segunda-feira, 31 de dezembro de 2012 0 comentários By: Fred

{clube-do-e-livro} 2 livros de Robert Ambelain em anexo a vocês, sobre alquimia

Robert Ambelain

O Homem que criou Jesus Cristo



Colección Enigmas del Cristianismo

Ediciones Martínez Roca, S. A.



Título original: La vie secrete de saint Paúl, publicado por Éditions Robert
Laffont, París



© 1972, Éditions Robert Laffont, S. A.

© 1985, Ediciones Martínez Roca, S. A.

Gran Vía, 774, 7.°, 08013 Barcelona

ISBN 84-270-0941-0

Depósito legal B. 10.752-1985

Impreso por Diagráfic, S. A., Constitución, 19, 08014 Barcelona

Impreso en España -- Printed in Spain



Índice



Advertencia



Introdução: FILHO DO DESEJO OU FILHO DO TUMULTO?



Primeira parte: O GRANDE SONHO DE SÃO PAULO



1. Paulo, o apóstolo tricéfalo



2. Os estranhos protetores de Pauo
3. A viagem à Roma



4. Um príncipe herodiano chamado Shaul



5. Um estranho cidadão romano



6. A dinastia Idumeia



7. De Saulo, príncipe herodiano, a Simão o Mago



8. O verdadeiro caminho de Damasco



9. A família de Saulo-Paulo



10. Paulo e as mulheres



11. O «Quadrado de Amor» de São Irineu



12. A verdadeira morte de Estêvão



Segunda parte: PAULO, QUEM CRIOU CRISTO



13. A religião paulina



14. As visões de Paulo e suas contradições



15. Um apóstolo ignorado: Salomé, egéria de Jesus
16. O império paulino



17. As provas de Saulo-Paulo



Terceira parte: AS CHAMAS DE ROMA



18. A prostituta do Apocalipse



19. O incêndio de Roma no ano de 64



20. Psicologia dos incendiários



21. Nero



22. O fim do sonho

Anexo à primeira edição



O costume romano consiste em tolerar certas coisas e em
silenciar outras...

Gregório VII, carta de 9 de março de 1078 ao Hugues do Die,
legado pontifício

Desde tempos imemoriais é sabido quão proveitosa nos resultou essa fábula
de Jesus Cristo!

Leão X, carta ao cardeal Bembo

Nota: A carta de Gregorio VII cita Fierre de Luz em Histoire des Papes
(Imprimatur, Albín Michel, Paris, 1960, tomo I, P. 148). A carta de Juan de
Medieis, aliás Leão X, citada por Pico de la Mirandola, diz o seguinte em
latim: «Quantum nobis notrisque que ea de Christo fábula profuerit, satis est
omnibus seculis notum...». Seu terceiro sucessor, Alejandro Farnesio, aliás
Paulo III, confiaria ao duque de Mendoza, embaixador da Espanha em Roma,
que ao não descobrir nenhuma prova da realidade histórica de Jesus Cristo
da lenda cristã, via-se obrigado a tirar a conclusão de que se achavam ante
mais um deus solar mítico.
Advertência

A História é uma ciência que, para merecer esse qualificativo, tem a
obrigação de ser exata, de repousar sobre documentos e sobre sua
confrontação, sobre severos controles cronológicos e sobre dados que
possam provar-se.

Frequentemente a lenda não é outra coisa que sua deformação, ampliada
por amor ao maravilhoso, e alimentada às vezes expressamente, em
proveito de interesses do mais materiais.

Assim, a História é para os adultos, e a Lenda para aqueles que ainda não
o são, ou o são de forma incompleta. Foi por isso que o acadêmico Marcel
Pagnol pôde dizer em seu estudo definitivo sobre Le Masque de Fer: «O
primeiro dever do historiador consiste em restabelecer a verdade destruindo
a Lenda. Sem ele, a história dos povos não seria mais que um extenso
poema, onde os fatos, engrandecidos e dramatizados pela imaginação das
multidões, enormemente embelezados ou inventados pelos aduladores dos
reis, brilhariam, em cor de ouro e de sangue, em meio de uma luminosa
bruma».

Nestas páginas às vezes se encontrarão entrevistas de documentos
repetidas. Estas nos pareceram indispensáveis, já que cada um dos
capítulos desta obra constitui um todo, e o mesmo argumento pode ver-se
requerido como testemunho em diferentes circunstâncias e com diferentes
fins. E esse argumento pode havê-lo esquecido o leitor...

Como dizíamos em nossa obra Jesus ou o segredo mortal dos templários,
[Martínez Roca, S. A., Barcelona, 1982] uma verdadeira lavagem de cérebro
dogmático impregnou, pelas boas ou pelas más, durante mais de quinze
séculos, a psique hereditária do homem ocidental, e freqüentemente, sem
que ele se desse conta, tem-no feito mais ou menos refratário à crítica, ou
inclusive à lógica mais evidente.

Contra essa verdadeira tortura intelectual, que ainda segue vigente em
nossa época, o historiador desejoso de servir à verdade se vê obrigado a
utilizar os mesmos argumentos. E se desculpa de antemão por isso, embora,
como dizia também Marcel Pagnol: «Essas repetições não são elegantes,
mas este livro não é uma obra literária; não é mais que a instrução de um
caso criminal na qual a precisão e a oportunidade de uma observação têm
freqüentemente muito mais importância que a pureza do estilo». O que
acrescentar à estas palavras?

Robert Ambelain
Junho de 1970
Introdução

Filho do desejo ou filho do tumulto?

Costobaro e Saulo tinham também consigo grande número de guerreiros, e
o fato de que fossem de sangue real e parentes do rei os fazia gozar de uma
grande consideração. Mas eram violentos e sempre estavam dispostos a
oprimir aos mais débeis...

Flávio Josefo Antiguidades Judaicas, XX, 8.

Guinneth-Saar, o «Jardim dos príncipes»...

Os rabinos denominam a este vale Kinnereth, segundo o antigo nome que
figura em suas escrituras, mas os kanaim, ou zelotes, por ódio aos
incircuncisos privilegiados que têm ali suas ricas mansões, chamam-no
Gehenne-Aretz (pelo que os gentis fizeram Genesa-ret, devido a uma má
pronúncia), quer dizer o «vale da aridez», do mesmo modo que denominam
«negrume» a Mentis, a capital religiosa do odiado Egito, quando o mesmo
nome em egípcio hierático significa «brancura». Trocadilho, inversão, que de
uma vez quer ser maldição, mas que não pode fazer esquecer o velho dict
rabínico:

«Dos sete mares que criou o Eterno, o do Kinnereth constitui seu maior
gozo...».

Neste vale afortunado, situado na borda ocidental do mar da Galiléia,
crescem livremente as palmeiras, os limoeiros, as laranjeiras, que mesclam
seus aromas ao dos altos eucaliptos prateados. Todas as árvores frutíferas
(ameixeiras, damasqueiros, pessegueiros e figueiras) associam-se às
oliveiras para oferecer ao homem o benefício de seus saborosos frutos,
como se temessem ser desbancados por seus irmãos aristocráticos (adelfas
rosas e brancas, com perfume de mel, aloés, agaves) e todas as variedades
de flores silvestres (Narcisos, anêmonas, etc.). E quando chega a primavera,
logo anunciada pela presunçosa amendoeira, prepondera por cima de todos
esses aromas o aroma voluptuoso da acácia silvestre, a árvore que,
segundo Salomão, vela sobre as cinzas de Adonirão, prodigioso demolidor
das colunas do Templo e marido secreto do Baikis a misteriosa.

Em meio de toda esta flora embriagadora se cruzam, a beira da borda, os
rosados flamencos, os cormoranes, as frangas de água, os patos selvagens
e os pelicanos; às vezes inclusive alguns íbis avermelhados, aventurados
longe do piedoso Egito. Durante o dia, muito acima no céu, o vôo da águia
real se cruza com o do lento abutre, e quando chega a noite com sua luz
rosada, nos aromáticos arbustos, compostos de zimbros, frutos e arbustos,
desliza-se silencioso e indolente, mas com a vista e o ouvido à espreita, o
ágil e majestoso leopardo.

Mar adentro, para o norte, umas velas brancas imóveis esperam que o
vento da tarde, procedente do mar de Fenícia, muito próximo, ao oeste,
permita aos pescadores desdobrar sua destreza de marinhos e conduzir ao
Cafarnaúm e Betsaida quão pescados suas redes capturaram.

Este é o quadro que nos oferece de dia, no ano 8 do reinado de Tibério
César, o mar da Galiléia e suas encantadoras praias ao redor da
desembocadura do Zaimon, que constitui o eixo do vale do Guinneth-Saar.
Mas uma vez de noite, o ambiente é completamente distinto.

À hora em que começa este relato de restituição, um pouco de luz se
reflete sobre as águas turvas do lago, pois a lua, em seu quarto minguante,
ilumina vagamente a cadeia montanhosa que borda a orla oriental.
Inumeráveis estrelas salpicam com seu brilho o escuro veludo azul do céu
da Galiléia, e os pastores, se conhecerem as constelações, podem ver subir
por oriente ao Ibt-al Jauza, o Ombro do Gigante, estrela que os gentis
chamam Betelgeuse, enquanto que Yed-Alphéraz, o Ombro do Corredor
celeste, a quem os mesmos denominam por então Merkab, culmina no
zênite. A noite é fresca e suave, e a umidade se condensa pouco a pouco.

Em uma pequena península que entra nas águas se ergue uma massa
escura. Elevados muros, de mais de quarenta e dois metros de altura, em
ligeiro pendente que termina em um caminho de ronda, sustentam e isolam
um promontório coberto por um amplo terraço lajeado. O único acesso
possível constitui uma estreita porta de bronze, que se abre para uma
escada interior esculpida na rocha. Sobre esse terraço se eleva uma grande
mansão de tipo grego, com três pisos de pérgolas sobrepostas. Ao redor das
colunatas de sustento destas últimas se enroscam e sobem plantas
aromáticas: jasmim e madressilva. Está aberto um único batente para a
brisa noturna que chega das montanhas da borda oriental, e dessa abertura
sai um tímido feixe de luz avermelhada, que se estende sobre a terraço
como uma toalha de sangue seca. A silhueta escura de um arqueiro da
Nubia em cócoras e imóvel frente ao parapeito, como uma estátua, é o
único que rompe a monotonia do lugar.

E a intervalos quase regulares, com a monótona cadência de um eco,
eleva-se um clamor no silêncio da noite, um grito que parece caminhar com
o passar do caminho de ronda, que decresce e que logo volta a começar
crescendo para terminar muito perto: «Schemero... Schemero...
Schemero...». São os sentinelas, que intercambiam o grito de alerta
regulamentar, um detrás de outro, a fim de manter-se em contato e
acordados.

É que esta mansão é a de Cypros, princesa herodiana, a segunda que leva
este nome, esposa do Antípater II, sobrinho de Herodes, o Grande, e seu
isolamento a quase uma milha romana de distância de Tiberíades, a nova
cidade que erige em honra do imperador Tibério seu meio-irmão Herodes
Antipas, tetrarca da Galiléia, exige uma severa vigilância diurna e noturna.

Porque não é estranho ver descender dos vales perdidos da alta Galiléia os
clãs de montanheses peludos e barbudos, armados com lanças, com as
curtas sicca e o pequeno escudo redondo. Estes, drogados pelo boanerges*,
o «filho do trovão», o terrível cogumelo alucinógeno, caem sobre as ricas
residências da dinastia Iduméia e de seus mais importantes oficiais, tanto
por amor à pilhagem e à guerra como por ódio aos «incircuncisos». Porque
entre os galileus é onde se encerravam principalmente aqueles a quem os
ocupantes romanos chamam sicarii, os gregos de Decápolis, zelotes, e os
judeus das diversas seitas, kanaim.

*[Boanerges: antigo termo acádio que significa «filho do trovão» que
designa um certo alucinógeno, a Amonita muscaria, que por aparecer
imediatamente depois da tormenta, foi denominada assim pelos povos
primitivos da Suméria e Acádia. Utilizavam-na para obter visões. Jesus,
Santiago e João fizeram uso dela, como provam os evangélios: Marcos, 3, 17
e 21. (Cf. JOHN MARCO ALLEGRO, Le Champignon sacre et la Croix, Albin
Michel, Paris, 1971.]*

Por isso os arqueiros núbios e os guardiães sírios que formam a pequena
guarnição da mansão de Cypros e do Antípater (uns cinqüenta homens, no
máximo) têm sempre pronta a fogueira para dar o sinal de alerta, que lhes
bastará acendendo de noite ou fazer fumegar durante o dia, a fim de avisar
à guarnição de Tiberíades, apenas se deixe ouvir ao longe o ritmo surdo e
lancinante dos tambores de combate kanaítas.

Esta noite sua atenção está mais alerta que de costume, já que se
assinalou uma importante concentração zelote na borda sul do mar da
Galiléia, lá onde o Jordão reata seu curso. Entre esses homens, os
observadores reconheceram a vários filhos de Judas o Gaulanita, e entre
eles o famoso Ieschuah. De maneira que os arqueiros negros da guarda
conservam o arco pronto, com sua corda ao redor do ombro direito, e aljava
de couro à costas, ao alcance da mão, bem provido de flechas de ferro
denteado; de sua cintura pende, além disso, a curta e longa espada de
regulamento. Os mercenários sírios, por sua parte, vão armados de uma
grossa lança de ferro, uma longa espada e um escudo de madeira,
recoberto de couro de rinoceronte ou de hipopótamo, peles vindas do alto
Nilo pela rota das caravanas; assim estão a prova de dardos e lanças. Todos
levam um casco de metal redondo, sem viseira nem elmo.

Mas tudo parece em calma. Demétrios, o chefe da guarda, acaba de
voltar de sua ronda com alguns homens e dois leopardos presos com
correias. É que esta noite não é como as outras, e Demétrios, um grego da
próxima Decápolis, sabe melhor que ninguém: Cypros, esposa de Antípater,
vai dar a luz a um novo filho. O primeiro foi uma menina. E se a opinião da
matrona é acertada, o acontecimento se produzirá antes da alvorada. Por
isso Demétrios estendeu sua ronda até as tendas montadas perto do lago,
onde acampam os arqueiros negros e os lançadores sírios que não se acham
esta noite de serviço na mansão. Penetremos com ele nesta.

Em uma ampla estância, cuja porta está totalmente aberta sobre o terraço,
lâmpadas de bronze providas de azeite de nafta prodigalizam uma luz
dançarina. Um tripé de prata sustenta uma chaminé de bronze com brasas
avermelhadas sobre as quais se jogaram aparas de madeira de sândalo, e
sua azulada e aromática fumaça se eleva devagar e obliquamente para a
porta aberta. Grossas tapeçarias vindas de muito longe, uns de Catay e
outros da Ecbatana, Edesa ou Nyssa, atiradas ao acaso, uns sobre os
outros, cobrindo as largas lajes de mármore branco. Ao longo das paredes
se alinham irregularmente cofres de madeiras preciosas, com maravilhosas
incrustações de madrepérola ou de marfim. Altos e pesados cortinados de
linho, feitos de vários tecidos grossas juntas, e cujos bordados e matizes
harmonizam com o destino e a decoração da estância a que estão
encarados, separam a câmara principesca das salas fronteiriças.

Sentadas no chão, sobre seus calcanhares, algumas faxineiras judias ou
beduínas esperam em silêncio. A matrona acaba de apalpar uma vez mais o
abdômen da parturiente. Esta se acha estendida, com sua camisola de seda
carmesim levantada até as axilas. Possivelmente seja formosa, mas seus
traços, deformados pela angústia e as primeiras dores, não permitem julgá-
lo neste momento. O leito de bronze é alto; suas largas tiras de couro
cheiroso, que apenas umas grossas mantas separam dos rins da paciente,
não fazem a não ser acrescentar com sua dureza os sofrimentos desta.

--Uakhaiti, retornou o senhor? --pergunta em voz baixa e cansada.

--Não, Lallah. O senhor Antípater ficou em Tiberíades, ao lado do Tetrarca,
e há poucas possibilidades de que esteja aqui antes de que amanheça --
responde a jovem.

[Uakhaiti: irmã, em árabe. Lallah: senhora, em árabe.]

A mulher suspira, logo prossegue:

--Uakhaiti, toma seu alaúde e me cante a canção da Débora, a profetisa, o
Canto da Vitória. Minha mãe, a rainha Mariamna, fez cantar quando eu
nasci, pois esperava dar a luz a um filho, e não a uma filha, como deste
modo o esperava meu pai, o rei Herodes.

[Cypros II era judia por parte de sua mãe, Mariamna, e Iduméia por parte
de seu pai, Herodes, o Grande.]

E Uakhaiti, irmã de leite de Cypros II, como indica seu apelido, toma seu
alaúde e canta:

--«Desperta! Desperta, Débora! Desperta, desperta... E clama um canto
novo... Oh, Deus! Quando Tu saíste de Seis, quando avançaste pelos campos
da Iduméia, a terra tremeu, os céus se abriram, e os Montes se derrubaram
ante Ti... Os reis vieram... Combateram... Então combateram os reis de
Canaã... Em Taanac, nas águas do Meguiddo... Mas não levaram nenhum
troféu e nenhum dinheiro... A corrente de Kison os arrastou... A corrente dos
velhos dias... A corrente de Kison... Oh minha alma! Pisoteia aos heróis...
Então os cascos dos cavalos ressonarão na fuga... Na fuga precipitada dos
guerreiros...»

*[Juízes, 5, 1-31. Débora, profetisa, esposa de Lapidot, era então juiz em
Israel. Conduziu os guerreiros de Neftali e de Zabulón a vitória sobre os
cananeos. Esse canto de guerra perpetúa sua glória.]*

Quando expiram os últimos acordes do alaúde, a parturiente murmura,
enferma:

--Oxalá pudesse dar a luz a um menino! Segue cantando, Uakhaiti... Segue
cantando a glória futura de meu filho...

E Uakhaiti improvisa um novo canto, que evoca adiantado as grandes
façanhas do jovem príncipe que, sem lugar a dúvidas, vai nascer. Imagina,
ao longo dos anos, as expedições noturnas que levará a cabo à cabeça de
seus soldados, enquanto em sua cidade as mulheres passarão a noite em
febre, esperando, enciumadas das violações cometidas por seus maridos. Vê
a fuga precipitada dos guerreiros nabateus, em meio aos gritos de horror
dos meninos e dos gemidos das parturientes, estralando a lombos de
camelos, e as exaustivas perseguições, de oásis em oásis. E para concluir, o
incêndio do acampamento inimigo.

Tudo isto cantava Uakhaiti com voz aprazível, sem nenhum gesto inútil, e
um tenro sorriso dançava sobre seus lábios quando evocava as futuras
matanças. E com a mesma calma que ela, as outras mulheres batiam
silenciosamente palmas seguindo um ritmo regular, a fim de criar o
acompanhamento evocador dos tambores de combate.

Durante esse tempo a matrona tinha estado muito atarefada em vistas ao
iminente parir. Primeiro atou à coxa esquerda da filha de Herodes, o Grande,
a pele abandonada por uma víbora do deserto durante sua troca.

--Quão mesmo esta pele foi expulsa sem dor, que esta mulher ponha no
mundo a seu filho --tinha murmurado em fenício.

Depois, por cima da cabeça de Cypros, fixou na tapeçaria mural um
pergaminho que tinha inscrito, em hebreu arcaico, transcrito com o cálamo
e a tinta rural por um cohén do Templo, o exorcismo tradicional contra as
diabólicas inimizades das parturientes: «Não nos atormente, Lilith!... te
afastes, Nahema!...». Mas cederiam as duas deusas do Abismo ante a
ordem de um escuro teurgo? Ou se vingariam de outra maneira sobre o
próprio menino? Converteriam-no em inimigo mortal da religião que tinha
ousado afrontar?

Por último, como o filho precedente tinha nascido morto, a matrona tinha
colocado junto à cama uma panela de barro, nova, da que tinha feito saltar
cuidadosamente o fundo. Logo que saísse a criatura do ventre materno, e
franqueasse a soleira vaginal, lhe faria passar rapidamente por esta
abertura. Desta maneira teria franqueado uma dupla soleira, e não teria que
temer franquear já outro até o término normal de seus dias. Assim,
tomaram-se todas as precauções para assegurar à filha de Herodes, o
Grande um parto feliz.

Mas enquanto se efetuavam todos estes preparativos se precipitaram os
acontecimentos: Cypros, com os traços deformados pela dor, estava dando
a luz. De sua boca torcida escapava um gemido ininterrupto, seus braços
estavam abertos em um gesto patético, e com as mãos arranhava sem
cessar os cobertores já manchados pelas águas amnióticas. Seu tórax de
pesados seios, sacudido por torções espasmódicas, fazia esquecer o rápido
vaivém de suas coxas, tão separadas como se se tratasse de um
esquartejamento, e de seus joelhos, que se levantavam e baixavam sem
descanso. Seus negros cabelos, pingando de suor gorduroso, cobriam-lhe
meio rosto, e sua boca, muito aberta, tentava conservar o ar como em uma
agonia desesperada. Por fim, os rins se arquearam bruscamente, o ventre
se curvou um pouco mais, e um clamor encheu a estância: projetado
brutalmente às mãos da matrona, acabava de vir ao mundo um recém-
nascido, e esta, fazendo-o passar pelo fundo da panela, tirava ele para si.

Então aumentaram, estridentes, os gritos de alegria histérica das
faxineiras. Era um menino... A partir desse momento se apressaram a
liberá-lo do último laço materno, embora sem lhe lavar o sangue uterino,
segundo costume, já que com estas impurezas se tinha que afugentar aos
maus espíritos que podiam penetrar nele com sua primeira inspiração.

--Olhe, Lallah... --disse a matrona lhe apresentando ao menino, ao que
sustentava nu frente a ela, sujeitando-o pelas axilas--. Olhe! Seu filho leva
no oco entre os rins o «sinal do bandido»... Pode estar segura de que será
um temível guerreiro...

Então a mãe, apesar de sua debilidade, começou também a lançar
exclamações de alegria:

--Saúl, meu filho! Oxalá seja maior que todos eles! Aretas pagará tributo...
Os braços de suas algemas estarão carregados de braceletes, e fará a
invasão de todas as tendas, desde Petra até o Tophel... Escutem, mulheres!
Este menino arrebatará todos os camelos a nossos inimigos, e sobre eles se
levará a suas mulheres e suas filhas, que dará como escravas a seus
guerreiros... De suas lanças fará feixes, e sobre essas espigas de morte
plantará suas cabeças! E com seus escudos lajeará os cemitérios de nossos
pais! Depois dele, as cidades de nossos inimigos arderão, com seus palácios
e seus templos...

Logo voltou a cair sobre seu manchado leito, esgotada por semelhante
esforço. Então as faxineiras voltaram para Cypros sobre seu flanco direito, e
se deixaram cair com todo seu peso sobre o quadril desta, uma detrás de
outra. Depois a enfaixaram com uma banda larga de linho, desde debaixo
dos seios até o púbis, apertando com todas suas forças.
Durante esse tempo, a matrona aplicou uma forte massagem ao crânio do
bebê, a seu rosto, lhe apertando o nariz e lhe estirando os lábios, sem
prestar atenção a seus gritos. Continuando, tal como se tinha feito com a
mãe, imobilizou-o estreitamente, como a uma múmia egípcia, dos pés até a
garganta, mantendo os braços presos com o passar do corpo com ajuda de
uma atadura larga de linho. Por último, depois de ter extraído por sucção
algumas gotas de leite do seio esquerdo de Cypros, colocou-o junto a ela,
para sua primeira mamada, e se foi, acabada sua função. As faxineiras se
sentaram de novo sobre seus calcanhares, em silêncio.

--Assim que lhe chamará, Saúl, Lallah? --perguntou timidamente Uakhaiti.

--Sim --respondeu a herodiana, fatigada--. Porque é um velho nome da
Iduméia, e é desejo do senhor Antípater que se chame assim. Entre os reis
que reinaram sobre o país do Edom muito antes de que os houvesse entre
os filhos do Israel, dizem nossas crônicas que Saúl, de Rejobot, junto ao rio,
reinou depois da Semia, e que quando morreu, Baaljamán, filho de Acbor,
reinou em seu lugar. Além disso, esse nome significa «desejado», e só o
Senhor dos Céus sabe quanto desejei eu a este filho...

--Esse nome significa também «tumulto», Lallah... --prosseguiu Uakhaiti--,
de maneira que os desejos que formulou agora para seu filho
provavelmente lhe serão concedidos pelos deuses...

Logo baixou a voz e murmurou algumas palavras ao ouvido de Cypros.

--Faz passa-la --disse esta com um suspiro. Alguns instantes mais tarde,
uma mulher de idade indefinível vestida de negro, com o rosto meio velado,
penetrava na habitação. Depois de inclinar-se respeitosamente ante o leito
da herodiana, tirou de uma bolsa que levava uma tigela de terra cozida,
cheia de uma espessa capa de breu solidificado. Logo lançou sobre as
brasas da chaminé de bronze um grosso punhado de um perfume composto
por kussubra, luben, djaui e helbénah e a seguir passou e voltou a passar
lentamente o prato de barro pela aromática fumaça, enquanto cantarolava a
meia voz uma monótona salmodia. Depois retornou junto à cama, se
acocorou sobre os calcanhares, tomou a mão esquerda de Cypros, que
seguia amamentando ao recém-nascido, e se concentrou na superfície
negra e brilhante, sem deixar de cantarolar seu encantamento. De repente,
calou-se.

Seu rosto se crispou, os olhos estavam dilatados, sua mão apertava mais
convulsivamente que antes a mão da herodiana. Esta mulher era fenícia, e a
tinham feito vir em segredo desde a Ptolemaida, a antiga Akka, (hoje Acre),
porque as adivinhas corriam perigo de ser condenadas a morte em terras de
Israel. Mas ante a soma prometida, tinha cedido, e Uakhaiti, escoltada por
dois guardas sírios, tinha ido procurar vários dias antes.

Com voz rouca, trocada, uma voz que parecia pertencer a um ser interior e
invisível, Orpa, a adivinha, falou:
--Este menino tomará as armas muito jovem... Vejo-o cavalgar com
guerreiros sendo ainda um menino... Não conhece derrotas... Quantos
cativos! Quantos cativos! Quanto sangue e lágrimas fará derramar... Mas
uma mulher se cruza em seu caminho, uma jovem... Corta-lhe o caminho...
O perde sua fortuna com os deuses... Sua glória se apaga por um tempo...
Agora é ele o açoitado, o vencido... diria que as comportas se fecham ante
ele... Não obstante, atravessa os mares... E conhece de novo o poder. Vejo-o
ao lado de um grande príncipe... Em uma cidade imensa... E ali trata com
poderosos senhores... Leva a cabo uma guerra secreta... E vejo arder essa
grande cidade... E são os homens de seu filho quem a tem incendiado.

Calou-se repentinamente, como horrorizada.

--Fala! --ordenou Cypros--. Que mais vê?

--Nada, Lallah... --disse prudentemente a mulher--. As chamas me
deslumbram, não vejo nada mais... Quanto fogo... Mais fogo ainda... Vejo
arder aos homens...

--Mas e meu filho? --perguntou Cypros--. Que houve com ele?

--Foge... embarca-se a bordo de uma nave... vai ocultar-se muito longe da
grande cidade... Está salvo...

Cypros tinha empalidecido, e uma contração implacável crispava seus
lábios.

--Uakhaiti, chama Demétrios --ordenou. Uakhaiti tomou um maço de
madeira de ébano depositado diante de um gongo de cobre ricamente
trabalhado e o fez ressonar por quatro vezes consecutivas. Um breve
instante mais tarde, o grego aparecia à porta do terraço, acompanhado por
dois guardiães.

--Uakhaiti, diga que ordene dar-lhe cinqüenta chicotadas nesta maldita,
por ter ousado dizer que meu filho acabaria como um covarde... Depois, que
a conduza à Jerusalém, ao cohen-ha-gadol,* quem asseguro obterá do
procurador Valerius Gratus a permissão para executá-la por bruxa...

*[Cohen-ha-gadol, em hebreu: sumo sacerdote.]

Todavia, quando os mercenários sírios capturavam-na, apesar de sua
resistência, e tentavam arrancá-la fora da estância, a mulher, espumando
de raiva, ainda achou a possibilidade de cuspir em direção à Cypros, e
gritou:

--Não lhe disse tudo! A seu filho cortarão a cabeça na cidade que terá feito
incendiar... E atirarão sua carniça ao ossário legal...

Cypros ia responder, sem dúvida com ordens ainda mais desumanas,
quando de repente, nos grandes ciprestes que havia ali perto, uma ave
noturna ululou três vezes. Pálidas de medo, as faxineiras levantaram-se, e
Uakhaiti se lançou aos pés do leito da herodiana, murmurando:

--Lallah! Por todos os deuses! Tenha piedade de seu filho... Não agrave
esse presságio... Não irrite aos baalim...

Muda, desesperada, a herodiana não a ouvia; contemplava fixamente ao
menino, que, em seu seio, dormiu por fim.

Primeira parte

O grande sonho de Saulo-Paulo

Os ensinamentos engendram a vaidade... Eclesiastes, 5,
6

Paulo, o apóstolo tricéfalo

As lendas dos narradores do tempo passado são lições para o
homem de hoje.

As mil e uma noites. Introdução

Do estudo atento dos Atos dos Apóstolos, das Epístolas de Paulo, dos
diversos apócrifos atribuídos a ele, assim como das Homilias Clementinas,
as Antigüidades judaicas e a Guerra dos judeus, de Flavio Josefo, em
resumo, de todos os textos antigos que nos chegaram sobre ele, desprende-
se finalmente uma conclusão, muito desconsoladora para os crentes aos
quais lhes apresento: é que o Paulo do Novo Testamento é um personagem
simbólico, no qual os escribas anônimos dos séculos IV e V fundiram e
amalgamaram literalmente palavras e acontecimentos pertencentes a, pelo
menos, três personagens diferentes, dois dos quais foram imaginados a seu
desejo, e só um deles foi real.

Na época em que, por ordem de Constantino, e sob a vigilância de altas
autoridades da Igreja, como Eusébio da Cesaréia, unificavam-se os textos
evangélicos, que quando eram «conforme» se copiavam de novo em série
de cinqüenta* exemplares e a seguir eram enviados a todas as igrejas do
Império (sem omitir o confisco dos antigos textos, aos que estes tinham
substituído), literalmente se «criou» Cristo, deus encarnado para a salvação
dos homens.

*[Cinqüenta é o número do Pentecostes (pentékostés). Quer dizer, do
Espírito Santo. Nossos falsificadores careciam de complexos...]*

Entretanto, para dar um valor inatacável a esta criação e poder justificá-
la, não podiam utilizar «testemunhos apostólicos» habituais. De maneira
que se fabricou um personagem novo, mediante a fusão de três
personagens antigos. Os textos e os documentos que estes eram,
indiscutivelmente, os autores foram refundidos e recompostos. E como eram
anteriores aos novos evangelhos «canônicos», contribuíam à este
personagem imaginário um reflexo de autenticidade histórica. Nessa época,
e ao longo de todos esses séculos, a mão de ferro dos poderes temporários
sob as ordens da Igreja, perinde ac cadáver, achava-se sempre disposta a
silenciar definitivamente a todo investigador mau pensante.

Por isso é pelo que monsenhor Ricciotti pode nos dizer, com toda lealdade,
em seu Saint Paúl, apotre:

a) «As fontes que permitem reconstruir a vida de São Paulo se acham em
sua integridade no Novo Testamento; fora deste não se encontra
virtualmente nada. Os elementos que podem descobrir em alguns outros
documentos não só são pouco numerosos mas também, além disso,
extremamente duvidosos.» (P. 90).

b) «O ano de nascimento de Paulo não se desprende de nenhum
documento...» (P. 149).

c) «Quanto ao ano do martírio de Paulo, os testemunhos antigos são vagos
e discordantes [...] Não se sabe nada a respeito do dia de sua morte...» (P.
671).

Também o abade Loisy, sem negar formalmente a existência histórica do
personagem, concluiu que não pode saber-se nada válido sobre ele. Bruno
Bauer e uma boa parte da escola exegética holandesa vão mais longe, e
concluem que se tratava de um personagem imaginário ou simbólico.

Nós, por nossa parte, contentaremo-nos ficando com o homem que nos
apresenta o texto dos Atos dos Apóstolos, e passá-lo pela peneira das
verificações racionais, deixando às diversas igrejas a responsabilidade da
impostura histórica, bem seja total ou parcial, se é que há.

Para começar, pois, permitiremo-nos expor um certo número de questões.

Se Saulo-Paulo é judeu, e segundo os historiadores católicos, nascido «nos
primeiros anos da era cristã, se não um pouco antes inclusive...» (cf.
monsenhor Ricciotti, Saint Paúl, apotre, P. 149), conta aproximadamente uns
trinta e cinco anos de idade quando se produz a morte do diácono Estêvão,
no ano 36 de nossa era. Então se concebe perfeitamente que pudesse:

a) encontrar-se ao mando de um corpo de polícia (Atos dos Apóstolos, 8, 3,
e 9, 1);

b) obter do pontífice de Israel, neste caso Gamaliel, uma ordem que lhe
permitisse operar longe de Jerusalém em missão de busca de cristãos (o
problema sobre se esta ação era ou não lícita será discutido em outro
lugar);

c) ter aprovado a condenação e execução de Estêvão, em virtude de sua
idade e sua função (Atos dos Apóstolos, 8, 1, e 22, 20).
Mas então, no curso desta execução, não pode logicamente ver reduzido
seu papel ao de um simples jovem judeu a quem tão somente lhe confia a
guarda das vestimentas dos encarregados da lapidação. Porque se é judeu,
de uns trinta e cinco anos de idade, há muito que tem a maioridade
religiosa e civil em Israel, e portanto deve participar, legalmente, na
lapidação, já que se encontra no local (Deuteronômio, 17, 7). Para ele é
obrigatório.

Em caso negativo, é que não é judeu, a não ser idumeu, como
demonstraremos mais adiante.

Por outra parte, se no ano 36 está ao mando de um corpo especial de
polícia às ordens do Sanedrim e do pontífice, e se já conta uns trinta e cinco
anos de idade, provavelmente exerceu já tal profissão nos anos 34 e 35,
quando teve lugar a detenção de Jesus no Monte das Oliveiras. E neste caso,
deve ser indevidamente ele quem se achava ao mando do destacamento de
soldados que acompanhou à coorte dos veteranos e à tribuna que a dirigia
durante o combate final, depois da ocupação do domínio de lerahmeel, onde
entrincheiraram Jesus*. Portanto, conhecia este último, participou de sua
captura e lhe corresponde parte da responsabilidade de sua morte. E ele, ou
Lucas, seu «secretário», ou o escriba anônimo autor dos Atos dos Apóstolos,
mentiu ao fazer acreditar que não o tinha visto antes... É mais, neste caso
incluso deve proporcionar o corpo de guarda que teria reclamado Sanedrim
para a vigilância da tumba de Jesus, e que foi incapaz de assegurá-la.
Assim, Saulo-Paulo não ignorava que o cadáver tinha sido roubado, fato cuja
prova contribuímos já na obra citada.

*[Cf. R. AMBELAIN, Jesús o el secreto mortal de los templarios, já citada, p.
239.]

Além disso, o nascimento de Paulo «nos primeiros anos da era cristã, se
não um pouco antes inclusive...», implicaria uma mentira mais por parte do
autor dos Atos, ou seja, que não é possível que Saulo-Paulo tivesse sido
criado com o Menahem e Herodes, o Tetrarca, como declara o texto dos Atos
(13, 1)*, já que Herodes Agripa II nasceu no ano 27 de nossa era, e morreu
em Roma no ano 100. E no ano 27 Saulo-Paulo teria já vinte e sete anos...

*[Op. cit., pág. 302, para a justificação e a exégesis de tal passagem. Este
versículo é muito importante.]

Se agora analisarmos cuidadosamente as Epístolas chamadas «paulinas»,
delas se desprendem duas facetas diferentes a respeito de seu autor:

-- uma delas nos situa em presença de um helenista, de um partidário da
Diáspora, que é cidadão romano, fala e escreve em grego, e se mostra
como um implacável adversário dos tabus legais do judaísmo, em especial
da circuncisão; chama-se Paulo, em grego Paulos;
-- a outra face é a de um judeu piedoso e de boa raça, procedente da
tribo de Benjamim (antigamente uma das duas tribos militares de Israel), e
que se chama Saulo, em grego Saulos.

*[Temos que assinalar que, quando Paulo fala de sua raça, de sua nação,
não diz «nossos» nem «os nossos», senão «os judeus». E esta expressão
respectiva é a prova de que não era israelita de origem.]

Cada um destes dois homens tem sua doutrina. O primeiro, formado pela
cultura grega, vê Cristo como um ser divino, descendido através dos «céus»
intermediário adotando forma humana, morto na cruz, ressuscitado em
espírito para assegurar a vitória do Espírito (pneuma) sobre a Matéria
(hyiee), e assim contribuir aos homens sua liberação espiritual, longe da
servidão de «poderes» intermediários e inferiores.

No segundo traduzem-se as tradições nazarenas e ebionitas; vê Jesus um
homem de carne e osso, nascido de uma mulher da estirpe de David,
submetido à Lei, morto na cruz, ressuscitado em carne, e logo deificado.

O «terceiro homem» será um mago, e nos apresentam como Simão, o
Mago.

Temos aqui três personagens e três doutrinas absolutamente
contraditórias. Vamos, pois, abrir o expediente desta investigação sobre
«São Paulo, apóstolo dos gentis». E prevenimos de antemão o leitor de que
vai de surpresa em surpresa, tal e como já aconteceu também no anterior
volume, já citado, referente à Jesus. Porque formularão numerosas
interrogações.

Foi, efetivamente, formulando-se perguntas sobre a identidade de Epafras,
companheiro de cativeiro de Paulo (Epístola a Filêmon, 23), como São
Jerônimo nos contribuiu o que ele chama a «fábula» (sic) do nascimento de
Paulo, então Saulo, na Giscala, na alta Galiléia, e não na Judéia: «Quem é
Epafras, o companheiro de cativeiro do Paulo? [...] Nós recolhemos a
seguinte fábula [fábula]: Diz-se que os pais do apóstolo Paulo eram da
Giscala, na Judéia, e quando a província foi devastada inteiramente pelo
exército romano, e os judeus se dispersaram por todo o universo, foram
transferidos ao Tarso, em Cilícia. Paulo, então ainda um jovem
[adolescente], seguiu a sorte de seus pais». (Cf. Jerônimo, Comentários
sobre a Epístola aos Filipenses, XXIII - M. L. XXVI, 617-643.)

Primeira questão: A deportação dos habitantes da Giscala teve lugar
durante a repressão levada a cabo pelo Varus (quem crucificou a dois mil
prisioneiros judeus nas colinas dos arredores de Jerusalém), quer dizer nos
anos 6 aos 4 antes de nossa era. Agora bem, nos diz que naquela época
Paulo era ainda um jovem (adolescente). Assim, teria nascido por volta do
ano 21 antes de nossa era, e contaria ao redor de quinze anos quando se
produziram esses acontecimentos. Isto parece dificilmente compatível com
a cronologia clássica, já que neste caso teria contado 57 anos quando se
produziu a lapidação de Estêvão, no ano 36 de nossa era. E então, como
podem dizer os Atos dos Apóstolos: «E as testemunhas depositaram seus
mantos aos pés de um jovem chamado Saulo» (Atos, 7, 58), se esse
«jovem» tinha 57 anos? Além disso, neste caso teria morrido aos 88 anos
(no 67 de nossa era), coisa dificilmente compatível com sua atividade e
suas numerosas viagens. Continuemos.

Mais adiante, nesse mesmo capítulo, São Jerônimo volta para as palavras
de Paulo, e as comenta in extenso: «Sou hebreu, da descendência de
Abraham, circunciso do oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de
Benjamim, hebreu filho de hebreus e fariseu...». (Cf. II. Coríntios, 11, 22, e
Filipenses, 3, 5). E Jerônimo observa finalmente:

«Magis judeum quam Tarsensem...», quer dizer: «Tudo isto demonstra que
era mais judeu que tarsiota».

Segunda questão: por que Paulo experimenta a necessidade de precisar
que, «da descendência de Abraham», ele é «da linhagem de Israel»? Porque
se, já naquela época (séculos IV e V), em certas esferas eruditas se sabia
que ele tinha origens iduméias, e que foi príncipe, da casa dos Herodes, os
escribas anônimos que puseram as palavras em sua boca quiseram a todo
custo jogar terra sobre o assunto.

Com efeito, neste caso teria sido também «da descendência de Abraham»,
mas pela linha de Ismael, o primeiro filho de Abraham, tido por sua escrava
Agar, faxineira de sua estéril esposa, Sara, e que foi o tronco da nação
árabe. E então não seria judeu, e não podiam atrever-se a insinuar que Jesus
tivesse tomado como décimo terceiro apóstolo a um não judeu. Assim que o
escriba anônimo que «acerta» o texto primitivo dos Atos no século IV ou V
também se empenha a todo custo em fazer desaparecer essa molesta
verdade. Desde aí a anormal insistência sobre o caráter hebreu de Paulo,
precisão repetida em três ocasiões, e sublinhada além pela indicação da
tribo e a seita. Continuemos, e observemos que, em seguida, São Jerônimo
se mostrará muito mais categórico referente ao nascimento na Giscala:

«O apóstolo Paulo*, chamado antes Saulo, deve contar-se além dos doze
apóstolos. Era da tribo de Benjamim e da cidade da Císcala, na Judéia.
Quando esta foi tomada pelos romanos, emigrou com seus pais ao Tarso, em
Cilícia, e logo foi enviado por eles à Jerusalém, para que estudasse ali a Lei,
e foi instruído por Gamaliel, homem muito sábio, ao que Lucas recorda». (Cf.
Jerônimo, De viris illustribus, M. L. XXIII, 615-646.)

*[«Temos que entender o termo apóstolo no sentido que tinha no judaísmo,
antes de adotar um sentido cristão. Para os judeus, um apóstolo era um
enviado de Sanedrim de Jerusalém, encargado de perceber o imposto do
Templo nas sinagogas da Dispersão, e de exercer um controle sobre sua
ortodoxia.» (Cf. ROBERT SAHL, Les Mandéens et les origines chrétiennes, p.
135.)]

Terceira questão: Jerônimo nos precisou mais acima que a população da
Giscala foi deportada à Cilícia, e os pais de Paulo, com seu filho ainda
adolescente, ao Tarso, mais concretamente. Agora bem, a deportação
coletiva da população de uma cidade ou de um povo, a conseqüência de
uma repressão romana e (geralmente) por prestar ajuda ou abastecer
guerrilheiros zelotes, convertia-os em escravos. Todavia estes não eram
necessariamente vendidos em separado a particulares, mas sim, no caso de
uma deportação coletiva a um lugar concreto, convertiam-se em «escravos
de César», quer dizer do Império. Os servos da Idade Média, os da Rússia
czarista até finais do século XIX, ligados a uma terra, sujeitos à serviços e
imposto «a vontade», casados segundo desejo da autoridade tutelar, como
os deportados à Sibéria, reproduzem bastante bem esse caráter de
«escravos de César».

Entretanto, todo filho de escravos era por sua vez escravo, de maneira
que como pôde Paulo, então Saulo, abandonar livremente sua cidade de
residência obrigatória, para instalar-se em Jerusalém, «aos pés de Gamaliel»
(Atos, 22, 3), em qualidade de estudante? É difícil imaginar aos romanos,
por si receosos e inclinados ao castigo fácil, tolerando semelhantes
fantasias por parte dos deportados.

Quando Pompeyo venceu o último rei da dinastia asmonea, Aristóbulo, e o
degolou segundo costume ao final de seu «desfile da vitória» em Roma,
grande número de prisioneiros judeus dos que figuravam no cortejo foram
convertidos em escravos: «Os filhos e as filhas de Israel vivem ali em um
cativeiro horrível. Seu pescoço mostra a incisão, marca distintiva no seio
das nações». (Cf. Salmos de Salomão, II, 6)*. Esta «incisão», que substituía
ao colarinho de ferro de antigamente, o qual obstaculizava o trabalho do
escravo, efetuavam-na com um ferro candente; ia do lado esquerdo do
pescoço ao direito, e era mais acentuada na nuca, de onde segundo nome
pelo que era conhecida: «jugo». Constituía o «sinal do escravo». Os rituais
católicos falam ainda do jugo de Cristo, que seria «suave e ligeiro», já que
nos primeiros séculos se falava dos «escravos de Cristo». (Cf. Confissão de
São Cipriano, 16.)

*[Os Salmos de Salomão são de finais do século 1 antes de nossa era de
autores desconhecidos]

Por outra parte, quando o escriba anônimo faz dizer a Saulo-Paulo que tem
a civitas romana por seu nascimento (Atos dos Apóstolos, 22, 28), comete
um novo engano. Porque ignora que o imperador Augusto precedentemente
tinha proibido conferir este privilégio a um liberto (e portanto menos ainda a
um escravo) que tivesse levado cadeias. «No que concerne aos escravos,
não contente tendo multiplicado os obstáculos para os ter separados da
liberdade simples, e muito mais ainda da liberdade completa, ao determinar
com minuciosidade o número, a situação e as diferentes categorias
daqueles que podiam ser mantidos, acrescentou ainda que jamais nenhum
gênero de liberdade poderia conferir a qualidade de cidadão a um escravo
que tivesse estado encadeado ou submetido à tortura». (Cf. Suetonio, Vida
dos doze Césares: Augusto, XL.)
Agora bem, todo deportado levava cadeias durante seu translado (Flavio
Josefo, em sua Guerra dos judeus, III, V, precisa que, efetivamente, na
equipe regulamentar de todo soldado romano figurava um jogo de cadeias).
Por conseguinte, se os pais de Saulo-Paulo, e inclusive ele mesmo, foram
deportados da Giscala, na Galiléia, ao Tarso, em Cilícia, levaram os vínculos
romanos durante uma viagem de mais de quatrocentos quilômetros,
efetuado evidentemente a pé. E portanto é mais duvidoso que os
convertessem em civis romanos a sua chegada!

Quarta questão: Admitindo que Paulo tivesse obtido, com o tempo, os
recursos financeiros e a assistência privada (o indispensável amparo
administrativo) que lhe permitissem converter-se em liberto, como pôde
acabar decapitado, como um cidadão romano, depois de condenado a
morte no ano 67 em Roma? Porque os libertos*, pelo mesmo fato de sua
condenação a morte, perdiam esta qualidade, e ao voltar convertidos em
escravos, eram crucificados. Assim, se Paulo pôde converter-se em liberto,
não morreu pela espada a não ser, segundo os termos da lei romana,
crucificado. Mas se realmente foi decapitado, isso significa que jamais foi
deportado ao Tarso, e que não descendia de deportados. E então se expõe o
problema de suas verdadeiras origens, e também o porquê desse
mascaramento por parte dos escribas anônimos do século IV.

*[Trata-se aqui de libertos ordinários, que não são cidadãos romanos.]

Os libertos ordinários culpados de um crime voltavam a cair na escravidão,
e então eram submetidos aos castigos reservados aos escravos. Existiam
duas categorias de libertos:

a) aqueles aos que seu amo libertou pela vingança, quer dizer diante de
um pretor ou um pró-cônsul, quem tocava então ao escravo ao que terá que
alforriar com uma varinha denominada vingança. Estes ficavam realmente
liberados;

b) os que não tinham sido liberados mas sim pela simples decisão de seu
dono, que ficavam então sujeitos por um último elo jurídico à escravidão.

Trata-se de sutilezas da lei romana que nos contribui com Tácito em seus
Anais, XIII, XXVII e XXXII.

E, com efeito, contrariamente ao que se afirma freqüentemente, o liberto
não gozava ipso facto da cidadania romana! Como vamos acreditar que um
escravo obscuro e iletrado, liberado por um ato de reconhecimento ou por
pura benevolência por parte de seu amo, convertia-se em cidadão romano,
enquanto que príncipes estrangeiros, vassalos de Roma, não o eram?

Além disso, os civis romanos não podiam ser nem espancado, nem
açoitado, nem crucificado, nem submetido a escravidão. A lex Valeria do
ano 509 antes de nossa era proibia já golpear a um cidadão romano sem
uma decisão popular prévia e decisiva, e a lex Porcia, do ano 248 também
antes de Cristo, não permitia usar os açoites em nenhum caso.
Agora bem, os libertos comuns condenados a morte eram crucificados,
porque recaíam na escravidão pelo mesmo fato de ter sido condenados.
Tácito nos conta isso em seus Anais (XIII, XXVI): sua alforria era sempre
condicional, e o amo ofendido por um deles tinha sempre o direito legal de
relegá-lo «além da centésima milha, nas bordas da Campanhia». Por outra
parte, relata-nos casos de crucificação de libertos. Nada disso poderia
aplicar-se caso a alforria inicial comprometesse a cidadania romana; é
perfeitamente evidente. Mas se um deles, além de sua liberação da
escravidão, beneficiava-se ulteriormente de tal privilégio, como os libertos
célebres, os Narcisos e os Palantes, então gozava deste com todas as
vantagens secundárias enumeradas acima.

*[Cf. TÁCITO, Anales, XIII, XXXII. Em caso de assassinato do amo por parte
de seus escravos, todos os escravos e todos os libertos eram crucificados.]

Por conseguinte, admitindo que o pai de Saulo-Paulo, ou que ele mesmo,
tivesse a sorte de passar de «escravo de César» deportado ao Tarso a
homem livre, isso não significa que fora cidadão romano.

De modo que se Paulo foi realmente de Tarso, em Cilícia, e neste caso,
antigo deportado e escravo, filho de deportados e escravos, não pôde ser
decapitado, a não ser simplesmente crucificado.

Segundo a lei romana, o filho seguia a sorte do «ventre que lhe levara».
Assim, o filho de uma mulher livre e de um escravo nascia livre. O filho de
um homem livre e de uma escrava nascia escravo.

*[No obstante, a lex Minucia estipulava que o filho de uma romana e de um
estrangeiro (peregrinos) seguia a condição de seu pai. Sem dúvida quando a
concepção e o nascimento ocorria em lugar estrangeiro.]

Este princípio imprescritível do direito romano condicionou, como se vê, a
sorte de Paulo.

Quinta questão: Admitindo que Paulo se converteu no máximo em um
liberto, quando e como pôde chegar a ser cidadão romano, título que o
Paulo dos Atos está não pouco orgulhoso, se dermos crédito a seus
anônimos redatores? Voltaire, quem possuía uma grande erudição, diz-nos o
seguinte a este respeito: «Era Paulo cidadão romano, como ele presume? Se
procedia de Tarso, em Cilícia, Tarso não foi colônia romana até cem anos
mais tarde! Todos os peritos em história antiga estão de acordo neste ponto.
Se era da pequena cidade ou aldeia da Giscala, como acreditou São
Jerônimo, esta cidade se achava na Galiléia, é seguro que os galileus não
eram cidadãos romanos!...» (Cf. Voltaire, Dicionário Filosófico, voz «Paulo».)

Porque esta deportação, verdadeiro cativeiro localizado, testemunha-a
ainda Focio, sábio exegeta do século IX, que foi patriarca de Constantinopla:
«Paulo [...] por seus antepassados carnais, tinha como pátria Giscala
(atualmente é uma aldeia da Judéia, mas antigamente foi uma pequena
cidade) [...] Quando teve lugar a conquista romana, seus pais, igual a
maioria dos demais habitantes, foram conduzidos em cautividad ao Tarso».
(Cf. Focio, Ad amphilocium, CXVI.)

Observemos, de passagem, que os autores antigos situavam Giscala na
Judéia, já que confundiam esta com a Palestina em geral. Em realidade,
Giscala se encontrava na alta Galiléia.

Por último, Epífano, refutando a tese dos ebionitas (uma das primeiras
seitas cristãs, junto com os nazarenos), quem afirmava que «o homem de
Tarso (sic) não era judeu de origem, a não ser filho de partidários», diz-nos
que: «O apóstolo Paulo, embora nascido em Tarso, não era em modo algum
alheio à raça judia». (Cf. Epífano, Contra Haereses, Panarion, XXX.)

Aqui Epífano chega muito longe, como veremos a seguir. Já o simples
fato de reconhecer que tinha nascido em Tarso era fazer dele um judeu da
Diáspora.

Sexta questão: Os Atos dos Apóstolos nos dizem que a conversão de Saulo-
Paulo teve lugar no caminho que levava de Jerusalém a Damasco: «Saulo,
respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, chegou-
se ao supremo sacerdote pedindo-lhe carta de recomendação para as
sinagogas de Damasco, a fim de que, se ali achava quem seguisse este
caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém.»

Quando estava a caminho, aconteceu que, ao aproximar-se de Damasco,
viu-se de repente rodeado de uma luz fulgurante, do céu; e ao cair em terra
ouviu uma voz que dizia: "Saulo, Saulo, por que me persegue?". Ele
respondeu: "Quem é, Senhor?".» (Atos, 9, 1-5.)

Tomemos agora a Confissão de São Cipriano. Cipriano, bispo de Cartago,
morto no ano 240 durante a perseguição do Decio (foi decapitado), foi
objeto em finais do século IV de um panegírico, redigido em forma de
trilogia: Conversão, Confissão, Martírio. Vejamos o que lemos na Confissão:
«Então Eusébio disse: "O apóstolo de Cristo chamado Paulo sem dúvida não
foi um mago", mas encontrava-se também entre os mais ardentes
perseguidores dos escravos de Cristo. Consentiu a morte de Estêvão. Além
disso, com ordens escritas do governador, expulsou de seu país e de todo o
território da cidade àqueles que, em Damasco, adoravam a Cristo. Mas se
converteu e passou a ser seu instrumento de eleição, como ele mesmo
confessou: "obtive a misericórdia de Cristo porque eu tinha obrado por
ignorância". E nos Atos dos Apóstolos está escrito que muitos daqueles que
tinham praticado as más artes, depois de queimar seus livros de magia,
entregaram-se a Cristo». (Cf. Cipriano, Confissão, 16.)

Esta nova alusão às artes mágicas é muito importante: voltaremos para
ela quando tratarmos o problema de Simão de Samaria e Saulo-Paulo,
ambos adversários de Simão-Pedro. Porque não deixa de ser estranho que
Cipriano e depois Eusébio tivessem relacionado discretamente Saulo com a
magia...
Por outra parte, nos Atos dos Apóstolos lemos que era o supremo
sacerdote quem tinha entregue ao Paulo as cartas para sua missão. Na
Confissão quem o faz é o governador, e este termo, nos textos do Novo
Testamento, é sinônimo de procurador. A diferença é importante, pois
permite precisar a autoridade judicial da que dependia realmente Paulo. Nos
Atos é o judaísmo. Na Confissão é a dos ocupantes romanos. Como explicar
esta diferença? É Paulo o chefe de um policial «paralelo» ao serviço de
Roma, ou está ao mando, como estrategista do Templo, dos elementos da
tropa levítica?

Sétima questão: Além disso, nos Atos a conversão se produz «no caminho
de Damasco». (A expressão permaneceu como sinônimo de conversão em
geral.) E na Confissão tem lugar muito depois da operação da polícia
montada, dirigida e executada por Paulo.

Agora bem, o texto da citada Confissão foi redigido por volta de 360-370,
embora os manuscritos que chegaram até nós são muito posteriores. E esse
texto cita os Atos dos Apóstolos, já o vimos; portanto, estes existiam já
naquela época. Mas como explicar esta diferença considerável no relato da
conversão do Paulo? Foi Paulo objeto dessa extraordinária «audição» antes
de penetrar na cidade de Damasco para efetuar ali uma rede de cristãos, ou
sua conversão foi posterior a tal operação?

A resposta é fácil. Nos anos 360-370, época da redação da Confissão,
existe já uma versão dos Atos dos Apóstolos em mãos das comunidades
cristãs. Todavia, é muito diferente da nossa de hoje, já que os escribas
anônimos dos séculos IV e V ainda não tinham praticado seus inumeráveis
concertos. Quanto à passagem da Confissão de São Cipriano chamado
antes, é de supor que devia ser de acordo com o correspondente dos Atos
dos Apóstolos da época, já que, ao estar muito difundida e ser muito
apreciada nas igrejas orientais, se contradissesse aos Atos, a Confissão não
teria sido tolerada pelos bispos destas igrejas.

Oitava questão: Agora chegamos em torno do problema referente à
natureza das relações de Paulo com os grandes de seu mundo, e sobretudo
ao de sua cidadania romana.

Se era um obscuro judeu, filho de deportados que passaram a ser
escravos do Império, e escravo também ele mesmo, ao menos durante um
tempo (caso sua ulterior alforria), como lhe reconhecer a qualidade de
cidadão romano, qualidade que deixa estupefato ao tribuno das coortes
Claudio Lisias, governador da cidadela Antonia, em Jerusalém?: «O tribuno
aproximou e disse: "me diga, você é romano?". Ele respondeu: "Sim".
Acrescentou o tribuno: "Mas se me custou uma forte soma adquirir esta
cidadania!". Paulo replicou: "Eu a possuo de nascimento"». (Atos, 22, 27-
28.)

Tendo em conta o que vimos precedentemente (e no momento), aqui
alguém mente. Ou é Paulo, ou o escriba anônimo que redigiu essa
passagem dos Atos. Porque se Paulo for realmente cidadão romano,
compreenderemos com facilidade o que logo seguirá, e esse privilégio se
explicará como corolário da verdadeira origem de Paulo. Mas se for
simplesmente um obscuro judeu, tudo o que seguirá será falso, já que,
nesta hipótese, não há nenhuma plausibilidade nesses episódios da vida de
nosso personagem.

Em matéria de herança, a lei romana exigia a busca da condição do
defunto: se era homem livre, liberto ou escravo; e nisso demorava-se um
período de tempo bastante longo. Calistrato parece dizer que se tratava de
um prazo de uns cinco anos. Porque o escravo não herdava de seus
progenitores. Paulo, deportado e portanto escravo, filho de deportados
escravos, não podia em modo algum herdar de seus pais a qualidade de
cidadão romano que eles mesmos não podiam possuir! Este prazo de
investigação sobre as origens de um defunto foi reduzido por Tito depois do
ano 80 de nossa era. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Tito, VIII.) Na
época de Paulo era ainda muito longo, o que sublinha a importância da
conclusão legal em matéria de herança.

*[NOTA: Giscala chama-se atualmente Gush Halav (em árabe: El-Ysch). Está
situada uns quatro quilómetros, aproximadamente, da fronteira do Líbano,
ao noroeste do lago Tiberíades, em Galiléia.]

2- Os estranhos protetores de Paulo

Na adversidade de nossos melhores amigos encontramos algo que não nos
desagrada.

La ROCHEFOUCAULD, Máximes

Nos Atos dos Apóstolos lemos o seguinte: «Havia na igreja de Antióqua
profetas e doutores. Entre eles estavam Bernabé e Simão, chamado Niger,
Lucio de Cirene, Menahem, irmão de leite do tetrarca Herodes, e Saulo».
(Atos, 13, 1.)*

*[Convém fazer uma pregunta: Quem é este Simão, apodado Niger? É o
mesmo personagem que o chefe zelote de mesmo nome, citado em Guerra
dos judeus de Flavio Josefo e que se viu mesclado nos acontecimentos de
Jerusalém no ano 64? É muito provável, pois o cardeal Jean Deniélou, em
sua Théologie du Judéo-Christianisme, observa que: «... parece que aqui a
palavra galileus é outro termo para designar os zelotes...» (op. cit., p. 84), e
«... parece que a Galiléia foi um dos focos principais do zelotismo...» (op.
cit., p. 84). Agora bem, todavia no século IV, abaixo de Juliano o Apóstata, o
termo galiléia servia em linguagem corrente para designar aos cristãos
(JULIO CÉSAR, Cartas). O historiador protestante Osear Cullmann observa
em sua obra Dieu et César que «Os galileus mencionados em Lucas, 13, 1,
associamos com os zelotes». Não pode estar mais claro!]

Este Menahem é de linha davídica e real. É neto de Judas de Gamala,
bisneto de Ezequias, sobrinho de Jesus, neto de Maria, primo do defunto
Judas Iscariote, de triste memória. É ele quem levantará o estandarte de
uma nova rebelião judia no ano 64, sob o procurador Gessio Floro. Agora
bem, nos manuscritos antigos não há nem maiúsculas nem minúsculas, não
há pontos e à parte, não há nenhuma pontuação. Nossas divisões em
capítulos e em versículos são desconhecidas. Quer dizer, que o redator
antigo está obrigado a compor sua frase de tal forma que não subsista nela
nenhum equívoco. E a do texto que segue não permite nenhuma dúvida, em
seu grego clássico: «Manahn te Hródon toú Tetraárkon súntrophos kaí
Saúlos».

Assim, esse Menahem foi «criado com o Herodes, o Tetrarca, e Saulo», o
que demonstra, silogismo inatacável tendo em conta a construção mesma
do texto grego, que Saulo foi também «criado com Herodes, o Tetrarca, e
Menahem».

A primeira vista este fato parece inverossímil. O neto do rebelde que
revoltou a Galiléia contra Arquelao, filho e sucessor de Herodes, o Grande,
no ano 6 antes de nossa era, criado com o neto e o sobrinho neto deste
último...

Entretanto, parecerá menos surpreendente se recordarmos uma tradição,
recolhida por Daniel Massé ao longo de suas investigações, que afirma que
certas alianças matrimoniais tinham aproximado das famílias davídica e
herodiana (infra, P. 68). Além disso, Menahem pôde ter sido criado com
Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater como um refém discreto. Quando o
imperador Claudio fez de Herodes Agripa I, no ano 41 de nossa era, o rei da
Judéia e de Samaria, «chamou» a seu filho, futuro Herodes Agripa II, a
Roma, a seu lado. Discreta maneira de fazer que seu pai permanecesse
como dócil vassalo de Roma... E provavelmente isso aconteceu com
Menahem. Além disso, economizava uma estrita vigilância por parte das
autoridades romanas, sempre dispostas a fazer executar aos «filhos de
David» ao mínimo alarme, como conta Eusébio de Cesaréia. (Cf. Eusébio de
Cesaréia, História eclesiástica, III, XII, XIX, XXV, XXXII.)

Um último detalhe reforça esta hipótese. Quando Pilatoss se inteirou de
que Jesus era galileu de nascimento, mandou-o comparecer ante Herodes
Antipas, tetrarca da Galiléia e Perea (Lucas, 23, 6-12). O procurador
esperava que Herodes assumiria a responsabilidade de fazer desaparecer
Jesus, posto que este se proclamava «rei dos judeus», e por conseguinte era
rival de Herodes Antipas. Recordava, sem dúvida, o rumor público, também
referente à Jesus: «Sai e vai-se embora daqui, porque Herodes Antipas quer
te matar» (Lucas, 13, 31). Assassinato que seria discreto, evidentemente, e
que nada oficial poderia relacionar com a mão deste último.

Mas não aconteceu nada disso. Herodes Antipas contentou-se burlando
Jesus, trocou suas roupas, provavelmente já em farrapos depois do combate
das Oliveiras e de sua captura, por «uma roupagem reluzente e o remeteu
ao Pilatos» (Lucas, 23, 11). E estas roupas, que os historiadores da Igreja
estimam que eram brancas, eram as que naquela época revestiam os
tribunos militares antes do combate, ou as que levavam em Roma os
candidatos que pretendiam subir a uma elevada função pública. Portanto
não havia nada de infamante no pensamento de Herodes Antipas; devolvia
ao Pilatos um candidato à realeza judia, restituindo-lhe as vestimentas que
autentificavam sua pretensão; reconhecia, portanto, o valor desta. Mas ao
mesmo tempo recusava condená-lo a morte ou encarcerá-lo; pelo contrário,
dava ao Pilatos um testemunho que permitia a este último mandar executar
Jesus, em função desta mesma pretensão. Com esta atitude, Herodes
Antipas, idumeu de nascimento, quer dizer árabe, aplicava o velho
provérbio dessas regiões: «A mão que não pode cortar hoje, beija-a». Hábil
astúcia por parte desse beduíno supersticioso, que não queria confrontar a
vingança póstuma daquele mago que era a seus olhos Jesus, nem a outra,
mais tangível ainda, da população judia fiel aos «filhos de David».

Assim, não há nada extraordinário no fato de que Menahem, neto de Judas
da Galiléia e de Maria, sua esposa, e sobrinho de Jesus, fora criado com
Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater. Mas isto descarta definitivamente a
lenda de um Saulo judeu de origem e nascido em Tarso.

Porque não deixaria de ser bem estranho que um obscuro judeu passasse
sua infância em companhia de pequenos príncipes, e é mais evidente que
isto não aconteceu em Tarso, já que é impensável imaginar que os príncipes
herodianos dessem a criar seus filhos na Ásia Menor e em Cilícia, que era
província de deportação. De fato, os três meninos foram criados no
Tiberíades e na Cesaréia Marítima. Entretanto, a presença de Menahem, da
linha davídica, entre dois membros da linha herodiana, reforça a tese de
Daniel Massé, segundo a qual a quinta esposa de Herodes o Grande,
Cleópatra de Jerusalém, era viúva de um «filho de David», e parente de
Maria, a mãe de Jesus.

Na Antióquia --nos encontramos agora nos anos 45-46 de nossa era, e
Jesus faz uns dez anos que morreu--, Menahem e Saulo, que foram criados
juntos, continuam com relação, e tendo em conta o que prepara Menahem,
quer dizer a enésima revolução judia, achamo-nos em pleno coração zelote
nessa bendita «igreja» da Antióquia, e nossos «profetas» e nossos
«doutores» são em realidade agitadores e doutrinários, herdeiros espirituais
de Judas de Gamala e de seu associado, o cohén Saddoc.

Recordemos que, nessa quarta seita descrita por Flavio Josefo em suas
Antigüidades judaicas (XVIII, 1), a política nacionalista, herdada da tradição
macabéia, está estreitamente associada à mística religiosa, herdada da
tradição essênia. Os zelotes, não o esqueçamos, estavam constituídos pela
fração extremista dos essênios, que depois da ruptura definitiva se agravou
ainda mais ao rechaçar grande parte de suas regras mais rígidas: não beber
vinho, não admitir os sacrifícios de animais, observar uma limpeza corporal
absoluta e, sobretudo, não cometer atos de «banditismo», termo de grande
importância em seu juramento de entrada. Coisa da que os zelotes não se
privavam absolutamente.
Porém, entendamo-nos bem. Quando citamos ao essenismo como crisol
inicial onde se elaborou a doutrina zelote difundida por Judas de Gamala e o
cohén Saddoc, não se trata de afirmar que um belo dia centenas de sicários
saíram das comunidades essênias, mas somente os doutrinários primitivos.
Ignoramos seus nomes. Com toda segurança foram anteriores a nossa era.
Entretanto, existe um romantismo sem nenhum fundamento histórico em
torno dos essênios, e o público em geral relaciona facilmente com eles algo,
geralmente apoiando-se em fontes da mais extremada fantasia.

Millar Burrows, chefe do departamento de Línguas e Literaturas do Oriente
Próximo da universidade de Yale, e duas vezes diretor da Escola Norte-
americana de Investigações Orientais, em Jerusalém, e A. Dupont-Sommer,
catedrático da Sorbone e chefe de estudos na Escola de Estudos Superiores,
ambos os especialistas em manuscritos do mar Morto, atêm-se a esta
opinião. Flavio Josefo, em sua Guerra dos judeus, fala-nos de sua admiração
pelo heroísmo desdobrado pelos essênios na guerra nacional contra os
romanos, e os manuscritos do mar Morto atribuídos a tais essênios
descrevem rituais de uma estratégia militar onde as técnicas de combate
derivam de uma doutrina mística. Vejamos algo que confirma o que Flavio
Josefo nos diz no segundo livro de sua Guerra dos judeus, no capítulo XII: «A
guerra que sustentamos contra os romanos vê-se de mil maneiras distintas
que seu valor é invencível». E o manuscrito eslavo da mesma obra precisa
que esses mesmos essênios «quando viajam nunca esquecem de levar
consigo suas armas, por causa dos bandidos». Como vemos, não são
mansos cordeiros, como certos mistificadores queriam nos fazer acreditar. É
mais, em finais do século II (por volta do 190), Hipólito de Roma, no livro IX
de seus Philosophumena, diz-nos o seguinte em relação aos essênios: «Os
essênios dividem-se em quatro classes, segundo sua antigüidade na seita e
seu zelo para a observação da Lei. Alguns se negam a levar consigo dinheiro
ou a franquear uma porta de cidade, com o pretexto de que as moedas ou
as portas estão adornadas com imagens. Outros, chamados zelotes ou
sicários, chegam inclusive a degolar em lugares apartados a todos aqueles
que blasfemam da Lei, a menos que estes consintam em fazer-se
circuncidar. A maioria dos essênios são muito idosos, muitos alcançam
inclusive os cem anos de idade. Esta longevidade atribuem a sua piedade,
sua sobriedade e sua continência. Contudo, desafiam valorosamente à
morte quando se trata de defender a Lei».

Esta longa passagem demonstra com claridade que uma fração essênia
tinha constituído a seita dos zeladores (ou zelotes em grego, e k-Naim em
hebreu), mais conhecido pelo nome de sicários ou zelotes, que esta seita
levava a cabo um combate armado contra os incircuncisos (romanos e
idumeus) e que não vacilava em suprimir a seus adversários degolando-os
com a sicca, método do que nos informa Flavio Josefo (cf. Guerra dos judeus,
II, V, manuscrito eslavo).

Voltando para Paulo, temos que recordar --pois é muito importante-- que
foi criado em sua infância com Menahem, neto de Judas da Gamala,
sobrinho de Jesus, e que no ano 44, na Antióquia, formava parte do mesmo
cenáculo zelote que este. E ambos foram os «irmãos de leite» de Herodes o
Tetrarca. Tudo isto é muito estranho para um obscuro judeu, reconheçamo-
lo, mas sobretudo descarta a lenda da infância em Tarso, em Cilícia.

Por outra parte, em 52-53 Paulo está em Corinto. Conta uns trinta anos de
idade. Os judeus de estrita observância, fartos da propaganda herética e
cismática que não cessa de fazer em suas sinagogas, querem encarcerá-lo.
Mas, sem esperar que Paulo abrisse a boca para justificar-se, Galión, irmão
de Seneca (preceptor e logo conselheiro do Nero César, e deste modo um
dos homens mais poderosos do Império), pró-cônsul da província da Acaia e
residente nessa mesma cidade de Corinto, rechaça a queixa dos judeus e os
faz expulsar do pretorio manu militari, embora logo lhes permite linchar à
Sostenes, chefe da sinagoga local, convertido por Paulo à nova forma de
messianismo místico (Atos, 18, 12-17).

Afortunado Paulo, pois basta-lhe ser reconhecido pelo pró-cônsul da
Acaia, «amigo de César», para ver varrer a seus adversários pelo guarda
pró-consular, e isso sem abrir a boca sequer. Afortunado judeu obscuro...

Porque esse Galión, «amicus Caesaris», não é um simples funcionário.
Uma inscrição ligeiramente mutilada, descoberta em Delfos em 1905,
reproduz uma carta do imperador Claudio dirigida aos habitantes dessa
cidade, e datada antes de julho do ano 805 em Roma, quer dizer no ano 52
de nossa era. Ali fala de Junius Gallio, meu amigo, pró-cônsul da Acaia».

Assim, o inesperado protetor de Paulo em Corinto goza, além disso, do
título invejado em todo o Império romano: amigo de César. Não é nada mais
que a proteção de um «amicus Caesaris»...

Entretanto, embora beneficiário de estranhas e misteriosas proteções,
Paulo não terminou com os judeus de estrita observância. No ano 58, em
Jerusalém, os levitas de guarda no Templo se apoderam dele, acusando-o de
ter profanado o santuário ao ter introduzido nele a um «não judeu», Trófimo
de Éfeso (Atos, caps. 21, 22 e 23). A menos que se tratasse dele mesmo,
«não judeu» que tinha penetrado imprudentemente em lugares proibidos
aos gentis.

Quando se dispunham a lapidá-lo, Claudio Lisias, tribuno das coortes e
governador da Antonia, a cidadela vizinha ao Templo, ao inteirar-se do que
acontecia foi em pessoa, com «vários centuriões e seus soldados» (portanto
várias centúrias de legionários) para deter Paulo e encarcerá-lo. E o tal Paulo
se dá a conhecer. Troca à vista. O tribuno Lisias o mandou desatar (mas
estava preso?; podemos pô-lo em dúvida), e lhe autorizou a admoestar
longamente à enfurecida multidão judia, sob o amparo dos legionários. Logo
conduziram-lhe ao interior da Antonia, livre de ataduras e fora de qualquer
tipo de calabouço.

Foi então quando seu sobrinho, ao ser informado na cidade de que entre os
zelotes se tramava um complô para assassiná-lo, acudiu livremente a
advertir a seu tio. «Paulo chamou um dos centuriões e lhe disse: "Conduz
este jovem ante o tribuno, porque tem algo a comunicar". O centurião o
levou ante o tribuno.» (Atos, 23, 16 18.)

Observemos que Paulo recebe com toda liberdade a quem quer, que dá
ordens a um centurião, grau equivalente ao de capitão, e que este,
docilmente, sem resmungar, executa-as e, na hora do jantar, vai incomodar
ao tribuno das coortes, magistrado militar com classe de cônsul. Os
veteranos (membros de uma coorte em uma legião romana) não deviam dar
crédito a seus olhos.

E aqui temos ao sobrinho de Paulo pondo ao tribuno Lisias à corrente do
complô tramado contra a vida de seu tio. O tribuno não se surpreende nem
por um instante da audácia de Paulo, e dá ao sobrinho a ordem formal de
observar um segredo absoluto. Continuemos com a leitura dos Atos: «Logo
chamou dois de seus centuriões e lhes disse:

"Tenham preparados para a terceira hora da noite duzentos soldados,
setenta cavaleiros e duzentos arqueiros, e preparem cavalgaduras para
Paulo, para que seja conduzido são e salvo ante o governador Félix, na
Cesaréia".» (Atos, 23, 23-24).



Jerusalém em princípios de nossa era

Cesaréia, cidade proibida para os judeus...

Assim, o tribuno das coortes, tão dócil como seu centurião ante Paulo e seu
sobrinho, adota todas as medidas necessárias para proteger a preciosa vida
de um obscuro judeu, e para isso não vacila em lhe proporcionar o
equivalente de uma escolta quase real: 200 veteranos das coortes, 200
arqueiros e 70 legionários a cavalo, quer dizer 470 soldados, a fim de pô-lo
sob a máxima proteção da autoridade ocupante, a de Antonius Félix,
procurador romano da Judéia.

Este homem é o afortunado marido da Drusila, princesa Iduméia, bisneta
de Herodes, o Grande, irmã do rei Agripa e, com sua irmã Berenice, uma das
mais formosas mulheres da aristocracia daquela época. E a fim de
assegurar à Paulo uma viagem sem tropeços, toma a precaução de levar
para ele vários cavalos. Afortunado judeu obscuro! E não seguirá à coluna
conforme é habitual: a pé, com as mãos atadas à cauda de um cavalo...

Aqui volta a expor um enigma. Porque, para ir de Jerusalém a Cesaréia
Marítima, os 70 legionários a cavalo não dispõem de um arreio cada um, seu
cavalo de sempre. Então por que o tribuno Lisias manda preparar para Paulo
vários cavalos? Voltemos para texto dos Atos dos Apóstolos: «Ao cabo
destes dias, feitos nossos preparativos de viagem, subimos a Jerusalém.
Acompanharam-nos alguns discípulos da Cesaréia, que conduziram a casa
de um tal Mnason, certo cipriota antigo discípulo, aonde nos alojamos»
(Atos, 21, 15-16).

Primeira constatação, Saulo-Paulo, que se diz que passou sua juventude
«aos pés de Gamaliel», o supremo sacerdote, e em Jerusalém não conhece
ninguém ali. E têm que ser um dos discípulos da Cesaréia quem se ocupe de
hospedá-lo, a ele e a seu séquito.

Segunda constatação, os manuscritos gregos originais nos dizem
literalmente: «um antigo discípulo». Antigo? Mas de que escola e de que
corrente? Provavelmente um helenista que antigamente se encontrava na
Antioquia e que tinha abandonado Jerusalém por causa das perseguições
produzidas depois da morte de Estêvão (cf. Atos, 11, 19-20).

Terceira constatação, os cavalos previstos exclusivamente para Paulo
destinam-se a levar seus equipamentos. Colocar-lhes-ão selas, com um
cesto em cada flanco; e os famosos livros e pergaminhos, sem omitir o
misterioso manto sobre o qual voltaremos a falar, citados na Segunda
Epístola ao Timóteo (4, 13), com tudo o que está acostumado a levar
consigo um viajante, tudo isso seguirá Paulo até sua nova residência.
Quanta solicitude por parte de um tribuno das coortes para com um judeu
qualquer, terá que ver! Nem que fosse cidadão romano, pois destes já havia
naquela época milhões, dispersos por todo o Império. Resulta difícil imaginar
ao tribuno das coortes, magistrado com categoria de cônsul, prodigalizando-
se desta guisa com cada um deles... Afinal de contas a Antonia não era uma
agência de viagens, aberta a todo indivíduo do Império que argüira sua
qualidade de civis romanus.

A menos que, tendo em conta o que o leitor sem dúvida começa a
suspeitar, Claudio Lisias aplicasse ali já, antecipadamente, o famoso refrão
da Restauração: «Onde pode um encontrar-se melhor que no seio de sua
própria família?». (Cf. Marmontel, Lucilo.)

O pequeno exército que escolta Paulo sairá, pois, de noite, à terceira hora
(ou seja, às nove da noite), da Cidade Santa, e empreenderá
ordenadamente o caminho até o Antipatrix, cidade fundada antigamente
por Herodes, o Grande, situada a uns sessenta quilômetros de Jerusalém, e
a uns quarenta e seis da Cesaréia. Ali fará alto, e à manhã seguinte a tropa
da pé retornará a Jerusalém, deixando que os setenta legionários à cavalo
escoltem Paulo até Cesaréia Marítima.

Aqui temos, pois, nosso Paulo em lugar seguro, junto ao procurador
Antonio Félix. Este era um liberto, irmão de outro liberto célebre, Palante,
favorito de Agripina e ministro de Nero César. Este Félix, ambicioso, brutal e
dissoluto, gozava, conforme nos diz Tácito, «de um poder quase principesco
com uma alma de escravo». Era de fato, com todo seu horror, o protótipo do
arrivista.

Na Cesaréia não encerram Paulo em um calabouço, claro está, mas sim
alojam-no «em pretorio de Herodes», sob o amparo de um guarda. (O
palácio construído antigamente pelo Herodes o Grande se converteu,
conforme era costume entre os romanos, na residência oficial do
procurador; por isso recebia o nome de pretorio, lugar onde se repartia a
justiça.)

Cinco dias mais tarde, o supremo sacerdote Ananías foi com alguns
sanedritas e um advogado romano, um tal Tértulo, a Cesaréia, e
compareceu ante Félix. Este mandou chamar com toda cortesia Paulo, e lhe
cedeu a palavra, depois das acusações que formulasse contra ele Tértulo.
Este último tampouco andava pelos ramos, pois segundo ele:

«Achamos que este homem é uma peste, que excita a rebelião a todos os
judeus do mundo inteiro, que é além disso chefe principal da seita dos
nazarenos!» (Atos, 24, 5).

Como vemos, no ano 58 não se falava já de Simão-Pedro ou de Jacobo-
Santiago como de chefes do messianismo. E com razão, já que Tibério
Alexandre, procurador de Roma, tinha-os feito crucificar no ano 47 em
Jerusalém, «como filhos de Judas da Gamala».

*[ Cf. FLAVIO JOSEFO, Antigüidades judaicas, XX, v, 2.]

Paulo respondeu durante longo tempo à acusação de Tértulo, e Félix,
habilmente, postergou sua decisão a uma data posterior, sem determiná-la
concretamente. Logo: «Mandou ao centurião que lhe custodiasse, embora
lhe deixando certa liberdade e permitindo que os seus lhe assistissem».
(Atos, 24, 22-23.)

Entretanto, quem eram os seus?

Alguns dias mais tarde, Félix vai visitar Paulo, acompanhado de sua esposa
Drusila, e ali Paulo terá toda a margem que goste de discutir, de maneira
muito mundana, tanto com ela como com seu marido, sobre os temas que
lhe interessavam. E esse procurador, escandalosamente enriquecido, tanto
pelas exações cometidas no uso de suas funções como por seu rico e
adulador matrimônio, esse procurador ambicioso adulará Paulo durante dois
anos, conservando-o sob sua proteção, já que: «Esperava que Paulo lhe
desse dinheiro. Por isso lhe mandava chamar muitas vezes para conversar
com ele» (Atos, 24, 26.) De maneira que esse «obscuro judeu» é bastante
rico por si mesmo, por seus segredos ou por sua família para fazer conceber
esperanças em um tímido procurador! Coisa que resulta simplesmente
incrível quando a gente pensa nos costumes da época e nos métodos dos
procuradores romanos. Caso se tratasse de um resgate, a permanência no
fundo de um tenebroso calabouço, encadeado aos muros, com pão e água
reduzidos ao mais estrito mínimo, teria sido uma medida mais que
suficiente para abrandar ao detido mais avaro. Mas não se produz nada
disso. Antonio Félix, que tem o direito de vida ou morte mais total por
mérito de suas funções, está transbordante de considerações para com esse
misterioso agitador*.
*[É bem possível que Félix, conhecia Saulo-Paulo como mago (como logo
veremos), supôs que era também alquimista. Era o normal! E a capital da
alquimia antiga, Alexandria do Egito, estava acerca de Judéia]

Passaram dois anos, que cobriram o fim da procura de Félix, e este é
substituído por Pórcio Festo, no ano 60. Esperando então que desaparecesse
a proteção de que gozava Paulo, e confiando em enganar facilmente ao
novo procurador, os judeus de Jerusalém pedem a este que faça chegar
Paulo à essa cidade para que seja por fim julgado. Como se vê, os meses
passaram, mas o Sanedrim não esqueceu a importância do assunto. E
conforme nos dizem os Atos (25, 3), «preparavam uma emboscada para lhe
matar no caminho».



Pelo visto Pórcio Festo foi posto à corrente por seu predecessor, antes da
partida deste, já que suspeita o que preparam os judeus, e lhes declara que
Paulo permanecerá na Cesaréia, e que só escutará alguns dos principais
dentre eles se tiverem algo que dizer sobre o particular. E assim se faz. É
então quando Paulo, que evidentemente não ignora que vão soltá-lo sem
dificuldades, mas que desse modo submeter-se-á à ameaça de uma
emboscada imprevisível, tem idéia de conseguir que lhe autorizem ir à
Roma, às custas de Roma e sob a proteção de Roma.

Para isso basta-lhe com o «Cesare apello», quer dizer solicitando que lhe
enviem «ante o César». Aqui a vitória é dupla.

Com efeito, ao declinar Pórcio Festo sua competência, Paulo já não podia
escapar ao processo ante o Sanedrim se não era reclamando o privilégio,
reservado exclusivamente aos cidadãos romanos, de poder fazer-se julgar,
em causa criminal, pelo tribunal imperial com sede em Roma.

E isto nos demonstra dois fatos notáveis:

a) nosso «obscuro judeu» é realmente cidadão romano, o qual sublinha
tudo o que estabelecemos anteriormente contra a deportação ao Tarso e
seu nascimento de pais judeus, originários da Giscala, já que declarar tudo
isto em falso implicava a morte por decapitação;

b) trata-se, efetivamente, de um caso de agitação política, oculta sob um
aspecto externamente religioso, como sublinhavam os membros do
Sanedrim, já que a lei Julia qualificava de «crime majestatis» tudo o que
constituíra, de perto ou de longe, «um atentado contra o povo romano ou a
ordem pública», e declarava culpado deste crime a «quem quer que, com a
ajuda de homens armados, conspire contra a república, ou pelo qual nasçam
rebeliões».

Por outra parte, se Paulo era de fato um «não judeu» de origem (e o
demonstraremos logo), se foi circunciso de adulto, podia ser açoitado
segundo os termos das leis romanas em caso de que esta circuncisão
tivesse sido efetuada a pedido dela, depois de ter sido admitido à cidadania
romana.

As leis do Império não proibiam um cidadão romano sua conversão ao
judaísmo, mas não aceitavam todas suas conseqüências. Se um partidário
se achava frente a uma das obrigações das que os judeus de raça estavam
dispensados (como o serviço militar, por exemplo), não estava coberto pelo
privilégio judaico. Tampouco podia recusar participar do culto aos deuses do
Império sem correr o risco de ser acusado de ateísmo. E por este motivo
uma mulher podia sempre sofrer a acusação de impiedade para as
divindades de sua casa original. Sob o Tibério César, uma tal Fulvia foi
julgada deste delito por seu marido Taciturno (cf. Jean Juster, Les Juifs dans
l'Empire romain, leur condition juridique, économique et socíale). Sob o
Nero, Pomponia Graecina foi também submetida a um tribunal doméstico,
acusada de superstitio externa, superstição estrangeira (cf. Tácito, Anais,
XIII, 32). Por último, uma severa lei, a Lex Cornelia de sicariis et veneficis,
castigava a castração, e sempre se podia identificar a circuncisão com uma
variedade de castração, tendo em conta suas repercussões fisiológicas no
campo sexual. E assim se fez sob o reinado do Adriano (cf. Espartiano,
História do imperador Adriano, XIV, 2).

Sem lugar a dúvidas. Paulo não ignorava nada de tudo isto, e em caso
necessário sempre podia haver alguém que lhe delatasse ante a autoridade
ocupante. Agora bem, em Roma, ante o tribunal imperial, Paulo sabe que
gozará do influente amparo da Séneca, irmão do pró-cônsul Galión, quem
tão misteriosamente o protegeu em Corinto. E põe todo seu interesse em
ser conduzido à capital do Império. Quem, naquela época, não acariciaria
semelhante sonho?

Sem dúvida Paulo dispõe dos meios materiais. Se o procurador Antonio
Félix esperou longo tempo a que tal Paulo lhe recompensasse
economicamente por seus favores, é que sabia que nosso homem estava
em condições de poder fazê-lo.

Mas oficialmente, desde sua circuncisão (e logo veremos em que ocasião
teve lugar). Paulo é judeu. E isso não pode negá-lo, já que desde aquele
momento leva impressa a marca em sua carne.

Agora bem, no ano 19 de nossa era Tibério expulsou os judeus da Itália,
excetuando tão somente àqueles que abjurassem em um prazo de tempo
determinado. (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, III, 5. Tácito,
Anais, II, 85. Suetonio, Vida dos doze Césares: Tibério, 36.)

Depois o imperador Claudio tinha reiterado, por sua vez, a mesma ordem
de expulsão no ano 50. Paulo Orosio, historiador eclesiástico do século IV,
diz-nos o seguinte: «Nesse mesmo ano, nono de Claudio, Flavio Josefo conta
que os judeus foram expulsos de Roma, por inspiração do ministro Sejuán».
(Paulo Orosio, História adversus pagãs, Claudius Cesar.) Não obstante,
aconselhamos ao leitor que não procure este episódio do nono ano de
reinado do Claudio no Flavio Josefo, já que toda uma parte de suas
Antigüidades judaicas referente ao reinado de tal imperador foi censurada
pelos monges copistas. Este fato o encontrará unicamente no Suetonio, Vida
dos doze Césares: Claudio, XXV, embora sem assinalar a época exata:
«Como os judeus se revoltavam continuamente, instigados por um tal
Chrestos, expulsou-os de Roma».

Trata-se, com toda evidência, de judeus messianistas que passaram ao
cristianismo, e esse Chrestos é, de fato, o Christos, a quem Suetonio crê
ainda vivo, confundindo ressurreição e vida normal. E é que, efetivamente,
os escritores profanos dos dois primeiros séculos de nossa era escreviam
com regularidade Chrestus e Chrestiani, como observa acertadamente Henri
Ailloud em sua tradução de Suetonio, em lugar de Christus e Christiani.

Por conseguinte, na Itália, e mais concretamente em Roma, os únicos
judeus que podem residir são os que se acham em estado de escravidão. A
eleição do «Cesare apello» é, por conseguinte, um golpe de mão magistral
por parte de Saulo-Paulo.

Por último, e como coroação a essas relações e esses aduladores amparos,
resulta que depois de Félix e Drusila, acodem a Cesaréia Marítima o rei
Herodes Agripa II e a princesa Berenice, sua irmã, quem, depois de ter
enviuvado de Herodes de Caléis, vive incestuosamente com ele. Ambos são
irmãos de Drusila e, portanto, cunhados do procurador Félix. As duas
mulheres são célebres por sua beleza. A família está, pois, completa, e
podemos supor que foi Paulo o motivo desta reunião. Curiosidade?
Indubitavelmente, mas também há outro motivo, que logo conheceremos. O
tom das conversações é bastante amistoso, e a chegada do casal real
causou sensação: «Assim no dia seguinte chegaram Agripa e Berenice com
grande pompa, e entraram na sala da audiência, rodeados dos tribunos e
dos personagens de mais relevo da cidade». (Atos, 25, 23.)

Esses tribunos eram cinco, e cada um deles estava ao mando de uma das
cinco coortes de veteranos estabelecidos em Cesaréia. Quanto interesse e
quanta preocupação por esse suposto «tarsiota», antigo deportado, antigo
escravo do Império!

Nota: Sobre a importância do número de cidadãos romanos no Império,
assinalemos que os veteranos legionários, que tinham abandonado sua
coorte para retirar-se, recebiam um título com o reconhecimento do povo
romano, título que recebia o nome de honesta missio. Implicava um certo
número de privilégios diversos, entre os quais se achava o da cidadania
romana, se o veterano não a possuía já com antecedência, adquirida por
algum ato de guerra. Quer dizer, que a qualidade de civis romanus, com a
que se arma tanto exagero em torno de Saulo-Paulo, não era em si nada
extraordinário.
3 - A viagem à Roma

Roma [...] Lugar onde conflui e encontra numerosa clientela tudo que de
espantoso e vergonhoso há no mundo.

TÁCITO, Anais, XV, XLIV

A viagem de Paulo à Roma se efetuou sob os melhores auspícios, como
todo o anterior. Foi crédulo ao centurião Julio, da coorte da 7.a Augusta,
legião composta por mercenários sírios e a que, por esse motivo,
denominava-se Legião síria. Com eles se embarcou Aristarco, um macedônio
nascido na Tessalonica que devia ser já um colaborador de Paulo, dado que
mais tarde será seu companheiro de cativeiro. E também havia outros
prisioneiros, estes autênticos, que eram ou guerrilheiros zelotes, ou
criminosos de direito comum, destinados aos cruéis jogos circenses ou a
suas feras.

Assim, a Navem Adramyttium levantou âncoras e abandonou Cesaréia em
princípios do outono do ano 60, para fazer escala à manhã seguinte em
Sidon, Fenícia. O centurião Julio, evidentemente cumprindo ordens recebidas
antes, deixou Paulo em liberdade para que fosse visitar «seus amigos e
receber seus bons ofícios». Como vemos, os favores continuam.

Economizaremos ao leitor as peripécias que acompanharam à viagem de
Paulo, tendo em conta de que a navegação marítima não era coisa fácil
naquela época. Poderá encontrá-las nos Atos dos Apóstolos, de 27, 1, a 28,
16.

Por fim temos Paulo desembarcado em Puzolo, no golfo de Nápoles. E os
gracejos dos escribas anônimos dos séculos IV e V vão continuar. Julgue-se:
«Onde encontramos irmãos, que nos rogaram que permanecêssemos com
eles sete dias. E assim foi como chegamos a Roma. Os irmãos desta cidade,
informados de nossa chegada, vieram a nós até o Foro de Apio e às Três
Tavernas. Paulo, ao vê-los, deu graças a Deus e recobrou ânimo. Quando
entramos em Roma, permitiram ao Paulo morar em casa própria, com o
soldado que lhe custodiava». (Atos, 28, 13-16.)

Estamos, pois, obrigados a admitir que em Puzolo o centurião Julio foi
convidado pelos irmãos, e que ele, oficial romano encarregado de uma
missão, aceitou permanecer uma semana inteira em um lugar infestado de
judeus messianistas, e por conseguinte suspeitos. E por que prodígio se
encontravam na Itália? Os decretos de Tibério e de Claudio não foram
derrogados em nenhum momento. De maneira que se tratava de judeus
escravos. E estão eles em condições de oferecer convites para uma
semana? E pode um legionário romano arriscar-se em semelhante
ambiente? Incrível!

A seguir outros judeus, desta vez romanos, vêm ao encontro de Paulo, e
nada menos que até o Foro de Apio, na via Apia, quer dizer a 64 quilômetros
de Roma. Outros vão só até Três Tavernas, que está a 49 quilômetros da
capital. Ida e volta representam perto de 134 quilômetros para os primeiros,
e perto de 100 quilômetros para os segundos. Uma grande honra para um
obscuro judeu. Além disso, esses judeus escravos dispõem de muita
liberdade. Continuemos formulando uma pergunta: como podem existir já
«irmãos», quer dizer cristãos, em Roma, se alguns versículos mais tarde nos
Atos dos Apóstolos nos dizem o contrário?: «Ao cabo de três dias convocou
aos judeus principais. Quando reunidos disse-lhes: Irmãos, sem ter feito
nada contra nosso povo nem contra os costumes de nossos pais, fui detento
em Jerusalém e entregue aos romanos. Depois de me interrogarem, estes
quiseram me pôr em liberdade porque não havia nada contra mim que
merecesse a morte. Mas como os judeus se opunham, vi-me obrigado a
apelar ao César, embora sem querer acusar de nada a minha nação. Por
isso quis lhes ver e lhes falar, pois só pela esperança de Israel levo estas
cadeias. Eles lhe responderam: Nós não recebemos da Judéia nenhuma
carta a seu respeito, nem nenhum dos irmãos que tenham chegado aqui nos
comunicou ou falou nada de mau. Mas queríamos ouvir de sua boca o que
você pensa, pois a respeito dessa seita nos é conhecido que em todas
partes a contradiz». (Atos, 28, 17-22.)

Expomos já um certo número de observações, muito embaraçosas para
nossos anônimos redatores dos Atos:

a) Paulo, prisioneiro, tem a possibilidade e a autoridade suficiente para
permitir-se convocar aos judeus mais notáveis. É surpreendente;

b) chama-os irmãos, igual àqueles que foram ao seu encontro em Três
Tavernas e no Foro de Apio; portanto não estabelece diferenças entre eles, o
que prova que são os mesmos;

c) não fala de uma religião nova a esses notáveis, mas sim de uma
esperança, própria de Israel. E que esperança, a não ser a do fim do jugo
romano? Esta esperança é o imóvel messianismo;

d) Paulo não leva nenhum tipo de cadeias, está simplesmente obrigado,
quando se desagradar à cidade, a levar uma cadeia curta, que une seu
pulso direito ao pulso esquerdo do legionário que o custodia, enquanto dura
tal deslocamento. Em sua casa, em sua residência romana, está livre de
ataduras. Esse é o costume na «custódia militaris», espécie de cativeiro sob
palavra e honorífico;

e) os irmãos «chegados» a Roma e dos que falam os judeus notáveis não
são os cristãos, já que imediatamente depois os citados notáveis declaram
não saber nada do novo partido ao qual pertence Paulo, e só sabem que em
todas partes encontra oposição. E esses irmãos são forçosamente judeus, já
que estão em contato imediato com os outros. Portanto não há cristãos em
Roma nesse momento, ao menos no sentido que damos agora a tal termo, à
parte os que encontraremos no palácio de Salomé II, rainha da Armênia;

f) por último, não se trata de uma religião nova, mas sim de um partido.
São Jerônimo, em seu Vulgata latina, utiliza o termo seita, que significa
tanto uma facção política como um partido ou uma seita religiosa. Os
manuscritos gregos mais antigos utilizam a palavra airesis, que significa
deste modo seita, partido, facção, com o sentido de heresia (que se
desprende dela), e isso em todos os campos, tanto político como religioso.
Por conseguinte não é muito fácil precisar o que nesse debate se
subentende por tal termo.

Ao chegar em Puzolo, por Três Tavernas, Paulo passou por Velletri e
atravessar os Montes Albanos, do alto dos quais contemplou pela primeira
vez Roma, capital do Império romano.

Ao descender dos Montes Albanos pela via Apia, penetrou na cidade pela
Porta Capena, situada então aproximadamente na convocação da atual
Porta de São Sebastião. Segundo um pequeno número de manuscritos, o
centurião Julio entregou Paulo e aos outros prisioneiros ao oficial que devia
recebê-los. Este homem devia ser o praefectus castrorum, que
provavelmente estava ao mando do acampamento dos milites peregrini ou
castra peregrinorum, o que nós chamaríamos «acampamento das tropas de
passagem» em linguagem militar moderna.

Imediatamente depois foi transferido ao Castro pretorio, acampamento
principal dos pretorianos, não longe da Via Nomentana, e por último foi
entregue ao oficial que representava ao prefeito do pretorio. E ali
encontramos ainda uma nova surpresa.

Este cargo ocupava então Afranio Burro, e, Oh azar! Casualmente era
grande amigo de Lucio Anneo Séneca e, com este, conselheiro de Nero
César, depois de ter sido ambos seus preceptores. O leitor convirá conosco
que o «azar» faz bem as coisas. Afranio Burro era estóico, e portanto
admirador do sistema filosófico baseado em Zenón de Citium, a finais do
século IV antes de nossa era. E Séneca era também estóico.

Pois bem, o elogium, quer dizer o relatório de Pórcio Festo sobre esse civis
romanus que era Paulo, não podia ser mais favorável; o comportamento do
procurador, do rei Agripa e da princesa Berenice para com nosso homem
faziam-no prever. As conclusões verbais destes personagens também. Festo,
interrompendo Paulo, diz-lhe amigavelmente: «Você delira, Paulo! As muitas
letras lhe tornaram louco», e o rei Agripa brinca com ele, e declara: «Pouco
mais, e me persuade de que me faça cristão» (Atos, 26, 24-28).

Ambos lamentam sinceramente que Paulo faça o «Cesare apello», já que,
conforme declara o rei Agripa ao Festo: «Poderia colocá-lo em liberdade, se
não tivesse apelado ao César». (Atos, 26, 32.) Não suspeitam que Paulo tem
seu plano, bem estabelecido, longo tempo maturado, e que aponta em
realidade a conseguir chegar à capital do Império, se considerarmos o que
sabe dos projetos de Menahem, desde que tiveram lugar seus conciliábulos
na Antioquia, e que não ignora que se fixou já uma data para sua realização.
Coisa que logo constataremos, ao resplendor das chamas de Roma...
Voltando para elogium de Pórcio Festo, tal relatório se perdeu no naufrágio
que sofreram durante a travessia, mar adentro, frente às costas de Malte.
Mas é um detalhe que carece de importância, já que o centurião Julio, ao
ver-se privado de tão capital documento, o substituiria facilmente pela
exposição detalhada das instruções recebidas da boca do procurador Festo
antes de sua partida; e a benevolência que estava encarregado de
manifestar para com seu prisioneiro em todas as circunstâncias advogava
inequivocamente em favor deste último. Tanto mais que Paulo, em sua
Epístola aos Romanos, já tinha tomado por sua conta a dianteira. Julgue-se!

Quando estava em Corinto, onde como se viu recebeu amparo --e com
quanta prontidão-- do pró-cônsul Galión durante o inverno de 51-53, vários
anos antes desta data já tinha redigido e expedido a famosa carta aos
«irmãos» de Roma (o que prova que já tinha disposto seu plano, bem
maturado). Agora já sabe a que porta chamar, sabe de antemão que
proteções eventuais lhe esperam ali. Basta lendo atentamente as saudações
finais: «Saúdem os da casa de Aristóbulo, saúdem o Herodião, meu parente.
Saúdem os da casa de Narciso, que estão no Senhor.» (Cf. Paulo, Epístola
aos Romanos, 16, 10-12.)

Quais são os da «casa do Aristóbulo»? Quem é «Herodião, meu parente»?
Quais são os «da casa de Narciso»? Em definitivo, protetores tão poderosos
como os que já tinha encontrado em Jerusalém e na Cesaréia. E é evidente
que em Corinto, Galión, irmão da Séneca, tinha-lhe orientado sobre o
interesse que tinha para ele que fora a Roma; e ao chegar ali, Paulo é
recebido, sempre por mediação de Galión, pelo Afranio Burro, prefeito do
pretorio, amigo da Séneca e, como dissemos, conselheiro e ex-preceptor de
Nero César, como aquele. É óbvio que os crentes verão nisso um milagre a
mais, a mão da Providência, mas o historiador lúcido o que vê é
simplesmente um plano bem organizado.

Com efeito, «os da casa de Aristóbulo» são os servidores de Aristóbulo III,
favorito de Nero, que no ano 54 recebeu deste o reino da Pequena Armênia;
logo, no ano 60, uma parte da Grande Armênia, e por último, no 70,
receberá o reino de Caléis. É o segundo marido de Salomé II, neta de
Herodes, o Grande, e amiga de Jesus, a quem ajudou com seus denários na
campanha anti-romana, e de quem o Evangelho conforme Tomás relata
estas assombrosas palavras: «Salomé disse: "E você quem é, homem? De
quem saiu para meter-se em minha cama e comer em minha mesa?" E
Jesus disse-lhe: "Eu sou aquele que se produziu daquele que é seu igual.
Deram-me o que é de meu Pai". E Salomé respondeu: "Sou sua
discípula!".». (Evangelho de Tomás, LXV, manuscrito copto do século IV,
descoberto em Khenoboskion, no Alto Egito, em 1947, tradução de Jean
Doure, Pión, Paris, 1959.) [Cf. Jesús o el secreto mortal de los templarios, p.
295.]

Desse novo matrimônio, Salomé II e Aristóbulo III tiveram três filhos, três
varões: Herodes, Agripa e Aristóbulo. Herodião (o «pequeno Herodes») é seu
filho maior. E se Paulo (ainda Saulo) declara-se parente dele, é que o é deste
modo de Aristóbulo III e de Salomé II. E efetivamente, como logo veremos,
eram primos! De maneira que estamos muito longe do «obscuro judeu», o
leitor terá que reconhecê-lo.

Os da «casa de Narciso» são aqueles que, ingressaram à nova ideologia,
são libertos ou escravos na mansão principal de um dos favoritos de Claudio
César. Esse Narciso, Claudii Narcissus libertas em seu nome latino, quer
dizer «Claudio Narciso, o liberto» (tomava o nome do antigo amo que os
escravisara), à morte de Claudio César e ao advento de Nero, no ano 54,
caiu em total desgraça, coisa que foi fatal: «Sem mais demora. Narciso,
liberto de Claudio, cujas questões com Agripina já relatei, é empurrado à
morte em um encarceramento rigoroso e sujeito a violência, com grande
pesar de Nero, cujos vícios, ainda secretos, acomodavam-se
maravilhosamente a sua avareza e sua prodigalidade». (Tácito, Anais, XIII,
1.)

Com grande rapidez Paulo contará com filiados no próprio palácio de Nero,
e estes se acharão no ano 64, durante o incêndio de Roma, em situação de
sustentar a fábula de que Nero compunha um poema sobre o incêndio de
Tróia enquanto contemplava as chamas que devoravam seu capital. Porque
esta fábula será a única explicação dada pelos verdadeiros incendiários,
como logo veremos. Em realidade Nero encontrava-se em Antium, sua
cidade natal, quando se produziu o incêndio, e a notícia não lhe chegou até
o quarto dia; então cobriu em poucas horas os 50 Km que separam essa
cidade de Roma, queimando etapas. Imediatamente adotou todas as
medidas para ajudar aos sinistrados, fazendo distribuir mantimentos e lhes
abrindo as portas de todas suas mansões e jardins.

Voltando para os afiliados (íamos dizer aos cúmplices) que rapidamente
terá Paulo no palácio de Nero César, citaremos simplesmente a Epístola aos
Filipenses, redigida no ano 63, que precedeu ao incêndio de Roma: «Eles
saúdam os irmãos que estão comigo. Eles saúdam todos os Santos, e
principalmente os da casa de César». (Paulo, Filipenses, 4, 22.)

Mas não pense que nosso homem só tinha contatos com escravos ou
libertos de classe inferior. Já vimos que em Corinto se beneficiou
instantaneamente, sem ter aberto a boca sequer, do amparo dos
pretorianos do governador da Acaia, Galión. Vimos como o acolhiam em
Roma Afranio Burro, prefeito do pretorio, amigo de Séneca, de quem era
irmão Galión. Não duvidaremos em afirmar que, em Roma, estaria
efetivamente em contato com o próprio Séneca. Continua sendo uma prova
bastante válida destas relações a correspondência apócrifa que lhes atribui.
Conservam-se quatorze cartas, oito delas de Séneca ao Paulo, e seis de
Paulo a Séneca. São apócrifas, onde se constata por sua composição, sua
trivialidade, e também pelo fato de que o falsificador imaginou que as
cartas dos dois correspondentes se achavam milagrosamente, reunidas. Pois
bem, na realidade cotidiana as duas partes de uma correspondência, envios
e respostas, estão sempre separadas, ou inclusive dispersas, a causa do
próprio afastamento de seus recíprocos destinatários.
De todo modo, a existência de uma correspondência apócrifa dá para
aceitar que existia uma correspondência autêntica. Que esta última se
perdesse ou fosse destruída, que as cartas de Paulo à Séneca fossem
confiscadas durante o processo deste último, envolto na conspiração do
Pisón no ano 66 (Caio Calpurnio Pisón, quem conspirou contra Nero e
morreu no ano 65), é um fato plausível, ou inclusive provável. Do mesmo
modo, que as de Séneca ao Paulo foram confiscadas quando este foi detido
em Troas, à entrada dos Dardanelos, no ano 66, ou que resultassem
destruídas durante o incêndio de Roma, no 64, é também outro fato
plausível.

De qualquer maneira, não pode esquecer-se que São Jerônimo faz alusão a
uma correspondência entre esses dois homens, e que a considera autêntica.
Se se tratava ou não do mesmo lote de cartas é um mistério que não
podemos esclarecer no estado atual de nossa documentação.

Vejamos o que diz São Jerônimo no ano 362: «Lucius Annaeus Séneca [...]
Eu não o situaria na lista dos autores cristãos se não incitassem a isso essas
cartas, lidas por tão grande número de gente, de Paulo à Séneca, e
reciprocamente. Nessas cartas, tal mestre de Nero, o homem mais poderoso
de seu tempo, declara que desejaria ocupar entre a sua a classe que ocupa
Paulo entre os cristãos. Foi condenado a morte por Nero dois anos antes de
que Pedro e Paulo recebessem a coroa do martírio». (Cf. Jerônimo, De viris
illustribus XII...)

O mesmo temos em São Agustín. Em uma carta escrita no ano 414, quer
dizer vinte anos depois de São Jerônimo, ao Macedônios, declara: «Com
razão Séneca, que viveu em tempos dos apóstolos, e de quem inclusive se
lêem as cartas que dirigiu a São Paulo, exclama: Esse, que odeia a todo
mundo, que odeia aos malvados...».

Lipsius, quando cita ao pseudo-Linus, confirma a sua vez a existência de
uma correspondência entre Paulo e Séneca: «O próprio preceptor do
imperador, ao ver em Paulo uma ciência divina, trava com ele uma amizade
tão forte que não podia passar sem sua conversação. De maneira que,
quando não tinha a possibilidade de conversar com ele cara a cara, enviava-
lhe e recebia freqüentes cartas». (Cf. Lipsius, Acta apostolorum apocrypha,
tomo I.)

Concluamos, pois, que existiu uma correspondência entre Paulo e Séneca,
mas que não chegou até nós. E se Paulo contava com filiados dentro da
«casa de César», devia ir ali com freqüência, a fim de conversar com eles, e
o amparo de Galión, assim como de Afranio Burro, implicam a de Séneca, é
evidente. Lipsius não inventa nada.

E agora podemos abordar a última questão: Quem era Paulo em realidade?
A resposta não é singela, embora da mais surpreendente.

Ao começo deste estudo sobre «o homem de Tarso», aplicamo-lhe o
qualificativo de «tricéfalo». E com efeito, os escribas dos séculos IV e V
amalgamaram palavras, fatos e acontecimentos correspondentes à três
existências distintas, à três personagens completamente estranhos uns aos
outros.

Se o «príncipe dos Apóstolos», Simão-Pedro, não pôs jamais os pés em
Roma, se não morreu ali com Paulo durante a primeira perseguição contra o
cristianismo, não obstante é inegável que existiu. E sua crucificação em
Jerusalém no ano 47, junto com seu irmão Jacobo-Santiago, em sua
qualidade de «filhos de Judas da Gamala», por ordem de Tibério Alexandre,
procurador da Judéia, prova-o sobradamente. [Cf. Jesús o el secreto mortal
de los templarios, pp. 88-89.]

Não podemos dizer o mesmo de Paulo, salvo se se busca, no referente a
seu fim terrestre, o dos três personagens que o compõem. E não é fácil,
reconheçamo-lo. É bastante singelo demonstrar esta «composição» última,
ao menos no que diz respeito à dois de seus «componentes». E para o
terceiro, aí está a História.

4- Um príncipe herodiano chamado Shaul

Afortunado aquele que não lhes conhece apenas, e mais afortunado aquele
que não tem nada que ver!

VOITURE, Poésies, os príncipes

Já o vimos, estamos forçados a rechaçar a cidade de Tarso, por não ter
desempenhado nenhum papel na vida de nosso personagem. Sabemos que
fugiu de Damasco de noite, em um cesto grande (Atos, 9, 25). Mas Paulo
não responsabiliza por isso os judeus, ele mesmo os descarta: «Em
Damasco, o governador do rei Aretas pôs guardas na cidade dos
damascenos para me prender. Mas desceram-me por uma janela, em uma
cesta, muralha abaixo, e assim escapei de suas mãos». (Paulo, II Coríntios,
11, 32.)

Nessa época Damasco pertencia, em efeito, ao Aretas IV, rei da Arábia
nabatea. No ano 36 de nossa era Tibério César tinha empreendido
inutilmente uma campanha contra esse soberano. Ao ano seguinte, por
conseguinte em 37, Calígula sucedeu à Tibério, e segundo bom número de
historiadores sérios, cedeu Damasco ao rei Aretas, em testemunho de uma
paz livremente consentida. Esta hipótese vem confirmada pelo fato de que,
apesar de que existem moedas damascenas com a efígie gravada de
Tibério, não há nenhuma com a imagem de Calígula ou de seu sucessor
Claudio.

Sobre o motivo de tal tentativa de captura de Paulo pelos guardas do
etnarca do Aretas IV teremos ocasião de voltar.

Seja como for, o apelido de tarsiota dado ao Paulo tem sua origem
simplesmente no meio que utilizou para sua fuga. Porque em grego tarsos
significa «Nasa, cesto, cesta». Saulo de Tarso significa, em realidade, «Saulo
do cesto», apelido humorístico. Coisa que já faziam pressagiar as
afirmações contraditórias sobre seu nascimento em Giscala, na alta Galiléia.

Mas então quem é Paulo? Voltemos para os Atos dos Apóstolos:

«Eles, gritando em vozes altas, tamparam os ouvidos e todos eles se
jogaram sobre Estêvão, arrastaram-no fora da cidade e apedrejaram-no. As
testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem chamado
Saulo. E enquanto lhe apedrejavam, Estêvão orava, e dizia: Senhor Jesus,
recebe meu espírito...» (Atos, 7, 57-59.)

«Saulo tinha aprovado a morte de Estêvão...» (Atos, 7, 60.)

«Ao Estêvão alguns homens piedosos levaram-no para enterrar e fizeram
sobre ele grande luto. Pelo contrário, Saulo devastava a Igreja, e entrando
nas casas, arrastava homens e mulheres e os fazia encarcerar...» (Atos, 8, 2-
3.)

«Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do
Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote lhe pedindo cartas de
recomendação para as sinagogas de Damasco, a fim de que, ali achava
quem seguisse esse caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a
Jerusalém...» (Atos, 9, 1-2.)

Esses quatro extratos dos Atos dos Apóstolos não constituem, como se vê,
e em boa lógica, a não ser um amálgama de contradições.

Vejamos alguns detalhes sobre a lapidação judicial em Israel: À quatro
cotos (42 cm) do lugar do suplício retiravam do condenado suas
vestimentas, à exceção de uma só, que o tampasse a frente, se era um
homem, e a frente e por detrás se era uma mulher. Esta é a opinião do
rabino Judá, mas os rabinos declaram que tanto ao homem como à mulher
lhes devia lapidar nus. A altura da convocação era a de duas alturas de
homem. Uma das testemunhas (acusador) derrubava o condenado, de
maneira que ficasse sobre os calcanhares; se dava a volta, a testemunha o
devolvia à posição desejada. Se por causa desta queda morria, a Lei se
considerava satisfeita. Senão, a segunda testemunha (acusador), agarrava a
pedra e lançava apontando ao coração. Esta «primeira pedra» (veja-se João,
8, 7) devia ser suficientemente pesada como para que fossem necessários
dois homens (as duas testemunhas requeridas pela acusação) para levantá-
la: «Dois deles levantam-na no ar, mas um só a lança, de maneira que
golpeie mais forte». (Sanedrim, -45, B.) Se o golpe resultava mortal, fazia-se
justiça. Senão, a lapidação incumbia coletivamente a todos os israelitas.
Porque está escrito: «A primeira mão que se levantará contra ele para matá-
lo será a mão das testemunhas; a seguir será a mão de todo o povo».
(Deuteronômio, 17, 7.)

O que damos aqui é um resumo das regras judiciais da lapidação tal
como estão prescritas pelo Talmud, e muito antes pelo Pentateuco em seu
Deuteronômio.
Pois bem, se um «jovem chamado Saulo» se limita a montar guarda
diante das vestimentas das testemunhas, é que não participa da lapidação.
Para esta anomalia só há duas possíveis explicações.

A primeira é que o jovem é um menino de menos de doze anos, e por
conseguinte ainda carece da maioridade legal para estar sujeito a todas as
obrigações da Lei judia. Sobre este particular remetemos o leitor ao capítulo
12 de nosso anterior volume, capítulo intitulado «Jesus entre os doutores».
Mas nesse caso, como podia ter voz no capítulo, e aprovar a condenação de
Estêvão? E como pode, pouco depois, «devastar a Igreja, e entrando nas
casas», com uma inevitável escolta de gente armada (necessariamente
levita do Templo, postos ao seu dispor pelo estrategista deste), arrastar às
pessoas e fazer encarcerá-las? E como se atreve este menino a apresentar-
se frente ao pontífice de Israel e lhe pedir cartas de recomendação para
operar em Damasco, cidade que pertence a outro reino?

Para todas estas inverossimilhanças (e esta palavra é ainda muito fraca
para qualificar semelhantes estupidez), fica outra explicação. Encontraremo-
la em Flavio Josefo. Mas antes recordemos que a Confissão de São Cipriano
dava por certo que as cartas de recomendação de que dispunha Saulo-Paulo
para atuar em Damasco foram entregues pelo governador, termo sinônimo
ao de procurador nos textos neo-testamentários, e não pelo supremo
sacerdote. De modo que Saulo estava às ordens das autoridades romanas
de ocupação, e não das autoridades religiosas judias. E agora vejamos o que
diz Flavio Josefo, ou ao menos o que os monges copistas tiveram por bem
nos deixar: «Uma vez morto Festo, Nero deu o governo da Judéia a Albino e
ao rei Agripa [...] Costobaro e Saulo tinham também consigo grande número
de guerreiros, e o fato de que fossem de sangue real e parentes do rei os
fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram violentos e sempre
estavam dispostos a oprimir aos mais débeis. Foi principalmente então
quando começou a ruína de nossa nação, pois as coisas foram de mal a
pior». (Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, 8.)

Não recorda isto nada ao leitor? Teremos que voltar a consultar as
passagens, antes citadas, dos Atos (8, 3, e 9, 8), onde vemos Saulo e seus
homens armados penetrando nas casas, tanto em Jerusalém como em
Damasco, e arrancando delas às pessoas para colocar na prisão? Esse Saulo
dos Atos não será o mesmo que o das Antigüidades judaicas?

Pois bem, agora nos encontramos no ano 63 de nossa era, nono ano do
reinado de Nero, dado preciso, indiscutivelmente, pela morte do procurador
Pórcio Festo e a chegada de seu substituto: Albino Lucayo, mais tarde posto
por Nero à frente da Marítima Cesaréia, e, ao suspeitar que pretendia
proclamar-se rei sob o nome de Juba, foi degolado quando desembarcou,
por ordem de Vitelo. (Cf. Tácito, Histórias, II, 78-79.)

Assim, no ano 63 Saulo ainda não se teria convertido, enquanto que os
exegetas da Igreja asseguram que sua conversão dataria de
aproximadamente o momento da lapidação de Estêvão, ou seja no ano 36!
Mas continuemos escrutinando ao Flavio Josefo: «Os grandes, vendo que a
rebelião chegara a tais extremos; que sua autoridade já não era capaz de
reprimi-la, e que quão males cabia temer da parte dos romanos recairiam
principalmente sobre eles, decidiram, a fim de não esquecer nada para
tentar dissuadi-los, enviar deputados a Floro, dos quais Simão, filho de
Ananías, era o chefe, e outros ao rei Agripa, os principais dos quais eram
Saulo, Antipas e Costobaro, parentes deste príncipe, para rogar a um e ao
outro que fossem com tropas a Jerusalém, a fim de apagar as rebeliões
antes de que cobrassem ainda mais força». (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos
judeus, II, 31.)

Segundo essa passagem nos encontramos no ano 66, «antes de 15 de
agosto», e Gessio Floro é procurador desde o ano 63. Menahem, neto de
Judas da Gamala, que foi criado «com o Herodes o Tetrarca e Saulo» (Atos,
13, 1), aparecerá na cena política e unificará aos sediciosos ao apoderar-se
da praça forte da Massada, e os judeus a conservarão até o ano 73, data da
tomada desta praça e do célebre suicídio coletivo de seus defensores.

Mas prossigamos: «Depois de um fato tão desafortunado acontecido ao
Cestio, vários dos principais judeus saíram de Jerusalém, como teriam saído
de uma nave a ponto de naufragar* Costobaro e Saulo, que eram irmãos, e
Felipe, filho de Joaquim, que tinha sido general do exército do rei Agripa,
retiraram-se com o Cestio. E em outro lugar direi como Antipas, que tinha
sido assediado com eles no palácio real, ao não querer fugir, morreu em
mãos desses sediciosos. Cestio enviou então Saulo e aos outros [Costobaro
e Felipe, filho do Joaquim] junto ao Nero, que então se achava em Acaia,
para lhe informar de sua derrota e fazer recair as culpas sobre Floro, a fim
de acalmar sua cólera contra ele, fazendo-a recair sobre outro». (Cf. Flavio
Josefo, Guerra dos judeus, II, 41.)

*[Segundo Eusebio de Cesárea, os membros da Igreja de Jerusalém
abandonaram a cidade antes da guerra que estouraria, e retiraram-se à
uma cidade de Perea chamada Pella. (Cf. Eusebio de Cesárea, História
eclesiástica, III, v, 3.) Trata-se, evidentemente, do mesmo episódio, porém
abaixo de Eusebio os «principais judeus» convertem-se em «cristãos». De
fato, confessa que a notícia transmitida «por profecia, aos notáveis do
lugar», portanto, aos judeus, e não aos cristãos.]

Esse Cestio Galo é então governador de Síria, enquanto que Gessio Floro é
tão somente procurador da Judéia, submetido à autoridade do primeiro,
desde o ano 63. Achamo-nos «depois do 8.° dia de novembro, ano 12 do
reinado de Nero César», quer dizer no ano 66, já que Josefo é ainda
governador da Galiléia, e João, da Giscala, logo entrará em cena.

Agora nos encontramos frente ao duplo beco sem saída no que se
extraviaram imprudentemente os escribas anônimos dos séculos IV e V, ao
censurar, interpolar e extrapolar a mão direita e sinistra, com o único fim de
assentar uma impostura que naquela época podia esperar durar (dado o
analfabetismo das massas), mas que não resiste à crítica racional de nossa
época. Recapitulemos, pois:

1) É indiscutível que o Saulo dos Atos e das Epístolas, que foi criado com
Menahem e Herodes o Tetrarca, que oprime e captura aos cristãos, que é
parente de Herodião, filho primogênito de Aristóbulo III, rei da Armênia, e de
Salomé II, sua esposa, e que portanto é primo destes últimos, que tem
relações entre «os da casa de César» e «os da casa de Narciso», que é
protegido pelo Gallón, «amigo de César» e pró-cônsul da Acaia, irmão da
Séneca, o Saulo a quem o tribuno Lisias dá uma escolta de 470 soldados, e
que a seguir é protegido pelo procurador Félix, que discute amigavelmente
com o rei Agripa e as princesas Drusila e Berenice, que é acolhido pelo
prefeito do pretorio. Burro, em pessoa, conselheiro de Nero junto à Séneca,
que conversa e mantém correspondência com este último, é indiscutível,
dizíamos, que esse Saulo é o mesmo que o Saulo irmão de Costobaro,
ambos os «príncipes de sangue real», porque são netos de Salomé I, irmã
de Herodes, o Grande (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, passim), e
que oprimem a determinados elementos da população.

E obteve facilmente a qualidade de cidadão romano, se relermos com
atenção à Flavio Josefo: «Salomé, irmã de Herodes, o Grande, legou por
testamento à imperatriz Livia, esposa de César Augusto, seu toparquía, com
a Jamnia e os palmeiras que fizera plantar em Faraélida». (Flavio Josefo,
Guerra dos judeus, II, XIII.)

Salomé I, avó de Saulo e de Costobaro, morreu no ano 14 de nossa era.
Seus laços de amizade com a domina augusta eram normais, e eram fruto
que os imperadores romanos manifestaram sempre para com seu irmão
Herodes, o Grande. Assim pôde obter provavelmente a cidadania romana
para seu marido Costobaro I.

O Saulo dos Atos e o Saulo de Flavio Josefo não são pois, inicialmente, uma
mesma e única pessoa. E se as datas não coincidem com exatidão, é porque
se censurou, interpolado e extrapolado à torto e a direito, como veremos
logo ao analisar os Atos dos Apóstolos.

2) O Saulo do Novo Testamento, efetivamente, não é um judeu de raça,
pelas razões seguintes:

a) ignoramos totalmente seu nome de circuncisão, «Saulo-bar-X...», igual
ao de seu pai. Agora bem, as famílias judias conservavam cuidadosamente
sua genealogia. É óbvio que nos oculta alguma coisa;

b) todo judeu tinha que possuir um ofício manual, e os rabinos igual a
outros. Este costume era lei, e um velho provérbio judeu dizia que um
homem sem ofício era considerado como um bandido em potência. Pois
bem, nos diz que Saulo, para viver, tecia lonas para tendas: «...e como era
do mesmo ofício que eles, ficou em sua casa e trabalharam juntos, pois
eram ambos fabricantes de lonas». (Atos, 18, 3.) O homem que tem o
mesmo ofício que Paulo é Aquilas, originário do Ponto, reino da Ásia Menor
do Nordeste. De modo que não é mais que um judeu da Diáspora,
procedente de uma região onde se vive em tendas. Seu próprio nome não é
hebreu. Agora bem. Paulo, segundo nos diz, vem de Jerusalém, onde
realizou todos seus estudos rabínicos aos pés do grande doutor Gamaliel
(Atos, 22, 3), o que representa toda sua adolescência e sua idade madura
até sua conversão. E faz mais de um milênio que os judeus se tornaram
sedentários na Palestina. Ao ter deixado de ser um povo nômade, já não
vivem sob tendas, a não ser em aldeias e cidades. Numerosos rabinos são
carpinteiros e trabalhadores de pedreira. Mas tecer tendas com pelo de
cabra, destinadas à nômades pagãos, seria indigno de um judeu legalista.
Trata-se de um ofício e uma necessidade próprios daqueles que saíram de
povos em grande parte dedicados ao pastoreio, quer dizer de árabes,
idumeus e nabateus.

Pois bem, o Saulo irmão do Costobaro é idumeu por parte de pai e pela
filiação Iduméia paterna deste, mas por parte de sua mãe e sua bisavó
Cypros, é de filiação nabatea. Esta última, conforme nos diz Flavio Josefo,
pertencia a uma das mais ilustres famílias da Arábia (cf. Flavio Josefo,
Guerra dos judeus. I, VI), famílias às quais ainda hoje se conhece como as
dos «senhores das grandes tendas».

De todo modo, é difícil admitir que Saulo, príncipe herodiano de sangue
real, achou-se jamais na necessidade de aprender outro ofício que não fora
o das armas, e não são os aristocratas nem os homens em geral quem
tecem as tendas de pelo de cabra entre os árabes, pois esta tarefa está
reservada às mulheres do povo ou aos escravos.

Por outra parte, quando Saulo-Paulo conhece Aquilas e Priscila, estes
acabam de chegar a Corinto, expulsos de Roma pelo decreto do Claudio
César (cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Claudio, XXV). Nosso homem se
associa a eles na fabricação e comercialização de tendas, segundo nos diz
(Atos, 18, 3).

Vejamos agora duas perguntas embaraçosas:

I. Que plausibilidade tem o fato de que Aquilas e Priscila vivessem jamais
em Roma, fabricando e vendendo tendas, quando a Itália não tinha já
nenhuma população nômade? Os camponeses viviam em palhoças ou em
granjas importantes, e os cidadãos habitavam em casas de vários andares,
feitas de madeira ou de pedra. O povo vivia nas catacumbas.

II. Que plausibilidade há no fato de que Aquilas, Priscila e Paulo vivessem
em Corinto, cidade grega, capital da província romana da Acaia, célebre por
seu urbanismo, e que se mantivessem a base de uma fabricação e um
comércio semelhantes? Na Grécia antiga acontece quão mesmo na Roma
imperial: não existe o nomadismo. E imaginar que essas tendas eram
exportadas supõe ignorar que os povos itinerantes da Ásia Menor, de um
tipo particular, vivem sempre em uma autarquia latente. Além disso, os
importantes rebanhos de cabras que acompanham a suas regulares
migrações cíclicas auxiliam às necessidades de seus artesãos. Cada clã
familiar no seio de cada tribo possui seu «ofício» rudimentar, efetuado pelas
mulheres. E por outro lado, com que moeda, com que dinheiro saldassem
semelhantes aquisições essas arcaicas etnias? É indubitável que os
embutidos se vendiam em Roma, e que os vinhos da Grécia se exportavam,
mas os únicos capazes de aproveitá-lo eram a rica aristocracia romana e
alguns plebeus enriquecidos.

Vemo-nos, pois, forçados a deduzir que, uma vez mais, o escriba anônimo
que redigiu esta passagem dos Atos dos Apóstolos deu rédea solta a sua
imaginação também aqui, e que Saulo-Paulo jamais fabricou tendas.
Dispunha de outros recursos, e aqui temos a prova: «Não cobicei prata, ouro
ou vestidos de ninguém. Sabem que minhas necessidades e às dos que me
acompanham têm provido estas mãos». (Atos dos Apóstolos, 20, 33-34.)

Resulta difícil imaginar Saulo-Paulo trabalhando intermináveis horas em
um ofício como o de tecer para assegurar a cama e a mesa à uns
colaboradores que se refestelam olhando. Além disso, não era cohén
(sacerdote) nem doutor da Lei, a não ser judeu. Portanto não podia subsistir
do dízimo sacerdotal nas comunidades que visitava. Concluamos porque era
rico, ou que possuía uns recursos misteriosos. Coisa que vem justificada
pelo fato de que vivesse em Roma durante dois anos sem fazer nenhuma
outra coisa que o que dizem os Atos: «Paulo permaneceu dois anos inteiros
na casa que tinha alugado, onde recebia a todos os que iam a ele, pregando
o reino de Deus e ensinando com toda liberdade e sem obstáculos o
referente ao Senhor Jesus Cristo». (Atos dos Apóstolos, 28, 30.)

3) Ao proceder de uma família de incircuncisos (é a recriminação essencial
que os judeus fazem à dinastia Iduméia dos Herodes), o Saulo-Paulo do
Novo Testamento é de entrada adversário da circuncisão e dos tabus
judaicos, coisa que um judeu de raça, presa tanto de um subconsciente
hereditário como da educação recebida em sua primeira infância, jamais se
atreveria a infringir, e menos ainda a combater.

Voltemos a ler as Escrituras:

Atos (15, 1-35) ­ (21, 21);

Romanos (4, 9) ­ Gálatas (5, 2; 6, 12);

Filêmon (3, 3) ­ Colossenses (3, 11);

Gálatas (6, 15) ­ I Coríntios (7, 19)

Poderá constatar-se que esses textos são categóricos: Paulo é inimigo dos
ritos judaicos essenciais. E em seu livro Saint Paúl, apotre (imprimatur de 12
de maio de 1952), Giuseppe Ricciotti tira a conclusão: «O evangelho
particular de Paulo não impunha esses ritos; e mais, inclusive os excluía».
Por conseguinte, se «seu evangelho» tinha sido aprovado, os ritos em
questão se achavam excluídos, ao menos para aqueles que provinham do
paganismo ao que Paulo dirigia sua mensagem.

E agora abordaremos um novo problema: Que homem era esse Saulo
idumeu, irmão do Costobaro, neto da irmã de Herodes, o Grande (amiga da
imperatriz Livia), «príncipe de sangue real», chefe da polícia política judeu-
Iduméia, e como e por que acabou fundando esse messianismo místico,
depois de ser o artífice da morte do messianismo político dos zelotes?
Também aqui, segundo o velho provérbio judicial, bastar-nos-á "buscar à
mulher". Logo o veremos. De todos os modos, voltando para a qualidade de
civis romanos que os falsificadores anônimos dos Atos dos Apóstolos lhe
atribuem com vaidosa ostentação, em uma época em que o cristianismo se
converteu na religião do Estado, veremos possivelmente aparecer ainda
algumas fibras de verdade. E com isso, algumas novas surpresas para o
leitor...

5 - Um estranho cidadão romano

.. E me faço judeu com os judeus para ganhar aos judeus [...] Com os que
estão fora da Lei me faço como se estivesse fora da Lei...

Paulo, I Epístola aos Coríntios, 9, 20-21

Anteriormente admitimos a afirmação dos Atos segundo a qual Saulo-Paulo
tema a qualidade de civis romanos, cidadão romano. Vamos examinar agora
o valor de tal afirmação.

Em primeiro lugar, é evidente que se nosso homem era judeu de raça, não
podia ter esta cidadania naqueles tempos. Nenhum judeu do Oriente era
cidadão romano, pela excelente razão de que, ao aceitar essa dignidade,
era expulso ipso facto da nação judia, e submetia a terrível cerimônia do
herem, ou expulsão definitiva, que afetava tanto à vida presente como à
futura.

Todo cidadão romano devia participar do culto aos deuses do Império, em
especial ao das divindades tutelar da cidade de Roma, e lhe estava proibido
participar do dedicado à divindades estranhas não reconhecidas pelo
Senado romano, e menos ainda no de uma divindade ilícita. Quer dizer, que
se o culto ao Yavé, deus único, assimilado por Roma ao Zeus, permitia aos
mais altos dignatários do Império fazer oferendas no Templo de Jerusalém, a
um judeu de raça não lhe era possível fazer o mesmo com respeito aos Dea
Roma, como Vesta, Apolo, Vênus, antepassados da gens Julia, os Dea Genitri
e, especialmente, os Dea Victoria.

Mas o que dizer de um judeu de raça que durante anos se dedicou a fazer
triunfar o culto a um certo rebelde chamado Jesus, crucificado por um
procurador romano por ter pretendido ser «rei dos judeus»? E esse mesmo
judeu de raça acrescentaria, além disso, injúrias blasfêmias para com os
deuses do Império: «Servem à deuses que não o são!» (Gálatas, 4, 8), ou «O
que sacrificam os gentis, aos demônios e não a Deus o sacrificam» (I
Coríntios, 10, 20).

É simplesmente incrível!

Em conclusão, voltamos para nossas afirmações precedentes, ou seja, que
Saulo-Paulo não era judeu de raça. Disso resulta que nada se opõe a que
fora cidadão romano. Mas então, como?

Sugerimos a hipótese de que Salomé I, sua avó, amiga da imperatriz Livia,
esposa do imperador Augusto, tivesse obtido a cidadania romana para sua
família. Não é impossível. O imperador podia impor facilmente sua vontade
no Senado romano. Vespasiano fez de Flavio Josefo um civis romanos, o que
explica ainda melhor o ódio de seus compatriotas, já que isso implicava um
verdadeiro adultério espiritual com respeito à religião judia.

Mas há também outros argumentos em favor da romanização de Saulo-
Paulo. Renán, quem obviamente não ignorava a tese que proclamava ao
Jesus filho de Judas da Gamala, mas que se guardou bem de emiti-la tendo
em conta o clericalismo da época, confessa-nos isso explicitamente: «Pode
supor-se que seu avô a tinha obtido por ter ajudado ao Pompeyo durante a
conquista romana...». (Cf. Ernest Renán, Les Apotres, P. 164.)

Exclui-se a possibilidade de que o avô de Saulo-Paulo, era judeu, fora o
suficientemente influente para ajudar ao Cneius Pompeius Magnus em sua
conquista de todo o Oriente Médio: Fenícia, Líbano, Palestina, que acabou
com a tomada de Jerusalém no ano 63 de nossa era. Além disso, naquela
época não poderia tratar do avô de Saulo-Paulo, mas sim como mínimo de
um bisavô: Antípater.

Antípater, idumeu, marido de Cypros I, princesa nabatea, e primeiro-
ministro do Hircano II (rei sacerdote por quem Pompeyo substituiu ao
Aristóbulo), empurrou este pelo caminho da colaboração com Roma.
Manobrou habilmente entre os dois partidos durante a guerra civil romana
que enfrentou ao César e Pompeyo, e ao final se aliou ao primeiro e enviou
ao Egito um exército judeu de reforço no ano 48 antes de nossa era,
liberando assim ao César de uma situação dramática num local de
Alexandria, e lhe salvando inclusive a vida. Foi, além disso, o primeiro a
penetrar em Pelusa. Como recompensa foi renomado administrador do
Templo e procurador (no ano 47 antes de nossa era). César nomeou ao
primogênito de Antípater, Fasael, governador de Jerusalém, e Herodes, o
benjamim, converteu-se em governador da Galiléia. Vejamos o que nos
conta Flavio Josefo: «O grande número de feridas que recebeu foram
gloriosas marcas de seu valor. Depois que César terminara os assuntos do
Egito e retornara à Síria, honrou ao Antípater com a cidadania romana, com
todos os privilégios que dela derivavam, ao que acrescentou tantas outras
provas de sua estima e de seu afeto que o fez digno de inveja». (Cf. Flavio
Josefo, Guerra dos judeus. I, VII.)
Aqui temos, pois, esse antepassado de Saulo-Paulo que Renán assegura
que foi civis romanus! O que implica que nosso autor sabia perfeitamente a
que se ater sobre as origens familiares do tal Saulo, e que se viu obrigado a
calar parte de suas descobertas.

De todo modo, os espíritos mais desconfiados não deixarão de dizer que
os filhos de Antípater, Fasael e Herodes, já tinham nascido quando se fez
entrega de tal dignidade à seu pai. Se fazia extensiva também a eles?
Porque neste particular o filho seguia a condição de seu pai no momento da
concepção, no caso de matrimônios legítimos, e Antípater não era cidadão
romano quando eles nasceram.

A isto responderemos que é impensável que César não fizesse
implicitamente extensiva esta qualidade aos dois filhos. Em primeiro lugar,
sempre foi muito liberal neste aspecto. Por exemplo, a legio Alauda, a
famosa legião de L'Alouette, toda ela recrutada entre francêses, recebeu
dele a categoria de cidadã romana, extensiva a todos seus membros,
independentemente de sua graduação. (Cf. Suetonio, Vida dos doze
Césares: César, XXIV.)

Por outra parte, a França anterior à Revolução de 1789 estava regida por
leis e costumes que procediam diretamente do direito romano. Pois bem, o
enobrecimento de um plebeu implicava o de toda sua descendência, até no
caso de que o nascimento de seus filhos fosse anterior a tal enobrecimento.
Estes eram enobrecidos implicitamente de uma vez com ele. Este costume
não tinha nenhuma exceção.

Mas, seguirá objetando-se, Saulo-Paulo era neto de Herodes, o Grande,
por linha feminina; neste caso, era transmissível por via materna tal
qualidade, verdadeira nobreza secundária no seio do Império romano? A isto
seguiremos dizendo que sim. Em todas as «terras e províncias do Sacro
Império Romano Germânico» (na França: Flandes, Champanha, Lorena,
Borgonha, Delfinado, Provença) existia a nobreza uterina, transmissível
através das filhas, em virtude do direito romano que decretava que «o filho
segue a sorte do ventre que lhe levou».

Sem dúvida se voltará a argüir que Herodes levava simplesmente os títulos
de amigo e aliado do povo romano, e que isso não implica a cidadania
romana. Não devemos esquecer que, nesta época, Herodes, o Grande, é rei
da Judéia, de Samaria e da Galiléia. É um soberano vassalo de Roma, mas
um soberano independente, dono de seu reino. Esta função a exerce, pois,
livremente, nos termos citados: amigo e aliado do povo romano não
implicam portanto (por pura cortesia) a sujeição que implicaria
necessariamente a corriqueira definição de cidadão romano. Estes termos o
elevam a um nível muito superior, substituindo-o.

Por outra parte, manifestou-se sempre como cidadão romano. Reconstruiu
o Templo de Jerusalém, se fez reconhecer aos judeus seus direitos mais
sagrados contra os gregos, já anti-semitas, em matéria religiosa,
comportou-se deste modo como fiel observador dos deveres de um civis
romanus, restaurando ou construindo numerosos santuários pagãos,
correndo com todos os gastos, especialmente o santuário de Apolo Pitio em
Rodas (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVI, V). Pois bem, a isto não
estava obrigado em caso de não ter sido cidadão romano, já que tais
manifestações propagadas não faziam mais que aumentar o ódio dos judeus
integristas para ele.

Acreditam, pois, que é a esta filiação herodiana a que Paulo poderá referir-
se quando afirma ante o tribuno Lisias: «Pois eu a tenho por nascimento».
(Atos dos Apóstolos, 22, 28.)

6 - A dinastia Iduméia

A verdade dos deuses está em proporção com a sólida beleza dos templos
que lhes levantou.

Ernest Renán, Origine du Christianisme

Não nos parece inútil dar uma breve visão histórica das origens de toda a
grande família herodiana, já que, para compreender o comportamento de
Saulo-Paulo, é importante conhecer bem sua herança, seu psiquismo racial
e suas crenças iniciais.

Julio, o Africano, escritor cristão do século III, em sua Carta ao Aristides,
reproduzida parcialmente nas Quaestiones ad Stephanum de Eusébio da
Cesaréia, recolheu diversas tradições a este respeito em obras anteriores,
em especial as de Nicolau o Damasceno, Ptolomeo de Ascalón e as
Memórias de Hegesipo.

Julio, o Africano, precisa que foram «parentes carnais do Salvador», quer
dizer familiares muito próximos, irmãos, sobrinhos, ou inclusive a própria
Maria, sua mãe, quem contribuiu com certas tradições sobre a origem da
família dos Herodes. E este fato não faz mais que reforçar a hipótese
avançada por Daniel Massé, como conclusão a suas próprias investigações
(e ele fora juiz de instrução), de que existiram laços «por aliança» entre a
família herodiana e a dos «filhos de David». A última esposa de Herodes, o
Grande, Cleópatra de Jerusalém, viúva de um «filho de David», teria se
casado em segundas núpcias com o chamado Herodes, segundo Massé.
(Supra: P. 37.)

Por muito surpreendente que resulte esta hipótese, acha-se seriamente
sustentada por um fato que a tradição cristã reservada ao povo simples
oculta cuidadosamente, e esse fato é a riqueza indiscutível da família
davídica, quer dizer a importância dos bens possuídos por Maria, mãe de
Jesus, e as diversas rendas recebidas por este último.

Sobre estas, remetemos ao leitor a nossa obra precedente, ao capítulo
intitulado «O dízimo messianista». Entre os bens imóveis da família
podemos mencionar já com certeza a casa familiar de Gamala, esse ninho
de águias, berço da família; a casa de Cafarnaúm, citada em Mateus (4, 13),
e no Marcos (1, 29), que pertencia ao Simão e André, irmãos de Jesusa a de
Séforis, destruída nos anos 6 aos 4 antes de nossa era pelas legiões de
Varo, legado de Síria, quando teve lugar a primeira revolução de Judas da
Gamala, marido de Maria e pai de Jesus; podemos acrescentar a de
Betsaida, «a cidade de André e de Pedro» (João, 1, 44), já que, repitamo-lo,
são irmãos de Jesus.

Também o abade Emile Amann, ao traduzir e comentar o Protoevangelio de
Santiago, consagrado à Maria, suas origens e sua infância, observa que,
segundo o texto: «Joaquim [o pai de Maria] é enormemente rico, e isto
constitui uma resposta direta às acusações judias sobre a pobreza da
Maria». (Cf. E. Amann, O Protévangile de Jacques, imprimatur do 1-2-1910,
Letouzey éditeur. Paris, 1910, p.181.)

Coloca-nos, pois, muito longe da família mísera que nos apresentam
perpetuamente para nos enternecer.

Vejamos o que diz sobre isso o Africano, reproduzido por Eusébio da
Cesaréia: «Isto não se disse nem sem provas nem ligeiramente. Porque os
familiares carnais do Salvador, bem seja para vangloriar-se ou
simplesmente por contá-lo --mas, em todo caso, dizendo a verdade--,
transmitiram também o seguinte:

»Uns bandidos idumeus assaltaram a cidade de Ascalón, na Palestina, e da
capela de Apolo, que estava levantada perto das muralhas, levaram-se
junto com o resto do roubo ao pequeno Antípater, filho de um servidor do
templo, Herodes, e o fizeram prisioneiro. Ao não poder pagar o sacerdote o
resgate por seu filho, Antípater foi educado segundo os costumes dos
idumeus, e mais tarde gozou do afeto de Hircano, supremo sacerdote da
Judéia. Logo foi enviado por Hircano em embaixada junto ao Pompeyo, e
obteve em favor daquele a liberdade do reino que tinha sido arrebatado ao
Aristóbulo, seu irmão. Ele mesmo teve a boa fortuna de ser renomado
epimeleta da Palestina.

»Logo, depois de ser assassinado Antípater a traição, por causa do ciúmes
provocados por sua sorte, seu filho Herodes o sucedeu, e mais tarde este foi
chamado por Antonio e Augusto, em virtude de um decreto do Senado
romano, para que reinasse sobre os judeus. Seus filhos foram Herodes e os
outros tetrarcas idumeus. E assim se encontra também na história dos
gregos.

»Até então, nos arquivos se encontravam copiadas as genealogias dos
verdadeiros hebreus, e as dos partidários de origem, como Aquior o
Amanita, Rut a Moabita, e as das pessoas saídas do Egito e que se
mesclaram com os hebreus. Herodes, a quem a raça dos israelitas não
interessava em nada, fez queimar os registros dessas genealogias,
imaginando-se que assim poderia parecer nobre, pelo fato de que ninguém
poderia remontar-se nos registros públicos até suas origens, até os
patriarcas ou partidários ou estrangeiros mesclados, chamados geores.»
(Eusébio da Cesaréia: História eclesiástica. I, VII, 11-44.)

O que Flavio Josefo nos transmite em suas obras não por não ser
rigorosamente idêntico deixa de ser menos sensivelmente análogo. Vejamos
o que diz este autor: «Um idumeu chamado Antípater, muito rico, muito
empreendedor e muito hábil, era grande amigo do Hircano e inimigo do
Aristóbulo. Nicolau o Damasceno o faz descender de uma das principais
casas de quão judeus retornaram a Judéia desde Babilônia, mas o diz pelo
Herodes, seu filho, a quem a fortuna logo elevou ao trono de nossos reis,
como veremos em seu lugar.

»Antes o chamavam, não Antípater, mas Antipas, como seu pai, quem ao
ser renomado pelo rei Alexandre e a rainha sua esposa, governador de toda
a Iduméia, cercou amizade com os árabes, os gazaenos e os ascalonitas, e
ganhou seu afeto mediante grandes presentes». (Cf. Flavio Josefo,
Antigüidades judaicas, XIV, iI.)

«A esposa desse Antípater, chamada Cypros, pertencia a uma das mais
ilustres casas da Arábia. Teve dela quatro filhos varões: Fasael, Herodes, que
depois foi rei, José e Perora, e uma filha chamada Salomé. Sua sábia
conduta e sua liberalidade lhe granjearam a amizade de vários príncipes, e
especialmente do rei dos árabes, a quem confiou seus filhos quando esteve
em guerra com o Aristóbulo.» (Cf. Flavio Josefo, Guerras dos judeus. I, vi.)

Não obstante, existe uma divergência genealógica entre as tradições
recolhidas por Julio o Africano e as recebidas por Flavio Josefo. Vejamos:

Julio, o Africano:

1. Herodes, sacerdote do Apolo no Ascalón, de onde:

2. Antípater, amigo do Hircano, de onde o futuro rei:

3. Herodes o Grande.

Flavio Josefo:

1. N..., governador da Iduméia, de onde:

2. Antípater, aliás Antipas, marido de Cypros, de onde:

3. Herodes o Grande.

De qualquer maneira, e como pode constatar-se, Saulo e Costobaro,
príncipes herodianos, netos de Salomé I, irmã de Herodes, o Grande, são
árabes idumeus por seu bisavô, e árabes nabateus por sua bisavó.

O berço da família foi, sem lugar a dúvidas, Ascalón. Esta cidade,
recuperada por Israel, formava parte da herança da tribo de Judá. Os árabes
chamavam-na Khirbet Askalon, quer dizer «as ruínas do Ascalón». Benjamim
da Tudela fala dela como de uma cidade construída à beira do mediterrâneo
por Ezra «o Sacerdote», e que então denominavam Benibra. Esta cidade
cananea foi conquistada pelos faraós do Egito no ano 1500 antes de nossa
era. Rebelou-se contra seus ocupantes em 1280 A. C., mas esta rebelião foi
sufocada por Ramsés II. Logo se converteu em uma das cinco cidades
ocupadas pelos filisteus, um dos centros de sua cultura, e por último em
uma praça forte de Israel.

O comércio foi ali particularmente próspero nos tempos dos grandes
períodos bíblicos, na época dos Juízes e das dinastias reais. Segundo a
tradição. Sansão, traído por Dalila, foi capturado ali pelos filisteus e
sucumbiu durante o célebre episódio. Quando o rei Saúl morreu ali à mãos
dos guerreiros filisteus, David se lamentou poeticamente no célebre
«Cântico do Arco», que ordenou fora ensinado aos meninos de Judá, e que
foi transcrito a seguir no Livro do Justo, o qual se perdeu: «O esplendor de
Israel sucumbiu em suas colinas! Como é que caíram os valentes? Não o
façam saber no Gat, e não o anunciem nos caminhos do Ascalón, a fim de
que não se gozem por isso as filhas dos filisteus, a fim de que não triunfem
os filhos dos incircuncisos! OH Montes do Gélboe! Que nem o rocio nem a
chuva descendam sobre vós, nem haja campos que dêem as primicias para
as oferendas! Porque é ali onde se manchou o escudo dos heróis». (II
Samuel, 1, 19-21.)

Os profetas Jeremias, Amos e Sofonio amaldiçoaram a seguir à cidade, e
chamaram sobre ela à desolação. Foi submetida e presa por Sargón e
Senaquerib. A partir da conquista de Alexandre converteu-se em uma
opulenta cidade helenística, entregue especialmente ao culto Derceto ou
Atergatis, deusa com rosto de mulher e corpo de peixe.

Foi nesta cidade totalmente pagã por suas origens, seu passado e sua
etnia onde nasceu o futuro Herodes, o Grande. Sua orientação religiosa
forçosamente ressentiu-se por isso, e ao não ser judeu, não deve
surpreendermos que construíra em diversos lugares templos pagãos,
embora tivesse restaurado magnificamente o de Jerusalém, por pura
concessão política.

Iduméia e Nabatea eram, com efeito, profundamente pagãs, sobretudo a
segunda. Rene Dussaud, membro do Instituto, diz-nos o seguinte em seu
estudo sobre os povos dessas regiões: «Ao lado do culto organizado e dos
oráculos pronunciados nos santuários, os árabes do Yemen praticavam a
magia e a bruxaria. Como acontece entre todos os semitas, a distinção
entre o profano e o sagrado, o puro e o impuro é muito nítida e categórica
[...] Os antigos cultos da Arábia meridional se integram no conjunto dos
cultos semíticos. Os cultos árabes do sul (mineanos, sabeus, himyaries) são-
nos conhecidos mediante textos que vão do século VIII A. C. até o VII de
nossa era. Manifestam, em primeiro lugar, uma organização teocrática sob a
autoridade do moukarrib, ou príncipe-sacerdote. A seguir aparecem reinos
laicos dominados por alguma família importante [...] Os sacrifícios cruentos,
assim como queima de incenso, estavam ali muito estendidos». (Cf. Rene
Dussaud, Les religions des Hittites et des Hourrites, des Phéniciens et des
Syriens, cap. III: «Nabathéens et Safantes», Paris, 1945.)

Por certo que esses príncipes sacerdotes os encontramos também em
Israel nessa época (século I A. C.), dentro da dinastia asmonea (como é o
caso de Alexandre Janeo, o primeiro deles). De maneira que não nos
surpreendamos muito se logo nos encontrarmos com um Saulo, príncipe
idumeu, iniciado nos ocultos da magia e sabendo dirigir tanto as forças de
cima como as mais sinistras de baixo. Para nos persuadir nos bastará
relendo I Coríntios, 5, 5, e I Timóteo, 1, 20. A atração para o ocultismo se
encontra em todas as classes sociais, em todas as épocas, desde Salomão
até Nicolau II, do imperador Rodolfo até Catarina de Medicis, sem esquecer
Gilies de Rais e Erzsebet Bathory...

O culto ao Derceto, ou Atergatis, próprio de Ascalón (junto com o de Apolo,
já que o avô de Herodes, o Grande, era sacerdote deste), não deve nos
fazer esquecer aqueles outros, mais sutis, que gozavam do favor de toda a
Arábia nabatea.

Temos, por exemplo, Bel-Samin, o deus supremo, o «Senhor dos Céus»,
que estava flanqueado pelo Dusares, o Dionisos arabizado, e Allat, uma
espécie de Ateneu, embora mais venusiaca. Naquela época existia na
Nabatea ainda o que Roma fazia desaparecer de todas aquelas partes
aonde ocupava a classe de potência ocupante, quer dizer os sacrifícios
humanos associados às oferendas de incenso. Pelos textos de Ras Shamra
sabemos que nesse país de Edom desempenhava um papel ritual o vinho.
Ao suco da uva associava-lhe, desgraçadamente, o sangue humano, cuja
púrpura criminalmente oferecida fazia-se correr sobre as pedras cúbicas que
serviam de altar, em determinadas festas. Havia também ágapes rituais, no
curso dos quais uma parte das oferendas era consumida pelo fogo, e assim
oferecida à deidade, e o resto era consumido pelos sacerdotes ou os fiéis? É
provável. Uma passagem de Aelio Arístido, escritor do século II, diz-nos que
as comidas rituais celebradas no templo de Serapis tinham por objetivo
estabelecer uma estreita comunicação psicopneumática entre o deus e os
participantes. E Flavio Josefo nos diz o mesmo do culto ao Anubis: «Quando
acertaram tal acordo, disse que vinha da parte de Anubis, porque o deus,
vencido pelo amor que sentia por ela, convidava-a a ir a ele. Ela acolheu
essas palavras com gozo, presumiu ante seus amigos da eleição de Anubis e
disse a seu marido que lhe tinham anunciado o ágape e o leito de Anubis.
Seu marido consentiu isso, porque provara a virtude de sua esposa. Ela foi,
pois, para o templo, e depois de ter comido, quando chegou o momento de
dormir, uma vez estiveram as portas fechadas pelo sacerdote do interior do
templo, e as luzes apagadas, o cavaleiro Mundus Decius, que se tinha oculto
ali antes, não deixou de unir-se a ela, e ela se entregou a ele durante toda a
noite, imaginando-se que era o deus». (Flavio Josefo, Antigüidades judaicas,
XVIII, III, 4.)
Filiação Iduméia De Saulo-Paulo, citados dos Herodes



Filiação Iduméia de Saulo-Paulo, citados dos Macabeus

Esse escândalo, que sacudiu Roma no ano 19, teve como epílogo, uma vez
conhecido, uma investigação por ordem de Tibério César, a destruição do
templo de Anubis, que foi arrasado, o exílio do Mundus Decius, amante de
Paulina, sem ela sabê-lo, naturalmente, e a crucificação dos sacerdotes e da
liberta Ide, sua cúmplice. Mas nos conta a importância do ágape ritual.
Nesta circunstância, precedia à comunhão carnal entre o deus e a bela
Paulina, como um costume tão habitual como indispensável.

No mundo antigo, a noção de comunhão com os deuses ingerindo
parcialmente aquilo que lhes era devotado em holocausto ígneo era coisa
comum. No culto ao Dionisos Tracio, os participantes rasgavam com suas
mãos e seus dentes o touro que simbolizava ao deus, e devoravam sua
carne, a fim de converter-se em bacchi e participar a seguir, depois da
morte, na imortalidade divina. Em outros lugares podia tratar-se de um
cabrito, um cordeiro...; a vítima simbólica variava segundo o deus.

Todavia, esta noção particular, mesmo que as formas antigas desse tipo de
ritual caíssem em desuso em princípios de nossa era, e embora se
oferecessem espécies de substituição em lugar das antigas vítimas viventes
(antigamente humanas, logo animais), esta noção, dizemos, tinha
impregnado todo o paganismo árabe, e Saulo não podia escapar a isso.

O mesmo desenvolveria mais adiante, e é uma prova mais de que não era
um judeu de raça, já que tal noção era totalmente estranha ao sacerdócio
de Israel. Os sacerdotes tomavam para si e para sua família certas partes
das vítimas oferecidas, porque deviam viver do altar, simplesmente, tanto
dos donativos diretos como dessas partes extraídos. Mas jamais se
subentendeu que, ao consumir o cordeiro sacrificado durante a grande
Páscoa anual, as famílias judias devorassem ao Yavé, o Deus de Israel, o
Eterno! Enunciar semelhante hipótese seria castigado como o pior dos
sacrilégios.

Pois bem, Saulo sustenta tal idéia. E não só a sustenta, mas também
ensina-a, afirma-a, justifica-a e põe em prática: «Falo-lhes como a homens
inteligentes. Julguem vocês mesmos o que lhes digo. O cálice de bênção
que benzemos não é acaso a comunhão com o sangue de Cristo? O pão que
fracionamos não é acaso a comunhão com o corpo de Cristo? [...] Olhem aos
israelitas segundo a carne: por ventura os que comem das vítimas não
entram em comunhão com o altar?». (Paulo, I Coríntios, 10, 15-19.)

Nesta passagem Saulo nos demonstra que:

a) acredita em um uso de origem absolutamente pagã: a comunhão com
os deuses mediante a ingestão parcial das oferendas;
b) não se considera como um israelita segundo a carne, situa-se à parte,
com os gentis aos que se dirige;

c) o que enuncia é uma enormidade: a comunhão com o altar, quer dizer
com o Deus de Israel, compartilhando as vítimas entre Deus e os
sacerdotes. E semelhante ignorância, semelhante heresia são impensáveis
por parte de um homem que se vangloria de ter passado o tempo de seus
estudos aos pés de Gamaliel, neto do grande Hillel, e célebre doutor (Atos
dos Apóstolos, 22, 9).

Mais ainda, desenvolve sua teoria eucarística justificando-a mediante
esses mesmos costumes pagãos que recordávamos antes: «O que digo,
pois? Que a carne sacrificada aos ídolos é algo, ou que um ídolo é algo? Em
modo algum. Eu digo que o que sacrificam os gentis, aos demônios e não a
Deus o sacrificam. Pois bem, eu não quero que vós entrem em comunhão
com os demônios. Não podem beber o cálice do Senhor e o cálice dos
demônios. Não podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos
demônios. Ou queremos provocar o ciúmes do Senhor? Somos acaso mais
fortes que ele?». (Paulo, I Coríntios, 10, 19-22.)

Agora, em apoio de nossas conclusões, citaremos duas autoridades da
exegese liberal: «Pretendida as palavras da instituição eucarística só têm
sentido na teologia de Paulo, que Jesus não tinha ensinado, e na economia
do "mistério" cristão, que Jesus não tinha instituído». (Cf. Abade Alfred
Loisy, L'initiation chrétienne, P. 208.)

*[O abade Alfred Loisy (1857-1940) foi catedrático de Hebreu no Institut
Catholique de Paris, e logo catedrático das Sagradas Escrituras, até 1889.
Viu-se obrigado a abandonar sua cátedra em 1893, e foi nomeado professor
na École Pratique des Hautes Etudes em 1900, e logo professor de História
das Religiões no Collége de France de 1909 a 1930. Foi excomungado no
ano de 1908, porém, isso não alterou nada seus trabalhos.]

«Mas então, de onde procede esse rito? De onde procedem essas
palavras? Não de Israel. Os judeus não ignoravam a comunhão da mesa, e
muitos esperavam com firme esperança o "festim messiânico"; fala-se disso
nos Sinóticos*. Suas seitas, por exemplo os essênios e os terapeutas,
praticavam ágapes sagrados que se pareciam muito aos ágapes de
sacrifício. Mas em qualquer parte tratava-se tão somente de um sinal de
fraternidade; em nenhuma parte se percebe rastro algum de teofagia**.»
(Cf. Charles Guignebert, O Cristo, III.)

*[Sobre esse festim veja-se, em especial: Mateus, 22, 1-14; Marcos, 14, 25;
Lucas, 22, 30. Trata-se de um banquete de festa, entre irmãos, somente. Ali
não se devora a carne nem o sangue de nennhum deus.]

**[Teofagia: manutenção do simulacro de um deus ou de uma vítima
substituta.]
Todas estas anomalias, todas estas heresias, tão dogmáticas como rituais,
são impensáveis em um pretendido judeu de raça, «hebreu e filho de
hebreu, educado aos pés de Gamaliel».

Entretanto, compreendem-se perfeitamente em um príncipe herodiano, de
origem iduméia por via masculina e nabateo por via feminina, e que não é,
psíquica e hereditariamente falando, a não ser um beduíno ainda imbuído
de paganismo, inconscientemente ou não.

Esse «Cristo» que nos apresenta pela primeira vez, de quem ninguém
ouviu falar antes nas diversas correntes do messianismo político (falava-se
do messiah, do «messias», o qual é muito diferente), é desconhecido por
aqueles que conheceram Jesus, que viveram com ele o desmoronamento
das esperanças na vinda do «Reino». E em pleno século V, as Homilias
Clementinas reconheceram a doutrina «adopcionista» sustentada pelo
grande Orígenes no começo do século nem, que Jesus foi alguém mais que
um subordinado ao Pai, em virtude de sua adoção: «Nosso Senhor,
respondeu Pedro, não disse jamais que existissem deuses além do Criador
de todas as coisas, nem se proclamou, jamais a si mesmo, como Deus, mas
sim, com razão, declarou bem-aventurado aquele que lhe chamou filho do
Deus Ordenador do Universo». (Cf. Homilias Clementinas, XVI, XV.)

Agora bem, esse título de «filhos de Deus» é próprio a todas as criaturas,
tão angélicos como humanas. Citaremos simplesmente as passagens nas
quais não há equívoco, a fim de não alongar inutilmente este capítulo:

«Os filhos de Deus [os anjos] viram que as filhas dos homens eram
formosas...» (Gênesis, 6, 2.)

«Os filhos de Deus [os anjos] foram um dia apresentar-se ante o Eterno...»
(Jó, 1, 6.)

«Os filhos de Deus lançavam gritos de alegria...» (Jó, 38, 7.)

«Aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus...»
(Paulo, Romanos, 8, 14.)

«São todos filhos de Deus pela fé...» (Paulo, Gálatas, 3, 26.) É mais, a
Doutrina dos doze apóstolos --denominada também Didakhé--, citada por
Eusébio de Cesaréia como um texto a classificar entre os apócrifos (cf.
História eclesiástica, III, XXV, 4-5), o que demonstra que já era conhecida no
século IV, faz de Jesus um simples «servidor» de Deus, ebed laweh.

«Quanto à eucaristia, dêem graças assim: Primeiro referente ao cálice:
Damo-lhe obrigado, Oh nosso Pai, pelo santo vinho de David, seu servidor,
que você nos tem feito conhecer pelo Jesus seu servidor; glorifica a Ti nos
séculos!
»Logo, referente ao pão partido: Damo-lhe graças, Oh nosso Pai, pela vida
e a ciência que Você nos tem feito conhecer pelo Jesus seu servidor.
Glorifica a Ti nos séculos!». (Cf. Doutrina dos doze apóstolos 1-3.)

Assim, neste texto à Jesus qualifica-lhe de servidor de Deus, o mesmo
título que ao David; não é outra coisa que o ebed laweh.

Por outra parte, Saulo-Paulo (ou o escriba que efetua as composições sob
seu nome) não ignora que a Lei recebida por Moisés foi comunicada no
Sinai, não pelo próprio Deus, mas sim por um mediador, o Mátatrón-saar-ha-
panim, ou «príncipe das Faces», a quem também se denomina Saar-ha-
Gadol, o «grande príncipe», ou Saar-ha-Olam, o «príncipe do Mundo»: «A Lei
foi promulgada pelos anjos, por mão de um Mediador». (Paulo, Gálatas, 3,
19.)

E então coloca, em sua teologia pessoal, um novo mediador entre Deus e
os homens, esse «Cristo» que ele inseria pela primeira vez na nova
teodicea: «Há um só mediador entre Deus e os homens». (Paulo, I Timóteo,
2, 5.)

«Jesus é o mediador de uma aliança mais excelente». (Paulo, Hebreus, 8,
6.)

E o que é mais grave ainda, Saulo ignora que o Mediador é todo o Israel, o
povo inteiro, não como modelo, mas sim como «depositário da palavra e
dos oráculos de Deus» (Paulo, Romanos, 3, 2), o que induz a acreditar que
está em contradição consigo mesmo. Porque esqueceu a mensagem de
Isaías, coisa bem estranha para um «judeu de raça» que fez seus estudos
aos pés de Gamaliel: «Assim diz o Senhor: No tempo favorável lhes escutei,
no dia da salvação lhes ajudei, conservei-lhes e estabeleceu para ser os
mediadores do povo, renovar a terra e recuperar as verdades devastadas».
(Isaías, 49, 8.)

E o que dizer do fato de que o Pai, tanto se se trata do texto de Mateus
(6, 9) como de Lucas (11, 1-4), não mencione ao Filho, menos ainda ao
Espírito Santo, e não diga nenhuma palavra da Virgem! O que sim é certo é
que Saulo-Paulo, como bom árabe nabateo, não concederá jamais às
mulheres o mínimo direito na religião que está fundando; voltaremos para
isso mais adiante.




7 - De Saulo, príncipe herodiano, ao Simão, o Mago

Mas já à chamada de Astarté desperta, orvalhado pelo cinamomo, o
misterioso Marido. ressuscitou o antigo adolescente! E o céu em flor parece
uma imensa rosa, que tingiu com seu sangue um Adonis gigante...
J.-M. DE HÉRÉDIA «Les Trophées», le réveil d'un dieu

Simão o mago ocupa na história das origens do cristianismo um lugar
importante, com ou sem razão. Dos Atos dos Apóstolos até as obras
especializadas, redigidas pela grande corrente patrística contra as heresias
em geral, a literatura cristã menciona a existência desse misterioso
personagem.

Fez-se dele o pai de todas as heresias, e se tentou justificar esta
paternidade nas doutrinas que acertada ou equivocadamente surgiram da
sua própria. Quer dizer, que não é necessário defender o interesse que
reveste o estudo da personalidade, real ou imaginária, de Simão o Mago.

Agora bem, ao redor de 1850, vários exegetas austríacos e alemães
suspeitaram que detrás de Simão, o Mago, se ocultava em realidade o
apóstolo Paulo. Citemos simplesmente: Baur (Tüb. Zeitschr. F. Theol., IV,
136, e K.-Gesch. dersserst. Jahrh., P. 186, sq.), Zeller (Apg., 158, sq.),
Volkmar (Theol. Jahrh., 1856), Hilgenfeid (Die Clem., Recogn. U Homil., P.
319), Lipsius (Die Quellen der rómischen Petrussage), Schenkel (Bibel-
Lexikon, art. «Simão der Magier»).

Esta escola, como se vê, estava dotada de didatas de valor, e a nova
opinião, defendida a seguir por grande número de críticos, negou
imediatamente a existência histórica de Simão, o Mago. De fato se apoiava
sobre uma constatação de importância, ou seja, que em bom número de
documentos da tradição, o nome de Mago não era outra coisa que um
pseudônimo do apóstolo dos gentis, e que os ataque dirigidos contra Simão
nos Atos e nas obras patrísticas o eram em realidade contra Saulo-Paulo.

Se toda a lenda não tiver outra base que esta confusão dos dois
personagens, confusão que inicialmente foi intencionada, e que logo foi
mantendo-se por causa da ignorância geral, resultará impossível admitir a
existência histórica de Simão, o Mago, e então terá que qualificar de
puramente mítico tudo que se disse dele, e por conseguinte terá que
descartá-lo. A maior parte dos escritores eclesiásticos antigos contam que
Simão foi em princípio discípulo de João, o Batista, e de Dositeo. (Outros,
pelo contrário, fazem de Dositeo um discípulo de Simão.) Tenhamos em
conta este parentesco ideológico, porque logo voltaremos para ele.

Observaremos, em primeiro lugar, que tinha «seu evangelho». No
manuscrito antigo de um tratado siríaco sobre O Santo Concílio da Nicéia,
redigido pelo bispo Maruta de Maiferkat, amigo de João Crisóstomo e
embaixador do imperador Arcadio --filho de Teodosio--, ante o rei da Pérsia
Jezdegerd, em finais do ano 399, destaca-se a existência de um Evangelho
de Simão, o Mago, utilizado pela seita que leva seu nome (os simonianos).
Está dividido em quatro partes, daí seu nome: Livro dos Quatro rincões do
Mundo. Por conseguinte se dirige ao mundo inteiro, incluídos os gentis, o
que, tendo em conta a época, resulta muito paulino.
São Ireneu, por sua parte, justifica a existência dos quatro evangelhos
canônicos com o mesmo argumento: «Como há quatro regiões no mundo
onde estamos, e quatro ventos principais, assim...», etc. (Cf. Ireneu, Contra
as heresias, III, XI, 8.) Conviremos em que a analogia é mais que singular, já
que Paulo também tem «seu evangelho» (utilizando a mesma expressão).

Citaremos simplesmente:

«Deus julgará [aos homens] segundo meu evangelho...» (Paulo, Romanos,
2, 16.)

«Ao que pode lhes confirmar segundo meu evangelho...» (Paulo, Romanos,
16, 25.)

«Se nosso evangelho ficar ainda velado, é para os que vão à perdição...»
(Paulo, II Coríntios, 4, 3.)

«Porque se viesse algum [...] pregando outro evangelho que o que
abraçastes, suportariam-no de bom grado. Entretanto, eu acredito que em
nada sou inferior a esses preclaros apóstolos.» (Paulo, II Coríntios, 11, 4.)

«Maravilho-me de que tão logo lhes passem do que lhes chamou pela graça
de Cristo a outro evangelho diferente....» (Paulo, Gálatas, 1, 6.)

«Mas embora nós ou um anjo do céu lhes anunciasse outro evangelho
distinto do que lhes anunciamos, seja anátema...» (Paulo, Gálatas, 1, 8.)

«Para a qual lhes chamou Deus por meio de nosso evangelho...» (Paulo, II
Tessalonicenses, 2.14.)

«Lembre-se de que Jesus Cristo, da linhagem de David, ressuscitou dentre
os mortos, segundo meu evangelho...» (Paulo, II Timóteo, 2, 8.)

Como se vê, o Paulo do Novo Testamento não cita nenhum outro evangelho
canônico mais que o seu, só apresenta este, e anatematiza a quem quer
que pregue outro. Conviremos em que um recém-chegado à coorte
apostólica isso supõe uma grande audácia! A menos que o seu fora,
realmente, o primeiro evangelho conhecido por este nome...

Voltando para Simão, o Mago, observaremos que segundo Justino, toda a
cidade da Naplusa, a antiga Siquem, era simoneana (cf. Justino, Apologia, I,
XXVI, 3). Os seguidores de Simão, portanto, não constituíram uma pequena
capela fechada ou secreta, mas sim, sem lugar a dúvidas, Simão foi o chefe
de uma grande Igreja. Igual a Paulo.

Simão, o Mago ia acompanhado de uma mulher de grande beleza.
Segundo a mordaz afirmação dos heresiólogos. Simão a comprara no
lupanar onde se encontrava, em Tiro.
Do mesmo modo, parece que Paulo brigou com a grande Igreja por causa
de uma companheira: «Acaso não temos direito a levar conosco uma irmã
que seja nossa mulher?». (Cf. Paulo, I Coríntios, 9, 5.)

Por outra parte, logo veremos que, segundo as Homilias Clementinas
(atribuídas à Clemente de Roma), Simão, o Mago, fora criado em Tiro, com
outros dois meninos, por uma mulher de raça cananéia, Justa, quão mesma
foi ao encontro de Jesus quando este se retirou à Fenícia. (Cf. Mateus, 15,
21-24, e Marcos, 7, 24-25.)

E como já vimos, Saulo fora criado com Herodes, o Tetrarca e Menahem
(Atos, 13, 1). Igual a Simão, o Mago, criara-se com outros dois meninos.

Segundo as mesmas Homilias Clementinas (II Homilia, XXI-XXII). Simão, o
Mago, tem um discípulo chamado Aquilas. Segundo os Atos dos Apóstolos,
Paulo tinha um discípulo chamado Aquilas (Atos, 18, 2; Romanos, 16, 3; II
Timóteo, 4, 19; I Coríntios, 16, 19).

Não nos propomos realizar um estudo completo da vida de Simão, o Mago,
outros se encarregaram disso antes de nós; não obstante, seus estudos não
estavam motivados pelo mesmo. Nos propomos unicamente investigar nos
documentos procedentes da tradição judeu-cristã, para ver se é possível
estabelecer a existência histórica de nosso personagem. Em outros termos,
a questão que se expôs nesta obra, antes das conclusões afirmativas que se
desprendem, era a seguinte: Existiu na história um mago chamado Simão,
ou o nome do Simão o Mago não era a não ser um pseudônimo que seus
adversários aplicavam ao apóstolo Paulo?

Os documentos aos quais fazemos alusão antes são de natureza e valor
diversos. Pertencem, ao menos em sua forma atual, à diferentes períodos
da Gênesis do cristianismo. Alguns deles sofreram transformações e
perderam sua fisionomia primitiva. Esse é o caso das Homilias Clementinas,
os Atos de Pedro e de Paulo e os próprios Atos dos Apóstolos como vimos na
Confissão de São Cipriano.

Os atos de Pedro e de Paulo

Achamo-nos aqui em presença de um documento histórico mais
importante do que pudesse parecer a primeira vista. Porque se em sua
forma atual os Atos de Pedro e de Paulo não se remontam mais à frente do
século V, não obstante é seguro que os elementos de que se compõem, e
que se foram confundindo paulatinamente, remontam-se à épocas muito
diversas, e o exame do conteúdo demonstra que, em algumas de suas
partes, a obra não é afinal de contas, mais do que produtos literários do
grande partido judeu-cristão dos dois primeiros séculos. No referente à
crítica, remetemos ao Lipsius (Die Quellen der rómischen Petrussage, P. 47,
sq.), e ao Hilgenfeid (Novum Testamentum extra canonem receptum).

Os Atos de Pedro e de Paulo, tal como nos chegaram, estão destinados a
nos contar a luta, cheia de prodígios e de acontecimentos sobrenaturais,
como sempre, que em Roma enfrentam os dois apóstolos contra Simão, o
Mago, assim como a morte ignominiosa deste e o martírio glorioso dos dois
primeiros.

A primeira vista a leitura deste escrito pode parecer inútil do ponto de
vista histórico, e parece como se tão somente a fantasia tomasse parte na
redação desses relatos, onde se dá rédea solta ao amor pelo maravilhoso.
Nenhum exegeta católico ou protestante moderno lhe concedeu jamais o
mínimo crédito por essa mesma razão.

Vemo-nos transportados imediatamente em que Paulo chega a Roma,
depois de seu naufrágio nas águas de Malte. Pedro lhe tinha precedido a
«grande Babilônia» para combater ali Simão, o Mago, que é ali muito
honrado e parece ter obtido um grande êxito. Não demora para cercar a luta
entre Simão e Pedro, que rivalizam em prodígios e cujos inesgotáveis
milagres lhes concedem o favor das multidões, naturalmente. Produzem-se
conversões inclusive na própria família do imperador Nero, e a discussão
termina por ter lugar em presença deste.

Nero sente uma grande admiração ao ver os prodígios realizados por
Simão; é certo que o mago não regula nada para aumentar o ascendente
que exerce sobre o imperador. Durante a luta mágica entre Simão e Pedro,
Paulo não intervém em nada; esforça-se por desaparecer quase sempre
atrás deles, o qual resulta muito curioso. Em realidade, tem-se a impressão
de que não está ali. Ao menos sob o nome de Paulo...

Apressado por Nero a que demonstrasse ser «filho de Deus» mediante
algum prodígio, Simão prometeu voar do alto de uma torre, coisa que,
efetivamente, teve lugar no Campo de Marte. Mas no momento em que
Nero, cheio de admiração ante o prodígio levado a cabo pelo mago,
reprovava aos apóstolos seu ódio contra ele, ante as orações de Pedro, os
demônios que sustentavam Simão, o Mago no ar lhe deixaram cair e
fugiram, e Simão, ao precipitar-se contra o chão, pereceu estatelado.
Recolheram-no, enterraram-no, e em vão esperou Nero a prometida
ressurreição.

A morte do mago, que era o favorito do Nero, teve como conseqüência o
martírio dos dois apóstolos. Paulo foi decapitado no caminho de Ostia, e
Pedro foi crucificado, a pedido próprio, cabeça abaixo. No momento do
suplício, as multidões amotinadas queriam matar ao imperador, mas Pedro
o impediu, narrando com este fim a aparição com que Jesus o tinha
honrado. Quando Pedro fugia dos legionários que se lançaram em sua
busca. Jesus lhe apareceu no caminho. Pedro lhe perguntou: «Aonde vai,
Senhor?». «À Roma, para ser crucificado de novo», respondeu Jesus. Pedro
compreendeu então seu dever, e se apressou a voltar sobre seus passos
para entregar-se àqueles que lhe buscavam.

Observe-se que se diversos exegetas puderam reprovar, com razão, aos
Atos dos Apóstolos que tivessem falseado a verdade histórica ao dar um
marco imaginário às relações de tais apóstolos entre si, destinado a velar as
diferenças com vistas a uma conciliação, essa recriminação está justificada
afortiori quando se trata dos Atos de Pedro e de Paulo, cuja tendência, por
certo nada dissimulada, consiste em representar Pedro e Paulo trabalhando
de comum acordo em perfeita união, e tentando imitar-se mutuamente em
palavras e atos.

Pedro é aqui um perfeito paulino, e Paulo um perfeito judeu-cristão:
«acreditamos e acreditam, dizem os cristãos de Roma, que o mesmo que
Deus está longe de separar os dois grandes astros que criou [o Sol e a Lua],
igualmente impossível é nos separar um do outro, quer dizer, ao Paulo de
Pedro, e ao Pedro de Paulo». (Cf. Atos de Pedro e de Paulo, V.)

E em presença de Nero, Pedro diz: «Tudo o que Paulo disse é verdade» (op.
cit., LX), e Paulo replicará a seguir: «O que ouviu de Pedro acredita-o como
se tivesse saído de minha boca, já que temos uma mesma opinião, temos
um só Senhor: Jesus Cristo» (op. cit., LXII).

A verdade é menos idília, e mais validaria não falar de seu cordial
entendimento! Porque, torpemente, as passagens aonde está mais
acentuada a união dos dois apóstolos são precisamente aqueles onde foi
menos em realidade. Em concreto, nas prerrogativas que Paulo reivindica
continuamente em suas Epístolas para sua missão pessoal, direito que lhe
discutiam, aberta ou silenciosamente, seus adversários, os cristãos
judaizantes.

É muito fácil distinguir, através do véu jogado sobre a tradição primitiva
pelo autor anônimo dos Atos de Pedro e de Paulo, os principais elementos
da luta que dividia à Igreja primitiva em geral.

Em primeiro lugar, o autor anônimo não parece ter em conta os Atos dos
Apóstolos. Põe de relevo o ódio dos judeus contra Paulo. Estes, ao inteirar-se
de sua chegada à capital do Império romano, obtêm de Nero, de cujo favor
parecem gozar, a decapitação de Paulo. Em troca, como vimos nos textos
(Atos, 28, 11-22), não acontece nada disso à chegada de Paulo à Roma.

Mas há uma passagem dos Atos de Pedro e de Paulo que não deixa
nenhuma dúvida sobre o que no fundo pensava o autor anônimo, quem,
sem querer, traiu-se a si mesmo.

Em um momento dado, às diatribes contra os circuncisos responde Pedro:
«Se a circuncisão for falsa, por que Simão está circunciso?»

Esta simples pergunta demonstra que não se trata de que Simão estivesse
circunciso por decisão de seus pais na hora de seu nascimento, já que então
ele não seria responsável por tal circuncisão. A frase atribuída ao Pedro
demonstra que Simão, pelo contrário, é responsável por sua própria
circuncisão. Portanto se fez circuncidar livremente, em uma época de sua
vida. E logo veremos, ao estudar o verdadeiro motivo da conversão de
Saulo-Paulo, que não estava circunciso de nascimento, por decisão de seus
progenitores, mas sim se fez circuncidar por vontade própria, quando era
adulto; que esta circuncisão não lhe serve para o que ele esperava, e que
daí provinha seu rancor contra o rito que havia transtornado sua vida.

Entretanto, a insidiosa pergunta de Pedro incomodou enormemente Simão,
o Mago, quem terminou por replicar que, nos tempos em que circuncidaram
ele, a circuncisão era uma ordem de Deus. E Pedro lhe replicou
imediatamente: «assim, se a circuncisão for boa, por que Simão, entregou
você a circuncisos, e os tem feito condenar e matar?».

Mas nos textos canônicos ou nos apócrifos jamais se falou de um Simão, o
Mago, que fora à caça dos cristãos procedentes do judaísmo, e que os
detivera, mandasse-os a prisão e os fizesse julgar e condenar. Essa
recriminação só podia aplicar-se a um apóstolo dos gentis, Saulo-Paulo,
antes de sua conversão. E com isto temos uma prova mais de que o Simão,
o Mago, do autor anônimo dos Atos de Pedro e de Paulo não é outro, em seu
espírito, que o Paulo dos Atos dos Apóstolos, declarado adversário de Pedro
e de seu judeu-cristianismo. Recordem as discussões entre eles, tanto em
Jerusalém como na Antioquia.

Por outra parte, o favor de que goza Simão, o Mago, ante o imperador
não é outra coisa que uma malevolente alusão ao tratamento de favor de
que foi objeto Paulo em Roma durante sua primeira permanência ali, depois
de sua apelação ao César.

E o relato, tão curioso, sobre a pretendida morte de Simão, o Mago, voando
pelos ares e logo estatelando-se contra o chão não é mais que outra ficção
destinada a ridicularizar ao odiado apóstolo. Lipsius (cf. Die Quellen der
rómischen Petrussage) e Schenkel (cf. Bibel-Lexicon, art. «Simão der
Magier») relacionam muito inteligentemente a pretensão de Simão de
elevar-se pelos ares com as revelações de Paulo ao glorificar-se, em seu II
Coríntios (12, 1-6), de ter sido elevado até o terceiro céu e ter sido
introduzido no Paraíso (sic), e de ter ouvido «palavras inefáveis que não lhe
está permitido a um homem expressar». Esta relação pôde estabelecer-se
com grande facilidade dado que, nos tempos de Nero, um homem chamado
Ícaro se fez célebre por tentar voar: «Ícaro, já em seu primeiro intento, caiu
perto do assento do imperador, a quem salpicou de sangue». (Cf. Suetonio,
Vida dos doze Césares: Nero, VI, XII.)

Tratava-se, como é óbvio, de um prestidigitador, um ilusionista que tentou
renovar, evidentemente com outras técnicas, a tentativa do personagem
mitológico de dito nome, filho de Dédalo, ao evadir do labirinto de Creta.
Nos jogos circenses os atores levavam os nomes de personagens
mitológicos aos que momentaneamente encarnavam. Dion Crisóstomo
(Orat., XXI, 9) e Juvenal (Sat., III, 79) relatam-nos o mesmo fato que
Suetonio.

As homilias clementinas
As Homilias Clementinas, atribuídas a Clemente de Roma, estão
constituídas unicamente pela modificação de um escrito mais antigo, que os
exegetas convieram em denominar o Escrito Primitivo. Esta obra, que data
dos anos 220-230, segundo uns foi redigida no Oriente (Síria ou
Transjordânia), e segundo outros em Roma. O autor desconhecido do Escrito
Primitivo já tinha recolhido outros manuscritos anteriores, como os
Cerigmas, predicações atribuídas ao Simão-Pedro, uns Atos de Pedro
diferentes e mais antigos que os que se conhecem como de Verceil, uma
obra judia apologética e, por último, uma espécie de novela de aventuras
em que entra em jogo uma família pagã da época dos Antoninos.

O mais importante deles era os Cerigmas, texto judeu-cristão
extremamente hostil a Saulo-Paulo, a seus princípios doutrinais, a sua
cristologia revolucionária, verdadeira heresia para o messianismo inicial. Os
Cerigmas desapareceram, só ficam as Homilias Clementinas, e o interesse
desta obra radica precisamente em colocarmo-nos em presença das
confrontações, freqüentemente com extrema violência, que opuseram ao
Simão-Pedro e Saulo-Paulo.

Para fazer desaparecer essa hostilidade e unificar as duas correntes que
pouco a pouco foram convertendo-se no cristianismo, os escribas anônimos
que expurgaram, censuraram e interpolaram os escritos antigos a partir do
reinado de Constantino imaginaram Simão, o Mago, e substituíram-no por
Paulo.

Observar-se-á, em primeiro lugar, que não deixa de ser assombroso que
uma obra como as Homilias Clementinas ignore totalmente o apóstolo Paulo
na época em que foi composta e além disso em troca, cite em abundância,
ao Simão, o Mago.

Por outra parte, nas recriminações que faz Pedro àquele ao que chama «o
homem inimigo»*, é impossível não reconhecer ao Paulo. Julgue-se, se não,
pelos seguintes fragmentos:

*[O cardeal Jean Daniélou recorda em sua obra Théologie du Judéo-
Christianisme que nos Kerygmas de Pedro, «o homem inimigo» designa à
Paulo, «considerado como responsável do rechaço das observações.
Recordamo-lhes que Ireneu e Epífano consideravam esse rechaço de Paulo
como uma das características do ebionismo». (Cf. R. P. Jean Daniélou, op.
cit., p. 72.) Estamos, pois, autorizados a concluir que durante um tempo
estreitos contatos uniram Paulo e a seita dos ebionitas. Seus membros
estavam, portanto, em condições de saber perfeitamente as origens deste.
E Epífano, recordemo-lo, conta que eles afirmavam que Paulo tinha como
progenitores uns gentis, quer dizer pagãos, e não judeus. Está
perfeitamente claro (supra, p. 33).]

Carta de Pedro ao Santiago: Conheço, meu amigo, seu ardente zelo pelos
interesses que nos são comuns a todos. Acredito, pois, que devo rogar-lhe
que não comunique os livros de meus ensinos que lhe envio a nenhum
homem originário da Gentilidade, nem a nenhum homem de nossa raça
antes de havê-lo provado [...] Porque alguns dos que vêm da Gentilidade
rechaçaram meus ensinos, conforme à Lei, para adotar o ensino, contrário à
Lei, do homem inimigo e seus frívolos bate-papos. E inclusive em minha
vida alguns tentaram, mediante interpretações artificiosas, desnaturalizar o
sentido de minhas palavras a fim de conseguir a abolição da Lei. De lhes
emprestar ouvidos, acreditaria-se que se trata de uma doutrina pessoal
minha que eu não ouso pregar abertamente! Longe de mim semelhante
conduta! Porque seria atuar contra a Lei de Deus, promulgada pelo
ministério de Moisés, e cuja duração eterna pregou Nosso Senhor quando
disse:

«O céu e a terra passarão, mas nenhum jota nenhuma til da Lei passarão».
(Marcos, 13, 31, e Mateus, 5, 18.)

Segundo as Homilias Clementinas (II, XVI-XVII), há sempre dois
mensageiros; quem chega primeiro é o homem das trevas, o segundo é o
homem da luz, já que as trevas precederam à luz, segundo a Gênesis (1, 1-
3), e para respeitar esse simbolismo, na antiga Israel começava o dia
quando se punha o sol, ao iniciar a noite. E para as Homilias esta regra
aparece autentificada pelo fato de que Caim chegou antes que Abel, Ismael
antes que Isaac, Esaú antes que Jacob. Desde aí procede o primitivo
sacrifício dos primogênitos. E então se compreenderá melhor o que segue.
Fala Pedro: «Guiando-se por esta ordem de sucessão, poderia compreender-
se de quem procede Simão, o Mago, que chegou antes que eu às nações, e
a quem eu relevo, que cheguei depois que ele e que lhe aconteceu como a
luz às trevas, a ciência à ignorância, a cura à enfermidade. Assim, tal como
disse o profeta verídico, tem que aparecer sempre primeiro um falso
evangelho, pregado por um impostor...». (Homilias Clementinas, II, xVII.)

Pois bem, como vimos, Saulo-Paulo insinua que seu evangelho é o primeiro
e condena os outros. Isso está muito claro.

Há ainda uma espécie de controvérsia em que o leitor reconhecerá
facilmente Paulo e suas teorias gnósticas, de cara ao Pedro, estrito reflexo
da ortodoxia testamentária. Vejamos: "por exemplo, Simão, o Mago, deve
manter amanhã conosco uma discussão pública em que ousará atacar a
soberania do Deus Único. Tem a ousadia de contribuir um grande número de
entrevistas extraídas das próprias Escrituras e afirmar que há vários deuses,
um dos quais é diferente do Criador do Universo e superior a ele». (Homilias
Clementinas, III, X.)

Paulo, por sua parte, sustenta os mesmos princípios: «Posto que, embora
há quem são chamados deuses, seja no céu, seja na terra, do mesmo modo
que existem muitos deuses e muitos senhores...» (Paulo, I Coríntios, 8, 5.)

Em outro momento Pedro e Paulo polemizaram violentamente sobre o
valor revelador de uma visão. É evidente que se tratava da maneira em que
Paulo pretendia ter recebido seu evangelho --quer dizer, do próprio Jesus--,
durante sua ascensão ao terceiro céu, e de sua recepção no paraíso: «Se for
mister glorificar-se, embora não é bom, virei às visões e revelações [que eu
obtive] do Senhor. Sei de um homem em Cristo que, faz quatorze anos --se
no corpo, não sei; se fosse do corpo, tampouco sei, só Deus sabe-- foi
arrebatado até o terceiro céu, E sei que este homem foi arrebatado até o
paraíso e ouviu palavras inefáveis que um homem não deve repetir». (Paulo,
II Coríntios, 12, 1-6.)

*[As pretensões de Paulo de escalar o mundo invisível até o terceiro «céu»
(muito mais tarde Mahomé sustentará a mesma afirmação) caem
violentamente contradições pelo evangelho de João: «E nada subiu jamais
ao céu», senão é o que há sob o céu, o Filho do homem, que está no céu»
(João, 3, 13). E mais, o próprio Paulo se contradiz a si mismo em sua Epístola
aos Romanos, ao declarar: «Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu?
Isto é, para rebaixar a Cristo», (cf. Epístola aos Romanos, 10, 6). Dito de
outro modo, segundo esse texto Paulo reconhece que unicamente seu
«Cristo» metafísico é capaz de subir ao céu, porque já desceu dele.]

Vejamos agora o texto das Homilias Clementinas a este respeito:

«Para ouvir estas palavras, Simão, interrompendo Pedro, disse-lhe: "Sei a
quem vai dirigido isso que você diz. Mas não quero repetir as mesmas
coisas para o refutar e perder o tempo em discursos que não estão em
minhas intenções. Vangloria-se que ter compreendido muito bem os ensinos
de seu Mestre, por havê-lo visto claramente com seus próprios olhos e
ouvido com seus próprios ouvidos, e declara que lhe era impossível a
nenhum outro chegar a um resultado semelhante mediante visões ou
aparições». (Op. cit., XVII, XIII.)

Segue uma longa discussão sobre o valor das visões e dos sonhos, e
sobre a qualidade do que os recebe, a qual economizaremos ao leitor. Mas
logo vêm umas passagens que devemos citar, porque não permitem já
duvidar de que se trata da presença de Paulo, sob o nome de Simão, o
Mago. Julgue-se. Segue falando Pedro: «assim, se nosso Jesus se deu a
conhecer também a si, e se tiver conversado consigo em uma visão, é por
cólera contra si, que é seu adversário! Por isso é pelo que falou mediante
visões, sonhos ou inclusive revelações exteriores. Por outra parte, pode um
voltar-se capaz de ensinar, só por uma aparição? Você dirá, possivelmente:

"É possível". Mas então, por que o Mestre permaneceu um ano inteiro
conversando com pessoas despertas? E como daremos crédito ao que você
diz, isso de que apareceu? E como é que lhe apareceu, se seus sentimentos
estiverem contra seus ensinos? E se por ter gozado durante uma hora de
sua presença e de suas lições se tornasse apóstolo, então publica bem alto
suas palavras, explica sua doutrina, ama a seus apóstolos, e deixa de
combater a mim, que vivi com ele! Porque é contra mim, a rocha firme, o
fundamento da Igreja, contra quem você erige como adversário. Se não
fosse meu inimigo, não procuraria com suas calúnias desprezar meus
ensinos para impedir que se acredite em minha palavra, quando eu o que
faço é repetir o que ouvi da própria boca do Senhor, e não me representaria
como um homem condenado e desconsiderado». (Homilias Clementinas,
XVII, XIX.)

Esta última frase faz alusão, evidentemente, a seu passado de
bandoleiro, fora da lei, que constituiu durante muito tempo a existência
cotidiana do Simão-Pedro. Que o leitor se tome a moléstia de ler ou reler,
em nosso anterior volume, o capítulo intitulado «O dízimo messianista», e
então compreenderá que Paulo não ignora tal passado, e que dele tira
argumentos contra Pedro entre os gentis.

Mas como aplicar esta controvérsia ao Simão o Mago? Porque em nenhuma
parte nos diz que Jesus lhe tivesse aparecido! E desta discussão se
desprende, inconfundivelmente, que é ao Paulo a quem vão dirigidas as
diatribes do Pedro.

Entre as Homilias Clementinas e os Atos dos Apóstolos há, além disso, uma
séria contradição na hostilidade que nos pinta, ao opor Simão, o Mago, e
Pedro, e a resignação que o primeiro nos mostra nos citados Atos: «Quando
Simão viu que pela imposição das mãos dos apóstolos se comunicava o
Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro dizendo: dêem-me também esse
poder de impor as mãos, de modo que receba o Espírito Santo. Mas Pedro
lhe disse:

Que seu dinheiro pereça consigo, pois acredita que com dinheiro poderia
comprar o dom de Deus. Não tem nisto parte nem verdade, porque seu
coração não é reto diante de Deus. Arrependa-se, pois, desta sua maldade
e roga ao Senhor que o perdoe se for possível este mau pensamento de seu
coração, porque vejo que incorre em fel de amargura e em laço de
iniqüidade. Simão respondeu: Roguem vós por mim ao Senhor, para que não
me sobrevenha nada do que disseram». (Atos, 8, 18-24.)

Este fragmento dos Atos é, sem sombra de dúvidas, um dos mais
importantes dentre todos os que se relacionam, de perto ou de longe, com
nosso estudo, já que incorpora uma explicação a esse antagonismo de Paulo
e de Pedro, que nenhum exegeta de boa fé saberia negar. Porque só aos
ingênuos e aos ignorantes terá que lhes deixar a lenda dos «bem-
aventurados apóstolos Pedro e Paulo», unidos em Roma por um martírio,
senão semelhante, ao menos cronologicamente associado. Terá que ignorar
a frase dúbia de Eugenio de Cesaréia sobre a suposta morte de Simão-Pedro
em Roma: «conta-se que sob seu reinado [Nero César], ao Paulo cortaram a
cabeça em Roma mesmo, e que parece que ao Pedro crucificaram ali. E isto
o confirma o fato de que até agora [ano 340] levam o nome de Pedro e de
Paulo os dois cemitérios desta cidade». (Cf. Eusébio de Cesaréia, História
eclesiástica, II, XXV, 5.)

As provas da morte em Jerusalém, no ano 47, do Simão-Pedro e de seu
irmão Jacobo (aliás Santiago) demo-las no primeiro volume, de maneira que
não voltaremos para isso.
Entretanto, continuam umas analogias muito curiosas entre as atividades
de Paulo e o oferecimento «simoniaco» de Simão, o Mago. Esse produto das
coletas efetuadas pelo Paulo em Síria, na Macedônia, na Acaia, em proveito
unicamente da comunidade de Jerusalém, que está dirigida pelo Pedro (cf.
Atos, 4, 32-35; 6, 1; 5, 1-11), coletas inegáveis, porque aparecem
enumeradas nas Epístolas de Paulo (I Coríntios, 16, 1-2; II Coríntios, 8, 20;
Romanos, 15, 26), todos esses movimentos e oferecimentos de dinheiro não
evocam curiosamente a oferta de compra do poder iniciático por parte de
Simão, o Mago?

Há, com efeito, uma passagem das Epístolas de Paulo onde este parece
defender-se de uma acusação de simonia discreta e larvada. Julgue-se:
«Atuamos assim a fim de que ninguém nos vitupere com motivo desta
importante soma que passa por nossas mãos». (Cf. Paulo, II. Coríntios, 8,
20.)

E nosso homem precisava no versículo precedente que fizera chegar esse
dinheiro à comunidade de Jerusalém por meio de um irmão que «além disso
foi eleito pelas igrejas para nosso companheiro de viagem nesta obra de
beneficência, que nós levamos a cabo para glória do Senhor e em prova de
nossa boa vontade». (Cf. Paulo, II, Coríntios, 8, 18-19.)

Assim, as igrejas desconfiam, escolheram elas mesmas quem levara o
dinheiro à cidade de David, e não é Paulo. Além disso, o tal Paulo tem que
dar ainda a prova de boa vontade. Tudo isto é menos sinônimo de gracioso
entendimento do que palavrório adocicado e lenitivo dos Atos quer fazer
acreditar.

Há ainda outro ponto em comum entre Simão, o Mago, e Paulo.

Simão denomina a si mesmo «veículo» psíquico do «poder de Deus»,
qualificado também de «Grande». Pois bem, em Samaria, no setor do
estádio, exumou-se uma estátua à Koré, aliás Perséfone, deusa-virgem,
guardiã dos mortos e protetora das sementes, já que o grão se identificava
com o morto, ao qual se introduz na terra a fim de que reviva. Por isso
mesmo, Koré, era também a deusa-virgem restituidora dos vivos. Em
Samaria encontraram-se numerosas dedicatórias a esta divindade, e sobre
uma delas pode-se ler: «Uma só deidade, a poderosa, Koré a Grande, a
Indômita». (Cf. A. Parrot. Samaria, capital do reino de Israel.)

E em Samaria os Atos nos dizem que: «Todos, do menor até o maior,
escutavam atentamente ao Simão, e diziam: Este é o poder de Deus,
chamado Grande». (Atos, 8, 10.)

Voltemos a ler as Epístolas de Paulo; a expressão poder de Deus é, na
linguagem paulina, sinônimo de Deus mesmo (cf. Romanos, 1, 16; I
Coríntios, 1, 18-24, e 2, 5; II Coríntios, 6, 7, e 13, 4; Colossenses, 2, 12; II
Timóteo, 1, 8).
E mais, utiliza o esoterismo iniciático do grão de trigo, depositado na terra
para morrer, a fim de renascer, que, como acabamos de ver, é um dos
elementos da iniciação aos «mistérios» de Koré a Grande: «Mas dirá algum:
Como ressuscitam os mortos? Com que corpo vêm? Insensato! O que você
semeia não recobra vida se primeiro não morrer. E o que semeia não é o
corpo que tem que nascer, a não ser um simples grão, pondo no caso, trigo
ou de alguma outra semente. E logo Deus lhe dá o corpo conforme quis, e a
cada uma das sementes seu próprio corpo». (Cf. Paulo, I Coríntios, 16, 35-
38.)

Agora bem, nestes versículos não parece que se trate da famosa
ressurreição do Julgamento Final, mas sim de um renascimento que
acontece à morte, de um princípio de vida que, neste renascimento, não
segue necessariamente a mesma ordem ontológica que antes, já que sua
nova orientação depende de Deus. Aqui não se trata já de metem-
somatosis, mas sim de metempsicosis. Além disso, voltamos a estar em
presença dos «mistérios» de Koré a Grande, deusa guardiã dos mortos,
restituidora dos vivos, e por isso mesmo protetora das sementes. E aqui,
como vemos, Paulo se expressa rigorosamente igual faria Simão, o Mago,
que provavelmente devia ser «sacerdote de Koré e dos Dioscuros» (cf. A.
Parrot, op. cit.).

Nas Epístolas de Paulo subsistem diversos fragmentos que revelam esta
identidade entre Saulo-Paulo, príncipe herodiano, enfronhado de magia
nabatea, e Simão da Samaria, chamado Simão, o Mago, personagem
imaginário, inventado para as necessidades da causa dos séculos IV e V,
quando «arrumaram» o texto primitivo dos Atos dos Apóstolos. Como prova
nos basta o que segue: «Dou graças a Deus de não ter batizado a nenhum
de vós, a não ser Crispo e Gayo, para que ninguém possa dizer que fostes
batizados em meu nome. Batizei também à família de Estéfanas, mas fora
destes não sei de nenhum outro. Que não me enviou Cristo a batizar, a não
ser a evangelizar». (Cf. Paulo, I Coríntios, 1, 14.)

«Ou é que ignoram que quantos fomos batizados em Jesus Cristo, em sua
morte fomos batizados? Com Ele fomos sepultados pelo batismo para
participar de sua morte [...] Pois, se tivermos morrido em Cristo, acreditam
que também viveremos nele, pois sabemos que Cristo, ressuscitado dentre
os mortos, já não morre.» (Cf. Paulo, Romanos, 6, 3 e 8.)

Estes dois fragmentos das Epístolas de Paulo demonstram:

a) que seu autor não recebeu jamais os poderes apostólicos, o mais
essencial dos quais residia na função batismal;

b) que esses poderes apostólicos lhe foram denegados por seus primitivos
possuidores, os «apóstolos», já que é seguro que não esqueceria lhes
solicitar a transmissão, e sua ausência implica, por conseguinte, uma
negativa;
c) que essa negativa a lhe transmitir os citados poderes apostólicos o
identifica ipso facto, e de maneira irrefutável, com Simão, o Mago, que
sofreu a mesma negativa por parte de Simão-Pedro (Atos, 8, 18-24);

d) que antes Paulo só possuía «seu evangelho», igual a Simão, o Mago,
como já relatamos.

Nos objetará que Paulo possuía os poderes do exorcismo, posto que são
evocados nos Atos dos Apóstolos (19, 11-17).

Não é nada surpreendente em um homem iniciado na magia. Recordemos
sua herança, o parentesco com os príncipes-sacerdotes analisados antes na
religião da Iduméia e Nabatea. Vejamos esse texto: «E Deus fazia milagres
extraordinários pelas mãos de Paulo, até o ponto de que se aplicavam sobre
os doentes tecidos ou lenços que tinham corpos doloridos, e as
enfermidades lhes abandonavam, e os maus espíritos saíam. Alguns
exorcistas judeus ambulantes tentaram invocar sobre aqueles que tinham
espíritos malignos o nome do Senhor, dizendo: Vos conjuro por Jesus, que
prega Paulo! Os que faziam isto eram sete filhos da Sceva, um dos
supremos sacerdotes judeus. O espírito maligno lhes respondeu: Conheço
Jesus e sei quem é Paulo, mas vós quem sois? E o homem em cujo interior
estava o espírito maligno se equilibrou sobre eles, enfureceu-se em dois e
os maltratou de tal maneira que fugiram desta casa nus e feridos». (Atos,
19, 11-17.)

Mas a resposta a esta objeção é óbvia, posto que nos precisa que se
tratava de exorcistas judeus, filhos de um exorcista judeu célebre por suas
curas. Com efeito, quão únicos possuíam esses poderes e os utilizavam
eram os discípulos de Jesus. A Palestina daquela época estava infestada,
como quase todo o Oriente Médio, de magos itinerantes que pretendiam
encontrar em todo doente uma vítima de um ou de vários espíritos
malignos. E a cura dependia então, não da medicina daqueles tempos, mas
sim da magia. Esta magia, principalmente constituída por conhecimentos
botânicos ou psicomagnéticos (hipnotismo, magnetismo curativo), servia às
vezes para adoecer previamente a um futuro cliente, a fim de podê-lo curar
triunfalmente a seguir, suprimindo os «ataques secretos» contra sua saúde.
Rasputin fez o mesmo na Rússia com o Zarevich, para captar a admiração e
a confiança do czar e da czarina, seus pais.

Observemos, de passagem, que ainda em nossos dias o exorcismo é a
única medicina admitida pela Igreja. Não admitiu o bem baseado da
amputação cirúrgica até que se sentou no trono papal Pio XII, e em 1829 o
Papa Leão XII condenou solenemente a vacinação:



«Quem quer que proceda à vacinação deixa de ser filho de Deus. A varíola
é um julgamento de Deus, a vacinação é um desafio ao Céu».

Equivale a dizer que a medicina foi tão somente tolerada!
Para concluir este capítulo sobre a provável identidade entre o
personagem imaginário de Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, o melhor que
podemos fazer é recordar que são Cipriano (decapitado em Cartago no ano
240), que também tinha sido mago, e Eusébio da Cesaréia (morto no ano
40) acreditaram útil comparar Saulo-Paulo com São Cipriano, um mago
convertido (supra, pp. 33-34).

Possivelmente seus manuscritos originais diziam mais sobre o tema, mas
os monges copistas da Alta Idade Média passaram indubitavelmente por ali.
Seja como for, essa dupla alusão terá que acrescentar à tese que identifica
Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, e no momento se basta a si mesmo...

8 - O verdadeiro caminho de Damasco

Todos os caminhos do sonho não levam ao Katmandú..

Michel Delpech , Je suis pour...

Os exegetas da crítica liberal têm descoberto numerosas interpolações no
canon neotestamentário. Existem diversas fórmulas destas. Pode introduzir
um texto, longo ou curto, em uma obra antiga, no curso de uma nova cópia
manuscrita, arrumando-lhe para que o leitor inexperiente não possa dar-se
conta.

O exegeta treinado discernirá facilmente esta interpolação ao constatar
que, a maior parte do tempo, o fio do discurso inicial se rompe, e que
aparece perturbada a harmonia do estilo. Citaremos como exemplo a
célebre passagem de Suetonio sobre o incêndio de Roma: «impuseram-se
limites ao luxo, reduziram-se os festins públicos a distribuições de
mantimentos; proibiu-se vender nas Tavernas nenhum manjar cozido, à
exceção das verduras e dos legumes, quando antes se servia todo tipo de
comida; entregou-se ao suplício os cristãos, gente dada a uma superstição
nova e perigosa; proibiram-se os jogos dos condutores de quadrigas, aos
que um antigo costume autorizava a vagar por toda a cidade para divertir-
se, e se relegaram de uma vez as pantomimas e suas facções». (Cf.
Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, VI.)

É evidente que o estilo de Suetonio merecia mais que essa interpolação,
tão áspera como torpe. Como observa Marcel Jouhandeau, «esse autor não
perde de vista seu objetivo nem um segundo».

E com efeito, o que faz essa condenação dos cristãos em meio da venda
da alface cozida e das verduras, e das farras noturnas dos condutores de
carros? Por isso acreditam a maioria dos exegetas imparciais que toda a
parte que temos escrito em itálico em nossa entrevista é uma interpolação
estranha ao texto inicial de Suetonio.

Nos evangelhos canônicos, uma das interpolações mais audazes que
existem é indubitavelmente a que se refere às célebres «chaves», e que
afirma assim a primazia do bispo de Roma sobre todos outros. Vejamos esse
célebre texto. Jesus acaba de perguntar a seus discípulos (seus irmãos, de
fato) o que pensam dele. Todos respondem que lhe acreditam cristo, filho do
Deus vivo (Mateus, 16, 13-20; Marcos, 8, 27-30; Lucas, 9, 18-21; por isso
com respeito à João, ignora a totalidade deste episódio).

Mas no capítulo de Mateus citado, depois do versículo 16 se interpolou um
novo texto, que se converteu nos versículos 17 e 18, e que diz assim: «E
Jesus, respondendo, disse: Bem-aventurado você, Simão Bar Jona*, porque
não é a carne nem o sangue quem revelou isto, a não ser meu Pai, que está
nos céus. E eu digo-lhe que você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei eu
minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela». (Mateus,
16, 17-18.)

*[Barjonna: veja a palavra acádia, que significa «fora da lei, anarquista».
Veja-se Jesús o el secreto mortal de los templarios, p. 72.]

Esta audaz interpolação é, necessariamente, posterior ao século IV, dado
que naquela época, como já dissemos, por ordem de Constantino e sob a
vigilância de doutores como Eusébio da Cesaréia, unificavam-se os
evangelhos oficiais, enviavam-se série de cinqüenta exemplares aos
diversos bispados do Império Romano e recolhiam-se os antigos, que não
estavam de acordo.

É perfeitamente evidente que se esta passagem o tivessem conhecido os
anônimos redatores e copistas, os manuscritos mais antigos de Marcos,
Lucas e João também o levariam. E não há nada disso. Por outra parte, em
nossa época ninguém teria a audácia de introduzi-lo nas versões desses
mesmos evangelhos, aos que entretanto se chamam sinóticos.

De todas as sucessivas interpolações de que foram vítimas os textos
canônicos, esta foi sem lugar à dúvidas a mais gratificante, e justifica a
constatação de Leão X citada em página anterior desta obra.

Vem a seguir o que se conveio em chamar a interpolação repetida. Os
manuscritos antigos eram cilindros compostos por tiras de papel ou por
páginas quadradas de papiro, grudadas umas depois de outras, a fim de
formar uma longa banda. Para introduzir um texto novo no manuscrito
inicial bastava separar duas páginas ou duas bandas, e intercalar entre elas,
grudando-a por sua vez, a fração de pele ou a página de papiro que
contivesse os novos textos.

De qualquer maneira, ao proceder assim, às vezes podia acontecer ao
interpolador a fatalidade de ver que uma frase cortada em duas. E então
era obrigado a terminar, em cima da fração introduzida, a frase
desventuradamente partida. Logo, na parte debaixo da última página
introduzida, tinha que colocar, como fora, um texto que enlaçasse com o
cabeçalho da antiga página imediatamente posterior. Cada um desses dois
fragmentos dava então origem a uma nova frase, mas a segunda constituía
um áspero «dublê» da primeira. Repetia os termos e as letras. Daí o nome
de «interpolação repetida» que se aplica a esse artifício fraudulento dos
escribas anônimos dos primeiros séculos.

O teólogo alemão protestante Wendt foi o primeiro que descobriu nos Atos
dos Apóstolos dois casos patentes de interpolação repetida. O primeiro
exemplo está relacionado com a lapidação de Estêvão:

«Eles, gritando em vozes altas, tamparam-se os ouvidos e jogaram-se sobre
Estêvão, arrastaram-no fora da cidade e o apedrejaram.» (Atos, 7, 57-58.)

«As testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem chamado
Saulo.»(Idem, 58.)

«E enquanto o lapidavam, Estêvão orava, e dizia: Senhor Jesus, recebe
meu espírito.» (Idem, 59.)

A fim de introduzir um Saulo ainda menino na narração dos Atos, o
interpolador efetuou um corte entre os versículos 57 e 59. Sem dúvida
trata-se tão somente de uma pequena banda horizontal. Mas esta
interpolação resulta torpe, porque, como observa divertido o abade Loisy:
«Ao pobre Estêvão parece que o tenham lapidado duas vezes».

Vejamos agora a segunda interpolação descoberta por Wendt. Aqui o
falsificador não se ateve com pequenas, porque compreende nada menos
que vários capítulos. Tomemos os Atos, capítulo 8, versículo 4: «Os que se
dispersaram foram por toda parte pregando a Palavra».

Saltemos agora todo o resto, quer dizer o assunto de Simão, o Mago,
enfrentando-se com o Simão-Pedro, logo a história do diácono Felipe e do
eunuco etíope da rainha Candaces de Etiópia. Detenhamo-nos para rirmos
um pouco pelo caminho, porque o diácono Felipe batiza ao chamado eunuco
pelo caminho de Jerusalém a Gaza. Quando aparece, o Espírito Santo o
eleva pelos ares, e nosso diácono se encontra, assombrado, na cidade de
Açoito, a uns quarenta quilômetros dali, a vôo de pássaro, claro! (Açoito não
é outra coisa que o Ashdod bíblico --que em hebreu significa «pilhagem»--,
antiga cidade filistéia situada na mesma latitude de Jerusalém, ao norte de
Gaza.) Logo segue o relato da conversão de Saulo, a cura de Ananías, a
ressurreição (sim!) da Tabita graças aos cuidados de Pedro, a conversão de
Cornelio, o aviso que o Céu deu ao Pedro de que abandonasse todos os
tabus da Lei judia, etcétera.

E nosso ardiloso interpolador conclui (no século IV pelo menos): «Para
ouvir estas coisas, calaram e glorificaram a Deus, dizendo:

De maneira que também aos gentis outorga Deus a penitência para
alcançar a vida!». (Atos, 11, 18.)

Amém, diremos nós. E aqui voltamos a nos encontrar com a frase do
princípio: «Os que se dispersaram com motivo da perseguição suscitada por
Estêvão chegaram até Fenícia, a ilha do Chipre e Antioquia, pregando a
palavra somente aos judeus». (Atos, 11, 19.)

É evidente que tudo o que se interpolou, desde 8, 4, até 11, 19, foi com a
intenção de justificar ao Paulo, seu apostolado entre os gentis, o acesso
destes à nova comunidade, e o abandono dos tabus alimentares judaicos,
que, igual à circuncisão, desagradavam aos pagãos e freavam sua
conversão. E os relatos nos quais abunda o sobrenatural estão destinados a
fazer admitir a autoridade daqueles que supostamente os viveram.

A data desta interpolação, uma das mais importantes do Novo Testamento,
pode situar-se nos arredores do ano 360, se recordarmos o que assinalamos
ao estudar a Confissão de São Cipriano.

E provavelmente é concomitante a essas «cópias conforme» enviadas por
séries de cinqüenta exemplares às igrejas do Império Romano por ordem de
Constantino, cópias efetuadas sob a vigilância de seu panegirista Eusébio
da Cesaréia e logo repartidas, ao que seguiu, evidentemente, a recuperação
dos textos antigos. Não obstante, o que é seguro é que esse mendaz acerto
não esteve coordenado; o «nível intelectual» dos destinatários não impunha
aos escribas anônimos do século IV muitas precauções ou controles. Como
prova temos as contradições observadas nos Atos dos Apóstolos, obra que
entretanto está atribuída, oficialmente, ao Lucas, confidente e secretário de
Saulo-Paulo, como autor único. Julgue-se:

Em Atos, 9, 7, nos diz que a escolta de Saulo tinha permanecido de pé e
estupefata durante a aparição de Jesus. Em Atos, 26, 14, lemos que os
homens de Saulo caíram todos ao chão. .

Em Atos, 9, 7, esses mesmos homens armados ouviram a voz de Jesus
dirigindo-se ao Saulo, mas não viram ninguém. Em Atos, 22, 9, precisam-nos
que viram a misteriosa luz, mas que não ouviram a voz de Jesus.

Se, como afirmou recentemente a comissão vaticana autorizada, todo
católico tem a obrigação de admitir que Lucas é o autor único dos Atos dos
Apóstolos, o exegeta independente e objetivo tem que tirar a conclusão de
que o tal Lucas não tinha as idéias muito claras...

Agora sabemos, pela Confissão de São Cipriano, relato composto por
volta dos anos 360-370, que naquela época os Atos dos Apóstolos não
mostravam o milagre acontecido à Saulo-Paulo no caminho de Damasco
pouco antes de entrar na cidade. Segundo esses mesmos Atos, a conversão
do chefe da polícia paralela judeu-romana se produziu muito mais tarde
(veja-se pág. 22).

Agora bem, Epífano (falecido em 403), em sua obra principal Adversus
Haereses, contribui-nos a tradição dos ebionitas. Esta seita, uma das mais
antigas citadas, junto com os nazarenos, reconhecia que o mundo era obra
de um Deus Supremo, mas no que se refere a Cristo, adotava a mesma
postura que Cerinto e Carpocras para esse eón gnóstico. Viviam à maneira
judaica ordinária, e pretendiam justificar-se pela Lei. Segundo eles, foi
praticando-a como Jesus se converteu em um justo, no Ungido de Deus, pois
ninguém entre os judeus tinha completa a Lei. Mas segue-se o mesmo
caminho, alguém se faz idêntico a ele, e qualquer um pode converter-se por
sua vez em um Cristo. «Porque, diziam. Jesus era inicialmente um homem
igual aos outros.» (Cf. Hipólito de Roma, Philosophumena.)

O interesse da tradição ebionita, neste caso, consiste em que nos conta o
verdadeiro motivo da conversão de Saulo-Paulo. São Epífano nos diz que
Saulo tinha nascido de pais pagãos. Aqui encontramos a justificação de
todos os argumentos que tiramos de Flavio Josefo. Prendado da filha do
supremo sacerdote Gamaliel, teria se feito circuncidar para conseguir casar-
se com ela, mas ao ver frustradas suas esperanças, por despeito teria
começado a pregar contra a Lei e os tabus judaicos, e claro está,
principalmente contra essa mesma circuncisão. (Cf. Epífano, Adversas
Haereses, XXX, 16.) assim, o maravilhoso «caminho» de Damasco se teria
limitado aos harmoniosos «quadris» de uma formosa judia.

Por que não? «O amor é forte como a morte, seus ardores são ardores de
fogo, uma chama do Eterno, e as imensas águas não podem apagá-lo...»
(Cantar dos Cantares, 8, 6-7.)

Assim, consciente de seu caráter de estrangeiro à nação judia, Saulo, não
emprestando ouvidos a não ser a seu amor pela filha de Gamaliel, fez-se
circuncidar; sem isto, ele sabia que para ela teria significado o rechaço da
coletividade mística, já que: «A filha de um supremo sacerdote casada com
um estrangeiro não comerá já das coisas santas oferecidas por elevação».
(Levítico, 21, 12.)

Esta conversão de tipo cirúrgico foi, desgraçadamente, inútil. Ou o
Sanedrim vetou semelhante união entre a filha de um supremo sacerdote
(não de um simples sacerdote) e um recém convertido (objetando o caráter
desprovido de todo misticismo de semelhante conversão), ou a filha se
negou a casar-se com ele. E os matrimônios de conveniência estavam
religiosamente proibidos em Israel. De maneira que não a podia obrigar em
modo algum a casar-se com Saulo. Quanto mais que a Lei judia rechaçava
àquele que se fazia partidário por amor a uma mulher.

Agora bem, Saulo-Paulo não era um playboy, nem muito menos, se
tivermos que dar crédito à tradição herdada dos Padres da Igreja.

Em primeiro lugar, estava afetado de uma grave enfermidade, que ele
menciona, sem dizer qual, em seu II Coríntios (12, 2-9). Monsenhor Ricciotti,
em seu Saint Paúl, apotre nos diz sobre ela: «Da passagem de Paulo que
citamos se infere de forma evidente que estabeleceu uma relação estreita
entre a enfermidade desconhecida e seu rapto ao terceiro céu e ao paraíso,
já que considerava seu mal como um remédio que Deus lhe administrava
para lhe impedir de orgulhar-se». (Op. cit., P. 168.)

Recordemos esta relação, porque é muito importante.
A tese de que se tratava de epilepsia clássica, proposta já pelo K. L.
Ziegler, foi sustentada pelo Krenkel em 1890 com argumentos muito
convincentes. Esta tese mantiveram-na muitos exegetas e médicos.
Recordou-se casos análogos, nos quais ao mal clássico se acrescentavam
manifestações histeriformes, de caráter místico-alucinatório. Cita-se a Julio
César, Mahomé, Cola de Rienzo, Fernando o Católico, Cromwell, Pedro o
Grande, Napoleão; todos eles tiveram visões ou audições de caráter
neuropático.

Dirigiremo-nos agora para outra explicação. Vimos já que os príncipes
nabateus e idumeus estavam ligados deste modo a uma espécie de
sacralização religiosa. O uso de drogas alucinógenas achava-se muito
difundido, precisamente devido a sua relação com os «planos» ocultos. Todo
o Oriente Médio conhecia desde fazia séculos o haxixe; o Egito usava já o
ópio em tempos de Ramsés II, e gregos e romanos não ignoravam os efeitos
da adormidera, chamada em grego mekon. Israel, em suas escolas de
profetismo (I Samuel, 10 e 19), utilizava vinhos de ervas, e Síria, Fenícia,
Iduméia, Nabatea e Egito conheciam também os efeitos do banj ou Bang,
extraído de uma espécie de beleno chamado pelos árabes sekaron, quer
dizer «a embriagadora» (cresce em todo o Egito e na península do Sinai; é o
Hyosciamus muticus, um alucinógeno ou um narcótico, segundo a dose).
Saulo pôde muito bem ser um drogado de maneira intermitente, já que,
como veremos, teve numerosas visões em seus périplos, visões
provavelmente provocadas, e delas tirava suas próprias instruções
apostólicas. Mas há algo ainda mais grave!

Deixemos agora seu estado patológico. Como era fisicamente?

Os Atos de Paulo nos dizem dele: «...homem de pequena estatura, calvo,
de pernas arqueadas, de bom estado de saúde, sombrancelhas unidas, de
nariz bem grande, cheio de graça...».

Os Principes Apostolorum, atribuídos ao João Crisóstomo, põem-lhe um
metro e trinta de altura. Sem dúvida para sublinhar sua pequena estatura,
porque isso daria um homem de apenas um metro cinqüenta no máximo, o
que é manifiestamente exagerado.

No século VI, Juan Malala nos diz: «Em vida. Paulo foi de pequena estatura,
calvo, com a cabeça e a barba grisalhas, um formoso nariz, olhos azul
grisáceos, sobrancelhas juntas, pele branca, barba espessa, sorridente...».
(Cf. Juan Malala, Chronographia, X, no Migne, Patrologie Grecque, 97.)

As pernas arqueadas podiam justificar-se por causa dos largos exercícios a
cavalo, coisa nada surpreendente em um príncipe herodiano. Mas isso
também pode significar uma degeneração, sublinhada pela pequena
estatura.

Dessas breves descrições surge um retrato robô de Paulo, ao que se
rodearam todos os pintores e escultores a partir do século IV.
Consideremos agora outra questão. Admitindo que a circuncisão
livremente aceita por ele tivesse derivado do consentimento, por parte da
filha de Gamaliel para um eventual matrimônio, terei que suspeitar que
Saulo, utilizando seus conhecimentos ocultos, teria obtido o consentimento
da jovem por efeito de um sortilégio. Coisa que não seria tão surpreendente,
tendo em conta a época e o meio. Assim se compreende a reação violenta
do Sanedrim, e provavelmente do próprio Gamaliel, já que a magia era
rigorosamente perseguida e condenada, tanto pela Lei judia como pela Lei
das Doze Tábuas, aplicada em Roma.

O que nos incita a ter em conta esta hipótese é a seguinte passagem de
Flavio Josefo: «Pouco depois do matrimônio da Drusila com Aziz, esta união
se rompeu pela razão seguinte: Félix, procurador da Judéia, depois de ter
visto a Drusila, a quem nenhuma mulher igualava em beleza, foi inflamado
pelo desejo de possui-la, e enviando a ela um judeu seu amigo chamado
Simão, cipriota de nascimento, que se fazia passar por mago, esforçou-se
por persuadi-la de que abandonasse seu marido e se casasse com ele,
prometendo-lhe que a faria feliz se ela não o desdenhasse. Drusila, atuando
mal, e querendo fugir do ciúmes de sua irmã Berenice, que não a tratava
bem por causa de sua beleza, deixou-se persuadir para atuar contra as
instituições de seu povo e casar-se com Félix». (Cf. Flavio Josefo,
Antigüidades judaicas, VII, 2.)

Como vemos, a magia intervinha às vezes nos matrimônios.

O leitor já teria adivinhado que a expressão «cipriota de nascimento» foi
interpolada astutamente, a fim de separar do Simão, o Mago, aliás Saulo-
Paulo, a responsabilidade desse feitiço de amor que permitiu ao Félix casar-
se com Drusila. Não esqueçamos que Flavio Josefo chegou até nós em
manuscritos dos séculos IX e XII, quer dizer, que foram obra de copistas da
Idade Média. E da cruzada contra os albigenses e da destruição da Ordem
dos Templários, a Igreja não ignora que entre os hereges sabem muito bem
a que se ater sobre as verdadeiras origens do cristianismo. Remetemos ao
leitor ao que dizemos sobre o «segredo da Igreja» em nossa obra
precedente.

Em caso afirmativo, e se Saulo-Paulo, aliás Simão o Mago, foi o artífice do
matrimônio da bela Drusila com o Antonio Félix (antigo liberto da Antonia,
mãe de Claudio César), e isso por meio da velha bruxaria dos árabes
nabateus, podemos supor que a data seria posterior ao ano 52, já que até
52 não nomeou o imperador Claudio procurador da Judéia ao Félix.

Agora bem, Aziz, rei de Emeso, primeiro marido de Drusila, morreu no ano
54, e sucedeu a seu irmão Soemas. Então, como pôde Saulo-Paulo reprovar
ao Félix e a Drusila sua união, se esta era viúva desde ano 54? Porque nos
Atos dos Apóstolos é o que se insinua: «Passados alguns dias, veio Félix com
sua mulher Drusila, que era judia, e mandou que viesse Paulo, e lhe escutou
a respeito da fé em Cristo. E ao falar ele sobre a justiça, a continência e o
julgamento vindouro, Félix se encheu de terror, e lhe disse: É bastante por
hora. Retire-se Paulo, quando tiver tempo voltarei a chama-lo». (Atos dos
Apóstolos, 24, 24-25.)

Acima de tudo, observamos uma primeira inexatidão. Drusila não é judia, e
sim da Iduméia, da família de Herodes. Interessa-se, como muitas mulheres
cultas de seu tempo, tanto romanas como gregas, sírias ou iduméias, pelos
problemas filosóficos e religiosos. Mas disso a fazer dela uma judia há uma
grande distância.

Vejamos agora a segunda inexatidão. Adivinha-se que o escriba anônimo
que redigiu esta passagem dos Atos quis insinuar que Paulo queria moralizar
ao casal Félix-Drusila. Novo João Batista, considera a Drusila como uma
nova Herodías, e por isso os fala de justiça (não se toma a mulher de outro)
e de castidade (não se vive em estado de adultério), porque se corre o risco
de ser castigado em julgamento vindouro. Não obstante, esta entrevista se
situa no ano 58, na Cesaréia. Portanto faz quatro anos que Drusila é viúva.
De maneira que já não pode viver em estado de adultério. Mas essas
passagens, visivelmente interpolados em versões mais antigas dos Atos,
reforçam a alusão ao «judeu, cipriota de nascimento», porque é um mago
judeu no Chipre; é comensal e conselheiro do governador da ilha de Pafos,
capital do Chipre (Atos, 13, 6-12). Mas se chama Elimas Bar-Jesus, e não
Simão.

De fato, a amizade testemunhada pelo procurador Félix para o Paulo é o
agradecimento do Antonio Félix ao Simão o Mago» por lhe haver feito obter
o amor da bela Drusila. Uma vez mais o amor rege aos homens e às vezes
suas ações mais importantes!

Assim, se o sortilégio de amor que uniu Drusila e Félix teve a Saulo-Paulo
como autor, não é desatinado supor que este último fizesse uso de algum
para obter à filha de Gamaliel. Exponhamos os elementos do problema:

a) Saulo-Paulo não é fisicamente um Apolo;

b) não é judeu.

De maneira que se a filha de Gamaliel mostrou alguma inclinação para ele
e lhe disse que «sim», não foi o físico de Saulo-Paulo que a seduziu.

E necessariamente disse que «sim», porque se houvesse dito que «não»,
Saulo não se teria feito circuncidar, coisa que, em idade adulta, não tem
nada de agradável, tendo em conta a cirurgia da época.

O «sim» da jovem teve que obtê-lo, pois, por outros meios. E voltamos a
encontrar aqui nossa hipótese: cedeu como conseqüência de um feitiço de
amor. Embora não consideramos os efeitos da magia a não ser na
perspectiva de uma física transcendental. Cem mil experiências de
hipnotismo, há quase um século, estão aí para sublinhar a eficácia de todos
esses procedimentos. Também por isso, tendo em conta as confidências de
diversos «magnetizadores-hipnotizadores», desaconselhamos
absolutamente que uma mulher vá confiar-se a algum deles sem ir
acompanhada de algum familiar.

Por outro lado, não se pode negar a magia na vida de Paulo. Citaremos
simplesmente estas duas passagens das Epístolas: «Pois eu, ausente em
corpo, mas presente em espírito, condenei já, como se estivesse presente,
ao que isso tem feito: Em nome de nosso Senhor Jesus, entrego esse
homem a Satanás, para a destruição de sua carne». (Cf. Coríntios, 5, 3-5.)

«Entre eles Himeneu e Alexandre, a quem entreguei a Satanás para que
aprendam a não blasfemar...» (Cf. I Timóteo, 1, 20.)

No primeiro caso se tratava de um homem jovem que se casou com a
viúva de seu pai, e por conseguinte sua madrasta. Ela devia ser muito
jovem, segundo o costume da época.

No segundo caso se tratava de cristãos ordinários, que passaram à Gnosis,
e portanto , abandonaram os grupos submetidos ao Paulo. Como Satanás
era, sob o nome de Samael, o anjo das provas e da tentação, constatar-se-á
que Paulo gosta de praticar a magia negra, já que não se trata de outra
coisa. De todo modo, terá que suportar seus inconvenientes, pois o
chamado Alexandre se converterá em testemunha de cargo durante seu
último processo, em Roma: «Alexandre, o ferreiro, tem-me feito muito mal.
O Senhor lhe dará pagamento segundo suas obras. Guarde você também
dele, porque mostrou forte oposição à minhas palavras». (Cf. Paulo, II
Timóteo, 4, 14.)

Além disso, o testemunho deste Alexandre, confirmado pelo original --ou
uma cópia-- da «primeira carta ao Timóteo», implicará para o Paulo,
acusado já de um pouco mais terrível, que analisaremos chegado o
momento, a acusação também de magia negra. E esta se achava já
sancionada de antemão com a pena capital pela implacável «Lei das Doze
Tábuas» para quem quer que praticasse «sortilégios, feitiços ou palavras de
encantamento, malefícios contra pessoas, animais ou colheitas».

Já sob Augusto procuraram cuidadosamente todos os livros de bruxaria
que pudesse haver no Império. Logo foram imediatamente queimados, por
ordem expressa do imperador. Tibério e Nero confirmaram com numerosos
decretos a vigência das antigas leis. Estas tinham levado a execução, sob o
consulado de Claudio Marcelo e de Valerio Flaco, a 170 bruxas, que tinham
arrojado malefícios sobre numerosas pessoas melando as portas de suas
casas (provavelmente os trincos) com ungüentos especiais. (Cf. Leg.
duodecim Tabular: art. 55, 68, 69, etc.)

O mesmo acontecia na Grécia, onde uma lei castigava a «todos aqueles
que, por encantamentos, palavras, ligadura, imagem de cera ou outro
malefício encantem ou enfeiticem a alguém, ou se dele sirvam para fazer
morrer a homens ou animais de curral, todos esses serão castigados com a
morte». (Cf. De Lamarre, Traite de la Pólice, tomo I, título vII.)
Platão nos fala desta lei em seu De Legibus, livro II. E Pausanias, em seu In
Elia, livro V, relata uma aplicação: Lemnia, uma bruxa, foi condenada a
morte pela denúncia de uma faxineira. Se relacionarmos este nome com o
da lamia das lendas, que atraía aos jovens e lhes tirava a vida pouco a
pouco com voluptuosos enlaçamentos, devia-se tratar de uma mulher que
enfeitiçava aos homens que desejava.

Seja como for, agora vamos encontrar logo ao Paulo em sua obra de mago,
mas para ele do que se tratará é de constituir extensas redes de
cumplicidades femininas na grande empresa que tentará levar a bom termo.

Fica por elucidar um ponto histórico.

Constatamos na Confissão de São Cipriano e na versão dos Atos dos
Apóstolos dessa época que Saulo-Paulo tinha efetuado sua conversão muito
depois do episódio de sua visita à Damasco, no curso do qual o etnarca do
rei nabateu Aretas IV quis lhe fazer capturar. Ele mesmo nos conta como
uns amigos que tinha na cidade lhe ajudaram a baixar de noite, ao longo
das muralhas, metido em um cesto de vime (tarsos). Portanto tal conversão
temos que procurá-la depois deste desatino de Damasco.

Por outra parte, sabemos pelos manuscritos do mar Morto que a seita dos
sadocitas, os «filhos de Sadoc», um dia teve que fugir do lugar e do
monastério de Qumrán para refugiar-se em Damasco. Quando teve lugar a
volta deste exílio, uma fração da seita ficou ali, embora sem deixar de estar
em relação com os repatriados, conforme nos diz o cardeal Jean Daniélou
em seu livro Les Symboles chrétiens primitifs. E aqui intervém um curioso
dado que devemos ao Lurie. Recorda que a seita sadocita não estava fixada
em Damasco mesmo (cf. Document de Damas, VIII, 21; XX, 12), mas quinze
quilômetros ao sudoeste, no caminho que levava à Galiléia, e em uma
aldeia chamada Kokba (cf. R. North, relatório sobre «Eretz Israel», IV, no
Verbum Domini, núm. 35, 1957).

Epífano, em sua obra Adversus Haereses (XXIX, VII, 7), menciona deste
modo aos nazarenos entre os refugiados na Kokba, quer dizer judeus-
cristãos ortodoxos que pertenciam ao ramo fundado por Santiago, o Maior, e
aos arcónticos, judeu-cristãos de caráter gnóstico (Pp. cit., XL, I, 5.) E Julio, o
Africano, chamado pelo Eusébio da Cesaréia em sua História eclesiástica (I,
VII, 14), diz-nos que provavelmente entre eles havia «parentes carnais do
Senhor». Sobre esta questão, veja-se H. J. Schoeps, El judeocristianismo.

Todo o qual conduz ao Dositeo. Este foi o Mestre de Simão, o Mago. Tinha
estado em relação com João Batista, e Epífano o apresenta como saduceu
(coisa que era, evidentemente, um engano); em realidade era sadocita,
levava uma vida muito ascética e praticava o sabbat de forma muito estrita.
Segundo os antigos heresiólogos, foi um gnóstico no sentido absoluto do
termo. Pois bem, segundo o Talmud (cf. R. North, loe. cit., P. 49), vivia na
Kokba.
E Jean Daniélou nos proporciona além disso, em seu livro Les Symboles
chrétiens primitifs, o seguinte dado, particularmente significativo:

«Outro detalhe curioso é a existência de uma tradição segundo a qual a
conversão de São Paulo teria tido lugar na Kokba. Saulo teria tido ali um
primeiro contato com helenistas, que a seguir se encarregariam de sua
instrução em Damasco». (Cf. J. Daniélou, op. cit., VII, l'étoile de Jacob.)

Segundo monsenhor Ricciotti esta tradição seria muito antiga (cf. Saint
Paúl, apotre, P. 213). O historiador protestante Harnack o confirma no Die
Mission und Ausbreitung des Christentums, II, 636, assim como S. Lósch em
Deitas Jesu und Antike Apotheose.

«A gente pode perguntar-se deste modo --prossegue Jean Daniélou-- se a
permanência na Arábia (cf. Epístola aos Gálatas, 1, 17) não designava
simplesmente a Kokba. Naquela época a região de Damasco se considerava
como parte da Arábia.» Com efeito, formava parte do domínio do rei Aretas
IV (e havia um etnarca), toda essa parte da Síria era então do reino
nabateu.

Recapitulemos, pois, nossas sucessivas conclusões:

1) Saulo-Paulo não é outro que Simão, o Mago, já o vimos;

2) Simão, o Mago, foi antes discípulo de Dositeo;

3) Dositeo vivia em Kokba, a quinze quilômetros de Damasco;

4) Saulo-Paulo teria sido antes instruído pelos helenistas em Kokba, onde
vivia Dositeo.

O silogismo é fácil de estabelecer, tendo em conta o que precede, já que a
primeira e a segunda premissas são unânimes em sua demonstração de que
Saulo-Paulo e Simão o Mago não são a não ser uma mesma pessoa.

Quanto à improbabilidade de uma viagem de Saulo-Paulo a pleno território
nabateo, quer dizer a seu capital Petra, confirmam-no dois detalhes:

a) A permanência na região de Damasco, território nabateo, pode explicar
a passagem da Epístola aos Gálatas, 1, 17, que diz:

«Não subi a Jerusalém para ver os que me precederam no apostolado, mas
sim parti para a Arábia, de onde voltei outra vez a Damasco».

b) Observar-se-á que Saulo-Paulo não retornou jamais à Arábia nabatea no
curso de suas numerosas viagens missionárias. Porque, como príncipe das
dinastias Iduméia (por via masculina) e nabatea (por via feminina: sua
bisavó Cypros I), e por haver-se feito circuncidar para fazer-se judeu e casar-
se com a filha do Gamaliel, corria o risco de ser lapidado.

Em efeito, quando sua avó Salomé I decidiu casar-se pela terceira vez,
tinha tido um enredo no palácio de seu irmão Herodes o Grande com um
árabe nabateo chamado Silaios. Ante a indignação das esposas de Herodes,
o árabe, ao ver que suspeitavam dele, partiu, mas retornou três meses mais
tarde, para pedir em matrimônio à Salomé. Era o administrador do rei da
Arábia Obodas, e era jovem e de aparência agradável. Salomé consentiu, e
Herodes também, mas apesar de tudo impôs uma condição: para poder
levar-se bem com a população judia, Silaios se converteria ao judaísmo, ao
menos aparentemente; sem isso, o matrimônio seria impossível, declarou
Herodes. Silaios recusou «dizendo que, se o fazia, seria lapidado pelos
árabes» (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVI, vII).

E esta é a razão, bastante válida, pela qual Saulo-Paulo não retornou
jamais, no transcurso de suas viagens missionárias, à Arábia nabatea. O que
contribui uma prova a mais à suas origens principescos e árabes. Sua
circuncisão «por amor» teria validade também à ele, em território nabateo,
a lapidação que temia Silaios.

Porque, para o Saulo, toda esta aventura expunha problemas insolúveis.

Aos olhos da casa do Herodes, tinha abandonado os cultos ancestrais,
tradicionais, e isso não era o mais grave, a não ser o fato de que pertencia à
religião judia implicava uma naturalização judaica. Já que em Israel religião
e raça eram uma só coisa; pertencer à comunidade mística era pertencer ao
povo eleito, a sua comunidade física.

Agora bem, uma e outra impunham deveres imperiosos, e esses deveres
com muita freqüência eram opostos ao que a dinastia herodiana
considerava como direitos. Converter-se em judeu não significava só
desertar, a não ser alinhar-se entre os adversários.

Sem dúvida, entre as mulheres cultas da aristocracia Iduméia e romana,
produziram-se com freqüência, se não conversões oficiais, ao menos
adesões interiores. Mas se limitavam a isso.

Entre os homens tornar-se judeu expunha outros problemas, imensamente
mais graves, já que o Império Romano via com muito maus olhos essas
conversões masculinas. Aconselhamos ao leitor que releia tudo o que
dizemos sobre o particular mais acima.

No que diz respeito a suas relações com as três potências presentes, nosso
Saulo se encontra, pois, na situação seguinte, depois de sua conversão por
interesse e da circuncisão que o deixou marcado para sempre:

-- Judaismo: considera-lhe um convertido não sincero, já que movido
inicialmente pelo corriqueiro desejo de uma mulher, jamais lhe viu antes
manifestar o mínimo interesse pela religião judia e sua doutrina. Daí lhe
rechacem.

-- Herodismo: considera-lhe como um desertor, já que fazer-se judeu,
para um príncipe herodiano, supõe aderir-se a uma nação que,
unanimemente, é hostil aos incircuncisos em geral, e em numerosas
ocasiões tentou varrer (se era necessário efetuando grandes matanças) aos
membros da descendência do Herodes o Grande.

-- Romanismo: passar de maneira total de uma família aliada de Roma e
amiga dos imperadores (veja-se o referente às relações de Salomé I e da
imperatriz Livia) a uma nação que, em setenta e quatro anos, do 68 antes
de nossa era até o 6 d. C., levantou trinta e seis vezes o estandarte da
revolução (e com que violência!), implica converter-se a sua vez em inimigo
de Roma.

Como se vê, a situação do Saulo era crítica. Aparecia como suspeito para
uns e para outros, era rechaçado por todos, e ainda teria que enfrentar-se
com um quarto adversário.

Voltemos para assunto de Damasco.

Saulo está circunciso, não obteve a mão da filha de Gamaliel, mas
continua sendo o chefe da tropa paralela. Essas funções lhe impõem, se não
deveres, ao menos sim atividades.

Estas últimas as exerce em especial em torno dos zelotes, esses integristas
judeus a quem a comunidade oficial qualificou de apóstatas. E a esses
integristas Saulo os odeia, porque um estado de ânimo semelhante foi o
que, ao suscitar o veto dos sanedritas, quebrou para sempre suas
esperanças sentimentais.

De maneira que redobra as perseguições e pesquisas contra eles. Montará
uma operação contra os de Damasco, porque esta cidade é um centro
zelote importante.

Só que, como já precisamos, Damasco é então um enclave nabateo em
Síria, e está governado por um etnarca, que representa ali ao rei Aretas IV.
Vejamos os dois textos, contraditórios, da Epístola aos Gálatas e os Atos dos
Apóstolos.

Como lemos na Confissão de São Cipriano, Paulo e seu grupo de homens
armados vão a Damasco a fim de efetuar ali uma batida geral entre os
hereges. Entretanto: «Em Damasco, o etnarca do rei Aretas pôs guardas na
cidade dos damascenos para me prender. Mas fui desprendido por uma
janela, em uma cesta, com o passar do muro, e assim escapei de suas
mãos». (Cf. II Coríntios, 11, 32-33.)

Por que quereria prender ao Saulo o etnarca do soberano nabateo? O
assunto se remonta a muito longe.

No ano 6 antes de nossa era, Herodes-Antipas, de volta de Roma, levou a
seu palácio do Tiberíades ao Herodías, esposa de Herodes Filipo, seu irmão,
e filha de ambos, Salomé II. Sua primeira esposa, filha do Aretas III,
apressou-se então a empreender a fuga e refugiar-se em casa de seu pai.
Este último, para vingar do insulto infligido a sua casa, declarou a guerra a
Herodes Antipas. Por último, depois de numerosos momentos de calma
aparente, de renovação das hostilidades, etc., as tropas de Herodes Antipas
resultaram vencidas. Certas hostilidades duraram perto de quarenta anos. A
intervenção romana em favor do Herodes Antipas, por ordem do Tibério
César, no ano 36, não mudou nada. E aconteceu uma paz precária, que
Calígula, desejoso de consolidá-la por parte de Roma, acreditou selar
entregando livremente Damasco aos nabateus.

Mas ao pretender efetuar detenções ali, Saulo cometeu uma imprudência.
Este fato ultrajou a soberania do Aretas IV, filho do precedente. E o etnarca
deste último tentou então capturar ao Saulo, tanto para castigá-lo para
entregar a seu soberano um refém de categoria, o sobrinho neto do Herodes
o Grande em pessoa.

De modo que Saulo tentará ficar um tempo junto aos zelotes.

Como as arrumou? Quando nos diz que, depois de uma conversação com o
Ananías, «as escamas lhe caíram dos olhos e viu claro» (cf. Atos, 9, 17-18),
não vemos a utilidade de imaginar a um Saulo fisicamente cego, com as
pupilas cobertas de escamas, que cairão ao chão quando ele receba o
batismo. A frase deve entender-se em sentido figurado, é óbvio.

Mas Saulo não é judeu nem está louco. Ele, como chefe de guerra e
príncipe herodiano, não ignora a enorme potência militar de Roma. E os
sonhos ideológicos dos zelotes, assim como todas as esperanças
messianistas judias, deixam-lhe frio, não despertam nele, e com razão,
nenhum eco.

Seu plano está, pois, montado. Orientará o messianismo político, quer
dizer o zelote, para uma postura especulativo, puramente mística. Fazendo
isto, não terá nada que temer de Roma, mas bem ao contrário.
Possivelmente esta inclusive lhe dará suporte, já que assim lhes fará o jogo,
ao romper a resistência judia em suas raízes espirituais.

De todo modo, como o movimento zelote constituía um bloco muito unido,
dificilmente penetrável para um homem só e tão suspeito por seu passado
como Saulo, este se dedicaria primeiro a interessar aos gentis na nova
ideologia.

Quando tiver em suas mãos uma massa suficientemente numerosa de
fiéis, tentará fundir os dois messianismos. Fazendo isto, os que resultarão
anexados serão os zelotes, e não os gentis. E por isso não retrocederá em
seu empenho de que os primeiros renunciem pouco a pouco aos costumes
tradicionais judaicos mais importantes: circuncisão, tabus alimentares,
etcétera.

Então se alargará mais o fosso que os separa do judaísmo oficial. E pouco
a pouco a corrente zelote acabará por morrer na massa da Gentilidade...

NOTAS COMPLEMENTARES
Para monsenhor Giuseppe Ricciotti, que evoca em seu livro Saint Paúl,
Apotre (trad. do italiano pelo F. Hayward, imprimatur 15 de maio de 1952,
Robert Laffont édit., Paris), a tradição ebionita contribuída no século IV por
São Epífano, «Paulo apaixonou-se pela filha do supremo sacerdote, e para
casar-se com ela, teria aceito a circuncisão e o judaísmo. Mas ao não
alcançar seu objetivo, para vingar-se, teria passado à oposição, e teria
começado a lutar e a escrever contra a circuncisão, o sabbat e a Lei». (Op.
cit., P. 82.)

Para o abade Migne e seus colaboradores, na tradução latina do grego
antigo do Epífano, Paulo «... quando veio a Jerusalém e fixou aqui sua
residência, casou-se com a filha do pontífice. Nesta ocasião se fez partidário
e aceitou a circuncisão. Mas como logo se divorciou, escreveu encolerizado
contra a circuncisão, o sabbat e a Lei». (Cf. Migne, Patrologie grecque,
Epiphane: Adversus Haereses, libero I, tomo II, III, 16, pp. 431-434, Paris,
1858.)

Quem tem razão? Monsenhor Ricciotti ou o abade Migne? Nós acreditamos
que o primeiro, que ao ser prelado romano, teve indubitavelmente acesso à
célebre Biblioteca do Vaticano e aos manuscritos mais antigos de Epífano,
enquanto que o segundo e seus colaboradores se contentaram traduzindo a
um excelente latim um manuscrito grego do século XVI, gravado sobre
madeira e impresso, das obras completas do mesmo Epífano. E é muito
provável, em efeito, que como sempre, as obras deste último sofressem
sérios retoques e variações, ao desejo de cada monge copista dos séculos
passados; daí as diferenças entre os manuscritos.

Assim, parece mais plausível convir com monsenhor Ricciotti em que
Saulo-Paulo se encontrou com que lhe negavam a mão da jovem --daí sua
mudança de atitude--, em lugar de atribuir tal mudança ao fato de que
Saulo-Paulo tivesse repudiado à moça, porque esta separação depois do
matrimônio, segundo os termos da lei judia, não podia correr a não ser a
cargo do marido, já que a esposa não possuía este direito.

O único modo de conciliar estes dois variantes seria admitir que Saulo-
Paulo e a jovem estiveram oficialmente prometidos, já que este fato, em
Israel antigo, equivalia a uma espécie de matrimônio privado, do que o
matrimônio oficial não constituía mais que a conclusão legal. Assim, uma
vez prometidos, as severas leis sobre o adultério eram já aplicáveis aos
noivos, posto que o noivo podia viver já em casa de seu futuro sogro, e usar
dos direitos legítimos do matrimônio, e daí a frase de Mateus, que não se
entende a não ser nesse contexto: «O homem abandonará a seu pai e a sua
mãe e se unirá à mulher» (Mateus, 19, 5). De modo que os recém casados
não foram viver à parte ou à casa dos pais do marido até depois do
matrimônio oficial e legal.

Pode supor-se, pois, que se rompeu o noivado de Saulo-Paulo por causa da
oposição do Sanedrim, e daí sua irritação. Na hipótese inversa, se foi ele
quem rompeu o acordo, depois de ter feito uso dos direitos legítimos e ter
abusado deste modo da confiança da família e da jovem, é facilmente
concebível o furor dos judeus contra esse pagão de má fé.

E fica um último ponto, ou seja: quem era o pai da jovem? Era o pontífice
de Israel, quer dizer o supremo sacerdote, o cohen-ha-gadol, ou era
Gamaliel, o rabban, quer dizer o «professor dos professores», o «doutor dos
doutores», ou seja o próprio presidente do Sanedrim, o Hahan-ha-hahanim
(sábio dos sábios), possivelmente inclusive Rosch-Galouta (príncipe do
Exílio) ou Daion-di-baba (Juiz supremo)?

Pessoalmente, nos inclinamos pelo Gamaliel, já que os Atos dos Apóstolos
contribuem, apesar de tudo, uma lembrança, possivelmente deformada,
mas nada desdenhável, das relações entre Saulo-Paulo e Gamaliel (Atos, 22,
3), assim como nos mostram o mesmo Saulo-Paulo na incapacidade de
reconhecer e de identificar ao pontífice. (Atos, 23, 1-5.)

9 - A família de Saulo-Paulo

A herança é como uma diligência em que viajassem todos nossos
antepassados. De vez em quando um deles tira a cabeça pela portinhola e
vem a nos causar todo tipo de complicações. O. W. Holmes, seleção

Começamos já a enfocar suficientemente o personagem múltiplo que se
oculta sob os nomes sucessivos de Shaul, Saulo, Paulo para estar agora em
condições de abordar numerosos detalhes sobre sua existência. E em
primeiro lugar, quando e onde nasceu.

Tomamos cuidadosamente nota de que tinha sido educado com:

a) Menahem, neto de Judas da Gamala, de filiação davídica e real, e que
levantará o estandarte de uma nova revolução judia no ano 64 de nossa
era. Será o bisavô do Jonathan-Ben-Menahem, intendente geral do Simão-
Ben-Koseba, príncipe de Israel, chefe da última revolução no ano 132;

b) Herodes, o Tetrarca, e é este último que nos permitirá marcar datas
importantes da vida de Saulo.

Trata-se, com efeito, de Herodes Agripa II, filho de Herodes Agripa I, rei da
Judéia e da Samaria, nascido no ano 10 antes de nossa era e morto em 44
desta. Herodes Agripa II foi o irmão de Berenice, esposa de Herodes do
Calcis, e que, uma vez viúva, foi ao lado de seu irmão, com quem sustentou,
segundo os rumores públicos, umas relações incestuosas. Sua segunda irmã
era Drusila, que se casou com Aziz, rei de Emeso (morto no ano 54), e o
abandonara no 52 para viver com Antonio Félix, procurador de Roma na
Judéia, no ano 53.

Herodes Agripa II foi com toda certeza educado em princípio na Cesaréia e
em Tiberíades, na corte de seu pai. Nasceu no ano 27 de nossa era, já que
contava 17 anos de idade à morte deste, em Cesaréia, em 44. Chamado à
Roma por Claudio César, ao advento deste imperador, quer dizer em
princípio do ano 41. Não retornou à Judéia até muito mais tarde, porque
Claudio César não quis confiar tais responsabilidades a um adolescente. Em
sua ausência, Judéia teve como procuradores, sucessivamente, a: Marcelo
(44), Cuspio Fado (45-46), Tibério Alexandre (46-48), Ventidio Cumano (48-
51) e Antonio Félix (51-58). Enquanto isso, no ano 51, a tetrarquia da
Traconítide fora concedida ao Herodes Agripa II, daí seu nome de tetrarca.
Mas, como vemos, não foi realmente rei, e não reinou como seu pai sobre a
Judéia e Samaria.

Teve que haver aí uma manifestação de desconfiança por parte de Claudio
César, porque sua saída de Roma coincidiu com o decreto deste imperador
expulsando aos judeus livres da capital do Império. Ali não ficaram mais que
os escravos e os que não tinham alforria por completo ante o pretor.

Portanto, foi com Herodes Agripa II e com Menahem com quem foi criado
Saulo. Podemos admitir que este último fora algo maior. De todo modo, se
Estêvão foi realmente lapidado no ano 36, Saulo não devia ter alcançado
ainda a maioridade civil e religiosa do bar-mitzva (aproximadamente aos
doze anos), posto que não participou da lapidação, e os judeus se limitaram
a lhe confiar a vigilância de suas roupas (Atos, 7, 58).

Mas, já que agora sabemos que não era judeu, a não ser idumeu, o
problema não se expõe sob este ângulo. De todo modo, dizem que aprovou
o assassinato legal de Estêvão (Atos, 22, 20). Assim, estiveram obrigados a
recorrer a uma aprovação, ao menos tácita, de Saulo, o que implica que
tinha já certa autoridade. E com efeito, imediatamente depois do enterro de
Estêvão, vemo-lo penetrar nas moradias e arrancar delas homens e
mulheres para colocá-los na prisão (Atos, 8, 3); logo abandona Jerusalém
para estender suas pesquisas e suas batidas até Damasco, em Síria (Atos, 8,
1-2).

Semelhantes atividades, que implicam uma autoridade policial, não são
exclusivas da adolescência nos séculos passados. Não esqueçamos que seu
avô Herodes, o Grande, só tinha vinte e sete anos quando capturou ao
Ezequías, pai de Judas da Gamala e avô de Jesus, e o fez crucificar no curso
de suas campanhas contra esse «filho de David» que fazia estragos em
Síria, à cabeça de seus partidários. E o próprio Herodes, o Grande, recebera
já de seu pai Antípater, amigo de César, o governo da Galiléia, «embora
fosse então extremamente jovem» (cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus. I,
VIII). Durante muito tempo será assim, e na França, por exemplo, chegou
até Capelos. Luis XI exercerá um mando militar efetivo aos quatorze anos, e
fomentará a revolta da Pragueria contra seu pai Carlos VII aos dezessete
anos. Então nomeia-lhe governador do Delfinado. Carlos V foi regente do
reino da França aos dezoito anos. Os reis, com efeito, eram maiores de
idade aos quatorze anos, e Luis XIII foi aos treze.

Por conseguinte, a juventude de Saulo quando lapidaram Estêvão, e
imediatamente depois seu papel na repressão do neomessianismo, não
fazem a não ser confirmar a inanidade da tese segundo a qual não se
tratava senão de um judeu comum, quando tudo demonstra, pelo contrário,
que era um príncipe herodiano, que gozava de todos os privilégios de seu
berço e de todas as responsabilidades inerentes a esta.



Filiação da dinastia Iduméia

Saulo nasceu, portanto, entre os anos 23 e 25 de nossa era, e morreu aos
quarenta ou quarenta e cinco anos. Estes dados o fazem três ou quatro anos
maior que seu süntrophós Herodes o Tetrarca (Atos, 13, 1). Este termo grego
significa «companheiro de juventude, amigo da infância", e é a palavra que
figura nos manuscritos gregos dos Atos dos Apóstolos.

Assim, se se criou na Cesaréia e em Tiberíades, na corte de Herodes
Antipas, não pôde conhecer nem ter visto antes ao Jesus, posto que este
jamais pôs os pés em tais cidades, impuras para um judeu integrista, a
primeira por ser meio helenística, e a segunda porque estava construída
sobre um antigo cemitério. Herodes Antipas tampouco nunca vira Jesus,
porque foi Poncio Pilatos quem o enviou à Jerusalém, depois de sua captura.
E o evangelho de Lucas nos diz: «Quando Herodes viu Jesus, teve uma
grande alegria, já que desde fazia tempo desejava vê-lo, pois tinha ouvido
dizer muitas coisas dele, e esperava lhe ver fazer algum milagre». (Lucas,
23, 8.) Observe-se que Mateus, Marcos e João ignoram este
comparecimento de Jesus ante o Herodes Antipas.

Achamo-nos agora em situação de poder estabelecer a genealogia de
Saulo-Paulo:

Genealogia do Shaul-bar-Antípater

Primeiro grau: Herodes do Ascalón, sacerdote do templo do Apolo no
Ascalón. De sua união com o X... nasceu Antípater.

Segundo grau: Antípater, epimeleta da Palestina. De sua união com Cypros
I, pertencente a uma das mais ilustres famílias da Arábia nabatea, nasceram
quatro filhos, Fazael, Herodes o Grande, José e Perora, e uma filha, Salomé I.
Morreu no ano 43 antes de nossa era, acredita-se que envenenado.

Terceiro grau: Salomé I, que esteve primeiro casada com um tal José, do
que não possuímos nenhuma informação, salvo que foi assassinado por
ordem de Herodes o Grande, assim como Mariana, esposa deste último, no
ano 29 antes de nossa era, depois de serem acusados de adultério por
Salomé I ante seu irmão. Esta se casou a seguir com Costobaro I, íntimo
amigo de Herodes o Grande, quem antes de que tivesse lugar o enlace o
nomeou governador da Iduméia e da Gaza, no ano 37 antes de nossa era.
Costobaro I procedia de uma das maiores famílias da Iduméia, e seus
antepassados nos tempos dos príncipes-sacerdotes, tinham sido
sacrificadores do deus Cosas --divindade que as tribos Iduméias adoravam
com grande devoção--, antes de que Hircano os obrigasse a abraçar a
religião judia, se não sinceramente, ao menos na aparência. Como
Costobaro I conspirasse com Cleópatra, rainha do Egito, para separar
Iduméia do reino do Herodes a fim de fazer-se independente, este o mandou
executar por volta do ano 28 antes de nossa era. Logo Salomé I se casou
pela terceira vez com um tal Alexas.

De sua segunda união com Costobaro I, Salomé teve duas filhas. De uma
delas se ignora o nome; sabe-se que se casou com Caleas, filho de Alexas,
terceiro marido de Salomé I. A outra se chamava Berenice, e se casou com
Aristóbulo, filho de Herodes, o Grande. Salomé I teve um filho, chamado
Antípater, de que falaremos a seguir. Ela morreu no ano 14 de nossa era.

Quarto grau: Antípater II, filho de Costobaro I e de Salomé I, casou-se com
Cypros II, filha de Herodes, o Grande, e de Mariana. Desta união nasceram
uma filha, Cypros III, que se casou com Alexias Helsius, e dois filhos, Shaul
e Costobaro II. Observar-se-á que o nome primitivo de Saulo-Paulo era
Shaul, posto que é o que os Atos dão no capítulo 9, versículo 4, no episódio
do caminho de Damasco. Essa é a forma aramaica do nome, e Saulós era a
forma grega. Pois bem, o aramaico se falava na Palestina e na Síria, e nesta
época se estendeu do Sinai ao Taurus e mais à frente do golfo Pérsico.

Aqui, o manuscrito grego das Antigüidades judaicas de Flavio Josefo
mostra uma importante lacuna. Os famosos monges copistas deram-lhe em
mãos, já que os originais desapareceram misteriosamente, e não possuímos
mais que transcrições medievais dos séculos IX e XIL. A Igreja velou
zelosamente pela ortodoxia das cópias das obras de tal autor. Hoje em dia,
na Biblioteca de Friburgo, encontra-se um manuscrito de Flavio Josefo que,
no século XV, era ainda propriedade privada do arcebispo de Toulouse,
Monsenhor Rieux, e que procedia possivelmente das expropriações
inquisitoriais entre os albigenses e os cátaros, ou do processo contra a
Ordem do Templo. A Igreja citou ao arcebispo e seu manuscrito ante o
Parlamento de Paris, a fim de que o manuscrito fora examinado, e
requisitado se era necessário, e o arcebispo interrogado sobre sua
ortodoxia. Esta lacuna na filiação da dinastia Iduméia não deve, pois, nos
surpreender; tratava-se de fazer desaparecer da verdade histórica a esse
príncipe herodiano de origens muito significativos. Na obra de Flavio Josefo
só encontramos a seguinte referência:

Quinto grau: «Costobaro [II] e Shaul tinham também consigo grande
número de guerreiros, e o fato de que fossem príncipes de sangue real e
parentes do rei os fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram
violentos, sempre dispostos a oprimir aos mais débeis.» (Flavio Josefo, op.
cit.) Costobaro II formou parte da delegação enviada ao rei Herodes Agripa II
para lhe pedir que fora a Jerusalém com tropas, a fim de sufocar a rebelião.
Logo, durante a estância de Nero César na Acaia, foi enviado a este por
Cestio Galo, governador de Síria, para que lhe explicasse os motivos de sua
derrota.
Como vemos indiscutivelmente, Saulo-Paulo foi pois o autêntico neto de
Herodes, o Grande, graças ao matrimônio de seu pai Antípater II com a filha
daquele (Cypros II), e é também seu sobrinho-neto, por ser neto da irmã de
Herodes, Salomé I, mãe de Antípater II.

De maneira que nos achamos muito longe desse casal de judeus
desconhecidos, deportados ao Tarso, dos quais inclusive se ignora o nome.
Coisa que não impedirá à certos críticos bem pensantes negar-se a discutir
nossos argumentos, embora sem contribuir eles com os seus.

Não obstante, observaremos que Saulo-Paulo não é cem por cento
idumeu, já que sua avó materna, Mariana (mãe de Cypros II), era filha de
Alexandre e de Alexandra, e portanto neta de Hircano II, rei e supremo
sacerdote, descendente direto de uma linhagem de supremos sacerdotes de
Israel que se remontava até o Matatias, pai de Judas Macabeo, o herói da
luta judia contra Antíoco IV Epífanes (veja a árvore genealógica acima).
Assim, por esta avó judia, Saulo-Paulo tem 25% de sangue judeu (sua mãe,
Cypros II, tem 50%), e o resto, 75 %, de sangue Iduméia e nabatea.

Por outra parte, se isto lhe facilitar a circuncisão ulterior, o fato de contar
em sua ascendência materna com quatro supremos sacerdotes de Israel
(Hircano II, Alexandre Janeo, Juan Hircano I e Simão-bar-Matatias) seria
incitado a considerar como possível uma união com a filha de Gamaliel.

Mas, além de que o valor moral desta circuncisão tardia foi discutido pelo
Sanedrim, a dinastia asmonea, procedente de Matatias e seus filhos,
deixara lembranças muito penosas e sangrentas nas memórias judias para
que o povo aceitasse tal união; de fato, ante a alternativa, preferiam a
filiação davídica.

E isso não podia a não ser agravar as más relações posteriores entre
Saulo-Paulo, asmoneo por parte de mãe e idumeu por parte de pai, e Simão-
Pedro, «filho de David», como seu irmão maior Jesus, como seu pai Judas da
Gamala e como seu avô Ezequias, crucificado por Herodes, avô de Saulo-
Paulo. Esses ódios familiares explicarão muitos dramas, especialmente a
crucificação de Simão-Pedro e de Santiago, seu irmão, no ano 47 em
Jerusalém, por ordem de Tibério Alexandre, procurador de Roma.

Porque esta dupla execução tem lugar em plena nova revolução judia,
durante a enorme fome que assolou o Império romano naquela época,
anunciada pelo vidente Agabus (Atos, 11, 28), e que se produziu ao término
do primeiro «concílio» de Jerusalém, verdadeiro conselho de guerra, onde se
enfrentaram os adversários dos tabus legais, e sobretudo da circuncisão,
agrupados ao redor de Saulo-Paulo e vindos da Gentilidade, e os judeus-
cristãos tradicionalistas, agrupados ao redor de Simão-Pedro, e procedentes,
ou da corrente zelote, ou da seita fariseu.

É provável que as origens principescas de Saulo-Paulo e suas antigas
funções o colocassem em situação de poder alertar eficazmente às
autoridades romanas contra o que ele considerava como irredutíveis
obstáculos a suas ambições e a seus planos. Porque fica uma alusão muito
clara a este drama: «Pedro, quem, vítima de um injusto ciúmes, passou não
por uma, mas sim por numerosas provas, e quem, depois de ter sofrido
assim seu martírio, foi à glória que lhe estava devida...». (Cf. Clemente de
Roma, Epístola aos Coríntios, V, 4.)

E isso é o que vamos estudar agora.

Este estudo genealógico poderia parecemos fastidioso e inútil se não nos
pusesse em presença de uma verdade pasmosa, verdade que, como efeito
de uma bomba cega, permitir-nos-á compreender muitas coisas. Que o leitor
tenha a bondade de remeter-se aos quadros genealógicos das páginas
anteriores, que podem resumir-se como se indica no esquema desta página.

Não faz falta ser um grande letrado para constatar que Saulo-Paulo é o
segundo primo do rei Herodes Agripa I, quem a sua vez é primo em terceiro
grau de seu filho Herodes Agripa II e de suas filhas, as princesas Berenice
(viúva de seu tio Herodes, rei do Calcis) e Drusila (viúva do Aziz, rei do
Emeso), e que por conseguinte, quando esta última se casou com o Antonio
Félix, procurador de Roma, irmão do Palante (favorito do imperador
Claudio), este matrimônio converteu Félix e Paulo em primos por aliança.



Genitores Primos irmãos Primos segundos Primos em terceiro grau

Herodes, o Grande, casado com a Mariana;

Sua irmã é: Salomé I, casada com Costobaro I; de onde:

Antípater II, casado com Cypros II;

de onde:

Saulo-Paulo e Costobaro II

de onde:

Alexandre Aristóbulo, casado com Glafira;

de onde:

Herodes Agripa I, casado com X...;

de onde:

Herodes Agripa II, cujas irmãs são: Berenice e Drusila, casada com Félix, o
procurador romano

Assim se compreende facilmente por que Claudio Lisias, tribuno das
coortes e governador da Antonia, em Jerusalém, fez conduzir Saulo-Paulo à
Cesaréia Marítima, sob a proteção de quatrocentos e setenta soldados, com
várias montarias para o «prisioneiro Paulo» (sic). Era para pô-lo sob o
amparo de seu primo Félix.

Porque detrás deste último estava seu irmão Palante, secretário de Claudio
César, e o tribuno Lisias era tão bom diplomático como perito soldado...

Referências Bibliográficas Flavio Josefo: Antigüidades judaicas (manuscrito
grego): XIV, XII; XV, XI; XVI, VII; XVII, I; XVII, I; XVIII, V; XVIII, V; XX, VIII.
Guerra dos judeus (manuscrito eslavo): I, IX; I, XI; I, XVII; II, XXXI; II, XII.

As cifras romanas maiúsculas indicam o livro da obra, e as cifras romanas
minúsculas precisam os capítulos de tais livros.

Nota: Segundo costume em genealogia, e a fim de diferenciar aos
personagens do mesmo nome mas com graus diferentes de filiação, demos
um indicativo de ordem a cada um dos membros desta família: Salomé I,
Costobaro II, Cypros III, etc. Se se examina a árvore genealógica da Casa
dos Herodes se observará, em efeito, que há um uso constante dos mesmos
nomes. Trata-se de uma espécie de costume tribal.

Por outra parte, Shaul ou Saulo é um nome raramente utilizado no Antigo
Testamento. Primeiro está o de um dos filhos de Esaú, um dos reis do Edom,
adversários dos filhos de Israel (Gênesis, 36, 37). Há logo um Saúl, filho de
Simão e de uma cananéia, e neto de Jacob. Sua descendência constituiu um
ramo à parte, pelo mesmo fato desta aliança com uma mulher de raça
estrangeira. (Gênesis, 46, 10, e Números, 26, 13.) Está, por último, o Saúl
que precedeu ao David (I Samuel, II Samuel, I Crônicas). Como vemos, isto
confirma que Saúl não era um nome verdadeiramente judeu, mas, ao
contrário muito utilizado entre os árabes.

Os sacrilégios de Saulo-Paulo

Resulta que a desonra e a própria santidade, devidamente identificadas,
aconselham deste modo uma certa prudência, e representam, de cara ao
mundo, os dois pólos de um campo atemorizador.

R. Caillois, L'Homme elle Sacre

Nos Atos dos Apóstolos lêem o que segue: «E seguiu até chegar ao Derbe
e a Listra. E se encontrou ali com um discípulo chamado Timóteo, filho de
uma mulher judia crente e de pai grego, que tinha a seu favor o testemunho
dos irmãos que havia em Listra e em Iconio. Quis Paulo que se fora com ele,
e tomando, circundou-lhe por causa de quão judeus havia naqueles lugares,
pois todos sabiam que seu pai era grego». (Atos dos Apóstolos, 16, 1-5.)

O que quer dizer com isto? Porque o mesmo texto nos contribui a seguir
sua própria contradição: «Ao passar pelas cidades, comunicava-lhes os
decretos dados pelos apóstolos e anciões de Jerusalém, lhes encarregando
que os guardassem». (Atos dos Apóstolos, 16, 4.)
Que decretos são esses? Aqui os temos: «Porque pareceu bom ao Espírito
Santo e a nós não lhes impor nenhuma outra carga mais que estas
necessárias: que lhes abstenham das carnes imoladas aos ídolos, do
sangue, dos animais estrangulados e da fornicação, do qual farão bem em
lhes guardar». (Atos dos Apóstolos, 15, 28-29.)

Aqui não se fala em nada de circuncisão... Porque do que aqui se trata é da
Lei de Noé, menos severo que a Lei de Moisés. Logo voltaremos sobre este
tema.

Por conseguinte, a operação efetuada sobre Timóteo pelo próprio Paulo foi
uma circuncisão clandestina, não ritual, com o fim de enganar, e portanto
mendaz e sacrílega.

Agora bem, ele não tinha nenhuma autoridade para efetuá-la, por não ser
judeu, e menos ainda sacrifícador. E se fosse judeu. Paulo, a quem nos
apresenta como chefe de uma tropa ao serviço do Sanedrim, demonstrava
com esta função puramente laica que não era sacerdote. Porque é mais que
incerto que Gamaliel, doutor supremo de Israel, recebesse entre seus
discípulos a um jovem judeu destinado simplesmente a desempenhar o
papel de jenízaro. Assim, Paulo mentiu ao pretender ter sido educado «aos
pés do Gamaliel» (Atos dos Apóstolos, 22, 3).

Vejamos como se desenvolvia essa circuncisão ritual.

Exigia a presença de três mohelim (sacrifícadores), e de sete testemunhas
varões adultos. A circuncisão, que começava com a faca ritual o primeiro
mohel, terminava-se dentibus. A primeira aspiração de sangue a tragava
esse primeiro mohel, que representava a «Deus, o primeiro servido». As
duas aspirações seguintes as cuspiam a seguir os outros dois mohelim em
uma taça de vinho de bênção. Com esse vinho consagrado se esfregava os
lábios do jovem circunciso. A taça circulava logo do pai aos convidados
varões, e todos bebiam dela. Tinha lugar assim a comunhão com Israel
humano, e logo vinha a comunhão com Deus. O resto do vinho passava à
mãe, que o mesclava com bolos e com geléias que eram distribuídas em
seguida entre os amigos da família. (Cf. León de Módena, grande rabino de
Veneza, Cérémonies & Coutumes juives, p.131.)

Por último, durante esta tripla comunhão com Deus, os sacerdotes e os
laicos, cantava-se o salmo 16 de Ezequiel: «Revive em seu sangue!». E esta
era a única circunstância em que os judeus podiam ingerir sangue, e mesmo
assim se tratava de sangue humano, rigorosamente judeu, o que elimina a
abominável lenda dos crimes rituais imputados aos judeus, e dos meninos
cristãos sacrificados durante a Páscoa.

Como se vê por este relato; Paulo não tinha complexos, e para tratar com
semelhante desenvoltura o rito mais sagrado da Antiga Aliança, tinha que
ser totalmente alheio à raça judia, porque naquela época um filho de Israel
«educado os pés de Gamaliel» jamais se atreveria a cometer tal impiedade.
Este constitui, pois, o primeiro sacrilégio de Saulo-Paulo, e é fácil de
conceber que suscitasse entre os judeus um forte ódio quando fora
conhecido por eles.

Vejamos agora o segundo: «Quando chegamos à Jerusalém, fomos
recebidos pelos irmãos com alegria. Ao dia seguinte, Paulo, acompanhado
de nós, visitou Santiago, e ali se reuniram todos os anciões. Depois de havê-
los saudado, contou uma por uma as coisas que Deus tinha obrado entre os
gentis por seu ministério. Logo eles lhe disseram: Já vê, irmão, quantos
milhares de crentes há entre os judeus, e todos são zeladores da lei. Mas
ouviram que ensina aos judeus da dispersão que terá que renunciar ao
Moisés, e lhes diz que não circuncidem a seus filhos e não sigam os
costumes mosaicos. O que fazer, pois? Indubitavelmente a gente se reunirá,
porque saberão que veio! Por isso faz o que vamos dizer: Há entre nós
quatro homens que têm feito voto. Toma-os contigo, purifica-se com eles e
lhes pague os gastos para que se raspem a cabeça. E assim todos
conhecerão que não há nada de quanto ouviram sobre si, mas sim você
também segue na observância da Lei. [...] Então Paulo, tomando consigo
aos varões, purificou-se, e entrou na manhã seguinte no Templo com eles
para anunciar que dia se cumpriria a purificação, e a oferenda apresentada
por cada um deles». (Atos dos Apóstolos, 21, 17-26.)

Os quatro homens que deviam cumprir essas cerimônias de purificação
eram judeus que tinham feito o voto do nazireato para um tempo dado.
Essas cerimônias implicavam gastos consideráveis; compreende-se, pois,
que ao tomar Paulo a seu cargo a estes, infiltrando-se entre eles sem ter
feito antes o voto prévio (e com razão!), cai no caso de corrupção de quatro
nazirim, crime muito grave, tanto para ele como para eles, e no de falsa
declaração de nazireato, verdadeiro sacrilégio, já que profanava as
cerimônias de liberação desse estado.

E chegamos agora ao terceiro: Em Jerusalém, o tribuno Lisias convoca ao
Sanedrim e chama a sua presença Paulo, que vai sob o amparo dos
legionários. É então quando nosso Paulo tem a audácia mendaz de declarar:
«Varões irmãos, eu com toda boa consciência procedi ante Deus até este
dia» (Atos dos Apóstolos, 23, 1); o supremo sacerdote Ananías ordena a um
dos que estão a seu lado que lhe golpeiem na boca. Então Paulo declara,
furioso: «Deus golpeará a ti, parede branqueada!» (op. cit., 23, 3).

Com cal vivo branqueavam-se as soleiras, os pingentes as portas dos
sepulcros utilizados para alertar aos judeus e lhes evitar o contato com um
lugar impuro, no que se decompunha lentamente um cadáver. Os epítetos
de «sepulcro» e de «parede branqueada» equivaliam portanto a tratar a
alguém de podridão ou de carniça. (Jesus, por certo, tampouco se privou de
utilizá-los; veja-se Mateus, 22, 27, e Lucas, 11, 44.)

Paulo, dando-se conta então da magnitude da estupidez que tinha
cometido, replicou sem alterar-se aos judeus que lhe acusavam de ter
insultado ao «soberano pontífice de Deus» (Atos dos Apóstolos, 23, 4): «Não
sabia, irmãos, que fora o pontífice. Porque escrito está: Não injuriará ao
príncipe de seu povo». (Atos dos Apóstolos, 23, 5, citando o Êxodo, 22, 27.)

Isto constitui uma prova mais de que não era judeu, e que não cresceu
espiritualmente «aos pés de Gamaliel», como afirma. Porque nesse caso
conheceria o rosto daquele que lhe sucedeu, seu sucessor direto; teria que
lhe encontrar forçosamente, como simples cohén, na casa de Gamaliel. Mas,
sobretudo, conheceria suas roupas e ornamentos rituais, e saberia, assim
identificá-lo entre os sanedritas.

O que caberia pensar, por exemplo, de um sacerdote católico romano que,
em presença de um concílio, não soubesse distinguir ao Papa por seus
ornamentos particulares, seu posto, sua importância e sua autoridade?

O judaísmo compreendia duas categorias de fiéis, e um só se convertia
verdadeiramente em filho de Israel ao final de duas etapas, ou seja:

1) partidários de primeiro grau, chamados «temerosos deste Deus
observavam a Lei de Noé --daí seu nome de noacitas--, quer dizer que não
consumiam sangue, e por este motivo, nenhuma carne procedente de
animal morto (cf. Gênesis, 9, 1-7);

2) partidários de segundo grau, chamados «de justiça». Observavam a Lei
de Moisés com todo seu rigor: proibição de sangue, de carnes consagradas
e oferecidas em altares dedicados a outros deuses, de carnes procedentes
de animais mortos ou impuros, etc. (cf. Deuteronômio, caps. 12-26).

É fácil tirar a conclusão de que Saulo-Paulo nem sequer foi partidário de
primeiro grau, um «temeroso de Deus», porque ao ter que respeitar a Lei de
Noé, que impunha a fecundidade sexual (Gênesis, 9, 7), não poderia
aconselhar seus seguidores: «Quem casa a sua filha donzela faz bem. Mas
quem não a casa faz melhor». (Cf. I Epístola aos Coríntios, 7, 38.)

Quanto à circuncisão por complacência, aceita para poder casar-se com
uma das filhas do Gamaliel, é provável que fora igual de irregular que a de
seu discípulo Timóteo, e não nos está proibido supor que nem sequer foi um
cohén regular o que a praticou.

Nota: Observar-se-á que no texto grego dos Atos, 13, 1: «... e Menahem, que
fora criado com Herodes, o Tetrarca, e Saulo...», o escriba do século IV pôs
este último nome em nominativo (Saúlos), o que implica, em seu espírito,
que Saulo não foi criado com Menahem e Herodes, o Tetrarca, futuro
Herodes Agripa I. Trata-se de uma artimanha indiscutível, já que é evidente
que, muito mais que Menahem, membro de uma família rival da de Herodes,
o Saulo «príncipe de sangue real», como o qualifica Flavio Josefo, esteve em
situação de poder ser criado com seu primo Herodes, o Tetrarca. Quanto
mais que as obras deste autor nos mostram sem cessar aos membros desta
dinastia mesclados em uma espécie de vida em comum, verdadeira corte
reunida nos diversos palácios em torno de um dos príncipes descendentes
de Herodes, o Grande. De onde essas múltiplas intrigas que marcam
tragicamente a história de tal família.

10 - Paulo e as mulheres

Se me amarem tanto como eu vos amo, nenhum mortal é, então, tão amado
como eu.

Gregorio VII Carta a Mathilda, duquesa da Toscana, sua concubina.

«Há uma raça nova de homens, nascidos ontem, sem pátria nem
tradições, unidos contra todas as instituições civis e religiosas, perseguidos
pela justiça, pontuados universalmente de infâmia, mas que se vangloriam
da abominação comum: são os cristãos... Os perigos que os cristãos
confrontam por suas crenças, Sócrates soube encará-los por si com um
valor inquebrável e uma serenidade maravilhosa. Os preceitos de sua moral,
no que tem de melhor, ensinaram-nos os filósofos antes deles. Suas críticas
à idolatria, que consistem em dizer que as estátuas realizadas por homens
freqüentemente desprezíveis não são deuses, foram repetidas inumeráveis
vezes. Heráclito, por exemplo, disse: "Dirigir orações à imagens, sem saber
o que são os deuses e os heróis que representam, é o mesmo que falar com
pedras".

»O poder que parecem possuir lhes vem de nomes misteriosos e da
invocação de certos demônios. Através da magia foi como seu Mestre
realizou tudo que de assombroso houve em suas ações. Logo pôs grande
cuidado em advertir à seus discípulos que se protegessem daqueles que, ao
conhecer os mesmos segredos, poderiam fazer quão mesmo ele e fingir,
igual a ele, que participassem do Poder Divino. Divertida e escandalosa
contradição! Porque se condena com razão a quem imita, como não se
voltar contra ele sua própria condenação? E se ele não é nem impostor nem
perverso por ter realizado ditos prodígios, por que seus imitadores, pelo fato
de levar a cabo as mesmas coisas mediante os mesmos meios teriam que
sê-lo mais que ele?...» (Cf. Celso: Discurso da Verdade, 1-3.)

Antes nosso terrível autor assinala os círculos familiares nos quais os
cristãos tentam, preferencialmente, obter partidários: «vêem-se cardadores
de lã, sapateiros, tecelões, gente da maior ignorância e desprovidos de toda
educação, que, em presença de seus professores, homens de experiência e
de julgamento, guardam-se bem de abrir a boca. Mas quando surpreendem
aos meninos da casa, ou inclusive às mulheres, que não têm mais razão que
eles mesmos, começam a lhes contar maravilhas! É a eles sozinhos a quem
terá que acreditar; o pai de família, os preceptores, são loucos que ignoram
o verdadeiro bem e são incapazes de ensiná-lo. Só eles sabem como terá
que viver; os meninos farão bem de segui-los, e através deles a felicidade
visitará toda a família! Não obstante, se enquanto eles pregavam aparece
um dos preceptores, ou o próprio pai de família, ou alguma pessoa séria, os
mais tímidos não se calam; os descarados não deixam de incitar aos
meninos a que sacudam o jugo, insinuando em surdina que não querem lhes
ensinar nada em presença de seu pai ou seu preceptor, para não expor-se à
brutalidade dessas gente corrompidas, e que lhes castigariam. Mas que
aqueles que desejem saber a verdade, suplantem ao pai e preceptor, e vão
com as mulheres e os meninos ao gineceu, ou à tenda do sapateiro ou a do
tecelão, para aprender a vida perfeita». (Op. cit., tradução de Louis Rougier,
Jean-Jacques Pauvert, éditeur. Paris 1965.)

Vimos, indiscutivelmente, um quadro tomado ao vivo. Uma coisa assim não
se inventa. E Celso, amigo do imperador Juliano, seu companheiro de
estudos nas escolas de Atenas, a quem Juliano fez governador das
províncias da Capadocia, Cilícia, pretor da Bitinia, com toda segurança teve
que se ver com propagandistas cristãos.

Agora bem, vamos encontrar nos próprios textos cristãos esta ação
insidiosa entre as mulheres, e sobretudo as jovens. Freqüentemente estas
últimas eram «dadas em matrimônio» pelo pater familias, sem preocupar-se
o mínimo por suas inclinações do momento (coisa que em Israel a Lei
religiosa proibia fazer). Disso resultavam feridas morais incuráveis, e se
compreende facilmente que os pregadores da nova religião encontrassem
terreno abonado para lhes pregar a castidade.

Pois bem, nos Atos de Paulo, chamados também Atos de Paulo e de Tecla,
cujas versões siríaca, eslava e árabe são do século VI (existem fragmentos
da versão grega em um pergaminho do século VI), vamos encontrar provas
formais desta ação insidiosa de Paulo entre as mulheres. E esta ação, tendo
em conta as crenças daqueles tempos, revestirá um aspecto mágico não
menos seguro.

Por uma parte, Paulo aconselhará a quão jovens não se casem. Por outra,
aconselhará às jovens e às mulheres o mesmo. Mas enquanto o efeito sobre
os primeiros é menos tangível, a ação, ou, como poderíamos dizer, a
influência, por volta das segundas, é total. Julgue-se:

«Afortunados aqueles que têm mulheres como se não tivessem, porque
terão a Deus como herança...» (Op. cit., V.)

«Enquanto Paulo assim falava em meio da assembléia, na mansão de
Onesiforo, uma virgem, cuja mãe se chamava Teoclia, e que estava
prometida a um jovem chamado Tamiris, sentada na janela mais próxima a
sua casa, escutava dia e noite a palavra de Deus anunciada por Paulo... E
não se movia da janela... Além disso, como via mulheres e virgens ao lado
de Paulo... Porque ela não tinha visto ainda nunca as facções de Paulo, só
tinha ouvido sua palavra.» (Op. cit., VII.)

«E Teoclia disse: Tenho detalhes novos para dar, Tamiris. Faz três dias e
três noites que sua prometida não se separa da janela, nem para comer
nem para beber, mas sim, como extraviada de gozo, aterra-se de tal
maneira a um homem estrangeiro que ensina palavras enganosas e
artificiosas, que estou surpreendida de que o tão grande pudor da jovem
esteja turbado de forma tão penosa.» (Op. cit., VIII.)
«Tamiris, este homem transtorna a cidade dos iconianos, como a sua
própria pregação, já que todas as mulheres e os jovens vão a ele... E minha
filha também, encadeada como uma aranha a sua janela pelo que ele diz,
está dominada por um desejo novo e por uma temível paixão... E a jovem
está gostando muito...» (Op. cit., IX.)

«E todos choravam amargamente, Tamiris porque perdia a sua futura
esposa, Teoclia a sua filha, os jovens escravos a sua ama. Reinava, pois, na
casa uma grande e geral confusão de pesar. E enquanto isso, Tecla não
mudava, e permanecia sempre atenta ao verbo de Paulo.» (Op cit., X.)

«Tamiris, quando ouviu isto, ficou com ciúmes e cólera. Logo que
amanheceu se levantou e foi à casa de Onesiforo com magistrados,
funcionários, e um grupo bastante numeroso armado de fortificações, e
disse ao Paulo: "seduziste à cidade dos iconianos e a minha prometida, de
modo que esta já não quer casar-se comigo; vamos ante o governador
Cestilio". E o grupo inteiro disse: "leve este bruxo, porque seduziu todas
nossas esposas"; e a multidão era desta mesma opinião.» (Op. cit., XV.)

«Tamiris, diante do tribunal, disse aos gritos: "pró-cônsul, não sabemos de
onde vem este homem que impede de casar-se às jovens. Que diga ante ti
por que ensina essas coisas"...» (Op. cit., XVI.)

Ao revelar o interrogatório de Paulo que este era cristão, o governador
ordenou prendê-lo e colocá-lo na prisão, esperando que, ao ter mais tempo
livre, pudesse escutá-lo mais a fundo.

«Mas Tecla, durante a noite, tirou os braceletes e os deu ao porteiro, e
quando teve aberta a porta, encaminhou-se para a prisão. Deu de presente
ao carcereiro um espelho de prata, entrou junto ao Paulo e, depois de
sentar-se a seus pés, escutou a grandeza de Deus. E Paulo não temia nada e
se conduzia com a liberdade de Deus, e sua fé recobrou firmeza nela,
enquanto lhe beijava as algemas.» (Op. cit., XVIII.)

A liberdade de Deus ou a liberdade dos filhos de Deus? O que pretende isto
dizer? Porque essa expressão em desuso designa o fato de efetuar não
importa que ação, na ignorância do bem e do mal!

Aqui abriremos um parêntese. A tradução deste velho apócrifo (a versão
copta é do século V, mas aparece citado no ano 200 por Tertuliano) é do
abade Vouaux, catedrático de universidade, professor no Collége de
Malgrange. O imprimatur é de Paris, de 1912, e foi editado pela Librairie
Letouzey et Ané.

Agora bem, em relação ao último versículo citado acima, o tradutor toma
a precaução de assinalar: «A observação acautela de todo escândalo, mas
este seria muito similar em tais circunstâncias, e possivelmente mais valeria
calar-se, e não desflorar essa ingenuidade assinalando de forma muito
vigorosa. Humildade no amor puro, essa é a comovedora virtude da
pecadora arrependida (Lucas, 7, 38), e essa é também a de Tecla...». (Op.
cit., notas da página 181.)

Observar-se-á que se os Atos de Paulo e de Tecla estão classificados entre
os apócrifos, e se o Papa Leão e Toribio da Astorga (por volta de 450)
condenam a estes últimos por terem utilizados seitas heréticas, só o foram
por este motivo, já que: «...sem nenhum gênero de dúvidas, essas
maravilhas e esses milagres descritos nos apócrifos, ou são dos santos
apóstolos, ou puderam ser deles». Coisa que nos dá a razão!

Quisemos oferecer estes comentários do abade Vouaux para demonstrar
que se tratava de uma atração de ordem sentimental, que foi justificada a
seguir em função de uma conversão final. Agora bem, o aspecto físico de
Paulo não justifica uma influência semelhante sobre as mulheres, como já
vimos Or-ffav outra coisa, que logo abordaremos. Mas prossigamos, porque
o texto vale a pena:

«Enquanto isso Tecla era procurada por seus familiares e por Tamiris.
Acreditando-a perdida, foram em sua busca pelas ruas. Mas um dos
escravos, companheiro do porteiro, declarou que tinha saído durante a
noite. Então perguntaram ao porteiro, e este lhes disse que tinha ido
encontrar-se com o estrangeiro na prisão. Seguindo esta indicação, foram
ali, e encontraram-na, por assim dizê-lo, encadeada pelo amor. Saíram
então da prisão, arrastaram às multidões atrás deles, e revelaram ao
governador o que tinha acontecido.» (Op. cit., XIX.)

«Este ordenou que conduzissem Paulo diante de seu tribunal. Mas Tecla
rodava pelo chão, no lugar exato em que, sentado na prisão, tinha-a
instruído Paulo. E o governador ordenou que a levassem-na também diante
do tribunal. Ela, cheia de alegria, saiu prazerosa. Mas quando traziam já de
retorno Paulo, as multidões gritavam com mais violência: É um bruxo,
matem! Mas o governador escutava agradando ao Paulo, que falava de suas
obras santas; logo, depois de reunir a seu conselho, chamou Tecla e lhe
disse: "por que não se casa com Tamiris, segundo a lei dos iconianos?" Mas
ela olhava entusiasmada ao Paulo. E como não respondia, sua mãe
interrompeu neste grito: "Queima esta perversa; queima a esta inimizade
no meio do teatro, para que todas as mulheres instruídas por este homem
cobrem medo".» (Op. cit., XX.)

«O governador sofreu atrozmente, mas mandou flagelar ao Paulo e o
expulsou da cidade, e condenou Tecla à fogueira. Imediatamente se
levantou e foi ao teatro, e todo o povo foi contemplar este castigo,
legalmente imposto. Mas Tecla, igual ao cordeiro no deserto olhou por todos
lados em busca do pastor, do mesmo modo procurava Tecla ao Paulo! E
quando passou seu olhar pela multidão, viu um senhor sentado, com os
traços de Paulo. Ela disse: "Como se eu pudesse fraquejar, Paulo veio a me
contemplar". E o olhou fixamente, encantada. Mas ele ascendeu de novo
aos céus.» (Op. cit., XXI.)
Continuando, um motim levado a cabo por mulheres tenta opor-se ao
suplício de Tecla. Conseguem-no, e Tecla irá a pé, vestida de homem,
mesclada com um grupo de meninos e garotas jovens, em busca de seu
querido Paulo, ao Myras, aliás Antioquia de Pisidia.

Deixemos de lado todo o sobrenatural abundantemente aumentado, como
está mandado em todos estes textos apócrifos. O que fica é que a história
de Tecla «teve uma grande acolhida e alta veneração em toda a Igreja»,
como nos diz o abade Vouaux, tradutor da versão grega citada.

Assim, o «encanto» do qual fazia uso Saulo-Paulo para com as mulheres, a
fim de lhe permitir fazer delas elementos propagandísticos da doutrina de
que era autor, esse «encanto» é inegável, e segue sem explicação racional.
Evidentemente, nos objetará que era obra do Espírito Santo. Mas que o
Espírito Santo faça que uma moça se derrube pelo chão no lugar que
ocupasse seu querido Paulo em um calabouço, que a deixe muda de
admiração ao contemplá-lo, que distribua suas jóias para ir a seu encontro
tão longe, a mais de cem quilômetros de sua residência familiar, tudo isso
causará cepticismo em todo leitor com sentido comum.

E isso não faz a não ser reforçar nossa primeira hipótese, ou seja, que o
judeu chamado Simão, que conseguiu mediante seus sortilégios que a
princesa Drusila abandonasse a seu marido Aziz, rei do Emeso, para viver
com um antigo escravo liberto, o procurador Félix, esse Simão poderia
muito bem ser Simão, o Mago, aliás Paulo, aliás Saulo, antigo príncipe
herodiano...

E a segunda hipótese, segundo a qual Saulo teria obtido o «sim» da filha
de Gamaliel (coisa que lhe decidiu a praticar-se previamente a circuncisão)
unicamente graças a um sortilégio, e em modo algum devido a sua
superioridade física, teria também fundamento.

Por outra parte, seria um grande engano supor que a magia foi uma
técnica habitual só de Paulo. Os cristãos utilizaram com profusão a magia
curativa, e ficam testemunhos indiscutíveis nos textos antigos. É provável
que a mesma magia fora utilizada em certos episódios de circo, em
presença das feras. Mas o pequeno número de iniciados nesta ciência,
zelosamente conservada por seus escassos possuidores, no seio da massa
anônima dos crentes, forçosamente tem feito escassear as manifestações
deste tipo, e os ocultos se foram perdendo pouco a pouco.

Vejamos o que diz disso Orígens no Contra Celsum: «Existem determinadas
doutrinas, ocultas às multidões, que não são reveladas, somente depois que
forem repartidos os ensinos esotéricos. Isso não é exclusivo do
cristianismo». (Op. cit.)

Vejamos ainda outros textos que demonstram sem dificuldade a ação
misteriosa dos propagandistas cristãos sobre as mulheres, no seio das
nações pagãs. O R. P. Festugiére, O. P., em seu quarto tomo de La Révelation
d'Hermés Trismégiste, le Dieu Inconnu et la Gnose, sublinha que em bom
número de Atos apócrifos: «Sempre a mesma história constitui um dos
topos desta literatura apócrifa. Um chefe, um rei, parente do rei ou do
magistrado local, está casado, vive em boa união com sua esposa, tem
filhos. Aparece o apóstolo, converte à mulher: esta, então, rechaça os
ardores de seu marido e decide permanecer casta». (Op. cit., P. 227.)

Pode citar-se a este respeito:

-- O prefeito Agripa e suas quatro concubinas, nos Atos de Pedro (XXXIV):

-- o pró-cônsul de Hierápolis e sua esposa Nicanora, nos Atos de Felipe
(114);

-- o magistrado Aigeates e Maximilia, nos Atos de André (3);

-- Andránicos, estrategista de Éfeso, e Drusiana, nos Atos de João (63);

-- Cansíos, parente do rei, e Migdonia, nos Atos de Tomás (ou);

-- o rei Misdaios e Tertia, nos mesmos Atos de Tomás (134). Nos Atos de
André, ao rechaçar Maximilia a seu marido Aigeates, corre a reunir-se com o
apóstolo André na prisão onde o encerraram. E este sustenta com ela uma
estranha linguagem, no que se vê aparecer algo distinto ao desejo de
espiritualização da mulher, mas, ao contrário um ódio ao marido legítimo e
o desejo de subjugar esta mulher:

«Suporta todas as torturas que inflige seu marido, e olhe um pouco para
mim, e verá como se enche inteiro de atordoamento, e se murchará longe
de si. Porque --sobretudo, me tinha passado,devo lhe dizer isso não
conhecerei o descanso até que não veja cumprida a obra que vejo produzir-
se em si. Sim, na verdade, vejo-a uma Eva arrependida, e em mim a um
Adão voltando-se. Porque o que Eva sofreu por ignorância, agora, você, para
quem eu tendo minha alma, você o endireita com sua conversão. O que o
nous* sofreu quando foi abatido com Eva e escapou a si mesmo, eu o
levanto contigo, do momento em que se reconhece recuperada». (Cf. Atos
de André, XL.)

*[Nous: em grego significa o espírito.]

Se isto não se parecer com um malefício, as palavras não têm sentido!
Nos Atos de Felipe encontramos a mesma má fama dos apóstolos: a de
sedutores de mulheres. Uma vez mais citaremos ao R. P. Festugiéres: «O
apóstolo Felipe está entrando na cidade de Nicatera, na Grécia, quando os
cidadãos, e especialmente os judeus, revoltam-se. Felipe tem fama de
separar aos maridos das mulheres; portanto, terá que jogá-lo antes de que
se instale e comece a seduzir às mulheres». (Op. cit., P. 239.)

O mesmo acontece no caso de Carisios e Migdonia, nos Atos de Tomás.
Diz-nos este autor: «Migdonia, depois de haver-se recusado a seu marido
Carisios, tenta reunir-se com o apóstolo Felipe em sua prisão». (Op. cit., P.
240.)
É óbvio que nos textos cristãos ortodoxos esta atração das mulheres pelo
apóstolo é sempre platônica. Mas não vemos por que deveria exercer-se de
forma precisa e total em uma única mulher, enquanto o apóstolo não
desperta entre todas as demais a não ser uma imensa comente de simpatia
para a nova doutrina. Não vemos por que teria que ser indispensável
separar a esta única mulher de seu legítimo marido, e suscitar nela o desejo
absoluto e fascinante de não abandonar jamais nem por um instante ao
chamado apóstolo, enquanto que todas as outras permanecem unidas a seu
marido legal. Confessemos que em todas essas numerosas circunstâncias o
Espírito Santo desempenha um estranho papel, habitualmente
encomendado a personagens pouco recomendáveis. E no que fica aqui o
famoso sacramento do matrimônio?

Se ainda duvidássemos disso, bastaria-nos tomando textos análogos de
certos padres da Igreja, textos nos quais não vacilam em ser mais loquazes,
simplesmente porque então se trata de notórios hereges. Citaremos ao
Ireneu, em seu tratado célebre Contra as Heresias, no qual estigmatiza ao
gnóstico Marcos: «Sobretudo é com as mulheres com as quais tem
entendimentos, e preferentemente com as grandes damas, de alto berço e
as mais ricas possíveis. Freqüentemente tenta seduzi-las sustentando com
elas conversações de linguagem aduladora como esta: "Quero lhe dar parte
de minha graça, já que o Pai de todas as coisas vê continuamente seu anjo
frente a seu rosto (Mateus, 18, 10). É em nós onde tem lugar a Grandeza.
Temos que nos fundir na Unidade. Recebe primeiro de mim e por minha
Graça. Esteja disposta como uma recém casada a espera de seu jovem
marido, para que você eu seja, e eu você seja. Instala em sua câmara
nupcial o germe da Luz. Tira de minha mão ao jovem marido, lhe dê lugar
em si, e encontra lugar nele. Vê? A Graça descendeu a si, abre a boca e
profetiza". Se a mulher responde: "Eu não profetizei jamais, e não sei
profetizar", ele, fazendo de novo certas invocações para deixar estupefata
àquela a quem seduziu, diz: "Abre a boca e dá algo; profetizará". Ela então,
inflada de orgulho, e apanhada na armadilha destas palavras, com o ânimo
ardendo já ao simples pensamento de que vai profetizar, com o coração lhe
palpitando em excesso, aviva-se e pronuncia frivolidades, algo, impudicas
tolices, dignas do tolo espírito que a inflamou... A partir desse instante se vê
à si mesmo como profetisa, cheia de agradecimento ao Marcos, que lhe
comunicou sua Graça. Ela tenta recompensá-lo, não só lhe dando o que
possui (daí procedem as imensas riquezas que acumulou), mas também lhe
entregando seu corpo, já que arde em desejos de unir-se à ele em tudo, a
fim de fundir-se, com ele, na Unidade». (Cf. Ireneu, Contra as heresias. I, xIII,
3.)

Pois bem, este Marcos, aliás Marcus, discípulo de Valentino, foi o fundador
de uma grande igreja gnóstica em finais do século II, e não se tratava de
uma seita minúscula, nem de um chefe não cristão. E ao demonstramos que
Marcos seduzia às mulheres ricas em nome da nova religião, Ireneu não faz
a não ser confirmar que as outras faziam o mesmo.
Em um texto redigido, conforme parece, por volta do ano 150, e intitulado
O Pastor, o autor, um certo Hermas, considerado como um dos quatro «pais
apostólicos», descreve-nos mais à frente: «...aqueles que estão cobertos de
manchas são os diáconos prevaricadores, que roubaram o bem das viúvas e
dos órfãos, e se enriqueceram nas funções que receberam...» (Op. cit., IX,
26.)

Acaso o próprio Saulo-Paulo não aconselhava: «Honra às viúvas que são
verdadeiramente viúvas...» (I Epístola ao Timóteo, 5, 3)? Eugenio Sue, em
seu Judeu errante, não inventou nada. Cometeria-se um grande engano
caso que esta ação oculta sobre as massas femininas, polarizada mais
particularmente sobre uma delas, começou posteriormente à morte de
Jesus, no ano 34. Que o leitor se remeta ao capítulo 26 do volume
precedente, intitulado «Jesus e as mulheres», e ficará bem informado. O
exemplo vinha de acima.

Citemos simplesmente, para abreviar: «Havia também umas mulheres
que olhavam de longe. Entre elas estavam Maria de Magdala, Maria, mãe de
Santiago, o Menor, e de José, e Salomé, as quais, quando ele estava na
Galiléia, seguiam-lhe e serviam-lhe, e outras muitas, que tinham subido com
ele à Jerusalém...». (Marcos, 15, 40-41.)

Lucas (8, 3) diz-nos que essas mulheres «lhe assistiam com seus bens...»,
quer dizer, com seu dinheiro, já que abandonaram suas casas. Não se
tratava já de hospitalidade.

E, se ainda duvidássemos, bastar-nos-ia relendo um evangelho apócrifo
muito velho, de que possuímos um manuscrito do século IV, sobre um texto
inicial de finais do século II, por volta dos anos 175-180: «Salomé disse: "E
você quem é, homem? De quem saiu para haver-se metido em minha cama
e ter comido em minha mesa? E Jesus lhe disse: "Eu sou aquele que se
produziu daquele que é seu igual. Deram-me o que é de meu Pai". E Salomé
respondeu: "Sou sua discípula!". (Cf. Evangelho de Tomás, capítulo 43,
versículo 65, tradução do Jean Doure. Pión, Paris, 1959.)

Por outra parte, é seguro que o «ambiente» daqueles tempos alimentou o
tesouro zelote em proporções consideráveis; demos entrevistas que o
provam no volume precedente. Desde aí a conhecida frase de Jesus: «Na
verdade lhes digo que os publicanos e as rameiras lhes precederão no reino
dos céus...». (Mateus, 21, 31-32.)

As peças justificativas da condenação de Jesus pelo procurador Poncio
Pilatos foram necessariamente enviadas à Roma, já que se tratava da
execução de um «filho de David» que pretendia o trono de Israel, e a quem
Tibério César, durante um tempo, tinha pensado em confiar uma tetrarquia.
Estas peças, conservadas nos arquivos da Chancelaria imperial, em Roma,
foram examinadas pelo imperador Juliano, sucessor de Constantino, e à elas
se refere freqüentemente em suas polêmicas com os cristãos. E aqui temos
uma alusão bastante clara no que diz respeito aos laços existentes entre o
partido zelote e a prostituição, que tiramos de suas obras: «A Molessa
recebeu ao Constantino meigamente, enlaçou-o entre seus braços, revestiu-
o e o adornou com vestimentas , e logo lhe conduziu ao lenocínio... Assim o
príncipe pôde encontrar-se também com Jesus, que freqüentava esses
lugares, gritando a tudo o que chegava: "Que todo sedutor, que todo
homicida, todo homem golpeado pela maldição e a infâmia se apresente
com toda confiança! Banhando-se com esta água, voltarei imediatamente
puro! E se voltar a recair nas mesmas faltas, quando lhe golpearem no peito
e na cabeça, voltarei a conceder-lhes a pureza!"». (Cf. Julio César, Obras
completas, tradução de J. Bidez, Ed. Les Belles-Lettres, Paris, 1932.)

Terá que dizer que Constantino, «o homem coberto de crimes» segundo
os grandes bispos cristãos (fez assassinar a sua esposa, a seu filho e a
numerosos parentes e amigos), foi também um dissoluto notável. Não
obstante, no século IX lhe santificaram, a pedido de Carlos Magno*. Mas
Juliano, que era amável, casto, aficionado às boas letras, que sabia perdoar
a seus piores adversários, Juliano foi simplesmente injuriado e assassinado.

*[Carlomagno estava interessado na «santificação» de seu colega
Constantino. Sua vida tinha sido muito pouco edificante. Além da matança
de quatro mil e quinhentos; reféns no Werden, no ano 782, teve nove
esposas ou concubinas (é bastante difícil nessa época estabelecer a
diferença), mas, além disso, praticou o incesto com maestria. Seu cronista e
biógrafo, o monge Eginhard, relata que este imperador se guardava bem de
casar a suas filhas, já que «se servia carnalmente delas como de suas
esposas». Isso não impediria à Igreja convertê-lo no santo padroeiro dos
escolares! O Papa João XXIII o fez apagar do santoral, com um certo número
de «glórias usurpadas» mais. Quanto ao Constantino, jamais gozou da
aparição no céu do famoso Iabarum: «In signo vinces!». Seu biógrafo e
panegirista Eusebio da Cesárea ignora tal milagre, ideado mais adiante por
Lactancio. Este transpôs sem dúvida o fato de que Constantino,
anteriormente, tinha tido uma visão em um templo de Apolo que ele
visitava. Tinha «visto» como o deus Apolo estendia-lhe uma coroa. Lactancio
arrumou a história...]

Um fato que naquela época teria suscitado uma violenta hostilidade
popular e reações legais contra Saulo-Paulo e seus lugares-tenentes em
Roma foi fazer participar às mulheres em uma «eucaristia», no curso da
qual podiam beber vinho, quanto mais que esta «eucaristia» estava incluída
em um «ágape» prévio no que o tonus elítico subia rapidamente, se dermos
crédito aos protestos de Paulo. (Cf. I Epístola aos Coríntios, 11, 20-21, infra,
P. 254.)

Com efeito, a conseqüência dos inauditos escândalos suscitados pelas
orgias dionisíacas femininas, em princípio do século II antes de nossa era,
um senatus-consulte datado do ano 186 A. C. da mesma reiterara em Roma
a proibição dos bacanais em toda a Itália, recordando que, desde Rômulo, o
vinho estava rigorosamente proibido às mulheres. Estava-lhes deste modo
proibido pôr a mão sobre as chaves das cavas e as adegas. A embriaguez
feminina, fosse qual fosse, obtida pelo vinho, bebidas fermentadas ou as
fumigações, Rômulo a identificava ao adultério, já que se dizia que a mulher
era possuída pelo deus de quem dependia o ingrediente assimilado. A única
embriaguez tolerada na mulher era a do gozo sexual nos braços do legítimo
marido.

O texto original de tal senatus-consulte figura em uma placa de bronze
descoberta em Tiriola, na Calabria, e conserva-se em Viena, no antigo
gabinete imperial.

Como se vê, para os judeus e as mulheres das diversas «províncias»
submetidas a Roma e convertidas à nova religião, isto não expôs nenhum
problema; mas para os romanos era muito distinto, e a absorção do vinho
«eucarístico» no curso de ágapes freqüentemente desviados para outros
objetivos, implicava sanções penais inevitáveis.

11- O «Quadrado de Amor» de São Ireneu

A desgraça mais grave que possa acontecer a uma criatura humana caída
para o amor é ter ligado seu destino a um ser inferior. O perigo constitui na
decadência que pode resultar para ela, e esse perigo pode estender-se ao
longo de prolongados períodos de tempo.

Maurice Magre, L'Amour et la Haine

Sabe-se que entre as fórmulas mágicas da tradição do Ocidente figuram o
que se conveio em denominar os palíndromos. São palavras, nomes, frases
que, lidos da direita à esquerda ou da esquerda à direita, de cima para baixo
ou de baixo para cima, dão invariavelmente os mesmos termos. Neste
aspecto constituem, no campo literal, o que os quadrados mágicos
constituem no campo numeral, mas estes últimos representam um grau
mais elevado de conhecimento, e permitem o acesso a um esoterismo
imensamente mais oculto. São, efetivamente, os quadrados mágicos os que
constituem as «pranchas de extração» reais dos nomes de poder na magia
prática, nomes de entidades verdadeiramente polarizadas, e ao mesmo
tempo permitem estabelecer os célebres «selos planetários».

No campo dos palíndromos citarão a célebre fórmula latina: ROMA TIBÍ
SÚBITO MOTIBUS IBIT AMOR, que se lê igual em um sentido como no outro.

Não obstante, é menos conhecida que o célebre quadrado mágico que
suscita justas encarniçadas entre eruditos, e que se apresenta abaixo dois
aspectos:

SATOR ROTAS

AREPO OPERA

TENET TENET

OPERA AREPO
ROTAS SATOR

Por isso lhe dá o nome de «quadrado do Sator», ou do "Sator». Lida
horizontal ou verticalmente, tanto de esquerda a direita como de direita a
esquerda, esta frase também latina (ao menos na aparência) dá
invariavelmente as cinco mesmas palavras.

O uso dos palíndromos, considerados como palavras de poder em magia
prática, foi particularmente desenvolvido em um manuscrito do século XVIII,
propriedade da Biblioteca do Arsenal, em Paris, e cópia de um documento
mais antigo descoberto em Veneza pelo marquês do Paulmy d'Argenson,
embaixador da França. Tem como título: «La Magie Sacrée que Dieu Donna
Á Moyse, Aaron, David, Salomóm, et Á d'autres prophétes, et qui enseigne la
Vraie Sapience Divine, laissée par Abraham fiís de Simón á son fiís Lamech,
traduite de L'hébreu, Á Venise em 1458». (A Magia Sagrada que Deus deu
ao Moisés, Aarón, David, Salomão, e a outros profetas, e que ensina a
verdadeira Sabedoria Divina, deixada por Abraham filho de Simão a seu
filho Lamech, traduzida do hebreu, em Veneza em 1458.)

Nós recopiamos, publicamos, prefaciamos, comentamos e cotamos. A ela
remetemos ao leitor amante do mistério! *[R. AMBELAIN, La Magie Sacrée
d'Abramelin le Mage, Niclaus éditeurs. Paris, 1959.]

Pois bem, uma fórmula muito parecida com o «Sator» figura no capítulo
XIX, sob o número 9, página 230 da obra citada na nota 76, e é a seguinte:




S A L O M

A R E P O

L E M E L

O P E R A

M O L A S

Seu efeito consiste em procurar «o amor de uma donzela em geral» (sic), e
o manuscrito precisa os nomes demoníacos associados à posta em marcha
deste sortilégio, assim como todo o ritual preparatório.

Este palíndromo é uma mescla de palavras hebraicas, associadas aos
termos do «Sator» precedente. Salom é uma abreviatura de Salomóm, e
Lemel o é do Lemuel (ou Lamuel), chamado nos Provérbios, 31, 1-4, nome
de um rei que não seria outro a não ser o próprio Salomóm (cf. Dictionnaire
Rabbinique de Sander e Trenel, Paris, 1859), e que significa «eleito de
Deus».
Pois bem, o significado de «Sator» tradicional é a seguinte:

-- Sator: semeador, criador, pai, deus, os deuses (Virgilio);

-- Arepo: arado, grade, lâmina agrária (em francês);

-- Tenet: manter, dirigir, conduzir;

-- Opera: trabalho, obra;

-- Rotas: rodas, ciclos, círculos.

C. Wescher, que foi o primeiro em estudá-lo cientificamente, traduz assim:
«O semeador está no arado, o trabalho ocupa as rodas...».




Anverso e reverso do pentáculo de «Sator». (Coleção Alex Bloch.)

No segundo tipo do Sator dado pelo Abramelin, a palavra Moa pode
significar um molar de moinho em latim, ou uma deformação de Molechet,
deidade feminina do céu em acadio. Pois bem, as rodas e as demola têm
pontos em comum, e toda deidade celeste de tipo feminino evoca ou à Lua
ou Vênus, com seus ciclos regulares. Como se vê, a idéia geral é a mesma.

Quanto à associação do semeador e da grade agrária, há uma imagem
similar à penetração do homem na mulher. «Sua esposa é seu campo, lavra-
o nos dois sentidos...», diz o velho axioma semítico (Corán, II, 223).

É evidente que esta frase chave, o «Sator», não possui a priori nenhum
sentido místico, mas seu significado geral reveste um relevo particular se se
tiver em conta sua aplicação no plano do erotismo, recordando que Eros
representava ao deus do amor carnal, do desejo dos sentidos, enquanto que
Ágape era a deidade do amor platônico, sentimental, espiritual.

Pois bem, o «Sator» possui em princípio, e em sua forma mais antiga, o
mesmo significado erótico. Foi descoberto em Pompéia, em duplamente
esboçado, sob a forma de «Rotas» (cf. R. P. Guillaume de Jerphanion, em
Recherches de Sciences Religieuses, XXV, abril de 1935, pp. 188 e ss.). Os
dois palíndromos estavam riscados sobre uma das colunas do templo do
Amor, e este fato é significativo.

Um arqueólogo lionês, M. Amable Audin, assinalou no N.° 119, de outubro
de 1965, do Bulletin du Cercle Ernest Renán, que «Sua posição, por debaixo
de camadas de cinzas absolutamente virgens, demonstra de forma
imperativa que devia ser anterior ao sepultamento sob as cinzas da erupção
do Vesúvio».
Como esta teve lugar no ano 79 de nossa era, o traçado do duplo
«Sator» foi efetuado muito antes. E por Tertuliano sabemos que não havia
nenhuma comunidade cristã naquela época, nem em Pompéia nem em seus
arredores (o que nos dá uma idéia da plausibilidade da célebre novela: Os
últimos dias de Pompéia).

Posteriormente descobriremos esta inscrição misteriosa em Doura-
Eropos, no Eufrates, em uma estância que servia de despacho aos actuarii
das coortes auxiliares romanas, grafite com tinta vermelha sobre a muralha,
sob a forma de «rotas».

Logo, no Egito, com um valor mágico e profilático, nos papyrii coptos 193
e 194 da coleção do arquiduque Renier: SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS

ALPHA

LEON

PHONE

APER

Em um ostrakon do museu do Cairo pode-se ler acompanhada de palavras
mágicas. Um amuleto de bronze de origem egípcia, descoberto na Ásia
Menor, e conservado antes de 1945 no museu de Berlim, levava deste modo
a fórmula do «Sator».

Logo se cristianizará. Os coptos darão a cada um dos cinco pregos da
crucificação de Jesus cada uma das cinco palavras do «Sator». Em Bizancio
convertem-nas em nomes dos pastores testemunhas do Natal! E a grande
corrente esotérica medieval assimilará, acompanhada de nomes angélicos
ou demoníacos, em seus livros de conjuros manuscritos.

E é aqui onde vamos encontrar tanto nas mãos dos cristãos de
antigamente como nos de hoje.

Em 1954, nas escavações de Aquineum, o velho Buda, na Hungria,
descobriu uma telha que levava em seu interior um hexagrama ou «selo de
Salomão» com a inscrição fatídica. Esta última acompanhada do outro
palíndromo já citado, mas desta vez se achava parcialmente apagado. Só
podia ler-se: «ROMA TIBÍ... ITA...».

Entre tibí e ita há rastros de letras muito difíceis de identificar. O
arqueólogo húngaro que o tinha descoberto e publicado, M. Szilagyi,
estimou que devia traduzir-se corretamente, e conforme era costume:
«ROMA TIBÍ SÚBITO MOTIBUS IBIT AMOR».

Pelo contrário, Jerônimo Carcopino, muito católico, queria a todo custo ler
nele uma fórmula cristã: «Roma tibí salus ita», quer dizer: «Roma, aqui está
sua salvação!». Passava por cima do fato de que o espaço que tinha ficado
apagado era muito extenso para ter contido tão somente as cinco letras da
palavra SALUS. Além disso, se se lia ao reverso, conforme era habitual, já
não ficava nada que evocasse o cristianismo: «ati sulas ibit amor». O que
provaria muitas coisas...

Por último, a estrela de seis pontas, ou «Selo de Salomão», é um símbolo
mágico universal; em todo mundo a encontramos associada à magia mais
materialista. Traçaram na confecção de certos «yantras» da bruxaria
tântrica, na Índia. Basta folhear o Yantra Chintámani, ou «Jugo dos Yantras»,
para convencer-se; vejamos aqueles nos quais figura:

-- 8.° yantra: «Criador de ilusões» (os credores carecerão de força e não
reclamarão o que lhes é devido. Poderão oferecer dinheiro aos discípulos).

-- 23.° yantra: «Flecha de Eros» (as mulheres mais orgulhosas e mais
altivas enlouquecerão de desejos ardentes e serão totalmente dominadas).

-- 28.° yantra: «Dom de Tripurá» (submissão da pessoa desejada, homem
ou mulher).

-- 68.° yantra: «Terror da Febre» (calma a febre).

-- 75.° yantra: «Liberação» (libera dos laços vergonhosos).

É curioso constatar que de cinco yantras, três tratam do meio para
submeter a outro, dois dos quais a desejos carnais. Então, quem pintaria
aqui uma fórmula cristã?

Os partidários da origem cristã do «sator» não se deram por vencidos. É
sabido que a este palíndromo dão o apelido de «quadrado de São Irineu». A
este último o conhecemos por Eusébio da Cesaréia, quem disse que se
tratava do sucessor de Potino à cabeça da Igreja de Lyon (cf. Eusébio da
Cesaréia, História eclesiástica, V, 5), embora seu discípulo Hipólito o
qualificasse só de presbítero (cf. Hipólito, Philosophumena, VI, 43).

Para Jerônimo Carcopino, em seus comunicados à Academia das Inscrições
e das Belas Letras, esse «quadrado mágico» foi inventado em Lyon por
Irineu, bispo de tal cidade, no dia seguinte da perseguição do ano 177. Para
provar bastava o fato de que o anagrama de «sator arepo tenet opera
rotas» dava «pater noster» repetido duas vezes e formando uma cruz.
Quanto às duas letras restantes, A e O, tratava-se da alfa e a omega,
símbolos de Cristo:

A

P

T

E

R
A P A T E R N O S T E R
O

O

S

T

E

R

O

Este descobrimento era obra do professor Félix Grosser, de Chemnitz, em
seu Ein neuer VorschÍag zur Deutung des Sator-Formel (no Archiv. F. Relig.,
1926, XXIV, pp. 165-169). E este (que era pastor, não devemos esquecê-lo)
fazia observar, além disso, que no «quadrado mágico» as letras que
compunham a palavra central, tenet, formavam uma cruz. Assim, tratava-se
de uma fórmula secreta de reconhecimento para os cristãos.

Numerosos eruditos responderam assinalando que toda construção de um
palíndromo de número ímpar permite o mesmo resultado. Outros fizeram
observar que a mesma frase podia dar outros anagramas muito diferentes,
como por exemplo os que assinala o periódico italiano A Nazione em seu
número de 21 de maio de 1968, assinados por Giorgio Batini, e reproduzidos
pelo Bulletin du Cercle Ernest Renán em setembro do mesmo ano:

1) SATAN ORO TE PRO ARTE A TE SPERO.

2) SATAN TER ORO TE OPERA PRAESTO.

3) SATAN TER ORO TE REPARATO OPES.*

*[Eu te conjuro, Satanás, em favor do que espero!

Eu te conjuro, Satanás, por três vezes, a que cumpras o objetivo deste
sacríficio!

Eu te conjuro. Satanás, por três vezes, a que me ajudes de novo!]

Estes anagramas, além disso, são como o do pater noster, não se pode
encontrar o primeiro sentido lendo-o da direita para a esquerda.

Por outra parte, as palavras pater noster não são especificamente cristãs.
No Antigo Testamento encontramos pelo menos uma dúzia de vezes.
Citemos simplesmente: «Tu, Yavé, és nosso Pai, e, da Eternidade, dissestes
nosso Salvador...» (Isaías, 63, 16), e «Entretanto, Yavé, és nosso Pai...»
(Isaías, 64, 7).

E os autores pagãos não ignoram esta expressão:
«Tu és nosso Pai, Oh, Zeus...» (Estobeo, Antologia, Prece de Cleanto.)

«Oh, Zeus, Nosso pai!...» (Pitágoras, Para Doris.)

«Tu és nosso Pai...» (Aratos.)

Concluamos, pois, que é muito imprudente, por parte de nossos autores
cristãos, reivindicar a misteriosa fórmula do «sator arepo tenet opera rotas»,
já que, como acabamos de demonstrar, é muito anterior ao cristianismo. Por
outra parte, indiscutivelmente se trata de um «encantamento», de um
«sortilégio» gráfico e vocal, mediante o qual se tentava subjugar às
mulheres.

E se Irineu e seus colaboradores, todos eles procedentes da Ásia, e
provavelmente de Esmirna, conheceram e utilizaram o «sator», não seria
como símbolo para provar que pertenciam à nova seita, o cristianismo. Mas
bem veríamos nisso a confirmação do que os textos antigos citados nas
páginas precedentes nos sugeriram, ou seja: a ação dos propagandistas
cristãos sobre as mulheres.

Convém, não obstante, observar, para desencargo do citado Irineu e seus
ajudantes, que esta frase de caráter mágico indiscutível podia ter duplo
sentido, e que o semeador podia significar a palavra cristã, ou o próprio
Jesus.

Com efeito, nos textos neo-testamentários se compara com um semeador,
e logo se guardará esta comparação referindo-se a ele:

«Um semeador saiu para semear...» (Mateus, 13, 4; Marcos, 4, 3; Lucas, 8,
5.)

«O semeador semeia a palavra...» (Marcos, 4, 14.)

«Conforme está escrito [...] que proporciona a semente ao semeador. ..» (I
Epístola aos Coríntios, 9, 10.)

«Que o semeador e o colhedor se alegrem juntos...» (João, 4, 36.)

Agora bem, esses enigmáticos e simbólicos semeador e colhedor
aparecem já antes no Antigo Testamento: «Exterminem em Babilônia ao
semeador e ao colhedor...». (Jeremias, 50, 16.)

Isto evoca extranhamente as palavras do Deuteronômio: «Um
dependurado de uma árvore é objeto da maldição de Deus». (Deuteronômio
21, 23.)

Poderia acreditar-se que as vozes proféticas de Israel antigo tinham
percebido adiantado tudo o que o messianismo lhe contribuiria em matéria
de catástrofes.

12- A verdadeira morte de Estêvão
O primeiro dever do historiador consiste em restabelecer a verdade,
destruindo a lenda.

Marcel Pagnol, Le Masque de Fer

Para R. P. Lucien Deiss, C. S. Sp., em seu livro Synopse des Evangiles,
baseado nos Atos dos Apóstolos encontra-se um «documento semítico». E é
evidente. Mas não poderia tratar-se de um judeu convertido, já que não se
encontra a aspereza, a decisão, próprias do Antigo Testamento. Imaginar
que fora um grego ou um latino é ainda mais impossível, já que este
conjunto não está marcado pela harmonia helênica nem pela claridade
latina. Portanto, não fica a não ser um árabe, e mais provavelmente um sírio
da Antioquia, que chegou tardiamente ao cristianismo. A babozeira
enjoativa e devota, a adulação de todo o romano, o ódio anti-semita (porque
Síria era o branco das pilhagens galileus desde Ezequias, pai de Judas da
Gamala e avô de Jesus, no ano 60 antes de nossa era), tudo assinala para
esse tipo de homem que encontraremos freqüentemente nos cinco ou seis
primeiros séculos.

Por outra parte, quando vemos que a lei do Sinai não foi dada ao Moisés
pelo Eterno, mas sim por um ou vários anjos (cf. Atos, 7, 30, 36, 38 e 53), é
evidente que esta afirmação deriva de Saulo-Paulo em sua Epístola aos
Gálatas (3, 19). Agora bem, essa mesma afirmação segundo a qual a lei do
Sinai foi promulgada por anjos, os Atos a colocam na boca de Estêvão, o
diácono, no instante em que vai ser lapidado pelos judeus, exasperados
pelo que eles consideram blasfêmias. E Saulo-Paulo ainda não se converteu!
E inclusive está ali, conforme parece, montando guarda diante das
vestimentas dos executores (Atos, 7, 58). Sua Epístola aos Gálatas,
portanto, ainda não está escrita. Mas nisto não pensou o escriba anônimo
do século IV.

O mesmo acontece com o discurso de Estêvão. Tomemos o texto dos Atos
ao princípio deste caso: «E a palavra do Senhor crescia, o número dos
discípulos aumentava grandemente em Jerusalém, e uma multidão de
sacerdotes obedeciam à fé. Estêvão, cheio de graça e de poder, operava
grandes prodígios e sinais entre o povo. Então intervieram as pessoas da
sinagoga chamando os Libertos, os Cirenenses, os Alexandrinos, e outras de
Cilícia e da Ásia. Ficaram a discutir com Estêvão, mas não podiam fazer
frente à sabedoria e ao espírito que lhe faziam falar. Pagaram a homens
para que dissessem: "Ouvimo-lhe pronunciar blasfêmias contra Moisés e
contra Deus". Amotinaram ao povo, aos anciões e aos escribas, e logo,
acudindo de improviso, capturaram-no e levaram-no ante o Sanedrim. Ali
contribuíram com falsos testemunhos que declaravam: "Este homem não
cessa de falar contra este santo Lugar e contra a Lei. Ouvimo-lhe dizer que
Jesus, esse nazareno, destruirá este Lugar e trocará os costumes que Moisés
nos legou". Todos aqueles que estavam sentados no Sanedrim tinham os
olhos fixos nele, e seu rosto lhes pareceu semelhante ao de um anjo... O
supremo sacerdote perguntou:
"É, na verdade, assim?". E Estêvão respondeu: "Irmãos e pais,
escutem..."». (Cf. Atos dos Apóstolos, 6, 7, a 7, 2.)

Agora vem um discurso interminável do tal Estêvão, que começa à saída
de Abraham da Mesopotâmia, e enumera os acontecimentos principais da
história da estirpe de Abraham até a vinda de Jesus. Vai do capítulo 7,
versículo 3, até o 7, versículo 53. Nos manuscritos gregos mais antigos isso
representa 127 linhas, a uma média de nove palavras cada uma, quer dizer,
umas mil e duzentas palavras. Nem que estivesse lendo ao Flavio Josefo!

A quem poderia fazer-se acreditar que houve um escriba, judeu ou cristão,
que conhecesse naquela época a taquigrafia para tomar nota de tal
discurso? E como conhecia o redator dos Atos a tradição gnóstica dos anjos
ditando a Lei do Sinai, se a gnosis ainda não existia?

De semelhantes incoerências e inverossimilhanças estão cheios os Atos
dos Apóstolos. Como conhece o redator dos Atos o texto da carta
confidencial que redige o tribuno das coortes Claudio Lisias ao procurador
Antonio Feliz, quando lhe envia a Saulo-Paulo com uma escolta quase real?
(Atos, 22, 26-30.)

Como pôde o Sanedrim mandar açoitar aos apóstolos com varas (Atos, 5,
40), quando a lei judia não conhecia a não ser o látego de couro, com o que
jamais deviam propinar-se mais de 39 golpes para a sanção máxima de 40
(cf. Talmud, 5 Maccoth e Siffré Deuteronômio, 286, 125 a)? Pois
simplesmente porque na época em que se redige os Atos a nação judia já
não existe, está dispersada por todo o Império romano, com a proibição de
aproximar-se do que foi Jerusalém. E os anônimos redatores dos Atos, ao ver
passar aos leitores romanos com suas faces de varas, não foram procurar
mais longe.

Nos Atos, capítulo 5, versículo 34, apresenta ao Gamaliel como um doutor
da Lei, quando é o Daion di Baba, com jurisdição sobretudo Israel, incluída a
Diáspora, e podendo de extradição, privilégio que lhe conservaram os
romanos, igual à seus predecessores e sucessores, enquanto houve uma
nação judia reconhecida por Roma.

Como Gamaliel, rabban do Israel, que possuía por direito todos os arquivos
históricos de toda a nação judia, conservados no Templo, como pôde situar
a revolução do Teudas, que teve lugar no ano 46, durante seu pontificado
(morreu no ano 52 de nossa era), antes de Judas da Gamala, que se
produziu no ano 6 de nossa era, quer dizer, quarenta anos antes, quando
ele era ainda simples rabbfl. Entretanto, este é o engano que comete o
chamado redator dos Atos, em 5, 36.

Oferecemos o cerimonial judicial da lapidação em um capítulo desta obra
(supra). Que o leitor se remeta a ele, e verá que o condenado tinha que
estar necessariamente estendido sobre suas costas antes de que lhe
lançassem a primeira pedra, muito grossa, que, em princípio, tinha que ser
mortal. Então, como pôde nos contar o autor dos Atos o seguinte?: «E
enquanto lhe apedrejavam, Estêvão orava, e dizia: "Senhor Jesus, recebe
meu espírito...". Logo se fincou de joelhos e gritou com forte voz: "Senhor,
não lhes impute este pecado...". E dizendo isto, dormiu». (Atos dos
Apóstolos, 7, 59-60.)

Poderia acreditar-se que a lapidação o deixava indiferente.

Assim, temos a prova de que todo este esbanjamento de imaginação
incontrolada e sem nenhuma plausibilidade histórica joga uma irritante luz
sobre a veracidade dos relatos apostólicos. E a partir do momento em que
se desperta a suspeita, o historiador tem o dever e o direito de investigar,
detrás da lenda interessada, em busca da verdade, quer dizer, pelo que
realmente passou. Nós não deixaremos de fazê-lo.

Estêvão é Stephanus em latim e Stephanos em grego. Este nome significa
«coroado». Segundo a Lenda dourada, foi condenado a morte pelo Sanedrim
em 26 de dezembro do ano 35, e lapidado fora da cidade, em Jerusalém
(Atos, 7, 58). Seu corpo foi milagrosamente descoberto em 415,
milagrosamente conservado (como não!), e transportado à Constantinopla
durante o reinado de Teodosio II.

Quem era este homem? Um judeu? Ou um «helenista», quer dizer, um
judeu de cultura grega, aqueles desarraigados para quem tinha sido
necessária uma tradução a esta língua do Antigo Testamento?

É bastante difícil pronunciar-se. Os judeus, da dinastia asmonea que
surgiram dos Macabeos, e sobretudo depois de Jasón (Josué), irmão de
Onías, haviam-se helenizado com entusiasmo, até tal ponto que, nos
estádios, os jovens se deixavam ver nus, segundo o costume grego, e com
falsos prepúcios. Todo judeu de raça possuía dois nomes, um de circuncisão,
tipicamente judaico, e outro grego. Este costume tinha passado aos
idumeus, já que Saulo, em aramaico Shaul, chamava-se também Paulo;
quem levava o nome de Josué chamava-se Jasón; Eleazar passava a ser
Alexandros, aliás André (Andrés); Jacob se convertia em lacobos (Jaime).

Para Estêvão, aliás Stephanos, não há nada que corresponda. Em hebreu
coroa se diz kether, e ketheriel é o Anjo da Coroa Divina. E não há nenhum
nome hebreu que se aproxime desta palavra, o mais aproximado seria
Melchiel, chamado na Gênesis, 46, 17, em Números, 26, 45, e que significa
«estabelecido por Deus», ou Melchisua, filho de Saúl, o rei, chamado em I
Samuel, 14, 49. Todos estes nomes derivam de Malek: rei, em hebreu, e, por
analogia, «o coroado».

Este Estêvão aparece chamado como o primeiro na lista dos «diáconos» a
quem os apóstolos transmitiram certos «poderes» a fim de descarregar-se
de suas múltiplas atividades: «E escolheram Estêvão, homem cheio de fé e
do Espírito Santo, e a Felipe, e a Prócoro, e a Nicanor, e a Timão, e a
Parmenas e a Nicolau, partidário de Antioquia». (Atos dos Apóstolos, 6, 5.)
Todos levam nomes gregos, mas isso não prova nada, pois precisam-nos
que só Nicolau era um partidário. Portanto todos outros eram judeus, eleição
justificada pela prudência dos apóstolos, todos eles procedentes da corrente
zelote, e portanto acérrimos nacionalistas judeus.

E temos já uma primeira observação: ao Estêvão citam o primeiro. Por
conseguinte o consideram já além de outros. É provável que fora o vigilante
dos sete, igual a Simão-Pedro o é dos doze. Além disso, recebeu já o Espírito
Santo, de modo que só se terá que conferir aos outros seis, conforme ao
versículo 6 do capítulo 6 dos Atos. E vigilante se diz episcope, que se
converterá em nosso bispo, mais tarde.

Se for vigilante, e chefe dos sete diáconos, poderão confiar-lhe missões
particulares e de confiança. E mais adiante, quando houver uma praça
vacante, poderá converter-se em um dos doze, por via de sucessão. Essa é
a ordem.

Particularizemos aqui previamente o que seguirá agora. Um mesmo
personagem pode entrar na história sob os nomes e as atividades
diferentes. Tudo isso depende do cronista, de sua orientação ideológica e da
finalidade que persiga. Vejamos um exemplo:

a) «Em 26 de outubro de 1440 morreu Gilles de Rais, marechal da França,
grande oficial da Coroa, antigo companheiro de guerra de Joana D'Arc, chefe
da nobreza da Bretanha. Foi exumado no convento Cármenes, em Nantes.»

b) «Em 26 de outubro de 1440, às nove da manhã, no prado de Besse,
situado nos limites da cidade de Nantes, mais acima das pontes e das
bordas do Loira, foram enforcados e queimados três bruxos, assassinos
sádicos de várias centenas de meninos. Chamavam-se Henriet, Poitou e
Barba Azul.»

Este último será, evidentemente, o mesmo personagem que Gille de Rais.
Mas, enquanto seus servidores e cúmplices eram queimados vivos, porque
eram plebeus, enforcaram-lhe primeiro, e logo submeteram seu corpo
brevemente ao fogo que tinham aceso debaixo da forca: «antes de que o
corpo se rache, abrasado pelo fogo, será retirado e levado em uma urna a
uma igreja de Nantes que o condenado terá designado». Isto, em virtude da
nobre condição do responsável por tantas atrocidades.

O cronista que ao cabo de mil anos se encontrasse em presença dos dois
textos, aparentemente sem relação entre si, como o reconheceria, ante
semelhantes contradições?

O mesmo acontece com Estêvão, e vamos ver. Tomemos a Guerra dos
judeus, de Flavio Josefo, em seu manuscrito eslavo: «E uma desgraça se
acrescentou à outra. Uns bandidos, no caminho de Beth-Horon, causaram
ferimentos em um tal Stephanos. Cumano mandou soldados aos povos
vizinhos e fez encadear seus habitantes: "por que não perseguistes aos
bandidos, por que não os capturastes?". Ali um soldado encontrou um livro
da Lei Santa, pisoteou-o e o atirou ao fogo. Os judeus, imaginando todo o
país entregue às chamas, unidos por sua piedade como por cadeias,
correram todos com uma mesma proclamação: "Ou morrer, ou matar ao
soldado!". Todos reunidos, suplicaram ao procurador que não o deixasse
impune depois de ter cometido semelhante pecado contra Deus e a Lei.
Este, vendo que não se acalmariam se não obtinham satisfação, condenou-o
a morte. Os judeus, vingados, foram-se». (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos
judeus, manuscrito eslavo, II, 5, tradução de Fierre Pascal, professor na
Sorbone, Éditions du Rocher, Mônaco, 1964.)

Tomemos agora a mesma passagem, todavia, do manuscrito grego:

«Logo que tinha passado esta aflição, quando foi seguida por outra. Um
criado do imperador, chamado Estêvão, que conduzia alguns móveis muito
valiosos, foi assaltado perto do Beth-Horon. E Cumano, para descobrir quem
tinham cometido esse roubo, enviou a que capturassem aos habitantes dos
povos próximos. Um de quão soldados formavam parte de tal expedição, ao
encontrar em um desses povos um livro no que estavam escritas nossas
santas leis, rompeu-o e o queimou. Todos os judeus desta região não se
sentiram menos irritados que se tivessem visto incendiar todo seu país.
Reuniram-se em um momento e, impulsionados pelo zelo de sua religião,
correram à Cesaréia para encontrar Cumano, para lhe rogar que não
deixasse impune um tão grande ultraje contra Deus. Como o governador
julgou que seria impossível acalmar a esse povo se não lhe dava satisfação,
mandou prender e executar tal soldado em sua presença; e assim se
apaziguou o tumulto». (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito
grego, II, XX, tradução de Amault d'Andilly, Éditions Lidis, Paris, 1968.)

Aqui observamos diversas contradições:

a) Cumano, o procurador, ordenou deter e encadear aos habitantes dos
povos vizinhos por não ter ajudado ao tal Estêvão, a quem tinham atacado e
feito mal (matado) uns bandidos? Ou os tratou assim por cumplicidade?

b) Quando se detinha, e especialmente quando se encadeava à população
inteira de um povo, essa medida ia imediatamente seguida de sua
deportação. Esse foi o caso dos habitantes da Giscala, pátria dos pseudo-
familiares judeus de Saulo-Paulo. E nesse caso era devido a quem prestaram
ajuda aos guerrilheiros zelotes. E o termo de «bandidos» utilizado por Flavio
Josefo, sempre se aplica à estes. Então, se os aldeãos se negaram a intervir,
ou possivelmente inclusive ajudaram e encobriram aos citados bandidos, é
que não se tratava de criminosos de direito comum. Sem lugar a dúvidas
devia tratar-se de um bando zelote.

c) Não obstante, sabemos pelos Atos dos Apóstolos (7, 58, e 8, 1) que
Saulo-Paulo tinha participado do assassinato de Estêvão. E as Antigüidades
judaicas nos mostram desempenhando o papel e as atividades de um feudal
que vivia do banditismo: «Costobaro e Saulo reuniam também ao redor uma
multidão de gente perversa; eles eram de raça real e muito apreciados por
causa de seu parentesco com o rei Agripa, mas eram violentos e estavam
dispostos a apoderar-se dos bens dos mais débeis». (Cf. Flavio Josefo,
Antigüidades judaicas, manuscrito grego, XX, 214.)

Este Saulo é, pois, o dos Atos, que «tinha sido criado pelo Herodes o
Tetrarca» (13, 1), e sobre quem já demos todas as explicações neste
particular. Portanto foi ele quem fez matar ao Estêvão, aliás Stephanos, por
seus homens, e não os zelotes. E isto aconteceu no caminho que vai de
Jerusalém à Lydda, mais exatamente para o Beth-Horon, cidade dupla,
situada a 20 Km. de Jerusalém.

Esta cidade se dividia em dois grupos urbanos diferentes: a Alta Beth-
Horon e a Baixa Beth-Horon. Ambas estavam situadas na antiga fronteira
dos reinos de Judá e de Israel, e ambas foram construídas pela Sera, filha da
Beria, filho de Efraim, nos tempos das doze tribos (I Crônicas, 7, 24). A Baixa
Beth-Horon, que foi destruída no curso das guerras, foi reconstruída por
Salomão (I Reis, 9, 17). Antes, como eram cidades filisteas, tinham sido
totalmente pagãs. As ruínas se encontram na atualidade em Jordânia, a uns
poucos quilômetros do Emaús, ao nordeste.

Foi, pois, a poucos quilômetros de Jerusalém, no caminho que vai para o
Beth-Horon, onde ao Estêvão «causaram dano» uns bandidos mandados
pelo Saulo, príncipe herodiano de sangue real e «salteador de caminhos», à
maneira de alguns de nossos feudais medievais. Desgraçados os judeus de
Jerusalém, e seu Sanedrim, não tiveram nada a ver com sua morte. Mas na
época em que o escriba, provavelmente sírio, redige os Atos, e em especial
este episódio, quer dizer no século IV, o Império romano é cristão, tanto se
quiser como se não, e seus imperadores não brincam com a ortodoxia, e
menos com a sua. Os judeus se dispersaram por todo o Império desde
Adriano e a derrota de Simão-bar-Koseba no ano 135. E lhes pode atribuir
todos os crimes imagináveis. Entre Saulo-Paulo, árabe idumeu, e os judeus,
nossos escribas árabes sírios não vacilam. A milenária animosidade
continua.

Mas este Estêvão, aliás Stephanos, era realmente um criado do imperador,
quer dizer, de Claudio César? Em caso afirmativo, devemos nos expor ainda
algumas questões molestas:

1) Neste caso não pode tratar-se mas sim de um liberto. E então tem, pelo
menos, dois nomes: o praenomen, quer dizer seu nome distintivo, e o
nomen, o nome da família, e possivelmente o cognomen, que é o nome que
relaciona o indivíduo com uma coletividade. Os libertos acrescentavam a
seu praenomen o nome do «amo» que os tinha liberado. Se mais adiante
tinham a honra de converter-se em cidadãos romanos (civis romanus),
acrescentavam o praenomen do imperador que reinava. Esses eram os tria
nomes romanos.

Por exemplo, Palante, o célebre liberto, que foi um dos amantes de
Agripina, chamava-se Claudii libertas Pallas. Narciso, a sua vez, chamava-se
Claudii libertus Narcissus. No caso da cidadania romana, tomava deste
modo o nome do imperador que reinava. O tribuno Lisias se chamava, por
exemplo, Claudios Lysias.



Mapa da Palestina Século I

No caso de nosso Stephanus (e não Stephanos, se era criado do César),
ignoramos seus outros nomes. Neste suposto, é plausível que o imperador
que reinava, Claudio César, enviasse a Judéia a um servidor de seu palácio
imperial, para que lhe levasse uns móveis, quando uma simples carta ao
governador da província de Síria, transmitida ao procurador da Judéia, seu
subordinado direto, e uma ordem deste a um oficial ordinário, teriam
permitido enviar ao imperador, sem nenhuma dificuldade, os móveis
solicitados?

2) Quais eram esses estranhos e luxuosos móveis que só a Judéia podia
proporcionar ao imperador? Perderíamo-nos inutilmente em conjeturas a
respeito, porque em Roma havia tudo que era necessário. Quanto mais que
a palavra empregada por Flavio Josefo significa, em grego, tanto móveis
como valiosos vasos.

3) por que o manuscrito eslavo ignora todos estes detalhes? A resposta é
fácil. Os manuscritos de Flavio Josefo de que dispomos são todos da Idade
Média, não há nada antes. É evidente que os escribas que os copiaram
nesta época, ao atuar muito longe uns dos outros, com suas censuras,
interpolações e extrapolações, não falando a mesma língua, não
conhecendo sequer, ao transcrever, corrigir, suprimir, em épocas diferentes,
sem tão somente conhecer os trabalhos análogos de seus colegas
longínquos, de seus predecessores, não puderam sincronizar seus
«acertos». Agora é isso o que os perde e revela seus enganos. Se
tivéssemos a sorte de encontrar um original de Flavio Josefo, não faltariam
as surpresas.

A conclusão de tudo isto é muito singela.

Saulo-Paulo e seu irmão Costobaro, «príncipes de sangue real», são não só
um pouco bandidos se se apresentar a ocasião, como vimos, mas sim, além
disso, Saulo é também o chefe de uma polícia paralela, sob as ordens de
Herodes Agripa I. Isto é o que se deduz da leitura atenta dos Atos dos
Apóstolos, como já mostramos acima.

Inteirou-se da missão de um tal Stephanos, homem de confiança e
subordinado oficial de Simão-Pedro e dos ajudantes de Jesus, na região de
Beth-Horon, ou inclusive mais longe, para Lydda. Sabia que este Stephanos
era um agitador. Foi a seu encontro, ou lhe perseguiu. Stephanos já se
encontrava no lugar, ou tinha uma escolta. Teve tempo de voltar, ou ele
mesmo, com a ajuda de prodígios pseudo-mágicos, ou seus próprios
subordinados, à população de um ou dois povos próximos ao Beth-Horon. E
Saulo-Paulo se teve que enfrentar com uma autêntica sublevação
camponesa. Ao retornar a Jerusalém, poria à corrente ao procurador
Cumano, quem enviaria várias centúrias de legionários a reprimir a
tentativa de rebelião zelote.

Enquanto isso, ao Stephanos ou lhe decapitariam no mesmo lugar e
enviariam sua cabeça ao Cumano, conforme era costume entre os romanos,
ou o capturariam, conduziriam-no à Jerusalém, e a seguir seria crucificado,
como se costumava fazer com os militantes zelotes que eram feitos
prisioneiros. Esta execução não se situa em modo algum nos anos 33 ou 36,
como pretende falsamente o escriba anônimo dos Atos, ao situar a morte de
Estêvão-Stephanos imediatamente depois da morte de Jesus.

Porque Ventidio Cumano foi procurador em finais do ano 47; sucedeu ao
Tibério Alexandre, até o ano 51, ano em que foi substituído por Antonio
Félix. A morte de Estêvão situa-se, pois, como muito em breve em finais do
ano 47. E no mesmo ano 47, mas alguns meses antes, sob o Tibério
Alexandre como procurador, foram crucificados em Jerusalém Simão-Pedro e
Jacobo-Santiago. Sobre o período que viu o trágico fim dos irmãos e
ajudantes de Jesus-bar-Juda, remetemos à próxima obra, cujo manuscrito
está quase terminado, e que porá ordem nas lendas «interessadas»...

Tudo isto se situa no período de agitação zelote que coroa o famoso sínodo
de Jerusalém, e no curso do qual os mais humildes sofreram da fome que
açoitou não «toda a terra», como se faz dizer Flavio Josefo, a não ser
somente a Palestina, a conseqüência das inumeráveis insurreições:
«Naquele tempo açoitou a Judéia uma grande fome, durante a qual a rainha
Helena comprou muito caro o trigo ao Egito e o distribuiu àqueles que o
necessitavam». (Cf. Flavio Josefo. Antigüidades judaicas, XX, 101; XXX, XV,
3, e XX, II, 6.) A rainha da Abdiadena, Helena, converteu-se ao judaísmo.

Mas todos os historiadores reconhecem que é muito difícil situar os
acontecimentos deste período. Nem sequer estão de acordo nas datas do
exercício dos diferentes procuradores.

Alguns, como é lógico, nos vão perguntar onde está a prova, no texto de
Flavio Josefo, da presença de Saulo, príncipe herodiano, chefe da polícia
paralela, no caminho de Jerusalém ao Beth-Horon, o dia em que se causou
ferimentos em Stephanos-Estêvão.

Os Atos dos Apóstolos nos dizem (8, 1) que Saulo tinha aprovado esse
assassinato. Portanto, desempenhou um papel decisivo neste caso, quando
teve que determinar a morte de Estêvão. Por último resolveu a questão
sobre a sorte que lhe esperava.

Pois bem, as Antigüidades judaicas de Flavio Josefo e os Atos dos Apóstolos
se confirmam e se esclarecem mutuamente no referente ao papel e à
importância de Saulo-Paulo: «Costobaro e Saulo tinham também consigo
grande número de guerreiros, e o fato de que fossem de sangue real e
parentes do rei os fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram
violentos e sempre estavam dispostos a oprimir aos mais débeis.» (Cf.
Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, VIII.)

«Saulo devastava a Igreja, e entrando nas casas, arrastava homens e
mulheres e os fazia encarcerar... Não obstante, Saulo, respirando ainda
ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, chegou-se ao supremo
sacerdote pedindo-lhe cartas de recomendação para as sinagogas de
Damasco, a fim de que, se ali achava a quem seguisse esse caminho,
homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém.» (Cf. Atos dos
Apóstolos, 8, 3, e 9, 1-2.)

Terei que ter muita má fé para não reconhecer aqui a um só e mesmo
personagem. Por outra parte, ao Estêvão matam «fora da cidade» de
Jerusalém (Atos, 7, 58), e ao Stephanos causam ferimentos «no caminho do
Beth-Horon», segundo o manuscrito eslavo, e «perto do Beth-Horon»,
segundo o manuscrito grego de Flavio Josefo. Entre Jerusalém e Beth-Horon
há 20 quilômetros no máximo.

Ao Estêvão, nos Atos dos Apóstolos, lhe chama Stephanos nos
manuscritos gregos originais destes. E agora sabemos que Saulo-Paulo é
responsável por sua morte. Como não reconhecer aí simplesmente uma
história em duas versões diferentes?

E se o Stephanos dos Atos tem ao Saulo como responsável por sua morte,
fora de Jerusalém, o Stephanos das Antigüidades judaicas tem ao mesmo
Saulo como chefe dos assassinos, fora de Jerusalém, no caminho de Beth-
Horon.

E portanto, a repressão romana que sucedeu a sua execução demonstra
que o tal Estêvão era um agitador zelote. E todas essas execuções,
repitamo-lo uma vez mais, inserem-se no período que vai do ano 44 aos 63
de nossa era, a maior parte das quais foram entre o 44 e o 47. Um depois
de outro, os irmãos e os ajudantes de Jesus, seus filhos, seus sobrinhos, irão
desaparecendo, decapitados ou crucificados. A quem poderá fazer-se
acreditar que Roma, tão tolerante em matéria religiosa, tão respeitosa
inclusive com o culto judaico, não levou a cabo simplesmente uma
repressão desumana contra um movimento de insurreição que,
evidentemente, era-o, mas que se justificava pelo próprio excesso das
requisições romanas, os impostos, os tributos, quer dizer, um verdadeiro
banditismo administrativo, perfeitamente organizado?

Mas a morte de Estêvão continua constituindo uma chave que nos vai
permitir chegar à umas constatações ainda mais importantes que a
retificação histórica objeto deste capítulo. Com efeito, indiretamente nos
confirmará tudo o que já descobrimos em relação à verdadeira
personalidade de Saulo-Paulo.

O descobrimento do combate em Beth-Horon nos contribui uma prova a
mais das incoerências, para não dizer das mentiras, que servem de trama
geral aos pseudo Atos dos Apóstolos. Raciocinemos um pouco.
Segundo esses mesmos Atos, Saulo está em Jerusalém no ano 36 de nossa
era, e ali assiste à lapidação de Estêvão. Então é um jovem adolescente
(adolescente: Atos, 7, 59) É aluno de Gamaliel (cf. Atos, 22, 3), e muito anti-
cristão (pp. cit., 8, 1-3).

Como admitir então que não conhecesse Jesus, e especialmente, que não
tivesse assistido a sua crucificação, se esta teve lugar no ano precedente
nessa mesma cidade de Jerusalém?

Mas é óbvio que Saulo jamais tinha visto Jesus, basta lendo suas Epístolas
e os Atos dos Apóstolos para convencer-se, e nenhum apócrifo do Corpus
paulinum fala jamais de tal encontro.

Por conseguinte, vemo-nos induzidos a concluir que:

1) a morte de Estêvão não teve lugar em Jerusalém no ano 36;

2) nesse mesmo ano 36 Saulo não era aluno de Gamaliel, em Jerusalém.
Então tem uns treze anos e vive em Tiberíades ou em Cesaréia Marítima, no
seio de sua família herodiana, com o Herodes Agripa II e Menahem;

3) no ano 36, como já se disse, Estêvão teria morrido sob Pilatos ou Marcelo,
procuradores, em troca morreu sob o Cumano, que foi procurador no ano
47, quer dizer, onze anos mais tarde;

4) se nos anos 36-37, como se diz, estivesse a mando de uma tropa
supletiva sob as ordens do grande rabino Gamaliel (Atos, 8, 3, e 9, 1), Saulo
necessariamente teria participado com sua tropa no Monte das Oliveiras e
na captura de Jesus. Entretanto, jamais ninguém sustentou tal coisa;

5) não é possível que os judeus tivessem no ano 36 o direito de condenar a
morte ao Estêvão por ter blasfemado, já que não tinham esse direito com
Jesus, no ano 34, para o mesmo tipo de acusação: «Os judeus responderam
ao Pilatos: "Não nos está permitido dar morte a ninguém"». (João, 18, 31.)
Com efeito, o jus gladii foi retirado no ano 30, no âmbito religioso, e logo
que chegaram os primeiros procuradores, no ano 9, também foi no âmbito
do direito comum.

Não deixa de ser surpreendente o fato de que os exegetas das grandes
igrejas oficiais jamais chegassem a tais constatações, ou, de fazê-las, que
acreditassem que seu dever era calarem-nas. A menos que tais
constatações tivessem desembocado em última instância à solução de Leão
X, que citamos como epígrafe ao começo da presente obra!

Segunda parte

Paulo, que criou Cristo

Eu, eu sou o eterno, e fora de mim não existe nenhum salvador.

Isaías, 43, 11
Se junto consigo surge um profeta, que mostre um sinal ou um prodígio e,
havendo-se completo o sinal ou o prodígio, diga: «Sigamos a outros deuses»
que seus pais não conheceram, não escute a esse profeta.

Deuteronômio, 13, 1-3

13 ­ A RELIGIÃO PAULINA*

*[Algum crítico «racionalista» e partidário da inexistência de Jesus, ao nos
reprovar --coisa curiosa-- que tivéssemos evocado alguns aspectos de um
Jesus guerrilheiro, declara: «Ao senhor Ambelain lhe faltou nos explicar
como lhe pôde emprestar um ensino moral, assimilá-lo ao Logos e ao "pão
da vida", etc. Esses problemas são escamoteados, e isso é burlar do leitor».

Aí vai nossa resposta...]

Para que uma religião seja apreciada pelas massas, necessariamente tem
que guardar algo do gosto à superstição» G.-C. Lichtenberg, Aforismos

É seguro que Saulo-Paulo jamais estudou a religião judia «aos pés de
Gamaliel», o doutor supremo, tal como ele pretende --ou como lhe faz dizer
-- nos Atos dos Apóstolos (22, 3). Ignora completamente suas sutilezas.
Quando declara, depreciativo: «Acaso Deus se ocupa dos bois?» (cf. I
Epístola aos Coríntios, 9, 9), raciocina como bom idumeu, como árabe, mas
não como filho de Israel. Senão, recordaria as prescrições de Moisés em
relação aos animais, prescrições cheias de uma piedade e uma doçura
totalmente estranhas à época em que foram ditadas e aos povos que eram
então vejam-nos inimigos de Israel. Citemos simplesmente, para não
sobrecarregar este capítulo: Gênesis, 9, 9; Êxodo, 23, 5, 12 e 19;
Deuteronômio, 22, 10, etc. E o animal ao que se sacrifica ou ao que se imola
não deve sentir a morte, para isso, o fio da faca não tem que ter defeito
algum, já que o animal não deve sofrer absolutamente. Do contrário, a
carne é impura e não é apta para o consumo.

Convenhamos que, para a época de sua promulgação, semelhante lei
implicava um avanço moral considerável em relação às leis em vigor. Esta
benevolência para nossos irmãos inferiores a herda Moisés do antigo o
Egito. O cristianismo, ao ser paulino de origem, ignorará tudo isso...

Do exame dos textos atribuídos a Saulo-Paulo resulta que jamais conheceu
as Escrituras judias de outro modo que não fora através de sua versão
grega, chamada dos Setenta, utilizada pelos Gentis que se aderiram à
religião judia, quer dizer, os partidários, os «temerosos de Deus». Agora
bem, se estudassem, e durante longo tempo, claro está, «aos pés de
Gamaliel», rabino do Israel, os cursos de teologia teriam tido lugar em
aramaico, sobre textos hebreus. Charles Guignebert analisou perfeitamente
o significativo comportamento de Saulo-Paulo: «Quando voltar a ficar em
contato com palestinos puros, embora sejam cristianizantes, reinará a
incompreensão mútua e a desavença. Isto também é significativo. E minha
impressão global sobre sua cultura judia é, em definitivo, a mesma que,
parece resultar de sua cultura grega: o rabinismo de Paulo é superficial, e
nem sequer lhe inculcou esse respeito à ciência sagrada que era sua própria
razão de ser. Dir-se-ia que aos verdadeiros rabinos, aos fariseus puros, só os
vê através de um prisma que os deforma, e não me surpreenderia que fora,
em efeito, assim». (Cf. Ch. Guignebert, O Cristo, V.)

Por outra parte, suas origens sociais elevadas, pertencente à aristocracia
Iduméia dos Herodes, têm-lhe feito considerar o Império romano de maneira
muito distinta como o fazia um judeu autêntico, quem via na ocupação
romana, nas exações de seus procuradores, nesse banditismo
administrativamente organizado, uma prova desejada por Deus, e portanto
passageira, mas insuportável, imposta ao povo eleito por Deus para servir
de modelo às nações pagãs.

Esta pesada ocupação não lhe incomoda, pois para ele o Império romano é
uma potência positiva, que proporcionou a fortuna a sua família; e também,
quando escravo hebreu tinham que lhe deixar obrigatoriamente em
liberdade ao cabo de sete anos de serviços (Êxodo 21, 2), já que o sétimo
lhe contribuía a liberdade, Saulo-Paulo não teve uma só palavra de
condenação para esse açoite social que é a escravidão. E mais, expõe como
princípio que toda autoridade, seja a que for, foi decidida por Deus (Epístola
aos romanos, 13, 1-7). Tudo que constitui função das autoridades,
magistrados, tudo isso é vontade de Deus, e «para isso pagam impostos!».
Alguém se imagina sem dificuldade às reações dos desgraçados judeus,
explorados e espremidos por Roma, ante tão cínicas afirmações.

Por outra parte, suas origens principescas, sua qualidade de cidadão
romano, suas anteriores atividades de rapina feudal, bandido quando se
apresentava a ocasião, suas antigas funções de chefe de polícia supletiva,
fazem-lhe desprezar ao povo judeu, disposto a rebelar-se contra o ocupante
romano. Como se sentia secretamente odiado e desprezado pelas massas
judias, suas simpatias se inclinavam para os gentis.

De tudo isto se ressentirá a doutrina que pouco a pouco irá formulando, de
cara à realização de um plano que acaricia profundamente e que logo
abordaremos. Além disso, sua formação religiosa é inicialmente pagã em
sua infância. Embora a Iduméia estivesse integrada na província da Judéia
dos reis asmoneos, só é judia na imaginação daqueles. Ali abundam os
templos pagãos, e é testemunho o de Ascalón, em que era sacerdote um de
seus antepassados diretos. De maneira que para Saulo-Paulo essa doutrina
que começa a formular em si mesmo refletirá, inconscientemente, suas
passadas crenças. Não pode assimilar o estrito monoteísmo de Israel. E
assim, também inconscientemente, transporá o trinitarismo pagão dos
velhos cultos de Nabatea contemporânea, ainda latente na Iduméia, em um
trinitarismo bem próprio.

Embora carecia de uma cultura inicial, fez um descobrimento que revestiu
importância para ele: conheceu as obras de Filón de Alexandria. Filón era tio
de Tibério Alexandre, procurador romano no ano 47, na Judéia. Recordemos
que foi ele quem estava em funções em Jerusalém no momento em que
teve lugar o primeiro sínodo em tal cidade; foi ele quem fez crucificar
Simão-Pedro e Jacobo-Santiago naquela época. Além disso, Paulo se
familiarizou com os rudimentos da gnosis através de Dositeo, que então se
achava em Kokba, pouco antes de Damasco.

Saulo-Paulo viu o resultado das mesclas político-religiosas com a tragédia
zelote. Não ganhava nada atacando Roma no plano material. E tampouco
tinha nenhum interesse, mas bem ao contrário. Em troca, com uma doutrina
sedutora, que recolhesse os temas que até então tinham atraído sempre
aos pagãos cultos, pregando uma doutrina que recordasse a dos «mistérios»
aos que estavam acostumados os gentis, descartando tudo aquilo que
pudesse fazer levantarem-se contra os poderes temporários, obrigando aos
fiéis a viver como indivíduos submetidos e dóceis, tinha-se a possibilidade
de reunir muita gente. Fazendo-o assim, podia criar um verdadeiro império
«espiritual», com uma capital, províncias regidas por governadores também
«espirituais», e que vigiassem uns missi domini perfeitamente sérios. Tal
império existia já, e era o da Diáspora judia, sobre o que reinava o supremo
sacerdote de Israel, quem não somente dispunha de poder de jurisdição,
mas também de extradição, e que recebia desde muito longe os impostos e
os dízimos. E para Saulo-Paulo esse era o único refúgio. Com efeito, ao
fazer-se circuncidar e ao converter-se oficialmente ao judaísmo, cortou com
suas origens árabes. O exemplo de Silaios, o intendente geral de Aretas, rei
de Nabatea, ao recusar deixar-se circuncidar, como lhe pedia astutamente
Herodes, para poder casar-se com Salomé I, irmã deste último, porque
temia que lhe lapidassem seus compatriotas prova-o. Por outra parte, e
como já vimos, Roma não admitia a circuncisão para quão gentis abraçavam
o judaísmo. Continuando, e em virtude da Lex Cornelia, imperadores como
Adriano e Antonino o Piedoso, proibiram formalmente tal rito mediante a
publicação de decretos. Aos homens livres que se fizessem circuncidar lhes
esperavam penas diversas, como expulsão, confisco dos bens ou pena
capital. Nos tempos de Saulo-Paulo ainda não regia tanta severidade, mas
os romanos já mostravam um rechaço formal para todo latino ou grego que
passou ao judaísmo. De maneira que encontramos a nosso homem não só
separado do mundo idumeu e nabateo, mas também do romano e do grego.
O que podia fazer? Integrar-se aos zelotes, entre os messianistas, dirigidos
pelos «filhos de David»? Nem pensar. Não tinha nenhum futuro! Os
primeiros postos estariam sempre reservados aos verdadeiros «filhos da
Aliança», aos escolhidos de Yavé. De modo que Saulo-Paulo só fará que lhe
admitam momentaneamente. Desta decisão nascerão contatos episódicos,
que só durarão algum tempo, com Simão-Pedro e Jacobo-Santiago, tal como
nos contam isso os Atos dos Apóstolos. Logo, quando os chefes messianistas
forem progressivamente eliminados pelas legiões romanas da maneira que
agora sabemos, nosso homem poderá ao fim voar com suas próprias asas.
No período preparatório terá tempo de introduzir-se, de familiarizar-se com
os princípios e as tradições da nova corrente «cristã».
Fica o problema de uma doutrina que lhe permita apresentar-se como
portador de uma mensagem de salvação. Já dissemos antes que teve
conhecimento da obra de Filón de Alexandria, um extenso trabalho no qual
o autor apresenta uma interpretação alegórica do Pentateuco,
especialmente em seu Nomon hieron allegoriai. Sobretudo tem a
originalidade, sendo judeu de nascimento, de atrever-se a afirmar que Deus
não estabelece nenhuma diferença entre os homens, que não é o
nascimento o que confere a nobreza, a não ser a sabedoria e a virtude.
Todos os que se separam da idolatria para ir ao verdadeiro Deus são
membros do autêntico Israel, que não é o da carne e o nascimento. E para
Filón, que expressava pela primeira vez este ensino secreto dos doutores da
Lei, esta espécie de cosmopolitismo do judaísmo é a garantia de que
constitui a verdadeira e a melhor das religiões.

E isto encherá de gozo a nosso Saulo-Paulo. Sua concepção de Jesus-
Messias, que estranha em especial aos zelotes, como ao Simão-Pedro, quem
nas Homilias Clementinas lhe replica que Jesus jamais se pretendeu Deus,
poderá elevar-se, graças à Filón, ao nível do Logos platônico, do Verbo
divino, e lhe permitirá relegar o Metatrón-saar-ha-Panim dos cabalistas a
segundo plano. Porque Saulo-Paulo não inventou nada neste terreno;
quando prega o Verbo é Filón quem fala. Agora vamos poder julgá-lo.

Para Filón, o Logos emana de Deus, não é uma criatura como o Metatron.
É a primeira criatura de Deus (uios prologónos), é sua imagem (eikon), sua
cópia (apeikoniosma), outro deus, sua réplica (eteros Oeos, deuteros Oeos).
É o porta-voz e o mensageiro do Altíssimo (Logophoros, aggelos).

Por outra parte, esse Logos é além disso o mediador entre os homens e
Deus, é o supremo sacerdote, o suplicante (iketés) do Mundo, e é nesse
papel como lhe representa diante de Deus. É também o arquétipo inicial
sobre o que foi concebido o homem terrestre, o Homem em Si, feito à
imagem divina (o' kat' eixona ánaropos, a arétupos toü aitiou).

Além disso, para Filón o mal não vem de Deus, contrariamente à teologia
rabínica. Procede da Matéria, dos poderes espirituais inferiores, dos logoi
secundários, necessariamente imperfeitos, que o configuram por ordem de
Deus. Nesta Matéria, informe e inerte, plasticidade coeterna a Deus,
infundiram o espírito de vida (o noús), para organizá-lo.

Reconheceremos que tudo isto se encontra integralmente nos ensinos
paulinos.

Por último, ao lado de Filón da Alexandria, Saulo-Paulo justaporá uma
teoria da salvação que adotará do orfismo. Antes de passar a um breve
estudo deste, convém precisar que nosso apóstolo ocasional causará
escândalo, um escândalo enorme entre os judeus, que enuncia com a
glorificação da cruz patibular em que morreu Jesus-bar-Juda.

Em nossa obra precedente já tínhamos demonstrado que jamais se fez
alusão alguma, no Antigo Testamento, a um salvador espiritual diferente do
próprio Deus, mas bem ao contrário, pois semelhante crença era já
formalmente desmentida de antemão. E afirmar que esse salvador, que
plagiava a obra de Yavé, tinha descendido aos mais baixos limites da última
degradação, constituía para os judeus ortodoxos uma autêntica blasfêmia.
Porque no Deuteronômio lemos o seguinte: «Quando em um homem há um
pecado que o faça réu de morte, seja condenado a morte e pendura-o numa
árvore; não deixará seu cadáver toda a noite na árvore, mas sim o sepultará
o mesmo dia, porque um enforcado é uma maldição de Deus, e você não
deve poluir a terra que Yavé, seu Deus, vai dar por herança».
(Deuteronômio, 21, 22-23.)

Terá que recordar que o enforcado libera seu sêmen. E os bruxos e bruxas
foram recolher essas mandrágoras preciosas que cresciam ao pé dos
patíbulos, já que estavam impregnadas do esperma dos pendurados. E logo
se serviam dele para seus malefícios. Por outra parte, os crucificados, tanto
se estavam atados como se estavam cravados a sua cruz, manchavam o
bosque, seus membros inferiores e o chão, com seus excrementos sólidos e
líquidos. Por conseguinte, imaginar que um «liberador» terminasse assim
sua vida era algo impensável.

E agora podemos voltar para orfismo.

Para Saulo-Paulo, Jesus, filho de David, morto na cruz por sentença romana
como condenação a diversos atos considerados delitivos em grau supremo
pelas leis romanas, ofereceu-se ele mesmo como sacrifício para acalmar a
cólera de seu Pai Celestial Yavé. Isto devia assombrar grandemente aos
meios apostólicos iniciais, e aos irmãos de Jesus em particular. Porque
jamais no curso dos evangelhos, jamais tal Jesus declarou que sua morte
(que ele sabia que era inevitável e dolorosa, e que devia ter lugar em
Jerusalém) tivesse por objetivo liberar à humanidade de uma dívida para
seu Pai celestial e acalmar sua cólera.

E isto Saulo-Paulo o tira dos mistérios órficos. Já que se fosse realmente
judeu, educado «aos pés de Gamaliel», não ignoraria esta condenação
pronunciada de antemão contra os sacrifícios humanos pelos profetas e em
nome do Eterno, mesmo que tais sacrifícios se realizassem em sua honra:

«Os filhos de Judá construíram a altura do Tofet, que se encontra no vale
do Ben-Hinnón, para queimar no fogo a seus filhos e filhas, coisa que eu não
mandei e que jamais me passou pela mente.» (Jeremias, 7, 31.)

«Apresentaram suas oferendas, que me irritaram... Ao apresentar suas
oferendas e ao fazer passar através do fogo a seus filhos lhes poluem...»
(Ezequiel, 20, 28-31.)

«... nem profanarão mais meu santo nome com seus dons e com seus
ídolos...» (Ezequiel, 20, 39.)

«Não me são gratos seus holocaustos e não me agradam seus
sacrifícios...» (Jeremias, 6, 20.)
«por que me oferecem tantos sacrifícios? Diz Yavé. Estou farto dos
holocaustos de carneiros e do óleo dos bezerros; o sangue dos touros,
cordeiros e bodes não me são gratos. Quando vêem meu rosto, quem
solicita tais coisas de vós, que pisoteiem meus átrios?... Suas mãos jorram
sangue! lhes lave e lhes purifiquem...» (Isaías, 1, 11-16.)

«Porque eu quero amor, não sacrifícios..., e o conhecimento de Deus mais
que os holocaustos...» (Oseas, 6, 6.)

O que pensar então de um sacrifício humano?

Objetar-se-á que, não obstante, segundo o ritual judaico se perpetravam
no Templo sacrifícios sangrentos de animais. É certo. Mas esquecemos de
recordar que essa foi uma das causas da fundação da seita essênia, que os
condenava. Por outra parte, a casta sacerdotal estava em grande parte em
mãos dos saduceus, fração rica da população, materialista como é natural
(rechaçava a crença em um destino post mortem para a alma), e
semelhantes sacrifícios representavam para os sacerdotes saídos dela uma
bonita margem de proveitos.

Paralelamente, tais sacrifícios sangrentos não incomodavam
absolutamente a Saulo-Paulo. Eram normais na maioria dos cultos pagãos. E
na Arábia nabatea, vizinha imediata de sua pátria, Iduméia, a trindade
divina adorada pelos árabes nabateus os incluía, especialmente seu
Dusares, idêntico ao Dionisos, durante os Actia Dusaria, essas grandes
festas no curso das quais cativos e escravos viam regularmente e em datas
fixas impregnar com seu sangue os altares de tal trindade: Dusares, entre
suas duas companheiras deusas, Ouzza, desdobramento de Ateneu e
Afrodite. Acima deles reinava Beel-Samin, o pai celestial, o senhor dos céus.
Segundo testemunho de Epífano (cf. Panarion), Dusares nascia em 25 de
dezembro de uma virgem mãe chamada Kaabou.

Tudo isto, quer dizer, o füonismo, o dusarismo e o orfismo constituíram
uma abundante corrente sincretista no espírito de Saulo-Paulo. E vamos
agora estudar este último, já que nosso amigo condottiere, doutor em
teologia por causa de uma pena amorosa, o que faltava a um encontrava
em outro. O que lhe permitia poder apresentar sempre um aspecto válido de
seu «evangelho» aos gentis de todas as nacionalidades. Exceto aos judeus
de boa classe, claro está.

O orfismo nos apresenta em duas épocas que mostram uma indiscutível
mutação progressiva. Já no século V antes de nossa era Herodes faz alusão
a isso; logo é Platão, no século IV A. C., e Aristóteles, na mesma época, e
por último o peripatético Eudemio. Mas a única certeza que nós possuímos é
o testemunho de dois papiros do Egito, bastante mutilados por certo, que
datam um do século III e outro do II antes de nossa era, e que nos
contribuem o primeiro fragmento de um ritual órfico, e o segundo uma
versão de um relato ritual relativo ao seqüestro de Perséfone.
Para a segunda época do orfismo estamos muito melhor dotados, já que os
documentos são muito mais numerosos, e abrangem desde princípios do
século II de nossa era a finais do IV, época em que as religiões pagãs ficam
fora da lei, os templos são fechados, as escolas iniciáticas proibidas, sob
pena de castigos muito graves. Vamos, pois, resumir em poucas linhas os
ensinos órficos.

As afinidades do orfismo com o cristianismo paulino são, com efeito,
bastante numerosas e bastante surpreendentes. É uma religião revelada,
que tem seus profetas, seus livros sagrados. O deus a cujo redor gira o
ensino esotérico sofre, morre e ressuscita, glorioso, junto ao Deus Supremo,
seu pai. Garante à seus fiéis a redenção de uma mancha original, e uma
união perfeita, em total comunhão neumatológica, com a divindade
salvadora. Os não iniciados são ameaçados, em função de quão pecados
não purgaram, com intermináveis suplícios no outro mundo.

O orfismo prega uma vida de pureza e de ascetismo, e considera a
existência terrestre como uma prova dolorosa, que a alma deve atravessar
purificando-se mediante a observação de uma moral rigorosa e de ritos ao
mesmo tempo culturais e catárticos. Como sempre em tais campos, o
orfismo possui uma esoteriologia. Vejamos aqui um resumo, que expõe
muito mais longamente aos mystes órficos o tradicional hieros logos, ou
discurso sagrado, de todas as religiões com mistérios do mundo antigo.

A filha de Deméter e de Zeus, Perséfone, foi raptada pelo Hades. Liberada
em parte por seu pai Zeus, teve com ele, em uma união sagrada
(hierogamia), um filho, um jovem deus chamado Dionisos-Zagreus.

A este filho divino lhe prometeu o governo do Universo. Mas uns deuses
inferiores, os Titãs, conseguiram apoderar-se do Zagreus menino, e
repartiram sua carne a fim de divinizar-se ainda mais. Como castigo a
semelhante crime, Zeus fulminou aos Titãs, mas de suas cinzas, nas quais
subsistia um último germe divino, nasceram os primeiros homens. Esses
homens participam, pois, da natureza divina, pela faísca que adormece
neles, e da natureza demoníaca, por isso lhes vinha dos Titãs fulminados.
Esta natureza titânica, segundo o termo utilizado por Platão, é a que incita
aos homens para o mal, enquanto a faísca divina os impulsiona ao bem.
Esse crime dos Titãs, pois, mancha a todo o conjunto da humanidade.

Não obstante, no Hieros logos se diz que o coração do Zagreus tinha
escapado aos assassinos do divino menino. Desse coração tirou Zeus o
princípio de ressurreição do jovem deus assassinado, e logo, sempre
segundo a doutrina órfica, confiou-lhe o governo do mundo: «Zeus o colocou
sobre o trono real, pôs-lhe o cetro na mão, e o fez soberano de todos os
deuses do universo». (Cf. Proclos, Sobre o Cratilo do Platão.)

Compare-se com o que diz Saulo-Paulo: «Deus, depois de ter ressuscitado
a Cristo dentre os mortos, sentou-o à direita nos céus, por cima de todo
principado, potestade, poder e dominação». (Cf. Epístola aos Efesios, 1, 20-
21.)

Indubitavelmente o comentário sobre o Cratilo de Platão, por parte de
Proclos, é um texto pitagórico, posterior à Epístola aos Efesios; mas o texto
de Platão assim comentado é anterior em vários séculos à epístola paulina.
E a lenda iniciática de Zagreus não é quão único sustenta tal mito esotérico.
Que o leitor se remeta ao que dizemos do de Mitra em nossa obra
precedente, e ficará bem informado.

Por último, Saulo-Paulo se deu um papel idêntico ao de Orfeu na nova
religião que se esforça por divulgar pelo velho mundo. Orfeu recebeu esses
ensinos, evidentemente, de Perséfone, a deusa iniciadora, durante sua
descida aos Infernos, onde ela reina seis meses ao ano, ao lado de Hades,
seu marido. Esta descida ele o faz por amor. Mas, ao ser fiel ao Eurídice, as
mulheres da Tracia o despedaçarão por despeito, ao lhe ver rechaçar toda
participação em sua orgia ritual. Pois bem, Saulo-Paulo não foi procurar sua
própria revelação aos Infernos, mas sim pretende havê-la recebido, quando
subiu ao terceiro céu, do próprio Jesus. (Cf. II Epístola aos Coríntios, 12, 2.)
Isto, evidentemente, vai dar no mesmo. Um homem é eleito pela divindade
para chegar até ela, receber um ensino iniciático e difundi-lo entre os
homens. Como conseqüência de sua missão, aqueles a quem contribui a
mensagem lhe dão morte. O tema é sempre o mesmo, aparece sem cessar
nas religiões de «mistérios». E a de Saulo-Paulo constitui uma mais.

Consulte o mapa das viagens de Saulo-Paulo e se constatará, como
observa muito acertadamente nosso amigo Jean Desmoulins, que estes se
desenvolveram sempre em regiões do Império romano em que floresciam os
cultos a mistérios com sacrifícios, as religiões em que o deus morre para
renascer gloriosamente. Paulo tinha ali um terreno favorável para seus
temas favoritos.

O fato de que o orfismo e o filonismo impregnassem por sua vez a Saulo-
Paulo (já que sua cultura metafísica e teológica era em princípio bastante
frouxa) demonstra-se pelos rastros que se encontram deles em suas
expressões favoritas.

No orfismo, o cabrito era o símbolo do iniciado nos mistérios. Nesta
religião, o mistério se identificava ao Zagreus, e uma das apelações rituais
era justamente Erifos, em grego «cabrito», que se aplicava ao deus. No
ritual constituía uma palavra de passe, que se devia pronunciar ante as
divindades do mundo subterrâneo (Campos Elíseos e Infernos) para poder
ter liberdade de passagem. Este rito é comum à gnosis, à cabala, à franco-
maçonaria esotérica. A frase chave é: «Cabrito, tenho caído dentro de
leite...».

E o leite é o primeiro alimento do recém-nascido. Nas religiões de
«mistérios» pode escrever-se «recém-nascido»... Porque a iniciação é um
renascimento a um mundo novo, uma mudança de «plano», o acesso a
outro nível de «consciência». E esta expressão utilizará Saulo-Paulo várias
vezes:

«Dava-lhes a beber leite, não lhes dava comida porque ainda não a
admitiam...» (Cf. I Epístola aos Coríntios, 3, 2.)

«Pois os que depois de tanto tempo deveriam ser professores necessitam
que alguém lhes ensine de novo os primeiros rudimentos dos oráculos
divinos, e lhes tornem tais, que têm necessidade de leite em vez de manjar
sólido...» (Cf. Epístola aos Hebreus, 5, 12.)

Como se vê por tudo o que antecede, e como concluiu V. Macchiero em seu
livro Orfismo e Paolinismo, o passado do cristianismo judaico ao cristianismo
helênico, do fato histórico de Jesus ao fato místico do Cristo, de um
personagem real que viveu na Judéia a um personagem mítico, espécie de
arquétipo detectado ou imaginado, operou-se graças ao orfismo, não é a
cristologia de Saulo-Paulo outra coisa que «uma transposição do orfismo»
(op. cit., P. 18).

Aqui, de fato, o mito helênico não é mais que a representação imaginada
de um estado real de consciência, quer dizer, uma experiência. Por
conseguinte, estabelecer que os elementos míticos de Cristo de Saulo-Paulo
derivam do orfismo equivale a procurar até que ponto a ressurreição mística
no cristianismo deriva da do orfismo. Segundo a linguagem contemporânea,
trata-se da repetição adaptada de um psicodrama.

Além disso, as indagações interessadas de um Tertuliano contra a liturgia
de Mitra, ou as de um apologista como Justino contra a do orfismo, limitam-
se a repetir a infantil explicação dos doutrinários cristãos dessa época, ou
seja, que é o diabo quem, de antemão, elaborou e inspirou aos homens
esses preparos do cristianismo. O diabo é o grande recurso dos parvos,
constatamo-lo inumeráveis vezes, inclusive à nossas costas! De maneira
que deixaremos à nossos demonômanos, tanto os antigos como os
modernos, com suas infantis elucubrações. E nos encontraremos com um
estranho crucifixo, que eles não deixarão de qualificar de «blasfematório».

Antes de nada, existem dois aspectos da cruz. Está a cruz cósmica, que
vamos estudar, e a cruz patibular, instrumento de suplício. Esta já foi
descrita no volume precedente, e é melhor não perder mais tempo com ela.

Ao princípio, os primeiros cristãos, confusamente envergonhados pela
ignomínia do suplício (já que o tinham com freqüência ante seus olhos como
castigo a crimes maiores), negavam-se a apresentar ao Jesus crucificado.
Até o século V não se decidiram a fazê-lo, e ainda de forma bastante
discreta. Em troca a cruz grega, de braços iguais, era-lhes familiar, e
utilizavam-na com fins puramente talismânicos. Vejamos o que diz a
respeito o cardeal Daniélou: «Não só os cristãos riscam com seu polegar o
sinal da cruz sobre sua frente, mas também possuímos testemunhos que
testemunham a prática de verdadeiras tatuagens. O uso de tais tatuagens é
conhecida nos cultos pagãos ao Dionisos e a Mitra». (Cf. Jean Daniélou, Les
Symboles chrétiens primitifs, IX.)

Esse caráter talismânico da crux, ou do sphragis (selo), usava-se para a
vida espiritual, mas também para a vida profana: «Um tesouro que não
esteja marcado com o selo (sphragis) está a mercê dos ladrões, uma ovelha
sem sinal está a mercê de todas as armadilhas». (Cf. Séverien de Gabala,
Sul o baptéme; Patrologie grecque, XXXI, C.432.)

E Marcos o Diácono, no século V, cita na Vida de Porfirio da Gaza a três
meninos que caíram em um poço e aos quais a cruz grafite de vermelho no
meio de sua testa preservou da morte. Também Agustín recorda que os
pagãos reconhecem aos cristãos por suas vestimentas, seus penteados e a
cruz grafite em sua frente. O que prova que o cristianismo não estava em
modo algum açoitado e que seus seguidores não se viam na obrigação de
ocultar-se. Às vezes inclusive a cruz estava em grafite ou tatuada «sobre o
rosto», o que implica que devia está-lo em meio das bochechas ou no
queixo. Justino e as Odes de Salomão fazem alusão a isso em pleno século
II. Este costume subsistiu longo tempo, já que um conto persa inserido nas
Mil e Uma Noites nos diz o seguinte: «Mas Seharkan, aproveitando o
momento em que o cristão tirava o chapéu, lançou-lhe uma segunda lança
que o alcançou na frente, no lugar mesmo em que tinha uma cruz
tatuada.». (Cf. As Mil e Uma Noites, «História do rei Omar-al-Neman», noite
núm. 90.) Pois bem, esta recopilação de contos começou no século X.

E efetivamente, a cruz de braços iguais, o sphragis ou selo divino, era
símbolo pagão antes de ser símbolo cristão. E sob o nome de staurós, o
piedoso, marcava na gnosis pagã o limite entre o mundo divino de Pleromio
e o mundo demoníaco de Kenomio. O mesmo termo de staurós era o que
designava a uma entidade do panteão gnóstico, e o eón tinha como missão
proibir aos daimons titânicos o acesso ao mundo divino (trocadilho entre
staurós, o piedoso, o limite, e hóros, o mesmo sentido).

Em Timeo, Platão nos apresenta a Alma Universal, intermediária entre o
Deus Supremo e o Cosmos, sob o aspecto de uma cruz inclinada, cuja
cabeça estava no céu e a base na terra. Devido a sua inclinação se
apresentava, pois, como um «X», uma ji grega. Muito mais tarde os
neoplatônicos representarão esta Alma Universal, o demiurgo, com uma
cruz grega rodeada de um círculo. (Cf. Proclus, Sobre o Timeo, 111, 216.)

Por conseguinte, muito antes do cristianismo se considera à cruz como
símbolo iniciático nas religiões dos «mistérios». Às vezes se acompanha de
um deus cruciforme --incluso de um deus crucificado--. Para o primeiro
caso, Porfírio nos transmitiu a descrição que Bardesana faz do deus criador
da Índia: segundo ele, Brahma estendia os braços em cruz; sobre estes,
figuravam inumeráveis deidades, a Natureza, o Mundo. Na mão direita tinha
o Sol, na esquerda a Lua.
Charles Guignebert, em Probléme de Jesus, diz-nos que, em um ritual à
Osíris, os braços estendidos da cruz simbolizam a regeneração mística, e em
alguns amuletos antigos figuram, na cruz de Osíris, numerosos braços
humanos.

No orfismo, que existia já no século VI antes de nossa era, o mensageiro
do deus salvador era, indubitavelmente, Orfeu, que trouxera de sua descida
aos Infernos o Hieros logos, a elocução iniciática reservada aos místicos. E
uma gema gnóstica do século II, propriedade do Museu de Berlim,
reproduzida por A. Boulanger em seu Orphée, página 7, mostra-nos um
Orfeu crucificado. Trata-se de um selo de anel de oligisto, pedra marrom
avermelhada (óxido férrico natural), em que está gravada a imagem de um
homem sobre uma cruz vertical, com os braços estendidos (não se vê o
sinal dos pregos, mas se trata de um crucificado real). A cruz está apoiada
em sua base sobre duas grossas cavilhas em cunha, e rematada por uma
espécie de bola (falismo?) coroada por um quarto crescente com as pontas
para cima. Em cima da cruz há um arco de sete estrelas. Uma, inscrição,
gravada de forma bastante tosca, mostra orfeus bak-kikos, por orfeus
bakkikos ou bakkioakos. Este objeto é do último terço do século II, quer
dizer dos anos 170 a 200 de nossa era. Trata-se pois, sem lugar a dúvidas,
de Orfeu associado aos «mistérios» de Dionisos-Zagreus, aquele a quem
despedaçaram as bacantes.

Por outro lado, o mito do Orfeu não era desconhecido entre os cristãos, já
que Clemente de Roma, em suas Homilias Clementinas, oferece-nos um
resumo dele. (Op. cit., Homilia VI.)

De fato a cruz, tanto se for grega como se é a ji (cruz em «X»), designa os
quatro elementos que constituem o mundo material:

Terra, Água, Ar e Fogo. Esses quatro elementos aparecem marcados em
cima da cruz patibular de Jesus, nas iniciais do célebre I.N.R.I, que significa,
evidentemente, Iesus Nazarenas Rex Iudaeorum. Esquece-se que esta frase
latina não podia pertencer aos manuscritos originais dos evangelhos, já que
estes foram redigidos em grego, além disso, só figura no de João (19, 20), e
nos outros três, sinóticos, a frase é diferente, e nem em grego nem em latim
podiam dar a sigla INRI. Para João, em grego, dá IONOBTI: Iesus o Nazaraios
o Basileus ton Ioudaion. De maneira que se montou expressamente a frase
latina a fim de obter INRI. E temos o significado esotérico dessa sigla
através do hebreu, já que I é Iebeschah em hebreu: Terra; Nour é o Fogo;
Ruah é o Ar; e Iammin são as Águas.

Não pode confessar-se já mais abertamente que, no espírito dos
mitólogos que «construíram» o cristianismo sobre bases mais antigas,
assimilou-se Jesus, o homem histórico crucificado por Roma, ao Cristo
Cósmico, ao Adão Kadmon da cabala, e a todos os deuses-salvadores
«crucificados», quer dizer, dispersados no seio dos quatro Elementos do
Mundo que constituem a Matéria.
Aqui é onde convém recordar aquela confissão de Clemente da
Alexandria: «Os Mistérios se divulgam sob uma forma mística a fim de que
seja possível a transmissão oral. Mas esta transmissão se efetuará menos
por palavras que por seu sentido oculto. As notas que temos aqui são muito
pouca coisa... Mas ao menos servirão de imagem que recordará o Arquétipo
ao homem tocado pelo tirso». (Cf. Clemente de Alexandria, Stromatos, I, I,
13.)




Orfeu crucificado



Pois bem, o tirso era uma varinha terminada em seu extremo por um
dente, e rodeada de hera. E era justamente o cetro de Dionisos-Zagreus...
E na alquimia tradicional (e sua indiscutível capital, Alexandria do Egito,
está muito perto), a cruz de braços iguais é o símbolo do crisol. Pôr matéria
prima da Obra no crisol se diz que é crucificar.

Por conseguinte, na alquimia mística, o deus-salvador, seja qual for seu
nome quando se encarna e se sacrifica, mescla-se aos quatro Elementos do
Mundo; como em um crisol, crucifica-se, (cf. Fulcanelli, O mistério das
catedrais), para converter-se a seguir no Crisopeo espiritual.

Por isso, ao tomar como eixo de seu sistema ao Jesus, filho de Judas da
Gamala, crucificado pelos romanos, cujos ajudantes e irmãos afirmavam
que tinha ressuscitado depois de sua morte, Saulo-Paulo tinha a partida já
quase ganha, porque:

a) perpetuava um tema familiar entre os meios helenísticos cultos, tema
que tinha chegado até os meios populares e que estes se apressaram,
ipsofacto, a cristalizar de forma real, em um personagem que bastava só
lhes oferecendo;

b) esse personagem existia, era Jesus-bar-Juda, chefe dos messianistas
zelotes, e seus partidários fizeram já a Saulo-Paulo a metade do trabalho
preparatório, ao montar a lenda da ressurreição.

A nosso homem não bastava já afirmando que, igual ao deus-salvador
desmembrado na cruz celeste dos Elementos encarnou-se em homem de
carne e osso, esta mesma cruz celeste tivera seu reflexo material, tangível,
na cruz patibular em que morrera tal homem. Saulo-Paulo não se privará
disso, mas além disso será o único em sua época e durante longo tempo
que, frente à vergonha cristã geral ante a cruz, construirá a base de uma
verdadeira mística do «escândalo da cruz»; julgue-se:

«Que não me enviou Cristo a batizar, a não ser anunciar o evangelho (o
seu), e não com sábia dialética, a fim de que não se desvirtue a cruz de
Cristo. Porque a doutrina da cruz é uma insensatez para os que perecem,
mas para nós, que estamos salvos (faz disso uma certeza), é um poder de
Deus.» (Cf. I Epístola aos Coríntios, 1, 17-18.)

«Logo se acabou o escândalo da cruz?...» (Cf. Epístola aos Gálatas, 5, 11.)

«Quanto a mim, jamais me glorificarei em outra coisa a não ser na cruz de
nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e
eu para o mundo.» (Cf. Epístola aos Gálatas, 6, 14.)

«Para fazer em si mesmo dos dois (antigos) um só homem novo, e
estabelecendo a paz, e reconciliando-os a ambos em um só corpo com
Deus, pela cruz, dando morte por ela à inimizade (antiga).» (Cf. Epístola aos
Efesios, 2, 15-16.)

É certo que na Epístola aos Filipenses (2, 8, e 3, 18), na Epístola aos
Colossenses (1, 20, e 2, 14), e na Epístola aos Hebreus (12, 2) faz uma
alusão direta ao instrumento material do suplício de Jesus. Mas não é seguro
que não lhe emprestasse um sentido imensamente mais gnóstico.
Recordemos a seu primeiro iniciador, Dositeo. Releiamos, com este fim,
essas passagens de duplo sentido: «Apagou a ata cujas prescrições nos
condenavam e que era contra nós, e a tirou do meio, cravando-a na cruz.
Despojou aos Principados e às Potestades, exibiu-os à vista do mundo,
triunfando deles pela cruz». (Cf. Epístola aos Colossenses, 2, 14-15.)

O que, no espírito de Saulo-Paulo, significa que se lembra dos ensinos de
seu Mestre Dositeo: para os gnósticos cristãos, os Arkontes (Potestades e
Dominações secundárias, segunda causa do Cosmos) reinavam antes
inteiramente sobre o mundo material, sobre o Kenomio. Pelo sangrento
sacrifício da cruz, diz-se que Jesus apaziguou a seu Pai celestial, e agora são
os Arkontes quem, destronados, estão prisioneiros no seio dos quatro
Elementos (a cruz cósmica).

Mas também aqui, na mente de Saulo-Paulo, o Jesus histórico cede o posto
a um personagem imaginário, o Cristo Celeste, quem se sacrifica pelo
Homem cansado, e, ao incorporar-se a sua essência, transmuta-o e o
deifica. Coisas todas elas que o homem condenado por Pilatos jamais tinha
projetado, e argumentos soteriológicos que se buscariam em vão no Antigo
Testamento.

Compreende-se que ante tais ensinos heréticos o judaísmo ortodoxo
reservasse a nosso novo apóstolo uma acolhida bastante má. E
compreende-se que o mundo helênico, com o que comportava já de
tradicional nos mitos pagãos anteriores, aceitasse discutir sobre o tema. O
tempo tem feito o resto, e especialmente a chegada ao poder de
imperadores cristãos.

E não é seguro que o simbolismo do coração de Zagreus, esquecido pela
raiva cega dos Titãs e do que Zeus fez renascer ao deus sacrificado, não
servisse de trama longínqua ao do Sagrado Coração, para o que se
construiu toda uma teologia. Esse Sagrado Coração que, por sua
misericórdia potencial, faz renascer (ou nascer) ao homem cansado.
Permanência quase eterna dos grandes mitos sagrados! E os versos de
nosso saudoso amigo Fernand Divoire nos vêm à memória: [Cf. FERDINAND
DIVOIRE, Orphée, 36.]

Cendres du lourd passé oü brille para parcelles La substance du dieu, de
Dyonisos mourant, Ah! Dégage-toi, o Substance immortelle! O Coeur,
échappe-toi, et renais, Dieu-enfant

(Cinzas do passado, onde a retalhos brilha A substância divina de Dionisos
moribundo, Ai! Desprenda-se já, OH imortal substância! OH Coração!
Escapa, e renasce, menino Deus!)

14 - As visões de Paulo e suas contradições

Quando a gente não tem uma vida de verdade, substitui-a por miragens.
A.-P. CHÉJOV, A
gaivota

As visões de Paulo, como vimos anteriormente, constituem seu principal
argumento quanto à legitimidade de seu apostolado pessoal, que contribui
um evangelho pessoal. Em diversas ocasiões «viu» Jesus, e este lhe deu
suas instruções. Mas o que não sabe é que estas freqüentemente estão em
contradição com as que ele deu em vida a seus irmãos, os apóstolos. E isso
é algo muito molesto.

Não obstante, quando ao final se deu conta, tentou afinar os violinos
ficando em contato com aqueles que lhe conheceram: «Logo, ao cabo de
quatorze anos, subi outra vez a Jerusalém acompanhado de Bernabé e
levando comigo ao Tito. Subi em virtude de uma revelação, e lhes expus o
evangelho que prego entre os gentis, e em particular aos que figuravam,
para que me dissessem se eu corria ou tinha deslocado em vão». (Cf.
Gálatas, 2, 1-2.)

Assim, tem medo de pregar um evangelho não de acordo, e tem interesse
em fazer concordar «seu» evangelho (Romanos, 2, 16, e 16, 25) com o que
possuem aqueles que viveram com Jesus e receberam outro em vida. O que
significa isto?

Se o próprio Jesus lhe comunicou um evangelho pessoal. Paulo não teria
que ter dúvidas. Acaso não nos diz o seguinte?: «Sei de um homem em
Cristo que faz quatorze anos --se no corpo, não sei; se fosse do corpo,
tampouco sei, só Deus sabe-- foi arrebatado até o terceiro céu e ouviu
palavras inefáveis que um homem não deve repetir». (Cf. Paulo, II Coríntios,
12, 2-4.)

Por outra parte, aqui temos uma segunda contradição, já que se o que foi
comunicado não deve repeti-lo, não se trata de uma mensagem a difundir
entre as nações. Em troca, em sua primeira Epístola aos Coríntios, declara
isto: «Porque eu recebi do Senhor o que lhes transmiti». (Cf. Paulo, I
Coríntios, 11, 23.)

Continuemos, pois, nossos controles, porque são gratificantes:

«Quando voltei para Jerusalém, orando no Templo tive um êxtase, e vi
Jesus, que me dizia: "Tenha pressa e sai logo de Jerusalém, porque não
receberão seu testemunho a respeito de mim". Eu respondi: "Senhor, eles
sabem que era eu o que encarcerava e açoitava nas sinagogas aos que
acreditavam em ti, e quando foi derramado o sangue de sua testemunha
Estêvão, eu estava presente, e me gozava e guardava os vestidos dos que
lhe matavam...". Mas ele me disse: "Vê, porque eu quero o enviar à nações
longínquas".». (Cf. Atos dos Apóstolos, 22, 17-21.)

De maneira que Paulo, em presença de uma aparição de Jesus, na
atmosfera angustiosa do Templo, permite-se lhe contradizer e discutir as
ordens da aparição? Incrível!
Além disso, em sua argumentação, tende a explicar à Jesus (que supõe
que o ignora), que dadas suas ações anteriores contra os discípulos não
tem nada que temer dos judeus. Em troca, um pouco antes, no capítulo 21
dos mesmos Atos, mostra a estes tentando linchar ao Paulo, e que este
agradeceu sua salvação exclusivamente à intervenção imediata do tribuno
das coortes Claudio Lisias: «E enquanto tratavam de lhe matar chegou a
notícia ao tribuno da coorte de que toda Jerusalém estava amotinada. E
tomando imediatamente os soldados e os centuriões, precipitou-se sobre os
manifestantes. Estes, à vista do tribuno e os soldados, cessaram de golpear
ao Paulo». (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 31-32.)

Aqui temos, pois, outra contradição. E há ainda outra mais. Porque Jesus
declarou numerosas vezes que seu papel de messias liberador pretendia
reservá-lo unicamente em benefício de Israel:

«Não fui enviado a não ser às ovelhas perdidas da casa de Israel.» (Cf.
Mateus, 15, 24.)

«Não vão aos gentis nem penetrem em cidade de samaritanos; vão melhor
às ovelhas perdidas da casa de Israel.» (Cf. Mateus, 10, 5.)

E nesta passagem confia ao Paulo uma missão contrária. Pois se Jesus for
Deus, como Deus pode mudar suas decisões, eternas? É inconcebível.

Além disso, Paulo faz o que lhe passa pela cabeça. Igual segue as
instruções do Espírito Santo, como as passa por cima. Igual obedece ao
primeiro sonho que tem, como recusa escutar a um profeta. Julgue-se: «Em
todas as cidades o Espírito Santo me adverte, dizendo que me esperam
cadeias e tribulações. Mas eu não faço nenhuma estima de minha vida, com
tal de acabar minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus». (Cf.
Atos dos Apóstolos, 20, 22-24.)

Terá que ver neste desprezo da existência uma espécie de renúncia
ascética, que não lhe pede, como se vê, a não ser ao contrário, ou um
desespero secreto, uma ferida incurável: a lembrança da filha de Gamaliel.

Esta fuga longe de Jerusalém, durante quatorze anos, tenderia a
confirmar esta hipótese. E então Paulo iria deliberadamente e por uma
espécie de suicídio secreto, para uma morte desejada desde fazia longo
tempo. Vejamos algo que o confirma:

«E desembarcamos em Tiro, porque é ali onde tinha que deixar sua carga
a nave. Como ali descobrimos discípulos, permanecemos sete dias. Eles,
movidos pelo Espírito Santo, diziam ao Paulo que não subisse à Jerusalém.
Mas, passados aqueles dias, saímos.» (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 3-5.)

«Havendo ficado ali vários dias, desceu da Judéia um profeta chamado
Agabo, o qual, chegando-se a nós, tomou o cinto do Paulo e, atando-os pés
e as mãos com ele, disse: "Isto diz o Espírito Santo: assim atarão os judeus
em Jerusalém ao varão de quem é este cinto, e lhe entregarão em poder
dos gentis".» (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 10-11.)

Mas Paulo não quer escutar: «depois disto, providos do necessário,
subimos à Jerusalém». (Cf. Atos dos Apóstolos, 21, 15.)

Por certo que esta visão de Agabo não foi interpretada corretamente, já
que se os judeus assaltaram ao Paulo, foram os judeus da Ásia os que,
depois de havê-lo reconhecido no Templo, avisaram aos outros, e não só
Paulo não foi entregue por eles aos romanos, mas também foram estes
últimos os que lhe liberaram, lhe salvando assim a vida. (Cf. Atos dos
Apóstolos, 21, 31-36.)

No referente à enigmas e contradições, aqui temos outras passagens sobre
as visões de Paulo: «Uma noite, em uma visão, disse o Senhor ao Paulo:
"Não tema, continua falando, não cale! Eu estou contigo e ninguém tentará
te fazer mau, porque tenho já nesta cidade um povo numeroso". Passou ali
um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus». (Cf. Atos dos
Apóstolos, 18, 9-10.)

Esta cidade é Corinto, cidade voluptuosa, que possuía uma escola de
cortesãs célebre, e famosa pelo relaxamento de seus costumes, de onde a
expressão significativa de «viver a corintia». Era, de fato, a Capua da Acaia.
Pois bem, na II Epístola aos Coríntios (1, 19) diz-se que a Igreja de Corinto
foi fundada pelo Paulo e seus dois colaboradores, Silas e Timóteo, e os Atos
nos confirmam isso: «Mas logo que chegaram da Macedônia Silas e Timóteo,
Paulo deu tudo a pregação da Palavra, atestando a quão judeus Jesus era o
Messias. Como estes resistiam e blasfemavam, sacudindo suas vestimentas
lhes disse...». (Cf. Atos dos Apóstolos, 18, 5-6.)

Para ver «um povo numeroso nessa cidade». Jesus tinha que ser muito
otimista, quanto mais que sem a intervenção do pró-cônsul Galión, irmão
de Séneca e «amigo de César», Paulo teria passado um quarto de hora
muito mal (cf. Atos dos Apóstolos, 18, 12-18), e quando finalmente se
embarca para Síria, a Igreja de Corinto não deve ser muito importante.

Recapitulemos. Paulo fracassou rotundamente entre os judeus. Obteve a
conversão de um tal Justo, homem que adorava a Deus» (cf. Atos dos
Apóstolos, 18, 7), quer dizer de um pagão, inicialmente partidário do
judaísmo, logo a de Crispo, chefe da Sinagoga, com todos os seus (cf. Atos,
18, 8), quem, por outra parte, alguns versículos mais tarde se chama
Sustenes (cf. Atos, 18, 17).

E logo nos diz que: «E muitos Coríntios, ouvindo a Palavra, acreditavam e
se batizavam». (Cf. Atos, 18, 8.) batizavam-se? vamos ver.

Aqui se trata unicamente de pagãos aos quais Paulo convertera à sua
doutrina religiosa. Para qualquer que conheça o clima que reinava até então
em Corinto, onde preponderava o elemento romano e latino, onde toda
regra de vida derivava do gozo de existir, e tendia ao amor, onde vários
milhares de «servidoras de Afrodite» gravitavam ao redor de seu templo,
dominando a cidade, como tentações vivas, famosas por sua beleza e sua
ciência das carícias, a hipótese de um êxito entre «muitos Coríntios» é uma
pura bravata.

Por outro lado, Paulo a única coisa que fazia era ensinar, ele não batizava,
e ele mesmo o quis sublinhar: «Eu não fui enviado para batizar, a não ser
para pregar o evangelho...». (Cf. Paulo, I Coríntios, 1, 17.) Coisa que,
recordemo-lo, é uma prova mais de que não recebera os famosos poderes
apostólicos que Simão-Pedro negou ao Simão o Mago, aliás Saulo, aliás
Paulo (veja-se mais acima).

E esse escrúpulo, essa vacilação, fazem que se abata uma dúvida sobre a
realidade da missão que Jesus supostamente lhe confiou. Se não, por que
este último, depois de ressuscitar em carne e osso, corpo glorioso, em três
dimensões, que comia e bebia como vocês e como eu, ia ver-se na
impossibilidade de infundir com as palavras e os gestos clássicos, esse
Espírito Santo necessário para a fundação de toda Igreja? Porque esse
Espírito Santo jamais o recebeu nas formas sacramentais acostumadas nos
tempos apostólicos. Jamais obteve a não ser um simples acordo,
concretizado por um simbólico apertão de mãos, que já estava em uso nas
sociedades secretas dos «mistérios»: «Santiago, Cefas e João [.. ] deram-nos
para mim e ao Bernabé a mão em sinal de comunhão». (Cf. Paulo, Gálatas,
2, 9.)

Assim --coisa que ninguém parece ter prestado atenção-- nenhum bispo
pode vangloriar-se de ter uma filiação apostólica que se remonta até São
Paulo. O que, tendo em conta o fato de que Pedro jamais esteve em Roma
converte em um mistério a identidade do verdadeiro fundador apostólico
desse bispado, a menos que se enfoque o assunto segundo a explicação
que será objeto do capítulo seguinte.

Ao começo do presente capítulo sublinhamos a ausência de todo princípio
nas decisões do Paulo, que eram conseqüência de suas visões. Às vezes não
faz caso das «mensagens» recebidas, e às vezes fica em marcha
acreditando só em um simples sonho. Julgue-se:

«Havia ali [em Listra, na Liconia] um discípulo chamado Timóteo, filho de
uma mulher judia crente e de pai grego [...] Paulo decidiu levá-lo consigo.
Tomou, pois, e o circuncidou, à causa dos judeus que havia naqueles
lugares, pois todos sabiam que seu pai era grego [...] Percorreram a Frigia e
o país da Galacia, pois o Espírito Santo lhes proibiu pregar na Ásia.
Chegaram à Misia e tentaram dirigir-se a Bitinia, mas tampouco o permitiu o
Espírito de Jesus. Atravessaram, pois, Misia e baixaram ao Tróade». (Cf. Atos
dos Apóstolos, 16, 1-8.)

Aqui agarramos Saulo-Paulo com as mãos na massa! Porque não tinha
absolutamente nenhum direito a efetuar essa operação ritual, que era
realizada sucessivamente por três mohelim (operadores) em presença do
shamoch (notário), e com menos seis testemunhas maiores. Esta
circuncisão sacrílega é uma falsidade mais a acrescentar no ativo do Paulo.
Mas continuemos: Primeira observação: umas vezes é o Espírito Santo, e
outras o Espírito de Jesus o que se comunica com o Paulo.

Sustentar depois disto que se trata de um deus único nos parece muito
audaz. Observar-se-á, além disso, que o Pai, por sua vez, continua
ignorando ao Paulo. Está melhor na parte dos judeus. Vêem-se contradições
assim dentro das famílias, cada qual tem suas preferências.

Segunda observação: apoiando-se em que critérios reconhecia Paulo se
as via com um ou com outro? Sob que forma se manifestava o Espírito
Santo?

Terceira observação: depois de sua «ressurreição» se diz que Jesus
apareceu em carne e osso, com três dimensões, comendo e bebendo,
atravessando paredes, e nos precisa que não se tratava de «um espírito,
que não tem nem carne nem ossos». (Cf. Lucas, 24, 39.)

Pois bem, um quarto de século depois dessa ressurreição, parece que
perdera aquele extraordinário privilégio, e contentava-se em não ser mais
que um espírito, como os que tinham todos os mortos segundo as crenças
daquele tempo. A menos que na época da redação dos Atos dos Apóstolos a
ressurreição em carne e osso ainda não se inventou.

Mas continuemos lendo o que segue: «De noite. Paulo teve uma visão. Um
varão macedônio se pôs diante, e lhe rogando dizia: "Passa a Macedônia e
nos ajude". Imediatamente depois desta visão, procuramos como passar a
Macedônia, coligindo que Deus nos chamava a lhes evangelizar». (Cf. Atos
dos Apóstolos, 16, 9-10.)

Seria difícil negar que Paulo era um neuropata, já que um homem que
anda vagando assim através de todo o Império romano, emprestando
ouvidos sonhos ou a visões, sem método e sem um plano bem maturado,
não pode ser outra coisa que isso.

E aqui vamos parar à misteriosa enfermidade da qual já falamos
anteriormente.

Porque agora os fenômenos oníricos seguirão manifestando-se e a
perambulação irracional vai continuar: «No dia seguinte, de noite, lhe
apareceu o Senhor e lhe disse: "Tenha ânimo, porque como deste
testemunho de mim em Jerusalém, assim também tem que dá-lo em
Roma!"». (Cf. Atos dos Apóstolos, 23, 11.)

Sua confiança se vai exacerbando, até dar passo a uma autoridade em
aumento. Na viagem por mar que conduzirá a Roma, o navio cai em uma
tempestade. Mas Paulo tranqüiliza a todo mundo: «Esta noite me apareceu
um anjo de Deus a quem pertenço e a quem sirvo, que me há dito: "Não
tema, Paulo, tem que comparecer ante o César, e Deus concede a vida de
todos os que navegam contigo"». (Cf. Atos dos Apóstolos, 27, 23.)

Os céticos dirão que havia uma possibilidade entre dois de que este sonho
coincidisse com a realidade. Nos contentaremos fazendo observar que os
neuropatas são freqüentemente excelentes médiums. É bem sabido que
uma tara psíquica freqüentemente está compensada por uma faculdade
paranormal, e isto terá que reconhecê-lo. Paulo, quer dizer, o iniciado na
magia nabatea que nos oculta sob o pseudônimo de Simão o Mago, possuía
o duplo dom da clarividência e a clariaudiência. Daí mesclar nisso a Deus
Pai, Deus Filho ou Deus Espírito Santo vai muito. Isso representaria lhes dar
a paternidade iniciática de muitos sonâmbulos extralúcidos, dos que saem
nas últimas páginas dos jornais, depois da imprensa do «coração».

Acabamos de pronunciar as palavras tara psíquica, e convém que nos
expliquemos.

Voltemos para Flavio Josefo, ao episódio referente às fases sucessivas que
precederam à morte de Herodes o Grande, no ano 6 antes de nossa era:
«Sofria de uma febre lenta que não manifestava tanto seu ardor ao contato
com a mão como no interior de quão tecidos destroçava. Experimentava
deste modo uns violentos desejos de tomar mantimentos, e era impossível
não condescender. Acrescente-a ulceração dos intestinos, e em especial do
cólon, que lhe causava atrozes sofrimentos. Nos pés, uma inflamação úmida
e transparente, e o mesmo ao redor do abdômen, logo a gangrena das
partes genitais, que engendrava vermes. A respiração era fatigante quando
estava incorporado, e era desagradável pela fetidez de seu fôlego e o
precipitado do hálito. Por último, sofria convulsões espasmódicas, de uma
violência insuportável». (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, VI.)

É indiscutível que todos esses sintomas apontam para uma sífilis em
estado terciário, em suas últimas manifestações. E nessa época, no Oriente
Médio, tratava-se da sífilis mutilante, que se converteu na sífilis nervosa de
nossa época na Europa. Mas nessas mesmas regiões continua sendo ainda
multilante às vezes, sobretudo no Extremo Oriente (Índia, Paquistão, etc.).

Pois bem, Saulo-Paulo é o neto de Herodes o Grande por parte de sua avó
Mariana e sua filha Cypros II, mãe de Saulo e de seu irmão Costobaro II.
Portanto é através de sua mãe por onde lhe chegou a triste condição de
sifilítico hereditário. Esta valeu ao Saulo um clima psíquico aberto de
antemão a diversas formas alucinatórias, uma distrofia ocular (nos diz que
entortava os olhos), e óssea, que geralmente afeta aos membros inferiores
e produz mornas em forma de «folha de sabre» (tinha as pernas torcidas,
como também nos diz).

Esta herança sifilítica não explica tudo. É certo que nessas regiões e
naquela época um guerreiro, como era inicialmente Saulo, estava exposto a
toda sorte de aventuras, e o desenfreio e inclusive as violações, próprios
dos soldados profissionais, levavam em si mesmos seu elevado e penoso
preço. Na vida de nosso herói houve uma sífilis adquirida, e não só já uma
hereditária. Isto não é contraditório. A herança sifilítica confere uma certa
imunização, mas esta pode apagar-se com o tempo, e se citam casos de
homens que, apesar de haver-se confirmado que eram sifilíticos
hereditários, sofreram uma grave afecção sifilítica nos limites da idade
adulta. Este foi provavelmente o caso de Saulo-Paulo.

E em seu estádio secundário provoca já uma esplenomegalia moderada
por hipertrofia do baço. O doente sofre lesões cutâneas e mucosas, a mais
corrente é a roseóla, e transtornos das faneras, como a queda dos cabelos
(ficou calvo em idade precoce). No estado terciário a sífilis apresenta
gomos, duros e indolores, ulcerações profundas da derme, acidentes
mucosos, sobretudo na boca (gomos, manchas brancas). O doente é
repelente. E o próprio Saulo-Paulo nos diz que foi vítima de uma
enfermidade que causava asco: «Bem sabem que estava doente de doença
corporal quando pela primeira vez lhes anunciei o evangelho, e postos a
prova por minha enfermidade, não me desdenharam nem fizeram ascos de
mim, antes me receberam como um anjo de Deus». (Cf. Epístola aos
Gálatas, 4, 13-14.)

Agora bem, no mundo antigo, e no Oriente Médio (e na Índia ainda em
nossos dias, em determinadas regiões), o doente afetado de sífilis era
considerado como sujeito divino. Porque não se ignora que em suas fases
últimas a enfermidade contribuía consigo um estranho fenômeno.

Em efeito, de dez a vinte anos depois da sífilis primária, às vezes inclusive
trinta anos mais tarde, aparece o tabes, ou ataxia locomotriz (não foi este o
caso de Saulo-Paulo), ou transtornos psíquicos ligados a uma forma que se
conhece com o nome de paralisia geral. Esta pode traduzir-se simplesmente
por uma afecção sifilítica difusa nas meninges e o encéfalo, com
manifestações mentais e neurológicas. Estas últimas se traduzem às vezes
por um delírio de grandeza, o doente acredita ser Deus ou em relação com
Deus; está sujeito a alucinações ou a crise de excitação (cf. professor A.
Molinier). É o caso de Saulo-Paulo, em quem segue a esplenomegalia da
sífilis secundária. Esta forma da terrível enfermidade permanece ignorada
durante longo tempo. Além disso, o paludismo é um poderoso fator que
atrasa esta última afecção.

Quanto às «audições» de vozes diversas, não esqueçamos que no caso de
lesões sifilíticas que se produzem no aparelho auditivo (labirinto, caracol), o
doente é objeto de alucinações auditivas que vêm a acrescentar-se às
alucinações visuais. O delírio de grandezas se converte então em teomania,
e o doente se toma por um novo profeta ou pela reencarnação de um
apóstolo, ou inclusive do próprio Deus. Por pouco que estejam compensadas
as lesões cerebrais pela aparição de faculdades paranormais, coisa que é
freqüente, encontrará fiéis, e se formará uma seita a seu redor.

Nós pensamos, pois, que a grave enfermidade que intriga tanto aos
exegetas como aos historiadores do paulinismo, não foi nem a malária nem
a epilepsia. Foi simplesmente um pouco mais comum, tendo em conta a
região e a época, assim como o modo de vida inicial de Saulo-Paulo: a sífilis,
enfermidade muito extensa naquela época. Se foi também palúdico (coisa
que tampouco é impossível naqueles lugares), esse detalhe explica e
justifica as manifestações tardias da enfermidade em seu estágio terciário,
associado com a herança que, como já assinalamos, atrasa igualmente ao
paludismo os efeitos da sífilis adquirida.

Este foi, acreditamos nós, o «aguilhão na carne» cuja presença reconhece
ter nele Saulo-Paulo (II Epístola aos Coríntios, 12, 2-9). Mas ele utiliza o
termo grego de akóloph para designar este aguilhão, e akóloph não designa
um aguilhão, a não ser «um conjunto de aguilhões», algo que se situaria
entre os espinheiros e a pele arrepiada de pelos de animal chamado
precisamente «ouriço», conforme nos diz monsenhor Ricciotti em seu Saint
Paúl, apotre. Aí tratava-se de sífilis secundária, caracterizada por sifílides de
um tipo eruptivo generalizado, e que afeta precisamente a este aspecto.

Pudemos descobrir que o maravilhoso «caminho de Damasco» não foi
outra coisa que a marcha cadenciosa de um formoso judeu. Agora vemos
que as «comunicações» recebidas por Saulo-Paulo não tiveram outra fonte
que uma simples enfermidade venérea, muito intensa. Embora o reino do
fantástico não ganhe nada com isto, a história ao menos recupera seu
verdadeiro rosto.

NOTA: A sífilis foi identificada com quase total certeza nas descrições de
autores antigos; agora se sabe que essa enfermidade, que foi durante tanto
tempo tão temida, não a trouxeram para a Europa os marinheiros de
Cristóvão Colombo a sua volta das ilhas do Caribe, mas sim foi exportada
por eles.

Os defensores de uma fonte americana não efetuaram controles
cronológicos. Faremo-los, pois, nós em seu lugar:

1) Carlos VIII partiu para sua primeira campanha da Itália em 1493. Durou
até 1496. Numerosos soldados de todos os graus retornaram dela poluídos,
sobretudo de Nápoles, que foi tomada em 1495. O mesmo aconteceu com
as tropas de Luis XII, no curso da segunda campanha, que durou de 1499 a
1504.

2) Em 3 de agosto de 1492, Cristóvão Colombo e suas três pequenas
tripulações saíram de Palos de Moguer (Andaluzia), e retornaram a Europa, a
Lisboa, em 4 de março de 1494. Voltaram a empreender a marcha, desta
vez com quatorze tripulações mais, em 25 de setembro do mesmo ano de
1494, e não retornaram até 1496.

Como poderiam, em só seis meses que durou sua volta, poluir os marinhos
de Santa Maria, a Pinta e a Nina, primeiro desde Lisboa, logo de Madrid e
por último de Barcelona, a tão grande quantidade de gente na Itália, onde
jamais puseram os pés durante esse período de tempo, e simultaneamente
à expedição francesa? Quanto mais que este terrível gérmem de sífilis, se os
franceses o imputaram às belas italianas, violadas ou conquistadas, estas,
por sua parte, pretendiam havê-la contraído dos mesmos franceses! Seja o
que for, o «mal de Nápoles» segundo uns, ou o «mal francês» segundo
outros, não deixam passo a um «mal caribenho», e se se destaca à Itália
daquela época como um dos focos que irradiavam a sífilis, não se diz em
troca nada da Espanha e de Portugal, que deveriam ser os primeiros
Estados ameaçados. E como um número tão pequeno de marinheiros, o que
implica um número ainda menor de sifilíticos, poderia difundir a sífilis de
maneira tão virulenta, e em tão poucas semanas? As «canas ao ar» das
escalas têm, apesar de tudo, seus limites, e a virilidade masculina também.




15 - Um apóstolo ignorado: Salomé, inspiração de Jesus

As mulheres são a alma de todas as intrigas.

Napoleão, citado por Roederer, Obras

Houve uma mulher na vida de Jesus.

Saulo-Paulo tinha uma concubina. Possivelmente inclusive teve várias ao
longo de sua vida, e talvez também uma esposa.

Sobre a primeira possuímos sua própria confissão: «Não temos direito de
levar conosco a uma irmã em qualidade de mulher, como os outros
apóstolos e os irmãos do Senhor e Cefas? Ou somente Bernabé e eu não
teremos direito a fazer uso disso?». (Cf. Paulo, I Epístola aos Coríntios, 9, 5-
6.)

Em seu Vulgata latina, que é o texto oficial da Igreja Católica, São
Jerônimo emprega o termo mulier, que designa à mulher carnal, à esposa.

Por outra parte, Clemente de Alexandria (Stromates, III, 6) declara que
Paulo tinha uma esposa, fundando seu argumento em uma passagem da
Epístola aos Filipenses: «Rogo à Evodia e ao Síntique que tenham os
mesmos sentimentos no Senhor. E a ti também fiel Syzygo, rogo que ajude a
essas, que lutaram muito pelo Evangelho comigo e com Clemente e com
outros meus colaboradores, cujos nomes estão no livro da vida». (Cf. Paulo,
Epístola aos Filipenses, 4, 2-3.)

A «fiel Syzygo» é a syzygie, termo grego que designa no vocabulário
gnóstico da época a associada feminina, e para cada eon metafísico seu
casal coeterna. E esta expressão é a prova de que Paulo teve antes por
Mestre um gnóstico, e neste caso tratou-se de Dositeo.
Para Renán, que se adere à teoria de Clemente de Alexandria, essa mulher
era Lídia, a vendedora de púrpura, originária da Tiatira, na Ásia Menor. O
fato de comercializar com púrpura supunha naquela época uma verdadeira
fortuna. Saulo-Paulo, neste caso, não teria feito mau negócio.

Por outra parte, o célebre exegeta protestante A. de Harnack sublinhou a
plausibilidade da hipótese emitida por alguns de que a Epístola aos Hebreus
teve por autor uma mulher. E se se tem em conta a tese sustentada faz
longo tempo por numerosos historiadores austro-alemães, segundo a qual o
personagem de Simão o Mago foi inventado para mascarar melhor a luta
sem piedade que enfrentou ao Simão-Pedro e Saulo-Paulo, não pode
esquecer a presença daquela mulher chamada Helena (em grego: radiante),
a quem o pseudo-Simão, o Mago, levou consigo de Tiro, centro do negócio
da púrpura no mundo antigo. A púrpura de Tiro era célebre, já que foi ali
onde se extraiu inicialmente do Murex trunculus (um molusco) a célebre
tintura que logo ficou reservado à aristocracia e aos soberanos. Pois bem,
esta púrpura evoca irremediavelmente à Lídia, que comercializava com ela,
e que necessariamente se achava em constante relação com a cidade de
Tiro, a que ia com freqüência. E tudo isto reforça o que Renan deduziu a
respeito.

Por último, sabe-se que a iconografia cristã utiliza elementos extraídos do
«bestiário» sagrado para designar aos quatro evangelistas: o leão, que se
atribui ao Marcos, a águia, ao João, o anjo, ao Mateus e o touro ao Lucas.
(Cf. Charbonneau-Lassay, Le Bestiaire du Christ, IV.)

Mas com bastante freqüência substitui-se o touro por um bezerro, porque o
bezerro é um touro jovem, ainda virgem, despojado de toda violência cega e
destrutiva, que se acha nele em potência. E no portal da Calenda da
catedral de Rouen figuram os quatro evangelistas, em representações
bastante esotéricas por certo, que demonstram que os Mestres da obra e os
pedreiros que as construíram tinham na Idade Média inspiradores secretos
que estavam perfeitamente à corrente das verdades históricas que a Igreja
acreditava ter escondido para sempre. Esses inspiradores foram os
templários, ao menos aqueles que constituíam no interior da Ordem do
Templo o misterioso cenáculo possuidor de uns ocultos que aos olhos de
Roma eram muito perigosos.

E nesse mesmo portal da Calenda da catedral de Rouen, entre as quatro
novas e estranhas representações dos evangelistas. Lucas aparece como
uma mulher com cabeça de vitela, ou como uma vitela com corpo de
mulher. Certo que parte dos Atos é obra de uma mulher, a misteriosa
companheira de Saulo-Paulo. É evidente aqui a alusão à Helena, prostituta
de um lupanar de Tiro, cidade da púrpura, e a que Simão, o Mago,
converteu em sua companheira. Com efeito, vitellus, em latim, significa um
jovem bezerro, e também uma carícia, própria das cortesãs daquela época.

Por outro lado, quando Saulo-Paulo dirige desde Corinto, onde recebeu
espontâneo amparo por parte do pró-cônsul Galión (Atos dos Apóstolos, 18,
12-17), sua Epístola aos Romanos, conclui assim sua missiva: «Saúdem os
da casa de Aristóbulo, saúdem Herodión, meu parente. Saúdem os da casa
de Narciso, que estão no Senhor». (Cf. Paulo, Epístola aos Romanos, 16, 10-
11.)

Mas quem são todos esses personagens misteriosos que não se esperava
encontrar entre as relações romanas de Saulo-Paulo, e que são o
suficientemente importantes para possuir uma «casa», termo sinônimo de
«séquito», de pequena «corte» privada? E, acima de tudo, quem é esse tal
Narciso?

Narciso é o Narcissus Claudii Libertus dos Anais de Tácito, liberto (como
indica seu nome) pelo imperador Claudio, de quem foi secretário, sobre
quem exerceu uma grande influência, enriqueceu-se escandalosamente,
provocou a queda e a execução da Messalina, logo se opôs às intrigas de
Agripina, segunda esposa de Claudio, em favor de seu filho Nero. Ao
advento deste último, no ano 54 de nossa era, foi exilado por ordem deste,
e, apesar da oposição de Nero, que lhe apreciava, como nos diz Tácito,
recebeu a ordem de abrir-lhes as veias.

Mas quando Saulo-Paulo redige sua Epístola aos Romanos, em Corinto, e
por conseguinte no ano 52, Narciso se acha ainda na cúpula de seu poder,
possui em Roma grandes propriedades e numerosos servidores e escravos.

Agora vem Aristóbulo e sua «casa». Trata-se, sem discussão possível, de
Aristóbulo III, filho de Herodes do Calcis e de Berenice, e portanto neto de
Herodias por esta última e bisneto de Herodes, o Grande, por parte de pai. É
um personagem importante. Ao advento de Nero lhe nomeou rei da
Pequena Armênia, logo, no ano 60, seis anos mais tarde, seu pequeno reino
crescerá graças à anexação de uma parte da Grande Armênia. Por último,
no ano 70, converter-se-á em rei do Calcis, como seu pai.

Aristóbulo III casou-se com Salomé II, filha de Herodes Filipo e de Herodias,
já viúva sem filhos de seu tio Herodes Filipo II. Desta segunda união Salomé
II terá três filhos: Herodión, o maior (aquele a quem Saulo-Paulo chama seu
«parente»), Agripa, o segundo, e Aristóbulo, o menor. Aristóbulo III e Salomé
II, protegidos e amigos de Nero, possuem em Roma uma suntuosa
propriedade e numerosos servidores e escravos.

Assim, em Corinto, protegido pelo pró-cônsul Galión, irmão de Séneca
(conselheiro e antigo preceptor de Nero César), Saulo-Paulo sabe já que em
Roma há cristãos em certas mansões de grandes personagens. O mesmo
acontecerá, por certo, mais adiante, no palácio imperial, sob Nero, como o
próprio Saulo-Paulo afirmará em sua Epístola aos Filipenses: «Eles saúdam
todos os Santos, e principalmente os da casa de César». (Cf. Paulo, Epístola
aos Filipenses, 4, 22.)

Entre estes últimos encontra-se já Actea, a liberta fiel, que foi a concubina
meigamente amada por Nero durante sua adolescência. (Cf. João
Crisóstomo.)
Mas como pode Saulo-Paulo dizer-se «parente de Herodión», o filho de
Aristóbulo III e de Salomé II? Pois simplesmente porque é primo de um e de
outro, ao ser bisneto de Herodes o Grande por parte das mulheres, e seu
sobrinho neto por parte dos homens. De maneira que o menino é seu
segundo primo. A árvore genealógica está aí para prová-lo (veja-se acima).

Isso significa que ao chegar à Roma Saulo-Paulo não contava só com
Afranio Burro, prefeito do pretorio, ex-preceptor de Nero, ou com Séneca
(irmão do pró-cônsul Galión), ex-preceptor do mesmo e seu conselheiro
político, para lhe favorecer em Roma de um regime privilegiado. Contava,
com efeito, com gente mais amealhada até, por serem familiares, com
Aristóbulo III, rei de Armênia, e Salomé II, sua esposa, e isto não era
qualquer coisa.

Mas como podia interessar-se esta última pelo cristianismo? Retrocedamos
vários anos e consultemos os evangelhos.

Pouco antes do descobrimento dos célebres manuscritos de Qumrán nas
bordas do mar Morto, exumaram-se fortuitamente uns manuscritos
igualmente valiosos; isto acontecia em Khenoboskion, no Alto o Egito, no
ano 1947. Entre eles se encontrava um Evangelho de Tomás, que não se
conhecia mas sim por entrevistas que dele tinham feito Clemente de
Alexandria e Orígenes, em princípio do século III.

De todo modo, não possuíamos os originais destes autores, mas somente
os conhecíamos através de traduções ulteriores, em manuscritos do século
V.

O manuscrito achado em Khenoboskion estava redigido em copto, e era do
século IV. Mas existiam fragmentos de um papiro que figurava entre os
descobertos em 1897 em Oxyrhynchus, no Médio Egito, e que não se pôde
atribuir a nenhum autor por estar muito incompleto. Esse texto, redigido em
grego, era de finais do século III, e continha uns versículos típicos, que não
se voltaram a encontrar até o Evangelho de Tomás, descoberto em
Khenoboskion em 1947. Pode, pois, tirar a conclusão de que o chamado
Evangelho de Tomás existia já no século III em sua redação completa.

Mas, dado que Clemente de Alexandria e Orígenes, que morreram no ano
220 o primeiro e no 254 o segundo, citam esse Evangelho de Tomás como
um texto muito antigo já em sua época, podemos admitir que sua redação
inicial deve situar-se, pelo menos, na segunda metade do século II, com
uma data em média que poderia fixar-se aos arredores dos anos 175-180.

Portanto, achamo-nos em presença de um texto que pode classificar-se
pouco depois daqueles outros citados também por Clemente da Alexandria
e Orígenes, o Evangelho dos Hebreus e o Evangelho dos Egípcios, que esses
dois autores consideravam como os mais antigos apócrifos conhecidos.

Vejamos agora o canônico Evangelho de Marcos. Jesus acaba de expirar na
cruz: «Havia também umas mulheres que olhavam de longe. Entre elas
estavam Maria de Magdala, Maria, mãe de Santiago, o Menor e de José, e
Salomé, as quais, quando ele estava na Galiléia, seguiam-lhe e serviam-lhe,
e outras muitas que subiram com ele à Jerusalém». (Marcos, 15, 40-41.)

Lucas precisa que essas mulheres: «... assistiam-lhe com seus bens»
(Lucas, 8, 3), quer dizer, com seu dinheiro, posto que tinham abandonado
suas casas da Galiléia. Não se tratava já, pois, de simples hospitalidade.

Mas eis aqui que, no Evangelho de Tomás, encontramos de novo essa
Salomé, e no papel que Paulo dava a sua companheira na Epístola aos
Coríntios: «Salomé disse: "E você quem é, homem? De quem saiu para
haver-se metido em minha cama e ter comido em minha mesa!...". E Jesus
lhe disse: "Eu sou aquele que se produziu daquele que é seu igual. Deram-
me o que é de meu Pai". E Salomé respondeu: "Sou sua discípula.». (Cf.
Evangelho de Tomás, LXV.)

Dessas palavras, do tom adotado pela tal Salomé, desprende-se que
gozava de uma situação social materialmente superior a de Jesus.

O termo grego que em Marcos, 15, 40, traduziram por servir, significa
também assistir, como em Lucas, 8, 10.

De maneira que Jesus, se não estava casado, como obrigava a Lei judia a
todo judeu de raça, e quando mais tarde aos vinte e dois anos, teve, em
troca, uma conselheira, que foi deste modo sua concubina, já que lhe
ofereceu sua cama e sua mesa.

Não sintamos saudades. Na História foram numerosas as mulheres que
ajudaram economicamente ao homem que amavam ou que admiravam, e
às vezes associaram suas ambições às próprias no âmbito político. O
exemplo de Corisanda de Gramont, que ajudou ao Enrique de Navarra em
sua conquista da coroa da França está na mente de todos.

Essa Salomé encontraremos também no Evangelho dos Egípcios, e os
versículos sublinharão do que se trata no texto citado antes, e na alusão ao
Jesus deitando na cama de Salomé, é, efetivamente, de sexualidade: «E
Maria-Salomé perguntou ao Senhor: "Mestre, quando acabará o reino da
Morte?". E Jesus respondeu: "Quando vocês, mulheres, não concebam mais
filhos... Quando tiverem deposto o vestido de vergonha e de ignomínia,
quando os dois se convertam em um, quando o varão e a fêmea estejam
unidos, quando já não houver nem homem nem mulher, então terminará o
reino da Morte...". E Salomé prosseguiu: "Então tenho feito bem, Mestre, de
não conceber?". E Jesus respondeu: "Come de todos os frutos, mas "do da
amargura (a maternidade) não coma".». (Cf. Evangelho dos Egípcios.)

Este texto, que desmente categoricamente a encíclica Humanae vitae do
Papa Paulo VI, cita-o integralmente Clemente de Alexandria em seus
Stromates (III, IX, 66) e Clemente de Roma (morto no ano 97), em seu //
Epístola à Igreja de Corinto. Portanto é evidente que se Clemente de Roma
cita esse texto no século I, é que já forma parte do corpus evangelicum
daquela época, e não faz mais de sessenta anos que morreu Jesus. Quer
dizer, que aqui estamos nas mesmas fontes do cristianismo.

Mais adiante, no mesmo texto, Jesus responderá à Salomé: «vim destruir a
obra da mulher».

Como já precisamos em nossa obra precedente, o mundo antigo conhecia
perfeitamente os anticoncepcionais mecânicos, geralmente utilizados pelas
mulheres de costumes livres: bailarinas, cortesãs, músicas, etcétera.

O mesmo acontecia com os procedimentos de aborto, e o uso das planta
abortivas, como a arruda, a artemísia, o absinto e, sobretudo, a temível
sabina, não tinha nada em secreto para as parteiras daquela época.

Quer dizer, que a decisão de Salomé de não ter filhos não tinha em si nada
de extraordinário.

Quem era exatamente essa Salomé? Uma mulher rica, isso é indiscutível,
já que podia permitir-se ajudar economicamente à Jesus. Mas era
messianista convencida, seguidora do movimento zelote, ou simplesmente
admiradora de um Jesus que era um prestigioso mago? É difícil dizê-lo com
certeza. Todavia, o fato de que se queria ocultar ulteriormente que era a
concubina de Jesus, e que este tivesse tirado dela o máximo que um homem
pode tirar de uma mulher, hospitalidade e dinheiro, sem omitir outros
privilégios mais íntimos, temos como prova o silêncio absoluto de Eusébio
da Cesaréia a respeito dela. Este corre um denso véu sobre todas as
mulheres citadas por Lucas como seguidoras e criadas de Jesus (Lucas, 8,
3). Procuraríamos em vão em sua História eclesiástica qualquer menção de
Maria de Magdala, de Juana, mulher de Chuza, intendente de Herodes, de
Susana, etc. Adivinha-se que esse verdadeiro harém que acompanha Jesus
escandaliza ao chamado Eusébio! Menciona simplesmente, sob o reinado de
Herodes, o Grande (ou seja no ano 6 antes de nossa era): «Salomé, irmã de
Herodes, esposa de Alexas». (Cf. Eugenio da Cesaréia, História eclesiástica.
I, VIII, 13.) Esta, como se sabe, não lhe incomodava!

Porque todas as mulheres que escoltavam Jesus não estavam sozinhas
com ele. Estavam seus irmãos e seus ajudantes, e, à exceção de Simão-
Pedro, em nenhum caso tratava-se de suas esposas. Todo esse estado maior
misto constituía uma curiosa «família», e o comunismo ao melhor não se
limitava só aos bens. Algum dia o demonstraremos!

E provavelmente é por este motivo que os padres da Igreja citam sempre
Herodias, mãe de Salomé, como a bailarina que exigiu a cabeça do Batista,
e jamais Salomé II, quando, segundo os evangelhos canônicos, é Salomé II a
que dança, e não sua mãe (Mateus, 14, 6 e 12; Marcos, 6, 22 e 29), e a
seguir a jovem entrega a cabeça à Herodias. Como se vê, a partir do século
IV tentaram fazer desaparecer Salomé II da História. Há silêncios muito
reveladores.
Para concluir, é evidente que Salomé II, mulher rica conforme parece, não
foi somente a discípula de Jesus, não só lhe seguiu e lhe serve, como
reconhece Marcos, desde a Galiléia até a Judéia, mas sim também cedeu-lhe
sua cama e sua mesa, e esse fato tão humano nos revela isso o Evangelho
de Tomás. Agora compreendemos os motivos de seu desaparecimento.

É de supor que no século II isto não constituía escândalo algum, já que
estavam melhor documentados em Jesus da História que na atualidade, e
esse era o episódio que os cristãos da grande Igreja consideravam como
justificativa da existência de uma concubina junto a seus clérigos, dos
séculos I ao V.

Por isso, como nos conta Lucas (23, 55), junto com «as mulheres que
vieram da Galiléia com Jesus», Salomé, coração fiel, acompanhará Jesus até
a cruz, justificando assim a palavra de Salomão:

«O amor cobre todas as faltas». (Provérbios, 10, 12.)

Permanece em pé um enigma, o da identidade da mulher que verte sobre
os pés de Jesus um perfume de elevado preço que continha um jarro de
alabastro, e que seca a seguir com seus cabelos, depois de havê-los
«cobertos de beijos» (Lucas, 7, 38), coisa que evidencia, indiscutivelmente,
um amor apaixonado, senão, nem as palavras nem os gestos têm sentido.

Não podia tratar-se, contrariamente à lenda que se alimentou de forma
intencionada, de Maria de Magdala, porque já revelamos no volume
precedente sua verdadeira personalidade.

Tampouco podia ser Salomé, porque o tom desta é o de uma mulher altiva,
rica, acostumada a mandar e a ser obedecida. Isso é o que se desprende
das frases que põe em sua boca o Evangelho de Tomás, versículo 65:
«Quem é você, homem? De quem saiu, para haver subido a minha cama e
ter comido em minha mesa?». Sobre esta outra mulher, os evangelhos
canônicos nos dão algumas precisões:

Mateus diz dela: «uma mulher» (26, 6-7).

Marcos diz o mesmo: «uma mulher» (14, 3).

João declara que se chama «Maria» (11, 2, e 12, 3).

Lucas diz dela: «uma mulher de má vida» (7, 37). E a expressão inicial no
manuscrito grego diz: «uma pecadora da cidade».

Evidentemente, o Evangelho dos Egípcios e a Pistis Sophia nomeiam
Salomé: «Maria-Salomé». Mas não é ela a mulher do jarro de alabastro.

A Maria que, segundo João (12, 3), verte o precioso perfume é a irmã de
Marta e de Lázaro. Ambas vivem em Betânia, modesto povo situado nos
subúrbios de Jerusalém, e próximo demonstraremos que se trata de uma
irmã de Jesus.
Nada disso evoca à rica Salomé. Porque, observemo-lo de passagem, a Lei
judia e os costumes romanos da época permitiam que uma mulher
dispusesse livremente de sua fortuna se era a única herdeira de seu pai. O
mesmo acontecia com a renda que lhe deviam seus irmãos se, em caso de
existir, herdaram de seu pai. O mesmo acontecia também se era viúva e
sem filhos. E este último caso era o de Salomé II, viúva em primeiras
núpcias de seu tio Herodes Filipo II.

Mas quem era a Salomé que assistiu ao Jesus?

Agora temos a certeza de que se tratava de uma mulher de elevada classe
social. Por outra parte, a obra intitulada Pistis Sophia a chama Maria-
Salomé. Mas jamais, no judaísmo antigo, deu-se dois nomes como no
Ocidente (José Luis, Maria Teresa, etc.). E Maria se diz em hebreu Myrhiam,
quer dizer, princesa, quão mesmo em siríaco. Assim, Maria-Salomé não é
outra que a «princesa Salomé». Parece que tocamos «quente».

Além disso, conhecemos os nomes de algumas das mulheres que seguiam
Jesus e aos doze «lhes assistindo com seus bens» (Lucas, 8, 3). Havia uma
chamada Susana, logo uma tal Juana (em hebreu Iochan-nah), e que é
«esposa de Chuza, intendente de Herodes» (trata-se de Herodes Agripa).

E imediatamente nos ocorre uma pergunta: como pôde abandonar esta
mulher a seu marido para seguir a esse autêntico «maquis» ambulante que
Jesus arrasta detrás de si desde a Galiléia, sem que Chuza, intendente de
Herodes, e portanto, alto funcionário do tetrarca, fizesse-a voltar para casa,
de bom grado ou por força?

A resposta é singela: sua esposa é a donzela Salomé, filha de Herodias e
de Herodes Filipo, nora e sobrinha de Herodes Antipas, viúva de Herodes
Filipo II. E não se atreve a opor-se ao que constitui o serviço em si de sua
esposa. E a princesa Salomé II é a Myrhiam Salomé da Pistis Sophia, a que
cedeu sua cama e sua mesa ao Jesus. Enviuvou muito antes do ano 33 de
nossa era, conforme nos diz Michaud em seu Biographie Universelle (tomo
37, página 537), e acrescenta pertinentemente: «Devia ser muito jovem
ainda nessa época». Coisa indubitável.

E uma vez mais, neste problema histórico, podemos concluir que a
realidade supera à ficção: a neta de Herodes o Grande, que fez crucificar ao
Ezequias, avô de Jesus, convertida em amiga deste último. Coisa que não
pôde a não ser agravar a má disposição de Herodes Antipas, novo tetrarca
da Galiléia, para o tal Jesus, ao ser o ciúmes coisa bastante humana, quanto
mais que tal Jesus acrescenta o fato de ser pretendente, ou apresentado
como candidato ao trono de Israel.

O que parece corroborar certos laços, tanto de família como de interesses,
entre os membros da dinastia herodiana e os da descendência davídica,
cujos representantes autênticos no início de nossa era São Judas de Gamala,
e logo seu filho maior Jesus, é o fato de que Flavio Josefo nos diga que,
durante a estadia de Arquelau em Roma, pouco depois da morte de Herodes
o Grande, seu pai, e de quem era herdeiro, os judeus entraram em
insurreição, e que, entre os rebeldes: «Havia parentes de Arquelau, aos
quais César (o imperador Augusto) fez castigar por ter combatido contra seu
parente e rei». (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVII, x, 297; Guerra
dos judeus, II, I, manuscrito eslavo.)

Entre esses rebeldes que pertenciam à família dos Herodes se contava, em
especial, Achiab, primo de Herodes, o Grande, tio de Arquelau e tio avô de
Salomé II.

Agora bem, Daniel-Rops, em Jesus em seu tempo, precisa-nos que a
insurreição política montada contra Arquelau (além das de puro banditismo,
e que eram causadas deste modo por bandas diversas), estava dirigida pelo
Judas da Gamala, chamado também Judas da Galiléia (o pai de Jesus).

E se membros da família herodiana, familiares de Arquelau, como seu tio
Achiab, montaram uma insurreição, não podia tratar-se mas sim da política
de Judas da Galiléia, e nenhuma outra de puro direito comum, por bandidos
anônimos.

É indubitavelmente nessa aliança com o partido dos «filhos de David» de
elementos da família de Arquelau onde se encontra a Gênesis das relações
posteriores entre o Jesus, «filho de David», como nos dizem os evangelhos,
e Salomé II, sobrinha neta de Achiab, que entrou em insurreição contra
Arquelau com outros vários tios desta, no ano 5 antes de nossa era, nas
classes dos insurretos judeus dirigidos pelo Judas da Galiléia.

Se se pesarem exatamente os termos da terrível frase do Evangelho de
Tomás, parece que Salomé se pergunta pelos motivos que puderam incitá-la
a lhe oferecer sua cama e sua mesa ao Jesus. Não obstante, embora pareça
referir-se ao passado, declara que continuará sendo sua discípula. E então
podemos nos perguntar por que esta mulher rica, de alto berço, ociosa (sua
mãe Herodias seguiu no exílio ao Vienne, nas Galias, a seu segundo marido,
Herodes Antipas, padrasto de Salomé II, e ali achariam uma triste morte no
ano 39), quereria dar suporte a uma causa tão arriscada, que já havia
ocorrido à vida de seu tio Achiab e à vários parentes próximos trinta anos
antes.

O motivo nos parece muito singelo.

Salomé II, como todas as mulheres da dinastia dos Herodes,
provavelmente foi uma ambiciosa, sedenta de poder e de honras. A história
desta dinastia está aí para dar fé. E o fato de que constituíra a tentação
vivente a que sucumbiu Jesus, tanto por sua beleza, sua riqueza, como por
sua classe, dá-nos a prova o qualificativo que lhe aplica um evangelho
muito antigo: «... e Salomé a sedutora...» (cf. Evangelho do Bartolomé, 2.°
fragmento). Está bastante claro.

Depois de ter reinado modestamente sobre a tetrarquia de seu tio Herodes
Filipo, que compreendia a Gaulanitide, a Traconitide e a Batanea, e logo
sobre a da Galiléia e Perea, seu tio Herodes Agripa I, irmão de Herodias, sua
mãe, converter-se-á rei de toda Judéia ao advento de Claudio César, no ano
41 de nossa era. Assim este terminou obtendo a totalidade do antigo reino
de Herodes, o Grande.

E se olharmos alguns anos atrás, encontramos em Israel dois pretendentes
à coroa.

Em primeiro lugar está Jesus. E esta pretensão à realeza a afirmou
claramente durante toda a primeira parte de sua vida. Desenganada à
alusão a um reino «que não é deste mundo» não a formulará até muito mais
tarde, depois de ter sido apressado, e estas são as passagens dos
evangelhos onde se podem encontrar os rastros dessa pretensão de reinar;
não há nenhum equívoco nos seguintes versículos: Lucas, 1, 33; Mateus, 17,
24-26; Mateus, 2, 2; João, 18, 33-34; João, 18, 37; Mateus, 28, 11; Marcos,
15, 2; Lucas, 23, 3; Marcos, 15, 9-12; Mateus, 26, 17-29; Marcos, 15, 18;
João, 19, 19; Mateus, 27, 37; Marcos, 15, 26; Marcos, 15, 32; João, 19, 21;
João, 18, 36.

Houve, não obstante, uma época em que Jesus pôde haver-se convertido
em rei, se não de Israel em sua totalidade, ao menos uma de suas
tetrarquias. Porque em João descobrimos esta reveladora passagem: «E
Jesus, conhecendo que vieram para lhe arrebatar e fazer-lhe rei, retirou-se
outra vez ao monte, ele sozinho». (João, 6, 15.)

O porquê deste afastamento reside simplesmente no fato de que Jesus
recusava ser rei de uma população tão mesclada, onde judeus e gregos
estavam estreitamente misturados, gente sem ofício nem benefício, mais ou
menos fora da lei. Além disso, queria ser rei de todo o Israel: «Jerusalém,
Jerusalém, que matas aos profetas e apedreja aos que lhe são enviados!
Quantas vezes quis reunir a seus filhos à maneira que a galinha reúne a
seus frangos sob as asas, e não quis!». (Mateus, 23, 37.)

Daí suas relações, que causam escândalo na Judéia, com o território
impuro de Samaria, reino rival da Judéia, com seus cultos particulares.
Porque se conseguia essa reunificação do antigo reino de David e de
Salomão, cindido em duas facções rivais desde que morreu este último,
poderia pensar em devolver aos romanos ao mar.

Mas além de suas esperanças pessoais. Jesus tinha um aliado que ele
ignorava, e esse aliado ignorado era o imperador Tibério em pessoa.

Com efeito, existe um apócrifo copto que o sábio Orígenes considerava
como o mais antigo evangelho apócrifo com o Evangelho dos Egípcios, e é o
Evangelho dos Doze Apóstolos, e ambos provavelmente foram anteriores ao
de Lucas, quem possivelmente também foi seu autor.

E esse Evangelho dos Doze Apóstolos nos contribui uma curiosa revelação.
Conta-se que Tibério recebeu de Herodes Antipas uma denúncia como
deve ser contra seu irmão Herodes Filipo, marido de Herodias e pai de
Salomé II. Nela acusava a seu irmão de ter montado uma conspiração
contra a autoridade romana. Tibério ordenou ao Herodes Antipas que se
apoderasse de todo o território governado pelo Herodes Filipo, e de todos
seus bens, não lhe deixando a não ser a vida e a de sua esposa e sua filha.
Não obstante, esta expropriação fez-se em proveito de Roma, que a seguir
pensava dispor a seu desejo da tetrarquia de Herodes Filipo. Na mente de
Tibério, pelo que se tratava não era de acrescentar o poder de Herodes
Antipas, fazendo dele um verdadeiro rei da Judéia, como o fora Herodes, o
Grande. E para equilibrar melhor as forças ideológicas presentes, e a fim de
dividir para reinar melhor, o ardiloso Tibério tinha imaginado entregar a
tetrarquia de Herodes Filipo ao Jesus, «filho de David».

Mas Herodes Antipas, ao ver frustradas suas esperanças e embargado
pela raiva, comprou a preço de ouro a cumplicidade de Cario, que fora
enviado pelo imperador, e este entregou ao Tibério um relatório
extremamente desfavorável sobre Jesus. Deste episódio nasceu a
hostilidade entre Pilatos e Herodes Antipas, já que Pilatos apoiara o projeto
do imperador, hostilidade que não desapareceria até que enviou ao Jesus,
prisioneiro, a que comparecesse ante Herodes Antipas, tal como contam os
evangelhos: «Naquele dia se fizeram amigos um do outro, Herodes e Pilatos,
pois antes eram inimigos». (Lucas, 23, 12.)

Assim esta hostilidade não tinha já razão de ser. O episódio aparece
reforçado por outra passagem dos evangelhos: «Naquela hora lhe
aproximaram alguns fariseus, lhe dizendo: "Sai e vai-se daqui, porque
Herodes quer matá-lo".» (Lucas, 13, 31.)

É evidente que se o tirano idumeu quis assassinar Jesus, não foi pelos
discursos nos quais aconselhava este às pessoas que se amassem uns aos
outros! Foi porque o tal Jesus punha suas ambições em perigo, e para isso
era preciso que fosse pretendente ao trono de Israel, como ele. Coisa que
acentuava o fato de que Herodes não ignorava que numerosos partidários
de Jesus queriam proclamá-lo rei: «E Jesus, conhecendo que vieram para lhe
arrebatar e fazer-lhe rei, retirou-se de novo ao monte». (João, 6, 15.)



De todo modo, o texto acrescenta depois: «...ele sozinho». Este retiro não
significava possivelmente um rechaço, mas sim Jesus, antes de aceitar,
queria refletir, e não podia fazê-lo a não ser em completa solidão.

Seja o que for, ante o relatório desfavorável de Cario, comprado pelo
Herodes Antipas, Tibério renunciou a seus projetos em favor de Jesus.

Assim, encontramo-nos em presença de dois pretendentes ao trono de
Israel: Jesus, representante da filiação real chamada «davídica», e Herodes
Antipas, representante da filiação real chamada «Iduméia», por parte de seu
pai Herodes, o Grande.
Ficava ainda a filiação asmonea, chamada dos Macabeos, que através da
Mariana, esposa de Herodes, o Grande, desembocava nessa época no
Herodes rei do Calcis e em seu filho Aristóbulo III, futuro marido de Salomé
II. Mas Herodes do Calcis, rei de tal província, não pretendia ao trono de
Israel. Não ficavam, pois, a não ser Jesus e Herodes Antipas.

E é aqui onde voltamos a encontrar Salomé II. Não é difícil compreender
que seus sentimentos para Herodes Antipas, o fratricida que despojou a seu
irmão Herodes Filipo de todos seus bens, que fez de sua mãe Herodias uma
cativa adúltera e consentida, e a despojou ela mesma de uma herança
quase real, não podiam ser mas sim de ódio. Além disso, casou-a muito
jovem, e provavelmente sem seu consentimento, como era costume nessas
regiões e nessas épocas, com seu tio Herodes Filipo II, filho de Herodes, o
Grande, e meio-irmão de Herodes Antipas. E isso possivelmente não foi de
seu gosto.

Por outra parte, Salomé II recordava a terrível morte de seu tio Achiab e de
outros familiares deles, crucificados por unirem-se ao partido davídico cujo
chefe era Judas da Gamala, pai de Jesus, e isso por horror aos crimes de
Herodes, o Grande, horror transladado a seu filho preferido, Arquelau.

E possivelmente tudo isso ditou a eleição de Salomé em favor de Jesus.
Este sabia, além disso, que o povo judeu odiava violentamente à dinastia
dos Herodes, que odiava do mesmo modo a lembrança dos reis-sacerdotes
asmoneos, os macabeos, e que, em grande proporção, era partidário de
Jesus, quem realçava ainda mais seu prestígio real com seus dotes de mago
e taumaturgo.

Conhecia-o bem? É possível. Depois de ser seqüestrada por Herodes
Antipas, ela teve que viver necessariamente na Galiléia, nas bordas do lago
Genezaret, na cidade e no palácio de Tiberíades, construídos pelo Herodes
Antipas em honra ao Tibério. Continuando, depois de seu matrimônio com
seu tio Herodes Filipo II, viveu em um palácio pessoal, no vale de Genezaret,
em hebreu: «Ginethsaar», o «jardim dos príncipes». Neste afortunado vale,
que deve seu nome tanto a sua riqueza e a sua beleza como aos nobres de
alta classe que fizeram construir ali suas luxuosas mansões, crescem a
laranjeira, o limoeiro, a palmeira, o datilero, todas as árvores frutíferas, a
vinha, e essa vegetação subtropical alberga animais reais, como a águia e o
leopardo. É um verdadeiro paraíso.

Este marido, que é ao mesmo tempo um tio de muito mais idade, deixará
viúva muito em breve, e sem filhos, quer dizer, totalmente livre. Seu tio e
padrasto Herodes Antipas e sua mãe Herodias irão viver um terrível exílio
nas ribeiras geladas e nas brumas de Ródano, em Vienne. Ali morrerão
muito em breve. E através da mãe de seu marido Herodes Filipo II, sua
própria sogra, quer dizer, Cleópatra de Jerusalém, entra em relações
familiares com a estirpe davídica, a que esta pertencia. E aqui temos o laço
inicial entre Salomé II e Jesus.
Quem introduziu o cristianismo nos meios servis da alta aristocracia
romana? Quem, a não ser Salomé?

A esta pergunta tão importante, responderemos que sim e que não.

É mais que provável que Salomé escolhesse entre os partidários do
zelotismo e de Jesus àqueles de sua casa que se propunha levar consigo à
Roma quando teve seu lugar segundo matrimônio. E isto afetava não só à
servidão da Galiléia, mas também a da Judéia. Porque indubitavelmente
possuía também uma casa em Jerusalém, a de seu primeiro marido Herodes
Filipo II, igual a seu padrasto Herodes Antipas.

Assim, esses servidores com as mesmas idéias que sua ama seriam os
que divulgariam em Roma as teorias da nova seita, melhor ou pior
assimiladas, e cada dia mais mescladas com prodígios maravilhosos
relacionados com Jesus. Isso é seguro.

Com efeito, quando Saulo-Paulo chega à Roma e entra imediatamente em
relação com os ambientes judeus, estes lhe fazem saber sem rodeios que o
ignoram tudo sobre a seita herética e cismática que em outras partes
transtorna às sinagogas: «Nós não recebemos da Judéia nenhuma carta a
seu respeito, nem nenhum dos irmãos que chegaram aqui nos comunicou
ou falou de si nada mal. Mas quereríamos ouvir de sua boca o que você
pensa, porque desta seita nos é conhecido que em todas partes a
contradiz». (Cf. Atos dos Apóstolos, 28, 21.)

E não obstante, apesar desta ignorância da plebe judia, há cristãos em
Roma, na casa de Narciso e na de Aristóbulo III. É fácil explicar esta
aparente contradição.

Antigamente, na velha França, os servidores das grandes famílias, igual a
seus amos, não freqüentavam a não ser a seus iguais. Bem calçados,
rodeados em suas ricas libreas com as cores da «casa» dos citados amos,
guarda-florestal, monteros, palafreneros, choferes, etc., desprezavam aos
humildes camponeses vestidos com bastolino, calçados com tamancos de
madeira embutidos de feno ou de palha, e mais ou menos cuidados. O
intendente se casava com a senhorita de companhia, o primeiro montero
com a costureira e o palafrenero com uma garçonete. Quando tinham lugar
as grandes caçadas de inverno, entre um castelo e outro se estabeleciam
relações mais extensas com a servidão das outras famílias. Durante uns
breves dias se ampliava o círculo de relações. Mas continuavam ignorando e
desprezando aos servis camponeses, imitando nisto à seus amos.

O mesmo acontecia na Roma antiga, e os convites a passar períodos mais
ou menos longos nas ricas «vilas» do Latium ou da Companhia, nas bordas
dos Mare Tyrrhenum ou do Mare Adriaticum punham à servidão das grandes
famílias em contato mútuo às vezes prolongado. Ali se produzia o que Celso
descreveu tão bem: «O mesmo acontece no seio das famílias [...]
Surpreendem especialmente aos meninos da casa e às mulheres, que não
têm mais julgamento que eles mesmos, e começam a lhes relatar
maravilhas». (Cf. Celso, Discurso da Verdade, 37.)

Pois bem, Salomé II é de herança puramente Iduméia, quer dizer, que é
uma árabe. Este é um detalhe que o leitor profano esquece muito
freqüentemente. E a mulher árabe está intimamente tomada de fáceis
crenças no sobrenatural, no maravilhoso. Ainda é assim em nossos dias.
Vejamos alguns testemunhos indiscutíveis a este respeito:

«O grande mal que causa estragos no povo marroquino é a ignorância. E
esta ignorância a alimentam os talebs, quer dizer os bruxos. São os amos de
toda a população; dominam-na. Discutem, pretendem conhecer todos os
segredos da terra e do céu, e mantêm uma atitude altiva para aqueles que
vão consultar-lhes. Quanto mais humildes são estes, mais altivos se
mostram aqueles... O taleb, quer dizer, o bruxo, é rei...» (Cf. Henriette
Willette, Superstitions et diableries árabes, Fasquelle édit., Paris, 1931.)

«As mulheres, para impor sua influência, recorrem à magia. Não sem
temor. As práticas malditas podem ser denunciadas pelos gênios, os lares e
os espíritos, que abundam nas casas [...] Com o fim de obter do céu uma
aliança terrível, as mulheres recorrem à bruxa. Que não a obterá com a
água da lua! Na noite de Achura, a festa dos mortos, a amante sombria
coloca um prato de barro cheio de água sobre uma tumba recentemente
aberta, e dirige a seguinte invocação...» (Cf. Maurice Privat, Vênus au Maroc,
Paris, 1934.)

«Ela então desenterra um cadáver recentemente morto, senta-o entre
suas pernas, e agarrando as mãos do morto entre as suas faz rodar cuscus
umedecido com água de lua. Este filtro, comido por um amante frívolo, fará
que habite nele todo amor, exceto para a mulher que o tenha incorporado
em seu alimento. Um marido malvado e rabugento se tornará mudo como
um morto. Um marido ciumento estará cego a todas as faltas...» (Cf. Dr.
Yvonne Légey, Essai de folklore marocain.)

«A Arábia preislâmica está constituída quase na mesma forma que
encontrará o Islã e que codificará o Corão. A religião admitia já a crença em
um só deus, Alá, o único ao que se invocava em caso de perigo, mas tinha
coadjudantes, se lhes pode dizer assim, toda uma tropa de deuses locais ou
importados, cujos ídolos enchiam o templo de Meca... Os costumes eram
dissolutos, a música, a dança e o consumo de licores alcoólicos constituíam
as principais ocupações do povo e seus dirigentes, e a magia reinava como
uma temível senhora...» (Cf. Rene Pottier, Initiation á la médecine et á la
magie em Islã, Paris, 1939.)

Quer dizer que, no século I de nossa era, os prestígios mágicos e as curas
obtidas por um conhecimento secreto da medicina, tais como os operou
Jesus no curso de sua vida, jamais tiveram nada de surpreendente para
Salomé II. Esses eram espetáculos comuns naquelas regiões, e judeus e
árabes tinham ante eles a mesma reação, despojada de toda surpresa.
Também deviam acreditar firmemente na veracidade de toda a montagem
sobre a pseudo-ressurreição. Ela também esperava seu famoso «retorno». O
mesmo tinha precisado: «Quando virem todas estas coisas, entendam que o
Filho do Homem está perto, às portas. Na verdade lhes digo que não
passará esta geração antes que tudo isto aconteça». (Mateus, 24, 33-34;
Marcos, 13, 30; Lucas, 21, 32.)

Esta geração passou, e mais de vinte e quatro gerações mais passaram
por sua vez, e não aconteceu nada, e menos ainda sua volta sobre as
nuvens do céu. Mas continua havendo fiéis que esperam ainda essa «volta»,
assim por que atirar a pedra à Salomé? Esta foi uma mulher de sua época,
ingênua, supersticiosa, que provavelmente amou durante um tempo ao
prodigioso mago que assombrava às multidões. Suas esperanças e suas
ambições coincidiam com tudo isto. E também seu rancor para Herodes,
que tinham despojado ou permitido despojar de todos seus bens a seus
familiares e a ela mesma.

Tudo isso justifica a atitude e o comportamento desta mulher. Suas
servidores e servidoras fizeram o resto. Mas se for evidente que, como
confiou em privado ao Papa Pio XI, Simão-Pedro «não pôs jamais os pés em
Roma...», possivelmente fora Salomé II, sem saber, o primeiro apóstolo
através do qual penetrou ali o cristianismo.

E é bastante divertido observar que a primeira mensagem da nova religião
foi introduzida na cidade que deveria converter-se na capital da
Cristandade, por uma dessas mulheres às quais Jesus se negou a confiar os
famosos «poderes» apostólicos. Como disse Oscar Wilde, «o sábio se
contradiz a si mesmo». Quanto à lenda que a faz morrer em um lago gelado,
decapitada pelo gelo que se fecha bruscamente em torno de seu pescoço,
foi elaborada por volta do ano 1325 por Nicéforo Callisto, historiador grego,
para dar corpo à rubrica que lhe consagra, mas nenhum historiador católico
moderno toma a sério, como é lógico.

Fica um ponto por elucidar, e é o de seu comportamento depois da
detenção de Jesus.

Dada sua posição social, segura que ocupava em Jerusalém a rica mansão
de seu defunto esposo Herodes Filipo (que por sua vez era seu tio), e esta
mansão, sem ser tão suntuosa como o palácio de Herodes (onde residia na
semana pascal Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e Perea, tio dele), era
evidentemente digna da fortuna do desaparecido Herodes Filipo.

Sabemos que assistiu à execução de Jesus com as outras mulheres do
séquito deste (Marcos, 15, 40). Mas não tentou nada para salvar àquele que
admirava e tinha assistido e acolhido, de todas as maneiras possíveis, desde
fazia vários anos? Parece que sim.
Em primeiro lugar, é evidente que não podia projetar uma evasão apoiada
em uma ação armada. Naquela época do ano religioso, em plena semana de
Páscoa judia, a guarnição romana estava ainda mais dotada que de
costume. A cidadela Antonia estava cheia de veteranos da coorte, e
deveriam estabelecer-se também acampamentos secundários de centúrias
legionários chegados como reforço. O grupo zelote de Jesus fora derrotado
no combate do Monte das Oliveiras, ao redor dos domínios de lerahmeel,
por cinco centúrias da coorte, e não lhe podia fazer levantar de novo em
armas para dar o golpe liberador. Além disso, se a princesa Salomé era
objeto de considerações por parte dos ocupantes romanos, isto não
chegaria até o extremo de lhe tolerar que desempenhasse um papel em
uma conspiração a mão armada.

Quão único podia fazer era, pois, intervir. E é o que acreditam que fez.
Este episódio foi mascarado voluntariamente, a fim de apagar uma vez mais
a existência de Salomé e sua importância na vida de Jesus. E para isso
chegaram inclusive a imaginar o sonho da esposa de Pilatos. E assim, em
Mateus lemos: «Enquanto [Pilatos] estava sentado no tribunal, mandou-lhe
um recado sua mulher, dizendo: "Não te coloques com esse justo, pois
padeci muito hoje em sonhos por causa dele".». (Mateus, 27, 19.)*

*[Observe-se que Marcos, Lucas e João ignoram esta intervenção da esposa
do procurador. Seguramente procede da intenção dos orientais do século IV
de santificar, por adulação, o procurador Pilatos. Coisa que, por certo, teve
lugar.]

Visivelmente se montou esta frase perseguindo alguma finalidade
concreta. É absolutamente impossível que a esposa de Pilatos empregasse
um termo especificamente hebreu: «... esse justo», em hebreu «conforme
ao desejo e de ave».

As Acta Pilati, apócrifo copto do século IV, sobre uma redação dos Atos de
Aneas tirados de textos judaicos da época e que recebem também o nome
de Evangelho de Nicodemo, contam-nos um episódio parecido: «Pilatos
chamou, pois, a todos os judeus, e disse-lhes:

"Sabem que minha esposa é uma pessoa que acredita em Deus e que se
inclina para o lado dos judeus com vós". Eles disseram: "Sabemos". Pilatos
disse: "Vejam que minha esposa me enviou recado, dizendo: 'Afaste-se
desse homem justo. Sofri muito por causa dele esta noite, em sonhos'." Os
judeus responderam e disseram ao Pilatos: "Não lhe dissemos já acaso que
é um mago? Enviou um sonho à sua mulher".». (Cf. Acta Pilati, II.)

O termo com o qual a designam tenderia a situar à esposa do procurador
entre os partidários, os «temerosos de Deus». Era um fato conhecido que as
mulheres da alta aristocracia romana gostavam de freqüentar o judaísmo. A
gente culta já não experimentava satisfação com o politeísmo romano, que
de fato não era já a não ser uma angelologia deformada. Basta relendo ao
Juvenal: «que haja em alguma parte uns espíritos, e um reino subterrâneo, e
a vara de Caronte, e rãs negras na lacuna Estigia, e que uma só barco possa
bastar para fazer passar pela água a tantos milhares de mortos é algo que
já não se acreditam nem os meninos! Exceto os que ainda vão
engatinhando». (Cf. Juvenal, Sátiras, II, 149.)

Por conseguinte, não há nenhum obstáculo para que a esposa de Pilatos
fosse seguidora.

Não obstante, a gente pode expor algumas perguntas. Antes de mais nada,
estava casada com Pilatos? Não sabemos nada. E em caso afirmativo, esta
esposa se achava com ele na Judéia? É duvidoso. Porque a lei Oppia, muito
antiga em Roma, proibia aos altos funcionários romanos levar consigo suas
mulheres às províncias onde governavam. Um século antes de nossa era,
um senado-consultor atenuara este ostracismo, mas a lex Oppia, que seguia
em vigor, era-lhes muito difícil de derrogar. Às vezes um governador de
província, um legado imperial, obtinha esta permissão, embora
comprometendo-se a «assumir toda a responsabilidade pelas faltas que ela
pudesse cometer». Mas teria obtido esta autorização um simples
procurador? É muito duvidoso. E em caso afirmativo, quem era sua esposa?

Daniel Rops nos diz em Jesus em seu tempo que o Evangelho de
Nicodemo, aliás Acta Pilan, chama-a Claudia Procula. Nós não encontramos
esse detalhe nos textos em questão. Alguns autores, como Rosadi,
acreditam que podia tratar-se da filha menor da Julia, filha de César
Augusto, a quem seu pai exilou na ilha da Pendataria para limitar seus
transbordamentos sexuais. Aurelio Macrobo, autor latino do século V, diz-
nos em seus Saturnais de Claudia Procula, sua mãe Julia a colocara junto ao
Tibério, terceiro marido desta. O que dá a entender que o padrasto pôde
muito bem ter corrompido à citada Claudia. E logo casariam-na com Poncio
Pilatos, ambicioso e arrivista, provavelmente antigo liberto, quem utilizaria a
sua esposa para conseguir relacionar-se com as altas esferas, e
possivelmente inclusive para converter-se em «amigo de César», título
muito cobiçado, que João, em seu evangelho (19, 12), assegura que
possuía.

Seja o que for, é duvidoso que Claudia Procula, esposa de Pilatos, tivesse
um sonho premonitório referente ao Jesus, já que tal sonho não foi
profetizado, posto que nada aconteceu ao Pilatos por condenar Jesus em
função das leis romanas e por rebelião contra César. Quando, muito mais
tarde, foi exilado à Vienne, nas Galias, ordenou uma matança entre uns
samaritanos iluminados ao que um agitador zelote tinha amotinado, para
levar a cabo uma nova sublevação. Não havia relação alguma com o
processo de Jesus.

Por conseguinte, tendo em conta: a) que não estamos seguros de que
Pilatos estivesse casado, nem de que pudesse fazer chegar à Judéia sua
esposa, contra o que ditava a lex Oppia; e b) que esta mulher, em caso
afirmativo, não pôde ter um sonho premonitório, como afirma Mateus --o
único nos quatro evangelhos canônicos--, já que tal sonho, se foi real, não
se realizou, nós sustentamos a hipótese, possivelmente mais sutil, mas
imensamente mais plausível, de que se tratou de uma artimanha de
Salomé, desejosa de influenciar o procurador, e de fazer soltar Jesus.

Dada sua classe de princesa da Casa de Herodes, viúva de Herodes Filipo,
deste modo príncipe herodiano, enteada de Herodes Antipas, tetrarca da
Galiléia e Perea, recebia ao Pilatos e era recebida por ele. Tanto se estava
casado como se não, tanto se Claudia Procula estava em Jerusalém como se
não, os membros da dinastia Iduméia tinham relações mundanas com os
altos oficiais de Roma, e em particular com o procurador, Salomé pôde
intervir influindo sobre Claudia Procula, se ela estava ali, ou diretamente
sobre Pilatos, se se encontrava sozinho em Jerusalém. Como? Mediante uma
mentira piedosa.

Imaginaram esse pseudo-sonho, sabendo que os romanos eram
supersticiosos, e conhecendo bem sua crença nos sonhos «enviados pelos
deuses». Não se afasta tanto do terrível exemplo de Julio César, quem,
prevenido por sua esposa Calpurnia de um sonho trágico referido a ele, e
depois de suplicar-lhe que não saísse de casa no dia dos Idus de março,
desprezou tal advertência e foi cair sob a adaga dos conjurados.

O que reforça esta hipótese é que Pilatos, ao longo de todos os
interrogatórios que se fizeram à Jesus, considerou-o sem cessar como rei
dos judeus, e não como um simples chefe de bando, em rebelião contra
Roma. Foi preciso que lhe pussessem à corrente, e não puderam fazê-lo os
judeus acusadores, já que, ao pertencer à seita saducea, a classe rica de
Israel, e contrariamente aos fariseus, que protegeram em segredo Jesus
durante tão longo tempo, não consideravam Jesus como um rei legítimo, e
além se entendiam perfeitamente com os ocupantes romanos, Como se vê,
é um eterno voltar a começar da História!

Porque Salomé e Claudia Procula (se se achava realmente em Jerusalém)
tiveram que ser necessariamente seguidoras do judaísmo. Senão, a primeira
jamais prestaria suporte ao Jesus, não o seguiria, e não se proclamaria
discípula dele. Pois bem, elas, ainda sob o entusiasmo dos neófitos, a
religião judia seguem ao pé da letra. E segundo esta, só os profetas, os
sacerdotes e antigamente os juízes, podiam receber sonhos premonitórios.
O vulgo ficava excluído, e não existe nenhum exemplo de que o Eterno
falasse em sonhos a alguma mulher nas Escrituras. Psiquicamente a
experiência demonstra o contrário, mas é assim. Por isso consideramos o
sonho da esposa de Pilatos como uma artimanha urdida por Salomé em
favor de Jesus.

Por último se expõe outro problema: o da identidade da pessoa que
aconselhou Tibério que entregasse Jesus à tetrarquia confiscada ao Herodes
Filipo. Não foi Pilatos. E menos Herodes Antipas, que não tinha montado
toda essa conjura contra seu meio-irmão a não ser para apropriar-se dela,
assim como de sua esposa Herodias. Da deposição de Herodes Filipo tinha
passado já tempo. Quem, pois, a não ser Salomé II pôde fazer que Tibério
conhecesse Jesus e lhe sugerir tal projeto? E mais quando fazendo tal coisa
a ambiciosa Salomé trabalhava também para a realização de seu sonho
secreto: voltar para aquilo ao que seu berço a destinava inicialmente...

Não em vão o Evangelho de Bartolomeu a chama «Salomé a sedutora». E
neste caso faria que a presença de Claudia Procula, esposa de Pilatos, em
Jerusalém fora plausível.

Deste capítulo o leitor tirará suas conclusões, que é o único de importância
para o curso da aventura paulina. E estas conclusões podem repartir-se em
diversas constatações:

a) quando Saulo-Paulo chega à Roma, o judaísmo corrente ignora que
existem cristãos na capital do Império;

b) não obstante, na casa de Aristóbulo III, rei de Armênia, existem, e são os
servidores de sua esposa Salomé II, os que propagaram o messianismo no
seio da servidão geral;

c) propagaram-no na casa de Narciso, secretário do imperador morto
Claudio César, e logo entre «os da casa de César», neste caso Nero. Mas
esta discreta propaganda se limita aos palácios de Aristóbulo III, de Narciso
e de Nero. No povo e no seio da colônia judia se ignora tudo que se refere à
nova religião;

d) se for certo que Simão-Pedro jamais esteve em Roma, e o mesmo pode
dizer-se de João, terá que tirar a conclusão de que o apóstolo involuntário
dessas primeiras células cristãs na capital do Império, foi inicialmente
Salomé II, rainha de Armênia e de Calcis, antiga conselheira de Jesus. E isto
não é menos assombroso de toda a história.

16 - O império paulino

Ser rei é uma estupidez! O que conta é construir um...

André Malraux, La Voie royale

Como dissemos, do estudo da existência de Saulo-Paulo desprende-se a
certeza quase total de que teve a intenção de construir-se, mediante o
artefato de criar uma religião nova cujo fundador seria ele, um império
espiritual que abrangeria a concha mediterrânea oriental e central. Esta
ambição germinou nele quando freqüentava Gamaliel, o doutor supremo de
Israel, e sobretudo a sua filha. Pôde constatar que a autoridade de cohén-
ha-gado I, o supremo sacerdote, estendia-se por todo o Império romano, no
seio de todas as comunidades judias da Diáspora, tanto no campo fiscal
como no da legalidade penal. E a própria Roma não se atreveu a restringi-la,
excetuando o jus gladii logo que chegaram os procuradores, no que
concernia aos atos de rebelião política e de banditismo por parte de grupos
armados. Mas no que concernia ao âmbito religioso, segundo um estudo
minucioso levado a cabo por Jean Juster em seu livro Les Juifs dans L'Empire
romain tanto sobre obras talmúdicas como sobre os textos
neotestamentários, parece que se pode afirmar com certeza que o
Sanedrim utilizava livremente o direito ao castigo supremo contra os judeus
em matéria de crimes religiosos. Sem dúvida, depois do ano 70, com a
destruição de Jerusalém, e a dispersão do conselho sanedrita e seu chefe,
este poder deixou ao supremo sacerdote por tolerância dos romanos. Logo
desapareceu, depois da grande revolução final do ano 135.

Estes detalhes têm sua importância. Demonstram (como já afirmamos em
nosso precedente volume) que, se Jesus foi crucificado, foi como
conseqüência de um processo puramente romano, para reprimir uma
rebelião política. Mas se tivesse sido simplesmente acusado pelos judeus de
ter efetuado declarações blasfemas, como a de pretender-se deus ou filho
de Deus, seu crime dependeria de julgamento do grande Sanedrim, e fosse
lapidado, e logo pendurado pelas mãos a um patíbulo, com a cara voltada
para o Templo (cf. Talmud, IV, Nezikin; 4, Sanedrim, VII, 4), sem que os
romanos metessem-se em nada. E também, quando vemos o rei Agripa e ao
procurador Albino sancionando ao pontífice Anano pela lapidação de
Santiago, irmão de Jesus, é porque os delitos maiores reprovados ao tal
Santiago (Jacobo) dependiam de um julgamento romano (direito comum), e
não de um julgamento judaico (delito religioso). Tampouco se exclui que, ao
fazer lapidar rapidamente a um «filho de David», Anano quissesse
simplesmente evitar-lhe o horror da crucificação e as torturas que
precediam a esta.

Seja o que for, tal poder (que será o dos Papas quando tiverem
desaparecido os imperadores romanos), entusiasma de antemão à Saulo-
Paulo. E trabalhará para obtê-lo.

Além disso do supremo sacerdote que representava o poder espiritual, em
Israel existia ainda o que se conhecia como o «Príncipe do Exílio», quer dizer
o Exilarca (em grego: exilarkés; em aramaico: resh galutha), chefe político
dos judeus deportados à Babilônia no ano 598 antes de nossa era. O
primeiro foi Ioiakim, rei de Judá, deportado à Babilônia pelo Nabukadnetsaar
na data citada: «O terceiro ano do reinado de Ioiakim, rei de Judá,
Nabukadnetsaar, rei de Babilônia, partiu contra Jerusalém e a assediou. O
Senhor entregou em suas mãos o Ioiakim, rei de Judá, e uma parte dos
utensílios da casa de Deus. Nabukadnetsaar levou esses utensílios ao país
de Esquinear, à casa de seu deus, e os colocou na mansão do tesouro de
seu deus». (Daniel, 1, 1-2.)

Os hebreus, instalados naquela época no país, cresceram sem cessar e,
pouco a pouco, por seu número, conseguiram uma organização
administrativa que já se desenhava sob a dominação dos persas da dinastia
aqueménida (séculos VII ao VI antes de nossa era), abaixo a dos gregos
seleúcidas (anos 321 a 250 antes de nossa era), e que se firmou sobretudo
abaixo a dos partos arsácidas (anos 250 a 226 antes de nossa era). Por
último voltou quase independente sob os persas sasánidas (ano 226 antes
de nossa era até o 650 desta) e declinou sob a dominação árabe, do século
VII ao XI. O «último dos príncipes do Exílio» se diz que foi um tal Ezequias,
no ano 1040.

Ao representar o poder temporário, o possuidor deste título e dos poderes
correspondentes, gozava dos privilégios reais e de todos os benefícios que
estes implicavam: doações em espécies, dízimos de todos tipos, ganhos
pecuniários, honras populares, bênções clericais. Nós possuímos
informações concretas de tudo isto através de Natan de Babilônia, judeu
babilônio do século X de nossa era, autor de uma História do Exilarcado,
alguns de cujos fragmentos foram publicados em 1545 por Samuel Schilam
em sua edição do Yuchasin, de Moisés Zacuto.

Quando os sucessores de Ornar e do califa Ali exumaram as leis de
perseguição ditadas por Ornar contra os judeus, leis das quais ele mesmo
não fez uso, começaram aplicá-las contra esta população. Sob o reinado de
Almutavakille, neto de Almamún, no ano 856, foi dissolvido o grande
Sanedrim, o resh galutha perdeu pouco a pouco seus privilégios, assim
como o papel que representava, e já para finais do século IX foram
suprimidos os parlamentos da Soura e da Pombadita. (Cf. Kalixt de Wolski,
La Russie juíve, A. Savine édit. Paris, 1887.)

Não obstante, no século XVIII circulavam nos meios ocultistas e
maçônicos --aqui falamos da maçonaria iniciática, como a do Rito Primitivo
do marquês de Chefdebien, e não da maçonaria bem pensante de J. B.
Willermoz-- o rumor de que existia um «rei dos judeus», o homem que
então estava mais versado na cabala, e que esse homem era Hain Samuel
Iacob, nascido na Polônia, e mais conhecido pelo nome de Falk-Schek (1710-
1782). Foi o Mestre dos maçons ilustres, altos iniciados, como Toux de
Salverte, Gleichen, Waldenfeis, e quando Savalette de Langes redigiu suas
fichas de filiação destinadas ao marquês de Chefdebien com vistas ao
acesso a célebre junta geral de Wilhelmsbad (1782), a indicação «conhece o
Falk, trabalhou com o Falk, aluno do Falk» mostrava ao Chefdebien que se
encontrava frente a um maçom altamente iniciado. Pois bem, o grande
rabino Hain Samuel Iacob, aliás Falk-Schek a quem a linguagem profana
designava «rei dos judeus», era em realidade o «príncipe do Exílio», naquela
época. E a maçonaria oculta lhe deve muito, se não tudo. Porque ao resh
galutha Falk-Schek lhe deve a franco-maçonaria moderna numerosos
detalhes de seu ritual, o esoterismo de suas palavras sagradas, de suas
ordens, cuja utilização prática são incapazes de suspeitar os maçons
racionalistas e os maçons bem-pensantes, unidos pelo mesmo antolhos
dogmático.

E faz vinte séculos Saulo-Paulo sonhou ser por sua vez um equivalente ao
«Príncipe do Exílio», com tudo o que isto comportava de vantagens
materiais, como é óbvio. E, ao mesmo tempo, o «Supremo Pontífice». Por
que não? Duas fontes de benefícios valem mais que uma sozinha.

Quanto mais fique o poder real se duplica, com a certeza de um bem-
estar futuro no campo material. Porque o cohen-ha-gadol recebe os
impostos de toda a Diáspora, determina sua quantidade e fixa a data de
percepção destes. Aqui temos um exemplo: «Rabban Gamaliel e os Anciões
estavam sentados em um degrau da montanha do Templo, e diante
lochanan-ha-cohen, o secretário. Ordenaram-lhe transcrever o que segue: "A
nossos irmãos, os habitantes da Galiléia Superior e da Galiléia Inferior, que
tenham saúde! Fazemo-lhes saber que chegou a data do imposto. Retirarão,
pois, o dizimado as tintas de azeite. A nossos irmãos os habitantes de
Daroma inferior, que tenham saúde! Fazemo-lhes saber que chegou a data
do imposto. Retirarão, pois, o dízimo dos feixes de trigo. A nossos irmãos os
exilados de Media, de Babilônia, aos exilados da Héllade, e os exilados de
Israel nos outros países, que tenham saúde! Faço-lhes saber que as ovelhas
estão ainda débeis, que os pintinhos são jovens, que a época da maturidade
ainda não chegou. Tive, pois, a bem, assim como meus colegas, acrescentar
a este ano um mês de trinta dias». (Cf. Talmud, Sanedrim, 1, 2.)

E o fiscus judaicos representava apesar de tudo uma soma muito
importante, já que este imposto anual, deduzido não só em Israel, mas
também em toda a Diáspora, subia a dois dracmas por pessoa. Se se avaliar
a população judia no começo de nossa era em uns quatro milhões de almas,
em total, isto representa uma tesouraria anual de oito milhões de dracmas,
quer dizer quase um milhão e meio do dinheiro circulante no ano 1926...

Vemos, pois, que o sonho de Saulo-Paulo vai perfilando-se pouco a pouco.
Como já dissemos, cortou com a dinastia herodiana, foi rechaçado pelos
judeus por causa de seu passado, tanto em sua qualidade de aristocrata
bandido como por ser membro de uma família odiada e desprezada; desde
sua circuncisão e suas relações, possivelmente interessadas, mas mesmo
assim reais, com os rebeldes zelotes, tornou-se suspeito aos olhos dos
romanos. Só fica um campo, o de uma religião nova, que não seja suspeita
do ponto de vista da legalidade romana, que seja fácil de difundir entre os
gentis, por ser sincretista, e que lhe abra um império espiritual análogo ao
do pontífice de Israel.

Rapidamente soube adquirir uma autoridade indubitável no seio de uma
seita judeu-cristã, a dos nazarenos, ramo místico das mais antigas (se não a
mais antiga) no cristianismo nascente. Os membros da seita se recrutavam
unicamente entre os judeus de raça, queriam que se observasse a lei de
Moisés, honravam Jesus como um homem justo e santo, nascido de pai
desconhecido segundo uns, de onde a lenda de que o que o engendrou foi o
Espírito Santo, e de um pai e uma mãe perfeitamente carnais segundo
outros. Sobre o fato de que Saulo-Paulo foi durante um tempo o chefe da
seita temos como prova que o evangelho desta, chamado Evangelho dos
Doze Apóstolos, ou Evangelho dos Hebreus, considera-se também que foi o
que Saulo-Paulo denomina «meu evangelho».

Por outra parte, os Atos dos Apóstolos confirmam que foi durante um
tempo o chefe de tal seita: «achamos que este homem é uma peste, que
excita a rebelião a todos os judeus do mundo, que é além disso o chefe da
seita dos nazarenos, e que tentou inclusive profanar o Templo». (Cf. Atos dos
Apóstolos, 24, 5.)

Esta é a acusação de Tértulo, advogado do Sanedrim, quando compareceu
ante o procurador Félix, em Cesaréia, uma delegação de sanedritas que
tinha ido a ele para denunciar a Saulo-Paulo.

De todo modo, aqui abriremos um parêntese, já que o historiador sério não
é simplesmente um narrador ou um recopilador de dados, a não ser, acima
de tudo, um investigador. E a esse título tem que ser curioso e desconfiado.
E então a primeira pergunta que se expõe é a seguinte: por que João,
também chamado Marcos, deixou Saulo e Bernabé? Primeiro por prudência,
o que é muito provável, mas seguro que também por divergência doutrinal
grave. Já que João, aliás Marcos, era um zelote, e terminaria por descobrir
que os objetivos de Saulo eram muito diferentes, ou inclusive opostos aos
dos verdadeiros fiéis de Jesus da história. O fato de que mais tarde Bernabé,
que é seu primo, não o esqueçamos (cf. Epístola aos Colossenses, 4, 10),
separe-se também de Saulo, igual João, aliás Marcos, parece prová-lo.

Com efeito, João-Marcos, primo de Bernabé, era filho de uma tal Maria, e a
casa desta última em Jerusalém era um centro de reunião dos zelotes, já
que foi ali onde se refugiou Simão-Pedro depois de sua evasão da prisão de
Herodes Agripa I (cf. Atos dos Apóstolos, 12, 12). Por outra parte, a opinião
geral dos exegetas católicos e protestantes é que esse Marcos é o mesmo
personagem que foge, vestido só com um tecido, quando se produz a
captura de Jesus depois do combate das Oliveiras. Em seu livro Saint Paúl,
apotre, monsenhor Ricciotti nos diz que: «... possivelmente a casa onde teve
lugar A Última Ceia, ou o jardim do Getsemani, fossem propriedades de sua
família». (Op. cit., P. 255.)

Neste caso, veja que descobrimos sobre tal jardim e saberemos como se
chamava esse João-Marcos segundo seu nome de circuncisão: Iochanan-bar-
Ierahmeel. Tudo isto demonstra que, efetivamente, nos vemos com um
zelote, igual a seu pai Ierahmeel, que albergou e abasteceu aos
companheiros de luta de Jesus. Então não é ilógico prever que não será
durante muito tempo vítima das palinodias paulinas e de seu messianismo
de água de rosas, que tratava com olhares e adulava aos romanos
opressores.

Muito antes Saulo-Paulo fez o necessário para ser introduzido no seio da
generalidade messianista, e para isso, para estar bem documentado sobre o
Jesus histórico, e a fim de não correr o risco de dizer tolices, tomou a
precaução de entrar em contato com seus ajudantes mais diretos: «Logo,
passados três anos, subi à Jerusalém para conhecer Cefas, a cujo lado
permaneci quinze dias. A nenhum outro dos apóstolos vi, se não foi
Santiago, o irmão do Senhor». (Cf. Epístola aos Gálatas, 1, 18-20.)

Este período de três anos separa aquela estadia em Jerusalém do período
em que nosso homem, depois de sua fuga de Damasco, passou uma breve
temporada na Arábia, nabatea ou Iduméia, seguida de uma nova
permanência em Damasco, mais concretamente em Kokba, sem dúvida ao
lado de Dositeo, seu iniciador.

A estadia em casa de Simão-Pedro demonstra em todo caso algo
importante, ou seja, que em Jerusalém, Simão e Santiago estavam
perfeitamente tranqüilos, em segurança, e que os judeus não os
perseguiam nem os entregavam aos romanos.

Não obstante, para pôr a prova a este personagem, apesar de tudo
suspeito por causa de seu passado como perseguidor dos zelotes, e que
pudesse demonstrar sua sinceridade, Simão-Pedro e Jacobo-Santiago lhe
confiarão uma missão de prova. Terá que ir ao Chipre, ao país dos Kittim,
esses famosos Kittim aos que odiavam tanto os seguidores de Qumrán, se
dermos crédito aos célebres manuscritos do mar Morto. Uma vez cumprida
sua missão, já veriam. E para vigiá-lo melhor, e também para guiá-lo,
puseram-lhe em mãos de dois «anjos guardiães». O primeiro era um dos
doutrinários da comunidade da Antioquia, seu nome de guerra era Bernabé,
porque seu verdadeiro sobrenome era José: «José, ao que os apóstolos
chamavam Bernabé...». (Cf. Atos, 4, 36.)

O segundo tinha umas posses na ilha de Chipre, e portanto conhecia
perfeitamente o itinerário a seguir uma vez ali. Chamava-se João (Iochanan
em hebreu), mas também tinha um nome de guerra:

«Bernabé queria levar consigo ao João, chamado Marcos». (Cf. Atos, 15,
37.)

Essas mudanças de estado civil são clássicos no seio das sociedades
secretas e dos meios políticos clandestinos. Assim, muito em breve Shaul se
converterá em Saúl, depois em Saulo e por último Paulo.

Os três se conheciam muito bem, pois entre a estadia de quinze dias em
Jerusalém, em casa de Simão-Pedro e Jacobo-Santiago, e a viagem para o
Chipre, Saulo passou três anos na Antioquia, efetuando ali coleta em
proveito da comunidade zelote de Jerusalém, e sobretudo, encontrando-se
com seu irmão de leite Menahem, neto de Judas da Gamala, «que tinha sido
criado com Herodes, o tetrarca e Saulo». (Cf. Atos dos Apóstolos, 13, 1.)
Saulo, bem doutrinado (ou ao menos fazendo acreditar), estava preparado,
portanto, para a missão que Simão-Pedro e Santiago foram confiar-lhe. Logo
já veriam...

Saulo-Paulo também pensava o mesmo. Logo já veria...

Porque logo se separaria desse meio perigoso no que alguém corria a cada
instante o risco de acabar crucificado por rebelião contra o César. Aos
zelotes os conhecia bem, não tinha sido o chefe (junto com seu irmão
Costobaro) de uma polícia paralela às ordens de Roma sem conhecer
aqueles aos que perseguia. E as coisas não mudaram. A Lenda de Jesus
ressuscitado não lhe enganava. Se não, a que vinham tantas precauções?
Por que tão secreto em suas ações? Por que essas identidades diversas? A
difusão de uma doutrina espiritual de renúncia e de purificação moral não
exige identidades falsas.

Bernabé é um personagem dos mais curiosos. Porque de fato se chamava
José, e o apelido do Bernabé significava em Hebreu «Filho de Consolação».
Vive na Antioquia, junto ao Menahem, cujo nome significa «Consolador». Era
Bernabé filho de Menahem? Não é impossível; então seria ele também «filho
de David». E esta qualidade é muito perigosa, já o vimos. A este apelido de
Bernabé, que lhe aplicaram outros zelotes (cf. Atos, 4, 36), lhe acrescentará
um terceiro, desta vez latino, Justus: «apresentaram-se dois: José, chamado
Bernabé, por apelido Justo, e Matias». (Cf. Atos dos Apóstolos, 1, 23.)

Assim, nosso José, aliás Bernabé, aliás Justo, tinha sido um dos dois
candidatos à sucessão de Judas Iscariote, com Matias. A sorte designou a
este último. Para que tivessem em conta seu nome, tinha que ser
necessariamente «filho de David» ou membro da família. Que por
conseguinte foi um personagem importante, é seguro. Se o duvidássemos,
bastar-nos-ia recordar que podia resultar molesto à alguns, já que foi objeto
de uma tentativa de envenenamento. Voltemos a ler Eusébio de Cesaréia,
citando Papias: «Ele [Papias] conta [...] outro fato extraordinário que
concerne à Justo, chamado Bernabé, quem bebeu um veneno mortal e não
experimentou mal-estar algum pela graça do Senhor». (Cf. Eusébio da
Cesaréia, História eclesiástica, III, XXXIX, 9.)

É evidente que os venenos mortais não vêm sozinhos, e que aquele ou
aqueles que nos fazem chegar têm nisso um indiscutível interesse. Para
adivinhar o nome do envenenador, o velho adágio judicial continua válido:
«Procura a quem lhe beneficia o crime». Pois bem, entre os membros da
comunidade da Antioquia havia um ao que, sem lugar a dúvidas, sua
importância lhe incomodava. E não descartamos a Saulo-Paulo por outros
motivos...

Porque não foram os romanos os que tentaram envenenar Bernabé, nem
os judeus; tanto uns como outros dispunham de todo um arsenal legal para
terminar com um agitador. Observemos, não obstante, que as múltiplos e
cambiantes identidades dos personagens analisados demonstram bem que
nossos dois apóstolos não eram senão agitadores políticos, e nada mais.
Porque em Israel o nome era uma realidade mística. Alguém não o trocava a
não ser em circunstâncias extremamente graves, quando a vida corria
perigo, ou para protegê-la. E para adotar um nome novo havia um ritual
religioso muito concreto. Assim, e sem discussão possível, a existência
dessas diversas identidades era, nos apóstolos e os discípulos, a prova de
uma imperiosa necessidade. Agora bem, naquela época ainda não tinha
lugar nenhuma perseguição religiosa, pela excelente e definitiva razão de
que os romanos ignoravam a existência do cristianismo ainda por vir, e o
único que conheciam era a rebelião zelote.
Recordemos a exclamação do imperador Juliano: «Como! O nome de
"evangelho" foi ignorado pelos romanos durante mais de dois séculos?». (Cf.
Juliano, Contra os Galileus, suplemento.) Voltemos agora para nossa equipe
em missão especial. Saulo-Paulo, Bernabé e Marcos foram, pois, à Seleúcia,
que era o porto da Antioquia de Síria. Embarcaram-se e chegaram à
Salamina. depois de terem «atravessado a ilha inteira» (Atos, 13, 6),
chegaram à Pafos, ao outro extremo de Chipre. Excetuando contatos
discretos com os judeus da sinagoga de Salamina, quando desembarcaram
na ilha, não se detiveram pelo caminho, ao menos não em localidades, a
meta real era Pafos, e sem dúvida não desejavam que se soubesse sua
chegada antes de estar ali. Aqui tomaremos o texto dos Atos dos Apóstolos,
embora depois tenhamos que fazer precisões: «Logo atravessaram toda a
ilha, até Pafos, e ali encontraram um mago, falso profeta, judeu, de nome
Bar-Jesus*, que se achava ao serviço do pró-cônsul Sergio Paulo, varão
prudente. Este fez chamar Bernabé e Saulo, e manifestou o desejo de ouvir
a palavra de Deus. Mas Elimas, o mago --que isso significa este nome-- lhes
opunha e procurava se separar da fé ao pró-cônsul. Mas Saulo, chamado
também Paulo, cheio do Espírito Santo, cravando nele os olhos, disse-lhe:
"Homem cheio de todo engano e de toda maldade, filho do diabo, inimigo
de toda justiça, não cessará de torcer os retos caminhos do Senhor? Agora
mesmo a mão do Senhor cairá sobre ti e ficará cego, sem ver a luz do sol
por certo tempo". No momento apoderaram-se dele as trevas, e procurava
provas quem lhe desse a mão». (Cf. Atos dos Apóstolos, 13, 6-11.)

*[Esse nome significa «filho de Jesus», em hebreu: bar-Ieshuah.]

Admiremos antes que nada a mansidão perfeitamente «cristã» do
chamado Saulo-Paulo. Ao lhe faltar a eloqüência e a dialética (embora o
Espírito Santo se expressasse por sua boca), teve que replicar cegando
àquele homem fiel à religião de sua infância. E também aqui, como no
assassinato de Sefira e de Ananias por parte de Simão-Pedro e seu jovem
guarda, continua o Espírito Santo quem se erige em verdugo.

Mas a continuação é ainda mais surpreendente: «Então o pró-cônsul, ao
vê-lo, acreditou, maravilhado na doutrina do Senhor». (Cf. Atos dos
Apóstolos, 13, 12.)

Admirável doutrina, já que prefigura o mar de bem os procedimentos da
Inquisição! Assim será como mais tarde o jesuíta Anchieta poderá dizer: «A
espada e a vara de ferro são os melhores instrumentos da propagação da
fé». Para converter a um romano culto, amigo das ciências e das artes,
embebido de toda a filosofia antiga, e sobretudo de sua tolerância, comum
a todo mundo antigo!

Poderia acreditar-se que nosso pró-cônsul Sergio Paulo, sendo magistrado
romano, ignora as leis do Império e a terrível repressão que levam a cabo
para a bruxaria e a magia criminais, sortilégios, malefícios, etc. Pois,
evidentemente não! Mas o escriba anônimo que compilará e adornará,
censurando-os ao mesmo tempo, no século IV, os documentos primitivos,
sim que as ignora, ou as esqueceu voluntariamente no curso de sua
redação. Porque, recordemo-lo: a Lei das Doze Pranchas condenava a morte
a todo cidadão, inclusive romano, culpado de ter prejudicado, com feitiços
ou com palavras encantadoras, maldições ou sortilégios materiais, etc., às
pessoas, aos animais domésticos ou às colheitas. E Augusto, Tibério e logo
Nero confirmaram com novos decretos o vigor das antigas leis romanas
contra a magia negra.

E, apesar de tudo, diante do pró-cônsul Sergio Paulo, Saulo-Paulo pode
infligir impunemente a cegueira a seu oponente, mediante palavras de
maldição indiscutíveis, sem que o chamado pró-cônsul tome a defesa de
seu amigo, o judeu Elimas-bar-Jesus, e aplique imediatamente com todo
rigor as leis romanas habituais, essas leis que justamente ele tem como
missão fazer respeitar e aplicar. Pior ainda: «Então o pró-cônsul, ao vê-lo,
acreditou, maravilhado da doutrina do Senhor». (Cf. Atos dos Apóstolos, 13,
12.)

Notem-se, pois! Esse milagre é ainda maior!

A verdade é mais singela, e também mais sórdida, como sempre. A Saulo-
Paulo, personagem muito equívoco aos olhos dos zelotes, tendo em conta
seu passado, lhe confiou uma missão para provar sua sinceridade e seu
valor: suprimir a um adversário, bem situado na corte de um pró-cônsul
romano. Continuando, ao estar suficientemente comprometido, Saulo
estaria em mãos de nossos sicários, e não poderia voltar-se atrás. E essa
missão consistiria em assassinar ao Elimas-bar-Jesus. Mas o atentado
fracassou em parte e, a conseqüência provavelmente de uns golpes
insuficientes ou mal dados, Elimas-bar-Jesus ficaria simplesmente cego. Há
numerosos casos em que isto se produziu, especialmente nos campos
nazistas de deportação, onde alguns traumatismos cerebrais conduziriam
uma paralisia ocular.

O assunto fracassou, portanto, em parte, e por isso, por prudência, João
chamado Marcos se separará logo de Saulo e de Bernabé. Os três se
embarcarão imediatamente de Pafos; não é questão de retornar para visitar
a comunidade judia da Salamina, têm que atuar depressa. Quanto ao Sergio
Paulo, pró-cônsul com classe pretoriana, Plinio não menciona
absolutamente, e com razão, sua pretendida conversão ao cristianismo,
quando fala dele em sua História Natural, nos livros I e XVIII. Sem dúvida
mobilizou à todos os soldados romanos sob suas ordens detrás de nosso
«comando» zelote. Por outra parte, Saulo, que depois de sua proeza parece
que assumiu o mando do trio, trocou também de identidade. A partir da
expedição ao Pafos, tomará o nome de Paulo (em grego Paulos), em lugar
de Saulo. Coisa fácil. O que devia ser então um salvo-conduto proporcionado
pelas autoridades romanas, para passar de uma província do Império a
outra? Provavelmente um título de formato reduzido, sobre papiro ou
pergaminho. Resultou fácil transformar o nome primitivamente inscrito:
SAVL, no PAVLVS. E assim, quem poderia identificar a esse homem de nome
latino, que falava grego, a partir de agora originário de Tarso, em Cilícia,
com um judeu (que sua desafortunada circuncisão lhe obrigou a ser) ao que
busca a polícia romana no Chipre?

Melhor ainda, mais tarde, sua volta à Jerusalém, e para escapar a toda
identificação, apara os cabelos, sob o falacioso pretexto de um voto, e se
mesclará com outros quatro peregrinos que se acham no mesmo caso. E
para maior segurança, carregará em seu nome e por eles com gastos da
cerimônia (cf. Atos dos Apóstolos, 21, 24). Coisa que, de fato, representa o
pagamento de sua cumplicidade, como resulta dessa mesma passagem dos
Atos: «Mas ouviram que ensina aos judeus da dispersão a renunciar ao
Moisés, e lhes diz que não circuncidem a seus filhos nem sigam os costumes
judaicos. O que fazer, pois? Seguramente saberão que chegou! Faz o que
vamos dizer [...]» Há entre nós, quatro homens, que fizeram voto; toma-os
contigo, purifica-se com eles e lhes pague os gastos para que lhe raspem a
cabeça. E assim todos conhecerão que não há nada de quanto ouviram
sobre si, mas você também segue na observância da Lei.» (Cf. Atos dos
Apóstolos, 21, 21-24.)

É evidente que as acusações imputadas à Saulo-Paulo são verídicas,
combate a circuncisão e os costumes judaicos. E também é evidente que
essas precauções que lhe aconselham tomar seus discípulos locais não são
outra coisa que uma estratégia de guerra. Todo esse parágrafo destila
duplicidade. Para Saulo-Paulo trata-se de poder rapar a cabeça, quer dizer,
de trocar de fisionomia, fazendo uso de um motivo altamente válido aos
olhos dos judeus de Jerusalém. Depois, longe da cidade, nas outras
províncias, isto lhe permitirá trocar mais completamente ainda de
fisionomia, barbeando-se a seguir a barba e o bigode.

Por outro lado, os sacrifícios rituais impostos pela culminação de um voto
de nazireato eram muito custosos; encontram-se com detalhe no Livro dos
Números (6, 13-21). Mas desde quando é Paulo um nazir? Jamais se falou
isso, e seria desconcertante imaginar que este homem, que em todas partes
prega contra os costumes da lei mosaica fizesse semelhante voto, que lhe
impunha especialmente não beber vinho, nem vinagre, nem suco de uva,
nem comer uva, nem morango nem uva-passa, não aproximar-se de um
morto, etcétera.

Na realidade, nosso homem usava os cabelos longos, como era habitual
naquela época e naquelas regiões (Nabatea, Iduméia, Judéia, etc.), mas
enquanto um nazir não os cortava jamais durante o tempo de seu nazireato,
é seguro que Saulo-Paulo os cortava «à grega», conforme era costume na
Iduméia. Em lugar de ser «hirsuto» como um verdadeiro nazir, levava
simplesmente os cabelos «longos», cortados à altura dos ombros. As placas
de barro vidrado decoradas de Medinet-Abou mostram beduínos e sírios
penteados igual. Pelo contrário, os romanos levavam o cabelo curto. Esta
será uma coisa mais que se reprovará ao Nero: ter renunciado ao severo
corte romano para pentear-se «à grega» e «ao judeu». Mas Saulo-Paulo, por
prudência, agora prefere ter aspecto de romano, ao alegar sem cessar seu
título de civis romanus. E além disso, o homem de Pafos ao que procurava a
polícia da ilha tinha os cabelos longos... Porque temos que voltar para
nossos três cúmplices.

Aqui temos, pois, a nossa equipe de homens apressando-se a abandonar a
ilha de Chipre. Logo compreenderemos por que vão dirigir-se para a Panfilia:
«De Pafos navegaram Paulo e os seus, chegando ao Perge da Panfilia, mas
João, chamado Marcos, separou-se deles e voltou para Jerusalém». (Cf. Atos
dos Apóstolos, 13, 13.)

Esta separação pode ser uma simples medida de prudência. Em efeito,
estavam procurando três homens seguindo um mesmo itinerário. E já não
ficavam mais que dois em um, e um só em outro. Uns se vão por terra, o
outro por mar. Isto também pode significar o medo de João, chamado
Marcos, a ser miserável a outra aventura. Esta última hipótese é a mais
provável, já que Paulo (demos seu novo nome) guardará sempre rancor ao
Marcos por este abandono, e inclusive mais tarde se zangará com Bernabé,
por rancor contra Marcos: «Algum tempo depois, Paulo disse ao Bernabé:
"Voltemos a visitar os irmãos por todas as cidades em que anunciamos a
Palavra do Senhor, e vejamos como estão". Mas Bernabé queria levar
consigo também João, chamado Marcos. Mas Paulo julgava que não deviam
levá-lo, por quanto os tinha deixado desde a Panfilia, e não fora com eles à
obra. Produziu-se tal exacerbação de ânimos, que se separaram um de
outro, e Bernabé, tomando consigo ao Marcos, embarcou-se para Chipre,
enquanto que Paulo, levando consigo ao Silas, partiu encomendado pelos
irmãos à graça do Senhor». (Cf. Atos dos Apóstolos, 15, 36-40.)

Não obstante, expor uma questão embaraçosa: no versículo 23 do mesmo
capítulo nos precisaram que tal Silas, «que é também Silvano» (I Timóteo, 1,
1; II Timóteo, 1, 1; II Colossenses, 1, 19; I Pedro, 6, 12) --outro agente
secreto com múltiplos identidades -- voltou para Jerusalém. Como pode
estar ainda na Antioquia, onde se desenvolve esta briga entre Paulo e
Bernabé?... Que o entenda quem pode.

Seja o que for, uma vez desembarcados em Perge de Panfilia, procedentes
de Pafos, e depois de que João, chamado Marcos, abandonou-os assim.
Paulo e Bernabé saíram desta cidade e tomaram rumo para o norte do país,
e por conseguinte para o centro da Ásia Menor.

Remontando o curso do Cestro de águas tumultuosas, chegaram primeiro
a Adada, logo a Antioquia de Pisidia (que não terá que confundir com a
Antioquia de Síria). Tiveram que necessitar pelo menos duas boas semanas
para percorrer os cento e oitenta quilômetros que representa o trajeto de
Perge à Antioquia de Pisidia, carregados de mantimentos e de objetos de
acampamento, e às vezes inclusive de água.

Este caminho, pista de cavalaria, afundava-se primeiro nos desfiladeiros
selvagens de Cestro, de águas ruidosas, logo, remontando
progressivamente para a alta meseta de Pisidia, elevava-se a mais de mil
metros de altitude, rodeando altos topos coroados de neve, atravessando
vastas extensões desertas, cobertas de espesso bosque, sem pontos de
referência, e correntes selvagens, cujos vaus eram desconhecidos, ou
inclusive inexistentes.

Esta região, infestada de bandidos e de escravos fugitivos que se reuniram
com seus bandos, todos eles sem nada a perder e desejosos de evitar a
qualquer preço a crucificação final, era tão pouco hospitalar como um
deserto, tanto durante o dia como durante a noite, por causa das hienas e
os lobos. Quer dizer, que o viajante ali arriscava todo dia sua vida, e em
conseqüência tinha que manter-se em contínuo estado de alerta. E o que
foram fazer lá, ao menos oficialmente, e se dermos crédito ao piedoso
embusteiro dos Atos dos Apóstolos, Paulo e Bernabé? Pois simplesmente
levar a boa palavra do Senhor. E sem dúvida aos bandidos, aos escravos
fora da lei, sem esquecer às hienas e aos lobos, adiantando-se assim em
doze séculos ao doce Francisco de Assis.

Confessaremos que se esta saída de Pafos, esta separação dos cúmplices,
e esse retorno por regiões tão pouco hospitalares não se parecem com uma
fuga (justificada pelo atentado cometido sobre o amigo e conselheiro do
pró-cônsul Sergio Paulo) é que Paulo e Bernabé careciam então de
julgamento.

Da Antioquia de Pisidia foram até Iconio, por um caminho que atravessava
ainda altiplanos desérticos, estepes pantanosos, ao longo de quase cento e
cinqüenta quilômetros, e sempre com o inevitável carregamento de
mantimentos, de objetos de acampamento e uma reserva de água. Depois
de uma breve estadia em Iconio, e em vista da acolhida judaica, viram-se
uma vez mais obrigados a fugir, e chegaram às cidades de Lycaonia, Listra e
Derbe. Em Listra foi onde supostamente lapidaram Paulo fora da cidade,
mas a seguir Bernabé o reanimou. Como esta lapidação sancionava uma
acusação de blasfêmia, tinha em seguida que pendurar o cadáver pelas
mãos, uma vez bem constatada sua morte (cf. Talmud: Sanedrim, VII, 4).
Quer dizer, que a lapidação de Paulo em Iconio é muito duvidosa, quanto
mais que o privilégio do supremo sacerdote nesta matéria não podia
estender-se a uma comunidade judia puramente local da Diáspora.

Paulo e Bernabé voltaram então sobre seus passos, e passaram de novo
(muito discretamente desta vez, seguros) por Listra, Iconio, Antioquia de
Pisidia e chegaram à Perge, desceram ao porto de Attalia, e de ali
embarcaram para Seleúcia, que era o porto de Antioquia de Síria. Observar-
se-á que não voltaram a passar pela ilha de Chipre, onde supostamente
tinham constituído uma comunidade em Salamina e convertido ao excelente
pró-cônsul Sergio Paulo, que jamais voltou a ver esse Paulo que lhe fizera
ganhar a vida eterna ao lhe converter. Esta prudência de nossos dois
aventureiros é, com efeito, muito significativa.

Parece ser, por certo, que o mais comprometido era Paulo, já que Bernabé
retornaria mais tarde discretamente ao Chipre para vender ali a propriedade
que possuía, mas o fará com João, chamado Marcos, e Paulo se negará a
segui-los; nunca é bastante prudente. E chegará à Cilícia através de Síria,
viagem longa, cansativa e perigosa. (Cf. Atos dos Apóstolos, 4, 36, e 15, 37.)

Uma vez aqui, vejamos como estamos. Este assunto de Pafos, o atentado
contra o amigo e protegido do pró-cônsul, o judeu chamado Elimas-bar-
Jesus, é o primeiro expediente aberto pela polícia romana contra um judeu
chamado Saulo, ou ao menos um idumeu com tal nome. Este expediente é
muito grave, implica a pena de morte, inclusive para um cidadão romano.

Logo se abrirá um segundo expediente, em resposta às queixas do
Sanedrim e dos judeus de Jerusalém, mas contra um tal Paulus.
Compreenderá acusações de blasfêmia e sacrilégio, o que implica um
julgamento de ordem judaica, e uma acusação política: agitação mantida
um pouco por toda parte, em favor de um movimento messianista dirigido
por um tal Jesus-bar-Juda, crucificado pelo procurador de Roma Poncio
Pilatos por rebelião contra César, e que o chamado Paulo afirma que
ressuscitou e que continua vivo. Esta acusação está confirmada pelo
decreto de Claudio César no qual expulsa aos judeus de Roma, porque se
revoltam sem cessar em nome desse Jesus, chamado também «Chrestos».

Esse segundo expediente, graças às altas relações de Paulo com o tribuno
Claudio Lisias e com o procurador Antonio Félix, transformar-se-á em um
elogium muito favorável. Desgraçadamente, a peça desaparecerá no
naufrágio do navio que conduzia Paulo à Roma. E seguirá um terceiro
expediente, imensamente mais grave, e que implicava ao Paulo em uma
conspiração contra César, neste caso Nero, seguido de um quarto, referente
à suas responsabilidades no incêndio de Roma. E estes dois últimos
expedientes serão os que anunciarão o final de nosso extraordinário
aventureiro. Vamos agora estudá-los com detalhe.

17 - As provas de Saulo-Paulo

O infortúnio, igual à piedade, pode converter-se em um costume.

Graham Greene, O poder e a glória

Fica um problema por examinar: o das provas supostamente sofridas por
Saulo-Paulo no curso de suas campanhas de propaganda. O menos que
pode dizer-se é que se adjudica um bonito papel, e que, na realidade,
asseguro que foi muito diferente. O que nos diz? «Combati contra as feras,
em Efeso...» (Cf. I Epístola aos Coríntios, 15, 32.)

Se tomarmos os Atos dos Apóstolos nas passagens que relatam a
permanência de Saulo-Paulo nesta cidade, constataremos que não há nada
disso. Basta relendo os Atos (19, 1-40), e lá se vai nosso homem acusado de
umas tentativas de arruinar o tráfico local (a fabricação e a venda de efígies
de Diana de Éfeso), e livrar-se disso graças à discreto amparo (um a mais)
dos asiarcas da cidade. Também aqui seu título de cidadão romano o
protegeu oficialmente; os asiarcas, com efeito, eram escolhidos cada ano
pelas cidades da província da Ásia. Estavam encarregados de presidir o
culto de Roma e do imperador, assim como os jogos celebrados em tal
ocasião; quando expirava seu cargo, conservavam o título. Como a função
conduzia grandes gastos de representação, exigia dos candidatos uma
situação social muito elevada. Os magistrados e sacerdotes de Roma não
podiam lançar às feras, com os condenados a morte de origem mais baixa,
a um cidadão do Império. Isso teria constituído um escândalo que lhes sairia
muito caro, se se tinham em conta as leis romanas.

Por outra parte, a frase antes mencionada parece insinuar que Saulo-Paulo
combateu vitoriosamente contra as feras. Agora bem, tais combates não
eram já os dos condenados a morte, que eram lançados diante das feras
desarmados; então se tratava de especialistas chamados venatores que,
embora menos considerados que os gladiadores clássicos, exerciam um
ofício com toda regra, que requeria uma técnica de combate, segundo a fera
a qual enfrentavam, e esses venatores levavam então uns nomes de guerra,
justificados por sua reputação aos olhos do público. Emprestar a Saulo-Paulo
esta possibilidade é absolutamente desatinado.

O mesmo acontece, pois, com a afirmação em que nos diz com aprumo:
«Fui sacado da boca do leão». (Cf. II Epístola ao Timóteo, 4, 17.) Quando
escreve esta carta a seu lugar-tenente, que então estava em Efeso, acha-se
pela segunda vez em Roma, transladado de Troas no ano 66. Está encerrado
na custódia pública, esperando o final de seu processo. Compareceu já ante
os magistrados romanos por todos os fatos que lhe reprovam. Mas não
correu o perigo de que jogassem aos leões, dado que ainda ignora a
sentença que será pronunciada contra ele. Por outra parte, não corria
tampouco tal risco de execução durante seu primeiro processo ante o
tribunal de César a conseqüência de sua «apelação», já que era cidadão
romano, e o suplício das feras não se aplicava jamais a essa aristocracia do
Império.

Vamos agora aos maus entendimentos dos quais se queixa aqui e lá.
Declara-nos: «Cinco vezes recebi dos judeus quarenta açoites menos um,
três vezes fui açoitado com varas, e uma vez fui apedrejado». (Cf. II Epístola
aos Coríntios, 11, 24-25.)

A flagelação, entre os judeus, efetuava-se com a ajuda de um simples
látego de couro, e não cheio de bolas como os látegos romanos, e com o fim
de não correr o risco de passar-se jamais dos quarenta golpes, o máximo da
pena, o verdugo não devia golpear as costas do condenado mais que trinta
e nove vezes. (Cf. Talmud'. IV, Nezikim-Makkoth.) Pois bem, teríamos muitas
dificuldades em encontrar essas cinco flagelações no relato de sua vida,
como nos contam isso os Atos dos Apóstolos e suas Epístolas. Não estão!

Além disso, em uma passagem dos Atos Saulo-Paulo sublinha que, como
cidadão romano, não pode ser submetido ao açoite ou às varas: «Está-lhes
permitido açoitar com varas a um cidadão romano que nem sequer foi
condenado?». (Cf. Atos dos Apóstolos, 22, 25.) E, efetivamente, um cidadão
do Império não podia nem ser flagelado nem passado pelas varas, já que a
lei romana o proibia. Então, como imaginar que o que lhe estava proibido a
um procurador romano, a um tribuno das coortes, ou a um magistrado
urbano, fora admitido por um sinagogarca judeu, inferior, por conseguinte,
na hierarquia social? Em que sanções não tivesse incorrido de ter humilhado
assim a um civis romanus!

Quanto mais que a qualidade deste vinha testemunhada por um
pergaminho assinado pela alta autoridade que a tinha atribuído, uma vez
que reconhecia que os direitos de acesso a tal privilégio tinham sido pagos
pelo beneficiário. Não bastava afirmando que alguém era cidadão romano
para que os magistrados de Roma o reconhecessem inocentemente, sem
provas. Ao reverso, os sinais de infâmia social, seguidas de condenações
graves ou de servidão, estavam marcadas na carne mesma do desgraçado
que era objeto dela: incisão ao vermelho vivo para o escravo, que ia do
ombro esquerdo ao direito, passando pela nuca, onde era mais profunda,
como um jugo; um olho esvaziado e curva rachada com um ferro candente
para o condenado a minas; marca de ferro candente sobre a frente para o
escravo fugitivo apressado de novo; dedo ou mão atalho para o ladrão
reincidente; sinais das varas ou dos látegos, nas costas, para todos os
antigos condenados, civis ou militares.

O liberto, que era indevidamente um antigo escravo, levava pois a incisão
sobre a nuca. Para provar sua qualidade de homem livre devia possuir a ata
de alforria que lhe entregava seu antigo dono, peça deste modo de
pergaminho. Esta peça anulava então a marca, que ele conservava apesar
de tudo em sua carne até a morte.

Quer dizer que Saulo-Paulo, por seu berço principesco, não corria
absolutamente nenhum risco de sanção corporal, quanto mais que em tudo
seus ensinos se mostrava um ciumento defensor da legalidade romana e
um ardente sustento da hierarquia social tal como estava estabelecida pelos
azares do berço ou pela fortuna.

Quanto a sua pretendida lapidação pelos judeus vindos da Antioquia de
Pisidia e de Iconio a Listra, na província de Lycaonia (Atos dos Apóstolos, 14,
19-20), seguiria indevidamente pendurado o cadáver até o pôr-do-sol, e logo
depois de sua inumação, segundo os termos da legislação judia. E não
houve nada disto.

Além disso, o jus gladii não podia ser concedido aos judeus da Diáspora em
uma cidade da importância de Listra, que era uma simples colônia romana
estabelecida sobre os pendentes de Kara Dagh, um imponente vulcão
apagado, e cujas ruínas se acham hoje em dia nas cercanias de Katyn Serai.
Em Listra não havia nem sequer sinagoga, e a cidade estava sob a vigilância
de um tribuno das coortes, magistrado militar que não tolerasse que um
partido de judeus obscuros, estranhos à cidade e procedentes de Antioquia
de Pisidia e de Iconio, não só criassem a desordem e a rebelião em sua
guarnição, mas sim pretendessem dar morte a um cidadão de Roma. Toda
esta história é uma invenção dos escribas anônimos do século IV. Uma mais.
Terceira parte

As chamas de Roma

E quando lhes contemplarmos, afundados nas chamas eternas, ah, como
riremos! Quanta será nossa alegria!

Tertuliano, Depaenitentia

18- A prostituta do Apocalipse

Quem quer que se atrevesse a pôr a mão sobre Roma seria culpado de
parricídio aos olhos do mundo civilizado e nos julgamentos eternos de Deus.

PIO XII, ao Colégio Cardenalicio, 1944

Será consumida pelo fogo [...] E sua fumaça subirá por tosse séculos dos
séculos. Apocalipse, 18, 8, e 19, 3

Desde 1919 a 1932 os Estados Unidos da América viveram sob a lei
chamada da «Proibição», que proibia a venda e consumo do álcool. Essa foi,
então, a grande época do gangsterismo. Antes de estar em condições de
fazer uso das diversas armas automáticas que fizeram dos bandos norte-
americanos terríveis associações de malfeitores, os assassinos destas e os
guarda-costas de seus chefes usaram uma arma terrível: a lupa ou lupara.
Dito de outro modo, «a loba».

Tratava-se de um fuzil de caça, de dois tiros ou de repetição, que lançava
cartuchos com postas, e ao que se serrou o canhão até a metade de sua
longitude e cortado a culatra recortando-a à altura do punho de uma pistola.
A simples posse de uma arma deste tipo implicava a detenção imediata e a
isso seguia uma investigação.

Terá que dizer que este tipo de arma fora adotada pelos assassinos da
Cosa Nostra, sociedade secreta siciliana, em lembrança de uma arma
análoga utilizada pelos pastores de Sicilia. O fuzil de canhões recortados,
derivado da antiga escopeta (em italiano: Schio-petto) dos séculos XV e XVI,
assim como o trabuco (em italiano: Trom-bone), podia dissimular-se
facilmente sob um impermeável, dirigia-se com as duas mãos, mas permitia
obter a muito curta distância uma dispersão de projéteis suficiente como
para não ter que apontar, o que permitia disparar imediatamente. Este era o
motivo pelo quais os pastores de Sicilia o conservaram durante séculos, já
que servia tanto contra os lobos como contra todo ataque de um membro
de um clã inimigo.

Mas um se perguntará por que dariam a esta arma o nome de «loba» (lupa
ou lupara em italiano, igual em latim). Pois bem, como conseqüência de um
trocadilho erótico. Esta arma a identificavam com a «companheira fiel» do
pastor. E o latim lupa designa não só à loba, mas também a toda mulher de
má vida, já que a ambas as conhece por sua enorme sensualidade. Desse
nome derivam os lupercales.
Estas festas celebravam em Roma o 15 das calendas de março, quer dizer,
em 15 de fevereiro, em honra ao deus Lupercus, nome romano de Pan.
Nelas se sacrificava duas cabras e um cão, e com as peles das vítimas
faziam-se látegos, e os encarregados da celebração da festa, os lupercos
(luperci), percorriam as ruas de Roma armados com esses látegos e
açoitando com eles a todos aqueles e aquelas aos quais encontravam. O
deus Lupercus, protetor dos rebanhos frente aos lobos, era ao mesmo
tempo um deus de fecundidade. As mulheres se ofereciam, pois, seminuas a
esta flagelação, que tinha a virtude de fazer fecundas às esposas estéreis e
de procurar às mulheres grávidas um feliz parto. Como esta flagelação
podia muito bem não resultar eficaz geneticamente falando, mas em troca
podia excitar os sentidos das mulheres, estas últimas fizeram degenerar
pouco a pouco a festa de Lupercus em uma imensa orgia, o que,
naturalmente, facilitava as fecundidades ulteriores. Até finais do século IV
não se obteve a supressão dos Lupercales, coisa que conseguiu o Papa
Gelasio I.

Pois bem, voltando para a «loba», companheira de pastores,
constataremos que aplicaram este nome à sua arma em lembrança de uma
antiqüíssima tradição latina. Na Roma antiga, o pastor era ou o filho menor
da casa, ou o escravo. Vivia isolado durante meses, com seu rebanho e seus
cães, alimentando-se de olivas, de frutos, mel, leite, queijo e água clara.
Para satisfazer as exigências sexuais desses pastores houve durante muito
tempo prostitutas itinerantes. Como o pastor não tinha dinheiro, tanto se
era filho da casa como se era escravo, tinha que compor-lhe para lhe pagar
à mulher que lhe concedia esses favores que valiam dinheiro. Tanto se
pagava em espécie o que lhe era dado, como se liquidava com dinheiro, era
indevidamente o rebanho do amo quem carregava com o gasto. E então
tinha que procurar o dinheiro vendendo subrepticiamente um cordeiro ou
uma ovelha, ou dava uma ou outra ao escravo que fazia de servente da
prostituta, assim como de guarda-costas «privilegiado».

Assim, essas mulheres não eram ainda «devoradoras de diamantes», a não
ser lisa e sinceramente «devoradoras de rebanhos». De onde seu apelido de
«lobas», tanto por seus costumes e temperamento como por sua
modalidade de pagamento habitual.

Pois bem, Roma deve a uma dessas «lobas» a vida de seu fundador...

Recordemos aqui, para simplificar o que seguirá, a lenda da fundação de
Roma.

Segundo Varrón (que viveu em tempos de Julio César), Roma foi fundada
no ano 753 antes de nossa era por Rômulo, descendente do troiano Eneas,
quem depois da queda de Tróia viria a estabelecer-se às bordas eo Tiber.
Rômulo tinha um irmão gêmeo, chamado Remo. Ambos eram filhos da
vestal Rhea Silvia, filha de Numitor, rei de Alba Longa, e Rhea Silvia os tinha
concebido como fruto de seus amores com o deus Marte.
Roma sob o Império

O trono de Numitor foi usurpado por Amulio, quem abandonou aos dois
meninos nas águas crescidas do Tíber, mas foram recolhidos ao pé do
monte Palatino por uma loba, que os amamentou sob uma figueira. Logo
cresceram sob o amparo de um pastor chamado Faustulo e, ao chegar a
adultos, mataram ao usurpador Amulio e restituíram o trono de Alba Longa
a seu avô Numitor.

A seguir decidiram fundar uma cidade, e escolheram para isso o monte
Palatino, onde tinham sido criados pela loba. Rômulo, designado rei à sortes,
riscou com o arado um sulco que devia marcar o futuro recinto da cidade.
Rômulo decidiu então chamá-la Roma, palavra derivada de seu próprio
nome. Remo, furioso pelo fato de que a sorte não lhe tivesse designado rei,
atravessou burlando o fosso esboçado pelo arado de Rômulo. Este, ofendido
pelo que naquela época era um sacrilégio nos ritos de fundação, matou seu
irmão gêmeo.

O primeiro rei de Roma fez desta nova cidade um asilo para vagabundos e
os fora da lei. Para procurar esposas e povoar definitivamente a nova
cidade, raptaram às mulheres e as filhas de um povo vizinho, os sabinos. A
isso seguiu uma guerra entre as duas comunidades rivais. Mas, graças à
mediação das sabinas raptadas, que sem dúvida encontraram gosto em sua
nova vida, as duas cidades se fundiram. Quanto ao Rômulo, diz a lenda que
desapareceu misteriosamente durante uma tormenta no curso de uma
celebração religiosa. E então lhe elevou à categoria de deus, com o nome
de Quirino. Esse nome provavelmente se deriva do termo quirites, nome
que inicialmente levavam os sabinos, adotado logo pelos romanos quando
os primeiros tiveram a hegemonia sobre a Liga Latina, no século VIII antes
de nossa era. Derivava de Cure, capital dos antigos sabinos. Os romanos
levavam esse nome na cidade, mas jamais quando se achavam em armas,
já que era um termo utilizado nos licenciamentos militares.

O leitor já teria suspeitado a verdade detrás da lenda.

A loba que amamentou Rômulo e Remo não foi outra coisa que uma dessas
prostitutas itinerantes, ou porque foi sua mãe natural que não pôde, ou
porque se limitou a recolher e adotar aos filhos gêmeos de uma de suas
colegas falecida. A hipótese de que os criasse às pressas de um de seus
clientes habituais, o pastor Faustulo, quem teria cuidado deles e os teria
alimentado durante as ausências profissionais de sua mãe adotiva, não tem
nada de inverossímil. E o que este às pressas estivesse situado à sombra de
uma grande figueira, também é possível.

Mas que fora uma loba real que recolhesse e amamentasse aos dois
gêmeos é pouco plausível. É indubitável que se encontraram meninos que
foram criados por um casal de lobos, em meio dos lobinhos, seus irmãos em
adoção. Mas então o menino permanece em um estado de total
animalidade. Perambula a quatro patas, bebe água lambendo-a, como um
cão, devora a carne crua, e uiva de forma animal. É muito difícil reeducá-lo
e, em caso de consegui-lo, morre logo que chega a adulto. E é que, em
efeito, há traumatismos psicofisiológicos que não perdoam. Imaginar que
dois meninos amamentados e criados assim por uma loba real, pudessem a
seguir acessar à vida humana normal com as simples técnicas de um pastor
tão primitivo como iletrado, e converter-se em personagens tão importantes
como os gêmeos da lenda, é do mais inverossímil. Nós aderimos, pois, à
tese da «loba» humana, prostituta itinerante, que foi também
provavelmente uma mulher de bom coração.

Então a figueira converteu-se por sua vez em um dos símbolos de Roma.
Em Tácito lemos o seguinte: «Esse mesmo ano [o 58 de nossa era], a árvore
do Comicio, a figueira Ruminal, que mais de oitocentos anos atrás tinha
abrigado a infância de Remo e Rômulo, perdeu seus ramos e seu tronco se
secou, coisa que foi vista como um presságio sinistro». (Cf. Tácito, Anais,
XIII, 58.) Segundo Varrón, essa figueira tinha recebido o apelido de Ruminal
(do latim rumis: mama), porque foi sob sua sombra onde a loba tinha
amamentado aos dois gêmeos. A tradição legendária contava que essa
figueira, situada primitivamente no Lupercal (quer dizer, na prolongação do
monte Palatino, ao noroeste, lugar chamado Cerníalo), tinha sido
milagrosamente transportada, sob os auspícios do Attus Navius, augur de
Tarquinio, o Antigo, ao Comicio, ao leste do Foro, não longe do Capitólio. (Cf.
J. Carcopino, Bulletin de L'Association Guillaume Budé, núm. 5, P. 22.)

Não é impossível que o episódio da figueira estéril, a que Jesus
amaldiçoa e faz perecer porque não dá frutos fora de temporada, utilizasse-
se como um encargo contra Jesus durante seu processo. Ao considerar-se
como chefe zelote, submetido a vigilância romana como todo filho de David,
os romanos puderam muito bem ver nessa maldição contra uma árvore que
era o símbolo do nascimento de Roma, um ato mágico para causar dano,
dirigido em realidade contra a própria Roma. Leiamos de novo ao Marcos:

«Ao dia seguinte, ao sair de Betânia, sentiu fome e vendo de longe uma
figueira com folhas, foi ver se encontrava frutos. Mas não encontrou nada a
não ser folhas, porque não era tempo de figos. Tomando então a palavra,
disse à figueira: "Que jamais coma já ninguém fruto de ti [...]". E seus
discípulos lhe ouviram [...]» Passando de madrugada, quando retornavam à
cidade, viram que a figueira se secou da raiz. Lembrando-se Pedro, disse-
lhe: "Olhe, Mestre!" A figueira que amaldiçoaste se secou".» (Cf. Marcos, 11,
12-13 e 20-21.)

De maneira que essa desgraçada figueira deveria adivinhar, como uma
criatura razoável, que Jesus teria fome, e arrumar-lhe para produzir
instantaneamente frutos, embora estivessem fora de temporada.

Deste episódio se pode deduzir o caráter rancoroso de Jesus, com esse
fundo daninho que punham de relevo já os Evangelhos da Infância, assim
como a limitação de seus poderes ocultos, pois para o «filho de Deus» seria
muito fácil dar à um humilde vegetal o poder de produzir frutos fora de
temporada, já que era absolutamente desatinado imaginar que este
pudesse dá-los por suas próprias forças. E este episódio confirma que se
tratava, por parte de Jesus, de poderes mágicos, como lhe reprovaram
freqüentemente os judeus, e não dos dons todo-poderosos divinos de um
deus encarnado.

De todos os modos, se este fato chegou aos ouvidos dos funcionários de
Roma, estes puderam ver na desafortunada figueira um ato daninho dirigido
contra o Império romano, e tanto a Lei das Doze Pranchas como a Lei Julia
castigavam com a pena capital todo sortilégio dirigido contra os homens, os
animais ou as colheitas, recordemo-lo uma vez mais.

Voltemos para a loba, à figueira e ao pastor Faustulo, no monte Palatino.

«Tinha abrigado a infância...» diz-nos Tácito. É difícil imaginar uma loba
permanecendo durante anos sob uma mesma figueira, sem que pastores e
caçadores não fossem desalojá-la a golpes de flecha. Por todas essas
inverossimilhanças, nós não veremos nessa caridosa «loba» a não ser uma
prostituta de grande coração. E esta conclusão concorda com a tradição
judia contemporânea às palavras de Varrón. Constitui uma áspera réplica
deste.

Varrón, poeta e polígrafo latino, legou-nos um De re rustica, um tratado
de agricultura. Isso é mais ou menos tudo o que fica de um conjunto hoje
desaparecido. Viveu dos anos 116 aos 27 antes de nossa era. Morreu
deixando atrás de si a reputação de uma brilhante inteligência, verdadeira
enciclopédia da época.

Em nosso primeiro volume demonstramos que o Apocalipse não foi
redigido por João, o evangelista, por volta do ano 94, mas sim pelo próprio
Jesus, antes de retornar de seu exílio no Egito, quer dizer pouco antes dos
anos 27 a 29 de nossa era, só meio século depois da morte de Varrón e da
difusão da lenda relativa ao nascimento de Roma.

E pela primeira vez nos textos antigos vêem ali o termo «prostituta»
utilizado para designar à capital do Império romano:

«Veio um dos sete anjos que tinham as sete taças, e falou comigo e me
disse: Vêem, mostrarei o julgamento da grande prostituta que está sentada
sobre as grandes águas. Com ela fornicaram os reis da terra, e os
moradores da terra se embriagaram com o vinho de sua fornicação.» (Cf.
Apocalipse, 17, 1-2.)

«Os dez chifres que vê são dez reis, os quais não receberam ainda a
realeza, mas com a Besta receberão a autoridade de reis por uma hora [...]
Os dez chifres que vê, igual à Besta, aborrecerão à prostituta, e a deixarão
desolada e nua, e comerão suas carnes e a queimarão ao fogo [...] A mulher
que viu é aquela cidade grande que tem a soberania sobre todos os reis da
terra.» (Cf. Apocalipse, 17, 12-18.)
«As águas que vê, sobre as quais está sentada a rameira, são os povos,
as multidões, as nações e as línguas...» (Cf. Apocalipse, 17, 15.)

«Saúde, glória, honra e poder são de nosso Deus, porque verdadeiros e
justos são seus julgamentos, pois julgou a grande prostituta que corrompia
a terra com sua fornicação, e vingou o sangue de seus servos por sua mão
[...] E sua fumaça subirá pelos séculos dos séculos...» (Cf. Apocalipse, 19, 1-
3.)

Esse termo de «prostituta» incluía, além disso, uma degradação
metafísica, e aos olhos dos judeus letrados e místicos, mais ou menos
iniciados nos ocultos da cabala, este fato subentendido sublinhava ainda
mais seu horror para tudo o que materializava Roma.

Em hebreu, a palavra prostituta se traduz por quiiphah. Designa um
mundo, um plano, uma «biosfera maléfica», uma dimensão em que tudo o
que na vida tem de corrompido, de contrário aos absolutos intuitos do
Absoluto, e de eternamente rechaçado por ele, deve ser expulso, e
concentrado nessa espécie de excrementos metafísicos. De fato, é o mundo
demoníaco.

A quiiphah é pois, em certo modo, o cubo de lixo do mundo invisível.
Subdivide-se em dez planos ou esferas secundárias, que então, em plural,
levam o nome de quiiphtoh, cada uma delas oposta a seu sephirah
correspondente (plural: sephiroth). Daí e desse conjunto se desprende todo
um universo metafísico complicado, mas profundamente apaixonante pelo
que se refere a seu estudo. Remetemos ao leitor às obras especializadas na
difusão da cabala.

Por esses rápidos paralelismos analógicos se compreende então até que
ponto os judeus integristas, especialmente os zelotes, odiavam tudo aquilo
que simbolizava o Império romano, e particularmente sua capital: Roma.

Se a isso se acrescentam as dezenas de milhares de combatentes
procedentes da resistência judia que, transportados da Palestina à Itália,
terminaram sua vida em meio dos horrores dos jogos circenses; se se
acrescentar a isso milhares de mulheres e de jovens, de meninos e meninas
que foram vendidos ali, tanto a particulares como a proprietários de
lupanares, e tudo isso muito antes de que os cristãos descendessem por sua
vez às arenas, compreenderá-se até que ponto foi vivo o ódio para Roma,
dos tempos em que Jesus redigiu seu Apocalipse e o enviou mediante um
mensageiro a seu primo João.

Nós citaremos simplesmente a forma como Tito, filho do Vespasiano,
celebrou o aniversário de seu irmão menor, Domiciano: «Esse grande
príncipe solenizou naquele mesmo lugar da Cesaréia o aniversário do
nascimento de seu irmão Domiciano com grandes magnificências, e a costa
da vida de mais de dois mil e quinhentos dos judeus prisioneiros aos que se
julgou a morte. Parte deles foram queimados vivos, o resto foi obrigado a
combater contra as feras ou uns contra os outros, como gladiadores e por
mais grandiosa que parecesse a desumanidade que fazia perecer a esse
povo de tão diversas maneiras, os romanos estavam persuadidos de que
seu crime merecia um castigo ainda mais rude. Tito foi a seguir de Cesaréia
à Berite, que é uma cidade de Fenícia e uma colônia romana. Como
permaneceu ali longo tempo, celebrou, com ainda mais magnificência, o dia
do nascimento de seu pai, o imperador Vespasiano. Entre tantas diversões e
espetáculos que deu ao povo, viu-se perecer a numerosos judeus da mesma
maneira que acabo de contar». (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, VII,
VIII.)

Na obra de Roland Auguet Cruauté et Civilisation: les jeux romains se
encontrará todo o referente aos combates de gladiadores, de feras entre si,
de homens contra feras, de vítimas (de ambos os sexos) sofrendo atrozes
suplícios no curso de reconstruções mitológicas, como algumas mulheres
condenadas a morte, que, encerradas e «apresentadas» em uma vaca de
madeira a um touro em zelo ficavam rasgadas vaginalmente a fim de
representar de forma real o mito de Pasífae.

19 - O incêndio de Roma no ano 64

A verdade não tem hora, é de todos os tempos, precisamente quando nos
parece inoportuna.

dr. A. Schweitzer, A l'oree de laforêt vierge

No livro XV, capítulo XXXVIII, dos Anais de Tácito lemos o seguinte:

«A seguir sobreveio um desastre (não se sabe se devido ao azar ou a
malignidade do príncipe, já que as duas versões têm seus partidários). Mas
foi o mais grave e o mais espantoso de todos os que a violência de um
incêndio fez experimentar a Roma.» E o fogo prendeu primeiro na parte do
Circo contígüa aos Montes Palatino e Celio. Ali, por causa das tendas
repletas de mercadorias onde se alimenta a chama, o incêndio, já violento
desde seu nascimento e ativado pelo vento, propagou-se a todo o longo do
Circo. Porque não havia nem casas protegidas por fortes cercados, nem
templos rodeados de muros, nem nada que pudesse opor-se ao progresso
das chamas. De modo que se estendeu impetuosamente, primeiro sobre as
partes planas, logo se equilibrou para as alturas, e descia de novo para
assolar as partes baixas, com a mesma rapidez com que a enfermidade
adianta a todos os medicamentos, pois a cidade lhe oferecia uma presa
fácil, com suas ruelas estreitas e tortuosas, suas ruas riscadas sem ordem,
como a Roma de antigamente. Além disso, as lamentações das mulheres
aterrorizadas, a debilidade da idade ou a inexperiência da infância, aqueles
que pensavam em sua própria segurança ou na de outros, os que
arrastavam ou esperavam aos mais débeis, uns atrasando-se e outros
precipitando-se, obstaculizavam todos os socorros.» Freqüentemente, ao
olhar para trás, a gente era atropelado pelos lados ou por diante. Se a gente
conseguia escapar para a vizinhança, via que este também estava envolto
em chamas, e inclusive os bairros aos que por sua lonjura se acreditava
abrigado das chamas, os encontrava no mesmo estado.» Por último, ao não
saber já o que teriam que evitar ou procurar, entorpeciam-se as ruas, a
gente se tombava a campo atravessaddo. Alguns, ao ter perdido toda sua
fortuna, e ao não ter já nem sequer com o que auxiliar às necessidades
cotidianas, e outros por amor para, aqueles aos que não tinham podido
arrancar à morte, pereceram, embora pudessem salvar-se. E ninguém se
atrevia a combater o incêndio ante as ameaças repetidas daqueles que, em
grande número, impediam de apagá-lo. Outros lançavam abertamente
tochas, e gritavam que estavam autorizados a fazê-lo, bem porque queriam
exercer suas rapinas com mais facilidade, ou porque efetivamente
receberam ordens.

»Durante esse tempo Nero estava no Antium, e não chegou a Roma a não
ser no momento em que o fogo se aproximava da casa que ele tinha
construído para unir o Palatium com os jardins de Mecenas. Mas não se
pôde deter o incêndio antes de que tivesse devorado o Palatium, suas
habitações e tudo em torno.

»Para aliviar ao povo errante e sem asilo. Nero lhes abriu as portas do
campo de Marte, os monumentos de Agripa e inclusive seus próprios jardins.
Mandou construir a toda pressa barracos para acolher às multidões de
indigentes. Fizeram-se chegar mantimentos de Ostia e dos principais
municípios, e se reduziu o preço do trigo até três sestercios.

»Mas todas essas medidas não passou em branco sua meta: a
popularidade; porque se tinha estendido o rumor de que no mesmo
momento em que a cidade tinha aceso em chamas, o príncipe tinha subido
a seu teatro doméstico e tinha cantado as ruínas de Tróia, procurando no
passado comparações com o desastre presente.»

Por que Tróia? Quando a gente recorda que Paulo foi detido (depois de sua
fuga de Roma, durante o incêndio desta), em Troas, capital da antiga Tróade
um pode perguntar-se se não foram os cristãos os que, inconscientemente,
imaginaram, por simples associação de idéias, esse pseudo-poema sobre as
ruínas de Tróia, relacionadas com o incêndio de Roma. E esses cristãos que
lançam semelhante acusação, não são acaso os «da casa de César» dos
quais fala Paulo em sua Epístola aos Filipenses (4, 22)? Uma vez mais, Nero,
em sua debilidade, ao tolerar a messianistas entre seus servidores, tinha
alimentado em seu seio a víboras!

Mas sigamos lendo a Tácito (Anais, libero XV, 38-44):

«Até o sexto dia não se conseguiu deter o incêndio na parte baixa das
Esquilias, demolindo os edifícios em um espaço muito grande, para opor
àquela contínua violência uma planície nua e, por assim dizê-lo, o vazio do
céu. Mas ainda não se desterrou o temor e o povo não tinha recuperado a
esperança, quando o fogo se reavivou, embora em um bairro mais aberto;
portanto também houve menos vítimas humanas. Mas os templos dos
deuses e os pórticos dedicados ao recreio deixaram ruínas mais extensas.
»Este segundo incêndio deu lugar a piores rumores, porque começou em
uma propriedade de Tigelino, no bairro Emiliano, e se acreditava que Nero
procurava a glória de fundar uma cidade nova e de lhe dar seu nome. Roma
está dividida em quatorze regiões; quatro permaneceram ilesas, três
ficaram destruídas até o chão, as outras sete apresentavam apenas alguns
vestígios de moradias em ruínas ou meio queimadas.

»Seria difícil dar o número de casas, mansões e templos destruídos. Mas os
mais antigos monumentos da religião, que Sérvio Tulio tinha consagrado à
Lua, o Grande Altar, e o templo dedicado ao Hércules Redentor pelo arcadio
Evandro, o templo do Júpiter Estator, levantado pelo Rômulo, o palácio de
Numa, o santuário de Vesta, com os Penates do povo romano, foram
inteiramente destruídos pelo fogo, sem contar as riquezas, prêmios de
tantas vitórias, as maravilhas da arte grega, por último os monumentos
antigos e ainda intactos do gênio literário. Inclusive em meio dos
embelezamentos da cidade renascente, os anciões recordavam numerosos
tesouros cuja perda era irreparável. Alguns observaram que o incêndio
acendeu o dia quatorze antes das calendas do mês sextilis, o mesmo dia em
que os Senones, depois de ter tomado Roma, tinham-na entregue às
chamas. Outros se tomaram inclusive a moléstia de levar os cálculos até
encontrar um número, o mesmo, para contar os anos, os meses e os dias
que transcorreram entre os dois incêndios.

»Seja o que for. Nero aproveitou as ruínas de sua pátria, e construiu uma
mansão em que as pedrarias e o ouro não eram o mais maravilhoso do que
havia, já que esse luxo há tempo que era normal e corrente. Mas se viam
campos cultivados, estanque, e, como nas solidões, aqui bosques, lá
espaços descobertos, e formosas perspectivas. Esses trabalhos tinham sido
dirigidos e dispostos por Severo e Celer, cuja audaz imaginação exigia à arte
realizar o que a natureza se negou a fazer e se convertia em um jogo abusar
dos recursos de um príncipe. Tinham-lhe prometido abrir um canal
navegável do lago Inferno, perto do Cumes, até as bocas do Tíber, ao longo
de um litoral árido ou através das montanhas. Para alimentar o canal não há
mais água que as dos pântanos Pontinos, o resto do terreno é seco ou
escarpado, e inclusive se se tivesse conseguido vencer todos os obstáculos,
a empresa era excessiva e não se justificava suficientemente. Mas Nero
desejava o incrível, e tentou abrir as altitudes vizinhas à Averna. Subsistem
ainda restos de sua vã esperança.

»Agora bem, os terrenos de Roma que não foram invadidos pela mansão
de Nero, não foram reconstruídos ao azar e sem ordem como depois do
incêndio dos francos. As casas ficaram em alinhamento, as ruas foram
alargadas, a altura das casas se reduziu, abriram-se pátios e se elevaram
pórticos para proteger a fachada das mansões de edifícios. Esses pórticos
Nero prometeu construi-los com seus denários, também se comprometeu a
devolver a seus proprietários os terrenos por construir, depois de fazê-los
escombros. Instituiu, além disso, terrenos proporcionais à classe e à fortuna
de cada qual, e determinou o prazo no que, uma vez terminadas as
habitações ou os pisos, poderiam entrar neles. Destinava os pântanos de
Ostia a receber os escombros, e queria que os navios que remontavam o
curso do Tíber com um carregamento de trigo, descessem carregados de
escombros. Quanto às construções, quis que em algumas de suas partes
não entrasse a madeira, mas sim, para assegurar sua solidez, empregasse a
pedra de Gabias ou a de Alba, que são a prova de fogo. A água era desviada
abusivamente por alguns particulares para seu uso; para que fluíra com
mais abundância e se achasse em mais lugares à disposição do público,
estabeleceu vigilância; tiveram que ficar à disposição de todos, em lugares
de fácil acesso, setores preparados contra incêndios; por último, as
moradias não deviam ter paredes medianeiras, ao ter cada casa seu recinto
particular. Essas medidas, que foram bem acolhidas porque eram úteis,
contribuíram também ao embelezamento da nova cidade. Alguns
acreditavam, não obstante, que o antigo plano de Roma era melhor para a
salubridade, já que o estreitamento das ruelas e a altura dos edifícios não
permitia que passassem os ardentes raios do sol, enquanto que agora,
esses amplos espaços, aos que não protege nenhuma sombra, são
abrasados por um calor insuportável.

»Estas foram quão medidas aconselhava a prudência humana.

Logo se recorreu às expiações aos deuses e se consultaram os livros da
sibila, apoiando-se nos quais se dirigiram orações públicas ao Vulcano, à
Ceres e à Proserpina; ofereceu-se deste modo um sacrifício expiatório ao
Juno por meio das matronas, primeiro no Capitólio, logo à borda do mar
mais próximo, do que se tirou água para orvalhar com ela o templo e a
estátua da deusa; por último se celebraram assentos para vigílias por meio
das mulheres casadouras. Mas nenhum meio humano, nem larguezas
principescas nem cerimônias expiatórias fizeram calar o infamante rumor
segundo o qual o incêndio fora ordenado por Nero.

»De maneira que, para sossegá-lo, procurou uns supostos culpados, e
infligiu refinadas torturas àqueles cujas abominações faziam detestáveis e
aos que a gente chamava cristãos. Esse nome lhes vem de Cristo, que, sob
o principado de Tibério, fora entregue ao suplício pelo procurador Poncio
Pilatos. Esta detestável superstição, embora reprimida no momento,
ressurgia de novo, e não só na Judéia, onde tinha nascido este mal, mas
também inclusive em Roma, onde conflui e acha numerosa clientela tudo
que de horroroso e vergonhoso há no mundo.

»Começou-se, pois, por capturar àqueles que eram abertamente
partidários, e logo, segundo suas indicações, a outros muitos, que, se não
eram culpados do crime do incêndio, sim o eram de ódio para o gênero
humano.

»Não se contentaram fazendo-os perecer; converteram em um jogo
revesti-los com peles de animais para que fossem rasgados pelos dentes
dos cães; ou os atavam à cruzes melados com matérias inflamáveis, e
quando tinha expirado o dia, iluminavam as trevas como tochas. Nero tinha
devotado seus jardins para este espetáculo, e proporcionava jogos ao Circo,
onde às vezes participava da carreira de pé sobre seu carro, ou às vezes,
disfarçado de chofer, mesclava-se entre o povo.

»Mas embora estas pessoas fossem culpadas e dignas dos últimos rigores,
alguém tinha piedade delas, posto que a gente se dizia que não era só com
vistas ao interesse público, mas sim pela crueldade de um sozinho, por isso
as fazia desaparecer.»

E aqui, particularizemos.

Não deixa de ser curioso que este incêndio se produza precisamente no
momento em que Menahem, neto de Judas da Gamala, em hebreu «o
Consolador», está pondo de novo Judéia à sangue e fogo.

Também é curioso que Nero, desejoso de contemplar um grande incêndio
para compor melhor um poema que celebrasse o de Tróia, partisse ao
Antium em lugar de ficar, senão em Roma, ao menos bem perto, em Ostia
por exemplo, para contemplar o espetáculo.

É, na verdade, estranho que uns romanos, e o próprio Nero, tão
supersticiosos, aceitassem cometer sacrilégios tais como a destruição dos
templos dos deuses, e sobretudo os dos mais sagrados, ligados à vida
oculta de Roma.

De fato, quais eram esses que «em grande número, impediam de apagá-
lo»? Quais eram esses que «lançavam abertamente tochas, e gritavam que
estavam autorizados a fazê-lo, bem porque queriam exercer suas rapinas
com mais facilidade, ou porque efetivamente tinham recebido ordens»? São
«os da casa de César», é evidente.

Porque as medidas de assistência adotadas por Nero não são as de um
louco delirante.

Quanto à acusação extremamente grave que levanta Tácito contra aqueles
aos quais chama «cristãos», consiste no fato de «odiar ao gênero humano»,
«de ser dignos dos últimos rigores», e que, apesar de tudo, «o interesse
público exigia fazê-los desaparecer», e demonstra simplesmente que, no
curso das pesquisas, tinham descoberto exemplares do Apocalipse, e vamos
demonstrar.

Pretende-se que esse livro foi redigido pelo apóstolo João no ano 98 ou 94.
Pois bem, quando se produz o incêndio de Roma nos achamos no ano de 64.

E no Apocalipse encontramos o relato desse incêndio de Roma, que
aconteceu no ano 64, e o da queda de Jerusalém e de seu santo Templo,
acontecida em 70.

Por conseguinte, ou o tal João se burla do mundo ao apresentar como
profeta de um livro que anuncia fatos produzidos trinta anos antes, ou o
Apocalipse não é obra dele; se for realmente profeta (ou simplesmente um
esquema de combate, semelhante aos manuais de combate ritual dos
manuscritos do mar Morto), é muito anterior.

O leitor encontrará no precedente volume os motivos pelos quais
estimamos que o autor desse livro é o próprio Jesus.

O Apocalipse oferece no capítulo 11, versículos 1 aos 13, o relato da
revolução do ano 44, e a crucificação de Simão-Pedro e de Jacobo-Santiago
no ano 47, em Jerusalém.

O capítulo 18 nos descreve o incêndio de Roma. Porque é evidente que a
Babilônia do Apocalipse não é a antiga cidade desse nome, destruída desde
fazia séculos; todos os exegetas declaram que se trata de Roma, e têm
razão. Fala-se de uns marinheiros que, desde o mar, contemplam o incêndio.
Agora bem. Babilônia estava muito longe, terra adentro. Mas Roma em
chamas era visível desde Ostia, seu porto, que estava muito perto, e os
navios, na desembocadura do Tíber, podiam contemplar o incêndio com
todo seu horror. Além disso, Roma está construída sobre colinas, e do litoral
o incêndio era perfeitamente visível. O texto do Apocalipse de conteúdo
mais significativo corresponde aos versículos 1 a 8 e 11 a 17 do capítulo 18.
E o que dizer disto: «Pilotos e navegantes, marinheiros e quantos brigam no
mar se detiveram ao longe e gritaram, ao contemplar a fumaça de seu
incêndio; dizendo: Que outra é semelhante a grande cidade? [...] Ai, ai, Oh
cidade grande, na qual se enriqueceram com seu luxo quantos tinham
naves no mar, que em uma só hora foi aniquilada!», (Op. cit., 18, 18-19.)

Vêm depois os versículos 20 a 24. E segue: «depois disto ouvi no céu uma
voz forte de numerosa multidão, que dizia: Aleluia! Saúde, glória e poder a
nosso Deus!, Porque verdadeiros e justos são seus julgamentos, pois julgou
a grande prostituta que corrompeu a terra com sua fornicação, e vingou o
sangue de seus servos por sua mão. E de novo disseram: Aleluia! Pois sua
fumaça subirá pelos séculos dos séculos». (Op. cit., 19, 1-4.)

É evidente que os romanos, ante os cadáveres calcinados de milhares de
mulheres e de meninos, ao inteirar-se de quão cristãos residiam em Roma
lhes desejavam e esperavam febrilmente desde fazia tanto tempo, puderam
adivinhar, com bastante acerto, que esses fanáticos que foram perdendo a
paciência tivessem acelerado a realização dessa delirante profecia, e
organizado sabiamente toda essa montagem. Porque os acontecimentos da
Judéia eram conhecidos em Roma. E a destruição de todo o patrimônio,
religioso e civil, suscitou uma verdadeira corrente de ódio para eles. E
desgraçadamente o Apocalipse, tanto se era profético como se não, estava
ali para justificar a reação romana.

Porque, afinal de contas, como duvidar que fossem os cristãos que
incendiassem Roma, quando se lêem essas frases vingativas nesse mesmo
capítulo 18, onde está tão bem descrito o incêndio?:

«lhe dêem a ela como ela deu! Mais ainda, dupliquem lhe dando em dobro
segundo suas obras: na taça em que ela mesclou, lhe mesclem o dobro [...]
»Por isso virão em um mesmo dia suas pragas: a mortandade, o duelo e a
fome, e será consumida pelo fogo...» (Apocalipse, 18, 6-8.)

Assim, ao chegar a Roma a notícia da revolução levada a cabo em
Jerusalém por Menahem, neto de Judas da Gamala, era inevitável que os
elementos extremistas do messianismo, ébrios de vingança, excitados por
tais leituras, pensassem em executar as ordens desumanas do Apocalipse,
ordens lançadas já no ano 27, quer dizer, trinta e sete anos antes, pelo
próprio Jesus, seu verdadeiro autor, antes de sua chegada às bordas do
Jordão.

Enfim, com o Apocalipse, suas maldições, suas ameaças, seu ódio
delirante contra as nações e sobretudo contra Roma, achamo-nos muito
longe da cantinela habitual: perdão das ofensas, amor aos inimigos, depois
de que a bochecha direita seja esbofeteada, oferecer a esquerda; quem
golpeia pela espada, perecerá pela espada, etcétera.

Se o Apocalipse não fosse conhecido muito antes do ano 94, data em que
a Igreja pretende que João, o Evangelista, efetuou a redação deste livro
(absoluta contradição, por certo, com o espírito evangélico de então), como
podia acusar Tácito aos cristãos de «odiar ao gênero humano»? Porque «lhe
Dêem a ela como ela deu...», isso é o Taitón, e não o evangelho.
(Apocalipse, 18, 6.)

Tácito viveu do ano 55 aos 120. Como morreu quando contava 65 anos de
idade, devia redigir suas Histórias e seus Anais nos vizinhos de 95, por
conseguinte, quando contava mais de quarenta anos.

Se o Apocalipse fosse de João, o Evangelista, e datasse do ano 94, como ia
conhecer o Tácito, dado que estes textos cristãos foram guardados em
segredo durante longo tempo, e por diversos motivos?

Pelo contrário, se era do mesmo Jesus, se o redigiu por volta do ano 27 de
nossa era, antes de sua chegada ao Jordão, fazia já perto de sessenta anos
que se pôde conhecer esse livro decisivo, e as perseguições que seguiram
ao incêndio de Roma deveriam pô-lo de manifesto. Por isso, ante esse
pavoroso texto, Tácito pôde falar de uma seita «que odiava ao gênero
humano».

Mas, em contrapartida a esta constatação, é evidente que Tácito ignora
nossos evangelhos atuais, todo inocência, mansidão e perdão. E com razão,
já que não serão redigidos até que os cristãos se achem no poder, com
Constantino, no século IV, em sua forma atual.

Uma das provas complementares de que João jamais «viu» o Apocalipse
reside no testemunho de Prócero, seu discípulo, chamado nos Atos dos
Apóstolos (6, 5), como um dos sete diáconos escolhidos por estes para
assisti-los. Prócoro compôs um livro titulado As viagens de João (a quem
chama Iochanan, como em hebreu). Tillemont atribui o manuscrito que
chegou até nós ao século XI e V. Guerin o descobriu em um convento de
Pathmos no século XIX. Pois bem, esse Prócoro, que diz que viveu dez anos
com o apóstolo João (de 86 aos 96), primeiro em Pathmos e logo em Éfeso,
quem afirma que escreveu com sua própria mão o evangelho que lhe ditava
o apóstolo, que assistiu a seus últimos instantes, e que lhe viu subir aos
céus, como Jesus, esse Prócoro ignora que João, em Pathmos, tinha
composto o Apocalipse, João não lhe dissera nada dessa visão alucinante.
Mais ainda. Prócoro ignora que João foi arrojado a uma caldeira de azeite
fervendo em Roma! Incrível!

Por que? Pois simplesmente porque o Apocalipse fazia já sessenta e oito
anos que fora escrito e difundido por um tal Jesus, quem declara de um bom
princípio que é o autor e que ele é o «vidente» a quem Deus manifestou. E
Prócoro não ignora nada de tudo isto. Quanto à aventura de João em Roma,
para que nosso escriba a conhecesse seria necessário que o tal João
pudesse ir a Roma, e naquela época, desde Tibério e Claudio, aos judeus
livres lhes proibiu permanecer na capital do Império. E isto tampouco o
ignora Prócoro.

Outro argumento em favor da antigüidade do Apocalipse, primeiro escrito
cristão, como tão bem adivinhou Daniel Massé, encontramo-lo na
comparação entre algumas de suas passagens e outros extraídos dos Atos.

Estes últimos, no capítulo 15, versículo 28, dizem o seguinte:

«Porque nos pareceu ao Espírito Santo e a nós não nos impor nenhuma
outra carga mais que estas necessárias: que lhes abstenham das carnes
imoladas aos ídolos, de sangue e dos animais afogados, e da fornicação».

Esse decreto se adota durante o famoso concílio de Jerusalém, quer dizer no
ano 47. Pois bem, o que lemos no Apocalipse? Isto: «Mensagem à igreja de
Pérgamo: [...] Mas tenho algo contra ti: tem aí alguns que professam a
doutrina de Balam, o qual ensinava ao Balac a arrojar escândalo ante os
filhos de Israel, induzindo-os a comer carnes sacrificadas aos ídolos e a
fornicar...» (Cf. Apocalipse, 2, 11 e 14.)

«Mensagem à igreja da Tiatira [...] Mas tenho contra ti que deixe fazer à
mulher, Jezabel, que se chama profetisa, ensinar e seduzir a meus servos
para fazê-los fornicar e comer dos sacrifícios dos ídolos...»(Op. cit., 2, 20.)

É evidente que resultaria assombroso que o Apocalipse, supostamente
ditado por Jesus Cristo ao João no curso de sua visão, no ano 94, em
Pathmos, limitasse-se a apresentar como uma «revelação» divina umas
decisões adotadas pelo concílio de Jerusalém no ano 47. Evidentemente, o
que aconteceu foi o contrário: os chefes do movimento cristão, reunidos em
Jerusalém em um decisivo conselho de guerra, tomaram essa decisão
porque vinha diretamente de Jesus, autor do Apocalipse por volta do ano 27
de nossa era.

Que mais adiante acrescentassem interpolações a este livro, para fazer
acreditar melhor que estava destinado aos cristãos de finais do século I, não
muda em nada o problema. Os elementos de base, quer dizer a fração mais
importante do Apocalipse, são do próprio Jesus, como declara no prólogo do
livro.

Mas permanece uma confissão involuntária sobre a responsabilidade dos
cristãos no incêndio de Roma no ano 64. Existe um apócrifo intitulado Atos
de Pedro. Entre as Acta apostolorum apocrypha ocupam, efetivamente, um
lugar especial. O abade Vouaux, em seu prefácio à tradução das diversas
versões (imprimatur, Nancy, 1921), observa que são «os de caráter mais
controvertido. Se em princípio viu neles uma obra de espírito gnóstico, logo
em troca os restituiu, não sem certas reservas, a seu verdadeiro lugar, aos
círculos populares ortodoxos dos quais saíram. Essas mesmas vacilações
provam o interesse que pode ter o estudo de suas doutrinas, por pobres que
sejam».

Acrescentaremos esta opinião de Daniel-Rops: «De um ponto de vista
mais estrito, os apócrifos contribuem alguns detalhes históricos que podem
resultar nada desprezíveis». (Cf. Daniel-Rops, Les Evangiles apocryphes.)

E, efetivamente, os Atos de Pedro nos contribuem a confirmação do que
sempre suspeitamos sobre os verdadeiros incendiários de Roma no ano 64.
Claro que o Apocalipse nos predizia isso com bastante claridade: a capital
do Império romano tinha que ser destruída por um incêndio gigantesco, em
castigo pela morte de tantos combatentes messianistas judeus nos cruéis
jogos circenses. Não podia tratar-se ainda de cristãos, já que as
perseguições contra a nova religião não começaram até depois de tal
incêndio, pois a primeira data, com efeito, do ano 64, segundo os
historiadores eclesiásticos, e porque se imputava a estes sectários tal
incendeio. Em troca, e sempre, cada vez que Judas e Galiléia se levantaram
em armas contra a ocupação romana, aos prisioneiros zelotes esperavam a
terrível morte reservada por Roma aos rebeldes: crucificação, fogueira,
combate a morte nas arenas, bem contra as feras, bem contra eles
mesmos, sob o aguilhão de ferro candente dirigido pelos servos do circo.

Mas os mesmos historiadores eclesiásticos rechaçaram sempre com
indignação a acusação lançada contra os cristãos no referente a sua
responsabilidade nesse incêndio. Agora bem, os Atos de Pedro possuem
diversas versões. No original grego, além de um fragmento muito curto, não
fica já a não ser o final da obra, em dois manuscritos tardios, um do século
IX, e o segundo do X ou do XI. Os manuscritos da versão latina são do
século VII, as versões coptas são do V, mas a siríaca derivaria diretamente
do original grego, segundo uns, ou da versão copta utilizada pelos
monofisitas do Egito e de Síria. Existem, do mesmo modo, versões armênia,
árabe e etíope.

E a versão siríaca nos contribui uma estranha ameaça, e, uma vez mais,
vemos ali a um possuidor do poder apostólico subjugando às mulheres em
proveito de sua ação. Neste apócrifo Simão-Pedro pelo visto foi à Roma, e ali
ganhara para sua causa às quatro concubinas do prefeito do pretorio,
chamado Agripa. Este último, furioso, faria prender Simão-Pedro e
ordenando lhe crucificar por ateísmo, acusação legal e habitual contra os
cristãos. Agora vem o protesto destes em favor de Pedro: «Então todos os
cristãos foram em turba, ricos e pobres, órfãos e viúvas, humildes e
poderosos. Queriam ver e apoderar-se de Pedro, e o povo gritava sem
interrupção e com voz unânime: Do que é culpado Pedro, Agripa? Que dano
tem feito? Diga-lhe aos romanos! Comete uma injustiça contra Pedro, Oh
Agripa! Nós, que somos romanos, não vimos que Pedro fizesse nenhuma só
ação merecedora da morte. Se não o liberar, incendiaremos a imensa Roma
com fogo e sairemos dela.» (Cf. Atos de Pedro, versão siríaca, XXXVI.)

Está muito claro.

E o incêndio de Roma no ano 64, que foi obra de cristãos fanáticos, teve
como êmulo o de Bizancio, no ano 404. Estourou na mesma noite em que
João Crisóstomo teve que abandonar a cidade, exilado por ordem do
imperador Arcadio, e a pedido da imperatriz Eudoxia, um traje de gala que
não aceitava as ordens autoritárias e a intolerância de Crisóstomo. Arderam,
em especial, a basílica de Santa Sofia, o Senado, a magnífica biblioteca,
etc.; e a imperatriz Eudoxia morreu um ano mais tarde, durante um parto.

No intervalo se produziu outro incêndio, o do palácio imperial do
Nicomedes, no ano 303, que também foi atribuído aos cristãos e que
suscitou contra eles uma nova perseguição.

E o que dizer do cinismo agressivo de Tertuliano, quem não vacila em
declarar, no ano 197: «Estamos em todas partes, porque somos
numerosos... Se não fôssemos a não ser um pequeno grupo, uma só noite e
algumas tochas bastariam». (Cf. Tertuliano, Apologeticen, XXXVI, 3.)

Depois disto, já poderão os cristãos afirmar que sua religião lhes impõe
ser cidadãos pacíficos.

Por outra parte, Tácito nos diz que o incêndio de Roma estourou «dia
quatorze antes das calendas do mês sextilis» (cf. Tácito, Anais, XV, XXXVIII),
quer dizer em 20 de julho. Não obstante, tendo em conta os censurados,
mutilados e interpolados que estiveram por parte dos monges copistas da
Alta e Baixa Idade Média, e constatando que os únicos manuscritos antigos
de Tácito que chegaram até nós são dos séculos IX e XI, seremos
desconfiados. Porque há outros textos, mais antigos que estes, que nos dão
outra data, que provavelmente é a verdadeira.

No capítulo que trata sobre a correspondência apócrifa entre Paulo e
Séneca há uma carta, a que décima segunda, que nos revela a verdade.
Claro que é apócrifa, mas foi redigida por um cristão de boa vontade, que
não suspeitava que, fazendo-o, falava pelos cotovelos e destruiria a
maquiagem de seus sucessores da Idade Média. Vejamos esta carta:
«Séneca ao Paulo, saúde! Saúdo-o, meu muito querido Paulo. Acredite que
não sinto tristeza de que sua inocência se veja condenada a tão freqüentes
suplícios? De que o povo, lhes julgando tão pouco sensíveis e tão criminosos
lhes atribua todas as desgraças da cidade? Mas nos resignemos, e vivamos
da sorte que a Fortuna nos proporciona, até que uma felicidade inalterável
ponha fim a nossos males. As idades antigas também tiveram que sofrer ao
macedônio filho de Filipo, e ao Darío, e ao Dionisio, o nosso, e ao C. César,
que não tiveram mais regra que seu capricho. Sobre a origem dos
freqüentes incêndios que sofre Roma, não há dúvida possível. Mas se uns
homens obscuros pudessem dizer qual é a causa, se estivesse permitido
nestas trevas falar impunemente, todos os olhos veriam então toda a
verdade. Os cristãos e os judeus são enviados sem cessar ao suplício como
incendiários. Mas o bandido, seja quem for, cuja voluptuosidade está em
seu sangue, e que se cobre de mentiras, a esse por força lhe chegará seu
dia! Do mesmo modo que os melhores deram sua cabeça como vítimas
expiatórias, do mesmo modo esse homem será condenado, por todos, ao
fogo que lhe consumirá. Cento e trinta e duas casas, quatro mansões,
arderam durante seis dias; o sétimo cedeu o desastre. Desejo, irmão, que
esteja bem de saúde. 28 de março, sob o consulado de Frugi e de Basso».

Ao indicar os dois cônsuis anuais, temos a prova de que a carta data do
ano 64, mas não de 20 de julho, a não ser de 28 de março. E aí está a
confissão.

Porque esses textos são do século IV. Esta correspondência entre Paulo e
Séneca a entrevista São Jerônimo no ano 362, e São Agustín em 414. Não
há nada anterior.

Assim, em uma época em que não se teme a crítica livre, onde ninguém se
atreveria, bem por medo, ou por ignorância, a evocar a possibilidade de que
os cristãos tivessem incendiado Roma no ano 64, não vacilam em dar a data
exata do início do incêndio: março do ano 64, já que a carta que fala dele é
do 28 do mesmo mês!

Sabemos, por outra parte, pelos historiadores antigos, dos que se ecoou
Daniel-Rops em Jesus em seu tempo, que os procuradores romanos
desconfiavam da avalanche de peregrinos judeus que acudiam a Jerusalém
com ocasião da grande festa pascal. A cidadela Antonia, onde geralmente
se alojava uma coorte veterana e o tribuno que a mandava, quer dizer, seis
centúrias de legionários, via-se ocupada por consideráveis reforços, que
acampavam um pouco por toda parte, e que subiram da Cesaréia Marítima
com o procurador em pessoa.

Se é que a polícia romana não ignorava que todas as rebeliões judias
tinham seu início na Páscoa, quer dizer, na lua cheia do mês de Nisán, e
temos textos autênticos que expressam a certeza de que a liberação de
Israel teria como ponto de partida esse solene aniversário da saída do Egito:

«Do mesmo modo que Israel, antigamente, fora liberada do Egito no mês
de Nisán, voltará a sê-lo de novo no mês de Nisán...» (Cf. Talmud: Rosch
Haschana, XIV, 2.)
«Possuímos uma tradição precisa que nos ensina que a liberação de Israel
se produzirá a véspera de Páscoa, à entrada do Sábat...» (Cf. Rabbi Neftalí, -
Emeck Hammeleck, XXXII, 2.) Isto nos dá uma definição muito clara do dia
«J» e a hora «H» de toda insurreição judia organizada de antemão. Trata-se
da sexta-feira da semana pascal, no momento em que a lua cheia se eleva
por cima do vale de Cedrón, e o sol se oculta atrás dos vales de G-Hinnom e
Refaím. Claro que na prática terei que ter em conta certas contingências.
Mas se mantém em pé o fato de que a lua cheia da teqoupha da primavera
servia de sinal celeste e de esperança para toda a Palestina. De modo que
foi em março-abril quando Menahem levantou sua vez o estandarte da
revolução de 64, época do incêndio de Roma. Mas qual dos dois precedeu
ao outro? É difícil precisá-lo na atualidade, mas continua seguro,
historicamente, que esses dois acontecimentos estão interrelacionados e
que os separaram poucos dias. Sua sincronização era muito importante
como para que se passasse por cima, e não terei que desmentir às
profecias.

Muito mais tarde, ao censurar Flavio Josefo, pensar-se-ia em dar outra data
nos Anais de Tácito. Porque terei que evitar que pudesse estabelecer uma
relação entre o motivo desse atentado e a nova rebelião que acabava de
estalar na Judéia. Era preciso evitar que pudesse adivinhar-se que o incêndio
tinha sido provocado para estimular aos combatentes zelotes, lhes fazendo
acreditar que a profecia do Apocalipse começava a realizar-se e que o final
do Império romano estava à volta da esquina! Era muito importante que os
zelotes que tinham seguido ao Menahem (em hebreu: consolador, em
grego: paraklétos), neto de Judas da Gamala, sobrinho de Jesus, não se
desalentassem ante o contra-ataque romano.

Porque Flavio Josefo contribui seu testemunho em favor de Nero: «São
muito numerosos aqueles que contaram a história de Nero. Todavia, uns não
foram fiéis à verdade por gostá-lo, porque foram bem tratados por ele, e
outros, por ódio e por inimizade contra ele, maltrataram-no tão
impunemente com suas mentiras, que eles são os que merecem ser
vituperados». (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XX, vIII, 3.)

E a revolta de Menahem e o incêndio de Roma estiveram extranhamente
sincronizados. Julgue-se:

1) tudo isso estourou no ano 64, trinta e três anos depois da captura de
João, o Batista. E o trinta e três é, no Antigo Testamento, o número de toda
purificação, (cf. Levítico, 12, 4);

2) foi apreendido em 28 de maio do ano 31 de nossa era, e executado na
cidadela de Maqueronte em 29 de março do ano 32. Agora bem, o escriba
anônimo que compôs a pseudo-carta de Séneca ao Paulo, no século IV, dá a
data de 28 de março do ano 64. Portanto, não ignorava a relação entre o
aniversário da morte de João, o Batista, e a data do incêndio de Roma. E
inconscientemente se traiu.
Esse Menahem apoderou-se a seguir da fortaleza de Massada (que cairia,
nas circunstâncias que se fariam célebres, no ano 73), logo se fez
reconhecer como chefe da nova revolução, fez matar ao supremo sacerdote,
assim como ao irmão deste, chamado Ezequias, e ante todos esses êxitos se
converteu em um tirano insuportável. Então o povo se rebelou, e lhe deram
morte depois de haver submetido a numerosas sevícias. Podem-se
encontrar todos os detalhes na Guerra dos judeus de Flavio Josefo (livro II,
capítulos XXX-XXXII).

Mas, dirá o leitor, tem-se a segurança de que a revolução de 66 começou
em realidade em 64, com a de Menahem e o incêndio de Roma?

Nós responderemos que sim, e aqui estão os argumentos:

1) Foi em março do ano 64 quando Menahem içou o estandarte da nova
revolução judia. Mas não nos diz o motivo.

2) Naquela época, na Cesaréia Marítima, a antiga Torre de Estraton, judeus e
sírios disputam a administração da cidade. «Os judeus a querem governar,
argüindo que Herodes, seu rei, tinha-a construído», conta-nos Flavio Josefo.
Os sírios, aos quais ele também chama os gregos, alegam que é uma cidade
pagã, por seus templos, eretos pelo mesmo Herodes para o culto de seus
deuses, etc. E também é certo. E então estalam motins sangrentos. Por
último, Antonio Félix, procurador de Roma, as sufoca, e ao fim se pode
recorrer à arbitragem imperial. Uma delegação se embarca em direção à
Roma. Quantas semanas, ou inclusive meses, investirá para chegar? Paulo
necessita um ano para chegar de Cesaréia à Roma... Quanto tempo
transcorreria entre esta solicitude de arbitragem, entre sua decisão, o
embarque da delegação em Ostia e sua volta a Antioquia de Síria ou à
Cesaréia Marítima? Quanto tempo entre essa volta e a difusão da notícia de
que a cidade está definitivamente confiada aos gregos e aos sírios? Porque
aqui temos o texto de Flavio Josefo: «E os gregos da Cesaréia chegaram
com cartas de Nero: Que a cidade seja grega [...] E então se iniciou a
guerra, no ano XII do reinado de Nero, XVII do reinado de Herodes Agripa II».
(Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, II, 6.)

E Pierre Pascal, ao traduzir o texto eslavo de Flavio Josefo, observa, com
muita lógica: «Isso era no ano 66, mas a decisão de Nero de dar Cesaréia
aos gregos deveria ser anterior». (Op. cit., Editions du Rocher, Mônaco, P.
155.) E é algo evidente, se se tiverem em conta todos esses espaços de
tempo e essas esperas que evocavamos antes. Se contarmos um ano para ir
da Cesaréia à Roma, e um ano para voltar, incluindo a estadia na capital e a
espera da decisão imperial, quer dizer, dois anos no total, encontramo-nos
em 64 de nossa era. Mais ainda quanto que o incêndio de Roma em 64 não
reduziria os prazos de espera... Então se expõe uma pergunta inevitável:
esperou realmente Menahem a decisão de Nero para entrar em guerra? Ou
simplesmente iniciou a ofensiva apenas os sírios e os gregos partiram para
a Itália? Conhecendo o estado de espírito dos zelotes, a resposta vem dada
por si mesmo.
Façamos, pois, agora o inventário dos personagens que podiam ter um
interesse qualquer no incêndio de Roma, e que fossem o suficientemente
influentes para poder pôr em ação aos servidores do palácio imperial. (Cf.
Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, 38.)

Não revelaremos mais que sete nomes:

1) Nero: demonstramos que não era possível; não estava em Roma, não se
inteirou do incêndio até quatro dias mais tarde, e não tinha nenhum
interesse na destruição dos templos onde residia a vida espiritual e oculta
de todo o império, sendo ele, além disso, tão supersticioso como era.

2) Popea: Só fazia dois anos que era a esposa de Nero. Que interesse podia
ter em semelhante atentado? Nenhum, evidentemente. Além disso, estava
também no Antium, com Nero.

3) Burro: O prefeito do pretorio tinha morrido no ano 62. E que interesse
podia ter em tal atentado?

4) Tigelina: Substituía a Burro em suas funções, e podia ter organizado esse
incêndio a fim de desacreditar ao Nero, de quem tinha motivos para querer
vingar-se, é certo, mas a quem temia terrivelmente. Por outra parte, jamais
foi favorável aos judeus messianistas. E então, como justificar que esse
atentado sobreviesse exatamente para respaldar a insurreição de Menahem
na Judéia? Como justificar a eleição da data que coincidia com o aniversário
da captura de João, o Batista, por parte desses romanos sem escrúpulos e
sem espiritualidade?

5) Séneca: Se já era hostil ao progressismo de Nero, por conservador,
imbuído dos princípios de superioridade de Roma, justamente por essas
mesmas razões não podia ser favorável a essa nova revolução judia, e as
objeções feitas no caso de Tigelino podem aplicar-se igualmente à Séneca. E
este estóico reacionário não podia carregar com a responsabilidade de
destruir os templos romanos mais sagrados.

6) Saulo-Paulo: Amigo de infância de Menahem; forma parte com ele do
kahal messianista da Antioquia (Atos, 13, 1); é amigo de Séneca, quem é
amigo dos conspiradores antineronianos, é membro do complô de Pisón e é,
secretamente, o sucessor deste último. Saulo-Paulo conta com filiados a sua
doutrina e a sua seita entre os servidores do palácio imperial, em Roma: «os
da casa de César lhes saúdam...» (cf. Epístola aos Filipenses, 4, 22). E no
próximo capítulo "encontraremos outros motivos de suspeita, já que pôde
muito bem executar com todo detalhe o que Séneca e Tigelino desejavam
secretamente, embora sem atrever-se a decidi-lo e a fazê-lo executar. Além
disso, as estranhas coincidências entre a data precisa desse incêndio e a
vida de Batista, sem omitir o conhecimento da revolução de seu ex-
suntróphos Menahem, são outras tantas observações acusadoras.

7) Um chefe zelote desconhecido: Tudo o que se disse no caso de Saulo-
Paulo pode aplicar-se, evidentemente, contra esse extremista anônimo,
tudo, exceto a possibilidade de fazer atuar aos servidores do imperador, «os
da casa de César»... Para que estes assumissem a responsabilidade de
declarar publicamente que estavam cobertos por ordens (cf. Tácito, Anais,
XV, XXXVIII), era preciso que fosse certo. Esse secreto amparo lhes vinha de
Séneca, através de seu amigo e cúmplice Saulo-Paulo, seu chefe
indiscutível.

Mas ficam outras provas, mais sutis, embora igualmente explícitas, sobre a
responsabilidade direta de Paulo no incêndio de Roma. Vejamos agora algo
mais de perto.

Primeiro, ante as evidentes contradições que existem sobre o referente ao
mês em que se produziu o sinistro, convém determinar quem tem razão,
nos apoiando no texto atribuído à Séneca no século IV por São Jerônimo e
São Agustín, ou no texto atribuído à Tácito, nos manuscritos mais antigos
que possuímos de sua obra, e que são dos séculos IX e XI.

Séneca nos diz março do ano 64, Tácito nos diz julho do ano 64, mas nos
precisa, imprudentemente, que Nero estava no Antium, sua cidade natal, a
que amava meigamente, e que avisado ao quarto dia do incêndio, adotou
todas as medidas necessárias para melhorar a sorte da população romana,
mas que, não obstante, lhe imputou a responsabilidade daquele.

Primeira conclusão: para Tácito, transcrito pelos monges copistas, Nero se
encontra no Antium, e portanto na Itália, em julho do ano 64, data do
incêndio. Mas isso é falso...

Sabemos, com efeito, por Suetonio (cf. Vida dos doze Césares: Nero, XXII)
que Nero participou dos jogos Olímpicos, nas carreiras de carros, e isso
antes de que se lançasse às exibições teatrais, as primeiras das quais
tiveram lugar em Nápoles.

Observemos, antes que nada, que os célebres jogos se celebravam em
Olímpia, na Grécia, e invariavelmente no mês de julho. Tinham lugar cada
quatro anos, e seu intervalo constituía uma olimpíada. Tomemos o
calendário das olimpíadas do período considerado, e assinalemos os anos
em que tiveram lugar os jogos durante o curto reinado de Nero. Veremos
que foi em julho do ano 60, em julho de 64 e em julho de 68 de nossa era.

Podemos descartar já julho de 68, dado que o imperador morreu em Roma
em 9 de junho de 68 do calendário Juliano, o que dá em 20 de junho do
gregoriano.

Ficam então julho de 60 e julho de 64.

Descartaremos também julho de 60, já que Nero foi pela primeira vez à
Grécia antes das exibições de Nápoles, segundo Suetonio, que tiveram lugar
à começos do ano 64; não fica, pois, a não ser julho de 64, para vê-lo
participar das carreiras de carros em Olímpia. E essa é, infelizmente, a data
que se pretende endossar à Tácito! E é evidente que Nero não podia
encontrar-se no Antium e na Olímpia ao mesmo tempo.

Porque para ir de Roma à Grécia, por terra e por mar, naquela época,
necessitavam-se umas doze semanas, percorrido que verificaram certos
historiadores. Os beliches e os carros da caravana imperial não efetuavam
um percurso diário superior aos 25 Km.; quanto aos trirremes, que foram de
uma vez a remo e a vela (galeras de escravos), esse tipo de navegação não
podia representar mais de cem quilômetros ao dia para esses pesados e
torpes navios. A velocidade de ponta alegada por Tito Livio para as galeras
de combate não ultrapassava, por exemplo, os trinta e cinco quilômetros
por hora.

Tudo isto exclui que Nero pudesse ir aos jogos olímpicos e retornar a tempo
para estar em Roma em 20 de julho do ano 64, dia em que se declarou o
incêndio, segundo Tácito, revisado e corrigido na Idade Média pelos monges
copistas. Portanto, o texto e a data que nos dá Séneca são os verídicos, e foi
em março quando Roma ardeu, quando Nero estava ainda no Antium.

Impõe-se, pois, uma primeira conclusão.

Se se esforçarem por substituir julho por março, é porque esta última data,
por sua concordância com a da insurreição de Menahem, irmão de leite de
Paulo (Atos, 13, 1), podia atrair as suspeitas para este último.

E vai em seguida à mente uma segunda conclusão.

E é que os monges copistas que alteraram visivelmente o texto inicial de
Tácito, fizeram-no a fim de eliminar as provas desta cumplicidade. Porque se
Tácito afirmasse a responsabilidade da colônia judia de Roma, em seus
elementos zelotes, livres ou escravos, nossos monges copistas medievais,
indevidamente anti-semitas tendo em conta a época, sentissem-se
extremamente felizes de sublinhá-la. Mas como, pelo contrário, desta
maneira ficava de manifesto à Paulo, chefe reconhecido dos cristãos de
Roma, substituíram março do ano 64 por julho.Infelizmente para eles, não
lhes ocorreu expurgar do mesmo modo ao Suetonio e fazer desaparecer
essa participação de Nero nos Jogos de Olímpia.




20 - Psicologia dos incendiários

A morte nas chamas é a menos solitária das mortes. É, verdadeiramente,
uma morte cósmica, onde todo um universo se aniquila com o pensador. A
fogueira é um companheiro de evolução.

G. BACHELARD, Psicanálise do fogo
Acidentes ou crimes? Os incêndios florestais foram muito numerosos
durante o verão e o outono de 1970, e houve muitas coincidências para que
não possa ver-se nisso alguma intenção de causar dano. Por isso o sociólogo
Roger Caillois pôde recordar, em um artigo do Express de 31 de agosto de
1970, que em outros tempos houve em Roma outro incêndio e outros
incendiários: aquele do qual se acusou aos cristãos, os quais esperavam,
conforme suas escrituras secretas, um fogo purificador do homem, ao
menos tal como eles imaginavam. Assim é como nos diz isso Roger Callois:
«Dos incêndios que devastaram este verão o Var e os Alpes Marítimos,
alguns eram criminais. Foram detidos alguns suspeitos. Houve alguns que
confessaram, pior ainda, que se vangloriaram de serem os autores dos
sinistros. Eram iluminados, que pretendiam obedecer as ordens de Deus.
Com uma enorme fogueira purificaram Provença das indecências que a
manchavam, das ignomínias que, cada dia mais numerosas e mais
escandalosas, ofendiam gravemente à decência, a virtude e ao Céu».

E Roger Callois evoca a este respeito a mesma reação fanática dos cristãos
de Roma: «Essas chamas que traduzem a vontade divina, e que consumam
a aniquilação da Grande Prostituta, sem dúvida constitui um sacrilégio a
combater [...] Além disso, não é inútil observar que os bairros consumidos
foram os do Circo e do Palatino, onde se encontravam os templos mais
antigos de Roma, o santuário que Sérvio Tulio consagrara à Lua, o de
Hércules Redentor, dedicado pelo legendário Evandro, o aliado de Eneas, o
de Júpiter Estator, consagrado por Rômulo, o de Vesta, que albergava os
Penates do povo romano. Possivelmente não fora mais que uma
coincidência, mas proclamava que se golpeava a Roma em seus deuses
protetores, cuja impotência ao fim se demonstrou. Tácito proporciona um
catálogo de todos os santuários destruídos...».

«Imaginam-se as reações que suscitaram os hippies ou os esquerdistas,
durante os ofícios em Madeleine, ou em Notre-Dame, tiveram a ocorrência
de romper ou pisotear os objetos de culto?...»

E isto, não obstante, era algo bastante freqüente durante os primeiros
séculos. Eusébio da Cesaréia narra umas intervenções de «candidatos à
mártires» penetrando em um templo quando um dignatário de Roma se
dispunha a oferecer um sacrifício ou uma libação, opondo-se a isso
retendo-lhe o braço, ou inclusive derrubando o altar com as brasas já
acesas...

Renán, que para fazer-se perdoar seu Jesus, por ser muito heterodoxo para
a época, toma a defesa dos cristãos, em seu Antéchrist rechaça com
indignação a hipótese de que estes incendiassem a capital do Império
romano. Mas os textos que enumera para tentar demonstrar como pôde a
opinião pública da época orientar-se tão facilmente contra eles, a seu pesar
irão além do que ele tentava estabelecer: «Possivelmente os discursos dos
cristãos sobre a grande conflagração final, suas sinistras profecias, sua
afeição por repetir que o mundo acabaria logo, e acabaria com fogo,
contribuíram a fazer que tomasse por incendiários. Nem sequer é
inadmissível que vários fiéis cometessem imprudências, e que se dispôs de
pretextos para acusá-los de quererem, ao preludiar as chamas celestiais,
justificar a todo custo seus oráculos». E afirma, teimoso, que eles não
prenderam o fogo, «mas certamente se alegraram», dado que anunciavam
sem cessar, e desejavam, a destruição da sociedade.

Eram, com efeito, como veremos logo, incendiários em potência,
fanatizados incessantemente pelos mesmos temas da combustão final,
purificadora e de uma vez probatória. Renán os qualifica de «incendiários do
desejo». De desejo? Nós diríamos melhor: obcecados pelo incêndio. E aqui
temos a prova. Tomemos o Novo Testamento:

«Toda árvore que não dê bom fruto será talhada e arrojada ao fogo...»
(Mateus, 3, 10.)

«Queimará a palha em fogo inextinguível...» (Mateus, 3, 12.)

«Quem disser louco a seu próximo será réu do fogo da gehenna.;.»
(Mateus, 5, 22.)

«Afastem-se de mim, malditos! Ao fogo eterno, preparado para o diabo e
seus anjos...» (Mateus, 25, 41.)

«Quero lhes recordar [...] como Sodoma e Gomorra e as cidades vizinhas,
que, de igual modo que elas, entregaram-se à impudicícia e aos vícios
contra natureza, foram postas para castigo, sofrendo a pena do fogo
eterno...» (Epístola de São Judas, 7.)

«Porque todos têm que ser salgados ao fogo!...» (Marcos, 9, 49.)

«Eu vim jogar fogo na terra, e o que posso desejar a não ser que
acenda?...» (Lucas, 12, 49.)

«Sua obra ficará de manifesto, pois em seu dia o fogo o revelará...» (Paulo,
I Epístola aos Coríntios, 3, 13.)

«Se uma terra produzir espinhos e abrolhos, é reprovada e está próxima a
ser maldita, e seu fim será o fogo...» (Paulo, Epístola aos Hebreus, 6, 8.)

«Enquanto que os céus e a terra atuais estão reservados pela mesma
palavra para o fogo, para o dia do julgamento e para a perdição dos homens
ímpios...» (Pedro, II Epístola, 3, 7.)

«Tomou o anjo o incensário, encheu-o do fogo do altar e o jogou sobre a
terra. E houve trovões, clamores, relâmpagos e tremores...» (Apocalipse, 8,
5.)

«E houve granizo e fogo misturado com sangue, que foi arrojado sobre a
terra; e ficou abrasada a terceira parte da terra, e ficou abrasada a terceira
parte das árvores, e toda a erva verde ficou abrasada...» (Apocalipse, 8, 7.)
«E os que montavam a cavalo tinham couraças de cor de fogo, e de jacinto
e de enxofre [...] E da cabeça dos cavalos saía fogo, fumaça e enxofre...»
(Apocalipse, 9, 17.)

«Com as três pragas pereceram a terceira parte dos homens, é ou seja, pelo
fogo, e pela fumaça, e pelo enxofre que saía de sua boca...» (Apocalipse , 9,
18.)

«Vivos foram arrojados ambos ao lago de fogo, que arde com enxofre.»
(Apocalipse, 19, 20.)

«A morte e o inferno foram jogados no lago de fogo. Esta é a segunda
morte, o lago de fogo. E tudo o que não foi achado inscrito no livro da vida,
foi arrojado no lago de fogo...» (Apocalipse, 20, 14-15.)

«Os covardes, os infiéis, os abomináveis, os homicidas, os fornicadores, os
feiticeiros, os idólatras e todos os embusteiros terão sua parte no lago, que
arde com fogo e enxofre, que é a segunda morte...» (Apocalipse, 21, 8.)

«E será atormentado com o fogo e o enxofre diante dos Santos anjos e
diante do Cordeiro...» (Apocalipse, 14, 10.)

Encantador! E nós acrescentaremos: «Doce Jesus...».

Esse fogo e esse enxofre, que faz ainda mais dolorosa a queimadura do
primeiro, através de todo esse conjunto tirado das escrituras se observa que
constitui simplesmente uma obsessão no psiquismo dos cristãos. Falam
deles, sonham neles, desejam-nos, são verdadeiros exutórios de seu ódio,
que deriva inconscientemente de seu isolamento, inevitável na sociedade
de sua época.

São, de fato, autênticos pirômanos, mas pirômanos raciocinados e
conscientes.

Aqui cederemos a palavra ao Gastón Bachelard, em sua penetrante
Psicanálise do fogo:

«A psiquiatria moderna elucidou a psicologia do incendiário. Demonstrou o
caráter sexual de suas tendências. Reciprocamente, tirou à luz o grave
traumatismo que pode receber um psiquismo ante a visão de um moinho ou
um teto incendiados, de uma grande labareda sobre o céu noturno, na
infinidade da planície lavrada.

»Quase sempre, o incêndio nos campos é a enfermidade de um pastor.
Como portadores de sinistras tochas, os homens da miséria transmitem de
geração em geração o contágio de seus sonhos de isolados. Um incêndio
determina um incendiário quase tão fatalmente como um incendiário
provoca um incêndio. O fogo se incuba em uma alma com mais segurança
que sob as cinzas.
»O incendiário é o mais dissimulado dos criminosos. No asilo de Saint-Ylie, o
incendiário mais característico é muito serviçal. Só há uma coisa que
pretende não saber fazer: acender uma estufa! Além da psiquiatria, a
psicanálise clássica estudou profundamente os sonhos de fogo. Encontram-
se entre os mais claros, mais nítidos, cuja interpretação sexual é mais
segura. Não insistiremos, pois, sobre este tema.

»De fato, voltando para problema do fogo, a psiquiatria reconheceu a
freqüência dos sonhos de fogo nos delírios alcoólicos. Demonstrou que as
alucinações liliputienses se achavam sob a dependência da excitação pelo
álcool.»

Resumamos, pois, as causas profundas que criam ao pirômano:

a) rechaço sexual, suscitado por um puritanismo ardente, a vergonha da
sexualidade, da nudez, e que conduz a uma intoxicação físico-psíquica pela
não eliminação espermática. Esse seria o caso dos solitários (pastores,
ascetas, etc.), ou dos puritanos; é o caso dos cristãos dos primeiros séculos;
observar-se-á, além disso, que a piromania é uma tara essencialmente
masculina. Isto explica o seguinte: a mulher, designada esotericamente
como Água, tem medo do Fogo. O homem, designado por este elemento,
converte-se em possesso senão o eliminar. Bachelard aproximou-se deste
mistério;

b) traumatismo psíquico, provocado pela contemplação de um incêndio.
Este é o caso do bombeiro pirômano, quão mesmo o do rebelde zelote que
viu arder sua casa, seu povo. Também é o caso do pastor solitário, perdido
na contemplação de seu fogo de lenha, ao longo das estações. E também o
daquele que permaneceu em um certo infantilismo, e que admira as
chamas. A este respeito, o cristão dos primeiros séculos, impregnado pela
leitura ou a audição de suas Escrituras «incendiárias», é um pirômano em
potência, condicionado por essas entrevistas;

c) Impregnação alcoólica, como era o caso de certos cristãos no curso dos
ágapes rituais. Escutemos ao Paulo: «E quando lhes reúnem, não é para
comer o jantar do Senhor, porque cada um se adianta a tomar seu próprio
jantar, e enquanto a gente passa fome, outro está ébrio». (Paulo, I Epístola
aos Coríntios, 11, 20-21.) E Judas, em sua única carta, dirá o mesmo: «Estes
são os que mancham seus ágapes, quando com vós banqueteiam sem
recato, homens que se apascentam a si mesmos». (Epístola de São Judas,
12.)

Como alguns se mostrarão remissos a admitir que a embriaguez esteve à
ordem do dia nos piedosos «ágapes» dos primeiros séculos, limitaremos a
lhes assinalar este comunicado da Cidade do Vaticano, com data da
segunda-feira 26 de outubro de 1970, e reproduzido ao dia seguinte no
periódico France-Soir: «Umas pinturas murais inconvenientes foram
descobertas este ano nas catacumbas de Roma. Mostram aos primeiros
cristãos bebendo e festejando durante uns funerais. Ao revelar no sábado
este descobrimento, o Osservatore Romano, órgão do Vaticano, sublinha
que essas pinturas não têm nada em comum com outros afrescos cujo tema
é a celebração da missa por cristãos reunidos ao redor de uma mesa. O
"inconveniente" para o Osservatore Romano é em especial "a abundância
de garrafas em pé ou tombadas" representadas nessas cenas de
banquete».

Evidentemente, nós gostaríamos de saber o que evoca o termo «em
especial».

Convém observar, por certo, que tampouco Jesus escapou jamais a essa
reputação. Lemos, por exemplo, o seguinte nos evangelhos canônicos:
«Porque veio João, que não comia nem bebia, e diziam: Está possuído pelo
demônio [...] E veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e dizem: É
comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e de pecadores». (Mateus,
11, 18, e Lucas, 7, 33.)

São Jerônimo, em seu Vulgata latina, versão oficial da Igreja católica,
emprega o termo potator, que significa «saco de vinho». Mas é evidente que
uma reputação, embora ampliada ou exagerada, necessariamente tem um
fundo de verdade. Que Jerônimo utilizasse os termos de comedor e bêbado
posto em boca dos adversários de Jesus implica, no melhor dos casos, que
comia exageradamente e bebia na mesma proporção. Coisa que não é
própria da vida ascética para a que propõe a ele sempre como modelo.

Esta obsessão do fogo impregnará durante séculos às pessoas da Igreja
pelos mesmos motivos. E assim o monge Bernard Gui, inquisidor, que viveu
do ano 1261 aos 1331, e autor da célebre Pratica officii Inquisitionis herético
pravitatis, declara em tal tratado, verdadeiro manual do inquisidor: «A
finalidade da Inquisição é a destruição da heresia. A heresia não pode ser
destruída sem que os hereges o sejam também, e isso não pode fazer-se
mas sim de duas maneiras: mediante sua conversão ou mediante a
incineração carnal atrás de seu abandono ao braço secular».

Mas foi sobretudo no século XV, na Espanha, onde o fogo purificador e
corretivo recebeu uma aplicação quase litúrgica.

As incinerações dos hereges, dos judeus, dos ocultistas, foram
qualificadas de autos de fé. Houve holocaustos destes cada ano, a data fixa.
A essas execuções entre as chamas, e de periodicidade anual, as chamou
autos de fé particulares. Por exemplo, na sexta-feira de Quaresma que
precedia à Sexta-feira Santa celebrava-se com uma execução deste tipo.
Aqui não se tratava já, portanto, de uma execução judicial, mas sim de um
sacrifício humano, de um holocausto de propiciação.

Houve deste modo autos de fé gerais, com ocasião do advento dos
soberanos, de seu matrimônio, do nascimento de cada um de seus filhos.
Algumas dessas cerimônias em várias cidades da Espanha ao mesmo tempo
podiam permitir a incineração de uma centena de condenados. Em Sevilha
estabeleceu-se ao efeito, fora da cidade, um patíbulo permanente, de
pedra, sobre o que se erguiam quatro estátuas, em honra aos quatro
evangelistas. Essas estátuas estavam ocas, e tinham um nicho em seu
interior. Dentro delas se encerrava, devidamente encadeadas, às vítimas, às
quais assim se queimavam a fogo lento, amontoando lenha ao redor da
estátua oca.

Só na Espanha, a Inquisição fez queimar de 1480 a 1808 a 34.638
pessoas. O número das que morreram antes em sua masmorra, a
conseqüência da tortura, ou que conseguiram felizmente evadir-se, e que
foram incineradas em efígie, eleva-se a 18.049 pessoas. (Cf. J. Francais,
L'Église et la Sorcellerie.)

Para o resto da Europa é difícil dar uma cifra. Sabemos, não obstante, por
Barthélémy de Spins (cf. Quoestio de Strygibus, 1523, e In Ponz inibiu, in de
Lamis Apologia, S. d.), que só na província de Lombardia se queimou
aproximadamente um milhar de mulheres das que se suspeitava que eram
bruxas, cada ano, durante vinte e cinco anos. Isto supõe vinte e cinco mil
mulheres em um quarto de século.

Ao enxofre por associa-lo ao fogo, conforme às Sagradas Escrituras, já que
se revestia aos condenados com uma camisa lubrificada de enxofre,
colocava-lhes uma mitra de pergaminho, também melada de enxofre, e o
corpo também era lubrificado previamente com uma pomada de enxofre,
sobre a base de banha de porco.

Assim, ao aliar o enxofre com o fogo, os juízes eclesiásticos obedeciam às
prescrições do santo livro do Apocalipse, do que se proclamou autor Jesus:
«Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe confiou para manifestar a seus
servos o que tem que sobrevir breve [...] Bem-aventurado o que lê e os que
ouvem as palavras da profecia, e os que observam as coisas nela escritas,
porque o tempo está próximo». (Apocalipse, 1, 1 e 3.)

Estas coisas nossos inquisidores as conservavam piedosamente em seu
coração. Por isso, quando as chamas das fogueiras alcançavam por fim o
corpo do condenado, faziam-no sobre queimaduras já profundas, causadas
pela repentina combustão da mitra e da camisa de enxofre, avivando assim
as primeiras queimaduras.

Fazendo-o assim, não podia dizer-se que os versículos já citados do
Apocalipse não afetassem àqueles aos que foram dirigidos. A profecia era
verídica, ao menos no plano terrestre.

De tudo o que precede podemos tirar agora uma conclusão, ou seja, que
essa obsessão pelo enxofre e o fogo, esses quadros grandiosos e trágicos,
nos quais, como um afresco dantesco, pintava-se a destruição do velho
mundo mediante um gigantesco incêndio, tudo isso condicionou
criminalmente à fração fanática do cristianismo, e foram, efetivamente,
cristãos os que, cheios de ódio, incendiaram Roma.
Há alusões bastante claras para aquele que possua a suficiente intuição e
perspicácia para penetrar, como um juiz de instrução, nas intenções que
moviam a um escriba.

A confissão inconsciente de Simão-Pedro, supostamente morto em Roma
no ano 64, ou mas bem daquele que, sob seu nome, redigiria mais sua tarde
a primeira epístola, temo-la no quarto capítulo desta: «Não sintam saudades
desse incêndio que arde em meio de vós, ordenado a sua prova». (I Epístola
de são Pedro, 4, 12.)

As versões de Segond, Osterwaid, Synodale, falam de uma fogueira, mas
é o mesmo. Mas essa alusão a um perigo pelo fogo, para os cristãos,
demonstra que Simão-Pedro não foi o autor dessa Epístola. Porque se
morreu em Roma no ano 64, imediatamente depois do incêndio e da
primeira perseguição que se abateu sobre a comunidade cristã da cidade,
não teve tempo de redigir essa carta, destinada a ser copiada em múltiplos
exemplares, já que ia dirigida aos escolhidos estrangeiros da dispersão no
Ponto, Galacia, Capadocia, Ásia e Bitinia». (Op. cit., 1, 1.) A polícia romana
não teria permitido que saísse.

E não podia falar antes de um perigo pelo fogo, já que ignorava que depois
do incêndio Roma castigaria pelo fogo aos cristãos de tal cidade, segundo a
lei que castigava aos incendiários.

Em realidade, a epístola foi redigida muito depois da segunda metade do
século II, quer dizer depois do ano 150. Esta é também a opinião de Charles
Guignebert, que observa que não se trata a não ser de uma simples
repetição das teorias de Paulo, o que prova que é posterior à estas.

Mas esta epístola, atribuída falsamente ao Simão-Pedro, não só alude ao
perigo de morte por fogo que ameaça aos cristãos, mas também implica
para estes uma reputação de incendiários: «Porque nenhum de vós tem que
padecer como homicida ou ladrão, ou malfeitor, ou como intrometido no
alheio mas se padecer como cristão, não se envergonhe, antes glorifique a
Deus neste nome». (I Epístola de são Pedro, 4, 15-16.)

É fácil constatar que, uma vez eliminados os diversos modos de cometer
maldades correntes, não fica aos cristãos mais que um só campo onde
possam machucar aos pagãos, o de incendiários.

E este epíteto permanecerá tão bem ligado à qualificação de christiani,
que muito tempo depois do incêndio do ano 64, continuará qualificando-se à
estes de sarmentara, sarmentici, quer dizer, «que cheiram a heresia», e de
semaxii: «pilares de fogueiras» (cf. Tertuliano, Apologeticen, 50). Porque se
todas as atividades que possam causar dano evocadas na epístola estão
proibidas aos cristãos, em troca não os proíbem o incêndio, já que este
último está previsto pelas profecias, e fazendo-se incendiário atuará «pela
glória de Deus».
Releiamos uma vez mais ao sombrio Tertuliano: «Estamos em todas partes,
somos numerosos [...] Se não fôssemos a não ser tão somente um pequeno
grupo, uma só noite e algumas tochas nos bastariam!». (Cf. Tertuliano,
Apologeticen, XXXVII, 3.)

Por nossa parte, está entendido.

21 - Nero

Alimentada por trinta gerações de dramaturgos e de poetas, a visão de Nero
tangendo a cítara sobre as ruínas de sua própria cidade (cujo incêndio fora
ordenado por ele), moveu-me a investigar.

J.-C. Pichon, Saint-Néron

Os historiadores oficiais apresentam um Nero que foi uma mina para os
novelistas baratos, os cineastas que sabiam aliar o erotismo popular e a
imaginação cristã, e os dramaturgos desejosos de produzir seqüências
inflamadas. Ernest Renán, em seu afã de fazer-se perdoar um Jesus pouco
conformista, preocupado possivelmente por não cortar de todos os pontos
com um universo católico, ainda muito poderoso em sua época, oferece-nos
um Antéchrist que é a antítese perfeita de seu Jesus ingênuo e doce, algo
assim como o contraste do vaso da esquerda com o da direita sobre o
suporte de uma chaminé. Mas a realidade é imensamente mais complexa.
Por que caminhos misteriosos Lucius Domitius Ahenobarbus, imperador sob
o nome de Nero César, passou a ser, do homem doce e pacífico que era, ao
personagem escandaloso dos últimos anos? Vamos dar já a resposta, pois
assim o leitor compreenderá melhor o desenvolvimento deste trágico
destino.

«Nero nasceu em Antium, nove meses depois da morte de Tibério,
dezoito dias antes das calendas de janeiro, precisamente ao sair o sol, de tal
sorte que seus raios o tocaram quase antes que à terra.» (Cf. Suetonio, Vida
dos doze Césares: Nero, VI.)

Antium é uma cidade situada um pouco ao sul de Roma, a uns cinqüenta
quilômetros. Dezoito dias antes das calendas de janeiro significam em 14 de
dezembro, mas do calendário Juliano. Acrescentemos onze dias para
encontrar a data gregoriana exata, e temos em 25 de dezembro, dia da
grande festa anual de Mitra, o deus protetor das legiões romanas, o «Sol
invictus», que avança diante de suas bandeiras.

A hora natal de Nero, na latitude de Antium, é, pois, às 7.30 da manhã, e
o Sol se encontra no quarto grau de Capricórnio. Damos a pé de página o
tema astrológico do indivíduo, para aqueles leitores a quem interesse este
aspecto do estudo. Observemos, de passagem, que o tema dado por Julevno
no Tratado de Astrologia (tomo I) é falso.*

*[Para o público, cada vez mais numeroso, que se interessa pela astrologia,
damos a continuação das posições planetárias e a domiciliação do céu natal
de Nero, segundo os dados de Suetonio: AS: 3°46 de Capricórnio -- II: 14°
Aquário -- III: 26° Peixes -- FC: 29° Áries -- V: 23° Touro -- VI: 14° Gêmeos
-- VII: 3°46 Câncer -- VIII: 14° Leão -- IX: 26° Virgem -- MC: 29° Libra -- XI:
23° Escorpião -- XII: 14° Sagitário -- Sol: 3°55 Capricórnio -- Saturno: 10°
Capricórnio -- Marte: 22° Aquário -- Netuno: 9° Peixes -- Lua: 9° Leão --
Vênus: 5° Libra -- Urano: 21° Libra -- Júpiter: 17° Escorpião -- Mercúrio: 19°
Sagitário -- ARMC: 13 h 46, T. S.: 18 h 16 -- Latitud: 41°54. Observem
cuidadosamente neste tema os antiscios e contraantiscios; são importantes.
Assim, o antiscio de Vênus na cúspide da casa III do céu mostra que o
indivíduo amará à seus irmãos, o que confirma que não foi Nero que
mandou envenenar à Britannicus, seu irmão.]

Na casa IX do céu encontramos a estrela Zosma, delta de Leão. Segundo
a tradição clássica, faz prever: «Egoísmo, impudor, imoralidade, perigo de
envenenamento, perturbações cerebrais».

E agora voltemos a ler Suetonio em seu quarto livro, consagrado à
Calígula: «Não obstante, algumas vezes, presa de um súbito
desfalecimento, logo que podia andar, manter-se em pé, voltar em si,
sustentar-se. Quanto a sua desordem mental, ele mesmo se deu conta, e
mais de uma vez projetou se retirar para limpar o cérebro. Acredita-se que
sua esposa Caesonia lhe fez tomar um filtro, e que este lhe fez enlouquecer.
Sofria especialmente de insônia, já que não dormia mais de três horas por
noite, e nem sequer esse repouso era completo, a não ser turbado por
estranhas visões. Uma vez, entre tantas, sonhou que conversava com o
Espectro do Mar. Pelo comum, farto de estar deitado e em vigília, passava
grande parte da noite sentado na cama, ou vagava através dos imensos
pórticos, esperando e invocando incessantemente ao dia». (Cf. Suetonio,
Vida dos doze Césares: Calígula, livro IV, 50.)

Naquela época havia em Roma uma célebre envenenadora, Locusta. A esta
a condenariam a morte no ano 68, sob o reinado de Galba. Antes de morrer
confessaria, sob tortura, que fizera perecer ao Britannicus. Como não lhe
pediram detalhes sobre suas relações com Caesonia, não existe a não ser
uma presunção de que também ela proporcionasse o veneno que ficou
louco Calígula.

Observemos, de todo modo, que as solanáceas ocupavam uma parte
importante da composição dos filtros mortais, já que provocavam uns
transtornos prévios que podiam fazer acreditar em uma enfermidade
cerebral. Mas se o filtro era insuficiente, se o indivíduo, tratado a tempo,
podia escapar à morte, ficavam não obstante seqüelas graves, das quais
sempre resultavam perturbações mentais. O mesmo acontecia com a
ingestão de venenos a base de mercúrio, que danificavam lenta mas
irreversivelmente o cérebro.

Pois bem, fazendo caso omisso do que diz o tema astrológico de Nero, a
ameaça de morte por parte de sua mãe, representada pela Lua na casa VIII
do céu, opondo-se a Marte, senhor por «exaltação» do Ascendente, não
deixa de ser certo que esta mãe, sedenta de dominação e de poder, não
vacilou para chegar à seus fins em tentar seduzir a seu próprio filho,
oferecendo-se em pleno dia engalanada e com adorno próprio para o
incesto (cf. Tácito, Anais, XIV, 2), essa mulher que, já em sua infância,
prostituiu-se ao Lépido por ambição de reinar, e logo, pela mesma razão, ao
liberto Palante, que organizara o assassinato de Claudio, e logo o de
Britannicus; esta mulher começará a odiar a seu filho a partir do momento
em que o proíbe misturar-se nos assuntos do Estado. Todos sabem-na capaz
de qualquer crime, e Séneca e Burro, que foram os preceptores de Nero e
logo seus conselheiros, advertem-lhe sem cessar do perigo que corre. Burro,
prefeito do pretorio, raciocina como um guerreiro, e Séneca como um
filósofo: da rainha mãe ou dele, alguém deve desaparecer.

Mas antes de que esse demônio em forma de mulher pudesse reduzir-se a
um estado em que não pudesse causar mais dano, este já parecia. Claro
que Agripina possivelmente não queria a morte de seu filho. Sabia que um
novo imperador não lhe deixaria nenhuma possibilidade de reinar. Mas se
Nero, demente por causa de um veneno bem composto, perdia todo o
controle e se afastava do povo, bastaria deixando-se inundar cada vez mais
no desenfreio e na embriaguez para poder governar o império em seu lugar.
Mas esse plano não obteve seu fim nem pela metade; quando Nero se
resignou a fazer desaparecer ao monstro que tinha por mãe (e a quem, não
obstante, tanto amara), já era muito tarde, e o golpe tinha sido já atirado.

O que é certo é que a execução de Agripina em uma época em que tais
medidas eram coisas normais e comuns, jamais lhe seria reprovada por
Nero. A sua volta à Roma, o povo aclama ao imperador, e o Senado o
glorifica por sua decisão, já que Agripina era objeto de um ódio geral.

Assim, podemos dissociar já a vida de Nero em duas partes: alguém
cobrirá seus anos de bom julgamento, a outra os de sua loucura.

Na primeira parte situa-se a misteriosa morte de Britannicus. Esta fração
da vida de Nero se estende até o ano 64, data do incêndio de Roma. Deste
comportamento dirá Séneca: «Tem-te proposto, César, uma meta que
nenhum príncipe alcançou jamais: a inocência de todo crime». Então? Nero
respondeu um dia, aprazível, aos rumores que pretendiam que ele
envenenara ao Britannicus: «Se eu temesse meu irmão, por que não teria
que havê-lo condenado abertamente? Por que teria que temer eu à lei?».

De fato, esse crime terá que imputá-lo à Agripina. Tácito e Suetonio
precisam que o veneno fora preparado por Locusta. Mas para que esta
mulher continuasse em Roma, apesar de sua terrível reputação, era preciso
que estivesse protegida por poderosas influências, muito acima das leis. Por
outro lado, foi Locusta quem, por ordem de Agripina, procedeu ao
envenenamento de Claudio. Locusta era da rainha mãe, não de Nero.

Acabamos de demonstrar, em nossa opinião, que Nero não interveio em
nada na morte de Britannicus; demonstramos que a execução de Agripina,
desejada pelo Senado e o povo romano, fora aconselhada por duas
consciências íntegras, as de Séneca e de Burro; demonstramos que o
incêndio de Roma foi obra de cristãos fanáticos, e que Nero, ausente de
Roma durante os quatro primeiros dias (estava em Antium), em princípio
ignorava o fato. A morte de Popea, a conseqüência de uma patada no
ventre, foi acidental, e Nero já estava às vezes meio demente.

Agora vamos partir em busca do jovem imperador que, senão tivesse uma
mãe demoníaca, possivelmente tivesse eclipsado à Marco Aurelio, senão por
seus escritos, sim por seus atos.

Porque a esta mãe ele a tinha amado enormemente. A mesma noite do
assassinato de Claudio (organizado por Agripina), depois de seu próprio
«triunfo», deu ao guarda pretoriana como contra-senha: «A melhor das
mães», em latim «Optimae matris». (Cf. Tácito, Anais, XIII, iI.)

O período fasto do reinado do Nero se estende, pois, do ano 54 aos 63
inclusive. Tal como observa com bastante justiça Jean-Charles Pichón em
seu Saint-Néron: «Na primavera do ano 64, Nero ainda não era esse sádico
e esse criminoso que se pretende ver nele. Ao inteirar do suicídio de
Torcuato, o imperador disse: "Embora culpado, viveria se esperasse a
clemência de seu juiz". Mas já era, indubitavelmente, esse incrível histrião
cujo único prazer parecia ser o de surpreender à seus amigos, escandalizar
ao povo e irritar ao Senado».

Terá que dizer, com efeito, que em todo esse período que vai do ano 54
aos 63 não se encontra nenhum rastro das orgias tão bem utilizadas pelo
cinema. Nem Suetonio nem Tácito nos falam delas. Quando Nero se
aborrece, retorna ao Antium, a cidade de sua infância, a cidade mimada a
que embeleza sem cessar, onde pinta, esculpe, redige e compõe poemas e
cantos, na paz e a doçura de viver. Porque Nero foi realmente um artista, o
que explica sua doçura inata, seu horror ante a violência, o sangue. Às
vezes inclusive sonha abdicando, o que lhe permitiria viver de seus dons,
como um homem livre, como um esteta. E por pouco não aconteceu assim
um dia, depois de uma cena violenta que lhe fez Agripina, porque acabava
de expulsar do palácio ao liberto Palante, seu amante. Seu sonho era retirar-
se à Grécia, pátria das artes e da sabedoria, à seus olhos.

Mas, alegar-se-á o que tem que os suplícios infligidos aos cristãos depois
do incêndio de Roma no ano 64? Há dois modos de resolver este enigma.

Ou a investigação foi levada a cabo ipso facto pelas autoridades romanas,
sem ter tido que referir-lhe ao imperador, conforme correspondia à suas
funções e suas responsabilidades, assim como ao crime cometido.
Detenções, interrogatórios, novas detenções de pessoas denunciadas,
condenações automáticas dos incendiários, às quais seguiam execuções
legais. E o que a legislação romana previa no caso de pirômanos era a
morte na fogueira. Não foram inovadores com os cristãos.
Ou não conhecemos a verdade sobre este assunto. Porque, repitamo-lo, os
manuscritos originais de Suetonio e Tácito se perderam, só possuímos
cópias medievais, obras de monges copistas, e indubitavelmente
censuradas e interpoladas.

Porque, apesar de tudo, há uma coisa muito curiosa: nem Tertuliano nem
Orígenes nos falam desses cristãos costurados em peles de animais recém
esfoladas, contra as quais se lançam matilhas de cães ferozes, nem desses
outros, embutidos em roupas meladas de matérias inflamáveis e ardendo
como tochas nos jardins imperiais. E Eusébio da Cesaréia, em sua História
eclesiástica, menciona Nero como o primeiro imperador que perseguiu os
cristãos, mas não cita esses detalhes, mas sim o faz vagamente,
mencionando só a morte de Paulo e de Pedro. E mais, permanece mudo no
que diz respeito ao incêndio de Roma. E Flavio Josefo, ao falar de Nero, ao
criticá-lo, faz o mesmo: também ignora o incêndio.

Sobre esta perseguição que seguiu ao incêndio de Roma, observemos
que só se aplicou aos cristãos da cidade, e não se estendeu aos da
província. Quanto a sua importância, Tertuliano nos diz simplesmente que
«sob o Nero se fez perecer pela espada a um pequeno número de cristãos».
(Cf. Tertuliano, Apologeticen, V, 3.) Achamo-nos muito longe dos habituais
filmes de propaganda...

O silêncio de Tertuliano (quem redigiu seu Apologeticen por volta do ano
197 de nossa era, quer dizer 133 anos depois do incêndio), o de Orígenes
(morto no ano 254) e o de Eusébio da Cesaréia (morto no ano 340) sobre
um acontecimento tão grave como o incêndio da capital do Império romano,
imputado aos cristãos, fonte e causa da primeira perseguição, não podem
explicar-se a não ser de uma só maneira. Todos falaram disso, e Tertuliano
mais que os outros, pois já tinha feito alusão a isso em seu Apologeticen,
com sua ameaça: «...Uma só noite e algumas tochas bastariam!» (Op. cit.,
XXXVII, 3), mas todos falaram de uma maneira pouco ortodoxa aos olhos
dos monges copistas que os transcreveram mais adiante. E se limitaram a
suprimir as passagens que consideraram «escandalosos», por citar São
Jerônimo censurando Orígenes.

Assim, censuraram Tertuliano, Orígenes e Eusébio, e interpolaram Suetonio
e Tácito. Desde onde essa contradição nos testemunhos destes autores.
Porque na época em que puseram ao gosto do dia aos autores antigos, tão
pagãos como cristãos, pelo que se tratava era de pôr de manifesto que o
cristão barbudo, cabeludo e cordeiro, triunfava simplesmente com sua
doçura e resignação sobre o paganismo persecutor, o que demonstrava,
sem discussão possível, a intervenção divina em favor da nova religião.

Quanto ao fanático da realidade histórica, tanto se se tratava do zelote
judaico como do cristão exaltado pela promessa da «volta» de Jesus sobre
as nuvens, muito próximo, segundo as sagradas escrituras, não terá que
falar mais dele. Esse tipo particular deve desaparecer discretamente da
história, só deve permanecer o mártir, que passa meigamente a mão sobre
a crina do leão que lhe arranca o braço.

Voltemos para Nero. Suetonio nos conta que Tibério tinha pronunciado
estas terríveis palavras: «Que depois de mim, arda Roma!». (Cf. Suetonio,
Vida dos doze Césares: Nero, 38.) E Roma tinha ardido, devastada por um
terrível incêndio que tinha consumido o Circo e todo o Aventino. E Tácito nos
diz que «esse desastre tornou-se glória para o Nero, quem indenizou todas
as casas incendiadas». (Cf. Tácito, Anais, VI, 45.)

Nada parecido acontece com o Nero. Não só não é o autor do incêndio, não
só não está em Roma e o ignora durante os quatro primeiros dias, mas sim
logo adota todas as medidas em favor das vítimas. Mas a classe dirigente
de Roma, servirá-se do incêndio para afundar ao homem ao qual odeia, e
para tentar aniquilar uma seita que lhe parece extremamente perigosa para
seus interesses e suas tradições.

E aqui temos ao verdadeiro Nero, leitor. Não se parece em nada à
caricatura que lhe foi apresentada até agora nas telas...

Um dia, no princípio de seu reinado, Agripina obteve dele uma condenação
de morte. Ante todos os assistentes, estupefatos, e que logo dariam
testemunho disso, Nero depositou o «estilo» com o que se dispunha a
assinar, e murmurou, abatido: «Ai! Por que me ensinaram a escrever!». (Cf.
Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, 10.) E isso porque aquele homem
era verdadeiramente um criminoso.

Sua mãe era odiada tanto pelo Senado como pelo povo. Para protegê-la
melhor, deu-lhe um guarda germânico, mais seguro que o guarda pessoal
de Agripina, composta por romanos, conforme nos continua dizendo Tácito.

Sila, cunhado de Octavia, primeira esposa de Nero, fomentou uma
conjuração, sem dúvida de acordo com esta, e projetou assassinar ao
imperador para ficar com o poder. Uns homens armados atacaram a escolta
de Nero, no caminho que tomava habitualmente para retornar ao
entardecer ao palácio. Mas o imperador, naquela noite, visitava os jardins
de Salustio, em Princius. Não se inteirou do atentado frustrado até sua volta,
de boca dos superviventes da matança. Contra todas as regras mais
elementares da justiça, contra a opinião de Séneca e de Burro, seus sábios
conselheiros, contra seu dever de imperador, negou-se a mandar julgar à
Sila, e se contentou afastando-o de Roma e colocando-o em Massilia
(Marsella) em residência forçosa, onde este, com toda tranqüilidade, pôde
prosseguir com suas conspirações, que, claro está, um dia tiveram êxito.

Quando se viu obrigado a permitir que suprimissem a sua mãe, por causa
dos perpétuos complôs desta contra sua própria vida, retirou-se à Baules
para chorá-la, e logo a veria, em seus sonhos, lhe perseguindo com um
látego.
Não retornou à Roma até outono do ano 59, com o fim, conforme disse, de
lutar contra os jogos cruéis e selvagens de Circo, e ali instituiu uns Jogos
que levariam seu nome. Neles se celebraria a poesia, a música e os
esportes harmoniosos, como na Grécia. Para isso mandou construir um
recinto especial no Campo de Marte. Esta inovação causou escândalo. Sob o
pretexto de que os combates sangrentos do Circo e a desumana crueldade
dos espectadores formavam virilmente à juventude, a aristocracia romana e
os elementos conservadores lhe reprovaram que os abrandasse. Chegaram
até lhe fazer responsável pelo que acontecia, ao cair a noite, depois desses
Jogos Florais antecipados, entre jovens moços e moças.

Plauto, neto de Druso e bisneto de Tibério, e por conseguinte com direito a
aspirar ao império, homem muito reacionário, organizava conjurações sem
ocultá-lo o mínimo. Nero, avisado e posto em presença das provas de tal
conjuração, negou-se a entregá-lo à justiça. Contentou-se dizendo-lhe que
se afastasse de seus maus conselheiros e que se retirasse à seus domínios
da Ásia Menor. Plauto continuou ali com suas conspirações durante três
anos, nos quais manteve correspondência com seus cúmplices, e levantou
tropas mercenárias clandestinas, até tal extremo que Nero, no ano 62, teve
que abandoná-lo à justiça, que condenou a morte. E Tácito observa:
«Quando não pode impedir uma condenação, dá tantas aberturas que o
acusado tem tempo de morrer de velho!». (Cf. Tácito, Anais, XIII, 33.)

Esse mesmo ano 62, Sila, livre na Marsella de continuar com suas
conjurações (também ele, como Plauto, aspirava ao império, já o dissemos),
conspira com os tribunos das legiões aquarteladas em Galia. Gasta uma
verdadeira fortuna para formar um exército. A justiça romana nem sequer
pode capturá-lo, já que é virtualmente inacessível e está muito bem
protegido. Para desfazer-se dele, Nero terá que permitir que seja
assassinado por assassinos a salário, contratados pelo prefeito do pretorio.

Ante as conspirações de seu cunhado. Nero resigna-se por fim a afastar a
sua esposa, Octavia, a repudiá-la e a casar-se com Popea, sua amante.
Exílio dourado: Octavia está plena de riquezas e posses, e possui um
palacete em pleno centro de Roma. Tudo em vão, porque três semanas
depois, a tarde em que teve lugar o matrimônio de Nero e Popea, Octavia
arengou às multidões do terraço desta mansão, amaldiçoando Nero e
condenando-o às Fúrias. E este último ponto teria permitido então que lhe
aplicasse a Lei das Doze Pranchas, o que implicava a condenação a morte.

Popea inteira-se de que Octavia planeja assassiná-la ou envenená-la.
Queixa-se disso ao Nero. Este, uma vez mais, recusa cortar pela raiz e
entregar Octavia à justiça, sabendo que esta aplicará a mesma Lei das Doze
Pranchas com todo seu rigor. Limita-se a colocar a sua ex-esposa em
residência obrigatória na ilha de Pendataria, ao leste de Baules, e lhe dá a
suntuosa mansão em que tinha habitado Julia, a filha de Augusto. O
encarregado de conduzi-la ali será Aniceto, almirante da frota imperial. A
sua volta, este, horrorizado, irá confessar ao Nero que, durante a travessia,
Octavia lhe adulou, embriagou-lhe e se entregou a ele, antes de lhe pedir
que fomentasse uma rebelião na frota romana e assassinasse ao imperador.

Desta vez Nero não pôde escapar à suas responsabilidades. Em 9 de junho,
uns mensageiros levaram Octavia à ordem e pôr fim a seus dias. Como esta
se negou, uns médicos tiveram que sujeitá-la estendida, atada, e abrir-lhe
as veias. Segundo o costume legal da época, levariam sua cabeça ao
imperador, que se negou a vê-la. Só Popea a contemplaria, longamente, em
silêncio.

Em matéria de política interior a ação de Nero foi excelente. No ano 63,
um ano antes do incêndio de Roma, e das pretendidas atrocidades contra os
cristãos da cidade. Nero fez admitir à cidadania romana aos habitantes dos
Alpes Marítimos. Mandou lançar ao mar o trigo quebrado que vendiam os
traficantes sem escrúpulos, e paralelamente proibiu aumentar o preço dos
cereais. Censurou aos príncipes vassalos do Império romano cujos
dispêndios ultrapassavam os ganhos. Decidiu pagar cada ano ao Estado
uma soma de sessenta milhões de sestércios, tirados de sua própria fortuna.

Nero, apaixonado pela justiça, sensível às desgraças da infância, proibiu as
adoções fictícias, simuladas ou provisórios, mediante as quais os solteiros
tinham direito a compartilhar as questões e os cargos governamentais
reservados aos pais de família. «Porque as promessas da lei não são a não
ser uma pura zombaria, desde que se atribui as vantagens de uma
paternidade real com a ajuda desses meninos, que não custam nada, e aos
quais logo se perde sem nenhum pesar», declarava.

Illium, Apamea e Bolonha foram destruídas por incêndios (cf. Tácito, Anais,
XII, 58). A pedido de Nero, Bolonha recebeu uma ajuda de dez milhões de
sestércios, Apamea foi descarregada de todo tributo durante cinco anos. A
ilha de Roda obteve sua independência municipal (cf. Suetonio, Vida dos
doze Césares: Nero, 7.)

O imperador se granjeou um pouco mais a inimizade da classe rica e
dominante ao decretar que o prefeito de Roma, a partir de então, deveria
dar curso às questões que lhe apresentassem os escravos, por causa da
injustiça ou os maus entendimentos de seus amos. A este respeito
mostraremos como paralelismo as decisões do Concílio de Reims, que, no
ano 625, decretou em um de seus cânones que «os escravos não seriam
recebidos como acusadores» (cf. Migne, Dictionnaire des Incite, tomo II.)

Que não nos digam que esse concílio foi de pouca importância, já que
agrupou 41 bispos, cinco dos quais foram logo santificados pela Igreja.
Recordemos o nome desses que se consagraram ao dever de ser menos
humanos que Nero: São Sindulfo, bispo de Viena; São Sulpicio, bispo de
Bourges; São Modoato, bispo de Tréveris; São Cuniberto, bispo de Colônia,
São Donato, bispo de Besancon.

*[Recordemos deste modo que o Papa Leão X, o da «fábula» de Jesus, tinha
declarado legítima a escravidão para os negros, já que, como não eram
cristãos, não estavam «qualificados para ser livres». Além disso, a revelação
do Evangelho «lhes compensaria a perda de sua liberdade». É por isso que,
até o ano 1813, em Córdoba, Argentina, os Missionários da Fé se dedicaram
à criação de formosas mestiças que, educadas e adestradas, eram logo
vendidas por eles aos ricos proprietários de fazendas.]

Nero queria suprimir todas as taxas sobre as mercadorias, mas o Senado
se opôs. Ordenou então que os recolhimentos esquecidos não fossem
exigidos transcorrido o prazo de um ano. Ordenou, do mesmo modo, um
descida importante das taxas percebidas em ultramar pelo transporte de
trigo. (Cf. Tácito, Anais, XIII, 50.)

Nero, como se sabe, tinha horror ao sangue. Proibiu aos governadores de
província que dessem combates de gladiadores, e Suetonio reconhece que,
em toda sua vida, Nero não deu a não ser um único combate, no qual
proibiu matar a ninguém, nem sequer a condenados. (Cf. Suetonio, Vida dos
doze Césares: Nero, 12.) Tudo isto fez que a plebe, entusiasta dos selvagens
jogos circenses, voltasse-se contra ele.

Apaixonou-se também pelas teogonias estrangeiras, documentou-se
sobre a religião e as doutrinas dos druidas, conversava com um filósofo
alexandrino, um poeta grego. Apesar da severidade das leis romanas,
tolerou a extensão de uma religião estranha em seu próprio palácio,
fechando os olhos à ação dos propagandistas cristãos entre sua servidão.
Quando Séneca desejou abandonar a corte imperial, assustado pelo ódio
que Nero acumulava em torno de si por causa dessas medidas que, embora
lhe fizessem honra, chocavam-se contra os interesses egoístas de tantos
privilegiados e privavam à plebe de suas selvagens diversões no Circo, Nero
não lhe deixou partir. E para mantê-lo perto, teve umas palavras de
estranha elevação para seus vinte e seis anos: «Tudo o que minha situação
reclamava de si, tem-no feito. Sua razão, seus conselhos, seus preceitos,
rodearam com solicitude minha infância, logo minha juventude. E os
serviços que me tem feito permanecerão presentes em meu coração
enquanto viva. Dá-me vergonha recordar os nomes de libertos cuja fortuna
se eleva visivelmente por cima da sua. Sinto-me inclusive avermelhar ao
pensar que você, o primeiro em minha ternura, não supera ainda em
fortuna a toda essa gente [...] Mas o vigor de sua idade alcança ainda para
os assuntos e as vantagens que dão, enquanto que eu, eu dou meus
primeiros passos na carreira imperial [...] Porque, se for certo que às vezes
posso escorregar por quão pendente arrasta à juventude, não está você aí
para me deter? Por que não sustentar com seus conselhos à força que eu
devo à idade? Por que não dirigi-la com mais zelo que alguma vez? [...]
Mesmo que se elogie um dia seu desinteresse, jamais estaria bem a um
sábio perder um amigo de reputação para assegurar a glória». (Cf. Tácito,
Anais, XIV, xVI, 56.)

Quando se queimou Roma, no ano 64, seus atos foram os de um
verdadeiro imperador: «Para tranqüilizar ao povo, que errava sem asilo.
Nero lhe abriu o Campo de Marte, os monumentos e seus próprios jardins.
Ordenou que se construíssem casas provisórias para os mais indigentes, fez
chegar mobiliário de Ostia e das cidades vizinhas, e mandou reduzir o preço
do trigo à três sestércios». (Cf. Tácito, Anais, , XV, xxx, 39.)

Rechaçou as estátuas de ouro que o Senado romano queria lhe erigir em
testemunho de gratidão pela grandeza de seu reinado.

Mas o ódio que os aristocratas e os plebeus enriquecidos sentiam para
Nero, por essas medidas que machucavam seu orgulho e alteravam seus
costumes, não cedeu. E vemos como Suetonio, em seu sexto livro, reprova-
lhe essas mesmas medidas em favor do povo miserável e da higiene
(porque Nero foi um excelente urbanista): «E para não perder nem sequer
esta ocasião de recolher tanto troféu e despojos como pudesse, prometeu
que faria retirar gratuitamente os cadáveres e os despojos, e não permitiu
que ninguém se aproximasse dos restos de seus bens. Logo, não contente
aceitando contribuições particulares, exigiu-as, com o que reduziu quase à
ruína à províncias e à particulares». (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares:
Nero, 38.)

A avareza da alta sociedade romana era legendária; salvo para alguns
libertinos como Petronio, o ouro capturava às almas. E daí seu julgamento
sarcástico: «O universo está em mãos dos romanos vitoriosos; possuem a
terra e o duplo campo dos astros, mas jamais estão saciados. Cada novo
império, cada tesouro, suscita uma nova guerra! Os gozos, uma vez postos
ao alcance de todos, já não têm encanto, os prazeres se desgastaram em
gozos plebeus, e o mármore que você acaricia, um simples centurião o
acariciou antes que você [...] Do que servem essas pérolas que lhe são tão
queridas? Do que serve sua gema da Índia? É para que uma mãe de família,
ornada de pendentes marinhos, levante suas coxas sem pudor sobre um
rico cobertor do Oriente? Para que a verde esmeralda? Para que desejas os
fogos que arroja a pedra de Cartago? Indubitavelmente, não para que sua
virtude resplandeça à luz dos diamantes! [...] É justo revestir a uma mulher
casada com umas roupas que não são a não ser um sopro, e que se mostre
nua sob uma nuvem de linho?». (Cf. Petronio, O Satirizem, 55.)

De modo que todas essas medidas em favor da cidade em ruínas, e
sobretudo em favor desses seres humildes aos quais os romanos não
concediam sequer um olhar, todos esses gastos que eles consideravam
inúteis, não os perdoarão ao Nero.

Mas a debilidade do imperador para aqueles que, sem cessar, conspiraram
contra sua vida, terminará por dar a razão à vigilância de que era objeto por
parte de seus amigos mais abnegados. Em um só ano, de outono do ano 65
a outono do 66, encontraremos a conspiração de Cayo Longino, ex-
governador de Síria, e de Lucio Silano, descendente de Augusto; a de
Antistio Veto e de todos os seus; a de Escápula, prefeito das cortes
pretorianas, e de Publio Anteio, antigo familiar de Agripina; a dos
superviventes da conspiração de Pisón, em que participará Petronio. Este,
ao ser denunciado por um de seus escravos, e ao receber uma ordem de
Nero de não acompanhá-lo à Nápoles, aonde deviam ir juntos, teve medo e
se abriu as veias.

Tal debilidade está ligada ao temperamento artístico e sensível de Nero.
«Não mandava procurar os autores dos epigramas injuriosos, e inclusive,
quando alguns deles eram denunciados ante o Senado, proibia que lhes
castigasse severamente.» (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, 39.)

Logo, para o final de sua vida, humilha-se; poderia acreditar-se que tinha
lido a Epístola aos Romanos desse Saulo-Paulo a quem a clemência imperial
tinha absolvido uma primeira vez: «lhes deixe atrair pelo que é humilde e
não aspirem ao que é elevado». (Op. cit., 12, 16.) Leva os cabelos longos,
como os judeus, ele, que antigamente se fazia cortar e modelar os cabelos
diariamente, ao uso romano. Mostra-se em público sem cinturão, descalço,
com um simples lenço atado ao pescoço. Trabalha com os pedreiros,
dirigindo a enxada e enchendo de terra e de pedras o cesto de vime que
logo transportará também ele mesmo. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares:
Nero, 23-24, 51, 19.)

Isto não fará a não ser conseguir que a aristocracia romana lhe odeie um
pouco mais. E, sobretudo, não lhe perdoará quão medidas adota em favor
dos escravos. Com efeito, Nero tinha retirado aos amos o direito de vida e
de morte sobre esses desgraçados, e proibiu deste modo o abandono ou o
repúdio longe da cidade do escravo muito velho ou doente, e que, por esse
motivo, não quer continuar alimentando-se mais.

Essa humildade, essa doçura, essa renuncia à glória imperial, esse horror
ante o sofrimento e o derramamento de sangue, tudo isso desembocará,
através de uma espécie de masoquismo mórbido, em um afeminado que
causará escândalo. Nero terá aventuras homossexuais. Mas nisso não faz a
não ser seguir os costumes de sua época, costumes das quais os
imperadores que lhe precederam não se privaram jamais. Não poderia, pois,
reprova-lo tal coisa.

De todo modo, cansado da incompreensão de uma plebe a que quer
aliviar de seus maus e liberar de sua crueldade, farto do ódio de que é
objeto por parte da alta sociedade romana e os arrivistas enriquecidos. Nero
se abandonará. Incomprendido por todos, refugia-se na bebida. Se se tiver
em conta essa desordem psíquica que se vai agravando de mês em mês,
vemos que o beber não arruma nada. O veneno surte efeito, o baço
também, e só o desenfreio e as orgias permitem ao imperador esquecer um
momento essa túnica de Nero em que se converteu para ele a púrpura
imperial. E é essa decadência, sabiamente alimentada por seus
desconhecidos adversários, a que conduzirá ao imperador a seu fim.

Três efígies de Nero fazem compreender essa progressiva degradação. Aos
vinte anos, um rosto sereno, com a barba como colar, oferece-nos ao
discípulo dócil e cheio de admiração, da Séneca. Leva a bondade e a
indulgência em seu sorriso tímido. Logo lhe vemos alguns anos mais tarde:
barbeou-se, o rosto está rejuvenescido, não aparenta apenas sua idade e o
sorriso é ainda mais aberto, é o sorriso de um homem bom, que ama
profundamente aos homens. Por último, a última imagem do imperador
mostra a um Nero impreciso e pesado, com o olhar vago, volta para o céu,
como se pressentisse que, para ele, estava a ponto de terminar seu papel
aqui.

Porque Séneca tinha morrido no ano 66, comprometido no complô de
Pisón. Burro também tinha morrido, em 62, quatro anos antes que seu
amigo Séneca. Diz-se que envenenado. Mandava o guarda pretoriano, como
prefeito do pretorio. Era o juiz imperial de todos aqueles que tinham feito a
«apelação ao César». Foi ele quem absolveu a Saulo-Paulo durante seu
primeiro processo.

Agora era Ofonio Tigelino, um antigo traficante siciliano, quem se achava
ao mando dos pretorianos, e também era responsável pela segurança do
imperador. Foi o amante de Agripina em tempos de Calígula, e por isso
conheceu o exílio. Quando esta se converteu em esposa de Claudio César,
apressou-se a fazer voltar para Roma a seu antigo amante, convertido agora
em seu cúmplice. E este destruiu pouco a pouco, na alma de Nero, os
ensinos de Séneca. Era seu conselheiro em matéria de prazeres e de vícios.
Não obstante, como temia ao imperador, e como se lembrava de seu exílio,
deixava-lhe acreditar na felicidade das pessoas, jamais lhe revelou os
progressos do ódio que, cada dia mais, espreitava ao palácio imperial,
inclusive depois das fronteiras. Possivelmente inclusive lhe animou por este
caminho que adivinhava que a um César resultaria fatal, já que um dia, em
suas loucas esperanças, Nero diria: «Não se sabe quanto lhe é possível a um
príncipe». Ignora que os únicos amigos sinceros que ficam são esses
escravos e esses libertos aos que ele tirou do sofrimento e da miséria.

Essa benevolência que manifestou para com todos os romanos, Nero a fez
extensiva a todo um povo estrangeiro. O discurso de Nero em Corinto,
gravado em uma lápide comemorativa, foi descoberto em Karditza em
1888. E nesse discurso. Nero acrescenta ainda mais glória à Roma,
igualmente à majestade imperial: «Vós todos, helenos, que habitam em
Acaia, ou na terra chamada até agora de Peloponeso, recebam, com a
isenção dos tributos, a liberdade que nos dias mais afortunados de sua
história não possuíram jamais todos juntos, vós que foram escravos, uns ou
outros. Ai! Se eu tivesse podido, nos tempos prósperos de Hélade, dar este
curso a minhas bondades para poder ver gozar delas a um número maior de
homens! Estou molesto com esse Tempo que, ao adiantar-se me minguou a
grandeza de semelhante boa ação [...] Mas dou graças a Deus, cujo amparo
sinto sempre, tanto em terra como no mar, por me haver dado apesar de
tudo a ocasião de realizá-la. Houve cidades que receberam de outros
príncipes sua liberdade [...] Nero a concede a toda uma província». (Cf.
Maurice Holleaux, O Discurso de Nero à Conrinthe.)

O imperador volta para a Grécia em fevereiro do ano 68. Tem em sua
mente um grande projeto. Obtém dos proprietários os melhores de seus
escravos, aos quais escolhe entre os mais cultos. Procede a fixar um
imposto sobre o capital, e deduz dos proprietários o valor de um ano inteiro
de aluguel. Obtém deste modo uma soma enorme, que sobe a dois mil e
duzentos milhões de sestércios. (Cf. Tácito, Histórias, I, 10.) E a distribui
entre os humildes, quer dizer, entre os libertos e os escravos, enquanto ele
mesmo se vê na obrigação de diferir o pagamento dos legionários e as
pensões aos veteranos. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, 32.) Aos
escravos que tirou das casas dos ricos proprietários os manumite, e forma
com eles coortes de tropas que têm por objeto reprimir e castigar aos maus
amos que tiranizam, ou inclusive martirizam, a seus escravos, aos avaros
que regateiam seus óbolos aos templos religiosos, etcétera.

É todo um mundo, corrompido e desumano, o que Nero pretende reformar.
A resposta não se fará esperar. Igual a toda empresa deste gênero, os
elementos reacionários confiarão ao exército a tarefa de varrer aos
«repartidores». E terá lugar a insurreição de Cayo Julio Vindex, governador
de Gallia Lugdunensis, a Galia lionesa. O Senado decreta que Nero será
executado segundo o antigo costume romano: com o pescoço agarrado em
uma forca, e as costas curvada em dois, nu, será flagelado até que se
produza a morte, com látegos de chumbo.

Nero fugirá de Roma em 9 de junho do ano 68, e se refugiará nos
subúrbios. Decide dar-se morte para evitar esse terrível suplício, mas vacila.
Então Epafrodito, seu relator do Conselho de Estado, que provavelmente foi
o auxiliar de Saulo-Paulo chamado na Epístola aos Filipenses (2, 25, e 4, 18),
precipita-se sobre ele e lhe afunda uma adaga na garganta.

No mesmo instante, forçam a porta da moradia e entram os legionários na
estância. O centurião que as manda se precipita para Nero e, com seu
manto de regulamento, tenta deter o sangue e obturar a ferida: «Muito
tarde, murmura Nero, essa é sua fidelidade?». (Cf. Suetonio, Vida dos doze
Césares: Nero, 49.)

O imperador teve funerais dignos da púrpura imperial, como segue
relatando Suetonio: «envolveu-se seu cadáver nos cobertores brancos
recamados de ouro que lhe tinham servido o dia das calendas de janeiro.
Seus restos foram encerrados por suas amas de cria, Eglogé e Alexandria,
ajudadas pela concubina de sua adolescência, Acté, na tumba da família
dos Domitii, que se vê do Campo de Marte, na colina dos Jardins».

Houve nessa tumba um sarcófago de pórfido, coroado por um altar de
mármore de Lua, e rodeado de uma balaustrada de pedra de Thasos.

Muito mais tarde, uma vez mortos seus inimigos e extintos os ódios, com
seus sopros maléficos, fizeram-lhe justiça.

Um liberto de Patrobius o Neroniano comprou a cabeça da Galba aos
palafreneros do exército que a passeavam ao extremo de uma lança, pela
soma de cem peças de ouro, e foi arrojar ao lugar onde seu «patrão» tinha
sido executado por ordem de Galba, porque era amigo de Nero. (Cf.
Suetonio, op. cit., Galba, 20.)

Otón tirou de Nero sua amante, Popea, que este lhe tinha crédulo, e se
tinha negado a devolver Nero se contentou enviando-o à província da
Lusitania (Portugal), em qualidade de governador. (Cf. Suetonio, op. cit.,
Otón, 3.)

Proclamado imperador, Otón acrescentou a seu nome o de Nero. Mandou
restabelecer as estátuas e as imagens deste imperador, e devolveu a seus
agentes e libertos seus antigos cargos. (Cf. Suetonio, op. cit., Otón, 7.)

Vitelio Germânico ofereceu no Campo de Marte, em Roma, com
numerosos sacerdotes dos cultos oficiais, um sacrifício ao Nero. Em um
festim solene fez cantar vários poemas extraídos do Dominicum, e quando o
citaredo entoou os cantos de Nero, ele foi o primeiro a aplaudir. (Cf.
Suetonio, op. cit., Vitelio, II.) Mais ainda, Dion Cassius, em seu Histoire
Romaine, diz-nos que «punha como exemplo para todos a vida e os
costumes de Nero».

Por último, Domiciano condenou ao suplício capital Epafrodito, seu relator
do Conselho de Estado, que também o tinha sido de Nero, porque se dizia
que tinha «ajudado» com sua própria mão ao Nero a dar-se morte quando
se viu abandonado por todos. (Cf. Suetonio: op. cit., Domiciano, 14.)

Todas essas medidas não mudarão nada o curso da história. Os escribas
cristãos passariam por aí, e, para fazer esquecer melhor esse crime
inexpiável que foi o incêndio de Roma, trocariam sabiamente os
manuscritos dos autores antigos, para fazer de Nero o autor de tal incêndio.
E terá que esperar ao século XX para ver o fim aparecer obras imparciais,
frutos de uma investigação profunda, como as de Arthur Weigall e Jean-
Charles Pichón, que devolverão ao Lucius Domitius Ahenobarbus, imperador
sob o nome de Nero César, seu verdadeiro rosto, o de um ser desgraçado,
odiado por incompreendido, e a quem a perversidade de uma mãe indigna
orientou, mediante o veneno, para a demência progressiva e uma morte
prematura, aos trinta e um anos de idade...

E apesar de tudo isso, diz-nos Suetonio, durante longos anos Nero teve
fiéis que adornaram com flores sua tumba, na primavera e no verão. Expôs-
se sua imagem na tribuna das arengas, revestidas com a toga pretexta. E
mais, às vezes pegaram decretos, aparecidos misteriosamente, nos quais
anunciava, como se ainda estivesse com vida, sua próxima volta. E para
sublinhar melhor ainda o prestígio que conservou até depois de morto, os
partos veneraram sua memória. E por último --o que prova que não se
envergonhavam absolutamente de havê-lo tido por imperador--
apareceram três falsos Neros, nos anos 70, 80 e 88. (Cf. Suetonio, Vida dos
doze Césares: Nero, 57.)*
E Trajano, o grande imperador, declarou quarenta anos mais tarde que a
primeira época do reinado de Nero se conta entre as mais grandiosas da
história de Roma. Que mais pode dizer-se?

*[É provável que fossem também os cristãos os que, periodicamente,
publicassem em Roma o anúncio da volta de Nero. A fim de fazer acreditar
nos ingênuos militantes de suas comunidades que o de Jesus estava
igualmente próximo, e com ele, o fim do Mundo pelo fogo, evidentemente.
Basta para convencer-se relendo os célebres Oráculos sibilinos:

«E Belias (o demônio) descenderá de seu firmamento em forma de
um rei de iniqüidade, assassino de sua mãe». (Oráculos sibilinos, IV, 121.) A
Ascensão de Isaías, composta ao que parece em finais do século I de nossa
era, mas cujos originais se perderam, insinua o mesmo em seu capítulo IV,
versículo 2. Os dois textos pertencem ao judeu-cristão.

Os primeiros, com grande astúcia, põem em cena às Sibilas pagãs, em
lugar dos personagens bíblicos habituais, como Enoc, Noé, etcétera.]



22 - O fim do sonho

Sou como o gamo à espreita sobre o penhasco, que geme de medo, palpita
e se afunda na erva, porque sente vir a flecha do arqueiro.

Leconte De Lisle, Poemas bárbaros.

Geralmente se dividem as numerosas expedições de Saulo-Paulo através
de todo o Império romano em três grandes «viagens missionárias», que são:

-- Primeira viagem: Chipre, Antioquía da Pisidia, Iconio, Listra, Derbe,
Attalia, Antioquía de Síria.

--Segunda viagem: Galacia, Tróade, Macedônia, Tessalonica, Atenas,
Corinto, Éfeso, Cesaréia da Palestina, Jerusalém.

--Terceira viagem: Antioquía de Síria, Galacia, Tiana, Sásima, Cesaréia da
Capadocia, Frigia, Lídia, Éfeso, Troas, Macedônia, Corinto, Éfeso, Tróade,
Filipos, Corinto, Illiria, Jerusalém.

Aqui temos pois, transcrito de forma aproximada, o que sabemos
oficialmente das viagens missionárias de Paulo, que seriam três, segundo a
versão oficial.

Entretanto houve muitas outras, que se mantêm cuidadosamente na
sombra, e que desapareceram porque proporcionavam uma chave muito
perigosa das atividades de Saulo-Paulo. Monsenhor Ricciotti faz uma alusão
muito discreta a eles em seu Saint Paúl, apotre. Porque, apesar de tudo, é
difícil fazer desaparecer os próprios textos do interessado, nos quais revela
ingenuamente a realidade dessas outras viagens.
Àquelas se acrescentam, pois, duas «viagens de atividade» e o da
Espanha:

-- Quarta viagem: Jerusalém, Cesaréia, Sidón, Mira, Malta, Siracusa,
Regium, Puteoli, Roma.

-- Quinta viagem: de Roma (desde seu porto de Ostia) junto à Galba, na
Espanha, e volta.

-- Sexta viagem: a fuga de Roma depois do incêndio do ano 64, até Troas,
em Tróade, seguida pela captura nesta cidade, de retorno a Roma.

-- Sétima viagem: de Tróade à Roma. Itinerário desconhecido. Portanto,
vamos estudá-los.

Não se terá deixado de observar que os Atos dos Apóstolos, atribuídos
oficialmente ao Lucas, acabam-se bruscamente no momento da instalação
de Paulo em Roma, muito cômoda em sua custódia militaris, em uma
moradia escolhida por ele, entrando e saindo quando quer, dado que: «Dois
anos inteiros permaneceu Paulo em uma casa alugada, onde recebia a todos
os que vinham a ele, pregando o reino de Deus e ensinando com toda
liberdade e sem obstáculo tudo referente ao Senhor Jesus Cristo». (Cf. Atos
dos Apóstolos, 28, 30-31.)

Assim terminam os citados Atos dos Apóstolos.

Agora bem, tomemos a segunda epístola dirigida pelo Paulo ao Timóteo.
No último capítulo lemos o seguinte:

«Quanto a mim, a ponto estou de me derramar em libação, e é já iminente
o momento de minha partida. Combati o bom combate, terminei a carreira,
mantive a fé. Pelo resto, já me está preparada a coroa da justiça, que me
outorgará aquele dia o Senhor, justo juiz, e não só a mim, mas também a
todos os que terão aguardado com amor seu advento.

»Tenha pressa em vir para mim, porque Demas me abandonou por amor a
este século e partiu a Tessalonica; Crescente a Galacia e Tito a Dalmacia. Só
Lucas fica comigo. Ao Marcos tome e lhe traga contigo, que me é muito útil
para o ministério. Ao Tíquico mandei ao Efeso. O capote que deixei em
Tróade, em casa de Carpo, traz-o para o vir, e também os livros, sobretudo
os pergaminhos.

»Alexandre, o ferreiro, tem-me feito muito mal. O Senhor lhe dará o
pagamento segundo suas obras. Guarde você também dele, pois mostrou
grande resistência a nossas palavras.

»Em minha primeira defesa ninguém me assistiu, antes me
desampararam todos. Não lhes seja levado em conta. Foi o Senhor quem
me assistiu e me confortou, para que por mim seja cumprida e anunciada a
predicação e ouçam-na todos os gentis. E fui sacado da boca do leão. O
Senhor me liberará de todo mal e me salvará, para me fazer entrar em seu
reino celestial. Ou seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

»Saúda a Prisca e Aquila e à família de Onesíforo.

»Erasto ficou em Corinto. Ao Trófimo deixei em Mileto doente.

»Procura vir antes do inverno. Saúdam-lhe Eubulo, Pudente, Lino, Claudia e
todos os irmãos.

»O Senhor seja com seu espírito. A graça seja com vós.» (Cf. II Epístola ao
Timóteo, 4, 6-22.)

Desta carta se desprende a certeza de que Saulo-Paulo foi detido em Troas,
capital da Tróade, situada à entrada dos Dardanelos, frente à ilha de
Tenedos, e a que se chamava deste modo Alexandria de Troas, ou
Alexandria de Tróade. Era a antiga Ileo, a Tróia da Odisséia e da litada. Fora
local de privilégios por parte dos membros da gens Julia, porque Julio César
afirmava que sua genealogia se remontava a Eneas. Por isso, durante um
tempo tinha pensado em transferir a essa cidade a capital do Império
romano. E, com efeito, uma profecia misteriosa afirmava que Tróia, que
tinha sido destruída por um gigantesco incêndio quando foi tomada pelos
gregos, seria restaurada por um homem procedente de Roma. Muito mais
tarde, Constantino --em parte devido a isso mesmo-- criaria Constantinopla
(Bizancio) nessa mesma região, e a converteria na capital.

Pois bem, Saulo-Paulo tinha pensado em um império religioso que fose ao
mesmo tempo pontífice e rei. E, para seu espírito de beduíno supersticioso,
bastava indo de Roma ao Troas para realizar a profecia, ou ao menos para
pôr em marcha o misterioso dinamismo que rege os destinos dos homens.
Infelizmente para ele, as circunstâncias de sua partida, que analisaremos
logo, não permitiriam que se realizasse o sonho paulino.

Voltemos para sua estadia em Roma. Ao cabo de dois anos, nos quais
viveu comodamente, compareceu ante o tribuno imperial, quer dizer, ante
Burro, prefeito do pretorio, se não foi ante o próprio Nero, tendo em conta
sua qualidade de príncipe de uma dinastia vassala leal. E foi absolvido.
Imediatamente partiu para a Espanha, e isso é quase seguro, os
historiadores católicos o reconhecem. Clemente de Roma afirma que Paulo:
«... depois de ter ensinado a justiça ao mundo inteiro, e ter vindo aos limites
do Ocidente, deu testemunho...»

Por outra parte, o Fragmento de Muratori, redigido por volta do ano 180
aproximadamente, fala em termos explícitos dessa viagem de Paulo à
Espanha. Do mesmo modo, os Atos de Pedro e os de Paulo, e diversos
Padres da Igreja: Atanasio, Epífano, João Crisóstomo, Jerônimo, etc.,
confirmam toda essa viagem.

Em seu Saint Paúl, apotre, monsenhor Ricciotti reconhece que essa
viagem, «levado a cabo possivelmente por via marítima, não exigiu muito
tempo; ao cabo de alguns meses. Paulo devia estar já de retorno em Roma».
(Op. cit., P. 469.)

Tendo em conta a lentidão da navegação naquela época, os atrasos
causados pelos ventos, as tempestades, a relativa escassez de navios que
efetuavam as viagens, «alguns meses» implicam uma estância muito breve
na Iberia. Portanto não se tratou de uma campanha de propaganda
doutrinal religiosa, que teria requerido muito mais tempo. E assim
monsenhor Ricciotti pode dizer que: «foi à Espanha pouco depois de sua
liberação no curso do ano 63, e retornou à Roma na primeira metade do ano
64». Isso não dá poucos meses, a não ser um ano! Nosso autor quer
descartar toda possível alusão ao que vamos encontrar agora. Porque
alguns meses são quatro ou cinco, todo o mais. Paulo estava de novo em
Roma no inverno 63-64. E se encontrava ali em março, quando incendiou
Roma, já que a carta, extremamente precisa, que lhe dirige Séneca a este
respeito, está datada de 28 de março do ano 64.

Mas o que foi fazer na Espanha? A romanização dessa província era muito
superficial, e se limitava aproximadamente à costa mediterrânea. E ali, para
representar a Roma, estava Sérvio Sulpicio Galba, antigo pró-cônsul da
África, então governador da Espanha Tarraconense. Não ocorrerá a ninguém
supor que Paulo pudesse introduzir-se no interior, entre os povos primitivos
e selvagens, e constituir ali comunidades cristãs que não encontraremos,
com alguma realidade, até o século II, por volta dos anos 175-190, quer
dizer, mais de cem anos depois da viagem de Saulo-Paulo.

De fato nosso homem foi ficar em contato com Galba, de parte de seu
amigo Séneca, quem, como estóico conservador, e inclusive reacionário,
agora era o adversário de Nero, e sobretudo de suas medidas
revolucionárias. Um dia o disse por escrito: «Não te aprovo já, César».

Estava tramando também uma conspiração desde fazia muito tempo: a de
Pisón. A Galba advertiram uns oráculos que podia esperar acessar ao
Império. Para isso chegou inclusive a tentar que se assassinasse ao
Vespasiano, por então na Judéia, em plena campanha contra a rebelião
zelote, no ano 66 (cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Galba, 33). No
momento, nos anos 63-64, Galba espera sua hora. Sabe que se aproxima.

Agora bem, se Séneca era estóico, era-o sobretudo de palavra. Era avaro,
rígido e ambicioso. Aspirava inclusive a chegar muito alto. Julgue-se: «Tinha
deslocado o rumor de que Subrio Flavo (tribuno de uma coorte pretoriana),
secretamente de acordo com os centuriões, tinha decidido (e Séneca não o
ignorava), que uma vez fora assassinado Nero pela mão de Calpurnio Pisón,
Pisón seria por sua vez assassinado, e o império lhe seria entregue a
Séneca, como um homem designado para a classe superior pelo esplendor
de suas virtudes, o que lhes faria irreprocháveis. Inclusive se repetiam aqui
e lá umas palavras de Subrio Flavo: "... que para vergonha do Estado, dava
o mesmo substituir a um citaredo por um trágico". E, em efeito, se Nero
cantava acompanhando-se da cítara. Pisón o fazia vestido de comediante».
(Cf. Tácito, Anais, XV, I, xV.) É lógico admitir que, se os conjurados do complô
de Pisón tinham acreditado conveniente assegurar ajuda de Cayo Julio
Vindex, magistrado de Galia Sequana sob o Nero, é mais lógico ainda supor
que tentassem assegurar-se de Galba, já que Vindex se revoltou justamente
em favor de Galba no ano 68, durante a derrocada de Nero por parte
deste... Só que reconhecer que Galba esteve envolto no complô de Pisón,
quando se encontrava na Espanha, é estabelecer uma relação entre a
viagem de Paulo lá e a participação deste último no chamado complô; é
mostrar o verdadeiro rosto desse mesmo Paulo.

Então tem lugar a repressão da conjuração de Pisón. A investigação
deveria começar, em segredo, no ano 64, e se fez pública em 65. Em abril
desse mesmo ano. Pisón e Séneca se abriam as veias, igual à outros
senadores comprometidos neste mesmo assunto. Portanto é seguro que os
laços de amizade entre Paulo e Séneca, sua viagem à Espanha,
deslocamento não justificado aos olhos de Roma, e a uma região governada
por Galba, provavelmente também suspeito já, permitiram à polícia de Nero
abrir um expediente à Saulo-Paulo. Já existia outro, o de sua participação
provável no incêndio de Roma, em março do ano 64. Provavelmente havia
também os do caso de Pafos, com o atentado contra Elimas-bar-Jesus, o
amigo do pró-cônsul Sergio Paulo; o expediente (por instruir ainda nesse
momento) da questão do Sanedrim de Jerusalém contra esse agitador,
«chefe da seita dos nazarenos». E isso de quatro expedientes. Seu estudo
revelou aos magistrados investigadores que, nos quatro casos, tratava-se
sempre do mesmo personagem, só que com nomes diferentes: Shaul, Saúl,
Saulo, Paulos, Paulus, príncipe herodiano autêntico, idumeu judaizado por
uma circuncisão que o Sanedrim não reconheceu como válida, titular da
cidadania romana, e beneficiário de numerosas vantagens e indulgências ou
de amparos localizados. A esse homem tinha protegido, inexplicavelmente,
o pró-cônsul Gallón, irmão do conjurado Séneca. Foi absolvido por Burro,
prefeito do pretorio, amigo de Séneca (morto em finais do ano 62).

Mas, imediatamente depois do incêndio de Roma, esse homem se
esfumou!

Essa fuga, acrescentada à esses expedientes, mobilizaria à polícia romana
em procura de Saulo-Paulo. Demorariam dois anos em encontrá-lo, e o
conduziriam à Roma mesmo para que fora julgado. E a perseguição que se
desencadeou no ano 64 sobre a comunidade cristã de Roma (muito pequena
então) não se estendeu fora da capital do império, e menos ainda por suas
províncias. Duraria muito pouco. Mas se ao Paulo capturaram muito longe
(em seguida veremos onde), e se foi levado de novo à Roma para ser objeto
de um processo, isso significa que não foi no curso de uma perseguição
local, porque nesse caso teria sido executado ali mesmo. Em troca foi
conduzido à Roma porque era na própria Roma onde tinha que prestar
contas. Com bastante embaraço, monsenhor Ricciotti diz: «De improviso.
Paulo reaparece prisioneiro em Roma, de onde enviará seu último escrito: a
Segunda Epístola ao Timóteo (1, 17). As circunstâncias que rodeiam sua
segunda captura são muito obscuras; pelo resto, é quase seguro que não
teve lugar em Roma, a não ser em algum lugar longínquo, onde Paulo deu
alcance a polícia imperial, que o buscava desde seu desaparecimento em
Roma». (Cf. Giuseppe Ricciotti, Saint Paúl, apotre, P. 470.)

E monsenhor Ricciotti sugere Troas..., o qual é também nossa opinião.

Embarcou-se clandestinamente em um porto da Itália, depois de uma
estância secreta ali, possivelmente sem sair para nada, em casa de
discípulos de confiança, e se dirigiu ao Troas procedente de Roma, assolada
pelo fogo. A seus olhos, a realização da profecia começa já. Mas a polícia
romana é paciente, e dispõe de médios para fazer falar às pessoas, a
habitual «tortura» judicial, que subsistirá oficialmente até a Revolução
francesa como forma legal de interrogatório. E provavelmente será na rua
onde lhe deterão de improviso os auxiliarii, os policiais romanos, pois na
Segunda Epístola ao Timóteo, ao final, queixa-se de ter deixado no Troas,
em casa de Carpo, onde ele se alojava, sua capa, seus livros e seus
pergaminhos (cf. II Epístola ao Timóteo, 4, 13). E em Roma dispõem da
acusação de Alexandre, o ferreiro, a quem ele tinha «encomendado a
Satanás» com o Himeneu (cf. I Epístola ao Timóteo, 1, 20). E isso constitui
um elemento de acusação mais, a cargo da Lei das Doze Pranchas, por isso
se refere à magia maléfica.

Nem sequer os próprios termos de sua carta se livram de despertar as
suspeitas dos magistrados romanos.

Com efeito, Saulo-Paulo reclama com insistência que antes do inverno
Timóteo vá à Troas, a casa de Carpo, e traga para Roma o manto de Paulo,
seus livros e seus pergaminhos. O que pretende dizer? Se tiver necessidade
de um manto, em Roma há tudo o que alguém possa necessitar, novo ou
em oferta, e seus discípulos poderiam lhe proporcionar um. Não há
nenhuma necessidade de impor ao Timóteo a viagem de Éfeso, onde se
encontra, até Troas, e logo depois de Troas à Roma. Porque Paulo não se
acha abandonado de todos em sua prisão, e todos os cristãos de Roma não
pereceram na batida consecutiva ao incêndio do 64: «Só Lucas fica comigo
[...] Saúdam-lhe Eubulo, Pudente, Lino, Claudia, e todos os irmãos». (Cf. II
Epístola ao Timóteo, 4, 10-21.) Estes últimos estão, pois, livres.

Então é evidente que esse manto não é como outros. É um manto
revestido, por uma sacralização particular, de um caráter oculto indiscutível,
será um «amparo» em sua defesa frente aos magistrados de Roma. Esse
tipo de manto «mágico» o encontramos em todas partes: no xale de oração
do judaísmo, no manto ritual do martinismo, nos mantos «de ordem» das
grandes irmandades cavalheirescas, e nos rituais ocultistas, onde multiplica
a proteção das roupas rituais do mago. A dalmática sacerdotal do rito latino
ou da ortodoxia constitui um último exemplo.

Mas, especialmente, é um rito de magia cabalística. O Sepher Hamalbusch,
manuscrito do Museu Britânico, ou «Livro sobre a atração e a prática do
Manto da justiça», oferece o ritual da fabricação de uma espécie de casulo
de pele de cervo, que tem escritos, com a tinta especial da Torá, os nomes
secretos de Deus. Esse manto dá ao adepto «um poder oculto irresistível».
Saulo-Paulo, prisioneiro de honra, livre, pôde servir-se dele durante seu
primeiro processo, que acabou em uma absolvição. No segundo, ao ser um
prisioneiro ordinário, não pôde utilizá-lo, já que os acusados, conforme
dispunha a lei romana, deviam comparecer vestidos de sórdidos farrapos
proporcionados pela prisão, com o fim de rebaixar a arrogância de alguns e
ao mesmo tempo para incitar à piedade dos juízes.

E os irmãos de Roma que estão livres, já que unicamente Lucas se acha na
prisão com o Paulo, não tinham a possibilidade de lhe proporcionar um,
novo ou usado? Isso significa, implicitamente, confessar que Saulo-Paulo
fazia uso da magia, que os livros e pergaminhos não eram evangelhos
comuns (porque os discípulos da comunidade de Roma também os
possuíam, é evidente), mas sim tratam de matérias que Saulo-Paulo é o
único que conhece. Aí encontramos ao personagem «iniciado» que se
tentou fazer desaparecer sob o véu de Simão o Mago... E esses manuscritos
e esses pergaminhos misteriosos pôde procurar-lhe antigamente no curso
daqueles atos de pilhagem aos que eram aficionados seu irmão Costobaro e
ele.

Apostamos a que esse imprudente final da carta pôde ser discretamente
lido pelos magistrados, que o teriam tido em conta em suas acusações.
Porque é pouco provável que Paulo mantivesse livremente correspondência
desde sua prisão com um de seus lugares-tenentes imediatos, que então se
achava em Éfeso, e que também tinha sido encarcerado em Roma quando
teve lugar o primeiro processo de Paulo.

Sobre o cativeiro deste último durante seu segundo processo, dispomos de
dados concretos sobre sua natureza. Já não se tratava da custódia militaris
honorífica, em que o prisioneiro se acha quase livre na cidade, alojando-se e
vivendo a seu gosto, com a única vigilância de um legionário pego a seus
passos. Agora do que se tratava era da custódia pública. Saulo-Paulo, como
conspirador, agitador, chefe de incendiários, mago, assassino, desta vez é
encarcerado na prisão Mamertina.

A Carcer Mamertinus estava perto do Foro e do templo da Concórdia, e se
compunha de três plantas. Na planta baixa se achava a prisão pública
comum. No primeiro porão estava a Carcer Mamertinus propriamente dita,
uma ampla sala no centro da qual se achava um buraco circular que dava a
um segundo porão. Ali se situava a Carcer Tullianum, outra sala abovedada,
de onde a gente não podia escapar a não ser pelo teto. Era uma masmorra
especial, destinada exclusivamente aos malfeitores mais temíveis e aos
inimigos de Roma antes de sua execução. Yugurta, o cruel e ardiloso chefe
númida, depois de capturado por Mario, foi introduzido ali, onde lhe deixou
morrer de fome. Vercingetórix passou nesse lugar seis anos, antes de ser
estrangulado, depois de ter figurado entre os «triunfos» de Julio César em
seu desfile, com outros prisioneiros ilustres: Arsinoé de Alexandria, e Juba de
Mauritania. Catilina também morreu no sinistro Tullianum, assim como
Simão-bar-Ghiora, depois da tira de Jerusalém por Tito. Este, depois de ter
sido tirado dali e de ter figurado no desfile triunfal de Vespasiano e de seu
filho Tito, açoitado ao longo de todo o percurso com varas, foi estrangulado
perto do mercado principal.

Conheceu Saulo-Paulo esse calabouço, esse esgoto que era o Tullianum?
Seguro que não. Sua classe evitou, assim como a perpétua misericórdia de
Nero. Além disso, em sua II Epístola ao Timóteo, Paulo nos mostra como um
detento com direito a manter correspondência, a receber visitas, e que
esperava ajuda, livros e pergaminhos. Essa é outra prova de que gozava de
medidas privilegiadas. Que não nos objete o de sua cidadania romana, já
que Vercingetórix também era civis romanus, e também o era Catilina,
patrício de velha estirpe.

Evidentemente, só faltava Simão-Pedro, crucificado em Jerusalém no ano
47, figurasse também entre os hóspedes ilustres da prisão Mamertina! A
lenda, como é óbvio, não deixou de inscrevê-lo. E o que é mais, encontrou o
meio de fazer que, no fundo do Tullianum, convertesse a seus carcereiros,
chamados Proceso e Martiniano (sabem-se inclusive seus nomes!), e, como
faltava água, Simão-Pedro fez brotar ali uma fonte, a fim de poder proceder
a seu batismo. Um milagre mais.

Mas o leitor se perguntará como pôde encontrar-se Paulo na obrigação de
respaldar a revolução messianista de Menahem, ele, que recomendava com
insistência a submissão às autoridades, quando deu a ordem de incendiar
Roma, em março do ano 64. Há uma resposta para isto.

Recordaremos antes que nada que fora criado com o chamado Menahem
(Atos dos Apóstolos, 12, 1), e que entre eles existiam laços afetivos e
ideológicos. Por outra parte, os zelotes conheciam perfeitamente a aventura
de Pafos e a execução de Elimas-bar-Jesus, já que eram eles quem tinham
imposto esta missão à Saulo-Paulo, para provar sua sinceridade. E além
disso, com esta aventura e suas conseqüências, tinham-no em suas mãos.
Ele pôde bem ter cedido a uma chantagem: ou obedecia uma vez mais e
mandava incendiar Roma a seus fiéis («os da casa de César lhes saúdam»,
Filipenses, 4, 22), esses fiéis que eram reconhecidos às vezes como
servidores de Nero, no curso das jornadas do incêndio, ou se faria chegar
sua «biografia» aos magistrados de Roma.

Por outra parte, como amigo de Séneca, e provavelmente misturado na
conspiração deste e do Pisón, via neste incêndio --que se organizou
sabiamente, a fim de fazer recair as culpas sobre o Nero (que não estava
em Roma), para destruir melhor e de forma mais definitiva o conceito que
tinham dele as pessoas, e em especial o povo, onde contava com os amigos
mais seguros-- um meio de ter acesso à confiança daquele que aconteceria
ao Nero, neste caso Galba, e a quem ele tinha ido sondar na Espanha,
apenas fazia um mês. E o conservadorismo absoluto de Paulo não podia a
não ser reprovar o progressismo de Nero, de acordo com seu amigo Séneca.
Além disso, pôde ter passado por um período de desalento. Ia
envelhecendo pouco a pouco, afastado de sua família e de sua pátria. A
propaganda divulgada por todo o Império não tinha dado os resultados
esperados, e estava ainda muito longe de deter o poder espiritual e
temporal do pontífice de Israel.

A tradição apocalíptica, por outro lado, rezava que a Parousia, quer dizer a
«volta» de Jesus sobre as nuvens, a instalação na terra do «reino de Deus»,
em uma palavra, o Julgamento Final, tinha que ir precedida do final do
Império romano, e este desmoronamento veio anunciado pelo incêndio da
capital.

Esta curiosa crença duraria muito tempo, já que Tertuliano poderia dizer
mais tarde: «Sabemos que o fim do mundo, com todas as calamidades com
as quais castigará aos homens, suspendeu-se com o curso do Império
romano. Ao pedir a Deus que atrase esta horrível catástrofe, solicitamos que
se prolongue a duração do Império romano». (Cf. Tertuliano, Apologeticon.)

Por conseguinte, ao provocar o incêndio de Roma se desencadeava o
dinamismo do destino, ao que seguia o desmoronamento do Império, que,
fatalmente, ia seguido da «volta» de Jesus e do reino de Deus. Aí Paulo
acreditava estar seguro de achar-se bem situado. Se isto não acontecesse,
significaria que a profecia era falsa, o qual era impensável para ele. Era um
iluminado, no sentido pejorativo do termo, não o esqueçamos, e seu caráter
de heterosifilítico não arrumava as coisas.

É óbvio que todas estas razões não atuaram juntas. Mas é seguro que
algumas delas incitaram ao Paulo a dar a fatal ordem. Sua fuga de Roma,
seu embarçamento clandestino em Troas, os dois anos nos quais esteve
oculto em casa de Carpo e que era procurado pela polícia romana, sua
inesperada detenção em Troas, sua volta à Roma para ser julgado ali (o que
implica que não delinqüiu em Troas e sim em Roma), tudo contribui a fazer
de Saulo-Paulo o verdadeiro responsável pelo incêndio da cidade, obra de
cristãos fanáticos como já demonstramos nos capítulos precedentes.

E o leitor se perguntará agora: que fazia Costobaro II durante esses anos
de agitação? Pois bem, o irmão Costobaro, mais sábio e mais prudente que
seu irmão maior Shaul, contentou-se seguindo com sua existência de
pequeno latifundiário turbulento e rapace. Foi enviado sucessivamente, no
ano 68, à província da Acaia, ao lado de Nero, com Filipo, ex-general do rei
Agripa. Logo formou parte da delegação enviada ao procurador Gessio Floro.
Isso é o que nos diz Flavio Josefo. E precisamente para dissimular a rota
divergente tomada por seu irmão maior, nosso Shaul, os monges copistas
de Medievo acrescentaram o nome daquele ao deste, na obra de Flavio
Josefo, que foi censurada, mutilada e interpolada. Mas nesses anos 63-66,
nos quais cita ao Costobaro, ia fazer logo já vinte anos que o destino de
ambos os irmãos os tinha separado. Voltemos, pois, a Saulo-Paulo.
O que segue é bem conhecido: foi condenado a morte, mas não obstante
se beneficiou de sua condição de civis romanus no que se referia ao modo
de execução. Legalmente, Paulo deveria ser queimado vivo, como
incendiário e mago, autor de diversos malefícios sobre homens. Ao
converter-se em judeu podia também ser crucificado, em sua condição de
vassalo de César que tinha participado de uma rebelião, e com a cabeça
abaixo, segundo o costume romano. Também ser condenado às feras, como
criminoso de direito comum. Seus origens principescas, seu caráter de
membro de uma família que sempre tinha servido lealmente à Roma, a
provável intervenção de sua prima Salomé II, possivelmente também a do
segundo marido desta, Aristóbulo III, rei de Armênia, favorito de Nero, de
Epafrodito, discípulo de Paulo, relator do Conselho de Estado de Nero, a
repugnância deste pelos suplícios, tudo isso concorreu para lhe proporcionar
uma execução sem dor, e Paulo foi simplesmente decapitado.

Agora bem, a pena de morte repudiava da comunidade romana ao
condenado. E isso significava para ele, igual para todo condenado, à pena
capital, a obrigação de passar previamente pelos flagella, látegos de fibras
com chumbo. Também neste caso Paulo pôde muito bem, como incendiário,
submeter-se aos terríveis flagra, látegos metálicos, feitos de correntes de
bolas de bronze, previamente esquentadas até o vermelho vivo em um
braseiro. E disso não houve nada.

Foi tirado da prisão, conduzido pelo caminho de Árdea, à esquerda e não
longe do caminho da Ostia, a umas três milhas romanas, o que dá uns
quatro quilômetros e meio, já que a milha romana vale mil passos (1.472
m).

O lugar, cuja autenticidade foi testemunhada já a partir do século II, recebe
o nome do Aquas Salvias, pois quando a espada justiceira teve talhado,
rápida como um raio, a cabeça de Saulo-Paulo, esta, ao cair, ricocheteou
três vezes, e em cada uma delas se produziu, evidentemente, um milagre.
Mas ainda se discutem alguns pontos de detalhe: uns dizem que em cada
um dos pontos em que a cabeça tocou acostumou-se a brotarem três fontes
novas, outros asseguram que do pescoço, talhado em seco pelo aço, brotou
leite em lugar de sangue. Milagre! A esse lugar lhe conhece como Três
Fontes. Saulo-Paulo tinha começado sua carreira itálica em Três Tavernas. A
coincidência não deixa de ser curiosa. Poderia incitar aos cabareteros
modernos a adotá-lo como patrão.

A execução teve lugar provavelmente entre o mês de abril do ano 67 e
junho do 68. Eusébio da Cesaréia, em seu Chronicon, livro II, Olympiad, 211
(Migne, Patrologie grecque, XIX, 544), diz-nos que Paulo morreu no curso do
ano quatorze do reinado de Nero, entre junho de 67 e junho de 68. Jerônimo,
em seu De viris illustribus (V), indica deste modo este ano 14. O mesmo
Jerônimo, na mesma obra, precisa além, que Paulo morreu dois anos depois
que Séneca (ibid., XII). Como Séneca morreu em abril do ano 65, podemos
considerar confirmada a data de 67 para a execução de Paulo, e a
primavera.
Nos aderimos pessoalmente a essa data, embora sem ignorar que alguns
historiadores pertencentes à crítica liberal se inclinam pelo ano 64,
imediatamente depois do incêndio de Roma. Mas se trata daqueles que,
precisamente, consideram que a II Epístola ao Timóteo não é de Paulo, mas
sim foi redigida com fins apologéticos muito depois dele. O que,
evidentemente, suprime o episódio da detenção em Troas relatada por ele
mesmo.

Acreditam que se Paulo tivesse sido apressado no ano 64, imediatamente
depois do incêndio da capital do Império, o número de vítimas e a
destruição dos edifícios mais sagrados da religião e da história romana não
lhe tivessem evitado o castigo reservado aos incendiários, quer dizer, a
fogueira. O ódio contra os cristãos era então muito grande, nesse ambiente
de catástrofe inaudita, para que um simples idumeu, e para cúmulo
circunciso, beneficiasse-se do privilégio reservado a um civis romanus.

Não obstante, essa execução, por sua severidade, implica a certeza por
parte dos magistrados no que se refere a grave culpabilidade do Paulo. Uma
simples «supressão» como medida de prudência não implicava a terrível
flagelação prévia. Em efeito, em Tácito lemos o relato sobre a execução de
Calpurnio Galeriano, filho de Pisón: «Por ordem de Muciano, Calpurnio
Galeriano foi rodeado de soldados, e por medo de que sua morte, se se
produzia em Roma, causasse sensação, o guarda o conduziu a quarenta
milhas de Roma, pela via Apia, onde perdeu a vida com o sangue de suas
veias». (Cf. Tácito, Histórias, IV, xI, 7.)

Por conseguinte, esse jovem não foi nem flagelado «em número ilimitado
de golpes», nem decapitado. Simplesmente lhe abriram as veias uns
médicos legais. O caso de Paulo foi muito distinto.

E este foi o fim daquele extraordinário aventureiro da mística, que a
conseqüência de um amor desafortunado se converteu em um dos «pilares»
do cristianismo. Voltou Paulo a ver, ao morrer, a imagem daquela por quem
tinha deixado tudo? Sopesou o papel exato desse amor que tinha
transtornado toda sua vida? Perdoou ao Gamaliel ou aos sanedritas que lhe
tinham vetado a jovem? Recordou, se conhecia os versos de Safo, a poetisa
de Mitilene, em sua Ode a Anactoria?

Você me arrebataste à virgem das duas ânforas, mais querida por meu
coração e mais bela a meus olhos que a alvorada nascente e todas as
estrelas que giram no céu...

O pesado manto dos séculos se abateu sobre esta história. A Igreja se
esforçou por apagar todo rastro de um amor humano na vida de seu
apóstolo. E no silêncio crepuscular dos fúnebres «vales» de Scheol é onde
umas sombras evanescentes e vagas, Shaul-bar-Antípater e Bath-Gamalia
vêem ainda cruzar-se às vezes seus caminhos. E assim, como dizia
Propercio: «Com as lágrimas da morte purificamos os amores da vida». (Cf.
Propercio, Elegiae, Cintia.)
Porque se os irmãos daqueles que foram privados da justa e decente
sepultura assim como dos ritos fúnebres liberadores vão errando pelos
labirintos dos limbos e porta do tempo, esse devia ser seu caso. A filha de
Gamaliel conheceria, sem dúvida alguma, os horrores da «guerra judia» dos
anos 66-70, e os do local de Jerusalém. E Paulo não teve direito à paz do
sepulcro.

Porque aqui se expõe um problema, cuidadosamente evitado pelos
historiadores oficiais, e é o da autenticidade das «relíquias» de Saulo-Paulo,
e, sobretudo, o da tradição relativa ao lugar de sua execução.

Em Tácito lemos, por exemplo, o seguinte: «Como os condenados a morte,
além do confisco de seus bens, eram privados de sepultura, enquanto que
os que se executavam a si mesmos recebiam as honras fúnebres e sabiam
que seus testamentos seriam respeitados, valia a pena precipitar a morte».
(Cf. Tácito, Anais, VI, xxxv.)

Nosso autor dá esta precisão referindo-se ao suicídio de Pomponio Labeón,
antigo governador da Mesia, e de sua esposa Paxea. Assim, se ambos não
abrissem as veias, seriam executados, e, por esse mesmo fato, privados de
sepultura, quer dizer, jogados na fossa infâmia, que em Roma consistia nos
puticulae do cemitério do monte Esquilmo, ao leste da cidade (veja-se plano
de Roma, P. 000).

Em troca, monsenhor Ricciotti, em seu Saint Paúl, apotre, interpretando
livremente os textos de Eusébio da Cesaréia e de outros padres, em suporte
da tradição paulina, declara audazmente o que segue:

«Imediatamente depois do martírio, o corpo foi transportado a um lugar
mais próximo a Roma, a algo mais de uma milha de distância da cidade, ao
longo do Via Ostiensis, e ali foi enterrado em um cemitério ao ar livre,
recentemente descoberto, que oferecia uns columbario bem conservados.
Esta tumba se converteu em seguida, para os cristãos romanos e
estrangeiros, em um objeto de particular veneração. O mesmo acontecia
com o apóstolo Pedro.

»Até o século IV nenhuma construção particular recobriu às duas tumbas.
Os cristãos as reconheciam por outros meios; não sabemos quais, mas é
evidente que se tratava de signos visíveis, e não isentos de uma certa
solenidade.» (Cf. Giuseppe Ricciotti, Saint Paúl, apotre, § 672.)

Formularemos a este autor umas quantas perguntas embaraçosas:

1) Como se sabe que Paulo foi inumado nesse cemitério, próximo à Via
Ostiensis, se este último, a céu aberto, «não foi descoberto até
recentemente»

2) Como imaginar que até o século IV, quer dizer, durante perto de
trezentos anos, quando nenhuma construção particular abrigava seus
restos, em uma fossa comum sem meios de identificação (cf. G. Ricciotti,
op. cit.), os cristãos pudessem conservar um meio de identificação do
quadrado anônimo de terra?

3) Como tiveram a possibilidade os cristãos, em meio de quão batidas
seguiram ao incêndio de Roma, de conservar o cadáver de Simão-Pedro
durante três anos, para logo, e depois da execução de Paulo, transferi-lo e
inumá-lo ao lado deste?

4) Por que inabitual violação dos costumes legais teria sido decapitado
Paulo na estrada de Ostia, a quatro quilômetros e meio de Roma, se as
execuções tinham lugar ou no Circo, ou no cemitério do monte Esquilino? O
fato de que Calpurnio Galerano fora conduzido fora de Roma para lhe abrir
as veias. Tácito o relata precisamente devido a seu caráter inabitual, e dá os
motivos: evitar alvoroços populares. Em troca, não se temia nada disso no
caso de Paulo.

De todas essas contradições e anomalias, e que um historiador sério
jamais admitiria sem provas válidas, fica uma tripla hipótese:

a) Se Saulo-Paulo foi executado judicialmente na estrada de Ostia, e se
teve direito a uma tumba honorável, é que abriu livremente as veias, ou, de
algum outro modo, tinha dado fim ele mesmo a seus dias, segundo o
costume judicial romano recordado por Tácito em Anais, VI, xxxv.

b) Se, pelo contrário, nosso personagem foi decapitado por um verdugo, a
cabeça e o cadáver foram então jogados na fossa infâmia do monte
Esquilino, e não houve, pois, a possibilidade de transferi-lo a uma tumba
honorável, pois isso teria constituído uma violação da lei romana. E foi no
cemitério Esquilino onde devia morrer.

c) Se Paulo foi executado no Circo (coisa muito improvável, dada sua
qualidade de cidadão romano) os restos foram então jogados às feras, como
se fazia com os condenados a morte destinados a perecer em tal Circo.

Nós aderimos, portanto, à segunda hipótese, porque há poucas
possibilidades de que este homem, que era um beduíno, recordemo-lo uma
vez mais, se suicidara à maneira romana.

Curiosamente, trinta anos separam a morte de Jesus e a de Paulo. Duas
das cidades mais prestigiosas do mundo antigo lhes serviram de marco
fúnebre: Jerusalém e Roma, ambas as signos antípodas de um mundo a
ponto de extinguir-se. E o mais misterioso dos intersignos escapou à
intuição dos aurúspices! Como um sinal lançado pelos deuses cujo reino se
acabava, e na curva do litus augural, as chamas de Roma se elevaram no
céu os primeiros dias da primavera. E seis anos mais tarde, Jerusalém ardia
em chamas por sua vez, mas desta vez foi durante os primeiros dias de
outono. Entretanto, os homens não compreenderam a mensagem dos
deuses.

Anexo
Ulteriormente à composição deste livro encontramos os rastros de um
primeiro matrimônio de Saulo-Paulo na Guerra dos judeus de Flavio Josefo.
Na versão grega pode ler-se:

Para a época em que Menahem, neto de Judas da Gamala se apoderou da
cidade de Jerusalém e da realeza davídica, a seguir das diversas e
recíprocas matanças entre judeus, romanos, sírios e gregos, os primeiros
foram assediar Escitópolis, ex-Beth-Shean, cidade situada ao leste do
Jordão, em Decápolis helenística, e portanto povoada por gregos, mas com
uma colônia judia de umas doze a treze mil almas.

Os judeus da cidade se uniram aos gregos para sua defesa, e aos judeus os
idumeus que estavam mesclados entre eles. Flavio Josefo nos diz que entre
estes se encontrava um curioso personagem ao que os gregos, depois de
ter terminado com os judeus, dispuseram-se a «liquidar» também, junto
com os outros idumeus: «Entre aqueles que pereceram nesta jornada por
uma tão horrível traição, acredito que devo contar qual foi o final de Simão,
filho de Saúl, cuja raça era tão nobre. Tinha uma força tão extraordinária e
um valor tão grande, que ao ter empregado um e outro em favor dos
escitopolitanos contra os de sua nação, ninguém lhes resultava tão perigoso
como ele. Não passava nenhum dia sem que matasse a vários perto de
Escitópolis, às vezes punha em fuga a uma grande tropa, e parecia como se
seu valor constituíra toda a força de seu partido. Mas ao fim foi castigado
como o merecia seu crime de ter derramado tanto sangue, e sangue que
tinha que ser tão querido». (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, II, XXXIV.)

E em lugar de ser assassinado pelos gregos, Simão-bar-Saulo tomou sua
espada e atravessou com ela sucessivamente a seu sogro, sua sogra, sua
esposa e seus filhos, antes de fazer-se justiça a si mesmo.

É evidente que esse Simão, «filho de Saúl, cuja raça era tão nobre», é o
filho de nosso personagem, que era irmão de Costobaro, «príncipe de
sangue real», como já dissemos, neto de Herodes o Grande. E é impensável
supor nem por um instante que um judeu se aliasse com os assassinos de
seus compatriotas. Precisamente porque era idumeu é pelo que o fez. Mas
os monges copistas que na Idade Média «arrumaram» o texto de Flavio
Josefo, fizeram dele um judeu, do mesmo modo que fizeram dos pais de sua
esposa seu pai e sua mãe, esquecendo que o hebreu antigo utiliza o mesmo
termo para designar a pai e sogro, mãe e sogra, genro e filho. E, gostassem
ou não, Iduméia e Judéia não constituíam, com efeito, a não ser um só reino,
uma só nação.

Esses acontecimentos se produziam no ano 66 de nossa era, e um ano
mais tarde, Saulo-Paulo morria por sua vez em Roma, decapitado.
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros"Alquimia Espiritual

E a Via Interior"
Por Robert Ambelain


INTRODUÇÃO

"Assim é Trindade em Unidade, e Unidade em Trindade,
pois onde estão Espírito, Alma e Corpo,
estão também Enxofre, Mercúrio e Sal..."

(Bernard Le Trévisan).

Integrados na trilogia tradicional expressa no triplo portal de nossas grandes metrópoles góticas em enigmáticos baixos-relevos, a Alquimia e suas irmãs, a Astrologia
e a Mística, são conhecimentos tradicionais, e não ciências suscetíveis de decantação, evolução e de progresso.

Como tais, elas constituem, então, completa, total e absoluta, esta soma que chamamos as doutrinas de Hermes. Imutáveis em seus princípios (se elas não o são sempre
em suas aplicações). È pois com sabedoria que aqueles que, espiritualmente e ocultamente, guiaram a mão dos Construtores medievais, associaram misteriosos guardiões
do "Umbral", ao simbolismo esotérico da tripla entrada das Catedrais.

Em uma época onde o progresso de uma física e de uma química imprudentes, coloca nas mãos de homens destituídos de toda espiritualidade ou de toda moral, as chaves
da morte com as quais eles podem, joguetes de sua própria anarquia interior, destruir o Mundo a qualquer momento, é importante, parece-nos, dissociar a Alquimia
tradicional das caricaturas pelas quais se tem desejado faze-la a fonte longínqua dos conhecimentos destruidores anteriormente citados. A Alquimia não é, com efeito,
só e unicamente, a procura da geração do Ouro material, mas também e sobretudo outra coisa.
Expressa primeiramente em postulados oriundos dos flancos fecundos de sua irmã a Mística, a Alquimia exige primeiramente do iniciado(1) que ele se ponha na escola
da Natureza, antes de lhe confiar enfim as chaves do Adeptado(2).
È assim que tais postulados serão aplicados material e experimentalmente no segredo do laboratório do Hermetista. E isto, de acordo com procedimentos arcaicos e
com meios materiais rigorosamente iguais aos das origens longínquas da Arte Real, no Egito, para uma "matéria prima" cujo nome, imutavelmente mantido em segredo,
constitui desde já um primeiro arcano.

E estas mesmas regras seculares conduzirão pouco a pouco o filósofo perseverante aos mesmos resultados e às mesmas conclusões que seus antigos iniciadores. Como
eles, ele passará pelas mesmas vias, balizadas pelas mesmas esperanças, e muitas vezes pelos mesmos reveses. O mesmo e imutável desenvolvimento simbólico da Obra,
onde a mais extraordinária simplicidade dos meios materiais utilizados se alia a uma teoria que habita os planos mais obscuros, o levará lentamente, em um lapso
de tempo condicionado pelos Astros, celestes promotores dos Metais, e por seu próprio saber, reflexo daquele do Adão Primeiro, até o último objetivo procurado.

E este objetivo é uma estranha substância, que a Química dos homens ignora, que ela jamais analisou, e que ignorará talvez para sempre. É um corpo que não descrevem
as obras universitárias, e do qual o simples nome faz sorrir o profano, e esta substância é a "Chrysopéia', a pedra filosofal.

Para obter seu fino cristal, cor de rubi, ao qual as trevas restituem instantaneamente sua misteriosa luminescência, o artesão da Grande Obra terá primeiramente
conhecido estranhos companheiros de caminhada. Eis os arcontes que guardam aos umbrais sucessivos dos mundos intermediários para melhor batizar o caminho ao sábio,
com inumeráveis e simbólicos personagens(3): O Corvo e o Cisne, o Leão e o Dragão, o Rei e a Rainha, etc..., lhe proporão passo a passo seu enigma particular!
E não é senão após Ter compreendido o sentido secreto deles, que o peregrino merecerá ver enfim se elevar, radiante no seio das trevas metálicas, a estrela de Compostela,
anunciadora do fim do périplo aurífero(4).

Embora, desprovido em aparência de bases racionais, e sem nenhuma possibilidade de aplicações industriais, o processo utilizado não constituirá senão um verdadeiro
enriquecimento espiritual do Hermetista, pois a Vida lhe terá, enfim, confiado um de seus maiores segredos. E, transmutado por esta segunda Revelação, o iniciado
enfim Adepto, poderá transpor, para o plano de sua espiritualidade interior, o Arcano enfim conquistado, para ser e estar sempre: iluminado.

E como a Pedra misteriosa se engendra e se multiplica ela própria em progressão matemática contínua, o iluminado, por sua vez, transmitirá sua própria luz espiritual
aos que fizerem a si próprios, matéria prima inteligente e dócil, aceitando morrer chumbo para melhor renascer ouro...




OS IDEOGRAMAS HERMÉTICOS


TERRA
(
ÁGUA

AR
(
FOGO
(
MERCÚRIO

ENXOFRE
(
SAL

A Crisopéia ou "Pedra Filosofal" (Símbolo da Reintegração)

O Velho Homem Caput Mortem, ou "Terra Condenada" (A Matéria Perecível)


GLOSSÁRIO DE TERMOS ALQUÍMICOS E HERMÉTICOS

Acredita-se ser útil dar, no início, um significado suficientemente geral dos termos habitualmente utilizados pelos autores que tem tratado de Alquimia. Este pequeno
glossário permitirá, aos leitores desejosos de estudar profundamente a Alquimia material que, paralelamente à Alquimia espiritual, permitirá a compreensão de obras
muito fechadas, como "O Livro das Imagens sem Palavras", ou Mutus Liber, "O Tratado Simbólico da Pedra Filosofal" de J. C. Barchunsen, "O Amfiteatro da Sabedoria
Eterna", de Henry Khunrath. E, assim familiarizados com a significação geral destes termos um pouco obscuros, será mais fácil abordar as obras dos alquimistas modernos,
e sobretudo do grande Jean-Julien-Hubert Champagne, aliás Fulcanelli(5). Em suas obras "O Mistério das Catedrais" e "As Moradas Filosofais", ele aborda o domínio
material da Alquimia. Mas as significações que damos aqui serão utilmente completadas pelo aspecto prático que ele nos dá.

AFINAÇÃO: Operação pela qual separa-se de um metal tudo que lhe é estranho. Ela é praticada particularmente sobre o ouro e sobre a prata.

ÁGUA: Um dos quatro Elementos dos Antigos. Não possui nada em comum com a água vulgar.

ÁGUIA: Símbolo da volatilização, e também dos ácidos empregados na Obra. Uma águia devorando um leão significa a volatilização do fixo pelo volátil. Duas águias
se combatendo possuem o mesmo significado.

ALBIFICAÇÃO: Calcinação ao branco ou ao vermelho.

ALLUDEL: Aparelho composto de vasos superpostos e comunicantes entre si, para se efetuar uma sublimação lenta.

AMALGAMAÇÃO: União íntima de diversos elementos metálicos em um todo homogêneo e bastante maleável.

ANIMAIS: Em regra geral, quando encontram-se na figura dois animais, de mesma espécie mas de sexo diferente (como leão e leoa, cachorro e cachorra), isto significa
o Enxofre e o Mercúrio preparados em vista da Obra, ou ainda o fixo e o volátil. O macho representa então o fixo, o Enxofre, a fêmea representa o volátil, o Mercúrio.
Unidos, os animais exprimem a conjunção, as núpcias, o casamento. Eles se combatendo: fixação do volátil ou volatilização do fixo. Ver as figuras de Basílio Valentin,
em "As Doze Chaves da Filosofia Oculta"(6). Os animais podem ainda simbolizar os Elementos: Terra (leão, touro), Ar (águia), Água (peixe, baleia), Fogo (dragão,
salamandra). Se um animal terrestre figura em uma imagem hermética com um animal aéreo, eles significam
respectivamente o fixo e o volátil.

ANJO: Simboliza por vezes a sublimação, ascensão de um princípio volátil, como nas figuras do
"Viatorium spagyricum".

APOLLO: O sol, o ouro.

AR: Um dos quatro elementos dos Antigos. Não tem nenhuma relação com as o ar que respiramos.

ÁRVORES: Uma árvore portando luas significa o pequeno magistério, a pedra ao branco. Se ela porta sóis, é a Grande Obra, a pedra ao vermelho. Se ela porta os símbolos
dos sete metais, ou os signos do sol, da lua e cinco estrelas, significa então a matéria única de onde nascem os metais.

ATHANOR: Forno para reverberação.

BALÃO: Vaso de vidro amplo e redondo, destinado a receber os produtos da destilação.

BANHO: Símbolo: 1) da dissolução do ouro e da pedra; 2) da purificação destes dois metais.

BANHO-MARINHO(7): Aparelho disposto de forma que o vaso que contém a matéria esteja em banho com a água fervente.

BRANCO: Pedra ao branco, pedra ainda imperfeita, onde todas as possibilidades transmutatórias não foram ainda desenvolvidas e obtidas.

CADINHO: Vaso de argila refratária de forma aberta em cima, destinado à fusão de metais e de corpos duros.

CALCINAÇÃO: Redução dos corpos no calor. Ela pode ser seca ou úmida.

CALADIÇÃO: Calor.

CÂMARA: Símbolo do ovo filosófico, quando o Rei e a Rainha estão nele encerrados (Enxofre e
Mercúrio).

CAOS: Símbolo da unidade da Matéria, por vezes da cor negra (primeiro estado da Obra), da
putrefação.

CÃO: Símbolo do Enxofre, do Ouro. O cão devorado por um lobo, significa a purificação do ouro
pelo antimônio. Cachorro e cachorra significam, associados, o fixo e o volátil.

CAPITEL: Cavidade de vidro munida de um bico, que adapta-se ao pescoço da cucurbita ou ao urinai, para poder destilar os espíritos minerais. Capitel, chapéu, chapeleta,
alambique, são mais ou menos a mesma coisa.

CASAMENTO: União do Enxofre e do Mercúrio, do Fixo e do Volátil. O padre que celebra representa o Sal, meio de união entre eles.

CHUVA: Símbolo da cor branca na Obra, ou albificação. É também a imagem da condensação no curso da realização.

CIMENTAÇÃO: Operação pela qual, por meio de pós minerais denominados cimento, purificamos os metais ao ponto em que neles não ficam mais que a pura substância metálica.

CIRCULAÇÃO: Consiste em fazer circular os líquidos em um vaso fechado por efeito de um calor lento.

CIRCULATÓRIO: Ver Pelicano.

CIRCUNFERÊNCIA: Unidade da Matéria. Harmonia universal.

CISNE: Símbolo da Obra em branco, segundo estado após a putrefação e irisação. Esta última não figura no ternário clássico da Grande Obra: negro, branco e vermelho.

COOBAÇÃO: Ação de colocar o espírito metálico, destilado, sobre seu resíduo.

CORNIJA OU RETORTA: Vaso de vidro redondo, com o bico recurvado para baixo, servindo para destilar as matérias no curso da Obra.

COROA: Símbolo da realeza química, da perfeição metálica. No "La Margarita Préciosa", os seis metais são primeiramente representados como escravos, cabeças nuas
aos pés do rei, o Ouro. Mas, após sua transmutação, eles são figurados com uma coroa na cabeça. Daí em alquimia espiritual, a frase de L.C. de Saint-Martin: "Todo
homem é seu próprio rei...", quer dizer, todo homem traz em si a possibilidade do retorno à sua "realeza" perdida, no plano espiritual e angélico.

CORVO: Um dos primeiros estados da Obra: a putrefação.

CAUPELAÇÃO: Afinação ou controle alquímico do ouro e da prata pelo derretimento do chumbo em um cadinho.

CRIANÇA: Revestida com roupas reais, ou simplesmente coroada: símbolo da pedra filosofal, às vezes da Obra em vermelho.

CRISOPÉIA: A pedra filosofal, a Grande Obra realizada.

CUCURBITA: Vaso em forma de abóbora aberto para o alto, que se cobre com um capital para a
destilação de vegetais e outras matérias.

DECREPITAÇÃO: Ação de aquecer o sal comum com um cadinho para tirar a umidade.

DELÍQUIO: Ou deliqüescência, Resolução natural dos sais em água por exposição em um lugar úmido.

DESFLEUGMAR: Consiste em separar a água contida nos corpos (ou fleugma), por evaporação ou destilação.

DESTILAÇÃO: Operação durante a qual se separam as partes sutis dos corpos sólidos ou líquidos, ou ainda o espírito da matéria que o engolira.

DIANA: Ver Lua.

DIGESTÃO: Desagregação, involução ou maturação da matéria obtida expondo-se o vaso que a contém ao calor do banho-marinho por um tempo conveniente.

DRAGÃO: Um dragão mordendo sua cauda: a unidade da Matéria. Um dragão nas chamas: símbolo do Fogo. Vários dragões se combatendo: a putrefação. Dragão sem asas:
o Fixo. Dragão alado: o Volátil.

ENXOFRE: Um dos princípios ocultos constitutivos da Matéria. Não tem nada em comum com o corpo vulgar deste nome. É também o símbolo do Ouro, preparado para Obra
final.

ESFERA: Designa a unidade da Matéria.

ESPADA: Símbolo do Fogo.

ESQUELETO: Putrefação, a Obra no estado da cor negra. Sinônimo do Corvo

ESTRATIFICAÇÃO: Superposição, por planos alternados, de diversas matérias submetidas a um fogo violento, em um vaso fechado. A mistura se opera então por fusão,
mas a superposição não é deixada ao acaso, ela deve ser racional e científica.

FAULX: Símbolo do Fogo.

FÊNIX: Símbolo da cor vermelha na Obra. O Ovo da Fênix é o Ovo filosófico. A Fênix é também o Enxofre e o Mercúrio dos Sábios unidos e conjugados no fim da Obra.

FIXO: O Enxofre metálico, ou cão Corascene.

FLORES: Representam geralmente as cores sucessivas que aparecem no curso da Obra.

FOGO: Um dos quatro Elementos dos Antigos. Não tem nada em comum com o fogo vulgar.

FOGO DE RODA: Primeira fase da Segunda Obra, fogo brando e lento.

FOGO DE SAIBRO: Interposição de saibro entre o fogo e o vaso contendo a matéria a tratar.

FOGO SECRETO: Espírito universal encerrado no seio das trevas metálicas, centelha de vida oculta em tudo o que está em seu estado natural primitivo.

FONTE: Três fontes representam geralmente os três princípios: Enxofre, Mercúrio e Sal. Ver também Banho. Há ainda outros aspectos desta palavra, que demandariam
um desenvolvimento um pouco mais longo. Nós os encontramos notavelmente descritos nas obras de Fulcanelli.

FRIO: Uma das quatro qualidades elementares da Natureza.

HERMAFRODITA: O resultado da conjunção do Enxofre e do Mercúrio, chamado também Rébis.

HOMEM E MULHER: Enxofre e Mercúrio. Nus, designam o ouro e a prata impuros. Suas núpcias: conjunção do Enxofre e do Mercúrio. Encerrados em um sepulcro: os dois
princípios unidos no Ovo filosófico.

JÚPITER: Símbolo do estanho.

LEÃO: Só: símbolo do Fixo, do Enxofre. Alado: o Volátil, o Mercúrio. O leão representa ainda o mineral (ou vitriolo verde), de onde extrai-se o óleo de vitriolo
(ácido sulfúrico) do qual se servem os alquimistas. O leão, oposto a três outros animais, simboliza a Terra. É ainda o símbolo da Crisopéia.

LEOA: O volátil, o Mercúrio.

LIQUAÇÃO: O Ovo filosófico.

LOBO: Símbolo do Antimônio.

LUA: O Volátil, o Mercúrio, a Prata dos Sábios.

LUTO: Produto feito de matérias espessas e gordurosas destinadas a obturar as juntas que ligam diversos vasos entre si.

MARMORIZAR: Trituração das matérias sobre o mármore, com a ajuda de um pilão. Se diz também porfirizar.

MARTE: O ferro, a nuance alaranjada na Obra.

MATRAZ: Vaso de vidro, redondo, oval ou achatado, munido de um longo pescoço. Nele se coloca para digerir a matéria preparada.

MÊNSTRUO: Águas vegetais ou minerais de propriedade dissolvente. Corrosivo.

MERCÚRIO: Um dos princípios ocultos constitutivos da Matéria. Não tem nada em comum com o corpo vulgar deste nome. É também o símbolo da Prata preparada para a
Obra final.

MONTANHA: Forno dos filósofos. Ápice do Ovo filosófico.

MORTIFICAÇÃO: Alteração da matéria por trituração ou adição de um elemento ativo.

NEGRO: Simbolizado também pelo Corvo. Imagem da putrefação.

NETUNO: A Água.

NÚPCIAS: Ver Casamento.

OURO DOS SÁBIOS: Enxofre filosófico.

PADRE: Casando um homem e uma mulher ou um rei e uma rainha, simboliza o Sal princípio.

PALÁCIO: Entrada no Palácio fechado: descoberta do Agente capaz de operar a redução do Fixo, o retorno a uma forma análoga àquela de sua primitiva substância. Designa
também o acesso ao Ouro Vivo, Ouro dos Sábios ou Enxofre filosófico, caso se trate do acesso ao Palácio fechado do Rei, e designa, ao contrário, a Prata Viva, a
Prata dos Sábios ou Mercúrio filosófico, caso se trate da entrada no Palácio fechado da Rainha.

PÁSSARO: Elevando-se no céu: volatização, ascensão, sublimação. Voando em direção ao solo: precipitação, condensação. Estas duas imagens reunidas em uma mesma figura:
a destilação. Pássaros opostos a animais terrestres, significam o Ar, ou o Volátil.

PASSAGEM ESTREITA: Orifício.

PELICANO: Cucurbita fechada munida de dois manípulos religando a cabeça ao ventre. Chama-se também circulatório em razão de sua função.

PRATA DOS SÁBIOS: Mercúrio dos Filósofos.

PRIMA MATÉRIA: Matéria prima da Obra hermética. Geralmente, pirita de ferro ou de chumbo (Galena).

QUADRADO: Símbolo dos quatro Elementos.

QUENTE: Uma das quatro qualidades elementares na Natureza.

RÉBIS: Resultado do amálgama do Ouro dos Sábios e do Mercúrio dos Sábios, matéria dupla, ao mesmo tempo úmida e seca, tendo recebido da Natureza e da Arte uma dupla
propriedade oculta exatamente equilibrada.

RECIPIENTE: Designa neste caso um balão de vidro.

REI E RAINHA: Ver Homem e Mulher.

RESÍDUO: O que fica no fundo de um vaso após a destilação. Sinônimo de fezes, terra morta, terra condenada, caput mortem.

RETIFICAÇÃO: Última destilação para se obter um espírito metálico extremamente puro. Faz-se seguidamente em fogo bem vivo.

REVERBERAÇÃO: Exaltação da energia interna do espírito metálico pela ação de um fogo violento sobre a matéria que contém este espírito. Às vezes: dissecação total.

ROSA: Designa a cor vermelha, estado último da Obra. Uma rosa branca e uma vermelha: união do Fixo e do Volátil, do Enxofre e do Mercúrio. Às vezes, a rosa é o
emblema de toda a Arte Hermética.

RUBIFICAÇÃO: Ação de destruir o Enxofre combustível, e de exteriorizar o Enxofre incombustível, princípio da aurificação dissimulada no seio do mineral.

RUBI MÁGICO: Agente energético, de uma sutilidade ígnea, revestido da cor e das múltiplas propriedades do fogo. Também chamado Óleo de Cristo, Óleo de Cristal,
é ainda simbolizado pelo Lagarto heráldico, ou a Salamandra, que vive do fogo e nele engorda.

SAÍDA: Operação consistente em separar a prata do ouro por meio do salitre. É uma afinação.

SAL: Também chamado Arsênico, um dos três princípios misteriosos componentes dos corpos. Não tem nada em comum com um sal vulgar qualquer. Na união do Enxofre
e do Mercúrio nos metais, se obtém ele como resultado. Como aliás, da ação recíproca do espírito e da alma, ou da alma e do duplo psíquico, se constitui o corpo
dos seres humanos. O Sal pode ainda ser comparado ao "resultado" na adição de dois fatores.

SALAMANDRA: Simboliza o Fogo. Algumas vezes, ela significa a cor vermelha, estado último da Obra, ou mesmo a cor branca que a precede. Ver o Rubi Mágico.

SATURNO: Designa o chumbo. Igualmente, a cor negra da Obra, no estado de putrefação. Sinônimo do Corvo.

SECO: Uma das quatro qualidades elementares na Natureza.

SEPULCRO: Ovo Filosófico.

SEQUIDÃO: Aridez.

SERPENTE: Mesmas significações que para o Dragão. Três serpentes designam os três princípios: Sal, Enxofre e Mercúrio. Duas serpentes sobre o Caduceu: o Enxofre
e o Mercúrio dos Sábios. Serpente alada: o Volátil. Sem asas: o Fixo. Serpente crucificada: representa a fixação do volátil.

SOL: Por vezes o ouro ordinário, preparado para a Obra, às vezes designa o Enxofre dos Sábios.

SUBLIMAÇÃO: Violenta ou lenta. A lenta é a melhor. A matéria é colocada em um vaso fechado com pescoço grande, sobre um fogo lento, de forma que as partes sutis
(ou puras) se separem das partes grosseiras (ou impuras), subindo da parte de baixo do vaso para cima.

TERRA: Um dos quatro Elementos dos Antigos. Não tem nada a ver com o solo que pisamos.

TRIÂNGULO: Símbolo dos três princípios misteriosos constitutivos dos metais: Sal, Enxofre, Mercúrio.

ÚMIDO: Uma das quatro qualidades elementares na Natureza.

URINAL: Vaso parecido com uma cucurbita, mas um pouco mais longo. Serve para os mesmos fins.

VÊNUS: Designa o cobre.

VERMELHO: Estado último da Grande Obra. Simboliza também o Fogo.

VOLÁTIL: Imagem do Mercúrio. O que pode ser separado dos elementos fixos.

VOLATIZAÇÃO: Ação de transformar um corpo sólido em gás ou em vapor. Separação dos elementos voláteis dos fixos.

VULCÃO: Símbolo do fogo ordinário.

Resumem-se aqui, alguns dos termos que se encontram em um certo número de obras que tratam de alquimia. Particularmente, seguimos as significações dadas por Albert
Poisson, em seu livro "Teorias e Símbolos", e pelo pesquisador erudito Jean Mavéric, em seu livro "A Arte Metálica dos Antigos". Quando o assunto valia a pena, recorremos
às duas obras de Fulcanelli, "O Mistério das Catedrais" e "Demeures Philosophales", e aos "Cinco Livros" de Nicolas Valois, etc...































Capítulo I
NOÇÕES GERAIS SOBRE ALQUIMIA

"Basílio Valentin, monge beneditino, descreveu muito claramente a alma do metal,
que ele denominou enxofre, ou tintura; o corpo, sendo o sal;
e enfim o espírito, que ele chamou mercúrio..."

(J.B.Van Helmont: Ortus Medicinae, 1648).

A terminologia hermética emprega palavras e expressões que não tem nada em comum com suas equivalentes na linguagem profana. È pois, indispensável definir o que
se entende aqui por certas palavras essenciais, que são os nomes dos elementos constitutivos da Matéria Prima, e de sua evolução em direção ao seu estado último:
o Ouro, símbolo da perfeição no seio da vida metálica.

A - AS QUATRO QUALIDADES ELEMENTARES:

O Frio: Origem da fixação; manifesta-se por uma ausência total ou parcial da vibração, onde então o efeito é o de coagular ou de cristalizar a Matéria, em detrimento
do princípio da expansão que está no calor (conservação). Sua ação é então adstringente, fixadora, cristalizadora, abrandante;

O Úmido: Origem da feminilidade, traduz-se por uma vibração de natureza atrativa, mutável, instável, amaciante, relaxante, umectante, que penetrando nos átomos,
divide os homogêneos e une os heterogêneos, provocando assim a involução da Matéria, ou sua desagregação. Sua ação é temperante, amaciante, dispersante;

O Seco: Origem da reação, manifesta-se por uma vibração de natureza retentora, herética, irritante, que contraria e retém a impulsão dada. Sua ação é retrativa;

O Calor: Origem da masculinidade, traduz-se por uma vibração de natureza expansiva, dilatante, rarefeita, que provoca a evolução dos átomos. Sua ação é vitalizante,
estimulante, dinâmica.

No homem , estas quatro qualidades dão:

Frio: Impassividade, ceticismo, egoísmo, desejo ativo de submissão;

Úmido: Passividade, variação, assimilação, desejo passivo de submissão;

Seco: Reação, oposição, retenção, desejo passivo de dominação;

Quente: Expansão, entusiasmo, ação, desejo ativo de persuasão.

B - OS QUATRO ELEMENTOS:

Terra: A ação reativa do Seco sobre o Frio lhe divide, e assim, se opondo à sua total fixação, o transforma no elemento Terra, princípio concentrador e receptor;

Água: A ação refrigerante, coaguladora, atônica e fixadora do Frio sobre o Úmido, o espessa, torna-o mais pesado, e o transforma em água, princípio da circulação;

Ar: A ação expansiva, dilatante e rarefeita do Calor sobre a Umidade transforma-a em Ar, princípio da atração molecular;

Fogo: A ação reativa, retentora, herética e irritante do Seco sobre o Calor transforma-o em Fogo, princípio de dinamização violenta e ativa.

No homem, estes quatro Elementos dão:

Terra: Inquietude, taciturnidade, reserva, prudência, ternura contida ou egoísmo, espírito concentrado ou pretensioso, desconfiado, reflexivo, engenhoso, estudioso,
solitário;

Água: Passividade, indolência, desgosto, lassitude, submissão, inconsistência, versatilidade, preguiça, inconsciência, incerteza, timidez, medo;

Ar: Amabilidade, cortesia, serviçalidade, habilidade, sutileza, iniciativa, prontidão, assimilação, engenhosidade, harmonia;

Fogo: Violência, autoridade, ambição, entusiasmo, presunção, orgulho, irascibilidade, ardor, fervor, coragem, generosidade, paixão, prodigalidade, ímpeto, vaidade.


C - OS TRÊS PRINCÍPIOS DOS FILÓSOFOS:

Enxofre Princípio: O Calor, contido no Fogo e no Ar, engendra um princípio de natureza quente, fecundante, fermentativa, que se denomina de Enxofre. É o princípio
Masculino de toda a semente, e dele nasce o sabor, a cor fundamental vermelha. No
Homem, corresponde ao Espírito;

Mercúrio Princípio: O Úmido, contido no Ar e na Água, engendra um princípio de natureza vaporosa, sutil, mutável, geradora, que se denomina Mercúrio. É o princípio
Feminino de toda semente, e dele nasce o odor, a cor fundamental azul. No homem corresponde à Alma;

Sal Princípio: O Seco, contido no Fogo e na Terra, engendra um princípio de natureza seca, coesiva, coaguladora, que se denomina Sal. É o princípio de unificação
do Macho e da Fêmea, assim como o resultado desta união. Dele nascem então a forma e o peso, a cor fundamental amarela. No Homem, corresponde ao Corpo.

Eis então, os três princípios constitutivos que são, no vocabulário da Alquimia tradicional, a Substância próxima dos seres e das coisas.

D - OS DOIS METAIS DOS SÁBIOS:

Prata dos Sábios: Também chamada Mercúrio dos Sábios (por oposição ao Mercúrio dos Filósofos que o precede no estado anterior, ou ao Mercúrio dos Tolos, que é
a prata viva vulgar), ou ainda Prata Filosófica. Resulta da absorção de uma certa quantidade de Enxofre
Princípio por uma quantidade determinada de Mercúrio Princípio, ou mais exatamente, pela absorção de uma quantidade proporcional de
Ouro vulgar por uma quantidade determinada de Mercúrio Princípio. Este Ouro vulgar não deve ter sofrido nem exaltação (sublimação ou
volatilização), nem transfusão. Em uma palavra, ele não deve ter sido refundido ou ligado a ele próprio,
deve ser virgem;

Ouro dos Sábios: Também chamado Enxofre dos Sábios (por oposição ao Enxofre dos Filósofos que o precede no estado anterior, ou ao Enxofre dos Tolos, que é o enxofre
vulgar), ou ainda, Ouro Filosófico. Ele resulta da absorção de uma certa quantidade de Sal Princípio por uma quantidade determinada de
Enxofre Princípio, ou ainda, pela absorção de uma quantidade proporcional de Prata vulgar por uma quantidade
determinada de Enxofre Princípio. Esta Prata não deve ter sofrido nem exaltação (sublimação ou volatização), nem Transfusão. Em
uma palavra, não deve ter sido refundida ou ligada a ela própria, deve ser virgem.

Estas duas Operações resultam de uma série de cozimentos sucessivos (multiplicações).

E - A CRISOPÉIA OU PEDRA FILOSOFAL:

Crisopéia: É obtida pelo lento cozimento no Ovo Filosófico (matras), colocado em um banho de saibro, no selo de um Atanor (forno), da mistura e da co-destruição
do Ouro dos Sábios e da Prata dos Sábios.




Figura 1.- A Tretraktys Alquímica: Vemos por este esquema, que o Frio e o Úmido geram a Água, o Úmido e o Calor geram o Ar, o Calor e o Seco geram o Fogo, e o Seco
e o Frio geram a Terra. Por sua vez, a Água e o Ar geram o Mercúrio Princípio, o Ar e o Fogo geram o Enxofre Princípio, e o Fogo e a Terra geram o Sal Princípio.
No segundo estado da Obra, o Mercúrio Princípio e o Enxofre Princípio geram a Prata Filosófica ou a Prata dos Sábios, e o Enxofre Princípio e o Sal Princípio geram
o Ouro Filosófico ou o Ouro dos Sábios. A copulação destes dois dá então a Crisopéia.






















Capítulo II
A ALQUIMIA ESPIRITUAL

Em relação a Unidade da Matéria, postulado de partida dos Hermetistas de antigamente, do qual tanto escarnecia-se, a física nuclear moderna nos tem dado provas incontestável.
E a química igualmente, que nos demonstra, realizando matérias e produtos totalmente desconhecidos em outras épocas, que o adágio antigo tem razão ao dizer que "omnia
ab uno, et in unum omnia...", o que significa dizer que em um está o todo, e no todo está o um. Basílio Valentin, de sua abadia beneditina, colocava já em princípio,
esta unidade magistral:

"Todas as coisas vêm de uma mesma semente, elas têm todas
uma origem criada pela mesma Mãe...".

(Basílio Valentin, "O Carro do Triunfo do Antimônio").

E, no plano espiritual, Jacob Boehme é também afirmativo:

"A Alma do Homem, os Demônios, os Santos Anjos, todos provêm de uma única Fonte...
E o Homem contém em si a parte do Mundo Exterior que o Demônio
encerra igualmente em si, mas sob um princípio diferente...".

(Jacob Boehme, "Da Eleição da Graça").

Bem antes destes filósofos, a Gnose tradicional abordara já este assunto em sua afirmação da doutrina da Emanação, dizendo que as Criatura espirituais haviam sido
emanadas de uma Fonte Única: Deus- Abismo, e não criadas do nada. O que significa que elas originaram-se, segundo esta doutrina, por desdobramentos sucessivos: Causas
Segundas da Causa Primeira, Causas Terceiras das Causas Segundas, etc., a partir do UNO-ORIGINAL, que é Deus.

De acordo com esta doutrina, tudo o que é de origem divina e se encontra aqui em baixo, degenera em suas possibilidades espirituais, prisioneiro de um Mundo grosseiro,
mas tudo isso pode ser renovado, e esta obra de regeneração se chama Reintegração.

A Alquimia se divide desde então em três etapas de provação:

a) A Obra, transmutatória dos metais imperfeitos em ouro puro;

b) O Elixir da Longa Vida: espécie de medicina universal, capaz de curar praticamente toda enfermidade ou doença, e de assegurar uma longevidade considerável, visando
a imortalidade. Devemos tornar esta afirmação apenas em seu sentido espiritual;

c) A Reintegração Universal: ou seja, a regeneração do Cosmos todo, de todas as Criaturas Espirituais, fim último da Alquimia verdadeira.

Jacob Boehme nos disse em efeito o que segue, quanto ao último aspecto da Grande Obra:


"Não há nenhuma diferença essencial entre o Nascimento Eterno,
a Reintegração, e a descoberta da Pedra Filosofal. Tudo tendo saído da Unidade,
deve retornar a ela de forma semelhante...".
(Jacob Boehme: "De Signatura Rerum").

Concernente ao misterioso Elixir da Longa Vida, podemos encontrar um eco nas palavras de Eckhartshausen:

"O renascimento é triplo: primeiramente, o renascimento de nossa razão; segundo, aquele de nosso coração e de nossa vontade; terceiro, nosso renascimento corporal.
Muitos homens piedosos, e que buscavam Deus, foram regenerados no espírito e na vontade, mas poucos conheceram o renascimento corporal...".

(D. Heckhartshausen, "A Nuvem sobre o Santuário").

Convém ainda distinguir entre Alquimistas e sopradores. Os primeiros, filósofos em posse de uma doutrina milenar (a gnose), tinham teorias particulares que não lhes
permitiam ultrapassar certos limites em suas pesquisas. Seu campo de experimentação estava no mundo metálico.

Os segundos, ao contrário, pessoas desprovidas de conhecimentos esotéricos e de ciência, empíricos de primeira linha, faziam desfiar em suas retortas, produtos os
mais heteróclitos dos três reinos, não hesitando de trabalhar sobre as substâncias mais estranhas tanto quanto sobre os resíduos naturais mais repugnantes.

Os alquimistas conservaram e demonstraram os limites do Hermetismo e da Alquimia. Os sopradores os ignoravam, mas criaram a Química.

A existência de uma Alquimia espiritual, elemento da Reintegração individual do Adepto, está provada sem contestação pela leitura dos autores antigos, sem dúvida
foram eles bons cristãos! Mas a existência de uma alquimia espiritual não se deve ao fato de que eles haviam compreendido que Conhecimento e Sabedoria deviam andar
juntos, e que o Conhecimento sem a Sabedoria é pior que a Ignorância sozinha?

É por isso que em sua raríssima obra "A Palavra Perdida", Bernard Le Trévisan nos diz: "Assim, é a Trindade na Unidade, e Unidade na Trindade, pois lá onde estão
Espírito, Alma e Corpo, lá estão também Enxofre, Mercúrio e Sal...". E Albert Poisson então conclui que:

A Grande Obra tem um triplo objetivo no Mundo Material: a Transmutação dos Metais, para os fazer chegar a Ouro, à Perfeição; no Microcosmo, o aperfeiçoamento do
Homem Moral; no Mundo Divino, a contemplação da Divindade em seu Esplendor. De acordo com a Segunda acepção, o Homem é então Athanor filosófico onde se realiza a
elaboração das Virtudes, e então neste sentido, segundo os místicos, é que devemos entender estas palavras:

"...Pois a Obra está convosco e em vós, de sorte que, procurando em vós mesmos,
onde ela está continuamente, vós a tereis sempre, em qualquer parte que
estivéreis na terra ou no mar..." (Hermes Trimegisto, "Os Sete Capítulos")".

(Albert Poisson: "Teorias e Símbolos dos Alquimistas").
Citamos ainda Basílio Valentin:

"De tais coisas, saiba, meu amigo apaixonado pela Arte Química, que a Vida é unicamente verdadeiro Espírito e que, por conseqüência, tudo o que o vulgar ignorante
julga estar morto, em verdade deve ser levado a uma vida incompreensível, visível, e espiritual e nesta ser conservado..."

(Basílio Valentin, "As Doze Chaves da Filosofia", Chave V).

"Se quiserdes realizar nossa Pedra, sê sem pecado, persevere na Virtude.
Que teu espírito seja esclarecido do Amor da Luz e da Verdade. Tomai a resolução,
após ter adquirido o Dom Divino que desejas, de estender a mão aos pobres
atolados, de ajudar e reerguer aqueles que estão na desgraça..."

(Basílio Valentin, "Le Rébis des Douze Clés").

De fato, e coisa curiosa, os elementos essenciais, auxiliares sucessivos desta transmutação, da Pirita metálica, e do Homem carnal, são às vezes de número, de classificação
e de sucessão, exatamente semelhantes. Analisaremos então sucessivamente os dois aspectos da Obra.

Aos quatro Elementos naturais dos Antigos:

Fogo Ar Água Terra
(Oxigênio) (Azoto) (Hidrogênio) (Carbono)

Correspondem as quatro Qualidades:

Úmido Quente Seco Frio

E os quatro Temperamentos:

Sangüíneo Biliar Nervoso Linfático

É este o plano correspondente à realização denominada Alkaest. Do estágio imediatamente superior a esses quatro modos de manifestação da Vida na Matéria, os Alquimistas
tiraram, por copulação, os três termos deste segundo plano, que eles nomearam de a realização do Azoto, ou seja, os três princípios essenciais de partida da Obra,
que são:

Água + Ar Ar + Fogo Fogo + Terra
(Mercúrio Princípio) (Enxofre Princípio) (Sal Princípio)

Então, a Obra podia esperar passar do Negro ao Branco. E de fato, pela copulação do Mercúrio Princípio e do Enxofre Princípio, que o Adepto obtinha a Prata filosófica,
ou Mercúrio dos Sábios, assim como da copulação do Enxofre Princípio e do Sal Princípio, ele extrai o Ouro Filosófico ou Enxofre dos Sábios:

Mercúrio Princípio + Enxofre Princípio = Prata Filosófica (Mercúrio dos Sábios).

Enxofre Princípio + Sal Princípio = Ouro Filosófico (Enxofre dos Sábios).

Enfim, pela copulação do Mercúrio dos Sábios e do Enxofre dos Sábios, a Obra passava do Branco ao Vermelho, o Adepto obtinha a Crisopéia, a Prata filosofal (fig.1).

A Rota do Mercúrio se chamava igualmente o Palácio da Rainha, porque ela levava à Esposa Branca (Mercúrio). E a Rota do Sal era o Palácio do Rei, porque ela levava
ao Marido Vermelho (Enxofre).

Esta visão material e experimental se reveste então de uma visão espiritual, transcendental. Aos quatro Elementos de partida, correspondem então necessariamente
as quatro Virtudes Cardeais da escolástica antiga, a saber:

O Fogo O Ar A Água A Terra
à Força à Justiça à Temperança à Prudência

Aos três Princípios saídos destes quatro Elementos, correspondem portanto as três Virtudes Teologais, que são:

Enxofre Princípio Mercúrio Princípio Sal Princípio
à Fé à Esperança à Caridade

Aos dois Metais Filosóficos (Prata dos Sábios e Ouro dos Sábios) nascidos da copulação dos três Princípios (Enxofre, Mercúrio e Sal), correspondem então as duas
Virtudes Sublimais, a saber:

Enxofre dos Sábios Mercúrio dos Sábios
à Sabedoria à Inteligência

Estas duas Virtudes Sublimais, que a teologia clássica não reconhece como tais, quando conduzidas aos domínios dos dons do Espírito Santo (os quais seriam infinitamente
melhor denominados de outro modo), têm significação proeminente na Escritura Santa:

"E Deus disse a Salomão: Porque tu não me pedistes uma longa vida, riquezas, nem a
morte de teus inimigos, mas pedistes a Inteligência e a Sabedoria para agir com Justiça,
Eu agirei segundo tua palavra, e te darei um coração pleno de Sabedoria e de Inteligência..."

(Reis III, 10-12).

Citamos também:

"Pois isto te fará Sábio e Inteligente aos olhos dos povos..."

(Deuteronômio, IV, 6).

"Para conhecer a Sabedoria e sua instrução, para compreender as palavras da Inteligência..."

(Provérbios, I, 2).

"O princípio da Sabedoria é a crença no Eterno, e a ciência dos santos é a Inteligência..."

(Provérbios, IX, 10).

"Se tu deixares teu ouvido atento à Sabedoria, e se tu inclinares teu coração à Inteligência..."

(Provérbios, II, 2, 3).

"É Ele que dá a Sabedoria dos Sábios, e a ciência aos que possuem a Inteligência..."

(Daniel, II, 21).

Sabemos que, no ternário superior do sistema sefirótico da cabala dos hebreus, Binah (Inteligência) é o atributo que corresponde à visão, intuição, penetração e
informação. Como tal, a Inteligência é então também o Conhecimento (Gnoses) das Coisas Divinas absolutas.

Ela tem por par Hochmah (Sabedoria), que exprime muito bem a idéia da escolha do melhor dentre todos os dados acessíveis à inteligência (Binah). A Sabedoria pressupõe
a inteligência, ela não opera em seu selo senão por eliminação. Ela é a submissão espontânea, inteligente, compreensiva, a um Bem que ela percebe como domínio dela
própria. Como tal, a ciência das duas é a discriminação entre o Bem e o Mal.

Então, a Inteligência é o Conhecimento máximo, e a Sabedoria é a utilização que dela se faz. E, como da união do Enxofre e do Mercúrio dos Sábios, nasce, por conseguinte,
no Ovo Filosófico (que os Alquimistas denominam também de Sublimatório), a "Pedra ao Vermelho", a Crisopéia, também nasce na Alma do Homem, este atanor (ou forno
filosófico), onde o Coração é o Sublimatório (ou Ovo Filosófico), a iluminação total, fator decisivo da Reintegração (fig.4). E este fim último da Obra interior
tem por nome a Luz Divina.

Os Alquimistas, tão reticentes a respeito de tudo o que concernia à Grande Obra, não faziam questão de serem claros sobre o fogo característico, nem sobre os graus
de calor necessários ao êxito de seus trabalhos. O conhecimento do comportamento térmico, e dos seus graus, eram guardados por eles como uma das chaves mais importantes
da Grande Obra. Escutemos Raimundo Lullo:

"Muitos Alquimistas estão errados, porque eles não conhecem a disposição do fogo,
que é a chave da Obra, pois ele dissolve e coagula ao mesmo tempo; o que eles
não podem saber, porque eles estão cegos pela sua ignorância..."

(Raimundo Lullo, "Vade Mecum ou Abrégé de I'Art Chimique").

De fato, a Matéria, uma vez preparada, somente o cozimento pode transformá-la em pedra filosofal:

"Eu não vos aconselho nada além de cozinhar; cozinhar no começo,
cozinhar no meio, cozinhar no fim, e não façais outra coisa..."

(Anônimo, "La Tourbe des Philosophes").

Os Alquimistas distinguiam várias espécies de fogo:

1 - O fogo úmido: é o banho-maria, que fornecia uma temperatura constante;

2 - O fogo sobrenatural: ou fogo artificial, que designava os ácidos. Advém daí o fato dos Alquimistas terem advertido que os ácidos produziam uma elevação de
temperatura em suas diversas reações, e portanto que eles tinham sobre os corpos o mesmo efeito que o fogo. Eles desorganizam e destroem
rapidamente o aspecto primitivo destes corpos;

3 - O fogo natural: ou fogo ordinário, obtido por uma combustão.

Em geral, os Alquimistas não empregavam nem carvão nem lenha para aquecer o Ovo Filosófico. Necessitava-se uma vigilância contínua, e era mais ou menos impossível
obter-se uma temperatura constante. Por isso, Marc-Antônios se coloca contra os sopradores ignorantes que se serviam de carvão:

"Para que servem estas chamas violentas, porque os sábios não usam de carvão ardente,
nem de lenha inflamada, para fazer a Obra Hermética..."

(Marc-Antônio, "La Lumiére sortant par soi-même des Ténèbres").

Os filósofos Herméticos empregavam então uma lâmpada a óleo, com pavio de amianto, cuja manutenção é fácil, e que dá um calor mais ou menos uniforme. Eis o fogo
que eles tanto queriam, e do qual somente alguns falavam abertamente, nos diz Albert Poisson.

No plano da Alquimia espiritual, o fogo é constituído pela Prece... "Ora et labora...", reza e trabalha, nos dizem os velhos Mestres.

Nosso Fogo não se identifica com aquelas práticas psíquicas, que repousem sobre posturas mais ou menos barrocas, ou sobre modos e ritmos particulares de respiração.
Estas práticas, comumente definidas sob o termo geral de Hatha-Yoga, são geralmente apontadas no Ocidente como suscetíveis de conservar a juventude e a saúde. Mas
a experiência prova, ao contrário, que os Europeus que a adotaram (somente por esnobismo), chegaram finalmente à iluminação, na verdade simplesmente ao misticismo,
e seus conhecimentos transcendentais não aumentaram. Se tais aquisições se realizam é devido a outras práticas então: Bhakti-Yoga, Dhuani-Yoga, Karma-Yoga, Samadhi-Yoga,
Raja-Yoga.

Os Alquimistas admitiam vários graus para seu fogo, conforme a Obra estivesse mais ou menos avançada.. Eles o regulavam aumentando o número de fios que compunham
a mecha:

"Faça de início um fogo brando, como se não houvesse mais que quatro fios em tua mecha,
até que a Matéria comece a enegrecer. A seguir aumente, ponha então quatorze fios. A Matéria
se banha, ela se torna cinza. Enfim, ponha vinte e quatro fios, e terás a brancura perfeita..."

(Happellus, "Aphorismi Basiliani").

Aqui temos, no domínio da Alquimia espiritual, uma indicação preciosa em seu esoterismo. O fogo passa de quatro para quatorze, e de quatorze para vinte e quatro
mechas. Ao quaternário de partida se une o denário, e depois outro denário, ou seja: tétrada + década + década.

Se estas palavras não evocam para nós a Gnose alexandrina e seus Eons, elas nos bastam para saber que o primeiro grau do fogo, aquele do começo da Obra, se chamava
o fogo do Egito, porque ele devia se igualar (no ponto de vista material) à temperatura estival máxima desse país:

"Faça vosso fogo proporcional ao calor nos meses de junho e julho..."

(Anônimo, "Dialogue de Marie e d'Aros").

Ora, se o autor é anônimo, o manuscrito é belo e bem egípcio! Esta evolução progressiva do fogo da Obra é então representada na Alquimia espiritual por uma evolução
progressiva da Prece e de toda a Acesse semelhante, de sua amplitude, de suas freqüência, e sobretudo de seus objetivos imediatos e sucessivos.

Querer queimar etapas (uma locução cheia de esoterismo!) seria de fato perigoso. Não falta, infelizmente, na história da Mística, neófitos que, mal preparados para
o choque das revelações intuitivas, param ante tais realizações psíquicas não atendidas, e se perdem em vias irracionais. É, para evitar tais perigos, que as igrejas
(latinas ou orientais), impuseram o princípio do "diretor da consciência", a seus fiéis desejosos de penetrar nesses domínios. Escutemos então aos velhos Mestres:

"Tu não deixarás jamais o vaso se aquecer muito, de forma que tu possas sempre lhe tocar com a mão nua sem perigo de queimar-te. E isto durará todo o tempo da solução..."

(Rypley, "Tratado das Doze Portas").

"Faça um fogo vaporizante, digerinte, contínuo, não violento, sutil, envolvente, aéreo, fechado, incombustível, alterante..."

(Bernard Le Trévisan, "O Livro da Filosofia Natural dos Metais").

"Uma parte de fogo possui mais energia potencial que cem partes de ar, e , por conseqüência,
uma parte de fogo pode facilmente vencer mil partes de terra..."

(Thomas de Aquino, "Tratado da Pedra Filosofal").

Veremos, em seguida, como deve ser manipulada a conduta de nosso Fogo, ou seja, a Prece, graças a qual podemos, de acordo com a expressão favorita de certos orientais:
"queimar o Karma". Iremos agora estudar os Elementos de nossa Obra, os Princípios a desenvolver primeiramente, após, os que nascerão deles, ou seja, as Virtudes
Essenciais, em número de nove:

- quatro denominadas cardeais (do latim cardo: porta, elemento essencial),
- três denominadas teologais, pois elas têm essencialmente Deus por objetivo,
- duas denominadas sublimais, porque elas são o resultado mais elevado da prática das sete primei-
ras, e são, de qualquer sorte, sua sublimação.

Todas correspondem às Entidades Espirituais ligadas ao Plano Divino, um pouco como as Idéias-Eternas de Platão.

Encontramos de fato no "O Pastor" , atribuído a Hermas de Cumes, um dos quatro Padres Apostólicos, herdeiros e sucessores imediatos dos Apóstolos, o seguinte quanto
à tradição oral do Cristianismo:

"E estas Virgens, o que são?...- Elas são Espíritos de Santificação. Ninguém pode ser admitido no Reino de Deus, sem ter sido previamente revestido por elas de sua
própria Vestimenta. Se receberes apenas o Nome do Filho de Deus, sem receber das mãos destas Virgens sua vestidura, isso de nada te servirá! Pois estas Virgens são
Virtudes do Filho de Deus. Se tu portas seu Nome sem possuir Sua Virtude, é em vão que o portas..."

(Hermas: "O Pastor", IX, 13).

"Sem o auxílio destas Virgens, é impossível conservar seus Mandamentos. Eu vejo que elas se residem em tua "morada", unicamente para bem purificá-la! Elas terão
prazer habitando em lugar próprio, porque são puras, castas, ativas e têm grande prestígio junto ao Senhor. Assim, a pureza reinará em tua "morada" e elas a habitarão.
Mas à menor mancha que elas encontrarem, sairão logo, porque estas Virgens não podem sofrer a mais leve mácula..."

(Hermas, "O Pastor", X, 3).

O leitor atento saberá discernir sob o texto banal, o esoterismo muito belo destas passagens. Nós as completaremos por uma citação, extraída de um apócrifo gnóstico
do segundo século:

"E em Bethel, após 62 dias, vi sete homens vestidos de branco, que me disseram: "Levanta-te. Veste a Túnica de Sacerdote, a Coroa da Justiça, o Racional da Inteligência,
a Vestimenta da Verdade, o Diadema da Fé, a Mitra dos Prodígios, o Ephod da Profecia..." E cada um deles, portando um destes ornamentos, os colocam sobre mim, dizendo:
"De hoje em diante, sois Sacerdote do Senhor, tu e tua Raça, até a Eternidade..."

("O Testamento dos Patriarcas", Levi, 8).






























Capítulo III
A PUTREFAÇÃO

"Eis aqui um túmulo que não encerra cadáver, e um cadáver que não está encerrado
em um sepulcro, pois o cadáver e o sepulcro não são senão um ..."

(Nicolas Barnaud: "Theatrum Chimicum", tome III, p.744).

Em seu belo livro "O Mistério das Catedrais", consagrado única e totalmente à Arte Alquímica material, Fulcanelli nos diz o seguinte no prefácio, redigido por ele
mesmo, e que fez após M. E. Cancellet(8) assinar:

"A Chave do Arcano Maior é dada, sem nenhuma ficção, por uma das figuras
que ornamentam a presente obra. E esta Chave consiste unicamente em uma
Cor, manifestada ao Artista desde o primeiro trabalho..."

"Esta cor é expressa pela primeira prancha do livro. No primeiro plano de uma paisagem do baixo Egito, onde se perfila uma Esfinge altiva, na noite que termina,
ao lado de uma retorta, de um atanor, e do "Mutus Liber" aberto em sua primeira sentença, um corvo sardônico, asas estendidas, pousa sobre um crânio humano.
Este conjunto enigmático evoca Mênfis, capital do antigo Egito, fundada outrora por Menès, e Mênfis significa escurecer. É provável que se encontre esta etimologia
no termo mefítico, designando um gás malcheiroso. Nós estamos aí em presença do estado hermético da putrefação. Se duvidamos, o corvo hermético lá está para nos
comprovar, e o crânio nos faz então supor a palavra da Escritura: "Em verdade vos digo: se o grão de trigo não morre, ele fica só. Mas se ele morre, dá muitos frutos..."
(João: Evangelho: XII, 24)".

Desta forma, no início da Obra deve aparecer a necessária Putrefação, simbolizada pela "Caput Corvi" (do latim "caput": cabeça, expressão que fala maravilhosamente).
Os sete corpos passionais devem desaparecer, e com eles os sete pecados capitais, e os sete erros fundamentais, que escurecem a Alma. Eis aí as cabeças do Dragão
do Apocalipse, em número de sete, portando dez cornos (nós os veremos novamente), que se opõem às sete Virtudes, quatro Cardeais e três teologais.

É totalmente inútil tentar ir adiante se esta fase imprescindível não foi realizada. Escutemos também, a voz dos velhos Mestres:

"É necessário primeiramente que o Corpo seja dissolvido, que as Portas
sejam abertas, a fim de que a Natureza possa operar..."

(Séthon, O cosmopolita: "Novum lumem chymicum de lapide Philosophorum").

Pois:

"Segundo a pureza ou a impureza dos princípios componentes do Enxofre
e do Mercúrio, se produzem metais perfeitos ou imperfeitos..."

(Roger Bacon: "Le Miroir d'Alchimie").
e:

"Não é possível haver alguma geração sem corrupção..."

(Huginus A. Barma, "A Pedra de Toque").

De fato, não é possível fazer evoluir o Aspirante no sentido em que entendemos, se ele não consente em admitir, de uma vez por todas, que tudo o que ele tenha podido
adquirir em leituras mal digeridas, ou em ensinamentos desconformes com a doutrina que ele deseja seguir e aplicar, não fará nada além de se opor a sua caminhada
mística. Os pseudo-conhecedores e a falsa sabedoria não têm nada a fazer aqui, ele deve admitir que:

"A química vulgar é a arte de destruir os compostos que a Natureza formou,
e a Química Hermética é a arte de trabalhar com a Natureza para os aperfeiçoar..."

(Dom Pernety: "Fábulas Gregas e Egípcias").

"Tenha em mente que a conjunção do Marido e de sua Esposa não se faz a não ser que antes
eles tenham tirado seus hábitos e ornamentos, tanto do rosto quanto de todo o resto
do corpo, a fim de que eles entrem no túmulo da mesma forma que vieram ao mundo..."

(Basílio Valentin, "As Doze Chaves da Filosofia").

E somente após ter purificado as ruínas do edifício originalmente degradado, o Aspirante poderá reiniciar sobre uma rota interiormente nova para ele:

"Tu saberás que todo o Magistério não consiste senão em
uma dissolução, após em uma coagulação..."

(Albert Le Grand: "Le Livre des huit Chapitres").



A - DA MORTIFICAÇÃO DOS NOVE SENTIDOS:

Os sentidos são as faculdades (a antiga escolástica denominava-os de aparelhos) que colocam o homem em relação com o mundo exterior, e estão ligados a órgãos de
seu corpo físico, os quais são seus instrumentos.

Considera-se, geralmente, apenas cinco sentidos físicos: a visão, o olfato, o paladar, o tato e a audição. A Teologia clássica, acrescenta-lhes dois sentidos internos:
a imaginação e a memória. O Iluminismo clássico acrescenta a esse conjunto todo ainda dois sentidos superiores, psíquicos, que são a clarividência e a clariaudiência.
Há então três séries de cinco, sete ou nove sentidos, segundo o plano onde os coloquemos com o intuito de estudá-los. É a série de nove que a Alquimia espiritual
utiliza evidentemente, e é esta que nós estudaremos.

1 - O TATO:

O sentido do Tato não é perigoso, no mundo profano, a não ser quando ele desperta em nós paixões, ou contatos suscetíveis de ferir nossa saúde ou nossa vida (cirurgias
e ferimentos). No mundo espiritual, ele é totalmente diferente. Assim, o contato de uma arma de fogo nas mãos de um adolescente, pode despertar nele um desejo de
poder; nas mãos de um caçador ou de um invejoso, o desejo de matar. As carícias constituem, no domínio do Tato, apelos à volúpia dos sentidos, e como tais à Luxúria.

Para o Aspirante, e no domínio da Via Interior, o contato com certos objetos carregados de uma misteriosa potência pode ser eficiente tanto para o bem quanto para
o mal. Evita-se pois, todo o contato com os objetos fúnebres (ossadas, crânios), cadáveres (transporte e sepultamento, a título de caridade, faz parte evidentemente
de um outro domínio), coisas funerárias (mortalhas, tampa de caixão, terra de cemitério, etc...), manuscritos e livros tratando de magia inferior e suscetíveis de
terem recebido uma consagração mágica que lhes torne espiritualmente maléficos. Neste mesmo campo, estão classificados os pantáculos de baixa Magia, objetos rituais
vindos de um bruxo de aldeia, de um feiticeiro. A mais forte razão nos preserva da pior injúria ao Plano Divino, colocar as mãos sacrílegas sobre coisas consagradas
e santas, onde o contato é vedado aos profanos, presunção que tem muitas vezes causado a ruína espiritual de alguns magistas, embora muito inteligentes. Igualmente,
não consentimentos em sofrer, sob um vago pretexto Iniciático, toques em certos pontos corporais suscetíveis de despertar em nós, centros de força, que devem, muito
ao contrário, permanecer definitivamente adormecidos. Nada é mais perigoso que este "despertar" psíquico, efetuado por semi profanos que desconhecem o seu alcance,
ou que, dissimuladamente, tomam seu "discípulo" como objeto de experiência, sem nenhuma caridade...O sentido do Tato corresponde ao Elemento Terra.

2 - O PALADAR:

A Gula material não é, geralmente, um dos vícios preeminentes nos Aspirantes. É necessário, todavia, vigiar, vencer e reduzir. Mas, sobretudo, o sentido do paladar
está a disciplinar, o qual transposto, nos faria dar uma maior importância, em lugar das paixões, às riquezas livrescas, aos ricos e belos relicários, como manuscritos
e textos raros, e também à qualidade e ao número de nossos livros. É o Paladar que, uma vez controlado, nos evitará de ceder a tais manifestações, muito sedutoras,
onde a doçura de palavras fechadas, o vôo de frases sem profundidade, o ineditismo de teorias assim enunciadas, não fazem senão mascarar o mais completo vazio, coisas
que perigam nos afundar em pseudo-ensinamentos sem nenhum caráter Iniciático real.

O sentido do Paladar corresponde à Água elementar. E a Água, com suas misteriosas inteligências, que a cabala denomina de Ondinas, é o domínio da Sensibilidade.
Evitemos pois, de ceder a uma susceptibilidade tão sem profundidade. O Amor é uma palavra sem sentido após muito uso indevido, uma palavra que não faz senão dissimular
o vazio total. O verdadeiro Amor é construtivo, é o Ágape dos Gregos, ele não supõe indulgência ou falsidade comuns ao Erro, mas o zelo da Justiça e da Verdade.

3 - O OLFATO:

O uso sem moderação de perfumes do mundo profano, a influência que deixamos exercerem sobre nós, são apenas pretexto para satisfazer nossa sensualidade ou nos incitar
à volúpia. Ele está também no domínio das combustões aromáticas familiares aos Ocultistas. As emissões perfumadas que se evolam dos incensórios e dos turíbulos são
ondas de apelo, destinadas a "mundos" ontologicamente diferentes do nosso. Elas não são destinadas à satisfazer nosso olfato, nem nosso desejo inferior de ambiência
mística. Menos ainda para surpreender o profano, dando-lhe a impressão de que possuímos o segredo de certas fumigações misteriosas, e lhe deixando supor que a evolução
de seu misticismo e seu aperfeiçoamento espiritual dependem de banais impressões olfativas.

Por outro lado, existem emissões perfumadas suscetíveis de nos fazer tomar consciência de "mundos" e de Entidades Superiores, e outras que são suscetíveis de nos
fazer descer em direção oposta: odores sui generis, incitando à sexualidade, perfumes mágicos que nos colocam em contato com planos demoníacos. E estas fumegações
devem ser evidentemente evitadas, ou empregadas somente em casos prescritos por nosso Mestre.

O Olfato corresponde ao Ar elementar.

4 - A VISÃO:

Não há acontecimentos suscetíveis de despertar o desejo sexual que devam ser evitados por primeiro. É preciso, ao contrário, jamais exceder-se neste campo. E Saint
Clément d'Alexandrie nos disse com justa razão que "Não devemos ter vergonha de órgãos que Deus não teve vergonha de nos dar...". Mas há, por todo mundo, acontecimentos
doentios que fazem apelo aos instintos mais grosseiros do ser humano: rinhas de galo, corridas de touro, caçadas, massacres de animais sem justificativas, etc...
Em estágio inferior de gravidade, as lutas de boxe e semelhantes, são seguidamente espetáculos pouco elevados para o homem.

Para o Ocultista, pode haver a visão de certos livros, bibliotecas, coleções de objetos, quadros, que excitem a Curiosidade, a Inveja, a Avareza: esquemas misteriosos,
textos enigmáticos. Pode-se juntar a isso, a visão de certas roupas ou ornamentos mais ou menos pomposos, que incitem ao Orgulho ou à Inveja; leituras imprudentes
(aspecto da Gula, se se deseja adquirir violentamente essas coisas ou livros), ou à Cólera (se nós nos opomos com violência, interior ou exteriormente por contradição),
ou à Preguiça (se estas coisas nos incitarem a um incômodo quietismo). Há jornais ou livros que são verdadeiros venenos psíquicos, pelas reações que eles fazem nascer
ou suscitam violentamente em nós: a imprensa política notadamente.

5 - A AUDIÇÃO:

Esta mortificação (ainda um termo que evoca invencivelmente a Alquimia prática), ligada àquela da Palavra, nos incita a dizer que não entendemos nada que seja contrário
à Caridade, à Pureza ou à Humildade. Mais ainda, nos domínios da Caridade, nada que desperte nos outros ou em nós algum eco capaz de suscitar um ou vários dos sete
Pecados Capitais.

Evita-se, então, estender-se muito em relatos de certos fatos que possam desencadear nos outros a Cólera, o Rancor, a Luxúria, a Inveja. E entre os Ocultistas, esta
prudência consistirá em não se discorrer longamente sobre certos procedimentos de ação (mágicos, teúrgicos, místicos), sobre o aspecto extraordinário de certas experiências
espirituais ou psíquicas, ou sobre a raridade ou interesse de alguns textos ou livros. Isto a fim de não despertar na Alma do Aspirante um desejo de poder, uma curiosidade
vã, uma avidez de posse, onde a Inveja, o Orgulho, a Avareza encontram terreno de ação.

Enfim, evitar-se-á o barulho em geral, ambiente no qual a Alma não saberia se encontrar nem se conhecer, as músicas de dança discordantes e não harmônicas, ligadas
à sexualidade animal ou aquelas muito marciais, dissolventes de todo clima psíquico (marchas militares, fanfarras de caça, etc...).

A audição é análoga ao Sal Princípio.

Dois sentidos, nós dissemos, complementam o quinário sensual exterior. Iremos estudá-los agora.

6 e 7 - A IMAGINAÇÃO E A MEMÓRIA:

A Imaginação e a Memória são duas faculdades preciosas que fornecem: à inteligência os materiais dos os quais ela tem necessidade para se exercitar e trabalhar,
à Sabedoria a possibilidade de expor a Verdade com imagens exemplos que a tornem mais impressionante, mais viva e , por isso mesmo, mais atraente.

Não se trata então, de atrofiar estas faculdades, mas de as disciplinar e de subordinar sua atividade ao império da razão e da vontade. Caso contrário, entregues
a si mesmas, , elas povoarão a Alma com uma multidão de recordações e imagens, que a dissiparão e gastarão suas energias, lhe fazendo perder um tempo precioso e
lhe suscitando mil tentações e recaídas.

É então absolutamente necessário discipliná-las e colocá-las a serviço das duas Virtudes Sublimais, que são, conforme já dissemos: a Inteligência e a Sabedoria.

Para melhor reprimir as divagações destes dois Sentidos interiores que são a Imaginação e a Memória, nos aplicaremos primeiramente em tirá-las de nossa consciência,
desde o início de suas manifestações. As imagens ou as recordações perigosas, nos trazem possibilidades (futuras) ou realidades (passadas) que, nos transportando
em meio as tentações do presente, do passado ou do futuro, são, ipso facto, uma fonte de fracassos e de quedas.

Mas, como há, por vezes, uma espécie de determinismo psicológico que nos faz passar das fantasias sem importância aos jogos perigosos de uma repentina imaginação
invasora, nós nos preveniremos contra esse perigo rejeitando, imediatamente e de forma incessante, os pensamentos inúteis. Eles nos fazem perder um tempo precioso,
e abrem caminho para outros pensamentos infinitamente mais perigosos.

O melhor método para ser bem sucedido neste tipo de "filtração" é, certamente, aplicar-se de forma total ao dever do momento, não importa o quão banal ele seja,
por exemplo, o nosso trabalho, o nosso estudo, as nossas ocupações habituais, por mais modestas e materiais que elas sejam. Esta é a melhor maneira de se proceder,
concentrando assim toda sua inteligência e sua atividade na ação do momento.

Enfim, a Imaginação e a Memória habitam um terreno que se acha no próprio Aspirante, o das ciências humanas, profanas e ocultas, sem eles, os aspectos do Conhecimento
superior lhe permanecerão obscuros. E, também e sobretudo aquele das Escrituras iniciáticas tradicionais, nos quais, pela interpretação do esoterismo, a Imaginação
poderá ter acesso às Verdades da Inteligência, e a Memória poderá preparar as Certezas da Sabedoria...

Estes dois Sentidos interiores correspondem, respectivamente a: Imaginação ao Mercúrio Princípio, e a Memória ao Enxofre Princípio.

8 e 9 - A CLARIVIDÊNCIA E A CLARIAUDIÊNCIA:

Não devemos confundir Profecia e Adivinhação. Neste último domínio, as mil e uma formas mânticas permitem, pela interpretação de Entidades mal definidas, jamais
do Plano Divino (todas dos "planos" intermediários), acessar de modo razoavelmente exato a um futuro mais ou menos próximo, também (e, mais exatamente), de reencontrar
os elementos de um passado mais ou menos próximo.
Neste caso, a Adivinhação se utiliza de uma espécie de convenção pela qual os elementos codificados fazem o adivinho ou a adivinha acessar o modo de expressão de
Entidades às quais já nos referimos. Estas se expressam por um simbolismo convencional, arbitrado, implícita ou tacitamente com o adivinho.

De modo oposto, no plano profético, as Escrituras tradicionais se nos apresentam sob três aspectos e três gêneros de interpretação diferentes.

Há primeiramente, o rô'êh, ou vidente, aquele que vê, com os olhos do espírito, aquilo que os outros homens não vêem. Há também o hôzeh, que é análogo ao primeiro,
mas que serve mais especificamente para designar os profetas e adivinhos dos falsos deuses. Há enfim o nâbi, ou intérprete de Deus, que não é apenas aquele que vê,
mas aquele que fala, não obstante, a linguagem divina. Neste último caso, e na maior parte do tempo, é necessário que seu verbo seja o reflexo de uma audição interior,
mesmo que ela seja instantaneamente associada ao verbo do nâbi.

Portanto, o rô'êh é o que vê, exprimindo então em sua linguagem pessoal e de acordo com a necessidade, o que ele viu, ou o que concluiu de sua visão. E o nâbi é
o que ouve, aquele cuja audição e elocução se confundem.

O que caracteriza estes dois arautos do Plano Divino, é que eles não se manifestam jamais por coisas sem importância, por problemas individuais ou excessivamente
humanos. Eles são suscitados unicamente para fins gerais e para a defesa de interesses superiores e coletivos.

Desta forma, o Aspirante que verá se desenvolver nele uma destas duas faculdades: clarividência ou clariaudiência, deverá evitar colocá-las a serviço de problemas
sem interesse espiritual. Não deverá ainda se imaginar como estando em necessária relação psíquica com Deus, com a Virgem Maria, ou com os grandes Arcanjos! E é
aí que o dom do discernimento dos espíritos lhe será indispensável. Ele se lembrará que todas as manifestações de Entidades inferiores, e especialmente de Espíritos
Tenebrosos, é sempre em um ponto qualquer, marcada pelo grotesco, pela inconseqüência, onde residem os gérmens da anarquia. Se os períodos de manifestação destas
faculdades coincidem com um clima geral interior imoral ou amoral, se a sexualidade se revela muito exigente, se as teorias de facilidades acompanham este gênero
de Fenômenos, que o Aspirante saiba bem que está sendo joguete de Entidades inferiores. Ainda mais se ele emite teorias particulares, favorecendo assim seu orgulho,
se tem a impressão de ter sido escolhido por seus méritos e por suas qualidades intelectuais, se se crê chamado à modificar ou completar um corpo religioso qualquer,
na verdade para deturpar os ensinamentos tradicionais, conhecidos por sua excelência e sua alta espiritualidade. O que caracteriza de fato o profetismo, é que integrado
no quadro de uma Revelação, se ele fala realmente em nome dela, não saberia transformar por ela um espírito de contradição e uma fonte de desordem

O profeta é sempre o "possuído" do Espírito Santo, o adivinho é sempre o "possuído" de um Espírito Intermediário, o médium é sempre o "possuído" de um Morto. Situar
as fontes de suas vaticinações respectivas, é situar o nível de suas espiritualidades. A Clarividência corresponde ao Mercúrio dos Sábios, e a Clariaudiência ao
Enxofre dos Sábios.

Em conclusão, a mortificação dos nove Sentidos do Homem deve abranger o conjunto de suas atividades biológicas e psíquicas, portanto, sobre o Corpo e sobre a Alma.
Pois é o Homem como um todo que, se não for absolutamente disciplinado, estará vulnerável à queda.

Sem dúvida, não é verdadeiro dizer que é a vontade quem peca, mas ela tem por cúmplices e por instrumentos o Corpo, com seus sentidos exteriores, e a Alma com seus
sentidos interiores. Então, novamente, o Espírito é prisioneiro, e de uma prisão ainda mais sombria que a de antes.

A PURIFICAÇÃO DO IMPULSO SEXUAL E SEU DOMÍNIO

Cremos ser útil acrescentar algumas prescrições particulares em um campo onde a luta é particularmente difícil e penosa, como aquele do desejo sexual e das violentas
paixões amorosas que são, por vezes, fontes de tantos erros, e até mesmo de decadências e de crimes.

A chave desta liberação reside em uma justa apreciação do caráter não permanente da beleza corporal e das alegrias puramente carnais. Ela é bastante simples e antiga.

Tenha-se em mente, de antemão, que a necrose que ganha rapidamente no túmulo o despojo corporal, tão logo a alma o tenha deixado, consiste em um escurecimento progressivo
das carnes, as quais mudam pouco a pouco, da nuance branco-rosada para um negro de ébano absoluto. Então, sobre estas carnes assim necrosadas, se desenvolvem estranhos
cogumelos, de um verde-jade muito vivo, de sete a doze milímetros de diâmetro na copa, e de mais ou menos um centímetro de altura. Na obscuridade, estes cogumelos
brilham com uma luminescência esverdeada.

A técnica purificadora do desejo sexual consiste, então, no curso das meditações, desprovidas de qualquer fumigação, em visualizar a "mulher ideal" (ou o homem ideal),
a mesma que se imaginará então e para sempre, dotada de todo brilho e de todo o charme possíveis, se destacando em forma luminosa sobre um fundo totalmente obscuro,
a silhueta parecendo iluminada do interior, e sentada, imóvel, na postura de "lótus" (é o assentar-se dito "à moda turca", mãos unidas sobre as coxas). Mas, apenas
o rosto, o busto e os braços são dotados de uma perfeição ideal nesta visualização. As ancas, as pernas, o abdomem e as partes sexuais são necrosadas, conforme descrito
acima. As unhas serão visualizadas muito grandes, enroladas sobre elas próprias, como na realidade (pelo fato do seu crescimento post-mortem e do descarnemento dos
dedos, que faz com que desenvolvam também as raízes).

Os noviços de conventos tibetanos praticavam, até a pouco tempo, diante de uma carneira, o que seus mestres chamavam "a meditação sobre o Horrível". O treinamento
consistia em visualizar, sob toda forma humana viva, o esqueleto que ela viria a ser fatalmente um dia, símbolo dessa Morte que o ser carrega nele em potência latente.

Pode-se, assim, à técnica descrita anteriormente, unir este último procedimento. Talvez, então, se consiga realizar a liberação obtida por Louis-Claude de Saint-Martin,
sobre o qual um "vidente" da época poderia dizer, contemplando-o de longe: "aquele deixou o Mundo para trás..."


Figura 2 - Os Nove Sentidos: A purificação em modo sensual segue o mesmo processo que na figura 1.
B - OS SETE PECADOS CAPITAIS:

"Após, eu vi subir do mar uma Besta que tinha dez cornos e sete cabeças...
e sobre suas cabeças, nomes de blasfêmias..."

(João: Apocalipse, XIII, 1 ).

Na Cabala dos hebreus, é dito que a Árvore da Vida (Otz Chllm), corresponde no mundo manifestado, à Pequena Árvore da Vida, que se denomina Kallah, "a Noiva". Inversamente,
e opondo-se a ela, acha-se a Pequena Árvore da Morte, "a Prostituta", Quliphah.

Sobre a Árvore da Vida florescem e brilham os Sephiroth, ou esferas da manifestação evolutiva. Sobre a Árvore da Morte florescem e brilham os Quliphoth, ou esferas
da manifestação involutiva. Logo, é evidente que, às sete Virtudes essenciais (quatro cardeais e três teologais) correspondem sete Virtudes (do latim virtus: potência)
opostas. São os sete pecados capitais. E como esta Héptada está coroada por duas Virtudes Sublimais, a Inteligência e a Sabedoria, duas manifestações tenebrosas
a elas se opõem. São: à Inteligência, a Cegueira (de Espírito) ou Ignorância, e à Sabedoria, o Erro (fundamental).

Estudemos todo este conjunto maléfico, no plano espiritual.

1 - A AVAREZA

A Avareza levará o místico errante a um isolamento total e estéril. Desvelar, revelar, ensinar, transmitir, tudo o que ele recebeu ou aprendeu de outrem, será sempre
algo doloroso e chocante. Ele acumulará livros e manuscritos, documentos e iniciações, mas não conceberá jamais que possa ser ele próprio um simples instrumento
de transmissão. Às filiações iniciáticas que porventura a ele se ligarem, fracionar-las-á, multiplicando as provas, os graus, as classes, no único intuito de retardar
o máximo possível, o instante em que estará na obrigação de concluir seu próprio papel e do discípulo de ontem, fazer seu igual hoje, e talvez seu superior amanhã.

A Avareza corresponde à Terra, e é o contrário da Prudência, seu excesso mesmo.

2 - A GULA

A Gula levará nosso Ocultista a devorar sem nenhuma medida todos os documentos, livros, tratados, esquemas, que lhe sejam acessíveis. As doutrinas mais estranhas,
os ensinamentos mais disparatados, tantas misturas que não o repugnarão. Ávido de tudo o que favoreça sua curiosidade e seu apetite de conhecimentos, ele deglutirá
tudo, valha o que valha, e , desta estranha mistura, se o Orgulho aí se mescla, ele tentará extrair uma doutrina pessoal que lhe assegure completar, em realidade
modificar, as Tradições iniciais que ele tenha pilhado e misturado. Se, pelo contrário, é a Preguiça, que vem se misturar a seu apetite, o próprio excesso de seus
conhecimentos disparatados, mal digeridos por um espírito preguiçoso, o fará um dia, subitamente, retornar ao materialismo, no qual ele desejará repousar.

A Gula corresponde à Água, e é contrário da Temperança.




Figura 3 - Os Nove Vícios: A degradação moral e espiritual segue, em modo inverso, a mesma progressão da figura 1.

3 - A LUXÚRIA

A Luxúria introduzirá um certo sensualismo nos domínios iniciáticos onde nosso Ocultista será levado a trabalhar. Ele será, a prior, hostil a doutrinas muito espirituais
ou muito ascéticas, e sustentará a necessidade de conviver, de forma bastante liberal, com as exigências da natureza humana inferior. As religiões e as doutrinas
onde a sexualidade cumpre um papel (tantrismo, gnosticismo licencioso, magia sexual, etc...), encontrarão nele um defensor. Para ele, uma organização iniciática
mista será sempre muito superior a uma organização exclusivamente masculina ou feminina!

Mas sobretudo, este defeito se exercerá no terreno da facilidade. Ele transmitirá, inconsideravelmente, as iniciações e os ensinamentos dos quais for depositário,
para suplicantes inadaptados, ou estranhos a essa corrente. Cederá facilmente os segredos iniciáticos aos indivíduos do sexo oposto, em troca de seus favores! Enfim,
como para as fornicações e para adultério espirituais censurados a Israel pêlos profetas ou por Cristo, ele se fará sectário de doutrinas, de iniciações, de cerimônias,
muitas vezes diametralmente opostas. Ele não hesitará, seu interesse ou seu prazer, visto que sua simples curiosidade o incitará a voltar-se para correntes inferiores
tão logo ele perceba que as Forças Superiores não lhe servirão de nada em tais domínios.

A Luxúria corresponde ao Ar, e é oposta à Justiça.

4 - A PREGUIÇA

A Preguiça levará o Aspirante errante para uma espécie de quietismo que lhe fará considerar a perfeição no banal amor de Deus, na inação da Alma, e na ausência de
toda obra exterior, nada mais. Ele ficará indiferente aos sofrimentos dos Seres à sua volta, se ele os percebe, nada fará para aliviá-los, estimando que os males
aos quais estão submetidos são resultados proporcionais aos seus erros passados. Enfim, ele se desinteressará de si mesmo, entregando-se à Providência para facilitar
seu acesso à perfeição moral, e considerará a ignorância como um caminho tão seguro quanto o Conhecimento.

A Preguiça corresponde ao Fogo (invertido) e se opõe à força.


5 - A INVEJA

A Inveja levará o pseudo-iniciado a desejar, não somente os primeiros lugares e as falsas honras, mas também não hesitará em retardar e, muitas vezes, impedir o
avanço de outro, se ele vê neste outro uma superioridade que possa eclipsar a sua.

Ele manterá o abafador sobre as doutrinas, ensinamentos, livros e documentos suscetíveis de prejudicar seus interesses. Ele não deixará de querer possuir tudo o
que os outros possuem, considerando como uma ofensa haver algo que ele não possa ter, mesmo se ele estiver decidido a não se servir disso, tendo em vista que tal
coisa lhe é intelectualmente oposta.

A Inveja corresponde ao Sal Princípio, e se opõe à Caridade.


6 - A IRA

A Cólera se manifestando no Aspirante, faz com que ele perca o controle de si mesmo. Seu autoritarismo e sua atividade exacerbada não lhe permitirão admitir que
seus semelhantes sejam mais bem aquinhoados que ele. Seus julgamentos serão tão prematuros quanto definitivos, e sua impaciência o levará a tratar com rudeza os
fracos, os ignorantes. E se ele tiver a infelicidade de ser odioso (forma mais tenebrosa ainda de inveja), seus pseudo-conhecimentos poderão fazer dele um mago negro.

A Cólera corresponde ao Mercúrio Princípio, e se opõe à Esperança.

7 - O ORGULHO

É denominado pai de todos os Vícios, com Justa razão. Em nosso ocultista incipiente, o Orgulho levará a se imaginar moralmente superior a todo o profano, porque
intelectualmente ele é mais rico. Ele se imaginará, vaidosamente, possuidor de segredos e de ensinamentos que foram revelados somente a ele, imaginar-se-á predestinado
a uma preeminência certa, justificada por seus méritos. Além disso, afirmará seguidamente ter sido este ou aquele personagem importante ou célebre em pseudo-vidas
anteriores. De todo este clima, ele adquirirá um sólido e orgulhoso desprezo por aquilo que chama de humanidade, e estará na impossibilidade de perceber, seguidamente
dissimuladas na banalidade destas existências modestas, Almas de elite mil vezes superiores a sua. Em resumo, no Passado, no Presente e no Futuro, ele é aquele a
quem tudo é devido e que, por conseqüência, pode tudo exigir.

O Orgulho corresponde ao Enxofre Princípio, e se opõe à Fé.

Sete Vícios duplicam os sete Pecados Capitais e, são deles, uma espécie de frutos. Hei-los: a Imprudência, fruto da Avareza; a Intemperança, fruto da Gula; a Injustiça,
fruto da Luxúria; a Covardia, fruto da Preguiça; o Ódio, fruto da Inveja; a Presunção, fruto da Cólera; a Ignorância, fruto do Orgulho. Portanto, o Homem é punido
por onde ele peca...

C - AS DUAS CRISTALIZAÇÕES ESPIRITUAIS:

Trataremos à parte as duas Virtudes Tenebrosas, que se opõem às duas Virtudes Sublimais, evocadas no capítulo precedente.

Como vimos, a Cegueira ou Ignorância se opõem à Inteligência, e à Prata dos Sábios, e o Erro à Sabedoria, ao Enxofre ou Ouro dos Sábios.



8 - A CEGUEIRA OU IGNORÂNCIA

Esta Potência Tenebrosa tira o discernimento dos Espíritos, coloca-nos na impossibilidade de perceber, dentre as espécies ou objetos materiais, aquele que se referem
aos pólos opostos do Bem e do Mal, da Luz e das Trevas.

Ela nos obtura o sentido oculto das palavras, nos vela irremediavelmente o esoterismo e o sentido superior dos textos, nos faz preferir a letra que mata ao espírito
que vivifica. Particularmente, ele nos impede de acessar ao sentido profundo das Escrituras cristãs, ou de qualquer Livro Santo, quando se trata de outra religião.

De fato, ela reina absoluta na Alma de todo materialista, de todo ateu, quando eles assim o são por um ato deliberado de sua vontade, e também por uma descida progressiva
em direção à Cegueira ou Ignorância, em conseqüência de um deixar-se levar consciente.

Ela nos vela as realidades espirituais dissimuladas sob as aparências, e se pode dizer que, por ela, as Verdades Eternas tornam-se inacessíveis ao Homem errantes.

9 - O ERRO

Esta Potência Tenebrosa nos leva à confusão interior, nos tira o sentido do Bem e do Mal, do Justo e do Injusto, do Belo e do Feio. Nestes domínios, toda discriminação
desaparece pouco a pouco. Ela se torna mais grave quando nos obscurece o sentido do verídico e do autêntico em matéria religiosa.
Pelo Erro, o Aspirante perdido não está mais em condições de perceber o que lhe é útil, e então a Alma caminha em direção às Trevas espirituais, dificilmente pode
vislumbrar um retorno por seus próprios meios.

Na impossibilidade de distinguir o que ele perdeu, a aptidão de apreciar claramente a situação, o Aspirante perdido tomará facilmente o Mal pelo Bem, e imaginará,
obstinadamente estar no caminho da Luz, mesmo estando no das Trevas. É na Alma do satanista ou do luciférico que esta Potência Tenebrosa brilha e irradia-se com
maior amplitude.





















SEGUNDA PARTE

Capítulo IV
O VITRIOLO FILOSÓFICO

"O primeiro agente magnético que serve para preparar o dissolvente (que alguns
têm chamado Alkaest) é denominado Leão Verde...É um fruto verde e amargo,
comparado ao fruto vermelho e maduro..."

(Fulcanelli: "O Mistério das Catedrais").

"Existem dois vitriolos, nos diz Tripled, ou ainda o vitriolo pode se apresentar
sob duas formas: o vitriolo puro e o vitriolo impuro ou grosseiro..."

(Tripled, "O Vitriolo Filosófico").

Efetivamente, segundo Paracelso, há a alma daquilo que ele chama o "Elemento predestinado", em todas as coisas. Este Elemento predestinado se compõe, segundo ele,
de sal, enxofre e mercúrio, e está como que imerso e disseminado em uma massa formada de fleuma e de terra morta (ou "condenada"), e isso nos dá então o corpo, tal
como nós o vemos. A terra morta é evidentemente a hylée dos Gnósticos.

Tem-se disso, um exemplo vivo nos vegetais. Que são os diversos alcalóides: quinino, aconitina, etc..., senão princípios, puros e ativos, destes vegetais, os quais,
uma vez privados desses princípios, ficam sem força e sem ação?

Ora, no caso da Alquimia material, admite-se que, suprimindo esta fleuma e esta terra morta, tem-se então o vitriolo puro; do contrário, ter-se-á um vitriolo impuro,
e a Obra será tanto mais difícil e longa quanto mais impuro seja o vitriolo, ou que o Elemento predestinado esteja em pequena quantidade.

Ora, o vitriolo puro é a base da Obra hermética, é a matéria prima da Arte, é o sal (e não o Selo) que, por uma série de operações, tomará a forma do Mercúrio ou
Fogo Secreto, e por uma íntima união do Volátil com o Fixo, nos dará o Enxofre, o Amante Filosófico, atraindo o Espírito Universal, o sal amoníaco de Artéphius...

Esta seqüência operatória foi resumida em uma frase lapidar (as palavras têm estranhas ressonâncias !) célebre, de Basílio Valentin:

"Visita interiora Terrae, Rectificando, invenies Ocultum Lapidem...", de onde, segundo um procedimento bem conhecido de cabalistas hebreus se retira a palavra VITRIOLO.
Em linguagem profana, esta frase, com ressonâncias misteriosas, significa: "Visita o Interior da Terra, e Encontrarás a Pedra Oculta..."

Desde então, começamos a entrever como deve se efetuar a primeira operação da Alquimia espiritual. Em sua pequena obra consagrada ao caminho esotérico do Absoluto,
Grillot de Givry nos disse o que segue:

"...Não é necessário primeiro ter Fé, para depois pedir. Peça antes, e a Fé inundará tua alma!
Mas eu tenho falado bastante para que saibais que deves, doravante, formar um corpo místico,
que substituirá, em todos os atos, a teu corpo visível para empregar utilmente tuas
forças imateriais. E assim, tu viverás no hiperpsíquico, e aí está o Caminho..."

(Gillot de Givry, "A Grande Obra", II).

E antes, ele nos havia aconselhado de forma precisa.

"Coordena pois, todos tuas ações, a fim de formar um conjunto harmônico perfeito. Esforça-te para adquirir a extrema lucidez de teu entendimento. Afasta-te de tudo
o que suja a vista, não escuta aquilo que polui o ouvido. Exalta em ti o sentimento da personalidade para em seguida, absorvê-la no selo do Absoluto..." (op.cit.
II).

Precisos e profundos estes pensamentos. O Aspirante se desembaraçará inicialmente de todas as doutrinas estranhas, quase sempre contraditórias, que encobriam seu
espírito até hoje. Que ele saiba bem que, para nós, homens do Ocidente, ligados a símbolos e formas de ensinamentos e transmissão tradicionais, é necessário antes
de tudo, purificar a nós mesmos e ao que estiver em torno de nós. Que nossos cinco sentidos exteriores vejam desenrolar o jogo de suas atividades condicionadas e
múltiplas, em um ambiente tradicionalmente ocidental, rosacruciano, hermético.

À Visão, não oferecemos nada além de leituras, gravuras e um quadro (oficina, laboratório e oratório), estritamente limitados a estas qualidades.

À Audição interior, textos com profunda ressonância nesses três modos. As palavras e as frases portam uma alma insuspeita. Um texto, profundamente pensado, lido
e relido por centenas de adeptos antes de nós, e que deve possuir uma série de palavras de poder.

Ao Olfato, criaremos um clima particular por meio de fumegações freqüentes seja em nossas orações ou em nossas meditações. Baniremos toda mistura evocadora de um
clima psíquico diferente, ou de doutrinas estrangeiras, e sobretudo aqueles ligados mais particularmente a determinadas operações de magia prática. Retornaremos
ao problema das fumegações mais adiante.

Ao Tato, oferecemos o contato de velhos livros herméticos, lidos, relidos, meditados e conservados com amor por aqueles que nos precederam no Caminho. Um livro antigo
é sempre superior a um livro novo. Todo objeto se carrega pouco a pouco no curso de sua vida inconsciente, a psicometria nos tem dado sobre isso, demonstrações definitivas.
E o leitor deixa nele sempre, na compreensão e na incompreensão inevitavelmente misturadas, no curso de suas páginas, a potência de seu esforço que tende ao objetivo.

Ao Paladar reservamos a arte de escolher, com sabedoria e bom gosto, os elementos gerais deste ambiente essencialmente ocidental, rosacruciano e hermetista. E o
que há de mais evocativo destas três correntes que a época medieval, esse quadro incomparável, onde se fundem as tradições célticas e os conhecimentos vindos da
capital do espírito que foi Alexandria do Egito?

É nesse quadro que criaremos o clima interior indispensável, onde desaparecerão pouco a pouco as crenças, as leituras, os ensinamentos disparatados, que até então
derrotavam nosso espírito e dispersavam nossos esforços. Tomaremos também o cuidado de não utilizar orações, demasiadamente marcadas de um credo exotérico qualquer.
Existem em nossa Tradição, preces particularmente expressivas do Objetivo em direção ao qual marchamos. Desprezemos então essas fórmulas em ladainhas, onde não se
diz nada de claro e de transparente. E não nos misturemos, por ritos e usos comuns, às massas que, embora caminhando para um Objetivo idêntico, não o fazem pela
mesma via que nós. A força destas Egrégoras é tal, que se alguém, fora de Roma, celebrasse a missa segundo uma liturgia pessoal, acabaria, cedo ou tarde retornando
à liturgia original. E temos numerosos exemplos de pessoas que, por terem curiosidade sobre certas correntes psíquicas ou espirituais, são finalmente pegas por elas
e aí se fundem definitivamente: islã, budismo, bramanismo, etc...

Enfim, não basta limpar nossa morada material na qual vão se desenrolar nossos esforços. É necessário limpar também nossa morada espiritual! E, para finalizar, relembremos
o conselho de Grillot de Givry já citado, e meditemos sobre ele seguidamente:

"Coordena pois, todas as tuas ações e impressões, a fim de formar um conjunto
harmônico e perfeito. Esforça-te para adquirir a extrema lucidez de teu entendimento.
Afasta-te de tudo o que suja a vista. Não escutse aquilo que polui o ouvido.
Exalta em ti o sentimento da personalidade, para absorvê-la no selo do absoluto".

(Grillot de Givry, "A Grande Obra", II).

Da mesma forma que o Céu e os influxos dos Astros lançarão seus raios regularmente, segundo um ciclo bem determinado, sobre a evolução da Obra hermética, também
no seu "céu interior" o Aspirante verá se desenrolar uma sucessão de "estações" simbólicas.

À "estação" mística de cada Virtude Cardeal corresponderá uma estação terrestre, um Elemento, um Temperamento, um modo ascético, e até mesmo um aspecto tetramórfico
do divino, com o Arcanjo correspondente, segundo a Tabela:

Apóstolo
Virtude
Cardeais
Dons do
Espírito
Santo
Estações
Ascese
Elementos
Arcanjo
Lucas
Prudência
Conselho
Outono
Silêncio
Terra
Uriel
Mateus
Temperança
Temor
Inverno
Solidão
Água
Gabriel
João
Justiça
Piedade
Primavera
Jejum
Ar
Rafael
Marcos
Força
Coragem
Verão
Vigília
Fogo
Miguel

Assim, à Prudência, corresponde ao Silêncio, a Terra;
à Temperança, corresponde à Solidão, a Água;
à Justiça, corresponde à Fome, o Ar;
à Força, corresponde à Vigília, o Fogo.

Encontramos estas quatro mortificações igualmente no Cristianismo, no Budismo, Islamismo, e particularmente no simbolismo da Esfinge, com a tetralogia bem conhecida
dos Ocultistas:

SABER QUERER OUSAR CALAR
(Água) (Ar) (Fogo) (Terra)

a qual comporta os quatro Elementos dispostos exatamente como na base da Tetractys hermética, na ordem clássica: Água-Ar-Fogo-Terra.


A - O SILÊNCIO

O Silêncio é de dois tipos:

1 - Silêncio da língua: Consistindo na abstenção de falar senão "Para Deus", ou "com Deus", ou "Um outro como Deus", estas condições são solidárias. Entendemos
por "um outro como Deus", o contato com o Mestre da assembléia celeste, sobre o qual retornaremos;

2 - Silêncio do Coração: Consistindo na rejeição de qualquer outro pensamento relativo a Seres ou Coisas criadas.

O Silêncio, somente, procura e conduz ao Conhecimento de Deus. "Pensai em Deus mais seguidamente que tu respiras.", nos disse Epictète. É a primeira via do Aspirante.
O Silêncio eqüivale à Terra e à Prudência.

B - A SOLIDÃO

A Solidão é o meio de assegurar o silêncio da língua. Ela consiste no fato de:

1 - Evitar misturar-se materialmente a outros, à turba profana, a preocupações fúteis. Por isso o islã, que, em sua heresia Sufi, ensina a necessidade das quatro
vias, separa os homens das mulheres na vida normal, assim como no manaquismo cristão de antigamente. Eis aí a primeira via do iniciado;

2 - Evitar interiormente o contato com Seres e Coisas deste Mundo, esta é a primeira via do Adepto.

Ela objetiva a três condições:

A - evitar o mal proveniente dos Homens;
B - evitar o mal que podemos fazer ao Próximo;
C - ter a companhia permanente do Mestre da Assembléia Celeste.

A Solidão, somente, procura o Conhecimento do Mundo. Corresponde à Água e à Temperança

C - A FOME OU O JEJUM

A Fome, ou o Jejum, consiste na redução do alimento, e isto leva à diminuição natural das necessidades deste gênero. Ela deve ser assegurada através do espírito
da pobreza, da modéstia, da docilidade, da calma, da pureza.

Que o Aspirante tome como exemplo o jejum de todos os grandes profetas e missionários da Escritura, e particularmente do jejum de quarenta dias, nas terríveis solidões
do deserto de Judá, no fim do qual, ao Cristo apareceu o Príncipe das Trevas e lhe testou através de sua tripla tentação (Mateus, Evangelho, IV), ou ainda o insucesso
dos Apóstolos na cura de um endemoninhado, e de seu recurso a Cristo, o qual lhes explicou que certos tipos de Demônios somente são expulsos através de jejum.

A Fome, somente, procura em efeito o Conhecimento de Satã. Ela eqüivale ao Ar, do qual ele é o Príncipe, e à Justiça. (Paul, "Epítre aux èphésiens", II, 2).

D - A VIGÍLIA

A Vigília é fruto do jejum, pois a fome expulsa o sono inútil, na maioria das vezes entorpecido por uma alimentação excessiva. Ora, os contatos entre o Homem e a
Assembléia Celestes não podem se realizar com êxito a não ser durante o Sono, quando há um tipo de desdobramento da Alma fora do Corpo. O sono suscetível de liberar
a Alma é aquele que tem lugar durante um importante jejum. Mas nossa Vigília tem outros objetivos. Há dois tipos de Vigília:

A - A Vigília do Coração, a qual busca instintivamente a contemplação;

B - A vigília do Olho (visão), que realiza e objetiva aquela no Coração (Templo interior e Ovo Filosófico), onde a fixa.

A Vigília somente procura o Conhecimento da Alma, eqüivale ao Fogo e à Fé . À vigília tem por objetivo a Meditação. Ela é uma espécie de processo de reflexão em
diversos temas particularmente importantes para o gnóstico: o problema do Mal, estudo dos mistérios divinos, das relações entre Deus e o Homem, etc... Ela tem por
elementos de base a razão, a consideração de elementos do problema e de seus argumentos. Ela repousa, necessariamente, sobre um perfeito conhecimento de textos sagrados
tradicionais, sobre uma comparação justa e razoável dos argumentos analisados. Ela constitui a meditação discursiva, e deve sempre ser precedida de uma Oração que
tem por objetivo entrar em contato com planos superiores. Esta Oração constitui a meditação purgativa.



Figura 4 - As Nove Virtudes: A progressão espiritual segue o mesmo processo que na via alquími-ca da figura 1.


Capítulo V
OS ELEMENTOS DA GRANDE OBRA

A - A Terra dos Filósofos: A Prudência

A Prudência é um princípio de ação moral que aperfeiçoa a razão prática do Homem, a fim de que em cada uma de suas ações ele disponha e ordene as coisas como lhe
convém, ordenando a si mesmo (ou a todos cuja ação lhe seja subordinada e dependente), o que convém fazer a cada instante para a realização perfeita de cada Virtude.
Ela é constituída, em suas aplicações correntes, de diversos aspectos, a saber:

A - a lembrança de coisas passadas, ou memória;
B - a visão clara de princípios de ação, gerais ou particulares;
C - a reverência das coisas determinadas pêlos sábios que nos precederam;
D - a sagacidade para descobrir o que seria impossível de perguntar subitamente aos outros;
E - o sadio exercício da razão, aplicado a cada ação;
F - a previdência, ou a determinação desejada no momento da ação, quanto à substância deste ato;
G - a circunspecção com respeito a tudo o que envolve o referido ato;
H - a precaução contra tudo o que poderia obstaculizar ou comprometer o resultado.

A Prudência é, apropriadamente falando, a virtude de comando:

.- comando de si próprio, ou prudência individual;
.- comando na família, ou prudência familiar;
.- comando na Sociedade, ou prudência real.

Um Dom do Espírito Santo corresponde à Virtude da Prudência e é o Dom de Conselho.

Compreende-se, sob este nome, uma disposição superior e transcendente que aperfeiçoa a razão prática do Homem. Esta disposição particular o deixa então pronto e
dócil para receber o Espírito Santo (sem a procura particular), e tudo o que é necessário à iluminação final. Essa mesma disposição vem em auxílio da razão humana,
cada vez que ela é necessária. Pois, mesmo provida das virtudes, adquiridas ou infundidas desde o nascimento, a razão humana está sempre sujeita a erros ou a surpresas
(na infinita complexidade das circunstâncias que podem interessar sua ação), seja por ela mesma, seja por outrem. E aí reside, na maioria das vezes, o conjunto das
armadilhas que a virtude da Prudência permite evitar! Como essencial ao desenvolvimento futuro, ela é a primeira a se adquirir, e antes de tudo o Dom de Conselho.

A Prudência e o Dom de Conselho se obtém pela prática do Silêncio, que corresponde à Terra Filosófica.

B - A Água dos Filósofos: A Temperança

A Temperança é uma virtude que mantém, em todas as coisas, a parte afetiva sensível ao comando da razão, a fim de que ela não se deixe levar pêlos prazeres que interessam
mais particularmente aos cinco sentidos exteriores. Ela se manifesta em diversos aspectos, a saber:

A - a continência, consistindo na escolha de não seguir os movimentos violentos da paixão;
B - a clemência, consistindo em moderar ou regrar, segundo a virtude da Caridade, um modo de
corrigir o mal cometido por outros, e que a virtude da Justiça exige ver judiciosamente corrigido
e expiado, coisas inelutavelmente necessárias;
C - a mansidão, consistindo em descartar o movimento interior de paixão pela justiça, o qual não
seria nada além da Cólera;
D - a modéstia, consistindo em refrear, moderar ou regrar a parte afetiva em coisas menos difíceis
que as precedentes (ou seja, o desejo de sua própria excelência, o desejo de conhecer o que não
nos é imediatamente útil ou que é inútil para nossos fins, as ações e os movimentos exteriores do
corpo carnal e, enfim, a ordem exterior), quanto à maneira de se comportar com relação à
Virtude da Temperança. E este é o Dom do Temor.

O Dom do Temor consiste no fato de se ter presente, ante a Revelação Tradicional, uma imagem mais ou menos exata de Deus, com um santo respeito, em razão da excelência
ou da bondade da Majestade Divina, da qual se tema afastar-se, por efeito de nossos erros e de nossas faltas. Consiste, também, no fato de considerar, relativamente
à excelência dos fins últimos que nos propõe a Revelação Tradicional, todas as coisas baixas vindas dos prazeres dos sentidos, como perfeitamente inexistentes ou
perigosas.

A Temperança e o Dom do Temor se obtém pela prática da Solidão, que corresponde à Água Filosófica.

C - O Ar dos Filósofos: A Justiça

A Justiça é uma virtude que tem por objetivo fazer reinar entre os Seres uma harmonia de relações, embaçada no respeito dos Seres entre si, e daquilo que constitui
em diversos graus seus próprios bens, morais ou físicos, espirituais ou materiais.

Ela tem por objetivo principal regular nosso deveres em relação aos outros Seres. Como tal, ela se distingue da Caridade, que é de um espírito diferente e menos
submisso a normas limitadoras. Ela faz reinar a paz e a ordem, tanto na vida individual, quanto na vida coletiva. Aplica-se tanto aos bens corporais, quanto à dignidade
espiritual e reputação do próximo.

Um Dom do Espírito Santo corresponde à Virtude da Justiça, e é o Dom da Piedade.

A Piedade consiste numa disposição habitual da vontade, que faz com que o Homem esteja apto a receber a ação direta e pessoal do Espírito Santo, levando-o a tratar
Deus, Causa Primeira, considerado nos mais longínquos mistérios de sua vida divina, como um "pai" ou um "chefe" terna e filialmente reverenciado, servido e obedecido.
Igualmente, a tratar todos os homens da mesma forma com que trata outras Criaturas racionais (Anjos, Espíritos, Demônios), em suas relações exteriores com elas,
de acordo com o Bem Divino e Superior que as une em diversos graus, à Causa Primeira como ao pai da grande família divina.

O Dom da Piedade é seguramente aquele que coloca o selo mais perfeito nas relações exteriores que os homens podem ou devem ter, seja entre eles, seja com Deus. É
o coroamento da virtude da Justiça e de todos os seus anexos.

A Justiça e o Dom da Piedade se obtêm pela prática do Jejum, que corresponde ao Ar Filosófico.

D - O Fogo dos Filósofos: A Força

A Força é uma virtude que tem por objetivo a perfeição, de ordem moral, da parte afetiva sensível no Homem. Ela consiste em lutar contra os maiores temores, e, também,
moderar os movimentos de audácia mais atrevidos, a fim de que o Homem, nestas ocasiões, não se desvie jamais de seu dever. Ela se manifesta em diversos aspectos,
que são:

A - a magnanimidade, consistindo em fortalecer a esperança, no sentido das obras grandes e belas,
que desejaria concluir;
B - a magnificência, consistindo em uma disposição da parte afetiva, que fortalece ou regra o
mecanismo da esperança, em relação ao que é árduo e custoso de concluir;
C - a paciência, que é apropriada para suportar com estoicismo, em vista da Reintegração final, todas
as tristezas que possam nos vir na vida presente, e também, suportar mais particularmente a
intervenção hostil dos outros homens em suas relações conosco, ou ocasionalmente, aquelas do
Espírito do Mal;
D - a perseverança, que consiste em combater o medo da duração de um esforço em direção ao
Bem, ou seu fracasso.

Um Dom do Espírito Santo corresponde à virtude da Força é o Dom de mesmo nome, também denominado Coragem.

Mas ainda que a virtude deste nome não lembre senão os obstáculos e os perigos que estão ao alcance do Homem sobrepujar ou a eles sucumbir, o dom correspondente
do Espírito Santo se endereça aos perigos e às maldades, cujo sobrepujar não está em poder apenas do Homem.

Assim, o Dom da Força (ou da Coragem) permite-lhe suplantar a dor que acompanha a separação, própria da Morte, de todos os bens e alegrias da vida presente, sem
dar, por ele mesmo, o único bem superior que as compensaria e preencheria sua ausência ad infinitum, saber da Reintegração e da Vida eterna que dela decorre.

Esta substituição efetiva, fácil e desejada, da Reintegração em lugar de todos os males e misérias da vida terrestre, apesar das dificuldades e dos perigos que possam
se por no caminho do Homem que marcha em direção ao Objetivo Supremo (aí compreendida a própria Morte, que resume a todos), é obra exclusiva do Espírito Santo, de
sua ação própria. E segundo o Dom da Força (ou da Coragem), que o Homem é, então, amadurecido pelo Espírito Santo. Se bem que o objetivo essencial desse dom seja,
de fato, a vitória do Homem sobre a Morte e sobre todos os terrores que ela inspira.

A Força e o dom deste nome (ou Coragem), se obtêm pela prática da Vigília, que corresponde ao Fogo Filosófico.

E - O Sal Princípio: A Caridade

A Caridade é uma virtude que nos eleva a uma vida de comunicações, primeiramente com as Potências Celestes intermediárias, depois, com o próprio Plano Divino, segundo
sejamos merecedores e dignos de tal comunicação. A Caridade considerada sob o aspecto de contato, de comunicação mística, supõe em nós duas coisas:

A - Uma participação de Natureza Divina que, divinizando nossa própria natureza, nos elevará, a despeito de toda a ordem natural, seja humana, seja angélica (acima
do mundo inicial de manifestação da Criação), até a ordem que é própria de Deus, fazendo de nós deuses (deuses secundários, evidentemente), e nos introduzindo em
sua intimidade. Donde a frase do Salmo: "Deus se levanta na Assembléia Celeste, em meio aos deuses ele julga..." (SL. 82), e aquela do Evangelho: Eu vos digo: vós
sois deuses..." (João, X, 34);

B - Princípios de ação, proporcionando por este estado divino, que nos põe em condições de agir como verdadeiros agentes secundários, filhos de Deus, como o próprio
Deus age, conhecendo como ele conhece, amando como ele ama, alegrando-se como ele se alegra.

Estas duas realizações místicas estão intimamente ligadas à presença, na Alma do Adepto, da Caridade absoluta.

A Caridade absoluta decorre de um ato de amor total, pelo qual o homem deseja de Deus esse bem infinito que a Fé lhe revelou, e que ele deseja, para si e para os
outros Homens, Bem este que é inseparável de Deus.

A Caridade comporta certos aspectos secundários:

1 - A Misericórdia, que faz com que se compadeça com a miséria dos Seres, em todos os aspectos ontológicos da vida, e que se sinta esta miséria e esse sofrimento
a seus mesmos, a ponto de sofrê-los, real e intimamente;

2 - A Beneficência, que faz com que se estejamos, imediatamente e sempre, prontos a impedir o mal e a facilitar o bem, tanto no domínio espiritual quanto no domínio
material. O Homem, ser dotado de uma consciência que não participa em seus próprios compromissos, não saberia em efeito nem ignorar o mal e o bem, mesmo conhecendo
os dois, pretende situar-se "além" de um e de outro, ou seja, iludir suas próprias responsabilidades.

Um Dom do Espírito Santo corresponde à virtude da Caridade e é o Dom da Sabedoria que não deve ser confundido com a virtude sublimal de mesmo nome.

O Dom da Sabedoria (que não é, pois, A Sabedoria) faz com que o Homem, sob a ação oculta do Espírito Santo, julgue todas as coisas por sua inteligência, tomando
como norma ou como regra própria de seus julgamentos, a mais alta e mais sublime de todas as Causas que é a própria Sabedoria Divina, tal qual ela tem se dignado
a manifestar-se a nós pela Fé, o Enxofre dos Filósofos.

A Caridade corresponde, na vida iniciática, ao voto de Pobreza que é o primeiro postulado, que faz com que desprezemos os bens, as honras e as alegrias deste Mundo
inferior. É pelo voto de Pobreza que obtemos igualmente o Dom da Sabedoria.

F - O Mercúrio Princípio: A Esperança

A Esperança é uma virtude que faz com que nossa vontade, apoiada sobre a ação divina, nos conduza para Verdades Eternas, que a Fé nos tem revelado, como aquilo que
pode e deve ser um dia nossa iluminação total.

Esta virtude é absolutamente inacessível sem a Fé que ela pressupõe necessariamente, pois é somente a Fé que dá à Esperança o objetivo e o motivo sobre a qual ela
se apoia.

Um Dom do Espírito Santo corresponde à virtude da Esperança e é o Dom da Ciência.

A Ciência sob a ação do Espírito Santo, deve poder julgar com uma certeza absoluta e uma verdade infalível (não usando aqui o procedimento natural da razão, mas
instintivamente e de forma absolutamente intuitiva), o verdadeiro caráter das coisas criadas em suas relações com aquelas da Esperança segundo devam elas ser admitidas
e professadas, ou devam servir de objetivo à nossa conduta, sabendo assim imediatamente o que, no Mundo material, está em harmonia com as Verdades Eternas ou, ao
contrário, em oposição.

A Esperança corresponde, na via iniciática, ao voto de Castidade (que não é, segundo o casamento cristão, a continência sexual). O voto de Castidade que é seu primeiro
postulado, permite ao Homem libertar-se pouco a pouco da escravidão dos sentidos, assim como ao casal humano ordinário, de trabalhar, de maneira natural e legítima,
na perpetuação das formas da Espécie, sem depravar-se mutuamente.

É também pelo voto de Castidade que obtemos o Dom da Ciência.

G - O Enxofre Princípio: A Fé

A Fé é uma virtude que faz com que nossa inteligência se una, muito firmemente e sem receio de enganar-se mesmo que ela não perceba de forma inteligível, a tudo
o que lhe chega pelo Canal da Revelação Tradicional, notadamente sobre Deus, sobre a sua vontade de comunicar ao homem a Reintegração como objetivo de seu derradeiro
fim, sobre a existência de um Mundo invisível, do qual este aqui não é senão o reflexo imperfeito e invertido.

Um Dom do Espírito Santo correspondente à Fé é o Dom da Inteligência que não devemos confundir com uma das duas virtudes Sublimais deste nome.

O Dom da Inteligência (que não é a inteligência) ajuda a virtude da Fé no conhecimento da verdade divina, fazendo com que o Espírito do Homem, sob a ação do Espírito
Santo, penetre o sentido dos termos que comportam as afirmações da Revelação Tradicional, de todas as proposições que possam levá-lo a compreendê-los de forma plena,
ou ao menos (no caso dos mistérios profundos), poder aproximá-los, mas conservando intacta toda sua importância.

A Fé corresponde, na via iniciática, ao voto de Obediência que é seu primeiro postulado, e permite obter o Dom da Inteligência.

H - A Prata dos Sábios: A Inteligência

A Inteligência é o atributo daquilo que corresponde à visão, à intuição, à penetração e à informação. Como tal, a Inteligência é portanto o conhecimento (gnose)
das Coisas Divinas Absolutas a Ciência do Bem e do Mal.

É ela que nos dá o discernimento dos Espíritos, a possibilidade de perceber, sob as espécies ou obje-tos materiais, aquilo que os relaciona aos pólos opostos do
Bem e do Mal, da Luz e das Trevas (9).

Ela nos faz penetrar o sentido oculto das palavras, o esoterismo dos textos, sua significação superior, e mais particularmente o sentido profundo das escrituras
cristãs, ou dos Livros Santos de outras religiões.

Segundo Santo Tomás de Aquino , discípulo de Alberto o Grande, a Inteligência nos revela "o simbolismo superior dos Signos Sensíveis: ritos, símbolos, matérias sacramentais,
etc.".

Ela nos faz perceber, sob as aparências as realidades espirituais e nos reflexos imperfeitos deste mundo, as realidades celestes deformadas ou veladas. Assim, no
carpinteiro de Nazaré, o Logos Criador; depois, no Cristo deixando os Apóstolos na Ascensão, sua Glória futura na época da Parúsia, no Fim dos Tempos.

A Inteligência nos mostra os efeitos na causa, por exemplo, no sangue de Cristo, derramado no Calvário, a purificação de nossa Alma e nossa reconciliação, para empregar
um termo bem conhecido de Martinez de Pasqually. E no flanco perfurado do Cristo, semelhante ao Pelicano hermético da Rosa-Cruz, ela nos revela a fonte invisível
e única dos Sacramentos essenciais.


Figura 5 - Os Nove Dons do Espírito Santo: Os Dons do Espírito Santo seguem aqui a mesma progressão, em seu desenvolvimento, que a progressão alquímica da figura
1.

Os dois elementos superiores deixados em branco na figura (Mercúrio dos Sábios e Enxofre dos Sábios) são, provavelmente, o Dom da Integridade e o Dom da Graça. O
Dom da Integridade comporta três privilégios: a ciência infusa, o domínio das paixões, a imortalidade do corpo. O Dom da Graça comporta a união com Deus, sua descida
em nós.

Esta Virtude nos mostra as Realidades Eternas atingidas pela Fé sob uma clareza tal que, sem no entanto compreendê-las sempre de forma total, ela nos fortalece em
nossa certeza, não mais intuitivamente como pela Fé, mas por um tipo de visão intuitiva e subconsciente.

Em um grau superior, ela nos dá uma visão parcial de Deus, não revelando-a totalmente, o que é impossível, mas nos fazendo compreender com uma certeza absoluta o
que Ele não poderia ser. A Inteligência nos revela então, o que Denys o Aéropagita denominava a "treva divina".

I - O Ouro dos Sábios: A Sabedoria

A Sabedoria consiste na escolha do melhor entre as coisas acessíveis à Inteligência. A Sabedoria pressupõe a Inteligência, e opera nesta apenas por eliminação. Ela
é a submissão espontânea, inteligente e compreensiva, a um bem que ela percebe como dominante, como tal, é uma discriminação entre o Bem e o Mal, a Ciência desses
dois opostos.

Se a Inteligência é o Conhecimento total, a Sabedoria é, portanto, a utilização que dele se faz. È, de qualquer forma, um aspecto superior, por ser resultado da
ação da Fé e da Caridade, do Mercúrio Princípio e do Sal Princípio.

A Sabedoria nos faz julgar todas as coisas segundo a mais alta das Causas, da qual todas as outras dependem, e ela mesma não depende de nenhuma. É, então, por tal
virtude que o Adepto pode atingir o mais alto grau de conhecimento acessível ao ser humano neste mundo, visto que esse conhecimento não reside apenas em um fenômeno
de percepção geral (como na Inteligência, Ciência do Bem e do Mal), mas em um fenômeno de percepção particular, que é, de fato, a Ciência apenas do Bem, de seu conhecimento
absoluto.

E igualmente, é a Caridade que está na base do nascimento da Sabedoria em nós. Em efeito, a Caridade absoluta, nós já vimos, surge de um ato de amor total, pelo
qual o Homem deseja de Deus, esse Bem infinito que a Fé lhe fez conhecer, e que ele deseja para si mesmo e para todos os outros Seres, Bem esse, inseparável de Deus.

A partir de então, não buscando senão esse Bem, tendo-o compreendido e definido, ele não poderá mais confundi-lo com seu oposto, e, em tudo o que possa arrastar
sua inteligência das coisas, de sua visão de todas as "possibilidades" em Deus, é este ato de amor total que lhe servirá de pedra de toque. A Sabedoria será o filtro
de ação da sua inteligência.



















Capítulo VI
O FOGO DOS FILÓSOFOS: A PRECE

"Este Fogo...é um espírito ígneo, introduzido em um objeto de mesma natureza que a Pedra,
e sendo mediocremente excitado pelo fogo exterior, calcina-se, dissolve-se, sublima-se,
e se reduz à água seca, tal como diz o Cosmopolita..."

(Limojon de Saint-Didier. "O Triunfo Hermético").

O sentido do divino se expressa sobretudo pela emotividade religiosa, e por meio dos ritos, cerimônias e sacrifícios. Ele toma sua expressão mais alta na Prece,
que acompanha este conjunto necessariamente. "Os homens santos de Deus, nos diz a tradição cabalística, quando desejam caminhar sobre os Trinta e dois Caminhos da
Sabedoria, começam por meditar sobre os versículos sagrados, e se preparam convenientemente por meio de santas Orações..."(10 ).

(R.P.Kircher, "Oedipus Aegyptiacus").

Mas a Prece, com o sentido do Sagrado que ela exprime, é com toda a evidência um fenômeno espiritual. E, como nota judiciosamente o doutor Carrel em seu estudo,
o Mundo Espiritual se acha fora do alcance de nossas técnicas experimentais modernas. Como então adquirir um conhecimento positivo da Prece? O domínio científico
compreende, felizmente, a totalidade do observável. E este domínio pode, por intermédio da psicologia, estender-se até as manifestações do Espiritual. È então pela
observação sistemática do Homem orando que nós aprendemos em que consiste o fenômeno da Oração, a técnica de sua produção e seus efeitos (11 ).

De fato, a Prece representa o esforço do Homem para se comunicar com toda a Entidade incorpórea ou metafísica: ancestrais, guias, santos, arquétipos, deuses, etc...,
ou com a Causa Primeira, ápice da pirâmide precedente. Longe de consistir em uma vã e monótona recitação de fórmulas, a verdadeira Prece representa um estado místico
para o homem, um estado onde a consciência dele aborda o Absoluto. Este estado não é de natureza intelectual. Tão inacessível quanto incompreensível ao filósofo
racionalista e ao sábio ordinário. Para orar, faz-se necessário o esforço de voltar-se para a Divindade. "Pense em Deus mais seguidamente que tu respiras...", nos
diz Epictète. E curtas, mas freqüentes invocações mentais, podem manter o homem em presença de Deus.

" A Prece verdadeira é filha do Amor. Ela é o sal da Ciência; faz germinar a Ciência no
coração do homem, como em seu terreno natural. Ela transforma todos os infortúnios em
delícias; porque é filha do Amor, e é preciso amar para orar, e ser sublime e virtuoso para amar..."

"Mas esta Prece tão eficaz, pode ela jamais advir de nós? Não é necessário que ela nos seja
sugerida? Devemos somente escutá-la com atenção e repeti-la com exatidão...Quem nos
dera ser como uma criança, a espera da voz que nos fala?...".

(L. C. de Saint-Martin: "O Homem de Desejo").

Veremos mais tarde o que se deve entender aqui, por essa voz interior que fala em nós, e que vincula-se ao Fogo "introduzido em um objeto", do qual fala Limojon
de Saint-Didier no epígrafe citado no início deste capítulo.

A Prece tem ainda uma outra função, é o seu papel construtivo, desempenhado em "regiões espirituais" que permanecem desconhecidas ou inexploradas: "Or et Labor...",
diz a velha divisa hermética, "Ore e trabalhe...". E o adágio popular acrescenta: "Trabalhar é orar...". Concluímos que, talvez pela mesma ordem de idéias, orar
eqüivale a trabalhar, ou seja, obrar. Pois nos diz São Paulo: "a Fé é a substância das coisas esperadas...".

Tudo depende do que se entende por esse termo. Talvez o homem que ora, o orador, construa em um outro mundo esta forma gloriosa, este "corpo de luz" do qual falavam
os Maniqueus, e que é a sua Jerusalém Celeste, verdadeira "Cidade Celeste", nascida de seu "templo interior" (que lhe serviu de berço e protótipo inicial), em troca
dos influxos celestes originais, por uma espécie de reversibilidade, de operação da obra terrestre no plano celeste.

A partir daí, podemos admitir que o homem que não ora, não tece sua própria imortalidade; ele se priva assim de um precioso tesouro. Neste caso, cada um de nós encontrará,
depois da morte, aquilo que em sua vida carnal, tiver esperado aí encontrar. O ateu vai em direção ao nada, e aquele que crê, em direção a uma outra vida.

Psicologicamente, o senso do divino parece ser uma impulsão vinda do mais profundo de nossa natureza, uma atividade fundamental, e que se constata tanto no homem
primitivo quanto no civilizado. E suas variações estão ligadas a diversas outras atividades fundamentais: senso moral, senso estético, vontade pessoal, etc...

O inverso é igualmente verdadeiro. E como bem observa A. Carrel, a história mostra que a perda do sentido moral e do sentido sagrado, na maioria dos elementos constitutivos
de uma nação, conduz à sua decadência e rápida submissão aos povos vizinhos. Grécia e Roma são tristes exemplos disto. Devemos notar igualmente que o senso do divino
levado ao estado de intolerância e fanatismo, conduzem também a tristes resultados.

Por outro lado, o homem é constituído de tecidos e líquidos orgânicos, permeados por um elemento imponderável chamado "consciência". Ora, o corpo vivente, soma dos
tecidos e líquidos orgânicos, tem sua existência própria, ligada a uma relação regular com o universo contingente. Não é então permitido supor que a consciência,
se ela reside nos órgãos materiais, prolonga-se fora do continuam físico? Nos é proibido acreditar que estamos mergulhados em um "Universo Espiritual" (pelo fato
de nossa consciência, acessar a dois mundos diferentes), da mesma forma que nosso corpo carnal, que vive no universo material, donde ele tira os elementos para sua
conservação: Oxigênio, Azoto, Hidrogênio, Carbono, e isto para o jogo das funções nutritivas e respiratórias?

Neste universo espiritual, onde nossa consciência extrai os princípios de sua própria conservação e saúde moral, é proibido ver o Ser imanente, a Causa Primeira
que as religiões ordinárias chamam Deus? Em caso afirmativo, a Prece poderia, desde então, ser considerada como o agente das relações naturais entre nossa consciência
e seu meio próprio, da mesma forma que a respiração e a nutrição para o corpo físico.

Assim, é tão vergonhoso orar quanto respirar, meditar, comer ou beber! Orar é portanto, equivalente a uma atividade biológica dependente de nossa estrutura, e seria
uma função natural e normal de nosso espírito. Negligenciá-la é atrofiar nosso próprio "princípio", nossa alma em uma palavra.

E o grande psicanalista Jung nos assegura que, "a maioria das neuroses são causadas pelo fato de que muitas pessoas querem fechar os olhos às suas próprias aspirações
religiosas, por força de uma paixão infantil pelas luzes da razão...".

Também é conveniente definir que neste campo, a recitação de fórmulas vagas e maçantes, sem a participação verdadeira do espírito, onde apenas os lábios têm uma
atividade real, não é orar. É necessário também que o "Homem interior", aquele que Louis-Claude de Saint-Martin, à semelhança de seu mestre, Martinez de Pasqually,
denominava de "Homem de Desejo", esteja atento e dinamize o que os lábios e o cérebro emitem conjuntamente.

Aliado à intuição, ao senso moral, ao senso estético e a inteligência, o "senso do Divino" dá à personalidade humana seu pleno desenvolvimento. Ora, é duvidoso que
o sucesso na vida exija o desenvolvimento máximo e integral de cada uma de nossas atividades fisiológicas, intelectuais, afetivas e espirituais. O espírito é, ao
mesmo tempo, razão e sentimento, e nós devemos amar a beleza e o conhecimento, tanto quanto a beleza moral. Nisto, Platão tem razão quando declara que, para merecer
o nome de Homem, devemos "ter feito um filho, plantado uma árvore, escrito um livro...".

A Prece é pois, o complemento e a ferramenta essencial de toda esta transmutação do Homem. Ela é o Fogo e o Cadinho é o coração onde as austeridades e a ascese são
os elementos combustíveis das impurezas iniciais.

A Obra é longa pela via úmida (12 ). Ela dura, segundo a palavra da Escritura: "Até que o dia apareça e que a Estrela da manhã se eleve em nossos corações..." (Pedro,
II Epistola 1, 19).






























Capítulo VII
O ELIXIR DA LONGA VIDA

"E Melquisedeck, rei de Salém, trouxe pão e vinho, pois ele era sacrificador do Deus Altíssimo..."

(Gêneses: XIV, 18).

Esta frase, inocente em aparência, tem no entanto, no quadro da Tradição judaico-cristã, uma profundidade insuspeitável. Pois, tão logo Melquisedeck transmite a
Abraão o rito sacrificial do Pão e do Vinho, do Trigo e da Videira, ele adquire poderes de sacrificador do Deus Altíssimo, e pelo fato da Gnose já existir, é que
alguns sabiam da existência de um outro Deus além dos deuses comuns. Ainda, esta iniciação tem um Rito secreto e novo, que Abraão recebeu de Melquisedeck, e o transmitiu
a toda sua posteridade, a toda futura Israel. Em efeito, no seio do Templo de Salomão, ao lado de sacrifícios sangrentos de animais, encontramos a oferenda de pães
ázimos e do vinho. Isto se perpetuou com o rito do Seder, que comportava a presença de Matzah ou pão ázimo, e o rito do Kiddouch benção da taça de vinho. Assim que
Cristo fez a base de todo ritual cristão, ele se denominou "sacrificador segundo a Ordem de Melquisedeck". Assim, seus Apóstolos e os Discípulos receberam dele uma
"ordenação" que remonta à época de Abraão, a qual segundo a história, situa-se por volta da décima Segunda dinastia egípcia, dezenove séculos antes de nossa era,
durante o período do Médio Império. Atualmente este rito misterioso repousa sobre elementos e tradições ocultas que tiveram origem há mais de quatro mil anos.

Tal antigüidade retira, evidentemente, toda a sustentação das ironias de mal gosto que os racionalistas não deixam jamais de associar, na tentativa de negar o valor
deste Rito.
Veremos então este rito um pouco mais de perto.

Existe um axioma hermético bem conhecido, é aquele que, na célebre "Tábua de Esmeralda", atribuída a Hermes Trismegistos, afirma que o que está encima é igual ao
que está em baixo.

Desde então, podemos admitir a prior que, da mesma forma que uma alimentação material é suscetível de sustentar nossa vida material, se ela é saudável, ou ao contrário,
destruí-la, se for um veneno, pode existir uma alimentação espiritual e psíquica que sustente nossa vida espiritual e psíquica ou, ao contrário, que a destrua se
for um veneno espiritual.

Constatamos de início que, em todos os tempos, as pessoas tentaram estabelecer uma comunhão (ou comum união) com Entidades sobre as quais se admitiam a existência
e a presença, e que os ritos desta comunhão estão sempre revestidos de uma espécie de assimilação por via oral, nasal, sangüínea, visual (contemplação), etc... e
por vezes, de uma assimilação material com fins espirituais.

"As Nações de Canaã, ao oferecerem sacrifícios aos Mortos sobre os túmulos,
comungam em realidade com os Seres Maus e, por isso, suas Obras são más..."

("O Livro do Jubileo", XXII, 16, 17).

"Eu sou a oferenda, o sacrifício, a manteiga purificada, a erva do culto, o Fogo..."

(Bahgavad Gita IX, 16).

É de nossos dias ainda, o caso do Feiticeiro que transcrevia Signos secretos sobre uma pele, que ele lavava em seguida em uma água encantada, onde esses Signos se
apagavam e se dissolviam com a tinta, e esta água era bebida pelo doente ou pelo enfeitiçado.

Era também, o geomancista árabe que colocava sob a vista do questionante um fogareiro de terra onde queimavam resinas mágicas (incenso, mirra, gálbano, etc...) destinadas
a chamar os Gênios, a fim de que o questionante fosse então, momentânea e literalmente, possuído e conduzido por eles durante a jornada ao "lugar" das Figuras Geomânticas.

È a antropofagia ritual do negros que, mesmo não comendo carne de gado ou de caça, comem o coração de um guerreiro corajoso, a mão de um homem hábil, o cérebro de
um homem inteligente.
É o sangue das incisões rituais que, misturado e bebido pêlos recém-casados, os unirá eternamente , segundo os Ciganos da Europa central.

São as vítimas animais, semi-consumidas sobre o altar dos holocaustos e pelos padres de Israel, que unirão espiritualmente eles com Iaveh, seu Deus.

São os Pães de Proposição, em número de doze (um por tribo), que passarão seis dias sobre a Tábua do Testemunho, rodeados por gotas de incenso puro, a fim de se
impregnar no Tabernáculo da Aliança, da Shekinah (a "presença divina", o pneuma agion). E ao sétimo dia, aquele do Sabbat, os sacerdotes os consumiam ritualisticamente,
com a oferenda, a benção e a absorção da taça de vinho. Á mesma época, o sacerdote de Osíris pousa seus lábios, no instante em que o sol nasce, sobre os da estátua
do deus. Ele julga estar absorvendo o sopro de Osíris.

Por isso, Israel, apesar das mais horríveis torturas, recusou sempre queimar incenso ante os ídolos, bem como comer carnes consagradas ao "deuses das nações". Por
isso, São Paulo recorda mais tarde:

"Os deuses das nações são demônios, e eu não quero que entreis
em comunicação com os demônios..."

(Paulo, I Epistola aos Coríntios, X, 20).


Nos ritos agrários, de Dionísio, encontramos o cabrito, imagem do deus solar, esse carneiro virgem que, na Primavera, tempo de Renovação, passa (Páscoa: passagem),
através do Horóscopo a Primeira Casa do Mundo, que é o Signo do Carneiro, a fim de reviver no neófito. Mas porque é necessário que entre eles, o Cordeiro seja substituído
por sua antítese: o Cabrito, primícias do réprobo Azaël?... Trata-se aí, portanto, de uma Eucaristia inversa. É a ação de fazer reviver, nos Neófitos um deus morto,
um deus caído, que deverá sua nova vida ao Homem!

Na Eucaristia cristã, como em sua antecessora judaica, trata-se de fazer reviver o Homem no Corpo Místico de Deus!

Podemos comparar a ressurreição de Hiram, no ritual maçônico, à ressurreição do Cristo, mas Hiram, como Dionísio ou Orfeu, revive no iniciado, por ele, graças a
ele. Tem-se aí, matéria para meditação.

Este princípio de comunhão por absorção material era tão bem admitido, que mais tarde, no décimo quarto século, acusar-se-á os Templários de beberem as cinzas de
seus irmãos mortos misturadas ao vinho e ao sangue de um gato preto!

Em nossos dias ainda, na terra do Islã, se procura beber ou comer restos alimentares abandonados por um santo homem ou por um sábio: chá, bolachas, etc... Se recebe
assim clandestinamente a baraka ou benção, que é também uma iniciação furtivamente roubada. Por outro lado, há aquela que se transmite regularmente pelo rito da
transferência de saliva, do muftî ao novo cheik, às vezes pela intromissão da língua na boca do recipiendário (um termo que diz perfeitamente o que significa), às
vezes pela intromissão do dedo embebido de saliva, às vezes por um simples escarro, é assim que nossos amigos recebem a iniciação geomântica de um "daguèze" de Mogador!
Existe aí, algumas vezes, uma prova iniciática e uma espécie de transmissão fluídica.

Ora, o que nos diz a tradição cristã?

Que a transubstanciação das espécies eucarísticas na liturgia (não importando se ela é oriental, ocidental, ortodoxa ou latina) é a transposição, em espécie ensangüentada
e invisível, do sacrifício de Melquisedeck, perpetuado em Israel por Abraão, consagrado por Melquisedeck, chegando até ao Cristo, filho de Davi e portanto pontífice
e rei, por meio do rito dos Pães de Proposição e da Taça do Kidoush.

Ora, o que foi a Ceia, senão uma cerimônia judaica bastante ortodoxa, composta primeiramente pela Páscoa anual (com a divisão e a mastigação do cordeiro e de ervas
amargas), e depois pelo rito Melquisedético, puramente semanal. As "graças", que os Evangelhos nos dizem haver sido pronunciadas na abertura do banquete por Cristo,
no instante da consagração do Pão e da Taça, eram preces ritualísticas. Elas figuram ainda nos ritos atuais destinados aos israelitas praticantes.

Este rito, certamente desconhecido pêlos cristãos comuns, nós o divulgaremos aqui a título de documentário, chamamos a atenção de nossos leitores no entanto, para
o brilho e entonação que, na Liturgia Eterna, devem ser dados às palavras imutáveis ao longo dos séculos...

Kidoush
ou Abertura do Sabbath

Sexta-feira à noite, após o Trabalho, senta-se à mesa, toma-se às mãos uma Taça repleta de Vinho e se diz:

"Era então o sexto Dia. E o Céu e a Terra e tudo o que eles continham estava terminado. Ao sétimo Dia, DEUS havia acabado Sua Obra, e ELE descansou no sétimo Dia
de tudo o que havia feito. Deus abençoou o sétimo Dia e o santificou, porque neste Dia o SENHOR repousou de todas as Obras que havia realizado".
"Sois louvado, ó ETERNO nosso DEUS, Soberano do Universo, que criou o Fruto da Vinha!..."
"Sois louvado, ETERNO nosso DEUS, Soberano do Universo, que nos santificou por Teus Mandamentos; que nos aceitou por Teu Povo, e que, em Teu Amor nos deu o dia santo
do Sabbath em comemoração pela Criação. Este Dia é o primeiro das solenidades, ele nos faz lembrar que Tu nos tirastes do Egito, que fomos nós quem Tu escolhestes
e santificastes dentre todos os outros povos, e que em Teu Amor, nos destes por Herança o santo dia do Sabbath. Sois louvado ó ETERNO, que santificastes o Sabbath!..."

Após, pronuncia-se a Benção a seguir sobre dois Pães inteiros, partindo-os ao meio, comendo-se uma porção, e dando-se um pedaço a cada um dos assistentes:

"Sois louvado, ó ETERNO nosso DEUS, Soberano do Universo, que tira o Pão da Terra..."

Após a Refeição, se pronuncia o Salmo CXXVI (Cântico das Subidas: "Quando o Eterno fez voltar os Cativos de Sion, ficamos como quem sonha...), depois recitam-se
as "Graças". Nós não as daremos aqui por serem muito longas. Pode-se encontrá-las na coletânea de "Preces Diárias" dos israelitas do Rito Askenaz (Tephillath Adath
Yeschouroun: Edições Duriacher).

Mas como conceber o Oculto da Eucaristia?

Sem dúvida, não comemos a carne viva, sensível, celular, daquele que, no Jordão, segundo a palavra de Santo Agostinho, havia "revestido o Homem..." E nós não bebemos
nada de seu sangue vermelho, quente, suscetível de coagulação como nas orgias religiosas da antiga Trácia. O Cristo não é dilacerado e dividido selvagemente por
bacantes ébrios e furiosos.

Mas nós absorvemos uma substância sutil, oculta e mística, ligada de fato à própria Essência do Salvador por uma graça misteriosa, que impregna e transmuta a materialidade
das espécies eucarísticas, em conseqüência de sua Promessa na Cela, e da potência que ELE conferiu livre e eternamente a um Rito Ordenado aos Apóstolos:

"Fazei isto em memória de Mim..."

(Lucas, Evangelho XXII, 19).

Como o açúcar depositado no açucareiro de porcelana continua açúcar e o açucareiro continua de porcelana, sem a recepção dos poderes legítimos e da pronúncia das
palavras sagradas, as espécies eucarísticas continuam a ser o que eram quando de sua elaboração.

Mas quando o Divino se mistura, ligado por Sua Promessa, por Sua Ordem desde há vinte séculos, à semelhança da Pedra Filosofal que transforma chumbo em ouro, a liturgia
eucarística ligará o suco da uva a essa Essência Salvadora à qual nos referimos. Desta forma, a transubstanciação se efetuará no invisível.

Então, como um açúcar transmutador fará com que, por seu depósito, o açucareiro de porcelana, por sua vez, transforme-se pouco a pouco; assim também, a substância
psíquica e essência espiritual do Homem se transforma pouco a pouco por uma Segunda transubstanciação, análoga àquela de Deus. Esta é a incorporação ao "Corpo Místico"
do Cristo, em seu primeiro estado.

Com a Eucaristia, nós absorvemos um "carga" oculta e mística, um filho de imortalidade, o qual, caso nos impregnemos suficiente e seguidamente no curso de nossa
vida terrestre, poderá nos transmutar pouco a pouco, de ano em ano. Pois esta "carga", assimilada por nosso organismo, como qualquer alimento, passa do plano fisiológico
para a psique, e da psique à alma.

É em efeito, por ser o sangue, o veículo das paixões dos seres, que os Judeus receberam no Sinal a ordem de não consumir carnes sangrentas. E pelo fato da Criação
toda decaída com Adão (e o Coro da Alma preexistentes que o constituíam), se eleva com o Cristo e a Humanidade libertada pelo Demiurgo, é que Pedro recebeu em sonho
(Ato dos Apóstolos: X, 9 a 15), a ordem de considerar doravante todos os alimentos, quais quer que sejam (animais, peixes, vegetais), como tendo sido purificados
para sempre. Por sua vez, o Homem se transforma no atanor transmutador no qual a Criação remida deve passar e se integrar para retornar ao Divino. Donde a supressão
das interdições concernentes ao sangue, a carne, etc..., e também do vegetarismo, em todos os ramos cristãos (13 ).

A Reintegração, ou reconstituição do pleroma, consiste na elaboração lenta e progressiva da IGREJA PRÉ-EXISTENTE, dispersada pela Queda. Ora, esta IGREJA é o Corpo
Místico do Cristo. Isto é figurado pelo pão eucarístico. Comer este pão é construir nosso próprio corpo místico, figurado pela "vestimenta de Glória" da qual falam
os Cabalistas palestinos e os Padres da IGREJA. Sem essa "Vestimenta", nos dizem os Cabalistas, ninguém pode transpor o Fogo-Princípio que separa o Criado do incriado...

Mas uma vestimenta tem necessidade de ser utilizada, e deve haver algo para ser revestido. Um corpo tem necessidade de uma alma, daí o papel do Vinho eucarístico.

O Pão é o "corpo místico" do Cristo, o Vinho é a Alma Mística. E da mesma forma que as paixões bestiais dos animais consumidos passariam ao sangue dos israelitas
com aquele dos animais impuros, assim também a Alma do Cristo passa por nós através do Vinho...

Assim, no Rito Latino, onde o fiel ordinário comunga sob uma única espécie: a Hóstia, a eucaristia do fiel não é a do padre, falta um dos dois elementos do mistério.
Decidida no tempo das perseguições, a fim de salvaguardar o Vinho de sacrilégios involuntários (quedas, quebras de taça, etc...), a ausência do vinho não tem mais,
no Rito Latino, nenhuma razão de ser, é uma anomalia deste Rito. Por outro lado, o Rito Oriental, comportando a comunhão sob as duas espécies para todos os fiéis,
tem em nosso ponto de vista, uma falha ao utilizar pão ordinário ao invés dos ázimos do Rito Latino. Os Ocultistas sérios nos compreenderão se declararmos considerar
a Hóstia como um símbolo infinitamente superior ao pão comum.

Á Missa Pontifical, celebrada exclusivamente pelo Bispo, possui igualmente um valor oculto diferente.

Os Ocultistas não ignoram o papel oculto da cera de abelha, boa e fiel registradora de radiações. Donde os bonecos de cera utilizados pêlos feiticeiros, ou os membros
de cera empregados pêlos médicos spagyristas, como o ilustre Paracelso. Ninguém ignora mais o papel evocatório da chama saída de uma cera (ou de um círio de cera),
previamente acesa sobre um túmulo. Toda a Europa Central põe esta tradição em ação com suas velas que tremulam sobre cada túmulo, na noite de todos os santos! Martinez
de Pascuallys utilizava velas, acesas sobre os Nomes Divinos, Angélicos, etc..., em suas Operações teúrgicas.

Ora, este conhecimento oculto é utilizado sobre altar cristão. E é bem provável que isto tenha permitido conservar o Sudário de Cristo, secretamente colocado em
segurança pêlos Discípulos desejosos de restabelecer o contato com o Mestre morto na carne. Assim como a maioria das relíquias da Paixão aliás. Falamos aqui "em
princípio", mas quantas relíquias foram fabricadas depois por falsários interesseiros!

Sobre o altar cristão, o Crucifixo (ou o Tau) erigido, evoca e manifesta a presença do Salvador, os dois círios de cera, sem os quais uma Missa seria "vã" dispostos
à direita e à esquerda do Crucifixo, evocam a presença do Mundo Angélico, com os dois grandes Arcanjos, Miguel e Gabriel, tipos solar e lunar. E estes paradigmas
se tornam vivos porque eles são erigidos sobre um túmulo em redução, com a pedra do altar contendo necessariamente parcelas de ossamentas de santos.

Essas relíquias colocam o todo em contato com a Cidade Celestes, inversamente, o crânio do qual se serve o mago negro, colocando sobre uma toalha proveniente de
uma mortalha funerária, ladeado por dois círios negros acesos, colocam o necromante em ligação psíquica com a Cidade das Profundezas.

No Oriente, a pedra do altar do Rito Latino é substituída por uma toalha de linho, quadrada, contendo ao centro relíquias idênticas. Ela se denomina a antimension
(ou seja, "contra a cidade"). O corporal do rito católico é uma deformação. Todos os dois se prendem em nove quadrados, e isso lembra exatamente, o quadrado mágico
de Saturno!

Esse rito de utilização de ossos, apareceu muito cedo no Oriente, nós o equiparamos às missas Romanas realizadas sobre os túmulos das catacumbas. É imediatamente
contemporâneo da primeira liturgia conhecida, aquela dita de Jerusalém ou de Santiago. Os primeiros liturgistas cristãos sabiam o que faziam, donde a nossa Hipótese
sobre a conservação, cuidadosa das relíquias da Paixão: pregos, sudário, coroa de espinhos, etc... Não esqueçamos que havia um verdadeiro tráfico na antigüidade,
destes objetos, procurados por todos os mágicos e necromantes. Ora, os primeiros cristãos constituíam uma seita à parte, nem fariseus, nem saduceus, nem mesmo essênios
(as doutrinas o provam), O cristão está tão fora da estrita religião judaica que Flávio Josepho, evocando sua existência, recusa-se a nomeá-la! Não é pois, nada
de espantoso que a "tábua do cadáver" tivesse seu lugar na primeira comunidade cristã. A utilização (e a procura) das relíquias da Paixão não tem nada de contrário
à lógica. Os discípulos conheciam, certamente, a tradição judaica sobre o habal há garbin, ou "espírito dos ossos".

Abordamos até agora somente estágio da Missa do padre comum. O Bispo, deve obrigatoriamente acender um terceiro círio de cera (atrás do Crucifixo erigido, na Liturgia
gnóstica, constituindo assim um trigone de luz, do qual o Crucifixo é o centro. Assim, a tradição teúrgica de toda evocação é respeitada). Nos dias de hoje, não
há senão uma chama em um castiçal, colocado fora de toda a disposição pentacular...Assim são os arcanos, na Igreja moderna. Desta forma, o terceiro círio de cera
evoca ritualísticamente, a "presença" do Apóstolo do qual descende, imutável e necessariamente o Bispo celebrante. Sabemos que toda a filiação ou "sucessão" apostólica,
deve remontar necessariamente a um dos Doze Apóstolos. Devemos atentar-nos desde hoje, para o fato das grandes Igrejas terem tido suas filiações próprias, em relação
às de suas concorrentes... Existem obras específicas sobre estes assuntos.

Desta forma, com esta terceira chama, a "Comunhão dos Santos", que Stanislas de Guaita denominava lona, está então presente invisivelmente, com o coro dos Ischim
da Kabala.

E eis aí a verdadeira Pedra Filosofal da Alquimia Espiritual, a Eucaristia na qual a Água, imagem do Mercúrio dos Sábios e da IGREJA, se une, no Cálice, imagem do
Cadinho, ao Vinho, símbolo do Enxofre dos Sábios e do CRISTO. Em outras palavras, é a união do SOL FILISÓFICO (o Vinho) e da LUA FILOSÓFICA (a Água). A essas núpcias
do "Marido Vermelho" e da "Esposa Branca", segundo o tratado de Ripley, vem ainda se juntar a TERRA FILOSÓFICA (o Trigo), símbolo do Sal dos Sábios...(14 ).

E é a fusão destes três termos que constitui então, a Chrysopéia Espiritual, por meio da qual, o Homem se identifica com DEUS, da mesma forma que o Chumbo torna-se
Ouro no seio do Matraz...

Daí, no astral, esta cor vermelho rubi, que é aquela da Pedra em Vermelho, a Pedra Perfeita, brilhando no Cristal submetido aos Clarividentes.

Para terminar com este assunto, daremos um extrato de um apócrifo gnóstico intitulado "O Apocalipse de Adão", esta obra remonta ao primeiro século. Observa-se que,
de acordo com o autor anônimo, foi sobre o túmulo de Adão que Melquisedeck e Sem celebraram o primeiro sacrifício do Pão e do Vinho.

Então, Adão estando próximo da morte corporal, fez vir até ele, seu filho Seth, Enoch filho de Seth, Cainam filho de Enoch, e Malalahel filho de Cainam, e lhes deixou
seu testamento dizendo:

"Eis aqui o procedimento que todos os vossos filhos e os filhos dos vossos filhos deverão observar. Assim que eu estiver morto, vocês embalsamarão meu corpo com
Mirra, Incenso e Canela, e o depositarão em uma Caverna oculta. E aquele de meus filhos que se encontrar ainda vivo quando tiver que deixar as proximidades do Éden,
tome consigo meus despojos, e deposite no ponto central da Terra, pois é desse Lugar Misterioso que, mais tarde, quando vierem os Tempos, sairá minha Salvação e
a de todos os meus Descendentes.
"E os filhos de Adão fizeram como ele lhes havia prescrito. E eis que um dia, o Anjo do Eterno desceu próximo de Sem e de Melquisedeck, e apareceu para eles, após
haver previamente fortificado seus corações. Ele disse então a Melquisedeck: "Tomai o Pão e o Vinho que Sem tem em suas mãos...", e Melquisedeck pegou estas coisas,
como o Anjo lhe havia dito para fazer, e eles permaneceram próximo ao Túmulo de Adão até ao anoitecer. E assim que a noite veio, eles viram então, uma grande claridade
acima do Corpo de nosso Pai Comum. Eles cantaram, repletos de alegria. E assim que o sol surgiu, a Voz do Eterno falou a Melquisedeck, dizendo o seguinte:
"Levanta-te, Melquisedeck, e toma doze pedras, e com elas, eleva um altar para mim. Tu colocarás sobre ele o Pão e o Vinho que Sem te deu. Após, vocês comungarão."
Melquisedeck assim o fez. E ele suplicou a Deus para aceitar suas oferendas. E o Espírito de Deus desceu então sobre as hóstias do sacrifício, e a montanha resplandeceu
com uma santa luminosidade".
"Então, os Anjos disseram entre eles: "Louvor a Ele, que criou essas Criaturas que se denominam Homens, às quais revelou tão profundos Mistérios..."
"Foi então que o Verbo de Deus apareceu a Melquisedeck, e lhe disse: "Eis que te fiz Sacerdote. Sem e tu, comungaram no Primeiro Sacrifício que tu ofertastes, e
da mesma forma que empregastes doze pedras para erigir este altar, assim também, quando os Tempos forem chegados, Eu tomarei doze Apóstolos por Colunas sólidas do
Mundo. E como tu ofertastes o Pão e o Vinho, eu ofertarei Minha Carne e Meu Sangue. E farei santo o lugar onde ofertastes este primeiro sacrifício, aí mesmo onde
está enterrado o Corpo de vosso Pai: Adão... E Eu concederei grandes graças aos que vierem..."

("Apocalipse de Adão", apócrifo gnóstico).

Observa-se o belo esoterismo deste fragmento. Pois, segundo a lenda, Adão foi sepultado no mesmo lugar onde mais tarde se deu a morte de Cristo, e este monte, nas
proximidades dos muros de Jerusalém, era também chamado golgotha (que significa "crânio" em hebreu), por causa de sua conformação...

Daí esses crucifixos bastante simbólicos, onde se vê a cruz erigida sobre um crânio humano, de onde, às vezes, uma serpente se enrola nas órbitas.

E os que souberem traçar sobre um planisfério, algumas linhas geodésicas passando por Jerusalém, constatarão com surpresa estranhas coincidências...

Àqueles que manifestaram uma dúvida qualquer sobre o caráter imprescritível do rito eucarístico para o Cristão, nos limitaremos a lembrar as palavras do próprio
Cristo:

"Se vós não comerdes da carne do Filho do Homem, e se não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a Minha carne e bebe Meu sangue tem a Vida Eterna
e Eu o ressuscitarei no último dia... Pois Minha carne é verdadeira comida, e Meu sangue é verdadeira bebida... Quem come Minha carne e bebe Meu sangue, permanece
em Mim e Eu nele... Assim como Meu Pai, que vive, me enviou, e Eu vivo pelo Meu Pai, também aquele que comer de mim viverá por Mim! Quem come este pão viverá eternamente..."

(João, Evangelho, VI, 53 - 58).

"Façam isto em memória de Mim..."

(Lucas, Evangelho, XXII, 19).

Que significa isto? Que Cristo tenha, talvez, reiterado a prova do Jardim do Éden, recusando-se a nos obrigar ao rito misterioso da Eucaristia, que nossas fracas
inteligências humanas não conseguem compreender e seguir nos desdobramentos vertiginosos que ela implica. Nós reiteramos, sem dúvida, o fatal e orgulhoso erro do
Adão-Eva primitivo.

Na proibição absoluta de acessar à Ciência do Bem e do Mal, por um mandamento espiritual que devia ser fatal ao Primeiro-Homem, nós nos associamos pela recusa de
acessar à Ciência da Salvação por um mandamento análogo... Mais ainda, nós o agravamos reiterando-o de modo inverso!

Da mesma forma que a madeira da Árvore simbólica foi para nós o símbolo da nossa morte espiritual, assim também ela se tornou representação ignominiosa da Cruz (na
qual ele foi colocado, segundo a bela lenda esotérica), vem daí o símbolo da nossa libertação. Por quê os antípodas de toda espiritualidade metafísica, dois "filtros",
um de morte e outro de imortalidade, não se oporiam, como se opuseram, com o Homem por conquista, o Cristo e seu Adversário?...

Lembremo-nos aqui que o termo IGREJA não designa, uma igreja humana qualquer, católica, ortodoxa, reformada, etc., trata-se do conjunto das Almas Preexistentes,
é o PLEROMA.

Capítulo VIII
A REINTEGRAÇÃO UNIVERSAL

"Nada pode repousar em si mesmo, a menos que retorne para o lugar de onde saiu..."

(Jacob Boehme: "Misterium Magnum", Resumo Final).

Sabemos que a reintegração do Cosmos, de todas as Criaturas espirituais ou materiais é o fim último da Alquimia verdadeira.

Segundo a tradição rosacruciana autêntica, em efeito, o Universo todo se degradou com o Homem, seu guardião inicial. Há, no Gênesis, uma frase à qual se dá pouca
atenção nos meios cristãos ordinários. Hei-la aqui:

"Doravante, o solo (15 ) não produzirá nada além de espinhos e cardos,
a Terra será maldita por causa de ti..."

(Gênesis: III, 17, 18).

Esta frase evoca certamente o hylé dos gnósticos, que designavam a matéria prima do Mundo inferior, do Universo. No Grego antigo, a palavra hylé era utilizada para
designar o bosque, a mata, a floresta, inexplorada. Este termo se opõe ao Éden Bíblico, palavra que significa um jardim, e por extensão, oriente a luz. Adão estava
primitivamente no Éden, mas após sua queda moral, tendo desejado conhecer o Bem e o Mal, o Éden se transformou no Hylé. Da mesma forma que ele havia se revestido
de folhas (sua integração no plano vegetal), depois de peles de animais (sua integração no plano animal) (Gênesis: II, 7 e II, 21), assim também o Éden se cristaliza
e se obscurece. Ao jardim de luz, situado num "plano" superior, sucede um Universo material, tenebroso, no qual todos os elementos se densificam e se materializam.

Escutemos aqui a Louis-Claude de Saint-Martin:

"Homem, o mal é ainda muito grande. Não diga mais que o Universo está sobre o seu leito de dores, diga: o Universo está sobre seu leito de morte, e é a ti que restam
os seus últimos deveres; é a ti que cabe reconciliá-lo com a Fonte Pura de onde ele caiu, Fonte esta, que não é Deus, mas é um dos eternos órgãos de Sua Potência,
e do qual o Universo jamais deveria ter se separado. É a ti que cabe reconciliá-lo com ela, purgando-o de todas as substâncias impuras das quais ele não cessa de
se impregnar desde a Queda, e purificá-lo de haver passado todos seus dias na vaidade..."

(L. C. de Saint-Martin: "Ministério do Homem Espírito").

"Aprendei aqui um segredo imenso e terrível: Coração do Homem, tu és o único caminho por onde o Rio da Mentira e da Morte se introduz diariamente sobre a Terra...
Coração do Homem, quantos séculos levarás para tirar de ti esta estranha larva que te infecta? Compreendei os esforços dolorosos e lancinantes que fazem os mortais
para vomitar essa semente de morte? Choras, pois o Coração do Homem, que devia ser o obstáculo das Trevas e do Mal (16 ), tornou-se a luz da abominação e o guia
do Erro... Choras, pois o Mal encontra fechadas todas as saídas, e se reduz a vagar cegamente na espessa noite de suas tenebrosas Cavernas..."

(L.C. de Saint Martin: "O Homem de Desejo").

Os Mestres misteriosos que suscitaram primeiramente a Martinez de Pasqually, lhe confiaram as chaves da regeneração universal, como veremos mais tarde. A seguir,
eles suscitaram L.C. de Saint Martin, seu discípulo mais próximo, e lhe confiaram a chaves da reconciliação individual. Mas, evidentemente, é inútil ater-se ao problema
da regeneração do Universo e de seus componentes, se nós não conduzimos uma ação semelhante e paralela dentro de nós mesmos!

Entretanto, como já foi visto, tudo se acha harmoniosamente neste conjunto. E nós reencontramos novamente a venerável ciência que nos guiou nas páginas anteriores,
e que se limita à regeneração no mundo metálico.

A Alquimia tende a reproduzir, nesta miniatura do Universo que é o matraz, a ação do Artesão Universal, tomando os elementos desorganizados e corrompidos, harmonizando-os
e amalgamando-os, para conduzi-los até à perfeição final. Assim, por esse ensinamento experimental, esta Operação de longo cozimento que constitui a Grande Obra
aurífera, coloca seu discípulos na condição de seguir, e reproduzir todo o processo misterioso pelo qual o Animador Divino joga seu "jogo de Amor". Tal é, verdadeiramente,
o magistério filosófico por excelência, pois é somente a Alquimia que pode ensinar ao Homem esses rudimentos experimentais e probatórios que o conduzirão para a
Certeza Absoluta. E é ela também, a mestra verdadeira que lhe dará, primeiramente uma gnose, depois uma fé.




As técnicas dos Elus-Cohen de Martinez de Pasqually comportam três elementos distintos:

a) Dos Exorcismos, destinadas a jugular a ação demoníaca do seio do Cosmo, e a entravar sua ação sobre os homens, a romper seu poder sobre o Operador e seus discípulos,
a obter o fim ou a limitação de certos flagelos, a aniquilar as Operações de Magia Negra;

b) Das Conjurações, destinadas a estabelecer um contato com o Mundo Angélico e com a Comunhão dos Santos; Nestes últimos, o Operador escolhe "patronos" particulares,
e no Mundo Angélico, Guardiães e Guias. Conforme suas Ordenações sucessivas, o Cohen toma pouco a pouco contato com as Hierarquias cada vez mais elevadas. O primeiro
sendo o dos apelos, para usar de um exemplo utilizado pelo próprio Pasqually, destinados a permitir ascender a Seres crescentemente mais elevados.

c) Das Preces, dirigidas a Deus, as três Pessoas da Santíssima Trindade, destinadas a obter Sua Graça e Sua Misericórdia, visando a Reintegração. Elas são integradas
nos rituais conjuratórios, que precedem, as quais são destinadas a canaliza-las e amplia-las. O conjunto constitui o que Pasqually nomeava o "culto", sendo, portanto,
uma liturgia.

O conjunto deste "culto" compreende dez tipos de Operações:

1) Culto de Expiação: O Homem manifesta seu arrependimento, tanto de suas próprias faltas, quanto da Queda do Protótipo inicial, o Adão Primordial, córrego do coro
das Almas Preexistentes. Derivando uma ascese e um ritual penitencial. (Sephira: Malkut) .

2) Culto da Graça Particular geral: Operações destinadas a substituir o conjunto da Humanidade terrestre do momento, e fazê-la participar dos frutos da Operação
individual. (Sephira: Yesod).

3) Culto de Operação contra os Demônios: Em torno da degradação inicial, no princípio dos tempos, estes tendem a manter e agravar seu jugo sobre a Humanidade total.
Pelos Exorcismos (as célebres Operações de equinócio), o Cohen os combate e os lança fora da aura terrestre.
(Sephira: Hod).

4) Culto de Prevaricação e de Conservação: Continuação do precedente. Esta Operação consiste em combater e punir os seguidores da magia negra, da feitiçaria, e,
sobretudo, castigar os Espíritos Decaídos que são seus colaboradores. (Sephira: Netzah).

5) Culto contra a Guerra: O homicídio é o maior dos crimes, o homicídio coletivo é evidentemente o mais grave. O Cohen luta contra as Potências da Raiva entre as
Nações e tenta detonar sua ação. Em caso de impossibilidade, utiliza os recursos de sua Teurgia na defesa da parte injustamente agredida, ou na qual representa indiscutivelmente
o direito moral superior, fora de qualquer interesse político ou material. (Sephira: Tiphereth).

6) Culto de Oposição aos Inimigos da Lei Divina: Operação teúrgica objetivando lutar contra as ações humanas difusoras do ateísmo, satanismo, luciferismo, sob a
forma igualmente humana. (livros, revistas, propaganda, seitas, etc...). (Sephira: Geburah).

7) Culto para obter a descida do Espírito-Santo: Operação visando a infusão do Espírito-Santo e de seus Dons. É mais especificamente a "Via Interior", estudada nestas
páginas, a Alquimia Espiritual. (Sephira: Hesed).

8) Culto de fortalecimento da Fé e da Perseverança na Virtude Espiritual divina: Operação visando a compreensão dos Mistérios Divinos, compreensão permitindo ao
Emule de afirmar sua fé de maneira absoluta e definitiva. (Sephira: Binah).

9) Culto para a fixação do Espírito Conciliador Divino em Si: É a recepção total do Espírito-Santo, a descida "das línguas de fogo do Pentecostes", a iluminação
final, com os privilégios que ela comporta. Podemos lhe aplicar as palavras do sacramentário católico romano, na sagração de bispo: "Dai-lhe, Senhor, de ser o artesão
da Reconciliação, em palavras e obras, pela potência dos Signos e dos prodígios...". ( Sephira : Hocmah)

10) Culto de Consagração anual de todas as Operações ao Criador: Esta parte compreende o conjunto das consagrações, benções, etc... Pelas quais o Operador tenta
sacralizar o conjunto das ações humanas suscetíveis de ser [consagrados]. Em virtude do princípio mesmo da Reintegração Universal, todo ato deve ser inserido em
um quadro visando precisamente este objetivo. Daí a benção dos frutos da terra, das colheitas, dos animais domésticos, dos ritos religiosos ou iniciáticos, a constituição
dos sacramentários, etc...

Viu-se por esta exposição sucinta, que as Operações do Martinezismo (para usar o neologismo criado por Papus), são paralelas as cerimonias religiosas (1)
por possuírem os mesmos objetivos.
___________








1. Observa-se que a técnica da 'Via Interior' (trabalho com os Salmos penitenciais e o ofício do Espírito-Santo) é preliminar e concomitante em todo Martinismo Operativo.
O estudo dos antigos documentos do Martinismo primitivo mostra que Dom Pasqually o impunha de maneira permanente à seus emules pertencentes à Via teúrgica.


Estas últimas comportam de outros Ritos que são raramente utilizados, infelizmente, pela falta dos poderes civis ou pela negligência das autoridades religiosas:
bênçãos dos trabalhos de arte (barragens, pontes, monumentos), exorcismo contra os sismos, os desperdícios d'água, as inundações, as secas, etc...(2)

É a aplicação da palavra do apóstolo Paulo:

"Eu vos conjuro, pois, antes de tudo, que se façam pedidos, orações, súplicas e ações de graça, por todos os homens, pelos reis e todos os que detêm
a autoridade, a fim de que levemos uma vida calma e serena..." (Paulo: Timóteo, II: 1-2).
A Antiga Aliança foi cumprida:
" Procurai a paz da cidade, para onde eu vos deportei; rogai por ela a Iahweh, porque a sua paz será a vossa paz..." ( Jeremias: XXIX, 7).

Eis, lá ainda, a verdadeira via rosacruziana. (3)











FIM














_______________
2. O fato das autoridades civis, ligadas por um neutralismo de Estado, não apelarem às autoridades religiosas em tais circunstâncias, não ameniza em nada a responsabilidade
dos mesmos. Quando a mãe do guarda da barragem de Malpasset se atirou no lago artificial criado por eles amaldiçoando a dita barragem, caberia as autoridades religiosas
neutralizar esta maldição através de ritos apropriados. Mas estariam estas autoridades em condições de compreender que a alma da suicida, mergulhada em um vórtice
de raiva e acrescentando, no ultimo, instante a potência de seu verbo, tornara-se ipso facto um demônio?...O segundo aniversário da barragem foi seguido de uma nova
catástrofe !
3. Ver Ambelain: "La Magie Sacrée, ou Livre d'Abramelin le Mage", págs 11 a 35. Niclaus éditeurs.

Edição original: Ambelain, Robert: "L'alchimie spirituelle, technique de la voie interieure", Paris, Edt Bussiére.
1 - Iniciado, do latin initium: começo.
2 - Adepto: do latin adeptus: quem tem experiência. Este termo e o da nota anterior, têm sua significação freqüente-mente invertidas pelo profano.
3 - Do latim personna: máscara, aparência.
4 - A peregrinação à Santiago de Compostela é um dos mitos emblemáticos da questão da Grande Obra. Os peregrinos aí portam como insígnia a concha de Santiago, também
chamada medalha. E no seio do matraz, no início da Obra, sobre a matéria prima enfim decomposta, deve surgir e flutuar uma estrela cristalina prateada, primeiro
indício de que o Operador está no bom caminho...
5 - Possui-se um importante dossiê, resultado de uma paciente pesquisa feita, entre 1935 e 1937, sobre a verdadeira personalidade de Fulcanelli. Esse dossiê é composto
por recordações daqueles que trabalharam com ele desde 1907, e daqueles que foram seus colaboradores no curso de sua vida ardente de adepto, por fotografias e documentos
que demonstram, sem contestação possível, que Fulcanelli e Jean-Julien-Hubert Champagne foram uma só pessoa! Sobre essa identidade, não cremos haver nenhuma contradição,
e possui-se uma fotografia onde consta uma dedicatória que forneceu a prova absoluta.
6 - Basílio Valentin: "As Doze Chaves da Filosofia", M. E. Canceliet, um dos raros discípulos de Fulcanelli, publicou, nas Editions des Champs-Elysées, uma tradução
erudita e excelente dessa obra essencial, onde ele coloca toda a sua ciência alquímica.
7 - A Alquimia não emprega a expressão banho-maria.
8 - Segundo depoimento de J.Boucher.
9 - Significa que não se pode acessar a essa visão das coisas divinas por intermédio de Entidades Inferiores, elas próprias obscurecidas, e por meio de uma banal
evocação mágica. Ambição e motivos infantis, que podem custar caro...
10 - Os trinta e dois caminhos da Sabedoria são os trinta e dois primeiros versículos do Gênesis, ou seja, todo o primeiro capítulo, e o primeiro versículo do segundo
capítulo. Ver R. Ambelain: "O Demiurgo", pp. 98 a 102.
11 - A. Carrel: "La Prière".
12 - A Alquimia compreende dois processos: a via seca, processo breve, mas perigoso; e a via úmida, processo longo, mas seguro.
13 - Algumas seitas protestantes, como os Darbistas, mais próximos do Judaísmo, rejeitam ainda o porco.
14 - Em sua obra "A Serpente da Gênese", Stanislas de Guaita nega que o elixir da longa vida tenha existido, do ponto de vista material. É, evidentemente, uma constatação
que salta aos olhos! Mas, se ele existisse materialmente, para que serviria? Para fixar, de uma vez por todas, àquele que o usaria, um estado definitivo, destruidor,
por conseqüência, de toda possibilidade de evolução! Isso seria como encerrar para sempre o ser em uma prisão de onde ele não teria nenhuma esperança de sair, tendo
por companheiros de cárcere, recordações, muitas vezes dolorosas, e imperfeições morais, terrivelmente penosas.
15 - Em hebreu: Aretz, o árido, o seco o que é morto, estéril.
16 - É o Príncipe das Trevas, Satã, que devia ser vencido por Adão.
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Alquimia Espiritual - Robert Ambelain##

Alquimia Espiritual - Robert Ambelain


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