (p. 54-6), de outro, existiu também a absorção incon-
dicional das técnicas terapêuticas formuladas nos países
centrais, que demonstravam sua eficiência sobre problemas
específicos da clientela, sem refletir sobre o espaço institu-
cional ou as relações de interdependência entre programas
dos vários setores terapêuticos, já que o seu fundamento era
o domínio técnico específico, parcelar.
O modelo reducionista, que deu origem aos três modelos em
terapia ocupacional, entra em crise a partir dos anos 70, em
decorrência de a opção de aprofundamento em um aspecto
específico do ser humano ter sido realizada autonomamente
à abrangência, à totalidade.
O resultado mais direto do método reducionista nos países
centrais foi o desenvolvimento tecnológico do setor da
saúde (cf. Cap. 11:87-8) seja nos equipamentos, materiais
hospitalares, seja nos jogos psicopedagógicos que são
absorvidos na rede hospitalar, nas entidades assistenciais e na
rede ambulatorial. No Brasil, estes modelos de intervenção,
além da absorção de técnicas e produtos industrializados,
deram a "feição científica" ao reordenamento dos espaços
institucionais. O resultado indireto foi a crise gerada pela
falta de uma base filosófica que respondesse à complexidade
da natureza humana reconhecendo os vínculos que os
aspectos psicológicos, orgânicos e sociais do indivíduo têm
entre si.
Na adequação dos modelos de terapia ocupacional aos vários
serviços de saúde, a visão reducionista não conseguiu
responder ao problema dos incapacitados crônicos e das
populações marginais institucionalizadas. Os problemas
destes grupos transcendem às deficiências particulares e
avançam sobre a concepção de adaptação, produtividade e
segregação social.
A especialização segundo a clientela e respectivas técnicas
também produziu, em contrapartida, a perda da unidade, de
um corpo conceitual comum, de modo a tornar a terapia
ocupacional um arrazoado de técnicas específicas e de práti-
cas diferenciadas.
A variação no papel profissional segundo a população
atendida sem a devida reflexão sobre o objeto de estudo da
categoria "hipertrofiou os membros enquanto imobilizava a
cabeça e o tronco". Como resultado obteve-se um organismo
disforme, que percebe a fragilidade de seus pontos de
ligação, mas intervém de forma segmentar e sem projeto
interativo global. Se, didaticamente, a fragmentação do
homem em partes constitutivas favoreceu o aprendizado
linear do homem, na realidade concreta tornou-se uma
abstração que produziu uma intervenção técnica parcial e
desagregada do conjunto orgânico. O indivíduo e o
profissional de saúde se alienaram da visão global da
problemática da população, que não é estritamente física,
mental ou social e, tampouco, é a simples somatória dos
enfoques parciais (cf. Soares, 1986d).
Novas concepções de ocupação são elaboradas nos Estados
Unidos, visando o alargamento da concepção vigente, dentre
elas o modelo ontogenético de desenvolvimento humano,
proposto por Mosey em 1986, ou a teoria do comporta-
mento ocupacional, por Reilly em 1971, ou a teoria da
ocupação humana, por Kielhofner em 1983.
Essa crise de identidade profissional é marcada por conflitos
e debates a partir dos quais se reconhece a necessidade de
ampliação do modelo teórico para a prática profissional
incluindo a sociologia, a saúde pública, o confronto dos
diversos modelos terapêuticos, além das matérias biológicas e
psicológicas.
Os autores Gary Kielhofner e Janice Burke (1985), ao final
de sua análise sobre a crise atual da categoria, apontam a
necessidade de se assumir uma visão abrangente,
globalizante.
"O novo conhecimento deve evoluir a fim de dar apoio a
uma compreensão dos sistemas de vida e do homem, Além
disso, esses sistemas de vida devem ser entendidos em
termos de sua totalidade, ordem hierárquica, crescimento e
mudança em complexidade, e em termos das leis gerais que
governam sua organização" (1985:29).
Os autores apontam a Teoria Geral dos Sistemas cuja visão de
homem é mais abrangente — um homem que se mantém e
se equilibra no mundo, que ocupa ativamente o mundo
físico, temporal e simbólico e desempenha papéis sociais
produtivos.
Os princípios globalizantes são incorporados à concepção de
homem e ocupação, ainda que a organização entre os
homens e seus respectivos papéis sociais não estejam expli-
citados nem, tampouco, seu movimento intrínseco com seus
conflitos. Então, este ser humano abrangente vai se inserir
num todo social harmônico evolutivo? O reducionismo, gér-
men dos modelos profissionais e facilitador do desenvolvi-
mento tecnológico, não estava vinculado a determinados
interesses estruturais — econômicos, políticos e ideológicos
— da sociedade monopolista? E a Teoria Geral dos Sistemas
também não estará vinculada a estes mesmos interesses?
A análise sobre o modelo da ocupação humana feita em
profundidade por Maria Heloísa R. Medeiros (1989:96-102)
revela o caráter liberai e ideológico desta abordagem.
"Ao valorizar o homem produtivo e adaptado à sociedade,
homogeniza-se o sentido de produção,ignorando-se [...] um
tipo específico de produção: a que provê lucros, mantém a
alienação dos homens e realimenta o sistema e este estado de
vida. A sociedade, considerada como um meio ambiente em
equilíbrio, parece intransformável" (1989:101).
A superação real da visão reducionista na ciência, em nosso
ponto de vista, só ocorrerá à medida que se reconhece a luta
de classes como motor da sociedade e da história dos
homens. A partir daí, a neutralidade quanto à produção dos
homens, sua organização política, sua elaboração teórica e
produção material será gradativamente repensada à luz desta
visão totalizante, de modo que as diferenças regionais,
individuais e da experiência coletiva sejam abarcadas numa
visão unitária de homem e sociedade.
Assim, a realidade social e os homens das sociedades
contemporâneas foram homogeneizados pelo processo de
internacionalização do capital, ao mesmo tempo que as
condições específicas de existência das classes continuam
sendo particularizadas segundo seu vínculo com o todo.
A sociedade brasileira, por exemplo, terceiro-mundista, que
vive a relação de dependência econômica aos países centrais
e a agudização dos conflitos sociais decorrentes do
pauperismo acelerado, cujo governo tem sido alternado
entre o autoritarismo e o populismo, cuja absorção
tecnológica muitas vezes antecede à necessidade interna e
resulta ineficiente, realiza com maior crueza as contradições
de classe geradas pelo capitalismo monopolista (vide
Braverman, 1981).
Exemplo vivo, o Instituto de Reabilitação do HC-USP,
montado com a ajuda internacional da ONU, que priorizava
a reabilitação de incapacitados e acidentados do trabalho,
passados vários anos de sua criação não possuía nenhum
levantamento sobre os casos de acidentados de trabalho
reabilitados e respectiva taxa de absorção no mercado de
trabalho. A existência do IR durou pouco, sendo extinto
abruptamente.
De outro lado, os Centros de Reabilitação Profissional do
INPS (conforme dados apresentados no capítulo anterior)
conseguiam recolocar no mercado, após concluírem o
programa profissionalizante, somente metade de sua cliente-
la; a outra metade iria flutuar entre o subemprego e o
desemprego.
A falta de pesquisas sobre colocação profissional dos
reabilitados pode ser interpretada por dois ângulos de análise.
Numa visão superestrutural, corporativa, este campo de
investigação estava sendo construído por um novo técnico,
o orientador profissional — misto de assistente social,
sociólogo e terapeuta ocupacional (vide Humphreys; Mayer
& Silva, 1959:63-9), que acabou se extinguindo no mercado
de trabalho, não chegando a se caracterizar como categoria
profissional nem tendo curso de formação. A pesquisa sobre
a colocação profissional, quando não realizada pelo
orientador profissional, tampouco o foi pela prática
hegemônica, a medicina; quanto às funções de análise do
mercado de trabalho, treinamento e colocação profissional,
estas foram sendo absorvidas pelos técnicos afins, como
assistente social, terapeuta ocupacional, sociólogo e
psicólogo.
Outro ângulo da análise é de natureza estrutural, ligado ao
modelo e conjuntura político-econômica de nossa socieda-
de. Os serviços de reabilitação no país podem ter sido
introduzidos visando suprir uma demanda ampliada da força
de trabalho, durante a Segunda Guerra, pela crise de
importação (cf. Diesat, 1984:9). No entanto, como faltam
pesquisas comprobatórias desta tese pode-se depreender que,
pelo momento em que a reabilitação foi introduzida, ao final
do Estado Novo, tenha sido uma medida populista adotada
pelo governo visando recuperar o apoio das massas
assalariadas ao regime (cf. Cap. 11:68-73). Partindo do
pressuposto de que houve demanda da força de trabalho, as
lideranças previdenciárias e Vargas adotaram esta medida
com o mesmo objetivo dos países centrais. Agora, após a
regularização de mão-de-obra, a validade de reabilitação
profissional, enquanto recolocação no mercado de trabalho,
se transformou em melhoria da condição de inserção do
incapacitado à produção. Ora, se o reabilitado foi ou não
recolocado, se ele se estabilizou ou não no emprego, estas
questões tornaram-se problemas de ordem individual e não
mais problema do Estado. Como as condições de acesso aos
serviços foram limitadas ao previdenciário acidentado ou
aposentado por invalidez, a lógica economicista — de
redução de despesas com pensões e aposentadorias (cf.
Oliveira & Teixeira, 1985:17) — é a que, de fato, norteou o
oferecimento de vagas nos serviços de reabilitação federais
(vide Cap. 11:80-1). Portanto, sob este prisma, não era
necessário pesquisar a taxa de absorção dos reabilitados no
mercado, dado que esta meta não era a que se pretendia
prioriatariamente alcançar.
A reabilitação e a independência econômica do incapacitado
foram transformadas de modo a cumprir papéis político-
ideológicos, e os serviços de reabilitação, por sua vez, vieram
servir, indiretamente, ao processo de extração de mais-valia
dos assalariados e de sustentação do status quo.
A inserção da categoria no mercado de trabalho — via
hospital psiquiátrico, reabilitação profissional, tratamento de
deficientes e atendimento às populações marginais — veio
formar a consciência do profissional. Afinal, que necessida-
des sociais foram sendo, de fato, atendidas pela terapia
ocupacional e por que, ao cumprir as funções reabilitação e
tratamento, a terapia ocupacional não foi valorizada no
mercado de trabalho?
No conflito entre o proclamado tecnicamente pela profissão
e não realizável no espaço institucional ou não aplicável às
camadas populares, e entre a luta dos profissionais oriundos
das camadas médias, por sua incorporação à força de trabalho
ativa, as funções econômicas e político-ideológicas foram se
delineando.
Ao adotar o mesmo referencial de análise já realizado em
relação à medicina feito por Arouca (1978), Souza & Veras
(1983), e outros já apresentados no Cap. I (54-6),
verificamos que a terapia ocupacional cumpre, então,
funções no plano econômico, ao recuperar os incapacitados
da porção estagnada do exército de reserva , ampliando a
sua porção flutuante que, por seu turno, garante a redução de
massa salarial do exército industrial ativo, seja por sua
assimilação nos períodos de pico da produção, seja pela
rotatividade de mão-de-obra. Ao mesmo tempo a terapia
ocupacional, ao se diferenciar de outras práticas profissionais
oferecidas ao "consumidor" de saúde, participando da divisão
técnico-científica, vem corroborar o consumo e
capitalização do setor de saúde, pela incorporação de
equipamentos e materiais industrializados e do próprio
cuidado de saúde como valor de uso para a força de trabalho
e para as classes hegemônicas (cf. Arouca, 1978:143).
Em outra instância, a terapia ocupacional historicamente
desempenhou funções político-econômicas na área de saúde
quando, em conjunto com as demais categorias ocupacio-
nais, favoreceu o assalariamento da categoria médica à in-
dústria e empresas de medicina de grupo, através da concor-
rência inter e intracategorias, reduzindo a massa salarial do
setor como um todo e se incorporando ao exército de
reserva das camadas médias (cf. Spink, 1985:25).
Além disso, uma outra função de natureza econômica, que
decorre de sua assimilação às instituições de ensino superior,
aliada a outros cursos novos, implementou a política de
privatização do ensino e de transformação dos institutos em
universidades (cf. Cap. 11:94-7). Este mesmo fato também
cumpre uma função ao nível político, já que a expansão de
vagas na universidade veio diminuir o conflito social dos
estudantes "excedentes", basicamente oriundos das camadas
médias, que se constituíram um dos pilares do regime militar
(cf. Quadros & Amâncio in Guimarães, 1978:245).
A formação universitária, na divisão técnica da produção, foi
esvaziada em sua função de capacitação técnica para o
trabalho, já que a importação de tecnologia passou a
prescindir de mão-de-obra altamente qualificada, e, em
contrapartida, foi investida do papel regulador de custo e
qualidade do exército industrial na ativa, ao absorver parte
deste exército de reserva, "de sorte que pensar hoje a
universidade fora da produção capitalista é o mesmo que
pensar a ilha fora da água" (Prandi apud Spink, 1985:25).
A terapia ocupacional, ao trabalhar com aspectos parciais do
indivíduo — o sensório-motor, o comportamento ou a
capacidade física—, tornou-se coadjuvante da medicalização
destas populações, que se submeteram ao critério "científico"
da saúde, responsável pela caracterização da problemática
social e o encaminhamento à instituição respectiva. Ao se
adotar o "Verniz científico" estabeleceu-se mais um grau de
controle e a disciplina sobre a população que ora é
enquadrada e separada pelos sintomas clínicos (nos hospitais
e ambulatórios), ora pelo tipo de deficiência (nas entidades
beneficentes), e ora pela transgressão social cometida (na
FEBEM ou presídio).
Ao nível mais geral, a terapia ocupacional juntamente com
as demais práticas de saúde veio reforçar o caráter
assistencialista do Estado, em sua face democrática e
humanitária em relação às populações marginais (cf. Quijano
in Pereira, 1978:184). Ao mesmo tempo as demandas
sociais, ao se tornarem objeto de intervenção
multiprofissional, têm suas determinações sociais sobre
saúde/doença obscurecidas no interior deste processo de
atendimento. Desta maneira é que as práticas de saúde
assumem seu caráter ideológico, cimentando a hegemonia
burguesa sobre as camadas sociais.
Cada vez mais, a complexidade e unicidade dos problemas da
população vêm desmascarar a visão reducionista e sua feição
burguesa. A dimensão social da saúde e doença tem se
colocado com maior evidência, e o domínio técnico e sua
concepção teórica têm assumido seu caráter político.
A visão assistencialista predomina nas entidades filan-
trópicas, onde a ideologia de beneficência com as classes
subalternas e o voluntarismo das senhoras da sociedade e
seus dirigentes tentam ser repassados aos trabalhadores do
setor e têm sido absorvido por muitos. Todavia, o
achatamento salarial, a rotatividade da mão-de-obra do setor
e a repressão usada, secundariamente, com profissionais,
funcionários e internos (como sanções, exclusões e calúnias,
conforme análise de Andrade, 1982:36-9), vêm caracterizar
a condição de assalariamento de seus profissionais,
desmascarando as políticas sociais incipientes na área de
reabilitação, que estabelecem um orçamento reduzido para a
assistência social.
Se a necessidade de criação da terapia ocupacional partiu do
impulso das forças produtivas, de ampliação do exército
industrial ativo, através do binômio trabalho-recreação, no
correr das últimas décadas ela foi se alterando, vindo cum-
prir funções de natureza político-ideológica em lugar daque-
las estritamente de natureza econômica.
A transformação da práxis social do terapeuta ocupacional a
partir do seu atreiamento a funções ideológicas burguesas,
efetivadas no tecnicismo da prática profissional, sem um
modelo teórico abrangente, tem gerado a crise da ineficácia
e alienação da atualidade.
A visão unitária, globalizante do homem e estrutura social de
produção, da dimensão criativa e alienante do trabalho
humano e da historicidade das necessidades sociais são
referenciais teóricos fundamentais para a ultrapassagem desta
prática alienante e alienada, transformando-a em direção às
necessidades de libertação do homem, visando os interesses
emergentes de uma nova classe social.
A visão unitária de homem e sociedade é condição essencial
para a desalienação do trabalho em geral, e da atividade
terapêutica, em particular, com a desmistificação da
tecnologia e a recomposição da dimensão criadora da
atividade humana, na qual o homem será liberado do
trabalho parcelar, fragmentado, para consagrar "[...] as
vantagens da amplitude, da síntese" (Weiss, 1976:15 — grifo
do autor).
A análise até aqui realizada pretendeu acrescentar novos
ângulos de visão sobre as funções sociais que a terapia
ocupacional tem cumprido nas instituições de saúde e nas
políticas sociais da sociedade capitalista. A consciência críti-
ca desta realidade tem como perspectiva de transformação
desta e de outras práticas profissionais no que tange à
melhoria do atendimento, a intervenção institucional e a
conquista do direito social à saúde e ao trabalho para todos os
cidadãos.
Em relação ao atendimento específico, a terapia ocupacional
deve se instrumentalizar para que a relação terapêutica, de
ajuda, possa ser utilizada como um de seus recursos,
associado à atividade em busca de uma ação profissional para
e com a clientela.
A relação terapêutica deverá se estabelecer, então, sob uma
nova estrutura de poder entre o terapeuta e o cliente, onde a
democratização atinja níveis de decisão e acesso ao
conhecimento técnico terapêutico, reconhecendo-se o grau
de dependência existente em seus respectivos papéis
institucionais. Estas iniciativas podem se concretizar através
do esclarecimento prestado ao cliente sobre a avaliação de
seu desempenho e os critérios de prescrição de atividades.
Pela apropriação deste domínio técnico o paciente pode se
transformar, de mero receptor de uma ação abstraída de seu
contexto e saber, em agente de seu plano terapêutico, autor
de sua prática. Um ser humano íntegro, consciente de sua
práxis, que identifica suas necessidades e busca respostas às
suas demandas, sendo atuante em seu meio social.
Quanto ao trabalho terapêutico, os modelos reducionistas de
análise e prescrição da atividade humana (segundo os
aspectos psicológicos, sociais ou físicos), devem ser revistos
de tal forma que a integração e organicidade destes aspectos
estejam presentes numa nova forma de análise e intervenção
profissional. O enfoque integrado da capacidade física,
sensório-motora, psicológica e social deve ser implantado no
programa terapêutico. Este deverá incluir, além das ativida-
des artesanais, recreativas, da vida diária e plásticas, usual-
mente empregadas, as atividades culturais e expressivas.
Além disso, o planejamento, a execução e o produto final,
devem contar com a participação real do cliente, de modo
que a avaliação de todo o processo constitutivo da práxis (do
planejamento ao produto final e suas repercussões sobre o
autor e outros indivíduos) seja refletido e incorporado ao
conjunto orgânico constituído por clientes, terapeuta ocupa-
cional e demais trabalhadores da saúde.
O conjunto orgânico constituído por clientes e agentes de
saúde pode e deve ser constituído numa perspectiva de
resgate e recriação dos papéis institucionais, visando também
a transformação e desmantelamento da antiga estrutura
institucional sedimentada na disciplina e exclusão.
A terapia ocupacional deve buscar a vinculação entre o
caráter subjetivo da atividade — de expressão de impulsos e
de habilidades humanas ao caráter subjetivo — de inserção
do indivíduo em sua realidade sociocultural, permeado pelas
várias concepções de mundo.
O caráter transformador, criativo da práxis, resgatado pelo
movimento conjunto de terapeutas e clientes, virá superar o
caráter abstrato e alienante da atividade terapêutica
tradicional, propugnada pelos modelos reducionistas.
Quanto ao treinamento profissional do incapacitado, há que
se desmistificar a integração do reabilitado ao mercado de
trabalho, símbolo do seu ajustamento à sociedade. Esta meta
preconizada pela reabilitação tem sua veracidade histórica
em determinadas conjunturas econômicas, sendo alteradas
no processo de capitalização das sociedades modernas.
A partir do reconhecimento do percurso da mão-de-obra
incapacitada no mercado de trabalho, faz-se necessário
superar as concepções acercado trabalho que permeiam o
meio social e sustentam as relações de subserviência, o
isolamento e a marginalidade destes segmentos da força de
trabalho. O treinamento da mão-de-obra para o mercado de
trabalho, ideologia amplamente difundida pelos profissionais;
o trabalho como forma de expiação de falhas morais, de
orientação religiosa; o trabalho como meio de ascensão
social, de sobrevivência, de integração social e outras
concepções, estão subjacentes à consciência da clientela e da
sociedade.
O trabalho profissionalizante a ser realizado deve evitar a
dicotomia planejamento/ação, trabalho intelectual/trabalho
manual, buscando formas de execução nas quais, ainda que o
trabalho seja parcelar, seu executor terá conhecimento da
totalidade e dimensão de sua inserção no projeto global,
evitando-se o isolamento e as relações autoritárias presentes
no trabalho, que comumente são reproduzidas na oficina.
O terapeuta ocupacional, ao reconhecer as dificuldades de
absorção e estabilidade dos incapacitados na força de
trabalho ativa, problema absolutamente resolvível por uma
política de pleno emprego, que, por sua vez, é frontalmente
contrária aos interesses capitalistas, pode trabalhar com
maior atenção as condições subjetivas do cliente, que lhe
permitam enfrentar esta situação, ao mesmo tempo em que,
juntamente com a clientela, vier analisar as condições reais
do mercado de trabalho em busca de alternativas na estru-
tura ocupacional e de serviços.
Num outro nível de intervenção, o profissional deve se aliar
aos demais trabalhadores da instituição num processo, às
vezes lento, mas determinante, de reflexão sobre as formas
institucionais e os níveis de participação da clientela e
familiares em sua estrutura. A aproximação do técnico aos
demais auxiliares, que esbarra nas relações de autoridade, ou,
inversamente, do técnico com a administração deve ser
procurada no sentido de verificar as possibilidades de as
pessoas que ali vivem e trabalham repensarem e
remodelarem a sua práxis quanto à orientação técnica,
disciplina, rotina etc. Esse processo delicado e bastante
controlado, de democratização interna das instituições
sociais, avança à medida que o movimento dos trabalhadores
de saúde, articulados em várias entidades, lança denúncias
sobre a medicalização dos problemas sociais e apresenta
propostas alternativas de transformação das instituições e sua
democratização (vide Nicácio, 1985).
A reformulação do sistema de saúde brasileiro a partir de sua
crise e estagnação visando a integração dos vários níveis de
atenção à saúde, foram resoluções aprovadas na VIII
Conferência Nacional de Saúde, em 1986. A estatização dos
serviços de saúde com disponibilidade orçamentária e
planejamento integrado para as várias demandas da
população tende a contribuir para a elevação das condições
de vida da população, incluindo-se aí os incapacitados,
doentes, idosos e deficientes. A superação global se efetivará,
no entanto, não somente com o direito dos cidadãos à saúde,
mas principalmente pelo direito ao trabalho e à participação
política.
Nesta mesma direção a Nova Constituição Brasileira,
aprovada em 1988, conseguiu incorporar uma série de direi-
tos sociais, dentre eles o direito à saúde, apesar do forte
enfrentamento do empresariado do setor. A mobilização so-
bre o tema nas entidades civis, organizações trabalhistas,
partidárias e seu reconhecimento entre as camadas sociais
garantiram essa conquista constitucional. Fruto desse pro-
cesso, está em curso a implementação do Sistema Único de
Saúde; todavia, a sua efetiva implantação dependerá do
esforço e mobilização permanente dos setores organizados
da sociedade civil.
A perspectiva deste trabalho foi instigar o debate sobre as
necessidades que a terapia ocupacional tem cumprido em
nossa sociedade, a partir do enfoque materialista dialético,
desvendando as razões do seu surgimento. Então, refletindo
sobre a questão colocada no título deste livro, pergunta-se —
a terapia ocupacional surgiu pela lógica do capital ou pela
lógica do trabalho. Contra-argumentando — será possível
que nas sociedades modernas exista uma prática social que
responda às necessidades de uma classe sem haver
repercussões na classe diametralmente oposta? Ou, mais
simplesmente, existe trabalho na sociedade capitalista se não
existir o capital?
Esta prática de saúde, ao modificar a condição de trabalhar,
de conviver, de desfrutar a vida, permitiu que a capacidade
laborativa fosse empregada como valor de uso tanto para a
força de trabalho quanto para a classe dirigente, ainda que a
forma e o significado do trabalho do primeiro sejam
antagônicos, mas complementares aos do segundo.
Concluindo, a terapia ocupacional se constituiu para atender
às necessidades de recuperação da força de trabalho que, por
sua vez, foi requisitada para atender à demanda ampliada de
produção das classes hegemônicas, tendo servido também a
estas. Desta forma, não foi possível atender às necessidades
das classes populares sem provocar alterações conjunturais
que promoveram a absorção desta oferta para necessidades
similares das classes dominantes.
O direcionamento dos profissionais de saúde, em geral, e da
terapia ocupacional, em particular, aos interesses da classe
trabalhadora não se definirá abstratamente no planejamento
de saúde, mas se construirá no processo de inserção de
trabalhadores e terapeutas sobre a dimensão práxica do
homem, do lazer ao trabalho. Se a terapia ocupacional
destinada às camadas populares tem sido a terapia do
trabalho, deve-se ampliá-la agora para a terapia do não-
trabalho, buscando a emancipação dos assalariados e a
constituição de novos homens, seres criativos, reflexivos e
agentes de uma. nova história social. Se esta nova práxis
ainda permanecerá sendo reconhecida ou identificada como
terapia ocupacional, isto só o tempo dirá. Vislumbramos que
a superação da atual divisão de trabalho em saúde, ao buscar
a integração recriando não só o objeto de intervenção, mas
também o objeto de estudo, constituirá novos saberes e,
portanto, profissionais de novo tipo. Quando este patamar
conceitual e práxico for atingido, novas questões estarão
colocadas mas temos certeza de que as atuais crises de
identidade quanto ao papel profissional já terão sido
derrotadas pelo dinamismo do processo histórico.
O presente trabalho não pretendeu superar a atual crise
profissional da terapia ocupacional, mas sim problematizá-la,
fomentando o debate através da síntese de vários aspectos
desta realidade. Sem dúvida alguma, as questões aqui
formuladas têm seu limite histórico correspondente ao nível
de reflexão desta área profissional, e como tal, requisita,
portanto, leitura crítica e continuidade do debate.

Este trabalho focaliza o período de 1950 a 1980; não inclui, portanto, as modificações
advindas como Sistema Único de Saúde.
Sobre o processo de desenvolvimento da espécie humana leia-se Aléxis Leontiev,
1978:259-84.
A representação é constituída a partir do movimento real que ocorre entre os
indivíduos e a sociedade, na produção de sua vida material e social. Karel Kosik, no
livro Dialética do Concreto (1976:15), afirma que "a representação da coisa não
constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do
sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas". (Grifo do autor.)
A ideologia é a concepção de mundo que liga o corpo social (cf. Gramsci) ou, ainda,
segundo Saviani (1980:28), é a estrutura organizada de princípios, objetivos e ações
orientados ao final de um processo reflexivo.
Sobre a alienação no trabalho e no lazer ler Georges Friedman. O trabalho em
migalhas. São Paulo, 1972:155-229; István Mészáros, Marx: a teoria da alienação. Rio
de Janeiro, Zahar, 1981:87-133 e Harry Braverman. Trabalho e capital monopolista.
1981:15-69.
6 O sistema de produção contemporâneo, da divisão do trabalho no monopólio, pode ser
aprofundado em Braverman (op. cit.:359-379).
Sobre o tema ler Dominique Pignon e Jean Querzola, "Democracia e autoritarismo na
produção", in: Stephen Marglin et alii. Divisão social do trabalho, ciência, técnica e modo
de produção capitalista, 1974. E sobre a crítica à visão romântica dos "grupos semi-
autônomos" ler Benedito R. •de Moraes Neto e Felipe L. G. da Silva. "A linha de
montagem no final do século". Revista de Administração de Empresas, 26(4): 45-6,
out./dez., 1986.
Ao definir a função do Partido e o seu processo de transformação Gramsci declara: "O
Partido representa não só as massas mas também urna doutrina, a doutrina do
socialismo, e por isso luta para unificar a vontade das massas no sentido do
socialismo, embora actuando no terreno real do que existe, mas que existe movendo-se e
desenvolvendo-se" (1978:50 — grifo do autor).
Nessa perspectiva, Gruppi argumenta: "Nunca Gramsci pensou que a classe operária
pudesse conquistar o poder só com o partido; ela deve ter outras ligações, outras
organizações, deve estar presente nas instituições estatais além de nas de massas"
(1980:86.)
O termo contradição é aqui empregado no sentido dialético de elementos internos,
inerentes aos fenômenos e que apesar da polaridade são complementares, não podendo
ser negados na análise dos fenômenos.
Marx (1982, Livro I, V. 11:743-52) distinguiu três formas do exército de reserva,
incluindo, além das duas supramencionadas, a forma latente, que está fora do
movimento de trabalho, e é aquela que se encontra nas zonas agrícolas, resultado da
falta de movimentos de atração compensatórios à repulsão dos "liberados" pela
revolução tecnológica agrícola. Ela não contém os contingentes liberados das cidades e
zonas metropolitanas.
Sobre a expansão de catorze profissões da área de saúde, a legislação específica e as
áreas de conflito, ver Mary Jane Paris Spink. Regulamentação das profissões de saúde:
o espaço de cada um. Fundação de Desenvolvimento Administrativo. Cadernos
FUNDAP. São Paulo: 5:( 10), julho/1985,24-43.
Cabe acrescentar, a nível econômico, o objetivo da reprodução da força de trabalho
que inclui as medidas preventivas gerais de combate às doenças bem como os
programas de controle de natalidade e materno-infantil.
A VIII Conferência Nacional de Saúde, que, fato inédito, contou com quatro mil
pessoas incluindo representantes de entidades populares e partidos políticos, aprovou
proposta de criação de um Sistema Único de Saúde, que integre todos os serviços, de
caráter universal, a serem progressivamente estatizados. Ler Relatório Final da VIII
Conferência Nacional de Saúde, Brasília, 1986.
Cristina Possas, em seu livro Saúde e Trabalho (1984), ao apresentar as condições de
existência das camadas populares no início do século, relata que: "[...] nas duas
primeiras décadas do século, trabalhava-se ainda em média, em São Paulo, cerca de
sessenta horas por semana. [...] Não havia contrato de trabalho. Os operários eram
admitidos e despedidos verbalmente, sem aviso prévio e sem nenhum tipo de
indenização. [...] Não havia férias ou descanso semanal remunerado, nem direito a
licença remunerada para tratamento de saúde" (p. 193-4).
l6 Este foi o período de corte radical da forma de relação entre o primeiro governo
Vargas e as classes trabalhadoras. "[...] Entre 1936 e 1937 não se registra nenhuma
greve, pois a Lei de Segurança Nacional, Estado de Sítio e Estado de Guerra são
'argumentos' de força contra qualquer pretensão. As prisões e intimidações levam ao
recuo operário, o que, por sua vez, permite ao Ministério do Trabalho começar a
substituir gradativamente a verdadeira liderança sindical operária [...]. Desta
maneira, para o operariado, o Estado Novo começa em novembro de 1935" (Carone
apud Oliveira & Teixeira, 1985:110).
Esta entidade não governamental, na década de 50, veio a se chamar Sociedade
Internacional para a Reabilitação do Incapacitado e atualmente é conhecida por
Reabilitação Internacional.
De 1950 a 1955, num período de desvalorização da moeda (cf. Vieira, 1985:49-50), o
orçamento do Ministério da Saúde passou de 1,32% do orçamento federal a 5,45% e
manteve-se inalterado ao nível estadual e municipal.
O projeto original da LOPS era datado de 1947; os treze anos de tramitação do
processo ocorreram pelas funções político-ideológicas que os IAPs cumpriam, tanto
pela aplicação dos recursos em projetos governamentais e econômicos quanto pelo
clientelismo localizado nos LAPs, conforme já relatado no governo Dutra. Sobre o
processo de promulgação da LOPS ver Cohn (1980 - Cap. II).
Os governadores de todos os estados e uma série de prefeitos de cidades consideradas
"área de segurança nacional" passam também a ser indicados pelo regime militar. Em
1978, também um terço dos senadores deixam de ser elegíveis, pois com o avanço da
organização e insatisfação popular o regime temia perder a maioria do Congresso.
"No período entre 1964 e 1970 foram feitas 483 intervenções no Ministério do
Trabalho em Sindicatos, 49 intervenções em Federações e 4 em Confederações" (cf.
Camargo e outros, 1975:131).
Conclusões similares foram aprovadas na VIII Conferência Nacional de Saúde,
Brasília, julho/86. Vide nota de rodapé ns 13, Cap. I, p. 55.
Esta forma de tratamento teve sua ascensão com a Revolução Francesa e, no
entanto, seu declínio ocorreu já no século XIX (sobre o tema ler Medeiros, 1989:34-58).
Ainda assim, influenciou a emergente psiquiatria brasileira. O tratamento moral
propunha a suspensão das punições corporais, do uso de grilhões, e a retirada dos
alienados das prisões construindo-se um Asilo no qual a vigilância, a estrutura da
rotina institucional, as ocupações realizadas em oficinas e formas sutis de punição
constituíam os alicerces do tratamento.
A tendência à superlotação continuou tanto que em 1953, conforme denunciou
Gonçalves (1964:88-9), adepto da comunidade terapêutica, o volume de internações no
Estado de São Paulo era de 14.348, passando em dois anos a 17.250. Deste total 90%
estavam superlotados no Juqueri cuja capacidade era inferior à metade.
O serviço de terapêutica ocupacional em Engenho de Dentro funciona até hoje,
embora em meados dos anos 80 tenha sido introduzida outra abordagem de
tratamento ocupacional concorrente a este, disputando o espaço institucional.
Sobre o tema a Dra. Nise da Silveira, aposentada desde 1975, mas ainda ativa nos
estudos e pesquisas declara em entrevista realizada em 21/5/86: "As multinacionais
da indústria farmacêutica controlam a psiquiatria. Vivemos a pior fase do
obscurantismo na psiquiatria".
A redescoberta deste trabalho se associa à emergência de um novo modelo de
formação de terapeutas ocupacionais, que analisa várias concepções teóricas em busca
da superação da crise do modelo médico e da política de saúde vigente.
O Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional — 3S Região (São Paulo e
Paraná) por força de lei, possui cadastro das entidades que mantêm estes serviços em
funcionamento. Estes dados foram coletados no Arquivo de Empresas desta autarquia
federal.
A relação de entidades cujos setores foram montados por terapeutas ocupacionais
formados em São Paulo consta da entrevista de Neyde Tosetti Hauck (1986:7-8) e
Soares (1986b).
Este conceito já foi explicitado anteriormente (Cap. 1:27) a partir de Kosik (1976:15)
e diz respeito à cristalização de significados que tem correspondência histórica com a
realidade e determinadas coisas.
Sobre os CRPs e expondo o ponto de vista da instituição existe o trabalho do
Coordenador de Reabilitação Profissional do INPS (Pereira, 1978:1-7).
O autor acima, orientador profissional do extinto Instituto de Reabilitação da USP,
trabalhou, no período de 1963 a 1968, na Unidade de Reabilitação de Pessoas
Deficientes, ligado ao Departamento de Assuntos Sociais da ONU, organismo
especificamente criado para esta finalidade.
Esta profissional, além de montar e dirigir três setores: do Instituto de Reabilitação,
da Clínica Ortopédica e Traumatológica e da Divisão de Reabilitação Profissional da
Vergueiro (DRPV), todos ligados ao Hospital das Clínicas da USP, também formou as
primeiras turmas de profissionais do Estado de São Paulo. Ver Hauck (1986) ou
Soares (1986b).
A assistência técnica internacional ocorreu nesta data para assumir o setor de
Terapia Ocupacional do I. R., que foi desmembrado do setor da Clínica Ortopédica,
chefiada por Neyde T. Hauck.
O fraco reconhecimento oficial da reabilitação é apontado por alguns, como
decorrência da fragilidade na conquista da regulamentação das categorias. Neste teor
Cerqueira (1984:123) reitera: "E foi necessário que adoecesse outro presidente em
1968, para que a carreira de TO fosse reconhecida, oficializada". Circunstancial ou não,
populista ou não, foram estas as condições de regulamentação desta carreira no
período do Estado autoritário.
O tratamento moral foi a fonte inspiradora da psiquiatria brasileira, responsável
pela construção dos grandes hospitais-fazenda e hospitais-oficina, mas, segundo
alguns autores (Machado e outros, 1978), o tratamento moral não chegou a ser
verdadeiramente implantado no Brasil e, não tendo sido completamente esgotado,
ainda perdura na concepção, psiquiátrica contemporânea.
Sobre o tema, 1er o trabalho de Fernanda Nicácio, "Contribuição para discussão e
reflexão do papel do terapeuta ocupacional na instituição psiquiátrica" (1985), que
relata a recriação teórico-prática desta abordagem terapêutica no bojo da experiência
multidisciplinar de resgate da cidadania do doente mental e de sua participação nas
assembléias, instrumento central do redirecionamento da instituição.
Muitos estudos têm sido realizados sobre a função das instituições da sociedade
moderna. Particularmente, sobre a instituição psiquiátrica tem se verificado que ela
exerce prioritariamente um papel de controle social sobre os grupos marginais e/ou
desviantes. Esta função fica encoberta pela função terapêutica da instituição de saúde
e assistência. Sobre o tema ler Basaglia (1985) e Machado (1978).
A formação em massa de profissionais universitários, nem sempre justificada pelas
necessidades de produção, tem promovido os fenômenos da concorrência, do
desemprego, da superprodução escolar etc. (cf. Andrade, 1982:29). A luta entre as
camadas médias da área de saúde é analisada por Durand e Spink (1985:4-23; 24-43).
A classificação de modelos em terapia ocupacional é bastante diversificada, posto
que esta temática é contemporânea. Elegemos esta classificação por ser mais
globalizante atendendo às finalidades deste trabalho.
A classificação do exército de reserva já foi apresentada na nota de rodapé n° 10,
Capítulo 1, tendo sido formulada por Marx (1982, Livro I, Vol. 11:743-52).
Este tema foi abordado no Capítulo I deste trabalho, p. 33-9. Leia Braverman
(1981:15-69), Ferreira (1983:23), Leontiev (1978:275), Nosela (1986:6). Várias
experiências realizadas no Brasil têm como perspectiva a experiência da psiquiatria
italiana no campo da saúde mental, cujos expoentes foram Basaglia (1985) e Rotelli.






 
 
 
Lançamento Arcanjo Micael
Terapia Ocupacional - Léa Beatriz Teixeira Soares
 
 
 
 
digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia
agradecimentos pela doação do ebook para o Memorial do Conhecimento
 
 
Sinopse:
 
Este estudo pioneiro trata de determinada prática social - a Terapia Ocupacional - no interior da divisão do trabalho em saúde na sociedade brasileira, e busca as razões que sustentam a terapêutica laborativa, para o capital.
 
 
 
 
Links:
 
 
 
PASTAS LANÇAMENTOS Arcanjo Micael:
 
http://rapidshare.com/users/KPGYUD
http://www.mediafire.com/?q6ebsi7j6b5cv
 
 
 
 
Este e-book representa uma contribuição do grupo Arcanjo Micael para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras

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