O GUARDI�O
DE
MEM�RIAS
T�tulo original: The Memory Keeper's Daughter
Copyright � 2005 por Kim Edwards
Copyright da tradu��o � 2007 por Editora Sextante Ltda.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob quaisquer
meios existentes sem autoriza��o por escrito dos editores.
TRADU��O: Vera Ribeiro
PREPARO DE ORIGINAIS: Jorge Sussekind
ASSISTENTE EDITORIAL: Alice Dias
REVIS�O: Luis Am�rico Costa e S�rgio Bellinello Soares
PROJETO GR�FICO E DIAGRAMA��O: Marcia Raed
CAPA: Victor Burton
PRF-IMPRESS�O: � de casa
IMPRESS�O E ACABAMENTO: Geogr�fica e Editora Ltda.
CIP-BRASIL. CATALOGA��O-NA-FONTE.
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
E26g
Edwards, Kim, 1958O
guardi�o de mem�rias / Kim Edwards; tradu��o de Vera Ribeiro. - Rio de
Janeiro: Sextante, 2007.
Tradu��o de: The memory keeper's daughter
ISBN 978-85-99296-14-1
1. Fic��o americana. I. Ribeiro, Vera. II. T�tulo.
07-1002
CDD: 813
CDU: 821.111.(73)-!
Todos os direitos reservados no Brasil por
Editora Sextante Ltda.
Rua Volunt�rios da P�tria, 45/1.407 - Botafogo
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PARA ABIGAIL E NAOMI
AGRADECIMENTOS
U GOSTARIA DE EXPRESSAR MINHA PROFUNDA GRATID�O AOS PASTORES DA
Igreja Presbiteriana Hunter, por anos de sabedoria sobre quest�es vis�veis e
invis�veis; agrade�o especialmente a Claire Vonk Brooks, que carregou a semente
desta hist�ria e a confiou a mim.
Jean e Richard Covert compartilharam generosamente suas impress�es e tamb�m
leram um rascunho inicial deste manuscrito. Sou grata a eles, assim como a Meg
Steinman, Caroline Baesler, Kallie Baesler, Nancy Covert, Becky Lesch e Malkanthi
McCormick, por sua franqueza e orienta��o. Bruce Burris convidou-me a conduzir
um semin�rio do Minds Wide Open;1 meus agradecimentos a ele e aos participantes
daquele dia, que escreveram do fundo do cora��o.
Sou muito grata � Funda��o Mrs. Giles Whiting, por seu apoio e incentivo excepcionais.
O Conselho de Artes de Kentucky e a Funda��o de Kentucky para Mulheres
tamb�m forneceram verbas de apoio para financiar este livro, e eu lhes agrade�o.
Como sempre, ofere�o minha imensa gratid�o a minha agente, Geri Thoma, por
ser t�o sensata, calorosa, generosa e firme. Sou tamb�m muito grata a todo o pessoal
da editora Viking, especialmente � minha revisora, Pamela Dorman, que contribuiu
com grande intelig�ncia e dedica��o para a revis�o deste livro e cujas perguntas
sagazes me ajudaram a me aprofundar mais na narrativa. O toque editorial seguro
e perspicaz de Beena Kamlani tamb�m foi inestim�vel, e L�cia Watson, com bom
humor e precis�o, manteve mil coisas em funcionamento.
1 Criado em fevereiro de 1999, o programa Minds Wide Open [Mentes Abertas] foi desenvolvido pela
organiza��o Arc of the Bluegrass, Inc. (fundada em Lexington, no Kentucky, em 1954) para ajudar pessoas
com defici�ncias cognitivas atrav�s do incentivo � sua criatividade nas artes pl�sticas, c�nicas e
liter�rias, promovendo sua maior integra��o social. (N. da T.)
6
�s escritoras Jane McCafferty, Mary Ann Taylor-Hall e Leatha Kendrik, que leram
o manuscrito com olhos rigorosos e amorosos, obrigada de cora��o. Um agradecimento
especial tamb�m para meus pais, John e Shirley Edwards. A James Alan
McPherson, cujos ensinamentos ainda inspiram os meus, minha perene gratid�o. E
a Katherine Soulard Turner e seu pai, o falecido William G. Turner, pela amizade
generosa, pelos papos liter�rios e pelo conhecimento abalizado de Pittsburgh, obrigada
com alegria.
Carinho e gratid�o a toda a minha fam�lia, pr�xima e distante, especialmente a
Tom.
MAR�O DE 1964
I
ANEVE COME�OU A CAIR HORAS ANTES DE ELA ENTRAR EM TRABALHO DE
parto. Primeiro alguns flocos, no c�u cinzento e opaco do fim de tarde,
depois volteios e redemoinhos impelidos pelo vento ao redor das quinas da ampla
varanda frontal. Ele parou ao lado da mulher, � janela, observando as rajadas abruptas
de neve sucederem-se em ondas, rodopiarem e ca�rem no ch�o. Em todo o bairro
acenderam-se as luzes e os galhos nus das �rvores embranqueceram.
Depois do jantar, ele acendeu a lareira, aventurando-se na nevasca para buscar
lenha do monte que empilhara junto � garagem no outono anterior. O ar penetrante
e frio bateu-lhe no rosto, e a neve na entrada da garagem j� chegava a meia
altura de seus joelhos. Ele juntou algumas toras, sacudindo a camada macia e branca
que as cobria, e as levou para dentro. Os gravetos sobre a grelha pegaram fogo
imediatamente e, por algum tempo, ele ficou sentado junto � lareira, pernas
cruzadas, acrescentando toras e observando o saltitar das chamas, azuladas e hipn�ticas.
L� fora a neve continuava a cair silenciosamente na escurid�o, t�o brilhante
e densa como est�tica nos cones de luz formados pelos postes de ilumina��o.
Quando se levantou e olhou pela janela, seu carro se transformara numa colina
branca e fofa � beira da cal�ada. Suas pegadas na entrada da garagem j� tinham
desaparecido.
Ele sacudiu as cinzas das m�os e se sentou no sof� ao lado da mulher, que tinha
os p�s apoiados em almofadas, cruzando os tornozelos inchados, e um exemplar do
livro do Dr. Spock equilibrado sobre a barriga. Absorta, ela lambia a ponta do dedo
indicador, distra�da, a cada vez que virava uma p�gina. Tinha m�os delgadas, de
dedos curtos e firmes, e mordiscava o l�bio inferior, concentrada, enquanto lia. Ao
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observ�-la, ele sentiu uma onda de amor e deslumbramento: por ela ser sua esposa
e pelo fato de seu beb�, esperado dali a apenas tr�s semanas, estar prestes a nascer.
Seria o primeiro filho. Fazia s� um ano que estavam casados.
Ela ergueu os olhos, sorridente, quando o marido ajeitou o cobertor em volta de
suas pernas.
- Sabe, andei pensando em como deve ser... - disse. - Quero dizer, antes de
nascermos. � uma pena a gente n�o se lembrar.
Abriu o roup�o e levantou o su�ter que usava por baixo, revelando uma barriga
redonda e dura como um mel�o. Passou a m�o pela superf�cie lisa, enquanto a luz do
fogo brincava em sua pele, lan�ando em seu cabelo um tom de ouro avermelhado.
- Voc� acha que � como estar dentro de uma grande lanterna? O livro diz que a
luz atravessa minha pele, que o beb� j� consegue enxergar.
- N�o sei - disse ele.
A mulher riu.
- Por que n�o? - perguntou. - O m�dico � voc�.
- Sou apenas um cirurgi�o ortopedista - lembrou-lhe o marido. - Poderia
explicar o padr�o de ossifica��o dos ossos fetais, mas s� isso.
Levantou o p� da mulher, delicado e inchado dentro da meia azul-clara, e come�ou
a massage�-lo de leve: o tarso possante do calcanhar, os metatarsos e as falanges,
escondidos sob a pele e sob a densa camada de m�sculos, como um leque prestes a
se abrir. A respira��o dela enchia a sala silenciosa, o p� aquecendo-se nas m�os do
marido, e ele imaginou a simetria perfeita, secreta, dos ossos. Na gravidez, sua mulher
lhe parecia linda, mas fr�gil, com as finas veias azuis transparecendo vagamente
na pele alva e p�lida.
Tinha sido uma gesta��o excelente, sem nenhuma restri��o m�dica. Mesmo assim,
j� se iam v�rios meses sem que ele conseguisse fazer amor com a mulher. Em vez
disso, descobria-se querendo proteg�-la, carreg�-la nas escadas, envolv�-la em cobertores,
levar-lhe x�caras de creme de ovos. N�o estou inv�lida, ela sempre protestava,
rindo. N�o sou um filhote de passarinho que voc� tenha encontrado na grama.
Apesar disso, gostava das gentilezas do marido. �s vezes, ele acordava e a observava
durante o sono: o tremor das p�lpebras, o movimento lento e ritmado do peito, a
m�o estendida, t�o mi�da que ele conseguia envolv�-la completamente com a sua.
Ela era 11 anos mais mo�a. Fazia pouco mais de um ano que ele a vira pela
primeira vez, subindo uma escada rolante de uma loja de departamentos no centro
da cidade, num s�bado cinzento de novembro em que sa�ra para comprar gravatas.
Ele tinha 33 anos e era novo em Lexington, no Kentucky, e a mo�a havia emergido
11
da multid�o como uma esp�cie de vis�o, com o cabelo louro penteado para tr�s e
preso num coque elegante, p�rolas reluzindo no pesco�o e nas orelhas. Ela usava
um manto de l� verde-escuro e tinha a pele clara e p�lida. Ele subiu a escada, abrindo
caminho pela aglomera��o e se esfor�ando para n�o perd�-la de vista. A mo�a
foi para o quarto andar: lingerie e meias. Quando ele tentou segui-la por entre os
corredores repletos de araras cheias de an�guas, suti�s e calcinhas, todos com um
brilho suave, uma vendedora de vestido azul-marinho com gola branca o deteve,
sorrindo, perguntando em que poderia servi-lo. Um roup�o, disse ele, vasculhando
os corredores at� avistar o cabelo da mo�a, um ombro verde-escuro e a cabe�a inclinada,
que revelava a curva elegante e p�lida de sua nuca. Um roup�o para minha
irm� que mora em Nova Orleans. Ele n�o tinha irm�, � claro, nem qualquer parente
vivo que conhecesse.
A vendedora desapareceu e voltou um instante depois, com tr�s roup�es de tecido
felpudo e grosso. Ele escolheu �s cegas, quase sem baixar os olhos, pegando o do
topo da pilha. Temos tr�s tamanhos, dizia a vendedora, e haver� uma variedade maior
de cores no m�s que vem. Mas ele j� seguia pelo corredor, com um roup�o cor de coral
pendurado no bra�o e os sapatos rangendo no piso de lajotas, enquanto se deslocava
com impaci�ncia por entre os outros clientes, em dire��o ao local em que ela
havia parado.
A mo�a estava examinando as pilhas de meias caras, cujas cores transparentes
reluziam pelas aberturas brilhosas de celofane: castanho, azul-marinho, um marrom-
escuro como sangue de porco. A manga de seu casaco verde tocou-o de leve e
ele sentiu seu perfume, suave mas penetrante, como as p�talas densas e p�lidas dos
lilases fora da janela do quarto de estudante que ele um dia ocupara em Pittsburgh.
As janelas de seu apartamento no por�o estavam sempre sujas, cobertas pela fuligem
e pelas cinzas da sider�rgica, mas na primavera havia lilases em flor, borrifos brancos
e purp�reos no vidro, e o aroma invadia o aposento como a luz.
Ele pigarreou - mal conseguia respirar - e levantou o roup�o felpudo, mas a
vendedora atr�s do balc�o estava rindo, contando uma piada, e n�o o notou.
Quando tornou a pigarrear, a mulher o olhou de relance, irritada, e fez sinal com a
cabe�a para sua freguesa, que nesse momento segurava nas m�os tr�s embalagens
finas de meias, como cartas de baralho gigantes.
- Creio que a Srta. Asher chegou aqui primeiro - disse a vendedora, fria e altiva.
Foi quando os olhos dos dois se encontraram, e ele ficou surpreso ao ver que os
da jovem eram do mesmo tom verde-escuro de seu manto. Ela o estava avaliando
o s�lido sobretudo de tweed, o rosto escanhoado e avermelhado pelo frio, as unhas
I 2
bem aparadas. Sorriu, divertida e meio desdenhosa, apontando para o roup�o em
seu bra�o.
- Para sua mulher? - indagou. Falava com o que ele reconheceu ser um sotaque
refinado do Kentucky, numa cidade de velhas fortunas em que essas distin��es tinham
peso. Depois de apenas seis meses na cidade, ele j� sabia disso. - Est� tudo
bem, Jean - prosseguiu a jovem, tornando a se virar para a vendedora. - Pode atend�-
lo primeiro. Esse pobre homem deve estar se sentindo perdido e sem gra�a com
toda essa renda aqui.
- � para minha irm� - disse ele, aflito por desfazer a m� impress�o que estava
causando. Isso j� lhe acontecera v�rias vezes na cidade; era afoito ou direto demais
e ofendia as pessoas. O roup�o caiu e ele se abaixou para peg�-lo, enrubescendo ao
levantar. As luvas da mo�a estavam sobre o vidro do balc�o e suas m�os se cruzavam
de leve ao lado delas. O constrangimento do homem pareceu abrand�-la, pois,
quando os olhos voltaram a se encontrar, os dela se mostraram gentis.
Ele tentou de novo:
- Desculpe. Parece que n�o sei o que estou fazendo. E estou com pressa. Sou
m�dico. Estou atrasado para o hospital.
Nesse momento, o sorriso dela se modificou, tornou-se s�rio.
- Entendo - disse, e se voltou de novo para a vendedora. - Jean, por favor, atenda-
o primeiro, sim?
Concordou em v�-lo de novo, escrevendo seu nome e telefone com a letra perfeita
que aprendera na terceira s�rie, cuja professora era uma ex-freira que havia
imprimido em seus pequenos pupilos as regras da caligrafia. Toda letra tem um formato,
ela lhes dizia, um �nico formato no mundo, e nenhum outro, e � sua responsabilidade
fazer com que ele seja perfeito. Aos oito anos, p�lida e magrela, a mulher
de manto verde que viria a ser sua esposa havia agarrado a caneta entre os dedinhos
e praticado a letra cursiva, sozinha em seu quarto, hora ap�s hora, at� escrever com
a flu�ncia requintada da �gua corrente. Tempos depois, ao ouvir essa hist�ria, ele a
imaginaria com a cabe�a inclinada sob o abajur, com os dedos dolorosamente apertados
em volta da caneta, e se admiraria com a perseveran�a dela, com sua cren�a na
beleza e na voz autorit�ria da ex-freira. Nesse primeiro dia, por�m, n�o sabia de
nada disso. Carregou o peda�o de papel no bolso do jaleco branco, de um quarto de
doente para outro, rememorando as letras dela a flu�rem at� desenhar a forma perfeita
de seu nome. Telefonou-lhe na mesma noite, levou-a para jantar na seguinte e,
tr�s meses depois, os dois estavam casados.
Agora, nesses �ltimos meses de gravidez, o roup�o coral macio a vestia perfeita
mente. Ela o havia encontrado, desembrulhado e levantado para mostr�-lo ao marido.
Mas faz tanto tempo que a sua irm� morreu!, exclamara, subitamente intrigada, e
por um instante ele tinha congelado, sorrindo, enquanto a mentira de um ano antes
zunia como uma ave escura pelo quarto. Ele encolheu os ombros na ocasi�o, sem
jeito. Eu tinha que dizer alguma coisa, argumentara. Tinha que descobrir um jeito de
saber seu nome. Ela sorriu ent�o, atravessando o quarto para abra��-lo.
A neve caiu. Nas horas seguintes, os dois leram e conversaram. �s vezes ela pegava
a m�o do marido e a punha sobre sua barriga para que ele sentisse o beb� se
mexer. De tempos em tempos, ele se levantava para ati�ar o fogo e dar uma olhada
pela janela para ver oito cent�metros de neve no ch�o, depois doze ou quinze. As
ruas estavam macias e silenciosas, e havia poucos carros.
�s 11 horas, ela se levantou do sof� e foi para a cama. Ele continuou no t�rreo,
lendo o �ltimo n�mero do Jornal de Cirurgia �ssea e Articular. Era reconhecido como
um �timo m�dico, com talento para o diagn�stico e fama de ser habilidoso no
trabalho. Formara-se em primeiro lugar em sua turma. No entanto, era t�o mo�o e
- embora o escondesse com muito cuidado - t�o inseguro de suas aptid�es que estudava
em todas as horas vagas, colecionando cada sucesso que obtinha como mais
uma prova a seu favor. Sentia-se uma aberra��o, por ter nascido com sede de saber
numa fam�lia absorta na simples luta pela sobreviv�ncia, dia ap�s dia. Eles viam a
instru��o como um luxo desnecess�rio, um meio que n�o levava a um fim seguro.
Pobres, sempre que iam ao m�dico, quando chegavam a faz�-lo, era na cl�nica de
Morgantown, a 80 quil�metros de dist�ncia. Eram v�vidas as lembran�as que ele
guardava dessas raras viagens, chacoalhando na traseira da caminhonete emprestada,
com a poeira voando em sua esteira. A estrada dan�ante, dizia sua irm�, que
ocupava a cabine com os pais. Em Morgantown, os c�modos eram sombrios, do
tom verde ou turquesa-escuro da �gua dos lagos, e os m�dicos eram apressados,
r�spidos com eles, distra�dos.
Passados todos esses anos, ele ainda vivia momentos em que sentia o olhar daqueles
m�dicos e se achava um impostor, prestes a ser desmascarado por um �nico erro.
Sabia que sua escolha da especialidade fora um reflexo disso. Para ele, nada da agita��o
ca�tica da cl�nica geral nem da tubula��o arriscada e delicada do cora��o. Ele
lidava sobretudo com membros quebrados, esculpindo moldes de gesso e examinando
radiografias, enquanto observava as fraturas se consolidarem, lenta mas
milagrosamente. Agradava-lhe o fato de os ossos serem coisas s�lidas, que sobreviviam
at� mesmo � incandesc�ncia da crema��o. Os ossos duravam; era-lhe f�cil
depositar confian�a em algo t�o s�lido e previs�vel.
Leu at� bem depois da meia-noite, at� as palavras tremeluzirem sem nenhum sentido
nas p�ginas luminosamente brancas, depois jogou a revista na mesa de centro
e se levantou para cuidar do fogo. Bateu nas toras queimadas e envoltas em chamas
at� que virassem borralho, abriu inteiramente o regulador da chamin� e fechou a
tela de metal da lareira. Depois que apagou as luzes, as pequenas brasas luziram
suaves por entre camadas de cinzas, delicadas e brancas como a neve, que agora se
empilhava, alta, sobre o gradil da varanda e as moitas de rododendros.
A escada rangeu sob seu peso. Ele parou junto � porta do quarto do beb�, estudando
as formas sombreadas do ber�o e do trocador de fraldas, os bichos de pel�cia
dispostos em prateleiras. As paredes estavam pintadas de um verde-�gua p�lido.
Sua mulher tinha feito a colcha de retalhos da Mam�e Ganso que pendia da parede
em frente, costurando-a com pontos min�sculos, desfazendo peda�os inteiros
quando notava a mais ligeira imperfei��o. Uma borda de ursinhos fora desenhada
logo abaixo do teto; tamb�m isso fora feito por ela.
Num impulso, ele entrou no quarto e parou diante da janela, afastando a cortina
transparente para olhar a neve, que agora atingia quase 20 cent�metros sobre os
postes de ilumina��o, as cercas e os telhados. Era o tipo de nevasca que raramente
acontecia em Lexington, e os flocos brancos e cont�nuos, aliados ao sil�ncio, encheram-
no de uma sensa��o de paz. Foi um momento em que todos os retalhos d�spares
de sua vida pareceram costurar-se, com todas as tristezas e decep��es passadas,
todos os segredos e incertezas angustiantes escondendo-se sob as camadas brancas e
macias. O dia seguinte seria quieto, com o mundo abrandado e fr�gil, at� que a meninada
da vizinhan�a sa�sse para romper a calma com sua correria, seus gritos e sua alegria.
Ele se lembrou de dias assim em sua pr�pria inf�ncia na montanha, raros
momentos de fuga em que ele entrava nos bosques, com a respira��o amplificada e a
voz de algum modo abafada pela neve densa que vergava os galhos at� o ch�o e se
espalhava pelas trilhas. O mundo, por algumas breves horas, transformava-se.
Ficou muito tempo parado ali, at� ouvi-la mexer-se, quase sem barulho.
Encontrou-a sentada na beira da cama, com a cabe�a inclinada e as m�os agarradas
ao colch�o.
- Acho que estou em trabalho de parto - ela disse, erguendo os olhos.
Estava com o cabelo solto, uma mecha presa no l�bio. Ele ajeitou-a de volta para
tr�s da orelha de sua mulher. Ela balan�ou a cabe�a quando o marido sentou-se a
seu lado.
- N�o sei. Estou me sentindo estranha. Uma sensa��o de c�ibra que vem e vai.
Ele a ajudou a deitar-se de lado e se deitou tamb�m, massageando-lhe as costas.
- Provavelmente � s� um alarme falso - garantiu-lhe. - Ainda faltam tr�s semanas,
afinal, e o primeiro filho costuma se atrasar.
Era verdade, ele sabia; acreditou nisso ao diz�-lo e, a rigor, teve tanta certeza que,
passado algum tempo, adormeceu. Acordou com a mulher em p� junto � cama,
sacudindo-lhe o ombro. O roup�o e o cabelo dela pareciam quase brancos na
estranha luz da neve que se infiltrava no quarto.
- Estou contando o tempo. Intervalos de cinco minutos. S�o dores fortes, e estou
com medo.
Nesse momento, uma onda o percorreu por dentro; o nervosismo e o medo
tomaram seu corpo como a espuma empurrada pela onda. Mas ele fora treinado a
manter a calma nas emerg�ncias, a controlar as emo��es, de modo que p�de levantar-
se sem nenhuma urg�ncia, pegar o rel�gio e caminhar com ela, devagar e serenamente,
de um lado para outro do corredor. Quando vinham as contra��es, ela lhe
apertava a m�o com tamanha for�a que ele tinha a sensa��o de que os ossos de seus
dedos se fundiriam. As contra��es vinham como a mulher tinha dito, a cada cinco
minutos, depois quatro. Ele tirou a mala do arm�rio, subitamente entorpecido pelo
car�ter decisivo daqueles acontecimentos, t�o esperados mas ao mesmo tempo t�o
surpreendentes. Continuou a se movimentar, tal como sua mulher, mas o mundo
entrou numa lenta calmaria a seu redor. Ele tinha aguda consci�ncia de cada gesto,
do modo como a respira��o se precipitava por sua l�ngua, do modo como sua esposa
cal�ou incomodamente os �nicos sapatos que ainda lhe serviam, com os p�s inchados
formando uma crista sobre o couro cinza-escuro. Ao segurar o bra�o dela, teve a
estranha sensa��o de estar suspenso no quarto, em algum ponto pr�ximo do lustre,
observando os dois de cima, notando cada nuance e cada detalhe: a maneira como
ela tremia a cada contra��o e como seus pr�prios dedos se fechavam, firmes e protetores,
em torno do cotovelo da mulher. E como, l� fora, a neve continuava a cair.
Ajudou-a a vestir o manto de l� verde, que pendeu desabotoado, escancarado na
altura da barriga. Achou as luvas de couro que ela tamb�m havia usado no dia em
que os dois tinham se visto pela primeira vez. Parecia-lhe importante cuidar desses
detalhes. Os dois pararam na varanda um instante, perplexos com aquele mundo
branco e macio.
- Espere aqui - disse ele, e desceu os degraus, abrindo caminho por entre os
montes de neve. As portas do velho carro estavam congeladas e foram precisos v�rios
minutos para abrir uma delas. Uma nuvem branca voou, cintilante, quando enfim a
porta se abriu, e ele tateou o piso do banco traseiro � procura do raspador e da escova
de neve. Quando emergiu do carro, sua mulher estava apoiada numa pilastra da
varanda, com a testa sobre os bra�os. Nesse momento, ele compreendeu a dor imensa
que ela sentia e tamb�m que o beb� ia mesmo chegar, chegar exatamente naquela
noite. Resistiu � �nsia intensa de correr para ela e, em vez disso, empenhou todas as
suas for�as em liberar o carro, aquecendo alternadamente uma das m�os e a outra
sob as axilas, quando a dor da friagem se acentuava, aquecendo-as, mas sem parar um
instante, escovando a neve do p�ra-brisa, das janelas e do cap� e vendo-a se espalhar
e desaparecer no fofo mar branco que lhe cercava as panturrilhas.
- Voc� n�o me contou que ia doer tanto assim - disse ela, quando o marido
chegou � varanda. Ele lhe passou o bra�o em volta dos ombros e a ajudou a descer
a escada.
- Eu posso andar - insistiu ela. - � s� quando vem a dor.
- Eu sei - retrucou ele, mas n�o a soltou.
Quando chegaram ao carro, ela o tocou no bra�o e apontou para a casa, encoberta
pela neve e luzindo como uma lanterna na escurid�o da rua.
- Quando voltarmos, traremos nosso beb� conosco - disse. - Nosso mundo
nunca mais ser� o mesmo.
Os limpadores de p�ra-brisa estavam congelados e a neve deslizou pelo vidro traseiro
quando ele arrancou em dire��o � rua. Foi dirigindo devagar, pensando em
como Lexington estava bonita, com as �rvores e sebes carregadas de neve. Quando
entrou na rua principal, as rodas deslizaram no gelo e o carro derrapou no cruzamento,
fluido, por um breve instante, e parou junto a um banco de neve.
- Est� tudo bem - anunciou ele, com a cabe�a a mil. Por sorte, n�o havia nenhum
outro carro � vista. O volante estava duro e frio feito pedra entre suas m�os nuas. De
vez em quando, ele limpava o p�ra-brisa com as costas da m�o e se inclinava para
olhar pelo buraco que tinha feito. - Liguei para o Bentley antes de sairmos - informou,
referindo-se a seu colega obstetra. - Disse para ele nos encontrar no consult�rio.
� para l� que n�s vamos. � mais perto.
Ela ficou calada por um momento, com a m�o agarrada ao painel de instrumentos,
enquanto respirava para enfrentar outra contra��o. - Desde que eu n�o tenha
meu beb� neste carro velho - conseguiu dizer, tentando brincar. - Voc� sabe que eu
sempre o detestei.
Ele sorriu, mas sabia que o medo da mulher era real, e o compartilhava.
Met�dico, objetivo: nem mesmo numa emerg�ncia ele modificava sua natureza.
Parou em todos os sinais luminosos, usou as setas para sinalizar nas ruas desertas. A
intervalos de minutos, ela tornava a firmar uma das m�os no painel e se concentrava
na respira��o, o que o fazia engolir em seco e olh�-la de soslaio, mais nervoso
nessa noite do que se lembrava de jamais ter estado. Mais nervoso do que em sua
primeira aula de anatomia, com o corpo de um rapazinho escancarado para revelar
seus segredos. Mais nervoso do que no dia do casamento, com a fam�lia dela enchendo
um dos lados da igreja e, no outro, apenas um punhado de colegas seus. Os pais
dele haviam morrido, sua irm� tamb�m.
Havia um �nico carro no estacionamento da cl�nica -o Fairlane azul-claro da
enfermeira, conservador, pragm�tico e mais novo que o dele. O m�dico tamb�m a
havia chamado. Parou em frente � entrada e ajudou sua mulher a descer do carro.
Agora que tinham chegado ao consult�rio em seguran�a, estavam ambos animados,
rindo ao avan�arem para as luzes brilhantes da sala de espera.
A enfermeira veio a seu encontro. No instante em que a viu, ele percebeu que
havia algo errado. A mulher tinha grandes olhos azuis, num rosto p�lido que poderia
ter 40 ou 25 anos, e, sempre que alguma coisa n�o lhe agradava, uma linha vertical
fina formava-se em sua testa, bem entre os olhos. A linha estava l� e ela lhes deu
a not�cia: o carro de Bentley sa�ra de traseira na estrada rural em que ele morava,
cuja neve n�o fora retirada, rodara duas vezes no gelo sob a neve e tinha ca�do numa
vala.
- Voc� est� dizendo que o Dr. Bentley n�o vem? - perguntou a esposa.
A enfermeira fez que sim. Era alta, t�o magra e angulosa que os ossos pareciam
prestes a lhe perfurar a pele a qualquer momento. Os grandes olhos azuis eram
solenes e inteligentes. Durante meses houvera boatos e piadas, dizendo que ela
estaria meio apaixonada pelo m�dico. Ele os havia descartado como mexericos de
trabalho, aborrecidos mas naturais quando um homem e uma mulher solteira trabalham
numa proximidade t�o estreita, dia ap�s dia. E ent�o, uma noite, ele havia
adormecido em sua escrivaninha. Sonhara com os tempos de sua casa da inf�ncia,
com a m�e arrumando potes de frutas que brilhavam como j�ias na mesa coberta
de oleado, embaixo da janela. Sua irm� de cinco anos estava sentada, segurando uma
boneca com a m�ozinha fraca. Fora uma imagem passageira, talvez uma lembran�a,
mas que o enchera simultaneamente de tristeza e saudade. Agora a casa era dele, mas
estava vazia, deserta desde a morte de sua irm� e a mudan�a de seus pais, abandonados
os c�modos que a m�e havia esfregado at� deix�-los com um brilho opaco,
ocupados apenas pelo farfalhar dos esquilos e dos camundongos.
Havia l�grimas em seus olhos quando ele os abriu, levantando a cabe�a da
escrivaninha. A enfermeira estava parada no v�o da porta, com o rosto enternecido
de emo��o. Estava bonita naquele momento, com um meio sorriso, e n�o tinha nada
da mulher eficiente que trabalhava todos os dias a seu lado, silenciosa e competente.
Seus olhos se encontraram e, para ele, foi como se a conhecesse - como se eles conhecessem
um ao outro - de uma forma profunda e segura. Por um instante, absolutamente
nada se interp�s entre os dois; foi uma intimidade de tal magnitude que
ele ficou im�vel, siderado. Depois, ela enrubesceu intensamente e desviou o olhar.
Pigarreou e se empertigou, dizendo ter feito duas horas extras e estar de sa�da. Por
muitos dias, seus olhos n�o cruzaram com os dele.
Depois disso, quando as pessoas implicavam com ele por causa da enfermeira, ele
as fazia parar. Ela � uma excelente enfermeira, dizia, erguendo uma das m�os para
barrar as piadas, em homenagem ao momento de comunh�o que os dois haviam
compartilhado. Ela � a melhor com quem j� trabalhei. Era verdade, e, nesse momento,
ele ficou muito contente por t�-la a seu lado.
- Que tal o pronto-socorro? - perguntou a enfermeira. - Voc�s conseguem chegar l�?
Ele abanou a cabe�a. As contra��es tinham intervalos de apenas um minuto, mais
ou menos.
- Esse beb� n�o vai esperar - disse, olhando para sua mulher. A neve derretera no
cabelo dela e reluzia como uma tiara de brilhantes. - Esse beb� est� chegando.
- Tudo bem - disse sua mulher, est�ica. Tinha a voz mais dura nesse momento,
decidida. - Ser� uma hist�ria melhor para contar quando ele crescer, ele ou ela.
A enfermeira sorriu, com a linha entre os olhos ainda vis�vel, por�m mais t�nue.
- Ent�o, vamos levar voc� para dentro - disse. - Vamos ajud�-la um pouco com a dor.
Ele foi buscar um jaleco em seu consult�rio e, quando entrou na sala de exames
de Bentley, sua mulher estava deitada na cama, com os p�s nos suportes. O c�modo
era azul-claro, repleto de cromados, esmaltados brancos e instrumentos delicados de
a�o reluzente. Ele foi at� a pia e lavou as m�os. Sentia-se extremamente alerta, c�nscio
dos mais �nfimos detalhes, e, ao executar esse ritual corriqueiro, notou que o
p�nico diante da aus�ncia de Bentley come�ava a diminuir. Fechou os olhos, obrigando-
se a se concentrar em sua tarefa.
- Est� tudo evoluindo - disse a enfermeira, quando ele se virou. - Parece tudo
bem. Eu diria que ela est� com 10 cent�metros; veja o que acha.
Ele se sentou na banqueta e introduziu a m�o na caverna morna e macia do corpo
de sua mulher. O saco amni�tico ainda estava intacto e, atrav�s dele, foi poss�vel sentir
a cabe�a do beb�, lisa e dura como uma bola de beisebol. Seu filho. Ele deveria
estar andando de um lado para outro numa sala de espera qualquer. Do outro lado
da sala, a persiana estava fechada sobre a �nica janela e, ao retirar a m�o do calor do
corpo de sua mulher, ele pensou na neve, se ela continuava a cair, silenciando a
cidade e o campo mais al�m.
- Sim - concordou. - Dez cent�metros.
- Phoebe - disse sua mulher. Ele n�o lhe via o rosto, mas a voz era clara. Fazia
meses que os dois discutiam nomes, e n�o haviam chegado a nenhuma conclus�o.
- Se for menina, Phoebe. E, se for menino, Paul, em homenagem ao meu tio-av�. Eu
lhe contei isso? - perguntou. - Pretendia lhe contar que eu tinha decidido.
- S�o nomes bonitos - disse a enfermeira, tranquilizadora.
- Phoebe e Paul - repetiu ele, mas estava concentrado na nova contra��o que se
avolumava no corpo da mulher. Fez um gesto para a enfermeira, que aprontou o g�s
anest�sico. Durante seus anos de resid�ncia, a norma era anestesiar completamente
a mulher em trabalho de parto, at� terminar a expuls�o, mas os tempos haviam
mudado - era 1964 - e Bentley, ele sabia, usava o g�s de modo mais seletivo. Era
melhor que ela ficasse acordada para fazer for�a; ele a anestesiaria nas contra��es
piores, na etapa da coroa��o e na expuls�o. Sua mulher ficou tensa e gritou, e o beb�
se deslocou no canal vaginal, rompendo o saco amni�tico.
- Agora - disse o m�dico, e a enfermeira posicionou a m�scara. As m�os da parturiente
relaxaram e os punhos se abriram, � medida que o g�s anest�sico fez efeito,
e ela permaneceu im�vel, tranq�ila e inconsciente, enquanto seu corpo era perpassado
por mais uma contra��o, depois outra.
- Est� vindo r�pido, para um primeiro filho - comentou a enfermeira.
- � - assentiu o m�dico. - At� aqui, tudo bem.
Assim se passou meia hora. Sua mulher despertava, gemia e fazia for�a e, quando
ele achava que tinha sido o bastante - ou quando ela gritava que a dor era insuport�vel
�, fazia sinal para a enfermeira, que aplicava o g�s. Exceto por essa troca
silenciosa de instru��es, os dois n�o falavam. L� fora, a neve continuava a cair,
descendo pelos lados das casas, enchendo as ruas. O m�dico sentou-se numa cadeira
de a�o inoxid�vel, reduzindo o foco de sua concentra��o aos fatos essenciais. Fizera
cinco partos durante o curso de medicina, todos bem-sucedidos e com beb�s
saud�veis, e nesse momento se concentrou neles, buscando na mem�ria os detalhes
do atendimento. Ao faz�-lo, sua mulher, deitada com os p�s nos estribos e a barriga
t�o alta que ele n�o conseguia ver seu rosto, fundiu-se aos poucos com aquelas outras
mulheres. Seus joelhos redondos, as panturrilhas lisas e estreitas, os tornozelos,
tudo t�o conhecido e amado, diante dele. Mas ele n�o pensou em lhe afagar a pele
nem em p�r a m�o reconfortante sobre seu joelho. Foi a enfermeira quem segurou a
m�o dela enquanto a mulher fazia for�a. Para o m�dico, concentrado no que tinha
imediatamente pela frente, ela se tornou n�o apenas ela mesma, por�m mais do que
ela: um corpo como os outros, uma paciente cujas necessidades ele precisava atender
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com todas as suas habilidades t�cnicas. Era necess�rio, mais necess�rio que de h�bito,
manter as emo��es sob controle. Com o correr do tempo, o estranho momento que
ele vivenciara no quarto dos dois voltou-lhe � lembran�a. Ele come�ou a se sentir
como se, de algum modo, estivesse distante daquela cena de parto, ao mesmo tempo
presente, mas tamb�m flutuando noutro lugar, observando de uma dist�ncia segura.
Observou-se fazendo a incis�o cuidadosa e precisa da episiotomia. Bem-feita, pensou
consigo mesmo, enquanto o sangue brotava num filete perfeito, e n�o se permitiu
rememorar as vezes em que tocara aquela mesma carne com paix�o.
A cabe�a come�ou a despontar. Com mais tr�s impulsos, emergiu e, em seguida,
o corpo escorregou para suas m�os expectantes e o beb� chorou, com a pele azul tornando-
se rosada.
Era um menino, de rosto vermelho e cabelos escuros, olhos alertas, desconfiado
das luzes e do impacto frio e vivo do ar. O m�dico amarrou e cortou o cord�o umbilical.
Meu filho, permitiu-se pensar. Meu filho.
- � lindo - disse a enfermeira. Ela aguardou enquanto o m�dico examinava o menino,
observando as batidas regulares do cora��o, r�pidas e seguras, as m�os de dedos
longos e a cabeleira escura. Depois, ela levou o beb� at� o c�modo ao lado para banh�-
lo e pingar nitrato de prata em seus olhos. Os gritinhos chegaram at� eles e a esposa
se mexeu. O m�dico ficou onde estava, com a m�o sobre o joelho dela, respirando
fundo v�rias vezes, � espera da expuls�o da placenta. Meu filho, tornou a pensar.
- Onde est� o beb�? - perguntou sua mulher, abrindo os olhos e afastando o cabelo
do rosto enrubescido. - Est� tudo bem?
- � menino - disse o m�dico, sorrindo para ela. - Temos um filho. Voc� vai v�-lo
assim que ele estiver limpo. � absolutamente perfeito.
O rosto de sua esposa, suavizado pelo al�vio e pelo cansa�o, de repente tensionouse
com outra contra��o, e o m�dico, esperando a placenta, voltou para a banqueta
entre as pernas dela e fez uma leve press�o em seu abd�men. Ela deu um grito e, no
mesmo instante, ele compreendeu o que estava acontecendo, t�o perplexo quanto se
de repente aparecesse uma janela numa parede de concreto.
- Est� tudo bem - disse-lhe. - Tudo �timo. Enfermeira! - chamou, enquanto se
acentuava a contra��o seguinte.
A enfermeira veio de imediato, carregando o beb�, agora envolto em mantas
brancas.
- Nota nove no Apgar - anunciou. - Isso � �timo.
A parturiente estendeu os bra�os para o beb� e come�ou a falar, mas foi apanhada
pela dor e tornou a reclinar o corpo.
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- Enfermeira - disse o m�dico. - Preciso de voc� aqui. J�.
Ap�s um momento de confus�o, a enfermeira p�s dois travesseiros no ch�o, acomodou
o beb� sobre eles e se aproximou do m�dico junto � mesa.
- Mais g�s - disse ele. Percebeu a surpresa da mo�a e seu aceno r�pido de compreens�o,
j� obedecendo. O m�dico estava com a m�o pousada no joelho de sua
mulher e sentiu a tens�o nos m�sculos dela relaxar-se sob o efeito do g�s.
- G�meos? - indagou a enfermeira.
O m�dico, que se deixara relaxar ap�s o nascimento do menino, sentia-se abalado
nesse momento e n�o confiou em fazer nada al�m de um aceno com a cabe�a.
Firme, disse a si mesmo, quando a cabe�a seguinte despontou. Voc� est� num lugar
qualquer, pensou, observando de um ponto t�nue no teto, enquanto suas m�os trabalhavam
com m�todo e precis�o. Isto � um parto qualquer.
O segundo beb� era menor e saiu com facilidade, deslizando t�o depressa para
suas m�os enluvadas que ele inclinou o tronco para a frente, usando o peito para se
certificar de que a crian�a n�o ca�sse.
- � uma menina - disse, e aninhou-a como uma bola, de bru�os, dando-lhe tapinhas
nas costas at� ela chorar. Em seguida, virou-a para ver seu rosto.
O �mnio branco e cremoso envolvia sua pele delicada e ela estava escorregadia, por
causa do l�quido amni�tico e dos vest�gios de sangue. Os olhos azuis eram nublados e
o cabelo negro feito piche, por�m ele mal notou esses detalhes. O que viu foram os tra�os
inconfund�veis, os olhos repuxados como que numa risada, a prega epic�ntica entre
as p�lpebras, o nariz achatado. Um caso cl�ssico, lembrou-se de um professor dizendo,
anos antes, ao examinarem uma crian�a similar. Mongol�ide. Sabe o que significa isso?
E ele, compenetrado, recitara os sintomas que havia decorado de um livro: t�nus
muscular fl�cido, retardo no crescimento e no desenvolvimento mental, poss�veis complica��es
card�acas, morte prematura. O professor assentira com a cabe�a, pondo o estetosc�pio
no peito liso e nu do beb�. Pobre crian�a. N�o h� nada que eles possam fazer,
exceto procurar mant�-la limpa. Deviam poupar-se e mand�-la para uma institui��o.
O m�dico sentiu-se transportar para o passado. Sua irm� tinha nascido com uma
malforma��o card�aca e crescera muito devagar, com a respira��o entrecortada em
pequenos arquejos toda vez que tentava correr. Durante muitos anos, at� a primeira
viagem � cl�nica de Morgantown, eles n�o tinham sabido qual era o problema. Ent�o
souberam, e n�o houve nada que pudessem fazer. Todas as aten��es da m�e tinham
ido para a menina, mas, mesmo assim, ela havia morrido aos 12 anos. Na �poca, o
m�dico tinha 16 e morava na cidade para freq�entar o cient�fico, j� a caminho de
Pittsburgh, da faculdade de medicina e da vida que levava agora. No entanto, lem
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brava-se da intensidade e da persist�ncia da tristeza de sua m�e, de seu jeito de subir
a colina todas as manh�s para ir at� o t�mulo, com os bra�os cruzados no peito, em
qualquer temperatura que fizesse.
A enfermeira parou a seu lado e examinou o beb�.
- Sinto muito, doutor - disse.
Ele segurou a crian�a, esquecendo-se do que devia fazer a seguir. As m�os min�sculas
eram perfeitas. Mas ali estava o espa�o entre o ded�o do p� e os outros, como
um dente faltando, e, ao olhar fundo nos olhos da menina, ele viu as manchas de
Brushfield, min�sculas e n�tidas como salpicos de neve na �ris. Imaginou o cora��o
dela, do tamanho de uma ameixa e, muito possivelmente, malformado, e pensou no
quarto do beb�, t�o cuidadosamente pintado, com seus bichos macios e um �nico
ber�o. Pensou na esposa parada na cal�ada, diante da casa coberta pelo v�u luminoso
de neve, dizendo: Nosso mundo nunca mais ser� o mesmo.
A m�o do beb� ro�ou na sua e ele se assustou. Sem vontade, come�ou a executar
os procedimentos conhecidos. Cortou o cord�o e verificou o cora��o e os pulm�es.
Pensava o tempo todo na neve, no carro prateado deslizando para uma vala, na profunda
quietude da cl�nica deserta. Mais tarde, ao pensar nessa noite - e pensaria nela
muitas vezes, nos meses e anos seguintes: o momento decisivo de sua vida, em torno
de cujos instantes sempre giraria todo o resto �, o que lembrou foi o sil�ncio da sala
e a neve caindo l� fora, ininterrupta. O sil�ncio era t�o profundo e envolvente que
ele se sentiu flutuar para uma nova altura, um ponto acima e al�m daquele c�modo,
onde ele se fundia com a neve e a cena da sala era algo que se desdobrava numa
vida diferente, uma vida de que ele era um espectador fortuito, como uma cena vislumbrada
por uma janela muito iluminada quando se anda por uma rua escura. Era
isso que ele recordaria, essa sensa��o de espa�o infinito. O m�dico na vala e as luzes
de sua pr�pria casa brilhando ao longe.
- Muito bem. Limpe-a, por favor - disse, depositando o fr�gil beb� nos bra�os da
enfermeira. - Mas deixe-a na outra sala. N�o quero que minha mulher saiba. N�o
de imediato.
A enfermeira fez que sim. Desapareceu e retornou para colocar o menino no
mois�s que havia trazido. A essa altura, o m�dico estava dedicado � expuls�o das placentas,
que sa�ram lindamente, escuras e densas, cada qual do tamanho de um pratinho.
G�meos fraternos, masculino e feminino, um visivelmente perfeito, a outra
marcada por um cromossomo extra em cada c�lula do corpo. Que probabilidade
havia de acontecer uma coisa dessas? Seu filho estava no mois�s, mexendo as m�os
de quando em quando, fluidas e aleat�rias, como os r�pidos movimentos aqu�ticos
do �tero. O m�dico injetou um sedativo em sua mulher e se abaixou para suturar a
episiotomia. Estava quase amanhecendo, com uma luz t�nue a se infiltrar pelas
janelas. Ele observou os movimentos das pr�prias m�os, pensando em como os
pontos estavam sendo bem-feitos, min�sculos como os dela, igualmente caprichados
e uniformes. Ela havia arrancado um painel inteiro da colcha de retalhos por
causa de um erro, invis�vel para o marido.
Ao terminar, o m�dico encontrou a enfermeira sentada numa cadeira de balan�o
na sala de espera com a menininha no colo. Ela o fitou sem dizer palavra e ele se
lembrou da noite em que a mo�a o observara durante seu sono.
- Existe um lugar - disse ele, escrevendo o nome e o endere�o no verso de um envelope.
- Eu gostaria que voc� a levasse para l�. Quando houver clareado, quero dizer.
Vou emitir a certid�o de nascimento e telefono para avisar que voc� est� a caminho.
- Mas, e a sua mulher... - disse a enfermeira, e ele ouviu, do local distante em que
se achava, a surpresa e a reprova��o na voz dela.
Pensou na irm�, p�lida e magra, tentando recobrar o f�lego, e na m�e voltada
para a janela para esconder as l�grimas.
- Voc� n�o percebe? - perguntou, com voz suave. - O mais prov�vel � que essa
pobre crian�a tenha uma grave malforma��o card�aca. Um problema fatal. Estou
tentando poupar-nos a todos de uma afli��o terr�vel.
Falou com convic��o. Acreditava em suas pr�prias palavras. A enfermeira continuou
sentada, olhando-o fixamente, com uma express�o de surpresa, mas, afora isso,
indecifr�vel, enquanto ele aguardava sua resposta afirmativa. No estado de �nimo
em que se encontrava, n�o lhe ocorreu que ela pudesse responder de outro modo.
Ele n�o imaginou, como faria mais tarde nessa noite, e em muitas noites subseq�entes,
a que ponto estava pondo tudo em risco. Em vez disso, impacientou-se com
a lentid�o da enfermeira e sentiu um grande e s�bito cansa�o, e a cl�nica, t�o familiar,
pareceu-lhe estranha a seu redor, como se ele andasse num sonho. A mo�a o estudou,
com seus olhos azuis indecifr�veis. Ele retribuiu o olhar, resoluto, e por fim
ela acenou com a cabe�a, num movimento t�o leve que foi quase impercept�vel.
- A neve - murmurou ela, baixando os olhos.
Mas a tempestade come�ou a se abrandar ali pelo meio da manh�, e os sons distantes
das p�s arranharam o ar quieto. Da janela do segundo andar, ele viu a enfer
meira bater a neve de seu carro azul-claro e partir para o mundo branco e macio. O
beb� estava escondido, adormecido numa caixa forrada de cobertores, no banco ao
lado dela. O m�dico a viu virar � esquerda na rua e desaparecer. Em seguida, foi sentar-
se com sua fam�lia.
Sua mulher dormia, com o cabelo dourado derramando-se sobre o travesseiro.
De tempos em tempos, o m�dico cochilava. Acordando, olhou para o estacionamento
vazio e observou a fuma�a que subia das chamin�s do outro lado da rua, enquanto
preparava as palavras que diria. Que n�o era culpa de ningu�m, que a filha deles
estaria em boas m�os, com pessoas iguais a ela e com atendimento ininterrupto.
Que seria melhor assim para todos.
No fim da manh�, quando parou inteiramente de nevar, seu filho chorou de fome
e sua mulher acordou.
- Cad� o nen�m? - perguntou ela, apoiando-se nos cotovelos e afastando o cabelo
do rosto. Ele segurava o filho, quente e leve, e se sentou ao lado da esposa, acomodando
o beb� em seus bra�os.
- Oi, meu amor - disse-lhe. - Olhe o nosso lindo filho. Voc� foi muito valente.
Ela beijou o nen�m na testa, abriu o roup�o e lhe ofereceu o seio. O menino o
pegou no mesmo instante, e a mulher ergueu os olhos e sorriu. O m�dico segurou
sua m�o livre, lembrando-se da for�a com que ela o havia apertado, imprimindo os
ossos dos dedos em sua carne. Lembrou-se do quanto havia desejado proteg�-la.
- Est� tudo bem? - perguntou ela. - Querido? O que foi?
- N�s tivemos g�meos - ele lhe disse devagar, pensando nas cabeleiras pretas, nos
corpos escorregadios movendo-se em suas m�os. As l�grimas lhe encheram os
olhos. - Um casal.
- Oh! - fez a mulher. - Uma menininha tamb�m? Phoebe e Paul. Mas onde est� ela?
Seus dedos eram t�o finos, pensou o marido, pareciam ossos de passarinho.
- Minha querida - come�ou. A voz falhou e as palavras que ele ensaiara com
tanto cuidado desapareceram. Ele fechou os olhos e, quando conseguiu falar novamente,
vieram outras palavras, n�o planejadas.
- Ah, meu amor - disse-lhe. - Eu sinto muito, muito. A nossa filhinha morreu no
parto.
II
AROLINE GILL ATRAVESSOU O ESTACIONAMENTO COM CUIDADO,
chapinhando desajeitadamente. A neve subia at� suas panturrilhas; em
alguns pontos, at� os joelhos. Ela carregava o beb�, envolto em mantas, dentro de
uma caixa de papel�o antes usada para entregar no consult�rio amostras de leite
para rec�m-nascidos. A caixa trazia estampas de letras vermelhas e rostos angelicais
de beb�s, e as abas subiam e desciam a cada passo. Havia uma quietude crescente e
antinatural no estacionamento quase deserto, um sil�ncio que parecia originar-se
no pr�prio frio, expandir-se no ar e se espalhar como as ondula��es de uma pedra
atirada na �gua. Uma rajada de neve fustigou seu rosto quando ela abriu a porta do
carro. De forma instintiva, protetora, ela se curvou sobre a caixa e a colocou no
banco traseiro, onde as mantas cor de rosa ca�ram, macias, sobre o vinil branco do
estofamento. A nen�m dormia, um sono intenso e absorto de rec�m-nascido, com o
rosto contra�do, os olhos parecendo simples ranhuras, o nariz e o queixo meras protuber�ncias.
Ningu�m diria, pensou Caroline. Se n�o soubesse, n�o diria. A enfermeira
lhe dera nota oito no Apgar.
As ruas da cidade tinham sido mal desobstru�das pelos limpa-neves e estavam
dif�ceis de trafegar. Por duas vezes o carro derrapou e por duas vezes Caroline quase
deu meia-volta. Mas a estrada interestadual estava mais livre e, ao chegar a ela, a enfermeira
seguiu num ritmo regular, passando pelos arredores industriais de Lexington
e entrando nas eleva��es e depress�es suaves da zona rural onde ficavam os
haras. Ali, quil�metros de cercas brancas produziam sombras n�tidas na neve e os
cavalos postavam-se escuros nos campos. O c�u carregado parecia ter vida, com suas
nuvens gordas e cinzentas. Caroline ligou o r�dio, procurou uma esta��o em meio �
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est�tica e o desligou. O mundo passava c�lere do lado de fora, corriqueiro e profundamente
mudado.
Desde o instante em que balan�ara a cabe�a, num vago aceno de concord�ncia
com o surpreendente pedido do Dr. Henry, Caroline tinha a sensa��o de estar despencando
no ar em c�mera lenta, � espera de bater no ch�o e descobrir onde se encontrava.
O que ele lhe pedira - que levasse embora sua filha rec�m-nascida, sem
contar � mulher sobre o nascimento da menina - parecia-lhe inomin�vel. Mas Caroline
se comovera com a dor e a confus�o estampadas no rosto dele ao examinar a
filha, com a maneira lenta e entorpecida como ele passara a se mover daquele momento
em diante. O Dr. Henry n�o tardaria a cair em si, disse a si mesma. Estava em
choque, e quem poderia censur�-lo? Afinal, fizera o parto de seus pr�prios g�meos
em meio a uma nevasca - e, agora, isso.
Caroline aumentou a velocidade, enquanto as imagens da madrugada a perpassavam
como uma corrente. O Dr. Henry, trabalhando com serena habilidade, seus
gestos concentrados e precisos. Os p�los escuros entre as coxas alvas de Norah Henry
e sua imensa barriga, ondulando-se com as contra��es como um lago sob o vento. O
sibilar quase silencioso do g�s anest�sico e o instante em que o Dr. Henry a chamara,
com a voz clara, mas tensa, e o rosto t�o abalado que ela tivera certeza de que o segundo
beb� era natimorto. Caroline havia esperado que o m�dico se mexesse, que tentasse
ressuscitar o beb�. E, quando ele n�o o tinha feito, viera-lhe a id�ia s�bita de que devia
aproximar-se, ser testemunha, para que depois pudesse atestar: Sim, o beb� estava
cian�tico, o Dr. Henry tentou, n�s dois tentamos, mas n�o havia nada a fazer.
Mas ent�o o beb� havia chorado, e o choro a atra�ra para o lado dele. Caroline
tinha olhado e compreendido.
Ela continuou a dirigir, recha�ando as lembran�as. A estrada cortou o calc�rio e
o c�u se afunilou. Caroline atingiu o topo da pequena colina e come�ou a longa
descida em dire��o ao rio l� embaixo. Atr�s dela, na caixa de papel�o, a nen�m continuava
a dormir. Ela a olhava por cima do ombro de vez em quando, ao mesmo tempo
tranq�ila e aflita por perceber que a menina n�o se mexia. Esse sono, lembrou a
si mesma, era normal depois do esfor�o de vir ao mundo. Ela pensou em seu pr�prio
nascimento e se perguntou se teria dormido t�o profundamente nas horas
seguintes, mas fazia muito tempo que seus pais estavam mortos; n�o havia ningu�m
que se lembrasse daqueles momentos. Sua m�e j� passara dos 40 na �poca de seu
nascimento, e seu pai tinha 52 anos. Fazia muito que os dois haviam desistido de
esperar um filho e aberto m�o de qualquer esperan�a ou expectativa, e at� do pesar.
Levavam uma vida ordeira, calma, satisfeita.
At� que, num susto, Caroline havia chegado, uma flor brotando da neve.
Eles a haviam amado, com certeza, mas fora um amor apreensivo, circunspecto e
intenso, entremeado de cataplasmas, meias quentes e �leo de r�cino. Nos ver�es
quentes e parados, quando havia o temor da poliomielite, Caroline era obrigada a
ficar dentro de casa, com o suor brotando em gotas das t�mporas quando ela se deitava
para ler no sof�-cama do corredor de cima, junto � janela. As moscas zumbiam no
vidro e ca�am mortas no parapeito. L� fora, a paisagem tremeluzia sob a luminosidade
e o calor, e as crian�as da vizinhan�a, crian�as cujos pais eram mais mo�os e,
portanto, menos familiarizados com a possibilidade da desgra�a, gritavam umas com
as outras ao longe. Caroline encostava o rosto e as pontas dos dedos na tela, ouvindo.
Ansiando. No ar parado, o suor encharcava os ombros de sua blusa de algod�o e
o c�s bem passado de sua saia. L� embaixo, no jardim, de luvas, avental comprido e
chap�u, sua m�e arrancava ervas daninhas. Mais tarde, ao anoitecer, seu pai voltava a
p� do escrit�rio da companhia de seguros e tirava o chap�u ao entrar na casa quieta,
de persianas fechadas. Sob o palet�, tinha a camisa manchada e �mida.
Caroline cruzou a ponte sobre os meandros do rio Kentucky, cantando os pneus,
enquanto a alta carga de energia da noite anterior ia se desfazendo. Tornou a olhar
para o beb�. Norah Henry com certeza iria querer segurar essa crian�a, mesmo que
n�o pudesse ficar com ela.
E, com certeza, isso n�o era da conta de Caroline.
Mas ela n�o deu meia-volta. Tornou a ligar o r�dio - dessa vez, achou uma esta��o
de m�sica cl�ssica - e continuou dirigindo.
Passados uns 30 quil�metros de Louisville, consultou as instru��es do Dr. Henry,
escritas em sua letra mi�da e n�tida, e saiu da auto-estrada. Ali, bem pertinho do rio
Ohio, os galhos mais altos das �rvores resplandeciam com o gelo, embora as estradas
estivessem desobstru�das e secas. Cercas brancas bordejavam os campos cobertos de
neve e cavalos moviam-se feito sombras atr�s delas, formando nuvens no ar com seu
bafo. Caroline entrou numa estrada ainda menor, onde a terra se estendia sem barreiras.
Logo adiante, ap�s um quil�metro e meio de p�lidas colinas, avistou o pr�dio
de tijolos vermelhos, constru�do na virada do s�culo, com duas incongruentes
alas modernas e baixas. De quando em quando, ele desaparecia, � medida que
Caroline seguia as curvas e descidas da estradinha rural, e, de repente, surgiu � sua
frente.
Ela parou na entrada circular para autom�veis. Vista de perto, a casa antiga parecia
levemente decr�pita. A pintura descascava nos acabamentos de madeira e, no
terceiro andar, uma janela tinha sido coberta com compensado - vidros partidos, es
corados por t�buas de madeira. Caroline desceu do carro. Usava um par de velhos
sapatos rasos, de sola fina e desgastada, guardados no arm�rio e cal�ados �s pressas,
no meio da madrugada anterior, quando ela n�o conseguira encontrar suas botas. O
cascalho a espetava atrav�s da neve e seus p�s se enregelaram de imediato. Ela pendurou
no ombro a bolsa que havia preparado, com fraldas e uma garrafa t�rmica
com leite aquecido, pegou a caixa com o beb� e entrou no pr�dio. Lampi�es de vitral,
que h� muito n�o eram polidos, ladeavam a porta de entrada. Havia uma porta
interna de vidro fosco e, em seguida, um vest�bulo de carvalho escuro. O ar quente,
recendendo aos aromas que vinham da cozinha - cenouras, cebolas e batatas -, rodopiava
apressado � sua volta. Caroline foi andando, hesitante, com as t�buas do
piso rangendo a cada passo, mas n�o apareceu ningu�m. Uma passadeira pu�da
cruzava um piso de t�buas corridas e levava, nos fundos da casa, a uma sala de
espera com janelas altas e cortinas pesadas. Ela se sentou na beirada de um sof�
de veludo surrado, com a caixa junto de si, e aguardou.
O c�modo estava superaquecido. Ela desabotoou o casaco. Ainda usava seu uniforme
branco de enfermeira e, ao p�r a m�o no cabelo, percebeu que ainda estava
tamb�m com sua touca branca e dura. Na v�spera, ela se levantara de imediato com
o telefonema do Dr. Henry, vestira-se depressa e sa�ra pela nevasca noturna, e ainda
n�o tinha parado desde ent�o. Soltou a touca, dobrou-a com cuidado e fechou os
olhos. Ao longe havia um barulho de talheres e vozes cantarolando. Acima dela ressoavam
passos. Caroline devaneou a m�e a preparar uma refei��o num dia festivo,
enquanto o pai trabalhava em sua oficina de marcenaria. Ela tivera uma inf�ncia
solit�ria, �s vezes at� demais, por�m ainda guardava algumas lembran�as: uma
colcha de retalhos especial, segurada com for�a, um tapetinho com rosas sob os p�s,
a teia de vozes que s� a ela pertenciam.
Ao longe, uma sineta soou duas vezes. Preciso de voc� aqui, j�, dissera o Dr. Henry,
com tens�o e urg�ncia na voz. E Caroline tinha se apressado, improvisando a desajeitada
cama de travesseiros e segurando a m�scara sobre o rosto da Sra. Henry,
enquanto o segundo g�meo, essa menininha, deslizava para o mundo e punha alguma
coisa em movimento.
Em movimento. Sim, era imposs�vel det�-lo. Mesmo sentada ali, naquele sof�, na
quietude daquele lugar, mesmo enquanto aguardava, Caroline perturbava-se com a
sensa��o de que o mundo bruxuleava, de que as coisas se recusavam a ficar im�veis.
� isto'?, dizia o refr�o em sua mente. � isto, depois de todos esses anos?
Caroline Gill tinha 31 anos e h� muito esperava que sua vida real come�asse. N�o
que algum dia ela houvesse formulado efetivamente essa id�ia. Desde a inf�ncia, no
entanto, sentira que sua vida n�o seria banal. Chegaria um momento - ela o reconheceria
ao v�-lo - em que tudo se modificaria. Ela havia sonhado ser uma grande
pianista, mas a ilumina��o do palco da escola secund�ria era por demais diferente
das luzes de casa, e ela tinha congelado sob seu brilho ofuscante. Depois, por volta
dos 20 anos, enquanto suas amigas da escola de enfermagem come�avam a se casar
e construir fam�lia, Caroline tamb�m havia encontrado rapazes a quem admirar, em
especial um deles, de cabelo preto, pele clara e riso gutural. Durante um per�odo
on�rico havia imaginado que ele - e, quando ele n�o telefonou, alguma outra pessoa
- transformaria sua vida. Com o passar dos anos, aos poucos ela voltara sua aten��o
para o trabalho, tamb�m sem desespero. Tinha confian�a em si e em sua capacidade.
N�o era pessoa de ir a meio caminho de um destino e parar, perguntando a si
mesma se teria deixado o ferro ligado e se a casa estaria pegando fogo. Ela continuara
a trabalhar. E a esperar.
Tamb�m tinha lido, primeiro os romances de Pearl Buck e, depois deles, tudo o
que conseguira encontrar sobre a vida na China, na Birm�nia e no Laos. �s vezes,
deixava o livro escorregar das m�os e olhava sonhadora pela janela de seu apartamento,
pequeno e despojado, nos limites da cidade. Via-se levando uma outra vida,
uma vida ex�tica, dif�cil e gratificante. Sua cl�nica seria simples, instalada numa floresta
exuberante, talvez perto do mar. Teria paredes brancas e luziria como uma
p�rola. As pessoas fariam fila do lado de fora, agachadas sob os coqueiros, esperando.
Ela, Caroline, cuidaria de todos; curaria essas pessoas. Transformaria a vida
delas e a sua.
Consumida por essa vis�o, tinha se candidatado, num grande surto de empolga��o
e fervor, ao cargo de mission�ria m�dica. Num radioso fim de semana de final
de ver�o, tomara o �nibus com destino a St. Louis para ser entrevistada. Seu nome
tinha sido inclu�do numa lista de espera para a Cor�ia. Mas o tempo havia passado
e a miss�o fora adiada, depois cancelada. Caroline tinha sido inclu�da noutra lista,
dessa vez para a Birm�nia.
E ent�o, quando ainda verificava sua correspond�ncia e sonhava com os tr�picos,
o Dr. Henry havia chegado.
Apenas um dia comum, nenhuma indica��o em contr�rio. Final de outono, a esta��o
dos resfriados, e a sala de espera apinhada de gente, repleta de espirros e tosses
abafadas. A pr�pria Caroline sentia um vago arranhar no fundo da garganta ao
chamar o paciente seguinte, um senhor idoso cujo resfriado viria a se agravar nas semanas
posteriores, transformando-se na pneumonia que acabaria por mat�-lo.
Rupert Dean. Estava sentado na poltrona de couro, lutando com um sangramento
nasal, e se levantou devagar, enfiando no bolso o len�o de tecido com seus pontos
v�vidos de sangue. Ao chegar ao balc�o da recep��o, entregou a Caroline uma fotografia
numa moldura de papel�o azul-marinho. Um retrato em preto-e-branco, levemente
colorizado. A mulher retratada usava um su�ter claro, cor de p�ssego. Tinha
ondas suaves no cabelo e olhos de um tom azul-escuro. Emelda, a mulher de Rupert
Dean, j� ent�o falecida fazia 20 anos.
- Ela foi o amor da minha vida - anunciou ele a Caroline, falando t�o alto que as
pessoas levantaram os olhos.
A porta externa do consult�rio se abriu, fazendo chacoalhar a porta interna de vidro.
- Ela � um encanto - disse Caroline. Tinha as m�os tr�mulas. Por se comover com
o amor e a tristeza do homem e porque ningu�m jamais a amara com a mesma
paix�o. Por estar com quase 30 anos e saber que, se morresse no dia seguinte, n�o
haveria ningu�m para chorar sua aus�ncia como Rupert Dean ainda chorava a da
mulher, passados mais de 20 anos. Com toda certeza, ela, Caroline Lorraine Gill,
devia ser t�o �nica e t�o digna de amor quanto a mulher da fotografia do anci�o,
mas nunca havia descoberto um modo de revelar isso, nem pela arte nem pelo amor,
e nem mesmo pela bela e altiva voca��o de seu trabalho.
Ainda tentava se recompor quando a porta do vest�bulo para a sala de espera escancarou-
se. Um homem de sobretudo marrom hesitou por um instante no v�o da
porta, segurando o chap�u e observando o papel de parede de tonalidade amarela,
a samambaia no canto, o porta-revistas met�lico cheio de revistas velhas. Tinha
cabelos castanhos, com um toque avermelhado, o rosto fino e uma express�o atenta,
de avalia��o. N�o era imponente, mas havia alguma coisa em seu porte, seu jeito
- uma vivacidade serena, uma certa capacidade de escuta -, que o distinguia. O cora��o
de Caroline acelerou-se e ela sentiu na pele um formigamento ao mesmo tempo
agrad�vel e irritante. Os olhos dos dois se cruzaram - e ela soube. Antes que o
homem atravessasse a sala para apertar sua m�o, antes que abrisse a boca e dissesse
seu nome, David Henry, com um sotaque neutro que o situava como forasteiro.
Antes de tudo isso, Caroline teve certeza de um fato simples: a pessoa por quem
estivera esperando havia chegado.
Ele n�o era casado nessa ocasi�o. Nem casado nem noivo, nem tinha nenhum
relacionamento, ao que ela pudesse averiguar. Caroline escutara com aten��o, tanto
nesse dia, quando ele percorreu a cl�nica, quanto depois, nas recep��es e reuni�es de
boas-vindas. Ouviu o que os outros, absortos no fluxo da conversa refinada, distra�dos
com o sotaque pouco conhecido do m�dico e com suas gargalhadas s�bitas e
inesperadas, n�o ouviram: que, afora uma ou outra men��o ocasional ao per�odo
passado em Pittsburgh, informa��o que j� era conhecida por seu curr�culo e seu
diploma, ele nunca fazia refer�ncia ao passado. Para Caroline, essa retic�ncia lhe
conferia um ar de mist�rio, e o mist�rio acentuava sua sensa��o de conhec�-lo de
um modo que os outros n�o conheciam. Para ela, cada contato dos dois era tenso,
como se ela lhe dissesse, por cima da escrivaninha, da mesa de exames e dos corpos
belos e imperfeitos de um ou outro paciente: Conhe�o voc�; eu o compreendo; enxergo
o que escapou aos outros. Quando entreouvia as pessoas fazendo pilh�rias a respeito
de sua paix�o pelo novo m�dico, ela enrubescia de surpresa e constrangimento.
Mas tamb�m ficava secretamente satisfeita, porque talvez os boatos chegassem ao
m�dico de um modo que ela, com sua timidez, n�o conseguiria transmitir.
Num fim de noite, ap�s dois meses de trabalho sossegado, ela o havia encontrado
adormecido � escrivaninha. Tinha o rosto apoiado nas m�os e respirava com a
cad�ncia leve e ritmada do sono profundo. Caroline se encostara no batente da porta,
com a cabe�a inclinada, e, naquele momento, todos os sonhos que havia alimentado
durante anos tinham se fundido. Os dois iriam juntos, ela e o Dr. Henry, para
algum lugar remoto do mundo, onde trabalhariam o dia inteiro, com o suor brotando
na testa e os instrumentos ficando escorregadios nas palmas das m�os, e onde, �
noite, ela tocaria para ele um piano que teria sido mandado por mar, subido um rio
caudaloso e atravessado a terra exuberante at� chegar ao local em que os dois moravam.
Caroline estava t�o imersa nesse sonho que, quando o Dr. Henry abriu os
olhos, sorriu-lhe abertamente, de um jeito franco, como nunca sorrira para ningu�m
at� ent�o.
A clara surpresa do m�dico a fizera cair em si. Ela havia empertigado o corpo,
passado a m�o no cabelo e murmurado uma desculpa qualquer, com um intenso rubor
nas faces. E tinha desaparecido, constrangida, mas tamb�m vagamente emocionada.
� que agora ele teria que saber, agora finalmente a veria tal como ela o via. Por
alguns dias, sua expectativa do que iria acontecer tinha sido t�o grande que lhe fora
dif�cil estar no mesmo aposento que ele. No entanto, quando os dias se passaram
sem que nada ocorresse, Caroline n�o ficara desapontada. Havia relaxado e inventado
desculpas para a demora, e continuara esperando, sem se deixar perturbar.
Tr�s semanas depois, ela havia aberto o jornal e deparado com a fotografia do casamento
na p�gina da coluna social: Norah Asher, agora Sra. David Henry, fotografada
ao virar a cabe�a, com seu pesco�o elegante e suas p�lpebras ligeiramente
curvas, feito conchas...
Caroline sobressaltou-se, transpirando dentro do casaco. A sala estava quente demais
e, por pouco, ela n�o perdeu a no��o das coisas. A seu lado, a nen�m continua
va a dormir. Ela se levantou e foi at� as janelas, sentindo as t�buas do piso mexerem-
se e ranger sob o tapete desgastado. As cortinas de veludo ro�avam o ch�o - restos
da era long�nqua em que aquele lugar tinha sido uma resid�ncia elegante. P�s a m�o
na borda de uma das cortinas de voile que serviam de forro: amareladas, quebradi�as,
elas se inflavam de poeira. L� fora, meia d�zia de vacas fu�ava o campo nevado
� procura de pastagem. Um homem de palet� xadrez vermelho e luvas escuras abriu
caminho para o celeiro, balan�ando baldes nas m�os.
Aquela poeira, aquela neve. N�o era justo, n�o era nada justo que Norah Henry
tivesse tanta coisa, tivesse aquela vida feliz, impec�vel. Chocada com essa id�ia e com
a intensidade de seu rancor, Caroline largou a cortina e saiu da sala, em dire��o ao
som das vozes humanas.
Entrou num corredor em que as l�mpadas fluorescentes zumbiam junto ao teto
alto. O ar estava carregado, com cheiro de detergente, legumes cozidos e um vago
odor amarelado de urina. Carrinhos chacoalhavam; vozes chamavam e murmuravam.
Ela dobrou um corredor, depois outro e desceu um �nico degrau, entrando
numa ala mais moderna, com paredes de um turquesa p�lido. Ali, o piso de lin�leo
afrouxava-se sobre as t�buas embaixo. Caroline passou por v�rias portas, tendo vislumbres
de momentos na vida das pessoas, imagens suspensas como fotografias: um
homem olhando por uma janela, com o rosto envolto em sombras e uma idade
indetermin�vel. Duas enfermeiras fazendo uma cama, com os bra�os levantados e o
len�ol claro flutuando por um instante perto do teto. Dois quartos vazios, com
encerados estendidos sobre os m�veis e latas de tinta empilhadas num canto. Uma
porta fechada e, por fim, a �ltima, aberta, onde uma jovem de camisola branca de
algod�o sentava-se numa beirada de cama, com as m�os cruzadas de leve no colo e
a cabe�a abaixada. Outra mulher, uma enfermeira, postava-se atr�s dela, fazendo
movimentos r�pidos com uma tesoura prateada. O cabelo escuro ca�a em cascata
sobre os len��is brancos, descobrindo o pesco�o nu da mo�a: fino, gracioso, p�lido.
Caroline parou � porta.
- Ela est� com frio - ouviu-se dizer, o que fez as duas mulheres erguerem os olhos.
A que estava na cama tinha olhos grandes, que luziam escuros. Seu cabelo, antes
muito comprido, agora se projetava, irregular, na altura do queixo.
-� - fez a enfermeira, e estendeu a m�o para espanar os fios de cabelo dos ombros
da mo�a; eles flutuaram na luz opaca e ca�ram nos len��is e no lin�leo pontilhado
de cinza. - Mas era preciso - disse, e espremeu os olhos, examinando o uniforme
amarrotado de Caroline e sua cabe�a descoberta. - Voc� � nova aqui? - perguntou.
Caroline acenou com a cabe�a.
- Nova - disse. - Isso mesmo.
Mais tarde, ao relembrar esse momento - uma mulher com uma tesoura e a outra
sentada, de camisola de algod�o, em meio aos destro�os de seu cabelo -, pensaria nele
em preto-e-branco, e a imagem a encheria de um vazio e uma saudade desvairados.
De qu�, n�o tinha certeza. O cabelo estava espalhado, irrecuper�vel, e uma luz fria
entrava pela janela. Caroline sentiu os olhos se encherem de l�grimas. Vieram ecos de
vozes noutro corredor e ela se lembrou do beb�, que ficara dormindo numa caixa, no
sof� superestofado de veludo da sala de espera. Deu meia-volta e se precipitou para l�.
Encontrou tudo como havia deixado. A caixa, com seus querubins alegres e rosados,
continuava no sof�; a nen�m, com os punhozinhos fechados junto ao queixo,
ainda dormia. Phoebe, dissera Norah Henry, pouco antes de apagar com a anestesia.
Se for menina, Phoebe.
Phoebe. Caroline desdobrou delicadamente as cobertas e pegou-a no colo. Era
min�scula - dois quilos e meio, menor que o irm�o, embora tivesse a mesma cabeleira
escura e farta. Caroline verificou a fralda - o mec�nio escuro manchava o tecido
�mido -, trocou-a e tornou a agasalhar a menina. Ela n�o tinha acordado, e a
enfermeira a segurou por um instante, sentindo como era leve, pequenina e quente.
Rostinho muito mi�do, vol�til. Mesmo durante o sono, as express�es moviam-se
por suas fei��es feito nuvens. Caroline vislumbrou o cenho franzido de Norah
Henry numa delas, a escuta concentrada de David Henry em outra.
Rep�s Phoebe na caixa e ajeitou de leve as cobertas em torno de seu corpo, pensando
em David Henry, tenso de cansa�o, comendo um sandu�che de queijo em sua
escrivaninha, terminando uma x�cara de caf� meio frio e se levantando para reabrir
as portas do consult�rio nas noites de ter�a-feira - atendimento gratuito para os
pacientes que n�o podiam pagar. A sala de espera ficava sempre cheia nessas noites
e, muitas vezes, ele ainda estava l� quando Caroline finalmente ia embora, � meia-
noite, ela mesma t�o exausta que mal conseguia raciocinar. Era por isso que passara
a am�-lo, por sua bondade. No entanto, ele a mandara para esse lugar com sua filha
rec�m-nascida, esse lugar em que uma mulher se sentava numa beirada de cama,
com seu cabelo caindo em tufos macios na luz fria e dura do piso.
Isso a destruiria, dissera o m�dico sobre Norah. N�o vou deixar que ela seja
destru�da.
Ouviu-se um som de passos e, em seguida, uma mulher de cabelo grisalho e uniforme
branco, muito parecido com o de Caroline, postou-se no v�o da porta. Era de
estrutura s�lida, �gil para seu tamanho, pragm�tica. Numa outra situa��o, Caroline
teria tido boa impress�o dela.
- Em que posso servi-la? - perguntou a mulher. - Est� esperando h� muito
tempo?
- Sim - respondeu Caroline, devagar. - Faz muito tempo que estou esperando, sim.
Exasperada, a mulher abanou a cabe�a.
- �, olhe, sinto muito. � essa neve. Estamos com o pessoal reduzido hoje, por
causa dela. Aqui no Kentucky bastam tr�s cent�metros de neve para o estado inteiro
parar. Por mim, fui criada no Iowa e n�o entendo o motivo de todo esse espalhafato,
mas deixa pra l�. Bem, enfim. Que posso fazer por voc�?
- Voc� � a Sylvia? - perguntou Caroline, esfor�ando-se para lembrar o nome escrito
no papel, abaixo do endere�o. Ela o deixara no carro. - Sylvia Patterson?
A express�o da mulher carregou-se.
- N�o, n�o sou. Meu nome � Janet Masters. A Sylvia n�o trabalha mais aqui.
- Ah - fez Caroline, e parou. Essa mulher n�o sabia quem ela era; estava claro que
n�o havia falado com o Dr. Henry. Ainda segurando a fralda suja, Caroline baixou
as m�os junto ao corpo, para n�o deixar que ela fosse vista.
Janet Masters plantou firmemente as m�os nas cadeiras e espremeu os olhos.
- Voc� � representante dessa empresa de leite para rec�m-nascidos? - indagou,
apontando com a cabe�a para a caixa em cima do sof�, na qual os querubins vermelhos
sorriam seu sorriso benigno. - A Sylvia tinha um arranjo qualquer com aquele
vendedor, n�s todos sab�amos disso, e, se voc� � da mesma empresa, pode pegar suas
coisas e cair fora - e balan�ou a cabe�a com for�a.
- N�o sei do que voc� est� falando - respondeu Caroline. - Mas j� vou indo acrescentou.
- Isso mesmo. Estou de sa�da. N�o voltarei a incomod�-la.
Mas Janet Masters n�o havia terminado.
- Trapaceiros, � isso que voc�s s�o. V�o deixando amostras gr�tis e na semana
seguinte mandam a conta. Isto aqui pode ser um asilo para d�beis mentais, mas n�o
� dirigido por eles, sabe?
- Eu sei - sussurrou Caroline. - Realmente sinto muito.
Uma sineta soou ao longe e a mulher tirou as m�os das cadeiras.
- Trate de estar fora daqui em cinco minutos - disse. - Fora daqui, e n�o volte mais.
E se foi.
Caroline fitou o v�o deserto da porta. Uma corrente de ar ro�ou suas pernas. No
instante seguinte, ela depositou a fralda suja no centro da mesinha bamba ao lado
do sof�, que mais parecia uma forma de torta. Depressa, antes que pudesse pensar
no que estava fazendo, entrou no corredor espartano, cruzou as duas portas e a rajada
de ar frio do mundo l� fora foi t�o espantosa quanto nascer.
Tornou a acomodar Phoebe no carro e foi embora. Ningu�m tentou det�-la, ningu�m
prestou a menor aten��o. Mesmo assim, Caroline acelerou ao chegar � rodovia
interestadual, com o cansa�o escorrendo pelo corpo feito �gua ao descer das rochas.
Nos primeiros 50 quil�metros, discutiu consigo mesma, por vezes em voz alta.
O que voc� fez?, perguntou-se em tom severo. Tamb�m discutiu com o Dr. Henry,
imaginando as rugas a se aprofundarem em sua testa e o m�sculo que lhe saltava no
rosto sempre que ele se aborrecia. O que voc� tem na cabe�a?-, ele exigiria saber, e
Caroline teria de confessar que n�o fazia a m�nima id�ia.
Mas a energia n�o tardou a se esgotar nessas conversas e, j� na rodovia interestadual,
ela dirigiu mecanicamente, sacudindo a cabe�a de vez em quando para se
manter acordada. Era final de tarde; fazia quase 12 horas que Phoebe estava dormindo.
Logo seria preciso aliment�-la. Quase sem esperan�a, Caroline desejou que as
duas estivessem em Lexington quando isso acontecesse.
Tinha acabado de passar pela �ltima sa�da, em Frankfort, a 51 quil�metros de casa,
quando as luzes de freio do carro � sua frente se acenderam. Ela reduziu, depois reduziu
um pouco mais e teve que pisar firme no freio. A noite j� come�ava a cair e o sol era
um brilho opaco no c�u encoberto. Quando Caroline ia chegando ao alto da subida, o
tr�nsito parou por completo - uma longa fila de luzes traseiras que terminava num
aglomerado, onde o vermelho e o branco piscavam. Um acidente: um engavetamento.
Ela sentiu vontade de chorar. O marcador de gasolina pairava abaixo de um quarto de
tanque, o bastante para voltar a Lexington, por�m nada mais, e aquela fila de carros...
bem, eles poderiam passar horas ali. E ela n�o podia correr o risco de desligar o motor
e perder o aquecimento, n�o com uma rec�m-nascida no carro.
Conservou-se im�vel por v�rios minutos, paralisada. A �ltima rampa de sa�da
ficara 400 metros atr�s, separada dela por uma fileira reluzente de carros. O calor
subia do capo do Fairlane azul-claro, bruxuleando de leve � luz crepuscular e derretendo
os poucos flocos de neve que tinham come�ado a cair. Phoebe deu um suspiro
e seu rosto tensionou-se de leve, depois relaxou. Caroline, seguindo um impulso
que depois a deixaria admirada, girou o volante e deslocou o Fairlane da pista
asfaltada para o acostamento de cascalho mi�do. Engatou marcha a r� e come�ou
a recuar, passando lentamente pela fileira estanque de carros. Era estranho, como se
ela passasse por um trem. Havia uma mulher de casaco de pele; tr�s crian�as fazendo
caretas; um homem de jaqueta de lona, fumando. Caroline recuou lentamente na
penumbra suave, pelo tr�nsito im�vel como um rio congelado.
Chegou � sa�da sem nenhum incidente. A rampa a levou � Rota 60, onde as �rvores
estavam de novo carregadas de neve. As campinas eram pontilhadas de casas,
a princ�pio poucas, depois numerosas, com as janelas j� reluzindo no anoitecer.
Pouco depois, Caroline passava pela avenida principal de Versailles, encantada com
as fachadas de tijolos das lojas, � procura de placas de sinaliza��o que lhe indicassem
o caminho de casa.
Um letreiro azul-marinho do supermercado Kroger ergueu-se a um quarteir�o de
dist�ncia. Essa vis�o conhecida, com os folhetos de ofertas decorando as vitrines iluminadas,
foi reconfortante para Caroline e a fez perceber, subitamente, como estava
faminta. E agora era o qu�: s�bado, e ainda por cima � noite? Todas as lojas estariam
fechadas no dia seguinte e havia pouqu�ssima comida em seu apartamento. Apesar
da exaust�o, ela entrou no estacionamento e desligou o motor.
Phoebe, quentinha e leve, com 12 horas de nascida, estava mergulhada no sono.
Caroline pendurou a sacola das fraldas no ombro e enfiou a nen�m embaixo do casaco,
mi�da, bem enroscadinha e aquecida. O vento se deslocava pelo asfalto, espanando
os restos de neve e alguns flocos novos e os fazendo rodopiar para os cantos.
Caroline abriu caminho pela neve suja e parcialmente derretida, com medo de cair
e machucar a nen�m, e ao mesmo tempo pensando em como seria f�cil simplesmente
larg�-la numa ca�amba de lixo, na escadaria de uma igreja ou em qualquer
lugar. Seu poder sobre aquela vida min�scula era absoluto. Ela se sentiu invadir por
um profundo sentimento de responsabilidade que a deixou meio zonza.
A porta de vidro se abriu, liberando uma onda de luz e calor. O mercado estava
cheio. Os clientes iam sendo cuspidos para fora, com pilhas de compras nos carrinhos.
Na porta havia um empacotador.
- S� estamos abertos at� agora por causa do mau tempo - avisou, quando Caroline
entrou. - Vamos fechar daqui a meia hora.
- Mas a nevasca passou - disse ela, e o rapazinho riu, animado e incr�dulo. Tinha
o rosto enrubescido pelo calor que descia sobre as portas autom�ticas e se derramava
na noite.
- A senhora n�o est� sabendo? Deve vir outra esta noite, mas das grandes.
Caroline acomodou Phoebe num carrinho de metal e percorreu os corredores
desconhecidos. Refletiu sobre marcas de leite em p�, aquecedores de mamadeira,
fileiras de mamadeiras com seu sortimento de bicos e babadores. Come�ou a se encaminhar
para a caixa, mas percebeu que era melhor comprar leite para ela pr�pria,
mais algumas fraldas e algum tipo de alimento. As pessoas passavam por ela e, ao
verem Phoebe, todas sorriam; algumas at� paravam para afastar a manta e olhar seu
rostinho. E diziam Ah, que gracinha! e Quanto tempo?. Caroline mentia sem nenhum
remorso. Duas semanas, dizia.
- Oh, voc� n�o devia estar com ela na rua num tempo desses - repreendeu-a uma
senhora de cabelos grisalhos. - Onde j� se viu! Devia levar esse beb� para casa.
No corredor 6, enquanto Caroline escolhia latas de sopa de tomate, Phoebe se
mexeu, com as m�ozinhas sacudindo furiosamente, e come�ou a chorar. Caroline
hesitou por um instante, depois pegou a nen�m e a sacola volumosa e foi para o
banheiro no fundo da loja. Sentou-se num canto, numa cadeira de pl�stico laranja,
escutando a �gua pingar da torneira, equilibrou a rec�m-nascida no colo e derramou
numa mamadeira o leite da garrafa t�rmica. A nen�m levou v�rios minutos
para se acomodar, porque estava muito agitada e tinha um reflexo de suc��o prec�rio.
Mas acabou pegando o bico e ent�o bebeu como havia dormido: ferozmente,
intensamente, com os punhos cerrados junto ao queixo. Quando relaxou, saciada, o
alto-falante anunciava que a loja ia fechar. Caroline precipitou-se para a caixa, onde
um �nico funcion�rio esperava, entediado e impaciente. Pagou depressa, aninhando
o saco de papel num dos bra�os e Phoebe no outro. Quando saiu, as portas se
fecharam atr�s dela.
O estacionamento estava quase vazio, com os �ltimos carros aquecendo o motor
ou saindo lentamente para a rua. Caroline descansou a sacola de compras no cap� e
acomodou Phoebe em sua caixa no banco traseiro. As vozes indistintas dos empregados
ecoavam pelo estacionamento. Alguns flocos dispersos de neve rodopiavam nos
cones de luz dos postes de ilumina��o, nem mais nem menos do que antes. A meteorologia
muitas vezes se enganava. A neve que come�ara a cair antes do nascimento de
Phoebe -foi s� ontem � noite, lembrou-se Caroline, embora parecessem s�culos
- nem tinha sido prevista. Ela enfiou a m�o no saco de papel pardo, abriu um pacote
de p�o e tirou uma fatia, pois n�o havia comido o dia inteiro e estava faminta. Foi
mastigando enquanto fechava a porta, pensando, com uma saudade cansada, em seu
apartamento despojado e arrumado, na cama de solteiro com a colcha branca de chenile,
tudo em ordem e nos devidos lugares. Estava dando a volta por tr�s do carro
quando percebeu que suas luzes traseiras tinham um p�lido brilho vermelho.
Estancou, olhando fixo. Durante todo aquele tempo, enquanto ela se alvoro�ava
pelos corredores do mercado, enquanto se sentava no banheiro desconhecido, alimentando
Phoebe calmamente, aquela luz se derramara pela neve.
Quando Caroline experimentou a igni��o, ela n�o fez mais do que um clique,
com a bateria t�o arriada que o motor nem gemeu.
A enfermeira desceu do carro e parou junto � porta aberta. Agora o estacionamento
estava deserto; o �ltimo autom�vel se fora. Ela desatou a rir. N�o era um riso normal,
at� Caroline p�de perceber: a voz alta demais, a meio caminho de um solu�o.
- Eu estou com um beb� - exclamou em voz alta, at�nita. - Tenho um beb� neste
carro!
Mas o estacionamento se estendia silencioso � sua frente, com as luzes das vitrines
do mercado desenhando grandes ret�ngulos na neve enlameada.
- Estou com um beb� aqui! - repetiu Caroline, com a voz sumindo depressa no
ar. - Um beb�! - gritou para o vazio.
III
NORAH ABRIU OS OLHOS. L� FORA. O C�U EMPALIDECIA COM O ALVORECER,
mas a lua ainda estava presa nas �rvores, derramando uma luz esmaecida
sobre o quarto. Ela estivera sonhando, procurando alguma coisa perdida no ch�o
congelado. As folhas de relva, afiadas e quebradi�as, despeda�avam-se ao seu toque
e deixavam cortes min�sculos em sua pele. Ao acordar, ela levantou as m�os, momentaneamente
confusa, mas n�o havia qualquer marca, apenas as unhas cuidadosamente
lixadas e pintadas.
A seu lado, no ber�o, seu filho chorava. Num movimento suave, mais de instinto
que de inten��o, Norah o levantou e o p�s na cama. Os len��is a seu lado eram
de um frio branco �rtico. David tinha sa�do, atendendo a um chamado da cl�nica,
enquanto ela dormia. Norah puxou o filho para a curva morna de seu corpo e abriu
a camisola. As m�ozinhas do menino agitaram-se sobre seus seios intumescidos,
feito asas de mariposa; ele pegou o bico. Uma dor aguda, que cedeu numa onda
quando o leite veio. Ela afagou o cabelo do filho, seu couro cabeludo fr�gil. Era
espantosa a for�a do corpo. As m�os dele se acalmaram, repousando como estrelinhas
sobre a ar�ola do seio.
Norah fechou os olhos, oscilando lentamente entre o sono e a vig�lia. Um po�o
em suas entranhas abriu-se e foi liberado. O leite fluiu e, misteriosamente, ela se sentiu
transformar num rio ou no vento, abarcando tudo: os narcisos na c�moda e a
grama que crescia l� fora, delicada e silenciosa, com as folhas novas fazendo press�o
para se abrir contra os brotos das �rvores. Larvas min�sculas, brancas como p�rolas
e escondidas no solo, transformavam-se em lagartas, mede-palmos e abelhas. P�ssaros
em v�os ligeiros, piando. Tudo isso era dela. Paul cerrou os punhos min�sculos
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sob o queixo. Suas bochechas moviam-se ritmicamente enquanto ele mamava. Ao
redor dos dois, o universo cantarolava, primoroso e exigente.
O cora��o de Norah transbordava de amor, com uma felicidade e uma tristeza
grandes e dif�ceis de controlar.
Ela n�o tinha chorado de imediato pela filha, embora David o houvesse feito. Um
beb� cian�tico, ele lhe dissera, com as l�grimas engastadas nos fios da barba de um
dia por fazer. Uma menininha que nunca chegou a respirar. Paul estava no colo de
Norah e ela o havia estudado: o rostinho mi�do, muito sereno e enrugado, a touquinha
de l� listrada, os dedos de beb�, rosados, delicados e curvos. As unhinhas min�sculas,
ainda moles, transparentes como a luz durante o dia. Norah n�o podia absorver
o que David dissera, n�o realmente. Suas lembran�as da noite anterior eram n�tidas,
depois embotadas: houvera a neve e o longo trajeto para a cl�nica pelas ruas
desertas, com David parando em todos os sinais luminosos, enquanto ela lutava
contra a �nsia ondulada, s�smica e intensa de fazer for�a para expulsar. Depois disso,
ela s� lembrava de coisas dispersas, coisas estranhas: o sil�ncio inusitado da cl�nica,
a sensa��o macia de um tecido azul colocado sobre seus joelhos. O frio da mesa de
exames a�oitando suas costas nuas. O rel�gio de ouro de Caroline Gill cintilando
toda vez que ela estendia a m�o para aplicar o g�s anest�sico. Depois, ela havia acordado
e Paul estava em seus bra�os, e David chorava a seu lado. Norah erguera os
olhos, fitando-o com preocupa��o e com um desapego interessado. Era a medica��o,
o p�s-parto, um pico hormonal. Outro beb�, um beb� cian�tico - como era
poss�vel? Ela se lembrava da segunda �nsia de fazer for�a e da tens�o na voz de
David, como pedras sob uma corredeira. Mas o beb� em seus bra�os era perfeito,
lindo, mais do que suficiente. Est� tudo bem, ela dissera a David, afagando-lhe o
bra�o, est� tudo bem.
S� quando eles sa�ram do consult�rio, pisando hesitantes no ar frio e �mido da
tarde seguinte, � que a perda enfim se fizera sentir. Quase havia anoitecido, e o ar
estava cheio de neve derretendo e terra �mida e fria. O c�u nublado era branco e
granuloso por tr�s dos galhos totalmente nus das �rvores. Norah carregava
Paul, leve como um gato, pensando em como aquilo era estranho - levar uma pessoa
inteiramente nova para casa. Ela havia decorado com extremo cuidado o quarto
do beb�, escolhido o ber�o e a c�moda, lindos, colado o papel de parede cheio
de ursinhos espalhados, feito as cortinas e costurado � m�o a colcha de retalhos.
Estava tudo em ordem, tudo preparado, e ela levava o filho no colo. Na entrada do
pr�dio, por�m, parou entre as duas pilastras pontiagudas de concreto, incapaz de
dar outro passo.
- David - disse. O marido se virou, p�lido, com sua cabeleira escura, parecendo
uma �rvore recortada contra o c�u.
- Que �? O que foi? - perguntou ele.
- Eu quero v�-la - disse Norah com a voz sussurrada, mas de algum modo imperiosa,
no sil�ncio do estacionamento. - S� uma vez. Antes de irmos embora. Tenho
que v�-la.
David enfiou as m�os nos bolsos e estudou a cal�ada. Durante o dia inteiro haviam
ca�do peda�os de gelo dos beirais ziguezagueantes do telhado, e agora eles jaziam
perto da escada.
- Ah, Norah - disse o m�dico, baixinho. - Vamos para casa, por favor. N�s temos
um filho lindo.
- Eu sei - disse ela, porque era 1964, David era seu marido e ela sempre se submetera
completamente a ele. Mas parecia incapaz de se mexer, n�o enquanto sentisse,
como sentia, que estava deixando para tr�s uma parte essencial dela mesma.
- Ah, s� por um instante, David. Por que n�o?
Seus olhos se encontraram e a ang�stia presente nos dele fez com que os dela se
enchessem de l�grimas.
- Ela n�o est� aqui - disse a voz magoada de David. - � por isso. H� um cemit�rio
na fazenda da fam�lia do Bentley. No condado de Woodford. Pedi que ele a levasse
para l�. Podemos ir l� depois, na primavera. Oh, Norah, por favor. Voc� est� me
deixando arrasado.
Norah fechou os olhos, sentindo algo drenar-se de seu corpo, ao pensar num
beb�, sua filhinha, sendo depositado na terra fria de mar�o. Seus bra�os, que seguravam
Paul, estavam r�gidos e firmes, por�m o resto de seu corpo parecia l�quido,
como se tamb�m ela pudesse escorrer pelos bueiros e desaparecer com a neve. David
tinha raz�o, pensou, ela n�o precisava saber disso. Quando ele subiu a escada e lhe
envolveu os ombros, Norah assentiu com a cabe�a e os dois atravessaram o estacionamento
vazio, na luz do crep�sculo. Ele firmou o banco do carro; levou-os
para casa com cuidado, metodicamente; os dois carregaram Paul pela varanda da
frente, cruzaram a porta e ent�o o puseram em seu quarto, adormecido. Norah sentiu
um certo consolo pelo modo como David havia cuidado de tudo, o modo como
cuidara dela, e n�o voltou a discutir com ele sobre seu desejo de ver a filha.
Agora, por�m, sonhava toda noite com coisas perdidas.
Paul adormeceu. Para l� da janela, os ramos das cerejeiras, apinhados de brotos
novos, balan�avam contra o c�u de um anil p�lido. Norah virou-se, passou Paul
para o outro seio e tornou a fechar os olhos, divagando. Acordou de repente com a
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umidade e o choro, com o sol batendo em cheio no quarto. Seus seios j� come�avam
a se encher de novo; tr�s horas haviam passado. Ela se sentou, sentindo-se pesada,
oprimida, com a pele da barriga t�o mole que se acumulava em dobras toda vez que
ela se deitava, os seios duros e intumescidos de leite, as articula��es ainda doloridas
do parto. No corredor, as t�buas do piso rangeram sob seu peso.
No trocador, Paul chorou ainda mais alto, adquirindo uma raivosa colora��o
salpicada de vermelho. Norah tirou-lhe as roupas �midas e a fralda de algod�o
encharcada. A pele do menino era muito delicada; as pernas, magricelas e vermelhas
como asas de frango depenadas. Num canto da mente da m�e pairava a filha perdida,
vigilante e silenciosa. Ela limpou com �lcool o cord�o umbilical de Paul, jogou a
fralda no balde para deix�-la de molho e tornou a vestir o filho.
- Meu bebezinho - murmurou, pegando-o no colo. - Meu amorzinho. - E desceu
com ele para o t�rreo.
Na sala, as persianas ainda estavam fechadas, assim como as cortinas. Norah foi
para a confort�vel poltrona de couro num canto e abriu o roup�o. O leite tornou a
afluir, com seus irresist�veis ritmos de mar� - uma for�a t�o intensa que parecia eliminar
tudo o que ela fora at� ent�o. Eu acordo para dormir, pensou consigo mesma,
recostando-se, perturbada por n�o conseguir lembrar quem tinha escrito isso.
A casa estava em sil�ncio. O aquecedor dava estalos e as folhas farfalhavam nas
�rvores do lado de fora. Ao longe, a porta do banheiro abriu e fechou, com um vago
som de �gua corrente. Bree, a irm� de Norah, desceu a escada pisando de leve, usando
uma velha camisa cujas mangas lhe desciam at� a ponta dos dedos. Tinha as pernas
brancas, e seus p�s estreitos estavam descal�os no piso de madeira.
- N�o acenda a luz - disse Norah.
- Est� bem.
Bree aproximou-se e tocou de leve no couro cabeludo de Paul.
- E como vai meu sobrinhozinho? - perguntou. - Como vai o meu doce Paul?
Norah olhou para o rosto pequenino do filho, surpresa, como sempre, ao ouvir
seu nome. O menino ainda n�o crescera o bastante para assimil�-lo, ainda o usava
como uma pulseira que poderia soltar-se facilmente e desaparecer. Ela havia lido sobre
pessoas - tamb�m n�o se lembrava onde - que se recusavam a dar nome aos filhos
durante v�rias semanas por acharem que eles ainda n�o faziam parte da Terra,
ainda estavam suspensos entre dois mundos.
- Paul - repetiu em voz alta, um nome s�lido e claro, quente como uma pedra sob
o sol. Uma �ncora.
Em sil�ncio, de si para si, acrescentou: Phoebe.
- Ele est� com fome - disse ainda. - Est� sempre com muita fome.
- Ah! Ent�o, saiu � tia. Vou pegar umas torradas com caf�. Quer alguma coisa?
- Talvez um pouco de �gua - disse Norah, vendo Bree sair da sala, com seus membros
longos, graciosa. Era muito estranho que sua irm�, que sempre fora seu oposto,
sua n�mesis, fosse a pessoa com quem ela queria estar, mas era verdade.
Bree tinha apenas 20 anos, mas era t�o voluntariosa e segura de si que, muitas
vezes, parecia a Norah ser a mais velha. Tr�s anos antes, na pen�ltima s�rie do curso
m�dio, tinha fugido com o farmac�utico que morava do outro lado da rua, um
solteir�o com o dobro de sua idade. As pessoas haviam condenado o farmac�utico,
que j� era velho o bastante para ter mais ju�zo. Atribu�ram a impetuosidade de Bree
ao fato de ela haver perdido o pai, subitamente, nos primeiros anos da adolesc�ncia
- uma idade vulner�vel, todos concordavam. E previram que o casamento duraria
pouco e acabaria mal, como tinha acontecido.
Mas, se elas imaginavam que o casamento fracassado de Bree a amansaria, estavam
enganadas. Alguma coisa come�ara a se modificar no mundo desde quando Norah
era pequena, e Bree n�o tinha voltado para a casa dos pais, como seria de esperar,
emendada e constrangida. Em vez disso, matriculara-se na universidade e trocara seu
nome, Brigitte, por Bree, porque gostava desse som: arejado, dizia ela, e livre.
A m�e das duas, mortificada com o casamento escandaloso e o div�rcio mais
escandaloso ainda, casara-se com um piloto da TWA e se mudara para St. Louis, deixando
as filhas por sua pr�pria conta. Bem, pelo menos uma de minhas filhas sabe se
comportar, tinha dito, erguendo os olhos do caixote de lou�a que estava embalando.
Isso fora no outono, com seu ar revigorante, repleto de douradas folhas cadentes. O
cabelo louro esbranqui�ado da m�e estava enrolado como uma nuvem fofa, e suas
fei��es tinham se abrandado com a emo��o repentina. Ah, Norah, fico muito grata
por ter uma filha direita, voc� nem pode imaginar. Mesmo que nunca se case, querida,
voc� sempre ser� uma dama. Norah, guardando um retrato emoldurado do pai numa
caixa, ficara rubra de aborrecimento e frustra��o. Tamb�m ela se havia chocado com
a desfa�atez de Bree, com seu atrevimento, e sentia raiva de as normas parecerem ter
se modificado, de Bree ter mais ou menos se safado - do casamento, do div�rcio e
do esc�ndalo.
Detestava o que Bree fizera com toda a fam�lia.
Desejava desesperadamente ter sido a primeira a faz�-lo.
Mas isso nunca lhe teria ocorrido. Ela sempre fora boazinha, era essa a sua tare
fa. Tinha sido muito apegada ao pai, um homem desorganizado e af�vel, perito em
ovelhas, que passava os dias no quarto fechado no alto da escada, lendo publica��es
especializadas, ou no centro de pesquisas, parado em meio ao rebanho, os olhos
amarelos estranhos e obl�quos. Norah o adorava e, durante toda a sua vida, sentira
uma compuls�o de compensar de algum modo a desaten��o dele para com a fam�lia
e a decep��o de sua m�e por ter se casado com um homem que, afinal, era t�o alheio
a ela. Com o falecimento do pai, essa compuls�o de retificar as coisas, de consertar
o mundo, s� fizera intensificar-se. E, assim, Norah seguira em frente, estudando sossegada
e fazendo o que se esperava dela. Depois da formatura, trabalhara seis meses
na companhia telef�nica, num emprego que n�o lhe agradava e do qual ficara muito
feliz em abrir m�o ao se casar com David. O encontro dos dois no setor de lingerie
da loja de departamentos Wolf Wile, assim como seu casamento secreto, impetuoso
e acelerado, tinham sido o m�ximo que ela havia se aproximado da irreflex�o.
A vida de Norah, Bree gostava de dizer, parecia um seriado de televis�o. Para voc�
est� �timo, dizia ela, jogando os longos cabelos para tr�s, com os bra�os cheios de
pulseiras prateadas quase at� o cotovelo. Eu n�o ag�entaria. Ficaria maluca em uma
semana. Em um dia!
Norah fervilhava por dentro, desdenhava Bree e a invejava, e mordia a l�ngua;
Bree fizera um curso sobre Virginia Woolf, fora morar com o gerente de um restaurante
natural em Louisville e parara de visit�-la. No entanto, estranhamente, tudo
havia mudado com a gravidez de Norah. Bree recome�ara a aparecer, levando-lhe
botinhas de renda e min�sculas pulseiras de prata para o tornozelo, importadas da
�ndia; estas ela havia encontrado numa loja em S�o Francisco. E tamb�m levara folhas
mimeografadas com instru��es sobre o aleitamento materno, ao tomar conhecimento
de que Norah planejava abrir m�o das mamadeiras. E Norah ficara feliz em
v�-la nessa ocasi�o. Feliz com os presentes meigos e sem utilidade pr�tica, feliz com
o apoio da irm�; em 1964, amamentar no seio era uma id�ia radical, e Norah tivera
dificuldade para encontrar informa��es sobre o assunto. A m�e se recusara a discutir
a id�ia; as mulheres de seu c�rculo de costura tinham lhe dito que poriam cadeiras
nos banheiros para garantir sua privacidade. Para seu al�vio, Bree tinha zombado
disso tudo, em alto e bom som. Que bando de pudicas!, insistira. N�o preste aten��o
nelas.
No entanto, embora se sentisse grata pelo apoio de Bree, �s vezes Norah tamb�m
ficava secretamente constrangida. No mundo de Bree, que parecia existir sobretudo
noutros lugares, na Calif�rnia, em Paris ou em Nova York, as jovens andavam em casa
com os seios � mostra, tiravam fotos com seus beb�s mamando nos seios enormes
e escreviam colunas que defendiam os benef�cios nutricionais do leite materno. Isso
� completamente natural, est� na nossa natureza de mam�feros, explicava Bree, mas a
pr�pria id�ia de si mesma como um mam�fero movido por instintos, uma id�ia
descrita por palavras como lactante (que tanto se aproximava de cio, a seu ver, reduzindo
uma coisa bonita ao n�vel de um celeiro), fazia Norah corar e ter vontade de
sair da sala.
Nesse momento, Bree voltou com uma bandeja de caf� e p�o fresco com manteiga.
Seus longos cabelos lhe ca�ram sobre os ombros quando ela se inclinou para
colocar um copo alto de �gua gelada na mesa, ao lado de Norah. Ela empurrou a
bandeja na mesinha de centro e se acomodou no sof�, cruzando as longas pernas
brancas embaixo do corpo.
- O David saiu?
Norah fez que sim:
- Eu nem o ouvi levantar.
- Voc� acha bom ele estar trabalhando tanto?
- Acho - respondeu Norah, com firmeza. - Acho, sim - repetiu.
O Dr. Bentley havia conversado com os outros m�dicos da cl�nica, e eles ofereceram
uma licen�a a David, mas este havia recusado.
- Acho que ficar ocupado � bom para ele neste momento.
- � mesmo? E quanto a voc�? - indagou Bree, dando uma mordida no p�o.
- Eu? Sinceramente, estou �tima.
Bree balan�ou sua m�o livre.
- Voc� n�o acha... - come�ou, mas Norah a interrompeu antes que ela pudesse
criticar David outra vez.
- � muito bom voc� estar aqui - comentou. - Ningu�m mais quer conversar
comigo.
- Isso � birutice. A casa tem estado cheia de gente querendo conversar com voc�.
- Eu tive g�meos, Bree - retrucou Norah, baixinho, consciente de seu sonho, da
paisagem deserta e congelada, de sua busca fren�tica. - Ningu�m mais quer dizer
uma palavra sobre ela. Todos agem como se, j� que tenho o Paul, eu devesse ficar satisfeita.
Como se as vidas fossem intercambi�veis. Mas eu tive g�meos. Tamb�m tive
uma filha...
Parou, interrompida pelo n� repentino na garganta.
- Est�o todos tristes - disse Bree, delicadamente. - Muito felizes e muito tristes,
tudo ao mesmo tempo. Eles n�o sabem o que dizer, � s� isso.
Norah ajeitou Paul, j� adormecido, apoiando-o em seu ombro. A respira��o do
filho era quente em seu pesco�o; ela lhe afagou as costas, n�o muito maiores do que
a palma de sua m�o.
- Eu sei - concordou. - Eu sei. Mas, mesmo assim...
- O David n�o devia ter voltado t�o depressa ao trabalho - disse Bree. - Faz apenas
tr�s dias.
- Para ele o trabalho � um consolo - contrap�s Norah. - Se eu tivesse um emprego,
iria trabalhar.
- N�o - retrucou Bree, abanando a cabe�a. - N�o, voc� n�o iria, Norah. Sabe,
detesto dizer isso, mas o David s� est� se fechando, trancafiando todos os sentimentos.
E voc� continua tentando preencher o vazio. Consertar as coisas. E n�o pode.
Observando a irm�, Norah se perguntou que sentimentos o farmac�utico teria
mantido isolados; a despeito de toda a sua franqueza, Bree nunca havia falado de seu
breve casamento. E, embora Norah se inclinasse a concordar com ela nesse momento,
sentia-se na obriga��o de defender David, que, enfrentando sua pr�pria tristeza,
havia cuidado de tudo: do enterro sigiloso, sem a presen�a de ningu�m, das explica��es
aos amigos, do remendo r�pido das pend�ncias esfarrapadas do luto.
- Ele tem que fazer as coisas a seu modo - continuou Norah, estendendo a m�o
para abrir as persianas. O c�u havia adquirido um azul vivo e os brotos pareciam ter
se multiplicado nos galhos, mesmo nessas poucas horas. - Eu s� queria t�-la visto,
Bree. As pessoas acham que isso � macabro, mas eu queria, sim. Gostaria de t�-la
tocado, nem que fosse s� uma vez.
- N�o � macabro - disse Bree em voz baixa. - A mim me soa perfeitamente sensato.
Seguiu-se um sil�ncio, que Bree rompeu sem jeito, hesitante, oferecendo a Norah
um peda�o de p�o com manteiga.
- N�o estou com fome - mentiu Norah.
- Voc� tem que comer - insistiu Bree. - O peso vai sumir, de qualquer jeito. Esse
� um dos benef�cios n�o decantados do aleitamento.
- Decantados sim - repetiu Norah. - Voc� n�o p�ra de falar a respeito.
- Acho que sim - riu Bree.
- Sinceramente - disse Norah, pegando o copo de �gua -, fico feliz por voc� estar
aqui.
- Ei - fez Bree, meio sem gra�a -, onde mais eu estaria?
A cabe�a de Paul era um peso morno, com seu cabelo fino e farto ro�ando o
pesco�o da m�e. Ser� que ele sente falta da g�mea, perguntou-se Norah, daquela presen�a
desaparecida, da companheira �ntima de sua curta vidinha? Ser� que sempre
vivenciaria uma sensa��o de perda? Ela afagou a cabe�a do filho, olhando pela janela.
Para al�m das �rvores, t�nue em seu contraste com o c�u, vislumbrou a esfera long�nqua
e esmaecida da Lua.
Mais tarde, enquanto Paul dormia, Norah tomou um banho. Experimentou e
descartou tr�s roupas diferentes - saias que apertavam na cintura, cal�as espichadas
nos quadris. Sempre fora mi�da, esbelta e bem-proporcionada, e a deseleg�ncia de
seu corpo a deixava surpresa e deprimida. Por fim, em desespero, acabou vestindo
sua velha jardineira da gravidez, gratificantemente solta, que ela havia jurado nunca
mais usar. Vestida, mas descal�a, perambulou pela casa, de um c�modo para outro.
Tal como seu corpo, os aposentos transbordavam de coisas, desarrumados, ca�ticos,
sem controle. Havia poeira fina acumulada em toda parte, roupas espalhadas por
todas as superf�cies e cobertas ca�das das camas por fazer. Havia uma trilha riscada
na poeira da c�moda, onde David tinha posto um vaso de narcisos, j� escurecidos
nas pontas; as janelas tamb�m estavam emba�adas. Dentro de mais um dia, Bree iria
embora e chegaria a m�e delas. Ao pensar nisso, Norah sentou-se em desamparo na
beira da cama, com uma gravata de David pendendo das m�os. A desordem da casa
a oprimia como um peso, como se a pr�pria luz do sol houvesse adquirido subst�ncia,
gravidade. Ela n�o tinha for�as para combat�-la. Pior, e ainda mais aflitivo, n�o
parecia se incomodar.
A campainha tocou. Os passos n�tidos de Bree moveram-se pelos c�modos,
fazendo eco.
Norah reconheceu prontamente as vozes. Por mais um instante, permaneceu onde
estava, sentindo-se com as energias esgotadas e pensando em como poderia fazer
Bree mand�-las embora. Mas as vozes se aproximaram, perto do v�o da escada, e
tornaram a diminuir quando entraram na sala de estar; era o grupo noturno de sua
igreja, trazendo presentes e ansiando por uma espiada no novo beb�. Dois conjuntos
de amigas j� a tinham visitado, um de seu grupo de costura, outro do clube de pintura
em porcelana, enchendo sua geladeira de comida e passando Paul de m�o em
m�o, feito um trof�u. Norah tinha feito essas mesmas coisas, repetidas vezes, por outras
novas mam�es, e nesse momento ficou chocada ao descobrir que experimentava
mais ressentimento do que gratid�o: as interrup��es, o �nus dos cart�es de agradecimento,
e ela nem dava import�ncia � comida; nem sequer a queria.
Bree a chamou. Norah desceu sem se dar ao trabalho de p�r batom ou mesmo
escovar o cabelo. Continuava descal�a.
- Estou com uma apar�ncia p�ssima - anunciou, desafiadora, ao entrar na sala.
- Oh, n�o - contrap�s Ruth Starling, dando um tapinha no sof� a seu lado, embora
Norah observasse, com estranha satisfa��o, a troca de olhares entre as demais.
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Sentou-se obedientemente, cruzando as pernas na altura dos tornozelos e descansando
as m�os no colo, como costumava fazer na escola, quando menina.
- Paul acabou de adormecer - disse. - N�o vou acord�-lo.
Havia raiva em sua voz, agress�o de verdade.
- Est� tudo certo, meu bem - disse Ruth. Era uma mulher de quase 70 anos, com
o cabelo branco e fino, cuidadosamente penteado. Seu marido, de um casamento de
50 anos, falecera no ano anterior. Quanto lhe teria custado, pensou Norah, quanto lhe
custaria agora manter sua apar�ncia, sua postura animada?
- Voc� passou por um mau peda�o - disse Ruth.
Norah tornou a sentir a presen�a da filha, uma presen�a pouco al�m da vis�o, e
reprimiu uma �nsia repentina de subir correndo para ver como estava Paul. Estou
ficando maluca, pensou, e olhou fixo para o ch�o.
- Que tal um ch�? - perguntou Bree vivamente para disfar�ar o embara�o. Antes
que algu�m pudesse responder, desapareceu na cozinha.
Norah fez o melhor que p�de para se concentrar na conversa: algod�o ou cambraia
para os travesseiros do hospital, o que as pessoas achavam do novo pastor, se
elas deviam ou n�o doar cobertores ao Ex�rcito da Salva��o. E, ent�o, Sally anunciou
que o beb� de Kay Marshall, uma menina, tinha nascido na noite anterior.
- Exatos tr�s quilos e duzentos - disse. - A Kay est� maravilhosa. A nen�m � linda.
Deram-lhe o nome de Elizabeth, por causa da av�. Dizem que foi um parto tranq�ilo.
Fez-se sil�ncio, enquanto todas percebiam o que havia acontecido. Norah teve a
sensa��o de que o sil�ncio se expandia de algum ponto no centro de seu corpo,
abrindo-se em ondas pela sala. Sally ergueu os olhos, rubra de arrependimento.
- Oh - disse. - Ah, Norah, eu sinto muit�ssimo.
Norah teve vontade de falar e repor as coisas em andamento. As palavras certas
pairaram em sua cabe�a, mas ela pareceu n�o conseguir encontrar a voz. Permaneceu
calada, e o sil�ncio transformou-se num lago, num oceano em que todas poderiam
afogar-se.
- Bem - disse Ruth, finalmente, em tom animado. - Voc� � uma santa criatura,
Norah. Deve estar exausta - e pegou um pacote volumoso, embrulhado em papel
colorido, com uma por��o de fitinhas estreitas e encaracoladas. - Fizemos uma vaquinha,
achando que, provavelmente, voc� j� tinha todos os alfinetes de fralda que
uma m�e pode querer.
As mulheres riram, aliviadas. Norah tamb�m sorriu e abriu a caixa, rasgando o
papel: um andador com arma��o de metal e assento de tecido, parecido com o que
ela havia admirado na casa de uma amiga, certa vez.
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- � claro que ele n�o vai poder us�-lo por alguns meses - disse Sally. - Mesmo
assim, n�o conseguimos pensar em nada melhor, quando ele come�ar a rodar por a�!
- E tome - disse Flora Marshall, levantando-se, com dois embrulhos macios
nas m�os.
Flora era mais velha que as outras do grupo, mais at� do que Ruth, por�m era rija
e ativa. Tricotava mantas para todos os novos beb�s da igreja. Desconfiando, pelo
tamanho de Norah, que ela poderia ter g�meos, havia tricotado dois cobertores de
enrolar, trabalhando neles durante as reuni�es vespertinas e na hora do caf�, na igreja,
com os novelos de l� brilhantes e macios saltando de sua sacola. Os amarelos e
verdes past�is, os azuis-claros e o cor-de-rosa misturavam-se - Flora n�o estava ali
para apostar se seriam meninos ou meninas, brincava. Mas que seriam g�meos,
disso tinha certeza. Ningu�m a levara a s�rio na ocasi�o.
Norah aceitou os dois embrulhos, reprimindo as l�grimas. A l� macia e conhecida
cascateou em seu colo quando ela abriu o primeiro, e sua filha perdida pareceu-
lhe muito pr�xima. Norah sentiu uma onda de gratid�o a Flora, que, com a sabedoria
das av�s, soubera exatamente o que fazer. Abriu o segundo embrulho, ansiosa
pela outra manta, t�o colorida e macia quanto a primeira.
- � meio grande - desculpou-se Flora, quando o macac�o caiu no colo de Norah.
- Mas eles crescem muito depressa nessa idade.
- Onde est� o outro cobertor? - exigiu Norah. Ouviu sua voz r�spida, como um
grito de p�ssaro, e ficou perplexa; durante a vida inteira, ela fora conhecida por sua
calma, orgulhara-se de seu temperamento tranq�ilo e de suas escolhas criteriosas.
- Onde est� a manta que voc� fez para a minha filhinha?
Flora enrubesceu e correu os olhos pela sala em busca de ajuda. Ruth pegou a
m�o de Norah e a apertou com for�a. Norah sentiu-lhe a pele macia, a press�o surpreendente
dos dedos. David lhe dissera o nome desses ossos, um dia, mas ela n�o
conseguia lembrar quais eram. Pior, estava chorando.
- Vamos, vamos. Voc� tem um menininho lindo - disse Ruth.
- Ele tinha uma irm� - sussurrou Norah, decidida, olhando para todos os rostos.
As mulheres estavam ali por bondade. Sentiam-se tristes, sim, e ela as deixava mais
tristes a cada segundo. O que estava acontecendo com ela? Durante toda a vida, tentara
com enorme esfor�o fazer as coisas certas. - O nome dela era Phoebe. Quero
que algu�m diga o nome dela. Est�o me ouvindo? - E se levantou. - Quero que
algu�m se lembre do nome dela.
Vieram ent�o a toalha fria sobre sua testa e m�os ajudando-a a se deitar no sof�.
Disseram-lhe para fechar os olhos, e Norah os fechou. As l�grimas continuavam a
deslizar sob as p�lpebras - uma nascente que se avolumava e que ela parecia incapaz
de conter. As pessoas haviam recome�ado a falar, vozes rodopiando como neve
ao vento, discutindo o que fazer. N�o era incomum, disse algu�m. Mesmo nas melhores
circunst�ncias, n�o era nada estranho haver essa depress�o s�bita uns dias
depois do parto. Elas deviam ligar para David, outra voz sugeriu, mas nesse momento
apareceu Bree, calma e af�vel, para conduzi-las todas � porta. Depois que elas se
foram, Norah abriu os olhos e topou com Bree usando um de seus aventais, cujo c�s
de acabamento de sianinha amarrava-se frouxo em sua cintura fina.
A manta de Flora Marshall estava no ch�o, em meio aos pap�is de presente, e Bree
a apanhou e entrela�ou os dedos nos fios macios. Norah enxugou os olhos e falou.
- O David disse que o cabelo dela era preto. Como o dele.
Bree lan�ou-lhe um olhar atento.
- Voc� disse que ia mandar celebrar um of�cio f�nebre, Norah. Por que esperar?
Por que n�o faz�-lo agora? Talvez isso lhe traga um pouco de paz.
Norah abanou a cabe�a.
- O que o David diz, o que todos dizem, aquilo faz sentido. Devo me concentrar
no beb� que eu tenho.
Bree deu de ombros.
- S� que n�o � o que voc� est� fazendo. Quanto mais tenta n�o pensar nela, mais
pensa. O David � apenas um m�dico - acrescentou. - Ele n�o sabe tudo. N�o � Deus.
- � claro que n�o - concordou Norah. - Eu sei disso.
- �s vezes, n�o tenho tanta certeza.
Norah n�o respondeu. Desenhos brincavam no piso de madeira polida, sombras
de folhas que cavavam buracos na luz. O rel�gio sobre o console da lareira tiquetaqueava
baixinho. Ela achou que devia ficar com raiva, mas n�o ficou. A id�ia de
um of�cio f�nebre parecia haver suspendido a drenagem de energia e vontade que
tivera in�cio na escadaria da cl�nica e n�o havia parado at� esse momento.
- Talvez voc� tenha raz�o - disse. - N�o sei. Pode ser. Uma coisa bem pequena.
Uma coisa discreta.
Bree entregou-lhe o telefone.
- Tome. Comece a fazer perguntas.
Norah respirou fundo e come�ou. Ligou primeiro para o novo pastor e se descobriu
explicando que queria fazer uma cerim�nia, sim, e ao ar livre, no p�tio. Sim,
com chuva ou com sol. Para a Phoebe, minha filha, que morreu no parto. Nas duas
horas seguintes, ela repetiu as palavras, uma vez ap�s outra: para o florista, para a
mulher dos an�ncios classificados de The Leader, para suas amigas do grupo de cos
tura, que concordaram em fazer as flores. A cada telefonema, Norah sentia sua calma
ampliar-se e crescer, algo parecido com o al�vio de ver Paul pegar o seio e mamar,
religando-a com o mundo.
Bree saiu para sua aula e Norah andou pela casa silenciosa, avaliando o caos. No
quarto, a luz vespertina inclinava-se pela vidra�a, mostrando cada desaten��o. Ela
vira essa desordem todos os dias, sem se incomodar, mas agora, pela primeira vez
desde o parto, sentiu for�as, em vez de in�rcia. Esticou os len��is nas camas, abriu
as janelas, tirou o p�. Foi-se a jardineira dos tempos da gravidez. Ela vasculhou o
arm�rio at� encontrar uma saia que coubesse e uma blusa que n�o ficasse esticada
nos seios. Franziu o cenho para sua imagem no espelho, ainda muito gorducha,
muito volumosa, mas se sentiu melhor. Tamb�m se demorou no cuidado com o
cabelo: 100 escovadelas. Quando terminou, a escova estava cheia de fios, uma densa
rede dourada - era toda a exuber�ncia da gravidez caindo, � medida que seus n�veis
hormonais se readaptavam. Norah sabia que isso aconteceria. Mesmo assim, a perda
lhe deu vontade de chorar.
J� chega, disse severamente a si mesma, passando o batom e piscando para conter
as l�grimas. J� chega, Norah Asher Henry.
Vestiu um su�ter antes de descer e encontrou os sapatos rasos de cor bege. Pelo
menos os p�s estavam magros de novo.
Foi ver como estava Paul - ainda dormindo, com a respira��o leve, mas real, ao
toque de seus dedos -, colocou um dos pratos congelados no forno, p�s a mesa e
abriu uma garrafa de vinho. Estava jogando fora as flores murchas, cujas hastes lhe
deixavam uma sensa��o fria e pastosa nas m�os, quando a porta de entrada se abriu.
Seu cora��o se acelerou ao som dos passos de David - e logo ele parou no v�o da
porta, com o terno escuro pendendo frouxo em sua estrutura fina e o rosto
enrubescido pela caminhada. Estava cansado, e ela o viu registrar com al�vio a casa
limpa, a roupa familiar da mulher e o aroma da comida assando. Segurava outro
ramo de narcisos, colhido no jardim. Quando Norah o beijou, sentiu seus l�bios
frios contra os dela.
- Oi - disse David. - Parece que voc� teve um bom dia por aqui.
- �. Foi bom - respondeu Norah, e quase lhe contou o que tinha feito, mas, em
vez disso, serviu-lhe um drinque: u�sque puro, como ele gostava. David encostou-se
na bancada enquanto ela lavava a alface.
- E voc�? - perguntou Norah, fechando a torneira.
- N�o foi muito ruim. Atarefado. Desculpe por ontem � noite. Um paciente com
um infarto. N�o fatal, felizmente.
- Houve ossos envolvidos?
- Ah, sim, ele caiu da escada. Quebrou a t�bia. O nen�m est� dormindo?
Norah olhou para o rel�gio e deu um suspiro.
- Eu deveria acord�-lo, provavelmente - respondeu -, se algum dia quiser faz�-lo
entrar no hor�rio.
- Eu fa�o isso - disse David, levando as flores para o segundo andar. Ela o ouviu
movimentar-se l� em cima e o imaginou curvando-se para tocar de leve a testa de
Paul, para segurar sua m�ozinha. Em poucos minutos, por�m, David desceu sozinho,
de cal�as jeans e su�ter.
- Ele parecia muito sossegado - explicou. - Vamos deix�-lo dormir.
Foram para a sala e sentaram-se juntos no sof�. Por um momento foi como antes,
apenas os dois, e o mundo a seu redor era um lugar compreens�vel, cheio de promessas.
Norah havia planejado contar seus projetos a David durante o jantar, mas nesse
momento, de repente, viu-se explicando a cerim�nia simples que havia organizado
e o an�ncio que mandara p�r no jornal. Enquanto falava, notou que o olhar de
David foi ficando tenso, profundamente vulner�vel, de algum modo. A express�o do
marido a fez hesitar; era como se ele houvesse tirado uma m�scara e Norah estivesse
conversando com um estranho, cujas rea��es n�o sabia prever. Os olhos dele
estavam mais escuros do que ela jamais os vira, e Norah sentiu-se incapaz de dizer
o que lhe passava pela cabe�a.
- Voc� n�o gostou da id�ia - comentou.
- N�o � isso.
Norah tornou a ver a tristeza em seus olhos, a ouvi-la em sua voz. No desejo de
aplac�-la, quase desistiu de tudo, mas sentiu sua in�rcia anterior, que com enorme
esfor�o ela pusera de lado, espreitando na sala.
- Fazer isso foi bom para mim - disse. - N�o est� errado.
- N�o, n�o est� errado - concordou David.
Pareceu prestes a dizer mais alguma coisa, por�m se conteve e, em vez disso, levantou-
se, foi at� a janela e fitou a escurid�o l� fora, no jardinzinho do outro lado
da rua.
- Mas, que diabo, Norah - disse, com voz grave e �spera, num tom que nunca
havia usado antes. Aquilo a assustou, a raiva subjacente �s palavras do marido. - Por
que voc� tem que ser t�o teimosa? Por que n�o falou comigo, pelo menos, antes de
ligar para os jornais?
- Ela morreu - retrucou Norah, agora tamb�m enraivecida. - N�o h� nenhuma
vergonha nisso. N�o h� por que guardar segredo.
David, com os ombros r�gidos, n�o se voltou. Na �poca em que tinha sido um
estranho, carregando no bra�o um roup�o cor de coral na loja de departamentos
Wolf Wile, ele parecera estranhamente familiar, como algu�m que Norah um dia
houvesse conhecido bem e que tivesse passado anos sem ver. Mas agora, ap�s um
ano de casamento, ela mal o conhecia.
- David, o que est� acontecendo conosco? - perguntou.
Ele n�o se virou. O aroma de carne com batatas enchia o aposento; Norah lembrou-
se do jantar que estava aquecendo no forno e seu est�mago se agitou, com a
fome que ela havia negado o dia inteiro. No andar de cima, Paul come�ou a chorar,
mas ela continuou onde estava, � espera de uma resposta.
- N�o h� nada acontecendo conosco - disse ele, afinal.
Quando se virou, a tristeza ainda era v�vida em seus olhos, e havia mais alguma
coisa - uma esp�cie de determina��o - que ela n�o compreendeu.
- Voc� est� fazendo uma tempestade em copo d'�gua, Norah. O que � compreens�vel,
imagino.
Frio. Indiferente. Condescendente. Paul chorava com mais vigor. A intensidade da
raiva de Norah a fez girar nos calcanhares e ela irrompeu escada acima, pegou o
beb� e lhe trocou a fralda, com muita, muita delicadeza, tremendo de �dio o tempo
todo. Depois vieram a cadeira de balan�o, os bot�es e o al�vio aben�oado. Ela fechou
os olhos. L� embaixo, David andava pelos c�modos. Ele, pelo menos, havia tocado
a filha, tinha visto seu rosto.
Norah estava decidida a realizar o of�cio f�nebre, houvesse o que houvesse. Faria
isso por si mesma.
Bem devagar, enquanto Paul mamava e a luz ia esmaecendo, Norah se acalmou,
tornando-se mais uma vez um rio tranq�ilo e largo, que aceitava o mundo e o carregava
com facilidade em sua correnteza. L� fora, a grama continuava seu crescimento
lento e silencioso, casulos de ovos de aranhas rompiam-se e as asas dos p�ssaros
pulsavam em v�o. Isto � sagrado, Norah pensou, ligada, atrav�s da crian�a em seu
colo e da crian�a na terra, a tudo o que era vivo e que um dia j� vivera. Demorou
muito a abrir os olhos e, quando o fez, assustou-se com a escurid�o e a beleza a seu
redor: uma pequena forma oblonga de luz, reflexo da ma�aneta de vidro, estremecia
na parede. A nova manta de Paul, amorosamente tricotada, cascateava do ber�o
em ondas. E, na c�moda, os narcisos de David, delicados como a pele e quase luminosos,
colhiam a luz que vinha do corredor.
IV
QUANDO SUA VOZ SE ESVAIU AT� UM NADA NO ESTACIONAMENTO
deserto, Caroline bateu a porta do carro e come�ou a andar pela neve
enlameada. Depois de alguns passos, parou e voltou para buscar o beb�. O choro agudo
de Phoebe elevou-se na escurid�o, impelindo Caroline a atravessar o asfalto e passar
pelos largos quadrados brancos de luz, at� chegar �s portas autom�ticas do supermercado.
Trancadas. Ela gritou e bateu, entremeando sua voz com os gritos de Phoebe. L�
dentro, os corredores fe�ricamente iluminados estavam vazios. Um balde com um
esfreg�o fora largado num canto, enquanto as latas reluziam no sil�ncio. A pr�pria
Caroline ficou calada por v�rios minutos, ouvindo o choro de Phoebe e o farfalhar distante
do vento nas �rvores. Depois, recomp�s-se e andou at� os fundos da loja. A porta
rolante de metal da plataforma de carga e descarga estava fechada, mas mesmo assim
ela foi at� l�, consciente do cheiro de frutas e legumes apodrecidos no concreto frio e
engordurado onde a neve tinha derretido. Chutou a porta com for�a, t�o satisfeita
com o eco estrondoso que tornou a chut�-la v�rias outras vezes, at� perder o f�lego.
- Se eles ainda estiverem l� dentro, o que eu duvido, provavelmente n�o v�o abrir
essa porta t�o cedo.
Uma voz de homem. Caroline virou-se e o viu parado mais abaixo, na esp�cie de
rampa que permitia �s carretas entrarem de marcha a r� na �rea de carga e descarga.
Mesmo �quela dist�ncia, ela percebeu que se tratava de um homem grande.
Usava um sobretudo pesado e um gorro de l�. Tinha as m�os enfiadas nos bolsos.
- Meu beb� est� chorando - disse ela, como se fosse necess�rio. - A bateria do
meu carro pifou. H� um telefone do lado de dentro, bem perto da porta de entrada,
mas n�o consigo chegar l�.
- Que idade tem o seu beb�? - perguntou o homem.
- Ela � rec�m-nascida - disse Caroline, quase sem pensar, com um toque de l�grimas
e p�nico na voz. Aquilo era rid�culo, uma id�ia que sempre lhe fora abomin�vel,
e, no entanto, ali estava ela: uma donzela em perigo.
- � noite de s�bado - observou o homem, cuja voz cruzou o espa�o cheio de neve
entre os dois. Para l� do estacionamento a rua estava quieta. - � prov�vel que todas
as oficinas da cidade estejam fechadas.
Caroline n�o respondeu.
- Escute, mo�a - come�ou ele, devagar, com a firmeza da voz parecendo uma
esp�cie de �ncora. Caroline percebeu que ele se mostrava deliberadamente calmo,
deliberadamente tranq�ilizador; talvez at� achasse que ela era louca. - Deixei por
acaso meus cabos de carregar bateria com outro caminhoneiro, na semana passada,
de modo que n�o posso ajud�-la nisso. Mas est� frio aqui fora, como a senhora disse.
Eu penso o seguinte: por que n�o vem sentar-se comigo no caminh�o? L� dentro
est� quente. Entreguei uma carga de leite aqui, h� umas duas horas, e estava esperando
para ver como ficava o tempo. A senhora � bem-vinda para se sentar na cabine
comigo. Talvez isso lhe d� algum tempo para pensar.
Quando Caroline n�o respondeu de imediato, ele acrescentou:
- Estou pensando no beb�.
Ela olhou nessa hora para o outro lado do estacionamento, bem na extremidade,
onde um caminh�o-ba� de cabine escura e reluzente estava parado em ponto morto.
Caroline o vira antes, mas n�o o tinha assimilado, com sua longa carroceria de
prata fosca, sua presen�a que lembrava um pr�dio no limite do mundo. Em seu colo,
Phoebe arquejou, recobrou o f�lego e recome�ou a chorar.
- Est� bem - decidiu. - Pelo menos por enquanto.
Contornou com cuidado uns restos de cebolas. Quando chegou � beira da rampa,
l� estava ele, estendendo a m�o para ajud�-la a descer. Ela a aceitou, aborrecida, mas
tamb�m grata, pois j� sentia a camada de gelo sob os legumes estragados e a neve.
Ergueu os olhos para o rosto do homem, com sua barba espessa, um bon� puxado
at� as sobrancelhas e, abaixo destas, olhos escuros: olhos bondosos. Rid�culo, disse a
si mesma, enquanto os dois cruzavam o estacionamento. Maluquice. Idiotice tamb�m.
Ele podia ser um assassino que matava pessoas a machadadas. Mas a verdade
� que Caroline estava cansada demais para se incomodar.
Ele a ajudou a buscar algumas coisas no carro e a se acomodar na cabine, segurando
Phoebe enquanto Caroline subia para o assento alto e, depois, entregando-lhe
a nen�m. Caroline p�s mais leite da garrafa t�rmica na mamadeira. Phoebe estava
t�o agitada que levou alguns momentos para perceber que a comida havia chegado
e, mesmo nessa hora, teve de se esfor�ar para sugar. Caroline afagou-lhe gentilmente
a bochecha e, por fim, ela segurou firme o bico e come�ou a mamar.
- � meio estranho, n�o �? - disse o homem, quando a crian�a se acalmou. Havia
subido para o banco do motorista. O motor zumbia na escurid�o, reconfortante
como um gato gigantesco, e o mundo se estendia para o horizonte escuro. - Quero
dizer, esse tipo de neve no Kentucky.
- Acontece com alguns anos de intervalo - disse Caroline. - O senhor n�o � daqui?
- Sou de Akron, no Ohio. Originalmente, bem entendido. Agora faz cinco anos
que estou na estrada. Gosto de pensar em mim mesmo como sendo do mundo, nestes
�ltimos tempos.
- N�o se sente solit�rio? - perguntou Caroline, pensando em si mesma numa noite
qualquer, sentada sozinha em seu apartamento. Mal podia acreditar que estava ali,
falando com tanta intimidade com um estranho. Era esquisito, mas tamb�m emocionante,
como confiar numa pessoa que se conheceu num trem ou num �nibus.
- �, um pouco - admitiu ele. - � um trabalho solit�rio, com certeza. Mas muitas
vezes tamb�m me acontece conhecer uma pessoa inesperada. Como esta noite.
A cabine estava quentinha e Caroline se sentiu entregando-se a ela, acomod�ndose
no banco alto e confort�vel. A neve continuava a borrifar os postes de luz. O carro
dela estava parado no meio do estacionamento, como uma sombra escura e
solit�ria, salpicada de neve.
- Para onde a senhora estava indo? - perguntou o homem.
- S� at� Lexington. Houve uma batida na estrada interestadual, uns quil�metros
atr�s. Pensei em poupar tempo e aborrecimento.
O rosto dele era suavemente iluminado pela luz da rua e o homem sorriu. Para
surpresa de Caroline, ela fez o mesmo, e ambos ca�ram na risada.
- Os planos mais perfeitos... - disse ele.
Caroline assentiu com a cabe�a.
- Escute - disse o homem, ap�s um sil�ncio. - Se � s� de Lexington que estamos
falando, posso lhe dar uma carona. Tanto posso estacionar o caminh�o aqui quanto
l�. Amanh�... bom, amanh� � domingo, n�o �? Mas na segunda-feira, logo cedo,
a senhora pode chamar um reboque para buscar seu carro. Ele ficar� seguro aqui,
com certeza.
A luz do poste da rua ca�a sobre o rostinho min�sculo de Phoebe. O homem se
aproximou e, com muita delicadeza, afagou-lhe a testa com sua m�o enorme. Caroline
gostou de seu jeito canhestro e de sua calma.
- Est� bem - decidiu. - Se n�o for atrapalh�-lo.
- Ah, n�o - fez ele. - Claro que n�o. Lexington fica no meu caminho.
Ele foi buscar o resto das coisas no carro de Caroline, as sacolas de compras e os
cobertores. Chamava-se Al, Albert Simpson. Tateou o piso e encontrou uma x�cara
extra embaixo do banco. Limpou-a cuidadosamente com um len�o, colocou um
pouco de caf� da garrafa t�rmica e o serviu � enfermeira. Ela o bebeu, contente por
estar escuro, contente pelo calor e pela companhia de algu�m que n�o sabia coisa
alguma a seu respeito. Sentia-se segura e estranhamente feliz, embora o ar fosse
abafado e cheirasse a meias sujas, e houvesse um beb� que n�o lhe pertencia dormindo
em seu colo. Enquanto dirigia, Al conversou, contando-lhe hist�rias de sua
vida na estrada, dos restaurantes para caminhoneiros onde havia chuveiro e dos quil�metros
que deslizavam sob as rodas enquanto ele avan�ava, noite ap�s noite.
Embalada pelo zumbir dos pneus, pelo calor e pela neve que atingia os far�is,
Caroline resvalou para um sono leve. Quando eles pararam no estacionamento de
seu condom�nio, o caminh�o ocupou cinco vagas. Al saltou para ajud�-la a descer e
deixou o motor em ponto morto, enquanto carregava as coisas dela pela escada
externa. Caroline o seguiu, com Phoebe no colo. Uma cortina abriu e fechou rapidamente
numa janela inferior - Lucy Martin, espiando, como sempre. Caroline fez
uma pausa, momentaneamente tomada por uma esp�cie de vertigem. � que tudo
estava exatamente igual, mas ela, com certeza, n�o era a mesma mulher que sa�ra
dali no meio da noite anterior, andando com dificuldade pela neve at� o carro. Com
certeza, sofrera uma transforma��o t�o completa que deveria entrar em aposentos
diferentes, sob uma luz diferente. No entanto, sua chave conhecida encaixou-se na
fechadura e emperrou no lugar de praxe. Quando a porta se abriu, ela levou Phoebe
para um c�modo que conhecia de cor: o tapete marrom-escuro, o sof� e a poltrona
em tecido xadrez que ela comprara numa liquida��o, a mesa de centro com tampo
de vidro, o romance que ela estivera lendo antes de se deitar - Crime e castigo -, com
o marcador cuidadosamente posicionado. Ela deixara Raskolnikov confessando-se a
S�nia, sonhara com os dois em sua mansarda fria, e fora acordada pelo toque do
telefone e a neve enchendo as ruas.
Al hesitou, sem jeito, ocupando todo o v�o da porta. Poderia ser um assassino em
s�rie, um estuprador ou um vigarista. Poderia ser qualquer coisa.
- Tenho um sof�-cama - disse Caroline. - Voc� � bem-vindo para us�-lo esta noite.
Ap�s um momento de relut�ncia, Al entrou.
- E o seu marido? - perguntou, dando uma olhada em volta.
- N�o tenho marido - disse ela, e se deu conta de seu erro. - N�o tenho mais.
Al a estudou, parado com o gorro de l� na m�o, seus cachos surpreendentemente
escuros a se projetar da cabe�a. Caroline sentia-se lerda, mas alerta por causa do
caf�, e de repente pensou em como pareceria aos olhos dele - ainda com o uniforme
de enfermeira, o cabelo sem pentear h� horas, o casaco escancarado, aquele beb� no
colo e os bra�os exaustos.
- N�o quero lhe causar nenhum problema - disse Al.
- Problema? Eu ainda estaria presa num estacionamento, se voc� n�o tivesse aparecido.
Ele sorriu, foi at� o caminh�o e voltou minutos depois com uma mochilinha de
lona verde-escura.
- Havia algu�m espiando por uma janela l� embaixo. Tem certeza de que n�o vou
lhe criar nenhum aborrecimento aqui?
- Aquela era Lucy Martin - respondeu Caroline. Phoebe estava irrequieta, de
modo que ela tirou a mamadeira do aquecedor el�trico, verificou a temperatura do
leite no bra�o e se sentou. - Ela � uma fofoqueira terr�vel. Confie em mim. Voc� a
fez ganhar o dia.
Phoebe, por�m, n�o quis mamar, come�ou a chorar alto, e Caroline se levantou e
andou de um lado para outro na sala, murmurando. Enquanto isso, Al p�s m�os �
obra. Em dois tempos abriu e forrou o sof�-cama, com r�gidas dobras militares em
cada canto. Quando Phoebe finalmente se acalmou, Caroline fez um aceno de cabe�a
para ele e sussurrou um boa-noite. Fechou com firmeza a porta do quarto. Havia
lhe ocorrido que Al era o tipo de pessoa que notaria a falta de um ber�o.
No trajeto, Caroline tinha feito alguns planos e, nesse momento, tirou uma gaveta
da c�moda e p�s seu conte�do bem arrumado numa pilha no ch�o. Depois, dobrou
duas toalhas no fundo e as envolveu com um len�ol dobrado, aninhando
Phoebe entre as cobertas. Quando deitou em sua cama, a fadiga atravessou-a como
uma sucess�o de ondas e ela dormiu de imediato, um sono pesado e sem sonhos.
N�o ouviu Al roncando alto na sala, o barulho dos limpa-neves deslocando-se no
estacionamento nem o estardalha�o dos caminh�es de lixo na rua. Quando Phoebe
se mexeu, entretanto, mais ou menos no meio da madrugada, Caroline p�s-se de p�
num instante. Moveu-se na escurid�o como se estivesse na �gua, esgotada, mas com
delibera��o, trocou-lhe a fralda e aqueceu a mamadeira, concentrando-se no beb�
em seu colo e nas tarefas que tinha pela frente, todas urgentes, absorventes e imperiosas
- tarefas que, dali em diante, s� ela poderia executar, tarefas que n�o poderiam
esperar.
Caroline acordou com uma inunda��o de luz e o cheiro de ovos com bacon.
Levantou-se, fechou o roup�o e se curvou para tocar o rosto tranq�ilo da nen�m.
Depois foi at� a cozinha, onde Al passava manteiga nas torradas.
- Ol�! - fez ele, levantando os olhos. Havia penteado o cabelo, ainda meio desgrenhado.
Al tinha um ponto de calv�cie na parte posterior do couro cabeludo e
usava no pesco�o um medalh�o de ouro, pendurado numa corrente. - Espero que
voc� n�o se incomode por eu ter tomado a liberdade. Perdi o jantar ontem � noite.
- Est� com um cheiro bom - disse Caroline. - Tamb�m estou com fome.
- Bem, nesse caso, que bom que fiz bastante - comentou ele, entregando-lhe uma
x�cara de caf�. - Voc� tem um belo lugarzinho aqui. Muito bem arrumado.
- Voc� gosta? - perguntou ela. O caf� estava mais forte e mais preto do que costumava
prepar�-lo. - Estou pensando em me mudar.
Suas pr�prias palavras a surpreenderam, mas, uma vez proferidas e soltas no ar,
soaram verdadeiras. Uma luz comum incidia sobre o tapete marrom-escuro e o bra�o
do sof�. L� fora, a �gua ca�a dos beirais. Fazia anos que Caroline vinha economizando
dinheiro, imaginando-se numa casa ou numa aventura, e agora ali estava:
com um beb� no quarto, um estranho � mesa e o carro preso em Versailles.
- Estou pensando em ir para Pittsburgh - disse, tornando a se surpreender.
Al mexeu os ovos com uma esp�tula, depois os serviu nos pratos.
- Pittsburgh? �tima cidade. O que a levaria para l�?
- Ah, minha m�e tinha parentes por l� - respondeu Caroline, enquanto Al punha
os pratos na mesa e se sentava em frente a ela. Parecia n�o haver fim para as mentiras
que uma pessoa era capaz de dizer, depois de come�ar.
- Sabe, andei pensando em lhe dizer que sinto muito... - comentou Al, com seus
bondosos olhos escuros. - Pelo que quer que tenha acontecido com o pai do seu beb�.
Caroline quase se esquecera de ter inventado um marido, e por isso ficou surpresa
ao ouvir na voz de Al que ele n�o acreditava que um dia tivesse havido algum. Ele
a tomava por m�e solteira - deslumbrou-se. Os dois comeram sem falar muito,
tecendo coment�rios de vez em quando sobre o tempo, o tr�nsito e o destino de Al,
que era Nashville, no Tennessee.
- Nunca estive em Nashville - disse Caroline.
- N�o? Bom, � s� embarcar, voc� e a sua filhinha tamb�m - sugeriu Al. Era brincadeira,
mas na brincadeira havia um oferecimento. Um oferecimento n�o a ela,
realmente, mas a uma m�e solteira em apuros. Apesar disso, por um momento
Caroline se imaginou saindo porta afora com suas caixas e cobertores e nunca mais
olhando para tr�s.
6o
- Da pr�xima vez, quem sabe - disse ela, pegando o caf�. - Tenho umas coisas
para resolver aqui.
Al fez que sim.
- O.k. Sei como � isso.
- Mas obrigada. Agrade�o pela id�ia.
- � um enorme prazer - disse Al, a s�rio, e se levantou para ir embora.
Da janela, Caroline o viu andar at� o caminh�o, subir os degraus da cabine e se
virar uma vez, para dar adeus da porta aberta. Ela retribuiu o aceno, feliz por ver-
lhe o sorriso f�cil e espont�neo e surpresa com o aperto em seu peito. Teve um
impulso de correr atr�s dele, ao lembrar a cama estreita na traseira da cabine, onde
ele �s vezes dormia, e de seu jeito de tocar a testa de Phoebe, com tanta delicadeza.
Um homem que levava aquela vida solit�ria certamente seria capaz de guardar seus
segredos e acolher seus sonhos e temores. Mas o motor pegou, a fuma�a subiu do
cano prateado da cabine e logo ele saiu com cuidado do estacionamento, entrou na
rua sossegada e se foi.
Nas 24 horas seguintes, Caroline dormiu e acordou conforme os hor�rios de
Phoebe, ficando de p� apenas o tempo suficiente para comer. Era estranho: ela sempre
fora criteriosa com as refei��es, temendo os lanches indisciplinados como um
sinal de excentricidade e solid�o egoc�ntrica, mas, nessa ocasi�o e em horas disparatadas,
comeu cereal direto da caixa e sorvete tirado da embalagem �s colheradas,
em p�, junto � bancada da cozinha. Era como se houvesse entrado numa zona crepuscular
pr�pria, num estado a meio caminho entre o sono e a vig�lia, no qual ela
n�o tinha que considerar com muito rigor as conseq��ncias de suas decis�es, o destino
da nen�m que dormia na gaveta de sua c�moda nem tampouco o seu.
Na manh� de segunda-feira, ela levantou a tempo de ligar para o trabalho e dizer
que estava doente. Ruby Centers, a recepcionista, atendeu o telefone.
- Tudo bem com voc�, querida? - perguntou ela. - Voc� est� com uma voz terr�vel.
- � gripe, eu acho - disse Caroline. - � prov�vel que eu falte uns dias. Alguma
novidade por a�? - perguntou, tentando dar um tom displicente � voz. - A mulher
do Dr. Henry teve o beb�?
- Bem, eu � que n�o sei - respondeu Ruby. Caroline a imaginou franzindo o cenho,
pensativa, sua escrivaninha arrumada e pronta para o dia de trabalho, com
um vasinho de flores de pl�stico num canto. - Ainda n�o chegou mais ningu�m,
exceto uns 100 pacientes. Parece que est�o todos com o seu resfriado, Srta. Caroline.
No instante em que ela desligou o telefone houve uma batida na porta da frente.
Lucy Martin, sem d�vida. Caroline ficou surpresa por ela haver demorado tanto.
Lucy usava um vestido com flores cor-de-rosa grandes e vivas, um avental com
babados debruados de cor-de-rosa e chinelos felpudos. Quando a enfermeira abriu
a porta, foi entrando direto, carregando metade de um p�o de banana envolto em
pl�stico.
Lucy tinha um cora��o de ouro, diziam todos, mas sua simples presen�a deixava
Caroline com afli��o nos dentes. Os bolos, tortas e pratos quentes de Lucy eram seu
bilhete de entrada para o centro de todos os dramas: mortes e acidentes, nascimentos,
casamentos e vel�rios. Havia qualquer coisa de errado com sua sofreguid�o,
uma estranha esp�cie de voyeurismo em sua necessidade de m�s not�cias, e Caroline
costumava procurar mant�-la � dist�ncia.
- Vi sua visita - disse Lucy, dando um tapinha no bra�o de Caroline. - Nossa! Que
sujeito bonit�o, hein? Mal pude esperar para saber do furo.
Lucy sentou-se no sof�-cama, j� fechado. Caroline acomodou-se na poltrona. A
porta do quarto, onde Phoebe dormia, estava aberta.
- Voc� n�o est� doente, est�, meu bem? - dizia Lucy. - Porque, pensando bem,
nesse hor�rio voc� costuma j� ter sa�do h� muito tempo, de manh�.
Caroline estudou o rosto �vido de Lucy, c�nscia de que o que quer que dissesse
correria rapidamente a cidade - de que, em dois ou tr�s dias, algu�m se aproximaria
dela no mercado ou na igreja e perguntaria pelo estranho que passara a noite em seu
apartamento.
- Aquele que voc� viu ontem � noite foi meu primo - disse ela prontamente, de novo
surpresa com a facilidade s�bita que tinha desenvolvido, com a flu�ncia e a desenvoltura
de suas mentiras. Elas lhe ocorriam completas, nem sequer a faziam pestanejar.
- Ah, eu estava intrigada � disse Lucy, com ar meio desapontado.
- Eu sei - fez Caroline. E ent�o, num golpe preventivo que a deixou admirada, ao
rememor�-lo depois, acrescentou: - Coitado do Al. A mulher dele est� hospitalizada
- e inclinou o corpo, chegando um pouco mais perto e baixando a voz. - � muito
triste, Lucy. Ela s� tem 25 anos, mas est�o achando que talvez esteja com c�ncer no
c�rebro. Andava levando muitos tombos, e a� o Al a trouxe de Somerset para consultar
o especialista. E eles t�m uma nenenzinha. Por isso eu falei para ele ficar com
ela no hospital dia e noite, se for preciso, e deixar a menina comigo. E acho que eles
se sentiram � vontade com isso, por eu ser enfermeira. Espero que o choro dela n�o
a tenha incomodado.
Por alguns instantes, a perplexidade emudeceu Lucy, e Caroline compreendeu o
prazer - o poder - de um golpe desferido de supet�o, vindo do nada.
- Coitados, coitadinhos do seu primo e da mulher dele! Que idade tem a nen�m?
- S� tr�s semanas - disse Caroline, e ent�o, inspirada, levantou-se. - Espere aqui.
Foi at� o quarto e tirou Phoebe da gaveta da c�moda, mantendo-a bem enrolada
nas cobertas.
- N�o � linda? - perguntou, sentando-se ao lado de Lucy.
- Ah, �, sim. � uma gracinha! - falou Lucy, tocando uma das m�ozinhas de Phoebe.
Caroline sorriu, sentindo uma onda inesperada de orgulho e prazer. Os tra�os
que ela havia notado na sala de parto - os olhos rasgados, o rosto ligeiramente
achatado - tinham se tornado t�o familiares que ela mal os notava. Lucy, que n�o
tinha o olhar treinado, nem sequer os enxergou. Phoebe se parecia com qualquer
outro beb� - delicado, ador�vel, feroz em suas exig�ncias.
- Adoro olhar para ela - confessou Caroline.
- Ah, aquela pobre m�ezinha! - murmurou Lucy. - Eles t�m esperan�a de que ela
sobreviva?
- Ningu�m sabe. O tempo dir� - respondeu Caroline.
- Eles devem estar arrasados.
- �. Est�o, sim. Perderam completamente o apetite - confidenciou Caroline, prevenindo
com isso a chegada de um dos famosos pratos de Lucy.
Nos dois dias seguintes, Caroline n�o saiu. O mundo chegava at� ela sob a forma
de jornais, entregas de compras, leiteiros e o som do tr�nsito. O tempo mudou e a
neve se foi, t�o s�bito quanto havia chegado, cascateando pelas laterais dos pr�dios
e desaparecendo nos ralos. Para Caroline, esses dias entrecortados fundiram-se vagamente
numa sucess�o de imagens e impress�es ao acaso: a vis�o de seu Ford Fairlane,
de bateria recarregada, sendo trazido para o estacionamento; a luz do sol
vazando pelas janelas emba�adas; o cheiro penetrante de terra molhada; um tordo
no comedouro dos p�ssaros. Ela teve seus momentos de preocupa��o, mas muitas
vezes, sentada com Phoebe, surpreendeu-se ao se descobrir em perfeita paz. O que
dissera a Lucy Martin era verdade: ela adorava olhar para a nen�m. Adorava sentar-
se sob o sol e segur�-la no colo. N�o, n�o podia se enamorar de Phoebe: ela era apenas
uma parada tempor�ria. Na cl�nica, Caroline havia observado David Henry um
n�mero suficiente de vezes para confiar em sua compaix�o. Naquela noite em que
ele levantara a cabe�a da escrivaninha e a fitara, ela vira em seus olhos uma capacidade
infinita de bondade. N�o tinha d�vida de que o m�dico faria a coisa certa, uma
vez que superasse o choque.
Toda vez que o telefone tocava, ela levava um susto. Mas tr�s dias se passaram sem
uma �nica palavra dele.
Na manh� de quinta-feira bateram na porta. Caroline apressou-se a atender, ajeitando
o cinto do vestido e o cabelo. Mas era apenas um entregador, trazendo um vaso
de flores: tons de vermelho-escuro e rosa p�lido, em meio a uma nuvem de
cravos-de-amor. Vinham de Al. Muito obrigado pela hospitalidade, escrevera ele no
cart�o. Talvez eu a reveja em minha pr�xima passada.
Caroline levou-as para dentro e as colocou na mesinha de centro. Agitada, pegou
o exemplar de The Leader, que passara dias sem ler, tirou o el�stico e folheou as
mat�rias, sem realmente entender nenhuma delas. Uma escalada da tens�o no Vietn�,
not�cias sociais sobre quem oferecera recep��es a quem na semana anterior, uma
p�gina com mulheres do lugar servindo de modelos para os novos chap�us de primavera.
Caroline estava prestes a largar o jornal quando um quadrado de bordas
pretas captou sua aten��o.
Of�cio f�nebre em homenagem
� nossa amada filha,
Phoebe Grace Henry,
nascida e falecida em 7 de mar�o de 1964.
Igreja Presbiteriana de Lexington,
sexta-feira, 13 de mar�o de 1964, �s 9h.
Caroline sentou-se, devagar. Releu as palavras uma vez, depois outra. Chegou at�
a toc�-las, como se, de algum modo, isso pudesse torn�-las mais claras, explic�veis.
Ainda com o jornal na m�o, levantou-se e foi at� o quarto. Phoebe dormia em sua
gaveta, com um bracinho p�lido estendido sobre as cobertas. Nascida e falecida.
Caroline voltou � sala e telefonou para o consult�rio. Ruby atendeu ao primeiro
toque.
- Imagino que voc� n�o venha, n�o �? - perguntou ela. - Isto aqui est� um hosp�cio.
Parece que todas as pessoas da cidade est�o gripadas - e baixou a voz. - Voc�
soube, Caroline? Sobre o Dr. Henry e os beb�s? Eles tiveram g�meos, afinal. O garotinho
est� �timo, � um encanto. Mas a menina morreu no parto. Uma tristeza.
- Li a not�cia no jornal - disse Caroline, com o queixo e a l�ngua enrijecidos. - Se64
r� que voc� pode pedir ao Dr. Henry para me telefonar? Diga-lhe que � importante.
Eu vi o jornal - repetiu. - Diga isso a ele, sim, Ruby?
Desligou e ficou sentada, olhando fixo para o estacionamento l� fora.
Uma hora depois, ele bateu na porta.
- Bem - fez a enfermeira, convidando-o a entrar.
David Henry entrou e se sentou no sof�, com as costas encurvadas, girando o
chap�u na m�o. Caroline sentou-se na poltrona em frente, observando-o como se
nunca o tivesse visto.
- Foi a Norah quem p�s o an�ncio - explicou ele. Quando David ergueu os olhos,
Caroline sentiu-se invadir por uma onda de comisera��o, a despeito de si mesma,
pois ele tinha o cenho franzido e os olhos injetados, como se n�o dormisse fazia dias.
- Ela fez isso sem falar comigo.
- Mas ela pensa que a filha morreu - contrap�s Caroline. - Foi isso que o senhor
lhe disse?
Ele assentiu com um lento aceno da cabe�a.
- Eu pretendia contar-lhe a verdade. Mas, quando abri a boca, n�o consegui.
Naquele momento, achei que a estava poupando do sofrimento.
Caroline pensou em suas pr�prias mentiras, fluindo uma ap�s outra.
- N�o a deixei em Louisville - informou, baixinho. Acenou com a cabe�a para a
porta do quarto. - Ela est� ali. Dormindo.
David Henry ergueu os olhos. Caroline inquietou-se, porque o rosto dele ficou
branco; ela nunca o vira t�o abalado assim.
- Por que n�o? - perguntou o m�dico, � beira da raiva. - Por que � que n�o?
- O senhor j� esteve naquele lugar? - retrucou ela, recordando a mo�a p�lida cujo
cabelo ca�a no lin�leo frio. - J� viu aquele lugar?
- N�o - foi a resposta. David franziu o cenho. - O lugar foi muito bem recomendado,
s� isso. J� encaminhei outras pessoas para l�, no passado. N�o tive nenhuma
informa��o negativa.
- Era terr�vel - disse Caroline, aliviada. Ent�o, ele n�o sabia o que estava fazendo.
Ela continuava com vontade de odi�-lo, mas se lembrou das muitas noites em que
ele ficara na cl�nica para cuidar de pacientes que n�o podiam pagar pelo atendimento
de que precisavam. Pacientes vindos do interior, das montanhas, que faziam a
�rdua viagem para Lexington, com pouco dinheiro e grandes esperan�as. Os outros
s�cios da cl�nica n�o gostavam, mas o Dr. Henry sempre os atendia. N�o era um
homem mau, ela sabia. N�o era um monstro. Mas aquilo - um of�cio f�nebre para
uma crian�a viva -, aquilo era monstruoso.
- O senhor tem que contar a ela - insistiu.
O rosto de David estava p�lido, im�vel, mas resoluto.
- N�o - retrucou. - Agora � tarde demais. Fa�a o que tiver que fazer, Caroline,
mas n�o posso contar a ela. N�o vou contar.
Era estranho: Caroline sentiu enorme avers�o por ele depois dessas palavras, mas,
naquele momento, tamb�m sentiu a maior intimidade que j� tivera com qualquer
pessoa. Agora os dois estavam juntos numa coisa colossal e, houvesse o que houvesse,
sempre estariam. Ele pegou a m�o da enfermeira, o que lhe pareceu natural,
correto. Levou-a aos l�bios e a beijou. Caroline sentiu nos n�s dos dedos a press�o
de seus l�bios e, na pele, o calor de sua respira��o.
Se houvesse uma express�o calculista no rosto de David quando ele ergueu os
olhos, se houvesse algo menor que uma confus�o sofrida quando ele lhe soltou a
m�o, ela teria feito a coisa certa. Teria apanhado o telefone e ligado para o Dr. Bentley,
ou para a pol�cia, e teria confessado tudo. Mas havia l�grimas nos olhos do m�dico.
- Est� em suas m�os - disse ele, soltando-a. - Deixo a seu crit�rio. Acho que o
asilo em Louisville � o lugar certo para essa crian�a. N�o tomei essa decis�o levianamente.
Ela vai precisar de uma assist�ncia m�dica que n�o poder� receber em outro
lugar. Mas, o que quer que voc� tenha que fazer, eu respeitarei sua decis�o. E, se
optar por chamar as autoridades, assumirei a culpa. N�o haver� nenhuma conseq��ncia
para voc�, eu prometo.
Ele tinha a express�o carregada. Pela primeira vez, Caroline pensou al�m do imediato,
al�m do beb� no quarto ao lado. At� aquele momento, n�o lhe ocorrera realmente
que a carreira de ambos corria perigo.
- N�o sei - disse ela, devagar. - Tenho que pensar. N�o sei o que fazer.
David puxou a carteira e a esvaziou. Trezentos d�lares. Caroline ficou chocada ao
ver que ele carregava uma soma t�o grande.
- N�o quero seu dinheiro - disse.
- N�o � para voc�. � para a menina.
- Phoebe. O nome dela � Phoebe - disse Caroline, afastando as notas. Pensou na
certid�o de nascimento, que ficara em branco, a n�o ser pela assinatura de David
Henry, em sua pressa naquela manh� de nevasca. Seria muito f�cil datilografar o
nome de Phoebe e o dela pr�pria.
- Phoebe - ele repetiu. Levantou-se para sair, deixando o dinheiro na mesa. - Por
favor, Caroline, n�o fa�a nada sem primeiro me dizer. � a �nica coisa que eu lhe pe�o.
Que voc� me avise, seja qual for a sua decis�o.
Em seguida, retirou-se, e tudo voltou a ser como antes: o rel�gio no console da
lareira, o quadrado de luz no ch�o, as sombras n�tidas dos galhos nus. Em poucas
semanas haveria folhas novas, abrindo-se em plumas nas �rvores e modificando as
formas nos pisos. Ela j� vira tudo aquilo in�meras vezes, mas, nesse momento, o c�modo
lhe pareceu estranhamente impessoal, como se ela nunca houvesse morado
ali. Ao longo dos anos, Caroline comprara pouqu�ssimas coisas para si, sendo frugal
por natureza e sempre imaginando que sua verdadeira vida aconteceria noutro
lugar. O sof� de tecido xadrez, a poltrona combinando - sim, ela gostava bastante
desses m�veis, escolhera-os pessoalmente, mas percebeu ent�o que os deixaria sem
dificuldade. Deixaria tudo, sup�s, correndo os olhos pelas gravuras emolduradas de
paisagens, pelo porta-revistas de vime junto ao sof�, pela mesinha baixa de centro.
De repente, seu apartamento pareceu-lhe t�o impessoal quanto uma sala de espera
de qualquer cl�nica da cidade. E, afinal, o que mais ela fizera ali, em todos aqueles
anos, sen�o esperar?
Tentou silenciar os pensamentos. Com certeza, devia haver outro caminho menos
dram�tico. Era o que teria dito sua m�e, balan�ando a cabe�a e lhe dizendo para n�o
bancar a Sarah Bernhardt. Caroline passara anos sem saber quem era Sarah
Bernhardt, mas entendia com bastante clareza o que a m�e queria dizer: qualquer
excesso de emo��o era ruim, perturbava a ordem serena de seus dias. E, assim,
Caroline havia guardado todas as suas emo��es, como quem guarda um casaco.
Deixara-as de lado e imaginara que depois as recuperaria, mas � claro que nunca o
tinha feito, n�o at� receber a nen�m dos bra�os do Dr. Henry. E assim havia come�ado
alguma coisa, e agora ela n�o podia det�-la. Duas sensa��es g�meas a perpassaram:
medo e excita��o. Ela poderia deixar esse lugar nesse mesmo dia. Poderia
come�ar vida nova em algum outro local. Teria que faz�-lo, de qualquer modo, independentemente
do que decidisse a respeito do beb�. A cidade era pequena; Caroline
n�o poderia ir ao mercado sem deparar com um conhecido. Imaginou os olhos de
Lucy Martin arregalados, seu prazer secreto em relatar as mentiras de Caroline, em
falar de sua afei��o por essa crian�a descartada. Pobre solteirona, diriam as pessoas a
seu respeito, t�o desesperada para ter seu pr�prio filho.
Est� em suas m�os, Caroline. E o rosto dele envelhecera, crispado como uma noz.
Na manh� seguinte, Caroline acordou cedo. Fazia um lindo dia e ela abriu as janelas,
deixando entrar o ar fresco e o aroma da primavera. Phoebe havia acordado
duas vezes durante a noite e, enquanto ela dormia, Caroline havia empacotado e
transportado suas coisas para o carro, na escurid�o. Possu�a muito pouco, como
constatou - s� umas poucas malas, que caberiam facilmente no bagageiro e no
banco traseiro do Fairlane. Na realidade, ela poderia partir para a China, a Birm�nia
ou a Cor�ia, sendo avisada com um minuto de anteced�ncia. Isso lhe agradava.
Tamb�m estava satisfeita com sua efici�ncia. At� o meio-dia da v�spera havia tomado
todas as provid�ncias: uma institui��o beneficente buscaria a mob�lia; uma firma
de servi�os de limpeza e conserva��o cuidaria do apartamento. Ela mandara suspender
o fornecimento de energia e outros servi�os e enviara cartas aos bancos,
solicitando o encerramento de suas contas.
Caroline esperou, tomando caf�, at� ouvir a porta bater l� embaixo e o motor do
carro de Lucy roncar, ganhando vida. Rapidamente, pegou Phoebe e parou por um
instante � porta do apartamento em que havia passado tantos anos esperan�osos,
anos que agora lhe pareciam ef�meros, como se nunca tivessem acontecido. Em
seguida, fechou a porta com firmeza e desceu a escada.
Colocou Phoebe em sua caixa no banco traseiro e tomou o rumo do centro da
cidade, passando pela cl�nica, com suas paredes turquesa e seu telhado laranja, pelo
banco, pela lavanderia a seco e por seu posto de gasolina favorito. Ao chegar � igreja,
estacionou na rua e deixou Phoebe dormindo no carro. O grupo reunido no p�tio
era maior do que ela havia esperado, e Caroline parou a meia dist�ncia, perto o bastante
para ver a nuca de David Henry, avermelhada pelo frio, e o cabelo louro de
Norah Henry, preso num coque formal. Ningu�m a notou. Seus saltos afundaram na
lama na beira da cal�ada. Ela apoiou o peso do corpo nos dedos dos p�s, relembrando
os cheiros ran�osos da institui��o para onde o Dr. Henry a mandara na semana
anterior. Relembrando a mulher de camisola, com o cabelo escuro caindo no ch�o.
As palavras vagaram pelo sereno ar matinal.
T�o clara � a noite quanto o dia; as trevas e a luz s�o iguais para Ti.
Caroline havia trabalhado em todo e qualquer hor�rio. Comera bolachas � janela
da cozinha, em p�, no meio da madrugada. Seus dias e suas noites tinham se tornado
indistingu�veis, estilha�ando de uma vez por todas os padr�es reconfortantes de
sua vida.
Norah Henry enxugou os olhos com um len�o de renda. Caroline lembrou-se do
aperto de sua m�o ao expulsar um beb�, depois outro, e das l�grimas em seus olhos,
tamb�m naquele momento. Isso a destruiria, declarara David Henry. E o que aconteceria
se Caroline desse um passo � frente agora levando no colo o beb� perdido? E
se interrompesse aquele luto, apenas para introduzir muitos outros?
Diante de Ti puseste as nossas iniquidades e os nossos pecados ocultos � luz do Teu rosto.
David Henry se remexia enquanto o pastor falava. Pela primeira vez, Caroline
compreendeu no pr�prio corpo o que estava prestes a fazer. Sua garganta apertou-
se e a respira��o ficou mais curta. Era como se o cascalho lhe pressionasse os p�s
atrav�s dos sapatos, e o grupo reunido no p�tio tremeu diante de seus olhos, e ela
achou que ia cair. Muito s�ria, pensou consigo mesma, ao ver as longas pernas de
Norah se dobrarem, t�o graciosas, ajoelhando de repente na lama. O vento bateu no
v�u curto de Norah e lhe repuxou o chapeuzinho sem aba.
Pois as coisas que se v�em s�o transit�rias, mas as coisas invis�veis s�o eternas.
Caroline observou a m�o do pastor e, quando ele voltou a falar, as palavras, embora
quase indistintas, pareceram dirigir-se n�o a Phoebe, mas a ela pr�pria, com
uma esp�cie de car�ter final e irrevers�vel.
Aos elementos entregamos seu corpo, da terra � terra, das cinzas �s cinzas, do p� ao
p�. Que o Senhor a aben�oe e guarde, que o Senhor fa�a brilhar Seu rosto sobre ela e lhe
conceda a paz.
A voz fez uma pausa, o vento mexeu-se nas �rvores e Caroline se recomp�s, enxugou
os olhos com o len�o e sacudiu depressa a cabe�a. Deu meia-volta e foi para o
carro, onde Phoebe continuava a dormir, com uma pequena r�stia de luz solar pousada
em seu rosto.
Em todo fim, portanto, havia um come�o. Pouco depois, Caroline dobrou a esquina
da f�brica de monumentos, com suas fileiras de l�pides, e rumou para a rodovia
interestadual. N�o seria mau agouro ter uma f�brica de lajes sepulcrais marcando
a entrada de uma cidade? Mas, logo em seguida, ela deixou tudo isso para tr�s
e, ao chegar � bifurca��o da rodovia, escolheu o rumo norte, em dire��o a Cincinnati
e, depois, Pittsburgh, seguindo o rio Ohio at� o local em que o Dr. Henry
vivera parte de seu misterioso passado. A outra estrada, para Louisville e o Asilo para
D�beis Mentais, desapareceu no espelho retrovisor.
Caroline dirigia depressa, sentindo-se imprudente, com o cora��o repleto de uma
empolga��o viva como o dia. Porque, na verdade, que import�ncia teriam os maus
press�gios naquele momento? Afinal, aos olhos do mundo, a crian�a que seguia a
seu lado j� estava morta. E ela, Caroline Gill, estava desaparecendo da face da Terra,
processo que a deixava sentindo-se leve, mais leve, como se o pr�prio carro houvesse
come�ado a flutuar sobre os campos tranq�ilos do sul de Ohio. Em toda aquela
tarde ensolarada, viajando para o norte e para o leste, Caroline sentiu absoluta confian�a
no futuro. E por que n�o sentiria? Afinal, se aos olhos do mundo o pior j� lhes
havia acontecido, ent�o, com certeza, era o pior que elas estavam deixando para tr�s.
FEVEREIRO DE 1965
ESCAL�A, NORAH SE EQUILIBRAVA PRECARIAMENTE NUM BANQUINHO NA
sala de jantar, prendendo fitas cor-de-rosa no lustre de bronze. Tiras de
cora��es de papel, em tons de rosa e magenta, pendiam acima da mesa, com as pontas
ro�ando na porcelana do casamento, com suas flores vermelho-escuras e seus frisos
dourados, na toalha de renda e nos guardanapos de linho. Enquanto ela trabalhava,
o aquecedor zumbia e tiras de papel crepom eram sopradas no ar, resvalando
em sua saia e tornando a cair delicadamente no piso, farfalhantes.
Paul, com 11 meses, estava sentado a um canto, ao lado de uma velha cesta de palha
cheia de cubos de madeira. Mal havia aprendido a andar e, durante a tarde inteira,
divertira-se passeando pela nova casa, batendo os pezinhos com seu primeiro
par de sapatos. Cada c�modo era uma aventura. Ele deixara cair pregos nas aberturas
do sistema de calefa��o, encantado com o eco que eles produziam. Havia arrastado
pela cozinha um saco de mistura para rejuntamento, deixando � sua passagem
uma trilha branca e estreita. Agora, de olhos arregalados, observava as fitas
decorativas, belas e esquivas como borboletas; apoiou-se numa cadeira para ficar de
p� e partiu no encal�o delas, com passos tr�pegos. Segurou uma fita cor-de-rosa e
puxou, balan�ando o lustre. Depois, perdeu o equil�brio e caiu sentado. At�nito,
come�ou a chorar.
- Ah, amorzinho - disse Norah, descendo da banqueta para peg�-lo no colo.
- Passou, passou - murmurou para o filho, deslizando a m�o sobre seu cabelo macio
e escuro.
Do lado de fora, um par de far�is piscou e desapareceu e ouviu-se a batida de
uma porta de autom�vel. Ao mesmo tempo, o telefone come�ou a tocar. Norah
levou Paul � cozinha e tirou o fone do gancho no exato momento em que algu�m
batia � porta.
- Al�? - disse. Encostou os l�bios na testa de Paul, �mida e delicada, enquanto se
esfor�ava para ver de quem era o carro na entrada da garagem. Bree n�o era esperada
em menos de uma hora. - Nenenzinho querido - sussurrou. Depois, repetiu ao
telefone: - Al�?
- Sra. Henry?
Era a enfermeira do novo consult�rio de David - ele passara a integrar a equipe
do hospital um m�s antes -, uma mulher que Norah nunca havia encontrado. Sua
voz era calorosa e grave: Norah a imaginava de meia-idade, robusta e s�lida, com o
cabelo preso num cuidadoso penteado bolo-de-noiva. Caroline Gill - que lhe havia
segurado a m�o durante as ondas de contra��es, e cujos olhos azuis de express�o
firme estavam inextricavelmente ligados, para Norah, �quela agitada noite de nevasca
- havia simplesmente desaparecido. Um mist�rio e um esc�ndalo.
- Sra. Henry, � Sharon Smith. O Dr. Henry foi chamado para uma cirurgia de
emerg�ncia, bem na hora, eu juro, em que estava saindo pela porta e indo para casa.
Houve um acidente terr�vel perto da Estrada Leestown. Adolescentes, a senhora sabe
como �; est�o muito feridos. O Dr. Henry me pediu para telefonar. Chegar� em casa
assim que puder.
- Ele disse quanto tempo vai demorar? - perguntou Norah. O ar recendia a lombinho
assado, chucrute e batatas de forno: a refei��o favorita de David.
- N�o. Mas dizem que foi uma batida terr�vel. C� entre n�s, meu bem, pode ser
que leve horas.
Norah balan�ou a cabe�a. Ao longe, a porta de entrada abriu e fechou. Houve um
som de passos, leves e conhecidos, no sagu�o, na sala de estar e na sala de jantar:
Bree, chegando cedo para buscar Paul e deixar Norah e David a s�s nessa v�spera do
Dia dos Namorados, seu anivers�rio de casamento.
O projeto de Norah, sua surpresa, seu presente para ele.
- Obrigada - disse � enfermeira, antes de desligar. - Obrigada por ter telefonado.
Bree entrou na cozinha, trazendo consigo o cheiro da chuva. Sob a capa comprida,
usava botas pretas at� os joelhos, e suas coxas longas e brancas desapareciam na
saia mais curta que Norah j� tinha visto. Os brincos prateados, engastados de turquesas,
dan�avam com a luz. Ela viera direto do trabalho - gerenciava o escrit�rio
de uma esta��o de r�dio local - e tinha a bolsa carregada de jornais e livros das aulas
que vinha freq�entando.
- Uau! - exclamou Bree, pondo a bolsa na bancada e estendendo os bra�os para
Paul. - Est� tudo lindo, Norah. Mal posso acreditar no que voc� fez com a casa em
t�o pouco tempo.
- Ela tem me mantido ocupada - concordou Norah, pensando nas semanas que
gastara descolando o papel de parede com vapor e aplicando novas dem�os de tinta.
Ela e David tinham decidido mudar-se, achando que, tal como o novo emprego
dele, isso os ajudaria a deixar o passado para tr�s. Norah, que n�o desejava outra
coisa, entregara-se de corpo e alma a esse projeto. Mas n�o tinha sido t�o �til quanto
ela havia esperado: muitas vezes, sua sensa��o de perda ainda se agitava, como
chamas emergindo de brasas. S� neste �ltimo m�s, em duas ocasi�es ela havia contratado
uma bab� para Paul e deixado a casa para l�, com seus remates parcialmente
pintados e seus rolos de papel de parede. Dirigira muito depressa pelas estreitas
estradas rurais at� o cemit�rio particular, assinalado por um port�o de ferro batido,
onde sua filha fora sepultada. As l�pides eram baixas, algumas muito antigas e quase
alisadas pelo desgaste. A de Phoebe era simples, feita de granito cor-de-rosa, com as
datas de sua curta vida entalhadas a fundo sob seu nome. Na �rida paisagem de
inverno, com o vento a lhe a�oitar o cabelo, Norah havia ajoelhado na grama gelada
e quebradi�a de seu sonho. Ficara quase paralisada de tristeza, enlutada demais
at� para chorar. Mas tinha passado horas ali, antes de finalmente se levantar, sacudir
a roupa e ir para casa.
Nesse momento, Paul brincava com Bree, tentando puxar-lhe o cabelo.
- Sua mam�e � incr�vel - disse Bree ao menino. - Ultimamente, ela anda um perfeito
exemplo de prendas do lar, n�o �? N�o, amorzinho, os brincos n�o - acrescentou,
segurando a m�ozinha de Paul.
- Prendas do lar? - repetiu Norah, com a raiva subindo � cabe�a como uma onda.
- Que quer dizer com isso?
- Eu n�o quis dizer nada - respondeu Bree, que fazia caretas bobas para Paul e,
nesse momento, ergueu os olhos, surpresa. - Puxa, francamente, Norah!
- Prendas do lar? - insistiu ela. - Eu s� queria que as coisas ficassem bonitas no
meu anivers�rio de casamento. Que h� de errado nisso?
- Nada - suspirou Bree. - Est� tudo lindo. N�o foi o que eu acabei de dizer? E
estou aqui para bancar a bab�, lembra-se? Por que voc� est� t�o zangada?
Norah fez um aceno com a m�o.
- Deixa pra l�. Ora, droga, deixa pra l�. David est� em cirurgia.
Bree esperou um segundo antes de dizer:
- Logo vi.
Norah ia come�ar a defend�-lo, mas parou. Levou as m�os ao rosto.
- Ah, Bree, por que hoje?
- � um horror - concordou a irm�. O rosto de Norah ficou tenso, ela sentiu os
l�bios se comprimirem num muxoxo e Bree riu. - Ora, vamos, seja franca. Talvez
n�o seja culpa do David. Mas isso � exatamente o que voc� acha, n�o �?
- N�o � culpa dele - fez Norah. - Houve um acidente. Mas est� certo. Voc� tem
raz�o. �, � o fim da picada. � absolutamente o fim da picada, est� bem?
- Eu sei - disse Bree, com a voz surpreendentemente meiga. - � uma droga mesmo.
Sinto muito, maninha - e sorriu. - Olhe, eu trouxe um presente para voc� e o
David. Talvez ele a anime.
Bree trocou Paul de bra�o e vasculhou sua gigantesca sacola acolchoada, tirando
livros, uma barra de chocolate, uma pilha de folhetos sobre uma passeata pr�xima,
�culos escuros numa caixa de couro surrada e, por �ltimo, uma garrafa de vinho,
que cintilou como cristal quando ela serviu uma ta�a para cada uma.
- Ao amor - brindou, entregando uma ta�a a Norah e erguendo a outra. - � felicidade
e ao para�so eternos.
As duas riram juntas e beberam um gole. O vinho tinha o tom escuro das bagas
e um vago aroma de carvalho. A chuva escorria das calhas. Anos depois, Norah se
lembraria dessa noite, da amarga decep��o e de Bree trazendo s�mbolos tremeluzentes
de um outro mundo: suas botas brilhantes, seus brincos, sua energia, que era
uma esp�cie de luz. Como eram bonitas essas coisas para Norah, e como eram distantes,
inating�veis! Depress�o: anos depois, ela compreenderia a luz pardacenta em
que habitava, mas ningu�m falava disso em 1965. Ningu�m sequer o considerava.
Certamente n�o em rela��o a Norah, que tinha sua casa, seu beb�, seu marido m�dico.
Esperava-se que vivesse feliz.
- Ei, a sua antiga casa j� foi vendida? - perguntou Bree, colocando a ta�a na bancada.
- Voc�s resolveram aceitar a oferta?
- N�o sei - disse Norah. - A oferta � menor do que esper�vamos. David quer aceitar,
s� para acabar com isso, mas n�o sei. Era nossa casa. Ainda detesto a id�ia de me
desfazer dela.
Pensou em sua primeira casa, �s escuras e vazia, com uma placa de VENDE-SE fincada
no jardim, e, para ela, foi como se o mundo houvesse se tornado muito fr�gil.
Norah apoiou-se na bancada para se equilibrar e tomou outro gole de vinho.
-E como anda a sua vida amorosa, ultimamente? - perguntou, mudando de
assunto. - Como v�o as coisas com aquele sujeito com quem voc� estava saindo,
como era o nome dele... Jeff?
- Ah, aquele - fez Bree. Uma express�o melanc�lica perpassou-lhe o rosto e ela
sacudiu a cabe�a, como que para desanuvi�-la. - N�o lhe contei? H� umas duas semanas,
cheguei em casa e o encontrei na cama, na minha cama, com uma doce
jovenzinha que trabalhou conosco na campanha para a prefeitura.
- Oh! Sinto muito.
Bree balan�ou a cabe�a.
- N�o se incomode. N�o � como se eu o amasse nem nada. � s� que funcion�vamos
bem juntos, sabe? Eu achava, pelo menos.
- Voc� n�o o amava? - repetiu Norah, ouvindo e detestando o tom desaprovador
de sua m�e saindo de sua pr�pria boca. Ela n�o queria ser aquela pessoa que tomava
x�caras de ch� na casa bem arrumada e silenciosa de sua inf�ncia. Mas tamb�m
n�o queria ser a pessoa em que parecia estar se transformando, largada pelo luto
num mundo que n�o fazia sentido.
- N�o - disse Bree. - N�o, n�o amava, embora tivesse achado que poderia, durante
algum tempo. Mas isso j� nem vem ao caso. A quest�o � que ele transformou tudo
o que t�nhamos num chav�o. Isso � o que eu detesto mais do que tudo, fazer parte
de um chav�o.
Bree p�s a ta�a vazia na bancada e passou Paul para o outro bra�o. Seu rosto sem
maquiagem era delicado, de belos ossos; as faces e os l�bios coloriam-se de um rosa
p�lido.
- Eu n�o poderia viver como voc� - comentou Norah. Desde o nascimento de
Paul, desde a morte de Phoebe, ela sentia necessidade de manter uma vig�lia constante,
como se um segundo de desaten��o pudesse abrir as portas para a desgra�a.
- Eu simplesmente n�o conseguiria... romper todas as regras. Jogar tudo para o alto.
- O mundo n�o acaba - disse Bree, tranq�ila. - � incr�vel, mas n�o acaba mesmo.
Norah balan�ou a cabe�a.
- Pode acabar. A qualquer momento, alguma coisa pode acontecer.
- Eu sei. Eu sei, meu bem - disse Bree.
A irrita��o anterior de Norah foi varrida para longe por uma s�bita onda de gratid�o.
Bree sempre escutaria e responderia, n�o pediria sen�o a verdade de sua experi�ncia.
- Voc� tem raz�o, Norah, tudo pode acontecer, a qualquer momento. Mas as coisas
que correm mal n�o s�o culpa sua. Voc� n�o pode passar o resto da vida pisando
em ovos, tentando evitar os desastres. N�o funciona. Voc� s� acabar� perdendo
a vida que tem.
Norah n�o tinha resposta para isso, de modo que estendeu os bra�os para Paul,
que se contorcia no colo de Bree, com fome, com seu cabelo comprido - comprido
demais, mas Norah n�o suportava a id�ia de cort�-lo - balan�ando de leve toda vez
que ele se mexia, como se estivesse embaixo d'�gua.
Bree serviu mais vinho para as duas e pegou uma ma�� na fruteira da bancada.
Norah cortou pedacinhos de queijo, p�o e banana e os espalhou na bandeja da
cadeirinha de refei��es de Paul. Bebericou vinho enquanto cuidava disso. Aos
poucos, o mundo a seu redor meio que clareou, ficou mais v�vido. Ela notou as
m�ozinhas de Paul, como estrelas-do-mar, espalhando cenouras no cabelo. A l�mpada
da cozinha lan�ava sombras pela balaustrada da varanda dos fundos, desenhando
na grama listras de escurid�o e luz.
- Comprei uma m�quina fotogr�fica para o David, pelo nosso anivers�rio - disse
Norah, desejando poder captar esses instantes fugazes, guard�-los para sempre. - Ele
anda trabalhando muito, desde que aceitou esse novo emprego. Precisa de uma distra��o.
Nem acredito que tenha que trabalhar esta noite.
- Sabe de uma coisa? - disse Bree. - Por que eu n�o levo o Paul, de qualquer maneira?
Quero dizer, quem sabe se o David n�o chega cedo o bastante para jantar? E
da�, se for � meia-noite? Por que n�o? Nesse caso, voc�s poderiam pular o jantar,
tirar os pratos e fazer amor na mesa da sala.
- Bree!
Bree riu.
- Por favor, Norah! Eu adoraria lev�-lo.
- Ele precisa de um banho - disse Norah.
- Tudo bem. Prometo n�o deixar que ele se afogue na banheira.
- N�o tem gra�a. N�o tem gra�a nenhuma - retrucou Norah.
Mas acabou concordando, e embalou as coisas de Paul. O cabelo macio do filho
encostado em seu rosto, seus grandes olhos escuros a fit�-la, s�rios, enquanto Bree o
carregava porta afora, e pronto, l� se foi ele. Da janela, Norah ficou vendo as luzes
traseiras do carro de Bree desaparecerem na rua, levando embora seu filho. Foi o que
p�de fazer para se impedir de correr atr�s deles. Como � que algu�m podia deixar
uma crian�a crescer e sair por aquele mundo perigoso e imprevis�vel? Ela ficou parada
v�rios minutos, os olhos fixos na escurid�o. Depois, foi at� a cozinha, onde cobriu
o lombo assado com papel-alum�nio e apagou o forno. Eram sete horas. A garrafa
de vinho trazida por Bree estava quase vazia. Na cozinha, t�o silenciosa que dava
para ouvir o tique-taque do rel�gio, Norah abriu outra garrafa, cara e francesa, que
havia comprado para o jantar.
A casa estava muito quieta. Ser� que ela havia ficado sozinha, uma vez que fosse,
desde o nascimento de Paul? Achava que n�o. Tinha evitado esses momentos de so
lid�o, momentos de calmaria em que pudessem surgir id�ias sobre sua filha morta.
O of�cio f�nebre, realizado no p�tio da igreja, sob a luz inclemente do sol novo de
mar�o, havia ajudado, mas �s vezes, inexplicavelmente, Norah ainda tinha a sensa��o
da presen�a da filha, como se pudesse virar-se e v�-la na escada, ou parada l�
fora, no jardim.
Apoiou a palma da m�o na parede e sacudiu a cabe�a, para desanuvi�-la. Depois,
com a ta�a na m�o, andou pela casa, com os passos soando ocos sobre os pisos rec�m-
encerados, inspecionando o trabalho que fizera. L� fora, a chuva ca�a sem parar,
emba�ando as luzes do outro lado da rua. Norah lembrou-se de outra noite, da neve
rodopiante. David a segurara pelo cotovelo, ajudando-a a vestir o velho casaco verde,
que agora estava um farrapo, mas do qual ela n�o conseguia se desfazer. O casaco
ficara aberto sobre sua barriga protuberante e os olhos dos dois haviam se encontrado.
David estava muito preocupado, muito s�rio, eletrizado pelo nervosismo; naquele
momento, Norah tivera a sensa��o de conhec�-lo t�o bem quanto a si mesma.
No entanto, tudo havia mudado. David tinha mudado. � noite, quando se sentava
ao lado dela no sof�, examinando suas revistas, j� n�o estava realmente presente.
Antigamente, no tempo em que ela era telefonista interurbana, Norah costumava
tocar as chaves frias e os bot�es de metal da mesa telef�nica, ouvir a campainha distante,
o clique da liga��o. Um momento, por favor, dizia, e as palavras ecoavam, retardavam-
se; as pessoas falavam uma vez e paravam, deixando revelar-se a noite erma
e est�tica que havia entre elas. �s vezes, Norah escutava o encontro das vozes de pessoas
que jamais conheceria, transmitindo suas not�cias formais e emocionadas: de
nascimentos ou casamentos, doen�as ou mortes. Ela sentia a noite tenebrosa daquelas
dist�ncias e o poder que havia em sua capacidade de faz�-las desaparecer.
Mas era um poder que Norah tinha perdido - pelo menos agora, e no que havia
de mais importante. �s vezes, mesmo depois de os dois se amarem no meio da noite,
ainda enla�ados, um cora��o batendo contra o outro, ela olhava para David e sentia
os ouvidos se encherem do bramido obscuro e distante do universo.
Passava de oito horas. O mundo se abrandara em suas arestas. Ela voltou � cozinha
e parou junto ao fog�o, beliscando o lombinho ressecado. Comeu uma das batatas,
direto da panela, amassando-a no molho com o garfo. Os br�colis com queijo
haviam coalhado e come�avam a ressecar; Norah tamb�m os provou. A comida
queimou-lhe a boca e ela estendeu a m�o para a ta�a. Vazia. Bebeu um copo d'�gua,
de p� diante da pia, depois outro, apoiando-se na beira da bancada, porque o mundo
oscilava muito. Estou b�bada, pensou, surpresa e levemente satisfeita consigo
mesma. Nunca havia se embriagado, embora Bree, uma vez, tivesse voltado de um
baile e vomitado em todo o lin�leo. Algu�m havia "batizado" seu ponche, ela dissera
� m�e, mas confessara tudo a Norah: a garrafa num saco de papel pardo e as amigas
reunidas nos arbustos, com a respira��o desenhando nuvenzinhas n�tidas na noite.
O telefone parecia estar muito longe. Ao andar, Norah sentiu-se estranha, como se
flutuasse, meio fora de si. Apoiou uma das m�os no batente da porta e discou com a
outra, segurando o fone entre o ombro e o ouvido. Bree atendeu ao primeiro toque.
- Eu sabia que era voc� - disse. - Paul est� bem. Lemos um livro, tomamos um
banho, e agora ele est� dormindo a sono solto.
- Ah, que bom. Sim, que maravilha - fez Norah. Havia pretendido falar com Bree
sobre esse mundo tremeluzente, mas, de algum modo, agora ele parecia privado
demais, um segredo.
- E voc�? - perguntou a irm�. - Est� tudo bem?
- Tudo bem - disse Norah. - David ainda n�o chegou, mas eu estou bem.
Desligou depressa, serviu-se de outra ta�a de vinho e foi at� a varanda, onde ergueu
o rosto para o c�u. Pairava uma leve neblina no ar. Agora, o vinho parecia percorr�la
como o calor ou a luz, espalhando-se por seus membros at� as pontas dos dedos
das m�os e dos p�s. Quando ela se virou, de novo seu corpo pareceu flutuar por um
instante, como se ela deslizasse para fora de si. Norah lembrou-se do carro percorrendo
as ruas cobertas de gelo, como que saindo do ch�o, rabeando ligeiramente
antes que David conseguisse control�-lo. As pessoas tinham raz�o: ela n�o conseguia
lembrar-se das dores do parto, mas nunca se esquecera daquela sensa��o, no carro,
do mundo escorregando, girando, e de suas m�os segurando com for�a o painel frio,
enquanto David, met�dico, parava em todos os sinais luminosos.
Onde estaria ele, perguntou-se, com l�grimas s�bitas nos olhos, e por que se casara
com ele, afinal? Por que ele a havia desejado tanto? No turbilh�o das semanas
depois de eles se conhecerem, David estivera todos os dias em seu apartamento,
oferecendo-lhe rosas, jantares e passeios pelo campo. Na noite de Natal, a campainha
havia tocado e ela fora atender, usando seu roup�o velho, esperando que fosse
Bree. Em vez disso, ao abrir a porta, tinha deparado com David, o rosto ruborizado
pelo frio e caixas embaladas em cores vivas nos bra�os. Era tarde, dissera, ele sabia
disso, mas ser� que ela o acompanharia num passeio de carro?
N�o, ela havia respondido, Voc� � doido!, mas rira o tempo todo daquela maluquice,
dera um passo atr�s e o deixara entrar, aquele homem em seu degrau, carregado
de flores e presentes. Norah ficara admirada, envaidecida e meio perplexa.
Tinha havido momentos - ao ver outras mo�as sa�rem para as festas dos gr�mios
estudantis femininos, ou sentada em sua banqueta na sala sem janelas da companhia
telef�nica, enquanto as colegas planejavam suas cerim�nias de casamento at� o �ltimo
aplique de flores e a �ltima balinha de hortel� da recep��o - em que Norah,
muito calma e reservada, tinha achado que ficaria solteira pelo resto da vida. No
entanto, l� estava David, bonito, m�dico, parado � porta de seu apartamento, dizendo:
Venha, por favor, h� uma coisa especial que eu quero lhe mostrar.
Era uma noite clara, com estrelas v�vidas no c�u. Norah sentara-se no amplo
banco dianteiro de vinil do antigo carro de David. Usava um vestido vermelho de l�
e se sentia bonita, naquele ar muito frio, com as m�os de David no volante e o carro
percorrendo a escurid�o, atravessando o frio, enveredando por estradas cada vez
mais estreitas, em dire��o a uma paisagem que ela n�o reconhecia. Ele havia parado
junto a um antigo moinho de trigo. Desceram do carro ao som da �gua corrente. As
�guas escuras captavam o luar e o derramavam nas pedras, fazendo girar a grande
roda do moinho. O pr�dio escuro recortava-se contra um c�u ainda mais escuro,
encobrindo as estrelas, e o ar estava cheio dos sons agitados e borrifantes da �gua.
- Est� com frio? - perguntara David, elevando a voz acima do som da correnteza,
e Norah tinha rido, tr�mula, e dito que n�o, n�o estava, estava �tima.
- E suas m�os? - gritara ele, com a voz repicando, cascateando como a �gua.
- Voc� n�o trouxe luvas.
- Estou �tima - ela gritara de volta, mas David j� segurava suas m�os nas dele,
apertando-as contra o peito, aquecendo-as entre suas luvas e a l� escura e salpicada
do casaco.
- � lindo aqui! - exclamara Norah, e David rira. Depois, ele inclinara a cabe�a e
a beijara, soltando-lhe as m�os e enfiando as dele por dentro de seu casaco, afagando-
lhe as costas. A �gua corria, ecoando nas pedras.
- Norah - gritara ele, com a voz integrada na noite, rolando como a correnteza,
as palavras claras mas quase abafadas em meio aos outros sons. - Norah! Quer se
casar comigo?
Ela rira, jogando a cabe�a para tr�s, sentindo o ar noturno se derramar sobre seu
corpo.
- Sim! - respondera num grito, tornando a espalmar as m�os sobre o casaco de
David. - Sim, eu quero!
Ele pusera um anel em seu dedo naquele momento: um aro fino de ouro branco,
do seu tamanho exato, com um diamante oval ladeado por duas esmeraldas min�sculas.
Para combinar com os seus olhos, dissera-lhe depois, e com o casaco que ela
estava usando no dia em que os dois haviam se conhecido.
Norah voltou para dentro e parou � porta da sala de jantar, girando esse mesmo
anel no dedo. As fitas da decora��o balan�avam. Uma ro�ou-lhe o rosto, outra havia
mergulhado a ponta em sua ta�a de vinho. Fascinada, ela ficou vendo a mancha
espalhar-se lentamente para cima. Tinha quase exatamente a mesma cor dos guardanapos,
observou. Aquilo era mesmo um exemplo perfeito de prendas do lar: ela
n�o teria conseguido encontrar uma combina��o melhor se a tivesse buscado. O vinho
tamb�m respingara da ta�a e salpicara a toalha, manchando o papel de listras
douradas de seu presente para David. Norah o pegou e, num impulso, rasgou o
papel. Estou mesmo muito b�bada, pensou.
A m�quina fotogr�fica era compacta, um peso agrad�vel. Norah passara semanas
pensando num presente adequado, at� v�-la na vitrine da Sears. Preta e de cromo
reluzente, com controles e alavancas complexos e n�meros gravados em volta das
lentes, fazia lembrar o equipamento m�dico de David. Jovem e ansioso, o vendedor
a havia cumulado de informa��es t�cnicas sobre aberturas, dist�ncias focais e lentes
grande-angulares. Os termos haviam escorrido por ela feito �gua, mas Norah
gostara do peso da c�mera em suas m�os, da textura fria e do jeito como o mundo
se emoldurava com precis�o quando ela a colocava junto do olho.
Hesitante, nesse momento ela puxou a alavanca prateada. Um clique e um estalo
soaram alto na sala, ao ser liberado o obturador. Norah girou o bot�ozinho para
avan�ar o filme - lembrou-se de que o vendedor tinha usado essa express�o, avan�ar
o filme, elevando a voz por um instante acima do fluxo de ru�dos da loja. Olhou pelo
visor, emoldurando de novo a mesa desarrumada, depois girou dois an�is diferentes
para encontrar o foco. Dessa vez, quando apertou o obturador, a luz explodiu na
parede. Ofuscada, ela virou a m�quina e examinou a l�mpada, agora escurecida e
empolada. Substituiu-a, queimando os dedos, mas sentindo-se distante dessa dor, de
algum modo.
Levantou-se e olhou para o rel�gio: 21h45.
A chuva era fina, incessante. David tinha ido a p� para o trabalho, e ela o imaginou
caminhando cansado para casa pelas ruas escuras. Num impulso, pegou o casaco
e a chave do carro - iria at� o hospital fazer-lhe uma surpresa.
O carro estava frio. Ela saiu de r� da entrada da garagem, tateando para ligar o
aquecimento, e, por um antigo h�bito, virou na dire��o errada. Mesmo depois de se
aperceber do erro, continuou a dirigir pelas mesmas ruas estreitas e chuvosas, de
volta a sua antiga casa, onde havia decorado com tanta esperan�a inocente o quarto
do beb�, onde se sentara amamentando Paul no escuro. Ela e David tinham concordado
em que era sensato se mudarem, mas a verdade � que Norah n�o suportava
a id�ia de vender aquele lugar. Ainda ia l� quase todos os dias. A vida que sua filha
conhecera, o que quer que Norah tivesse vivenciado de sua filha, havia acontecido
naquela casa.
Exceto por estar �s escuras, a casa parecia a mesma: a ampla varanda da frente,
com suas quatro colunas brancas, o calc�rio �spero, a �nica l�mpada acesa. L� estava
a Sra. Michaels na casa ao lado, a poucos metros de dist�ncia, movimentando-se
pela cozinha, lavando lou�a e espiando a noite pela janela; l� estava o Sr. Bennett em
sua poltrona, com as cortinas abertas e a televis�o ligada. Norah quase p�de acreditar,
ao subir os degraus, que ainda morava ali. Mas a porta se abriu para c�modos
desertos, vazios, chocantes em sua pequenez.
Andando pela casa fria, Norah esfor�ou-se para desanuviar a cabe�a. O efeito do
vinho parecia muito mais forte agora, e ela sentia dificuldade de ligar um momento
a outro. Carregava a nova m�quina fotogr�fica de David numa das m�os. Uma
realidade, n�o uma decis�o. Restavam 15 fotos e ela levava flashes extras no bolso.
Tirou uma foto do lustre, contente quando o flash acendeu, porque agora sempre
teria consigo aquela imagem; jamais acordaria no meio da noite, dali a 20 anos, sem
conseguir lembrar-se daquele detalhe, daquelas graciosas curvaturas douradas.
Andou de um c�modo para outro, ainda �bria, mas resoluta, enquadrando janelas,
lumin�rias, os veios espiralados do piso. Parecia de uma import�ncia vital que
registrasse cada detalhe. A certa altura, na sala, uma l�mpada gasta e empolada do
flash escorregou-lhe da m�o e se espatifou; quando ela deu um passo atr�s, o vidro
perfurou seu calcanhar. Norah examinou por um instante os p�s cal�ados apenas de
meias, divertida e impressionada com o grau de sua embriaguez - devia ter deixado
os sapatos molhados junto � porta da frente, por h�bito. Perambulou mais duas
vezes pela casa, documentando interruptores, janelas, o cano pelo qual o g�s subia
para o segundo andar. Somente na descida apercebeu-se de que o p� estava sangrando,
deixando uma trilha de manchas: cora��es feridos, bilhetinhos de amor ensang�entados.
Norah ficou chocada e tamb�m estranhamente emocionada com o estrago
que conseguira infligir-se.
Achou os sapatos, saiu. O calcanhar latejava quando ela entrou no carro, com a
c�mera ainda pendurada no pulso.
Mais tarde, ela n�o se lembraria de muita coisa do trajeto, apenas das ruas estreitas
e escuras, do vento nas folhas, da luz piscando nas po�as e da �gua espirrada
pelos pneus. N�o se lembraria da batida de metal contra metal, apenas da vis�o s�bita
e assustadora do reluzente lat�o de lixo voando � frente do carro. Molhado de
chuva, ele pareceu suspenso no ar por um longo minuto, antes de come�ar a cair.
Norah lembrou-se de que ele bateu no capo e rolou, estilha�ando o p�ra-brisa; lem
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brou-se do carro quicando no meio-fio e parando devagarzinho no canteiro central,
embaixo de um carvalho-da-am�rica. N�o se recordava da pancada no p�ra-brisa,
mas ele parecia uma teia de aranha, com as linhas intricadas abrindo-se em leque,
delicadas, belas e precisas. Quando Norah levou a m�o � testa, os dedos voltaram
ligeiramente sujos de sangue.
Ela n�o saiu do carro. O lat�o rolou pela rua. Sombras escuras - gatos - espreitaram
das bordas do lixo, espalhado num arco. Luzes acenderam-se na casa � direita
e um homem saiu de roup�o e chinelos, correndo pela cal�ada em dire��o ao carro.
- A senhora est� bem? - perguntou, abaixando-se para olhar pela janela, que Norah
abriu devagar, com o ar noturno a lhe lamber o rosto. - O que aconteceu? A senhora
est� bem? Sua testa est� sangrando - acrescentou o homem, tirando um len�o
do bolso.
- N�o � nada - disse Norah, gesticulando para recusar o len�o, suspeitamente
amarrotado. Tornou a pressionar de leve a testa com a palma da m�o, tirando outra
mancha de sangue. A c�mera, ainda pendurada em seu pulso, tamborilou no volante.
Norah a soltou e a colocou cuidadosamente a seu lado, no banco. - � meu anivers�rio
de casamento - informou ao estranho. - Meu calcanhar tamb�m est� sangrando.
- A senhora precisa de um m�dico? - indagou o homem.
- Meu marido � m�dico - respondeu Norah, notando a express�o insegura do
homem, consciente de que talvez n�o tivesse feito muito sentido no instante anterior.
De que talvez n�o estivesse dizendo coisa com coisa nesse momento. - Ele �
m�dico - repetiu com firmeza. - Vou procur�-lo.
- N�o tenho certeza de que a senhora deva dirigir - disse o homem. - Por que n�o
larga o carro aqui e me deixa chamar uma ambul�ncia?
Diante da bondade dele, os olhos de Norah se encheram de l�grimas, mas ent�o
ela imaginou a cena, as luzes, as sirenes, as m�os delicadas, e o modo como David
viria correndo e a encontraria no pronto-socorro, desgrenhada, ensang�entada e
meio b�bada: um esc�ndalo e uma vergonha.
- N�o - disse, passando a tomar muito cuidado com as palavras. - Estou bem,
realmente. Um gato correu pela rua e me assustou. Mas � verdade, eu estou bem. Vou
para casa agora e meu marido cuidar� deste corte. Realmente n�o � nada.
O homem hesitou por um bom momento, com a luz da rua reluzindo prateada
em seu cabelo, depois encolheu os ombros, fez um aceno com a cabe�a e recuou para
o meio-fio. Norah saiu com cuidado, devagar, usando adequadamente as setas na
rua deserta. Pelo retrovisor, viu o homem, de bra�os cruzados, observando-a at� ela
dobrar a esquina e desaparecer.
O mundo estava silencioso quando ela regressou pelas ruas conhecidas, o efeito
do vinho come�ando a se dissipar. Sua nova casa estava toda iluminada, com luzes
acesas em todas as janelas, em cima e embaixo, luzes que se derramavam como um
l�quido que houvesse transbordado e j� n�o pudesse ser contido. Ela estacionou na
entrada da garagem e desceu, parando por um instante na grama �mida, com a
chuva caindo fininha, formando gotas em seu cabelo e em seu casaco. No lado de
dentro, vislumbrou David sentado no sof�. Paul estava em seu colo, dormindo, com
a cabe�a apoiada de leve no ombro do pai. Norah pensou em como havia deixado
as coisas - no vinho derramado, nas fitas pendentes e no assado perdido. Apertou o
casaco em volta do corpo e subiu depressa os degraus.
- Norah! - exclamou David, indo encontr�-la � porta, ainda com Paul no colo.
- Norah, o que aconteceu? Voc� est� sangrando.
- Est� tudo bem, eu estou bem - disse ela, rejeitando a m�o de David quando ele
tentou ajud�-la. Seu p� do�a, mas a dor aguda a deixou contente: como um contraponto
� cabe�a latejante, parecia subir em linha reta por seu corpo e mant�-la em
equil�brio. Paul dormia um sono pesado, com a respira��o lenta e uniforme. Norah
descansou de leve a palma da m�o sobre suas costas mi�das.
- Onde est� a Bree? - perguntou.
- Est� procurando voc� - disse David, olhando de relance para a sala. Norah
acompanhou seu olhar, vendo o jantar estragado e todas as fitas emboladas no ch�o.
- Quando n�o a encontrei em casa, entrei em p�nico e liguei para ela. Bree trouxe
Paul e saiu � sua procura.
- Estive na casa antiga. Bati numa lata de lixo - disse Norah. P�s a m�o na testa e
fechou os olhos.
- Voc� bebeu - foi o coment�rio calmo de David.
- Vinho no jantar. Voc� se atrasou.
- H� duas garrafas vazias, Norah.
- Bree esteve aqui. Foi uma longa espera.
Ele acenou com a cabe�a.
- Sabe os garotos de hoje, os do acidente? Havia cerveja por toda parte. Fiquei
apavorado, Norah.
- Eu n�o estava b�bada.
O telefone tocou e ela atendeu, sentindo-o pesar em sua m�o. Era Bree, com a voz
aflita, querendo saber o que havia acontecido.
- Eu estou bem - disse Norah, tentando falar com calma e com clareza. - Estou
�tima.
84
David a observava, estudando as linhas escuras da palma de sua m�o, onde o
sangue se havia depositado e secado. Norah fechou os dedos sobre as manchas e virou
o rosto.
- Pronto - disse David, com delicadeza, depois que ela desligou, tocando-lhe o
bra�o. - Venha c�.
Subiram. Enquanto David acomodava Paul no ber�o, Norah tirou as meias destru�das
e se sentou na beirada da banheira. O mundo come�ava a ficar mais claro e
mais firme e ela piscou sob as l�mpadas fortes, tentando ordenar adequadamente os
acontecimentos da noite. Ao voltar, David afastou-lhe o cabelo da testa, com gestos
delicados e precisos, e come�ou a limpar o corte.
- Espero que voc� tenha deixado o outro sujeito em piores condi��es - disse ele,
e Norah imaginou que talvez o marido dissesse a mesma coisa aos pacientes que passavam
por seu consult�rio: conversa � toa, brincadeiras, palavras vazias, para distrair.
- N�o havia mais ningu�m - retrucou, pensando no homem de cabelos prateados
que se debru�ara sobre sua janela. - Um gato me assustou e eu derrapei. Mas o p�rabrisas...
ai! - exclamou, quando ele p�s anti-s�ptico no corte. - Ai, David, isso d�i.
- N�o vai demorar - fez ele, pondo a m�o no ombro da mulher por um instante.
Depois, ajoelhou-se junto � banheira e segurou seu p�.
Ela o observou retirar os cacos de vidro. David era cuidadoso e calmo, absorto em
seus pensamentos. Norah sabia que ele cuidaria de qualquer paciente com os mesmos
gestos tarimbados.
- Voc� � muito bom para mim - murmurou, querendo reduzir a dist�ncia entre
os dois, a dist�ncia que ela havia criado.
David balan�ou a cabe�a, fez uma pausa no trabalho e ergueu os olhos.
- Por que voc� foi l�, Norah, � nossa casa antiga? Por que n�o quer se desfazer dela?
- Porque ela � a �ltima coisa... - disse Norah, surpresa com a seguran�a e a tristeza
em sua voz. - � a �ltima forma de a deixarmos para tr�s.
No breve instante antes de ele desviar os olhos houve no rosto de David um lampejo
de tens�o, de raiva rapidamente controlada.
- O que voc� gostaria que eu fizesse? Achei que esta nova casa nos faria felizes. Ela
faria feliz a maioria das pessoas, Norah.
Ante o tom do marido, Norah sentiu-se perpassada pelo medo; poderia perd�-lo
tamb�m. Seu p� latejava, assim como a cabe�a, e ela fechou os olhos por um instante,
ao pensar na cena que havia causado. N�o queria ficar presa para sempre nessa
noite escura e est�tica, com David a uma dist�ncia intranspon�vel.
- Est� bem - disse. - Vou ligar para o corretor amanh�. Vamos aceitar a oferta.
Uma pel�cula fechou-se sobre o passado enquanto ela falava, uma barreira quebradi�a
e fr�gil como �gua a se cristalizar em gelo. A barreira cresceria e ficaria mais densa.
Tornar-se-ia impenetr�vel, opaca. Norah sentiu isso e teve medo do que ocorreria
se a barreira se quebrasse. Sim, eles levariam a vida adiante. Esse seria o presente dela
para David e para Paul.
Quanto a Phoebe, ela a manteria viva no cora��o.
David envolveu-lhe o p� numa toalha e se agachou sobre os calcanhares.
- Escute, n�o nos imagino voltando para l� - disse, agora mais meigo, depois de
Norah haver cedido. - Mas poder�amos voltar. Se voc� realmente quiser, podemos
vender esta casa e nos mudar de novo para l�.
- N�o. Agora n�s moramos aqui - disse Norah.
- Mas voc� anda muito triste. Por favor, n�o fique triste. Eu n�o me esqueci,
Norah. N�o me esqueci do nosso anivers�rio. Nem de nossa filha. Nem de nada.
- Ah, David - fez ela. - Deixei seu presente no carro.
Pensou na m�quina fotogr�fica, nos an�is e alavancas precisos. A guardi� de
mem�rias, dizia a embalagem, em letras brancas grifadas; tinha sido por isso, percebeu,
que a havia comprado - para que o marido captasse cada momento, para que
nunca se esquecesse.
- Est� bem - disse David, pondo-se de p�. - Espere. Espere quietinha a�.
Desceu a escada correndo. Ela ficou mais um momento sentada na beirada da
banheira, depois levantou-se e mancou pelo corredor at� o quarto de Paul. O tapete
era azul-escuro e espesso sob seus p�s. Norah havia pintado nuvens nas paredes
azul-claras e pendurado um m�bile de estrelas acima do ber�o. Paul dormia sob as
estrelas flutuantes, com o cobertor jogado para o lado e as m�ozinhas estendidas. Ela
o beijou com delicadeza e ajeitou as cobertas, passando a m�o pelo cabelo macio do
filho, tocando-lhe a palma com o indicador. Ele j� estava muito crescido, andando e
come�ando a falar. Aquelas noites, fazia quase um ano, em que Paul mamava com
tanta intensidade e David tinha enchido a casa de narcisos, para onde teriam ido?
Norah lembrou-se da m�quina fotogr�fica e de como havia percorrido a casa deserta,
determinada a registrar cada detalhe, como uma barreira contra o tempo.
- Norah?
David entrou no quarto e parou atr�s dela.
- Feche os olhos.
Uma linha fina luziu sobre sua pele. Ela baixou os olhos e viu as esmeraldas, uma
longa fileira de pedras escuras, presas no fluxo dourado da corrente encostada em sua
pele. Para combinar com o anel, ele estava dizendo. Para combinar com seus olhos.
- � lindo - murmurou Norah, tocando o ouro c�lido. - Ah, David.
As m�os do marido estavam sobre seus ombros e, por um instante, Norah sentiu-
se em meio ao som da �gua que corria do moinho, com uma felicidade t�o plena
quanto a noite a seu redor. N�o respire, pensou. N�o se mexa. Mas n�o havia como
deter coisa alguma. L� fora, a chuva ca�a mansinho e havia sementes palpitando sob
a terra escura e molhada. Paul suspirou e se remexeu em seu sono. No dia seguinte,
ele acordaria, cresceria e mudaria. Os tr�s levariam sua vida, um dia atr�s do outro,
afastando-se passo a passo da filha perdida.
MAR�O DE 1965
�GUA DO CHUVEIRO CORRIA E O VAPOR RODOPIAVA, EMBA�ANDO O
espelho e a janela, nublando a lua p�lida. Caroline andava de um lado para
outro no banheirinho roxo, apertando Phoebe no colo. A respira��o dela estava
curta e acelerada, o cora��ozinho batendo muito depressa. Fique boa, minha nen�m,
murmurava Caroline, afagando-lhe o cabelo escuro e macio. Melhore, minha menininha,
fique boa. Fez uma pausa, cansada, para olhar a lua, uma mancha de luz aprisionada
nos galhos dos pl�tanos, e a tosse de Phoebe recome�ou, no fundo do peito.
O corpo dela se enrijeceu sob as m�os de Caroline, enquanto a menina expulsava o
ar da garganta estreitada com sons agudos e chiados. Era um caso cl�ssico de laringite.
Caroline bateu nas costas de Phoebe, pouco maiores do que sua m�o. Terminado
o acesso de tosse, ela recome�ou a andar, por medo de oscilar e dormir em p�.
Em mais de uma ocasi�o, nesse ano, acordara assustada e se descobrira de p� com
Phoebe ainda em seguran�a em seus bra�os, milagrosamente.
Os degraus rangeram, depois as t�buas do piso, mais perto, e a porta roxa se
abriu, deixando entrar uma rajada de ar frio. Dorothy, com um robe de seda preta
por cima da camisola e os cabelos grisalhos caindo soltos sobre os ombros, entrou.
- Est� muito ruim? - perguntou. - O som � terr�vel. Quer que eu pegue o carro?
- Acho que n�o. Mas pode fechar a porta? O vapor ajuda.
Dorothy fechou a porta e se sentou na beirada da banheira.
- Acordamos voc� - disse Caroline, com a respira��o leve de Phoebe em seu
pesco�o.
- Desculpe.
Dorothy deu de ombros.
- Voc� sabe como eu sou com o sono. Estava acordada mesmo, lendo.
- Alguma coisa interessante? - perguntou Caroline.
Limpou a janela com o punho do roup�o; o luar ca�a sobre as �rvores do jardim,
tr�s andares abaixo, e brilhava como �gua na grama.
- Revistas cient�ficas. Ma�antes como poeira, at� para mim. A meta � pegar no sono.
Caroline sorriu. Dorothy tinha doutorado em f�sica; trabalhava na universidade,
no departamento anteriormente dirigido por seu pai. Leo March, brilhante e renomado,
estava na casa dos 80, fisicamente forte, mas sujeito a lapsos de mem�ria e de
racioc�nio. Onze meses antes, Dorothy havia contratado Caroline como acompanhante
dele.
Era uma d�diva esse emprego, ela sabia. Caroline emergira do t�nel de Fort Pitt,
na ponte alta sobre o rio Monongahela, com as montanhas de esmeralda erguendo-
se das plan�cies ribeirinhas e a cidade de Pittsburgh reluzindo de repente diante dela,
imediata, v�vida, t�o espantosa em sua vastid�o e beleza que ela havia perdido o
f�lego e reduzido a velocidade, por medo de perder o controle do carro.
Durante um longo m�s, Caroline ficara morando num motel barato, na periferia
da cidade, circulando an�ncios de emprego e vendo suas economias minguarem. Ao
comparecer a essa entrevista, sua euforia inicial havia se transformado num p�nico
surdo. Ela havia tocado a campainha e parado na varanda, esperando. Narcisos de
um amarelo vivo balan�avam sobre a grama alta de primavera; na casa ao lado, uma
mulher de roup�o acolchoado varria a fuligem da escada. As pessoas dessa casa n�o
se incomodaram com isso: a cadeirinha de autom�vel de Phoebe estava apoiada
numa acumula��o arenosa de v�rios dias. Uma poeira que lembrava neve escurecida;
as pegadas de Caroline eram n�tidas �s suas costas.
Quando Dorothy March, alta e magra em seu elegante terninho cinza, finalmente
abriu a porta, Caroline ignorou seu olhar desconfiado para Phoebe, levantou a
cadeirinha e entrou. Sentou-se na beirada de uma cadeira meio bamba, cujas almofadas
de veludo vinho tinham desbotado para um tom de rosa, exceto por alguns
pontos escuros perto dos tach�es do estofamento. Dorothy March sentou-se de
frente para ela, num sof� de couro rachado, escorado por um tijolo numa das
extremidades. Acendeu um cigarro. Passou v�rios momentos estudando Caroline,
com seus olhos azuis r�pidos e vivos. N�o disse nada de imediato. Depois, pigarreou,
exalando fuma�a.
- Para ser muito franca, eu n�o estava contando com um beb�.
Caroline lhe estendeu seu curr�culo.
- Fui enfermeira durante 15 anos. Posso oferecer muita experi�ncia e compaix�o
nesse cargo.
Dorothy March havia segurado os pap�is com a m�o livre, examinando-os.
- �, voc� parece ter mesmo muita experi�ncia. Mas aqui n�o diz onde trabalhou.
Voc� n�o foi nada espec�fica.
Caroline havia hesitado. Tentara uma d�zia de respostas diferentes a essa pergunta,
em uma d�zia de entrevistas diferentes nas semanas anteriores, e todas haviam
resultado em nada.
- � que eu fugi - dissera, quase zonza. - Fugi do pai da Phoebe. E por isso n�o
posso lhe dizer de onde sou nem posso lhe dar nenhuma refer�ncia. Essa � a �nica
raz�o de eu j� n�o estar empregada. Sou uma excelente enfermeira e, francamente,
a senhora ter� sorte se me contratar, considerando o que est� oferecendo de sal�rio.
Diante disso, Dorothy March dera uma risada nervosa, assustada.
- Que afirma��o atrevida! Minha cara, este � um trabalho para a pessoa residir no
emprego. Por que raz�o no mundo eu correria esse risco com uma perfeita estranha?
- Eu come�o agora, em troca de casa e comida - insistira Caroline, pensando no
quarto de motel, com o papel de parede descascado e as manchas no teto, o quarto
que ela n�o poderia pagar por mais uma noite. - Farei isso por duas semanas, e
ent�o a senhora decide.
O cigarro havia queimado at� acabar na m�o de Dorothy March. Ela o fitara e, em
seguida, amassara-o no cinzeiro abarrotado.
- Mas como � que voc� conseguiria? E com um beb� ainda por cima? Meu pai n�o
� um homem paciente. N�o ser� um paciente paciente, posso lhe assegurar.
- Uma semana - respondera Caroline. - Se a senhora n�o gostar de mim em uma
semana, irei embora.
Agora, quase um ano havia se passado. Dorothy levantou-se, no banheiro de
cores suavizadas pelo vapor. As mangas do robe de seda preta, estampadas de p�ssaros
tropicais coloridos, escorregaram para seus cotovelos.
- Deixe-me segur�-la. Voc� parece exausta, Caroline.
O chiado no peito de Phoebe havia diminu�do e sua cor tinha melhorado; as
bochechas tinham um tom rosa p�lido. Caroline entregou-a, sentindo a friagem
repentina de sua aus�ncia.
- Como est� o Leo hoje? - perguntou Dorothy. - Causou-lhe algum aborrecimento?
Por um momento, Caroline n�o respondeu. Estava cansada demais e tinha percorrido
uma longa dist�ncia nesse �ltimo ano, viajando de uma hora para outra, e
sua vida cuidadosa e solit�ria havia sofrido uma profunda transforma��o. De algum
modo, ela fora parar ali naquele min�sculo banheiro roxo, como m�e de Phoebe,
acompanhante de um homem brilhante com a mente fraca, e amiga improv�vel,
mas certeira, daquela mulher: estranhas um ano antes, mulheres que poderiam ter
se cruzado na rua sem se olhar uma segunda vez, sem um lampejo de liga��o, agora
elas tinham suas vidas entremeadas pelas exig�ncias do dia-a-dia e por um respeito
cauteloso e seguro.
- Ele n�o queria comer. Acusou-me de ter posto sap�lio no pur� de batatas.
Portanto, um dia bem t�pico, eu diria.
- N�o � nada pessoal, voc� sabe - disse Dorothy, baixinho. - Ele nem sempre foi
assim.
Caroline fechou o chuveiro e se sentou na beirada da banheira roxa.
Dorothy fez sinal com a cabe�a para a janela emba�ada. As m�os de Phoebe eram
p�lidas como estrelas em contraste com seu robe.
- Aquele era o nosso parquinho, l� na montanha. Antes de constru�rem a auto-
estrada. As gar�as costumavam fazer ninhos nas �rvores, sabia? Mam�e plantou narcisos
numa primavera, centenas de bulbos. Meu pai voltava todos os dias do trabalho
no trem das seis, ia direto at� l� e colhia um ramo de flores para ela. Voc� n�o o
reconheceria.
- Eu sei - disse Caroline, delicada. - Eu me dou conta disso.
Calaram-se por um momento. A torneira pingava e o vapor rodopiava no ar.
- Acho que ela dormiu - disse Dorothy. - Ser� que vai ficar bem?
- Vai. Acho que sim.
- Qual � o problema dela, Caroline? - perguntou Dorothy, agora com voz decidida,
as palavras numa precipita��o resoluta. - Querida, eu n�o entendo nada de
beb�s, mas at� eu percebo que h� alguma coisa errada. A Phoebe � muito linda, muito
meiga, mas h� um problema, n�o h�? Ela tem quase um ano e s� agora est� aprendendo
a sentar.
Caroline olhou para a lua pela janela riscada de vapor e fechou os olhos. Quando
rec�m-nascida, Phoebe fora de uma quietude que parecia, mais do que qualquer outra
coisa, uma d�diva de serenidade, de aten��o, e Caroline permitiu-se acreditar
que n�o havia nenhum problema. Depois dos seis meses, por�m, quando a menina
foi crescendo, mas continuou pequena para a idade, ainda sem for�a nos bra�os,
quando passou a acompanhar com os olhos um molho de chaves e, �s vezes, a balan�ar
os bra�os, mas sem nunca os estender para peg�-lo, quando n�o deu sinal de se
sentar sozinha, Caroline come�ou a ir com ela � biblioteca em seu dia de folga. Nas
amplas mesas de carvalho da Carnegie, nos sal�es arejados e espa�osos, com seus
tetos altos, ela havia empilhado livros e artigos e come�ado a ler - viagens sombrias
para institui��es l�gubres, vidas encurtadas, nenhuma esperan�a. Era uma sensa��o
estranha, um buraco que se abria no est�mago a cada palavra. No entanto, ali estava
Phoebe, remexendo-se em sua cadeirinha de autom�vel, risonha, e acenando com
as m�os: um beb�, n�o um relato de caso.
- A Phoebe tem s�ndrome de Down - obrigou-se a responder. - O nome � esse.
- Ah, Caroline! - fez Dorothy. - Sinto muito! Foi por isso que voc� deixou seu
marido, n�o foi? Voc� disse que ele n�o a queria. Ah, meu bem, eu sinto muito,
muito mesmo!
- N�o fique triste - disse Caroline, estendendo os bra�os para pegar Phoebe de
volta. - Ela � linda.
- Ah, sim. Sim, ela �. Mas, Caroline... O que acontecer� com ela?
Phoebe estava quentinha e pesada em seu colo, o cabelo escuro e macio caindo
sobre o rosto p�lido. Caroline, protetora, tocou-lhe a face com toda a delicadeza.
- O que acontecer� com qualquer um de n�s? Quero dizer, diga-me francamente,
Dorothy: algum dia voc� imaginou que sua vida seria assim?
Dorothy desviou os olhos, com uma express�o de sofrimento no rosto. Anos
antes, seu noivo tinha morrido ao pular de uma ponte no rio quando algu�m desafiou
sua coragem. Ela havia chorado por ele e nunca se casara, n�o tivera os filhos
que ansiara.
- N�o - respondeu, por fim. - Mas � diferente.
- Por qu�? Diferente por qu�?
- Caroline - disse Dorothy, tocando-lhe o bra�o -, n�o vamos falar nisso. Voc� est�
cansada. Eu tamb�m.
Caroline acomodou Phoebe no ber�o, enquanto o som dos passos de Dorothy diminu�a,
descendo a escada. Adormecida sob o brilho p�lido da luz da rua, a menina
parecia uma crian�a qualquer, com o futuro t�o inexplorado quanto o leito dos
oceanos, igualmente rico em possibilidades. Os carros corriam pela auto-estrada,
com as luzes dos far�is brincando na parede, e Caroline imaginou as gar�as al�ando
v�o no terreno pantanoso, levantando as asas na p�lida luz dourada do amanhecer.
O que acontecer� com ela? Na verdade, �s vezes Caroline passava a noite em claro,
lutando com essa mesma pergunta.
Em seu quarto, as cortinas de croch�, feitas e penduradas nas janelas pela m�e
de Dorothy d�cadas antes, projetavam sombras delicadas; o luar era t�o claro que
se poderia ler. Sobre a escrivaninha estava um envelope com tr�s fotos de Phoebe
ao lado de um papel dobrado em quatro. Caroline o abriu e leu o que tinha
escrito:
Caro Dr. Henry,
Escrevo para dizer que estamos bem, Phoebe e eu. Estamos seguras e felizes. Tenho
um bom emprego. De modo geral, Phoebe � um beb� saud�vel, apesar de freq�entes preocupa��es
respirat�rias. Envio-lhe algumas fotografias. At� o momento, cruze os dedos,
ela n�o tem nenhum problema no cora��o.
Deveria remeter essa carta - fazia semanas que a tinha escrito -, mas, toda vez que
estava prestes a envi�-la, pensava em Phoebe, no toque macio de suas m�os ou nos
sons que ela fazia quando ficava contente - e n�o conseguia. Nesse momento, tornou
a p�r a carta de lado e se deitou, resvalando prontamente para o limiar do sono.
Uma vez, tivera um sonho com a sala de espera da cl�nica, com suas plantas murchas
e o calor agitando as folhas, e acordara assustada, inquieta, sem saber direito
onde estava.
Aqui, disse a si mesma, tocando os len��is frios. Estou bem aqui.
De manh�, quando Caroline acordou, o quarto estava banhado de sol e inundado
pelo som de trompetes. Phoebe, em seu ber�o, estendia os bra�os, como se as notas
fossem borboletas ou vaga-lumes que ela pudesse pegar. Caroline p�s uma roupa,
vestiu a menina e levou-a para baixo, parando no segundo andar, onde Leo
March estava instalado em seu ensolarado escrit�rio amarelo, com livros ca�dos em
toda a volta do sof�-cama, no qual se deitara com as m�os atr�s da cabe�a, olhando
para o teto. Caroline o observou do v�o da porta - n�o tinha permiss�o de entrar
naquele c�modo, a menos que fosse convidada -, mas ele n�o registrou sua presen�a.
Idoso e calvo, com uma franja de cabelo grisalho, ainda usando a roupa da
v�spera, ele escutava atentamente a m�sica que estrondava dos alto-falantes, sacudindo
a casa.
- Quer tomar caf�? - gritou ela.
Leo abanou a m�o, indicando que ele mesmo o buscaria. Bem, �timo.
Caroline desceu mais um lance de escada at� a cozinha e come�ou a preparar o
caf�. At� mesmo l� embaixo os trompetes se faziam ouvir vagamente. Ela sentou
Phoebe na cadeirinha de alimenta��o e lhe deu pur� de ma��, ovo e queijo cottage.
Tr�s vezes entregou-lhe a colher; tr�s vezes ela caiu com estardalha�o na bandeja
de metal.
- N�o faz mal - disse Caroline em voz alta, mas com o cora��o apertado. A voz
de Dorothy ecoou no ar: O que acontecer� com ela? E que aconteceria? Aos 11 meses,
Phoebe j� deveria ser capaz de segurar pequenos objetos.
Caroline arrumou a cozinha e foi at� a sala de jantar para dobrar a roupa tirada
da corda; cheirava a vento. Phoebe ficou deitada de costas no cercadinho, batendo
nas argolas e brinquedos que Caroline pendurara acima dela. De vez em quando, a
enfermeira interrompia seu trabalho e ia ajeitar os objetos de cores vivas, na esperan�a
de que Phoebe, atra�da por seu brilho, virasse de bru�os.
Ap�s cerca de meia hora, a m�sica cessou abruptamente e os p�s de Leo apareceram
na escada, em sapatos de couro amarrados e lustrados com precis�o, com uma
tira de tornozelo branco e sem meias aparecendo de relance abaixo das pernas das
cal�as, que eram curtas demais. Aos poucos, todo ele entrou no campo visual - um
homem alto, antes forte e musculoso, agora com a pele balan�ando fl�cida sobre o
esqueleto ossudo.
- Ah, que bom - disse ele -, and�vamos precisando de uma empregada.
- Caf�? - perguntou ela.
- Eu mesmo pego.
- Ent�o, v� em frente.
- Na hora do almo�o voc� estar� despedida - Leo gritou da cozinha.
- V� em frente - repetiu Caroline.
Ouviu-se uma cascata de panelas caindo e a voz do velho xingando. Caroline o
imaginou agachando-se para empurrar o emaranhado de utens�lios para dentro do
arm�rio. Deveria ir ajud�-lo - mas n�o, ele que se arranjasse. Nas primeiras semanas,
ela tivera medo de responder mal, medo de n�o atender de um salto toda vez
que Leonard March a chamava, at� que um dia Dorothy a puxara de lado. Escute,
voc� n�o � empregada. Sua responsabilidade � comigo; voc� n�o tem que ficar � disposi��o
dele. Est� indo muito bem, e voc� tamb�m mora aqui, dissera ela, e Caroline
havia entendido que seu per�odo de experi�ncia tinha chegado ao fim.
Leo entrou, carregando um prato de ovos e um copo de suco de laranja.
- N�o se preocupe - disse, antes que ela pudesse falar. - Apaguei a porcaria do
fogo. E agora vou levar meu caf� da manh� l� para cima e comer em paz.
- Veja como fala - disse Caroline.
Ele resmungou uma resposta e subiu a escada, pisando duro. Caroline interrompeu
o trabalho, de repente � beira das l�grimas, e ficou observando um cardeal
pousar na moita de lilases, do lado de fora da janela, e depois voar. O que ela estava
fazendo ali? Que anseio a levara a essa decis�o radical, a esse lugar sem volta? E o
que, afinal, aconteceria com ela?.
Passados alguns minutos, os trompetes recome�aram l� em cima e a campainha
da porta tocou duas vezes. Caroline tirou Phoebe do cercado.
- Eles chegaram - disse, secando os olhos com o pulso. - Hora do exerc�cio.
Sandra estava parada na varanda e, quando Caroline abriu, ela irrompeu porta
adentro, segurando Tim por uma das m�os e arrastando um grande saco de pano
com a outra. Era alta, de ossos grandes, loura e vigorosa; sentou-se sem cerim�nia
no meio do tapete, derrubando os brinquedos de montar numa pilha.
- Desculpe o atraso - disse. - O tr�nsito est� um horror. Voc� n�o fica doida,
morando t�o perto assim da via expressa? Isso me deixaria biruta. Enfim, olhe s� o
que eu achei. Olhe para esse brinquedos geniais de montar: pl�stico, cores diferentes.
O Tim os adora.
Caroline tamb�m se sentou no ch�o. Como Dorothy, Sandra era uma amiga improv�vel,
algu�m com quem Caroline jamais se relacionaria em sua vida anterior.
Tinham se conhecido na biblioteca, num dia l�gubre de janeiro em que, saturada de
especialistas e de estat�sticas sombrias, Caroline havia fechado um livro com for�a,
em desespero. Sandra, duas mesas adiante, em meio a sua pr�pria pilha de livros,
cujas lombadas e capas eram terrivelmente familiares para Caroline, levantara os
olhos. Ah, eu sei exatamente o que voc� est� sentindo. Fico com tanta raiva que seria
capaz de quebrar uma janela.
As duas tinham come�ado a conversar, a princ�pio cautelosamente, depois aos borbot�es.
O filho de Sandra, Tim, estava com quase quatro anos. Tamb�m tinha s�ndrome
de Down, mas no come�o Sandra n�o soubera. Que ele se desenvolvia mais
devagar do que seus outros tr�s filhos, isso ela havia notado, mas, para Sandra, lento
era apenas lento e n�o servia de desculpa para nada. Como m�e atarefada, ela simplesmente
esperara que Tim fizesse o que os outros filhos tinham feito e, se ele levasse
mais tempo, tudo bem. Aos dois anos, ele andava; aos tr�s, havia controlado os esf�ncteres.
O diagn�stico tinha chocado a fam�lia, e a sugest�o do m�dico - de que o
menino fosse internado numa institui��o - enraivecera Sandra e a instigara a agir.
Caroline havia escutado atentamente, animando-se a cada palavra.
As duas tinham sa�do da biblioteca para tomar um caf�. Caroline jamais se esqueceria
daquelas horas, da empolga��o que sentira, como se despertasse de um sonho longo
e lento. O que aconteceria, conjecturaram as duas, se elas simplesmente continuassem a
presumir que seus filhos fariam tudo? Talvez n�o depressa. Talvez n�o de acordo com as
regras. Mas e se elas simplesmente apagassem aquelas tabelas de crescimento e desenvolvimento,
com seus pontos e curvas exatos e restritivos? E se conservassem suas expectativas,
mas apagassem a Unha temporal? Que mal poderia fazer? Por que n�o tentar?
Sim, por que n�o? Elas haviam come�ado a se encontrar, ali ou na casa de Sandra,
com seus meninos mais velhos e bagunceiros. Carregavam livros e brinquedos, pesquisas
e hist�rias e suas experi�ncias pessoais - as de Caroline como enfermeira, as
de Sandra como professora prim�ria e m�e de quatro filhos. Grande parte era apenas
bom senso. Se Phoebe precisava aprender a virar de bru�os, era s� colocar uma
bola brilhante um pouco al�m do seu alcance; se Tim precisava trabalhar a coordena��o,
era dar-lhe uma tesoura cega e papel brilhante e deix�-lo recortar. O progresso
era lento, �s vezes invis�vel, mas, para Caroline, aquelas horas haviam se transformado
numa fonte de salva��o.
- Hoje voc� parece cansada - disse Sandra.
Caroline assentiu com a cabe�a. - A Phoebe teve laringite esta noite. Na verdade,
n�o sei quanto tempo ela vai ag�entar. Alguma novidade sobre os ouvidos do Tim?
- Gostei do novo m�dico - disse Sandra, reclinando-se. Seus dedos eram longos
e de pontas grossas; ela sorriu para Tim e lhe entregou uma x�cara amarela. - Ele me
pareceu compassivo. N�o nos descartou pura e simplesmente. Mas a not�cia n�o �
muito boa. O Tim tem uma certa perda auditiva, e provavelmente � por isso que a
fala tem demorado tanto. Tome, benzinho - acrescentou, dando um tapinha na x�cara
que ele deixara cair. - Mostre � Srta. Caroline e a Phoebe o que voc� sabe fazer.
Tim n�o estava interessado; voltara a aten��o para a felpa do tapete, que alisava
repetidamente, fascinado e encantado. Mas Sandra era firme, calma e decidida. Por
fim, ele pegou a x�cara amarela, encostou a borda na bochecha por um instante,
depois a colocou no ch�o e come�ou a empilhar outras numa torre.
Nas duas horas seguintes, ambas brincaram com os filhos e conversaram. Sandra
tinha opini�es s�lidas sobre tudo e n�o tinha medo de dizer o que pensava. Caroline
adorava sentar-se na sala e conversar com essa mulher inteligente e ousada, de m�e
para m�e. Nessa �poca, muitas vezes ela sentia saudade da pr�pria m�e, morta j� fazia
quase 10 anos, e tinha vontade de lhe telefonar e pedir conselhos ou simplesmente
passar pela casa dela para v�-la segurar Phoebe no colo. Ser� que sua m�e sentira
tudo isso - o amor e a frustra��o - enquanto Caroline crescia? De repente, Caroline
compreendeu sua inf�ncia de outra maneira. A preocupa��o constante com a p�lio
- aquilo, a seu modo estranho, havia sido amor. E o trabalho �rduo do pai, sua concentra��o
cuidadosa nas finan�as da fam�lia � noite, aquilo tamb�m era amor.
Caroline n�o tinha a m�e, mas tinha Sandra, e as manh�s que passavam juntas eram
o ponto alto de sua semana. Puseram-se a contar hist�rias de vida, trocando id�ias e
sugest�es sobre a fun��o dos pais, e riram juntas quando Tim tentou empilhar as x�caras
em suas cabe�as, enquanto Phoebe se esfor�ava para alcan�ar a bola cintilante,
at� que, por fim, a despeito de si mesma, ela virou de bru�os. Nessa manh�, ainda
preocupada, Caroline balan�ou v�rias vezes as chaves do carro diante de Phoebe. Elas
reluziam, captando a luz da manh�, e as m�ozinhas de Phoebe se abriam, esticadas
como estrelas-do-mar. A m�sica, as part�culas de luz: ela tamb�m estendeu as m�os
para as chaves. No entanto, por mais que tentasse, n�o conseguiu peg�-las.
- Da pr�xima vez - disse Sandra. - Espere s� para ver. Vai acontecer.
Ao meio-dia, Caroline ajudou-os a levarem as coisas para o carro, depois ficou na
varanda com Phoebe no colo, j� cansada, mas tamb�m contente, acenando enquanto
Sandra se afastava com sua caminhonete. Quando entrou, o disco de Leo havia
emperrado, tocando repetidamente os mesmos tr�s compassos.
Velho rabugento, pensou com seus bot�es, e come�ou a subir a escada.
- N�o pode diminuir isso? - falou, exasperada, ao abrir a porta. Mas o disco estava
pulando num c�modo vazio. Leo havia sumido.
Phoebe come�ou a chorar, como se tivesse uma esp�cie de bar�metro interno
para medir o conflito e a tens�o. Ele devia ter escapulido pelos fundos enquanto
Caroline ajudava Sandra. Ah, Leo era esperto, embora, nos �ltimos tempos, �s vezes
deixasse os sapatos na geladeira. Sentia grande prazer em lhe pregar pe�as desse tipo.
J� tinha fugido tr�s vezes, uma delas nu em p�lo.
Caroline desceu correndo e enfiou os p�s num par de mocassins de Dorothy, um
n�mero menor que o seu, enregelada. Um casaco para Phoebe, aninhada no carrinho;
quanto a ela mesma, iria sem agasalho.
O dia ficara nublado, com nuvens baixas e cinzentas. Phoebe choramingou, agitando
as m�ozinhas, quando elas passaram pela garagem em dire��o ao beco. Eu sei,
murmurou Caroline, afagando-a na cabe�a. Eu sei, benzinho, eu sei. Avistou uma
pegada de Leo numa crosta de neve semiderretida - a sola quadriculada de suas
botas - e sentiu uma onda de al�vio. Ent�o, ele fora por ali, e estava vestido.
Bem, pelo menos estava de botas.
No fim do quarteir�o seguinte, ela chegou aos 105 degraus que desciam at� o
Campo Koenig. Leo � que lhe tinha dito quantos eram, numa noite em que exibira
um estado de �nimo mais civilizado no jantar. Agora, l� estava ele na base da longa
cascata de cimento, com as m�os balan�ando junto ao corpo, o cabelo espigado e
um ar t�o perplexo, t�o perdido e t�o aflito que a raiva de Caroline se desfez. Ela n�o
gostava de Leo March - n�o era o tipo de pessoa de quem se gostasse -, mas a animosidade
que pudesse sentir por ele era complicada pela compaix�o. � que, em
momentos assim, ela percebia como era o mundo para esse homem e via um anci�o
senil e esquecido, e n�o o universo que tinha sido e ainda era Leo March.
Leo virou-se, a viu e, passado um momento, a confus�o dissipou-se em seu rosto.
- Veja isto! - gritou ele. - Veja isto, mulher, e chore!
Rapidamente, indiferente ao gelo, um riacho cristalizado que descia pelo centro
dos degraus, Leo subiu correndo em dire��o a ela, bombeando as pernas, alimentadas
por alguma antiga adrenalina e pela necessidade.
- Aposto que voc� nunca viu nada assim - disse, ao chegar ao topo, sem f�lego.
- Tem raz�o. Nunca vi. E espero nunca ver de novo - disse Caroline.
Leo riu, com um rosa v�vido nos l�bios, contrastando com a pele branca feito um
len�ol.
- Fugi de voc� - disse ele.
- N�o chegou muito longe.
- Mas podia ter chegado. Se quisesse. Da pr�xima vez.
- Da pr�xima vez, leve um casaco - recomendou Caroline.
- Da pr�xima vez - disse ele, enquanto come�avam a andar -, vou desaparecer
em Timbuctu.
- Fa�a isso - retrucou Caroline, sentindo-se invadir por uma onda de cansa�o. Flores
roxas e brancas de a�afr�o brotavam da relva brilhante; agora, Phoebe come�ara
a chorar para valer. Caroline estava aliviada por levar Leo a reboque, por t�-lo encontrado
s�o e salvo, e se sentia grata por ter sido evitada uma desgra�a. Seria culpa sua
se o velho se perdesse ou se machucasse, por ela estar t�o concentrada em Phoebe,
que vinha estendendo as m�os havia v�rias semanas e ainda n�o aprendera a segurar.
Deram mais alguns passos em sil�ncio.
- Voc� � uma mulher inteligente - disse Leo.
Ela estancou na cal�ada, at�nita.
- Como? O que foi que disse?
Leo a encarou, l�cido, exibindo nos olhos o mesmo azul vivo e perscrutador dos
olhos de Dorothy.
- Eu disse que voc� � inteligente. Minha filha contratou oito enfermeiras diferentes
antes de voc�. Nenhuma delas durou mais de uma semana. Aposto que voc�
n�o sabia disso.
- N�o - disse Caroline. - N�o, eu n�o sabia.
Mais tarde, enquanto limpava a cozinha e levava o lixo para fora, Caroline pensou
nas palavras de Leo. Sou inteligente, disse a si mesma, parada no beco, junto ao lat�o
de lixo. O ar estava �mido e frio. Sua respira��o sa�a em pequenas nuvens. Intelig�ncia
n�o lhe arranjar� um marido, disse a voz de sua m�e numa resposta r�spida, mas nem
isso diminuiu seu prazer pelas primeiras palavras gentis que Leo j� lhe dirigira.
Ficou parada mais um momento na friagem, grata pelo sil�ncio. As garagens inclinavam-
se em ziguezague, uma atr�s da outra, ladeira abaixo. Pouco a pouco,
Caroline se deu conta de uma figura parada na base da alameda. Um homem alto,
de jeans escuros e jaqueta marrom - cores t�o discretas que ele quase se tornava
mais uma parte da paisagem de fim de inverno. Alguma coisa nele - alguma coisa
em seu jeito de parar e olhar intensamente na dire��o dela - deixou Caroline inquieta.
Ela rep�s a tampa na lata de lixo e cruzou os bra�os. Agora ele vinha andando em
sua dire��o, um homem grande, de ombros largos e andar ligeiro. Sua jaqueta n�o
tinha nada de marrom, e sim um quadriculado p�lido com riscas vermelhas. Ele
tirou do bolso um bon� vermelho vivo e o p�s na cabe�a. Caroline sentiu-se estranhamente
� vontade com esse gesto, embora n�o soubesse por qu�.
- Ol� - fez ele. - Aquele Fairlane tem funcionado direito com voc� ultimamente?
A apreens�o de Caroline se aprofundou e ela se virou para a casa, com seus tijolos
escuros erguendo-se contra o c�u branco. Sim, l� estava seu banheiro, onde ela
passara a noite anterior olhando a lua no jardim. L� estava sua janela, parcialmente
aberta para o ar frio da primavera, com o vento balan�ando as cortinas rendadas.
Quando ela tornou a se virar, o homem havia parado a poucos passos de dist�ncia.
Caroline o conhecia e compreendeu isso com o corpo, com o al�vio que sentiu, antes
de conseguir formul�-lo em pensamento. Depois foi tudo t�o bizarro que ela mal
p�de acreditar.
- Mas como foi que... - come�ou.
- N�o foi f�cil - disse Al, rindo. Deixara crescer uma barba fofa e seus dentes
brancos reluziram por um instante. Nos olhos escuros tinha uma express�o calorosa,
satisfeita e divertida. Caroline lembrou-se dele servindo bacon em seu prato, acenando
da cabine prateada do caminh�o ao se afastar.
- Voc� � uma mo�a dif�cil de achar. Mas tinha falado em Pittsburgh. Acontece que
eu fa�o uma parada aqui a cada duas semanas, mais ou menos. Procurar voc� virou
uma esp�cie de hobby - continuou ele, e sorriu. - Agora, n�o sei o que farei de mim.
Caroline n�o conseguiu responder. Sentia prazer em v�-lo, mas havia tamb�m
uma grande confus�o. Durante quase um ano, ela n�o se permitira pensar muito na
vida que deixara para tr�s, mas, nesse momento, tudo ressurgiu com grande for�a e
intensidade: o cheiro de desinfetante e o sol na sala de espera, a sensa��o de voltar
para seu apartamento tranq�ilo e ordeiro, no fim de um longo dia de trabalho, pre
parar uma refei��o modesta e se sentar � noite com um livro. Ela abrira m�o voluntariamente
desses prazeres, abra�ara essa mudan�a, por algum anseio profundo e
n�o reconhecido. E agora seu cora��o palpitava. Ela fitou a alameda, perturbada,
como se, s�bito, tamb�m pudesse ver David Henry. Era por isso, compreendeu de
repente, que nunca tinha enviado aquela carta. E se ele quisesse Phoebe de volta, ou
se Norah a quisesse? Essa possibilidade encheu-a de uma onda excruciante de medo.
- Como foi que voc� fez? - perguntou. - Como me encontrou? Por qu�?
Surpreso, Al deu de ombros.
- Dei uma passada em Lexington para dar um al�. Seu apartamento estava vazio.
Em pintura. Aquela sua vizinha me disse que fazia tr�s semanas que voc� tinha ido
embora. Acho que n�o gosto de mist�rios, porque continuei a pensar em voc� - e fez
uma pausa, como se debatesse se devia ou n�o continuar. - E depois... diabos, eu
gostei de voc�, Caroline, e imaginei que voc� devia estar passando por algum aperto,
para sumir de uma hora para outra daquele jeito. Com certeza estava com todo
o ar de encrencada naquele dia, parada no estacionamento. Achei que talvez eu
pudesse dar uma m�ozinha. Achei que talvez voc� precisasse.
- Eu estou muito bem - disse ela. - E, agora, o que voc� est� imaginando?
Caroline n�o tivera a inten��o de que as palavras sa�ssem como sa�ram, t�o duras
e r�spidas. Fez-se um longo sil�ncio antes de Al recome�ar a falar.
- Acho que estou percebendo que me enganei com umas coisas - fez ele. Balan�ou
a cabe�a. - Pensei que a gente tivesse se dado bem, voc� e eu.
- E nos demos - disse Caroline. - S� estou surpresa, s� isso. Achei que eu tinha
cortado todos os meus la�os.
Al pousou nela os olhos castanhos e os dois se fitaram.
- Levei um ano inteiro. Se voc� est� com medo que algu�m mais a descubra, lembre-
se disso. E eu sabia por onde come�ar, e dei sorte. Comecei a verificar os mot�is que eu
conhe�o, perguntando por uma mulher com um beb�. A cada vez eu ia a um lugar diferente
e, na semana passada, acertei na mosca. A recepcionista do lugar em que voc� se
hospedou lembrou-se de voc�. Ela vai se aposentar na semana que vem, ali�s. Cheguei
pertinho assim de perd�-la para sempre - concluiu, juntando o polegar e o indicador.
Caroline acenou com a cabe�a, lembrando-se da mulher atr�s do balc�o, com a
cabeleira branca presa num coque cuidadoso e os brincos de p�rola reluzentes. O
motel estava com sua fam�lia havia 50 anos. O aquecimento chacoalhava a noite
inteira e as paredes viviam constantemente �midas, fazendo o papel descascar. Hoje
em dia, dissera a mulher, empurrando a chave por cima do balc�o, nunca se sabe
quem vai entrar pela porta.
1oo
Al gesticulou com a cabe�a para o capo azul-claro do Fairlane.
- Eu soube que a tinha encontrado no minuto em que vi isso - comentou.
- Como vai a nen�m?
Caroline lembrou-se do estacionamento deserto, de toda a luz que se havia derramado
na neve e desaparecido, do modo como a m�o dele tinha pousado, com toda
a delicadeza, na testa min�scula de Phoebe.
- Voc� quer entrar? - ouviu-se perguntar. - Eu ia mesmo acord�-la. E lhe fa�o um ch�.
Conduziu-o pela cal�ada estreita e pelos degraus da varanda dos fundos. Deixou-o
na sala de jantar e subiu a escada, sentindo-se zonza, sem firmeza, como se de repente
houvesse entendido que o planeta sob seus p�s girava no espa�o, deslocando
seu mundo, por mais que ela tentasse mant�-lo im�vel. Trocou a fralda de Phoebe e
borrifou �gua em seu pr�prio rosto, procurando acalmar-se.
Al estava sentado � mesa da sala de jantar, olhando pela janela. Virou-se quando
ela desceu a escada e seu rosto se abriu num largo sorriso. Estendeu os bra�os para
Phoebe no mesmo instante, exclamando o quanto ela havia crescido, como estava bonita.
Caroline sentiu uma onda de prazer, e Phoebe, encantada, riu, com seus cachos
escuros caindo em volta do rosto. Al enfiou a m�o na camisa e puxou um medalh�o
- pl�stico transparente envolvendo letras turquesa e douradas, que diziam GRANDE OLE
OPRY. Contou que o comprara em Nashville. Venha comigo, dissera ele, todos aqueles
longos meses antes, de brincadeira, mas, ao mesmo tempo, falando s�rio.
E agora estava ali, depois de percorrer todo aquele caminho para encontr�-la.
Phoebe emitia sons suaves, estendendo os bra�os. Suas m�os ro�avam o pesco�o
de Al, sua clav�cula, sua camisa xadrez escura. No come�o, Caroline n�o se deu conta
do que estava acontecendo, depois, de repente, percebeu. O que quer que Al estivesse
dizendo ficou em segundo plano, fundindo-se com os passos de Leo no andar de
cima e com a pressa do tr�nsito l� fora - sons dos quais desde ent�o Caroline se lembraria
como sons que davam sorte.
Phoebe estava estendendo a m�o para o medalh�o. N�o sacudindo-a no ar, como
fizera de manh�, mas usando o peito de Al para encontrar resist�ncia, com os dedinhos
arranhando o medalh�o contra a palma da m�o, at� conseguir fechar o punho
em volta dele. Radiante com o sucesso, puxou-o com for�a da corrente, o que fez Al
levar a m�o ao ponto de atrito.
Caroline tamb�m levou a m�o ao pesco�o, sentindo a ard�ncia s�bita da alegria.
Isso mesmo, pensou. Agarre-o, minha querida. Agarre o mundo.
MAIO DE 1965
NORAH SEGUIA � FRENTE DELE, DESLOCANDO-SE COM O UM RAIO,
lampejos de branco e azul em meio �s �rvores, ora vis�vel, ora n�o. David
ia atr�s, abaixando-se de vez em quando para catar pedras. Geodos de superf�cie �spera,
f�sseis entalhados no xisto. Em dado momento, uma ponta de flecha. David
segurava cada um deles por um instante, satisfeito com o peso e a forma, com a frieza
das pedras na palma da m�o, antes de enfi�-los nos bolsos. Quando menino, as
prateleiras de seu quarto sempre tinham sido cobertas de pedras e, at� essa idade, ele
n�o conseguia deix�-las de lado, com seus mist�rios e possibilidades, embora lhe
fosse dif�cil abaixar-se nesse momento, com Paul preso ao seu peito e a m�quina
fotogr�fica raspando em seus quadris.
L� adiante, Norah parou para dar um aceno, depois pareceu sumir numa parede
de pedra cinzenta e lisa. V�rias outras pessoas, todas com o mesmo bon� azul de beisebol,
surgiram de repente, uma a uma, do mesmo pared�o cinza. Ao se aproximar,
David percebeu que a escada que levava � ponte natural de pedra come�ava ali,
pouco adiante de seu campo visual.
- Olhe bem onde pisa - disse-lhe uma mulher que descia. - � t�o �ngreme que
nem d� para acreditar. E escorregadia tamb�m.
Sem f�lego, ela parou e p�s a m�o no peito.
Notando sua palidez e a falta de ar, David estancou:
- Senhora? Eu sou m�dico. A senhora est� bem?
- Palpita��es - respondeu a mulher, abanando a m�o livre. - Tenho sofrido disso
a vida inteira.
I02
David segurou-lhe o pulso gorducho e mediu seus batimentos, r�pidos mas firmes,
que foram diminuindo � medida que ele contava. Palpita��es: as pessoas usavam
esse termo livremente para falar de qualquer acelera��o card�aca, mas ele logo
percebeu que a mulher n�o estava realmente em sofrimento. N�o como a irm� dele,
que crescera com tonteiras e falta de ar e era obrigada a se sentar toda vez que simplesmente
atravessava a sala correndo. Problema de cora��o, dissera o m�dico de
Morgantown, balan�ando a cabe�a. N�o fora mais espec�fico, e n�o tinha import�ncia:
n�o havia nada que ele pudesse fazer. Anos depois, na faculdade de medicina,
David se recordara dos sintomas da irm� e lera at� alta madrugada para fazer seu
pr�prio diagn�stico: um estreitamento da aorta, ou, quem sabe, uma anormalidade
na v�lvula card�aca. June tinha exibido movimentos lentos e dificuldade para respirar,
seu estado piorara com o passar dos anos e a pele havia ficado p�lida e levemente
azulada nos meses que antecederam sua morte. Ela adorava borboletas, ficar de p�
com o rosto virado para o sol, de olhos fechados, e comer gel�ia feita em casa com
as bolachas de sal fininhas que sua m�e comprava no centro da cidade. June estava
sempre cantando, inventava melodias que cantarolava baixinho s� para si, e tinha o
cabelo claro, quase branco, da cor do leite. Durante meses, depois da morte da irm�,
David acordava de madrugada pensando ter ouvido a vozinha dela cantando como
o vento nos pinheiros.
- A senhora disse que tem tido isso a vida inteira? - perguntou � mulher em tom
grave, soltando sua m�o.
- Ah, sempre - fez ela. - Os m�dicos me dizem que n�o � grave. S� inc�modo.
- Bom, acho que a senhora vai ficar bem. Mas n�o se esforce demais - disse David.
Ela agradeceu, afagou a cabe�a de Paul e disse:
- E o senhor, trate de tomar cuidado com o baixinho.
David agradeceu com um aceno e seguiu adiante, protegendo a cabe�a de Paul
com a m�o livre enquanto subia a escada entre as paredes �midas de pedra. Estava
contente - era bom poder ajudar as pessoas necessitadas, oferecer-se para trat�-las,
coisa que ele parecia n�o conseguir fazer por aqueles a quem mais amava. Paul dava
tapinhas de leve em seu peito, segurando o envelope que David enfiara no bolso:
uma carta de Caroline Gill, entregue em seu consult�rio naquela manh�. Ele s� a
lera uma vez, rapidamente, e a pusera de lado com a chegada de Norah, procurando
esconder sua agita��o. Estamos bem, Phoebe e eu, dizia. At� o momento, ela n�o
tem nenhum problema no cora��o.
David segurou os dedinhos de Paul delicadamente. O filho levantou a cabe�a,
olhinhos arregalados, curioso, e ele sentiu uma onda profunda e r�pida de amor.
- Ei - disse-lhe, sorrindo -, eu amo voc�, rapazinho. Mas n�o coma isso, est� bem?
Paul o estudou com seus olhos grandes e escuros, depois virou a cabe�a e apoiou
o rosto no peito de David, irradiando calor. Usava um chapeuzinho branco com
patos amarelos que Norah havia bordado nos dias calmos e vigilantes que se seguiram
a seu acidente. A cada pato surgido, David tinha respirado com um pouco mais
de al�vio. Ele vira a tristeza de sua mulher, o buraco que a dor lhe deixara no cora��o,
ao mandar revelar o filme da nova m�quina fotogr�fica: um ap�s outro, os c�modos
vazios da casa antiga, closes dos caixilhos das janelas, as sombras n�tidas do corrim�o
da escada, as lajotas do piso, enviesadas e tortas. E as pegadas de Norah, aquela
trilha inst�vel e ensang�entada. Ele jogara as fotos no lixo, inclusive os negativos,
mas elas ainda o assombravam. David temia que sempre o assombrassem. Afinal, ele
havia mentido: tinha dado a filha dos dois. Que houvesse conseq��ncias terr�veis
parecia inevit�vel e justo. Mas os dias tinham passado, agora fazia quase tr�s meses,
e Norah parecia ter voltado ao que era antes. Cuidava do jardim, ria ao telefone com
as amigas, ou levantava Paul do cercadinho com seus bra�os magros e graciosos.
Observando-a, David dissera a si mesmo que ela estava feliz.
Agora, os patinhos balan�avam alegremente a cada passo, captando a luz do sol,
quando David saiu da escada estreita para a ponte natural de pedra que cruzava o
desfiladeiro. Norah, de short de brim e blusa branca sem mangas, estava no centro
da ponte, com as pontas dos t�nis brancos avermelhadas pelas bordas rochosas.
Lentamente, com a gra�a de uma bailarina, ela abriu os bra�os e arqueou as costas,
de olhos fechados, como quem se oferecesse ao c�u.
- Norah! - David chamou, horrorizado. - Isso � perigoso!
Paul empurrou o peito de David com as m�ozinhas. Oso, repetiu, ao ouvir o pai
dizer perigoso - uma palavra usada na fala com os beb�s para classificar tomadas
el�tricas, escadas, lareiras, cadeiras e, agora, a queda vertiginosa que se estendia at�
o fundo do penhasco sob os p�s de sua m�e.
- � espetacular! - respondeu Norah, deixando cair os bra�os. Virou-se, fazendo
as pedrinhas deslizarem sob seus p�s e escorregarem pela borda. - Venha ver!
Com cautela, ele subiu na ponte e se colocou ao lado da mulher, na beirada. L�
embaixo, figuras min�sculas moviam-se devagar na trilha em que um dia correra
um rio. Agora, as colinas subiam e desciam numa primavera exuberante, com centenas
de matizes diferentes de verde contrastando com o l�mpido c�u azul. David
respirou fundo, lutando contra uma onda de vertigem, com medo at� de olhar
Norah de relance. Ele quisera poup�-la, proteg�-la da morte e do sofrimento; n�o tinha
entendido que a morte a acompanharia de qualquer modo, moldando a vida
com a mesma persist�ncia de uma corrente fluvial. Tamb�m n�o tinha previsto sua
pr�pria tristeza crescente, entremeada com os fios escuros de seu passado. Quando
imaginava a filha de que abrira m�o, era o rosto de sua irm� que ele via, com os
cabelos p�lidos e o sorriso s�rio.
- Deixe eu bater uma foto - disse, dando um passo atr�s, depois outro. - Venha
para o meio da ponte. A luz � melhor.
- Num minuto - disse ela, com as m�os nas cadeiras. - � lindo mesmo.
- Norah, voc� est� realmente me deixando nervoso.
- Ah, David - retrucou ela, balan�ando a cabe�a sem olh�-lo. - Por que voc� se
preocupa o tempo todo? Eu estou �tima.
Ele n�o respondeu, consciente do movimento dos pr�prios pulm�es, da profunda
irregularidade de sua respira��o. Tivera a mesma sensa��o ao abrir a carta de
Caroline, endere�ada a seu antigo consult�rio na letra descuidada da enfermeira,
parcialmente coberta pelo selo. Trazia um carimbo de Toledo, em Ohio. Ela havia
anexado tr�s fotografias de Phoebe, um beb� de vestido cor-de-rosa. O endere�o da
remetente era uma caixa postal em Cleveland, n�o em Toledo. Cleveland, um lugar
onde ele nunca estivera, o lugar em que Caroline Gill parecia estar morando com
sua filha.
- Vamos sair daqui - disse ele, por fim. - Deixe eu tirar sua foto.
Ela fez que sim, mas, quando ele alcan�ou a seguran�a do centro da ponte e se virou,
Norah ainda estava perto da beirada, de frente para ele, com os bra�os cruzados,
sorridente.
- Tire-a aqui mesmo. Vai dar a impress�o de que estou andando no ar.
David agachou-se, mexendo nos controles da c�mera, sentindo o calor irradiar-
se das pedras douradas e nuas. Paul contorceu-se em seu colo e come�ou a se agitar.
David se lembraria disso tudo - que n�o foi visto nem registrado - quando a imagem
come�asse a emergir na solu��o reveladora, mais tarde, tomando forma lentamente.
Enquadrou Norah no visor, com o vento a lhe balan�ar o cabelo, a pele morena
e saud�vel, e pensou em tudo que a mulher lhe escondia.
O ar primaveril era c�lido e suavemente perfumado. Eles desceram a trilha, passando
por entradas de cavernas e ramas de rododendros roxos e loureiros da montanha.
Norah os levou para fora da trilha principal e os conduziu por entre as �rvores,
acompanhando um riacho, at� emergirem num local ensolarado de que ela se lembrava
por seus morangos silvestres. O vento soprava de leve na grama alta, e as folhas
verde-escuras dos morangueiros tremeluziam baixas, junto � terra. O ar estava
carregado de um aroma doce, do zumbir dos insetos e de calor.
Estenderam seu piquenique no ch�o: queijo, biscoitos e cachos de uva. David sentou-
se no cobertor, acomodando a cabe�a de Paul contra o peito enquanto o desamarrava,
pensando vagamente em seu pr�prio pai, corpulento e forte, cujos dedos
h�beis e rudes cobriam as m�os de David ao lhe ensinar a levantar um machado ou
a ordenhar a vaca, ou a bater um prego nas t�buas de cedro. Seu pai, que cheirava a
suor e resina e � terra escura e oculta das minas em que trabalhava durante o inverno.
Mesmo na adolesc�ncia, quando passava a semana inteira numa pens�o na
cidade, para poder cursar o cient�fico, David adorava voltar para casa nos fins de
semana e l� encontrar o pai, fumando seu cachimbo na varanda.
Oso, disse Paul. Uma vez solto, tirou no mesmo instante um dos p�s do sapato.
Estudou-o atentamente, soltou-o quase de imediato e saiu engatinhando em dire��o
ao mundo relvado fora do cobertor. David o viu arrancar um punhado de grama e
lev�-lo � boca, com um olhar de surpresa lampejando em seu rostinho ao sentir a
textura. S�bito, David desejou ardentemente, furiosamente, que seus pais estivessem
vivos para conhecer o neto.
- Ruim, n�o �? - disse, baixinho, ao filho, tirando a grama babada de seu queixo.
Norah se movimentava ao lado dele, calada, eficiente, pegando os talheres e os guardanapos.
David manteve o rosto virado; n�o queria que ela o visse t�o agitado pela
emo��o. Tirou um geodo do bolso e Paul o segurou com as duas m�os, girando-o.
- Ele pode p�r isso na boca? - perguntou Norah, acomodando-se ao lado do marido,
t�o perto que ele sentiu seu calor e seu aroma de suor e sabonete enchendo o ar.
- � prov�vel que n�o - David respondeu, recuperando a pedra e dando um biscoito
a Paul, em lugar dela. O geodo era morno e �mido. David deu uma pancada
forte na rocha, abrindo-a e revelando seu interior roxo e cristalino.
- Que lindo - murmurou Norah, girando-o entre os dedos.
- Mares antigos - disse David. - A �gua ficou presa a� dentro e se cristalizou, ao
longo dos s�culos.
Eles comeram sem pressa, depois colheram morangos silvestres, quentes de sol e
macios. Paul os comeu aos punhados, com o sumo a lhe escorrer pelos pulsos. Dois
gavi�es circulavam pregui�osamente no c�u azul profundo. Sainho, disse Paul, erguendo
um dedo gorducho para apontar. Depois, quando ele adormeceu, Norah o
acomodou num cobertor � sombra, sobre a relva.
- Isto � bom - comentou Norah, acomodando-se encostada num pedregulho.
- S� n�s tr�s, sentados ao sol.
Estava descal�a, e David tomou-lhe os p�s entre as m�os, massageando-os, sentindo
os ossos delicados que se escondiam sob a carne.
- Ah, isso � bom mesmo - disse ela. - Voc� vai me fazer dormir.
- Fique acordada - ele pediu. - Diga-me no que est� pensando.
- N�o sei. Estava s� lembrando de uma pequena campina perto da cria��o de ovelhas.
Quando Bree e eu �ramos pequenas, costum�vamos esperar papai l�. Colh�amos
ramos enormes de amarelinhas e cenouras silvestres. O sol era exatamente como este:
parecia um abra�o. Mam�e punha as flores nos vasos pela casa toda.
- Isso tamb�m � bom - disse David, soltando um dos p�s dela e se dedicando ao
outro. Correu o polegar de leve pela cicatriz branca e fina deixada pelo flash. - Gosto
de pensar em voc� l�.
A pele de Norah era macia. Ele se lembrou dos dias ensolarados de sua pr�pria
inf�ncia, antes de June adoecer, quando a fam�lia sa�a para catar ginseng, uma planta
fr�gil que se escondia na penumbra em meio �s �rvores. Seus pais tinham se conhecido
numa dessas buscas. David tinha a fotografia do casamento dos dois e, no
dia de seu pr�prio casamento, Norah o presenteara com ela, numa bela moldura de
carvalho. A m�e, de pele alva e cabelo ondulado, cintura fina e um vago sorriso matreiro.
O pai, barbudo, de p� atr�s dela, com o chap�u na m�o. Depois da cerim�nia
de casamento, os dois tinham sa�do do cart�rio e se mudado para a cabana que seu
pai havia constru�do na encosta da montanha, com vista para seus campos.
- Meus pais adoravam a vida ao ar livre - acrescentou David. - Mam�e plantava
flores por toda parte. Havia um aglomerado de nabos-da-�ndia junto ao riacho
perto da nossa casa.
- � uma pena eu nunca os ter conhecido. Eles deviam sentir muito orgulho de voc�.
- N�o sei. Talvez. Ficaram contentes por minha vida ser mais f�cil.
- Contentes - Norah concordou devagar, abrindo os olhos e fitando Paul, que
dormia serenamente, com pintas de luz em seu rosto. - Mas tamb�m meio tristes,
quem sabe? Eu ficaria, se o Paul crescesse e se mudasse para longe.
- Sim, � verdade - disse David, assentindo com a cabe�a. - Eles ficaram orgulhosos
e tristes ao mesmo tempo. N�o gostavam da cidade. S� me visitaram uma vez em
Pittsburgh.
Lembrou-se dos pais, sentados sem jeito em seu quarto de estudante, a m�e se
assustando toda vez que soava um apito de trem. June j� havia morrido nessa �poca,
e, enquanto os tr�s tomavam caf� fraco em sua pequena mesa de estudos, ele se lembrou
de ter pensado com amargura que os dois n�o sabiam o que fazer deles mesmos
sem terem June para cuidar. A filha tinha sido o centro de sua vida por muito
tempo.
- Eles s� passaram uma noite comigo - continuou David. - Depois que meu pai
morreu, mam�e foi morar com a irm�, no Michigan. N�o andava de avi�o e nunca
aprendeu a dirigir. Depois disso, s� estive com ela uma vez.
- Isso � muito triste - disse Norah, tirando uma manchinha de terra da canela.
- �. � muito triste mesmo - concordou David. Pensou em June, em como seu
cabelo ficava lour�ssimo sob o sol a cada ver�o, no cheiro de sua pele - sabonete e
calor e alguma coisa met�lica, feito uma moeda - enchendo o ar, quando eles se
agachavam lado a lado, escavando o ch�o com gravetos. Ele a amara muito, seu riso
meigo. E odiava voltar para casa e encontr�-la deitada num colch�o de palha na varanda,
nos dias de sol, e ver o rosto tenso de preocupa��o de sua m�e, sentada ao
lado da forma fl�cida da filha, cantando baixinho, descascando milho ou ervilhas.
David olhou para Paul, que dormia profundamente no cobertor, com a cabe�a de
lado e o cabelo comprido encaracolando-se no pesco�o �mido. Seu filho, pelo
menos, ele havia protegido da tristeza. Paul n�o cresceria, como crescera David,
sofrendo com a perda da irm�. N�o seria for�ado a se arranjar sozinho, pelo fato de
sua irm� n�o poder faz�-lo.
Essa id�ia e a for�a de sua amargura chocaram David. Ele queria acreditar que fizera
a coisa certa ao entregar sua filha a Caroline Gill. Ou, pelo menos, que tivera as
raz�es certas. Mas talvez n�o fosse isso. Talvez n�o tivesse sido propriamente Paul que
ele havia protegido naquela noite de nevasca, mas uma vers�o perdida dele mesmo.
- Voc� est� parecendo muito distante - observou Norah.
Ele mudou de posi��o, chegou mais perto e tamb�m se encostou na pedra.
- Meus pais tinham grandes sonhos para mim - disse. - Mas eles n�o combinavam
com meus pr�prios sonhos.
- Parece minha m�e e eu - disse Norah, abra�ando os joelhos. - Ela disse que vir�
nos visitar no m�s que vem. Eu lhe contei? Ela tem uma passagem de avi�o gr�tis.
- Isso � bom, n�o �? Paul vai mant�-la ocupada.
Norah riu.
- Vai mesmo, n�o vai? Essa � a grande raz�o de ela vir.
- Norah, com que voc� sonha? O que voc� sonha para o Paul?
Norah n�o respondeu de imediato.
- Acho que quero que ele seja feliz - disse, finalmente. - Qualquer coisa que o fa�a
feliz na vida, � isso que eu quero que ele tenha. N�o me importa o que seja, desde
que ele cres�a bom e fiel a si mesmo. E generoso e forte, como o pai.
- N�o - disse David, pouco � vontade. - Voc� n�o gostaria que ele sa�sse a mim.
Norah olhou-o atentamente, surpresa.
- Por que n�o?
David n�o respondeu. Ap�s um longo momento de hesita��o, ela tornou a falar.
- Qual � o problema? - perguntou, n�o em tom agressivo, mas pensativo, como
se tentasse decifrar a resposta enquanto falava. - Quero dizer, entre n�s, David.
Novamente ele n�o respondeu, lutando contra uma onda repentina de raiva. Por
que Norah precisava remexer as coisas outra vez? Por que n�o podia deixar o passado
para tr�s e seguir adiante? Mas ela voltou a falar.
- As coisas n�o t�m sido as mesmas desde que Paul nasceu e Phoebe morreu. E,
mesmo assim, voc� continua se recusando a falar sobre isso. � como se quisesse apagar
o fato de que ela existiu.
- Norah, o que voc� quer que eu diga? � claro que a vida n�o tem sido a mesma.
- N�o fique zangado, David. � s� uma esp�cie de estrat�gia, n�o �? Para que eu
n�o fale mais dela. Mas n�o pretendo recuar. O que estou dizendo � verdade.
Ele deu um suspiro.
- N�o estrague este dia lindo, Norah - disse, finalmente.
- N�o vou estragar - disse ela, afastando-se. Deitou-se no cobertor e fechou os
olhos. - Estou perfeitamente contente com o dia de hoje.
David olhou-a por um momento, com o sol batendo em seu cabelo louro, o peito
subindo e descendo de leve a cada respira��o. Sentiu vontade de estender a m�o e
seguir a curva delicada dos ossos de suas costelas; sentiu vontade de beij�-la no
ponto em que os ossos se encontravam, abrindo-se como asas.
- Norah, eu n�o sei o que fazer - disse. - N�o sei o que voc� quer.
- N�o, n�o sabe.
- Voc� podia me dizer.
- Suponho que sim. Talvez eu diga. Eles se amavam muito? - perguntou de repente,
sem abrir os olhos. Sua voz continuava baixa e calma, por�m David intuiu uma
nova tens�o no ar. - Seu pai e sua m�e.
- N�o sei - ele respondeu devagar, com cuidado, tentando determinar a origem
da pergunta. - Os dois se amavam. Mas ele passava muito tempo fora. Como eu
disse, a vida deles era dif�cil.
- Meu pai amava minha m�e mais do que ela o amava - disse Norah, e David sentiu
um desconforto agitar-se em seu cora��o. - Ele a amava, mas n�o parecia capaz
de demonstrar seu amor de um modo que fosse significativo para ela. Mam�e o achava
exc�ntrico, meio bobo. Havia muito sil�ncio na minha casa quando eu cresci...
Tamb�m somos muito calados l� em casa - acrescentou, e David pensou nas noites
calmas em que ela curvava a cabe�a sobre o chapeuzinho branco com os patos.
- � um sil�ncio bom - disse.
- �s vezes.
- E nas outras vezes?
- Ainda penso nela, David - disse Norah, virando-se de lado e enfrentando o
olhar do marido. - Em nossa filha. Em como ela seria.
David n�o respondeu e a viu chorar em sil�ncio, cobrindo o rosto com as m�os.
Ap�s um momento, estendeu a m�o e a tocou no bra�o. Norah secou as l�grimas dos
olhos.
- E voc�? - perguntou, agora enfurecida. - Nunca sente falta dela, como eu?
- Sim - respondeu ele, em tom sincero. - Penso nela o tempo todo.
Norah p�s a m�o no peito do marido e, em seguida, seus l�bios, sujos de morango,
pousaram nos dele, com uma do�ura penetrante como o desejo em sua l�ngua.
David teve a sensa��o de estar caindo, com o sol na pele e os seios dela a se eri�arem
devagar, como p�ssaros, em suas m�os. Norah procurou os bot�es da camisa do
marido e sua m�o ro�ou na carta que ele escondera no bolso.
David livrou-se da camisa, mas, apesar disso, ao tornar a envolv�-la nos bra�os,
pensou consigo mesmo: Amo voc�. Eu a amo muito, mas menti para voc�. E a dist�ncia
entre eles, de apenas mil�metros, s� o espa�o para respirar, alargou-se e se aprofundou,
tornou-se uma caverna em cuja borda ele se deteve. David afastou-se, de
volta para a luz e a sombra, as nuvens que ora o encobriam ora n�o, e para a rocha
quente de sol �s suas costas.
- O que foi? - perguntou Norah, afagando-lhe o peito. - Puxa, David, qual � o
problema?
- Nada.
- David. Ah, David. Por favor.
Ele hesitou, � beira de confessar tudo, e n�o conseguiu.
- � um problema no trabalho. Um paciente. N�o consigo tirar o caso da cabe�a.
- Deixe pra l�. Estou mais do que farta do seu trabalho - disse Norah.
Gavi�es voando alto nas correntes ascendentes e o sol aquecendo muito. Tudo
girava, voltando sempre ao mesmo ponto exato. Ele tinha que contar � mulher. As
palavras se avolumaram em sua boca. Amo voc�. Eu a amo muito, mas menti para voc�.
- Quero ter outro filho, David - disse Norah, sentando-se. - O Paul j� tem idade
suficiente e eu estou pronta.
David levou tamanho susto que ficou sem fala por um momento.
- O Paul s� tem um ano - disse, por fim.
- E da�? Dizem que � mais f�cil acabar logo de uma vez com as fraldas e tudo o mais.
- Quem diz?
Norah suspirou.
- Eu sabia que voc� ia dizer n�o.
- N�o estou dizendo n�o - retrucou David, cauteloso.
Ela n�o respondeu.
- O momento me parece errado, s� isso.
- Voc� est� dizendo n�o. Est� dizendo n�o, mas n�o quer admitir.
David calou-se, lembrando do quanto Norah chegara perto da borda da ponte.
Lembrando das fotos que ela tirara de coisa nenhuma e da carta em seu bolso. S� o
que ele queria era manter seguras as estruturas delicadas da vida dos dois, fazer as
coisas continuarem como estavam. Para que o mundo n�o mudasse, para que o fr�gil
equil�brio entre eles pudesse durar.
- As coisas est�o correndo bem agora - disse David, baixinho.
- E o Paul? - perguntou Norah. Gesticulou com a cabe�a em dire��o ao filho, que
dormia quieto e sereno em seu cobertor. - Ele sente falta dela.
- N�o � poss�vel que ele se lembre - rebateu David, �spero.
- Nove meses - disse Norah. - Crescendo cora��o com cora��o. Como � que ele
n�o se lembraria, em algum n�vel?
- N�o estamos preparados. Eu n�o estou.
- N�o se trata s� de voc�. Voc� quase j� n�o p�ra em casa. Talvez seja eu que sinto
saudade dela, David. �s vezes, sinceramente, tenho a sensa��o de que ela est� muito
perto, logo ali, no c�modo ao lado, e de que eu a esqueci. Sei que deve parecer maluquice,
mas � verdade.
David n�o respondeu, embora soubesse exatamente o que ela queria dizer. O ar
tinha um perfume denso de morangos. A m�e dele costumava fazer conservas no
fog�o do lado de fora, mexendo a mistura fumegante enquanto ela se transformava
em xarope, depois aferventando e enchendo os potes para disp�-los feito j�ias numa
prateleira. Ele e June comiam a gel�ia no rigor do inverno, roubando colheradas
quando a m�e n�o estava olhando e se escondendo sob o oleado da mesa para lamber
as colheres at� deix�-las imaculadas. A morte de June havia abatido o esp�rito de
sua m�e, e David j� n�o conseguia acreditar-se imune ao azar. Era estatisticamente
improv�vel que eles tivessem outro filho com s�ndrome de Down, mas era poss�vel,
tudo era poss�vel - e ele n�o podia correr esse risco.
- Mas ter outro filho n�o consertaria as coisas, Norah. N�o � a raz�o certa.
Ap�s um momento de sil�ncio, ela se levantou, esfregando as m�os no short, e
saiu andando com raiva pela campina.
A camisa de David ficou amarrotada a seu lado, com um canto do envelope bran
co aparecendo. Ele n�o o pegou; n�o precisava. O bilhete era curto e, apesar de ele
s� ter dado uma olhadela nas fotos, elas lhe eram t�o claras como se ele mesmo as
houvesse tirado. O cabelo de Phoebe era escuro e fino, como o de Paul. Os olhos
eram castanhos e ela sacudia os punhos gorduchos no ar, como se tentasse pegar
alguma coisa fora da vis�o da c�mera. Talvez Caroline, segurando a m�quina. Ele a
vira de relance na cerim�nia f�nebre, alta e solit�ria com seu casaco vermelho, e
depois fora direto ao apartamento da enfermeira, inseguro de suas inten��es, sabendo
apenas que precisava v�-la. Mas, �quela altura, Caroline j� se fora. O apartamento
tinha exatamente a mesma apar�ncia, com seus m�veis atarracados e as paredes
lisas; uma torneira pingava no banheiro. Mesmo assim, o ar estava parado demais,
as prateleiras nuas. As gavetas da c�moda e os arm�rios estavam vazios. Na cozinha,
com a luz p�lida derramada sobre o lin�leo preto e branco, David ficara escutando
o bater de seu cora��o inquieto.
Deitou-se de costas, com as nuvens a correr l� no alto, luz e sombra. N�o havia
tentado encontrar Caroline e, como a carta n�o trazia um endere�o �til da remetente,
ficara sem id�ia de por onde come�ar. Agora est� em suas m�os, ele lhe dissera.
Mas se apanhava aflito em momentos estranhos: sozinho no novo consult�rio, ou
ao revelar fotografias e ver as imagens emergirem, misteriosamente, das folhas de
papel em branco, ou deitado ali, naquela rocha morna, enquanto Norah, magoada e
enraivecida, se afastava.
David estava cansado e se sentiu pegando no sono. Os insetos zumbiam ao sol e
ele se inquietava vagamente com as abelhas. As pedras em seu bolso lhe faziam
press�o na perna. Nas noites da inf�ncia, �s vezes encontrava o pai na cadeira de balan�o
da varanda, os choupos a cintilar de vida com os vaga-lumes. Numa dessas
noites, o pai lhe havia entregado uma pedra lisa, uma cabe�a de machado que
encontrara ao cavar uma trincheira. Tem mais de dois mil anos, dissera ele. Imagine
s�, David. Ela j� esteve em outras m�os, faz uma eternidade, mas sob esta mesma lua.
Isso tinha sido numa ocasi�o. Havia outros dias em que eles sa�am para procurar
cascav�is. Do p�r-do-sol ao amanhecer, andavam pelos bosques carregando forquilhas,
com sacos de pano jogados no ombro e uma caixa de metal balan�ando na
m�o de David.
Para David, era sempre como se o tempo parasse nesses dias, com o sol eternamente
no c�u e as folhas secas deslocando-se sob seus p�s. O mundo se reduzia a
apenas ele, o pai e as cobras, mas tamb�m se expandia, com a vastid�o do c�u se
abrindo a seu redor, mais alto e mais azul a cada passo, e tudo ficava mais lento, at�
o instante em que ele detectava um movimento em meio �s cores da terra e �s fo
lhas secas, pois os losangos desenhados no dorso s� se tornavam vis�veis quando a
cobra come�ava a se mexer. O pai lhe ensinara a ficar im�vel, observando os olhos
amarelos e a l�ngua agitada. Toda vez que a cobra troca de pele, o chocalho fica mais
longo, de modo que era poss�vel dizer, pela altura do chocalhar no sil�ncio da floresta,
quais eram a idade e o tamanho da cascavel e quanto dinheiro ela daria. No
caso das maiores, cobi�adas por zool�gicos, cientistas e, �s vezes, adestradores de
cobras, era poss�vel receber cinco d�lares por uma.
A luz filtrava-se por entre as �rvores e fazia desenhos no solo da floresta, e havia
o som do vento. Depois vinham o chocalhar e a cabe�a recuada da cobra, e o bra�o
do pai de David, forte e s�lido, fincando a forquilha para prend�-la pelo pesco�o. As
presas se projetavam e batiam com for�a na terra �mida, enquanto o chocalho se
agitava, arisco e furioso. Com dois dedos fortes, seu pai segurava firme a cobra, por
tr�s da mand�bula aberta, e a apanhava: fria, seca, contorcendo-se feito um chicote.
Ele jogava a cobra num saco de pano, fechava-o com um pux�o, e o saco virava uma
coisa viva, palpitando no solo. O pai de David o atirava na caixa de metal e fechava
a tampa. Sem dizer nada, eles seguiam em frente, contando de cabe�a o dinheiro das
cobras. Havia semanas, no ver�o e no fim do outono, em que conseguiam ganhar 25
d�lares com isso. O dinheiro servia para comprar comida; quando eles iam ao m�dico
em Morgantown, pagava por isso tamb�m.
-David!
A voz de Norah lhe chegou fraca e urgente, cruzando o passado remoto e a floresta
e penetrando no dia. David se apoiou nos cotovelos e a viu de p� no extremo
oposto do campo de morangos maduros, hipnotizada por alguma coisa no ch�o. Ele
sentiu uma onda de adrenalina e medo. As cascav�is gostavam de troncos ensolarados
como aquele perto do qual Norah havia parado; punham ovos na f�rtil madeira
apodrecida. David deu uma espiada em Paul, que ainda dormia calmamente na
sombra, levantou e saiu correndo, com cardos a lhe arranhar os tornozelos e morangos
se esborrachando macios sob seus p�s, e j� enfiando a m�o no bolso das cal�as
e fechando o punho sobre a pedra maior. Quando chegou perto o bastante para vislumbrar
a linha escura da cobra, atirou a pedra com toda a for�a. Ela descreveu um
arco lento no ar, rodopiando. Caiu uns 15 cent�metros aqu�m da cobra e estourou,
exibindo o n�cleo roxo, vivo e reluzente.
- Mas o que voc� est� fazendo? - exclamou Norah.
Ele j� a havia alcan�ado. Arfante, olhou para baixo. N�o era cobra alguma, apenas
um graveto escuro, descansando sobre o casco seco do toro.
- Achei que voc� tinha me chamado - disse, confuso.
- Chamei - confirmou Norah. Apontou para um aglomerado de flores p�lidas,
logo adiante da linha de sombra. - Nabos-da-�ndia. Como os que sua m�e costumava
plantar. David, voc� est� me assustando.
- Pensei que fosse uma cobra - explicou ele, apontando para o graveto e tornando
a sacudir a cabe�a na tentativa de afastar o passado. - Uma cascavel. Acho que eu
estava sonhando. Pensei que voc� precisasse de ajuda.
Norah fez um ar intrigado e David abanou a cabe�a para se livrar do sonho. Sentiu-
se terrivelmente tolo, de repente. O graveto era um graveto, nada mais. O dia
parecia absurdamente normal. Os p�ssaros piavam e as folhas recome�aram a se
mexer nas �rvores.
- Por que voc� estava sonhando com cobras? - perguntou Norah.
- Eu costumava captur�-las. Por dinheiro.
- Por dinheiro? - repetiu ela, intrigada. - Dinheiro para qu�?
A dist�ncia se reinstalara entre eles, um abismo do passado que David n�o conseguia
transpor. Dinheiro para a comida e para aquelas idas � cidade. Norah vinha
de um mundo diferente, jamais entenderia isso.
- Elas ajudaram a pagar meus estudos na escola, aquelas cobras.
Norah assentiu com a cabe�a e pareceu prestes a fazer mais perguntas, mas n�o as fez.
- Vamos - disse ela, esfregando o ombro. - Vamos pegar o Paul e voltar para casa.
Cruzaram de volta o campo e guardaram as coisas. Norah carregou Paul; ele, a
cesta de piquenique.
Enquanto caminhavam, David recordou-se do pai, parado no consult�rio do
m�dico, e das notas verdes caindo como folhas sobre o tampo do balc�o. A cada
uma, o menino se lembrava das cobras, do a�oite dos chocalhos, das bocas se escancarando
num V in�til, da frieza da pele delas entre os dedos e de seu peso. Dinheiro
de cobras. Ele era um garoto de oito ou nove anos, e aquela era a �nica coisa que
sabia fazer.
Aquilo e proteger June. Cuide da sua irm�., advertia a m�e, erguendo os olhos do
fog�o. Alimente as galinhas, limpe o galinheiro e tire as ervas daninhas do jardim. E
cuide da June.
David cuidava, mas n�o muito bem. Ficava de olho em June, mas n�o a impedia
de escavar a terra e esfreg�-la no cabelo. N�o a consolava quando ela trope�ava
numa pedra e ca�a, ralando o cotovelo. Seu amor pela irm� era t�o profundamente
entremeado de ressentimento que ele n�o conseguia desemaranhar os dois. Ela vivia
doente, por causa do cora��o fraco e dos resfriados que pegava em todas as esta��es
e que a faziam chiar e arquejar. Mas, quando ele subia a trilha na volta da escola, com
os livros pendurados nas costas, era June quem estava sempre � espera, era June
quem o olhava no rosto e compreendia como fora o dia do irm�o e queria saber
tudo sobre ele. Seus dedos eram pequenos e ela gostava de afag�-lo, com os cabelos
longos e escorridos esvoa�ando na brisa.
E ent�o, num fim de semana, ele voltou da escola e encontrou a cabana vazia,
inerte, com um esfreg�o de banho pendurado na borda da banheira e uma friagem
no ar. Sentou-se na varanda, com fome e com frio, e esperou. Muito tempo depois,
quase ao anoitecer, avistou a m�e descendo a colina, de bra�os cruzados. Ela s� falou
ao chegar aos degraus, olhando o filho e dizendo: David, sua irm� morreu. A June
morreu. O cabelo da m�e estava repuxado para tr�s, uma veia pulsava em sua t�mpora
e seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Ela usava um su�ter cinza fininho,
apertando-o junto ao corpo, e disse: David, ela se foi. E, quando o menino se
levantou para abra��-la, a m�e desmoronou, em prantos, e ele perguntou: Quando?
E veio a resposta: Foi h� tr�s dias, na ter�a-feira, logo de manh� cedo; eu fui l� fora
buscar �gua e, quando voltei, a casa estava em sil�ncio, e na mesma hora eu soube. Ela
estava morta. Parou de respirar. David abra�ou a m�e, sem conseguir pensar em mais
nada para dizer. A dor que sentia estava calcada no fundo, e por cima havia uma
dorm�ncia, e ele n�o conseguia chorar. P�s uma manta nos ombros da m�e. Preparou-
lhe uma x�cara de ch�, foi ao galinheiro, encontrou os ovos que ela n�o havia
recolhido e os apanhou. Deu comida �s galinhas e ordenhou a vaca. Fez essas coisas
comuns, mas, ao entrar, a casa continuava sombria, o ar continuava silencioso e June
continuava morta.
Davey, disse sua m�e, muito tempo depois, das sombras em que se havia sentado:
V� embora para a escola. Aprenda alguma coisa que possa ajudar na vida. Ele se ressentiu
disso; queria que sua vida fosse sua, sem ser estorvada por essa sombra, por
essa perda. Sentiu-se culpado por June estar deitada na cova, com um monte de
terra por cima, e ele continuar ali em p�; estava vivo, e a respira��o entrava e sa�a de
seus pulm�es; ele a sentia, assim como o cora��o batendo. Vou ser m�dico, disse, e a
m�e n�o respondeu, mas, passado algum tempo, ela acenou com a cabe�a e se levantou,
tornando a grudar o su�ter no corpo. David, preciso que voc� pegue a B�blia e v�
l� no alto comigo fazer a ora��o. Quero que as palavras sejam ditas formalmente e direito.
E, assim, os dois subiram juntos a colina. Estava escuro quando chegaram ao
topo; ele parou sob os pinheiros, com o vento forte soprando, e leu, � luz bruxu
leante da lamparina de querosene: O Senhor � meu pastor. Nada me faltar�. Mas
falta, pensou consigo mesmo, enquanto dizia as palavras. Falta. E a m�e chorou e os
dois desceram a colina em sil�ncio at� a casa, onde ele escreveu uma carta ao pai
para dar a not�cia. Mandou-a pelo correio na segunda-feira, ao voltar para a cidade
alvoro�ada, de luzes brilhantes. P�s-se atr�s do balc�o, cujo carvalho fora alisado
pelo desgaste de uma gera��o de com�rcio, e jogou a carta simples e branca na caixa
do correio.
Quando os tr�s enfim chegaram ao carro, Norah parou para examinar o ombro,
avermelhado pelo sol. Estava de �culos escuros e, quando olhou para David, ele n�o
p�de ler sua express�o.
- Voc� n�o tem que ser todo esse her�i - disse Norah. Suas palavras foram categ�ricas
e experientes, e David percebeu que a mulher estivera pensando nelas, ensaiando-
as, talvez, no trajeto de volta.
- N�o estou tentando ser her�i.
- N�o? - fez ela, desviando os olhos. - Acho que est�. E a culpa � minha tamb�m.
Durante muito tempo, eu quis ser salva, percebo isso. S� que n�o quero mais. Agora
voc� n�o precisa me proteger o tempo todo. Detesto isso.
Em seguida, pegou a cadeirinha para autom�vel e tornou a virar o rosto. Sob a
luz manchada do sol, a m�o de Paul puxou o cabelo da m�e, e David experimentou
uma sensa��o de p�nico, quase vertigem, por tudo que n�o sabia; por tudo que sabia
e n�o podia consertar. E raiva: esta ele tamb�m sentiu, de repente, numa grande
onda. Raiva de si mesmo, mas tamb�m de Caroline, que n�o tinha feito o que ele
pedira, que havia tornado ainda pior uma situa��o imposs�vel. Norah sentou-se no
banco da frente e bateu a porta do carro. David procurou as chaves no bolso e, em
vez delas, tirou o �ltimo geodo, cinzento e liso, com a forma da Terra. Segurou-o,
sentindo-o aquecer-se em sua palma, e pensou em todos os mist�rios que o mundo
encerrava: camadas de pedra escondidas sob a capa de terra e grama; aquelas pedras
opacas, com seus cintilantes cora��es ocultos.
MAIO DE 1970
I
LE � AL�RGICO A ABELHAS - DISSE NORAH A PROFESSORA, VENDO PAUL
correr pela grama nova do parquinho. Ele subiu no escorregador, sentou-
se no alto por um instante, com as mangas curtas brancas adejando ao vento, e deslizou,
pulando de alegria ao chegar ao ch�o. As azal�ias floresciam, compactas, e o ar,
morno como a pele, ressoava com o zumbir de insetos e p�ssaros. - O pai dele tamb�m
� al�rgico. Isso � muito grave.
- N�o se preocupe - retrucou a Srta. Throckmorton. - Cuidaremos bem dele.
A Srta. Throckmorton era jovem, rec�m-formada, morena, esguia e entusi�stica.
Usava uma saia rodada e sand�lias rasas resistentes, e seus olhos nunca se afastavam
dos grupos de crian�as que brincavam no parque. Parecia equilibrada, competente,
concentrada e gentil. Mesmo assim, Norah n�o confiava completamente em que ela
soubesse o que estava fazendo.
- Ele pegou uma abelha - insistiu -, uma abelha morta, ca�da no peitoril da
janela. Segundos depois, come�ou a inchar feito um bal�o.
- N�o se preocupe, Sra. Henry - repetiu a Srta. Throckmorton, um pouco menos
paciente. J� come�ava a se afastar, com a voz clara e tranquilizadora como um sino,
para ajudar uma menininha com areia nos olhos.
Norah deixou-se ficar sob o sol novo de primavera, observando Paul. Ele brincava
de pique, com as faces coradas, correndo com os bra�os abaixados junto ao corpo
- tamb�m costumava dormir desse jeito quando beb�. Seu cabelo era escuro, mas
tirando isso o menino se parecia com Norah, diziam, com a mesma estrutura �ssea
e a tez clara. Ela se via no filho, era verdade, e David tamb�m estava ali, na forma do
queixo de Paul, na curvatura das orelhas, no jeito como ele gostava de ficar de bra�os
cruzados, escutando a professora. Acima de tudo, por�m, Paul era simplesmente ele
mesmo. Adorava m�sica e passava o dia inteiro cantarolando melodias inventadas.
Embora tivesse apenas seis anos, j� havia cantado solos na escola, dando um passo
� frente dos colegas com uma inoc�ncia e uma confian�a que deixavam Norah perplexa,
com sua voz doce a se elevar no audit�rio, clara e melodiosa como a �gua de
um riacho.
Ele parou para se agachar ao lado de outro garotinho, que usava um graveto para
tirar folhas da �gua escura de uma po�a. Seu joelho direito estava ralado, o band-aid
se soltando. O sol cintilava em seu cabelo preto e curto. Norah o observou, s�rio e
completamente absorto em sua tarefa, e exultou com a simples realidade da exist�ncia
dele. Paul, seu filho. Ali, no mundo.
- Norah Henry! Exatamente a pessoa que eu queria encontrar!
Norah virou-se e viu Kay Marshall, de cal�as justas cor-de-rosa e su�ter creme e
rosa, sand�lias douradas de couro e reluzentes brincos de ouro. Kay empurrava a
filha pequena num carrinho de vime antigo enquanto Elizabeth, a mais velha, andava
a seu lado. Elizabeth, nascida uma semana depois de Paul, na s�bita primavera
que se seguira �quela nevasca estranha e repentina. Nessa manh�, ela usava um
vestido rosa de bolinhas e sapatos de verniz branco. Impaciente, afastou-se de Kay e
correu pelo parquinho at� os balan�os.
- Est� um dia lindo - comentou Kay, ao v�-la afastar-se. - Como vai voc�, Norah?
- Eu vou bem - ela respondeu, resistindo ao impulso de passar a m�o no cabelo,
com aguda consci�ncia da simplicidade de sua blusa branca e sua saia azul, sem nenhuma
j�ia. Onde e quando quer que Norah a visse, Kay estava sempre assim: calma
e descontra�da, com tudo combinando nos m�nimos detalhes, os filhos vestidos com
perfei��o e bem comportados. Kay era o tipo de m�e que Norah sempre imaginara
vir a ser, lidando com todas as situa��es com uma serenidade relaxada e instintiva.
Norah a admirava e tamb�m a invejava. �s vezes, chegava a pensar que, se fosse mais
parecida com Kay, mais tranq�ila e segura, talvez seu casamento melhorasse; ela e
David seriam mais felizes.
- Eu vou bem - repetiu, olhando para a nen�m, que a fitou com olhos grandes e
inquisitivos. - Olhe s� como a Angela est� crescida!
Num impulso, abaixou-se e pegou a menina, a segunda filha de Kay, vestida num
cor-de-rosa fofo para combinar com a roupa da irm�. Sentiu-a leve e c�lida em seu
colo, e a nen�m deu-lhe tapinhas no rosto, com suas m�os mi�das, rindo. Norah
sentiu uma onda de prazer, lembrando-se de Paul naquela idade, com seu cheirinho
de sabonete e leite, a pele macia. Olhou para o outro lado do parque, onde ele
voltara a correr, brincando de pique. Agora que estava na escola, ele tinha sua
pr�pria vida. J� n�o gostava de sentar-se aninhado na m�e, a menos que estivesse
doente ou lhe pedisse para ler uma hist�ria antes de dormir. Parecia imposs�vel que
um dia tivesse sido pequeno assim, imposs�vel que houvesse se tornado um menino
crescido, dono de um veloc�pede vermelho, que espetava gravetos em po�as e cantava
lindamente.
- Ela est� fazendo 10 meses hoje - disse Kay. - D� para acreditar?
- N�o. O tempo passa muito depressa - disse Norah.
- Voc� esteve no campus? Soube do que est� acontecendo?
Norah fez que sim com a cabe�a.
- A Bree me ligou ontem � noite.
Ela ficara em p�, com o telefone numa das m�os e a outra no peito, assistindo ao
notici�rio cheio de chuviscos na televis�o: quatro estudantes mortos a tiros na Universidade
Estadual Kent. At� em Lexington, fazia semanas que a tens�o vinha se
acumulando, com os jornais repletos de guerra, protestos e inquieta��o, num mundo
vol�til e mut�vel.
- � de assustar - disse Kay, mas seu tom era calmo, mais reprovador que desalentado:
o mesmo que ela usaria para falar do div�rcio de algu�m. Ela pegou Angela,
beijou-a na testa e a rep�s delicadamente no carrinho.
- Eu sei - concordou Norah. Usou o mesmo tom, mas, para ela, a inquieta��o
parecia profundamente pessoal, um reflexo do que vinha acontecendo em seu �ntimo
havia anos. Por um instante, sentiu outra fisgada profunda e aguda de inveja.
Kay vivia na inoc�ncia, intocada pelo luto, achando que sempre estaria segura; o
mundo de Norah havia mudado com a morte de Phoebe. Todas as suas alegrias tinham
ganho um n�tido relevo em fun��o dessa perda e da possibilidade de outras
mais, que agora ela vislumbrava a cada momento. David vivia lhe dizendo para
relaxar, contratar uma empregada, n�o se desgastar tanto. Irritava-se com os projetos
dela, seus comit�s, seus planos. Mas Norah n�o conseguia ficar parada; isso a
deixava inquieta demais. Assim, organizava reuni�es e preenchia seus dias, sempre
com a sensa��o desesperada de que, se baixasse a guarda por um instante sequer,
viria a desgra�a. A sensa��o piorava no fim da manh�; quase sempre, ela tomava
uma dose de bebida nessa hora - gim, �s vezes vodca - para ajud�-la a enfrentar a
tarde. Gostava da calmaria que se espalhava por seu corpo, feito luz. Mantinha as
garrafas cuidadosamente escondidas de David.
- Enfim - dizia Kay -, eu queria responder ao convite para sua festa. Adorar�amos
ir, mas vamos chegar meio atrasados. H� alguma coisa que eu possa levar?
I20
- Apenas voc�s - disse Norah. - Est� tudo quase pronto. S� que tenho que ir para
casa derrubar um ninho de vespas.
Os olhos de Kay se arregalaram um pouquinho. Ela vinha de uma antiga fam�lia
de Lexington e tinha seu "pessoal", como o chamava. O pessoal da piscina, o pessoal
da limpeza, o pessoal do jardim e o pessoal da cozinha. David sempre dizia que
Lexington era como o calc�rio sobre o qual se erguia: camadas de estratifica��o,
nuances do ser e do pertencer em que o lugar de cada um na hierarquia fora fixado
na pedra desde longa data. Sem d�vida, Kay tamb�m devia ter o pessoal dos insetos.
- Um ninho de vespas? Coitada de voc�!
- Pois � - fez Norah. - Vesp�es. O ninho est� pendurado perto da garagem.
Sentiu prazer em chocar Kay, nem que fosse um pouquinho; gostou do som concreto
da tarefa que tinha pela frente. Vespas. Ferramentas. O desmantelamento de
um ninho. Norah torcia para que isso ocupasse a manh� inteira. No mais, poderia
apanhar-se dirigindo, como fizera tantas vezes nas semanas anteriores, em alta velocidade,
com uma garrafinha prateada na bolsa. Era capaz de chegar ao rio Ohio em
menos de duas horas. A Louisville ou Maysville, ou ent�o, como fizera uma vez, at�
mesmo a Cincinnati. Estacionava numa ribanceira e descia do carro, para olhar a
�gua distante e em perene movimento l� embaixo.
A campainha da escola tocou e as crian�as come�aram a se afunilar na entrada.
Norah procurou a cabe�a escura de Paul e o viu desaparecer.
- Adorei voc�s dois cantando juntos - disse Kay, jogando beijos para Elizabeth.
- O Paul tem uma voz linda. � mesmo um dom.
- Ele adora m�sica - concordou Norah. - Sempre adorou.
Era verdade. Uma vez, aos tr�s meses, quando ela conversava com amigas, de
repente ele havia come�ado a balbuciar uma cascata de sons que inundara a sala
como flores que se derramassem de repente de uma r�stia de luz, interrompendo a
conversa por completo.
- Ali�s, essa � uma outra coisa que eu queria lhe pedir, Norah. � sobre o evento
beneficente que vou organizar no m�s que vem. O tema � Cinderela, e fui encarregada
de juntar todos os pajens que puder. Pensei no Paul.
A despeito de si mesma, Norah sentiu uma onda de prazer. Perdera a esperan�a
de receber esse tipo de convite depois do casamento e do div�rcio escandalosos de
Bree.
- Um pajem? - repetiu Norah, absorvendo a not�cia.
- Bem, � o melhor papel - confidenciou Kay. - E n�o � s� um pajem. O Paul cantaria.
Um dueto. Com a Elizabeth.
- Entendo - fez Norah, e era verdade. A voz de Elizabeth era agrad�vel, mas uma
vozinha mi�da. Ela cantava com uma anima��o for�ada, como bulbos de primavera
em janeiro, dardejando olhares ansiosos pela plat�ia. Sua voz n�o seria sonora o bastante
sem a de Paul.
- Significaria muito para todo mundo, se ele cantasse.
Norah acenou com a cabe�a devagar, decepcionada, aborrecida consigo mesma
por se importar. Mas a voz de Paul era pura, alada; ele adoraria ser um pajem. E, pelo
menos, assim como as vespas, essa festa daria outra �ncora aos dias de Norah.
- Espl�ndido! - exclamou Kay. - Ah, que maravilha! Espero que voc� n�o se incomode
- acrescentou -, mas tomei a liberdade de reservar uma roupinha de gala para
ele. Tinha certeza de que voc� diria que sim!
Kay deu uma olhada no rel�gio, agora com ar eficiente, pronta para ir embora.
- Foi um prazer v�-la - disse a Norah, dando adeusinho ao se afastar, empurrando
o carrinho.
O parquinho estava deserto. Norah passou pelos balan�os e escorregadores coloridos
em dire��o ao carro. O rio, com seus remoinhos tranq�ilizadores, a chamava.
Em duas horas ela poderia estar l�. A tenta��o da corrida veloz, do vento batendo,
da �gua, era quase irresist�vel, t�o grande que, no �ltimo feriado escolar, ela ficara
surpresa ao se encontrar em Louisville - com Paul assustado e quieto no banco
traseiro - com o cabelo despenteado e o efeito do gim j� diminuindo. L� est� o rio,
dissera ela, parada com a m�ozinha de Paul na sua, olhando para a �gua pardacenta
e revolta. E, agora, iremos ao zool�gico, anunciara, como se essa tivesse sido sua
inten��o desde o in�cio.
Norah saiu da escola e seguiu para o centro da cidade pelas ruas arborizadas, passando
pelo banco e pela joalheria com uma �nsia t�o vasta quanto o c�u. Reduziu a
velocidade ao passar pela World Travei. Na v�spera, fizera uma entrevista de emprego
ali. Tinha visto o an�ncio no jornal e se sentira atra�da pelo pr�dio baixo de
tijolos, com seus cartazes glamourosos nas vitrines: praias e edif�cios esplendorosos,
c�us e cores v�vidos. N�o havia realmente querido o emprego at� chegar l�, e ent�o,
de repente, quis. Sentada com seu vestido justo de linho estampado, a bolsa branca
no colo, ela havia desejado aquele emprego mais do que qualquer outra coisa. A
ag�ncia de viagens pertencia a um homem chamado Pete Warren, um cinq�ent�o
calvo no cocuruto, que ficara batendo com a ponta do l�pis em sua prancheta e fizera
piadas sobre o time da Universidade de Kentucky, os Wildcats. O homem tinha
gostado dela, Norah sabia, embora ela fosse formada em l�ngua inglesa e n�o tivesse
nenhuma experi�ncia. Warren ficara de lhe dar a resposta hoje.
Atr�s dela, algu�m tocou a buzina. Norah acelerou. Essa rua passava pelo centro
da cidade e cruzava a auto-estrada. Mas, quando ela se aproximou da universidade,
o tr�nsito ficou mais pesado. As ruas estavam t�o cheias de gente que ela reduziu at�
quase parar e, em seguida, teve que estacionar o carro. Desceu e seguiu a p�. Ao
longe, de um ponto mais interno do campus, vinha um crescendo obscuro de vozes
ritmadas, um canto cheio de energia que, de algum modo, aparentava-se com os bot�es
que floresciam nas �rvores. O desassossego e a ansiedade de Norah pareceram
ser respondidos por esse momento, e ela entrou na correnteza humana.
O cheiro de suor e �leo de patchuli enchia o ar, e o sol lhe aquecia os bra�os. Norah
pensou na escola prim�ria, a apenas um quil�metro e meio dali, com seu jeito
ordeiro e trivial, e imaginou o tom reprovador de Kay Marshall, mas seguiu em frente.
Ombros, bra�os e cabelos esbarraram nela. A correnteza come�ou a diminuir o
ritmo e a se acumular; uma multid�o se aglomerava diante do pr�dio do Corpo de
Forma��o de Oficiais da Reserva, o ROTC, onde havia dois rapazes em p� na escada,
um deles com um megafone. Norah tamb�m parou, esticando o pesco�o para ver o
que estava acontecendo. Um dos rapazes, de palet� e gravata, segurava no alto uma
bandeira norte-americana, com suas listras esvoa�ando. Enquanto ela olhava, o outro
rapaz, igualmente bem-vestido, aproximou a m�o da ponta da bandeira. No come�o,
as chamas foram invis�veis, uma intensidade de calor bruxuleante, depois pegaram o
tecido e subiram, desenhando-se contra a folhagem e o azul verdejante do dia.
Norah assistiu �quilo como se acontecesse em c�mera lenta. Em meio ao ar tremeluzente,
viu Bree, deslocando-se pelo per�metro da aglomera��o pr�xima do
edif�cio, distribuindo panfletos. Tinha o cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo
que balan�ava contra sua blusa branca de camponesa. Ela � linda, pensou Norah,
ao vislumbrar a determina��o e a anima��o no rosto da irm�, um instante antes de
ela desaparecer. A inveja tornou a invadi-la como uma chama: inveja de Bree, por
sua seguran�a e sua liberdade. Norah abriu caminho na multid�o.
Avistou a irm� outras duas vezes - um lampejo de seu cabelo louro, seu rosto de
perfil - antes de finalmente alcan��-la. Nessa hora, Bree estava parada no meio-fio,
falando com um rapaz de cabelo avermelhado, os dois t�o absortos na conversa que,
quando Norah enfim tocou o bra�o da irm�, Bree se virou, intrigada e sem enxergar,
com a express�o totalmente vazia por um longo instante, at� reconhecer a irm�.
- Norah?! - exclamou. P�s a m�o no peito do homem ruivo, num gesto t�o seguro
e �ntimo que o cora��o de Norah parou. - � minha irm� - explicou Bree. - Norah,
este � o Mark.
Ele acenou com a cabe�a sem sorrir e apertou a m�o de Norah, avaliando-a.
- Puseram fogo na bandeira - comentou Norah, de novo consciente de sua roupa,
t�o deslocada ali quanto no parquinho, por motivos completamente diferentes.
Os olhos castanhos de Mark espremeram-se ligeiramente e ele deu de ombros.
- Eles lutaram no Vietn� - disse o rapaz. - Portanto, acho que tinham suas raz�es.
- O Mark perdeu metade do p� no Vietn�.
Norah olhou para as botas de Mark, amarradas acima dos tornozelos.
- A metade da frente - fez ele, batendo com o p� direito. - Os dedos e mais alguma
coisa.
- Entendo - disse Norah, profundamente constrangida.
- Escute, Mark, pode nos dar um minuto? - perguntou Bree.
Ele olhou para a multid�o agitada.
- Na verdade, n�o. Sou o pr�ximo orador.
- Est� bem. Eu volto j� - disse Bree, que puxou Norah pela m�o por alguns passos
e parou, meio abaixada, sob um grupo de amendoeiras.
- O que est� fazendo aqui? - perguntou.
- N�o tenho certeza - disse Norah. - Tive que parar quando vi a multid�o, s� isso.
Bree assentiu com a cabe�a e seus brincos de prata faiscaram.
- � incr�vel, n�o? Deve haver umas cinco mil pessoas. Torc�amos por algumas
centenas. � por causa da Universidade Estadual Kent. � o fim.
O fim de qu�?, pensou Norah, enquanto as folhas esvoa�avam a seu redor. Em
algum lugar, a Srta. Throckmorton chamava os alunos e Pete Warren sentava-se sob
os lustrosos cartazes de turismo, preenchendo bilhetes de viagem. E as vespas voejavam,
pregui�osas, pelo ar ensolarado, perto de sua garagem. Podia o mundo acabar
num dia assim?
- � seu namorado? - perguntou � irm�. - Aquele de quem voc� andou me falando?
Bree assentiu com a cabe�a, dando um sorriso reservado.
- Ora, vejam s�! Voc� est� apaixonada!
- Acho que sim - disse Bree, baixinho, olhando de relance para Mark. - Acho que estou.
- Bom, espero que ele a esteja tratando bem - disse Norah, estarrecida ao se ouvir
com a voz da m�e, inclusive na entona��o. Mas Bree estava feliz demais para fazer
outra coisa sen�o rir.
- Ele me trata muito bem - disse. - Ei, posso lev�-lo esse fim de semana? � sua festa?
- � claro - respondeu Norah, embora n�o tivesse a menor certeza.
- �timo. Ah, Norah, voc� conseguiu o emprego que queria?
As folhas das amendoeiras balan�avam ao vento como cora��es verdes e flex�veis
e, adiante delas, a multid�o murmurava e oscilava.
- Ainda n�o sei - respondeu Norah, pensando no escrit�rio colorido e bem decorado.
De repente, suas aspira��es pareceram muito banais.
- Mas como foi a entrevista? - insistiu Bree.
- Bem. Correu bem. � s� que j� n�o tenho certeza de querer o emprego, s� isso.
Bree prendeu uma mecha do cabelo atr�s da orelha e franziu o cenho.
- Por qu�? Norah, ainda ontem voc� estava desesperada por esse emprego. Toda
empolgada. � o David, n�o �? Dizendo que voc� n�o pode.
Aborrecida, Norah balan�ou a cabe�a.
- O David nem sabe ainda. Bree, � s� um escrit�rio, mais parece uma caixinha.
Ma�ante. Burgu�s. Voc� n�o ia querer ser encontrada morta l�.
- Eu n�o sou voc� - assinalou Bree. - Voc� n�o � igual a mim. Voc� queria esse
emprego, Norah. Por causa do glamour. Pela independ�ncia, pelo amor de Deus!
Era verdade, ela havia desejado o emprego, mas tamb�m era verdade que agora
sentia a raiva se inflamar de novo: era f�cil para Bree, que estava ali desencadeando
revolu��es, destin�-la a uma vida de escrit�rio das nove �s cinco.
- Eu iria datilografar, n�o viajar. Levaria anos e anos para ganhar uma viagem.
N�o � exatamente o que imaginei para minha vida, Bree.
- E passar o aspirador �?
Norah pensou nas rajadas de vento impetuosas, no rio Ohio, a apenas 130 quil�metros
dali. Espremeu os l�bios e n�o respondeu.
- Voc� me deixa doida, Norah. Por que tem tanto medo da mudan�a? Por que n�o
pode apenas ser e deixar que a vida aconte�a?
- Eu sou - retrucou. - Estou sendo. Voc� nem faz id�ia!
- Voc� est� enfiando a cabe�a na areia, � isso que eu vejo.
- Voc� n�o v� nada al�m do pr�ximo homem dispon�vel.
- Est� bem. Ficamos por aqui.
Bree deu um �nico passo e foi imediatamente tragada pela multid�o: um lampejo
de cor e, pronto, sumiu.
Norah continuou parada por um momento sob as amendoeiras, tr�mula de raiva,
uma raiva que sabia ser injustific�vel. Qual era o seu problema? Como era poss�vel
que ela invejasse Kay Marshall num minuto e Bree no instante seguinte, por motivos
completamente diversos?
Voltou para o carro por entre a multid�o. Depois da turbul�ncia e dramaticidade
do protesto, as ruas da cidade pareciam insossas, desprovidas de cor, detestavelmente
corriqueiras. Passara-se tempo demais; agora ela s� dispunha de duas horas antes
de ter que buscar Paul. N�o havia mais tempo para o rio. Em casa, na sua cozinha
ensolarada, preparou um gim-t�nica. O copo em sua m�o deu-lhe uma sensa��o
s�lida e fria, e o gelo tilintou com um brilho tranq�ilizador. Na sala, ela parou diante
de sua fotografia na ponte natural de pedra. Quando relembrava aquele dia - a caminhada
e o piquenique -, nunca pensava no presente. Ao contr�rio, lembrava-se
do mundo estendido sob seus p�s, do sol e do vento na pele. Deixe eu tirar sua foto,
dissera David, insistente, e ela se virara e o vira ajoelhado, ajustando o foco, fazendo
quest�o de preservar um momento que nunca existira de verdade. Ela tivera raz�o
sobre a m�quina fotogr�fica, para seu pr�prio pesar. Com um fasc�nio que o
deixava obcecado, David tinha constru�do uma c�mara escura em cima da garagem.
David. Como � que o marido se tornara mais misterioso para ela com o passar
dos anos, ao mesmo tempo que mais familiar? Ele tinha deixado um par de abotoaduras
cor de �mbar na mesinha, abaixo das fotos. Norah as pegou e segurou-as na
m�o, ouvindo o rel�gio bater baixinho na sala de estar. As pedras se aqueceram em
sua m�o e a superf�cie lisa a reconfortou. Norah encontrava pedras por toda parte,
amontoadas nos bolsos de David, espalhadas pela c�moda, enfiadas em envelopes
na escrivaninha. Vez por outra, avistava David e Paul no quintal, inclinando juntos
a cabe�a sobre alguma pedra bonita. Ao v�-los, seu cora��o sempre se abria, com
uma esp�cie de alegria desconfiada. Esses momentos eram raros; David andava
muito ocupado ultimamente. Pare, Norah sentia vontade de dizer. Fique um minuto.
Passe algum tempo aqui. Seu filho est� crescendo muito depressa.
Enfiou as abotoaduras no bolso e levou o drinque para o lado de fora. Parou diante
do ninho, que parecia feito de papel, vendo as vespas rode�-lo e desaparecer em seu
interior. De vez em quando, uma voava para perto dela, atra�da pelo cheiro adocicado
do gim. Norah bebericou e observou. Seus m�sculos, suas pr�prias c�lulas, foram
relaxando numa l�quida rea��o em cadeia, como se ela houvesse engolido o calor do
dia. Terminou a bebida, p�s o copo na entrada da garagem e foi buscar as luvas e o
chap�u de jardinagem, contornando o veloc�pede de Paul. O filho j� estava grande
demais para ele; era preciso embalar o triciclo com as outras coisas, as roupas de
beb�, os brinquedos que n�o serviam mais. David n�o queria outros filhos e, agora
que Paul estava na escola, Norah tinha desistido de discutir com ele sobre isso. Era
dif�cil imaginar um retorno �s fraldas e �s mamadas das duas horas da manh�, embora
muitas vezes ela ansiasse por segurar outro beb� no colo - como Angela, nessa
manh�, sentindo o doce calor e o peso dela. Kay tinha muita sorte e nem sabia.
Norah cal�ou as luvas e recuou para o sol. N�o tinha experi�ncia com vespas nem
abelhas, a n�o ser por uma picada no ded�o do p� aos oitos anos, que tinha do�do
por uma hora e sarado. No dia em que Paul apanhara a abelha morta no ch�o e gri
tara de dor, ela n�o havia sentido o menor p�nico. Gelo para o incha�o e um abra�o
demorado no balan�o da varanda; ficaria tudo bem. Mas o edema e a vermelhid�o
tinham come�ado na m�o e se espalhado depressa. O rosto de Paul intumescera e
ela havia gritado por David, com medo na voz. Ele soubera no mesmo instante o que
estava acontecendo, que inje��o aplicar. Em poucos minutos, Paul havia come�ado
a respirar com mais facilidade. N�o foi nada, dissera David. Era verdade, mas aquilo
ainda a deixava doente de medo. E se David n�o estivesse em casa?
Norah passou alguns minutos observando as vespas, pensando nos manifestantes
que protestavam na universidade, no mundo tremeluzente e inst�vel. Ela sempre fizera
o que era esperado. Freq�entara a faculdade e aceitara um empreguinho; fizera
um bom casamento. No entanto, desde o nascimento dos filhos - Paul, deslizando
pelo escorregador com os bra�os abertos, e Phoebe, de algum modo presente pela
aus�ncia, aparecendo-lhe em sonhos, parada no limiar invis�vel de cada momento -,
Norah j� n�o conseguia entender o mundo do mesmo jeito. Sua perda lhe deixara
uma sensa��o de desamparo, que ela combatia preenchendo os dias.
Estudou as ferramentas com delibera��o. Ela mesma lidaria com aqueles insetos.
A enxada de cabo comprido pesou-lhe nas m�os. Norah a levantou devagar e desferiu
um golpe largo no ninho, cujo envolt�rio empapelado foi facilmente rompido
pela l�mina. S� que, quando retirou a enxada, as vespas, furiosas e decididas, sa�ram
num enxame do ninho rasgado e voaram diretamente em sua dire��o. Uma a picou
no pulso, outra, na bochecha. Ela largou a enxada e correu para dentro de casa,
batendo a porta e nela apoiando as costas, sem f�lego.
L� fora, o enxame descrevia c�rculos, zumbindo enraivecido em volta do ninho
destro�ado. Algumas vespas pousaram no peitoril da janela, movendo de leve as asas
delicadas. Enxameadas, raivosas, elas a fizeram pensar nos estudantes que vira de
manh�; fizeram-na pensar em si mesma. Norah entrou na cozinha e preparou outro
drinque, salpicando um pouco de gim na bochecha e no pulso, onde as picadas
come�avam a inchar. O gim era revigorante, delicioso, enchendo-a de uma sensa��o
c�lida e l�quida de bem-estar e poder. Ela ainda dispunha de uma hora antes de sair
para buscar Paul.
- Est� certo, suas vespas desgra�adas - disse em voz alta -, agora acabou-se.
Havia repelente para espantar insetos no arm�rio da entrada, acima dos casacos,
dos sapatos e do aspirador de p� - um Electrolux azul-met�lico, novinho em folha.
Norah lembrou-se de Bree, afastando do rosto o cabelo louro. Passar o aspirador -�
isso que voc� quer da vida?
Estava a meio caminho da porta quando teve a id�ia.
As vespas estavam atarefadas, j� refazendo o ninho, e pareceram n�o notar quando
Norah saiu de novo, carregando o Electrolux. O aparelho ficou na garagem, incongruente
e bizarro como um porco azul-met�lico. Norah tornou a cal�ar as luvas,
p�s o chap�u e vestiu um casaco. Enrolou uma echarpe em volta do rosto. Ligou o
aspirador na tomada e o p�s para funcionar, deixando-o zumbir por um instante,
com um som estranhamente baixo ao ar livre, antes de pegar o bocal. Confiante,
meteu-o no que restava do ninho. As vespas zumbiram e investiram, furiosas -a
bochecha e o bra�o de Norah deram fisgadas � simples vis�o delas -, mas foram
prontamente sugadas com um som crepitante, como bolotas batendo no telhado.
Ela agitou o bocal no ar como uma vara de cond�o, capturando todos os insetos
raivosos e esfrangalhando o ninho delicado. N�o tardou a pegar todos. Manteve o
aspirador em funcionamento, enquanto procurava um modo de tampar o bocal;
n�o queria que aquelas vespas industriosas e obstinadas escapassem. Fazia um dia
quente e ensolarado, e os drinques a haviam relaxado muito. Ela enfiou o bocal na
terra, mas o aparelho come�ou a fazer um som estranho de esfor�o. Foi ent�o que
notou o cano de descarga do carro: sim, o bocal encaixou nele perfeitamente.
Satisfeit�ssima com sua proeza, Norah desligou o aspirador e entrou em casa.
Em frente � pia do banheiro, com o sol entrando pelas janelas de vidro jateado,
desatou a echarpe e tirou o chap�u, estudando sua imagem no espelho. Olhos verde-
escuros, cabelos louros e um rosto emagrecido pela preocupa��o. O cabelo estava
achatado e a pele exibia uma pel�cula de suor. Um caro�o vermelho inflamado
erguia-se em sua bochecha. Norah mordiscou a parte interna do l�bio, pensando no
que David via quando a olhava. Perguntou-se quem ela era, de verdade, querendo
entrosar-se com Kay Marshall num minuto e com os amigos de Bree no outro, dirigindo
feito louca at� o rio, nunca se sentindo em casa em parte alguma. Qual desses
eus David via? Ou ser� que era uma mulher inteiramente diferente que dormia ao
lado dele todas as noites? Ela pr�pria, sim, mas n�o como jamais veria a si mesma.
Nem tampouco como se vira antes, assim como n�o via o homem com quem havia
se casado quando David chegava em casa toda noite, pendurava cuidadosamente o
palet� numa cadeira e abria o jornal vespertino.
Norah enxugou as m�os e foi buscar gelo para colocar no rosto inchado. O ninho de
vespas pendia, vazio e rasgado, do beiral da garagem. O Electrolux continuava plantado
na entrada de autom�veis, ligado ao cano de descarga do carro por seu longo tubo
rugoso, um cord�o umbilical prateado que brilhava ao sol. Ela imaginou David chegando
e constatando que as vespas tinham desaparecido, vendo o quintal decorado, a festa
planejada at� o �ltimo e perfeito detalhe. Ele ficaria surpreso, esperava, e satisfeito.
Olhou para o rel�gio. Hora de buscar Paul. Na escada dos fundos, parou, procurando
a chave de casa na bolsa. Um barulho estranho que vinha da entrada de autom�veis
a fez erguer os olhos. Era uma esp�cie de zumbido e, a princ�pio, ela achou
que as vespas come�avam a fugir. Mas o ar azul estava l�mpido, vazio. O zumbido
transformou-se num chiado, e veio ent�o o cheiro el�trico de oz�nio e fia��o queimada.
Tudo aquilo, percebeu Norah, com uma esp�cie de assombro vagaroso, vinha
do Electrolux. Ela desceu a escada correndo. Seus p�s j� iam tocando o asfalto e ela
estendia a m�o no luminoso ar primaveril quando, de repente, o Electrolux explodiu,
escapou do seu alcance e disparou de lado pela relva do jardim, indo bater na cerca
com tanta for�a que quebrou uma das t�buas. O aparelho azul caiu entre os rododendros,
soltando fuma�a em nuvens oleosas, ganindo como um animal ferido.
Norah ficou im�vel, com a m�o estendida, t�o cristalizada no tempo quanto uma
das fotos de David, tentando assimilar o que tinha acontecido. Um peda�o do cano
de descarga fora arrancado do carro. Ao constatar isso, ela compreendeu: os vapores
da gasolina deviam ter se acumulado no motor ainda quente do aspirador de p�,
fazendo-o explodir. Norah pensou em Paul, al�rgico a abelhas, um menino com voz
de flauta que poderia ter estado no caminho do aspirador, se estivesse em casa.
Enquanto ela observava, uma vespa saiu do cano de descarga enfuma�ado e voou
para longe.
Por algum motivo, aquilo foi demais para Norah. Todo o esfor�o de seu trabalho,
sua engenhosidade, e agora, apesar de tudo, as vespas iam escapar. Ela atravessou o
jardim. Com um gesto �gil e decidido, abriu o Electrolux, enfiou a m�o pela nuvem
de fuma�a, puxou o saco de papel cheio de poeira e insetos, jogou-o no ch�o e come�ou
a pular em cima dele, numa dan�a selvagem. O saco derramou-se numa das
extremidades e uma vespa escapou; o p� de Norah desceu sobre ela. Era por Paul que
ela estava lutando, mas tamb�m por alguma compreens�o de si mesma. Voc� tem
medo da mudan�a, dissera Bree. Por que n�o pode simplesmente ser? Mas ser o qu�?
Norah se intrigara com isso o dia inteiro. Ser o qu�?. Um dia ela soubera: tinha sido
filha, estudante e telefonista interurbana, pap�is que havia manejado com facilidade
e seguran�a. Depois, tinha sido noiva, jovem esposa e m�e, e havia descoberto que
essas palavras eram pequenas demais para algum dia abarcar essa experi�ncia.
Mesmo depois de ficar claro que todas as vespas dentro do saco deviam estar
mortas, Norah continuou a dan�ar, desenfreada e resoluta, sobre a massa pastosa.
Alguma coisa estava acontecendo, alguma coisa havia mudado no mundo e em seu
cora��o. Nessa noite, enquanto o pr�dio do ROTC queimasse at� o ch�o no campus,
com as chamas brilhantes desabrochando na noite morna de primavera, Norah so
nharia com vespas e abelhas, imensos abelh�es on�ricos flutuando em meio ao
capim alto. No dia seguinte, substituiria o aspirador de p�, sem jamais mencionar o
incidente a David. Cancelaria o aluguel do traje de gala para a festa beneficente de
Kay; aceitaria aquele emprego. Glamour, sim, e aventura, e uma vida pr�pria.
Tudo isso iria acontecer, mas, naquele momento, ela n�o pensou em nada al�m
do movimento dos p�s e no saco que aos poucos se transformava numa massa suja
de asas e ferr�es. Ao longe, a multid�o de manifestantes bramia, e o som crescente
percorreu o luminoso ar primaveril e chegou at� ela. O sangue pulsava em suas t�mporas.
O que acontecia l� acontecia ali tamb�m, no sil�ncio de seu pr�prio quintal,
nos espa�os secretos de seu cora��o: uma explos�o tamanha que a vida nunca mais
poderia ser a mesma.
Uma vespa solit�ria zumbiu perto das azal�ias e se afastou, enraivecida. Norah
saiu de cima do saco de papel empapado. Aturdida, mas s�bria, atravessou o gramado,
apanhando as chaves. Entrou no carro, como se fosse um dia qualquer, e foi buscar
o filho.
II
Al! PAPAI?
Ao som da voz de Paul, de seus passos leves e ligeiros na escada da garagem,
David ergueu os olhos da folha de papel j� exposto que acabara de colocar no revelador.
- Espere a�! - gritou. - S� um segundo, Paul!
Mas, no instante mesmo em que falava, a porta se abriu e deixou que a luz invadisse
o aposento.
- Diabos! - exclamou David, vendo o papel escurecer depressa, a imagem perdida
no jorro s�bito de luz. - Que inferno, Paul, ser� que eu j� n�o lhe disse, um milh�o,
um bilh�o, um trilh�o de vezes, para n�o entrar aqui quando a luz vermelha
estiver acesa?
- Desculpe. Desculpe, papai.
David respirou fundo, arrependido. Paul s� tinha seis anos e, parado no v�o da
porta, parecia muito pequeno.
- Tudo bem, Paul. Entre. Desculpe eu ter gritado com voc�.
Agachou-se e abriu os bra�os, nos quais Paul mergulhou, apoiando por um
instante a cabe�a no ombro do pai, e seu novo corte de cabelo, ao mesmo tempo
macio e espichado, ro�ou o pesco�o de David. Paul era leve, esguio e musculoso, um
menino que se movia pelo mundo feito merc�rio, calado, atento e ansioso por
agradar. David beijou-lhe a testa, lamentando aquele momento de raiva, maravilhado
com as omoplatas do filho, elegantes e perfeitas, estendidas como asas sob camadas
de pele e m�sculos.
- Muito bem. O que foi t�o importante assim para voc� estragar minhas fotografias?
- perguntou, sentando-se sobre os calcanhares.
- Pai, olhe! - exclamou Paul. - Veja o que eu achei.
Abriu o punho pequenino. Na palma da m�o segurava diversas pedras achatadas,
discos finos com um furo no centro, do tamanho de bot�es.
- S�o uma beleza - disse David, pegando uma delas. - Onde as achou?
- Foi ontem, quando eu fui com o Jason � fazenda do av� dele. L� tem um riozinho,
e a gente tem que tomar cuidado, porque o Jason viu uma cobra venenosa no
ver�o passado. Mas agora est� muito frio para as cobras, ent�o a gente ficou brincando
e eu achei isso bem na beirinha da �gua.
- Puxa! - fez David. Passou os dedos pelos f�sseis leves e delicados, milenares: era
o tempo, preservado com mais clareza do que qualquer foto seria capaz de fazer.
- Esses f�sseis foram parte de um l�rio-do-mar, Paul. Sabe, muito tempo atr�s, grande
parte do Kentucky ficava embaixo de um oceano.
- � mesmo? Bacana! Tem alguma foto no livro das pedras?
- Pode ser. Vamos verificar, assim que eu fizer a limpeza. Como � que estamos de
tempo? - acrescentou, chegando � porta da c�mara escura e dando uma espiada
para fora. Era um belo dia de primavera, de brisa suave e c�lida, com as cerejeiras
em flor em toda a volta do jardim. Norah havia disposto as mesas, cobertas por toalhas
coloridas. Arrumara os pratos e o ponche, cadeiras e guardanapos, vasos de flores.
Num �lamo esguio, enfeitado como mastro de festa da primavera no centro do
quintal, esvoa�avam fitas de cores vivas. Ela tamb�m fizera isso sozinha. David se
oferecera para ajudar, mas Norah havia recusado a oferta. N�o atrapalhe, dissera. �
o melhor que voc� pode fazer neste momento. E ele assim tinha feito.
David voltou para dentro da c�mara escura, fria e escondida, com sua ilumina��o
vermelha e fraca e seu cheiro pronunciado de produtos qu�micos.
- A mam�e t� se arrumando - falou Paul. - Disse que � pra eu n�o me sujar.
- Uma ordem dif�cil - comentou David, colocando as garrafas de fixador e revelador
numa prateleira alta, fora do alcance do filho. - V� l� para baixo, sim? Eu j� estou
indo. Vamos dar uma olhada nesses l�rios-do-mar.
Paul desceu a escada correndo; David o viu chispar pelo gramado, deixando bater
a porta de tela ao entrar em casa. Lavou as bandejas e as colocou para secar, depois
tirou o filme do revelador e o p�s de lado. Era sossegado ali na c�mara escura, fresca
e silenciosa, e ele se deixou ficar mais alguns segundos antes de ir atr�s de Paul.
Do lado de fora, as toalhas das mesas esvoa�avam na brisa. Cestinhas de papel,
cheias de flores primaveris, decoravam cada prato. Na v�spera, que tinha sido a verdadeira
data da Festa da Primavera, Paul tamb�m levara cestinhas como essas para
os vizinhos, pendurando-as em cada porta de entrada, batendo e correndo, para se
esconder e v�-las serem descobertas. Id�ia de Norah, seus dotes art�sticos, sua energia
e sua imagina��o.
Ela estava na cozinha, com um avental sobre o terninho de seda cor de coral, arrumando
ramos de salsa e tomates-cereja numa travessa de frios.
- Tudo pronto? - perguntou David. - Est� lindo l� fora. H� alguma coisa que eu
possa fazer?
- Vestir-se? - sugeriu Norah, olhando para o rel�gio. Enxugou as m�os num pano
de prato. - Mas, primeiro, ponha esta travessa na geladeira l� de baixo, sim? A daqui
j� est� cheia. Obrigada.
David pegou a travessa, sentindo a frieza do vidro nas m�os.
- Que trabalheira! - comentou. - Por que voc� n�o contrata uma firma para
fornecer o buf� nessas festas?
Ele tinha pretendido ajudar, mas Norah se deteve, franzindo o cenho, na sa�da
da porta.
- Porque eu gosto disso. De planejar, cozinhar, tudo - disse. - Porque me d�
muito prazer organizar uma coisa bonita a partir do nada. Tenho uma por��o de talentos
- acrescentou com frieza -, quer voc� se d� conta ou n�o.
- N�o foi isso que eu quis dizer - suspirou David. Nos �ltimos tempos, eles pareciam
dois planetas orbitando o mesmo sol, sem colidir, mas tamb�m sem se aproximar.
- O que eu quis dizer foi: por que n�o contar com um pouco de ajuda? Contratar
uma equipe que forne�a o buf�. N�s certamente podemos pagar.
- N�o se trata do dinheiro - retrucou Norah, que abanou a cabe�a e se retirou.
David guardou a travessa e subiu para fazer a barba. Paul o acompanhou e sentou-
se na beirada da banheira, falando mil palavras por minuto e batendo com os calcanhares
na porcelana. Adorava a fazenda do av� de Jason, tinha ajudado a ordenhar
uma vaca, e o av� de Jason o deixara beber leite ainda morno, com gosto de grama.
David espalhou a espuma de barbear com um pincel macio, comprazendo-se em
ouvir. A l�mina deslizava suave, abrindo faixas bem demarcadas em seu queixo e
projetando part�culas de luz no teto. Por um momento, o mundo inteiro pareceu
deter-se, suspenso: a brisa fresca da primavera, o perfume da espuma e a voz empolgada
de seu filho.
- Eu costumava ordenhar vacas - disse David. Enxugou o rosto e pegou a camisa.
- Conseguia esguichar um jato de leite direto na boca do gato.
- Foi isso que o pai do Jason fez! Eu gosto do Jason. Queria que ele fosse meu irm�o.
Pondo a gravata, David observou o reflexo de Paul no espelho. No sil�ncio que
n�o era bem um sil�ncio - com o pinga-pinga da torneira da pia, o tiquetaque bai
xinho do rel�gio, o sussurro do tecido ro�ando no tecido -, seu pensamento vagou
at� a filha. A intervalos de meses, ao examinar a correspond�ncia do consult�rio, ele
deparava com a letra confusa de Caroline. Embora as primeiras cartas tivessem
vindo de Cleveland, agora cada envelope trazia um carimbo postal diferente. Vez por
outra, Caroline anexava um novo n�mero de caixa postal - sempre em lugares diferentes,
vastas cidades impessoais - e, toda vez que ela o fazia, David mandava dinheiro.
Os dois nunca haviam se conhecido muito bem, mas, ao longo dos anos, as
cartas dela tinham se tornado cada vez mais �ntimas. As mais recentes pareciam ter
sido arrancadas de seu di�rio, come�ando por Caro David, ou simplesmente David,
e derramando as id�ias numa enxurrada. De quando em quando, ele tentava jog�las
fora sem abrir, mas sempre acabava por pesc�-las no lixo e l�-las depressa. Guardava-
as trancadas a chave no arm�rio de arquivo da c�mara escura para sempre
saber onde elas estavam. Para que Norah nunca as encontrasse.
Uma vez, anos antes, quando as cartas tinham come�ado a chegar, David fizera a
viagem de oito horas at� Cleveland. Passara tr�s dias andando pela cidade, examinando
cat�logos telef�nicos, verificando todos os hospitais. Na ag�ncia central do
correio, chegara a p�r os dedos na portinha de metal que exibia o n�mero 621, mas
o chefe da ag�ncia se recusara a lhe fornecer o nome ou o endere�o do propriet�rio.
Nesse caso, vou ficar aqui e esperar, dissera David, e o homem dera de ombros. V� em
frente, tinha dito. Mas � melhor trazer alguma coisa para comer. �s vezes leva semanas
para uma dessas caixas postais ser aberta.
No fim, ele havia desistido e voltado para casa, deixando os dias correrem, um por
um, enquanto Phoebe crescia sem ele. Toda vez que mandava dinheiro, ele juntava
um bilhete em que pedia a Caroline para lhe dizer onde morava, mas n�o chegava a
pression�-la nem contratou um detetive particular, como algumas vezes tinha imaginado
fazer. O desejo de ser encontrada teria que partir dela, achava. David acreditava
que queria encontr�-la. Acreditava que, quando o fizesse - quando conseguisse
consertar as coisas -, seria capaz de dizer a verdade a Norah.
Acreditava nisso tudo e, todas as manh�s, levantava-se e ia a p� para o hospital.
Fazia cirurgias, examinava radiografias, voltava para casa, cortava a grama e brincava
com Paul; tinha uma vida cheia. Mesmo assim, por�m, a cada dois ou tr�s meses,
sem nenhuma raz�o previs�vel, despertava de sonhos em que Caroline Gill o fitava
� porta da cl�nica, ou do outro lado do p�tio da igreja. Levantava tr�mulo, vestia-se
e ia para o consult�rio, ou ent�o para a c�mara escura l� fora, onde trabalhava em
seus arquivos ou mergulhava suas fotografias nos banhos qu�micos, observando as
imagens aparecerem onde antes n�o havia nada.
- Papai, voc� esqueceu de olhar os f�sseis - disse Paul. - Voc� prometeu.
- Est� bem - respondeu David, obrigando-se a voltar ao presente e ajeitando o n�
da gravata. - Est� certo, filho. Eu prometi.
Desceram juntos at� o escrit�rio e espalharam os livros conhecidos na escrivaninha.
O f�ssil era um crin�ide, proveniente de um pequeno animal marinho cujo
corpo se assemelhava a uma flor. As pedras, parecidas com bot�es, tinham sido placas
formadoras da coluna hasteada. David descansou de leve a m�o nas costas do
filho, sentindo sua carne quente e viva e as v�rtebras delicadas, logo abaixo da pele.
- Vou mostrar pra mam�e - disse o menino. Pegou os f�sseis, atravessou a casa
correndo e saiu pela porta dos fundos. David pegou uma bebida e parou � janela.
Alguns convidados tinham chegado e se espalhavam pelo jardim, os homens com
ternos azul-escuros, as mulheres lembrando flores vivas de primavera, em tons de
rosa, amarelo vibrante e azul-claro. Norah deslocava-se por entre eles, abra�ando as
mulheres, trocando apertos de m�o com os homens, cuidando das apresenta��es.
Era muito t�mida na �poca em que David a conhecera, calma, reservada e atenta. Ele
nunca a teria imaginado nesse momento, t�o soci�vel e descontra�da, promovendo
uma festa que havia orquestrado nos m�nimos detalhes. Ao observ�-la, encheu-se de
uma esp�cie de saudade. De qu�? Da vida que eles poderiam ter tido, talvez. Norah
parecia muito feliz, rindo no jardim. Mas David sabia que esse sucesso n�o bastaria
nem mesmo por um dia. � noite, ela j� teria passado para o projeto seguinte e, se ele
acordasse de madrugada e lhe alisasse a curva das costas, na esperan�a de excit�-la,
ela resmungaria, seguraria sua m�o e viraria para o outro lado, tudo sem acordar.
Paul estava no balan�o nesse momento, voando alto no c�u azul. Usava os crin�ides
no pesco�o, presos numa tira comprida de barbante; eles subiam e desciam,
quicando em seu peito mi�do, �s vezes batendo nas correntes do balan�o.
- Paul - chamou Norah, fazendo ouvir claramente sua voz pela porta aberta.
- Paul, tire isso do pesco�o. � perigoso.
David pegou o copo e foi para o lado de fora. Encontrou a mulher no jardim.
- N�o fa�a isso - disse baixinho, pondo-lhe a m�o no bra�o. - Ele mesmo fez o colar.
- Eu sei - retrucou ela. - Fui eu que lhe dei o barbante. Mas ele pode us�-lo depois.
Se escorregar enquanto est� brincando e o cord�o ficar preso, pode sufoc�-lo.
Norah estava muito tensa; David retirou a m�o.
- Isso n�o � prov�vel - disse, e desejou poder apagar a perda que os dois tinham
sofrido e tudo que ela fizera a ambos. - N�o vai acontecer nada de mau com ele, Norah.
- Isso voc� n�o sabe.
- Mesmo assim, o David tem raz�o, Norah.
A voz veio de tr�s. David virou-se e viu Bree, cuja impetuosidade, paix�o e beleza
moviam-se pela casa deles como uma ventania. Usava um vestido primaveril de tecido
di�fano que parecia flutuar a seu redor quando ela andava, e estava de m�os
dadas com um rapaz um pouco mais baixo: alinhado, de cabelo curto meio ruivo,
sand�lias e colarinho desabotoado.
- Bree, � verdade, o colar pode ficar preso e faz�-lo sufocar - insistiu Norah,
virando-se tamb�m.
- Ele est� no balan�o - disse Bree, descontra�da, enquanto Paul subia bem alto,
com a cabe�a inclinada para tr�s e o sol batendo no rosto. - Olhe para ele, est� todo
contente. N�o o fa�a descer e ficar cheio de preocupa��es. O David est� certo. N�o
vai acontecer nada de mau.
Norah for�ou um sorriso.
- N�o? O mundo pode acabar. Foi o que voc� mesma disse ontem.
- Mas isso foi ontem - retrucou Bree. P�s a m�o no bra�o de Norah e as duas se
entreolharam longamente, ligadas de um modo que exclu�a qualquer outra pessoa.
David observou-as, sentindo uma onda de saudade ante a lembran�a s�bita da
irm�, os dois escondidos embaixo da mesa da cozinha, espiando por entre as dobras
do oleado e abafando o riso. Lembrou-se dos olhos dela, do calor de seu bra�o e da
alegria de sua companhia.
- O que aconteceu ontem? - perguntou, afastando a lembran�a, mas Bree o
ignorou, dirigindo-se a Norah.
- Desculpe, minha irm�. As coisas estavam meio loucas ontem. Fui impertinente.
- Tamb�m pe�o desculpas - disse Norah. - Que bom que voc� veio � festa.
- O que aconteceu ontem? Voc� esteve naquele inc�ndio, Bree? - tornou a perguntar
David. Ele e Norah haviam acordado de madrugada com o barulho das sirenes,
o cheiro acre de fuma�a e um brilho estranho no c�u. Tinham sa�do para se juntar
aos vizinhos na escurid�o silenciosa dos gramados, molhando os tornozelos de
orvalho enquanto no campus o pr�dio do ROTC pegava fogo. Os protestos vinham
aumentando, com camadas de tens�o no ar, invis�veis mas reais, enquanto nos vilarejos
ao longo do rio Mekong as bombas ca�am e gente corria com os filhos agonizantes
nos bra�os. Agora, em Ohio, do outro lado do rio, havia quatro estudantes
mortos. Mas ningu�m tinha imaginado uma coisa dessas em Lexington, no Kentucky:
um coquetel molotov, um pr�dio em chamas e a pol�cia fervilhando nas ruas.
Bree virou-se para ele, cabelos compridos balan�ando nos ombros, e abanou a
cabe�a.
- N�o, n�o estive l�, mas o Mark esteve.
Sorriu para o rapaz a seu lado e enfiou o bra�o esguio no dele.
- Este � Mark Bell.
- O Mark lutou no Vietn� - acrescentou Norah. - Est� aqui fazendo protestos
contra a guerra.
- Ah, um agitador - fez David.
- Um participante dos protestos, eu diria - corrigiu Norah, acenando para o
outro lado do jardim. - L� est� a Kay Marshall. Voc�s me d�o licen�a?
- Ent�o, um participante dos protestos - repetiu David, vendo-a afastar-se, com
a brisa balan�ando de leve as mangas de seu terninho de seda.
- Isso mesmo - disse Mark, com firmeza meio zombeteira e um sotaque vagamente
familiar que fez David lembrar a voz de seu pai, grave e melodiosa. - A busca
incessante da imparcialidade e da justi�a.
- Voc� estava no notici�rio - disse David, lembrando-se de repente. - Ontem �
noite. Estava fazendo uma esp�cie de discurso. Pois �. Deve estar contente com o
inc�ndio.
Mark deu de ombros.
- Contente, n�o. Nem triste. Aconteceu, s� isso. N�s seguimos em frente.
- Por que est� sendo t�o agressivo, David? - perguntou Bree, fixando nele os
olhos verdes.
- N�o estou sendo agressivo - disse David, conscientizando-se, no pr�prio ato de
falar, de que estava. E percebendo tamb�m que come�ava a alargar e esticar as
vogais, convocado pela atra��o profunda da linguagem, por estilos de fala conhecidos
e irresist�veis como a �gua. - Estou colhendo informa��es, s� isso. De onde voc�
�? - perguntou a Mark.
- Da Virg�nia Ocidental. Perto de Elkins. Por qu�?
- Curiosidade. J� tive fam�lia por l�.
- Eu n�o sabia disso a seu respeito, David. Pensei que voc� fosse de Pittsburgh
- disse Bree.
- Meus pais eram das imedia��es de Elkins - repetiu David. - Faz muito tempo.
- � mesmo? - indagou Mark, que agora o observava com menos desconfian�a.
- Trabalhavam nas minas de carv�o?
- �s vezes, no inverno. Eles tinham uma fazenda. Era uma vida dura, mas n�o
tanto quanto o trabalho com o carv�o.
- Eles ainda t�m a terra?
- Sim - confirmou David, pensando na casa que n�o via fazia quase 15 anos.
- Foram espertos. J� o meu pai vendeu a casa da fam�lia. Quando morreu nas
minas, cinco anos depois, ficamos sem ter para onde ir. Sem lugar nenhum mesmo.
Mark deu um sorriso amargo e ficou pensativo por um instante. Em seguida, perguntou:
- Voc� costuma voltar l�?
- Faz muito tempo que n�o. E voc�?
- N�o. Depois do Vietn�, fui para a faculdade. Em Morgantown, com base na lei
dos ex-combatentes. Voltar ficou meio esquisito. Eu fazia e n�o fazia parte daquilo,
se entende o que eu quero dizer. Quando sa�, n�o achei que estivesse fazendo uma
escolha. Mas foi o que acabou sendo.
David acenou com a cabe�a.
- Eu sei. Sei o que voc� quer dizer - concordou.
- Bem - disse Bree, ap�s um longo momento de sil�ncio. - Agora voc�s dois est�o
aqui. E eu com mais sede a cada segundo - acrescentou. - Mark? David? Querem
uma bebida?
- Vou com voc� - disse Mark, estendendo a m�o a David. - Mundo pequeno, n�o
�? Foi um prazer conhec�-lo.
- O David � um mist�rio para todos n�s - disse Bree, puxando-o para longe.
- Pergunte s� � Norah.
David os viu misturarem-se ao grupo animado que circulava pelo jardim. Um
simples encontro, mas ele se sentiu estranhamente agitado, exposto e vulner�vel,
com o passado a se avolumar como o oceano. Toda manh�, parava por um instante
na entrada do consult�rio, inspecionando seu mundo limpo e simples: a disposi��o
ordeira dos instrumentos, o tecido branco e bem passado que cobria a mesa de
exames. Por qualquer padr�o externo, ele era um sucesso, mas nunca se sentia tomado
por uma sensa��o de orgulho e seguran�a, como havia esperado. Ent�o, � isso a�,
dissera seu pai, batendo a porta da caminhonete e parando no meio-fio, no ponto
de �nibus, no dia em que David partira para Pittsburgh. Imagino que seja a �ltima
vez que podemos esperar alguma not�cia sua, agora que voc� vai subir na vida e tudo
mais. Voc� j� n�o ter� tempo para gente como n�s. E David, parado no meio-fio, com
as primeiras folhas de outono a ca�rem a seu redor, tivera uma profunda sensa��o de
desespero, porque, j� naquele momento, havia intu�do a verdade das palavras do pai:
quaisquer que fossem suas inten��es, por mais que ele os amasse, a vida o levaria
para longe.
- Tudo bem com voc�, David? - perguntou Kay Marshall. Ia passando, com um
vaso de tulipas rosa-claro, cada p�tala t�o delicada quanto as bordas de um pulm�o.
- Voc� parece estar a um milh�o de quil�metros daqui.
- Ol�, Kay - disse ele. Kay o fazia lembrar um pouco de Norah, sempre com uma
esp�cie de solid�o por baixo da superf�cie cuidadosamente polida. Um dia, depois
de beber demais numa outra festa, Kay o seguira por um corredor escuro, envolvera-
o nos bra�os e o beijara. No susto, ele havia retribu�do o beijo. O momento tinha
passado e, embora muitas vezes pensasse no contato frio e surpreendente dos l�bios
dela nos seus, David tamb�m se perguntava, toda vez que a via, se aquilo tinha realmente
acontecido.
- Voc� est� linda como sempre, Kay - e ergueu o copo. Ela sorriu, deu uma risada
e seguiu em frente.
David entrou no clima fresco da garagem e subiu a escada, pegou sua c�mera no
arm�rio e p�s um filme novo. A voz de Norah se elevava sobre o burburinho do
grupo e ele se lembrou da sensa��o de sua pele, quando a havia procurado naquela
manh�, e da curva suave de suas costas. Lembrou-se do momento que ela havia
compartilhado com Bree, da profunda liga��o entre elas, um v�nculo maior do que
ele jamais voltaria a ter com sua mulher. Nada me faltar�. Mas falta, pensou consigo
mesmo, pendurando a c�mera no pesco�o. Falta.
Deslocou-se pelas bordas do grupo, sorrindo e cumprimentando, trocando apertos
de m�o, afastando-se das conversas para captar momentos da festa em filme.
Parou diante das tulipas de Kay, focalizando-as em close, e pensou no quanto elas
realmente se pareciam com o tecido delicado dos pulm�es e em como seria interessante
tirar fotos dos dois e pendur�-las lado a lado, explorando sua id�ia de que o
corpo, de um modo misterioso, espelhava perfeitamente o mundo. Ficou absorto
nisso, sentindo os sons da festa se distanciarem, enquanto se concentrava nas flores,
e levou um susto ao sentir a m�o de Norah em seu bra�o.
- Guarde a c�mera - disse ela. - Por favor. � uma festa, David.
- Essas tulipas s�o lindas - come�ou ele, mas n�o conseguiu se explicar, p�r em
palavras a raz�o por que aquelas imagens o atra�am tanto.
- � uma festa - repetiu Norah. - Voc� pode perd�-la e tirar fotografias ou pegar
uma bebida e participar.
- J� estou com uma bebida - ele assinalou. - Ningu�m se incomoda por eu tirar
umas fotos, Norah.
- Eu me incomodo. � grosseria.
Continuaram falando em voz baixa e, durante todo o di�logo, Norah n�o parou
de sorrir. Tinha a express�o serena; acenava com a cabe�a e as m�os para outras pessoas
no jardim. Mas David sentiu a tens�o que emanava dela, assim como a raiva
contida.
- Tive muito trabalho - disse ela. - Organizei tudo. Preparei toda a comida. Acabei
at� com as vespas. Por que voc� n�o pode simplesmente aproveitar?
- Quando foi que voc� derrubou o ninho? - indagou ele, em busca de um assunto
seguro, olhando para o beiral limpo da garagem.
- Ontem - respondeu Norah, e lhe mostrou o pulso e o calombo ainda avermelhado.
- N�o queria correr nenhum risco, com as suas alergias e as de Paul.
- A festa est� linda - disse David. Num impulso, levou o pulso dela aos l�bios e
beijou suavemente o lugar em que ela fora picada. Norah o fitou, arregalando os
olhos de surpresa, com um lampejo de prazer, depois retirou a m�o.
- David - disse baixinho -, pelo amor de Deus, aqui n�o. Agora n�o.
- Ei, papai! - gritou Paul, e David olhou em volta, tentando localizar o filho.
- M�e, pai, olhem pra mim. Olhem pra mim!
- Ele est� no carvalho - disse Norah, cobrindo os olhos com a m�o para fazer
sombra e apontando para o outro lado do jardim. - Olhe, l� em cima, mais ou
menos no meio da copa. Como foi que ele fez isso?
- Aposto que subiu pelo balan�o. Oi! - gritou David, acenando.
- Des�a j� da�! - gritou Norah. E, voltando-se para David: - Ele est� me deixando
nervosa.
- Ele � um garoto - fez David. - Garotos trepam em �rvores. Ele vai ficar bem.
- Ei, m�e! Pai! Socorro! - gritou Paul, mas, quando os dois olharam, o menino
estava rindo.
- Lembra de quando ele fazia isso na mercearia? - perguntou Norah. - Lembra,
quando ele estava aprendendo a falar, como costumava gritar socorro no meio da
loja? As pessoas achavam que eu era uma seq�estradora.
- Uma vez ele fez isso na cl�nica - disse David. - Lembra disso?
Os dois riram juntos. David sentiu uma onda de alegria.
- Guarde a c�mera - pediu Norah, com a m�o em seu bra�o.
- Est� bem. Vou guardar.
Bree tinha se aproximado do mastro da primavera e segurado uma fita azularroxeada.
Intrigadas, outras pessoas a imitaram. David come�ou a se encaminhar
para a garagem, olhando para as pontas balan�antes das fitas. S�bito, ouviu um
remexer e farfalhar de folhas, o ru�do alto de um galho partindo. Viu Bree levantar
as m�os, deixando cair a fita, e estend�-las para cima. Fez-se sil�ncio por um longo
instante e, em seguida, Norah gritou. David virou-se a tempo de ver Paul bater no
ch�o com um baque surdo, depois quicar de leve uma vez, com as costas, com o
colar de l�rios-do-mar arrebentado e os preciosos crin�ides espalhados pelo ch�o.
Saiu correndo, passando por entre os convidados, e se ajoelhou ao lado do filho. Os
olhos escuros de Paul estavam cheios de medo. Ele segurou a m�o do pai, esfor�ando-
se para respirar.
- Est� tudo bem - fez David, alisando-lhe a testa. - Voc� caiu da �rvore e perdeu
o f�lego, s� isso. Relaxe. Respire outra vez. Vai ficar tudo bem.
- Ele est� bem? - perguntou Norah, ajoelhando-se ao lado do marido com seu
terninho coral. - Paul, meu amor, voc� est� legal?
Paul arquejou e tossiu, com os olhos marejados.
- Meu bra�o t� doendo - disse, quando conseguiu recobrar a fala. Estava p�lido,
com uma fina veia azul aparecendo na testa, e David percebeu que o filho se esfor�ava
para n�o chorar. - Meu bra�o t� doendo muito.
- Qual bra�o? - perguntou David, com a voz mais calma do mundo. - Pode me
mostrar onde d�i?
Era o bra�o esquerdo e, quando David o levantou, cuidadosamente, sustentando
o cotovelo e o pulso, o menino gritou de dor.
- David! - exclamou Norah. - Est� quebrado?
- Bem, n�o tenho certeza - respondeu ele, calmamente, embora estivesse quase certo
de que sim. Apoiou com delicadeza o bra�o de Paul em seu peito e p�s a m�o nas
costas de Norah, para consol�-la. - Paul, vou levantar voc�. Vou lev�-lo para o carro.
E depois vamos ao meu consult�rio, sim? Vou lhe mostrar tudo sobre os raios X.
Devagar, delicadamente, levantou Paul. O filho era muito leve em seu colo. Os
convidados se afastaram para deix�-los passar. David p�s o menino no banco traseiro,
pegou um cobertor na mala e o ajeitou em volta do filho.
- Eu tamb�m vou - disse Norah, sentando-se no banco da frente, ao lado do marido.
- E a festa?
- Tem muita comida e vinho. Eles ter�o que se arranjar.
Partiram para o hospital na alegre brisa primaveril. De vez em quando, Norah
ainda implicava com David por causa da noite do parto, por seu jeito vagaroso e
met�dico de dirigir pelas ruas desertas, mas ele tamb�m n�o conseguiu acelerar
nesse dia. Passaram pelo pr�dio do ROTC, que ainda fumegava. Pequenos tufos de
fuma�a erguiam-se como renda negra. Perto dele havia cerejeiras em flor, cujas p�talas
claras e fr�geis contrastavam com a parede enegrecida.
- O mundo est� caindo aos peda�os, � essa a sensa��o - comentou Norah, baixinho.
- Agora n�o, Norah.
David olhou para Paul pelo retrovisor. O filho estava calado, sem reclamar, mas
as l�grimas corriam por seu rosto p�lido.
No pronto-socorro, David usou sua influ�ncia para apressar o processo de admiss�o
e o uso do raio-X. Ajudou Paul a se acomodar numa cama, deixou Norah contando-
lhe hist�rias de um livro que havia apanhado na sala de espera e foi buscar as
radiografias. Ao receb�-las do t�cnico, viu que estava com as m�os tr�mulas e seguiu
ent�o para seu consult�rio, cruzando os corredores estranhamente silenciosos
naquela linda tarde de s�bado. A porta fechou �s suas costas e, por um instante,
David ficou sozinho no escuro, tentando se recompor. Sabia que as paredes eram
verde-�gua e que havia pap�is espalhados na escrivaninha. Sabia que os instrumentos
de a�o e cromo estavam alinhados em bandejas, embaixo dos arm�rios de portas
de vidro. Mas n�o enxergava nada. Levantou a m�o e encostou a palma no nariz,
mas nem mesmo a uma dist�ncia t�o pequena conseguiu enxergar sua pr�pria pele,
apenas senti-la.
Tateou � procura do interruptor, que cedeu a seu contato. Um painel montado na
parede piscou e se encheu de uma luz branca e firme, que tirava a cor dos outros
objetos. No painel havia negativos que ele tinha revelado na semana anterior: uma
s�rie de fotos de uma veia humana, tiradas em seq��ncia, em grada��es de luz controladas
com precis�o, com o n�vel de contraste sutilmente alterado a cada uma. O
que empolgava David era a precis�o a que ele havia chegado e o modo como as imagens
menos pareciam uma parte do corpo humano do que outras coisas: um raio
descendo em ramos sobre a terra, rios de �guas sombrias, um trecho oscilante de mar.
Suas m�os estavam tr�mulas. David obrigou-se a respirar fundo v�rias vezes,
depois retirou os negativos e prendeu as radiografias de Paul nos grampos. Os ossos
pequenos do filho, s�lidos, mas delicados, destacaram-se com assombrosa clareza.
David percorreu com as pontas dos dedos a imagem repleta de luz. T�o lindos os
ossos de seu filho pequeno, opacos, mas vis�veis ali como se estivessem iluminados,
imagens transl�cidas que flutuavam na escurid�o do consult�rio, fortes e delicadas
como os galhos entrela�ados de uma �rvore.
A les�o era bem simples: fraturas claras e bem delineadas do c�bito e do r�dio.
Eram ossos paralelos; o maior perigo era que, ao se consolidarem, os dois viessem a
se fundir.
David acendeu a luz do teto e voltou pelo corredor, pensando no belo mundo
oculto dentro do corpo. Anos antes, numa sapataria em Morgantown, enquanto seu
pai experimentava botas de trabalho e franzia o cenho diante do pre�o, David subira
num aparelho que lhe radiografara os p�s, transformando seus dedos comuns
numa coisa fantasmag�rica, misteriosa. Extasiado, ele havia estudado as varas e bulbos
de luz e sombra que eram seus artelhos, seus calcanhares.
Aquele tinha sido, embora ele houvesse levado anos para perceb�-lo, um momento
definidor. A exist�ncia de outros mundos, invis�veis, desconhecidos, al�m at� da
imagina��o, tinha sido uma revela��o para David. Nas semanas seguintes, ao ver
cervos correndo ou p�ssaros levantando v�o, folhas balan�ando e coelhos surgindo
de repente das moitas, ele ficara olhando atentamente, tentando vislumbrar as
estruturas ocultas. E June, sentada nos degraus da varanda, descascando ervilhas ou
milho calmamente, com os l�bios entreabertos de concentra��o: tamb�m ela o menino
havia fitado. � que a irm� era e n�o era igual a ele, e o que os separava era um
grande mist�rio.
Sua irm�, aquela menina que adorava o vento, ria para o sol em seu rosto e n�o
tinha medo de cobras. Ela morrera aos 12 anos, e agora n�o passava da lembran�a
do amor - nada al�m de ossos.
E sua filha de seis anos andava pelo mundo, mas David n�o a conhecia.
Quando ele voltou, Norah segurava Paul no colo, embora o menino estivesse crescido
demais para esse tipo de consolo, apoiando sem jeito a cabe�a no ombro da m�e.
Seu bra�o tremia, com pequenas convuls�es provocadas pelo trauma.
- Est� quebrado? - perguntou Norah, no mesmo instante.
- Sim, receio que sim - disse David. - Venha dar uma olhada.
P�s as radiografias no painel iluminado e apontou para as linhas escurecidas das
fraturas.
Esqueletos no arm�rio, diziam as pessoas, e osso duro de roer, e ossos do of�cio. Mas
os ossos tinham vida; cresciam e se consertavam; podiam juntar o que fora separado.
- Tomei tanto cuidado com as abelhas - disse Norah, ajudando o marido a carregar
Paul de novo para a mesa de exames. - Com as vespas, digo. Livrei-me das vespas
e, agora, isto.
- Foi um acidente - disse David.
- Eu sei - retrucou ela, quase em l�grimas. - O problema � todo esse.
David n�o respondeu. Havia apanhado o material para fazer o molde e se concentrou
em aplicar o gesso. Fazia muito tempo que n�o executava essa tarefa - em geral,
reduzia a fratura e deixava o resto por conta da enfermeira - e achou-a reconfortante.
O bra�o de Paul era pequeno e o gesso foi crescendo aos poucos, branco como
uma concha alvejada, luminoso e sedutor como uma folha de papel. Em poucos dias
estaria transformado num cinza opaco, coberto de vivos rabiscos infantis.
- Tr�s meses - disse David. - Em tr�s meses voc� tira o gesso.
- Isso � quase o ver�o inteiro - comentou Norah.
- E a Liga Mirim de Beisebol? - perguntou Paul. - E nadar?
- Nada de beisebol - respondeu David. - Nem de nadar. Sinto muito.
- Mas o Jason e eu estamos no campeonato da Liga!
- Sinto muito - fez David, e Paul desmanchou-se em l�grimas.
- Voc� disse que n�o ia acontecer nada - repreendeu Norah -, e agora ele est� com
o bra�o quebrado. Simples assim. Podia ter sido o pesco�o dele. A coluna.
S�bito, David sentiu-se cansado, dilacerado por causa de Paul, exasperado com
Norah.
- �, podia ter sido, mas n�o foi. Portanto, pare. Est� bem? Pare com isso, Norah.
Paul ficara quieto e ouvia atentamente, concentrado no tom e na cad�ncia alterados
da voz dos pais. David perguntou-se como o filho recordaria esse dia. Ao imagin�-
lo no futuro incerto, num mundo em que se podia ir a uma passeata e acabar
morto, com uma bala no pesco�o, compartilhou o medo de Norah. Ela estava certa.
Tudo podia acontecer. David p�s a m�o na cabe�a do filho, sentindo em sua palma
o espetar do corte � escovinha.
- Desculpe, papai - disse Paul com voz mi�da. - Eu n�o queria estragar as fotos.
Ap�s um minuto de confus�o, David lembrou-se de sua gritaria, horas antes,
quando a luz da c�mara escura se acendera, e recordou Paul im�vel, com a m�o no
interruptor, apavorado demais para se mexer.
- Ah, n�o. N�o, meu filho, n�o estou zangado por causa daquilo, n�o se preocupe
- e afagou o rosto do menino. - As fotos n�o t�m import�ncia. Eu s� estava cansado
hoje de manh�, sim?
Paul passou o dedo pela borda do gesso.
- Eu n�o tive inten��o de assust�-lo - disse David. - N�o estou zangado.
- Posso escutar o estetosc�pio?
- � claro - disse David. Fixou as pontas pretas do estetosc�pio nos ouvidos do
filho e se agachou. P�s o disco frio de metal em seu pr�prio cora��o.
Pelo canto do olho, viu Norah observando os dois. Fora da movimenta��o animada
da festa, ela carregava sua tristeza como uma pedra escura agarrada na m�o. David
sentiu vontade de consol�-la, mas n�o conseguiu pensar em nada para dizer. Gostaria
que existisse algum tipo de vis�o de raios X do cora��o humano: o de Norah e o seu.
- Eu gostaria que voc� fosse mais feliz - disse baixinho. - Gostaria que houvesse
alguma coisa que eu pudesse fazer.
- N�o precisa se preocupar - disse ela. - N�o comigo.
- N�o preciso?
David respirou fundo, para que Paul pudesse ouvir o fluxo do ar.
- N�o. Ontem eu arranjei um emprego.
- Emprego?
- �. Um bom emprego.
Norah contou-lhe tudo: uma ag�ncia de viagens, turno da manh�. Ela chegaria
em casa a tempo de buscar Paul na escola. Enquanto a mulher falava, David teve a
sensa��o de que ela voava para longe.
- Tenho andado maluca - acrescentou Norah, com uma impetuosidade que o surpreendeu.
- Completamente maluca, com tempo demais sobrando. Isso vai ser bom.
- Certo - fez ele. - Tudo bem. Se voc� faz tanta quest�o de um emprego, aceite-o.
Fez c�cegas em Paul e pegou o otosc�pio.
- Tome - disse ao filho. - Examine meus ouvidos. Veja se deixei algum passarinho
dentro deles.
Paul riu, e o metal frio deslizou pelo ouvido de David.
- Eu sabia que voc� n�o ia gostar - disse Norah.
- O que quer dizer? Eu lhe disse para aceitar o emprego.
- Eu me refiro ao seu tom. Voc� devia se ouvir.
- Bom, o que � que voc� esperava? - disse David, tentando manter a voz inalterada,
para o bem de Paul. - � dif�cil n�o encarar isso como uma cr�tica.
- S� seria cr�tica se dissesse respeito a voc�. � isso que voc� n�o entende. Mas n�o
tem a ver com voc�. Tem a ver com a liberdade. Tem a ver com levar uma vida
pr�pria. Gostaria que voc� pudesse compreender isso.
- Liberdade? - fez David. Ela andara conversando com a irm� de novo, isso ele
podia apostar. - Voc� acha que algu�m � livre, Norah? Acha que eu sou?
Houve um longo sil�ncio, e David sentiu-se grato quando Paul o quebrou.
- Nenhum passarinho, papai. S� girafas.
- � mesmo? Quantas?
- Seis.
- Seis! Puxa vida! � melhor examinar o outro ouvido.
- Pode ser que eu deteste o emprego - disse Norah. - Mas, pelo menos, vou ficar
sabendo.
- Nenhum passarinho - disse Paul. - Nem girafas. S� elefantes.
- Elefantes no canal auditivo - repetiu David, pegando o otosc�pio. - � melhor
irmos logo para casa.
Obrigou-se a sorrir, agachando-se para pegar Paul no colo, com gesso e tudo. Ao sentir
o peso do filho, o calor do bra�o bom em volta de seu pesco�o, perguntou-se como
teria sido a vida deles se houvesse tomado uma decis�o diferente seis anos antes. A neve
ca�a, ele ficara inteiramente s� naquele sil�ncio e, num momento crucial, tinha altera
do tudo. David, escrevera Caroline Gill em sua �ltima carta, agora tenho um namorado.
Ele � muito bom, e a Phoebe est� �tima; adora pegar borboletas e cantar.
- Estou contente com o emprego - disse a Norah, enquanto esperavam o elevador
no corredor. - N�o quero ser teimoso, mas n�o acredito que isso n�o tenha nada a
ver comigo.
Norah deu um suspiro.
- N�o, voc� n�o poderia acreditar, n�o �?
- Que quer dizer?
- Voc� se acha o centro do universo. O ponto im�vel em torno do qual gira todo
o resto.
Pegaram as coisas e entraram no elevador. L� fora ainda fazia um lindo dia, um
fim de tarde claro e ensolarado. Ao chegarem em casa, os convidados tinham ido
embora. Restavam apenas Bree e Mark, levando travessas de comida para dentro. As
fitas do mastro da Festa da Primavera esvoa�avam na brisa. A c�mera de David estava
em cima de uma mesa, e os f�sseis de Paul, arrumados numa pilha ao lado dela.
David parou e inspecionou o jardim, com suas cadeiras dispersas. Houvera um
tempo em que todo aquele mundo estivera escondido sob um mar raso. Ele levou
Paul para dentro, subindo a escada. Deu-lhe um copo d'�gua e uma aspirina mastig�vel,
sabor laranja, de que ele gostava, e se sentou na cama com o filho, segurando-
lhe a m�o. Aquela m�ozinha mi�da, muito quente e viva. Relembrando as imagens
iluminadas dos ossos de Paul, sentiu-se tomado por um sentimento de admira��o.
Era isso que ele ansiava por captar no celul�ide: esses raros momentos em que o
mundo parecia unificado, coerente, todo contido numa �nica imagem fugaz. Uma
simplicidade que guardava beleza, esperan�a e movimento - uma esp�cie de poesia
em prata, assim como o corpo era poesia em carne, sangue e ossos.
- L� uma hist�ria pra mim, papai - disse Paul, e David acomodou-se na cama, com
o filho no colo, virando as p�ginas de George, o curioso, que nessa hist�ria estava no
hospital, com uma perna quebrada. No t�rreo, Norah circulava pelos c�modos,
cuidando da limpeza. A porta de tela abria e fechava, abria e fechava outra vez. David
a imaginou passando por ela, vestida de terninho, a caminho do novo emprego e de
uma vida que o exclu�a. A tarde estava chegando ao fim e uma luz dourada enchia o
quarto. Ele virou outra p�gina e segurou Paul, sentindo seu calor, sua respira��o regular.
Uma brisa levantava as cortinas. L� fora, as cerejeiras formavam uma nuvem
brilhante, em contraste com as t�buas escuras da cerca. David fez uma pausa na leitura,
vendo as p�talas brancas ca�rem e flutuarem no ar. Sentiu-se reconfortado e perturbado
por sua beleza, tentando n�o notar que, � dist�ncia, elas pareciam neve.
JUNHO DE 1970
EM, A PHOEBE CO M CERTEZA TEM O SEU CABELO - OBSERVOU DOROTHY.
Caroline levou a m�o � nuca, pensando. Elas estavam na zona leste de
Pittsburgh, num antigo pr�dio de f�brica que fora transformado numa pr�-escola
progressista. A luz entrava pelas janelas altas e respingava em part�culas e desenhos
no piso de t�buas; destacava os toques castanho-avermelhados das tran�as finas de
Phoebe, parada diante de uma grande arca de madeira, pegando punhados de lentilhas
e deixando-os cascatear em potes. Aos seis anos, ela era rechonchuda, com covinhas
nos joelhos e um sorriso irresist�vel. Seus olhos eram delicadamente amendoados,
puxados para cima, de um tom castanho-escuro. As m�os eram pequenas.
Nessa manh�, ela usava um vestido listrado rosa e branco, que tinha escolhido e vestido
sozinha - de tr�s para a frente. Usava tamb�m um su�ter cor-de-rosa que havia
causado um espetacular acesso de raiva em casa. N�o h� d�vida de que ela tem o seu
g�nio - era o que Leo, morto havia quase um ano, gostava de resmungar, e Caroline
sempre ficara perplexa, n�o tanto por ele ter visto uma liga��o gen�tica onde n�o
podia haver nenhuma, mas por algu�m defini-la como uma mulher geniosa.
- Voc� acha? - perguntou, passando a m�o no cabelo atr�s da orelha. - Acha que
o cabelo dela � igual ao meu?
- Ah, �, com certeza.
Nessa hora, Phoebe afundava as m�os nas lentilhas aveludadas, rindo com o
garotinho a seu lado. Levantava punhados delas no ar e as deixava escorrer por entre
os dedos, e o menino estendia uma x�cara amarela de pl�stico para peg�-las.
Para as outras crian�as daquele jardim-de-inf�ncia, Phoebe era simplesmente ela
mesma, uma amiga que gostava de azul, de picol�s e de girar em c�rculos; ali, suas
diferen�as passavam despercebidas. Nas primeiras semanas, Caroline havia observado,
desconfiada, preparada para os tipos de coment�rios que ouvia com enorme freq��ncia
nos parquinhos, no armaz�m, no consult�rio m�dico. Ah, que l�stima! Voc�
est� vivendo o meu pior pesadelo. E, certa vez, Pelo menos ela n�o ter� que viver muito,
o que � uma b�n��o. Irrefletidos, ignorantes ou cru�is, n�o vinha ao caso: ao longo
dos anos, esses coment�rios tinham deixado uma ferida em carne viva no cora��o
de Caroline. Ali, por�m, os professores eram jovens e entusiasmados, e os pais haviam
seguido em sil�ncio o seu exemplo: Phoebe poderia ter que fazer um esfor�o
maior, ir mais devagar, por�m, como qualquer crian�a, ela aprenderia.
As lentilhas se espalharam no ch�o quando o menino largou sua pazinha e correu
para o corredor. Phoebe foi atr�s, com as tran�as balan�ando, a caminho da sala
verde, onde ficavam os cavaletes e os potes de tinta.
- Este lugar tem sido �timo para ela - comentou Dorothy.
Caroline assentiu com a cabe�a.
- Eu gostaria que a Diretoria de Ensino pudesse v�-la aqui.
- Voc�s t�m um argumento forte e um bom advogado. Dar� tudo certo.
Caroline olhou para o rel�gio. Sua amizade com Sandra se transformara numa
for�a pol�tica e, nesse dia, a Upside!, Sociedade de Pais e Amigos de Crian�as com
S�ndrome de Down, com seus mais de 500 membros, pediria � Diretoria de Ensino
que inclu�sse suas crian�as em escolas p�blicas. As chances eram boas, mas Caroline
ainda estava muito nervosa. In�meras coisas dependiam dessa decis�o.
Um menino em disparada quase caiu ao passar por Dorothy, que o segurou gentilmente
pelos ombros. O seu cabelo j� estava inteiramente branco, um branco puro,
em contraste marcante com os olhos escuros e a pele lisa e morena. Ela nadava todas
as manh�s e havia come�ado a jogar golfe, e, nos �ltimos tempos, muitas vezes
Caroline a apanhava sorrindo sozinha, como se tivesse um segredo.
- Foi muito bom voc� ter vindo hoje para me dar cobertura - disse Caroline,
vestindo o casaco.
Dorothy balan�ou a m�o:
- N�o foi nada. Na verdade, prefiro muito mais estar aqui do que brigando com
o departamento por causa dos pap�is de papai.
A voz dela soava cansada, mas um sorriso bailou momentaneamente em seu rosto.
- Dorothy, se eu n�o soubesse das coisas, diria que voc� est� apaixonada.
A amiga apenas riu.
- Que id�ia atrevida! - disse. - E, por falar em amor, posso esperar o Al hoje �
tarde? Afinal, � sexta-feira.
Os desenhos de luz e sombra nos sic�moros traziam uma grande calma, como
�gua em movimento. Sim, era sexta-feira, mas fazia uma semana que Caroline n�o
tinha not�cias de Al. Em geral, ele telefonava da estrada, de Columbus, Atlanta ou at�
Chicago. Ele a havia pedido em casamento duas vezes nesse ano; em ambas, o cora��o
de Caroline tinha se alegrado diante dessa possib�idade, mas em ambas ela dissera
n�o. Os dois tinham brigado na �ltima visita -Voc� me mant�m � dist�ncia,
reclamara ele - e Al sa�ra zangado, sem se despedir.
- Somos apenas bons amigos, Al e eu. As coisas n�o s�o t�o f�ceis.
- N�o seja rid�cula. Nada poderia ser mais simples - contrap�s Dorothy.
Pois, ent�o, era amor, pensou Caroline. Beijou o rosto suave de Phoebe e foi embora
no velho Buick de Leo: preto, imenso, deslizando feito um barco. Em seu �ltimo
ano de vida, Leo ficara fr�gil, passando a maior parte dos dias numa poltrona
junto � janela, com um livro no colo, olhando para a rua. Um dia, Caroline o encontrara
desabado, com o cabelo grisalho espetado num �ngulo estranho e a pele - at�
os l�bios - muito p�lida. Morto. Ela soubera disso antes mesmo de toc�-lo. Tirara
seus �culos, pusera as pontas dos dedos em suas p�lpebras e as fechara. Depois de
levarem o corpo, ela havia sentado na poltrona de Leo, tentando imaginar como tinha
sido a vida dele, com os galhos das �rvores mexendo-se silenciosamente fora da
janela, os passos dela e de Phoebe descrevendo desenhos em seu teto. - Ah, Leo dissera
em voz alta, falando com o vento. - Sinto muito por voc� ter sido t�o s�.
Depois do funeral - um evento discreto, cheio de catedr�ticos de f�sica e gard�nias
-, Caroline se oferecera para ir embora, mas Dorothy n�o quisera nem ouvir
falar do assunto. Estou acostumada com voc�. Estou acostumada a ter companhia.
N�o, voc� fica. Vamos viver um dia atr�s do outro.
Caroline cruzou a cidade que havia passado a amar, aquela cidade dura, poeirenta,
de uma beleza marcante, com seus pr�dios alt�ssimos, suas pontes ornamentadas,
seus jardins imensos, seus bairros encravados em cada colina verde-esmeralda.
Encontrou uma vaga na rua estreita e entrou no pr�dio, com suas pedras escurecidas
por d�cadas de fuma�a de carv�o. Atravessou o sagu�o de teto alto, de intricado
piso de mosaico, e subiu dois andares de escada. A porta de madeira tinha manchas
escuras, um painel de vidro emba�ado e um n�mero de lat�o enodoado: 304B.
Ela respirou fundo - n�o ficava nervosa desse jeito desde suas provas orais - e abriu
a porta. O ar decr�pito da sala a surpreendeu. A grande mesa de carvalho estava
arranhada e as janelas eram sujas, fazendo o dia l� fora parecer p�lido e cinzento.
Sandra j� estava esperando, com meia d�zia de outros pais da diretoria da Upside!
Caroline sentiu uma onda de afei��o. No come�o, eles haviam aparecido nas reu
ni�es um a um, gente com quem ela e Sandra tinham travado conhecimento em
mercados ou em �nibus; depois, a not�cia se espalhara e as pessoas haviam come�ado
a telefonar. O advogado do grupo, Ron Stone, sentara-se ao lado de Sandra, cujo
cabelo louro estava puxado para tr�s com severidade, e o rosto, s�rio e p�lido.
Caroline ocupou o assento que restava ao lado dela.
- Voc� est� parecendo cansada - murmurou.
Sandra assentiu com a cabe�a.
- O Tim est� resfriado. Justamente hoje. Mam�e teve que vir de McKeesport para
ficar cuidando dele.
Antes que Caroline pudesse dizer alguma coisa, a porta tornou a se abrir e os homens
da Diretoria de Ensino come�aram a entrar, descontra�dos, brincando uns
com os outros, trocando apertos de m�o. Quando todos se acomodaram e a reuni�o
foi iniciada, Ron Stone levantou-se e limpou a garganta.
- Todas as crian�as merecem educa��o - come�ou, proferindo suas palavras conhecidas.
As provas que apresentou eram claras, espec�ficas: desenvolvimento cont�nuo,
tarefas realizadas. Mesmo assim, Caroline viu os rostos � sua frente tornarem-
se impass�veis, como que mascarados. Pensou em Phoebe sentada � mesa na noite
anterior, com um l�pis numa das m�os, escrevendo as letras de seu nome: de tr�s
para frente, ocupando a p�gina inteira, tr�mulas, mas escritas. Os homens da Diretoria
remexiam nos pap�is e pigarreavam. Quando Ron Stone fez uma pausa, um
rapaz de cabelo preto e ondulado tomou a palavra.
- Sua paix�o � admir�vel, Sr. Stone. N�s, da Diretoria, apreciamos tudo o que o
senhor disse e valorizamos o empenho e a dedica��o desses pais. Mas essas crian�as
s�o mentalmente retardadas; essa � a s�ntese. Suas realiza��es, por mais significativas
que sejam, ocorreram num ambiente protegido, com professores capazes
de lhes dar uma aten��o extra, talvez exclusiva. Esse me parece ser um aspecto
muito significativo.
Caroline e Sandra se entreolharam. Essas palavras tamb�m eram conhecidas.
- "Mentalmente retardadas" � uma denomina��o pejorativa - replicou Ron Stone,
com a voz firme. - Essas crian�as t�m um retardo, sim, ningu�m questiona isso.
Mas n�o s�o burras. Ningu�m nesta sala sabe o que elas ser�o capazes de fazer. A
melhor esperan�a para seu crescimento e desenvolvimento, assim como para o de
todas as crian�as, � um meio educacional que n�o tenha limites predeterminados. O
que pedimos hoje � apenas imparcialidade.
- Ah, imparcialidade. Sim. Mas n�o dispomos dos recursos - disse outro homem,
magro, de cabelo grisalho e ralo. - Para sermos imparciais, ter�amos que aceitar
todas elas, uma enxurrada de indiv�duos retardados que sobrecarregariam o sistema.
D�em uma olhada.
Circulou c�pias de um relat�rio e come�ou a fazer uma an�lise de custos e benef�cios.
Caroline respirou fundo. De nada adiantaria ela perder a paci�ncia. Uma mosca zumbiu,
aprisionada entre as vidra�as das velhas janelas. Caroline tornou a pensar em Phoebe,
aquela crian�a encantadora e imprevis�vel que achava objetos perdidos, uma menina
capaz de contar at� 50, se vestir sozinha e recitar o alfabeto, uma menina que talvez se
esfor�asse para falar, mas que sabia ler num instante o estado de �nimo de Caroline.
Limitadas, diziam as vozes. Inundando as escolas. Um empecilho para os recursos e
para as crian�as mais inteligentes.
Caroline sentiu uma onda de desespero. Eles nunca veriam Phoebe de verdade,
aqueles homens nunca a veriam como mais do que uma crian�a diferente, lenta para
falar e para dominar coisas novas. Como poderia mostrar-lhes sua filha linda, Phoebe,
sentada no tapete da sala de estar construindo uma torre de cubos, com o cabelo
macio caindo sobre as orelhas e uma express�o de absoluta concentra��o no
rosto? Phoebe, pondo um disco de 45 rota��es na vitrolinha que Caroline havia
comprado para ela, extasiada com a m�sica, dan�ando pelos pisos lisos de carvalho.
Ou a m�ozinha macia de Phoebe apoiando-se de repente no joelho da m�e, num
momento em que Caroline ficava pensativa ou distra�da, absorta no mundo e em
suas preocupa��es. Est� tudo bem, mam�e?, dizia, ou, simplesmente, Eu amo voc�.
Phoebe, montada nos ombros de Al � luz do entardecer, Phoebe abra�ando todas as
pessoas que encontrava. Phoebe tendo acessos de raiva, obstinadamente desafiadora.
Phoebe vestindo-se naquela manh�, toda orgulhosa.
O assunto � mesa havia passado para os n�meros e a log�stica, a impossibilidade
de mudan�a. Caroline levantou-se, tr�mula. A m�o de sua m�e morta voou em
dire��o a sua boca, horrorizada. A pr�pria Caroline mal podia acreditar no quanto
sua vida a havia modificado, na pessoa em que se transformara. Mas n�o havia como
voltar atr�s. Uma enxurrada de retardados mentais, ora essa! Ela apoiou as m�os na
mesa e esperou. Um por um, os homens pararam de falar e a sala ficou em sil�ncio.
- N�o se trata de n�meros - disse Caroline -, e sim de crian�as. Tenho uma filha
de seis anos. Ela leva mais tempo para dominar coisas novas, � verdade. Mas aprendeu
a fazer tudo o que qualquer outra crian�a aprende: a engatinhar e andar, falar e
usar o banheiro, a se vestir, como fez hoje de manh�. O que eu vejo � uma menininha
que quer aprender e que gosta de todas as pessoas que v�. E vejo uma sala cheia
de homens que parecem ter se esquecido de que, neste pa�s, prometemos educa��o
a todas as crian�as, independentemente de sua capacidade.
Por um momento, ningu�m falou. A janela alta chacoalhou de leve na brisa. A
tinta come�ava a fazer bolhas e descascar nas paredes de cor bege.
A voz do homem de cabelo preto foi gentil.
- Tenho... todos temos... uma grande simpatia por sua situa��o. Mas qual � a
probabilidade de que sua filha, ou qualquer dessas crian�as, domine habilidades acad�micas?
E o que � que isso faria com a auto-imagem dela? Se fosse comigo, eu preferiria
que ela fosse colocada num of�cio �til e produtivo.
- Ela tem seis anos - retrucou Caroline. - N�o est� preparada para aprender um
of�cio.
Ron Stone estivera observando atentamente o di�logo e, nesse momento, tomou
a palavra.
- Na verdade, toda essa discuss�o n�o vem ao caso - disse. Abriu a maleta e tirou
um ma�o grosso de pap�is. - Essa n�o � apenas uma quest�o moral ou log�stica. � a
lei. Aqui est� uma peti��o, assinada por esses pais e por outros 500. Ela foi anexada
a uma a��o judicial coletiva em favor dessas fam�lias para permitir a admiss�o de
seus filhos nas escolas p�blicas de Pittsburgh.
- Essa � a legisla��o dos direitos civis - disse o homem grisalho, erguendo os
olhos do documento. - O senhor n�o pode usar isso. N�o � essa a letra nem o esp�rito
dessa lei.
- Examinem esses documentos - disse Ron Stone, fechando a maleta. - Entraremos
em contato.
Do lado de fora, na velha escadaria de pedra, come�aram a conversar. Ron estava
satisfeito, cautelosamente otimista, mas os outros mostravam-se radiantes, abra�ando
Caroline para agradecer por sua fala. Ela sorriu, retribuindo os abra�os, sentindo-
se a um tempo extenuada e comovida com sua profunda afei��o por aquelas pessoas:
Sandra, � claro, que ainda ia a sua casa toda semana, para tomar um caf�;
Colleen, que, junto com a filha, havia colhido os nomes para a peti��o; Carl, um
homem alto e animado, cujo �nico filho morrera pequeno, por complica��es
card�acas relacionadas com a s�ndrome de Down, e que lhes oferecera espa�o em seu
dep�sito de tapetes para que eles pudessem trabalhar. Quatro anos antes, Caroline
n�o conhecia nenhum deles, exceto Sandra, mas agora todos estavam ligados a ela
pelas muitas noites trabalhando at� altas horas, por muitas lutas e pequenas vit�rias
e por muita esperan�a.
Ainda agitada por seu discurso, Caroline voltou para o jardim-de-inf�ncia. Phoebe
deu um pulo do grupo reunido em c�rculo e correu para ela, abra�ando seus joelhos.
Cheirava a leite e chocolate, e havia um fio de sujeira em seu vestido. O cabelo parecia
uma nuvem macia sob as m�os de Caroline, que contou rapidamente o que havia acontecido,
as palavras ofensivas - enxurrada, empecilho - que ainda trazia na cabe�a. Dorothy,
atrasada para o trabalho, afagou-lhe o bra�o. Conversaremos mais hoje � noite.
A volta para casa foi bonita, com as �rvores frondosas e os lilases desabrochando
feito rajadas de espuma e fogo nas colinas. Havia chovido na noite anterior; o c�u
exibia um azul vivo e l�mpido. Caroline estacionou na alameda, decepcionada ao ver
que Al ainda n�o tinha chegado. Juntas, ela e Phoebe passaram sob a sombra bruxuleante
dos sic�moros, em meio ao zumbido penetrante das abelhas. Caroline sentou-
se num degrau da varanda e ligou o r�dio. Phoebe come�ou a rodar na grama macia,
com os bra�os abertos e a cabe�a inclinada para tr�s, o rosto voltado para o sol.
Caroline a observou, ainda tentando dissipar a tens�o e o azedume da manh�.
Havia motivos de esperan�a, mas, ap�s todos aqueles anos de luta para mudar as
percep��es do mundo, ela se obrigava a continuar cautelosa.
Phoebe aproximou-se correndo e fechou as m�os em concha no ouvido da m�e,
murmurando um segredo. Caroline n�o conseguiu decifrar as palavras, s� a rajada
de ar, excitada e sem f�lego, e Phoebe correu de novo para o sol, girando em seu
vestido rosa-claro. O sol derramava lampejos cor de �mbar em seu cabelo escuro, e
Caroline lembrou-se de Norah Henry sob as luzes brilhantes da cl�nica. Por um
instante, sentiu uma fisgada de cansa�o e d�vida.
Phoebe parou de rodopiar, abrindo os bra�os para manter o equil�brio. Depois,
soltou um grito e correu pelo jardim at� o alto da escada, onde Al estava parado,
olhando para baixo, com um embrulho de cores vivas numa das m�os, para Phoebe,
e um ramo de lilases que Caroline sabia ser para ela.
Sentiu-se reanimar. Al a havia cortejado com paci�ncia lenta e persistente, aparecendo
semana ap�s semana, com solidez e regularidade, oferecendo um ramalhete
de flores ou outro presente alegre, e com um prazer t�o verdadeiro no rosto que ela
n�o suportava recha��-lo. No entanto, mantivera-se de costas para ele, sem confiar
naquele amor que surgira t�o inesperadamente de uma fonte t�o improv�vel. Nesse
momento, p�s-se de p�, sentindo uma onda de prazer. Como tivera medo de que ele
n�o voltasse mais!
- Bonito dia - disse Al, abaixando-se para abra�ar Phoebe, que atirou os bra�os
em volta de seu pesco�o para lhe dar as boas-vindas. O embrulho continha uma
rede muito fina de ca�ar borboletas, com um punho de madeira entalhada, e a menina
a pegou na mesma hora, correndo em dire��o a um canteiro de hort�nsias
azul-escuras. - Como foi a reuni�o?
Caroline contou-lhe a hist�ria e ele ouviu, balan�ando a cabe�a.
- Bom, escola n�o � para todo mundo - disse. - Eu n�o gostava muito dela, com
certeza. Mas a Phoebe � uma boa menina e eles n�o deviam impedi-la de entrar.
- Quero que ela tenha um lugar no mundo - disse Caroline, percebendo de
repente que n�o duvidava do amor de Al por ela, mas do amor dele por Phoebe.
- Meu bem, ela tem um lugar - fez ele. - � bem aqui. Mas, sim, acho que voc� tem
raz�o. Acho que est� fazendo a coisa certa, lutando tanto por ela.
- Espero que a sua semana tenha sido melhor - Caroline comentou, notando as
olheiras dele.
- Ah, o mesmo de sempre, o mesmo de sempre - disse Al, sentando-se a seu lado
na escada e pegando um graveto, que come�ou a descascar. Ao longe, ouvia-se
o zumbir de cortadores de grama; o radinho de Phoebe tocava Love, Love Me, Do.
- Fiz 3.858 quil�metros esta semana. Um recorde, at� para mim.
Ele vai me pedir em casamento de novo, pensou Caroline. Aquele era o momento
certo; Al estava cansado da estrada e disposto a assentar a cabe�a, e faria o pedido.
Caroline ficou a lhe observar as m�os, que se moviam com habilidade, r�pidas,
tirando a casca do graveto, e seu cora��o transbordou. Dessa vez, ela diria sim. Mas
Al continuou calado. O sil�ncio se prolongou tanto que, por fim, ela se sentiu pressionada
a romp�-lo.
- Foi um presente bonito - comentou, acenando com a cabe�a em dire��o ao gramado
em que Phoebe corria, com a rede descrevendo arcos luminosos no ar.
- Foi um cara l� da Ge�rgia que fez. �timo sujeito. Estava com uma por��o delas,
que tinha entalhado para os netos. Come�amos a bater papo na mercearia. Ele coleciona
r�dios de ondas curtas e me convidou a dar uma passada para v�-los. Passamos
a noite inteira conversando, ele e eu. Bom, essa � a vantagem da vida errante.
Ah, sim - continuou, enfiando a m�o no bolso da cal�a e tirando um envelope branco
-, aqui est� sua correspond�ncia de Atlanta.
Caroline pegou o envelope sem tecer coment�rios. Dentro haveria v�rias notas de
20 d�lares, cuidadosamente dobradas num peda�o de papel em branco. Al os trazia
de Cleveland, Memphis, Atlanta, Akron, cidades que freq�entava em suas entregas.
Ela lhe dizia simplesmente que o dinheiro era para Phoebe, mandado pelo pai. Al
aceitava isso sem coment�rios, mas os sentimentos de Caroline eram mais complexos.
�s vezes, ela sonhava que estava andando pela casa de Norah Henry, tirando
coisas das estantes e arm�rios, enchendo uma sacola de pano, toda contente, at�
deparar com Norah Henry parada junto a uma janela, com a express�o distante e
infinitamente triste. Acordava tr�mula, levantava-se e preparava um ch�, sentando-
se no escuro. Quando chegava o dinheiro, ela o depositava no banco e n�o pensava
mais no assunto, at� chegar o envelope seguinte. Fazia cinco anos que repetia isso, e
j� havia guardado quase sete mil d�lares.
Phoebe continuava a correr, perseguindo borboletas, passarinhos, part�culas de
luz ou as notas flutuantes que sa�am do r�dio. Al mexia nos bot�es do aparelho.
- O que esta cidade tem de bom � que a gente pode achar m�sica de verdade. Em
algumas daquelas cidadezinhas mixurucas em que eu me hospedo, s� o que a gente
arruma s�o os 40 Maiores Sucessos. Fica cansativo, depois de algum tempo.
Al come�ou a cantarolar Begin the beguine, acompanhando o r�dio.
- Meus pais costumavam dan�ar essa m�sica - disse Caroline, e, por um instante,
viu-se sentada na escada da casa de sua inf�ncia, escondida, vendo a m�e, de vestido
rodado, receber seus convidados � porta. - H� anos eu n�o pensava nisso. Mas,
de vez em quando, eles enrolavam o tapete da sala de jantar, numa noite de s�bado,
e recebiam outros casais e dan�avam.
- Dev�amos ir dan�ar um dia desses - disse Al. - Voc� gosta de dan�ar, Caroline?
Nesse momento, ela sentiu alguma coisa remexer-se por dentro, uma empolga��o.
N�o conseguiu situar sua origem: tinha alguma coisa a ver com a raiva daquela
manh�, que se havia dissipado, e com o dia vibrante, e com o calor dos bra�os de
Al junto aos seus. A brisa agitava os choupos, revelando o lado inferior prateado de
suas folhas.
- Por que esperar? - disse ela, e se levantou, estendendo a m�o.
Al ficou intrigado, perplexo, mas se levantou, apoiou a m�o no ombro dela, e os
dois come�aram a andar para a relva ao som dos acordes agudos da m�sica, tendo
como fundo os carros que passavam, velozes. A luz do sol misturou-se com o cabelo
de Caroline, a grama era macia sob seus p�s, apenas de meias, e os dois se moviam
com tanta facilidade, inclinando-se e rodopiando, que a tens�o que ela trouxera
da reuni�o foi se dissipando a cada passo. Al sorriu, estreitando-a com for�a, e o sol
a tocou na nuca.
Ah, pensou Caroline, quando ele tornou a faz�-la girar, eu vou dizer sim.
Havia o prazer do sol, o riso de Phoebe e o calor das m�os de Al, que penetrava no
tecido em suas costas. Os dois moveram-se pela relva, girando com a m�sica, unidos
por ela. O som do tr�fego era presente e tranq�ilizador como o do oceano. Outros
sons, mais finos, elevavam-se por entre os trechos musicais, em meio ao dia luminoso.
A princ�pio, Caroline n�o os registrou. Depois, Al a girou e ela parou de dan�ar.
Phoebe estava ajoelhada na relva quente e macia, junto �s hort�nsias, soltando gritos
t�o fortes que n�o conseguia falar, com a m�o levantada. Caroline correu e se ajoelhou
na relva, examinando o c�rculo inflamado e inchado na palma da m�o da menina.
- � uma picada de abelha - disse. - Ah, meu amorzinho, d�i, n�o �?
Encostou a cabe�a no cabelo quentinho de Phoebe. Sua pele macia e fina, seu
peito subindo e descendo; embaixo dele, as batidas ritmadas do cora��o. Aquilo era
o que n�o se podia medir, n�o se podia quantificar nem explicar: Phoebe era apenas
ela. Era imposs�vel, enfim, categorizar um ser humano. Imposs�vel ter a pretens�o de
saber como era a vida ou o que ela reservava.
- Ah, benzinho, est� tudo bem - disse, alisando o cabelo da filha.
Mas os solu�os de Phoebe come�aram a dar lugar a um chiado parecido com a laringite
de que ela sofrera quando pequena. A palma da m�o estava inchando; o
dorso e os dedos, tamb�m. Caroline sentiu-se imobilizar por dentro, ao mesmo
tempo em que levantava depressa e chamava Al.
- Depressa! - gritou, com a voz muito alta e estranha. - Ah, Al, ela � al�rgica!
J� ia levantando Phoebe, pesada em seu colo, mas parou, confusa, porque as chaves
estavam em sua bolsa, na bancada da cozinha, e ela n�o conseguiu imaginar
como abrir a porta segurando a menina, que chiava cada vez mais. E ent�o chegou
Al, que pegou Phoebe e correu com ela para o carro, e de algum modo Caroline viu-
se com a chave, a chave e a bolsa. Disparou o mais r�pido que p�de pelas ruas da
cidade. Quando chegaram ao hospital, a respira��o de Phoebe vinha em arquejos
curtos, desesperados.
Largaram o carro na entrada e Caroline agarrou a primeira enfermeira que viu.
- � uma rea��o al�rgica. Precisamos de um m�dico j�.
A enfermeira era mais velha, meio pesadona, com o cabelo virado para dentro
num penteado de pajem. Conduziu-os por uma s�rie de portas de a�o, at� Al depor
Phoebe com toda a delicadeza numa maca. Agora a menina j� lutava para respirar,
com os l�bios levemente azulados. Caroline tamb�m sentia dificuldade de respirar, com
o medo a lhe apertar o peito. A enfermeira puxou o cabelo de Phoebe para tr�s, apalpando
sua pulsa��o no pesco�o. E, nesse momento, Caroline a viu olhar para a
menina como o Dr. Henry a havia olhado, naquela noite de nevasca tanto tempo
antes. Viu a enfermeira fitar os olhos lindamente rasgados da crian�a, as m�ozinhas
que haviam segurado a rede com toda a for�a, enquanto ela corria atr�s de borboletas,
e viu os olhos da mulher se espremerem ligeiramente. Mesmo assim, n�o estava
preparada para o que veio.
- Tem certeza? - perguntou a enfermeira, virando a cabe�a e encontrando o olhar
de Caroline. - Tem certeza de que quer que eu chame um m�dico?
Caroline ficou imobilizada. Lembrou-se do cheiro de legumes cozidos, do dia em
que tinha partido com Phoebe, das express�es impass�veis dos homens da Diretoria
de Ensino. Numa onda de alquimia selvagem, seu medo transformou-se numa raiva
furiosa e penetrante. Ela levantou a m�o para esbofetear o rosto despreocupado e
impass�vel da enfermeira, mas Al segurou sua m�o.
- V� chamar o m�dico - disse ele. - Agora!
P�s o bra�o em volta de Caroline e n�o a soltou mais, nem quando a enfermeira
se afastou nem quando apareceu o m�dico - s� o fez quando a respira��o de Phoebe
come�ou a se regularizar e um pouco de cor voltou ao seu rosto. Depois disso, foram
juntos para a sala de espera e se sentaram nas cadeiras de pl�stico laranja, de m�os
dadas, em meio �s enfermeiras atarefadas, �s vozes que vinham do sistema interno
de comunica��o e ao choro de beb�s.
- Ela podia ter morrido - disse Caroline. Perdeu a calma e come�ou a tremer.
- Mas n�o morreu - disse Al, firme.
A m�o dele era quente, grande e reconfortante. Al fora muito paciente em todos
aqueles anos, voltara uma vez ap�s outra, dizendo que sabia reconhecer uma coisa
boa quando a via. Dizendo que esperaria. Mas, da �ltima vez, tinha passado duas semanas
fora, n�o uma. N�o havia telefonado da estrada e, embora houvesse trazido
flores, como sempre, j� fazia seis meses que n�o propunha casamento. Ele poderia ir
embora em seu caminh�o e nunca mais voltar, nunca mais lhe dar outra chance de
dizer sim.
Caroline ergueu a m�o dele e a beijou na palma, forte e �spera, cheia de calos e
marcada por muitas linhas. Al virou-se, despertado de seus pensamentos num susto,
intrigado como se ele pr�prio acabasse de receber uma picada.
- Caroline - falou, em tom formal. - H� uma coisa que eu quero dizer.
- Eu sei - fez ela, pondo a m�o do caminhoneiro em seu pr�prio cora��o e a segurando
ali. - Ah, Al, eu fui t�o idiota! � claro que eu me caso com voc�.
JULHO DE 1977
SSIM? - PERGUNTOU NORAH.
Estava deitada na praia, e a areia granulosa sob seu quadril escorregava e
se movia. Toda vez que ela inspirava fundo e soltava o ar, a areia lhe deslizava por
baixo do corpo. O sol estava muito quente, como uma chapa tremeluzente de metal
encostada em sua pele. Fazia mais de uma hora que ela estava ali, posando e tornando
a posar, num re-posar que parecia piada, pois repouso era justamente o que ela
desejava e n�o podia ter. Afinal, eram suas f�rias - Norah ganhara duas semanas em
Aruba, por ter vendido o maior n�mero de passagens para cruzeiros do estado de
Kentucky no ano anterior -, mas ali estava ela, com areia grudada no suor dos
bra�os e do pesco�o, enquanto se mantinha im�vel, imprensada entre o sol e a areia.
Para se distrair, fixava o olhar em Paul, que corria pela praia como um ponto no
horizonte. Ele estava com 13 anos e havia espichado feito uma �rvore nova nos 12
meses anteriores. Alto e desengon�ado, corria todas as manh�s, como se pudesse
fugir de sua pr�pria vida.
As ondas quebravam devagar na areia. A mar� estava subindo e a luz ofuscante do
meio-dia n�o tardaria a mudar, tornando imposs�vel at� o dia seguinte a foto que
David queria. Uma mecha de cabelo grudara-se nos l�bios de Norah, fazendo c�cegas,
mas ela se obrigou a permanecer im�vel.
- Bom! - disse David, recurvado sobre a c�mera e disparando uma r�pida sucess�o
de tomadas. - Isso, �timo, assim ficou muito bom mesmo!
- Estou com calor.
- S� mais uns minutos. Estamos quase acabando.
David p�s-se de joelhos, a palidez hibernal das coxas contrastando com a areia.
Ele trabalhava muito e tamb�m passava longas horas na c�mara escura, prendendo
imagens para secar na corda que havia pendurado de uma parede a outra.
- Pense no mar - disse. - Ondas na �gua, ondas na areia. Voc� faz parte disso, Norah.
Na foto voc� vai ver. Vou lhe mostrar.
Norah continuou im�vel sob o sol, vendo-o trabalhar e lembrando os tempos do
in�cio do casamento em que os dois sa�am para longas caminhadas nas noites de primavera,
de m�os dadas, em meio ao ar que recendia a madressilvas e jacintos. O que
teria imaginado aquela vers�o mais jovem dela, andando sob a luz suave e calma do
crep�sculo, sonhando seus sonhos? N�o essa vida, com certeza. Nos �ltimos cinco
anos, Norah aprendera na ponta da l�ngua o que havia para saber no ramo de viagens.
Havia organizado o escrit�rio e, aos poucos, come�ara a supervisionar as excurs�es.
Tinha montado uma lista est�vel de clientes e aprendido a vender, empurrando
brochuras reluzentes por cima da mesa e descrevendo, em detalhes de
tirar o f�lego, lugares que ela mesma s� havia sonhado visitar. Tornara-se especialista
em resolver crises de �ltima hora: bagagens perdidas, passaportes extraviados,
v�os cancelados. No ano anterior, quando Pete Warren resolvera se aposentar, ela
havia respirado fundo e comprado a ag�ncia. Agora era s� dela, desde o pr�dio baixo
de tijolos at� as caixas com bilhetes a�reos em branco, guardadas no arm�rio. Seus
dias eram agitados, atarefados, satisfat�rios - e, toda noite, ela voltava para uma casa
repleta de sil�ncio.
- Continuo sem entender - disse, depois que David finalmente terminou, enquanto
se levantava e sacudia a areia das pernas, dos bra�os e do cabelo. - Para que
tirar minha foto, se voc� espera que eu simplesmente desapare�a na paisagem?
- � uma quest�o de perspectiva - respondeu David, levantando os olhos do equipamento.
Estava com o cabelo desgrenhado, as bochechas e bra�os avermelhados
pelo sol do meio-dia. Ao longe, Paul fizera um retorno e estava voltando, chegando
mais perto. - Tem a ver com as expectativas. As pessoas olhar�o para esta foto e
ver�o uma praia com dunas ondeantes. Depois, vislumbrar�o alguma coisa meio
estranha, algo conhecido no seu conjunto de curvas, ou ent�o ler�o o t�tulo e
tornar�o a olhar, procurando a mulher que n�o viram na primeira vez, e encontrar�o
voc�.
Havia intensidade na voz dele; o vento do mar revolvia seus cabelos pretos. Aquilo
a entristeceu, porque David falava de fotografia como antes havia falado da medicina,
do casamento dos dois, numa linguagem e num tom que evocavam o passado
perdido e a enchiam de saudade. Voc� e o David falam de coisas importantes ou de
bobagens?, perguntara Bree certa vez, e Norah tinha ficado chocada ao perceber
quantas de suas conversas diziam respeito a coisas rotineiras e necess�rias, como as
tarefas dom�sticas e os hor�rios de Paul.
O sol brilhava nos cabelos de Norah e os gr�os de areia grudaram na pele fina
entre suas pernas. David estava concentrado em guardar a c�mera. Norah tivera a
esperan�a de que essas f�rias de sonho fossem um caminho de volta para a intimidade
que um dia eles haviam partilhado. Fora isso que a havia impelido a passar tantas
horas deitada sob o sol quente, mantendo-se im�vel enquanto David batia fotos
num filme ap�s outro, mas havia tr�s dias que eles estavam l� e nada, a n�o ser o
cen�rio, era significativamente diferente de casa. Todos os dias, tomavam o caf� da
manh� em sil�ncio. David encontrava maneiras de trabalhar: ou tirava fotografias,
ou sa�a para pescar. � noite, ficava lendo na rede. Norah fazia caminhadas, cochilava,
matava o tempo e ia �s compras nas lojas coloridas da cidade, com seu pre�os
abusivos para turistas. Paul tocava seu viol�o e corria.
Ela protegeu os olhos contra a luz e contemplou a curva dourada da praia. J� mais
perto, a forma do corredor havia surgido, e ela percebeu que n�o era Paul, afinal. Era
um homem alto, magro, de uns 35 ou 40 anos. Usava um short de nylon azul debruado
de branco, sem camisa. Os ombros, j� bastante bronzeados, tinham uma
queimadura nas bordas que parecia dolorosa. Ao chegar mais perto, ele diminuiu a
velocidade e parou, com as m�os nos quadris e a respira��o pesada.
- Bela c�mera - comentou. Depois, olhando direto para Norah, acrescentou:
- Foto interessante.
O homem tinha uma calv�cie incipiente; os olhos eram castanho-escuros, intensos.
Norah desviou o rosto, ao sentir o calor deles, enquanto David come�ava a falar:
ondas e dunas, areia e pele, duas imagens conflitantes ao mesmo tempo.
Ela correu os olhos pela praia. Sim. L� longe, quase invis�vel, havia outra figura
correndo: seu filho. O sol brilhava muito. Por alguns segundos, Norah sentiu-se
zonza, com peixinhos prateados de luz piscando sob as p�lpebras, conforme a luminosidade
se refletia na crista das ondas. Howard. Ela se perguntou de onde ele seria,
onde teria arranjado um nome desses. Agora, ele e David conversavam animadamente
sobre aberturas e filtros.
- Quer dizer que voc� � a inspira��o desse estudo - disse o homem, virando-se
para inclu�-la na conversa.
- Acho que sim - fez ela, tirando areia do pulso. - � meio prejudicial para a pele
- acrescentou, subitamente c�nscia de que seu novo biqu�ni a deixava quase nua. O
vento passou por ela, rodopiou em seu cabelo.
- N�o, a sua pele � linda - disse Howard. Os olhos de David se arregalaram, fitando-a
como se nunca a tivessem visto antes, e Norah sentiu uma onda de triunfo. Viu?, teve
vontade de dizer. A minha pele � linda. Mas a intensidade do olhar de Howard a deteve.
- Voc� deveria ver os outros trabalhos do David - disse ela. Apontou para o chal�,
aconchegado sob as palmeiras, com buganv�lias cascateando na treli�a da varanda.
- Ele trouxe o portf�lio - completou. Suas palavras eram uma muralha; e tamb�m
um convite.
- Eu gostaria muito - fez Howard, virando-se de novo para David. - Estou interessado
no seu estudo.
- Por que n�o? - perguntou David. - Almoce conosco.
Mas Howard tinha uma reuni�o na cidade �s 13 horas.
- L� vem o Paul - disse Norah. Ele corria em grande velocidade pela beira da
�gua, fazendo um sprint nos �ltimos 100 metros, bra�os e pernas brilhando na luz,
nas ondula��es do calor. Meu filho, pensou Norah, e o mundo se abriu por um instante,
como �s vezes fazia, em torno da simples realidade da presen�a dele. - Nosso
filho - disse, dirigindo-se a Howard. - Ele tamb�m � corredor.
- Est� em boa forma - observou Howard. Paul chegou mais perto e come�ou a
reduzir a velocidade. Ao alcan��-los, curvou-se com as m�os nos joelhos, respirando
fundo.
- E fazendo um bom tempo - concordou David, com uma olhadela para o rel�gio.
N�o fa�a isso, pensou Norah; David parecia n�o perceber o quanto Paul se ressentia
das sugest�es que ele fazia para seu futuro. N�o. Mas David insistiu: - Detesto
v�-lo desperdi�ar sua voca��o. Olhe para essa altura. Imagine o que ele poderia fazer
numa quadra. Mas ele n�o liga a m�nima para o basquete.
Paul ergueu os olhos, fazendo uma careta, e Norah sentiu o �mpeto de uma irrita��o
conhecida. Por que David n�o conseguia entender que, quanto mais insistisse no basquete,
mais Paul resistiria? Se ele queria que Paul jogasse, seria melhor proibi-lo.
- Eu gosto de correr - disse Paul, endireitando o corpo.
- Quem pode censur�-lo, correndo desse jeito? - fez Howard, estendendo a m�o
para cumpriment�-lo.
Paul apertou-lhe a m�o, enrubescendo de prazer. A sua pele � linda, Howard lhe
dissera, momentos antes. Norah se perguntou se seu rosto tamb�m teria sido t�o
transparente.
- Venha jantar conosco - sugeriu num impulso, inspirada na gentileza de Howard
com Paul. Ela estava com fome e com sede, e o sol a deixara tonta. - J� que n�o pode
vir almo�ar, venha jantar. Traga sua mulher, � claro - acrescentou. - Traga a fam�lia.
Vamos fazer uma fogueira e cozinhar na praia.
Howard franziu o cenho, fitando a �gua reluzente. Juntou as m�os e as esticou
atr�s da cabe�a, alongando-se. - Infelizmente, estou sozinho aqui. � uma esp�cie de
retiro. Estou prestes a me divorciar.
- Lamento muito - disse Norah, embora n�o lamentasse.
- Venha assim mesmo - falou David. - A Norah faz uns jantares maravilhosos. Eu
lhe mostro o resto da s�rie em que estou trabalhando: � tudo sobre percep��o.
Transforma��o.
- Ah, transforma��o - disse Howard. - Sou totalmente a favor disso. Adoraria
jantar com voc�s.
David e Howard conversaram mais alguns minutos, enquanto Paul andava na
beira do mar para se refrescar. Howard se foi. Minutos depois, parada na cozinha,
cortando pepinos para o almo�o, Norah o observou afastar-se pela praia, aparecendo,
sumindo e tornando a aparecer, conforme a brisa levantava a cortina. Lembrou-
se do bronzeado escuro de seus ombros, dos olhos e da voz penetrantes. A �gua corria
nos canos, enquanto Paul tomava banho, e havia um farfalhar baixinho de papel:
David arrumando suas fotos na sala. Ao longo dos anos, ele lhe parecera obcecado,
sempre olhando para o mundo - para ela - como que por tr�s da lente de uma
c�mera. A filha que os dois haviam perdido ainda pairava entre eles; a vida de ambos
se moldara em torno dessa aus�ncia. �s vezes, Norah at� se perguntava se essa perda
era o la�o principal que os unia. P�s as fatias de pepino numa saladeira e come�ou
a descascar uma cenoura. Howard parecia um pontinho � dist�ncia, depois sumiu.
Tinha m�os grandes, ela se lembrou, com palmas e cut�culas claras, em contraste
com o bronzeado. Pele linda, ele dissera, e n�o desgrudara os olhos dos dela.
Depois do almo�o, David cochilou na rede e Norah deitou-se na cama embaixo
da janela. A brisa do mar entrou; ela se sentiu profundamente viva, de algum modo
ligada � areia e ao mar pelo vento. Howard era s� um homem comum, quase
esquel�tico e come�ando a ficar calvo, mas era tamb�m misteriosamente irresist�vel,
uma atra��o talvez invocada pela profunda solid�o e anseio da pr�pria Norah. Ela
imaginou Bree, encantada, rindo.
- Bem, por que n�o? - ela diria. - De verdade, Norah, por que n�o?
-Sou uma mulher casada - respondeu Norah, virando-se para olhar pela janela
para a areia m�vel, deslumbrante, ansiosa de que a irm� a refutasse.
- Norah, pelo amor de Deus, a gente s� vive uma vez! Por que n�o nos divertirmos
um pouco?
Levantou-se, pisando de leve nas t�buas antigas e gastas, e preparou um gim-t�nica
com lim�o. Sentou-se no balan�o da varanda, indolente, sentindo a brisa e vendo
David cochilar, t�o desconhecido dela nos �ltimos tempos. As notas do viol�o de
Paul flutuavam na brisa suave. A m�e p�s-se a imagin�-lo, sentado de pernas cruzadas
na cama estreita, cabe�a inclinada, concentrado no novo viol�o Almansa, que ele
adorava e que fora presente de David em seu �ltimo anivers�rio. Era um belo instrumento,
com bra�o de �bano, laterais e fundo de jacarand�, cravelhas de metal. David
bem que tentava com Paul. Insistia demais nos esportes, era verdade, mas tamb�m
arranjava tempo para levar o filho para pescar ou fazer caminhadas pelos bosques
em suas intermin�veis buscas de pedras. Ele passara horas pesquisando aquele viol�o,
encomendara-o a uma empresa em Nova York, e seu rosto se enchera de um
prazer sereno ao ver Paul tir�-lo reverentemente da caixa. Norah olhou para o marido
nesse momento, dormindo do outro lado da varanda, com um m�sculo pulsando
na face.
- David - murmurou, mas ele n�o a ouviu. - David - disse, um pouco mais alto,
por�m ele n�o se mexeu.
�s quatro horas, Norah levantou-se, sonhadora. Escolheu um vestido de ver�o
salpicado de flores, franzido na cintura, de alcinhas finas. P�s um avental e come�ou
a preparar pratos simples, mas esmerados: ostras refogadas, com biscoitos crocantes
para acompanhar, espigas de milho cozido, salada verde, pequenas lagostas que
comprara no mercado naquela manh�, ainda em baldes de �gua salgada. Enquanto
se movimentava pela cozinha min�scula, improvisando assadeiras com formas de
bolo e substituindo a manjerona por or�gano no molho da salada, a saia franzida de
algod�o ro�ava de leve em suas coxas e quadris. A brisa, morna como um h�lito,
deslizava sobre seus bra�os. Ela mergulhou as m�os na pia de �gua gelada, lavando
uma a uma as folhas delicadas de alface. Do lado de fora, Paul e David se empenhavam
em acender o fogo da grelha meio enferrujada, cujos furos tinham sido remendados
com papel-alum�nio. Havia pratos de papel na mesa desbotada e vinho servido
em copos de pl�stico vermelhos. Eles comeriam a lagosta com as m�os, com a
manteiga escorregando pelas palmas.
Norah ouviu a voz dele antes de v�-lo: um tom diferente, ligeiramente mais grave
que o de David e um pouquinho mais nasalado, com um sotaque neutro do Norte;
um ar frio, com um toque de neve, flutuava na sala a cada s�laba proferida. Norah
secou as m�os no pano de prato e foi at� a porta.
Os tr�s homens - assustou-se ao pensar em Paul dessa maneira, mas agora ele
estava ombro a ombro com David, quase adulto e independente, como se seu corpo
nunca tivesse tido nada a ver com o dela - estavam agrupados na areia, pouco adiante
da varanda. A grelha exalava seus aromas de fuma�a e resina, e as brasas emitiam
ondas de calor no c�u. Paul, sem camisa, tinha as m�os enfiadas nos bolsos da bermuda
e respondia com brevidade constrangida �s perguntas que lhe eram endere�adas.
Eles n�o a viram, o marido e o filho; tinham os olhos voltados para o fogo e
para o oceano, liso como vidro fosco naquele hor�rio. Howard, de frente para eles,
foi quem levantou o queixo para Norah e sorriu.
Por um instante, antes que os outros se virassem, antes que Howard levantasse a
garrafa de vinho e a passasse para suas m�os, seus olhos se encontraram. Foi um
momento real apenas para eles dois, algo que depois n�o se poderia provar, um
instante de comunh�o sujeito ao que quer que o futuro impusesse. Mas foi real: o
tom escuro dos olhos de Howard, o rosto dele e o dela abrindo-se de prazer e promessa,
o mundo quebrando a seu redor, como as ondas.
David virou-se, sorridente, e o instante se fechou como uma porta.
- � branco - disse Howard, entregando-lhe a garrafa. Nesse momento ocorreu a
Norah o quanto ele parecia comum, o jeito bobo de suas costeletas descerem at�
a metade de suas faces. O sentido oculto do instante anterior - ser� que ela o havia
imaginado? - tinha desaparecido. - Espero que sirva.
- � perfeito. Vamos comer lagosta.
Sim, era muito comum essa conversa. O momento surpreendente ficara para tr�s,
e ela encenou a anfitri� gentil, desempenhando seu papel com a mesma facilidade
com que se movia dentro do vestido leve. Howard era seu convidado; Norah ofereceu-
lhe uma cadeira e uma bebida. Quando voltou, trazendo garrafas de gim e �gua
t�nica e um balde de gelo numa bandeja, o sol havia chegado � beira da �gua.
Nuvens altas inflavam-se no c�u em sombras et�reas de rosa e p�ssego.
Jantaram na varanda. A escurid�o desceu depressa, e David acendeu as velas dispostas
a intervalos ao longo da balaustrada. Ao longe, a mar� encheu, com as ondas
correndo invis�veis para a areia. A luz bruxuleante, a voz de Howard subia, descia e
tornava a subir. Ele falava de uma c�mara escura que havia constru�do. Era uma
caixa de mogno que vedava toda a luz, exceto por uma �nica abertura �nfima. Esse
pontinho projetava uma imagem min�scula do mundo num espelho. O aparelho
era o precursor da m�quina fotogr�fica; alguns pintores - Vermeer era um deles -o
haviam usado como instrumento para atingir um n�vel extraordin�rio de detalhe
em seu trabalho. Era o que Howard tamb�m vinha explorando.
Norah escutou, banhada pela noite, impressionada com as imagens usadas por
ele: o mundo projetado numa parede interna escurecida, figuras min�sculas captadas
pela luz, por�m m�veis. Era muito diferente das sess�es dela com David, nas
quais a c�mera parecia fix�-la no espa�o e no tempo, mant�-la imobilizada. Esse,
percebeu ela, bebericando seu vinho no escuro, era o problema no �mago de tudo.
Em algum ponto do caminho, ela e David tinham emperrado. Agora circundavam
um ao outro, fixados em suas �rbitas distintas. O assunto da conversa mudou e
Howard contou hist�rias da �poca que passara no Vietn�, trabalhando como fot�grafo
do ex�rcito, documentando batalhas.
- Muito daquilo era ma�ante, na verdade - disse ele, quando Paul externou sua
admira��o. - Boa parte era s� subir e descer o Mekong num barco. Mas � um rio
extraordin�rio, um lugar extraordin�rio.
Terminado o jantar, Paul foi para seu quarto. Minutos depois, as notas do viol�o
cascatearam por entre o som das ondas. Ele n�o tinha querido tirar essas f�rias; abrira
m�o de uma semana no acampamento de m�sica e teria que se apresentar num
concerto importante, dias depois de eles voltarem para casa. David havia insistido
em que ele fosse; n�o levava a s�rio as ambi��es musicais do filho. Como passatempo,
tudo bem, mas n�o como carreira. S� que Paul era apaixonado por viol�o e estava
decidido a ir para a Escola de M�sica Juilliard. David, que tanto se esfalfara para
lhes dar todo o conforto, ficava tenso toda vez que o assunto vinha � baila. Nesse
momento, as notas de Paul desciam pelo ar, aladas e graciosas, mas cada uma tamb�m
meio cortante, uma ponta de faca perfurando a pele.
A conversa passou da �ptica para a luz rarefeita do vale do rio Hudson, onde
Howard morava, e do sul da Fran�a, que ele gostava de visitar. O homem descreveu
a estrada estreita, da qual subia uma poeira fina, e os campos de girass�is pulsantes.
Todo ele era voz, mal passando de uma sombra ao lado de Norah, mas suas palavras
a atravessavam como a m�sica de Paul, dentro e fora dela ao mesmo tempo. David
serviu mais vinho e mudou de assunto, e de repente todos se puseram de p� e entraram
na sala intensamente iluminada. David tirou da pasta sua s�rie de fotos
preto-e-branco, e ele e Howard lan�aram-se numa discuss�o animada sobre as qualidades
da luz.
Norah deixou-se ficar � margem. As fotografias que os homens estavam discutindo
eram todas dela: seus quadris, sua pele, suas m�os, seu cabelo. No entanto, ela fora
exclu�da da conversa: objeto, n�o sujeito. Vez por outra, quando entrava num
escrit�rio em Lexington, ela deparava com uma foto an�nima, por�m estranhamente
familiar - uma curva de seu corpo ou um lugar visitado na companhia de David,
despidos de seu significado original e transformados: uma imagem da carne dela que
se tornara abstrata, uma id�ia. Ao posar para o marido, Norah havia tentado diminuir
um pouco a dist�ncia que se alargara entre o casal. Culpa dele, dela, n�o tinha
import�ncia, na verdade. Mas, nesse momento, vendo David absorto em sua expli
ca��o, Norah compreendeu que ele n�o a via realmente, fazia anos que n�o a via.
A raiva brotou em seu peito numa onda que a deixou tr�mula. Ela deu meia-volta
e saiu da sala. Desde o dia das vespas, havia bebido muito pouco, mas, nessa hora,
foi � cozinha e encheu de vinho at� a borda um copo vermelho de pl�stico. Em toda
a sua volta havia panelas sujas e manteiga endurecida, e as carapa�as rubras das lagostas
lembravam cascas de cigarras mortas. Tanto trabalho por um prazer t�o curto!
Em geral, David lavava a lou�a, mas, nessa noite, Norah amarrou um avental na
cintura, encheu a pia e guardou as sobras de ostra refogada na geladeira. Na sala, as
vozes prosseguiam, interminavelmente, subindo e descendo como as ondas do mar.
O que ela havia pensado, ao p�r aquele vestido e se deixar levar pela voz de Howard?
Ela era Norah Henry, mulher de David e m�e de Paul, um filho quase criado. Havia
fios grisalhos em seu cabelo, os quais n�o lhe parecia que ningu�m visse, a n�o ser
ela mesma, espremendo os olhos sob a luz ofuscante do banheiro. Mas era verdade.
Howard tinha ido l� para conversar sobre fotografia com David, s� isso.
Norah foi at� o lado de fora, levando o lixo para o lat�o. A areia estava ligeiramente
fria sob seus p�s descal�os; o ar, morno como sua pele. Ela foi at� a beira do
mar e ficou parada, fitando a vastid�o v�vida e branca do c�u estrelado. Atr�s dela, a
porta de tela abriu e fechou. David e Howard sa�ram, andando pela areia e pela
escurid�o.
- Obrigado por arrumar a cozinha - disse David. Tocou-a de leve nas costas e
Norah ficou tensa, fazendo um esfor�o para n�o se afastar. - Desculpe eu n�o ter
ajudado. Acho que nos perdemos na conversa. O Howard tem umas id�ias boas.
- Na verdade, fiquei fascinado com seus bra�os - observou Howard, referindo-se
�s centenas de fotos tiradas por David. Pegou um peda�o de madeira flutuante e o
jogou longe, com for�a. Os tr�s o ouviram bater na �gua e ser lambido pelas ondas,
que o levaram para o mar.
Atr�s deles, a casa parecia uma lanterna, desenhando um c�rculo luminoso, mas
os tr�s se achavam numa escurid�o t�o completa que Norah mal conseguia enxergar
o rosto de David, o de Howard ou suas pr�prias m�os. Eles n�o passavam de formas
ensombrecidas e vozes incorp�reas na noite. A conversa girou aqui e ali, retornando
� t�cnica e aos m�todos. Norah sentiu-se prestes a soltar um grito. P�s um p�
descal�o atr�s do outro, na inten��o de dar meia-volta e se retirar, quando, de
repente, uma m�o ro�ou sua coxa. Assustada, ela parou. Esperou. Num instante, os
dedos de Howard subiram de leve pela costura de seu vestido e, em seguida, a m�o
dele deslizou para dentro de seu bolso, levando um calor s�bito e secreto � sua pele.
Norah prendeu a respira��o. David continuava a falar de suas fotografias. Ela con
tinuava de avental, e estava muito escuro. Passado um momento, virou um pouco para
o lado e a m�o de Howard abriu-se em flor sobre o tecido fino, sobre sua barriga lisa.
- Bem, � verdade - disse ele, com a voz baixa e fluente. - Voc� sacrificaria um
pouco da claridade, se usasse esse filtro. Mas o efeito com certeza valeria a pena.
Norah soltou a respira��o bem devagar, perguntando-se se Howard conseguia
sentir a pulsa��o desvairada e r�pida de seu sangue. Os dedos dele irradiavam calor,
e ela se encheu de um desejo t�o intenso que chegava a doer. As ondas subiam, rolavam
e tornavam a subir. Norah se manteve inteiramente im�vel, ouvindo o movimento
apressado da pr�pria respira��o.
- Agora, com a c�mara escura, voc� fica um passo mais perto desse processo disse
Howard. - � realmente incr�vel o modo como ela emoldura o mundo. Eu
gostaria que voc� desse uma passada l� para ver. Quer ir?
- Amanh� vou levar o Paul para pescar em alto-mar - respondeu David. - Talvez
depois de amanh�.
- Acho que vou entrar - disse Norah, com a voz d�bil.
- A Norah fica entediada - comentou David.
- Quem pode culp�-la? - perguntou Howard, e sua m�o deslizou para a parte
inferior da barriga de Norah, �gil e forte, como o bater de uma asa. Depois, deslizou
para fora de seu bolso. - Passe l� amanh� de manh�, se quiser. Estou fazendo uns
desenhos com a c�mara escura.
Norah acenou com a cabe�a, sem dizer nada, imaginando o facho �nico de luz a
penetrar na escurid�o e projetar imagens maravilhosas na parede.
Howard foi embora minutos depois, desaparecendo quase de imediato nas trevas.
- Gostei desse sujeito - disse David depois, quando os dois j� haviam entrado.
Agora a cozinha estava imaculada: todos os vest�gios da tarde sonhadora de Norah
tinham-se escondido.
Ela estava na janela, olhando para a praia escura, ouvindo as ondas, com as duas
m�os enfiadas nos bolsos do vestido.
- �. Eu tamb�m - concordou.
Na manh� seguinte, David e Paul se levantaram antes do amanhecer para ir � marina
pegar o barco de pesca. Norah ficou deitada no escuro enquanto eles se aprontavam,
sentindo na pele a maciez do len�ol limpo de algod�o, ouvindo-os esbarrarem
nas coisas pela sala, desajeitados, tentando n�o fazer barulho. Depois, passos,
o ronco do motor do carro, novamente o sil�ncio e o som das ondas. Ela continuou
deitada, l�nguida, enquanto um filete de luz se formava onde o c�u e o mar se encontravam.
Depois, tomou um banho, vestiu-se e preparou uma x�cara de caf�. Comeu
metade de uma laranja, lavou e guardou a lou�a, saiu porta afora. Usava short
e uma blusa turquesa, estampada de flamingos. Os t�nis brancos estavam amarrados
um no outro, pendurados em sua m�o. Ela havia lavado a cabe�a e o vento do
mar secava seu cabelo, embara�ando-o em volta do rosto.
O chal� de Howard, a pouco mais de um quil�metro e meio de areia, era quase
id�ntico ao de Norah. Ele estava sentado na varanda, debru�ado sobre uma caixa de
madeira de acabamento escuro. Usava um short branco e uma camisa laranja de
madras quadriculado, aberta. Os p�s, como os dela, estavam descal�os. Ele se levantou
� aproxima��o de Norah.
- Quer um caf�? - gritou. - Eu estava vendo voc� andar pela praia.
- N�o, obrigada.
- Tem certeza? � caf� irland�s. Com uma dosezinha de �lcool, se entende o que
eu quero dizer.
- Talvez daqui a pouco - disse Norah. Subiu a escada e passou a m�o pela caixa
polida de mogno. - Essa � a c�mara escura?
- �. Venha at� aqui. D� uma olhada.
Norah sentou-se na cadeira, que ainda guardava o calor do corpo dele, e olhou
pela abertura. Ali estava o mundo, a longa faixa de praia e o aglomerado de pedras,
e uma vela deslocando-se lentamente no horizonte. O vento soprava nas casuarinas,
tudo min�sculo e nitidamente detalhado, emoldurado e contido, mas vivo, n�o
est�tico. Depois, ela ergueu os olhos, piscando, e constatou que o mundo tamb�m se
transformara: as flores claramente desenhadas contra a areia, a cadeira de listras
vivas, o casal que caminhava � beira-mar. Tudo v�vido, espantoso, muito mais do
que ela havia se apercebido.
- Ah! - exclamou, tornando a olhar para o interior da caixa. - � impressionante.
O mundo fica t�o exato, t�o rico! D� at� para ver o vento se movendo nas �rvores.
Howard riu.
- � uma maravilha, n�o �? Eu sabia que voc� ia gostar.
Norah pensou em Paul quando beb�, com a boca arredondada num c�rculo perfeito,
deitado em seu ber�o, olhos fixos numa maravilha banal. Tornou a inclinar a
cabe�a para ver o mundo contido, depois olhou para cima, para v�-lo transformado.
Livre de sua moldura de escurid�o, at� a luz tinha um brilho intermitente, vivo.
- � muito bonito - sussurrou ela. - � t�o lindo que mal consigo acreditar.
170
- Eu sei - disse Howard. - V� para l�. Entre nela. Deixe-me desenh�-la.
Norah levantou-se e saiu para a areia quente, para a luz ofuscante. Virou-se e
parou diante de Howard, que inclinava a cabe�a para a abertura, e observou sua m�o
deslocar-se pelo bloco de desenho. O cabelo dela se aqueceu - o sol j� se transformara
numa palma quente e plana - e Norah lembrou-se de ter posado na v�spera e
tamb�m na antev�spera. Quantas vezes havia ficado assim, sujeito e objeto, fazendo
pose para evocar ou preservar o que a rigor n�o existia, guardando seus pensamentos
verdadeiros para si?
E assim se postou nesse momento, uma mulher reduzida a uma miniatura perfeita
de si mesma, cada detalhe seu projetado num espelho pela luz. A brisa do mar,
quente e �mida, balan�ava o cabelo de Howard, e sua m�o, de dedos longos e unhas
bem cuidadas, movia-se depressa enquanto ele a desenhava, fixando-lhe a imagem
no papel. Norah lembrou-se da areia movendo-se sob seus quadris ao posar para a
c�mera de David e de como os dois homens haviam falado dela depois, n�o como
uma mulher de carne e osso, presente na sala, mas como uma imagem, uma forma.
Ao recordar isso, seu corpo de repente lhe pareceu fr�gil, como se ela n�o fosse a
mulher preparada e independente que levara e trouxera um grupo de turistas da
China, mas algu�m pass�vel de ser arrastado para longe por uma lufada de vento.
Depois, lembrou-se da m�o de Howard, aquecendo seu bolso e sua pele. Aquela
m�o, a m�o que se movia nesse momento, a m�o que a atra�a.
Levou as m�os � cintura e segurou a bainha da blusa. Lentamente, mas sem hesitar,
tirou-a pela cabe�a e deixou-a cair na areia. Na varanda, Howard parou de
desenhar, embora n�o levantasse a cabe�a. Os pequenos m�sculos de seus bra�os e
ombros j� n�o se mexiam. Norah abriu o z�per do short. A roupa escorregou por
suas pernas e ela deu um passo para o lado, deixando-a na areia. At� ali, nada de
novo, apenas o mesmo biqu�ni com que j� servira de modelo tantas vezes. S� que,
nesse momento, ela levou as m�os �s costas e soltou o suti�. Deslizou a parte de
baixo pelos quadris e pernas e a chutou para longe. Ficou im�vel, sentindo o sol e o
vento ro�arem sua pele.
Devagar, Howard levantou a cabe�a da c�mara escura e ficou sentado, olhando fixo.
Por um instante, aquilo teve um ar de pesadelo, da sensa��o de p�nico e vergonha
que ela sentia ao perceber, no meio de um sonho em que fazia compras ou andava
por um jardim cheio de gente, que tinha esquecido de se vestir. E come�ou a estender
a m�o para apanhar a roupa.
- N�o, n�o - sussurrou Howard, e Norah parou, empertigando o corpo. - Voc� �
t�o linda!
Em seguida, ele se levantou com cuidado, devagar, como se ela fosse um p�ssaro
que pudesse assustar-se e voar � sua aproxima��o. Mas Norah continuou muito
quieta, intensamente presente em seu corpo, como se fosse de areia, areia encontrando-
se com o fogo e prestes a se transformar, alisar-se, cintilar. Howard cruzou os
poucos metros de praia. Pareceu levar uma eternidade, afundando os p�s na areia
morna. Quando enfim chegou at� ela, parou, sem toc�-la, e a fitou. O vento balan�ava
o cabelo de Norah e ele afastou uma mecha de sua boca, prendendo-a com toda
a delicadeza atr�s de sua orelha.
- Eu jamais conseguiria captar isso - disse -, assim como voc� est� neste momento.
Nunca poderia capt�-lo.
Norah sorriu e espalmou a m�o no peito de Howard, sentindo a maciez do tecido
leve e da carne morna, as camadas de m�sculos, os ossos. O esterno, lembrou-se,
dos tempos em que havia estudado os ossos para ter uma compreens�o melhor de
David e seu trabalho. O man�brio e o glad�olo, em formato de espada. As costelas
verdadeiras e as falsas, as linhas de jun��o.
Howard p�s as m�os em concha em volta do rosto dela, de leve. Norah deixou
suas m�os ca�rem. Juntos, sem falar, os dois entraram no pequeno chal�. Ela deixou
as pe�as de roupa na areia; tamb�m n�o se importou com isso, com a possibilidade
de que algu�m as visse. As t�buas da varanda cederam ligeiramente sob seus p�s. O
tecido que cobria a c�mara escura foi tirado e ela viu com satisfa��o que Howard
tinha esbo�ado a praia e o horizonte, as pedras e �rvores dispersas; todos eram reprodu��es
perfeitas. Ele havia esbo�ado seu cabelo, uma nuvem suave e amorfa, mas
fora s�. No lugar em que ela estivera, a p�gina continuava em branco. Suas roupas
tinham ca�do como folhas, e ele erguera os olhos para v�-la parada ali.
Para fugir � monotonia, Norah � que tinha feito o tempo parar.
O quarto pareceu escuro, depois da luminosidade da praia, e o mundo foi emoldurado
pela janela como o fora na lente da c�mara escura, t�o brilhante e v�vido que
lhe trouxe l�grimas aos olhos. Norah sentou-se na beirada da cama.
- Deite-se - disse ele, tirando a camisa. - S� quero olhar para voc� por um instante.
Norah deitou-se e ele ficou em p� a seu lado, percorrendo-lhe a pele com os olhos.
- Fique comigo - fez ele, e a assustou, ao se ajoelhar e descansar a cabe�a em seu
ventre, com o rosto por barbear espetando-lhe a barriga. Norah sentia-lhe o peso a
cada vez que respirava, e a respira��o de Howard percorria sua pele. Ela estendeu as
m�os, alisando-lhe os cabelos ralos, e o puxou para cima, para que a beijasse.
Horas mais tarde, ficaria at�nita, n�o por ter feito essas coisas ou qualquer das
que vieram depois, mas por t�-las feito na cama de Howard, embaixo da janela aber
ta e sem persianas, emoldurada como uma imagem numa c�mera. David estava
longe, em alto-mar, com Paul, pescando. Mesmo assim, qualquer um poderia ter
passado e visto os dois.
Mas Norah n�o parou, nem nessa ocasi�o nem depois. Howard foi uma esp�cie
de febre para ela, uma compuls�o, uma porta aberta para suas pr�prias possibilidades,
para o que ela supunha ser a liberdade. Estranhamente, Norah descobriu que
seu segredo tamb�m fazia a dist�ncia entre ela e David parecer mais suport�vel.
Voltou repetidas vezes ao chal� de Howard, mesmo depois de David comentar sobre
as muitas caminhadas que ela vinha fazendo e sobre como ia longe. Mesmo quando,
demorando-se na cama enquanto Howard preparava uma bebida para os dois,
ela pescou o short dele no ch�o e encontrou uma foto de sua esposa sorridente e tr�s
fdhos pequenos dentro de uma carta, que dizia: Mam�e est� melhor, todos sentimos
saudade e amamos voc�, e nos veremos na pr�xima semana.
Isso aconteceu numa tarde em que o sol fazia as ondas cintilarem e o calor subia
da areia, tremeluzindo. O ventilador de teto estalava na penumbra do quarto. Norah
segurou a foto e olhou para a paisagem da imagina��o, l� fora, para a luz brilhante.
Na vida real, aquela foto teria trazido um corte r�pido e certeiro, mas ali Norah n�o
sentiu nada. Enfiou-a de novo no bolso do short e o deixou cair outra vez no ch�o.
Ali aquilo n�o tinha import�ncia. S� o que importava era o sonho, assim como a luz
febril. Nos 10 dias seguintes, ela se encontrou com o amante.
AGOSTO DE 1977
I
AVID SUBIU A ESCADA CORRENDO E ENTROU NO SILENCIOSO SAGU�O DE
entrada da escola, parando por um momento para recobrar o f�lego e se
orientar. Estava atrasado para o concerto de Paul, muito atrasado. Tinha planejado
sair cedo do hospital, mas haviam chegado ambul�ncias com um casal mais idoso,
quando ele ia cruzando a porta da sa�da: o marido ca�ra de uma escada e aterrissara
em cima da mulher. A perna dele e o bra�o dela estavam quebrados; a perna precisara
de pinos e uma placa. David tinha telefonado para Norah e ouvira a raiva mal
contida na voz da mulher, ele mesmo com tanta raiva que n�o havia se incomodado,
ficara at� contente por irrit�-la. Afinal, ela se casara com ele sabendo como era
seu trabalho. Um sil�ncio inc�modo se manteve por um longo tempo, antes que
David desligasse.
O piso de lajotas tinha um tom vagamente rosado, e os arm�rios ao longo das
paredes do corredor eram azul-escuros. David parou para escutar e, por um momento,
ouviu apenas sua pr�pria respira��o, mas os aplausos a seguir o conduziram
pelo corredor at� as grandes portas de madeira do audit�rio. Ele abriu uma das duas
e entrou, deixando seus olhos se acostumarem � penumbra. O local estava lotado;
um mar de cabe�as escuras descia at� o palco feericamente iluminado. David as vasculhou,
procurando Norah. Uma mo�a lhe entregou um programa e, enquanto um
menino de jeans arriados nos quadris entrava no palco e se sentava com seu saxofone,
ela lhe apontou o quinto nome da lista. David deu um grato suspiro de al�vio
e sentiu a tens�o diminuir. Paul era o s�timo; ele conseguira chegar bem a tempo.
O saxofonista come�ou, tocando com paix�o e intensidade, e uma nota aguda fez
David sentir calafrios na espinha. Ele tornou a examinar a plat�ia e viu Norah na
parte central, nas filas da frente, com um assento vazio a seu lado. Pelo menos havia
pensado nele, guardando seu lugar. David n�o tivera certeza de que ela o faria; ali�s,
j� n�o tinha certeza de quase nada. Tinha certeza de sua raiva e da culpa que o mantivera
calado sobre o que tinha visto em Aruba; essas coisas certamente se interpunham
entre eles. Mas David n�o tinha o menor vislumbre do cora��o de Norah, de
seus desejos ou motiva��es.
O saxofonista terminou com um floreio, levantou-se e fez uma mesura. Durante
os aplausos, David desceu os degraus pouco iluminados e, constrangido, passou
pelas pessoas j� sentadas para ocupar seu lugar ao lado da mulher.
- David - disse ela, tirando o casaco do assento. - Bem, voc� conseguiu, afinal.
- Foi uma cirurgia de emerg�ncia, Norah.
- Ah, eu sei, j� estou acostumada. � s� o Paul que me preocupa.
- O Paul tamb�m me preocupa. � por isso que estou aqui.
- Sei. Com certeza - fez ela. A voz era cortante e seca. - Est� mesmo.
David sentiu a raiva que se irradiava em ondas da mulher. Seu cabelo curto estava
com um penteado perfeito, e ela usava todos os matizes de creme e dourado, num
vestido de seda natural que havia comprado em sua primeira viagem a Cingapura.
Com o crescimento da empresa, Norah passara a viajar mais e mais, levando grupos
de turistas a locais corriqueiros e ex�ticos. David a havia acompanhado algumas vezes,
no come�o, quando as viagens eram menores e menos ambiciosas: pelo Parque
Nacional Mammoth Cave, no Kentucky, ou num passeio de barco pelo Mississipi.
Em todas as ocasi�es, ficara deslumbrado com Norah, com a pessoa em quem ela
havia se transformado. Os participantes das excurs�es a procuravam com suas inquieta��es
e preocupa��es: a carne mal passada, a cabine pequena demais, o ar-condicionado
com defeito, as camas muito duras. Ela os escutava atentamente e se mantinha
calma em todas as crises, acenando com a cabe�a, dando um tapinha num ombro,
pegando o telefone. Ainda era bonita, embora houvesse agora uma certa tens�o
em sua beleza. Norah era boa no que fazia. E mais de uma senhora de cabelos azulados
o chamara � parte para se certificar de que ele sabia a sorte que tinha.
David foi obrigado a se perguntar o que pensariam aquelas mulheres se elas tivessem
encontrado as roupas de Norah largadas numa pilha na areia.
- Voc� n�o tem o direito de se irritar comigo, Norah - sussurrou. Ela recendia
vagamente a laranjas e tinha o queixo tenso. No palco, um jovem de terno azul sentou-
se ao piano, flexionando os dedos. Ap�s um momento, mergulhou, fazendo as
notas ondularem. - N�o tem mesmo - insistiu David.
- N�o estou irritada. S� estou nervosa, por causa do Paul. � voc� que est� irritado.
- N�o, � voc�. Voc� tem estado assim desde Aruba.
- Olhe-se no espelho - sussurrou ela.
Nesse momento, uma m�o pousou no ombro de David. Ele virou para tr�s e viu
uma mulher corpulenta, sentada junto ao marido, com uma longa fileira de filhos
estendendo-se dos dois lados do casal.
- Com licen�a - disse ela. - O senhor � o pai do Paul Henry, n�o �? Bem, aquele
l�, tocando piano, � o meu filho Duke. Se o senhor n�o se importa, n�s realmente
gostar�amos de ouvi-lo.
David e Norah se entreolharam, num breve momento de cumplicidade; ela estava
ainda mais constrangida que o marido.
Ele se acomodou na cadeira e ouviu. O rapazinho, Duke, amigo de Paul, tocava
piano com intensa inibi��o, mas era muito bom, tecnicamente competente e tamb�m
apaixonado. David observou suas m�os correrem pelo teclado e ficou pensando
no que Duke e Paul conversariam quando andavam de bicicleta pelas ruas silenciosas
do bairro. Com que sonhariam aqueles meninos? O que Paul dizia aos amigos
que nunca diria ao pai?
As roupas de Norah, largadas numa pilha colorida sobre a areia branca, com o
vento levantando a ponta da blusa de cores espalhafatosas: essa era uma coisa que
eles nunca discutiriam, embora David desconfiasse que Paul tamb�m as tinha visto.
Os dois haviam acordado muito cedo para pescar, naquela manh�, e tinham seguido
de carro pelo litoral, na escurid�o antes do alvorecer, passando por pequenos vilarejos.
N�o eram de muita conversa, nem ele nem Paul, mas sempre havia um sentimento
de comunh�o naquelas horas matinais, nos rituais de jogar o anzol e girar
o molinete, e David ansiava por essas oportunidades de estar com o filho, que crescia
muito depressa e se tornara um mist�rio para ele. Mas a viagem tinha sido cancelada;
o motor do barco pifara e o dono estava � espera de novas pe�as. Desapontados,
os dois haviam se demorado um pouco no cais, tomando suco de laranja engarrafado
e vendo o sol nascer sobre o oceano. Depois, tinham voltado para o chal�.
A luz estava boa naquela manh�, e David, embora decepcionado, tamb�m estava
ansioso para voltar � sua c�mera. Tivera uma outra id�ia sobre suas fotos, no meio
da noite. Howard havia indicado um lugar em que mais uma imagem arremataria a
s�rie inteira. Um bom sujeito, aquele Howard, e perspicaz. A conversa dos dois ficara
na cabe�a de David a noite inteira, gerando uma empolga��o comedida. Ele quase
n�o tinha dormido, e estava com vontade de passar em casa e tirar mais um filme de
fotos de Norah na areia. Mas ele e o filho haviam encontrado o chal� quieto, fresco
e vazio, banhado de luz e do som das ondas. Norah tinha deixado uma fruteira com
laranjas no centro da mesa. Sua x�cara de caf� estava lavada, secando na pia. Norah?,
ele havia chamado. E de novo: Norah? Mas n�o houvera resposta. Acho que vou dar
uma corrida, dissera Paul, uma sombra no v�o iluminado da porta, e David tinha
concordado com um aceno. Veja se encontra sua m�e por a�, pedira.
Sozinho no chal�, David tinha levado a fruteira para a bancada e espalhado as
fotos na mesa. Elas farfalhavam na brisa, e fora preciso prend�-las com copinhos de
licor. Norah reclamava de que ele estava ficando obcecado pela fotografia - por que
outra raz�o levaria seu portf�lio numa viagem de f�rias? -, e talvez fosse verdade.
Mas ela estava errada quanto ao resto. �s vezes, ao ver as imagens emergirem no
banho do revelador, David vislumbrava um bra�o dela, a curva de seu quadril, e era
tomado por um profundo sentimento de amor pela mulher. Ainda estava arrumando
e rearrumando as fotos quando Paul voltou, batendo a porta com for�a ao entrar.
- Essa foi r�pida - dissera David, erguendo os olhos.
- Cansado, estou cansado - fora a resposta. Paul havia passado direto pela sala de
jantar e desaparecido em seu quarto.
- Paul? - falou David. Fora at� a porta do quarto e girara a ma�aneta. Trancada.
- S� estou cansado - dissera seu filho. - Est� tudo �timo.
David tinha esperado mais uns minutos. Paul andava com o humor muito inst�vel.
Nada do que o pai dizia parecia estar certo, e o pior eram as conversas com o filho
sobre seu futuro. Um futuro que poderia ser brilhante. Paul tinha talento para a
m�sica e os esportes, com todas as possibilidades em aberto. Muitas vezes, David
achava que sua pr�pria vida - as escolhas dif�ceis que tivera que fazer - se justificaria,
se ao menos Paul realizasse seu potencial, e vivia com um medo constante e inc�modo
de ter falhado com o filho de algum modo, medo de que Paul desperdi�asse
seu talento. Voltara a bater de leve na porta, mas Paul n�o tinha respondido.
Por fim, David dera um suspiro e voltara para a cozinha. Havia admirado a fruteira
com laranjas na bancada, as curvas das frutas e da madeira escura. Depois, por
um impulso que n�o saberia explicar, tinha sa�do e come�ado a andar pela praia. J�
andara cerca de um quil�metro ao avistar de longe o esvoa�ar colorido da blusa de
Norah. Ao chegar mais perto, tinha percebido que eram as roupas dela, largadas
na praia em frente ao que devia ser o chal� de Howard. David havia parado sob o
brilho ofuscante do sol, intrigado. Teriam os dois ido nadar? Vasculhara a �gua sem
v�-los e continuara andando at� ser detido pelo riso conhecido de Norah, baixo e
musical, saindo pelas janelas do chal�. Tamb�m tinha ouvido o riso de Howard, fazendo
eco ao dela. Naquele momento havia compreendido e fora tomado por uma
dor que arranhava e queimava tanto quanto a areia sob seus p�s.
Howard, com seu cabelo ralo e suas sand�lias, parado na sala na noite anterior,
dando conselhos geniais sobre fotografia.
Com Howard. Como � que Norah pudera?
No entanto, apesar de tudo, ele havia passado anos esperando esse momento.
A areia queimava seus p�s e a luz era ofuscante. David fora tomado pela certeza
antiga de que a noite de nevasca em que ele entregara sua filha a Caroline Gill n�o
ficaria impune. A vida tinha continuado, era plena e rica; em todos os aspectos vis�veis,
ele era um sucesso. No entanto, em momentos espor�dicos - no meio de uma
cirurgia, ou dirigindo para a cidade, ou prestes a pegar no sono -, tinha sobressaltos
repentinos, afligido pela culpa. Dera sua pr�pria filha. Esse segredo tinha ficado no
centro de sua fam�lia, havia moldado sua vida em comum. David o conhecia, podia
enxerg�-lo, vis�vel como um muro de pedra erguido entre eles. E via Norah e Paul
tentando se aproximar e batendo na pedra, sem compreender o que estava acontecendo,
sabendo apenas que havia alguma coisa entre eles que n�o podia ser vista
nem rompida.
Duke Madison terminou a pe�a com um floreio, ficou de p� e curvou-se. Norah,
batendo palmas com entusiasmo, virou-se para a fam�lia no banco de tr�s e disse:
- Ele foi maravilhoso. O Duke tem muito talento.
O palco ficou vazio e os aplausos foram cessando. Passou-se um minuto, mais
outro. As pessoas come�aram a murmurar.
- Onde est� ele? - perguntou David, consultando seu programa. - Cad� o Paul?
- N�o se preocupe, ele est� aqui - respondeu Norah. Para sua surpresa, ela lhe
segurou a m�o. David sentiu a temperatura fria e foi inundado por um al�vio inexplic�vel,
acreditando, por um momento, que nada havia mudado, que n�o havia
nada entre eles, afinal. - Ele j� vai sair.
No exato momento em que Norah falou houve um burburinho e Paul entrou no
palco. David o observou: alto e magricela, com uma camisa branca limpa, de punhos
arrega�ados, e dirigindo � plat�ia um sorriso furtivo, com um toque de ironia. Por
um instante, o pai ficou perplexo. Como � que Paul se tornara quase um adulto,
parado ali, diante daquele sal�o escuro e cheio de gente, com tamanha confian�a e
descontra��o? N�o era nada que o pr�prio David jamais sonhasse fazer, e uma onda
de intenso nervosismo o invadiu. E se Paul fracassasse diante de todas aquelas pessoas?
David se deu conta da m�o de Norah na sua quando o filho se debru�ou sobre
o viol�o, testou algumas notas e come�ou a tocar.
Era Segovia, dizia o programa, duas pe�as curtas: Est�dio e Est�dio sin luz. As
notas dessas melodias, delicadas e precisas, eram intimamente familiares. David j�
ouvira o filho tocar essas pe�as tantas vezes... Durante todo o per�odo de f�rias em
Aruba, aquela m�sica havia transbordado de seu quarto, mais r�pida ou mais lenta,
repetindo trechos e compassos, vez ap�s outra. Os padr�es j� lhe eram t�o familiares
quanto os dedos longos e habilidosos de Paul, que se moviam com imensa seguran�a
pelas cordas, entremeando a m�sica no ar. No entanto, foi como se David a ouvisse
pela primeira vez, e talvez tamb�m estivesse vendo Paul pela primeira vez. Onde
estava o beb� que tirava os sapatos para lev�-los � boca, o menino que trepava em
�rvores e ficava em p� na bicicleta, sem se segurar? De algum modo, aquele garoto
meigo e travesso se transformara nesse rapaz. O cora��o de David inchou, batendo
com tanta for�a que, por um momento, ele achou que estava infartando - era mo�o
para isso, apenas 46 anos, mas essas coisas aconteciam.
Bem devagar, deixou-se relaxar na escurid�o, de olhos fechados, permitindo que
a m�sica de Paul o atravessasse em ondas. As l�grimas lhe subiram aos olhos e a garganta
ficou apertada. Pensou em sua irm�, parada na varanda, cantando com voz
l�mpida e suave; a m�sica era uma linguagem prateada que ela parecia ter nascido
para falar, assim como Paul. David sentiu-se invadir por uma profunda sensa��o de
perda, muito intensa, tecida de um sem-n�mero de lembran�as: a voz de June, Paul
batendo a porta com for�a, as roupas de Norah espalhadas na praia, a filha rec�m-
nascida entregue nas m�os expectantes de Caroline Gill.
Era demais. Demais. David sentiu-se � beira das l�grimas. Abriu os olhos e se
obrigou a recitar em sil�ncio a tabela peri�dica - hidrog�nio, h�lio, l�tio - para que o
n� na garganta n�o se desfizesse em pranto. Funcionou, como sempre funcionava
na sala de cirurgia, para faz�-lo concentrar-se. Ele reprimiu tudo: June, a m�sica, a
onda poderosa de amor que sentia pelo filho. Os dedos de Paul descansaram no viol�o.
David soltou a m�o de Norah. E aplaudiu furiosamente.
- Voc� est� bem? - perguntou ela, olhando-o de relance. - Est� tudo bem, David?
Ele fez que sim com a cabe�a, ainda sem muita confian�a para falar.
- Ele � muito bom - finalmente disse, cuspindo as palavras. - � muito bom.
- � - concordou Norah. - E � por isso que quer ir para a Juilliard.
Ela continuou a aplaudir e, quando Paul olhou em sua dire��o, jogou-lhe um beijo.
- N�o seria uma maravilha se isso acontecesse? Ele ainda tem alguns anos para
praticar e, se der tudo o que pode... quem sabe?
Paul fez uma mesura para a plat�ia e se retirou do palco com seu viol�o. Os aplausos
continuaram.
- Tudo o que pode? - repetiu David. - E se n�o der certo?
- E se der?
- N�o sei - disse David, devagar. - S� acho que ele � muito novo para fechar as
portas.
- Ele � muito talentoso, David. Voc� o ouviu. E se isso for uma porta se abrindo?
- Mas ele s� tem 13 anos.
- �, e adora m�sica. Diz que a hora em que se sente mais vivo � quando toca viol�o.
- Mas... � uma vida muito imprevis�vel. Ser� que ele conseguir� se sustentar?
O rosto de Norah ficou muito s�rio. Ela abanou a cabe�a.
- N�o sei. Mas como � mesmo aquele antigo ditado? Fa�a o que gosta que o dinheiro
vem atr�s. N�o feche essa porta do sonho dele.
- N�o vou fechar. Mas fico preocupado. Quero que ele tenha seguran�a na vida.
E a Juilliard � uma aposta muito alta, dif�cil de ganhar, por melhor que ele seja. N�o
quero que Paul se magoe.
Norah abriu a boca para falar, mas o audit�rio ficou em sil�ncio quando uma
jovem de vestido vermelho-escuro entrou com seu violino, e os dois voltaram a
aten��o para o palco.
David ouviu a mo�a e todos os que vieram depois, mas foi a m�sica de Paul que
permaneceu com ele. Terminadas as apresenta��es, ele e Norah dirigiram-se ao
sagu�o, parando a todo momento para cumprimentar outras pessoas e ouvir elogios
ao filho. Quando finalmente se aproximaram de Paul, Norah atravessou a multid�o
e o abra�ou, e ele, sem jeito, deu-lhe um tapinha nas costas. David captou sua aten��o
e sorriu e, para sua surpresa, Paul retribuiu o sorriso. Um momento comum.
Mais uma vez David deixou-se acreditar que tudo ficaria bem. Segundos depois, no
entanto, Paul pareceu conter-se. Soltou-se de Norah e deu um passo atr�s.
- Voc� estava �timo - disse David. Abra�ou-o, notando a tens�o nos ombros do
filho e o modo como ele se portava: r�gido, distante. - Voc� foi fant�stico, meu filho.
- Obrigado. Eu estava meio nervoso.
- N�o parecia.
- Nem um pouco - concordou Norah. - Voc� teve uma presen�a espl�ndida no
palco.
Paul balan�ou as m�os junto ao corpo, soltas, como que para descarregar a tens�o
que restara.
- O Mark Miller me convidou para tocar com ele no festival de arte. N�o � um
barato?
Mark Miller era o professor de viol�o de Paul e tinha uma reputa��o crescente.
- Sim, � um barato - disse Norah, rindo. - � mesmo um barato total!
Ergueu os olhos e surpreendeu a express�o constrangida do filho.
- O que �? - perguntou. - O que foi?
Paul se remexeu, enfiando as m�os nos bolsos, e olhou em volta para o sagu�o
lotado.
- � s�... n�o sei... voc� parece meio rid�cula, m�e. Quer dizer, voc� n�o � propriamente
uma adolescente.
Norah enrubesceu. David a viu enrijecer-se de m�goa, e seu pr�prio cora��o
doeu. Ela n�o entendia a origem da raiva de Paul nem da do marido. N�o sabia que
suas roupas largadas tinham esvoa�ado a um vento que ele mesmo desencadeara
muitos anos antes.
- Isso n�o s�o modos de falar com sua m�e - disse ele, enfrentando a raiva do
filho. - Quero que voc� pe�a desculpas agora mesmo.
Paul deu de ombros.
- Est� certo. Claro. Tudo bem. Desculpe.
- A s�rio.
- David - interrompeu Norah, com a m�o em seu bra�o. - N�o vamos transformar
isso num drama. Por favor. Todo mundo est� meio nervoso, s� isso. Vamos para casa
comemorar. Pensei em convidar umas pessoas. A Bree disse que iria, e os Marshall... a
Lizzie n�o estava �tima na flauta? E os pais do Duke, quem sabe? O que voc� acha,
Paul? N�o os conhe�o muito bem, mas talvez eles tamb�m gostassem de ir, n�o?
- N�o - disse Paul. Agora estava distante, olhando para o sagu�o repleto atr�s de
Norah.
- � mesmo? Voc� n�o quer convidar a fam�lia do Duke?
- N�o quero convidar ningu�m. S� quero ir para casa.
Os tr�s ficaram im�veis por um momento, uma ilha de sil�ncio em meio ao burburinho
do sagu�o.
- Ent�o, est� bem - disse David, enfim. - Vamos para casa.
A casa estava escura quando chegaram, e Paul subiu direto para seu quarto. Os
pais ouviram seus passos entrando e saindo do banheiro; ouviram sua porta fechar
devagar e depois o ru�do da fechadura.
- N�o entendo - disse Norah. Tinha tirado os sapatos e pareceu muito pequena
a David, muito vulner�vel, parada, de meias, no centro da cozinha. - Ele foi t�o bem
no palco! Parecia t�o feliz... e, a�, o que aconteceu? N�o entendo - e suspirou. - Adolescentes.
� melhor eu ir falar com ele.
- N�o. Deixe que eu vou.
David subiu a escada sem acender a luz e, ao chegar � porta de Paul, ficou um bom
tempo parado no escuro, lembrando como as m�os do filho tinham se movido pelas
cordas com delicada precis�o, enchendo de m�sica o enorme audit�rio. David agira
mal, todos aqueles anos antes; cometera um erro ao entregar sua filha a Caroline Gill.
Tinha feito uma escolha e agora estava parado ali, nessa noite, no escuro, � porta do
quarto do filho. Bateu, mas n�o houve resposta. Tornou a bater e, quando novamente
n�o houve resposta, foi at� a estante, encontrou a lima fina que guardava l� e a enfiou
no buraco da ma�aneta. Houve um clique leve e, quando ele girou a ma�aneta, a
porta se abriu. N�o ficou surpreso ao ver que o quarto estava vazio. Ao acender a luz,
uma brisa bateu na alva cortina branca e a suspendeu at� o teto.
- Ele saiu - disse a Norah, que continuava na cozinha, parada, de bra�os cruzados,
� espera de que a chaleira fervesse.
- Saiu?
- Pela janela. Descendo pela �rvore, provavelmente.
Norah p�s as m�os no rosto.
- Alguma id�ia para onde ele foi? - perguntou o marido.
Ela abanou a cabe�a. A chaleira come�ou a apitar e Norah n�o reagiu de imediato.
O gemido fino e persistente encheu a cozinha.
- N�o sei. Talvez esteja com o Duke.
David atravessou o c�modo e tirou a chaleira do fog�o.
- Tenho certeza de que ele est� bem - comentou.
Norah acenou que sim, depois abanou a cabe�a.
- N�o. O problema � esse. N�o acho mesmo que ele esteja bem.
Pegou o telefone. A m�e de Duke lhe deu o endere�o de uma festa programada
para depois do show, e Norah procurou a chave.
- N�o - disse David. - Eu vou. Acho que ele n�o quer conversar com voc� neste
momento.
- Nem com voc� - retrucou ela.
Mas David percebeu que ela compreendera no mesmo instante em que acabara de
falar. Naquele momento, alguma coisa se desnudou. Ficou tudo ali entre eles: as longas
horas de Norah longe do chal�, as mentiras, as desculpas e as roupas na praia. As
mentiras de David tamb�m. Norah balan�ou a cabe�a uma vez, devagar, e David
temeu o que ela pudesse dizer ou fazer, o modo como o mundo poderia transformar-se
para sempre. Mais do que tudo, queria deter esse momento, impedir que o mundo
seguisse adiante.
- Eu culpo a mim mesmo. Por tudo - disse.
Pegou as chaves e saiu para a noite fresca de primavera. A lua estava cheia, cor de
creme batido, linda, redonda e baixa no horizonte. David foi olhando para ela de
relance enquanto dirigia pelo bairro silencioso, por ruas s�lidas e pr�speras, o tipo
de lugar que ele sequer havia imaginado quando crian�a. Isso era o que ele sabia, e
Paul, n�o: que o mundo era prec�rio e �s vezes cruel. Ele tivera que lutar muito para
conseguir o que Paul simplesmente tomava por um dado corriqueiro.
Avistou o filho um quarteir�o antes do local da festa, andando pela cal�ada com
as m�os nos bolsos e os ombros recurvados. Havia carros parados ao longo de toda
a rua, sem lugar para estacionar, de modo que David reduziu e tocou a buzina. Paul
levantou os olhos e, por um instante, o pai teve medo de que ele sa�sse correndo.
- Entre a� - disse-lhe. E o menino entrou.
David rep�s o carro em movimento. Os dois n�o conversaram. A lua inundava o
mundo de uma linda luz, e David teve consci�ncia do filho sentado a seu lado, consci�ncia
de sua respira��o leve e suas m�os im�veis no colo, consci�ncia de que ele
estava olhando pela janela para os jardins silenciosos por onde os dois passavam.
- Voc� foi realmente �timo esta noite. Fiquei impressionado.
- Obrigado.
Percorreram dois quarteir�es em sil�ncio.
- Bem, sua m�e disse que voc� quer ir para a Juilliard.
- Pode ser.
- Voc� � bom. � bom em muitas coisas, Paul. Ter� uma por��o de op��es na vida.
Uma por��o de dire��es que poder� tomar. Voc� pode ser o que quiser.
- Eu gosto de m�sica. Ela me faz sentir vivo. Acho que n�o espero que voc� entenda
isso.
- Eu entendo. Mas existe o estar vivo e existe o ganhar a vida.
- �. Exatamente.
- Voc� pode falar assim porque nunca lhe faltou nada. Esse � um luxo que voc�
n�o compreende.
J� estavam perto de casa, mas David virou na dire��o oposta. Queria ficar com
Paul no carro, dirigindo pelo mundo enluarado em que essa conversa, por mais
tensa e canhestra que fosse, era poss�vel.
- Voc� e a mam�e - disse Paul, com as palavras se desatando como se ele as houvesse
retido por muito tempo. - Qual � o problema de voc�s, afinal? Voc�s vivem
como se n�o ligassem para nada. N�o t�m a menor alegria. S� v�o atravessando os
dias, haja o que houver. Voc� n�o liga a m�nima. Nem para aquele tal de Howard.
Ent�o, ele sabia.
- Eu ligo, sim - contrap�s David. - Mas as coisas s�o complicadas, Paul. N�o vou falar
disso com voc� nem agora nem nunca. H� muitas coisas que voc� n�o compreende.
Paul ficou calado. David parou num sinal. N�o havia nenhum outro carro por
perto, mas os dois ficaram sentados em sil�ncio esperando o sinal abrir.
- Vamos manter esta conversa por aqui - disse David, enfim. - Voc� n�o precisa se
preocupar com sua m�e e comigo. Isso n�o � tarefa sua. A sua tarefa � encontrar seu
caminho no mundo. Usar todos os seus talentos. E n�o pode ser tudo para voc�. Voc�
tem que retribuir com alguma coisa. � por isso que eu fa�o aquele trabalho na cl�nica.
- Eu adoro m�sica - disse Paul, baixinho. - Quando toco, eu me sinto fazendo
isso: retribuindo.
- E retribui. Retribui. Mas, Paul, e se voc� tiver a capacidade, digamos, de descobrir
um novo elemento no universo? E se puder descobrir a cura de uma doen�a rara
e terr�vel?
- S�o os seus sonhos. Os seus, n�o os meus - disse Paul.
David calou-se, percebendo que de fato, um dia, tinham sido exatamente esses os
seus sonhos. Ele se dispusera a consertar o mundo, modific�-lo e mold�-lo, mas, em
vez disso, dirigia pela noite enluarada com o filho quase criado e todas as facetas de
sua vida pareciam estar fora do seu alcance.
- �. Esses eram os meus sonhos.
- E se eu puder ser o pr�ximo Seg�via? Pense nisso, papai. E se eu tiver esse talento
em mim, e n�o tentar?
David n�o respondeu. Tinha chegado de novo � sua rua e, dessa vez, tomou o rumo
de casa. Subiram a rampa, quicando um pouco no desn�vel em que ela se encontrava
com o asfalto, e pararam em frente � garagem separada. David desligou o
motor e, por alguns segundos, os dois permaneceram em sil�ncio.
- N�o � verdade que eu n�o me importo - disse David. - Venha. Quero lhe mostrar
uma coisa.
Saiu com Paul pelo luar e subiu a escada externa que levava � c�mara escura em
cima da garagem. Paul postou-se junto � porta fechada, de bra�os cruzados, irradiando
impaci�ncia, enquanto David preparava o processo de revela��o, vertendo as
subst�ncias qu�micas nas bandejas e colocando um negativo no ampliador. Feito
isso, chamou o filho.
- Olhe para isto - disse. - O que voc� acha que �?
Depois de hesitar por um momento, Paul cruzou o c�modo e olhou.
- Uma �rvore? Parece a silhueta de uma �rvore.
- �timo. Agora olhe de novo. Tirei essa foto durante uma cirurgia, Paul. Fiquei
no balc�o do anfiteatro da sala de opera��es com uma teleobjetiva. Voc� consegue
ver mais o qu�?
- N�o sei... um cora��o?
- Sim, um cora��o. N�o � incr�vel? Estou fazendo uma s�rie inteira sobre a percep��o
com imagens do corpo que parecem outras coisas. �s vezes acho que o mundo
inteiro est� contido em cada pessoa viva. Esse mist�rio, e o mist�rio da percep��o... eu
me importo com isso. E entendo o que voc� quer dizer a respeito da m�sica.
David passou a luz concentrada pelo ampliador, depois mergulhou o papel no
revelador. Tinha profunda consci�ncia da presen�a do filho a seu lado na escurid�o
e no sil�ncio.
- A fotografia tem tudo a ver com segredos - disse, ap�s alguns minutos, levantando
a foto com uma pin�a e mergulhando-a no fixador. - Os segredos que todos
temos e nunca revelamos.
- A m�sica n�o � assim - disse Paul, e David ouviu a rejei��o na voz do filho.
Levantou os olhos, mas era imposs�vel ver a express�o dele sob a t�nue luz vermelha.
- A m�sica � como tocar a pulsa��o do mundo. A m�sica est� sempre acontecendo.
�s vezes a gente consegue toc�-la por um momento e, quando consegue, sabe
que tudo est� ligado a tudo.
Depois disso, virou as costas e saiu da c�mara escura.
- Paul! - chamou David, mas o filho j� descia com estardalha�o a escada externa,
aborrecido. David foi at� a janela e o viu correr pelo luar, subir a escada dos fundos
e desaparecer dentro de casa. Pouco depois, uma luz se acendeu em seu quarto e as
notas precisas de Seg�via rodopiaram no ar, claras e delicadas.
Revendo mentalmente a conversa, David pensou em ir atr�s dele. Queria estabelecer
uma liga��o com Paul, ter um momento em que os dois se compreendessem,
mas suas boas inten��es haviam descambado na discuss�o e na dist�ncia. A luzinha
vermelha era muito tranq�ilizante. Ele pensou no que dissera ao filho - que o mundo
era feito de coisas ocultas, de segredos, formado por ossos que nunca viam a luz.
Era verdade que um dia ele havia buscado a unidade, como se as correspond�ncias
subjacentes entre tulipas e pulm�es, veias e �rvores, carne e terra pudessem revelar
um padr�o que lhe fosse poss�vel entender. Mas elas n�o o tinham revelado. Em
poucos minutos, ele entraria em casa e tomaria um copo d'�gua. Subiria e j� encontraria
Norah dormindo, e ficaria parado a olh�-la - aquele mist�rio, uma pessoa que
ele jamais conheceria de verdade, enroscada em seus segredos.
Foi at� a minigeladeira em que guardava os produtos qu�micos e os filmes. O envelope
estava enfiado bem no fundo, atr�s de v�rias garrafas. Estava cheio de notas de
20 d�lares, estalando de novas, frias. Contou 10 delas, depois 20, e guardou o envelope
atr�s das garrafas. As notas ficaram numa pilha arrumada sobre a bancada.
Em geral, ele mandava o dinheiro embrulhado numa folha de papel em branco,
mas, nessa noite, com a raiva de Paul ainda pairando na sala e sua m�sica flutuando
no ar, David sentou-se e escreveu uma carta. Escreveu depressa, deixando as
palavras jorrarem - todos os seus remorsos do passado, todas as suas esperan�as
para Phoebe. Quem era ela, essa crian�a que era carne de sua carne, a menina de
quem ele se desfizera? David n�o tinha esperado que ela vivesse tanto, ou que levasse
o tipo de vida sobre a qual Caroline lhe escrevera. Ficou pensando no filho, sentado
sozinho no palco, e na solid�o que Paul carregava consigo por toda parte. Ser� que
com Phoebe acontecia o mesmo? O que teria significado eles crescerem juntos,
como Norah e Bree, diferentes em tudo, mas tamb�m intimamente ligadas? Eu
gostaria muito de me encontrar com Phoebe, escreveu. Gostaria que ela conhecesse o
irm�o e que ele a conhecesse. Depois, dobrou a carta em volta do dinheiro, sem rel�la,
p�s tudo num envelope e o endere�ou. Fechou-o e colou um selo. Poria aquilo
no correio no dia seguinte.
O luar derramava-se pelas janelas da �rea da ante-sala. Paul tinha parado de tocar.
David olhou para a lua, j� mais alta no c�u, por�m n�tida e bem desenhada na
escurid�o. Ele fizera uma escolha na praia; deixara a roupa de Norah ca�da na areia,
seu riso derramando-se na luz. Voltara para o chal� e havia trabalhado em suas fotos,
e, � chegada dela, cerca de uma hora depois, n�o dissera nada sobre Howard.
Havia guardado esse sil�ncio porque seus pr�prios segredos eram mais sombrios,
mais ocultos, e por acreditar que seus segredos haviam criado os dela.
Voltou � c�mara escura e procurou seu filme mais recente. Havia tirado algumas
fotos instant�neas durante o jantar em Aruba: Norah carregando uma bandeja com
copos, Paul parado junto � grelha, com o copo levantado, v�rias fotos de todos
relaxando na varanda. Era a �ltima imagem que ele queria; depois de encontr�-la,
projetou-a no papel com a luz. No banho de revelador, observou a imagem emergir
lentamente, um gr�nulo ap�s outro: o aparecimento de algo onde antes n�o havia
nada. Para David, essa era sempre uma experi�ncia de intenso mist�rio. Ele observou
a imagem tomar forma: Norah e Howard na varanda, erguendo os copos de
vinho num brinde, rindo. Um momento inocente e denso, um momento em que
fora feita uma escolha. David tirou a foto do revelador, mas n�o a mergulhou no fixador.
Em vez disso, foi at� a ante-sala e ficou parado ao luar, com a fotografia molhada
na m�o, olhando para sua casa agora �s escuras, com Paul e Norah l� dentro,
sonhando seus sonhos particulares, movendo-se em suas pr�prias �rbitas, com suas
vidas constantemente moldadas pela gravidade da escolha que David fizera muitos
anos antes.
De volta � c�mara escura, pendurou a fotografia daquele momento para secar.
Inacabada, sem fixador, a imagem n�o duraria. Nas horas seguintes, a luz afetaria o
papel exposto. A imagem de Norah rindo com Howard escureceria lentamente, at�
ficar, dali a um ou dois dias, completamente negra.
II
OS DOIS ANDAVAM PELOS TRILHOS, DUKE MADISON CO M AS M�OS
enfiadas nos bolsos da jaqueta de couro que havia encontrado na Sociedade
Beneficente Goodwill e Paul chutando pedras que zumbiam nos trilhos. Soou
um apito de trem ao longe. Num acordo silencioso, os dois meninos deslocaram-se
para a beira dos trilhos, com os p�s ainda apoiados no da esquerda, equilibrando-se.
O trem foi se aproximando, fazendo vibrar o trilho sob os p�s deles, a locomotiva
como um ponto no horizonte, um ponto aos poucos maior e mais escuro, o maquinista
fazendo soar alto o apito. Paul olhou para Duke, cujos olhos brilhavam com o
risco e o perigo, e sentiu a excita��o crescente na pr�pria carne, quase insuport�vel,
enquanto o trem chegava cada vez mais perto e o apito enfurecido soava por todas
as ruas do bairro, e muito al�m delas. Vieram o farol, o maquinista vis�vel na janela
alta e de novo o apito, numa advert�ncia. Mais perto, com o vento da locomotiva
achatando o mato no ch�o, Paul esperou, olhando para Duke, que se equilibrava no
trilho a seu lado, e o trem correndo, quase em cima deles, e os dois esperando,
esperando, e Paul achou que talvez nunca pulasse. E de repente pulou, ficou no meio
do mato, e o trem passou em disparada, a 30 cent�metros de seu rosto. Apenas por
um breve instante viu a express�o do maquinista, p�lido de susto, e em seguida o
trem - escurid�o e luz, escurid�o e luz, � medida que os vag�es passavam, e depois
ele se perdeu na dist�ncia e at� o vento desapareceu.
Duke, a 30 cent�metros de dist�ncia, sentou-se, erguendo o rosto para o c�u
nublado.
- Cara, que barato! - comentou.
Os dois meninos sacudiram a roupa e come�aram a andar em dire��o � casa de
Duke, uma casinha estreita e comprida bem pr�xima dos trilhos. Paul tinha nascido
nesse bairro, algumas ruas adiante, mas, embora �s vezes sua m�e o levasse at� l�,
para ver a pracinha com o mirante e a casa em frente a ele, que fora a primeira
resid�ncia do filho, Norah n�o gostava que ele fosse l� nem � casa de Duke. Mas, que
diabo, ela nunca estava em casa e, desde que Paul fizesse os deveres da escola, o que
fazia, e cortasse a grama e estudasse piano por uma hora, o que tamb�m fazia, ele
ficava livre.
O que a m�e n�o visse n�o poderia mago�-la. O que ela n�o soubesse.
- Ele ficou pau da vida, aquele cara do trem - disse Duke.
- �, ficou puto - concordou Paul.
Ele gostava de palavr�es, e da lembran�a do vento quente no rosto, e de como isso
aplacava, ao menos momentaneamente, sua raiva silenciosa. Naquela manh�, em
Aruba, fora correr na praia com o cora��o leve, contente com o jeito como a areia
molhada na beira da �gua cedia um pouquinho sob seus p�s, fortalecendo a musculatura
das pernas. Contente, tamb�m, por ter gorado a pescaria com o pai. Seu pai
adorava pescar, sentar-se por longas horas em sil�ncio, num barco ou num cais,
jogando e tornando a jogar a linha e - muito de vez em quando - vivendo a emo��o
de uma fisgada. Paul tamb�m havia adorado aquilo quando pequeno, n�o tanto pelo
ritual da pesca, mas pela chance de passar algum tempo com o pai. � medida que
ficara mais velho, por�m, as pescarias tinham passado a parecer cada vez mais obrigat�rias,
como uma coisa que seu pai planejava por n�o conseguir pensar em mais nada
para fazer. Ou porque talvez aquilo os unisse; Paul imaginava David lendo sobre o
assunto em algum manual para pais. O menino fora informado das verdades da vida
num per�odo de f�rias, parado num barco num lago de Minnesota, quando o pai,
enrubescendo sob a pele bronzeada, lhe havia falado das realidades da reprodu��o.
Nos �ltimos tempos, o futuro de Paul era o assunto favorito de seu pai, cujas id�ias
eram t�o interessantes para o menino quanto um espelho-d'�gua imenso e plano.
E era por isso que ele se sentira feliz correndo na praia, ficara aliviado, e a princ�pio
n�o dera nenhuma import�ncia � pilha de roupas largada em frente a um dos
chalezinhos espa�ados entre as casuarinas. Passara veloz por ela, concentrado nas
passadas r�tmicas, com os m�sculos produzindo uma esp�cie de m�sica que o sustentara
at� a ponta de pedras. L� ele fizera uma pausa, andando em c�rculos por
algum tempo, e depois come�ara a corrida da volta, mais devagar. A roupa tinha se
mexido: a manga da blusa balan�ava ao vento do mar, e os flamingos rosa-shocking
dan�avam contra o fundo turquesa-escuro. Paul diminu�ra o passo. A blusa podia ser
de qualquer um. Mas sua m�e tinha uma igual. Eles tinham rido da pe�a na loja de
turistas, na cidade; sua m�e a levantara, divertida, e a havia comprado s� por farra.
Ent�o, tudo bem, talvez houvesse centenas, milhares de blusas iguais. Mesmo
assim, Paul havia parado para peg�-la. O biqu�ni da m�e, num montinho cor da
pele, inconfund�vel, ca�ra de dentro da manga. Isso o fizera paralisar-se, incapaz de
se mexer, como se o houvessem flagrado roubando, como se uma m�quina fotogr�fica
houvesse disparado e o tivesse prendido. Ele deixara cair a blusa, mas continuara
sem poder se mexer. Por fim, tinha come�ado a andar, e depois voltara correndo
para seu chal�, como quem procurasse abrigo. Havia parado na soleira, tentando
recompor-se. O pai tinha passado a fruteira com as laranjas para a bancada. Estava
arrumando fotos na grande mesa de madeira. O que foi?, havia perguntado, erguendo
os olhos, mas Paul n�o conseguira dizer. Tinha seguido direto para o quarto, fechado
a porta com estrondo, e n�o levantara os olhos nem mesmo ao ouvir as batidas
do pai.
Sua m�e voltara duas horas depois, cantarolando, com a blusa de flamingos enfiada
direitinho no short caqui. "Acho que vou dar uma nadada antes do almo�o", ela
dissera. "Quer vir?" Paul havia abanado a cabe�a e, pronto, l� estava o segredo, seu
segredo, primeiro dela, depois dele, erguido entre os dois como um v�u.
Seu pai tamb�m tinha segredos, uma vida que se desenrolava no trabalho ou na
c�mara escura, e Paul havia conclu�do que aquilo tudo era normal, era o jeito de ser
das fam�lias, at� come�ar a andar com Duke, um pianista incr�vel que ele havia conhecido
na aula de m�sica, uma tarde. Os Madison n�o tinham muito dinheiro, e os
trens passavam t�o perto que a casa sacudia e as janelas chacoalhavam no caixilho, e
a m�e de Duke nunca havia entrado num avi�o em toda a sua vida. Paul sabia que
deveria sentir pena dela, como seus pais sentiriam; a mulher tinha cinco filhos e um
marido que trabalhava na f�brica da GE e que jamais ganharia muito dinheiro. Mas
o pai de Duke gostava de jogar bola com os meninos, e toda noite chegava em casa �s
seis horas, quando acabava seu turno. Embora n�o falasse mais que o pai de Paul,
estava bem ali, e, quando n�o estava, eles sempre sabiam onde ach�-lo.
- E a�, que � que voc� t� a fim de fazer? - perguntou Duke.
- Sei l�. E voc�? - retribuiu Paul. Os trilhos met�licos continuavam a zumbir. Paul
se perguntou onde o trem finalmente pararia. P�s-se a imaginar se algu�m o vira parado
� beira dos trilhos, t�o perto que poderia estender a m�o e tocar num vag�o em
movimento, com o vento fustigando seu cabelo, fazendo os olhos arderem. E, se
algu�m o tivesse visto, o que teria pensado? Imagens passando pelas janelas do trem,
como uma s�rie de instant�neos, primeiro uma, depois outra: uma �rvore, sim; uma
pedra, sim; uma nuvem, sim; e nenhuma igual �s outras. E, depois, um menino, com
a cabe�a jogada para tr�s, rindo. E, pronto, sumiu. Uma moita, fios el�tricos, um vislumbre
de estrada.
- A gente podia bater uma bola.
- N��o.
Andaram ao longo dos trilhos. Depois de atravessarem Rosemont Garden e ficarem
cercados pelo mato alto, Duke parou e vasculhou os bolsos da jaqueta de couro.
Seus olhos eram verdes, salpicados de azul. Que nem o mundo, pensou Paul. Eram
assim os olhos de Duke. Feito a Terra vista da Lua.
- Olhe s� - disse ele. - Peguei isso na semana passada com meu primo Danny.
Era um saquinho de pl�stico cheio de lascas verdes secas.
- O que � isso? Uma por��o de ervas murchas? - perguntou Paul. No instante em
que falou, compreendeu e enrubesceu, sem gra�a por ser o panaca quadrado que era.
Duke riu, com a voz alteando no sil�ncio, no farfalhar do mato.
- � isso a�, cara, erva. Voc� nunca curtiu um barato?
Paul abanou a cabe�a, chocado, a despeito de si mesmo.
- A gente n�o fica viciado, se � disso que voc� tem medo. J� usei duas vezes. � o
m�ximo da curti��o, pode crer.
O c�u continuava cinzento, o vento se movia nas folhas e, bem longe, soou outro
apito de trem.
- N�o estou com medo - disse Paul.
- � isso a�. N�o h� nada de que ter medo. Quer experimentar?
- � claro - fez Paul, olhando em volta. - Mas aqui n�o.
Duke riu.
- Quem voc� acha que vai pegar a gente aqui?
- Escute s�.
Os dois ouviram e o trem se tornou vis�vel, vindo da dire��o oposta, um pontinho
que foi ficando cada vez maior, com o apito cortando o ar. Eles sa�ram da linha
t�rrea e ficaram de frente um para o outro, nos dois lados dos trilhos.
- Vamos l� para casa! - gritou Paul, enquanto o trem se aproximava, c�lere. - N�o
tem ningu�m l�!
Imaginou os dois fumando maconha no novo sof� de chintz da m�e e deu uma
risada alta. Depois, o trem zuniu entre eles, e vieram o rugido e o sil�ncio, o rugido
e o sil�ncio dos vag�es passando. Paul via lampejos r�pidos de Duke, como as fotografias
penduradas na c�mara escura de seu pai, todos aqueles momentos da vida do
pai parecendo vislumbres de um trem. Capturados e presos. Correria e sil�ncio.
Como isso.
E, assim, refizeram o caminho para a casa de Duke, montaram nas bicicletas, cruzaram
a estrada ziguezagueando pelos bairros at� a casa de Paul.
Estava trancada, com a chave escondida sob a laje solta junto aos rododendros.
Do lado de dentro, o ar estava quente, com um vago cheiro de mofo. Enquanto Duke
telefonava para casa, para dizer que ia se atrasar, Paul abriu uma janela e a brisa
levantou as cortinas feitas por sua m�e. Antes de come�ar a trabalhar fora, ela costumava
redecorar a casa inteira todo ano. Paul se lembrava de v�-la debru�ada sobre
a m�quina de costura, xingando quando a linha arrebentava ou embolava. As cortinas
tinham fundo creme, com paisagens rurais num azul-escuro que combinava
com as listras escuras do papel de parede. Paul lembrou-se de quando se sentava �
mesa, olhando fixo para as imagens, como se, de repente, as figuras pudessem come�ar
a se mexer, a sair de suas casas, a pendurar a roupa na corda e dar adeusinho.
Duke desligou o telefone e deu uma olhada em volta. Soltou um assobio.
- Cara, voc� � rico - comentou. Sentou-se � mesa de jantar e abriu um ret�ngulo
fino de papel. Paul ficou observando, fascinado, enquanto Duke disp�s uma fileira
de pedacinhos de erva e as enrolou num tubo branco e fino.
- Aqui n�o - disse Paul, constrangido no �ltimo minuto. Os dois foram sentar do
lado de fora, na escada dos fundos, o baseado acendeu-se com um clar�o laranja na
ponta e passou entre eles, para l� e para c�. No come�o, Paul n�o sentiu nada. Come�ou
a chuviscar, parou e, depois de algum tempo - ele n�o tinha certeza de quanto
-, Paul percebeu que estava olhando fixo para uma gota d'�gua no degrau, vendo-a
espalhar-se lentamente, fundir-se com outra e depois pingar na grama pela borda.
Duke ria alto.
- Cara, voc� devia se ver! Voc� t� chapad�o!
- Me deixe em paz, seu babaca - disse Paul, e tamb�m come�ou a rir.
Em algum momento, eles entraram, mas n�o antes de a chuva recome�ar e deix�los
encharcados, com um frio repentino. A m�e de Paul deixara uma panela de comida
no forno, mas ele a ignorou. Em vez disso, abriu um vidro de picles e outro de
pasta de amendoim. Duke encomendou uma pizza, Paul pegou o viol�o e os dois
foram para a sala de estar, onde ficava o piano, para levar um som. Paul sentou-se
na beirada da lareira suspensa e dedilhou alguns acordes, depois seus dedos come�aram
a se mover pelos trechos familiares das pe�as de Segovia que ele havia tocado
na v�spera, Est�dio e Est�dio sin luz. Os t�tulos o faziam pensar no pai, alto e calado,
debru�ado sobre o ampliador na c�mara escura. As melodias davam a sensa��o de
luz e sombra, uma em contraste com a outra, e nessa hora as notas se entremearam
com sua vida, com o sil�ncio da casa, as f�rias na praia e as salas de aula da escola,
com suas janelas altas. Paul tocou e se sentiu sendo suspenso, flutuando sobre as
ondas que se avolumavam, criando a m�sica, depois sendo a m�sica, e ela o carregou
para o alto, mais para o alto, subindo at� a crista.
Quando ele terminou, fez-se um minuto de sil�ncio, antes de Duke exclamar:
- Cara, essa foi genial!
Ele tocou uma escala ao piano e se lan�ou na pe�a que havia executado no recital,
a Marcha dos an�es, de Grieg, com sua vitalidade e sua alegria melanc�lica. Duke
tocou, depois Paul tocou, e ningu�m ouviu a campainha nem a batida, e de repente
o entregador de pizza estava parado diante da porta aberta. Anoitecia; um vento frio
irrompeu pela casa. Os dois rasgaram as caixas e comeram furiosamente, depressa e
sem sentir o gosto, queimando a l�ngua. Paul sentiu a comida pesar dentro dele,
empurrando-o para baixo feito uma pedra. Olhou pelas janelas � francesa para o c�u
cinzento e l�gubre ao longe, depois para o rosto de Duke, t�o p�lido que suas espinhas
se destacavam, com o cabelo preto despencado sobre a testa e um borr�o vermelho
de molho na boca.
- Cacete! - disse Paul. Espalmou as m�os sobre o piso de carvalho, contente por
encontr�-lo ali e por estar em cima dele e pelo fato de a sala a seu redor estar perfeitamente
intacta.
- N�o � mole, n�o - concordou Duke. - Tro�o incr�vel. Que horas s�o?
Paul levantou-se e foi at� o carrilh�o no hall de entrada. Minutos ou horas antes,
os dois tinham parado ali, sacudindo de tanto rir do tiquetaque dos segundos, com
intervalos gigantescos entre um e outro. Agora, Paul s� conseguia pensar no pai, que
parava todas as manh�s para acertar o rel�gio por aquele carrilh�o; olhou para a
mesa cheia de fotografias e se sentiu tomado pela tristeza. Olhou outra vez para a tarde
e viu que ela se fora, condensada numa lembran�a que n�o era maior do que
aquela gota de chuva, e o c�u j� estava quase preto.
O telefone tocou. Duke continuava estirado no tapete da sala, e pareceu que haviam
passado horas antes de Paul atender. Era sua m�e.
- Querido - disse ela, por cima do burburinho e do barulho de talheres ao fundo.
Ele a imaginou com seu tailleur, talvez o azul-escuro, passando os dedos pelo cabelo
curto, com os an�is faiscando. - Tive que levar uns clientes para jantar. � a conta
da IBM, � importante. Seu pai j� chegou? Est� tudo bem com voc�?
- Fiz meu dever de casa - disse Paul, estudando o carrilh�o, t�o hil�rio pouco
antes. - Fiz os exerc�cios de piano. Papai n�o est�.
Houve uma pausa.
- Ele prometeu que iria para casa mais cedo - disse Norah.
- Eu estou legal - disse Paul, lembrando-se da noite anterior, de como se sentara
na beira do parapeito e pensara em pular, e depois se vira no ar, caindo; e havia aterrissado
com um baque suave no ch�o, e ningu�m tinha ouvido. - Hoje eu n�o vou
a lugar nenhum.
- N�o sei, Paul. Ando preocupada com voc�.
Ent�o, venha para casa, ele teve vontade de dizer, mas as risadas ao fundo subiam
e desciam, quebrando como uma onda. - Eu estou legal - repetiu.
- Tem certeza?
- � claro.
- Bem, n�o sei - disse ela. Deu um suspiro, tapou o bocal do fone, falou com
outra pessoa e voltou para a linha. - Bem, � bom saber do seu dever de casa, de qualquer
maneira. Escute, Paul, vou ligar para o seu pai e, haja o que houver, eu mesma
n�o demoro mais do que duas horas. Prometo. Est� bem assim? Tem certeza de que
voc� est� bem? Porque eu largo tudo, se voc� precisar de mim.
- Estou legal. N�o precisa ligar pro papai.
O tom dela, ao responder, foi frio, cortante.
- Ele me disse que estaria em casa. Ele prometeu.
- Esse pessoal da IBM - perguntou Paul -, eles gostam de flamingos?
Houve uma pausa e o barulho de gargalhadas e copos tilintando.
- Paul - disse ela, finalmente -, voc� est� passando bem?
- Estou �timo. Foi s� uma brincadeira. Deixe pra l�.
Quando Norah desligou, Paul ficou sozinho por um momento, ouvindo o tom de
discagem. A casa erguia-se a seu redor, silenciosa. N�o era como o sil�ncio do audit�rio,
expectante e carregado, mas como um vazio. Ele pegou o viol�o, pensando na irm�. Se
ela n�o tivesse morrido, seria parecida com ele? Ser� que gostaria de correr? De cantar?
Na sala, Duke continuava deitado, com um bra�o em cima do rosto. Paul pegou
as caixas vazias de pizza e as folhas finas de papel-manteiga e as levou para a lata de
lixo. O ar estava frio; o mundo, novo em folha. Ele sentia uma sede de quem estivesse
no deserto, depois de uma corrida de 15 quil�metros; carregou uma garrafa de dois
litros de leite para a sala, bebeu direto no gargalo e passou-a para Duke. Sentou-se
e recome�ou a tocar, mais baixo. As notas do viol�o encheram o ar, lentas e graciosas,
como seres alados.
- Voc� tem mais desse tro�o? - perguntou.
- Tenho. Mas vai custar uma grana.
Paul acenou com a cabe�a e continuou tocando, enquanto Duke se levantou para
dar um telefonema.
Ele havia desenhado a irm� uma vez, quando era pequeno, talvez no jardim-deinf�ncia.
A m�e lhe contara tudo sobre ela, de modo que Paul a havia inclu�do no
desenho que chamara de "Minha Fam�lia": o pai, com um contorno marrom, a m�e,
com o cabelo amarelo-escuro, e ele mesmo, de m�os dadas com uma imagem especular.
Feito na escola e amarrado com um la�o de fita, ele dera esse presente aos pais
no caf� da manh� e sentira uma esp�cie de escurid�o abrir-se em seu peito ao ver o
rosto do pai - ao ver emo��es que, aos cinco anos, n�o sabia explicar nem descrever,
mas j� percebia que tinham a ver com a tristeza. A m�e tamb�m, ao pegar o
desenho das m�os do pai, fora tocada pela tristeza, mas colocara uma m�scara por
cima, a mesma m�scara animada que agora usava com os clientes. Paul lembrou-se
de como a m�o dela se demorara em seu rosto. �s vezes ela ainda fazia isso, olhando-
o com fixidez, como se ele pudesse desaparecer. Ah, est� lindo!, dissera ela naquele
dia. � um lindo desenho, Paul.
Tempos depois, quando ele j� era mais velho, talvez com uns nove ou dez anos, a
m�e o levara ao cemit�rio tranq�ilo do interior em que sua irm� estava enterrada.
Era um dia fresco de primavera, e a m�e havia plantado sementes de l�rios-do-vale
ao longo da borda de ferro fundido. Paul havia parado para ler o nome -P HOEBE
G RACE H ENR Y - e sua pr�pria data de nascimento, e sentira um inc�modo, um peso
que n�o soubera explicar. Por que ela morreu?, havia perguntado, depois de a m�e
finalmente voltar para perto dele, tirando as luvas de jardinagem. Ningu�m sabe, dissera
ela, e depois, ao ver a express�o do filho, pusera o bra�o em seus ombros. N�o
foi culpa sua, tinha afirmado com ardor. N�o teve nada a ver com voc�.
Mas ele n�o havia acreditado realmente, como n�o acreditava agora. Se seu pai se
isolava na c�mara escura toda noite e sua m�e trabalhava at� muito depois do jantar,
quase todos os dias, e, nas f�rias, tirava a roupa e entrava de mansinho nos chal�s
de homens estranhos, de quem podia ser a culpa? N�o da irm� dele, que tinha morrido
no parto e deixado esse sil�ncio. Aquilo tudo dava um n� em seu est�mago, que
come�ava de manh� do tamanho de uma moedinha e ia crescendo durante o dia e
o deixava nauseado. Ele estava vivo, afinal. Estava ali. Logo, com certeza era tarefa
sua proteg�-los.
Duke apareceu no v�o da porta e Paul parou de tocar.
- Ele est� vindo para c�, o Joe - disse. - Se voc� tiver a grana.
- T�. Vem comigo.
Os dois sa�ram pela porta dos fundos, desceram os degraus de concreto e subiram
a
escada do grande c�modo aberto em cima da garagem. Era uma sala com janelas
altas em todas as paredes e, durante o dia, ficava inundada de luz, vinda de todas as
dire��es. Uma c�mara escura, sem janelas, encravava-se nela feito um arm�rio, logo
depois da entrada. Anos antes, quando suas fotografias tinham come�ado a ser
notadas, o pai a havia constru�do. Agora passava a maior parte das horas de folga ali,
fazendo revela��es e experi�ncias com a luz. Quase ningu�m mais ia l� - a m�e, nunca.
�s vezes o pai o convidava, e Paul ansiava por esses dias com uma expectativa que
o deixava sem gra�a.
- Ei, isso aqui � legal - disse Duke, percorrendo a parede externa e examinando
as fotos emolduradas.
- N�o � para a gente entrar - observou Paul. - A gente n�o pode ficar aqui.
- Ei, eu j� vi essa aqui! - exclamou Duke, parando diante da foto das ru�nas queimadas
do pr�dio do ROTC, onde as p�talas das cerejeiras contrastavam, p�lidas,
com as paredes carbonizadas. Tinha sido a primeira grande foto de David. Fora escolhida
pelas ag�ncias de not�cias e exibida em todo o pa�s, anos antes. Essa foi o
come�o de tudo, o pai de Paul gostava de dizer. Ela me p�s no mapa.
- �, foi meu pai quem tirou. N�o mexa em nada, t�?
Duke riu.
- Fica frio, cara. Est� tudo legal.
Paul entrou na c�mara escura, onde o ar era mais quente e mais parado. Havia fotos
penduradas, secando. Ele abriu a geladeirinha onde o pai guardava os filmes e tirou do
fundo um envelope frio de papel pardo. Dentro havia outro envelope, cheio de notas
de 20 d�lares. Paul tirou uma, depois outra, e guardou o resto do dinheiro.
Ele costumava ir l� com o pai e, outras vezes, em segredo, ia sozinho. Fora assim
que tinha descoberto o dinheiro, numa tarde em que ficara tocando viol�o l� em
cima, zangado porque o pai tinha prometido ensinar-lhe a usar o ampliador e, no
�ltimo minuto, cancelara o encontro. Zangado, decepcionado e, no final, com fome.
Paul tinha vasculhado a geladeira e encontrado o envelope com as notas geladas,
novas, inexplic�veis. Tirara uma nota de 20 nessa primeira vez, e outras depois. Seu
pai nunca parecia notar. Assim, de vez em" quando ele subia e pegava mais algumas.
Aquilo deixava Paul inquieto, o dinheiro, os furtos e o fato de n�o ser apanhado.
Era a mesma sensa��o que experimentava quando ficava ali com o pai, no escuro,
vendo as imagens tomarem forma diante de seus olhos. N�o havia apenas uma foto
num negativo, dizia seu pai, mas uma multid�o delas. Um instante n�o era apenas
um instante, mas uma infinidade de instantes diferentes, dependendo de quem
olhasse para as coisas e como. Paul escutava o pai falar, sentindo um fosso abrir-se
dentro dele. Se aquilo tudo era verdade, seu pai era algu�m que ele nunca poderia
realmente conhecer, e isso o assustava. Mesmo assim, gostava de ficar ali, em meio �
luz suave e ao cheiro dos produtos qu�micos. Gostava da seq��ncia de passos precisos,
do come�o ao fim, da folha de papel exposto mergulhando no revelador e das
imagens surgidas do nada, do cron�metro apitando e do papel mergulhando no fixador.
Das imagens secando, fixadas, brilhantes e misteriosas.
Paul parou para examin�-las. Estranhas formas em espiral, feito flores petrificadas.
Corais, deduziu, da viagem a Aruba, corais-c�rebro com o corpo recolhido,
deixando apenas a intricada estrutura do esqueleto. As outras fotos eram parecidas,
aberturas porosas desabrochando em branco, como uma paisagem de crateras complexas,
transmitida da lua. Coral-c�rebro/ossos, dizia a anota��o do pai, arrumada na
mesa perto do ampliador.
Naquele dia, no chal�, um instante antes de perceber a presen�a de Paul e erguer
os olhos, a express�o de seu pai tinha sido extremamente franca, banhada por uma
chuva de emo��es - um amor e uma perda antigos. Paul a havia percebido e ansiara
por dizer alguma coisa, fazer alguma coisa, qualquer coisa que endireitasse o mundo.
Ao mesmo tempo, sentira vontade de fugir, de esquecer todos os problemas deles,
de se libertar. Tinha desviado os olhos e, ao volt�-los novamente para o pai, a
express�o dele tornara a ficar distante, impass�vel. Talvez ele s� estivesse pensando
num problema t�cnico com seu filme, ou em doen�as dos ossos, ou no almo�o.
Um instante podia ser mil coisas diferentes.
- Ei - disse Duke, abrindo a porta. - Voc� vai sair da� alguma hora ou o qu�?
Paul guardou as notas no bolso e voltou para o c�modo maior. Dois outros garotos
tinham chegado, alunos da �ltima s�rie que costumavam ficar num terreno desocupado
em frente � escola, na hora do almo�o, fumando. Um deles carregava uma
embalagem de cerveja e entregou uma garrafa a Paul, e por pouco ele n�o disse Vamos
descer, vamos fazer isso l� fora, mas estava chovendo mais forte e os garotos eram
mais velhos, e tamb�m mais fortes, de modo que Paul apenas sentou e ficou com eles.
Deu o dinheiro a Duke e a brasa cor de �mbar girou pelo c�rculo. Paul ficou fascinado
com as pontas dos dedos de Duke, com a delicadeza com que elas seguravam o
baseado, e se lembrou de como elas voavam pelo teclado com desvairada precis�o.
Seu pai tamb�m era meticuloso. Consertava os ossos das pessoas, o corpo delas.
- Voc� t� passando mal? - perguntou Duke, depois de algum tempo.
Paul o ouviu muito longe, como que atrav�s da �gua, para l� do apito distante de
um trem. Dessa vez n�o houve acessos de riso nem tonteira, s� um profundo po�o
interior em que ele se sentia cair. O po�o do lado de dentro tornou-se parte da escurid�o
do lado de fora, e Paul n�o conseguiu enxergar Duke e se assustou.
- Qual � o problema dele? - algu�m perguntou, e Duke respondeu: Acho que ele
t� s� ficando paran�ico, e as palavras eram enormes, encheram o c�modo at� o teto
e o imprensaram na parede.
Enormes gargalhadas inundaram o aposento, e os rostos dos outros contorceram-
se de tanto rir. Paul n�o conseguiu rir: estava cristalizado em seu lugar. Tinha a garganta
seca e sentia que as m�os estavam ficando grandes demais para o corpo. Examinou
a porta como se a qualquer momento seu pai pudesse irromper por ela, com
a raiva a se espatifar sobre eles feito ondas. Depois, a risadaria parou e os outros se
levantaram. Remexeram nas gavetas, � procura de comida, mas s� encontraram os
arquivos bem cuidados de David. N�o, Paul tentou dizer quando o mais velho, o barbudo,
come�ou a tirar pastas das gavetas e abri-las. N�o, era o grito em sua cabe�a,
mas n�o saiu nada da boca. Agora os outros estavam de p�, tirando uma pasta atr�s
da outra, espalhando no ch�o as fotos e negativos t�o cuidadosamente arrumados.
- Ei! - disse Duke, virando-se para lhe mostrar uma foto 20 x 25 em papel brilhante.
- Esse � voc�, Paul?
Paul sentara-se muito quieto, abra�ando os joelhos, com a respira��o num �mpeto
desvairado em seus pulm�es. N�o se mexeu, n�o conseguiu. Duke deixou a foto
cair no ch�o e foi se juntar aos outros, que estavam um pouco mais agitados, espalhando
fotos e negativos por toda a extens�o do piso colorido e brilhante.
Ele continuou sentado, muito, muito quieto. Durante um longo tempo, ficou
assustado demais para se mexer, mas depois se mexeu e foi para dentro da c�mara
escura, acocorando-se num canto quente, encostado no arm�rio de arquivo que o
pai mantinha trancado, escutando o que se passava l� fora: ondas de barulho, risadas,
uma garrafa quebrando. Por fim, ficou mais calmo. A porta abriu e Duke disse:
- Ei, cara, voc� t� a� dentro, t� tudo bem?
E, quando Paul n�o respondeu, houve uma conversa apressada do lado de fora e
eles sa�ram, descendo a escada com estr�pito. Paul se levantou devagar e atravessou
a escurid�o, entrando na galeria com pilhas de fotos destru�das. Parou na janela,
vendo Duke deslizar em sil�ncio pela entrada de carros em sua bicicleta, passando a
perna direita por cima da barra antes de desaparecer na rua.
Paul estava muito cansado. Esgotado. Virou-se e inspecionou o c�modo: fotos
por toda parte, levantando na brisa que vinha da janela, negativos pendurados feito
serpentina nas bancadas e nas lumin�rias. Uma garrafa se quebrara. Havia vidro verde
espalhado no ch�o e cerveja respingada nos arm�rios. Palavras nas paredes, desenhos
toscos e picha��es. Paul encostou-se na porta e foi escorregando, at� sentar
no ch�o em meio � bagun�a. Logo teria que se levantar, teria que limpar tudo aquilo,
ordenar as fotografias, arrum�-las direito.
Levantou a m�o, olhou para a foto embaixo dela e pegou-a. N�o era um lugar que
ele conhecesse: uma casa caindo aos peda�os, fincada na encosta de um morro. Na
frente havia quatro pessoas: uma mulher com um vestido que ia at� as canelas, de
avental, com as m�os enla�adas na frente do corpo. O vento soprava uma mecha
solta de cabelo em seu rosto. Um homem macilento, curvado feito uma v�rgula,
postava-se junto dela, segurando um chap�u junto ao peito. A mulher estava ligeiramente
virada para o homem e os dois tinham no rosto um sorriso reprimido, como
se um deles houvesse acabado de fazer uma piada e, dali a mais um instante, ambos
fossem cair na gargalhada. A m�o da m�e descansava sobre a cabe�a loura de uma
menina e entre eles havia um menino, n�o muito longe da sua idade, olhando diretamente
para a c�mera, s�rio. A imagem parecia estranhamente familiar. Paul fechou
os olhos, sentindo-se esgotado pela maconha, quase chorando de exaust�o.
Acordou com a luz do amanhecer brilhando intensa pelas janelas da esquerda e a
silhueta do pai falando no centro do clar�o:
- Paul, que diabo � isso?
Paul sentou-se, fazendo for�a para descobrir onde estava e o que tinha acontecido.
Fotografias e filmes estragados espalhavam-se pelo ch�o, coberto de pegadas
enlameadas. Os negativos desdobravam-se como serpentinas. Os cacos de vidro por
toda parte tinham deixado arranh�es fundos no piso. Paul sentiu-se invadir pelo
medo e teve vontade de vomitar. P�s a m�o acima dos olhos, para proteg�-los da
claridade ofuscante da manh�.
- Pelo amor de Deus, Paul, o que aconteceu aqui? - dizia seu pai. Tinha se afastado
da luz, finalmente, e dobrou o corpo at� se agachar. Tirou do caos a fotografia da
fam�lia desconhecida e a examinou por um momento. Depois, sentou-se, com as
costas apoiadas na parede, a foto ainda nas m�os, e inspecionou a galeria.
- O que aconteceu aqui? - tornou a perguntar, mais calmo.
- Uns amigos vieram aqui em casa. Acho que as coisas ficaram meio descontroladas.
- Parece - disse o pai. P�s uma das m�os na testa. - O Duke esteve aqui?
Paul hesitou, depois fez que sim. Estava prendendo o choro e, toda vez que olhava
para os pap�is destru�dos, uma coisa apertava feito um n� em seu peito.
- Foi voc� que fez isso, Paul? - perguntou o pai, num tom estranhamente gentil.
Paul abanou a cabe�a.
- N�o. Mas n�o os impedi.
O pai assentiu com um gesto.
- Levar� semanas para arrumar isso - disse, por fim. - � voc� quem vai arrumar.
Vai me ajudar a reconstruir os arquivos. Ser� muito trabalho. Muito tempo. Voc�
ter� que desistir dos ensaios.
Paul fez que sim, mas o aperto no peito ficou mais forte e ele n�o conseguiu se
conter:
- Voc� s� quer uma desculpa para me fazer parar de tocar.
- N�o � verdade. Droga, Paul, voc� sabe que n�o � verdade.
O pai sacudiu a cabe�a e Paul teve medo de que ele se levantasse e fosse embora,
mas, em vez disso, ele olhou para a foto em sua m�o. Era uma foto preto-e-branco,
com uma moldura branca rebuscada em volta da fam�lia � frente da casinha baixa.
- Sabe quem � esse? - perguntou.
- N�o - disse Paul, mas, ao falar, percebeu que sabia. - Ah! - exclamou, apontando
para o menino na escada. - Esse � voc�.
- Sim. Eu tinha a sua idade. Esse � meu pai, bem atr�s de mim. E, a meu lado, minha
irm�. Eu tive uma irm�, voc� sabia? Ela se chamava June. Tinha talento para a m�sica,
como voc�. Essa foi a �ltima foto que tiramos de todos n�s. June tinha uma doen�a
card�aca e morreu no outono seguinte. Perd�-la praticamente matou minha m�e.
Paul olhou para a foto de outra maneira. Aquelas pessoas n�o eram estranhos, afinal,
mas gente do seu pr�prio sangue. A av� de Duke morava num quarto no andar
de cima, fazia tortas de ma�� e assistia a novelas todas as tardes. Paul examinou a
mulher da foto, com seu riso mal reprimido - aquela mulher que ele nunca tinha
visto era sua av�.
- Ela morreu? - perguntou.
- Minha m�e? Sim. Anos depois. Seu av� tamb�m. Eles n�o eram muito velhos,
nenhum dos dois. Meus pais levaram uma vida dif�cil, Paul. N�o tinham dinheiro
nenhum. N�o estou s� querendo dizer que n�o eram ricos. Quero dizer que, �s vezes,
n�o sabiam se ter�amos comida para o jantar. Isso machucava meu pai, que era
um homem trabalhador. E machucava minha m�e, porque eles n�o podiam conseguir
muita ajuda para a June. Quando eu tinha mais ou menos a sua idade, arranjei
um emprego, para poder freq�entar o col�gio na cidade. E a� a June morreu, e eu fiz
uma promessa a mim mesmo: ia sair e consertar o mundo - disse, e abanou a cabe�a.
- Bem, � claro que n�o foi o que fiz, na verdade. Mas n�s estamos aqui, Paul.
Temos tudo em abund�ncia. Nunca nos preocupamos em saber se teremos o bastante
para comer. Voc� ir� para a faculdade que quiser. E, no entanto, s� consegue
pensar em se drogar com seus amigos e jogar tudo fora.
O aperto no est�mago tinha subido para a garganta e Paul n�o p�de responder. O
mundo continuava claro demais e n�o muito est�vel. Ele queria fazer sumir a tristeza
na voz do pai, apagar o sil�ncio que enchia a casa deles. Mais do que tudo, queria que
esse momento - o pai sentado a seu lado, contando-lhe hist�rias da fam�lia - nunca
acabasse. Tinha medo de dizer a coisa errada e estragar tudo, assim como o excesso
de luz no papel estragava as fotografias. Depois que isso acontecia, n�o tinha volta.
- Desculpe - disse.
O pai balan�ou a cabe�a em concord�ncia, olhando para baixo. Por um breve
instante, sua m�o afagou de leve o cabelo de Paul.
- Eu sei.
- Eu limpo tudo.
- Sim, eu sei.
- Mas eu adoro m�sica - disse Paul, sabendo que era a coisa errada, o facho de
luz repentino que enegrecia o papel, mas n�o conseguiu parar. - Tocar � a minha
vida. Nunca vou desistir disso.
O pai permaneceu em sil�ncio por um instante, de cabe�a baixa. Depois, deu um
suspiro e se levantou.
- N�o feche nenhuma porta por enquanto - disse. - � s� o que eu pe�o.
Paul viu o pai desaparecer na c�mara escura. Depois, ajoelhou-se e come�ou a catar
os cacos de vidro. Ao longe, os trens corriam, e o c�u al�m das janelas se abria
para a eternidade, l�mpido e azul. Ele parou por um instante na luz ofuscante da manh�,
ouvindo o pai trabalhar na c�mara escura, imaginando as mesmas m�os movendo-
se com cuidado dentro do corpo de uma pessoa, procurando consertar o que
se havia partido.
20I
SETEMBRO DE 1977
AROLINE SEGUROU O CANTO DA FOTO DA POLAR�IDE ENTRE O POLEGAR
e o indicador no momento em que sa�a da c�mera, com a imagem j� emer
gindo. A mesa com a toalha branca parecia flutuar num mar de grama verde. As
margaridas-do-campo, brancas e levemente luminosas, subiam a encosta. Phoebe
era uma mancha p�lida com seu vestido de crisma. Caroline sacudiu a foto no ar fragrante
para sec�-la. Ouviu-se um trov�o muito ao longe: um temporal de fim de
ver�o que se preparava; soprou uma brisa que agitou os guardanapos de papel.
- Mais uma - disse ela.
- Ah, m�e! - protestou Phoebe, mas ficou parada.
No instante em que a c�mera fez clique, ela saiu correndo pelo jardim at� onde sua
vizinha Avery, de oito anos, segurava um gatinho cujo p�lo tinha o mesmo tom laranja-
escuro de seus cabelos. Phoebe, de 13 anos, era baixa para sua idade, rechonchuda,
ainda impulsiva e passional, lenta na aprendizagem, mas passava, com espantosa
velocidade, da alegria para a melancolia e a tristeza, e de novo para a alegria.
- Fui confirmada! - gritou nessa hora, rodopiando uma vez no jardim, com os
bra�os erguidos bem alto, o que fez os convidados se virarem para olh�-la e sorrirem,
com seus copos na m�o. Com a saia girando, Phoebe correu para o filho de
Sandra, Tim, agora tamb�m adolescente. Envolveu-o num abra�o e lhe deu um beijo
exuberante no rosto.
Em seguida refreou-se e deu uma olhadela ansiosa para Caroline. No come�o do
ano, os abra�os tinham sido um problema na escola. "Eu gosto de voc�", anunciava
Phoebe, estreitando uma crian�a menor; n�o entendia por que n�o devia faz�-lo.
Caroline lhe dissera repetidas vezes: Os abra�os s�o especiais. Os abra�os s�o para a
fam�lia. Aos poucos, Phoebe tinha aprendido. Mas, nesse momento, ao v�-la refrear
sua afei��o, Caroline se perguntou se tinha feito a coisa certa.
- Est� tudo bem, querida - gritou para Phoebe. - Voc� pode abra�ar seus amigos
na festa.
Phoebe relaxou. Ela e Tim foram afagar o gatinho. Caroline olhou para a foto da
polar�ide em sua m�o: o jardim luminoso e o sorriso de Phoebe, um momento fugaz
capturado e j� ultrapassado. Houve outros trov�es ao longe, mas a tarde continuou
espl�ndida, morna e enfeitada de flores. Em todo o jardim, as pessoas circulavam,
conversando, rindo e enchendo seus copos de pl�stico. Um bolo de tr�s camadas,
com cobertura branca, ocupava a mesa, decorado com rosas vermelho-escuras
do jardim. Tr�s camadas, para tr�s comemora��es: o crisma de Phoebe, o anivers�rio
de casamento da pr�pria Caroline e a aposentadoria de Dorothy, um voto de
boa viagem.
- O bolo � meu - dizia Phoebe, flutuando sobre o subir e descer das conversas, as
vozes dos professores de f�sica, dos vizinhos, membros do coral e amigos da escola,
das fam�lias da Sociedade Upside Down, de toda sorte de crian�as correndo. Os
novos amigos de Caroline do hospital, onde ela come�ara a trabalhar meio expediente
depois de Phoebe entrar na escola, tamb�m estavam presentes. Ela havia
reunido todas essas pessoas, planejado essa festa linda, que desabrochava no crep�sculo
como uma flor. - O bolo � meu - repetia Phoebe. - Fui crismada.
Caroline bebericou seu vinho, sentindo na pele o ar morno como a respira��o.
N�o viu Al chegar, mas de repente ele estava ali, passando a m�o em sua cintura e
beijando-a no rosto, inundando-a com sua presen�a e seu aroma. Cinco anos antes,
eles haviam se casado numa festa muito parecida com essa, no jardim, com morangos
boiando no champanhe, o ar cheio de vaga-lumes e a fragr�ncia das rosas. Cinco
anos, e o gosto de novidade ainda n�o se perdera. O quarto de Caroline, no terceiro
andar da casa de Dorothy, tornara-se um lugar t�o misterioso e sensual quanto o
jardim. Ela adorava acordar sentindo o corpo quente e pesado de Al todo encostado
no seu, adormecido a seu lado, a m�o dele descansando de leve em sua barriga,
o cheiro dele - sabonete e lo��o Old Spice - impregnando aos poucos o quarto, os
len��is, as toalhas. Ele estava l�, com uma presen�a t�o v�vida que ela o sentia em
cada nervo. Presente e, com a mesma rapidez, ausente.
- Feliz anivers�rio - disse o marido nesse momento, apertando-a de leve na cintura.
Caroline sorriu, radiante de prazer. Havia anoitecido e as pessoas circulavam e
riam em meio ao calor suave e � fragr�ncia ainda presentes, enquanto o orvalho se
acumulava na relva escurecida e na espuma branca de flores por toda parte. Ela
segurou a m�o de Al, s�lida e firme, e quase riu, porque ele havia acabado de chegar
e ainda n�o sabia da novidade. Dorothy ia partir num cruzeiro de um ano, dar a
volta ao mundo com seu namorado, um homem chamado Trace. Disso Al j� sabia;
os planos tinham evolu�do ao longo de meses. Mas n�o sabia que ela, no que chamava
de alegre liberta��o do passado, dera a Caroline a escritura dessa casa antiga.
Dorothy estava chegando nesse exato momento, descendo a escada com um vestido
de seda. Trace vinha logo atr�s, carregando um saco de gelo. Era um ano mais
mo�o, 65 anos, tinha o cabelo curto e grisalho, o rosto estreito e comprido e l�bios
cheios. Era atento a seu peso, exigente com a comida e amante de �pera e carros
esporte. Fora nadador ol�mpico em certa �poca, quase havia conquistado a medalha
de bronze, e ainda achava a coisa mais f�cil do mundo mergulhar no Monongahela
e nadar at� a margem oposta. Uma tarde, tinha sa�do da �gua e subido a margem do
rio, tr�pego, p�lido e pingando, bem no meio do piquenique anual do Departamento
de F�sica. Essa era a hist�ria de como os dois haviam se conhecido. Trace era carinhoso
e gentil com Dorothy, que claramente o adorava, e, se parecia arredio a
Caroline, meio distante e reservado, isso realmente n�o era problema dela.
Uma lufada de vento derrubou uma pilha de guardanapos da mesa e Caroline
abaixou-se para peg�-los.
- Voc�s est�o trazendo o vento - disse Al, quando eles se aproximaram.
- � t�o empolgante! - exclamou ela, levantando as m�os. Estava cada vez mais
parecida com Leo, com os tra�os mais marcados e o cabelo, agora curto, inteiramente
branco.
- O Al � feito esses velhos marinheiros - disse Trace, pondo o gelo na mesa. Caroline
usou uma pedrinha para segurar os guardanapos. - Ele tem uma sintonia
com as mudan�as atmosf�ricas. Ah, Dorothy, fique assim como est�! - exclamou.
- Meu Deus, como voc� est� bonita! Sinceramente. Parece uma deusa do vento.
- Se voc� � a deusa do vento - disse Al, segurando os pratos de papel que iam levantando
v�o -, � melhor desligar as turbinas para podermos aproveitar esta festa.
- N�o est� glorioso? - perguntou Dorothy. - � uma festa linda, uma despedida
maravilhosa.
Phoebe aproximou-se correndo, carregando no colo o gatinho min�sculo, uma
bolinha laranja-claro. Caroline estendeu a m�o e alisou seu cabelo, sorrindo.
- A gente pode ficar com ele? - perguntou a menina.
- N�o - respondeu Caroline, como sempre -, sua tia � al�rgica.
- M�e... - reclamou Phoebe, mas logo foi distra�da pelo vento e pela mesa linda.
Puxou a manga sedosa de Dorothy. - Tia Dorothy. � o meu bolo.
- Meu tamb�m - disse Dorothy, passando o bra�o em volta de seus ombros. - Vou
fazer uma viagem, n�o se esque�a, de modo que tamb�m � meu bolo. E da sua m�e
e do Al, porque faz cinco anos que eles se casaram.
- Eu vou na viagem - disse Phoebe.
- Ah, n�o, fofinha - contrap�s Dorothy. - Dessa vez, n�o. Essa � uma viagem para
gente grande, meu amor. Para mim e para o Trace.
A express�o de Phoebe ganhou um toque de decep��o t�o intenso quanto a alegria
anterior. Vol�til como o merc�rio - o que quer que ela sentisse a cada momento
era o mundo inteiro.
- Ei, fofinha - disse Al, agachando-se. - O que voc� acha? Ser� que esse gatinho
gostaria de um pouco de leite?
Ela lutou contra um sorriso e cedeu, fazendo que sim com a cabe�a, momentaneamente
distra�da de sua perda.
- �timo - fez Al, pegando-a pela m�o e piscando para Caroline.
- N�o leve o gato l� para dentro - advertiu Caroline.
Encheu uma bandeja de copos e circulou entre os convidados, ainda deslumbrada.
Ela era Caroline Simpson, m�e de Phoebe, mulher de Al, organizadora de protestos
- uma pessoa totalmente diferente da mulher t�mida que ficara parada num
consult�rio silencioso e coberto de neve, 13 anos antes, com um beb� no colo. Virou-
se para olhar a casa, com seus tijolos claros estranhamente v�vidos, em contraste
com o c�u enevoado. � a minha casa, pensou, num eco � cantilena anterior de
Phoebe. Sorriu de sua id�ia seguinte, curiosamente oportuna: Fui confirmada.
Sandra ria com Dorothy junto � moita de madressilvas, e a Sra. Soulard vinha subindo
a alameda com um vaso cheio de l�rios. Trace, com o vento a lhe jogar no rosto
o cabelo grisalho, p�s a m�o em concha em volta de um f�sforo, tentando acender
as velas. As chamas tremeram e crepitaram, mas acabaram pegando e iluminaram
a toalha de linho branco, os copinhos votivos transparentes, o vaso de flores
brancas e o bolo com cobertura de chantilly. Por um momento, Caroline ficou im�vel,
pensando nas m�os de Al a procur�-la no escuro da noite que viria. Isso � felicidade,
disse a si mesma. � isso que significa felicidade.
A festa durou at� as 11 horas da noite. Dorothy e Trace ficaram por ali, depois da
sa�da dos �ltimos convidados, carregando bandejas com copos e sobras de bolo,
tirando vasos de flores e guardando mesas e cadeiras na garagem. Phoebe j� havia
dormido; Al a levara para dentro, depois de ela se desmanchar em l�grimas, cansada
e hiperexcitada, arrasada com a partida deles, em meio a enormes solu�os que a
deixaram sem f�lego.
- N�o fa�a mais nada - disse Caroline, detendo a amiga no alto da escadinha da
entrada, ro�ando nas folhas densas e flex�veis dos lilases. Ela havia plantado essa
cerca viva tr�s anos antes, e, agora, os arbustos, que n�o tinham passado de gravetos
durante muito tempo, haviam fincado ra�zes e crescido em disparada. Dali a um ano
estariam carregados de flores. - Amanh� eu arrumo tudo, Dorothy. Voc� tem um
v�o de manh� cedo. Deve estar ansiosa para ir embora.
- Estou - disse ela, com a voz t�o baixa que Caroline teve que se esfor�ar para
ouvi-la. Acenou com a cabe�a para a casa, onde Al e Trace trabalhavam na cozinha
iluminada, limpando os pratos. - Mas � uma sensa��o agridoce, Caroline. Andei por
todos os c�modos antes, pela �ltima vez. Passei a minha vida inteira aqui. � estranho
deixar esta casa. Mas, ao mesmo tempo, estou empolgada com a partida.
- Voc� sempre pode voltar - comentou Caroline, lutando contra uma onda
repentina de emo��o.
- Espero n�o querer voltar. Pelo menos, n�o para mais do que uma visita - retrucou
Dorothy. Segurou o cotovelo de Caroline e disse: - Venha, vamos sentar na varanda.
Elas andaram pelo lado da casa, passando sob as glic�nias em arco, e se sentaram
no balan�o, enquanto um rio de carros flu�a pela enorme via expressa. As folhas altas
dos sic�moros, grandes como pratos, agitavam-se contra os postes de luz.
- Voc� n�o vai sentir saudade do tr�nsito - disse Caroline.
- N�o, isso � verdade. Antigamente era muito calmo. Eles costumavam fechar a
rua inteira no inverno. Desc�amos direto de tren� pelo meio da alameda, bem ali.
Caroline empurrou o balan�o, relembrando aquela noite, tantos anos antes, em que
o luar havia inundado os jardins e entrado pelas janelas do banheiro, enquanto Phoebe
tossia em seu colo e as gar�as levantavam v�o nos campos da inf�ncia de Dorothy.
A porta de tela abriu-se e Trace saiu.
- E a�? Est� mais ou menos pronta?
- Quase - disse ela.
- Ent�o, vou buscar o carro e traz�-lo para a porta da frente.
Tornou a entrar. Caroline p�s-se a contar os carros, at� 20. Doze anos atr�s ela
havia chegado a essa porta, com Phoebe nos bra�os, um beb�. Ficara parada bem ali,
� espera do que ia acontecer.
- A que horas sai o seu v�o? - perguntou.
- Cedo. �s oito. Ah, Caroline - suspirou Dorothy, reclinando-se e abrindo bem
os bra�os. - Depois de todos esses anos, sinto-me completamente livre. Quem sabe
para onde posso voar?
- Sentirei sua falta - disse Caroline. - A Phoebe tamb�m.
Dorothy balan�ou a cabe�a.
- Eu sei. Mas n�s nos veremos. Mandarei postais de todos os lugares.
Um par de far�is desceu a ladeira e, em seguida, o carro alugado reduziu a velocidade
e o bra�o comprido de Trace levantou-se num aceno.
- A estrada nos chama! - gritou.
- V� com Deus - disse Caroline. Abra�ou a amiga, sentindo seu rosto macio.
- Voc� salvou a minha vida, muitos anos atr�s, voc� sabe.
- Querida, voc� tamb�m salvou a minha - fez Dorothy, afastando-se. Tinha os
olhos �midos. - Agora a casa � sua. Aproveite-a.
E desceu a escada, com o su�ter branco esvoa�ando. Entrou no carro, deu adeus
e se foi.
Caroline viu o carro fundir-se no tr�nsito da autopista e desaparecer no rio de luzes
c�leres. O temporal ainda contornava as montanhas, embranquecendo o c�u com
os rel�mpagos e trazendo o eco distante da trovoada surda. Al passou para o lado de
fora trazendo bebidas e abrindo a porta com o p�. Os dois sentaram-se no balan�o.
- Pois � - comentou. - Bonita festa.
- Foi, sim - concordou Caroline. - Foi divertida. Estou exausta.
- Ainda tem for�as para abrir isto? - perguntou ele.
Caroline pegou o pacote e desfez o embrulho malfeito. Dele caiu um cora��o
entalhado em cerejeira, liso como um seixo na palma de sua m�o. Ela a fechou, lembrando-
se de como o medalh�o havia cintilado na luz fria da cabine do caminh�o
de Al e, meses depois, de como a m�ozinha de Phoebe o havia segurado.
- � lindo - disse, encostando o cora��o liso no rosto. - T�o quentinho! Encaixa-
se exatamente aqui, na palma da minha m�o.
- Eu mesmo o entalhei - disse Al, com alegria na voz. - De noite, na estrada. Achei
que seria meio piegas, mas uma gar�onete que eu conhe�o em Cleveland disse que
voc� ia gostar. Espero que sim.
- Gosto - disse Caroline, enfiando o bra�o no dele. - Tamb�m tenho uma coisa
para voc� - e lhe entregou uma caixinha de papel�o. - N�o tive tempo de embrulhar.
Ele a abriu e tirou uma chave nova de metal.
- Que � isso: a chave do seu cora��o?
Ela riu.
- N�o. � a chave desta casa.
- Por qu�? Voc� trocou a fechadura?
- N�o - disse ela, empurrando o balan�o. - A Dorothy me deu a casa, Al. N�o �
incr�vel? A escritura est� l� dentro. Ela disse que queria recome�ar do zero.
Uma batida do cora��o. Duas, tr�s, e o ranger do balan�o, para a frente e para tr�s.
- � um bocado dr�stico - disse Al. - E se ela quiser voltar?
- Perguntei-lhe a mesma coisa. Ela disse que o Leo tinha deixado muito dinheiro.
Patentes, economias, sabe-se l� mais o qu�. E a Dorothy foi econ�mica a vida inteira,
de modo que n�o precisa do dinheiro. Se eles voltarem, ela e o Trace v�o comprar
um apartamento, ou coisa assim.
- Generosa - fez Al.
- �.
Ele se calou. Caroline ouviu o ranger do balan�o da varanda, o vento, os carros.
- A gente podia vend�-la - ponderou. - Ir embora, n�s mesmos. Para qualquer lugar.
- Ela n�o vale grande coisa - disse Caroline, devagar. A id�ia de vender a casa
nunca lhe passara pela cabe�a. - E depois, para onde ir�amos?
- Ah, n�o sei, Caroline. Voc� me conhece. Passei a vida toda para l� e para c�. Estou
s� especulando. Assimilando a not�cia.
O bem-estar da escurid�o e do vaiv�m ritmado do balan�o deu lugar a uma
inquieta��o mais profunda. Quem era esse homem a seu lado, pensou Caroline, esse
homem que chegava todo fim de semana e se enfiava com tanta familiaridade em
sua cama, que inclinava a cabe�a num certo �ngulo, todas as manh�s, para dar tapinhas
com Old Spice no pesco�o e no queixo? O que sabia ela, de verdade, sobre seus
sonhos, seus segredos mais �ntimos? Quase nada, pareceu-lhe de repente, nem ele
sobre os dela.
- Quer dizer que voc� preferiria n�o ser dono de uma casa? - ela insistiu.
- N�o � isso. Foi um bonito gesto.
- Mas prende voc�.
- Gosto de vir para casa encontrar voc�, Caroline. Gosto de voltar por aquele �ltimo
trecho de estrada e saber que voc� e a Phoebe est�o aqui, preparando coisas na cozinha,
ou plantando flores, ou seja o que for. Mas � claro que o que eles est�o fazendo �
atraente. Fazer as malas. Partir. Vagar pelo mundo. Seria bom, eu acho. Essa liberdade.
- N�o tenho mais esses anseios - disse Caroline, olhando para o jardim envolto
em sombras, as luzes dispersas da cidade e as letras vermelho-escuras do letreiro da
Foodland, como peda�os de um mosaico em meio � densa folhagem do ver�o.
- Sinto-me feliz bem aqui onde estou. Voc� vai enjoar de mim.
- N�o. Isso s� nos torna compat�veis, meu bem.
Passaram algum tempo calados, escutando o vento, o zumbir dos carros.
- A Phoebe n�o gosta de mudan�as - comentou Caroline. - N�o sabe lidar direito
com elas.
- Bem, tamb�m tem isso - disse Al.
Esperou um momento e se virou para a mulher.
- Sabe, Caroline, a Phoebe est� come�ando a crescer. Est� come�ando a n�o ser
mais uma garotinha.
- Ela s� tem 13 anos - contrap�s Caroline, pensando em Phoebe com o gatinho,
na facilidade com que ela resvalava para as alegrias descontra�das da inf�ncia.
- Tem raz�o. Ela tem 13 anos, Caroline. Ela est�... bom, sabe como �... come�ando
a se desenvolver. J� n�o me sinto � vontade para carreg�-la no colo, como fiz hoje.
- Ent�o, n�o a carregue - retrucou Caroline, r�spida, mas lembrou-se de Phoebe na
piscina, no come�o daquela semana, nadando para longe e voltando, agarrando-a embaixo
d'�gua, com os bot�es macios e crescentes dos seios encostados em seu bra�o.
- N�o precisa se zangar, Caroline. � s� que nunca falamos nisso, nem uma vez,
n�o �? Do que vai acontecer com ela. De como ser� quando nos aposentarmos,
como a Dorothy e o Trace.
Al fez uma pausa e Caroline intuiu que ele escolhia com cuidado as palavras.
- Eu gostaria de acreditar que poder�amos pensar em viagens. Fico meio claustrofobia),
s� isso, quando me imagino permanecendo nessa casa para sempre. E a
Phoebe? Ser� que ela vai morar conosco pelo resto da vida?
- N�o sei - disse Caroline, sentindo-se envolver por um cansa�o denso como a
noite. Ela j� havia travado tantas batalhas para construir uma vida para Phoebe
neste mundo indiferente! Por ora, todos os seus problemas estavam resolvidos e, no
�ltimo ano, mais ou menos, ela havia conseguido relaxar. Mas onde Phoebe trabalharia
e como viveria quando crescesse, tudo isso era uma inc�gnita. - Ah, Al, n�o
posso pensar nisso tudo esta noite. Por favor.
O balan�o oscilava, para a frente e para tr�s.
- Teremos que pensar nisso em algum momento.
- Ela � s� uma garotinha. O que voc� est� sugerindo?
- Caroline, n�o estou sugerindo nada. Voc� sabe que eu amo a Phoebe. Mas voc�
ou eu podemos morrer amanh�. N�o estaremos sempre por perto para cuidar dela,
s� isso. E talvez chegue um momento em que ela n�o nos queira por perto. S� estou
perguntando se voc� j� pensou nisso e para que vem economizando todo aquele
dinheiro. S� estou trazendo o assunto � baila, quer dizer, para pensarmos nisso. N�o
seria bom se voc� pudesse ir para a estrada comigo de vez em quando? S� por um
fim de semana?
- Sim. Seria agrad�vel - disse ela, baixinho.
Mas n�o tinha certeza. Tentou imaginar a vida de Al, um quarto diferente a cada
noite, uma cidade diferente, e a estrada se desdobrando na mesma tira cinzenta. A
primeira id�ia dele tinha sido inquietante: vender a casa, cair na estrada, correr mundo.
Al acenou com a cabe�a, esvaziou o copo e come�ou a se levantar.
- N�o v� ainda - pediu Caroline, pondo a m�o de leve em seu bra�o. - Preciso
falar de uma coisa com voc�.
- Parece s�rio - comentou ele, tornando a se reclinar no balan�o. Deu um risinho
nervoso. - Voc� n�o vai me abandonar, vai? Agora que recebeu essa heran�a.
- � claro que n�o, n�o � nada disso - suspirou ela. - Recebi uma carta essa semana.
Foi uma carta estranha, e preciso falar dela.
- Uma carta de quem?
- Do pai da Phoebe.
Al balan�ou a cabe�a e cruzou os bra�os, mas n�o disse nada. Ele sabia das cartas,
� claro. Fazia anos que elas chegavam, trazendo valores vari�veis em esp�cie e uma
�nica frase rabiscada. Por favor, diga-me onde voc�s est�o morando. Caroline n�o o
fizera, mas, nos primeiros anos, havia contado tudo o que se passava a David Henry.
Cartas confessionais, sa�das do cora��o, como se ele fosse um amigo �ntimo, um
confidente. Com o passar do tempo, ela se tornara mais econ�mica, mandando fotografias
e uma ou duas linhas, no m�ximo. Sua vida tornara-se muito plena, rica e
complexa; n�o havia como p�r aquilo tudo no papel, de modo que ela simplesmente
desistira de tentar. Que choque tinha sido, portanto, encontrar uma carta longa de
David Henry, tr�s p�ginas inteiras, escritas em sua letra mi�da - uma carta emocionada,
que come�ara por Paul, seu talento e seus sonhos, sua paix�o e sua raiva.
Sei que foi um erro. O que eu fiz, ao lhe entregar minha filha, sei que aquilo foi uma
coisa terr�vel e sei que n�o posso desfaz�-la. Mas eu gostaria de conhec�-la, Caroline,
gostaria de melhorar as coisas, de algum modo. Gostaria de saber um pouco mais sobre
a Phoebe e sobre a vida de voc�s.
Caroline ficara amedrontada com as imagens fornecidas por ele - Paul, adolescente,
tocando seu viol�o e sonhando com a Juilliard, Norah com sua pr�pria empresa,
e David, que estivera fixado em sua mente durante todos aqueles anos, claro
como uma fotografia num �lbum, debru�ado sobre aquele peda�o de papel, cheio
de remorsos e anseios. Ela enfiara a carta numa gaveta, como se isso pudesse cont�la,
mas as palavras tinham ficado pairando em sua mente em todos os momentos
dessa semana atarefada e emotiva.
- Ele quer conhec�-la - disse Caroline, alisando a franja de um xale que Dorothy
2IO
havia deixado no bra�o do balan�o. - Quer voltar a fazer parte da vida dela, de
algum modo.
- Que gentileza! - ironizou Al. - Quanta coragem, depois de todo esse tempo.
Caroline assentiu com a cabe�a.
- Mas ele � pai dela.
- E isso faz de mim o qu�? Eu gostaria de saber.
- Por favor. Voc� � o pai que a Phoebe conhece e ama. S� que eu n�o lhe contei
tudo, Al, sobre o modo como vim a ficar com ela. E acho que seria melhor contar.
Ele segurou a m�o da mulher.
- Caroline, andei circulando por Lexington, depois que voc� foi embora.
Conversei com aquela sua vizinha e ouvi uma por��o de hist�rias. Bom, n�o tenho
muito estudo, mas n�o sou burro, e sei que o Dr. David Henry perdeu uma filha
rec�m-nascida, mais ou menos na �poca em que voc� saiu da cidade. O que estou
dizendo � que o que possa ter acontecido entre voc�s dois n�o tem import�ncia. N�o
para mim. N�o para n�s. Por isso, n�o preciso dos detalhes.
Ela ficou sentada em sil�ncio, vendo os carros passarem velozes pela autopista.
- Ele n�o a queria - disse. - Ia coloc�-la num asilo, numa institui��o. Pediu que
eu a levasse para l�, e eu a levei. Mas n�o consegui deix�-la. Era um lugar pavoroso.
Al calou-se por algum tempo.
- J� ouvi falar nessas coisas - disse, por fim. - Ouvi hist�rias desse tipo na estrada.
Voc� foi corajosa, Caroline. Fez a coisa certa. � dif�cil pensar na Phoebe crescendo
num lugar desses.
Caroline balan�ou a cabe�a, com l�grimas nos olhos.
- Eu sinto muito, Al. Devia ter lhe contado h� anos.
- Est� tudo bem, Caroline. S�o �guas passadas.
- O que voc� acha que eu devo fazer? Quero dizer, sobre essa carta. Devo responder?
Deixar que ele a conhe�a? N�o sei, isso tem me dilacerado, a semana inteira. E
se ele a levar embora?
- N�o sei o que lhe dizer - respondeu Al, devagar. - N�o cabe a mim decidir.
Ela assentiu. Era justo, era a conseq��ncia de ter guardado segredo daquilo.
- Mas vou apoi�-la - acrescentou Al, apertando-lhe a m�o. - N�o importa o que
voc� achar melhor, eu apoio voc� e Phoebe cem por cento.
- Obrigada. Eu estava muito inquieta.
- Voc� se preocupa demais com as coisas erradas, Caroline.
- Ent�o isso n�o nos afeta? O fato de eu n�o ter lhe contado antes... isso n�o afeta
voc� e eu?
- Nem remotamente - fez ele.
- Ent�o, est� bem.
- Certo - concordou Al. Levantou, espregui�ando-se. - Um dia cansativo. Voc�
vai subir?
- Daqui a um minuto, vou.
A porta de tela se abriu com um rangido, depois fechou-se. O vento soprou pelo
lugar em que Al estivera sentado.
Come�ou a chover, primeiro baixinho sobre o telhado, depois num martelar
insistente. Caroline trancou a casa - sua casa, agora. No andar de cima, parou para
dar uma olhada em Phoebe. Sua pele estava quente e �mida; ela se mexeu e sua boca
formou palavras n�o ditas, depois ela se reacomodou em seus sonhos. Do�ura de
menina, sussurrou Caroline e a cobriu. Ficou parada um minuto no quarto onde a
chuva ecoava, comovida com a pequenez de Phoebe, com todos os aspectos em que
n�o conseguiria proteger sua filha do mundo. Depois, foi para seu quarto e deitou
sob os len��is frios ao lado de Al. Lembrou-se das m�os dele em sua pele, da press�o
da barba em seu pesco�o e de seus pr�prios gemidos no escuro. Um bom marido
para ela, um bom pai para Phoebe, um homem que se levantaria na segunda-feira
de manh�, tomaria banho, se vestiria e desapareceria com seu caminh�o durante a
semana, confiando em que ela fizesse o que achasse melhor a respeito de David Henry
e sua carta. Caroline ficou muito tempo acordada, ouvindo a chuva, com a m�o
descansando no peito do marido.
Acordou ao alvorecer, com a barulheira de Al descendo a escada, saindo cedo para
trocar o �leo do caminh�o. A chuva descia em cascatas pelas calhas e canos de escoamento,
fervilhava nas po�as e corria torrencialmente ladeira abaixo. Caroline desceu
e fez caf�, t�o absorta em seus pensamentos, na estranheza da casa silenciosa, que s�
ouviu Phoebe quando ela parou na porta �s suas costas.
- Chuva - disse Phoebe, com o roup�o de banho solto sobre o corpo. - Chove a
c�ntaros. C�es e gatos.
-� - concordou Caroline. Uma vez, elas haviam passado horas estudando essa
express�o idiom�tica, trabalhando num cartaz desenhado por Caroline, com
nuvens zangadas e c�es e gatos pululando no c�u. Era uma das express�es favoritas
de Phoebe. - Hoje est� mais para girafas e elefantes.
- Vacas e porcos - disse Phoebe. - Porcos e cabras.
- Voc� quer torradas?
- Quero gato - respondeu Phoebe.
- O que voc� quer? - perguntou Caroline. - Use as frases completas.
- Eu quero um gato, por favor.
- N�o podemos ter um gato.
- A tia Dorothy foi embora. Eu posso ter um gato.
A cabe�a de Caroline do�a. O que acontecer� com ela?
- Tome, Phoebe, aqui est�o suas torradas. Depois falaremos do gato, est� bem?
- Eu quero um gato - insistiu a menina.
- Depois.
- Um gato - disse Phoebe.
- Droga! - e a palma da m�o de Caroline bateu com for�a na bancada, assustando
as duas. - N�o me fale mais em gato! Est� ouvindo?
- Sentar na varanda - disse Phoebe, emburrada. - Ver a chuva.
- O que voc� quer? Fale as frases inteiras.
- Quero sentar na varanda e olhar a chuva.
- Voc� vai se resfriar.
- Quero...
- Ah, est� certo - interrompeu Caroline, balan�ando uma das m�os. - �timo.
Saia, v� sentar na varanda. Olhe a chuva. Como quiser.
A porta abriu e fechou. Caroline olhou para fora e viu Phoebe sentar no balan�o
da varanda, com o guarda-chuva aberto e as torradas no colo. Sentiu-se irritada consigo
mesma por ter perdido a paci�ncia. O problema n�o era Phoebe. � que Caroline
n�o sabia o que responder a David Henry, e estava com medo.
Buscou os �lbuns de fotografias e as fotos soltas que vinha pretendendo arrumar
e foi sentar-se no sof�, onde poderia ficar de olho em Phoebe, escondida pelo guarda-
chuva, balan�ando na varanda. Espalhou as fotos recentes na mesinha de centro,
depois pegou um peda�o de papel e escreveu a David:
Phoebe foi crismada ontem. Estava uma gracinha com seu vestido branco, de um
tecido com ilh�s perpassados por fitas cor-de-rosa. Ela cantou um solo na igreja. Estou
mandando uma foto da festa que fizemos depois, no jardim. � quase inacredit�vel o
tanto que ela cresceu, e come�o a me preocupar com o que o futuro lhe reserva. Imagino
que tenha sido nisso que voc� pensou na noite em que a entregou a mim. Lutei muito
durante todos esses anos, e �s vezes fico apavorada com o que acontecer� depois, mas...
Fez uma pausa nesse ponto, intrigada com seu impulso de responder. N�o era
pelo dinheiro. Cada centavo recebido ia para o banco; no correr dos anos, Caroline
havia economizado quase 15 mil d�lares, tudo num fundo de poupan�a para
Phoebe. Talvez estivesse escrevendo simplesmente por h�bito ou para manter viva a
liga��o entre os dois. Talvez quisesse apenas que ele compreendesse o que estava perdendo.
Olhe aqui, tinha vontade de dizer, segurando David Henry pelo colarinho,
esta � a sua filha: Phoebe, de 13 anos, com um sorriso no rosto que parece o sol.
Largou a caneta, pensando em Phoebe com seu vestido branco, cantando no
coral, segurando o gatinho. Como poderia contar tudo isso a David e n�o atender a
seu pedido de se encontrar com a filha? No entanto, se ele fosse l�, depois de todos
esses anos, o que aconteceria? Caroline achava que n�o o amava mais, por�m talvez
amasse. Talvez tamb�m ainda estivesse com raiva dele, pelas escolhas que ele fizera,
por nunca ter visto realmente quem ela era. Foi inquietante descobrir essa dureza
em seu pr�prio cora��o. E se ele tivesse mudado, afinal? E se n�o tivesse? Ele poderia
magoar Phoebe do mesmo jeito que magoara a ela, Caroline, sem nem saber que
isso tinha acontecido.
P�s a carta de lado. Em vez dela, fez os cheques de pagamento de algumas contas
e foi l� fora colocar na caixa de correio. Phoebe estava sentada na escada da frente,
segurando bem alto o guarda-chuva. Caroline a observou por um minuto antes de
deixar a porta fechar-se e ir � cozinha buscar outra x�cara de caf�. Passou um bom
tempo parada na porta dos fundos, vendo as folhas gotejantes, a grama molhada, o
riachinho que descia pela cal�ada. Havia um copo de papel embaixo de uma sebe,
um guardanapo empapado perto da garagem. Dali a poucas horas, Al partiria de
novo. Por um momento, ela teve um vislumbre do que seria a liberdade.
A chuva apertou de repente, batendo no telhado. Alguma coisa se abriu no cora��o
de Caroline, um instinto poderoso que a fez virar-se e entrar na sala. Antes mesmo
de pisar na varanda, ela soube que a encontraria vazia, com o prato colocado no
piso de concreto, o balan�o im�vel.
Phoebe se fora.
Para onde? Caroline foi at� a beira da varanda e examinou a rua, acima e abaixo,
em meio � chuva torrencial. Um trem apitou ao longe; � esquerda, a rua subia o
morro at� a linha f�rrea. A direita, terminava na rampa de acesso da autopista. Muito
bem, pense. Pense! Para onde ela iria?
Na descida da rua, as crian�as dos Swan brincavam descal�as nas po�as. Caroline
lembrou-se de Phoebe dizendo, mais cedo, Eu quero um gato e tamb�m de Avery na
festa, com a bolinha felpuda no colo. Lembrou-se de Phoebe, fascinada com o ta
manho diminuto do gatinho, com os pequenos sons que ele emitia. E, com efeito,
quando perguntou por Phoebe aos filhos dos Swan, eles apontaram para o arvoredo
do outro lado da rua. O gatinho havia fugido. Phoebe e Avery tinham ido procur�-lo.
� primeira pausa no tr�nsito, Caroline atravessou a rua correndo. A terra estava
encharcada e a �gua empo�ava em suas pegadas. Ela seguiu pelo arvoredo denso e
finalmente saiu na clareira. Avery estava l�, ajoelhada junto � tubula��o que escoava
a �gua que descia dos morros na vala de concreto. O guarda-chuva amarelo de
Phoebe estava jogado feito uma bandeira ao lado dela.
- Avery! - chamou Caroline, agachando-se ao lado da menina e pondo a m�o em
seu ombro molhado. - Cad� a Phoebe?
- Ela entrou para buscar o gato - respondeu a menina, apontando para a tubula��o.
- Ele entrou ali.
Caroline praguejou baixinho e se ajoelhou junto � sa�da da tubula��o. A �gua fria
correu por seus joelhos e suas m�os.
- Phoebe! - chamou, e sua voz ecoou na escurid�o. - � a mam�e, meu amor, voc�
est� a�?
Sil�ncio. Caroline entrou na tubula��o devagar. A �gua estava muito fria. Suas
m�os logo ficaram dormentes.
- Phoebe! - gritou, e sua voz ampliou-se. - Phoebe!
Parou e ouviu com aten��o. Houve um som d�bil. Ela engatinhou para dentro
mais um pouco, tateando pela �gua que corria, invis�vel. Pouco depois, sua m�o ro�ou
num tecido e na pele fria, e Phoebe, tr�mula, estava em seus bra�os. Caroline
abra�ou-a com for�a, lembrando da noite em que a segurara no frio banheiro roxo,
incitando-a a respirar.
- Temos que sair daqui, meu bem. Temos que sair.
Mas Phoebe n�o queria se mexer.
- Meu gato - disse, com a voz alta, decidida, e Caroline sentiu algo se contorcer
sob a blusa da filha, ouviu o pequeno miado. - � meu gato.
- Esque�a o gato - gritou Caroline, puxando Phoebe com delicadeza na dire��o
da qual tinha vindo. - Venha, Phoebe. J�.
- Meu gato - ela repetiu.
- Est� bem - concordou Caroline, com a �gua correndo mais alta, j� batendo em
seus joelhos. - Est� bem, est� bem, � seu gato! Agora, vamos!
Phoebe come�ou a se mover, avan�ando devagar em dire��o ao c�rculo de luz. Por
fim, emergiram da tubula��o, com a �gua fria correndo a seu redor na vala de concreto.
Phoebe estava encharcada, com o cabelo grudado no rosto, e o gato tamb�m
se molhara. Por entre as �rvores, Caroline vislumbrou sua casa, s�lida e quente,
como uma fortaleza num mundo perigoso. Imaginou Al, rodando por alguma estrada
distante, e o conforto familiar daqueles c�modos que agora lhe pertenciam.
- Est� tudo bem - disse, e p�s o bra�o em volta de Phoebe. O gatinho se contorceu,
arranhando com as garras finas o dorso de suas m�os. A chuva ca�a, pingando
das folhas escuras e v�vidas.
- Olha l� o carteiro - disse Phoebe.
- Sim - disse a m�e, vendo-o subir at� a varanda e enfiar na sacola de couro as
contas que ela pusera na caixa.
Sua carta para David ficou na mesa, inacabada. Caroline se postara na porta dos
fundos, olhando a chuva e pensando apenas no pai de Phoebe, enquanto a menina
se expunha ao perigo. S�bito, aquilo pareceu um mau agouro, e Caroline deixou
transformar-se em raiva o medo que sentira pelo desaparecimento da filha. N�o
voltaria a escrever para David; ele esperava demais dela, e o fazia tarde demais. O
carteiro desceu a escada, a luz refletida no guarda-chuva colorido.
- Sim, meu bem - repetiu Caroline, afagando a cabe�a ossuda do gatinho. - Sim,
l� est� ele.
ABRIL DE 1982
I
AROL1NE PAROU NO PONTO DE �NIBUS PR�XIMO DA ESQUINA DA RUA
Forbes com a Braddock, observando no parquinho a energia cin�tica das
crian�as, cujos gritos alegres elevavam-se acima do ronco cont�nuo do tr�fego. Mais
adiante, no campo de beisebol, figuras de azul e vermelho dos bares locais que organizavam
competi��es entre si movimentavam-se com gra�a silenciosa pela relva
nova. Era primavera. A noite se aproximava. Dali a minutos, os pais sentados nos
bancos, ou de p� com as m�os nos bolsos, come�ariam a chamar seus filhos para
lev�-los para casa. O jogo dos adultos continuaria at� escurecer por completo, e,
quando terminasse, os jogadores trocariam tapinhas nas costas e tamb�m iriam
embora, acomodando-se para tomar umas cervejas nos bares, em meio a risadas
altas e contentes. Ela e Al os viam l� quando sa�am � noite. Um filme na matin� do
Regent, depois jantar e, quando Al n�o estava de plant�o, um ou dois drinques.
Nessa noite, por�m, ele estava fora, acelerando ao longe pela noite que se aproximava,
ao sul de Cleveland, em dire��o a Toledo, depois Columbus. Caroline tinha as
rotas do marido penduradas na geladeira. Anos antes, naqueles dias estranhos que
se haviam seguido � partida de Dorothy, Caroline tinha contratado algu�m para
cuidar de Phoebe enquanto ela viajava com Al, na esperan�a de encurtar a dist�ncia
entre os dois. As horas se escoavam; ela dormia, acordava e perdia a no��o do tempo,
a estrada a se estirar para o infinito � frente deles, como uma fita negra dividida ao
meio pelos lampejos regulares de branco, sedutora e hipn�tica. No fim, tamb�m ele
com os olhos embotados, Al estacionava numa parada de caminh�es e a levava a um
restaurante que n�o diferia expressivamente do que eles tinham deixado para tr�s
numa cidade qualquer em que houvessem pernoitado na v�spera. A vida na estrada
era como cair em estranhos buracos no universo, como quem entrasse num toalete
numa cidade dos Estados Unidos, sa�sse pela mesma porta e se descobrisse em outro
lugar: os mesmos shoppings de beira de estrada, lanchonetes e postos de gasolina, o
mesmo zumbir dos pneus no asfalto. S� os nomes eram diferentes, a luz, os rostos.
Ela viajara com Al duas vezes, depois nunca mais.
O �nibus dobrou a esquina e parou com um ronco. As portas se abriram, Caroline
entrou e ocupou um assento � janela, e as �rvores passaram chispando enquanto
cruzavam a ponte e o v�o l� embaixo. O �nibus passou pelo cemit�rio, arrastou-
se pelo monte Squirrel e chacoalhou pelos bairros antigos at� Oakland, onde Caroline
desceu. Ela parou um instante em frente ao Museu Carnegie, recompondo-se,
e olhou para o majestoso edif�cio de pedra, com sua escadaria em cascata e suas colunas
j�nicas. Uma faixa pendurada no alto do p�rtico balan�ava ao vento: I MAGENS
E SPECULARES: F OTOGRAFIAS DE D AVID H ENRY.
Era a noite de estr�ia: ele estaria presente para discursar. Com as m�os tr�mulas,
Caroline tirou do bolso o recorte de jornal. Fazia duas semanas que o carregava, com
o cora��o palpitando toda vez que o tocava. Umas 10 vezes, talvez mais, ela havia
mudado de id�ia. Que proveito haveria naquilo?
E, no instante seguinte, que mal haveria?
Se Al estivesse em casa, ela teria ficado com ele. Teria deixado a oportunidade passar
despercebida, dando olhadelas para o rel�gio at� acabar a inaugura��o e David
Henry desaparecer de novo em fosse qual fosse a vida que estava levando.
Mas Al tinha telefonado para dizer que n�o voltaria essa noite, e a Sra. O'Neill
estava em casa para ficar de olho em Phoebe, e o �nibus havia chegado na hora.
O cora��o de Caroline parecia prestes a explodir. Ela ficou im�vel, respirando fundo,
enquanto o mundo girava a seu redor - o guincho das freadas e o cheiro de �leo
queimado, o leve esvoa�ar das folhas novas e tenras da primavera. As vozes se avolumavam
com a aproxima��o das pessoas, depois decresciam, retalhos de conversa a
vagar como pedacinhos de papel carregados pelo vento. Rios de gente - vestidos de
seda, sapatos altos, ternos caros de tonalidade escura - subiam a escadaria do museu.
O c�u fez-se azul-marinho e os postes de luz se acenderam; o ar recendia a lim�o e hortel�,
aromas da festa da Igreja Ortodoxa Grega, um quarteir�o adiante. Caroline fechou
os olhos e pensou nas azeitonas pretas, que nunca tinha provado antes de chegar a essa
cidade. Pensou no colorido mosaico da feira das manh�s de s�bado na Strip: p�o fresco,
flores, frutas e legumes, uma confus�o de alimentos e cores que enchia quarteir�es
inteiros � margem do rio, algo que ela nunca teria visto, n�o fosse por David Henry e
uma nevasca inesperada. Deu o primeiro passo, mais outro, e se misturou � multid�o.
O museu tinha um p�-direito alto e pisos de carvalho encerados, de um ouro velho
reluzente. Caroline recebeu um programa em papel grosso de cor creme, com o
nome de David Henry no alto. Seguia-se uma lista de fotos. "Dunas no crep�sculo",
leu. "Uma �rvore no cora��o". Entrou na galeria e deparou com a foto mais famosa
de David, a praia ondulada que era mais do que uma praia, a curva de um quadril de
mulher, depois a extens�o lisa de sua perna, ambas escondidas entre as dunas. A
imagem tremia, prestes a se tornar outra coisa, e de repente era outra coisa. Caroline
a havia fitado por uns bons 15 minutos na primeira vez que a vira, sabendo que aquela
ondula��o de carne era de Norah Henry, lembrando-se da montanha branca de
sua barriga a se ondular com as contra��es, recordando a for�a potente do aperto
de sua m�o. Durante anos ela se consolara com a opini�o desdenhosa que fazia de
Norah Henry, meio imperiosa, acostumada ao comodismo e � ordem, uma mulher
que talvez deixasse Phoebe numa institui��o. Mas essa imagem havia destru�do aquela
id�ia. As fotos exibiam uma mulher que ela nunca tinha conhecido.
As pessoas circularam aos poucos pelo sal�o; os assentos foram ocupados. Caroline
sentou-se, observando tudo atentamente. As luzes escureceram uma vez, tornaram
a clarear e, de repente, vieram os aplausos e David Henry entrou, alto e familiar,
agora um pouco mais pesado, sorrindo para a plat�ia. Chocou-a perceber que ele
j� n�o era um homem mo�o. O cabelo estava ficando grisalho e os ombros eram
meio recurvados. Ele se dirigiu ao tablado, fitou a plat�ia e Caroline prendeu a respira��o,
certa de que ele a devia ter visto e reconhecido de imediato, como ela o reconhecera.
David pigarreou e fez uma piada sobre o tempo. Enquanto as risadas cascateavam
e morriam a seu redor, enquanto ele examinava suas anota��es e come�ava
a falar, Caroline compreendeu que era apenas mais um rosto na multid�o.
David falou com seguran�a melodiosa, embora ela quase n�o prestasse aten��o ao
que dizia. Em vez disso, Caroline estudou os gestos conhecidos de suas m�os, as novas
rugas nos cantos dos olhos. O cabelo dele estava mais comprido, denso e exuberante,
apesar do grisalho, e ele parecia satisfeito, estabelecido. Caroline pensou
naquela noite, j� se iam quase 20 anos, em que ele havia acordado, levantado a
cabe�a da escrivaninha e surpreendido a enfermeira no v�o da porta, despida em seu
amor por ele, os dois t�o vulner�veis um ao outro, naquele momento, quanto se poderia
estar. Ela havia reconhecido algo naquele instante, algo que mantivera escondido,
uma experi�ncia, expectativa ou sonho privado demais para ser compartilhado.
E fora verdade, como ainda lhe era poss�vel perceber: David Henry tinha uma
vida secreta. O erro de Caroline, 20 anos antes, tinha sido acreditar que o segredo de
David tinha alguma coisa a ver com qualquer esp�cie de amor por ela.
Terminada a palestra, veio a salva de palmas, forte, e ele saiu de tr�s da tribuna,
bebeu um grande gole d'�gua de seu copo e come�ou a responder �s perguntas.
Houve diversas - de um homem com um caderno de notas, uma senhora de cabelo
grisalho, uma mulher mo�a, vestida de preto, com cascatas de cabelo castanho, que
fez uma pergunta muito irritada sobre a forma. A tens�o cresceu no corpo de
Caroline e seu cora��o bateu forte, at� ela mal conseguir respirar. Terminaram as
perguntas, o sil�ncio aumentou, e David Henry limpou a garganta, abriu um sorriso
ao agradecer � plat�ia e se virou para sair. Nesse momento, Caroline sentiu-se levantar,
quase a contragosto, com a bolsa na frente do corpo, como um escudo.
Atravessou o sal�o e se juntou ao grupinho que o rodeava aos poucos. David olhou-a
de relance e deu um sorriso polido, sem reconhec�-la. Ela esperou as outras perguntas,
acalmando-se um pouco com o passar dos minutos. O curador da exposi��o
rondava o grupo, ansioso para que David se misturasse aos presentes, mas, no
momento em que houve uma pausa nas perguntas, Caroline deu um passo � frente
e p�s a m�o no bra�o dele.
- David. N�o est� me reconhecendo?
Ele perscrutou seu rosto.
- Ser� que mudei tanto assim? - sussurrou ela.
E ent�o o viu compreender. O rosto se alterou, at� mesmo na forma, como se a
gravidade de repente houvesse aumentado. Um rubor insinuou-se em seu pesco�o
e um m�sculo pulsou em sua face. Caroline teve a sensa��o de algo estranho acontecendo
com o tempo, como se eles tivessem voltado � cl�nica, muitos anos antes, e
a neve ca�sse l� fora. Os dois se fitaram sem falar, como se o sal�o e todas as pessoas
dentro dele houvessem ficado extremamente distantes.
- Caroline - disse ele, enfim, recuperando-se. - Caroline Gill. Uma velha amiga acrescentou,
dirigindo-se �s pessoas ainda agrupadas a seu redor. David levantou
uma das m�os e ajeitou a gravata, depois um sorriso estampou-se em seu rosto,
embora n�o lhe chegasse aos olhos. - Obrigado - disse, acenando com a cabe�a para
os outros. - Obrigado a todos por terem vindo. Agora, se nos d�o licen�a...
E os dois cruzaram o sal�o. David foi andando ao lado de Caroline, com uma das
m�os plantada em suas costas, leve mas firme, como se ela pudesse desaparecer, a
menos que ele a segurasse.
- Entre aqui - disse ele, passando para tr�s de um painel da exposi��o, onde uma
porta sem moldura mal se deixava discernir na parede branca. Conduziu-a para
dentro, r�pido, e fechou a porta. Era um dep�sito pequeno, com uma �nica l�mpada
despejando luz sobre prateleiras cheias de latas de tinta e ferramentas. Eles
ficaram cara a cara, a poucos cent�metros um do outro. O perfume de David encheu
o c�modo, aquela col�nia adocicada sob a qual havia um cheiro de que Caroline se
lembrava, algo de medicinal, com um toque de adrenalina. O quartinho era quente
e, s�bito, ela se sentiu zonza, com fagulhas a lhe cegar a vis�o.
- Santo Deus, Caroline, voc� mora aqui? Em Pittsburgh? Por que n�o quis me
dizer onde estava?
- Eu n�o era dif�cil de achar. Outras pessoas me encontraram - disse ela, lentamente,
lembrando-se de Al subindo a alameda e, pela primeira vez, compreendendo a
intensidade de sua persist�ncia. Pois, se era verdade que David Henry n�o tinha procurado
com muito afinco, tamb�m era verdade que ela desejara n�o ser encontrada.
Do lado de fora, passos se aproximaram e pararam. Um alvoro�o e um murm�rio
de vozes. Caroline estudou o rosto de David. Durante todos aqueles anos, havia pensado
nele todo santo dia, mas, agora, n�o conseguia imaginar o que dizer.
- Voc� n�o deveria estar l� fora? - perguntou-lhe, olhando para a porta.
- Eles esperam.
Tornaram a se olhar, calados. Caroline o guardara na lembran�a por todo aquele
tempo como uma fotografia, cem, mil fotografias. Em todas elas, David Henry era
um homem jovem, cheio de energia irrequieta e resoluta. Agora, ao fitar seus olhos
escuros e o rosto mais cheio, o cabelo cuidadosamente penteado, ela se deu conta de
que, se passasse por ele na rua, talvez n�o o reconhecesse.
Quando ele voltou a falar, o tom foi mais suave, embora um m�sculo continuasse
a se contrair em seu rosto.
- Fui ao seu apartamento, Caroline. Naquele dia, depois do of�cio f�nebre. Fui at�
l�, mas voc� j� tinha ido embora. Esse tempo todo... - come�ou, mas calou-se.
Houve uma batida leve na porta, uma voz abafada perguntando alguma coisa.
- Um minuto, por favor - respondeu David.
- Eu estava apaixonada por voc� - disse Caroline, apressada, perplexa com sua confiss�o,
pois era a primeira vez que a verbalizava at� para si mesma, embora tivesse vivido
com esse sentimento durante anos. Admiti-lo a fez sentir-se fr�vola, imprudente,
mas ela prosseguiu: - Sabe, eu passava horas imaginando a vida com voc�. E foi naquele
momento, diante da igreja, que percebi que isso nunca havia passado pela sua cabe�a.
David abaixara a cabe�a enquanto ela falava e, nesse momento, levantou os olhos.
- Eu sabia. Sabia que voc� estava apaixonada por mim. De que outra forma poderia
ter lhe pedido para me ajudar? Sinto muito, Caroline. J� faz anos que... lamento muito.
Ela assentiu com a cabe�a, de olhos marejados, sentindo ainda viva aquela vers�o
mais jovem de si mesma, ainda parada a meia dist�ncia do of�cio f�nebre, n�o
reconhecida, invis�vel. Mesmo nesse momento, sentiu raiva por ele n�o a ter realmente
enxergado naquela �poca. E de, sem conhec�-la minimamente, n�o ter hesitado
em lhe pedir que levasse sua filha embora.
- Voc� � feliz? - perguntou David. - Tem sido feliz, Caroline? E a Phoebe?
A pergunta, assim como a gentileza na voz dele, desarmaram-na. Caroline pensou
em Phoebe lutando para aprender a desenhar as letras, a amarrar os sapatos.
Phoebe brincando feliz no quintal, enquanto Caroline dava um telefonema ap�s
outro, lutando pela instru��o da filha. Phoebe envolvendo-a em seus bra�os macios
sem nenhuma raz�o e dizendo: Amo voc�, mam�e. Pensou em Al, ausente por tempo
demais, por�m sempre cruzando a porta ao final da longa semana, trazendo flores
ou um saquinho de p�o fresco, ou um presentinho, alguma coisa para ela, sempre, e
alguma coisa para Phoebe. Na �poca em que trabalhava no consult�rio de David
Henry, ela era t�o jovem, t�o solit�ria e ing�nua, que se imaginava uma esp�cie de
recipiente a ser enchido de amor. Mas n�o era nada disso. O amor estivera dentro
dela o tempo todo e s� se renovava ao ser doado.
- Voc� quer mesmo saber? - perguntou, finalmente, olhando-o nos olhos. - � que
voc� nunca escreveu, David, a n�o ser naquela �nica vez. Nunca perguntou nada
sobre a nossa vida.
Enquanto falava, Caroline percebeu que era por isso que estava ali. N�o por amor,
nem por qualquer fidelidade ao passado, nem mesmo por culpa. Ela fora encontr�lo
por raiva e pelo desejo de p�r os pingos nos is.
- Durante anos, voc� jamais quis saber como eu estava. Como estava a Phoebe.
N�o ligava a m�nima, n�o �? E a� veio aquela �ltima carta, � qual nunca respondi. De
repente, voc� a queria de volta.
David deu uma risada curta e assustada.
- Foi assim que voc� a entendeu? Foi por isso que parou de escrever?
- De que outro modo eu poderia entend�-la?
Ele abanou a cabe�a devagar.
- Caroline, eu perguntei seu endere�o. Repetidamente, toda vez que mandava
dinheiro. E, naquela �ltima carta, simplesmente pedi que voc� me convidasse a participar
outra vez da sua vida. O que mais eu podia fazer? Olhe, sei que voc� n�o se
da conta, mas guardei todas as cartas que voc� me mandou. E, quando voc� parou
de escrever, foi como se me batesse com a porta na cara.
Caroline pensou em suas cartas, em todas as suas confiss�es sinceras, derramadas
pela tinta no papel. J� n�o conseguia lembrar-se do que tinha escrito: detalhes sobre
a vida de Phoebe, e suas esperan�as, seus sonhos e temores.
- Onde � que elas est�o? Onde voc� guarda minhas cartas? - perguntou.
David olhou-a, surpreso.
- No arm�rio de arquivo da minha c�mara escura, na gaveta de baixo. Fica sempre
trancado. Por qu�?
- Nem pensei que voc� as lesse. Eu tinha a sensa��o de escrever para o vazio. Talvez
fosse por isso que me sentia t�o � vontade. Como se pudesse dizer qualquer coisa.
David esfregou o rosto com uma das m�os, num gesto que ela se lembrou de v�lo
fazer quando estava cansado ou desanimado.
- Eu as lia. No come�o, tinha que me for�ar, para ser sincero. Depois, eu queria
saber o que estava acontecendo, apesar de ser doloroso. Voc� me dava pequenos vislumbres
da Phoebe. Retalhos da trama da vida de voc�s. Eu ansiava por aquilo.
Caroline n�o respondeu, relembrando a satisfa��o que sentira naquele dia chuvoso
em que mandara Phoebe subir com seu gatinho, Chuvisco, para tirar a roupa
molhada, enquanto ela ficava na sala, rasgando a carta para David em quatro peda�os,
depois oito, depois dezesseis, e jogando tudo no lixo feito confete. Satisfa��o e
sensa��o de prazer por haver encerrado o assunto. Ela havia sentido essas coisas,
desconhecedora - desinteressada at� - do que David sentia.
- Eu n�o podia perd�-la - disse, enfim. - Fiquei com raiva de voc� por muito,
muito tempo, mas, naquele momento, o que eu mais temia era que, se voc�s se encontrassem,
voc� a levasse embora. Foi por isso que parei de escrever.
- Nunca tive essa inten��o.
- Voc� n�o pretendeu nada disso, mas aconteceu assim mesmo.
David Henry deu um suspiro, e Caroline o imaginou em seu apartamento deserto,
andando de um c�modo para outro e percebendo que ela se fora para sempre.
Fale-me dos seus planos, ele tinha escrito. � tudo que eu pe�o.
- Se eu n�o a tivesse levado - acrescentou Caroline, baixinho -, talvez a sua escolha
fosse outra.
- N�o detive voc� - respondeu David, novamente enfrentando seu olhar. Tinha a
voz �spera. - Poderia t�-la detido. Voc� estava de casaco vermelho naquele dia, na
cerim�nia f�nebre. Eu a vi, e vi seu carro se afastar.
De repente, Caroline sentiu-se esgotada, quase desfalecida. N�o saberia dizer o
que havia esperado dessa noite, mas, ao imaginar essa conversa, n�o tinha imaginado
tamanha disputa entre a tristeza e a raiva dele e as suas.
- Voc� me viu?
- Fui direto ao seu apartamento, logo depois. Esperava que voc� estivesse l�.
Caroline fechou os olhos. Naquele momento, ela j� estaria seguindo em dire��o �
auto-estrada, a caminho desta cidade, desta vida. Provavelmente, perdera a visita de
David Henry por minutos, talvez uma hora. Quanta coisa havia girado em torno
daquele momento! Qu�o diferente poderia ter sido o desenrolar de sua vida!
- Voc� n�o me respondeu, Caroline - disse David, pigarreando. - Voc� tem sido
feliz? E a Phoebe? A sa�de dela vai bem? O cora��o dela?
- O cora��o dela est� �timo - respondeu Caroline, pensando nos primeiros anos
de preocupa��o constante com a sa�de da filha, em todas as idas a m�dicos e dentistas
e cardiologistas e oftalmologistas. Mas ela crescera saud�vel; estava bem; jogava
basquete na entrada da garagem e adorava dan�ar. - Os livros que li quando ela
ainda era pequena previam que ela j� estaria morta, mas Phoebe est� �tima. Teve
sorte, eu acho; nunca teve problemas de cora��o. Adora cantar. Tem um gato chamado
Chuvisco. Est� estudando tecelagem. � o que est� fazendo neste momento. Em
casa. Tecendo.
Caroline abanou a cabe�a e prosseguiu:
- Ela freq�enta a escola. Uma escola p�blica, com todas as outras crian�as. Tive
uma luta infernal para que eles a aceitassem. E, agora, ela est� quase criada e n�o sei
o que acontecer�. Tenho um bom emprego. Trabalho meio expediente no setor de
cl�nica geral de um hospital. Meu marido... ele viaja muito. A Phoebe freq�enta
todos os dias uma institui��o que trabalha com grupos de deficientes. Tem uma
por��o de amigos l�. Est� aprendendo a fazer trabalhos de escrit�rio. O que mais
posso lhe dizer? Voc� se poupou muitas dores de cabe�a, com certeza. Mas, David,
tamb�m perdeu muitas alegrias.
- Sei disso. Melhor do que voc� imagina.
- E voc�? - indagou Caroline, novamente impressionada com o tanto que ele envelhecera,
ainda tentando assimilar a realidade da sua presen�a, ali, na companhia
dela, naquele c�modo min�sculo, depois de tantos anos. - Voc� tem sido feliz? E a
Norah? E o Paul?
- N�o sei - respondeu ele, devagar. - T�o feliz quanto qualquer um, suponho. O
Paul � muito inteligente. Poderia fazer qualquer coisa. O que ele quer � freq�entar a
Juilliard e tocar viol�o. Acho que est� cometendo um erro, mas a Norah discorda.
Isso tem causado muita tens�o.
Caroline pensou em Phoebe, em como a filha adorava limpar e organizar coisas,
em como cantarolava sozinha ao lavar a lou�a ou limpar o ch�o, no quanto adorava
m�sica, sinceramente, mas jamais teria a possibilidade de tocar viol�o.
- E a Norah?
- Ela tem uma ag�ncia de viagens. Tamb�m viaja muito. Como o seu marido.
- Ag�ncia de viagens? - repetiu Caroline. - A Norah?
- Eu sei. Tamb�m fiquei surpreso. Mas faz tempo que ela � dona da ag�ncia. �
muito eficiente no trabalho.
A ma�aneta girou e a porta se entreabriu. O curador da exposi��o enfiou a cabe�a
do lado de dentro, seus vivos olhos azuis cheios de curiosidade e apreens�o. Passou
a m�o nervosamente pelo cabelo escuro, ao dizer:
- Dr. Henry? Sabe, h� uma por��o de gente aqui fora. H� uma certa expectativa
de que o senhor... hum... participe com os outros. Est� tudo bem?
David olhou para Caroline. Parecia hesitante, mas tamb�m estava impaciente, e
Caroline percebeu que, num instante, daria meia-volta, ajeitaria a gravata e iria
embora. Uma coisa que havia durado anos estava chegando ao fim naquele momento.
N�o, pensou ela, mas o curador pigarreou e deu uma risada constrangida, e
David disse:
- N�o h� problema, j� estou indo. Voc� vai esperar, n�o �? - perguntou a Caroline,
segurando seu cotovelo.
- Preciso ir para casa. A Phoebe est� esperando.
- Por favor - fez ele. Parou do lado de fora da porta. Seus olhos se encontraram e
Caroline viu a mesma tristeza e compaix�o que recordava de tantos anos antes,
quando ambos eram muito mais jovens. - H� muitas coisas para dizer e muitos anos
se passaram. Por favor, diga que voc� vai ficar. N�o deve demorar muito.
Ela sentiu um bolo no est�mago, um mal-estar que n�o conseguiu situar, mas
acenou de leve com a cabe�a e David Henry sorriu.
- �timo. Vamos jantar, est� bem? Eu tenho que atender os convidados... Mas prometo
n�o demorar. Eu estava errado, anos atr�s. E quero mais do que apenas retalhos.
A m�o dele estava no bra�o de Caroline e os dois voltaram a se aproximar da
aglomera��o. Ela parecia incapaz de falar. Havia pessoas � espera, olhando francamente
na dire��o dos dois, curiosas e murmurando. Caroline tirou da bolsa e entregou
a David o envelope que havia preparado, com as fotografias mais recentes de
Phoebe. David pegou-o, olhou-a nos olhos e inclinou a cabe�a, s�rio, e ent�o uma
mulher mi�da, de vestido de linho preto, segurou-o pelo bra�o. Era a mesma mulher
da plat�ia, bonita e levemente agressiva, fazendo mais uma pergunta sobre a forma.
Caroline ficou alguns minutos onde estava, vendo-o apontar para uma foto que
lembrava os galhos escuros de uma �rvore, falando com a mulher de vestido preto.
Ele fora um homem bonito, e ainda era. Por duas vezes, deu uma olhada na dire��o
de Caroline e, ao v�-la, voltou inteiramente sua aten��o para o assunto do momento.
Espere, ele tinha dito. Por favor, espere. E Caroline havia imaginado que esperaria.
A sensa��o de bolo ressurgiu em seu est�mago. Ela n�o queria esperar, e pronto.
Passara tempo demais esperando na juventude - por reconhecimento, aventura,
amor. S� ao fazer meia-volta, com Phoebe no colo, e largar seu apartamento em
Louisville, s� ao fazer as malas e se mudar � que sua vida tinha realmente come�ado.
Esperar nunca lhe trouxera nada de bom.
David estava com a cabe�a inclinada, assentindo, escutando a mulher de cabelo preto,
com o envelope nas m�os, atr�s das costas. Enquanto Caroline observava, ele ergueu
a m�o e guardou o envelope no bolso, displicentemente, como se contivesse alguma
coisa banal e levemente inc�moda - uma conta de luz, uma multa de tr�nsito.
Minutos depois, ela estava do lado de fora, descendo �s pressas a escadaria de
pedra em dire��o � noite.
Era primavera, o ar fresco e �mido, e Caroline sentia-se agitada demais para esperar
o �nibus. Come�ou a andar depressa, um quarteir�o ap�s outro, indiferente
ao tr�nsito, �s pessoas que passavam ou ao ligeiro perigo de estar sozinha na rua
�quela hora. Alguns momentos lhe voltaram � lembran�a em rodopios e vislumbres,
estranhos detalhes desconexos. Havia uma faixa de cabelo escuro acima da orelha
direita de David, e suas unhas estavam cortadas at� o sabugo. Unhas de pontas quadradas,
ela se lembrava disso, mas a voz dele tinha mudado, tornara-se mais grave.
Era desconcertante: as imagens que ela havia guardado na lembran�a por tanto
tempo tinham se alterado no instante em que o vira.
E ela? Que impress�o teria dado a David nessa noite? O que vira ele, o que teria
jamais visto de Caroline Lorraine Gill, de seus segredos mais �ntimos? Nada. Absolutamente
nada. E ela sabia disso tamb�m, soubera-o durante anos, desde aquele
momento, do lado de fora da igreja, em que o c�rculo da vida de David se fechara
para ela, em que ela dera meia-volta e partira. Em algum canto escondido do
cora��o, Caroline mantivera viva a id�ia rom�ntica e tola de que, de algum modo,
David Henry a havia conhecido como ningu�m mais a conheceria. Mas n�o era verdade.
Ele nem sequer a tinha vislumbrado, nunca.
Ela havia percorrido cinco quarteir�es. Estava com o rosto molhado, o casaco, os
sapatos. A noite fria parecia haver penetrado em seu corpo, infiltrando-se em sua pele.
Caroline se aproximava de uma esquina quando um �nibus parou com uma freada ruidosa.
Correu para alcan��-lo, afastando o cabelo do rosto, e se acomodou no pl�stico
rachado do assento. Postes de ilumina��o, letreiros luminosos e o vermelho dos sinais,
borrado pela chuva, passavam pelas janelas. A brisa do come�o de primavera deixava
em seu rosto uma sensa��o �mida e fria. O �nibus sacolejou pelas ruas, ganhando
velocidade ao chegar aos trechos escuros do parque e ao longo aclive do morro.
Caroline saltou no centro da Regent Square. Um vozerio entremeado de gritos
elevou-se de um bar quando ela passou, vislumbrando pelo vidro as silhuetas ensombrecidas
dos jogadores que vira mais cedo, agora de copo na m�o e erguendo os punhos
no ar, reunidos em volta da televis�o. A luz da vitrola autom�tica desenhou listas
de n�on azul no bra�o da gar�onete quando ela se afastou da mesa mais pr�xima
da janela. Caroline parou, subitamente desaparecida a impetuosa descarga de adrenalina
de seu encontro com David Henry, desfeita como n�voa na noite primaveril. Teve
uma sensa��o aguda de seu pr�prio isolamento, enquanto os vultos no bar se
uniam em torno de um prop�sito comum, e as pessoas que passavam na cal�ada eram
puxadas pelas linhas de suas vidas para lugares que ela nem sequer podia imaginar.
As l�grimas lhe subiram aos olhos. A tela da televis�o piscou e outro coro de gritos
se avolumou, atravessando a vidra�a. Caroline seguiu adiante, esbarrando numa
mulher que carregava uma sacola de compras, pisando numa pilha de lixo da lanchonete
que algu�m largara na cal�ada. Primeiro a descida, depois a subida da pequena
alameda at� sua casa, onde as luzes da cidade davam lugar a outras, muito
conhecidas e familiares: a casa dos O'Neill, onde um brilho dourado se derramava
sobre as cerejeiras; a dos Soulard, com seu trecho escuro de jardim, e, por �ltimo, o
gramado dos Margolis, as margaridas-do-campo que cresciam agrestes no morro,
durante o ver�o, lindas e ca�ticas. Casas enfileiradas, como uma por��o de degraus
numa ladeira, e, por fim, a dela.
Caroline parou na alameda, olhando para sua casa alta e estreita. Havia fechado
as persianas, tinha certeza, mas agora elas estavam abertas e era poss�vel enxergar
com clareza pelas janelas da sala de jantar. O lustre iluminava a mesa em que Phoebe
havia espalhado suas l�s. Ela estava debru�ada sobre o tear, movendo a lan�adeira de
um lado para outro, calma e atenta. Chuvisco estava enroscado em seu colo, uma
bolinha laranja felpuda. Caroline ficou observando, inquieta ao ver como a filha parecia
vulner�vel, exposta ao mundo que girava misteriosamente na escurid�o �s suas
costas. Franziu o cenho, tentando recordar aquele momento - sua m�o girando o
pino estreito de pl�stico e a persiana descendo. Depois, vislumbrou um movimento
mais ao fundo da casa, uma sombra que se movia atr�s da porta dupla de vidro que
dava para a sala de estar.
Prendeu a respira��o, sobressaltada, mas ainda n�o alarmada, e ent�o a sombra
ganhou forma e ela relaxou. N�o era nenhum estranho, apenas Al, que voltara cedo
de suas viagens e circulava pela casa. Ela ficou surpresa e estranhamente alegre; Al
vinha aceitando mais trabalhos e, muitas vezes, ausentava-se por duas semanas seguidas.
Mas ali estava ele; tinha vindo para casa. Abrira as persianas, oferecendo-lhe
esse momento para saborear, esse vislumbre de sua vida, encerrado naquelas paredes
de tijolos, emoldurado pelo aparador que ela havia restaurado, pelo f�cus que ainda
n�o conseguira arrancar, pelas camadas de vidra�as e paredes que lavara com tanto
amor durante todos aqueles anos. Phoebe levantou os olhos do trabalho, olhando
sem ver pela janela para a escurid�o da grama molhada e sombria, alisando as costas
macias do gato. Al atravessou a sala, com uma x�cara de caf� na m�o. Parou ao lado
dela e apontou com a x�cara para o tapete que Phoebe estava tecendo.
Chovia mais forte e o cabelo de Caroline estava empapado, mas ela n�o se mexeu.
O que tinha sido um vazio, do lado de fora da janela do bar, um vazio soturno,
muito real e assustador, foi banido pela vis�o de sua fam�lia. A chuva lhe batia no
rosto e escorria pelas janelas, enfeitando de gotas seu casaco de boa l�. Ela tirou as
luvas e procurou as chaves na bolsa, mas se deu conta de que a porta estaria destrancada.
No escuro do jardim, enquanto os eternos carros sibilavam pela pista, iluminando
com os far�is as moitas de lilases que ela plantara muitos anos antes como
um anteparo, deteve-se por mais um instante. Essa era sua vida. N�o a vida com que
um dia havia sonhado, n�o a vida que sua vers�o mais jovem jamais teria imaginado
ou desejado, mas a vida que ela levava, com todas as suas complexidades. Essa era
sua vida, constru�da com zelo e aten��o, e era boa.
Fechou a bolsa. Subiu os degraus. Abriu a porta dos fundos e entrou em casa.
II
LA ERA PROFESSORA DE HISTORIA DA ARTE NA UNIVERSIDADE CARNEGIE
Mellon e lhe fazia perguntas sobre a forma. O que � a beleza?, queria saber,
com a m�o no bra�o de David, guiando-o pelos pisos reluzentes de carvalho, por
entre as paredes brancas em que pendiam suas fotos. A beleza deve ser encontrada na
forma? Ela est� no sentido? A mulher virou o rosto e seu cabelo balan�ou para a
frente; ela o prendeu atr�s da orelha com uma das m�os.
David olhou-a, observou a parte branca de seu cabelo, o rosto p�lido e liso.
- Interse��es - respondeu com brandura, tornando a olhar para onde estava
Caroline, junto a uma foto de Norah na praia, aliviado por ver que ela ainda estava
l�. Com esfor�o, tornou a olhar para a professora. - Converg�ncia. � isso que eu
procuro. N�o adoto uma abordagem te�rica. Fotografo aquilo que me comove.
- Ningu�m vive fora da teoria! - exclamou a mulher. Mas fez uma pausa em suas
perguntas, espremendo os olhos e mordendo de leve a ponta do l�bio. David n�o
podia ver seus dentes, mas imaginou-os nivelados, brancos e regulares. A sala girava
a seu redor, as vozes subiam e desciam; num instante de sil�ncio, ele percebeu que
seu cora��o batia forte e que continuava a segurar o envelope que Caroline lhe dera.
Tornou a dar uma olhadela para o outro lado da sala - sim, que bom, ela ainda estava
l� - e enfiou cuidadosamente o envelope no bolso da camisa; havia um leve
tremor em suas m�os.
Ela se chamava Lee, dizia a mulher de cabelo preto nesse momento. Era cr�tica
visitante da universidade. David assentiu com a cabe�a, ouvindo apenas em parte.
Ser� que Caroline morava em Pittsburgh, ou teria visto o an�ncio da exposi��o e
vindo de outro lugar, de Morgantown, Columbus ou Filad�lfia? Ela lhe enviara car
tas de todos esses lugares, e depois surgira dessa plat�ia an�nima, parecendo exatamente
a mesma, s� que mais velha, mais tensa e mais dura, talvez, sua brandura
juvenil desaparecida h� muito tempo. David, n�o est� me reconhecendo? E ele a havia
reconhecido, mesmo quando n�o quisera se dar conta disso.
Tornou a olhar em volta, � procura dela, e n�o a viu, e come�aram as primeiras
fisgadas de p�nico, min�sculas, penetrantes, como filamentos de cogumelos escondidos
num tronco. Ela fizera todo aquele trajeto, dissera que ia ficar, com certeza n�o
iria embora. O curador reapareceu, para apresent�-lo aos patrocinadores da exposi��o.
David recomp�s-se o suficiente para falar com intelig�ncia, mas continuava a
pensar em Caroline, na esperan�a de entrev�-la na extremidade do sal�o. Tinha se
afastado acreditando que ela esperaria, mas agora, inquieto, lembrou-se daquela
manh� de outrora, no of�cio f�nebre, em que ela ficara parada a meia dist�ncia, com
seu casaco vermelho. Lembrou-se da frieza do ar recente de primavera, do c�u ensolarado
e de Paul agitando as pernas sob os cobertores, em seu carrinho. Lembrou-se
de t�-la deixado ir embora.
- Com licen�a - murmurou, interrompendo seu interlocutor. Andou resoluto
pelo piso de madeira at� o sagu�o da entrada principal, onde parou e virou para tr�s,
para inspecionar a galeria, perscrutando a multid�o. Com certeza, encontrando-a
depois de tanto tempo, ele n�o podia perd�-la de novo.
Mas ela se fora. As luzes da cidade cintilavam, sedutoras, dispersas como lantejoulas
por todos os morros ondulantes, dram�ticos. Em algum lugar, na cidade ou
nas imedia��es, Caroline Gill lavava lou�a, varria o ch�o, parava para olhar por uma
janela apagada. Luto e remorso: eles o invadiram como uma onda, t�o intensos que
David se encostou na parede e baixou a cabe�a, lutando contra uma n�usea profunda.
Suas emo��es eram exageradas, desproporcionais. Afinal, ele vivera muitos anos
sem ver Caroline Gill. Respirou fundo, repetindo mentalmente a tabela peri�dica prata,
c�dmio, �ndio, estanho -, mas pareceu incapaz de se acalmar.
Enfiou a m�o no bolso e pegou o envelope que ela lhe dera; talvez ela houvesse
deixado um endere�o ou um n�mero de telefone. Dentro havia duas fotos polar�ide,
duras, com cores ruins, desfocadas e meio cinzentas. A primeira mostrava Caroline
risonha, envolvendo com o bra�o uma menina de vestido azul engomado, de
cintura baixa e c�s. Estavam ao ar livre, fazendo pose junto � parede de tijolos de
uma casa, e o ar ensolarado desbotava as cores da cena. A menina era robusta; o
vestido lhe ca�a bem, mas n�o a tornava graciosa. O cabelo descia em ondas suaves,
emoldurando seu rosto, e ela exibia um sorriso animado, os olhos semicerrados de
prazer fitando a c�mera, ou quem quer que estivesse atr�s dela. Tinha o rosto largo,
de ar meigo, e talvez fosse apenas o �ngulo da c�mera que lhe inclinava os olhos
ligeiramente para cima. Phoebe em seu anivers�rio, escrevera Caroline no verso da
foto. Festa de debutante.
David passou a primeira foto para tr�s da segunda, mais recente. Ali estava Phoebe
de novo, jogando basquete. Estava pronta para o arremesso, com os calcanhares levantados
do asfalto. Basquete, o esporte que Paul se recusava a praticar. David olhou
para o verso e tornou a verificar o envelope, mas n�o havia endere�o. A galeria continuava
repleta, tomada pelo burburinho das conversas. David parou no v�o da porta
e observou por um momento, com um curioso desapego, como se aquela fosse uma
cena em que houvesse esbarrado por acaso, que nada tivesse a ver com ele. Depois,
virou-se e saiu para a noite suave, fresca, �mida de chuva. Guardou no bolso do palet�
o envelope de Caroline com as fotos e, sem saber para onde ia, come�ou a andar.
Oakland, o antigo bairro de sua faculdade, havia mudado, mas, ao mesmo tempo,
n�o mudara. O Est�dio Forbes, onde ele passara tantas tardes acocorado no alto da
arquibancada, banhado de sol, torcendo quando o bast�o batia e a bola se elevava
acima do gramado verde-vivo, tinha desaparecido. Um novo pr�dio da universidade,
quadrado e sem gra�a, erguia-se onde antes haviam ressoado os gritos de milhares
de pessoas. David parou, virando-se para a Catedral do Saber, aquele monolito
cinzento e esguio, uma sombra contra o c�u noturno, para se situar.
Continuou andando pelas ruas escuras da cidade, passando por pessoas que
sa�am dos restaurantes e teatros. N�o pensou propriamente para onde estava indo,
embora soubesse. Percebeu que fora capturado, paralisado por todos aqueles anos,
no momento em que entregara sua filha a Caroline. Sua vida tinha girado em torno
daquele ato singular: uma crian�a rec�m-nascida em seus bra�os - e ele os estendera
para d�-la a outra pessoa. Era como se viesse tirando fotografias, em todos os anos
decorridos desde ent�o, para tentar dar a um outro momento uma subst�ncia similar,
um peso igual. Ele quisera tentar deter o mundo em desabalada, o fluxo dos
acontecimentos, mas � claro que tinha sido imposs�vel.
Continuou a andar, agitado, resmungando consigo mesmo de quando em quando.
O que se imobilizara em seu cora��o durante todo aquele tempo voltara a ser
acionado por seu encontro com Caroline. Ele pensou em Norah, transformada numa
mulher independente e poderosa, que buscava as contas das empresas com
esplendorosa seguran�a e voltava dos jantares recendendo a vinho e chuva, com vest�gios
de riso, triunfo e sucesso ainda estampados no rosto. Ela tivera mais de uma
aventura amorosa no correr dos anos, David sabia, e seus segredos, como os dele,
haviam erguido uma muralha entre os dois. �s vezes, � noite, ele vislumbrava por
um brev�ssimo instante a mulher com quem havia se casado: Norah parada com
Paul no colo, quando beb�; Norah com a boca suja de morangos, amarrando um
avental; Norah como agente de viagens novata, acordada at� tarde para fazer o balan�o
de suas contas. Mas ela se desfizera desses eus como quem trocasse de pele, e
agora os dois viviam como estranhos em sua vasta casa.
Paul sofria com isso, ele sabia. David fizera um esfor�o enorme para lhe dar tudo.
Tentara ser um bom pai. Eles haviam colecionado f�sseis juntos, organizando-os,
rotulando-os e expondo-os na sala de estar. Ele tinha levado Paul para pescar em
todas as oportunidades que surgiam. No entanto, por mais que se esfor�asse por
tornar a vida do filho tranq�ila e f�cil, persistia o fato de que constru�ra essa vida
sobre uma mentira. David tinha tentado proteger o filho das coisas que sofrera
quando crian�a: pobreza, preocupa��es, tristezas. Mas seus pr�prios esfor�os haviam
criado perdas que ele nunca tinha previsto. A mentira crescera entre eles como
uma rocha, obrigando-os a tamb�m crescerem de forma estranha, como �rvores
retorcidas em volta de um pedregulho.
As ruas foram convergindo, juntando-se em �ngulos curiosos, � medida que a cidade
se estreitava na ponta em que se uniam os grandes rios, o Monongahela e o
Allegheny, formando em sua conflu�ncia o Ohio, que atravessava o estado de Kentucky
e seguia adiante, at� desaguar no Mississipi e desaparecer. Ele andou at� a
extremidade da ponta de terra. Quando rapaz, estudante, David Henry visitava esse
lugar com freq��ncia, parando na ponta para ver os dois rios convergirem. In�meras
vezes, ficara ali com os p�s suspensos sobre a pele escura do rio, perguntando a
si mesmo com indiferen�a se aquelas �guas negras seriam muito frias, se ele teria
for�a suficiente para nadar at� a margem, caso ca�sse. Agora, como naquela �poca, o
vento atravessou o tecido de seu terno e ele olhou para baixo, vendo o rio mover-se
por entre os bicos de seus sapatos. Avan�ou mais alguns cent�metros, alterando a
composi��o. Um lampejo de remorso perpassou seu cansa�o: seria uma bela foto,
mas havia deixado a c�mera no cofre do hotel.
L� embaixo, a �gua rodopiava, formava uma espuma branca ao se chocar com as
pilastras e avan�ava impetuosamente. O arco do p�: foi nele que David sentiu a
press�o da borda de concreto. Se ele ca�sse ou pulasse, e n�o conseguisse nadar at� a
seguran�a da margem, eis o que encontrariam: um rel�gio com o nome de seu pai
gravado no verso, a carteira com 200 d�lares em esp�cie, a carteira de motorista e
uma pedrinha do riacho pr�ximo � sua casa da inf�ncia que ele havia carregado
consigo durante 30 anos. E as fotografias, num envelope enfiado no bolso, em cima
de seu cora��o.
Seu enterro seria concorrido. O cortejo se estenderia por quarteir�es.
Mas a not�cia acabaria a�. Talvez Caroline nunca ficasse sabendo. E tamb�m n�o
chegaria mais longe, at� o lugar onde ele havia nascido.
Mesmo que chegasse, ningu�m reconheceria seu nome.
Um dia, na volta da escola, havia encontrado a carta � sua espera. Ningu�m tinha
dito nada, mas todos o observaram, sabendo do que se tratava: o logotipo da Universidade
de Pittsburgh era claro. David subira com o envelope e o pusera na mesade-
cabeceira, nervoso demais para abri-lo. Ainda se lembrava do c�u cinzento daquela
tarde, fosco e p�lido do outro lado da janela, sua uniformidade rompida pelo
galho desfolhado de um olmo.
Durante duas horas, ele n�o se permitira olhar. Depois tinha tomado coragem e
era uma boa not�cia: fora aceito com uma bolsa de estudos integral. Sentara-se na
beirada da cama, perplexo demais, desconfiado demais das boas not�cias - como
sempre estaria, pelo resto da vida - para se permitir uma verdadeira alegria. � com
prazer que vimos informar...
E ent�o havia notado o erro: o nome na carta n�o era o seu. O endere�o estava
certo, assim como todos os outros detalhes, desde sua data de nascimento at� seu
n�mero da previd�ncia social, tudo correto. Corretos tamb�m os dois prenomes -
David, em homenagem ao pai, e Henry, em homenagem ao av� -, datilografados
com precis�o por uma secret�ria que talvez tivesse sido interrompida por um telefonema
ou por uma visita. Ou talvez o simples ar encantador da primavera � que a
tivesse feito levantar os olhos do trabalho, sonhando com a noite, com o noivo trazendo
flores e com seu pr�prio cora��o tremendo como uma folha. E ent�o a batida
de uma porta, o som de passos, seu chefe. Assustada, ela se recompusera e voltara
ao presente. Piscando os olhos, pressionara a barra de retorno da m�quina e voltara
ao trabalho.
David Henry, ela j� havia datilografado corretamente.
Mas o sobrenome, McCallister, fora perdido.
Ele nunca tinha contado a ningu�m. Fora para a faculdade e se matriculara, e
ningu�m jamais ficara sabendo. Afinal, era seu nome verdadeiro. Mas David Henry era
uma pessoa diferente de David Henry McCallister, disso ele sabia, e parecia claro que
quem deveria freq�entar a universidade era David Henry, uma pessoa sem hist�ria,
sem o fardo do passado. Um homem com a possibilidade de recome�ar do zero.
E era exatamente isso que David tinha feito. O sobrenome o permitira; at� certo
ponto, o sobrenome o havia exigido: forte e meio nobre. Afinal, tinha havido um
Patrick Henry, estadista e orador. Nos primeiros tempos, durante as conversas em
que se sentia um peixe fora d�gua, cercado por pessoas mais ricas e bem relacionadas
do que ele jamais seria, por pessoas sumamente � vontade no mundo em que
ele tentava desesperadamente ingressar, �s vezes David aludia, mesmo que nunca diretamente,
a uma linhagem distante, por�m de peso, invocando falsos ancestrais que
lhe servissem de esteio e apoio.
Essa tinha sido a d�diva que tentara dar a Paul: um lugar no mundo que ningu�m
pudesse questionar.
A �gua entre seus p�s era marrom, margeada por uma nauseante espuma branca.
O vento come�ou a soprar e sua pele ficou t�o porosa quanto seu terno. Ele tinha o
vento no sangue, e a �gua passava c�lere, aos rodopios, chegando mais perto. Ent�o
veio a sensa��o �cida na garganta e David ficou de quatro, com as pedras frias sob
as m�os, e vomitou no rio escuro e revolto, arquejando at� n�o haver mais nada para
expelir. Passou muito tempo ali, na escurid�o. Por fim, lentamente, levantou-se,
limpou a boca com as costas da m�o e voltou caminhando para a cidade.
Passou a noite toda sentado no terminal da Greyhound, cochilando e acordando
aos sobressaltos, e, de manh�, pegou o primeiro �nibus para a casa de sua inf�ncia,
na Virg�nia Ocidental, enfurnando-se nas montanhas que o cercavam como um
abra�o. Depois de sete horas, o �nibus parou onde sempre parava, na esquina da
Main com a Vine, e partiu roncando, deixando David Henry em frente � mercearia.
A rua era tranq�ila, com um jornal grudado num poste telef�nico e mato brotando
pelas rachaduras da cal�ada. Ele havia trabalhado naquela loja em troca das refei��es
e do quarto no andar de cima: o garoto inteligente que descera da montanha para
estudar, assombrado com o som dos sinos e do tr�nsito, com as donas-de-casa que
chegavam para fazer compras, as crian�as que se aglomeravam para comprar refrigerantes
no balc�o, os homens que se reuniam � noite, mascando fumo, jogando
cartas e matando o tempo com hist�rias. Mas agora aquilo havia desaparecido, tudo
aquilo. Rabiscos vermelhos e pretos tinham sido pichados nas janelas cobertas por
t�buas, ileg�veis, sangrando na madeira.
A sede queimava como fogo na garganta de David. Do outro lado da rua, dois
homens de meia-idade, um careca, o outro com uma cabeleira rala e grisalha que lhe
descia at� os ombros, jogavam damas numa varanda. Ergueram os olhos, curiosos,
desconfiados, e, por um instante, David se viu como eles o estariam vendo, com as
cal�as manchadas e amarrotadas, a camisa com um dia e meio de uso, a gravata su
mida, o cabelo amassado pelo sono intermitente no �nibus. Ele n�o fazia parte daquele
lugar, nunca fizera. No quartinho acima do armaz�m, com os livros espalhados
na cama, costumava sentir tanta saudade de casa que n�o conseguia concentrar-
se; no entanto, quando voltava � montanha, sua �nsia n�o diminu�a. Na pequena
cabana de madeira de seus pais, solidamente fincada na montanha, as horas se esticavam
e cresciam, medidas apenas pelas batidas do cachimbo do pai na cadeira,
pelos suspiros da m�e e pelos momentos de agita��o de sua irm�. Existiam a vida
abaixo do riacho e a vida acima dele, e a solid�o desabrochada em toda parte, como
uma flor soturna.
David acenou com a cabe�a para os homens, deu meia-volta e come�ou a andar,
sentindo o olhar fixo dos dois.
Uma chuva fina, delicada como a neblina, come�ou a cair. David foi andando,
embora suas pernas doessem. Pensou em seu consult�rio iluminado, a um sonho ou
uma vida inteira de dist�ncia dali. Era fim de tarde. Norah ainda estaria no trabalho
e Paul estaria em seu quarto, vertendo na m�sica sua solid�o e sua raiva. Eles o
esperavam de volta nessa noite, mas David n�o chegaria. Teria que telefonar, mais
tarde, quando soubesse o que estava fazendo. Poderia pegar outro �nibus e voltar
para eles nesse exato momento. Sabia disso, mas tamb�m lhe parecia imposs�vel que
aquela vida existisse no mesmo mundo que esta.
A cal�ada desnivelada n�o tardou a ser interrompida por gramados, nos confins
da cidade, num padr�o intermitente que lembrava uma esp�cie de c�digo Morse, e
foi abandonada a intervalos at� sumir por completo. Valas rasas margeavam a estrada
estreita; David lembrou-se delas cheias de l�rios, massas crescentes cor de laranja
que pareciam labaredas. Cruzou as m�os embaixo dos bra�os para aquec�-las. Nessa
regi�o vivia-se sempre a esta��o anterior. Os lilases de Pittsburgh e a chuva morna
n�o estavam em parte alguma. Crostas de neve estalavam sob seus p�s. David chutou
as bordas enegrecidas das valas, onde havia mais neve, entremeada de ervas daninhas
e detritos.
Havia chegado � auto-estrada local. Os carros velozes obrigaram-no a andar pelo
acostamento cheio de mato, respingando-o com uma n�voa fina de neve enlameada.
No passado, aquela fora uma estrada tranq�ila, de onde podiam se ouvir os carros
a quil�metros de dist�ncia antes de serem avistados e, em geral, havia um rosto
conhecido ao volante, o autom�vel reduzia, parava e a porta se abria para deix�-lo
entrar. Ele era conhecido, assim como sua fam�lia, e, depois da conversa rotineira Como
v�o sua m�e, seu pai, como est� o pomar este ano? -, ca�a um sil�ncio em que
o motorista e os outros passageiros pensavam com cuidado no que poderia e n�o
poderia ser dito �quele menino, t�o inteligente que obtivera uma bolsa de estudos,
e com uma irm� doente demais para ir � escola. Nas montanhas, e talvez no mundo
em geral, havia uma teoria da compensa��o que dizia que, para tudo que era dado,
outra coisa se perdia, de maneira imediata e vis�vel. Bom, voc� herdou a cabe�a,
mesmo que sua prima tenha herdado a beleza. Elogios sedutores como flores, mas
espinhosos com seus opostos: �, voc� pode ser esperto, mas � feio como o diabo; voc�
pode ser bonito, mas n�o tem c�rebro. Compensa��o, equil�brio do universo. David
ouvia acusa��es em cada coment�rio sobre seus estudos - ele havia recebido demais,
havia tirado tudo - e, nos carros e caminh�es, o sil�ncio se avolumava at� parecer
imposs�vel que algum dia uma voz humana pudesse romp�-lo.
A estrada descreveu uma curva, depois outra: a estrada dan�ante de June. As
encostas foram ficando mais �ngremes, os riachos desciam em cascata e as casas
come�aram a escassear, cada vez mais pobres. Apareceram os trailers que serviam de
moradia, encravados nas encostas como bijuterias manchadas, nas cores turquesa,
prata e amarela, tudo a se desbotar num tom creme. Ali estavam o sic�moro, a pedra
em forma de cora��o, a curva em que tr�s cruzes brancas, decoradas com flores e
fitas desbotadas, tinham sido cravadas no ch�o. David fez uma curva e subiu pela
margem do riacho seguinte, o seu riacho. A trilha estava coberta de mato, quase, mas
n�o totalmente desaparecida.
Levou quase uma hora para chegar � velha casa, agora de um cinza-claro castigado
pelo tempo, com o telhado afundado no centro da viga mestra e algumas ripas
de madeira faltando. Parou, t�o intensamente envolto no passado que esperou rev�los:
a m�e descendo a escada com uma bacia de zinco, para buscar �gua para lavar a
roupa, a irm� sentada na varanda, o som do machado batendo nos troncos l� onde
o pai cortava lenha, fora do campo de vis�o. David fora para a escola e June tinha
morrido, e os pais haviam permanecido ali enquanto fora poss�vel, relutando em
abandonar a terra. Mas n�o haviam prosperado e, pouco depois, seu pai morrera,
mo�o demais, e sua m�e finalmente se mudara para o Norte, rumo � casa da irm� e
� promessa de emprego nas f�bricas de autom�veis. David raras vezes voltara de
Pittsburgh para casa, e nunca mais havia aparecido desde a morte da m�e. O lugar
era familiar como sua pr�pria respira��o, mas agora estava t�o longe de sua vida
quanto a Lua.
O vento soprou mais forte. David subiu os degraus. A porta empenada pendia das
dobradi�as e n�o fechava. Do lado de dentro, o ar era gelado, com cheiro de mofo.
Havia um �nico c�modo, e o jirau onde antes se dormia estava comprometido pela
viga mestra afundada. As paredes tinham manchas de infiltra��o, e pelas frestas ele
entreviu o c�u p�lido. David tinha ajudado o pai a construir o telhado, com o suor
a escorrer pelo rosto, as m�os sujas de seiva, os martelos elevando-se sob o sol e
batendo no cedro rec�m-cortado, de aroma marcante.
Ao que David soubesse, fazia anos que ningu�m ia l�. Mas havia uma frigideira
em cima do velho fog�o, fria e com a gordura congelada, mas n�o ran�osa, como ele
notou ao se inclinar para cheir�-la. No canto havia uma velha cama de ferro, coberta
por uma colcha de retalhos surrada, igual � que sua m�e e sua av� tinham feito.
O tecido pareceu frio em suas m�os, levemente �mido. N�o havia colch�o, apenas
uma camada espessa de cobertores sobre as t�buas encaixadas na arma��o. O piso
de t�buas fora varrido e havia tr�s p�s de a�afr�o-da-terra num pote na janela.
Algu�m estava morando l�. Uma brisa atravessou o c�modo, balan�ando os
recortes de papel pendurados por toda parte - no teto, nas janelas, acima da cama.
David deu uma volta, examinando-os com um sentimento crescente de admira��o.
Eram meio parecidos com os flocos de neve que ele havia recortado na escola,
por�m infinitamente mais complexos e detalhados, exibindo cenas inteiras, at� o
�ltimo detalhe: a feira estadual, uma sala bem arrumada diante de uma lareira, um
piquenique com explos�es de fogos de artif�cio. Delicados e precisos, eles conferiam
� velha casa um ar de mist�rio. David tocou na moldura rebuscada de uma cena que
mostrava uma carro�a de feno, onde as meninas usavam toucas debruadas de renda
e os meninos tinham as cal�as arrega�adas at� o joelho. Rodas-gigantes, carross�is
em rodopio, carros percorrendo auto-estradas estavam pendurados acima da cama,
balan�ando de leve nas correntes de ar, fr�geis como asas.
Quem teria feito aquilo, com tamanha habilidade e paci�ncia? David pensou em
suas fotografias: ele se empenhava muito em captar cada momento, prend�-lo, faz�lo
durar, mas, quando as imagens emergiam na c�mara escura, j� estavam alteradas.
�quela altura j� se haviam passado horas, dias, e ele se tornara uma pessoa um
pouquinho diferente. No entanto, tivera tanta vontade de captar o v�u esvoa�ante,
de capturar o mundo no momento mesmo em que ele desaparecia, uma vez, outra
e mais outra.
Sentou-se na cama dura. Sua cabe�a continuava a latejar. Deitou-se e se cobriu
com a colcha �mida. Havia uma luz cinza e t�nue em todas as janelas. A mesa nua,
o fog�o, tudo tinha um vago cheiro de orvalho. As paredes estavam cobertas por
camadas de jornal que haviam come�ado a descascar. A fam�lia de David tinha sido
muito pobre; todos os seus conhecidos eram pobres. N�o era crime, mas bem que
poderia ser. Era por isso que se guardavam coisas, motores velhos, latas de conserva
e garrafas de leite, espalhados pelos gramados e pelas encostas: uma defesa contra a
necessidade, uma precau��o contra a car�ncia. Quando David era pequeno, um
menino chamado Daniel Brinkerhoff tinha se enfiado numa geladeira velha e morrera
sufocado. David lembrava-se das vozes abafadas e do corpo de um garoto da sua
idade, deitado numa cabana muito parecida com essa, com velas acesas. A m�e havia
chorado, o que n�o fizera o menor sentido para ele; David era pequeno demais para
compreender o luto, a magnitude da morte. Mas se lembrava do que fora dito do
lado de fora, por�m ao alcance dos ouvidos de sua m�e, pelo pai angustiado que
perdera o filho: Por que o meu menino? Ele era saud�vel, era forte. Por que n�o aquela
garota doentia? Se tinha que ser algu�m, por que n�o ela?
David fechou os olhos. Era grande o sil�ncio. Pensou em todos os sons que enchiam
sua vida em Lexington: passos e vozes nos corredores e o telefone tocando; a
campainha do seu bipe invadindo os sons do r�dio do carro; e, em casa, havia sempre
Paul ao viol�o e Norah com o fio do telefone enrolado no pulso, falando com os
clientes; e, no meio da noite, mais telefonemas: precisavam dele no hospital, tinha
que ir. E, levantando no escuro e no frio, ele ia.
Ali n�o. Ali s� havia o som do vento balan�ando a velha folhagem e, ao longe, o
murm�rio suave da �gua no riacho, embaixo do gelo. Um galho bateu na parede
externa. Com frio, David soergueu o corpo, apoiado nos calcanhares e na parte
superior das costas, para soltar a colcha e cobrir-se melhor com ela. As fotos em seu
bolso cutucaram-lhe o peito quando ele se virou, puxando mais a coberta. Mesmo
assim, seu corpo tremeu por mais alguns minutos, pelo frio e pelo res�duo do cansa�o
da viagem, e, ao fechar os olhos, pensou no encontro dos dois rios convergentes,
no remoinho das �guas escuras. N�o na queda, mas no pulo: era isso que estivera
em jogo naquele momento.
Fechou os olhos. S� por alguns minutos, para descansar. Sob o bolor e o orvalho
havia o aroma de alguma coisa doce, a�ucarada. Sua m�e tinha comprado a��car na
cidade, e ele quase p�de sentir o gosto do bolo de anivers�rio, amarelo e fofo, t�o
doce e saboroso que parecia explodir em sua boca. Vizinhos vindos de casas mais
abaixo, suas vozes subindo pelo vale, os vestidos alegres e multicores das mulheres
ro�ando na grama alta. Os homens de cal�as pretas e botas, as crian�as espalhadas
pelo p�tio, desenfreadas, gritando; e, depois, todos se haviam juntado para fazer
sorvete, acondicionado na salmoura sob a varanda, at� congelar e eles levantarem a
tampa de metal e empilharem bolas do creme frio e doce em suas tigelas.
Talvez tivesse sido depois do nascimento de June, ou quem sabe depois de seu batismo,
esse dia do sorvete. June era como os outros beb�s, com as m�ozinhas balan�ando
no ar, ro�ando em seu rosto quando ele se curvava para beij�-la. No calor
daquele dia de ver�o, com o sorvete gelando embaixo da varanda, eles haviam comemorado.
Mas veio o outono, depois o inverno, e June n�o se sentava de jeito nenhum.
E veio seu primeiro anivers�rio e ela era fraca demais para andar muito. Mais
um outono, e uma prima veio fazer uma visita com o filho, quase da mesma idade,
e o filho n�o s� andava como corria pelos quartos e j� come�ava a falar, e June continuava
sentada, observando o mundo, muito quieta. Foi quando souberam que
havia alguma coisa errada. David se lembrava da m�e observando o priminho, com
l�grimas silenciosas a lhe correr pelo rosto durante muito tempo, at� respirar fundo,
tornar a entrar no c�modo e seguir em frente. Essa era a tristeza que ele havia carregado
consigo, pesada como uma pedra no cora��o. Essa era a tristeza de que tentara
poupar Norah e Paul, e s� fizera criar muitas outras.
� David - dissera sua m�e naquele dia, secando depressa os olhos, para que ele
n�o a visse chorar -, v� tirar aqueles pap�is de cima da mesa e buscar lenha e �gua
l� fora. Agora mesmo. Trate de ser �til.
E ele fora. E todos tinham continuado a levar sua vida naquele dia e em cada um
dos outros. Haviam se retra�do, sem nunca visitar ningu�m, a n�o ser num raro batismo
ou funeral, at� o dia em que Daniel Brinkerhoff se trancara na geladeira. Voltaram
do vel�rio no escuro, subindo a trilha junto ao riacho pelo tato, de mem�ria,
June no colo do pai, e sua m�e nunca mais tornou a sair da montanha, a n�o ser no
dia da mudan�a para Detroit...
- Voc� n�o parece prestar mesmo para nada - dizia a voz, e David, ainda meio
adormecido, sem saber ao certo se estava sonhando ou ouvindo vozes no vento, mexeu-
se ao sentir o pux�o nos pulsos, ao ouvir a voz que resmungava, e passou a l�ngua
ressecada pelo c�u da boca. A vida deles era dif�cil, os dias eram longos e cheios
de trabalho, e n�o havia tempo nem paci�ncia para tristezas. Era preciso ir em frente,
essa era a �nica coisa que se podia fazer, e, j� que falar em June n�o a traria de
volta, eles nunca mais a mencionaram. David virou-se e seus pulsos doeram. Assustado,
meio que acordou, abrindo os olhos e deixando-os vagar pelo c�modo.
Ela estava em p� junto ao fog�o, a poucos metros de dist�ncia, com uma farda de faxina
verde-oliva, apertada nos quadris magros mas frouxa nas coxas. Usava um su�ter
ferrugem, perpassado por fios luminosos laranja, e por cima uma camisa quadriculada
masculina, verde e preta. Tinha cortado as pontas dos dedos das luvas e se deslocava ao
redor do fog�o com h�bil efici�ncia, mexendo ovos na frigideira. Escurecera l� fora
- David tinha dormido por muito tempo - e havia velas espalhadas pela casa. A luz
amarelada suavizava tudo. As cenas delicadas de papel balan�avam de leve.
A gordura espirrou e a menina levantou depressa a m�o. David passou v�rios
minutos im�vel, observando-a em cada v�vido detalhe: os bot�es pretos do fog�o
que sua m�e havia esfregado, as unhas ro�das da garota, as sombras das velas na
janela. Ela pegou sal e pimenta na prateleira acima do fog�o e David se impressionou
com o modo como a luz percorria sua pele, seu cabelo, � medida que ela entrava
e sa�a da sombra, e com a natureza fluida de tudo que ela fazia.
Ele deixara a c�mera no cofre do hotel.
Tentou sentar-se, mas novamente foi impedido pelos pulsos. Intrigado, virou a
cabe�a: uma echarpe fina de chiffon vermelho o amarrava a um dos suportes da cama,
as cordas de um esfreg�o de assoalho ao outro. A menina notou seus movimentos
e se virou, batendo de leve na palma da m�o com uma colher de pau.
- Meu namorado vai chegar a qualquer momento - anunciou.
David deixou a cabe�a cair pesadamente no travesseiro. Ela era magra, n�o mais
velha do que Paul, talvez at� mais nova, ali naquela casa abandonada. Juntando os
trapos, pensou David, intrigado com o namorado e se apercebendo, pela primeira
vez, de que talvez devesse sentir medo.
- Como � seu nome? - perguntou.
- Rosemary - disse ela, e assumiu um ar preocupado. - Pode acreditar ou n�o acrescentou.
- Rosemary - repetiu David -, ser� que voc� pode ter a gentileza de me desamarrar?
- N�o - fez ela, em tom r�pido e vivo. - De jeito nenhum.
- Estou com sede.
Ela o fitou por um momento; tinha olhos calorosos e arredios, castanhos, com
um toque avermelhado. Foi l� fora, deixando entrar na casa uma lufada de ar frio
que alvoro�ou todos os recortes de papel. Voltou com uma caneca de metal cheia de
�gua do riacho.
- Obrigado - disse David -, mas n�o posso beber deitado.
Rosemary cuidou do fog�o um instante, virando os ovos que espirravam, depois
vasculhou uma gaveta, tirou um canudo de pl�stico de uma lanchonete qualquer,
sujo numa das pontas, e o jogou na caneca de metal.
- Acho que voc� pode us�-lo, se estiver mesmo com sede.
David virou a cabe�a e sugou, sedento demais para fazer outra coisa al�m de notar
o gosto de poeira na �gua. Rosemary virou os ovos num prato de metal azul salpicado
de branco e se sentou � mesa. Comeu depressa, empurrando os ovos num garfo
de pl�stico com o indicador da m�o esquerda, delicadamente, sem pensar, como se
David n�o estivesse presente. Por algum motivo, naquele momento, ele compreendeu
que o namorado era uma inven��o. Rosemary estava morando ali sozinha.
Ele bebeu at� o canudo secar, a �gua parecendo um rio sujo em sua garganta.
- Meus pais eram donos desta casa - disse, ao terminar. - Na verdade, ela ainda
me pertence. Guardo a escritura num cofre. Tecnicamente, voc� est� invadindo uma
propriedade.
Ela sorriu e dep�s cuidadosamente o garfo no centro do prato.
- Ent�o voc� veio aqui para reclam�-la? Tecnicamente?
O cabelo e as faces da mo�a refletiam a luz das velas. Era muito jovem, mas tinha
tamb�m algo de ardente e forte, uma coisa solit�ria, mas decidida.
- N�o - respondeu David. Pensou em sua estranha viagem, iniciada numa manh�
corriqueira em Lexington, com Paul demorando uma eternidade no banheiro,
Norah franzindo o cenho, calculando o saldo no tal�o de cheques sobre a bancada,
e o caf� fumegando, at� a exposi��o de fotos, o rio e, agora, ali.
- Ent�o, por que veio? - perguntou Rosemary, empurrando o prato para o centro
da mesa. Tinha m�os maltratadas, as unhas quebradas. David surpreendeu-se
com o fato de elas terem conseguido criar o delicado e complexo trabalho art�stico
em papel que enchia o c�modo.
- Meu nome � David Henry McCallister.
Seu nome verdadeiro, n�o pronunciado durante muito tempo.
- N�o conhe�o nenhum McCallister. Mas n�o sou daqui.
- Quantos anos voc� tem? Quinze?
- Dezesseis - ela corrigiu. E depois, com ar afetado: - Dezesseis, vinte ou quarenta,
� s� escolher.
- Dezesseis - repetiu David. - Tenho um filho mais velho que voc�. Paul.
Um filho, pensou - e uma filha.
- � mesmo? - fez Rosemary, indiferente.
Tornou a pegar o garfo, e ele a observou comer os ovos com garfadas muito delicadas,
mastigando cuidadosamente; com uma emo��o s�bita e intensa, David reviveu
um outro momento naquela mesma casa, observando sua irm� June comer
ovos do mesmo jeito. Tinha sido no ano da morte dela, quando lhe era dif�cil sentar-
se � mesa, mas ela sentava; jantava com eles todas as noites, com a luz da lamparina
nos cabelos louros e as m�os fazendo gestos lentos, com uma gra�a deliberada.
- Por que voc� n�o me desamarra? - sugeriu ele, baixinho, com a voz rouca de
emo��o. - Eu sou m�dico. Inofensivo.
- Sei - disse a garota, e levou o prato de metal azul para a pia.
Estava gr�vida, percebeu David, assustado, ao ver seu perfil quando ela se virou
para pegar o sab�o na prateleira. N�o de muito tempo, s� uns quatro ou cinco meses,
calculou.
- Escute, eu sou m�dico mesmo. H� um cart�o na minha carteira. D� uma olhada.
Rosemary n�o respondeu, apenas lavou o prato e o garfo e secou cuidadosamente
as m�os numa toalha. David pensou em como era estranho estar ali, novamente
deitado naquele lugar em que fora concebido, nascera e fora criado at� a adolesc�ncia,
em como era estranho que sua fam�lia houvesse desaparecido t�o completamente
e aquela menina, t�o jovem e durona, e t�o claramente perdida, o tivesse
amarrado na cama.
A mo�a atravessou o c�modo e tirou a carteira do bolso de David. Uma a uma,
p�s suas coisas sobre a mesa: dinheiro, cart�es de cr�dito, a miscel�nea de anota��es
e pedacinhos de papel.
- Aqui diz fot�grafo - comentou, lendo o cart�o dele sob a luz oscilante.
- � isso mesmo. Tamb�m sou fot�grafo. Continue olhando.
- Est� bem - disse ela, segurando a carteira de identidade. - Quer dizer que voc�
� m�dico. E da�? Que diferen�a isso faz?
Seu cabelo estava preso num rabo-de-cavalo e algumas mechas soltas ca�am-lhe
em volta do rosto; ela as prendeu atr�s das orelhas.
- Isso significa que n�o vou machuc�-la, Rosemary. Primeiro, jamais causar dano
ou mal a algu�m.
Ela lhe deu uma espiada r�pida de avalia��o.
- Voc� diria isso de qualquer maneira. Mesmo que pretendesse me fazer mal.
David a estudou, o cabelo despenteado, os olhos l�mpidos e escuros.
- H� umas fotografias aqui, em algum lugar... - disse, mexendo-se e sentindo a
ponta agu�ada do envelope atrav�s do tecido do bolso da camisa. - Por favor, d�
uma olhada. S�o fotografias da minha filha. Ela tem mais ou menos a sua idade.
Quando Rosemary p�s a m�o em seu bolso, ele tornou a sentir seu calor e seu
perfume, natural, mas limpo. O que � que seria a�ucarado?, perguntou-se, relembrando
o sonho e a bandeja de bombas de creme por que havia passado no vernissage
de sua exposi��o.
- Como � o nome dela? - perguntou Rosemary, examinando primeiro uma foto,
depois a outra.
- Phoebe.
- Phoebe. � bonito. Ela � bonita. Ela tem o mesmo nome da m�e?
- N�o - disse David, recordando a noite do parto e Norah a lhe dizer, pouco antes
do efeito da anestesia, os nomes que queria para seu filho. Caroline havia escutado
e respeitado esse desejo. - Ela recebeu esse nome em homenagem a uma tia-av�. Do
lado materno. Uma pessoa que n�o conheci.
- Eu recebi meu nome em homenagem a minhas duas av�s - disse Rosemary,
baixinho. O cabelo preto tornou a cair no rosto p�lido e ela o empurrou para tr�s,
mantendo o dedo enluvado perto da orelha, e David a imaginou sentada com a
fam�lia ao redor de outra mesa iluminada. Sentiu vontade de abra��-la, lev�-la para
casa, proteg�-la. - Rose do lado do meu pai, Mary do lado materno.
- Sua fam�lia sabe que voc� est� aqui?
Ela abanou a cabe�a.
- N�o posso voltar - disse, com a voz tomada de ang�stia e raiva. - Nunca mais
vou poder voltar. Nem voltarei.
Parecia muito nova, sentada � mesa, com as m�os fechadas sem cerrar os punhos
e uma express�o sombria, apreensiva.
- Por que n�o?
Rosemary tornou a balan�ar a cabe�a e tocou a foto de Phoebe.
- Voc� disse que ela � da minha idade?
- Perto, eu acho. Ela nasceu em 6 de mar�o de 1964.
- Eu nasci em fevereiro de 1966 - disse a menina. Suas m�os tremeram de leve ao
p�r as fotos na mesa. - Mam�e estava planejando uma festa de debutante para mim.
Ela adora toda essa coisa de babadinhos cor-de-rosa.
David a viu engolir em seco, tornar a empurrar o cabelo para tr�s da orelha, olhar
pela janela escura. Sentiu vontade de consol�-la, como tantas vezes quisera consolar
outras pessoas - June, sua m�e, Norah -, mas agora, tal como ent�o, isso n�o era poss�vel.
Imobilidade e movimento: havia alguma coisa ali, alguma coisa que ele precisava
saber, mas seus pensamentos continuavam dispersos. Sentia-se aprisionado, fixado no
tempo, como qualquer de suas fotografias, s� que o momento que o retinha era profundo
e doloroso. Ele s� havia chorado por June uma vez, de p� com a m�e na encosta
da montanha, sob o vento cortante do entardecer, segurando a B�blia numa das
m�os enquanto recitava o Pai-Nosso diante da terra rec�m-revolvida. Havia chorado
com a m�e, que passara a detestar o vento desde aquele dia, e depois ela havia escondido
sua tristeza e seguido em frente. A vida era assim, e eles n�o questionavam isso.
- A Phoebe � minha filha - disse, assombrado ao se ouvir falar, mas irracionalmente
compelido a contar sua hist�ria, aquele segredo que havia guardado por tantos
anos. - Mas n�o a vejo desde o dia em que ela nasceu.
Hesitou, depois se obrigou a falar:
- Eu a dei. Ela tem s�ndrome de Down, o que significa que � retardada. Por isso
eu a dei. Nunca contei a ningu�m.
O olhar de Rosemary foi fulminante.
- Para mim isso � fazer mal a uma pessoa.
- �. Para mim tamb�m - disse David.
Os dois passaram muito tempo em sil�ncio. Para onde quer que olhasse, ele se
recordava da fam�lia: o calor do h�lito de June em seu rosto, sua m�e cantando ao
dobrar a roupa lavada na mesa, as hist�rias do pai ecoando naquelas paredes.
Desaparecidos, todos desaparecidos. E sua filha tamb�m. David lutou contra a tristeza
pela for�a do h�bito, mas as l�grimas lhe rolaram pelas faces e ele n�o p�de
cont�-las. Chorou por June, e chorou pelo momento na cl�nica em que entregara
Phoebe a Caroline Gill e a vira partir. Rosemary ficou sentada � mesa, s�ria e quieta.
Num dado instante, seus olhos se cruzaram e David sustentou o olhar da menina,
num momento de estranha intimidade. Lembrou-se de Caroline a observ�-lo da
porta enquanto ele dormia, mostrando no rosto uma meiguice nascida do amor.
David poderia ter descido a escada do museu com ela e tornado a entrar em sua
vida, mas tamb�m perdera esse momento.
- Desculpe - disse, tentando controlar-se. - Faz muito tempo que n�o venho aqui.
Rosemary n�o respondeu e ele se perguntou se aquilo lhe pareceria loucura.
Respirou fundo.
- Para quando � o beb�? - perguntou.
Os olhos escuros se arregalaram de surpresa.
- Daqui a cinco meses, eu acho.
- Voc� o deixou, n�o foi? - perguntou David, baixinho. - Seu namorado. Talvez
ele n�o quisesse o beb�.
Rosemary desviou o rosto, mas n�o antes de ele ver seus olhos encherem-se de l�grimas.
- Desculpe. N�o tive a inten��o de me intrometer - disse ele, na mesma hora.
Ela abanou de leve a cabe�a.
- Tudo bem. N�o � nada demais.
- Onde est� ele? - indagou David, mantendo a voz baixa. - Onde � sua casa?
- Na Pensilv�nia - respondeu Rosemary, ap�s uma longa pausa. Respirou fundo,
e David compreendeu que sua hist�ria, sua tristeza, tornara poss�vel que a menina
revelasse a dela. - Perto de Harrisburg. Eu tinha uma tia aqui na cidade. A irm� de
mam�e, Sue Wallis. Agora ela est� morta. Mas, quando eu era pequena, n�s v�nhamos
aqui a esta casa. Costum�vamos perambular por todas essas montanhas. A casa
estava sempre vazia. Costum�vamos vir brincar aqui quando �ramos pequenas. Foi
uma �poca boa. Este foi o melhor lugar em que eu pude pensar.
David balan�ou a cabe�a, recordando o sil�ncio farfalhante do arvoredo. Sue
Wallis. Uma imagem veio � tona: uma mulher subindo o morro, carregando uma
torta de p�ssego coberta por um pano de prato.
- Desamarre-me - disse, ainda em voz baixa.
Rosemary deu uma risada amarga, enxugando os olhos.
- Por qu�? Por que eu faria isso, sozinha aqui com voc� e sem ningu�m por perto?
N�o sou uma completa idiota.
Levantou-se e pegou a tesoura e uma pequena pilha de pap�is na prateleira acima
do fog�o. Fiapos brancos voavam � medida que ela ia cortando. O vento soprou e as
chamas das velas oscilaram nas correntes de ar. O rosto de Rosemary era firme, resoluto,
concentrado e determinado como o de Paul, quando ele tocava sua m�sica, se-
parando-se do mundo de David e buscando um outro lugar. A tesoura movia-se
c�lere na m�o dela e um m�sculo se contra�a em sua mand�bula. At� ent�o n�o havia
ocorrido a David que ela pudesse feri-lo.
- Essas coisas de papel que voc� faz s�o lindas - disse ele.
- Foi minha av� Rose quem me ensinou. O nome � Scherenschnitte. Ela cresceu
na Su��a, onde eu acho que fazem isso o tempo todo.
- Ela deve estar preocupada com voc�.
- Ela morreu. Morreu no ano passado.
Fez uma pausa, concentrada nos recortes, e acrescentou:
- Gosto de fazer isso. Me ajuda a lembrar dela.
David balan�ou a cabe�a.
- Voc� come�a com uma id�ia? - perguntou.
- Est� no papel. Eu n�o a invento, eu a encontro.
- Voc� a encontra. Certo. Entendo isso. Quando tiro fotografias, � assim. Elas j�
est�o l�, eu s� as descubro.
- Isso mesmo - disse Rosemary, virando o papel. - � exatamente assim.
- O que voc� vai fazer comigo?
Ela n�o respondeu, continuou recortando.
- Preciso urinar.
David tivera a esperan�a de faz�-la falar, com o susto, mas era tamb�m a dolorosa
verdade. Rosemary o estudou por um momento. Depois, largou a tesoura e o papel
e desapareceu sem tecer coment�rios. Ele a ouviu andando do lado de fora, no
escuro. Ela voltou com um pote vazio de pasta de amendoim.
- Escute, Rosemary. Por favor, desamarre-me.
Ela p�s o pote no ch�o e tornou a pegar a tesoura.
- Como � que voc� p�de d�-la? - perguntou.
A luz refletiu nas l�minas da tesoura. David lembrou-se do brilho do bisturi ao
fazer a episiotomia, lembrou-se de como havia flutuado para fora de si, para assistir
� cena do alto, de como os acontecimentos daquela noite haviam desencadeado o
rumo de sua vida, uma coisa levando a outra, portas se abrindo onde n�o havia nenhuma,
enquanto outras se fechavam, at� ele chegar a esse momento espec�fico, com
uma estranha procurando o desenho intricado que se escondia no papel e esperando
a resposta dele, e n�o havia nada que ele pudesse fazer nem qualquer lugar para
onde pudesse ir.
- � isso que a preocupa? Que voc� d� o seu beb�?
- Nunca. Eu nunca farei isso - respondeu ela ferozmente, com o rosto decidido.
Portanto, algu�m tinha feito aquilo com ela, de um modo ou de outro, e a jogara
fora como uma carga alijada, para afundar ou nadar. Aos 16 anos, gr�vida e sozinha,
sentada �quela mesa.
- Eu percebi que tinha sido um erro - disse David. - Mas j� era tarde demais.
- Nunca � tarde demais.
- Voc� tem 16 anos. �s vezes, acredite, � tarde demais.
A express�o de Rosemary contraiu-se por um momento e ela n�o respondeu,
apenas continuou a recortar; e, no sil�ncio, David recome�ou a falar, primeiro tentando
explicar a neve e o choque, e o bisturi brilhando na luz ofuscante. Como ele
se postara fora de si mesmo e se observara movendo-se no mundo. Como havia
acordado todas as manh�s, durante 18 anos de sua vida, achando que talvez esse
fosse o dia em que conseguiria consertar as coisas. Mas Phoebe se fora e ele n�o conseguia
encontr�-la, portanto, como contar a Norah? O segredo se havia infiltrado no
casamento deles como uma videira insidiosa e retorcida; ela bebia demais, e depois
come�ara a ter aventuras rom�nticas, primeiro com aquele corretor s�rdido na
praia, depois com outros; ele havia tentado n�o notar, perdo�-la, por saber que, num
sentido muito real, a culpa era sua. Uma fotografia ap�s outra, como se ele pudesse
deter o tempo, ou fazer uma imagem t�o perfeita que obscurecesse o momento em
que se virara para Caroline Gill e lhe entregara sua filha.
Sua voz subindo e descendo. Depois que come�ou, David n�o conseguiu parar,
assim como n�o conseguiria deter a chuva, o riacho que descia a encosta da montanha
ou os peixes, persistentes e esquivos, que deslizavam c�leres na correnteza sob o
gelo. Corpos em movimento, pensou, aquele velho retalho de f�sica do cient�fico. Ele
havia entregado sua filha a Caroline Gill e fora isso que o trouxera para esse lugar,
anos depois, para essa menina com seu moto pr�prio, essa menina que resolvera que
sim, por um breve instante de descarga no banco traseiro de um carro, ou no quarto
de uma casa silenciosa, essa menina que depois se levantara, ajeitando a roupa,
sem saber que aquele momento j� estava moldando sua vida.
Rosemary recortava e ouvia. O sil�ncio dela o libertou. David falou como um rio,
como uma enxurrada, com as palavras se precipitando pela velha casa com uma
for�a e uma vitalidade que ele n�o conseguia deter. Em algum momento, recome�ou
a chorar, e tamb�m n�o p�de impedir isso. Rosemary n�o teceu nenhum coment�rio.
Ele falou at� as palavras ficarem mais lentas, minguarem, finalmente cessarem.
O sil�ncio avolumou-se.
Rosemary n�o falou. A tesoura reluziu. O papel parcialmente recortado caiu da
mesa no ch�o quando ela se levantou. David fechou os olhos, com o medo aumentando,
porque vira a raiva nos olhos da menina e porque tudo que havia acontecido
fora culpa sua.
Os passos de Rosemary, depois o metal, frio e brilhante como gelo, deslizando em
sua pele.
A tens�o nos pulsos relaxou. David abriu os olhos e a viu recuando, os olhos brilhantes
e desconfiados fixados nos dele.
� Est� bem. Voc� est� livre - disse ela.
Ill
AUL - CHAMOU NORAH. SEUS SALTOS SOARAM NUM CLARO STACCATO
nos degraus encerados e ela parou � porta, esguia e elegante em seu costume
azul-marinho de saia justa e ombreiras volumosas. Pelos olhos entreabertos,
Paul viu o que ela estava vendo: roupas espalhadas no ch�o, uma cascata de discos e
partituras, seu velho viol�o encostado num canto. Norah abanou a cabe�a e deu um
suspiro. - Levante, Paul. Agora mesmo.
- Estou doente - resmungou ele, puxando a coberta sobre a cabe�a e fingindo estar
rouco. Pela trama frouxa do cobertor fino ainda podia v�-la, com as m�os nos
quadris. A luz matinal incidia sobre seu cabelo, no qual ela fizera reflexos na v�spera
e que brilhava com toques de vermelho e dourado. Paul a ouvira ao telefone com
Bree, descrevendo as pequenas mechas embrulhadas em papel laminado e aquecidas.
Ela estivera refogando carne mo�da enquanto falava, com a voz serena e os olhos
vermelhos de tanto chorar. O pai passara tr�s dias sumido, sem que ningu�m
soubesse se estava vivo ou morto. E ent�o, na noite anterior, chegara em casa e entrara
pela porta como se nunca houvesse desaparecido, e as vozes tensas dos dois
haviam passado horas enchendo a casa.
- Escute - disse-lhe a m�e nesse momento, olhando para o rel�gio. - Sei que voc�
est� t�o pouco doente quanto eu. Eu gostaria de dormir o dia inteiro. Deus sabe
como eu gostaria! Mas n�o posso, nem voc�. Portanto, trate de sair dessa cama e se
vestir. Eu o deixo na escola.
- Minha garganta est� queimando - ele insistiu, com a voz mais rouca que conseguiu
fabricar.
Norah hesitou, fechou os olhos e deu outro suspiro, e Paul soube que tinha vencido.
- Se voc� vai ficar em casa, trate de ficar em casa - advertiu-o. - Nada de zanzar
por a� com aquele seu quarteto. E, escute bem, voc� tem que limpar este chiqueiro.
Estou falando s�rio, Paul. J� estou encarando tudo que eu ag�ento encarar neste
momento.
- Certo - resmungou ele. - T�. Eu limpo.
Norah ficou mais um instante parada, sem falar.
- � dif�cil - disse, finalmente. - Tamb�m � dif�cil para mim. Eu ficaria com voc�,
Paul, mas prometi levar Bree ao m�dico.
Nessa hora ele se apoiou nos cotovelos, alertado pelo tom sombrio da m�e.
- Ela est� legal?
Norah fez que sim, mas tinha o rosto voltado para a janela e n�o o fitou nos olhos.
- Acho que est�. Mas ela tem feito uns exames e anda meio preocupada. � natural.
Na semana passada prometi que iria com ela. Antes de toda essa hist�ria com o seu pai.
- Tudo bem - disse Paul, lembrando-se de fazer a voz ficar rouca. - Voc� deve ir
com ela. Vou ficar legal.
Falou em tom seguro, mas parte dele esperava que a m�e n�o prestasse aten��o,
que quisesse ficar em casa.
- N�o deve demorar muito. Eu volto direto para casa.
- Cad� o papai?
Ela abanou a cabe�a.
- N�o fa�o a menor id�ia. N�o est� aqui. Mas o que � que isso tem de incomum?
Paul n�o respondeu, apenas tornou a deitar e fechou os olhos. N�o muita coisa,
pensou com seus bot�es. N�o tem nada de incomum.
A m�e tocou-o de leve no rosto, mas Paul n�o se mexeu, e ent�o ela se foi, deixando
uma sensa��o fria no lugar em que pousara a m�o em sua face. L� embaixo houve
um bater de portas; a voz de Bree elevou-se no vest�bulo. Nos �ltimos anos, as duas
tinham ficado muito unidas, sua m�e e Bree, t�o unidas que at� come�aram a se
parecer, Bree com reflexos no cabelo tamb�m e uma pasta balan�ando na m�o. Ela
ainda era uma pessoa muito maneira e equilibrada, ainda era a que se dispunha a
correr riscos, a que lhe dissera para seguir seu cora��o e se candidatar � Juilliard,
como ele queria fazer. Todo mundo gostava de Bree, de seu esp�rito de aventura, sua
exuber�ncia. Ela arranjava muitos neg�cios. Bree e sua m�e eram for�as complementares,
Paul a ouvira dizer. E percebia isso. As duas seguiam pela vida como ponto
e contraponto, uma imposs�vel sem a outra, uma sempre puxando pela outra. O
mesmo com as vozes delas, misturando-se para l� e para c�, e depois o riso tristonho
de Norah, a porta batendo. Paul sentou-se e se espregui�ou. Livre.
A casa estava silenciosa, o boiler fazendo diques. Paul desceu e parou diante da luz
fria da geladeira, comendo com as m�os macarr�o com queijo guardado num pirex
e examinando as prateleiras. N�o havia grande coisa. No congelador, encontrou seis
pacotes de biscoitos de chocolate com menta. Comeu um punhado, enxaguando-os
com leite bebido diretamente na garrafa de pl�stico. Depois, outro punhado, balan�ando
a garrafa de leite na m�o, e voltou a passar pela sala, onde as cobertas do pai
estavam arrumadas numa pilha sobre o sof�, a caminho da sala �ntima.
A garota continuava l�, dormindo. Paul enfiou outro biscoito na boca, deixando
o chocolate e a menta derreterem devagar, enquanto a examinava. Na noite anterior,
as vozes conhecidas e irritadas dos pais haviam chegado at� seu quarto e, embora
estivessem discutindo, o bolo que ele sentira na garganta ao pensar no pai morto em
algum lugar, no pai desaparecido para sempre, esse bolo se desfizera no mesmo instante.
Paul tinha levantado da cama e come�ado a descer a escada, mas havia parado
no patamar para observar a cena: o pai com uma camisa branca que passara dias
sem ser lavada, a cal�a social manchada de lama por toda parte, amarrotada e suja,
a barba por fazer e o cabelo mal penteado; a m�e de chinelos e robe de cetim cor de
p�ssego, que fazia dobras suaves em seus bra�os cruzados, os olhos espremidos, e
aquela garota, aquela estranha parada no v�o da porta, com um casaco preto grande
demais, segurando a extremidade das mangas com as pontas dos dedos. As vozes de
seus pais misturadas, elevando-se. A garota havia olhado para cima, para al�m dos
turbilh�es de raiva. Os olhos dos dois tinham se encontrado. Paul a fitara, examinando-
a: a palidez e o olhar inseguro, as orelhas delicadamente esculpidas. Os olhos
eram de um castanho muito claro, muito cansados. Ele sentira vontade de descer a
escada e segurar o rosto da menina entre as m�os.
- Tr�s dias - dizia Norah -, e depois voc� volta para casa como... meu Deus do
c�u, David, olhe para voc�... desse jeito, e com essa mo�a. Gr�vida, voc� disse? E eu
devo receb�-la sem fazer nenhuma pergunta?
A garota se encolhera nessa hora e desviara o rosto, e os olhos de Paul tinham
descido at� sua barriga, bastante chata embaixo do casaco, s� que a mo�a havia descansado
protetoramente uma das m�os no est�mago e ele tinha percebido a ligeira
protuber�ncia por baixo do su�ter. Paul ficara muito quieto. A discuss�o havia continuado;
parecera durar muito tempo. Por fim, calada e espremendo os l�bios, sua
m�e tinha tirado len��is, cobertores e travesseiros do arm�rio da roupa de cama e
os jogara pela escada para seu pai, que havia segurado a menina muito formalmente
pelo cotovelo e a conduzira at� a sala �ntima.
Agora ela dormia no sof�-cama, com a cabe�a virada de lado e uma das m�os des
cansando perto do rosto. Paul a estudou, observou como suas p�lpebras se moviam,
o lento subir e descer do peito. Ela estava deitada de costas e sua barriga se elevava
como uma pequena onda. Paul sentiu-se excitado e ficou com medo. Tivera rela��es
com Lauren Lobeglio seis vezes, desde mar�o. Ela passara semanas rondando os
ensaios do quarteto, a observ�-lo sem dizer nada, uma garota bonita, largada,
esquisita. Uma tarde, ela havia ficado depois de o resto da banda ir embora, e eram
s� os dois no sil�ncio da garagem, com a luz a se mover pelas folhas do lado de fora
e a criar desenhos com sombras no piso de concreto. Lauren era estranha, mas sensual,
com sua cabeleira cheia e longa e os olhos negros. Paul tinha se sentado na
cadeira velha do jardim, afinando as cordas do viol�o e pensando se deveria ir at�
onde ela estava, parada junto � parede das ferramentas, e beij�-la.
Mas Lauren � que tinha atravessado a garagem. Parara um instante diante dele,
depois sentara em seu colo, levantando a saia, revelando as pernas esguias e brancas.
Era como as pessoas diziam: Lauren Lobeglio transava, se gostasse de voc�. Paul
nunca havia acreditado que fosse mesmo verdade, mas ali estava ele, apalpando-a
por baixo da camiseta, tocando a pele morna, os seios macios sob suas m�os.
Aquilo n�o estava certo. Ele sabia, mas era como levar um tombo: depois de
come�ar, a gente n�o conseguia parar, at� alguma coisa nos deter. Lauren tinha continuado
a rondar como antes, s� que agora o ar ficava carregado e, quando os dois
se viam sozinhos, Paul atravessava a garagem e a beijava, deslizando as m�os pela
pele lisa e acetinada das costas dela.
A garota na cama suspirou, mexendo os l�bios. Chave de cadeia, seus amigos o
haviam alertado a respeito de Lauren. Especialmente Duke Madison, que tinha
abandonado a escola para se casar com a namorada no ano anterior, que j� quase
n�o tocava piano e que, quando o fazia, ficava com uma cara abatida, olhando para
o rel�gio. Se voc� a engravidar, est� mais do que ferrado.
Paul examinou a garota, sua palidez e seu cabelo comprido e escuro, as sardas dispersas.
Quem era ela? Seu pai, met�dico e previs�vel como o tiquetaque de um rel�gio,
simplesmente desaparecera. No segundo dia, sua m�e havia chamado a pol�cia,
que fora evasiva e ir�nica, at� a maleta de David ser encontrada na chapelaria do
museu em Pittsburgh e a mala e a m�quina fotogr�fica no hotel. Depois disso haviam
levado a queixa a s�rio. Seu pai tinha sido visto na recep��o, discutindo com
uma mulher de cabelo preto. Descobrira-se que ela era cr�tica de arte; sua cr�tica
sobre a exposi��o havia sa�do nos jornais de Pittsburgh, e n�o fora nada boa.
Nada pessoal, ela dissera � pol�cia.
E ent�o, na noite da v�spera, a chave tinha girado na fechadura e seu pai havia
entrado em casa com essa garota gr�vida, que ele dizia ter acabado de conhecer, uma
garota cuja presen�a n�o conseguia explicar. Ela precisa de ajuda, dissera ele, tenso.
Existem muitas maneiras de ajudar, sua m�e havia assinalado, falando da garota
como se ela n�o estivesse parada no vest�bulo, com seu casaco grande demais. Voc�
pode dar dinheiro. Pode lev�-la a um lugar para m�es solteiras. Uma pessoa n�o desaparece
por dias seguidos, sem dizer uma palavra, e depois aparece com uma estranha
gr�vida. Pelo amor de Deus, David, ser� que voc� n�o faz a menor id�ia? N�s chamamos
a pol�cia! Achamos que voc� estava morto!
Talvez eu estivesse, disse ele, e a estranheza dessa resposta sufocara os protestos de
Norah, deixando Paul paralisado na escada.
E agora ali estava ela, dormindo, alheia, e dentro dela um beb� crescia em seu mar
escuro. Paul estendeu a m�o, tocou de leve o cabelo da garota e deixou a m�o pender.
Sentiu uma �nsia repentina de se deitar ao lado dela, de abra��-la. De algum
modo, n�o era como com a Lauren, n�o tinha a ver com sexo; era s� uma vontade
de senti-la perto, de sentir sua pele e seu calor. Teve vontade de acordar ao lado da
garota, de passar a m�o sobre a curva ascendente de sua barriga, de afagar seu rosto
e segurar sua m�o.
De descobrir o que ela sabia sobre seu pai.
Os olhos da garota se abriram com uma piscadela e, por um momento, ela o fitou
sem v�-lo. Depois, sentou-se depressa, passando as m�os no cabelo. Usava uma das
camisetas velhas e surradas de Paul, azul e com a logomarca dos Kentucky Wildcats
na frente, uma camiseta que ele costumava usar uns dois anos antes, quando corria
na pista. Os bra�os dela eram compridos e magros. Paul vislumbrou-lhe a axila,
macia e coberta de p�los curtos, e a suave curva ascendente de seu seio.
- O que � que est� olhando? - fez ela, e p�s os p�s no ch�o.
Ele abanou a cabe�a, sem conseguir falar.
- Voc� � o Paul. Seu pai me falou de voc�.
- Falou? - perguntou ele, odiando a car�ncia em sua voz. - E disse o qu�?
A garota deu de ombros, empurrando o cabelo para tr�s das orelhas, e se p�s de p�.
- Vamos ver. Voc� � voluntarioso. Voc� o detesta. Voc� � um g�nio no viol�o.
Paul sentiu o rubor subir-lhe pelo rosto. Em geral, achava que o pai nem sequer
o via, ou s� via os pontos em que ele n�o atendia �s suas expectativas.
- N�o o detesto. Ele � que me detesta.
A garota se inclinou para recolher a roupa de cama, depois sentou-se com ela no
colo, olhando em volta.
- � bonito aqui - disse. - Um dia eu vou ter um lugar assim.
Paul deu uma risada assustada.
- Voc� est� gr�vida - disse. Era seu pr�prio medo aparecendo no c�modo, o medo
que aumentava toda vez que ele atravessava a garagem at� chegar a Lauren Lobeglio,
tr�mulo, atra�do pela for�a irresist�vel de seu pr�prio desejo.
- Certo. E da�? Estou gr�vida, n�o morta.
Ela falou num tom de desafio, mas soou assustada, t�o assustada quanto Paul �s
vezes se sentia, ao acordar no meio da noite sonhando com Lauren, toda quente e
sedosa, sussurrando em seu ouvido, e saber que jamais conseguiria parar, embora os
dois estivessem a caminho da desgra�a.
- Mas bem que poderia estar - disse ele.
A garota o fitou bruscamente, com l�grimas de verdade nos olhos, como se ele a
houvesse esbofeteado.
- Desculpe, eu n�o tive inten��o de dizer isso - fez Paul.
Ela continuou a chorar.
- O que voc� est� fazendo aqui, afinal? - perguntou ele, com raiva das l�grimas
da garota, de sua pr�pria presen�a. - Quer dizer, quem voc� pensa que �, pra se grudar
no meu pai e aparecer aqui?
- Acho que n�o sou ningu�m - disse a mo�a, mas o tom de Paul a havia assustado,
de modo que ela enxugou as l�grimas e ficou mais dura, mais distante. - E n�o
pedi para vir para c�. Foi id�ia do seu pai.
- N�o faz sentido - objetou Paul. - Por que ele faria isso?
Ela deu de ombros.
- Como � que eu vou saber? Eu estava morando naquela casa velha onde ele cresceu
e ele disse que eu n�o podia mais ficar l�. E a casa � dele, certo? O que � que eu
poderia dizer? De manh�, andamos at� a cidade e ele comprou passagens de �nibus,
e aqui estamos. O �nibus foi um porre. Levou a vida inteira para fazer todas aquelas
conex�es malucas.
Ela puxou o cabelo comprido para tr�s e o prendeu num rabo-de-cavalo, e Paul
ficou observando, pensando em como as orelhas dela eram bonitas, perguntando a
si mesmo se seu pai tamb�m a achava bonita.
- Que casa velha? - indagou, sentindo alguma coisa afiada e quente no peito.
- Eu j� disse. Aquela onde ele cresceu. Eu estava morando l�. N�o tinha outro
lugar para ir - acrescentou, olhando para o ch�o.
Foi quando Paul sentiu-se invadir por alguma coisa, uma emo��o que n�o sabia
denominar. Inveja, talvez, pelo fato de aquela garota, aquela estranha magra e p�lida
de orelhas bonitas, ter estado num lugar que era importante para o pai dele, um
lugar que ele pr�prio nunca tinha visto. Um dia eu o levo l�, prometera seu pai, mas
os anos tinham passado e ele nunca mais voltara a mencion�-lo. S� que Paul nunca
havia esquecido o modo como o pai se sentara em meio � desordem da c�mara escura,
recolhendo as fotos uma a uma, com todo o cuidado. Minha m�e, Paul, sua av�.
Ela levava uma vida dura. Eu tinha uma irm�, sabia? O nome dela era June. June tinha
talento para cantar, para a m�sica, assim como voc�. At� hoje ele se lembrava do
cheiro do pai naquela manh�, limpo, j� vestido para ir para o hospital, mas sentado
no ch�o da c�mara escura, conversando, como se dispusesse de todo o tempo do
mundo. Contando uma hist�ria que Paul nunca tinha ouvido.
- Meu pai � m�dico - fez Paul. - Ele gosta de ajudar as pessoas, s� isso.
A garota acenou com a cabe�a e o olhou de frente, com a express�o carregada de
alguma coisa... pena dele, foi o que Paul pensou entender, e uma pontada fina e
quente o percorreu at� a ponta dos dedos.
- O que foi? - perguntou.
Ela abanou a cabe�a.
- Nada. Voc� tem raz�o. Eu precisava de ajuda. S� isso.
Uma mecha de cabelo soltou-se do rabo-de-cavalo e caiu sobre o rosto dela, muito
escura, com toques avermelhados, e Paul se lembrou de como o achara macio ao
toc�-lo enquanto a garota dormia, macio e quente, e resistiu � �nsia de estender a
m�o e lhe ajeitar a mecha atr�s da orelha.
- Meu pai teve uma irm� - disse Paul, relembrando a hist�ria e a voz suave e firme
do pai, jogando verde para ver se era verdade, se ela estivera mesmo na casa.
- Eu sei. June. Ela est� enterrada numa encosta do morro, mais acima da casa.
Tamb�m fomos l�.
A fisgada fina alargou-se, deixando a respira��o de Paul fraca e arfante. Que import�ncia
tinha ela saber disso? Que diferen�a fazia? No entanto, n�o conseguia
parar de imagin�-la l�, subindo uma encosta, seguindo seu pai at� aquele lugar onde
ele nunca estivera.
- E da�? E da� se voc� esteve l�, o que � que tem isso?
Por um instante, a menina pareceu prestes a responder, depois virou-se e come�ou
a cruzar a sala em dire��o � cozinha. O cabelo escuro, feito uma corda comprida,
balan�ava em suas costas. Os ombros eram magros e delicados, e ela andava
devagar, com uma gra�a cuidadosa, feito uma bailarina.
- Espere - chamou Paul, mas, quando ela parou, n�o soube o que lhe dizer.
- Eu precisava de um lugar para ficar - disse a garota, baixinho, olhando para tr�s
por cima do ombro. - � s� isso que deve saber sobre mim, Paul.
Ele a viu entrar na cozinha, ouviu a porta da geladeira abrir e fechar. Depois,
subiu e pegou a pasta de arquivo que havia escondido na gaveta de baixo, cheia de
fotos que havia guardado da noite em que tinha conversado com o pai.
Pegou as fotografias e o viol�o e foi para a varanda, sem camisa e descal�o.
Sentou-se no balan�o e tocou, de olho na garota que andava pelos c�modos l� dentro:
a cozinha, a sala de estar, a sala de jantar. Mas ela n�o fez quase nada, s� tomou
um pouco de iogurte e passou muito tempo parada em frente � estante de livros de
Norah, at� pegar um romance e se sentar no sof�.
Paul continuou a tocar. A m�sica o acalmava. Ele entrava num outro plano, no
qual suas m�os pareciam mover-se automaticamente. A nota seguinte estava bem
ali, e depois a seguinte, e mais outra. Ele chegou ao fim da m�sica e parou, de olhos
fechados, deixando as notas morrerem lentamente no ar.
Nunca mais. Aquela melodia, aquele momento, nunca mais.
-Uau!
Paul abriu os olhos e a viu encostada no batente da porta. Ela abriu a porta de tela
e entrou na varanda, segurando um copo d'�gua, e se sentou.
-
Puxa, o seu pai tinha raz�o - comentou. - Isso foi incr�vel.
- Obrigado - disse Paul, baixando a cabe�a para esconder seu prazer e tocando
um acorde. A m�sica o havia libertado; ele j� n�o estava com tanta raiva. - E voc�?
Voc� sabe tocar?
-
N�o. Antigamente eu estudava piano.
-
N�s temos um piano - disse ele, fazendo um sinal com a cabe�a em dire��o �
porta.
- V� em frente.
Ela sorriu, embora os olhos continuassem s�rios.
- Tudo bem. Obrigada. N�o estou com vontade. Depois, voc� toca mesmo muito,
muito bem. Que nem um profissional. Eu ficaria sem jeito de martelar Pour Elise, ou
coisa parecida.
Paul tamb�m sorriu.
-
Pour Elise. Eu conhe�o essa. Pod�amos fazer um dueto.
-
Um dueto - repetiu ela, balan�ando a cabe�a, franzindo o cenho de leve. Depois,
levantou os olhos. - Voc� � filho �nico? - perguntou.
Paul levou um susto.
- Sim e n�o. Quero dizer, eu tive uma irm�. G�mea. Ela morreu.
Rosemary balan�ou a cabe�a.
-
Voc� pensa nela?
-
� claro - disse Paul, que se sentiu constrangido e desviou o olhar. - N�o nela,
propriamente. Quero dizer, nunca a conheci. Mas penso em como ela poderia ter sido.
Enrubesceu, chocado por ter revelado tanto �quela menina, �quela estranha que
havia transtornado a vida deles todos, �quela garota de quem nem ao menos gostava.
- Ent�o, t�. Agora � sua vez - recomp�s-se Paul. - Diga-me alguma coisa pessoal.
Diga-me uma coisa que o meu pai n�o saiba.
Rosemary lan�ou-lhe um olhar curioso.
- N�o gosto de banana - respondeu enfim, e Paul riu, e ela tamb�m. - N�o, � verdade,
n�o gosto. O que mais? Quando eu tinha cinco anos, ca� da bicicleta e quebrei o bra�o.
- Eu tamb�m. Tamb�m quebrei o bra�o quando tinha seis anos. Ca� de uma �rvore
- disse Paul. Lembrou-se ent�o de como o pai o havia carregado, de como o c�u
tinha se iluminado, cheio de sol e de folhas, enquanto ele era levado para o carro.
Lembrou-se das m�os do pai, muito concentradas e delicadas enquanto reduzia a
fratura, e de voltar outra vez para casa, na luz luminosa e dourada da tarde.
- Ei, quero lhe mostrar uma coisa - disse a Rosemary.
Deitou o viol�o no balan�o e pegou as fotos granulosas em preto-e-branco.
- Era esse o lugar? - perguntou, entregando-lhe uma foto. - Onde voc� encontrou
o meu pai?
Ela pegou a fotografia e a examinou, depois assentiu com a cabe�a.
- �. Agora est� diferente. Por essa foto, com essas cortinas bonitas nas janelas e as
flores crescendo, estou vendo que um dia foi uma boa casa. Mas agora ningu�m mora
l�. Est� vazia. O vento passa por dentro, porque as janelas est�o quebradas. Quando
eu era pequena, a gente costumava brincar l�. Corr�amos soltos por esses morros e eu
brincava de casinha com minhas primas. Diziam que a casa era mal-assombrada, mas
sempre gostei dela. N�o sei muito bem por qu�. Era o meu lugar secreto. �s vezes, eu
ficava sentada l� dentro sonhando com o que eu seria.
Paul fez que sim com a cabe�a, pegando a fotografia de volta e examinando as
imagens, como fizera tantas vezes antes, como se elas pudessem responder a todas
as suas perguntas sobre o pai.
- Voc� n�o sonhou com isso - disse ele por fim, erguendo os olhos.
- N�o, nunca - ela repetiu baixinho.
Nenhum dos dois falou por alguns minutos. A luz do sol enviesava-se pelas �rvores
e derramava sombras no piso pintado da varanda.
- Certo. � sua vez de novo - disse Rosemary, tornando a se virar para ele.
- Minha vez?
- Diga-me alguma coisa que o seu pai n�o saiba.
- Vou para a Juilliard - respondeu Paul, com as palavras saindo apressadas, ani
madas como m�sica na sala. Ele ainda n�o havia contado a ningu�m, exceto � m�e.
- Eu era o primeiro da lista de espera e fui aceito na semana passada. Quando ele
estava sumido.
- Uau! - exclamou Rosemary, com um sorriso meio triste. - Eu estava pensando
mais em termos do seu legume favorito. Mas isso � �timo, Paul. Sempre achei que ir
� faculdade seria genial.
- Voc� pretendia ir - falou, compreendendo de repente o que ela havia perdido.
- Eu vou. Definitivamente, eu vou.
- � prov�vel que eu mesmo tenha que pagar a anuidade - disse Paul, reconhecendo
a determina��o feroz da garota tentando encobrir o medo. - Meu pai est� decidido
a fazer com que eu tenha um projeto de uma carreira segura. Detesta a id�ia da
m�sica.
- Disso voc� n�o sabe - contrap�s ela, lan�ando-lhe um olhar r�pido. - Na verdade,
voc� n�o sabe mesmo de toda a hist�ria do seu pai.
Paul n�o soube o que responder e os dois passaram v�rios minutos calados. Estavam
protegidos da rua por uma treli�a toda coberta de trepadeiras, com as flores roxas
e brancas desabrochando, de modo que quando dois carros entraram na garagem, um
atr�s do outro - seu pai e sua m�e em casa, t�o estranhamente, no meio do dia -, Paul
os vislumbrou em lampejos de cor e de cromados brilhantes. Ele e Rosemary se entreolharam.
As portas dos carros bateram, ecoando na casa vizinha. Depois houve passos
e as vozes baixas e decididas dos pais, para l� e para c�, logo adiante da beira da
varanda. Rosemary abriu a boca como se fosse cham�-los, mas Paul levantou uma das
m�os e abanou a cabe�a, e os dois se sentaram juntos em sil�ncio, escutando.
- Hoje mesmo - disse a m�e. - Esta semana. Ah, se voc� soubesse o sofrimento
que nos causou, David!
- Desculpe. Voc� tem raz�o. Eu devia ter telefonado. Pretendia ligar.
- E isso deve bastar? Quem sabe eu mesma v� embora. Assim, de repente. Talvez
eu suma e depois volte com um rapaz bonito, sem nenhuma explica��o. O que voc�
acharia disso?
Houve um sil�ncio e Paul se lembrou da pilha de roupas coloridas largada na
praia. Pensou nas muitas noites em que sua m�e n�o conseguira chegar em casa antes
de meia-noite. Neg�cios, ela sempre suspirava, tirando os sapatos no vest�bulo e
indo direto para a cama. Olhou para Rosemary, que examinava as pr�prias m�os, e
ficou im�vel, observando-a, ouvindo, aguardando para ver o que aconteceria.
- Ela � s� uma menina - disse David, finalmente. - Tem 16 anos, est� gr�vida e
morava numa casa abandonada, sozinha. Eu n�o podia deix�-la l�.
Norah suspirou. Paul imaginou-a passando a m�o pelo cabelo.
- Isso � uma crise da meia-idade? - perguntou ela, baixinho. - � isso que est�
acontecendo?
- Crise da meia-idade? - repetiu o pai. Sua voz era firme, pensativa, como se ele
considerasse cuidadosamente os ind�cios. - Acho que talvez seja. Sei que eu bati numa
esp�cie de muro, Norah. Em Pittsburgh. Eu era muito obcecado quando rapaz. N�o
podia me dar ao luxo de ser outra coisa. Voltei l� para tentar compreender umas
coisas. E l� estava a Rosemary, na minha casa antiga. Aquilo n�o me pareceu uma coincid�ncia.
N�o sei, n�o consigo explicar sem que a coisa pare�a meio maluca. Mas, por
favor, confie em mim. N�o estou apaixonado por ela. N�o � nada disso. Nunca ser�.
Paul olhou para Rosemary. Ela estava de cabe�a baixa, de modo que n�o lhe foi
poss�vel ver sua express�o, mas suas bochechas enrubesceram vivamente. A garota
ficou mexendo numa unha quebrada e n�o enfrentou seu olhar.
- N�o sei em que acreditar - disse Norah, lentamente. - Esta semana, David, logo
esta semana. Sabe de onde eu acabei de voltar? Eu estava com a Bree, no consult�rio
do oncologista. Ela fez uma bi�psia na semana passada no seio esquerdo. � um
caro�o muito mi�do, o progn�stico � bom, mas � maligno.
- Eu n�o sabia, Norah. Sinto muito.
- N�o, n�o me toque, David.
- Quem � o cirurgi�o?
- Ed Jones.
- O Ed � muito bom.
- � melhor que seja. David, essa sua crise da meia-idade � a �ltima coisa de que
eu preciso.
Escutando, Paul sentiu o mundo ficar um pouco mais lento. Pensou em Bree, com
seu riso f�cil, capaz de passar uma hora ouvindo-o tocar, a m�sica deslocando-se entre
eles, sem que houvesse necessidade de palavras. Ela fechava os olhos e se espregui�ava
no balan�o, escutando. Paul n�o conseguia imaginar o mundo sem Bree.
- O que � que voc� quer? - perguntou seu pai. - O que voc� quer de mim, Norah?
Eu fico, se voc� quiser, ou ent�o me mudo. Mas n�o posso mandar a Rosemary embora.
Ela n�o tem para onde ir.
Fez-se sil�ncio, e Paul aguardou, mal se atrevendo a respirar, esperando para saber
o que a m�e diria e querendo que ela nunca respondesse.
- E quanto a mim? - perguntou, assustando-se com a pr�pria voz. - E quanto ao
que eu quero?
- Paul? - fez a voz de sua m�e.
- Aqui - disse ele, pegando o viol�o. - Na varanda. Eu e Rosemary.
- Ai, meu Deus - disse o pai. Passados alguns segundos, aproximou-se da escada.
Depois da noite anterior, tinha tomado banho, feito a barba e vestido um terno limpo.
Estava magro e parecia cansado. Norah tamb�m, parando ao lado dele.
Paul levantou-se e o encarou.
- Eu vou para a Juilliard, papai. Eles telefonaram na semana passada: eu entrei. E
vou para l�.
Esperou que o pai recome�asse sua arenga de praxe: a carreira musical n�o era
confi�vel, nem mesmo na m�sica cl�ssica. Paul tinha in�meras op��es a seu dispor;
poderia continuar tocando e sempre se comprazendo em tocar, mesmo que ganhasse
a vida de outra maneira. Paul esperou que o pai fosse firme, sensato e resistente,
para que ele pudesse dar vaz�o a sua raiva. Estava tenso, pronto, mas, para sua surpresa,
o pai apenas balan�ou a cabe�a.
- Que bom para voc� - disse, e seu rosto se abrandou de prazer por um momento,
com a ruga de preocupa��o desaparecendo da testa. Quando ele falou, tinha a voz
calma e segura: - Paul, se � isso que voc� quer, v�. V� e trabalhe com afinco, seja feliz.
Paul continuou na varanda, sem gra�a. Durante todos aqueles anos, toda vez que
ele e o pai haviam conversado sentira-se batendo num muro. E, agora, o muro havia
desaparecido misteriosamente, mas Paul continuava a correr, aturdido e inseguro,
no meio de um descampado.
- Paul, eu me orgulho de voc�, filho - disse David.
Agora todos o fitavam e ele tinha l�grimas nos olhos. N�o sabia o que dizer, por
isso come�ou a andar, primeiro s� para sair dali, para n�o dar um vexame, e depois
come�ou a correr de verdade, ainda com o viol�o na m�o.
- Paul! - Norah o chamou, e, ao se virar, recuando alguns passos, ele percebeu
como a m�e estava p�lida, com os bra�os cruzados no peito, tensos, e o cabelo de
reflexos rec�m-criados balan�ando na brisa. Ele pensou em Bree, no que a m�e tinha
dito e em como as duas tinham se tornado parecidas, a m�e e a tia, e sentiu medo.
Lembrou-se do pai no vest�bulo, com a roupa imunda, o desenho escuro da barba
por fazer, o cabelo desgrenhado. E depois, agora de manh�, limpo e calmo, mas bastante
mudado. Seu pai, impec�vel, preciso, seguro de tudo, transformara-se em outra
pessoa. L� atr�s, meio encoberta pelas trepadeiras, Rosemary escutava, de bra�os
cruzados, com o cabelo agora solto caindo nos ombros, e Paul a imaginou naquela
casa da montanha conversando com seu pai, andando de �nibus com ele durante
tantas horas, fazendo parte, de algum modo, daquela mudan�a em seu pai, e tornou
a sentir medo do que estava acontecendo com todos.
E, por isso, correu.
Era um dia ensolarado, j� quente. O Sr. Ferry e a Sra. Pool deram adeusinho de
suas varandas. Paul ergueu o viol�o num cumprimento e continuou a correr. Estava
a tr�s quarteir�es de casa, cinco, dez. Do outro lado da rua, em frente a um bangal�
baixo, havia um carro vazio com o motor ligado. O dono provavelmente esquecera
alguma coisa, dera uma corrida l� dentro para buscar uma maleta ou um palet�.
Paul parou. Era um Gremlin ocre, o carro mais feio do universo, pontilhado de ferrugem.
Ele atravessou a rua, abriu a porta do motorista e entrou. Ningu�m gritou,
ningu�m saiu correndo da casa. Paul bateu a porta e ajeitou o banco, aumentando
o espa�o para as pernas. O carro era autom�tico, cheio de pap�is de bala e ma�os de
cigarro vazios espalhados. O dono daquele carro era um completo fiasco, pensou
ele, uma daquelas mulheres que se maquiavam demais e trabalhavam como secret�rias
em algum lugar morto e paralisado, feito pl�stico, como a lavanderia, talvez, ou
o banco. Moveu a alavanca e deu marcha a r�.
Nada ainda: nenhum grito, nenhuma sirene. Ele p�s a alavanca em DRIV E e se
afastou.
N�o tinha dirigido muitas vezes, mas aquilo era muito parecido com o sexo: se a
gente fingisse saber o que estava acontecendo, logo, logo a gente sabia, e a� vinha
tudo naturalmente. Perto da escola, Ned Stone e Randy Delaney estavam parados na
esquina, jogando pontas de cigarro na grama antes de entrar, e Paul procurou
Lauren Lobeglio - que �s vezes ficava por ali com eles -, cujo h�lito muitas vezes era
carregado e fumacento quando ele a beijava.
O viol�o escorregou. Paul encostou o carro e o prendeu com o cinto de seguran�a.
Um Gremlin, droga. Agora, cruzar o centro da cidade, parando cuidadosamente em
todos os sinais, no dia vibrante e azul. Pensou nos olhos de Rosemary enchendo-se
de l�grimas. N�o tivera inten��o de mago�-la, mas o fizera. E alguma coisa tinha
acontecido, alguma coisa havia mudado. Rosemary fazia parte daquilo e ele n�o,
embora o rosto de seu pai, por um breve instante, houvesse se enchido de felicidade
ao ouvir a not�cia.
Paul foi dirigindo. N�o queria estar naquela casa quando acontecesse o que viria
depois. Chegou � rodovia interestadual, onde a estrada se bifurcava, e virou � esquerda,
em dire��o a Louisville. Ele vislumbrava a Calif�rnia em sua mente: l� havia
m�sica e uma praia intermin�vel. Lauren Lobeglio arranjaria algu�m novo. N�o o
amava e ele n�o a amava; ela era uma esp�cie de v�cio, e o que os dois faziam tinha
qualquer coisa de obscuro, pesado. Calif�rnia. Logo ele estaria na praia, tocando
numa banda e vivendo com pouco dinheiro e sem preocupa��es o ver�o inteiro. No
outono daria um jeito de ir para a Juilliard. Cruzaria o pa�s pegando carona, talvez.
Desceu o vidro todo da janela e deixou entrar o ar primaveril. O Gremlin mal atingia
90 quil�metros, mesmo quando ele apertava o pedal at� o fundo. Ainda assim,
era como se estivesse voando.
Paul j� andara por ali, em ordeiras visitas escolares ao zool�gico de Louisville, e
antes at�, naquelas corridas loucas que sua m�e dava quando ele era pequeno, quando
ele sentava no banco de tr�s e via as folhas, os galhos e os cabos telef�nicos passarem
zunindo pela janela. Ela costumava cantar alto junto com o r�dio, com a voz
oscilante, e prometia parar para lhe dar um sorvete, uma coisa gostosa, se ele fosse
bonzinho, se ficasse quieto. Durante todos esses anos, Paul fora bonzinho, mas isso
n�o tinha feito a menor diferen�a. Havia descoberto a m�sica e tocado do fundo da
alma no sil�ncio daquela casa, no vazio deixado pela morte de sua irm� na vida de
todos, mas isso tamb�m n�o tivera import�ncia. Ele havia tentado, com toda a for�a
poss�vel, fazer os pais levantarem os olhos de sua pr�pria vida e ouvirem a beleza, a
alegria que ele havia descoberto. Tocara muito e se tornara muito bom. Mesmo
assim, em todo aquele tempo, seus pais nunca tinham levantado os olhos, nem uma
�nica vez, at� Rosemary cruzar aquela porta e alterar tudo. Ou talvez ela n�o tivesse
modificado coisa alguma. Talvez fosse apenas o fato de que sua presen�a lan�ava
uma luz nova e reveladora sobre a vida deles, mudando a composi��o. Afinal, uma
imagem podia ser mil coisas diferentes.
P�s a m�o no viol�o e alisou a madeira c�lida, sentindo-se reconfortado. Apertou
o pedal at� o fundo, subindo por entre os muros de pedra onde a estrada cortava o
morro, e depois desceu em dire��o � curva do rio Kentucky, voando. A ponte cantou
sob os pneus. Paul continuou dirigindo sem parar, procurando fazer qualquer
coisa, menos pensar.
IV
POR TR�S DA PORTA ENVIDRA�ADA DE NORAH. O ESCRIT�RIO FERVILHAVA
de atividade. Neil Simms, o gerente de pessoal da IBM, cruzou a porta externa,
um vislumbre de terno escuro e sapatos engraxados. Bree, que dera uma parada
na recep��o para buscar os faxes, voltou-se para cumpriment�-lo. Usava um tailleur
de linho amarelo e sapatos amarelo-escuros; uma bela pulseira de ouro deslizou por
seu pulso quando ela estendeu a m�o para apertar a de Simms. Por baixo da eleg�ncia,
Bree havia emagrecido e ficara com os ossos pontudos. Mesmo assim, seu riso
era leve e atravessou o vidro, chegando at� Norah, que se sentava com o telefone
numa das m�os, diante da escrivaninha onde descansava a pasta reluzente que ela
passara semanas preparando, com as letras IBM gravadas em negrito na capa.
- Escute, Sam, eu lhe disse para n�o me telefonar, e falei s�rio - disse Norah.
Um sil�ncio frio e denso inundou-lhe o ouvido. Ela imaginou Sam em casa, trabalhando
junto � parede das janelas que davam para o lago. Era analista de investimentos
e Norah o conhecera seis meses antes, no edif�cio-garagem, sob a ilumina��o
fosca do concreto junto ao elevador. As chaves dela haviam escorregado e o
homem as apanhara no ar, r�pido e desenvolto, com as m�os zunindo feito peixes.
S�o suas?, tinha perguntado, com um sorriso pronto e f�cil - uma brincadeira, j�
que os dois eram os �nicos presentes. Norah, tomada por uma excita��o conhecida,
uma esp�cie de mergulho sombrio e delicioso, acenara que sim. Os dedos dele
lhe haviam ro�ado a pele; as chaves tinham produzido uma sensa��o fria na palma
de sua m�o.
Naquela noite, ele havia deixado um recado em sua secret�ria eletr�nica. O
cora��o de Norah se acelerara, alvoro�ado com a voz de Sam. Apesar disso, termina
da a grava��o, ela havia se obrigado a sentar e contar suas aventuras amorosas - curtas
e longas, passionais e neutras, ressentidas e amistosas - no correr dos anos.
Quatro. Ela escrevera o n�mero em riscos toscos e escuros de grafite na borda do
jornal matutino. No andar de cima, a �gua pingava na banheira. Paul estava em seu
quarto, repetindo no viol�o o mesmo acorde, vez ap�s outra. David estava l� fora,
trabalhando em sua c�mara escura - sempre um imenso espa�o entre eles. Norah
havia iniciado cada um de seus romances com uma sensa��o de esperan�a e de um
novo come�o, arrebatada pela excita��o dos encontros secretos, da novidade e da
surpresa. Depois de Howard, mais dois, transit�rios e doces, seguidos por outro
mais longo. Todos haviam come�ado em momentos em que ela achara que o rugir
do sil�ncio em sua casa a deixaria louca, em que o universo misterioso de uma outra
presen�a, qualquer presen�a, tinha lhe parecido um al�vio.
- Norah, por favor, escute - dizia Sam nesse momento: um homem poderoso,
uma esp�cie de tirano nos neg�cios, uma pessoa de quem ela nem chegava a gostar
particularmente. Na recep��o, Bree virou-se para olh�-la, com ar questionador, impaciente.
Sim, Norah gesticulou pelo vidro, ela andaria depressa. As duas tinham
passado quase um ano namorando aquela conta da IBM; � claro que ela se apressaria.
- S� estou querendo saber do Paul - insistia Sam. - Se voc� j� teve alguma not�cia.
Porque eu estou aqui � sua disposi��o, certo? Ouviu o que eu disse, Norah?
Estou completamente, inteiramente � sua disposi��o.
- Eu ouvi - respondeu ela, irritada consigo mesma; n�o queria Sam falando de
seu filho. Fazia 24 horas que Paul tinha sumido; um carro, a poucos quarteir�es de
sua casa, tamb�m havia desaparecido. Ela o vira sair depois daquela cena tensa na
varanda, tentando lembrar o que tinha dito, o que Paul teria entreouvido, sofrendo
ao ver a confus�o no rosto do filho. David fizera bem em dar sua b�n��o a Paul, mas,
de algum modo, at� aquilo, a pr�pria estranheza da coisa, havia piorado o momento.
Norah vira Paul sair correndo, carregando o viol�o, e por pouco n�o correra atr�s
dele. Mas sua cabe�a do�a e ela se permitira pensar que talvez o filho precisasse de
um tempo para pensar naquilo sozinho. E, depois, ele n�o iria longe, com certeza:
para onde poderia ir, afinal?
- Norah? Norah, voc� est� bem? - perguntou Sam.
Ela fechou os olhos por um instante. A luz comum do sol lhe aquecia o rosto. As
janelas do quarto de Sam eram cheias de prismas e, naquela manh� luminosa, as luzes
e cores estariam mudando, vivas, em todas as superf�cies. � como fazer amor
numa discoteca, ela lhe dissera uma vez, meio reclamando, meio encantada, com os
longos fachos de cores deslizando pelos bra�os dele, por sua pr�pria pele alva.
Naquele dia, como em todos os outros desde que se haviam conhecido, Norah tivera
a inten��o de terminar tudo. E, ent�o, Sam tinha desenhado o facho de luzes coloridas
em sua coxa, com o dedo, e aos poucos ela sentira suas arestas come�arem a se
suavizar, a se embotar, as emo��es fundindo-se umas nas outras numa seq��ncia
misteriosa, do azul mais escuro para o dourado, e a relut�ncia se transformara misteriosamente
em desejo.
Mas o prazer nunca durava mais do que seu trajeto para casa.
- Neste momento eu estou concentrada no Paul - disse ela, e acrescentou com
rispidez: - Escute, Sam, para mim chega, realmente. Falei s�rio no outro dia. N�o me
telefone de novo.
- Voc� est� nervosa.
- Estou. Mas falo s�rio. N�o me telefone. Nunca mais.
E desligou. Sua m�o estava tr�mula; ela a espalmou com for�a sobre a mesa.
Sentia o desaparecimento de Paul como um castigo: pela raiva prolongada de David,
pela dela pr�pria. O carro furtado por ele fora encontrado abandonado numa ruazinha
de Louisville, na noite anterior, mas nem sinal de Paul. E, assim, ela e David continuavam
esperando, movendo-se desamparados pelas camadas de sil�ncio de sua
casa. A garota da Virg�nia Ocidental continuava a dormir no sof�-cama da sala �ntima.
David nunca a tocava, raras vezes sequer lhe dirigia a palavra, a n�o ser para lhe
perguntar se precisava de alguma coisa. Mesmo assim, Norah intu�a alguma coisa
entre os dois, uma liga��o emocional viva e carregada de afetos positivos que a feria
tanto ou talvez mais do que qualquer romance f�sico.
Bree bateu no vidro e entreabriu a porta alguns cent�metros.
- Tudo bem? � que o Neil est� aqui, da IBM.
- Tudo �timo - disse Norah. - Como vai voc�? Est� se sentindo bem?
- � bom para mim estar aqui - respondeu Bree, animada, firme. - Especialmente
com todas as outras coisas que andam acontecendo.
Norah assentiu com a cabe�a. Tinha ligado para os amigos de Paul, e David havia
chamado a pol�cia. A noite inteira e durante a manh�, ela andara pela casa de robe,
tomando caf� e imaginando todas as desgra�as poss�veis. A possibilidade de ir para o
trabalho, de desviar ao menos parte da cabe�a para outra coisa, tinha sido uma b�n��o.
O telefone recome�ou a tocar quando ela se levantou, mas Norah deixou que uma
onda de raiva cansada a empurrasse porta afora. N�o deixaria Sam confundi-la, n�o
o deixaria estragar aquela reuni�o, n�o mesmo. Suas outras aventuras haviam terminado
de formas diferentes, depressa ou devagar, amigavelmente ou n�o, mas nenhuma
com esse toque de mal-estar. Nunca mais, pensou com seus bot�es.
Ia cruzando o sagu�o, apressada, mas Sally a deteve na recep��o, estendendo-lhe
o telefone:
- � melhor voc� atender, Norah.
Ela compreendeu no mesmo instante; pegou o fone, tr�mula.
- Eles o acharam - disse David, com voz calma. - A pol�cia acabou de ligar. Encontraram-
no em Louisville, furtando uma loja. Nosso filho foi apanhado roubando
queijo.
- Ent�o ele est� bem - fez Norah, soltando um suspiro que n�o se dera conta de
estar prendendo o tempo todo e sentindo o sangue voltar a fluir para a ponta dos
dedos. Ah, ela estivera semimorta e nem havia notado.
- Est�, ele est� bem. Com fome, ao que parece. Estou saindo para busc�-lo. Voc�
quer ir?
- Talvez seja melhor eu ir. N�o sei, David. Pode ser que voc� diga a coisa errada.
Fique a� com a sua namorada-, quase acrescentou.
David deu um suspiro.
- E o que � que seria a coisa certa a dizer, Norah? Eu gostaria muito de saber. Eu
me orgulho dele e lhe disse isso. Ele fugiu e roubou um carro. Ent�o, eu me pergunto:
qual seria a coisa certa a dizer?
� muito pouco, � tarde demais, Norah sentiu vontade de responder. E quanto � sua
namorada? Mas n�o falou nada.
- Norah, ele tem 18 anos. Roubou um carro. Tem que assumir a responsabilidade.
- Voc� tem 51 - retrucou ela. - Tamb�m tem que assumi-la.
Fez-se sil�ncio; ela o imaginou parado no consult�rio, t�o tranq�ilizador em seu
jaleco branco, com os fios prateados a lhe avivar o cabelo. Ningu�m que o visse
imaginaria como ele tinha voltado para casa: a barba por fazer, a roupa rasgada e
imunda, uma garota gr�vida a seu lado, metida num capote preto surrado.
- Escute, s� me d� o endere�o - disse Norah. - Encontro voc� l�.
- Ele est� na delegacia, Norah. Na central de autua��es. Onde voc� acha que
estaria, no zool�gico? Mas, claro, espere um instante. Vou lhe dar o endere�o.
Enquanto o anotava, Norah levantou os olhos e viu a irm� fechando a porta da
entrada depois de Neil Simms sair.
- O Paul est� bem? - perguntou Bree.
Norah balan�ou a cabe�a, emocionada demais, aliviada demais para falar. Ouvir
o nome do filho tornava a not�cia real. Paul estava em seguran�a, talvez algemado,
mas a salvo. Vivo. O pessoal do escrit�rio, parado na recep��o, come�ou a aplaudir,
e Bree cruzou o c�modo para abra��-la. T�o magrinha, pensou Norah, com l�grimas
nos olhos; as esc�pulas da irm� eram delicadas e finas como asas.
- Eu dirijo - disse Bree, segurando-a pelo bra�o. - Vamos. No caminho voc� me
conta.
Norah deixou-se conduzir pelo corredor e pelo elevador at� o carro na garagem.
Bree seguiu pelas ruas movimentadas do centro, enquanto Norah falava, com o
al�vio atravessando-a como um vento.
- Mal consigo acreditar - disse. - Passei a noite inteira em claro. Sei que o Paul j�
� adulto. Sei que ir� para a faculdade em poucos meses e n�o terei a menor id�ia de
onde ele est�, nessa ou naquela hora. Mas n�o consegui parar de me preocupar.
- Ele ainda � o seu nen�m.
- Sempre. � dif�cil solt�-lo. Mais dif�cil do que eu tinha imaginado.
Estavam passando pelos pr�dios baixos e sem gra�a da IBM. Bree deu um adeusinho
para eles. - Ol�, Neil. Logo nos veremos.
- Toda aquela trabalheira - suspirou Norah.
- Ah, n�o se preocupe. N�o vamos perder a conta. Eu fui muito, muito sedutora.
E o Neil � um homem de fam�lia. Desconfio que tamb�m � do tipo que gosta de donzelas
em perigo.
- Voc� est� prejudicando a causa - retrucou Norah, lembrando-se de Bree sob a luz
filtrada da sala de jantar, muitos anos antes, agitando panfletos sobre o aleitamento.
Bree riu:
- Nem um pouco. Apenas aprendi a trabalhar com o que tenho. Vamos conseguir
a conta, n�o se preocupe.
Norah n�o respondeu. As cercas brancas passavam em borr�es, tendo por fundo
os gramados vi�osos. Havia cavalos calmamente parados nos campos; celeiros de
tabaco, acinzentados pelo tempo, contrastavam com uma encosta, depois outra.
Come�o de primavera, aproximando-se o dia do Derby, �rvores-de-judas explodindo
em flor. Elas atravessaram o rio Kentucky, lodoso e cintilante. Numa campina
logo depois da ponte, um narciso solit�rio apareceu, como um clar�o luminoso de
beleza, e se foi. Quantas vezes Norah percorrera essa estrada, com o vento no cabelo
e o rio Ohio a seduzi-la com suas promessas, sua beleza �gil e ondulante? Ela
havia abandonado o gim e as corridas com o vento no rosto; comprara a ag�ncia de
viagens e a fizera crescer; modificara sua vida. Mas de repente se deu conta de uma
realidade, com a clareza de uma luz nova e ofuscante que inunda uma sala: nunca
tinha parado de correr. Para San Juan e Bangkok, Londres e Alasca. Para os bra�os
de Howard e dos outros, at� chegar a Sam e a este momento.
- N�o posso perder voc�, Bree - disse � irm�. - N�o sei como voc� consegue estar
t�o calma com tudo isso, porque eu me sinto como se houvesse batido num muro.
Lembrou-se de David dizendo a mesma coisa na v�spera, parado na entrada da
garagem, tentando explicar por que tinha levado a jovem Rosemary para casa. O que
teria acontecido com ele em Pittsburgh, para deix�-lo t�o mudado?
- Eu estou calma porque voc� n�o vai me perder - disse Bree.
- �timo. Fico feliz por voc� ter tanta certeza. Porque eu n�o suportaria.
As duas prosseguiram em sil�ncio por alguns quil�metros.
- Lembra daquele sof� azul surrado que eu tinha? - perguntou Bree, enfim.
- Vagamente - disse Norah, enxugando os olhos. - O que � que tem ele?
- Sempre achei que aquele sof� era muito bonito. E a�, um dia, numa �poca muito
deprimente da minha vida, a luz entrou na sala de um jeito diferente, talvez por
haver neve do lado de fora, ou sei l� o qu�, e percebi que o velho sof� estava completamente
decr�pito e que s� a poeira o mantinha de p�. Compreendi que eu tinha
que fazer umas mudan�as - explicou, e deu uma olhada para o lado, sorrindo. - E,
a�, fui trabalhar com voc�.
- Uma �poca deprimente? - repetiu Norah. - Sempre imaginei que a sua vida era
muito glamourosa. Perto da minha, pelo menos. N�o sabia que voc� tinha passado
por um per�odo de depress�o, Bree. O que aconteceu?
- N�o tem import�ncia. S�o �guas passadas h� muito tempo. Mas ontem � noite
tamb�m fiquei acordada. Tive o mesmo tipo de sensa��o: h� alguma coisa mudando.
� engra�ado como as coisas parecem diferentes de uma hora para outra. Hoje de
manh� eu estava olhando para a luz que entrava pela janela da cozinha. Ela formava
um ret�ngulo comprido no piso, e nele as folhas novas se mexiam, criando desenhos
de todas as formas. Uma coisa muito simples, mas bonita.
Norah estudou o perfil da irm�, lembrando-se de como fora Bree, um dia, despreocupada,
atrevida e segura em sua intrepidez, parada na escadaria do pr�dio da
universidade. Para onde tinha ido aquela mocinha? Como se transformara nessa
mulher t�o magra e decidida, t�o forte e t�o solit�ria?
- Ah, Bree - conseguiu dizer, finalmente.
- N�o � uma senten�a de morte, Norah - declarou Bree, agora falando com firmeza,
concentrada e decidida, como quem fizesse uma exposi��o geral das contas a
receber. - � mais como uma esp�cie de alerta. Andei lendo umas coisas, e minhas
chances s�o realmente muito boas. E hoje de manh� me ocorreu que, se n�o existir
um grupo de apoio para mulheres como eu, eu mesma vou criar um.
Norah sorriu.
- Isso � bem t�pico de voc�. � a coisa mais animadora que voc� j� disse at� agora.
Passaram mais alguns minutos caladas, depois Norah acrescentou:
- Mas voc� n�o me contou. Todos esses anos, quando voc� estava infeliz. Voc�
nunca me disse nada.
- Pois �. Estou dizendo agora.
Norah p�s a m�o no joelho da irm�, sentindo seu calor e sua magreza.
- O que � que eu posso fazer?
- � s� ir levando, um dia atr�s do outro. Estou na lista de ora��es da igreja, e
isso ajuda.
Norah olhou para a irm�, para seu cabelo curto e elegante, o perfil bem desenhado,
pensando no que responder. Fazia cerca de um ano que Bree come�ara a freq�entar
uma pequena igreja episcopal perto de casa. Norah a havia acompanhado uma
vez, mas o of�cio religioso, com seu ritual complexo de ajoelhar e ficar de p�, rezar e
guardar sil�ncio, deixara nela uma sensa��o de in�pcia, como se fosse uma forasteira.
Ela havia olhado de relance para as outras pessoas nos bancos, perguntando-se o que
estariam sentindo, o que as teria feito levantar da cama e ir para a igreja naquela bela
manh� de domingo. Era dif�cil discernir algum mist�rio, dif�cil ver qualquer coisa
al�m da luz clara e de um grupo de pessoas cansadas, esperan�osas e obedientes.
Norah nunca mais voltara l�, mas nesse momento sentiu-se intensamente grata por
qualquer consolo que a irm� tivesse recebido, pelo que quer que houvesse encontrado,
e que ela pr�pria n�o tinha visto naquela igrejinha sossegada.
O mundo continuou a passar com rapidez pela janela: grama, �rvores, c�u. Depois,
aos poucos, constru��es. Elas haviam entrado em Louisville e Bree confluiu com o
tr�nsito pesado da Interestadual 71, cujas pistas velozes fervilhavam de carros. O estacionamento
da delegacia policial estava quase lotado, tremeluzindo de leve sob o sol
do meio-dia. As duas desceram do carro, batendo as portas em eco, percorreram uma
cal�ada de concreto ladeada por uma s�rie de arbustos pequenos, passaram pela
porta girat�ria e entraram na t�nue luz do lado de dentro.
Paul estava sentado num banco do outro lado da sala, recurvado, com os cotovelos
nos joelhos e as m�os pendendo soltas entre eles. O cora��o de Norah parou. Ela
passou pelo balc�o e pelos policiais, avan�ando pelo denso ar verde-�gua em dire��o
ao filho. Fazia calor na sala. Um ventilador dava giros quase impercept�veis junto �s
placas do isolamento ac�stico do teto, todas manchadas. Norah sentou-se no banco
ao lado do filho. Paul n�o tinha tomado banho, estava com o cabelo grosso e engordurado,
e o forte cheiro de suor, cigarro e roupa suja grudara-se � sua pele. Odores
acres, marcantes, cheiros de homem. Havia calos nos dedos dele, endurecidos pelo
viol�o. Agora ele tinha sua pr�pria vida, sua vida secreta. Norah experimentou uma
s�bita sensa��o de humildade, ao constatar como ele era independente. Seu filho,
sim, isso sempre, mas j� n�o lhe pertencia.
- � bom ver voc� - disse baixinho. - Fiquei preocupada, Paul. Todos ficamos.
Ele a fitou, com olhos amea�adoramente aborrecidos e desconfiados, depois desviou
o rosto subitamente, prendendo o choro.
- Estou fedendo - disse.
-� - concordou Norah. - Est� mesmo.
Paul examinou o sagu�o, pousando os olhos em Bree, parada junto ao balc�o, e
depois no rodopio e no clar�o da porta girat�ria.
- Bom. Acho que � sorte minha ele n�o ter se incomodado em vir.
Referia-se a David. Tanta dor em sua voz! Tanta raiva!
- Ele est� a caminho - disse Norah, mantendo a voz firme. - Chegar� a qualquer
momento. A Bree me trouxe. Veio voando, na verdade.
Tivera a inten��o de faz�-lo sorrir, mas ele apenas assentiu com a cabe�a.
- Ela est� bem?
- Est� - fez Norah, pensando na conversa no carro. - Est� bem.
Paul tornou a balan�ar a cabe�a.
- Bom. Isso � �timo. Aposto que papai est� fulo da vida.
- Pode contar com isso.
- Eu vou para a cadeia? - perguntou Paul, com a voz muito baixa.
Norah respirou fundo.
- N�o sei. Espero que n�o. Mas n�o sei.
Ficaram sentados em sil�ncio. Bree conversava com um policial, balan�ando a
cabe�a, gesticulando. Mais adiante, a porta girava e girava, piscando luz e sombras,
cuspindo estranhos para dentro ou para fora, um a um, e de repente l� estava David,
caminhando pelo piso de m�rmore, com os sapatos pretos rangendo e uma express�o
s�ria e impass�vel, indecifr�vel. Norah ficou tensa e sentiu Paul retesar-se a seu
lado. Para seu espanto, David dirigiu-se diretamente ao filho e o agarrou num abra�o
vigoroso, mudo.
- Voc� est� a salvo. Gra�as a Deus - disse.
Norah respirou fundo, grata por esse momento. Um policial de cabelo branco �
escovinha e olhos de um azul surpreendente atravessou a sala, com uma prancheta
embaixo do bra�o. Apertou a m�o de Norah, a de David. Depois, virou-se para Paul.
- O que eu gostaria de fazer era deix�-lo em cana - disse, em tom coloquial. - Um
garoto metido a espertinho como voc�. N�o sei quantos j� vi ao longo dos anos,
garotos que se acham muito dur�es, garotos cuja cara � livrada uma vez atr�s da
outra, at� que acabam se metendo numa encrenca de verdade. A� passam um bom
tempo na cadeia e descobrem que n�o t�m nada de dur�es. � uma pena. Mas parece
que os seus vizinhos acham que est�o lhe fazendo um favor e n�o querem prestar
queixa sobre o carro. Portanto, como n�o posso prend�-lo, estou liberando voc� sob
a guarda de seus pais.
Paul fez que sim com a cabe�a. Tinha as m�os tr�mulas; enfiou-as nos bolsos. Todos
viram o policial arrancar um papel de sua prancheta, entreg�-lo a David e voltar
lentamente para o balc�o.
- Telefonei para os Boland - explicou David, dobrando o papel e guardando-o no
bolso do palet�. - Eles foram razo�veis. Isso podia ter sido muito pior, Paul. Mas n�o
pense que voc� n�o vai pagar cada centavo do que custar o conserto do carro. E n�o
pense que a sua vida ser� muito feliz por um bom tempo. Nada de amigos. Nada de
vida social.
Paul balan�ou a cabe�a, engolindo em seco.
- Tenho que ensaiar - disse. - N�o posso abandonar o quarteto.
- N�o - retrucou David. - O que voc� n�o pode � roubar o carro dos vizinhos e
esperar que a sua vida continue a mesma.
Norah sentiu a tens�o do filho a seu lado, sua raiva. Deixe para l�, descobriu-se
pensando, ao ver o m�sculo pulsar no maxilar de David. Deixem isso para l�, voc�s
dois. J� chega.
- �timo - fez Paul. - Nesse caso, n�o vou para casa. Prefiro ir para a cadeia.
- Bem, eu posso providenciar isso, com certeza - respondeu David, num tom
perigosamente frio.
- V� em frente. Providencie. Porque eu sou m�sico. E sou bom. E prefiro dormir
na rua a desistir disso. Droga, eu prefiro morrer.
Houve um momento, uma pulsa��o. Quando David n�o respondeu, os olhos de
Paul se espremeram.
- Minha irm� n�o sabe a sorte que teve - provocou.
Norah, que at� ent�o estivera muito quieta, sentiu as palavras como lascas de gelo,
uma dor aguda, viva, lancinante. Antes que soubesse o que estava fazendo, esbofeteou
o filho no rosto. Sentiu na palma da m�o a aspereza da barba crescida de Paul
- ele era um homem, j� n�o era um menino, e ela havia batido com for�a. O rapaz
se virou, chocado, com a marca vermelha j� lhe aparecendo na pele.
- Paul - disse David -, n�o torne as coisas piores do que j� est�o. N�o diga coisas
de que venha a se arrepender pelo resto da vida.
A m�o de Norah ainda ardia e o sangue lhe pulsava forte nas veias.
- N�s vamos para casa - disse ela. - Vamos resolver isso em casa.
- N�o sei. Talvez uma noite na delegacia fizesse bem a ele - replicou David.
- J� perdi uma filha - disse Norah, virando-se para o marido. - N�o vou perder
outro filho.
Nesse momento foi David quem ficou perplexo, como se ela tamb�m o tivesse
esbofeteado. O ventilador de teto clicava e a porta girat�ria rodopiava em movimentos
mon�tonos.
- Est� certo - concordou ele. - Talvez isso esteja certo. Talvez voc� tenha raz�o em
n�o prestar a menor aten��o em mim. Deus sabe o quanto lamento as coisas que fiz,
falhando com voc�s dois.
- David - chamou Norah quando ele se virou, mas o marido n�o respondeu. Ela
o viu atravessar a sala e cruzar a porta girat�ria. L� fora, ficou vis�vel por um instante,
um homem de meia-idade com um palet� escuro, parte da multid�o, e depois
sumiu. O ventilador de teto continuou a estalar, em meio ao cheiro de corpos suados,
batatas fritas e desinfetante.
- Eu n�o queria... - come�ou Paul.
Norah ergueu a m�o.
- N�o. Por favor. N�o diga nem mais uma palavra.
Foi Bree, calma e eficiente, quem os levou para o carro. Abriram as janelas, por
causa do mau cheiro de Paul, e Bree dirigiu, com os dedos finos firmemente plantados
no volante. Norah, pensativa, prestou pouca aten��o, e quase meia hora se passou
at� perceber que j� n�o estavam na rodovia interestadual, por�m indo mais
devagar por estradas vicinais, cruzando a v�vida zona rural primaveril. Campinas
que mal haviam come�ado a verdejar e galhos cheios de novos rebentos passavam
c�leres pelas janelas.
- Para onde voc� est� indo? - perguntou Norah.
- Para uma aventurazinha. Voc� vai ver - disse Bree.
Norah n�o queria olhar para as m�os da irm�, t�o ossudas e com as veias azuis
vis�veis. Olhou para Paul pelo espelho retrovisor. L� estava ele, p�lido e taciturno, de
bra�os cruzados, esparramado no banco, claramente furioso, claramente sofrendo.
Ela agira mal ao agredir David daquele jeito, ao esbofetear Paul; s� fizera piorar a
situa��o. Os olhos enraivecidos do filho cruzaram com os dela no espelho, e Norah
se lembrou de sua m�ozinha rechonchuda de beb� a lhe apertar a bochecha, de seu
riso alegre pelos c�modos da casa. Era completamente diferente aquele menino.
Para onde teria ido?
- Que tipo de aventura? - indagou Paul.
- Bem, na verdade, estou tentando encontrar a Abadia de Gets�mani.
- Para qu�? - perguntou Norah. - � perto daqui?
Bree confirmou com um gesto.
- Dizem que sim. Sempre tive vontade de v�-la e, no caminho, percebi que est�vamos
muito perto. E a� pensei: por que n�o? Est� um dia muito bonito.
Bonito mesmo: c�u de um azul l�mpido, mais claro na linha do horizonte, �rvores
coloridas e cheias de vida, farfalhando na brisa. Seguiram mais 10 minutos pelas
estradinhas, e ent�o Bree parou o carro no acostamento e come�ou a procurar alguma
coisa embaixo do banco.
- Acho que eu n�o trouxe um mapa - comentou, reerguendo o corpo.
- Voc� nunca anda com mapas - ratificou Norah, percebendo nesse momento
que isso se aplicara a Bree durante a vida inteira. No entanto, n�o parecia ter import�ncia.
Ela e David tinham come�ado com toda sorte de mapas e olhe s� onde haviam
chegado.
Bree tinha parado perto de duas casas de fazenda, modestas e brancas, com as
portas trancadas e ningu�m � vista, e os celeiros de tabaco, prateados pelo tempo,
escancaravam-se nas colinas distantes. Era �poca de plantio. Ao longe ouviam-se
tratores a se arrastar pelos campos rec�m-arados, e atr�s deles iam pessoas que se
abaixavam para plantar as mudas verde-claras de tabaco na terra preta. Mais adiante,
na estrada, no outro extremo da campina, havia uma igrejinha branca � sombra
de velhos sic�moros, cercada por uma fileira de amores-perfeitos arroxeados. Ao
lado da igreja havia um cemit�rio cujas velhas l�pides se inclinavam atr�s de uma
cerca de ferro batido. Era t�o parecido com o lugar em que sua filha fora sepultada
que Norah prendeu a respira��o, relembrando aquele dia remoto de mar�o, com a
relva �mida sob os p�s, as nuvens baixas e pesadas, e David a seu lado, calado e distante.
Das cinzas �s cinzas, do p� ao p�, e o mundo que eles conheciam havia desaparecido
sob seus p�s.
- Vamos at� a igreja - disse. - Pode ser que algu�m l� saiba onde �.
Desceram a estrada e ela e Bree saltaram do carro junto � igreja, sentindo-se urbanas
e deslocadas com suas roupas de trabalho. Era um dia muito parado, quase
quente, e a luz do sol brilhava intermitente por entre a folhagem. A grama sob os
sapatos amarelos de Bree era verde-escura e vi�osa. Norah p�s a m�o no bra�o fino
da irm�, sentindo o linho amarelo macio e fresco.
- Voc� vai estragar os sapatos - comentou.
Bree olhou para baixo, assentiu com a cabe�a e tirou-os.
- Vou perguntar no presbit�rio - disse. - A porta da frente est� aberta.
- V�. N�s esperamos aqui - fez Norah.
Bree se abaixou para pegar os sapatos e seguiu pelo gramado verde-vivo, com algo
de pueril e vulner�vel nas pernas alvas e nos p�s cobertos pelas meias de nylon. Os sapatos
amarelos balan�avam numa de suas m�os. S�bito, Norah lembrou-se dela correndo
num campo atr�s da casa em que haviam morado na inf�ncia, do riso flutuando
no ar ensolarado. Fique boa, pensou, observando-a. Ah, minha irm�, fique boa.
- Vou dar uma volta - disse a Paul, que continuava desabado no banco de tr�s.
Deixou-o l� e seguiu a trilha de cascalho at� o cemit�rio. O port�o de ferro se abriu
sem dificuldade e Norah perambulou entre as l�pides cinzentas e desgastadas. Havia
muito tempo que n�o ia � sepultura na fazenda de Bentley. Virou-se para tr�s e
olhou para Paul. Ele estava saindo do carro, espregui�ando-se, com os olhos mascarados
pelos �culos escuros.
A porta da igreja era vermelha. Abriu-se silenciosamente quando Norah a tocou.
O templo era sombrio e fresco, e os vitrais iluminavam-se com imagens de santos e
cenas b�blicas, pombos e fogo. Norah pensou no quarto de Sam, na balb�rdia de
cores que havia l�, e em como a cena de agora parecia tranq�ila, em contraste, com
suas cores est�veis e fixas descendo pelo ar. Havia um livro de visitas aberto e Norah
o assinou com sua letra fluente, lembrando-se da ex-freira que lhe ensinara a escrita
cursiva. Talvez tenha sido o simples sil�ncio que a fez dar alguns passos pela nave
central deserta: o sil�ncio e aquela sensa��o de paz e vazio, o modo como a luz incidia
pelas janelas de vitrais, o ar poeirento. Norah caminhou por essa luz: vermelho,
azul-escuro, dourado.
Os bancos cheiravam a polidor de m�veis. Norah sentou-se num deles. Havia almofadas
de veludo azul para ajoelhar, meio empoeiradas. Ela pensou no velho sof� de
Bree e, de repente, veio-lhe a lembran�a das mulheres de seu antigo c�rculo noturno,
as mulheres que tinham ido a sua casa levar presentes para Paul. Lembrou-se de um
dia t�-las ajudado a limpar a igreja e de como haviam polido os bancos, sentando-se
nos trapos e deslizando de traseiro pelas t�buas longas e lisas. Assim faz mais peso, elas
haviam brincado, enchendo o templo de riso. Em sua tristeza, Norah se afastara delas
e nunca mais tinha voltado, mas nesse momento lhe ocorreu que elas tamb�m haviam
sofrido, perdido entes queridos, vivenciado doen�as, sentido que haviam falhado com
elas mesmas e com outras pessoas. Norah n�o quisera ser uma delas nem aceitar seu
consolo; por isso havia se afastado. Ao recordar, seus olhos se encheram de l�grimas.
Ora, que bobagem, fazia quase duas d�cadas que sua perda havia acontecido. � claro
que essa tristeza n�o devia estar aflorando, fresca como �gua da fonte.
Aquilo era loucura. Ela estava em prantos. Tinha corrido muito, e muito depressa,
para evitar esse momento, e no entanto ele continuava a acontecer: havia uma
estranha dormindo no sof�-cama, sonhando, carregando uma misteriosa vida nova
em seu ventre, como um segredo, e David dava de ombros e virava as costas. Ela
sabia que voltaria para casa e descobriria que ele tinha ido embora, talvez carregando
uma mala, nada mais. Chorou ao saber disso e chorou por Paul, pela raiva e pelo
ar perdido que ele estampava nos olhos. Pela filha que jamais conhecera. Pelas m�os
finas de Bree. Pelas mil maneiras como o amor falhara a todos eles, e eles ao amor.
O luto parecia ser um lugar f�sico. Norah chorou, inconsciente de qualquer outra
coisa sen�o uma esp�cie de al�vio cuja lembran�a guardava da inf�ncia; solu�ou at�
ficar dolorida, sem f�lego, acabada.
Havia p�ssaros, pardais, aninhados nos caibros abertos do telhado. Ao voltar a si,
pouco a pouco, Norah se deu conta dos sons suaves que eles emitiam, do bater das
asas. Estava ajoelhada, com os bra�os apoiados no encosto do banco � sua frente. A
luz continuava a descer pelos vitrais em feixes angulosos, juntando-se em po�as no
ch�o. Sem jeito, ela se sentou e enxugou as l�grimas do rosto. Algumas penas cinzentas
estavam ca�das nos degraus de pedra do altar. Ao erguer os olhos, Norah avistou
um pardal que adejava de leve no alto, uma sombra em meio �s sombras maiores.
Ao longo dos anos, muitas outras pessoas teriam sentado ali, com seus segredos e
seus sonhos, sua luz e suas trevas. Ela se perguntou se a insana tristeza delas, como
a sua, teria diminu�do. N�o fazia o menor sentido que esse lugar lhe houvesse trazido
tamanha paz, mas trouxera.
Quando Norah saiu da igreja, piscando os olhos sob a luz do sol, Paul estava sentado
numa pedra em frente ao port�o de ferro batido.
Ao longe, Bree caminhava pela grama, balan�ando os sapatos.
Paul fez sinal com a cabe�a para as l�pides dispersas do cemit�rio.
- Desculpe o que eu disse. N�o falei s�rio. Estava tentando deixar o papai com
raiva, para que eu pudesse sentir raiva tamb�m.
- Nunca mais diga aquilo. Que a sua vida n�o vale a pena. Nunca, nunca mais me
fa�a ouvir isso de novo. Nem pense nisso.
- N�o vou dizer. Sinto muito mesmo.
- Eu sei que voc� est� aborrecido - disse Norah. - Tem o direito de levar a vida
que quiser levar. Mas seu pai tamb�m tem raz�o. Haver� algumas condi��es. Se voc�
as desrespeitar, ficar� por sua pr�pria conta.
Disse tudo isso sem olhar para o filho e, quando se virou, levou um susto ao ver
o rosto dele fechado, as l�grimas rolando. Ah, o menino que ele tinha sido n�o esta
va t�o longe, afinal. Norah o abra�ou da melhor maneira que p�de. Paul era muito
alto; a cabe�a dela mal atingia seu peito.
- Escute, eu amo voc� - disse, encostada na camisa malcheirosa. - Fico muito
contente por voc� ter voltado. E voc� est� realmente, realmente fedendo - acrescentou,
rindo, e Paul tamb�m riu.
Norah protegeu os olhos da luz e avistou Bree vindo pelo campo, j� mais perto.
- N�o � longe daqui - ela gritou de l�. - Um pouquinho adiante na estrada. Ela
disse que n�o temos como errar.
Os tr�s tornaram a entrar no carro e percorreram mais um trecho da estrada
estreita, pelas colinas ondulantes. Poucos quil�metros � frente, come�aram a vislumbrar
os pr�dios brancos por entre os ciprestes. E ent�o, subitamente, revelou-se
a Abadia de Gets�mani, magn�fica, n�tida e simples contra a paisagem ondulada e
verdejante. Bree parou no estacionamento, sob uma fileira de �rvores. Quando eles
iam descendo do carro, os sinos come�aram a repicar, chamando os monges para a
ora��o. Os tr�s pararam para ouvir, enquanto o som l�mpido esmaecia no ar cristalino,
o gado pastava a meia dist�ncia e as nuvens flutuavam ociosas no c�u.
- � lindo - comentou Bree. - Thomas Merton morou aqui, voc�s sabiam? Ele foi
ao Tibete conhecer o Dalai-Lama. Adoro imaginar aquele momento. Adoro imaginar
todos os monges l� dentro fazendo as mesmas coisas, dia ap�s dia.
Paul havia tirado os �culos escuros. Seus olhos estavam l�mpidos. Ele enfiou a
m�o no bolso e espalhou algumas pedrinhas sobre o cap� do carro.
- Lembra disso? - perguntou, quando Norah pegou uma das pedras, apalpando
o disco branco e liso, com um furo no meio. - Crin�ides. De l�rios-do-mar. Papai
me ensinou sobre eles naquele dia em que quebrei o bra�o. Dei uma volta enquanto
voc� estava na igreja. H� uma por��o deles por aqui.
- Eu tinha esquecido - disse Norah devagar, mas ent�o a cena precipitou-se em
sua mem�ria: o colar que Paul fizera e o medo que ela havia sentido de que ele se
enroscasse em seu pesco�o e o sufocasse. O som dos sinos desfez-se no ar. Do tamanho
de um bot�o de camisa, o f�ssil era leve e morno na palma de sua m�o. Norah
lembrou-se de David levantando Paul e levando-o da festa, depois engessando seu
bra�o quebrado. Com que empenho David trabalhara para tornar as coisas boas
para todos eles, para consertar tudo! De algum modo, por�m, sempre fora muito
dif�cil para todos, como se eles nadassem nas �guas rasas do mar que um dia havia
coberto toda essa terra.
1988
]ULHO DE 1988
I
DAVID HENRY ESTAVA SENTADO EM SEU ESCRIT�RIO DE CASA. NO SEGUNDO
andar. Pela janela, ligeiramente empenada e coberta por uma pel�cula
deixada por anos de intemp�ries, a vista da rua oscilava, ondulante e meio distorcida.
Ele viu um esquilo pegar uma noz e subir correndo o sic�moro cujas folhas
encostavam na janela. Rosemary estava ajoelhada junto � varanda, com o cabelo
comprido balan�ando, inclinada para plantar bulbos e plantas sazonais nos canteiros
que tinha feito. Ela havia transformado os jardins, trazendo l�rios dos jardins de
amigos e plantando Unheiros perto da garagem, onde haviam florescido numa profus�o
de azul-claro que lembrava uma n�voa. Jack estava sentado perto dela, brincando
com um caminh�o basculante. Era um menino parrudo, agora com cinco
anos, alegre e bem-humorado, de olhos castanho-escuros e vest�gios de vermelho
nos cabelos louros. Tinha um tra�o de teimosia. Nas noites em que David cuidava
dele, enquanto Rosemary sa�a para trabalhar, Jack insistia em fazer tudo sozinho.
Sou um menino grande, anunciava v�rias vezes por dia, orgulhoso e cheio de si.
David o deixava fazer o que queria, dentro dos limites da seguran�a e da raz�o. A
verdade � que adorava cuidar do garoto. Adorava ler hist�rias para Jack, sentindo o
peso e o calor dele em seu colo, a cabecinha caindo em seu ombro quando ele
come�ava a pegar no sono. Adorava segurar-lhe a m�ozinha confiante quando os
dois andavam pela cal�ada at� o armaz�m. Era doloroso para David que suas lembran�as
de Paul nessa idade fossem muito esparsas, muito fugazes. Na �poca, ele
estava procurando firmar-se na carreira, � claro, atarefado com sua cl�nica - e tamb�m
com a fotografia. Na verdade, por�m, a culpa � que o mantivera distante. Agora,
os padr�es de sua vida estavam dolorosamente claros. Havia entregado a filha a
Caroline Gill e o segredo criara ra�zes; tinha crescido e desabrochado bem no centro
de sua fam�lia. Durante anos, ele tinha voltado para casa, observado Norah preparando
coquet�is, ou amarrando o avental, e pensado no quanto ela era encantadora
e em qu�o pouco a conhecia.
David nunca havia conseguido dizer-lhe a verdade, sabendo que a perderia por
completo - e talvez a Paul tamb�m - se o fizesse. Assim, tinha se dedicado ao trabalho
e, nas �reas da vida que lhe era poss�vel controlar, fora muito bem-sucedido.
Infelizmente, por�m, daqueles anos da inf�ncia de Paul lembrava-se apenas de
alguns momentos breves e isolados, com a nitidez de fotografias: Paul dormindo no
sof�, com uma das m�os pendurada e o cabelo preto desgrenhado. Paul em p� na
beira da �gua, gritando de medo e alegria quando as ondas rolavam em torno de
seus joelhos. Paul sentado � mesinha da sala de recrea��o, colorindo a s�rio, t�o
absorto em sua tarefa que n�o notava o pai no v�o da porta a observ�-lo. Paul jogando
o anzol nas �guas paradas e permanecendo im�vel, quase sem respirar, enquanto
os dois aguardavam ao cair da noite que um peixe mordesse a isca.
Lembran�as curtas, de uma beleza quase insuport�vel. E depois tinham vindo os
anos da adolesc�ncia, nos quais Paul havia percorrido uma dist�ncia ainda maior do
que Norah, abalando a casa com sua m�sica e sua raiva.
David tamborilou na janela e acenou para Jack e Rosemary. Havia comprado essa
resid�ncia geminada com muita pressa, vendo-a apenas uma vez e voltando a sua
casa para fazer as malas enquanto Norah estava no trabalho. Era uma resid�ncia
antiga de dois andares, dividida quase exatamente ao meio, com divis�rias finas separando
o que tinham sido c�modos espa�osos; at� a escadaria, antes larga e elegante,
fora cortada em duas. David havia ocupado o apartamento maior e entregado
a Rosemary a chave do outro; havia seis anos que moravam lado a lado, separados
por paredes finas, mas encontrando-se todos os dias. Em diferentes ocasi�es,
Rosemary havia tentado pagar-lhe um aluguel, mas David recusara, dizendo-lhe que
voltasse para a escola e se formasse; mais tarde ela poderia pagar-lhe. Ele sabia que
seus motivos n�o eram inteiramente altru�stas, mas n�o conseguia explicar nem a si
mesmo por que a mo�a lhe era t�o importante. Eu ocupo aquele lugar deixado pela
filha que voc� deu, dissera Rosemary uma vez. David tinha concordado, achando que
o assunto estava encerrado, mas tamb�m n�o era isso, n�o exatamente. Era mais
pelo fato de Rosemary conhecer seu segredo, ele suspeitava. David tinha despejado
sua hist�ria nela num rompante, na primeira e �nica vez que a havia contado a
algu�m, e ela o escutara sem julg�-lo. Havia uma certa liberdade nisso; David podia
ser completamente verdadeiro com Rosemary, que escutara o que ele tinha feito sem
rejeit�-lo e sem contar a ningu�m. Estranhamente, no correr dos anos, Rosemary e
Paul tinham feito amizade, a princ�pio meio a contragosto, depois com uma esp�cie
de discuss�o constante e s�ria sobre os assuntos que interessavam aos dois - pol�tica,
m�sica e justi�a social -, discuss�es que come�avam no jantar, nas raras visitas
de Paul, e se estendiam pela madrugada.
�s vezes David suspeitava que esse era o jeito de Paul manter dist�ncia dele, um
jeito de estar em sua casa sem ter que falar de nada que fosse profundamente pessoal.
De quando em quando, David insinuava um assunto, mas Paul sempre escolhia
esse momento para ir embora, empurrando a cadeira para tr�s e bocejando, subitamente
cansado.
Rosemary olhou para cima, afastando com o pulso uma mecha de cabelo ca�da no
rosto, e acenou de volta. David guardou suas pastas de arquivo e desceu o corredor
estreito. No caminho, passou pela porta que dava para o quarto de Jack. Deveriam t�la
lacrado quando a casa fora convertida numa resid�ncia geminada, mas uma noite,
por impulso, David tinha experimentado a ma�aneta e descoberto que isso n�o fora
feito. Nesse momento, abriu a porta de mansinho. Rosemary tinha pintado o quarto
de Jack de azul-claro, e a cama e o roupeiro, achados abandonados junto ao meio-fio,
de um branco puro. Toda uma s�rie de Scherenschnitte - intricados recortes de papel
mostrando m�es e filhos, crian�as brincando sob �rvores frondosas, delicados e
cheios de movimento - fora montada contra um fundo azul-marinho, emoldurada
e pendurada na parede oposta. Rosemary havia exibido essas pe�as numa exposi��o
de arte, um ano antes, e, para sua surpresa, haviam come�ado a chegar encomendas,
uma atr�s da outra. � noite era comum ela se sentar � mesa da cozinha, sob uma luz
forte, recortando cena ap�s cena, todas diferentes entre si. Ela n�o podia prometer �s
pessoas o que faria; recusava-se a ficar presa a qualquer conjunto de imagens. � que
a imagem j� estava l�, explicava, escondida no papel e nos movimentos de suas m�os,
e nunca podia ser a mesma duas vezes.
David parou, ouvindo os sons da casa: um leve gotejar de �gua e o zumbido da
geladeira velha. O cheiro de perfume e talco infantil era forte; havia uma camisola
ca�da sobre a cadeira do canto. Ele aspirou o aroma da mo�a e de Jack, depois fechou
a porta com firmeza e continuou a andar pelo corredor. Nunca havia falado com
Rosemary sobre a porta destrancada, mas tamb�m nunca a tinha cruzado. Para ele,
era um ponto de honra, apesar do esc�ndalo, nunca ter tirado proveito da mo�a,
nunca ter invadido sua vida pessoal.
Mesmo assim, gostava de saber que a porta existia.
Havia mais trabalho burocr�tico para fazer, mas David desceu. Seus t�nis de cor
rida estavam na varanda dos fundos. Cal�ou-os, amarrando os cadar�os sem apertar,
e deu a volta at� a frente. Jack estava parado junto � treli�a, arrancando bot�es
de rosa. David agachou-se a seu lado e o puxou para perto, sentindo seu peso delicado
e sua respira��o compassada. Jack tinha nascido em setembro, num fim de
tarde, quando a noite come�ava a cair. David levara Rosemary para o hospital e se
sentara com ela durante as primeiras seis horas do trabalho de parto, jogando xadrez
e lhe dando gelo picado. Ao contr�rio de Norah, Rosemary n�o tinha o menor interesse
num parto natural; assim que foi poss�vel, tomou uma anestesia epidural e,
quando o trabalho de parto ficou mais lento, tomou Pitocin para acelerar o processo.
David segurou-lhe a m�o quando as contra��es ficaram mais fortes, por�m,
quando ela foi levada para a sala de parto, deixou-se ficar para tr�s. Aquilo era muito
particular, n�o era o lugar dele. Apesar disso, depois de Rosemary ele fora o primeiro
a segurar Jack, e passara a amar o menino como se fosse seu filho.
- Voc� t� com um cheiro engra�ado - disse Jack, empurrando o peito de David.
- � a minha camisa velha e fedida - respondeu David.
- Vai correr? - perguntou Rosemary. Agachou-se sobre os calcanhares, sacudindo
a terra das m�os. Andava magra ultimamente, quase ossuda, e David se preocupava
com o ritmo que ela mantinha, com o esfor�o que se impunha na escola e no trabalho.
Ela secou o suor da testa com o pulso e deixou um risco de terra.
- Vou. N�o ag�ento mais olhar para aquelas ap�lices de seguro nem por um minuto.
- Pensei que voc� tivesse contratado algu�m.
- Contratei. Acho que ela ser� �til, mas s� pode come�ar na semana que vem.
Rosemary balan�ou a cabe�a, pensativa. Ela era jovem, tinha apenas 22 anos,
mas era resoluta e objetiva, e se portava com a seguran�a de uma mulher muito
mais velha.
- Tem aula hoje � noite? - indagou David, e ela fez que sim.
- A �ltima de todas. Dia 12 de julho.
- � mesmo. Eu tinha esquecido.
- Voc� anda ocupado.
David concordou, com um vago sentimento de culpa, perturbado pela data. Doze
de julho; era dif�cil entender como o tempo havia passado t�o depressa. Rosemary
tinha voltado para a escola depois de Jack nascer, no mesmo janeiro cinzento em que
David abandonara sua cl�nica anterior porque um homem que tinha sido seu
paciente durante 20 anos fora mandado embora por n�o ter seguro de sa�de. David
tinha iniciado sua pr�pria cl�nica e atendia qualquer um que aparecesse, com ou
sem seguro. J� n�o trabalhava pelo dinheiro. Paul havia terminado a faculdade e
fazia muito tempo que suas pr�prias d�vidas estavam pagas; ele podia fazer o que
quisesse. Nos �ltimos tempos, como os m�dicos de antigamente, �s vezes era pago
com frutas e legumes, ou com trabalhos no jardim, ou o que quer que as pessoas
pudessem oferecer. Imaginava continuar assim por mais uns 10 anos, atendendo
pacientes todos os dias, mas reduzindo o hor�rio aos poucos, at� que os par�metros
de sua vida f�sica n�o ultrapassassem o tamanho dessa casa e desse jardim e de suas
idas � mercearia e � barbearia. Norah talvez ainda continuasse a viajar pelo globo
feito uma lib�lula, mas aquela vida n�o era para ele. David estava criando ra�zes, e
elas vinham se aprofundando.
- Hoje tenho prova final de qu�mica - disse Rosemary, tirando as luvas - e,
depois, viva!, acabou-se.
As abelhas zumbiam em torno das madressilvas.
- H� uma coisa que preciso lhe dizer - ela continuou, puxando o short para baixo
e sentando ao lado de David nos degraus quentes de concreto.
- Parece s�rio.
Ela acenou com a cabe�a.
- E �. Ontem me ofereceram um emprego. Um bom emprego.
- Aqui?
Rosemary abanou a cabe�a, sorrindo e dando adeusinho para Jack, que tentava
saltar fazendo uma estrela e aterrissou esparramado na grama.
- A� � que est�. Fica em Harrisburg.
- Perto de sua m�e - comentou David, com o cora��o pesado. Sabia que ela vinha
procurando emprego e tinha esperado que ficasse por ali. Mas a mudan�a sempre
fora uma possibilidade muito real. Dois anos antes, depois da morte repentina do
pai, Rosemary tinha se reconciliado com a m�e e a irm� mais velha, e as duas estavam
ansiosas para que ela voltasse e criasse Jack perto delas.
- Isso mesmo. � o emprego perfeito para mim: quatro jornadas de 10 horas por
semana. E eles tamb�m pagar�o para eu freq�entar a faculdade. Posso trabalhar para
conseguir meu diploma de fisioterapia. Mas, acima de tudo, eu teria mais tempo
para passar com o Jack.
- E mais ajuda - disse David. - Sua m�e ajudaria. E sua irm�.
- �. Isso seria bom mesmo. E, por mais que eu goste do Kentucky, nunca foi um
lar para mim, n�o de verdade.
David balan�ou a cabe�a, contente por ela, mas n�o confiando em sua capacidade
de falar. Algumas vezes havia imaginado, em tese, a possibilidade de ter a casa toda
para si: as paredes que poderiam ser derrubadas, o espa�o que se abriria, a casa re
convertendo-se lentamente na elegante resid�ncia familiar que um dia tinha sido.
Mas todas as suas conjecturas haviam sido deixadas de lado em troca do prazer de
ouvir os passos e os movimentos delicados dela na porta ao lado, de acordar de madrugada
com o choro distante de Jack.
Havia l�grimas em seus olhos, e ele riu.
- Bem - disse, tirando os �culos acho que isso estava fadado a acontecer. Meus
parab�ns, � claro.
- N�s viremos visit�-lo. Voc� nos visitar�.
- Isso mesmo. Tenho certeza de que nos veremos muito.
- �, sim - ela confirmou. P�s a m�o no joelho de David. - Olhe, eu sei que nunca
falamos disso. Nem sei como tocar no assunto, na verdade. Mas o que isso significou
para mim... o modo como voc� me ajudou... eu sou muito grata. Serei grata para
sempre.
- J� fui acusado de me empenhar demais em salvar as pessoas - disse David.
Ela abanou a cabe�a:
- Voc� salvou minha vida, em muitos sentidos.
- Bem, se isso � verdade, fico contente. Deus sabe que fiz muitos estragos noutro
lugar. Parece que nunca pude fazer muito bem � Norah.
Houve um sil�ncio entre eles e o zumbir distante de um cortador de grama.
- Voc� tem que contar a ela - disse Rosemary, baixinho. - E ao Paul tamb�m. Voc�
devia, mesmo.
Agora Jack estava agachado na al�ia, fazendo montinhos de cascalho, deixando as
pedrinhas se escoarem e cascatearem de seus dedos.
- N�o � meu papel dizer nada, eu sei disso - continuou Rosemary. - Mas a Norah
precisa saber da Phoebe. N�o est� certo ela n�o saber. Tamb�m n�o est� certo o que
ela foi obrigada a pensar de n�s dois esse tempo todo.
- Eu disse a verdade a ela. Que n�s somos amigos.
- �. E somos. Mas como � que ela poderia acreditar?
David deu de ombros.
- � a verdade.
- N�o � a verdade toda. David, de um jeito esquisito, n�s estamos ligados, voc� e
eu, por causa da Phoebe. Porque eu conhe�o esse segredo. O neg�cio � que eu gostava
disso: de me sentir especial por saber uma coisa que ningu�m mais sabia. Saber
um segredo � uma esp�cie de poder, n�o �? Mas, ultimamente, n�o gosto tanto de
saber disso. N�o � realmente a mim que cabe saber, n�o �?
- N�o - fez David. Pegou um grumo de terra e o esmagou entre os dedos. Pensou
nas cartas de Caroline, que havia queimado cuidadosamente ao se mudar para essa
casa. - Acho que n�o.
- Pois �. Entende? Voc� vai? Quero dizer, vai contar a ela?
- N�o sei, Rosemary. N�o posso prometer.
Sentaram-se calados ao sol por alguns minutos, vendo Jack tentar novamente
fazer estrelas na grama. Ele era um lourinho �gil, naturalmente atl�tico, que gostava
de correr e trepar em �rvores. David tinha voltado da Virg�nia Ocidental livre do
luto e da tristeza que mantivera isolados durante todos aqueles anos. Quando da
morte de June, n�o tivera como dar voz ao que se havia perdido, n�o tivera realmente
nenhum meio de seguir em frente. Chegava a ser indecoroso falar dos mortos
naqueles tempos, de modo que eles n�o falavam. E tinham deixado todo aquele
luto inacabado. De algum modo, voltar l� permitira a David resolver esse assunto.
Ele retornara a Lexington exaurido, � verdade, mas tamb�m calmo e seguro. Depois
de tantos anos, finalmente havia encontrado for�as para dar a Norah a liberdade de
refazer sua vida.
No nascimento de Jack, David tinha aberto uma conta para ele no nome de Rosemary,
assim como uma para Phoebe, no nome de Caroline. Tinha sido bem simples:
ele havia guardado o n�mero de Caroline na previd�ncia social e tamb�m dispunha
de seu endere�o. Um investigador particular levara menos de uma semana
para encontrar Caroline e Phoebe morando em Pittsburgh, numa casa alta e estreita
perto da via expressa. David tinha ido at� l� e estacionado o carro na rua, com a
inten��o de subir a escada e bater na porta. O que queria era contar a Norah o que
havia acontecido, e n�o poderia faz�-lo sem lhe dizer onde estava Phoebe. Norah
quereria ver a filha, ele tinha certeza, de modo que n�o era apenas a sua vida que poderia
mudar. Ele tinha ido a Pittsburgh para dizer a Caroline o que esperava fazer.
Seria a coisa certa? Ele n�o sabia. Ficou sentado no carro. Anoitecia, e os far�is
lan�avam clar�es nas folhas dos sic�moros. Phoebe havia crescido ali, naquela rua
conhecida que ela tomava por uma realidade comum, naquela cal�ada levantada
pelas ra�zes de uma �rvore, com a placa de advert�ncia balan�ando de leve ao vento,
com a correria do tr�nsito - tudo aquilo seriam emblemas de casa para sua filha.
Passou um casal empurrando um carrinho de beb�, depois uma luz se acendeu na
sala da casa de Caroline. David desceu do carro e ficou parado no ponto de �nibus,
tentando n�o chamar aten��o, apesar de estar olhando para a janela diante do gra
mado ensombrecido. L� dentro, movendo-se no quadrado de luz, Caroline ajeitava
a sala, recolhendo jornais e dobrando um cobertor. Estava de avental. Seus movimentos
eram desenvoltos e objetivos. Ela parou, espregui�ou-se, olhou por cima do
ombro e disse alguma coisa.
E ent�o David a viu: Phoebe, sua filha. Estava na sala de jantar, pondo a mesa.
Tinha o cabelo preto de Paul e o mesmo perfil, e, por um instante, at� ela se virar
para apanhar o saleiro, David teve a sensa��o de estar observando o filho. Deu
alguns passos � frente e Phoebe sumiu de seu campo visual, depois reapareceu com
tr�s pratos. Era baixa e atarracada, e tinha o cabelo fino, fixado com prendedores.
Usava �culos. Mesmo assim, a semelhan�a ainda era vis�vel para David: l� estavam
o sorriso de Paul, seu nariz, sua express�o de concentra��o no rosto de Phoebe,
quando ela p�s as m�os nas cadeiras e examinou a mesa. Caroline entrou na sala e
parou a seu lado, depois passou o bra�o em volta dela, num abra�o r�pido e afetuoso,
e as duas riram.
J� ent�o havia escurecido por completo. David ficou im�vel, feliz por haver pouco
tr�nsito de pedestres. As folhas eram arrastadas pelo vento na cal�ada e ele fechou
mais o palet�. Lembrou-se de como se sentira na noite do parto, como se estivesse
fora de sua pr�pria vida e observasse seus movimentos nela. Nesse momento, compreendeu
que n�o controlava a situa��o atual, que estava t�o completamente exclu�do
dela quanto se n�o existisse. Phoebe lhe fora invis�vel durante todos aqueles anos:
uma abstra��o, n�o uma menina. No entanto, ali estava, pondo copos de �gua na
mesa. Ela ergueu os olhos e um homem de cabelo preto e eri�ado entrou e disse alguma
coisa que a fez sorrir. Depois, os tr�s sentaram-se � mesa e come�aram a jantar.
David voltou para o carro. Imaginou Norah parada a seu lado no escuro, observando
a filha mover-se em sua vida, inconsciente da presen�a dos pais. Ele causara
dor a Norah; sua mentira a fizera sofrer de uma maneira que ele nunca havia imaginado
nem pretendido. Mas disso ele poderia poup�-la. Poderia afastar-se dali e
deixar o passado em paz. E foi o que acabou fazendo, dirigindo a noite inteira pelas
terras planas de Ohio.
- N�o entendo - dizia Rosemary, fitando-o. - Por que voc� n�o pode prometer?
� a coisa certa.
- Causaria sofrimento demais.
- Voc� n�o sabe o que vai acontecer enquanto n�o o fizer.
- Posso fazer uma id�ia muito boa.
- Mas, David, prometa que vai pensar nisso, sim?
- Penso nisso todo santo dia.
Rosemary abanou a cabe�a, confusa, depois deu um sorrisinho triste.
- Ent�o, est� bem. H� mais uma coisa.
- Ah, �?
- Stuart e eu vamos nos casar.
- Voc� � jovem demais para se casar - disse David na mesma hora, e os dois ca�ram
na risada.
- Sou velha como as montanhas. � assim que me sinto, metade do tempo.
- Bem, parab�ns de novo. N�o � surpresa, mas � uma boa not�cia, de qualquer jeito.
Pensou em Stuart Wells, alto e atl�tico. Fort�o, era essa a palavra que vinha � mente.
Era fisioterapeuta, especializado em pneumoterapia. Fazia anos que estava apaixonado
por Rosemary, mas ela o obrigara a esperar at� o t�rmino de seus estudos.
- Fico feliz por voc�, Rosemary - prosseguiu. - O Stuart � um bom rapaz. E adora
o Jack. Ele j� tem emprego em Harrisburg?
- Ainda n�o. Est� procurando. O contrato dele aqui termina este m�s.
- Como � o mercado de trabalho em Harrisburg?
- Mais ou menos. Mas n�o estou preocupada. Stuart � muito competente.
- Tenho certeza que sim.
- Voc� est� aborrecido.
- N�o. N�o, de jeito nenhum. Mas a sua not�cia me deixou triste. Eu me sinto
triste e velho.
Ela riu.
- Velho como as montanhas?
Foi a vez de David rir tamb�m.
- Ah, muito, muito mais velho.
Calaram-se por um momento.
- Aconteceu, s� isso - disse Rosemary. - Tudo se juntou na semana passada. Eu
n�o queria falar nada do emprego at� ter certeza. E a�, quando consegui o emprego,
Stuart e eu resolvemos casar. Sei que deve parecer repentino.
- Gosto do Stuart. Espero poder dar os parab�ns a ele tamb�m.
Rosemary sorriu.
- Na verdade, andei pensando se voc� me levaria ao altar.
David fitou-a nesse momento, a pele alva, a felicidade que ela j� n�o conseguia
conter transparecendo no sorriso.
- Seria uma honra para mim - disse em tom grave.
- Vai ser aqui mesmo. Uma coisa muito pequena, simples e particular. Daqui a
duas semanas.
- Voc� n�o perde tempo.
- Nem preciso pensar nisso. Sinto que est� tudo perfeitamente certo - disse
Rosemary. Olhou para o rel�gio e deu um suspiro. - � melhor eu ir andando. - E se
levantou, esfregando as m�os. - Vamos, Jack.
- Dou uma olhada nele enquanto voc� se arruma, se voc� quiser.
- Seria uma m�o na roda. Obrigada.
- Rosemary.
- Sim?
- Voc� me manda umas fotos, de vez em quando? Do Jack, � medida que ele for
crescendo? De voc�s dois, na casa nova?
- Com certeza. � claro - fez ela, cruzando os bra�os e chutando a borda do degrau.
- Obrigado - disse David, simplesmente, de novo perturbado pelo modo como
tinha conseguido perder sua pr�pria vida, absorto em suas lentes e seu luto. As pessoas
imaginavam que ele havia parado de fotografar por causa da mulher morena
de Pittsburgh e de sua cr�tica pouco elogiosa. Ele tinha ca�do em desgra�a, especulavam,
e perdera o �nimo. Ningu�m acreditaria que simplesmente deixara de se importar,
mas era verdade. David n�o havia pegado uma c�mera desde o dia em que
se postara na conflu�ncia daqueles dois rios. Tinha desistido da arte e do of�cio, da
tarefa complexa e estafante de tentar transformar o mundo noutra coisa, de converter
o corpo no mundo e o mundo no corpo. �s vezes ele deparava com fotografias
suas em livros did�ticos ou penduradas nas paredes de escrit�rios particulares ou
resid�ncias e ficava chocado com sua beleza fria, sua precis�o t�cnica; vez por outra,
at� com a busca sedenta que o vazio delas implicava.
- N�o se pode deter o tempo - disse nesse momento. - N�o se pode captar a luz.
Tudo que a gente pode fazer � virar o rosto para cima e deixar a chuva cair. Mas, assim
mesmo, Rosemary, eu gostaria de receber umas fotografias. Suas e do Jack. Pelo
menos elas me dariam um vislumbre. E me dariam enorme prazer.
- Mandarei uma por��o - disse ela, tocando-o no ombro. - Vou inundar voc�
de fotos.
David ficou sentado na escada enquanto ela se vestia, lagarteando ao sol. Jack
brincava com seu caminh�o. Voc� deve contar a ela. Abanou a cabe�a. Depois de observar
a casa de Caroline como um voyeur, ele havia telefonado para um advogado
em Pittsburgh e abrira as tais contas de poupan�a. Quando morresse, elas prescin
diriam da homologa��o do invent�rio. Jack e Phoebe ficariam garantidos, e Norah
nunca precisaria saber.
Rosemary voltou, cheirando a sabonete, de saia e sapatos baixos. Pegou a m�o de
Jack e pendurou uma mochila turquesa no ombro. Parecia muito jovem, forte e
esguia, com o cabelo molhado e o rosto concentrado, de cenho franzido. Deixaria
Jack na casa da bab� a caminho da escola.
- Ah, com todas as outras coisas, quase me esqueci - disse. - O Paul telefonou.
O cora��o de David bateu mais forte.
- Foi?
- Foi, hoje de manh�. Para ele era o meio da madrugada; tinha acabado de voltar
de um concerto. Estava em Sevilha, disse. Faz tr�s semanas que est� l�, estudando
guitarra flamenga com algu�m... n�o me lembro quem, mas parecia famoso.
- E ele est� se divertindo?
- Est�. Pareceu que sim. Ele n�o deixou o telefone. Disse que vai ligar de novo.
David assentiu com a cabe�a, feliz por Paul estar a salvo. Feliz por ele ter telefonado.
- Boa sorte na sua prova - disse, levantando-se.
- Obrigada. Desde que eu passe, � s� o que importa.
Rosemary sorriu, depois acenou e saiu andando com o filho pela estreita trilha de
pedra at� a cal�ada. David a viu afastar-se, tentando gravar aquele momento na
mem�ria para sempre - a mochila de cor viva, o cabelo dela balan�ando �s suas costas,
a m�o solta de Jack estendendo-se para agarrar as folhas e gravetos. Era in�til, �
claro; ele se esquecia das coisas a cada passo dado por Rosemary. �s vezes, suas
fotografias o deixavam admirado: imagens com que se deparava, guardadas em velhas
caixas ou pastas, momentos de que n�o conseguia recordar-se nem mesmo ao
v�-los - ele mesmo, rindo com pessoas cujos nomes havia esquecido, Paul exibindo
uma express�o que ele nunca vira ao vivo. E o que guardaria ele desse momento
dentro de um ou de cinco anos? O sol no cabelo de Rosemary, a sujeira sob as unhas
dela e o aroma vago e limpo do sabonete.
E, de algum modo, isso bastaria.
David levantou-se, espregui�ou-se e come�ou a correr em passadas ritmadas
em dire��o ao parque. Depois de quase dois quil�metros de corrida, lembrou-se
da outra coisa que o havia importunado a manh� inteira, da import�ncia desse
dia, afora a prova de Rosemary: 12 de julho. Anivers�rio de Norah. Ela estava
fazendo 46 anos.
Dif�cil de acreditar. David continuou a correr, com passadas largas, ritmadas, lembrando-
se de Norah no dia do casamento. Os dois tinham ido para o lado de fora,
para o sol frio de final de inverno, e pararam na cal�ada, recebendo os cumprimentos
dos convidados. O vento levantara o v�u de Norah, batendo com ele no rosto de
David, e a neve tardia sobre as cerejeiras descera como uma chuva de p�talas.
David correu, desviando-se do parque e rumando para seu antigo bairro.
Rosemary tinha raz�o. Norah precisava saber. Ele lhe contaria hoje. Iria � antiga casa
dos dois, onde Norah ainda morava, esperaria ela chegar e ent�o lhe contaria, embora
n�o conseguisse imaginar a rea��o dela.
� claro que voc� n�o pode, dissera Rosemary. A vida � assim, David. Por acaso voc�
se imaginaria, anos atr�s, morando nesta casinha geminada furreca? Ser� que, em um
milh�o de anos, teria imaginado me encontrar?
Bem, Rosemary tinha raz�o: a vida que ele estava levando n�o era a que havia
imaginado para si. Chegara a esta cidade como um estranho, mas agora as ruas que
passavam eram muito conhecidas; n�o havia um passo ou uma imagem que n�o
estivessem ligados a uma lembran�a. Ele vira aquelas �rvores serem plantadas,
acompanhara seu crescimento. Passou por casas que conhecia, casas em que estivera
em jantares ou coquet�is, aonde fora atender chamados de emerg�ncia, parado em
corredores ou vest�bulos tarde da noite, escrevendo receitas, chamando a ambul�ncia.
Camada ap�s camada de dias e imagens densos e complexos e singularmente
seus. Norah poderia andar por ali, ou Paul, e ver algo completamente diferente, mas
igualmente real.
David virou em sua antiga rua. Havia meses que n�o passava por l�, e ficou surpreso
ao ver as colunas da varanda da antiga casa derrubadas, o telhado sustentado
por pares de t�buas grossas. Apodrecimento do piso da varanda, era o que parecia,
mas n�o havia nenhum oper�rio � vista. Tamb�m n�o havia nenhum carro na entrada;
Norah n�o estava em casa. Ele andou pelo jardim algumas vezes, para recobrar
o f�lego, depois foi at� onde a chave continuava escondida, sob um tijolo ao lado dos
rododendros. Entrou e tomou um copo d'�gua. A casa cheirava a mofo. David abriu
uma janela e o vento levantou as cortinas brancas. Essas eram novas, assim como o
piso de lajotas e a geladeira. Bebeu mais um copo d'�gua. Depois, perambulou pela
casa, curioso para ver o que mais teria mudado. Pequenas coisas em toda parte: um
espelho novo na sala de jantar, os m�veis da sala de estar reestofados e rearrumados.
No segundo andar, os quartos continuavam os mesmos: o de Paul, um santu�rio
da ang�stia adolescente, com cartazes de quartetos obscuros colados na parede com
durex, canhotos de ingressos espetados no quadro de avisos, paredes pintadas de um
azul-escuro pavoroso, feito uma caverna. Paul fora para a Juilliard e, embora David
lhe tivesse dado sua b�n��o e pago metade das contas, o que Paul ainda recordava
era o passado mais profundo, da �poca em que o pai n�o acreditava que o talento
dele bastasse para sustent�-lo na vida. Estava sempre enviando programas de concertos
e cr�ticas, al�m de postais de todas as cidades onde se apresentava, como
quem dissesse: Ei, olhe s�, eu sou um sucesso. Como se ele mesmo mal pudesse acreditar.
�s vezes, David viajava 150 quil�metros ou mais, at� Cincinnati, Pittsburgh,
Atlanta ou Memphis, para se sentar no fundo de um audit�rio escuro e ver o filho
tocar. A cabe�a de Paul curvada sobre o viol�o, seus dedos �geis e a m�sica, uma linguagem
bela e misteriosa, comoviam-no at� as l�grimas. Havia ocasi�es em que
tudo que David queria fazer era sair andando pelos corredores escuros da plat�ia e
tomar o filho nos bra�os. Mas � claro que nunca o fazia; �s vezes, sa�a de fininho sem
ser visto.
O quarto de casal estava em perfeita ordem, sem uso. Norah tinha se mudado
para o quarto menor da frente; nesse, a colcha estava amarrotada. David estendeu a
m�o para alis�-la, mas puxou-a de volta no �ltimo minuto, como se aquilo fosse
uma intromiss�o grande demais. Em seguida, voltou para o t�rreo.
N�o compreendia: j� era fim de tarde e Norah deveria estar em casa. Se n�o
chegasse logo, ele simplesmente iria embora.
Havia um bloco amarelo na escrivaninha, ao lado do telefone, cheio de anota��es
enigm�ticas. Telefonar Jan antes das 8h, remarcar; Tim n�o tem certeza; entrega antes
das 10h. N�o esquecer Dunfree e ingressos. David arrancou cuidadosamente essa p�gina,
sem rasg�-la, arrumou-a no centro da escrivaninha e levou o bloco para a mesa
da copa, onde se sentou e come�ou a escrever.
Nossa filhinha n�o morreu. Caroline Gill a levou e a criou em outra cidade.
Riscou esse trecho.
Dei nossa filha.
Suspirou e pousou a caneta. N�o podia fazer isso; j� nem conseguia imaginar
como seria sua vida sem o peso desse conhecimento oculto. Passara a pensar nele
como uma esp�cie de penit�ncia. Era autodestrutivo, ele percebia, mas a vida era
assim. As pessoas fumavam, saltavam de p�ra-quedas, bebiam demais e entravam no
carro e dirigiam sem o cinto de seguran�a. Para ele havia esse segredo. As cortinas
novas balan�aram, ro�ando em seu bra�o. Ao longe, a torneira do banheiro do t�rreo
pingava, coisa que o levara � loucura durante anos, coisa que sempre havia pretendido
consertar. Picou em pedacinhos a p�gina do bloco e os guardou no bolso,
para jogar fora depois. Em seguida, foi at� a garagem e vasculhou as ferramentas que
havia deixado, at� encontrar uma chave inglesa e um par de carrapetas. Era prov�vel
que as tivesse comprado num s�bado qualquer, exatamente por essa raz�o.
Levou mais de uma hora para consertar as torneiras do banheiro. Desmontou-as,
lavou o sedimento dos filtros, substituiu as carrapetas e atarraxou as pe�as. O metal
estava manchado. David o poliu, usando uma velha escova de dentes que encontrou
enfiada numa lata de caf� embaixo da pia. Eram seis horas quando terminou, o
come�o de uma noite de meados de ver�o em que a luz do sol ainda se derramava
pelas janelas, s� que agora mais baixa, inclinando-se no piso. Ficou um instante
parado no banheiro, profundamente satisfeito com o brilho dos metais e com o sil�ncio.
O telefone tocou na cozinha e uma voz desconhecida come�ou a falar com
urg�ncia sobre passagens para Montreal, interrompendo-se para dizer: Ah, droga, �
isso mesmo, esqueci que voc� est� na Europa com o Frederic. E ent�o David tamb�m se
lembrou de que ela viajara para Paris, em f�rias - Norah lhe dissera, mas ele tinha
deixado a informa��o escapar, ou melhor, afastara a id�ia da cabe�a. A id�ia de que
ela havia conhecido algu�m, um canadense de Quebec, um homem que trabalhava
nos pr�dios quadrados da IBM e falava franc�s. A voz de Norah tinha mudado ao
falar dele, como que enternecida, uma voz que David nunca a ouvira usar. Ele a
imaginou segurando o fone com o ombro, enquanto digitava informa��es no
computador, levantando os olhos e percebendo que havia passado muito da hora do
jantar. Norah, caminhando pelos corredores de aeroportos, conduzindo seus grupos
a �nibus, restaurantes, hot�is, aventuras, todos os quais ela mesma providenciara
confiantemente.
Bem, pelo menos ela ficaria contente com as torneiras. E David tamb�m estava: tinha
feito um trabalho cuidadoso, meticuloso. Parou na cozinha, alongando bem os
bra�os, nos preparativos para terminar sua corrida, e tornou a pegar o bloco amarelo.
Consertei a pia do banheiro, escreveu. Feliz anivers�rio.
Em seguida, saiu, trancando a porta, e recome�ou a correr.
II
ORAH ESTAVA SENTADA NUM BANCO DE PEDRA NOS JARDINS DO LOUVRE,
com um livro aberto no colo, vendo as folhas dos choupos balan�arem
contra o c�u. Perto de seus p�s havia pombos movendo-se com seu andar gingado,
bicando a grama e arrufando as asas.
- Ele est� atrasado - disse Bree, que se sentara junto dela, com as longas pernas
cruzadas nos tornozelos, folheando uma revista. Agora com 44 anos, Bree ainda era
muito bonita, alta e esbelta, com seus brincos turquesa ro�ando a pele morena e
o cabelo transformado num branco prateado e puro. Durante a radioterapia, ela o
cortara bem curto, dizendo que n�o pretendia gastar nem mais um minuto da vida
para andar na moda. Tivera sorte, e sabia disso: eles haviam descoberto o tumor precocemente,
e fazia cinco anos que ela estava livre do c�ncer. Mas a experi�ncia a
havia modificado, em aspectos grandes e pequenos. Ela ria mais e tirava mais folgas
do trabalho. Nos fins de semana, come�ara a trabalhar como volunt�ria na constru��o
de casas da organiza��o Habitat for Humanity; ao construir uma delas no
leste do Kentucky, tinha conhecido um homem caloroso, corado e que gostava de se
divertir, um pastor que era vi�vo recente. Chamava-se Ben. Os dois tinham tornado
a se encontrar num projeto na Fl�rida e outra vez no M�xico. Nessa �ltima viagem,
sem maior alarde, tinham se casado.
- O Paul vir� - disse Bree, erguendo os olhos. - Afinal, foi id�ia dele.
- � verdade - concordou Norah. - Mas ele est� apaixonado. S� espero que se lembre.
O ar estava quente e seco. Norah fechou os olhos, relembrando aquele dia do final
de abril em que Paul a surpreendera no escrit�rio, de volta por algumas horas entre
uma apresenta��o e outra. Alto e ainda magricela, sentara-se na beirada da escriva
ninha, jogando o peso de papel de uma das m�os para a outra, enquanto descrevia
seus planos para uma turn� de ver�o na Europa, com seis semanas inteiras na
Espanha, para estudar com os violonistas de l�. Norah e Frederic haviam programado
uma viagem � Fran�a e, ao descobrir que estariam em Paris no mesmo dia, Paul
havia apanhado uma caneta na escrivaninha da m�e e rabiscado LOUVR E no calend�rio
da parede do escrit�rio de Norah: cinco horas, 21 de julho. Encontre-me no
jardim, que eu a levo para jantar.
Paul tinha viajado para a Europa semanas depois, ligando para Norah de vez em
quando, de pens�es r�sticas ou hoteizinhos � beira-mar. Estava apaixonado por uma
flautista, o tempo estava maravilhoso, a cerveja da Alemanha era espetacular. Norah
escutava; procurava n�o se preocupar nem fazer perguntas demais. Afinal, Paul era
um adulto de l,83m, moreno como David. Ela o imaginava andando descal�o pela
praia, inclinando-se para segredar alguma coisa � namorada, seu h�lito parecendo
ro�ar-lhe o ouvido.
Norah era t�o discreta que nunca chegava sequer a lhe pedir seu itiner�rio, de modo
que, quando Bree lhe havia telefonado do hospital em Lexington, ela n�o soubera
como entrar em contato com o filho para lhe dar a not�cia chocante: quando corria
no jardim bot�nico, David havia sofrido um infarto fulminante e morrera.
Ela abriu os olhos. O mundo parecia v�vido e pregui�oso no calor de fim de tarde
em que as folhas reluziam intermitentemente contra o c�u azul. Norah tinha voltado
para casa imediatamente, acordando no avi�o depois de sonhos irrequietos em
que procurava Paul. Bree a havia ajudado em todo o processo do sepultamento e se
recusara a deixar que ela regressasse sozinha a Paris.
- N�o se preocupe. Ele vir� - repetiu Bree.
- Ele perdeu o enterro - fez Norah. - Sempre me sentirei p�ssima por isso. Eles
nunca resolveram direito as coisas, o David e o Paul. Acho que Paul nunca se refez
da partida do David.
- E voc�?
Norah olhou para a irm�, para o cabelo espetado e curto, a pele alva, os olhos
verdes, calmos e penetrantes. Virou o rosto para o outro lado.
- Isso parece o tipo de coisa que o Ben perguntaria. Acho que talvez voc� ande
passando tempo demais com pastores.
Bree deu uma risada, mas n�o desistiu do assunto.
- N�o � o Ben que est� perguntando. Sou eu.
- N�o sei - respondeu Norah, devagar, pensando na �ltima vez que vira David,
sentado na varanda com um copo de ch� gelado, depois de uma corrida. Fazia seis
anos que estavam divorciados e, antes disso, tinham sido casados por outros 18: fazia
25 anos que ela o conhecia, um quarto de s�culo, mais da metade de sua vida.
Quando Bree lhe telefonara com a not�cia da morte dele, Norah simplesmente n�o
tinha conseguido acreditar. Era imposs�vel imaginar o mundo sem David. S� muito
depois, passado o funeral, � que o luto a havia alcan�ado. - H� muitas coisas que eu
gostaria de ter dito a ele. Mas, pelo menos, n�s convers�vamos. �s vezes ele dava s�
uma passada: para consertar alguma coisa, para dizer ol�. Era solit�rio, eu acho.
- Ele sabia do Frederic?
- N�o. Tentei contar-lhe uma vez, mas ele n�o pareceu assimilar a id�ia.
- Isso � bem coisa do David - observou Bree. - Ele e o Frederic s�o muito diferentes.
- �. S�o, sim.
Uma imagem de Frederic em Lexington, do lado de fora, na penumbra do crep�sculo,
batendo cinza na terra em volta dos rododendros, passou por sua cabe�a. Os
dois tinham se conhecido pouco mais de um ano antes, em mais um dia abafado,
em outro jardim. A conta da IBM, obtida com enorme esfor�o, ainda era uma das
mais lucrativas de Norah, de modo que ela havia comparecido ao piquenique anual,
apesar da dor de cabe�a e do rugir distante da trovoada. Frederic estava sentado
sozinho, com um ar vagamente mal-humorado e pouco comunicativo. Norah servira-
se de um prato e se sentara ao lado dele. Se o homem n�o quisesse conversar, tudo
bem com ela. Mas ele sorrira e a cumprimentara calorosamente, abandonando seus
pensamentos e falando ingl�s com um leve sotaque franc�s; era de Quebec. Tinham
passado horas conversando, enquanto a tempestade se aproximava, enquanto os
outros participantes do piquenique arrumavam suas coisas e iam embora. Ao come�ar
a chuva, ele a havia convidado para jantar.
- E onde est� o Frederic, afinal? - perguntou Bree. - Voc� n�o disse que ele viria?
- Ele queria vir, mas foi chamado a Orl�ans a trabalho. Tem la�os de fam�lia por
l�, de muito tempo atr�s. Um primo distante em segundo grau, que mora num lugar
chamado Ch�teauneuf. Voc� n�o gostaria de morar num lugar com esse nome?
- � prov�vel que mesmo l� eles tenham engarrafamentos e dias em que o cabelo
fica horroroso.
- Espero que n�o. Espero que fa�am feira todas as manh�s e voltem para casa com
p�o fresquinho e vasos cheios de flores. Seja como for, eu disse ao Frederic que fosse.
Ele e Paul s�o muito amigos, mas � melhor eu dar essa not�cia a ele sozinha.
- �. Tamb�m estou planejando sair de fininho quando ele chegar.
- Obrigada - disse Norah, segurando-lhe a m�o. - Obrigada por tudo. Por me ajudar
tanto no enterro. Eu n�o teria conseguido atravessar esta �ltima semana sem voc�.
- Voc� est� com uma d�vida e tanto comigo - retrucou Bree, sorridente. Depois,
ficou pensativa. - Achei que foi um belo funeral, se � que se pode dizer isso. Havia
muita gente. Fiquei surpresa ao ver quantas vidas o David afetou.
Norah assentiu com a cabe�a. Tamb�m ficara surpresa ao ver a igrejinha de Bree
repleta de gente, t�o cheia que, quando o of�cio come�ou, havia tr�s filas de pessoas
em p� nos fundos. Os dias anteriores tinham sido um borr�o, durante o qual Ben a
guiara delicadamente pela escolha da m�sica e dos trechos das Escrituras, do caix�o
e das flores, e a ajudara a escrever o obitu�rio. Mesmo assim, fora um al�vio ter essas
coisas concretas para fazer, e Norah havia se deslocado por entre as tarefas numa
nuvem protetora de efici�ncia entorpecida - at� come�ar o of�cio religioso. As pessoas
deviam ter estranhado a intensidade com que ela havia chorado naquele
momento, dando um novo sentido �s belas e velhas palavras, mas seu luto n�o tinha
sido apenas por David. Eles tinham estado juntos no funeral da filha, todos aqueles
anos antes, com o luto j� ent�o crescendo entre os dois.
- Foi a cl�nica - disse Norah. - A cl�nica que ele dirigiu por todos aqueles anos. A
maioria das pessoas tinha sido paciente dele.
- Eu sei. Foi impressionante. As pessoas pareciam achar que ele era um santo.
- N�o eram casadas com ele - comentou Norah.
As folhas se agitavam contra o c�u azul e quente. Norah tornou a percorrer o
jardim com os olhos, � procura de Paul, mas ele n�o estava em parte alguma.
- Ah, n�o consigo acreditar que o David esteja morto de verdade - suspirou Norah.
Mesmo nesse momento, passados dias, as palavras fizeram um pequeno choque
perpassar-lhe o corpo. - Eu me sinto muito velha, por algum motivo.
Bree segurou-lhe a m�o e as duas ficaram v�rios minutos em sil�ncio. A palma da
m�o dela era lisa e quente contra a sua, e Norah sentiu aqueles instantes se alongarem,
crescerem, como se pudessem abarcar o mundo inteiro. Ela se lembrou de uma
sensa��o similar, j� se iam muitos anos, quando Paul era beb� e ela ficava sentada a
amament�-lo, nas noites quietas e escuras. Agora, crescido, ele parava numa esta��o
ferrovi�ria ou na cal�ada, sob as �rvores, ou atravessava uma rua. Parava diante de
vitrines ou tirava um ingresso do bolso, ou protegia os olhos contra a luz do sol. Ele
sa�ra do seu corpo e crescera, e agora, espantosamente, andava pelo mundo sem ela.
Norah tamb�m pensou em Frederic, sentado numa sala de reuni�es, balan�ando a
cabe�a ao examinar pap�is, espalmando as m�os sobre a mesa ao se preparar para
falar. Ele tinha p�los escuros nos bra�os e unhas grandes, de formato quadrado.
Barbeava-se duas vezes por dia, e, se esquecesse de faz�-lo, a barba nova a arranhava
no pesco�o quando ele a puxava para si durante a noite, beijando-a atr�s da orelha
para excit�-la. Frederic n�o comia p�o nem doces; quando o jornal matutino se
atrasava, isso o deixava excepcionalmente contrariado. Todos esses pequenos h�bitos,
alternadamente cativantes e irritantes, faziam parte de Frederic. Nessa noite,
Norah o encontraria na pens�o em que estavam hospedados, � beira do rio. Os dois
tomariam vinho e ela acordaria de madrugada, com o luar inundando o quarto e a
respira��o regular e suave dele. Frederic queria casar, e essa era mais uma decis�o em
que pensar.
O livro de Norah escorregou de seu colo e ela se inclinou para peg�-lo. A noite
estrelada, de Van Gogh, rodopiou no folheto que ela vinha usando como marcador.
Quando reergueu o corpo, Paul estava atravessando o jardim.
- Ah - exclamou ela, com a onda s�bita de prazer que sempre sentia ao v�-lo: aquela
pessoa, o filho dela, ali no mundo. Levantou-se. - Ali vem ele, Bree. Paul chegou!
- Est� muito bonito - comentou Bree, levantando-se tamb�m. - Deve ter sa�do
a mim.
- Deve - concordou Norah. - Mas ningu�m sabe de onde ele tirou o talento, j�
que nenhuma de n�s nem o David seria capaz de entoar uma melodia.
�, o talento de Paul. Norah o observou cruzar o jardim. Aquilo era um mist�rio,
um dom.
Ele levantou uma das m�os num aceno, abrindo um sorriso largo, e Norah come�ou
a andar em sua dire��o, deixando o livro no banco. Seu cora��o batia de anima��o
e alegria, assim como de tristeza e inquieta��o; ela estava tr�mula. Como o
mundo se modificava por ele estar ali! Finalmente, chegou junto do filho e lhe deu
um abra�o apertado. Ele usava uma camisa branca com as mangas arrega�adas e
bermuda caqui. Cheirava a limpeza, como se tivesse sa�do do chuveiro. Norah sentiu
os m�sculos do filho atrav�s do tecido, os ossos fortes, o simples calor dele, e, por
um breve instante, compreendeu o desejo de David de fixar o mundo num dado
momento. N�o se podia culp�-lo, n�o, n�o se podia censur�-lo por querer aprofundar-
se mais em cada instante fugaz, estudar seu mist�rio, gritar contra a perda, a
mudan�a e o movimento.
- Oi, m�e - disse Paul, chegando para tr�s para olh�-la. Tinha os dentes brancos,
regulares, perfeitos; deixara crescer uma barba preta. - Imagine s�, encontr�-la aqui
- disse, rindo.
- Pois �, imagine s�.
Bree j� estava ao lado deles. Deu um passo � frente e tamb�m abra�ou Paul.
- Tenho que ir embora - disse. - S� estava esperando para dizer oi. Voc� est�
bonito, Paul. Essa vida n�made lhe faz bem.
Ele sorriu e perguntou:
- Voc� n�o pode ficar?
Bree olhou de relance para Norah e disse:
- N�o, mas vejo voc� em breve, est� bem?
- Est� bem, eu acho - fez Paul, inclinando-se para beij�-la no rosto.
Norah passou o dorso da m�o nos olhos enquanto Bree se virava e ia embora.
- O que foi? - perguntou o rapaz, e insistiu, subitamente s�rio: - O que h� de errado?
- Venha sentar-se - disse Norah, pegando-o pelo bra�o.
Voltaram juntos para o banco, fazendo um bando de pombos levantar v�o, num
impulso repentino. Norah apanhou o livro e alisou o marcador.
- Paul, tenho uma not�cia ruim. Seu pai morreu h� nove dias. Infarto.
Os olhos de Paul se arregalaram de susto e tristeza, e ele desviou o rosto, fitando
sem falar o caminho que percorrera para chegar at� ali.
- Quando foi o enterro? - perguntou, por fim.
- Na semana passada. Sinto muito mesmo, Paul. N�o houve tempo para encontr�-
lo. Pensei em entrar em contato com a embaixada para me ajudar a localiz�-lo,
mas eu n�o sabia por onde come�ar. E, assim, vim aqui hoje na esperan�a de que
voc� aparecesse.
- Eu quase perdi o trem - disse ele, pensativo. - Quase n�o consegui chegar.
- Mas chegou. Est� aqui.
Ele balan�ou a cabe�a e inclinou-se para a frente, com os cotovelos nos joelhos e
as m�os cruzadas entre eles. Norah lembrou-se de t�-lo visto sentado exatamente
assim quando menino, lutando para esconder a tristeza. Paul cerrou os punhos,
tornou a abri-los. Norah segurou uma de suas m�os. As pontas dos dedos do filho
tinham calos, dos muitos anos tocando viol�o. Os dois permaneceram ali por muito
tempo, ouvindo o vento sussurrar nas folhas.
- N�o h� nada de errado em ficar triste - disse Norah, por fim. - Ele era seu pai.
Paul assentiu com a cabe�a, mas seu rosto continuou tenso como um punho.
Quando finalmente falou, tinha a voz embargada, � beira do choro.
- Nunca achei que ele fosse morrer. Nunca achei que me importaria. N�o � como
se algum dia tiv�ssemos conversado de verdade.
- Eu sei.
E sabia mesmo. Depois do telefonema de Bree, Norah tinha andado pela rua,
onde as copas frondosas formavam uma ab�bada, chorando desbragadamente, zangada
com David por ele ter morrido antes que os dois tivessem a chance de acertar
as coisas de uma vez por todas.
- Mas antes, pelo menos, sempre havia a op��o de conversar - completou.
- �. Eu ficava esperando que ele desse o primeiro passo - disse Paul.
- Acho que ele esperava a mesma coisa.
- Ele era meu pai. Devia saber o que fazer.
- Ele amava voc� - disse Norah. - Nunca pense que n�o o amava.
Paul deu um risinho curto e amargo.
- N�o. Isso � bonito de dizer, mas n�o � verdade. Eu ia � casa dele e tentava; ficava
rondando por l� e conversava com papai sobre uma coisa e outra, mas nunca
�amos adiante. Com ele, eu nunca conseguia fazer nada direito. Ele teria sido mais
feliz com um filho completamente diferente.
A voz de Paul continuava calma, por�m as l�grimas se haviam acumulado em
seus olhos e come�avam a rolar pelo rosto.
- Meu bem, ele amava voc�. Amava mesmo. Achava voc� o filho mais incr�vel do
mundo.
Paul enxugou as l�grimas com um gesto brusco. Norah sentiu sua pr�pria tristeza
e seu luto apertarem-lhe a garganta, e levou um momento para conseguir falar.
- Seu pai - disse, por fim - tinha uma dificuldade enorme de se abrir com quem
quer que fosse. N�o sei por qu�. Cresceu pobre e sempre se envergonhou disso. Eu
gostaria que ele pudesse ter visto quantas pessoas foram ao enterro, Paul. Centenas.
Foi todo aquele trabalho cl�nico que ele fez. Tenho o livro de presen�as, voc� mesmo
pode ver. Uma por��o de gente gostava dele.
- A Rosemary foi ao enterro? - perguntou Paul, virando-se para a m�e.
- A Rosemary? Foi - respondeu. Fez uma pausa, deixando a brisa morna afagar-
lhe o rosto. Ela avistara Rosemary no fim da cerim�nia, sentada no �ltimo banco,
com um vestido cinza simples. O cabelo ainda era comprido, mas ela parecia mais
velha, mais estabilizada. David sempre insistira em que nunca tinha havido nada
entre eles; no fundo, Norah sabia que era verdade. - Eles n�o estavam apaixonados.
Seu pai e Rosemary. N�o era o que voc� pensava.
- Eu sei - disse Paul, endireitando o corpo. - Eu sei. A Rosemary me disse. Acreditei
nela.
- Ela disse? Quando?
- Quando o papai a levou l� para casa. Naquele primeiro dia - disse Paul. Parecia
pouco � vontade, mas prosseguiu: - �s vezes eu a encontrava na casa dele. Quando
dava uma passada para visitar o papai. �s vezes jant�vamos todos juntos. �s vezes
papai n�o estava, e ent�o eu ficava um pouco por l� com a Rosemary e o Jack. Dava
para ver que n�o havia nada entre eles. �s vezes ela recebia um namorado. N�o sei.
Era meio esquisito, eu acho. Mas eu me acostumei. Ela � boa gente, a Rosemary. N�o
era a raz�o de eu n�o conseguir conversar de verdade com o papai.
Norah balan�ou a cabe�a.
- Mas, Paul, voc� era importante para ele. Olhe, eu sei do que voc� est� falando,
porque tamb�m senti isso. Aquela dist�ncia. Aquela reserva. Aquela sensa��o de um
muro alto demais para transpor. Depois de algum tempo, desisti de tentar e, depois
de um tempo ainda maior, desisti de esperar que uma porta se abrisse nele. Mas, por
tr�s daquele muro, ele amava a n�s dois. N�o sei como eu sei disso, mas sei.
Paul calou-se. De quando em quando, enxugava as l�grimas dos olhos.
O ar estava mais fresco e as pessoas haviam come�ado a passear pelo jardim:
namorados de m�os dadas, casais com filhos, caminhantes solit�rios. Um casal idoso
se aproximou. A mulher era alta, com a cabeleira branca, e o homem andava devagar,
meio curvado, com uma bengala. Ela estava com a m�o enfiada no bra�o do
marido, inclinando-se para falar com ele, e o homem balan�ava a cabe�a, pensativo,
de cenho franzido, olhando para o outro lado do jardim, para al�m dos port�es,
para o que quer que ela quisesse faz�-lo observar. Norah sentiu uma fisgada de dor
ao ver aquela intimidade. Houvera um tempo em que tinha imaginado envelhecer
assim com David, a hist�ria dos dois entremeada como um vinhedo, as gavinhas
enroscadas nos brotos, as folhas misturadas. Ah, ela fora t�o antiquada! At� sua tristeza
tinha sido antiquada. Ela havia imaginado que, casada, seria uma esp�cie de
bot�o encantador, envolto no c�lice mais resistente e mais flex�vel da flor. Envolto e
protegido, com as camadas de sua pr�pria vida contidas umas nas outras.
Em vez disso, tinha encontrado seu caminho, constru�do uma empresa, criado
Paul, viajado pelo mundo. Era p�tala, c�lice, haste e folha; era a longa raiz branca
que se aprofunda na terra. E estava contente.
Ao passar por eles, o casal estava falando, discutindo onde jantar. Os dois tinham
um sotaque sulista - do Texas, Norah sup�s. O homem queria achar um lugar onde
houvesse fil�s, uma comida que fosse conhecida.
- Estou farto dos americanos - comentou Paul, depois que os dois sa�ram do raio
de alcance de sua voz. - Sempre todos contentes por encontrarem outro americano.
� como se n�o houvesse 250 milh�es de n�s. Seria de se esperar que eles quisessem
conhecer os franceses, j� que est�o na Fran�a.
- Voc� andou conversando com o Frederic.
- � claro. Por que n�o? O Frederic acerta bem na mosca em mat�ria de arrog�ncia
americana. Ali�s, cad� ele?
- Viajando a neg�cios. Chega hoje � noite.
A sensa��o tornou a atravess�-la: a imagem de Frederic entrando pela porta do
quarto do hotel, jogando as chaves na c�moda e apalpando os bolsos para se certificar
de que estava com a carteira. Ele usava camisas branqu�ssimas, que refletiam
at� o �ltimo raio de luz, com o colarinho engomado e abotoado, e toda noite chegava
e atirava a gravata numa cadeira, enquanto sua voz grave formava o nome de
Norah. A voz talvez fosse o que ela havia amado primeiro. Os dois tinham muitas
coisas em comum - filhos crescidos, div�rcios, trabalhos desgastantes -, mas, como
a vida de Frederic havia acontecido em outro pa�s, metade dela em outra l�ngua,
afigurava-se ex�tica a Norah, ao mesmo tempo conhecida e desconhecida. Um pa�s
antigo e um novo.
- Sua viagem tem sido boa? - perguntou Paul. - Est� gostando da Fran�a?
- Tenho sido feliz aqui - respondeu Norah, e era verdade. Frederic achava que a
superpopula��o tinha destru�do Paris, mas, para Norah, o encanto era infinito, com
as confeitarias e as p�tisseries, os crepes vendidos em barraquinhas de rua, as torres
dos pr�dios antigos, os sinos. E tamb�m os sons da l�ngua, fluindo como uma correnteza,
com uma palavra emergindo aqui e ali como um seixo. - E quanto a voc�?
Como vai a turn�? Voc� ainda est� apaixonado?
- Ah, sim - fez ele, com o rosto relaxando um pouco. Olhou diretamente para a
m�e. - Voc� vai se casar com o Frederic?
Norah correu o dedo pela borda do folheto. Essa era a pergunta, � claro, que se
imiscu�a em todos os seus momentos: deveria mudar de vida? Ela amava Frederic e
nunca se sentira mais feliz, mas podia vislumbrar atrav�s dessa felicidade uma �poca
em que os h�bitos cativantes dele poderiam lhe dar nos nervos, assim como os seus
nos dele. Frederic gostava das coisas perfeitas: era meticuloso em tudo, desde esquadrias
at� formul�rios de impostos. Nesse aspecto, embora em nenhum outro, ele a
fazia lembrar de David. Agora Norah tinha idade e experi�ncia suficientes para saber
que nada era perfeito. Nada se mantinha inalterado, inclusive ela pr�pria. Mas tamb�m
era verdade que, quando Frederic entrava num c�modo, o ar parecia mudar,
ficar eletrizado, pulsar diretamente em seu corpo. Ela sentia vontade de ver o que
aconteceria depois.
- N�o sei - respondeu devagar. - A Bree est� disposta a comprar a ag�ncia. Frederic
tem mais dois anos de contrato, de modo que n�o temos que tomar nenhuma
decis�o por enquanto. Mas posso me imaginar vivendo com ele. Acho que esse � o
primeiro passo.
Paul balan�ou a cabe�a.
- Foi assim que aconteceu da �ltima vez? Sabe, com papai?
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Norah o fitou, pensando em como responder.
- Sim e n�o - disse, por fim. - Agora sou muito mais pragm�tica. Naquela �poca,
s� queria que algu�m cuidasse de mim. N�o me conhecia muito bem.
- Papai gostava de cuidar das coisas.
- �, ele gostava.
Paul deu um risinho curto, agudo.
- N�o consigo acreditar que ele esteja morto.
- Eu sei - concordou Norah. - Nem eu.
Sentaram-se calados por algum tempo, enquanto a brisa circulava de leve a seu
redor. Norah virou seu folheto, relembrando o frio do museu, o eco de passos. Ficara
quase uma hora diante daquele quadro, estudando os remoinhos de cor, as pinceladas
seguras e v�vidas. Em que Van Gogh teria tocado? Em alguma coisa tremeluzente,
alguma coisa esquiva. David deslocara-se pelo mundo focalizando sua
c�mera nos mais �nfimos detalhes, obcecado com a luz e a sombra, tentando fixar as
coisas. Agora ele se fora, e seu jeito de ver o mundo tamb�m.
Paul estava se levantando, acenando para algu�m no jardim, e a tristeza em seu
rosto deu lugar a um sorriso alegre, intenso, claramente focado e exclusivo. Norah
acompanhou seu olhar por sobre a grama ressequida, at� uma mo�a de rosto longo
e delicado, pele corada e cabelo preto descendo em trancinhas rastaf�ri at� a cintura.
Era esguia e usava um vestido de estampa delicada; andava com a gra�a e a reserva
de uma bailarina.
- � a Michelle - disse Paul, j� de p�. - Eu volto j�. � a Michelle.
Norah o viu caminhar em dire��o � mo�a, como que atra�do pela gravidade, e o
rosto dela se iluminou ao v�-lo. Paul segurou-lhe de leve o rosto entre as m�os ao
beij�-la e, em seguida, Michelle ergueu uma das m�os e as palmas dos dois se tocaram
por um instante, bem de leve, num gesto t�o �ntimo que Norah desviou o
olhar. Os dois cruzaram o jardim com a cabe�a inclinada, conversando. A certa
altura, pararam e Michelle pousou a m�o no bra�o de Paul, e Norah compreendeu
que ele lhe havia contado.
- Sra. Henry - disse a mo�a, apertando-lhe a m�o quando os dois chegaram ao
banco. Seus dedos eram longos e frios. - Sinto muito pelo pai de Paul.
A pron�ncia dela tamb�m tinha um tom estranho: Michelle havia passado
muitos anos em Londres. Por alguns minutos, ficaram todos parados no jardim,
conversando. Paul sugeriu que fossem jantar e Norah sentiu-se tentada a dizer sim.
Tinha vontade de conversar longamente com o filho, pela noite adentro, mas hesitou,
consciente de que havia entre Paul e Michelle um calor, uma radiancia, uma
�nsia de estarem a s�s. Tornou a pensar em Frederic, talvez j� de volta � pens�o, e na
gravata ca�da no encosto da cadeira.
- Que tal amanh�? - perguntou. - Que tal nos encontrarmos para o caf� da
manh�? Quero ouvir tudo sobre sua viagem. Quero saber tudo sobre os guitarristas
de flamenco de Sevilha.
Na rua, a caminho do metr�, Michelle segurou o bra�o de Norah. Paul ia andando
logo � frente, ombros largos, esguio.
- Voc� criou um filho maravilhoso - disse ela. - � uma pena eu n�o ter conhecido
o pai dele.
- Isso seria dif�cil, de qualquer jeito: conhec�-lo. Mas, sim, eu tamb�m lamento disse
Norah. Deram mais alguns passos. - Voc� gostou da sua turn�?
- Ah, viajar � uma liberdade maravilhosa - comentou Michelle.
Era um anoitecer suave e as luzes fortes da esta��o de metr� foram um choque
quando os tr�s desceram. Um trem moveu-se com estardalha�o ao longe, ecoando
pelo t�nel. Havia uma mistura de aromas: perfume e, por baixo, o cheiro mais ativo
de metal e �leo.
- Venham amanh�, a� pelas nove horas - Norah disse a Paul, elevando a voz acima
do barulho. E, quando o trem se aproximou, inclinou-se para a frente, perto do
ouvido dele, e gritou: - Ele amava voc�! Era seu pai e amava voc�!
O rosto de Paul deixou transparecer as emo��es por um instante: luto e tristeza.
Ele assentiu com a cabe�a. N�o havia tempo para mais nada. Agora o trem corria,
disparava em dire��o a eles, e, no s�bito vento produzido, Norah sentiu o cora��o
inundado. Seu filho, ali no mundo. E David, misteriosamente morto. O trem parou
com um rangido e as portas autom�ticas abriram-se com um suspiro. Norah entrou
e se sentou � janela, tendo um lampejo, um vislumbre final de Paul, andando com
as m�os nos bolsos e a cabe�a baixa. Vis�vel, depois sumiu.
Quando ela chegou � sua esta��o, o ar se enchera da luz do crep�sculo. Norah
andou pelos paralelep�pedos at� a pens�o, pintada de amarelo-claro, com uma luminosidade
t�nue e as jardineiras das janelas carregadas de flores. O quarto estava
silencioso, e as coisas dela, espalhadas, n�o tinham sido mexidas; Frederic n�o havia
chegado. Norah foi at� a janela que dava para o rio e ali se deteve por um instante,
pensando em David carregando Paul nos ombros pelos c�modos de sua primeira
casa, pensando no dia em que ele lhe propusera casamento, gritando por cima do
fragor da correnteza, e no anel frio deslizando em seu dedo. Pensando nas m�os de
Paul e Michelle, palma contra palma.
Foi at� a mesinha e escreveu um bilhete: Frederic, estou no p�tio.
O p�tio, com sua fileira de vasos de palmeiras, dava para o Sena. Havia l�mpadas
min�sculas entrela�adas nas �rvores e nas grades de ferro. Norah sentou-se onde
podia ver o rio e pediu uma ta�a de vinho. Deixara seu livro em algum lugar.
Provavelmente, no jardim do Louvre. Perd�-lo deixou-a com um vago sentimento
de pesar. N�o era o tipo de livro que se comprasse duas vezes, apenas uma coisa leve,
algo para passar o tempo. Alguma coisa sobre duas irm�s. Agora, nunca saberia
como terminava a hist�ria.
Duas irm�s. Um dia, talvez ela e Bree escrevessem um livro. A id�ia a fez sorrir, e
o homem sentado a uma mesa pr�xima, de terno branco e com um c�lice de aperitivo
junto � m�o, retribuiu o sorriso. Era assim que essas coisas come�avam. Houvera
�poca em que ela teria cruzado as pernas ou jogado o cabelo para tr�s: pequenos
gestos convidativos, at� que o homem se levantasse, sa�sse de sua mesa e viesse perguntar
se poderia acompanh�-la. Norah havia adorado o poder dessa dan�a e a sensa��o
de descoberta. Mas, nessa noite, desviou o olhar. O homem acendeu um cigarro
e, ao termin�-lo, pagou a conta e saiu.
Norah ficou observando o fluxo dos transeuntes, que tinha por fundo o tremeluzir
escuro do rio. N�o viu Frederic chegar. Mas sentiu a m�o dele em seu ombro, virou-se
e ele a beijou, primeiro numa face, depois na outra, depois nos l�bios.
- Ol� � fez ele, sentando-se do outro lado da mesa. N�o era um homem alto, mas
estava em excelente forma, com os ombros fortes de quem nadou durante muitos
anos. Era analista de sistemas, e Norah gostava de sua seguran�a, sua capacidade de
captar e discutir o panorama geral, sem se preocupar com detalhes. No entanto, era
exatamente isso que �s vezes tamb�m a irritava - a id�ia que ele tinha do mundo
como um lugar est�vel e previs�vel.
-
Esperou muito? J� jantou? - perguntou Frederic.
-
N�o, quase nada - ela gesticulou com a cabe�a para a ta�a de vinho mal tocada.
-
E estou faminta.
Ele balan�ou a cabe�a.
-
�timo. Desculpe eu ter demorado. O trem atrasou.
-
Tudo bem. Como foi o seu dia em Orl�ans?
-
O de sempre. Mas o almo�o com meu primo foi agrad�vel.
Ele come�ou a falar e Norah reclinou-se na cadeira, deixando-se inundar pelas
palavras. As m�os de Frederic eram fortes e habilidosas. Ela se lembrou do dia em
que ele lhe constru�ra uma estante de livros, trabalhando na garagem durante todo
o fim de semana, com as espirais de madeira caindo de sua plaina. Frederic n�o
tinha medo de trabalhar nem de interromp�-la na cozinha enquanto ela cozinhava,
303
deslizando as m�os por sua cintura e beijando-a na nuca at� ela se virar e beij�-lo.
Ele fumava cachimbo, o que n�o agradava a Norah, trabalhava demais e corria
demais na estrada.
- Voc� contou ao Paul? Est� tudo bem com ele?
- N�o sei. Espero que sim. Ele vem se encontrar conosco no caf� da manh�. Quer
reclamar com voc� sobre os americanos arrogantes.
Frederic riu.
- �timo. Gosto do seu filho.
- Ele est� apaixonado. E ela � um encanto, essa mo�a que ele adora: Michelle.
Tamb�m vir� amanh�.
- �timo - repetiu Frederic, entrela�ando os dedos nos de Norah. - � bom estar
apaixonado.
Pediram o jantar: brochetes de carne com arroz pilafe, e vinho. O rio deslizava l�
embaixo, escuro e silencioso, e, enquanto os dois conversavam, Norah pensou em
como era bom sentar-se calmamente, ancorada num lugar. Sentar-se tomando
vinho em Paris, vendo os p�ssaros levantarem v�o da silhueta das �rvores, o rio a
escoar serenamente. Lembrou-se de suas corridas desvairadas ao rio Ohio quando
mo�a, da superf�cie estranhamente iridescente da �gua, das margens escarpadas de
calc�rio, do vento a levantar seu cabelo.
Mas agora estava sentada quieta, e os p�ssaros escuros al�avam v�o pelo c�u azul-
marinho. Norah sentiu os aromas da �gua, dos canos de descarga, da carne assando
e do lodo �mido do rio. Frederic acendeu o cachimbo, serviu mais vinho, e as pessoas
deslocaram-se pela cal�ada, passeando pela tarde que cedia lugar � noite e na
qual os pr�dios pr�ximos esmaeciam aos poucos nas sombras. Uma a uma, iluminaram-
se as janelas. Norah dobrou o guardanapo e se levantou. O mundo girou; ela
estava tonta com o vinho, a altura, o aroma da comida, depois daquele longo dia de
luto e alegria.
- Voc� est� bem? - perguntou Frederic, soando muito distante.
Norah tocou a mesa com uma das m�os, recobrou o f�lego. Balan�ou afirmativamente
a cabe�a, incapaz de falar acima do burburinho do rio, do cheiro de suas margens
sombrias, das estrelas que fulgiam por toda parte, rodopiando, vivas.
NOVEMBRO DE 1988
ELE SE CHAMAVA ROBERT E ERA BONITO, COM UMA CABELEIRA PRETA QUE LHE
' descia sobre a testa. Subiu e desceu o corredor do �nibus, apresentando-se a
todos e tecendo coment�rios sobre o trajeto, o motorista, o dia. Chegou ao fim do
corredor, virou-se e recome�ou todo o processo.
- Estou me divertindo muito aqui - anunciou, apertando a m�o de Caroline ao
passar. Ela sorriu, paciente; o aperto de m�o de Robert era confiante e firme. As outras
pessoas n�o o fitavam nos olhos. Examinavam seus livros, seus jornais, as cenas
que corriam fora da janela. Mas Robert continuou, sem se deixar abater, como se os
passageiros do �nibus devessem ser t�o notados e se mostrar t�o pouco receptivos
quanto as �rvores, as pedras ou as nuvens. Na persist�ncia dele, pensou Caroline,
observando do �ltimo banco e de novo decidindo, a cada segundo, n�o intervir,
havia um desejo profundo de encontrar algu�m que realmente o visse.
Essa pessoa, ao que tudo indicava, era Phoebe, que parecia iluminar-se, inundada
por uma luz interna, quando Robert estava por perto, e que o contemplava subindo
e descendo do �nibus como se ele fosse uma nova e maravilhosa criatura, talvez um
pav�o, belo, chamativo e orgulhoso. Quando Robert enfim se acomodou no assento
ao lado dela, ainda falando, Phoebe simplesmente lhe sorriu. Era um sorriso radiante;
ela n�o refreava nada. Nenhuma reserva, nenhuma cautela, nenhuma espera para se
certificar de que o rapaz sentia a mesma onda de amor. Caroline fechou os olhos ao
ver a express�o escancarada de emo��o da filha - a inoc�ncia impetuosa, o risco!
Quando os reabriu, por�m, Robert estava retribuindo o sorriso, t�o encantado com
Phoebe, t�o deslumbrado quanto se uma �rvore tivesse dito seu nome.
Bem, pois �, pensou Caroline, e por que n�o? Esse amor j� n�o era raro o bastante
no mundo? Olhou de relance para Al, sentado a seu lado, cabeceando, com o cabelo
grisalho a se levantar no ar quando o �nibus dava solavancos ou fazia curvas. Ele
chegara tarde na noite anterior e tornaria a viajar na manh� seguinte, fazendo hora
extra para pagar o telhado e as calhas novas. Nos �ltimos meses, os dias que passavam
juntos eram quase todos consumidos em tarefas de ordem pr�tica. �s vezes,
a lembran�a dos primeiros tempos de casados - os l�bios dele nos seus, o toque das
m�os dele em sua cintura - inundava Caroline como uma saudade agridoce. Como
� que eles tinham ficado t�o atarefados e cheios de preocupa��es? Como � que tantos
dias se haviam escoado, um atr�s do outro, at� lev�-los a esse momento?
O �nibus avan�ou veloz pelo desfiladeiro, subiu a ladeira da serra dos Esquilos. J�
havia far�is acesos no entardecer de princ�pio de inverno. Phoebe e Robert estavam
calados, sentados de frente para o corredor, vestidos para o baile anual da Sociedade
Upside Down. Os sapatos de Robert brilhavam de t�o polidos, e ele usava seu melhor
terno. Sob o casaco de inverno, Phoebe usava um vestido florido vermelho e
branco, e um delicado crucifixo branco, de sua cerim�nia de crisma, pendia de uma
corrente fina em seu pesco�o. Seu cabelo havia escurecido e afinado, e exibia um
corte arredondado, solto e curto, enfeitado com prendedores vermelhos aqui e ali.
Phoebe era p�lida, com sardas claras nos bra�os e no rosto. Olhava pela janela com
um vago sorriso, perdida em seus pensamentos. Robert examinava os cartazes acima
da cabe�a de Caroline, an�ncios de cl�nicas e dentistas, mapas do trajeto. Era um
bom rapaz, sempre disposto a se encantar com o mundo, embora esquecesse as conversas
quase no instante em que elas terminavam e pedisse a Caroline o n�mero de
seu telefone toda vez que os dois se encontravam.
Apesar disso, sempre se lembrava de Phoebe. Sempre se lembrava do amor.
- Estamos quase chegando - disse Phoebe, puxando o bra�o de Robert quando o
�nibus se aproximou do alto da ladeira. O centro ficava a meio quarteir�o de dist�ncia
e suas luzes suaves derramavam-se sobre a grama queimada, sobre as crostas de
neve. - Contei sete pontos de �nibus.
- Al - disse Caroline, sacudindo-o pelo ombro. - Al, meu bem, � o nosso ponto.
Desceram do �nibus para a friagem �mida do anoitecer de novembro e caminharam
aos pares pela luz crepuscular. Caroline enfiou o bra�o no de Al.
- Voc� est� cansado - comentou, procurando romper o sil�ncio que se vinha tornando
um h�bito entre os dois, cada vez mais. - Foram duas semanas pesadas.
- Eu estou bem - disse ele.
- Eu queria que voc� n�o tivesse que passar tanto tempo fora.
Arrependeu-se das palavras no instante em que as disse. Essa j� era uma velha dis
cuss�o, um ponto sens�vel em carne viva no casamento dos dois, e at� a seus pr�prios
ouvidos sua voz soou �spera, esgani�ada, como se ela estivesse procurando
briga de prop�sito.
A neve estalava sob seus p�s. Al deu um grande suspiro e sua respira��o formou
uma nuvem t�nue no ar frio.
- Escute, estou fazendo o melhor que posso, Caroline. O dinheiro anda bom e j�
estou beirando os 60. Tenho que dar duro enquanto � poss�vel.
Caroline assentiu com a cabe�a. O bra�o dele sob o seu era s�lido e firme. Ela
estava muito contente por t�-lo por perto, e muito cansada do estranho ritmo de
vida que o mantinha longe por dias a fio. O que ela queria, mais do que qualquer
outra coisa, era tomar o caf� com Al todas as manh�s e jantar com ele todas as
noites; acordar com ele a seu lado na cama, e n�o saber que estava num quarto de
hotel an�nimo, a 200 ou 800 quil�metros de dist�ncia.
- � s� que eu sinto saudade de voc� - disse baixinho. - Foi s� o que eu quis dizer.
� s� o que estou dizendo.
Phoebe e Robert caminhavam adiante deles, de m�os dadas. Caroline observou a
filha, com suas luvas escuras e a echarpe que Robert lhe dera, frouxamente enrolada
no pesco�o. Phoebe queria casar-se com Robert, dividir sua vida com ele; nos
�ltimos tempos, era s� disso que falava. Linda, a diretora do centro de atividades,
havia alertado: A Phoebe est� apaixonada. Tem 24 anos, desabrochando um pouquinho
tarde, e est� come�ando a descobrir a sexualidade. Precisamos conversar sobre isso,
Caroline. Mas Caroline, n�o querendo admitir que algo houvesse mudado, vinha
adiando a conversa.
Phoebe caminhava com a cabe�a meio inclinada, escutando com aten��o; vez por
outra, seu riso repentino flutuava pela noite. Caroline aspirou o ar frio e cortante,
sentindo uma onda de prazer pela felicidade da filha, e foi instantaneamente remetida
� sala de espera da cl�nica, com suas samambaias murchas e sua porta barulhenta,
e Norah Henry, em p� junto ao balc�o, tirando as luvas para mostrar � recepcionista
a alian�a de casamento, rindo daquele mesmo jeito.
Aquilo tinha sido quase que uma vida atr�s. Caroline havia tirado aqueles dias da
cabe�a quase por completo. E ent�o, na semana anterior, quando Al ainda estava
fora, chegara uma carta de um escrit�rio de advocacia no centro da cidade. Intrigada,
ela o abrira e lera na varanda, na friagem de novembro.
Queira ter a gentileza de entrar em contato com nosso escrit�rio, a prop�sito de uma
conta aberta em seu nome.
Havia telefonado prontamente, parada junto � janela, observando os carros em
alta velocidade enquanto o advogado lhe dava a not�cia: David Henry tinha falecido.
Na verdade, fazia tr�s meses que havia morrido. A firma estava entrando em
contato com ela a prop�sito de uma conta banc�ria que David deixara em seu nome.
Caroline apertara o fone no ouvido, sentindo alguma coisa despencar dentro dela
num po�o escuro e profundo, ao ouvir a not�cia, e estudando as raras folhas que
restavam nos sic�moros, balan�ando sob a luz fria da manh�. O advogado, a
quil�metros dali, continuara a falar. Era uma poupan�a que David tinha aberto em
conjunto no nome dos dois, de modo que estava fora do testamento e do invent�rio.
O escrit�rio se recusara a dizer por telefone quanto havia na conta. Caroline teria
que ir at� l�.
Ao desligar, ela voltara para a varanda, onde tinha passado muito tempo sentada
no balan�o, tentando assimilar a not�cia. Sentia-se chocada por David ter se lembrado
dela dessa maneira. Mais chocada ainda por ele ter morrido. O que � que ela havia
imaginado: que ela e David viveriam para sempre, de algum modo, levando suas vidas
separadas, mas ainda ligados �quele momento no consult�rio em que ele se levantara
e pusera Phoebe em seus bra�os? Que, de algum modo, um dia, quando lhe fosse conveniente,
ela o procuraria e o deixaria conhecer a filha? Os carros corriam ladeira
abaixo, num fluxo cont�nuo. Caroline n�o conseguira pensar no que fazer e, no final,
simplesmente tornara a entrar em casa e se aprontara para o trabalho, enfiando a
carta na gaveta de cima da escrivaninha, junto com as sobras de el�sticos e os clipes,
� espera de que Al voltasse e a ajudasse a pensar. Ela ainda n�o a havia mencionado -
Al andava cansad�ssimo -, mas a not�cia n�o verbalizada continuava pairando no ar
entre os dois, junto com a preocupa��o de Linda a respeito de Phoebe.
A luz do centro de atividades derramava-se na cal�ada e nos tufos marrons do
capim. Eles entraram no sal�o pela porta de vidro. Uma pista de dan�a tinha sido
montada na outra extremidade e um globo de discoteca girava no alto, espalhando
feixes de luz colorida pelo teto, pelas paredes e pelos rostos levantados. Havia m�sica,
mas ningu�m estava dan�ando. Phoebe e Robert pararam junto �s pessoas
aglomeradas, observando a luz se movendo sobre a pista vazia.
Al pendurou os casacos e, para surpresa de Caroline, pegou-a pela m�o.
- Lembra-se daquele dia no jardim, o dia em que resolvemos nos casar? Vamos
ensinar essa turma a dan�ar, o que � que voc� acha?
Caroline sentiu as l�grimas subirem depressa, ao pensar nas folhas flutuando feito
moedas naquela tarde distante, no brilho do sol e no zumbir das abelhas ao longe.
Eles haviam dan�ado na relva e, horas depois, ela segurara a m�o de Al no hospital
e dissera: Sim, eu me caso com voc�, sim.
308
Al enla�ou-a pela cintura e os dois entraram na pista de dan�a. Caroline havia
esquecido - fazia muito tempo - com que facilidade e fluidez seus corpos se moviam
juntos, a liberdade que ela sentia ao dan�ar. Deixou a cabe�a descansar no ombro
dele, aspirando a fragr�ncia de sua lo��o ap�s barba e o cheiro limpo de �leo de
motor que persistia por baixo. Al exercia uma press�o firme em suas costas, o rosto
colado no dela. Os dois come�aram a girar e, aos poucos, outros casais foram
entrando na pista de dan�a, sorrindo em sua dire��o. Caroline conhecia quase todos
os presentes, a equipe do centro de atividades, os outros pais da Upside Down, os
moradores do centro residencial vizinho. Phoebe estava na lista de espera para conseguir
um quarto l�, um lugar em que pudesse morar com v�rios outros adultos e
um respons�vel residente. Parecia ideal, sob certos aspectos - mais independ�ncia e
autonomia para Phoebe, uma resposta ao menos parcial para seu futuro -, mas a verdade
era que Caroline n�o conseguia imaginar a filha morando longe dela. A lista de
espera parecera muito longa quando elas fizeram a inscri��o, mas, no ano anterior,
o nome de Phoebe tinha subido depressa. Em pouco tempo, Caroline teria que
tomar uma decis�o. Avistou a filha nesse momento, com seu sorriso radiante e o
cabelo fino, atado pelos vivos prendedores vermelhos, entrando timidamente na
pista de dan�a com Robert.
Dan�ou mais tr�s m�sicas com Al, de olhos fechados, deixando-se deslizar, seguindo
os passos dele. Al era um bom dan�arino, leve e seguro, e a m�sica parecia
atravessar o corpo de Caroline. A voz de Phoebe tamb�m tinha esse efeito sobre ela,
quando os tons puros de seu canto vagavam pelos c�modos, levando a m�e a parar
o que estivesse fazendo e ficar im�vel, sentindo o mundo derramar-se feito luz sobre
ela. Que gostoso, murmurou Al, puxando-a para mais perto e colando o rosto no
dela. Quando a m�sica passou para um rock acelerado, ele manteve o bra�o em volta
dela ao sa�rem da pista.
Meio zonza, Caroline percorreu o sal�o com os olhos � procura de Phoebe, obedecendo
a um velho h�bito, e sentiu as primeiras pontadas de inquieta��o quando
n�o a viu.
- Eu mandei que ela fosse buscar mais ponche - disse Linda, atr�s da mesa. Fez
um gesto para apontar os refrescos e bebidas que diminu�am na mesa. - D� para
acreditar numa aflu�ncia destas, Caroline? Os biscoitinhos tamb�m est�o acabando.
- Vou buscar mais - ofereceu-se Caroline, feliz por ter um pretexto para procurar
Phoebe.
- Ela vai ficar bem - disse Al, segurando-a pela m�o e apontando para a cadeira
a seu lado.
- S� vou dar uma olhada. N�o demoro um minuto.
Cruzou os corredores vazios, muito iluminados e quietos, ainda sentindo na pele
o toque de Al. Desceu a escada e entrou na cozinha, abrindo com uma das m�os as
portas met�licas de vaiv�m e estendendo a outra para o interruptor. A fluoresc�ncia
repentina flagrou-os como uma fotografia: Phoebe, com seu vestido florido, de
costas para a bancada, e Robert bem junto, com os bra�os em volta dela e uma das
m�os subindo por sua perna. Um instante antes de os dois se virarem, Caroline
percebeu que ele ia beij�-la e que Phoebe queria ser beijada, pronta para retribuir o
beijo: Robert, seu primeiro amor de verdade. Estava com os olhos fechados, o rosto
banhado de prazer.
- Phoebe - chamou Caroline, em tom r�spido. - Phoebe e Robert, j� chega.
Os dois se afastaram, assustados, mas n�o arrependidos.
- Est� tudo bem - disse Robert. - Phoebe � minha namorada.
- Vamos nos casar - acrescentou Phoebe.
Tr�mula, Caroline procurou manter a calma. Afinal, Phoebe era uma mulher adulta.
- Robert, preciso falar com a Phoebe um minuto. A s�s, por favor.
Robert hesitou, depois passou por Caroline, com todo o seu entusiasmo
arrefecido.
- N�o � feio - disse, parando junto � porta. - Eu e a Phoebe, a gente se ama.
- Eu sei - retrucou Caroline, e a porta se fechou atr�s dele.
Phoebe continuou parada sob a luz intensa, torcendo o colar.
- A gente pode beijar a pessoa que a gente ama, mam�e. Voc� beija o Al.
Caroline assentiu com a cabe�a, lembrando-se da m�o do marido em sua cintura.
- Tem raz�o. Mas, meu bem, isso parecia mais do que um beijo.
- Mam�e! - exclamou Phoebe, exasperada. - O Robert e eu vamos casar!
Sem pensar, Caroline respondeu:
- Voc� n�o pode se casar, querida.
Phoebe olhou para cima, com uma express�o obstinada que Caroline conhecia
bem. A luz fluorescente passava por uma peneira e formava um desenho em seu rosto.
- Por que n�o?
- Benzinho, o casamento... - come�ou Caroline, e fez uma pausa, pensando em
Al, no cansa�o dele nos �ltimos tempos, na dist�ncia que ele introduzia entre os dois
toda vez que viajava. - Olhe, � complicado, meu bem. Voc� pode amar o Robert sem
se casar.
- N�o. Eu e o Robert vamos casar.
Caroline deu um suspiro.
- Est� bem. Digamos que voc�s se casem. Onde v�o morar?
- Vamos comprar uma casa - respondeu Phoebe, j� com uma express�o intensa,
s�ria. - Vamos morar l�, mam�e. Vamos ter beb�s.
- Beb�s d�o uma trabalheira enorme. Ser� que voc� e Robert sabem o trabalho
que d�o os beb�s? E eles custam caro. Como voc�s v�o pagar por essa casa? E pela
comida?
- O Robert trabalha. Eu tamb�m. Temos muito dinheiro.
- Mas voc� n�o poder� trabalhar, se estiver cuidando do beb�.
Phoebe considerou isso, franzindo o cenho, e Caroline sentiu um aperto no cora��o.
Eram sonhos t�o profundos e simples, e n�o podiam se tornar realidade, e o que
� que isso tinha de justo?
- Eu amo o Robert - insistiu Phoebe. - O Robert me ama. Depois, a Avery teve
um nen�m.
- Ah, querida! - exclamou Caroline. Lembrou-se de Avery Swan empurrando um
carrinho de beb� na cal�ada, parando para que Phoebe pudesse inclinar-se e afagar
de leve o rosto de seu beb� rec�m-nascido. - Ah, meu amor!
Cruzou o espa�o que a separava da filha e p�s as m�os em seus ombros:
- Lembra-se de quando voc� e a Avery salvaram o Chuvisco? E n�s gostamos do
Chuvisco, mas ele d� um trabalho danado. Voc� tem que esvaziar a caixa de areia e
escovar o p�lo dele, tem que arrumar a bagun�a que ele faz e abrir a porta para ele
entrar e sair, e fica muito preocupada quando ele n�o volta para casa. Ter um beb�
� ainda mais do que isso, Phoebe. Ter um beb� � como ter 20 Chuviscos.
O rosto de Phoebe murchou, e havia l�grimas descendo em seu rosto.
- N�o � justo - ela murmurou.
- N�o � justo - concordou Caroline.
Calaram-se por um momento, paradas sob a luz ofuscante.
- Escute, Phoebe, ser� que voc� pode me ajudar? - perguntou Caroline, por fim.
- A Linda tamb�m est� precisando de biscoitinhos.
Phoebe balan�ou a cabe�a e enxugou os olhos. As duas voltaram pela escada e
pelo corredor, levando caixas e garrafas, sem falar.
Mais tarde, � noite, Caroline contou a Al o que havia acontecido. Ele estava sentado
a seu lado no sof�, de bra�os cruzados, j� semi-adormecido. Ainda estava com
o pesco�o avermelhado, da barba feita mais cedo, e tinha olheiras fundas. No dia
seguinte levantaria com o sol e iria embora.
- Ela quer tanto ter sua pr�pria vida, Al! E devia ser t�o simples!
- Hum - fez ele, levantando-se. - Bom, talvez seja simples, Caroline. Outras pessoas
moram no centro residencial e parecem se arranjar bem. N�s estar�amos logo aqui.
Caroline abanou a cabe�a.
- N�o consigo imagin�-la no mundo l� fora. E, com certeza, ela n�o pode se
casar, Al. E se engravidasse? N�o estou disposta a criar outra crian�a, e � isso o que
aconteceria.
- Tamb�m n�o quero criar outro beb�.
- Talvez devamos impedir que ela veja o Robert por algum tempo.
Al virou-se para ela, surpreso.
- Voc� acha que isso seria bom?
- N�o sei - suspirou Caroline. - Simplesmente n�o sei.
- Escute s� - disse Al, delicadamente. - Desde o minuto em que eu a conheci,
Caroline, voc� tem exigido que o mundo n�o feche nenhuma porta para a Phoebe.
N�o a subestimem. Quantas vezes ouvi voc� dizer isso? Ent�o, por que n�o deixa ela
seguir em frente? Por que n�o a deixa tentar? Talvez ela goste de l�. Talvez voc� goste
da liberdade.
Caroline fixou os olhos na sanca ornamentada, pensando que ela precisava de
pintura, enquanto uma verdade dif�cil lutava para vir � tona.
- N�o consigo imaginar minha vida sem ela - disse, baixinho.
- Ningu�m est� lhe pedindo para fazer isso. Mas ela cresceu, Caroline. A� � que
est�. N�o foi para isso que voc� trabalhou a vida inteira, para que a Phoebe tivesse
algum tipo de vida independente?
- Imagino que voc� gostaria de ficar livre. Gostaria de partir, de viajar.
- E voc�, n�o?
- � claro que eu gostaria! - exclamou ela, surpresa com a intensidade de sua resposta.
- Mas, Al, mesmo que um dia venha a mudar, Phoebe nunca ser� completamente
independente. E tenho medo de que voc� se sinta infeliz com isso. Tenho medo de que
voc� nos deixe. Meu bem, voc� tem estado cada vez mais distante nesses �ltimos anos.
Al passou muito tempo calado. Por fim, perguntou:
- Por que voc� est� t�o zangada? O que foi que eu fiz para lhe dar a impress�o de
que vou embora?
- N�o estou zangada - ela se apressou a dizer, pois percebeu na voz dele que o
havia magoado. - Al, espere aqui um segundo - e se levantou, indo buscar a carta
na gaveta, do outro lado da sala. - � por isso que eu estou perturbada. N�o sei o
que fazer.
Al pegou a carta e a estudou por um longo tempo, virando-a uma vez, como se o
mist�rio pudesse ser esclarecido por alguma coisa escrita no verso, e tornou a rel�-la.
- Quanto dinheiro h� nessa conta? - perguntou, erguendo os olhos.
Ela abanou a cabe�a.
- Ainda n�o sei. Tenho que ir l� pessoalmente para descobrir.
Al acenou afirmativamente, tornando a examinar a carta.
- � estranho o modo como ele fez isso: uma conta secreta.
- Eu sei. Talvez tivesse medo de que eu contasse a Norah. Talvez tenha querido
certificar-se de que ela tivesse tempo para se acostumar com sua morte. � s� o que
eu consigo imaginar.
Pensou em Norah circulando pelo mundo, sem jamais suspeitar de que sua filha
ainda estava viva. E Paul, o que teria acontecido com ele? Era dif�cil imaginar quem
ele seria agora, aquele beb� de cabelos pretos que ela s� vira uma vez.
- O que voc� acha que devemos fazer? - indagou.
- Bem, primeiro descubra os detalhes. Vamos l� juntos ver esse tal advogado,
quando eu voltar. Posso tirar um ou dois dias de folga. Depois disso, n�o sei, Caroline.
Vamos deixar a decis�o para depois, eu acho. N�o temos que fazer nada neste
momento.
- Est� bem - fez ela, sentindo toda a consterna��o da semana anterior desaparecer.
Al fazia tudo parecer f�cil. - Estou contente por voc� estar aqui.
- Sinceramente, Caroline - disse ele, segurando-lhe a m�o. - N�o vou a lugar nenhum.
A n�o ser a Toledo, �s seis horas da manh�. Por isso, acho que vou me levantar
daqui e cair na cama.
E ent�o beijou-a na boca e a abra�ou apertado. Caroline encostou o rosto no dele,
absorvendo seu aroma e seu calor e pensando no dia em que o conhecera, no estacionamento
perto de Louisville, o dia que definira sua vida.
Al levantou-se, ainda segurando a m�o dela.
- Vamos subir? - convidou.
Caroline fez que sim e se levantou, com a m�o na do marido.
De manh�, levantou cedo e preparou o caf�, decorando os pratos de bacon com
ovos e batatas coradas com raminhos de salsa.
- Isso est� com um cheiro �timo - disse Al ao entrar, beijando-a no rosto e jogando
o jornal na mesa, junto com a correspond�ncia da v�spera. As cartas deixaram
uma sensa��o fria e ligeiramente �mida nas m�os de Caroline. Havia duas contas,
al�m de um postal luminoso do mar Egeu, com uma notinha de Dorothy no verso.
Caroline passou os dedos pela fotografia e leu a mensagem curta: "Trace torceu o
tornozelo em Paris."
- Isso � p�ssimo - comentou Al, abrindo o jornal e abanando a cabe�a diante das
not�cias sobre a elei��o. - Escute, Caroline - disse, um minuto depois, baixando o jornal.
- Estive pensando, ontem � noite. Por que voc� n�o vem comigo? Aposto que a
Linda ficaria com a Phoebe no fim de semana. Pod�amos viajar, voc� e eu. E voc� teria
uma chance de ver como a Phoebe se sai, passando um tempo sozinha. O que acha?
- Agora? Sair assim, voc� diz?
- �. Aproveitar o dia. Por que n�o?
- Ah! - exclamou ela, alvoro�ada, satisfeita, embora n�o gostasse das longas horas
na estrada. - N�o sei. Tenho muito que fazer esta semana. Quem sabe, da pr�xima
vez - apressou-se a acrescentar, sem querer rejeit�-lo.
- Pod�amos fazer umas viagens por fora, desta vez - insistiu Al. - Tornar as coisas
mais interessantes para voc�.
- A id�ia � �tima mesmo - disse Caroline, pensando com surpresa que era.
Al sorriu, desapontado, e se inclinou para beij�-la, com os l�bios frios e r�pidos
nos dela.
Depois que ele se foi, Caroline pendurou o postal de Dorothy na geladeira. Fazia
um dia frio de novembro, �mido, cinzento e prestes a nevar, e ela gostou de olhar
para aquele mar brilhante e sedutor, para a orla de areia quente. Durante toda a semana,
enquanto atendia os pacientes, preparava o jantar ou dobrava a roupa lavada,
Caroline lembrou-se do convite do marido. Pensou no beijo apaixonado
que havia interrompido entre Robert e sua filha e na institui��o residencial em que
Phoebe queria morar. Al tinha raz�o. Um dia, eles dois j� n�o estariam presentes,
e Phoebe tinha o direito de ter sua pr�pria vida.
Mas o mundo continuava cruel como sempre. Na ter�a-feira, enquanto as duas
comiam bolo de carne, pur� de batatas e vagem � mesa do jantar, Phoebe enfiou a
m�o no bolso e tirou um quebra-cabe�a de pl�stico, do tipo que tem n�meros
impressos em quadradinhos m�veis. A id�ia era ordenar os n�meros em seq��ncia
e, entre uma garfada e outra, ela os ia empurrando.
- Isso � legal - comentou Caroline, despreocupada, tomando seu leite. - Onde
voc� o arranjou, querida?
- Com o Mike.
- Ele trabalha com voc�? - perguntou � filha. - � novo l�?
- N�o - respondeu Phoebe. - Conheci ele no �nibus.
- No �nibus?
- A-h�. Ontem. Ele � legal.
- Sei.
Caroline sentiu o tempo diminuir o compasso e todos os seus sentidos se
alertarem. Teve que se obrigar a falar com calma e naturalidade.
- O Mike lhe deu esse quebra-cabe�a?
- A-h�. Ele foi bonzinho. E tem um passarinho novo. Quer me mostrar.
- � mesmo? - fez Caroline, sentindo-se perpassar por um vento frio. - Phoebe, meu
bem, voc� n�o pode nem pensar em sair com estranhos. J� conversamos sobre isso.
- Eu sei. Eu disse a ele.
Phoebe afastou o quebra-cabe�a e espremeu mais ketchup no bolo de carne.
- Ele disse: "Vamos l� em casa comigo, Phoebe." E eu falei: "Est� bem, mas primeiro
tenho que falar com a minha m�e."
- Que �tima id�ia - Caroline conseguiu dizer.
- Ent�o, posso ir? Posso ir � casa do Mike amanh�?
- Onde � que mora o Mike?
Phoebe encolheu os ombros.
- N�o sei. Eu encontro ele no �nibus.
- Todos os dias?
- A-h�. Posso ir? Quero ver o passarinho dele.
- Bem, e se eu tamb�m for? - indagou Caroline, com cuidado. - E se pegarmos o
�nibus juntas amanh�? Assim, eu posso conhecer o Mike e irei com voc� ver o passarinho.
Que tal?
- Est� bem - disse Phoebe, satisfeita, e terminou o leite.
Nos dois dias seguintes, Caroline foi e voltou do trabalho de �nibus com Phoebe,
por�m Mike n�o apareceu.
- Querida, receio que ele estivesse mentindo - disse a Phoebe na quinta-feira,
quando as duas lavavam a lou�a. Phoebe usava um su�ter amarelo e suas m�os exibiam
uns cortezinhos feitos pelo papel no trabalho. Caroline a observou apanhar
cada prato e enxug�-lo cuidadosamente, sentindo-se grata por ela estar a salvo, apavorada
com a possibilidade de que um dia n�o estivesse. Quem era esse estranho,
esse Mike, e o que teria feito com Phoebe se ela o tivesse acompanhado? Caroline
deu queixa � pol�cia, mas n�o tinha muita esperan�a de que o encontrassem. Afinal,
realmente n�o havia acontecido nada, e Phoebe n�o sabia descrever o homem, a n�o
ser para dizer que ele usava um anel de ouro e t�nis azuis.
- O Mike � bonzinho - insistia ela. - Ele n�o ia mentir.
- Meu bem, nem todas as pessoas s�o boas nem querem o melhor para voc�. Ele
n�o voltou ao �nibus, como tinha prometido. Estava tentando engan�-la, Phoebe.
Voc� precisa ter cuidado.
- Voc� sempre diz isso - retrucou Phoebe, jogando o pano de prato na bancada.
- Voc� fala isso do Robert.
- � diferente. O Robert n�o est� tentando magoar voc�.
- Eu amo o Robert.
- Eu sei.
Caroline fechou os olhos e respirou fundo.
- Escute, Phoebe, eu amo voc�. N�o quero que voc� se machuque. �s vezes, o
mundo � trai�oeiro. Eu acho que esse homem � perigoso.
- Mas eu n�o fui com ele - disse Phoebe, captando a severidade e o medo na voz
da m�e. P�s o �ltimo prato na bancada, quase chorando. - Eu n�o fui.
- Voc� foi esperta. Fez o que era certo. Nunca acompanhe ningu�m.
- A n�o ser que eles saibam a palavra.
- Isso mesmo. E a palavra � um segredo que voc� n�o conta a ningu�m.
- Estelar! - sussurrou Phoebe bem alto, com um riso radiante. - � segredo.
- � - suspirou Caroline. - Sim, � segredo.
Na manh� de sexta-feira, Caroline deu carona a Phoebe at� seu trabalho. �
tardinha, sentada no carro, esperou, olhando pela vitrine enquanto a filha se movimentava
atr�s do balc�o, encadernando documentos ou brincando com Max, sua
colega de trabalho, uma mo�a de rabo-de-cavalo que almo�ava fora com ela todas as
sextas-feiras e n�o tinha medo de repreend�-la quando ela errava uma encomenda.
Fazia tr�s anos que Phoebe trabalhava l�. Adorava o emprego e era eficiente. Caroline,
vendo-a mover-se atr�s da vidra�a, relembrou as longas horas de organiza��o, todas
as apresenta��es e as lutas e a papelada que tinham sido necess�rias para possibilitar
� filha aquele momento. E ainda faltava muita coisa. O incidente no �nibus era apenas
uma das preocupa��es. Phoebe n�o ganhava o bastante para se sustentar e simplesmente
n�o podia ficar sozinha, nem mesmo por um fim de semana. Se houvesse
um inc�ndio ou faltasse energia, ela ficaria assustada e n�o saberia o que fazer.
E, al�m disso, havia Robert. No caminho para casa, Phoebe tagarelou sobre o trabalho,
sobre Max e sobre Robert, Robert, Robert. No dia seguinte ele iria � casa delas
fazer uma torta com Phoebe. Caroline ouvia, contente por j� ser quase s�bado e Al
estar prestes a voltar. Uma coisa boa sobre o estranho do �nibus � que ele lhe dera
uma desculpa para levar Phoebe para l� e para c�, com isso limitando o tempo que
ela passava com Robert.
Quando as duas cruzaram a porta de casa, o telefone estava tocando. Caroline
suspirou. Seria um vendedor, ou um vizinho pedindo contribui��es para o fundo
dos doentes card�acos, ou ent�o engano. Chuvisco miou suas boas-vindas, enroscando-
se em seu tornozelo. - Sai, sai! - disse ela, e atendeu o telefone.
Era da pol�cia, e o policial do outro lado da linha pigarreou, pedindo para falar
com ela. Caroline ficou surpresa, depois satisfeita. Talvez eles houvessem encontrado
o homem do �nibus, afinal.
- Sim, � Caroline Simpson - disse, vendo Phoebe pegar Chuvisco no colo e abra��-lo.
O homem tornou a limpar a garganta e come�ou a falar.
Mais tarde, Caroline se lembraria desse momento como muito longo, com o tempo
se expandindo at� encher a sala toda e afund�-la numa cadeira, embora a not�cia
fosse bem simples e n�o tivesse levado muito tempo para ser transmitida. O caminh�o
de Al havia derrapado numa curva da estrada, quebrara uma mureta de
prote��o e ca�ra num barranco baixo. Al estava no hospital, com a perna quebrada;
o centro de traumatologia era o mesmo em que, muitos anos antes, Caroline havia
aceitado seu pedido de casamento.
Phoebe estava cantarolando para Chuvisco, mas pareceu intuir que havia algo
errado e levantou os olhos, intrigada, no instante em que a m�e desligou. No caminho,
Caroline lhe explicou o que tinha acontecido. Nos corredores azulejados do
hospital, descobriu-se imersa nas lembran�as daquela ocasi�o anterior: os l�bios de
Phoebe inchando, a respira��o arfante, a interven��o de Al quando ela ficara furiosa
com a enfermeira. Agora Phoebe era uma mulher adulta, caminhando a seu lado
com seu colete de trabalho; Caroline e Al estavam casados havia 18 anos.
Dezoito anos.
Ele estava acordado, com o cabelo grisalho destacando-se contra a brancura do
travesseiro. Tentou sentar-se quando as duas entraram, mas fez uma careta de dor e
tornou a se deitar lentamente.
- Ah, Al - fez Caroline, atravessando o quarto e segurando a m�o do marido.
- Eu estou bem - disse ele. Fechou os olhos por um instante e respirou fundo. Caroline
sentiu-se congelar por dentro, porque nunca o tinha visto daquele jeito, t�o
abalado que chegava a tremer um pouco, com um m�sculo pulsando no maxilar
perto da orelha.
- Ei, voc� est� come�ando a me assustar - disse ela, tentando manter um tom
descontra�do.
Al abriu os olhos e, por um instante, os dois se fitaram frontalmente, fazendo
tudo o mais desaparecer. Ele estendeu o bra�o e a tocou de leve no rosto. Caroline
apertou-lhe a pr�pria m�o, enquanto seus olhos se enchiam de l�grimas.
- O que aconteceu? - murmurou.
Ele deu um suspiro.
- N�o sei. Era uma tarde muito ensolarada. Luminosa, clara. Eu estava correndo
bem, cantando junto com o r�dio. Pensando em como seria bom se voc� estivesse l�
comigo, como t�nhamos conversado. Quando dei por mim, o caminh�o tinha sa�do
voando pela mureta. E, depois disso, n�o me lembro de nada. At� acordar aqui. Acabei
com o caminh�o. Os guardas disseram que, uns 12 metros adiante na estrada, eu
teria virado farelo.
Caroline inclinou-se e o abra�ou, sentindo seus cheiros conhecidos. O cora��o
dele batia firme no peito. Poucos dias antes, os dois haviam rodopiado juntos na
pista de dan�a, preocupados com o telhado e as calhas. Ela alisou o cabelo do marido,
j� comprido demais na nuca.
- Ah, Al.
- Eu sei. Eu sei, Caroline.
Ao lado deles, de olhos arregalados, Phoebe come�ou a chorar, sufocando os solu�os
com a m�o. Caroline reergueu o corpo e enla�ou a cintura da filha. Afagou seu
cabelo e sentiu o calor robusto de seu corpo.
- Phoebe - disse Al -, olhe s� para voc�, mal sa�da do trabalho. Voc� passou um
bom dia, fofinha? Eu n�o cheguei at� Cleveland, de modo que n�o trouxe aqueles
p�ezinhos de que voc� gosta tanto, desculpe. Fica para a pr�xima, est� bem?
Phoebe assentiu com a cabe�a, secando o rosto com as m�os.
- Cad� seu caminh�o? - perguntou, e Caroline se lembrou das vezes em que Al
levara as duas para dar uma volta, Phoebe sentada bem alto na cabine e puxando o
punho para baixo ao cruzar com outros caminh�es, para que eles tocassem a buzina.
- Est� quebrado, meu bem - respondeu Al. - Sinto muito, mas est� estra�alhado.
Al passou dois dias no hospital e foi para casa. O tempo passou num borr�o para
Caroline, levando Phoebe ao trabalho e indo ela mesma trabalhar, cuidando do
marido, preparando as refei��es, tentando dar um jeitinho na roupa. Toda noite,
ca�a na cama exausta, acordava de manh� e come�ava tudo outra vez. N�o ajudou
muito o fato de Al ser um paciente terr�vel, irritado por ter tantas restri��es, malhumorado
e exigente. Caroline teve uma lembran�a infeliz dos primeiros tempos
com Leo naquela mesma casa, como se o tempo n�o estivesse andando para a frente,
mas se fechando em c�rculos.
Passou-se uma semana. No s�bado, exausta, ela p�s uma trouxa de roupa na lavadora
e foi � cozinha preparar alguma coisa para o jantar. Tirou meio quilo de cenoura
da geladeira, para fazer uma salada, e vasculhou o congelador em busca de inspira��o.
Nada. Bem, Al n�o gostaria disso, mas talvez ela encomendasse uma pizza. J�
eram cinco horas e, em poucos minutos, teria que sair para buscar Phoebe no trabalho.
Parou de descascar a cenoura e, atrav�s de seu pr�prio reflexo na janela, olhou
para o painel luminoso da Foodland, que piscava em vermelho por entre os galhos
desnudos das �rvores, e pensou em David Henry. Tamb�m pensou em Norah, t�o
transformada em objeto nas fotos do marido, com o corpo se elevando em dunas e
o cabelo enchendo a moldura com uma luz inesperada. A carta do advogado continuava
na gaveta da escrivaninha. Caroline havia mantido o compromisso marcado
antes do acidente de Al, fora ao escrit�rio imponente, de paredes revestidas de carvalho,
e l� ficara conhecendo os detalhes do legado de David Henry. A conversa
tinha estado a semana inteira em sua cabe�a, mas ela n�o tivera tempo para pensar
no assunto nem para conversar com Al.
Houve um ru�do do lado de fora. Caroline virou-se, assustada. Pela janela da
porta dos fundos, vislumbrou Phoebe na varanda. Largou o descascador e foi at� a
porta, enxugando as m�os no avental. E ali viu o que ficara escondido pelo lado de
dentro: Robert, parado ao lado de Phoebe, com a m�o em seus ombros.
- O que voc�s est�o fazendo aqui? - perguntou em tom r�spido, passando para o
lado de fora.
- Tirei um dia de folga - respondeu Phoebe.
- Tirou? E o seu trabalho?
- A Max est� l�. Vou cobrir o hor�rio dela na segunda-feira.
Caroline balan�ou a cabe�a devagar.
- Mas como voc� veio para casa? Eu estava quase saindo para busc�-la.
- Pegamos o �nibus - disse Robert.
- Sim - riu Caroline, mas, ao falar, tinha a voz tensa de preocupa��o. - Certo.
� claro. Voc�s pegaram o �nibus. Ah, Phoebe, eu lhe disse para n�o fazer isso. N�o
� seguro.
- Eu e o Robert estamos seguros - retrucou Phoebe, projetando ligeiramente o
l�bio inferior, como fazia quando se zangava. - Eu e o Robert vamos casar.
- Ah, pelo amor de Deus! - exclamou Caroline, levada ao limite da paci�ncia.
- Como � que voc�s podem se casar? Voc�s n�o sabem nada do casamento, nenhum
dos dois.
- Sabemos - afirmou Robert. - Sabemos do casamento.
Caroline deu um suspiro.
- Escute, Robert, voc� precisa ir para casa. Voc� veio de �nibus para c�, ent�o
pode peg�-lo de volta para casa. N�o tenho tempo para lev�-lo a lugar nenhum. �
demais. Voc� precisa ir embora.
Para sua surpresa, Robert sorriu. Olhou para Phoebe, depois foi at� a parte escura
da varanda dos fundos e apanhou alguma coisa embaixo do balan�o. Voltou carregando
uma bra�ada de rosas vermelhas e brancas que pareciam brilhar de leve sob a luz
crepuscular. Entregou-as a Caroline, ro�ando-lhe a pele com as p�talas delicadas.
- Robert, o que � isso? - disse ela, surpresa, enquanto o vago perfume inundava
o ar frio.
- Comprei no dep�sito - disse ele. - Na liquida��o.
Caroline abanou a cabe�a.
- N�o estou entendendo.
- Hoje � s�bado - recordou-lhe Phoebe.
S�bado: o dia em que Al chegava de suas viagens, sempre com um presente para
Phoebe e um ramo de flores para sua mulher. Caroline imaginou os dois, Robert e
Phoebe, pegando o �nibus at� o armaz�m onde Robert trabalhava no estoque, estudando
os pre�os das flores, contando o troco exato. Parte dela ainda queria gritar,
p�r Robert de volta no �nibus e tir�-lo da vida deles, e parte queria dizer: Isso �
demais para mim. N�o me importo.
L� dentro, a sineta que ela deixara com Al tocava com insist�ncia. Caroline suspirou
e deu um passo atr�s, fazendo um gesto para a cozinha, a luz e o calor.
- Est� bem. Entrem, voc�s dois. Entrem antes de congelar.
Subiu correndo a escada, tentando se recompor. Quanto � que uma mulher tinha
que fazer?
- Espera-se que voc� seja paciente - disse, ao entrar no quarto do casal, onde Al
estava sentado com a perna apoiada numa banqueta, com um livro no colo. -Paciente.
De onde voc� acha que vem essa palavra, Al? Sei que � exasperante, mas ficar
bom demora, pelo amor de Deus.
- Era voc� quem me queria m lis tempo em casa - retrucou ele. - Tome cuidado
com as coisas que deseja.
Caroline abanou a cabe�a e se sentou na beirada da cama.
- N�o foi isso que eu desejei.
Ele olhou pela janela por alguns segundos.
- Tem raz�o - disse, por fim. - Desculpe.
- Voc� est� bem? Como est� a dor?
- D� para levar.
Do lado de fora, o vento agitava as �ltimas folhas do sic�moro contra o c�u violeta.
Havia saquinhos com bulbos de tulipas embaixo da �rvore esperando para ser
plantados. No m�s anterior, Caroline e Phoebe tinham plantado cris�ntemos, vivas
explos�es de laranja, creme e roxo. Ela se sentara sobre os calcanhares para admir�los,
sacudindo a terra das m�os e relembrando ocasi�es em que havia trabalhado
assim no jardim com a m�e, as duas unidas por suas tarefas, se bem que n�o pelas
palavras. Raramente conversavam sobre alguma coisa pessoal. E agora havia muito
que Caroline gostaria de ter dito.
- N�o vou mais fazer isso - disse Al, soltando as palavras abruptamente, sem
olhar para a mulher. - Dirigir caminh�o, quero dizer.
- Est� bem - concordou ela, tentando imaginar o que aquilo significaria para a
vida dos dois. Sentiu-se contente, pois alguma coisa em seu peito se contra�a toda vez
que o imaginava voltando a dirigir, mas tamb�m meio apreensiva, de repente. Desde
que haviam se casado, eles nunca tinham passado mais de uma semana juntos.
- Vou azucrinar o seu ju�zo o tempo todo - disse ele, como quem lesse seus pensamentos.
- Vai? - fez ela, fitando-o atentamente e observando sua palidez, seus olhos s�rios.
- Ent�o, est� planejando se aposentar de vez?
Al abanou a cabe�a, examinando as pr�prias m�os.
- Estou novo demais para isso. Andei pensando que poderia fazer outra coisa.
Como me transferir para o escrit�rio, talvez; conhe�o o sistema de fio a pavio. Ou
dirigir um �nibus municipal. N�o sei... qualquer coisa, na verdade. Mas n�o posso
pegar a estrada de novo.
Caroline assentiu com a cabe�a. Estivera no local do acidente, vira o rombo na
mureta de prote��o, as marcas no peda�o de terra em que o caminh�o tinha ca�do.
- Sempre tive uma sensa��o de que, mais dia, menos dia, isso estava fadado a
acontecer. E agora aconteceu - comentou Al, ainda olhando para as m�os. Estava
deixando a barba crescer, e os p�los curtos lhe marcavam o rosto.
- Eu n�o sabia - retrucou Caroline. - Voc� nunca disse que tinha medo.
- Medo, n�o. Era s� uma sensa��o. � diferente.
- Mesmo assim, voc� nunca disse nada.
Ele deu de ombros.
- N�o teria feito diferen�a. Era s� uma sensa��o, Caroline.
Ela balan�ou a cabe�a. Mais alguns metros e Al teria morrido, como disseram os policiais,
mais de uma vez. A semana toda ela se impedira de imaginar o que n�o havia acon
tecido. Mas a verdade � que poderia estar vi�va, enfrentando o resto da vida sozinha.
- Talvez voc� deva se aposentar - disse, lentamente. � Estive no escrit�rio do
advogado, Al. J� tinha marcado hora e fui l�. Foi muito o dinheiro que David Henry
deixou para a Phoebe.
- Bom, n�o � meu. Mesmo que seja um milh�o de d�lares, n�o � meu.
E ent�o Caroline lembrou-se de como ele havia reagido quando Dorothy lhes
doara a casa: a mesma relut�ncia em aceitar qualquer coisa que n�o tivesse ganho
com as pr�prias m�os.
- � verdade. O dinheiro � para a Phoebe. Mas voc� e eu a criamos. Se ela estiver
financeiramente garantida, podemos nos preocupar menos. Podemos ter mais liberdade.
Al, n�s demos um duro danado. Talvez seja hora de nos aposentarmos.
- Que quer dizer? Voc� quer que a Phoebe se mude?
- N�o, n�o � isso que eu quero. Mas � o que a Phoebe quer. Ela e Robert est�o l�
embaixo.
Caroline deu um sorrisinho, lembrando-se da bra�ada de rosas que deixara na
bancada da cozinha, ao lado da pilha de cenouras semidescascadas.
- Eles foram juntos ao armaz�m - explicou. - De �nibus. Compraram flores para
mim, porque hoje � s�bado. Por isso, n�o sei, Al. Quem sou eu para dizer? Pode ser
que eles fiquem bem juntos, mais ou menos.
Al balan�ou a cabe�a, pensativo, e Caroline admirou-se ao ver como parecia
cansado, como era fr�gil a vida deles todos, no fim das contas. Durante todos aqueles
anos, ela tentara imaginar todas as possibilidades, manter todos em seguran�a e,
no entanto, ali estava Al, um pouco mais envelhecido e com uma perna quebrada um
desfecho que nunca lhe havia passado pela cabe�a.
- Amanh� vou fazer bife de panela - disse Caroline, referindo-se ao prato favorito
do marido. - Que tal uma pizza hoje?
- Pizza est� �timo - respondeu ele. - Mas pe�a daquele lugar na Rua Braddock.
Caroline afagou-lhe o ombro e come�ou a descer a escada para telefonar. No patamar,
fez uma pausa, ouvindo Robert e Phoebe na cozinha, as vozes baixas pontilhadas
por explos�es de riso. O mundo era um lugar vasto e imprevis�vel, �s vezes
assustador. Mas, nesse exato momento, sua filha estava na cozinha, rindo com o namorado,
e seu marido cochilava com um livro no colo, e ela n�o precisava preparar
o jantar. Respirou fundo. O ar tinha o aroma distante de rosas - um aroma limpo e
fresco como a neve.
1.� DE JULHO DE 1989
OEST�DIO ACIMA DA GARAGEM, COM SEU QUARTO ESCURO OCULTO. N�O
fora aberto desde a mudan�a de David, sete anos antes, mas, agora que a
casa estava � venda, Norah n�o tinha alternativa sen�o enfrent�-lo. A obra de David
voltara a ser requisitada e valia muito dinheiro; no dia seguinte haveria uma visita
de curadores para examinar a cole��o. Assim, Norah estivera sentada no piso decorado
desde as primeiras horas da manh�, abrindo caixas com um estilete, tirando
pastas cheias de fotografias, negativos e anota��es, decidida a se manter neutra e a
ser implac�vel nesse processo de sele��o. N�o deveria levar muito tempo: David
tinha sido muito meticuloso e tudo estava cuidadosamente rotulado. Um dia s�, ela
havia pensado, nada mais.
Mas n�o tinha levado em conta a mem�ria, a lenta atra��o do passado. J� era o
come�o da tarde, estava ficando mais quente e ela s� havia terminado uma caixa.
Um ventilador zumbia na janela e o suor fino se acumulava na pele; as fotos brilhantes
grudavam nas pontas dos dedos. Aqueles anos da juventude pareciam, a um
s� tempo, muito pr�ximos e totalmente imposs�veis. Ali estava ela, com um len�o
alegremente amarrado no cabelo, penteado com esmero, tendo a seu lado Bree, que
usava brincos enormes e uma saia esvoa�ante de retalhos coloridos. E ali estava uma
rara foto de David, muito s�rio, com o cabelo � escovinha, segurando Paul no colo,
ainda beb�. As lembran�as tamb�m tomavam conta, enchendo o aposento e mantendo
Norah encerrada nele: os aromas de lilases e desinfetante e da pele infantil de
Paul; o toque das m�os de David, seu jeito de pigarrear; o sol de uma tarde perdida,
formando desenhos nas t�buas do piso. O que significava, perguntou-se Norah, eles
terem vivido aqueles momentos daquela forma particular? O que significava o fato
de as fotos n�o combinarem nem um pouco com a mulher que ela se recordava de
ter sido? Se examinasse com aten��o, ela os veria: a dist�ncia e a saudade em seu
olhar, seu jeito de sempre parecer fitar um ponto logo adiante das bordas da
fotografia. Mas um estranho n�o notaria; Paul tamb�m n�o. A julgar apenas por
aquelas imagens, ningu�m poderia suspeitar dos intricados mist�rios de seu cora��o.
Uma vespa entrou a esmo e esvoa�ou perto do teto. Todo ano elas voltavam e constru�am
um vespeiro em algum ponto do beiral. Agora que Paul estava criado, Norah
desistira de se preocupar com elas. Levantou-se, estendeu a m�o e tirou uma Coca-
Cola da geladeira em que antes David costumava guardar produtos qu�micos e pacotes
finos de filme. Bebeu o refrigerante, olhando pela janela para as �ris silvestres e
as madressilvas do quintal. Norah sempre tivera a inten��o de fazer alguma coisa com
elas, de fazer mais do que apenas pendurar comedouros para passarinhos nos ramos
das madressilvas, mas n�o o fizera em todos aqueles anos e agora jamais o faria. Dali
a dois meses estaria casada com Frederic e teria deixado esse lugar para sempre.
Ele fora transferido para a Fran�a. Por duas vezes a transfer�ncia havia gorado, e
eles tinham falado em morar juntos em Lexington, vendendo suas respectivas casas e
recome�ando do zero: um lugar novo em folha, onde ningu�m jamais tivesse vivido.
Suas conversas eram pregui�osas, l�nguidas, desabrochando nos jantares a dois ou
quando eles ficavam deitados juntos na penumbra, com ta�as de vinho nas mesinhasde-
cabeceira e a lua desenhando um disco p�lido na janela, acima das �rvores. Lexington,
Fran�a, Taiwan, isso n�o tinha import�ncia para Norah, que sentia j� haver descoberto
em Frederic um outro pa�s. �s vezes, � noite, fechava os olhos e ficava acordada,
ouvindo a respira��o regular dele, tomada por uma profunda sensa��o de contentamento.
Era-lhe doloroso reconhecer o quanto ela e David haviam se distanciado do
amor. Culpa dele, com certeza, mas dela tamb�m. Norah se mantivera muito fechada
e tensa, com medo de tudo depois da morte de Phoebe. Mas agora aqueles anos eram
coisa do passado; haviam escoado para longe, sem deixar nada al�m de lembran�as.
Por isso, a Fran�a estava �tima. Ao chegar a not�cia de que a coloca��o os faria
morar nos arredores de Paris, ela ficara contente. Os dois j� tinham alugado um
chalezinho � beira do rio em Ch�teauneuf. Frederic estava l� nesse momento montando
uma estufa para suas orqu�deas. A simples id�ia da estufa enchia a imagina��o
de Norah: as lajotas lisas e vermelhas do p�tio, a brisa leve do rio na �rvore ao lado
da porta e o sol se derramando sobre os ombros e os bra�os de Frederic, enquanto
ele trabalhava na montagem das paredes de vidro. Norah poderia ir a p� at� a esta��o
ferrovi�ria e estar em Paris em duas horas, ou andar at� o vilarejo para comprar
p�o e queijo frescos e garrafas escuras e reluzentes de vinho, com as sacolas pen
duradas a tiracolo ficando mais pesadas a cada parada. Ela poderia refogar cebolas
e fazer uma pausa para olhar o rio deslizando devagar, mais al�m da cerca. No p�tio,
nas noites que ela havia passado l�, as margaridas-do-campo tinham se aberto, com
sua fragr�ncia de lim�o, e Norah e Frederic haviam sentado para tomar vinho e conversar.
Eram coisas realmente muito simples. Tanta felicidade! Norah olhou de
relance para as caixas de fotografias, com vontade de segurar pelo bra�o a jovem que
ela fora e sacudi-la de leve. V� em frente, sentiu vontade de lhe dizer. N�o desista. No
fim, sua vida ser� �tima.
Acabou a Coca-Cola e voltou ao trabalho, deixando de lado a caixa em que se
fixara por tanto tempo e abrindo outra. Dentro dessa havia pastas de arquivo dispostas
com esmero, organizadas por ano. A primeira tinha fotos de beb�s an�nimos,
dormindo em seus carrinhos, sentados na grama ou em varandas, segurados nos
bra�os mornos de suas m�es. Todas as fotos eram 20 x 25 cm, em preto-e-branco
lustroso; at� Norah era capaz de perceber que tinham sido as primeiras experi�ncias
de David com a luz. Os curadores ficariam satisfeitos. Algumas fotos eram t�o
escuras que as figuras mal se mostravam vis�veis; outras eram quase brancas de claridade.
David provavelmente estivera testando o alcance de sua m�quina fotogr�fica,
mantendo id�ntico o tema e variando o foco, a abertura e a luz dispon�vel.
A segunda pasta era muito parecida, assim como a terceira e a quarta. Fotos de
meninas, n�o mais beb�s, por�m de dois, tr�s, quatro anos. Meninas com seus vestidos
de P�scoa na igreja, meninas correndo no parquinho, meninas tomando sorvete
ou aglomeradas na parte externa da escola, na hora do recreio. Meninas dan�ando,
jogando bola, rindo, chorando. Norah franziu a testa, percorrendo as imagens mais
depressa. N�o havia uma s� crian�a que reconhecesse. As fotos tinham sido cuidadosamente
dispostas conforme a idade. Ao pular para o fim do conjunto, ela j� n�o
encontrou meninas, por�m mo�as andando, fazendo compras, conversando entre si.
A �ltima era de uma jovem na biblioteca, com o queixo apoiado numa das m�os,
olhando pela janela, trazendo nos olhos uma express�o distante que Norah conhecia.
Ela deixou a pasta cair em seu colo, espalhando as fotos. O que seria aquilo? Todas
aquelas meninas e mo�as: podia ter sido uma fixa��o sexual, mas Norah soube
instintivamente que n�o era isso. O que havia em comum entre as fotografias n�o
era um tra�o sinistro, e sim inoc�ncia. Crian�as brincando no parque do outro lado
da rua com o vento a lhes levantar o cabelo e a roupa. At� as mais velhas, as mo�as
crescidas, tinham essa qualidade: dirigiam ao mundo um olhar distra�do, como que
arregalado, e questionador. A id�ia de perda pairava nos jogos de luz e sombra; eram
fotografias repletas de anseio. De saudade, sim, n�o de lasc�via.
Norah rep�s a tampa na caixa para ler a etiqueta: LEVANTAMENTO, era tudo o que
dizia.
Depressa, sem se preocupar com a bagun�a que estava fazendo, ela percorreu as
demais caixas, puxando uma ap�s outra. No meio da sala, encontrou mais uma que
trazia em negrito a mesma palavra, LEVANTAMENTO . Abriu-a e tirou as pastas.
N�o eram meninas, dessa vez, nem estranhos, mas Paul. Uma pasta ap�s outra
com fotos de Paul em todas as idades, suas transforma��es e seu crescimento, sua
f�ria recha�adora. Sua concentra��o e seu espantoso talento musical, os dedos a
voar sobre o viol�o.
Durante um longo tempo, Norah sentou-se muito quieta, tensa, � beira da compreens�o.
E ent�o, de repente, entendeu, de maneira irrevog�vel, contundente: durante
aqueles anos de sil�ncio em que se recusara a falar da filha morta, David estivera
guardando o registro da aus�ncia dela. Paul e mil outras meninas, todos
crescendo.
Paul, mas n�o Phoebe.
Por pouco Norah n�o chorou. Teve uma s�bita �nsia de conversar com David.
Durante aqueles anos, ele tamb�m sentira falta da filha. Todas aquelas fotografias, toda
aquela saudade secreta, silenciosa. Norah percorreu as imagens mais uma vez, estudando
Paul quando menino: agarrando uma bola de beisebol, tocando piano,
fazendo uma pose apatetada sob a �rvore do quintal. Lembran�as que David tinha
colecionado, momentos que Norah nunca vira. Ela as estudou de novo e de novo, tentando
imaginar-se no mundo que o marido tinha vivenciado, em seu jeito de v�-lo.
Passaram-se duas horas. Norah se deu conta de estar com fome, mas n�o conseguiu
sair ou sequer levantar do lugar em que estava no ch�o. Tantas fotografias,
aquelas imagens de Paul, as meninas e mo�as an�nimas, espelhando a idade dele!
Em todos aqueles anos, ela sempre havia sentido a presen�a da filha, como uma
sombra parada logo adiante de cada foto tirada. Phoebe, morta ao nascer, pairava
pouco al�m do campo visual, como se houvesse levantado minutos antes e sa�do da
sala, como se o seu perfume e a lufada de ar � sua passagem ainda se movessem nos
espa�os que ela havia deixado. Norah tivera que guardar esse sentimento dentro de
si, temendo que quem a ouvisse pudesse ach�-la sentimental ou at� louca. E, nesse
momento, espantou-a e lhe trouxe l�grimas aos olhos perceber a intensidade com
que David tamb�m sentira a aus�ncia da filha. Parecia haver procurado por ela em
toda parte - em cada menina, em cada mo�a -, sem jamais encontr�-la.
Por fim, nos crescentes an�is de sil�ncio em que Norah se instalara, houve um
estalar leve de cascalho: um carro na entrada da garagem. Havia algu�m chegando.
Ao longe, ela escutou uma porta de autom�vel bater, passos e a campainha da casa
tocando. Abanou a cabe�a e engoliu em seco, mas n�o se levantou. Fosse quem fosse,
a pessoa iria embora e voltaria depois, ou n�o. Enxugou as l�grimas dos olhos; quem
quisesse v�-la poderia esperar. Mas n�o. O avaliador dos m�veis prometera dar uma
passada na parte da tarde. E, assim, Norah levou as m�os ao rosto e entrou na casa
pelos fundos, parando para salpicar �gua na face e passar um pente no cabelo. "J�
vou", gritou sobre o barulho da �gua corrente, quando a campainha tornou a soar.
Cruzou os c�modos, onde toda a mob�lia estava acumulada no centro e coberta por
oleados; os pintores chegariam no dia seguinte. Fez as contas dos dias que restavam,
considerando se teria alguma possibilidade de terminar tudo. E recordou por um
instante as noites passadas em Ch�teauneuf, onde parecia poss�vel que sua vida fosse
sempre serena, expandindo-se na calma como uma flor que desabrocha no ar.
Abriu a porta, ainda enxugando as m�os.
A mulher na varanda tinha um jeito vagamente familiar. Usava uma roupa funcional
- cal�as azul-marinho bem passadas e blusa branca de algod�o, de mangas
curtas -, e sua cabeleira farta era grisalha, com um corte bem curtinho. Mesmo �
primeira vista, ela dava a impress�o de ser organizada e eficiente, o tipo de pessoa
que n�o perdia tempo com bobagens, o tipo de pessoa que enfrentava o mundo e
fazia o que tinha que ser feito. Mas ela n�o falou. Pareceu assustada ao ver Norah, fitando-
a de forma t�o intensa que ela cruzou os bra�os, num gesto defensivo, subitamente
c�nscia de seu short riscado de poeira e da camiseta encharcada de suor.
Norah olhou para o outro lado da rua e tornou a fitar a mulher em sua varanda.
Contemplou-a, concentrando-se nos olhos grandes e muito azuis, e ent�o soube.
Sentiu a respira��o presa.
- Caroline? Caroline Gill?
A mulher assentiu com a cabe�a, os olhos azuis momentaneamente fechados,
como se algo se houvesse resolvido entre as duas. Mas Norah n�o sabia o qu�. A presen�a
dessa mulher de um passado h� muito perdido tinha desencadeado uma palpita��o
no fundo de seu peito, levando-a de volta �quela noite de ar on�rico em que
ela e David tinham ido para a cl�nica pelas ruas silenciosas e cobertas de neve, a noite
em que Caroline Gill lhe ministrara o anest�sico e segurara sua m�o durante as contra��es,
dizendo: Olhe para mim, olhe para mim, Sra. Henry, eu estou bem aqui do seu
lado e a senhora est� indo muito bem. Aqueles olhos azuis, o aperto firme da m�o,
entremeados t�o a fundo no tecido daqueles momentos quanto a lembran�a do jeito
met�dico de David dirigir, ou do primeiro choro de Paul.
- O que est� fazendo aqui? - perguntou Norah. - David morreu h� um ano.
- Eu sei - fez Caroline, balan�ando a cabe�a. - Eu sei, sinto muito. Escute, Norah...
Sra. Henry..., tenho uma coisa que preciso lhe falar, uma coisa bastante dif�cil.
Ser� que pode me dar alguns minutos? Quando for conveniente? Eu posso voltar
depois, se agora n�o for uma boa hora.
Havia na voz dela prem�ncia e firmeza e, a despeito de si mesma, Norah viu-se
dando um passo atr�s e deixando Caroline Gill entrar no vest�bulo. Empilhadas junto
�s paredes havia caixas cuidadosamente embaladas e fechadas com fita adesiva.
- Voc� ter� que desculpar a desarruma��o da casa - disse, fazendo um gesto em
dire��o � sala de estar, onde toda a mob�lia foram empurrada para o meio do c�modo.
- Os pintores vir�o fazer or�amentos amanh�. E um avaliador dos m�veis. Vou
me casar outra vez - acrescentou. - Estou de mudan�a.
- Nesse caso, que bom que eu a alcancei - retrucou Caroline. - Fico feliz por n�o
ter esperado.
Alcan�ou por qu�?., pensou Norah, mas, pela for�a do h�bito, convidou-a a entrar
na cozinha, o �nico lugar em que poderiam sentar-se comodamente. Quando atravessavam
a sala de jantar, sem dizer nada, Norah lembrou-se de como foi s�bito o
desaparecimento de Caroline, e do esc�ndalo. Olhou para tr�s duas vezes, sem conseguir
livrar-se da estranha sensa��o que a presen�a dela havia desencadeado. Os
�culos escuros pendiam de uma corrente no pesco�o de Caroline. Suas fei��es tinham-
se tornado mais fortes com o correr dos anos, o nariz e o queixo mais pronunciados.
N�o era algu�m a quem se pudesse tratar com descaso. Mas Norah
percebeu que sua inquieta��o tinha outra origem. Caroline a conhecera como uma
pessoa diferente - uma mulher jovem e insegura, inserida numa vida e num passado
que ela n�o se orgulhava particularmente de relembrar.
Caroline sentou-se � mesa da copa, enquanto Norah enchia dois copos com �gua
e gelo. O �ltimo bilhete de David - Consertei a pia do banheiro. Feliz anivers�rio estava
preso no quadro de avisos, bem atr�s do ombro da enfermeira. Norah pensou
com impaci�ncia nas fotos que a esperavam na garagem, em tudo o que tinha
para fazer e que n�o podia esperar.
- Voc� tem azul�es - comentou Caroline, fazendo sinal para o jardim mal cuidado,
ca�tico.
- �. Levei anos para atra�-los. Espero que os novos moradores os alimentem.
- Deve ser estranho estar de mudan�a.
- Est� na hora - disse Norah, pegando dois descansos e pondo os copos na mesa.
Sentou-se. - Mas voc� n�o veio aqui para falar disso.
- N�o.
Caroline bebeu um gole, depois espalmou as m�os sobre a mesa, como que para
firm�-las, intuiu Norah. Ao falar, por�m, soou calma, decidida.
- Norah... posso cham�-la de Norah? � assim que tenho pensado em voc�,
durante todos esses anos.
Norah assentiu com um gesto, ainda perplexa e cada vez mais apreensiva. Quando
fora a �ltima vez que Caroline Gill lhe havia passado pela cabe�a? Fazia s�culos,
e nunca acontecera sen�o como parte da trama da noite em que Paul havia nascido.
- Norah - disse Caroline, como que se preparando mentalmente -, que lembran�a
voc� tem da noite em que seu filho nasceu?
- Por que est� perguntando? - retrucou Norah. Falou com voz firme, mas j� come�ava
a se inclinar para tr�s, afastando-se da intensidade dos olhos de Caroline, de
uma corrente profunda e revolta, de seu pr�prio medo do que estava por vir. - Por
que voc� est� aqui e por que me pergunta isso?
Caroline Gill n�o respondeu de imediato. O canto alegre e ritmado dos azul�es
cruzou o aposento como part�culas de luz.
- Olhe, desculpe-me - fez Caroline. - N�o sei como dizer isso. Acho que n�o h�
nenhuma forma f�cil, de modo que vou falar de uma vez. Norah, naquela noite em
que seus g�meos nasceram, a Phoebe e o Paul, houve um problema.
- Sim - fez Norah em tom cortante, pensando na tristeza que sentira depois do
parto, alegria e tristeza entremeadas, e no longo e �rduo caminho que havia percorrido
para chegar a esse momento de calma inabal�vel. - Minha filha morreu. Foi
esse o problema.
- A Phoebe n�o morreu - retrucou Caroline, sem alterar a voz, fitando-a diretamente,
e Norah sentiu-se capturada nesse momento como ficara tantos anos antes,
agarrada �quele olhar, enquanto o mundo conhecido rodopiava a seu redor. -A
Phoebe nasceu com s�ndrome de Down. O David achou que o progn�stico n�o era
bom. Pediu que eu a levasse a Louisville, a uma cl�nica para onde essas crian�as eram
rotineiramente mandadas. Em 1964, n�o era incomum fazer isso. A maioria dos m�dicos
teria recomendado a mesma coisa. Mas n�o consegui deix�-la l�. Levei-a comigo
e me mudei para Pittsburgh. Criei-a durante todos esses anos. Norah - acrescentou,
em tom delicado -, a Phoebe est� viva. Est� muito bem.
Norah permaneceu sentada, im�vel. Os p�ssaros no jardim esvoa�avam, cantando.
Por alguma raz�o, ela se lembrou da ocasi�o em que ca�ra num bueiro sem placa
de aviso na Espanha. Ia andando despreocupada por uma rua banhada de sol. De
repente, um movimento brusco, e ela se vira enfiada at� a cintura numa vala, com
um tornozelo torcido e longos arranh�es ensang�entados nas panturrilhas. Eu estou
bem, estou bem, ficara repetindo para as pessoas que a tinham ajudado a sair e levado
para o m�dico. Animada, despreocupada, enquanto o sangue brotava dos cortes:
Estou bem. S� depois, sozinha e segura em seu quarto, ao fechar os olhos e sentir de
novo aquele tranco brusco, aquela perda de controle, � que havia chorado. Foi como
se sentiu nesse momento. Tr�mula, agarrou-se � borda da mesa.
- Como? O que foi que voc� disse?
Caroline repetiu: Phoebe, n�o morta, mas levada para longe. Todos aqueles anos.
Phoebe, crescendo em outra cidade. A salvo, Caroline continuava a dizer. Segura,
bem cuidada, amada. Phoebe, sua filha, a g�mea de Paul. Nascida com s�ndrome de
Down, mandada embora.
David a mandara embora.
- Voc� deve estar louca - disse Norah, ainda que, no instante mesmo em que falou,
tantas fossem as pe�as soltas de sua vida a se encaixar que ela compreendeu que
o que Caroline dizia devia ser verdade.
Caroline tirou da bolsa duas fotos Polaroid e as deslizou sobre a madeira polida.
Norah n�o conseguiu peg�-las, porque tremia demais, por�m se inclinou para examin�-
las: uma garotinha de vestido branco, rechonchuda, com um sorriso a lhe iluminar
o rosto e os olhos amendoados fechados de prazer. Outra foto da mesma menina,
anos depois, prestes a lan�ar uma bola de basquete, captada um instante antes
de saltar. Numa das fotos era meio parecida com Paul, na outra lembrava Norah um
pouco, mas, basicamente, era apenas ela mesma: Phoebe. N�o uma das imagens t�o
cuidadosamente arquivadas nas pastas de David, mas apenas ela mesma. Viva, em
algum lugar do mundo.
- Mas por qu�? - a ang�stia era aud�vel em sua voz. - Por que ele faria isso? Por
que voc� faria uma coisa dessas?
Caroline abanou a cabe�a e tornou a olhar para o jardim.
- Passei anos acreditando na minha inoc�ncia - respondeu. - Achei que tinha
feito o que era certo. A institui��o era um lugar terr�vel. David n�o a tinha visto, n�o
sabia como era ruim. Por isso levei Phoebe e a criei, e travei muitas, muitas batalhas
para lhe dar instru��o e acesso a assist�ncia m�dica. Para me certificar de que ela
tivesse uma vida boa. Era f�cil eu me ver como uma hero�na. Mas acho que, no
fundo, eu sempre soube que meus motivos n�o eram inteiramente puros. Eu queria
um filho e n�o o tinha. E estava apaixonada pelo David, ou julgava estar. A dist�ncia,
quero dizer - apressou-se a acrescentar. - Era tudo na minha cabe�a. O David
nunca sequer me notou. Mas, quando vi o an�ncio do funeral, eu soube que tinha
que lev�-la. Que tinha de ir embora, de qualquer maneira, e n�o podia deix�-la para tr�s.
Apanhada numa violenta turbul�ncia, Norah voltou mentalmente �queles dias
confusos de tristeza e alegria, com Paul no colo e Bree a lhe entregar o telefone,
dizendo: Voc� tem que acabar com isso. Norah havia planejado todo o of�cio f�nebre
sem contar a David, cada provid�ncia ajudando-a a voltar � vida, e, quando David
chegara em casa naquela noite, ela havia enfrentado sua resist�ncia.
Como teria sido aquilo para ele, aquela noite, a cerim�nia?
Mesmo assim, David deixara tudo acontecer.
- Mas por que ele n�o me contou? - perguntou Norah num sussurro. - Todos
aqueles anos, e ele nunca me contou.
Caroline abanou a cabe�a.
- N�o posso falar pelo David. Ele sempre foi um mist�rio para mim. Sei que
amava voc� e acredito, por mais monstruoso que isso tudo pare�a, que as inten��es
iniciais dele foram boas. Uma vez ele me falou da irm�. Contou que ela sofria de um
problema card�aco e tinha morrido na inf�ncia, e que a m�e dele n�o havia se
recuperado do luto. N�o posso garantir, mas acho que ele tentou proteger voc�.
- Ela � minha filha - disse Norah, arrancando as palavras de algum ponto profundo
no corpo, de uma antiga m�goa h� muito enterrada. - Nasceu da minha
carne. Proteger-me? Dizendo que minha filha tinha morrido?
Caroline n�o respondeu e as duas permaneceram muito tempo sentadas, com o
sil�ncio crescendo � sua volta. Norah pensou em David, em todas aquelas
fotografias e todos os momentos da vida conjugal, carregando consigo aquele
segredo. Ela n�o sabia, n�o tinha imaginado. Mas, agora, tudo fazia uma esp�cie
terr�vel de sentido.
Por fim, Caroline abriu a bolsa e tirou um peda�o de papel com seu endere�o e
telefone.
- � nesse endere�o que moramos. Meu marido, Al, Phoebe e eu. Foi l� que a
Phoebe cresceu. Ela tem levado uma vida feliz, Norah. Sei que n�o � muito para lhe
oferecer, mas � verdade. Ela � uma mo�a encantadora. No m�s que vem, vai se mudar
para uma institui��o residencial. � o que ela quer. Tem um bom emprego numa
loja de fotoc�pias. Gosta de l� e as pessoas gostam dela.
- Uma loja de fotoc�pias?
- �. Ela tem se sa�do muito bem, Norah.
- Ela sabe? Ela sabe de mim? Do Paul?
Caroline baixou os olhos para a mesa, correndo o dedo pela borda de uma das fotos.
- N�o. Eu n�o quis contar a ela antes de falar com voc�. N�o sabia o que voc� ia
querer fazer, se gostaria de conhec�-la. Espero que sim. Mas � claro que n�o vou
culp�-la, se n�o quiser. S�o tantos anos... ah, eu sinto muito. Mas, se voc� quiser ir
l�, estaremos esperando. � s� telefonar. Na semana que vem ou daqui a um ano.
- N�o sei - disse Norah, devagar. - Acho que estou em choque.
- � claro que est� - disse Caroline, levantando-se.
- Posso ficar com as fotos?
- S�o suas. Sempre foram suas.
Na varanda, Caroline parou e encarou Norah.
- Ele a amava muito. David sempre amou voc�, Norah.
Norah assentiu com a cabe�a, lembrando-se de ter dito a mesma coisa a Paul, em
Paris. Da varanda, viu Caroline caminhar em dire��o ao carro e se perguntou sobre a
vida para a qual ela estaria voltando, sobre as complexidades e mist�rios que conteria.
Ficou muito tempo na varanda. Phoebe estava viva, no mundo. Saber disso era
como um po�o intermin�vel abrindo-se em seu cora��o. Amada, Caroline dissera.
Bem cuidada. Mas n�o por Norah, que tanto se esfor�ara por esquec�-la. Os sonhos
que tivera, toda aquela busca pela relva congelada e quebradi�a, tudo lhe voltou �
lembran�a, contundente.
Norah tornou a entrar em casa, j� ent�o chorando, e passou pela mob�lia coberta.
O avaliador iria l�. Paul tamb�m chegaria, hoje ou amanh�; tinha prometido telefonar
antes, mas �s vezes simplesmente aparecia. Ela lavou e enxugou os copos,
depois ficou parada na cozinha silenciosa, pensando em David, em todas as noites
de todos aqueles anos em que ele se levantara no escuro e fora para o hospital para
remendar algu�m de ossos quebrados. Boa pessoa, o David. Dirigia uma cl�nica, cuidava
dos necessitados.
Mandara embora a pr�pria filha e lhe dissera que ela havia morrido.
Norah deu um soco na bancada, fazendo os copos saltarem. Preparou um gim-t�nica
e vagou at� o segundo andar. Deitou-se, levantou-se, telefonou para Frederic e
desligou quando a secret�ria eletr�nica atendeu. Passado algum tempo, voltou ao est�dio
de David. Estava tudo igual, o ar quente e parado, as fotografias e caixas espalhadas
pelo ch�o, tal como as havia deixado. Pelo menos 50 mil d�lares, tinham avaliado os
curadores. Mais at�, se houvesse anota��es manuscritas por David sobre seu processo.
Estava tudo igual, mas n�o era a mesma coisa.
Norah pegou o primeiro caixote e o arrastou pelo c�modo. I�ou-o para a bancada,
equ�ibrou-o no parapeito da janela que dava para o quintal. Parou para recobrar
o f�lego, antes de abrir a tela e empurrar o caixote para fora, com firmeza, usando as
duas m�os, e de ouvi-lo cair com um baque no ch�o, l� embaixo. Voltou para buscar
outro, depois o seguinte. Ela era tudo que havia desejado ser mais cedo: decidida,
en�rgica - sim, implac�vel. Em menos de uma hora, o est�dio estava vazio. Norah
tornou a entrar em casa, passando pelos caixotes quebrados na entrada da garagem,
pelas fotos que saltavam e se precipitavam pela grama, ao sol de fim de tarde.
L� dentro, tomou um banho de chuveiro, de p� sob a �gua corrente at� ela ficar
fria. P�s um vestido solto, preparou outro drinque e se sentou no sof�. Os m�sculos
dos bra�os estavam do�dos, de tanto levantar caixotes. Ela buscou outro drinque e
voltou. Horas depois, quando j� estava escuro, ainda continuava l�. O telefone tocou
e ela ouviu sua voz na grava��o, depois a de Frederic, ligando da Fran�a. A voz dele
era suave e serena como uma praia distante. Norah sentiu vontade de estar l�, de
estar naquele lugar onde sua vida fizera sentido, mas n�o atendeu o telefone e n�o
ligou de volta. Ao longe, soou o apito de um trem. Ela se cobriu com a manta e se
deixou deslizar para a escurid�o da noite.
Tirou v�rios cochilos, mas n�o dormiu. Levantou-se algumas vezes para buscar
mais uma bebida, percorrendo os c�modos enluarados e vazios, cheios de sombras,
enchendo o copo pelo tato. Sem se incomodar, depois de algum tempo, com a t�nica,
o lim�o ou o gelo. A certa altura, sonhou que Phoebe estava na sala, emergindo
de algum modo da parede em que estivera durante todos aqueles anos e pela qual
Norah passava dia ap�s dia, sem v�-la. Acordou chorando. Derramou o resto do gim
na pia e tomou um copo d'�gua.
Finalmente adormeceu, ao amanhecer. Ao meio-dia, quando acordou, a porta da
frente estava escancarada e, no quintal, havia fotografias por toda parte: presas nos
rododendros, coladas nas pilastras, grudadas no balan�o velho e enferrujado de
Paul. Lampejos de bra�os e olhos, de pele semelhante � areia da praia, um vislumbre
de cabelos, de hem�cias dispersas feito �leo sobre a �gua. Vislumbres da vida
deles tal como David os vira, tal como David tentara mold�-los. Negativos, celul�ide
preto, espalhados pela grama. Norah imaginou as vozes chocadas e escandalizadas
dos curadores, dos amigos, do filho, at� de uma parte dela mesma; imaginou-as
exclamando: Mas voc� est� destruindo a hist�ria!
N�o, respondeu consigo mesma, eu a estou resgatando.
Bebeu mais dois copos d'�gua, tomou uma aspirina e come�ou a arrastar os
caixotes para o fundo do quintal cheio de plantas. Um deles, o que estava repleto de
imagens de Paul durante sua vida inteira, ela empurrou de volta para a garagem,
para guard�-lo. Fazia calor e a cabe�a de Norah do�a; centelhas rodopiaram diante
de seus olhos quando ela ergueu o corpo depressa demais. Isso lhe trouxe � lembran�a
aquele dia long�nquo na praia, a �gua cintilante, a sensa��o de vertigem e a imagem
de Howard entrando em seu campo visual.
Havia pedras empilhadas atr�s da garagem. Uma a uma, Norah as arrastou e as
disp�s num amplo c�rculo. Nele derrubou o primeiro caixote, as lustrosas imagens
em preto-e-branco estremecendo � luz do sol, todos aqueles rostos desconhecidos
de mo�as a fit�-la da grama. Agachando-se sob o sol forte do meio-dia, acendeu o
isqueiro junto � borda de uma brilhante foto 20 x 25 cm. Quando a chama se inflamou
e subiu, ela empurrou a foto para a pilha rasa no c�rculo de pedras. No come�o,
o fogo pareceu n�o pegar. Mas logo apareceram uma ondula��o de calor e uma espiral
de fuma�a.
Norah entrou em casa para buscar mais um copo d'�gua. Sentou-se no degrau da
varanda dos fundos, bebericando e observando as chamas. Um decreto municipal
recente havia proibido qualquer tipo de incinera��o, e ela sentiu medo de que os vizinhos
chamassem a pol�cia. Mas o ar continuou calmo; at� as labaredas eram silenciosas,
elevando-se no ar quente, soltando uma fuma�a fina e azulada, da cor da
bruma. Pedacinhos de papel enegrecido flutuaram pelo quintal, esvoa�ando nas
ondas de calor feito borboletas. � medida que o fogo no c�rculo de pedras firmou-
se e come�ou a crepitar, Norah o alimentou com mais fotos. Queimou a luz, queimou
as sombras, queimou aquelas lembran�as de David, cuidadosamente capturadas
e preservadas. Seu patife, murmurou, vendo as fotografias acenderem-se em
chamas altas, antes de escurecerem, se enroscarem e sumirem.
Da luz para a luz, pensou consigo mesma, afastando-se do calor, do crepitar, dos
res�duos pulverizados que rodopiavam no ar.
Das cinzas �s cinzas.
Do p�, finalmente, ao p�.
2-4 DE JULHO DE 1989
LHE. PARA VOC� � F�CIL DIZER ISSO AGORA. PAUL.
Michelle estava de p� junto � janela, de bra�os cruzados, e ao se virar
tinha os olhos carregados de emo��o e tamb�m velados pela raiva.
- Voc� pode dizer o que quiser no plano abstrato - prosseguiu -, mas a verdade
� que um filho mudaria tudo, principalmente para mim.
Paul estava sentado no sof� vermelho-escuro, que era quente e inc�modo naquela
manh� de ver�o. Ele e Michelle o haviam achado na rua, ao come�arem a morar
juntos ali em Cincinnati, naqueles tempos em que n�o significava nada pux�-lo para
cima por tr�s lances de escada. Ou ent�o significava cansa�o, vinho, risos e o amor
feito devagar, mais tarde, sobre sua superf�cie �spera de veludo. Michelle virou o
rosto para olhar pela janela, balan�ando os cabelos pretos. Um vazio et�reo, uma
palpita��o, encheu o cora��o de Paul. Nos �ltimos tempos, o mundo dava uma sensa��o
de fragilidade, como um ovo que pudesse estilha�ar-se a um toque descuidado.
A conversa entre eles havia come�ado de modo bastante amig�vel, uma simples
discuss�o sobre quem cuidaria do gato quando os dois estivessem fora: ela em
Indian�polis, num concerto, ele em Lexington, ajudando a m�e. E agora, de repente,
ali estavam eles nesse territ�rio sombrio do cora��o, num lugar para o qual pareciam
vir sendo constantemente arrastados nos �ltimos tempos.
Paul sabia que era melhor mudar de assunto.
Mas disse, ao contr�rio, teimoso:
- Casar n�o se traduz diretamente em ter filhos.
- Ah, Paul, seja franco. Ter um filho � o seu maior desejo. N�o � nem a mim que
voc� quer. � a esse filho m�tico.
- Nosso filho m�tico - fez ele. - Um dia, Michelle. N�o j�. Olhe, eu s� queria levantar
o assunto do casamento. N�o � t�o grande coisa.
Ela emitiu um som exasperado. O loft tinha piso de pinho, paredes brancas e respingos
das cores prim�rias nas garrafas, nos travesseiros, nas almofadas. Michelle
tamb�m usava branco, a pele e o cabelo t�o quentes quanto as t�buas do piso. Paul
sentiu uma pontada de dor ao olh�-la, sabendo que, num sentido importante, ela j�
tinha tomado sua decis�o. Iria deix�-lo muito em breve, levando consigo sua beleza
agreste e sua m�sica.
- � interessante - disse Michelle. - Eu, pelo menos, acho muito interessante. Que
isso tudo esteja vindo � tona justo na hora em que a minha carreira est� para decolar.
N�o antes, agora. � estranho, mas acho que voc� est� tentando provocar um
rompimento entre n�s.
- Isso � rid�culo. O momento n�o tem nada a ver com isso.
- N�o?
- N�o.
Os dois passaram v�rios minutos sem falar, e o sil�ncio cresceu no c�modo branco,
encheu o espa�o e fez press�o nas paredes. Paul tinha medo de falar e mais medo
ainda de calar, mas, no fim, n�o p�de mais se conter.
- Faz dois anos que estamos juntos. Ou as coisas crescem e mudam, ou ent�o
morrem. Quero que continuemos a crescer.
Michelle deu um suspiro.
- Tudo muda, de qualquer maneira, com ou sem um peda�o de papel. � isso que
voc� n�o est� levando em conta. E, n�o importa o que voc� diga, � uma coisa importante.
N�o importa o que voc� diga, o casamento muda tudo, e � sempre a mulher
que faz os sacrif�cios, digam o que disserem.
- Isso � teoria. N�o � a vida real.
- Ah, voc� � irritante, Paul! Com toda essa sua certeza de tudo!
O sol estava alto, ro�ando o rio e inundando o quarto com uma luz prateada que
formava desenhos ondulantes no teto. Michelle entrou no banheiro e fechou a porta.
Houve um barulho de gavetas remexidas, �gua correndo. Paul cruzou o c�modo
at� onde ela estivera e olhou a paisagem, como se isso pudesse ajud�-lo a compreend�-
la. Depois, bateu de leve na porta.
- Estou indo - disse.
Sil�ncio. Depois, ela falou l� de dentro:
- Voc� volta amanh� � noite?
- O seu concerto � �s seis, n�o �?
- �.
Michelle abriu a porta do banheiro e ficou parada ali, enrolada numa toalha
branca e felpuda, esfregando lo��o no rosto.
- Ent�o, est� bem - disse Paul. Beijou-a, aspirou seu perfume, sentiu a maciez de
sua pele. - Amo voc� - disse, dando um passo atr�s.
Ela o fitou por um instante.
- Eu sei. A gente se v� amanh�.
Eu sei. Paul remoeu as palavras em todo o trajeto para Lexington. A viagem levou
duas horas, cruzando o rio Ohio, passando pelo tr�nsito pesado nas imedia��es do
aeroporto e enfim entrando nas lindas colinas onduladas. Depois disso, ele passou
pelas ruas calmas do centro da cidade, por pr�dios desertos, relembrando a �poca
em que a Avenida Central ainda era o centro de sua vida, o lugar onde as pessoas
iam fazer compras, comer e se enturmar. Lembrou-se de entrar na lanchonete e sentar
diante do balc�o de sorvetes nos fundos. Bolas de chocolate num copo de metal
salpicado de gelo e o zumbir do liq�idificador; a mistura dos cheiros de carne grelhada
e anti-s�ptico. Seus pais tinham se conhecido no centro da cidade. Sua m�e
estava numa escada rolante e se elevara sobre a multid�o como um sol, e seu pai a
havia seguido.
Paul passou pelo novo pr�dio do banco e pelo velho tribunal, pelo local deserto
onde um dia ficara o teatro. Uma mulher magra andava pela cal�ada, de cabe�a baixa
e bra�os cruzados, com o cabelo escuro balan�ando ao vento. Pela primeira vez
em 10 anos, Paul pensou em Lauren Lobeglio, no jeito determinado e silencioso com
que ela cruzava a garagem vazia em dire��o a ele, semana ap�s semana. Ele a havia
buscado uma vez, depois outra e mais outra; acordara no meio de muitas madrugadas
escuras temendo ter com Lauren o que agora tanto desejava com Michelle:
casamento, filhos, um entrela�ar de vidas.
Continuou dirigindo, cantarolando baixinho sua mais nova melodia. Uma �rvore
no cora��o, era assim que se chamava; talvez ele a tocasse essa noite no bar do
Lynagh. Michelle ficaria chocada com isso, mas Paul n�o se importava. Nos �ltimos
tempos, desde a morte do pai, ele andava tocando mais em lugares informais, al�m
de sal�es de concerto: pegava um viol�o e tocava em bares ou restaurantes, executando
pe�as cl�ssicas, mas tamb�m obras mais populares, que no passado sempre
havia desdenhado. N�o conseguia explicar essa mudan�a de atitude, por�m tinha
algo a ver com a intimidade daqueles lugares, com a liga��o que ele sentia com o p�blico,
t�o perto que era poss�vel estender a m�o e toc�-lo. Michelle n�o aprovava;
achava que era conseq��ncia do luto e queria que Paul superasse isso. Mas ele n�o
conseguia desistir. Em todos os anos da adolesc�ncia havia tocado por raiva e pela
�nsia de uma liga��o, como se, atrav�s da m�sica, pudesse introduzir em sua fam�lia
uma ordem, uma beleza invis�vel. E, agora que o pai se fora, n�o havia mais ningu�m
contra quem tocar. Da� ele ter essa nova liberdade.
Paul rumou para o antigo bairro, passando pelas casas imponentes e seus grandes
jardins frontais, pelas cal�adas e pela eterna quietude. Na casa de sua m�e, a porta
da frente estava fechada. Desligou o motor e ficou sentado um instante, ouvindo os
p�ssaros e o som long�nquo dos cortadores de grama.
Uma �rvore no cora��o. Fazia um ano que seu pai tinha morrido, sua m�e ia se
casar com Frederic e se mudar para a Fran�a por algum tempo e ele n�o estava ali
como filho nem como visita, mas como um curador do passado. Era sua a decis�o
sobre o que conservar e o que descartar. Tentara conversar com Michelle a esse respeito,
sobre seu sentimento profundo de responsabilidade, sobre como o que ele
preservasse dessa sua casa da inf�ncia se tornaria, com o tempo, aquilo que um dia
transmitiria aos pr�prios filhos - tudo o que estes conheceriam, tangivelmente,
daquilo que o havia moldado. Paul andara pensando no pai, cujo passado ainda era
um mist�rio, mas Michelle havia entendido mal; ficara tensa diante da refer�ncia
casual que ele fizera aos filhos. N�o foi isso que eu quis dizer, ele tinha protestado,
aborrecido, e ela tamb�m se zangara. Saiba voc� ou n�o, foi isso que voc� quis dizer.
Reclinou-se no banco, procurando no bolso a chave da casa. Depois de compreender
que o trabalho do marido era valioso, sua m�e passara a manter as portas
trancadas, embora os caixotes continuassem fechados no est�dio.
Bem, ele tamb�m n�o queria examinar aquele tro�o.
Quando finalmente saiu do carro, Paul se deteve por um instante no meio-fio,
olhando para o bairro em volta. Fazia calor; uma brisa leve e alta movia-se por entre
a copa das �rvores. As folhas de carvalho mergulhavam na luz, criando um jogo de
sombras no ch�o. Estranhamente, o ar tamb�m parecia carregado de neve, de uma
subst�ncia branco-acinzentada e penugenta que esvoa�ava pelo c�u azul. Paul estendeu
as m�os para o ar quente e �mido, sentindo-se como se estivesse numa das
fotografias do pai, onde floresciam �rvores no pulsar de um cora��o, onde o mundo,
de repente, n�o era o que parecia ser. Pegou um floco na palma de uma das m�os;
ao fechar o punho e tornar a abri-lo, viu a pele manchada de preto. Havia cinzas
caindo feito neve no denso calor de julho.
Deixou pegadas na cal�ada ao subir os degraus. A porta da frente n�o estava trancada,
mas a casa parecia deserta. Ol�!, fez Paul, enquanto cruzava os c�modos com
m�veis empurrados para o meio e cobertos por encerados, as paredes nuas, prontas
para receber a pintura. Fazia anos que ele n�o morava ali, mas se viu parado na sala
de estar, despojada de tudo que um dia lhe dera sentido. Quantas vezes sua m�e
havia decorado aquele c�modo? No entanto, era s� uma sala, no final das contas.
Mam�e?, chamou, mas n�o obteve resposta. No segundo andar, parou � porta de seu
antigo quarto. Ali tamb�m havia caixotes empilhados, cheios de coisas velhas que ele
precisaria examinar. A m�e n�o se desfizera de nada; at� seus p�steres estavam
cuidadosamente enrolados e presos com el�sticos. Nas paredes havia vagos ret�ngulos
onde eles um dia estiveram pendurados.
- Mam�e? - tornou a chamar. Desceu e foi para a varanda dos fundos.
L� estava ela, sentada na escada, usando um short azul velho e uma camiseta
branca molenga. Paul se deteve, sem fala, absorvendo a estranha cena. Ainda havia
brasas ardendo num c�rculo de pedras, e as cinzas e fiapos de papel queimado que
tinham ca�do ao redor dele no jardim da frente tamb�m estavam ali, presas nas moitas
e no cabelo de sua m�e. Havia pap�is espalhados por toda a grama, grudados �s
bases das �rvores e �s pernas enferrujadas do antigo balan�o. Horrorizado, Paul se
deu conta de que a m�e estivera queimando as fotografias de seu pai. Ela ergueu os
olhos, com o rosto banhado em cinzas e l�grimas.
- Est� tudo bem - disse, com voz calma. - Parei de queim�-las. Estava com muita
raiva do seu pai, Paul, mas a� me ocorreu que isso tamb�m � sua heran�a. S� queimei
uma caixa. Era aquela com todas as meninas, de modo que imagino que n�o valesse
grande coisa.
- Do que voc� est� falando? - ele perguntou, sentando-se ao lado da m�e.
Ela entregou ao filho uma fotografia dele, uma foto que Paul nunca vira. Ele teria
uns 14 anos, sentado no balan�o da varanda, debru�ado sobre o viol�o, concentrado,
desligado de tudo a seu redor, capturado em plena m�sica. Paul assustou-se com
a id�ia de o pai haver captado aquele momento - um momento particular, completamente
descontra�do, um dos momentos em que ele se sentia mais vivo.
- Certo. Mas n�o estou entendendo. Por que voc� est� t�o aborrecida?
Norah apertou o rosto com as m�os por um instante e deu um suspiro.
- Lembra-se da hist�ria da noite em que voc� nasceu, Paul? Da nevasca, de como
mal conseguimos chegar � cl�nica a tempo?
- � claro.
Ele esperou que a m�e continuasse, sem saber o que dizer, mas entendendo, num
n�vel instintivo, que aquilo tinha a ver com sua irm� g�mea que havia morrido.
- Lembra-se da enfermeira, Caroline Gill? Alguma vez n�s lhe falamos dela?
- Falaram. N�o do nome dela. Voc� contou que ela tinha olhos azuis.
- E tem. Muito azuis. Ela veio aqui ontem, Paul. Caroline Gill. Eu n�o a via desde
aquela noite. Ela trouxe uma not�cia, uma not�cia chocante. Vou lhe contar de uma
vez, j� que n�o sei o que mais fazer.
Norah pegou a m�o do filho. Paul n�o a retirou. A irm� dele, disse-lhe, calmamente,
n�o havia morrido no parto, afinal. Nascera com s�ndrome de Down, e o pai
tinha pedido que Caroline Gill a levasse para uma institui��o em Louisville.
- Para nos poupar - acrescentou Norah, e sua voz se embargou. - Foi o que ela
disse. Mas ela n�o conseguiu ir at� o fim. Caroline Gill levou sua irm�, Paul. Levou
Phoebe. Durante todos esses anos, sua irm� g�mea est� viva e com sa�de, crescendo
em Pittsburgh.
- Minha irm�? Em Pittsburgh? Fui a Pittsburgh na semana passada!
N�o era uma resposta apropriada, mas ele n�o sabia que outra coisa dizer; sentia-
se tomado de um vazio estranho, uma esp�cie de desapego aturdido. Ele tinha uma
irm�: j� era uma not�cia e tanto. Ela era retardada, n�o perfeita, e seu pai a mandara
embora. Estranhamente, o que veio em seguida n�o foi raiva, mas medo, um antigo
temor nascido da press�o que o pai tinha exercido sobre ele como filho �nico. Nascido
tamb�m da necessidade de Paul construir seu pr�prio rumo, mesmo que o pai
o desaprovasse a ponto de ir embora. Um medo que, ao longo de todos aqueles anos,
como um alquimista talentoso, Paul havia transformado em raiva e rebeldia.
- A Caroline foi para Pittsburgh e come�ou vida nova - disse-lhe a m�e. - Criou
sua irm�. Fico tentando me sentir grata por ela ter sido boa para a Phoebe, mas h�
uma parte de mim que est� furiosa.
Paul fechou os olhos por um instante, tentando juntar todas essas id�ias. O mundo
parecia plano, estranho e desconhecido. Em todos aqueles anos, ele havia tentado
imaginar como seria sua irm�, mas agora n�o conseguia fazer a menor id�ia dela.
- Como � que ele p�de fazer isso? - acabou perguntando. - Como p�de guardar
segredo disso?
- N�o sei. Estou me perguntando a mesma coisa. Como � que ele p�de? E como
� que se atreveu a morrer e a deixar que descobr�ssemos isso sozinhos?
Ficaram sentados em sil�ncio. Paul lembrou-se da tarde em que revelara fotos com
o pai, um dia depois de ter destro�ado o quarto escuro, quando estava cheio de culpa,
e o pai tamb�m, quando o pr�prio ar ficara carregado com o que eles diziam e com o
que calavam. "C�mera", dissera-lhe o pai, vinha do franc�s chambre, quarto. Estar in
camera era agir em sigilo. Era nisso que seu pai havia acreditado: que toda pessoa era
um universo isolado. �rvores sombrias no cora��o, um punhado de ossos: fora esse o
mundo de seu pai, e ele nunca o deixara mais amargurado do que nesse momento.
- Fico surpreso por ele n�o ter-se livrado de mim - comentou, pensando na intensidade
com que sempre havia combatido a vis�o que seu pai tinha do mundo. Paul
sa�ra de casa para tocar seu viol�o, deixando a m�sica emergir de dentro dele e penetrar
no mundo, e as pessoas tinham se virado, pousado os drinques e escutado, e
salas cheias de estranhos haviam feito contato, ligando-se uns aos outros. - Aposto
que era o que ele queria.
- N�o, Paul! - exclamou a m�e, franzindo o cenho. - No m�nimo, ele queria ainda
mais coisas para voc�, por causa disso tudo. Esperava ainda mais. Exigia a perfei��o
dele mesmo. Essa � uma das coisas que ficaram claras para mim. Na verdade, esse �
o peda�o terr�vel. Agora que sei da Phoebe, os mist�rios sobre o seu pai fazem sentido.
Aquela muralha que eu sempre senti, aquilo era real.
Norah levantou-se, entrou em casa e voltou com duas fotos Polaroid.
- Esta � ela. � sua irm�, Phoebe.
Paul pegou as fotos e olhou de uma para a outra: uma foto posada de uma menina
risonha, depois um instant�neo em que ela lan�ava uma bola de basquete. Ainda
estava tentando assimilar o que a m�e lhe dissera: que aquela estranha de olhos
amendoados e pernas grossas era sua irm� g�mea.
- Voc�s t�m o mesmo cabelo - disse Norah, baixinho, tornando a se sentar ao
lado do filho. - Ela gosta de cantar, Paul. N�o � incr�vel? - comentou. Riu e disse
mais: - E adivinhe s�: � f� de basquete.
A risada de Paul foi estridente e carregada de dor.
- Bom, acho que o papai escolheu o filho errado.
Norah segurou as fotos nas m�os sujas de cinzas.
- N�o seja rancoroso, Paul. A Phoebe tem s�ndrome de Down. N�o sou muito
entendida no assunto, mas a Caroline tinha muita coisa a dizer. Tanta, na verdade,
que mal pude assimilar tudo.
Paul estivera esfregando o dedo na borda do degrau de concreto e, nesse momento,
parou, vendo o sangue brotar no ponto em que o arranhara at� deix�-lo em carne viva.
- N�o ser rancoroso? N�s visitamos o t�mulo dela! - protestou, lembrando-se da
m�e cruzando o port�o de ferro com os bra�os carregados de flores e mandando que
ele esperasse no carro. Lembrando-se dela ajoelhada na terra, plantando sementes
de l�rios-do-vale. - O que voc� acha disso?
- N�o sei. O terreno era do Dr. Bentley, de modo que ele tamb�m devia saber. Seu
pai nunca se dispunha a me levar l�. Eu tinha que brigar muito. Na �poca, eu achava
que ele tinha medo de que eu tivesse um colapso nervoso. Ah, aquilo me dava
muita raiva, o jeito de ele estar sempre com a raz�o!
Paul assustou-se com a veem�ncia na voz da m�e, relembrando sua conversa
daquela manh� com Michelle. Pressionou a ponta do polegar contra os l�bios e sugou
as got�culas de sangue, contente com o gosto acentuado de cobre. Os dois passaram
algum tempo calados, olhando para o quintal com os fiapos de cinzas, as fotos
espalhadas e as caixas �midas.
Por fim, Paul perguntou:
- O que � que isso significa, ela ser retardada? No dia-a-dia, quero dizer.
A m�e voltou a olhar para as fotografias.
- N�o sei. A Caroline disse que ela tem um alto grau de compet�ncia, o que quer
que isso signifique. Ela trabalha. Tem namorado. Freq�entou a escola. Mas, ao que
parece, n�o � realmente capaz de ter uma vida independente.
- Essa enfermeira, a Caroline Gill, por que ela veio aqui agora, depois de tantos
anos? O que ela queria?
- Ela s� queria me contar - disse Norah, baixinho. - S� isso. N�o pediu nada. Ela
veio abrir uma porta, Paul. Acredito realmente nisso. Foi um convite. Mas, o que
quer que aconte�a, vai depender de n�s.
- E isso � o qu�? O que vai acontecer agora?
- Vou a Pittsburgh. Sei que tenho que v�-la. Mas, depois disso, n�o sei mais nada.
Devo traz�-la para c�? N�s ser�amos estranhos para ela. E preciso conversar com o
Frederic; ele tem que saber.
Norah cobriu o rosto com as m�os por um momento.
- Ah, Paul, como � que eu posso ir passar dois anos na Fran�a e deix�-la aqui? N�o
sei o que fazer. � demais para mim, tudo ao mesmo tempo.
Uma brisa balan�ou as fotografias espalhadas pela grama. Paul calou-se, lutando
com muitas emo��es confusas: raiva do pai, surpresa e tristeza pelo que havia perdido.
E preocupa��o tamb�m; era terr�vel preocupar-se com isso, mas e se ele tivesse
que cuidar da irm�, que n�o podia levar uma vida independente? Como poderia
fazer isso? Nunca havia sequer conhecido uma pessoa retardada, e achava que todas
as imagens que tinha delas eram negativas. Nenhuma combinava com a menina de
sorriso meigo da fotografia, e isso tamb�m era desconcertante.
- Isso eu tamb�m n�o sei - disse, enfim. - Talvez a primeira coisa seja arrumar
essa bagun�a.
- A sua heran�a - disse Norah.
- N�o � s� minha - retrucou ele, pensativo, testando as palavras. - � da minha
irm� tamb�m.
Os dois trabalharam durante o resto do dia e no dia seguinte, separando as fotos,
recolocando-as nos caixotes, arrastando-os para as profundezas frescas da garagem.
Enquanto Norah se reunia com os curadores, Paul telefonou para Michelle, para
explicar o que havia acontecido e dizer que n�o iria ao concerto, afinal. Esperava que
ela ficasse zangada, mas Michelle ouviu sem fazer coment�rios e desligou. Quando
ele tentou ligar outra vez, a secret�ria eletr�nica atendeu; foi assim o dia inteiro.
Mais de uma vez, ele pensou em entrar no carro e correr feito um louco para casa,
em Cincinnati, mas sabia que n�o adiantaria. Sabia tamb�m que, na verdade, n�o
queria continuar daquele jeito, sempre amando Michelle mais do que ela era capaz
de retribuir. Por isso, obrigou-se a ficar. Voltou-se para o trabalho f�sico de empacotar
as coisas de casa e, � noitinha, foi a p� at� a biblioteca, no centro da cidade, para
consultar livros sobre a s�ndrome de Down.
Na manh� de ter�a-feira, calados, confusos e cheios de apreens�o, ele e a m�e entraram
no carro de Norah, cruzaram o rio e seguiram por entre a exuberante vegeta��o
de Ohio de alto ver�o. Fazia muito calor e as folhas dos milharais tremeluziam
sob o vasto c�u azul. Chegaram a Pittsburgh em meio ao tr�nsito de volta do feriado
da Independ�ncia e atravessaram o t�nel que levava � ponte, oferecendo uma
paisagem arrebatadora da fus�o dos dois rios. Arrastaram-se pelo tr�fico do centro
da cidade e margearam o rio Monongahela, atravessando mais um longo t�nel. Por
fim, pararam diante da casa de tijolos de Caroline Gill, numa rua movimentada e
arborizada.
Ela lhes dissera para estacionarem no beco, e foi o que fizeram, descendo do carro
e esticando o corpo. Passada uma faixa de grama, uma escada descia para um terreno
estreito e para a casa alta de tijolos em que a irm� de Paul havia crescido. Ele
observou a casa, t�o parecida com Cincinnati, t�o diferente de sua inf�ncia tranq�ila,
na opul�ncia e no conforto dos sub�rbios residenciais. O tr�nsito flu�a c�lere pela
rua, passando pelos jardinzinhos que pareciam selos postais e avan�ando para a
cidade que se derramava ao redor, quente e densa.
Os jardins ao longo da ruela estavam carregados de flores, malvas e �ris de todas
as cores, com suas p�talas brancas e roxas fazendo um v�vido contraste com a relva.
No jardim mais pr�ximo havia uma mulher cuidando de uma fila de tomateiros
vi�osos. Uma cerca de lilases erguia-se atr�s dela, com o verde p�lido das folhas
luzidias balan�ando na brisa que empurrava o ar quente, sem refresc�-lo. A mulher,
que usava um short azul-marinho e camiseta branca, com floridas luvas de algod�o
de cores vivas, sentou-se onde estivera ajoelhada e passou as costas da m�o pela
testa. O tr�nsito estava pesado; ela n�o os ouvira chegar. Arrancou uma folha de um
tomateiro e a encostou no nariz.
- � ela? - perguntou Paul. - Aquela � a enfermeira?
Norah fez que sim com a cabe�a. Tinha cruzado os bra�os, apertando-os contra
o peito num gesto protetor. Os �culos escuros lhe mascaravam os olhos, por�m,
mesmo assim, Paul p�de perceber o quanto ela estava nervosa, p�lida e tensa.
- Sim. Aquela � Caroline Gill. Paul, agora que est� na hora, n�o sei ao certo se
consigo fazer isso. Talvez a gente devesse ir para casa.
- Fizemos todo o percurso at� aqui. E eles est�o � nossa espera.
Norah deu um sorrisinho cansado. Fazia dias que mal conseguia dormir; at� seus
l�bios estavam p�lidos.
- N�o � poss�vel que estejam nos esperando. N�o mesmo.
Paul assentiu com a cabe�a. A porta dos fundos escancarou-se, mas a figura na
varanda permaneceu oculta nas sombras. Caroline p�s-se de p�, limpando as m�os
no short.
- Oi, Phoebe! - disse. - A� est� voc�.
Paul sentiu a m�e ficar tensa a seu lado, mas n�o olhou para ela. Preferiu olhar
para a varanda. O momento se estendeu, alongou-se, e o sol pareceu oprimi-los. Por
fim, a figura emergiu, carregando dois copos de �gua.
Paul firmou a vista. A mo�a era baixa, muito menor do que ele, e tinha o cabelo
mais escuro, mais fino e esvoa�ante, com um corte simples e arredondado que lhe
emoldurava o rosto. A tez era alva como a de Norah e, �quela dist�ncia, as fei��es
dela pareciam delicadas num rosto largo, um rosto que parecia meio achatado, como
se tivesse passado tempo demais encostado na parede. Os olhos eram ligeiramente
puxados para cima, e os membros, curtos. Ela j� n�o era uma menina, como
nas fotografias, mas uma mulher adulta, da idade dele, com um ou outro fio grisalho
no cabelo. Alguns fios grisalhos tamb�m prateavam a barba de Paul, quando ele
a deixava crescer. A mo�a usava um short florido e era pesada, meio gorducha,
ro�ando um joelho no outro ao andar.
- Ah! - fez Norah. Tinha levado uma das m�os ao peito. Seus olhos estavam escondidos
sob os �culos escuros, e Paul ficou contente; era um momento muito particular.
- Est� tudo bem - disse ele. - Vamos s� ficar aqui um pouco.
O sol estava muito quente e o tr�nsito corria. Caroline e Phoebe sentaram-se lado
a lado na escadinha da varanda, bebendo �gua.
- Estou pronta - disse Norah, finalmente, e os dois desceram os degraus at� a faixa
estreita de grama entre a horta e as flores. Caroline Gill foi a primeira a v�-los;
protegeu os olhos com a m�o, espremendo-os contra o sol, e se levantou. Phoebe
levantou-se tamb�m e, por alguns segundos, eles se entreolharam no jardim. Depois,
Caroline pegou Phoebe pela m�o. Encontraram-se junto aos tomateiros, onde
os frutos pesados j� come�avam a amadurecer, enchendo o ar de um aroma limpo e
acre. Ningu�m falou. Phoebe olhava para Paul e, depois de um longo momento,
estendeu a m�o no espa�o que os separava e o tocou de leve no rosto, delicadamente,
como que para ver se ele era real. Paul balan�ou a cabe�a sem falar, fitando-a com
ar grave; o gesto dela lhe pareceu certo, por alguma raz�o. Phoebe queria conhec�lo,
s� isso. Ele tamb�m queria conhec�-la, mas n�o fazia id�ia do que dizer a essa
irm� repentina, t�o intimamente ligada a ele e, ao mesmo tempo, t�o completamente
estranha. Paul tamb�m se sentia terrivelmente inibido, com medo de cometer
um erro. Como � que se falava com uma pessoa retardada? Os livros que ele lera
no fim de semana, todas aquelas descri��es cl�nicas, nada o havia preparado para o
ser humano cuja m�o ro�ara seu rosto t�o de leve.
Foi Phoebe quem se recuperou primeiro.
- Ol� - disse, estendendo-lhe a m�o formalmente. Paul a segurou, sentindo seus
dedos muito mi�dos, ainda sem conseguir dizer palavra. - Eu sou a Phoebe. Prazer
em conhec�-lo.
A fala era enrolada, dif�cil de entender. Depois, Phoebe virou-se para a m�e dele
e fez a mesma coisa.
- Ol� - disse Norah, apertando a m�o dela, depois segurando-a entre as suas.
Tinha a voz carregada de emo��o. - Ol�, Phoebe. Tamb�m sinto muito prazer em
conhec�-la.
- Est� muito quente - disse Caroline. - Por que n�o entramos? Os ventiladores
est�o ligados. E a Phoebe fez ch� gelado hoje de manh�. Estava empolgada com a
visita de voc�s, n�o foi, querida?
Phoebe sorriu e acenou com a cabe�a, subitamente t�mida. Todos a seguiram para
o ar fresco do interior da casa. Os c�modos eram pequenos, mas imaculados, com
lindos trabalhos de marcenaria e uma porta dupla envidra�ada separando a sala de
visitas da de jantar. A sala de visitas estava inundada de sol e de m�veis surrados,
de tonalidade vinho. No canto mais distante havia um enorme tear.
- Estou fazendo uma echarpe - disse Phoebe.
- � linda - comentou Norah, atravessando a sala para alisar os fios, rosa-escuro,
p�rola, amarelo e verde-�gua. Havia tirado os �culos escuros e ergueu os olhos marejados
de l�grimas, com a voz ainda embargada de emo��o. - Voc� mesma escolheu
essas cores, Phoebe?
- Minhas cores favoritas - respondeu Phoebe.
- As minhas tamb�m - disse Norah. - Quando eu tinha a sua idade, essas tamb�m
eram as minhas cores favoritas. As minhas damas de honra usaram rosa-escuro
e p�rola, e seguraram rosas amarelas.
Paul ficou perplexo ao saber disso; todas as fotos que vira eram em preto-e-branco.
- Voc� pode ficar com essa echarpe - disse Phoebe, sentando-se diante do tear.
� Eu fiz para voc�.
- Ah! - exclamou Norah, fechando brevemente os olhos. - Que amor, Phoebe!
Caroline trouxe o ch� gelado e os quatro se sentaram na sala de visitas, meio sem
jeito, conversando sobre amenidades: o clima, o renascimento incipiente de Pittsburgh
depois do colapso da ind�stria sider�rgica. Phoebe continuou diante do tear,
calada, movendo a lan�adeira de um lado para outro e erguendo os olhos de vez em
quando, sempre que seu nome era mencionado. Paul lhe dirigia olhares furtivos. As
m�os de Phoebe eram pequenas e gorduchas. Ela estava concentrada na lan�adeira,
mordendo o l�bio inferior. Por fim, Norah terminou seu ch� e disse:
- Bem, aqui estamos. E agora eu n�o sei qual � o pr�ximo passo.
- Phoebe - chamou Caroline -, por que n�o vem ficar aqui conosco?
Em sil�ncio, Phoebe se aproximou e se sentou ao lado de Caroline no sof�.
Norah come�ou, falando muito depressa e apertando as m�os, nervosa.
- N�o sei o que � melhor. N�o existe mapa neste lugar em que estamos, n�o �?
Mas quero oferecer minha casa a Phoebe. Ela pode vir morar conosco, se quiser.
Pensei muito nisso, nestes �ltimos dias. Temos muito assunto para colocar em dia.
Nesse ponto, fez uma pausa para respirar e se voltou para Phoebe, que a fitava
com os olhos arregalados, desconfiada.
- Voc� � minha filha, Phoebe, est� entendendo? Esse � seu irm�o, Paul.
Phoebe segurou a m�o de Caroline.
- Essa � a minha m�e - disse.
- Sim - concordou Norah, que olhou de relance para Caroline e tentou de novo:
- Essa � a sua m�e. Mas eu tamb�m sou sua m�e. Voc� cresceu dentro do meu corpo,
Phoebe -e deu um tapinha na barriga. - Cresceu bem aqui. Mas, depois, voc�
nasceu e a sua m�e Caroline a criou.
- Vou me casar com o Robert - disse Phoebe. - N�o quero morar com voc�.
Paul, que vira a m�e debater-se num conflito durante todo o fim de semana, sentiu
o impacto das palavras de Phoebe, como se ela o houvesse chutado. E percebeu
que a m�e as sentira do mesmo jeito.
- Est� tudo bem, Phoebe - interveio Caroline. - Ningu�m vai fazer voc� ir embora.
- Eu n�o quis dizer... Eu s� queria oferecer... - come�ou Norah, que parou e tor
nou a respirar fundo. Seus olhos verdes haviam assumido um tom escuro, perturbados.
Ela tentou mais uma vez: - Phoebe, o Paul e eu gostar�amos de conhecer voc�.
S� isso. Por favor, n�o tenha medo de n�s, sim? O que estou dizendo, o que eu quero
dizer, � que a minha casa est� aberta para voc�. Sempre. N�o importa aonde eu v�
no mundo, voc� tamb�m poder� ir l�. E espero que v�. Espero que voc� v� me visitar
um dia, s� isso. Assim ficaria bom para voc�?
- Pode ser - admitiu Phoebe.
- Phoebe - disse Caroline -, por que voc� n�o leva o Paul para conhecer um pouco
a casa? D� uma chance para que a Sra. Henry e eu conversemos um pouquinho.
E n�o se preocupe, fofinha - acrescentou, pousando de leve a m�o no bra�o da filha.
- Ningu�m vai a lugar nenhum. Est� tudo bem.
Phoebe acenou com a cabe�a e se levantou.
- Quer conhecer o meu quarto? - perguntou a Paul. - Eu tenho um toca-discos
novo.
Paul olhou para m�e de relance e ela balan�ou a cabe�a, observando os dois atravessarem
juntos a sala. Ele subiu a escada atr�s de Phoebe.
- Quem � Robert? - perguntou � irm�.
- � o meu namorado. N�s vamos casar. Voc� � casado?
Tocado pela lembran�a de Michelle, Paul abanou a cabe�a.
- N�o.
- Voc� tem namorada?
- N�o. Eu tinha uma namorada, mas ela foi embora.
Phoebe parou no degrau mais alto e se virou. Os dois ficaram cara a cara, t�o
perto que Paul se sentiu constrangido com a invas�o de seu espa�o pessoal. Desviou
os olhos, depois tornou a dirigi-los � irm�, que continuava a fit�-lo diretamente.
- N�o � bonito encarar as pessoas - disse Paul.
- Bom, voc� est� parecendo triste.
- Eu estou triste. Na verdade, estou muito, muito triste.
Phoebe balan�ou a cabe�a e, por um instante, pareceu juntar-se a ele em sua tristeza,
nublando a express�o do rosto; no instante seguinte, desanuviou-a.
- Venha - disse, conduzindo-o pelo corredor. - Tamb�m tenho uns discos novos.
Sentaram-se no ch�o do quarto. As paredes eram cor-de-rosa, com cortinas xadrez
rosa e branco nas janelas. Era um quarto de menina, cheio de bichos de pel�cia
e gravuras coloridas nas paredes. Paul pensou em Robert e se perguntou se era
verdade que Phoebe ia se casar. Depois, sentiu-se mal por se intrigar com isso; por
que n�o deveria ela casar-se ou fazer qualquer outra coisa? Pensou no quarto extra
que havia na casa de seus pais, onde sua av� �s vezes se hospedava, quando ele era
menino. Aquele teria sido o quarto de Phoebe; ela o teria enchido com sua m�sica
e seus objetos. Phoebe p�s um disco para tocar, aumentou bem o volume da vitrolinha,
que berrava Love, Love Me Do, e p�s-se a cantar junto, com os olhos semicerrados.
Tinha a voz bonita, percebeu Paul, diminuindo um pouquinho o volume e
examinando os outros discos. Phoebe tinha muita m�sica popular, mas tamb�m
tinha sinfonias.
- Gosto de trombone - disse ela, fingindo puxar uma vara comprida, e, quando
Paul riu, ela riu tamb�m. - Gosto mesmo de trombone - repetiu, e deu um suspiro.
- Eu toco viol�o. Voc� sabia?
Ela fez que sim.
- Mam�e me disse. Feito o John Lennon.
Paul sorriu.
- Um pouquinho - comentou, surpreso por se apanhar no meio de uma conversa.
Tinha se acostumado com a fala dela e, quanto mais conversava com a irm�, mais
Phoebe era simplesmente ela mesma, imposs�vel de rotular. - J� ouviu falar de
Andr�s Segovia?
- A-h�.
- Ele � bom mesmo. � o meu favorito. Um dia eu toco a m�sica dele para voc�,
est� bem?
- Eu gosto de voc�, Paul. Voc� � legal.
Ele se apanhou sorrindo, encantado e envaidecido.
- Obrigado. Tamb�m gosto de voc�.
- Mas n�o quero morar com voc�.
- Tudo bem. Eu tamb�m n�o moro com a minha m�e. Moro em Cincinnati.
O rosto de Phoebe se iluminou.
- Sozinho?
-� - ele respondeu, sabendo que, quando voltasse, Michelle teria ido embora.
- Sozinho.
- Que sorte!
- Acho que sim - disse ele num tom grave, subitamente consciente da sorte que
tinha. As coisas que ele via como corriqueiras na vida eram a mat�ria dos sonhos de
Phoebe. - Tenho sorte, sim. � verdade.
- Eu tamb�m tenho sorte - comentou ela, surpreendendo-o. - O Robert tem um
bom emprego, e eu tamb�m.
- Em qu� voc� trabalha?
- Eu tiro c�pias - ela respondeu com um orgulho sereno. - Muitas, muitas c�pias.
- E voc� gosta disso?
Ela sorriu.
- Max trabalha l�. Ela � minha amiga. Temos 23 cores diferentes de papel.
Cantarolou um pouco, satisfeita, enquanto guardava cuidadosamente o primeiro
disco e escolhia outro. Seus gestos n�o eram r�pidos, mas eram eficientes e concentrados.
Paul p�de imagin�-la na copiadora, fazendo seu trabalho, brincando com a
amiga, parando de vez em quando para admirar o arco-�ris de pap�is ou algum trabalho
encerrado. No t�rreo, ouviu o murm�rio de vozes, � medida que sua m�e e
Caroline Gill elaboravam o que fazer. Com profunda vergonha, ele se deu conta de
que a pena que sentira de Phoebe, assim como a suposi��o que sua m�e fizera da depend�ncia
dela tinham sido tolas e desnecess�rias. Phoebe gostava de si mesma e
gostava de sua vida; era feliz. Todos os esfor�os que ele tinha feito, todos os concursos
e pr�mios, a luta longa e f�til para agradar a si mesmo e impressionar o pai, tudo
aquilo, comparado � vida de Phoebe, tamb�m parecia meio bobo.
- Onde est� o seu pai? - ele perguntou.
- No trabalho. Ele dirige um �nibus. Voc� gosta de Yellow Submarine?.
- Sim. Sim, gosto.
Phoebe deu um sorriso largo e p�s o disco na vitrola.
1.� DE SETEMBRO DE 1989
AS NOTAS TRANSBORDARAM DA IGREJA E INVADIRAM O AR ENSOLARADO.
Para Paul, parado do lado de fora, bem junto �s portas de tom vermelho
vivo, a m�sica era quase vis�vel, deslocando-se por entre as folhas dos �lamos, dispersando-
se pela relva feito part�culas de luz. A organista era amiga dele, urna peruana
chamada Alejandra, que usava o cabelo castanho-avermelhado bem puxado
para tr�s, preso num longo rabo-de-cavalo, e que, nos dias sombrios que se seguiram
� partida de Michelle, havia aparecido em seu apartamento, levando sopa, ch�
gelado e conselhos. Levante-se, dissera-lhe com firmeza, abrindo cortinas e janelas,
limpando os pratos e pondo a lou�a suja na pia. Levante-se, n�o adianta nada ficar
na fossa, ainda mais por causa de uma flautista. Elas s�o sempre vol�veis, voc� n�o
sabia? Fico surpresa por ela ter passado tanto tempo aqui. Dois anos. Sinceramente,
deve ser um recorde.
Agora, as notas de Alejandra cascateavam como �gua cristalina, seguidas por um
crescendo animado, que subiu e parou por um instante no ar, suspenso sob a luz do
sol. A m�e de Paul apareceu no v�o da porta, risonha, com uma das m�os pousada
de leve no bra�o de Frederic. Os dois sa�ram juntos para o sol, sob uma chuva luminosa
de arroz e p�talas.
- Bonito - comentou Phoebe, ao lado de Paul.
Ela usava um vestido verde de tecido brilhante e segurava despreocupada, na m�o
direita, os narcisos que havia carregado durante a cerim�nia de casamento. Estava
sorrindo, com os olhos espremidos de prazer e covinhas fundas nas bochechas
rechonchudas. As p�talas e os gr�os descreveram um arco contra o c�u luminoso e,
quando ca�ram, Phoebe riu, encantada. Paul fitou-a atentamente: essa estranha, sua
irm� g�mea. Os dois haviam percorrido juntos a nave da igrejinha min�scula, at�
chegarem ao lugar em que sua m�e e Frederic esperavam no altar. Paul tinha andado
devagar, com Phoebe atenta e s�ria a seu lado, decidida a fazer tudo certo, pousando
a m�o no cotovelo dele. Algumas andorinhas haviam voejado por entre os
caibros na hora da troca dos votos, mas sua m�e tivera certeza daquela igreja desde
o come�o, assim como havia insistido, durante todas as discuss�es estranhas, inesperadas
e lacrimosas sobre Phoebe e seu futuro, que os dois filhos ficassem a seu
lado na cerim�nia de casamento.
Outra rajada, dessa vez de confete, e uma onda de risadas se alastrando. Sua m�e
e Frederic inclinaram a cabe�a, e Bree lhes sacudiu dos ombros e do cabelo os pedacinhos
luminosos de papel. O confete colorido espalhou-se por toda parte, fazendo
a grama parecer um mosaico.
- Voc� tem raz�o - ele disse a Phoebe. - � bonito.
Ela balan�ou a cabe�a, agora com ar pensativo, e alisou a saia com as duas m�os.
- A sua m�e vai para a Fran�a.
- Vai - concordou Paul, embora ficasse tenso ante a escolha de palavras da irm�:
sua m�e. Era uma express�o que se usaria com estranhos, e todos eles eram estranhos,
� claro. Isso, no fim das contas, fora o que mais havia do�do em sua m�e: os
anos perdidos que os separavam, as palavras hesitantes e formais onde deveria haver
descontra��o e amor. - E voc� e eu tamb�m, daqui a uns dois meses - completou,
lembrando a Phoebe os planos com que finalmente haviam concordado. - Vamos
visit�-los na Fran�a.
Uma express�o de preocupa��o, fugaz como uma nuvem, cruzou o rosto de
Phoebe.
- N�s voltaremos - acrescentou Paul, com delicadeza, lembrando-se de como a
irm� ficara assustada com a sugest�o de Norah de que se mudasse com ela para a
Fran�a.
Phoebe assentiu com a cabe�a, mas continuou com ar apreensivo.
- O que foi? - perguntou Paul. - Qual � o problema?
- Comer caracol.
Paul a olhou, surpreso. Andara brincando com a m�e e com Bree no vest�bulo, antes
da cerim�nia, sobre o banquete que elas fariam em Ch�teauneuf. Phoebe havia
assistido calada, � margem da conversa; n�o lhe ocorrera que ela estivesse escutando.
Aquilo tamb�m era um mist�rio: a presen�a de Phoebe no mundo, o que ela via,
sentia e compreendia. Tudo o que Paul realmente sabia a respeito da irm� poderia
ser posto numa ficha de arquivo: ela gostava de gatos, de tecelagem, de ouvir m�si
ca no r�dio e cantar na igreja. Sorria muito, era propensa a dar abra�os e, como ele,
era al�rgica a picadas de abelha.
- Caracol n�o � assim t�o ruim - fez ele. - � meio puxa-puxa. Feito chiclete de alho.
Phoebe fez uma careta, depois riu.
- Que nojo - comentou. - Isso � nojento, Paul.
A brisa lhe balan�ou de leve o cabelo, e Phoebe continuou fixada na cena diante
deles: os convidados em movimento, o sol, as folhas, tudo entremeado de m�sica. As
faces dela eram salpicadas de sardas, como as dele. Do outro lado do jardim, sua m�e
e Frederic ergueram uma esp�tula de prata para cortar o bolo.
- Eu e o Robert tamb�m vamos casar - disse Phoebe.
Paul sorriu. Havia conhecido Robert naquela primeira viagem a Pittsburgh; ele e
a irm� tinham ido v�-lo no armaz�m, alto e atencioso, usando um uniforme marrom
e um crach�. Quando Phoebe os apresentara, t�mida, Robert havia apertado
prontamente a m�o de Paul e lhe dera um tapinha no ombro, como se os dois se
estivessem reencontrando depois de uma longa aus�ncia. Prazer em v�-lo, Paul. A
Phoebe e eu vamos casar, de modo que, logo, logo, voc� e eu seremos irm�os, que tal? E
ent�o, satisfeito, sem esperar resposta, confiante em que o mundo era bom e em que
Paul compartilhava seu prazer, ele se voltara para Phoebe, pusera o bra�o em volta
dela e os dois ficaram l�, sorridentes.
- � uma pena o Robert n�o ter podido vir.
Phoebe assentiu com a cabe�a.
- O Robert gosta de festas - disse.
- Isso n�o me surpreende - fez Paul.
Ele viu a m�e p�r um pedacinho de bolo na boca de Frederic, tocando o canto do
l�bio dele com o polegar. Norah usava um vestido creme e o cabelo curto, de um
louro chegado ao grisalho, que fazia seus olhos verdes parecerem maiores. Paul pensou
no pai, perguntando-se como teria sido a cerim�nia de casamento dos dois. Vira
as fotografias, � claro, mas aquilo era s� a superf�cie. Ele gostaria de saber como
tinha sido a luz, como havia soado o riso; queria saber se seu pai se havia inclinado,
como fez Frederic nesse momento, para beijar sua m�e, depois de ela haver lambido
um pedacinho de cobertura de bolo de sua boca.
- Eu gosto de flores cor-de-rosa - comentou Phoebe. - Quero uma por��o de flores
cor-de-rosa no meu casamento - acrescentou. Depois, ficou s�ria, franziu o cenho
e encolheu os ombros, fazendo o vestido verde escorregar um pouco sobre a
clav�cula. - Mas, primeiro, eu e o Robert temos que juntar o dinheiro.
A brisa soprou e Paul pensou em Caroline Gill, alta e resoluta, parada no sagu�o
do hotel no centro de Lexington com o marido, Al, e Phoebe. Todos se haviam encontrado
l� na v�spera, em campo neutro. A casa de Norah estava vazia, com uma placa
de VENDE-S E no jardim. Nessa noite, ela e Frederic viajariam para a Fran�a. Caroline
e Al tinham vindo de Pittsburgh e, depois de um brunch cordial, embora meio encabulado,
os dois tinham deixado Phoebe ficar para o casamento, enquanto seguiam de
f�rias para Nashville. Era a primeira viagem de f�rias que fariam sozinhos, e pareciam
contentes com isso. Mesmo assim, Caroline tinha abra�ado Phoebe duas vezes, depois
parado na cal�ada para olhar para tr�s, pela janela, e acenar.
- Voc� gosta de Pittsburgh? - perguntou Paul. Tinham lhe oferecido um emprego
l�, um bom emprego numa orquestra; ele tamb�m recebera uma proposta de uma
orquestra de Santa F�.
- Gosto de Pittsburgh - respondeu Phoebe. - Mam�e diz que tem escadas demais,
mas eu gosto.
- Talvez eu me mude para l�. O que voc� acha?
- Seria bom. Voc� poderia ir ao meu casamento - disse Phoebe. Depois, deu um
suspiro. - Casamento custa muito caro. N�o � justo.
Paul assentiu com a cabe�a. N�o, n�o era justo. Nada daquilo era justo. Nem os desafios
enfrentados por Phoebe, num mundo que n�o a acolhia de bom grado, nem a relativa
facilidade da vida dele, nem o que o pai de ambos tinha feito - nada daquilo. S�bito,
Paul sentiu uma vontade premente de oferecer a Phoebe o casamento que ela quisesse.
Ou um bolo, pelo menos. Seria um gesto muito pequeno diante de todo o resto.
- Voc�s poderiam fugir - sugeriu.
Phoebe considerou a id�ia, girando uma pulseira de pl�stico verde no pulso.
- N�o. A� a gente n�o teria bolo.
- Ah, n�o sei. Ser� que n�o? Quero dizer, por que n�o?
Franzindo a testa, Phoebe o olhou, para ver se Paul estava fazendo tro�a dela.
- N�o - disse com firmeza. - N�o � assim que a gente faz uma cerim�nia de casamento,
Paul.
Ele sorriu, comovido com a certeza da irm� sobre como funcionava o mundo.
- Sabe de uma coisa, Phoebe? Voc� tem raz�o.
Risadas e aplausos vieram voando pelo jardim ensolarado quando Frederic e
Norah terminaram de partir o bolo. Bree, sorridente, ergueu a c�mera para tirar
uma �ltima foto. Paul acenou com a cabe�a para a mesa onde os pratinhos estavam
sendo servidos, passando de m�o em m�o.
- O bolo tem seis camadas. Com recheio de framboesa e creme chantilly. Que tal,
Phoebe? Quer provar?
Phoebe acentuou o sorriso e fez que sim com a cabe�a.
- Meu bolo ter� oito camadas - disse, enquanto os dois atravessavam o jardim,
passando por entre as vozes, o riso e a m�sica.
Paul deu uma risada.
- S� oito? Por que n�o dez?
- Bobo. Voc� � um sujeito bobo, Paul.
Chegaram � mesa. Havia confetes coloridos espalhados nos ombros de Norah. Ela
estava sorrindo, delicada em seus gestos, e tocou o cabelo de Phoebe, alisando-o para
tr�s, como se a filha ainda fosse uma garotinha. Phoebe afastou-se e Paul sentiu
um aperto no peito; n�o havia finais simples para essa hist�ria. Haveria visitas e telefonemas
de um lado a outro do Atl�ntico, mas nunca a descontra��o comum da
vida cotidiana.
- Voc� se saiu bem - disse-lhe a m�e. - Estou muito contente por voc� ter vindo
ao casamento, Phoebe. Voc� e o Paul. Isso significa muito para mim. Nem sei como
lhe dizer.
- Gosto de casamentos - respondeu Phoebe, apanhando um prato de bolo.
Norah deu um sorriso meio tristonho. Paul observou a irm�, pensando em como
Phoebe entenderia o que estava acontecendo. Ela n�o parecia se preocupar muito
com as coisas, mas aceitar o mundo como um lugar fascinante e inusitado, onde
qualquer coisa podia acontecer. Onde, um dia, uma m�e e um irm�o que a gente
nunca soubera ter tido podiam aparecer na porta de casa e nos convidar para um
casamento.
- Estou contente porque voc� vai nos visitar na Fran�a, Phoebe - continuou
Norah. - Frederic e eu estamos muito contentes.
Phoebe ergueu os olhos outra vez, sem jeito.
- S�o os carac�is - explicou Paul. - Ela n�o gosta de carac�is.
Norah riu.
- N�o se preocupe. Tamb�m n�o gosto deles.
- E eu vou voltar para casa - acrescentou Phoebe.
- Est� certo - disse Norah, delicadamente. - Sim. Foi isso que combinamos.
Paul observou, sentindo-se desamparado diante da dor que se instalara em seu
corpo feito uma pedra. Sob a luz crua, impressionou-se com a idade da m�e, com
uma certa finura na pele dela, com o cabelo louro dando lugar ao grisalho. E com
sua beleza. Ela parecia encantadora e vulner�vel, e Paul se perguntou, como se perguntara
tantas vezes nas semanas anteriores, como seu pai podia hav�-la tra�do,
como pudera trair todos eles.
- Como? - perguntou baixinho. - Como ele p�de nunca nos contar?
Norah voltou-se para o filho, s�ria.
- N�o sei. Jamais entenderei. Mas pense no que deve ter sido a vida dele, Paul.
Guardando esse segredo durante tantos anos.
Paul olhou para o outro lado da mesa. Phoebe estava parada perto de uma �rvore
cujas folhas mal come�avam a amarelecer, usando o garfo para tirar o creme chantilly
de sua fatia de bolo.
- Nossa vida poderia ter sido muito diferente.
- Sim. � verdade. Mas n�o foi, Paul. Foi assim que aconteceu.
- Voc� est� defendendo o papai - disse ele, devagar.
- N�o. Estou perdoando. Tentando, pelo menos. H� uma diferen�a.
- Ele n�o merece perd�o - retrucou Paul, surpreso por ainda estar t�o ressentido.
- Pode ser que n�o. Mas voc�, a Phoebe e eu temos uma escolha. Podemos ficar
ressentidos e com raiva ou tentar ir em frente. Abrir m�o de toda essa raiva justificada
� o que h� de mais dif�cil para mim. Ainda estou lutando. Mas � o que eu quero fazer.
Paul pensou no assunto.
- Recebi uma oferta de emprego em Pittsburgh - disse.
- � mesmo? - fez Norah, agora com os olhos atentos, de um verde muito escuro
�quela luz. - E vai aceitar?
- Acho que sim - respondeu ele, percebendo que j� havia tomado a decis�o. - �
uma oferta muito boa.
- Voc� n�o tem como consertar as coisas - disse Norah, baixinho. - N�o pode
consertar o passado, Paul.
- Eu sei.
E sabia. Ele fora a Pittsburgh naquela primeira vez achando que estava em
condi��es de oferecer ajuda, ou talvez n�o. Preocupara-se com a responsabilidade
que teria de assumir, com o modo como sua vida se modificaria com o fardo de uma
irm� retardada, e ficara surpreso - at�nito, na verdade - ao ouvir essa pr�pria irm�
dizer N�o, eu gosto da minha vida como est�, n�o, obrigada.
-A sua vida � sua - prosseguiu Norah, agora com mais prem�ncia. - Voc� n�o �
respons�vel pelo que aconteceu. A Phoebe est� bem, em termos financeiros.
Paul balan�ou a cabe�a.
- Eu sei. N�o me sinto respons�vel por ela. N�o mesmo, de verdade. � s� que...
acho que eu gostaria de conhec�-la. Dia a dia. Afinal, ela � minha irm�. O emprego
� bom, e eu preciso mesmo de uma mudan�a. Pittsburgh � uma cidade bonita. Ent�o,
fico pensando: por que n�o?
- Ah, Paul - suspirou Norah, passando a m�o pelo cabelo curto. - O emprego �
bom mesmo?
- �. �, sim.
Ela assentiu com a cabe�a.
- Seria bom ter voc�s dois no mesmo lugar - admitiu, lentamente. - � preciso
considerar tudo. Voc� � muito mo�o e mal est� come�ando a encontrar seu caminho.
Mas saiba que certamente ir� encontr�-lo.
Antes que Paul pudesse responder, l� estava Frederic, dando um tapinha no rel�gio
e dizendo que eles teriam que sair logo, para pegar o avi�o. Depois de um minuto
de conversa, Frederic foi buscar o carro e Norah tornou a se virar para o filho, p�s
uma das m�os em seu bra�o e o beijou no rosto.
- Acho que estamos quase saindo. Voc� vai levar a Phoebe para casa?
- Vou. A Caroline e o Al disseram que eu posso ficar na casa deles.
Norah assentiu com a cabe�a.
- Obrigada por ter vindo - disse, baixinho. - N�o deve ter sido f�cil para voc�,
por todas as raz�es do mundo. Mas significou muito para mim.
- Eu gosto do Frederic. Espero que voc�s sejam felizes.
Norah sorriu e p�s a m�o no bra�o do filho.
- Eu me orgulho muito de voc�, Paul. Faz alguma id�ia do orgulho que sinto? Do
quanto amo voc�? - acrescentou. Virou-se para contemplar Phoebe, do outro lado
da mesa; ela pusera o ramo de narcisos embaixo do bra�o, e a brisa balan�ava sua
saia brilhosa. - Eu me orgulho de voc�s dois.
- O Frederic est� acenando - disse Paul, falando depressa para disfar�ar a emo��o.
- Acho que est� na hora. Acho que ele est� pronto. V� e seja feliz, mam�e.
Norah o fitou demoradamente, com l�grimas nos olhos, e lhe deu um beijo no rosto.
Frederic atravessou o jardim e apertou a m�o de Paul. O rapaz viu a m�e abra�ar
Phoebe e lhe dar seu buqu�, e percebeu a hesita��o com que a irm� retribuiu o
abra�o. Norah e Frederic entraram no carro, sorrindo e acenando, em meio a outra
chuva de confetes. O carro desapareceu depois da curva e Paul refez o percurso at�
a mesa, parando para cumprimentar um convidado ap�s outro, sempre de olho na
figura de Phoebe. Ao se aproximar, ouviu-a falando alegremente com outro convidado
sobre Robert e seu pr�prio casamento. A voz dela era alta, a fala, meio enrolada
e sem jeito, e o entusiasmo, incontido. Ele percebeu a rea��o do convidado - um
sorriso for�ado, inseguro, paciente - e estremeceu de embara�o. Porque Phoebe s�
queria conversar. Porque ele pr�prio havia reagido �quelas conversas da mesma
maneira, poucas semanas antes.
- E ent�o, Phoebe? - perguntou, aproximando-se e interrompendo. - Quer ir
embora?
- Est� bem - disse ela.
No carro, os dois cruzaram a zona rural exuberante. Era um dia quente. Paul desligou
o ar-refrigerado e baixou os vidros das janelas, lembrando-se de como a m�e
costumava dirigir desvairadamente por aquelas mesmas paisagens, para fugir da
solid�o e da tristeza, com o vento batendo no cabelo. Ele devia ter percorrido milhares
de quil�metros com ela, de um lado para outro do estado, deitado de costas, tentando
adivinhar onde os dois estavam por vislumbres de folhas, cabos telef�nicos,
c�u. Lembrou-se de ter observado uma barca�a a vapor deslocar-se pelas �guas barrentas
do Mississipi, com suas rodas claras soltando jatos de luz e de �gua. Ele nunca
havia compreendido a tristeza da m�e, embora mais tarde houvesse passado a carreg�-
la consigo, para onde quer que fosse.
Agora, toda aquela tristeza havia desaparecido: aquela vida tinha terminado,
desaparecera tamb�m.
Paul dirigiu depressa, vendo os resqu�cios do outono em toda parte. As cerejeiras
j� come�avam a mudar de cor, nuvens de um vermelho brilhante contra as montanhas.
O p�len fez seus olhos comicharem e Paul deu v�rios espirros, mas continuou
com as janelas abertas. Sua m�e teria deixado o ar-refrigerado ligado, o carro mais
frio que uma vitrine de florista. Seu pai teria aberto a maleta e procurado o anti-histam�nico.
Phoebe, ereta no assento a seu lado, com a pele muito alva, quase transl�cida,
tirou um len�o de papel de um pacotinho, em sua enorme bolsa de pl�stico
preto, e o ofereceu ao irm�o. As veias azul-claras desenhavam-se logo abaixo da
superf�cie de sua pele. Paul p�de ver a pulsa��o em seu pesco�o, calma, regular.
Sua irm�. Sua irm� g�mea. E se ela n�o tivesse nascido com a s�ndrome de
Down? Ou, ent�o, se tivesse nascido do jeito que era, simplesmente ela mesma, e
seu pai n�o houvesse erguido os olhos para Caroline Gill, enquanto a neve ca�a no
mundo l� fora e o colega dele atolava numa vala? Paul imaginou os pais, muito jovens
e muito felizes, aninhando os dois no carro e dirigindo devagar pelas ruas molhadas
de Lexington, no degelo de mar�o que se seguira a seu nascimento. A ensolarada
sala de recrea��o cont�gua a seu quarto teria sido o quarto de Phoebe. Ela o
teria perseguido escada abaixo, passado pela cozinha e entrado no jardim silvestre,
com o rosto sempre junto dele, o riso de um ecoando o do outro. Quem teria sido
Paul, nesse caso?
Mas sua m�e tinha raz�o: ele nunca poderia saber o que teria acontecido. Tudo de
que dispunha eram os fatos. Seu pai fizera o parto dos pr�prios filhos g�meos, em meio
a uma nevasca inesperada, seguindo os passos que sabia de cor, de olho na press�o e
nos batimentos card�acos da mulher deitada na mesa, na pele esticada, na cabe�a
surgindo. Respira��o, tom da pele, dedos das m�os e dos p�s. Um menino. � primeira
vista, perfeito, e uma musiquinha havia come�ado no fundo da mente do pai. Um
instante depois, o segundo beb�. E ent�o o canto do pai havia cessado para sempre.
Agora os dois se aproximavam da cidade. Paul esperou uma pausa no tr�nsito,
virou para o cemit�rio de Lexington e cruzou a entrada de pedra. Estacionou embaixo
de um olmo que sobrevivera a 100 anos de secas e doen�as e desceu do carro.
Deu a volta e abriu a porta de Phoebe, oferecendo-lhe a m�o. Ela a fitou, surpresa,
depois ergueu os olhos para o irm�o. Em seguida, saiu sozinha do carro, ainda segurando
os narcisos, cujas hastes j� estavam amassadas e molengas. Os dois seguiram
a trilha por algum tempo, passando pelos monumentos e pelos chafarizes com patos,
e Paul guiou Phoebe pela grama at� a pedra que marcava a sepultura de seu pai.
Phoebe passou os dedos pelos nomes e datas gravados no granito preto. Paul tornou
a se perguntar no que ela estaria pensando. Al Simpson era o homem a quem
ela chamava de pai. Ele fazia quebra-cabe�as com a filha � noite e, ao voltar de suas
viagens, levava-lhe seus discos favoritos; no passado, costumava carreg�-la no ombro
para que a menina pudesse tocar nas folhas altas dos sic�moros. Essa laje de
granito e esse nome n�o podiam: significar nada para ela.
David Henry McCallister. Phoebe leu as palavras em voz alta, devagar. Elas lhe
encheram a boca e ca�ram pesadamente no mundo.
- Nosso pai - disse Paul
- Pai Nosso que estais no c�u - fez Phoebe -, santificado seja o vosso nome.
- N�o - interrompeu Paul, surpreso. -Nosso pai. Meu pai. Seu pai.
- Nosso pai - Phoebe repetiu, e Paul sentiu uma onda de frustra��o, porque as
palavras dela eram agrad�veis, mec�nicas, sem nenhum significado em sua vida.
- Voc� est� triste - observou Phoebe nesse momento. - Se o meu pai morresse, eu
tamb�m ficaria triste.
Paul levou um susto. Sim, era isso: estava triste. Sua raiva tinha passado e, de
repente, ele podia ver o pai de outra maneira. Sua pr�pria presen�a devia ter lembrado
ao pai, a cada olhar, a cada respira��o, a escolha que ele fizera e n�o podia desfazer.
Aquelas fotos Polaroid de Phoebe que Caroline tinha enviado ao longo dos
anos, encontradas escondidas no fundo de uma gaveta do quarto escuro, depois que
os curadores se foram; e tamb�m a �nica fotografia da fam�lia de seu pai, a que Paul
ainda tinha, com todos parados na varanda da casa perdida. E mais os outros milhares
de fotos, uma ap�s outra, com que o pai superpusera imagens infind�veis,
tentando apagar o momento que nunca mais poderia alterar, e mesmo assim o passado
ressurgia, persistente como a mem�ria, poderoso como os sonhos.
Phoebe, a irm� de Paul, um segredo guardado por um quarto de s�culo.
Paul retrocedeu alguns passos na trilha de cascalho. Parou, com as m�os nos bolsos,
enquanto as folhas rodopiavam nos remoinhos de vento e um peda�o de jornal
voejava sobre as fileiras de lajes brancas. Passaram nuvens pelo sol, desenhando figuras
na terra, e os fachos de luz brilharam sobre as l�pides, a relva, as �rvores. As folhas
se agitaram de leve na brisa e a grama alta farfalhou.
No come�o, as notas foram suaves, quase uma corrente sob a brisa, t�o sutis que
ele teve que se esfor�ar para ouvi-las. Virou-se. Phoebe, ainda parada junto � l�pide,
com a m�o apoiada em sua borda escura de granito, tinha come�ado a cantar. A grama
sobre as sepulturas se movia e as folhas balan�avam. Era um hino, algo vagamente
conhecido. As palavras eram indistintas, mas a voz era pura e doce, e outros
visitantes do cemit�rio olhavam na dire��o dela, de Phoebe, com seu cabelo salpicado
de prata e seu vestido de dama de honra, a postura desajeitada, as palavras obscuras,
a voz descontra�da de flauta. Paul engoliu em seco, fixou os olhos nos sapatos.
Pelo resto da vida, percebeu, haveria de sentir-se dilacerado assim, consciente da inconveni�ncia
de Phoebe, das dificuldades enfrentadas por ela pelo simples fato de
ser diferente no mundo, e, no entanto, impelido para al�m de tudo isso pelo amor
direto e franco que ela era capaz de sentir.
Sim, pelo amor dela. E tamb�m, como percebeu, inundado por aquelas notas, por
seu pr�prio amor por ela, um amor novo e estranhamente descomplicado.
A voz de Phoebe, aguda e clara, correu por entre as folhas, pela luz do sol. Respingou
no cascalho, na grama. Paul imaginou as notas caindo no ar feito pedras na
�gua, gerando ondas na superf�cie invis�vel do mundo. Ondas sonoras, ondas de luz.
Seu pai tinha tentado fixar tudo, mas o mundo era fluido e imposs�vel de conter.
As palavras do antigo hino lhe voltaram � lembran�a, e Paul entrou na harmonia.
Phoebe n�o pareceu notar. Continuou cantando, acolhendo a voz dele como acolheria
o vento. O canto dos dois fundiu-se e a m�sica o perpassou por dentro, como
um cantarolar de carne e osso, e tamb�m estava do lado de fora, onde a voz dela era
g�mea da sua. Terminada a can��o, os dois ficaram onde estavam, na luz clara e p�lida
da tarde. O vento virou, pressionando o cabelo de Phoebe contra a nuca, espalhando
folhas mortas pela base da velha cerca de pedra.
Tudo ficou mais lento, at� que o mundo inteiro foi captado naquele momento
�nico de suspens�o. Paul ficou absolutamente im�vel, � espera do que aconteceria a
seguir.
Por alguns segundos, nada.
Depois, Phoebe virou-se devagar e alisou a saia amarrotada.
Um gesto simples, mas que rep�s o mundo em movimento.
Paul notou qu�o rentes eram cortadas as unhas dela, qu�o delicado era seu pulso
junto � l�pide de granito. As m�os de sua irm� eram pequenas, como as da m�e de ambos.
Paul atravessou o gramado e tocou no ombro de Phoebe, para lev�-la para casa.
CONHE�A OUTROS T�TULOS
DA EDITORA SEXTANTE
Por mais um dia � uma comovente hist�ria sobre vida e morte, amor e fam�lia,
perd�o e reden��o. O livro conta a trajet�ria de Charles Benetto, um ex-jogador de
beisebol arrasado pelo destino e por seus fantasmas interiores.
Desiludido e tomado por uma profunda tristeza, Charles decide morrer para dar
fim ao sofrimento, mas acaba tendo uma incr�vel surpresa: sua m�e, j� falecida, reaparece
agindo como se nada tivesse acontecido.
Como num passe de m�gica, ele tem a oportunidade de reencontrar pessoas que
j� se foram, explicar segredos do passado, repensar suas escolhas e, mais do que
tudo, perdoar e ser perdoado.
Com sensibilidade e delicadeza, Mitch fala neste livro sobre o poder do amor,
fazendo-nos viajar nas mem�rias de Charles, um filho como qualquer um de n�s ocupado
demais, cansado demais, ausente demais - que se v� diante da �nica chance
de salvar a si mesmo.
AS CINCO PESSOAS QUE
VOC� ENCONTRA NO C�U
As cinco pessoas que voc� encontra no c�u conta a hist�ria de Eddie, mec�nico de
um parque de divers�es que morre tentando salvar uma garotinha. Imerso numa
rotina de trabalho e solid�o, ele passou a vida se considerando um fracassado. Ao
acordar no c�u, encontra cinco personagens inesperados que lhe mostram como ele
foi importante.
Esse livro foi escrito para cada um de n�s, pois freq�entemente nos sentimos por
n�o termos realizado nossos sonhos. Ele nos faz lembrar que vivemos numa ampla
teia de liga��es e que temos o poder de mudar o destino dos outros com um
pequeno gesto, nos fazendo descobrir a import�ncia da lealdade e do amor em nossas
vidas.
A �LTIMA GRANDE LI��O
Cada um de n�s teve na juventude uma figura especial que nos ajudou a escolher
caminhos e olhar o mundo por uma perspectiva diferente. Para Mitch Albom, essa
pessoa foi Morrie Schwartz, seu professor na universidade. Vinte anos depois, eles se
reencontraram quando o velho mestre estava � beira da morte.
Mitch passa a visitar Morrie todas as ter�as-feiras, tentando sorver seus �ltimos
ensinamentos. Durante quatorze encontros, eles tratam de temas fundamentais para
a felicidade e a realiza��o humana. Atrav�s das �geis m�os de Mitch e do bondoso
cora��o de Morrie nasceu este livro, que nos transmite maravilhosas reflex�es sobre
amor, amizade, medo, perd�o e morte.
DE ESTHER E JERRY HICKS
PE�A E SER� ATENDIDO
Quando desejamos alguma coisa, � comum ficarmos mais concentrados na id�ia
de que n�o a temos do que na vontade de t�-la. Embora essa seja uma atitude inconsciente,
ela � a principal respons�vel pela nossa dificuldade de alcan�ar os objetivos.
Como os pensamentos deveriam ser a express�o de nossos desejos, essa negatividade
acaba atraindo o oposto do que queremos.
Essa � a id�ia principal de Pe�a e ser� atendido, livro que nos estimula a identificar
nossos verdadeiros sonhos e a criar as condi��es para realiz�-los. A fonte dessas
revela��es � Abraham, o guia espiritual que inspirou Esther e Jerry Hicks a compartilhar
conosco valiosas li��es.
Com sensibilidade e clareza, os autores mostram o que devemos fazer para atrair
aquilo que queremos - melhorar a sa�de, equilibrar as finan�as, redefinir nossas
prioridades, aumentar a auto-estima ou aprimorar os relacionamentos.
DE IYANLA VANZANT
ENQUANTO O AMOR N�O VEM
"Haver� um momento em sua vida em que o amor vai chegar. Antes disso, voc�
ter� feito tudo o que podia, tentado tudo o que podia, sofrido o quanto podia e
desistido muitas vezes.
Mas, com certeza, posso lhe garantir que esse dia vir�. Nesse meio tempo, esse
livro vai lhe contar muitas hist�rias e lhe ensinar algumas coisas que voc� pode fazer
para se preparar para o dia mais feliz de sua vida: o dia em que experimentar o amor
verdadeiro."
IYANLA VANZANT
"Esse livro re�ne ora��es que elaborei ao longo dos anos. Como descobri que
escrever as preces me ajuda a fix�-las, resolvi criar um Di�rio de Ora��es. Algumas
s�o baseadas ou inspiradas nas Escrituras; outras s�o id�ias minhas, frutos dos meus
di�logos �ntimos com Deus. As preces aqui apresentadas abrangem uma variedade
de t�picos e necessidades.
Rogo a Deus que esse livro acenda uma luz em seu cora��o - e quem sabe at� o
inspire a escrever algumas preces de sua pr�pria autoria. Acredito que, assim, consolidaremos
a presen�a da paz, alegria, equil�brio, harmonia e do pr�prio Deus no
planeta."
IYANLA VANZANT
DE ALLAN E BARBARA PEASE
POR QUE OS HOMENS FAZEM SEXO
E AS MULHERES FAZEM AMOR?
Homens e mulheres s�o e reagem de forma diferente, o que torna seu conv�vio
dif�cil, muitas vezes �spero e gerador de ressentimentos. Mas quais s�o as raz�es
dessas diferen�as e at� que ponto elas podem ser superadas? Como aprender a lidar
com elas e administr�-las para sermos felizes em nossos relacionamentos?
Com base em anos de pesquisa, os autores escreveram um livro sobre essas diferen�as
e o resultado � um importante instrumento para estabelecer uma rela��o
harmoniosa entre o relacionamento com o outro sexo, seja no casamento, na vida
profissional, na forma de educar os filhos ou em qualquer campo do relacionamento
humano.
DESVENDANDO OS SEGREDOS
DA LINGUAGEM CORPORAL
Nesse livro, Allan e Barbara Pease mostram que 93% da comunica��o humana �
feita atrav�s de express�es faciais e movimentos do corpo. Quando aprendemos a
prestar aten��o em nossa linguagem corporal e a interpretar corretamente a dos outros,
passamos a ter maior controle sobre as situa��es, identificando sinais de abertura,
de t�dio, de atra��o ou de rivalidade e agindo de forma adequada aos nossos
objetivos.
Voc� vai aprender aqui o significado real de gestos que usamos no dia-a-dia, como
cruzar os bra�os, co�ar o nariz e balan�ar a cabe�a, evitando os habituais mal-entendidos
causados pela contradi��o entre o que dizem nossas palavras e nosso corpo.
DE AUGUSTO CURY
NUNCA DESISTA DE SEUS SONHOS
Com mais de 3 milh�es de livros vendidos sobre temas como crescimento pessoal,
intelig�ncia e qualidade de vida, o psiquiatra Augusto Cury debru�a-se aqui
sobre nossa capacidade de sonhar e o quanto ela � fundamental na realiza��o de
nossos projetos de vida.
Analisando a trajet�ria de personalidades importantes de nossa hist�ria, pessoas
que acreditaram em seus sonhos, lutaram por eles e tornaram-se vencedoras, o
autor nos convida a seguir o mesmo caminho, mantendo a persist�ncia e a esperan�a,
sem jamais deixar de sonhar.
VOC� � INSUBSTITU�VEL
Esse livro fala do amor pela vida que habita em cada ser humano. Voc� descobrir�
alguns fatos relevantes que o tornaram o maior vencedor do mundo, o mais corajoso
dos seres, o que mais cometeu loucuras de amor para poder estar vivo.
N�o � t�o simples viver a vida. �s vezes, ela cont�m cap�tulos imprevis�veis e
inevit�veis. Mas � poss�vel escrever os principais textos de nossas vidas nos momentos
mais dif�ceis de nossa exist�ncia.
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De: Reginaldo Mendes
Olá, pessoal:
Este é mais um livro de nossa campanha de doação e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.
Agradecemos ao Irmão e digitalizador Fernando por colaborar com esta nossa campanha.
Pedimos não divulgar em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos
O Grupo Mente Aberta lança hoje mais um livro digital !
Desejamos a todos uma boa leitura !
O Guardião de Memórias - Kim Edwards
Sinopse:
Casados há poucos anos, Norah e David esperavam felizes a chegada de seu primeiro filho.
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