segunda-feira, 3 de outubro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> Reenviando: Lançamento Arcanjo Micael - O Verão Antes da Queda - Doris Lessing


Doris Lessing

O Verão Antes
da Queda

Círculo do Livro

Em casa

Uma mulher estava parada na escada dos fundos, os braços
cruzados, esperando.
Pensando? Ela teria dito que não. Estava tentando apoderar-
se de alguma coisa, ou desnudá-la, de forma que pudesse
olhá-la e defini-la; agora, já fazia algum tempo que vinha
experimentando idéias, como se fossem diversos vestidos
tirados de cabides. Deixava palavras e frases, batidas como
cantigas de ninar, deslizarem suavemente pela língua: pois,
com relação às experiências cruciais, a tradição atribui
determinadas atitudes, e elas são bastante estereotipadas. Ah,
sim, primeiro amor!... O crescimento é um processo quase
sempre doloroso!... Meu primeiro filho, sabe... Mas eu estava
apaixonada!... O casamento é um compromisso... Não sou
mais tão jovem quanto eu era antes. É claro que a escolha de
uma dessas frases, respeitadas através dos tempos, em lugar
de outra raramente tem relação com um sentimento pessoal,
é mais provável que se ligue ao ambiente social de origem,
ou às pessoas com quem se está numa determinada ocasião.
Você terá de deduzir os sentimentos reais de uma pessoa
com relação a uma coisa a partir de um sorriso, que ela não
sabe que está em seu rosto, a partir da maneira como a
amargura contrai os músculos no canto de uma boca, ou pela
maneira como se permite que o ar deixe os pulmões depois
de: Eu não gostaria de ser criança de novo! Essas frases têm
tamanho poder, todas postas em circulação para serem
usadas como se tivessem sido empregadas por uma
campanha de publicidade especialmente eficiente, que é
provável que muitos continuem repetindo A juventude é a
melhor época de nossas vidas ou O amor é toda a existência
de uma mulher, até que eles sé apanhem, casualmente, na
frente de um espelho, enquanto estão dizendo alguma coisa
desse gênero, ou sejam suficientemente rápidos para
perceber a reação no rosto de um amigo.
A mulher estava parada no degrau da porta dos fundos de
sua casa, os braços cruzados esperando que a água na
chaleira fervesse.
Faltara luz durante a maior parte do dia, por causa da greve.
Tim, o seu caçula, e Eileen, a filha, tinham ido cedo, de
carro, até o campo, juntado lenha espalhada na floresta de
Epping e — adorando cada minuto daquilo — tinham feito
uma fogueira no cascalho da passagem e armado sobre a fo-
gueira um tripé feito de pedaços de ferro, encontrados nos
fundos dá garagem. Aquela fogueira, o cozinhar no seu fogo,
o olhar para ela e as brincadeiras a respeito daquilo foram o
foco de diversão da família durante o dia inteiro. Entretanto,
a mulher tinha achado aquilo tudo bastante irritante. A
chaleira levara vinte minutos apenas para atingir o ponto de
assobiar; ela não conseguia lembrar-se de ter ouvido uma
chaleira assobiando há anos. A eletricidade fazia com que a
água passasse direto da imobilidade para o turbilhão e o
assobio estava completamente ultrapassado...
Será que ela havia sido insensível? Talvez tanto Tim como
Eileen — que afinal já estavam crescidos, com dezenove e
vinte e dois anos — não se tivessem divertido tanto com as
pequenas realizações do dia quanto parecera; será que
estiveram fingindo por uma questão de aparência? O
comportamento deles será que havia sido de fato o
equivalente a uma daquelas velhas frases, uma convenção
que as pessoas não sabiam como abandonar em favor da
verdade — o que quer que aquilo fosse?
Exatamente como ela mesma.
A verdade era que ela estava ficando cada vez mais
desagradavelmente consciente de que não apenas as coisas
que ela dizia, mas também a grande maioria das coisas que
pensava, eram tiradas de um cabide e experimentadas, mas
que o que ela, de fato, sentia era uma outra coisa
completamente diferente.
A mulher descruzou os braços, deu dois passos em direção
ao engenho absurdo no meio de seu caminho de cascalho,
empurrou mais alguns gravetos para baixo da chaleira que
estava pendurada num pedaço de arame vergado, preso no
tripé, e escutou: será que o tom do assobio da chaleira
mudara alguma coisa? Achou que sim. Se fosse haver um
corte de eletricidade no dia seguinte, conforme ameaçavam,
então seria sensato arranjar um fogareiro, ou alguma coisa
parecida: aquela engenhoca de escoteiros estava indo muito
bem, mas se chovesse... a greve provavelmente continuaria
por algum tempo, diziam. Aquela série de cortes de
eletricidade viera mesmo muito depressa, depois do último.
Parecia realmente que as crises energéticas — aquecimento,
eletricidade, combustível — estavam destinadas a se tornar
mais freqüentes; será que seria prudente fazer um estoque?
Talvez Tim e Eileen tivessem razão, um estoque de lenha
poderia ser uma boa idéia.
A mulher voltou para a escada dos fundos, encostou-se
contra a parede e, novamente, cruzou os braços.
Havia os acontecimentos públicos, ou da comunidade —
guerras, greves, enchentes, terremotos; os que são
considerados como "atos de Deus". Havia a impressão que se
difundia, irracional ou não, de que aqueles acontecimentos,
outrora violentos e excepcionais (ou será que alguma vez
realmente haviam ocorrido, será que aquilo era apenas falsa
memória?), se estavam colocando em primeiro lugar na
experiência de todo mundo, como se um ar que outrora
tivesse sido a atmosfera de uma estrela distante e
cataclísmica tivesse decidido envolver o nosso pobre
planeta. As experiências cruciais, quando se parava para
pensar nelas, eram cada vez mais numerosas, envolvendo
uma quantidade maior de gente; invasão, guerra, guerra
civil, epidemia, fome, enchente, tremor, envenenamento do
solo, da comida e do ar. Para essas pessoas as atitudes
determinadas ainda eram mais estereotipadas. Nenhuma ia
muito além de: Nós devíamos fazer alguma coisa a respeito
disso. Ou: Oh, ai de mim! Não há muitas nuanças possíveis
para: Toda a minha família morreu no campo de
concentração, ou Quatro dos meus filhos morreram de
fome, ou Minha irmã e seu filho foram mortos pelos
soldados. Mas realmente parecia que os estereótipos para os
acontecimentos públicos eram mais honestos do que os
pessoais. Oh, ai de mim! será que era isso?
Notou que a chaleira já não fazia tanto barulho, e estendeu o
braço para o cômodo atrás dela, a cozinha, para apanhar um
bule de café bem grande, de porcelana, já com o pó de café
dentro. Ficou com aquilo na mão, perto da fogueira,
esperando que o vapor começasse a chocalhar a tampa da
chaleira.
Era um total absurdo ver as coisas em termos de auges e de
crises: os acontecimentos pessoais, da mesma forma que os
públicos, eram casos de longo prazo, afinal. Eles se vão
desenvolvendo... É depois de pelo menos meses, mas
geralmente anos, que uma pessoa dirá: Meu Deus, toda a
minha vida se modificou, falando a respeito de lima paixão
de amor ou de ódio, de um casamento, de uma experiência
de trabalho extenuante. Minha vida se modificou porque eu
me modifiquei.
Agora o vapor agia energicamente na tampa da chaleira e
jorrava do bico.
Ela segurou a alça da chaleira com o pegador de panela e
despejou a água sibilante e perigosa em cima do café.
Colocou a chaleira no chão de um dos lados da fogueira, mas
não sobre a grama, pois ela ficaria com uma mancha redonda
amarelada, e afastou alguns gravetos parcialmente queimados
do meio da fogueira; se chovesse, tinha de se lembrar de
colocá-los, bem como a madeira que não fora usada, num
lugar coberto. Ela não era nenhuma escoteira para saber
acender uma fogueira com madeira molhada.
Apanhando a chaleira com uma das mãos e o bule de café
com a outra, ela saiu do quintal em direção à cozinha.
Passei por uma provação terrível, fui triturado como um
grão numa moenda... Estas coisas não eram ditas ou sentidas
sem uma certa satisfação. Por acaso aquilo era um fato
extraordinário? O sentimento de realização era uma coisa
extraordinária? Pois, afinal, era sentido tanto pelas pessoas
que faziam parte do grupo (relativamente pequeno) de
habitantes do mundo que eram seguidores da máxima
segundo a qual uma vida humana não é nem um pouco mais
importante do que a de um inseto como por aquelas que
seguiam as velhas crenças, segundo as quais é importante o
que fazemos porque somos importantes aos olhos de um
deus. Ou deuses. Mas por que alguém se importaria com o
fato de que ele, ela, tenha mudado, tenha aprendido,
amadurecido, crescido, se ele, ou ela, é um inseto, ainda que
uma borboleta? Pois não há dúvida alguma mesmo de que,
de fato, persiste o sentimento, e é provavelmente o mais
profundo que temos, de que o mais importante é que
aprendemos à medida que vivemos. Será que este
sentimento deveria ser atribuído ao hábito, algo que restou
do passado, de tempos mais primitivos? Ao amor-próprio do
inseto? Mas estava ali, quanto a isso não havia a menor
dúvida. "Deus" tendo sido banido, declarado morto, ou não.
A quem se espera que um inseto preste contas?
Nós somos o que aprendemos.
Freqüentemente, leva muito tempo e é muito doloroso.
Infelizmente, também não havia dúvida de que uma porção
de tempo, uma porção de sofrimento se passavam para que
se aprendesse muito pouco...
Ela estava realmente sentindo aquilo? Sim, estava.
Era porque ela estava deprimida? Estava deprimida?
Provavelmente. Estava com alguma coisa, estava sentindo
alguma coisa, bastante intensamente, que não conseguia
definir...
A mulher pôs o bule numa bandeja, já preparada, com
xícaras, pires, colheres, coador, e apanhou a bandeja; antes
de levá-la para fora do cômodo, tornou a olhar para uma
mesa onde os pratos sujos da refeição do meio-dia
continuavam empilhados. Ali também havia louça do café
da manhã. Será que ela devia pedir a Tim para tornar a
acender a fogueira, pôr a chaleira para ferver de novo, e
chamá-la quando houvesse água suficiente para lavar tudo?
Não, era melhor não o fazer, não no estado de espírito em
que ele se encontrava; seria melhor que ela fizesse tudo, ela
mesma sozinha, mais tarde.
Uma mulher saiu por uma porta lateral dando para um
gramado que precisava ser aparado, atraentemente salpicado
de margaridas, e dirigiu-se a uma árvore de seu jardim. Esta
mulher era Kate Brown; para ser exata, Catherine Brown ou
a Sra. Michael Brown. Ela levava a bandeja com cuidado, e
estava pensando na lavagem da louça enquanto continuava
com o seu inventário pessoal, a sua contabilidade... ela
desejava que, qualquer que fosse o estágio da vida em que
estivesse naquele momento, pudesse ser ultrapassado
depressa, pois lhe estava parecendo interminável. Se a vida
tinha de ser encarada em termos de grandes momentos, ou
de êxtase, então nada lhe havia acontecido há muito tempo;
e ela não podia esperar por nada além de um afastamento
gradual da totalidade das atividades domésticas, enquanto
envelhecia.
Às vezes, quando se tem sorte, um processo, ou um estágio,
de fato se acelera. E, para Kate, aquele verão iria fazer
retornar uma dessas fases reduzidas, intensificadas e
aceleradas.
Que experiência iria ela viver? Nada de muito mais do que,
simplesmente, o seu envelhecimento: aquela herança e
repetição da ação do crescimento. Acontece com todo
mundo, é claro... Ah, puxa, o tempo voa!... Antes que a
gente perceba, a vida já passou... A maturidade é tudo. E
assim por diante. Mas no caso de Kate não seria de maneira
alguma um processo que duraria uma década ou duas, quase
despercebido enquanto se desenvolvia, exceto nas tentativas
desesperadas para conter o turbilhão — pintar o cabelo,
manter o peso baixo, seguir a moda com cuidado de forma a
ser elegante, mas não um gato passando por lebre. O
envelhecimento, para quase todo mundo — a menos que
provocado por uma desgraça, a terra desaparecendo sob os
pés da gente, a água inundando uma cidade, bombas
destruindo nossos filhos e fulminando o coração da gente a
ponto de torná-lo indiferente à vida —, o envelhecimento é
uma questão de anos. Você é jovem, e depois você é de
meia-idade, mas é difícil determinar o momento da passa-
gem de um estágio para o seguinte. Então você está velha,
mas dificilmente sabe quando foi que isto aconteceu.
Deram-se mudanças — ah, sim, mudanças vitais — nas suas
atitudes para com as pessoas à sua volta, mas você mal se
apercebe delas, porque o gelo avançou tão lentamente até lá
embaixo no vale. É alguma coisa assim para a maioria das
pessoas: Creio que já não sou mais tão jovem quanto antes.
Mas Kate Brown ia acabar com a coisa toda em poucos
meses. Porque, embora tudo parecesse tão pessoal, e dirigido
para ela — a sua paciência, o seu bom humor, o seu tempo
—, na realidade, não seriam as pressões da outra esfera, da
esfera pública, avançando sobre a sua vida simples que
davam à experiência que ela viveu a sua premência? Por
mais provável que pudesse ser, os acontecimentos do verão
não seriam moldados por quaisquer virtudes ou qualidades
que ela pudesse ter.
Quando tudo estivesse acabado, certamente ela não pre-
feriria que tivesse sido de outra forma: entretanto, ela não
poderia tê-lo escolhido por si mesma, por antecedência, pois
não tinha a experiência necessária para escolher, nem a
imaginação. Não, ela não podia querer o que lhe ia
acontecer, embora de fato tivesse ficado de pé sob a sua
árvore, a bandeja nas mãos, pensando: "Continua sempre a
mesma coisa! É isto o que está errado: deve haver alguma
coisa que eu poderia estar vendo agora, alguma coisa que eu
poderia estar compreendendo agora, alguma linha de ação
que eu pudesse escolher... Escolher? Quando por acaso eu
escolho? Alguma vez na minha vida eu escolhi?"
Uma mulher estava de pé debaixo de uma árvore — como
ela poderia ter feito em qualquer época durante todas as últi-
mas centenas de anos — segurando uma bandeja cheia.
Colocou a bandeja numa mesa de jardim, feita de algum
material inventado na última década. A mesa parecia ser de
ferro, mas era tão leve que poderia ser erguida com dois
dedos, e balanceada de forma a não se virar, se um peso
fosse posto só de um lado.
Ela não considerava a mesa uma escolha; tinha sido
escolhida para ela, como as xícaras de plástico, tão parecidas
com porcelana.
Caminhou de volta para o meio do gramado e, inspirando
antes para gritar para as janelas superiores da casa, teve
consciência do que seria visto quando o seu marido pusesse
a cabeça para fora dizendo: "Já vou indo!"
Uma mulher de vestido branco, sapatos brancos, uma
echarpe cor-de-rosa no pescoço, de pé na grama.
Agora ali havia uma margem de escolha, consciente,
deliberada: a aparência dela era escolhida, um discernimento
requintado, pois era apropriada para aquele bairro de classe
média e para sua posição nele, como esposa do seu marido.
E, é claro, como a mãe de seus filhos.
O vestido era de uma confecção chamada Jolie Madame,
ficava-lhe bem e era discreto. Ela estava usando sapatos e
meias. O cabelo — e agora chegamos ao ponto onde havia
sido usada mais energia na escolha — estava penteado em
ondas grandes e suaves em volta de um rosto onde havia
permitido que ficassem à mostra umas poucas sardas no
nariz e no alto das maçãs. Seu marido sempre dizia que
gostava delas ali. O cabelo puxava para o ruivo — não um
ruivo muito berrante. Ela era uma mulher bonita, sadia e
útil.
Estava de pé no gramado, protegeu os olhos do sol, e gritou
para o alto:
— Michael! Michael! Café!
Um rosto indistinto, de trás das vidraças que ofuscavam,
refletindo o sol, respondeu:
— Já vou indo!
Uma mulher, vestida de maneira apropriada para uma tarde
com a família, tornou a atravessar o gramado, mas com
cuidado, de forma a impedir que a grama sujasse seus
sapatos. Sua própria escolha teria sido ficar descalça, tirar as
meias, e vestir alguma coisa como um mu-mu, ou um sari,
ou um sarongue — alguma coisa nesse gênero —, com o
cabelo liso até os ombros.
Ela não permitia que sua aparência florescesse, porque
observara logo no início da adolescência dos filhos o quanto
detestavam que ela desse rédeas a sua própria natureza. Mary
Finchley, do outro lado, vestia-se como se não tivesse filhos
e não fosse casada: seus filhos odiavam isso e o
demonstravam de mil maneiras.
Embora Kate sempre concordasse com Mary quando ela
dizia "Por que é que haveríamos de nos colocar numa
posição de inferioridade? Não se deve permitir que as
crianças sejam tiranas", na realidade ela sempre o fizera,
sempre se colocara numa posição de inferioridade. Mas, pelo
menos aparentemente, nem por isso seus filhos eram
melhores do que os de Mary Finchley.
Kate sentou-se debaixo da árvore de forma que seu corpo
ficou na sombra, e suas pernas estendidas sob o sol, como se
estivesse sem meias. Ficou examinando sua grande casa
quadrada no imenso jardim. Fazia aquilo como alguém que
se estivesse despedindo, mas seria apenas porque ela e o
marido ultimamente vinham dizendo que, agora que as
crianças logo estariam adultas, não teria chegado a hora de
começarem a pensar em comprar uma casa menor para eles?
Um apartamento? Podiam comprar uma casa no campo e
dividi-la com amigos — talvez os Finchley.
Kate pensava nisso com freqüência, mas como se fosse uma
coisa ainda muito remota.
No entanto já se estava no mês de maio, o verão inglês
pálido e vacilante, e, já antecipando o outono, havia um
hiato na vida da família, aquele organismo que pulsava
tranqüilamente na parte sul de Londres, Blackheath, para ser
mais exata. Daquele subúrbio, todos os anos, cada vez mais,
à medida que as crianças se iam tornando adultas era como
se aquela unidade, ou criatura ou organismo, explodisse
expandindo-se e espalhando-se cada vez para mais longe
pelo globo. Era como uma exalação anual, que começava no
fim da primavera com uma inspiração em setembro.
No ano passado, Michael, que era um neurologista bastante
conceituado, tinha ido para os Estados Unidos em julho,
para uma conferência, e aproveitara a oportunidade para tra-
balhar, durante três meses, num hospital em Boston, só
tendo voltado em outubro. Kate, que tinha ido com o
marido para a conferência, voltara por motivos de família,
indo visitá-lo, de novo, em setembro — seus movimentos
sempre de acordo com os das crianças, como, é claro, eles
tinham de estar. Elas estavam indo, e vindo, para e de
diversas partes da Europa, durante todo o verão.
Neste ano, Michael deveria visitar o mesmo hospital em
Boston, durante quatro meses, fazendo intercâmbio com um
colega de lá. O filho mais velho, Stephen, agora com vinte e
três anos e no último ano da universidade, pretendia seguir
numa viagem de quatro meses pelo Marrocos e a Argélia,
com amigos. Eileen, de vinte e dois, acompanharia o pai,
para visitar amigos que conhecera na Espanha numa
excursão de camping, no ano retrasado. O segundo filho,
James, fora convidado para visitar uma escavação
arqueológica no Sudão, antes de começar a universidade
naquele outono. Quanto a ela mesma, decidira não ir para os
Estados Unidos de novo. Em parte, porque não queria tolher
as atividades da filha, o que ela sabia que faria; por outro
lado, seria tão dispendioso se três pessoas fossem, e também
havia a questão de se ela não estaria perturbando as
atividades do marido... para acompanhar esse pensamento
havia um sorriso apropriado, quase uma careta, talvez con-
veniente para as palavras: Em qualquer casamento, tem de
haver o dar e o receber; ela estava plenamente consciente
de que não se sentia inclinada a examinar aquela questão em
profundidade.
Por outro lado, Tim, embora já com dezenove anos, e muito
encorajado por todo mundo a ser independente, não tinha
planos de viajar para lugar algum. Ele era, sempre tinha sido,
o difícil ou o problemático. A casa na zona sul de Londres
seria, portanto, mantida em funcionamento para o seu
benefício. Ela, a mãe, a faria funcionar. Para ela, os próximos
meses se estendiam diante de si como o haviam feito
durante muitos verões anteriores. Ela seria uma base para os
membros da família, ou voltando da universidade para casa,
ou aparecendo para passar um dia, ou uma semana, a
caminho de algum outro lugar; faria os trabalhos domésticos
para eles, seus amigos, e os amigos de seus amigos. Estaria
disponível, à disposição de todo mundo.
Esperava por aquilo com ansiedade, não apenas a quantidade
de gente, mas também o trabalho de cuidar de tudo, o estar
consciente de sua eficiência; também esperava com
ansiedade por um verão de trabalho de jardinagem muito
especial. Quando eles — ela e Michael — de fato deixassem
aquela casa, como um casal que se retira da vida ativa, não
seria da casa que sentiria saudade, mas do jardim, que era tão
encantador quanto um jardim inglês pode ser, depois de
vinte anos ou mais de devoção. Não dava a impressão de que
tivesse sido planejado pelo homem, mas sim de que ele
tivesse decidido crescer em gramados e moitas de açucenas,
caramanchões de roseiras e pequenos trechos de folhagens.
Os passarinhos ali cantavam durante o ano inteiro. O vento
soprava nele carinhosamente. Não havia um único
pedacinho de terra que Kate não sentisse que conhecia
pessoalmente, que não o tivesse feito — é claro que com a
ajuda das minhocas e da umidade.
Ela ficou sentada, aspirando o perfume de rosas, lavanda,
tomilho, e observou o marido sair da casa em companhia do
convidado deles.
Era Alan Post, que nada tinha a ver com medicina, mas era
um funcionário público da esfera internacional: trabalhava
para uma das entidades associadas às Nações Unidas. Ele e o
Dr. Michael Brown se tinham conhecido na sala de espera
do aeroporto de Los Angeles, quando o avião de ambos
atrasara por causa da neblina. Tinham jogado xadrez, bebido
uísque, trocado convites. Uma semana atrás, os dois homens
se haviam encontrado por acaso na Goodge Street, e então
tinham almoçado juntos. Michael convidara Alan para um
almoço familiar de domingo.
Se não tivesse havido os cortes de eletricidade, os Brown
teriam oferecido a refeição inglesa tradicional dos domingos,
não por eles mesmos, uma vez que já não seguiam mais os
padrões antigos, mas em benefício do convidado: com
bastante freqüência a família havia feito brincadeiras com o
fato de que, quando recebiam seus muitos amigos
estrangeiros, serviam pratos tradicionais, como camponeses,
na dependência do fluxo turístico. Mas, naquele dia, Eileen
tinha feito a comida, com a ajuda de Tim, antes de sair
correndo para algum lugar. Ela preparara uma sopa turca de
pepino, fria, um shish kebah feito na fogueira e um sorvete
de abricó — a geladeira era a querosene. Eles tinham bebido
muita sangria, cuja receita fora conseguida pelo segundo
filho, no ano passado, na Espanha.
Michael e Alan Post sentaram-se e continuaram a conversa
que haviam mantido durante todo o almoço, e depois, lá em
cima, no escritório. Ela serviu o café nas lindas xícaras de
plástico que usava no jardim desde que o cachorro do
vizinho havia saltado para o seu jardim, na perseguição de
um outro cachorro, e destruído uma bandeja inteira cheia da
sua melhor porcelana. Depois de lhes servir o café e os
biscoitos de chocolate, ela fixou um sorriso atento no rosto,
como uma sentinela, atrás do qual podia cultivar seus
próprios pensamentos. Na realidade estava pensando no
marido.
Sempre que o via daquela maneira, com um colega,
especialmente os que eram estrangeiros, era como se ele se
tivesse distanciado dela. Isto não ocorria porque ele fosse
uma dessas pessoas cuja atitude se altera dependendo de
com quem elas estão — de maneira nenhuma, mas com
Alan Post parecia que uma atmosfera maior, mais refinada,
soprava em torno dele, que ele se estava expandindo, parecia
que estava a ponto de alçar vôo... No ano anterior, nos
Estados Unidos, quando ela estivera com ele, se sentira parte
da expansão, do crescimento; sentira como se, durante todos
aqueles anos de casamento, aquele homem estivesse
mantendo na reserva algum potencial que nunca encontraria
lugar para se desenvolver no seio da família: eles haviam
discutido o que ela sentira, é claro. Ficara um pouco
esperançosa de que ele pudesse dizer que, às vezes, havia
sentido a mesma coisa a respeito dela, mas não disse.
Naquele momento ela pensava que, naquele ano, ele estaria
sem a esposa e apenas intermitentemente com a filha,
durante quatro meses; o sorriso apropriado, seco, irônico,
estava outra vez no rosto dela. Ela sabia que estava lá, tinha,
como costumam dizer, "praticado" aquele sorriso, ou os
sentimentos que ele representava. Se aquela tivesse sido a
ocasião apropriada -— uma pergunta de uma mulher mais
jovem, por exemplo (não de uma mulher da sua idade, ela
sabia, não de Mary Finchley) —, ela poderia ter-se recostado
na cadeira, permitido que seus olhos se velassem com ironia,
e dito: "Talvez todas nós atribuamos importância demasiada
a esse tipo de coisas, quando somos jovens. . . os pequenos
casos, sabe, eles não têm importância alguma num
casamento verdadeiro!" A autocongratulação acompanhava
aquele sorriso que era quase uma careta, ela sabia disso;
também alívio, aquele de uma pessoa ao livrar-se com
sucesso de uma armadilha, de um elemento de perigo...
Sentada sob a árvore estival, levantando o bule de café para
mostrar aos homens que ainda havia bastante, sorrindo, ela
se ouvia pensar: "Estou dizendo a mim mesma as mais
terríveis mentiras! Horrível! Por que é que eu faço isso?
Existe alguma coisa aqui que eu simplesmente não me
permito ver. Às vezes, eu me aproximo de Mary, mas nunca
de nenhuma outra pessoa. Agora, olhe para a coisa inteira,
tente e apodere-se dela, não continue inventando todas
essas atitudes, essas histórias — pare de tirar os mesmos
velhos vestidos do cabide..." Ela estava ouvindo, agora com
atenção, o que os homens diziam. Parecia que lhe dizia
respeito, de alguma maneira, que a conversa já lhe dizia
respeito há alguns minutos, mas ela não estivera escutando.
A conferência, a que Alan Post viera a Londres assistir,
estava em dificuldades. Ou melhor, um dos comitês da
conferência: a organização, sob cujo patrocínio as
"confabulações" e as reuniões dos comitês se estavam
realizando, chamava-se Alimentação Mundial, e era sua
função saber o que a humanidade comia. Ou não comia.
Devido a uma série de infortúnios — gripe, uma bacia
fraturada, a morte de um homem em Lisboa —, quando os
membros do comitê já estavam sentados em volta da mesa,
esperando para dar início às deliberações, descobriu-se que
não havia tradutores. Ora, nada era mais fácil do que
encontrar tradutores fluentes em francês, alemão, espanhol,
mas era difícil encontrar pessoas que falassem português tão
fluentemente como inglês e que fossem suficientemente
bem preparadas para aquele trabalho difícil. Tinha de ser
português, pois aquele subcomitê trataria de café, e no Brasil,
o maior produtor de café do mundo, falava-se português. O
comitê suspendera suas atividades, até que tradutores de
português fossem contratados. Dois já haviam sido encon-
trados, precisava-se de mais dois: tanto Alan Post como
Michael olhavam para Kate, esperando que ela dissesse que
ficaria satisfeita em ser a terceira. Há três anos, Kate tinha
datilografado um livro para esclarecimento do público em
geral, sobre o plantio e a comercialização do café, para fazer
um favor a um amigo que escrevia mal a máquina. Por causa
disso, ela possuía conhecimentos consideráveis a respeito
daquela mercadoria. Além disso, ela sempre fora ótima em
línguas. Seus conhecimentos de francês e italiano eram
bons; seu português era perfeito, pois, por um lado, era
descendente de portugueses. Acontecera que ela havia
acabado a escola cedo, dada sua inteligência, tendo, porém,
de esperar três anos até que pudesse ingressar na
universidade — para onde, no final, acabou não indo, tendo
em vez disso, decidido casar-se com Michael. Ela passara um
ano em Lourenço Marques com o avô, que era um homem
erudito. Lá, só se falava português. Sendo filha de João
Ferreira, um português que se naturalizara inglês e que
lecionava literatura portuguesa em Oxford, nunca havia sido
mais do que agradecidamente cônscia de que a sua
ascendência continha tesouros; seu avô é que os apresentara
a ela, de forma que ficara impregnada de literatura
portuguesa, de poesia portuguesa, impregnada do "espírito
da língua".
Que mais ela havia aprendido durante aquele ano na cidade à
beira do oceano Índico, um ano inteiramente devotado ao
lazer? Para começar, seu avô era antiquado, e suas atitudes
com relação às mulheres, muito severas. Kate jamais
pensaria em brigar com um velho a quem amava; e, além
disso, para que se incomodar? Ela só estava ali por um
período tão curto! Mas durante aquele período nunca ficara
sozinha com um homem, fora protegida de experiências
desagradáveis, literárias ou reais, e havia experimentado uma
atmosfera nada desagradável, composta de elementos tão
estranhos a ela que tivera que identificar cada um
separadamente. Era protegida e olhada com desconfiança.
Era considerada preciosa e desprezada. Ficara lisonjeada com
a deferência demonstrada a cada desejo seu — mas sabia que
ela, a coisa fêmea, ocupava uma posição inferior, cuidado-
samente definida, na vida de seu avô, como a esposa dele
havia ocupado, e as suas filhas. Sua imagem de si mesma
durante aquele período: uma moça frágil como uma camélia,
com uma pele muito branca e o cabelo vermelho-escuro,
usando um vestido de linho branco bordado, desenhado
com o objetivo de exibir e esconder o pescoço e os ombros,
sentada numa varanda, numa cadeira de balanço, que ela
empurrava lentamente para a frente e para trás, com um pé
que, ela tomara consciência disso, era um objeto tão sensual
que os rapazes presentes não podiam manter longe dele nem
seus olhos nem suas fantasias. Ela se abanava com um leque
de seda bordada, com um movimento do pulso que lhe fora
ensinado pela velha babá, enquanto aqueles rapazes, tendo
cada um deles pedido ao seu avô permissão para poder falar
com ela, se sentavam num semicírculo, em cadeiras de
palha, fazendo-lhe a corte. O ano era 1948. Ela foi um
grande sucesso em Lourenço Marques, em parte porque,
afinal, era inglesa e nem todas as suas boas intenções podiam
mantê-la dentro dos limites que seu avô aprovava; em parte
porque a combinação de cabelo ruivo, curto, e olhos
castanhos era rara, mesmo num país cheio de senhoritas; em
parte porque a severidade do avô era excessiva, mesmo na-
quela colônia, de forma que em mais de um aspecto o
comportamento de Kate e suas atitudes pareciam uma
encenação teatral deliberada ou extravagante, executada,
provavelmente, com o intuito de ser provocante.
Quando voltou à Inglaterra, recordava um lugar esfumaçado,
cheio de coisas semi-ocultas, uma delas o seu próprio desejo
obscuro de ser parecida com sua avó, que — a menos que
aquilo se devesse à memória pouco precisa do avô —
poderia nunca ter deixado Portugal, pelo modo de vida que
continuava a levar. Tinha sido uma mulher bonita, era o que
todo mundo dizia, uma mãe maravilhosa, excelente
cozinheira, um ser humano magnífico, toda ternura e
gentileza, sem um defeito sequer — sim, bem... muito
embora tudo aquilo pudesse ter sido verdade, a propaganda
havia surtido o previsível efeito inverso, e Kate voltou da
África Oriental portuguesa mais do que nunca pronta para ir
para a universidade, onde estudaria línguas neolatinas e
literatura. Chegou, de fato, a ir para Oxford e a se instalar
como residente. Então conheceu Michael, que, depois de
dez anos de guerra e de treinamento intensivo, acabava de
iniciar sua carreira. Ela se mudou para as acomodações dele,
e deram início, de maneira encantadora, ao que chamavam
de "fase 1".
Se ela não se tivesse casado, será que se teria tornado alguma
coisa de especial no seu campo? Uma conferencista talvez?
As mulheres não pareciam tornar-se professoras uni-
versitárias com muita freqüência. Mas estes não eram pensa-
mentos que tivesse comumente: ela não tinha achado as
crianças entediantes. Além disso, não era como se, por
exemplo, seu marido a mantivesse afastada dos negócios
dele, de pessoas interessantes. Às vezes fazia traduções para
ele, ou para seus colegas. Uma vez, até havia traduzido um
romance português, que lhe rendera pouco dinheiro, mas
muitos elogios. Conhecera gente de todas as partes do
mundo, principalmente depois que as crianças começaram a
crescer, e passaram a trazer para casa todos os seus amigos,
espalhados pelo mundo inteiro.
Se ela não se tivesse casado — mas, bom Deus, teria sido
louca se não se tivesse casado, louca se tivesse escolhido
línguas neolatinas e literatura... Michael e Alan Post estavam
se servindo de café e esperando por ela. O que sentia era
uma espécie de pânico. O fato de sabê-lo tornava aquilo
pior. Era idiota e irracional sentir medo. De quê? Isto não
era uma coisa que ela pudesse ter contado a qualquer pessoa,
nem mesmo a Michael — o fato de que quando era
realmente confrontada com um trabalho, um trabalho de
tipo bem comum, afinal, bem enquadrado dentro de suas
capacidades e, obviamente, apenas por um período de curta
duração, ela se sentia como uma prisioneira, que, após ter
cumprido uma longa pena, sabe que terá de enfrentar a
liberdade na manhã seguinte.
— Mas eu não sei se vou poder — disse ela. — Tim vai estar
aqui, indo e vindo, durante o verão inteiro.
Ela observou a crispação da boca de seu marido: as dis-
cussões freqüentes a respeito de Tim não haviam
solucionado o desacordo. Michael achava que seu filho mais
moço era superprotegido. Ela, embora concordasse até certo
ponto, não podia acreditar que a maneira de corrigir as
coisas fosse "botá-lo para fora e não tomar mais
conhecimento". Como botá-lo para fora? Para onde? E o que
o garoto fazia não era tão terrível que ele precisasse de um
tratamento assim drástico: ele ficava emburrado, ameaçava,
odiava, mas todas as crianças haviam feito a mesma coisa,
cada um à sua maneira. Kate achava que, se ela era mais
indulgente com Tim, era porque seu marido era injusto com
ele. Tinha consciência de que aquela situação envolvia
sentimentos demais para ser abordada de maneira direta;
tinha posições definidas a respeito dela, que eram
conhecidas como sendo as suas, e que ela defendia, dentro e
fora da família.
— Mas as reuniões do comitê não durarão mais do que...
quanto foi que você disse? — perguntou Michael a Alan.
Naquela altura, Alan já compreendera que havia um
problema entre marido e mulher, e ele disse, sem olhar para
nenhum dos dois, e sim na direção da casa, de onde um
rapazinho saía e vinha dirigindo-se para eles:
— Não mais do que um mês, no máximo.
— Aí está Tim — disse Kate, querendo dizer: "Na frente das
crianças, não".
Quando Tim chegou debaixo da árvore, ficou evidente que
ele era mais velho do que sua constituição franzina e o
caminhar ágil o faziam parecer, visto de longe. Naquele
momento estava mal-humorado. Olhando sério para a mãe,
ele disse:
— Sinto muito, mãe, mas mudei de idéia. Os Ferguson me
convidaram para ir para a Noruega. Eles vão fazer alpinismo,
irei também, se não se incomodar.
— Não, é claro que não, querido — disse Kate
automaticamente. — É claro que você deve ir.
Estava encantada porque ele não' seria excluído dos prazeres
do verão, tão satisfeita como se ela é que fosse para a
Noruega; mas o rapaz já havia olhado para o pai, que assentiu
com a cabeça para ele. Então ele sorriu, de maneira formal,
para o convidado, parecendo, momentaneamente, uma
pessoa completamente diferente; o homem responsável que
se tornaria transformou-se novamente numa criança mal-
humorada no seu olhar para a mãe, quando disse:
— Se está tudo bem, vou começar a fazer as malas agora.
Partirei hoje à noite. — E saiu correndo para a casa, como se
estivesse fugindo.
Ela gritou para ele:
— Tim, antes de você ir, veja se consegue fazer a chaleira
ferver de novo, preciso de água quente para lavar a louça. —
Mas ou ele não ouviu, ou não quis ouvir.
— Então, quando é que pode começar, Kate? — perguntou
Alan. — Quando? Amanhã? Ah, por favor, pode?
Kate nada disse, mas estava sorrindo em sinal de
concordância. Sabia que era capaz de explodir em lágrimas.
Sentia como se todos os apoios tivessem sido arrancados de
sob seus pés. Sentia — para usar uma metáfora que já vinha
utilizando, na realidade, desenvolvendo em seu próprio
pensamento e agora já havia algum tempo — como se, de
repente, um vento muito frio tivesse começado a soprar,
diretamente sobre ela, vindo do futuro.
— É claro que eu gostaria. Posso lavar a louça primeiro? -
disse ela finalmente.
Eles riram, ela riu. Então Alan disse:
— Bem, será que alguma outra pessoa poderia lavar a louça
enquanto você telefona?
Ele lhe deu um nome, o número de um telefone e a
acompanhou até a casa, utilizando uma formalidade
agradável, com uma intimidade que, de tão despreocupada, é
quase impessoal; ela reconheceu naquilo a atmosfera do tipo
de vida em que estava prestes a entrar. Aquela atitude dele
era ao mesmo tempo protetora e relaxante; ele ficou ao lado
dela enquanto telefonava, sugerindo-lhe as palavras que
deveria usar — palavras que não lhe teriam ocorrido com
facilidade, porque tinham o toque característico dos
comitês. Quando aquilo tudo acabou, ele a beijou nos dois
lados do rosto e, com o braço em volta do ombro dela,
acompanhou-a de volta até a árvore, no jardim. Era um
homem bem-apessoado, mais ou menos da idade deles
— a de Michael e a dela —, um homem dedicado à família,
com uma esposa e filhos em crescimento ou já crescidos,
um homem que ganhava muito dinheiro e passava a vida
viajando de uma conferência para outra, para falar sobre
alimentação com pessoas de dúzias de países. Gostava dele,
estava pensando que, afinal, seria uma libertação e um alívio
respirar aquela atmosfera despreocupada e impessoal durante
algum tempo. Realmente, ela gostava de tudo nele, inclusive
a maneira como se vestia e se apresentava: não lhe vinha
agradando muito a maneira como seu marido se vestia
ultimamente, tampouco a maneira como cortava o cabelo.
Mas era melhor não pensar nisso, pois, afinal, não era
importante.
A razão por que se sentia como se estivesse caindo através
do ar era que, se Tim não ia ficar, não havia sentido algum
em manter a casa aberta.
Novamente sob a árvore, a tarde quente de domingo foi
prosseguindo na direção da noite, enquanto os homens
conversavam a respeito de algum problema médico no Irã.
A hipótese de se alugar a casa fora abordada inúmeras vezes.
Em ocasiões passadas tinha havido grandes discussões sobre
alugar ou não alugar a casa, todo mundo tendo opiniões
inflamadas a respeito do assunto. Elas haviam durado dias,
semanas.
Naquele momento ela disse:
— Bem, nós nunca a alugamos antes, não é?
— E qual é o problema? — disse Michael. — Alguma família
passando uma temporada aqui a alugará e ficará satisfeita por
fazê-lo, mesmo se deixarmos algumas coisas nos armários.
— Mas o que é que as crianças vão usar como base, se
acontecer de voltarem a Londres a caminho de algum lugar?
— Poderão usar a casa de alguém, pelo menos por esta vez, e
já não é sem tempo, também.
— Mas eu não acho realmente...
— Vou telefonar para o corretor amanhã de manhã — disse
o Dr. Michael Brown, fazendo com que Kate ficasse
envergonhada, uma vez que ele trabalhava de manhã à noite
e não estaria menos ocupado do que ela no seu comitê.
Mas a questão era que ela estava se sentindo rejeitada,
diminuída, porque o problema da casa estava sendo
considerado de tão pouca importância.
E quando a reunião de seu comitê tivesse acabado, que é que
ela faria? Estava decidido que ela se encaixaria em algum
lugar — quão extremamente flexível ela estava sendo,
exatamente como sempre, desde que as crianças tinham
nascido. Voltando atrás e rememorando quase um quarto de
século, viu que aquela tinha sido a característica de sua vida:
a passividade, a adaptabilidade aos outros. Seu primeiro filho
tinha nascido quando ela estava com vinte e dois anos. O
último nascera muito antes dos trinta anos. Quando contava
esses fatos aos outros, muitos a invejavam; um grande
número de pessoas, em diversos países, consideravam a
família de Michael Brown como uma família digna de
inveja.
O ventinho frio soprava de maneira muito determinada, se
bem que ainda bastante suave: aquela era a primeira vez em
sua vida em que ela não era querida. Ela era desnecessária.
Que aquela fase de sua vida se estava aproximando, ela
soubera muito bem, é claro, há muitos anos. Até fizera
planos para ela estudaria isto, viajaria para lá, faria este ou
aquele tipo de trabalho de assistência social. Não é possível,
afinal, ser uma mulher com algum pingo de consciência, e
não saber que, na meia-idade, na força plena de suas
capacidades e energias, está destinada a se tornar aquele
fenômeno tão bem documentado e tão estudado, o da
mulher com os filhos já crescidos e sem o bastante que
fazer, cujas energias têm de ser desviadas dos já citados
filhos para alvos menos vulneráveis, pelo bem de todo
mundo, o dela própria tanto quanto o deles. Assim, nada
havia de surpreendente no que estava acontecendo. Talvez
ela devesse ter esperado por aquilo antes, será?
Não havia esperado que acontecesse naquele verão. No
próximo verão, ou no ano que o seguisse, sim, mas não
agora. O que ela havia preparado para enfrentar estava no
futuro. Mas era agora que estava acontecendo. Apenas
temporariamente, é claro, pois a casa se tornaria novamente
a casa da família deles em setembro. Tornar-se-ia outra vez a
base acolhedora para aquelas crianças, todas agora em casa
cada vez com menos freqüência. Mas havia o seu marido a
ser considerado, um homem que apreciava muito o seu lar e
tudo que fazia parte dele. Quando fora a última vez em que a
família toda estivera reunida, com todo mundo de volta da
universidade, ou das diversas férias e viagens e excursões, ao
mesmo tempo? Já fazia muito tempo, quando se parava para
pensar naquilo.
Mas a realidade era que ela, aquele pino-mestre, estaria sem
ter o que fazer de junho até o fim de setembro. Sem nem ao
menos um quarto que fosse seu. Aquela era uma sensação
muito estranha, como se um agasalho quente tivesse sido
arrancado de cima dela, como se ela fosse um animal sendo
esfolado.
É claro que ela e Michael haviam discutido aquele problema
com relação ao futuro dela; tinham falado a respeito dos seus
sentimentos, e dos dele. Conversar a respeito era a base
fundamental e o arrimo do casamento deles. Acreditavam,
sempre tinham acreditado, que as coisas que se deixavam
sem serem ditas envenenavam o espírito, as coisas que se
expunham às claras perdiam a sua força. O relacionamento
deles se havia desenvolvido calcado neste princípio desde o
início.
Muita introspecção inteligente fora feita para determinar a
maneira como viam a si mesmos e aquele casamento. Eles
não tinham errado com relação a muita coisa.
Por exemplo, no quarto onde dormiam, havia dois livros,
lado a lado, um de Bertrand Russel, chamado A conquista da
felicidade, e um de Van der Velde, O casamento ideal. De
Kate para Michael — Russell; e de Michael para Kate — Van
der Velde. Ambas as dedicatórias diziam: "Pela fase 1, com
todo o meu amor". Aquilo comemorava a realidade de que
uma fase havia terminado quando o delicioso caso deles
tivera de acabar e eles se casaram. Tinham compreendido
que as coisas têm de mudar, que o encanto teria de se
enfraquecer, e suas longas conversas sobre aquilo tudo
estavam resumidas naqueles livros afetuosos, "De Kate para
Michael, De Michael para Kate, pela fase 1". Agora, pegando
aqueles livros e abrindo-os na página da dedicatória, ambos
poderiam ter sido apanhados numa careta irônica, tinham
sido apanhados um pelo outro, o que resultara no riso franco
e certamente saudável. (O riso é, por definição, saudável.) A
questão era: por que a careta irônica, afinal? Tinham estado
tão absolutamente certos a respeito do que estivera acabando
e do que estava começando: o casamento sólido, exigente e
satisfatório. Não havia lugar para uma careta irônica. Que é
que havia de cômico ou que merecesse a ironia deles? E, de
maneira semelhante, com outras determinadas longas
discussões, francas e abertas, a respeito de mudanças e de
pontos críticos. Nenhum dos dois teria renunciado a elas.
Mas Kate certamente se havia apanhado pensando que
talvez aqueles documentos de observação psicológica ou, se
preferirem, manifestos que acompanhavam os estágios ou
fases do casamento não fossem tudo que deveriam ser.
A discussão, por exemplo, a respeito do vento frio vindo do
futuro, que ocorrera há três anos: mas haviam acontecido
coisas, desde então, que não tinham sido planejadas, ou
lançadas nos extratos de contas... Pela nona — ou décima
nona — fase.
O fato é que a boca de Michael se contraía quando Tim era
mencionado, como ainda há pouco quando ele dissera: "Vou
telefonar para o corretor amanhã de manhã". Pondo-a no
seu devido lugar, deixando-a de lado. Ela o sentia desta
maneira. Aquilo era o que ela vinha sentindo, a despeito
daquela dúzia ou mais de atitudes mentais, roupas tiradas de
um cabide, as palavras que usava para descrever sua situação.
Qualquer que fosse tal situação, o que quer que realmente
fosse, no final daquela noite de verão uma centena de linhas
na vida de Kate pareciam ter sido reunidas. Isto se
exteriorizava nos diversos números de telefone garatujados
em pedaços de papel, em endereços de todos os tipos, e
num esforço consciente para recuperar a lembrança de seu
avô, sentado na varanda de uma casa de pedras, num grande
jardim, cheio de flamboyants e de açucenas: "Catherine! A
maneira de se aprender uma língua é inspirá-la. Impregnar-
se dela! Vivê-la!"
Tendo de fazer face a uma entrevista para julgar a sua
capacidade de traduzir com rapidez do inglês, francês e
italiano para o português, e vice-versa, ela ficou acordada a
noite inteira, após ter acabado com a desordem do dia,
pratos sujos e restos de comida e gordura —
afortunadamente a eletricidade voltou, por volta das dez da
noite —, relendo o romance que ela mesma traduzira,
revivendo em sua mente passeios, conversas e refeições
com seu avô. Pela manhã sua imersão na outra língua era
tamanha que, se ela tivesse esbarrado em alguém na rua, se
teria desculpado em português.
Alimentação mundial
Mas tudo aquilo, e a sua ansiedade na escolha de um vestido
adequado para a entrevista, a preocupação a respeito do
cabelo — realmente era muito provinciano, e ela o sabia —,
seus ajustamentos de atitude interiores para ser algo além da
Sra. Michael Brown, tudo aquilo, afinal, acabou por se tornar
desnecessário. Quando ela entrou no gabinete de um tal Sr.
Charlie Cooper, ele disse:
— Sra. Brown? Graças a Deus que a senhora pôde encontrar
tempo. Vai começar hoje, não vai? Ótimo.
Ela fora descrita pelo amigo e intermediário, Alan Post,
como a formidável e altamente qualificada "mãe de família
dedicada", que fora duramente convencida a abandonar a
citada família e a solucionar a dificuldade daquela grande
organização internacional. Desde o início, ela estava numa
categoria especial, a de amadora, e o fato de estar ali, dera-se
a entender, era como se estivesse fazendo um favor.
Parecia que, dos quatro substitutos para o grupo inicial de
quatro tradutores profissionais, novamente dois haviam
saído, por motivos de família e de saúde.
— Este negócio todo está azarado, está amaldiçoado! —
exclamava Charlie Cooper. — Mas tenho certeza de que
nossa sorte vai virar com a senhora.
E ele a levou apressadamente por um corredor largo que
cintilava, através das muitas janelas, até um elevador que era
grande e tinha uma fotografia de uma mulher de pele escura,
que sorria de maneira agradável, enquanto colhia os grãos de
café de um arbusto muito verde, e por outro corredor de
proporções impressionantes, passando por um comitê, que
tratava de manteiga, e um outro, tratando de açúcar, até
entrarem num grande salão retangular, no meio do qual
havia uma mesa oval cintilante, daquele tamanho que faz
com que a gente pense, imediatamente, que deve existir em
algum lugar uma fábrica cujo único negócio é criar mesas
imensas, retangulares, ovais ou redondas, para o uso das
conferências internacionais.
Havia um comitê em reunião. Sobre a mesa, copos de água,
lápis, canetas, folhas de papel com anotações e rabiscos. Mas
as cadeiras estavam em desordem e vazias; os congressistas
estavam todos lá embaixo, bebendo — café, presumia-se —,
e entretidos com a mais freqüente das conversas
contemporâneas, aquela sobre a total ineficácia e
incompetência de qualquer serviço público ou organização,
conversa que, é claro, se tornará mais freqüente e mais mal-
humorada à medida que o número de pessoas em toda parte
se multiplica e os serviços, segundo a lei da inércia, ficam
ainda mais aquém da demanda crescente. Só naquele
momento, o diplomático Charlie Cooper disse a Kate que ela
fora esperada naquela manhã às dez horas, para começar seu
dia com o início da primeira sessão, e não ao meio-dia, que
era naquele momento — mas, é claro, não lhe haviam dito,
não era culpa sua, as coisas eram sempre assim —, sim, ele
podia acreditar naquilo, haviam-lhe dito para "aparecer a
qualquer hora naquela manhã?" — típico!
Mas será que ela poderia começar agora, sim, naquele exato
momento, ou melhor, quando os delegados tivessem voltado
do intervalo para o café imposto? — Além dela mesma,
havia ali, trabalhando naquele dia, exatamente um tradutor
simultâneo para a língua portuguesa, devidamente
qualificado.
Kate havia pensado que aquela seria apenas uma entrevista
preliminar, e dissera em casa que estaria de volta para
preparar a comida para o almoço e separar as roupas a serem
lavadas. Mas se ela pudesse dar um telefonema... O rosto de
Charlie Cooper ficou agoniado — os congressistas estariam
ali em cima dentro de um minuto, eles tinham sido
chamados de volta por causa de sua chegada, dela, Kate. Sob
a ação de uma grande chave penetrante, os anos de
condicionamento de Kate, de responsabilidade específica e
minuciosa, lhe foram arrancados. Charlie Cooper telefonaria
em seu lugar, quando anunciaria, simplesmente, que a Sra.
Brown estava ocupada com outras coisas. Era a Eileen que
aquele aviso seria dado; reprimindo um impulso de enviar à
filha uma mensagem de carinho e apoio, Kate se permitiu
ser entregue a uma moça que lhe iria dar instruções quanto
às suas funções. Em cada um dos lugares em volta da mesa,
havia aparelhos para receber a tradução de idiomas
estrangeiros, passados para o próprio idioma de cada um: o
som transformado durante a sua passagem do orador para o
ouvinte. Por Kate, entre outros. Havia controles, cada um
uma saída para uma língua estrangeira. Havia fones de
ouvido. Em cubículos de vidro, em cada uma das
extremidades do salão, havia mais controles, aparelhos de
recepção, fones de ouvido. O trabalho de Kate seria sentar-
se num daqueles cubículos, ouvir os discursos feitos em
inglês, francês e italiano, e traduzi-los, à medida que os
ouvia, para o português, que ela falaria em voz alta para um
transmissor ligado aos ouvidos daqueles que falavam
português — na sua maioria brasileiros, que não falavam
inglês, ou que falavam, mas preferiam, não obstante, sua
própria língua. Ela mesma seria uma espécie de máquina:
para dentro dos seus ouvidos fluiria uma língua, e da sua
boca sairia uma outra.
É claro que não ficaria sozinha dentro do seu cubículo o dia
inteiro, mesmo com a escassez de tradutores. Haveria
substituições freqüentes, descansos, e pausas para o
reabastecimento das energias vitais, durante aquele trabalho
extremamente desgastante — Charlie Cooper enfatizava
repetidamente que o era; pois ele já tinha voltado, após ter
telefonado para a família dela, uma tarefa que considerava de
tão pequena importância que nem havia comentado. Kate
estava dentro do cubículo com ele; ajustara os fones, estava
ligando e desligando os controles, com a ajuda dele.
Enquanto lhe dava instruções, ele redigia uma mensagem
num bloco de memorandos, em que dizia que a organização
pedia desculpas sinceras pela falta de tradutores e implorava
aos delegados que tivessem tolerância e paciência. Com
aquilo na mão, ele saiu depressa, à procura de uma
datilografa para copiá-la. Pelas vidraças do cubículo, Kate —
agora sozinha, entregue a si mesma — pôde notar que o
salão de conferências, visto dali de cima, era muito agra-
dável. Tinha janelas altas. As paredes eram forradas de uma
madeira cor de cobre, granulada, espiralada e desenhada, o
chão coberto por espesso tapete azul-marinho.
Naquele salão eram decididos o destino e a prosperidade de
milhares de pequenos povos, as safras que eles iriam plantar,
o que iriam comer, e vestir... e pensar.
Enquanto Charlie Cooper ainda colocava uma folha de papel
— o breve pedido de desculpas, miraculosamente
multiplicado naquele minúsculo espaço de uns poucos
minutos — em cada um dos lugares em volta da mesa, os
delegados entraram, rindo e conversando. Que grupo
extraordinariamente sedutor eles formavam! Uma coleção
como aquela de homens e mulheres bonitos, das mais
diversas cores e das mais variadas nacionalidades, seria o que
o produtor de um filme tentaria captar com suas câmaras
para mostrar uma cena de algum quadro idealizado das
Nações Unidas. Mas será que os atores seriam capazes de
transmitir tamanha perfeição de autoridade descontraída,
tamanha segurança? Pois aquela era a impressão que eles
causavam. A diferença entre eles e seus assistentes,
secretários e os subordinados de várias espécies, podia ser
vista através daquela única qualidade, por si só. Cada
homem, ou mulher, dirigia-se para a sua cadeira, sentava-se,
continuava a conversar e a rir com uma segurança que
gritava uma única palavra: "poder". Todos os gestos, todos os
olhares transmitiam a convicção de utilidade, o peso do que
eles representavam.
Algumas das roupas usadas eram típicas: havia uma meia
dúzia de homens e mulheres de algum lugar na África que
fazia com que todos os outros parecessem membros de raças
inferiores, de tão altos, graciosos e majestosamente vestidos
que eles eram: as pregas de suas vestes, os brincos, o virar da
cabeça — cada um conhecia o seu papel. E que autoridade
até mesmo os vincos de um terno podem transmitir, quando
usado por um homem cujas decisões têm importância para
as pessoas, carregadas de sacas de café, numa encosta a
milhares de quilômetros de distância.
Os debates da reunião haviam começado e Kate descobriu
que seu cérebro, aquela máquina, estava executando o seu
trabalho com facilidade. Uns poucos momentos de pânico,
uma sensação de que a sua mente estava vazia e ficaria assim
para sempre, haviam sido afastados ao ouvir suas próprias
palavras saírem, bastante bem ordenadas, e ao observar os
rostos das pessoas que ouviam. Ninguém parecia aborrecido
com o que estava ouvindo; tudo estava como deveria estar.
E num espaço de tempo incrivelmente curto — que afinal
verificou ter sido de duas horas — ela foi substituída por um
colega. Mandaram que saísse para se descontrair e para... um
bom almoço. Voltou para o seu cubículo cheia de confiança
e, às cinco horas daquela tarde, já se sentia tanto uma parte
daquela organização quanto da sua família, para a qual ela
voltou, tarde demais para a refeição da noite, e descobriu
que sua filha a havia preparado e que tudo estava correndo
bastante bem.
No final daquela semana, Kate já havia sido iniciada nas
complexidades daquela bebida amarga e perfumada que o
mun- do tanto aprecia; mal podia pensar em qualquer outra
coisa. E sua casa fora arrumada e estava pronta para ser
alugada. Então havia sido alugada, até o fim de setembro, e a
família partira para as suas várias destinações, sem nenhuma
ajuda da parte dela. Tudo o que Kate havia dito fora, numa
voz que há apenas uma semana teria sido preocupada, mas
que agora estava indiferente: "Alguém terá de cuidar disso,
porque eu não tenho tempo". Ela beijara o marido, os três
filhos e a filha, despedindo-se, mas ainda não tivera tempo
de sentir qualquer emoção especial.
Estava num quarto, num apartamento alugado por uma de
suas colegas; uma mulher que tinha sido tradutora, mas que
fora promovida: ela agora organizava conferências. Aquela
mudança, da casa de Kate para aquele quarto, com todos os
petrechos necessários para alguns meses, havia requerido
meia hora e a atividade de enfiar algumas roupas numa mala.
De qualquer maneira, nenhuma das roupas servia para nada.
Em algum momento, durante aquela semana, ela saiu
apressadamente para comprar os vestidos que lhe
permitiriam entrar, como um passaporte, naquela maneira
de viver. Não se poderia dizer que a Sra. Michael Brown se
vestia mal; mas não era a Sra. Michael Brown quem estava
trabalhando para a Alimentação Mundial!
Antes de sair para as compras, perguntara a Charlie Cooper
quanto iria ganhar. O rosto redondo, zombeteiro, cansado
— aquela sua expressão permanente, por ser a babá
masculina de tantos comitês — ficou angustiado e cheio de
remorsos.
— Minha querida! — disse ele. — Aceite minhas desculpas!
Oh, não vejo como é que você pode... foi realmente terrível
da minha parte! Eu deveria ter falado a respeito disso antes
de qualquer outra coisa. Mas tem sido uma semana tão
confusa... de fato, se você ao menos pudesse imaginar que
dádiva de Deus você foi! — E ele mencionou uma soma ante
a qual ela teve de se conter para não soltar uma exclamação.
Era daquela maneira casual, positivamente cavalheiresca,
como se o mundo dos sindicatos, de salários amargamente
contestados, de pobreza e a angústia da fome não existissem,
que os salários daqueles funcionários internacionais, aqueles
indispensáveis afortunados, podiam ser arranjados.
Ela comprara os vestidos, uma meia dúzia deles, pensando
que, no fim das duas semanas com a Alimentação Mundial,
teria um guarda-roupa apropriado para umas férias elegantes
em algum lugar. Mas seus planos eram apenas de, talvez,
visitar uma velha amiga em Sussex, ou uma tia na Escócia.
De fato, não havia pensado no que iria fazer.
A segunda semana foi menos tensa. O trabalho tornara-se
algo que fazia com tanta facilidade como havia dirigido a
casa — por incrível que parecesse, há apenas uns poucos
dias. Ela o fazia automaticamente. Nos intervalos das sessões
nos cubículos, passava o seu tempo nas lanchonetes,
observando. Era, apesar de tudo, uma estranha, não sentia
que tivesse direito de se juntar àquele grupo privilegiado. Era
uma migrante; estaria tudo terminado dentro de uma
semana. Mas se sentava como se tivesse direito àquilo tudo
— os vestidos novos tornavam isso muito mais fácil; bebia o
maravilhoso café, observava. Era como um mercado, ou
como uma festa alegre que continuasse indefinidamente.
Uma mulher estava sentada numa sala de uma repartição
pública, descontraída, mas atenta, uma funcionária numa
organização pública, vestida como uma funcionária,
portando-se como uma, mas deixando que a sua vida — ou
as palavras que representavam seus pensamentos sobre a sua
vida — fluísse através de sua mente. Seria pelo fato de que
durante vinte e cinco anos ela fora parte daquele bolo de
tensões, a família, que havia esquecido que a vida comum, a
vida daqueles que não fossem parte da família, era tão
agradável, tão pouco exigente? Como todo mundo estava
bem vestido! Como a pele de todo mundo tinha lustro e
brilho! E como era fácil a maneira como um homem ou uma
mulher podiam entrar ali, olhar em volta, encontrar sorrisos
e olhares simpáticos esperando por eles, então acenar e se
sentar sozinhos, com um gesto que dizia: "Preciso de um
momento de solidão" — desejo que era, é claro, respeitado.
Ou, com naturalidade, quase que insolentemente, olhar em
volta pela sala, para ver a que grupo ele, ou ela, se reuniria.
Não parecia haver nunca nem sinal da tensão que se
encontraria, depois de cinco minutos, em qualquer rua, fora
daquele lugar acolhedor. Em qualquer rua, ou loja, ou casa,
as correntes fluíam, se cruzavam e formavam novas cor-
rentes. Do lado de fora daquele grande prédio do governo,
os conflitos continuavam. Mas e ali? Será que aquelas
criaturas bem constituídas, cada uma lustrada e polida pelo
dinheiro, alguma vez sofriam? Será que jamais choravam na
escuridão? Jamais queriam alguma coisa que não poderiam
ter? É claro que já o tinham feito, tinham de já ter feito isso
— mas não havia sinal algum que o mostrasse. Será que
alguma vez — mas talvez aquela não fosse a pergunta
correta a fazer —, será que alguma vez já tinham sentido
fome?
Não se poderia acreditar naquilo com facilidade. E os
problemas, que porventura tivessem naquele momento,
pareciam extremamente pequenos, quase ridículos, quando
se recordava qual era o objetivo daquele prédio, a razão por
que estava continuamente cheio de gente conferenciando
entre si. Pois Kate se havia envolvido com aqueles
problemas. As coisas já tinham mudado; ela não era mais "a
mulher que tinha substituído os tradutores que tinham
sofrido aqueles acidentes ou ficado doentes". Ela era Kate
Brown, cumprimentada nos corredores com breves sorrisos
e rostos simpáticos; faziam-na parar, com uma freqüência
crescente, para pedir-lhe conselhos e informações. Onde
comprar este ou aquele creme facial; ou aquele gênero
alimentício especial; como encontrar o restaurante, o hotel,
uma loja de roupas, ou o lugar certo para comprar
mercadorias de lã inglesa, ou uísque.
Na sua primeira semana, tivera apenas tempo de pensar,
enquanto se deixava cair exausta na cama, que se tornara
uma função, ela era a língua para umas duas dúzias de
funcionários públicos internacionais. Naquela semana,
deitada na cama, acordada, mais tarde, uma vez que não
estava exausta, pensava que a sua função principal, a de ser
um papagaio habilidoso, estava sendo suplantada, e muito
depressa, por uma outra à qual ela estava habituada. Como é
que se fazia isto ou aquilo, como se encontrava isto ou
aquilo? — perguntavam eles a ela, a recém-chegada! Mas, é
claro, ela já era uma veterana, uma vez que a maioria das
pessoas adejava rapidamente, entrando e saindo daquele
prédio, passando apenas uns poucos dias de cada vez.
Tornara-se o que era: uma enfermeira, ou uma babá, como
Charlie Cooper. Uma mãe. Não tinha importância, dentro de
poucos dias estaria livre de tudo aquilo. Não seria mais um
papagaio, com a habilidade de ser simpático com as
pequenas obsessões sem importância; ela estaria livre... Kate
notou que aquele pensamento trazia consigo um pequeno
arrepio. Notou que reagia com: "Gostaria de ter ido com
Michael para os Estados Unidos". Ela se apanhou pensando:
"Quando eu visitar Rose, poderei ajudá-la com as crianças".
Rose era a amiga de Sussex, que ela talvez visitasse.
Mas não queria passar o verão numa outra família, aquilo era
apenas covardia. No seu quarto, antes de ir dormir, olhava
para a sua arrumação, via o quanto ele lhe era indiferente e
pensava que, sim, aquilo era muito melhor do que sua
grande casa de família, do que a casa de Rose, cheia,
abarrotada, transbordando de objetos, cada um dos quais
tinha associações, histórias, pertencia a esta ou àquela
pessoa, tinha significação, era importante. Naquele
quartinho minúsculo, que tinha ali dentro uma cama, uma
cadeira, uma cômoda com gavetas, um espelho — sim, isto
era o que ela escolheria, se pudesse escolher... ela sonhou.
Mais tarde, quando o sonho daquela noite se havia
encaixado no padrão e tornara-se o primeiro episódio da
história ou jornada que ela seguiu em seu sonho, tentou
lembrar-se de mais coisas dele, mais detalhes. Mas, enquanto
se sentia certa com relação à sua atmosfera, a sensação —
que misturava ansiedade e alegria de uma maneira que
nunca poderia acontecer na vida desperta —, os detalhes
tinham desaparecido. De manhã, o sonho se tinha tornado
— ela havia acordado na escuridão para tentar apanhar o
sentido do sonho, antes que ele lhe escapulisse e
desaparecesse — como o princípio de uma epopéia, simples
e direto.
Ela vinha descendo uma encosta, numa paisagem nórdica,
que lhe era desconhecida. Alguém dizia: "Olhe, o que é
aquela coisa estranha? Olhe, uma coisa escura está caída ali".
Ela pensava: "Uma bala? Certamente que não, nenhuma bala
é tão grande assim". Mas era uma foca, encalhada e indefesa
entre as rochas secas, no alto de uma encosta fria. Estava
gemendo. Ela a pegou no colo. Era pesada. Perguntou se
estava tudo bem e se podia ajudá-la. A foca gemeu, e ela
soube que teria de levá-la até a água. Começou a carregar a
foca nos braços pela colina abaixo.
No dia anterior àquele em que suas duas semanas chegariam
ao fim, foi convidada por Charlie Cooper para tomarem um
café juntos. Ela aceitou e ele perguntou a ela se estaria livre
para continuar o trabalho por mais um mês. Aquele
determinado comitê estava acabando, mas havia um outro
que deveria começar.
— Então me saí bem? — perguntou Kate.
Sabia que sim, pelo menos no que dizia respeito à tradução
de fato; mas podia perceber, pela atitude cordial daquele
funcionário permanente, que havia mais coisas que ele
gostaria de dizer. Ele era sem dúvida um homem
encantador. Será que fora aquilo que lhe valera o emprego?
Mas o encanto tinha de ser posto de lado, se se quisesse
compreender o que ele realmente queria dizer, ou desejava.
— Oh, minha querida Sra. Brown, eu diria que sim. Estamos
absolutamente encantados por tê-la encontrado. Uma sorte
para nós! E como foi gentil de sua parte nos ceder este
tempo. — (Que delicioso, aquele jogo, segundo o qual ela
estava trabalhando para eles para fazer um favor, em vez de
ser por um salário tão tremendamente generoso. Como era
inesperado encontrar aquele comportamento cortês, aquelas
atitudes cavalheirescas, ali, no mais recente dos
desenvolvimentos modernos, os serviços públicos
internacionais.) — Realmente, acredite-me, Kate... mas
agora já podemos nos chamar um ao outro de Kate e
Charlie? Especialmente, uma vez que nos fará a gentileza de
continuar trabalhando para nós por mais algum tempo... e
seria por muito, muito tempo se fosse de acordo com a
minha vontade. Mas quem sabe, não poderíamos discutir
isto numa outra ocasião? Mas eu devo confessar que não é
apenas a sua competência realmente notável no seu
trabalho, notável mesmo, uma vez que você começou
direto, imediatamente, enquanto algumas pessoas precisam
de semanas de treinamento, antes de começar a fazê-lo, mas
você, bem... é mais do que isso. Todo mundo está
comentando como você tem sido maravilhosamente
prestativa e útil de todas as maneiras. Estou falando sério. A
Sra. Kingsmead, aquela senhora da delegação americana, co-
mentava ainda hoje de manhã que não sabia como se teria
arranjado sem todos os seus bons conselhos. Será que isto é
porque você tem uma família grande? Alan Post me estava
contando a respeito de todos aqueles jovens atraentes que
são os seus filhos e de como tudo funciona sempre tão
bem... mas, bem, esta não é a questão. Creio que, se uma
pessoa é competente fazendo uma coisa, então ela também o
será fazendo uma outra, mas se pudesse ficar conosco mais
um mês, e passar para o setor de organização, seria a melhor
das sortes para nós. Desperdiçar seus incríveis talentos como
tradutora... é um crime. Mas as suas outras habilidades são
tão boas quanto esta; de certa maneira é terrível pedir-lhe
que pare de fazer uma coisa que faz tão bem. É claro que o
seu salário será maior se aceitar. Um mês... será que
poderíamos apenas contar com você por mais um mês?
É claro que aceitaria. Para começar havia o dinheiro: não
conseguia acreditar. Kate não conseguira deixar de se sentir
culpada porque o padrão, segundo o qual vinha sendo paga
para ser um papagaio extremamente inteligente e fluente,
com inclinações maternais, quase alcançava o que seu
marido, um médico com tantos anos de treinamento e
outros mais de experiência, ganhava como especialista em
neurologia. (Na Inglaterra, não nos Estados Unidos, é claro,
lá ele ganhava muito mais.) Mas agora ainda pareceria muito
pior; era ridículo, e ela simplesmente tinha de aceitar o fato
de que as regras, os valores e os padrões comuns não se
aplicavam àquele mundo. Quanto a deixar de lado suas
aptidões especiais, seus sentimentos a respeito disso eram
contraditórios. O que, realmente, ela iria fazer?
Bem, estava fazendo quase exatamente o que costumava
fazer em sua casa. Começou a organizar as coisas, a passar
muito tempo ao telefone, a providenciar para que as pessoas,
os lugares e as coisas coincidissem nas horas certas... então,
de repente, houve um obstáculo. O receio de uma epidemia
de febre tifóide. O conflito habitual entre as necessidades do
turismo e as da saúde pública confundiram tudo durante
alguns dias; houve uma ameaça de que todas as viagens
desnecessárias, para dentro ou para fora das ilhas, seriam
suspensas por completo. A epidemia foi controlada, mas
quase que imediatamente em seguida houve uma greve no
aeroporto. Seria uma longa greve, diziam os jornais. Então
descobriu-se que, devido a vários descuides, os quartos nos
hotéis não haviam sido reservados com a antecedência
necessária para os quarenta delegados que estavam para
chegar — ali estava mais um exemplo da inevitável
incompetência que todo mundo adora criticar. Houve
discussões agitadas e nervosas nos altos escalões: chamadas
telefônicas e telegramas de e para Nova York, Londres,
Austrália, Canadá... estava sendo decidido que não havia lei
alguma que estabelecesse que aquela conferência teria de se
realizar em Londres. Deveria ser uma conferência geral,
sobre o tema endêmico de como tirar alimentos dos lugares
onde havia de sobra e levá-los para os lugares onde havia de
menos. Havia diversas cidades atraentes e convenientes.
Paris? Não, não, na loucura de julho, cheia até não poder
mais... as dificuldades na organização daquela conferência
estavam adiando a data do início; já se estava na metade do
mês de junho. Uma cidade européia após outra era sugerida,
examinada e rejeitada: Roma, Barcelona, Zurique. Kate
ficava pensando, como uma dona-de-casa, nas contas do
telefone, por todos aqueles adiamentos, sugestões e j
mudanças. Só o que estava sendo gasto com telefonemas
seria suficiente para alimentar milhares de pessoas durante
semanas; mas não estava sendo paga para pensar como uma
dona-de-casa, era algo menos que isso o que lhe estava
sendo pedido. O que era? Ela parecia passar uma quantidade
excessiva de tempo falando sobre aqueles problemas, com
Charlie Cooper e outros funcionários. Tinha a impressão de
que estava atolada em alguma coisa, um pântano
burocrático; nada se movia, tudo se atrasava e perdia-se
tempo. Ela falava. Eles falavam. Estavam constantemente
telefonando para pessoas em outros países... era assim que as
grandes organizações sempre agiam? Se era, não era de
espantar que... Por que é que se deveriam restringir à
Europa?, perguntava-se. Afinal, aqueles delegados
itinerantes, aqueles delegados que viajavam quase que
permanentemente, que passavam suas vidas conferenciando
em torno de mesas ovais ou redondas, em salas claras e
arejadas, com as mais diversas cidades como pano de fundo,
além dos janelões, aquelas pessoas não podiam se importar
muito se encontrassem suas folhas de papel, os lápis, as
canetas, os copos de água e as secretárias permanentes em
Beirute ou em Nairobi, em vez de Roma ou Londres. África
do Norte? Não, estaria quente demais. Então talvez
devessem dirigir-se para o norte. Estocolmo? Aquela era
uma cidade com a atmosfera certa para discussões calmas,
desapaixonadas. Oslo? Não, a Escandinávia ficava longe
demais, para o norte; era melhor encontrar um lugar mais
central. O Mediterrâneo, sim; mas não o Líbano ou a Síria,
não um país árabe, ou um que fizesse parte daquele beco
sem saída, Israel e os árabes. Turquia? Sim, aquilo era
melhor. Istambul? É claro! Mas era quente; seria exatamente
tão quente quanto a África do Norte ou Roma. Sim, mas era
tão atraente, e não era muito usada para conferências,
ofereceria um banquete tão opulento de passeios turísticos
— arqueológicos, religiosos, culturais, sociais — para
delegados exaustos de confabulações. Como era ilógico
recusar tantas cidades pelo fato de estarem cheias demais,
bem como serem quentes demais, e então dizer sim para
Istambul! Era verdade. Será que, afinal, não seria melhor
ficar em Londres? Mas e a greve? Bem, as pessoas podiam ir
para a França e depois virem de barco, não podiam? Os
barcos e os trens tinham funcionado perfeitamente bem
antes da invenção do avião, não tinham? Sim, mas... tinha-se
de admitir que os aviões e as conferências internacionais
andavam sempre juntos, eles se encaixavam.
O surto de febre tifóide ressurgiu subitamente. Charlie
Cooper e Kate Brown armaram-se do telefone para organizar
uma conferência com a duração de três semanas, sob o
patrocínio da Alimentação Mundial, em Istambul. Os
delegados, todos ainda em seus países, foram informados por
telefone, com gastos inacreditáveis, de que a Turquia deveria
ter a honra de acolhê-los, e não Londres.
O verão vazio de Kate agora estava ocupado até o meio de
julho; se as coisas ainda se atrasassem mais, talvez fosse até
além. Ela sentia que não deveria ter deixado que aquilo
acontecesse. Deveria estar pensando, talvez, sobre o seu
estado, sobre o vento frio. Deveria estar examinando as
violentas e incontroláveis oscilações nos seus sentimentos
com relação ao marido e aos filhos — especialmente com
relação ao marido. Pois agora que tinha tanto tempo, tinha a
impressão de que nada estava fazendo, ou muito pouco; seus
dias eram mais vazios do que haviam sido durante anos.
Tinha consciência de que seu sistema emocional estava
funcionando e fluindo para um vácuo: os objetos de seus
sentimentos estavam todos em outros lugares, não estavam
presentes para reagir com ela ou contra ela. Qual era o
sentido de amar, odiar, querer, ressentir-se, precisar, rejeitar
— e às vezes tudo no espaço de uma hora — quando ela
estava ali, livre; era como falar sozinha, era loucura... Afinal,
até que era bom que ela voltasse a ficar ocupada. Pelo menos
por mais um mês. Saiu e comprou mais alguns vestidos.
Depois, comprou os acessórios para acompanhá-los. Não,
não era que aqueles artigos fossem tão diferentes assim dos
que usava normalmente. Era mais, na realidade, a maneira
como os usaria. "O espírito da coisa", como teria dito seu
avô.
Uma mulher ficou parada diante de grandes espelhos em
várias lojas, olhando com uma curiosidade fria, não muito
amistosa, para uma mulher de seus quarenta anos, que ainda
estava com o mesmo corpo que tivera durante toda a sua
vida adulta, a não ser por uns centímetros a mais ou a
menos, ou coisa assim; que tinha o cabelo ruivo bonito —
pintado, é claro, porque os cabelos grisalhos estavam
aparecendo depressa. Uma curiosidade fria, mas que logo se
tornou uma conspiração de olhares, de mulher para mulher,
prima em primeiro grau daquela careta irônica tão
terrivelmente solapadora, solapadora porque parecia
eliminar a sua visão oficial, ou diurna, de si mesma. Sim, era
melhor evitar os longos intercâmbios de pressões de olhares,
que ameaçavam o tempo todo dar início a um acesso de riso;
sim, sabia que aquilo que esperava por ela era uma
gargalhada obscena por todo o maldito negócio... o tipo de
riso que ela e Mary Finchley apreciavam (se permitiam?
usavam como preservativo?) nas ocasiões em que estavam
juntas, a sós, sem maridos, famílias, convidados.
Não, tinha de voltar atrás, olhar para si mesma como um
todo e confirmar que estava ali, de pé, na sua frente, uma
mulher elegante e de aparência agradável, à beira da meia-
idade. Ainda à beira — ela não havia decidido entrar naquele
estágio. Podia dizer, enquanto olhava serenamente para a
sua própria imagem, que o seu corpo, seus atributos,
membros, cintura, seios, boca, cabelo, pescoço, não estavam
diferentes do conjunto de atributos com os quais havia
atraído uma dúzia de rapazes há quase um quarto de século,
com os quais se havia casado com o seu marido. Não
estavam diferentes; talvez até estivessem melhores, uma vez
que tantos produtos químicos, medicamentos, dietas e
cuidados com o cabelo, dentes e olhos haviam sido gastos
com aquele artefato — que aparência ela teria agora se, por
exemplo, tivesse nascido numa favela, no Brasil?
O que estava diferente era... nada que fosse tangível. De
novo, tratava-se de uma questão de atmosfera, alguma coisa
que ela trazia consigo, de maneira invisível. A razão por
que, quando jovem, aquele mesmo conjunto de acessórios,
dentes, olhos, quadris, e por aí afora, haviam atraído, ao
passo que agora não atraíam, pelo menos não mais do que
qualquer outra mulher da sua idade (da minoria que não se
havia retirado da atividade de atrair bastante cedo com
relação à idade, e devido a uma variedade de razões, sendo a
pobreza a primeira delas), era aquele problema delicado de
"o espírito". Certamente a palavra errada; mas qual era a
certa? Estado? Estágio? Presença? Ela não andava envolta,
como o tênue e quase invisível invólucro da chama de uma
vela, por aquela emanação da atratividade: Eu estou
disponível, venha, cheire e saboreie. No caso dela, era
porque era, e tinha sido durante tanto tempo, uma pessoa e
uma mãe que não estivera interessada — ou não com
freqüência, e nessas ocasiões não por muito tempo — em
atrair outros homens a não ser o seu marido.
Tudo aquilo, é claro, fora discutido longa e francamente
entre marido e mulher. Tinha de ter sido. Pois eles haviam
esquematizado desde o início aquela fase do casamento, tão
difícil, perigosa e agressiva, num plano resumido. E tudo
fora mantido em dia, não se havia permitido que se
desatualizasse. .. Não obstante, Kate tinha consciência de
que o que era tido como certo entre ela e Mary Finchley,
nos encontros que descreviam como "sessões femininas",
contradizia, em tudo, os dados do plano marital. Por que
estava pensando tanto em Mary? Na realidade, ficara
aborrecida com a reação da velha amiga às notícias daquele
novo emprego. Tinha sido a gargalhada alegre, que sempre
parecera grosseira a Kate, e "bem, agradeçamos a Deus por
isso. E também já não era sem tempo".
De qualquer maneira, agora estava bem que ela se encarasse
em tantos espelhos diferentes e acendesse uma chama, que
pusesse em movimento certas correntes. Não, não como
fizera nas breves ocasiões de atração incontrolável durante o
seu casamento (descritas criticamente por Mary como "o
mundo bem perdido pela luxúria"), quando ela havia sido
levada na direção de um determinado homem. Agora estava
fazendo uma coisa completamente diferente. Exatamente
como uma mocinha faz, repentinamente consciente de seus
poderes de atrativos generalizados, a mesma coisa agora
acontecia com Kate: um termostato interno estava ajustado
de maneira diferente, não dizendo "Você aí, sim, você,
venha me apanhar!", mas sim "Ah, como vocês todos são
infinitamente desejáveis; se eu quisesse, eu poderia estar
disponível, mas isso dependerá de vocês e, para falar a
verdade, é muito mais divertido ficar assim, flutuando nessa
atmosfera de admiração e aprovação geral; seria
terrivelmente entediante limitar-me a uma pessoa só!"
Isso é uma coisa que nenhuma mulher casada faz. (Exceto
Mary!) Mas vejam o que a família dela passou por causa
disso... Não, ela não deveria ser invejada, nem imitada.
Provavelmente não deveria nem ser ouvida, quanto mais ser
apreciada em sessões de gargalhadas estrondosas e de
conversas de mulheres. Melhor não pensar em Mary.
Nenhuma mulher casada de verdade ajusta o termostato para
Tom, Dick e Harry. (Nas discussões a respeito daquele
assunto com Michael, ambos eram bastante categóricos
quanto ao que ser casada de verdade significava.) Não, se se
quer continuar casada. (Ou então tem importância ser como
Mary, cuja vida, durante os quinze anos em que Kate a
conhecia, tinha sido como uma farsa de costumes francesa
— sintonizada, é claro, com os ares amenos da zona sul de
Londres.) Pois o que Kate sabia, realmente sabia mesmo, era
que nem todos os casamentos eram casamentos de verdade,
e que estes estavam ficando cada vez mais raros. Tinha sorte
com o seu. Se se quiser usar palavras como "sorte", em vez
de conceder a si mesma o crédito por ter sido, e continuar a
ser (a despeito de Mary), a espécie de mulher que está
realmente casada com um marido de verdade. Ser consorte
neste tipo de casamento significa que só se pode ajustar o
termostato de uma maneira. A não ser, é claro, por aquelas
breves e insignificantes ocasiões que Mary ridicularizava
tanto, porque dizia que forneciam a quantidade máxima de
infelicidade, com o mínimo de prazer... Se não era capaz de
pensar seriamente a respeito de seu casamento, sem que
Mary Finchley se intrometesse a todo momento, então era
melhor parar de pensar de uma vez.
Antes de considerar a reforma completa de si mesma, ela foi
a um cabeleireiro muito caro, que deixou as mãos descan-
sarem simpaticamente nos ombros de Kate, enquanto olhava
por sobre sua cabeça para a imagem refletida no espelho,
exatamente como ela estava fazendo. Olhavam para a
matéria-prima que ele utilizava em sua arte; e então ele
perguntou se o cabelo dela sempre tivera aquele tom de
vermelho. É claro que ele estava certo, mas ela havia temido
que o vermelho muito escuro, que era o seu natural, fosse
espalhafatoso demais para uma mulher da sua idade. Ante
aquilo ele disse "besteira" e a mandou embora com o cabelo
vermelho bem escuro, cortado de tal forma que caía como
uma massa de seda pesada, balançando de encontro às maçãs
do seu rosto, quando virava a cabeça. Como, lembrava-se
muito bem, havia feito sempre, antigamente.
Era perturbadora aquela evocação de si mesma quando
jovem. Sentiu-se emotiva demais. Desejou que o seu
Michael estivesse ali para admirá-la; depois, com a mesma
violência, ficou feliz por ele estar bem longe, em Boston.
Que eram aquelas reviravoltas de sentimentos, o que as
causava? No decorrer de uma única hora, seus pensamentos
com relação a Michael foram tão contraditórios quanto os de
uma louca. Por quê? Certamente a verdade não podia ser
que ela fora sempre assim e que só agora estivesse
começando a perceber! Bem, pelo menos podia ter certeza
de que estava satisfeita porque seus filhos não podiam vê-la
— oh, não, nenhum jovem gosta de ver a querida mãe toda
lustrosa, cintilante e sedosa.
Mas àquela altura eles estavam espalhados pelo mundo afora,
na Noruega e no Sudão, no Marrocos e na Nova Inglaterra;
exatamente como os delegados de quem estivera cuidando
há tão pouco tempo, como os delegados que estavam,
naquele exato momento, em tantos países diferentes,
fazendo malas e se despedindo das esposas e dos filhos e, em
alguns poucos casos, dos maridos.
Ainda restavam três dias antes que tivesse de voar para a
Turquia — se a greve das companhias aéreas acabasse a
tempo, pois, do contrário, teria de ir de trem. Três dias.
Nada havia para fazer até que a conferência começasse. O
sentimento de culpa por não estar fazendo nada, enquanto
era tão bem remunerada, a fez sugerir a Charlie Cooper que
ela poderia talvez realizar um outro trabalho durante aquele
período; poderia ajudar os tradutores, por exemplo. Pela
primeira vez, viu Charlie Cooper irritado. Repetiu seus
diversos comentários a respeito do valor dela... e, no
entanto, que é que ela estava fazendo? Tomava um bocado
de café com ele, no gabinete; conversava com ele; duas
vezes por dia, reunia-se com ele e com o homem que era o
chefe do departamento deles, para discutir as providências.
Isto era trabalho? Bom Deus, se pudesse fazer a reorgani-
zação daquele departamento... mais, daquele prédio, com as
suas multidões incríveis, altamente remuneradas, de... tinha
que parar com aquilo e, além disso, nada tinha a ver com ela.
Suas críticas eram provavelmente devidas ao fato de que lhe
faltava a experiência para... Besteira, era tudo besteira; toda
aquela maldita organização, com os seus comitês, suas
conferências, suas eternas discussões, discussões, discussões,
era um gigantesco engodo; era um mecanismo para obter
incríveis somas de dinheiro para umas centenas de homens
e de mulheres.
Não adiantava nada ficar pensando a respeito daquilo, da-
quele jeito; se estava sendo paga para se sentar em
lanchonetes e ficar pensando, então se sentaria e ficaria
pensando. Afinal, quantos anos já haviam passado desde que
ela havia tido tempo para pensar pela última vez? Quase
vinte e cinco anos. De fato, a última vez em que tivera a
oportunidade de sentar-se descontraída, toda bonitinha para
ser admirada, sorridente, tinha sido naquele ano em que
visitara o avô. Naquela ocasião, também, no vestido branco
espantosamente sedutor, um dos pés pendendo solto para
um lado, como a asa quebrada de um passarinho, enquanto o
outro, impulsionando-a de maneira rítmica, na cadeira de
balanço, lançava ondas de atração sexual em todas as
direções... Naquela ocasião, também, ela havia pensado,
refletido; permitira que as palavras, que representavam seus
próprios conceitos a respeito de sua vida, fluíssem através de
sua mente, enquanto as examinava... Será que naquela época
tinha sido submetida àquele vaivém de sentimentos
contraditórios? Se assim fora, não se lembrava. Talvez o
vestido branco, que nunca conseguira usar sem se sentir
dissimulada, desonesta, superexcitada, tivesse visivelmente
representado um dos pratos da balança; e o que ela havia
estado pensando fora o outro? Pensamento não era a palavra
correta? O que vira mover-se através de sua mente fora um
bocado violento, sim, ela se lembrava, tinha sido crítica, um
turbilhão de impaciência por trás daquele sorriso doce e
lento, pelo qual havia sido, e ainda era, tão freqüentemente
elogiada.
Charlie Cooper, para citar um exemplo. Ela havia trazido
consigo, para aquela organização, a atmosfera de simpatia
carinhosa que era a força motriz de sua atuação em casa.
Será que havia feito isso — inconscientemente, é claro —
por causa do vento frio? Temera ser apenas uma tradutora
competente, chegando às nove e meia, indo embora às
cinco horas, e nesse período fazendo exatamente o que era
paga para fazer? Será que havia sentido que aquilo não era o
bastante? Era o bastante para os outros tradutores, quatro
homens e uma mulher. Mas eles ainda estavam fazendo o
mesmo, traduzindo, enquanto ela, Kate, tinha sido
promovida: porque permitira que emanasse dela uma
atmosfera de disponibilidade simpática, que fora captada pela
burocracia da organização? Será que eles tinham consciência
da razão pela qual a tinham escolhido para ser uma mãe do
grupo na Turquia? "Uma personalidade carinhosa", é o que
diziam. "Simpática." Simpática.
Aquele grande salão de repartição pública, cheio de mesas
— mas não atravancado, havia espaço de sobra —, era o
melhor dos lugares para se sentar tranqüilamente; como era
extraordinário que um lugar tão fervilhante de atividade
pudesse ser tão reservado. Muito mais que seu quarto no
apartamento da Burke Street, onde sua colega queria
conversar à noite, quando ela chegava, e preparava chá com
torradas, todas as manhãs. Em suma, sentia-se solitária. Ela
também achava Kate Brown simpática.
Mas ali, é claro, a sua privacidade já estava diminuindo, pois
o lugar começava a revelar rotinas, muitas rotinas. No início,
entrar ali apressadamente entre as sessões de tradução,
parando um instante para comer um sanduíche, sentindo
necessidade de tomar um café, ou de comida, tudo aquilo
lhe parecera como se fosse por acaso. A razão disso era que
ela se deslumbrara com tudo. Mas agora, que se estava
tornando um hábito, era difícil não se sentar ali e flutuar na
contemplação gratificante da atratividade daquela nova
classe, a dos funcionários internacionais, todos jovens, ou
parecendo jovens, ou, se de meia-idade, de meia-idade à
moderna, a velhice como um inimigo mantido bem a
distância. Era fácil interessar-se ao admirar as roupas, os
cosméticos, o contraste dramático de tantas peles negras,
brancas e amarelas. Como era harmonioso! Como tudo
aquilo era consolador: certamente era assim que o futuro
seria, assembléias de seres altamente civilizados, todos
amistosos e não combativos, amavelmente atenciosos uns
com os outros mesmo que, durante as sessões propriamente
ditas, em volta das mesas dos comitês, estivessem
empenhados em combates nacionais.
As rotinas sexuais eram, é claro, as mais fáceis de se ver —
como sempre; as ligações casuais e as amizades que fazem
parte das conferências internacionais e dos comitês.
As moças que trabalhavam naquele lugar eram de classe
média ou da alta classe média — "jovens debutantes", como
se costuma dizer, ou como se costumava dizer, para ser mais
exata. "Temos todas essas jovens debutantes", dizia Charlie
Cooper. "São todas uns amores, que é que faríamos sem
elas?" Estavam ali, não para arranjar maridos — Deus nos
livre, elas se casariam com gente da sua própria classe,
quando chegasse a hora —, mas para apreciar um "trabalho
interessante". Aquilo significava a companhia de homens
interessantes, e de mulheres interessantes, é claro, vindos de
dúzias de países diferentes, e a possibilidade de ser
convidada para trabalhar num ou mais de um desses países.
Como Charlie Cooper costumava queixar-se amavelmente:
"Para falar a verdade, eu às vezes penso que o que estamos
dirigindo aqui é uma agência de empregos de alta categoria".
Significava ter pares constantes, dignos de inveja, quando
não eram verdadeiras ligações amorosas. Quanto aos
delegados que fluíam através daquele prédio em marés
previsíveis e altamente organizadas, aquelas moças ofe-
reciam a possibilidade do melhor tipo de companhia para
jantar e ir ao teatro, ligações amorosas sem obrigações, a
escolha de secretárias do tipo mais invejável, para levar para
casa (por pouco tempo, antes que Emma ou Jane decidissem
que estava na hora de fazer uma reaclimatação), para seus
escritórios em Nova York ou Lagos, ou em Buenos Aires.
Ficar sentada ali, tranqüilamente, tão invisível quanto ela se
podia fazer, era como estar no teatro.
Um novo comitê estava previsto para dar início às reuniões
do dia seguinte: Gêneros Alimentícios Sintéticos para o Ter-
ceiro Mundo. Deveria ser, de modo geral, um evento mais
modesto do que a grande conferência na Turquia, mas os
delegados estavam chegando em todos os barcos que
vinham do continente. Mas, veja só, às onze horas da
manhã, todas as secretárias e recepcionistas estavam a
postos, espalhadas pela sala, sozinhas ou em pares, sem olhar
para as portas por onde entrariam seus parceiros para
relações sexuais ou de simples amizade, para o mês seguinte
ou coisa assim. Os delegados, de todos os tamanhos, cores,
formas e graus de atrativos físicos, chegaram — vinham
sozinhos, na maioria. Os dois times (era difícil' não os
considerar como times desportivos — tomem suas posições,
preparem-se, já!) se observaram mutuamente. Era um
procedimento de precisão, aquele; idade, grau de aptidão
física, bom gosto no vestir, provável capacidade sexual, tudo
avaliado em alguns poucos olhares. Depois, começava o
processo de mistura e combinação.
— Posso sentar-me aqui? Sou Fred Wanaker, de Nova York.
— Senhorita Hanover? Sou Hesukia, de Gana.
No final do primeiro dia, os casais já estavam separados, ou
pelo menos já era possível ver como é que eles se
formariam.
Era tão bom como no teatro, melhor ainda, uma vez que ela
era um dos atores.
Muito embora ela não quisesse ser, pois ia partir para
Istambul, onde estaria trabalhando demais para ter tempo
para pensar; e não queria, agora, ter sua atenção distraída —
agora ela sabia, estava quase certa de que deveria ter dito não
a Charlie Cooper e a todo o dinheiro, e ter dado um jeito de
ficar em Londres, num quarto, tranqüilamente, sozinha.
Absolutamente sozinha.
Nesse ínterim, embora o seu termostato estivesse ajustado
na posição baixo, ela driblava as propostas. A freqüência
com que alguns homens, negros, mulatos, de pele cor de
oliva ou rosada, se ofereciam com "este assento está livre?" a
fazia lançar um olhar sobre si mesma, do outro lado da sala,
como aqueles homens a viam. Kate via, como o havia feito
em tantos espelhos, uma mulher com os cabelos de um
ruivo surpreendente, uma pele muito branca e os olhos
simpáticos de um cocker spaniel carinhoso. (A aversão à sua
necessidade de amar e de dar fazia com que chamasse a si
mesma de cachorro, ou escrava; tinha consciência de que
aquilo era uma coisa nova para ela ou pensava que era.) No
entanto, aquela mulher, de quem tantos homens se
aproximavam, era vinte anos mais velha que algumas das
moças. Isso significava que, à primeira vista (do outro lado
de um salão e com tantas idas e vindas de gente pelo meio),
ela não aparentava os seus quarenta e tantos anos. Estava
naquele estado de eterna juventude, para cuja obtenção uma
parte tão grande do tempo e dos esforços da maioria das
mulheres é dirigida.
(Na verdade, as mulheres estavam ficando obcecadas em não
parecerem ter mais de trinta anos.) Se observasse com
cuidado, sem se deixar cegar por vaidade pessoal ou por
preconceito, poderia perceber que aquele homem que se
aproximava, qualquer que fosse a idade dele, hesitara, quase
que imperceptivelmente, quando vira que ela não era (o que
ela devia parecer, vista de longe) uma jovem de trinta anos.
Mas, tendo hesitado, tendo feito aquele exame perito e
profissional (como o de uma prostituta ou o de um
fotógrafo), com o qual nos avaliamos mutuamente nesses
encontros do mercado sexual e profissional, ele sempre se
sentava e parecia bastante satisfeito com o que encontrava:
uma companheira agradável para a mesa de café. Assim,
parecia que afinal o seu termostato interno estava obe-
decendo às suas ordens.
Mas ela não estava ali para aquele tipo de amenidades,
embora certamente fosse agradável. Queria sentar-se
tranqüilamente, descontrair-se, pensar... Tinha de fazer mais
do que regular a chama, de forma que os homens, se tendo
juntado a ela, a achassem apenas uma companheira. Mas o
quê? Certamente não teria de deixar de usar maquilagem, e
passar a usar roupas de velha, e se fazer feia. Ou sim? (Kate
estava passando por uma versão daquele dilema feminino
que é exemplificado, em seu extremo máximo, pela mocinha
que encurtou a saia até a altura da coxa, deixou a blusa toda
aberta, exceto por dois botões, e passou duas horas se
maquilando: "Aquele homem horroroso fica me encarando,
quem ele pensa que é?" Ou pela mulher elegante, que
aprofundou o decote até a cintura e deixou as costas nuas;
ela lança um olhar frio ao homem que examina seus
atrativos. "Você é um grosso", declaram seus cílios.
Bem, é claro que era ridículo esperar que ela, Kate, se
transformasse numa velha só porque... Logo ela descobriu
que, se quisesse ficar sozinha, devia sentar-se de maneira
deselegante, numa postura relaxada ou desanimada, e deixar
que as pernas descaíssem de forma desgraciosa. Se fizesse
isso, os homens não a notariam. Podia jurar que não.
Sentando elegantemente, ereta, com as pernas suavemente
ajustadas, ela fazia um sinal. Encurvando-se e parecendo
alquebrada, só quando todos os lugares na lanchonete
estivessem tomados é que alguém viria sentar-se perto dela.
Ocasião em que seria suficiente deixar o rosto cabisbaixo e
murcho, para recuperar novamente sua privacidade, e bem
depressa.
Era realmente extraordinário! Ali estava ela sentada, Kate
Brown, exatamente como sempre havia sido, ela mesma, a
sua mente, a sua consciência, observando o mundo por trás
de uma fachada apenas um pouquinho diferente da que ela
havia mantido, desde os dezesseis anos. Era apenas uma
questão de má postura, permitir que os seios descaíssem, e
fazer um olhar desinteressado, e as pessoas não a veriam.
Aquilo lhe dava uma sensação estranha, como se alguma
coisa tivesse saído do alinhamento. Pois ela estava
consciente, muito consciente mesmo, tão atenta àquilo
como se fosse o fato mais importante de sua vida, de que a
pessoa que estava sentada ali, observando, evitada ou
ignorada pelos homens, que se não fosse por aquilo teriam
sido atraídos por ela, não era de maneira alguma diferente da
pessoa que podia trazê-los todos, de novo, na sua direção,
apenas pelo ato de ajustar o retrato de si mesma — lábios,
um conjunto de músculos faciais, movimentos de olhos,
ângulo das costas e dos ombros. É assim que deve ser
quando se é um ator ou uma atriz... Como isso deve ser
terrivelmente exaustivo, uma sensação do desaparecimento
de si mesma atrás de tantos fantasmas diferentes.
A uma grande distância ela via Kate Ferreira, no seu vestido
fino de linho bordado, de pé, recostada na coluna de uma
varanda, cheia de vasos de açucenas brancas. Aquela moça
sorria para alguns rapazes. Ela sorria para os rostos deles, mas
os olhos deles lhe examinavam o corpo todo. Pelas janelas
da sala, que se abriam para a varanda, podia ver a velha
Maria, a governanta da casa de seu avô, sentada fazendo
croché, numa posição que lhe permitia vigiar Kate e os
rapazes. Naquele dia ela lhe dissera: "Você não deve sentar-
se com a saia puxada tão para cima". A saia havia
escorregado acima de seu joelho. No dia anterior, Kate usara
shorts vermelhos para jogar tênis e Maria havia dito que ela
estava com uma aparência adorável. No verão anterior, Kate
observara esta cena com a própria filha: Eileen estivera
usando uma saia curta durante o dia inteiro, que lhe ficava
pelo meio das coxas. À noite usou um vestido comprido,
que lhe batia nos tornozelos. Quando se sentou no chão,
percebeu que um homem olhava para seus tornozelos:
instintivamente puxou a saia para baixo, cobrindo os
tornozelos, e lançou um olhar ressentido para o homem.
A moça na varanda, será que tinha sido "simpática", "uma
personalidade carinhosa"?
Provavelmente não. Será que aquelas qualidades não haviam
sido criadas pelas intermináveis disciplinas de ser esposa,
mãe, dona-de-casa?
Quando ela estivesse na Turquia, se fosse comportar-se
como invisível, não apenas com o termostato ajustado para o
baixo, mas também com a sua simpatia desligada, se se re-
cusasse a ser uma mãe tribal, então que é que aconteceria? E,
no entanto, a coisa realmente interessante era ser capaz de
jurar que as pessoas que a haviam contratado não tinham
idéia alguma de por que a estavam contratando, por que
estavam tão tremendamente determinados a conservá-la.
Isto, embora Charlie Cooper, um homem, tivesse
exatamente a mesma qualidade. Será que isso significava que
ele não sabia por que estava naquele emprego?
Um dos tradutores, cuja partida provocara a crise que havia
trazido a ela, Kate, para se sentar ali, era uma mulher de
meia-idade que, segundo Charlie Cooper, valia "o seu peso
em ouro". Tentando elucidar quais eram exatamente as suas
qualidades, Kate só conseguiu arrancar dele que "mulheres
mais velhas têm muito mais paciência do que as mais
jovens".
Do comitê para o qual Kate trabalhara como tradutora,
participara um delegado do sexo feminino, uma mulher
negra, da África do Norte. Ela era alta, elegante, alinhada,
chique, altiva, distinta. Suas roupas às vezes eram vestes
típicas de seu país, que lhe davam a aparência de um pássaro
maravilhoso, e, às vezes, roupas vindas de Paris: ela era
diferente de Kate; ambas teriam dito que nada tinham em
comum. No entanto, podia-se perceber que, quando ela
estava ausente do comitê, as coisas não corriam bem. Sua
atitude — tão indiferente, tão seca, tão sorridente e, ao
mesmo tempo, antipática e de forma alguma disposta a pôr
panos quentes — não teria alguma coisa a ver com isso? Ela
havia fornecido àquele comitê o mesmo tipo de caráter que
Kate dera à sua organização e problemas periféricos.
Se ela, Kate Brown, se tornasse uma funcionária permanente
daquela organização, qual seria sua verdadeira função? Bem,
é claro que para começar ela teria de passar um longo espaço
de tempo falando com Charlie Cooper, tomando café com
ele e em conferências com homens falando a respeito de
como organizar isto ou aquilo. Trabalhando.
Se ela realmente ficasse, provavelmente herdaria a função de
Charlie, enquanto ele, como parecia ser de praxe, seria
promovido para uma função superior. Ela se encaixaria bem
na função dele; mas ele, numa posição superior,
provavelmente se sentiria desconfortável, sem saber o que
fazer. Sentir-se-ia deslocado, um peixe fora d'água, mas
nunca saberia por que estava assim.
Seu forte era emanar algum tipo de fluido invisível, como
uma formiga-rainha, cujo espírito (ou alguma palavra assim
— eletricidade) enchia o ninho, formando um todo de
indivíduos que não podiam ter qualquer outra conexão.
Isto é o que as mulheres faziam nas famílias — era o papel
de Kate na vida. E ela desempenhara aquela função para o
comitê que agora se encerrava. Iria novamente
desempenhar aquela função na Turquia. Era um hábito que
adquirira. Estava começando a ver que era capaz de aceitar
um emprego naquela organização ou em outra parecida, por
nenhuma razão a não ser o fato de ser incapaz de se desligar
da função de emanadora de segurança invisível, consolo,
ternura, simpatia. Não que ela precisasse de um emprego ou
que quisesse um. Tinha sido posta em funcionamento pelos
vinte e poucos anos de esposa e mãe.
No canto de uma sala agitada e barulhenta estava sentada
uma figura serena de mulher, segurando nas mãos bem-
tratadas, mas supercompetentes, o jornal daquele dia, os
olhos baixos, os ombros bastante inclinados: estavam em
posição para suportar a espécie de frio que um animal deve
sentir se sua pele lhe é arrancada, ou o frio que um cordeiro
novo sente ao emergir do calor úmido do ventre materno,
para cair no chão gelado pelo vento cortante.
Seria fácil manter do lado de fora o vento frio, é claro: podia
fazê-lo indefinidamente. Ainda seria fácil durante anos.
Tudo o que tinha de fazer era dizer à sua família — notícia
que eles receberiam com alívio, ela sabia — que havia
decidido arranjar um emprego. E então encontrar o tipo
certo de emprego. Ali, provavelmente, por que não? Que
poderia ser mais útil do que trabalhar para a Alimentação
Mundial? Então ela nutriria e alimentaria em si mesma, que
era toda calor e charme, aquela personalidade que nada tinha
a ver com ela, nada a ver com o que ela realmente era, o
indivíduo que estava sentado olhando e observando as coisas
por trás dos olhos castanhos, carinhosos, da pele bem-
cuidada, das ondas largas do cabelo vermelho-escuro.
Mas durante três semanas, um mês, ela estaria ocupada
demais para pensar nessas coisas: estaria se preocupando
com os outros. E por esta hora, no dia seguinte — ela refletia
assim na véspera de sua partida para Istambul —, o que
estava sentindo e pensando agora, o resultado de três dias de
solidão cuidadosamente mantida, pareceria bastante remoto.
O melhor que poderia fazer ali, provavelmente, seria
lembrar que tinha chegado àquelas conclusões, conclusões
essenciais, e agarrar-se a elas. Mesmo que não pudesse
lembrar-se daquilo por mais do que uns minutos roubados
em todo o dia sobrecarregado.
Naquela noite, o sonho apareceu novamente em seu sono —
a continuação do sonho sobre a foca. Agora, porque aconte-
cera duas vezes, estava anunciando a sua importância para
ela. Tinha quase esquecido a primeira parte; agora teria de
lembrar- se dela... era o que estava tentando fazer, mesmo
com a segunda parte ainda oculta.
A foca era pesada e escorregadia. Era difícil mantê-la nos
braços. Ela estava cambaleando em meio às rochas
pontiagudas. Onde estava a água, onde estava o mar? Como
podia assegurar-se de estar indo na direção certa? O pavor de
que aquela não fosse a direção certa a fez desviar-se para a
direita, seguindo ao longo de um ponto mais baixo na
encosta. Seguiu por ali por algum tempo, mas a foca
começou a fazer movimentos inquietos e ela percebeu que
tinha estado na direção certa, no início. Tornou a seguir para
o norte. A pobre foca tinha feridas nos lados: havia se
arrastado pela terra, tentando alcançar o mar, e esfolara-se
nas pedras e no solo rochoso. Estava preocupada porque não
tinha um ungüento para passar naqueles ferimentos, alguns
deles recentes e ainda sangrando. Também havia muitas
cicatrizes, de velhos ferimentos. Talvez alguns dos arbustos
amargos que cresciam nas rochas tivessem propriedades
medicinais. Ela colocou a foca no chão cuidadosamente e o
animal pousou a cabeça sobre seus pés, longe das pedras; ela
estendeu a mão para baixo, lateralmente, e arrancou as pon-
tas de algumas folhagens de um arbusto. Não havia jeito de
amassar aquela folhagem, assim ela a mastigou e cuspiu o
líquido de sua boca sobre os ferimentos da foca. Pareceu-lhe
que estes já estavam ficando curados, mas não podia parar
para fazer mais, e assim tornou a pegar a foca no colo e
continuou a lutar para seguir adiante com ela.
Kate sabia, é claro, que estava prestes a ser passada de uma
organização suave e impessoal para outra, dentro de uma
questão de horas, através de uma suave e impessoal
companhia aérea. Ela conhecia, como todos nós, através do
rádio, televisão e cinema, o serviço de aviação civil
internacional e a sua maneira de ser. Mas as coisas não
aconteciam daquela maneira. Na véspera de sua partida a
greve foi definitivamente dada por encerrada e seu vôo foi
confirmado; na manhã seguinte, havia outra greve: a do
pessoal administrativo. Kate tomou o trem para Paris, onde
esperava tomar um avião para Roma. Em Paris disseram-lhe
que as estradas para o aeroporto estavam bloqueadas naquele
dia por uma manifestação de trabalhadores estrangeiros, a
maioria espanhóis e italianos. Era improvável que saísse de
terra naquele dia. Tomou o trem para Roma. Lá, era uma
questão de deixar um circuito de engrenagens, estradas de
ferro, para entrar num outro, o das viagens aéreas. Houve
engarrafamentos, confusões, todo tipo de atrasos, mas ela
conseguiu, afinal, completar o circuito, se bem que tarde.
Na Turquia, encontrou o que já esperava: um carro silen-
cioso veio buscá-la, e sozinha, em meio a pessoas que nunca
poderiam esperar sentar-se num carro daqueles, a menos
que o seu trabalho fosse dirigi-lo ou cuidar de sua
manutenção, e protegida do meio ambiente de todas as
maneiras, exceto por seus olhos, ela conversou em francês
com o motorista. O hotel era, em espírito e estilo, parecido
com o prédio da Alimentação Mundial. O quarto de Kate era
como a caixa despersonalizada que ela havia deixado. Mas os
vários atrasos fizeram-na chegar ao mesmo tempo que os
delegados — e uma infinidade de coisinhas necessárias não
tinham sido providenciadas, e estavam com falta de um
tradutor. Verificou apenas a chegada da sua bagagem ao
quarto e então se apresentou: a irritação geral focalizou-se
sobre ela, agora personificando o espírito da ineficiência, do
qual, em todo aquele vasto hotel, os delegados reclamavam,
exatamente como ela fizera ontem e no dia anterior, em
Londres, Paris e Roma.
Um andar inteiro fora destinado à conferência. O grande
salão, onde as deliberações seriam tomadas, era parecido
com o que havia acabado de deixar e no qual estava quase
pensando como "casa". Era fulgurante, de madeira, do teto
ao chão, que, entretanto, não era de carpete espesso, mas de
cerâmica, cujo padrão era copiado de uma mesquita. No
meio deste salão via-se uma grande mesa, desta vez
retangular, aparelhada com fones, controles e botões. Agora
era sua tarefa verificar se cada lugar estava equipado com
papel para rascunho e anotações, para os ataques de tédio,
quando os delegados falassem demasiado, e com lápis,
canetas e água. Ou melhor, não era ela que devia fazer isso:
devia assegurar-se de que o funcionário do hotel,
responsável pelo setor, não havia esquecido. Ahmed, o
funcionário, era um jovem um pouco gordo,
inapelavelmente agradável e sorridente; seu companheiro,
aliado, seu irmão. Ele falava francês, alemão e inglês; estava
satisfeito porque ela acrescentava o que lhe faltava: italiano e
português. Sabia tudo a respeito do negócio de hotéis, mas
nunca havia assistido a uma conferência antes, ou melhor,
embora conhecesse o ramo das conferências, esperava que
aquela fosse diferente. Eles confabularam neste e naquele
idioma. Quando um mensageiro de túnica, com galões e
botões, se aproximou de Ahmed, Kate ouviu ordens dadas e
recebidas em turco. Ela ainda não tinha ouvido aquela língua
ser falada desde que chegara ao país. Sentada e conversando
com Ahmed, de pé e conversando, andando e conversando,
fazendo planos para o conforto de outras pessoas, ela ouviu
turco, como se, de passagem pelos seus ouvidos, fossem
ruídos de fora do palco, nada mais. Por toda parte à sua
volta, fora daquele hotel, havia um mundo onde seus
ouvidos, quando estivessem realmente atentos à língua,
ficariam, de repente, embotados e ignorantes: a língua que
ela não conhecia estava a sua volta como vidraças de janelas
mal limpas, opaca, difícil; seus ouvidos, como que agredidos,
se esforçariam para compreender a troca de palavras de duas
criadas num corredor — eles sentiam que deveriam
compreender e, se não conseguissem, a culpa era deles...
sem Ahmed, ela seria como uma peça inútil na engrenagem.
Ele sabia tudo sobre a vida noturna, restaurantes, dançarinas,
mesquitas, igrejas e viagens curtas pelos arredores de
Istambul. A cidade, vista a centenas de metros de altitude na
sua atmosfera, mas em breves relances, era toda um brilho
sedutor de telhados e de água prateada, e ruas, que eram
como a própria língua turca, distantes e vigorosas, com uma
vida que, ela sentia, estava querendo ver de perto,
compreender... Um passarinho passou voando no seu campo
de visão, enquanto ela estava parada junto de uma janela. Era
de uma espécie que nunca vira antes. Kate sentiu que estava
sendo apresentada a um mundo desconhecido, e observou o
passarinho que cruzava a água alimentada pelo mar Negro
em direção a pináculos e abóbadas numa outra praia,
enquanto Ahmed esperava a seu lado por uma resposta a
uma pergunta sobre preferências alimentares.
Quando o último delegado desceu dos céus, divertimentos,
excursões, distrações culturais de todos os tipos, para não
falar em grandes pratos de uma dúzia de nações, estavam à
espera. E, já sendo experimentados, aqueles homens e
mulheres pareciam pouquíssimo fatigados. De tão veteranos
que todos eles eram naquele negócio de atravessar
continentes, chegavam adoravelmente vestidos e
despreocupados, conversando uns com os outros, numa
variedade de línguas. Era evidente que aquela ia ser uma
conferência bem-humorada e amena. Eles estavam gostando
uns dos outros. Afinal sempre gostavam, aqueles
administradores, aqueles antagonistas tão suaves, aqueles
intérpretes dos interesses nacionais cheios de tato. Pois não
importava o quanto eles expressassem desacordo quando
sentados em torno das grandes mesas e quão
veementemente apresentassem as alegações de seus países,
ou mesmo as acusações de jogo duplo de uns com os outros
(Era a nação x que tinha posto praga nas colheitas daquela
estação para arruinar o mercado! — Não, ê óbvio para o
mundo inteiro que a sua colheita teve praga porque não
estava sendo plantada corretamente. — Você não permitiria
a ninguém, senão ao seu próprio país, que se beneficiasse. —
Vocês sempre bloqueiam tudo! — Ao contrário, nós
queremos ajudar nossos irmãos desafortunados nos países
pobres), sim, exatamente como tantas crianças brigando;
mas não importava como nem com quanta freqüência aquilo
acontecia. Depois, nos salões de descanso e nos bares, salões
de chá e restaurantes, para não mencionar as camas, tudo era
compreensão e fraternidade. É claro, pois todos faziam o
mesmo trabalho, passavam a vida exatamente da mesma
maneira — tinham tudo em comum.
Naquela noite, Kate juntou-se a um grupo de excursionistas
daquela gente que, embora tão viajada, ainda não fora
suficientemente afortunada para ter visto Istambul antes. No
momento em que deixou o hotel, encontrou-se numa
cidade de lenda, mistério e romance, exatamente como os
folhetins de turismo a descreviam em todas as línguas que
ela falava, em muitas que ela desconhecia. O grupo era
composto por Mme Phiri, uma senhora bonita e muito
francesa de Serra Leoa, pelo Sr. Daniel, do Brasil, e pelo Sr.
Ferrugia, da Itália. Jantaram num restaurante turco, pois era
o mínimo que se esperava deles, visitaram duas boates, onde
viram dançarinas do ventre e engolidores de espadas, e
concordaram em que, muito breve, os mesmos quatro iriam
visitar um vilarejo situado a setenta e cinco quilômetros da
cidade, onde havia algumas antiguidades interessantes,
recentemente descobertas. Tinha sido, todos concordaram,
quando se separaram no hall do hotel naquela noite, uma
noite especialmente agradável: falavam como connaisseurs
que eram. Então foram para a cama cedo, isto é, antes de
uma da manhã, uma vez que a conferência começava no dia
seguinte.
Antes de dormir, Kate teve tempo de pensar no seu
Michael, que estava, ela achava, em Chicago, onde passava
alguns dias com um velho amigo que havia emigrado para os
Estados Unidos. Pensou também nos seus quatro filhos.
Notou que a aflição que veio com a lembrança deles foi logo
abrandada: ela sabia que -já estava florescendo, se
expandindo, aumentando — ela era querida, necessária. Ia
ser necessária durante o dia inteiro e a maior parte da noite.
E agora, durante os poucos minutos que tinha livres todos os
dias, notou o crescimento lento de sua euforia, fato que ela
observou com bastante secura. E, uma vez que estava
ocupada demais para pensar por muito tempo, podia
permitir que os pensamentos entrassem onde teria sido
doloroso demais se houvesse tempo para que eles se
instalassem: como a sua família tinha ficado encantada
quando ela dissera que estaria ocupada com a conferência
em Londres e que não teria tempo para fazer malas,
organizar e arranjar as coisas... E havia alívio na voz de Tim,
quando ela lhe dissera: "Oh, querido, você está com tudo
pronto para ir para a Noruega? Sinto muito, estou
simplesmente ocupada demais para..."
O fato era que o retrato ou imagem de si mesma como
centro cálido da família, a fonte de emanações invisíveis
como formiga-rainha, estava fora de moda há uns dois ou
três anos. (Será que havia alguma coisa errada com a sua
memória? Era alguma coisa mais, como se ela tivesse
diversos conjuntos de memória, cada um contradizendo os
outros.) A verdade era que ela estava faminta há dois anos,
três, mais... De qualquer maneira, desde que as crianças
tinham crescido. O fato de que isto levara algum tempo, de
que tinha sido um processo, de que nunca tinKa havido um
momento em que ela tivesse podido dizer "agora eles estão
crescidos", acabara... Será que era por isso que suas
memórias se estavam tornando mentirosas? É claro que não
tinha sido a verdadeira Kate quem estivera faminta. Aquela
personagem havia permanecido como sempre — ou pelo
menos em seus melhores momentos — tranqüilamente fora
de cena, e observando, o que era mais freqüente, se bem
que nada divertido. Mas fora bastante dolorosa aquela
privação; com freqüência, ela se havia sentado sozinha em
seu quarto, diante da consciência de uma intolerável
injustiça. Injustiça, a sua dor estivera esperando por ela
durante todos aqueles últimos anos. Mas ela não se havia
permitido senti-la, ou pelo menos não por muito tempo. Em
vez disso, conservara cuidadosamente a imagem do
casamento (será que poderia ser chamado, talvez, de "fase
10"? "fase 15"?), que era o resultado de discussões inte-
ligentes com ou sem o marido. Ela não se havia permitido
chegar muito mais perto do que estivera sentindo do que
com a careta divertida. Seria insuportável deixar que tudo
aquilo a tomasse de assalto agora. Algum dia terei de fazê-lo!
Mas agora, felizmente, estava ocupada demais;
lisonjeiramente ocupada. Ei-la, aqui, recebendo sorrisos de
camareiras e garçons, do gerente do hotel e dos
encarregados dos andares, de motoristas de táxis e de
intérpretes. E sobretudo de Ahmed, que a adorava. O
relacionamento deles era o de dois eunucos num harém. Ele
a apoiava, compreendia tudo, providenciava tudo. Ela,
infalivelmente, era a única pessoa capaz de lidar com todos
os problemas e necessidades dessas crianças difíceis,
talentosas, mimadas, acostumadas a serem o centro das
atenções, os administradores internacionais, a nova elite: ela,
com o seu gênio, Ahmed. Enquanto prosseguia a
conferência, ela permanecia num aposento próximo,
esperando o momento de ser útil. Quando necessário,
ocupava sua pequena cabina, pronta a, por um simples gesto,
passar do francês, italiano, inglês, para o português — todos
os oradores de língua portuguesa cumprimentando-a por sua
absoluta fidelidade ao espírito de seu idioma. Durante as
pausas para café e drinques, durante as refeições, em toda
parte, a qualquer momento do dia ou da noite, lá estava ela,
a sempre disponível, sempre bem-humorada, a popular Kate
Brown.
No verão anterior, dúrante sua visita aos Estados Unidos, ela
observara a sua situação atual...
Por toda a extensão daquele continente, repetem-se versões
de um edifício que parece uma pequena cidade, mas conti-
da sob um único teto, que às vezes se estende por
quilômetros e é subdividido em setores, cada um
constituindo uma unidade completa a serviço de uma
determinada empresa aérea. Algumas das grandes
companhias de aviação empregam moças que parecem as
balizas usadas em convenções e carnavais. Essas garotas,
vestidas de modo extravagante e em cores berrantes,
patrulham a área ao longo dos balcões de sua empresa aérea.
Supõe-se que lá estejam para fornecer informações e
orientação, e prestam, na realidade, tais serviços. Não é essa,
porém, sua função, e sim a de, simplesmente, associar àquela
determinada companhia aérea a idéia de sexo fácil, ao
alcance de todos e isento de culpa. Não se trata de uma
sexualidade desafiante ou difícil, complexa ou misteriosa. De
modo algum. As garotas são atraentes, mas não muito sexy.
Foram escolhidas por sua sexualidade amistosamente
petulante e óbvia, e lá estão elas, sozinhas, aos pares ou em
grupos de três, de um lado para outro, sorrindo, sorrindo,
sorrindo e, à medida que você as observa (enquanto se
passam as horas se, por exemplo, a partida do seu avião
estiver atrasada), elas se vão inflando lentamente, de um ar
quente que se expande. Estão intoxicadas — literalmente, na
verdade — por sua própria atração e pelo fato de estarem em
público, vestidas e dispostas em local propicio para atrair
tantos olhares, e por sua utilidade. Sorriem, sorriem e
sorriem, tanto que em pouco tempo se tem a impressão de
que essas garotas vão levitar uma a uma, erguidas pela
expansão dos gases de sua própria boa vontade,
constantemente reabastecidos pelo excesso de atenção. Sim,
flutuarão através das janelas do aeroporto, balançando
sorridentes pelo céu como balões atmosféricos, entre os
aviões que decolam e aterrissam. E dentro do avião existem
garotas em situação idêntica, as aeromoças, cada uma
intoxicada por sua condição de benfeitora pública,
fornecedora de amor. Isso não se aplica às grandes empresas,
às linhas internacionais, nas quais as moças trabalham
arduamente, fornecendo atenção e amor sob a forma de
comida para os usuários. Por todos os Estados Unidos,
porém, as pequenas e rápidas aeronaves adejam dia e noite,
cheias de garotas sem muito que fazer. Elas oferecem
drinques. Dispõem à sua frente bandejas de refeições
acondicionadas, com ternura e sorrisos de intimidade.
Enviam pelo intercom mensagens de amor: "Nós gostamos
de vocês, precisamos de vocês, por favor, voltem, por favor,
gostem de nós". E andam para cima e para baixo, para cima e
para baixo, sorrindo, sorrindo, admiradas por homens e mu-
lheres. A função delas é serem admiradas. À medida que se
movimentam, exibindo-se, a febre aumenta. No início de
cada vôo, a moça está saudável e radiante de afabilidade
geral, mas logo parece tornar-se prestes a explodir com as
forças de atenção que absorve. Está inflada pelas mesmas;
provavelmente está com febre, pelo menos o aparenta, com
as faces coradas e os olhos vidrados de excitação.
E ela sorri. Ela sorri. Ela sorri.
Pode-se supor que, ao retornar a seu quarto após um vôo,
esteja inquieta, não possa sentar-se, não possa dormir, não
consiga parar de sorrir, não consiga comer. Está excitada
demais, não pode desligar-se. Caso tenha um homem, que
poderá ser o amor desse pobre joão-ninguém, em
comparação com o que ela passou o dia inteiro recebendo de
dezenas de homens? E imagine o que acontece quando essa
vítima se casa! Coisa que, evidentemente, deverá acontecer
muito em breve — o índice de casamentos é muito elevado
na profissão, tal como o índice de divórcios. Mas por um
ano, dois anos, três anos, no máximo seis, aquela garota
esteve à mostra, foco de centenas de pares de olhos, o dia
inteiro; cada minuto de seu horário de trabalho, um
receptáculo para admiração, desejo e inveja, geradora de
calor, conforto, atenção. Então, ela se casa. Deve ser como
descer de um palco, onde mil pessoas estão aplaudindo, e
entrar num pequeno quarto escuro. É muito provável que
ela não faça a menor idéia do que a faz sentir-se como um
pião que foi girado e girado e deixado lá, girando para
sempre. Não se trata de uma moça introspectiva ou
autoconsciente, pois esse tipo de moça tem de ser,
necessariamente, uma ingênua, para que possa chegar a ser
preparada para tal trabalho. Nunca, em toda a sua vida, tal
pensamento passou por ela: a monstruosidade de preparar
uma moça para servir de alvo ao amor público — baliza,
anúncio de empresa aérea, aeromoça — durante meses, ou
anos. Ela se casa porque casar cedo é fator de auto-
afirmação; então, deve ser como se ela tivesse dentro de si
um órgão capaz de absorver e fornecer milhares de watts de
amor, de atenção, de lisonja, e esse órgão funcionou com
força total, mas não pode ser desligado. Qual é o problema?
A garota não tem a menor idéia. Por que se sente tão
irritável, por que não consegue relaxar-se, descansar,
dormir? É como uma criança que os adultos admiraram, mas
da qual agora se cansaram, se afastaram, começaram a
conversar e esqueceram-na. Não importa o quanto dance e
sorria e faça pose e grite: "Olhem pra mim! Olhem pra
mim!" Eles parecem não ouvir. E, finalmente, dizem: "Fique
quieta. Vá brincar".
Ela sente dores de cabeça. É frígida e então faz amor
freneticamente, com um homem que se sente como se
tivesse um rival. Logo vem o divórcio. É provável que a
moça procure seu antigo emprego, mas está velha demais.
Perdeu sua vitalidade fácil de cadela jovem e seu lugar foi
ocupado por uma garota recém-saída do colégio.
Em breve seria meados de julho. A conferência terminaria
dentro de uns dois dias, quando então os delegados se
dispersariam enquanto chegariam outros: o hotel seria sede
de uma conferência sobre cólera.
Kate sorria, sorria, sob o foco da admiração das outras pes-
soas, orientando o facho de sua própria presteza em direção
a todo mundo; a idéia de que dentro em breve estaria só
tornava exageradas suas reações. Ela conhecia a sensação.
Era pânico. O facho do sorriso era forte demais. Ou talvez
não fosse isso: ela oferecia aquilo de que dispunha, como
fizera desde o início da conferência, mas agora era
excessivo, numa situação em que todos só pensavam em
fazer malas e partir. Ela se via, através das reações de
Ahmed, como uma mulher eficiente, de grande capacidade,
sorridente, mas que girava sem parar em torno de si mesma,
como um aparelho que alguém deveria ter desligado.
Ahmed lhe oferecia cápsulas contra dor de cabeça,
confessava que também estava sofrendo — ao fim de um
acontecimento desse tipo, não conseguia dormir e sua
esposa reclamava. Kate lhe mostrou os retratos de sua
família; ele fez o mesmo e Kate viu a fotografia de uma
mulher tranqüila e bem-arrumada, com uma garotinha
sentada rígida no colo; Kate podia perceber que tirar aquela
fotografia havia constituído uma ocasião especial. Essa cena
teve lugar num intervalo do trabalho no topo de umas
escadas, de pé, junto de uma janela, pois Ahmed não podia
sentar-se, como um hóspede, como ela podia; da mesma for-
ma como ela acompanhava os delegados a todos os lugares
para as refeições e excursões, mas é claro que Ahmed não
podia. Assim, agora ela estava ali, com Ahmed à seu lado, e
ouviu a preleção de como, se ela se fosse deitar cedo naquela
noite, tendo tomado aquele remédio, estaria menos nervosa
pela manhã.
Kate achou que aquilo não se realizaria: o que esperava por
ela, no momento em que lhe desse uma oportunidade, não
seria abrandado e afastado, até desaparecer, por sedativos.
Teria de voltar para Londres, para ficar sozinha, em algum
lugar, durante dois meses, e encarar, em completa solidão,
sua própria vida. É claro, recebera convite para visitar vários
países, de diversos homens e mulheres de quem se havia
tornado uma boa amiga — amizade de acordo com aquele
estilo de vida, casual, sem qualquer tipo de exigências,
tolerante, uma amizade que era, na realidade, toda em
termos de negação. Não fazia críticas. Não fazia exigências.
Não dava a menor importância a diferenças de nacionalidade
ou raça que, dentro daqueles círculos mágicos, pareciam
existir apenas para propósitos de agradável excitação. E era
democrática sexualmente. Corações não eram partidos. É
claro que não, as carreiras eram mais importantes que o
amor ou o sexo; provavelmente aquela era a sexualidade do
futuro; o amor romântico, o desejo, desesperos de qualquer
espécie seriam banidos para um passado neurótico. Amigos
desse tipo, antigos amantes ou futuros amantes desse tipo
podiam separar-se em Buenos Aires, após um contato diário
intenso, não trocar mais nem uma única palavra durante
meses ou anos, ou mesmo nem pensar um no outro; e se
encontrarem de novo em Reykjavik, com prazer discreto e
cuidadosamente medido, para uma outra rodada de
intimidade bem ajustada, bastante parecidos com os atores e
atrizes numa peça que sofrem ou gozam de uma
proximidade tão intensa por um breve período de tempo e
depois se dispersam, para novamente se encontrarem,
usando fantasias diferentes, dez anos depois.
Será que ela deveria ir para Serra Leoa com a atraente Mme.
Phiri? Por que não? Ou podia ficar ali, na Turquia, pois não
tinha feito muito mais do que comer excelentes comidas em
diversos restaurantes e visitar duas mesquitas e uma igreja.
Mas a Turquia não é um lugar para uma mulher sozinha. Se
fosse em Paris ou em Roma, então talvez... Ali, ela não
poderia ir de carro sozinha, para cidades do interior, ou
melhor, ela não podia, equipada com seu tipo de
personalidade, a de mulher casada há muito tempo, sem um
homem a seu lado.
Estava no hall do hotel esperando por Mme. Phiri, que lhe
havia pedido que lhe marcasse uma hora num cabeleireiro.
O pessoal do hotel podia ter feito, devia ter providenciado
isso, é claro; mas a querida Kate era tão eficiente para fazer
as coisas!
Ficou parada esperando, enquanto as pessoas passavam por
ela cumprimentando com um movimento de cabeça e
sorrindo. "Cara Kate. Chère Katherine. Doce Katya, Katinka,
e Kitty. Querida Katy, a minha Cationa. Adorável Katlyn,
Caterline,
Kit e Catherine. E Katerina, meu amor; meu anjo, Katy.
Karen, não sei o que eu vou fazer sem você. Eu sentirei a
sua falta, Sra. Brown."
Ela estava sorrindo, sorrindo, enquanto cantarolava,
silenciosamente, dentro de si mesma, não sem histeria:
"Eu sentirei a sua falta, Sra. Brown!
Como sentirei a sua falta, Sra. Brown!
A senhora me alimentou, me guiou,
A senhora me deu tudo que eu queria,
Mas agora a senhora está suplantada
E eu sentirei a sua falta, Sra. Brown..."
Estava esperando, consideravelmente muito mais tempo do
que imaginara, por Mme Phiri, que se despedia de alguém,
diversos andares acima, quando reparou num homem, cujo
rosto reconheceu, vindo em sua direção. Antes que ela
soubesse, ele a estava convidando para uma viagem até
Konia, no dia seguinte. Ele havia alugado um carro.
Eles se haviam visto, pela primeira vez, há uma semana, do
lado de fora daquele hotel, na calçada. Ele, um rapaz
levemente amorenado, num terno de verão, estava de costas
para o fluxo pesado do tráfego, olhando de alto a baixo o
prédio do hotel, como se o estivesse medindo. Sua aparência
era a de um delegado, pois sua elegância no terno claro o
situava além da massa de turistas de verão, vestidos
descontraidamente. Depois, ela o vira num café. Ele se
encontrava na mesa vizinha, com um grupo de pessoas
jovens, e haviam trocado algumas palavras numa conversa.
Agora, ele se vestia como turista e parecia estar com calor. O
cabelo escuro, que era cortado para ser penteado para trás,
liso e brilhante, caía em mechas soltas. Ele lhe dizia que era
americano, que não estava, de maneira alguma, visitando a
Europa pela primeira vez, e que planejava dentro em breve
ir para a Espanha, onde sempre se sentia em casa. Ela podia
acreditar, ele parecia espanhol e em qualquer país latino
passaria por um nativo.
Não estava hospedado naquele hotel, que, conforme ele
disse, ficava além, muito além de suas posses. Assim, o
convite para que ela fosse com ele, no dia seguinte, não
podia ser um ato impulsivo, mas algo planejado.
Ele estava dizendo que, depois de tê-la visto no café,
adivinhara — afinal, aquilo não era assim tão difícil! — onde
provavelmente ela estaria e, após algumas perguntas, ali
estava ele. Ao mesmo tempo, oferecia sua impulsividade
descontraída:
— Seria tão maravilhoso se você realmente tivesse tempo,
seria mesmo uma pena desperdiçar o lugar livre no carro —
os olhos dele prenderam os seus com uma expressão de
zombaria, quanto à situação, quanto a si mesmo, e não
estavam nem um pouco ansiosos. Pois é claro que só haveria
eles dois no carro. Suas obrigações de trabalho acabariam
naquela noite... pelo menos, formalmente. Ela não tinha
dúvidas de que a manteriam ocupada até o último minuto, se
o permitisse. Disse que gostaria de ir com ele, muito embora
a imagem de Mary Finchley tivesse lhe surgido de repente
para dizer que ela devia estar louca. Para obedecer a Mary,
estava prestes a estabelecer limites às suas relações pessoais
com aquele rapaz, não tão jovem quanto parecia,
exatamente como ela não aparentava ser tão velha quanto
era, mas ali vinha Mme Phiri, caminhando rapidamente em
direção a eles, seu corpo um todo de membros esguios,
longos e castanhos, e dedos incrivelmente longos cobertos
de jóias, adejando nas desculpas fervorosas por ter feito Kate
esperar.
Kate viu o exame meticuloso a que o rapaz submeteu a bela
mulher. Não era disfarçado, apologético ou envergonhado
de si mesmo; não era agressivo, mas sim uma apreciação ho-
nesta, que ela agradeceu com o mais leve dos movimentos
de cabeça, com um sorriso divertido, antes que se afastasse
rapidamente e saísse do vestíbulo: "Kate, querida, vou
chegar tão atrasada".
— Muito bem — disse Kate. — E eu ainda não sei o seu
nome.
Era Jeffrey. E ele disse que lhe telefonaria naquela noite,
dando um passo adiante com relação a ter direitos sobre ela,
com a mesma declaração honesta e franca de suas intenções,
ou pelo menos desejos, se fosse dada a oportunidade, com a
qual ganhara um sorriso de Mme Phiri.
Eles nunca chegaram a Konia. A viagem (quente,
desconfortável e longa, porque o carro enguiçou duas vezes
antes de parar definitivamente) fez com que aquelas duas
pessoas ficassem "próximas", como se costuma dizer, muito
depressa, precisamente por causa da falta de conforto e,
depois, por não saberem se tomavam um ônibus e
continuavam ou se alugavam um outro carro. Tais
contratempos, ou algo parecido, é claro que o rapaz havia
previsto e esperara que também ela, quando sugerira a
viagem. Ele não se importava com o fato de não chegar a
Konia. Ela se importava, mas não muito. Realmente fazia
muito calor e havia muita poeira. Eles se sentaram no banco
de trás, conversando, enquanto o motorista saiu para
providenciar um outro transporte.
Falaram a respeito dele. Trabalhava com propaganda e
publicidade, em Nova York. Nascera em Boston. Era bem-
apes- soado, inteligente, divertido, educado. Também tinha
os atrativos do não-conformismo: há quatro anos, decidira
abandonar o que ele mesmo era o primeiro a ridicularizar,
chamando de "o espírito da cobiça da propaganda",
promovendo-se, assim, duas vezes, uma vez por fazer parte
do espírito da cobiça, e outra por lhe ter dado as costas, coisa
que fizera depois de apenas três anos, ainda que muitíssimo
bem-sucedidos. Era o sucesso, a sua facilidade, que o havia
aterrorizado mais do que qualquer coisa. Assim, ele tinha
"caído fora". Não para a indigência e "hippismo", já bastante
comuns, pois se considerava velho demais para isso. E tinha
pais ricos. Mas dera as costas a uma carreira e a um estilo de
vida. Desde então havia passado a maior parte do tempo
viajando de carona e acampando pela Europa. Agora estava
com trinta e dois anos.
Era evidente para Kate, que o ouvia como a um de seus
filhos, que ele estava cheio de dúvidas e conflitos. O "cair
fora" não fora uma decisão definitiva. Suas decisões ainda
estavam adiante dele. Tudo muito bem quando se "cai fora"
com vinte ou vinte e cinco anos. Tudo muito bem enquanto
vivesse com uma moça que lhe agradasse ou a quem ele
agradasse durante um verão em Mount Shasta — ele fizera
isso; ou em Vermont — ele fizera isso. Tudo muito bem
enquanto vivia com o dinheiro da sua avó morta; ele se
apressou em sublinhar que era dinheiro "dele" e não de seus
pais. Mas agora ele estava com mais de trinta anos. Não sabia
como queria viver: isso era a essência de tudo. Como só
Deus sabia, quantos milhões de jovens, que não incluíam,
graças a Deus, nenhum dos filhos dela, ou pelo menos não
por enquanto, a menos que Tim se tornasse um deles, não
sabiam o que fazer consigo mesmos. Jovens dos países
desenvolvidos, os ricos do Terceiro Mundo. Os jovens do
mundo subdesenvolvido, do mundo faminto, não tinham
escolha. Tinham de tomar à força, roubar e passar fome para
viver. Não saber como viver era um privilégio da juventude
rica do mundo.
Todas aquelas coisas ele abordara no seu estilo seco e
divertido, durante a viagem para Konia, e depois no banco
de trás do carro, enquanto observavam o fluxo do tráfego
rápido para Konia, e por fim enquanto se sentavam na beira
da estrada, pois estava quente demais dentro do carro. Foi só
no meio da tarde que o motorista conseguiu uma carona que
os levasse de volta a Istambul, num táxi dirigido por um
amigo seu. O táxi era muito velho. Saltava e sacolejava.
Foram prosseguindo através de uma nuvem constante de
poeira amarela que incendiava um pôr-do-sol já, por si só,
maravilhoso. Ele falou. Então, foram para um restaurante.
Tinha de ser um que fosse barato, uma vez que era ele quem
convidava, e, atualmente, estava desempregado. Depois do
restaurante, foram a uma boate, onde ele, ignorando
dançarinas do ventre e cantoras, falou, falou e falou. Kate
ouviu. Acima de tudo ela era uma ouvinte habilidosa.
Enquanto ele falava, perguntou a si mesma se iria decidir-se
a ir ou não para a cama com ele. Em sua imaginação, trocou
comentários obscenos com Mary. Ela sabia que o homem
que se teria aproximado de Mary, se ela tivesse estado lá, não
seria, de maneira alguma, parecido com esse rapaz. Mary
não teria — certamente ela diria isso com uma impaciência
rude — olhado para Jeffrey. "Aí vai você de novo, Kate",
imaginou a amiga dizendo. "Que é que há de errado com
você? Pelo amor de Deus, se está querendo se foder, então
vá em frente!"
Se Mary tivesse estado naquele hotel, uma noite bem tarde,
teria aparecido no quarto dela um porteiro ou um outro
hóspede; eles se teriam notado, um ao outro, num corredor,
num elevador, num vestíbulo; sinais teriam sido trocados,
rapidamente. Depois de uma noite que Mary classificaria
favoravelmente — seus instintos eram infalíveis —, ela não
pensaria nele outra vez. Ou:
"Houve aquele homem que eu vi na praia em Hastings",
poderia ela dizer. "Eu lhe disse, não disse? Bem, ele era
bom!"
Kate estava concordando com o fantasma de Mary; ela já
sabia que este amante, se ela decidisse levar as coisas para
aquele rumo, havia escolhido... uma ouvinte.
Aquele era o momento para pensar num assunto que ela não
costumava considerar com muita freqüência. . . mas ali
estava uma mentira, uma outra. Falsa memória de novo. Ela
devia levar em consideração, honestamente, o lugar que a
infidelidade tinha tido no casamento satisfatório e bem-
sucedido do casal Michael Brown.
Os registros das conversas deles, que haviam estabelecido
definições, se tinham, de fato, encaixado nas realidades...
bem, até um certo ponto. A pequena careta irônica nada
tinha a ver com a lacuna que existia entre a fórmula e o que
havia acontecido. Ou será que tinha? Kate sentia que era
como se um esquema de memória estivesse empurrando um
outro para fora de sua mente; nesse ínterim, ela persistia
com aquele com que estava habituada. O seu era um
casamento feliz e satisfatório, porque tanto ela como
Michael haviam compreendido, e muito no seu início, que o
âmago do descontentamento, ou da ânsia insatisfeita, se
preferirem, que é, infalivelmente, parte de todo casamento
moderno — de tudo, essa era a questão —, nada tinha a ver
com qualquer dos cônjuges. Ou com o casamento. Era
alimentada e engrandecida por aquilo que as pessoas eram
educadas para esperar do casamento, que era mesmo muita
coisa, porque a textura da vida cotidiana (Será que isso não
era uma nova frase feita? Será que tinha suplantado uma
outra, mais antiga? Que é que eles estavam habituados a
dizer, que a vida era um vale de lágrimas?) era inconsistente
e insatisfatória. O casamento tinha sido, ajustado sobre si,
uma carga que não era capaz de sustentar. Tudo isso fora
discutido exaustivamente bem lá atrás, no princípio. Não,
não exatamente na fase 1, dedicada ao encanto, nem talvez
na fase 2... estava diminuindo tanto a si quanto a ele, quando
zombava das ingenuidades juvenis de ambos; eles não
haviam alcançado a fase 3, muito menos as fases 10 ou 15 —
abandonaram esse tipo de solenidade bastante depressa.
Então, muito bem, mas havia sido muito tempo depois do
casamento, crédito a ser atribuído a ambos, que tinham
concordado em não se culparem um ao outro por não
sentirem ânsias profundas. Por quê, então, eles ansiavam?
Não sabiam. Estavam sempre ocupados demais para
perguntarem a si mesmos.
A crise acontecera quando Michael se apaixonou
perdidamente por uma colega mais jovem, no hospital.
Naquela ocasião, o casamento já havia absorvido muitas e
muitas tensões e surpresas. Já tinha dez anos. As crianças já
eram nascidas. Aquele caso foi tão perturbador para os
sentimentos de Michael e de Kate — se bem que não para
suas inteligências, que compreendiam tudo o que estava
acontecendo com facilidade —, que não se repetiu. Ou
melhor, não daquela forma. Mais tarde, ela compreendeu —
ele lhe havia permitido que compreendesse — que estava
tendo, ocasional e discretamente, e com todos os cuidados
para com ela, a esposa e a sua dignidade, casos com
mulheres mais jovens que não sofreriam por causa deles:
casos do tipo dos que floresciam entre os delegados e as
engrenagens das conferências nas grandes organizações do
mundo. Ela o havia aceitado com um sofrimento tolerável.
O sofrimento era talvez mais daquela parte dela que
acreditava que não devia aprovar aquela determinada
situação. Mas o casamento continuara bastante bem. Para
surpresa de ambos, uma vez que estavam rodeados por casais
que se divorciavam, casamentos que não tinham sido
capazes de suportar uma infidelidade... nesse ponto, o
padrão de pensamentos de Kate, ou lembranças, quase que
simplesmente se dissolvia. Parte daquilo era verdade: haviam
acertado se assegurar de que não esperariam demais um do
outro, nem do casamento. Mas quanto ao resto... a verdade
era que ela havia perdido o respeito pelo marido. Por que, se
ele não estava fazendo mais do que o que "todo mundo"
fazia, os homens na situação dele? Mas ela sentia por ele, já
vinha sentindo há algum tempo, quase que como se ele
tivesse um fraco por comer doces e não o controlasse. Ele se
diminuindo; quanto a isso não havia dúvida. Ela se sentia
maternal com relação ao marido. Antes, não era assim. Ter-
se apaixonado, e dolorosamente — isso podia compreender,
por experiência própria. Mas organizar sua vida consciente e
propositadamente, como ele fizera, e, enquanto o fazia,
"acomodando-a" com ela, é claro, de forma que pudesse ter
uma série infinita de relacionamentos sexuais amistosos e
casuais com qualquer mulher que aparecesse... aquilo fazia
com que ele lhe parecesse vulgar. E a maneira como se
vinha vestindo e penteando o cabelo... Quando ele voltou
de algum lugar no exterior, pela primeira vez, tendo tentado
fazer o relógio voltar atrás, pelo menos, uns quinze anos, ela
sofrera um ataque de nervos de raiva e desgosto. Logo, é
claro, tinha sido persuadida — nem tanto pelo que Michael
dizia, mas pelo que ele dava a entender — de que ela estava
com inveja: era mesquinho de sua parte.
Mas, desde a época em que compreendera o que ele estava
fazendo, e que aquilo era o que poderia esperar, até que a
velhice tomasse conta dele, a menos que — como uma
velhota que tingisse os cabelos e usasse saias curtas para que
as pessoas pudessem admirar suas pernas, ainda intocadas —
ele continuasse assim até morrer, sentia que o seu próprio
valor, até mesmo a sua integridade haviam sido violados.
Não havia explicação para isto, mas era uma realidade.
Porque o seu marido — que era, de todas as maneiras
possíveis, um marido bom e responsável — havia decidido
experimentar um número infinito de "casos" que eram por
definição irresponsáveis, e não teriam em si outro objetivo
senão sexo, ela, Kate, se sentia diminuída. Teria preferido
que ele confessasse, ou melhor, sustentasse, como era seu
direito, um sentimento verdadeiro, uma ligação verdadeira
com alguma mulher, até mesmo duas ou três mulheres, que
se aprofundaria e duraria e exigiria lealdade... dela mesma,
também. Isso não teria feito com que sentisse como se uma
ferida tivesse sido aberta em seu corpo, por onde a solidez e
a força se esvaíam, enquanto ficava sentada em casa, no sul
de Londres, sabendo que ele estava (só nos intervalos do
trabalho, dos seus interesses verdadeiros, é claro) perse-
guindo esta ou aquela atração sexual. Sentia por ele — contra
todo bom senso e o que os registros lhe diziam que podia
sentir — como se ele se tivesse perdido, tivesse perdido o
sentido.
Era idiotice sentir isso. Era desumano, ingênuo, mesquinho.
Ela sabia o que Mary diria se lhe contasse: que não tinha
importância. Mas realmente se sentia assim. Não ia fingir
que sentia algo diferente. Há alguns dias, ela teria dito que
quaisquer sentimentos, ou pensamentos ou novos registros
de verdades estavam a postos fora do palco, esperando pela
oportunidade para entrar, uma vez que decidira não mais
ocupar-se tanto em pajear outras pessoas, falando, sorrindo,
sorrindo, sorrindo, e, agora que resolvera ocupar-se com as
encostas de um caso de amor que ela já sentia que tinha de
escalar, como a espécie de pico de montanha que todo
mundo, que tenha qualquer interesse em alpinismo, tem de
escalar — quaisquer que fossem essas verdades (e ela estava
fazendo todo o possível para não ter de as encarar),
certamente não podiam ter nada a ver com o fato de que o
seu Michael tinha dúzias de casinhos vulgares com todo
mundo que lhe desse oportunidade, não é? Aquela perda
havia ocorrido anos atrás. Mas talvez devesse começar ali
(quando se desse tempo para isso!) o seu sentimento infantil,
irracional, mas absolutamente inegável, de que por causa de
Michael ela se sentia como uma boneca cujo enchimento
estava escapulindo, esvaindo-se lentamente.
Sentia-se assim naquele momento, enquanto observava o
rapaz sentado à sua frente, inclinado em sua direção, na
necessidade desesperada de receber dela — de qualquer
pessoa que o desse — o que quer que fosse que o mantinha
falando, falando, e sem vê-la de todo; afinal, ela já tinha feito
aquela escalada, mulher mais velha, homem mais moço!
A sabedoria popular afirma que este tipo específico de caso
de amor é o mais pungente, terno, poético, intenso que
existe, tudo incluído, o melhor do menu. Com a possível
exceção do seu inverso, homem mais velho e uma moça. (Se
ela ia ter esse caso, o que estava na sua frente, o que estava
no seu prato, será que era por causa de Michael? Seu
comportamento apático, vago, sendo incapaz de dizer não,
incapaz de fazer o que ela gostaria, será que se devia ao fato
de que fora posta em funcionamento, como uma máquina,
por Michael?) A sabedoria popular estava certa. Mas ela já o
havia feito. Os ingredientes foram perfeitos: na ocasião ela
estava com trinta e cinco anos, ele com vinte. E tinha sido
secreto; ninguém soubera. Tinha sido maravilhosamente
frustrado pelas circunstâncias, agridoce, condenado... tudo.
Foi Goethe, ou melhor, Goethe como era interpretado por
seu alter ego Thomas Mann, que disse que o beijo era a
essência do amor. Ele havia feito muitas conquistas, na sua
época, dizia; mas era o beijo que era o importante.
A gente tem de ser uma mulher casada, de trinta e cinco
anos, com um marido e filhos à espreita, em volta, todos os
minutos do dia e da noite, para obter as circunstâncias em
que um beijo tem de ser o suficiente. Não, de fato tinha
havido um fim de semana delicioso, alcançado à custa de
Deus sabe quanta organização e combinações e mentiras,
mas, recordando, certamente o sexo não fora o mais
importante. Pois, independentemente de todo o resto,
nenhuma mulher em sã consciência procura um garoto por
causa de sexo, um setor em que o amadurecimento é tudo:
sua vida sexual com Michael era tudo que a fantasia pudesse
imaginar. Ou tinha sido... O que era agora, então? Admirável
fisicamente, é claro. Emocionalmente? Mas por que isso
deveria ter importância? Mary teria morrido de rir ante a
sugestão de que deveria. (Agora estava pensando mais em
Mary do que na época em que morava defronte a ela.) A
verdade era que as relações sexuais com o marido, naquela
época, agora que ela sabia que as realidades sexuais dele esta-
vam nas aventuras, tão cuidadosamente planejadas, com
garotas, eram uma coisa que... não que a entediassem, não,
mas certamente ela as mantinha cada vez com maior
relutância. Era como estar diante de uma refeição pesada
quando não se tem fome... Não que seus apetites sexuais
fossem menores, ou será que eram? Se fossem, por que ela
sentia que admiti-lo seria como confessar o fracasso? Mas a
coisa para a qual sentia apetite era algo no passado, daquela
época em que ela e o casamento — o que ele ainda
encontrava no casamento e no relacionamento sexual de
casado — haviam sido a necessidade dele, o objetivo dele: o
que naquela época ele se estava assegurando de que obteria,
a despeito das crianças, do peso do cuidado, do sustento e da
organização de uma casa, a despeito de tudo. Uma vez,
outrora, ela soubera que a vida de seu marido havia sido
sustentada por ela, pelo que eles encontravam juntos, e o
centro daquilo era a cama.
Este caso que a encarava certamente não seria uma questão
de emoções delicadas e de angústia extremada. Aquele
jovem era velho demais. Era mundano demais. Autocrítico
demais.
Mas ela gostava dele. E ele era tão tremendamente divertido,
especialmente quando estava sendo conscientemente
atormentado pela multiplicidade de suas escolhas de estilos
de vida, pela trama da vida cotidiana, pelo seu vale de
lágrimas.
Mas naquela noite eles se separaram por mútuo
consentimento: o pedido dele de subir para o quarto dela
estava sendo adiado para a noite seguinte.
Foi para a cama sozinha, pensando que em todos os quartos
que a cercavam os delegados se estavam despedindo, depois
de semanas de agradáveis relacionamentos sexuais ou de
outros tipos: despedidas adoráveis, sem dúvida, como ela
também estaria tendo, se tivesse sido como Mary... Jeffrey
era jovem demais para ela; não, velho demais; de qualquer
maneira, ele não tinha a idade certa. De vinte a vinte e
cinco... sim, ele ainda seria um "rapaz jovem", comparado
com a sua condição crepuscular. De trinta e cinco anos em
diante, estaria se aproximando do seu status "amadurecido",
no jargão dele. Mas trinta e dois... será que a gente devia
julgar as pessoas pelas atitudes que se esperam delas em
virtude dos anos que viveram, a fase ou estágio delas, como
mamíferos, ou como artigos na sociedade? Bem, é assim que
a maior parte das pessoas tem de ser julgada; só umas poucas
são mais do que isso. Ele, com trinta e dois anos, de acordo
com as leis da sua sociedade, deveria estar obsedado com
"abrir o seu caminho no mundo", com fazer um casamento
satisfatório, se ainda não o tivesse feito, em criar família.
Não estava fazendo qualquer dessas coisas, mas não estava
livre do que se esperava dele. E via aquilo como uma escolha
pura e simples; ou isto ou aquilo: "Ou eu arranjo um
emprego decente e me caso, construo um lar e tenho filhos,
ou continuo vagueando por aí. A metade dos meus amigos
tem empregos, esposas e filhos; os outros não têm quaisquer
responsabilidades e se recusam a assumi-las. Qual deles eu
serei?" Liberdade ou os alçapões e armadilhas do dever...
havia alguma coisa de démodé a respeito dele, a respeito do
seu dilema. Isto ocorria porque ele podia ter um emprego se
quisesse: não tinha de estar entre as legiões dos
desempregados. E ainda tinha uma renda particular.
Mas realmente gostava dele...
Ela devia voltar direto para a Inglaterra, pedir um quarto na
casa de um amigo... ou alugar um quarto sozinha — é claro,
era isso, em casas de amigos estaria novamente ocupada,
todos os minutos do seu tempo, ajudando e cuidando de
crianças — e poderia ficar sentada tranqüilamente, deixando
o vento frio soprar tão forte quanto quisesse.
Sentia-se arrastada à força, como pelo recuo das ondas numa
ressaca. Isso tinha alguma coisa a ver com o seu marido, mas
por que culpá-lo? Não podia continuar a culpá-lo pelo que
ela era, por aquilo em que se transformara... Não devia ir
para a Espanha com Jeffrey, não devia ir para a cama com
ele. Ela já sabia que, quando se recordasse de Jeffrey Merton,
ele lhe pareceria todo secura e repetição. Mas não se sentia
capaz de reunir forças para voltar a Londres, encontrar um
quarto, e ficar lá, tranqüilamente, sozinha.
Sonhou assim que adormeceu. Estava sentada num cinema.
Assistia a um filme que já havia visto antes. Tinha, na vida
real, assistido ao filme duas vezes. Estava vendo aquela
seqüência da pobre tartaruga que, na ilha do Pacífico, havia
sido bombardeada pela bomba atômica, perdera o senso de
direção e, em vez de voltar para o mar depois de ter posto
seus ovos, como a natureza normalmente ordenava, dirigia-
se para o interior, para uma terra estéril onde morreria.
Ficou sentada na escuridão do cinema e observou o pobre
animal a arrastar-se lentamente, afastando-se do mar, em
direção à morte, e pensou: "Ah, a foca, minha pobre foca,
aquilo é minha responsabilidade, aquilo é o que tenho de
fazer, onde está a foca?" Enquanto pensava, sabia que estava
sonhando e, no sonho, procurou por todo lado, assim
mesmo, pelo outro sonho, o sonho da foca; pois enquanto
nada podia fazer pela tartaruga que ia morrer, tinha de salvar
a foca, mas, exatamente como se ela se tivesse desviado,
entrando no aposento errado numa casa, estava no sonho
errado, e não podia abrir a porta para o certo... Onde estava a
foca? Jazia abandonada entre as rochas secas esperando por
ela, procurando por ela com seus olhos escuros?
Passou o dia seguinte ajudando delegados nas atividades de
volta a suas famílias; ela realmente não tinha obrigação de
fazer isso. Seu período de trabalho estava acabado, mas sua
maneira de ser ordenava que o fizesse. À noite, depois que
todo mundo se havia espalhado pelo mundo afora, juntou-se
àquela classe de hóspedes de hotel que se esgueiram de seus
quartos para os quartos dos outros voltando discretamente
antes que o sol se levante e que os corredores recebam
empregadas para o trabalho.
Passou a noite com Jeffrey e concordou em ir com ele para a
Espanha, para passar o mês de agosto; mas, no entanto, era
uma loucura fazer qualquer viagem pela Europa em agosto.
Pessoas sensatas faziam suas viagens nos meses adjacentes.
Mas seria fácil ir para o interior da Espanha, evitando a costa.
Lá, eles encontrariam, à espera, a verdadeira Espanha, que
era indestrutível, de acordo com Jeffrey, que a conhecia
bem.

As Férias

No dia 31 de julho, ela saiu daquele hotel alto, cintilante e
multinacional, em Istambul, deixando assim, com um passo,
o mundo da organização e planejamento internacional, das
conferências, das grandes organizações — a atmosfera do
dinheiro, invisível, mas tão opulenta que não tem
importância. O café e os doces, que ela havia comido antes
de deixar o hotel, tinham custado duas libras, mas ela jamais
pensara em perguntar qual era o preço. Na calçada, já estava
numa enérgica altercação, em três idiomas, com o motorista
do táxi, que demonstrava sinais de querer cobrar-lhe alguns
centavos a mais.
Carregava sua única mala. Era adepta de utilizar pequenos
espaços, porque tinha passado anos e anos fazendo compras
e malas para quatro crianças daquela classe de pessoas que
têm o melhor de tudo, e de todas as partes do mundo, à sua
disposição nos balcões das lojas das ruas principais de sua
cidade. Dera alguns dos seus vestidos novos e elegantes para
que Ahmed levasse para sua mulher, tendo-se assegurado de
que vestiam o mesmo manequim: pela incredulidade
trêmula com que manuseou aquelas roupas, misturada com
ressentimento apenas controlado — não contra ela,
esperava, mas contra as circunstâncias —, ela viu quanto
tato e autocontrole haviam sido gastos durante o trabalho de
Ahmed com ela, no mês anterior.
Entrou no avião usando um vestido rosa-choque, que
destoava harmoniosamente com seu cabelo vermelho-
escuro e com uma pele branca que não podia bronzear-se —
já provocante, num lugar em que todo mundo era moreno
por natureza, ou estava ficando moreno o mais rápido
possível. Ela levava o Paris Match, Oggi, The Guardian,
Time, Le Monde, Jeffrey tinha The Paris Trihune, The
International Times, The Christian Science Monitor.
Quando cada um acabou de ler os próprios jornais e os do
outro, já estavam em Gibraltar e, umas duas horas depois,
em Málaga, bebericando aperitivos.
Outra vez os ouvidos de Kate foram dolorosamente agre-
didos, pelo espanhol muito mais do que pelo turco, já que
ela conhecia a língua mais próxima dele. Por todos os lados a
sua volta eram faladas línguas que encontravam facilmente o
caminho para sua compreensão: fora daquele palco central
de convivas e de garçons estava o espanhol, mas em
murmúrios de bastidores de novo; os espanhóis eram extras
e atores de pequenos papéis nas suas próprias costas.
Desde o princípio de junho aquela costa ensolarada se vinha
enchendo. Agora estava tão cheia que era fácil imaginar que,
vista do ar, a península devia parecer pressionada para baixo,
as águas subindo em torno dela — o azul do Mediterrâneo
de um lado, o cinza do Atlântico do outro. Logo aqueles
milhares de pessoas submergiriam com suas roupas
coloridas, seus guarda-sóis, seus óculos escuros, seus hotéis,
boates e restaurantes.
Numa mesa entre um alto arbusto de hibisco e algumas
dentelárias, que estavam acinzentadas e não azuis sob a luz
artificial, um casal que estava de costas para a multidão e
demonstrando a sua preferência em não tomar
conhecimento dela de vez em quando se tocava nas mãos,
até ficava de mãos dadas. Uma vez ou duas, eles até se
beijaram; mas suavemente, até zombeteiramente, sempre
com decoro. Eles poderiam ter sido observados, também,
lançando muitos olhares, na realidade longos olhares para
longe um do outro, não para o ajuntamento de gente, do
qual faziam parte, mas para longe e para baixo, para uma
praia onde brincavam bandos de jovens de várias nacionali-
dades. Não dentro do mar, não; aquilo, infelizmente, se
havia tornado um prazer muito problemático; as águas que
cintilavam tão apropriadamente ao luar abrigavam perguntas
demais. A carne estava sendo sonegada a elas. Ou quase. Um
ou dois nadavam realmente, fazendo sua declaração de
confiança, ou de indiferença: submeter o próprio corpo às
águas daquelas costas se havia tornado um manifesto; podia-
se deduzir a atitude das pessoas com relação ao futuro pelo
que elas escolhiam num menu, ou pelo fato de elas se
decidirem a nadar, ou deixarem as crianças porem os pés no
mar. Num restaurante, um homem pediria um prato de
peixe da região, com exatamente a mesma grandeza de
atitude e um olhar que envolvia a sala: Estou me sentindo
temerário esta noite, que outrora teria acompanhado um
pedido de champanha num restaurante onde certamente
não se tomava champanha. Uma moça que entrasse no mar
numa manhã quente atrairia olhares, caretas e vários dar de
ombros: Ela não está com medo, aquela ali. Eu não. Eu não
me arriscaria. Mas se corpos estavam sendo sonegados
àquelas águas cálidas onde outrora as pessoas haviam nadado
e se divertido durante a metade da noite, agora a juventude
de uma dúzia de países dançava ao som de violões por
centenas de quilômetros ao longo de suas praias.
Os olhares daquele casal eram definitivamente desejosos;
ele, porque desejava fazer parte daquele grupo, ela, porque
pensava em seus filhos. Ela também observava o homem, da
maneira como se observa o ansiar de alguém — pronta para,
a qualquer momento, oferecer um paliativo e consolo, se
sentisse que aquilo podia ajudar.
Ele era um rapaz de compleição esguia, bem-apessoado, mas
não de chamar a atenção, pois sua tez o classificava entre os
nativos daquela costa, olhos castanhos, cabelo escuro e liso,
pele morena. Isto é, até que ele falasse.
A mulher, mais velha que ele, era quem chamava mais
atenção, porque ele se encaixava discretamente no cenário.
Ela pertencia à categoria ruiva. Tinha a pele branquíssima.
Os olhos eram castanhos como uvas ou passas. O rosto era
zombeteiro e agradável e, em torno dele, o cabelo, que
estava bem cortado, tratado e penteado, caía numa onda
sólida, esculpida, tão espesso que olhar para ele punha um
peso de sensação reminiscente nas palmas da mão da gente.
Ou melhor, isto é o que o galanteador poderia ter sentido; os
garçons sabiam quanto aquele corte tinha custado, quanto as
roupas dela tinham custado, e estavam, automaticamente,
aumentando suas expectativas de uma boa gorjeta.
Aquele casal poderia ter sido observado... aquele casal
realmente estava sendo observado, cuidadosa e habilmente.
Foram minuciosamente observados no aeroporto, quando
desceram do avião, e depois no pequeno ônibus, onde se
tinham sentado entre os outros passageiros companheiros de
viagem, e depois desde o momento em que se registraram
no hotel. O quarto deles fora reservado por telefone, da
Turquia, pela Alimentação Mundial. Haviam sido
examinados, etiquetados, categorizados, julgados por peritos
cuja atividade durante o verão se resumia exclusivamente
em observar e avaliar os seus visitantes.
Tais visitantes se dividiam, grosso modo, em três categorias.
Primeiro, vinham as excursões organizadas por agências de
turismo, os grupos que haviam sido reunidos em seus países
de origem — Inglaterra, Holanda, França, Alemanha,
Finlândia —, que tinham viajado como um todo, de trem ou
de avião, que viviam como um todo enquanto estivessem
ali, e que voltariam como um embrulho. Estes eram os mais
previsíveis, financeira e pessoalmente. Para um gerente de
hotel ou garçom era suficiente dar a um desses grupos cinco
minutos de atenção bem-treinada, para compreender e
situar cada indivíduo que fizesse parte dele.
Depois, vinha a categoria juventude internacional, que subia
e descia pela costa em rebanhos e bandos, como pássaros ou
animais, numa atmosfera de auto-suficiência feroz, de auto-
aprovação. Estes eram decorativos, sempre provocando
emoções violentas — inveja, desaprovação, admiração, e
assim por diante —, mas, no todo, bastante ingratos do
ponto de vista financeiro: podia-se, entretanto, ter certeza
de que eles envelheceriam e se juntariam aos grupos 1 ou 3.
A terceira, e menor, era aquela de que outrora todos os
viajantes haviam feito parte: os lobos solitários, casais ou
famílias, que viajam juntos tomando suas próprias
providências, suas providências apaixonadamente
individuais. Estes, para aqueles peritos da indústria do
turismo com o temperamento de filósofos ou de jogadores,
eram os mais gratificantes, porque podiam acabar
demonstrando ser qualquer coisa, rico ou pobre, excêntrico,
criminoso ou solitário. Era entre estes, é claro, que se
encontrava a maioria dos casais de amantes — isto é, se se
descontasse a juventude que, por definição, estava fadada a
estar sempre num estado de ligação amorosa ou sexual
qualquer. E, é claro, os casais que viajavam juntos sem serem
casados eram mais numerosos do que antes. Exatamente
como, há não muito mais do que cinco ou dez anos, os
biquínis ou mesmo joelhos de fora ou ombros nus haviam
sido proibidos e, atrás de avisos e ordens públicas, para não
haver dúvidas, mesmo nas praias e nos terraços — a guardia
civile marchava por todos os cantos para garantir que
aquelas ordens fossem obedecidas —, e agora todos aqueles
não faça e não pode e proibições se haviam derretido sob a
pressão do dinheiro, assim também se havia dissolvido
aquele não silencioso que tornava difícil para casais, que não
fossem casados e viajavam juntos, o simples entrar num
hotel e pedir um quarto. Havia sido possível; tinha sido
feito, mas com muita discrição e, com freqüência,
fingimento por parte dos não-casados. Agora, de cima a
baixo, naquela costa tórrida, durante os meses de bacanais,
enquanto as crianças galhofavam e se amavam nas areias —
ou, se fossem jogadores por temperamento, nas águas cálidas
e traiçoeiras, cada vez mais fedorentas, às vezes copulando
tão abertamente como cães e gatos —, tornara-se normal
para um gerente de hotel, um bom católico e um bom chefe
de família, que em sua própria vida e por sua própria escolha
se recusaria a falar com uma mulher suspeita de tal crime e
poria para fora de casa a própria filha se ela o desonrasse por
ter relações sexuais sem ser casada; mas esse homem recebia
em seu estabelecimento limpo, honrado, suas camas, seus
bares, mulheres com homens que não eram seus maridos,
sorrindo, fazendo reverências, conversando, desejando-lhes
bom apetite sem ter nunca uma inflexão de desaprovação,
nem uma sombra de censura. Bem, talvez apenas a mais leve
das sombras, um soupçon, suficiente para sugerir que as
pressões da economia o obrigavam a aceitar aquilo, mas pelo
menos ele (o gerente) ainda se dava conta de que era uma
imoralidade, ainda que o estivesse abrigando e alimentando.
Ainda lhe restavam aquela honradez e decência — tudo isso
ele poderia transmitir, em nuanças tão suaves que o casal
podia preferir apenas não tomar conhecimento.
Este casal fora classificado como um casal imoral por aqueles
peritos das categorias sociais.
Também haviam sido classificados como aquele par
reverenciado através dos tempos, mulher mais velha,
homem mais moço. O funcionário do registro do hotel
ficara surpreendido com a grande diferença de idades,
quando examinara os passaportes para preencher os detalhes
para os arquivos da polícia. Não era um casal frívolo ou
embaraçoso, comportavam-se com bom gosto e discrição.
Mas existem convenções no amor, e uma delas é de que esta
subclassificação específica — mulher mais velha, homem
mais moço — deve ser desesperada e romântica. Ou pelo
menos ternamente dolorosa. Talvez — assim dispõem
aqueles valores não escritos, mas tirânicos, do código senti-
mental — uma angústia apaixonada possa ser a única
justificativa para tal relacionamento, que é, socialmente, tão
estéril. Será que poderia, de alguma maneira, ser tolerado
naquela forma, que era quase casual, positivamente irônica,
como se aqueles dois estivessem rindo deles mesmos? Será
que eram indiferentes um ao outro? Decerto que não! Pois a
dignidade deles devia-se a muito mais do que simples boas
maneiras, assim decidiram aqueles peritos, cujos olhos
estavam enrugados com as experiências de uma dúzia de
verões, tornando-os capazes de lançar um rápido olhar sobre
um casal como aquele, apenas uma vez, e absorver todos os
detalhes de classe, temperamento sexual, dinheiro. Será que
afinal aquele casal talvez não fosse um par de amantes? Não
podiam ser mãe e filho... não, impossível. Irmão e irmã?
Não, não se podia acreditar que um único ventre pudesse ter
produzido dois tipos físicos tão diferentes. Será que eram um
daqueles casamentos improváveis? Não, ao ato de estarem
juntos faltava a congruência de estado de espírito e de
movimento através da qual se reconhecem os casados. Além
disso, havia os documentos, na recepção do hotel. Não
sobrava mais nada, eles tinham de ser amantes.
Assim, eles foram julgados como pertencentes a uma
categoria que exigia o máximo em termos de tolerância
daquele país, cujos padrões ainda eram tão rígidos — os
homens ainda senhores da sexualidade das mulheres, e
excêntricos com relação àquela categoria. Eles pareciam ser
amantes não apaixonados, embora de fato parecessem
render homenagens à sua própria condição, ficando de mãos
dadas, ou beijando-se suavemente. Era isto que causava a
leve frieza, a censura dos garçons que não percebiam, é
claro, que demonstravam essas reações), coisa que extraía
dos amantes gorjetas muito maiores do que o necessário.
Jeffrey já estivera na Espanha antes em três ocasiões. Uma
vez, aos vinte anos, vagueando ao longo da costa, como
agora o faziam as crianças, que ele observava com tamanha
avidez, que, ela, aquela mãe com um quarto de século de
sintonização com os estados de espírito de outras pessoas,
sentia quase como se fossem suas. Ela o via observar as
moças muito jovens, todas bonitas, ou parecendo sê-lo por
causa da luz mágica e do cenário de vegetação muito
colorida, o mar que ressoava, visível como j um cintilar
sólido em movimento sob o luar; toda a atmosfera da costa
de verão, que era mais pungente por causa do sentimento
generalizado de que a vida daquela costa — as migrações, a
adoração ao sol, o gosto de mar — estava condenada, logo
acabaria, e definitivamente. Ela o observou enquanto ele
ansiava pelo que tinha perdido, a liberdade dos jovens, a sua
irresponsabilidade, e sentiu as pressões do dilema dele em si
mesma. Ele não podia mais ser um deles. No verão anterior,
havia sido... na Holanda. Mas no verão anterior ele já se
sentira deslocado, do lado de fora. Por causa do verão
passado, ele sabia que não podia descer, sair daquele terraço
e aproximar-se do grupo que cantava e dançava como
outrora, "quando ele era jovem", como já descrevia a
situação, embora, é claro, ridicularizando-se e gracejando
enquanto o fazia. Mas ele ansiava por fazê-lo, por se
dissolver naquele todo amistoso, onde tão poucas exigências
são feitas. Pensava e dizia, do seu jeito ironicamente
autodemolidor que estava começando a se tornar doloroso,
que talvez devesse resolver ser um "hippie de meia-idade".
Por que não? Estava condenado a ser ridículo, a estar
deslocado, não importa o que fizesse; assim, por que não ser
um desajustado de uma maneira que lhe daria prazer? Mas é
claro que não lhe daria prazer. A maneira como fora criado
faria com que não desse.
— Meu condicionamento, maldito seja, me está enforcando.
Aos vinte e cinco anos ele viera para a Espanha, depois de
ter terminado a universidade, e vivera, mais acima na costa,
durante os longos meses quentes, de maio a novembro, com
uma moça chamada Stephanie. Foram no início muito
felizes, depois menos felizes, então, finalmente, ela partiu
com um rapaz alemão que conhecera na praia, e lhe
escrevera dizendo que ele era irresponsável, egoísta,
indiferente, conservador. Depois disso, ela se casara com um
funcionário do escritório de advocacia de seu pai, em Cedar
Rapids, Iowa.
Ele viera àquele país, há dois anos, para passar um verão, e
tinha ficado todo o tempo em Córdoba e Sevilha, ouvindo e
vendo flamenco, pelo qual tinha paixão. Sonhara tornar-se
um dançarino de flamenco, como algumas pessoas sonham
em se tornar toureiros. Algumas se tornam, realmente,
toureiros; ele tinha a compleição e — estava convencido —
o temperamento de flamenco. Mas um senso de ridículo ou
do apropriado (ou seu condicionamento, que poderia ser
descrito, especialmente por ele, nos maus momentos, como
covardia) o detivera.
— Posso imaginar direitinho meus pais! Eles apareceriam e
pediriam para ser levados até os ciganos mais próximos.
"Leve-me até os ciganos... eles roubaram o meu garotinho!"
E agora estava ali, pela quarta vez, e em agosto — o que era
suficiente, por si só, para fazer com que ele se sentisse um
estrangeiro, um principiante. Pois, como todo mundo que já
passou mais de um mês num país, entregue à própria sorte e
sem muito dinheiro, ele se sentia como um nativo do país; e
era humilhante para ele estar ali, numa época em que todos
os nativos, com toda a razão, é claro, tinham apenas um
pensamento, o de que o seu país não era deles, que havia
sido vendido temporariamente ao turismo.
O país estava corrompido, arruinado, aviltado, comparado
com a primeira vez em que ele estivera ali.
Discutiam aquilo exaustivamente, enquanto observavam os
rapazes e as moças dourados a se divertirem à beira do mar
poluído.
Quando ele viera pela primeira vez, no início da década de
60, havia orgulho, dignidade; existia uma boa disposição para
prestar pequenos serviços, sem que se pedisse, sem querer
dinheiro; existia uma dimensão nos espanhóis, mesmo nas
costas já exploradas, que ia muito além do comercialismo.
Havia uma humanidade em... uma estrutura... uma
profundidade... Ele começou a rir de si mesmo, quando ela
riu. Havia lágrimas nos olhos dele, certamente não pelos
espanhóis.
Quanto a ela, tinha vindo de carro com o marido e as quatro
crianças, para umas férias prolongadas de camping — ela
achou difícil de dizer, mas se obrigou — há cerca de quase
vinte anos. Eles fizeram parte das primeiras marés de
turistas. Ao longo daquela costa, agora cheia de hotéis e de
acampamentos de férias, não havia nada... nada mesmo.
Areia, onde uma grama rala crescia, se estendia de um
promontório a outro. Acampados sob os pinheiros, eles não
tinham visto ninguém, durante dias, numa ocasião. Também
tinha lembrança de todo tipo de gentilezas espontâneas do
povo da região — ela era mais do que capaz de fazer jus às
palavras dele: — dignidade, orgulho, e assim por diante e
etc. e tal.
Começou a contar como, naquela época, quando era raro
um carro estrangeiro entrar numa cidade, um exército de
rapazes e de meninos brigava para ganhar alguns centavos
para guardar o carro, vigiando-o a noite inteira; como,
quando os Brown faziam suas refeições bastante frugais em
restaurantes, havia uma dúzia de rostos famintos colada no
vidro, de modo que as crianças da família Brown tinham
seus contos de fadas ilustrados para elas — aqueles eram os
olhares do garotinho pobre para os ricos, mas ele é
percebido, e é trazido para dentro pela família gentil, ou
compensado por uma madrinha encantada, às vezes sendo
levado, embora definitivamente, daquelas ruas pobres para o
céu. Ela estava falando a respeito das crianças vestidas de
trapos e sem sapatos, crianças com feridas e moscas que se
arrastavam em seus rostos, e para dentro de seus olhos,
crianças com as barrigas inchadas por causa da subnutrição.
Mas, enquanto falava, ela estava pensando em como, uma
vez, e não há muito tempo, aquelas coisas tinham parecido
sintomas superficiais, que logo seriam corrigidos pelo uso do
bom senso geral, elas ainda não se haviam apresentado como
a condição genérica dos homens, que logo seria agravada e
acentuada em toda parte. Estava pensando em como, numa
outra época, uma conversa daquele tipo soara quase que
como um registro para um mundo melhor, ou como uma
declaração de interesse. Agora soava como imaturidade.
Dentro de instantes eles dois, Jeffrey e ela, estariam
sobrepujando-se um ao outro no mais comum dos jogos
verbais da classe média: qual deles adquirira maior graça por
estar próximo do sofrimento de outras pessoas.
Aquele pensamento não era dela mesma, era de seu filho,
James. Ele ficava furioso sempre que gente pobre fosse
mencionada — geralmente por Eileen, ou por Tim, que se
dedicavam a serviços sociais de tipos diferentes. James via a
solução simples assim: uma revolução. Qualquer coisa que
fosse menos que isso era um insulto aos pobres sofredores, e
uma perda de tempo. A revolução clássica — como a de
Castro.
Mas os quatro filhos tinham todos, desenvolvido suas pró-
prias posições, muito diferentes umas das outras. Eles
também desenvolveram opiniões individuais com relação ao
turismo, com relação às maneiras de viajar tão
infatigavelmente por tantos países.
Stephen, o mais velho, estava à frente — era uma maneira
de ver as coisas — de todos eles. Sua opinião de que todos os
governos eram igualmente reacionários o deixava livre para
viajar para qualquer lugar, exatamente como os egoístas e os
indiferentes, a quem ele passava tanto tempo atacando.
Eileen, que não se interessava por política, viajava sem
escrúpulos de consciência, como Stephen. James tinha mais
dificuldades do que qualquer um: por exemplo, ele se
recusava a visitar a Grécia, mas havia visitado a Espanha, no
ano passado, porque estava, segundo ele, aperfeiçoando sua
educação política. Considerava Israel fascista demais para
entrar lá, mas viajara com equanimidade pelas ditaduras
militares do Oriente Próximo e Médio. Tim acreditava que o
fim da civilização estava próximo, e que dentro de pouco
tempo estaríamos recordando a época presente, imersos
num barbarismo de extensões mundiais, sob a forma de uma
burocracia mundial, e que daquele lugar terrível o presente
pareceria uma idade de ouro desaparecida: ele fazia viagens
como alguém que está provando a última garrafa de uma
safra rara.
Quanto à mãe deles, ali estava ela, sentada com (não havia
nenhuma outra palavra para descrevê-lo, pensava ela) um
jovem amante, tomando aperitivos num terraço na Espanha:
eles iriam assistir a uma tourada no dia seguinte porque ele
as adorava. Por motivos estéticos.
Antes de os dois irem para o quarto, desceram até a praia por
trilhas que recendiam a deandro, loção de bronzear e urina,
e se deixaram ficar no mesmo nível que a multidão de
jovens, os pés na areia batida. Já tarde, a lua em quarto
crescente pairando alta sobre o mar, e os grupos já muito
menores ao longo dos terraços, alguns dos jovens se haviam
acomodado para dormir e estavam deitados, abraçados, em
qualquer lugar, num abrigo de uma rocha, numa toalha
estendida, em camas de campanha. Esteiras de palha haviam
sido estendidas na areia e sobre elas alguns ainda dançavam,
os cabelos esvoaçantes, os olhos brilhantes e sonolentos.
Perto da água, um grupo cantava acompanhando um violão
tocado por uma moça que estava sentada numa pedra, como
uma sereia.
Agora Kate estava tomando cuidado para não olhar para o
companheiro; sabia que certamente, dado o estado de
sensibilidade emocional em que se encontrava, ele se
ressentiria disso: ela já estava fazendo comparações com as
reações de seus filhos. Mas se lembrava... não de sua
juventude, que aquilo estava distante demais, era diferente
demais para ser comparada com aquele contexto. Estava
pensando naquela época, há dez anos, quando estivera
apaixonada por aquele rapaz. Aquela dor, um anseio por algo
além de uma carreira de tempo, era comparável com o que
ele sentia naquele momento. Ela vivenciara aquilo tudo e
saíra alcançando o outro lado... bem, não tivera alternativa.
Assim, é claro, ele o faria. Mas a despeito do que as pessoas
diziam sobre a pungência daquela espécie de experiência, e
o que ela mesma dizia, não gostava de recordar aquela
época. Tinha sido uma falsa memória, outra vez, ela
enfeitara tudo aquilo em sua mente, tornando-o alguma
coisa de apresentável, para se encaixar na convenção
"mulher mais velha, homem mais moço". Mas, realmente,
fora humilhante. Sim, olhando para todas aquelas criaturas
jovens e bonitas, todas se movendo ou indolentemente
recostadas ou dormindo em suas posturas de graça natural,
ela dizia a si mesma que aquela época havia sido
horrivelmente humilhante. A razão havia sido simples, e
porque o velho Goethe (ou Mann) falara em "dar calor
àquilo". Um longo tempo de casamento, um longo tempo de
uma relação sexual gratificante, havia absorvido o anseio
sexual, o anseio sexual físico, tornando-o a expressão
comum e fácil de emoção, uma linguagem de sentimento.
Mas o garoto não tivera praticamente nenhuma experiência
sexual, compreendera apenas a fantasia, a fantasia romântica.
A sexualidade dela para ele fora aterrorizante... ou teria sido;
ela a tinha sufocado, é claro, aprendendo que a linguagem da
carne era para os amadurecidos, descobrindo, com os
primeiros leves sintomas de mal-estar, a sua dependência
daquele longo tempo de conversa marital. Sentira, quando
estava com ele, como se ela tivesse um segredo ou uma
ferida que tinha de esconder. Jovem, como aquela moça de
vestido branco (uma outra convenção, como um retrato fora
de moda: Moça de vestido branco com açucenas), um beijo
havia parecido um portão de entrada para um mundo que
havia, na realidade, se tornado tudo que ela imaginara — até
que ela tivesse de olhar para ele através dos olhos de uma
pessoa de vinte anos de idade, da escola pública e da
universidade inglesa, uma virgem, no que dizia respeito às
mulheres.
Ela sabia que não devia aumentar o desespero selvagem de
seu companheiro, que estava misturando com tanta
vergonha animal, como a sua com aquele rapaz, deixando
que ele soubesse com quanta facilidade ela era capaz de
partilhar o que ele sentia.
Enquanto ficavam ali a menos de vinte passos dos jovens,
mas absolutamente separados deles, uma moça passou
sorrindo e arrastando os pés nus na areia pelo simples prazer
da sensação. Ela olhou para Jeffrey. O sorriso foi obscurecido
enquanto ela lhe apresentava um rosto inexpressivo, e
depois continuou, sorrindo. Kate reconheceu aquele rosto:
era o que se mostra a alguém estranho ao bando, ao grupo da
gente. Tentou colocar-se no lugar da moça — tinha cerca de
dezessete anos, com os braços e pernas finos e morenos, o
cabelo negro comprido e o que parecia uma absoluta auto-
suficiência — para poder ver Jeffrey como um homem
suficientemente velho para poder ser olhado daquela
maneira. Conseguiu fazê-lo com dificuldade. Então fora
assim que ela mesma olhara para homens de mais de vinte e
cinco anos quando tinha aquela idade. Ela podia apenas
lembrar-se de que aquelas criaturas divinas tinham tido,
acima de tudo, o encanto da responsabilidade, ou do poder
no mundo adulto. Fazendo-se retornar ao seu próprio
estágio ou camada social na comunidade humana, podia ver
apenas um rapaz, cuja força estava toda se esvaindo no
reconhecimento de suas próprias fraquezas e não sendo
derrubada sob o peso delas. Ele se virou para ela e disse:
— É bom que você esteja aqui ou eu seria arrastado de volta
para esse negócio outra vez.
Diante daquela declaração da maior franqueza, de qual a
razão por que ela estava ali, com ele, seu coração, de fato,
deu um salto obrigatório, ou fez uma careta de dor, mas nada
de mais, pois estava realmente muito ocupado com
reminiscências dolorosas para se interessar por pequenas
considerações: as memórias formais de todos os tipos se
estavam desgastando, tornando-se tênues, quase
transparentes. Se lhe tivessem perguntado, digamos, no final
de maio, naquela tarde em que o convidado do marido,
conhecido de maneira tão casual, viera ao seu jardim
(quando a série de oportunidades que a trouxera até ali havia
começado?), se lhe tivessem perguntado naquela ocasião que
grupo ou conjunto de circunstâncias seria mais bem
calculado para fazê-la tomar conhecimento de uma situação,
de um estágio na vida que ela tinha de reconhecer, não
importando quão doloroso fosse, então poderia ter escolhido
aquele: estar de pé à beira de um quilômetro de areia suja e
desgastada, sob um luar banal, observando cerca de uma
centena de jovens, alguns mais jovens que seus próprios
filhos, ao lado de um rapaz que — não adiantava fingir que
fosse diferente — a fazia sentir-se maternal. Ela quase
poderia ter dito: "Calma, calma, logo vai melhorar", e tê-lo
abraçado. Na realidade, ela estava pensando como mãe:
"Então, ande, vá em frente, você terá de passar por isso, e
será muito melhor se eu não estiver em lugar nenhum por
perto; só que, é claro, tenho de ficar observando e guiando
de algum lugar que não esteja à vista..."
O hotel deles não ficava na faixa cintilante ao longo da parte
luxuosa da cidadezinha. Ficava atrás, na parte mais velha,
que em meses normais só era habitada por espanhóis. Mas
eles entraram num vestíbulo iluminado e cheio de atividade
como se fosse dia, pois aquele mês era de férias e o sono
podia ser adiado. Casais de todas as nações estavam sentados
por ali, bebendo. O restaurante estava aberto, e muitos ainda
estavam jantando. Era mais de uma hora. O funcionário da
recepção entregou a chave ao Sr. Jeffrey Merton e Sra.
Catherine Brown sem nenhum empalidecimento de seu
sorriso, mas seu corpo expressou desaprovação ofendida,
sem saber que o fazia.
Subiram para um quarto que não era o melhor do hotel: ela
estava com muito dinheiro, graças ao trabalho muito bem
remunerado, mas descera proporcionalmente ao nível dele,
que procurava assegurar-se de que o dinheiro da avó
continuaria a preservar sua independência — nenhuma
parte dele estava investida, ele insistira em convertê-lo em
jóias e quadros que estavam sob a guarda de um banco. Era o
tipo do hotel que ela e sua família poderiam ter escolhido:
despretensioso, antiquado. O quarto tinha um balcão que
dava para uma pequena praça pública; dali, vinha uma
música alegre e bem-ritmada, o som de vozes. Ela foi para o
balcão. Ele a seguiu. Beijaram-se, amantes experimentados.
Ele saiu para ir ao banheiro. Lá embaixo, na rua
empalidecida pela lua, as pessoas se sentavam nos degraus
das portas, conversando. As crianças, mesmo as pequenas,
estavam sentadas junto com elas ou brincavam por perto. A
temperatura era cálida e suave, e a pequena música isolada
intensificava a quietude geral. Aquela gente dormira a tarde
inteira e não iria para a cama até que o céu clareasse. A
cidade parecia estar mais desperta, mais florescente e alerta
do que jamais estivera durante o dia. Nas cidades do sul da
Espanha, a noite, no verão escaldante, acorda uma outra
vitalidade, reunindo numa teia de sociabilidade, que corre de
rua para rua, para travessas e para jardins, os gritos de
crianças, o latido de um cachorro, música, mexericos. Este é
o momento para se sentar e observar, para conversar, para
viver. De todas as partes na escuridão tranqüila, dos focos de
luz onde a rua estava iluminada, subiam vozes.
Jeffrey tinha voltado para o quarto. Ela saiu do balcão e foi
em direção à cama para descobri-la quando ele se lançou
sobre ela, de borco. De início, sua feminilidade animou-se e
gritou que aquilo era um insulto: eles só tinham feito amor
uma vez e supunha que fossem amantes. Em seguida, ela se
viu pousando dois dedos sobre o pulso dele e uma mão sobre
o ombro, para avaliar qual era o estado e a temperatura dele.
A pele estava quente, mas, se fosse por isso, o ar também
estava. Parecia exausto. O que ela podia ver do rosto dele
estava purpúreo e suado. O pulso lento. Usou toda a sua
força para virá-lo, para colocá-lo na cama, para cobri-lo com
o lençol. A vermelhidão desaparecia do rosto dele
rapidamente: agora estava pálido, com aspecto doentio.
Poderia não estar com febre, mas certamente não estava
bem.
Enquanto sua feminilidade continuava a gritar, ou melhor, a
fazer queixa formal de que estava ultrajada, e de que devia
sentir-se insultada, ela voltou para o balcão, no fundo
aliviada. Apanhou uma cadeira de encosto reto do quarto,
que parecia abafado bem como morbidamente escuro,
comparado com aquela noite suave e arejada sobre uma rua
que ainda se movimentava e ria. Pôs a cadeira no canto do
balcão, e se sentou ali. Usava um robe de algodão branco
que lhe deixava braços e pescoço nus para receber as brisas.
Ali estava sentada, naquela situação que era a mais familiar
de todas as situações, alerta, vigilante, enquanto um ser
humano que era mais jovem do que ela dormia. O foco
intenso do luar sobre o balcão logo mudou de posição. Ela
deslocou a cadeira de tal maneira que suas pernas e braços
pudessem ficar na luz, mas que a cabeça ficasse na sombra
— exatamente como se a lua fosse o sol.
A cerca de uns cinco metros abaixo, na calçada do outro
lado da rua, dois homens conversavam. Eram dois pais, ho-
mens robustos, de ternos leves de verão, amarrotados, que
dali pareciam estonteantes — como a areia na praia sob o
luar. As dobras apareciam negras. Mais além, ramagens se
ondulavam: a praça onde a música havia parado. Vez por
outra passavam carros, fazendo barulho, demonstrando que
a música estivera mais alta do que parecera. Nos intervalos
entre as aceleradas e o som das buzinas podia ouvir as vozes
dos homens com bastante clareza. O espanhol entrava em
seus ouvidos em massas informes ou blocos maciços —
inassimilável. Era uma cortina entre ela e a Espanha que ela
não conseguia levantar. Mas era uma cortina quase
transparente, diferente do turco de até aquela manhã,
apenas. Tinha momentos de transparência. O português que
estava nela, como uma porta aberta para a metade daquela
península, uma grande parte da África e uma grande parte da
América do Sul, às vezes se encaixava nos sons que ela
estava ouvindo, às vezes não. Uma língua da qual ela nada
soubesse, como o alemão, era toda espessa e impenetrável.
Mas ouvir o espanhol era como ver alguma coisa através das
árvores afastadas de uma estrada que se está percorrendo em
velocidade. A conversa quase compreensível importunava.
Quando ela se debruçou bem sobre o balcão, recebendo o
luar sobre todo o corpo, num jato frio de brancura, de uma
forma que se sentiu tão exibicionista que não conseguiu
impedir-se de olhar para um lado e outro ao longo da
fachada daquele hotel (não, ela era a única pessoa do lado de
fora nos balcões), quando ela se debruçou bem, de forma a
poder ver os gestos, as posturas, as posições dos dois corpos
imponentes, então pôde compreender muito mais. Uma
inclinação dos ombros gordos ou um abrir de mão violento
completavam as mensagens enviadas pela entonação — ela
estava quase entendendo espanhol. Eles falavam sobre
negócios, isto era claro. Entretanto, não ouvira uma palavra
que lhe dissesse isso. Suas vozes eram as de homens que
falam a respeito de dinheiro; seus corpos falavam de risco e
lucro. O guinchar de um carro engoliu a conversa, (depois) a
cuspiu de novo: era uma quase inteligibilidade, como janelas
envidraçadas com folhas de quartzo em vez de vidro. As
vozes se calaram. Um cheiro de tabaco. Ela olhou e os viu
acendendo charutos. A fumaça flutuou no ar, afastando-se
como tênues neblinas, e mergulhou entre as folhas. Um
homem gordo foi embora; o outro ficou, olhando em volta
como se a noite lhe pudesse oferecer um adiamento para o
sono; depois, ele também se foi. Dentro de poucos minutos
eles estariam empilhados no chão de ladrilhos de um
banheiro, prontos para serem apanhados por suas esposas e
postos para lavar. Os homens estariam se enfiando na cama,
ao lado de duas mulheres gordas e pálidas.
Querido! Chêri! Caríssimo! Caro!
Ela examinou o quarto, tão escuro por causa daquele
esplendor de luz fria lá fora. Na cama, o seu amante jazia
com o corpo relaxado. Podia ouvir-lhe a respiração. Não
gostou da maneira como soava. Se fosse um de seus filhos,
estaria pensando em chamar o médico no dia seguinte...
Tinha de parar com aquilo imediatamente!
Já eram quase quatro horas. Afinal as ruas começaram a se
esvaziar, embora na praça as pessoas ainda se reclinassem
nos bancos, inspirando a noite, sonhando, fumando. Agora
os degraus da escadaria abaixo estavam vazios. Mas duas
crianças brincavam sem fazer barulho, encostadas na parede
do hotel, enquanto o pai se deixava ficar sentado num banco
junto delas, as costas contra os tijolos, que provavelmente
ainda estavam quentes. A mãe saiu e disse que as crianças
deveriam ir para a cama e elas começaram a choramingar,
protestando. Não se precisava de espanhol para
compreender o que todo mundo estava dizendo. Enquanto
papai se mostrava severo, mamãe, exclamatória, as crianças
se agarravam à vida que seus pais queriam enterrar no sono.
Então mamãe trouxe uma cadeira para fora e sentou-se junto
do marido; uma criança se sentou no colo dela, a outra no
dele. As crianças estavam cabeceando de sono. Os pais
conversavam baixinho: empregados do hotel, talvez da
cozinha? Agora os carros eram poucos. A cidade estava tão
quieta quanto era possível, naqueles meses frenéticos dos
turistas.
Kate estava longe de ter sono.
Sentia-se tentada a deslizar para dentro da grande cama e
dormir, apenas para evitar... o que teria de fazer, em algum
momento.
Além disso, ainda era capaz de saborear momentos como
aqueles, sem pressões de qualquer espécie, depois dos anos
de vida dentro do horário das necessidades de outras
pessoas. Ainda podia acalentar o pensamento: "Se eu não for
para a cama até o sol raiar, não tem importância. Não preciso
levantar- me antes do meio-dia se eu não quiser".
Fazia apenas três anos que recuperara aquela liberdade — é
claro, era para isto que teria de olhar, na época do
crescimento das crianças. Mas ela poderia ter reclamado o
direito à liberdade antes. Anos antes. Mary Finchley, por
exemplo? Se ela estivesse com vontade de ficar na cama até
o meio da tarde, ficava, e gritava para as crianças lhe
trazerem a comida ou um chá. Nesse meio tempo, entre
Kate, a moça que se casara com Michael, e a Kate de três
anos atrás, que foi quando ela se havia conscientizado do
fato de que havia alguma coisa a examinar, a putrefação
havia começado.
O momento que caracterizou o clímax de três anos atrás
havia sido quando Tini, na época nos seus dezesseis anos
tumultuados, se voltara contra ela na mesa do jantar e gritara
que ela o estava sufocando. Aquilo lhe fora arrancado das
entranhas, era fácil de ver. Toda a família estava presente,
todo mundo havia ficado chocado — oh, sim, eles tinham
compreendido que aquele era o evento de uma nova fase,
destrutivo, que anunciava uma ameaça àquela unidade que
eles compunham; todos haviam mergulhado no tato,
amenizando aquele momento de desespero e medo
verdadeiros, tanto para ela como para o garoto. Pois aquilo
havia sido arrancado à força dele, e ele estava chocado com
o ódio que havia mostrado. Normalmente, naquela família
bem-humorada (era assim que eles pensavam deles
mesmos), bem-ajustada, com o esforço de todos para mantê-
la assim, tais conflitos eram sempre expostos, discutidos,
postos de lado. Às vezes de maneira brutal. Podia-se dizer
que o espírito da fase 2 do jovem casal — discussões para
suavizar os limites dolorosos da fase 1 — havia sido posto
em funcionamento pela sua família em crescimento, anos
depois. Ninguém poderia ter dito — quem? Kate estava
imaginando uma espécie qualquer de crítico, talvez um
assistente social — que aquela era uma família na qual as
coisas eram sufocadas, escondidas, e tinham de ocultar-se na
clandestinidade.
Entretanto o fato de o garoto ter de explodir e se abrir
daquela maneira, diante de todos eles, e sob pressão,
mostrava que talvez todo o gracejo, o psicologismo e a
crítica não fossem a franqueza terapêutica e saudável que ela
imaginara, que todos eles haviam imaginado, mas uma forma
de enganar a si mesmos. Uma folie familiar, como a loucura
que encolhe os amantes que se destroem a si mesmos. Se
existe uma folie à deux, então com certeza que existe uma
folie à... tantos quantos se quiser!
Recordando uma típica cena familiar, durante a adolescência
dos quatro filhos, ela viu a si mesma numa extremidade da
mesa, terna e estofada, com a pressão assustadora de quatro
egos em luta e em expansão, que estavam todos, de uma
maneira ou de outra, em conflito ou confluência com ela,
um foco, um ponto de equilíbrio; e o marido na outra
extremidade, tolerante, irônico... um pouco cansado. Mas
não realmente implicado, não envolvido, pois ele trabalhava
tanto que tinha pouca energia emocional de sobra para dar à
família, às quatro crianças... monstros. Cinco monstros: ela
estivera tão envolvida com o crescimento, as crises
constantes, o impulso delas para cima e para fora dela
mesma, com todos os sentimentos, que afinal achara difícil
separar-se delas. Ainda achava. No entanto a pressão dos
monstros sobre ela, as exigências insistentes haviam
terminado. Bem, quase, exceto pelo mais moço, Tim.
Naquela determinada ocasião retirara-se da mesa tão logo
pôde, sem que parecesse uma garotinha fugindo para fazer
birra ou para chorar. Mesmo assim estivera como um gato
ou um cachorro que foi chutado inadvertidamente por um
amigo. Ela sabia enquanto ia. Estava consciente de cinco
pares de olhos não olhando para ela deliberadamente. Tinha
ido para o quarto enquanto o garoto fugia, com vergonha,
porque havia gritado, tendo mantido a cabeça baixa sobre o
prato para acabar de comer o pudim.
No quarto, ela se havia sentado e pensado, tentado pensar,
enquanto as emoções turbilhonavam. Sentira-se quase
enlouquecida sob a pressão do velho sentimento: "Não é
justo, que é que eles esperam que eu faça?"
Era culpa dela que Tim fosse muito duro consigo mesmo,
com os outros... com ela? Os outros três haviam passado,
imperceptivelmente, de crianças a adolescentes. Todos
tempestuosos e problemáticos, certamente, mas a explosão
de Tim para a adolescência abalara todo mundo. Todo
mundo discutira, compreendera. Havia muita manifestação
verbal entre aquelas espertas crianças modernas. Tim era
julgado por todos eles como mais monstruoso que qualquer
um; e Kate como a sua vítima. Mas a única coisa que não
havia acontecido — tinha de voltar àquele ponto outra vez
— fora evasão, segredo. Durante aqueles anos em que se
sentira como se estivesse trancada para sempre, numa
grande caixa, com quatro egos explodindo perpetuamente,
havia consolado a si mesma com o "mas nada está sendo
escondido, tudo está sendo dito". E havia comparado sua
família com outras — não com os Finchley, eles estavam
além de comparações, tinham suas próprias leis — e todas as
famílias com adolescentes eram assim. No centro de cada
uma havia uma mãe, uma mulher, fagulhas saltando para
fora dela em todas as direções enquanto as psiques se
desgastavam umas nas outras como seixos numa praia, sob
uma tempestade. Havia ficado hiper ansiosa por ser
dominadora, controladora, por mantê-los mais infantis do
que deveriam ser? Ficara ansiosa da mesma forma por lhes
dar liberdade demais, tratá-los como adultos cedo demais,
mas talvez este fosse o erro, e Mary estivesse com a razão,
ela que nunca dispensava um segundo de pensamento sobre
como ela deveria se comportar — simplesmente seguia o seu
estado de espírito. Mas não era uma questão de dominação
ou não, tudo tinha a ver com envolvimento. Será que
estivera envolvida demais com tudo, mergulhara em si
mesma, fundo demais, de forma que as crianças não haviam
tido algum ponto fixo forte em que se apoiar? Mas
certamente o homem, o pai, não deveria sê-lo? Talvez,
afinal, Michael tivesse estado com a razão o tempo todo, ela
estivera errada em criticá-lo: seu grau de envolvimento
havia sido o certo. Pois por que haveria de ser necessário
que uma mãe tivesse de estar ali como rebolo no centro de
tudo? Recordando, parecia que ela estivera à disposição de
todo mundo, sempre disponível, sempre criticada, sempre
sendo sangrada para alimentar aqueles... monstros.
Recordando sua própria adolescência, nada conseguia ver de
semelhante. É claro que tivera uma intimidade forte, muito
forte, com sua mãe até que ela morresse, no ano anterior à
viagem para Lourenço Marques. E seu pai estivera fora
durante a maior parte da guerra, deixando as duas, mãe e
filha, juntas. Mas não podia acreditar que tivesse sido a
mesma coisa de maneira nenhuma.
Mas de que é que adiantava estar sentada ali, pesando e
analisando... criando desculpas? Pois Tim havia explodido,
gritando que ela o sufocava, que o tratava como a um bebê,
e o fato de que aquilo não fora apenas "conversa de amor" de
rotina — a denominação dada pela família às suas críticas de
cada um — foi demonstrado pelas reações de todo mundo.
Muito bem, então ela fora dominadora demais com ele.
Mas o notável era que bem naquele instante, sentada ali
naquele balcão iluminado pelo luar, ela estava bastante
cônscia da sua presente situação, de pé como se estivesse
num penhasco, com o vento norte soprando direto sobre o
seu rosto, que a desnudaria de carne, forma e cor. Naquela
ocasião também percebera desde o início o perigo para o
caçula de uma família quando ele estivesse amadurecendo.
Evidentemente, não era suficiente saber uma coisa, senão
ele não teria berrado: "Pelo amor de Deus, me deixa em paz,
você está me sufocando!"
Tudo que ela havia feito fora dizer-lhe para não esquecer
alguma coisa, agora não conseguia lembrar o que —- será
que aquilo fora a questão, havia sido o quê e não o como da
coisa? Mas não conseguia lembrar-se, aquilo se havia
perdido. Perdera-se porque ela não queria lembrar-se, havia
organizado o incidente de forma que pudesse tomar o seu
lugar entre as memórias formais, memórias que haviam
estado em sua mente durante dez, quinze anos, um quarto
de século? Mas realmente tinha havido uma moça que era
toda energia vital e individualidade, e com experiência
muito mais ampla do que a maioria (por exemplo, o ano, na
África oriental portuguesa, passado consciente, se não
teatralmente, como uma jeune filie); uma moça com o
temperamento que combina com o ser ruiva (ela havia
recebido cumprimentos por ter aquele temperamento desde
a sua infância mais remota, e disto conseguia lembrar-se
muito bem); uma moça que se destacava, que se tinha desta-
cado, onde quer que estivesse, entre outras, não apenas em
virtude daquele colorido dramático, mas também por sua
personalidade e atitude. Bem, será que algo daquilo não fora
verdadeiro? Será que estava enganando a si mesma com
aquela descrição? Pensava que não. Aquela moça, muito
cortejada por uma variedade de homens, se casara com o seu
Michael. Depois de inicialmente terem vivido juntos
durante um ano (fase 1), eles se haviam tornado um casal
jovem, atraente e um centro para outros ainda não casados,
ou que logo se casariam, ou casados mas a quem faltava o
charme deles. Ou a personalidade? Entretanto, aquele
casamento havia sido oferecido como um sacrifício quase
que extravagante às convenções; eles haviam continuado a
se comportar como um casal que vive junto, apaixonados,
amando, dignos de amor. O primeiro bebê alterara aquilo,
mas não muito. O bebê (agora Stephen) fora encaixado na
vida de um jovem casal atraente, que fazia coisas com bas-
tante mais vitalidade que os outros. O bebê os acompanhara
nas festas, viajara com eles, não a impedira de assistir a um
curso de conferências sobre a influência sarracena na poesia
provençal. Era verdade que continuar vivendo como se não
tivesse havido nenhuma mudança, com o acordar durante
todas as noites, e o ter de levantar-se cedo, e o sempre estar
presa ao horário da criança, fora difícil. Mas, na época,
aquela torção de seus hábitos não parecera — como ocorreu
depois — a coisa importante que foi. Quando aquele
primeiro bebê fez um ano, ela estava grávida. Nas mentes de
ambos os pais estava a idéia de que poderiam continuar
vivendo daquela maneira com duas crianças.
Qualquer um poderia ter-lhes dito que era absurdo.
A mudança verdadeiramente profunda não veio com o
primeiro, mas com o segundo bebê (agora uma moça
chamada Eileen). Com um bebê, continuaram a ser um
jovem casal, ainda pagando radiantemente um tributo não-
obrigatório às convenções, às exigências sociais. Com o
segundo, a ênfase deslocou-se de posição violentamente.
Vendo como a vida deles se tornara diferente, decidiram ter
o terceiro "para acabar logo com isso", um espírito muito
diferente; e logo eles tinham uma casa, uma hipoteca, um
carro pequeno, uma arrumadeira regular, uma vida
metódica, tudo para o bem das crianças. Era extraordinário
ver durante quanto tempo aquele casal continuou a pensar
em todos aqueles objetos estranhos, carro, casa e assim por
diante, como coisas que nada tinham a ver com eles pes-
soalmente — não para o bem deles, de maneira alguma, mas
apenas por causa de seus filhos.
Quanto a Kate, ela estava adquirindo virtudes difíceis de
serem encontradas, autodisciplinas. Recordando, agora, a
moça bonita, mimada pela mãe, com aquela deferência
muito levemente zombeteira, que é oferecida às moças, e
comparando-a com a mesma jovem mulher de apenas cinco
anos depois, ela se sentiu tentada a gritar que tudo aquilo
tinha sido uma artimanha gigantesca e suja, o mais
monstruoso dos cinismos. Recordando, podia ver-se apenas
como uma espécie de ganso branco na engorda. Nada na
homenagem que seu avô prestava à feminilidade, ou na
maneira como sua mãe a tratava, a havia preparado para o
que ela ia ter de aprender, e logo.
Com três crianças pequenas, e depois quatro, ela tivera de
lutar para adquirir qualidades que não haviam nem estado no
seu vocabulário. Paciência. Autodisciplina. Autocontrole.
Auto-abnegação. Castidade. Adaptabilidade com relação aos
outros — acima de tudo. Isto sempre. Essas virtudes,
necessárias para se criar uma família de quatro crianças, com
uma renda limitada, ela realmente adquiriu lentamente.
Havia adquirido as qualidades antes de ter pensado em lhes
dar nomes. Podia lembrar-se com muita clareza do dia em
que, lendo certas palavras que pareciam fora de moda, num
romance antigo, havia pensado: "Bem, é isto que isso é:
levantar-se várias vezes a noite inteira, durante meses
seguidos, e sempre de bom humor; e é isto o que isto é: não
ter relações com Michael quando uma das crianças estava
doente. E quanto a ser uma esponja para absorver pequenos
desejos, de forma que tudo que não fosse uma criança
parecia um horizonte distante demais para jamais ser
alcançado de novo... qual era a palavra para aquilo? Ela havia
achado divertidas as grandes palavras para exprimir o que se
espera que toda mãe se torne. Mas virtudes? Realmente?
Realmente virtudes? Se fosse assim, eles a haviam traído,
haviam-se tornado inimigos. Olhando para trás, a partir da
posição de ser uma mulher casada, quase de meia-idade e
mãe, para a sua posição quando moça, quando vivia com Mi-
chael, parecia-lhe que não eram virtudes o que havia
adquirido, mas uma forma de demência.
Na manhã seguinte à explosão do seu caçula, aconteceu
casualmente que estava na rua com uma cesta de compras na
High Street, e que ficou presa num pequeno engarrafamento
de trânsito. Observou uma mulher bem jovem, seguindo rua
acima, com um bebê num carrinho. Aquela moça, de talvez
dezenove anos — mais ou menos a sua idade quando tivera
o primeiro filho —, usava uma saia curta, tinha o cabelo
vermelho-escuro rebelde, olhos verdes, uma energia calma.
Entretanto, parecia uma garotinha brincando de ser mamãe.
Empurrava o carrinho com uma das mãos enquanto
carregava uma grande sacola de verduras na outra. Ia
andando como uma mulher viking. Kate desviou sua
atenção daquela moça para as outras. Era como se, de
repente, a rua se tivesse enchido de moças, moças solteiras,
ou moças com bebês, e todas elas se moviam — sim, era ali
que se podia vê-lo, na maneira como se moviam — com um
balanço gracioso, tranqüilo, com liberdade. Era
autoconfiança. Era tudo que ela, Kate, havia perdido pelo
excesso de consciência de si mesma, pela percepção das
conseqüências do que ela fazia.
Depois, tendo absorvido da maneira mais consciente pos-
sível a verdade daquelas moças — era dolorosa, a
comparação de si mesma com elas —, observou os
movimentos, os rostos de suas contemporâneas. Vinte anos
faziam a diferença, isso era tudo o que era necessário para
transformar aqueles rostos bravos em rostos cautelosos e
desconfiados. Elas tinham um bom temperamento idiota, o
bom temperamento da vítima, uma horrenda gentileza
indefesa — como a risada fraca que soa como se fosse baixar
até se dissolver em lágrimas. Elas caminhavam como se seus
membros tivessem freado porque tinham medo de ser
apanhados numa armadilha por alguma coisa, medo de bater
em alguma coisa; elas se moviam como se estivessem
rodeadas por inimigos invisíveis.
Kate passara a manhã andando, devagar, para baixo e para
cima, por aquela longa rua cheia de gente, absorvendo
aquela verdade, de que os rostos e os movimentos da
maioria das mulheres de meia-idade são idênticos aos dos
prisioneiros ou dos escravos.
Numa extremidade de uma longa experiência, totalmente
envolvente, caminha uma moça jovem, confiante e
corajosa; na outra, uma mulher de meia-idade... ela mesma.
Então Kate tinha ido para casa, e passado semanas
observando-se andar, falar, agir, mas desse outro ponto de
vista, e tinha concluído, muito simplesmente, que ela havia
enlouquecido. Estava obsedada, de manhã à noite, com
arrumação, com organização, com ver como as coisas
deveriam ser, com os resultados de não agir desta maneira
ou de agir daquela. Observando-se a si mesma, ouvindo-se a
si mesma, voltou sua atenção para as mulheres da sua idade,
que eram suas amigas. Todas tiveram uma extensa educação
a respeito de apenas uma coisa: inquietar-se à toa. (Não Mary
Finchley, é claro. Não Mary. Mas ia ter de compreender o
que Mary significava para ela, o que era que ela defendia.
Obviamente não se podia, simplesmente, excluí-la de todas
as categorias normais e deixar as coisas assim. Aquilo era ao
que todos aqueles anos de adquirir virtudes haviam levado:
ela e suas contemporâneas eram máquinas, programadas para
uma função, para dirigir e arrumar e ajustar e prever e
ordenar e se incomodar e se preocupar e organizar. Para se
inquietar à toa.
Sua família, ela via agora, estava perfeitamente consciente
disso. Estava sendo tratada por aqueles indivíduos
independentes — marido e jovens apenas recentemente
libertados das tiranias das emoções da adolescência e,
portanto, muito mais intolerantes com as fraquezas de outras
pessoas — como uma coisa que tivesse de ser suportada.
Mamãe era uma quantidade incerta. Era como uma velha
governanta que tivesse dado seus anos de vida à família e
agora tivesse de ser suportada. As virtudes se haviam
transformado em vícios, em importunar e em oprimir as
outras pessoas. Uma jovem criatura destemida fora
transformada, através do longo e triturante processo de
sempre — estar sempre à disposição das outras pessoas,
sempre ter de dar atenção ao mínimo detalhe, aos
minúsculos desejos, exigências, necessidades,
acontecimentos, crises —, numa maníaca obcecada.
Obcecada pelo que não tinha absolutamente importância
alguma.
Aquela conscientização surgira há três anos. Enquanto
continuava a dirigir a casa grande e trabalhosa, dirigindo o
que, ela sentia, se tinha transformado num hotel ou numa
casa de repouso para a família e os amigos e amigos dos
amigos, ela tentara retrair-se. Fora um retraimento íntimo,
uma vez que dificilmente seria possível anunciar seu plano
de fazê-lo sem aumentar a irritação da família, o sentimento
deles de terem obrigações para com ela, a criada que
mantinha tudo aquilo em funcionamento. Foi tornado mais
difícil porque seus esforços não haviam sido notados. Seu
marido estivera particularmente ocupado, e ela pôde
compreender que ele próprio estava dando um jeito para
assim continuar, pois na posição dele ela aproveitaria
qualquer oportunidade para se expandir, para sair e se afastar
da aproximação opressiva da meia-idade — ele era mais
velho do que ela sete anos. As crianças, muito naturalmente,
não estavam nem um pouco mais envolvidas com ela e seus
problemas do que quaisquer jovens adultos saudáveis estão
com os problemas de seus pais. Mas ela descobriu que eles
sempre usavam mecanismos de defesa contra ela em situa-
ções em que estivera tentando torná-los desnecessários. Ela
havia sido continuamente arrastada de volta aos — já
ultrapassados, ela havia tido esperanças — padrões de
comportamento por pessoas que ainda os esperavam de sua
parte.
Mas por que não deveria ela anunciar à família que ia mudar,
que estava no processo de mudança? Não podia. Eles o
veriam como um apelo à atenção, à compaixão deles. Como
ela teria feito se estivesse em seus lugares — a questão era, e
aqui estava voltando a ela de novo, que tudo não passava de
uma idiotice, a discussão aberta e franca e a conversa, e os
registros de dados e a tomada de decisões para se comportar
desta ou daquela maneira. (Não era assim que as pessoas
mudavam; elas não se modificavam: você foi modificada por
ter sido obrigada a passar por alguma coisa, e então você
descobre que se modificou.) Mas se todos aqueles anos de
"conversa de amor" tinham sido de alguma utilidade,
qualquer que fosse, ela agora poderia tê-los usado, poderia
ter dito: "E agora, basta. Sou como uma aleijada ou uma
inválida depois de ter sido durante anos criada de vocês,
capacho de vocês. Agora, ajudem-me. Preciso da ajuda de
vocês". Mas ela não podia dizer isso.
Pouco tempo depois do incidente do grito de Tim na mesa,
havia saído, sozinha, para visitar velhos amigos. Deixou a
filha tomando conta de tudo. Procurou prolongar a visita,
usando todos os tipos de pretextos. Pensou que, se pudesse
mantê-la suficientemente longa, o padrão seria rompido, a
jaula seria aberta. Teve de voltar para casa mais cedo do que
planejara porque Eileen havia decidido sair para visitar
amigos.
Ainda que tivesse, quase que de imediato, voltado
diretamente para aquilo de que estivera fugindo, foi capaz de
olhar para si mesma, a mulher preocupada com quem o
garoto havia gritado, como uma criatura que havia estado
realmente louca. Maluca.
Aquele verão, a cena na mesa do jantar, a sua saída haviam
motivado o que estava acontecendo, pois sem eles ela não
teria aceitado a proposta de Alan Post, nem mesmo com a
ajuda do marido... Sim, a irritação dele por não ter agarrado a
oportunidade havia sido por isso. É sempre um problema,
quando se está num beco sem saída, numa armadilha, ver o
que existe como possibilidade, é preciso que se esteja atento.
Mas o que a impedira de dizer que queria alugar um quarto
sozinha, em algum lugar em Londres, para os meses de
verão? Nada, exceto que era inconcebível! Teria sido uma
coisa tão exagerada de se exigir que ela não teria pensado em
fazê-lo; entretanto, era o que, provavelmente, ela deveria ter
feito.
Ela precisara de um trampolim.
Agora, estava sentada num balcão, do qual o luar já se havia
afastado, olhando para cima, para um céu onde estrelas
recuavam para um cinzento frio, olhando para baixo, em
direção a uma rua que agora estava realmente vazia, afinal.
Agora, se estivesse sozinha, realmente sozinha, naquele
país, podendo satisfazer a si mesma... sim, aquilo era o que
poderia ter arranjado para si mesma; nunca lhe havia passado
pela cabeça, é claro.
Poderia ter-se sentado ali enquanto a madrugada surgia,
dormido o dia inteiro se quisesse, depois andado ao léu por
aquela cidade, que era, afinal, um porto do Mediterrâneo,
tanto quanto um sustentáculo do turismo. Poderia ter
vagado como lhe aprouvesse, e voltado para casa dali a dois
meses, sozinha, tendo realmente estado sozinha, isto é, uma
pessoa operando a partir de suas próprias escolhas.
Mas agora estava sentada numa madrugada fresca, pensando
que deveria ir para a cama, porque ele se levantaria
descansado, justamente quando ela estivesse pronta para
desfalecer no sono. E, a menos que estivesse muitíssimo
enganada, teria diante de si um homem na defensiva, porque
ele havia desmaiado na noite anterior e dormido sem levá-la
para a cama, como as circunstâncias e as convenções
exigiam. Era quase capaz de esperar que ele estivesse um
pouco doente... não muito, só um pouco.
Na extremidade da rua um homem entrou no seu raio de
visão. Era louro, um nórdico, um turista como ela. Será que
havia estado na praia com os jovens? Bebendo? Dançando?
Teria estado num café, conversando? Num dos bares frescos
parecidos com porões? Ele alcançou o ponto onde ficava o
seu balcão quando as luzes da rua se apagaram. Ela o viu
como um vulto da noite apanhado fora de seu tempo pela
madrugada: o céu estava começando a ficar levemente
rosado e com tonalidades mutantes. Ele olhava para cima,
para o céu. Não era bastante jovem para ter estado com os
outros na praia. Era de compleição pesada, bem de meia-
idade, e seu rosto estava marcado por rugas. Não, ele era
mais velho, o cabelo era mesmo branco, não era louro. Era
um espanhol, provavelmente havia apenas acabado algum
trabalho noturno. Foi abrindo seu caminho, através dos
oleandros, e parou junto de uma fonte para passar água nas
mãos e no rosto. Bebeu um pouco uma ou duas vezes,
dirigindo o fluxo da água com a beira da palma da mão direto
para dentro da boca. Então moveu a mão de forma que o
jato de água se dirigisse para a sua cabeça abaixada. Sacudiu a
cabeça energicamente, foi andando até um banco e deitou-
se ali, o rosto virado para o encosto, de costas para a rua e
para os observadores. Seria ele um indigente? Sem casa? Ela
teve consciência de uma ânsia de preocupação. Aquele pe-
queno jorro de emoção era como o jato contínuo da fonte.
Zombeteiramente, ela se observou a pensar, ou sentir, que
deveria descer até a praça, tocar o ombro dele — com
cuidado, é claro, de maneira a não o assustar — e perguntar-
lhe se precisava de alguma coisa, oferecer-lhe ajuda. Em que
língua? Tinha de aprender espanhol!
O frágil fluxo de emoção era igual àquele que a levara, no
inverno anterior, depois daquela cena dramática com Tim, a
abrigar um gato abandonado. Seus sentimentos com relação
àquele gato — enquanto duraram — tinham sido fortes. Ela
não teria sido o produto de anos de "conversa de amor" se
não tivesse sido capaz de dizer a si mesma: "O gato me
representa, sou eu mesma. Estou cuidando desse pobre gato
porque sinto que alguém deveria cuidar de mim. Mas quem?
Minha família, é claro! Que não precisa mais de mim e que
me acha insuportável".
A família tivera consciência do papel do gato, e de seus
pensamentos a respeito dele; consciência do seu papel
naquilo, de seus sentimentos. "Ora, vamos, você abrigou
esse gato velho, fedorento, só porque não estamos sendo
bonzinhos com você!"
"Ele está machucado na cabeça, mãe. Você só nos está
mostrando isso, é tudo."
Sentada ali naquele balcão, a centenas de quilômetros de
distância e mais de dois anos depois, queria saltar de pé e
gritar a sua raiva e amargura para eles. Na ocasião havia
sorrido, é claro, havia sido irônica. Agora desejava ter batido
neles com força, na sua adorável Eileen, no seu atraente
Michael, em Tim... em todos eles.
— Gostaria de haver batido neles — ouviu-se murmurar. —
Gostaria, eu gostaria de haver batido em todos eles.
Presenciara Mary Finchley a berrar insultos ao marido, aos
filhos: depois ela caía na gargalhada. Fazia o que tinha
vontade de fazer, no momento em que tinha vontade de
fazê-lo.
A família tratara Kate como uma inválida, e o gato, como
um remédio.
"A coisa certa para a menopausa", ouvira Tim dizer para
Eileen.
Ela ainda não havia entrado na menopausa, mas nada teria
adiantado dizê-lo: aparentemente, fora útil para a mitologia
da família ter uma mãe na menopausa. Às vezes se sentira
como um pássaro ferido, sendo bicado até a morte pelos
pássaros saudáveis. Ou como um animal atormentado por
crianças cruéis. E, é claro, sentia que o merecia, por
detestar-se tanto a si mesma. Oh, aquela havia sido uma
primavera terrível, depois de um inverno ruim; tivera medo
de que realmente estivesse louca, passava a maior parte do
tempo zangada. Então os dois mais velhos começaram a
dedicar-se inteiramente à universidade, aos amigos, e ela
ficou encantada. Absolutamente encantada, embora, é claro,
na ocasião se sentisse culpada por estar encantada. Sentir-se
culpada parece quase uma definição da maternidade nessa
época esclarecida da atualidade. Era um monte de besteira
sem sentido, tudo um monte de lixo, tudo aquilo... Em
algum lugar no caminho eles se haviam enganado... Quem?
Ela mesma? Não as crianças, é claro que não! A sociedade?
Mas por que tanta tensão e antagonismo e ressentimento?...
Entretanto já havia acabado. Eileen estava ocupada com
homens. Só havia Tim que ainda tinha oportunidade de
olhá-la — era assim que sentia. O período ruim havia pas-
sado. Ela o recordava. . . mas, se realmente fosse assim, por
que estava ali naquele momento, com aquele rapaz que
Mary Finchley pelo menos teria percebido, à primeira vista,
iria oferecer-lhe o que ela já sabia, o que ela não queria...
Não saiu do balcão até que o aro do sol começou a lançar
raios quentes sobre o mar e para dentro do quarto. Estava
realmente cansada. Dentro do quarto um negrume lhe
encheu os olhos que estavam ajustados ao dia. Quando seus
olhos se desanuviaram, viu que Jeffrey estava deitado e
olhava para ela. Sorriu e se preparou para falar — viu que ele
não estava realmente acordado. Ele se levantou com
dificuldade, agachado na cama, olhou fixo, como um animal
surpreendido, seus membros de dançarino expressando o
sonho em que ainda deveria estar, o rosto atento,
desconfiado, pronto para se desviar. Ela disse cuida-
ciosamente "Jeffrey!", mas ele emitiu um som confuso e
imperativo de negação, e correu para o banheiro. Ela o
ouviu vomitar. Continuou de pé onde estava, perguntando-
se se ele estaria acordado quando voltasse. Voltou para o
quarto apoiando-se primeiro no batente da porta, depois na
quina de uma cômoda. Ele devia estar se sentindo sozinho,
então: ele a viu, atirou-se para a frente, alcançou a ponta da
cama e olhou. Ela estava, compreendia agora, delineada
contra a porta do balcão já resplandecente de luz. Devia
parecer-lhe um vulto escuro, à espreita. Afinal ele sorriu:
sabia que deveria saber quem ela era. Foi um esforço, porque
estava mais dormindo do que acordado, mas era uma pessoa
polida, fora educado para agradar, para oferecer cortesia. O
sorriso era uma cortesia oferecida a uma situação que a exigia
e não se animou numa expressão de prazer. Moveu-se com
esforço, enfiando-se na cama, e caiu inerte, voltando a
adormecer imediatamente.
Ela sentou-se ao lado dele, vestida com o robe branco de
babados, que tinha em si o doce frescor do ar da noite que
ela havia trazido para dentro, para longe do calor daquele
dia. Estava jurando a si mesma que quando acordasse não
seria maternal, não sugeriria que chamassem um médico,
não se preocuparia. Deitada ao lado daquele rapaz, que ela
sabia que no mínimo estava "com cores deficientes", se é
que não estava doente, tentou colocar-se no estado de
espírito de uma mulher que tivesse vindo para ali para estar
com ele por amor. Supondo que ela ainda fosse uma "mulher
amorosa" — era assim que o designava — e não uma mulher
maternal, como resultado de um quarto de século de
trabalho de babá, se ela fosse essa "mulher amorosa", então
como se estaria sentindo? Era fácil, tinha apenas de se
lembrar de Michael. Estaria acordando Jeffrey para se
amarem... ela e o marido haviam gostado de se amar quando
ela, mas especialmente ele, estava com febre. Ele tinha a
tendência de ter febre pelas mínimas coisas e durante anos
aproveitaram ao máximo aquele condimento para o
erotismo... ou assim haviam acreditado. Mas não podia con-
ceber aproximar-se de Jeffrey eroticamente. Para começar
(como, é claro, livros e toda espécie de peritos, conselheiros
matrimoniais e congêneres poderiam ter-lhe dito), se uma
mulher está ligada numa correspondência boa e sincera com
um determinado homem, então uma nova relação com um
outro não ocorre assim tão facilmente. (Razão por que ela
nunca fora capaz de acreditar no prazer simples de trocas de
par entre casais e no adultério cordial.) E afinal sua
experiência sexual havia sido com Michael e, de segunda
mão, através de Mary.
É claro, se estivesse perdidamente apaixonada como a
ocasião exigia, ainda que mesmo num sentido estético, um
sentido do apropriado que é exigido, não estaria deitada ali
tentando imaginar-se num comportamento erótico.
Apoiou-se no cotovelo e o examinou com todo o cuidado de
uma mãe com uma criança doente. Ele conseguia sugerir,
mesmo enquanto sua pele emanava calor, que estava com
frio. Um suor cobria-lhe a testa. Tinha um aspecto doentio.
Não, nem mesmo uma mulher perdidamente apaixonada
poderia escolher aquele momento para abordá-lo. Havia
alguma coisa em seu estado atual que repelia o sexo.
É claro que era possível, realmente provável, que ele não
fosse sexualmente atraente pelo menos no seu estado de es-
pírito atual de preocupação quanto ao futuro, ou, pelo
menos, para ela... o grau do seu não-envolvimento com ele
era confirmado pela sua frieza no momento em que chegou
àquela conclusão.
Kate adormeceu e imediatamente estava numa encosta
rochosa. Sim, lá estava a sua pobre foca, movendo-se lenta e
dolorosamente em direção ao oceano distante e invisível.
Ela tomou nos braços o animal escorregadio. Oh, ela não
devia tê-la deixado ali. Estava mais fraca; seus olhos escuros
a censuravam. A pele estava muito seca; tinha de arranjar
um pouco de água para ela. A distância havia uma casa.
Cambaleou naquela direção. Era uma casa de madeira, o teto
bem inclinado para a neve que — ela sabia — logo cairia,
pois já era outono. Não se via ninguém na casa, mas havia
gente morando lá, porque numa minúscula lareira estavam
as cinzas quentes das brasas que se apagavam. Ela deitou a
foca na pedra diante da lareira e tentou reacender o fogo.
Não havia muita madeira, mas afinal conseguiu fazer com
que o fogo voltasse a arder. A foca estava quieta, os lados se
erguendo dolorosamente com a respiração. Mantinha os
olhos fechados. Precisava desesperadamente de água.
Carregou a foca até o banheiro e derramou sobre ela água
das tinas de madeira que se encontravam ao longo das
paredes de madeira. O sabor do sonho ainda era, cada vez
mais, o de uma outra era; um mito ou uma velha história. Os
olhos do animal se abriram e pareceu reanimar-se. Ela
pensou que havia muitas coisas que tinha de fazer: limpar a
casa, apanhar lenha para a lareira antes que a neve de
inverno caísse, comprar comida, tirar roupas quentes das
arcas e deixá-las preparadas para ela mesma e para as pessoas
da casa que, ela sabia, eram a sua família, mas transformadas
e transfiguradas em criaturas místicas maiores que elas
mesmas, representando mais do que eram na vida cotidiana.
Num quarto no andar de cima da casa ela viu um rapaz louro
e alto de olhos azuis. Ela o conhecia. Era o seu amante.
Sempre tinha sido. Eles se amaram. Tinham estado
esperando há anos e, através da espera e do querer, tornaram
aquele ato perfeito... Ela se lembrou da foca. A foca
precisava dela, jazia abandonada no chão do banheiro,
esperando por ela. Deixou o rapaz louro, que era um nobre
de alguma espécie, talvez um príncipe, dizendo: "Sinto
muito, quero ficar com você, mas primeiro tenho de levar a
foca até o mar".
Acordou sendo atacada simultaneamente pela luz intensa do
sol e por Jeffrey, que a estava amando como se fosse um guri
de dez anos, desafiado pelo seu grupo a escalar um muro
alto, ou como um trabalhador de uma fábrica soviética
sobrepujando um limite estabelecido. Embora sua
experiência — limitada, como já foi dito — não incluísse o
sexo com um americano, é claro que a literatura já a havia
familiarizado com as sensitividades americanas nesse campo.
Além disso, Mary Finchley uma vez tinha passado quinze
dias com um piloto de aviação civil americano, e fizera um
relatório... em detalhe, é claro. (Não havia necessidade
nenhuma de ouvir, Kate se repreendera com freqüência.)
Mas a situação da noite anterior exigira sexo; ele havia
falhado em cumpri-lo; agora a sua masculinidade estava em
questão.
Ela pensou em fazer uma ou duas brincadeiras a respeito de
condicionamento — como ele costumava fazer
continuamente —, mas compreendeu, pelos seus olhos
vermelhos e irritados e pelo corpo inchado, que brincadeiras
sobre aquele assunto não eram possíveis. Eram seis horas,
tinha dormido por menos de uma hora. Agora que a
agressão dele se havia esgotado, era evidente que estava
doente: eles deviam, como pessoas sensatas, despedir-se
amistosamente e seguir os seus caminhos separados pelo
mundo.
Deitada numa confusão de babados brancos, agora
amarrotados, o quadro exato de uma mulher sedutoramente
posta em desalinho, ela observou um rapaz mal-humorado
de dezoito anos que, se tivesse algum vestígio de bom senso,
iria ao médico.
Um esforço de vontade suficiente para impulsionar um
foguete lunar de tamanho decente a impediu de sugerir que
procurassem um médico.
Eles se tinham vestido e tomavam café no terraço, que já
estava cheio, animado por múltiplos idiomas, quando, tendo
de ir ao banheiro três vezes, ele confessou que estava com
diarréia de turista e que iria até a farmácia.
Ela ficou sentada sozinha e observou um homem de mais ou
menos uns cinqüenta anos sentado contra um fundo de
dentelárias com uma moça de uns vinte anos. Ele, como
Michael, usava o cabelo cortado por igual em volta do
pescoço e do rosto, sem repartido, crescendo de um ponto
central na parte de trás do topo da cabeça. Quando usado
por mulheres aquele corte fora conhecido como corte
"rapazinho". Kate o usara, mas há algum tempo. O rosto
moreno, perturbadoramente bonito, do homem que
mantinha a expressão irônica por motivos de auto-respeito
cortejava a frescura compungente da moça; ela estava
lisonjeada e bastante entediada. O homem parecia
inteligente; pequenos retalhos de conversa — dessa vez em
inglês — fizeram com que Kate dissesse a si mesma: "Bem,
pelo menos o meu não é burro". Será que ela achava que
deveria sentir-se envergonhada? Mon semblable, ela se
dirigia a ele em silêncio, enquanto se lembrava de que, há
não mais de vinte e quatro horas, dissera adeus a Ahmed, o
servidor do mundo, uma outra faceta de si mesma a quem
ela também se dirigira, mas em segredo, como irmão. Em
algum lugar nos Estados Unidos o seu Michael — com
aquele corte de cabelo, o rosto magro atraente, experiência
— provavelmente se estava protegendo com ironia
enquanto a juventude em pessoa, num invólucro de carne
deliciosa, se sentava do outro lado, sendo lisonjeada e
entediada. Se fosse assim, Kate não o conhecia: ela nunca o
conhecera cortês, irônico... vulnerável. Nem a sua
companheira tinha de ser muito jovem; Kate não sabia
realmente o que ele procurava. É claro, Eileen estava por
perto, o que significava que ele não estaria livre para fazer o
que quisesse. Talvez a moça sentada defronte fosse filha
dele, e ele estivesse olhando orgulhoso e enternecido, como
os homens de meia-idade costumam fazer com suas filhas.
Se havia uma coisa de que tinha certeza era que quando
Mary fizera aquilo — o caso mulher mais velha, homem
mais moço — não tinha havido qualquer indisposição
misteriosa ou encontros agridoces como reflexos num
espelho em terraços sulistas ensolarados, com cavalheiros de
meia-idade e suas namo- radinhas. Estranho. É claro que
não. Por cerca de quatro anos Mary havia mantido
intermitentemente um caso com um garçom de um
restaurante grego. Ele tinha cerca de vinte e três anos
quando começaram, era bonito e "tão apaixonado", como
dizia Mary. Ele a tinha adorado. Estava disposto a casar-se
com ela, e queria ir morar com ela e tornar-se o pai de seus
três filhos. Como Mary não tivesse concordado, haviam
mantido uma relação notável pelo seu bom humor, pela sua
doce racionalidade e pelo seu gostar mútuo até que ele
voltara para a Grécia.
Foi quando Mary chorou. Aquela foi a única vez em que
Kate soube que Mary tivesse chorado. Assim, até Mary
pagava tributos à alta qualidade daquela espécie de caso
amoroso. Jeffrey vinha movendo-se vagarosa e
cuidadosamente entre as mesas repletas, sobrecarregado de
embrulhos: comprimidos de todos os tipos. Eles
conversaram durante alguns minutos sobre os vários planos
possíveis, mas ele olhava criticamente o cenário de férias à
sua volta e logo disse que queria ir para o interior, para a
"verdadeira" Espanha.
A questão do dinheiro agora os confrontava. Ele não tinha
dinheiro para ir para o interior de avião, nem para alugar um
carro. Ônibus e trem eram o que estava dentro de suas
possibilidades e ao que ela, também, estava limitada. Além
disso, teria prazer em viajar neles.
Além do terraço, a praia ainda estava vazia, sulcada pela
noite anterior. Dois homens com enormes ancinhos
aplainavam a areia pronta para acomodar os jovens, que
ainda deviam estar todos na cama, embora alguns estivessem
deitados dormindo ao longo das extremidades da praia onde
a areia se encontrava com o muro do terraço. Ela sabia que
eles não teriam problemas com relação a dinheiro;
partilhavam o que tinham. O fato de Jeffrey não conseguir
aceitar dinheiro sem senti-lo — como ele mesmo dizia —
nas entranhas o teria afastado da companhia "das crianças",
se nenhuma outra razão o fizesse.
— Há um lugar barato mais acima, na costa — disse ele. — E
lá não há turistas. A gente pode conseguir um quarto por um
dólar por noite.
Estava sentado reclinado para trás, na sombra magra dos
oleandros, a mão no peito, como se o estivesse protegendo,
os olhos semicerrados. Sob a mão, seu peito subia e descia
muito devagar, como o de um homem durante o sono.
Repetidamente permanecia em silêncio por longos períodos,
enquanto a outra mão ficava frouxa sobre a mesa, até se
contrair um pouco — ele estava caindo no sono, meio
adormecido, obrigando-se a acordar de novo. Uma vespa
pousou num minúsculo pedacinho de presunto no seu dedo
indicador. Ele a observou por algum tempo, então afastou o
inseto com um movimento capaz de assustar um elefante.
— Acho que você devia voltar para a cama e ficar lá até
melhorar. — Essas palavras escapuliram da boca de Kate e
ele ergueu a cabeça de repelão e a olhou fixa e furiosamente.
— Por quê? — perguntou, num tom frio.
Menos de vinte e quatro horas depois da chegada deles à
Espanha, estavam novamente num ônibus, subindo pela
costa, em direção ao norte, e contra as marés que
inundavam o sul. Estavam a caminho do vilarejo que não
havia sido estragado. Nem mesmo chegava a ser um vilarejo,
disse ele, meia dúzia de casas de pescadores cujas esposas
ficavam felizes em acolher viajantes e tinham de ser
persuadidas a aceitar dinheiro. Chegaram ao lugar no fim da
tarde, para encontrar um grande hotel novo, e a praia cheia
de gente.
Jeffrey, que tinha dormido durante toda a viagem, a cabeça
no ombro dela — o que ela tomou cuidado para que ele não
percebesse —, observou aquele cenário sem tecer
comentários e voltou para o ônibus.
— Mas, para onde estamos indo?
— Mais acima na costa. Há um outro lugar.
— Não deveríamos jantar primeiro? Ou talvez continuar
amanhã de manhã?
— Não, não, não, é bem perto daqui, só trinta quilômetros,
vamos!
Ele tornou a entrar no velho ônibus, agora quase vazio, pois
já tinha despejado o seu carregamento de trabalhadores que
voltavam para suas casas do outro lado dos campos.
Eles seguiram adiante. Bem lá embaixo, à direita deles, o azul
do Mediterrâneo se arqueava e se ondulava de encontro à
costa acastanhada, de encontro às praias pálidas, que
quilômetro após quilômetro estavam cheias de corpos.
Às vezes uma mulher, que tinha ido a algum lugar para
visitar um parente ou para fazer compras, entrava com uma
cesta carregada. Entraram crianças numa cidadezinha, e
saltaram uma hora depois numa encosta onde não havia uma
casa sequer ou uma luz que se pudesse ver. Saíram correndo,
de mãos dadas, para a escuridão, trocando comentários ou
informações em voz alta — as palavras espanholas, como
pássaros desconhecidos, voavam sobre o mar.
Jeffrey dormia. À meia-noite chegaram ao fim da linha do
ônibus. Estavam além de Alméria, numa cidadezinha
pequena, a pouco mais de um quilômetro da costa. Havia
um hotel que não tinha sido reformado para o fluxo de
turistas. O homem atrás do balcão os observou enquanto se
registravam, mas não fez comentários, e então os levou até a
sala de refeições, onde viajantes da região, não-turistas, ainda
jantavam. Jeffrey pediu um prato forte depois do outro.
Franzia o cenho enquanto levantava o garfo, numa tentativa
de levar a comida até a boca, mas, quando o cheiro dela lhe
alcançava as narinas, baixava o garfo. Era como se ele nunca
tivesse ouvido falar de doença, ou do estado de se estar
nauseado. Parecia preocupado: por que era que sua mão,
como se tivesse uma vontade própria, ficava pondo de volta
no prato o garfo cheio? Quando veio a sobremesa, comeu
alguns pêssegos e pediu mais. Ela, tendo comido bem aquela
sua primeira refeição naquele dia, o observou a engolir o
quinto pêssego e então sair correndo da sala de refeições.
Kate o encontrou caído na cama, a luz acesa brilhando sobre
seu rosto. A mão lhe cobria os olhos como se ele estivesse
sob a luz do sol. Ao vê-la, franziu mais o cenho. Ela viu a si
mesma num vestido verde que deixava à mostra os braços e
as pernas brancas, viu o ondular pesado do cabelo ruivo, os
ternos olhos castanhos. Sem mover a mão, ele franziu o
cenho para a estranha que estava ali sorrindo, ao pé da sua
cama.
— Jeffrey!
— Que é que você quer?
— Você precisa de um médico.
Ele virou o rosto para um lado, como um soldado que
recebeu a ordem de Olhar à direita, e ficou deitado com os
braços ao lado do corpo, rígido. Então virou o corpo, puxan-
do ao mesmo tempo o lençol sobre si. Ainda estava comple-
tamente vestido, até de sapatos. Quanto a ela, adormeceu
imediatamente, tendo dormido tão pouco na noite anterior.
Acordou cedo. Ele estava de pé, metendo na boca um
punhado dos comprimidos que o farmacêutico lhe receitara.
Às sete horas, viu-se confrontada por um rapaz eficiente que
disse:
— Vamos para o interior, para Granada. Estamos perto.
Ela concordou, é claro.
Mas, enquanto ela tomava café, comia broas e observava as
vespas trabalhando na geléia de abricó, ele evitava a sala de
refeições. Estava de pé com um copo de soda na mão e
confabulava com a Recepção. Nenhum ônibus saía direto
dali para Granada. Teriam de voltar a Alméria e pegar um
outro ônibus. Seria necessário um dia inteiro para a viagem.
Ele chegou até a porta da sala de refeições para chamá-la: ele
estava, podia ver, protegendo todos os seus sentidos da
presença de comida. Decidira continuar subindo pela costa.
Havia um lugar agradável mais adiante; ele se lembrava bem
de lá. Obviamente, o esforço de voltar a Alméria num
ônibus, e então ficar vagueando por lá para esperar por um
outro, era demasiado. Entretanto ele tinha de estar em
movimento. Daquilo era que ele precisava, ela podia ver.
— Iremos a Granada depois — disse ele, e carregou sua mala
e a dela até o ônibus que esperava para seguir para o norte,
subir até Alicante, cidade que alcançariam por volta das três
da tarde. Mas eles não iriam realmente até Alicante, pois o
vilarejo de que ele se lembrava ficava antes de Alicante.
Aquele ônibus estava cheio de habitantes da região, não de
turistas, embora houvesse um ou dois jovens da costa,
viajando da maneira mais barata. Era um grupo de
passageiros alegre e simpático. As pessoas conversavam e
trocavam notícias, embora, é claro, ela não compreendesse.
Não compreendia nada. Era realmente a mais estranha das
experiências, ainda mais estranha que a situação absurda em
que se encontrava com aquele rapaz, a quem não podia
deixar porque estava doente, ou com estafa ou algo
semelhante, e que obviamente estava decidido a ir seguindo
para o norte indefinidamente, por aquela costa engrinaldada
de verão. Durante semanas, um período que acabara há dois
dias, conforme tinha de ficar lembrando a si mesma, uma
vez que parecia ter sido há tanto tempo, ela havia sido como
uma máquina multilíngiie, e todas as línguas, ou a maioria
delas, faladas a sua volta foram como portas ou janelas de
vidro. Antes de ter chegado à Espanha, até imaginara que a
competência do mundo dos congressos a seguiria, a teria
impregnado de alguma maneira, de forma que ela se
descobriria falando espanhol sem qualquer esforço; mas
estava como alguém que acordasse de um sonho no qual
tivesse estado voando, incapaz de acreditar que na realidade
não pudesse simplesmente entrar no ar e elevar-se e sair
voando. Parecia quase como se ela de fato compreendesse;
como se em uma outra época tivesse compreendido e
estivesse sofrendo de uma amnésia temporária. Diante de
um sorriso de uma mulher no banco do lado oposto do
ônibus, ou quando o motorista passava para cobrar a
passagem, ela abria a boca para falar — seu cérebro
rebuscava as expressões de outros idiomas procurando
encontrar uma que fosse útil. Sua língua permanecia inútil
em sua boca. Tinha de esticar os músculos que moviam os
lábios formando um sorriso para comunicar a disposição para
amar e partilhar. E ela continuara sentada ali, ouvindo os
sons pesados que se recusavam a revelar o seu significado,
até que se virara para olhar, apreendendo facilmente o
significado a partir de um gesto e da postura de uma cabeça,
de um ombro. Nesse meio tempo, enquanto ela estava
sentada ali como uma pessoa invisível no meio daquela
multidão que conversava e ria, Jeffrey, que tinha
adormecido imediatamente, escorregou na cadeira e
encostou-se pesadamente contra ela.
Ao meio-dia, o ônibus fez uma parada mais longa do que a
habitual, de forma que os passageiros pudessem beber
alguma coisa ou comer um sanduíche. Ela o deixou deitado
ali, tomou uma limonada, fumou um cigarro, e voltou para
encontrar o motorista examinando o rapaz adormecido. Ele
apontou para o rapaz, indicando sua aparência doentia. Ela
concordou com a cabeça e sorriu, a língua paralisada, os
ouvidos quase recebendo. Com uma sacudidela final da
cabeça o motorista voltou para o seu lugar e deu partida ao
ônibus. Estava abominavelmente quente agora. Tudo
cintilava e brilhava, e tanto ela quanto Jeffrey estavam
ensopados. O suor dele tinha um cheiro doentio, e ele estava
muito pálido, com uma coloração amarelada. Icterícia? Mas,
com a tez que ele tinha, obrigatoriamente ficaria com um
aspecto amarelado quando estivesse doente.
Chegaram a Alicante no meio da tarde e Jeffrey acordou.
Estava molhado de suor e tremendo. Mas estava decidido a
continuar em direção ao norte. Ela o segurou pelos ombros e
disse:
— Você está doente. Está me ouvindo? Você está doente.
Você tem de me deixar pôr você numa cama e arranjar um
médico.
Ele se soltou, afastando-se, como se ela fosse uma teia de
aranha em que ele tivesse entrado. Foi andando até um
ônibus que estava parado ali perto e entrou nele, sem olhar
para ver para onde ia. Ela ficou ali se perguntando se deveria
pedir ajuda. A quem? À polícia?
Em vez disso, apanhou as duas malas que agora estavam na
esquina, pois o motorista do ônibus havia manobrado para
voltar pelo trajeto por onde viera, e as carregou para o
segundo ônibus. O fato de que aquele americano
superpolido tivesse deixado que ela carregasse malas pesadas
e nem mesmo o tivesse percebido dizia tudo a respeito do
estado dele.
O ônibus tinha uma placa com um nome escrito. Ela não
tinha idéia de para onde estava indo, ou qual seria a
distância. Mas isso importava? Comprou água mineral no bar
e levou até o ônibus. Jeffrey bebeu o líquido, mas da
maneira, agora já familiar, de alguém com uma conexão
presa no cérebro, como um animal ao mesmo tempo
faminto e condicionado a achar a comida desagradável ou
perigosa. Repetidamente levava o copo aos lábios de maneira
frenética e sedenta, engolindo sem pensar, mantendo a água
na boca com uma expressão de desconfiança agoniada.
Engolia a água como se estivesse tentando lembrar-se do que
lhe haviam dito sobre ela... alguma coisa terrível! Então sua
mão novamente levava o copo até os lábios, depressa,
desesperadamente. Desta maneira a água mineral foi bebida,
e ele não a pôs para fora. Assim ele não morreria de
desidratação, isso já era alguma coisa. Afundou-se outra vez
no assento. Agora, estava mais quente ainda. As ruas
estavam vazias, pois era a hora da sesta. Os cafés e os bancos
em volta de uma praça empoeirada estavam cheios de gente
sonolenta. A cidade estava esmagada pelo peso do calor, e,
quando o ônibus saiu, estava quase vazio.
Jeffrey estava sentado com o corpo frouxo, sacudindo e
escorregando-se com os movimentos do ônibus. O ônibus
tomou um trajeto em direção ao norte, mas, depois de meia
hora, virou para o interior, afastando-se da costa. Parecia que
ele não havia percebido que o Mediterrâneo não os
acompanhava mais. Mas depois de algum tempo ele
comentou com um sorriso satisfeito: "Oh, sim, é este o
caminho. Eu me lembro, o vilarejo é aqui". O ônibus seguia
através de morros baixos. Agora, que estavam mais alto, o
mar surgia atrás deles, uma planície azul, distante. Então
desapareceu, os morros o esconderam. Estavam numa
estrada tosca de terreno irregular, na encosta de um morro,
subindo em espiral. Jeffrey continuava sentado, se
sacudindo, balançando, dormindo. Ela conservava o braço
em torno dele para mantê-lo erguido. Uma vez ele acordou,
não com a personalidade mal-humorada de um homem
doente, mas tendo voltado no sono a uma anterior, a que a
havia escolhido para companheira. Sorriu encantadoramente
para ela e disse:
— Kate! Isto não é simplesmente fantástico? Não é
maravilhoso? Não é simplesmente. . . — Mas ele tornou a
cair no sono.
O sol estava entrando pela frente do ônibus. Os passageiros
que havia passaram para a parte de trás, e o motorista tentava
manter a cabeça protegida, erguendo-a e inclinando-a para
trás na sombra sob o teto, o queixo para cima: parecia que o
estava estendendo para receber um golpe.
O sol desapareceu atrás de uma cadeia de montanhas, muito
mais altas do que aquelas por onde iam. Já era de noitinha.
Num vilarejo que pela aparência poderia estar no norte da
África — casas de aspecto pobre, gente de aspecto pobre —
o ônibus parou, deixou uma jaula de metal com algumas aves
enlouquecidas de sede, um barril de sardinhas em conserva
no azeite, um caixote de laranjas. Apanhou duas freiras que
pareciam doentes de cansaço, por causa do calor, e esperou
que Kate voltasse do bar com mais água mineral para Jeffrey.
Então prosseguiu para o interior.
Agora, Kate estava bastante passiva. Dentro em pouco, era
evidente, aquela terrível viagem terminaria. Não porque
Jeffrey quisesse que terminasse: ele precisava estar em
movimento, indo para algum lugar, estar viajando — ela
podia sentir aquilo, compreendê-lo. Mas naquela altura ele já
estava um pouco despreocupado: acordava repetidamente
em momentos de euforia, tagarelava, ria, então
abruptamente adormecia. Até ele logo seria obrigado a ver
que estava doente e que tinha de parar. Ou algum motorista
se recusaria a levá-los mais adiante. Às oito da noite, com
uma lua quase cheia inundando tudo de luar, pararam numa
praça de um vilarejo. Era um povoado pequeno. Havia uma
fonte de onde a água escorria devagar e desanimadamente
numa bacia que tinha uma xícara de porcelana branca,
lascada, sobre a beirada. Havia algumas árvores empoeiradas.
Um prédio do outro lado da praça tinha a aparência de um
bar; tinha uma janela grande coberta por dentro por algum
material, para tapar o sol, e havia duas mesas do lado de fora
onde homens estavam sentados, bebendo. Também havia
um prédio de aspecto sólido e antiquado que dizia que era
um hotel. Ela encontrou a cidade no mapa. Estavam a cerca
de setenta quilômetros no interior.
Deixou Jeffrey sentado no ônibus, nem dormindo nem
acordado, e entrou no hotel. O gerente saiu da sala de
refeições onde se encontrava. Ela explicou em várias línguas
que estava viajando com o marido que estava doente. O
francês a salvou, e o Senor Martinez foi com ela até o ônibus
e a ajudou a trazer Jeffrey para fora. Era como tirar uma
porção de roupas molhadas da máquina de lavar: ele estava
tão molhado que tinha as mãos escorregadias e o cabelo
ensopado, grudado na cabeça. Eles o carregaram para cima
— não havia elevador — e o deitaram numa cama pequena
num quarto do tipo que é comum em toda parte na Europa:
uma cama de casal para mamãe e papai, e três camas
menores para as crianças.
O Senor Martinez saiu e voltou logo depois com uma garrafa
de água mineral: como bom chefe de família não precisava
que lhe dissessem que aquele rapaz corria perigo de
desidratar-se. Ele levantou Jeffrey e ela levou um copo após
outro até os seus lábios. Ele bebeu com avidez, mas com
uma expressão de furioso desagrado.
O Senor Martinez saiu dizendo que tentaria providenciar um
médico.
— Mas é preciso que compreenda, madame, il faut que vous
comprenez, oui? Essa cidade é pequena, é um lugar sem
recursos, não temos um médico aqui, pas de mêdecin, oui?,
ele vem de um lugar a trinta quilômetros de distância e
talvez esteja de férias, não sei. Mas vou fazer o melhor que
puder.
Desceu para o escritório e ela se sentou numa cadeira dura
junto de uma janela, onde novamente ficou observando, de
um quarto quente e barato, o grande céu estrelado e os tetos
e árvores empalidecidos de luar. Jeffrey falou num tom
severo da necessidade de tomarem um outro ônibus
imediatamente, então riu de alguma coisa engraçada de que
se lembrou da viagem de ônibus daquele dia, mas que não
conseguiu contar a ela antes de adormecer de novo. O Senor
Martinez voltou para dizer que a tia do médico dissera que
ele voltaria dentro de três dias: se o caso fosse urgente, seria
melhor entrar em contato com as freiras.
— Esta é uma cidadezinha pequena, compreende? São
pessoas pobres. Quando o médico vem é para um caso
grave. As freiras no convento cuidam das pequenas doenças.
Ficaram um de cada lado da cama e olharam para o doente,
cujas roupas estavam grudadas no corpo, o crânio emol-
durado por mechas de cabelo molhado.
O Senor Martinez, o espanhol, com seus cinqüenta anos ou
coisa assim, era como Jeffrey ficaria naquela idade. Estava
todo cheio de inclinações e proeminências, crânio careca
proeminente, ombros estreitos inclinados, um estômago
flácido e pendurado por falta de exercício. Jeffrey, o
americano de pais alemães imigrantes, devia ter um gene ou
dois vindos daquelas praias, pois o Senor Martinez
facilmente passaria por seu pai.
Mas qual era a gravidade da doença dele?
Kate estava pensando que, se fosse seu filho, ela não estaria
nem um pouco preocupada, diagnosticaria aquele estado de
semi-inconsciência como uma febre ou uma gripe ou uma
diminuição de vitalidade que merece uma visita de um
médico e alguns dias na cama, principalmente alguns dias na
cama. Ora, ela mesma usava aquela fuga, bastante consciente
quando a vida tomava demasiado de alguma coisa boa. É um
estado de coisas como o inverno para a terra: a sensação é
como se todo o calor tivesse recuado para o interior, o fogo,
escondido bem fundo sob uma rocha, o sol, longe demais. A
gente fica deitada, encolhida ou esparramada, cada um de
acordo com o seu temperamento, longe, atrás de superfícies
de carne, cabelo, olhos que não parecem ter muito a ver
com a gente, como um cachorro deitado no sol para obter o
calor do inverno.
O Senor Martinez, pai de família, não parecia estar mais
perturbado do que ela. No entanto, à primeira vista, Jeffrey
estava suficientemente doente para não os ver. Olhava fixo
para além deles ou através deles, e tremia convulsivamente
em grandes espasmos que pareciam constrangedoramente
dramáticos. O Senor Martinez, os olhos escuros, vivos,
cheios de solidariedade e simpatia, disse:
— Alors, ça va mieux demain, oui, oui, madame, j'en suis
certain — como se fosse um médico e ela uma mãe
preocupada.
Saiu dizendo que ela encontraria uma refeição na sala de
refeições, mas é claro que aquele não era um hotel elegante
como aqueles a que estavam habituados; ela teria de aceitar o
que encontrasse.
A sala de refeições não era maior do que uma sala de jantar
de uma família burguesa, o que provavelmente havia sido
outrora. Havia uma mobília pesada e escura, toalhas brancas
pesadas. A refeição era uma sopa grossa, um pedaço de carne
frita e frutas. Kate foi servida por uma mocinha, que limpava
os quartos, servia as mesas e ajudava na cozinha. Aquele
hotel era usado por funcionários do governo em visitas, pela
polícia, cujo quartel-general da região ficava a alguns qui-
lômetros de distância, e pelos padres que vinham confessar
as freiras e lhes administrar os sacramentos.
Ela foi para a cama com tranqüilidade. Aquele era o primeiro
lugar silencioso desde que deixara o seu jardim em
Blackheath. As costas espanholas, Istambul, a Alimentação
Mundial em Londres — todos haviam tocado, martelado,
gritado ou tagarelado com ruído. Ali, por volta da meia-
noite, acordou para ouvir apenas um cavalo ou uma mula
passando sob as janelas. Mas Jeffrey também foi acordado, e
exatamente como se não tivesse estado desacordado por
tantas horas, ausente da vida cotidiana. Sentou-se na cama e
perguntou numa voz normal o que poderia comer... e onde
estavam.
Ela explicou. Eles gozaram de um momento normal de
reunião no hotel silencioso, na cidadezinha onde agora nada
se movia. Ele disse:
— Então devo ter estado doente, não é?
Ela confirmou e desceu de robe, como se estivesse em sua
própria casa, para ver se conseguia arranjar alguma coisa para
comer na sala de refeições, pois sabia que a empregada e o
Senor Martinez — cuja esposa e filhos estavam fora, visi-
tando parentes em Barcelona — estavam na cama e
dormindo. Encontrou uma bisnaga e um pouco de manteiga,
coberta por causa das moscas, no grande guarda-louças, e
levou para cima, para o quarto, fatias de pão com manteiga e
algumas frutas. E lá estava Jeffrey, que naquele intervalo
tomara um banho, se penteara e se vestira, exigindo que eles
saíssem e procurassem um bar ou um restaurante. Ele
parecia cheio de energia — de maneira até suspeitável. Sua
extrema irritação e agitação eram uma advertência. Ela
explicou mais uma vez que naquele vilarejo àquela hora todo
mundo deveria estar dormindo; que estavam longe da região
turística; que pela manhã poderiam ir embora. Ele devorou a
comida como se a odiasse, e enjoou de novo, no exato
momento em que exigia que saíssem para dar um passeio e
admirar o luar.
Segurou-se no pé da cama, oscilando, o rosto amarelo,
dizendo que já estava perfeitamente recuperado. Arrastou-se
de volta para a cama, deitou-se, dormiu.
Provavelmente estaria melhor pela manhã.
De fato, ele acordou cedo, e desceram juntos para a sala de
refeições do hotel, onde o Senor Martinez estava tomando
café. Ela confessou o seu roubo da noite anterior. Claro que
ele já tinha percebido e compreendia. Ele era encantador,
mas Kate percebeu a mudança em sua atitude. Havia deixado
os passaportes na recepção do hotel na noite anterior: a
preocupação com a doença de Jeffrey havia impedido que o
Senor Martinez anotasse as informações para os seus
registros. Naquela manhã, ele o fizera. Na noite anterior ela
e o Senor Martinez foram como pais, confabulando em volta
da cama de uma criança doente; agora, ele tinha de pensar
que seus hóspedes estavam em alguma espécie de relação
escandalosa. Ele transpirava reprovação, tristeza. Como se
fosse uma censura filosófica. Enquanto seus olhos bonitos e
gentis pousavam sobre os amantes, era como se ele dissesse:
"Nós aqui somos pessoas pobres. Não podemos nos permitir
esse tipo de coisas".
Mas ele fez a mocinha trazer-lhes café fresco e pão tostado à
moda inglesa — sabia tudo a respeito daquele costume, oh,
sim, pois seu irmão mais moço fora garçom num restaurante
em Manchester; e ficou repetindo uma vez após a outra,
como uma pessoa nervosa se repete, que sentia muito o fato
de não haver ônibus até o dia seguinte. Seu nervosismo, se é
que era isso, demonstrava o que ele era polido demais para
dizer, que queria que a pecaminosidade e a irregularidade
deles fossem logo afastadas do seu hotel.
O que a sua cortesia dizia era que ele lamentava os recursos
limitados daquele lugar: pois era evidente que aqueles dois
estavam de férias, e era uma infelicidade que pessoas tão
experientes e viajadas estivessem confinadas a um vilarejo
que tinha tão pouco a oferecer das coisas a que estavam
habituados.
E assim ele continuou, enquanto Kate permanecia em
silêncio, sabendo que estava pondo aquele homem gentil
numa posição falsa, mas esperando que a obscuridade da sala
estivesse escondendo o seu embaraço. O Senor Martinez
continuou a falar francês, e com ela. Naquela altura, ele sabia
que Jeffrey compreendia algumas palavras de espanhol, mas
o estava ignorando. Então sua desaprovação era dirigida ao
homem? Não sentia nenhuma com relação à mulher? Ele
não gostava de Jeffrey, mas será que gostava de Kate a
despeito da sua imoralidade?
Quando a refeição acabou, saíram e foram até a pracinha.
Estava vazia. Um cachorro estava deitado na sombra. Já
quente como estaria ao meio-dia, o sol de agosto branqueava
o céu. Da fonte escorria água, sem fazer ruído. O grande
retângulo de vidro coberto, do outro lado, os atraiu em sua
direção; a porta estava aberta para deixar entrar ar. Era um
bar, mas só funcionava à noite: ninguém ali tinha tempo
para sentar-se sem fazer nada durante o dia. Não havia
ninguém no bar, nem mesmo um garçom. Foram andando
por uma rua que saía da praça, passando por um ferreiro e
por uma loja. Aquela era a loja da cidade. Vendia cebolas,
lingüiça de qualidade inferior, azeite de oliva em barris,
sardinhas que, esmagadas, tinham perdido toda a
individualidade, recobertas por crostas de sal, grandes
tomates vermelho-esverdeados que cheiravam forte ao
vinho e aos campos, enormes bisnagas de pão claro,
pimentões verdes. Havia, talvez, umas cem famílias no
vilarejo; e depois de alguns metros começavam os campos
onde o milho amarelava entre oliveiras e pedras.
Voltaram em silêncio para a praça. O Senor Martinez, que
lhes observava as tentativas de obter as amenidades do bar,
tinha posto uma mesa de madeira sob uma árvore do lado de
fora da porta principal do hotel. Acenou para eles em dire-
ção à mesa, e lhes trouxe copos de água mineral com pedaci-
nhos de limão. Sentaram-se ali, e sabiam que estavam sendo
observados. As poucas casas daquele vilarejo tinham janelas
de postigo, e os postigos, olhos atrás deles. Uma ou duas
vezes um fazendeiro ou um operário passou andando pela
praça, desejando-lhes um bom dia. Esses homens eram
cheios de dignidade e reserva. Exatamente como Jeffrey se
lembrava. Ali estava o que ele estivera procurando, na
reprovação discreta do Senor Martinez — que, não obstante
isso, naquele momento estava na cozinha confabulando com
a cozinheira para preparar uma refeição mais no estilo dos
visitantes do que no do vilarejo — e das mulheres que
estavam sentadas ou de pé atrás das janelas, sem se
mostrarem, e dos homens que, à medida que a manhã ia
passando, vinham beber uma caneca de água na fonte.
Era como um castigo estar sentada ali, exposta.
Estavam cercados por uma pobreza tão profunda que até
suas roupas, bastante comuns, de acordo com os padrões de
seus países, estavam fora das possibilidades de qualquer
pessoa ali; a bolsa dela — não achara nada demais nela até
aquele momento, enquanto agora não conseguia parar de
olhar para a coisa elegante e brilhante sobre a madeira limpa
da mesa — provavelmente custava o salário de um mês
daquela gente. Havia comprado a bolsa como um presente
para si mesma, na loja do hotel em Istambul. Mas aquilo não
era importante, não era a questão, pois ela sabia que
ninguém passando por ali ou olhando das janelas invejava as
roupas, a bolsa, os sapatos. O que parecia intolerável era o
que eles significavam, ela e Jeffrey, a viagem casual deles, a
diversão indolente, a facilidade de movimentos, os
relacionamentos casuais.
Só estavam a setenta quilômetros da costa; na costa o que
eles eram era o padrão. Lá, todo mundo, ou pelo menos os
visitantes, ia de um país para o outro de carro, de trem, de
avião, de ônibus, a pé, atravessava continentes para assistir a
um festival de música ou até para ir a um restaurante, tinha
liberdade nas amizades, no amor, no sexo, o que para as
pessoas daquela cidadezinha devia ser realmente
inimaginável.
Ficaram sentados ali, Kate Brown, de quarenta e cinco anos,
mãe de quatro filhos, esposa de um médico conceituado que
naquele exato momento provavelmente estaria fazendo uma
exposição em alguma conferência sobre um estado perigoso
do sistema nervoso, e Jeffrey, que quase certamente, nessa
altura do ano seguinte, estaria trabalhando, insatisfeito, mas
como era o seu dever, no escritório de advocacia de seu tio,
em Washington, amantes, e com tão pouca perturbação
emocional que, quando recordassem aquela experiência que
haviam partilhado, o amor seria o último de seus
ingredientes. Não havia uma mulher ou uma moça naquele
lugar que estivesse a cem anos de distância de uma tamanha
liberdade. Madame Bovary ainda seria o modelo que
descreveria os seus excessos; e se os homens, como o irmão
do Senor Martinez, de fato iam para Manchester para serem
garçons, podia-se ter certeza de que as atitudes e os
costumes daquela cidade muitíssimo sofisticada não seriam
trazidos de volta para cá. Mas os homens eram na sua
maioria camponeses, trabalhavam a terra. Plantavam milho e
faziam farinha dele. Plantavam azeitonas e vendiam parte
delas. Plantavam tomates. Trabalhavam na propriedade do
nobre rico que passava a maior parte do ano em Madri ou na
sua villa na costa, como o seu pai e o seu avô haviam feito; e
os salários desses homens mantinham o vilarejo pobre e
ressecado.
Ao meio-dia, o sol penetrava através da folhagem da árvore
de forma que parecia uma renda acima deles; voltaram para
o hotel e Jeffrey desmaiou e caiu no chão. Novamente ela e
o Senor Martinez o carregaram para cima e o puseram numa
cama.
E novamente Jeffrey se tinha recolhido atrás de olhos cegos
que alternavam expressões de indignação e de espanto. "Por
que estão esperando tanta vitalidade de mim?", perguntavam
eles, quer olhassem para o teto, para as paredes, para o
quadrado de luz ofuscante da janela, ou para o Senor
Martinez. Ele estava outra vez banhado de suor. Então o
Senor Martinez, com um pedido de desculpas, levantou as
pálpebras do rapaz: na parte de dentro a carne estava
amarelada. E ele apontou silenciosamente para a pele dos
braços, que se destacavam amarelados na brancura da
colcha. Sacudindo a cabeça, ele desceu depressa para
telefonar para a tia do médico.
Esta disse que, quando o médico desse o seu telefonema
habitual para receber o seu relatório, ela lhe diria que havia
um jovem americano com febre, suando muito, e com os
olhos e a pele amarelos. Segundo ela, disse o Senor
Martinez, era um caso de febre amarela: havia um parente
dela na América do Sul que tinha morrido disso. Ele
encolheu os ombros: era claro que a boa mulher não deveria
ser levada a sério.
Ela subiu para o quarto e viu que Jeffrey estava como que
destruído por dentro. Estava deitado de barriga para cima,
tão frouxo e descontraído que, quando ela lhe ergueu o
braço, este escorregou para a cama com uma pancada. Dava
a impressão de que os ossos na sua carne haviam sido des-
truídos ou tinham encolhido. Os olhos se mantinham meio
abertos. Sua aparência era cadavérica, mas ela continuava
repetindo para si mesma — em silêncio, é claro, como se faz
com crianças ou com as pessoas que preferem
deliberadamente colocar uma distância entre elas e o mundo
de imperativos: "Sim, mas ele tem de escolher uma coisa ou
a outra, tem de ser um advogado ou um vagabundo, quanto
mais não seja, para que pelo menos o veja como uma
escolha". Pois, se não o fizesse, não estaria deitado ali com
febre, com a pele amarela, mas não doente, não, não doente
como alguém com cólera ou até com sarampo.
No entanto, era evidente que Jeffrey estava doente, real-
mente doente, ainda que, se fosse um trabalhador espanhol
ou um pequeno fazendeiro para quem um dia de trabalho
constitui a diferença entre comer e não comer, ele não
estaria doente de
maneira alguma. Não, é claro que ela não poderia guardar
rancor contra ele! Não guardava, ainda que preferisse que ele
tivesse ido para casa, para os Estados Unidos, para gozar a
sua crise espiritual. O que, é claro, era aquilo... Quanto a ela,
estava resmungando obscenidades para consigo mesma, uma
vez fora das vistas do Senor Martinez, pois estava ali por
motivos físicos. Era aquilo o que ela havia contratado: o
corpo, os prazeres da carne; desejar que houvesse alguém
com quem pudesse partilhar a brincadeira. Umedeceu a testa
de Jeffrey com uma esponja e o levantou para que bebesse.
Na sala de jantar havia um homem gordo, de uniforme, com
uma arma no cinto. Era um uniforme militar. A arma
controlou a refeição, enquanto a moça servia uma sopa
grossa gelada e carne fria, salada e pão.
Kate voltou para o quarto, encontrou Jeffrey exatamente
onde o havia deixado, deu-lhe mais água, e então deitou-se e
dormiu. E dormiu e dormiu, ouvindo como se fosse uma
coisa quase que no limite da audição; o tutor interior estava
querendo que ela compreendesse alguma coisa, mas estava
sendo burra demais para compreender. Estava sonhando
com a foca, ou tinha sonhado com ela, pois podia sentir o
peso do animal, que ainda estava úmido por causa da água
que havia jogado sobre ele. Atrás dela, um sol baixo e
sombrio se havia movido num arco riscado atravessando
talvez um quarto do horizonte. Era um sol pequeno, não
tinha calor, tudo estava ficando muito escuro; ela parecia
estar caminhando sem parar num permanente crepúsculo
frio.
Na manhã seguinte, quando a luz do sol deixou de entrar no
quarto, foi como se tivesse deixado uma mancha de cor na
pele de Jeffrey. Ela procurou o Senor Martinez e perguntou
se poderia fazer uma outra tentativa de falar com o médico.
Mas a tia não estava respondendo ao telefone: parecia que
suas manhãs eram passadas em devoções na igreja do
convento. Aconteceu que, quando Kate e o Senor Martinez
trocavam idéias sobre o que fazer, junto da janela, um
caminhão parou na praça. Era um velho Ford já muito
usado, e o motorista estava enchendo o radiador com água
da fonte. Ao mesmo tempo surgiu na praça um cavalo
puxando uma carroça de um tipo que devia ser visto na
Espanha há muitos séculos. O cavalo estava com sede, pois
foi direto para a fonte e bebeu enquanto o motorista do
caminhão enchia a lata de óleo vazia bem debaixo do seu
focinho.
O cenho franzido do Senor Martinez desapareceu; ele
correu para fora, falou com o motorista do caminhão e
voltou para dizer que aquele homem — era um trabalhador
rodoviário — levaria Jeffrey até o convento para ser tratado,
se o aprontassem depressa.
Kate e o Senor Martinez tentaram vestir o paciente, que não
opôs resistência, mas estava com os membros tão pesados
que desistiram e o enrolaram em cobertores. Carregaram-no
para baixo, nu, mas envolto em cobertores, e o puseram na
cabina alta do caminhão. O Senor Martinez foi junto com
Jeffrey, pois as freiras não falavam língua alguma que não
fosse o espanhol. Não tendo sido capazes de lembrar a
palavra em francês que significava "icterícia", concordaram
em usar "la maladie jaune", diagnóstico de leigo que seria
transmitido ao convento.
O caminhão saiu sacolejando da praça, Jeffrey recostado
como um homem ferido entre o dono do hotel e o
motorista.
Aquilo foi às dez da manhã.
O Senor Martinez, que havia comunicado a concordância
das freiras em receber e cuidar de Jeffrey, telefonou para lá
às cinco horas da tarde a pedido de Kate, e disseram-lhe que
ele estava dormindo, que o achavam muito doente, mas que
esperavam a chegada de um médico de Alicante, que vinha
atendê-las em casos de maior gravidade.
Embora nada houvesse que pudesse fazer lá, Kate decidiu ir
andando até o convento. O caminho levava a uma rua cuja
existência não notara antes: era mais uma travessa ou uma
alameda do que uma rua, muito pobre, com quartos nos dois
lados, cada quarto para uma família. O degrau da porta da
frente dos quartos dava para uma travessa, a porta dos
fundos, para outra. As portas estavam abertas e cada quarto
abrigava crianças de todos os tamanhos e as mães das
crianças provavelmente da idade de Kate ou mais jovens,
mas com aparência de velhas. Na travessa havia também
muita gente idosa sentada em cadeiras, entre galinhas e
cabras. Nenhum homem jovem ou de meia-idade. Deviam
estar fora, no trabalho. Kate foi andando por aquela rua,
sorrindo. Sentia-se envergonhada, e nenhuma forma de
racionalização, por mais profunda que fosse, seria capaz de
afastar aquele sentimento. Repetiu a si mesma, inúmeras
vezes que a setenta quilômetros de distância, na costa,
estaria absorvida e imperceptível numa torrente humana,
um ponto de moralidade entre centenas de milhares — na
realidade, naquele mês, milhões — de pessoas da sua
espécie. Mas não adiantava. Os sorrisos e cumprimentos
daquelas mulheres pobres, em suas roupas pretas miseráveis
e gastas, os enxames de crianças, a miséria mortal,
desesperada e profunda, eram acusações gritadas contra ela,
que tão simpaticamente andava por ali com seu vestido
branco alinhado, o cabelo vermelho-escuro elegante (que no
repartido, entretanto, já estava deixando à mostra uma faixa
de cinza), a bolsa elegante, os membros brancos como
creme e bem-tratados.
Alcançou o fim da travessa cem metros depois do começo,
num declive rochoso coberto de oliveiras, entre as quais
seguia uma trilha para cavalos — o caminhão havia
sacolejado naquela direção, aquela manhã. Olhou para trás e
viu a rua cheia, lotada, um mar sólido de mulheres vestidas
de preto e crianças descalças observando-a.
Continuou andando, o rosto ardendo, entre as oliveiras e
depois o milharal, até que virou depois de passar por um
eucalipto que espalhava seu perfume seco ainda com mais
força que as oliveiras. Lá estava o convento. Um muro alto
de pedras encurvava-se para trás dos dois lados dos portões
de ferro, e dentro dos portões viam-se um jardim muito
limpo e cuidado, com arbustos em flor, e um prédio caiado
de dois andares. Quando atravessava o jardim, um outro
grande portão — o principal, era óbvio, o portão por onde
passara devia ser uma entrada secundária — deixava à mostra
a igreja, que dominava tudo: o prédio do convento, o muro,
os portões trabalhados, oliveiras, campos, terra rochosa. Sua
cúpula cintilava ao fogo do crepúsculo. Kate bateu no que
agora via que deveria ser uma porta dos fundos, e foi
atendida com sorrisos, recebeu as boas-vindas, primeiro por
uma mulher de hábito preto, depois duas, três, e então um
pequeno rebanho. Todas sabiam a respeito dela e que
deveria ter vindo ver o paciente. Foi acompanhada até um
quartinho, que dava para um pátio, onde Jeffrey estava
deitado numa cama de ferro sob um quadro brilhante do
Coração Imaculado. Havia um crucifixo numa mesa baixa e
uma cruz de marfim na parede caiada.
Desde aquela manhã um remédio qualquer havia levado
Jeffrey para mais longe ainda. Estava absolutamente imóvel,
frio e úmido, a pele parecia ter sido pintada. Ela poderia
muito bem não ter vindo, mas sentou-se por algum tempo
numa cadeira com assento de junco, enquanto as freiras lhe
traziam café e bolo, e depois um copo de vinho, sempre
sorrindo, encantadas com o fato de ela estar ali, dando-lhes
uma oportunidade de servir a Deus. Afinal, agradeceu-lhes e
foi embora. Entrou na igreja. Estava tranqüila e cheirava a
incenso, e teria gostado de sentar-se um pouco e pensar, ou
até, talvez, imaginar uma oração qualquer, mas não
adiantava, havia ouro e pedras preciosas numa quantidade
suficiente para alimentar e curar milhares de pessoas,
naquela pequena manifestação da igreja sem importância e
obscura. Este pensamento, ali, poderia ter muito pouca força
para sustentar-se: era um pensamento estranho, tinha em si
a inutilidade obstinada da causa perdida, mas ela o manteve
na mente com rebeldia e deixou a igreja para voltar,
andando, para o vilarejo num anoitecer perfumado, cálido e
agradável.
Na travessa das muitas famílias, os homens tinham voltado
dos campos, e ela ficou satisfeita com o escurecer, acentuado
pelo clarão ofuscante de luzes que vinham de cada quarto.
Era boa noite, boa noite, buenas tardes, buenas tardes, o
tempo todo, enquanto as crianças corriam com ela em
bandos, em meio à poeira, até que entrou no hotel, onde
foram afastadas, como passarinhos que se desviassem de um
obstáculo, e fugiram correndo, gritando na escuridão.
Na sala de refeições, ela comeu — na companhia de um
padre idoso que, ela veio a saber, não era outro senão o
médico esperado no convento —• uma sopa grossa, quente,
ovos fritos, pimentões e tomates, e marmelos cozidos. Pediu
ao padre que lhe telefonasse depois que tivesse examinado o
"seu marido", recebeu sua atenção, que, embora fria, ela
acreditava ser sem censuras, e subiu para o quarto, onde
aguardaria o telefonema. O padre deveria ir a pé até o
convento, como ela havia feito, e então, é claro, conversaria
com as mulheres alegres e simpáticas nos seus hábitos pretos
abafados, depois examinaria Jeffrey. Já passava de meia-noite
quando a campainha do telefone tocou estridente lá
embaixo, e o Senor Martinez subiu para comunicar que o
Padre Juan achava que o rapaz estava com icterícia, mas que
havia certos sintomas no caso que contradiziam aquele
diagnóstico. Provavelmente haveria algo de mais definido
dentro de três dias, quando o médico da região fizesse sua
visita habitual ao convento.
Kate foi para a cama e dormiu um sono leve, logo abaixo da
superfície do despertar, num lago raso de sonhos, onde
sombras de idéias se moviam frescas e leves como peixes,
um lugar muito distante do escuro país do norte onde ela e a
foca faziam a dolorosa jornada. Acordou cedo, quando o dia
ainda estava acinzentado, fresco, fluindo através da
escuridão. Sentou-se junto à janela para observar o despertar
do vilarejo.
Logo um homem veio até a fonte, estendeu a mão para
dirigir a água num jato sobre o rosto, inclinou a cabeça para
o fluxo, bebendo de lado, a luz fraca do sol colorindo seu
rosto moreno.
Um cavalo preto surgiu, vagueando, vindo de uma rua la-
teral, e ficou com a cabeça baixa, piscando para afastar as
moscas dos olhos.
Uma mulher saiu pela porta de sua casa e ajeitou uma cadeira
de madeira no chão empoeirado. Voltou para dentro e
tornou a sair com uma faca, um prato de metal esmaltado
cheio de pimentões verdes e uma bacia de plástico. Usava as
roupas pretas gastas das mulheres pobres da Europa. Sentou-
se na cadeira com cuidado, como se o ato de sentar-se
pudesse machucá-la, e pôs a bacia entre os joelhos.
Mantendo o prato equilibrado na dobra do cotovelo, foi
picando os pimentões na bacia. Era velha, uma mulher velha
e cansada, com o cabelo grisalho bem puxado para trás.
Exatamente como Kate estava pensando. "Não,
provavelmente não, provavelmente descobrirei que ela não
é nada velha, vai me atingir de novo." A mulher olhou
direto para cima, para Kate, que estava sentada com seus
babados brancos na janela. A mulher sorriu, Kate também,
sabendo que não podia competir com aquele sorriso: e, é
claro, a mulher não era mais velha do que Kate, mas estava
gasta como um cavalo.
Kate saiu da janela e se vestiu. Chegou uma bandeja com
café, broas açucaradas e geléia. Agora o sol batia em cheio
no quarto. Fechou os postigos para impedir o clarão e, nada
tendo para ler senão as revistas de quase uma semana atrás,
que pareciam todas tão falsas e idiotas como esperava que
parecessem ali, naquele vilarejo, ficou sentada sem nada
fazer a manhã inteira até que pudesse comer. Adormeceu de
novo, e depois foi andando até o convento. Jeffrey
continuava deitado em seu claustro caiado, cujo chão estava
cheio de poças de água perfumada. As freiras jogavam água
perfumada no chão várias vezes por dia, para diminuir a
secura do ar e para fazer descer a poeira que se erguia em
torno do convento como pano desbotado.
Voltou, andando novamente, obrigando-se a fazê-lo, em
meio à gente pobre, ficou sentada no quarto até a hora do
jantar, às dez, e depois desejou que pudesse ir ao bar, que
naquela hora estava cheio de gente. Mas é claro que não
podia, estava cheio de homens. Mesmo com Jeffrey teria
sido impossível ou desagradável, pois eles estariam
incomodando pessoas que iam ali toda noite, para quem o
bar era um prolongamento de suas vidas familiares.
Desejava que pudesse encontrar alguma atividade para
acabar com o que há muito vinha dizendo a si mesma que
precisava: tempo para pensar. Mas não estava pensando,
estava sentindo. Estava querendo a sua casa, sua vida nela —
que era o passado, é claro. Mas era como se estivesse
construindo um futuro em sua mente, e o esforço contínuo
de se reprimir, de dizer "isso acabou, isso está terminado"
provocava ataques de sentimentos que não conseguia
controlar.
Sentia falta do marido.
Seu estado na ocasião em que saíra de casa em maio — as
reviravoltas constantes de sentimentos contraditórios, de
carência de amor para irritação contra a sua carência, de
desejo de ter mais liberdade para a necessidade covarde de
estar presa — se havia transformado agora numa paixão de
desejo que, entretanto, estava sendo adiada até o futuro... o
outono. Ansiava pelo corpo do marido, como outrora, anos
atrás, quando ainda era uma garota, ansiara por um amante;
mas, é claro, esse anseio de agora era mil vezes mais intenso,
uma vez que havia acumulado tantas lembranças para
alimentá-lo. Enquanto estava ocupada em passar o dia
inteiro, a metade da noite, expondo seu casamento à luz,
entre o indicador e o polegar, para analisá-lo, um pequeno
objeto de contornos nítidos que mesmo naquele momento
podia desprezar por completo, os ritmos da sua carne, a sua
memória haviam marcado um encontro com o seu marido.
A quem a sua inteligência considerava com frieza, como
alguém que tinha feito uma escolha consciente de gozar os
prazeres da carne enquanto durassem... Com frieza, mas de
maneira bastante cansada, num esforço para com a decência,
quase que no espírito de eu não concordo com o que ele
pensa, mas lutarei até a morte pelo seu direito... De quem
seus sentimentos zombavam porque o viam um garotinho
que se estava entupindo de doces.
A sua sexualidade, num vácuo, sem ser apoiada pelo que
pensava, pelo que sentia, pelo que esperava do futuro, era
uma traidora da sua convicção de que agora, naquele
momento, ela só tinha um dever: pensar no que sua vida se
havia transformado, no que teria de ser. Isto, entretanto, não
era a fome de alguém que estava tendo de passar sem
comida. Ela não estava atormentada ou carente, pois seu
apetite sexual, exceto pela estranha pontada, como uma
contração da boca quando sente o cheiro de comida ou vê
chocolate num balcão, estava como que adiado. Para o
outono. Para o futuro que não se realizaria, ou não da
maneira como seu marido, ela mesma, seus filhos o
visualizavam, até aquela famosa tarde de maio, quando tudo
havia mudado. O futuro não ia ser uma continuação do
passado imediato, com aquele verão parecendo, em
retrospectiva, um hiato sem importância. Não, o futuro
continuaria a partir de onde ela havia saído como uma
criança. Pois parecia-lhe cada vez mais (por causa daquela
sexualidade, algo deslocado; como um órgão retirado do seu
corpo e posto do seu lado para ser olhado, como uma
criança deformada sem função, futuro ou propósito) que era
como se ela estivesse acabando de sair de um período de
loucura, que havia durado todos os anos desde aquele ponto
no início da adolescência, quando a natureza exigira que
arranjasse um homem (naquela ocasião ela encarava o fato
romanticamente, é claro), até recentemente, quando a droga
começara a perder a força. Todos aqueles anos agora
pareciam como que uma traição ao que ela era realmente.
Enquanto seu corpo, suas necessidades, seus sentimentos —
toda ela — giraram como um girassol atrás de um homem,
todo aquele tempo ela estivera segurando uma outra coisa
nas mãos, a coisa preciosa, oferecendo-a em vão ao marido,
aos filhos, a todo mundo que conhecia, mas nunca fora
aceita, não fora notada. Mas essa coisa que ela havia
oferecido, sem saber que o fazia, que fora ignorada por ela
mesma e por todas as outras pessoas, era o que havia de
verdadeiro nela.
Mesmo agora, com todas as pressões tendo sido tiradas de
cima dela, sozinha, no estado que tão freqüentemente,
durante seus anos de imersão na família, parecera fora de
alcance, não era capaz de descansar, e de pensar, de
compreender, de absorver, pois continuamente se sentia
correr em direção ao futuro, para os braços do marido, para
um mar de intimidade que incluía o seu passado. Coisa que a
sua mente julgava como sendo uma espécie de loucura.
Ansiava pelo passado, estava obcecada por ele. Sentada
sozinha no quarto de hotel, uma febre de querer a
transportou para o seu quarto em casa, para os braços do
marido, ouvindo as folhas que eram varridas em volta da
casa por um vento frio, mas envoltos pelo calor da casa: o
passado.
Ficou sentada junto à janela até que se tornou a última
pessoa acordada: todas as luzes do vilarejo estavam apagadas.
O aglomerado de luzes lá em cima, na encosta, que o Senor
Martinez dissera ser um outro convento, se havia tornado
um cintilar distante através de quilômetros de distância. Mas
aquele bruxulear era causado pela oscilação das folhas contra
a única luz no portão do convento. Descobriu isso quando
foi andar pelos caminhos da encosta na manhã seguinte:
havia um pequeno prédio branco, isolado, entre as
laranjeiras, onde as galinhas ciscavam. Uma freira estava
cavando com a enxada entre as laranjeiras, as mangas pretas
puxadas para cima deixando à mostra os pulsos, a poeira
assentando na saia preta.
Aquela noiva de Cristo sorriu para Kate, que retribuiu o
sorriso. "Loucos", estava pensando. "Todos nós, o nosso
maldito bando inteiro, a coisa toda, malucos, tanto homens
como mulheres, estamos todos loucos, e não sabemos." Ali
estava aquela mulher, na prisão que escolhera para si mesma,
ali estava ela, uma prisioneira de suas lembranças; e ali estava
Michael, ocupado em... nem tanto em comer, mas em
experimentar de uma caixa de chocolates, dar uma mordida
num, engolir um outro, jogar fora um terceiro, sem
experimentá-lo.
A lanterna no portão era de ferro, e parecia velha.
Provavelmente feita deliberadamente para parecer antiga. As
folhas que faziam a luz tremer à noite eram de uma velha
oliveira.
De volta ao hotel, o Senor Martinez disse que ela não devia
andar muito, quando o calor fosse mais intenso, e que
lamentava, porque não havia um lugar onde ela pudesse
divertir-se, mas talvez ela gostasse de usar o pátio do hotel,
que não estava aberto para hóspedes comuns, mas poderia
ser para ela.
O pátio tinha um lugarzinho onde se podiam ver peixes
dourados, com dificuldade, através de uma cortina de poeira,
e muitas plantas aquáticas, cujas folhas estavam cheias de
bolhas. Do outro lado do pátio, num canto de sombra, estava
sentada uma mulher idosa, tia do Senor Martinez. Ora lia a
Bíblia, ora tricotava uma roupa preta.
No fim da tarde, Kate foi novamente visitar Jeffrey. Ainda
não tinha dito uma palavra a ninguém, disseram as freiras.
Naquele instante, porém, abriu os olhos, pareceu
reconhecê-la, e disse numa voz normal:
— Oh, olá, oi, como é que vai? — Em seguida, tornou a cair
no seu sono ou estupor.
Naquela noite, o médico da região foi ao convento, e as
freiras telefonaram para o Senor Martinez para dizer que
Jeffrey podia estar com febre tifóide, era uma possibilidade,
mas que ninguém devia preocupar-se.
Na manhã seguinte, a possibilidade de febre tifóide foi
afastada, sem contudo confirmar-se a icterícia. Passaram-se
um dia e mais um outro. Ela visitava Jeffrey, ficava sentada
no quarto com ele, ia a pé pelas ruas e travessas pobres e
pelos campos de oliveiras até o convento. Sentava-se no
pátio, lutava contra seus sentimentos numa fúria de irritação
para consigo mesma, e sonhava com a foca. Estava ficando
envolvida pela atmosfera do sonho, de forma que mesmo
quando acordada percebia momentos, lampejos de
sentimento — se é que esta era a palavra — que vinham do
sonho, da foca. Sempre tivera boas relações com seus
sonhos, sempre estivera alerta para aprender com eles.
Desde pequena, com cinco ou seis anos, conseguia estender
a mão para o interior do mundo atrás do mundo iluminado
pela luz do dia, tocar um objeto que vivia ali, ou caminhar
através dele com facilidade, sem espanto, sem medo.
Também não estava surpresa com um sonho que se
desenvolvia como uma fábula ou um mito. Abrigava vários
daqueles sonhos que se desenvolviam com o correr do
tempo e, quando um novo estágio de desenvolvimento de
um tema familiar lhe era apresentado, ficava deitada,
acordada pelo maior espaço de tempo que pudesse, antes de
permitir que vissem que estava acordada, pensando nas
idéias que se formavam dentro dela, e que não podia ver
senão naquelas reflexões, como sombras iluminadas pelo
fogo, nas paredes do seu sono.
Mas aquele sonho, o sonho da foca, era de uma espécie
diferente de todos que conhecera. Não porque parecesse tão
real — muitos de seus sonhos eram assim, reais como a vida
acordada. Não, era por causa da sua atmosfera, tão
particularmente sua que podia entrar nele mesmo quando a
foca não estava lá... quando estava, assim como se estivesse
fora de cena por aquele período, ocupada em algum outro
lugar, com seus assuntos pessoais, ela podia entrar no local
do sonho e saber que ele era o sonho da foca. Dormir e
entrar naquele sonho era tanto uma ocupação para ela,
durante aquele período de sua vida, como estar naquele
hotel na cidadezinha pobre e poeirenta, num agosto
abrasador, como ir visitar Jeffrey e esperar pela sua
recuperação, como lutar com o seu ego emocional, que
parecia um traidor que tivesse vindo à vida dentro dela. A
coisa com que estava envolvida era o sonho, que se ia
desenvolvendo dentro dela.
Uma tarde quente, na hora da sesta, ela estava numa arena
com a foca: na paisagem do norte havia um anfiteatro
romano. Estava no nível do solo, lá embaixo, no chão da
arena. De repente, animais selvagens saltaram das jaulas que
foram abertas nas paredes da arena. Leões, leopardos, lobos,
tigres. Correu com a foca e subiu tão alto quanto pôde nos
degraus das arquibancadas, enquanto os animais vinham
atrás das duas. Fez um esforço e subiu pela beira da arena,
uma cerca frágil, de madeira, que tremia sob o seu peso e o
da foca. Ela se agarrou ali, pondo as pernas para cima,
tentando levantar a foca e afastá-la de presas e garras. Era
terrível o som de rosnados e grunhidos. Pensou que não
teria força para manter-se ali, para manter a foca a salvo por
muito tempo. Sua força estava desaparecendo e os animais
saltavam no ar, tentando abocanhá-la, grunhindo junto a
seus pés, apenas a poucos centímetros da cauda marcada de
cicatrizes da foca. Então o saltar frenético se tornou menor e
logo ela e sua carga estavam muito longe dos animais que se
foram encolhendo, murchando até que desapareceram.
Fazia uma semana que Jeffrey fora levado para o convento.
Não era absolutamente certo que não tivera febre tifóide,
embora o convento e as autoridades tivessem passado umas
quarenta e oito horas terríveis. Mas agora não achavam
também que fosse icterícia, não obstante o amarelo da pele.
O amarelo havia desaparecido por completo, e ele
continuava tendo febres bastante altas. A única certeza era
de que estava doente e fraco demais para viajar.
Kate o visitava diariamente, às vezes duas vezes por dia.
Agora ele a reconhecia, e falavam, não muito, mas eram
amáveis e agradáveis um para com o outro, como haviam
sido no início, em Istambul. A febre dele continuava com as
mesmas características: subia de repente e depois ia
cedendo. Ele dizia que estava feliz de estar onde estava.
Estar deitado naquele quarto austero, olhando para fora, para
a luz do sol que permitia que visse uma árvore e um canteiro
de petúnias, algum jasmim, era o de que estivera
precisando... não sabia por quanto tempo. Não acreditava
que estivera em semi-inconsciência e não sabia que passara
inconsciente muitos dias. Via a sua estada no convento da
seguinte maneira: deitado tranqüilamente numa cama, num
quarto branco, olhando para fora, para as folhagens e flores.
Quando não estava no convento, Kate ficava horas sentada
no pátio do hotel. À noite, sentava-se junto à janela, uma
região de vigilância alerta, contra a traição das lembranças,
desejos, falsas esperanças, e observava a lua cheia.
Uma tarde, a caminhada até o convento foi impossível para
ela. Fazia um calor insuportável, tinha dormido tempo
demais na hora da sesta, sentia-se um pouco enjoada com
toda aquela comida pesada e inadequada, achava que na
noite anterior devia estar amanhecendo quando afinal
conseguiu deixar a janela enluarada, as estrelas, a luz do
convento que bruxuleava lá embaixo na encosta da
montanha através da sua tela móvel. Pediu ao Senor
Martinez que telefonasse ao convento e dissesse a Jeffrey
que não iria lá naquela tarde, e voltou para a cama. Não
desceu para o jantar, devolveu a bandeja do café intacta e,
quando o Senor Martinez foi ao seu quarto para saber como
ia passando, viu pela expressão no rosto dele que, como
Jeffrey, estava doente.
Oh, então aquilo era apenas isso? Vinha se sentindo daquela
maneira... não sabia como descrevê-lo, mas que lhe dis-
sessem que podia estar ficando com icterícia, ou o que quer
que fosse que Jeffrey tinha, era reconfortante. Permanecera
deitada na cama a noite passada inteira — sentar-se junto à
janela estivera além de suas possibilidades —, observando o
movimento da lua através do quadro de estrelas. Andou
também em direção ao norte, com a foca nos braços...
Acreditava que em algum lugar, mais adiante, devia estar o
mar, pois, se não estivesse, tanto ela como a foca morreriam.
A neve começou a cair suavemente, flutuando para dentro
das concavidades e reentrâncias das rochas negras,
pontiagudas. Ela estremeceu e ficou satisfeita de que o corpo
da foca estivesse contra o seu, protegendo-o. A foca
conservava a cabeça encostada no seu ombro e podia sentir
os fios macios da sua pele no rosto. A vida da foca estava por
um fio, ela sabia disso. Sabia que ao caminhar no inverno
que tinha pela frente estava levando também a sua vida,
além da vida da foca, como se estivesse estendendo a mão
aberta para um vento frio, com uma única folha seca na
palma da mão.
O Senor Martinez disse que ela devia autorizá-lo a telefonar
para a tia do médico, que diria a ele que viesse e a
examinasse. Kate viu que estava no início de um processo
que poderia levá-la a ficar deitada numa cela caiada ao lado
daquela em que Jeffrey se encontrava. Se estava doente, ou
ia ficar doente, então devia ir para casa. Embora até aquele
minuto lhe tivesse parecido impossível deixar Jeffrey ali,
sozinho, o que seria um ato de frieza ou de
irresponsabilidade, naquele momento dizia a si mesma que
afinal ele era um homem de trinta anos, que continuaria
vivendo e provavelmente melhoraria, mesmo se ela não
estivesse esperando no hotel para sentar-se a seu lado uma
ou duas vezes por dia — coisa que, de qualquer maneira, não
podia mais fazer. Era capaz de deixá-lo. Enviou-lhe recados
telefônicos através do Senor Martinez e das freiras, e com o
papel que o Senor Martinez lhe dera — o hotel não tinha o
seu próprio papel — escreveu para ele. Era uma carta
pequena, zombeteira e pesarosa, cheia das ironias da
situação. Ao escrevê-la, compreendeu que estava doente,
pois o esforço foi enorme. Nó devido tempo, ele lhe
escreveria uma outra parecida. Nessa ocasião, aquele vilarejo
e as experiências tão diferentes deles dois ter-se-iam
transportado para o passado como filmes que, entretanto,
começavam com a mesma seqüência: um homem e uma
mulher sentados lado a lado num ônibus do campo, que
tinha parado em algum lugar. Estavam olhando para fora,
para um luar muito claro. Era a praça de um vilarejo. Na
borda de uma fontezinha lascada, brilhava uma xícara de
porcelana branca. Havia homens sentados bebendo, do lado
de fora de um bar. Havia algumas árvores que não tinham
boa aparência. Estariam doentes? Não, estavam cobertas de
poeira.
Ela ficou de pé junto da fonte, com a bagagem, tendo pagado
a conta inacreditavelmente modesta, e o Senor Martinez
apertou suas mãos nas dele e seus olhos estavam cheios de
lágrimas. Ela sentiu lágrimas nos seus também. E ficou
embaraçada de novo, pois, embora o Senor Martinez
gostasse dela, oh, sim, realmente gostava muito dela, e
compreendesse por que aquele capaz, desafortunadamente
doente, haveria de tê-la escolhido, embora tão mais velha do
que ele (passaportes dizem tudo), mesmo assim estava
chocado, ainda assim estava chocado, se bem que
pesarosamente: ele sabia que, hoje em dia, o mundo abrigava
inúmeras relações como aquela, mas não achava que o
mundo estivesse melhor por isso. Tudo isso e muito mais
exprimiu com a pressão de suas mãos, o lacrimejar dos olhos
vivos e bonitos, enquanto o ônibus estremecia suavemente
no sol de um princípio de manhã, esperando por duas
passageiras, Kate e uma mocinha, que o Senor Martinez
disse que era filha de um homem que plantava tomates num
campo por onde ela passava a caminho do convento. A
mocinha ia trabalhar como camareira num hotel, naquela
costa lucrativa, por um mês, antes de voltar para ajudar a
mãe com as seis crianças menores.
O Senor Martinez pôs a mala no ônibus e disse ao motorista
que a senora não estava bem e que deveria ser tratada com
cuidados especiais. Como, de fato, ela precisou ser: a jornada
até a costa foi toda náuseas e calor; e o clarão da costa,
quando chegou lá, a deixou estonteada. Era meio-dia. Sua ca-
beça doía, e devia estar na cama, mas agora estava decidida a
fazer uma coisa: voltar para Londres o mais rápido que
pudesse.
Na costa, encontrou um outro ônibus e logo estava numa
cidade suficientemente grande para ter uma agência de
informação para turistas e, às cinco daquela tarde, entrara
em contato com um médico. No interior, entre aquelas
pessoas muito pobres, arranjar um médico significara dias de
espera e intervenção da religião.
O médico ouviu tudo que ela tinha a dizer sobre icterícia e
febre tifóide. Examinou-a e disse que em sua opinião ela
estava anêmica. Aconselhou-a a consultar o seu médico em
Londres, embora acreditasse que logo ela estaria muito bem.
Receitou um sedativo e cobrou-lhe algo correspondente a
cinco libras. É claro, na "época da maré cheia", quando
jorravam rios de ouro acima e abaixo nas costas, e uma vez
que a senora, obviamente, era rica — olhe o vestido dela, a
bolsa, os sapatos! —, o que poderia ser mais justo?
A senora, reconhecendo no médico a sua própria atitude
com relação a Jeffrey, cuja doença pelo menos no começo
fora mais uma doença do espírito, mesmo assim se sentia
fraca demais para ônibus e trens, e tornou a entrar no
mundo dos ricos alugando um carro para levá-la até o
aeroporto.
Lá ela cochilou numa cadeira, à espera de um cancelamento.
À medida que o tempo passava, acabou deitando-se num
banco comprido, alheia à curiosidade ou à desaprovação dos
outros passageiros. Estava submergida na náusea fria que
caracterizava aquela doença, o que quer que fosse, e quando
afinal, mas só na manhã seguinte, entrou num avião,
percebeu a enorme dimensão do erro que fora estar ali.
Tinha certeza de que ia morrer, esperava que fosse morrer
mesmo e, quando chegou a Londres, foi sustentada apenas
pelo pensamento da sua própria cama, no seu quarto, com as
cortinas floridas, além das quais podiam-se ver os galhos de
verão filtrando a luz do sol, ou a luz de nuvens, ou luar...
Oh, não via a hora de estar novamente em sua própria casa,
possivelmente com uma das crianças, de volta de algum
lugar, para ajudá-la. Já tinha dado o endereço ao motorista
do táxi quando lembrou que não tinha direito àquilo: sua
casa estava cheia de estranhos. Pediu-lhe que esperasse
enquanto refletia. Ele o fez, e o relógio foi marcando a sua
dificuldade, enquanto pensava que obter um quarto de hotel
em Londres, em agosto, era loucura. Mas não queria
procurar amigos, e especialmente não Mary, que ela sabia a
receberia com entusiasmo. Se, é claro, não estivesse ocupada
com um caso amoroso qualquer... os filhos dela também
estavam fora.
Afinal confiou ao motorista de táxi o seu problema e deu a
entender que o interesse dele pelas suas dificuldades seria
bem recompensado. Ele a levou para Londres, virando-se
para examiná-la ocasionalmente, para ver o quanto estava
doente e se deveria levá-la antes para um hospital. Depois,
foi seguindo de hotel em hotel, deixando-a enquanto ia
expor o seu problema para um, dois, três, quatro
recepcionistas. Finalmente, num hotel em Bloomsbury, que
era muito mais caro do que qualquer hotel que a Sra.
Michael Brown teria procurado, veio dizer que, se pudesse
esperar uma hora mais ou menos, vagaria um quarto duplo
com banheiro: o preço a assustou, mas não tinha escolha.

O Hotel

Pagou e despediu o motorista do táxi, que a deixou no hotel,
onde lhe perguntaram se estava em condições de sentar-se e
esperar no vestíbulo. A pergunta, a solicitude eram
deliciosas, mas é claro que tinha de concordar e sentar-se ali,
a menos que fosse para um hospital, alternativa que fora
posta de lado pelo motorista de táxi e pela recepção do hotel
em suas confabulações — que certamente se realizaram —
sobre infecções, epidemias e coisas assim. Não, a recepção
do hotel, o motorista do táxi e ela mesma haviam chegado à
conclusão de que ela estava mais indisposta do que doente.
Sentou-se debilmente no vestíbulo, tentando fazer com que
sua mente se equilibrasse, concentrando-se no cenário que a
rodeava. Visto de um ponto geográfico favorável — com um
par de binóculos especialmente fortes no topo dos Alpes,
por exemplo? — pareceria certamente que em agosto toda a
Europa faz um intercâmbio de populações, troca blocos de
população. Naquele vestíbulo, ornamentado com vasos de
flores — artificiais, mas imitando a natureza com tamanha
perfeição que flores verdadeiras teriam parecido
insignificantes e deslocadas —, os uniformes dos muitos
empregados, as roupas de férias dos visitantes de início
dissimulavam o fato realmente importante: que
provavelmente ela era a única pessoa inglesa ali. Os
mensageiros e carregadores que corriam de um lado para
outro, as babás, do tipo que ela mesma fora recentemente,
sorridentes e simpáticas atrás de suas mesas, os garçons
vinham de todos os pontos da Europa. Poderia muito bem
ainda estar em Istambul, poderia estar em Málaga ou
Alicante... poderia estar em qualquer lugar, embora não, é
claro, na cidadezinha que deixara na véspera. E seus ouvidos
ainda estavam tentando tornar acessíveis blocos de som para
os quais ela não tinha a chave, enquanto absorviam outras
seqüências de som que eram facilmente compreendidas pelo
seu cérebro. Um casal jovem, perto dela, falava alemão. Eles
se viraram para olhar para ela, e Kate se perguntou por que o
faziam. Mantiveram um olhar fixo, bastante amistoso, mas
atento. Eram muito atraentes e, obviamente, ricos. Embora
fosse um dia quente e úmido, de verão londrino, ele usava
um casaco comprido de uma pele que parecia fustão de
algodão, num tom malva suave. Ou talvez fosse uma
camurça muito macia. Estava todo abotoado, com exceção
do colarinho, deixando à mostra um vislumbre de seda
branca. Os olhos eram escuros e carinhosos, o cabelo
cortado à pajem, em cachos negros, macios. A moça era
igual a ele, como se fosse uma cópia. O cabelo era escuro e
cortado como o dele. Os olhos e o sorriso eram igualmente
encantadores. Estava com um vestido branco longo, de
crepe da China, que era fechado com pares de minúsculos
botões forrados, ao longo das mangas e até em cima, na
frente. Usava colares compridos de cristal cintilante, e botas
brancas atadas com cordões. As mãos deles, que pareciam
capazes, rápidas e inteligentes, tinham anéis em todos os
dedos. Mesmo naquele grupo de gente bem-nutrida e bem-
ajustada, aqueles dois sobressaíam, irradiando uma harmonia
de realização sexual. Bastava apenas que entrassem num
aposento, aqueles dois, e todo mundo saberia logo que a
alimentação, as relações sexuais, as conversas e o sono deles
deviam ser um banquete. Pela aparência deles, era como se
durante suas vidas inteiras tivessem sido todos lambidos por
línguas invisíveis, molhadas no mel... Kate era a única que
os observava. É claro que era por isso que olhavam para ela:
"Sim, estamos habituados a ser observados, sabemos que é o
preço que temos de pagar por estarmos tão bem vestidos,
por sermos tão bonitos, mas chega, chega!" Kate desviou o
olhar para outro lugar e, em vez disso, ouviu o alemão que
falavam. Não, agora usavam o francês, e estavam decidindo
se alugariam um automóvel para ir visitar amigos que
moravam no campo em Wiltshire, ou se almoçariam antes...
num restaurante, não ali naquele hotel, onde, era óbvio, não
se podia esperar muito da comida... Os sons pareciam que se
afastavam e se aproximavam, como se a estivessem
abanando. Sua testa estava fria e úmida: uma moça
sorridente com um uniforme alegre, preto e branco, estava
inclinada sobre ela e a convidava num inglês com sotaque a
acompanhá-la. Enquanto Kate olhava fixo, o convite foi
repetido.
— Sinto muito — disse Kate. — É que não estou bem. —
Tentou levantar-se, cambaleou e foi segurada pela moça.
Simpatia e preocupação já se derramavam sobre Kate; oh,
sim, a moça conhecia o seu trabalho, quem reconheceria
isso melhor do que Kate, que o fizera ela mesma, e tão
recentemente?
— Não se preocupe com isso, eles me disseram que não
estava bem, e não parece mesmo, mas deixe-me levá-la até o
seu quarto, a senhora certamente deveria estar na cama.
Tinha-se de esperar pela atenção, pela qual se pagava tão
caro... Era o meio do verão, era agosto, mas, quando a
atenção era ligada, mostrava-se da mais alta qualidade.
Num casulo de amor e ternura, logo Kate estava em seu
quarto, e a moça, Anya, da Áustria, ali na Inglaterra para os
toques finais de um treinamento, obviamente admirável, de
gerente de hotel, a pôs na cama, fechou as cortinas para
obter uma obscuridade suave, ligou para o serviço do andar
mandando trazer chá de limão e biscoitos sem gordura,
recomendou repouso, paz, silêncio, e foi embora, tendo
entregado Kate aos cuidados de uma outra moça, da Itália,
igualmente encantadora e solícita, que se encontrava ali para
aperfeiçoar o seu inglês e aprimorar seu treinamento...
embora não estivesse tão adiantada para a gerência como sua
colega Anya. Pois, enquanto a simpatia carinhosa e a
dedicação de Anya se espalhavam por todos os andares do
hotel, as de Silvia eram apenas para aquele andar.
Ela se retirou, sorrindo, tendo oferecido a Kate seus serviços
quando quer que Kate decidisse apertar o botão certo.
Kate se viu deitada num quarto do tamanho do menor
quarto de sua casa. Era projetado e equipado como uma caixa
de costura. A cama onde estava — uma cama de solteiro —
era do tamanho da que ela e seu marido partilhavam nos
primeiros anos, quando só podiam pagar o menor tamanho
de camas de casal. A de casal estava à distância de um braço
esticado, ainda coberta pela colcha cinza-chumbo, na qual
foram atirados displicentemente dois travesseiros cor-de-
rosa para sugerir um lar, conforto. Nada mais havia no
quarto que não fosse funcional. As cortinas eram pesadas, de
um tom rosado, facilmente laváveis numa máquina de lavar,
não precisariam ser passadas a ferro... De que adiantava estar
num hotel se você trazia com você a dona-de-casa?
Entretanto ela continuou com o seu inventário: o tapete era
cinza-escuro, não mostraria a sujeira. As paredes, concluiu,
não haviam sido inteligentemente tratadas: brancas, forradas
com um material enrugado, que acumulava poeira com
facilidade. Aquelas paredes provavelmente precisariam ser
limpas com aspirador de pó pelo menos uma ou duas vezes
por semana. Havia uma televisão, um rádio e um painel atrás
da cama cheio de botões e interruptores para apertar e virar.
Mas não era silencioso, não: o tráfego rugia e praguejava
abaixo das janelas, que, é claro, tinham de permanecer
abertas naquele calor. E, não muito longe, mais abaixo, no
corredor, devia haver uma oficina qualquer, pelo barulho e
som de risadas que vinham daquela direção. Ela podia ter
escuridão, imobilidade, descanso... mas não teria
tranqüilidade.
Deveria, no entanto, entregar-se ao sono até que a doença,
qualquer que fosse, tivesse passado. Icterícia? Não, ela não
estava nem um pouco amarela. Nem estava com a pele fria.
Ao contrário, ardia, como se o calor seco da Espanha ainda
continuasse em seu corpo. Sentia-se como se estivesse com
febre, e a cabeça doía. Entretanto estava enjoada, como se
estivesse muito fria por dentro, gelada, a despeito do exterior
ardente. Dava-se conta de como tinha sido horrível aquela
longa viagem em ônibus sacolejantes, e no ar, e então
novamente no táxi... um pesadelo de calor e movimento
enjoativo que tinha em si uma náusea fria.
Precisava vomitar. Vomitou. E outra vez... Segurando-se
numa pia com as duas mãos, viu no espelho um rosto
branco- esverdeado com manchas vermelho-escarlate nas
maçãs, e mechas escorridas de cabelo ruivo, embaraçado,
caindo sobre ele. O cabelo grisalho estava crescendo e
rapidamente começava a aparecer. Os ossos do rosto
estavam proeminentes, a pele, enrugada e maltratada. Se este
rosto tivesse andado pelo vilarejo as mulheres teriam
reconhecido uma carne familiar. Voltou cambaleando para a
cama, e cochilou. Teve consciência de uma batida discreta
na porta, da entrada de Silvia, e do rosto sorridente inclinado
sobre ela. Mas Kate não se moveu. Seguiu-se um período
longo, lento e mortiço, num quarto que mostrava que era
noite ou dia por ser ou como uma caverna escura e
barulhenta, que tinha faixas verticais de luz dolorosamente
brilhantes, às quais tinha que virar as costas, ou como uma
caverna escura, iluminada por uma faixa de luz horizontal,
perto do chão, contra a qual tinha também de cobrir os
olhos. Silvia aparecia com freqüência, com um refresco de
limão, com clara de ovo batida, que seu treinamento
prescrevia como sendo adequado ao estado de Kate. Era
delicioso, e Kate bebia cada í copo assim que chegava junto
dela... e vomitava depois que Silvia saía. Pois sabia que Silvia
era uma espiã enviada pela gerência para se assegurar de que
não estava com alguma doença capaz de fazer com que o
hotel recebesse uma condenação por parte de autoridades
ainda mais importantes: Silvia estava fazendo relatórios
sobre Kate — como, é claro, Kate teria feito em seu lugar;
não culpava Silvia, ao contrário, apenas tomava cuidado para
esconder como eram freqüentes e violentos os vômitos, e
que o barulho era um tormento pior do que a náusea. Pois
Kate, que ficava deitada, nem dormindo nem acordada,
sentia o barulho a correr como ondas sobre todo o seu
corpo, sentia-o estourar sobre ele, fazendo com que seus
ossos doessem; um guinchar de freios vindo da rua feria-lhe
a coluna, e as vozes, em muitos idiomas, vindas do corredor,
o bater de pés faziam tremer e sacudiam um lago de
sensibilidade que lhe enchia a cabeça.
Diversas vezes ouvia um ruído de um rolamento pesado e,
aparentemente, perguntara a Silvia o que era, pois a
informação em sua mente era de que se tratava de um
carrinho de transportar material de limpeza para os quartos,
e que havia outros, que levavam refeições, bebidas e
cigarros, e que esses carrinhos andavam para cima e para
baixo, por todo lado, o dia inteiro e a maior parte da noite.
Eles retiniam, chocalhavam e sacolejavam, e as paredes finas
tremiam enquanto as janelas vibravam com o tráfego.
Ela devia ter tido outras conversas com a sempre gentil e
delicada Silvia. Por exemplo, sabia que Silvia vinha do
interior, nas proximidades de Veneza, onde "meu pai tem
uma estalagem, a família toda trabalha no negócio". Silvia
trabalhara em todas as funções na estalagem da família,
como garçonete, camareira e cozinheira, até como substituta
de seu pai quando este saíra de férias com a mãe e fora à
Suécia, no ano anterior. No próximo ano, ela iria para Lyon,
trabalhar num hotel onde teria a função que Anya tinha
agora: teria subido um degrau. E no ano depois daquele?
Casar-se-ia com o seu noivo, que, naquele verão, estava em
Zurique, estudando o negócio de vinhos. Arranjariam um
emprego num mesmo hotel, de preferência na Itália, mas
não obrigatoriamente. Poderia ser na França, na Alemanha,
ou até mesmo ali, na Inglaterra. Afinal, na nossa época,
podia ser em qualquer lugar, não era? Ela se via como a
gerente, ele como gerente, e num bom hotel, é claro, algo
da mesma classe daquele em que estavam ou até melhor.
Aquele hotel era muito bom, sim, ficara muito bem
impressionada, mas no devido tempo gostaria de um hotel
no campo, como o de seu pai, só que de nível mais alto, para
gente muito rica, que pudesse pagar a simplicidade perfeita,
a tranqüilidade perfeita, o máximo em tudo e, não era
preciso dizer, atenção da mais alta qualidade. Nessa altura, é
claro, não seria Silvia, pessoalmente, quem permitiria que
simpatia e amor fluíssem quando quer que fosse necessário;
outras pessoas seriam empregadas para aquela função.
Nesse ínterim, porém, ela era tão maravilhosamente boa no
que fazia que seu rosto, inclinado sobre Kate no quarto
escurecido, se tornara um símbolo de reconforto, de
gentileza
— ridículo, absurdo, sim, é claro, mesmo doente Kate sabia
disso, mas intensamente agradável. E não era de espantar
que aquele casal de pele macia como seda, vestido em crepe
da China branco com centenas de botõezinhos minúsculos,
cada um forrado separadamente numa seda de uma textura
um pouco diferente da do crepe, de forma que se tinha de
olhar e olhar de novo para ver se um tecido diferente havia,
de fato, sido usado para que os minúsculos botões, mais
brilhantes do que o vestido, parecessem, à primeira vista,
marfim ou osso polido - não era de espantar que fossem tão
confiantes, tão seguros de si, tão facilmente no domínio de
si mesmos: a auto-imolação de Silvia e de um milhar de
moças como ela os havia tornado assim. Onde estariam
agora? Na Suíça? Na Grécia? Mas não teriam de se restringir
à Europa, já poderiam estar na América do Sul ou na
Islândia.
Kate viu-se acordada, e num silêncio absoluto. Nada rolava
pelos corredores, e o tráfego era inexistente. Estava com
fome. Telefonando, descobriu que eram quatro horas da
manhã; mas decidiu que, se estava num hotel daqueles,
podia muito bem tirar proveito disso. O serviço de
atendimento lhe trouxe uma refeição de pratos frios e um
vinho agradável, mas era cedo demais. Comeu um pouco e
vomitou de novo, mas continuou com a mente clara, e
pronta para começar a viver. O dia começou com seu ruído
contínuo, a luz fulgurava e ofuscava. Levantou-se e se
vestiu. As roupas dançavam no seu corpo; tinha perdido, a
balança dizia, dois quilos e setecentos gramas. Em quanto
tempo? Tentou lembrar-se, mas só pôde concluir que devia
estar no princípio de setembro.
Ficou diante de um espelho de corpo inteiro, as cortinas
finalmente abertas, deixando à mostra a praça abarrotada
com o brilho quente do tráfego, e a carga pesada e úmida de
folhagens acima. Viu uma mulher que era só pele, osso e
grandes cotovelos, com enormes joelhos acima das pernas
magras; tinha olhos pequenos, escuros e ansiosos, num rosto
pálido e frouxo, em torno do qual havia um emaranhado
áspero de cabelo acobreado. A faixa grisalha no repartido
tinha três dedos de largura. Ela não se parecia nada com a
mulher bem-tratada da casa na zona sul de Londres; e as
pessoas que ficaram tão contentes em ver Kate gentil,
sorridente e elegante na Alimentação Mundial e em
Istambul não a teriam reconhecido.
Era o cabelo, o cabelo acima de tudo, mas nada mais fácil de
consertar que isso. Telefonou marcando hora no salão de
cabeleireiro do hotel. Soube que teria de esperar até o fim da
tarde, e descobriu também que não tinha energias
suficientes para fazer o que planejara e que a fizera levantar-
se da cama e vestir-se: andar a distância de um quilômetro
mais ou menos que separava o hotel onde estava da
Alimentação Mundial para apanhar as cartas que deveriam
estar lá à sua espera. Na realidade, ela desmaiou, voltou a si
no chão, com um ombro machucado, foi para a cama e
pediu ao pessoal do hotel que mandasse um mensageiro
apanhar a sua correspondência. A correspondência chegou;
não havia muita coisa. Era pelas cartas de seu marido que
ansiava. Havia-lhe enviado muitos postais e uma carta de
verdade de Istambul, dizendo que planejava "dar um pulo"
até a Espanha, sabendo que ele certamente pensaria que ela
havia encontrado companhia atraente, mas decidiu que seria
melhor dizê-lo de uma vez naquele momento, de forma que
ele teria tempo para digeri-lo. Havia duas cartas de Michael,
ternas, divertidas, cheias de informações sobre tudo,
inclusive sobre as atividades da filha deles, que estava
hospedada em casa de amigos na Filadélfia e que talvez
estivesse seriamente apaixonada. Essas cartas anularam todos
os pensamentos críticos que então tivera sobre a sua situação
e sobre o seu casamento. Ficou deitada na cama, sentindo-se
novamente muito mal, mas sentindo falta do marido, da
familiaridade do conhecimento mútuo deles, da intimidade
que gozavam. Agora, parecia- lhe que havia sido infantil até
por ter-se ressentido com os casos dele. Eles não podiam ter
importância comparados com aquilo... se ela estendesse a
mão para ele, ou ele para ela, naquele gesto havia um quarto
de século de união. A cama vazia à distância de um braço
estendido a degradava; o simples fato de estar ali, tendo
deixado, ainda que por um momento, o padrão em que sua
vida estava moldada parecia um erro praticado por uma
louca. A violência daquelas reações, a relutância de sair da
cama outra vez, a necessidade de chorar, a necessidade de
mandar um telegrama para Michael, pedindo-lhe para vir
para casa... tudo isso lhe dizia que ainda estava doente, e que
talvez até fosse sensato chamar um médico. Mas após
decidir que era o que faria, mergulhou em si mesma e
afastou-se do seu eu desperto, a ponto de perder não só a
terrível necessidade em relação ao marido como em relação
a tudo, e sonhou que estava num campo onde pinheiros e
abetos se espalhavam a sua volta, cobertos por uma neve
espessa e limpa. O céu estava cinzento, sem sol. Aproximou-
se de uma cidadezinha toda construída de madeira, e as
pessoas vieram saindo em sua direção; entre elas — mais alto
que elas, dominando-as — o jovem rei, aquele que
encontrara na casa de madeira onde deixara a foca enquanto
eles se amavam. Era louro, tinha um rosto ossudo, bonito,
mas envelhecera desde que o vira pela última vez. Inclinou-
se para beijá-la, apossando-se dela, e então saiu girando com
ela numa dança. O povo da cidadezinha estava todo dan-
çando, velhos e moços, homens e mulheres, de mãos dadas
e girando num balanço, ou com as mãos em torno da cintura
um do outro. Ele e ela, o jovem rei e Kate, dançavam numa
plataforma elevada de madeira, de forma que as pessoas da
cidadezinha pudessem vê-los com clareza, pois enquanto
dançavam mantinham os olhos no rei e nela, a consorte
escolhida por ele, e sorriam e riam por causa do prazer que
sentiam por ela estar ali com o rei. A música estava alta, e
não conseguia ver de onde vinha. Então o rei desceu da
plataforma, deixando-a sem lhe dar nem ao menos um olhar,
e, tomando pelas mãos uma moça, que estivera dançando
com um rapaz que parecia ser seu irmão, levou-a sorrindo
até a plataforma e começou a dançar com ela. As longas
tranças douradas, cada uma presa com uma fita vermelha,
saltavam no ar enquanto ela girava de um lado para outro,
guiada pelas mãos dele na sua cintura, e ela ria para o rosto
sorridente que se inclinava para ela, aproximando-se para
um beijo. Kate estava fugindo, numa desolação de dor. O
povo do vilarejo veio atrás dela, gritando: ela se havia torna-
do uma inimiga, porque tinha sido posta de lado. Eles a
apanharam e a seguraram; enquanto isso, o rei os ignorava e
a ignorava, enquanto dançava com a moça. Eles a puseram
num poço, cercado de madeira, de forma que ficou rodeada
por tábuas e não podia sair dali: seus olhos ficavam acima da
borda do poço, e podia ver o rei dançando com a moça na
plataforma. Gritou que estava presa injustamente, que a
tratavam injusta- mente, e o rei, cujo rosto passou de
repente de uma expressão sorridente para uma de raiva,
aproximou-se andando depressa pela neve, puxando a
companheira pela mão. Parando na borda do poço
repreendeu-a por sua falta de generosidade, seu espírito
mesquinho e crítico, sua falta de sentimentos comunais, e
acima de tudo por sua falta de compreensão das leis que
governavam a vida: era necessário que o rei dançasse com
uma mulher e uma moça depois da outra, até que todas elas
tivessem sido escolhidas, e tivessem dançado com o rei na
plataforma elevada, diante dos olhos do povo da
cidadezinha. A dança continuava, a música alta, a cantoria, o
riso, os beijos. Acima, os pinheiros balançavam, sibilavam e,
à medida que um vento frio soprava mais forte, começaram
a gemer e a guinchar. Kate tinha de sair do poço, sabia disso.
Em algum lugar, não muito longe, estava a foca, sozinha; e,
mais uma vez, tentava dolorosamente seguir seu caminho
pelo chão em direção ao mar. Acreditava que ela a havia
abandonado.
Acordou com muito frio. Tentando sair da cama para se
olhar, para ver se estava amarela ou vermelha ou de uma cor
qualquer que fosse um diagnóstico, tornou a cair na cama e
tocou a campainha para chamar Silvia. Apareceu uma moça
que não tinha visto antes. Era morena, gorducha, com um
vestido branco muito curto. Tinha um rosto rechonchudo e
olhos negros simpáticos. A boca sorria; acima dela havia um
buço infantil que esboçava a mulher bonita e dominadora
que ela se tornaria. Movia-se num centro de autoconfiança e
apreço por si mesma, e isso era provocado, em Silvia e em
Anya, pelo fato de que sabiam que estavam fazendo bem o
seu trabalho. Inclinou-se sorrindo para Kate, pôs a mão
fresca sobre a de Kate e perguntou como ela se sentia
naquele dia. Sentou-se na cama de Kate e segurou-lhe a
mão, disse que ela também era suíça, e da parte de língua
francesa, e estava fazendo treinamento de hotelaria, ela
também tinha um noivo que estudava o negócio de vinhos;
estava no lugar de Silvia enquanto Silvia substituía Anya,
pois esta estava na gerência por quinze dias, enquanto a
gerente ia visitar a mãe que adoecera de repente. O nome
dela era Marie, e sorria e ria, e dizia que madame não estava
com febre, mas talvez estivesse preocupada com alguma
coisa. Aquilo fez Kate rir, e as duas riram, o riso de Kate
terminando num gemido cheio de lágrimas que era como
um pedido de amor imediato. Nada havia de errado com ela;
ambas pensavam assim. Entretanto estava tonta, enjoada, e a
pele coberta de suor. Marie trouxe um pouco de sopa, que
Kate vomitou imediatamente; a moça estava no quarto e
pôde ajudar Kate a ir até o banheiro a tempo. Agora parecia
a ambas que a ação ritual de chamar um médico devia ser
executada. Veio um médico e, como o da Espanha, estava
cheio de negativas. Kate não estava com icterícia. Não, não
estava anêmica, ou, se estava, só um pouquinho.
Provavelmente estava com gripe, numa de suas muitas
manifestações, e devia ficar na cama e tomar aqueles
comprimidos... Kate dormiu de novo.
Longe, atrás dela, o sol subia de lado, deslizando sobre um
horizonte de montanhas escuras e ameaçadoras onde o gelo
nunca se derretia, e depois de uma pequena corrida, muito
baixo, poucos centímetros acima dos picos, tornou a cair
atrás das montanhas, deixando aquela terra escura para as
sombras frias. Era um crepúsculo sombrio e ela mal
conseguia ver as elevações de terra seca por entre as quais ia
caminhando com cuidado. A foca estava inerte em seus
braços, a cabeça sobre o seu ombro, e ia escorregando
enquanto ela andava, pois estava em coma, ou morrendo.
Podia ouvir-lhe a respiração ofegante, seca e irregular. Devia
molhar novamente a pele da foca. Mas tudo estava gelado, e
a foca precisava de água salgada na pele seca. Deitou o
animal na neve e procurou no escuro alguma coisa que a
ajudasse. Encontrou uma rocha negra gretada de cristais de
sal. Num buraco entre aquela rocha e uma outra viu gelo e
quebrou a superfície. Havia um pouco de água congelando
ali. Quebrou os cristais naquela água e fez uma solução
salina. Carregou a foca semimorta até junto daquela poça que
já estava quase se congelando na superfície, a despeito do
sal, e molhou o animal com o líquido, ainda mais depressa e
freneticamente à medida que a superfície da poça se
congelava e a água desaparecia. Mas, antes que o gelo
estivesse sólido, conseguira passar água por todo o corpo da
foca, sobre a pobre pele seca, o rosto e as pálpebras. Os
olhos se abriram e a foca gemeu baixinho, mas num
cumprimento. Agora ela estava viva e salva, pelo menos por
enquanto. Devia pegá-la no colo e andar em direção ao
norte, sempre norte, para longe do sol, que estava tão longe,
lá embaixo, no sul, no seu dia eterno. A escuridão em volta
dela era pesada. Estava nevando de novo. Ela levantou a
foca, cujo peso agora era mais fácil de carregar, porque
estava respirando e viva, e seguiu no seu caminho para o
norte.
Já era meados de setembro quando se arrastou para fora da
cama. Tinha emagrecido mais, o cabelo espalhava-se
embaraçado em volta de um rosto que era só pele e osso,
compacto e ondulado, com faixas cor de laranja, as raízes
grisalhas. Não conseguia passar a escova nele. É claro que
bastava um pouquinho de paciência para ir ao cabeleireiro, e
em duas horas poderia transformá-lo de novo na massa
sedosa, espessa e lustrosa que era o seu estilo. Ou havia sido,
durante três meses. Entretanto, quando regressasse para
casa, teria de voltar ao seu estilo anterior àquele verão, ondas
bonitas e discretas, uma ausência total de provocação. Qual
era o sentido de fazer qualquer dos dois, quando seu corpo
era só pele e ossos; este pensamento, uma vez analisado,
acabou por revelar que ela não conseguiria suportar ficar
sentada debaixo do secador.
Puxou o cabelo para trás e o prendeu: era juvenil para ela,
mas descobriu que não tinha energias para fazer qualquer
outra coisa. Passou pela recepção do hotel, barulhenta e com
um cheiro tão forte de perfumes que se sentiu enjoada, saiu
para a rua, onde todo o rosto era o de um turista atarefado,
em busca de sensações. As pessoas ficavam olhando para ela.
Vendo-se na vitrina de uma loja, compreendeu por quê. Viu
que deveria ter posto um lenço na cabeça, e um outro para
marcar a cintura em volta do bolo de fazenda que descia de
seu ombro. Entrou na primeira loja que os vendia, comprou
um chapelão ao acaso, e o puxou bem para baixo cobrindo o
rosto. Agora sentia-se protegida de olhares e de críticas.
Tomou um ônibus, subiu para a parte de cima com
dificuldade e sentou-se um pouco trêmula de fraqueza
enquanto ia sendo levada através dos muitos quilômetros
para o sul, em direção à sua casa. Queria olhar a casa. Não,
não para entrar, mas apenas para vê-la. Nunca olhara para
aquela casa como olharia agora, quando habitada por outras
pessoas. Seria como olhar a sua própria vida.
Saltou do ônibus, tomou um outro, e chegou ao fim da sua
rua. Era larga, com fileiras de árvores dos dois lados. Não
havia ninguém à vista. O cocker spaniel do Sr. Jasper estava
sentado na calçada, ofegante. Ele a reconheceu, mas não se
moveu. Estava com a língua de fora pingando grandes gotas
de calor. Vendo o cachorro bufando de calor na sua massa
de pêlo, compreendeu que estava muito quente e que ela
estava suando.
Foi descendo a rua, andando devagar. Sentia como se apenas
naquele momento tivesse realmente voltado para a Ingla-
terra, vinda do exterior. Agora estava realmente em casa.
Havia deixado a cosmópole. A Sra. Hatch estava no jardim
da frente.
cavando em volta da sua roseira branca. A moça olhou para
cima, por um instante, para Kate, que ia andando, passando
defronte ao seu jardim, olhou outra vez e, quando Kate
estava prestes a cumprimentá-la, perdeu o interesse por
aquela mulher estranha e continuou a cavar.
Kate parou sob os plátanos na beira do seu jardim,
examinando. O prédio grande e sólido estava em silêncio
sob o sol da manhã. O céu estava claro e o jardim parecia
exposto demais, um pouco débil. As coisas precisavam ser
regadas. Um pombo arrulhava na árvore sob a qual eles se
haviam sentado naquela tarde decisiva. O gramado estava
precisando de um corte: os inquilinos provavelmente o
cortariam, na correria de último minuto quando esperavam
que eles, a família de verdade, voltassem. Uma
espreguiçadeira estava caída de lado, na grama, dando uma
impressão de desolação.
Kate continuou de pé ali, na sombra. Talvez alguém saísse.
Mas nada aconteceu. Será que a Sra. Enders estava
cozinhando? Será que tinha saído para fazer compras? Mas
aquilo não era da conta de Kate. Era assim que a sua casa, seu
lar, ficaria muito breve, quando Michael e ela a tivessem
deixado para ir morar num apartamento, num lugar
qualquer. A gente diz "minha casa", "meu lar". Besteira. As
pessoas passam pelas casas, que continuam as mesmas,
apenas se adaptando um pouco aos seus ocupantes. E Kate
não estava sentindo nada mesmo por aquela casa onde
vivera durante quase um quarto de século. De fato, sentia-se
bastante distante e leve, como se fosse capaz de levantar vôo
para algum lugar através da falta de consistência. Decerto era
uma loucura ter saído da cama de maneira tão brusca, depois
de ter estado de cama por três semanas e sem comer durante
todo esse período, ter atravessado quase a metade de
Londres. Voltaria para a cama naquele dia. Deixou o abrigo
da árvore e, do outro lado da rua, na calçada, viu Mary. Mary
estava de chapéu e de luvas. Ela detestava os dois; raramente
os usava; de que evento poderia ela possivelmente estar
voltando? A boca de Kate se distendeu num sorriso, para o
momento em que Mary fosse olhar para ela. Mas o olhar de
desagrado não se modificou. Como íris Hatch, ela lançou um
olhar rápido para aquela mulher, de pé, ali, tornou a olhar
por causa da excentricidade da pessoa — o que era que uma
vagabunda estava fazendo ali, naquela rua respeitável? — e
continuou andando.
E naquele momento Kate realmente sentiu as emoções de
maneira violenta. Uma foi medo, outra, ressentimento.
Como Mary tinha podido olhar para ela como se não a
tivesse visto? Elas não tinham sido amigas íntimas durante
anos e anos? Ora, Mary devia estar bêbada ou coisa assim!
Haviam partilhado crises, domésticas e pessoais, os filhos das
duas... talvez os maridos? Kate sabia que Mary, numa
determinada época, se tinha sentido atraída por Michael, e
Mary, sendo como era, o havia dito. E Kate sabia que
Michael achava Mary atraente... bem, como os homens o
faziam, mesmo que nada quisessem, mesmo quando a
desaprovavam. Coisa que Michael fazia. Kate tinha até ficado
com um pouco de ciúmes. Que droga, estava fazendo aquilo
de novo, utilizando falsa memória: a verdade era que ficara
louca de ciúmes, doente de ciúmes. A intensidade do seu
relacionamento com Mary datava daquela época. Não era
uma lembrança de que pudesse orgulhar-se, era o mínimo
que se podia dizer.
Kate observou as costas de Mary que se afastava, costas retas
e competentes, sob um chapéu elegante e bem colocado:
nada do que via naquele momento era realmente de Mary,
que estava disfarçada.
Percebeu que estava aliviada pelo fato de Mary não a ter
reconhecido. Mais: estava exultante, como se tivesse sido
libertada de alguma coisa. Rapidamente, deixou a sombra das
árvores e foi caminhando pelas manchas escuras de sombra
ao longo da calçada brilhante. Viu que Mary já tinha tirado o
chapéu, as luvas e os sapatos, e estava de pé, descalça, no
gramado de sua casa, as pernas separadas, as mãos nos
quadris, os seios balançando dentro do vestido. Seu rosto
estava franzido por causa da intensidade do sol e estava
olhando fixo para o outro lado, para a casa de Kate.
Os olhos apertados davam-lhe um ar de perplexidade: aquilo
era característico. Freqüentemente Mary enfrentava si-
tuações difíceis com aquele olhar de alguém que precisa de
um intérprete.
Por exemplo, as ocasiões às quais elas se referiam como
"sessões femininas". Na realidade, houvera apenas uma ou
duas delas. A primeira fora há cerca de um ano, após uma
visita do professor do filho de dez anos, que viera para
comunicar a Mary que havia alguma coisa de que o menino
estava precisando e que não estava recebendo do que ele
descrevia como "seu ambiente familiar".
Por acaso, aconteceu que Michael estava fora naquele fim de
semana, e o marido de Mary trabalhando, os filhos de Kate e
de Mary ocupados em diferentes tarefas. Tendo exclamado
várias vezes como era notável que ambas se encontrassem
sozinhas ao mesmo tempo, descobriram que haviam criado a
atmosfera para uma ocasião especial, e foram para o quarto
de Mary, onde primeiro ficaram tomando café, depois
uísque.
Mary estava contando a Kate, detalhe por detalhe, com seu
jeito presunçoso, mas que era o resultado da sua perplexi-
dade, as recomendações do professor para a "melhor integra-
ção" da criança. Os termos característicos do jargão se
seguiam uns após outros: "bem-ajustado", "típico", "normal",
"integrado", "seguro", "normativo"; e logo estavam sorrindo,
enquanto crescia dentro delas uma alegria que era devida em
parte à perspectiva de dois dias de perfeita liberdade, e em
parte ao scotch.
Kate, fazendo a sua contribuição, contou a Mary como, uma
vez, uma conselheira viera para executar uma missão
semelhante com relação a Eileen, que na época estava sendo
"difícil", por uma razão qualquer que agora já estava
esquecida.
— Ela disse — contou Kate — que os problemas de Eileen
seriam facilmente suportados e resolvidos numa unidade
familiar bem-estruturada como a nossa. — Mary, de repente,
deu uma gargalhada. — Uma unidade — disse Kate. — Sim,
uma unidade, foi o que ela disse que éramos. Não apenas
isso, uma unidade nuclear.
Elas riram. Começaram a rir como loucas, convulsivamente,
contorcendo-se, às gargalhadas, Mary rolando na cama, Kate
na cadeira. Outras ocasiões foram lembradas, cada uma
apresentando a sua safra de palavras irresistíveis. E a cada
uma, elas rolavam de rir como na primeira. Estavam
procurando, deliberadamente, as palavras capazes de
provocar o riso e, logo, palavras bastante comuns o faziam,
não o jargão como "confrontação de pais e filhos",
"síndrome", "momento de tensão", mas até "correto",
"organizado", "saudável" e assim por diante. E depois
estavam tendo acessos de riso diante de "família" e "lar" e
"mãe" e "pai".
Mas Kate estava começando a se sentir pouco à vontade; e o
seu desconforto — os instintos de Mary eram aguçados — se
comunicou; e o rosto assumiu a expressão familiar de
curiosidade, de disposição para ser esclarecida: por que Kate
estava agora reagindo com uma espécie de desaprovação, ao
passo que não o havia feito até pouco antes?
Alguns dias depois, na cozinha de Mary, esperando que a
comida ficasse pronta, começaram a rir de novo, por causa
de uma palavra que tinha, sem que Kate tivesse intenção,
saído do seu lugar numa frase e adquirido ênfase. Estivera
dizendo que tinha entrado na sala de sua casa e visto seus
filhos e seu marido jogando cartas; mas a palavra "marido" se
tinha isolado e elas tiveram de rir. Não conseguiam parar.
Começaram a improvisar, contando anedotas ou
descrevendo situações nas quais certas palavras,
obrigatoriamente, tinham que surgir: "esposa", "marido",
"homem", "mulher"... elas riam e riam. "O pai dos meus
filhos", diria uma mulher; "o que provê o sustento da
família", diria uma outra, e elas riam cada vez mais alto.
Era um ritual, como as reuniões exclusivamente masculinas
dos homens suburbanos, onde tudo a que dedicavam suas
vidas normais para preservar era aviltado, insultado e
inferiorizado.
Foi o sentimento de culpa de Kate, não é preciso dizer, que
acabou com aquela ocasião também; e Mary se controlou, de
muito boa vontade e prontamente, quando Kate o fez,
acendeu um cigarro e sentou-se fumando, espalhando cinza
por todo lado, e sorrindo na sua maneira habitual: "Bem,
então paramos de fazer aquilo, não paramos? Provavelmente
ultrapassamos o limite, não é? Que limite? Diga-me,
explique-me".
Bastante depressa os dois incidentes — que não foram
repetidos — se tinham transformado em passado e Mary se
referia a eles assim: "Lembra-se de quando morríamos de rir,
Kate? Quando tínhamos aquelas 'sessões femininas' ". E a
expressão em seu rosto era a mesma que tinha naquele
momento, enquanto olhava fixo para a casa defronte a sua, o
sol fazendo com que apertasse os músculos dos olhos" "Eu
não compreendo, mas, se você diz que é assim, creio que
terei de aceitá-lo, estou fazendo o possível para me adaptar
às suas idéias. Eu sempre faço".
Mary estava de pé entre espreguiçadeiras, um escorregador
de crianças que já estavam grandes demais para ele,
bicicletas, uma mesa de jardim, uma banheira de
passarinhos, hortênsias, um irrigador de aspersão de jardim,
dois gatos, um regador, e um pequeno amontoado colorido
sobre a grama, que. era constituído pela sua bolsa, o chapéu,
as luvas e os sapatos.
Kate passou pelo cocker spaniel que estava deitado, esticado
sobre a barriga, a língua cor-de-rosa acumulando cascalho, o
rabo abanando preguiçosamente numa saudação.
No ônibus, ela ficou pensando repetidamente: "Mary não
me reconheceu. Aquela moça, íris Hatch, não me
reconheceu".
Porque era meio-dia e o tráfego estava pesado, foi necessário
mais de uma hora pára voltar para o centro de Londres, e
durante todo o caminho Kate continuou pensando: "Elas
não me reconheceram, elas me vêem todos os dias de suas
vidas, mas não me reconheceram. Só o cachorro me
reconheceu".
Subindo com dificuldade os degraus da escadaria do hotel,
tentando fazer-se invisível na recepção, apoiando-se contra
a parede do elevador estonteante, desabando sobre a cama
no quarto barulhento, ela repetia: "Elas olharam para mim
como se não me estivessem vendo. Elas não me
reconheceram". Longe de estar entristecida por aquilo,
estava exultante, sentia-se mesmo embriagada de alívio pelo
fato de a amizade, os laços, o conhecer as pessoas serem algo
tão superficial, refutado com tanta facilidade.
Dormiu durante toda uma tarde quente, acordando para
dizer à solícita Silvia — de volta àquele andar — que depois
do sono se sentia muito melhor, sim, ela se sentia bem, sim,
provavelmente já estava curada. Embora fosse uma loucura
levantar-se de novo — ainda não conseguia fazer parar nada
no estômago —, pediu ao hotel que lhe comprasse uma
entrada para o teatro.
Não lhe importava qual a peça. Queria ver pessoas
envergando personalidades que não eram as suas, isso era
tudo. Suas amigas mais íntimas não a tinham reconhecido: a
perda de peso, um chapéu posto de qualquer maneira, um
andar provavelmente arrastado, o fato de que Mary
imaginava que ela estivesse em algum lugar na costa do
Mediterrâneo — essas coisinhas haviam sido o suficiente
para que Mary não reconhecesse uma mulher que tinha
visto todos os dias de sua vida durante anos. Bastou somente
que Kate representasse um papel muito pouco diferente do
seu habitual.
As pessoas da recepção do hotel estavam orgulhosas por lhe
terem conseguido uma entrada para A month in the
country: eram infalivelmente capazes de fazer a escolha
certa para ela; era disso que se orgulhavam.
Às oito horas, estava na sua poltrona na primeira fila da
platéia. O teatro estava lotado. Normalmente, aquela peça
estaria num teatro menor, para uma platéia mais selecionada,
mas era setembro, um mês quase tão pródigo em dinheiro
quanto agosto. Dólares. A platéia era constituída, em sua
maioria, por americanos. Tinham vindo para ver a atriz
principal, um nome famoso, numa peça famosa. Aquela era
uma experiência cultural importante e de alta classe; a
atmosfera estava pesada demais, por causa da quantidade de
respeito que tinha de carregar.
A month in the country é uma peça engraçada à sua ma-
neira. Engraçada em termos de alta classe e semelhança com
a vida, uma lágrima atrás de cada segundo ou terceiro sorriso
forçado. Entretanto, é preciso que se esteja no estado de
espírito certo. Na realidade, no estado de espírito em que
Kate estava, da última vez que havia estado ali, há quatro
anos: tinha saído, lembrava-se, como se tivesse comido uma
refeição especialmente bem preparada.
Kate e Michael iam freqüentemente ao teatro. Se deixavam
que se passasse algum tempo sem ir, sentiam-se culpados,
como se não estivessem cumprindo com um dever para com
eles mesmos. Geralmente iam só os dois ou com amigos,
porque seus filhos preferiam o cinema. Iam assistir com a
mesma facilidade ao novo tipo de peças em que a audiência
e os atores se misturavam, as pessoas não usavam roupas ou
os atores insultavam a audiência, ou peças antigas, como as
de Shakespeare, viradas de cabeça para baixo para ilustrar o
enfoque pessoal de um diretor qualquer, como assistiam a
peças como aquela, que eram como ouvir poemas muito
conhecidos magnificamente declamados. No ato de avaliar a
experiência, esta foi bastante boa, aquela não foi muito boa,
o que fazia o julgamento era a sensação de ter comido bem
ou não, de ter sido completamente saciado, sustentado,
apoiado, ou de ter sido deixado com fome e carente de uma
espécie qualquer de comprovação. Comprovação de quê?
Mas era esse tipo de peça que Kate sempre achara das mais
saciadoras. Ibsen, Tchékhov, Turguêniev — o tipo de peça
em que se observavam pessoas como a gente em situações
pessoais reconhecíveis.
— Tão caracteristicamente russo — murmuravam pessoas
em volta.
O que faziam revelava que aquela era uma audiência de
nível bastante baixo na escala da sofisticação, ou estariam di-
zendo: "Exatamente como nós, não é?"
E, de fato, Kate estava pensando que a família e a casa de
Natália Petrovna eram muito parecidas com as suas. Ou
melhor, aquilo fora o que havia pensado na última vez em
que vira a peça. Não seria, talvez, um erro vir ao teatro,
quando tinha acabado de passar tanto tempo na cama?
Uma mulher estava sentada de maneira conspícua na fileira
da frente da platéia, uma mulher que as outras pessoas
observavam. Alguns olhavam para ela tanto quanto olhavam
para a peça. Ela parecia bastante deslocada ali, excêntrica a
ponto de parecer estar fantasiada, com o vestido rosa largo
parecendo um saco, ajustado abruptamente na cintura por
um lenço amarelo, a massa de cabelos em múltiplos tons, o
rosto emaciado que estava amarelo e era só pele e osso, e
olhos ardentes, zangados. Ela murmurava, enquanto se
remexia e se contorcia na cadeira:
— Oh, que idiotice! Russo é o traseiro da minha avó! Que
besteira!
Natália Petrovna dizia:
— E o que estou esperando? Diga-me! Ó Deus, não permita
que eu despreze a mim mesma!
E aquela criatura lamentável, que não obstante deveria ser
rica, para poder permitir-se pagar um preço daqueles pela
entrada, disse em voz alta, falando diretamente para os
atores, num tom aflito, e de intimidade mesmo:
— Que besteira, besteira, por que é que você diz isso?
Estava pensando que deveria haver alguma coisa errada
com a maneira como estava vendo as coisas. Pois, embora
estivesse tão perto do palco, parecia-lhe que estava muito
longe; e continuava tentando obrigar-se a um outro tipo de
atenção, ou participação, pois podia lembrar-se do seu estado
de espírito habitual quando estava num teatro, e sabia que o
seu estado naquele momento era muito diferente.
Realmente, era mesmo como se estivesse olhando para as
pessoas no palco através de um telescópio, tão
extraordinárias e remotas lhe pareciam na sua distância da
realidade. E, no entanto, na última vez em que se havia
sentado ali, ela disse de Natália Petrovna: "Sou eu". Havia
pensado: "Que pessoa, em qualquer lugar do mundo, não a
reconheceria imediatamente?"
Bem, para começar, não as pessoas da cidadezinha na
Espanha, onde há pouco tempo estivera com o seu amante,
Jeffrey. Elas não. O que aquelas mulheres tinham em
comum com Natália Petrovna era teoricamente a idade:
vinte e nove anos. Pelo menos era o que Turguêniev dizia,
mas estava se comportando e pensando como uma mulher
de cinqüenta anos. — Quem desempenhava o seu papel era
uma mulher também de cinqüenta anos. — Uma mulher
que pensava em si mesma ficando velha, agarrando-se à
juventude. Obviamente, o século XIX, como a vida das
pessoas pobres, envelhecia as mulheres depressa. Hoje em
dia não se podia imaginar uma mulher de vinte e nove anos
comportando-se daquela maneira: ela não consideraria o fato
de se apaixonar por um estudante como uma perda de
moral, longe disso.
Nesse caso, que é que todos eles estavam fazendo ali? Bem,
o quê? Besteira, era tudo besteira... Não o desempenho, não
a maneira como a coisa estava sendo feita, era tudo
maravilhoso, maravilhoso.
— Vocês são maravilhosos — gritou para os atores, sentindo
como se seus pensamentos violentamente críticos pudessem
tê-los prejudicado, mas eles continuaram indiferentes, não
dando atenção à mulher louca, à distância de alguns metros.
Sim, maravilhoso; e há quatro anos ela havia sofrido, sentira-
se pessoalmente criticada. Ficara constrangida com relação
aos auto-enganos e à vaidade da adorável senhora, o espelho
de todas as mulheres na platéia que já tivessem sido o centro
de atenções e que de repente vissem o seu poder escorregar-
lhes das mãos.
Mas não importava como ela gritasse "maravilhoso!" ou
sentisse que devia fazê-lo e se contivesse, pois as pessoas
estavam olhando para ela com expressões furiosas e
dizendo-lhe que se calasse... Não havia dúvida de que o
negócio pelo qual estava pagando um bocado de dinheiro
para assistir parecia ser (era o estado de espírito em que
estava, devia ser isso) a execução de um jogo ou um ritual
particular por um bando de maníacos de boa família, e
ninguém lhes dissera ainda que estavam malucos. Era uma
farsa, de maneira nenhuma uma comédia de classe e
sentimentos, cheia de verdades sobre a natureza humana. A
realidade era que as coisas que estavam acontecendo no
mundo, o colapso de tudo, estavam dando golpes violentos à
forma dos acontecimentos naquela peça e nos outros que
fossem iguais a eles, fazendo com que se tornassem
ridículos. Uma piada. Como a sua própria vida. Ridícula.
Mas iriam para casa, todas aquelas pessoas ali, cruzando
todos aqueles milhares de quilômetros de oceano e de ar, e
diriam aos amigos que tinham visto A month in the
country, e guardariam o programa da peça numa caixa cheia
de lembranças preciosas.
— Cale a boca! — alguém estava dizendo. Para ela.
Então ela ainda estava expressando em voz alta seus
sentimentos? Que terrível falta de educação de sua parte.
Talvez devesse ir embora discretamente e voltar para a
cama.
— Estou de pé à beira de um precipício, salvem-me! —
exclamou Natália Petrovna, e a platéia vibrou com sua
emoção.
Agora Kate estava com os lábios cerrados, de forma que
nada pudesse sair deles; e pensava: "Ela é louca. Maluca. Lu-
nática. Permitem-lhe que seja. Mais, era encorajada a sê-lo.
Devia ser internada. E aqui estamos nós, sentados e olhando
para ela. Deveríamos estar atirando frutas podres neles. Em
nós. Sim, era isso, se tivesse uma ou duas maçãs ou uma
banana, podres, se possível... mas pelo amor de Deus, não
pense em comida. Nem olhe para o palco, é muito melhor
não o fazer".
Olhou para as pessoas que a rodeavam, sabendo que o fazia
com uma expressão insolente, agressiva e dissimulada nos
olhos, como se esperasse que elas fossem censurá-la com
um: "Não fique olhando!" Mas olhe para eles, todos aqueles
turistas, exatamente iguais a ela mesma até uma semana atrás
ou coisa assim, com roupas de boa qualidade, o corpo bem
nutrido, a elegância, os rostos cuidadosamente maquilados e
o cabelo... Bom Deus, olhe para as cabeças em volta dela,
havia lugares no mundo onde uma família podia sobreviver
com cinqüenta pence por semana. Algumas cabeças ali
sustentariam uma dúzia de famílias durante meses. Aquela
era uma maneira de pensar ridícula, porque não era mais do
que o que o povo vinha pensando durante os últimos
duzentos anos. A Revolução Francesa. Dois mil anos. A
cristandade. Provavelmente milhares de anos antes disso,
quem sabe. Durante milhares de anos, o povo havia olhado
para cabeças com penteados caros e pensado em quanto de
comida e abrigo elas representavam, de forma que,
obviamente, era um pensamento sem nenhuma utilidade,
portanto para que se importar com isso? Mas pensamentos
daquele tipo de fato continuavam surgindo, fossem eles
inúteis ou não. A mulher sentada ao seu lado era uma massa
velha e gorda com o cabelo todo branco, cuidadosamente
eriçado e cacheado de forma a esconder o couro cabeludo
rosado e brilhante. A sua carcaça com seus brilhantes e peles
alimentariam centenas de famílias durante anos e anos.
Como o povo provavelmente jamais deixara de pensar. Mas
que coisa notável era aquilo, aquela sala, cheia de gente, ou
melhor, animais, todos olhando numa direção, para outros
animais fantasiados, erguidos mais acima para representar
num palco, animais cobertos com pano e pedaços de pele,
enfeitados com pedras, os rostos e as garras pintados com
cores diferentes. Cada um deles havia acabado de comer um
animal qualquer; e as peles que se viam por todo lado, a
despeito da noite quente, eram de animais que tinham
vivido, brincado e fornicado em florestas e campos, e o que
cobria os pés de cada um deles era a pele de um animal, e 0
cabelo deles — não, tinha-se de voltar àquilo novamente,
era impossível não o fazer —, o cabelo era pior:
emaranhados e jubas e perucas de cabelos encrespados,
cacheados, alisados, encompridados, encurtados e mani-
pulados, cabelos tingidos de todas as cores, perfumados, bri-
lhantes de óleo e duros de laquê. Era uma sala cheia de
animais, cães, gatos, lobos e raposas — que se haviam
erguido sobre as patas traseiras, posto laços de fita e
escovado o pêlo. Este era um pensamento ainda mais inútil,
se possível. Tinha havido um caricaturista — não tinha? —
que desenhava as pessoas como animais; mas qual tinha sido
o objetivo de pensar daquele jeito, ele não havia alcançado
nada com aquilo, porque continuava do. mesmo jeito através
dos tempos.
Natália Petrovna dizia com coquetismo estudado:
— Bem, se a palavra "mórbido" não lhe agrada, então direi
que somos ambos velhos, velhos como as montanhas.
"Oh, pelo amor de Deus", pensou Kate e, infelizmente,
também o dissera, pois uma mulher várias cadeiras adiante
se inclinou para a frente e lançou-lhe um olhar de desprezo.
A mulher parecia um gato, um gatinho velho que ficou
gordo e preguiçoso; mas agora chega, pare com isso, ela
devia manter a atenção bem distante do palco, uma vez que
não conseguia comportar-se direito. Na realidade, por que
seria que ninguém além dela podia ver, será que ninguém
podia ver que aquilo a que todos assistiam era o
comportamento de maníacos? Uma paródia de alguma coisa?
Na realidade, todos eles deviam estar caindo pelos cantos,
rolando de rir, em vez de sentirem uma simpatia intelectual
por aqueles problemas absurdos, ridículos e sem sentido.
— Mulher infeliz, pela primeira vez em sua vida você está
realmente apaixonada!
E logo saiu toda a audiência, esbarrando, empurrando e
dando trancos, para tomar um copo de alguma coisa
qualquer, e Kate foi ao toalete, onde não ficou surpresa ao
ver que um macaco a encarava no espelho. A camareira era
uma velha gorda, e as mulheres que entravam para lavar as
mãos ou para urinar eram gatas e cadelas. Uma era uma
raposinha bonita, o nariz pontudo e olhos observadores,
brilhantes. Voltando à platéia, agora acomodando-se
desconfortavelmente em suas poltronas, Kate viu que eles se
haviam transformado todos no que poucos minutos antes
imaginara que pudessem ser: estava numa sala cheia de
animais, cada um vestido de maneira mais ridícula que o
outro. Teria sido assim que aquele velho artista sempre vira a
humanidade? Não teria sido fantasia dele, ou realmente ele
sempre vivera no estado em que ela estava agora? Será que
ele havia sido atendido por porcos e macacos nas lojas,
amado mulheres com caras de gatas e cadelinhas, fugido dos
lobos, olhado para os espelhos com a esperança de que um
dia, finalmente, um rosto humano fosse aparecer ali,
dissolvendo a máscara animal que sempre o encarava, não
importando quando ou como ele se esgueirasse até o
espelho, tentando apanhar-se de surpresa, esperando que a
luz de uma madrugada, ou uma interrupção do seu sono, ou
uma virada repentina, dando as costas ao cavalete ou ao
bloco de desenho, fosse permitir-lhe ver o rosto de um
homem com os olhos de um homem a encará-lo?
E ele teria pensado que talvez um dia, quando aquilo
acontecesse, as máscaras animais se dissolveriam todas, de
todas as pessoas à sua volta, e então... bem, o quê?
Então o leão se deitaria com o carneiro, sem dúvida, e todos
esses pensamentos ridículos não mais surgiriam na cabeça
das pessoas, os velhos pensamentos "progressistas", "libe-
rais", "inteligentes" — ou socialistas ou o que quiserem —,
porque eram inúteis, nada mudavam, aquele grupo ali no
palco havia sido varrido para longe por uma revolução, e o
que adiantara? Ali estavam eles ainda, continuando, e nada
havia mudado, e os mesmos pensamentos continuavam
girando em círculos ou seus encaixes nas cabeças das
pessoas, e logo estariam ressoando muito alto pelo que eram,
como um monte de discos velhos de gramofone, porque as
pessoas achariam que o que se estava remoendo sem parar
em suas cabeças era intolerável por causa da sua falta de
sentido repetitiva. Acabariam com aquilo. Não teriam
escolha.
Natália Petrovna, num vestido verde elegante — o terceiro
naquela noite —, estava a ponto de se desculpar em
lágrimas. Lágrimas eram vistas com simpatia pelos olhos de
Kate.
Para fazer aquilo tão bem, representar um comportamento
ridículo, vergonhoso, que todo mundo deveria estar vaiando
e condenando, homens e mulheres da mais alta inteligência
e talento passavam anos de aspiração, trabalho duro,
devoção, estudo, humilhação, vivendo de esperança ou de
uns míseros
centavos nas companhias de teatro provincianas. Suavam e
sofriam por aquilo, o momento de grande arte, quando
Natália Petrovna arrasta as saias lânguidas pelas tábuas sujas e
diz a uma moça que gosta do mesmo rapaz:
— Quando se pensa que o nosso segredo, inteiramente por
minha culpa, eu sei, que o nosso segredo já é conhecido aqui
nessa casa por dois homens, em vez de nos ficarmos
mortificando uma à outra, não deveríamos estar tentando
salvar-nos de uma situação insustentável? Já esqueceu quem
sou, qual a minha posição nessa casa?
Ah, sim, aquele era o tipo de conversa que as pessoas
deveriam fazer peregrinações para ouvir.
Bem, o que estava pensando ia ter de ser varrido de sua
mente; porque quem era ela para achar uma grande porcaria
o que o resto das pessoas achava maravilhoso e que, de qual-
quer maneira, ela sempre achara maravilhoso no passado?
Assim era presumível que o fizesse de novo, uma vez que a
normalidade se tivesse instalado, e o hábito, e ela tivesse
voltado para a sua família, arrastando as saias por todo lado e
abrindo a elegante sombrinha de renda com um movimento
dos pulsos.
Um último esforço e estarei livre. Liberdade e paz, como
ansiei por vocês duas, e logo todo mundo se levantou para
aplaudir sem parar, da maneira como fazemos no nosso
teatro, como se a necessidade dos atores de serem
aprovados, a necessidade dos espectadores de aprovar,
criasse uma ação — palmas batendo juntas repetidamente
numa fuzilaria de ruído — que é um comentário
completamente separado e distinto de qualquer coisa que
tenha acontecido no palco, sem nada a ver com o fato de os
acontecimentos mostrados terem sido desagradáveis,
bonitos, admiráveis ou coisa semelhante, mas é mais uma
espécie de confirmação ritual de auto-aprovação por parte da
platéia e dos atores por terem ido ao teatro e por
representarem nele. Um ritual fantástico. No todo, um
negócio fantástico.
Kate aplaudiu com os outros, e gritou "Bravo!", como alguns
entusiastas estavam fazendo nas fileiras de trás e na galeria,
fez uma careta para a mulher com a cara de gato que a
olhava com terrível expressão de desaprovação — presumi-
velmente porque agora ela estava fazendo ruídos de aprova-
ção, enquanto antes havia criticado — e foi varrida até a
calçada por pessoas que tinham perdido suas máscaras
animalescas e eram novamente homens e mulheres.
Esperou obstinadamente por um táxi, observando que mais
de um preferira não parar para ela, a figura maluca na beira
da calçada. Finalmente, um táxi parou, e o motorista disse:
— Mas isso só fica a uns duzentos metros daqui!
— Sim, eu sei que sim. Mas estive doente — explicou ela.
Assim, foi levada até o hotel e atravessou o vestíbulo como
uma criminosa, esperando que ninguém reparasse nela. Mas
é claro que o fizeram, cabeças viravam-se à medida que
passava. Chegou ao quarto, apanhou o espelho de mão — ela
certamente não poderia ter encontrado energias para sentar-
se ereta nem por mais um momento —, caiu na cama e
olhou para o rosto.
Desde aquela manhã, a massa seca acobreada e ondulada de
cabelo tinha ficado pior, e seu rosto era o de uma velha.
Natália Petrovna não teria ido à cena com aquele rosto nem
por um momento. Ela podia ser imaginada sentada diante de
um espelho, num delicioso vestido branco, próprio para a
manhã, passando, com suavidade, creme frio feito de
pepinos — os russos eram muito bons com pepinos — na
carne irritada sob os olhos penetrantes, acuados e
vermelhos, e dizendo: "Estou de pé à beira de um
precipício, salvem-me!" Ou, enquanto a criada desabotoava
as centenas de botõezinhos forrados nas suas costas: "Será
que alguém pôde algum dia ter sido tão infeliz?"
Há muito tempo, uma moça estivera deitada na cama, com
um espelho de mão bem próximo do rosto, e pensando:
"Isto é o que ele vai ver".
O que ele de fato viu, muito pouco tempo depois, foi um
rosto que só podia ser descrito como "travesso" ou "picante",
a despeito dos olhos de uma profundidade castanha que não
poderiam ser de nada exceto os de um cocker spaniel.
Durante anos Kate, que passava a quantidade de tempo
requerida diante de muitos espelhos diferentes, fora capaz
de ver exatamente o que ele estava vendo, quando seu rosto
estava bem perto do dela. Oh, era tudo tão cansativo, tão
humilhante... será que ela havia realmente passado tantos
anos de sua vida — quase que certamente somaria anos! —-
diante de um espelho? Exatamente como todas as mulheres.
Anos gastos em adormecimento, ou transe. Será que uma
mulher o escolhia, ou se permitia ser escolhida por ele,
porque ele admirava aquele rosto ao qual ela dispensara
tantos cuidados, e tocara, e virara desse jeito ou daquele...
Não ficaria surpreendida, não ficaria nem um pouco
surpreendida mesmo! Pois a sua vida inteira, ou desde os
dezesseis anos — sim, a moça amando seu próprio rosto
tinha aquela idade —, havia olhado para espelhos e visto
através do que as outras pessoas a julgariam. E agora o
reflexo se havia enrolado e se atirado para um canto,
deixando atrás de si o rosto de um macaco doente.
Aqueles atores estavam absolutamente certos. Não se
permitiam estar fechados dentro de um conjunto de traços,
um penteado, um jeito de andar ou de falar, não, eles iam
mudando, nunca eram os mesmos. Mas ela, Kate Brown,
esposa de Michael, se permitira ser apenas uma ruiva esguia,
de olhos castanhos e simpáticos, durante trinta anos.
Agora, Kate careteava para o espelho de mão,
experimentando diferentes expressões, como uma atriz...
havia centenas que nunca havia pensado em usar! Estivera
restringindo-se a um assustadoramente pequeno limite delas;
a maioria, é claro, honrosas para ela e agradáveis, ou não-
provocantes para os outros; mas que fazer com o que estava
acontecendo dentro dela naquele momento, quando estava
doente (a pele ardia de novo, uma concha de calor sobre o
lago frio de enjôo), quando fervilhava e se revolvia como
um exército de formigas numa carcaça? Mas ainda tinha
algumas semanas, tinha um longo período de liberdade
diante de si... Quanto tempo? Revirou tudo procurando as
cartas de Michael, que haviam mandado embora todos os
sentimentos, exceto um: a saudade dele, do prazer de estar
com ele, com a família, de estar em sua casa. Naquele
momento, viu que ele escrevera que não estaria de volta
antes do fim de outubro, possivelmente até meados de
novembro... se ela não se importasse... Não aceitaria o con-
vite de estender sua visita se ela preferisse que não.
Concluíra pela sua carta que ela também estava achando o
verão interessante... bem, boa sorte, estava muito satisfeito,
já era mais do que tempo para que ela tivesse um descanso.
Ele a veria no outono se não recebesse uma resposta
imediata. Mas é claro que não havia recebido, porque Kate
não havia compreendido aquela parte da carta dele: agora,
para confirmar, enviou um telegrama para dizer-lhe que
fizesse como lhe aprouvesse.
Tão logo clareou, tomou um banho, pôs um vestido que
dançava em seu corpo, escovou o cabelo para um lado e para
outro, sem conseguir ajeitá-lo, amarrou o cabelo com um
lenço, pediu, mas não conseguiu comer, um farto café ao
estilo europeu, e deixou o hotel sem saber para onde estava
indo.
A conta do hotel havia deixado suas finanças bastante baixas.
Baixas, isto é, para Kate Brown do mundo das conferências,
mas altas para uma mulher comum que tinha algumas
semanas livres, esperando que a sua família voltasse.

O Apartamento de Maureen

Tomou um ônibus e ficou sentada ali até que viu um cintilar
de água — um canal — e a palavra, escarlate sobre um fundo
pintado numa tinta muito branca, que brilhava sob a luz
pesada do sol de setembro: "ristorante". O resto da rua era
tudo Londres, a Londres básica, e ela saltou e viu um quadro
de anúncios ao lado de uma tabacaria. Quando se apro-
ximava, viu que o proprietário da loja, um velho baixinho
de, sobretudo, e um rapaz estavam juntos colocando um
outro anúncio no quadro. O velho levantou o polegar num
gesto que, em alguns países, significa "bom, assim está
ótimo, é aí mesmo", mas na dobra da mão tinha uma tacha,
e a enfiou, apertando com força, no centro da parte superior
do quadrado branco. O rapaz tinha cabelos compridos como
um Jesus Cristo, e os pés descalços. O rosto era doce, infantil
e franco. Depois que o velho voltou para o interior da loja,
ficou olhando para as centenas de quadrados de cartolina
branca, entre os quais agora o seu estava perdido.
O anúncio dizia: "Aluga-se quarto em apartamento particular
até o fim de outubro, cinco libras por semana, cozinha e
banheiro em comum".
Kate perguntou ao rapaz:
— Onde fica o quarto?
— Dobrando a esquina.
— É seu?
Ele sorriu, polidamente, mas com um gesto de assentimento
que deixava implícito um pequeno "O que é que você acha?
É óbvio", um sorriso que estava fazendo uma declaração,
que ela deveria compreender, pois ele o seguiu com:
— Meu?
Tendo assim ficado claro que, como toda a sua geração, ela
pensava em termos de propriedade particular, enquanto ele,
tendo a idade que tinha, era livre; seu sorriso ficou
espontâneo, e ele o seguiu com:
-— Entre outros.
— Se eu alugasse o quarto — disse Kate, usando o tom
irônico e adaptável, que lhe vinha com facilidade depois de
anos de uso com "as crianças" —, ele seria meu, ou eu teria
de dividi-lo?
Diante disso ele se permitiu uma risada, e disse:
— Oh, não, seria seu. Vou ficar fora algum tempo, e a
maioria de nós estará fora.
— Então poderia vê-lo?
Ele a examinou. O que estava vendo, é claro, era uma velha.
O fato de que estava doente, ou estivera, estava sendo
incorporado a "uma velha". Então virou-se para se colocar ao
lado dela, indicando assim que ela era viável, e caminharam
juntos pela calçada à beira do canal. Ele lhe lançava olhares
que ela interpretou como se dizendo: "Mas nós não
queríamos uma velha no apartamento".
— Sou limpa, cuidadosa e sei cuidar de uma casa — disse ela.
Ele riu, de novo, na sua maneira de tornar claro que era
depois de um exame cuidadoso, e disse:
— Não estou grilado com isso. — Depois, traduzindo: — Não
me importo com o que você faça. Mas há uma pessoa no
apartamento que...
— Eu tenho de ser aprovada, é isso?
O apartamento era no andar térreo e bastante escuro, depois
do clarão amarelado de setembro. O rapaz foi na sua frente
por um amplo vestíbulo mobiliado com almofadas e alguns
posters. Havia o cheiro seco de marijuana. Kate o seguiu
pensando que o quarto a ser alugado lhe seria mostrado, mas
foi levada a uma sala grande que tinha janelas de batente,
que se abriam para um patiozinho, cheio de plantas de todas
as espécies. Numa cadeira dura sob o sol, junto das janelas,
estava sentada uma moça. Os pés nus estavam pousados lado
a lado num tapete de palha. Uma cortina de cabelo louro,
espesso, caía-lhe em volta do rosto, ou melhor, sobre o
rosto, de forma que só quando ela levantou a cabeça foi que
Kate viu um rosto moreno, sadio, com olhos azuis
arredondados e cândidos. Não estava fazendo nada. Fumava.
Ela examinou Kate, então olhou para o rapaz.
Ele disse para Kate:
— Não lhe perguntei o seu nome.
— Kate Brown.
— Esta é Kate — disse ele para a moça. Para Kate, disse, com
a formalidade que devia ter vindo de sua educação, que
incluía um pequeno movimento rijo da cabeça, como uma
reverência reduzida: — Esta é Maureen. — Tornando a
virar-se para a moça, disse com o embaraço ingênuo de suas
atitudes recém-adquiridas: — Preguei o anúncio e ela estava
lá e perguntou se podia vir junto.
— Ah! — disse Maureen. Empurrou o cabelo para trás, saltou
da cadeira como se tivesse intenção de fazer alguma coisa,
mas depois se sentou novamente, com a descontração
imediata de um gato. Usava uma saia marrom muito curta e
uma blusa xadrez azul, como a moça que a gente vê numa
fotografia, fazendo anúncio de leite ou de ovos.
Afinal ela sorriu e disse:
— Gostaria de vê-lo?
— Sim — respondeu Kate.
— Você acha que com ela está tudo bem, acha? — per-
guntou o rapaz à moça... namorada dele? Aquilo pareceu
rude à sua formação, e ele até corou um pouco, enquanto
explicava a Kate: — Sabe, eu gostaria de me assegurar de que
Maureen estivesse bem antes de partir.
As pálpebras de Maureen desceram abruptamente; duas
meias-luas nas maçãs do rosto moreno. Kate achou que ela
havia reprimido um sorriso.
— Estou bem, Jerry. Eu lhe disse — observou Maureen.
— Bem, nesse caso eu só vou...
— Sim, vá.
Jerry cumprimentou Kate com a cabeça, lançou um olhar
longo e firme para Maureen, que tinha como objetivo fazê-
la compreender alguma coisa, que Kate não conseguiu
captar, e saiu da sala. E aquela foi a última vez que Kate o
viu.
Maureen refletiu. Talvez se estivesse perguntando se deveria
inquirir a respeito das qualificações de Kate para pagar. Tudo
o que disse foi:
— É o quarto no fim do corredor, à esquerda. É de Jerry, mas
ele vai para a Turquia.
Ela não foi junto com Kate. Ficou sentada, enraizada na sua
cadeira, envolta numa nuvem de fumaça que cheirava a
outros Estados e climas. Os círculos, anéis e ondas azuladas
agitavam-se em torno dela como se estivesse sentada numa
água ensolarada.
O quarto era pequeno e tinha uma cama estreita e um
armário. Era bem mais frio que a parte da frente do
apartamento, que ficava do lado sul. Aquele quarto tinha
uma frieza que se comunicava com o frio que envolvia
permanentemente o estômago de Kate. Mas serviria.
Voltou para onde estava a moça e disse que o quarto servia e
que ficaria com ele até o fim de outubro. Ao se ouvir dizer
isso, percebeu que tinha tomado decisões que a sua parte
consciente ignorava por completo.
Como Maureen nada dissesse a respeito de dinheiro, Kate
pôs cinco notas de uma libra sobre uma almofada vermelha
que estava junto dos pés da moça.
Diante disso Maureen permitiu que um sorriso aparecesse
por trás da cortina de cabelos louros.
— Obrigada — disse ela. — Mas pode ser quando quiser.
— E a chave? — perguntou Kate.
— Ah, sim. Está em algum lugar, acho. Sim, já me lembro.
— Levantou-se com um salto, ficando ereta na perpen-
dicular num só movimento, inclinou-se sem dobrar os
joelhos, num outro movimento rápido, e foi levantando as
almofadas ao acaso. Debaixo de uma delas havia uma chave.
Ela a entregou a Kate. Não tinha se erguido, e então,
cruzando as pernas graciosamente, saltou caindo sentada na
mesma almofada.
— Você é dançarina? — perguntou Kate.
— Não, não sou dançarina. Eu danço. — Estaria franzindo o
cenho, perdida entre as categorias rígidas dos velhos?
A caminho da saída, Kate parou diante de um grande es-
pelho antigo no vestíbulo. Viu uma mulher magra parecida
com um macaco, com um bom vestido amarelo, o cabelo
amarrado num bolo atrás da cabeça. Tirou fora o lenço e o
cabelo ficou onde estava, espigado e espesso. Percebeu que
estava sob o domínio de uma necessidade de fazer alguma
coisa por si mesma, arrumar o cabelo, comprar um vestido
que lhe servisse. Isto era por causa da moça, com sua carne
jovem e saudável e suas roupas limpas. Percebeu também
que aquele impulso tinha algo a ver com a sua filha:
Maureen tinha mais ou menos a mesma idade que Eileen.
Viu que o momento de voltar para sua família iria ser um
momento dramático quer naquela altura já tivesse
recuperado o controle sobre si mesma, em outras palavras,
tivesse voltado à concepção que eles tinham dela, quer
tivesse decidido não o fazer... Certamente não poderia
continuar como estava. Poderia? Que idéia interessante! Mas
a família teria, como se dizia, um ataque. A idéia estava
fazendo com que ela formigasse de maneira agradável,
exatamente como se tivesse engolido um bocado grande
demais de gelo derretido, e a sua boca e a garganta
estivessem sendo paralisadas pelo gelo... Como se sentira no
dia anterior, quando Mary Finchley não a reconhecera, e
como se havia sentido enquanto observava com ironia
Natália Petrovna em suas artimanhas de auto-engodo.
Aquela sensação agradável foi desaparecendo e deixou uma
outra, nem de perto tão agradável. Agora estava novamente
sob o domínio da vaidade. Se ela fosse voltar para casa com a
aparência que tinha agora, tudo que seu marido e os quatro
filhos diriam seria que não parecia ser ela mesma, pois eles
sabiam como ela podia ser. Mas Maureen, aquela moça
sentada na almofada vermelha, sonhando nas nuvens azuis
de odor pungente que giravam, nunca a vira com nenhuma
outra aparência senão aquela de um macaco doente... não
havia dúvida de que estava maluca. Que importância tinha
para a moça, ou para si mesma, a sua aparência? Ou, uma vez
que se falava nisso, o que ela era? Se ela, ou se uma outra
pessoa qualquer, soubesse o que era aquilo... Ela, Kate, tinha
alugado um quarto de Maureen, era tudo. Era uma inversão
clara de uma situação recente para Kate, que, anteriormente
naquele ano, deixara que se hospedasse em sua casa uma
moça que era uma amiga belga do melhor amigo de James: a
moça queria aprender inglês. A coisa com que Kate se havia
importado era que a moça se integrasse no ambiente da
família, inclusive contribuindo positivamente por causa de
seu gênio simpático e bem-humorado, que também era um
pouco esnobe e cheio de nove-horas — sua educação havia
sido muito convencional —, mas não perturbando muito o
ambiente. Isto ela poderia ter feito, apaixonando-se pelo seu
marido... Não que Kate tivesse pensado que seu marido se
teria apaixonado pela moça... aqui Kate se conteve
rispidamente e gritou para si mesma: "Não comece com isso
de novo, lembre-se da governanta Monique, houve uma
confusão dos diabos porque você pensou que Michael
estivesse caído por ela".
Kate terminou a lista de requisitos que tinha para a moça
belga como se estivesse fazendo um glossário: que ela não
deveria apaixonar-se muito por nenhum dos três filhos, a
menos que o filho em questão se apaixonasse por ela da
mesma maneira. Que não deveria ficar grávida, pedindo que
ela, Kate, cuidasse do problema... como Monique, cujo
aborto fora pago pelos Brown, uma vez que o pai do feto,
um jovem francês, conhecido numa aula de inglês, não
tinha dinheiro. Que não deveria tomar drogas, como
Rosalie, uma outra governanta anterior, vinda de Frankfurt...
Isto é, estaria tudo bem se ela fumasse maconha, mas nada
mais forte. Que não deveria ouvir a vitrola alto demais. Que
não deveria... mas de acordo com o seu estado naquele
momento, Kate resumiu tudo: que ela não deveria fazer
nada além de se acomodar confortavelmente a ela, Kate, ao
seu estilo de vida, porque, embora ficasse implícito que Kate
não exigiria quaisquer virtudes especiais para o estilo de vida
como tal, ela também não queria sofrer o aborrecimento de
ser incomodada.
Maureen tinha vindo até o vestíbulo, como a ordenhadora
de uma cantiga de ninar, descalça. Vendo Kate de pé diante
do espelho, na semi-obscuridade, acendeu a luz, e foi
andando silenciosamente, com seu jeito ágil e enérgico, pelo
corredor, até ficar bem atrás de Kate, refletida no mesmo
espelho.
Maureen empurrou para trás o cabelo louro, olhou para si
mesma e depois para Kate. Franziu o cenho. O cenho fran-
zido seria resultado de perplexidade, a necessidade de
compreender a situação?
Maureen sorriu encantadoramente, dentes brancos, lábios
vermelhos, e começou a dançar. Era uma espécie de dança
de saltos e pulos enérgicos. Pôs-se a mirar-se no espelho,
como uma criança que se observa ao fazer uma coisa pela
primeira vez. Resolveu ficar deliciada com a sua dança,
sorriu. Então, atirando a cabeça para trás, levantando o
braço, começou a rodar sem parar, batendo com os pés num
sapateado, até ficar tonta, quando caiu escorregando de
encontro a uma parede, rindo.
Tudo isso fora executado com concentração, quase que um
espetáculo particular. Mas naquele momento ela se levantou,
afastando-se da parede, usando o ombro como apoio, e foi
ficar de pé ao lado de Kate. Kate surpreendeu o sorriso no
próprio rosto; era um sorriso de meia-idade, um pouco
triste, irônico, perspicaz, paciente. Teria sido aquele sorriso
o motivo daquela dança insolente e provocante?
Maureen inclinou-se para a frente e se olhou cuidadosa-
mente por sobre o ombro de Kate. Ela mostrou a língua para
Kate. Aquilo era provocado por ressentimento, por auto-
afirmação. Então, sentindo o mesmo desagrado, pôs a língua
para fora outra vez, mas para si mesma. Depois, com um
falso sorriso alegre para Kate, voltou rapidamente para a sala
ensolarada.
Kate sentiu-se agredida. Não importava como a sua mente
dissesse que aquilo fora simpático, o partilhar de alguma
coisa — a moça viera compartilhar o seu momento no
espelho —, ela o sentia como uma agressão, e isso se devia,
simplesmente, à maravilhosa segurança da juventude da
moça. À sua coragem de fazer o que tinha vontade de fazer.
Sim, era isso, aquilo era o que ela, Kate, havia perdido.
Mas não adiantava continuar de pé ali, naquele grande
vestíbulo cheio de almofadas, todas amontoadas e
desarrumadas, como se alguém tivesse dormido nelas na
noite anterior, simplesmente porque não queria sair e ir para
a rua, para expor a sua fraqueza. E tinha de descansar dentro
de pouco tempo. Devia começar a comer.
Saiu novamente para a rua ensolarada, subindo os degraus de
cimento. Ficou parada sob as árvores grandes que ladeavam
o canal, estava a dois passos do ristorante. Chegara à
conclusão de que deveria estar com fome, ou, pelo menos,
que as exigências das semanas seguintes significavam que
deveria estar alimentada. Mas por que, sem nada para fazer,
sem ter obrigações a cumprir, pensava ela em exigências,
obrigações, tensão? Iria até lá e comeria bem, manteria a
comida no estômago, apreciaria a refeição, se fosse
possível... Foi andando em direção ao ristorante, que tinha
pequenos canteiros ladeando a porta. Através da vidraça da
fachada, podia ver um garçom inclinando-se atenciosamente
para uma mulher mais ou menos da sua idade, que estava
absorvendo a deferência lisonjeira do garçom e sorrindo,
"como uma velha idiota", pensou Kate. Na porta, ficou
pensando que, antes da sua incursão pela elite internacional,
teria ido a um restaurante como aquele em ocasiões
especiais; que teria posto de lado aquele lugar e procurado
um outro mais barato, tão automaticamente como naquele
momento escolhera aquele como sendo o único possível
naquela rua. Agora, enquanto se virava e se afastava dele, o
fazia com um sentimento real de perda. Cem metros
adiante, entrou num restaurante do tipo que se encontra em
todas as ruas de Londres em intervalos de alguns metros.
Estava quase vazio. O movimento da hora do almoço ainda
não tinha começado. Sentou-se sozinha e esperou que a
atendessem. Na sua frente estava o invariável cardápio
britânico. Na outra extremidade da sala, uma garçonete
falava com um cliente, um senhor idoso. Não tinha pressa
de vir atendê-la.
Quando veio, não olhou para Kate, mas anotou o pedido
apressadamente num bloquinho, e voltou para continuar a
conversa com o cliente, antes de gritar o pedido por um
postigo que dava para a cozinha. Pareceu passar muito
tempo até que a comida viesse. Kate continuou sentada,
aparentemente invisível para a garçonete e para os outros
clientes: agora o restaurante estava ficando cheio. Ela tremia
de fome, impaciente, tinha vontade de chorar. A impressão
de que ninguém podia vê-la a fez ter vontade de gritar:
"Olhem, estou aqui, não podem me ver?" Não estava muito
longe do estado em que uma criança pequena é chamada de
manhosa. Foi reprimida pela chegada de uma travessa com
fígado, batatas fritas e repolho com água demais, posta na sua
frente pela garçonete, que ainda não tinha olhado para ela.
Kate não conseguiu comer. Sentia-se como uma criancinha
a quem se mandou sentar num canto e comer a comida,
porque se estava comportando mal, e que então foi
esquecida. Ela estava fora de si com emoções que detinham
qualquer pensamento sensato. Dizendo a si mesma que
estivera doente, e que não tinha culpa, derrubou um copo
de água. Esperava que a garçonete viesse, até que ficasse
zangada com ela, mas a garçonete não percebeu. Kate
levantou-se, atravessou a sala até a garçonete, que agora
conversava com um outro cliente, e disse:
— Sinto muito, mas derramei o meu copo de água. — Sua
voz estava trêmula.
Naquele momento a garçonete olhou para ela o tempo
suficiente para ver que ali estava uma mulher difícil de lidar.
Respondeu:
— Irei até lá daqui a dois minutos, querida. — E saiu para pôr
uma mesa.
Quando veio, lançou um olhar indiferente para a mancha
encharcada na toalha, e disse:
— Se puder dar um jeito, troco a toalha quando tiver acabado
de comer.
E foi embora.
"Que poderia ser mais sensato?", pensou a dona-de-casa em
Kate. Uma toalha com um canto molhado não a feriria. Mas,
depois de um minuto, pediu a conta e percebeu que, quando
ia saindo do restaurante, deu um safanão impaciente na saia,
que podia jurar que nunca havia feito antes. Era como o
torcer de nariz de uma mulher que quer dar a entender:
"Bem, não me importo! Por que é que acha que me importo
que seja assim ou não?"
Meio-dia em Edgware Road. A mais viva das paisagens,
especialmente num dia de verão, especialmente com todo
mundo entrando e saindo de cafés e lanchonetes, onde eram
conhecidos, para almoçar, para tomar uma xícara de chá,
para sentar-se um pouco. Kate foi andando lentamente,
atravessando a rua em direção ao ristorante, e olhou para
dentro, através da musselina fina. Se tivesse estado lá dentro,
com aquele rapaz atencioso inclinando-se para atendê-la,
não teria vontade de chorar, de fazer gestos mesquinhos...
não teria derramado o copo de água!
Bem, tanto tempo naquele hotel, recebendo os cuidados de
Silvia e de Marie, não lhe tinha feito bem algum. Havia sido
mandada de volta à infância, precisava contar com a atenção
lisonjeira de alguém o tempo todo.
Desceu as escadas, saindo do dia ensolarado e frondoso, para
a sombra do apartamento. No chão do vestíbulo, deitado
sobre as almofadas, estava um rapaz, o rosto virado para
baixo, os braços estendidos. Estava dormindo. Maureen não
parecia estar por ali.
Kate foi para o seu quarto, viu que não havia lençóis na
cama, encontrou um armário no vestíbulo onde estavam os
lençóis e as toalhas, tirou o que precisava sem perturbar o
rapaz, que não dormia há um bom tempo, a julgar pelo sono
profundo em que estava imerso, e foi deitar-se. Na cama, fez
uma coisa que normalmente não se permitia fazer. Chorou,
por muito tempo e deliberadamente. Uma válvula de
segurança? Isso também, mas era mais o reconhecimento de
que havia alguma coisa por que chorar. Estava sendo
assaltada por todos os lados, e do seu íntimo também, pela
solidão. Como uma criança pequena chora ao saber que vai
ser mandada embora para um colégio interno, ou que seus
pais vão partir numa longa viagem e vão deixá-la com
estranhos.
Mas enquanto seu corpo ofegava e produzia lágrimas, ela
estava pensando, com bastante frieza, no fato de ter vindo
para ali, para um quarto alugado onde ninguém a conhecia.
Era a primeira vez em sua vida que ficava sozinha e fora de
um casulo de conforto e proteção, o apoio do
reconhecimento de outras pessoas pelo que ela havia
escolhido representar. Mas ali ninguém esperava nada,
ninguém sabia de nada sobre os seus apoios, seu casulo.
Agora recordava com prazer a pequena cena no vestíbulo,
quando Maureen viera até o espelho: Maureen estivera
reagindo diretamente a Kate, ao que Kate era, ao que
Maureen via de Kate — que era um sorriso seco, estranho,
cauteloso.
Acabou de chorar, adormeceu, acordou num quarto estra-
nho, que estava frio, mas tinha um longo raio de sol: desde
aquela manhã, o sol se havia movido de um lado do aparta-
mento para o outro.
Tinha de comprar comida. Agora, as almofadas no vestíbulo
estavam vazias; e não mais viu o rapaz.
Na cozinha, Maureen estava sentada sozinha, comendo,
com uma colher de chá, pudim de abricó com ameixas.
Havia uma fileira de latas de comida de bebê numa
prateleira, todas de sobremesa.
Maureen estava com uma jardineira vermelha enfeitada com
babados e o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Parecia uma
garotinha de dez anos.
— Acho que encontrará tudo que quiser em algum lugar por
aí — disse ela, e levantou-se com um salto, ainda lambendo
a colher. Jogou a lata vazia na lixeira e a colher na pia, onde
caiu fazendo um ruído metálico. Saiu dançando.
Kate puxou para si um carrinho de compras e uma grande
cesta de palha, e estava na porta da rua quando se lembrou
de que não ia fazer compras para um grupo de seis a
dezesseis pessoas, mas apenas para si mesma. Voltou e subiu
a escada, saindo para a rua ensolarada com uma sacola
plástica. A tarde já ia chegando ao fim, e as lojas iam fechar
dentro de pouco tempo. Havia muitas lojas que eram
duplicatas do restaurante em que tinha almoçado, ou
melhor, em que não tinha almoçado. Eram todas pequenas,
e estavam abarrotadas de alimentos enlatados e congelados.
Naquela rua não havia lojas como as que freqüentava
habitualmente no subúrbio de classe média de Blackheath.
Havia blocos de arranha-céus por toda parte e, no meio,
velhas casas cujos habitantes tinham vivido ali suas vidas
inteiras: eram essas as pessoas que se serviam das lojas, que
não vendiam nada que Kate normalmente pensaria em
comprar. Numa delas comprou uma bisnaga de pão muito
branco, duzentos gramas de uma manteiga tingida de
amarelo, um pacote de queijo fundido e um vidro de uma
geléia de morango que, em casa, ela se consideraria
criminosa só de pensar em comprá-la. Percebeu que seus
sentimentos com relação à compra daqueles produtos de
segunda categoria eram realmente muito fortes. O que
estava sentindo seria apropriado para uma situação em que
tivesse acabado de saber que ia ser mandada para uma prisão
por um ano: pois, durante toda a sua vida de casada, uma
grande parte de suas energias fora gasta em classificações de
qualidades como aquela. Também estava pensando que o
povo do vilarejo na Espanha provavelmente nunca vira uma
comida tão ruim como aquela, embora fossem mais pobres
do que qualquer pessoa que por acaso houvesse entrado
naquela loja, que estava cheia do que é conhecido como
gente comum, ou seja, a classe trabalhadora da Inglaterra,
que freqüentava os horríveis restaurantes, aquelas lojas
horríveis... E daí, que é que havia de errado com ela, que
importância tinha, estava a ponto de explodir em lágrimas,
podia muito bem bater o pé e se enfurecer e gritar — por
quê? Enquanto isso milhões de pessoas estavam morrendo
em todas as regiões pobres do mundo, porque nada tinham
que comer, milhões de crianças nunca seriam normais
porque alimentos como os que tinha posto na bonita sacola
plástica, estampada com margaridas laranja e cor-de-rosa,
nunca apareciam no caminho delas... No balcão da máquina
registradora, estava furiosa, com um ressentimento infantil e
com lágrimas nos olhos. Por quê? O homem não tinha
olhado para ela, não tinha sorrido e dito "Sra. Brown, oh,
Kate, oh, Catherine, que prazer em vê-la"... isso era tudo. A
atitude dele, estava sentindo, era fria. Ela estava maluca, não
havia dúvida quanto a isso — assim dizia a sua inteligência,
enquanto os seus sentimentos e emoções eram os de uma
criança pequena.
Foi andando em direção a Marble Arch. Havia uma feira
livre, quase na hora de acabar. Então seria sábado? Nunca
houvera um período em sua vida em que não tivesse sabido
as horas, quanto mais o dia da semana.
Na sua frente havia um balcão de madeira sobre o qual se
encontravam alguns tomates entre pés de alface amassados,
os restos arruinados das verduras frescas expostas naquela
manhã. Um batente de madeira desceu na sua frente. Como
uma porta fechando... um pânico de privação a fez correr,
dando a volta pelo lado da barraca, e quase gritar... mas
estava sorrindo; podia sentir o esticar desesperado e caricato
de seus lábios:
— Quer me ver uns tomates, meio quilo de tomates?
Mostrando desagrado, o homem disse:
— Estou fechando. Já passei da hora.
— Oh, por favor — arquejou ela, e ouviu a sua voz fazendo
daquilo um caso de vida ou morte.
Naquele momento, o homem a olhou, deliberadamente, de
alto a baixo. Então, com a mesma deliberação, ele se virou e
olhou para uma fileira de barracas abertas, onde ainda
estavam expostas desordenadamente algumas frutas e
verduras. Depois ele lhe deu as costas e puxou a coberta
lateral da barraca. Proferiu para os céus o veredicto que ela
merecia, de maneira tão formal quanto os rituais de um
tribunal de justiça:
— Existem mães que realmente os têm.
Kate foi para uma barraca próxima, entrou na fila, e ouviu a
mulher na sua frente — uma mulher como a Kate normal,
ou melhor, a Kate de antigamente, com um carrinho de
compras, carregadores e sacolas de feira, fazendo compras da
semana para uma família grande.
Ela foi embora, as costas curvadas, carregada, uma escrava,
seus ombros dizendo como era satisfatório carregar fardos
para outras pessoas. Uma vez que Kate tinha a atenção
voltada para aquela mulher, perdeu o seu lugar na fila, e
aquele complexo de emoções que faz parte dos rituais de
filas foi posto em movimento. A mulher que tomou seu
lugar era agressiva e virou o rosto na direção de Kate com
uma expressão inflexível e farisaica, enquanto dizia para a
mulher do outro lado:
— Eu não tenho tempo para ficar aqui o dia inteiro, como ela
tem.
Kate comprou, de um vendedor que não olhou para ela, dois
limões e um pimentão verde, tendo suprimido o reflexo de
comprar uma dúzia de limões e um quilo de pimentões
verdes.
Voltou para o apartamento, sabendo que não tinha come-
çado a compreender o que tinha de enfrentar. Não tivera
noção do que fosse, antes daquele dia. Se não estivesse com
pouca vitalidade, se não estivesse doente, não teria tido
aquelas reações excessivamente fortes. É claro que não. Mas
como deveria estar satisfeita por aquilo estar acontecendo —
não fosse assim, cada uma daquelas emoções violentas teria
sido um pequeno impulso, minúsculas erupções de
mesquinharia. Ela poderia facilmente não ter sabido o que
eram, poderia ter sido capaz de fingir que não as sentia.
Mas o que iria fazer com aquele monstro dentro do qual
estava aprisionada, um bebê monstruoso, que tinha que ser
reconfortado, receber sorrisos e atenção quando exigisse: a
mulher que durante anos esteve dizendo, implicitamente, é
claro: "Esqueceu quem eu sou, qual a minha posição nesta
casa?" Natália Petrovna o dizia francamente; o fato de Kate
Brown sentir vergonha de dizê-lo em voz alta mostraria que
tinha havido algum progresso?
Do lado de fora do apartamento, num muro baixo, estava
sentada uma jovem lânguida, com um grande chignon louro,
os olhos pintados de azul, a boca de boneca, pintada de um
rosa vivo. Usava um vestido preto de noite, antigo, de renda
e cetim.
O rosto altivo da jovem desapareceu num largo sorriso, e
Maureen disse:
— Por que está tão magra?
— Porque perdi peso.
— Faz sentido.
— Não para mim... ainda — disse Kate, e desceu a escada até
o apartamento.
E então, como alguém tentando manejar uma máquina com
defeito, talvez um motor a que faltasse óleo, dedicou-se à
tarefa de preparar uma refeição que pudesse comer. Tinha
de comer. Precisava de energias. Tinha de criar energias para
derrotar o monstro que havia engolido o seu âmago.
Fez torradas com pão ordinário, passou manteiga e queijo e
sentou-se na mesa da cozinha para comer. Mas cada
mordida transformou-se numa massa que não conseguia
engolir. Maureen entrou na cozinha, o vestido de renda
batendo nos tornozelos e nos pés nus.
— Esteve doente? — perguntou.
— Um pouco.
Maureen apanhou na prateleira um vidro de comida de
bebê, em que estava escrito "Ameixa e semolina", e,
levantando o vestido, sentou-se na ponta da mesa e
começou a comer. Vendo Kate mastigar, acenou com a mão
para a comida de bebê e disse:
— Não quer tentar isso? Eu nunca como outra coisa.
— Vai ficar com deficiência de vitaminas — disse Kate
automaticamente, e ficou lutando com as lágrimas enquanto
Maureen se balançava com gargalhadas zombeteiras.
Maureen lhe estendeu um vidro de purê de maçã e Kate
conseguiu engolir aquilo.
— Eu gosto de ficar doente — disse Maureen. — É melhor
do que haxixe.
— Haxixe não fez efeito nenhum em mim, quando
experimentei.
— Você não continuou tentando, não é? — disse Maureen.
Naquele momento entrou um rapaz com o cabelo cortado
no estilo Rei Carlos, jeans e uma camisa de seda com
babados. Cumprimentou Kate com um movimento de
cabeça, passou por ela indo até Maureen, tirou-a de cima da
mesa e disse:
— Temos de ir. Começa daqui a cinco minutos.
Maureen calçou um par de sapatos brancos de criança,
atados com cordões, e colocou sobre os ombros nus um xale
espanhol muito bonito, mas cheio de buracos de traça.
Os dois saíram, inclinando a cabeça para Kate, que sentiu
uma violenta onda de angústia, apropriada para a despedida
de pessoas queridas, que partissem para ficar longe por
muitos anos. Estava cheia de um sentimento de perda
porque aquela inconsequência adorável e impiedosa lhe
havia sido tomada, ainda que por uma noite. Seus filhos
eram muito mais formais, nem de perto tão descuidados...
Era culpa sua que fossem assim? Deveria ter...
Ela se conteve, de certo modo suplicando à culpa e à dor
para que se afastassem até que tivesse força para suportá-las.
Kate estendeu os cobertores na cama e se enfiou debaixo
deles. Dormiu. Estava procurando o sonho da foca, mas não
conseguiu encontrá-lo. Outros sonhos a capturaram e a
mantiveram presa, sonhos menores e menos importantes;
no seu sono sentia-se como alguém a poucos metros do
centro de um labirinto, mas, por mais que se virasse e
tentasse, não conseguia alcançá-lo. A foca estava... estava
sendo carregada para o norte por ela cuja tarefa era fazê-lo,
mas isso estava acontecendo numa parte de si mesma
toldada por sonhos semelhantes a um monte de embrulhos
que tinha de equilibrar e segurar.
Ela acordou. A atmosfera fluía, trazendo uma música
multicolorida. Era uma atmosfera pesada, úmida, mas cheia
da memória de irresponsabilidade, de alegria, de gente se
misturando e se movimentando: era a atmosfera daquele
verão. Uma correnteza de noite de sábado de verão zunia
pelo rosto de Kate numa leve obscuridade com sombras de
folhas estampadas vindas dà janela: havia um lampião de rua
na calçada lá fora. Uma das melodias da música vinha do
interior do apartamento.
Kate achou que estava muito melhor: as violências do dia
pareciam ter ido embora. Era porque, afinal, comera algu-
ma coisa... iria comer de novo. Ficou satisfeita ao pensar que
provavelmente tornaria a encontrar Maureen. Vestiu uma
saída de praia amarela, saiu e foi até o vestíbulo. Estava
vazio. Ela se viu no espelho: nada havia a fazer senão rir do
que via. Não tinha importância, seria só Maureen. A porta da
cozinha estava fechada. Abriu-a, sorrindo deparou com uma
cena que a deixou confusa, como uma agressão gratuita.
Cinco jovens estavam em volta da mesa da cozinha, sobre a
qual havia pratos de comida e copos de vinho. Uma moça
morena tocava um violão. Kate percebeu que o sorriso que
ostentava era um hábito daquela outra casa, da sua casa: ao
entrar num aposento onde se encontravam seus filhos, seus
amigos, seria com aquele sorriso, que esperava boas-vindas,
mesmo se as boas-vindas tivessem que ser dentro da
convenção familiar de aborrecimentos, a "conversa de
amor".
"Ohhh, olhe só quem chegou!"
"Imagino que vem nos dizer que está na hora de comer."
"Essa é a minha mãe, é sim! Eu lhe disse, ela até que não é
tão má assim, acho."
Aquilo era de antes, da época da adolescência, uma zombaria
rouca que era bastante amistosa de fato, que era cheia de
dependência, que sabia que ela, mãe, estaria ali, entraria
sempre com aquele sorriso, não diria mais que: "Obrigada
pelo elogio. Sim, o jantar está pronto".
Agora, era polidez adulta, muito mais difícil de aceitar:
"Entre, mamãe. Este é o meu (minha) amigo (a) da Escócia.
Penzance. Espanha. Estados Unidos. Ele (ela) pode passar
uns tempos aqui? Comprei um saco de dormir novo. Não
precisa se incomodar em fazer muito mais comida, por
favor".
Parecia-lhe, naquele momento, que os cinco rostos, um
deles o de Maureen, se estavam virando para ela com o
mesmo movimento lento, estudado para parecer indiferente,
indiferença que, é claro, era fingida, mas necessária para
eles, como uma proteção contra... o quê?
Cinco rostos olhavam fixo para um esqueleto de robe
amarelo-berrante, o cabelo numa massa seca em torno de
um rosto preocupado.
Ela fugiu correndo do que lhe parecia um olhar furioso de
hostilidade, gaguejando:
— Sinto muito...
No quarto, percebeu que o seu sentimento de rejeição total
estava fora dos limites de qualquer coisa de racional; podia
apenas observá-lo. Vestiu apressadamente um dos bonitos
vestidos de verão, ossos dentro de uma tenda, tentou as-
sentar o cabelo e desistiu, então saiu para a rua. Sob os postes
de luz havia grupos de rapazes, reunidos à espera de que
alguma coisa acontecesse: os bares deviam ter acabado de
fechar.
Pensou: "Eu não posso, eu não vou conseguir passar por
eles", pois cada grupo de homens, mesmo um par de garotos
sozinhos, parecia ameaçar. Mas ela se obrigou, um castigo
auto-infligido à necessidade de correr de volta para o
apartamento, puxar os cobertores sobre a cabeça e ficar lá. A
rua parecia larga, interminável, cada objeto nela
personificava o perigo. Ela parecia a si mesma um todo de
superfícies vulneráveis. Foi andando, com os olhos fixos à
sua frente, como faria na Itália ou na Espanha, onde fazem
com que as mulheres se sintam mais vulneráveis e expostas,
isolada como um gramado municipal: "Passagem proibida".
Ninguém prestou a menor atenção. Recebeu olhares
indiferentes, que se desviavam dela rapidamente, à procura
de estímulo.
Mais uma vez, era como se fosse invisível.
Toda a sua superfície, os escuros de seus olhos fixos,
inexpressivos, seu corpo, até os pés bem alinhados, haviam
sido dispostos para receber atenções, como uma garota
adolescente que passou três horas se maquilando e que
arriscou tudo no que aconteceria quando ela se apresentasse
diante das fileiras de olhos penetrantes e interessados. Kate
se sentia leve, flutuando, sem lastro. Sua cabeça estava um
caos, os sentimentos entorpecidos pela perplexidade. Estava
reprimindo impulsos tão distantes de qualquer coisa que
jamais experimentara ou poderia imaginar como sendo seus,
que estava chocada com eles como se estivesse lendo a
respeito deles num jornal: sabia que se não tomasse cuidado
andaria até um daqueles grupos de homens desocupados e
levantaria as saias para se expor: "Aqui, olhem para isso,
estou aqui, não estão vendo? Por que é que não olham para
mim?"
Um barzinho, servindo exatamente a mesma comida que o
restaurante onde estivera para almoçar, ainda estava aberto.
Mas, além do cardápio, havia um encarte mais fino, quase
apologético, que indicava o parentesco grego do lugar.
Ofereciam um arcabouço reduzido do cardápio grego no
exterior: humus taramasalata, shish kebah. Estava cheio de
gente jovem, moradores dos apartamentos dos arranha-céus,
que não queriam ir para a cama ainda, embora os cinemas e
os bares estivessem fechados. Ninguém prestou atenção
nela, embora se tivesse enrijecido para enfrentar críticas.
Agora sabia, tinha de saber finalmente, que durante toda a
sua vida fora sustentada e mantida de pé por um fluido
invisível: a atenção das outras pessoas. Mas o fluido se havia
esgotado. Ela cambaleou, teve de sentar-se apressadamente
numa mesa onde se encontravam um jovem casal e uma
moça — a irmã, ao que parecia, da esposa. A irmã estava de
mau humor por causa de alguma coisa, mas de maneira
divertida. A jovem esposa mostrava-se ansiosa para voltar
para casa e cuidar do seu bebê, porque a vizinha que estava
tomando conta dele devia estar querendo ir dormir. O rapaz
olhava em volta observando o restaurante e comparando a
sua prisão atual com a liberdade anterior.
O grego que serviu o shish kebah estava tentando fazer com
que a garota de dezesseis anos olhasse para ele e, assim, Kate
não perguntou por que não tinham posto nenhum tempero
na comida, não disse que nem todos os paladares ingleses
gostavam de temperos suaves, não sugeriu que podiam
cozinhar para ela como faziam para eles mesmos.
"Especialmente para mim" foram as palavras que encontrou
na ponta da língua.
Comeu depressa e saiu do ambiente barulhento e simpático
que parecia, à medida que a hora de fechar se aproximava,
estar subindo, engrossando, como um líquido em ebulição
que transbordaria por todos os lados para a rua.
Kate estava se congratulando por não haver, quando pagou a
conta, chamado a atenção apresentando um sorriso enfático
que enviava a mensagem: "Estou acostumada a receber
atenção".
No apartamento, a porta da cozinha se encontrava aberta, e
Maureen estava encostada na parede perto da porta, junto de
um rapaz que Kate não tinha visto antes. Maureen viu Kate
e disse:
— Por que não entrou na cozinha naquela hora? Pode fazer,
sempre que quiser. Não deve incomodar-se com o que
estivermos fazendo.
Antes mesmo que a moça tivesse acabado, o ego sentimental
de Kate estava fraco de gratidão.
— Este é Philip — disse Maureen, e, soltando a mão e dando
um pequeno empurrão no rapaz, em direção a Kate: — esta
é Kate. É uma amiga.
Philip obedeceu a Maureen fazendo uma pequena
reverência e sorrindo para Kate, e então saiu pelo vestíbulo
em direção à porta dizendo:
— Então está certo, amanhã.
Havia alguma coisa de admoestador na maneira como falou,
como se fosse um ultimato. Maureen reagiu com um
encolhimento de ombros e um olhar de cansaço.
— Está bem — disse ela. — Prometo. Mas realmente acho
besteira. Mas você é tão exigente com tudo...
— É claro que sou. Eu sei o que quero — disse Philip, e, sem
olhar em volta, saiu e foi embora.
Maureen deu um grande suspiro, querendo que se visse que
um grande fardo lhe fora tirado, e foi para a cozinha. Na
meia hora que se passara desde que Kate estivera ali, a cena
se havia modificado bastante. O grupo de jovens havia
desaparecido, não havia mais pratos, nem copos, nem
comida na mesa. Só a moça do violão ainda continuava ali, o
cabelo e as mãos roçando nas cordas. Ela não tomou
conhecimento da presença de Kate.
Maureen examinava Kate abertamente e com um olhar
crítico. Observou a massa de cabelos ondulados, com a faixa
larga cinzenta, no meio. Olhou para o vestido de Kate,
andando, ou dando pequenos passos rápidos em volta de
Kate para fazê-lo.
— Espere — disse e saiu por um minuto.
Voltou com alguns vestidos, e os colocou, um a um, diante
de Kate, franzindo o cenho. As duas mulheres começaram a
rir. O riso foi crescendo e ficou tão alto que a moça do
violão ergueu o olhar para ver o que era tão engraçado. Ao
ver um vestido fino de babados estendido diante de Kate, ela
sorriu de leve e voltou para a sua música.
Um dos vestidos era de corte reto e simples, verde-escuro, e
Kate tirou o que estava usando e o experimentou.
Maureen ficou encantada ao ver que servia.
— É melhor ficar com esse. Não, use-o até voltar ao seu peso
de novo. Não, falando sério, você fica parecendo tanto uma
pobre-coitada, desengonçada, com esses seus vestidos
metidos a chique. Acho que você deve ser rica.
Grandes ondas de auto-piedade envolveram Kate. Nunca
imaginara que poderia ser chamada de pobre-coitada,
desengonçada. Mas era a gentileza da moça que provocava
lágrimas. Para escondê-las, ela fez chá, ficando de costas
para ela, e, quando voltou à mesa, com a xícara, a moça do
violão saiu.
Maureen, espalhando os seus babados de renda preta que
deixavam separados os saltos dos sapatos brancos de amarrar
com cordão, tinha sentado e olhava para Kate com o cenho
franzido.
— Você usa aliança?
— Sim.
— É divorciada?
— Não.
Kate receou que usando aqueles monossílabos a moça pu-
desse sentir-se rejeitada e retirasse sua simpatia, mas depois
de algum tempo Maureen perguntou:
— Você lamenta ter casado?
Diante disso Kate primeiro deu uma pequena risada, quase
um resmungo, que declarava ter sido provocada por uma
pergunta indiscreta; então surpreendeu-se a si mesma
sentando-se e rindo de verdade. Descontroladamente. Tinha
de parar, depois estava começando a chorar. Enquanto isso,
Maureen apoiou o queixo nos antebraços, apoiados no
espaldar de uma cadeira, usando-a como o portão de um
pasto onde se apoiava para observar cavalos, ou de qualquer
forma uma espécie qualquer de animal, e olhava fixo para
Kate com um olhar firme, obstinado e azul.
Ela o manteve quando Kate parou de rir, de forma que Kate
teve de explicar:
— É engraçado que alguém pergunte isso à gente, sabe?
Quero dizer, depois de se ter sido casada desde garota.
— Não vejo por que seja engraçado — disse Maureen.
— Mas eu tenho filhos. Quatro. O mais moço tem dezenove
anos.
Maureen não modificou nem a atitude nem o olhar firme
durante alguns momentos depois daquilo. Então, levantou-
se e afastou da cabeça o que obviamente considerava um
desapontamento com um encolher de ombros. Depois,
começou a fazer um cigarro no qual havia um pouco de
fumo de cheiro acre, cuidadosamente desfibrado. Saiu
andando com passos largos na direção de onde vinha a
música, sem dizer nem até logo, nem boa-noite.
Kate foi para a cama. Era meio-dia quando acordou. Ficou
deitada, olhando pela janela para o muro branco no qual
estavam presos vasos com plantas e, além do muro, as
árvores, folhagem, tudo sob o sol forte. Não havia o menor
ruído no apartamento. Sem encontrar ninguém, ela tomou
banho e foi para a cozinha. Ninguém estivera ali desde a
noite anterior.
O telefone começou a tocar no vestíbulo. Maureen atendeu,
e então veio e parou na soleira da porta. Onde Kate havia
parado na noite anterior, olhando para os cinco rostos, todos
virados para examiná-la. Agora, Maureen estava ali, olhando
para Kate. Usava pijamas brancos, e o cabelo repartido em
duas tranças, uma sobre cada ombro, amarradas com laços
brancos.
Ela entrou, cortou um pedaço de pão da bisnaga de Kate,
passou geléia e sentou-se para comer.
— Você vai pintar o cabelo de novo?
— Ainda não sei. Tenho quase seis semanas antes de precisar
resolver.
— De que cor era quando você era jovem?
— Dessa cor. — Kate viu uma ponta de um ruivo opaco no
ombro direito. — Não, era vermelho-escuro.
— Você deve ter sido bonita — disse Maureen.
— Obrigada.
— Se eu fosse embora e deixasse você no apartamento,
tomaria conta dele? Quero dizer, não haveria toda essa gente
entrando e saindo, só você.
Diante dessa inversão das condições de vida, Kate não pôde
deixar de rir.
— Então você não toparia? — perguntou Maureen.
— Não. — Com um esforço, Kate se impediu de dizer "mas
se você quiser, é claro que o farei". Disse: — Você
compreende, não é com freqüência que tenho a
oportunidade de estar absolutamente livre, e sem ter de
fazer coisas, cuidar de coisas. Não sei quando terei outra.
— Quanto tempo faz?
— O quê?
— Há quanto tempo você tem essa oportunidade, há quanto
tempo você está livre?
— Essa é a primeira vez na minha vida inteira que tive essa
oportunidade. — Kate podia ouvir o desespero irritado em
sua voz, a afirmação: "Não é possível, não consigo acreditar
em mim mesma".
Maureen lançou-lhe um olhar que parecia hostil e então
Kate percebeu que era porque ela estava com medo.
Maureen levantou-se, acendeu um cigarro — um cigarro
comum — e começou a andar, ou melhor, a sapatear com
leveza pela cozinha, seguindo um esquema invisível que ia
fazendo à medida que prosseguia.
— Nunca? — perguntou afinal.
— Nunca.
— Você se casou cedo?
— Sim.
Uma outra longa tomada de fôlego, de medo, de apreensão:
a moça parou a sua dança de sapateado, que parecia com o
saltitar de um passarinho numa praia, e perguntou:
— Mas você lamenta? Se arrepende? Lamenta?
— Como é que posso responder a isso? Você não vê que não
posso?
— Não. Por que é que não pode?
— Você está pensando em se casar?
— É possível.
Ela continuou com a sua dança... Era como o andar que uma
garotinha, criada com muita severidade, inventa para si
mesma: estava saltando sobre barras invisíveis, barreiras e
riscas invisíveis no chão. Então viu que o seu desvio
cuidadoso dessas riscas estava criando um outro padrão.
Franziu o cenho, irritada, desanimada. Na outra extremidade
do aposento a luz do sol formava um quadrado amarelo no
chão. Começou a andar em volta do quadrado de sol na
ponta dos pés, como um soldado, um, dois, um, dois.
— Se eu fosse embora, iria encontrar-me com Jerry, na
Turquia.
— Para se casar com ele?
— Não. Ele não quer se casar comigo. Mas Philip quer.
— Você quer dizer que quer fugir para junto de Jerry porque
tem medo de se casar com Philip. — Diante disso Maureen
riu, mas continuou com o seu andar rápido nas pontas dos
pés, em volta do quadrado. — E se não tomar cuidado, vou
começar a me sentir culpada por me recusar a cuidar do
apartamento, dessa maneira forçando você a se casar com
Philip.
Maureen riu de novo, e de repente se sentou à mesa.
— Você tem filhas?
— Uma.
— Ela é casada?
— Não.
— Ela quer se casar?
— Às vezes quer e outras vezes não.
— Que é que você deseja para ela?
— Você não vê que não posso responder a isso?
— Não. — Ela gritou a palavra. — Não, não, não, não. Não
vejo por quê. Por que é que você não pode? — E saiu
correndo da cozinha, as tranças esvoaçando.
A Sra. Brown passeou pelo parque a tarde inteira. De início
não se tinha dado conta de que era novamente a Sra. Brown,
mas então percebeu olhares, atenção. Será que era porque
usava o vestido de Maureen, que lhe caía bem, sendo do
tamanho certo, de um verde-escuro levemente brilhante,
porque tinha penteado o cabelo prendendo-o no alto da
cabeça, num penteado que combinava com seus traços
"picantes", porque estava, como se dizia, "em recuperação",
e as linhas de seu corpo e de seu rosto se tinham ajustado?
Um homem veio sentar-se perto dela num banco e a
convidou para jantar.
Foi andando para casa num crepúsculo de domingo de
verão, em meio às possibilidades oferecidas pelos olhos mas-
culinos.
Kate parou diante do grande espelho, olhando para a mulher
esbelta e atraente — a magreza de seu rosto tinha, por assim
dizer, sido absorvida pela impressão global de um encanto
ameno —, e tirou fora o vestido, pôs um daqueles que
ficavam frouxos e caídos, soltou o cabelo e o sacudiu
deixando-o armado, e saiu para andar na rua ao anoitecer. E
mais uma vez era como se fosse invisível.
Entretanto bastava pôr o outro vestido, arrumar o cabelo
daquele jeito, e estaria atraindo olhares e anseios a cada um
de seus passos.
Os sentimentos maternais de uma mulher são despertados,
dizem, por uma certa curva pungente da cabeça do bebê: a
natureza ardilosa fez com que assim fosse. Um ganso
acabado de sair do seu ovo segue uma forma ou som que fica
marcada para todo o sempre como sendo "mãe" — o que
quer que aquela forma ou som tenha por acaso sido num
determinado momento crucial de sua existência.
Um famoso caçador africano descreve a maneira como,
numa caçada, ao manter o contorno do antílope ou do
veado em algum lugar por trás de seus olhos, este molde
pessoal se encaixava nos animais camuflados que eram tão
difíceis de ver em meio aos seus padrões de luz e sombra:
mas daquela maneira ele de fato os via com facilidade.
Uma mulher andando com um vestido largo, num andar
pesado, e o cabelo — isto acima de tudo — não ajustado aos
moldes criados pela moda não está preparada para atrair o
sexo masculino. A mesma mulher, com um vestido cortado
desta ou daquela maneira, caminhando com o seu
termostato interior ligado bem assim... e clique... ela se
encaixa no padrão.
A atenção dos homens é estimulada por sinais que não são
mais complicados do que o que conduz o ganso recém-
nascido; e durante toda a sua vida adulta, toda a sua vida
sexual, digamos, dos doze anos em diante, ela estivera
ajustando-se, contorcendo-se como uma marionete presa
àqueles cordões...
No dia seguinte, Maureen não estava em nenhum lugar que
se visse — será que ela tinha ido para a Turquia? — e Kate
usou o vestido verde-escuro e foi a Sra. Michael Brown
durante o dia inteiro, pois com a máscara, com a charada, a
adaptação de si mesma ao padrão, vinha a velha atitude, a
meiga e adorável Sra. Kate Brown, a quem os vendedores
das lojas atendiam com um sorriso, e os garçons gostavam de
se inclinar com atenção.
O mar de lágrimas dentro de Kate, que estivera ameaçando
transbordar ante a menor sugestão de indiferença, acalmou-
se um pouco, o tom de queixume desapareceu de sua voz, e
ela não derramou copos de água.
No dia seguinte àquele, Kate estava numa quitanda quando
viu diante da caixa registradora, na sua frente, uma mulher
de meia-idade com o cabelo seco e cor de cobre — a tintura
não ficara nada boa —, sapatos de salto alto, saia justa. Estava
parada bem na frente do vendedor, sorrindo e tagarelando e
enfatizando a sua presença, enquanto ele dizia "Sim?" e "É
mesmo?" e "Imagine só!"
E ela continuou, sem parar, a mulher solitária, os olhos
cheios de uma vivacidade forçada, a voz cheia de um
encanto forçado, até que o vendedor se virou,
deliberadamente, para Kate e a fez parar.
O rosto da outra mulher descaiu numa expressão
desesperançada. Ela sorriu pateticamente, enquanto as
lágrimas lhe subiam aos olhos. Levantou o queixo com
esforço e saiu para a rua com um pequeno movimento
impaciente de desdém.
Kate a seguiu. Kate estava seguindo a si mesma lentamente,
ao longo da Edgware Road, observando como ela olhava
longamente para cada rosto que se aproximava, masculino
ou feminino, para ver como estava sendo vista, como ela se
estava encaixando na expectativa que havia sido estabelecida
naquela outra pessoa pelos costumes daquela época, ela via a
sua aparência nas vitrinas de lojas de roupas, examinando
vestidos mais apropriados para Maureen, ou a sua Eileen;
como ela repetidamente cedia ao cansaço, pois os seus saltos
eram terríveis, e então se endireitava com esforço, lançando
olhares para todos os lados, que eram, ao mesmo tempo,
agressivos e suplicantes.
Kate voltou para o apartamento e encontrou Maureen
deitada nas almofadas do vestíbulo, o olhar fixo no teto.
Estava com um vestido comprido de linho vermelho, tipo
camisolão, com botas vermelhas e o cabelo solto. Parecia
uma boneca.
— Pensei que você tivesse ido para se casar — disse Kate.
— Não brinque com isso!
Kate foi para o quarto, tirou o vestido que lhe caía bem,
tornou a pôr um dos seus e soltou o cabelo.
Maureen olhou para ela, de onde estava deitada, e disse:
— Por quê?
— Estou vendo uma coisa. Tenho de compreender uma
coisa.
Uma fumaça azulada subia em círculos — fumaça comum,
não tinha o cheiro forte e seco de fumo. Maureen estava
deitada sob a fumaça, como se estivesse se afogando nela.
Sua interrogação muda fez com que Kate dissesse:
— Quem esteve casada todo esse tempo.
— Compreendo.
— Não, você não compreende. Ou melhor, não creio que
compreenda.
— Você me trata como criança — disse Maureen.
— Como é que posso deixar de fazê-lo? As perguntas que
você me faz... não há nenhum peso atrás delas. Não o peso
da experiência, sabe?
— E isso é tudo? A maturidade é tudo?
— Se é o meu tudo... o que mais posso dizer? Nada tenho a
oferecer. Nunca fiz nada de forma que pudesse dizer... mas
não sei a que você dá valor. Não viajei pelo caminho
dourado para Katmandu, nem fiz trabalho de assistência
social para os velhos, nem escrevi tese. Apenas criei uma
família... — Ela parou por causa da amargura em sua voz.
Sentou-se bruscamente numa cadeira e acrescentou: — Oh,
meu Deus... ouça, você ouviu isso?
Mas Maureen se levantou com um salto, enquanto a fumaça
azul pairava no ar, na altura da cintura, e começou a gritar:
— Você não compreende. Por que não compreende?
— Quando digo o que sinto você diz que a estou tratando
como uma criança.
— Ah, fodam-se todos!
Maureen saiu e foi para a cozinha. Kate retirou-se para seu
quarto. Poucos minutos depois, Maureen entrou sem bater e
encontrou Kate sentada na cadeira de espaldar reto, com o
olhar fixo para a janela, onde, ao longo da metade superior,
pernas de pessoas se moviam como tesouras: um filme tinha
saído do enquadramento e a metade superior de um quadro
— plantas num muro com sol batendo — aparecia com a
metade inferior de um outro, pernas sem troncos.
— Philip quer muito se casar comigo. Ele diz: "Por favor,
case-se comigo. Eu amo você. Vou lhe dar uma casa, um
carro e três filhos".
— Bem?
— Estou surpreendida por você não ter perguntado: "Você o
ama?"
— É isso o que sua mãe diz?
— Ah, a minha mãe! Mas sim, é o que ela diz. E eu também.
— Que é que há de errado com sua mãe?
— Nada.
— Sim, há sim. Que é?
— Ela é um tremendo fracasso. É uma...
— Uma pobre-coitada?
— Sim. Quem quereria ficar assim? Por que é que você não
pode... mas eu não vou falar nisso, seja o que quiser, não me
importo. Mas o que é que você acha?
— Seja o que você quiser. Não posso ajudar você.
— Então de que adianta toda aquela maturidade?
— Nada, acho.
— Ele vem jantar aqui hoje. Você gostaria de conhecê-lo?
— Quanta formalidade.
— Ele é formal. Por princípio.
— Ah, é? — Pois havia mais por trás daquilo.
— Ele é um desses novos... os fascistas, é assim que são
chamados. Compreende?
— Não conheci nenhum ainda. Mas meu filho mais moço foi
a uma reunião e disse que achou que eles estavam sendo
difamados. Ele me pareceu tentado.
— Ah, mas é realmente tentador. A lei e a ordem. Valores.
E, é claro, faz com que a gente se sinta absolutamente
reles... O que poderia ser mais atraente?
— Está bem, gostaria de conhecê-lo.
Maureen saiu dizendo:
— Oito horas.
A mesa da cozinha estava coberta por uma toalha, posta para
três pessoas. Havia uma garrafa de vinho que já estava
aberta.
Kate preocupara-se em apresentar-se com uma aparência
respeitável. Maureen, por outro lado, para se auto-afirmar,
fora às raias do absurdo com um vestido que tinha todos os
padrões e estamparias concebíveis, de listras a xadrez,
misturados. Era uma obra de execução muito habilidosa
aquele vestido, de forma que os olhos não resistiam e eram
sempre atraídos a voltar para ele, para descobrir como tinha
sido feito. Era decotado na frente, um corpete de renda bege
até a cintura, deixando à mostra os seios, cujos bicos tinham
sido pintados como se fossem olhos. O próprio rosto de
Maureen estava invisível atrás de uma máscara de
maquilagem.
Philip vestia o que era, obviamente, o novo uniforme, uma
evolução do estilo antigo. O que era diferente não eram as
roupas, mas a maneira de ele usá-las. Os blue jeans não eram
desbotados, mas novos. A camisa de algodão era azul-
marinho, e lhe caía bem. A jaqueta era de corte militar,
também azul-marinho, com botões e palas pespontadas.
Usava uma gravata preta, estreita. O cabelo não era curto
atrás e dos lados, mas quase. Era o corte francês novamente,
o cabelo num comprimento médio, penteado para a frente a
partir do centro da cabeça, sem repartido. Tinha o efeito de
absolvê-lo de responsabilidade: dava vontade de afagá-lo
com os dedos; fazia com que parecesse um garotinho. Podia-
se presumir que aquele estilo breve seria substituído por algo
mais severo. Mas criava uma impressão geral de asseio, de
leveza, uma agradável disposição para assumir
responsabilidade. Isto, entretanto, não parecia ser atributo
dele, mas sim o resultado de uma atitude de determinação...
a atitude de determinação coletiva. Olhando-se para o rapaz
bem barbeado, seu rosto de repente corado, um pouco
redondo demais, de camponês, via-se logo que seus olhos,
transbordantes de necessidade de se impor, gritavam que sua
maneira de ser era outra. Mas, acima de tudo, era nisso que
estava o aspecto importante, ele tinha a confiança de que ele
era a nova força, a onda que se levantava. Ele sabia que sua
presença era o suficiente para fazer com que todos os Jerry,
os Tom e os Dick e os Harry parecessem gastos; de repente
todos os rapazes de cabelos compridos, os rapazes de roupas
extravagantes, os anarquistas, os dissidentes que tão
recentemente tinham estampada em si a aprovação da
época, todos eles pareceriam fracos, maltrapilhos e como se
fossem transparentes. Como fantasmas, iriam ter de
desaparecer. A presença de Philip seria o suficiente para que
se visse isso.
Bem, exatamente como há tantos anos uma geração inteira
de jovens (não os seus filhos, eram muito pequenos ainda e
tiveram de se ajustar ao padrão à medida que iam crescendo)
havia começado a existir, ao que parecera da noite para o
dia, com vocabulário, atitudes, roupas, idéias políticas e
sociais idênticas, milhões deles, exatamente iguais uns aos
outros; agora era obviamente o momento para uma outra
metamorfose. E será que Philip o era? Não, era provável que
fosse um tipo de transição. Ele seria ultrapassado,
substituído. Nesse ínterim, a atração que ele exercia era
grande: era aquela atração da absoluta autoconfiança. Não
precisava dizer com detalhes que o que oferecia era milhares
de vezes melhor do que a anarquia e a imundície dos outros
jovens que — era assim que se devia vê-los, comparados
com ele — andavam relaxadamente e deslizavam pela sua
vida.
Maureen estava servindo patê com torradas. Tudo muito
correto. Por causa de Philip, os três se estayam comportando
como gente de classe média numa mesa de jantar.
Mas ele não era de classe média. Era filho do dono de uma
gráfica, e tinha até interrompido os estudos. Mas voltara de
novo e fizera os exames e agora estava num emprego que
parecia, tanto quanto se podia ver, seguro. Era funcionário
municipal, e o seu trabalho se relacionava com crianças
abandonadas. Tinha toda a experiência atraente da
dissidência, de ter recusado o que "o sistema" oferecia.
Usava a expressão "o sistema" como a geração anterior à sua
havia feito, mas o via como alguma coisa que precisava ser
reformada, fortalecida, que precisava tornar-se mais
autoritária, não rejeitada. Era, em suma, o mais recente dos
modelos da figura da autoridade, o assistente social, cujo
poder não derivava de "faça isso porque há uma lei que
todos nós concordamos em instituir, somos parte de uma
democracia, não somos?" ou "faça isso porque o partido
assim o ordena", mas sim "faça isso porque você é pobre,
tem fome, não tem educação e está desesperado: você não
tem alternativa".
Ele também pertencia a uma organização chamada A Brigada
Jovem, que por sua vez era filiada a uma outra, formada
apenas muito recentemente, chamada A Liga Britânica de
Ação.
E o que é que aquilo tudo significava?, perguntou Kate.
Enquanto isso Maureen brincava com fatias de torrada,
observando Katé entretida na conversa com Philip. Será que
ela estava tentando descobrir quais eram as suas próprias
reações, ou quais deveriam ser? Quais seriam,
provavelmente, as reações de sua mãe? De qualquer maneira
Maureen se mantinha em segundo plano, deixando que Kate
assumisse o comando. Kate estava de volta à situação de ter
que ser responsável; estava aceitando aquilo: tinha de fazê-
lo.
— Bem, Sra. Brown, não é preciso que eu lhe diga... todo
mundo pode ver a confusão generalizada em que estão todas
as coisas.
— É claro.
— Nós temos de endireitar tudo.
— É claro. Mas como?
— Somos adeptos da responsabilidade. Não de todas essas
censuras, críticas e denúncias que não dão em nada. Não,
nós fazemos as coisas. Vamos fazer com que as coisas sejam
feitas. Não nos incomodamos de ter de sujar as mãos. —
Estava comendo com a mesma rapidez com que falava. Ele
comia e falava, olhando para Kate e para o seu amor por
Maureen, que mordiscava indolentemente uma torrada,
enquanto seus olhos pintados pareciam estar muito distantes
dele, preocupados apenas consigo mesma. — Sim, não
tenho vergonha de dizê-lo, é decência que queremos, já
tivemos mais do que o necessário de denúncias apenas pelo
prazer de fazer denúncias, agora precisamos de regras.
— Para ajudar o quê? — perguntou Maureen de repente.
A voz dela estava trêmula. Sob toda aquela maquilagem,
rendas e babados, ela passava por um violento conflito, Kate
podia senti-lo. Bem, Philip era atraente. Se estivesse no lugar
de Maureen, tendo Jerry e o resto como alternativas, ela
sabia a quem estaria correspondendo... e estaria sentindo
medo da sua reação.
— Bem, olhe só para você, Maureen — disse ele, num tom
franco e amável que soava forçado: a verdade era que ele
estava tentando manter-se calmo e firme dentro do campo
de força de atração que ela criava. Mal podia olhar para ela,
por causa da força de seu amor e do seu ódio. Ficava
lançando olhares temerosos para os seus seios quase nus, e
então disse num tom irritado: — Quanto é que você diria
que gasta por semana? Com roupas, maquilagem, cabelo?
— Não tanto quanto você imagina — disse Maureen,
levantando-se para tirar os pratos, a manteiga, um resto de
patê. — Compro roupas de segunda mão, na maioria das
vezes. E costuro para mim. Não sou nenhuma boba. Não
gasto muito.
— Mas isso é tudo que você faz, é como você gasta o seu
tempo.
— E milhões de pessoas estão passando fome? Milhões de
pessoas estão morrendo enquanto estamos sentados aqui?
— A voz dela deixava transparecer que estava confusa,
enquanto tentava zombar não do significado das palavras,
mas das reivindicações dele para consigo mesmo.
— Sim — disse ele com suavidade, obrigando-se a levantar-
se e olhar para ela, tentando fazer com que o encarasse. Ela
não olhou para ele, suspirou, e se virou levando a bandeja
cheia para a pia.
— Sim — insistiu ele —, isto é tudo que você fará, sempre,
trocar de roupa o dia inteiro e pintar a cara. — Lançou um
outro olhar angustiado para o busto dela e estendeu a mão
para apanhar uma maçã. Ele se lembrou de que ainda não
haviam chegado ao estágio das frutas da refeição, e sentou-se
imóvel, as mãos cerradas sobre a toalha.
— Não — disse ela, depois de uma pausa bastante longa.
— Isso não é verdade. Não é como passo meu tempo. É
apenas como parece.
— Você e todo esse seu grupo — insistiu ele, asperamente e
com dificuldade, porque ela tinha sido positiva, tinha feito
uma afirmação definida.
— Meu grupo? — perguntou ela, rindo.
— Sim — disse ele, dissociando-se da geração anterior com
aquela palavra.
Maureen tirou uma travessa de cozido de carne com ervilhas
do forno e veio andando graciosamente até a mesa.
— Você é tão bestamente seguro de si — reclamou.
— Sim, de certa maneira sou. Não estou dizendo que nós
temos todas as respostas.
— Este seu "nós"... — disse Kate.
— Estamos recebendo um bocado de apoio.
— Isso não é um argumento por si só.
Ele não deu atenção ao seu comentário.
— O que Kate está dizendo — disse Maureen, tomando a
iniciativa — é que o que você está afirmando não é nada de
novo. E isso na melhor das perspectivas.
— Sim, na melhor das perspectivas — disse Kate.
Ele olhou de uma para a outra, piscando um pouco.
Exatamente como quando a última geração tomara posição
como um conjunto num palco, as vozes e a maneira de ver
idênticas, eles não se viam como uma repetição da geração
anterior — não em termos de aparência ou de crenças, mas
na conformidade delas umas para com as outras — o mesmo
ocorria agora com Philip: ele se via como algo de novo,
recém-inventado pela história.
— Eles nos chamam de "fascistas" — disse Philip de repente.
Estava irritado, ressentido. Toda a sua autoconfiança havia
desaparecido naquele momento. — Bem, pauladas e pe-
dradas nos podem machucar, mas palavras não.
— Sim, mas o que é que vocês vão fazer? — disse Kate. —
Você não diz.
— Não, ele nunca diz — reclamou Maureen.
— A primeira coisa é nos reunirmos, para então chegarmos a
um acordo quanto ao que deve ser feito.
— Você fala como se fosse fácil. Não será.
— Sim, absolutamente fácil — disse ele, usando uma
arrogância que fez Maureen suspirar de novo. — Primeiro,
temos de concordar a respeito de uma única coisa muito
simples: de que tudo está numa terrível confusão,
começando a fugir do controle. E, então, endireitar as coisas.
Não pode haver muita discussão quanto a qual seja a causa da
confusão, pois não tem havido regras e padrões há muito
tempo. Precisamos voltar para os antigos valores. Isto é
tudo. E eliminar o que apodreceu.
— Eu — murmurou Maureen, servindo o cozido de carne
com ervilhas nas tigelas com uma concha. Ela apoiou o
queixo numa das mãos enquanto o fazia, os longos cílios
vermelhos sobre as maçãs do rosto de um rosa-vibrante.
Estava, por assim dizer, afastando-se aos poucos, até sair por
completo do seu papel de anfitrioa correta, cedendo ao peso
de tudo.
— Sim — disse Philip. — Como você está agora, sim.
— Então por que você quer casar-se comigo?
Ele enrubesceu violentamente, a despeito de si mesmo,
olhou para Maureen com uma fascinação cheia de
ressentimento,
lançou um olhar suplicante para Kate: ele a via in loco
parentis . Controlou-se com esforço, e disse, corajosamente,
pois obviamente era-lhe difícil prosseguir:
— Eu não quero me casar com o que você é agora. Mas
posso ver o que você é realmente. Posso mesmo. Você não
é o que deliberadamente aparenta ser. Você não é apenas
uma tola, mimada... — Começou a comer apressadamente o
cozido de carne com ervilhas, esquecendo-se das boas
maneiras, agora. Todos os três haviam abandonado o
formalismo do início da refeição. Estavam perturbados.
— Esse negócio de se livrar do que apodreceu — disse Kate.
— Sim — concordou Maureen.
Ele disse com firmeza, pela primeira vez na história:
— Não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos.
Acabaram de comer em silêncio.
Maureen ainda conservava o queixo na mão enquanto
comia. Ela estava irritando tanto Kate quanto Philip. A moça
se mantinha deliberadamente distante, como se nada fosse
da sua conta. E Kate se sentia como uma anfitrioa: ela devia
estar sustentando a conversa, pondo Philip à vontade,
restabelecendo um tom de formalidade por força da ocasião.
Ela reprimiu e ignorou tudo isso, e comeu em silêncio.
Afinal Philip fez uma tentativa, dizendo:
— É uma questão de organização, de organizar as coisas da
maneira certa.
As mulheres nada disseram.
— É preciso que se assuma o controle das coisas... que não se
permita que sigam de mal a pior — insistiu ele.
O suspiro de Maureen não foi deliberado: fez com que
Philip se calasse.
Kate estava pensando que provavelmente um, ou até mais
que um, de seus filhos iria aderir a essa Brigada Jovem ou
coisa parecida. Quem, Tim? Não, ele não era material para
organizações. Por que tinha tanta certeza? As pessoas
mudam, podem tornar-se qualquer coisa sob pressão.
Stephen? Mas certamente alguém que achava que tudo
estava tão podre e corrupto estaria a salvo de tomar posições
nesta ou naquela
plataforma, não? Talvez. James? Fora de cogitações — ele era
socialista demais, um idealista. Bem, já havia acontecido
antes. Eileen? Ela queria casar-se mais do que qualquer outra
coisa: era assim que se via o futuro dela.
Mas pensar assim era debilitar insidiosamente, era
degradante. Cada vez mais as atitudes políticas pareciam o
comportamento de marionetes, ou pequenos brinquedos de
corda. Dava-se a corda toda e continuavam a fazer seus
pequenos gestos enquanto estavam sendo atirados para lá e
para cá, e despedaçados em todas as direções.
Entretanto os Brown eram politicamente conscientes, como
todas as pessoas iguais a eles. Politicamente conscientes
como seus pais tinham sido religiosos. Durante toda a sua
vida adulta, desde a guerra que os formara, estiveram no
controle, mantendo-se firmes em termos de respeito
próprio, com palavras como liberdade, direito, democracia.
Eram todos socialistas em graus variados, ou liberais. Quem
ela conhecia que não o fosse? Entretanto, a verdade era que
estava pensando, e sabia que Michael pensava, cada vez
mais, que tudo aquilo era besteira. Mas não podiam suportar
esse pensamento.
Sua reação violenta a Philip... aquilo era medo. Mas
provavelmente todas as atitudes dele acabariam por definir
um comportamento de marionete, tal como o de todo o
resto. Suas brigadas e ligas não seriam grande coisa: apenas
palavras!
Pondo de lado as palavras, o que era mesmo que Michael lhe
oferecera quando se casaram? Isto! Não, é claro que ele
nunca teria usado palavras como decência, responsabilidade,
organização — ele teria ficado constrangido demais.
Expressões como aquelas tinham, naquela época, traços do
que a guerra recentemente acabada lutara para exterminar
para sempre. Não teriam, naquela ocasião, o som de belas
verdades recém-inventadas, que supunha deviam ter para os
jovens, depois de uma década ou coisa assim do que aquele
rapaz chamava de "anarquia, licenciosidade e comodismo".
Mas a vida que tivera com Michael fora, na realidade, aquela
típica vida ordenada e "responsável" de classe média em
qualquer lugar, obediente às necessidades do trabalho e da
família. Exatamente aquilo em que este rapaz acreditava e
que queria que Maureen partilhasse com ele. Assim, que
importância tinham os slogans? Exceto que nem ela, nem o
seu Michael, nem ninguém que eles conheciam, se
pensassem bem no assunto, teria falado ou pensado em "se
livrar do que ficou podre". Bem, aqui estava de novo, as
coisas novamente haviam completado o círculo, sempre
acontecia.
— Philip — disse ela —, quando você fala em "se livrar do
que apodreceu", isto não lhe recorda um refrão muito
antigo? Já não ouviu isso antes em algum lugar?
— Bem, tudo já foi dito antes — concordou ele.
Entretanto havia uma expressão de culpa em seu rosto.
Ocorreu-lhe que talvez aquela noite tivesse sido a primeira
vez em que ele pensara daquela maneira, transformando o
pensamento em palavras: mas havia saído, ele tinha ouvido
o que estivera pensando, talvez sem que soubesse. E soava
bem, soava muito bem! Agora seria parte do seu novo
programa, o manifesto da Brigada Jovem, ou o que quer que
fosse.
— Você é um dos líderes desse seu movimento?
— Creio que se poderia dizer que sim. Entre outros. Eu não o
comecei. Mas as pessoas que o começaram eram... — parou,
lembrando-se de que eram pessoas de fora.
— Eram um bando de liberais tolos e fracos, mas agora você
está botando um bocado de coragem de verdade neles —
disse ela. — Pode-se tomar como certo — continuou Kate,
com doçura — que isto foi o que aconteceu. E acontecerá.
Ela quase disse: "Agora é sua vez". Ocorreu-lhe que a sua
fúria de revolta contra ele deveria ser dirigida contra a
história, não contra um jovem mais ou menos da idade de
seu segundo filho. Tentou sufocar a raiva; além disso, de que
adiantava? O que estava sentindo era medo, é claro.
— Acho que vou ser uma das pessoas que vocês terão de
eliminar.
— Oh, não — disse ele chocado. — A senhora me com-
preendeu mal. Não são pessoas que terão de ser eliminadas.
É a maneira de as pessoas pensarem que tem de mudar. Tem
mesmo. Isso tinha de acontecer. Há todo tipo de coisas que
são possíveis agora. Por exemplo, pesquisas recentes dizem
que podemos modificar o comportamento...
comportamento antisocial, é claro, apenas o que é perigoso
para as outras pessoas, com certas drogas. É claro que isto
seria um pouco complicado, mas há possibilidades que não
havia antes.
Maureen levantou-se, tirou os pratos, trouxe uma travessa de
queijo numa das mãos, uma bisnaga na outra. Largou
pesadamente a travessa com o queijo e deixou a bisnaga cair
sobre a mesa de um altura de mais ou menos meio metro.
Então sentou-se, reclinada bem para trás na cadeira, as
pernas abertas sob o vestido fantasmagórico, fincou os saltos
no chão, como se fossem de botas — mas eram sapatos de
noite, de saltos altos que ficaram curvados —, cruzou os
braços sobre o peito, e olhou fixo para a extremidade da
cozinha.
Philip corou novamente, começou a dizer alguma coisa que
pareceu ser o início de um discurso ou de uma declaração,
então olhou rapidamente para Kate, pedindo ajuda. Ela se
recusava a dar, baixou os olhos.
Philip levantou-se. Era visível que tentava controlar alguma
coisa no seu íntimo.
Um momento depois, havia conseguido. No tom leve e
bem-humorado que provavelmente fora parte da sua atitude
anterior à sua recente reencarnação como salvador da nação,
disse:
— Você não me dá uma oportunidade, Maureen, não é? —
Ele se colocou atrás da moça e pôs as mãos sobre os ombros
dela. Kate viu como ela se retraiu um pouco, depois cedeu,
ficando tensa. Oh, sim, Maureen se sentia muito atraída por
ele, muito. Quer gostasse, quer não gostasse.
— Eu vou ser um bom marido — declarou ele, já confiante
de novo, rindo dela, de si mesmo. — Eu amo você. Só Deus
sabe por quê! Você seria louca se não se casasse comigo.
Nunca vai encontrar outro como eu.
— Nunca terei um momento de tédio — disse Maureen
ressentida, mas achando graça ao mesmo tempo.
— Não. E não estou desempregado. Nem é provável que
venha a ficar. Isto certamente é alguma coisa, não é?
Ele estava brincando, mas falou com orgulho verdadeiro, e
não tinha vergonha disso: uma revolução havia sido
completada!
— Estive procurando isso a minha vida inteira — disse
Maureen.
Mas, no entanto, ela riu. Ele se inclinou sobre ela olhando
para o seu rosto cor de pôr-do-sol e, além dele, para os seios
ornamentados.
Ela não se moveu.
— Vou embora, se você quiser — disse ele, novamente
irritado. Como ela não respondesse, ele acrescentou: —
Então está bem.
— Não — disse Maureen. — Não.
Sem olhar para Kate, ela se levantou, e os dois saíram juntos
em direção ao quarto dela, "boa noite", "boa noite",
enquanto iam.
Era meia-noite. Kate foi andando devagar até Marble Arch ,e
depois voltou, recebendo olhares, convites e cumprimentos
sussurrados, os olhares de ódio torturante que o sexo frágil
recebe dos seus prisioneiros. Estava tão preeminente como
uma cadela no cio naquela hora, naquela rua. E, durante
todo o caminho de ida e de volta, pensou que com o seu
outro disfarce ninguém a teria visto, teria sido literalmente
invisível, e no entanto, no íntimo, a maneira como se sentia
não teria sido nada diferente, ela era a mesma, a despeito das
máscaras. Teria passado por dúzias de homens de família
sérios, rapazes respeitáveis, bons pais, avôs, irmãos e
maridos, teria caminhado quilômetros pelas calçadas de
Londres e nunca teria sabido que o sexo era uma mercadoria
muito comercializada. Depois de uma certa idade e
apresentada de uma certa maneira, uma mulher tem a
impressão de que as ruas foram trocadas por uma varinha
mágica: para onde é que foram todos os caçadores?
Magicamente levados à respeitabilidade, todos eles.
Que monte de besteira, que grande mentira era aquilo tudo,
que incrível desperdício de tempo.
Estava tudo às escuras no apartamento, quando voltou. No
quarto que durante o dia era cheio de luz, trazendo o canto
de passarinhos e o cheiro de grama dos muitos quintais
daquela rua agradável, Maureen estava deitada nos braços de
Philip. Estava deitada num casulo de doce ternura. Estava
deitada, sentindo-se segura e embalada. Estava deitada entre
braços que mantinham a distância qualquer ameaça. Entre
aqueles braços, Maureen estava deitada. Dormindo? É claro,
é claro: lembra-se do sono cálido, seguro e doce que é o
sonho de voar quando se é jovem e solitária, que é a
realização de todas as suas fantasias de um só momento?
No dia seguinte Kate acordou tarde. Havia um bilhete de
Maureen sobre a mesa da cozinha: "Fomos para a costa para
passar dois ou três dias. Até a volta. Beijos de Maureen".
Kate notou que a palavrinha convencional "beijos" disparou
nela um cálido fluxo de emoções. Rasgou o bilhete e disse:
"Que vá à merda!", usando a palavra que seus filhos usavam,
e Maureen usava, mas que ela nunca tinha usado. Apoderou-
se dela, sentindo que era um direito seu: "Que grande
mentira! Que porcaria de jogo infame e estúpido! Que
monte de merda!"
Usar aquela palavra era como entrar num território proibido
— auto-proibido, autocensura, até mesmo uma forma de
tato, como o fato de não ter ido para os Estados Unidos na
mesma ocasião em que sua filha fora, pois talvez estragasse
as coisas para ela. "Foda" foi uma palavra assim. Podia
lembrar-se de discussões com seus contemporâneos a
respeito de linguagem permissiva. Naquela ocasião,
"maldito", "infame", diziam, houve época em que eram
palavras bastante violentas... Mas "foda" eles não ousavam,
não conseguiam obrigar-se a dizê-lo: pois só para começar
era denegridor do sexo, e portanto deplorável. Numa
determinada época havia sentido e pensado assim: mas logo
"foda" vinha às suas línguas com tanta facilidade quanto
"maldito" ou "infame". Mas não "merda", não, ela se sentia
com relação àquela palavra como outrora a respeito de
"foda".
Todos os seus filhos diziam "merda" como conjugavam um
verbo, em todas as frases, como o operário dizia "foda",
"fodendo", "fodido".
Naquele momento dissera "merda" sem saber que iria dizê-
lo.
Chega de palavras!
Saiu para fazer compras com as roupas velhas, o cabelo solto,
andou de uma ponta à outra pela feira e, enquanto fazia isso,
observou a Sra. Michael Brown, andando — graciosamente,
era a palavra — para cima e para baixo pelas lojas e ruas do
seu bairro, enquanto todo mundo sorria, e cumprimentava e
reconhecia, e ela sorria, gozava o carinho e se ia inflando
sutilmente e ficando feliz por causa de toda a atenção que
lhe era dada, a atraente Sra. Brown, que tinha vivido tanto
tempo na Byron Park Road e que tinha comprado — e pago
— tantas centenas de libras de comida e verduras de todos
aqueles vendedores carinhosos e simpáticos, a Sra. Brown, a
mãe de tantos consumidores de comida, viagens, livros e
equipamentos esportivos e...
Estava de fato sozinha no apartamento. Vários jovens vie-
ram perguntar por Maureen. Uma noite, uma moça mal-
humorada dormiu nas almofadas no vestíbulo, exigindo que
a deixasse entrar dizendo que era seu direito — ela "sempre"
tinha dormido ali —, e se recusou a dizer bom-dia ou adeus
a Kate, apenas olhou para ela como se somente a visse, com
uma indiferença decorrente de total desagrado. Desapareceu
sem dizer uma palavra.
Kate percebeu que não se importava de que não gostassem
dela, e no entanto, há uma semana, poderia facilmente ter
chorado.
Voltou a alimentar-se bem. O ter-se entregado à doença já
parecia coisa do passado. Estava ficando irrequieta. Começou
a fazer coisas no apartamento, arear a pia, limpar um
armário. Ao se apanhar fazendo isso, acabou o que havia
começado — seu treinamento era forte demais para permitir
que deixasse por terminar — e então se conteve para não
passar o aspirador no chão. Se ia fazer tudo aquilo, podia
muito bem voltar para casa.
Quem iria voltar para casa? Mas ela ainda não tinha de tomar
decisões. Ainda faltava um mês para que chegasse o fim de
outubro.
Recebeu uma carta de Maureen. Kate a leu com desprezo
fatalista: Oh, bem, de que adianta? O que é que se pode
esperar? A carta era irônica, resignada e cheia de piadinhas.
Ela dizia que tinha "mais ou menos" decidido casar-se com
Philip. "Afinal..." "...o que mais havia a fazer..." "...quem
diria que ela, Maureen..." "Bem, creio que não há meios de
resistir..."
Kate jogou a carta na lata do lixo, saiu andando pela rua sem
se lembrar de verificar qual das suas máscaras temporárias
estava usando — estava respeitável; tomou um ônibus, foi
até a Alimentação Mundial, e encontrou cartas para a Sra.
Brown.
Voltou para o apartamento antes de abri-las.
Seu marido sentia muito a sua falta, mas ainda assim estava
se divertindo muito. Estava pensando em fazer a mesma
coisa no ano seguinte. Ela também devia vir junto, "que tal,
querida?" Estaria de volta uma semana, ou coisa assim, antes
do planejado. Se a casa ainda estivesse alugada — não conse-
guia lembrar-se da data exata em que voltaria a ser deles —,
arranjaria uma cama no hospital por alguns dias.
Kate sabia até em que minuto a casa voltaria a ser deles.
Stephen. A Argélia era maravilhosa. O governo era uma
merda. Estaria de volta na época prevista.
Eileen. Os Estados Unidos eram incríveis. Tudo era uma
confusão, mas era assim em todos os lugares, não era?
James. O Sudão era fantástico. As pessoas na Grã-Bretanha
não tinham idéia do que se passava no resto do mundo, a
retração e a limitação de compreensão não bastavam para
descrevê-lo, estaria de volta dentro em breve.
Tim. Tinha apanhado uma espécie de vírus qualquer, não
sabia o que era. Tinha estado bastante doente, mas não
escrevera para dizê-lo antes porque não queria estragar as
férias dos outros, mas voltaria para casa três semanas antes
do previsto e, como lhe haviam recomendado repouso,
achava que seria melhor se...
A Sra. Brown ressurgiu das cinzas, a mão estendida para o
telefone. Telefonou para casa e falou com a Sra. Enders, que
disse que era engraçado a Sra. Brown ter telefonado bem
naquele momento, em que ela estava pensando que, de fato,
lhes seria conveniente voltar antes para os Estados Unidos.
Kate poderia tomar posse da sua casa dentro de três dias.
Ficou parada junto do telefone, sua mente girando nos
encaixes de rotina. Precisava enviar telegramas para várias
pessoas, e então telefonar para a loja que entregava as
verduras... Não, primeiro era melhor chamar a companhia
de limpeza para arrumar a bagunça que os Enders com
certeza deixariam, e então fazer a encomenda das verduras.
Seria uma medida sensata se... ela sabia que estava sorrindo,
que cada movimento que fazia era cheio de energia,
convicção, decisão. Seria melhor se Tim ficasse no quarto de
hóspedes, no segundo andar, onde batia sol o dia inteiro;
pela carta dele parecia estar bastante deprimido, e ele
precisaria de um ambiente alegre.
Pegou o telefone.
— É da Companhia de Limpeza Imediata? — começou e viu
que Maureen estava na porta, olhando para ela.
Philip estava atrás de Maureen, com as mãos na cintura dela,
como se a estivesse exibindo para Kate. Exibindo alguma
coisa que tivesse criado? Maureen estava diferente. A
fantasia tinha desaparecido da sua aparência. Usava um
conjunto de saia e blusa bem-comportado e o cabelo estava
preso em tranças nos lados da cabeça.
Kate lhes lançou um sorriso, querendo dizer "estou ocupada,
mais tarde", e continuou com os telefonemas. Entraram na
cozinha e se sentaram. Em silêncio. Estavam observando
Kate. Ou melhor, Maureen estava; Philip observava
Maureen por causa da intensidade de sua preocupação com
Kate.
Kate, porém, estava por demais envolvida na sua organi-
zação habilidosa para se lembrar de que Maureen e Philip
estavam ali. Fez um pouco de chá para tomar uma xícara,
num intervalo, e se virou para lhes oferecer o bule, só então
notando que não mais se encontravam ali, mas no quarto.
Estavam brigando. Enquanto telefonava para Mary Finchley
para pedir-lhe que avisasse o limpador de janelas, que
trabalhava para as duas, de que seria necessária uma visita
especial, virou-se e viu Maureen, de olhos vermelhos, o
rosto inchado, sentada à mesa. Estava olhando fixamente
para ela.
— Não chore! — disse de maneira despreocupada e viu o
rosto da moça contrair-se numa expressão de ódio.
— Não fale assim comigo — disse Maureen, e Kate ficou
quase chocada.
Não exatamente: ainda estava nos pináculos do prazer diante
de suas capacidades, que vinham sendo usadas, sentia, há
décadas, não semanas. Mas ficou olhando para Maureen,
enquanto ouvia o telefone tocar em casa de Mary. Mary
tinha saído. Kate desligou o telefone, e viu que o rosto de
Maureen tinha ficado triste com a intensidade de qualquer
que fosse o infortúnio que tivesse sofrido. Era o rosto de
uma garotinha, e olhava para Kate com medo.
— Que é que há de errado? — perguntou Kate e, quando
ouviu sua própria voz, compreendeu que havia nela tudo
que não tinha havido quando dissera mecanicamente: "Não
chore!"
Os membros de Kate começavam a compreender que ti-
nham estado com alguma espécie de febre, que agora estava
cedendo. Já tinham perdido o prazer que encontravam em
tomar decisões. De repente Kate se sentiu cansada, e
compreendeu que estivera, durante os últimos minutos, um
pouco louca. Olhou para Maureen. Maureen olhava para ela.
— Mas o que é que há de errado, Maureen?
— Acabei de dizer a Philip que não vou me casar com ele —
disse Maureen. Naquilo havia tanto de acusação que Kate
soube que tudo o que tinha organizado com o objetivo de
voltar para casa teria de ser desfeito. Ela se sentou na mesa
da cozinha.
— Por quê?
— Eu faria qualquer coisa. Preferiria viver sozinha para
sempre a me transformar naquilo.
Kate, em silêncio, naquele momento olhou para aquilo, para
o seu eu de alguns minutos antes.
— É minha culpa, sei que é — disse ela tentando fazer uma
acusação seca, mas zombeteira, mas não ia conseguir escapar
impune.
Maureen retorquiu:
— Horrível. Horroroso. Horrível. Você não tem idéia...
será que não vê? Se ao menos você se pudesse ver. — Ela
baixou a cabeça entre os braços e começou a chorar.
— Pode ser que seja assim, mas você não estava feliz com a
idéia de se casar com Philip, e alguma coisa a teria feito
mudar de idéia, se eu não o tivesse feito — disse Kate.
Maureen fez um pequeno movimento com a cabeça que
significava "Não é isto o que importa". Finalmente,
conseguiu dizer:
— Mudar de idéia com relação a me casar com qualquer
pessoa. — E continuou chorando. Alto.
Kate sentou-se e conservou-se em silêncio. Estava pensando
que, de fato, empreendera uma longa jornada durante os
últimos meses. Antes disso, não teria podido ficar sentada
em silêncio, enquanto uma moça da idade de sua filha
chorava com desespero por sua causa, por causa do poder de
Kate de tornar triste e escuro o seu futuro. Kate, na outra
extremidade do que, de repente, sentia como sendo uma
longa jornada interior, teria sido "sensata", teria feito
comentários equilibrados de qualquer espécie, teria tentado
consolar, porque ainda teria acreditado que o consolo podia
ser dado. Sim, era aí que havia mudado. Observou:
— O ponto em que acho que você pode estar errada é que
você parece estar pensando que, se decidir não se tornar
uma determinada coisa, a outra coisa que você se tornará
terá de ser melhor.
Maureen concordou movendo a cabeça, sem levantá-la. Mas
parou de chorar e, depois de algum tempo, se endireitou,
dizendo:
— Apesar de tudo, quando eu tinha uns dez anos, dava uma
olhadela para aquilo e dizia que faria qualquer coisa. Preferia
morrer a ser aquilo. É horrível.
— Foi nisso que eu me tornei uma ótima especialista.
— O dia inteiro, ocupada, ocupada, ocupada... com quê?
Kate disse com secura:
— Em criar e educar você.
— Ah, não, não faça isso, não atire a culpa em cima de mim
— gritou ela... para a sua mãe, obviamente.
— Você está me dizendo isso porque nunca pôde dizê-lo a
sua mãe. — Ela riu, e acrescentou: — Provavelmente, neste
momento, em algum lugar nos Estados Unidos, Eileen está
gritando com alguma pobre mulher porque nunca gritou
comigo. Ela apenas...
— O quê?
— Ficou emburrada. Resmungou. Quebrou pratos. Bateu
portas. Fingiu que estava grávida, de maneira que a casa
inteira ficou em suspense durante semanas... todo esse tipo
de coisas. Você sabe.
— Você está enganada. Eu disse tudo isso. Eu disse centenas
de vezes. Mas aquele bando, eles são impenetráveis. O que
eles são é o que têm de ser. E o que eles são está certo. Não
consigo imaginar minha mãe, nem por um minuto, parando
para se perguntar se poderia estar errada. Toda a sua vida de
merda, sem fazer nada, se preocupando e se preocupando e
se preocupando com detalhes, detalhes.
— Em criar você e não fazer disso uma tarefa malfeita —
insistiu Kate.
— Oh, não, eu já disse. Não, isso não me convence.
— De qualquer maneira — Kate se sentia agradavelmente
carregada por ondas de raiva —, não vou aceitar o peso da
responsabilidade pelo seu rompimento com Philip.
— Quem disse que você é responsável? — gritou Maureen.
— Quem? Eu não. Por que tem de ser sua a responsabili-
dade? Por quê? Por que tem de ser, sempre? Não serei como
você... é minha responsabilidade dizer que não. Não serei
como minha mãe. Vocês são maníacas. São loucas.
— Sim — disse Kate. — Eu sei disso. E então você não será.
Muito boa sorte para você. E em vez disso o que é que você
vai ser?
As lágrimas voltaram à voz da moça e ela ficou quieta
tentando afastá-las.
— Que é que vamos fazer? O quê? O que é importante é que
eu acho que amo Philip. — Kate devia ter estado olhando
para alguma coisa de que não se dera conta, pois Maureen
insistiu: — Sim. Não é a primeira vez que amo alguém. Já
estive apaixonada antes. É isso mesmo. Amor. É por isso que
as pessoas se casam. Estive apaixonada antes e sei. Também
não quis casar-me com ele. Não vou fazer parte daquele
bando.
— Qual? — perguntou Kate, tendo uma boa noção do que
era.
Para começar, o apartamento: Maureen pagava o aluguel, e
Maureen não trabalhava para ganhar dinheiro. E tinha
aquela confiança descuidada, quase insensível, em si mesma,
que é atributo de uma classe. Por outro lado, uma maneira
de falar e aquela mesma confiança em si mesma podem ser
representadas, e com bastante sucesso, por vagabundos e
aventureiros.
— A aristocracia — disse Maureen. — Não, não a minha
família. A minha família é apenas uma boa família, sabe,
nada de especial. Mas fui pedida em casamento pelo filho
mais moço de uma família aristocrata, William. Uma ótima
pessoa. Tão bom quanto Philip, quando não está sendo tão
idiota... oh, entenda-me, digo idiota porque não quero saber,
mas idiota não é a palavra para o que Philip será quando
realmente tomar impulso. Sei disso. Mas o que ele se tornou,
de repente, você sabe, essa história de omeletes-e-ovos, isso
é coisa bem recente. Antes, ele era exatamente como todo
mundo, mas uma pessoa em quem se podia confiar, não-
engajado. É aterrorizante — gemeu ela, as lágrimas
escorrendo. — O que é que acontece com eles? Mas eu teria
sido rica e tudo com William, e eu o recusei por causa
daquele grupo dele, sabe, eles nunca vêem nada do que
acontece fora do pequeno paddock deles. São apenas
agradáveis e gentis dentro do paddock. Assim, não vou me
casar com Philip depois de ter recusado William. Mas eu os
amo, amo sim, amo sim, amo sim. Quando me apaixonei por
William, pensei: "Ora, isso é estranho... então você quer um
homem forte, é?" Mas agora eu sei. Primeiro, William, e
agora, Philip. Não amo Jerry. Não amo os outros. Não
consigo levá-los a sério. Quero dizer, o meu consciente
consegue, mas alguma coisa em mim não. É verdade, não é?
As mulheres podem dizer o que quiserem, mas... Jerry tem
sido meu companheiro há anos. Ele é um outro igual a mim,
sabe? É filho de um general, acredite se quiser. Abandonou
tudo aquilo, como eu. É um vagabundo e faz meditação.
Sabe como é. Com ele isso é um emprego de tempo integral.
O álibi perfeito de tempo integral. Oh... ele é muito bacana,
muito bacana; por que o critico? Por acaso sou melhor do
que ele? Não faço nada, e vivo à custa do meu pai. Mas, se
tiver de escolher entre Jerry e Philip, será sempre Philip.
Mas não tenho de escolher. Isto já é alguma coisa.
— De qualquer maneira — disse Kate —, tenho coisas a
fazer. — E voltou para o telefone, cancelando
compromissos, dizendo aos vizinhos que os planos haviam
mudado, e suspendendo a encomenda de verduras que
certamente já haviam saído das prateleiras, a mais rápida das
eficiências, fazendo com que voltassem para lá.
Maureen ficou sentada em silêncio, apoiando a cabeça, que
obviamente doía, na parede. Observava Kate.
Kate enviou o seguinte telegrama para os Estados Unidos:
"Sinto muito. Já tinha planos feitos voltar fim de outubro". Ia
acrescentando: "Sugiro Eileen assuma comando", mas viu
Maureen sorrir. Terminou com "Todo o meu amor, Kate",
acreditando que provavelmente isso seria sincero, no fim de
outubro.
Para Tim, telegrafou dizendo: "Sinto muito, impedida cuidar
de você, casa aberta a partir depois de amanhã".
Para os Enders o telegrama dizia: "Deixar chaves Mary
Finchley, meu planos mudaram".
O dia foi passando. Volta e meia uma ou outra fazia um
pouco de chá, ou de café. A campainha da porta tocou, o
telefone tocou, elas não tomaram conhecimento.
Num determinado momento Kate disse:
— Acabei de me lembrar, sonhei com você uma noite
dessas. Sonhei que você era um passarinho amarelo-
brilhante, voando por esse apartamento, que era uma
espécie de gaiola, e você ficava entrando e saindo de cantos
escuros onde raios de luz ofuscante caíam. — Então as duas
olharam para os focos empoeirados dos pontos baços onde o
sol batia, aqui e ali no ar subterrâneo daquele cômodo, e
riram. — E você repetia sem parar: "Não, não, não, não, oh,
não, eu não vou".
Continuaram a rir. Começaram a ficar histéricas, agitando-se
nas cadeiras enquanto as lágrimas escorriam.
— Temos de parar com isso — disse Kate.
— Sim. Daqui a um minuto.
— Tenho um sonho contínuo... não sei como explicar. É um
sonho com episódios, continuação do anterior, sabe?
— Oh, sim, eu gosto desses.
— Sim. Bem. Quer que eu lhe conte? Acho que talvez isso
seja o que estou fazendo, o que realmente estou fazendo
nesse momento. Sabe, nesse momento da minha vida, desde
o princípio do verão. — Então houve um silêncio
prolongado, durante o qual Maureen esperou, atenta. — Sim
— disse Kate afinal. — Relembrando... aquele período, sabe,
desde aquela tarde, a tarde em que tudo mudou... foi como
um ribombar de trovão ou um aviso ou coisa assim, eu saí,
saí da minha vida, desde então o que acho que realmente
tem acontecido é o meu sonho. Não têm sido, de forma
alguma, as outras coisas. Ou se têm... — Ela parou de novo,
esperando que o pensamento se completasse. — Se têm
sido, todas as coisas que aconteceram no mundo exterior, o
trabalho que fiz, e as viagens, e o caso... tive um caso
amoroso, se é que se pode chamá-lo assim, foi realmente
muito idiota... bem, tudo aquilo, simplesmente. . . alimentou
o sonho. Sim. Era o sonho que estava... alimentando-se da
minha vida diária. Como um feto. Só agora foi que vi isso.
— Então continue, conte-me.
Kate contou-lhe tudo a respeito da foca, começando como
um conto de fadas ou uma fábula: "Uma mulher estava em
uma encosta rochosa escura, num país do norte, e viu
alguma coisa estendida entre as rochas. Pensou que fosse um
projétil, um projétil grande e maligno. Viu então que era
uma foca quase adulta, e que estava tentando arrastar-se e
erguer-se atravessando todas aquelas rochas. Em direção ao
mar. Tinha de alcançar o mar, aquilo é que era importante".
Ela parou. Havia uma coisa falsa. Era porque estava
querendo fugir de alguma coisa, contando o sonho na
terceira pessoa. Estava tentando proteger-se da força do
sonho através do uso de uma mulher... ela...
— E então eu vi que a pele da pobre foca estava
completamente seca e áspera e que os bigodes estavam
quebrados e espigados, e derramei água...
À medida que ia falando, deu-se conta de que noite após
noite sonhava com a sua jornada com a foca, e que acordava
com freqüência, todas as noites, após estágios do sonho, mas
que os esquecia quando a manhã chegava. O sonho havia
recentemente — não conseguia pensar numa maneira
melhor de dizê-lo — tornado a voltar para a escuridão, além
do seu alcance, exceto por lampejos. Por quê? Por causa do
tormento daquele estágio da história? Ou porque a sua vida
acordada naquele momento, naquele apartamento com
Maureen, estava errada, não estava alimentando o sonho
com uma força que lhe permitiria lembrar-se? De qualquer
maneira, o que ela de fato se lembrava era da solidão e da
dificuldade da sua luta para seguir em direção ao norte na
escuridão fria. Noite após noite, ela arrastava e puxava aquele
pobre animal de olhos pacientes através de um frio terrível
que penetrava e consumia ambas. Tempestades de neve,
cheias de pedaços pontudos e cortantes de gelo, caíam sobre
elas. Em volta de seus pés e roçando o rabo e as nadadeiras
da foca, que ela não era bastante alta para manter fora do
chão, rochas pontiagudas entalhavam a neve, e as pontas de
gelo quebrado cortavam como facas. Embora não estivesse
completamente escuro, ela nada conseguia ver. Às vezes
sentia o que parecia ser uma pressão ou presença perto dela,
e sabia que eram árvores. Várias vezes fora de encontro à
resistência de galhos pesados, que se agitavam a sua volta,
arranhando-lhe o rosto, tentando alcançar seus olhos e os
olhos da foca, soltando seus chuveiros gelados de neve. Não
sentia mais os pés. Suas mãos agarravam a foca que
escorregava e deslizava.
— Não sei a que distância o mar está. Ou se há um mar.
Estou cheia de medo de no fim estar andando em direção
errada. Talvez nunca encontre o mar aberto de que a foca
precisa. Talvez seja tudo gelo e neve e escuridão sempre,
para sempre, e não haja fim para tudo... talvez eu e a foca
caiamos na neve para nunca mais nos levantarmos. Mas por
que eu haveria de estar sonhando tudo isso? Qual seria o
objetivo de um sonho que tivesse de acabar comigo e a foca
morrendo, apenas morrendo, depois de todo aquele esforço?
Quando Kate acabou, e se sentou em silêncio, Maureen, que
estivera ouvindo como se estivesse ouvindo uma história
antiga, levantou-se de um salto, dizendo:
— Sabe de uma coisa? Acho que deveríamos comer alguma
coisa. E também tratar de nos arrumarmos um pouco. Olhe
só para nós. Estamos as duas uma coisa horrível.
Cortou pão e passou manteiga, trouxe um prato de frutas e
outro de queijo, apanhou uns dois vidros de comida de bebê.
Fizeram a refeição em silêncio. Assim que terminaram,
Maureen disse:
— Acho que o que você tem de fazer é acabar o seu sonho.
— Sim, mas eu não posso fazê-lo acontecer.
— O que eu quis dizer é que você tem de acabar o sonho
antes de voltar para a sua família. Não deve voltar antes que
tenha terminado.
Depois, ela tomou banho, penteou o cabelo, se vestiu. Kate
fez o mesmo, finalmente amarrando o cabelo, sem jeito e
intratável, para trás com uma fita, como uma colegial, mas
pelo menos não lhe caía no rosto. A faixa grisalha lhe dividia
a cabeça em duas partes do alto do crânio até a testa. "Oh,
não", Kate se ouviu murmurar, enquanto olhava para o
grisalho, encorajando-o a crescer depressa, a se espalhar, a
banir a tintura com a verdade... "Oh, não, não, nunca mais,
eu devo ter estada maluca."
No meio da tarde a campainha da porta tocou durante tanto
tempo que Maureen atendeu. Lá estava Philip. Todo ênfase
silenciosa, mas aparentemente sem recriminações, ele ficou
de pé no vestíbulo, olhando para Maureen e, para além de
Maureen, para Kate, na cozinha.
— Quero que vocês duas venham comigo. Quero que vejam
uma coisa.
— Para quê?
— Por favor. Não é pedir muito. — A atitude dele, de início,
não parecia muito acusadora porque o fato de estar ali era
uma recriminação. Aquilo já estava claro. Estava de pé bem
diante de Maureen, cheio de determinação, as mãos soltas ao
longo do corpo, os olhos pressionando os dela. Com as
roupas com feitio de uniforme, parecia um soldado.
Maureen estava sendo atraída em direção a ele, por causa do
seu domínio deliberado. Ao mesmo tempo, sentia repulsa:
ficou ali, cheia de indecisão, pálida, quase doente. Afinal se
virou para olhar para Kate, que sacudiu a cabeça. Mas Philip
ordenou imediatamente:
— A senhora também. Vamos, Sra. Brown. Há uma coisa
que quero que vocês duas vejam.
Maureen encolheu os ombros e obedeceu. Kate a seguiu. A
porta aberta deixava à mostra folhas que se deixavam levar
por um vento poeirento. As duas subiram a escada e
dirigiram-se para o carro, que era um Mini-Cooper. Tinha
decalques por todos os lados: Compre produtos ingleses.
Apoie o seu país. Seu país precisa do seu apoio. Apóie a
Inglaterra, não o caos. Faça o que puder. Seja inglês.
O carro parecia ter sido ornamentado para um cortejo, ou
talvez para um musical sobre os anos 30 — mas a respeito de
que tinha sido o negócio todo naquela época, Japão, não era?
Hong Kong?
Philip abriu a porta de passageiro, da frente, mas Maureen
tentou passar para o banco de trás. Philip segurou-a pelo
ombro e disse-lhe:
— Não, quero que você se sente ao meu lado. — O tom da
voz dele era suave e autoritário, mas isso e a sua atitude
compunham uma caricatura de uma atitude autoritária
suavizada pela autoconfiança.
A cena, o carro, tudo estava se tornando gradualmente uma
charada ou um happening e, quando se acomodou ao seu
lado, Maureen disse:
— Mas isto é tão idiota. Que é que estou fazendo aqui? Por
que foi que viemos, Kate?
— Confie em mim — disse Philip, numa voz radiante de
sinceridade. — Confie em mim, Maureen.
— Oh, pelo amor de Deus! — disse Maureen, mas apesar de
tudo as duas estavam no carro, e Philip dirigia, descendo
para Edgware Road.
Um tráfego comum os rodeou até atingirem o Hyde Park
Corner, onde se tornou visível uma mudança. Havia carros
com decalques como o de Philip por toda parte, e grupos de
pessoas de todas as idades, sob grandes bandeiras da Liga
Britânica de Ação, erguiam cartazes e slogans daquele
mesmo gênero. As pessoas nos carros faziam sinais com o
polegar para cima e, num deles, uma mulher gritou para um
cartaz sobre a calçada, que dizia "Apóie o nosso país":
— É uma demonstração fantástica, continuem assim.
Prosseguiram, passando pelo Palácio de Buckingham, onde a
multidão habitual vagava despreocupadamente, apenas para
respirar o seu ar, e dali seguiram para o Embankment. Ali,
por toda a extensão das calçadas formavam-se longas filas;
centenas, milhares de pessoas. Havia o mesmo número de
cartazes que de pessoas, mas eram feitos em casa,
amadorísticos. A única bandeira daquele tipo feita por
profissionais, especialmente confeccionada para definir uma
causa ou um evento para o público, dizia: "Dê de comer aos
que têm fome à sua porta. Alimente o povo do seu país".
Mas em quadrados de cartolina, até em pedaços de papel
comum para datilografia, havia um milhar de apelos
individuais diferentes, garatujados com crayons e tintas
coloridas... e até batidos a máquina: "Querem que morramos
de fome em silêncio? Fora das vistas, fora da consciência!...
Nós não comemos hoje. E você?... Acabou de fazer uma boa
refeição? Você tem sorte... Você tem emprego? Eu não
tenho".
Philip volta e meia lançava olhares furtivos para Maureen, e
parecia satisfeito consigo mesmo. Ia dirigindo tão devagar
quanto podia.
À primeira vista as pessoas que esperavam não pareciam
estar morrendo de fome. Pois esses eram os pobres que não
morriam de fome, ou não dramaticamente. Viviam nos
limites da fome, mantinham-se vivos com pensões, rendas e
comida distribuída gratuitamente, que nunca eram, na
realidade, o suficiente, e das visitas dos furgões do Fundo do
Socorro Social do Governo. Mas, se se olhasse bem de perto,
a indiferença, a apatia da penúria tornavam-se aparentes.
Estes eram sintomas, é claro, familiares por causa das
imagens da televisão, mas sintomas facilmente associáveis
com outros países.
Homens, mulheres, crianças espalhavam-se por ali, sob as
árvores que se iam amarelando, enquanto as folhas
esvoaçavam em volta deles. E, como se tinha de perguntar o
que havia de diferente a respeito daquela demonstração, a
resposta vinha — não com facilidade, pois já fazia muito
tempo desde que aquele fenômeno fora visto — e a
diferença era que os grupos eram de famílias, mãe, pai e seus
filhos, não sindicatos, partidos políticos ou grupos de
pressão. As famílias tinham saído de milhares de casas de
Londres, e agora estavam ali, numa acusação silenciosa, pelas
ruas, retribuindo os olhares dos bem-alimentados e dos que
estavam — pelo menos por enquanto — em segurança, que
olhavam para eles. Mas os observadores não demonstravam
nem confiança nem superioridade, longe disso, í uma vez
que todos sabiam como era fácil dar o passo que levava para
o outro lado, para aquelas fileiras de desesperados. Havia
muita gente na calçada do outro lado da rua, olhando.
Chegava mais gente a cada minuto. A notícia se tinha
espalhado pelas ruas próximas e as pessoas estavam vindo
para ver seus próprios medos personificados ali.
Philip continuava dirigindo o mais devagar possível. Estava
ficando inebriado com o que lhes mostrava: parecia brilhar.
Maureen, por seu lado, ora empalidecia, ora corava
violentamente, e se inclinava para a frente a fim de olhar
para as pessoas famintas e em seguida para ele, com
incredulidade, raiva, ódio... e, é claro, atração.
— Certo — disse ela. — Muito bem. Cá estamos nós. Ótimo.
E agora, que é que você quer que eu faça? Que saia e
distribua os meus trocados? Que faça o milagre da multi-
plicação dos pães e dos peixes? O quê?
— Eu queria que você visse — disse Philip.
Ele estava até tremendo de exaltação, de determinação. O
corpo bastante sólido e os olhos firmes e honestos haviam
desaparecido, dando lugar ao aspecto campesino dele, com
as maçãs rosadas do rosto, tudo absorvido pela sua
transformação. Aquilo que estava ficando mais forte a cada
minuto, sua necessidade de que Maureen estivesse do seu
lado e que o apoiasse, podia ser sentido à medida que a ia
envolvendo. Ela também estava tremendo, mas afastou-se
dele o máximo que podia, encolhendo-se no canto do
banco. Philip percebeu e disse:
— Está bem, não pense que não compreendi, você não me
quer, não sou burro, não pense que sou, só queria que você
visse.
Aquelas frases, como as palavras da mulher do carro que
tinha gritado "É uma demonstração fantástica, continuem
assim!", soavam como os slogans nos cartazes.
Haviam percorrido meio quilômetro, através das longas filas
de gente desesperada, e diante de calçadas repletas de
espectadores hipnotizados.
— Que é que há com você? — perguntou Maureen. — Bem,
o que é? — Ela também parecia falar como se estivesse
manufaturando palavras cujo destino era serem garatujadas
num cartaz ou coladas numa janela de automóvel. — Isso
tudo simplesmente acabou de lhe ocorrer ou coisa assim?
Milhões de pessoas têm morrido de fome todos os anos, há
anos. Milhões e milhões de pessoas. Milhões de crianças
crescem condenadas a serem idiotas, abobalhadas ou
mentalmente retardadas porque não tiveram a alimentação
correta. Todo mundo sabe disso. Assim, por que, de repente,
nos obriga a vir até aqui? Não se pode ligar a televisão sem
ver algo desse gênero acontecendo em algum lugar. Estamos
resolvendo nossos problemas de superpopulação deixando
que as pessoas morram... Que se fodam, de que adianta? —
concluiu ela furiosa e exasperada, oprimida pelo aspecto
propagandístico e demagógico de suas próprias palavras.
— É aqui — disse Philip, que ouvia enquanto seu rosto se
contorcia numa expressão de nobreza e dedicação. — É aqui
no nosso país. Não num outro lugar qualquer. Não me
importo com os outros lugares. Mas me importo com o meu
país. Com a Grã-Bretanha.
— Oh, merda — disse Maureen dando as costas para as
intermináveis filas de pessoas. Agora, porém, não tinha
outro lugar para olhar senão para os espectadores. Assim,
desviou também o olhar da direção deles, fixando-o à sua
frente. Continuaram seguindo, entre os carros que iam todos
a pouca velocidade, cheios de gente que observava.
Havia carros da polícia dispostos em pontos estratégicos.
Mas os policiais não saíam dos carros. Ficavam sentados
onde estavam, espectadores junto com o resto da população
que ainda estava empregada ou tinha fortuna particular. Ou
jóias, ou quadros, ou terras.
Nós não queremos caridade, queremos trabalho. Queremos
que nos dêem trabalho. Queremos aquilo a que temos
direito. Trabalho e comida.
Um homem de rosto emaciado saiu do meio da multidão de
gente com cartazes e começou a fazer um discurso:
— Enquanto morrermos de fome em silêncio atrás de quatro
paredes, estará tudo bem, não é? Vocês não se incomodam
com isso! Mas estamos aqui, e aqui vamos ficar.
Dois policiais saltaram de uma camioneta, fechando as portas
rapidamente. Atravessaram a rua, indo até o orador, e
começaram a sacudir a cabeça e a agitar o indicador como
babás a uma criança malcomportada: parecia que discursos
não eram permitidos.
Mas o homem saltou para os ombros de dois de seus amigos
que levantaram as mãos para apoiá-lo enquanto ele se
equilibrava com as pernas separadas: por um momento
pareceu que aquilo ia ser o início de algum espetáculo
circense — uma pirâmide humana. Ele gritou:
— Aqui estamos. E passaremos fome em público, não às
escondidas. Até morrermos, se preciso for. Foi por isso que
viemos. Passaremos fome até morrermos onde vocês nos
possam ver.
Os policiais ficaram ombro a ombro, irresolutos, olhando
para cima, para o orador. Suas simpatias pessoais estavam
inteiramente com os manifestantes: lançavam olhares e
sorrisos para a multidão.
Uma camioneta de televisão apareceu e estacionou. Homens
saltaram depressa e saíram correndo pela rua em meio ao
tráfego, com as câmaras erguidas diante de si. As notícias
daquela noite estavam passando pelo processo de serem
manufaturadas.
— Certamente não vão permitir que fiquem aí, vão? —
perguntou Maureen. Estava furiosa, como se quisesse varrer
os manifestantes para fora de vista, ou que a polícia o fizesse
para ela. Agora, seu rosto tinha uma expressão de raiva e
estava avermelhado: as lágrimas escorriam pelas superfícies
inchadas das maçãs do rosto. Suas lágrimas davam satisfação
a Philip. Sabia disso e lutava para controlá-las. Quanto mais
lutava contra o que sentia, o que quer que fosse,
principalmente raiva ao que parecia, mais ela se afogava na
emoção. Mas agora parecia que
Philip estava satisfeito, e manobrou o carro na direção
oposta ao Embankment, tomando o caminho de casa.
Maureen deu as costas para ele e ficou olhando por uma
janela onde agora não se via um vestígio sequer de fome ou
problemas semelhantes. Philip sorria. Parecia sentir, ele
mesmo, que aquela não era uma reação digna de admiração,
mas cada vez que lançava um olhar para Maureen não
conseguia controlar-se: o sorriso vitorioso tornava a surgir e
tinha de lutar para afastá-lo.
— Muito bem — disse Kate. — Agora, diga-nos o que você
se propõe a fazer a respeito de tudo isso.
— Oh, não seja idiota, Kate, você pode ver muito bem que
ele não tem idéia, exatamente como todo mundo.
— Nós vamos colocar este país em primeiro lugar, para variar
um pouco.
— Oh, mas como é que você pode ser tão medíocre?
Aquela palavra o ofendeu, e ele retorquiu num tom irritado:
— Nós saberemos como agir, você verá.
— É incrível — disse Maureen, rindo, chorando, batendo
com o punho no encosto do banco. Parecia ter
enlouquecido. — Tudo que ele diz é incrível. Inacreditável.
Mas vocês as dizem, Philip. Todos vocês, não é só você.
Vocês todos dizem umas porcarias de umas coisas tão
idiotas. Eu realmente não consigo acreditar que estejam
falando sério.
Kate, aquela que punha panos quentes, a mediadora, a
confortadora da família para todas as finalidades, comentou:
— Você nunca diz algo de realmente concreto, Philip, é isso
que aborrece Maureen.
— Lógico, é claro que não diz — gritou Maureen. — Seu
idiota de merda — gritou para ele. — Será que não consegue
ver o que está diante dos seus olhos? Não, não consegue. É
claro que não.
— Temos de pôr nossa casa em ordem — disse Philip
prontamente, e com determinação.
Era evidente que aqueles dois continuariam, uma histérica, o
outro estupidamente confiante, enquanto estivessem juntos,
capazes de repetir apenas chavões de decalques de janelas ou
incoerências.
Mas por sorte chegaram à avenida arborizada, ao canal com
seus barquinhos agradáveis, ao apartamento de Maureen. Ele
parou o carro.
— Não vou descer — disse.
Maureen saltou. Kate a seguiu. Maureen ficou parada
olhando com expressão de desamparo para Philip, que a
olhava fixamente. Ondas de atração fluíam de um lado para
outro. Então Maureen disse:
— Que se dane — e correu para casa, tropeçando nos saltos
altos.
— Adeus, Sra. Brown — disse Philip, formal, correto,
triunfante, e deu partida no carro.
No apartamento, Maureen ligou a televisão. Esperaram
juntas pelo noticiário. Tinha havido um outro terremoto na
Turquia. Uma conferência sobre detritos atômicos. Um
relatório sobre as deliberações de um comitê da Alimentação
Mundial, no Chile. Então, um breve relato sobre a
manifestação no Embankment. A câmara percorreu as
fileiras de gente, mas bastante depressa, mostrando as
bandeiras e cartazes, detendo-se sobre: "Vocês não se
incomodam se nós morrermos de fome onde não puderem
ver". Um furgão distribuía sopa e pão entre os manifestantes.
Um orador — o mesmo homem de rosto emaciado e furioso
— gritava: "Não aceitem, não aceitem... é apenas para fazer
com que nos calemos, é só". Mas as freiras se inclinavam
sobre as crianças, que eram levadas a formar filas ordenadas
por seus pais, entregando canecas de plástico com sopa, e
pão. Apareceu um outro furgão do Fundo de Socorro Social
do Governo. Os grupos se dissolviam e se reorganizavam,
fazendo filas para receber a comida. O orador foi levado
embora por dois policiais, uma prisão feita com gentileza, a
câmara mostrou os rostos cheios de compaixão dos policiais,
que puxavam os braços do homem para trás, enquanto ele
gritava: "Morram de fome... resistam... é melhor resistirem e
morrerem de fome aqui, na cara de todo mundo, do que
atrás de portas fechadas, como animais..." Os policiais o
ajudaram a subir os degraus do furgão da polícia, a porta foi
fechada, o carro se afastou.
— "E agora a previsão do tempo..."
Assim que o noticiário acabou, Maureen tomou banho e
trocou de roupa, pondo um vestido sério, de linho castanho-
escuro — o correspondente feminino da roupa de Philip.
Ela, após examinar-se no espelho do vestíbulo, disse a Kate:
— Eu quero um uniforme, não? Provavelmente estou louca
por um. Bem, não vou sair! — Correu para o quarto e,
quando voltou, estava com um conjunto de roupas e jóias
postas ao acaso. Disse para Kate: — Vou fazer um jantar para
você.
Passaram-se umas duas horas antes que chamasse Kate para a
cozinha, onde preparara corações de alcachofra e abacate,
como entrada, depois vitela recheada e espinafre, além de
uma salada, queijo, um pudim. Tinha saído para comprar os
ingredientes, tendo tomado um táxi para ir até o mercado
que estava aberto. Tinha gasto muito dinheiro. E também
havia vinho branco, que ela colocara no gelo.
As duas comeram devagar, saboreando a refeição, pensando
nas pessoas lá no Embankment, e nos milhões que elas
representavam.
No dia seguinte, Maureen disse que queria comprar um
vestido: tinha as roupas atiradas em montes espalhados por
todo o quarto. Saiu atrás das lentes muito escuras de um par
de óculos, à procura de uma nova identidade, ou máscara.
Ou um uniforme? Era capaz de voltar com qualquer coisa
que quisesse: tanto poderia estar vestindo um hábito de
freira como uma roupa de dança do ventre... inveja, oh, sim,
aquilo era inveja, sim. Maureen podia escolher como lhe
aprouvesse, vestir-se de cigana ou como um rapazinho, ou
como uma matrona por um dia: era uma espécie de
liberdade. Será que Maureen teria ficado sentada numa
varanda, durante um ano, fazendo o papel da mulher
submissa do Mediterrâneo, com o avô como um tirano
carinhoso e uma velha como ama, ainda que sendo uma
submissão perante os outros, movida apenas pelo tato, ou
mesmo não passando, em parte, de uma brincadeira, mas
que acabara demonstrando não ser brincadeira nenhuma,
pois desde então a sua vida — a vida de Kate — não havia
provado aquilo? Não, Maureen não o faria, ela não podia;
havia ultrapassado até a simulação de submissão; sua
natureza, o que ela era, o proibiria. Será que aquilo era
verdade? Mesmo? Quando usava um vestido de noite preto
de renda, dos idos de 30, saído de um baú, decotado até a
cintura nas costas, com os lábios pintados de vermelho e
cachos nos cabelos, ou, de manhã, um vestido estilo Jane
Austen, com mangas justas com ombreiras, que mal lhe
permitiam os movimentos, será que aquilo não era
provocado por uma certa nostalgia? Se era, não durava mais
que uma noite ou a metade de um dia. Assim, se a garota
vestia as roupas das mulheres oprimidas do passado, por
necessidade de ser como elas — porque ser ela mesma era
um esforço grande demais? —, então nunca era por muito
tempo, e ela se permitia, logo a seguir, uma outra mudança
de estado de espírito. Por que ela, Kate, usava palavras como
se permitia: por que durante anos as suas fantasias pessoais
tiveram de ser postas em surdina de acordo com o que a
família podia suportar nela? Nada havia no mundo que a
impedisse de sair imediatamente, e comprar as suas fantasias,
e usá-las ali, no apartamento de Maureen. Decidiu que era o
que faria.
Mais abaixo na rua, um prédio de esquina estava sendo
construído em direção ao céu, em linhas arrojadas. A parte
inferior desse edifício estava pronta: encaixava-se com
exatidão nos limites do terreno, sem nenhum espaço livre.
Quatro ou cinco andares já estavam como seriam, exceto
pelo fato de que as janelas tinham rabiscos feitos com giz.
Daí para cima começava a desordem: era como se naquele
ponto a construção tivesse sido interrompida. Homens
andavam em plataformas suspensas lá no alto, balançando
baldes, empunhando trolhas, manipulando caixotes.
Também havia homens trabalhando ao nível do chão,
preparando as coisas que seriam içadas. Kate se deu conta de
que estava parada imóvel, observando, e de que já havia
alguns minutos que estava assim. Os homens não tomaram
conhecimento da sua presença.
O fato de não o fazerem, de repente, a fez ficar com raiva.
Afastou-se até ficar fora de vista, e ali tirou o casaco — de
Maureen —, exibindo o vestido escuro que lhe ficava bem.
Prendeu o cabelo de maneira extravagante, com um lenço.
Então voltou, passando diante dos operários, os quadris
conscientes de si mesmos. Uma tempestade de assovios,
gritos, convites. Fora de vista novamente, na direção oposta,
fez a sua pequena transformação, e voltou por onde viera: os
homens lhe lançaram olhares distraídos, não a viram. Estava
tremendo de raiva. Era uma fúria, parecia-lhe, que fora
reprimida durante toda a sua vida. E era o início de algo pior,
uma sordidez à qual não queria responder, pois estava
repetindo sem parar: "Isto é o que você tem feito durante
anos e anos".
Ela tornou a fazer o trajeto, como objetivo sexual, e viu que
uma moça, vestida como uma boneca holandesa, estava
parada numa esquina do outro lado, observando. Amplas
saias amarelas, uma jaqueta vermelha bem justa, o cabelo
louro ondulado, uma mancha de um rosa-vibrante em cada
maçã do rosto, grandes olhos azuis.
Kate chegou ao lado de Maureen e disse:
— E é nisto que se resume tudo.
Maureen piscou ós olhos, erguendo e baixando os cílios
negros, espessos sobre as maçãs do rosto, e submeteu-se à
provocação enquanto os homens gritavam e assoviavam. Do
outro lado, fora do ângulo de visão de Kate, esperou. Kate
fez o trajeto sob a forma invisível. Enquanto o fazia,
percebeu que estava, mais uma vez, cheia de uma vontade
louca de levantar a saia e mostrar-lhes o traseiro, como as
mulheres tchecas tinham feito para insultar as tropas russas
durante a invasão. Teria gostado de escarrar na cara deles, ou
de urinar, em público, como uma vaca, na frente de todos
eles. Tudo isso nada tinha a ver com o que estava pensando,
que eram os seus pensamentos habituais de compaixão
cuidadosamente comedidos por homens que faziam aquela
espécie de trabalho, e tinham de ficar satisfeitos por
conseguirem obtê-lo. Pensava, também, que um animal,
quando deixa o traseiro exposto a um outro, está oferecendo
subserviência, derrota, obediência, que era, provavelmente,
o que as mulheres tchecas estavam fazendo, sem saberem
que o faziam. Na realidade, tinham estado dizendo: "Será
demais para nós?"
Maureen, ao ver o seu rósto, tomou-lhe o braço: estava
tremendo. Em seguida, disse-lhe num tom de repreensão
hesitante, bem-humorado:
— Não, não fique assim, não faça isso, não é do seu feitio.
— Não? É nisso que se resume tudo. É só isso. Anos e anos
disso.
Voltaram para o apartamento. Maureen ofereceu chá, mas
Kate sacudiu a cabeça, indo depressa para o seu quartinho
frio debaixo da terra. Enfiou-se debaixo de um monte de
cobertas e ficou deitada, toda encolhida em silêncio,
olhando para a parede. Dormiu e sonhou, mas não alcançou
o sonho da foca, o sonho foi todo com Maureen, o
passarinho amarelo-vivo, que estava numa gaiola cantando:
"Não, não, não".
Estava escuro quando acordou. As luzes estavam acesas no
apartamento inteiro. Maureen, sentada na cozinha, não mais
parecia uma boneca, mas sim uma garotinha numa linda
camisola vitoriana, toda trabalhada em nervuras, babados,
rendas e bordados. Estava comendo flocos de milho com
creme. Preparou um prato idêntico para Kate, em silêncio.
Mais tarde, foram para o quarto de Maureen, que ligou a
vitrola, mas diminuiu o volume em atenção a Kate. Senta-
ram-se nas almofadas e Maureen pintou as unhas dos pés e
das mãos com um esmalte rosa-berrante. Kate bebeu um
pouco de vinho. Maureen fumou um pouco de maconha, e
nada fizeram. Parecia que estavam esperando. Que Kate
acabasse o sonho?
Os dias começaram a passar muito mais depressa, um após
outro, todos iguais. Do outro lado de Londres, a casa de Kate
estava aberta novamente, sua família já havia voltado, sua
vida continuava, mas ela não estava lá. Como haviam feito
tão freqüentemente com ela, enviava-lhes breves
mensagens: "Sinto muitíssimo, muito ocupada, avisarei antes
de chegar". E, uma vez, um telegrama: "Estou me divertindo
muito. Breve estarei com vocês". Ela se sentia infantil e má
quando enviava tais mensagens, mas era uma coisa que tinha
de fazer.
O telefone quase não tocava mais. A campainha da porta,
entretanto, soava um bocado. Uma vez, um rapaz chegou à
porta no momento exato em que Maureen ia saindo, e ela
lhe disse:
— Sinto muito, Stanley, volte numa outra ocasião. Eu tenho
de ir tratar de um negócio.
Maureen falou a respeito de Stanley. Ela o classificava como
estando mais na categoria de Philip e William do que na de
Jerry: trabalhava numa organização qualquer que tratava de
gente pobre e com más condições de habitação, era de
esquerda, à moda antiga, que agora parecia tão irrelevante,
provavelmente quereria casar-se com Maureen, se ela lhe
desse tempo de ver os atrativos da idéia. Tinham dormido
juntos, satisfatoriamente. Mas não estava apaixonada.
— Que é que há de errado comigo? O que é? É simplesmente
que sinto o tempo todo que é tão terrivelmente irrelevante.
Quero dizer todo esse trabalho de assistência social, a
salvação da humanidade... tudo isso. Sei que sou insensível.
Sou má. Já me disseram isso com bastante freqüência. Mas
não adianta, não consigo sentir que seja importante. William
ainda se sente obrigado para com os foreiros... não que eles
sejam muitos, mas para com os poucos que restam. Ele
esbanja dinheiro com caridade. E há Philip... bem, ele vai
quebrar ovos, se é que já não começou, mas como é que ele
pode acreditar nisso, como é que pode? Eu acho que ele é
louco, mas talvez eu é que seja. Stanley. Ele é o melhor
deles, do ponto de vista de trabalho. O que ele faz é bom. O
tempo todo. Mas, quando estou com ele, penso: "Isto não é
a coisa importante, não é o que é importante, não é". Então,
está bem, você consegue dar moradia a trezentas pessoas... e
nesse ínterim? Ele não consegue compreender isso de
maneira nenhuma, e provavelmente está certo. Que é que
vou fazer, Kate? Por que é que sou assim? Philip diz que fui
criada para não pensar em ninguém a não ser em mim
mesma. Mas isso não é verdade. Passei um ano inteiro
trabalhando com Stanley, sabia? Pois é, passei. Dividi um
apartamentozinho imundo com outras cinco pessoas e
trabalhava noite e dia para arranjar tetos para gente pobre.
Durante todo o tempo eu estava pensando: "Mas isso não é o
importante. O que é?"
— Não sei, como é que eu vou saber?
Kate começou a contar coisas do seu passado. Não conseguia
lembrar-se de como haviam começado com aquilo, mas logo
era assim que passavam os dias. Suas lembranças não eram
do tipo de coisas que a tivessem impressionado antes como
sendo importantes ou mesmo interessantes: estava
avaliando-as agora através das reações de Maureen. Parecia
quase que se lembrava das coisas por causa do interesse de
Maureen — da necessidade de Maureen? Era Maureen quem
estava fazendo a escolha?
Por exemplo, uma vez, há muito tempo, quando só tinha
duas crianças, Stephen e Eileen, duas coisinhas de cerca de
quatro e dois anos, Michael tinha viajado para algum lugar, e
ela os levara de carro para o campo. Não conseguia lembrar-
se para onde, mas...
— Era o campo, de verdade, sabe, disso eu me lembro, não
vi ninguém o dia inteiro. Estava numa floresta e havia um
riacho.
Sentara-se na margem com as duas crianças e tinham feito
pequenas coisas durante o dia inteiro: examinado folhas,
observado borboletas, visto a água ondular-se sobre os
seixos. As crianças gritavam e riam enquanto o sol,
penetrante através das folhagens espessas que se agitavam na
brisa, fazia uma renda dourada sobre os seus corpos nus.
Maureen queria ouvir cada pequeno detalhe daquele dia
longínquo, que tinha felicidade, de forma que mesmo agora
o seu encanto ainda era forte o bastante para iluminar aquele
apartamento escuro. Pois o outono estava chegando, um
outono úmido, e era chuva e não sol o que se via do lado de
fora das janelas de Maureen.
E Maureen pediu que repetisse a narrativa, de forma que
Kate começou ainda mais para trás naquele dia; contando
como tinha acordado cedo e vestido as crianças — Eileen
usava um vestido amarelo de algodão, com margaridas
bordadas — e como tinha dirigido através do tráfego, mas
logo alcançara a floresta, e já tinham feito isso e aquilo, e
assim por diante, momento por momento. Kate se lembrava
melhor à medida que contava e contava de novo.
E houve a ocasião em que a mãe de Michael viera ficar com
as crianças. Quantos eram então? Três? Já tinham nascido
todos? Mas, de qualquer maneira, ela e Michael foram passar
o fim de semana fora, o primeiro que passavam sozinhos
desde que as crianças tinham nascido. Ficaram num hotel na
costa de Norfolk. Foi um fim de semana chuvoso, mas o
hotel era antiquado, com grandes lareiras. Fizeram longos
passeios a pé, sob a chuva. Sentaram-se diante das lareiras e
jogaram dardos no pub com gente da região. E se amaram.
Desse tipo de reminiscências, Maureen nunca se cansava, e
dizia, tão logo tivessem acabado de comer a comida de
criança, pão com manteiga, purê de maçã, ou o que quer que
fosse:
— Conte-me uma história, Kate, conte-me uma história. —
E se deixava cair nas almofadas e ouvia sorrindo, enquanto
Kate se lembrava.
— Conte a respeito daquela noite em que você e Michael
acordaram e pensaram que houvesse um ladrão e então
descobriram que era o garoto, e vocês se sentaram na
cozinha e fizeram um banquete e então Stephen acordou e
se juntou a vocês.
Maureen falava isso cantando, como se fosse uma música,
fazendo pausas à medida que ia falando, de forma que Kate
pudesse encontrar o fio da meada e continuasse a partir daí.
E Kate começava:
— E depois estávamos todos lá, exceto Tim, e nós, isto é,
Michael e eu, ficávamos dizendo que não fizessem barulho
porque, você compreende, ele era tão mais jovem do que os
outros, mas Stephen disse que não era justo. Como sempre
tomava conta de Tim, Stephen sempre o defendia. E ele
subiu até o quarto e tirou Tim da cama e disse: "Depressa,
depressa, nossos pais estão dando uma festa e nos
convidaram também". E Tim desceu... Stephen o carregou.
Tim estava com uns três anos, era pequenininho, e repetia:
"Depressa, depressa, tem uma festa".
— E então vocês se sentaram na cozinha e comeram bolo e
chocolate e, quando olharam de repente, o sol estava
raiando. E decidiram que estava uma manhã tão bonita que
era besteira ir para a cama. Entraram todos no carro e foram
para a costa. E o mar não estava muito frio, embora fosse
abril, assim tomaram banho de mar e ficaram na praia o dia
inteiro.
— Mas as crianças tinham de descansar depois do almoço, é
claro. Assim, deitaram-se na praia, enrolados em toalhas, na
sombra de um quebra-mar, e dormiram; depois todos nós
tomamos chá numa confeitaria. Comemos ovos com
presunto e torrada. Depois que passou a hora do rush,
voltamos para casa. As crianças ainda falam a respeito
daquele dia. Ou falavam, até há bem pouco tempo.
Enquanto seus dias eram passados assim, revolvendo
memórias em busca de momentos de felicidade, durante o
sono Kate procurava a foca, em busca do sonho. Mas,
embora soubesse que penetrava naquele sonho com
freqüência, ele lhe escapulia quando acordava. Tinha medo
de que a causa por que não conseguia lembrar-se do sonho
fosse que a foca tivesse morrido. Aquele estágio do sono era
muito triste, cheio de um sentimento de perda, de dor.
Acordava pensando que seus pés tinham sido cortados, pois
os sentia gelados e doloridos, mas não era assim, estavam
bastante aquecidos. Acordava sentindo os braços doloridos
por causa do peso da foca. Será que estava mais pesada do
que antes? Ou será que estava pesada porque tinha morrido?
Muito longe, atrás dela, longe, abaixo do horizonte, sabia
que o sol ainda brilhava. Mas nunca nascia, há dias que não
raiava durante o seu sono, há semanas. Ainda estava
viajando rumo ao norte, para longe do sol. Na sua frente, o
inverno, gelo, uma escuridão interminável.
— Conte-me uma história, Kate. Você e Michael foram a
uma festa, e estavam de mau humor, tinham brigado dias
antes, mas então descobriram que gostavam mais um do
outro do que de qualquer outra pessoa ali, e se apaixonaram
pela segunda vez.
— Ou talvez eu pudesse falar-lhe a respeito de Mary
Finchley. Levei muito tempo para compreender que Mary
era realmente muito diferente de mim. De qualquer mulher
que eu tenha conhecido. As pessoas dizem "uma mulher
indomável", sabe, um homem diz "você é uma mulher
indomável", e ele tem um pouco de medo, mas admira você
por causa disso. E você se sente um bocado lisonjeada, e até
brinca de ser indomável durante algum tempo. Mas não é
verdade. Não, Maureen, você está pensando: "Sim, eu sou
indomável, não estou domesticada!" Mas está. Mary não.
Alguma coisa ficou faltando nela. É como aquele tipo de
cachorro que um homem passou meses treinando, e então
chega à conclusão de que não adianta, aquele não aceita
treinamento. Nada adiantou com Mary. Ela não tem
qualquer sentimento de culpa, isto é que é o importante.
Todos nós estamos presos a correntes invisíveis, culpa;
devíamos fazer isso, não devemos fazer aquilo, isto é
prejudicial para as crianças, é injusto para com o marido.
Mary não está presa, isto simplesmente não existe nela. Mas,
pelo menos aparentemente, ela teve uma educação comum.
Nunca consegui descobrir o que é que lhe faltava. Talvez
nada faltasse... não existia nela.
"Mary casou-se bastante jovem", continuou Kate. "A
primeira vez que me surpreendi com Mary foi quando ela
disse: 'Escolhi Bill porque ele tinha um emprego melhor do
que os outros'. Não, espere, muitas mulheres podem pensar
ou agir assim, mas diriam: 'Porque eu o amava ou porque eu
o admirava ou porque ele era sexy'. Mary não. Foi por isso
que ela o escolheu. Os pais dela não tinham muito dinheiro.
Ele a adorava. Ainda adora. Davam-se muito bem
sexualmente. Ainda se dão. Mas ela foi infiel desde o início.
Lembro-me do choque que levei. Um dia estava costurando
junto da janela, e, olhando para fora, vi o homem que
entregava as compras entrar na casa de Mary. Ficou lá
dentro muito tempo. Não pensei que fosse algo de mais.
Achei que estivesse tomando uma xícara de chá. No dia
seguinte, toquei no assunto e Mary disse: 'Aquele cara é
bom de cama'. De início, achei que estivesse brincando.
Depois, pensei que estivesse contando vantagens. Não. É
assim que ela é. Se vai fazer compras e um homem lhe
agrada e há uma oportunidade, pronto. Nunca torna a pensar
no assunto. Em qualquer ocasião, mesmo quando estava grá-
vida, quando estava amamentando. Quando lhe pergunto a
respeito disso ela diz: 'Eu não posso limitar-me a fazê-lo só
com um homem! Você fica bastante embaraçada, mas é
porque você é um pouco idiota'. Uma vez me apaixonei por
um outro homem... Fui muito besta, o negócio todo, mas foi
quando realmente compreendi que Mary era bem diferente.
Nunca se apaixonou em sua vida. Não conseguia
compreender de que eu estava falando. De início, pensei,
como de hábito, que estivesse brincando. Mas ela pensou
que eu estava inventando aquilo. Sim, é verdade, ela
realmente acreditava que a maneira como todo mundo age
com relação ao amor, a estar apaixonado, é alguma espécie
de conspiração, como o imperador que não tem roupas. Foi
mais ou menos nessa época que descobri que era incapaz de
ver o que quer que fosse, ou de assistir a uma peça na
televisão ou qualquer coisa assim. Ela diz: 'É tudo a respeito
de gente se torturando por coisas que não existem'. Lê
histórias de detetives, livros de aventuras para meninos, e
livros sobre animais. Eu até pensei durante algum tempo que
ela fosse muito masculina. Não. Amor... tudo a respeito
disso, o amor romântico, a droga do negócio inteiro... sabe,
séculos da nossa civilização, foi deixado de fora nela. Acha
que somos todos malucos. Um homem lhe agrada, você
agrada a ele, pronto, trepam até que um ou outro se canse, e
então adeus, sem ressentimentos..."
— E o marido dela?
— Você vê, você não é indomável, cruel, você não é como
ela. Esteve sentada aí, pensando: "E o marido dela, e os
filhos dela?" Sim. Bem. Ela ia para a cama com outros
homens quase que desde o início, mas ela era tão indiferente
com relação àquilo que levou algum tempo até que Bill acre-
ditasse que realmente estava acontecendo. Ele a pressionou
com perguntas e ela disse: "Sim, mas eu sou assim". Ficou
embaraçada por ele, porque ele não era daquele jeito. Ele
começou a arranjar casos. Quando o fazia, ela ficava triste e
infeliz. Por que toda aquela confusão? Aquilo era o que o
deixava constrangido, sabe, a atitude dela. Não se sentia
culpada. Então vieram os três filhos. Mary dizia que filhos
eram uma coisa maravilhosa, "mas tolhem os movimentos
da gente". Eles não a tolhiam muito. Um dia, Bill chegou a
casa e encontrou Mary na cama com um homem qualquer,
cujo nome ela nem sabia. O bebê estava no berço no mesmo
quarto, e o garotinho, Cedric, que é um amor, brincava no
chão. Bill pediu o divórcio. Estava de coração amargurado.
Ela também. Ele obteve o divórcio e a custódia dos filhos.
Mary não contestou a ação, de qualquer maneira não podia.
Cerca de um ano depois do divórcio, juntaram-se de novo.
Ele não conseguia amar nenhuma outra mulher. Disse para
as mais diversas pessoas que depois de Mary não conseguia
ligar-se realmente a nenhuma outra mulher: "Ela é muito
imoral, mas é maravilhosa se não se levar isso em
consideração".
"Creio que o importante", continuou Kate, "é que o fato de
ela ser infiel não faz com que ele se sinta agredido, não é
uma crítica contra ele. E quando ele é infiel a Mary, ela grita
com ele um pouco e depois... vão para a cama. Bem, sexo.
Durante o ano em que estiveram divorciados, os dois
ficaram bastante desorientados, agindo a partir de dois
conceitos de leis diferentes. Bill se havia divorciado da má
esposa, depravada, que estava corrompendo os filhos, mas
ela era a vítima de um homem louco. "Bem, o que é que há
com você?", dizia ela repetidamente. "Nós nos damos bem."
Quando se casaram de novo, ele impôs todo tipo de
condições, por uma questão de orgulho, é claro. Devia saber
muito bem que ela não cederia. E não se teria casado com
ela novamente se ela não o fizesse feliz. E é assim que
vivem. Agora, as crianças estão na adolescência e, de acordo
com todas as regras, deveriam ser umas vítimas. Mas não são
nada piores que a maioria. E é bem verdade que Mary acha
que é tudo um pouco de exagero. Diz que toda vez que tem
um caso, o negócio inteiro é discutido por todo mundo
quanto ao significado que possa ter tido. Ela diz que
ninguém nunca compreende o cerne da questão... que não
há significado algum. Ela tem vontade de dar umas trepadas
e vai e dá. Se as crianças percebem, ela de fato tenta ser um
pouco discreta, às vezes, então discutem o caso e dão o
veredicto, por assim dizer. Ela diz: "Oh, pelo amor de Deus,
deixem-me em paz, todos esses por-que-razão e porquês de
vocês me cansam. Eu gosto de trepar". Os filhos dela vivem
entrando e saindo da minha casa, são mais jovens que os
meus, mas são unidos assim como se fossem todos de uma
só família. Meus quatro filhos debateram esse assunto de
Mary a vida inteira. Gostam dela. Todo mundo gosta dela.
Eles a compreenderam muito antes de mim. Levei anos.
Compreenderam que ela não era como as outras mulheres.
Não mesmo. Uma ocasião ela seduziu o meu marido. Se é
que essa é a palavra apropriada. Não, ela se sentiu atraída por
ele, e assim o teve. Eu estava vivendo uma vida infernal,
achando que tinha sido traída e Deus sabe o que mais. Na
vez seguinte que tomamos um café na cozinha da casa dela,
disse-me: "Michael é bom, é mesmo. Foi ótimo, realmente
gostei muito".
— E daí? — disse Maureen, a voz com um tom de desafio. —
Que é que quer que eu conclua de tudo isso?
— Nunca fui capaz de concluir coisa alguma, exceto que ela
é muito diferente de mim. Isto é tudo. Toda vez que faço
alguma coisa, ou não faço, isso é mais verdadeiro, gosto do
aspecto físico de um homem e penso que bem que gostaria
de ter alguma coisa com ele, mas é claro que nunca faria
nada nesse sentido, penso em Mary. Durante algum tempo,
pensar em Mary era uma espécie de consolo e apoio. Eu
pensava que era uma pessoa muito melhor, de melhores
sentimentos e mais sensível do que aquela criatura
irresponsável. Mas agora estou em dúvida. Realmente tenho
dúvidas. Sento-me num teatro e vejo pessoas se
arrebentando em pedaços por causa de amor, e de repente lá
está Mary, e ela literalmente não consegue compreender por
que toda aquela confusão. Ou vou a um cinema... Fui
algumas vezes com Mary, e é assim... Depois ela diz:
"Quanta baboseira!" No início, sabe, quando ela dizia coisas
desse tipo, eu achava que era uma defesa, como todos nós
fazemos, mas se você está com alguém que realmente acha
que é uma piada, mas mesmo, de coração, se é que essa é
uma palavra que se possa associar a Mary, então é estranho,
modifica a sua perspectiva. Há ocasiões em que sei que há
uma espécie de inversão na maneira como vejo as coisas...
tudo, a minha vida inteira desde garota... e pareço a mim
mesma uma louca desvairada. Amor, dever, estar ou não
estar apaixonada e amando, e me comportar bem, e você
deve ou não deve pedir, e você deve ou não deve fazer. É
uma doença. Bem, às vezes eu penso que não passa disso.
— Uma ocasião pensei que minha mãe estivesse apaixonada
por um outro homem. Ainda não sei até hoje qual era a
seriedade do caso. Aquilo me abalou — disse Maureen. —
Abalou mesmo. Pensei que ela nos fosse deixar, a papai e a
mim. Desde então, nunca mais olhei para ela da mesma
maneira. Sei que é idiota. Foi a pior coisa da minha infância.
— Os filhos de Mary e os meus discutem os casos dela como
se fossem os sintomas de uma doença que devem ser
tolerados.
Quando Kate falou a Maureen sobre Mary, não havia
percebido que estava pondo um fim ao: "Conte-me uma
história, por favor, conte uma história, Kate!"
Mas foi assim.
Kate tornou a sonhar com a foca, ou melhor, sonhou e se
lembrou. A foca havia feito movimentos inquietos em seus
braços; queria que ela desse atenção a alguma coisa. Parou,
enquanto a neve caía silenciosamente, diretamente para
baixo, em torno dela. Podia ver a neve: será que o ar estava
mais leve do que estivera? Bem na sua frente havia uma luz
fraca, como a luz de uma vela, e ali, sozinha no meio da
neve, estava uma cerejeira rosa, prateada, em flor. Kate foi
andando com dificuldade, através da neve, até a árvore,
arrancou um broto em flor e o apertou entre os dedos
gelados enquanto prosseguia, deixando a árvore para trás e
penetrando na escuridão que se estendia adiante.
Contou aquele novo estágio do seu sonho a Maureen e ela
disse:
— Bem, creio que agora não vai demorar muito.
Disse aquilo com um ar infeliz, se bem que
inconscientemente. Kate percebeu que a moça estava triste,
desatenta. Tinha perdido toda a vivacidade. Kate sentou-se
junto dela, envolveu-a, abraçando-a como se fosse sua filha.
Maureen encostou a cabeça no ombro de Kate e se permitiu
ser abraçada e afagada. Elas dormiram.
Quando Kate acordou, Maureen estava sentada bem ereta,
de pernas cruzadas, numa almofada, na sua frente. O que ela
estava vendo fez com que Kate se sentasse sobressaltada,
olhasse outra vez, e se esforçasse para despertar por
completo. O rosto de Maureen não era o mesmo, era um
rosto novo, pelo menos para Kate.
— Sabe que quando acordei estava com o polegar na boca?
— disse a moça.
Maureen deixara-se ficar ali, sentada em silêncio, na sua
almofada, esperando que Kate acordasse de forma que
pudesse atirar-lhe aquela acusação. Agora, depois de tê-lo
feito, Maureen levantou-se e foi para a cozinha. Kate não a
seguiu. Estava, é claro, sentindo-se culpada, errada. Ficou
sentada perguntando-se onde teria errado, o que teria feito
de errado.
Uma hora depois, ao encontrar Maureen comendo comida
de bebê, sentou-se, querendo saber qual era o veredicto.
Maureen disse:
— Você percebe? As suas histórias. Nós gostamos de coisas
diferentes. Você gosta é de falar de seus filhos quando eram
pequenos. É disso que se lembra melhor. Era isso que você
me queria contar. Quando quis que você falasse a respeito de
como foi feliz com Michael, teve de me falar a respeito de
Mary.
— Foi por isso?
— Sim. E foi uma coisa destrutiva que você fez. É isso que eu
acho. Sim, é isso. Que utilidade Mary pode ter para mim ou
para você? Ela nada ajuda.
Maureen acabou de comer, lavou a louça e arrumou a
cozinha, enquanto Kate continuou sentada, olhando. Então
enfiou uma bolsa a tiracolo no ombro e saiu.
Voltou de noitinha e procurou Kate imediatamente, de
forma que pudesse dizer:
— Fui ao jardim zoológico. — Estava visivelmente
transtornada. Estava furiosa. Com Kate? Será que ela era a
causa? Por que será que a moça viera direto para aquele
quartinho sombrio à sua procura? — Sim, passei o dia inteiro
lá.
— A culpa não é minha — disse Kate, tentando fazer graça.
— Quem se importa de quem seja a culpa? Isso não é o que
interessa, é? — Estava de saída, já na porta, quando se virou
e acrescentou: — Por que foi que você disse isso? Por que
tem de ser sua culpa? Isso não passa de megalomania. É isso
o que você é, uma megalomaníaca. — Kate nada conseguiu
dizer. Então, Maureen disse: — Oh, sinto muito, desculpe-
me. Mas está tudo muito bem para você, não é? — E saiu
correndo do quarto, chorando barulhentamente, da sua
maneira habitual, sem qualquer inibição, como uma criança
que levou um tapa, mas que sabe que as lágrimas fazem parte
da coisa, que não se dará nenhuma atenção a elas.
O que ela queria dizer era: "Você já passou por tudo, bem ou
mal você já o fez, mas eu tenho de decidir se o farei ou não".
A sua preocupação com Maureen lhe dizia que as acusações
dela eram bem justas. Maureen se tinha tornado uma filha
sua: sentia por ela o mesmo que sentia por seus filhos. Mais
ainda, disse a si mesma, com a determinação que significa
que se está defendendo alguma coisa a que não se tinha
direito — sobre a qual não se tinha adquirido o direito —, as
últimas semanas tinham sido cheias de encanto por causa de
uma relação de companheirismo com uma pessoa jovem,
relação que ela não tivera com seus próprios filhos,
durante... quase ia pensando anos, mas o exagero a conteve.
A família sempre tivera períodos de prazer em estar reunida
(recordando tais momentos, Kate ansiava voltar para casa
naquele mesmo instante), e aquilo era verdadeiro mesmo
nas ocasiões em que houvera antagonismo entre os jovens e
os pais, pois Michael também tinha as suas dificuldades, não
havia até então se lembrado disso; não havia sido uma
atitude deliberada de sua parte esquecer, durante algum
tempo, que Michael e seus filhos brigavam, se desentendiam
entre si, e que Michael se preocupava com isso. Aquilo tudo
se resumia no fato de que, porque a vida em família às vezes
era difícil (como, é claro, qualquer estrutura de autoridade, a
experiência por si só afirmava que não podia ser de outra
forma); porque Kate desempenhava o papel que tinha de
desempenhar, o de uma mãe a quem se tinha de opor
resistência, contra quem se tinha de lutar, reagir; porque não
era sempre amada e admirada, tinha de mandar tudo para o
inferno, ver tudo como uma coisa negativa, má... será que
suas reações dos últimos meses não haviam passado disso?
Não tinha sido suficientemente amada, não tinha recebido
atenção suficiente, não tinha sido paparicada e afagada o
suficiente? Será que tudo não passava disso?
Estava a ponto de sentir que era assim, e aquilo constituía
tanto uma inversão na sua maneira de se ver quanto a
anterior — aquela fora uma inversão gradual —, quando
acabara por considerar a si mesma, a família e seu marido
como uma teia de terríveis auto-enganos.
O que pensasse a respeito daquilo provavelmente não tinha
qualquer importância.
O estado de espírito em que estivesse quando tornasse a
entrar pela porta da frente de sua casa seria irrelevante: isso
é que era o importante, era a verdade. Passamos nossas vidas
avaliando, equilibrando, pesando o que pensamos, o que
sentimos... é tudo besteira. Muito tempo depois, uma
experiência, que na ocasião foi vivida e devidamente julgada
como este ou aquele tipo de pensamento ou sentimento, é
vista de maneira bastante diferente. Era isto o que estava
acontecendo, você pensará: e o que você pensou ou sentiu a
respeito daquilo, na ocasião, parece risível, insípido.
Como o verão longe da família lhe pareceria dentro de um
ano ou coisa assim? Podia ter certeza de que não seria nada
semelhante ao que lhe parecia naquele momento. Assim,
por que avaliar e pesar, dizendo que isto é o que estou
pensando, e, portanto, devo fazer isso ou aquilo, ou vai
acontecer isso ou aquilo?... nesse ponto das deliberações de
Kate (pois ela estava, é claro, fazendo aquilo que acabara de
concluir não ter sentido), Maureen entrou, e disse:
— Kate, quer saber de uma coisa? Não tem a menor
importância, é isso aí. Não consigo sentir que tenha a menor
importância. O que quer que eu decida fazer. — Ela tornou a
sair rapidamente.
Na manhã seguinte, pediu a Kate que fosse fazer compras
com ela. No caminho, viram vindo na direção delas uma
moça mais ou menos da idade de Maureen, empurrando um
carrinho de aspecto frágil onde uma criança pequena estava
sentada, bem segura com tiras. Ela trazia um outro menino
pela mão. A criança no carrinho tinha o rosto manchado de
lágrimas e demonstrava desconforto, pois a mãe pusera um
embrulho no descanso dos pés de maneira que as perninhas
tinham de ficar esticadas por cima do embrulho. A um olhar
casual era apenas um garotinho num carrinho; então, a sua
perplexidade, a sua infelicidade pareciam berrar para a rua,
gritando em busca de ajuda contra as tiras apertadas demais,
e o embrulho incômodo, o barulho do tráfego que fluía
estridente, o sol ofuscante sobre seu rosto. A mãe, meio
enlouquecida por causa da irritação das duas crianças,
empurrava o carrinho aos arrancos, enquanto era puxada
para o lado pelo outro menino, que tentava soltar-se aos
puxões da mão dela. Esse menino estava emburrado e com
raiva porque levara um tapa. Um dos lados de seu rosto
estava vermelho.
— Vamos — disse a moça. — Vamos andando senão você
vai apanhar de novo.
O menino continuou puxando a mão para trás, porque a sua
raiva havia mobilizado todas as suas energias, não porque ele
quisesse.
A moça soltou-lhe a mão, e lhe deu um tapa no rosto com a
palma da mão, e um outro com as costas da mão e
novamente com a palma. O menino ficou imóvel e olhou
para ela. Lentamente as lágrimas lhe foram enchendo os
olhos e escorrendo pelo rosto que ia ficando cada vez mais
vermelho.
— Ande logo — gritou a moça, fora de si. Tornou a agarrar a
mão dele e o arrastou. Ele perdeu o equilíbrio e caiu em
cima dela, agarrando-se ao seu vestido, tentando apoiar-se e
acabou caindo de quatro na calçada. Levantou o rosto
vermelho, enquanto abria a boca, soluçando, e o catarro lhe
escorria do nariz.
— E agora olhe só para o meu vestido — gritou a moça. Ele
tinha deixado manchas por todo lado, de gordura, suor,
lágrimas e açúcar do pirulito que estivera segurando na outra
mão e que agora estava em pedaços na calçada.
— Se você não se levantar já e começar a andar vou dar-lhe
uma surra que você vai ficar sem poder se sentar — disse
ela, inclinando-se para dizer isso baixinho, os olhos cheios
de ódio.
Ele se levantou devagar. Ela tornou a agarrá-lo pela mão. O
bebê no carrinho começou a chorar. Era de mal-estar, não
de raiva ou de manha. Aquilo fez com que o outro
começasse a chorar também, com o mesmo desamparo. Ele
corria desesperado atrás da mãe, que voava com largas
passadas rua acima, empurrando uma criança na sua frente e
arrastando a outra. Seu rosto, quando ela chegou perto de
Kate e Maureen, estava tão infeliz quanto o das crianças. Viu
as duas olhando para ela e lhes lançou olhares de desafio e
de "vá-tratar-da-sua-vida".
Ela examinou Maureen, naquela manhã com um vestido tipo
camisolão — branco bordado com flores em tons de azul —
e o cabelo louro em duas tranças que lhe caíam sobre os
ombros. O olhar da moça para Maureen dizia tudo a respeito
do que ela havia perdido quando se tornara mãe de duas
crianças. As lágrimas lhe encheram os olhos e os três
seguiram pela rua, agora um pouco mais devagar, os três em
prantos.
— Você nunca se lembra de uma coisa assim — disse
Maureen. — Por quê?
Kate ia responder: "Porque nunca aconteceu algo
semelhante". Mas continuou andando em silêncio, tentando
lembrar-se se tinha acontecido. Então Maureen disse:
— Se eu me casasse com William, não precisaria preocupar-
me, não é? Babás e governantas estariam por perto o tempo
todo. Bem, talvez isto seja o que vou escolher, afinal. Estaria
seguindo o curso tradicional, não é? Alguns anos no grande
mundo e então de volta ao paddock de casa.
Maureen estava pálida; parecia estar doente. Estava muito
longe da moça que deveria estar vestindo a alegre insolência
do vestido. Tão logo chegaram a casa, Maureen saiu
correndo, puxando o vestido por sobre a cabeça. Voltou
com um vestido escuro, sério. Sentou-se, encostou a cabeça
na parede da cozinha e fechou os olhos. As lágrimas lhe
escorriam pelo rosto. Logo enxugou o rosto com um lenço
de papel, de maneira casual, passou água nos olhos e saiu.
Kate arrumou-se e saiu do apartamento, ou melhor, toca,
pois era um espaço escavado na terra e emparedado com
tijolos. Era uma toca, não importando como quisessem
chamá-lo. Este pensamento a levou até o ponto onde podia
pegar um ônibus para o zoológico.
Assim que entrou no zoológico viu Maureen mais adiante,
ou melhor, viu duas tranças brilhantes sobre musselina
escura.
Era um dia de semana, não havia muita gente. O sol estava
cheio de uma luz forte e úmida. Kate não tinha vindo para
observar Maureen, assim escolheu o seu caminho. Viu um
cartaz onde estava escrito "Leões-marinhos" e ficou parada
junto do tanque onde ficavam e, cuidadosamente, pôs uma
moeda na máquina que fornecia informações. Enquanto
observava os leões-marinhos, maiores e mais desajeitados do
que o animal cujo peso agora podia sentir em seus braços o
tempo todo, mesmo durante o dia, soube que aqueles
animais não eram realmente focas, porque tinham orelhas
pequenas e conseguiam mover-se com facilidade sobre as
rochas e a terra. Não, a sua foca não tinha essa mobilidade.
Foi andando até o tanque redondo onde se encontravam as
focas, e ali se inclinou, observando as duas que havia.
Nadavam de um lado para outro como peixes-vermelhos
num aquário. Para quebrar o tédio do cativeiro elas
inventavam brincadeiras. Nadavam de barriga para cima,
durante metade do circuito, e então se viravam. Entravam e
saíam no jato de água que se erguia na base do tanque.
Nadavam cruzando uma com a outra, uma debaixo da outra,
sem parar.
Kate sentiu que Maureen estava do seu lado: virou-se e a
viu. Observaram as focas durante algum tempo, e então, sem
falar, se afastaram.
Mais adiante estava uma menina que parecia irmã de
Maureen, com cerca de treze anos. Tinha o cabelo preso só
na frente, e estava de jeans com uma blusa alegre. Era um
pouco rechonchuda: aquele estágio do crescimento em que
o corpo das meninas e as roupas não combinam. As calças
estavam justas demais; a blusa parecia ter saído do armário
da mãe. Era uma menina bonita, uma menina de Renoir,
toda roliça e ensolarada, mas seu rosto tinha uma expressão
desesperada. Corria atrás de um menino de uns quinze anos.
Era um menino alto, esguio, de rosto muito atraente. Tudo
nele era atraente, chamava a atenção, e as duas
compreenderam por que a menina tinha de segui-lo. Mas ele
também estava desesperado, muito perturbado com alguma
coisa. Maureen seguiu o casal. Kate foi com ela. Os quatro
seguiram em meio às poucas pessoas que ali se encontravam.
Junto da jaula de um macaco, o menino parou e ficou
olhando, com o cenho franzido. A menina estava bem atrás
dele.
A comida tinha acabado de ser servida, através de uma
portinhola, e via-se um macaquinho deitado de costas numa
prancha, relaxadamente refestelado, comendo um bom
pedaço de repolho fresco. O macaco era um retrato perfeito
de satisfação indolente, e o menino sorriu. Não era um
sorriso consciente, ele não sabia que tinha sido enfeitiçado
pelo macaco. As três mulheres observavam o menino e o
macaco, e a ansiedade que ele as fizera sentir havia
desaparecido, como se tivessem podido abraçá-lo. Enquanto
o macaco ficava recostado ali, comendo, um segundo, numa
prancha do outro lado da jaula, se sentou e o viu: o prazer do
companheiro perturbou o segundo animal, que saltou no ar
para alcançar a outra prancha. Aparentemente, o macaco
deitado nada tinha visto, mas, enquanto o que saltava ainda
se encontrava no ar, ele se levantou e pulou em direção a
uma terceira prancha. O macaco que tinha posto o outro
para fora começou a remexer os pedaços de repolho,
cenoura e laranja, mas não estava com fome. Simplesmente
ficara com inveja da satisfação do outro, não da comida.
Este, o invejoso, teve uma ereção: um longo espigão
vermelho saltou para fora. O que tivera de abandonar o seu
conforto observou o usurpador, e, à medida que o
observava, o seu próprio pênis foi crescendo, até que
começou a se masturbar. O menino agora ficou de cenho
franzido e empalideceu. Não parecera ter-se apercebido da
presença da garota, mas se virou bruscamente e a levou
embora, desaprovando que ela visse o macaco se mas-
turbando. A menina virou a cabeça uma vez, para olhar o
que não lhe era permitido ver. Então, obedientemente,
lançou-lhe olhares carinhosos sob os cílios dourados. Mas o
menino já se esquecera dela, seu braço se tinha soltado, e
logo depois se afastou, seguindo adiante. A menina o
acompanhou. Em seguida vinham Kate e Maureen.
Mais adiante, ele parou junto a um cercado onde se
encontravam três gnus. Tinha amendoins nos bolsos e,
ignorando o aviso que proibia que se alimentassem os
animais, estendeu a mão cheia de amendoins para o menor
dos três gnus. Imediatamente um dos maiores empurrou o
outro para longe e comeu os amendoins na mão do menino.
O menino esperou, paciente e resignadamente, até que os
grandes se afastassem. Tornou a oferecer alguns amendoins
ao gnu menor. Aconteceu a mesma coisa. Várias vezes
seguidas o menino tirou amendoins do bolso e tentou dá-los
ao animal menor, mas repetidamente os fortes o afastavam e
pegavam a comida. O menino ficou furioso e desapontado,
mas persistiu. Os dois animais maiores comeram todos os
amendoins, e o menor nada. Agachou-se então e, encostado
na grade do cercado, ficou olhando para o gnu pequeno com
pena e vontade de protegê-lo. As mulheres sabiam que, se
não fosse a grade, ele teria abraçado o gnu, teria sido capaz
até de ter encostado o rosto no pêlo áspero do animal e
chorado. Àquela altura Maureen e Kate também o amavam,
tanto quanto a menina, que estava atormentada pela
intensidade do seu amor. Não conseguia tirar os olhos de
cima dele, e estava parada bem atrás dele, louca de vontade
de que ele lhe desse atenção, e acreditasse na sua vontade de
ajudá-lo no esforço inútil para que o animal menor pudesse
comer os amendoins.
O menino não lhe deu atenção. Libertou-se de sua frus-
tração, afastando-se com passos largos. A menina seguiu
atrás dele. Ele começou a correr... será que era para livrar-se
dela? Ela também correu. Ele foi na direção de um viveiro
de pássaros e entrou. Quando chegaram lá, ele examinava
uma gaiola pouco menor que uma caixa de embalagem, onde
se via um pássaro de cores vivas, e havia uma plaqueta que
dizia que a ave fora doada ao zoológico em 1925. Agora, seu
rosto estava todo avermelhado e inchado, como o rosto do
garotinho que havia apanhado, caído na calçada. Foi
olhando de gaiola em gaiola, lendo as plaquetas que davam
detalhes sobre os pássaros. Um homem, que devia ser
tratador ou empregado de limpeza, entrou e o menino se
dirigiu a ele.
— Aquele papagaio, vocês nunca o deixam sair da gaiola? —
perguntou.
— Ora, não poderíamos deixá-lo sair voando e fugir, não é?
— respondeu o homem.
— Mas nunca? Eles nunca saem da gaiola?
O homem reagiu à emoção dele e foi embora dizendo:
— Não, eles ficam onde estão.
— Mas o senhor já se deu conta de que aquele pássaro está
naquela gaiola há meio século? Cinqüenta anos? — disse ele,
se descontrolando e puxando a manga do uniforme do
homem.
— Essa é a vida deles, não é? — disse o homem. Pegou a
vassoura que estava encostada na parede e começou a varrer
o chão, dando as costas para o menino.
Este estava numa agonia terrível. A menina foi ficar à seu
lado, sem ousar tocá-lo, e lhe lançou sorrisos que diziam que
poderiam acabar com toda a dor do mundo. Mas o menino
estava doente com o que sentia, o rosto extenuado,
contraído e sombrio. Toda a firmeza havia desaparecido.
— Você entende, Jane? Alguns desses pássaros estão aqui há
anos! Décadas! Há mais tempo do que nossos pais estão
vivos.
O rosto dela não lhe oferecia nada senão consolo, ele a
empurrou e saiu.
Num canto da alameda via-se uma máquina qualquer, talvez
de cortar grama.
Estava abandonada, largada ali. O menino parou,
examinando-a. Atrás dele estava Jane, que o amava. Atrás
dela, Maureen. Kate se colocou mais para o lado. Observava
os três — ela os via assim, um conjunto composto pelos três,
ela excluída. O belo menino infeliz, que não conseguia
aceitar o mundo, a menina bonita, que sabia que ele era
exagerado com tudo, mas que superaria aquilo, a bela moça
que examinava o seu futuro.
O menino tirou um saquinho transparente cheio de
amendoins do bolso de trás e o ofereceu à máquina. Quando
— na sua imaginação — a máquina tentou apanhá-lo, ele
puxou o braço para trás, com um sorriso gaiato.
Aquela encenação fez com que Kate se perguntasse se ele
tinha visto Maureen, se sabia que mais de uma mulher o
seguia.
Mas não parecia que fosse assim.
Tornou a estender a mão, oferecendo o saquinho, através do
qual se podiam ver os amendoins tentadores: quando a
máquina reagiu, novamente ele o afastou para trás.
Agora ele estava rindo, de maneira teatral, de forma que
Kate ficou sabendo que deveria ter notado pelo menos a
presença de Maureen, e isso logo ficou provado, pois ele se
virou e ofereceu o saquinho fechado a Maureen, como
fizera com a máquina, rindo para ela de maneira agressiva.
Maureen não recuou, nem sorriu, nem franziu o cenho.
Ficou parada olhando para ele, que se foi acalmando. Só
então ele a viu, uma jovem bonita, com as tranças douradas
sobressaindo em contraste com o vestido escuro. Estava
estonteante sob a luz forte do sol. O rosto dele, que estivera
contraído pela dor de ter de admitir a sua juventude,
começou a suavizar-se. Rasgou a parte de cima do saquinho
e o ofereceu a Maureen. Ela estendeu o braço, a mão aberta
bem perto dele, que teve de encolher o braço para deixar
cair os amendoins na palma da mão de Maureen; parecia que
ele estava sacudindo os amendoins para fora, de dentro do
próprio peito. Ele riu. Ela sorriu e jogou os amendoins na
boca, os dentes brancos brilhando. Os dois começaram a
andar lado a lado. Atrás deles seguia a menina desolada.
Atrás da menina, a mulher de meia-idade.
As duas que seguiam não podiam ver as expressões do rosto
do casal. Pareciam felizes. Pareciam estar rindo. Foram
seguindo adiante, passaram pelo serpentário e entraram no
prédio onde ficavam os peixes e plantas marinhas.
Jane entrou atrás deles, depois, Kate.
Os quatro foram seguindo na semi-obscuridade do corredor,
ao longo das paredes de vidro bem-iluminadas, atrás das
quais se via uma quantidade de peixes. Os dois que seguiam
na frente estavam em silêncio. Andavam devagar, ao que
parecia dando a mesma atenção a cada tanque por onde
passavam. Mas pararam por muito tempo diante de uma
parede de água borbulhante. Ali na água acidula havia uma
arraia. Estava brincando. Mantinha-se na corrente fresca e se
agitava e se ondulava, parecendo dançar: estava inebriada
com o ar que vinha do mundo do lado de fora do tanque.
Maureen beijou o menino e riu.
Ele a beijou com ardor.
De mãos dadas, seguiram adiante.
Atrás deles ia Jane, olhando para eles, só para eles, não
vendo mais nada, nem os peixes, nem a arraia a brincar na
água borbulhante.
Kate saiu dali disposta a ir embora, mas, como Jane, tinha de
ver, tinha de presenciar aquela morte, tinha de ser pregada
na sua cruz. Esperou. Então viu Maureen sair, ainda de mãos
dadas com o menino. Atrás deles, Jane.
Maureen, rindo de novo, beijou o menino, num triunfo
cruel, um desafio a tudo, um tapa na cara do mundo. Ela viu
Kate e o fez outra vez. Foi então que o menino se afastou
dela; sentia-se usado. Ficou parado, vendo Maureen ir
embora. Depois, embora parecesse que não tinha visto Jane,
aproximou-se dela e pôs o braço em seu ombro, dizendo
num tom irritado, mas paciente:
— Jane, não, não fique assim, por que é que você tem de
ficar sempre aborrecida?
— Não posso fazer nada! — Ela começou a chorar e
encostou o rosto no ombro dele. Ele a abraçou,
mergulhando o rosto nos seus cabelos. Mas continuava
olhando Maureen, que se afastava.
Kate foi juntar-se a Maureen, que disse:
— Então muito bem, vou casar-me com Philip.
— Por que não?
— Por que não? Stanley? Eles se importam, não se im-
portam? Com animais, pássaros e peixes. Isso para não falar
das pessoas.
— Oh, não seja tão terrivelmente... — Kate estava furiosa.
Possessa de raiva. Foi andando depressa, afastando-se de
Maureen, que veio atrás dela e disse:
— Desculpe-me, Kate.
Depois de alguns instantes, Kate se acalmou e disse:
— Não há razão, eu é que peço desculpas. — Sua voz lhe
pareceu pretensiosa.
Quando chegaram a casa, Maureen disse:
— Nós estamos sempre pedindo desculpas uma à outra.
— Sim, como as pessoas nas famílias.
— Exato.
— Bem, agora não vai ser mais assim muito tempo.
Naquela noite Kate sonhou assim que adormeceu. A es-
curidão ainda estava densa e fria. Agora a foca estava tão
pesada que nada podia fazer a não ser arrastá-la pela neve.
Não estava mais preocupada com a foca, nem que pudesse
estar morta ou à beira da morte; sabia que estava cheia de
vida, e, como ela mesma, cheia de esperança.
Uma rajada violenta de ar salgado a envolveu; respirava o ar
salgado do mar. A neve parara de cair. Os toques leves que
sentia no rosto não eram neve, mas uma brisa fresca e cálida.
Viu que a neve tinha desaparecido no chão, estava andando
sobre a grama primaveril, uma grama verde, tão rala que
permitia que se visse a terra escura e úmida. O chão estava
coberto de flores em botão. Mais adiante, o terreno se
elevava abruptamente. Ela subiu a elevação e parou com a
foca nos braços, no topo de um pequeno promontório, e
ficou olhando para o mar lá embaixo, que refletia um céu
ensolarado, muito azul. Nos rochedos, focas se aqueciam ao
sol.
Empregando o que restava de suas forças, tirou a foca do
chão, de forma que o rabo não ficasse machucado por ser
arrastado, e desceu, com dificuldade, por um caminho
estreito que ia até a beira do mar. Ali, numa rocha achatada,
deixou que a foca deslizasse para dentro da água. Ela
mergulhou, desaparecendo, em seguida subiu até a
superfície e pousou a cabeça na beira da rocha pela última
vez. Os meigos olhos escuros voltaram-se para ela. Fechou
as narinas e mergulhou. O mar estava cheio de focas,
nadando uma ao lado da outra, virando-se para nadar de
costas, revirando-se e mergulhando, brincando. Uma foca
passou por ela, nadando. Tinha cicatrizes nas costas e nos
flancos, e Kate pensou que aquela devia ser a sua foca, a que
tinha carregado em meio a tantos perigos. Mas a foca não
olhou para ela naquele momento.
A jornada chegara ao fim.
Viu que o sol estava na sua frente, não lá longe, bem para
trás, além da curva da terra, onde estivera por tanto tempo.
Olhou para o sol, um grande sol claro e brilhante,
exuberante e alegre, que parecia cantar.
Ela se virou, sabendo que tinha acabado o sonho. Acordou.
Contou a Maureen, que disse:
— Então está tudo bem, não é?
— Acho que sim.
— Quis dizer, está tudo bem para você.
Maureen estava sentada na mesa da cozinha e a sua voz
tinha um tom de crítica.
— Você acha que os sonhos são só para as pessoas que os
têm? Quem sabe não são?
— Não fui eu que sonhei isso — disse Maureen. — Fui?
— Acho que não.
— Não é o tipo de coisa que eu sonhe. Gaiolas e estar presa
numa gaiola fazem muito mais meu gênero, você estava
certa.
Não disse mais uma palavra. Assim, Kate foi até o telefone e
ligou para casa para avisar que voltaria no dia seguinte. Foi
com Eileen que falou. Eileen estivera tomando conta da casa
durante todo aquele tempo.
— Oh, está tudo bem, mamãe, temos nos arranjado
perfeitamente bem.
Kate voltou para a cozinha e disse:
— Sabe de uma coisa? Estou desempregada! Nada tenho para
fazer. Que é que você me aconselha? Assistência social?
Instituições públicas de beneficência? A Alimentação
Mundial... creio que isso é uma instituição pública de
beneficência.
Maureen fez um gesto de irritação e Kate tornou a deixá-la.
Mais tarde, ela entrou no quarto de Kate para dizer:
— Vou dar uma festa.
— Por que é que você está falando desse jeito?
— É uma frivolidade dar uma festa, não é o que você diria,
Kate? Cruel? Mesquinho?
— Quando?
— Hoje à noite. Por favor, venha. Realmente gostaria que
você viesse, gostaria mesmo.
Passou o resto da tarde no telefone, enquanto os entre-
gadores chegavam, uns após os outros, com comida e
bebida.
Entrou no quarto onde Kate estava deitada, como uma
viajante, pronta para partir, as malas feitas, suas coisas todas
arrumadas e guardadas, e disse:
— Não importa droga nenhuma o que você faça. Ou o que
eu faça. É nisso que se resume tudo. É isso o que ninguém
tem coragem de enfrentar.
— Não acredito nisso...
— Não me interessa se você acredita ou não. — Ela saiu e
voltou. — A sua foca está salva, não está? Foi salva e está em
segurança.
— Eu não a via como sendo a minha foca.
— Sim. De maneira que, se você morresse amanhã, não teria
importância, não é?
Ela estava histérica. Kate se deteve no meio do pensamento
de que devia fazer alguma coisa a respeito daquilo — o quê?
Oferecer aspirina? Bons conselhos? Uma xícara de chá? O
telefone começou a tocar de novo e Maureen saiu, dizendo:
— O que quer que exista de importante, se o for, se alguma
coisa puder ser, então ninguém me falou ainda a respeito
disso.
Kate ficou em suspenso, esperando que o telefonema
acabasse. Várias seqüências de palavras surgiram em sua
mente, provavelmente vindas de artigos de fundo de jornais
ou programas religiosos de televisão. Por exemplo: "O
mundo já esteve em má situação com freqüência, e as
pessoas se desesperaram". "Não adianta ceder à morbidez."
Depois havia o que ela mesma estava pensando: "Milhões de
pessoas estão morrendo, morrerão, talvez você e eu este-
jamos entre elas, mas tem de haver algumas por aí para man-
terem a cabeça fria e seguirem adiante". "Mas a história desse
planeta nunca foi outra coisa senão catástrofes, guerras,
miséria; está um pouco pior dessa vez." "O que você está
realmente procurando é um homem que tenha todas as
respostas e que diga 'Faça isso, faça aquilo'. Não existe tal
espécie."
Ouviu Maureen dizer: "Sim, uma festa. É de última hora, só
tive a idéia hoje. Sim, venha, ótimo". Ela estava dando
ênfase à maneira de falar de sua educação formal.
Kate nada podia fazer por Maureen. Mas tinha filhos: seria
agradável levar-lhes presentes quando voltasse para casa,
ainda tinha um bocado de dinheiro da Alimentação
Mundial. Fez compras. Examinou-se nas vitrinas; seu corpo
havia readquirido o aspecto normal. O rosto envelhecera.
De maneira bastante evidente. Eles dificilmente poderiam
deixar de perceber. Que é que diriam? Fingiriam que nada
tinha acontecido: "Você está maravilhosa, mãe!" A luz que
constitui o desejo de acabar também havia desaparecido. E já
não era sem tempo... O cabelo... bem, ninguém podia deixar
de reparar nisso!
Suas experiências nos últimos meses, suas descobertas, sua
autodefinição; o que esperava que agora fossem forças
estavam concentradas ali — ela ia entrar em casa com o
cabelo como estava, amarrado para trás de maneira prática,
áspero e espigado, e com a faixa cinzenta que se alargava à
mostra, como uma afirmação, uma declaração de realidade.
Era como se o resto dela — corpo, pés, até o rosto, que
estava envelhecido, mas afável — pertencesse a todo
mundo. Mas o cabelo... Não! Ninguém iria pôr as mãos
naquilo. Durante toda a sua vida adulta, para ser mais
precisa, desde que deixara a casa de seu avô, em Lourenço
Marques, estivera num ambiente onde tudo era dito:
pensamentos, impulsos, sentimentos eram coisas que
tinham de ser rapidamente reconhecidas tanto por ela como
pelos outros — adiamentos ou ambigüidade sendo, aqui,
possivelmente perigosos — e então classificados, catalogados
e colocados em seus devidos lugares nas prateleiras. Ou, se
preferirem, num computador. Tinha vivido entre palavras e
pessoas criadas para usarem e serem usadas por palavras. Mas
agora que era importante para ela, uma questão de
autopreservação, que fosse capaz de fazer uma declaração;
que era importante que fosse compreendida, ia fazer, e não
ia fazer, certas coisas com o cabelo: substância cremosa
lentamente espremida para fora de um tubo sobre o seu
couro cabeludo, como espaguete saindo de uma máquina, a
única parte dela que nada sentia se fosse alisada, apertada ou
manipulada. As roupas, o penteado, as boas maneiras, a
postura, a voz da Sra. Brown (ou de Jolie Madame, como se
dizia no comércio) tinham sido uma reprodução, da qual o
menor dos desvios lhe causara tanto desconforto quanto o
que o rato do cientista sente quando as alavancas certas são
empurradas. Mas agora estava dizendo: "Não, não, não,
não..." Não: uma declaração que estaria concentrada no seu
cabelo.
Encontrou Maureen sentada na sua cama (a de Kate), sem
fazer nada. Já eram sete horas. Os preparativos para a festa
tinham sido feitos, mas Maureen ainda não se tinha
arrumado. Maureen não se levantou da cama. Será que a
estava querendo de volta para si, para seus amigos? Kate
disse:
— Fiz uma descoberta. Encontrei a maneira como vou fazer
declarações e afirmações, ao voltar para casa, embora não
tenha certeza a respeito de quê. Mas a minha zona de
escolha... sabe o que quero dizer?... bem, está limitada à
maneira como arrumo o meu cabelo. Não é incrível?
Maureen encolheu os ombros.
— Estava pensando — continuou ela. — Eu disse
absolutamente tudo o que eu sentia para você. A respeito de
tudo. Mas durante anos tenho estado distribuindo o que
pensava e sentia em pequenas rações. Digo a mim mesma
que não devo dizer isso a fulano de tal, posso dizer isso a
Eileen, mas não para Tim. Mary não vai compreender isso:
por exemplo, nunca poderia falar com Mary sobre a foca.
Mas poderia falar com Tim. É claro que digo as coisas a
Michael, mas é como se ele estivesse ouvindo uma coisa tão
distante que nada tivesse a ver com ele. Gostaria de saber se
ele sente que é assim que ouço o que ele me diz. É claro que
ele não sonha, diz ele. Tudo que lhe acontece é sempre
vindo do exterior. Será que é possível que eu esteja tão
distante dele? Nós que vivemos juntos há tanto tempo? Não
que ele fosse ficar chocado ou surpreendido com qualquer
coisa que eu fosse dizer, mas é bastante evidente que ele está
sempre ouvindo notícias vindas de um outro continente. E
ele nunca o visitou nem pretende fazê-lo. Mas me parece
assim como se houvesse pedacinhos de mim distribuídos
pela minha família, o pedacinho de Tim, o pedacinho de
Michael, o pedacinho de Eileen... e assim por diante. Ou
melhor, tivessem estado distribuídos. Tivessem estado. Isso
acabou. Mas para você eu posso dizer qualquer coisa.
— Navios que passam — disse Maureen. — Como pessoas
que se encontram em viagens. Provavelmente nunca mais
nos encontraremos.
Ela saiu e fechou a porta.
Uma hora depois, o silêncio ainda era absoluto no
apartamento. Kate procurou por ela. Tinha posto o vestido
de noite estilo 1930, daquele tipo que é cortado enviesado e
que fica bem justo. Era decotado nas costas, com alças bem
estreitas cruzadas. Era de cetim preto. Tinha cortado o
cabelo. Cortara reto na altura do lóbulo da orelha. Estava
penteado para baixo bem liso e com as pontas viradas para
dentro. Mas, se ela estava o retrato perfeito de uma ninfa até
o pescoço, sua cabeça parecia a de uma mulher que tivesse
acabado de sair da prisão ou de um colégio interno.
Estava sentada numa almofada no vestíbulo, fazendo alguma
coisa com os pedaços do cabelo cortado. Ela ergueu o
objeto. Seus olhos preferiram não enfrentar os de Kate. Ela
dera nós no cabelo fazendo uma bonequinha, como um
fetiche das festas pagãs da colheita, uma boneca de milho.
Kate ficou chocada como, é claro, se esperava que ficasse.
— Vai ser uma festa daquelas — disse ela.
— É isso mesmo.
A campainha tocou. Os convidados estavam chegando.
— Oi.
— Oi.
— Alô.
— Oi. — Beijos.
— Que é isso aí na sua mão, Maureen?
— É o meu cabelo. Não está vendo? É o meu bebê. —
Maureen começou a dançar diante deles, sem fitá-los, mas
levando a bonequinha que estava pendurada no seu pulso:
um frágil fantoche dourado.
Logo a casa ficou cheia. As várias pessoas, os muitos rapazes
que seguiam o corpo de cetim preto de Maureen com os
olhos, e entre eles Stanley, Philip, e um homem bastante
mais velho que os outros, robusto, autoritário, que não podia
ser outro senão William — o passaporte que a levaria de
volta para o seu meio, se quisesse usá-lo —, todo o grupo de
múltiplos rostos parecia um ser, um mapa ou uma afirmação
da riqueza da vida de Maureen, cheia de possibilidades. Mas
seus convidados foram recebidos pela bonequinha de
cabelo, não por ela. Não parecia ser capaz de olhar para eles,
de ficar com ninguém por tempo suficiente para uma
conversa; movimentava-se rapidamente, indo de um grupo
para o outro, ou dançava um passo ou dois com algum rapaz
e se esgueirava afastando-se dele; ou se ausentava cuidando
das bebidas e da comida.
Kate se perguntou por que não voltava para casa naquele
momento, naquele minuto, naquela noite. Não havia
necessidade de esperar até o dia seguinte.
Deixou um bilhete para Maureen com um vidro de perfume,
uma vez que não conseguia pensar em nada melhor, nada
que fosse apropriado.
Parou no vestíbulo com a mala na mão e procurou Maureen.
Maureen estava nos braços de William. Ele estava reclinado,
as costas contra a parede, os pés firmes no chão, segurando
Maureen com as duas mãos em torno de sua cintura.
Ela estava encostada nele languidamente, uma das mãos
revirando o chumaço de cabelo que estava pendurado no
seu pulso, o cenho franzido, sem olhar para ele.
— Você sabe muito bem que no fim vai acabar se casando
comigo; assim, por que não agora, logo de uma vez?
— Eu sei disso? Não creio que saiba — disse Maureen,
girando a bonequinha em círculos.
— Dê-me esse negócio, não gosto disso.
Mas ameaçar as fortificações não era de maneira alguma a
coisa certa a fazer, pois ela segurou o fantoche e disse:
— E não é para gostar mesmo.
Ela falava com petulância, será que era de bom augúrio para
as suas chances?
Podia-se facilmente imaginá-los juntos numa casa grande em
Wiltshire ou em outro lugar qualquer, rodeados por uma
quantidade de cavalos, crianças e cachorros, tudo de acordo
com os padrões, inclusive comentários irônicos deles a
respeito daquilo.
Atrás de William, na porta da cozinha, apareceu Philip,
uniformizado como de hábito, acompanhado por uma moça
bonitinha, tipicamente inglesa, a sua feminilidade
violentamente subjugada pela responsabilidade, dever,
trabalho... a ladainha toda. À primeira vista, uma "fazedora
de omeletes", uma viga sustentadora voluntária de fardos e
escolhas desagradáveis. Usava um vestido que parecia tanto
com uma farda como a roupa de Philip, de crepe azul-
marinho, com uma golinha branca e um broche, que parecia
uma medalha, na parte superior do seio esquerdo
firmemente achatado. Aqueles dois formavam um par
perfeito, e ela estava com a mão no cotovelo dele; mas
Philip não conseguiu impedir-se de olhar com um misto de
fúria e desejo para Maureen, lânguida e desajeitada ali nos
braços do seu William.
— Simplesmente não vou admitir essas suas idiotices — disse
William, experimentando bancar o irmão mais velho e
tentando arrancar o chumaço amarelo do pulso dela.
— Não, não — gritou ela. — Pare com isso. — Mas con-
tinuou onde estava.
E lá estava Philip, observando os dois, e a moça observando
Philip, enciumada.
Ninguém viu Kate com a sua mala. Ela a apanhou, saiu do
apartamento sem ser observada, e foi andando na direção do
ponto do ônibus, para casa.

"Amanhã estará melhor, sim, sim, madame, eu estou certo." Em francês no original.
(N. do E.)
"Em lugar de um dos pais; como se fosse a mãe." Em latim no original. (N. do T.)




Reenviando para quem pediu
 
 
Lançamento Arcanjo Micael
O Verão Antes da Queda - Doris Lessing
 
 
 
 
links ao final da mensagem
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
 
Sinopse:
 
Uma mulher de 45 anos, quatro filhos adolescentes e um marido médico. De repente surge a aventura com um homem muito mais novo do que ela. E de repente ela descobre a si mesma: uma mulher de alta classe média, que se quer independente, mas revê seus papéis de esposa, mãe e mulher convencional e percebe que ainda vive presa "entre palavras e pessoas criadas para usarem e serem usadas por palavras". Esse é o tema deste livro de Doris Lessing, a maior escritora inglesa da atualidade, e uma mulher dividida entre a militância do Partido Comunista e a própria luta pela emancipação feminina.
 
 
 
 
 
 
 

 
Este e-book representa uma contribuição do grupo Arcanjo Micael para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente, benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras

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