sábado, 18 de janeiro de 2014 By: Fred

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO: APESAR DE TUDO... MÔNICA DE CASTRO/LEONEL TXT

CAPÍTULO


1


O céu cinzento era prenúncio de que muita chuva ia
cair naquele fim de domingo. Leontina estugou o passo, na
tentativa de iniciar a subida até sua casa antes do temporal.
Com as águas rolando, a lama desceria morro abaixo, tornando
praticamente impossível subir sem um escorregão ou
um tombo no lamaceiro.

— Vamos logo, Clementina — falou para a irmã. — Vai
desabar um pé-d'água.
Estranhamente, Clementina havia estacado diante
de um latão de lixo. Parecendo oscilar entre a repulsa e a
curiosidade, remexia em seu interior com a pontinha dos
dedos. Leontina parou também e se aproximou, maldizendo
Romualdo, que punha a cabeça da irmã naquele desatino.
Na certa, ele havia ameaçado ir embora novamente,
deixando Clementina feito uma doida sem raciocínio. Será
que nem o culto daquela noite servira para pôr um pouco de
juízo na cabeça daquela doidivanas?

— Mas o que foi que deu em você, Clementina? — reclamou,
tentando puxar a irmã pelo braço. — Quer ficar toda
ensopada? Olhe que já está relampejando.
Um raio despencou nas cercanias, e o estrondo ensurdecedor
do trovão que o seguiu causou um calafrio em Leontina.
Ela se encolheu e clamou baixinho por Deus, deixando o olhar


perdido no céu por uns instantes, tentando adivinhar onde
caíra aquele raio. Esperava, sinceramente, que não houvesse
sido perto de sua casa. Mais um sacolejo e o barraco não resistiria:
viria ao chão feito um caixote desmantelado.

Ela se virou para a irmã, ainda segurando-lhe o braço,
mas, antes que pudesse dizer novamente "venha", ouviu um
choro miudinho partindo de algum lugar abaixo delas.

— Ué! — exclamou impressionada. — Será que tem
alma do outro mundo por aqui? Acho melhor a gente ir,
Clementina. Já estou até ouvindo coisas.
— Fique quieta, Leontina! — exasperou-se a outra.
— Será possível que você ainda não tenha notado?
— Ainda não tenha notado o quê?
A pergunta ficou no ar, a resposta não veio. Seguindo
a direção do dedo da irmã, Leontina estacou estupefata. Na
mesma hora, grossos pingos de chuva começaram a cair, e
ela apertou a Bíblia de encontro ao peito, segurando na garganta
o grito de susto, que por pouco não deixou explodir.

— Meu Jesus Cristinho! — exclamou, por fim. — Isso
é o que eu estou pensando que é?
Ainda sem responder, Clementina afastou o trapo engordurado
e puxou cuidadosamente o corpinho retorcido de
um bebê. Ele soluçava baixinho, fraco demais para expressar
no pranto a fome que a barriga sentia. Clementina entregou
sua Bíblia para a irmã e acomodou o bebê nu em seu colo.
Imediatamente, a criança começou a balançar a cabeça,
como se buscasse alimento no seio sem leite de Clementina.

— Ele está com fome e com frio — constatou ela, protegendo-
o com o próprio corpo. — E todo sujo, cheio de
assaduras! Venha, vamos levá-lo daqui.
Sem dizer nada, as duas dispararam pela rua, iniciando
a subida da ladeira que dava acesso ao morro. A
chuva engrossava a cada instante, raios se precipitavam
por toda parte, seguidos da barulheira infernal da trovoada.
Como a criança, assustada, começou a gemer baixinho,


Clementina tentou proteger seus ouvidos, para que ela não
se incomodasse tanto com os ensurdecedores trovões.

Por sorte o barraco de Clementina não era muito lá no alto,
e elas logo entraram correndo, respingando lama no cimento da
sala. Clementina levou o bebê para o quarto e deitou-o na cama.
Ele estava completamente nu, o corpinho trêmulo, roxo de frio.

— Coitado! — apiedou-se Leontina. — Quem será
que teve a coragem de fazer uma malvadeza dessas?
— Não temos tempo para pensar nisso agora — respondeu
Clementina, enquanto apanhava no armário um
cobertor furado e o deitava sobre o menino. — O mais importante
é aquecê-lo e dar-lhe de comer.
— E ele come o quê? É tão pequenininho...
— Deve beber leite. Vou esquentar um pouco. E água
para lavá-lo.
— Como é que você vai dar de mamar a ele? Precisa
de uma mamadeira. E quem é que vai sair nessa chuva para
comprar uma? — O olhar de súplica de Clementina já dizia
tudo, e Leontina objetou: — Ah, Não! Nem pensar! Eu é
que não vou sair nesse aguaceiro!
— Por favor, Leontina. Ele vai morrer!
— Vá você, então. Eu fico aqui, tomando conta dele.
Dou-lhe banho e tudo.
— E se o Romualdo chegar? O que é que você vai
dizer a ele?
— Que você foi até a farmácia e já volta.
— Como vai explicar o bebê?
— Digo que o encontramos na lata de lixo, ué!
— Ah! Leontina, por favor. Faça isso por mim, eu imploro.
Não quero deixar o menino sozinho.
— Acho que o melhor é a gente entregá-lo à polícia.
— Depois pensamos nisso. Agora, o importante é fazê-
lo comer. Olhe só o coitadinho. Além de roxo, está muito
magro. As costelinhas estão até grudadas na pele.

Vendo a magreza do menino, Leontina se deu por vencida.
Levantou-se de um salto e disse, impaciente:

— Está bem, está bem. Vou à farmácia. Mas quem vai
pagar a mamadeira é você.
Com um sorriso de vitória, Clementina puxou a bolsa
de cima do armário e abriu-a, contando as notas com cuidado,
para se certificar de que não faltava nenhuma.

— Aqui — disse ela, estendendo o dinheiro para a
irmã. — Traga uma bem baratinha. E se lá venderem fraldas,
compre um pacotinho também.
— Descartáveis?
— É claro que não! Fralda descartável é muito caro.
Traga um pacote de pano mesmo.
Lá se foi Leontina, debaixo de chuva, comprar mamadeira
e fraldas para o bebê. Enquanto a aguardava,
Clementina admirava a criança, orando a Jesus para que a
salvasse. Era um bebê tão bonitinho! Escurinho, da cor do
Romualdo. Bem podia ser filho dele. E dela...

O pensamento foi tão rápido que Clementina quase não

o percebeu. Já pensava no bebê como se fosse seu filho. E
por que não poderia ser? A mãe o abandonara, jogara-o no
lixo. Por que ela, que o encontrara, não podia ser sua mãe?
Procurando não pensar naquilo, levantou-se para esquentar
a água e o leite. A leiteira estava quase vazia, mas
ainda havia o suficiente para alimentar a criança. Ela acendeu
o fogão, pôs o leite em uma boca e, em outra, uma
chaleira com água. Sentou-se à mesa para esperar, de olho
no bebê. De onde estava, podia avistar o quarto, contíguo à
sala, que também servia de cozinha. Do outro lado, um banheiro
minúsculo e, ao fundo, um pequeno quintal.

O leite era tão pouco que logo esquentou. A água demorou
um pouco mais. Clementina apagou o fogo, voltou para o
quarto com a chaleira e derramou a água morna numa bacia.
O bebê estava de olhos fechados, tão quieto que ela temeu
que tivesse morrido. Colocou a mão debaixo do seu nariz,


para sentir-lhe a respiração, que, de tão fraca, parecia que ia
sumir. 0 peito ossudo subia e descia regularmente, embora
sem muito vigor. Teve medo de que ele não resistisse.

— Por favor, Jesus — orou com fervor. — Não deixe
o bebezinho morrer. Ele é tão pequeno, tão indefeso, tão
puro... Ajude-me a cuidar dele para que sobreviva...
— Falando sozinha, Tina?
Clementina deu um pulo da cama e fitou o recém-chegado
com espanto. Romualdo estava parado ao umbral da
porta, olhando-a com olhos vermelhos, encharcados de pinga.
Aproximando-se, puxou-a com rispidez, beijando-a com
volúpia. Ela afastou o rosto, torcendo o nariz, e reclamou:

— Solte-me! Não suporto esse seu cheiro de cachaça.
— Você está sempre reclamando — contestou ele, a
voz pastosa e engrolada.
Quando Romualdo fez menção de se atirar na cama,
Clementina soltou um grito estridente:

— Cuidado!
Com o susto, ele olhou para o leito. Só então percebeu
o bebê adormecido sob o cobertor e a bacia com água sobre
uma cadeira. De tão pequeno, dava a impressão de ser
uma trouxinha de roupa, em que ele mal havia reparado.
— O que é isso? — perguntou, tentando focar a vista
na criança.
— Um bebê. Não está vendo?
— Isso eu sei. Mas de quem é?
A resposta foi tão repentina que até Clementina se
surpreendeu:

— É meu. Meu filho.
— Que besteira é essa, mulher? Desde quando você
tem filho? E ainda mais um bebê feito esse? Então eu não ia
ver a sua gravidez? — ele riu de si mesmo e voltou a mirar a
criança, que permanecia imóvel sob as cobertas. — Está vivo?
— Está dormindo — falou ela, sem muita convicção.
— Parece morto.

Impressionado, Romualdo aproximou seu rosto do
bebê, que ainda não se mexia. Cutucou-o com os dedos,
até que ele abriu os olhos e choramingou baixinho.

— Olhe só o que você fez! — censurou Clementina.
— Acordou o pobrezinho.
Romualdo se aproximou da mulher, que havia pegado
a criança no colo, e afagou sua cabecinha.

— É tão bonitinho!
— Você acha?
Ele assentiu e tornou curioso:
— Fale sério, Tina. De quem é?
— É meu, já disse.
— É claro que não é seu. Vamos, conte-me. É do pastor
com alguma pilantra lá da igreja?
— Não fale assim do pastor! — rebateu ela furiosa.
— Se você fosse à igreja, talvez não bebesse tanto e se
acertasse na vida.
— Está bem, desculpe — ele abaixou os olhos, envergonhado,
e mudou de assunto: — Ele parece estar com fome.
O bebê agora chorava com mais vontade. Clementina
ninou-o gentilmente, tentando acalmá-lo.

— Não chore, bebezinho. Mas onde está a Leontina
com essa mamadeira?
— Leontina foi comprar mamadeira?
— Como você espera que eu o alimente? Ele ainda
não sabe beber em copo.
— Verdade... — ele ficou olhando a criança, até que
continuou: — Tina...
— O que é?
— Você ainda não me disse como foi que ele veio parar
aqui.
Não tinha jeito. Clementina não queria se afastar do
bebê, mas precisava contar a verdade a Romualdo.

— Você jura que não conta a ninguém? — Ele assentiu
e ela continuou: — E vai me ajudar a ficar com ele?

— Ficar com ele? Mas, Tina, o bebê tem mãe...
— Não tem, não! Mãe nenhuma faz o que fizeram
com ele.
— Você já está fazendo mistério demais. Quer me
contar logo de onde foi que veio essa criança?
— Primeiro você tem que prometer. Vai me apoiar ou não?
— Como posso apoiá-la numa loucura?
— Quando você conhecer toda a história, aí sim, vai
ver o que é loucura.
— Muito bem. Vou apoiar você, desde que não tenha
sequestrado o bebê.
— Que sequestrado o quê! Por acaso sou alguma
criminosa?
— Deixe de enrolar e conte logo.
Clementina contou tudo em minúcias, acompanhando os
olhares de espanto de Romualdo a cada passagem da narrativa.
Ao final, ele estava com os olhos marejados, mais pela emoção
do que pelo efeito do álcool, que agora quase não sentia.

— Viu por que tenho que ficar com ele? — ela concluiu.
— A mãe é uma irresponsável, criminosa. Onde já se
viu deitar o filho fora na lata de lixo?
— Que horror! Tem razão quanto à mãe, mas acho
que você não vai poder ficar com ele.
— Por que não? Fui eu que o achei.
— Um bebê não é um guarda-chuva que a gente apanha
nos achados e perdidos. A polícia não vai deixar você
ficar com ele.
— Quem falou em polícia? Não vamos contar nada.
— E você acha que ninguém vai descobrir?
— Só se você falar.
— Abra os olhos, Tina! As autoridades virão aqui buscá-lo.
— As autoridades não vão saber! Podemos registrá-
lo como nosso filho e ninguém nunca vai ficar sabendo.
— Registrá-lo? Agora, sim, ficou louca de vez.

— Pense bem, Romualdo. Nós sempre desejamos ter
um filho, mas Deus não nos deu. Agora, recebemos este de
presente. Por que temos que nos desfazer dele?
— Porque ele não é nosso. E a mãe, provavelmente, já
deve estar atrás dele.
— A mãe o jogou no lixo! Ela não o quer. E ele também
não haveria de a querer se soubesse o que ela fez.
— Olhe só para ele, Tina. Nós nem sabemos se ele vai
sobreviver. E se esse bebê morrer em nossas mãos? Você já
pensou na encrenca em que vamos nos meter?
— Ele não vai morrer. E não diga mais isso. É só
Leontina chegar com a mamadeira, que vou alimentá-lo. Ele
vai sobreviver, vai crescer forte e lindo. E vai ser o nosso filho.
— Posso saber como você pretende fazê-lo passar
por nosso filho?
— Você vai ao cartório e o registra como nosso. Pronto.
— Eu nunca registrei filho nenhum... não é preciso
apresentar nenhum papel?
— Não sei, mas posso perguntar ao pastor. Ele deve
saber.
— Logo ao pastor? Aí mesmo é que você não vai ficar
com ele. O pastor vai obrigá-la a entregar a criança ao juizado
de menores.
— Eu vou descobrir, Romualdo. Tem advogados na
igreja, a quem eu posso perguntar. Depois, registramos a
criança e nos mudamos. Ninguém vai ficar sabendo de nada.
Por um momento, Romualdo ficou tentado a dissuadir
Clementina daquela loucura e entregar a criança ao juizado
de menores. Contudo, olhando melhor para o pequenino,
seu coração se apertou. Ele também queria ter um filho, mas
Clementina jamais engravidara. Ele a acusara de estéril várias
vezes, mesmo sabendo que o problema era dele, consequência
da caxumba que contraíra na infância. O orgulho
masculino, no entanto, o impedira de contar a verdade, e
Clementina sempre vivera se culpando por não terem filhos.


Dinheiro para um tratamento, ela não tinha, de forma que ela
nunca ficou sabendo que a incapacidade era dele, não dela.

Não seria essa a oportunidade de compensá-la por
aqueles nove anos de casamento sem filhos? Ela não era
mais nenhuma jovenzinha, mas ainda tinha bastante tempo
de vida para criar um filho e vê-lo crescer. Os dois podiam. E
ele sempre quisera uma criança, muito embora, intimamente,
se sentisse resignado com a própria esterilidade. Aquela
não seria a sua chance?

Olhando para os dois, ninguém diria que não eram
mãe e filho, que não tinham o mesmo sangue. Até fisicamente
eram parecidos. O menino era mulatinho feito Clementina,
feito ele. Os cabelos ainda eram ralos, mas já dava para perceber
que cresceriam crespos, iguais aos deles. Quem negaria
que eram seus pais?

A decisão estava tomada. No dia seguinte, segunda-feira,
Romualdo iria ao cartório se informar sobre o registro do
menino. Se dissesse que ele tinha nascido em casa, quem iria
contestar? A partir de então, o menino seria seu filho.


CAPÍTULO


2


Leontina desceu o morro maldizendo a vida e sua burrice.
Por que se deixara convencer a sair debaixo daquele
temporal? E, ainda por cima, tinha que escorregar pela ladeira,
arriscando-se a levar um raio na cabeça. Tudo para
que a doidivanas da irmã ficasse em casa paparicando um
bebê que deveria ser entregue aos cuidados de uma instituição
mais preparada.

Seguiu praguejando pela rua, passando pelo local
onde haviam encontrado o menino. A lata de lixo ainda estava
lá. Uma mendiga remexia o seu interior, provavelmente
à procura de restos de comida. Leontina se apiedou, fez
uma pequena prece para que Jesus salvasse aquela alma
e seguiu adiante. Na direção oposta, vinha uma mulher
elegante, equilibrando-se em seu salto alto debaixo de um
guarda-chuva imenso, todo florido. Ao passar pela lata de
lixo, foi abordada pela mendiga, mas não lhe deu atenção,
estugando o passo para fugir de seu assédio inconveniente.
Leontina estava próximo o suficiente para ouvir a voz pastosa
de alguém visivelmente embriagada:

— Você viu o meu filho, dona? Viu o meu bebê?
Leontina gelou. Pensou em se virar para pedir explicações,
mas um terror súbito endureceu os seus pés, que
não conseguiram se voltar. Aproveitando a trégua da chuva,


atravessou em direção à farmácia, deixando para trás a lata
de lixo e sua estranha visitante. O remorso começou a consumi-
la. Devia ter parado e perguntado sobre o que a mulher
estava falando. Mas ela sabia bem sobre o que era. Não
podia ser uma coincidência, nem a mulher estava bêbada a
ponto de inventar um bebê no mesmo latão de lixo em que,
por acaso, ela e Clementina haviam acabado de encontrar
uma criança.

Margarete revirava a lata, mal contendo a agonia. Na
ânsia de encontrar o que procurava, nem viu Leontina passar.
Onde é que ela estava com a cabeça quando se desfizera do
bebê? Fora um ato de desespero, ela não queria, realmente,
se livrar da criança. A mente turvada pelo álcool lhe dificultara

o raciocínio e estimulara a depressão. Num de seus rompantes
de desequilíbrio, pensara que atirar o filho no lixo a livraria
de um problema. O filho, porém, não era o problema. O problema
era ela, que não conseguia administrar a própria vida.
Margarete vivia lá pelos lados de Belford Roxo, sempre
às voltas com homens e empregos. Quando os pais morreram,
contava já dezenove anos, de forma que teve que trabalhar
para sobreviver. A vida não foi nada fácil. Não possuía
nenhuma qualificação profissional, não sabia ler nem escrever
direito, era semianalfabeta. Por vezes, arranjava um emprego
de doméstica ou de empacotadora em algum mercadinho,
mas nunca ficava muito tempo, porque era irresponsável e
costumava faltar ao trabalho sem justificativas plausíveis.

Ia pulando de emprego em emprego, até que foi trabalhar
na casa de uma família influente em Belford Roxo.
Aos vinte e seis anos, embora já tivesse perdido um pouco

o viço da juventude, consequência de uma vida dura e sacrificada,
tinha ainda um quê de beleza que chamava a atenção.
E como, na casa em que trabalhava, o filho da patroa
era um rapazinho muito bem-apessoado, de seus quatorze
anos, Margarete logo se engraçou com ele. Inexperiente,
Anderson se apaixonou pela primeira mulher de sua vida.

Durante dois anos, Margarete trabalhou e viveu ali, até
que acabou engravidando. No começo da gravidez, dona
Bernadete, a patroa, condoeu-se, prometendo mantê-la
no emprego mesmo após o nascimento da criança. Para
Margarete, isso não era suficiente. Ela queria que Anderson
assumisse suas responsabilidades e reconhecesse o filho,
dando a ambos uma vida de luxo.

Pressionado, Anderson não viu alternativa senão revelar
a verdade. Como era de se esperar, o pai, Graciliano,
ficou furioso. Interpelada, Margarete confirmou tudo, exigindo
dinheiro para seu filho. A exigência não surtiu efeito.
Preconceituoso ao extremo, Graciliano não aceitou como
neto o filho de uma doméstica negra e, ainda por cima, muito
mais velha do que Anderson. Mandou o rapaz para um
internato em São Paulo e colocou Margarete na rua.

Pobre, sem ter para onde ir, Margarete ficou desesperada.
Vadiava pelas ruas, mendigava, exibindo a barriga imensa
para provocar a compaixão dos transeuntes, que sempre
lhe davam um trocado ou outro. Com o dinheiro, comprava
comida e bebida. Até que, desiludida, viu no álcool a salvação
de sua desgraça, pois a bebida tinha o efeito de um
anestésico em sua mente e a fazia esquecer-se, por momentos,
de sua miséria.

Sentindo a proximidade do parto, foi sozinha para a
maternidade pública, onde o bebê nasceu sem maiores
complicações. Era um menino franzino, a pele morena, de
um tom amarronzado mais claro que o da mãe. Ao ver a
criança, o ódio consumiu o peito de Margarete. Se ela e o
filho fossem brancos, teriam um lugar na vida de Anderson.
Com aquele pensamento, saiu da maternidade decidida a
dá-lo para adoção.

Mas o coração de uma mãe bate de forma diferente,
e Margarete não teve coragem de se desfazer do menino.
Podia tentar pedir ajuda a dona Bernadete. Talvez ela se
apiedasse e lhe desse algum dinheiro.


Com o bebê no colo, Margarete tocou a campainha da
casa de Anderson. Como não a conhecia, a criada que atendeu
mandou que ela esperasse. Logo Bernadete apareceu.

— O que está fazendo aqui? — sussurrou, fechando a
porta para que ninguém lá de dentro as visse. — Quer que
Graciliano chame a polícia?
— Por favor, ajude-me — choramingou. — Não tenho
dinheiro, nem para onde ir.
— Isso é problema seu. Ninguém mandou abusar da
nossa confiança.
— Sei que errei, mas o menino não tem culpa. Ele é
seu neto.
Margarete chegou para o lado o trapo que encobria o filho
e exibiu-o a Bernadete, que virou o rosto e contestou irritada:

— Esse menino não é meu neto, não é nada meu. E
você não tem como provar que é. Ele é... ele é... — ela hesitava
falar, para não revelar seu preconceito — é muito diferente
da nossa família. Ninguém irá dizer que é filho de Anderson.
— A senhora sabe que é.
— Não sei de nada! Você é quem diz, mas esse coitadinho
pode ser filho de qualquer um. Ninguém, em sã
consciência, vai acreditar que ele é meu neto. E Anderson é
uma criança, você o seduziu. Uma mulher adulta feito você
não pode sair por aí dormindo com adolescentes. Nós podíamos
chamar a polícia e você seria presa.
De tão abismada, Margarete abriu a boca e ficou
parada, olhando para Bernadete com cara de espanto.
Subitamente, a porta se abriu e Graciliano apareceu.

— Eu devia imaginar que era você, sua negra — disse
com raiva, olhando a criança em seus braços. — E trouxe a
cria com você. Onde já se viu tamanho atrevimento?
Soluçando, Margarete revidou com voz humilde e sofrida:

— Pelo amor de Deus, doutor Graciliano, me ajude.
— Vá-se embora daqui, sua desaforada! Ou chamo
a polícia!

— Não precisamos provocar um escândalo — ponderou
Bernadete, tentando conter o alvoroço para não fazer
feio diante da vizinhança. — Margarete já estava de saída.
Não é mesmo, Margarete?
Ela simplesmente assentiu e abaixou a cabeça, apertando
o filho de encontro ao peito. De tão humilhada, nem
quis mais discutir e não percebeu que Bernadete cochichava
algo no ouvido de Graciliano. Virou-lhes as costas, descendo
os degraus que levavam ao jardim da frente. Uma batida
em seu ombro fez com que se voltasse. Parada mais atrás,
Bernadete sacudia um maço de cédulas diante de sua face.

— Vamos, pegue. Sei que é isso que você quer.
— É o máximo que vai ter de nós — acrescentou
Graciliano. — Seu golpe do baú não deu resultado.
Em lágrimas, Margarete apanhou o dinheiro e enfiou-o
dentro do sutiã, sentindo os seios doloridos ao tocá-los.
Estavam cheios de leite para amamentar o filho, que dormira
o tempo todo. Desnorteada, dobrou a esquina, avistou
um bar e dirigiu-se para lá. Entrou, quase atropelando um
mendigo que dormia encostado à parede. O mendigo se remexeu
e a xingou alto, voltando a adormecer em seguida.
Sem lhe dar importância, pediu uma pinga. Mesmo com a
criança no colo, conseguiu encher a cara, sentindo-se mais
confiante, livre para fazer o que bem entendesse.

Seguiu cambaleante pela rua, pensando em sua vida.
A cada tropeço, apertava o bebê, com medo de deixá-lo
cair, e ele respondia com um gorgorejo. Era uma criança
quietinha, quase não chorava. Olhando para ele, Margarete
sentiu um misto de ódio e ternura.

Como se enganara com Bernadete! Ela, que parecia
tão boa, revelara-se uma mulher cruel, mesquinha, preconceituosa.
A família toda de Anderson era cheia de preconceito,
fato com que ela não contava ao idealizar seu plano.
Pensara mesmo que poderia dar o golpe do baú, como dissera
Graciliano, mas o tiro saíra pela culatra, e ela agora


estava em situação pior do que antes, carregando um filho
não reconhecido a tiracolo.

Resolveu tomar um ônibus qualquer. Como não sabia
ler direito, o destino era desconhecido. O ônibus seguiu pela
Via Dutra, vazio naquela tarde de domingo. Apesar da bebedeira,
Margarete ainda conseguiu amamentar o filho, que
agora não parava de chorar. Com o balanço do veículo, ela
acabou adormecendo, os joelhos apoiados no encosto do
banco da frente, para impedir o bebê de cair.

Margarete acordou com o trocador cutucando-a:

— Ponto final — disse ele, de mau humor.
— Hum...? — fez ela, espreguiçando-se e olhando para
o filho, que agora dormia saciado, deixando seu seio exposto.
— Ponto final — repetiu o homem, olhando com ar de cobiça
para o seio desnudo de Margarete. — Você tem que descer.
— Que lugar é esse? — questionou ela, cobrindo-se
com a blusa rota.
— Penha.
— Onde é que fica isso?
— No Rio de Janeiro. Você é doida, é?
O bebê se remexeu e Margarete ajeitou-o no colo.
— Preciso de uma bebida — anunciou, sentindo a língua
pesada e áspera.
— Olhe, moça, gostaria muito de ajudar, mas não posso.
Ainda tenho mais duas viagens a fazer, e é melhor você
sair. Daqui a pouco o fiscal chega, e vai chamar minha atenção
por sua causa.
Margarete olhou para a escuridão da rua. Por um momento,
pensou que a noite houvesse caído. Olhando melhor,
reparou que eram pesadas nuvens que tomavam o céu.

— Vai cair um temporal — constatou. — Para onde é
que eu vou?
— Você não sabe para onde vai? — Ela meneou a cabeça,
e ele retorquiu: — Por que não pega o ônibus de volta?

— Nunca mais vou voltar a Belford Roxo. E se não
posso ficar aqui, vou encontrar onde ficar.
— Ônibus não é albergue, moça.
Margarete saiu sem se despedir, caminhando pela rua
escura. O céu ameaçava chuva, e das grossas. Em outro
ponto mais adiante, tomou um ônibus qualquer. Precisava
desesperadamente de um trago. Sentada no banco de trás,
pensou em saltar novamente, mas o motorista acionou o
veículo, e ela engoliu o vício, sentindo aquele ódio surdo
martelando em seu peito. Com o sacolejo do ônibus, o bebê
se agitou um pouco, vomitando no colo de Margarete, que
praguejou e o levantou bruscamente. Ele desatou a chorar,
causando-lhe imensa fúria.

— Cale a boca, desgraçado — disse entre os dentes,
enquanto o sacudia, aumentando seus soluços.
— Não devia tratar assim o seu bebê. — Ela ouviu
uma voz dizer e constatou que era uma mulher sentada no
banco lateral. — É maldade.
Margarete sentiu vontade de mandar a mulher não se
meter na sua vida, mas havia outros passageiros observando-
a com ar de reprovação. Só por isso, acomodou de novo

o filho e procurou se acalmar, embora o ódio persistisse.
"Como se não bastasse tanta desgraça, ainda tenho
que aguentar a recriminação do povo por sua causa", pensou
com raiva.

— Gente assim não devia ter filho — falou baixinho um
homem à sua frente, causando-lhe ainda mais irritação.
— É mesmo — concordou a moça ao lado dele.
— Não sei para que colocar filho no mundo.
— Essas mulheres são assim mesmo. Tratam filho que
nem bicho.
Embora falassem baixo, Margarete ouviu tudo o que
disseram. O ódio que sentiu foi tão intenso que, sem querer,
apertou as mãos ao redor do pescocinho do filho. O menino


se contorceu, soltou um gemido gutural, e só então ela per


cebeu que o estava estrangulando.

"Meu Deus!", disse para si. "O que estou fazendo?"

Assustada consigo mesma, Margarete levantou-se
abruptamente e deu o sinal para saltar. Pagou a passagem,
desceu numa rua movimentada, em um bairro desconhecido.
Caminhando a esmo, alcançou uma praça iluminada,
onde, ao centro, um lago artificial ostentava imenso e lindo
chafariz. Durante um tempo ficou observando a beleza da
praça e do chafariz, sem fazer a menor ideia de onde estava.

Caminhou aleatoriamente, atenta aos luminosos que
piscavam por todo lado, maldizendo-se por não saber ler.
Identificou, porém, o símbolo do Metrô, que Anderson lhe
mostrara algumas vezes nas revistas. Passou por uma lanchonete
que lhe pareceu atraente, mas não ousou entrar,
com medo de ser expulsa. Virou na primeira rua que avistou,
caminhando à procura de um bar. Carregando o bebê feito
uma trouxa, entrou no botequim e pediu uma dose de pinga,
que o atendente serviu a contragosto. Quando terminou, pediu
outra, depois mais outra, e foi assim até acabar o pouco
dinheiro que Bernadete lhe dera.

Completamente alterada pela bebida, saiu trôpega,
carregando o pequeno fardo que, segundo pensava, era a
causa de todo o seu infortúnio. Um cheiro desagradável lhe
dizia que o menino sujara a única fralda que possuía, presente
de uma enfermeira caridosa, que agora estava imprestável.
Com raiva, arrancou a fralda do bebê e atirou-a longe.

— Cretino! — esbravejou, irritada com o choro desesperado
da criança. — Tenho que me livrar de você!
Enrolou o bebê no cobertor puído e cheirando a vômito,
sentindo o estômago embrulhar com a mistura de odores
fétidos. Um raio riscou o céu, e ela apressou a caminhada,
procurando um lugar para deixar o filho. Não se atreveu a
colocá-lo em nenhuma porta ou portão, com medo de ser
surpreendida por algum transeunte ou, pior, pela polícia.


Foi então que passou ao lado de um latão de lixo velho,
todo enferrujado. Sem tampa, cheio quase até a borda,
fora colocado em frente a um muro de pedra muito alto,
que protegia uma casa em ruínas. A ideia surgiu, imediata,
parecendo-lhe brilhante. E se colocasse o bebê ali dentro?
Cautelosamente, experimentou o portão, mas ele estava
trancado com um cadeado grosso.

Voltando-se para a lata de lixo, ficou observando. Com
a ameaça de chuva, a rua estava praticamente vazia. Não
havia ninguém por perto. Apenas o latão a lhe acenar de
forma tentadora.

Margarete apertou o casaco roto ao redor do corpo
para se proteger do frio. O filho, envolto nos farrapos, finalmente
se aquietara e adormecera. Tudo estava sossegado:
a criança e a rua. Nada parecia se mover ou ter vida.

Era agora ou nunca. Se esperasse um pouco mais, a
coragem se desvaneceria. Ela continuaria na mesma, com
aquele pequeno fardo a roubar-lhe a juventude e a vida.
Olhou ao redor mais uma vez e, como não avistou ninguém,
deu um passo, resoluta. Com um único gesto, deitou sobre
os detritos o cobertor esfarrapado e malcheiroso que abrigava
o corpinho miúdo do filho. Virou as costas ao latão e
saiu a passos apressados, sem olhar para trás, certa de que
aquela seria a última vez que poria os olhos naquela criança.


CAPÍTULO


3


Fazia poucas horas que tudo aquilo se passara, então,
como podia ser que o bebê houvesse desaparecido?
Margarete o deixara na lata de lixo movida por um breve
acesso de raiva, tomada pela bebida, sem saber que era influenciada
por espíritos ignorantes, irritados com a criança,
que desviava sua atenção das portas dos bares.

Lembrava que depois caminhara a esmo, até encontrar
um banco de praça, onde se deitara. De tão cansada e bêbada,
rapidamente pegou no sono. Despertou com os primeiros
pingos de chuva caindo sobre seu rosto. Durante alguns
minutos, permanecera deitada de costas, permitindo que a
água lavasse a bebedeira e lhe trouxesse o frescor de uma
nova consciência. Já desperta, procurou o bebê a seu lado
e embaixo do banco, para onde poderia ter escorregado no
breve instante em que adormecera. Mas ele não estava ali.

Puxando pela memória, a muito custo se lembrou do
latão de lixo. De um salto, desatou a correr, derrapando nas
poças da calçada. Enquanto corria, ia refazendo na mente os
passos que a tinham levado até o latão, tentando desesperadamente
se lembrar da rua em que ele ficava. Entrou na primeira,
andando apressada até perceber que era a rua errada. Fez o
caminho de volta e tomou a do lado, finalmente reconheceu os
lugares por onde havia passado horas antes.


Correu aos tropeções, pisoteando as poças, escorregando
vez por outra. Só agora percebia que havia latões de
lixo em ambos os lados da rua. Não eram muitos, mas o suficiente
para confundi-la. Qual fora mesmo a lata? Procurando
avidamente, um muro de pedras lhe trouxe uma sensação
de familiaridade. Por trás do muro, uma casa em ruínas, e,
na frente, um latão de lixo igual a tantos outros naquela rua.
Só podia ser aquele.

Dirigiu-se para lá, o coração aos pulos, e logo reconheceu
o cobertor esfarrapado que servia de roupa ao filho desde
que nascera. Apanhou o pano com euforia, revirou-o nas
mãos, talvez esperando que, por encanto, a criança ainda estivesse
ali embrulhada. Olhou dentro da lata, remexeu no lixo,
procurou ao redor e até nos bueiros. Nada. Ele havia sumido.

Com o desespero tomando conta de seu coração,
Margarete começou a chorar, futucando, num frenesi, o interior
da lixeira. Uma mulher passou perto dela, mas Margarete
não lhe prestou muita atenção, concentrada que estava em
sua busca. Quando uma senhora elegante atravessou seu
caminho, Margarete se viu perguntando em desespero:

— Você viu o meu filho, dona? Viu o meu bebê?
Sem responder, a mulher se afastou às pressas. Confusa,
Margarete andava de um lado a outro, baratinada, sem
saber o que fazer. Sentiu falta da bebida, mas o dinheiro havia
acabado. Um gole, com certeza, a ajudaria a pensar. De repente,
encontrar o filho deixou de ser tão importante quanto
alimentar o vício. Na certa, ele estava bem. Se tivesse morrido,
seu corpo estaria ainda no lixo ou jogado na sarjeta, mas
não estava. Alguém devia tê-lo recolhido. Depois de um trago,
ela pensaria com mais calma e sairia perguntando aqui e ali.

Após mendigar pelas redondezas, conseguiu uns trocadinhos
e correu ao mesmo bar de antes.

— Quero uma dose de pinga — pediu, a voz engrolada.
— Mostra-me o dinheiro primeiro — ordenou o dono,
desconfiado.

Ela exibiu umas moedas, que ele pegou, servindo-a de
um trago. Ela bebeu sofregamente e pediu mais um. Pagou
adiantado, e o homem entornou a bebida em seu copo. Na
vez do terceiro, o dinheiro havia acabado.

— Vamos ali nos fundos que lhe pago com outra moeda
— convidou ela, lançando um olhar lúbrico para o homem.
O dono do bar era um português grosseirão, mas muito
correto e bem casado. Quando Margarete lhe acenou
com o sexo em troca de pinga, ele se enfureceu. Cerrou os
punhos e, balançando-os diante dos olhos dela, esbravejou:

— Mas que rapariga mais sem-vergonha! Passa-te daqui,
rameira, ou te ponho para fora a bordoadas!
Com medo de apanhar, Margarete nem pensou duas
vezes. Em seu habitual estado de embriaguez, rodou nos
calcanhares e desatou a correr porta afora, atravessando
a rua feito louca. O motorista nem teve tempo de frear.
Margarete surgiu na sua frente saída do nada. O Chevette
vermelho, novinho em folha, suspendeu-a no ar com tanta
violência, que seus ossos se quebraram antes mesmo de
ela tocar o chão, já morta, os olhos esbugalhados, congelados
na surpresa do inevitável.

Ali perto, Leontina finalmente conseguia ser atendida
na farmácia cheia de gente. Quando saiu, estava decidida a
contar à mendiga que havia encontrado seu filho e ele estava
em segurança na casa de sua irmã. Antes de alcançar o
latão, notou uma multidão ao redor de um carro amassado e,
mais além, o que parecia um corpo estirado no chão. Sirenes
estridentes vinham se aproximando, até que pararam, com
policiais e médicos se revezando para constatar a morte. A
chuva havia dado uma trégua, de forma que Leontina pôde
ainda parar e se informar do ocorrido.

— Foi uma mulher que atravessou correndo a rua e o
carro a pegou — disse uma conhecida.
Mesmo antes de ver, Leontina sabia que aquele corpo
era o da mendiga. Aproximou-se cautelosamente, deu


uma espiada, confirmando suas suspeitas. Na mesma
hora, as pernas fraquejaram, pensou que ia desmaiar. E
agora, o que iria fazer? Completamente aturdida, subiu
a ladeira e pegou o caminho de barro que conduzia ao
barracão de Clementina. Da porta, além da choradeira do
bebê, ouviu as vozes de Clementina e Romualdo. Entrou
em silêncio. A irmã voou em cima dela, arrancando-lhe a
mamadeira das mãos.

— Que demora, Leontina! O menino está se esgoelando
de tanto gritar.
Enquanto Clementina derramava leite na mamadeira,
ela comentou numa voz que parecia saída de uma caverna
profunda.

— Teve um acidente feio lá na rua. Uma mulher bêbada
morreu atropelada.
— Que coisa horrível! — lamentou Clementina.
— Vou lá ver — anunciou Romualdo, já da porta.
— Você não tem jeito, hein! — censurou Clementina.
— Adora uma desgraça.
Assim que Clementina encostou o bico da mamadeira
na boquinha do bebê, ele começou a sugar o leite com
sofreguidão. De banho tomado, tinha um pano de cabeça
enrolado à guisa de fralda.

— Ele já sabe? — perguntou Leontina, referindo-se
a Romualdo.
— Já. Contei-lhe tudo e ele prometeu me ajudar.
— Ajudar em quê?
— A ficar com o bebê, ora. Ele agora é meu filho.
— Preciso lhe contar uma coisa. Uma coisa séria.
— O que é?
— Descobri quem é a mãe dele.
Clementina gelou. Com o pânico a dominá-la, contrapôs
incrédula, balbuciante:

— Não é possível.

— É, sim. Ouvi quando ela perguntou a uma mulher
na rua se havia visto o seu bebê. E ela estava remexendo no
latão em que o encontramos.
— Não! Não pode ser. Ela não pode pegá-lo de volta.
A mulher jogou-o no lixo!
— E agora está morta...
— Morta? Mas como? Foi a que morreu atropelada?
Leontina assentiu e acrescentou com pesar:
— Jamais vou me esquecer daquele rosto.
— Meu Deus!
— E agora, o que vamos fazer?
Após uma breve pausa, Clementina se recompôs e
considerou, enchendo-se de esperança:

— Nada. Se a mulher morreu, ninguém vai reclamar a
criança. Ela pode ser minha.
— Isso não está certo, Clementina. E a família dele?
— A família dele agora sou eu. Você pensa que, se
essa mulher tivesse família, teria abandonado o filho? É claro
que não. Mesmo que ela não o quisesse, algum parente
haveria de cuidar dele.
— Pensando por esse lado...
— É isso mesmo. O bebê não tem família. A família
dele agora somos nós. Eu sou a mãe, Romualdo o pai, e
você é a tia.
Fez-se um silêncio momentâneo, até que Leontina
ponderou:

— Isso não me parece correto. Ele não é seu filho.
— E é filho de quem? O que eu preciso fazer para convencê-
la de que ele agora é meu filho? Você já parou para
pensar que Deus pode ter enviado este bebê para que eu
cuidasse dele, já que a mãe era uma doidivanas? Qual é o
mal nisso? Vai que ele não tem ninguém mesmo. Se eu o devolver,
vão mandá-lo para um orfanato, ele pode até acabar
virando bandido. Aqui comigo, vou criá-lo temente a Deus,

dentro das leis da nossa igreja, sob os olhos do pastor. Quer
criação melhor do que essa?

Pronto. Com aquele argumento infalível, Clementina
sabia que ganharia a batalha. Já que Leontina era muito religiosa,
a criação do menino junto às orações e vigílias do
pastor era sinal de que mais uma alma estaria salva.

— Bem, talvez você tenha razão.
— É claro que tenho razão.
— E como é que você vai explicar o aparecimento
dessa criança? Não pode inventar que saiu da sua barriga.
— É por isso que vamos nos mudar.
— Vão se mudar? Para onde?
— Ainda não sei. E você pode vir com a gente.
— Não sei se quero me mudar. Gosto daqui.
— Nós vamos para perto. Longe o suficiente apenas
para que ninguém saiba quem somos.
— Ah!
— E estamos pensando em nos mudar para o asfalto.
— Como? Ficaram ricos e eu não sei?
— Vamos dar um jeito. Romualdo vai arranjar um emprego
para nos tirar daqui.
— Sei. Já estou ouvindo isso há anos.
— Mas agora é sério. Ele também se encantou com
o Wellington.
— Wellington?
— Vai ser o nome dele. Não é bonito?
— Não acho, não. Não podia chamá-lo de Paulo ou
de Pedro?
— São nomes muito comuns. Wellington é diferente,
muito elegante.
Leontina suspirou e tornou a indagar:

— Enquanto vocês não se mudam, como vão fazer
para esconder o bebê?
— Ele vai ficar dentro de casa. Se alguém o vir, direi
que é filho de uma prima.

— Nós nem temos prima!
— E daí? Não sabe fingir, não?
— Mentira é pecado. O pastor nos disse que nunca
devemos mentir.
— Mas neste caso não conta. É por uma boa causa.
Ele é filho de uma prima que precisou viajar com urgência
para visitar a mãe doente lá em Maceió, e o bebê ficou por
nossa conta.
— Nossa, você já criou uma história!
— Com princípio, meio e um final feliz.
Logo Romualdo voltou com as notícias do acidente, e
Leontina lhe informou que a mulher morta, provavelmente,
era a mãe do bebê.

— Se é assim, não teremos problema em ficar com ele.
— Você também? — indignou-se Leontina.
— Foi o que disse a ela — acrescentou Clementina.
— Já podemos considerar Wellington como nosso filho.
— Que Wellington o quê! — objetou Romualdo. — O
nome dele vai ser Marcos.
— Marcos? Mas é muito comum! Wellington é que tem
personalidade.
— Nada disso. Marcos é muito mais bonito. Sempre
quis ter um filho com esse nome. O que você acha, Leontina?
Ela olhou sem jeito para a irmã, que foi logo dizendo:

— Leontina não gosta de Wellington.
— Mostra que tem bom gosto.
— Por que não chamam o menino de Marcos
Wellington? — sugeriu Leontina. — Ou de Wellington Marcos?
Ficou Marcos Wellington.
No dia seguinte, uma nota quase imperceptível num

jornal de pequena circulação exibia o corpo de Margarete
estirado no chão, o rosto parcialmente encoberto por um
jornal. Leontina mostrou o periódico a Clementina, que tornou
com horror:


— Jogue isso fora! É uma pena que ela tenha morrido
assim, mas agora não temos motivos para nos preocupar
com ela.
— Que Deus a tenha! — acrescentou Leontina.
— Melhor que ela esteja ao lado dele do que aqui conosco,
onde poderia reclamar o Wellington.
— Clementina, que horror! Não é isso que aprendemos
na igreja.
— Tem razão, desculpe-me. Mas é que não posso
mais me separar do meu filho.
Leontina não disse nada. No fundo, compreendia a angústia
da irmã. Clementina sempre desejara ser mãe. Aquela
criança chegara a tempo de realizar seu sonho e salvar seu
casamento. Quem sabe agora Romualdo não tomasse jeito
e arrumasse um emprego decente? Essa era a sua promessa,
mas foram tantas as promessas que ele havia feito...

— Vamos nos mudar, pode crer — afirmou Clementina,
como se ouvisse os pensamentos da irmã. — Romualdo vai
encontrar um bom emprego e vamos nos mudar para o asfalto.
A mudança, contudo, não aconteceu. O emprego de
Romualdo não foi suficiente para pagar uma casa no asfalto,
e eles continuaram mesmo no morro do Salgueiro1. O menino
despertou pouca curiosidade. Clementina não era mulher
de muitos amigos nem se dava com os vizinhos o suficiente
para provocar questionamentos. Naquela vizinhança, cada
um cuidava de sua própria miséria.

Não foi difícil para Romualdo registrá-lo como filho.
Dois amigos do trabalho serviram de testemunha de que o
menino nascera em casa, e uma parteira confirmou que fizera
o parto. Sem motivos para desconfiar de gente pobre e humilde,
o escrivão fez o registro, passando Marcos Wellington
a ser, oficialmente, filho de Romualdo e Clementina.

1 Morro do Salgueiro — comunidade localizada no bairro da Tijuca, Rio
de Janeiro.

34


O menino foi criado sob rígidos padrões evangélicos,
acompanhando a tia e a mãe aos cultos dominicais, o que
lhe conferiu uma base moral sólida o suficiente para enfrentar
a vida. Das origens de seu nascimento, pouca coisa
restou. Apenas um recorte de jornal, que Leontina não conseguiu
jogar fora, exibindo o rosto sem vida de Margarete.


CAPÍTULO


4


Ao despertar na vida espiritual, Margarete não tinha a
menor ideia de onde estava. Não se recordava do acidente,
apenas de sua incursão pelas latas de lixo à procura de seu
bebê. Por que não lhe dera um nome? Não gostava de chamá-
lo só de meu filho ou simplesmente de bebê, então, pensou
que poderia dar-lhe o nome de Anderson, que era o nome do
pai dele. Dessa forma, ficaria mais fácil tentar localizá-lo.

Olhando ao redor, percebeu que se encontrava numa
cidade desconhecida, com ruas de terra batida e casebres
de madeira espalhados aleatoriamente. Estivera deitada
num tipo de varanda, numa casa esquisita, que mais parecia
um caixote, de tão quadrada, sem telhas, sem janelas.
Aprumou o corpo, tentando olhar mais além. Tudo era tão
igual! Que lugar seria aquele?

Assim que deu o primeiro passo para descer da varanda
e ganhar o que lhe parecia ser a rua, foi surpreendida por
um homem muito claro, de cabeleira negra, surgido de lugar
nenhum. Foi como se ele se materializasse à sua frente, e
Margarete levou a mão ao peito, soltando um gritinho de medo.

— Desculpe-me se a assustei — disse o homem.
— Vim logo que percebi que você havia acordado.
Ela olhou para os lados, tentando imaginar de onde ele
a estivera observando e como chegara até ela tão rápido.


— De onde foi que você veio?
— Ah! Dali... — e apontou para a rua com um gesto vago.
— Dali de onde? Só vejo casas sem janelas. Como foi
que você me viu? Estava escondido? E quem é você, afinal?
É o dono desse lugar horrendo?
— Como você faz perguntas!
— Desculpe. É que estou confusa. Não me lembro de
como cheguei aqui.
— Você bebeu demais e apagou — o que não era
mentira, embora também não fosse toda a verdade. — Eu a
encontrei e a trouxe para cá.
Margarete levou a mão às têmporas e tornou queixosa:

— Minha cabeça dói... meu corpo parece moído. Sinto
como se tivesse sido atropelada por um caminhão...
Parou de falar bruscamente, pois uma confusão mental
se instalara em sua cabeça. Flashes de imagens pipocaram
em seu cérebro. As lembranças de um bar, um português
bigodudo e um carro vermelho surgiram embaralhadas. O
homem percebeu seu estado e se aproximou dela, abraçando-
a gentilmente. Margarete se afastou desconfiada.

— Não tenha medo — tranquilizou ele. — Pode confiar
em mim. Só quero ajudá-la.
Margarete sentiu que podia confiar naquele homem.
Ele tornou a abraçá-la com um carinho que ela jamais havia
experimentado e pôs as duas mãos sobre a sua cabeça, afagando-
a com delicadeza. Em seguida, deslizou-as pelo corpo
da moça, que sentiu um arrepio confortante. Aos poucos,
a dor foi diminuindo, até que cessou completamente.

— Nossa! — exclamou ela, totalmente maravilhada.
— Você é médico ou mágico?
— Sou só um amigo. Alguém que gosta muito de você.
— Como pode gostar de mim se eu nem o conheço?
— Tem razão, esqueci de me apresentar. Meu nome
é Félix.

— Félix? Como o gato2?
Ele riu e apertou o queixo dela, respondendo com ternura:
— Exatamente.
— Que engraçado! E eu me chamo...
— Margarete, eu sei — adiantou-se ele, antes que
ela concluísse.
— Sabe como?
— Já disse que sou seu amigo. Sei tudo sobre você.
Ela recuou um pouco e revidou desconfiada:
— Você veio aqui a mando do doutor Graciliano? Foi
isso? Ele mandou que você me prendesse e levasse meu
filho? Onde está o meu filho? Meu Anderson?
— Não se lembra do que fez com ele? — Félix ficou
um pouco impaciente, mas tentou não demonstrar.
— Eu... eu... me lembro de que o coloquei num latão
de lixo. Mas foi um desatino de momento. Depois voltei
para buscá-lo.
— E não o encontrou mais, não foi?
— Alguém o pegou... Foi você!
— Não.
— Mas então quem foi?
— Não sei.
— Será que foi a polícia?
— O que aconteceu depois que você deixou o bebê
na lata de lixo? Procure se lembrar.
— Eu... voltei para aquela praça e deitei-me num banco.
Depois... — ela apertou os olhos, puxando pela memória
— estava chovendo, acordei com os pingos na minha cara.
Levantei-me, voltei para buscar o Anderson, conforme lhe
falei, mas ele havia sumido.
— E depois?
— Eu... procurei... remexi a lata... não o encontrei.
Havia uma mulher... uma mulher elegante. Perguntei a ela,
Referência ao personagem de desenho animado.


mas ela não me deu atenção — ela parou de falar e fitou
Félix com horror, abrindo a boca num grito mudo. — Meu
Deus! Foi ela! Aquela mulher o sequestrou!

— Não, Margarete, não foi isso. Foi você. Você o abandonou
e o perdeu. Lembre-se! O que você fez depois que a
mulher passou?
— Eu... — ela pensou um pouco e diminuiu a voz, envergonhada
— fui mendigar.
— Eaí?
— Por que é que você está me pressionando tanto?
Não disse que sabe tudo de mim?
— Quero que você se lembre.
— Por quê? Não quero me lembrar.
— É preciso. Vai lhe fazer bem. Vamos, Margarete,
pense só mais um pouquinho.
— Eu... — novamente a memória falhou, e ela teve
que fazer um grande esforço para se lembrar — peguei
o dinheiro e fui ao bar beber. Havia um português. Ele foi
mau comigo...
— Foi mau? Tem certeza?
— É que eu precisava de mais um trago. Só mais um.
Mas ele não me deu e gritou comigo, e...
De repente, viu sua própria imagem sair correndo do
bar e gritou horrorizada, enterrando o rosto no peito de Félix
para não se lembrar.

— Por favor — implorou —, não me torture mais. Não
quero saber o que houve. Deixe para lá. Estou bem agora,
só preciso encontrar o meu filho. Você me ajuda?
Félix afagou seus cabelos e beijou sua testa. Não pretendia
mais pressioná-la. Já que ela não queria se recordar
do acidente, por ora, seria melhor deixar para lá. Aos poucos,
ela se lembraria de tudo.

— Está bem — concordou ele, beijando-a na testa novamente.
— Não precisa se desesperar.

— Estou cansada — queixou-se ela. — Com fome e
com sede.
— Venha comigo, vou levá-la para dentro.
— Você mora aqui? — surpreendeu-se ela, apontando
para o barraco.
— Moro.
Margarete não disse nada, mas quando entrou compreendeu
por que ele a havia deixado na varanda. O ambiente
era único, escuro, abafado. Só havia uma cama, uma mesa,
uma cadeira e mais nada. Ela hesitou um momento, sentindo
um certo mal-estar, porém, ele a puxou gentilmente,
fazendo-a sentar-se.

— Não tem janela... — observou ela. — Só aquela
porta, que mal dá para se perceber. E onde é que eu vou
dormir, se só há uma cama?
— Fique tranquila e deixe tudo por minha conta.
Ele ficou parado alguns instantes, como se estivesse
pensando, até que se dirigiu para a porta.

— Aonde é que você vai? — perguntou ela.
— Você não está com fome? — Margarete assentiu.
— Vou arranjar-lhe algo para comer.
Margarete ficou pensando que ele devia fazer suas refeições
na rua, porque não havia nem fogão, nem geladeira ali.
Na certa, ele era muito pobre. Mal havia concluído o pensamento
quando Félix voltou, trazendo nas mãos um prato de sopa
quentinha e um copo de água cristalina e fresca. Colocou-os
na mesa à frente de Margarete, incentivando-a, com o olhar,
a comer. Ela comeu e bebeu em silêncio, porém, com avidez,
surpreendendo-se com o sabor agradável da sopa e da água.
Quando terminou, sentia-se satisfeita, revigorada.

— Como foi que providenciou uma comida com tanta
rapidez, se você nem tem cozinha? — Félix não respondeu.
— E como estava gostosa! Não combina com essa pobreza
— com medo de o haver desgostado, ela tratou de remendar:

— Quero dizer, você não me parece bem de vida. Mas não se
preocupe, eu também sou pobre, miserável até...
— Não precisa tentar se justificar, Margarete. Você
tem razão. Sou um homem pobre que só agora está conseguindo
compreender o que realmente possui valor na vida.
Ela não entendeu, mas não perguntou. Em vez disso,
procurou um comentário agradável:

— Você é um homem bonito e simpático. Não tem
namorada?
— Hum... Será que pode ser você?
Margarete riu gostosamente e respondeu mais descontraída:


— Eu, hein! De homem branco, já chega o Anderson.
Calou-se novamente, lembrando-se do filho.
— Não me importo com cor — afirmou ele. — Gosto
de você do jeito que é, e isso é outra coisa que aprendi aqui.
— O quê?
— As pessoas são todas iguais, porque o espírito não
tem sexo, nem forma, nem cor. Ora podemos ser brancos,
ora negros, ora homens, ora mulheres. O que vale é a essência,
que usa o corpo para evoluir. Quando morremos, nós
nos despimos de tudo que vem da carne. Mas a essência
permanece com as nossas experiências, sempre pronta a
aprender e crescer.
Margarete fitou-o com assombro:

— Não entendi nada.
— Não importa. Um dia você vai entender.
Ela pensou por alguns segundos, até que considerou:
— Você disse que aprendeu muito aqui. — Félix assentiu.
— Onde, exatamente, é aqui?
Responder à pergunta não faria bem a Margarete naquele
momento, não antes de ela se lembrar. Félix mudou
de assunto:

— Acho que você devia descansar um pouco. Mais
tarde, levarei você para dar uma volta.

Puxando-a pela mão, ele a acomodou na cama.
Cobriu-a com um lençol bem branquinho, deu-lhe um beijo
na face e sentou-se ao lado dela. Assim que Margarete adormeceu,
ele se levantou e saiu. Caminhou alguns metros até
alcançar uma espécie de clínica médica, uma construção
pequena, porém muito asseada, agradável, cercada por um
jardim florido e perfumado. Entrou e deu um sorriso para a
atendente, que lhe sorriu de volta.

— Ele está aí? — indagou, sentando-se num banco
perto da janela.
— Está atendendo. Vai esperar?
— Vou.
Depois de quase meia hora, uma porta se abriu, dando
passagem a uma mulher assustada e rota. Atrás dela, o doutor
Laureano sorriu amistosamente quando avistou Félix.

— Meu amigo! — saudou com bonomia. — Vamos
entrando.
Era sempre assim, e Félix se emocionou. Fosse quem
fosse que procurasse Laureano era recebido com a mesma
simpatia e ternura. Ele era um médico do invisível, psiquiatra
em sua última encarnação, um homem que dedicara
a vida ao auxílio fraterno e caridoso aos doentes mentais.
Desencarnado, desejoso de prosseguir em sua missão, conseguiu
uma colocação naquele posto de auxílio localizado em
um plano não muito denso do astral inferior, a fim de orientar
espíritos dementados e confusos a reencontrar o equilíbrio,
preparando-os para deixar aquele local de sofrimentos.

O astral em que Félix se encontrava ficava localizado
bem próximo à crosta terrestre, habitado por espíritos confusos,
transtornados, presos em suas próprias emoções desestruturadas.
Seres, em geral, atormentados por culpa, por
medo e por remorso. Não se encontravam ali espíritos dos
mais empedernidos nem violentos. Eram apenas criaturas
que não haviam ainda conseguido desvencilhar-se do pesar
provocado pelas vivências humanas.


O sentimento que ali predominava era a vergonha.
Envergonhados de seus atos, presos ao orgulho, alheios
ao autoperdão, os espíritos criaram um astral para viver
sem se expor. Reunidos no mesmo local, suas vibrações
deram forma à cidade e suas casas-caixotes. Sem janelas,
com apenas uma porta, era ali que se sentiam seguros, certos
de que não seriam vistos, reconhecidos nem acusados.
Laureano os ajudava a superar, compreender as razões da
culpa e reconquistar a autoestima. Uma vez livres, reuniam
coragem para partir.

Até certo ponto de sua existência espiritual, Félix habitara
mundos ainda inferiores. As esferas mais baixas, contudo,
não o atraíam, pois a repulsa natural à violência e à
vingança desfizera aquela breve sintonia energética. Sem
perceber, Félix ia se afastando dos círculos mais densos e
adentrando camadas um pouco mais sutis.

Ao se deparar com a cidade intermediária, sentiu
que era ali o seu lugar. Vagou a esmo por alguns dias,
até que Laureano o encontrou, cuidou dele, ajudou-o a
compreender que as atitudes humanas obedecem à lei do
progresso e ninguém deve se condenar por simplesmente
crescer. É preciso conscientizar-se e caminhar ao encontro
da transformação, sem necessidade de sofrer ou se punir. A
cada atitude boa, a consequência é uma reação positiva da
vida, em forma de alegria e prazer.

O que Félix mais desejava era reencontrar Margarete, e
foi esse sentimento que o prendeu ali. Anos após a conquista
da libertação interior, Félix ainda se ligava ao amor que sentia
por ela. Ciente de suas dificuldades na matéria, resolveu que
só sairia dali com ela. Tudo faria para que ela, ao desencarnar,
não caísse presa de seres malignos. Com autorização de
Laureano, conseguiu resgatá-la antes dos espíritos de ébrios
que a acompanhavam pelos bares da vida física.

Laureano levou Félix para seu consultório e fechou
a porta.


— E então? — indagou interessado. — Como ela está?
— Confusa, como era de se esperar. Não sabe
que desencarnou.
— E você lhe contou?
— Ainda não. Queria, primeiro, falar com você.
— Fez bem. Quando chegar a hora, irei a sua casa.
— Ela está louca pelo filho e me pediu para encontrá-lo.
— Isso não seria aconselhável. Margarete poderia
causar um certo tumulto e perturbar a criança.
— Quem são seus novos pais?
— Prefiro que você não saiba. Do contrário, quando
Margarete melhorar e aprender a ler pensamentos, estando
na mesma faixa vibratória que você, pode acabar descobrindo
através dos registros de sua mente.
— E não vai ler os seus?
— Só se eu permitir.
Apesar de Laureano trabalhar num astral mais denso,
era um espírito iluminado e esclarecido, cujos pensamentos
vibravam em intensidade acima da modulação mental dos
habitantes locais. Consequentemente, eles não podiam ler-
Ihe os pensamentos.

— Por que você acha que ela vai atrapalhar o Anderson?
— tornou Félix.
— Anderson? É assim que ela o chama agora?
— É.
— Muito bom. Deixe-a chamá-lo por esse nome. Vai
dificultar ainda mais sua localização.
— Você não respondeu a minha pergunta: por que
Margarete atrapalharia o crescimento do filho?
— No momento, ela é um espírito desequilibrado que só
lhe causaria transtornos. E a nova mãe do menino não possui
emoções firmes o suficiente para resistir-lhe. As dificuldades
da vida podem ter o efeito de armadilhas do destino, caso
não se consiga manter a mente e o coração em equilíbrio.

— Mas será que ela não chegará a ele através dessas
próprias pessoas? Não é possível que elas formem um elo
de pensamentos que leve Margarete até o filho?
— Possível sempre é. Mas a nova tia de Anderson é
uma mulher religiosa, e sua fé vai manter Margarete afastada.
Enquanto ela e a irmã se mantiverem ligadas a Jesus e
às orações, em equilíbrio emocional, nenhum espírito perturbador
conseguirá alcançá-las. Têm por líder espiritual um
pastor nobre e de moral elevada, capaz de orientá-las sempre
na direção do bem. O que precisamos fazer é orar para
que elas jamais se afastem desse caminho.
— O que poderá acontecer se elas assim o fizerem?
— O futuro nos dirá. E agora vamos, meu filho. Acompanhe-
me num momento de oração.
Félix estava acostumado à mania de rezar de Laureano.
No começo, achava tudo muito chato, mas depois foi-se
apercebendo do bem-estar que o invadia sempre que ele ou
alguém orava. Sem questionar, ajoelhou-se ao lado do médico
e simplesmente entregou os pensamentos à luz, enquanto
o outro direcionava fluidos de amor e equilíbrio ao
lar de Clementina.


CAPÍTULO


5


Margarete acordou aos gritos, debatendo-se na cama.
A seu lado, Félix deu um salto do colchonete improvisado e
sacudiu-a vigorosamente:

— Margarete! Margarete! Acorde!
Ela arregalou os olhos e se agarrou aos braços dele,
ao mesmo tempo em que dizia apavorada:

— Tive um pesadelo medonho! Sonhei que tinha morrido
atropelada por um carro.
Félix a encarou com perplexidade. Embora se lembrasse
de seu desenlace, Margarete acreditava que fora um sonho.
Antes que ele pudesse falar, ouviram uma batida na porta, e
Laureano entrou. Com ele, uma enxurrada de luz inundou o
ambiente. Margarete olhou para ele atônita, sentindo estranha
confiança naquele velhinho de olhar bondoso e calmo.

— Olá — cumprimentou ele, com a jovialidade de
sempre. — Como estão as minhas crianças?
— Margarete não se sente muito bem — contou Félix.
— Sonhou que havia morrido.
Aquilo já era do conhecimento de Laureano. Não
fora por outro motivo que viera. Fazia quase um mês que
Margarete estava vivendo com Félix e aquela era a primeira
vez que se lembrava do acidente. Laureano se sentou ao lado
dela, tomou-lhe a mão nas suas e disse carinhosamente:


— Não quer me contar como foi o seu sonho?
Ela estava fascinada pelo halo de luz que o envolvia,
propositadamente deixado ao alcance de sua percepção.

— Perdão... — ela começou a dizer. — Não conheço
o senhor, mas... como pode brilhar tanto? De onde vem toda
essa luz?
— Essa luz a incomoda?
— Ao contrário, me enche de alegria. É como se me
revigorasse a alma.
— Bem, é isso mesmo o que acontece. Essa luz está
aqui por sua causa. Foi por você que eu a trouxe comigo.
As palavras dele a emocionaram, e duas lágrimas escorreram
de seus olhos.

— Não sei por que tanta bondade. O senhor e Félix
nunca me viram e me tratam como se eu fosse alguém.
— Você é alguém — esclareceu Laureano. — É um
espírito, uma centelha de Deus.
— São palavras lindas e estranhas... Aliás, tudo aqui é
muito estranho. Não sei há quanto tempo estou aqui, perdi
a noção das horas. Tenho que encontrar meu filho, mas até
isso me parece confuso.
— Por que quer encontrá-lo?
— Por quê? Porque ele é meu filho, ora.
— Mas você o abandonou.
— O senhor, que parece tão bom, veio até aqui para
me julgar?
— De modo algum. Vim aqui para conversar com você
e tentar fazer com que enxergue a verdade.
— Que verdade?
— A verdade sobre você.
— Não estou entendendo nada, para variar. Por que
todo mundo aqui fala por charadas?
— Não é uma charada — contestou Félix. — Temos
medo de dizer algo que você não queira ouvir.
— O quê, por exemplo? — sondou ela.

— Por que não me conta o seu sonho? — interrompeu
Laureano. — Gostaria muito de ouvi-lo.
— O senhor parece bastante legal, mas por que lhe
contaria algo se nem o conheço?
— Ele é o doutor Laureano, de quem tanto lhe falei —
informou Félix.

— Eu já imaginava. Só queria ter certeza.
— Vejo então que já me conhece por intermédio de
Félix — disse ele. — Estou certo?
— É. Félix fala muito do senhor.
— Vamos deixar as formalidades de lado. Vai me fazer
mais feliz se me chamar apenas de Laureano. É assim que
se tratam os iguais.
— O senhor? Igual a mim? Acho que vocês são é doidos.
— Laureano cuida dos doidos, Margarete — explicou
Félix. — Ele é psiquiatra.
— Então é isso? Vocês acham que estou louca?
— Creio que Félix não foi claro em suas palavras —
emendou Laureano. — Quando encarnado, eu tratava de
loucos. Hoje cuido de espíritos que, como você, encontram-
se perdidos num mar de confusão. Tento clarear suas mentes
e trazer-lhes um pouco de lucidez.

Margarete o olhava pasmada. Será que não compreendera
bem o que ele dissera?

— Perdão — revidou ela. — Mas agora é que não estou
entendendo nada mesmo. O que o senhor quis dizer
com quando encarnado?
— Quando habitava o mundo dos vivos.
— Como assim, o mundo dos vivos? Que mundo é
esse, afinal? O mundo dos mortos?
— É você quem está dizendo.
— Agora não tenho mais dúvidas de que estou na
companhia de loucos. De que hospício vocês fugiram?
— Margarete, por favor, tente se acalmar — aconselhou
Félix.

— Não! Logo vi. Tanta bondade só podia ser enganação.
Estou no meio de doidos. Quero sair daqui agora mesmo!
Exijo que você me leve embora ou vou chamar a polícia.
Ela correu para a porta, e Félix tentou segurá-la, mas
foi impedido por Laureano. Quando ela passou para o lado
de fora, teve uma surpresa aterradora. A ruela em que saíra
não era mais aquela pobrezinha à qual já estava se acostumando.
Encontrava-se agora em uma rua asfaltada, numa
cidade grande. De um lado e de outro, latas de lixo guarneciam
as calçadas. Imediatamente reconheceu a rua onde
abandonara o filho e o latão em que o procurara.

— Não pode ser — disse para si mesma.
De repente, ela se sentiu atirada para a frente por uma
força misteriosa. Atravessou a rua, apertando nas mãos um
punhadinho de moedas e notas amarrotadas. Aos tropeções,
entrou num bar e foi atendida por um português, que
lhe vendeu duas doses de pinga. Na terceira, como o dinheiro
acabou, tentou seduzir o homem para que lhe vendesse
fiado. Ele se enfureceu, brandiu os punhos na frente dela,
levando-a a fugir desabalada. Na carreira, ao atravessar a
rua, viu um carro vermelho partindo para cima dela. Gritou
apavorada e fechou os olhos, encolhendo-se no chão, à espera
do baque que não veio.

Quando tornou a abrir os olhos, a cena se havia desfeito,
a rua voltara a ser a mesma de sempre, com seus caixotes
imitando casebres. Parados na porta de casa, Félix e
Laureano a fitavam, cheios de compaixão.

— Preciso de uma bebida — pediu ela. — Há quanto
tempo não tomo um trago!
Félix correu para ela e a abraçou.

— Minha querida, o que foi que houve?
Apenas Laureano havia visto o que ela vivera. Com a
calma de sempre, aproximou-se:

— Não quer agora me contar o seu sonho?

Margarete desatou num pranto sentido. Abraçou-se
com força a Félix, soluçando com profunda tristeza:

— Eu morri, não foi? Aquele carro me pegou. Eu morri
e nem sabia disso. Mas como pode ser, se ainda estou viva?
— Você mesma o disse — esclareceu Laureano. —
Ainda está viva, pois só o que morre é a matéria densa, mas
permanecemos vivos em nosso corpo sutil.

— Para variar, não compreendo o que você diz, mas
aceito essa verdade.
— Puxa! — exclamou Félix. — Até que foi mais fácil do
que eu imaginava.
— Porque, no fundo, Margarete já sabia que havia desencarnado.
Apenas não queria aceitar a realidade.
— Tem razão. Tive medo. Mas agora estou bem e
pronta para me iniciar em minha nova vida.
— Como assim, está pronta? — questionou Félix.
A mente de Margarete havia trabalhado com impressionante
rapidez. Sabendo-se morta na matéria, mas viva em
espírito, imaginou que aquela seria uma ótima oportunidade
para se aproximar do filho e saber o que lhe havia acontecido.
Simples, sem confusão e sem ser notada. Poderia ficar
junto dele sem que ninguém percebesse. Não era o ideal,
mas pelo menos era uma saída. Quem sabe não poderia até
ir ao encontro de Anderson e deitar-se com ele?

— Nada disso que você está pensando poderá realizar
— sentenciou Laureano.
Margarete tomou um susto. Não imaginava que alguém
pudesse ler os seus pensamentos.

— E por que não? — rebateu mal-humorada.
— Você não sabe onde está a criança e não estou autorizado
a dizer. — Ela olhou para Félix, e Laureano prosseguiu:
— E não adianta pedir ajuda a Félix. Ele não tem a
menor ideia do paradeiro do menino.
— Ele é meu filho! — exasperou-se ela.

— Não é mais. Ele pertence a um plano de existência,
você, a outro.
— Se sou espírito, posso ir aonde quiser, não posso?
Pelo menos é assim que a gente vê na televisão.
— A televisão desconhece as leis que regem o mundo.
Aqui, como no mundo da matéria, existem leis que devem
ser observadas. A diferença é que a lei dos homens foi criada
para equilibrar a sua imperfeição, ao passo que as leis que
imperam no invisível decorrem da natureza de todas as coisas,
revelando, por isso mesmo, a própria perfeição de Deus.
Ela o olhou com certo rancor, mas não contestou. Não
tinha maturidade, nem conhecimento, nem preparo moral
para o contradizer.

— Venha comigo, Margarete — chamou Félix. — Ainda
podemos ser felizes.
— Não vejo como possa ser feliz ao lado de um desconhecido
— rebateu friamente.
— Não sou um desconhecido. Nós já nos conhecemos
de outras vidas.
Aos poucos, a memória de Margarete foi-se restabelecendo,
e cenas de sua última encarnação se delinearam
em sua mente. Embora não soubesse bem decifrá-las, sabia
que eram reminiscências de tempos idos.

— Preciso de um trago — anunciou com irritação.
— E agora.
— Margarete, você não pode.
— Posso sim — desafiou.
— Você nem sabe como fazer isso.
— Quero beber! Onde tem um bar por aqui? Um bar!
Preciso desesperadamente de um bar. Quero beber!
Na mesma hora, Margarete desvaneceu. Félix encarou
Laureano com amargura e murmurou em lágrimas:

— E agora? O que vamos fazer?
— Não podemos fazer nada. Era inevitável que isso
acontecesse. Margarete ficou tempo demais sem pensar

na bebida. Mas o vício não a abandonou e, quando ela se
viu contrariada, reavivou a impressão do álcool, do qual seu
corpo emocional encontra-se impregnado.

— Aonde ela foi?
— A algum bar, não tenho dúvidas. E já deve estar aprendendo
a sugar a essência da bebida de ébrios invigilantes.
— Não podemos fazer nada?
— Eu não posso sair daqui agora. Mas aconselho-o
a ir atrás dela, ou outros poderão encontrá-la na sua frente.
— E se ela não quiser voltar comigo?
— Limite-se a observá-la e acompanhar os seus passos.
Ela vai sugar o álcool até que a sensação da embriaguez
a anestesie. Aí então, traga-a de volta. Mas cuidado:
muitos espíritos maldosos e perigosos estarão à espreita
para escravizá-la e obrigá-la a trabalhar para eles. Margarete
pode se deixar seduzir por suas palavras doces e falsas.
Esteja alerta e, quando isso acontecer, eleve seu pensamento
a Deus e busque envolver a ambos numa redoma de luz.
— Só isso irá bastar para afastá-los?
A oração é a arma mais poderosa contra aqueles que
ainda não conhecem o poder do amor. Com ela, você estará
bem guarnecido e preparado para trazer Margarete de volta.
Mas não se iluda. Ela virá com você, contudo, assim que
melhorar, vai sair de novo.

— Como posso encontrá-la?
— Dê-me sua mão. — Ele deu. — Agora pense firmemente
nela.
Com a mente de ambos fixada em Margarete, Félix
imediatamente se viu ao lado dela. Seus pensamentos a
haviam levado para o boteco que ela costumava frequentar
ainda em Belford Roxo. Como Laureano previra, rapidamente
ela aprendeu a sugar as energias dos encarnados
e, naquele momento, deliciava-se com a essência etílica
que desprendia da cachaça. Félix olhou ao redor, à procura
de espíritos perigosos, mas não viu nenhum. Apenas uma


forma-pensamento3 bastante densa e nebulosa quase se
infiltrava num senhor sentado a uma mesa, enquanto o espírito
de uma mulher apalpava um homem no balcão. Félix
notou que ele se excitava só com o toque da mão invisível.

Ele voltou a atenção para Margarete, que, alheia a tudo
aquilo, permanecia grudada no bêbado, sugando o máximo
que podia. A visão de sua amada naquela atitude obsessiva
e perturbadora lhe causou imenso mal-estar, mas ele não
desistiu. Procurou um lugar para se sentar e ficou tomando
conta dela. Demorou muito para que ela se saciasse, até
que, finalmente, a essência do álcool lhe subiu à cabeça e a
ilusão da bebedeira atirou-a ao chão.

Só então Félix saiu de seu esconderijo e se aproximou,
angustiado com o estado de embriaguez em que Margarete
se encontrava. Se viva estivesse, teria entrado em coma alcoólico.
A matéria química, contudo, não era capaz de penetrar
seu corpo emocional. Os efeitos que se produziam
sobre Margarete derivavam da essência deletéria do álcool,
transmitindo-lhe a nítida sensação de embriaguez, facilmente
descartada se ela recuperasse o equilíbrio mental. Em
suma, tudo não passava de uma poderosa ilusão criada
pela mente acostumada aos efeitos do álcool.

Ele se abaixou ao lado dela e ergueu-a no colo, no exato
momento em que espíritos mal-encarados adentravam
o bar, acompanhando um meliante perigoso. Mal os seres o
olharam de esguelha, Félix fez breve oração, que o levou de
volta a sua casa. Deitou Margarete na cama, ajoelhou-se a
seus pés e, com os olhos úmidos, misturou seus soluços
à oração de agradecimento.

3 Forma-pensamento é uma criação mental plasmada no mundo astral, de
natureza idêntica ao pensamento que a criou.

53


CAPÍTULO

6

Aos onze anos, Marcos era um menino muito educado
e decidido. Desde cedo escolhera a profissão: queria ser advogado,
para ajudar a acabar com as desigualdades e injustiças
sociais. Era um sonho que a mãe estimulava, embora não
lhe desse muito crédito. Como um menino pobre feito Marcos
Wellington conseguiria passar em uma faculdade do governo,
já que eles não tinham condições de pagar uma particular?

— Eu vou conseguir, mãe, você vai ver — afirmava ele.
— Você ainda nem sabe direito o que é ser advogado
— objetava Romualdo. — É profissão de gente rica. É mais
fácil ser pedreiro, como seu pai.
— Deixe, Romualdo — censurava Clementina. — Se é
o que ele quer, vai conseguir.
Mas a vida não era fácil, e as tentações, muitas. Todos
os domingos, Leontina passava em casa de Clementina
para irem ao culto evangélico. Naquele dia, não foi diferente.
Marcos terminou de ajeitar a gravata, com a qual a mãe o
obrigava a ir ao culto, e foi esperar a tia na porta de casa.
Sentou-se no batente, atirando pedrinhas na parede para
ouvir o estalido que elas produziam. Estava assim distraído
quando ouviu uma voz conhecida chamando-o do portão:

— E aí, Zé das Ovelhas, vai todo enfatiotado para a
missa de novo?

Marcos fitou o interlocutor e engoliu um momento fugaz
de raiva. Zé das Ovelhas era o apelido que ganhara quando,
certa vez, respondendo aos gracejos de Jéferson, dissera que
eram todos ovelhas no rebanho do Senhor. Jéferson caiu na gargalhada,
chamando-o de Zé das Ovelhas, e o apelido pegou.

— Missa é da Igreja Católica. Vou ao culto.
— Tanto faz.
Jéferson falava agitando exageradamente o pulso
diante dos olhos de Marcos, até que ele reparou por quê.
Um relógio novo, tinindo de um brilho prateado ofuscante,
reluziu à luz do sol.

— Uau! — fez Marcos, que sempre desejou ter um relógio.
— Onde você conseguiu?
— Trabalhando — Marcos se aproximou e segurou o
punho do outro, revirando-o para admirar a pulseira cromada.
— Você poderia conseguir um, se quisesse. O Mandrake
cansou de dizer que tem vaga para você.
Mandrake era o nome do traficante local, que se dera
esse apelido por se considerar um mágico no desaparecimento,
já que a polícia jamais conseguira colocar as mãos nele.
Utilizava-se, para fazer avião, de garotos que levavam as drogas
para cima e para baixo, arriscando-se a ser surpreendidos
e presos, ou, pior, mortos em algum confronto com a polícia.

Os olhos de Marcos brilharam ante a possibilidade de
possuir um relógio daqueles. Mas as palavras do pastor reverberaram
em sua mente, e ele parou assustado, como se

o sacerdote estivesse ali presente, dizendo:
— As drogas são um dos portais de que o diabo se
utiliza para abrir a passagem para o inferno. E como disse
o amado apóstolo Mateus, "o Filho do Homem enviará os
seus anjos, que tirarão do seu reino todos os que causam
escândalos e promovem a iniquidade, e os lançarão à fornalha
acesa, onde haverá choro e ranger de dentes"4.
4 Mateus 13:41,42.

55


O medo de ir para o inferno foi maior do que o desejo
de possuir o relógio, e Marcos meneou a cabeça, dizendo
envergonhado:

— Não, Jéferson, obrigado.
— Tem certeza? — Marcos assentiu, e o outro deu de
ombros. — Você é quem sabe.
Como Leontina despontou no fim da rua, Jéferson fez
um aceno para Marcos e tomou a direção oposta. A tia chegou
esbaforida e indagou, estreitando a vista para ver se
podia ainda reconhecer o garoto:

— Quem era aquele?
— Ninguém. Um conhecido.
— Olhe lá, hein, Marcos Wellington! Não vá se meter
com más companhias.
— Não se preocupe, titia. Tenho Deus no coração.
A resposta satisfez Leontina, que abraçou o sobrinho
e estalou-lhe um beijo na face. Marcos recebeu o beijo com
respeito, muito embora se irritasse com a forma como a tia

o chamara. Detestava ser chamado de Marcos Wellington.
Logo Clementina estava ao lado deles, e os três partiram
rumo à igreja.

— Estou preocupada com Romualdo — Clementina
cochichou ao ouvido da irmã, para que Marcos não ouvisse.
— Porquê?
— Ando desconfiada de que ele arranjou uma amante.
Leontina levou a mão à boca, abafando um grito de
horror, e tornou séria:

— Como foi que você descobriu?
— Não descobri. Mas ele anda diferente, esquisito.
Quase não me procura mais.
— E o emprego?
— Vai bem, mas tem chegado tarde, dizendo que arranjou
uns serviços extras depois do trabalho.
— Será que não é verdade?

— Ah, é? E cadê o dinheiro? — Leontina não respondeu.
— Não sei o que farei se descobrir que Romualdo tem
mesmo uma amante. Acho que sou capaz de me matar.
— Não diga uma coisa dessas! Quer condenar sua
alma para sempre? Suicídio é um dos maiores pecados que
o ser humano pode cometer. E depois, tem o Marcos
Wellington. Quem é que vai cuidar dele? A madrasta?
— Isso não! — objetou Clementina, sentindo a ira subir-
lhe pelo pescoço e inundar suas faces. — Levanto-me
da sepultura e dou um jeito de levar a rameira comigo. Vou
arder no fogo do inferno, mas não estarei sozinha.
Leontina abriu a boca novamente e tornou abismada:

— Que horror! Isso não são palavras de uma cristã
temente a Deus. Seu filho está melhor do que você. Ainda há
pouco me disse que tinha Deus no coração. E você? O que
abriga no seu? O ódio, a vingança, o pecado?
Clementina enxugou duas lágrimas discretas e perguntou
emocionada:

— Marcos Wellington disse isso?
— Disse.
— Meu filho é um menino de ouro. Ainda vou me orgulhar
muito dele.
— Pois então, pare de falar essas bobagens. Não dê
asas ao diabo, pois ele pode levá-la com ele para um voo
no inferno. Trate de se manter firme em sua fé, ou Deus irá
castigá-la por sua blasfêmia.
Clementina não disse nada. Por mais que desse razão
à irmã, não podia sequer imaginar-se longe de Romualdo. A
paixão pelo marido era tão intensa que, se ela não se matasse,
de qualquer forma, morreria de desgosto.

Assistiram ao culto em silêncio, com profundo respeito
e devoção. Dos três, Leontina era a mais religiosa.
Acreditava piamente nas escrituras e em tudo que o pastor
pregava, abrigando palavras de fé e caridade em seu coração.
Era uma pessoa piedosa, genuinamente boa, e sabia


perdoar com facilidade. Tinha também uma crença fervorosa
nos pecados da alma, nas penas eternas e no fogo
do inferno, razão pela qual vivia em oração, pautando sua
conduta nos exatos termos descritos na Bíblia.

Para Clementina, a igreja representava uma fuga, uma
forma de conviver pacificamente com seus problemas matrimoniais.
Sempre achou que, quanto mais dedicada à religião,
maior seria sua recompensa. Fora esse seu testemunho
quando ganhara o filho. Agora, o que ela mais desejava era
conservar o marido a seu lado. Por isso, não faltava aos dias
de culto e fazia o que podia para ajudar na congregação, certa
de que Deus a recompensaria salvando seu casamento.

Marcos, por sua vez, vivia sentimentos contraditórios. Ao
mesmo tempo em que interiorizava os ensinamentos adquiridos
na escola dominical e nas pregações do pastor, sentia um
quase irresistível desejo de se libertar de tudo aquilo e se entregar
ao mundo. Via Jéferson e os outros meninos do morro
com coisas bonitas que ele não podia comprar, e, silenciosamente,
ansiava por uma oportunidade de possuir tais objetos.
Mas como, se o pai ganhava pouco e a mãe não trabalhava?

A solução era, ao mesmo tempo, fácil e quase impossível.
Para ter o que eles tinham, Marcos teria que seguir

o caminho do crime. Só que ele não queria se tornar um
criminoso. Tinha medo das consequências: de se ver embaraçado
na lei dos homens e na de Deus. Temia a polícia
tanto quanto temia os anjos que o conduziriam ao inferno.
Toda vez que Jéferson lhe acenava com um objeto caro, ele
pensava em aceitar o convite de Mandrake, pelo menos uma
vez, só para comprar alguma coisa bonita. Mas o medo de
que a satisfação de um desejo se transformasse na escravidão
aos demais o fazia recuar.
O jeito então era seguir os conselhos da mãe e da tia:
estudar para conseguir um emprego honesto e digno, para
poder comprar o que queria. Mas isso também devia ser pecado,
porque o pastor acabava de gritar lá do púlpito:


— "O ambicioso apressa-se de enriquecer, mas não
sabe que a miséria virá sobre ele5"! Por isso, meus filhos,
é que lhes digo: não gastem o tempo valioso na busca de
riquezas, mas aceitem a pobreza que Deus lhes enviou para
que juntem tesouros no céu. Jesus levou uma vida pobre,
pois sabia que não se pode servir a Deus e ao dinheiro.
Ser pobre é abrir-se ao amor de Deus, portanto, cultivem
a simplicidade da vida e aprendam a viver com humildade,
pois nada é necessário ao homem além do essencial para
uma vida consagrada ao Evangelho do Cristo.
Marcos abaixou a cabeça, envergonhado consigo
mesmo. No fundo, não concordava com aquelas palavras,
mas o que fazer? Se estava na Bíblia, é porque era verdade.
Na volta para casa, ouviu a tia perguntar:

— E então, Marcos Wellington, gostou do sermão
de hoje?
— Gostei... — falou hesitante. — Mas fiquei com uma
dúvida. Será que é pecado eu querer ser advogado para ter
uma vida melhor e tirar meus país e minha tia do morro?
As duas o fitaram com lágrimas nos olhos, e foi Leontina
quem respondeu:

— Não, meu querido. O que é pecado é a ambição do
dinheiro. Mas, se você trabalhar honestamente, para melhorar
de vida, não estará pecando.
— Mas, e para ter coisas que não são assim tão necessárias?
Como um relógio novo e caro?
— Acho que o diabo pode tentar você com essas ideias,
para desviá-lo do caminho da virtude e do bem. Cuidado.
O menino silenciou, arrependido de ter perguntado, e
foi caminhando na frente, de forma que Clementina pôde
retomar a conversa com a irmã:

— Como posso fazer para descobrir se Romualdo tem
mesmo uma amante?
Provérbios 28:22.


— Você devia estar preocupada com o seu filho, com as
ideias que os garotos do morro podem meter na cabeça dele.
— Ele não precisa disso. É muito ajuizado. Você mesma
ouviu.
— É, mas ele já está sonhando com relógios caros. O
mundo está cheio de tentações, minha irmã. Não podemos
nos descuidar um minuto.
— Ora, mas você lhe respondeu muito bem. Tenho
certeza de que Marcos Wellington aprendeu. — Leontina
suspirou, e Clementina prosseguiu: — Agora, voltando
àquele assunto, preciso descobrir.
— Acho que o melhor é não falarmos mais disso. Desde
a chegada de Marcos Wellington, Romualdo tem sido um bom
marido, embora não conseguisse manter a promessa de tirá-
la do morro. Mas arranjou um emprego fixo, nunca bateu em
você e já não bebe tanto. Devia se contentar com isso.
— Contentar-me com isso, você diz? E o sexo? Faz
parte da vida de todo casal.
— Vocês não podem ter filhos. Sexo não devia ser tão
importante assim.
— Essa é muito boa! Diz isso porque nunca foi casada
e não sabe o que é ter um homem em sua cama.
— Se nunca me casei, foi porque optei pelo devotamento
a Cristo — revidou ela, magoada. — Essa é uma coisa
boa da Igreja Católica que devíamos adotar. Devia ser
permitido que nós, mulheres, nos consagrássemos somente
a Deus e a Jesus.
— Como uma freira, você diz? — Leontina assentiu.
— Deus me livre! Gosto de homem e não abro mão do sexo.
— É por causa do sexo que você está com essas
ideias pecaminosas. As coisas mundanas não deviam se
sobrepor às coisas de Deus.
— Tudo bem, Leontina, você tem razão em tudo o que
diz. Mas se esquece de que um dos mandamentos diz que não
devemos cobiçar a mulher do próximo. Isso não se aplica ao

marido também? Adultério é pecado e, se Romualdo estiver
com uma amante, não estará também cometendo um pecado
mortal?

— Por isso é que lhe digo que o melhor é não saber.
Se ele estiver pecando, deixe sua consciência ao julgamento
do Senhor. Faça a sua parte, que é ser fiel, boa esposa,
boa mãe, e entregue o resto nas mãos de Deus.
Clementina já estava ficando cansada de ouvir falar em
Deus, pecado e inferno. Afinal, fazia a sua parte, ia à igreja,
cuidava do marido e da casa. Não merecia uma recompensa
à altura? Por que então Deus a estava punindo daquela forma?
Embora não dissesse mais nada, ia descobrir a verdade.
Não era mulher de aceitar passivamente a traição do marido.




CAPÍTULO

7

O O O

A desconfiança passou a ser companheira inseparável
de Clementina. À exceção dos fins de semana, Romualdo
ficava fora todas as noites, só retornava por volta das onze
horas. Quando chegava, encontrava Clementina acordada,
esperando por ele. As perguntas eram sempre as mesmas.
As respostas, invariáveis:

— Onde você esteve?
— Trabalhando.
— Até quando vai esse bico que você arranjou?
— Não sei. Depois desse, já tenho outro em vista.
— Onde?
— Na casa de uma madame lá na Gávea.
— E cadê o dinheiro?
— Ainda não recebi.
Clementina esperava pacientemente até que ele tomasse
banho, servia-lhe o jantar e ajeitava a cama para que
ele se deitasse, deitando-se ao lado dele. Romualdo logo
fingia pegar no sono, e mesmo quando Clementina o acariciava,
sugerindo que se amassem, ele a repelia gentilmente,
a desculpa de sempre na ponta da língua:

— Estou cansado. Trabalhei demais hoje.
Não foi por outro motivo que ela resolveu segui-lo.
Durante dias, juntara dinheiro para a empreitada. Pegou um


táxi e foi atrás do ônibus que ele tomou, até um prédio em
reforma na rua da Carioca. De posse do endereço da obra
em que ele trabalhava, resolveu voltar mais tarde. Durante o
horário de trabalho, era certo que ele nada faria.

Aguardou com ansiedade o fim do dia. Deu ordens expressas
a Marcos para que não saísse de casa, trancasse tudo
e só abrisse a porta para a tia. Com um beijo na testa, abençoou-
o e saiu. Dessa vez tomou um ônibus e desceu quase em
frente à obra. Chegou bem no fim do expediente, ainda a tempo
de ver Romualdo se despedir dos colegas e ganhar a rua.

Do outro lado da calçada, seguiu-o a distância. Passaram
pela praça Tiradentes e a rua Visconde do Rio Branco,
até virar na rua dos Inválidos. Ele tocou a campainha de um
sobrado e foi recebido por uma mulata jovem, bonita, voluptuosa
de corpo, que o abraçou e o beijou na boca, puxando-
o para dentro.

Clementina precisou se segurar num poste para não
cair, sentindo que todo o seu mundo ruía sobre sua cabeça.
Então era verdade! Romualdo tinha mesmo uma amante
mais jovem, mais bonita, as formas bem-feitas e rígidas.
Muito diferente do corpo alquebrado e flácido que ela ganhara
ao longo dos anos. Não era justo.

Desnorteada, foi até o sobrado e tocou a campainha.
Outra mulher atendeu e olhou-a com ar interrogativo.

— O que deseja? — perguntou por fim, já que
Clementina não se decidia a abrir a boca.
— Quero falar com Romualdo.
— E quem é você?
— A mulher dele.
A outra gelou. Pensou em bater a porta na cara da desconhecida,
mas Clementina já havia atravessado o pé no
portal e segurava a porta com uma das mãos.

— Romualdo! — gritou a mulher para dentro da casa.
— Tem alguém aqui querendo falar com você.

Ele apareceu dois minutos depois, sem camisa, segurando
uma lata de cerveja. Ao dar de cara com a esposa, sua
expressão murchou. A mulher que a recebera rodou nos calcanhares
e subiu apressada, passando por ele sem dizer nada.
Não queria ser envolvida na briga doméstica de ninguém.

— Como pôde? — desabafou Clementina, segurando
as lágrimas. — Como pôde fazer isso comigo?
— Vá para casa, Clementina. Lá, conversaremos.
— Só se você vier comigo.
— Agora não posso.
— Onde está a prostituta com quem você está dormindo?
— Vá para casa, já disse.
— Não sem antes lhe dar uma surra.
— Vá para casa! — gritou ele, irritado.
Ela começou a chorar, e Romualdo deu-lhe um empurrão,
para poder fechar a porta. Clementina tocou a campainha
outra vez, mas ele não atendeu. Ela continuou tocando
e tocando, até que a mulher que a recebera berrou da janela:

— Pare com isso! Ele não está mais aqui. Saiu pela
porta dos fundos e pulou o muro do vizinho. Vá fazer escândalo
em outro lugar.
Clementina soltou a campainha e olhou desconfiada
para a mulher, que entrou e bateu a janela. Atravessou a
rua, para ver se conseguia enxergar melhor lá dentro, mas
tudo estava fechado. Ainda pensou em sentar e esperar para
dar uma coça na amante, contudo, não se atreveu. Só o que
queria era ter seu Romualdo de volta.

Abandonou o sobrado e tomou o ônibus de volta. Era
hora do rush, e ela teve que esperar muito até chegar em
casa. Entrou esbaforida, procurando o marido, mas apenas
Marcos estava ali, vendo um programa no velho aparelho
de televisão.

— Onde está seu pai? — indagou ela.
— Ainda não chegou. E por que você está com essa cara?
— Por nada.

Ela saiu e foi sentar-se no degrau da entrada. Afundou
o rosto entre as mãos e ficou ali, esquecida de si mesma, o
coração lacerado pela dor da traição. Ao ouvir passos se
aproximando, levantou os olhos. Romualdo estava parado
na sua frente, braços cruzados, impregnando o ar com o
cheiro forte da bebida. Ela o encarou com rancor e ressentimento,
mas ele foi o primeiro a falar:

— Voltei para pegar minhas coisas.
— Pegar suas coisas?
— Vou-me embora, Clementina. Não dá mais para viver
assim.
— Assim como? Eu não fiz nada. Foi você quem me traiu.
— É a isso mesmo que me refiro. Não posso mais levar
esta vida dupla.
— Vai me trocar por uma prostituta?
— Sheila não é prostituta. É balconista numa padaria
na cidade.
— Foi lá que vocês se conheceram?
— Foi.
Clementina se levantou, segurou as mãos dele. Endereçando-
lhe um olhar de paixão, implorou:

— Em nome de Deus e do nosso amor, Romualdo,
não faça isso. Posso perdoar essa sua aventura, mas não
me abandone.
Ele abaixou a cabeça, constrangido, e respondeu sem
a encarar:

— Não foi uma aventura. Sheila e eu estamos apaixonados.
— Você está enfeitiçado pela beleza e juventude dela.
Mas isso vai passar. Eu é que sou a sua mulher.
— Não é mais.
— Nós somos casados.
— Podemos nos divorciar.
— Não quero! Não admito!
— Você só está dificultando as coisas. Com ou sem o
seu consentimento, eu vou embora e vou viver com Sheila.

— Faça isso, e passo a faca naquela rameira — rugiu
ela com ódio.
— Você está louca. Não pensa no nosso filho?
— E você? Por acaso está pensando nele? Está?
Ele se desvencilhou dela e foi até a porta.
— Não adianta, Clementina. Já está decidido.
Entrou apressado, com ela em seu encalço, seguindo-
o até o quarto.

— Você não pode! — choramingou. — Eu o amo,
Romualdo, como posso viver sem você?
— O que está acontecendo? — perguntou Marcos.
— Seu pai quer ir embora — esclareceu Clementina,
em lágrimas. — Conheceu uma vagabunda e quer se amigar
com ela.
O olhar espantado de Marcos feriu o coração de
Romualdo como uma faca, mas nem isso serviu para que
ele mudasse de ideia.

— Sua mãe não quer aceitar que nosso casamento
acabou.
— Você vai nos deixar? — inquiriu Marcos, espantado.
Romualdo não respondeu, e Clementina afirmou com
escárnio:

— Vai. Ele vai deixar a família legítima que Deus lhe concedeu
para se juntar com uma rameira do baixo meretrício!
Romualdo estava decidido a não dizer mais nada. De
que adiantaria brigar com Clementina, se não ia mudar de
ideia? Sheila já o aguardava para fugirem juntos, para um lugar
onde Clementina não pudesse encontrá-los e fazer mal
a ela. Brevemente, arrumou suas poucas roupas numa maleta
puída. Fechou os dois trincos, fez um afago no rosto do
filho e já ia sair quando Clementina o interrompeu, atirando-
se a seus pés, em súplica:

— Não, Romualdo, você não pode! Por favor, não me
deixe. Faço qualquer coisa para que você não se vá. Qualquer
coisa! Quer que eu aceite a prostituta? Tudo bem, eu aceito.

Faço de conta que nada aconteceu, não pergunto mais nada,
não quero nem saber o que você faz nem com quem. Aceito

o que você me der, as migalhas que guardar para mim. Faço
qualquer coisa por você, mas, por favor, não me deixe!
Ela chorava descontrolada, para espanto de Marcos,
que nunca havia visto uma cena daquelas. O constrangimento
de Romualdo também foi aumentando, embora o escândalo
só servisse para aumentar a repulsa que passara a
sentir de Clementina.

— Está se humilhando à toa — afirmou ele. — Minha
decisão já está tomada e não tem volta.
Mesmo a contragosto, empurrou-a com força, para
que ela largasse as suas pernas, e passou por cima de seu
corpo caído no chão, sacudido pelo pranto desesperado.
De tão atônito, Marcos não sabia se acudia a mãe ou se
impedia o pai. Abaixou-se ao lado dela e segurou-a pelos
ombros, oferecendo-lhe o peito para se apoiar. Romualdo
já estava na porta quando ouviu o filho chamar lá de dentro:

— Pai.
Parou hesitante, a mão na maçaneta, mas não se virou.
Escancarou a porta com fúria, jogando-a de encontro
à parede, e saiu, descendo o morro para uma nova vida.
Nunca mais queria tornar a ver Clementina.

Com muito esforço, Marcos ergueu a mãe do chão. Ela
não parava de chorar, agarrada a ele, sacudindo a cabeça
feito uma demente. Ele a deitou na cama e sentou-se a seu
lado. Alisou seus cabelos, ouviu seus soluços, sem coragem
de dizer nada. Não entendia por que o pai havia feito aquilo.

Pela cabeça de Clementina, mil coisas passavam, desde
o suicídio até o questionamento de Deus. Sem conseguir
compreender o porquê daquela traição, voltou-se contra Ele.
Não fora ela uma boa cristã e uma boa fiel? Não ia ao culto
todos os domingos, não recitava as orações que o pastor
lhe indicava? Sempre que podia, não ajudava nas tarefas da
igreja? Por que então estava sendo punida daquela forma?


Se ela fazia direitinho tudo o que o pastor mandava, não
devia ser castigada. E se estava sendo punida, então Deus
não existia ou não se importava com ela.

Com esses pensamentos, levantou-se hesitante, caminhando
até o espelho. O cabelo estava todo desgrenhado,
a roupa amassada, os olhos vermelhos, inchados de tanto
chorar. Penteou-se, alisou o vestido e apanhou a bolsa.

— Você vai sair? — perguntou Marcos, atônito.
Ela olhou para ele como se não o visse e respondeu
em tom alheado:

— Vou dar uma volta. Tranque tudo e não abra para
ninguém.
Saiu, deixando-o perplexo. Dali em diante, Marcos
não conseguiu mais sossegar. A televisão ficou ligada para
ninguém, porque ele não conseguia prestar-lhe atenção.
Olhava sem ver, consultando o relógio a cada minuto. As
horas iam-se passando, e nada de Clementina voltar.

O sono se aproximava, mas Marcos não queria dormir.
Clementina estava demorando muito. Ele abriu a janela,
espiou, mas nem sinal da mãe. O morro começava a se
aquietar, e ela não aparecia. Olhou para o relógio de novo:
faltavam dez minutos para a meia-noite. Fazia muito tempo
que ela saíra.

Calçou os chinelos e saiu, subindo o morro a passos
largos. Logo alcançou o barraco da tia e bateu à porta.
Como Leontina acordava muito cedo para trabalhar, já estava
dormindo quando ele chegou. Agoniado, ele começou a
esmurrar a porta e chamar:

— Tia! Tia Leontina!
Finalmente, ela despertou assustada. Reconheceu a
voz do sobrinho e correu a destrancar a porta.

— Marcos Wellington, o que aconteceu?
— Minha mãe sumiu. Meu pai saiu de casa, ela foi
para a rua faz mais de quatro horas e ainda não voltou.
Estou preocupado.

— Você quer dizer que seu pai foi embora?
— Foi. Mamãe disse que ele foi se amigar com uma
rameira...
Leontina cerrou os olhos, invocando a presença de
Deus, e logo uma suave luz desceu sobre eles.

— Entre. Vou me vestir depressa.
Leontina foi com o sobrinho para a casa dele, a fim de
esperar pela irmã. Sentou-se na poltrona da sala, com Marcos
deitado em seu colo. As horas avançavam rapidamente, mas
nada de Clementina chegar. Até que, quando o sono se tornou
insuportável, os dois adormeceram abraçados.


CAPÍTULO

8

Um barulho de coisas caindo tirou Leontina e Marcos
do sono. Os dois abriram os olhos quase ao mesmo tempo.
O sol já se insinuava pelas frestas da janela, riscando o chão
com listras de luz e calor. Novo ruído veio do quarto, dessa vez
como se um fardo tivesse sido atirado sobre a cama, fazendo
ranger as molas soltas do colchão. Ambos olharam na mesma
direção, e o que viram lhes pareceu uma réplica da mulher que
atendia pelo nome de Clementina. Rota e desgrenhada, a mulher
era como uma cópia grotesca e mal-acabada.

Marcos ficou sentado, sem se mover, com medo de
provocar alguma reação naquele bicho que tomara o lugar
de sua mãe. Apenas Leontina aproximou-se da irmã, que em
instantes adormecera e roncava ruidosamente. Clementina
fedia a cachaça, a roupa amassada, os cabelos crespos eriçados
emprestavam ao rosto um ar de demência prematura.

Leontina quase soltou um grito de pavor. Nunca tinha
visto a irmã naquele estado. Nem parecia uma mulher religiosa,
temente a Deus. Contendo a repulsa, cutucou-a com
irritação, chamando-a agressivamente:

— Clementina! Acorde, Clementina! Vamos, levante-se!
Clementina resmungou e deu tapas no ar, tentando
acertar a dona daquela voz irritante. A irmã continuou chamando,
balançou-a vigorosamente, mas ela não respondeu.


Nem sequer se mexia. Havia ferrado em um sono tão profundo
que nem o retinir de um trovão conseguiria despertá-la.
Leontina ainda sacudiu-a mais um pouco, até que desistiu.
Era inútil tentar acordar a irmã dopada pela bebedeira.

— Minha mãe está morta? — indagou Marcos num soluço,
horrorizado ante a cena inusitada.
— Não. Ela está dormindo.
— Ela bebeu, não foi? — Leontina assentiu. — Pensei
que minha mãe soubesse que a bebida é coisa do demônio.
— Eu também. Mas, pelo visto, o diabo a tentou e ela
cedeu à tentação.
— Foi porque papai foi embora?
— Provavelmente.
— E agora, tia, o que vamos fazer?
— Nada. Deixe-a dormir. Vou trabalhar e, na volta, a
gente conversa.
— E eu, o que faço?
— Tome seu banho e vá para a escola. Não vale a
pena perder um dia de aula por causa dessa doida irresponsável.
Espere só até o pastor saber disso.
Leontina beijou o sobrinho no rosto e foi aprontar-se
para o trabalho. Seguindo as ordens da tia, o menino entrou
no banheiro minúsculo para um banho no pinga-pinga do
chuveiro. De uniforme, segurando a mochila da escola, não
teve coragem de sair. Não podia deixar a mãe sozinha naquele
estado. Se faltasse apenas a um dia de aula, será que
perderia tanta coisa assim?

Colocou a mochila de volta no armário e sentou-se ao
lado dela, na cama. Alisou-lhe a carapinha espetada, tentando
conter os fios rebeldes que já perdiam o efeito do Henê.
Sentiu a ternura invadi-lo e abraçou a mãe pelos ombros.
O cheiro da bebida invadiu suas narinas, fazendo-o recuar,
enjoado. Com lágrimas nos olhos, deitou-se junto a ela, virando
o rosto para o outro lado, para fugir da sua respiração


pesada, impregnada do cheiro de álcool. Por causa da noite
maldormida, logo pegou no sono.

Despertou com um novo aroma, dessa vez de tempero,
que se espalhava por toda a casa. Pela janela aberta, dava
para perceber que ainda era dia, embora a sombra da tarde
denotasse o avanço das horas. Marcos procurou a mãe com
o olhar. Encontrou-a mexendo as panelas no fogão. Ela estava
de banho tomado, os cabelos rebeldes contidos debaixo
de um lenço, roupas limpas e cheirosas. Sentiu imensa
satisfação ao vê-la de volta ao normal e se levantou, aproximando-
se dela.

— Oi, mãe — chamou baixinho.
Ela se virou com largo sorriso. Segurou o rosto dele
entre as mãos e estalou-lhe um beijo na testa.

— Pensei que não fosse acordar mais, preguiçoso.
Posso saber por que não foi à escola?
— Você chegou tarde. Titia e eu ficamos preocupados.
Clementina mordeu os lábios e revidou contrariada:
— Você foi chamar sua tia?
— Fui.
— Pois não devia.
— O que você esperava que eu fizesse, mãe? Papai
foi embora e você sumiu. Pensei que tivesse me abandonado
também.
— Isso não, meu filho, nunca! — protestou ela, com
veemência. — Jamais vou abandonar você.
— Mas papai foi embora...
— Seu pai nos trocou por uma vagabunda — revidou
ela com raiva.
— Foi por isso que você bebeu?
Clementina começou a chorar e puxou o filho, abraçando-
o até quase sufocá-lo.

— Marcos Wellington, você é a única coisa que me
resta no mundo. Seu pai foi embora, e agora não sei o que
vamos fazer. Não sei se vou conseguir viver sem ele...

As palavras foram engolidas pelos soluços, e ela o largou
para se atirar de bruços na cama. Chorava tanto que ele
pensou que ela fosse engasgar.

— Por favor, mãe, não fique assim. Eu estou aqui e
vou proteger você.
— Ah! meu filho... Você é um menino tão bom, mas é
apenas uma criança.
— Já tenho onze anos, posso me virar.
Clementina sorriu entre as lágrimas e afagou o rosto
dele:

— Meu menino, dinheiro não é tudo. Posso arranjar um
emprego. Mas como é que vou fazer para viver sem o meu marido?
Como vou... — novo soluço — ... sem o meu homem...?
Marcos não compreendia muito bem, mas abraçou-a
com força.

— Podemos pedir ajuda ao pastor. Ele é homem também.
— Como você é ingênuo. E é bom que seja assim,
livre das maldades do mundo.
Marcos podia ser ingênuo, reflexo da rigidez de educação,
mas não era nenhum idiota. Sabia que, dali em diante,
a vida deles seria muito difícil. A mãe não trabalhava, e o pai,
na certa, não lhe deixara nenhum dinheiro.

— Olhe, mãe, não se desespere. Se pedirmos ajuda
ao pastor, sei que ele vai fazer algo por nós. Ele já ajudou
tanta gente...
— Não quero mais ouvir falar de pastor nesta casa!
— esbravejou ela, dando um susto em Marcos. — Eu segui
tudo o que o pastor disse, e olhe só no que deu! Meu marido
me trocou por uma sirigaita mais jovem. Mas tinha que
ser. Que homem vai querer a mulher de casa, recatada, sem
maquiagem, usando saias pelo joelho e blusas até o pescoço,
quando pode ter qualquer uma com as pernas e os seios
à mostra? Os homens gostam é disso, Marcos Wellington,
vá aprendendo. Gostam de mulheres chamativas, bem maquiadas,
de corpo bem-feito para ser exibido na rua. E eu, a

tonta, achando que, mantendo o recato, manteria também o
respeito do meu marido!

Marcos já vira muitas mulheres do tipo que a mãe descrevia,
mas sempre pensou que eram daquelas que cediam
à tentação do demônio. A mãe só podia estar louca se achava
que deveria ser como elas.

— Não fale assim, mãe. Você é uma mulher decente.
Ela deu um riso irônico e tornou com desdém:
— O que você entende de mulher decente? O que o
pastor e sua tia puseram na sua cabeça?
— E não é o certo?
— Não sei mais o que é certo ou errado, meu filho.
Só o que sei é que segui à risca as ordens do pastor e fui
punida por isso.
— Ficar com raiva do pastor não vai adiantar nada.
A voz de Leontina fez os dois se sobressaltarem. Ela
estava parada na porta do quarto, os olhos chamejando
com o fulgor da reprovação.

— Tia! — exclamou Marcos. — Não vimos a senhora
chegar.
— Não viram porque estavam dando ouvidos aos conselhos
de satã.
— Chega dessa baboseira de diabo, satã e pecado!
— objetou Clementina com fúria. — De hoje em diante, essas
mentiras não entram mais em minha casa.
— Como ousa chamar as verdades da Bíblia de mentiras?
— São mentiras, sim! Mentiras deslavadas, histórias
de terror para assustar os crédulos e idiotas. Mas, para mim,
chega! Não acredito mais em nada disso. Vão, você e o pastor,
enganar os trouxas da congregação, porque, a mim, não
me convencem mais. Nem ao meu filho!
— Não se atreva a afastar o menino do caminho de Jesus.
— Nunca mais vamos pisar naquela igreja. Nem naquela,
nem em nenhuma outra.

— Vou tentar não levar em consideração as suas palavras,
porque sei que você está sofrendo e está fora de si. Mas
advirto-a, Clementina, modere o que diz, ou Deus irá castigá-la.
— Mais do que já me castigou? Quando levou embora
o meu Romualdo, já me infligiu todas as penas que Ele podia
inventar.
— Não blasfeme!
— Estou apenas dizendo o que sinto e, se você quiser
chamar de blasfêmia, o problema é seu. Não me importo
mais com nada que tenha relação com a igreja.
— Mãe — intercedeu Marcos —, pelo amor de Deus,
tenha cuidado. O pastor disse que a blasfêmia...
— Não quero mais saber o que o pastor disse! — esbravejou,
colérica. — Nunca mais vou dar ouvidos a pastor
nenhum. E você, de hoje em diante, está proibido de voltar
àquela igreja!
— Você não tem o direito de condenar a alma do menino
— censurou Leontina. — Condene a sua, mas Marcos
Wellington é um bom cristão e traz a Bíblia no coração. Não
o atire no abismo do inferno junto às suas blasfêmias.
— Quer saber de uma coisa, Leontina? — replicou ela,
já impaciente. — Vá você para o abismo do inferno. Quanto a
mim, já convivi demais com as proibições do pastor. Tudo é
feio, é pecado. Mas abandonar a mulher não é pecado, não?
— Não vou admitir que você fale comigo desse jeito!
— Esta casa é minha, falo do jeito que eu quiser. E, se
não está satisfeita, ponha-se daqui para fora!
— Mamãe! — espantou-se Marcos.
— Deixe, Marcos Wellington — falou Leontina. — É
melhor mesmo eu ir embora. Sua mãe agora está revelando
a boa bisca que é. Eu devia saber. Ela sempre teve uma tendência
à libertinagem e à vida mundana. A igreja era o que
a segurava. Agora ela não tem mais motivo para fingir, não
precisa mais se disfarçar de boa cristã. Você nunca foi uma
mulher religiosa, Clementina. Só ia à igreja para obter algo

em troca. Mas agora não precisa mais, não é mesmo? Não
foi à toa que seu marido a deixou.

— Saia daqui! — gritou Clementina, apontando a porta
da rua.
— Mãe, não faça isso — implorou Marcos, em lágrimas.
— Não se meta nisso, Marcos Wellington! — protestou
a mãe. — Isso é entre mim e sua tia. — E, virando-se
para a outra, explodiu: — O que está esperando? Saia daqui,
vamos!
— Ainda vai se arrepender por isso — rugiu a irmã,
entre os dentes.
Leontina saiu batendo a porta, e Clementina apagou o
fogo, que já escurecia o fundo da panela, exalando um
odor forte de queimado.

— Idiota! — gritou. — Ainda me fez queimar o jantar.
Como Marcos chorava, Clementina largou tudo e correu
para ele, tomando-o nos braços.

— Não chore, meu filho. Tudo vai ficar bem.
— Mas, mãe, você enxotou a titia. Agora mesmo é que
estamos sozinhos.
— Temos um ao outro.
— E a igreja? E o pastor? O que será de nossas almas?
Ela o olhou de frente e enxugou os seus olhos.
— Olhe, meu bem, não quero mais que você se aproxime
daquela igreja. Tudo o que disseram lá é mentira. E
o pastor é o maior mentiroso de todos. Ele só vai ficar enchendo
a sua cabeça com essas bobagens sobre Deus e o
diabo, céu e inferno, virtude e pecado. Se Deus existe, não
está preocupado com a gente.
— Você não acredita no que ele diz? — Clementina
meneou a cabeça. — Mas você sempre acreditou!
— Isso foi antes de seu pai sair de casa. Agora pense
comigo. Se Deus existisse, teria nos punido dessa forma, a
mim, que sempre fui à igreja todos os domingos e sempre

recitei as orações, e a você, que é apenas uma criança e não
merece sofrer?

— Não sei...
— Pois eu sei e estou lhe dizendo. Tudo o que o pastor
fala são mentiras. Ele só quer nos enganar para mandar em
todo mundo e pegar o nosso dinheiro.
— Mas ele pega tão pouco! Ele sempre disse que quem
não tem não precisa dar. E ainda distribui para os pobres.
— Tudo enganação. Do dele mesmo, ele não tira. Vive
numa mansão luxuosa, com carro do ano e servido por várias
empregadas. Isso lá é caridade?
Marcos silenciou. Estava confuso, não compreendia.
Sempre vira o pastor às voltas com obras sociais, ajudando a
população carente, e não raras eram as vezes em que tirara
de seu próprio bolso para socorrer alguma família mais necessitada.
Que soubesse, ele morava numa casa simples de vila,
tinha um carro velho e uma única empregada que já acompanhava
a família havia anos. A mãe, agora, dizia que era tudo
fingimento. Ele não conseguia entender. Seria mesmo?

Não tendo argumentos para opor, Marcos ficou com a
verdade da mãe. A partir daquele dia, nunca mais foi à igreja,
nem quando o pastor foi à sua casa para tentar convencer
Clementina, que nem sequer o recebeu. Olhando pelo
buraco da fechadura, viu que era ele e não abriu a porta.
Já estava farta das ameaças do inferno, não precisava de
nenhum pastor fanático para lhe dizer o que fazer. Dali em
diante, cuidaria da sua vida como quisesse, faria tudo o que
tinha vontade e não fizera antes por medo do pastor, que
era só um homem e não tinha o poder de mandar ninguém
para o inferno.

Nem que Deus a condenasse pessoalmente, ainda assim,
jamais voltaria a pisar numa igreja.


CAPÍTULO

9

Marcos subia o morro devagar, levando duas sacolas
de supermercado carregadas de compras. Até que o dia fora
proveitoso. Dado seu carisma especial, que sensibilizava as
pessoas, conseguir esmolas não era nenhum problema.

Todas as manhãs, Marcos vestia uma roupa puída, calçava
chinelos gastos e descia a rua para pedir dinheiro nas
portas das lojas da Praça Saens Pena. Como era época do
Natal, a onda de solidariedade favorecia a compaixão, despertando
o desejo de ajudar crianças carentes.

Depois que juntava o suficiente, Marcos subia o morro,
tomava banho, trocava de roupa e descia novamente para
fazer compras no mercado. Quando estava sóbria, a mãe
cozinhava. Quando não, era o próprio menino quem fazia
as refeições. Na maioria das vezes, Clementina estava tão
bêbada que não conseguia sequer encontrar o caminho de
casa, obrigando Marcos a ir buscá-la no boteco.

Marcos subia o morro com as compras, satisfeito porque
o dinheiro fora suficiente para um pedaço de carne e
dois potes de geleia de mocotó. Com isso, ganhara ainda
dois copos para substituir os que a mãe havia quebrado
em seu último acesso de bebedeira.

— E aí, Zé das Ovelhas? — gracejou Jéferson, que se
juntou a Marcos na subida do morro. — Quer ajuda?

— Pode deixar — respondeu o menino, apertando as
sacolas. — Não está pesado.
— Dia duro, hein?
— Nem tanto. Até que consegui uns bons trocados.
— Não sei por que você se contenta com migalhas
quando poderia ter um banquete. Sabe que, lá em casa,
todo dia comemos bife com batatas fritas?
Marcos sentiu a boca salivar e respondeu de olhos baixos:

— Não precisamos disso, obrigado. Tenho conseguido
me virar e não nos falta comida.
— Se você quer chamar essa lavagem que você faz
de comida, tudo bem.
— Não fale assim, Jéferson. Temos que dar graças
pelo que comemos.
— Não acredito que você ainda está preso nesse negócio
de rezas! Todo mundo sabe que sua mãe virou as
costas para a igreja.
— Você não me chama ainda de Zé das Ovelhas?
— É o costume.
— Pois é... a mesma coisa eu. Ainda tenho o costume
de orar e agradecer.
— Você é muito bobo mesmo. O Mandrake cansa de
dizer que tem um lugar especial para você. Você e sua mãe
não passariam mais necessidade.
— Agradeça ao Mandrake por mim, mas não estou interessado.
Posso cuidar de mim e da minha mãe sozinho.
— Orgulho de pobre é fogo!
— Não é orgulho. Agradeço o que ele está tentando
fazer. Sério. Só que não dou para o negócio.
— Bobagem. É só levar uns pacotinhos para lá e para
cá. E você é de menor. Se a polícia te pegar, não pode te
prender. É por isso que o Mandrake gosta de nós.
— Mesmo assim, não, obrigado.
Com ar distraído, Jéferson sacou um Game Boy do bolso,
abriu-o e começou a jogar, despertando imensa curiosidade


em Marcos. O barulhinho eletrônico que emergia do aparelho
fascinou Marcos a tal ponto, que não resistiu e perguntou
curioso:

— O que é isso?
— Meu Game Boy. Quer ver?
Marcos parou, colocando as sacolas no chão, e
Jéferson passou-lhe às mãos o joguinho. Ele ficou fascinado
com o bonequinho correndo numa tela colorida de cristal
líquido. Nunca antes havia visto coisa mais maravilhosa.

— Puxa, Jéferson, onde você conseguiu isso?
— Presente do Mandrake.
Rapidamente, Marcos aprendeu a mexer nos botões
e controlar o boneco. Permaneceu algum tempo jogando,
maravilhado com a novidade.

— É realmente demais!
Jéferson sorriu intimamente e continuou a tentá-lo:
— Amanhã nós vamos ver Matrix no cinema. Você
quer vir?
— Não posso — falou ele, devolvendo o jogo a
Jéferson. — Não posso me dar ao luxo de gastar dinheiro
para ir ao cinema.
O outro deu de ombros e não disse nada. Nem precisou,
porque Marcos sabia quem iria pagar as entradas.

— Tem certeza? — insistiu o garoto.
— Tenho. Mas obrigado mesmo assim.
— Tudo bem. Você é quem sabe.
Jéferson fez um aceno com a mão e desatou a correr
morro acima, enquanto Marcos recolhia as sacolas para seguir
seu caminho. Quando entrou em casa, a mãe não estava,
e ele soltou um gemido de desânimo. Ajeitou as compras
na pequenina geladeira, dobrou as sacolas e guardou-as na
caixa atrás do fogão, junto com as demais, para servirem de
saco de lixo. Em seguida, tornou a sair.

O bar do Zeca, ao pé do morro, era o lugar que
Clementina costumava frequentar, e foi para lá que ele se


dirigiu. Como não era muito longe, chegou rápido, logo
avistou-a na companhia de um malandro das redondezas.
Marcos perguntou-se como não a havia visto quando subira,
sem saber que ela, entrevendo-o de longe, tratara de se esconder
mais ao fundo. Ele se aproximou e cumprimentou os
frequentadores. A mãe estava sentada ao lado do tal sujeito,
gargalhando entre um gole e outro de pinga. Marcos foi até
sua mesa e bateu em seu ombro.

— Marcos Wellington! — exclamou, a voz dissimulada.
— Que surpresa, filhinho! O que está fazendo aqui?
— Vim buscar você. Vamos para casa.
— Agora não. Pode ir, que eu vou depois.
— Por favor, mãe, vamos embora. Trouxe comida para
o jantar.
— Ah! Meu filho, hoje não estou com vontade de cozinhar.
Por que não vai jantar lá na sua tia?
Desde que pusera a irmã para fora, as duas nunca
mais se haviam falado, embora Marcos continuasse a manter
contato com a tia e a visitasse regularmente. Clementina
fingia que não sabia dessas visitas. Do contrário, o orgulho
falaria mais alto, levando-a a ralhar com o filho e proibi-lo
de visitar a irmã. Mas ela sabia que Leontina costumava dar
comida a Marcos sempre que o via com fome.

— Não dá, mãe — contestou ele. — Tia Leontina mal
ganha para ela. Não é justo tirar o pouco que ela tem. Vamos,
eu mesmo faço o jantar.
— Dá o fora, moleque — interrompeu o homem, empurrando-
o com uma das mãos. — Já não ouviu sua mãe
dizer que não está a fim de ir?
Aquilo irritou Clementina, que revidou zangada:

— Ei! Nada de empurrar o meu filho — ela se levantou
ruidosamente, entornou o resto do copo de bebida na boca
e disse para o menino: — Pague a conta e vamos embora.
Não tinha jeito. Sempre que Clementina bebia, era ele
quem pagava a conta, com o dinheiro que arrecadava na


rua. Sabendo disso, reservava uma parte para quitar as dívidas
dela com a bebida. A tia lhe dissera para não pagar,
pois só assim o dono deixaria de vender-lhe fiado, e ela teria
que parar com a bebida. Contudo, na única vez em que ele
fizera isso, Clementina se aborrecera e sumira de casa por
toda a noite, quase o matando de preocupação. Voltou no
dia seguinte com um sorriso no rosto e passou uma semana
bebendo, sem lhe pedir nada, levando-o a crer que ela havia
se deitado com algum homem para conseguir o dinheiro.

Marcos acertou a conta e foi embora carregando
a mãe. Enlaçou-a pela cintura e conduziu-a morro acima.
Com a noite, uma lua branca e redonda deitava uma iluminação
natural pelas curvas do caminho. Enquanto subiam,
Leontina vinha descendo na direção oposta, e Clementina
virou o rosto, fingindo que não a vira. Marcos, porém, a cumprimentou,
e ela respondeu com um aceno de cabeça.

— Você devia fazer as pazes com a tia — comentou
ele. — Ela é sua irmã e sua amiga.
— Irmã, pode ser, porque não tem jeito. Mas amiga,
duvido muito.
— Ela gosta de você.
— Ela gosta é de me recriminar. Só porque é virgem
pensa que é muito boa. Aquela solteirona mal-amada... Se
arranjasse um homem para quem dar, não seria tão amarga.
Marcos engoliu a grosseria. Em casa, Clementina foi
logo se atirando na cama, enquanto ele ia para a cozinha
preparar o jantar. As dificuldades empurraram Marcos para
a vida. Desde cedo, teve que aprender a se virar e a cuidar
da mãe sozinho. A tia o ajudou, ensinando-o a cozinhar, às
escondidas de Clementina.

Marcos cortou a carne em bifes, esquentou o arroz e

o feijão de véspera, cozinhou alguns legumes, colocou tudo
na mesa. Chamou a mãe, que se sentou ao lado dele, e fez
uma oração em silêncio, procurando ignorar o ar de irritação
que ela fazia. Clementina não gostava que ele rezasse.

Enquanto comiam, Clementina ia repensando sua
vida. Não era certo fazer o que fazia com o filho. Marcos
Wellington, um menino ainda, assumira, sozinho, toda a responsabilidade
da casa. Ela ficara de arranjar um emprego,
mas as constantes bebedeiras não permitiam. Quem contrataria
uma empregada bêbada? Por isso, ele fora obrigado a
se virar nas ruas, arrumando dinheiro sabe-se lá como. No
princípio, ela o interrogou, mas depois achou melhor se calar.
Marcos afirmara que o dinheiro era dado e jamais furtara
um níquel sequer. Que importância tinha isso agora?

Tudo porque Romualdo os abandonara e sumira no
mundo. Dele, nunca mais tivera notícias. Ela o havia procurado
no sobrado da rua dos Inválidos, mas ninguém sabia dele
ou de Sheila. Se era verdade ou não, não tinha como apurar.

— Devo estar pagando pelos meus pecados — afirmou
ela de repente, fitando o vazio.
— Por que está dizendo isso?
— Você sabia que seu pai teve uma mulher antes de
me conhecer?
— Não diga!
— Foi o que ele disse. Estava namorando uma fulana,
não sei quem era. Ele disse que não era nada importante, terminou
com ela para ficar comigo. Pouco depois, nos casamos.
— Como foi que vocês se conheceram?
— Vi-o na igreja certa vez, quando fui buscar sua tia
para irmos juntas ao médico. Fiquei impressionada, acho
que foi amor à primeira vista. Desde aquele dia, passei a
acompanhá-la aos cultos. Lembro-me de como Leontina ficou
feliz. Mal sabia que o meu interesse era outro.
— Você só foi à igreja por causa de meu pai?
— horrorizou-se.
— O que é que tem? Estava interessada nele, e ele, em
mim. Em pouco tempo, começamos a namorar e nos casamos.
— Mas você continuou a frequentar a igreja depois disso.

— Foi uma promessa. Se Deus me desse aquele homem,
prometi que me tornaria uma fiel.
— E papai? Por que deixou de ir?
— Seu pai nunca foi um homem religioso. Ele costumava
brincar, afirmando que só fora parar naquela igreja para
me conhecer. Mas eu desconfio que ele tinha uma amante
lá. Peguei-o várias vezes de conversa com uma dona toda
espevitada, casada com um velhote.
— Se era assim, você fez um bem a ele. Afastou-o do
pecado do adultério.
— Não é que é verdade? O cretino... ainda me devia
esse favor.
— E tia Leontina? O que achou disso tudo?
— Nada. Quando lhe demos a notícia, limitou-se a assentir.
Mal o conhecia e nada sabia sobre a vida dele, muito
menos da tal mulher. Se soubesse, teria me recriminado até
a morte.
— Por que será que ela nunca se casou?
— Sua tia sempre foi uma mulher sem graça.
— Até que ela não é feia...
— Mas sempre foi muito chata. Tudo para ela é pecado,
principalmente o sexo. Dizia que só aceitaria que um
homem lhe tocasse para a procriação. Qual é o homem que
aceita isso?
Ele abaixou os olhos, envergonhado com aquela conversa,
e tornou sério:

— Não sei.
No dia seguinte, Marcos saiu cedo para aproveitar bem
o dia. Queria juntar dinheiro para comprar presentes de Natal
para a mãe e a tia. Se sobrasse algum, talvez conseguisse um
jogo igual ao do Jéferson. Será que era muito caro?
Quando Clementina acordou, o filho já não estava
mais em casa, como sempre. Ela se sentou, lembrando da
conversa da noite anterior, e um remorso atroz a corroeu por
dentro. Não era certo tirar o filho da escola para mendigar,


botar comida dentro de casa e ainda pagar a conta do bar.
Era ela que devia trabalhar para sustentá-lo.

Levantou-se e tomou um banho frio para espantar o
calor. Bebeu um gole do café que o filho deixara pronto em
cima do fogão, mastigou um pedaço de pão duro e foi debruçar-
se na janela. O dia estava muito quente, de forma
que ela voltou para dentro, fugindo do sol da manhã. Abriu a
geladeira e, de um gole, bebeu uma garrafa de água. Como
a sede não passou, resolveu dar um pulinho até o bar.

Ao chegar, uma surpresa desagradável. O dono do bar
havia enfartado, a birosca estava fechada. Desapontada,
Clementina voltou para casa. Ao mesmo tempo em que
maldizia o homem, sentia um certo alívio por se ver obrigada
a ficar sem beber.

Em casa, sentou-se para ver televisão. Como o aparelho
estava muito velho, a antena não captava nada direito.
Clementina deu vários socos na TV, a imagem foi-se distorcendo
aos poucos, até que ela conseguiu identificar alguma
coisa na tela cheia de chuviscos. Sentou-se com um copo de
água gelada, que foi passando na testa para resfriar o suor.

Estava passando um programa de desenho animado.
Clementina tentou focar nele a atenção, mas a imagem durou
pouco tempo no ar. A antena saiu de posição, deixando
na tela apenas listras horizontais. Irritada, Clementina
socou o aparelho tantas vezes que ele deu um estalido e
apagou, enchendo-a de raiva.

Precisava urgentemente de uma bebida, mas como?
O bar do Zeca estava fechado, era o único lugar em que
podia comprar fiado. Após alguns minutos, pôs-se a revirar
a casa em busca de dinheiro. Não demorou muito e achou
uns trocados na gaveta de Marcos. "Ótimo", pensou. Daria
para uma garrafa inteira de pinga.

O boteco mais próximo era um lugar familiar, temido
por Clementina. Fora dali que a mãe de Marcos Wellington
fugira em desabalada carreira para a morte. Leontina lhe


contara tudo. Ela ia passar adiante, contudo, a sede era
maior. O vício incontrolável deixava sua boca amarga implorando
pela bebida. Hesitou ainda alguns instantes, mas
logo se resolveu. Não faria mal nenhum beber no mesmo
lugar em que a verdadeira mãe de seu filho buscara a morte.
Muitos anos haviam-se passado desde aquele episódio,
ninguém mais pensava no assunto. Era um medo tolo achar
que algo poderia acontecer só por estar naquele bar. Com
esse pensamento, deu dois passos adiante e entrou.


CAPÍTULO

10

Nos onze anos que vivera ao lado de Félix e Laureano,
Margarete continuava dando trabalho, insistindo para rever

o filho. Todavia, por mais que se esforçasse, não conseguia
se lembrar do local exato em que o abandonara. Sabia que
fora numa lata de lixo em algum bairro do Rio de Janeiro,
mas onde? Não se recordava.
Ir ao encontro do menino seria um desastre para todos.
Por isso, nem Laureano nem Félix estimulavam a recuperação
da memória de Margarete. Sem conseguir encontrar o filho, ela
perambulava a esmo pelas ruas, de bar em bar, sugando as
energias de ébrios descuidados. Félix a acompanhava de perto,
levando-a tão logo entidades trevosas se aproximassem de
seu corpo fluídico, debilitado pela essência da bebida.

Nessas ocasiões, Margarete não oferecia resistência, devido
à fraqueza energética que sentia sempre que empregava
forças na absorção do álcool. Era Félix que a mantinha a salvo
de espíritos aproveitadores, impedindo que ela fosse levada
para regiões mais profundas do astral inferior, já que Margarete
sintonizava muito facilmente com energias dessa vibração.

Num dia em particular, Margarete despertou irrequieta.
Félix havia saído, provavelmente ao encontro de Laureano.
Havendo dominado o processo de locomoção apenas pelo
pensamento, ela logo se viu no bar de costume, quase vazio


àquela hora do dia. Sentou-se a uma mesa para aguardar o
primeiro cliente e grudar-se a ele, deixando a mente divagar
enquanto esperava.

Subitamente, sentiu como se um choque elétrico reverberasse
em seu cérebro, uma luz ofuscante doeu em sua vista.
Bem próximo a ela, uma forma-pensamento vaga e errante tentava
descarregar-se em seu corpo fluídico. Isso não demorou
muito a acontecer. Na mesma hora, o medo tomou conta de
Margarete, que logo se lembrou do passado, e o local exato
em que abandonara o bebê se delineou em sua mente, bem
como o bar onde, por último, estivera quando encarnada.

A transferência foi imediata. Em frações de segundos,
Margarete estava ao lado de Clementina, lendo-lhe os pensamentos
confusos. A princípio, tentou imaginar o que estaria
fazendo ali e quem seria aquela pessoa desconhecida. A
mente dela era um torvelinho de imagens e palavras desconexas,
de forma que Margarete teve alguma dificuldade em
estabelecer sua identidade.

Os pensamentos de Clementina continuavam ligados
na foto de jornal que exibia o rosto sem vida da mãe biológica
de Marcos Wellington. Acompanhando a mente de
Clementina, várias formas-pensamento foram-se delineando
diante de seus olhos, facilitando o trabalho de Margarete.
A cada recordação do passado, Margarete se sobressaltava,
estupefata ante a fantástica coincidência.

Clementina pediu uma bebida, depois outra, e já havia
quase esvaziado a garrafa de cachaça quando o dinheiro
acabou. O dono do bar ainda era o mesmo português de outrora,
que, em vista dos acontecimentos que haviam culminado
com o atropelamento de Margarete, mudou de atitude
e disse com uma voz mais amistosa:

— Olhe aqui, moça, lamento, mas não posso vender
fiado.
— Por favor — implorou ela. — Só mais um trago. Prometo
que, quando meu filho chegar, venho aqui lhe pagar.

O português olhou para ela desanimado e coçou o queixo.

— Está bem. Mas é só mais uma, hein?
Serviu-a de outra dose, que ela sorveu juntamente com
Margarete. Satisfeita, Clementina ganhou a rua, o espírito
atrás. Margarete estava abismada. Como é que, após anos
de busca, viera parar justo ao lado da mulher que lhe roubara

o filho? Embora conhecesse o poder do pensamento e das
formas que ele produzia, mal podia crer no que estava acontecendo.
Não entendia por que aquela mulher, que permanecera
tanto tempo muda em suas lembranças, resolvera justo
agora recordar o ocorrido. E fora muita sorte ela estar sem
Félix grudado nela, ou não conseguiria se aproximar.
— Cadê o meu filho? — perguntou, entre irada e ansiosa.
Para sua surpresa, Clementina respondeu em voz alta:
— Ele deve estar na rua, pedindo dinheiro.
— Na rua? Você o jogou na rua?
— Não fui eu. Foi a vida.
— Que vida, que nada! Você é uma bêbada. Aposto
como o põe para arranjar dinheiro para você beber.
Clementina deu um riso malicioso e tornou em tom mordaz:

— Você é a mãe dele, por acaso?
— Sou. Por quê?
Clementina ergueu o dedo e fez sinal de que não,
acrescentando com ironia:

— Tsk, tsk, tsk... Engano seu, querida. A mãe dele sou eu.
Os transeuntes que avistavam Clementina não viam
Margarete. Julgando-a louca por falar sozinha, afastavam-
se apressados, alguns até mudando de calçada.

— Olhe, dona, não estou aqui para brincadeiras —
prosseguiu Margarete, cada vez mais aborrecida. — Cadê

o meu filho?
— Seu filho, não. Meu filho.
— Tá, tudo bem, seu filho — concordou, impaciente.
— Mas onde é que ele está?

Clementina não raciocinava direito, tamanha a carga
de bebida misturada em seu sangue. Tinha consciência de
que a desconhecida era a verdadeira mãe de Marcos, mas
nem se lembrava direito de que ela havia morrido. Sua mente
confusa apenas aceitava a presença da outra, sem maiores
questionamentos.

— Você o atirou no lixo! — gritou, apontando uma lata
de lixo imaginária do outro lado da rua. — Não tem direito...
não tem...
Uma mulher, segurando duas crianças pela mão, parou
estarrecida, protegendo-as com o corpo, e atravessou a
rua quase aos tropeções.

— O que aquela mulher está fazendo, mamãe? — perguntou
a garotinha. — Por que está falando sozinha?
— É maluca, minha filha. Bêbada e louca. Que horror!
Clementina sentiu a energia vibrada com o comentário
da mulher e falou aos berros:

— Louca é você, sua filha da...!
Margarete não aguentou e desatou a rir.
— Nossa, em que água você está! — desdenhou.
— Eu não! Você é que está bêbada, sua...
Clementina tombou para trás e se estatelou no chão.
— Ah, não! Não vai desmaiar agora, não. Não antes
de me mostrar o meu filho!
Nessa hora, Marcos se aproximou correndo. Alertado
por Jéferson, que presenciara a conversa de Clementina
com o invisível, largou o ponto de esmolas, enfiou o dinheiro
no bolso e correu desabalado pela rua. Encontrou a mãe
caída na rua e tentou erguê-la, chamando assustado:

— Mãe! Mãe!
Clementina não respondia. Com o dinheiro que pegara
de Marcos, ingerira duas garrafas de cachaça e agora sentia

o resultado do excesso. Ninguém se aproximou para ajudar,
apenas o português do bar, uma alma atormentada pela culpa
que sentia pelo atropelamento de Margarete.

— O que houve, menino?
— Minha mãe desmaiou — falou ele aos prantos.
— Ela vai morrer!
Margarete assistia, fascinada. Como seu filho era bonito!
Estava magrinho e maltrapilho, mas, ainda assim, era
um belo garoto.

— Fique calmo, que vou chamar uma ambulância —
disse o homem.

O amor de Marcos por Clementina impressionou
Margarete, que os fitava paralisada, sem conseguir se
aproximar. Uma luz rósea se desprendia do coração dele e
envolvia todo o corpo de Clementina, fato que muito emocionou
Margarete.

— Será que ele teria sentido o mesmo por mim? —
perguntou a si mesma, tocada pela sensibilidade que se espargia
no ar.

Antes que a ambulância chegasse, Clementina recuperou
os sentidos. Estava mais grogue do que nunca, no entanto,
desanuviou-se o medo de Marcos de que ela estivesse
em coma.

— Mãe — chamou ele. — Você está bem?
Ela tentou enquadrá-lo em sua visão, mas tudo parecia
rodar.
— Levante-se daí, sua tonta — ordenou Margarete. —
Você não está em coma. Só bebeu demais.

— Como é que você sabe?
— O quê, mãe? — respondeu Marcos, pensando que
ela falava com ele.
— Já vi muitos em coma alcoólico e sei que você não
está — foi a resposta de Margarete.
Clementina olhou para Marcos e só então percebeu
que ele não via a mulher.

— Ela está aqui — cochichou baixinho.
— Quem?
— Ninguém.

Por pouco ela não lhe revelou a verdade. O menino,
por sua vez, julgando tratar-se de alguma alucinação causada
pelo álcool, não lhe deu importância.

— Consegue se levantar? — prosseguiu ele.
— Se você me ajudar...
Marcos ajudou-a a erguer-se e amparou-a de volta ao
morro, sem dar importância aos apelos do português, que
pedia que ela aguardasse a ambulância. Margarete não desgrudava
deles um minuto. Louca de curiosidade para saber
mais sobre a vida do filho, seguiu com eles.


Nesse ínterim, Félix adentrava o consultório de
Laureano, a quem fora procurar para pedir conselhos. O
psiquiatra o recebeu amigavelmente, mas não fez rodeios
antes de colocá-lo a par do ocorrido:

— Lamento informar que as notícias não são boas.
Margarete encontrou o filho.
— Como?
— A mãe adotiva do menino, também viciada na bebida,
sem querer criou uma forma-pensamento que a desvendou
diante de Margarete.
— Meu Deus do céu! Tentamos tanto evitar esse momento...
E agora?
— Se Margarete o encontrou, foi porque assim foi permitido.
Nada acontece sem que seja do conhecimento e da
vontade de Deus.
— Sim, mas o que isso significa?
— Significa que está se aproximando a hora de a verdade
se desvendar.
Félix o olhou com espanto.

— Sempre pensei que a verdade jamais devesse
ser revelada.

— A verdade sempre é revelada. O que se precisa é
esperar o momento certo.
— O momento é agora?
— Parece que sim.
— E é Margarete quem vai fazer isso? — duvidou. —
Será que ela está em condições?

— É por isso que você deve ir buscá-la. Ela precisa se
preparar para o que está por vir.
— Será que ela vai querer voltar comigo?
— Agora que Margarete encontrou o filho, vai ser mais
difícil trazê-la de volta. Ela vai montar guarda no ambiente
astral da casa dele.
— O que faço então?
— Vá. Mas não se esqueça de conservar o pensamento
ligado à divindade e procure se manter em equilíbrio.
Nada de pressa nem constrangimento. Faça tudo com amor,
tente convencê-la com palavras carinhosas, incentivadoras.
— Vou tentar. Mesmo que demore ou dê trabalho, vou
trazê-la de volta.
— Muito bem — antes que ele saísse, Laureano acrescentou:
— O menino agora se chama Marcos. É bom você saber.
Félix se transportou para a casa de Clementina, onde
logo se adaptou ao ambiente. A mulher encarnada estava
jogada sobre a cama, e ele não pôde conter a emoção ao
constatar o devotamento de Marcos a ela. Sentada no chão,
de pernas cruzadas, Margarete olhava embevecida para o
menino. Viu quando ele se aproximou e franziu o cenho:

— Veio me ajudar ou recriminar?
— Nem uma coisa, nem outra. Vim ver como você está.
— Estou bem, obrigada.
— Aqui não é o seu lugar.
— Muito menos o seu.
— Então, por que não partimos juntos?
— Acho que me expressei mal. Aqui não é o seu lugar.
O meu é junto do meu filho.

— Passaram-se onze anos. Ele nem sabe que você existe.
— E daí? Eu sei da existência dele, e isso é o que importa.
— O que pretende fazer? Ficar por aqui, obsediando-o?
Ela o olhou com mágoa e retrucou de má vontade:
— Não sou um espírito obsessor e não gosto que me
chamem assim.
— Mas é o que vai parecer se ficar aqui grudada neles.
Marcos e a mãe estão encarnados, você só vai atrapalhar.
— Ela me vê, sabia? — desconversou, apontando
para Clementina.
— A mente dela está tomada pela droga, que, consequentemente,
a coloca em contato com esferas menos
densas. Por isso pode ver e falar com você e comigo.
— Ótimo. Podemos fazer uma reuniãozinha e decidir
o que fazer.
— Diga-me você, Margarete. O que pretende ficando
ao lado deles?
— Quero estar com meu filho.
— Para quê?
— Para nada. Quero apenas acompanhar o crescimento
dele.
— Você não está preparada para isso. Mas pode se
preparar, se quiser.
— Que história é essa agora?
— Se vier comigo, conto-lhe tudo.
— Não quero. Lá, não posso beber.
Um movimento brando silenciou Margarete, que se levantou
de um salto e sumiu pela parede. Espantado, Félix
demonstrou a intenção de segui-la, mas se deteve, preso
a um súbito bem-estar. Olhou ao redor, buscando a fonte
daquela sensação tão boa que desgostara Margarete. Foi
então que notou uma luminosidade suave e refrescante se
espalhando pelo barraco. Marcos estava rezando.


CAPÍTULO


11


Félix não obteve sucesso em seu intento de afastar
Margarete do convívio de Clementina e Marcos. Ela se decidiu
a ficar, embora cuidasse para que o filho não lhe seguisse
os passos. Marcos não tinha tendência ao alcoolismo,
todavia, deixava-se levar pelo sonho de uma vida melhor, e
as tentações que Jéferson lhe oferecia, por vezes, eram quase
irresistíveis. Ele lhe mostrava as maravilhas que comprava
ou ganhava fazendo avião para Mandrake: tênis importados,
aparelhos de televisão e de som, jogos eletrônicos e até um
skate, para espanto de Marcos, que não sabia como se poderia
andar de skate no morro.

— Não se deixe enganar por isso, meu filho — dizia
Margarete. — Olhe as lições do pastor!
Margarete nunca fora religiosa, mas os sermões que
Marcos guardava impressos na mente serviam a seus propósitos.
O menino temia desrespeitar as leis divinas e ser
condenado ao inferno. Essa era a arma poderosa que mantinha
Marcos longe das drogas e do caminho do crime. E,
quando a tentação parecia muito grande, ou mesmo irresistível,
Leontina sempre aparecia, silenciosamente estimulada
por Margarete, impedindo que o sobrinho cedesse.

Mas a persistência também tem seus momentos de fraqueza.
Marcos voltava para casa desanimado, preocupado


com a mãe, que deixara na cama num estado lastimável,
pior do que nos outros dias. Vinha com uma sacolinha de
plástico quase vazia. Estava ficando difícil conseguir dinheiro
nas ruas. Ele estava crescendo, suas feições perdiam o
ar infantil, deixando de comover os transeuntes, la subindo

o morro lentamente, até que Jéferson se juntou a ele:
— E aí, Zé das Ovelhas? Tudo bem?
— Gostaria que parasse de me chamar assim — reclamou
Marcos. — Faz tempo que não vou à igreja e também
não sou pastor.
Jéferson riu de um jeito cínico e indagou:

— O que tem nessa sacola?
— Nada — Marcos deu de ombros, falando com timidez.
— Só consegui comprar uns legumes hoje.
— Que legumes?
— Na verdade, comprei nabo e chuchu.
— Nabo e chuchu? Só isso?
— Foi só o que deu — rebateu Marcos, com raiva.
— Está bem, não precisa se zangar. É que me preocupo
com você. Não quero que passe fome.
— Eu dou um jeito.
— Se quiser, posso falar com o Mandrake.
Lá vinha Jéferson com aquela história de Mandrake.
Marcos não aguentava mais aquela pressão. Sabia que
Jéferson só o procurava a mando do traficante, que se utilizava
de crianças para não ser, ele mesmo, flagrado na posse
de drogas.

Ao lado deles, o espírito de Margarete ouvia a conversa,
contrariada, sem poder intervir. Na porta da casa de
Marcos, sentou-se no degrau da entrada. Clementina dormia,
como sempre fazia quando não estava bebendo.

— Olhe, Jéferson, é outra coisa que quero deixar claro
para você — disse Marcos, irritado. — Eu não vou trabalhar
para o Mandrake. Então, por favor, pare de insistir.
— Tem certeza? Podia ter uma vida melhor.

— Que vida melhor você tem? Ele lhe dá coisas que,
muito provavelmente, foram roubadas por ele ou pelos viciados
que sobem o morro atrás da coca. O dinheiro com que
lhe paga é fruto do crime. Você não estuda, logo, não tem
perspectivas para o futuro. Fica por aí, vagabundeando, levando
maconha e cocaína para lá e para cá, se arriscando a
ser preso ou levar um tiro, e tudo isso para quê? Para se
tornar um marginalzinho insignificante que, se morrer, não
vai fazer falta para ninguém, a não ser para sua mãe. Essa é
a vida melhor que você me oferece? Não, obrigado.
— Você pensa que é melhor do que nós, não é mesmo?
— rebateu Jéferson, rilhando os dentes. — Fala difícil,
com ares de doutor. Só se for doutor dos mendigos, porque
é mais pobre do que eu. E daí que o Mandrake me dá coisas
que consegue com o crime? O importante não é viver bem?
— Tudo é questão de ponto de vista. Para mim, viver
no crime e do crime não é viver bem.
— E mendigar, é?
— Também não. Mas pelo menos não tenho o que temer.
Deus não vai me punir por pedir, em vez de roubar. E
tenho certeza de que, um dia, vou mudar de vida.
— Sem pai e com uma mãe bêbada, acho difícil.
— Deus há de me ajudar, você vai ver.
— Deus, Deus, você só fala em Deus. Deus não liga
para gente feito nós.
— Liga sim!
— Liga, é? Então por que estamos aqui no morro,
enquanto os riquinhos vivem em mansões no asfalto, com
seus carrões e piscinas, esbanjando dinheiro?
— Não sei responder a essa pergunta, mas Deus tem
um motivo para todas as coisas.
— Deus não tem motivos para nada e não quer saber
de nós! Se quisermos ter alguma coisa na vida, temos que
contar é conosco!

— Contar conosco é trabalhar honestamente e ganhar
o próprio dinheiro com o fruto desse trabalho. Não é roubar
nem vender drogas. Nem mendigar, que é o que faço só
por necessidade do momento. Mas eu vou crescer e, quando
for grande, vou arranjar um emprego decente e tirar minha
mãe e minha tia daqui.
— Quanta ilusão, Marcos! Você vive de sonhos, ao passo
que eu prefiro a realidade. Vamos ver quem é que tem razão.
Sem dizer mais nada, Jéferson deu as costas e continuou
subindo o morro a passos apressados. Marcos deu um
suspiro e sentou-se no batente da porta, sem saber, ao lado
de Margarete, que acompanhara a cena com lágrimas nos
olhos. Imperceptíveis, seus dedos afagaram a cabeça do menino,
que afundou o rosto entre as mãos e desatou a chorar.

Embora nem sempre conseguisse sondar os pensamentos
do filho, Margarete experimentou. Naquele momento,
sua mente se enchia de dúvida, medo e revolta. Ela
conseguiu acessá-la e, mentalmente, conversava com ele:

— Será que Jéferson tem razão? — Marcos indagava
a si mesmo. — Será que não é melhor jogar tudo para o alto
e fazer avião como ele faz?
— Não diga isso — Margarete respondeu mentalmente.
— Você só vai complicar a sua vida.
— Sei que talvez possa complicar a minha vida, mas
só se a polícia me apanhar. Sou esperto, posso fugir.
— Vai fugir a vida inteira? Está certo que vida de bandido
é curta, mas você quer gastar a sua fugindo da polícia,
com medo de ser preso ou morto?
— Pensando bem, viver fugindo deve ser muito ruim.
Mas e se eu fizesse só uns aviões para o Mandrake? Só uns
dois ou três? O suficiente para melhorar um pouco de vida
e depois sair fora.
— Não se deixe enganar, meu filho. Se você entrar
nessa vida, não vai mais conseguir sair. Veja o Jéferson, por
exemplo. Entrou e não sai mais. E já está viciado.

— Será que o Jéferson já se viciou? — ele continuou
indagando a si mesmo, sem saber que conversava com o
espírito da mãe. — Ele é tão novo...
— Tão novo e já com a vida estragada. Ele está viciado,
Mandrake o mantém preso ao vício para não perder o
empregado. E se há uma coisa que acaba com a vida da
gente é o vício. Veja sua mãe, por exemplo.
— Minha mãe é viciada. O vício é uma coisa horrível.
— Causa uma dependência que acompanha você até
depois da morte. Eu mesma ainda mantenho o antigo vício.
Mas quero mudar. Laureano está me ajudando a mudar,
muito embora tudo dependa de mim.
Nesse ponto, Marcos não acompanhou as divagações
de Margarete, pois desconhecia a existência da verdadeira
mãe e de seus problemas. Desfeito o elo, Marcos se levantou e
apanhou o saquinho quase vazio. Enxugou os olhos e entrou
em casa, com Margarete logo atrás. Clementina ressonava pesadamente,
o cheiro do álcool impregnava todo o barraco.

Pela segunda vez, fora obrigado a recolhê-la da rua,
onde ela havia desmaiado na noite anterior, enchendo-o de
terror. Ele ficara desesperado. Embora estivesse acostumado
aos sumiços da mãe, ela não costumava ficar fora a noite
inteira. Nas poucas vezes em que isso acontecia, ele se apavorava,
pensando no pior.

Logo de manhã cedo, disparou morro abaixo, procurando-
a pelas redondezas. Encontrou-a desmaiada na rua, a cabeça
pousada no meio-fio, um odor insuportável de álcool
e vômito. Com muito esforço, conseguiu levantá-la e levá-la
para casa. Ela o acompanhou aos tropeções, sem saber para
onde ia nem com quem, quase entrando em coma alcoólico.

Marcos balançou a cabeça, não queria pensar em coisas
ruins. Colocou água para ferver, deitou nela os legumes e sentou-
se na cadeira para esperar. Novamente, seus pensamentos
se voltaram para Jéferson, e Margarete os foi acompanhando:


— O Jéferson está muito bem. Anda de roupa na moda,
tem video game, aparelho de som e TV novos. Ganhou um tênis
de marca. Vai até ao cinema! E não passa fome. O principal
é que não passa fome. Aposto como na mesa dele tem
sempre uma comida gostosa — olhou para o fogo, aspirou o
cheiro sem graça dos legumes, retomando os devaneios: —
E tudo isso para quê? De que adianta tanto sacrifício, se não
vou receber nada em troca? Podia estar fazendo os aviões e
ter as coisas que Jéferson tem. Ninguém ia saber.
— Deus vai ver tudo. — Ele ouviu uma voz na sua cabeça,
sem saber que era Margarete, tentando dissuadi-lo
daquele ímpeto e impedir que ele fizesse uma besteira.
Um barulho de palmas desanuviou seus pensamentos.
Alguém estava à porta de casa. Marcos a abriu e levou
imenso susto quando viu Jéferson parado no degrau, segurando
duas sacolas de supermercado.

— O que é isso? — perguntou, entre curioso e indignado.
— Presente.
— De quem? Do Mandrake?
— Meu — Jéferson empurrou Marcos para o canto e
colocou a sacola na mesa. — Venha ver o que lhe trouxe.
Ele foi retirando maravilhas da sacola: um pedaço de
carne, arroz, feijão, batatas, tomates, cenouras, beterrabas,
frutas, alguns pacotes de biscoito, caixas de leite, manteiga,
uma goiabada, sal, açúcar, salsichas, macarrão e uma garrafa
de refrigerante. Marcos estava deslumbrado. Fazia tempo
que não via tanta comida.

— Não posso aceitar — protestou ele, embora sem
nenhuma convicção.
— Deixe de ser orgulhoso.
— Não é orgulho. É que não é direito...
— Olhe, se não quer aceitar como presente, receba
como empréstimo. Quando puder, você me paga tudo.
— Não sei...

— Deixe de ser tonto! Venha, vamos cozinhar um jantar
de verdade. Não quer bife com batatas fritas? Ou prefere aquela
sopa insossa? — Jéferson apontou para a panela no fogão.
Marcos sentiu a boca salivar ao imaginar um prato cheio
de batatas fritas. O apelo era muito forte, até Margarete concordava.
Pode ser difícil manter total integridade quando a barriga
reclama da fome. De nada adiantaria acordar Clementina,
porque ela mandaria que Marcos aceitasse os mantimentos.
O jeito era sair em busca de Leontina. Mas como, se as duas
continuavam brigadas? Resolveu tentar, mesmo assim.

Encontrou Leontina em casa, também cozinhando o
jantar. Em cima da mesa, um pedaço de bolo de chocolate
embrulhado em papel alumínio que a patroa lhe dera.
Enquanto cozinhava, pensava no que fazer com aquele bolo.
Não comia chocolate, por causa do açúcar, e não tinha ninguém
para quem dar. Não devia nem tê-lo trazido, mas não
quis desagradar a patroa. Afinal, era um pedaço que sobrara
do bolo de aniversário da filha dela.

— Leve-o para Marcos! — Margarete quase gritou ao
seu ouvido. — Pelo amor de Deus, leve para ele!
O desespero de Margarete confundiu a mente de
Leontina, que sentiu súbito mal-estar. Percebia a presença
do espírito, embora sem identificar o que fosse.

— Acho melhor orar — disse para si mesma.
— Ah! Não, agora não!
Leontina se ajoelhou no quarto e fez uma pequena
oração a Jesus. Imediatamente, uma luminosidade tranquilizante
penetrou o ambiente, atingindo em cheio o peito
de Margarete.

— Eu não vou fugir — falou ela em voz alta. — Dessa
vez vou ficar.
E ficou. Inesperadamente, Margarete se acalmou. Sem
querer, pegou-se embevecida com o súbito bem-estar, só
então percebeu como era bom estar ao alcance dos efeitos
da prece. Assim, envolvida por fluidos suaves, sentiu-se


encorajada a continuar a conversa com Leontina, espantando-
se com o fato de que a oração tornara tudo mais fácil.

— Leontina, seu sobrinho corre perigo — alertou ela,
com tranquilidade. — Leve o bolo para ele e ajude-o a se
livrar da tentação das facilidades que o crime oferece. Você
é a única que pode ajudá-lo.
Leontina titubeou, mas, ainda assim, não captou integralmente
o pensamento de Margarete. Ainda faltava sintonia
para igualar as vibrações das duas mulheres.

— Por favor, Leontina, antes que seja tarde — suplicou
Margarete. — Marcos está com fome e vai acabar aceitando
ajuda de Jéferson, comprometendo-se com o tal de Mandrake.
O amor pelo menino foi o elo que permitiu ligar a mente
de ambas. A imagem do sobrinho surgiu no pensamento de
Leontina, que olhou para o bolo, pensando em levá-lo para ele.

"Imagine", pensou. "Clementina me põe para fora de
lá a pontapés."

— Ela está dormindo, bêbada demais para ver você
chegar. Por favor, faça isso. Por favor!
"Bem que Marcos ia gostar. Mas agora não vou sair,
não. Depois do jantar, dou uma passada por lá e deixo o
bolo na porta", planejou mentalmente Leontina.

Ela não estava entendendo. Depois do jantar seria tarde
demais. Margarete já não sabia mais o que fazer. Sentindo

o desespero se avizinhar novamente, tocada pela oração de
Leontina, fez o que nunca havia feito em toda a sua vida: rezou.
— Por favor, Deus, me ajude. Ajude-me a salvar o meu
filho. Faça um bom espírito aparecer... qualquer um que esteja
em condições de me ajudar a convencer Leontina a livrar
meu filho desse perigo.
A oração foi feita com sentimento. Na mesma hora, um
raio de luz começou a luzir bem diante de Margarete, aumentando
gradativamente, até que Laureano se fez visível,
em companhia de Félix.

102


— Meu Deus!—exclamou Margarete, surpresa.—Jamais
imaginei que fossem vocês que atenderiam o meu pedido.
— Você é minha paciente — esclareceu Laureano.
— É minha responsabilidade cuidar de você e meu dever
atender ao seu chamado.
— Obrigada — disse ela emocionada.
— Precisamos ser rápidos. Se o menino aceitar a ajuda
do traficante, por menor que seja, vai ficar comprometido
com ele, porque logo virá a cobrança. E Marcos não terá
forças para resistir.
Enquanto Félix tomava Margarete pela mão, Laureano
se aproximou de Leontina, serena em razão das orações ali
derramadas naquela noite. Com a mão gentilmente pousada
na testa da mulher, disse em voz alta:

— Deus pede a sua ajuda, Leontina. Seja instrumento
da vontade divina e vá até a casa de Marcos. Ele está com
fome, por isso, leve-lhe algo que lhe desperte o prazer e
o desejo. Aquele bolo ali. — Inconscientemente, ela olhou
para o bolo, e ele prosseguiu: — Vá agora, porque o menino
chamado Jéferson está a um passo de corrompê-lo, e
nós corremos o risco de perdê-lo para sempre nesta vida.
Aja com rapidez e amorosidade, certa de que estará cumprindo
a missão que o Senhor lhe confiou.
Laureano soube usar as palavras da forma como
Leontina melhor as compreendia. Ela não as captou exatamente,
mas sentiu um temor sem aparente razão pelo destino
do sobrinho. Era como se ele, de alguma forma, colocasse
em perigo a alma que deveria consagrar a Deus. Mais do que
um sentimento de carinho, ela sentiu inexplicável necessidade
de ver se ele estava bem. Não precisava se encontrar com
Clementina, apenas se certificar de que Marcos Wellington
não corria nenhum perigo. Seguindo um impulso natural, desligou
o fogo, pegou o bolo de chocolate e saiu resoluta.

Assim que se aproximou da casa da irmã, ouviu risadas
vindo lá de dentro. Apurou os ouvidos, notou que uma


era de Marcos, mas a outra não era de Clementina. Foi até a
janela lateral, deixada aberta, e espiou para dentro. Marcos
e Jéferson estavam na cozinha preparando uma comida, e
um sinal de alerta disparou dentro dela.

— Marcos Wellington — chamou, e o menino se voltou
assustado. — Abra aqui para mim, meu filho.
O olhar de contrariedade de Jéferson passou quase
despercebido, mas a raiva que ele sentiu foi captada por
Leontina, embora de forma indefinida. Como, porém, ela estava
protegida pelas orações e acompanhada de Laureano,
a raiva do garoto serviu de incentivo para que ela insistisse
em entrar, agora ciente de que Deus a levara ali para afastar

o sobrinho das más companhias.
Um pouco hesitante, Marcos abriu a porta, sabendo
que Leontina não ficaria nada satisfeita com a presença de
Jéferson. Por diversas vezes, ela o havia alertado sobre o
menino, desaconselhando uma possível amizade entre ambos.
Mesmo temendo levar uma bronca, Marcos abriu. Logo
ao entrar, Leontina notou os mantimentos sobre a mesa e as
batatas descascadas em cima da pia.

— De onde veio tudo isso? — perguntou ela, olhando
diretamente para o sobrinho.
— Foi o Jéferson que trouxe — respondeu Marcos
timidamente.
— Sei. E sua mãe sabe disso, Jéferson? Ela sabe que
você desviou mantimentos para dar ao Marcos Wellington?
Jéferson sentiu o rubor subir-lhe às faces, emprestando
à sua pele moreno-jambo um tom acobreado, la inventar
uma história mirabolante, mas uma força irresistível, vinda
da influência de Laureano, não permitiu que mentisse:

— Não, senhora.
Imediatamente se arrependeu, mas já tinha falado.
— Na verdade, você não trouxe isso de casa, trouxe?
— Dessa vez, ele não respondeu. — Quem foi que lhe deu
essas coisas?
104


— Tia Leontina — interveio Marcos —, o Jéferson viu
que eu estava com fome e só quis ajudar.
— Aposto como essa generosidade toda veio daquele
sujeito à toa para quem você trabalha, não veio?
— A senhora não pode falar assim do Mandrake — rebateu
ele entre os dentes, apertando os punhos.
— Tem razão, não quero falar mal de ninguém, porque
não é isso que Nosso Senhor nos ensina. Agradeço a você
e ao Mandrake a generosidade, mas meu sobrinho não precisa.
Pode pegar toda essa comida e levar de volta para ele.
A própria Leontina foi juntando os mantimentos e recolocando
tudo nas sacolas, inclusive as batatas descascadas.
Deu um nó apertado em cada uma e devolveu-as a
Jéferson, que as recolheu com o ódio ofuscando seu olhar.

— Obrigado, Jéferson — disse Marcos envergonhado,
a voz sumida.
O outro nem respondeu. Saiu carregando as sacolas,
engolindo a raiva.

— Deus seja louvado! — exclamou Leontina com beatitude.
— Hoje recebi a visita do Espírito Santo e, graças a ele,
pude impedir que você se perdesse no caminho do crime.
— Era só comida...
— Comida envenenada pelo pecado. Quer condenar
sua alma para sempre?
— Mas, tia, estou com fome.
— Trouxe um pedaço de bolo para você. E pode ir jantar
lá em casa, se quiser.
— A senhora sabe que minha mãe não deixa.
— Traremos um pouco de comida para ela. Quem
sabe ela não muda?
Até aquele momento, Clementina não havia ainda despertado.
Mas, como o estômago de Marcos doía imensamente,
ele apanhou o pedaço de bolo, devorando-o com avidez.

— Está gostoso — comentou.

— Vamos lá em casa jantar. Você comeu a sobremesa
antes, mas isso não alimenta. Foi só para tapear.
O medo que sentia de ser repreendido pela mãe, de repente,
esvaneceu. Ele já não era mais um bebezinho, quem
tomava conta dela era ele. A tia também não tinha muito a
oferecer, não queria se tornar um peso para ela, que trabalhava
duro para se sustentar.

— Ainda vou ser alguém na vida — afirmou ele, a caminho
da casa dela. — E vou tirar a senhora e minha mãe
desse morro. Nós vamos viver felizes e em paz novamente.
Leontina sentiu uma lágrima despontar, mas conseguiu
contê-la:

— Sua mãe não quer mais falar comigo. Mas agradeço
a você, mesmo assim. Como gostaria que você voltasse
a estudar e saísse das ruas!
Marcos não disse nada. Grudou os olhos no chão,
seguindo-a em silêncio. O pranto forçou passagem pela
garganta, ele chorou baixinho, mas Leontina não ouviu.
Puxou-o com carinho, abraçou-o com imensa ternura. A dor
cedeu lugar à paz que veio com o amor, e Marcos, agarrado
à cintura dela, deixou-se conduzir morro acima, sentindo
que, em algum lugar naquela vida, haveria de encontrar um
espaço onde colocar sua felicidade.


CAPÍTULO

12

Ajoelhada aos pés de Laureano, Margarete beijou-lhe
as mãos. Não tinha palavras para agradecer o que ele fizera
pelo seu filho. O médico segurou-a pelos ombros e ergueu-a
gentilmente, dizendo com doçura:

— Agradeça a Deus e a si mesma, porque foi graças a
sua intervenção que pude ajudar seu filho.
— Sabe, Laureano, hoje vivi coisas diferentes. Pela
primeira vez, não fugi com medo do efeito da prece.
— O que você sentiu?
— Uma paz indescritível. Senti-me tão bem que resolvi
me arriscar, eu mesma, a fazer uma oração.
— E com excelentes resultados.
Clementina soltou um ronco e se mexeu na cama,
sem despertar.

— Essa daí é que está mal — observou Félix. — Não
podemos fazer nada por ela?
— Vai depender, em parte, de Margarete — ponderou
Laureano. — Sua presença só faz aumentar a vontade que
ela tem de beber. Se você se afastar, talvez consigamos, em
um momento de lucidez, incentivá-la a procurar ajuda no
campo físico, para controlar o vício.
Margarete fitou Clementina, desanimada:


— Como fazer isso, se eu mesma não consigo controlar
o meu?
— Você sabe que depende da força de vontade empregada
na sua modificação interior. Você é um espírito desencarnado,
o vício está instaurado no seu corpo fluídico,
não na matéria orgânica, que você já não possui. É preciso
controle das emoções e dos desejos, agora com muito mais
esforço do que quando você vivia na matéria. Livre em seu
próprio plano, o corpo emocional sente com muito mais intensidade
as emoções e os desejos, já que a matéria que os
compõe é a mesma.
— Mas será que apenas controlar o desejo resolve?
Porque a falta que sinto do álcool me parece bastante real,
quase física.
— Não pode ser física, porque você não possui mais
um corpo físico. Essa impressão manifesta-se na matéria sutil
graças ao corpo emocional. Sendo o plano emocional a
sede dos desejos humanos, todos os desejos que você venha
a possuir ficam aqui mais potencializados. Então, controlar
os desejos é o maior passo para se livrar do vício. E
tem também a desintoxicação, que você vem evitando desde
que chegou a nossa cidade invisível.
— Tenho medo... — sussurrou ela. — Penso que vão
sugar algo de dentro de mim.
— Não há do que ter medo. O que vamos sugar de
dentro de você são fragmentos etéreos do álcool que se
fundiram à sua própria energia. Cada vez que você sorve o
álcool volatilizado do corpo dos encarnados, inunda-se de
fluidos energeticamente deletérios que precisam ser revertidos.
É necessário volatilizá-los novamente, dessa vez num
processo inverso, fazendo-os evaporar de seu corpo sutil,
deixando-o limpo e desintoxicado.
— Se eu me submeter ao tratamento, Clementina também
vai ficar boa?
108


— Ela vai melhorar, na medida em que não terá mais
que dividir a bebida com você. Mas, para ficar boa, precisará
buscar tratamento próprio e adequado. Se você observar
bem, verá que Clementina está numa fase intermediária
da intoxicação. Seu sistema nervoso começa a ser afetado,
mas ela ainda não se tornou uma alcoólica crônica e tem
chances de se recuperar. Todavia, se passar dessa fase,
tudo se tornará muito mais difícil.
— E eu? Levarei sequelas para a outra vida?
— A embriaguez, como todo vício da alma, impregna-
se no veículo sutil e acompanha o espírito para além da
vida na matéria. Dependendo do tempo em que o vício se
fixou, causa nos corpos inferiores6 do espírito uma distorção
do comportamento que pode ser levada para outras vidas.
A bebida serve para aquecer e relaxar a pessoa, para o seu
prazer, desde que utilizada com moderação. Há, contudo,
um limite muito tênue, que, se ultrapassado, pode levar à dependência,
encarcerando o indivíduo numa prisão invisível,
porém, bastante real. O espírito então perde a liberdade de
agir e pensar, tornando-se escravo de seu insaciável desejo.
Fica entorpecido, menos equilibrado e, consequentemente,
mais vulnerável aos ataques dos inimigos.
— Você devia tentar, Margarete — incentivou Félix.
— Não sei... — duvidou ela. — Tenho medo de não
conseguir e sofrer com a abstinência do álcool.
— Se você não tentar, não vai conseguir nunca — estimulou
Félix. — E eu estarei ao seu lado para ajudá-la.
— Se eu melhorar, poderei ficar ao lado do meu filho?
— Isso e muito mais — afirmou Laureano.
Ela pensou por alguns momentos, sentindo no coração
a vontade de ceder ao tratamento. Finalmente, decidiu-se:

6 Os corpos inferiores estão relacionados ao Eu inferior, formado pelos
corpos físico, emocional e mental, renováveis a cada reencarnação.

109


— Querem saber de uma coisa? Vou tentar. Preciso
mudar de vida para poder ajudar o meu filho. Hoje percebi
que, com oração e pensamentos nobres, fui capaz de ajudá-
lo de alguma forma.
— Um filho é excelente estímulo às mudanças — concordou
Laureano. — Quer ajudá-lo? Ajude a si mesma em
primeiro lugar. Modifique-se.
— Também tenho pena de Clementina — admitiu.
— No começo, fiquei com um pouco de raiva porque ela pegou
o meu filho, mas depois até lhe agradeci. Não fosse por
ela, sabe-se lá o que seria de Marcos hoje. Não lhe quero mal.
— E, se ela estiver bem, vai estar em condições de
ajudá-lo muito mais do que você — acrescentou Félix. —
Lembre-se de que ambos estão no mesmo plano de existência
e, para todos os efeitos, ela é a mãe dele.
— Sei disso. E é uma boa mãe, apesar de tudo. Ela o
ama muito.
— Muito bem — concluiu Laureano. — Se todos estão
de acordo, então vamos retirá-la do corpo físico para
uma conversa.
Diante do olhar de ansiedade de Félix e Margarete,
Laureano despertou o corpo fluídico de Clementina, que jazia
adormecido alguns centímetros acima do físico. Assim
que ela se viu desperta, levou um susto. Ainda embriagada,
julgou ter alucinações. Depois, admitiu que podia estar vendo
espíritos e quis retornar ao corpo físico, mas Laureano a
impediu com um gesto afetuoso.

— Quem são vocês? — indagou assustada e, olhando
para Margarete, continuou: — Eu conheço você. Onde foi
mesmo que a vi?
— Sou a mãe de Marcos Wellington — esclareceu
Margarete.
— Devo estar sonhando — deduziu Clementina,
olhando de soslaio para seu corpo estirado na cama. — Só
posso estar sonhando.
110


— É mais ou menos isso — explicou Laureano.
— Aproveitamos o adormecimento de seu corpo físico para
trazer sua consciência até nosso plano.
— Eu, hein! Que doideira é essa?
— Pense em tudo como um sonho, se isso lhe traz
calma. O importante é que você ouça o que temos a dizer.
— Hum...?
— Você está enveredando por um caminho que, mais
à frente, não terá volta. Não apenas seu corpo, mas também
sua mente está sendo afetada pelo álcool. Se você continuar
assim, pode desencarnar e romper com os projetos
que fez para essa existência.
Clementina arregalou os olhos, tentando entender o
que ele dizia, até que Margarete completou:

— Pode acreditar nele. É a mais pura verdade, e eu
sou testemunha disso, pois carrego nesse corpo as marcas
de que ele fala. Eu a estimulo a beber, fazendo coincidir com
o meu o seu desejo pelo álcool. Satisfazendo-se, você satisfaz
a nós duas.
— Seu filho corre o risco de se perder no mundo, e
você se sentirá responsável por isso — prosseguiu Laureano.
— Embora somente a ele caiba a responsabilidade pelos
seus atos, você, como mãe, inevitavelmente se acusará pela
omissão. Não quer isso para você, quer? Ou para ele?
— Oqueesperaqueeufaça? — respondeu Clementina,
saindo do torpor em que se encontrava. — Meu marido me
abandonou, nem emprego tenho. Marcos Wellington sabe
se virar melhor do que eu. Ou você acha que devo me prostituir
para sustentar meu filho?
— Uma causa nobre justifica muitos atos socialmente
reprováveis.
As palavras de Laureano causaram tremendo impacto
em Clementina, que deu um salto e levou a mão ao coração:

— Prostituir-me? E isso lá é direito?
Ill


— Quem somos nós para julgar o que é direito? A necessidade
de cada um há de ser o seu julgador. Há muitas
prostitutas que trocam o sexo por dinheiro para colocar o
pão na boca de seus filhos. Não é um sacrifício louvável?
— Bem, pensando por esse lado, até que é.
— A vida não pede sacrifícios de ninguém. Eles acontecem
por escolha do espírito. E qual é a sua?
Ela olhou de soslaio para Margarete e respondeu em
tom mordaz:

— Eu criei o menino, quando a mãe verdadeira o jogou
no lixo.
— Foi uma escolha bonita, digna e de muita coragem.
Não quer levá-la adiante?
— Como assim?
— Por que não completa a criação do menino? Você
tem tudo para orientá-lo no caminho da virtude e do bem.
— Não posso. Não sou capaz.
— Se não pudesse, não teria tido a oportunidade
de encontrá-lo e ficar com ele — ela o olhou em dúvida, e
ele acrescentou: — É isso que Deus espera de você. Por
que não volta para a igreja?
— Igreja... — desdenhou ela. — Nunca mais pretendo
pisar naquela casa de enganação. Só o que o pastor quer é
tirar dinheiro de nós.
Vendo que a tática não surtiu efeito, Laureano não insistiu
naquela abordagem.

— Essa é mais uma escolha sua e é de seu direito. Peço
apenas que não julgue o pastor, assim como não quer ser julgada.
Ele é um homem bom que trabalha pelo seu semelhante.
Mas não foi para falar dele ou de religião que viemos aqui.
Foi para alertá-la da necessidade de abandonar a bebida.
— Não consigo, gosto de beber. Me ajuda a esquecer.
— O álcool não apaga o passado, mas aniquila o presente
e reescreve o futuro com a tinta do sofrimento. É isso
que você quer?

— Não — balbuciou ela indecisa.
— Você está iniciando um processo de dependência
química da bebida, além da emocional, que há muito já
se instalou. Se você se esforçar, conseguirá reverter esse
quadro. Se persistir bebendo, a doença irá se agravar, tornando-
se muito mais difícil abandonar o vício. Por que não
aproveita agora, que ainda tem chance, para deixar de lado
a bebida e se dedicar a seu filho e a si mesma?
Clementina desatou a chorar, e Laureano aproximou-
se dela, dando-lhe fraternal abraço.

— Eu não queria fazer isso, não queria! Mas Romualdo
me deixou. Me trocou por uma vagabunda mais jovem e
mais bonita. E agora, moço, o que é que eu faço?
— Você ainda é jovem. Pode arranjar outro companheiro,
pode trabalhar para sustentar-se e ao seu filho. Ele
é um menino tão especial! Não gostaria de vê-lo com uma
profissão e uma família?
— Ah! Como gostaria! Mas nós somos pobres, não
tivemos chances na vida.
— As chances, somos nós quem as criamos. Elas existem
por aí. São muitas oportunidades, para o bem e para o
mal, com que cruzamos durante a vida. Cabe a cada um
escolher quais pretende agarrar. Veja Marcos, por exemplo.
Ele está tendo a oportunidade de se entregar ao crime e, por
enquanto, a está recusando. Mais tarde, pode vir a aceitá-la.
Por outro lado, a vida lhe está reservando a chance de realizar
o seu sonho, que é se tornar advogado. Aqui também,
ele só vai aproveitá-la se quiser. Não gostaria de estar ao
lado dele em momentos tão importantes?
— É claro que sim! Quero o melhor para o meu filho.
— Pois então, reflita bem no que estou lhe dizendo.
Se você continuar a se embebedar, vai estragar a sua vida
e fazer ruir sua capacidade de orientá-lo. Cabem a ele suas
próprias escolhas, você não tem como impedi-lo de se tornar
um marginal, se ele quiser. Mas a orientação correta é de
113


grande valia. Se não fosse, não haveria o pendor natural dos
pais para a criação e educação de seus filhos.

— Não quero que Marcos Wellington se torne um marginal.
Ele é tão inteligente!
— As oportunidades e as tentações são muitas.
Marcos não tem dinheiro, mas tem quem lhe ofereça facilidades
que a honestidade, por enquanto, não pode comprar.
Não seria muito melhor se ele conseguisse, através do esforço
próprio, realizar todos os desejos materiais que possui?
Ou você acha bom que ele consiga agora tudo o que quer,
para amanhã acordar com a boca cheia de formigas?
Clementina o fitou com espanto e pavor. Até Félix
e Margarete ficaram horrorizados com as palavras de
Laureano. Onde é que ele havia aprendido a falar daquele
jeito? De qualquer forma, o resultado foi o esperado, porque
Clementina pareceu levar um choque e despertar.

— Deus me livre, moço! Não quero isso para o meu
filho, não.
— Sei que não quer. No fundo, você é uma boa pessoa.
Só está um pouco desnorteada e confusa. E depois
que seu marido a deixou, sente-se mais só do que nunca,
não é verdade? — Ela assentiu, enxugando uma lágrima.
— Contudo, não precisa ser assim.
— Como não? O senhor acha que vou sair por aí e
arranjar outro homem, quando meu coração ainda pertence
a Romualdo?
— Romualdo não é o único que pode ajudá-la a diminuir
a solidão e criar o seu filho.
— Se está se referindo a Leontina, nem pensar! Foi
por causa dela que Romualdo me deixou. Não fosse a carolice
dela, eu teria ficado em casa, cuidando dele, em vez de
ir para a igreja rezar com um bando de fanáticos.
— Por que acusa sua irmã pelos atos de seu marido?
Foi ele quem a deixou, não Leontina, que só fez tentar
ajudá-la.
114


— Sermão não é ajuda.
— Depende. Se você ouve e compreende a essência
das palavras, pode ser de grande ajuda. Mas, para aqueles
que se fazem surdos aos alertas da vida, elas não passam
de baboseiras sem sentido. Você é quem decide.
Clementina não sabia o que dizer. Laureano era inteligente
demais e tinha uma resposta pronta para tudo.

— Olhe, agradeço o empenho de vocês, mas já estou
ficando cansada — rebateu ela com frieza. — Não quero
mais conversar.
— Muito bem, Clementina. Já disse tudo o que você
deveria ouvir.
— Bom, então é isso. Adeusinho...
Ela virou as costas para os três e se deitou sobre o
corpo físico adormecido. Depois que Laureano enviou-lhe
fluidos de serenidade, o corpo fluídico também pegou no
sono. Com gestos delicados, o espírito espargiu um arco-
íris sobre Clementina, fazendo com que chuviscos de luz
das mais variadas cores iluminassem cada parte do seu corpo.
Em seguida, voltou-se para Félix e Margarete:

— Vamos?
Os três se voltaram para sair, e foi Félix quem perguntou:
— O que foi aquilo que você fez?
— Uma limpeza nos chakras que servem de filtro às
experiências vividas no plano astral, para que Clementina
possa evocá-las quando acordar.
— E por que falou com ela daquele jeito? — acrescentou
Margarete, ainda espantada. — Eu nunca o ouvi falar
daquela maneira.
— É a linguagem que Clementina mais facilmente entende.
Não adianta falar com ela com doçura, porque ela
não está em condições de ouvir palavras doces. No estado
em que está, são necessários termos vulgares e que apelem
para o temor, para que ela se convença.

Foram-se rumo à cidade astral que habitavam, certos
de que, dali para a frente, muita coisa iria mudar na vida
de todos os envolvidos no drama de Marcos e Clementina.
Mesmo Leontina, que se ausentara antes do desenrolar desse
episódio, sentiu uma estranha e repentina comoção, uma
vontade irresistível de voltar à casa da irmã.

Depois que Marcos terminou de jantar, ela foi até as
panelas e preparou um prato para Clementina. Nem sabia
por que fazia aquilo, mas sentia que devia fazer. Se ela não
quisesse comer, não fazia mal. Deixaria o prato na mesa e
iria embora.

Com o coração leve de uma súbita paz, de mãos
dadas com o sobrinho, Leontina abriu a porta da casa de
Clementina e entrou.

116


CAPÍTULO


13


A sala estava mais iluminada do que de costume, não
apenas porque todas as luzes se encontravam acesas, mas
porque no ambiente havia uma aura de limpeza que havia
muito não se via. O chão dava mostras de que fora varrido,
os móveis, espanados. A cama fora forrada com uma colcha
simples, limpa e perfumada. Algumas roupas empilhadas a
um canto eram sinal de que haviam sido separadas para o
tanque, a pia da cozinha encontrava-se vazia de louça. De
Clementina, contudo, nem sinal.

— O que foi que houve por aqui? — indagou Marcos
espantado.
— Será que Branca de Neve esteve na casa dos anõezinhos?
— respondeu Leontina, tão surpresa quanto o menino.
— E onde está minha mãe?
Leontina deu de ombros. Não fazia a menor ideia do
que havia acontecido. Quando saíra, cerca de duas horas
antes, deixara a irmã profundamente adormecida sobre a
cama, ressonando alto e recendendo a cachaça.

— Você quer esperar? — perguntou ela ao menino, que
assentiu. — Então vou deixar o prato de comida em cima da
mesa e vou embora. Sua mãe não vai gostar de me ver aqui.
Assim que ela se virou para sair, a porta se abriu e
Clementina entrou abraçada a um ramalhete de flores


silvestres que havia colhido ao longo da subida do morro.
Estava de banho tomado, dentes escovados e cabelos penteados.
As duas pararam, estudando-se, enquanto Marcos,
adiantando-se, corria para ela.

— Mãe! Você está bem?
— Estou ótima, meu filho, obrigada.
— O que aconteceu aqui?
— Eu limpei tudo. Não ficou uma beleza?
— Ficou — respondeu ele, retirando as flores dos braços
da mãe. — Para que isso?
— Para enfeitar e perfumar a casa. Precisamos de um
pouco de alegria.
— Você foi colher flores no escuro? — indagou ele,
espantado.
— Qual o problema?
Sem saber o que fazer, Leontina passou por ela e
apontou para a mesa:

— Trouxe comida para você. Depois passo para pegar
o prato.
Os sentimentos de Clementina eram contraditórios,
mas o sonho ainda estava bem vívido em sua mente.
Sonhara com um desconhecido, que lhe dissera coisas estranhas.
A verdadeira mãe de Marcos Wellington também
estava no sonho, embora nunca a houvesse visto. Mas tinha
certeza de que era ela. Tinham falado sobre os perigos da
bebida e a necessidade de orientar o filho. O sonho fora tão
nítido, tão real, que ela, ao acordar, mantivera na memória
todas as palavras que ouvira.

Era estranho que ela sonhasse com aquele alerta justo
no dia em que desmaiara na rua. Talvez fosse mesmo um
aviso para que se modificasse e parasse de beber. Tudo tinha
a ver com o filho. O que seria dele se ela viesse a morrer
por causa da bebida? E se lhe acontecesse a mesma coisa
que acontecera a sua verdadeira mãe? Bebendo do jeito


que ela bebia, podia muito bem ser atropelada ou amanhecer
com a boca cheia de formigas.

O pensamento lhe causou um arrepio. Era no que dava
criar um filho sem pai. Pensou em Romualdo, no desgosto
que ele lhe causara, e sentiu a garganta seca. Imediatamente,
veio a vontade de beber, mas o efeito do sonho lhe deu forças
para resistir, e ela disse não à própria vontade.

Com tudo isso ainda vívido na mente, Clementina segurou
o braço de Leontina, que passava por ela sem a encarar.
— Espere um pouco — disse em tom amistoso. —

Não se vá ainda. Sente-se e vamos conversar.

Meio sem jeito, Leontina olhou para Marcos, que lhe
deu um sorriso de incentivo. Sentou-se à mesa da cozinha,
agora livre do pó e de migalhas de pão. Marcos colocou as
flores dentro de uma garrafa que servia de jarro, sentou-se
ao lado da tia. Clementina juntou-se a eles, desembrulhou o
prato, cheirando a comida.

— Espero que você goste — falou Leontina timidamente.
— Está uma delícia, mãe — acrescentou Marcos.
— Eu já comi.
Clementina apanhou um garfo e pôs-se a comer o ensopadinho
de carne com legumes. À primeira garfada, o estômago,
saturado de álcool, quase recusou o alimento, mas
a fome se sobrepôs ao enjoo, e ela comeu com gosto.

— Engraçado, não estava com fome — anunciou
Clementina, colocando o garfo na boca. — Mas está muito
bom mesmo.
Leontina teve vontade de lhe dizer que a ausência de
apetite se devia ao excesso de bebida, mas achou melhor se
calar. Cobranças, naquela hora, só serviriam para afastá-las
de novo, e o que ela mais queria era se reaproximar da irmã.

— Fico feliz que tenha gostado — retrucou Leontina,
satisfeita.
— Você sempre cozinhou bem. Melhor do que eu.

— Ah, mãe, não exagere — objetou Marcos com ternura.
— Você também cozinha que é uma beleza!
— Diz isso só para me agradar. Mas não faz mal. Gosto
de ouvir mesmo assim.
Fez-se um silêncio embaraçoso, até que Leontina, à
falta do que dizer, elogiou:

— Sua casa está linda.
— Fiz uma faxina geral. A casa é pequena e não deu
trabalho. Apanhei umas flores para dar um toque de alegria.
Não ficou bom, meu filho?
— Muito bom — concordou Marcos. — Parece até
que o ar ficou mais leve.
— É verdade.
Novo silêncio constrangedor. Tanto Leontina quanto
Clementina não sabiam o que dizer para se reaproximar, e
Marcos teve que intervir:

— Tia Leontina vem sempre aqui nos visitar e, às vezes,
me leva para comer em sua casa.
— Fico agradecida por isso — declarou Clementina.
— Ora, faço porque gosto de Marcos Wellington. É
meu sobrinho, e você, minha irmã. Gosto de você também.
Ela disse aquilo sem pensar, embora traduzisse bem
os seus sentimentos.

— Sei disso e mais uma vez agradeço — tornou
Clementina, emocionada.
— Preocupa-me o bem-estar de vocês — acrescentou
Leontina.
— Posso imaginar. Eu não tenho sido uma mãe muito
cuidadosa ultimamente. Sei que andei bebendo um pouco,
mas isso já passou.
— Você não vai beber mais? — era Marcos, que mal
acreditava no que ouvia.
— Não. Prometo que vou parar. Beber só tem me feito
mal. Preciso estar bem para cuidar de meu filho.

— Louvado seja nosso Senhor, Jesus Cristo! — exclamou
Leontina, erguendo aos mãos ao céu.
Embora o apelo não lhe agradasse muito, Clementina
não disse nada. Também ela queria evitar desentendimentos
com a irmã.

— Preciso arranjar um emprego — continuou Clementina.
— Você não sabe de nada?
— Posso ver. Tem sempre alguém precisando de uma
faxineira, e talvez dona Odete saiba de alguma coisa lá no
prédio onde trabalho.
— Tomara que você consiga. Não é justo deixar
Marcos Wellington pedindo esmolas pela rua.
Ela acariciou o rosto do filho, que retrucou ternamente:

— Não me incomodo, mãe. Até que consigo um bom
dinheiro, às vezes.
— E às vezes não consegue — completou Leontina.
— E aquele marginalzinho vive de olho em você, querendo
levá-lo para trabalhar para aquele bandido.
— Que marginalzinho? — questionou Clementina,
preocupada. — Que bandido é esse?
— É o Jéferson — respondeu Marcos. — Ele quer que
eu trabalhe para o Mandrake.
— Deus me livre de uma coisa dessas! — horrorizou-
se Clementina. — Aquela gente não é boa companhia. Não
quero você metido com eles.
— Não gostaria de lhe trazer problemas — acrescentou
Leontina —, mas aquele garoto esteve aqui hoje, com
duas sacolas de comida. E você sabe como é essa gente.
Dá com uma mão e tira com a outra. Se Marcos Wellington
tivesse aceitado a comida dele, ia ficar de rabo preso com o
tal de Mandrake para o resto da vida.
— Sua tia tem razão, meu filho. Não quero que você
aceite nada deles. Absolutamente nada.
— Eu estava com fome, mãe — defendeu-se ele.

— Meu pobre filhinho — retrucou ela, a voz carregada
de remorso. — Sei que a culpa foi minha por tê-lo abandonado
à própria sorte. Mas isso agora vai mudar, você vai ver.
— E Marcos Wellington também deixou a escola.
Leontina arriscou ir mais longe, esperando uma reação
violenta de Clementina, mas a reação não veio. Em vez disso,
ela abaixou a cabeça e suspirou, para depois comentar
num cicio:

— Preciso providenciar seu retorno à escola o mais
rápido possível.
— As matrículas já terminaram — esclareceu Marcos.
— Há quanto tempo você saiu da escola?
— Ele largou a escola na metade do ano passado —
anunciou Leontina. — Mas esse ano também já está perdido,
pois as aulas começaram faz tempo. Então, ele vai se
atrasar dois anos.
— Não faz mal, mãe — disse Marcos. — Quero voltar
a estudar mesmo assim. E, nas horas vagas, posso continuar
pedindo dinheiro na rua.
— Nada disso! Filho meu não vai ser mendigo. Quero
que você se forme e seja alguém na vida. Um advogado,
como você deseja.
Marcos sorriu intimamente, na esperança de poder retomar
o antigo sonho de estudar Direito. Iria se atrasar um
pouco, mas não tinha importância.

— Eu quero estudar, mãe. Você sabe que meu maior
sonho sempre foi me formar e dar uma vida melhor a você
e a minha tia.
— Não se preocupe comigo — objetou Leontina.
— Eu estou bem. Não ganho nenhuma fortuna, mas dá para
sobreviver honestamente.
— Nada disso, titia. A senhora tem sido muito boa comigo
e com minha mãe.
— É verdade, Leontina — concordou Clementina. — Pena
que eu fui uma idiota e não soube reconhecer isso antes.
122


— Você não imagina como fico feliz por voltarmos a
nos falar. Você e Marcos Wellington são a família que possuo.
— E nós também, agora que Romualdo nos deixou. —
Ela segurou a mão de Leontina por cima da mesa e murmurou:
— Será que você pode me perdoar, minha irmã? Pode
perdoar as palavras insensatas de uma mulher ingrata, cega
de paixão?

— Você estava doente — justificou Leontina, sem jeito.
— É verdade, mas agora me curei. Juro que nunca
mais vou pôr uma gota de álcool na boca.
— Jura mesmo, mãe?
— Você vai ver. Não digo que vai ser fácil, mas vou
me esforçar ao máximo. E depois, tenho um incentivo muito
grande. Sabe qual é? — Marcos meneou a cabeça. — Você,
meu filho. Faço isso por você.
O menino se atirou nos braços dela em lágrimas, e
Leontina se juntou a eles.

— Vai ser bom nos tornarmos uma família outra vez —
comentou Leontina. — E o pastor vai ficar muito satisfeito de
tê-la de volta aos cultos. Finalmente, a ovelhinha desgarrada
retorna ao rebanho.

— Ninguém falou em retornar à igreja — contrapôs
Clementina, com uma certa irritação. — Já disse que não
quero mais saber de pastores nem de igreja.
— Mas por quê? — surpreendeu-se Leontina. — Certamente,
você não culpa mais a igreja...
— Olhe, minha irmã, gosto muito de você, e Deus sabe
o quanto me arrependo das coisas que lhe disse. Também
não culpo mais o pastor, pois sei que Romualdo se foi porque
se enrabichou por outra. Mas não quero mais saber de
igreja, não. Deixei-me envolver a tal ponto nos cultos que
negligenciei meus deveres de esposa, e isso contribuiu para
que Romualdo arranjasse outra. Tudo era pecado, rezas e
castigos. Não acredito mais nisso.

— Você está transferindo para a igreja o fracasso do
seu casamento para não ter que assumir que foram vocês
que falharam. Deus quis apenas ajudá-los.
— Pois prefiro que Ele me ajude a distância.
— Isso não está certo... — Leontina ia censurando, mas,
a um olhar de Marcos, mudou o rumo da conversa. — Mas, enfim,
você é quem sabe. A vida é sua, não quero me intrometer.
— Ótimo. Assim não nos desentenderemos mais.
— Só espero que você permita que Marcos Wellington
me acompanhe.
Ela encarou o filho, que deu um sorriso em sinal afirmativo.

— Se ele quiser...
— Eu quero — confirmou o menino. — Gosto de orar e
fiquei muito triste quando você me proibiu de frequentar
os cultos.
— Foi o temor a Deus que manteve Marcos Wellington
longe do crime e do vício — afirmou Leontina.
— É verdade — concordou ele.
— E isso só se adquire na igreja.
— Já disse que ele pode ir, se quiser — repetiu
Clementina, demonstrando impaciência. — Só não quero
saber de beatos aqui em casa. Se quiser se transformar em
um, Marcos Wellington, sugiro que troque de religião e se
torne um padre.
— Isso é que não! — protestou Leontina com veemência.
— Marcos Wellington está no caminho da salvação e
não precisa de falsos ídolos nem de falsos profetas, não é?
— É sim, titia. Com todo respeito que devo aos padres,
não quero trocar de religião.
— Muito bem, faça como quiser — ponderou Clementina.
— Você é um rapazinho e pode decidir o que é melhor para
você. Já disse que não vou me opor. Apenas gostaria que me
respeitassem e não insistissem para me levar à igreja.
— Pode deixar, mãe. Vamos respeitá-la direitinho. Não
é, tia Leontina?

— É — assentiu ela, embora a contragosto.
O resultado do encontro foi dos mais proveitosos. A
família voltou a se unir, a harmonia retornou ao lar das duas
irmãs. Custou um pouco, mas Leontina conseguiu arrumar
algumas faxinas para Clementina fazer. Ela começou a ganhar
algum dinheiro, com o qual iam vivendo.

De vez em quando, Marcos auxiliava no estacionamento
de um supermercado próximo, carregando compras para
os fregueses, que lhe davam uma gorjeta ou outra. Com
isso, ia reforçando a renda doméstica, de forma que o dinheiro
sempre chegava para pagar as contas e as compras
no fim do mês.

Conforme o prometido, Clementina nunca mais voltou
a beber. Às vezes, tinha recaídas violentas, suava frio, tremia,
mas, pensando no filho, conseguia se controlar. Nessas
horas, Marcos orava com fervor, atraindo a presença de
Laureano, que aplicava passes restauradores e fortificantes
em Clementina, fortalecendo sua vontade de resistir.

Marcos voltou a estudar na escola municipal. Embora
com dois anos de atraso em relação aos colegas, era inteligente
e estudioso, o que lhe valia muitos elogios dos professores.
Sua vontade de se tornar advogado era tanta que ele
se aplicava aos estudos dia e noite, tentando compensar a
deficiência do ensino público com o esforço próprio. Não foi
fácil, mas ele conseguiu.


CAPÍTULO

14

Alguns anos à frente, Margarete ainda se encontrava na
mesma cidade astral a que fora levada por Félix. Embora,
na maioria das vezes, conseguisse resistir à bebida, suas recaídas,
ao contrário das de Clementina, eram muito mais difíceis
de evitar. Margarete se locomovia facilmente no tempo
e no espaço. Quando a vontade apertava, tornando-se quase
insuportável, ela logo se via ao lado de algum ébrio encarnado,
livre para sugar-lhe a essência do álcool volatilizado.

Algumas vezes, Félix conseguia acompanhá-la e trazê-
la de volta antes que ela sugasse o encarnado, outras não.
Com isso, seu tratamento tinha altos e baixos, perdendo-se

o trabalho de desintoxicação, que Laureano tinha que começar
outra vez.
Certa tarde, ao voltar de mais uma consulta com
Laureano, Félix encontrou Margarete triste e acabrunhada,
sentada na varanda, abraçada aos joelhos, cantarolando
uma canção melancólica. Ele se aproximou e deu-lhe um
beijo na testa, indagando com certa preocupação, procurando
detectar sinais de que havia bebido:

— Está tudo bem com você?
Ela o olhou com olhos úmidos e respondeu tristemente:
— Sabe quem eu fui visitar hoje? — Ele meneou a cabeça.
— O Anderson.

— O Anderson? Mas por quê?
— Senti que ele me chamava. Quando dei por mim,
estava ao lado dele.
— Por que foi que ele a chamou?
— Ele está doente. Muito doente, para falar a verdade.
Ouvi a mãe dizer, aos prantos, que sua morte é esperada
para qualquer momento.
— Não me diga! O que é que ele tem?
— Câncer.
— Coitado!
— Ele é jovem ainda, sabia? Quando Marcos nasceu,
Anderson tinha apenas dezessete anos. Agora, deve estar
com trinta e quatro.
— Sei que é triste, mas cada um faz suas escolhas na
vida. Anderson também fez a dele.
— Eu podia estar alegre, pois essa seria uma excelente
maneira de me vingar de seu Graciliano e dona Bernadete.
Mas não estou.
— Que bom, não é, Margarete? Ainda bem que você
não se compraz com o sofrimento alheio.
— Fico imaginando a dor que ela deve estar sentindo
pela perda do único filho. Eu também sofri quando perdi o meu.
— Ele não se casou?
— Não. Fiquei lá um tempão, sem ninguém me notar, e
não vi mulher alguma. Nem dona Bernadete pensou em nora,
nem vi formas mentais de crianças. Apenas uma dor profunda.
— Você disse que foi lá atraída pelo pensamento dele,
que estava ligado em você. Por quê?
— Remorso. Anderson era apenas uma criança quando
se envolveu comigo. Fui eu que o seduzi, ele não tinha
forças para contrariar os pais. Acho, porém, que jamais se
perdoou por ter-me abandonado.
— Ele nada podia fazer. Como você mesma disse, era
apenas uma criança.

— Estou realmente triste, Félix. Não queria que ele
acabasse assim. Ainda tinha a vida toda pela frente.
Nesse momento, Laureano também se aproximou.
Captou o sentimento de tristeza de Margarete e foi tentar ajudar.

— Olá, Margarete — saudou ele. — Vejo que está muito
triste.
— O Anderson, pai do filho dela, está doente de câncer
— esclareceu Félix. — Parece que vai morrer.
Laureano se sentou ao lado dela e perguntou gentilmente:


— Não gostaria de visitá-lo?
— Já estive lá. Ele está realmente mal. Será que
você, com toda essa sabedoria e luz, não pode ajudá-lo a
sair dessa?
— Não creio. Não posso desrespeitar a programação
do indivíduo. Só posso ajudar a quem me pede ajuda, assim
mesmo, dentro do limite que a lei divina me impõe. E, pelo
que posso perceber, esse rapaz não quer mais viver.
— Mas por quê, se ele é tão jovem?
— Anderson deixou-se penetrar pelo vírus da tristeza.
Como não se perdoa por não ter assumido você e a criança,
permitiu que o abatimento o levasse à solidão, ao desânimo,
à falta de fé.
— Que coisa triste! — exclamou Margarete em lágrimas.
— Vamos orar para que ele se recupere dos sentimentos
que danificaram seu corpo físico. Se ele escolheu morrer,
ninguém poderá fazer nada.
No mesmo instante em que se puseram a rezar,
Margarete sentiu uma pontada no peito e olhou para Félix,
que também havia sentido uma movimentação estranha no
ar. Ambos interrogaram Laureano com o olhar, mas foi a própria
Margarete quem falou:

— Acho que chegou a hora. Sinto que Anderson está
desencarnando.

Imediatamente, transportaram-se para o hospital em
Belford Roxo, onde Anderson dava seu último suspiro na
vida corpórea. Seu corpo fluídico acabara de se desprender
do físico, logo recolhido pelo espírito de uma senhora de
olhar bondoso. Ela viu Laureano, Margarete e Félix, e sorriu
para eles, esvanecendo no ar com o rapaz adormecido.

— Chegamos tarde — constatou Félix. — Ele já
desencarnou.
— Para onde foi levado? — quis saber Margarete.
— Não sei — afirmou Laureano. — Mais tarde vou tentar
descobrir. Não vai ser difícil.
Subitamente, a atenção dos três foi atraída pelos gritos
de desespero de Bernadete, que, ajoelhada ao lado da
cama, chorava agarrada à mão do filho.

— Oh, Deus! Por que levou meu filho? Meu único filho!
— Senhora, por favor, acalme-se — dizia uma enfermeira,
que tentava fazer com que ela soltasse a mão de Anderson.
— Não posso deixá-lo! Não posso! Isso não é justo! Que
vida mais injusta é essa que ceifa a vida de seres tão jovens?
Nesse momento, Graciliano entrou no quarto. Procurando
conter o pranto e a dor, ajoelhou-se ao lado da mulher.

— Vamos, querida, não podemos fazer mais nada.
Ele se foi.
— Por que, Graciliano, por quê? Por que tivemos que
perdê-lo?
— Não sei...
Graciliano engoliu a própria voz, sufocada no pranto e
na dor. Comovido, Laureano se aproximou, derramando
sobre eles partículas de luz refrescantes e suaves. Com a
mão translúcida pousada sobre suas cabeças, fez uma breve
oração, que aos poucos foi serenando-os. Gentilmente,
Graciliano conseguiu soltar a mão da mulher da mão do filho
e ergueu-a, enlaçando-a com imensurável ternura. Ao lado
deles, Margarete chorava e comentou emocionada:

129


— Jamais pensei que um homem tão embrutecido
como seu Graciliano fosse capaz de tanto sofrimento e emoção.
Veja o amor com que trata a esposa!
Ao redor dos dois formou-se uma luminosidade rósea que
envolveu os corpos de ambos, unindo-os pelo chakra cardíaco.

— Você o está julgando ao chamá-lo de embrutecido
— observou Laureano. — Graciliano é apenas um ser
em crescimento, ainda apegado a falsos valores do mundo.
Como todo ser humano, possui um corpo emocional que
vibra ao sabor das emoções. É preciso compreender que todas
as pessoas possuem em si sementes de bondade e
de crueldade, se quiser chamar assim. Eu, por mim, prefiro
chamar de sabedoria e ignorância a umas e outras.
Sustentada pelo marido, Bernadete saiu. Laureano
deixou Margarete e Félix a sós, voltando aos seus afazeres.

— Venha, minha querida — chamou Félix. — Você
teve muitas emoções por hoje.
— Preciso de uma bebida — anunciou ela. — Desesperadamente.
— Não, Margarete, tente se controlar.
— Quero beber! Minha garganta arde. Por favor, Félix,
deixe-me ir.
Ela se debateu nos braços dele, que implorou:

— Por Deus, Margarete, não faça isso. Vai estragar
tudo. Você já está há vários dias sem se colar a ninguém.
— Mas agora é diferente. É só hoje. Estou tão comovida,
tão triste! Só para acalmar a minha dor.
— Você não tem motivos para se sentir assim. Já está
no mundo invisível há tempo suficiente para compreender
a verdade. O que é a vida senão uma ilusão da matéria? A
verdadeira vida está aqui, por isso, nosso retorno é recebido
com alegria. Apenas os que ficam se deixam levar pela tristeza,
porque não se lembram dessa verdade e pensam que
a vida na matéria é a realidade. Mas você não precisa mais
da matéria. Não se prenda ao que é ilusão.

Ela começou a chorar, agarrada a ele, enquanto Félix
tentava se acalmar, centrando os pensamentos em prece.

— É só um pouquinho... — implorou ela.
— Vai estragar o processo de desintoxicação e teremos
que começar tudo de novo. Por Deus, Margarete, quando
é que isso vai acabar?
— Deixe-me ir! — gritou ela com raiva.
— Será que você não percebe o quanto eu a amo?
Lembra-se do amor de Graciliano por Bernadete? Você viu
a luz cor-de-rosa que os envolveu? Tente perceber que o
mesmo acontece conosco agora.
Não era a mesma coisa, porque os sentimentos de Félix
estavam por demais misturados ao desespero para criar o
tom diáfano de rosa que haviam visto antes. Contudo, as palavras
dele surtiram efeito e Margarete se acalmou, refletindo
no que ele dissera. Ficaram alguns minutos abraçados, o corpo
fluídico dela todo trêmulo. À medida que Félix rezava, tudo
ia serenando, até que ela voltou ao seu estado normal.

— Pode me soltar — afirmou ela. — Estou mais calma
agora.
— Tem certeza?
— Tenho. A crise passou.
— Não vai tentar fugir?
— Não. O desejo está sob controle. Eu juro.
— E se você estiver tentando me enganar? E se eu a
soltar e você fugir?
— Se eu quisesse fugir, já o teria feito, porque você
não tem preparo emocional para me conter. Se não fugi, foi
por causa do que você disse.
— Como assim?
— Suas palavras me comoveram e confundiram. Estou
há tanto tempo com você que nunca me perguntei por quê.
— Por que o quê?
— Por que você me ajuda tanto? Por que pareço tão
especial para você?

— Porque a amo, já disse.
— Mas por quê? Onde foi que nos conhecemos?
— Você não se lembra, não é?
— Não... — fez uma pausa, como se puxasse pela memória,
e prosseguiu: — Espere aí... É isso! Na época da abolição...
um pouco antes, talvez... Você e eu... fomos casados!
— E Marcos era nosso filho.
— Uma criança roubada... Nós a roubamos de
Clementina! Agora me lembro...
Félix colocou os dedos sobre os lábios dela e arrematou:

— Estamos todos envolvidos nas experiências de outras
vidas. Mas isso ficou para trás, não pode nos aprisionar.
Está na hora de levantarmos o pé do passado e seguir
adiante. Nós nos culparmos por escolhas imaturas não vai
ajudar em nada no momento. Ninguém tem que ser perfeito.
— Eu não acho que tenho que ser perfeita.
— No fundo acha, como praticamente todo mundo. Pode
ser que essa não seja uma ideia consciente ou bem delineada.
É mais um sentimento inato, inerente, profundamente arraigado.
— Às vezes você me surpreende com a sua sabedoria.
Não entendo por que insiste em permanecer aqui. Por
que não vai embora?
— Só se você for comigo.
— Eu?! Imagine...
— Imagine o quê? Nós dois num mundo muito mais
bonito e sereno?
— Não é isso. Não sei se mereço lugar melhor do
que este.
— Todo mundo merece.
Ela sorriu com serenidade. Não sentia vontade de reviver
na mente todos os acontecimentos infelizes que provocara
no passado. Só o que queria era pensar no seu futuro,
na forma como agiria para que tudo fosse diferente. Abraçou
Félix com ternura e gratidão. Pela primeira vez em muitos
anos, não sentia vontade de beber.


CAPÍTULO


15


O primeiro dia de aula na faculdade representou o
primeiro passo da vitória sobre a miséria. Marcos estava
exultante, feliz como jamais pensou que estaria em toda a
sua vida. Não fora fácil chegar até ali. Só ele sabia o quanto
havia se esforçado para alcançar uma boa nota no vestibular
e ingressar na UERJ7.

Primeiro aluno a entrar em sala de aula, sentou-se
logo na primeira fila, bem em frente à mesa do professor.
Aos poucos, os demais alunos foram chegando e se acomodando
nas carteiras, apresentando-se com animação.
Vencendo a timidez, Marcos fez amizade com alguns rapazes
mais interessados feito ele.

As aulas o encantaram, ele se sentiu muito à vontade
naquele mundo intelectual. Apesar de estar numa universidade
pública, a maioria dos alunos vinha de uma classe
social mais alta, mas nem isso o incomodou. Ali, ele era um
estudante como todos os outros, embora um pouco mais
velho do que a maioria.

Marcos logo chamou a atenção dos professores pela
inteligência e pelo interesse. Estava sempre com a lição na
ponta da língua, sabia todas as respostas, estudava com

7 UERJ — Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


afinco. Embora não fosse esnobe nem tentasse se sobressair,
era o que acontecia naturalmente. Isso fez com que
fosse admirado por uns e invejado por outros, mas sempre
respeitado pelos colegas.

Das quatro da tarde às dez da noite, trabalhava como
garçom no restaurante de um grande shopping center. Após
as aulas, sentava-se com sua marmita para almoçar e depois
corria para a biblioteca, onde estudava até as três e
meia da tarde. Dali, partia para o trabalho, que ficava em
Vila Isabel, pertinho da universidade. Como o restaurante
era bastante movimentado, as gorjetas, geralmente boas,
davam para cobrir os gastos com livros e ajudar a mãe com
as despesas domésticas.

Aos domingos, Marcos ia ao culto na igreja pela manhã
e estudava até a hora de ir para o trabalho. Somente em seus
dias de folga se permitia dar um passeio com a tia ou ir ao
cinema com a mãe, apesar dos protestos de Leontina, para
quem cinema era uma coisa maligna, inventada pelo diabo
para seduzir os homens e levá-los à comunhão com as trevas.

Marcos gostava dos cultos e das orações, mas não era
dos mais fervorosos praticantes evangélicos. De um lado influenciado
pela tia, que em tudo via pecado, e de outro, pela
mãe, que não podia nem ouvir falar em igreja, permanecia
no meio-termo. Gostava da Bíblia, mas tinha dúvidas sobre
certas proibições.

Era uma vida corrida, mas Marcos não se queixava.
Sentia-se feliz por estudar e ter um emprego com carteira
assinada que lhe garantia um salário razoável. A mãe não
bebia mais. Marcos presenciara muitas crises provocadas
pela abstinência do álcool, fora testemunha do esforço que
ela fizera para largar a bebida. Demorou, mas ela conseguiu
trocar o vício pela realização de seu ideal de criar o filho
como pessoa de bem. Embora preferisse não passar pela
porta de bares ou botequins, Clementina nunca mais colocara
uma gota de álcool na boca.


Na segunda-feira, pela primeira vez em sua vida acadêmica,
Marcos não conseguiu chegar na hora à faculdade.
A mãe passara mal de manhã, ele teve que descer à farmácia
para comprar-lhe remédio e esperar até que ela melhorasse.
Só saiu quando se certificou de que ela estava bem.

Entrou pela porta de trás e sentou-se numa carteira ao
fundo, para não atrapalhar a aula. Para seu desagrado, alguns
colegas conversavam baixinho, ignorando o professor. Ele apanhou
o caderno e o livro, tentando se concentrar na aula, apesar
do murmurinho dos menos interessados em aprender.

— Ei, gente! — sussurrou um rapaz com ironia. — O
nerd da turma veio hoje para a cozinha.
Marcos olhou espantado, certificando-se de que era
com ele. Nunca antes havia escutado um comentário a seu
respeito. Os rapazes abafaram as risadas, continuaram cochichando
coisas que lhe pareceram pejorativas. O sangue
subiu-lhe às faces, ele sentiu vontade de responder, mas o
respeito ao professor o deteve.

— Não ligue. — Ele ouviu uma voz feminina a seu lado
e se virou para ela. — Eles têm é inveja de você.
O rosto da moça era doce, sua voz, suave. Marcos
reparou na menina. Chamava-se Raquel, cabelos negros e
olhos cor de mel. Ele riu do verso improvisado que criou na
cabeça, mas que descrevia bem a encantadora garota que
nunca antes lhe dirigira a palavra. Limitou-se a assentir e endireitou-
se na carteira, lutando para prestar atenção na aula
perdida. Não conseguiu mais. As palavras do professor de
repente lhe pareceram sem importância, irrelevantes ante a
descoberta da moça.

Durante o resto da manhã, foi um custo se concentrar
nas aulas. Quando o primeiro tempo terminou, ele foi
para a frente, ocupando seu lugar de sempre, a imagem de
Raquel seguindo com ele. Na hora do intervalo, viu-a com


o namorado, um grandalhão cheio de músculos moldados
no levantamento de peso. Tentava não olhar para eles, mas
não conseguia. Parecia que, aonde quer que fosse, Raquel
e o namorado o seguiam.
— Você não quer arrumar encrenca, quer?
A voz, dessa vez grossa e inquisitiva, retirou-o de seu devaneio.
Ele fixou o olhar no interlocutor e retrucou com espanto:

— O que foi que você disse?
— Perguntei se você está tentando arrumar alguma
encrenca. Não sabe que Nelson é ciumento?
Quem falava era Arnaldo, melhor amigo de Marcos.

— Está falando de quê? — tornou Marcos, fingindo-se
de desentendido.
— Você sabe muito bem. Sentou-se lá atrás na primeira
aula e já está apaixonado pela garota do gostosão da turma.
— Ficou louco, é? Eu mal conheço a menina.
— Mas não tira os olhos dela. Pensa que eu não percebi?
E, se eu percebi, Nelson também percebeu.
— Você está maluco! Não estou apaixonado por ninguém.
— Se não está, tome cuidado para não ficar. Não vai
dar certo.
— Pare com isso, Arnaldo. Você está imaginando coisas.
— Raquel não é para você. Ouça o que estou dizendo.
— Ah, é? — explodiu ele, sentindo a raiva consumi-lo.
— E por que não, posso saber? Só porque ela é branca e eu
sou negro? Ou porque ela é rica e eu sou pobre?
— As duas coisas.
Marcos abriu a boca, estarrecido. Não acreditava que
estava ouvindo aquilo de seu melhor amigo.

— Você agora deu para ser preconceituoso?
— De jeito nenhum! Não se trata disso. Estou apenas
tentando ser realista. Se fosse outra moça, não diria nada.
Mas Raquel é namorada de Nelson...
— Ah! O problema então não é ela, mas ele.
— Dá no mesmo.

— Não dá, não.
— Você não está entendendo. Gente assim não se
mistura com pessoas feito você.
— Você se mistura.
— Não me confunda com eles. Tenho princípios. E depois,
não sou rico. Minha família é de classe média, como
a maioria por aqui. Mas eles dois, não. O pai de Nelson é
desembargador, e Raquel é filha de um cirurgião cheio da
grana. Sabe lá o que é isso? Você acha mesmo que pode se
envolver com gente assim?
— Você está julgando as pessoas. Não os conhece,
mas se acha no direito de pensar que elas são preconceituosas
só porque são importantes e ricas.
— Não seja bobo. A família de Nelson é de gente importante,
metida e arrogante.
— Mesmo que eles sejam assim, não tenho nada com
isso. Não estou interessado em Raquel.
— Percebe-se.
— Não precisa ficar de ironia. Eu só troquei duas palavras
com ela. Aliás, não troquei palavra nenhuma. Foi ela
que falou comigo.
— Estou alertando-o porque sou seu amigo e quero o
seu bem. Se você tivesse a mínima chance com ela, eu daria
a maior força. Mas sei que não tem. Ela vive em um mundo
completamente diferente do seu.
— Bem se vê o quanto você é meu amigo.
— Não posso incentivar um romance que sei que só
lhe trará sofrimentos.
— Pare com isso, está bem? — esbravejou Marcos,
ievantando-se da cadeira. — Não estou interessado em ninguém
e ponto final. Chega de besteira!
O sinal anunciando o término do intervalo soou, e todos
retornaram à sala. Marcos entrou pela porta da frente,
e Raquel, pela de trás. Era por isso que raramente se viam.
Ele pertencia ao mundo dos pobretões que contavam com o


esforço próprio para ser alguém na vida, enquanto ela, provavelmente,
só estudava para ter um diploma universitário e
alcançar um status a mais na sociedade.

Durante o resto da manhã, Marcos procurou não pensar
em Raquel, mas, quanto mais tentava, mais pensava
nela. As palavras de Arnaldo ainda ecoavam em sua cabeça.
Provavelmente, ele tinha razão em tudo o que dissera. A verdade
era que ele se interessara mesmo por Raquel. Era uma loucura,
e ele sabia. Raquel jamais olharia para alguém feito ele.

Os pensamentos de Raquel tomavam um rumo oposto
ao imaginado por Marcos e Arnaldo. Assim que ela entrou
na faculdade, conheceu o bonitão do Nelson e logo começaram
a namorar. Ele vinha de uma tradicional família de
juristas no Rio de Janeiro, ela era filha de um conceituado
cirurgião plástico. A atração foi recíproca, e o namoro, bem-
aceito pelas duas famílias.

O pai de Nelson tinha uma vida muito atribulada.
Viúvo, dividia-se entre julgamentos no Tribunal de Justiça e
as obras doutrinárias que editava. Era um homem correto,
embora muito ocupado e desligado das coisas do espírito,
principalmente após a morte da esposa, vítima de câncer
no útero. Sem tempo para se ocupar de assuntos familiares,
não participou ativamente da criação de Nelson, que cresceu
sem limites, acostumado a ter tudo o que desejava.

Os pais de Raquel eram ambos médicos. Ivone, a mãe,
era pediatra, e Ricardo, o pai, cirurgião plástico. Eram pessoas
pacatas, simpáticos às novas ideias de Raquel sobre
espiritualidade. A moça não seguia nenhuma religião específica,
mas acreditava no mundo invisível e estava sempre
lendo algum livro espírita ou esotérico. Nas horas vagas,
envolvia-se em cursos os mais variados: cromoterapia, reiki,
astrologia, teosofia, tarô e outros assuntos ligados ao ocultismo,
sem, contudo, filiar-se a nenhum deles.

O irmão mais velho, Elói, considerava tudo aquilo uma
grande bobagem. Não acreditava em espíritos nem em


reencarnação, nem em energias invisíveis, ideias muito bem
assimiladas por Raquel. Preferia o estudo frio da ciência,
sem levar em conta as necessidades da alma, como se tudo
não fosse criação de um único Deus. Cursava o último ano
de medicina e pretendia seguir os passos do pai. Afinal, para
que se esforçar em uma profissão diferente se podia aproveitar
tudo o que o pai já conquistara?

Mesmo com todas essas peculiaridades, o julgamento
de Arnaldo estava um pouco distante da realidade. Nelson
era um rapaz arrogante, mas Raquel era uma moça doce,
preocupada com o futuro espiritual da humanidade. Quando

o namoro começou, tudo pareceu uma maravilha. Nelson
era um rapaz bonito, inteligente, agradável, simpático e educado.
Tudo o que uma garota deseja.
Só havia um porém: sua simpatia e educação estavam
restritas às pessoas de seu meio social. Qualquer um que
não fizesse parte do clã da riqueza só conhecia seu lado
mais sombrio. À medida que Raquel percebeu isso, começou
a se decepcionar, questionando-se sobre seus reais
sentimentos para com ele.

A crescente desilusão com Nelson facilitou a avaliação
de Marcos. Ela já o havia notado antes, embora nunca se
atrevesse a puxar assunto com ele. Marcos fazia parte da
ala intelectual da turma, ao passo que ela fora se envolver
justo com os malandros que não queriam nada com estudo.
A faculdade nada representava para eles, além de uma satisfação
às exigências familiares e uma possibilidade de se
exibir para as garotas.

Com Marcos era diferente. Ele era inteligente, bonito, um
DOUCO tímido, porém, educado e charmoso. A tez morena, quase
negra, os cabelos encaracolados e os olhos vivos só não a
atraíram mais do que o sorriso cativante, que deixava à mostra,
na medida certa, dentes alvos e perfeitamente enfileirados.

Quando Marcos sentou-se nos fundos da sala, Raquel
viu naquele primeiro contato a chance que havia tanto


esperava. Nelson e os amigos faziam comentários infames
sobre ele, deixando-a revoltada. Ele devia desconfiar que
era o assunto dos rapazes, porque, em dado momento, seu
rosto pareceu se avermelhar, transformando o tom moreno
de sua pele em um rubro quase grená.

A beleza exótica da fisionomia de Marcos fez disparar
sua respiração. Raquel se pegou olhando fixamente para ele,
encantada com seu perfil másculo e bem delineado. Como
ele era bonito! Tentou disfarçar o mais que pôde, para não
despertar ciúmes em Nelson. Olhava-o de soslaio, à espera
de que seus olhares se cruzassem, mas nada aconteceu.
Mesmo assim, ela era suficientemente sensível para perceber
que o havia impressionado.

Na hora do intervalo, ele a seguia com os olhos por
todo lado, e ela procurava estar sempre ao alcance de sua
vista, porque também olhava para ele de forma quase imperceptível.
Nelson faria um escândalo se descobrisse, o que
não era de seu interesse. Contudo, precisava admitir que
já não gostava tanto de Nelson como antes. Será que já não
era hora de terminarem aquele namoro?


CAPÍTULO


16


Ao final do culto de domingo, Marcos voltou para casa
de braços dados com a tia, ouvindo-a comentar o sermão
daquela manhã. Realmente, foram muito bonitas as palavras
do pastor sobre o casamento e a família. Ele falou sobre o
compromisso de amor, fidelidade e respeito que o casamento
impõe, além de sua indissolubilidade.

— Não se esqueça, Marcos Wellington, de que Deus
não aprova o sexo antes do casamento — ia dizendo a tia.
— Não é só porque você é jovem que tem que se envolver
com os pecados do mundo. Sei que hoje tudo é muito fácil,
as moças estão se perdendo por aí. E os rapazes, então!
Acham que fazer sexo é sinônimo de virilidade, quando não
e. Pense bem nas palavras do pastor. Se você se perder
pela fornicação, será culpado aos olhos de Deus, e um pecador
miserável que se distancia dos conselhos bíblicos não
e digno de perdão...
Enquanto ela falava, Marcos pensava em Raquel. Será
que ela era virgem? Nelson, na certa, não devia ser. Nenhum
rapaz de sua idade era virgem naqueles dias. Só os que abrigavam
no coração as palavras da Bíblia, como ele. E Nelson
não fazia o tipo de quem era religioso ou temente a Deus.

A tia continuava sua preleção sobre casamento e
virgindade, repetindo as palavras do pastor. Às vezes, ele


gostaria de não ser tão religioso e consciente das verdades
bíblicas. Se fosse igual às pessoas comuns, não precisaria
esconder o desejo debaixo da água do chuveiro. O pastor
lhe dissera que a masturbação também era pecado, mas o
que fazer com a explosão dos hormônios?

No portão de casa, Marcos se despediu da tia.
Pelo resto da noite, seus pensamentos se ocuparam com a
lembrança de Raquel. Custou a dormir, pensando nos movimentos
dela, que acompanhara durante toda a semana,
sem coragem de lhe falar. Tinha que dar um jeito de se aproximar
dela. Mesmo contra as advertências de Arnaldo, precisava
desesperadamente lhe falar.

No dia seguinte, Marcos chegou atrasado novamente.
Como da vez anterior, sentou-se numa das últimas fileiras,
procurando Raquel pelo canto do olho. Para sua surpresa
e decepção, ela não se encontrava na sala, embora Nelson
estivesse de cochichos com seu grupinho de sempre. Eles

o cumprimentaram com fria educação e continuaram a conversa
paralela.
Marcos tentou se concentrar na aula, sem sucesso, porém.
Pousou a mochila na carteira ao lado da parede e pôs-se
a mastigar a caneta, pensando no que teria acontecido a ela.
Quase no fim da aula, ouviu a voz familiar soando a seu lado:

— Tem alguém sentado aqui?
Era ela. O coração de Marcos deu um salto do peito e
fez sua garganta engasgar:

— O quê...? Não... Pode sentar...
Ele puxou a mochila rapidamente. Ela se sentou, virou
para trás e atirou um beijo para Nelson, que lhe jogou outro.
Como não havia cadeiras vagas perto dele, optou por sentar-
se ao lado de Marcos. Com a mochila no colo, ela olhava
para a frente, imóvel.

— Chegou atrasado hoje também? — indagou ela,
sem se virar para ele. Não queria que Nelson visse que puxava
conversa com Marcos.

— Hã...? Eu... Está falando comigo?
— E com quem mais poderia ser? Tem mais alguém
aqui, além de você, de um lado, e a parede do outro?
— Desculpe-me — murmurou, abaixando a cabeça
envergonhado.
— Você não é de falar, é?
— Não muito.
— Que pena.
Quando o sinal anunciou o término da aula, ela se levantou
apressada, indo ao encontro de Nelson, que a puxou
e lhe deu um beijo rápido. Marcos maldisse a si mesmo, julgando-
se um idiota por ter perdido a oportunidade de conversar
com ela. Apanhou suas coisas e partiu furioso para
sua carteira na frente. Jogou a mochila com raiva, sentou-se
de braços cruzados.

— Nossa! — espantou-se Arnaldo. — O que foi que
aconteceu?
— Nada — respondeu de má vontade. — Sou um idiota,
só isso.
A segunda aula começou, depois a outra, e Marcos só
saiu da sala na hora do intervalo por insistência de Arnaldo. Da
cantina, Raquel olhava insistentemente para o corredor, a fim
de ver se Marcos vinha chegando. Não devia ter falado com
ele daquela maneira. Ele era tímido, não iria logo se abrindo
com ela. Como fora estúpida! Perdera a oportunidade de travar
uma conversa amistosa e iniciar uma amizade com ele.

— O que você tem? — indagou Nelson de repente,
enlaçando-a pela cintura.
— Nada. Estou com sono. Fui dormir tarde ontem.
De repente, quando Marcos despontou no saguão, ela não
conseguiu ocultar a euforia, que o namorado logo percebeu.

— O que você tem? — repetiu ele, fitando não Marcos,
mas Arnaldo, para quem julgava que Raquel estivesse olhando.
— Já disse que estou com sono. Esqueceu-se de que
voltamos tarde para casa ontem?

Quando Arnaldo e Marcos passaram próximo a eles,
Nelson puxou-a mais para junto de si e anunciou em voz
mais alta do que deveria:

— Foi uma noite e tanto, não foi? Transamos feito loucos...
Raquel empurrou-o surpresa, enquanto Marcos e
Arnaldo se sentavam a outra mesa.

— Que grosseria, Nelson! — repreendeu ela. — Por
que não põe no jornal para todo mundo saber?
Ela lhe deu as costas e partiu apressada para a sala,
sentindo que as lágrimas afloravam em seus olhos. E se
Marcos tivesse ouvido aquilo?

Por sorte, Marcos não escutara. Estava longe demais
quando Nelson falou. Se tivesse ouvido aquela revelação, teria
ficado tão decepcionado que talvez desistisse de Raquel.
Por mais que se questionasse sobre a virgindade dela, tinha
esperanças de que ela fosse diferente das outras e se
mantivesse pura para o marido.

A saída súbita de Raquel atraiu sua atenção, e ele a
seguiu com os olhos. Observou a reação de Nelson, que
passava a mão na cabeça, aparentemente hesitando entre ir
atrás dela e permanecer com seu grupinho de amigos.

— O que será que houve ali? — perguntou Marcos,
apontando com o queixo na direção de Nelson.
Arnaldo seguiu a direção que ele apontava, depois voltou-
se para Raquel, que entrava no corredor a passos apressados.

— Está tomando conta da vida dos outros? — replicou
Arnaldo. — Depois diz que não está interessado nela.
— Não é nada disso. Eu só percebi porque ela saiu
correndo.
— Está pensando que eu sou idiota, Marcos? Por que
quer se enganar desse jeito?
Marcos abaixou a cabeça, pensando numa desculpa
para dar, mas desistiu. Afinal de contas, como seu amigo,
Arnaldo devia lhe dar apoio, não o recriminar.

144


— Quer saber mesmo? Estou interessado na Raquel,
sim. E acho que ela também está interessada em mim. Qual
o problema?
— Problema nenhum.
— Se você vai dizer que ela não serve para mim, não
precisa. Não preciso que os amigos venham me recriminar.
— Puxa, Marcos, desculpe-me! Não era minha intenção
recriminá-lo. Queria apenas evitar que você sofresse.
— Quem foi que disse que vou sofrer? Você não sabe!
Por que Raquel e eu não podemos nos dar bem?
— Está bem, não precisa ficar aborrecido. Eu não sabia
que as coisas haviam chegado a esse ponto.
Marcos o fitou desanimado. Na verdade, as coisas não
tinham chegado a ponto algum.

— Deixe para lá, Arnaldo. Sou eu quem lhe deve desculpas.
Raquel e eu não temos nada, nem amigos somos. Só estou
com raiva porque perdi a oportunidade de me aproximar dela.
— Você chegou atrasado de propósito, só para sentar
perto dela, não foi?
— Foi. Ela se sentou ao meu lado, puxou conversa comigo,
e sabe o que eu fiz? Nada. Fui um idiota, fiquei lá, sem saber
o que fazer. O sinal tocou, e ela voltou para o Zé Grandão.
Arnaldo riu da comparação. Já ia retrucar quando sentiu
um esbarrão na cadeira, e Nelson passou com o punho
rente ao ouvido dele.

— O último que mexeu com a minha namorada passou
três meses no hospital — falou ele entre os dentes
para Antônio, um amigo que vinha com ele.
Arnaldo levou um susto, Marcos ficou lívido. Nelson
nem se deteve. Seguiu adiante em direção ao corredor, bem
na hora em que o sinal anunciava o fim do intervalo.

— O que foi aquilo? — indagou Arnaldo, levantándose
surpreso.
— Eu é que sei?
— Será que ele ouviu a nossa conversa?

— Não sei. Talvez.
— Pior é que sobrou para mim, que não tenho nada
com a história.
— Acho que ele me mandou um recado. Deve ter ouvido
o que dissemos.
— Ou então percebeu. Também, você não para de
olhar para ela.
Marcos silenciou. Raquel e Nelson não eram casados,
mas estavam comprometidos. Não tinha certeza se era direito
flertar com uma moça comprometida. Talvez fosse melhor
esquecê-la e partir para outra. Mas como conseguiria isso, se
seu coração já estava irremediavelmente preso ao de Raquel?

— Você acredita em amor à primeira vista? — indagou,
sonhador.
— Não. Acredito em desejo e atração.
— É isso que você acha que eu sinto por ela? Desejo,
atração?
— Não sei. Diga-me você.
— Existem coisas a meu respeito que você desconhece,
Arnaldo.
— O quê, por exemplo?
— Minha religião não permite que eu faça sexo antes
do casamento.
— Não me diga! — o outro mostrava uma surpresa
genuína.
— Sei que isso parece antiquado, mas é assim que eu
acredito que seja o certo. Por isso é que lhe digo que o que
sinto por Raquel vai muito além de um simples desejo.
— Tudo bem — concordou Arnaldo, meio sem graça.
— Se é aquilo em que você acredita...
— Você acha isso uma besteira, não acha? Vamos,
pode dizer.
— Não acho nada, Marcos. Nem tenho o direito de me
intrometer na sua vida e falar o que é certo ou errado. Posso
apenas dizer que penso diferente.

— Você já teve relações sexuais com alguma garota?
— Bem... é o normal, não é?
— Eu nunca tive. E não me arrependo disso.
— Quer dizer que você é virgem?
— Até o dia do meu casamento. Você acha que Raquel
também é?
Arnaldo tentou desconversar, abafando a vontade de
dizer, com todas as letras, que não tinha a menor dúvida
de que Raquel não era virgem.

— Como é que eu vou saber? — retrucou sem jeito.
— Pois eu acho que ela é. Raquel não se entregaria
àquele brutamontes.
— E se não for?
Ele hesitou por uns instantes, até que respondeu indeciso:
— Pensarei nisso depois.
Raquel se aborreceu profundamente com o comentário
de Nelson e não teve dúvidas em demonstrar. Estava
sentada ao lado dele, de braços cruzados, olhar carrancudo.
Quando Marcos entrou, ela lhe enviou um olhar rápido,
que Nelson percebeu, mas julgou endereçado a Arnaldo.

— O que é que está acontecendo, hein? — questionou
ele, segurando-lhe o braço.
— Nada. Quer me soltar?
Ele a soltou e tornou com uma fúria contida:
— Você está de olho naquele magricela do Arnaldo,
não está?
— O quê? — tornou ela, com desdém. — Você só
pode estar brincando.
— Você não para de olhar para ele.
— Deixe de inventar coisas. Eu nunca olhei para ele.
— Acho bom, ou a coisa pode esquentar.
— Você está me ameaçando?

— A você, não. A ele. Não vou permitir que nenhum
otário paquere a minha namorada. Ele que não se faça de
besta comigo.
— Deixe de ser idiota, Nelson! — esbravejou ela.
— Não vá se meter com o rapaz, que nunca me fez nada.
— Eu o vi olhando para você.
— Está vendo demais.
— E você corresponde.
— Essa é muito boa!
— Já disse que não vou tolerar isso.
— Quer saber de uma coisa, Nelson? — replicou ela
entre os dentes. — Vá se danar!
Rapidamente, passou a mão no material e saiu, sem
que Marcos percebesse. Era só o que faltava, Nelson cismar
com o garoto errado. Coitado do Arnaldo! Não tinha nada a
ver com a história e ainda podia acabar apanhando.

Nelson saiu atrás dela, e Marcos percebeu a movimentação,
porque ele fez um estardalhaço quando se levantou.
Pensou em segui-lo, mas Arnaldo o deteve.

— Nem se atreva! — protestou baixinho. — Você não
tem nada a ver com isso.
Do lado de fora, Nelson corria pelo corredor atrás
de Raquel.

— Por favor, meu bem, perdoe-me. Você sabe o quanto
sou ciumento. — Ela não respondeu. — Fale comigo,
Raquel, por favor.
Ela estacou e se virou para ele.

— Isso é uma paranóia. Onde já se viu ameaçar um rapaz
que nunca me fez nada? E se ele estivesse me olhando?
O que é que tem de mais?
— Não gosto que olhem para você.
— E eu não gosto que tomem conta da minha vida.
Você não é meu marido e, desse jeito, nunca vai ser.
Nelson não deixou que ela continuasse a falar, tapando
sua boca com um beijo ardente. Raquel achou melhor

148


não resistir. Foi um momento engraçado, diferente. Não havia
mais desejo nos lábios dela ao tocar os dele. O que sentiu
foi um misto de repulsa e medo, uma certeza de que a
paixão se acabara ali. Como faria para dizer isso a ele sem
provocar sua ira?

— Nunca mais vou fazer isso — prometeu Nelson.
— Juro que não vou.
Ela encostou a cabeça no ombro dele e deixou-se ficar,
momentaneamente inerte diante da inevitabilidade do fim.
Um abismo se abriu entre eles, ela teve vontade de chorar.
Subitamente, todo seu corpo estremeceu, um calor gostoso
desceu-lhe pela garganta. Agora sabia de tudo: seu coração
começou a bater, eufórico, não porque ela estivesse nos braços
de Nelson, mas porque acabara de ver Marcos passar.


CAPÍTULO

17

A sala escura e abafada da mansão dos Silva e Souza
causava um certo mal-estar em Afrânio, acostumado a serviços
ao ar livre. Desde menino sentia-se enclausurado entre
quatro paredes e cedo decidira trabalhar em algo que, além
de não exigir muitas horas de escritório, lhe facultasse uma
mobilidade maior do que o normal. Não fora por outro motivo
que, após longo período de reflexão, optara pela profissão
de detetive, para desgosto do pai, que sonhava vê-lo formado
em medicina. Mas Afrânio gostava de estar o tempo todo
se movimentando pelas ruas, olhos e ouvidos atentos, atrás
de pessoas desaparecidas ou que tinham algo a esconder,
como nos filmes de mistério que via na televisão.

A realidade, porém, era um pouco mais obscura. Faltava
na profissão o glamour de Hollywood. A carreira, muitas vezes,
era bem mais perigosa e sórdida, sem o romantismo das
fitas de cinema. Mesmo assim, era aquilo de que gostava e

o que fazia melhor. Sua dedicação ao trabalho lhe valera reconhecimento
nacional. Muitos eram os figurões que o contratavam
para investigar a vida conjugal de suas mulheres ou
amantes. Pessoas desaparecidas também eram a sua especialidade,
e Afrânio ficou pensando em qual dos dois grupos
se encaixaria o senhor Graciliano Silva e Souza.

Não suportando mais o abafamento do ambiente, abriu
a janela e aspirou profundamente o ar límpido da manhã.
No mesmo instante, um ruído na porta anunciou a chegada
de Graciliano, que entrou seguido da mulher. Se ele vinha
acompanhado da esposa, então, o caso devia ser de desaparecimento.
Afrânio afastou-se da janela e apertou a mão
que o outro lhe estendia.

— Senhor Afrânio, muito prazer — cumprimentou ele
cordialmente. — Esta é minha esposa, Bernadete, e eu sou
Graciliano Silva e Souza.
— O prazer é todo meu — respondeu ele, apertando
levemente a mão de Bernadete.
— Por favor, sente-se — pediu ela, apontando para
uma poltrona, enquanto os dois se sentavam no grande sofá
em frente.
— Obrigado.
Os três se acomodaram. Bernadete cruzou as mãos
sobre o colo e abaixou os olhos. Parecia profundamente
abalada, o que indicava o desaparecimento de um filho ou
uma filha. Afrânio tinha experiência suficiente para detectar

o sofrimento da mãe nesses casos.
— Muito bem, seu Afrânio — Graciliano começou a
dizer —, chamei o senhor aqui porque o seu nome foi muito
bem recomendado por amigos meus que já se utilizaram de
seus serviços e ficaram impressionados com a sua eficiência
e discrição.
— Obrigado, senhor. Esse tem sido sempre o meu lema.
— O senhor não imagina como é embaraçoso para
nós termos que nos utilizar dos serviços de um detetive, mas
enfim... acreditamos que essa seja a única maneira de conseguirmos
o que queremos. — Afrânio assentiu e continuou
espera, enquanto Graciliano prosseguia: — O senhor deve
saber que sou um homem de posses.

— Sei que é dono de uma empresa de ônibus.

— Exatamente. Como pessoa influente, rica, não posso
me descuidar e expor a mim e a minha esposa ao perigo
de aventureiros sem escrúpulos. Por isso, é de suma
importância que o senhor vá fundo na investigação sobre o
assunto de que vou lhe falar, para que não sejamos vítimas
de nenhum golpista.
— Perfeitamente.
Graciliano parou, engoliu em seco e olhou para a mulher,
que chorava de mansinho, enxugando as lágrimas no
seu lencinho de cambraia. Passou a mão pela testa, como se
tentasse organizar as palavras, reuniu coragem e retomou
a narrativa:

— Nosso filho faleceu recentemente. Era nosso único
filho e... — parou, a voz embargada, tomou novo fôlego e
continuou: — Estava com trinta e quatro anos, solteiro. Era
um rapaz triste, solitário. E era tudo o que nós tínhamos.
Afrânio percebia como era doloroso para ele falar a
respeito do filho e permaneceu quieto, em silencioso respeito.
Teve que aguardar alguns minutos até Graciliano controlar
as lágrimas e conseguir imprimir à voz um tom mais claro:

— Acho que nem é preciso dizer como estamos sofrendo,
minha esposa e eu — olhou de soslaio para Bernadete,
que permanecia imóvel. — Não nos restou mais ninguém na
vida. Anderson era nosso único filho e, como não era casado,
não nos deixou netos legítimos, todavia...
Novamente a pausa dolorosa, mas, dessa vez, os soluços
de Bernadete se tornaram mais audíveis.

— Se o senhor quiser, posso voltar outra hora — sugeriu
Afrânio, acostumado a situações de extrema comoção
como aquela, em que as pessoas mal conseguiam falar.
— Não — objetou Bernadete, a voz surpreendentemente
grave e firme. — Chamamos o senhor aqui com um
propósito e não vamos deixar que se vá sem que o conheça.
Diga-lhe logo, Graciliano, não aguento mais.
152


Graciliano encarou-a com desgosto. Era nítido o esforço
que fazia para conseguir manter o controle e narrar
sua história sem crises de desespero. Desviou os olhos da
mulher e, sem levantá-los, prosseguiu:

— Como disse, seu Afrânio, Anderson não se casou.
Contudo, deixou um filho... — nova pausa comovida — um
filho cujo paradeiro desconhecemos.
Achando que já era hora de agir, Afrânio sacou um minúsculo
gravador do bolso e perguntou em tom o mais profissional
possível:

— Importa-se se eu gravar nossa conversa?
— Isso é mesmo necessário? — contrapôs Graciliano.
— Vai me facilitar muito. Assim terei certeza de não ter
perdido um só detalhe do que me disserem. Às vezes, coisas
aparentemente sem importância são as que possibilitam
grandes descobertas.
— Muito bem. Se é essencial, vá em frente.
Afrânio acionou o botão do gravador e o posicionou na
mesinha de centro, voltado para o casal.

— Podem prosseguir, por favor — pediu ele.
— Como eu ia dizendo — Graciliano voltou a falar —,
temos um neto, filho de Anderson, que não sabemos onde
está. Não fazemos a menor ideia do seu paradeiro.
— E a mãe dele? — Afrânio indagou.
— A mãe dele foi empregada em nossa casa —
Graciliano respondeu baixinho, como se sentisse vergonha
do que estava dizendo.

— Ela foi nossa empregada quando Anderson era ainza
um menino inexperiente — completou Bernadete, aparentemente
mais desprendida do pudor que parecia tolher o
marido. — Suspeitamos até que foi ela quem o iniciou como
homem, mas isso não vem ao caso. O fato foi que ela engravidou,
e nós a expulsamos de casa. Depois disso, nunca
mais ouvimos falar dela.

— Veja bem, seu Afrânio, não quero que pense que
não somos pessoas de bem — justificou Graciliano. — Nós
apenas ficamos surpresos, essa foi nossa primeira reação.
Depois nos arrependemos, mas já era tarde demais.
— Você nunca se arrependeu — tornou Bernadete com
raiva. — Só agora, que Anderson morreu, é que você voltou
a pensar no menino e em Margarete. Só porque não temos
uma descendência, e você não quer morrer sem herdeiros!
— Não é justo me acusar. Você foi a primeira a rejeitar
a criança, porque era negra.
— Anderson sempre foi um menino frágil. Contraiu várias
pneumonias e queria conhecer o filho, com medo de
morrer, mas você não permitiu. Até que um câncer o levou...
Ela se calou, sufocada pelos soluços. Como a conversa
tomava um rumo constrangedor, Afrânio interveio:

— Peço que não briguem nem se incomodem com
a minha opinião a respeito do que fizeram ou deixaram de
fazer. Minha função é ouvi-los sem emitir nenhum juízo
de valor. Estou aqui para ajudá-los no que me pedirem, não
para julgá-los.
— Perdoe minha mulher, seu Afrânio — retorquiu
Graciliano. — Ela não se conforma por ter perdido o único
filho. Retomando o assunto, Margarete, a empregada, teve
o filho e, como nós não o aceitamos, sumiu no mundo. Não
fazemos ideia do lugar para onde foi, nem onde está morando,
nem se está viva. Nem sabemos se o menino sobreviveu.
— Sei. Entendo que a situação é difícil e dolorosa, mas
preciso saber, em detalhes, tudo o que aconteceu, desde o
dia em que descobriram que a criança era sua neta.
— Margarete aindatrabalhava para nós — foi Bernadete
quem contou. — Um dia, apareceu grávida. Como não desconfiávamos
de nada, prometi ajudá-la. Depois, Anderson
nos disse a verdade...
Com riqueza de detalhes, Bernadete contou tudo
a Afrânio, que ouviu em silêncio, impassível, sem fazer

154


comentários ou críticas. Não era sua função julgar, não se
importava com os motivos que levavam as pessoas a agir de
formas estranhas. Era pago para resolver o caso, essa era a
única coisa que realmente lhe interessava.

Quando ela finalmente terminou, Afrânio pensava por
onde poderia começar, já que eles não sabiam nem em que
direção Margarete havia partido.

— A senhora disse que o nome dela é Margarete.
Margarete de quê?
— Margarete Cândida da Fonseca, nascida aqui mesmo
em Belford Roxo, no dia 13 de janeiro de 1960. É só o
que sabemos dela.
— Não têm o endereço?
— Ela não forneceu nenhum.
— Como foi que a senhora a descobriu?
— Ela veio recomendada por uma conhecida, que
estava de mudança para a Austrália e ficou com pena de
deixá-la desempregada.
— E essa conhecida? Será que é possível falar com ela?
— Após tantos anos, perdemos o contato.
— Podemos tentar localizá-la pela internet. Talvez ela
se lembre de alguma coisa.
— Se o senhor acha que é possível, lhe darei o
nome dela.
Bernadete apanhou um bloquinho, anotou o nome da
mulher e entregou-o a Afrânio.

— Obrigado — ele leu e guardou o papelzinho na carteira.
— Margarete não deixou nenhum documento?
— Não.
— Nem uma carteira de trabalho?
— Bernadete lhe pediu a carteira de trabalho, mas ela
disse que não tinha, porque não sabia ler e nunca se interessou
em tirar — esclareceu Graciliano. — Ela mal sabia
escrever o seu nome, e Bernadete não insistiu.

— Imagino que não possuam nenhuma foto dela, não
é mesmo?
— Só uma, que Anderson escondeu muito bem — informou
Bernadete. — Mas também não está muito boa.
A foto, amassada nas mãos de Bernadete, estava com
ela desde o início. Passou o retrato às mãos de Afrânio, que
a pegou e disse, desanimado:

— Está muito escura, quase não dá para ver nada.
A fotografia mostrava Margarete com o espanador na
mão, tirando pó da estante de livros de Anderson, aparentemente
surpreendida pela máquina fotográfica. Não era muito,
mas era o que tinha para começar.

— Só mais uma pergunta — falou Afrânio. — Sabem a
data em que o menino nasceu?
— Não — respondeu Graciliano. — Mas deve ter sido
por volta do começo de agosto de 1987.
— Muito bem. O que me deram vai ter que bastar por
enquanto. Farei relatórios semanais aos senhores, quando
então acertaremos os pagamentos. Até lá, qualquer novidade,
qualquer coisa de que se lembrem, por favor, entrem
em contato. Acredito que têm todos os meus dados, não?
— Sim, temos.
— Está bem, então. Obrigado por terem me escolhido
e não se preocupem com nada. O caso de vocês está em
boas mãos. Asseguro-lhes que encontrarei essa moça e o
filho dela, tudo dentro da mais alta discrição.
— Obrigado, detetive — finalizou Graciliano, estendendo-
lhe a mão. — É importante que ninguém saiba que
estou procurando um neto desaparecido, ou muitos virão
bater à minha porta dizendo-se filhos de Margarete.
— Hoje em dia as coisas não são tão fáceis assim. O teste
de DNA está aí para desmascarar os aproveitadores mentirosos.
— Mas o desgaste emocional e financeiro vai ser muito
grande. Minha esposa e eu não queremos passar por
mais do que já passamos.
156


— E compreensível. Bem, como disse, não há com o
que se preocuparem. Como profissional competente, o sigilo
faz parte da minha profissão.
— Obrigado, seu Afrânio. Tenha um bom dia.
— Bom dia — repetiu ele.
— Confiamos no senhor — afirmou Bernadete, apertando-
lhe as mãos. — Eu quero muito encontrar esse neto.
É o único pedaço do meu filho que nos restou.
Afrânio deu-lhe um sorriso encorajador e saiu com a
foto no bolso, pensando por onde iria iniciar aquela investigação.
Os dados de que dispunha não eram muitos, mas, ainda
assim, esperava que não fosse difícil encontrar a moça, se ela
estivesse viva. Tudo acontecera havia muito tempo, lugares e
pessoas mudavam no decorrer dos anos. Seria muita sorte
encontrar alguém que ainda se lembrasse de Margarete.

A primeira coisa que fez quando voltou a seu escritório
foi procurar no computador o nome da mulher que indicara
Margarete. Procurou em tudo, desde blogs pessoais até sites
de relacionamento, tanto no Brasil quanto na Austrália.
Nada. Se a mulher vivia, não acessava a internet.

Foi adiante nas buscas e depois de alguns dias recebeu
a certidão de nascimento de Margarete, localizada
por um site especializado em certidões do Registro Civil.
Descobriu que os pais dela haviam morrido muitos anos
atrás, e ela não tinha mais nenhum parente vivo. Onde é que
uma pessoa sem dinheiro nem família, sozinha e abandonada,
com um filho pequeno no colo, ia se refugiar?

O jeito era ir perguntando aos vizinhos, principalmente
aos comerciantes. Com um pouco de sorte, alguém daquela
época ainda estaria por ali e poderia se lembrar. Tinha uma
foto precária, pouco nítida, escura. Escaneou-a e abriu-a no
photoshop, onde conseguiu clareá-la e torná-la um pouco
mais nítida. Tinha que servir.


CAPÍTULO

18

Seria uma noite longa e difícil, mas Raquel já havia tomado
uma decisão. Não adiantava mais levar avante o namoro
com Nelson se seus pensamentos estavam ligados em
Marcos. Aguentara o máximo que pudera, não dava mais para
enganar a si mesma. Nelson começava a pertencer ao passado,
enquanto Marcos ia dominando todos os seus momentos
presentes e preenchendo os sonhos do seu futuro.

Encontraram-se num barzinho na Barra da Tijuca.
Quando ela chegou, ele já estava sentado, bebendo um
copo de chope, e se levantou para beijá-la. Raquel aceitou

o beijo sem maior entusiasmo e sentou-se defronte a ele,
pedindo um guaraná.
— É só isso que vai beber? — perguntou Nelson,
espantado.
— Nada de álcool. Estou dirigindo. E você também
não devia beber.
— E daí? Estou acostumado — ele deu um gole e indagou:
— Não quer sair para dançar?
— Não. Daqui, vou direto para casa.
— Por quê? O que aconteceu?
Ela alisou a borda do copo com o dedo, até que tomou
coragem e olhou-o de frente:

— Tenho algo importante a lhe dizer.

Sentindo a tensão nas palavras dela, Nelson intimamente
adivinhou o assunto, mas não disse nada. Não queria
acreditar. Ela abaixou momentaneamente os olhos, sentindo
a tensão no ar. Quase desistiu, mas, pensando em Marcos,
a coragem retornou. Encarou-o novamente e, sem muito
pensar, disparou:

— Nós dois não estamos mais dando certo, Nelson.
Acho que chegou a hora de terminarmos.
Nelson deu um gole grande no chope, enxugou os lábios
com a mão e retrucou, sem conseguir ocultar o tom de
revolta na voz:

— Porquê?
— Porque eu... bem... não dá mais...
— Isso você já disse. Quero saber por quê. Eu fiz alguma
coisa de que você não gostou?
— Você não fez nada.
— Então o que é? Não gosta mais de mim?
— Gosto... como amigo.
— Como amigo... — repetiu ele com desdém. — Que
papo-furado, Raquel! Você está terminando comigo porque
se apaixonou por outro, não foi?
Ela sentiu um certo constrangimento, sem, contudo,
se deixar intimidar. Não era culpa sua se não gostava mais
dele nem lhe devia explicações sobre seus sentimentos.
Eles não eram casados nem ela lhe pertencia. Podia fazer o
que quisesse.

— Escute aqui, Nelson — tornou ela em tom mais confiante
—, estou sendo honesta com você. Acho-o um cara
legal, que não merece ser enganado. Mas não gosto mais
de você, não quero mais namorar você. Se me apaixonei por
outro, não interessa. O que interessa é que o nosso namoro
acabou. Podemos ser amigos, mas nada além disso.
— Não quero a sua amizade.
— É o que posso lhe oferecer, de coração. Se você
não quer, sinto muito.

— Quero você.
— Não dá mais, já disse.
— Você não pode me deixar assim. E todos os nossos
momentos?
— Foram muito bons, vou me lembrar com carinho de
cada um deles. Mas já passou.
— Você está é doida para dar para aquele cara, não
é? — revidou ele, com tanta raiva que ela chegou a sentir um
leve mal-estar.
— Vou ignorar o seu comentário vulgar. Aliás, é só o
que você vem fazendo ultimamente. Virou um grosseirão.
— Para ver a que ponto você me levou.
— Ah! A culpa agora é minha.
— Você é que está me deixando por aquele magricela.
— Não o estou deixando por ninguém! Será que você
não pode aceitar que uma mulher não goste mais de você?
Ou o seu orgulho é tão grande que não admite perder?
— Perder? Para um nerd magricela? Era só o que me
faltava. Aquele Arnaldo não é ninguém, nem se compara comigo.
Só uma louca feito você para me trocar por ele.
— O seu ego é tão grande que nem cabe dentro do peito.
Você pensa que é o melhor homem do mundo, não pensa?
— Posso não ser o melhor do mundo, mas melhor do
que ele eu sou, com certeza.
— Quanta besteira! Pois fique sabendo que Arnaldo
é um sujeito bem melhor do que você. Pelo menos não é
esnobe nem vulgar. É inteligente, simpático e agradável.
Jamais diria a uma mulher as barbaridades que você diz.
Raquel nem sabia por que estava elogiando Arnaldo.
Nunca trocara sequer duas palavras com ele nem tinha reparado
na sua existência até Nelson cismar com ele. Na verdade,
usava o nome dele para referir-se a Marcos, porque
era nele que pensava ao dizer aquelas coisas.

— Você não sabe a encrenca em que está se metendo
— revidou Nelson entre os dentes.
160


— Vai querer me vencer na base da ameaça? É isso
que está tentando fazer?
— Não a estou ameaçando. Já disse que jamais lhe
faria nenhum mal. Não sou covarde, não agrido mulheres.
Mas aquele Arnaldo vai se ver comigo!
— Quanta ignorância! Está culpando alguém que não
tem nada a ver com isso. Nem Arnaldo, nem ninguém é responsável
pelo término do nosso namoro. Sou eu que não
gosto mais de você.
— Até ontem, não foi isso que pareceu. Tive a impressão
de que a deixei bastante satisfeita na cama.
— Lá vem você de novo com suas vulgaridades. Sexo
não tem nada a ver com amor.
— Tem sim.
— No nosso caso, não.
— O que você quer dizer com isso? — enfureceu-se.
Ela se arrependeu no mesmo momento em que falou,
mas já era tarde demais.

— Olhe, Nelson, vamos deixar isso para lá — objetou
em tom mais ameno. — Nós dois estamos nos exaltando e
acabaremos dizendo coisas das quais nos arrependeremos
depois. Gosto de você, mas não como namorado. Pronto, é
só isso. Não precisamos ficar discutindo, isso não vai levar
a nada. Só vamos nos aborrecer e nada resolveremos. Eu
estou decidida a terminar, nada vai me fazer voltar atrás.
— Tudo por causa do Arnaldo, não é? Vamos, confesse.
Você me deve ao menos isso. É por causa dele ou não
que você está terminando tudo?
— Não. Posso lhe garantir que não.
— Mas então, por quê?
— Já disse por quê. Não vou ficar me repetindo.
Por um momento, os olhos cheios de água de Nelson a
sensibilizaram, quase fazendo-a voltar atrás, mas a lembrança
de Marcos novamente a fortaleceu, mantendo-a impassível.


— Tem certeza? — perguntou ele, alternando a raiva e
a dor na sua voz.
— Tenho.
— Não vai se arrepender depois? Porque, se você se
arrepender, vai ser tarde demais. Não vou aceitá-la...
— Não vou me arrepender — cortou ela. — Estou segura
do que quero.
— Está bem. Você é quem sabe. Mas depois não venha
me pedir para voltar.
— Não vou pedir, não se preocupe — ela deu um último
gole no guaraná e se preparou para sair. — Acho que
já vou indo.
Nelson balançou a cabeça, mal contendo o ódio. Ela
abriu a bolsa para retirar a carteira, mas ele a impediu:

— Você nunca teve que pagar nada comigo. Não vai
ser agora que vai precisar.
— Está bem — disse ela, guardando a carteira de volta
e apanhando a chave do carro. — Obrigada. Espero que
não haja ressentimentos entre nós.
— Não haverá — mentiu ele, pois o ressentimento já
estava instaurado.
— Bom, é isso. Então tchau.
— Tchau... — ela se afastou, e ele completou a frase:
— Cachorra.
Raquel chegou ao carro trêmula. Não fora tão fácil
quanto esperava, mas deu tudo certo. Por mais que Nelson
tivesse ficado revoltado, a raiva aos poucos ia passar, ele
logo a esqueceria. Era um rapaz bonito, muito cobiçado
pelas garotas. Não teria dificuldade em encontrar uma
nova namorada.

Ela não sabia o quanto estava enganada e desconhecia
o quanto ele podia sentir-se magoado.


162



Enquanto isso, Marcos era atendido no hospital do
Andaraí, onde fora diagnosticada dengue. Tratado e medicado,
foi mandado para casa, orientado a manter repouso
absoluto e ingerir bastante líquido. Durante uma semana,
não poderia ir à faculdade nem ao trabalho.

Acompanhado da mãe e da tia, Marcos retornou para
casa ainda com fortes dores no abdome, embora a febre
começasse a ceder. Clementina o acomodou no sofá e colocou
as cobertas sobre ele.

— Quer que ligue a televisão? — indagou ela gentilmente,
alisando-lhe os cabelos.
— Não. Só quero dormir.
— Muito bem, durma então.
Ele se ajeitou e ainda teve tempo de perguntar, antes
de ferrar no sono:

— Mãe, você liga para o meu trabalho?
— Pode deixar, ligo sim.
— E avisa o Arnaldo também?
— Aviso. Agora descanse.
Nem precisou repetir. Na mesma hora, Marcos adormeceu.
Na segunda-feira, quando Raquel chegou à faculdade,
procurou um lugar na frente, para ficar mais perto de Marcos,
só que a carteira dele permaneceu vazia durante toda a manhã.
A todo instante, ela olhava para a porta, na esperança
de vê-lo entrar, frustrando-se sempre que outro aluno surgia.

Mais atrás, Nelson se roía de ciúmes e despeito. Não
tirava os olhos de Raquel, julgando que ela olhava insistentemente
na direção de Arnaldo. Quando alguém fez uma
pergunta ao professor, Arnaldo se juntou à discussão acadêmica,
virando-se para trás para melhor argumentar com o
outro aluno. Naquele momento, os olhos dele se cruzaram
com os de Raquel, e Arnaldo deu-lhe um sorriso amistoso,
que ela correspondeu com ansiedade.

Em seu lugar, sem nada perder, Nelson partiu a caneta
ao meio, derramando tinta azul sobre o caderno e


manchando a mão. Nem se incomodou. Queria que aquela
caneta fosse a cabeça de Arnaldo, e aquela tinta, o seu sangue
derramado.

Decepcionada, ansiosa, Raquel não sabia o que havia
acontecido a Marcos. Queria perguntar a Arnaldo, mas tinha
vergonha. Afinal, nunca conversara com ele. Quando ele se
virara para trás para falar com o colega, ela quase o interpelou,
mas achou que seria inadequado fazer-lhe perguntas
pessoais em meio a uma aula tão importante.

Tentou acercar-se dele na hora do intervalo, mas não
conseguiu. Arnaldo saiu com o professor, expondo suas
ideias entusiasticamente, e ela perdeu a coragem de se
aproximar. Mas, quando Marcos não apareceu no dia seguinte,
Raquel finalmente decidiu que iria falar com Arnaldo.
Esperou o intervalo e postou-se atrás dele na fila da cantina.

— Oi — cumprimentou ela, tocando-lhe o ombro.
— Ah! — fez ele, surpreso. — Oi.
— Você por acaso sabe o que houve com o Marcos?
Ele não tem vindo à aula...
— Ele está com dengue.
Uma gritaria de calouros abafou a voz do rapaz, obrigando-
a a aproximar os lábios do ouvido dele e quase gritar:

— O quê?
Ele está com dengue — repetiu Arnaldo, também ao
ouvido dela.

— Com dengue? — repetiu. — Coitado!
— É. Vai ficar a semana toda de repouso.
— Que pena!
Chegou a vez de Arnaldo, que se desligou dela e fez
o pedido. De tão decepcionada, Raquel perdeu a fome e
voltou para a sala, passando por Nelson, que precisou ser
contido pelos amigos para não agredir Arnaldo.
— Cachorra! — rugiu ele. — Mentiu para mim. Disse
que não tinha interesse no magricela e estava lá, de papo
com ele.

— Calma, Nelson — aconselhou Paulo, um dos rapazes.
— Eles não estavam fazendo nada de mais.
— Eles estavam juntos! — insistiu Nelson, que só via
o que queria ver. — Eu os vi sussurrando no ouvido um do outro.
— Também acho — incentivou Antônio, outro amigo.
— E ela bem estava com a mão no ombro dele.
— Os dois estão disfarçando — prosseguiu Nelson,
cego pelo ciúme. — Aposto como se encontram longe daqui,
para eu não ver.
— Que motivos ela tem para enganar você? — ponderou
Paulo. — Vocês já não terminaram?
— Ela me garantiu que não foi por causa do magricela.
Mentirosa! Agora vejo que foi.
Paulo ia protestar, mas o sinal chamou-os de volta à
sala. Durante o resto da manhã, Raquel permaneceu calada,
e Arnaldo, concentrado nas aulas. Foi assim pelo restante
da semana. Com Marcos doente, ela não via muita graça na
faculdade. Queria não pensar nele, mas volta e meia pegava-
se com a imagem dele flutuando em seus pensamentos.
Nem ela mesma entendia por que se interessara tanto por
ele. Marcos era um rapaz bonito, não tanto quanto Nelson,
mas tinha o olhar inteligente e bondoso. Ela estava realmente
muito interessada nele.

165


CAPÍTULO

19

A dengue foi embora, e Marcos retomou sua vida.
Chegou cedo à faculdade, sem saber que Raquel esperava
por ele no hall de entrada dos corredores. Ela estava com
umas amigas, e ele passou sem notar sua presença. Entrou
na sala ainda vazia, ocupou a carteira de sempre. Logo depois,
Raquel entrou e tomou o lugar ao lado dele.

— Será que posso me sentar aqui? — indagou, e
Marcos levou um susto ao constatar que era ela.
— Fique à vontade — respondeu ele, completamente
desconcertado.
— O dono do lugar não vai reclamar?
— Acho que os lugares não têm dono. São de quem
chegar primeiro.
— Ótimo! — alegrou-se ela, sentando-se com a mochila
no colo.
Marcos estava confuso e feliz ao mesmo tempo, embora
não compreendesse por que Raquel resolvera se sentar
ao lado dele, longe do namorado. Arnaldo lhe dissera, ao
telefone, que ela perguntara por ele, mas ele interpretara o
fato como um gesto de mera polidez.

— Você não costumava se sentar lá atrás? — sondou ele.
— Eu o incomodo sentando-me aqui? — revidou ela,
fazendo menção de se levantar.

— Não, de jeito nenhum! — protestou ele, apressadamente.
— Eu só estranhei. O seu namorado pode não gostar.
— Ele não é mais meu namorado.
O coração de Marcos deu um pulo. Ele quase engasgou,
mas conseguiu manter o tom da conversa:

— Jura?
— Preciso jurar?
— Desculpe-me, é só maneira de falar.
— Eu sei, estou brincando. E você, está melhor?
Soube que teve dengue.
— Estou bem, agora.
— Se tivesse seu telefone, eu mesma teria ligado para
saber como você estava.
— Meu telefone? — tornou ele atônito, desacostumado
de abordagens tão diretas.
— É, telefone. Você não tem um na sua casa?
— Na verdade, não — confessou ele, já que não sabia
e não queria mentir.
— Por quê? O que seus pais têm contra o telefone?
Ele ia responder, mas o professor entrou, com Arnaldo
logo atrás. O amigo sentou-se na carteira do outro lado, cumprimentou
Raquel com um sorriso, olhando para Marcos de
soslaio. Ficaram praticamente sem se falar até o intervalo.
Saíram juntos para a cantina, onde Raquel se sentou a uma
mesa com Marcos.

— A cachorra continua disfarçando — constatou
Nelson, que a vigiava a distância. — Fica de papo com o
amiguinho dele para eu não desconfiar.
— Acho que você está ficando paranóico — observou
Paulo. — Só o que vejo é uma garota conversando com um
colega de turma.
Nelson tentou se desligar de Raquel, interessando-se
na conversa sobre futebol dos amigos. De vez em quando,
fitava-a pelo canto do olho, sentindo imenso alívio por não
ver Arnaldo por perto.


Sentados à mesma mesa, Marcos e Raquel continuavam
a conversar.

— Você ainda não me disse por que não tem telefone
na sua casa — lembrou ela.
Marcos ficou confuso. Durante todo o tempo em que
pensara em Raquel, não se preparara para aquele momento.
O que mais queria era conversar com ela, contudo, não
sabia como lhe falar sobre si mesmo. Apesar da enorme diferença
social que existia entre ambos, não pretendia iniciar
um relacionamento, mesmo que de amizade, sustentado em
mentiras. Tinha que lhe contar que era pobre e morava no
morro, mas não tinha coragem, com medo de que ela se
decepcionasse e desistisse dele.

Marcos não estava acostumado a mentir. O pastor
ensinava que o melhor caminho para o coração era o da
verdade. Com essa certeza, engoliu a vergonha e, de olhos
baixos, admitiu:

— Minha família é muito pobre. Não temos telefone.
Ela se surpreendeu, mas não deixou transparecer.
— E você não tem celular?
— Tenho.
Com um sorriso encantador, Raquel tirou seu celular
da bolsa e gravou o número dele na memória do aparelho.
Ainda aturdido, ele sacou o seu do bolso e fez o mesmo.
Estava espantadíssimo com o fato de ela não ter encerrado
a conversa ao saber de sua pobreza e ainda estava interessada
em ter o seu celular.

— Você mora aqui por perto? — prosseguiu ela.
Outra pergunta difícil de responder. Dizer a ela que
morava no morro não devia ser motivo de vergonha, mas
era. Por isso, optou por uma meia verdade:

— Moro na Tijuca.
— Sério? Eu também. Que coincidência, não?
— Verdade.
— E os seus pais, o que fazem?
168


— Minha mãe é faxineira — falou ele humildemente,
sentindo o rosto arder de vergonha. — E meu pai nos abandonou
há alguns anos.
Percebendo o seu embaraço, Raquel tocou de leve a
sua mão e falou com simpatia:

— Não precisa ficar constrangido. Não vejo nada de
mais em sua mãe ser faxineira.
— Não?
— Não. Nem me incomoda o fato de você ser pobre.
Afinal, ninguém precisa de dinheiro para ter um amigo.
— Só você pensa assim. A maioria das pessoas me
discriminaria se soubesse que minha mãe é faxineira.
— Arnaldo sabe?
— Ele não é como os outros. É meu amigo.
— Posso ser sua amiga também.
O sorriso dela era verdadeiro, deixando Marcos mais à
vontade para falar sobre sua vida.

— Você é diferente. Segue alguma religião?
— Não. E você?
— É importante ter uma religião. É o que nos dá sustentação
para enfrentar os dissabores da vida.
— Talvez eu não tenha tantos dissabores assim, por
isso, não me interesse muito por religião. Mas gosto de ler e
compreender os mistérios da vida.
— Como alguém pode compreender os mistérios da
vida, além de Deus, é claro?
— Deus não é alguém, por isso, não conta. E podemos
não compreender tudo, mas temos que buscar um caminho.
Você não acha?
— Acho que importante é o caminho da religião.
— Muito bem. E qual é a sua?
— Sou evangélico.
Estava ficando difícil, mas Raquel sorriu. A razão dizia
que ela e Marcos jamais dariam certo como namorados.

169


Ainda assim, não queria desistir dele. Mesmo com tantas
diferenças, sentia-se cada vez mais atraída por ele.

— Acho legal você ter uma religião — disse ela com
cuidado. — E acho também que, com respeito, é possível
conviver com todas.
— Você é ecumênica, então?
— Não necessariamente. Digamos que eu apenas
respeito tudo e todos.
— Mas não segue religião nenhuma.
— Isso é tão importante assim para você?
Era muito importante, mas, naquele momento, Raquel
tinha mais importância do que tudo. As diferenças que ela
reconhecia, ele também detectava. Contudo, assim como
Raquel, Marcos não queria desistir de se conhecerem.

— É importante, mas não é obstáculo à nossa amizade
— concluiu ele.
Quando o sinal tocou, os dois voltaram para a sala de
aula rindo e encontraram Arnaldo lendo um livro.

— Por que não foi se juntar a nós na cantina? — perguntou
Marcos, sentando-se ao lado dele.
— Preferi ficar aqui lendo — respondeu ele, piscando
um olho para Marcos, no exato instante em que Nelson entrava
na sala pela porta da frente.
É claro que ele pensou que a piscadela havia sido endereçada
a Raquel. O ciúme e o preconceito embotavam
seu raciocínio, impedindo-o de perceber o romance nascente
entre Raquel e Marcos.

Uma amizade se formou entre os três. Raquel e Marcos
sentiam-se cada vez mais atraídos um pelo outro, mas ela
também gostara de Arnaldo, vendo nele um bom amigo.

A paixão aumentava a cada dia, contudo, Marcos ainda
resistia em entregar-se completamente. A falta de religião
de Raquel era um problema. Ele precisava convertê-la, com
calma e sabedoria, embora não soubesse como fazê-lo.

170


Talvez fosse melhor pedir conselhos à tia. Essa ideia

o animou um pouco mais, embora ele não estivesse bem
certo sobre a conveniência de lhe falar sobre Raquel. Talvez
fosse melhor contar primeiro à mãe. Foi o que fez. Ao voltar
para casa depois do trabalho, abriu-se com ela.
— Eu, no seu lugar, não comentaria nada com a sua tia
— discordou Clementina. — Ela não vai aceitar essa moça.
— Por quê? — indignou-se Marcos.
— Porque ela não é evangélica, e você sabe como a
sua tia é carola.
— Raquel é uma boa pessoa. Tenho certeza de que
vocês vão gostar dela.
— Eu vou gostar, não tenho dúvida. Mas Leontina é
cheia de esquisitices. Vai dizer que a menina não serve para
você, que é uma perdida, uma herege e sabe-se lá o que mais.
— Raquel não é nada disso! É uma moça de família,
estudante como eu. E depois, não vou pedir a aprovação de
tia Leontina. Quero apenas que ela me ajude a convencer
Raquel a se tornar evangélica também.
— Você acha que isso vai dar certo, meu filho? Você
mesmo disse que ela se interessa por essas coisas de ocultismo.
Será que vai aceitar a sua religião?
— Por que não? É uma religião muito boa. E ela diz
que procura verdades. Onde mais poderia encontrá-las, a
não ser na Bíblia?
Clementina suspirou e coçou a cabeça, pensando que
errara em deixar que a irmã influenciasse tanto o filho com
aquela coisa de religião. No fundo, só permitira para se ver
livre da insistência de Leontina, que, com as atenções voltadas
para o sobrinho, não lhe cobraria mais que frequentasse
os cultos. E fora exatamente isso que acontecera.

— Não estou dizendo que a religião não é boa — disse
cautelosamente. — Não é isso. Mas será que é aconselhável
tentar forçar a moça a seguir um credo que não é o seu?
— Mas ela não tem credo algum! Ela mesma disse.

— Ela deixou bem claro que não gosta de religião.
Sendo assim, acho que você pode deixá-la aborrecida se
insistir com essa ideia. Ninguém gosta de ser pressionado.
— Mas, mãe, como vou poder namorá-la, se ela não
for da minha religião?
— Quem foi que disse que ela tem que ser da sua religião?
— O pastor aconselha...
— O pastor aconselha, mas não obriga. É por isso
que desisti dessa coisa de igreja — desabafou ela. — Já não
aguentava mais o pastor e sua tia me dizendo o que eu podia
ou não fazer. Acho que cada um tem que dirigir a própria vida.
— Mas o pastor tem o dever de nos orientar!
— Orientar é uma coisa. Ditar ordens é outra, bem
diferente.
Marcos estava confuso. Nunca ouvira a mãe falar daquele
jeito, mas agora compreendia por que ela havia se
afastado da igreja.

— Você acha melhor então não falar nada com tia
Leontina? — questionou ele.
— Acho. E não é só por esse motivo. Você disse que
ela é uma moça branca e rica. Você já pensou nas consequências
disso?
— Que consequências?
— Eu, particularmente, acho que isso não vai dar certo.
Duvido que os pais dela o aceitem, sendo negro e pobre.
Acho que vão proibir o namoro.
— Você os está julgando, e as Escrituras dizem que
não devemos julgar.
— Posso estar julgando, mas o que falo é baseado na
experiência. Não quero que você sofra.
— Vou assumir esse risco.
— Pense bem antes de tomar qualquer atitude. Vocês
ainda não iniciaram nenhum romance. Será que não é melhor
deixar as coisas assim? Não podem ser somente amigos?
— Eu... estou apaixonado... E acho que ela também.
172


— Valha-me, Deus! O que será de você, meu filho?
— Deus há de me ajudar, mãe.
— Confie somente em Deus nesse momento, então —
sugeriu ela. — Ao menos Ele não vai recriminar você.
Marcos ficou desanimado. Queria muito a ajuda da tia,
mas a mãe tinha razão. Se Leontina desaprovasse Raquel, ele
perderia o sossego e talvez nem conseguisse iniciar o namoro.
Talvez o melhor fosse desistir de Raquel e procurar uma moça
entre as muitas de sua igreja, mas o que fazer com a paixão?

Clementina também estava preocupada. Desde que
Romualdo se fora, perdera sua fé. Não. A verdade é
que nunca a tivera. Acomodara-se na igreja por influência
de Leontina. Em determinados momentos, tinha mesmo raiva
do pastor, de suas proibições, da filosofia de que tudo
era feio, errado, pecado. Se não dizia nada, era para não
desagradar o filho e manter a paz na família.

Os conselhos que dera a Marcos Wellington não tinham
nada a ver com religião, mas com a realidade da vida.
As pessoas, em geral, têm preconceito de tudo: ou porque
fulano é pobre, ou gordo, ou gay, ou macumbeiro, ou negro,
ou mora no subúrbio, ou é mulher, ou não sabe ler, ou
é feio, ou tem AIDS, OU tem um emprego humilde, ou tantas
outras coisas. Tudo para justificar a dificuldade de aceitação
delas próprias no mundo.

Com tantas separações impostas pela sociedade, que
futuro teria Marcos Wellington ao lado de uma menina feito
aquela que ele acabara de descrever? Como se ouvisse
seus pensamentos, Marcos retrucou:

— Isso vai mudar, mãe. Estou estudando para ser um
bom advogado e tirar você e minha tia deste morro. Aí, vou
poder namorar Raquel sem maiores problemas.
— Você está se iludindo.
— Eu vou ter dinheiro. Isso vai calar a boca e o preconceito
das pessoas.

Clementina não disse mais nada. Queria evitar discussões
desnecessárias com o filho. Se fosse religiosa, rezaria
para que ele não sofresse. Como não era, podia apenas emprestar-
lhe o seu coração de mãe e pedir a qualquer força
que governasse o mundo para olhar por ele. Isso não era
orar para Deus?

174


CAPÍTULO


20


Com a foto de Margarete na mão, Afrânio deu início à
investigação. Perguntou nos bares próximos, mas ninguém
se lembrava de uma moça pobre, desaparecida vinte anos
antes. Encontrá-la parecia uma tarefa difícil, se não impossível.
Afrânio desconhecia que as engrenagens do destino
encaixam-se paulatinamente, acionando a roda que faz girar

o mundo a favor da construção da vida.
Trabalhando para que tudo acontecesse exatamente
da forma como deveria, Margarete e Félix o acompanhavam.
Ela, ainda em recuperação, limitava-se a seguir os
passos de Félix, que, orientado por Laureano, tinha já condições
de sugestionar o encarnado sem lhe imprimir nenhum
tipo de desconforto. Como era importante que Marcos encontrasse
os avós paternos, os dois haviam sido escalados
para auxiliar o detetive, agindo do lado invisível.

— Onde foi que você entrou naquele dia? — perguntou
Félix a Margarete.
— Não me lembro. Faz vinte anos!
— Se você foi capaz de lembrar o que aconteceu em
outra vida, como é que não vai lembrar o que se passou há
duas décadas?
Ele tinha razão. Ela fez um esforço e tentou centrar o
pensamento na tarde em que fugira, bêbada, de Belford Roxo.


— Lembro-me de que fui andando pela rua — começou
ela, caminhando de olhos fechados. — E dobrei a esquina.
Foi quando avistei o bar... aquele ali.
Ela apontou para um bar que, por sorte, ainda existia.
Félix se encaminhou para lá e entrou sozinho, para evitar
que Margarete tivesse uma recaída. Sondou os pensamentos
dos encarnados, mas o fato ocorrido anos antes não estava
na cabeça de ninguém. Exceto... do mendigo!

Félix voltou para a calçada. Um mendigo dormia ali,
dominado pela cachaça, envolto em sombras escuras. Ele
se aproximou, invisível aos espíritos que lhe sugavam o álcool.
Sondou o cérebro do mendigo, impondo-lhe a imagem
de Margarete. De repente, a lembrança aflorou. Como num
filme, Félix viu o dia em que Margarete quase o atropelou ao
entrar no bar, com a criança no colo.

— Ele sabe! — gritou Félix, eufórico. — Agora só temos
que trazer o detetive aqui.
Não foi difícil influenciar Afrânio, pois a Sintonia se estabeleceu
no desejo de descobrir a verdade. Intuitivamente,
ele dobrou a esquina e foi dar no bar certo. Entrou com a
foto na mão, perguntando a um e a outro, mas ninguém se
lembrava de Margarete. Quando ia saindo, seus olhos foram
atraídos para o mendigo. Afrânio aproximou-se.

— Olá, amigo — cumprimentou ele. — Você anda por
aqui há muito tempo?
O mendigo o olhou desconfiado. Poucas pessoas falavam
com ele, principalmente alguém com aparência tão distinta.

— Por que quer saber? — retrucou de má vontade.
— Talvez você possa me ajudar — sem resposta, continuou:
— Será que você não andava por aqui há vinte anos?
— Moço, ando por aqui a minha vida toda — tornou
ele, um pouco mais amistoso.
— Onde você mora?
Demonstrando interesse pela sua vida, Afrânio esperava
que ele se abrisse.

176


— Tem um viaduto aqui perto... — respondeu ele,
mas calou-se em seguida, perdendo-se nas reminiscências
do passado.
— Será que pode me prestar um favor? — insistiu
Afrânio. — Pode dar uma olhadinha nessa foto para mim?
0 mendigo se empertigou todo, agora sentindo-se importante.
Apanhou a foto, lançando-lhe breve olhada, sacudiu
a cabeça e devolveu-a a Afrânio.

— Nunca a vi antes.
0 detetive não se deixou desanimar. Saiu e voltou em
seguida, com um copo de cachaça na mão. Os espíritos
que acompanhavam o mendigo logo se animaram e deram-lhe
uma cutucada, induzindo-o a olhar a foto mais atentamente.

A oferta do álcool deixou Félix chocado. Aquilo não estava
em seus planos, mas ele não podia impedir a ação dos
encarnados. O que conseguiu fazer vibrar sobre o mendigo
e seus comparsas invisíveis foi uma onda de luz, que o
deixou mais calmo e os espíritos, confusos. Aproximando-
se novamente dele, Félix tornou a induzir a lembrança de
Margarete. Ele ficou parado com a foto na mão, olhando-a
em dúvida.

— Isso foi há vinte anos — esclareceu Afrânio.
— Hum... — fez o mendigo, quase certo de sua lembrança.
— Hã... Ah!
— E então? Reconhece-a ou não?
— Esse copo aí é para mim? — indagou o mendigo,
passando a língua nos lábios.
— Só se você me falar a verdade. E não adianta inventar,
pois eu vou saber.
— Tudo bem — resmungou ele e, batendo com o
dedo na foto, acrescentou: — Ela tinha um bebê?
— Tinha! — animou-se Afrânio, juntamente com Félix
e Margarete.
— Ela quase me atropelou.

— Foi sem querer — justificou Margarete, e o mendigo
pareceu escutá-la, porque se virou para o lado dela,
procurando alguém invisível.
— O que foi, velho? — perguntou um dos dois espíritos
colados a ele.
— Tem alguém aí? — retrucou ele, tentando ver além
de seus acompanhantes desencarnados.
— Só nós, velho.
— Não, tem mais alguém aí com vocês. Não estão vendo?
Sem conhecimento do que se desenrolava no plano
astral, Afrânio julgou o mendigo louco e tratou logo de retomar
o assunto:

— Você tem certeza? Olhe de novo, foi há muito tempo.
Não está enganado?
— Não, não. Lembro-me dela por causa do bebê.
Quantas pessoas você conhece que entram num bar para
beber carregando uma criança de colo?
Afrânio assentiu, animado. Era loucura acreditar nas
palavras de um ébrio, mas algo lhe dizia que o mendigo falava
a verdade. Sem saber que a certeza provinha da mente
de Félix, prosseguiu:

— Lembra-se da direção que ela tomou?
— Hã?
— A moça da foto. Não se lembra para onde ela foi?
— Ande logo, velho, diga a ele! — esbravejou um espírito,
louco para se saciar.
— Ela foi por ali — apontou ele. — Bêbada feito uma
porca.
— Por ali, onde?
— Ali, para o ponto de ônibus.
Afrânio olhou e viu o ponto de ônibus mais abaixo
na rua.

— E o que mais?
— Mais nada.
— Tem certeza?
178


— Tenho — o mendigo sentiu a boca salivar e implorou:
— Agora posso beber?
Afrânio deu-lhe o copo de pinga, que ele entornou,
acompanhado pelos espíritos. Vendo aquela cena, Margarete
se encolheu atrás de Félix e perguntou assustada:

— Era assim que eu ficava? Como esses dois sanguessugas
aí?
— Isso é coisa do passado. Você agora não faz mais isso.
— Mas eu era assim?
— Era.
— E Clementina era como esse mendigo?
— Igualzinha.
— Que coisa triste!
— Sim, é triste. Graças a Deus você não faz mais isso.
— Não... Mas senti um pouco de vontade de beber.
— Então vamos sair daqui imediatamente.
— Não podemos ajudar o mendigo?
— Por enquanto, não. Ele ainda não está pronto. Agora
venha, vamos seguir Afrânio.
O detetive estava parado no ponto de ônibus, mas não
havia a quem perguntar. Era esperar demais da sorte encontrar
alguém que estivesse naquele ponto no mesmo dia em
que Margarete passara por ali. De toda sorte, ele mostrou a
fotografia, porém, ninguém a reconheceu.

"Tenho que averiguar que linhas de ônibus passavam
por aqui há vinte anos", pensou. "Se Margarete tomou um
deles, pode ser que eu tenha sorte, assim como tive com o
mendigo. Vai ser muito engraçado se ela tiver fugido num
dos ônibus da companhia de Graciliano."

Alguns dias depois, de posse da informação, Afrânio saiu
em busca das garagens dos ônibus que trafegavam por aquela
rua vinte anos antes. Consultou motoristas e trocadores,
mas ninguém se lembrava de ter levado aquela moça com um
bebê. Foi atrás dos aposentados, sem nada descobrir. Alguns
já haviam morrido, de forma que Afrânio podia ter passado


pela pista sem encontrar o rastro de Margarete. Na terceira
empresa que ele visitou, ela sussurrou ao ouvido de Félix:

— Foi essa linha que eu apanhei. Fui até o ponto final.
— Ótimo.
Aproximando-se de Afrânio, Félix lhe transmitiu a
certeza de que estava no caminho certo. A empresa não
pertencia a Graciliano, o que não deixou de ser um alívio.
Ele entrou na garagem, mostrou a foto aos motoristas, trocadores
e fiscais que estavam por ali. Todos balançaram a
cabeça negativamente.

— Têm certeza? Isso foi há mais ou menos vinte anos.
— Vinte anos? — surpreendeu-se o fiscal. — Não tem
mais quase ninguém aqui daquele tempo.
— Quem era o fiscal de então?
— Hum... Acho que era o Chiquinho. Mas ele se aposentou.
— Será que o senhor não pode me dar o endereço
dele? Por favor, é muito importante.
— Lamento, mas não posso fornecer o endereço de
nossos ex-empregados.
Afrânio enxugou a testa, desanimado. Não estivesse
em outro plano, teria ouvido o grito de Margarete, que apontava
para um homem de seus cinquenta e poucos anos que
vinha se aproximando.

— Olhe ele ali!
— Quem é ele? — retrucou Félix.
— Foi com ele que falei naquele dia. Ele me mandou
descer do ônibus porque estava com medo do fiscal.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Vamos tentar levar Afrânio até ele.
Nem foi preciso. O detetive viu o homem se aproximar
e foi ao seu encontro.

— Boa tarde — cumprimentou. — O senhor trabalha
aqui há muito tempo?
— Há quase trinta anos.

— Será que se incomodaria em dar uma olhada numa
fotografia para mim? É de uma moça que estou procurando.
O homem pegou o retrato, examinou-o e devolveu-o
a Afrânio.

— Lamento, não a conheço.
— Foi há vinte anos. Ela pode ter tomado um ônibus
dessa linha.
— Se ela tomou um dos meus ônibus, não vou lembrar
mesmo. O senhor faz ideia de quantas pessoas passaram
pela minha roleta em vinte anos?
— Ela segurava um bebê. E devia estar alcoolizada.
— Não, lamento... — com a proximidade de Margarete,
a imagem dela surgiu em sua mente, deixando-lhe uma pontinha
de dúvida. — Mas espere. Deixe-me ver a fotografia novamente
— com a foto na mão, indagou a si mesmo: — Será?
— O quê? O senhor a reconhece?
— Não tenho certeza. A foto não é lá muito boa. Mas
há muitos anos, uma mulher entrou no meu ônibus com uma
criança no colo. Um bebê bem pequenininho. Lembro-me
bem, porque ela estava com o seio de fora, e isso me chamou
a atenção. Desceu na Penha, no ponto final. Chovia
muito, eu fiquei com pena, mas não podia deixá-la permanecer
no ônibus. Era ela ou o meu emprego.
— Deve ser Margarete — refletiu Afrânio.
— Era eu, sim! — gritou ela, desesperada. — Era eu!
— Tenha calma, Margarete — censurou Félix. — Ou
vamos perder a comunicação com Afrânio.
Ela se aquietou, o trocador continuou:

— Eu ainda a aconselhei a tomar o ônibus de volta,
mas ela não quis. Desceu e entrou em outro ônibus, não sei
qual era.
— O senhor não lembra nem a cor do ônibus?
— Não.
— Será que o senhor pode me dar o endereço do
ponto final? Vai me ajudar muito.

— É claro.
— Obrigado.
O trocador anotou o endereço num papelzinho e entregou-
o a Afrânio, que o leu e guardou no bolso. Já era tarde,
não teria tempo para resolver nada naquele dia. Voltaria no
outro e começaria a procurar outra vez.

— Vamos embora, Margarete — chamou Félix, depois
que o detetive se foi. — Por hoje já chega.
Margarete e Félix retornaram a sua cidade astral, satisfeitos
com o rumo que as investigações estavam tomando.
Se continuasse assim, em breve Afrânio encontraria Marcos.

— Não compreendo por que de repente passou a ser
tão importante encontrar o meu filho. Quando eu quis, ninguém
pôde me ajudar. Tive que achá-lo sozinha. Mas agora,
só porque seu Graciliano e dona Bernadete pediram, todos
os espíritos vêm ajudar.
— Eles não merecem uma segunda chance?
— E eu também não merecia?
— O desejo deles vai além da satisfação pessoal.
Marcos tem um papel relevante no mundo, na realização de
obras sociais importantes. Com o dinheiro dos avós, ajudará
muita gente a começar por si mesmo e pela família. Nesse
momento, é o que mais importa.
— A questão então é financeira? É isso? Trata-se pura
e simplesmente de dinheiro?
— Trata-se de levar esperança a pessoas que perderam
a fé. Levando-as a crer na justiça dos homens, logo
compreenderão que ela é um mero reflexo da justiça divina,
feita para manter o equilíbrio das relações humanas.
Se nada é por acaso, o que se ganha ou se perde dentro do
contexto jurídico atende também a uma programação pessoal
e divina.
Margarete silenciou, refletindo sobre a tarefa que
aguardava o filho. Ela pouco sabia sobre aquelas coisas,

182


mas entendeu bem seu objetivo. 0 que ele faria, em suma,
seria ajudar as pessoas a reconhecer os méritos próprios.

— Compreendi, Félix — afirmou ela. — Ganhando ou
perdendo, a vitória é sempre do espírito.
Félix não precisou responder. Simplesmente a abraçou
e sorriu.


CAPÍTULO

21

Marcos e Arnaldo se reuniam diariamente para estudar,
até a hora de Marcos ir para o trabalho. Naquele dia, assim
que as aulas terminaram, os dois lancharam rapidamente
e já estavam se encaminhando para a biblioteca quando
Raquel os chamou:

— Aonde é que vocês vão?
— Estudar na biblioteca — respondeu Marcos. — Quer
vir com a gente?
— É claro!
Ela os seguiu satisfeita, sob o olhar atento de Nelson.
Ele tentava não se importar com os movimentos de Raquel,
mas vê-la perto de Arnaldo enchia-o de ciúme e despeito.
Não entendia o que ela via naquele nerd magricela e não se
conformava. Resolveu ir atrás deles. Entrou na biblioteca e
procurou um lugar mais afastado, de onde pudesse observá-
los. Os três nem desconfiavam de que estavam sendo
vigiados. Estudaram durante um tempo, até que Marcos, a
contragosto, foi obrigado a deixá-los.

— Está na hora de ir para o trabalho — anunciou ele.
— Não gosto de me atrasar.
— Você trabalha no shopping, não é mesmo? — retrucou
ela.
— É, sim.

— Que tal se Arnaldo e eu continuarmos estudando e,
mais tarde, formos buscar você para irmos ao cinema? Isto
é, se Arnaldo não se incomodar.
— Não me incomodo — declarou ele. — Acho até uma
ótima ideia. Serve para esfriar a cabeça.
— Eu adoraria, mas não vai dar — objetou Marcos.
— O restaurante só fecha depois da última sessão de cinema.
— Então, podemos sair para dançar — insistiu ela.
O pastor não proibia que fossem a restaurantes, tanto
que ele trabalhava em um. Contudo, alertava para os perigos
que rondavam certos lugares onde a música e a dança
incitavam a presença do demônio. No fundo, Marcos não
concordava muito com certas proibições, porém, não tinha
forças para contradizê-las. Sem querer desagradar Raquel,
respondeu cabisbaixo:

— Eu adoraria, mas não vai dar.
— Tudo bem, então. Fica para uma próxima vez.
— Estarei de folga na segunda — ele apressou-se em
dizer, com medo de que ela mudasse de ideia. — Podemos
ir ao cinema.
— Ótimo! Você pode ir, Arnaldo?
— Arnaldo conteve o riso e retrucou bem-humorado:
— Não, vão vocês. Segunda, não posso.
Era de propósito que ele não ia, para não estragar o primeiro
encontro dos dois. Depois que Marcos saiu, Arnaldo
e Raquel voltaram a atenção para os livros, deixando Nelson
ainda mais furioso.

"Os dois despacharam a vela8 só para poderem ficar
sozinhos, de cabecinha colada", pensou com desdém.

Nelson não conseguia conter o despeito. Tinha vontade
de se levantar e socar a cara de Arnaldo, dar-lhe uma
lição para que ele nunca mais se metesse com a garota dos
outros. Não podia, contudo. Se usasse de violência, Raquel

8 Segurar vela — referência à pessoa que acompanha casal de namorados.

185


nunca o perdoaria. Podia considerá-la perdida para sempre.
Tinha que arrumar uma maneira de dar um susto no sujeito
sem que Raquel desconfiasse dele.

Depois de estudar por algum tempo, Raquel esticou as
costas e esfregou os olhos.

— Cansada? — perguntou Arnaldo.
— Um pouco. Mas precisamos terminar esse ponto.
— Você e Nelson não costumam estudar juntos?
— Não tenho mais nada com Nelson. Falei isso ao Marcos.
— Desculpe-me, não quis me intrometer na sua vida.
— Não precisa se desculpar. Você é amigo de Marcos.
Posso considerá-lo meu amigo também?
— É claro que pode.
— Então, gostaria de lhe confessar uma coisa.
— O que é?
— Posso confiar em você, não posso?
— Claro.
— Pois a verdade é que eu estou a fim do Marcos.
Gosto muito dele, sabia?
— Já deu para perceber — concordou ele, com um
sorriso encorajador.
— Não sei o que é. Tem alguma coisa nele que mexe
comigo. Você acha que é recíproco?
— Não posso falar por ele, Raquel.
— Ele nunca comentou nada a meu respeito?
— Você está me pedindo para revelar confidências
que Marcos me fez. Não posso fazer isso.
— Tem razão, desculpe-me.
— Já que está tão interessada nele, podemos jantar
no restaurante em que ele trabalha. Depois, eu vou embora
e deixo os dois sozinhos.
— Fazer-lhe uma surpresa? — Arnaldo assentiu.
— Adorei a ideia.
Os dois riram e retomaram a leitura, deixando Nelson
ainda mais irritado. Ao final da tarde, deram por encerrada


a sessão de estudos, para alívio de Nelson, que já não
aguentava mais fazer desenhos idiotas no caderno. Quando
saíram, rindo alto, cheios de intimidade, Nelson foi atrás, tomando
o cuidado de não ser notado. No térreo, despediram-
se com dois beijinhos no rosto, e Raquel falou animada:

— Não vá se esquecer de nosso compromisso mais
tarde, hein?
— De jeito nenhum! Ainda mais agora, que sei o que
você sente.
— Até a noite, então.
— Até.
Nelson quase esmurrou Arnaldo ali mesmo, mas conseguiu
se conter. Como não queria chamar a atenção, ocultou-se
atrás de um grupinho de moças que saiu do elevador dando
risadas. Ninguém o notou. Raquel foi para o estacionamento,
enquanto Arnaldo se dirigia para a estação do metrô. Nelson
foi atrás dela. Alcançou-a quando ela abria a porta do carro.

— Ai, Nelson, que susto! — exclamou ela, em tom de
censura. — Por que ainda está por aqui?
— Estava estudando na biblioteca — respondeu ele
maliciosamente.
— Estava? Pois não o vi.
— Mas eu vi você. E o seu novo namoradinho.
— Não tenho namoradinho nenhum.
— Se quer continuar mentindo, tudo bem. Só me responda
uma coisa: o que foi que você viu naquele cara?
— Que cara?
Ele resolveu ignorar o fingimento dela e perguntou em
tom mordaz:

— Gostaria de sair comigo hoje?
— Não vai dar. Já tenho um compromisso.
— Com o Arnaldo?
Ela riu da burrice dele, achando que ela estava interessada
em Arnaldo. Todavia, Arnaldo também fazia parte de seu
compromisso, de forma que poderia lhe dizer a verdade:

187


— Se quer mesmo saber, tenho um compromisso
com ele, sim.
— E a que motel vocês vão, agora que ele sabe o que
você sente?
— Você estava me seguindo e ouvindo a minha conversa?
— indignou-se ela, e ele a segurou pelo braço:
— Você não pode fazer isso comigo.
Raquel puxou o braço com força e respondeu com
irritação:

— Quer saber, Nelson? Pare de tomar conta da minha
vida e vá cuidar da sua. Não lhe devo satisfação.
Ela entrou no carro e bateu a porta. Deu partida no motor
e saiu rapidamente, deixando-o furioso no estacionamento.

— Isso não vai ficar assim — disse ele entre os dentes.
Mais tarde, Nelson parou em frente ao edifício de
Raquel, à espera de que Arnaldo aparecesse. Em vez disso,
Raquel saiu em seu carro, sendo fácil segui-la até o
shopping. Nelson deduziu que eles só podiam estar indo ao
cinema e riu com sarcasmo. Numa sexta-feira à noite, o último
lugar a que ele levaria Raquel seria o cinema. Preferiria
uma boate e depois um motel. Contudo, não podia esperar
nada mais criativo daquele nerd idiota.

Estacionaram e, a distância, Nelson seguiu-a pelas escadas
rolantes até a praça de alimentação, onde Arnaldo já
a esperava, bebendo uma cerveja no restaurante em que
Marcos trabalhava. Ela sentou-se ao lado dele, e um garçom
se aproximou. Nelson reconheceu-o como Marcos, outro
nerd, amigo de Arnaldo.

Nelson parou do outro lado, onde não podia ser visto,
oculto pela escada rolante. De onde estava, tinha uma boa
visão do restaurante, embora não conseguisse ouvir nada
do que diziam.

A felicidade que Marcos sentiu ao ver Raquel suplantou
a vergonha de ter sido surpreendido de avental,
servindo mesas num restaurante. Sabia que não devia se

188


envergonhar por exercer um trabalho honesto e esforçou-
se para parecer natural.

— Viemos lhe fazer uma surpresa, se você não se incomodar
—disse ela, sem parecer embaraçada ou decepcionada.
A ansiedade com que ela o encarava fez desanuviar
sua preocupação, enchendo o coração de Marcos de uma
inusitada euforia. Mais à vontade, sem tirar os olhos dela,
respondeu com sinceridade:

— Não me incomodo. A surpresa foi maravilhosa. Só
não posso lhes dar muita atenção, porque ainda estou no
meu horário de trabalho.
— Não tem importância. Arnaldo e eu vamos jantar e
esperar até que você termine.
— Viemos buscá-lo — acrescentou Arnaldo, à falta do
que dizer, sentindo que sobrava naquele encontro.
— Muito bem. O que vocês vão querer?
Marcos anotou os pedidos. Em seu esconderijo, interpretando
mal o que se passava, Nelson sentiu vontade de
saltar sobre Arnaldo e esmurrá-lo até deixá-lo inconsciente.
Não suportava ver Raquel em um jantar romântico com outro.
Achou melhor ir embora antes de fazer uma besteira.
Saiu maldizendo a vida e o desgraçado que, segundo ele,
lhe havia roubado a namorada.

— Você me paga — rugiu, voltando para seu carro.
Quando o jantar terminou, o horário de trabalho de
Marcos também chegava ao fim. Arnaldo e Raquel esticaram
ao máximo a refeição, esperando a hora da saída dele.
Quando, por fim, o patrão fechou o restaurante, Arnaldo se
despediu, doido para deixá-los sozinhos:

— Bom, gente, foi uma noite ótima e divertida, mas já
está na minha hora. Tchau.
— Tchau — responderam Marcos e Raquel ao mesmo
tempo.
— E obrigada pela companhia — acrescentou ela.

Marcos acompanhou Raquel até o local onde ela havia
deixado o carro. O de Nelson havia muito não estava mais ali.

— Quer uma carona? — ofereceu ela, hesitando em
deixá-lo.
— Não precisa, obrigado. Não moro longe.
— Mas eu posso levá-lo. O que é que custa?
O que Marcos não queria era dizer a ela que morava no
morro. Pensou em lhe dar um endereço falso e saltar em frente
a um edifício qualquer, mas a lição do pastor, exortando-o
a sempre dizer a verdade, tolheu-lhe as palavras. E depois, de
que adiantaria mentir? Mais cedo ou mais tarde ela acabaria
descobrindo. Sem contar que não queria construir uma relação
fundada na mentira. Por isso, reunindo coragem, admitiu:

— Moro mais ou menos perto daqui, mas não creio
que seja um lugar ao qual você deva ir.
— Por quê? Você, por acaso, mora na favela? — ela
falou brincando, mas o silêncio dele foi revelador. — Desculpe-
me, Marcos... eu não sabia.
— Tudo bem — tornou ele, sentindo o rosto arder da
humilhação que ele mesmo se impingia. — Não precisa se
desculpar. Eu é que devia ter lhe contado antes.
— Não. Quero dizer, eu é que não tinha nada que
brincar com isso. Que ideia a minha.
— Não se preocupe, você não fez nada. Bom, acho
melhor eu ir andando. A gente se encontra na faculdade.
Ele foi se virando, mas ela o deteve com um grito:

— Espere! Não se vá ainda. Nós não podemos conversar
um pouco mais?
— Conversar? — admirou-se ele, surpreso porque ela
não saíra correndo ao ouvir falar em favela.
— É, conversar. Podemos ir a um lugar mais calmo.
Um barzinho, quem sabe?
Marcos tinha todos os motivos para se sentir confuso.
Além de Raquel não se incomodar com o fato de ele morar
no morro, o convite dela o balançou. Era a primeira vez

190


que ele considerava a ideia de ir a um lugar como aquele.
Principalmente depois das vezes em que tivera que buscar a
mãe no bar do Zeca, completamente embriagada.

— Não posso beber — comentou ele baixinho.
— Minha religião não permite.
— Podemos tomar um refrigerante ou um suco. O que
você acha?
— Eu... — ele queria recusar, porque bares eram lugares
de pecado e perdição, mas não queria se separar de
Raquel. — Só se for aqui por perto. E bem rapidinho.
Raquel simplesmente sorriu e abriu as portas do carro.
Ele se sentou ao lado dela, embevecido com o veículo de
luxo no qual jamais havia sonhado entrar.

— Você sabe dirigir? — perguntou ela, saindo do estacionamento
e ganhando a rua.
— Não.
Pararam num barzinho próximo, com música ao vivo,
pediram refrigerante e batatas fritas, nas quais Raquel nem
tocou. No começo, Marcos se sentiu intimidado com a agitação
do bar, mas logo centrou a atenção em Raquel, e nada
mais parecia existir além dos dois. Quanto mais ela falava,
mais ele sentia desejo de beijá-la, recriminando a si mesmo
por isso. Mal sabia ele que, pela cabeça dela, se passava a
mesma coisa.

A banda começou a tocar Só pro meu prazer, do
Cazuza, e Marcos fitou Raquel bem fundo nos olhos, enquanto
o cantor disparava:

— Será que você não é nada que eu penso? Também
se não for, não faz mal...
Nada mais importou naquele momento. Os dedos dos
dois se entrelaçaram, suas bocas foram se aproximando,
até que seus lábios se uniram no primeiro beijo da vida de
Marcos. Quando enfim se separaram, ele estava confuso e
envergonhado, sentindo que havia cometido uma falta muito
grave, desrespeitando a moça.


— Raquel... — balbuciou ele — me perdoe... não tive a
intenção de ofendê-la...
— Você não me ofendeu — protestou ela, surpresa
com a reação dele. — Marcos, você fez o que eu queria, o
que nós queríamos.
Por mais que ele sentisse vontade de recitar todas as
passagens das Escrituras que conhecia e que desaprovariam
uma relação tão íntima entre pessoas não casadas, não
conseguiu. Afinal, ele amava Raquel, queria que ela se tornasse
sua esposa. E se os seus sentimentos eram puros,
então não havia pecado.

Ela aproximou o rosto novamente ao dele e deu-lhe
novo beijo, que ele tentou recusar, mas não conseguiu.
Parecia-lhe estranho que a iniciativa de um ato tão íntimo
partisse de uma mulher, não dele, que era o homem. Mas
ele sabia que Raquel não seguia sua religião nem conhecia
as verdades divinas contidas na Bíblia, o que era motivo
mais do que justo para desculpá-la por sua ignorância.

Não era só isso. Marcos não podia mentir para si mesmo.
Estava tão envolvido com ela que nada do que Raquel
fizesse destruiria aquela paixão.

— Você me ama? — perguntou ele, a voz rouca, embargada
pela emoção.
Ela segurou o queixo dele entre as mãos, dando-lhe
novo beijo, os olhos marejados de lágrimas comovidas.

— Não sei... — confessou ela, toda trêmula. — Só o
que sei é que gosto de estar com você, de tocar em você, de
ouvir a sua voz. Se isso é amor, então sim, amo você.
Mal contendo a euforia, ele a abraçou bem apertado e
tornou a indagar:

— Porquê?
— Não tem um porquê. Não dá para a gente tentar
explicar os sentimentos pela razão.
— Somos tão diferentes... em tudo.
— Sei disso e não me importo.
192


— Seus pais não vão consentir no nosso namoro.
— Meus pais são pessoas legais, não vão interferir. E,
mesmo que se oponham, o que me importa?
— Você iria contra eles?
— E você, não?
Ele assentiu e respondeu com firmeza:
— Enfrentaria deus e o mundo só para ficar com você.
Abraçaram-se novamente, certos de que o sentimento
que os unia era real. Ele apanhou a mão dela e a levou aos
lábios, concluindo com extrema paixão:

— Quero casar com você.
Raquel fechou os olhos e entregou os lábios novamente
aos dele. Não queria pensar na reação das pessoas. Só

o que a levava, naquele momento, era o amor que, sinceramente,
sentia por Marcos.
193


CAPÍTULO

22

Arnaldo caminhava pela rua pensando na felicidade do
amigo. No começo, havia desaprovado aquele namoro, com
medo de que Marcos sofresse. Agora, porém, mudara de
ideia. Raquel era uma garota extraordinária, muito sincera,
amiga. E gostava realmente de Marcos. Arnaldo torcia para
que o namoro deles desse certo.

De tão distraído com seus pensamentos, não percebeu
a aproximação de Nelson e Antônio, pela direção oposta.
A violência do encontrão que Nelson lhe deu quase o
derrubou ao chão, causando-lhe espanto e receio.

— Se você for esperto — falou Nelson baixinho, fingindo
que o ajudava a levantar-se —, nunca mais vai falar com
Raquel novamente.
— O quê?
— Você ouviu o que eu disse. Deixe Raquel em paz,
ela é demais para você.
— Você está louco! — objetou Arnaldo. — Raquel e eu
somos apenas amigos.
— E é bom que continuem assim — ameaçou Nelson,
erguendo o punho diante dos olhos dele. — Ou será que
quer experimentar a força desse muque?
— Acho melhor a gente dar logo uma lição nele — falou
Antônio, passando a língua nos lábios.

— Você acha? — tornou Nelson, ameaçando Arnaldo
ostensivamente.
— Acho. la ser divertido dar uma surra no magrelo.
— Boa ideia.
Nelson empurrou-o para trás de uma árvore. Ergueu
o punho com raiva, mas, antes de desferir o golpe, Arnaldo
gritou, na tentativa de se salvar:
— Pare! Você está enganado. Não é em mim que
Raquel tem interesse.
— Ah, não? — redarguiu Nelson, segurando o soco.
— Em quem é então?
— Não sei... não posso dizer... por que vocês não vão
tomar conta da vida de vocês?
— Engraçadinho — desdenhou Nelson, desferindo-
Ihe um murro no queixo.
Arnaldo cambaleou, por pouco não tombando na calçada.
Novo golpe se seguiu, dessa vez no estômago. Antônio
deu mais outro, imitado por Nelson, que lhe desferiu outro,
e outro, até que o rapaz arriou o corpo no chão, arfando e
cuspindo sangue.

— Não se meta com a gente, idiota — avisou Antônio.
— Ou vai perder todos os dentes.
— Isso é só um aviso — completou Nelson. — Deixe a
Raquel em paz, e nada irá lhe acontecer.
— E nem uma palavra sobre isso — arrematou Antônio.
— Ou pior para você.
Viraram as costas e voltaram para a faculdade como se
nada tivesse acontecido. Em seu lugar, Arnaldo mal conseguia
se mexer. As mandíbulas pareciam ter saído do lugar,

o estômago ardia. Tentou forçar-se a ficar em pé, mas as
pernas falsearam. la caindo novamente, quando um carro
da polícia parou e um guarda se aproximou:
— Está tudo bem aí, rapaz?
— Eu... fui assaltado — mentiu.
195


Acercando-se um pouco mais, o policial percebeu
seu estado.

— Você está machucado. Precisa ser levado a um hospital.
— Eu estou bem... só um pouco dolorido.
— Devíamos chamar uma ambulância, mas vamos
levá-lo nós mesmos. Você parece muito mal.
Com a ajuda de outro policial, Arnaldo foi levado ao
hospital, onde recebeu atendimento médico e foi liberado.
A vontade dele era contar tudo aos guardas, comprometer
Nelson e seu comparsa, mas teve medo das consequências.
O pai de Nelson era desembargador, e a história podia
acabar voltando-se contra ele. Melhor mesmo era mentir.
Assim, Arnaldo insistiu na história do assalto, afirmando que
dois pivetes o haviam espancado para roubar apenas alguns
poucos reais.

Na faculdade, Marcos estranhou a ausência de Arnaldo,
mas nem sequer desconfiou quando Nelson e Antônio entraram
na sala de aula carregando na face um ar de irritante
triunfo. Nelson fez questão de entrar pela porta da frente
e olhar para Raquel com sarcasmo, indo sentar-se em seu
lugar de costume.

No dia seguinte, Arnaldo também não apareceu, e
Marcos ficou preocupado:

— Será que ele está doente?
— Por que não ligamos para ele?
Raquel sacou o celular da bolsa e puxou Marcos para
fora da sala. Colocou o telefone nas mãos dele, que rapidamente
discou o número da casa de Arnaldo. Quando ele
atendeu, as feições de Marcos foram gradativamente se alterando.
Ao encerrar a ligação, ele fitou Raquel com angústia
e anunciou:

— Ele disse que foi assaltado e espancado.
— Meu Deus!
— Preciso ir à casa dele.
— Agora? No meio da aula?
196


— Sim, agora. Não posso deixar meu amigo nessa
situação.
— Vou com você.
— Não, por favor. Ele pode ficar constrangido com a
sua presença. Acho que ficou bem machucado.
Com a mochila na mão, Marcos saiu em disparada,
deixando Raquel preocupada e aflita. Apanhou o ônibus e,
em poucos minutos, estava na casa de Arnaldo. Foi recebido
pela mãe do rapaz, que o introduziu no quarto do filho.

— Oi, Marcos — disse ele, quase sem conseguir abrir
a boca.
— Como foi isso, meu amigo? Um assalto! Em plena
luz do dia?
Depois que a mãe de Arnaldo deixou uns refrescos
sobre a mesinha de cabeceira, ele abaixou a voz e revelou
quase num sussurro:

— Isso foi o que contei à polícia e à minha mãe. Na
verdade, quem me bateu foi o Nelson e aquele amigo dele,
o Antônio.
Marcos abriu a boca, abismado.
— O que você está dizendo?
— É isso mesmo que você ouviu. Nelson e aquele capanga
me surpreenderam na porta da faculdade, me arrastaram
para trás de uma árvore e me deram uma surra.
— Mas por quê, meu Deus?
— Você não sabe?
— Foi por causa da Raquel? — Arnaldo assentiu.
— Mas por que, se ela não tem nada a ver com você?
— Nelson não sabe disso. Pensa que é em mim que
ela está interessada.
— O quê?
— Não sei de onde ele tirou essa ideia, mas é o
que pensa.
— Arnaldo, que notícia terrível! Eu sinto muito, muito
mesmo, por ter-lhe causado isso.

— Não seja bobo. Você não me causou nada. Que
culpa você tem se Nelson é um brutamontes ignorante e
vive cercado de capangas?
— Meu Deus!
— Estou lhe contando só para você se cuidar. Não vai
demorar para ele descobrir que vocês dois estão namorando.
— Por que você não contou a ele sobre mim e Raquel?
— Não sou traidor. Jamais entregaria um amigo nas
mãos de um bandido.
Marcos emocionou-se até as lágrimas e apertou as
mãos de Arnaldo.

— Isso não vai ficar assim. Temos que ir à polícia.
— Não quero. O pai de Nelson é desembargador, e eu
é que ainda vou acabar como o culpado nessa história.
— Que estupidez! — Marcos estava com raiva e não
escondia isso. — Isso não vai ficar assim, não vai. Você
pode não querer ir à polícia, mas eu não vou permitir que
meu amigo leve a culpa por algo que fui eu que fiz.
— Que culpa? Desde quando alguém é culpado por
se apaixonar?
— Não importa. Raquel está comigo. Se Nelson tem
alguma reclamação, que a faça a mim.
— O que você vai fazer?
— Nada de mais. Deixe comigo.
— Olhe lá, hein? Não vá fazer nenhuma besteira.
— Não sou violento, mas também não sou covarde.
Nelson vai ter que saber a verdade.
— Se Raquel souber o que houve, ele prometeu me
dar nova surra.
— Isso não vai acontecer. Ele jamais tornará a encostar
a mão em você ou em qualquer outra pessoa. Eu mesmo
vou falar com ele.
— Acho que você não devia.
— Mas vou. Como disse, não sou covarde.
198


Marcos nunca sentiu tanta raiva em sua vida. Nem as
palavras do pastor, nem as Escrituras foram capazes de impedir
que a revolta se disseminasse no coração dele. No
dia seguinte, chegou cedo para esperar Nelson no hall de
entrada da faculdade.

— Você não vem para a sala? — chamou Raquel, sem
entender por que ele havia estacado ali.
— Agora não. Preciso fazer uma coisa importante.
— É sobre o Arnaldo? Como ele está?
Nelson veio chegando em companhia dos amigos e
hesitou quando viu o olhar de fúria de Marcos. Deu uma
meia parada, mas não se deteve. Não daria atenção às queixas
do insignificante amiguinho de Arnaldo.

— Vá para a sala, Raquel — ordenou Marcos. — Não
quero que você tome parte nisso.
É claro que Raquel jamais lhe obedeceria. Ela se
postou perto de Marcos, que se adiantou quando Nelson
passou por eles.

— Covarde, miserável — esbravejou ele, saltando na
frente de Nelson.
— Saia do caminho, neguinho — desdenhou Nelson.
— Não tenho nada contra você.
— E contra o Arnaldo? O que é que você tem?
Ele olhou de soslaio para Raquel e respondeu friamente:
— Nada. Nem sei quem é Arnaldo.
— É o sujeito que você espancou, pensando que era o
namorado de Raquel, sem saber que o namorado dela sou eu.
— O quê? — surpreendeu-se ele. — Deixe de ser idiota,
neguinho. Não espanquei ninguém.
— Mentiroso! Arnaldo está em casa, todo machucado,
por sua causa!
— Isso é verdade? — interrompeu Raquel, abismada.
— Não dê ouvidos a esse neguinho — objetou Nelson.
— Está com raiva porque o namoradinho dele levou uma
surra. Mas não tenho nada com isso, ouviu?

— Arnaldo não é namoradinho de Marcos — rebateu
Raquel com raiva. — A namorada dele sou eu. E se você
bateu em Arnaldo por causa disso, fique sabendo que espancou
a pessoa errada.
Os olhos de Nelson encheram-se de um rancor absurdo.
De repente, deixou de lado a preocupação de que ela
não soubesse o que ele havia feito e rosnou entre os dentes:

— Você está louca? Trocar-me por esse crioulo?
— Racismo é crime, sabia? — revidou ela com azedume.
— Você pode ir preso.
— Deixe de besteiras, Raquel! — explodiu ele, partindo
para cima dela. — Isso é coisa séria. Onde já se viu me
trocar por um negro?
Ele apontou para Marcos com tanto ódio, que os próprios
amigos se surpreenderam, e Paulo se adiantou:

— Deixe isso para lá, Nelson. Vamos embora.
— De jeito nenhum! Não vou permitir uma humilhação
dessas!
— É isso mesmo — incentivou Antônio. — Raquel não
pode trocar Marcos por um mulatinho ridículo.
— E você não se meta nisso! — gritou Raquel.
— Devia se envergonhar — grunhiu Nelson. — Você,
uma moça branca, de família tradicional, bem-conceituada,
aliar-se a esse preto sujo e infame!
— Isso, Nelson, continue a xingar — encorajou ela.
— Diante de tantas testemunhas, não vai ser difícil acusá-lo
de racismo.
— Deixe, Raquel — contrapôs Marcos, postando-se
na frente dela. — Não tenho medo nem me sinto ofendido
com as tentativas de ultraje de Nelson. Tenho orgulho da
minha raça, e essas infâmias não me atingem. Sou uma
pessoa honesta e, acima de tudo, não sou covarde. Jamais
bateria em outro homem como Nelson fez, dois contra um,
sem dar a Arnaldo nenhuma chance de se defender.

— Você fez isso? — quem se espantou foi Paulo, que
não compactuava com certas atitudes de Nelson.
— Idiota — rosnou Nelson. — Só me arrependo de ter
espancado o cara errado. Mas não se preocupe. Sua vez
ainda vai chegar.
— Atreva-se — cortou a moça — e serei eu mesma a
entregá-lo à polícia.
— Vai se arrepender por isso, Raquel. Ora se vai!
Vocês nem podem imaginar o tamanho da minha vingança.
— Não temos medo — afirmou Marcos. — Deus está
do nosso lado.
— Vamos embora, Marcos — chamou Raquel, puxando-
o pela mão. — Não vale a pena perder tempo com
esse covarde.
Enquanto eles se afastavam, Nelson remoía o ódio.
Jamais poderia imaginar que Raquel o trocaria por um negro.
Marcos era mulato, mas, ainda assim, não era branco.
Segundo sua concepção, aquilo era um absurdo. Iludido
com falsos valores étnicos e sociais, Nelson estava ainda
muito longe de compreender o verdadeiro valor do caráter
humano. Preso a conceitos ultrapassados, não compreendia
que nada modifica a natureza do homem, além da força
do espírito. Ao corpo, resta a função de veículo das experiências
no mundo, para um aperfeiçoamento do Ser. Mas
ele jamais será o próprio Ser. Brancos ou negros, sadios ou
deficientes, magros ou gordos, todos os corpos são instrumentos
divinos de uma única essência de luz.

Essas eram verdades inacessíveis à razão primitiva
de Nelson. Só o que conseguia enxergar era a traição de
Raquel com alguém que ele julgava inferior.

— Cuidado com o que vai fazer — alertou Paulo. — O
que Raquel disse é verdade. Racismo é crime e você pode
ser preso.
— Meu pai é desembargador. Nada irá me acontecer.
201


— Vá se fiando nisso. Desembargador também está
sujeito às leis. E depois, duvido que seu pai, um homem
justo e de notável saber jurídico, concorde com o que você
está fazendo.
— Você está do meu lado ou contra mim?
— Não sei mais — confessou Paulo. — Não me agrada
ser amigo de um cara que, além de covarde, é também racista.
— Pois então, o que está esperando? — interferiu
Antônio. — Desapareça da nossa frente, seu traidor!
— Quer saber? É isso mesmo que pretendo fazer.
Paulo rodou nos calcanhares e saiu desabalado para
a sala de aula.

— Idiota — rosnou Nelson. — Como todos os outros,
Paulo é um perfeito idiota. Mas isso não vai ficar assim, Antônio,
você vai ver. Vou dar um jeito de me vingar de todo mundo.
— Pois faz muito bem. E pode contar comigo. Só precisamos
nos cuidar para não sermos presos. Tenho arrepios
só de pensar que posso ir para a cadeia.
— O que você sugere?
— Ainda não sei. Acho que não devemos enfrentar o
inimigo de frente. Devemos ir minando-lhe as forças até conseguirmos
vencer.
— Como faremos isso?
— Pensaremos em algo.
As nuvens negras que envolveram Nelson e Antônio
não eram visíveis aos encarnados, embora perceptíveis a
eles. Atraídos por sentimentos de baixa modulação vibratória,
espíritos ignorantes procuravam saciar seus instintos
primitivos instigando o ódio.

Marcos, por sua vez, entrou na sala de mãos dadas
com Raquel, invocando o auxílio de Jesus e do Espírito
Santo. Na mesma hora, um chuvisco fino de luzes translúcidas
e suaves envolveu a ambos, transmitindo-lhes confortável
sensação de bem-estar. Nesse momento, Paulo entrou
na sala de aula e dirigiu-se aos dois, penetrando, sem saber,

202


no raio de alcance da chuva energética, dela imediatamente
se beneficiando.

— Marcos, quero que saiba que não concordo com
nada do que Nelson disse e fez — declarou ele. — De hoje
em diante, não sou mais amigo dele nem de Antônio.
As palavras dele bem poderiam não ser sinceras ou
representar parte de uma farsa, porém Marcos sabia que
eram verdadeiras. Ninguém que se mantivesse sob aquela
fonte energética sustentaria, mesmo inconscientemente,
uma mentira. Ou gaguejaria, ou cairia em contradição, ou,
o que era mais provável, se afastaria, incomodado com o
poder da oração.

Mesmo sem saber desses detalhes, Marcos sentia a
sinceridade na voz de Paulo.

203


CAPÍTULO

23

Contar aos pais sobre seu namoro com Marcos foi
mais fácil do que Raquel imaginou. A princípio, eles ficaram
em dúvida sobre a possibilidade de sucesso de um romance
com um rapaz pobre, de família humilde. Mas Raquel os
convenceu de que Marcos era uma ótima pessoa, de caráter
e bons princípios. Estudava, trabalhava e ainda arranjava
tempo para frequentar a igreja.

Deitada de bruços na cama, Raquel não conseguia
estudar, pensando em Marcos, no desejo que sentia cada
vez que ele a tocava. Não via a hora de dormirem juntos.
Marcos, contudo, ainda não tomara nenhuma iniciativa, e o
jeito recatado dele deixava-a inibida para fazer insinuações.

De tão absorta em seus pensamentos, não ouviu as
batidas na porta. Somente percebeu que havia alguém ali
quando o irmão entrou com ar irritado.

— Não me ouviu bater? — foi logo cobrando.
— Não, Elói, desculpe. Estou ocupada.
— Fazendo o quê?
— Estudando. Não está vendo?
Ele puxou a cadeira de rodinhas que guarnecia a escrivaninha
e sentou-se, girando de um lado para outro. Raquel
não disse nada e fingiu ler, torcendo para que ele fosse logo


embora. Depois de algum tempo, Elói parou de rodopiar e
aproximou a cadeira da cama, de modo a poder encará-la:

— Soube que você terminou com Nelson. — Ela assentiu,
sem se virar para ele. — Por quê?
Ela o olhou brevemente e respondeu com frieza:

— Não é da sua conta.
Elói cruzou os braços sobre o peito; bateu os pés no
chão, como se estivesse acompanhando um ritmo musical.

— Sei que não tenho nada com a sua vida — acrescentou
ele, parando e olhando-a novamente. — Mas não
posso ficar calado vendo você meter os pés pelas mãos.
— Olhe aqui, Elói, não sei o que você quer de mim, mas
estou ocupada e não estou interessada nos seus conselhos.
— Eu ouvi o pai e a mãe conversando na sala sobre
seu novo namorado — rebateu ele, os olhos chispando fogo.
— O que você quer? Envergonhar a família?
— Não lhe dou o direito de falar comigo dessa maneira.
Você não tem nada com a minha vida. Papai e mamãe
não puseram nenhuma objeção à minha escolha. Não vai
ser você que vai colocar.
— Papai e mamãe não querem contrariar a filhinha.
Mas aposto como, lá no fundo, desaprovam a sua escolha.
— Isso não é verdade. E mesmo que fosse, ninguém
tem nada com a minha vida. Amo o Marcos e ponto final.
— Marcos — desdenhou ele. — Um pobretão.
— E daí? Por que a discriminação?
— Não é discriminação. É uma questão de seleção
natural. Cada um que fique na sua. Não fica bem minha
irmã namorando um... você sabe.
— Não sei, não. Marcos é melhor do que muita gente
bacana por aí. Pode não ser rico, mas é uma pessoa decente.
— E negro — acrescentou, finalmente revelando
seu preconceito.
— Qual o problema? Eu mesma já vi você com garotas
negras.
205


— Mas pergunte se pretendo me casar com alguma
delas.
— Elói! — espantou-se ela. — Você é mais desprezível
do que eu pensei. Não tem vergonha de enganar as pessoas?
— Não engano ninguém. Elas saem comigo porque
querem — fez uma pausa, fitando-a com um misto de raiva
e desdém. — O pior não é nem o fato de ele ser mulato. Se
ainda fosse rico...! Mas você arranjou um favelado. Mamãe
disse que ele mora no morro do Salgueiro.
— E daí? Tem muita gente boa no morro, sabia?
— Só se for boa para apanhar, que é o que bandido
merece.
— Marcos não é bandido!
— Marcos, Marcos... Uma moça linda feito você, fina,
educada, se metendo com um pé-rapado, um joão-ninguém,
um neguinho de morro...
— Chega, Elói! Não quero mais continuar com essa conversa.
Só estou lhe avisando para não se intrometer na minha
vida. E pare com esse preconceito. Isso está fora de moda.
Como é possível que, em pleno século vinte e um, ainda existam
pessoas que dão importância à cor da pele e ao dinheiro?
Elói guardou no silêncio o desprezo pela conduta de
Raquel. Não adiantava discutir com ela. Levantou-se de um
salto e pôs-se a caminho da porta.

— Guarde bem o que eu digo, Raquel — alertou ele.
— Essa história ainda vai acabar mal, e a culpa será toda
sua. Depois não diga que não avisei.
Saiu batendo a porta, deixando Raquel com os nervos
à flor da pele. Por essa ela não esperava. O irmão sempre
tivera os valores invertidos, mas ela jamais mensurou o tamanho
do seu preconceito. Muitas vezes o vira com moças
mulatas e negras, dando-lhe a impressão de que não era
racista. Só agora ela o via como realmente era.

Raquel sentiu raiva do irmão. Teve vontade de contar
às garotas o tipo de pessoa que ele era. A beleza escondia


a pequenez de sua alma. Era uma vergonha que ele estivesse
tão envolvido com preconceito naqueles tempos de
abertura da mente e de eliminação das barreiras étnicas e
sociais. Com lágrimas nos olhos, para se acalmar, acendeu
um incenso e colocou um CD de relaxamento. Fez uma mentalização
que aprendera, para invocar iluminação:

"Que a luz que emana do centro da divindade envolva
meu corpo e meu espírito. Que os amigos iluminados interessados
na vitória do bem se façam presentes em minha
vida. Deus é a luz do meu caminho. Por Ele estou em luz,
com Ele eu sou a luz."

Aos poucos, a tranquilidade retornou a seu coração.


Ao contrário de Raquel, que buscou o lado espiritual para
se reequilibrar, Elói saiu do quarto da irmã com o coração pesado
de ódio e ressentimento. Tentou convencer os pais a proibirem
o namoro, mas ambos foram peremptórios: Raquel era
adulta, tinha o direito de namorar quem bem quisesse. E depois,
como médicos, eles sabiam que não existia diferença entre os
seres humanos, considerando reprovável a atitude do filho.

Sozinho em sua revolta, Elói pôs-se a pensar na melhor
maneira de afastar a irmã daquele rapaz. A pessoa indicada
para ajudá-lo era Nelson, o mais prejudicado naquela
história toda. Resolveu sair e telefonar para ele.

— Alô? Eu poderia falar com o Nelson, por favor?
— É ele — respondeu a voz na outra ponta.
— Oi, Nelson. Quem está falando é o Elói, irmão da
Raquel. Estou ligando porque acho que temos um assunto
em comum, cuja solução é do interesse de nós dois.
— Que assunto?
— Marcos — disparou, sem hesitar.
Fez-se um breve silêncio, até que Nelson retrucou
desconfiado:

207


— Não tenho interesse nenhum nessa pessoa.
— Será que não tem mesmo?
— Não.
— Pois eu vou ser muito franco com você, Nelson.
Não me agrada nada que minha irmã esteja de caso com
um neguinho de morro. E você? Não se incomoda de ter
sido trocado por alguém assim?
Do outro lado, Nelson espumava de ódio, sem saber o
que fazer. Se, por um lado, a raiva o enlouquecia, por outro,
tinha medo de cair numa armadilha e revelar seus pensamentos
criminosos.

— Ninguém gosta de ser traído — disse ele cautelosamente.
— Se você não gosta, então por que não se encontra
comigo e escuta o que tenho a dizer? — novo silêncio. — Só
vai levar um minuto.
— Onde?
— Vou lhe dar o endereço de um barzinho sossegado
na Barra. Pode ser?
Nelson anotou o endereço e desligou o telefone. Aquele
telefonema era muito esquisito. Conversara com Elói algumas
vezes, mas nada sabia a seu respeito. Só que ele estava concluindo
a faculdade de medicina e vivia cheio de garotas.

Ao chegar ao barzinho, Nelson encontrou Elói sentado
à sua espera. O rapaz estendeu-lhe a mão e ofereceu-lhe a
cadeira em frente.

— Bebe alguma coisa? — perguntou Elói.
— Um chope está bem.
Depois que o garçom serviu a bebida, Nelson encarou
Elói, tentando imaginar o motivo daquele encontro.
Adivinhando o que se passava pela cabeça do outro, com
um sorriso matreiro, Elói foi logo dizendo:

— Você está se perguntando por que o chamei aqui,
não está?
— Realmente, não faço a menor ideia.
208


— Eu disse que era para falar de Marcos.
— Não vejo o que essa pessoa tem que possa
me interessar.
— Essa pessoa está namorando minha irmã. Você
sabe disso.
— Foi a escolha dela.
— E você se conforma?
— O que posso fazer?
— Tomar alguma providência. Eu não deixaria que
mulher minha me trocasse por um neguinho de morro.
— Acho bom falar mais baixo. Não quer ser indiciado
por racismo, quer?
Elói deu uma gargalhada e acendeu um cigarro, soltando
a fumaça na direção de Nelson, que tossiu baixinho.

— Não é o caso — considerou. — A questão aqui é
outra. Não admito que Raquel troque um cara decente feito
você por um favelado.
— Porquê?
— Porque não está direito. Não tenho nada contra
essa gente, desde que não queiram se misturar conosco.
Acho legal ele estudar para melhorar de vida. Mas tem que
permanecer no meio dele. E foi se engraçar justo com a tonta
da minha irmã.
— Ela está apaixonada por ele.
— Apaixonada, nada! Raquel gosta de novidade e aventura.
Pensa que namorar um favelado é vantagem, que vai
torná-la importante aos olhos do mundo. Mas aposto que, lá
no fundo, ela não gosta dele. Gosta é do que ele representa.
— E o que ele representa?
— Novidade, já disse. Minha irmã quer ser zen, new age
e outras bobagens do gênero. Vive sonhando com mundos
que não existem e realidades fantasiosas. Marcos representa
a oportunidade para ela mostrar que não se importa com
bobagens mundanas. Mas eu, que sou o irmão mais velho e
209


conheço bem a realidade das coisas, não posso permitir uma
loucura dessas. Cabe a mim trazer Raquel de volta à razão.

— Muito interessante. Posso saber como é que pretende
fazer isso?
— Com a sua ajuda.
— Minha ajuda?
— Você foi o maior prejudicado. Quem melhor do que
você para se aliar a mim nessa luta?
— Que luta seria essa?
Elói dobrou o corpo sobre a mesa e falou baixinho:
— Precisamos separar aqueles dois.
— Como?
— Vamos por partes. Meus pais disseram que ele estuda
na turma de vocês, mora no morro do Salgueiro e trabalha
num restaurante do shopping Iguatemi. Nossa primeira
atitude talvez deva ser com relação ao seu trabalho. Tirar-lhe
o sustento vai servir de desestabilizador e grande motivo de
desavenças. Já imaginou Raquel pagando motel para ele?
Elói riu, mas Nelson quase quebrou o copo de chope,
de tanto que o apertou. Não podia sequer imaginar Raquel
na cama com outro homem.

— Não sei o que seria capaz de fazer se a pegasse
nos braços de outro — rilhou entre os dentes.
— Nada. Não seja estúpido. Temos que expor Marcos
e seus pontos fracos.
— E depois?
— Depois, adeus, idiota. Raquel vai se decepcionar e
voltar para você. Então? Está dentro ou não?
— Estou dentro — concordou ele, sem titubear.
— Raquel tem que voltar a ser minha.
— Vai voltar. Pode confiar.
O resultado do encontro foi satisfatório para ambos.
Mais uma vez, espíritos menos esclarecidos se aliaram a
eles, a fim de fortalecê-los em seus projetos de desordem.

210


CAPÍTULO

24

Seguindo a pista que obtivera do trocador de ônibus,
Afrânio foi à rua onde ficava o ponto final da linha que ia de
Belford Roxo à Penha, o mesmo em que Margarete saltara.
O fiscal não sabia de nada porque, à época, não trabalhava
ali, mas Afrânio descobriu os números de todas as linhas
que tinham aquela rua no itinerário. Sem saber se eram
as mesmas de vinte anos atrás, saiu em busca das empresas.
Como da outra vez, ninguém se lembrava de Margarete.

— Será que não houve nenhum incidente digno de
nota que tivesse chamado a atenção de alguém? — questionou
Félix, tentando evocar alguma memória marcante.
— É claro que houve! — respondeu Margarete, sentindo
a antiga raiva voltar. — Todo mundo ficou me criticando
porque o bebê havia vomitado no meu colo, e eu o sacudi e
gritei com ele. Mas ninguém se ofereceu para ajudar.
— Ninguém atrai a crítica à toa — comentou Félix.
— Embora isso não justifique quem a faz.
— Lembro-me bem das pessoas que me criticaram.
Tinha uma mulher sentada no banco ao lado da roleta e um
casal na minha frente.
— Você viu os rostos deles?
— Como é que eu ia ver? Estavam de costas!
— Nem da mulher sentada no banco lateral?

— Dessa eu vi, mas não sei se me lembro. Devia ter
uns cinquenta anos.
— Precisamos levar Afrânio ao ônibus que você pegou
para a Tijuca.
— Como?
— Deixe comigo.
Parado no ponto, Afrânio pensava que ônibus tomar.
Mostrara a fotografia a todos na garagem, sem sucesso. Não
sabia mais o que fazer. A pista parecia perdida, ninguém
se lembrava de nada. Por ali trafegavam inúmeros ônibus,
muitos dos quais não eram os mesmos de vinte anos atrás.
Outros haviam mudado, outros não circulavam mais. Como
descobrir o veículo e as pessoas certas?

Era provável que tivesse que entrar em todos os ônibus
que passavam por ali, o que demandaria muito tempo. Seria
desgastante, mas precisava tentar. O primeiro coletivo em
que entrou não era da mesma linha que Margarete tomara.
Junto dele, Félix tentava intuí-lo sobre o lugar aonde deveria ir.

— Tijuca... — imaginou subitamente. — Será? Pode
ser, como pode não ser. A Tijuca fica muito longe daqui, é
pouco provável que ela tenha ido parar lá, mas nunca se
sabe... Bom, para não perder tempo, vou procurar nos lugares
próximos primeiro.
Afrânio afastou a intervenção do espírito e entrou no
primeiro ônibus que apareceu. Mostrou a foto aos passageiros,
fazendo perguntas aqui e ali, sem nenhum sinal de reconhecimento.
Fez o trajeto todo, até o ponto final, e voltou
no mesmo ônibus, desanimado.

— Ele não nos ouve — comentou Félix, que havia tentado
influenciá-lo novamente.
— Por quê? — indignou-se Margarete.
— Está seguindo seu próprio método. A mente racional
rejeita a sugestão intuitiva, como acontece com muitos.
O que parece não ter lógica é descartado pelo pensamento.
Contudo, geralmente, é o que mostra o caminho certo.

— E agora?
— Vamos tentar facilitar um encontro. Venha comigo.
— Aonde?
— Você verá.
Num piscar de olhos, viram-se de volta à cidade astral
que habitavam e foram esperar Laureano em seu consultório.
Tiveram que aguardar até que o último paciente saísse,
para então poderem falar com ele.

— Precisamos de sua ajuda — Félix suplicou.
— Para que seria? — quis saber Laureano.
— Não estamos conseguindo intuir Afrânio a pegar o
ônibus da mesma linha que levou Margarete à Praça Saens
Pena. Ele está procurando em local diverso e não existem
pessoas próximas capazes de estabelecer uma sintonia.
— Mas existem pessoas, não é? — indagou Laureano.
— Existiram — afirmou Margarete. — Lembro-me bem
de três pessoas, embora não consiga visualizar-lhes as feições.
— E querem a minha ajuda para tentar localizá-las?
— Exatamente.
— Muito bem, então. Vamos até o local.
Era madrugada quando chegaram ao ponto de ônibus.
Com a rua praticamente deserta, poucos veículos circulavam
por ali.

— A essa hora, a quantidade de coletivos em circulação
cai bastante — esclareceu Félix.
— Sei disso — comentou Laureano. — Mas fica mais
fácil, já que as interferências mentais dos encarnados que
passam por aqui diminuem sensivelmente. Vamos esperar o
ônibus certo para entrar nele.
Quando o ônibus passou, os três entraram sem ser
percebidos, mesmo porque o coletivo não parou naquele
ponto. O veículo era novo, um pouco diferente do que
Margarete havia tomado. Mesmo assim, ela sentou-se no lugar
equivalente ao antigo e, orientada por Laureano, pôs-se
a pensar naquele dia. Mentalmente, refez a cena, tentando

213


colocar os passageiros nos lugares de outrora. Laureano
ajudou com um passe fortificante, a fim de clarear sua tela
mental e facilitar a evocação das lembranças.

Rapidamente, as vagas formas-pensamento criadas por
Margarete ocuparam seus lugares, permitindo a Laureano e
Félix acompanhar o desenrolar da história. Viram e ouviram o
que Margarete se lembrava do passado, até o momento em que
ela desceu na Praça Saens Pena, quando as lembranças se dissiparam,
e as formas-pensamento esvaneceram aos poucos.

— E agora? — perguntou Margarete aturdida, mas
Laureano não a ouvia, de tão concentrado que estava.
Ao final de poucos segundos, ele abriu os olhos e falou
convicto:

— A senhora que se sentava ali — apontou para o
banco lateral — já fez a passagem. O casal à sua frente ainda
está vivo e bem. A mulher não mora mais no Rio, mas o
homem continua no mesmo lugar de antes.
Margarete soltou um gritinho de euforia:

— Como foi que você fez isso?
— Com muitos anos de aprendizado e treinamento da
mente. Hoje, no que se refere a qualquer elemento, seja do
mundo da matéria ou de outros mais sutis, posso seguir-lhe
as energias e estabelecer um elo mental com ele.
— Mas isso é maravilhoso!
— Podemos ir ao encontro desse homem? — Félix
perguntou.
— Agora mesmo. Ele está dormindo, o que facilitará
em muito a nossa comunicação.
O homem, um senhor de seus sessenta anos, dormia
tranquilamente, o corpo astral ausente, preso à matéria pelo
cordão prateado9.

— O que faremos? — preocupou-se Margarete.
Cordão prateado — fio energético que mantém o corpo astral ligado ao
físico dos encarnados durante toda a vida na matéria.


— Vamos segui-lo — disse Laureano, apontando para
o tênue fio.
Seguindo o cordão de prata, os três encontraram o
homem assistindo a uma palestra no mundo espiritual. Entraram
respeitosamente, sentaram-se mais atrás no auditório
e ficaram escutando os interessantes ensinamentos
daquela noite. Quando a palestra terminou, aproximaram-se
do encarnado.

— Boa noite, meu bom companheiro — saudou
Laureano, que já havia se identificado ao mentor do homem.
— Boa noite — respondeu ele.
— Será que poderíamos conversar com você um
momento?
— É claro.
— Chamo-me Laureano, e esses são meus amigos
Félix e Margarete.
— Muito prazer. Sou o Percival.
— O prazer é nosso, Percival. Gostaríamos de uma
ajuda sua, se possível.
— Pois não. O que posso fazer por vocês?
— Será que você, por acaso, não se lembra dessa
moça que aqui está?
Ele apontou para Margarete. O homem a fitou por alguns
instantes, até que balançou a cabeça negativamente:

— Lamento, mas não a conheço.
— Tomei um ônibus uma vez — adiantou-se ela. — Faz
uns vinte anos. Estava com um bebê de colo, que vomitou
em mim, e eu briguei com ele. Não se lembra?
Margarete conseguiu conter o ímpeto de falar sobre
as críticas de que fora alvo, contudo, o homem pareceu se
lembrar, porque abaixou a cabeça e murmurou sem graça:

— Agora me lembro.
Ele ficou esperando que alguém dissesse algo a respeito
dos comentários que fizera sobre o comportamento de
Margarete, mas ninguém falou nada.

215


— Preciso que me ajude a reencontrar meu filho — informou
ela, de imediato.
— É o bebê que carregava no colo? — surpreendeu-
se Percival.
— Esse mesmo. Na verdade, eu sei onde ele está,
mas preciso fazer com que um certo detetive chegue até ele.
— Como posso ajudar?
— Você ainda tem contatos na Penha? — indagou
Laureano.
— Tenho uma irmã que mora lá e que visito frequentemente.
— Ótimo. Vamos tentar levar Afrânio a pegar o mesmo
ônibus em que você estará voltando da casa de sua irmã.
Ele vai entrar, mostrar a fotografia de Margarete, fazer perguntas.
E você só tem que dizer que se lembra dela e mostrar
onde ela saltou.
— Hum... deixe ver — ele puxou pela memória e acrescentou:
— Foi na Tijuca, não foi?
— Foi.
— Muito bem. Direi a ele.
— Excelente! Vou pedir ao seu mentor autorização para
que você se lembre, ao menos parcialmente, dessa experiência.
— Será que antes posso lhe dizer uma coisa? — pediu
ele, dirigindo-se a Margarete.
— A mim? — surpreendeu-se ela. — É claro.
— Sabendo que o acaso é obra do plano divino, não
quero perder a oportunidade de estar aqui hoje reunido com
você e pedir que me perdoe.
— Eu?!
— Sei que a critiquei e a tratei mal. Hoje compreendo
que não devemos julgar. Depois que entrei para o centro espírita,
venho tentando me modificar. Por isso, quero o seu perdão.
Margarete fitou o interlocutor em dúvida. No fundo,
sentira muita mágoa pela forma como ele a tratara. Agora,
porém, vendo-o ali, tão simples e humilde, transmitindo uma


sinceridade sem igual, todo o ressentimento se dissipou. Ela
apanhou a mão dele e levou-a de encontro ao peito.

— O senhor está perdoado — afirmou com honestidade.
— Quem de nós nunca cometeu nada de que não se arrependesse
depois? Se o senhor acha que não devia ter-me julgado,
quem sou eu para julgá-lo agora? Vamos encerrar por aqui.
— Obrigado — disse ele, enxugando uma lágrima
do olho.
— Muito me emociona a oportunidade de reconciliação
entre pessoas que não se conhecem, não têm nenhum
compromisso mútuo, mas poderiam levar ressentimentos
desnecessários para o futuro — esclareceu Laureano. — Às
vezes, nas pequeninas coisas da vida, vamos gerando elos
recíprocos de mágoa e raiva que se instalam dentro de nós e
explodem em algum momento mais à frente, causando-nos
medo e insegurança. Comentários maldosos, indiferença e
mau humor no atendimento, irritação, impaciência, ironia,
sarcasmo, grosseria, arrogância, tudo isso pode gerar consequências
nada saudáveis tanto em quem recebe quanto
em quem faz. Em ambos os casos, bloqueios importantes
podem se estabelecer, dificultando a espontaneidade, a alegria,
a segurança. Temos o dever de ser gentis com todos,
conhecendo-os ou não. A boa educação é o primeiro passo
no caminho da elevação.
Fez-se um breve silêncio, em que cada qual refletiu nas
próprias ações. Em seguida, Laureano saiu para falar com o
mentor de Percival, que concordou com o plano.

Ao acordar, Percival não guardava propriamente a lembrança
do sonho, mas sentiu um desejo irresistível de visitar
a irmã. Telefonou para ela e marcou de chegar perto da hora
do almoço. Comeu sem preocupação nem ansiedade, até
que, ao cair da tarde, resolveu voltar.

Algum tempo depois, Afrânio descia no ponto de ônibus.
Não aguentava mais ir de um lado a outro da cidade, sem sucesso.
Tanto que, quando outro coletivo se aproximou, não

217


embarcou nele. O que estava fazendo era uma idiotice. Era praticamente
impossível entrar num ônibus em que viajasse alguém
que se lembrasse de ter visto Margarete duas décadas atrás.

Desanimado, mãos nos bolsos, saiu caminhando pela
rua. Naquele momento, não tinha planos nem metas estabelecidas.
Só pensava em Margarete. Laureano acompanhava-o de
perto, quase direcionando-o pelo caminho desejado. Afrânio viu
uma mulher passar correndo com um bebezinho no colo e entrar
num ônibus parado no ponto mais próximo. Instintivamente,
olhou para o cartaz de propaganda colado no vidro traseiro do
veículo, anunciando uma academia de ginástica na Tijuca.

Não pensou duas vezes. Foi impulsivo. Sem nem imaginar
que seguia a sugestão do invisível, Afrânio correu e
subiu atrás da moça, ajudando-a com a bolsa do bebê.
Por coincidência ou não, ela se sentou atrás de Percival,
e Margarete postou-se ao lado dele. Afrânio ficou em pé,
procurando a foto no bolso. Para apressar as coisas, Félix
tornou-se visível à criança, que, achando graça nas caretas
divertidas que ele fazia, soltava gargalhadas gostosas.

Todo mundo fitou a criança, achando engraçadinhos
os seus gorgolejos. Tão diferente da vez em que Margarete
subira com seu filho, maldizendo-o e atraindo as críticas
dos demais passageiros. A recordação anuviou um pouco

o pensamento de Margarete, mas não apenas o dela. A seu
lado, Percival evocou a mesma lembrança.
Era muito estranho ativar uma memória insignificante,
há tanto tempo perdida. Ele nunca pensara naquilo, jamais se
lembrara daquela moça que subira ao ônibus, maltrapilha, aparentemente
embriagada, com um bebezinho franzino no colo,
ralhando com ele só porque vomitara em seu colo. Lembrou-
se de como a criticara e de como se arrependera depois, mas,
estranhamente, aquela pontada de culpa já não existia mais.

Desconhecendo o significado da lembrança inopinada,
Percival sentiu enorme paz interior, permitindo-se pensar
em Margarete, imaginando o que teria sido feito dela e

218


de seu bebê. Nesse mesmo tempo, Afrânio sacava do bolso
a fotografia, enquanto Félix lhe sussurrava ao ouvido:

— Vamos, mostre a ele.
Apesar do desânimo, Afrânio aproximou a foto de
Percival e solicitou com extrema educação:

— Por favor, senhor, se incomodaria de dar uma olhada
nesta foto para mim? Há muito procuro essa moça.
Percival apanhou o retrato e quase desmaiou de susto.
Como era possível que ele, de repente, do nada, se lembrasse
de uma desconhecida e, no momento seguinte, estivesse
com o retrato dela nas mãos? Ele olhou para Afrânio, embasbacado,
partes do sonho voltando à sua mente. Como
não acreditava em coincidências, percebeu naquele acaso
toda uma movimentação espiritual.

— Moço — murmurou ele, ainda assim atônito —, é
a coisa mais estranha. Pois agora mesmo estava pensando
nessa mulher.
— O quê?—surpreendeu-se Afrânio, sentando-se ao lado
dele e fazendo Margarete levantar. — O senhor a reconhece?
— Essa foto é antiga, não é? — Afrânio assentiu. — E
ela tinha um bebê, não tinha?
— Tinha! — ele quase gritou, mal acreditando no que
ouvia. — Lembra-se dela?
— Não sei como, mas me lembro. Foi há muito tempo.
Ela entrou nesse mesmo ônibus, com o bebê, e desceu na
Praça Saens Pena, pouco antes de eu saltar.
— O senhor pode me mostrar onde é?
— É claro. Vamos passar por lá. Mas, diga-me, por
que a procura?
— Fui contratado para encontrá-la.
— Porquê?
— Lamento, mas não posso dizer isso.
— É claro, desculpe.
Seguiram o resto do caminho conversando, e Percival
aproveitou a oportunidade para falar com Afrânio sobre as

219


coisas do invisível. Mostrou-lhe um exemplar de A última
chance, de Marcelo Cezar, afirmando com serenidade:

— Esse livro me ajudou a superar a morte do meu filho.
— É mesmo?
— O senhor devia experimentar ler. O mundo espiritual
é fantástico.
— Não sei se acredito nisso.
— Não acredita? Pois como acha que me encontrou,
de uma hora para outra?
— Sorte. Coincidência.
— Que nada! Aposto como os espíritos ajudaram você.
Afrânio não sabia o que dizer. O que acontecera fora
mesmo inusitado. Não acreditava em vida após a morte nem
em espíritos, contudo, de qualquer forma, tinha que reconhecer
que era estranho. Ele ia perguntar alguma coisa a
Percival, quando este disse:

— É aqui.
O detetive assentiu decepcionado. Queria ainda fazer algumas
perguntas sobre espiritualidade, mas tinha que trabalhar.
Decidiu-se, porém, a estudar o assunto em suas horas vagas.

Ouvindo o sinal da descida, o motorista parou no mesmo
ponto em que Margarete havia saltado.

— Obrigado — falou para Afrânio. — Não sabe o
quanto me ajudou.
Afrânio pôs de lado a conversa que tivera com Percival
para se concentrar em seu trabalho. A praça Saens Pena estava
muito diferente agora, mas era o local em que Margarete
havia pisado, mais de vinte anos antes. Ao lado dele, Félix e
Margarete seguiam de mãos dadas, observando a indecisão
do detetive sobre aonde deveria ir.

Afrânio ainda mostrou a foto a alguns transeuntes, mas
ninguém sabia de nada. Como a hora já ia avançada, achou
melhor voltar depois. Depois do encontro com Percival, tinha
certeza de que em breve encontraria Margarete.


CAPÍTULO

25

Apesar do pouco tempo, o namoro de Marcos e Raquel
se aprofundava a cada dia. Os dois viviam sempre juntos, intensificando
seus encontros com o término do ano letivo. Embora
Raquel ansiasse por estar a sós com ele, Marcos se demonstrava
evasivo, não tocava em assuntos de sexo. Quando saíam,
normalmente iam ao cinema ou a algum restaurante pacato,
frequentado por famílias com filhos. Nunca iam dançar, muito
menos, ao motel.

Naquela sexta-feira, todavia, Raquel estava decidida a
ter uma noite de amor com Marcos. Ouvira dizer que muitos
evangélicos não faziam sexo antes do casamento, mas ela
se recusava a crer que ele fosse assim. Um universitário não
se deixaria envolver por tabus que ela considerava sem sentido.

Assim que entraram no carro dela, Raquel ligou o motor
e fez a pergunta:

— O que vamos fazer hoje?
— Estão encenando A Paixão de Cristo no teatro da
minha igreja. Gostaria de ir?
Raquel soltou um suspiro profundo, alisou o rosto dele
com uma das mãos. Ligou o carro e saiu do estacionamento.

— Será que não poderíamos ficar sozinhos? — tornou
ela, olhando-o de soslaio.

— Estamos sempre sozinhos. Por isso pensei no teatro.
Você não conhece minha igreja...
— Gostaria de ir a um lugar para namorar — cortou ela.
— Onde?
— Vamos dar uma volta na praia?
Ele a estudou por uns momentos antes de responder:
— Está bem. Se é o que você quer.
Raquel tomou a direção da Barra da Tijuca. Não sabia
mais o que fazer para deixar transparecer que o que ela
mais queria era dormir com ele. Parou o carro em frente à
praia, num lugar mais deserto, e Marcos observou:

— Aqui é perigoso. Podemos ser assaltados.
— Não podemos, não.
Ela se aproximou e beijou-o sofregamente, deslizando
a mão sobre o peito dele. Na mesma hora, todo o corpo de
Marcos se acendeu. Ele a abraçou fortemente, trocando com
ela carícias inocentes. Raquel, ao contrário dele, ousou mais
nos carinhos, deixando-o aturdido, louco de desejo. No começo,
ele cedeu um pouco, mas depois, com a consciência tomada
pela culpa e a certeza do pecado, afastou-se atordoado.

— Não, Raquel — sussurrou ele, segurando-lhe a
mão trêmula.
— Por que não? — gemeu ela, a boca ainda colada à
dele. — Eu o amo.
— Não é certo.
— O que não é certo?
— O que estamos fazendo.
— Não estamos fazendo nada — protestou ela, beijando-
o pelas faces e o pescoço, a fim de provocá-lo o suficiente
para que ele não resistisse.
— Não faça isso — implorou ele, sem saber como evitar
o contato com ela.
Sem lhe dar ouvidos, Raquel continuou beijando-o.
Deixou que sua mão percorresse o corpo dele novamente,
satisfeita com o grau de excitação a que o estava levando.

222


Ele tentava se soltar, ao mesmo tempo em que se agarrava a
ela, contendo a mão que, impiedosamente, buscava descer
pelo corpo dela. Aos pouquinhos, foi cedendo ao desejo, entregando-
se àquele momento de prazer. Mas, quando Raquel
tocou-o em suas partes mais íntimas, ele a empurrou e fez
um movimento para trás, deixando-a estarrecida e frustrada.

— O que foi que houve? — balbuciou ela, tentando
aproximar-se novamente.
— Isso não está certo — censurou ele. — Nós não
somos casados. Não podemos nos tocar dessa maneira.
Raquel sorveu o ar aos borbotões, para acalmar a respiração
ofegante, e recostou-se no banco do motorista.

— Você é virgem, Marcos?
A pergunta foi tão direta que ele quase engasgou. Não
fosse o tom escuro de sua pele, ela teria percebido o rubor
que lhe subia às faces. Em vez de responder, ele respirou
fundo e devolveu a pergunta:

— E você não é?
— Não.
Novamente a surpresa, não tanto pela revelação, mas
pela facilidade com que ela falava de um assunto tão íntimo.
Marcos lutava consigo mesmo, contra o lado religioso que
lhe dizia que Raquel não servia para ele. Virgindade era uma
coisa sagrada, somente deveria ser consagrada ao esposo
ou à esposa assumidos perante Deus. Como poderia ele,
sendo ainda puro e casto, conviver com uma mulher que já
cometera o pecado da carne?

Mas o amor era muito mais forte. Marcos amava Raquel
como jamais tornaria a amar outra pessoa. O fato de ela não
ser mais virgem era uma decepção para a qual, no fundo,
ele já se preparara. Sabia que se iludia ao afirmar que ela
era pura, porque moça nenhuma na idade dela ainda o era.
E Raquel tinha aquelas manias espiritualistas, sem limites,
sem dogmas, sem regras. Que razão teria para pensar na
virgindade da mesma forma que ele?

223


— Acho melhor irmos para casa — sugeriu ele por fim,
sem saber como proceder.
Ela o olhou incrédula:

— Você quer ir embora assim, sem nem conversar?
— O que podemos conversar? Você já disse o que queria.
— Mas não ouvi nada de você.
— O que você quer que lhe diga? Que, ao contrário de
você, ainda me guardo para o casamento?
Não fosse o momento tão delicado, Raquel teria achado
graça. Naqueles dias, ainda existia alguém, e homem,
que acreditava em se casar virgem.

— Olhe, Marcos, não quero desrespeitar suas crenças,
mas onde é que está escrito que duas pessoas que se
amam não podem fazer sexo?
— Podem. Depois do casamento. E a Bíblia é cheia de
passagens que nos ensinam que nosso corpo é o templo do
Espírito Santo, devendo ser reservado para o cônjuge legitimamente
assumido perante Deus.
— Não entendo muito de Bíblia, mas posso dizer que
entendo de pessoas. Para mim, o que tem valor é o que se
guarda no coração.
Marcos a olhou com pesar. Lutava entre o impulso de
tomá-la nos braços e o de rejeitá-la como mulher pecaminosa,
herege.

— Se você se arrepender, Deus vai perdoá-la, com
certeza.
— Arrepender-me de quê? De não ser mais virgem?
— Ele não disse nada, e ela continuou: — Não vejo por que
me arrepender se não considero que tenha feito nada de
errado. Você fala em Bíblia e em Escrituras, mas eu nunca
vi, nos livros espiritualistas que li, uma só linha condenando
aqueles que não se casam virgens. E quem nunca se casar?
Vai ter que morrer virgem também?
— Seus livros não são a Bíblia.
224


— Por certo que não. Mas por que não são tão bons
quanto ela? Para você, a Bíblia é o compêndio da verdade.
Para mim, a verdade não se traduz meramente em palavras.
Ela está nas leis que regem o universo e não foram escritas
por ninguém, mas podem ser compreendidas por qualquer
um que desenvolva suficientemente a inteligência. Esse não
é o nosso caso. Nós, seres humanos, conhecemos ainda
muito pouco da verdade.
Ele a fitou aturdido, sem saber o que dizer. Raquel dizia
coisas que ele não compreendia muito bem, mas faziam
algum sentido dentro dele.

— É isso que você aprende nos livros que lê?
— Eu não aprendo nada. Sou levada a refletir.
Ela estava visivelmente aborrecida. Marcos sentiu imensurável
ternura por ela. Queria muito abraçá-la, porém, tinha
medo de se deixar envolver por suas heresias. Não duvidava
de que ela havia cometido o pecado da carne, mas sabia que

o amor que sentia por ela estava muito além de qualquer pecado.
E o que ela sentia por ele era amor também. Seria esse,
contudo, um sentimento que ela só nutrira por ele?
— Você amava Nelson? — perguntou ele, tentando
compreender o jeito dela.
— Não — foi a resposta sincera e rápida.
— Mas se deitou com ele?
Ela o olhou magoada e respondeu com lágrimas presas
nos olhos:

— Sim.
— Porquê?
— Porque quis. Porque senti desejo. Porque gostava
dele, embora não o amasse como amo você.
— Foi um impulso da carne?
— Foi.
— Como o de agora?
— O de agora foi um impulso de amor.
225


Marcos fitou-a novamente, sentindo aquele desejo quase
irresistível de abraçá-la, beijá-la, dizer que nada daquilo
importava. Mas, então, por que não conseguia aproximar-se
dela, por que ficava preso aos ensinamentos que ouvira na
igreja? Porque as palavras da Bíblia estavam impressas em
seu coração, e não era assim tão fácil desapegar-se de valores
com os quais fora acostumado desde a mais tenra idade.

Em vez de ceder ao comando do coração, Marcos sentia
necessidade de saber mais a respeito da vida pregressa
da moça e continuou perguntando, sem dar atenção ao
amor contido nas palavras de Raquel:

— Com quantos homens você já dormiu?
— Isso não é da sua conta! — irritou-se ela. — E quer
saber do que mais? Para mim chega! Cansei. Se você acha
tão importante assim ser virgem, vá procurar uma garota na
porta da igreja. Essa garota não sou eu. Aprecio a vida e
não estou disposta a abrir mão do prazer só porque você
acredita que sentir prazer é pecado.
Ela rodou a chave na ignição e, quando colocou a mão
sobre o câmbio para engatar a ré, Marcos a segurou com firmeza.
Raquel estava furiosa, ele já a conhecia o suficiente para
saber o quanto ela era decidida e segura de si. Mas não podia
perdê-la. Pensar nisso causou-lhe um arrepio de terror pior do
que a decepção por ela não ser mais virgem. Se era doloroso
aceitar que ela já havia dormido com outros homens, muito
mais doloroso seria pensar que ela jamais seria dele.

— Não, Raquel, por favor — murmurou ele. — Não
vá ainda.
— Não vou permitir que você fique aí falando comigo
como se eu fosse uma perdida. Se você quer ser virgem,
tudo bem, o problema é seu. Embora não compreenda, posso
aceitar a sua escolha e conviver com ela. E sabe por quê,
Marcos? Porque eu conheço uma coisa que, pelo visto, você
ainda não aprendeu: respeito. Você não sabe me respeitar
do jeito que eu sou, porque não sou como você esperava e
226


queria. Isso não é amor e, se você não me ama, prefiro que
fique longe de mim. Acho melhor terminarmos agora...

Ela falava sem parar, mas Marcos não deixou que concluísse
a frase. Puxou-a para si, selando seus lábios com um
beijo. Raquel não se debateu mais que um segundo. Presa
nos braços dele, permitiu-se beijar, mas ficou quieta, sem
ousar mexer as mãos e tocá-lo. Nem foi preciso. Dessa vez,
foi Marcos quem tomou a iniciativa.

Em meio aos beijos e carícias, a imagem da tia e do
pastor lhe aparecia, mas a respiração ofegante de Raquel
dissipava qualquer sombra que nublasse aquele momento.
Mesmo sem experiência alguma em sexo, ele ia deixando-se
envolver pelo momento, excitando-se cada vez mais com a
excitação de Raquel.

— Vamos sair daqui — sussurrou ele, beijando-lhe
o ouvido.
— Tem certeza?
Ele apenas assentiu, sem parar de beijá-la. A muito custo,
Raquel se afastou dele e conseguiu, finalmente, engatar a
ré, em direção ao motel mais próximo. Durante o breve trajeto,
Marcos lutava com a lembrança da tia e do pastor, o medo
de estar comprometendo sua alma e a certeza de que nada
compensaria o amor de Raquel. Ela era mais importante do
que tudo, por ela valeria a pena correr o risco do pecado.

Chegaram ao motel rapidamente e logo estavam na
cama, se amando. Marcos jamais havia experimentado
aquela sensação em toda a sua vida. Nem sequer imaginara
que pudesse sentir tanto prazer. Ali, com o corpo de Raquel
junto ao seu, pensou se tudo aquilo que aprendera era realmente
o certo. Como poderia o amor caminhar de braços
dados com o pecado? Fora preciso experienciar para compreender
que o sexo não era um erro, mas o complemento
de um sentimento que estava muito além de qualquer dogma
ou tabu humano.

227


CAPÍTULO

26

A partir daquele dia, superando a proibição, Marcos
entregou-se a um amor verdadeiro e apaixonado. O pecado
da carne cedeu lugar à beleza do amor. Aos poucos, foi-se
distanciando da igreja. Chegava tarde aos sábados e não
conseguia acordar cedo para o culto aos domingos.

— Sua tia tem-se queixado de que você não vai mais
à igreja — comentou Clementina.
— Ela esteve aqui hoje?
— Cedo, como sempre. Você estava dormindo, e eu
não deixei que o acordasse.
— Podia ter deixado. Faz mesmo tempo que não assisto
aos cultos. Estou em falta com tia Leontina e com o pastor.
— Posso dizer o que eu acho, meu filho? — Ele assentiu.
— Acho que você está muito melhor assim, do jeito
como está. Não me agrada ver um menino bonito, inteligente
e saudável feito você enfurnado em igreja. Acho bom você
aproveitar a vida.
— Mas, mãe — objetou ele, confuso —, tenho negligenciado
meus deveres cristãos.
— Que deveres? Só porque não vai mais às vigílias e falta
aos cultos não quer dizer que você não seja um bom cristão.
— Tenho me distanciado dos ensinamentos bíblicos
— confessou ele, sem encarar a mãe.

— Como assim? — retrucou ela. — Fez alguma coisa
errada?
— Não sei dizer. Gostaria de conversar sobre isso com
o pastor, porém, tenho medo. Sei que ele vai me recriminar e
querer que eu me arrependa, mas não quero.
— Arrepender-se de quê? Qual foi o pecado que você
cometeu? — Ele não respondeu, mas Clementina, sim.
— Não precisa dizer. Foi o maldito pecado da carne, não foi?
Marcos assentiu mansamente e afundou o rosto entre
as mãos, com vergonha de encarar a mãe.

— Não pude resistir... Mas eu a amo tanto! Por que
amar tem que ser pecado?
— Não se deixe enganar por essas baboseiras de pastor
— aconselhou a mãe. — Eu mesma não acredito em nada
disso. O pecado está no coração da gente, não no corpo.
— Será, mãe? Mas as Escrituras dizem...
— Eu não devia ter deixado sua tia influenciar você,
não devia. Agora você acha que tudo é pecado.
— Você é que não acredita em nada. Perdeu a fé.
— Como alguém perde o que nunca teve? Eu nunca
tive fé em nada. la à igreja por influência de Leontina, para
me purificar dos meus próprios pecados.
— Você também tinha pecados?
— Quem não os tem? Eu e seu pai poderíamos ser
acusados do mesmo pecado, se é que me entende. Na época,
fiquei com remorso e fui na onda de Leontina. Seu pai, ao
contrário, foi mais esperto e largou a igreja. Mas eu achava
mesmo que tinha errado. Sua tia me levou ao pastor, ele me
fez jurar que não pecaria outra vez. E, como nós nos casamos,
consertamos tudo. Para quê? Veja só no que deu a minha fé.
— Você acabou de dizer que nunca teve fé. Talvez, se você
tivesse se voltado mais para Deus, não tivesse sofrido tanto.
— Deus não impediu seu pai de nos abandonar.
— Mas poderia tê-la ajudado a não compensar tudo
com a bebida.
229


— Eu já me curei — rebateu em tom de desculpa.
— Não a estou acusando. Quero apenas que você
perceba que a religião nos ajuda a manter o equilíbrio.
— Pode ser. Mas tem que vir lá de dentro. A gente tem
que sentir a fé, acreditar no Espírito Santo com o coração,
não por medo ou imposição. E eu, infelizmente, estava no
segundo caso. É por isso que não volto para a igreja nem
me interesso por religião alguma. Todas elas têm as suas
proibições. Não quero mais ninguém para me dizer o que
posso ou não fazer, recriminando-me ou felicitando-me pelos
meus erros e acertos.
— Não é bem assim. Tenho que reconhecer o bem
que a igreja me fez até hoje. Para começar, manteve-me fora
do vício.
— Isso, realmente, foi um bem. Você tem razão, a religião
tem coisas boas, mas não é para mim.
— Acho que é para qualquer um. Você apenas sofreu
uma decepção e não consegue aceitar que não foi por culpa
da igreja que papai a deixou. Foi porque ele quis ir embora,
estivesse você na igreja ou não.
Ouvir a verdade doeu no coração de Clementina, que
arriou no sofá e pôs-se a chorar baixinho.

— Você tem razão — confessou ela. — Hoje estou
preparada para aceitar isso.
— Então, por que não volta para a igreja? Estar mais
próxima de Deus vai ajudá-la muito.
— Não. Perdi minha fé e não pretendo mais me entregar
ao poder dos homens. Prefiro confiar apenas na força
de Deus.
— Você ainda acredita em Deus?
— Acredito. Mas não nesse Deus de barba, sentado
num trono, que fica vigiando nossas vidas e anotando num
caderninho tudo que fazemos de bom ou de ruim.
— Como você pensa que Ele é, então?
— Não sei explicar. Talvez Ele seja apenas amor...
230


— Eu acredito em Deus e no que dizem as Escrituras.
Por isso, temo pela minha alma e a de Raquel.
Clementina aproximou-se do filho e tomou-o nos braços,
encostando a cabeça dele em seu peito. Afagou seus
cabelos com carinho extremo, até que falou convicta:

— Não creio que Deus vá puni-los por isso. Acho que, se
vocês se amam, ele irá abençoá-los, estejam ou não casados.
— Será mesmo?
— Prefiro acreditar nisso.
— E se você estiver enganada? E se eu me enganar
também?
Algumas breves batidas soaram na porta, que se abriu
vagarosamente, e Leontina entrou.
— Está tudo bem com você, Marcos Wellington? —
perguntou ela, vendo mãe e filho abraçados.

— Estou bem, tia — respondeu ele, enxugando uma
lágrima ligeira dos olhos.
— Passei aqui mais cedo, mas sua mãe disse que
você estava dormindo.
— Podia ter-me acordado. Tenho sentido falta de ir
à igreja.
— Nós todos também temos sentido a sua falta. Hoje
mesmo o pastor perguntou por você.
— Tenho andado ocupado.
— Sei... E os estudos, como vão?
— Bem.
Marcos se afastou da mãe e foi apanhar uma fruta na
geladeira, enquanto Leontina prosseguia:

— Você está namorando alguém?
— Por que pergunta?
— Você tem andado esquisito. Normalmente, quando
os jovens ficam com a cabeça no ar, é porque estão apaixonados.
— Marcos olhou para a mãe e não respondeu: — Ela
pertence à nossa congregação?
— Eu não disse que estava namorando — contestou ele.
231


— Não precisa me contar, se não quiser. Alerto-o apenas
para os perigos de uma relação amorosa distante dos
ensinamentos bíblicos. Cuidado para não incorrer em nenhum
pecado do qual vá se arrepender depois.
— Não se preocupe, titia. Sei muito bem o que estou
fazendo.
— Ainda bem. E o pastor mandou dizer que espera
vê-lo na igreja no próximo domingo. Posso dizer a ele que
você irá?
— Pode... não. Acho melhor não.
— Porquê?
Marcos não queria dizer que temia ir à igreja e revelar
ao pastor o que estava fazendo, porque não sabia mentir e
não mentiria diante de uma pergunta direta.

— Marcos Wellington vai sair comigo no próximo
domingo — anunciou Clementina, para salvar a situação.
— Prometeu que me levaria ao Pão de Açúcar. Não é, meu
filho? Eu nunca fui ao Pão de Açúcar.
Leontina não percebeu o ar de espanto de Marcos
e retrucou:

— Tem que ser de manhã?
— É mais fresco. E depois, vamos almoçar num restaurante.
— Vocês têm dinheiro para isso tudo?
— Estou economizando há meses para esse dia. Não
é, meu filho?
Marcos fez que sim com a cabeça, evitando encarar as
duas, e Leontina prosseguiu:

— Acho que vocês podiam ter escolhido um outro
dia para passear, mas seria demais esperar que você,
Clementina, levasse em consideração os horários do culto.
— Desculpe-me, minha irmã, eu realmente nem me
lembrei da igreja.
— E vocês não podem fazer esse passeio outro dia?
Num sábado, por exemplo?

— Ah, não. Já combinamos no domingo. Sábado eu
tenho uma faxina e não poderei ir.
Leontina suspirou desanimada, não muito convencida
da veracidade das palavras de Clementina.

— Tem certeza de que não quer ir, Marcos Wellington?
Ele finalmente encarou a tia. Como não gostava de
mentir, logo pensou numa solução para a desculpa que a
mãe arranjou para salvá-lo. Levaria a mãe ao Pão de Açúcar e
ao restaurante, mas não iria sozinho. Raquel estaria com eles.
Como fazia algum tempo que ela pedia para ser apresentada
a Clementina, aquela seria uma excelente oportunidade.

— Não vai dar, tia. Já está tudo combinado com mamãe
e não quero deixá-la frustrada. Ela nunca vai a lugar algum.
— Nem você, Leontina — acrescentou Clementina.
— Não gostaria de nos acompanhar?
Marcos quase soltou um grito, mas conseguiu se conter
e olhou para a mãe com ar recriminador. Clementina,
contudo, estava tranquila, certa de que a irmã jamais faltaria
ao culto para se distrair.

— Não posso — contestou Clementina. — Não faltaria
à igreja por nada. E, só por curiosidade: o restaurante é de
algum evangélico?
— Não — Clementina apressou-se em dizer.
— Pois agora mesmo é que não vou. Não creio que um
restaurante onde servem bebidas alcoólicas e tocam música
pagã seja o local mais apropriado para um bom cristão.
— Por que você acha que tudo o que não é evangélico
é do demônio, Leontina? — perguntou a irmã.
— Quando você seguia o caminho da religião, não tinha
o diabo no corpo — disse Leontina com uma certa raiva.
— Nem tinha pensamentos pecaminosos.
— E agora tenho?
Notando a iminente discussão religiosa, Marcos resolveu
intervir:

233



— Bom, tia, vou acompanhá-la até sua casa. Já está
ficando tarde e sei que a senhora ainda tem que preparar
o almoço.
As duas perceberam o porquê da atitude de Marcos,
mas silenciaram e aquiesceram. Às vezes, quando ultrapassavam
o limite da tolerância mútua, uma discussão se
instaurava, e Marcos estava sempre ali para impedir. Depois,
ambas agradeciam intimamente, porque, apesar das divergências,
só tinham uma à outra e não gostariam de se afastar
novamente por causa de nenhuma briga.

Logo que Marcos deixou Leontina em casa, voltou
para junto da mãe, que havia terminado de preparar o almoço.
Ele entrou e beijou-a no rosto, ajudando-a a pôr a
mesa. Depois que se sentaram, ele fez a breve oração, que
Clementina acompanhava de olhos cerrados, em respeito a
ele, e puseram-se a comer.

— Gostou da saída que tive para livrá-lo da igreja no
domingo que vem? — indagou ela sorrindo.
— Foi ótima. Achei a ideia tão boa que resolvi comprá-la.
— Como assim?
— Vamos mesmo ao Pão de Açúcar, depois a levarei
para almoçar num restaurante. E não iremos sozinhos.
Quero que você conheça uma pessoa.
— Sua namorada? — Marcos assentiu. — Vai me
apresentar a sua namorada?
Clementina não sabia se estava mais feliz com o
passeio inesperado ou com o fato de que iria conhecer a
namorada de seu filho. Talvez as duas coisas a alegrassem.

— Raquel quer muito conhecê-la. E o momento é o
mais oportuno.
— Que maravilha, Marcos Wellington! Conhecer o Pão
de Açúcar e sua namorada ao mesmo tempo vai ser muito
bom. Só não tenho roupa para estar à altura de uma moça
tão fina. E se ela não gostar de mim?
234


— Ela vai adorar você. Raquel é uma moça especial,
tenho certeza de que você irá gostar dela também.
— Ela sabe que somos pobres, não sabe?
— É claro.
— Mesmo assim, gostaria de ter algo melhor para vestir.
Minhas roupas estão todas velhas e puídas.
— Não se preocupe. Vou lhe comprar algo novo, só
para você ficar feliz. Quero que Raquel veja o quanto minha
mãe ainda é bonita.
— Bonita, eu? — protestou ela encabulada. — Ora,
Marcos Wellington, só você mesmo.
Riu de satisfação, e Marcos afagou sua mão por cima
da mesa. Gostava tanto da mãe, queria muito tirá-la daquela
vida. E sua tia Leontina também. Ela era fanática pela religião,
mas era uma boa pessoa, incapaz de mentir, enganar
ou maltratar quem quer que fosse. Se a pessoa não era
evangélica, Leontina procurava não manter contato com ela,
mas, se estivesse em apuros, deixava de lado a discriminação
e procurava ajudar. Marcos gostava dela, quase tanto
quanto gostava da mãe.


CAPÍTULO

27

Com o fone na mão, Raquel antegozava a ideia de, finalmente,
conhecer a mãe de Marcos. Havia algum tempo
pensava em apresentá-lo a seus pais, mas a insegurança
dele ia adiando o encontro. Depois que ela fosse apresentada
à mãe dele, tinha certeza de que conseguiria marcar um
jantar em sua casa.

Mentalmente idealizando o passeio que fariam no domingo,
recolocou o fone na base, e só então percebeu o irmão
parado atrás do sofá, de braços cruzados, encarando-a
com ar intimidador.

— Que susto, Elói! — exclamou ela. — Agora deu para
ficar escutando a conversa dos outros, é?
— Estava falando com o seu namoradinho?
— Não é da sua conta, mas estava, sim. Por quê?
— Por nada. Só estou curioso. Se ele é pobre, deve
trabalhar em algum lugar.
— Trabalha.
— Em algum banco?
— Não.
— Em um escritório? — Ela meneou a cabeça. — Em
uma loja então? Já sei! Ele é office boy.
— Não encha a minha paciência, Elói. Vá procurar o
que fazer.

— Não precisa tentar me esconder a verdade. Sei que
ele é garçom.
— Se sabe, por que perguntou?
— Por nada. Queria ver se você tinha coragem de
me contar.
— Até parece que você me mete algum medo. Você
não tem nada com a minha vida.
Elói quase a esbofeteou, mas conseguiu se conter. Os
pais o recriminariam e lhe cortariam a mesada se fizesse
uma coisa daquelas.

— Ele trabalha no shopping? Em algum restaurante
famoso?
— Dá um tempo, Elói. Não tenho que ficar aqui escutando
isso.
Irritada com a provocação do irmão, Raquel rodou nos
calcanhares e foi para o quarto, tentando não entrar na energia
dele. Não aguentava o sarcasmo de Elói. Ele se julgava

o dono do mundo, superior a todos com o seu preconceito.
Elói esperou até que Raquel saísse e ligou para o celular
de Nelson.

— Acho que já está na hora de agir.
Mais tarde, os dois perambulavam pelo shopping, circulando
pela praça de alimentação à procura de Marcos.
Avistaram Raquel sentada a uma mesa, tomando um refrigerante,
e procuraram pelo rapaz. Marcos apareceu em seguida,
segurando na mão uma bandeja. Passou por Raquel
sem se deter, indo servir uma mesa mais adiante.

— É ele — rugiu Nelson, apontando para Marcos com
o queixo.
— Até que é bem-apessoado — observou Elói.
— Está de brincadeira comigo? — irritou-se Nelson.
— Calma. Só estou tentando avaliar a situação de forma
imparcial.
Sentados em uma lanchonete próxima, os dois ficaram
muito tempo observando a rotina de Marcos, fato que

237


pretendiam repetir nos dias subsequentes. Ao final da noite,
quando o restaurante fechou as portas, ele saiu com Raquel.
Deu-lhe um beijo apaixonado, levando Nelson a quase perder
o controle e partir para cima dele. Por sorte Elói estava
ali para detê-lo.

— Acho bom você se acalmar — censurou ele. — Ou
quer estragar tudo?
— O canalha está beijando a minha garota!
— Ele pode até ser um canalha, mas ela não é mais
sua garota.
— De que lado você está, afinal?
— Estou do seu lado, mas nem por isso fiquei burro
de repente. Raquel terminou com você porque se apaixonou
pelo canalha ali. Não temos como fugir disso.
Os dois passaram abraçadinhos, sem perceber a presença
de Nelson e Elói, em direção ao estacionamento.

— Aposto como é Raquel que paga tudo — menosprezou
Nelson. — É ela que tem o carro e o dinheiro. Deve
arcar com todas as contas, inclusive do motel.
— Deixe disso. Ciúme agora não adianta nada.
— Não posso evitar. Trocar-me por aquele...
Elói silenciou-o com um gesto:
— Acho melhor cortarmos as referências raciais. Corremos
um grande risco de ser presos por isso, se alguém nos
escutar. Já houve casos, e não quero me arriscar. — Nelson
mordeu os lábios, com raiva, e Elói chamou: —Vamos. Eles já
foram embora, não temos mais o que fazer aqui.
— Vamos segui-los?
— Para quê? Para vê-los entrar num motel?
— Você acha que eles vão para um motel?
— Corre esse risco. E acho que você não quer ver
isso, quer?
O que Nelson queria mesmo era esmurrar a cara de
Marcos e tirar Raquel à força do lado dele, obrigando-a a

238


aceitá-lo de volta. Como aquilo era impossível, preferiu não
ver mais nada.

— Não — sussurrou ele, engolindo o ódio.
— Então, vamos embora. Temos que observá-lo em
silêncio e montar uma estratégia. Já tenho uma ideia mais
ou menos delineada, mas não pode haver falhas.
Marcos e Raquel já iam longe, sem desconfiar de nada.

— Adorei a ideia de sairmos com a sua mãe. Queria
muito conhecê-la.
— Ela também está louca para conhecer você. Fez o
que lhe pedi?
— Fiz, sim. Comprei um conjuntinho bem bonitinho e
moderno, de calça capri com bordados nos bolsos e camiseta
igual, do mesmo tamanho das peças que você me
trouxe. Uma graça.
— Quanto custou?
— Ah, Marcos! Deixe isso para lá.
— Não, senhora! Nem pensar! O combinado não foi esse.
— Quero dar um presente a sua mãe. Não posso?
— Não.
— Porquê?
— Porque não é direito. Fui eu que pedi a você para
comprar uma roupa para ela.
Raquel não discutiu. Deu o preço e recebeu o dinheiro,
mesmo sabendo que ele fazia sacrifício para comprar aquela
roupa bonita. Não fora muito cara nem muito barata. Ela
guardou o dinheiro no bolso e esticou-se para apanhar, no
banco de trás do carro, uma sacola com a roupa nova e
outra com a usada que servira de modelo. Marcos apanhou
tudo e agradeceu.

— Você é muito orgulhoso — declarou ela. — Não tem
nada de mais eu presentear sua mãe.
— Um dia você poderá lhe dar presentes, mas agora
não. E não sou orgulhoso. Só não quero que digam que estou
com você por dinheiro.
239


— Ninguém tem nada com a nossa vida.
— Eu sei, mas é importante para mim que fique
bem claro.
— Tudo bem. Não precisamos discutir por isso.
Ela continuou guiando, até que ele voltou a falar:
— Tenho uma novidade para lhe contar.
— O que é?
— Matriculei-me numa autoescola.
— Sério?
— Sério. Quero aprender a dirigir e, quem sabe, comprar
um carrinho barato para mim. Pode ser um fusquinha
velho mesmo.
Raquel achou graça, ao mesmo tempo em que sentiu
orgulho dele. Marcos podia ser pobre, mas tinha uma ambição
saudável que o colocava no caminho da conquista.

— Você vai conseguir — comentou ela. — Sei que vai.
Ficaram em silêncio alguns minutos, até que ele tornou
a falar:

— Minha tia está desconfiada de que estou namorando
alguém.
— Não pode contar a ela sobre nós?
— Ela iria direto ao pastor, que me pressionaria, até eu
falar que já dormimos juntos.
— E daí? Você não tem mais problemas com isso, tem?
— Só um pouquinho. No fundo, ainda não estou bem
seguro do que estamos fazendo.
— Deixe disso, Marcos. Você já superou esse tabu.
— Talvez, se você fosse à igreja comigo...
— Está querendo me converter ou é impressão minha?
— Não é nada disso. É que você não tem religião alguma,
e pensei se não gostaria de conhecer a minha.
— Eu não teria problema, a princípio, em conhecer
a sua igreja ou qualquer outra, desde que ninguém queira
me converter.

— Não é isso. Seria apenas para acalmar minha
tia Leontina.
— Acalmá-la como? Levando-a a crer que sou da sua
religião, que acredito nas mesmas coisas que ela e faço o
que ela acha que é certo? Não. Isso não seria honesto nem
comigo, nem com ela. Não sigo religião alguma nem pretendo
seguir. Tenho a minha fé em Deus, e é o que basta.
— Mas eu sou evangélico!
— E pode continuar sendo. Isso não me incomoda.
Aceito e respeito a sua religião numa boa. Só não quero
fazer parte dela.
— Você acha que a minha religião é ruim?
— Eu nunca disse isso. Acho que é boa, como todas
as outras que pregam o bem e estão tentando ajudar as
pessoas a serem melhores. Só que eu não tenho afinidade
com ela. Gosto das coisas ocultas, de assuntos esotéricos e
ensinamentos espiritualistas.
— O pastor diz que isso são coisas satânicas.
— Você vai me desculpar, Marcos, mas acho que o
pastor desconhece os estudos espiritualistas. Tenho lido
muita coisa sobre espiritismo, teosofia, astrologia, budismo
e outras coisas do gênero. São temas fascinantes que pregam
tudo, menos o satanismo, da forma como você emprega
essa palavra.
— Não sei, Raquel. É difícil crer que o pastor, um homem
estudado e inteligente, esteja enganado.
— E é fácil acreditar que eu, que você ama e conhece,
tenho parte com o demônio? — Ele não disse nada. — Por
acaso as minhas atitudes são malignas ou enganadoras?
— Não — disse ele convicto. — Sei que você é uma
pessoa boa e sincera.
— Pois, então, como posso pregar o satanismo?
— Eu não disse que você prega. O que temo é que esteja
sendo enganada por essas heresias. O diabo encontra
meios de iludir os incautos.
241


— Você também fala do que não conhece. Qualquer
um que se prende a uma só verdade não conhece verdade
alguma.
— E quem conhece a verdade? Só Deus.
— Isso mesmo. Nós estamos buscando a verdade que
mais nos aproxime dele. Isso não quer dizer que a verdade
seja privilégio de apenas um segmento religioso ou filosófico.
Só descobrimos aquilo que nos é permitido conhecer, e cada
um aprende da sua forma. Se você analisar bem, verá que todas
as Escrituras sagradas dizem as mesmas coisas, embora
adotando interpretações e simbologias diferentes. Quem as
distingue entre boas e ruins, hereges ou divinas, é o homem,
que afunda no orgulho e se julga mais poderoso do que Deus.
Raquel falava de coisas que o deixavam confuso e, ao
mesmo tempo, curioso. Por diversas vezes, ele fora alertado
dos perigos das seitas e falsos cultos, mas as palavras de
Raquel não pareciam condizer com tudo o que ele ouvira
sobre assuntos ligados ao espiritismo ou temas esotéricos.
Não havia nada de mau no que ela dizia.

— Minha mãe diz coisas parecidas, só que não usa
palavras tão bonitas. Ela também ficou descrente da igreja.
— Por quê?
— Por causa do meu pai.
Num breve relato, Marcos contou a Raquel tudo por
que haviam passado desde que o pai os abandonara.

— Você é um homem de coragem e dignidade — impressionou-
se ela. — Depois de tudo por que passou, podia
ter-se tornado um criminoso, um traficante ou um mendigo.
— Foi o temor a Deus que me manteve no caminho
da retidão.
— A religião o ajudou muito, concordo.
— Então não é bom ser religioso?
— É claro que é bom! Desde que não haja fanatismo.
Há pessoas que precisam de alguém que lhes imponha limites,
para que não busquem os mesmos caminhos de dor

que trilharam em outras vidas. Talvez esse seja o seu caso. E
como ninguém nasce onde não deve, nem experiência o que
não precisa, tudo que lhe aconteceu foi exatamente o necessário
para dar um empurrãozinho na sua ascensão espiritual.

— Você falou em outras vidas. Como assim?
— Vidas passadas.
— Você acredita nisso?
— Integralmente. Acho que a reencarnação é uma
oportunidade sagrada de iluminação do Ser. É através dela
que ganhamos novas oportunidades para refazer o que ficou
malfeito.
— Não sei... — Marcos retrucou pensativo. — A ideia
da reencarnação invalida toda a crucificação de Jesus. Por
que teria ele morrido para nos redimir de nossos pecados
se tivéssemos uma nova chance de reencarnar para corrigir
nossos erros?
— Não acredito que Jesus tenha vindo nos redimir
de nossos pecados. Através do seu sacrifício, a semente de
amor foi plantada no coração do homem. Jesus se sacrificou
por nós não para nos livrar dos pecados, mas para nos
mostrar que o caminho para a libertação é o amor.
— Você diz coisas estranhas, Raquel, que o pastor taxaria
de heresias. Tenho medo do que possa vir a lhe acontecer
se continuar com essas ideias.
— Falar de amor não pode ser heresia. Cada um é
livre para pensar e crer no que quiser. Deus não está preocupado
com a forma como você reflete sobre a vida e sobre
Ele. Deus é puro amor; essa é a única verdade sobre Ele que
podemos afirmar.
— Deus perdoa tudo, desde que venha de um arrependimento
sincero — afirmou ele, em tom de preocupação.
— Não tenho do que me arrepender, nem você. Não
quanto a questões religiosas. O mais importante é não matar,
não roubar, não mentir nem trapacear. É ser bom, digno,
verdadeiro, caridoso e amigo. São esses sentimentos que
243


contam para Deus na hora do "julgamento", como vocês costumam
dizer. E o julgamento, para mim, é o momento em
que a nossa consciência nos faz refletir sobre tudo que fizemos.
Vamos então separando nossas obras em boas e não
tão boas. Depois, nas encarnações seguintes, aproveitamos
nosso tempo para aprimorar o que ficou pendente e desfrutar
com alegria do que já foi aprendido. Assim vai, até o dia em
que não houver mais nenhuma pendência, e tudo na vida for
causa de felicidade. Aí, então, não voltaremos mais.

— Chega — sussurrou ele, selando os lábios dela com
a ponta dos dedos. — Você me deixa confuso e assustado.
Nunca pensei que uma pessoa só pudesse ter pensamentos
tão fantásticos e heréticos. Ah! Se o pastor a ouvisse...
Dessa vez, Marcos falou sorrindo, pensando que
Raquel fantasiava sobre coisas das quais nada sabia. Era
melhor não ouvir mais suas bobagens, pois elas vinham envoltas
no manto da heresia. Eles eram tão diferentes! Mas
ele não podia abrir mão de Raquel. Levá-la para sua igreja,
pelo visto, estava fora de cogitação. O jeito era acostumar-se
às barbaridades que ela dizia sem se deixar impressionar.

De repente, lembrou-se de algo que a tia sempre dizia:
"Se você não puder modificar alguma coisa ou alguém, reze
para que Deus faça isso no seu lugar". Foi o que ele fez.
Ao chegar em casa, entregou-se a suas orações, pedindo
a Deus que abrisse o coração e a mente de Raquel para o
que ele considerava as verdades divinas, sem saber de duas
coisas: a primeira é que ninguém tem o poder de modificar
ninguém, e Deus não interfere diretamente na transformação
das pessoas, apenas sugerindo conselhos úteis ao despertar
da consciência. E a segunda, que a verdade de que ele tanto
falava não diferia, em substância, daquela em que Raquel
acreditava, porque ambas tinham, por natureza, o mesmo
significado pleno, que era a essência do amor.

244


CAPÍTULO


28


Assim que Clementina abriu os olhos no domingo, viu
uma sacola de papel pousada na poltrona puída que ficava ao
lado de sua mesinha de cabeceira. A curiosidade a fez despertar,
ela ergueu o corpo, esfregando os olhos, sonolenta.

"O que será isso?", pensou.

Apanhou a sacola e abriu-a, virando o conteúdo sobre
a cama. Imediatamente seus olhos brilharam com o bonito
conjunto, que ela desdobrou avidamente. Apanhou a calça
e a blusa, revirou-as nas mãos, maravilhada com o bordado
e as pedrinhas dos bolsos. Nunca tinha visto roupa mais
bonita. Ela se levantou e foi experimentá-la. Quando Marcos
entrou, ela estava diante do espelho, virando-se de um lado
a outro, satisfeita com o caimento de seu novo traje.

— Marcos Wellington! — exclamou ela, correndo para
ele, vibrante de satisfação. — Foi você quem comprou isso?
— Na verdade, foi Raquel quem escolheu. Não entendo
muito dessas coisas de mulheres.
— Nossa! Ela teve muito bom gosto. E caiu direitinho em
mim! Como vocês conseguiram adivinhar o meu tamanho?
— Apanhei uma calça e uma blusa, escondido, do
seu armário.
— Seu danadinho! E eu nem desconfiei.

— A roupa ficou ótima em você. Agora é só terminar
de se aprontar para irmos ao Pão de Açúcar.
— Nós vamos mesmo?
— É claro que vamos. Fiquei de me encontrar com
Raquel na Praça Saens Pena às dez horas.
— Então, deixe-me correr para não me atrasar.
Dirigiu-se ao banheiro, e Marcos ligou a televisão, para
esperá-la. Pouco depois, suaves batidas na porta davam sinal
de que a tia havia chegado.

— Bom dia, Marcos Wellington — cumprimentou ela,
metendo a cara para dentro.
— Bom dia, titia.
— É hoje que você vai ao Pão de Açúcar com a sua mãe?
— É, sim. Gostaria de ir?
— Já disse que não posso. O culto acabou há pouco,
mas tem vigília mais tarde.
A porta do banheiro se abriu, dando passagem a
Clementina, toda arrumada e cheirosa.

— Você está linda — elogiou Marcos, beijando-a no rosto.
— Clementina! — espantou-se a irmã. — Nunca a vi
vestida desse jeito.
— Ela não está bonita? — perguntou Marcos.
— Isso não é roupa de uma mulher temente a Deus
— contestou Leontina. — Essa calça está muito justa e
marcando suas vergonhas. E os seios... estão praticamente
à mostra!
— Que vergonhas, que nada! — protestou Clementina.
— Só tenho o que Deus me deu. E até que não ficou
mal, ficou?
Pela primeira vez em muitos anos, Clementina percebeu
que ainda era uma mulher bonita, apesar dos maus-
tratos que a vida lhe impôs. Os cabelos negros, alisados à
base de Henê, caíam com jeito sobre os ombros. O corpo
era ainda esguio, e os seios pequenos se ajustaram perfeitamente
ao decote que os cingia.


— Não tem nada de indecente, tia — objetou Marcos,
só agora notando que ele também se desligara das recriminações
do pastor quanto ao traje feminino.
— É, Leontina, não tem nada de indecente, não. Adorei
a roupa, embora pense que Marcos Wellington não devia
gastar seu dinheiro comigo. Mas, enfim, ele também não
quer que eu faça feio na frente de Raquel.
— Quem é Raquel? — surpreendeu-se Leontina.
Marcos e Clementina se entreolharam, e foi ele quem
falou, convicto de que não havia por que mentir:

— É minha namorada. Mamãe vai conhecê-la hoje.
— Eu sabia! — exclamou Leontina. — Esse seu sumiço
só podia ser coisa de mulher. E aposto que ela não é da
nossa religião.
— Raquel não segue religião nenhuma — esclareceu
Marcos, embora soubesse a tempestade que estava criando.
— Não segue? Pois, então, ela é bem pior do que eu
pensava. Uma moça sem Deus no coração não pode dar
boa coisa.
— Eu não disse que ela não tem Deus no coração.
Apenas que não segue nenhuma religião.
— Somente a fé em Jesus pode nos redimir, pois ele é
nosso único salvador. E fora da igreja não há salvação. Você
sabe disso tão bem quanto eu, Marcos Wellington.
Ele abaixou a cabeça, sem ter como contestar aquelas
verdades que aprendera desde pequenino, nas quais agora
já não via mais sentido.

— Pare de atormentar o menino — censurou Clementina.
— O que importa não é a religião, mas o caráter da moça.
— Aposto como vocês já fornicaram — rebateu ela entre
os dentes.
— Pare com isso, Leontina! — berrou a irmã. — Você
está na minha casa, e aqui dentro não admito comentários
desse tipo. Marcos Wellington é maior e pode fazer o que
quiser da sua vida.
247


— Então é verdade, não é? — tornou ela. — Sua mãe
sabe e está lhe dando cobertura. Como pode, Clementina?
Não tem medo de condenar a alma dele, assim como condenou
a sua?
Por pouco, Clementina e Leontina não tiveram outra
briga feia. Percebendo o rumo que a conversa ia tomando,
Marcos apanhou a tia pelo braço, levando-a para fora.

— Não faça mais isso, tia — repreendeu ele, pela primeira
vez na vida. — Há muito minha mãe não tem uma
alegria. Por que a felicidade a incomoda tanto?
Embora simples, as palavras de Marcos tocaram fundo

o coração de Leontina, que olhou para ele sem saber o que
dizer. Nunca havia pensado naquilo, mas o pior era que ele
tinha razão. Ela era uma mulher infeliz. Toda sombra de felicidade
a incomodava, porque era algo que ela nunca fora
capaz de conquistar.
— Sinto muito... — foi só o que conseguiu dizer, envergonhada.
De seus olhos, duas lágrimas escorreram. Ela as enxugou
com as costas das mãos, não conseguindo evitar que
Marcos as notasse.

— Não quero que chore — falou ele. — Gosto muito da
senhora e peço que me perdoe se a magoei. Mas por que a senhora
tem sempre que aparecer e estragar a nossa alegria? O
que foi que aconteceu na sua vida que a tornou tão amarga?
— Não aconteceu nada. Eu só procuro seguir os ensinamentos
da nossa igreja. Só isso.
— Quer saber, tia? Eu adoro a igreja. Deus sabe o que
teria sido de mim sem a nossa religião. Mas começo a pensar
se não há nisso tudo um pouco de exagero. Que mal há
em uma mulher usar roupas da moda e em frequentarmos
um restaurante de pessoas não evangélicas? É nisso que
está a verdadeira moral?
— A castidade é uma das maiores virtudes evangélicas
— objetou ela. — Mas o que vejo é que vocês dois
248


não estão agindo mais de acordo com o que recomendam
as Escrituras.

Não adiantava tentar argumentar com a tia, para quem
as únicas verdades eram as descritas na Bíblia. Mas aquelas
verdades escritas pelos homens traduziriam fielmente a vontade
de Deus? Ele já não sabia mais e tinha medo de pensar
naquelas coisas.

— Vou levá-la para casa. Está na hora de sairmos, não
quero deixá-la aqui sozinha.
Caminharam em silêncio até chegarem à casa dela.
Leontina se despediu com um beijo, não disse mais
nada. Marcos também permaneceu em silêncio, refletindo
sobre o que acontecera.

Em sua casa, a mãe já estava pronta, à sua espera.

— Vamos? — chamou ele.
— Vamos — respondeu ela, suspirando aliviada porque
ele não havia desistido.
De braços dados, desceram o morro, a mente dele
ocupada com a pequena discussão que haviam tido. Sentia-
se cada vez mais confuso. A religião o estava sufocando,
com suas proibições e recriminações constantes. Tudo era
feio e pecado, mesmo o amor, que só podia se manifestar
de acordo com os padrões determinados pela igreja. Mas
como impor limites ao amor, que era um sentimento livre?

Enquanto pensava nessas coisas, passava por grupinhos
de pequenos traficantes e viciados que vagabundeavam
por ali. De longe, avistou Jéferson e acenou para ele.
Agora, mal se falavam. Contudo, não fosse a sua religião,
seria como Jéferson, um bom rapaz, mas iludido pelas facilidades
do tráfico, enganado pela euforia do vício.

Desceram o morro e tomaram a rua, até que alcançaram
a praça. Raquel estava com o carro parado numa ruazinha
de pequeno movimento e saltou quando ele chegou.
Beijou-o de leve nos lábios, causando um certo constrangimento
em Clementina, que abaixou os olhos para não ver a

249


cena. A moça era tão linda e tinha um carro tão chique, que
ela pensou que não fosse real.

— Raquel, quero que conheça a minha mãe — falou
ele, puxando Clementina pela mão e colocando-a de frente
para a namorada.
— Muito prazer, dona Clementina — disse ela, abraçando-
a e dando-lhe dois beijinhos na face. — Marcos fala
muito da senhora.
Ante a imediata simpatia, as faces de Clementina se
distenderam num largo sorriso.

— Ele fala muito em você também — respondeu ela,
segurando a mão da menina. — E vejo que tinha razão em
falar. Você é mesmo muito linda.
— Obrigada. E a senhora também é uma gatona
— acrescentou ela, ao que Clementina riu de satisfação.
— Está muito bonita nesse conjunto.
— Bom, meninas, podemos ir? — chamou Marcos.
Ele abriu a porta de trás para a mãe entrar e sentou
ao lado de Raquel, que ligou o motor e saiu devagar,
rumo ao bairro da Urca, onde fica o Pão de Açúcar. Estavam
os três tão envolvidos na alegria do momento que nem perceberam,
do outro lado, alguém que os espionava. Logo um
automóvel partiu atrás deles.

Com extrema cautela, Elói seguia Raquel a distância.
Ouvira o comentário de que ela iria conhecer a mãe
de Marcos naquele dia, num passeio ao Pão de Açúcar, e
não resistiu à tentação de segui-la. Ela conseguiu uma vaga
perto da estação dos bondinhos, mas Elói parou um pouco
distante. Depois que eles saltaram, ele apanhou o celular e
ligou para Nelson.

— Eles estão no Pão de Açúcar — anunciou ele, que
já os havia perdido de vista. — Não os vejo mais, mas o
carro de Raquel está aqui — fez-se um silêncio, até que ele
acrescentou: — Não se preocupe. Já sei o que fazer.
250


Desligou o telefone e foi para a fila do bondinho. Na
segunda estação10, avistou os três a caminho da loja de suvenires.
Marcos e Raquel permaneceram do lado de fora,
distraindo-se com um gatinho que fazia travessuras em suas
pernas. Elói encontrou Clementina parada em frente a uma
prateleira cheia de pequeninos objetos vendidos como recordação.
Ela apanhou uma miniatura do Pão de Açúcar e o
examinou, colocando-o de volta no lugar. Em seguida, pegou
uma réplica do bondinho, virou-o de todos os lados e
depositou-o na prateleira novamente.

Elói analisou-a. Para sua surpresa, ela até que estava
muito bem-vestida para alguém de sua condição social, mas
levava uma bolsa de plástico bem velha e gasta, fechada
apenas por um fechinho dourado, sem fecho ecler, de forma
que não ficava vedada. Aquilo lhe deu a ideia. Aproximou-se,
fingindo olhar os pequenos enfeites que ela ia admirando.
Apanhou um abridor de cartas com punho de pedra-sabão
e, fingindo que esbarrava nela, deixou escorregar para dentro
de sua bolsa o pequeno objeto.

— Desculpe — murmurou ele, afastando-se dela
rapidamente.
Com cautela, procurou Marcos e Raquel, que agora se
entretinham em alisar o rosto um do outro, como se nada
mais houvesse no mundo além deles dois. A cena encheu-o
de raiva. Seguiu direto até o balcão, onde um homem que
parecia o gerente distribuía atenção e sorrisos aos turistas.

— Perdão, senhor, não quero ser dedo-duro, mas
aquela senhora ali acabou de jogar um abridor de cartas na
bolsa — disse baixinho, apontando para Clementina discretamente.
— Pode confiar, eu mesmo vi.
Após dizer isso, Elói se colou a duas moças que iam
saindo e passou pela porta sem ser percebido pelo casal

10 O bondinho do Pão de Açúcar percorre três estações: primeira, Praia
Vermelha; segunda, Morro da Urca; terceira, Pão de Açúcar.


de enamorados. O aturdido gerente, sem saber o que fazer
para não chamar a atenção, primeiro estudou Clementina
com o olhar, acompanhando-a aonde ia. Vendo que ela mexia
e remexia nos enfeites, sem nada comprar, olhando para
os lados a todo instante, concluiu que a atitude dela era muito
suspeita. Não teve dúvidas. Acercou-se dela e segurou-a
pelo braço, ao mesmo tempo em que dizia baixinho, porém
em tom autoritário:

— Por favor, senhora, poderia me acompanhar?
Clementina levou um susto. Olhou para ele sem entender
e retrucou abismada:

— Para onde? Estou aqui com o meu filho.
Ela apontou para Marcos, que se divertia desalinhando
os cabelos de Raquel.

— Podemos resolver isso com discrição — continuou
ele, ignorando o que ela dissera —, ou posso chamar a polícia,
e aí vai ser muito pior para a senhora.
— Polícia? — assustou-se ela. — Por quê? Eu não
fiz nada.
O homem, agora bastante irritado, tentou puxar
Clementina para o fundo da loja, mas ela se pôs a gritar, chamando
pelo filho:

— Marcos Wellington! Meu filho!
Ouvindo seu chamado desesperado, Marcos correu
para ela, de mãos dadas com Raquel. Do lado de fora, Elói
acompanhava tudo atentamente, rindo da confusão armada.

— O que foi que houve? — indignou-se Marcos. — O que
o senhor está fazendo? Quer, por favor, soltar a minha mãe?
— Largue-me, moço! — esbravejou Clementina, tentando
desgrudar os dedos dele de seu braço.
Como uma pequena multidão juntou-se ao redor, o homem
olhou furioso de Clementina para Marcos.

— Sua mãe acabou de furtar uma peça de nosso
mostruário — esclareceu ele, falando o mais baixo que podia.
— É melhor devolvê-la sem fazer escândalo, e eu não
252


chamarei a polícia. Do contrário, serei obrigado a pedir ajuda
aos seguranças.

— O quê!? — ofendeu-se Marcos. — Deve haver algum
engano, moço. Minha mãe não é ladra.
— É isso mesmo — concordou Clementina, tomada
de profunda indignação. — Nunca roubei nada na minha
vida e não vai ser agora que vou começar. Onde já se viu
tamanha calúnia?
O gerente, já arrependido de haver abordado a mulher,
tentou localizar o delator, mas Elói havia se postado em
um lugar fora de suas vistas, onde poderia observar tudo
sem ser notado.

— De onde foi que o senhor tirou essa ideia? — redarguiu
Marcos. — Ou é só porque minha mãe é negra que o
senhor pensa que ela é ladra?
— Isso dá cadeia, sabia? — acrescentou Raquel.
— Racismo é crime, e acusar alguém de roubo indevidamente
também é.
O homem começou a se apavorar. Devia ter pensado
duas vezes antes de tomar uma atitude daquelas, ainda
mais porque os fregueses começavam a tomar o partido
de Clementina.

— Eu... jamais cometeria uma indignidade dessas —
defendeu-se o gerente. — Logo se vê que sua mãe é uma
senhora muito distinta. Mas o caso é que alguém viu quando
ela colocou o objeto na bolsa...

— Eu?! — tornou Clementina estarrecida. — Que
absurdo! Ou essa pessoa se enganou, ou então é louca.
— Não devia dar ouvidos a delinquentes — zangou-se
Marcos. — Minha mãe não roubou nada.
— Lamento, mas foi o que o jovem disse. Tem razão,
perdoe-me, não devia ter acreditado nele. Mas é que os furtos
na loja são muitos, sabe como é...
— Não sei, não.
253


— Deixe estar, Marcos Wellington — tornou Clementina,
aproximando-se do balcão mais próximo. — Vou provar a
esse homem e a todos que não roubei nada.
Mais que depressa, Clementina despejou o conteúdo
da bolsa sobre o balcão, e o abridor de cartas retiniu no
vidro que o encobria. Ela o apanhou com a mão, mais surpresa
do que o gerente da loja, que apontou para o objeto,
exclamando com incontida euforia:

— O que me diz agora, rapaz? Continua afirmando
que sua mãe não é ladra?
Marcos olhou para Clementina com genuína surpresa,
mas a dúvida não durou mais do que um segundo.
Erguendo os olhos para o gerente, com voz segura e clara,
rebateu convicto:

— Continuo. Afirmo quantas vezes forem necessárias.
Minha mãe não roubou isso.
— E não roubei mesmo — acrescentou Clementina,
tentando imaginar como aquela faquinha havia ido parar na
sua bolsa.
— A senhora pegou emprestado? — ironizou o gerente.
— Alguém colocou isso aí na minha bolsa — afirmou
ela, com raiva. — Não fui eu.
— A senhora deve ter muitos inimigos, não é? Do contrário,
por que alguém haveria de querer incriminá-la?
— Olhe, moço, o senhor já tem o seu precioso objeto de
volta — intercedeu Raquel. — Agora chega. Vamos embora.
— Tenho o direito de chamar a polícia — prosseguiu
ele, dando vazão ao orgulho.
— Mas eu não roubei nada! — objetou Clementina.
— Além de ladra, é mentirosa — desdenhou o homem.
— Não sou mentirosa!
No auge da humilhação, Clementina começou a chorar,
transformando em raiva a indignação de Marcos. Ele ia
segurar o homem pela gola da camisa quando Raquel apertou
sua mão e falou com firmeza:

254


— O senhor não tem como provar que dona Clementina
furtou esse objeto. Será a sua palavra contra a dela, e duvido
que alguém aqui possa jurar que a viu colocar o abridor
na bolsa. — Alguns dos presentes balançaram a cabeça,
em apoio, enquanto ela arrumava os objetos de Clementina
de volta dentro da bolsa: — Por isso, moço, fique com o seu
treco e deixe-nos partir. Ou seremos nós que o processaremos
por calúnia.
O gerente estava satisfeito por ter provado que tinha
razão e, de quebra, humilhado Clementina. Com ar de superioridade,
falou:

— Muito bem. Dessa vez vou fingir que acredito. Mas não
quero vê-los em minha loja novamente ou chamarei a polícia.
Marcos fuzilou-o com o olhar, e Raquel saiu puxando-o
para fora, amparando Clementina com o outro braço.

— Canalha! — esbravejou ele. — Sei que Deus vai me
punir por minha ira, mas essa foi demais!
— Eu não roubei nada, Marcos Wellington, eu juro —
choramingou Clementina. — Não sei como aquilo foi parar
na minha bolsa, não sei.
— Deve ter caído sem querer — presumiu Raquel.
— E ninguém viu.
— É, mas como é que ele soube? — questionou
Marcos. — Ele disse que alguém o avisou. Quem?
— Sei lá — respondeu Raquel. — Algum idiota. Sabe-
se lá se não foi mesmo algum marginalzinho que fez isso só
para se divertir.
— Não acredito — opôs Marcos.
— Deixe isso para lá, Marcos Wellington — pediu
Clementina. —Vamos embora.
— Para casa?
— É.
— Mas, mãe, ainda nem subimos ao Pão de Açúcar
mesmo.
— Não faz mal. Perdi a vontade.
255


— E ainda não almoçamos.
— Não estou com fome. Quero voltar para casa, que
é de onde não devia ter saído. É isso que dá nos metermos
no meio de gente rica.
— O Pão de Açúcar não é lugar de gente rica — objetou
Raquel. — Qualquer pessoa pode visitá-lo. E não devemos
deixar que um idiota qualquer estrague o nosso passeio. Por
favor, vamos ficar. O restaurante daqui é tão bonito!
— Sinto muito se estraguei a diversão de vocês.
Podem ficar. Eu tomo um ônibus e vou para casa.
— De jeito nenhum, dona Clementina. Se a senhora
quer mesmo ir embora, vamos levá-la. Não é, Marcos?
Marcos assentiu e abraçou a mãe. Não compreendia

o porquê daquele acidente, justo com a mãe, que era uma
pessoa honesta e trabalhadeira. Ou será que ela andara se
envolvendo com a bebida outra vez? Ele ficou observando-
a para ver se notava algum sinal de álcool, mas ela estava
sóbria. Então, aquele episódio não devia ter sido mais do
que um incidente, fruto da ignorância e do preconceito de
um gerente esnobe.
A frustração que sentia era imensa, mas o que poderia
fazer? Não tinha como obrigar a mãe a ficar ali contra a
sua vontade, ainda mais depois de tudo o que acontecera.
Assim, não teve outra alternativa senão apanhar o bondinho
e descer.

256


CAPÍTULO

29

Oculto atrás de uma árvore, Elói dava gargalhadas, satisfeito
com o rumo que as coisas haviam tomado. O resultado
fora melhor do que o esperado. Por um momento, ele
chegou a pensar que o gerente ia voltar atrás, mas a idiota
da mulher acabou confirmando tudo.

Depois que os três sumiram, Elói esperou alguns minutos
e voltou para o estacionamento, onde o carro de Raquel
já não se encontrava mais. Esperava que, com aquela confusão,
ela percebesse que Marcos não servia para ela.

Ele chegou em casa certo de que encontraria a irmã
toda chorosa no quarto, mas não foi isso que aconteceu.
Elói entrou vitorioso e foi procurá-la, contudo, ela ainda não
havia voltado. O celular tocou de forma estridente, e Elói
atendeu à chamada de Nelson.

— Cara, você não vai nem imaginar o que eu fiz — gabou-
se, narrando em detalhes sua proeza na loja de suvenires.
Do outro lado da linha, Nelson ria de satisfação.

— Ela está em casa? — indagou.
— Ainda não voltou, mas não deve demorar.
— Será que ela vai terminar com ele?
— Não sei, mas é um começo. Somando-se vários
episódios comprometedores, ela vai acabar se tocando.
— Ótimo.

Elói desligou, imaginando onde Raquel estaria. Já passara
da hora do almoço, ela não retornava. Será que ainda
insistia e fora ao restaurante em que Marcos trabalhava?

Aquele domingo era folga de Marcos, e ele havia programado
passar o resto do dia com Raquel, depois de deixar
a mãe em casa. Todavia, tudo dera errado.

Sentada no banco de trás, Clementina chorava de
mansinho, enquanto Marcos remoía a decepção e a raiva.
Raquel imaginava o que fazer para mostrar aos dois que não
se deixara impressionar por aquele episódio inusitado. Foi
quando a ideia lhe ocorreu.

— Estou morrendo de fome — anunciou, sorrindo
para Clementina pelo espelho.
— Também estou — concordou Marcos.
— E a senhora, dona Clementina? Não está com fome?
— Não — respondeu ela, esforçando-se ao máximo a
fim de não parecer mal-educada.
— Por que não vamos a um restaurante lá pela Tijuca
mesmo? Conheço um ótimo...
— Agradeço, minha filha, mas quero ir para casa —
falou Clementina.

— O que você vai almoçar, mãe? Não tem nada pronto.
— Eu me viro. Sempre tem alguma massa instantânea.
— Por que não almoçamos todos lá então? — sugeriu
Raquel. — Faço uma macarronada deliciosa.
— Não — objetou Marcos veementemente.
— Por que não?
— Você não conhece o lugar onde moro, nem gostaria
de conhecer.
— Já passei por lá muitas vezes.
— Não é lugar para você, Raquel! — zangou-se ele.
— E ponto final.
— Posso saber por que o preconceito com o lugar em
que você mora? — rebateu ela, não se dando por vencida.

Atrás, Clementina acompanhava a conversa sem emitir
nenhum comentário. Conhecia a opinião de Marcos a
respeito de levar Raquel ao morro e preferia não intervir.

— Não tenho preconceito — contrapôs ele, confuso.
— É só que não é lugar para uma moça fina feito você.
Começando por esse carrão. Já pensou no rebuliço que
esse carro vai causar no pessoal lá do morro?
— Bom, não havia pensado nisso. Mas eu posso parar
o carro mais abaixo, e podemos seguir a pé. O que me diz?
— Não, Raquel.
— Não entendo você. Se quer ser meu namorado, por
que não podemos conhecer tudo um do outro? E não adianta
vir com essa desculpa de bandido. Sei que, se eu subir
com vocês, que são moradores, ninguém vai me fazer mal.
Além disso, até parece que todo mundo na favela é bandido.
Clementina não aguentou mais. Pigarreou e, quando os
dois voltaram a atenção para ela, interveio com cuidado:

— Raquel tem razão. Não é justo você chamar todo
mundo que mora no morro de bandido. A maioria das pessoas
é trabalhadora feito nós.
— Não foi isso que eu quis dizer, mãe. Estou apenas
tentando preservar Raquel de um ambiente desagradável e
pouco amistoso.
— Isso também não é verdade. As pessoas que conhecemos
são muito amistosas, e o ambiente em nossa
casa pode não ser de luxo, mas é limpo e arrumado.
— Viu só, Marcos? — exultou Raquel. — Até a sua
mãe concorda comigo. Não concorda, dona Clementina?
Clementina assentiu sem graça, e Marcos ponderou:

— Você está toda arrumada. Não acha que pode estragar
os sapatos subindo o morro? E se você cair?
— Você me ajuda. E sapatos, tenho muitos. Vamos,
Marcos, deixe-me conhecer a sua casa e preparar um almoço
para nós. Gostei tanto da sua mãe!
259


— Deixe-a, Marcos — incentivou Clementina, que,
a essa altura, havia abandonado a ideia de não intervir.
— Tirando a sua tia, ninguém nunca vai a nossa casa.
— Vamos, Marcos, não seja estraga-prazeres. Eu quero
ir, e você não pode decidir por mim.
— Está bem então, se é isso o que quer. Como discutir
com duas mulheres? Vou perder sempre.
O clima de alegria voltou a se instalar entre os três.
Raquel deixou o carro bem abaixo, e seguiram o resto do caminho
a pé. Quando a rua ficou para trás, ela sentiu um frio
no estômago, mas foi em frente, iniciando a subida. Os moradores
olharam-na, alguns com curiosidade e outros com
cobiça, mas ninguém se atreveu a mexer com ela. E como a
casa de Marcos não ficava muito lá no alto, logo chegaram.

Clementina abriu a porta e as janelas, convidando
Raquel a entrar. Intimidou-se um pouco com a simplicidade
do barraco de dois cômodos, com a cozinha conjugada e só
um banheirinho, mas a reação descontraída de Raquel deixou-
a mais à vontade. Numa breve olhada, Raquel avaliou todo o
ambiente, sem demonstrar qualquer tipo de reação adversa.

— A senhora tem macarrão em casa? — Clementina
abriu o pequeno armário acima da pia da cozinha e retirou o
macarrão. — E molho de tomate, queijo?
— Não tem queijo — anunciou Marcos, com a geladeira
aberta. — Vou descer e comprar. E refrigerante também.
Depois que Marcos saiu, Clementina apanhou as panelas
e colocou-as sobre o fogão.

— Vou ajudá-la — anunciou.
Fizeram molho e puseram água para ferver. Em poucos
minutos, haviam preparado um almoço saboroso, e os
três se sentaram para comer. Clementina adorou a companhia
de Raquel, que parecia muito à vontade em sua casa.
Realmente, até a moça estranhara sua reação. No princípio,
hesitara um pouco na subida, com medo de cair, mas
agora estava tudo bem. A preocupação de Marcos não se

260


justificava. Desde que ela não se metesse com ninguém,
não havia por que implicarem com ela.

Passaram uma tarde agradável, e só no início da noite
Raquel se decidiu a partir. Despediu-se de Clementina,
prometendo retornar em breve, seguindo em companhia de
Marcos até onde havia deixado o carro.

— Está tudo em ordem — constatou ele, abrindo a
porta para ela entrar.
Ela se sentou ao volante e olhou para ele com a felicidade
estampada no olhar.

— Obrigada pelo dia maravilhoso que vocês me proporcionaram
— disse emocionada. — Há muito tempo não
me sentia tão bem.
— Teria sido o dia perfeito, não fosse o ocorrido no
Pão de Açúcar.
— Não ligue para isso.
— Você sabe que minha mãe não seria capaz de roubar,
não sabe?
— É claro que sei. Alguém deve ter deixado cair aquele
abridor de cartas de propósito ou, então, foi um acidente.
— É... Pena que isso estragou nosso passeio. Nem chegamos
a subir ao segundo morro, ao do Pão de Açúcar mesmo.
— Podemos voltar outro dia.
— Duvido que minha mãe queira ir lá de novo. Não
depois de tudo o que aconteceu. Por mais que ela fosse
inocente, a vergonha foi muito grande.
— Isso passa. Com o tempo ela esquece.
Após o beijo de despedida, Raquel colocou o automóvel
em movimento e foi para casa. Assim que embicou o
carro no portão da garagem, teve um pressentimento desagradável.
O carro de Nelson estava estacionado do outro
lado da rua. Contendo a vontade de dar meia-volta, entrou,
pensando em ir para o quarto sem ter que falar com ele.
Assim que abriu a porta, foi recebida pelo irmão, que fazia
uma cara de exagerada preocupação.

261


— Onde você esteve?
— Desde quando isso é da sua conta? — retrucou
ela secamente.
— Desde que papai e mamãe foram viajar e deixaram
você aos meus cuidados.
Ela cumprimentou Nelson com um breve aceno de cabeça,
dirigindo ao irmão a resposta irritada:

— Não seja ridículo. Mamãe e papai nunca o encarregaram
de cuidar de mim.
— Não quero me intrometer — disse Nelson —, mas
seu irmão tem razão. Estávamos preocupados com você.
— Desde quando você e Elói se tomaram amigos?
— Desde que eu telefonei para Nelson, preocupado
com você — tornou Elói.
— Por que não ligou para mim, em vez de ligar para ele?
— Eu liguei, mas deu fora de área.
— Engraçado — ironizou ela. — Não vi o seu nome no
identificador de chamadas.
— Isso não importa, Raquel. Eu estava superpreocupado
com você.
— Sei. E resolveu ligar para o Nelson, mesmo sabendo
que não estamos mais namorando.
— Não estão?
— Você sabe muito bem que não.
— Mas ainda somos amigos — intercedeu Nelson.
— Não somos, Raquel?
Raquel fuzilava o irmão com os olhos. Estava mais indignada
com ele do que com Nelson, que ainda gostava
dela e aceitaria qualquer pretexto para procurá-la.

— Nossa amizade não lhe dá o direito de se aliar a meu
irmão para se intrometerem na minha vida — disparou ela.
— Ninguém quer se meter na sua vida — objetou Elói
com indignação. — É errado um irmão se preocupar com o
bem-estar da irmã?

— Cínico. Você nunca se preocupou comigo nem
com ninguém. Conheço bem as suas intenções.
— Preocupam-me as suas companhias — desdenhou
ele. — Desde que você deu para se misturar com gentinha,
morro só de pensar no que lhe pode acontecer.
— Pois pode morrer pensando, se quiser. Pouco me
importam as suas preocupações. Ou as de Nelson.
Raquel passou por eles feito uma bala. Bateu a porta
do quarto, girando a chave na fechadura duas vezes. Que
absurdo! Estava na cara que Elói só chamara Nelson ali para
forçar um reencontro. Mas ela não permitiria aquele abuso.
Estava apaixonada por Marcos e, ainda que o mundo inteiro
fosse contra, não abriria mão de seu amor por nenhum preconceito
ou convenção social.

Elói e Nelson ficaram parados na sala, o primeiro rindo
intimamente, o segundo, louco para ir atrás de Raquel.

— Não seja precipitado — ponderou Elói. — Raquel é
voluntariosa e não gosta de ser contrariada. Mas as coisas
estão tomando o rumo que deveriam.
— Que rumo? Ela não me pareceu nem um pouco
abalada com o episódio desta manhã.
— É porque ela não quer nos dar o gostinho da vitória.
Mas que ficou balançada com o que aconteceu, ficou.
Qualquer um ficaria.
— Será que você não está subestimando sua irmã?
Ela não é nenhuma tola, e talvez nós é que estejamos fazendo
esse papel.
— Você tem que confiar em mim. Sei o que estou fazendo.
— Pois eu acho que Antônio e eu podíamos pegar o
cara e dar-lhe uma surra que ele jamais iria esquecer. Como
fizemos com o magrelo do Arnaldo.
— Quanta ignorância! Você tem que parar de tentar
resolver as coisas na pancadaria. Tudo bem que pode não
dar em nada, mas é um aborrecimento danado. Sem contar
que Raquel jamais iria perdoá-lo.
263


Nelson aproximou-se da porta fechada do quarto de
Raquel, pensando se deveria ou não bater. Desistiu, com
medo da reação da moça, que, provavelmente, o mandaria
embora com palavras rudes.

— Está bem — ele se virou para Elói, tomando o rumo
da saída. — Mas não vou esperar eternamente. Se os seus
métodos não funcionarem, não hesitarei em aplicar os meus.
E ninguém vai ficar sabendo, até porque não pretendo matar
o idiota, apenas dar-lhe um susto e uma lição.
Foi embora, deixando Elói pensativo. Não tinha pena
do destino de Marcos. Na verdade, nem se importava se ele
estivesse vivo ou morto. Não tinha nada contra negros ou
pobres, desde que não se metessem com sua família. Agora
precisava encontrar um meio de fazer com que Marcos se
colocasse em seu devido lugar. Tudo sem que a irmã ou os
pais descobrissem.

264


CAPÍTULO

30

Depois de entrar em algumas vias, sem sucesso, Afrânio
subiu a Rua General Roca, a mesma em que Margarete havia
deixado o filho, dentro de um latão de lixo, e onde encontrara
a morte sob as rodas de um carro. O espírito dela o seguia,
acompanhado de Félix, intuindo-o a tomar a direção certa.

— Foi aqui que deixei meu bebê — disse ela ao ouvido
dele, quando passaram em frente ao local exato. — A
lata de lixo não está mais aqui, e o muro também não é mais
o mesmo, mas tenho certeza de que foi aqui. O boteco fica
mais para baixo, do outro lado.
Instintivamente, Afrânio olhou na direção em que ela
apontava e avistou o bar. Passados alguns segundos, impulsionado
por Félix, dirigiu-se para lá.

"Se Margarete gostava tanto de uma bebidinha", pensou
ele, "o melhor lugar para saber dela ainda é o botequim."
Ele entrou e cumprimentou o rapaz atrás do balcão,
que indagou gentilmente:

— O que vai querer?
— Um refrigerante — pediu ele, para ganhar a simpatia
do balconista, já que não bebia em serviço.
O moço serviu-lhe a bebida, que Afrânio bebeu aos
pouquinhos. Estalou a língua e esperou até que ele voltasse
de outro atendimento, quando então o chamou:


— Será que você podia me ajudar?
O rapaz voltou e respondeu solícito:
— Pois não?
— Acho que você não está aqui há tempo suficiente
para saber, mas não custa tentar — ele sacou a fotografia do
bolso e apresentou-a ao balconista. — Conhece esta moça?
O homem apanhou a foto, olhou-a e balançou a cabeça:

— Nunca a vi em toda a minha vida. Mas também a
foto é muito ruim.
— Foi tirada há mais de vinte anos.
— Ih, moço! Então não posso saber mesmo. Tenho
vinte e três!
— Foi o que imaginei. Quem é o dono deste lugar?
— Meu pai. Mas ele não está.
— Era ele o dono nessa época?
— Era sim. Se quiser falar com ele, volte mais tarde.
Papai só chega depois do almoço.
— Tudo bem. Vou dar uma volta por aí e mais tarde
volto para falar com ele.
Afrânio pagou o refrigerante e saiu para a rua, caminhando
a esmo, em direção à subida do Salgueiro, mas não
entrou. Ficou parado, imaginando se Margarete teria se refugiado
ali. Depois, rodou nos calcanhares e tornou a descer
a rua. Como ainda era cedo, resolveu prosseguir com suas
pesquisas nos outros bares das redondezas, onde obteve
as mesmas respostas negativas. Desanimado, pensou em
procurá-la em outro lugar, e Margarete teria perfurado seus
ouvidos se ele fosse dotado de mediunidade auditiva.

— De jeito nenhum! Você está no caminho certo! Tem
que voltar ao primeiro bar. Foi ali em frente que tudo aconteceu,
que eu morri! Volte lá, seu estúpido, volte lá!
A energia de desespero de Margarete não se casava
com a serenidade de Afrânio, que nunca se irritava. Foi preciso
que Félix a acalmasse e se aproximasse do detetive, que


não chegara a se aperceber da aflição dela. Félix passou a
mão rapidamente pela testa dele e soprou ao seu ouvido:

— Volte ao primeiro bar para falar com o dono. É ali
que encontrará a resposta.
"Eu podia voltar ao bar onde estive primeiro", pensou
Afrânio, sem saber que respondia à sugestão do invisível.
"Mas será que vale a pena?"

— É claro que vale! A verdade está prestes a se revelar;
quem a conhece está lá neste momento. E você, como
bom detetive que é, não deve perder nenhuma pista.
"Na verdade, todas as pistas podem ser importantes, e
eu não deveria deixar passar nenhuma. É, vou até lá. É só o
que me falta investigar", decidiu Afrânio.

Félix e Margarete se entreolharam exultantes. Afrânio
voltou ao bar na rua General Roca, onde encontrou o pai do
rapaz, um português de seus sessenta anos, que o cumprimentou
com um aceno de cabeça.

— É ele! — exclamou Margarete, toda animada, mas
Félix a conteve.
— Quieta. Não precisamos fazer mais nada. Vamos ouvir.
— Deseja alguma coisa? — indagou o português,
passando o pano sobre o balcão, onde Afrânio encostava
o cotovelo.
Estava com fome e não custava nada comer enquanto
investigava.

— Servem almoço aqui?
— É claro. O melhor PF11 da região. Completo? —
Afrânio assentiu, e o português apontou uma mesa. — Pois
pode se sentar que logo logo sai.

Afrânio sentou-se e ficou olhando o movimento dos
fregueses, na maioria trabalhadores que vinham ali em busca
de um almoço barato. A refeição chegou rapidamente;

11 PF — prato feito.


Afrânio inspirou o seu aroma, satisfeito com a aparência da
comida caseira.

— O senhor não é daqui, é? — perguntou o português,
que nunca o havia visto por ali antes.
— Não. Estou aqui de passagem. Na verdade, estou à
procura de uma certa pessoa.
— Ah! Foi o senhor que esteve aqui mais cedo e falou
com o meu filho? — Afrânio assentiu. — Onde está a fotografia
da moça? Se ela frequenta ou frequentou o meu bar,
vou saber. Tenho memória de elefante.
Afrânio sorriu esperançoso e ofereceu a foto ao português,
que a olhou com atenção. Durante alguns segundos,
não esboçou qualquer reação. Aos poucos, porém, apertou
as sobrancelhas, como se a memória evocasse a dúvida de
alguma lembrança. Logo seu semblante empalideceu. Sem
ser convidado, sentou-se à mesa, ao lado do detetive.

— O senhor a conhece? — indagou Afrânio, que havia
notado o embaraço do português.
— Ela se parece muito com uma rapariga que esteve
aqui faz alguns anos. Não tenho certeza se é a mesma, mas
que parece, parece.
— É a mesma — soprou Félix mansamente, trazendo
à memória do português os acontecimentos daquele dia.
— Pode me contar algo sobre ela? Sabe onde está?
O homem encarou Afrânio com um olhar de sofrimento.
De olhos baixos, falou em tom quase inaudível:

— Ela está morta. Morreu na noite em que entrou aqui.
— Morta?
— Veja bem, não sei se é a mesma mulher.
— Sou eu — afirmou Margarete, lutando para não se
descontrolar. — Por favor, apenas conte a ele o que se lembra.
Seguindo a sugestão do invisível, o português iniciou
a narrativa:

— Sabe, moço, nunca me arrependi tanto de algo
como naquele dia. Por isso o episódio ficou marcado.
268


— O que foi que houve? — interessou-se Afrânio.
— Ela entrou aqui bêbada. Servi-lhe mais bebida, até
que o dinheiro dela acabou, e ela tentou me seduzir para que
eu a servisse de graça. Como sou um homem casado e de
respeito, dei-lhe o devido tratamento ou, pelo menos, o que
achei que era certo na época. A rapariga se assustou e saiu
desabalada para a rua. Estava bêbada e não prestou atenção
ao automóvel. O chão estava molhado de chuva, não
sei se ela escorregou, mas o fato é que o carro a pegou em
cheio. Não deu nem tempo de ser socorrida. Quando a ambulância
chegou, ela já estava morta.
— Sabe o nome dela?
— Nem imagino. Ninguém sabia.
— E a criança?
— Que criança? Não havia criança nenhuma.
— Ela não trazia um bebê?
— Não, senhor. Disso tenho certeza. Ela entrou sozinha.
Talvez não fosse a mesma mulher, afinal. A fotografia
não era nítida, o homem podia ter confundido Margarete
com qualquer outra. Quem poderia se lembrar com exatidão
de rostos desaparecidos havia mais de vinte anos?

— Olhe, Afrânio, a mulher de quem ele fala sou eu —
esclareceu Margarete, com o máximo de calma que conseguiu.
— Você tem que acreditar nisso. E o menino que você
procura está naquele morro ali.

Afrânio não percebeu a sugestão e não captou a alusão
ao morro. Pensava na mulher atropelada, tentando imaginar
se havia alguma chance de ser a mesma Margarete.

— O senhor se lembra do dia em que isso aconteceu?
— Ah! Isso não lembro, não. Foi há muito tempo. Só
sei que estava chovendo e fazia frio. Era inverno, e talvez
fosse domingo.
As informações batiam com as que Graciliano havia
lhe dado. Margarete desaparecera num domingo nebuloso
do mês de agosto. Havia ainda uma chance de ser ela, mas

269


o que havia sido feito da criança? Não era impossível que ela
se houvesse desfeito dela, de alguma forma, entregando-a
a alguém, ou abandonando-a, ou mesmo matando-a.
— Eu o abandonei na lata de lixo — falou Margarete,
quase em lágrimas. — Bem ali.
Afrânio não olhou. Terminou de comer, pagou a conta
e foi embora. No dia seguinte, iniciou uma peregrinação pelos
periódicos cariocas e na Biblioteca Nacional. Conseguiu

o que queria num jornal de pequena circulação. A notícia,
datada de 15 de agosto de 1987, exibia a fotografia de um
carro amassado e, mais adiante, o corpo encoberto de uma
mulher, atropelada na Tijuca quando atravessara a rua correndo,
completamente alcoolizada. E agora? De que adiantava
aquilo? Mal dava para ver o rosto da defunta. Como
conferir se era mesmo Margarete?
— Sou eu — Margarete quase suplicou. — Por que ele
não consegue me ouvir?
Félix, a quem havia sido endereçada a pergunta, tomou-
a pela mão e procurou elucidar:

— Ele precisa ser médium e ter a mediunidade adequada,
ou seja, ser médium auditivo, que é a capacidade
de ouvir os espíritos. Médiuns, todas as pessoas são, em
maior ou menor escala. É por isso que Afrânio consegue
captar a maioria de nossas sugestões, porque é muito intuitivo.
Não fosse por nós, ele hoje não estaria aqui.
— Mas ele não as capta sempre. Como agora. Por quê?
— É preciso que estejamos todos na mesma vibração.
Afrânio é uma pessoa tranquila, não se irrita, desempenha a
sua função com imparcialidade, sem euforias ou entusiasmos
excessivos. É equilibrado, qualidade que alcançou ao longo
dos muitos anos de experiência como investigador particular.
Como sua função é localizar pessoas, não costuma se envolver
com os motivos que levam os clientes a procurá-lo, ou
seja, não julga ninguém. Pelo que já aprendeu com a vida,
sabe que cada um tem os seus motivos, e todos são justos.

Por isso, não estabelece nenhuma escala de valor e procura
apenas fazer o seu trabalho com honestidade e eficiência.
Daí a falta de sintonia com você, nos momentos em que fica
muito agitada. A mediunidade dele, puramente intuitiva, é bloqueada
pela sua vibração de desespero.

Margarete olhou de um para outro, terminando em Félix.

— O que posso fazer?
— Por que não experimenta orar?
Ela assentiu e deu a mão a Félix. Juntos se ajoelharam
ao redor de Afrânio e buscaram se conectar com a energia
divina, fazendo, cada qual, a sua prece íntima. Logo um chuvisco
de luz inundou o ambiente, energizando os corpos sutis
e o físico de Afrânio. Ele sentiu uma sonolência gostosa e
se espreguiçou. Suspirou algumas vezes, sorvendo aquele
ar de luminosidade, e teve novas ideias.

"Não vou desistir", disse mentalmente. "Algo me diz
que essa moça aí, morta debaixo do lençol, é Margarete."

— Isso mesmo — incentivou o espírito da mulher, agora
equilibrada pela oração.
O passo seguinte na investigação foi o IML12. Lá, Afrânio
conseguiu consultar os registros de todas as mulheres enterradas
como indigente. Não foi difícil. Pela data do óbito, descobriu
as possibilidades e, comparando fotografias, chegou
até Margarete. Colocou a foto que possuía lado a lado com
aquelas tiradas pelo legista, mostrando-as ao funcionário do
IML, que concordou enfaticamente. Era ela, sem dúvida. Pelo
tempo, os restos mortais já deviam estar no ossuário comum,
tornando quase impossível sua recuperação.

Embora não fosse essa exatamente a conclusão que esperava
de sua busca, era o primeiro resultado positivo que
Afrânio alcançava. Margarete estava morta, mas ainda lhe
restavam esperanças de encontrar a criança, já que nenhum
bebê fora enterrado como indigente naquele mesmo dia.

12 IML — Instituto Médico Legal.

271


O coração de Afrânio insistia na hipótese de que
Margarete havia abandonado o filho em algum lugar, e descobrir
onde seria uma tarefa deveras difícil. Entre a hora em
que ela descera do ônibus e a hora em que entrara no bar não
devia ter decorrido muito tempo, de forma que ela não poderia
ter levado a criança a nenhum orfanato da região. Se era
assim, só podia tê-la abandonado em algum lugar, talvez na
porta de uma casa ou mesmo no banco da praça.

— Na lata de lixo — disse Félix.
"Quem sabe numa lata de lixo?", pensou Afrânio, para
surpresa e euforia de Margarete. "Não seria a primeira vez."
Afrânio retomou suas pesquisas, mas não havia nenhuma
notícia de que um bebê fora encontrado em qualquer
lugar naquela região. Mesmo que houvesse sido levado ao
Juizado de Menores, o jornal teria comunicado o fato. E se
estivesse morto? Também seria notícia. Não, decididamente,
aquele bebê ainda se encontrava pelas redondezas da
Praça Saens Pena, onde concentraria suas investigações.

— O menino está no Salgueiro — sussurrou Félix.
"Agora vejamos", Afrânio continuou com suas reflexões.
"Quem recolheria um bebê negro, provavelmente magro
e até doente? Uma família de posses, talvez, e, nesse
caso, deve haver algum pedido de adoção no Juizado de
Menores. É, vou ter que ir até lá."

— Não! — gritou Margarete de repente. — Você vai se
distanciar da solução. Não vá, Afrânio, não vá! Vai perder o
seu tempo.
— Não adianta gritar, que ele não vai ouvi-la — alertou
Félix. — Não temos como impedir que ele vá ao Juizado de
Menores. Resta-nos apenas acompanhá-lo e soprar as respostas
certas. Uma hora, ele acaba captando nossas ideias.
Seguir o rastro de uma criança desaparecida não é
nada fácil. Os dados são sigilosos, inacessíveis ao público.
Afrânio encontrou muita dificuldade no Juizado de Menores,
pois ninguém estava autorizado a revelar nenhum detalhe


sobre abandono e adoção, ainda mais numa época em que
nada era informatizado. O que ele conseguiu, após muito
esforço de Félix junto a uma senhora mais complacente, foi
a informação de que nenhuma criança com a descrição da
que ele procurava fora recolhida naquela época.


CAPÍTULO

31

• •
Clementina voltou do trabalho um pouco mais tarde
do que o habitual naquela noite. Exausta, as costas doíam,
as pernas inchadas. Já não tinha mais idade para o serviço
pesado da faxina.

Ao abrir o portãozinho de casa, surpreendeu-se com a
presença da irmã, que a aguardava sentada no batente.

— Aconteceu alguma coisa, Leontina? — indagou, entre
a desconfiança e a preocupação.
— Aconteceu — foi a resposta grave. — Você tem que
vir comigo.
— Foi alguma coisa com o Marcos Wellington?
— desesperou-se.
— Não. Ele está bem.
— Mas, então, o que foi? Por que não me conta logo,
em vez de me deixar nessa agonia?
— Só vendo para crer, Clementina. Por favor, venha
comigo até minha casa.
Apesar da fadiga, a curiosidade foi maior. Clementina
deu de ombros e seguiu a irmã até sua casa.

— Só você mesmo, Leontina, para me aprontar uma
dessas — reclamou. — Fica fazendo mistério. Só espero
que seja por um bom motivo.

— Não sei qual vai ser a sua reação — alertou ela, a
mão parada na maçaneta da porta. — Mas prepare-se. Pode
ser que a surpresa não seja agradável.
Sem dar importância à cara de espanto da irmã, Leontina
abriu a porta. O choque da visão quase fez Clementina desmaiar.
Não podia crer no que estava vendo. Devia ser um
sonho, ou melhor, um pesadelo ou um filme de terror.
Adormecido no sofá da minúscula sala, havia um homem
envelhecido, magro, de aparência enferma. Estava irreconhecível,
mas, mesmo assim, ela sabia quem era.

— Romualdo... — ciciou — Não pode ser.
Ele abriu os olhos lentamente e pigarreou, fixando-os
nela com imprecisão. Não enxergava muito bem.

— Como vai, Clementina? — falou sem jeito. — Faz
muito tempo...
— Tempo demais para acreditar que tornaria a vê-lo
— retrucou ela, sentindo uma pontada de raiva no lugar do
amor que antes lhe dedicara. — O que o traz de volta assim,
de uma hora para outra, sem avisar?
— Romualdo está doente — justificou Leontina. — Está
perdendo a visão e precisa de alguém que cuide dele.
— Ah! Claro. E onde está a vagabunda com quem você
fugiu? Fugiu também, para não ter que cuidar de
um cego inválido?
— Calma, Clementina — objetou Leontina. — Onde
está o seu espírito cristão?
— E onde está o dele, que abandonou mulher e filho
para seguir uma rameira? Isso lá é ser cristão?
— Isso foi há muito tempo, Tina — desculpou-se ele.
— Agora sou outro homem, estou velho.
— Então é assim, não é? Na juventude, a esposa não
tem valia. O que vale são as vagabundas de vinte anos. Mas,
quando fica velho, a mulher é que presta, porque deve ser
idiota suficiente para aceitar o marido de volta e cuidar das
mazelas dele, dando graças a Deus porque deixou de ser a
275


abandonada. Pois vou lhe dizer uma coisa, seu Romualdo:
eu não sou desse tipo. Por mim, pode voltar no mesmo pé
em que veio. Não o quero de volta.

— Eu não falei, Leontina? Não disse que ela devia estar
com o coração carregado de mágoas e não iria me perdoar?
— Você não pode abandonar seu marido assim —
contrapôs Leontina com veemência. — E o seu compromisso
de amor e fidelidade mútuos?

— Que fidelidade o quê? Desde quando Romualdo
foi fiel?
— Você tem que perdoá-lo. Todo mundo erra. Você
também errou. Perdoe-o e aceite-o de volta.
— Mas nem que o próprio Espírito Santo aparecesse
aqui na minha frente e me mandasse!
— Não blasfeme! — repreendeu a irmã. — Ou vai se
arrepender amargamente no dia do Juízo, quando for julgada
perante o Tribunal de Cristo e condenada à danação eterna.
— Você não me impressiona com essa sua baboseira
de Juízo Final nem de pecado. São histórias da carochinha
para assustar os fanáticos, que nem você, e justificar o
medo que têm de viver.
— É o que você pensa, não é? É mais cômodo para
você se convencer de que Deus não está à espera do nosso
julgamento do que assumir os seus deveres evangélicos.
— A única coisa que tenho que assumir é o meu desprezo
por Romualdo. Não o quero de volta em minha casa
nem pintado de ouro.
— Você não pode decidir isso sozinha — contestou
Romualdo. — Ainda temos um filho.
— Que você também abandonou quando criança.
Sabe o que aconteceu conosco, Romualdo, sabe? — Ele
não respondeu. — Seu filho virou menino de rua, eu me
transformei numa alcoólatra. Só Deus sabe o quanto sofremos,
como foi difícil acertarmos o passo.

— Agora você disse bem — exultou Leontina. — Foi
Deus quem ajudou vocês a se reerguerem na vida. Não fosse
a nossa fé cristã, vocês ainda seriam dois perdidos.
— Isso é diferente! — exasperou-se Clementina. — Eu
me transformei por amor ao meu filho, e ele, por amor a
Deus. Mas eu não sou como ele, odeio a sua igreja ou qualquer
outra. Só o que quero é terminar os meus dias em paz
com o meu filho, que, graças a mim, não a você, Romualdo,
é um rapaz decente, estudioso e trabalhador.
— Onde ele está? — insistiu Romualdo. — Tenho o
direito de vê-lo.
— Ele está trabalhando agora — disse Leontina.
— Quando voltar, tenho certeza de que o aceitará de volta
em seu coração e em sua vida. Marcos Wellington não é
uma pessoa sem fé como a mãe dele.
— Querem saber de uma coisa? — replicou Clementina,
no auge da ira. — Não sou obrigada a ficar aqui escutando
vocês dois. Quer ficar, Romualdo? Fique com Leontina. Se
ela é tão boa, que cuide de você.
Saiu batendo a porta e desceu o morro derrapando.
Entrou em casa feito um furacão, trancando tudo para não
correr o risco de que Romualdo entrasse sem ser convidado.
Não conseguiu nem preparar o jantar, tamanha a sua
fúria. Jamais imaginou que veria Romualdo novamente, ainda
mais sob a proteção da irmã. Pensando nele, todo o seu
corpo estremeceu de ódio. Havia muito deixara de amá-lo e
vira, no decorrer dos anos, o amor se transformar em mágoa,
a mágoa dar lugar à raiva. Agora, só o que sentia por
Romualdo era uma raiva fria, sem possibilidade de perdão.

Marcos demorou a voltar para casa, pois fora se encontrar
com Raquel depois do trabalho, como Clementina
imaginava. Não havia outra alternativa senão esperar. Não
dormiria aquela noite sem antes falar com o filho. Quando
ele finalmente chegou, encontrou-a parada no meio da sala,
braços cruzados e ar aborrecido.

277


— Mãe! — assustou-se ele. — O que foi que houve?
Por que está parada aí com cara de poucos amigos?
— Sente-se, Marcos Wellington. Tenho algo muito importante
a lhe dizer. — Ele se sentou rapidamente, e ela foi
o mais objetiva possível: — Seu pai voltou, velho e doente.
Está lá na casa de Leontina, mas vou logo avisando: não o
quero aqui.
— Espere um pouco — pediu ele, atônito. — O que
está me dizendo? Meu pai está de volta? Não é possível.
— Tanto é possível que ele está lá, doente, quase
cego. A vagabunda com quem fugiu, na certa, o abandonou.
Mas não sou eu que vou cuidar dele agora. Perdi a
mocidade chorando por ele, não quero aturá-lo na velhice.
— Calma, mãe, por favor. Não estou entendendo direito.
— Não há o que entender. Você pode estar achando
difícil acreditar, mas é verdade: seu pai voltou e está na casa
de sua tia.
— Na casa de titia... — repetiu ele, sem esconder a
surpresa, tentando decifrar seus sentimentos.
— Não o quero de volta em minha vida, não quero
mesmo! — a mãe dizia com raiva. — Tenho esse direito.
— Por favor, mãe, acalme-se. Tanto ódio não pode lhe
fazer bem.
— Ódio?! Você sabe o que ele nos fez, Marcos
Wellington! Toda a nossa desgraça, devemos a ele.
— Isso não é motivo para lhe devolvermos na mesma
moeda. Pagar o mal com o bem é agradável aos olhos de Deus.
— Você tem um coração nobre, meu filho, muito mais
do que eu, ele ou sua tia. Contudo, não estou à altura da
sua nobreza. Sou apenas uma mulher comum, traída e humilhada.
Não é justo que eu seja obrigada a passar por tudo
novamente. Logo agora, que encontrei um pouco de paz na
vida, não quero perdê-la cuidando de um homem que só
voltou para casa porque precisa de uma enfermeira.

— Não digo que você deva aceitá-lo de volta. Se você
não quer, todos nós temos que respeitar sua vontade. Só
acho que você deveria refletir no que está sentindo. Perdoar
é um ato divino.
— Não posso perdoá-lo — ela enxugou uma lágrima.
— Eu quase perdi você por causa do que ele me fez. Não me
peça para perdoar o homem que desgraçou a minha vida.
— Está bem, mãe, não precisa chorar — Marcos a
abraçou e procurou tranquilizá-la. — Preocupo-me com
você, não quero que sofra. Se não quer que meu pai volte
para cá, ninguém vai lhe exigir isso.
— Mas sua tia fica insistindo! E ele... tem que ver a
cara de coitado que ele fez.
— Vou cuidar disso. Irei até lá e me entenderei com eles.
— Você vai procurá-lo? — indignou-se.
— Mãe, entenda... Meu pai pode ter errado, mas ainda
assim é meu pai. Devo a ele a minha vida e, se o seu arrependimento
é sincero, sei que Deus irá perdoá-lo.
— Vejo nas suas palavras uma recriminação velada.
Você também pensa que eu deveria aceitá-lo e, no fundo,
acha que estou errada — ela fungou e prosseguiu: — Veja
só, ele fez o que fez e agora todo mundo está contra mim.
— Eu não estou contra você. Não quero desculpar o
meu pai, quero apenas que você compreenda que somos
diferentes em nossas relações com ele. Você o vê como marido.
Eu o vejo como pai.
— E daí?
— E daí que é diferente.
— Ele nos abandonou a ambos. O abandono não foi
o mesmo? Acho até que abandonar o filho é pior. A mulher
ainda tem condições de trabalhar e se sustentar. Mas e a
criança? É um ser indefeso, precisa da proteção justamente
daquele que o deixa desprotegido.
A argumentação era poderosa, no entanto, o perdão
fazia parte da natureza de Marcos. É claro que ele ficara


magoado quando o pai fora embora, mas não conseguia
guardar ressentimentos.

— Acho que todo mundo merece uma segunda chance
— falou cauteloso.
— E eu sou a megera que não quer dar, não é mesmo?
— Não, mãe, você não está entendendo. Acho que, em
primeiro lugar, tem que dar uma chance a si mesma, para se
libertar desse rancor. Isso não pode lhe fazer bem. E dar a ele
uma segunda chance não significa viverem juntos novamente.
Significa apenas dar a ele a oportunidade de se modificar.
— Quanta nobreza! — elogiou ela, passando a mão
no rosto dele. — Pena que não estou ainda à sua altura.
— Por que não oramos um pouco?
— Eu não acredito mais em orações. Não quero que a
minha palavra caia no vazio.
— Então vou orar por nós dois, está bem?
Clementina assentiu e silenciou, limitando-se a observar
o filho que, contrito, invocava a proteção de Deus.
Enquanto ele rezava, ela refletia em tudo o que ele dissera.
O que o filho lhe pedia era algo muito além de sua capacidade.
Não conseguia perdoar Romualdo, por mais que o filho
lhe pedisse.


CAPÍTULO


32


Clementina não conseguiu mais tirar Romualdo da cabeça.
Era como um fantasma a assombrar-lhe as lembranças,
reavivando as tristezas do passado. Ela não queria mais
ter contato com ele, era seu direito. Amara-o e sofrera por
ele. Agora que tudo havia passado, o amor cedera lugar a
uma raiva contida, porém, verdadeira.

O pior era ter que conviver com as acusações de Leontina.
Desde que Romualdo se fora, a irmã nunca lhe dera apoio.
Ficara contra ela, acusando-a silenciosamente, julgando-a responsável
pela sem-vergonhice do marido. E agora, depois de
tudo por que ela passara, Leontina pensava que ela era obrigada
a receber de volta o traste que se travestia de Romualdo.

Clementina fez a faxina do dia com um apuro exagerado,
empregando mais força do que o habitual, transferindo
para as mãos a raiva que lhe ia no coração, como se,
ao limpar a casa da patroa, limpasse também a sua alma.
Encerrado o trabalho, voltou para casa, imaginando o que
iria encontrar. Marcos Wellington não estava, já havia saído
para o trabalho, e ela se jogou na cama, exausta da força
extra que despendera ao longo do dia.

Estava quase pegando no sono quando ouviu batidas
na porta. Deu um pulo, levantou-se e encostou o ouvido à
porta. indagando desconfiada:


— Quem está aí?
— Sou eu, Clementina, abra.
Reconhecendo a voz da irmã, abriu a contragosto.
— O que você quer?
— Precisamos conversar. Deixe-me entrar, por favor.
— Se veio aqui tentar me convencer a ficar com
Romualdo, pode pegar o caminho de volta.
— Não é nada disso. Quero apenas conversar.
Mesmo desconfiada, Clementina permitiu que ela entrasse,
sentando-se junto a ela no pequeno sofá da sala.
Não disse nada. Nem saberia o que dizer além de extravasar
a revolta de sempre. Achou melhor ficar quieta, engolindo a
raiva para aguardar a iniciativa da irmã.

Leontina estava confusa, sem saber por onde começar.
Tinha ensaiado aquela conversa várias vezes na véspera,
mas agora não conseguia encontrar as palavras que
tantas vezes repetira na sua cabeça.

— Você sabe o quanto gosto de você, não sabe? —
começou ela, alisando a barra da saia.

— Sei. E daí?
— E que não faria nada para magoá-la.
Quanto a essa afirmativa, Clementina não estava bem
certa, mas não quis puxar uma briga e repetiu com frieza:

— Sei.
— Olhe, Clementina, você não sabe como é difícil o
que tenho a lhe dizer.
— Se veio pedir por Romualdo, então nem precisa dizer
nada.
— Não é isso. Na verdade, vim lhe pedir perdão.
— Perdão? — surpreendeu-se ela. — Por quê? Por
ter acolhido o traste em sua casa e por querer me convencer
a aceitá-lo de volta?
— Não — a resposta foi quase um sussurro. — Por
amá-lo em silêncio todos esses anos e por tê-lo desejado
282


tanto que cheguei a odiá-la cada vez que os imaginava juntos,
na cama.

O espanto foi tão genuíno e de tal intensidade que
Clementina deu um salto do sofá, levando a mão ao coração,
como se quisesse evitar que ele, por sua vez, lhe saltasse
também do peito.

— O que está dizendo?
— É isso mesmo que você ouviu. Amo Romualdo,
sempre amei.
Clementina pôs-se a andar de um lado a outro da sala,
tentando colocar sentido nas palavras aparentemente insanas
da irmã.

— Não pode ser — objetou incrédula.
— Por quê? Você pensa que eu sempre fui a mulher
seca que sou hoje e nunca fui capaz de amar um homem?
— Não se trata disso — rebateu confusa. — Você nunca
disse nada...
— O que poderia dizer? Que estava apaixonada pelo
homem com que você ia se casar? E depois, ele escolheu
você, não a mim.
— Como assim, escolheu? Quando conheci Romualdo,
ele não tinha ninguém. Teve uma mulher antes de mim,
mas... — calou-se, percebendo a verdade. — Era você aquela
mulher?
A angústia que os olhos de Leontina refletiam era tão
visível que Clementina, num átimo, compreendeu tudo.

— Fui apenas mais uma na vida dele — desabafou
Leontina. — Ele não sentia por mim o mesmo que eu sentia
por ele.
— Foi você que nos apresentou — indignou-se a oura.
— Por que não me disse que o amava?
— De que adiantaria dizer-lhe, se foi por você que ele
se apaixonou?
— Eu teria feito alguma coisa. Teria rompido com ele.
— Não teria, não. Vocês dois já haviam dormido juntos.
283


— Como é que você sabe? Ele lhe disse?
— Não foi preciso — sussurrou ela, envergonhada.
— Ele fez o mesmo comigo antes...
Clementina estacou abismada e levou a mão à boca,
sufocando um grito de horror:

— Não... — murmurou, cada vez mais aturdida.
— Como isso pôde acontecer?
— Conheci Romualdo na igreja. Ele chegou pedindo
ajuda, no dia em que eu estava fazendo a limpeza dos
bancos. Entrou cabisbaixo e pediu para falar com o pastor,
mas ele havia saído. Romualdo estava tão desesperado que
se abriu comigo. Havia perdido o emprego, os cobradores
batiam à sua porta. Condoí-me de sua situação e prometi
ajudá-lo. Pedi a intervenção do pastor, que lhe arranjou um
emprego, como já fizera com tantos outros. Talvez por isso
Romualdo tenha se envolvido comigo. Eu me apaixonei por
ele, mas percebia que ele não me amava. Sentia-se grato ou
obrigado, não sei, mas não me amava. Aí você apareceu, e
ele se modificou...
Ela parou de falar, a voz sufocada pelas lágrimas.
Clementina também chorava e apertou a mão dela, falando
com pesar:

— Você devia ter me contado. Eu não teria nem saído
com ele a primeira vez.
— Eu não sabia. Quando descobri, já era tarde demais.
Fiquei desesperada. Eu havia me entregado a ele na
certeza de que nos casaríamos. Acreditava nisso, porque
ele, frequentando os cultos, sabia do pecado da carne. Por
isso fui tão crédula e me deixei levar por essa ilusão. Sempre
temi o pecado da luxúria, mas achei que, com o casamento,
Jesus me perdoaria. Só que não foi comigo que ele se casou,
foi com você.
— Eu não teria me casado se soubesse que você já
havia se entregado a ele.

— Então, seria você a pecadora. Por isso fiquei quieta.
Eu jamais me perdoaria se a sua alma queimasse no inferno.
— E preferiu se sacrificar? — Leontina assentiu.
— Por quê?
— Porque amo você mais do que poderia amá-lo ou a
qualquer outra pessoa.
Clementina desabou no pranto e se agarrou à irmã,
falando ao mesmo tempo em que chorava:

— Ah, Leontina! Por quê...?
A voz estrangulou-se na garganta,e Leontina prosseguiu:
— Tudo isso foi há muito tempo. Fiquei com raiva dele
na época. Só Deus sabe o quanto precisei me penitenciar
para limpar meu coração e minha alma dos pecados que
havia cometido. Arrependi-me de ter ultrajado Jesus com a
minha iniquidade. Seguindo as palavras de Paulo13, deixei
que a tristeza me levasse ao arrependimento sincero, convertendo-
me a uma vida de castidade e virtude.
— Minha pobre irmã — lamentou Clementina. — Iludida
com a ameaça do inferno só por ter dormido com um
homem que não era seu marido.
— Você não compreende. O pastor me ajudou a libertar-
me do pecado. Arrependi-me, desejei sinceramente a reparação.
Por isso optei pela castidade.
— Pense assim, se quiser. Mas lembre-se do quanto
sofreu. Será que valeu a pena?
— Fui punida pelo meu pecado, e a dor que senti foi
pequena, se comparada ao tamanho do meu erro.
Clementina suspirou profundamente e retrucou
com amargura:

— Deixe de lado essa bobagem de pecado. Deus não
pune ninguém. Você se impediu de ser feliz, de ter um marido
e levar uma vida normal.
13 Referência a 2 Coríntios 7:10, que diz: "A tristeza segundo Deus produz
uma conversão que salva e da qual ninguém se lamenta. Mas a tristeza
própria do mundo produz a morte".


— Eu teria perdoado Romualdo desde o início. Não a
estou acusando por não o fazer, mas eu não teria deixado
que ele partisse.
— Talvez o seu amor por ele seja maior do que o meu.
— Não sei... Mas agora ele voltou...
O silêncio de Leontina era mais do que esclarecedor. Não
era preciso muita perspicácia para adivinhar o que ela pretendia.

— Eu não o quero de volta — adiantou-se Clementina
rispidamente. — E não sei se seria boa ideia você ficar com
ele. Veja bem, não é porque ele é meu marido. Eu apenas
acho que você merece coisa melhor.
— Não posso abandoná-lo, Clementina, não posso! Só
agora percebo o tamanho da minha fraqueza. Pensei que, com
o meu arrependimento e minha devoção a Cristo, teria reunido
forças para enfrentar as armadilhas de Satanás. Foi assim até
tornar a vê-lo, tão frágil, carente... dependente de mim.
— Romualdo não presta, Leontina. Será que você não
percebe que o que ele quer é uma enfermeira? E tem que
ser você a trouxa?
— Eu não me importo. Acho até que prefiro que ele
tenha voltado assim. Ao menos não terá mais ânimo para
correr atrás das mulheres.
— E você poderá cuidar dele como sempre desejou.
É isso o que realmente quer? Cuidar de um inválido? Dar-lhe
banho, trocar-lhe as fraldas?
— Romualdo não está inválido. Vai fazer a cirurgia de
catarata. E sim... Não me importo se tiver que cuidar dele.
— Você deve estar louca. É isso. Acho melhor internada
no hospício. Evitará que você cometa essa loucura.
— Não fale assim, Clementina. Não precisa ser sarcástica.
Só porque você não está disposta a sacrificar-se em
nome do amor, não quer dizer que eu não esteja.
— Você está? — Leontina assentiu. — Pois muito
bem. O problema é seu. Só posso dizer que lamento essa
escolha estúpida.

— Não é estupidez. É amor.
Clementina mal acreditava no que ouvia. Já nem tinha
mais raiva de Romualdo. Seus sentimentos eram contraditórios,
embaralhados. Sentia um misto de amor, medo
e compaixão pela irmã. Não queria que Leontina sofresse
tanto quanto ela sofrera. Mas ela já havia sofrido. Durante
todos aqueles anos em que estivera casada com Romualdo,
Leontina sofrera em silêncio.

— Não quero mais Romualdo na minha vida — afirmou,
com toda convicção. — Sofri por causa dele e só tenho
a lamentar o seu futuro. Você, que teme tanto o capeta, está
se entregando de boa vontade nas mãos de Satanás.
— Não diga isso! — recriminou Leontina, horrorizada.
— Romualdo não é Satanás. É só mais um pecador que o
diabo gosta de tentar.
— Não existe essa coisa de diabo, Leontina. Ele está
aqui, dentro da gente. Cada vez que matamos a nossa alegria,
vamos dando asas ao diabo, que vai dominando a nossa
alma com a punição da tristeza.
— Você não acredita mesmo em Deus e no diabo?
— Acredito em Deus, mas não sei bem como. Quanto
ao diabo, só acredito nas nossas escolhas. Acho que, ao
escolhermos um caminho de dor, alimentamos o diabo que
existe em cada um de nós.
— Seria bom crer como você. Ficaria na ignorância
5 não teria que temer a prestação de contas no Tribunal de
Deus, quando chegar o dia do Juízo Final.
— Também não acredito nisso. Quem tem consciência
que se entenda com ela, para seu próprio julgamento,
condenação ou absolvição.
— Gostaria de pensar como você, mas sei que isso
são desculpas para continuar pecando. Conheço a verdade
e sei que, agindo contra as Escrituras Sagradas, ninguém
poderá ver o reino de Deus.
287



— Se pensar assim vai ajudar a mantê-la longe de
Romualdo, tudo bem. Você tem o meu apoio.
— Ele precisa de mim... — Leontina quase suplicou.
— E você precisa dele também, não é? — ela abaixou
os olhos, e Clementina suspirou dolorosamente: — Eu ainda
acho que você vai sofrer, mas enfim... é a sua escolha.
— Quero muito estar com ele.
— Se é o que realmente quer, por que não fica com
ele? Você não precisa da minha aprovação.
— Preciso saber que nada mudará entre nós.
— Não mudará. Ele não tem o poder de me colocar
contra minha única irmã.
— Ele ainda é casado com você.
— Isso é o de menos. Podemos nos divorciar.
— O pastor não aceitará meu casamento com um
adúltero — divagou ela. — Mas estou disposta a tentar.
— Vocês não precisam se casar para estar juntos.
Casados ou não, é pecado de qualquer maneira, segundo
você diz. Então, que diferença faz? Se você não se casar,
ninguém precisa ficar sabendo que estão vivendo como marido
e mulher. Ninguém.
— Deus tudo sabe e tudo vê. Jamais poderia enganá-lo.
— Então, minha irmã, sinto muito. Não tem jeito.
— O jeito é assumir a minha escolha, como você diz.
Se você não se importa, nada mais importará para mim.
Clementina não disse mais nada. No fundo, não se importava
mesmo que a irmã ficasse com Romualdo. Era até
melhor, porque assim ela não a pressionaria para aceitá-lo
de volta. Ouvir Leontina falar de seu marido era algo deveras
estranho, inusitado. Nunca, em toda a sua vida, Clementina
julgara a irmã capaz de amar um homem. Muito menos de
guardar aquele segredo por tantos anos.

Não. Decididamente, Clementina não se importava
que Leontina se casasse ou vivesse com ele.


CAPÍTULO


33


Foi com redobrada surpresa que Marcos recebeu a
notícia de que o pai não só passaria a viver com a tia dali em
diante, mas se casaria com ela assim que a mãe lhe concedesse
o divórcio.

— Não acredito, mãe — surpreendeu-se ele. — Tia
Leontina, fazer uma coisa dessas?
— Deixe sua tia. Ela sofreu muito em segredo todos
esses anos.
— Mas é pecado! Meu pai não tem essa opção de se
casar de novo. Para o adúltero, as únicas opções são reatar
com o cônjuge abandonado ou viver em solidão. E minha tia
está contrariando a palavra de Jesus, que condena ao pecado
aquele que se casa com o pecador. Está lá em Lucas...
— Chega, Marcos Wellington! Não aguento mais ouvir
falar em pecados nesta casa.
— Ele é o seu marido legítimo.
— Não o quero mais, você sabe disso. E, se estava
faltando um bom motivo para me divorciar dele, já apareceu.
— Você sabe que é inocente na questão do adultério
e do abandono. Mas papai e titia, não.
— Não se perturbe com isso. Nenhum de nós vai para
o inferno por viver a vida.

Marcos estava em dúvida. No dia seguinte, ao partilhá-
la com Raquel, ouviu dela opinião semelhante:

— Também acho, Marcos. Não acredito que Deus esteja
preocupado com os casamentos na Terra. O que importa
é o sentimento. Seu pai e sua tia não estão fazendo
mal a ninguém, ainda mais porque sua mãe foi bem clara ao
afirmar que não quer mais voltar para ele.
— Eu sabia que você ia concordar com essa situação
de pecado.
— Segundo o seu ponto de vista, nós também estamos
pecando.
— Eu a amo. Pretendo me casar com você e, quando
isso acontecer, nosso pecado terá terminado.
— E se nós não nos casarmos? — Marcos não disse
nada. — Você se esquece de que eu já não era mais virgem
quando nos conhecemos? Ou você ainda me considera
uma pecadora?
— Você não conhecia as Escrituras, por isso Jesus há
de perdoá-la.
— Ah, não. Não vamos recomeçar com essa história
de pecado. Já está ficando monótono. Quer saber? Se a sua
tia quer se casar com o seu pai e a sua mãe não fica chateada,
não vejo problema algum.
— Por que você faz picadinho da Bíblia, Raquel? Por
que não acredita em nada do que dizem as Escrituras?
— A Bíblia foi escrita por homens, e cada um lhe dá a
interpretação que pode ou que mais lhe convém. Acredito
em Deus e na energia que movimenta o universo, mas não
na personificação dessa energia. Deus está acima de tudo,
não pode ser mensurado nem quantificado, nem descrito.
Deus, simplesmente, é.
— Que coisa, Raquel. Não entendo nada do que você
diz. Só sei que suas palavras soam como heresia. Mesmo
assim, eu amo tanto você...

— Bobinho — retrucou ela, dando-lhe um beijo carinhoso.
— Você tem que aprender a aceitar pontos de vista diferentes.
Ninguém disse que a sua visão do mundo é a correta.
— Nem a sua.
— Exatamente. A diferença é que eu sei disso e você
não. Por isso, respeito todas as crenças e religiões, enquanto
você, lá no fundo, acha que só a sua é que está correta.
Por acaso, o próprio Deus apareceu para você e falou isso?
— É claro que não — respondeu ele, rindo.
— Então por que você tem que dar tanto valor à palavra
dos homens?
— Não é a palavra dos homens. As Escrituras contêm
os ensinamentos de Deus e de Jesus.
— Que foram escritos por homens. Quem garante que
quem escreveu ou traduziu foi fiel às mensagens que recebeu?
E depois, tem a questão cultural e histórica. O homem
hoje sabe de coisas que antigamente não sabia. Por que
tudo tem que ser como era mais de dois mil anos atrás?
— Porque a lei divina é imutável.
— A lei divina é a do amor, e essa não muda nunca. Mas
a lei dos costumes vai se adaptando aos tempos. Além disso,
as pessoas compreendem na medida da inteligência e da
maturidade. Não é por isso que Jesus falava por parábolas?
— Você é terrível, Raquel. Tem resposta para tudo.
Mas por que não pode aceitar a minha religião como boa
e verdadeira?
— Eu não disse que não é. Ao contrário, acho que é
tão boa como todas as outras. Você é que tem dificuldade
em aceitar doutrinas diferentes das de sua igreja. Todas
as Escrituras, de qualquer povo ou religião, estão sujeitas
à interpretação do homem. Respeito-as, mas vou tirando
as minhas conclusões de acordo com o que fala mais alto à
minha alma. Agora, a verdade ninguém conhece, só Deus.
Não há muitas verdades. A verdade é uma só. O que há
são formas de compreender essa verdade, mas, para isso,
291


é preciso haver respeito, porque os homens são diferentes,
assim como o são as suas crenças. Se nós nos respeitarmos,
sempre nos daremos bem. Embora eu não siga a sua
religião, respeito-o por acreditar nela e acho muito bom você
ser uma pessoa espiritualizada. Mas eu tenho mais afinidade
com outros tipos de ensinamentos espiritualistas. E daí?
No fundo, é tudo a mesma coisa.

Marcos a olhava admirado. Puxou-a com gentileza e
pousou-lhe um beijo prolongado, acrescentando em seguida:

— Minha doce Raquel, como pode dizer tantas coisas
que não consigo refutar e, em seus lábios, parecem sábias
verdades?
— No fundo, no fundo, a sua alma sabe do que estou
falando.
Ele achou graça no que ela dizia. Já estava se acostumando
ao jeito despojado e livre de Raquel. Ela aceitava as
divergências de opiniões religiosas com tranquilidade, acreditava
na liberdade que cada um deveria ter para seguir sua
própria religião, sem desrespeitar ou menosprezar a do outro.

— Você acha que eu deveria procurar o meu pai? —
continuou ele, tentando não pensar mais nas ideias esquisitas
de Raquel.

— Acho, sim. Você mesmo não disse que iria falar
com ele?
— Foi, mas não tive coragem. O que poderia lhe dizer?
— Diga o que está sentindo. Você tem raiva dele?
— Raiva, não. Uma certa mágoa, não posso negar.
— Mas não gostaria de se dar bem com ele?
— Gostaria, sim. Não sou rancoroso como minha mãe,
muito embora tenhamos sido as vítimas. Ele nos abandonou
e quero perdoá-lo por isso. Sei que consigo.
— Você consegue, Marcos, mas ninguém é vítima
nessa vida. Todos nós experimentamos a ação da natureza,
que só faz devolver o que recebe. Ação e reação.
— Não sei aonde você quer chegar com essa maluquice.

— Somos os beneficiários de nossas ações. Tudo o
que fazemos ou deixamos de fazer retorna para nossas vidas.
O universo é o receptáculo de nossas atitudes e é ele
quem atira as consequências de volta para nós. É como um
bumerangue. Vai e volta. Quando o bumerangue sai da gente
com energias que provocam bons resultados, ele retorna
com vibrações redobradas de alegria. Mas, ao contrário, se
a força com que o atiramos é perniciosa, o que ele nos devolve
são energias igualmente ruins que serão experimentadas
por nós nessa vida ou na próxima. É uma reação em
cadeia, que vai se repetindo até que alguém a interrompa.
— Como?
— Modificando a natureza das ações que recebemos.
Em vez de reagir ao mal com atitudes ruins, temos que adotar
uma atitude contrária àquela que recebemos. Por exemplo:
se alguém é grosso conosco, podemos sorrir. A ação
amorosa anula a ação daninha. Com isso, em vez de entrarmos
no bate e volta da ação e reação, geramos novas
e boas causas, tornando-nos agentes, não reagentes. E a
atitude perversa que seria a fonte de uma reação nociva se
encerra com a nova ação de amor. Origem e fim.
— Ou seja, a ação chega até nós, não encontra reação
e para. E o que seria a nossa reação, por sua vez, vira
uma nova atitude, na medida em que somos nós que estamos
dando início a um novo movimento, só que de amor, em
vez do mal que nos foi enviado.
— Exatamente.
— Interessante a sua colocação, Raquel, e traz uma
verdade muito parecida com a crença da minha igreja, de
que a redenção do pecador requer que ele adote atitude
contrária à que resultou em pecado.
— Viu só? — animou-se ela. — Não falei que, no fundo,
tudo é a mesma coisa?
— Sim, mas no que é que isso se aplica ao meu pai,
que era de quem estávamos falando?
293


— Simples. Se o seu pai abandonou você, não reaja
da mesma forma, abandonando-o também.
A singela verdade nas palavras de Raquel provocou-
Ihe um choque. Marcos fora o primeiro a dizer que perdoava
o pai, mas no fundo ressentia-se de ter sido abandonado
e hesitava em procurá-lo. Perdoava-o, mas não queria contato
com ele. Seria isso perdão?

Como se lesse seus pensamentos, Raquel acrescentou:

— Perdoar significa esquecer. Se você não esqueceu,
não perdoou integralmente.
Marcos estava abismado. Raquel, no fundo, tinha razão.
Ele incentivara a mãe a perdoar o pai, mas teria sido o
seu perdão verdadeiro ou consequência de um dever filial?
Não sabia o que dizer.

Depois que Raquel se foi, os pensamentos de Marcos
davam voltas e mais voltas pela sua cabeça. Ela era muito
diferente dele. Suas ideias, apesar de beirarem a heresia,
não deixavam de ser verdadeiras e sábias. Pensou em
consultar-se com o pastor, mas como poderia lhe dizer que
estava namorando uma moça espiritualista, com quem até
já mantivera relação carnal?

Era melhor deixar o pastor fora daquilo. Ele, sozinho,
precisava decidir o que fazer.

294


CAPÍTULO

34

Faltando pouco para o início do semestre letivo, Marcos
pretendia aproveitar bem os dias que lhe restavam em companhia
de Raquel. A chegada do pai mudara um pouco
seus planos. Ainda não conseguira conversar realmente
com ele. Evitava encontrar-se com ele, pois não se sentiria à
vontade em sua presença. Hoje, era uma pessoa estranha.
Romualdo também não se esforçava. Remoído pela culpa,
tinha medo de se aproximar do filho e ser rejeitado.

Com esses pensamentos, Marcos chegou ao trabalho
e notou que o patrão, seu Valdir, o cumprimentou com ar acabrunhado,
coisa que não era muito comum. Não sabia ele
que, algumas horas antes, duas moças haviam saído após
fazerem uma séria queixa quanto ao seu comportamento.

— O senhor é o gerente? — perguntara uma delas.
— Sou o dono — respondeu Valdir. — Em que posso
ajudá-las?
— Gostaríamos de registrar uma reclamação.
— Pois não? — surpreendeu-se ele.
— É sobre aquele garçom... Um que trabalha à noite,
bem moreno, de cabelo encaracolado.
— Deve ser o Marcos. O que tem ele?
— O assunto não é agradável — a outra tomou a
palavra, ante o olhar de hesitação da amiga. — Mas nos

achamos na obrigação de vir aqui e contar ao senhor o
que aconteceu.

— O que foi?
Valdir estava cada vez mais espantado. As moças se
entreolharam novamente, até que uma delas continuou:

— O senhor tem um garçom muito abusado, sabia?
— Como assim?
— Estivemos aqui ontem, e ele nos deu uma cantada.
Aliás, uma cantada seria o de menos. Ele foi grosseiro, abusado
e inconveniente.
— O que ele fez? — continuou Valdir, mal crendo no
que ouvia.
— Ele é esperto. Sempre dava um jeito de nos passar
a mão, de forma que parecia involuntária.
— O quê?! — Valdir estava no auge da indignação.
— E as coisas que disse, então? Não dá nem para repetir,
o senhor entende.
— Estou chocado. Marcos nunca foi dessas coisas. É
um rapaz evangélico, muito sossegado e discreto.
— Será que estamos falando do mesmo garçom? —
arriscou a moça.

— Ele é carioca? — quis saber Valdir.
— Pelo sotaque, parece.
— Então é o Marcos mesmo. Os outros dois que trabalham
aqui à noite são nordestinos e não têm cabelos encaracolados.
São morenos, mas nem tanto. Estou admirado
com essa revelação.
As duas o olharam com um certo embaraço e começaram
a falar quase ao mesmo tempo:

— Lamento se lhe trouxemos um problema, mas achamos
que tínhamos o dever de lhe contar.
— Ontem, quando saímos daqui, ficamos meio sem
graça, mas depois de refletirmos concluímos que era nossa
obrigação. Do contrário, ele vai continuar fazendo isso com
outras garotas.
296


— E sabe-se lá com quantas ele já fez, mas não falaram
nada, por vergonha.
— O Marcos, quem diria! — lamentou Valdir. — Jamais
poderia imaginar uma coisa dessas. Tão quieto, tão religioso...
— Esses são os piores.
— Bem... Só posso pedir que me perdoem. Eu não
sabia. Vou falar com ele hoje mesmo.
— O senhor acha que vai adiantar alguma coisa? É
claro que ele vai negar.
— Melhor mesmo seria ficar de olho nele e dar o flagrante.
Essa gente, o senhor sabe como é.
Valdir estava arrasado. Tinha Marcos na mais alta conta.
Ele era muito responsável e sempre fora respeitador. Mas

o que conhecia da vida dele? Sabia que era evangélico porque
ele próprio lhe dissera. E era também universitário, segundo
suas informações. No entanto, morava no morro do
Salgueiro. Não seria isso um indício de que poderia ser um
bandidinho dissimulado?
Como Valdir não queria ser injusto nem preconceituoso,
aceitou a sugestão das moças e não fez nenhum comentário,
mas resolveu prestar mais atenção a ele. A queixa o deixara
desconfiado, e não foi por outro motivo que, quando Marcos
chegou naquele dia, ele o recebeu com uma certa frieza.

Marcos percebeu a diferença de tratamento, porém,
nada disse. Talvez o patrão estivesse com algum problema
que não era da sua conta. Lembrando-se da conversa que
tivera com Raquel, deu um sorriso a Valdir, que abaixou a
cabeça, envergonhado. Foi trocar de roupa para atender as
mesas. Como era uma pessoa educada, muito amistosa, redobrava-
se em gentilezas, tratando homens e mulheres com
igual cortesia. Tudo aparentemente normal, a não ser para
Valdir, cuja desconfiança havia sido acionada.

Ele servia uma mesa onde estavam uma senhora e duas
adolescentes. Entregou-lhes o cardápio, tomou nota das bebidas
no seu bloquinho. Uma das meninas lhe perguntou

297


algo, ele se abaixou perto dela, apontando alguma coisa no
menu. Esclarecia-lhe sobre a diferença dos pratos, sem nenhum
pensamento ou gesto maldoso. Mas o sorriso que ele
deu à garota, ante sua observação ingênua sobre carnes
e frangos, desencadeou uma onda de suspeitas, levando
Valdir a ver malícia em tudo o que ele fazia.

Finalmente, quando as três se decidiram, tomou nota
dos pedidos. Depois foi atender outra mesa, onde dois homens
de terno discutiam os termos de um contrato. Como
os fregueses pareciam ocupados, entretidos com os negócios,
Marcos tratou-os com maior distância, para não atrapalhar
as negociações. Para Valdir, contudo, Marcos os tratava
com desinteresse simplesmente porque eram homens.

Foi assim pelo resto da noite, até que o restaurante fechou.
Valdir olhava para Marcos ressabiado, sem dizer nada,
mas sobressaltado, como se à espera de que outras moças
viessem lhe fazer alguma queixa. Nada aconteceu naquele dia
nem no dia seguinte, embora as desconfianças de Valdir persistissem,
levando-o a enxergar maldade onde só existia gentileza.

Sentado em seu carro, Elói aguardava o telefonema
das moças que havia contratado para desempenhar o papel
de molestadas. Eram conhecidas de Paloma, uma garota de
programa que, vez por outra, lhe prestava serviços profissionais.
Por algum dinheiro, conseguiu que elas representassem
aquele teatrinho para o dono do restaurante em que
Marcos trabalhava. Depois delas, viriam outras contando a
mesma história, até que ele daria o golpe final.

O telefone tocou, ele atendeu com um sorriso maldoso.
Eram as moças, contando-lhe o sucesso da empreitada.
Elói riu com elas e desligou, satisfeito com o resultado da
encenação que ele mesmo inventara. Em seguida, ligou
para Nelson e colocou-o a par de tudo.

— Não se preocupe com nada — falou ele, animado.
— Em breve, Raquel será sua novamente, e aquele idiotinha
vai voltar ao lugar dele.
298


Na outra ponta, Nelson também ria satisfeito. Tudo se
encaminhava conforme o esperado. Era bom poder contar
com alguém tão esperto e inteligente quanto Elói. Ele tinha
razão: destruir a reputação de Marcos era bem melhor do
que lhe dar uma surra, que acabaria aproximando Raquel
ainda mais dele. Ela o achava o máximo, o homem mais
digno da face da Terra. Desmistificar esse caráter aparentemente
irrepreensível lhe causaria indescritível decepção e a
levaria a romper o namoro.

* * *

Marcos saiu do restaurante cismado com o comportamento
do patrão. Quando se despediu, Valdir respondeu-
Ihe com um distanciamento que não era normal. Tentou
sondar com os colegas de trabalho, mas ninguém sabia de
nada. Tomou o ônibus, imaginando o que poderia ser. Com
os outros garçons, Valdir permanecia o mesmo. Apenas
com ele operara-se a modificação de tratamento.

Saltou do ônibus e seguiu em direção ao morro. Já ia
iniciar a subida da ladeira quando ouviu uma voz conhecida
chamando-o insistentemente:

— Marcos Wellington! Marcos Wellington!
Apenas duas pessoas o chamavam assim, e se não
era a mãe, só podia ser a tia. Ele se virou prontamente, dando
de cara com ela. Leontina vinha amparando um senhor
de cabelos brancos, que arrastava os pés pelo calçamento.
Imediatamente, Marcos reconheceu o pai, apesar das mudanças
implacáveis que os anos lhe haviam imprimido. Ele
parou e esperou até que ambos se aproximassem, para só
então responder:

— O que foi, tia?
— Marcos Wellington, pelo amor de Deus! — exclamou
ela, arfante. — Ajude-me a levar seu pai para cima.
299


Romualdo não dizia nada. Com o olho mais são, tentava
enquadrar Marcos em seu campo de visão. O rapaz
olhou-os em dúvida. Aquele podia ser o momento que tanto
esperava. Mais que depressa, postou-se ao lado do pai, que
conseguiu olhá-lo, embora com uma certa dificuldade.

— Tudo bem, meu filho? — perguntou ele, lutando
consigo mesmo contra o remorso, o medo e a alegria.
Marcos assentiu e tomou-lhe o braço, ajudando-o
a caminhar.

— Aonde vocês foram? — indagou ele, olhos grudados
no chão.
— Fui levar seu pai à farmácia para medir a pressão —
esclareceu Leontina. — Está alta.
— Já tomou remédio?
— Já, sim — respondeu Romualdo.
Caminharam em silêncio, os três lutando contra o
constrangimento, sem saber o que dizer. Havia muito a ser
dito, mas ninguém sabia por onde começar. Passaram pela
casa de Marcos, que olhou de soslaio para a janela fechada,
onde apenas alguns pontinhos de luz ultrapassavam as frestas,
dando mostras de que a mãe ainda estava acordada.
Quando chegaram à casa de Leontina, ele parou na porta.

— Não quer entrar, meu filho? — convidou ela.
— Hoje não, tia — respondeu ele. — Estou cansado.
— Não quer acompanhar seu pai até o quarto? — era
Romualdo, doido para que Marcos aceitasse o convite e assim
pudessem conversar.
— Não vai dar — insistiu ele. — Minha mãe está me
esperando e pode ficar preocupada.
Ele fez menção de sair, mas ouviu a voz de Romualdo
novamente:

— Será que o que eu fiz foi tão horrível que você não
pode me perdoar?
Ele estacou e se virou com lágrimas nos olhos. Lutava
com sentimentos contraditórios, tentando equilibrar a

300


mágoa com o perdão a que ele mesmo incentivara a mãe.
Via agora que não era assim tão fácil sentir da mesma forma
que falava.

— Quem sou eu para julgá-lo, pai? — disse ele por
fim, lembrando-se das palavras de Raquel. — O julgamento
de seus atos está nas mãos de Deus.
Romualdo deu uma risada sem graça e tornou
com cautela:

— Sinto um tom de ressentimento em suas palavras.
Estou enganado?
Marcos não respondeu. Como mencionar ao pai as
coisas que fora obrigado a silenciar por tanto tempo? Como
lhe contar dos anos em que a mãe quase morrera afogada
na bebida, e ele por pouco não se desviara do caminho de
Deus, solto na mendicância, junto a outros meninos de rua?
Conseguiria falar da fome, da miséria, do frio sem nenhum
toque de revolta? O pai compreenderia que eles haviam sobrevivido
graças à sua fé e à intervenção da tia, que o livrara
do mundo do vício em que, por muito pouco, não buscara
refúgio? E as tristezas e decepções? E o que dizer da desilusão
da mãe, que nunca mais encontrara alegria na vida e só
não morrera graças à imensurável misericórdia de Deus?

Pensando nessas coisas, Marcos não teve como fugir
de si mesmo e assumiu o ressentimento, mascarado de
compreensão por seus deveres evangélicos. Fora ele quem
dissera à mãe que perdoasse Romualdo, quando ele mesmo
não sabia o que era perdão. Por outro lado, tinha que ser sincero
consigo mesmo. Não podia simplesmente dizer que estava
tudo bem quando, na verdade, não estava. Raquel lhe dissera
que devia falar o que sentia. Mas o que realmente sentia?

— Não sei o que dizer... — começou ele, usando o
máximo de sinceridade que podia. — Você sumiu há tanto
tempo! Não sei mais o que sinto com relação a você.
Romualdo engoliu em seco, impressionado com a
franqueza dele.

301


— Fiz muito mal a você e a sua mãe, não fiz?
— Pelo visto, fez mais mal a si próprio. Minha mãe e eu
estamos vivendo.
— Tem razão...
Romualdo calou-se envergonhado, e Leontina interveio:
— Acho que esse não é o melhor momento para vocês
conversarem sobre isso. Seu pai está doente, Marcos
Wellington, e essa conversa talvez não lhe faça bem.
— Não... — objetou Romualdo, mas Marcos concordou:
— Tia Leontina tem razão. Você acabou de tomar um
remédio para pressão e não vai lhe fazer bem emocionar-se.
— Estou preparado.
— Ninguém está totalmente preparado para se defrontar
com seus próprios erros — respondeu Marcos e, notando
o ar de susto dos dois, acrescentou: — Falo isso para
você e para mim... para minha tia e minha mãe também.
— Não precisa tentar se justificar, meu filho. No fundo
você tem razão. Sei o quanto errei e vim aqui em busca
não apenas de ajuda, mas também de perdão. Não sei
se mereço.
— É claro que merece — falou Leontina. — Todo mundo
merece perdão, não é, Marcos Wellington?
— É — respondeu Marcos, mais para si mesmo do
que para a tia. — No fundo, estamos todos em busca de
perdão, não estamos?
Nem mesmo Marcos sabia por que havia falado aquilo,
mas o fato é que sua alma também buscava reconciliar-se
com o passado. Ele olhou penalizado para o pai, o branco
da catarata se alastrando por seus olhos. Sentiu no coração
a verdade do que acabara de dizer. Se todos precisavam de
perdão, por que todos não podiam perdoar? Se ele mandasse
sentimento de perdão, seria o mesmo que receberia da
vida. Pagar o abandono com amor. Origem e fim.

— Venha, pai, vamos entrar — chamou ele, passando
os braços ao redor dos ombros de Romualdo.
302


Os três entraram em casa, e Marcos levou o pai até o
sofá, ajudando-o a deitar-se. Em seguida, puxou uma cadeira,
sentando-se defronte a ele. Esperou até que a tia lhes
servisse uma xícara de chá, e então Romualdo falou:

— Tenho muito que lhe contar, meu filho. Sobre os
anos em que estive ausente e o tanto que aprendi...
Com paciência e amor, Marcos ouviu o relato do pai
sobre seu passado, emocionando-se com ele em vários
momentos. Ficou ali por muito tempo, até depois que ele
adormeceu. E, vendo a tia sentada na poltrona em frente a
ele, finalmente compreendeu o que significava o amor.

303


CAPÍTULO


35


Muito próximo da verdade, Afrânio pressentia a iminência
da descoberta. Pelas adjacências do morro do Salgueiro,
deu início a uma busca nas igrejas e templos religiosos. Não
eram muitos, de forma que conseguiria visitar a todos em
pouco tempo. Como era inevitável, bateu à porta da igreja
frequentada por Leontina. Recebido por uma fiel, pediu para
falar com o pastor responsável. Euzébio apareceu sorridente.
Homem simpático e gentil, sempre recebia bem a todos
que o procuravam em sua congregação.

— O que posso fazer por você, meu filho? — indagou ele,
convidando Afrânio a sentar-se defronte a sua escrivaninha.
Afrânio sentou-se e apanhou a foto de Margarete, exibindo-
a a Euzébio.
— Muito provavelmente o senhor não a conhece —
esclareceu ele. — Seu nome era Margarete Cândida da
Fonseca e morreu atropelada aqui perto, faz alguns anos.

— Que pena — disse ele com sinceridade.
— Margarete, contudo, não estava sozinha. Tinha um
filho que desapareceu. Desconfio que ela o tenha abandonado
em algum lugar pelas redondezas, na porta da casa de
alguém ou numa lata de lixo.
Para qualquer um, a lividez momentânea do pastor teria
passado despercebida, mas para Afrânio, não. Euzébio


jamais havia visto Margarete, mas conhecia bem toda a história,
contada por Leontina.

Havendo exercido o ministério pastoral naquela igreja
por vinte e três anos, Euzébio não tinha como esquecer.
Certo dia Leontina o procurara em busca de um aconselhamento
espiritual. Aos trancos e barrancos, contara-lhe como
a irmã e ela haviam encontrado um bebê recém-nascido na
lata de lixo e o haviam levado para casa, adotando-o como
filho de Clementina e Romualdo. Aconselhada por ele a devolver
a criança, Leontina lhe contara que a suposta mãe
havia morrido atropelada, no mesmo dia em que a abandonara.
Com a morte da mãe verdadeira, sua irmã e o cunhado
conseguiram registrá-la em seu nome, criando-a como se
sua fosse. Marcos Wellington fora criado dentro dos padrões
evangélicos, e ninguém saíra prejudicado, porque ninguém
nunca aparecera para reclamar a criança. Até agora.

Essas lembranças passaram num átimo pela cabeça
de Euzébio, cuja palidez foi-se acentuando à medida que
pensava nelas. Não queria deixar transparecer a familiaridade
com a história.

— Desculpe-me a intromissão, mas qual o seu interesse
em tudo isso? — indagou, ocultando uma certa ansiedade.
— Fui contratado para localizar a mulher e a criança. A
moça está morta, mas do menino, nem sinal.
— Que mal lhe pergunte, quem o contratou?
— Lamento, mas essa informação é confidencial. Será
que o senhor pode me ajudar?
— Não, sinto muito — respondeu o pastor, devolvendo
a fotografia a Afrânio e intimamente pedindo perdão a
Deus pela mentira.
Afrânio tinha certeza de que Euzébio estava lhe ocultando
algo. Muito experiente, reconhecia de longe os sinais
da mentira. Poucos eram aqueles que, surpreendidos, conseguiam
manter no rosto uma expressão inalterada diante
de alguém que sabia algo de seus segredos.

305


— Está bem — respondeu Afrânio, guardando a foto
na carteira. — De qualquer forma, agradeço a sua colaboração.
Peço-lhe apenas que, se souber de algo, me procure.
Aqui está meu cartão.
Afrânio passou o cartão às mãos de Euzébio, que o
apanhou hesitante, esforçando-se para não revelar o que
realmente sentia.

— Acho que não poderei ajudá-lo, mas ficarei com o
cartão mesmo assim — atalhou o pastor.
— Obrigado e boa tarde.
— Boa tarde.
Que Euzébio sabia de algo, disso Afrânio não tinha
dúvidas, bem como compreendia por que ele mentira. Era
óbvio que tentava proteger alguém, e, se era assim, essa
pessoa devia frequentar sua igreja, quem sabe até o próprio
menino, que, a essa altura, já seria um homem. Vigiaria a
igreja, pois, cedo ou tarde, as pessoas certas iriam surgir.

Ao redor de Afrânio, o espírito de Margarete dava saltos
de alegria. Fora alertada por Félix de que aquela era a
igreja frequentada por Marcos.

— Ele encontrou! — gritava ela entusiasmada.
— Eu não lhe disse? Falta muito pouco, mas você precisa
ter calma. Não vá distanciá-lo novamente.
— Não. Vou ficar quietinha, à espera de que Leontina
apareça e ele a siga.
Só que Leontina não apareceu. Sentindo-se culpada
por estar abrigando em casa o marido adúltero da irmã, deixara
de comparecer à igreja, causando até uma certa preocupação
em Euzébio, acostumado à sua presença constante.

Pensando nela, Euzébio ficou em sua sala, tamborilando
na mesa, imaginando o que fazer. A situação era deveras
grave, ele não podia simplesmente ficar sentado vendo tudo
acontecer. Mentir ao detetive fora constrangedor, mas não
lhe cabia revelar a verdade. Era preciso procurar Leontina e
Clementina para que elas mesmas contassem tudo a Marcos

306


e o alertassem das investigações de Afrânio, que, sem sombra
de dúvida, estava a serviço do verdadeiro pai do rapaz.

Tomou uma decisão: se Leontina não aparecia, teria ele
mesmo que ir até ela, ou melhor, mandaria um recado para
que ela fosse procurá-lo. Chamou um de seus ajudantes e
deu-lhe o endereço de Leontina, pedindo que a chamasse
com urgência. Como muitos fiéis moravam no morro do
Salgueiro, não foi difícil encontrar a casa, mas não Leontina,
que havia saído para o trabalho e ainda não retornara.

Atrás do mensageiro, seguiu Afrânio, imperceptível,
mas não subiu o morro. Como todo mundo ali era conhecido,
sua presença chamaria a atenção, e algum bandido
acabaria interceptando um estranho sozinho, que bem podia
ser da polícia. Por isso, ficou à espera na rua abaixo. O
rapaz voltou em poucos minutos, e Afrânio tornou a segui-lo.

— Ele foi procurar Leontina — informou Margarete.
— A irmã da mulher que criou meu filho.
Quando o mensageiro retornou à igreja, Afrânio estava
certo de que ele fora alertar os possíveis pais adotivos do
filho de Margarete. Ao entrar, Euzébio logo o interpelou:

— E então?
— Ela não estava. Falei com o marido dela e deixei
recado para ela vir procurar o senhor assim que chegasse.
— Marido? — estranhou o pastor. — Desde quando
Leontina é casada?
O jovem deu de ombros e foi retomar seus afazeres,
deixando Euzébio muito desconfiado. Seria possível que
Leontina estivesse vivendo em pecado com alguém, depois
de todos aqueles anos de abstinência e repúdio ao demônio?
Euzébio anotou mentalmente esse fato, para esclarecer com
ela depois. Primeiro, precisava cuidar de Marcos Wellington.

Mais tarde, naquele dia, ao receber o recado de
Romualdo, Leontina sentiu o corpo todo gelar.

— O pastor já sabe de nós — anunciou ela, horrorizada.
— O que vou fazer?
307


— Sabe o quê? — contrapôs Romualdo. — Que você,
por caridade, recebeu o marido doente de sua irmã em casa
para cuidar dele, obrigação que competia à esposa?
— Você é adúltero, Romualdo! Clementina não tem
obrigação de aceitar o seu pecado. E eu também devia repudiá-
lo, tentação de Satanás!
— Não sou nenhuma tentação de Satanás — aborreceu-
se. — E não vejo nenhum mal em você cuidar de um
homem doente, ainda que pecador, como você diz. Onde
está seu espírito cristão?
— O pastor não vai acreditar que é pelo meu espírito
cristão que estou vivendo na mesma casa do homem com
quem forniquei no passado — sussurrou ela, como se as
paredes pudessem ouvi-la.
— Não vá me dizer que você contou ao pastor sobre
nós — indignou-se Romualdo, e ela assentiu. — Ora essa,
Leontina, em que estava pensando?
— Tive que contar. Mas a minha conduta me salvou,
até agora. Eu havia renunciado ao pecado e tentava me purificar,
devotando-me à castidade. Mas agora... ele descobriu.
Será que foi Clementina quem contou?
— Não acredito. Ela não seria tão falsa.
— O que é que eu faço, Romualdo? Como encarar o
pastor e confessar que tornei a pecar? E o mesmo pecado!
— Pare com isso, Leontina. Estou separado de
Clementina, e você é solteira.
— Você ainda é casado e é adúltero, assim como
adúltera será qualquer uma que se consorciar a você.
— Quer dizer que eu vou ter esse estigma para o resto
da vida?
— A menos que renuncie ao pecado e mude de vida.
— O que isso significa? Viver sem sexo, feito você?
— Sim.
— Você já dormiu comigo.

— Por isso estamos ambos condenados! — ela se atirou
no sofá e começou a chorar.
Penalizado, Romualdo se aproximou dela e ergueu-a
pelos braços, colocando-a de frente para ele.

— Pare com isso, Leontina — falou com ternura. — Não
acredito que estejamos cometendo nenhum crime ou pecado.
Clementina não me quer mais, posso me divorciar e me
casar com você.
— O casamento não vai apagar o adultério.
— Você precisa se libertar desses conceitos ultrapassados.
Hoje em dia ninguém liga mais para isso.
— Conceitos ultrapassados? Como se atreve a chamar
a palavra de Deus de ultrapassada?
— Não foi isso que eu quis dizer, perdoe-me. Você
sabe que eu nunca fui um homem religioso, nem quando
frequentava a igreja.
Balançando a cabeça, ela pôs-se a andar de um lado
para outro, apertando as mãos nervosamente.

— E agora, o que vai ser de mim? — lamentou-se.
— O pastor mandou me chamar em casa. Só pode ser para
me acusar de meu pecado.
— Como é que você sabe? Talvez ele esteja apenas
preocupado com o seu sumiço. Você vivia na igreja e, de
uma hora para outra, não aparece mais. Ele deve estar pensando
que lhe aconteceu alguma coisa.
— Sempre que eu fico doente ou tenho algum problema,
mando Marcos Wellington avisar. Ele sabe que estou bem.
— Então vá você mesma ver o que ele quer.
— Tenho medo.
— Não devia. Afinal, ele é só um pastor. O máximo que
pode fazer é orientar seus fiéis a agir conforme as Escrituras,
mas não pode obrigar ninguém a fazer o que ele quer.
— Ele não, mas Deus há de me condenar pelos
meus pecados.
309


— Olhe, Leontina, não adianta nada você ficar se torturando.
Seja o que for, vai ter que enfrentar.
— E se ele me mandar deixar você?
— É isso que você quer? — Ela meneou a cabeça.
— Pois então, ele não pode obrigá-la.
— Pode me expulsar da congregação.
— Se fizer isso, então não é um pastor tão bom assim.
Onde está a caridade, afinal? Vamos, coragem. Vá logo lá e
termine com esse suspense de uma vez por todas.
Romualdo tinha razão. Ela não podia passar o resto
da vida se escondendo do pastor como se fosse uma criminosa.
Tinha que resolver logo aquilo. O pecado era real,
todavia, estava disposta a comprometer sua alma só para
viver o que lhe restava de vida ao lado de Romualdo, que
fora o único homem que amara em toda a sua vida. Se depois
de morta sua alma queimasse para sempre no inferno,
paciência. A escolha estava feita; mais valiam alguns anos
de pecado com Romualdo do que a eternidade inteira no
paraíso longe dele.

Enchendo-se de coragem, Leontina partiu ao encontro
do pastor. Afrânio postara-se em frente à igreja, do outro lado
da rua, por onde ela passou sem notar sua presença. Ele,
porém, viu quando ela entrou.

— É ela! — exclamou Margarete, aguçando a intuição
do detetive.
Leontina entrou na igreja, e foi pena que Afrânio não
pudesse acompanhá-la. Do lado de fora, atento aos movimentos
no interior, procurava ouvir alguma coisa.

— Vamos — chamou Félix. — Aqui fora não poderemos
fazer nada. Vamos ouvir a conversa dos dois.
Margarete foi de bom grado. Quando entraram na
sala, Leontina já estava lá, sentada na mesma cadeira antes
ocupada por Afrânio. O pastor pousou a Bíblia sobre a mesa
e sorriu para Leontina, ao mesmo tempo em que dizia:


— Está sumida. Algum problema? — Ela não disse
nada, e ele prosseguiu: — Ouvi dizer que há um homem em
sua casa. Alguém conhecido?
Ela gelou. Queria mentir ou fugir, mas os princípios de
retidão que aprendera paralisaram seu corpo.

— É o marido de minha irmã — respondeu de olhos
baixos. — Está doente, com catarata, e estou cuidando dele
até sair a operação pelo sus14.
A revelação era surpreendente, mas Euzébio não tinha
tempo para comentá-la agora. Cruzou as mãos sobre a
mesa e, com olhar grave, declarou:

— Bem, Leontina, não a chamei aqui por causa disso,
mas porque hoje recebi a visita de um detetive particular que
me fez perguntas sobre uma mulher atropelada há muitos
anos e o filho dela, provavelmente abandonado.
Leontina não sabia se ria de satisfação, porque o assunto
não era seu pecado com Romualdo, ou se desmaiava
de susto e preocupação.

— O senhor quer dizer que vieram procurar Marcos
Wellington? — Ele assentiu. — Mas quem? Por quê?
— Um detetive, já disse, provavelmente a mando da
verdadeira família de Marcos Wellington. Mostrou-me até
uma foto da falecida mãe, que não pude identificar por nunca
tê-la visto.
— Meu Deus! E agora? Clementina precisa saber disso.
— Com certeza precisa. E vocês vão ter que contar a
verdade ao moço.
— A verdade? Não podemos!
— Posso citar várias passagens das Escrituras
Sagradas que condenam a mentira. Lembre-se: "A língua
franca fica sempre firme, mas a mentirosa, somente por um
instante"15. A verdade há de prevalecer, minha filha, pois
14 sus — Sistema Único de Saúde.
15 Provérbios 12:19.

311


a mentira jamais se sustentará eternamente. E Deus não
mente, portanto, não devemos mentir uns aos outros.

— Ah, pastor! Não posso fazer uma coisa dessas. O
senhor disse que não lhe contou a verdade para nos dar a
oportunidade de o fazermos. Só que o filho não é meu, é de
minha irmã. E ela, como o senhor sabe, voltou-se contra a
igreja e as Escrituras.
— Resta-nos o pai, que você acabou de revelar que
está vivendo em sua casa.
Ela sentiu o nervosismo percorrer suas veias. Lutou
contra o tremor interno que ameaçava saltar para sua voz,
fazendo fraquejar-lhe as pernas e as mãos.

— Romualdo mesmo é que não vai contar. Não tem
nenhum temor a Deus.
— E é esse homem que você abriga em sua casa? —
censurou ele. — Já esqueceu o que lhe aconteceu no passado?

— Não... — balbuciou ela, sem saber o que dizer.
— Esse assunto, deixaremos para depois. Por ora, temos
que tomar providências quanto ao detetive. Dou-lhes
dois dias para pensarem bem e lhe contarem tudo. Tenho o
cartão dele aqui comigo. Depois disso, se vocês não fizerem
nada, eu o farei. Não quero envolvimento com a mentira.
Diante do ultimato, Leontina sentiu o desespero se apoderar
dela. Precisava contar tudo urgentemente a Clementina
e Romualdo. Saiu alquebrada, passando novamente por
Afrânio, que logo percebeu seus olhos inchados, o ar abatido.
Atrás dela, vinham Margarete e Félix, que soprou ao
ouvido do investigador:

— Talvez seja essa uma boa hora para interpelá-la.
Na verdade, a intervenção do espírito nem seria necessária,
porque Afrânio já havia se decidido a abordar Leontina.
Ele se aproximou pelo lado do meio-fio e chamou-a com o
máximo de cuidado possível, para não assustá-la.

— Por favor, senhora, gostaria de uma informação.
312


Ela mal olhou para ele, mas todos os seus instintos se
aguçaram, um alerta mudo pressionou os seus pés, apertando-
lhe os passos para a fuga. Mesmo sem olhar para ele,
sabia de quem se tratava. Ela caminhava com rapidez, quase
correndo, com Afrânio em seu encalço.

— Por favor, senhora — repetiu ele —, não tenha
medo. Não vou lhe fazer nenhum mal. Quero apenas lhe fazer
algumas perguntas.
— Não o conheço e não costumo falar com estranhos
— respondeu ela apressadamente.
— Nem sobre a mulher atropelada e o filho que ela abandonou?
— disparou ele, contando com o impacto da surpresa.
A tática surtiu o efeito desejado, porque Leontina estacou
de boca aberta, mas logo se recuperou:

— Não sei do que o senhor está falando. E, por favor,
não me aborreça ou vou gritar.
Ela nem precisava dizer nada, porque o seu olhar de
espanto revelou tudo. Aquela mulher conhecia a história e o
paradeiro do menino. Leontina apertou ainda mais o passo,
até que alcançou a ladeira e deu início à subida do morro,
olhando a todo instante para ver se Afrânio a seguia. Ele
permaneceu embaixo, acompanhando sua fuga desabalada.
Aos tropeções, Leontina seguiu direto para a casa da
irmã. Era mais justo falar com ela primeiro. Entrou sem bater
e encontrou-a preparando o jantar. Leontina agradeceu a
Deus por Marcos estar ainda no trabalho.

— Nossa, Leontina, que cara é essa? — assustou-se
Clementina, ante o estado de desespero da outra. — Viu
algum fantasma, foi?
— Pior! — gritou Leontina, batendo a porta e se colando
a ela, como que tentando impedir que alguém entrasse.
— O que foi? Romualdo lhe fez alguma coisa? Ele bateu
em você?
— É o Marcos Wellington, minha irmã! Um homem
descobriu tudo! E agora, o que faremos?
313


— Espere um instante. Que homem...? Descobriu tudo
o quê?
— Ele sabe sobre a mãe atropelada. Eu o vi... Ele me
abordou na rua... Procurou o pastor, fez perguntas. E o pastor
nos mandou falar a verdade. Agora, depois de mais de
vinte anos, temos que entregar Marcos Wellington a seus
verdadeiros pais!
Leontina ouviu um baque surdo e correu para amparar
Clementina, que havia desmaiado no chão. Apesar da conversa
truncada, a irmã compreendera tudo rapidamente. Seu
pior temor batia-lhe à porta, inevitável, ameaçando destruir
sua felicidade. Marcos Wellington iria embora e a desprezaria
pelo que tinha feito. Perder o marido fora difícil. Ganhar o
desprezo do filho seria insuportável.

314


CAPÍTULO

36

Não suportando a imensa carga emocional, Margarete
teve que ser amparada por Félix e levada de volta à sua cidade
astral. Os dois apareceram instantaneamente na varanda
da habitação, surpreendendo-se com Laureano, que os
aguardava na porta.

— Vejo que nossa irmã está em desequilíbrio — comentou
ele, dando-lhe um passe rápido.
— Estou bem — afirmou ela, sentindo-se realmente
melhor com a transfusão de energias benéficas. — É que
foram muitas emoções hoje.
— Afrânio está a um passo de descobrir a verdade
— esclareceu Félix. — E Leontina também já contou tudo
a Clementina.
— A verdade não poderá mais estar oculta — disse
Laureano. — É o caminho da natureza, cujo curso, por mais
que se desvie, acaba sempre retornando em direção da verdade.
Mas não é por isso que estou aqui. Vocês dois têm-se
saído bem em sua missão até agora. Vim trazer um visitante
para Margarete.
— Que visitante?
— Ele está lá dentro e pediu-me para alertá-la sobre
sua presença. Não quer que você se sinta ofendida
nem embaraçada.

— Quem é? Quem está aí?
— E o Anderson.
— O quê? — surpreendeu-se ela. — Quer dizer, o pai
de Marcos?
— Ele mesmo.
— Mas por quê? O que ele quer?
— Falar com você. Não quer falar com ele?
Margarete não respondeu. Abriu a porta da sala e encontrou
Anderson sentado no pequeno catre em que ela,
de vez em quando, descansava. Parecia adormecido, mas,
quando ela se aproximou, percebeu que ele rezava em silêncio.
Anderson notou sua presença, abrindo os olhos ao
senti-la chegar mais perto.

— Olá, Margarete — cumprimentou ele, com uma certa
serenidade. — Faz muito tempo que não a vejo.
— É verdade. Mais de vinte anos, embora eu o tenha
visto antes disso.
— Sei que você foi me visitar no hospital e lhe sou grato.
Pensei que me guardasse rancor ou mágoa.
— No começo, pode ser. Mas depois, com a ajuda de
Félix e Laureano, compreendi que o ressentimento só fazia
mal a mim mesma.
— Você pode me perdoar?
— Por quê? Por ter-me dado um filho maravilhoso?
— Pela minha covardia. Por não ter tido coragem de
enfrentar meus pais e assumir que a amava.
— Você era só um menino.
— Isso não é desculpa. Tornei-me pai.
— Tornar-se pai não faz de ninguém um sábio da vida
— esclareceu Laureano. — Se assim fosse, toda educação
seria perfeita.
— Eu sei — falou ele. — Mas é que me arrependo tanto!
— Arrependimento é bom, porque evita a reincidência
na dor. Mas não se deixe torturar por ele. Aprenda com o
que viveu para viver melhor em outra oportunidade.

— Seus pais também se arrependeram e estão tentando
recuperar o tempo perdido, lutando para reencontrar
o neto — acrescentou Félix. — Não é uma boa maneira de
tornar a vida melhor?
— Não deixa de ser.
— Marcos será um grande homem, maior ainda do que já
é — declarou Laureano. — Precisa de recursos financeiros para
realizar a obra grandiosa a que se propôs. Juntos, ele e Raquel
prestarão auxílio a muita gente não apenas nas questões jurídicas,
mas principalmente nas obras sociais que realizarão.
— E esses recursos financeiros chegarão a ele por
meio de seus pais, Anderson — afirmou Félix. — Não é uma
coisa maravilhosa?
— Realmente — respondeu Anderson, em dúvida.
— Se você não tivesse dado a vida a Marcos, nada
disso seria possível — comentou Margarete.
Fez-se um momento de silêncio, em que Laureano e
Félix aproveitaram para se retirar. Anderson segurou a mão
de Margarete, provocando seu olhar.

— Você ainda não respondeu se me perdoa.
Ela respirou profundamente e apertou a mão dele.
— Sabe, Anderson, se tem uma coisa que aprendi aqui
é que somos iguais em nossa busca. Estamos todos tentando
crescer. Para isso, vamos amadurecendo em espírito, ganhando
confiança à medida que nos despimos do orgulho e aceitamos
a nossa pequenez diante da vida. Se somos tão pequeninos,
temos o direito de errar. Isso não é um pecado, não é motivo de
vergonha, não é uma falta imperdoável, não tem o peso da condenação
nem da culpa. É só uma forma de crescer. Só isso.
— Sim, mas e o perdão?
— Bom, se todo mundo faz igual, então, não tenho por
que lhe cobrar nada. Se não tenho o que cobrar, você não
me deve nada e, é lógico, não precisa me pedir perdão.
— Mas você me perdoa mesmo assim?
— Não escutou nada do que eu falei, não?
317


— Escutei, mas ouvir o seu perdão também é importante.
Você falou em peso... Pois eu acho que a palavra
perdão traz uma leveza que faz bem à alma. Custa você dizer,
se estiver sentindo de verdade?
— Não, não custa — falou ela sorrindo. — Ainda mais
porque é verdade. Perdoo você por qualquer mal que pensa
que me fez e o libero do sentimento de culpa. Agora liberte-
se você também dessa prisão.
Foi como se um novo alento de vida houvesse revigorado
todo o corpo fluídico de Anderson. A sinceridade que
revestia as palavras de Margarete luziu no coração do rapaz,
que imediatamente sentiu o efeito libertador do perdão. Ele
tornou a apertar a mão dela e disse emocionado:

— Obrigado. Sei que foi sincero.
Anderson pousou-lhe um beijo suave nos lábios, não
de paixão ou luxúria, mas de uma fraternidade indescritível,
que a emocionou. Margarete deixou escorrer as lágrimas e
alisou o rosto dele, sentindo-se igualmente livre.

— Preciso voltar — declarou ele.
— Mas vem me visitar?
— Sempre que puder.
— E o nosso filho? Você já o viu?
— Já, sim. É um rapaz muito bonito, inteligente e, o
que é mais importante, honesto, digno e bondoso.
Margarete assentiu contente, e os dois saíram de casa,
encontrando Félix, que os aguardava em companhia de
Laureano. Anderson deu um abraço neste último e estendeu
a mão para Félix, que a tomou com satisfação.

— Muito obrigado por cuidar de Margarete — falou ele.
— Ora, não tem que me agradecer — objetou Félix,
sem jeito. — Cuido dela porque a amo.
— Sei disso.
Em segundos, o espírito iluminado de uma senhora
surgiu diante deles. Sorriu amistosamente para todos, apanhou
o rapaz pela mão e esvaneceu com ele no ar. Os três

318


ficaram olhando o espaço vazio deixado pelos dois espíritos,
cada qual refletindo em sua própria existência, até que
Laureano questionou:

— Vocês não gostariam também de deixar este lugar?
— Não me sinto ainda preparada—contrapôs Margarete.
— Tenho medo de voltar a assediar os vivos em troca
de bebida.
— Não se sente livre do vício?
— Ainda não. Às vezes, tenho a sensação de que meu
corpo clama pelo álcool.
— Você sabe que é apenas uma impressão do corpo
astral, não sabe?
— Sei, mas é uma impressão forte bastante para me
assustar. Aqui, ao lado de vocês, por mais difícil que às vezes
seja, sei que terei forças para resistir.
— Para onde você irá, a força será ainda maior. Aqui
há espíritos enfermos em recuperação. Lá, o tratamento é
mais voltado para as dores da alma.
— Eu gostaria de ir — comentou Félix. — Adoro você,
Laureano, mas já estou cansado desse lugar.
— O que é natural, já que você está aqui há muito
mais tempo que Margarete.
— Contudo, temos ainda uma missão por concluir.
— Por enquanto. O sucesso das investigações de
Afrânio ficou por conta de vocês, mas logo esse processo
estará concluído. E depois?
— Não sei — confessou Margarete.
— Pois eu acho que deviam considerar a ideia de partir.
Você não pode ficar aqui para sempre, Margarete.
— Vou pensar, Laureano. Depois que vir meu filho no
lugar onde ele deve estar, talvez siga o seu conselho.
— Excelente! E agora, por que não me acompanham
numa breve oração?
Assim fizeram. Os três juntos tinham muito a agradecer.

319


CAPÍTULO

37

Nada sabendo da conversa entre a tia e o pastor,
Marcos retomou a faculdade no dia seguinte. Gostava dos
estudos, das aulas, da companhia dos colegas inteligentes,
com suas perguntas interessantes, bem colocadas. O namoro
com Raquel ia bem, e agora que se entendera com o
pai, tudo ficara ainda melhor. Só no trabalho as coisas continuavam
estranhas. De uma hora para outra, o patrão dera
para cismar com ele e olhá-lo de cara feia, tratando-o com
uma cortesia gélida e distante. Valdir parecia vigiá-lo a cada
instante, tomando conta de seus passos, analisando seus
gestos, escutando suas conversas.

O desagradável no recomeço das aulas foi o reencontro
com Nelson. Logo que entrou, Marcos deu de cara com

o rapaz, que o encarou com ar desafiador, mas não disse
nada. Cochichou alguma coisa com seu amigo Antônio, e
ambos riram debochadamente.
Marcos sentou-se no lugar de costume, entre Raquel e
Arnaldo, que o recebeu com o sorriso amistoso de sempre.

— Que saudade, cara! — cumprimentou Arnaldo,
abraçando-o efusivamente. — Como estão as coisas?
— Bem. E você, como foi nos Estados Unidos?
— Tirando o frio, tudo bem.

A irmã de Arnaldo morava na Califórnia, para onde ele
fora com a família visitar a sobrinha recém-nascida.

— E a sobrinha?
— Linda. Uma boneca.
Raquel logo se juntou a eles na conversa, até que o
professor entrou, dando início à aula. Nelson e Antônio,
como sempre lá atrás, cochichavam besteiras, soltavam risadinhas
abafadas, atrapalhando a aula.

— Esses dois não se emendam — comentou Arnaldo,
com certo rancor.
— Psiu! —fez Raquel, virando-se para trás rapidamente.
Notando que Paulo, o outro amigo de Nelson, agora se
sentava sozinho, ela sorriu para ele. No intervalo, convidou-o
a unir-se ao grupo dela, convite que ele aceitou de bom grado.
Desde o episódio racista de Nelson, Paulo se distanciara
dos antigos amigos. Paulo foi bem recebido por Marcos e
Arnaldo, formando com eles um pequeno grupo de estudos.

Nos primeiros dias, Nelson e Antônio se mantiveram
quietos, entregues apenas aos cochichos de sempre. Mas
na segunda semana de aula, as provocações recomeçaram.
Marcos e Raquel estavam com os amigos sentados a uma
mesa na cantina quando ouviram gargalhadas altas partindo
da mesa ao lado. Olharam ao mesmo tempo. Aproveitando-
se de que conseguira chamar a atenção, Nelson gritou para
Marcos em tom sarcástico:

— É verdade o que ouvi? Que sua mãe é uma ladra?
— O quê?! — indignou-se Marcos. — Repita o que disse!
Arnaldo segurou-o pelo braço, e Raquel, contendo a
indignação, tornou incisiva:

— Não ligue para isso, Marcos. É provocação.
Provocar era justamente o intuito de Nelson, que continuou
com deboche:

— Perguntei se é verdade que sua mãe é uma ladra. Pelo
menos foi o que um amigo me disse: que viu sua mãe quase
ser presa no Pão de Açúcar, roubando suvenires de uma loja.
321


Marcos sentiu o sangue ferver. Como Nelson gritava,
todos os que passavam ouviam seu comentário e se viravam
para olhar, alguns com incredulidade, outros com indiferença,
outros com ar de reprovação.

— Mentiroso! — rugiu Marcos, colérico. — Aquilo foi
um mal-entendido, uma atitude racista do dono da loja!
Logo surgiram alguns comentários abafados. Nelson
continuava olhando para ele com um risinho sarcástico pendurado
no canto da boca.

— Agora veja se pode — prosseguiu Nelson. — O cara
quer ser advogado, e a mãe dele vai ser a primeira cliente.
Marcos tentou ao máximo se conter, mas nem a intervenção
da namorada e dos amigos conseguiu impedi-lo de
saltar diante de Nelson e segurá-lo pelo colarinho.

— Vai me bater? — desafiou Nelson, deliberadamente
suprimindo qualquer referência racista. — Por falar a verdade?
Marcos levantou o punho bem acima dos olhos do
outro e hesitou. Todos ao redor permaneciam mudos, seguindo
as determinações do próprio Nelson, alguns comandados
por Antônio.

— Marcos, não! — gritou Raquel. — Não vale a pena.
— Deixe disso, Marcos — acrescentou Arnaldo.
— Não vá se igualar a ele.
— Deixe disso, Marcos — imitou Nelson, afinando a
voz, e acrescentou para Marcos, como se fosse Arnaldo
quem dizia: — Nelson não é uma bichinha feito você.
Por pouco o murro não veio. Na hora em que Marcos
descia o punho, as palavras do Evangelho saltaram em sua
mente, e ele recuou: "Bem-aventurados os mansos, porque
eles herdarão a terra"16. Num relance, tudo o que aprendera
sobre não violência assomou à sua mente. Lembrou-se
das palavras do pastor, dizendo-lhe que a violência, no reino
de Deus, é algo inaceitável. Na mesma hora arrependeu-se.

16 Mateus 5:5.

322


Recolheu o pulso e soltou Nelson mansamente. Rodando
nos calcanhares, apressou o passo, sumindo sob uma saraivada
de risadas irônicas e provocadoras:

— Ha, ha, ha! Olhem só o covarde!
— Ele não fez nada porque sabe que não é mentira. A
mãe é mesmo uma ladra!
— E ele, uma bichinha...
Raquel havia saído atrás de Marcos, tentando alcançá-lo
em meio à multidão de alunos que transitava por ali àquela hora.
Em seus lugares, Paulo e Arnaldo permaneceram sem saber o
que fazer, até que o primeiro se levantou e disse simplesmente:

— Seus idiotas.
Saiu, e Arnaldo foi atrás dele.
— Isso, traidor — desdenhou Nelson. — Corra atrás
dele com sua outra bichona.
Não foi possível encontrar Marcos. Apenas Raquel conseguira
alcançá-lo no hall dos elevadores e desceu com ele.

— Vamos, Marcos — chamou ela. — Deixe isso para lá.
Eles são uns idiotas. Não vá perder a aula por causa deles.
— Você não entende — objetou ele, olhando-a com olhos
úmidos. — Não é deles que estou com raiva. É de mim mesmo.
— De você? Por quê? Você não fez nada. Sofreu uma
provocação e reagiu.
— Reagi feito ele. Esqueceu-se de tudo o que me falou
antes sobre ação e reação? Pois bem, agora compreendo o
que você quis dizer. Não devemos reagir com violência, e sim
com amorosidade. Era isso o que eu devia ter feito, mas não
consegui. Igualei-me a ele no desrespeito e na brutalidade.
— Não se culpe, Marcos. Você é um ser humano.
— Reconheci o meu orgulho. Por isso não pude deixar
passar a agressão.
— Acho que você está se cobrando demais. Está tentando
ser perfeito, e ninguém é.
— Jesus foi manso e pacífico. Eu devia ser também.
323


— Mas você foi. Teve um momento de raiva, mas refletiu
e se impediu a tempo de cometer uma besteira. Não é
isso que importa?
Marcos caminhou de um lado a outro e passou a mão
nos cabelos.

— Ele falou da minha mãe... chamou-a de ladra.
— Ela não é. Sabemos disso.
— Mas eu queria que todo mundo soubesse.
— Todo mundo sabe.
— Não. Todo mundo agora vai acreditar na versão dele
e achar que minha mãe realmente tentou roubar aquela loja.
— Deixe isso para lá, Marcos. As pessoas esquecem.
— Será que eu poderei esquecer? Oh! Raquel, sinto
minha alma tão suja!
— Não diga uma coisa dessas.
— Suja do pecado da ira, da vergonha e do orgulho.
Eu jamais deveria ter aceitado aquela provocação.
— Meu amor, você está se cobrando demais. Não
tente agir como se fosse Deus. Há pouco você mencionou
Jesus. Você não é Jesus.
— Ele é o nosso exemplo.
— Mas não o nosso carrasco. Jesus era compreensivo,
não acusava ninguém. Por que é que você mesmo se acusa?
— Ah! Raquel... — balbuciou ele, estreitando-a com amor.
Beijaram-se delicadamente, e ela sugeriu num sussurro:
— Vamos sair daqui — e, antes que ele retrucasse,
acrescentou: — Só hoje, faça algo que normalmente não faria.
Deixe de lado a razão e siga o coração. Você não me ama?
— Você sabe que sim.
Disse isso já se encaminhando de volta para o elevador.
Subiu ao sétimo andar e esperou até que o sinal anunciasse
o término daquela aula para entrar na sala, ignorando
Nelson e seus comparsas.

— Está tudo bem, cara? — indagou Paulo.
324


— Muito bem — respondeu Marcos, guardando suas
coisas de volta na mochila.
— Vocês vão embora? — perguntou Arnaldo, e Raquel
assentiu.
Marcos, contudo, sabendo que os olhos e ouvidos
de Nelson estavam grudados neles, cedeu à tentação. Em
tom de confidência, mas perfeitamente audível, respondeu
com malícia:

— Vamos namorar.
Nelson quase quebrou a lapiseira, tamanho o seu ódio.
Na mesma hora em que falou, Marcos se arrependeu, mas
já era tarde demais. Havia devolvido a provocação. Tomou
Raquel pela mão e saiu com ela, cabisbaixo. Ela percebeu
a resposta maliciosa, mas preferiu ficar quieta. Marcos vivia
conflitos internos intensos, não seria prudente provocá-lo
ainda mais. Contudo, ele mesmo comentou:

— Estou me modificando, Raquel, e para pior. Nunca
fui sarcástico na vida.
— Não se culpe. Você está com raiva, vai passar.
Nelson é que tem que aprender a respeitar os outros.
— Conheço o caráter de Nelson, mas isso não é justificativa
para eu me entregar à tentação de Satanás. Ele se utilizou
da minha fraqueza para provocar-me sentimentos impuros.
— Você acredita que o diabo fez você reagir dessa forma?
— Não — respondeu ele com seriedade. — Acredito
que ele está dentro de mim, atirando pela minha boca as
impurezas de minha alma.
Raquel não rebateu. Não sabia mais o que dizer.
Marcos também não queria acrescentar que estava sendo
punido pelos seus atos de iniquidade, principalmente porque
cedera ao pecado da carne. Ao chegarem ao carro,
Marcos abriu a porta para ela. Deu-lhe um beijo suave, esperou
que ela se sentasse ao volante. Já ia batendo a porta
quando ela colocou o pé para fora e o interpelou:

— Você não vem comigo?
325


— Não.
— Por quê? Nós não saímos para namorar, como você
mesmo disse?
— Foi errado. Devíamos estar assistindo à aula, e eu
não deveria ter anunciado o que íamos fazer. Expus você à
maledicência alheia e não posso me perdoar por isso.
— Não ligue, Marcos. Eu não ligo. Todo mundo sabe
que a gente transa mesmo. E quem não transa hoje em dia?
Talvez fosse esse o problema que ele não queria revelar.
Jamais deveria ter acedido à tentação da luxúria. Amava
Raquel com toda intensidade, mas podiam ter esperado o
casamento para legitimar sua união perante Deus. Agora viviam
em pecado, e ele estava sendo punido.

— Hoje não, Raquel, lamento.
— Posso saber aonde você vai?
— Vou à igreja orar e depois vou para o trabalho.
Amanhã a gente se vê.
De nada adiantaria a insistência de Raquel. Ela recolheu
a perna e ligou o carro, sentindo as lágrimas esfregando seus
olhos. Susteve-as por um momento, até que o carro se afastou
o suficiente para ela perder Marcos de vista. Só então deixou-
as cair, uma enorme sensação de perda se insinuando
em seu coração. Momentaneamente deixou-se dominar pela
raiva. O episódio com Nelson não fora suficiente para provocar
aquela reação em Marcos. E ela não havia feito nada. Por
que então ele se afastava dela quando mais deveriam se unir?

Marcos se fazia perguntas diferentes. Só Jesus conhecia
o conflito que vivia para aceitar uma moça feito Raquel,
livre de todo tipo de tabus e proibições. Não tinha dúvidas de
que a amava, mas era preciso fazer alguma coisa para conciliar
seus mundos tão distintos. Por mais que ele se entregasse
a uma vida livre com ela, não era essa a liberdade de
que sua alma gozava. Estava preso, e muito bem preso, aos
dogmas evangélicos. Liberar-se deles não era uma tarefa

326


fácil, principalmente porque Raquel intimamente lhe cobrava
uma mudança não de religião, mas de comportamento.

Diante de seus conflitos, o acontecimento daquela manhã
surgira como um alerta, envolvendo justo a mãe, uma mulher
sem fé. Era o motivo pelo qual ela fora escolhida como alvo daquela
infâmia; porque se afastara, deliberadamente, dos caminhos
de Deus. Raquel trilhava a estrada de um Deus diferente
do seu, por isso, não dava valor a nada do que a Bíblia dizia,
preferindo envenenar-se com teorias mirabolantes e fantásticas.

Reconhecia, no entanto, que muito do que ela dizia não
era diferente do que ele aprendera na igreja. Raquel, com seu
jeito espontâneo, sempre falava de amor e de respeito, sentimentos
que ele, desde pequeno, fora estimulado a praticar.
Pensando nela, quase ouviu a sua voz suave dizendo coisas
aparentemente absurdas e, ao mesmo tempo, tão sábias. Seu
coração se enterneceu. Sentiu imenso arrependimento por
não ter seguido com ela. Podiam, àquela hora, estar se amando
em algum motel, longe do mundo e de seus problemas.

Chegou a pegar o celular para ligar para ela, mas desistiu.
Tomou o ônibus, sentindo uma necessidade fremente
de orar. Quando saltou, foi direto para a igreja, onde poderia
se entregar à oração sem ser interrompido. Sentou-se num
banco, fechou os olhos para rezar com fervor. Estava rezando
havia um bom tempo quando sentiu uma mão em seu
ombro. Seus olhos se abriram, desfocados, custando um
pouco a identificar, com nitidez, a figura do pastor.

— Como vai, Marcos Wellington? — indagou ele, certo
de que Marcos já sabia de tudo sobre seus pais.
Como o motivo era outro, Marcos respondeu com simplicidade
e um certo distanciamento, pois não desejava se
abrir com ele.

— Bem, senhor, obrigado.
— Não o tenho visto ultimamente, mas soube que está
trabalhando e estudando. Continua naquele restaurante? —
Marcos assentiu timidamente, porque ninguém aprovara
327


sua decisão de trabalhar em local tão profano. — Entendo.
E o que o traz aqui?

— Vim apenas orar.
— Orar? Só isso?
— Sim.
Para Marcos, a pergunta de Euzébio tinha por motivo
o fato de ele estar namorando uma moça espiritualista. O
pastor, por sua vez, desconfiando de que ele nada sabia,
não fez mais perguntas.
— Muito bem, meu filho — falou com voz carinhosa. —
Ore o quanto quiser. E depois, se desejar, venha falar comigo.

— Sim, senhor. Obrigado.
Marcos ficou observando Euzébio se afastar, tentando
imaginar o que ele diria sobre Raquel. Tinha certeza de
que a tia já devia ter-lhe contado tudo a respeito dela, mas
não pretendia abrir-se com ele nem lhe fazer confidências.
O pastor iria recriminá-lo e orientá-lo a romper o namoro ou
a empreender a conversão de Raquel. Além disso, tentaria
fazer com que eles parassem de manter relações sexuais,

o que, àquela altura, seria impossível. No fundo, sabia que
era seu dever contar tudo ao sacerdote, mas o temor de ser
forçado a deixá-la era maior.
Com o alívio que a oração lhe trouxe, levantou-se para
ir embora. Do outro lado, Euzébio o observava com discrição,
ambos sentindo o coração em sobressalto por motivos
diversos. Marcos consultou o relógio e resolveu não passar
em casa para almoçar. Abriria um jejum de vinte e quatro
horas, iniciando-se naquele momento. Tornou a sentar-se
para fazer breve oração, determinado a desligar-se das coisas
físicas e colocar-se em profunda comunhão com Deus.
Marcos sabia que não devia usar o jejum com o propósito
de sacrifício e pediu a Deus que lhe desse discernimento
para saber como proceder naquela situação.

Quando terminou, seguiu direto para o trabalho, sentindo-
se mais leve e reconfortado.


CAPÍTULO


38


Como sempre, Valdir estava carrancudo, sem que
Marcos pudesse imaginar o motivo. Mal sabia ele que, de
vez em quando, vinham reclamações sobre seu comportamento.
Era uma mulher que reclamava dos olhares dele para

o seu decote, outra que se queixava de um aparentemente
casual alisamento de seios, outra que relatava piadinhas de
mau gosto. Não era possível. Marcos sempre fora muito sossegado,
mas, de uma hora para outra, sempre havia alguém
reclamando de seus abusos.
— Está tudo bem, seu Valdir? — indagou Marcos, incomodado
com o mau humor do patrão.
— Mais ou menos — respondeu ele, carrancudo.
— Depois do expediente, conversaremos.
— É algo comigo?
— Você sabe.
Valdir deu-lhe as costas, deixando-o sem saber do
que se tratava. Marcos servia as mesas, longe de imaginar
os pensamentos maldosos que passavam pela cabeça de
Valdir, que via segundas intenções em tudo o que ele fazia.
Quando o último cliente saiu, Valdir o chamou a um canto.

— Escute aqui, Marcos — foi logo dizendo —, sempre
gostei muito de você, mas o que vem fazendo não está certo.

— O quê, seu Valdir? — retrucou ele, do alto de
sua ignorância.
— As moças estão vindo fazer queixa de você.
— É? — surpreendeu-se. — Por quê?
— Você sabe.
— Não sei, não.
— Andam dizendo que você vive fazendo gracinhas,
fica de olho nos decotes e passa a mão nelas.
— Eu?! — indignou-se. — Era só o que me faltava, seu
Valdir. Pois eu nem reparo nelas.
— Não é o que me disseram. E não foi uma nem duas
que vieram se queixar de você. Foram várias.
— Estou abismado. Só pode ser um mal-entendido.
Eu nunca mexi com ninguém.
— Pois elas dizem que mexeu.
— Quem foi que disse isso? — falou ele, mal contendo
a raiva. — Quero saber.
— Não sei, não conheço as moças. São freguesas
que vêm aqui e reclamam do seu comportamento.
— Assim é muito fácil, não é, seu Valdir? Acusam-me
de algo que não fiz, e eu nem posso saber quem foi? Como
poderei me defender? E por que elas fariam isso?
— É, por quê?
— Sei lá! Vai ver elas são racistas.
— Inclusive as negras? — Marcos levantou as sobrancelhas,
e Valdir prosseguiu: — Pois já vieram brancas e negras
se queixar de você. É coincidência?
— É uma infâmia, isso sim! O senhor sabe que a minha
religião não me permite essas liberdades. E eu jamais
desrespeitaria uma mulher ou qualquer outra pessoa.
— Você está namorando uma menina que não tem
nada de crente.
— E daí?
— E daí que está mudado.
330


— Não, seu Valdir, nisso não. Minha namorada não é
evangélica, mas eu não perdi a vergonha nem a moral. Me
admira o senhor, que me conhece faz tempo, acreditar nessas
mentiras.
— Também achei estranho, mas já vieram umas cinco
ou seis moças reclamar de você. Por que elas fariam isso se
não fosse verdade?
— E por que fariam se fosse? Tudo bem que uma ou
duas se sentissem incomodadas. Mas, de repente, todo
mundo resolveu dar tanta importância ao fato e me acusar?
O senhor não acha estranho?
— Estranho, é. Mas estou de olho em você e venho
reparando o seu comportamento. Você é bem animadinho
com as mulheres, não é?
— Sou educado com homens e mulheres. Nada
além disso.
— Vai negar então que tenha feito gracinhas e passado
a mão nas moças?
— É lógico! E gostaria que o senhor me apresentasse
ao menos uma dessas moças para que eu possa me defender
e provar que sou inocente.
— Infelizmente, elas reclamam de você e não voltam
mais, na certa com medo de represálias.
— Represálias? Essa é muito boa, seu Valdir. Por acaso
está me confundindo com algum bandido?
— Coloque-se no meu lugar, rapaz. O que você faria
se alguém viesse procurá-lo e fizesse acusações desse tipo
a um empregado seu?
— Eu o chamaria na frente da pessoa que falou e lhe
daria a chance de se defender.
— É... Bem, farei isso da próxima vez. Por ora, quero
apenas que você preste atenção e não se meta com as
freguesas. É melhor deixar as mesas de mulheres para os
outros garçons.
331


— Isso é um absurdo, seu Valdir! Está me tratando
como se eu fosse um tarado.
— Já disse, Marcos. Se quer manter o emprego,
faça como lhe falei.
Marcos ficou furioso, mas conseguiu se conter. Seria
possível que sua vida começara a andar para trás? Saiu do trabalho
remoendo a raiva e tentou rezar. Com muita dificuldade,
elevou os pensamentos a Deus. Depois de muito se concentrar
na oração, sentiu-se mais fortalecido para voltar em paz.

Entrou em casa sentindo o estômago arder. Lembrando-
se do jejum, foi tomar um banho para depois dormir. Como a
mãe já estava na cama, não o ouviu entrar, de forma que ele
não fez barulho e se deitou no sofá, adormecendo em seguida.

De seu leito, Clementina logo percebeu quando ele chegou,
mas fingiu que dormia para que ele não visse o seu estado
de quase desespero. Não sabia o que fazer, apavorada
com o ultimato do pastor. Sem conseguir dormir, levantou-se
de mansinho e trocou de roupa no escuro, sem emitir nenhum
ruído. Marcos dormia a sono solto quando ela saiu devagar,
fechando a porta com todo cuidado. Rodou a chave na fechadura,
em silêncio, partindo, célere, para a casa da irmã.

De longe avistou luz na sua sala, deduzindo que ela e
Romualdo ainda estavam acordados. Não era sua a escolha
de defrontar-se com o marido novamente, contudo, não
tinha jeito. Precisavam, os três, tomar uma decisão conjunta.
Apesar do adiantado da hora, Clementina bateu à porta.
Quando Leontina abriu, ela entrou e logo viu Romualdo no
sofá, de frente para a televisão, mais ouvindo do que vendo

o programa noturno.
— Não preciso perguntar o que a trouxe aqui, não é
mesmo? — questionou ele.
— Você não está preocupado? — tornou ela, contendo
a irritação.
— Não. Já sei o que devemos fazer.
— E o que é?
332


— Contar-lhe a verdade, é claro.
— Ah, sim, é claro. Tão fácil, não é? Já pensou na reação
dele? Já lhe passou pela cabeça que Marcos Wellington
pode se voltar contra nós e ir embora? Nada disso lhe importa,
não é mesmo? E por que importaria? Você nunca ligou a
mínima para ele.
— Pense bem, Clementina. Se alguém está à procura
dele, só pode ser o pai verdadeiro, que deve ser uma pessoa
rica. Do contrário, não teria dinheiro para colocar um detetive
no rastro dele.
— E daí?
— E daí que isso pode nos ajudar. Estamos precisando
de dinheiro.
— Não acredito! Não acredito que você esteja pensando
em dinheiro numa hora dessas.
— Eu estou doente, você não percebeu? Preciso operar
a catarata, se quiser voltar a enxergar. E a fila no sus é
gigante. Agora, com grana, eu poderia fazer logo a cirurgia,
e com um médico particular.
— Isso é um disparate! Eu aqui, com medo que meu
filho se volte contra mim, e você preocupado com dinheiro.
— Foi o que eu disse a Romualdo — interrompeu Leontina.
— Também não acho certo entregar o menino por dinheiro.
— Não é por dinheiro — rebateu Romualdo. — É pela
minha saúde.
— E se Marcos Wellington não aceitar?
— Como não vai aceitar? Ele foi encontrado na lata de
lixo, e fomos nós que cuidamos dele. Quem não ficaria grato
numa situação dessas?
— A mãe dele morreu atropelada e não lhe dissemos
nada — objetou Clementina. — Mentimos a ele por
mais de vinte anos.
— Marcos é um rapaz religioso — lembrou ele. — Vai
saber entender e perdoar.
333


Clementina fitou Romualdo com incredulidade. Depois,
virou-se para a irmã e indagou:

— E você, Leontina, o que acha?
— Concordo que devemos contar a ele — anunciou
com cautela. — Não por causa do dinheiro, mas porque o
pastor foi muito claro em seu ultimato: se nós não contarmos,
ele mesmo o fará.
— Não sei o que fazer — confessou Clementina, andando
de um lado a outro da sala.
— Nosso tempo é curto — esclareceu Leontina. — O
pastor nos deu dois dias, e um já se foi. Só temos até amanhã
para resolver.
— Não. Peça-lhe um tempo maior. Diga-lhe que estamos
tomando coragem, buscando a melhor maneira de
contar isso a Marcos Wellington.
— As duas estão se esquecendo do tal detetive —
anunciou Romualdo. — Ou vocês acham que ele vai ficar
esperando a decisão do pastor? Não demora muito e vai estar
batendo à sua porta, Clementina.

— E agora? — apavorou-se ela. — O que é que eu
faço, o quê...?
Diante do choro descontrolado da irmã, Leontina abraçou-
a com ternura. Alisou os seus cabelos e retrucou com
esperança na voz:

— A solução há de surgir. Vamos rezar.
— Não é Deus que vai resolver isso para mim — contestou
Clementina com raiva, mirando Romualdo pelo canto
do olho. — Eu mesma terei que salvar o meu filho.
— Vocês estão fazendo tempestade num copo de
água — censurou Romualdo. — A questão é simples: chamamos
o menino aqui e contamos tudo. Daí ele encontra o
detetive e pronto, vai conhecer a família dele.
— Nós nem sabemos se é isso mesmo — protestou
Clementina. — E se for algum bandido atrás dele?
334


— Marcos Wellington nunca fez nada de errado! —
discordou Leontina. — Sempre demonstrou temor a Deus.

— Não aguento mais ver vocês duas discutindo por
uma coisa tão simples — objetou Romualdo.
— Simples para você, que não liga a mínima para ele
— acusou Clementina.
— Está enganada. Não sou o monstro que você pensa.
Mas um pouco de dinheiro, nesse momento, não faria
mal algum. E tem o pastor. Quem é que vai impedi-lo de
contar a verdade ao Marcos?
— Os olhos de Clementina estavam secos novamente.
Raciocinando com mais clareza, retrucou:
— Muito bem, Leontina, o pastor venceu essa batalha.
Não posso impedi-lo de contar. Peça-lhe apenas mais um
ou dois dias.
— Não creio que ele nos vá conceder esse tempo. E
depois, como Romualdo disse, tem a questão do detetive.
Ele deve estar bem perto de nós.
— Vou falar com ele primeiro. É isso. Vou procurar
esse detetive e conversar com ele.
— Mas nós nem sabemos quem ele é! — replicou
Leontina.
— O pastor deve saber. Vamos as duas falar com ele,
pedir-lhe o telefone desse sujeito.
— Posso saber o que você pretende falar com o detetive?
— questionou Romualdo.
— Não é da sua conta.
Ficou acertado que as duas iriam procurar o pastor no
dia seguinte para saber se ele tinha meios de se comunicar
com o tal detetive. Terminada a conversa, Clementina voltou
para casa. Abriu a porta bem devagar, entrando na sala escura
e silenciosa. No sofá, Marcos Wellington ressonava baixinho.
Ela se aproximou do filho, ajoelhou-se ao lado dele,
fitando seu rosto jovem e bonito. Uma lágrima escorreu pelo
canto do olho, o pânico quase a dominou novamente.

335


Se perdesse Marcos Wellington, tinha certeza de que
morreria. Fora difícil quando Romualdo a deixara, mas tinha

o filho para ajudá-la a enfrentar a tristeza. Perdê-lo seria a
única coisa que não poderia suportar.
— Ah! Marcos Wellington, como amo você...
Ainda com os olhos úmidos, Clementina pousou na
face do filho um beijo suave e amoroso. Sentindo o contato
de seus lábios, ele esfregou o lugar em que recebera o
beijo. Virou-se para o lado com um resmungo e continuou a
dormir. Sentada no chão, a mãe alisava de leve os cabelos
encaracolados dele, até que as pálpebras pesaram, a mão
tombou lentamente sobre a cabeça de Marcos, e ela caiu de
lado sobre o sofá, adormecendo ao seu lado.

336


CAPÍTULO


39


Uma pressão nas costelas fez Marcos se remexer no
sofá, tentando desvencilhar-se do fardo que lhe pesava nas
costas. O peso, contudo, continuava comprimindo-lhe o corpo,
até que ele despertou e, voltando o pescoço, viu a mãe
adormecida sobre ele. Esfregou os olhos, bocejou, virou-se
cuidadosamente, para não jogar Clementina no chão.

— Mãe — chamou baixinho. — Mãe, acorde, vamos.
Ela abriu os olhos e deu um salto, assustada, pondo-
se de pé com rapidez.

— Acho que peguei no sono — desculpou-se.
— Você pegou no sono, sim. Mas o que estava fazendo
aí no chão? Quando cheguei, você estava em sua cama.
— Eu... é que... eu acordei, perdi o sono... Vi-o aqui e
quis ficar junto de você.
Ele sorriu e atirou-lhe um beijo, enquanto acrescentava:

— Ah, mãe, só você...
Bocejou novamente, seguindo para o banheiro com
Clementina atrás. Ele fechou a porta; ela parou, pensando
no que deveria fazer. Banho tomado, ele saiu, ela entrou,
ainda pensando no diálogo da noite anterior. Marcos colocou
a chaleira no fogo e foi terminar de se arrumar, deixando
o café por conta de Clementina. Ela preparou tudo,
esquentou o pão na frigideira, ferveu o leite. Quando ele se


sentou para comer, já esquecido do jejum que iniciara na
véspera, ela olhou para ele com ar de tanta ternura, que
Marcos estranhou.

— Está tudo bem? — indagou. — Você está estranha.
— Sabe, Marcos, às vezes fazemos coisas que achamos
ser as corretas, mas depois ficamos em dúvida. — Ele a
encarou com estranheza, e ela prosseguiu: — Nem sempre
o certo é como pensamos.
— Como assim, mãe? O que você fez?
— Nada. Bobagem.
Ele ficou em silêncio tomando o café, já desligado das
palavras da mãe. Provavelmente, nostalgia de uma mente
solitária feito a de Clementina. Marcos pensava na conversa
que tivera com Valdir na véspera, nas acusações que ele lhe
fizera. De onde surgira aquela infâmia? Ou será que o seu
jeito simpático estava sendo mal interpretado pelas moças?
Não, não podia ser. Ele nunca olhara para o decote de ninguém
nem fizera gracejos. Muito menos passara a mão em
mulher alguma, a não ser na namorada.

Terminou o café, deu um beijo na mãe e saiu para a
faculdade. Assim que ele se foi, Clementina tirou a mesa,
lavou a louça e foi se aprontar. Naquele dia, não iria trabalhar.
Telefonou para a patroa do dia, avisando que tinha que
resolver um problema. Quando Leontina chegou, desceram
juntas o morro, em silêncio.

De braços dados, seguiram para a igreja, cuja movimentação
já se iniciara àquela hora. Euzébio recebeu-as
prontamente, fazendo-as sentar-se diante dele.

— Conversei com Clementina a respeito daquele assunto,
pastor — anunciou Leontina.
Euzébio fitou Clementina, que parecia pouco à vontade
no ambiente religioso.

— A senhora nunca mais apareceu na igreja — disse
ele, olhando diretamente para ela. — Perdeu a fé?
338


— Não foi para isso que viemos — retrucou Clementina,
em tom de desculpa. — Não podemos deixar esse assunto
para outro dia?
— Sei por que vieram, só que me preocupo também
com a sua alma. Mas então? O que foi que decidiram?
— Queremos falar com o detetive — adiantou-se
Clementina. — Se ele está procurando Marcos Wellington,
quero saber por quê.
— A senhora conhece a minha opinião a respeito,
não conhece?
— Sim, senhor.
— Não se preocupe, pastor — acrescentou Leontina.
— Queremos esclarecer a verdade, mas de uma forma que
não seja chocante para Marcos Wellington. Não devemos
nos esquecer de que a mãe verdadeira o colocou numa
lata de lixo, e o amor materno que ele conheceu foi o de
Clementina. Conosco, ele ganhou uma família.
— Porque a família de sangue nunca se interessou por
ele — considerou Clementina. — E só agora, vinte anos depois,
resolveu procurá-lo. Gostaria de saber por quê.
— Talvez não seja a família — arriscou Euzébio.
— Pode ser que o motivo seja outro.
— Não vejo que outro motivo poderia ser. Marcos
Wellington é um menino honesto e trabalhador. Nunca se
envolveu com drogas nem bandidos. Não tem caso com nenhuma
mulher casada. Então, por que é que alguém estaria
atrás dele?
— É o que queremos descobrir — prosseguiu Leontina.
— E ficamos imaginando se esse detetive não teria deixado
o telefone com o senhor.
— Na verdade, deixou, sim — ele abriu a gaveta e retirou
o cartãozinho. Copiou as informações numa folha e
passou-a às mãos de Leontina. — Tem o número do celular.
Clementina puxou o papel das mãos de Leontina e fitou

o pastor, que manteve o cartão consigo, para uma eventual
339


necessidade. Sentiu uma certa frustração. Talvez, se ele lhe
entregasse o cartão, ela poderia rasgá-lo e fingir que aquele
detetive nunca existira. Mas não, era bobagem. O homem
era um investigador. Não desistiria até descobrir a verdade.

— Lamento se não ficamos para conversar um pouco
mais — disse ela, a voz denotando raiva e medo. — Mas o
assunto é realmente importante.
— Compreendo perfeitamente — concordou Euzébio.
— Vão e conversem com o detetive. Depois, não se esqueçam
de me relatar o ocorrido.
Clementina sentiu vontade de gritar com ele, de mandá-
lo se meter com a própria vida, mas não teve coragem.
No fundo, sabia que o pastor, durante todos aqueles anos,
soubera manter segredo, mesmo quando ela se voltara contra
a igreja.

— Ore por nós, pastor — suplicou Leontina. — Vamos
precisar.
— Vocês sabem que estarei fazendo isso. Vão em paz.
Por pouco Afrânio não cruzou com Clementina e
Leontina. Quando chegou ao pé do morro do Salgueiro, elas
haviam acabado de passar. Descobriu um boteco bem na
subida, de onde poderia espreitar os moradores. Mas como
àquela hora o bar ainda estava fechado, permaneceu observando
os transeuntes que passavam a caminho do trabalho.
Marcos passou por ele sem nem lhe notar a presença, mas

o detetive permanecia atento a todos os jovens mais ou menos
da idade com que hoje estaria o filho de Margarete.
A seu lado, o espírito dela exultava. Quando Marcos
passou, ela soprou ao ouvido de Afrânio:

— É esse. Meu filho é esse aí.
Afrânio apenas olhou para o rapaz, sem conseguir registrar
a mensagem de Margarete. Viu-o como vira tantos

340


outros, avaliando as possibilidades. Eram muitos os jovens
naquela idade, o que tornava quase impossível uma suposição.
Se arriscasse um palpite, estaria usando a adivinhação.

Estava assim ocupado quando o celular tocou. Atendeu,
ainda de olho na ladeira de acesso ao morro, dando-se um
tempo apenas para verificar o número, que não conhecia.

— Alô?
— É o senhor Afrânio?
— É, sim.
— É o senhor que está procurando o rapaz desaparecido?
— Isso mesmo — empertigou-se. — Quem fala?
Seguiu-se um breve silêncio de hesitação, ao qual Afrânio
já estava acostumado, até que a voz prosseguiu com cautela:

— Tenho algo a lhe dizer.
— Onde podemos nos encontrar?
— O senhor conhece a Praça Saens Pena?
— Conheço.
— Estaremos esperando o senhor lá, minha irmã e eu.
— Como poderei reconhecê-las?
— Estaremos sentadas num banco, perto do chafariz,
com uma folha de papel na mão.
— Ótimo. Já estou a caminho.
Clementina desligou o telefone e olhou para Leontina,
que a fitava assustada. Com o papel bem visível nas mãos,
puseram-se a esperar. Não demorou muito tempo para Afrânio
descer a rua e alcançar a praça. Caminhando devagar, logo
viu duas senhoras sentadas num banco, sendo que uma delas
rodava um papel lentamente entre os dedos. Aproximou-se.

— Sou Afrânio Cerqueira, detetive particular — apresentou-
se, parado em frente delas. — Posso me sentar?
Elas se encolheram a um canto, deixando o outro livre
para Afrânio, que se sentou e cruzou as pernas. Durante uns
poucos segundos nervosos, o silêncio se estabeleceu, até que
Clementina, com voz que denotava aflição e medo, disparou:

— Por que o senhor está atrás de Marcos Wellington?
341


— É esse o nome dele? Marcos Wellington?
— É o nome do meu filho, sim. O que o senhor quer
com ele?
— Não sei se é ele quem busco. Procuro um rapaz
que hoje deve estar com vinte e dois anos, cuja mãe se chamava
Margarete Cândida da Fonseca e que morreu atropelada
naquela rua ali, logo após ter dado sumiço na criança.
As duas abriram a boca, espantadas, enquanto ele
lhes exibia uma cópia que fizera de uma das fotografias registradas
no IML.

— Esta aqui.
A palidez cadavérica de Margarete as assustou, inclusive
ao próprio espírito, que escondeu o rosto no peito
de Félix, mas logo se recuperou. Quem pegou a cópia foi
Leontina, única a ver o rosto de Margarete antes de ela ter
sido atropelada.

— A senhora a reconhece?
Como Clementina nunca havia visto a moça, não disse
nada, limitando-se a olhar para Leontina com uma expectativa
muda. Esta permaneceu alguns minutos olhando o retrato
sem vida de Margarete, puxando pela memória para ver
se a reconhecia.

— Não sei... — disse ao final de alguns minutos. — Foi
há tanto tempo...
Leontina podia não ter reconhecido Margarete, mas
lembrava-se do acontecido, com certeza. Afrânio sentiu a
proximidade da verdade.

— Tudo bem que a senhora não a reconheça — ponderou
ele. — Mas se lembra do que aconteceu, não se lembra?
Ela olhou para Clementina com lágrimas nos olhos.
Antes que pudesse dizer alguma coisa, a irmã se adiantou:

— Muito bem, seu Afrânio, sabemos que o senhor
procura o filho dessa moça. Talvez minha irmã se lembre
de algo, mas não lhe diremos nada até sabermos o que o
senhor deseja com ele.
342


Não era hora de omitir informações, porque Afrânio tinha
certeza de que aquelas duas conheciam o paradeiro do
menino. Fixando Clementina nos olhos, ele disse com calma
e clareza:

— Os avós paternos dele me contrataram para
encontrá-lo.
— Avós paternos? — indignou-se Clementina. —
Por quê, depois de tanto tempo? Por que não o procuraram
quando ele sumiu?

— Não tenho essas respostas, dona... As senhoras
ainda não me disseram seus nomes.
— Sou Clementina, e esta é minha irmã Leontina.
— Muito bem, dona Clementina, não posso lhe dizer
por que esperaram tanto tempo para buscar o menino. Só o
que sei é que pretendem encontrá-lo.
— Isso não está certo! — exasperou-se Clementina.
— Depois de tantos anos, não é justo querer atrapalhar a
vida dele.
— Tenho certeza de que não é intenção deles atrapalhar
a vida do rapaz. Ao contrário, querem lhe dar uma vida
melhor, como único descendente de uma importante e rica
família do ramo de transportes coletivos. Isso, se ele for realmente
o seu neto.
As duas estavam abismadas, e Clementina retrucou
com azedume:

— Querem comprá-lo com dinheiro... É isso?
— Querem lhe dar o que é dele por direito. Por que
não me contam o que sabem?
— Não sabemos nada! — irritou-se Clementina, levantando-
se do banco de um salto. — Estamos aqui perdendo
nosso tempo. Vamos embora, Leontina. Marcos Wellington
nada tem a ver com esse sujeito e a tal família rica.
Leontina, contudo, não se moveu. Permaneceu com
a foto nas mãos, rememorando o dia em que encontraram

343


Marcos na lixeira. Sem levantar os olhos, ela apontou para o
rosto cadavérico de Margarete e começou a contar:

— Não me lembro exatamente das feições da mulher,
mas o que aconteceu... nunca vou me esquecer. Nós estávamos
voltando da igreja...
— Fique quieta, Leontina! — berrou a irmã. — Vamos
embora!
Sem dizer nada, Afrânio permaneceu à espera de que
elas solucionassem o conflito de consciências que ele conhecia
tão bem. Somente se elas realmente fossem embora
é que tentaria impedir.

— Nós não podemos — objetou Leontina. — Tem o
pastor... Já se esqueceu do que ele nos disse?
As ameaças do pastor pipocaram na mente apavorada
de Clementina, que sentiu um tremor percorrer-lhe a espinha,
tornando a sentar-se ao lado da irmã.

— O pastor... — repetiu.
— Não temos mais como esconder a verdade. Foi o
que ele nos disse: não devemos mentir uns aos outros —
Leontina abaixou a fotografia e encarou Afrânio: — Durante
todos esses anos, permanecemos em silêncio, omitimos a
verdade porque nunca ninguém nos perguntou nada. Agora,
contudo, não podemos mais esconder o que sabemos, porque
Deus não aceita mentiras.
Clementina começou a chorar, dando a Afrânio a certeza
de que estava no caminho certo.

— Tenha calma, minha senhora — falou ele gentilmente.
— Não estou aqui para destruir as suas vidas, mas
apenas para dar ao rapaz a chance de conhecer sua família.
Seja qual for a relação que têm com ele, não é intenção de
meus clientes destruí-la.
— Marcos Wellington é um bom menino — comentou
Leontina. — Jamais nos trocaria por dinheiro. Muito bem,
moço. Vou lhe contar o que sei.
344


Em minúcias, Leontina narrou a Afrânio tudo o que
acontecera, desde o momento em que viram Marcos atirado
na lata de lixo até o atropelamento da mãe dele, que o buscava
de lixeira em lixeira. A cada palavra, parava para respirar
e enxugar as lágrimas, enquanto Clementina permanecia
em silêncio, revelando sua presença apenas pelos soluços
que deixava escapar.

— Agora o senhor já sabe — finalizou ela, os olhos inchados
e vermelhos. — Sabe que minha irmã o criou como
seu próprio filho, e eu o amei como o filho que nunca tive.
Tem ideia do que ele representa para nós?
— Tenho certeza de que o criaram muito bem, assim
como ele deve amá-las e reconhecer tudo o que fizeram por
ele — declarou Afrânio. — As senhoras foram de muita coragem
e precisam continuar sendo corajosas. As pessoas
que me contrataram querem conhecê-lo e lhe dar uma vida
melhor. Não querem que ele progrida?
— Meu filho estuda Direito na UERJ — anunciou
Clementina, cheia de orgulho. — E é trabalhador também.
— Sem contar que foi criado na igreja, comigo —
acrescentou Leontina. — É um bom cristão, honesto, temente
a Deus.
— Não duvido de nada disso, e os avós saberão reconhecer
o seu valor, assim como ele, acima de tudo.
— Não queremos o dinheiro deles — objetou Clementina,
com raiva. — Só o que queremos é a felicidade de Marcos
Wellington.
— Pois, então, não têm nada a temer. Asseguro-lhes
que os avós são pessoas de bem e querem o melhor para ele.
— Mas, e se Marcos Wellington não for quem procuram?
— arriscou Clementina.
— Tudo leva a crer que é.
— Mas pode não ser. E se essa mulher, essa tal
Margarete, for alguém com uma história parecida? Não tem
345


nada que nos comprove que Marcos Wellington é realmente
essa criança que sumiu.

— Podemos fazer um exame de DNA — sugeriu
o investigador.
— Mas como? — opôs-se Leontina, que não via com
bom olhos os testes de genética.
— Basta a senhora me conseguir um fio de cabelo
dele, com raiz. Sei que pode fazer isso, não pode? —
Clementina assentiu atônita. — Pois isso vai bastar. Levarei
o cabelo aos meus clientes, que o encaminharão para o teste.
Se der positivo, providenciaremos o encontro, de uma
forma que não seja sofrida para ninguém. Se não for ele, irei
embora, e as senhoras não terão mais com o que se preocupar.
Então? O que me dizem?
— Não sei se é uma boa ideia — objetou Clementina.
— Será que funciona? — duvidou Leontina. — Não
será um pecado contra Deus?
— Tenho certeza de que não. Deus há de querer o melhor
para todos.
— Não quero participar disso — falou Clementina, de
má vontade.
— Não é o momento de criar embaraços — censurou
Leontina. — Vamos acabar logo com essa agonia.
— Muito bem, então — tornou a irmã com ar desafiador.
— Faça esse teste. Só lhe peço uma coisa: se der positivo,
quero ser eu a contar a verdade a Marcos Wellington.
— Nada mais justo — concordou Afrânio.
— Venha conosco até a subida do morro. Darei um pulo
até em casa e apanharei uns fios de cabelo da escova dele.
Foi exatamente isso que Clementina fez, lutando consigo
mesma para não entregar a Afrânio os cabelos de outra
pessoa. Seria muito fácil pedir a qualquer um que lhe
desse um fio ou dois, mas ela sabia que não adiantaria. O
detetive era esperto, não se deixaria enganar. Agora então
que as conhecia, podia até descobrir onde moravam e falar

346


pessoalmente com Marcos Wellington, o que despertaria a
sua revolta por não ter sido informado de tudo por ela, que
era sua mãe.

Ela correu até sua casa e tirou um punhado de fios da
escova de Marcos, embrulhando-os num pedaço de papel
de pão. De volta à rua, depositou, hesitante, o pequeno embrulho
nas mãos de Afrânio.

— Não se preocupem com nada — assegurou ele.
— Acreditem que o melhor há de acontecer.
Trocaram os números dos celulares, para um futuro
contato. Estranhamente, as duas sentiram que podiam
confiar naquele homem. Não sabiam que Félix lhes transmitia
energias de confiança e calma, no entanto, sentiam
os eflúvios benéficos penetrando cada pedacinho de seus
corpos. Assim revitalizadas, acreditaram no melhor, e as
lágrimas que antes tinham sido sofridas, transformaram-se
em gotas de esperança num futuro incerto, porém melhor
para todos eles.


CAPÍTULO


40


Nem de longe Marcos desconfiava do que se passava
tão próximo a ele. A mãe e a tia cuidaram para nada deixar
transparecer, enquanto aguardavam, ansiosas, o resultado
do exame de DNA. Ele havia notado uma certa alteração no
comportamento das duas, mas nada que indicasse a reviravolta
que estava por surgir em sua vida.

Para aproveitar a noite de sexta-feira, Raquel combinou
um cinema com Marcos e os amigos da faculdade.
Estavam passando uma mostra especial de cinema francês
numa sala em Botafogo, com sessão à meia-noite. O encontro
foi marcado no restaurante do shopping às nove horas.
Teriam tempo de jantar e, encerrado o expediente, partiriam
juntos para o cinema.

De tão animados, traçavam planos sem se aperceber
dos colegas em volta. Era hora do intervalo, e os quatro conversavam
sem notar a presença de Antônio, que ocupava uma
mesa próxima àquela a que eles haviam se sentado. Ouvindo
toda a conversa, sorriu sarcástico. Levantou-se discretamente
para telefonar para Nelson, que não havia ido à aula.

— Tem que ser hoje — falou Antônio bem baixinho. —
Raquel vai estar com os outros no restaurante, às nove horas.
Imediatamente após falar com Antônio, Nelson ligou
para Elói, que ainda não havia voltado da faculdade. Teve


que esperar até que ele retornasse a ligação, quando então
lhe contou o que ouvira do amigo.
— Encontre-me naquele lugar, daqui a meia hora —
Elói quase ordenou.

Meia hora depois, Nelson estacionava o carro próximo
a um bar do outro lado da cidade. Assim que entrou, Elói
acenou para ele. Não muito tempo depois, uma moça apareceu.
Era uma menina de seus vinte e poucos anos, pele
morena jambo, cabelos enrolados, bonita e bem-vestida.
Elói se levantou e deu-lhe dois beijinhos no rosto, puxando a
cadeira para ela se sentar.

— Nelson, essa é Paloma, a garota de quem lhe falei
— comunicou Elói. — É ela quem vai dar o golpe final.
Nelson se levantou e beijou-a também, encantado com
sua beleza.

— Muito prazer.
— Ela não é linda? — provocou Elói.
— Muito.
— Sabia que ia aprovar. Escolhi Paloma para que
ninguém viesse com alguma insinuação preconceituosa.
Uma linda mulata feito ela não teria motivos racistas para
acusar Marcos.
Rapidamente, Elói relatou o seu plano, que era bem simples
e só ia depender da capacidade de atuação de Paloma.

— Não se preocupe com nada — afirmou ela. — Sei
que me sairei bem.
— Suas amigas não me decepcionaram — comentou
Elói.
— Também não irei decepcioná-lo.
— Ótimo. Receberá seu pagamento depois, se tudo
correr bem.
O dia transcorreu normalmente e, à hora marcada,
Raquel chegou ao restaurante em companhia de Arnaldo,
Paulo e mais duas outras garotas. Cumprimentou o namorado
com discrição, sentaram-se a uma mesa e fizeram os

349


pedidos. Ninguém notou quando Paloma entrou no restaurante,
carregada de sacolas, usando uma blusa apertada,
com um decote que deixava à mostra grande parte dos seios.
Sentou-se bem próximo à mesa de Raquel e fez o pedido.

Nenhuma anormalidade havia transcorrido, e, tirando
Valdir, ninguém prestava atenção ao trabalho de Marcos.
O chefe, contudo, viu quando a moça chegou, e pensou
ter notado um interesse especial de Marcos em atendê-la,
quando, em verdade, Marcos evitava até olhar para ela, com
medo da reação de Valdir.

Por mais que Paloma tentasse chamar a atenção dele,
Marcos não olhava para ela. Passou ao largo de sua mesa,
deixando-a furiosa quando outro garçom lhe estendeu o
cardápio, que ela pegou com um sorriso forçado. Pelo canto
do olho, prestou atenção em Valdir, que, por sua vez, não
desgrudava os olhos de Marcos.

Paloma foi enrolando, até o garçom se afastar para
atender outra mesa. Fingindo ler o cardápio, esperou até
que Marcos passasse por perto para chamá-lo. Marcos estacou,
com medo, e olhou para Valdir, que o encarava com
ar de reprovação.

— Um momento, vou chamar o garçom da sua mesa
— avisou ele.
— Por quê? — revidou Paloma, fingindo aborrecimento.
— Você já não está aqui? Não pode me servir?
Sem saber o que fazer, temendo desagradar a cliente,
Marcos sacou o caderninho e aproximou-se.

— Pois não? — falou educadamente, mantendo distância
segura da moça.
— Traga-me um guaraná, por favor. E um filé de frango
grelhado com salada de legumes.
Marcos tomou nota e afastou-se, sem perceber que
ela, pelas suas costas, franziu as sobrancelhas e balançou a
cabeça, aparentemente contrariada. Ele ia pedir a outro garçom
que a servisse, mas os outros rapazes que trabalhavam

350


com ele estavam muito ocupados nas mesas que lhes cabiam,
já que Paloma havia se sentado numa área que, normalmente,
era só dele.

Sob o olhar severo de Valdir, Marcos levou-lhe o guaraná.
Mas, inesperadamente, quando se abaixou para abrir
a garrafa, ela se debruçou para a frente, de forma que seus
seios roçaram levemente a mão dele. Paloma puxou o decote
para cima num gesto brusco e olhou para Marcos de
cara feia. Mais do que constrangido, ele ficou apreensivo,
parando com a mão acima da garrafa, como quem havia
sido surpreendido em algum ato criminoso.

Marcos fitou-a confuso, sem dizer nada. De tão aparvalhado,
afastou-se quase correndo, torcendo para que Valdir
não estivesse olhando. De soslaio, olhou para ele, deparando-
se com seu ar severo de censura. Raquel, que seguia

o namorado com olhares de paixão, também notou o que
Paloma fez e lançou a Marcos uma interrogação silenciosa,
que ele captou, mas não pôde responder.
Decidido a não se aproximar mais daquela mesa, finalmente
conseguiu que outro garçom a servisse. Em seu
lugar, Paloma cravou os olhos no prato de comida e não
os levantou mais, fingindo aborrecimento enquanto comia.
Quando Marcos era obrigado a passar junto a sua mesa,
ela se encolhia toda, sempre protegendo o decote com uma
das mãos. Aquilo irritou Marcos, que não fizera nada e não
compreendia por que todas as mulheres, de uma hora para
outra, deram para cismar que ele as estava paquerando.
Sua preocupação era com Raquel, que mal conseguia ocultar
o ar de aborrecimento.

Marcos deu graças a Deus quando Paloma pagou a
conta e se levantou. Todavia, em vez de se dirigir para a saída,
ela foi na direção de Valdir. De onde estava, Marcos não ouvia

o que dizia, mas sabia que falavam dele, e Raquel também.
Fingindo embaraço e vergonha, Paloma se queixava:
351


— Não ia dizer nada, mas foi muito atrevimento do seu
garçom. Além de quase mergulhar dentro do meu decote,
teve a audácia de esfregar os dedos em mim! Minha vontade
foi levantar e ir embora na mesma hora, mas fiquei com
vergonha. Todo mundo deve ter notado o que ele fez.
— Perdão, senhorita — desculpou-se Valdir. — Isso
não vai mais acontecer, eu garanto. Olhe, nem precisa pagar.
Vou devolver o seu dinheiro...
— Não quero o dinheiro de volta. Só o que quero é ser
respeitada. Eu bem devia ter dado ouvidos à Claudinha. Ela
esteve aqui outro dia e falou a mesma coisa.
Paloma ia enrolando, até surgir o momento oportuno.
Num momento em que Marcos conversava com Raquel, deu
as costas rapidamente a Valdir. Acercou-se da mesa, e como
todos a olharam surpresos, Marcos se virou abruptamente.

— Seu safado — disse ela com raiva e, dirigindo-se a
Raquel, arrematou: — Cuidado, menina, para ele não passar
a mão nos seus seios também.
Marcos estacou mortificado. Nem conseguiu responder,
tamanha a surpresa e a indignação. Paloma rodou nos
calcanhares, caminhando depressa, deixando todos de
boca aberta, sem saber o que dizer. Um clima de mal-estar
se estabeleceu entre eles. Raquel não sabia o que fazer, relutando
em acreditar no que acabara de ver e ouvir.

— Marcos! — a voz tonitruante de Valdir quase fez
estremecer o chão. — Venha até aqui!
O rapaz meteu o bloquinho no bolso do avental e foi
até o patrão, que o conduziu aos fundos do restaurante.

— Pode apanhar suas coisas e ir embora — anunciou.
— Está despedido. E por justa causa!
— Mas, seu Valdir, eu não fiz nada. Isso é uma injustiça.
— Olhe, Marcos, não é a primeira que vem fazer queixa
de você. O que é que há? Sua religião não deixa você ter
mulher e, por isso, passa a mão nas moças na surdina? O
352


que você pensou? Que eu não ia descobrir? Que nenhuma
delas ia me contar?

— Não foi nada disso. O senhor não está entendendo.
Eu não passei a mão nela. Nem nela, nem em ninguém. Foi
ela que roçou os seios na minha mão.
— Ah! Essa não, Marcos, invente outra. Quer me dizer
por que uma moça linda feito ela iria fazer uma coisa dessas?
Com certeza, pode ter o homem que desejar. Por que
faria isso com você?
— Sei lá. Deve ser louca, não sei.
— E as outras? São todas loucas? Ou elas estão fazendo
um complô contra você?
Foi nessa hora que ele compreendeu. Havia, realmente,
um complô contra ele, muito provavelmente armado por
Nelson. Só podia ser isso. Ele estava tentando destruí-lo. Até o
episódio no Pão de Açúcar devia ser obra sua, pois era muita
coincidência um amigo ter visto o ocorrido e lhe contado tudo.

— Seu Valdir, sei que é difícil acreditar, mas tenho certeza
de que alguém está tramando isso contra mim.
— É? Quem? E por quê?
— Porque eu namoro aquela moça que está na outra
mesa com os amigos, e o ex-namorado não se conforma. Só
porque é rico, e eu sou pobre e mulato, quer acabar com o
nosso namoro.
Valdir fitou-o em dúvida. Realmente, aquela história
havia começado de um tempo para cá. Mas aquele tipo de
publicidade era péssimo para os negócios. Se as moças espalhassem
a história de que havia um garçom tarado trabalhando
lá, os clientes desapareceriam, e como é que ele
faria para sobreviver?

— Ouça, Marcos, você sempre foi um bom rapaz, mas
não posso mais continuar com você. Verdade ou não, essa
história pode acabar com o meu negócio. Você me desculpe,
mas sou obrigado a despedi-lo. O máximo que posso
fazer é não lhe dar a justa causa. Mas, aqui, você não pode
353


mais ficar. Volte na segunda-feira para irmos ao sindicato e
você receber sua indenização.

— Por favor, seu Valdir, não faça isso. Somos só minha
mãe e eu em casa. Preciso desse emprego. Sem ele, terei
que parar de estudar.
— Lamento, mas tenho que pensar no meu negócio.
Posso dar-lhe uma carta de referência, se você quiser. Mas
é só isso.
Marcos saiu arrasado. Tirou o uniforme e o avental, dobrou-
os cuidadosamente, lutando para não chorar. Raquel e
os amigos mal conseguiam conter a ansiedade. Quando ele
chegou, a namorada indagou, aflita:

— O que foi que houve, Marcos? Por que mudou
de roupa?
— Fui despedido — respondeu amargamente. — Nelson
armou contra mim e conseguiu me fazer perder o emprego.
— Nelson? — surpreendeu-se Raquel. — Do que é
que você está falando?
— Tenho certeza de que foi o Nelson que armou tudo
isso para nos separar. Já desmoralizou minha mãe e me fez
perder o emprego. O que mais irá aprontar?
— Espere um instante, não estou entendendo. O que
você quer dizer com isso?
— Vamos embora — pediu ele, quase suplicando.
Arnaldo e Paulo pagaram a conta e se despediram.
Não havia mais clima para cinema, de forma que Marcos e
Raquel se separaram do grupo. Ele estava tão transtornado
que nem percebeu Elói e Nelson escondidos em outro restaurante,
estrategicamente posicionados para não perder
um movimento sequer. Paloma pegou o dinheiro e foi embora,
mas os dois ficaram, para gozar a vitória sobre Marcos.

— Viu o que dá meter-se com gente que não é da
sua laia? — ironizou Elói. — Agora quero ver como é que o
neguinho vai se virar.
— Você acha que ele foi despedido? — sondou Nelson.
354


— Tem alguma dúvida? É só olhar para a cara dele.
— Bem feito!
— Sim, muito bem feito. Agora falta pouco para conseguirmos
separar aqueles dois, e você poderá voltar para a
tonta da minha irmã.
Raquel e Marcos chegaram ao estacionamento sem
trocar uma palavra. Ela segurava a mão dele, sentindo o
pranto contido do namorado. Depois que ela ligou o motor,
ele começou a falar:

— Estou perdido. Como é que vou contar a minha
mãe que perdi o emprego?
— Você arranja outro — consolou Raquel. — É um rapaz
honesto e trabalhador. Não vai faltar quem o contrate.
— Para Nelson aprontar comigo de novo?
— Não me leve a mal, Marcos, mas como você pode
ter certeza de que foi o Nelson que fez isso?
— Quem poderia ter sido então?
— E quem garante que foi armação?
— Várias mulheres vêm me acusando de tê-las molestado.
Você acha que eu fiz isso?
— Não... Mas eu vi você roçar os dedos nos seios daquela
garota.
— Espere aí! Não vá me dizer que acreditou naquela
mentirosa! Está na cara que Nelson a mandou fazer aquilo.
Eu não toquei nela. Foi ela que se debruçou sobre a minha
mão e fez a maior cena. Também, com um decote daqueles!
— Você não passou a mão nela... mas reparou no decote.
— Não sou cego, Raquel. Eu vi o decote, só que não
fiquei olhando. É diferente. Pelo amor de Deus, não acredito
que você esteja desconfiando de mim. Será que já não me
conhece o bastante?
355


Ela estacionou o carro na rua de acesso ao morro e
deu-lhe um beijo nos lábios.

— Tem razão — disse, segurando-lhe o rosto entre as
duas mãos. — Você não é disso.
— Acredita em mim quando digo que foi tudo armação?
— Acredito.
Não havia muita convicção na voz de Raquel, porém
Marcos não percebeu. Nelson até seria capaz de uma baixaria
daquelas, muito embora ela pensasse que ele não se
daria ao trabalho. Não por ela.

— O duro vai ser contar para minha mãe — prosseguiu
ele. — Ela já anda meio estranha ultimamente. Tenho
medo de que volte a beber.
— Será?
— Preciso orar muito antes de lhe contar, para que
Jesus prepare o seu coração para receber a notícia.
— Rezar é bom. Vai ajudá-lo a encontrar a solução.
— É isso mesmo. Quando oro a Jesus, sinto minha
alma se iluminar e sei que ele está comigo. As minhas dúvidas,
é ele que dissipa. Os meus temores, ele os apaga. E o
meu ódio, a minha indignação, a minha revolta perdem força
só de pensar que ele existe e está junto de mim. Orando, sinto-
me fortalecido para pensar, pois o pensamento se distorce
pelas maldades do mundo e os vícios da alma. Quando
oro a Jesus, tudo isso desaparece, é como se um sopro de
renovação de vida me enchesse o espírito de fé e confiança.
Tenho certeza de que, buscando-o, terei a inspiração necessária
para falar.
Raquel emocionou-se com as palavras dele e o abraçou
novamente. Como podia ter pensado, por um minuto
que fosse, que Marcos seria capaz de atitudes indignas?

— Amo você — sussurrou ela.
— Também a amo — confirmou ele. — E mesmo que
Deus esteja me punindo, não me incomodo, pois tenho o
seu amor.
356


— Deus não pune quem ama. Deus não pune ninguém.
Naquele momento, uma luminosidade rósea coloriu o
ambiente, derramando-se em todas as direções, fazendo
com que Marcos e Raquel experimentassem a inabalável
força de todo o seu amor. Despediram-se, e ele subiu o morro,
orando pelo caminho. Passou pelos bares, por rapazes
comprando drogas, por bandidos vigiando o morro com
suas armas. Mas nada disso o incomodava. Tinha Jesus no
coração e seguia confiante com ele.

357


CAPÍTULO


41


Preocupada com o resultado do teste de DNA e as implicações
que traria a sua vida, Clementina recebeu a notícia
do desemprego de Marcos com calma e tranquilidade.
Pensava nos estranhos caminhos da vida, que tirava do filho

o emprego, ao mesmo tempo em que lhe acenava com a
possibilidade de ingressar numa família rica. Será que as
coisas não tinham que ser assim?
— Marcos Wellington, venha cá — chamou a mãe.
— Quero conversar com você.
Ele sentou-se ao lado dela no sofá, admirado com tantos
carinhos.

— Será que preciso dizer o quanto o amo? — continuou
ela, levando a mão dele aos lábios.
— O que é isso, mãe? — tornou ele confuso. — O que
deu em você?
— Quero apenas que você me diga que sabe o quanto
o amo. Você sabe, não sabe?
— É claro que sei.
— E que eu nunca faria nada para machucar ou magoar
você. Sabe disso também, não sabe?
— Sei.
— E, se um dia acontecer alguma coisa e você se
afastar de mim, eu entenderei e continuarei amando você?

— Que bobagem é essa, mãe? Eu estou bem aqui.
Não pretendo ir embora. Quando sair desse morro, levarei
você comigo. E tia Leontina, e agora, meu pai também.
— Será, meu filho? Será que sairei mesmo daqui com
você algum dia?
— Mãe — assustou-se ele —, não me diga que você
está doente. Você não voltou a beber, voltou?
Ela sorriu enigmaticamente e respondeu com mansidão:

— Não. Estou muito bem de saúde.
— Mas, então, por que pensa que não vai sair daqui
comigo? Só se você não quiser.
— Ah! Mas eu quero. Sempre quis.
— Pois, então, você vai. Darei um jeito de arranjar outro
emprego e vou terminar a faculdade. Sei que sou bom aluno,
tiro boas notas. Meu currículo há de valer alguma coisa.
— Disso não tenho dúvidas.
— Vou me casar com Raquel, e você virá morar conosco.
Depois alugarei um apartamento para tia Leontina
viver com meu pai, e seremos felizes. Você vai ver. Vai terminar
os seus dias cuidando dos netinhos.
— É o que mais quero, Marcos Wellington. Mas será
que isso é possível? Será que Deus vai me permitir essa
graça, depois de tê-lo abandonado e me voltado contra Ele?
— Deus perdoa, mãe. Ainda é tempo de você buscar
o seu perdão. Volte para a igreja.
Clementina suspirou longamente e alisou o rosto dele,
tentando esconder as lágrimas que teimaram em cair. Sem
entender, Marcos a estreitou contra o peito, beijando-lhe a
cabeça, e ela tornou num pranto contido:

— Ah! Marcos Wellington...
Ficaram assim abraçados por um bom tempo, até que
as lágrimas secaram, e Marcos mudou de assunto. Como
não compreendia o que se passava, preferiu não falar mais
sobre coisas tristes. No entanto, durante o resto da semana,
a mãe continuou a segui-lo com olhares estranhos,

359


carregados de um enigma indizível, provocador. O que estaria
acontecendo?

Dias depois, Marcos deixou Clementina caminhando
de um lado a outro em casa, o ar preocupado de quem estava
prestes a perder tudo o que havia de bom em sua vida.
Perguntou-lhe o que estava acontecendo, mas ela insistia
que não havia nada.

— Tem certeza de que vai ficar bem, mãe? — indagou
ele, temendo deixá-la sozinha.
— Tenho. Não perca sua aula por mim. Não tenho nada.
Marcos suspirou longamente, deu-lhe um beijo amoroso
na testa e saiu desanimado. Passara o fim de semana
procurando emprego, mas não conseguira nada. Havia alguns
restaurantes e casas noturnas precisando de garçom,
porém, os horários não lhe favoreciam. Precisaria trabalhar até
muito tarde, o que prejudicaria imensamente seus estudos.

Com novo suspiro, desceu do metrô e entrou na faculdade.
Subiu no elevador em silêncio, pensando no que
diria a Raquel. Assim que pisou o hall do seu andar, algumas
moças o viram e cochicharam entre si, mas ele não lhes
deu importância. Não sabia qual era o motivo do comentário
nem pretendia descobrir. À medida que ia atravessando o
corredor, novos olhares se insinuaram, e alguém pigarreou
à sua passagem, abanando a cabeça com ar de reprovação.
Uma mocinha pálida do primeiro ano cutucou a colega e
cochichou às escondidas:

— É esse aí.
As duas olharam para Marcos discretamente, sem saber
que ele ouvira o comentário. Ele entrou na sala furioso,
seguido de novos olhares furtivos. Um casal que conversava
perto da mesa do professor abriu espaço para ele passar, e a
garota encolheu-se toda junto ao rapaz, que a abraçou com
ar protetor. O que estaria acontecendo? Será que a notícia de
que perdera o emprego por causa de uma calúnia se espalhara
com tanta rapidez, provocando o repúdio das pessoas?

360


Talvez o julgassem um pervertido que bolinava mocinhas incautas
no restaurante de um shopping lotado de pessoas.

Quando Raquel chegou, também notou os comentários,
muitos dos quais endereçados a ela. Ao passar pelas
mesmas meninas do primeiro ano, ouviu um cochicho:

— Coitada...
Raquel estacou e se virou para elas.
— Falou comigo? — perguntou com ar de desafio, e a
garota respondeu apressadamente:
— Não, não...
Ela entrou na sala atrasada, sentando-se entre Marcos
e Paulo. Quando deu a hora do intervalo, saíram para a cantina,
seguidos por olhares de medo e reprovação.

— O que é que está acontecendo? — perguntou Raquel.
— Todo mundo está nos olhando como se fôssemos dois ETs.
— Posso imaginar — respondeu Marcos. — Deve ter
algo a ver com o meu suposto desvio sexual.
— Não acredito! Será que a notícia se espalhou tão
depressa? Mas como?
— Não imagina?
— Nelson! — fez ela, mal contendo a indignação.
— Só pode ser. Quem mais saberia do ocorrido?
As evidências eram óbvias, Raquel sentiu a raiva crescer
dentro dela. Como fora capaz de namorar um sujeito
como Nelson?

Por estranho que parecesse, Nelson não foi à faculdade
naquele dia nem no outro, nem pelo resto da semana.
Os comentários e os olhares foram diminuindo, embora não
cessassem completamente. Apesar de intrigado, Marcos tinha
certeza de que aquilo era obra de Nelson.

— Muito estranho isso, cara — comentou Paulo.
— Também acho — concordou Arnaldo. — Mas vou
descobrir o que é.
Antes que Marcos pudesse impedir, Arnaldo e Paulo se
afastaram, caminhando em direção a um grupo de moças

361


que conversavam animadamente. Voltaram em cima da hora
para a próxima aula, acompanhados das meninas. Quando
tocou o sinal da saída, Arnaldo avisou:

— Alguém andou espalhando que você foi despedido
porque é um tarado, molestador de mocinhas.
— Eu sabia! — exasperou-se Marcos.
— Quem foi que espalhou uma infâmia dessas? —
quis saber Raquel.

— Não sei, ninguém sabe como começou. Alguém
contou para alguém, que contou para outro alguém, e por aí
foi. Agora, quem começou, não se sabe.
— Foi o Nelson, tenho certeza.
— Acho que não — tornou Paulo. — Ele tem faltado às
aulas porque está internado no hospital.
— Internado?
— Parece que fez uma cirurgia para retirada do
apêndice.
— Mentira! — gritou Marcos, um tanto quanto descontrolado.
— Essa é mais uma das armações dele.
— Espere um instante, vou verificar.
Raquel sacou o celular da bolsa e ligou para Nelson. Ela
ouviu e olhou para Marcos, passando o aparelho ao seu ouvido.

— Caixa postal... — constatou ele, desanimado.
— Como é que vamos saber? — perguntou Arnaldo.
— Ligue para a casa dele — sugeriu Paulo.
Raquel discou o número, e dessa vez atenderam.
— Alô? Por favor, o Nelson está? — Raquel ouviu cabisbaixa
e desligou com um agradecimento murcho. — Era
a empregada. Nelson está no hospital desde a semana passada.
Foi operado do apêndice.
— Ela está mentindo, aposto — considerou Marcos.
— Quer me explicar por que a empregada mentiria a
alguém que ela nem conhece? — retrucou Raquel. — E eu
nem me identifiquei. Ou você acha que ela vai mentir para
todo mundo que ligar para ele?
362


— Ela conhece a sua voz! Você foi namorada dele.
— Caia na real, Marcos! Não force a barra. Não foi
o Nelson.
— Não é possível. Se não foi ele, foi alguém a mando
dele.
— Não acha que está exagerando? — revidou Raquel,
um pouco irritada. — Você está com mania de perseguição.
Como é que alguém doente vai ter cabeça para imaginar
uma coisa sórdida dessas?
— Acho que, nem se estivesse são, Nelson teria inteligência
suficiente para idealizar qualquer plano — considerou
Paulo. — Ele resolve tudo no braço.
— Pode não ter sido o Nelson — ponderou Arnaldo.
— Mas que tudo isso é estranho, é. De onde surgiram tantas
garotas, de repente, acusando Marcos da mesma coisa?
É coincidência?
— Não acredito em coincidências — observou Raquel.
— Espero que também não acredite que eu fiz o que
elas disseram que fiz.
— Não acredito.
Havia uma certa desconfiança no tom de voz de Raquel
que nem ela queria aceitar. Por mais que não desejasse, as dúvidas
a assaltaram. Afinal, o que ela sabia de Marcos? Começara
a namorá-lo no semestre anterior, não havia nem um ano. Não
conhecia seu passado, nem sua família, nem seus amigos do
morro. Conhecera a mãe, que parecia uma boa pessoa, mas
as aparências enganam. E depois, ele morava na favela...

Raquel balançou a cabeça rapidamente, afugentando
os pensamentos para que eles não enveredassem pela senda
do preconceito. Não era porque morava na favela que
Marcos não prestava. Ela sempre fora a primeira a defender
esse ponto de vista. No entanto, reconhecia que as facilidades
para o crime eram muitas no morro, onde o contato com
traficantes era quase diário. Marcos mesmo lhe dissera que,
na infância, fora solicitado várias vezes para levar drogas. O

363


pai os abandonara e agora retornara. A mãe se tornara alcoólatra,
a tia era fanática. Clementina fora acusada de furtar
uma loja. E agora isso...

De alguma forma, Marcos percebeu as dúvidas dela, porque
a puxou com força e a abraçou com um quase desespero.

— Lembre-se do que Nelson fez a Arnaldo — sussurrou
ao ouvido dela. — Uma pessoa assim é capaz de qualquer
coisa para conseguir o que quer.
Raquel não duvidava. Nelson era capaz de tudo para
alcançar seus objetivos, tudo que dependesse da força.
Explosivo e impetuoso, não fazia o tipo que usa a inteligência
para conseguir o que quer. Com ele, tudo se resolvia nos punhos,
como fizera com Arnaldo. Esse era o estilo de Nelson,
não era de seu feitio arquitetar planos para destruir o inimigo.

Por outro lado, pensar que Marcos fosse alguém capaz
de molestar as freguesas do restaurante em que trabalhava
era algo praticamente inadmissível. Ele era um rapaz dócil e
religioso, não um pervertido sexual. Era virgem até conhecê-
la. Então, como acreditar que ele mexia com as moças de
forma tão vulgar e revoltante?

Tudo isso eram ponderações importantes, mas o mais
importante de tudo era que Raquel, realmente, não o conhecia.

Assim que desligou o telefone, a criada olhou para
Nelson, que a fitava com seriedade.

— Tem certeza de que era ela? — indagou ele
com arrogância.
— Absoluta. Conheço a voz da Raquel, de tanto que
ela ligava para cá quando vocês namoravam. Agora posso
saber por que me fez inventar essa mentira?
— É uma brincadeira, só isso. Quero saber o quanto
ela se importa comigo.
364


— Deu sorte de ela não ter perguntado em que hospital
você está.
— Nesse caso, era só dizer que não sabe.
— É. Quero ver se ela procurar o seu pai.
— Ela não vai fazer isso.
É claro que não faria. Estava namorando aquele idiota,
que não permitiria que ela fosse ao hospital visitá-lo. E depois,
era difícil encontrar o seu pai, um homem muito ocupado
que não parava em casa.

Elói fora esperto ao prever que Raquel desconfiaria de
seu envolvimento naquelas calúnias. Fora muita sorte ter ficado
resfriado e faltado à faculdade naqueles dias. Isso serviu
para dar maior credibilidade ao acontecido.

Ele ligou para Elói, que atendeu rapidamente.

— Fale logo. Estou na faculdade.
— Você tinha razão. Raquel acabou de ligar para cá,
perguntando por mim.
— E você atendeu?
— É claro que não. Marilda disse que eu estava no
hospital, e ela acreditou.
— Que idiota a minha irmãzinha! Aposto que está com
a pulga atrás da orelha.
— E quem não estaria?
— Amanhã vai ser o golpe fatal. Já está tudo combinado
com Anete.
— Ótimo. Mal posso esperar.
Desligaram. Nelson ria de contentamento. Elói era inteligente,
bem mais do que ele, que terminaria com o namoro
daqueles dois simplesmente dando uns murros em Marcos.
Agora, porém, via uma perspectiva de reconciliação. Quando
Raquel estivesse arrasada ao descobrir as mentiras de
Marcos, quem, senão ele, estaria a seu lado para consolá-la?

365


CAPÍTULO


42


De posse do resultado do teste de DNA, Afrânio tocou
a campainha da casa dos Silva e Souza. Introduzido pela empregada,
pôs-se a esperar na saleta que servia de escritório a
Graciliano. Em poucos segundos, o casal apareceu. Cumprimentaram-
se cordialmente, e Afrânio sentou-se na poltrona,
tendo os dois defronte a ele, fitando-o com incrível ansiedade.

— E então?—adiantou-se Graciliano. — Saiu o resultado?
Afrânio balançou a cabeça e estendeu-lhe o envelope
branco com o logotipo azul do laboratório. A melhor parte,
para o cliente, era o resultado positivo da investigação, a
dissolução de suas angústias, muitas vezes, só pelo fato de
conhecer a verdade. No caso de Graciliano e Bernadete, a
verdade vinha acompanhada da realização de seus anseios.

Graciliano abriu o envelope com pressa e retirou a folha
que exibia o laudo, dividindo-a com a mulher. Percorreram
os olhos pelo papel, ignorando os termos técnicos, até encontrarem
o principal: positivo. Marido e mulher se olharam
com euforia, tentando controlar a excitação e o desejo
louco de irem correndo contar tudo ao rapaz.

— O senhor trabalhou muito bem, seu Afrânio — elogiou
Graciliano. — Quando poderemos ver o menino?
— É sobre isso que temos que conversar. Assegurei à
mãe e à tia que o senhor não pretendia separá-los.

— Por certo que não — interrompeu Bernadete. — Tudo
o que aconteceu foi por nossa causa e assumimos nossa culpa.
— Não podemos destruir a vida das pessoas que criaram
bem o nosso neto — afirmou Graciliano. — Ele podia ter
sido um marginal, mas a mãe e a tia conseguiram mantê-lo
no caminho do bem. Só temos a agradecer-lhes.
— Queremos apenas conhecê-lo — suplicou Bernadete.
— E logo.
— Acho que, primeiro, a mãe deve contar a ele a verdade
— sugeriu Afrânio. — Foi um pedido dela. Depois, posso
trazê-lo aqui.
— Sim, acho que essa seria a melhor maneira — concordou
Graciliano. — Não queremos que ele se volte contra
a mulher que o criou.
— Perfeito. Então, se me permitem, gostaria de mostrar
a ela o resultado do exame.
— É claro.
Graciliano devolveu-lhe o envelope, que Afrânio guardou
na pasta.

— Vou procurá-la hoje mesmo e depois entrarei em
contato para marcarmos o encontro.
— Perfeitamente.
Depois que o detetive se foi, Bernadete e Graciliano
se abraçaram, esperançosos. Tinham as fotografias que
Afrânio tirara do rapaz, para as quais olhavam embevecidos.

— Nosso neto é um rapaz muito bonito — elogiou
Bernadete.
— Sim, é. E em breve ocupará o lugar que é seu, por
direito, em nossa família.
Da janela, viram Afrânio entrar em seu carro. Ele também
estava animado, satisfeito com seu trabalho. Ao chegar
perto do morro, parou o carro e telefonou para Clementina,
que já havia saído para trabalhar. O assunto era deveras delicado
para ser tratado ao telefone. Por isso, combinou de

367


encontrá-la no fim do dia, embora Clementina soubesse que
não conseguiria trabalhar direito.

Marcos também já havia saído para a faculdade, atormentado
pelo desemprego e as calúnias inventadas a seu
respeito. Procurou não chegar muito cedo, para não ter que
se submeter a olhares maldosos.

Pouco depois, Arnaldo chegou ao hall dos elevadores.
O horário era de muito movimento, e enquanto aguardava
que uma das portas se abrisse, foi surpreendido com uma
conversa entre duas meninas, paradas um pouco mais atrás.

— Você não sabia?
— Não.
— Deve ser a única. O cara teve o desplante de passar
a mão em mim na frente de todo mundo! Foi uma vergonha,
dentro do restaurante...
— Que coisa! E você não reclamou?
— É lógico! E, quando descobri que ele estuda aqui,
contei para todo mundo, que é para saberem com quem estão
lidando. Aquele tarado... Deve fazer isso com todas as garotas.
Os ouvidos de Arnaldo se aguçaram. Estariam elas
falando de Marcos? Elas desceram, com ele atrás. Sentaram-
se num dos bancos do hall, enquanto ele, fingindo que
lia um livro, sentou-se em outro, próximo. O sinal anunciou

o início das aulas, mas elas permaneceram sentadas. Ele
também não saiu do lugar, disposto a ouvir mais. Aquilo era
proposital e ele nem percebia. As meninas, garotas de programa
contratadas por Elói, esperaram que ele chegasse
para se postar atrás dele e iniciar aquela conversa.
— Como é mesmo o nome dele, hein? — prosseguiu
uma das moças.
— Marcos Wallace, Wellington, sei lá... Alguma coisa
ridícula assim.
Arnaldo entendeu como a fofoca havia começado. Fora
aquela garota que fizera o comentário e não foi preciso muito
para o mexerico se espalhar. Ninguém se preocupou em

368


conferir a história nem em lhe apontar as falhas. Infelizmente,
a maledicência ainda é muito atrativa para o ser humano, que
recrimina seus próprios defeitos apontando-os no outro. E
Arnaldo, pensando que poderia defender o amigo, sem saber,
servia de instrumento aos planos de Elói e Nelson.

Ao ouvir o nome de Marcos, Arnaldo correu para a sala
de aula. Após alguns minutos, as moças se levantaram rindo,
tomando o elevador de volta ao térreo, sumindo pelo
portão da frente. Nunca antes, em toda a sua vida, haviam
pisado numa universidade. O trabalho fora bem pago por
um amigo de Paloma, que lhes mandara encenar aquele
teatro primeiro no restaurante, depois ali.

Como a aula já havia começado, Arnaldo parou na
porta, fazendo sinais para que Marcos saísse. Já que aquele
não era um comportamento usual de Arnaldo, Marcos
logo percebeu que havia alguma coisa errada, assim como
Raquel, que o acompanhou até o corredor.

— O que foi que houve? — perguntou Marcos.
— Descobri quem foi que espalhou aquela história.
— Quem? — ele e Raquel perguntaram ao mesmo tempo.
— Uma menina do primeiro ano.
— Quem é?
— Não sei, não a conheço. Mas a ouvi contando tudo
para uma amiga e escutei quando ela disse o seu nome.
— Ela disse o meu nome? — repetiu ele incrédulo.
— Mas eu não conheço ninguém fora desta sala!
— É, mas parece que ela conhece você. Contou que
você passou a mão nela, chamou-o de tarado.
— Não é possível. Arnaldo, você não acreditou, acreditou?
Arnaldo balançou a cabeça, sem saber o que dizer a
princípio, até que respondeu:

— Não. Mas que é estranho, isso é. Como é que uma
garota que nunca viu você, de repente vai inventar tudo isso?
E as outras?
369


— Isso é uma conspiração. Essas garotas só podem
estar em conluio com Nelson para acabar comigo. Só não
vê quem não quer.
— Lá vem você com essa história — replicou Raquel.
— É difícil acreditar que ele conseguiria convencer tantas
mulheres a mentir.
— Conseguiu — afirmou Marcos, categórico. — Não
sei como, mas foi o que ele fez. Vou procurar essa garota.
Ela vai ter que afirmar tudinho na minha cara. Quero só ver.
Você vai me dizer quem é.
Embora contrariados, Arnaldo e Raquel seguiram
Marcos até a sala do primeiro ano, mas não a encontraram.
Procuraram nas outras salas, no hall, na cantina. Nada.
Arnaldo não as via em lugar nenhum.

— Ela não está aqui, não é mesmo? — afirmou Marcos
em tom de desafio.
— Não sei — respondeu Arnaldo, confuso. — Na verdade,
não deu muito para reparar na cara dela. Pode ter sido
qualquer uma.
— Mas que droga! — esbravejou Marcos, na mesma
hora se arrependendo. — Meu Deus, Arnaldo, essa história
está me tirando do sério e me obrigando a fazer coisas que
normalmente não faria. Nunca fui de praguejar.
— Tenha calma, meu amigo. Você está nervoso, o que
é compreensível.
Em silêncio, Raquel limitava-se a acompanhá-los pelas
salas e corredores, sem saber ao certo o que pensar.
Realmente, tudo aquilo era muito estranho, principalmente
a obstinação de Marcos. Se fosse realmente culpado das
acusações que lhe faziam, estaria tão disposto a confrontar
suas acusadoras? Não seria mais prudente silenciar e deixar
a poeira assentar?

— Não posso ter calma — contestou ele, com raiva.
— Alguém está tentando destruir a minha reputação e parece
que está conseguindo.

Ele olhou para Raquel com ar significativo, e ela apertou
a mão dele. Tinha que lhe dar crédito.

— Estou do seu lado, Marcos — disse por fim. — Não
acredito em nada disso.
— Estão me acusando de coisas terríveis, que eu jamais
seria capaz de fazer. Sou uma pessoa temente a Deus
e nunca cederia à tentação de Satanás. Mas é isso que essas
pessoas estão fazendo.
— Sei disso — tranquilizou Raquel. — Vamos embora.
Não vale a pena ficar alimentando essa fofoca. Deixe para lá,
que ela acaba morrendo.
— Foi por causa dessa fofoca que eu perdi meu emprego.
E sabe-se lá o que mais vou perder.
As palavras foram diretas para Raquel, que o abraçou
com ternura.

— Você não vai me perder — sustentou ela. — Não
por causa de uma fofoca infundada.
— É isso mesmo, Marcos — concordou Arnaldo.
— Ninguém está acreditando.
Por mais que não acreditassem, sempre ficava a
sombra da dúvida. No entanto, não havia como provar sua
inocência, já que Marcos não conseguia se defrontar com
nenhuma de suas acusadoras. Os três retornaram para a
sala, enquanto as moças recebiam de Elói o pagamento que
ele lhes prometera.

— Não se esqueçam — advertiu ele. — Nem uma palavra
a ninguém. Nem ao namorado.
— Pode deixar. E, se precisar de nós para algum outro
serviço, é só nos chamar.
Foram-se rindo, e Elói telefonou ao falso doente. Nelson
recebeu a notícia com a euforia de sempre. Tinha certeza de
que o romance de Raquel e Marcos se aproximava do fim.

Assim que Marcos saiu da faculdade, foi ver alguns
empregos que havia marcado no jornal. Finalmente, conseguiu
um lugar num barzinho em Vila Isabel. O horário

371


era puxado: das quatro da tarde em diante, sem hora para
encerrar. O dono lhe havia informado que, nos dias de semana,
o movimento não costumava passar das onze horas,
prolongando-se pela madrugada às sextas e aos sábados.
Não era o ideal, mas era o que fechava mais cedo em dias
de aula. Começaria no próximo sábado.

Chegou em casa animado, louco para contar a novidade
à mãe, porém, ela ainda não havia retornado do trabalho.
Ligou a televisão para esperar e acabou pegando no
sono. Quando acordou, a noite já ia alta. Assustou-se com a
silhueta de Clementina, sentada na penumbra, em frente dele.

— Mãe! — exclamou. — O que está fazendo aí
no escuro?
— Nada — falou sem expressão, como se em seu peito
não houvesse um vulcão prestes a explodir.
— Consegui um emprego! — adiantou-se ele, acendendo
a luz. — Num bar em Vila Isabel. Vou começar no sábado.
— Que bom!
— Não está feliz?
— Muito.
— Então, por que essa cara de desânimo? Aconteceu
alguma coisa?
Como dizer a ele que o pior havia acontecido? Como
contar-lhe o recente encontro com o detetive que descobrira
toda a verdade e estava a um passo de destruir suas vidas?
Clementina fitou-o com assustadora amargura, alisou o seu
rosto, desatou a chorar.

— Mãe, o que é isso? — questionou ele assustado.
— O que você tem? Diga-me, pelo amor de Deus.
— Ah! Marcos Wellington!
Ela escondeu o rosto no peito dele e deu livre curso ao
pranto, que afogava as palavras em soluços doloridos.

— Você anda muito estranha — prosseguiu ele, tentando
adivinhar o motivo de tanta angústia. — Alguém lhe
fez alguma coisa? Foi o meu pai?
372


Quando ela ergueu os braços para abraçá-lo, o envelope
branco escorregou para o chão. Em seu desespero,
acabara esquecendo-se do laudo que Afrânio lhe entregara.
Pusera-o debaixo do braço e congelara com ele ali, oculto
dos olhos ávidos do filho. Como, porém, a emoção do
momento era muito grande, num ímpeto ela quis abraçá-lo,
liberando o envelope para a descoberta.

— O que é isso? — questionou ele, apanhando-o do
chão e lendo o nome do laboratório. — Mãe, você disse que
não estava doente!
Clementina não conseguiu suportar. Com a certeza do
inevitável, sentiu os olhos escurecerem. Os joelhos procuraram
o chão, amolecendo instantaneamente, levando-a a desabar
com um baque surdo e abafado.


CAPÍTULO

43

Leontina descia o morro com passos lentos e cansados.
Estava envelhecendo, seu corpo já não tinha mais o
vigor de antes. O corpo... Nunca pensara que, depois de
tantos anos, iria satisfazer o desejo pelo qual o corpo ansiava
tão desesperadamente. O corpo de Romualdo...

Mas Romualdo estava doente, e ela se via obrigada
a sair àquela hora para comprar-lhe remédios. Pensava na
subida, na exaustão a que o caminho de volta a levaria. Não
tinha mais idade para subir e descer o morro a todo instante.
Aquilo era coisa para gente moça.

Ao passar pela porta da casa da irmã, as luzes acesas
lhe deram a ideia. Marcos Wellington era jovem, podia
ir à farmácia e voltar muito mais rápido do que ela, sem se
cansar. Afinal de contas, o pai era dele. Mal sabia ela que o
espírito de Félix a acompanhava na descida, fazendo essa
sugestão desde que saíra de casa.

Encontrou a porta trancada e bateu.

— Quem é? — perguntou Marcos lá de dentro.
— Sou eu, querido.
Reconhecendo a voz da tia, Marcos abriu a porta.
Leontina surpreendeu-se ao ver a irmã deitada na cama, desfalecida.
Sobre a mesa, o envelope jazia esquecido. Temeu
pelo pior.


— O que foi que houve? — perguntou ela, desconfiada.
— Minha mãe desmaiou, la borrifar um pouco de
água em seu rosto para ver se ela acorda. Mas foi bom a
senhora ter aparecido. Sabe se minha mãe está doente?
— Doente? — repetiu ela cautelosa. — Por que pergunta?
— Ela deixou cair isto — anunciou ele, apanhando o
envelope. — É de um laboratório.
— É dela? — horrorizou-se Leontina, imaginando do
que se tratava.
Foi então que Marcos olhou a etiqueta colada no envelope,
e qual não foi a sua surpresa ao constatar que o nome
ali grafado não era o de sua mãe, mas o dele próprio.

— É meu! — disse, revelando a surpresa.
Começou a abrir o envelope, mas a tia segurou-lhe a
mão, na tentativa inútil de impedi-lo.

— Por que não deixa isso para depois? — sugeriu ela,
alarmada. — Não seria melhor cuidar primeiro de sua mãe?
A dúvida dissipou-se no mesmo segundo. Olhando da
mãe para o envelope, a curiosidade o levou a abri-lo. Marcos
leu e releu, sem entender bem o que estava acontecendo.
Era um teste de DNA, feito com um fio de seu cabelo, positivo
para a paternidade de Anderson Silva e Souza.

— O que é isso? — questionou, ainda sem compreender.
— O que significa isso? Quem é esse tal de Anderson
Silva e Souza?
Estimulada pelo espírito de Margarete, que nada perdia
daquele momento, Clementina lentamente abriu os olhos.
Aos poucos percebeu a movimentação, dando-se conta da
presença do filho e da irmã. O envelope, preso nas mãos de
Marcos, fora encoberto pela folha branca que trazia o resultado
do exame.

Sentada na cama, Clementina deixou que as familiares
lágrimas invadissem seus olhos. Leontina viu quando ela se
ergueu e endereçou-lhe uma súplica silenciosa, percebida
por Marcos, que se virou para ela bruscamente.

375


— O que é isso, mãe? — repetiu ele, naquele momento
esquecendo-se de que ela havia desmaiado e acabara de
recuperar os sentidos. — Que teste de DNA é esse? E quem
é esse sujeito?
— Tenha calma, Marcos Wellington, em nome de
Jesus — pediu Leontina.
— Como posso ter calma se é o meu nome no exame
de DNA, junto de um tal de Anderson Silva e Souza? O
que isso quer dizer? Que ele é meu pai?
Um ciclone não teria feito mais estragos na cabeça de
Marcos. Com a folha do exame nas mãos, deduziu que a
mãe havia traído o pai e, dessa traição, ele nascera.

— Agora compreendo por que meu pai foi embora
com outra mulher — prosseguiu ele, tomado pela ira. — Ele
descobriu tudo! Não sei como, mas descobriu e não a perdoou.
E você se revoltou contra a igreja porque o pastor
não lhe deu cobertura, não foi? E brigou com tia Leontina
quando ela censurou o que você fez. Como pôde fazer isso,
mãe? Acusou meu pai de traição quando foi você que deu
início ao adultério? Dá para entender agora por que só lhe
restou a embriaguez.
As palavras feriam Clementina tão duramente que
ela nem conseguiu se defender. Desconhecia aquele homem
que a tratava com arrogância e impiedade, substituindo
o menino doce e amável que sempre fora seu filho.
Bombardeado com tantos problemas, Marcos dava vazão
à raiva, misturando a frustração com a recente descoberta
à revolta causada pela difamação. Ele falava sem parar,
acusando-a de coisas que ela jamais fora capaz de fazer.
Desde que se casara com Romualdo, nunca se deitara com
outro homem, nem mesmo depois que ele a abandonara.

Ela simplesmente chorava, incapaz de o contradizer. O
massacre foi tão violento que Leontina não aguentou. Tomou
a dianteira e desferiu uma bofetada no rosto de Marcos, ao
mesmo tempo em que lhe dizia com autoridade:

376


— Jamais desrespeite sua mãe! Não se precipite no
julgamento, porque o diabo espreita à procura da injustiça!
O tapa causou-lhe imenso choque. Marcos levou a
mão ao rosto, sentindo a ardência se espalhar pela face.
Fitou a tia com angústia. Nunca, em toda a sua vida, havia
levado um único tapa, mas também jamais faltara com o
respeito a sua mãe. A ardência da bofetada o trouxe de volta
à razão, fazendo-o sentir imensa vergonha de si mesmo.

— Foi o que li no exame... — desculpou-se. — Está
escrito aqui. Meu pai é um tal de Anderson Silva e Souza.
Não sei quem é...
Leontina não queria ser ela a revelar a verdade. Achava
que aquele papel não lhe cabia. Mas não foi preciso pedir o
auxílio de Clementina. Ela mesma se levantou da cama, aproximou-
se de Marcos e alisou o seu rosto, no local onde uma
vermelhidão cor de vinho se insinuava sob a pele morena.

— Meu menino — falou com doçura. — Você tem razão,
Romualdo não é o seu pai. Assim como eu não sou a
sua mãe.
A revelação causou-lhe um espanto ainda maior.
Marcos agarrou a mão dela, tornando incrédulo:

— Como é que é?
As duas estavam agora lado a lado, e Leontina pediu a
ele que se sentasse.

— Ouça primeiro toda a história — pediu ela. — Só
depois nos julgue.
Ainda sem entender, Marcos se sentou, olhando de
uma para outra, tentando adivinhar o que elas iriam lhe contar.
Clementina, com o longo suspiro que costumava dar em
ocasiões de muito embaraço, levou a mão à cabeça e começou
a narrar:

— Tudo aconteceu quando você era um bebezinho...
Encontrei-o na lata do lixo...
A cada parte da revelação, os olhos de Marcos se
apertavam, as lágrimas desciam sem nenhuma contenção.

377


As palavras eram dolorosas, ao mesmo tempo em que exibiam
a coragem, a determinação e, sobretudo, o amor que
motivara todos os atos daquela mulher. Ao mesmo tempo
em que se afligia, Marcos percebia uma admiração crescente
por sua mãe, que levara uma vida de privações, suportara
a dor e a miséria, vencera a embriaguez, modificara-se por
amor a um filho que não era, genuinamente, dela.

Ao final da longa narrativa, os três choravam abraçados.
Protagonizavam mais um drama da vida, que costuma
consolidar as relações pela cumplicidade. Marcos queria
dizer alguma coisa, contudo, as palavras escorregaram na
garganta, afogadas em soluços.

— E quem são esses avós que agora pretendem me
reencontrar? — indagou ele, assim que a voz se normalizou.
— Não os conhecemos — afirmou Clementina, agora
mais controlada. — Até há poucos dias, nem sabíamos da
existência deles.
— Só o que sabemos é que são pessoas ricas — comentou
Leontina.
A riqueza dos supostos avós não lhe despertou interesse.
A curiosidade, sim.

— Quero conhecê-los — disse convicto.
— Você vai nos deixar... — murmurou Clementina,
presa de inigualável dor.
— Nunca! Mas acho que tenho o direito de saber
quem foram meus pais verdadeiros. Vocês nada sabem sobre
eles, nunca nem sequer os viram.
— Só vi sua mãe aquela vez — corrigiu Leontina.
— Mas nem tive a oportunidade de falar com ela, pois morreu
antes que eu tivesse essa chance.
— Você agora vai poder realizar o seu grande sonho
de sair desse morro — falou Clementina. — Não se preocupe
conosco, estamos velhas e sempre vivemos bem aqui.
Mas você tem chance de ter uma vida rica, de se casar com
Raquel e lhe dar tudo o que ela merece.
378



— Raquel não tem interesse em dinheiro. E eu... sempre
quis melhorar de vida e acho que isso não é nada de
mais. Contudo, jamais poderei ser feliz se vocês não estiverem
comigo. E por que está se antecipando, mãe? Eu nem sei
se vamos nos dar bem, esses que se dizem meus avós e eu.
— É claro que vão se dar bem! Por que outro motivo
eles o estariam procurando?
— Você disse que minha mãe verdadeira morreu
atropelada — conjecturou ele, olhando para a tia. — E meu
pai biológico? Onde estará?
— Não sabemos. O detetive nada falou sobre ele.
Sabia que sua mãe havia morrido e mencionou que seus
avós paternos são muito ricos.
— Preciso encontrar-me com eles. Como posso achar
esse detetive?
Clementina foi até uma gaveta e apanhou o papel que

o pastor lhe dera.
— Tem o número do celular dele — avisou.
Marcos segurou o papel e encarou a mãe, que ainda
chorava de mansinho. A tia também chorava, ambas revelando
o medo oculto de perdê-lo, de que ele se deixasse
seduzir pelo dinheiro e as abandonasse. Ele colocou o papel
no bolso, segurou a mão da mãe, apanhando, com a
outra, a mão da tia.

— Tudo pode acontecer. Minha pobreza pode acabar,
mas o amor que sinto por vocês não se acabará nunca. Fui
bem-criado pelas duas e guardo valores sólidos que a nossa
igreja me transmitiu. Confiem em mim. Vocês são e sempre
serão minha mãe e minha tia. Aonde quer que eu vá,
vocês irão comigo.
Beijando as palmas das mãos das duas, levou-as ao
coração, num claro gesto de reconhecimento e de afeto.
Elas se abraçaram a ele, felizes e gratas ao mesmo tempo.

— E o seu pai? — indagou Leontina. — O que será dele?
— Ele sabe de tudo isso? — questionou Marcos.
379


— Nós lhe contamos.
— E como ele reagiu?
— Como ele reagiu? — tomou Clementina com azedume.
— Ele se interessou pelo dinheiro, só isso. Nem ligou
para a possibilidade de perdermos você.
— Acho que, no fundo, Romualdo conhece o coração
de Marcos Wellington — defendeu Leontina. — Sabia que
ele não se voltaria contra nós.
— E logo pensou em tirar proveito da situação, não é
mesmo? Se o filho dele ficar rico de uma hora para outra,
não será nada mau, não é?
— Ele só quer ter uma chance de voltar a enxergar.
Que mal há nisso?
— Você sempre o defende, Leontina. O amor é cego
mesmo.
— Vamos parar com essa discussão, por favor — pediu
Marcos. — Meu pai está velho, com catarata, precisa da
cirurgia. Eu disse a você, mãe, que sonhava sair daqui. Se
isso acontecer, será com todos, inclusive meu pai. Mas não
quero pensar nisso agora. Ainda nem conheci meus avós
e não sei se gostarei deles. Tudo vai depender do tipo de
pessoa que eles são.
— Por falar em seu pai, Marcos Wellington, ele está
precisando de remédio — informou Leontina, que até havia
se esquecido do motivo que a levara a descer o morro àquela
hora. — É a pressão de novo.
— Deixe comigo, tia. Faça companhia a minha mãe
que dou um pulo na farmácia rapidinho.
Ele apanhou a tampa rasgada da caixa, com o nome
do remédio, aceitou o dinheiro e saiu, levando na mente
um turbilhão de questionamentos a respeito de si mesmo.
Muitas eram as perguntas que precisava fazer a seus avós,
que, por sua vez, também nada sabiam sobre ele.

Logo chegou à farmácia. Ao retirar do bolso o recorte
da caixinha com o nome do remédio, veio junto o papel com

380


as informações do detetive. Ele entregou o pedacinho de
papelão à atendente, os olhos fixos no papel cor de creme.
Pagou o remédio e tomou o caminho de volta, com o papel
ainda apertado na mão. Parou na subida do morro, apalpando
os bolsos, à procura do celular, mas lembrou-se de que

o deixara sobre a mesa da cozinha.
Ainda assim, resolveu arriscar. E se ligasse a cobrar?
Se o detetive sabia o seu nome, talvez aceitasse a ligação.
Procurou um orelhão e digitou os números. O telefone começou
a tocar, mas ninguém atendia. Consultou o relógio,
envergonhando-se de sua ansiedade, dizendo a si mesmo
que não era mais hora de ligar para ninguém. Já ia afastando
o fone do ouvido quando a gravação da chamada a
cobrar ressoou em seu ouvido:

— Ao ouvir o sinal, diga seu nome e a cidade de onde
está falando.
Alguém havia atendido. Quando o sinal agudo e metálico
ecoou, Marcos falou clara e pausadamente:

— Marcos Wellington, do Rio de Janeiro.
Para sua surpresa, uma voz do outro lado respondeu:
— Alô?
— Alô... — repetiu ele confuso, sem saber o que dizer.
— É o seu Afrânio quem está falando?
— Ele mesmo.
— Desculpe-me o adiantado da hora, seu Afrânio, e
por ter ligado a cobrar. Mas é que estou na rua e esqueci
meu celular em casa.
— Não se preocupe com isso. Fez bem em me ligar.
Gostaria de falar comigo?
— Na verdade, não sei. Não sei o que lhe dizer. Acho
que tenho mais a ouvir, esclarecer algumas dúvidas.
— Imagino que você esteja mesmo cheio delas. Podemos
marcar de nos encontrar, se você quiser.
— Eu quero.
— Ótimo. Quando e onde?
381


— Não sei. O que o senhor sugere?
— Que tal amanhã? Você diz a hora e o lugar.
— Amanhã... pode ser. Mas longe daqui, por favor.
Que tal numa praça?
— Para mim está ótimo.
— Conhece a Praça Afonso Pena?
— Não, mas descubro rapidinho. A que horas?
— Às duas da tarde está bom?
— Perfeito.
— Estarei esperando-o, sentado num banco, de camisa
amarela.
— Não se preocupe, eu o encontrarei.
Marcos desligou com mãos trêmulas. Tudo andava rápido
demais. Será que não se precipitara procurando o detetive?
Voltou correndo e entregou o remédio à tia, acompanhando-a
até em casa. Por ora, preferiu evitar falar com o pai. Entendia
os motivos dele, mas achava que Romualdo não estava tão
emocionalmente comprometido como a mãe e a tia.

Em casa, a mãe o esperava ainda com lágrimas nos
olhos. Abraçou-o demoradamente e, quando falou, era visível
sua angústia:

— Você demorou... Foi ligar para o detetive, não foi?
Ele não podia mentir, não era da sua natureza. Estreitou-
a novamente e respondeu abraçado a ela:

— Fui. Mas você não tem com que se preocupar. Juro,
mãe, nada vai substituir o seu amor. Não acredita em mim?
— Acredito. Mas sei o que o dinheiro faz com o caráter
das pessoas. Ele transforma criaturas boas em seres humanos
mesquinhos, egoístas e maus.
— Você não pode acreditar mesmo nisso. Não é o dinheiro
que muda o caráter das pessoas. É o caráter que
faz mau uso do dinheiro. Criaturas que se transformam em
seres mesquinhos, egoístas e maus, na verdade, sempre foram
assim. Só que nunca tiveram chance de demonstrar.
382


Quem é bom é sempre bom. Quem se modifica nunca foi
bom. E mesmo os maus não o são para sempre.

Ela sorriu embevecida, maravilhada com as palavras
do filho. Deu-lhe um tapinha carinhoso no rosto e falou
com emoção:

— Meu menino, onde aprende a dizer tantas coisas
bonitas? É na faculdade?
— Não sei — retrucou ele sorrindo. — Deve ser com a
vida e com Raquel. Ela é que é cheia de filosofias.
Clementina riu novamente e tornou a afagar o rosto dele.

— Está doendo? — perguntou, passando os dedos
sobre o local em que ele recebera o tapa da tia.
— Não, já passou. Foi merecido. Eu não podia ter falado
com você daquele jeito.
— Deixe para lá. A culpa foi minha por não ter lhe contado
antes.
— Você não pode se culpar por só ter me dado amor.
Clementina desvencilhou-se dele para apanhar um
copo de água, pensando, naquele momento, em como seria
bom ter uma garrafa de pinga em casa.

— Nem pense nisso, Clementina! — censurou
Margarete, ainda a seu lado. — Depois do trabalhão que deu
para você e eu nos desintoxicarmos, não podemos entrar
nessa novamente.
— Marcos não vai abandonar você — afirmou Félix,
ao mesmo tempo em que a envolvia num halo energético
e fluidificava a água. — Ele só quer conhecer a sua origem,
nada mais. E vai ajudá-la muito, você vai ver.
O passe aplacou o desejo da bebida, e ela tornou a
sentar-se junto a Marcos, bebericando a água com prazer,
ingerindo, sem consciência, fluidos de refrigério para a alma.

— Imagine se ela voltar a beber, Félix — horrorizou-
se Margarete.
— Ela não vai voltar, nem você. Não se preocupe.
383


— Tenho medo de que, se ela tiver uma recaída, eu
tenha também. Ainda somos muito ligadas.
— Você a ajuda, e ela ajuda você. Nenhuma das duas
vai voltar a beber.
— Como é que você pode ter tanta certeza?
— Ela tem um incentivo maior, assim como você.
— Ah, é? Qual?
— O amor de Marcos Wellington. Ambas precisam estar
lúcidas para demonstrar esse amor. Não é importante
para você?
— Marcos não me vê. Por mais que seja importante
para mim, ele nunca irá saber.
— Ele sabe, porque agora conhece a sua existência.
Com isso, vai percebendo, mesmo sem querer, as vibrações
que você manda para ele. E você não vai querer enviar-lhe
vibrações etílicas, vai?
— Deus me livre!
— Pois Clementina também não. Ela teme que um
deslize o afaste para sempre de sua vida. Por isso, pode
sentir o desejo, mas a mente sadia vai saber controlá-lo.
Mais calma, Margarete aproximou-se do filho. Deu-lhe
um beijo amoroso na face e um abraço em Clementina, de
quem havia aprendido a gostar após tantos anos de convivência
invisível.

384


CAPÍTULO


44


Marcos chegou cedo à Praça Afonso Pena e procurou
um banco à sombra para se sentar. Vestia jeans e uma camisa
amarela, para facilitar que o investigador o reconhecesse.
Não demorou muito, Afrânio apareceu.

— Boa tarde — cumprimentou ele. — Você é Marcos
Wellington? — ele assentiu. — Posso me sentar?
Ao sinal positivo de Marcos, Afrânio sentou-se junto a ele.

— O senhor é o detetive, não é? O tal que meus supostos
avós contrataram para me encontrar.
— Pelo visto, você já sabe de tudo.
— Sei de tudo o que minha mãe e minha tia sabem,
que nada tem a ver com meus pais verdadeiros. Elas nunca
os conheceram.
— Você sabe como foi encontrado?
— Elas me contaram, embora não soubessem dizer
por que minha mãe me abandonou.
— Desespero... medo... solidão... desejo de lhe dar
uma vida melhor...
— Na lata do lixo?
— Sei que é difícil entender essas coisas, mas eu não
estou aqui para julgar sua mãe, nem o seu pai, nem seus
avós, nem sua família adotiva. Nem a você.

— Já sei. Veio apenas cumprir o seu dever de me encontrar
e me levar em segurança aos ricaços que o contrataram.
— Seus avós são pessoas de bem. Seu avô é dono de
uma empresa de ônibus em Belford Roxo.
— Se são pessoas de bem, por que deixaram minha
mãe me abandonar? E o meu pai, por que não fez nada? Por
que ninguém me procurou antes?
— Tudo isso são perguntas que você terá que lhes
fazer pessoalmente. Tenho certeza de que eles têm todas
as respostas.
— Imagino que sim.
— Então, posso marcar um encontro entre vocês? —
Afrânio notou a hesitação de Marcos e tentou acalmá-lo:

— Não tenha receio. Como disse, eles são pessoas de bem
e só o que querem é conhecer você.
— E minha família?
— O que tem ela?
— Não vão tentar me separar dela, vão?
— Você não é mais criança, Marcos. É dono do seu
nariz, pode fazer o que bem entender. Se houver alguma
separação, será por sua conta.
— Jamais farei isso. Amo minha mãe e minha tia acima
de tudo.
— Ninguém quer ou pensa o contrário. Você seria
uma pessoa muito egoísta se não sentisse dessa forma.
— Eles não vão tentar me convencer a mudar de vida?
— Talvez queiram lhe dar uma vida melhor, mas isso
não significa que você tenha que se afastar de sua família.
— Eu não vou me afastar, disso tenho certeza. Mas
não quero ser pressionado.
— Tudo bem, posso falar com eles sobre esse seu receio,
e ninguém irá pressioná-lo.
— Você vai estar presente a esse encontro?
— Provavelmente não. Vocês têm muito que conversar.
Daqui por diante, meus serviços estão concluídos.
386


Marcos ficou caiado por uns segundos, pensando em
tudo o que Afrânio dissera. Por fim, concordou:

— Pode marcar o encontro. Quero conhecê-los e esclarecer
logo tudo.
Além de corajoso, o rapaz era decidido, o que agradou
Afrânio. Aliás, tudo nele lhe agradara, desde a aparência física
até seu jeito educado. Seus clientes ficariam satisfeitos.

— Vou entrar em contato com eles hoje mesmo —
anunciou Afrânio. — Tenho certeza de que desejarão conhecê-
lo o mais rápido possível. Só falta você me dar o número
do seu celular, para que eu possa encontrá-lo.
Encerrada a entrevista, Afrânio seguiu direto para
Belford Roxo, a fim de narrar a seus clientes o sucesso de seu
trabalho. Graciliano e Bernadete mal conseguiam conter a euforia.
Queriam marcar o encontro para o mais breve possível.

Marcos sabia que não conseguiria prestar atenção alguma
à aula. Nem os comentários maldosos a que estava
sendo submetido foram suficientes para dissipar sua confusão.
Ele chegou cedo e, assim que Raquel pisou na sala,
correu ao seu encontro.

— Você faz questão de assistir à aula hoje? — sondou
ele, segurando-a pelo braço.
— Não sei — respondeu ela, cautelosa. — Por quê? O
que foi que houve?
— Preciso conversar com você. Longe daqui.
— Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu. E séria.
— É com a sua mãe?
— Nada tão sério assim. É algo pessoal, que me
diz respeito.
— Está bem. Vamos embora, então.
387


Marcos falou rapidamente com Arnaldo e saiu de mãos
dadas com Raquel, ignorando os olhares que os acompanhavam
por todo o corredor. Assim que entraram no carro, Marcos
puxou Raquel e deu-lhe um abraço apertado, beijando-a com
sofreguidão. Quando ele se afastou, ela indagou perplexa:

— O que foi que houve, Marcos?
— Minha vida está prestes a virar de cabeça para baixo.
— Por quê?
— Descobri ontem que não sou filho de meus pais.
— Como é que é?
Marcos contou tudo o que sabia, em detalhes. Ao final,
concluiu:

— O detetive me ligou ontem mesmo. Meus avós querem
me ver o mais rápido possível. Por isso, deixei que ele
marcasse o encontro para hoje, logo após a faculdade. Seu
Afrânio virá me buscar aqui, e iremos juntos.
— Meu Deus, Marcos, que doideira!
— É, é uma doideira, mas é a verdade. O teste de DNA
não mente.
— Acho que você está recebendo essa notícia muito
bem. Vai tirar esse encontro de letra.
— Eu vou, mas minha mãe, não. Ela está nervosa, aflita,
nem conseguiu ir trabalhar hoje. Minha tia também, mas
não pode faltar ao emprego, e ela agora tem o meu pai. Por
isso é que gostaria de lhe pedir um favor.
— O que é?
— Será que você poderia ficar lá em casa com ela?
Minha mãe gosta tanto de você!
— É claro que sim, Marcos! Será o maior prazer.
Também gosto muito dela.
— Ótimo, então. Vou telefonar a seu Afrânio e pedir
que vá me buscar em casa. De toda sorte, não ia mesmo
conseguir prestar atenção à aula. Estou um pouco nervoso.
— E quem não estaria? Eu, no seu lugar, ficaria toda
trêmula.
388


— Mentirosa — ralhou ele com doçura. — Você é muito
segura e decidida.
— Só quando você está comigo.
— Está falando isso por causa da favela? Tem medo
de ficar lá sozinha?
— Absolutamente!
— Vou com você até em casa. Na volta, levo-a para
baixo e a coloco de volta no carro.
— Se quiser, posso dormir lá com você.
— Ah, não, Raquel, você não ia gostar. Durmo num
sofá pequeno e desconfortável, você ia acordar cheia de dores
nas costas.
— Eu não me importo de dormir agarradinha com
você. Vamos, Marcos, é a nossa chance. Nós nunca passamos
a noite juntos.
— Seus pais não vão aprovar.
— Eles não ligam. Basta eu telefonar e dizer que não
vou dormir em casa. Vamos, gostaria de partilhar com você
este momento tão importante da sua vida.
— Bom, se é assim, está bem — concordou ele, após
muita insistência. — Minha mãe vai adorar.
— Será que ela não se importa que durmamos juntos?
— Acho que não. Minha mãe não é minha tia. Não liga
para essas coisas. Tia Leontina, sim, ficaria chocada. Mas
ela não precisa saber.
— Ótimo. Então vamos.
Raquel subiu o morro tentando aparentar naturalidade
e ocultar o receio. No fundo, tinha um pouco de medo dos
bandidos e traficantes, porém, tudo transcorreu com normalidade.
Marcos era conhecido, ninguém quis mexer com a namorada
dele. Haviam antes passado numa confeitaria, onde
Raquel fez questão de comprar uma torta para Clementina.

— Raquel! — exclamou ela. — Que surpresa boa! O
que a traz aqui?
389


— Vim ficar com a senhora, enquanto Marcos vai conversar
com os avós.
— Mesmo? Você veio só para me fazer companhia? —
Raquel assentiu. — Que menina simpática!

— Vou me casar com o seu filho e tenho que cuidar da
minha sogra, que é uma pessoa maravilhosa.
Clementina riu de prazer, para alívio de Marcos. Com
tantas preocupações na cabeça, ao menos conseguira aliviar
um pouco a aflição da mãe.

— Não fiz nada para o almoço — observou Clementina.
— Não faz mal — declarou Raquel. — Veja o que eu
trouxe. Uma torta!
Havia genuína satisfação no riso de Clementina. A conversa
de Raquel animava a mãe, que conseguiu, ao menos
parcialmente, colocar de lado o pânico. Marcos mal conseguia
participar da conversa, tamanha a ansiedade, consultando
o relógio a todo instante. Na hora combinada, despediu-se
das duas e desceu para se encontrar com Afrânio.

— Que Deus ilumine a cabeça do meu menino... — rogou
Clementina — para que ele não esqueça quem foi sua
verdadeira mãe.
— A senhora não tem com o que se preocupar. Marcos
a ama muito e não vai trocá-la por nenhuma outra família.
Ficaram vendo-o afastar-se, Clementina agarrada ao
braço de Raquel. Ele desceu o morro com a cabeça confusa,
temendo o que estava por vir. Quando chegou lá embaixo,
Afrânio já o aguardava e lhe estendeu a mão, que ele apertou.

— Então? — indagou. — Pronto?
Marcos balançou a cabeça. Quando o carro se movimentou,
voltou os olhos para o morro, na esperança de
avistar sua casa, embora soubesse que ela não era visível
de onde estava. A única coisa que ainda via em sua mente
eram os olhos súplices da mãe, implorando que voltasse
para casa e para ela. Mas Marcos não precisaria voltar.
Jamais pensara em deixá-la.

390


CAPÍTULO


45


O coração de Marcos não se aquietava dentro do peito.
Ele sentia um misto de euforia e medo, de curiosidade e
dúvida. Temia o que iria encontrar, não sabia como se portar
na casa daquelas pessoas que, embora responsáveis pela
sua existência, eram estranhas para ele.

— Basta agir naturalmente — dissera Afrânio. — Seja
você mesmo, não tente demonstrar o que não é.
Marcos gostara de Afrânio. De certa forma, ele ajudara
a desfazer a ideia de romantismo ou decadência que ele
tinha de detetives particulares, fruto dos filmes de televisão,
em que os investigadores ou eram homens cheios de charme
e coragem, ou malandros arruinados e trapaceiros. A
tranquilidade de Afrânio lhe transmitia uma segurança serena,
a certeza de que as coisas seguiriam o caminho da
natureza, que tudo faz para reunir as famílias.

Junto a Marcos, a presença constante de Margarete
e Félix era para ele um alívio, embora disso não se desse
conta. O tempo todo, o casal de espíritos permanecera a
seu lado, intuindo Afrânio a seguir o rumo certo na busca
da verdade. E agora que tudo ia se desvendar, Margarete
sentia-se grata e confiante, disposta a seguir seu caminho
tão logo Marcos se harmonizasse com a família.


— Lembre-se de que não foi você quem pediu esse
encontro — prosseguiu Afrânio, sem saber que parcialmente
transmitia o pensamento dos espíritos. — Foram eles.
Portanto, você não precisa se preocupar com nada. Deixe a
eles a tarefa de conduzir a conversa. Faça as perguntas que
quiser, mas não se coloque na defensiva nem seja arrogante.
Mantenha-se calmo e neutro. São eles que estão loucos
por você, não o contrário. Trate-os bem, com respeito, não
se esqueça de que são seus avós.
Ao ver a mansão em que eles residiam em Belford
Roxo, Marcos afirmou pensativo:

— Entendo por que minha mãe me jogou na lata de
lixo. Eles devem tê-la expulsado de casa só porque era pobre
e negra.
— Procure não julgar. Todos nós temos algo de que
nos arrepender. Se você ainda não tem, é porque ainda é
muito jovem e não viveu o suficiente para colecionar erros.
Afrânio era uma pessoa sensata, para satisfação de
Marcos. Saltaram do carro e tocaram a campainha. Quando
a porta se abriu, uma criada de uniforme os convidou a entrar,
conduzindo-os diretamente à sala de estar, onde dois
idosos, sentados em antigas poltronas de veludo carmim,
olhavam-no com ansiedade.

— Seu Graciliano, dona Bernadete — anunciou
Afrânio —, este é Marcos, o neto que procuravam.
Os dois se levantaram ao mesmo tempo, olhando para
Marcos sem saber o que dizer. Haviam ensaiado tanto aquele
momento, e agora a voz lhes morrera na garganta. Graciliano
estendeu a mão para ele, que a apertou firmemente.

— Como vai, meu rapaz? — indagou, sem jeito.
— Vou bem, obrigado. E o senhor?
Graciliano não respondeu, porque Bernadete passou
à frente dele e puxou Marcos para um abraço efusivo,
estreitando-o nos braços pelo tempo em que duraram as
primeiras lágrimas.

392


— Meu menino! — exclamou ela. — Meu neto! Já é
um homem... Perdemos sua infância e o começo da juventude.
Como rezei a Deus para poder encontrá-lo!
Marcos olhou para Afrânio meio desconcertado, e o
investigador devolveu-lhe um sorriso de incentivo.

— Acho melhor deixá-los a sós para que se conheçam.
A que horas quer que eu venha buscá-lo, Marcos?
— Isso não será necessário — objetou Graciliano.
— Meu motorista o levará em casa quando ele desejar.
Notando a fisionomia calma de Afrânio, Marcos relaxou
naquele ambiente estranho, cercado de pessoas estranhas
que, a despeito de tudo, eram seus avós. Com um aceno de
cabeça, o detetive se despediu. Dando tapinhas fraternos
nas costas de Marcos, finalizou:

— Boa sorte, rapaz. Vai dar tudo certo.
Depois que ele saiu, Bernadete convidou Marcos a
se sentar. Graciliano ocupou uma poltrona em frente, ainda
sem jeito, tentando encontrar as palavras certas. Depois
de muito observá-lo, Bernadete comentou eufórica:

— Veja como ele se parece com Anderson, Graciliano!
Não se parece com o nosso filho?
Realmente, Marcos era uma mistura do pai e da mãe.
Graciliano olhou-o bem, logo identificando os traços de
Anderson no rapaz, sobretudo o nariz e a boca. Os olhos,
inconfundivelmente, eram os de Margarete.

— Sim — respondeu Graciliano, atento à fisionomia
do neto. — Ele se parece com Anderson, mas lembra também
a mãe.
— Mas o queixo é de nosso filho. Igualzinho!
— Realmente.
— Ele é mais moreno do que Anderson, é claro, embora
um pouco mais claro do que Margarete.
Margarete fitou Félix com olhos úmidos, sem dizer nada,
e Marcos sorriu, sem graça ante a avaliação que faziam dele.

393


— Não conheci nenhum dos dois... — informou com
voz sumida.
— Seu pai, nosso filho, já morreu — comentou
Graciliano, enxugando os olhos. — Você é tudo que nos resta.
Um raio de sol penetrou pela janela, estendendo-se
até o sofá. Vagarosamente alcançou os pés de Bernadete,
que os puxou para a sombra.

— Anderson gostava de tomar sol — informou ela. —
Diferentemente de mim. E você? Gosta de sol?

Ele se levantou nervosamente. Estava ali havia quase
uma hora e só o que os dois haviam conseguido, até aquele
momento, fora fazer comentários sobre sua aparência física,
encontrando semelhanças e diferenças entre ele e seus verdadeiros
pais.

— Por favor, não me levem a mal, mas foi para isso
que me chamaram aqui? — indagou, a voz oscilando entre
a irritação e a ansiedade.
Os avós se entreolharam assustados, até que
Graciliano falou:

— Tem razão, meu jovem. Não o trouxemos aqui para
compará-lo ao nosso filho que já morreu. Chamamos você
porque queríamos conhecer nosso único neto.
— Meu nome é Marcos — anunciou, tentando não demonstrar
exasperação. — Marcos Wellington.
— Sabemos disso, Marcos — continuou Graciliano.
— Não queríamos ofendê-lo. Nós apenas estamos tão confusos
quanto você.
— Temos medo de dizer algo que o ofenda — acrescentou
Bernadete. — E, sem querer, parece que o ofendemos.
Arrependendo-se instantaneamente, Marcos tornou a
se sentar ao lado de Bernadete.

— Perdoem-me. Eu é que não devia ter me irritado.
— Na verdade, estamos todos pouco à vontade —
disse Graciliano. — O que é bastante natural.

394


— E você, mais do que nós, deve estar curioso acerca
dos acontecimentos — observou Bernadete. — Afinal, não
sabe quem somos nós, quem foram seu pai ou sua mãe.
— Só sei o que seu Afrânio me contou, ou seja, quase
nada.
— Muito bem — declarou Graciliano. — Vou lhe contar
tudo desde o começo. É seu direito conhecer sua história.
Peço apenas que seja paciente e perdoe-me se a voz me
faltar em alguns momentos. É preciso coragem para assumir
as culpas e mais ainda para confessá-las. — Graciliano
buscou apoio em Bernadete, que o incentivou com o olhar.
— Sua mãe veio trabalhar para nós há muito tempo, como
doméstica. Anderson, nosso filho, seu pai, contava então
quatorze anos de idade e acabou se envolvendo com ela.
Fomos cegos, nada percebemos, porque tínhamos os olhos
vendados pelo preconceito e sequer imaginamos um envolvimento
entre nosso filho e... alguém como sua mãe.
Calmamente, sem omitir nenhum detalhe, Graciliano
contou tudo a Marcos. Falou da gravidez de Margarete,
da confissão de Anderson, de como a expulsaram de casa.
Contou como Anderson jamais quis se casar com outra moça.
De saúde frágil, teve várias pneumonias, vindo a falecer de
câncer, carregado de culpa por não ter reconhecido o filho.

E agora, vendo sua descendência se acabar, sentiram a
necessidade de procurar o neto. Velhos e arrependidos, hoje
compreendiam como era mesquinho o preconceito, que lhes
roubara momentos de preciosa felicidade ao lado do menino.

Quando Graciliano terminou a narrativa, os olhos de
Bernadete estavam inchados de tanto chorar. Marcos também
chorava de mansinho. Ao lado deles, Margarete acompanhava
a narrativa, em silêncio.

— Isso é tudo — concluiu Graciliano, entre a vergonha
e o alívio.
— E minha mãe? — indagou Marcos, ainda tentando
assimilar toda aquela história.
395


— De Margarete, nada sabemos depois que ela se foi,
além do que Afrânio nos contou.
— Soubemos que ela morreu atropelada — acrescentou
Bernadete.
— Sim — fez Marcos, desgostoso. — Logo após me
abandonar na lata do lixo, bêbada, segundo informações.
Seu Afrânio me narrou toda a trajetória dela desde que vocês
a expulsaram daqui. Minha mãe verdadeira, aquela que
me criou, me disse como me encontrou e cuidou de mim.
Por mais que Marcos intencionalmente não desejasse,
sua fala veio com um inconfundível tom de acusação,
que Graciliano e Bernadete captaram com uma pontada
no coração.

— Sabemos que é difícil — obtemperou Bernadete.
— Mas, por favor, tente não nos odiar.
— Queremos lhe oferecer uma compensação por tudo
o que o fizemos passar — tornou Graciliano. — Como nosso
neto, você será uma pessoa rica, poderá concluir seus estudos
e, mais tarde, vir a me substituir na presidência da empresa.
Marcos sentiu o sangue ferver. Aquelas pessoas haviam
mudado toda a sua vida, eram responsáveis pela morte
de sua mãe biológica e as agruras por que ele passara desnecessariamente.
Se eles houvessem aceitado a relação do
pai e da mãe desde o começo, toda a sua miséria teria sido
evitada, ele nunca teria ido parar na favela nem teria se tornado
menino de rua. Muito menos teria visto a mãe se afogar
na bebida por causa de seu pai.

"Clementina não teria sido sua mãe. E você jamais teria
conhecido aquele pai."

O pensamento surgiu como um relâmpago em sua
mente. Marcos fechou os olhos, tentando imaginar como
teria sido sua vida sem a família que conhecera. Não pôde.
Não havia vida imaginável longe de Clementina e Leontina.
Era com elas que estava seu coração. Não queria outros
pais nem avós. Continuaria amando as pessoas que o

396


tinham criado, porque elas é que eram sua verdadeira família.
Duvidava muito que sua mãe biológica fosse capaz de
amá-lo tanto quanto Clementina.

— O que você acha, Margarete? — Félix perguntou,
lendo os pensamentos do rapaz. — Você o teria amado tanto?
Margarete olhou para Marcos com ternura. Consultando
seu coração, respondeu após breves instantes:

— Eu o teria amado à minha maneira, embora, naquela
época, não fosse a maternidade meu maior desejo. Era a
satisfação dos prazeres que Anderson poderia me dar. Se tivesse
sido aceita pelos pais dele, tenho certeza de que teria
me tornado arrogante, esnobe e fútil. E meu filho não teria a
educação que precisava ter.
— Viu como a vida não nos desaponta? Quando a vida
age, não o faz para perder. Todos nós ganhamos com as experiências,
ainda que tudo pareça perdido. Porque todos nós
conhecemos, em essência, as necessidades de nossa alma.
Sem ouvir a voz do invisível, Marcos evocou a lembrança
dos pais e da tia, pensando em como os três haviam sido
importantes em sua vida e em quanto amor ele recebera.
Mesmo Romualdo, antes de abandoná-los, fora um bom pai.
Não tinha de que se queixar em termos de carinho. Com os
pais verdadeiros, teria todo dinheiro e conforto. Mas teria
sido realmente feliz?

Naquele momento, Marcos compreendeu a aflição e
os anseios de seus avós. Os dois pareciam ansiosos para
tê-lo em seu convívio. O avô queria um herdeiro; a avó, um
substituto do filho. Embora por motivos diferentes, ambos
desejavam um neto para amar.

— Por que vocês não me procuraram antes? — foi a
pergunta que ele proferiu sem pensar.
Graciliano e Bernadete, mais uma vez, se entreolharam,
demonstrando como era difícil e dolorosa aquela revelação.

— Nós vivíamos iludidos — Bernadete falou. — Pelo
nosso dinheiro, pelo nosso poder, pela nossa classe social,
397


pela nossa cor... Achávamos que, por sermos ricos e brancos,
éramos melhores do que os outros, os menos afortunados.
— Ela deu uma pausa, respirou fundo e prosseguiu:

— Sua mãe era tudo que desprezávamos. Pobre, negra... e
atrevida. Atrevera-se a seduzir nosso filho, um menino de
quatorze anos, ingênuo e branco.
— Vocês são racistas — afirmou Marcos, com inevitável
rancor na voz.
— Éramos... sim — confessou Bernadete. — Hoje não
somos mais. O sofrimento nos ensinou que o valor da vida
vem das pessoas, do que elas fazem ou são capazes de
fazer, do quanto podem amar. Amamos nosso filho como a
nenhum outro. Sem ele, descobrimos que poderíamos amar
o fruto que ele nos deixou, nosso fruto também, independentemente
de qualquer convenção social. Compreendemos
que o preconceito impede as pessoas de serem felizes,
porque as prende a falsos valores de virtude e de moral.
— Pode parecer que só fomos buscá-lo para termos
um sucessor — esclareceu Graciliano. — Não é verdade, ao
menos, não inteiramente. É claro que me preocupa a questão
da empresa. Herdei de meu pai um patrimônio considerável,
que ele construiu à custa de muito sacrifício. Bernadete
e eu não temos irmãos vivos, apenas uma sobrinha que vive
na Europa e, por razões perfeitamente compreensíveis, não
pretende se mudar para cá e cuidar de um negócio do qual
nada entende. Dessa forma, o patrimônio que meu pai construiu
acabaria se perdendo nas mãos de estranhos. Nesse
sentido, um herdeiro resolveria todo o problema.
— Eu também nada entendo do ramo de transportes
coletivos — contrapôs Marcos.
— Mas pode aprender. Posso ensinar-lhe tudo.
— Não sei se Afrânio lhe informou que estudo Direito.
Quero ser advogado, não administrador de empresas.
— Você pode ser as duas coisas. Pode dirigir a companhia
e abrir um escritório de advocacia. Acho até que o
398


Direito o ajudaria com as questões jurídicas, seria muito difícil
enganá-lo com os contratos, por exemplo.

— Não sei...
— Deixe-o, Graciliano — censurou a mulher. — Você
o está pressionando, e não foi apenas para torná-lo nosso
herdeiro que o encontramos. Foi para colocá-lo no lugar
que lhe pertence em nossa família e em nosso coração.
Independentemente de qualquer coisa, Marcos é nosso
neto, tem o nosso sangue. Assumindo ou não o controle da
empresa, é parte de nós e de nossas vidas.
— É claro — atalhou Graciliano, um tanto decepcionado.
— Mesmo que você não aceite vir para a minha empresa,
isso não mudará nada entre nós. O que mais queremos
é trazê-lo para o nosso convívio, para que você seja parte de
nossa família. Queremos dar-lhe o nosso amor e, se possível,
ser amado por você também.
— O que me pedem é muito estranho — confessou
Marcos. — A única família que conheci está lá no Rio, no
morro do Salgueiro, morrendo de medo e preocupação de
que eu os abandone.
— Não estamos pedindo isso — redarguiu Bernadete.
— Fomos informados de sua relação com a família que o
criou e a respeitamos por isso. Sabemos das dificuldades
e dos perigos de ter sido criado no morro, temos ciência de
que sua mãe o orientou muito bem. Você faz faculdade, tem
uma religião e um emprego.
— Não tome nenhuma decisão precipitada — aconselhou
Graciliano. — Volte para casa e pense em tudo o que lhe
dissemos. Mas lembre-se também de que sua vida e a de
seus pais irá mudar para melhor. Estamos lhe oferecendo a
oportunidade de sair da favela e morar num lugar decente.
— Engana-se quem pensa que não somos decentes
no morro — irritou-se ele. — A maioria dos que lá estão é
gente direita, que trabalha e vive honestamente.
399


— Não se ofenda — interveio Bernadete em tom conciliador.
— Não queremos julgar ninguém. Quando falamos
em lugar decente, referimo-nos tão somente às condições
de vida, como infraestrutura, conforto e higiene. Não estamos
mencionando as pessoas.
— Seja sincero, Marcos — pediu Graciliano. — Você
gosta de morar na favela?
Ele olhou com amargura para os dois e balançou a
cabeça negativamente:

— Estaria sendo hipócrita se dissesse que sim. Meu
maior desejo sempre foi sair do morro e levar meus pais e
minha tia comigo. Mas quero fazer isso honestamente.
— Pois agora estamos lhe dando essa chance. Você,
seus pais e sua tia podem ir morar em qualquer lugar
que desejarem.
— Seu pai está doente — prosseguiu Bernadete. — Seu
Afrânio nos contou que ele está quase cego e com problemas
de pressão. E a sua mãe já não aguenta mais as faxinas. Sua
tia também já está ficando velha, as pernas não suportam
mais a subida do morro.
— Vejo que seu Afrânio fez o serviço completo. Há
algo de minha vida que vocês não saibam?
— Não conhecemos a sua vontade — admitiu
Bernadete. — Está dentro de você, e só você pode nos dizer
qual é.
— Não queremos pressioná-lo — falou Graciliano. — Só
gostaríamos que você pensasse no assunto. Com calma, no
seu tempo. Depois, quando decidir, venha nos procurar. Seja
qual for a sua resposta, nós a compreenderemos e aceitaremos.
— Agradeço o empenho e a compreensão de vocês.
Não sei o que lhes dizer. Qualquer coisa que eu fale
agora será precipitada. Preciso conversar com minha mãe,
refletir sobre sua oferta, para só então decidir.
— Faça isso. A reflexão é o melhor caminho para uma
decisão acertada. Ouça o seu coração e depois decida.
400


— E agora, venha jantar conosco — convidou Bernadete.
— O dia se foi, a noite caiu, e nós continuamos trancados
aqui. Venha conhecer a nossa casa e nos dê o prazer de sua
companhia, ao menos por essa noite.
A conversa havia sido tão intensa que Marcos nem se
deu conta de que a hora do jantar havia chegado. Saiu com
os avós para conhecer a mansão, maravilhando-se com

o bom gosto e a amplitude dos ambientes. Impressionou-
se com o jardim, a garagem, a piscina, deduzindo que seus
avós eram, realmente, pessoas muito ricas.
O jantar também foi maravilhoso. Marcos jamais havia
visto tanta comida na sua vida. Havia saladas, sopas, carnes,
frangos, massas, iguarias as mais variadas para agradar
o paladar desconhecido de Marcos. Experimentou de
tudo, deliciando-se com as sobremesas e, pela primeira vez,
provou uma taça de vinho.

Quando voltou para casa, sentiu o efeito da sedução
sobre seus sentidos. Era difícil resistir a tantas maravilhas,
ao conforto, ao luxo, a tudo com que ele sempre sonhara.
Marcos abanou a cabeça, um pouco zonza por causa do
vinho, tentando imaginar a reação de sua família àquele encontro.
Ele mesmo não sabia o que pensar, como proceder.
Não podia negar que a tentação era muito grande, adoraria
ter uma vida confortável como a que os avós lhe ofereciam.

O motorista deixou-o ao pé do morro. Marcos agradeceu.
Iniciou a subida pensando em tudo o que lhe acontecera.
Tinha certeza, embora não admitisse, de que os
passos que faziam aquele trajeto encaminhavam-se para
a despedida.


CAPÍTULO

46

Depois daquele encontro, Marcos pensou que nunca
mais seria o mesmo. Não que sua personalidade se modificara,
mas as coisas que os avós lhe mostraram, e que legitimamente
lhe pertenceriam, causou uma confusão em sua cabeça.

— Se eles querem ajudar você e sua família, qual o
problema? — ponderou Raquel. — Eles são seus avós.
— Você acha que isso vai dar certo? — contrapôs
Marcos. — Minha família e eles são muito diferentes. Em
cultura e criação, quero dizer.
— Deixe disso, Marcos. Seus pais são pessoas de
bem e seus avós estão preparados para as diferenças. Ou
então não lhe fariam essa oferta. Eles sabem que você não
abandonaria sua família.
— O que você acha, mãe? — ele perguntou a
Clementina, que, até então, não dissera nada.
— Não sei. Tenho medo de que tudo venha a ser diferente.
— É claro que tudo vai ser diferente, mas não do jeito como
você está pensando. Nossas vidas vão mudar para melhor.
— Ah! Marcos Wellington, e se tudo não passar de um
sonho, uma fantasia? E se o que eles pretendem é apenas
conquistar você, para que mude de família e esqueça que
um dia pertenceu ao morro?

— Eu não pertenço ao morro, vocês não pertencem
ao morro. Ninguém pertence ao morro. Isso é só um lugar
para se viver.
— Marcos tem razão, dona Clementina — concordou
Raquel. — Ninguém é dono de lugar nenhum. Somos apenas
inquilinos nas dependências do mundo. Podemos ir e
vir para onde quisermos. Todo mundo tem chance e direito
de progredir.
— Não dessa maneira.
— Por que não?
— Para Marcos, tudo bem. Mas nós seremos intrusos
na casa dele.
— Minha família verdadeira não pode ser intrusa
— contestou Marcos, indignado. — Você é minha mãe,
Romualdo é meu pai, e Leontina, minha tia. Meus avós sabem
disso e os respeitam.
— Avós... — repetiu ela. — Você até já os chama assim.
— E o que é que tem? Não é isso o que eles são?
Meus avós?
— Você acha que sua tia vai concordar com isso? —
duvidou Clementina.

— Vai. No começo pode até dizer que não, mas, depois,
vai. É o que meu pai quer, não é?
— Seu pai não vale nada — disse ela com rispidez.
— Está louco para você aceitar só para se aproveitar da situação
e ficar nas suas costas.
— Ele está doente e licenciado pelo INSS. Não é nenhum
vagabundo. E a cirurgia da catarata é um fato. Nós
sabemos o tempo que ele vai levar na fila, aguardando sua
vez de se operar pelo sus — ele fez uma pausa e segurou a
mão dela, falando em tom de súplica: — Vamos, mãe, por
favor. Não perca essa chance.
— Você não precisa de mim para ir.
— Não vou sem você. Sem minha tia, pode até ser.
Mas, sem você, não.
403


Clementina olhou-o com lágrimas nos olhos, sentindo

o quão verdadeiro era o amor dele. Pensou alguns minutos,
alisou seu rosto e finalizou:
— Preciso pensar, meu filho. As mudanças que você
me propõe são muito grandes. Não sei se estou preparada
para isso.
Marcos ia contra-argumentar, mas o olhar de Raquel o
fez mudar de ideia. Ele pousou um beijo suave na testa da
mãe, afagou suas faces, não disse nada. Estendeu a mão
para a namorada, saindo com ela.

— Você acha que ela vai aceitar? — questionou ele,
logo que chegaram ao pé do morro.
— Acho que sim. Ela está confusa, com medo de perdê-
lo, mas vai acabar aceitando.
— Raquel — chamou ele, e ela o fitou pelo canto do
olho. — Gostaria de lhe pedir uma coisa.
— O que é?
— Não conte a ninguém por enquanto, por favor.
— Eu não ia contar. Tem vezes que a gente não sabe
se vai gerar algum magnetismo. Por isso, é bom se preservar
de energias de inveja e despeito. Sem contar os interesseiros.
— Obrigado.
Mas não foi bem assim que aconteceu. Quando chegou
em casa, Raquel não pôde evitar de comentar com a
mãe. Ela era de confiança, estava fora do rol de pessoas
que poderiam invejar a posição de Marcos e não contaria a
ninguém. Efetivamente, Ivone não contou nada, nem ao marido.
Contudo, um observador furtivo espreitava em surdina.

Escondido atrás da porta do quarto de Raquel, Elói
ouviu toda a conversa, mal contendo o despeito. O sangue
ferveu, inflou suas veias, tornando seu rosto rubro de ódio
e inveja. Depois de escutar tudo o que precisava, saiu sem
ser percebido, tropeçando na própria raiva. Dentro do carro,
sacou o celular e ligou para Nelson.

— Preciso falar com você. É urgente.
404


Encontraram-se no lugar de sempre, e Nelson foi logo
perguntando:

— O que foi que houve?
— Você não vai acreditar. O cafajeste está milionário.
— Como é que é?
Em minúcias, Elói contou a Nelson tudo o que ouvira
minutos antes. À medida que falava, as feições de Nelson iam
adquirindo aquele tom avermelhado que acompanha a ira. Ele
chegou a morder os nós dos dedos, de tão furioso que ficara.

— Isso é um disparate! — explodiu ele. — Como é que
um neguinho pobretão fica rico de uma hora para outra?
Esses caras devem estar enganados. Marcos não pode ser
filho de gente importante.
— Você ouviu o que eu disse. O pai dele fez a mesma
burrada que a minha irmã está fazendo agora.
— Só que agora o namorado é um ricaço. O que vamos
fazer?
— Não sei. Todo o nosso trabalho foi em vão.
— Em vão nada. Posso combinar com a galera e dar
uma surra no safado.
— Não seja estúpido, Nelson! Não é assim que resolvemos
as coisas. Se você for preso, aí é que tudo estará perdido.
— Meu pai é desembargador. Nada vai me acontecer.
— Não é bem assim que funciona. E mesmo que você
seja solto, acha que Raquel vai olhar para você depois disso?
— Você acha que ela vai se casar com Marcos só
porque ele ficou rico? — tornou ele, a mente embaralhada
pela revolta.
— Não. Só que agora nós ficamos sem ação contra
Marcos. Como destruir a vida de um cara que ficou rico
e influente?
— Quer dizer então que dinheiro e poder apagam
a canalhice?
— Você está confundindo as coisas. Nós tentamos fazer
parecer com que Marcos seja um canalha. Acontece que
405


ele não é. E minha irmã sabe disso. Chega, Nelson, temos
que reconhecer a derrota. Não adianta mais tentar desmoralizar
nem destruir a vida de Marcos. Ficar sem emprego não
é mais problema para ele, e a mãe, se tivesse motivos para
furtar, agora não tem mais.

— E se nós arranjássemos alguém que se fizesse passar
por amante dele?
— Isso não dá certo. Ele vai desmentir, e Raquel vai
acreditar. A inocência costuma ser bem convincente.
— Nem sempre. Podemos fazer com que ele caia em
tentação ao menos uma vez. O que você acha?
Elói pensou durante um momento, até que um sorriso
enigmático despontou em seu rosto.

— Brilhante, Nelson! — exclamou ele. — Sua ideia é
perfeita. Eu estava o tempo todo pensando em um jeito de
desmoralizá-lo e me esqueci de que podemos usar a religião
dele a nosso favor.
— Como assim?
— Raquel é muito diferente dele.
— E daí?
— Deixe comigo. Já sei o que fazer.
Passados quase dois meses, Clementina finalmente decidiu
aceitar a proposta de Marcos e de seus avós. Um almoço
foi marcado, dessa vez para que todos se conhecessem.
Até então, Marcos não aceitara nada de Graciliano, preferindo
assumir o emprego no barzinho e continuar com sua vida no
morro até que toda a família estivesse disposta a mudar.

Foram dias de muita emoção para Marcos. Na véspera
da visita aos avós, apresentara Raquel à tia e ao pai.
Romualdo achou-a bonita, inteligente, com um futuro promissor,
bem à altura da nova posição de Marcos. Leontina

406


tratou-a bem, mas com frieza, comentando sobre a salvação
da igreja sempre que tinha uma oportunidade.

A muito custo Marcos conseguiu convencer a mãe a
viajar com o pai no mesmo carro. Ela concordou, desde que
Leontina ficasse no meio e ela não fosse obrigada a acompanhá-
lo para manter as aparências.

À entrada da família de Marcos, Graciliano percebeu
que realmente havia mudado. Eram pessoas humildes, pobres,
ignorantes, mas não se incomodou. Disposto a travar
amizade com eles, tratou-os com sincera cortesia, feliz por
estar realmente livre do preconceito.

Não deixou de notar, contudo, a diferença entre eles.
Clementina era reservada, porém, simpática e espontânea.
Leontina, por sua vez, parecia um pouco fanática, mas educada.
Não lhe agradou, no entanto, a atitude interesseira de
Romualdo. A moça o impressionou favoravelmente. Raquel
era uma menina gentil, educada, fina. Era universitária, a
família tinha dinheiro, logo, não era nenhuma caçadora de
fortunas. Um ótimo partido para seu neto.

De volta para casa, no carro de Raquel, foram todos
conversando, cada um dando sua opinião sobre aquela tarde.

— Puxa vida, eles moram numa mansão! — exclamou
Romualdo, impressionado. — Jamais poderia imaginar que
em Belford Roxo existissem casas assim. Pensei que fosse
um lugar de gente pobre.
— Em sua maioria, é mesmo — esclareceu Marcos.
— Mas há gente com dinheiro em todo lugar.
— São pessoas que se habituam ao local, criam raízes
e não querem mais sair — acrescentou Raquel.
— E isso tem alguma coisa de mais? — objetou
Leontina em tom provocativo, visivelmente irritada.
Raquel ia responder, mas Clementina achou melhor
não permitir. Mudando de assunto, comentou:

— Achei-os simpáticos. Pensei que fossem esnobes,
mas até que não são.
407


— Não são pessoas tementes a Deus — observou
Leontina, olhando para Raquel pelo espelho retrovisor. — Pude
observar, pelas conversas de dona Bernadete, que eles talvez
estejam envolvidos com essas coisas de espiritismo.
Marcos e Raquel se entreolharam.

— Por que diz isso? — perguntou ele.
— Ela falava no filho que morreu como se ele estivesse
vivo. Como se a alma dele pudesse nos ver e ouvir. Isso
é coisa do demônio.
Antes que Raquel retrucasse, Marcos tentou tranquilizá-la:

— Deixe de bobagens, tia Leontina. Dona Bernadete
deve sentir muita falta do filho. É por isso que fala como se
ele ainda estivesse vivo.
— É verdade, minha irmã — concordou Clementina.
— Que mãe não sofreria terrivelmente com a morte de seu
filho? A dor deve ser tão grande que é melhor pensar que a
alma dele está nos acompanhando. Você não acha?
— Não. O filho dela está aguardando a ressurreição
dos corpos na segunda vinda de Cristo à Terra. Pensar que
a alma de um morto pode acompanhar a vida dos vivos é
heresia, coisa do chifrudo.
— Está bem, Leontina, deixe disso — cortou Romualdo.
— Ninguém aqui, além de você, acredita nessas bobagens.
— Marcos Wellington sabe do que estou falando! —
inflamou-se ela. — E Clementina também, embora prefira
agora o caminho do pecado.

— Quem é você para falar em pecado? — objetou
Clementina com irritação. — Não é você que está vivendo
em adultério?
Uma pequena discussão quase se iniciou, mas
Romualdo apertou a mão de Leontina e lançou-lhe um olhar
de reprovação, fazendo com que ela se calasse. Seguiram

o resto do percurso em silêncio, cada qual entregue a seus
próprios pensamentos.
408


Depois desse encontro, não foi difícil acertar a mudança.
Graciliano comprou dois apartamentos em nome de
Marcos: um para ele e a mãe, outro para a tia e o pai. Nada
de muito luxo, mas confortáveis e amplos.

Terminada a mudança, Marcos deixou o emprego no
restaurante para trabalhar na empresa do avô. Todos os dias,
após a faculdade, guiava seu carro novo até Belford Roxo,
onde, ao lado de Graciliano, aprendia tudo sobre como dirigir
uma empresa de ônibus. Por insistência dele, ganhava um
salário elevado, com o qual pôde pagar um bom médico e
um hospital particular para fazer a cirurgia de catarata do pai.

o o o

Tudo correra conforme o esperado. Bernadete e
Graciliano sentiam-se gratos à vida por ter-lhes permitido
reencontrar o neto. Era uma graça que não esperavam
alcançar. Reconheciam a ajuda de Deus, mas também a
cooperação de Afrânio, posto em seu caminho para realizar
a tarefa que era parte do plano divino.

No dia seguinte, ao receber o pagamento, Afrânio sentia-
se gratificado não apenas financeiramente, mas porque
conseguira fazer o seu trabalho com eficiência e rapidez.
Havia ainda um ingrediente especial que o deixava muito
feliz: o bem que causara àquela família.

Não era de seu feitio aceitar qualquer caso que lhe oferecessem.
Tinha escrúpulos e não fazia tudo por dinheiro.
Era preciso que seu trabalho fosse útil, não prejudicasse nem
criasse problemas. Assim como fizera com Marcos Wellington,
um dos casos que mais lhe dera prazer em trabalhar.

Dali, Afrânio partiu para outros casos, satisfeito, com
a certeza de que, graças a ele, uma família reconquistara
a felicidade.

409


CAPÍTULO

47

Seguir Marcos não era nada difícil, ainda mais porque
ele não conhecia o irmão de Raquel. Rapidamente, Elói
descobriu o trajeto entre a empresa e seu apartamento na
Tijuca, arquitetando novo plano. Custou um pouco para encontrar
uma amiga de Paloma que aceitasse encenar uma
mentira do tamanho da que ele inventou, mas conseguiu.
Sempre havia quem se interessasse por dinheiro e diversão.

Tudo combinado com Carla, o plano foi posto em
execução. Ainda inseguro na direção, Marcos dirigia devagar,
atento a placas e sinais, sem notar que Carla o seguia
de perto, aguardando o momento oportuno. Um sinal com
fiscalização eletrônica o assustou ao mudar para o amarelo,
levando-o a frear imediatamente. Era a chance que ela
esperava. Carla acelerou um pouco mais e pisou no freio,
entrando direto pela traseira dele.

A colisão fez um estrondo tremendo, atirando o carro
de Marcos para a frente, mas ele conseguiu puxar o freio de
mão a tempo de impedir que o automóvel ultrapassasse o
sinal. Meio atrapalhado com os pedais, o carro morreu em
cima da faixa de pedestres, e ele saltou furioso.

— O que foi que deu em você? — esbravejou ele.
— Por acaso é cega?
Uma moça abriu a porta do carro, gritando em desespero:

— Ai, meu Deus, me perdoe! O que foi que eu fiz? E
agora? Meu pai vai me matar. Que estúpida eu fui! Tão desatenta!
Também com tudo o que estou passando!
Ela parecia tão descontrolada que Marcos se espantou.
Buzinas começaram a soar, estridentes, e uma pequena
retenção se formou atrás deles.

— Vamos estacionar ali — pediu ele, apontando para
uma calçada livre.
Depois de estacionados no meio-fio, Marcos voltou
para perto dela, que parecia um pouco mais calma.

— Perdoe-me, moço — suplicou ela. — Não fiz de
propósito. Foi uma distração, uma coisa boba. Mas não
se preocupe: tenho seguro, vou pagar tudo. Você não vai ter
nenhum prejuízo.
— Tudo bem, não estou preocupado. Basta você me
dar o seu telefone que ligarei depois, para saber em que
oficina posso levar o carro.
Notando que ele, embora não a acusasse, não se mostrava
disposto a uma conversa mais longa, Carla teve que
agir. Abaixou a cabeça, tirou um lencinho de papel da bolsa
e, fingindo que chorava, quase suplicou:

— Será que você pode esperar um instante? Estou
nervosa para dirigir e tenho medo de ficar aqui sozinha.
— Não tem para quem ligar?
— Não posso...
Ouvindo seus soluços fingidos, Marcos apertou o ombro
dela, falando com paciência:

— Tudo bem. Mas não precisa ficar assim só por causa
de um acidente bobo. Você mesma disse que tem seguro.
— Meu pai vai me matar... Ou me expulsar de casa.
De tanto esfregar os olhos com o lencinho, eles se avermelharam
e umedeceram, como se ela estivesse chorando.

— Não precisa ficar desse jeito — retrucou ele, achando
aquilo um exagero. — Afinal, foi um acidente. Seu pai não
vai expulsá-la de casa só por causa disso.
411


— Você não está entendendo — tornou ela chorosa,
seguida e disfarçadamente esfregando os olhos para deixá-
los ainda mais vermelhos. — Não é disso que tenho medo.
Foi o acidente... — ela forçou um soluço. — Bati no seu carro
porque estava com a cabeça no mundo da lua... em Sérgio...
— Sérgio? Não estou entendendo.
— Deixe para lá. Você não tem nada com isso. O problema
é meu, tenho que resolvê-lo sozinha. Perdoe-me. Foi
o desespero que fez eu me abrir com você.
Olhos pregados no chão, ela fungou baixinho, despertando
nele uma piedade inata ante o sofrimento alheio.

— Olhe, não sei do que você está falando, mas se eu
puder ajudar em alguma coisa...
— Não pode, obrigada. Ninguém pode. Você não
entenderia.
— Talvez você esteja enganada.
— Não... Só um evangélico para compreender a gravidade
do meu erro e a intensidade da minha dor.
— Mas eu sou evangélico! — exultou ele.
— Você é? — desconfiou, e ele assentiu. — Jura?
— Juro.
— Não vai me julgar?
— O julgamento pertence ao Senhor. Quero apenas
ajudá-la, se for possível.
Ela o olhava com disfarçada desconfiança, fingindo
hesitar diante de um desconhecido.

— Não o conheço, mas sinto que posso confiar em você.
— E pode mesmo. Por que não vamos até aquela sorveteria
ali? Você poderá me contar seu problema com mais
calma, sem medo. Não vou lhe fazer mal.
— Está bem — concordou ela, após alguns poucos
minutos em que fingia dúvida. — Preciso desesperadamente
de um conselho. Talvez Deus tenha enviado você para
me ouvir e me ajudar. Como são estranhos e misteriosos os
caminhos do Senhor!
412


Juntos, seguiram até a sorveteria próxima. Sentaram-
se, pediram sorvetes, apresentaram-se. Aparentando agora
mais confiança, ela começou a falar:

— A gente pensa que sabe tudo, que nossos pais são
uns tolos ultrapassados, até cair nas armadilhas de Satanás.
É aí que nos vemos envolvidos na sua trama diabólica, feita
exclusivamente para levar nossas almas à perdição.
— Por que está dizendo isso? O que foi que lhe aconteceu
de tão terrível?
— Vou lhe contar se você prometer que não vai me
condenar. Eu mesma já me condeno o suficiente.
— É claro que não vou condenar você. Eu nem a conheço.
— Às vezes é mais fácil a gente se abrir com um estranho,
não é?
— Realmente.
Ela olhou profundamente para ele por alguns instantes,
antes de começar a contar:

— Há algum tempo, conheci um rapaz. Nunca havia
namorado antes, apenas flertara com alguns garotos da minha
igreja. Mas esse não era como os outros. Conheci-o na
faculdade e me encantei. Ele era diferente de tudo o que
havia visto. Bonito, atlético, simpático, inteligente, cativante.
Estudante de odontologia, como eu. Apaixonei-me por ele,
e ele por mim. No começo, tudo ia bem. Meus pais não sabiam
do nosso namoro, não iriam aceitar porque ele era...
— Era o quê?
— Espírita — respondeu ela, em tom quase inaudível.
— Ou macumbeiro, sei lá. Só o que sei é que Sérgio tinha umas
conversas esquisitas, coisas que eu, enfeitiçada, não pude ver.
Sim, porque hoje sei que ele jogou um feitiço em cima de mim
só para... — calou-se, sufocada por um soluço imaginário.
— Para...
— Para dormir com ele — confessou baixinho.
— E você dormiu?
O silêncio aparentemente constrangedor foi a revelação.
413


— Mas isso não foi o pior — sussurrou ela.
— Como assim?
— Por favor, não me peça para dizer. É constrangedor,
vergonhoso. Foi horrível! Uma coisa antinatural, que a Bíblia
condena. Lembro-me das palavras do pastor: "Por isso, Deus
também os entregou a paixões vergonhosas: suas mulheres
transformaram as relações naturais em relações antinaturais"17.
Marcos estava impressionado. Ela conhecia passagens
da Bíblia, sinal de que era muito religiosa. Mal sabia
que aquela fora a única que ela decorara, por ordem de Elói,
para dar um ar de maior veracidade a seu teatrinho ensaiado.
Mas ele também sabia o que significava. Era uma forma
sexual desaprovada pela Bíblia.

De tão ingênuo, não percebeu a armação. Estranhou o
fato de que ela confidenciasse coisas tão íntimas a um desconhecido,
mas não conseguiu detectar os sinais da mentira
em sua fala. É difícil para quem não tem malícia enxergá-la
na atitude alheia. Como de resto, ninguém percebe no outro
características que não possui.

— O que vocês fizeram foi errado — afirmou ele, pouco
à vontade. — Mas pode ser consertado. Você e Sérgio
podem se casar e nunca mais retomar essas práticas. O
sexo natural no casamento é abençoado por Deus.
— Isso não vai ser possível. Sérgio não concorda
em parar.
— Ele não a ama?
— Não sei — desabafou ela, caindo num pranto que
havia muito tentava puxar.
— Vocês precisam conversar. Se ele a ama, vai compreender
e parar.
— Você não o conhece. Sérgio é uma pessoa difícil. E
hoje, passou dos limites.
— O que ele fez?
17 Romanos, 1:26.


— Foi por causa dele que bati no seu carro. Encontramo-
nos em um motel, ele exigiu que eu permitisse aquilo
novamente. Como me recusei, ele me pegou à força
e me obrigou. Eu chorei, implorei que ele me largasse, que
estava me machucando, mas ele não ligou. Quando me soltou,
eu estava arrasada, humilhada. Ele riu de mim, dizendo
que era bobagem, que já havíamos feito aquilo outras
vezes e eu estava fazendo drama. Disse a ele que era pecado
e queria parar. Ele disse que não permitiria e, se eu
me recusasse, ele procuraria meu pai e contaria tudo. Fiquei
desesperada. Vesti-me e saí correndo do motel. Ele nem ligou
quando entrei no carro feito uma louca. Saí desabalada,
cantando pneu, dirigindo sem pensar. Aí você parou no sinal,
eu não vi e bati no seu carro.
— Você devia denunciar esse safado! — aconselhou
Marcos, entre a raiva e a indignação. — Onde já se viu uma
barbaridade dessas?
— Denunciá-lo seria impossível, e ele sabe disso. Não
posso me expor perante meus pais e toda a igreja.
— Mas esse Sérgio não pode ficar sem punição!
— Até parece que alguém vai punir um homem. Sou
maior de idade, fui ao motel porque quis. E ele nunca me
bateu. Como provar que foi à força?
Marcos deduziu que ela devia estar muito desesperada
para abrir-se com ele como se fossem velhos amigos.
Talvez ela fosse uma pessoa só, sem amigos, iludida pelo
primeiro cafajeste que lhe dera atenção. E, quando encontrou
alguém que, embora estranho, era também evangélico,
a afinidade logo surgiu, levando-a a confiar nele.

— Você está certa — disse ele, agora profundamente
penalizado, sentindo imensa empatia por ela. — Não pense
mais assim. Você errou, como todo ser humano. Arrependa-
se de seu pecado e volte para Jesus.
— É o que pretendo fazer. Se eu mostrar que me modifiquei,
você acha que ele irá me perdoar?
415


— Tenho certeza de que sim.
— Ah! Marcos, você nem imagina o que passei. Só
agora compreendo por que meus pais insistem tanto em que
eu namore um rapaz da igreja, uma pessoa com princípios.
Essa gente que se diz espiritualista tem uma conversa macia,
muito liberal, tudo é permitido. Para eles, nada é pecado. E
depois que a gente cede, querem mais e mais, e nós vamos
nos afundando nas furnas do inferno com eles. Tenha cuidado
com essa gente, Marcos. Se um dia conhecer alguém assim,
fuja depressa. São pessoas malignas, com aparência de
boazinhas. Lobos em pele de cordeiro. No fundo, no fundo,
o que querem é desvirtuar nossas almas. São anjos caídos a
serviço de Satanás. Seus gestos doces e sua voz meiga são
os veículos do diabo para enganar os incautos.
Marcos silenciou, pensando em Raquel. Ouvir o relato
de Carla o deixara deveras impressionado. A situação da
moça era muito semelhante à sua. Só que Raquel não era
igual àquele Sérgio.

— Será que todos são assim? — divagou ele.
— Não se iluda, todos são assim. Não há verdade fora
das Escrituras sagradas, e eles rejeitam e menosprezam a
palavra de Deus. No começo, podem parecer muito bons,
compreensivos, amiguinhos. Vão nos envolvendo numa teia
de pecados da qual fica difícil sair depois. Foi o que aconteceu
comigo, mas vou mudar. Juro que vou me voltar para
Jesus e só vou sair com outro rapaz se for para me casar,
caso ele me perdoe.
— Sabe, Carla, eu também tenho uma namorada que
se diz espiritualista.
— Oh...! Perdoe-me, eu não sabia.
— Mas Raquel não é assim. É uma pessoa boa, carinhosa,
compreensiva.
— Sérgio também era. Fazia tudo o que eu queria,
tinha ideias que, a princípio, considerei extravagantes, porém,
coerentes. Ele quis conhecer a minha família, mas eu
416


não deixei, com medo da reação dos meus pais. Sentava-
se sempre comigo na faculdade, me defendia dos comentários
maldosos dos outros colegas, que faziam referências
pejorativas a minha religião. Era prestativo e muito atencioso.
Fazia tudo para mim. Estudávamos juntos, e ele nunca
me contrariava. Embora dissesse que seguia outra crença,
dizia respeitar e aceitar a minha. "Todas as religiões levam
a Deus", dizia ele. Pois sim. O que ele pratica não pode ser
chamado de religião. Falar sobre o universo, cosmo, corpos
sutis, afinidades, energias, consciência, reencarnação...
Tudo são heresias criadas por Satanás para nos iludir. Para
ele, nada é pecado, nem sexo antes e fora do casamento.

Uma luz de alerta se acendeu na mente de Marcos. Era
muita coincidência. Raquel conversava com ele exatamente
sobre aquelas coisas. Nem de longe Marcos imaginava que
Elói, conhecendo bem os pensamentos e ideias da irmã,
instruíra Carla direitinho, orientando-a na escolha das palavras
exatas que deveria usar com ele.

— Acho que já está na hora de eu ir embora — anunciou
ele, o rosto transfigurado pela dúvida.
— Sim, está ficando tarde. Já ocupei demais o seu
tempo com os meus problemas.
— Foi um prazer ouvi-la. Espero tê-la ajudado.
— Você me ajudou muito. Vou terminar de vez com
Sérgio e voltar para a igreja. Ninguém precisa saber o que
aconteceu. Juro que vou me redimir, participar das vigílias,
empregar o meu tempo em orações. Vou modificar a minha
conduta, com sinceridade, e conquistar o perdão de Deus.
E, se ele me julgar digna, pode me permitir encontrar um
bom homem, sossegado e apegado aos valores cristãos,
que me perdoe e me ajude a me redimir dos meus pecados.
— Faça isso. Tenho certeza de que você vai conseguir.
— Vou deixar com você o número do meu celular e apanhar
o seu. Vou verificar com a seguradora em que oficinas
você pode levar o carro e ligo para você. Não se preocupe.
417


— Não estou preocupado. Confio em você.
Depois de trocarem os números de telefone, Marcos a
acompanhou até o carro, surpreendendo-se imensamente
quando ela lhe deu um beijo amistoso na face.

— Isso é por ter sido tão amigo sem me conhecer. No
fundo, é do que mais preciso: de um amigo. Não tenho nenhum.
— Agora tem.
Ela se foi, deixando-o pensativo a respeito de tudo.
Uma comparação com Raquel era inevitável. Carla e ele tinham
muito em comum: eram evangélicos, apaixonaram-se
por pessoas espiritualistas e fizeram sexo antes do casamento.
Mas Raquel, ao contrário de Sérgio, respeitava suas
opiniões e sua religião. Não era fingida nem devassa.


CAPÍTULO


48


Ao encontrar-se com Raquel no dia seguinte, Marcos
estava diferente. O amor ainda era o mesmo, contudo, algo
dentro dele se modificara. O encontro com Carla fizera-o refletir
sobre sua vida, mostrando-lhe o que acontecia quando
se desviava do caminho da igreja. Carla pegara esse desvio
e se dera mal. Iludira-se com um homem que julgava correto.
Não estaria ele fazendo o mesmo com Raquel?

Não, Raquel era diferente. Podia ser liberal, mas era
decente. Ou será que não era? Seus pensamentos eram estranhos,
ousados, heréticos... Afastou essa última palavra da
mente e puxou-a para ele, beijando-a como se desejasse
sufocar a dúvida.

— O que houve com seu carro? — indagou ela, assim
que ele a largou. — Bateram em você?
— Foi. Uma mulher no sinal. Mas está tudo bem. Ela
tem seguro e vai pagar.
— Que bom.
Foram para o motel. Raquel, como sempre, demonstrava-
se apaixonada e calorosa, mas Marcos estava diferente,
frio, distante. Ele sempre fora um pouco comedido,
ainda apegado aos valores religiosos que recebera sobre
sexo, mas costumava entregar-se por inteiro. Naquele momento,
contudo, parecia arredio, reclamando das coisas


que ela fazia, evitando tocá-la ou ser tocado em suas partes
mais íntimas.

Ao final, ele se desvencilhou dela e foi apanhar uma
água mineral, sorvendo-a com avidez. Ligou a televisão e
cobriu-se com o lençol, jogando parte dele sobre o corpo
nu de Raquel.

— O que você tem? — questionou ela, retirando a garrafa
da mão dele e bebendo um gole.
— Nada — respondeu rapidamente e indagou de chofre:
— O que você acha de sexo anal?
Tomada de surpresa, ela respondeu com cautela:

— Particularmente, não aprecio, mas há quem goste e
não vejo nada de mais.
— Você não acha errado?
— Não.
— Nem perigoso?
— Depende. Sem camisinha, pode ser, devido à transferência
de bactérias intestinais.
— Só por isso?
— Só. Por quê?
— Você faria, se eu pedisse?
Ela o fitou espantada. Era a primeira vez que Marcos
lhe fazia perguntas sobre sexo. Com cuidado, ela respondeu:

— Olhe, Marcos, já disse que não gosto muito. Mas,
se for importante para você, tudo bem. Podemos tentar.
Marcos olhou para ela decepcionado. Aquilo nunca lhe
passara pela cabeça, nem de longe, tamanha a repulsa que lhe
causava. Era algo inimaginável para o verdadeiro cristão. Mas
Raquel não era cristã. Nem sabia ao certo o que ela era. Não
devia ficar admirado porque ela concordara tão facilmente.

— Sabia que isso é pecado? — irritou-se.
Ela notou a irritação dele e rebateu indignada:
— Se acha que é pecado, por que me pediu? — Ele
não respondeu. — Não vá me dizer que foi só para saber
qual seria a minha resposta.
420


— E se foi? — desafiou.
— Não estou entendendo. Está querendo me testar?
Isso é ridículo.
— Por quê? Porque você não dá a mínima para a Bíblia
e desafia a lei de Deus com suas heresias?
Ela o encarou com mágoa. Não fazia o estilo de Marcos
aprontar armadilhas.

— O que foi que houve, Marcos? Desde quando você
deu para ser capcioso?
— Não se trata disso — defendeu-se aturdido. — Eu
só não imaginei que você fosse concordar tão rapidamente
com algo que você mesma disse que não gosta.
— Pensei que você quisesse.
— E porque eu quero, você faz?
— Faria porque o amo. Não gosto, mas, em nome do
nosso amor, estava disposta a experimentar. Será que é errado
querer sentir prazer com o parceiro?
— Será que é certo sobrepujar os valores que a Bíblia
nos ensina só para fazer a vontade do outro?
— Você está sendo injusto — queixou-se ela, com
lágrimas nos olhos. — Primeiro, porque não acredito que
seja pecado. Nada que se faz com amor pode ser pecado.
Segundo, porque, mesmo não gostando, me dispus a tentar
não propriamente para agradar você, mas para buscar uma
satisfação plena de nós dois. Se você fica feliz, consequentemente,
fico feliz também.
— E, para isso, você está disposta a se ultrajar.
— Não é nada disso, la tentar algo de que não gosto
em nome do nosso amor. Se desse certo, ótimo. Mas, se
eu não gostasse, logo de início lhe diria, confiante no seu
respeito por mim. Isso é amor, Marcos. Não vê a diferença?
Ele não sabia o que dizer. Fora longe demais, magoara
Raquel por causa do que ouvira de uma desconhecida. E
se não recriminara Carla pelo que fizera, por que recriminar
Raquel por algo que ela nunca chegara a fazer?

421


— Desculpe — falou ele, abraçando-a com cuidado.
— Não devia ter dito isso.
— Devia, sim. Não quero que você esconda nada de
mim. Eu só acho que a armadilha foi desnecessária. Quando
a gente pergunta uma coisa, tem que ter maturidade para
ouvir a resposta. Se não, é melhor nem perguntar.
— Tem razão, perdoe-me. Às vezes me deixo levar
pela minha origem evangélica e me esqueço de que você
não compartilha com as minhas crenças.
— Não é bem assim. Existem coisas que não me convencem,
como essas de pecado.
A observação dela o irritou novamente. Não acreditar
em pecado era uma ótima justificativa para seguir pecando.
Contudo, não queria mais se indispor com ela. Por amá-la
muito, achou melhor engolir possíveis recriminações. Afinal,
quando a conhecera, sabia que ela era assim. Não devia
se surpreender nem se decepcionar com o comportamento
ímpio dela.

— Vista-se — ordenou, tentando não parecer muito
incisivo. — Já é tarde.
— Por que a pressa? Amanhã é sábado.
— Estou cansado. Trabalhei demais hoje.
— O que aconteceu com você, Marcos? Por acaso
não me ama mais?
Arrependido por tê-la ofendido, Marcos mudou o tom
de voz:

— Olhe, Raquel, perdoe-me. Não estou bem hoje. Foram
muitas mudanças na minha vida, tudo aconteceu depressa
demais. E minha tia vive recitando a Bíblia sempre que vai
lá em casa. Para completar, ainda bateram no meu carro.
— Você não disse que a mulher vai pagar?
— Vai, mas fiquei chateado. Meu primeiro carro, novinho,
e acontece isso. Não deixa de ser um transtorno, ainda
mais porque agora o meu tempo é curto.
— Se você quiser, posso levá-lo à oficina para você.

— A mulher ainda vai me ligar para me dar a relação
das oficinas autorizadas pela seguradora dela.
— Tudo bem. Assim que ela ligar, avise-me. Levo o
carro lá e cuido de tudo.
Marcos não conseguiu evitar a lembrança de Carla
contando como Sérgio era prestativo, exatamente como
Raquel estava sendo agora.

— Não precisa se incomodar — objetou ele. — Esse
negócio de oficina não é para mulher.
— Que preconceito bobo!
— Não é preconceito. É um lugar frequentado por homens
sujos, mal-educados, que têm sempre um palavrão
na boca.
— Tudo bem, se você prefere assim. Mas, por mim, eu
não ligo.
Por que será que ela não ligava? Qualquer mulher se
sentiria constrangida em lugares como oficinas, onde a educação
passava longe. Raquel, contudo, dizia não se importar.
E Carla? Será que se sentiria incomodada numa oficina
mecânica? Na certa que sim. Um lugar cheio de homens
não é o mais adequado para uma moça evangélica. Podia
ser para as que se diziam espiritualistas, que não eram dadas
a sentir vergonha. Mas para uma verdadeira moça cristã
não era nada aconselhável.

— Eu levo, Raquel, pode deixar — arrematou ele.
— Está bem. O carro é o menos importante. Estou
mais preocupada conosco.
— Não devia se preocupar — afirmou ele, segurando
a mão dela. — Continuo amando-a como antes.
— Tem certeza?
— Absoluta. Perdoe-me novamente e procure esquecer
todas as bobagens que lhe disse.
— Está certo. Se você tem certeza...
— Tenho certeza.
— Ótimo, porque preciso lhe falar sobre outro assunto.
423


— Que assunto?
— Acho que está na hora de você conhecer os meus
pais. Eles querem muito conhecê-lo. Gostaria de marcar um
jantar lá em casa.
— Vamos dar mais um tempo — pediu ele, pouco à
vontade com a ideia. — Ainda não me sinto preparado.
— Por que não? Qual vai ser a desculpa agora?
— Desculpa nenhuma. Só acho que ainda não é
o momento.
— Nós já estamos namorando há mais de um ano, e
meus pais só conhecem você de nome. Daqui a pouco, eles
vão achar que você é virtual ou os está evitando.
— Deixe de histórias, Raquel. Você sabe que não é
nada disso.
— Não sei, não. Honestamente, Marcos, se você não
quer ir, só pode ser porque não leva a sério o nosso namoro.
— Você sabe que não é isso — rebateu, meio inseguro,
mas depois concordou: — É, acho que você tem razão.
Não temos mais por que adiar esse encontro.
— Você vai gostar dos meus pais. Meu irmão é meio
bestinha, mas deixe-o para lá.
— Tudo bem, acho que consigo lidar com ele. E para
quando você pretende marcar esse jantar?
— Vou ver com a minha mãe e o aviso. Talvez no próximo
sábado ou domingo.
— Certo. Mas vou só, está bem?
— Como você quiser. O principal é a sua presença.
— Ótimo. Marque e me avise.
Depois de deixá-la em casa, Marcos seguiu seu caminho
pensando em tudo o que lhe acontecera nos últimos
dias. Não conseguia evitar a comparação entre Raquel e
Carla. As duas eram lindas. Raquel era muito segura de si,
ao passo que Carla era uma moça frágil e delicada.

Não era isso, contudo, que lhe chamara a atenção em
Carla, mas o fato de ela professar a mesma religião que ele.

424


Podia pertencer a uma vertente diversa, mas a base era a
mesma. Como evangélica, compreenderia todos os conflitos
que ele tivera que enfrentar para namorar Raquel. Mesmo
porque, vivia conflitos semelhantes.

Os pensamentos de Carla guardavam imensa similitude
com os dele. Ela acreditava nas mesmas coisas que ele,
via a vida com os mesmos olhos cristãos. Até mesmo sua
iniciação no sexo fora parecida com a dele. Ambos se deixaram
seduzir por aqueles por quem estavam apaixonados
e que diziam amá-los. Raquel, porém, realmente o amava.
Aquele Sérgio podia ser um cafajeste, mas Raquel era honesta
e correta. E era ela que ele amava.

425


CAPÍTULO


49


Enquanto Marcos agasalhava no coração as dúvidas
que Carla, maliciosamente, nele implantara, ela mantinha
secreto encontro com Elói, quando, às gargalhadas, tramavam
os próximos passos de sua farsa.

— Como vamos fazer para consertar o carro dele? —
indagou ela, dando uma tragada no cigarro.

— Primeiro, você tem que se acostumar a não fumar
— censurou ele, tirando-lhe o cigarro da boca e apagando-o
no cinzeiro. — Onde já se viu uma evangélica fumante?
— Ora, Elói — protestou ela. — Marcos não está aqui.
— Mas vai sentir esse cheiro a distância.
— Quando tiver que me encontrar com ele, não fumarei.
Mas agora, deixe de ser chato e me devolva o cigarro.
Ela retirou o cigarro do cinzeiro e acendeu-o novamente.
Deu uma baforada longa, encarou Elói e continuou:

— Você ainda não respondeu a minha pergunta.
Quem vai pagar o conserto?
— Seu carro não tem seguro?
— Tem, mas assim vou perder o bônus no ano que
vem. Não pensamos nisso quando combinamos a batida.
— Eu cubro o seu bônus. Pago a franquia e mais uma
compensação, além da que já lhe ofereci.
— Tudo bem. Vou ligar para ele, então.

— Você já tem a relação das oficinas?
— É claro!
— Então, o que está esperando? Ligue logo para ele.
Carla apanhou o celular e telefonou para Marcos,
que estava no trabalho. Reconhecendo o número dela, ele
atendeu imediatamente.

— Alô?
— Quem fala? É o Marcos?
— Ele mesmo.
— Oi, Marcos, aqui é a Carla. Lembra? A doida que
bateu no seu carro, na sexta passada.
Ouvir a voz dela lhe causou estranha comoção, e só
então ele percebeu que passara os últimos dias ansiando
por aquele momento.

— É claro que me lembro. Só não acho que você seja
doida.
— Tudo bem, você é mesmo um cavalheiro. Estou ligando
porque já tenho a relação das oficinas. Você quer anotar?
— Pode falar.
Ele ouviu os endereços e tomou nota de um perto de
sua casa, ouvindo atentamente as instruções dela sobre o
procedimento que deveria adotar.

— Anotou direitinho?
— Sim. Obrigado.
— Bem, então é isso. Qualquer coisa, é só me ligar.
Boa sorte e, mais uma vez, desculpe o transtorno.
— Obrigado, Carla.
— Até logo.
— Até...
Ela desligou, deixando-o com o telefone na mão, fitando
o horizonte pela janela. Na outra ponta da linha, Elói quase
saltou sobre ela.

— Você desligou? Ficou louca?
— Temos que ir com calma ou ele vai se assustar e
fugir. Se ele está realmente apaixonado pela sua irmã, não
427


vai se interessar por mim só porque estou dando em cima
dele. Pelo contrário. Vai acabar me achando vulgar e oferecida,
ainda mais depois da história que lhe contei. Ele tem
que pensar que sou frágil e desprotegida, não uma tarada
em busca de sexo.

— Tem razão. Mas como é que você vai fazer para se
reencontrar com ele?
— Simples. Vou telefonar para saber se o serviço ficou
bem-feito. Tenho certeza de que ele vai puxar conversa comigo.
— Acho bom que isso aconteça. E lembre-se de não
fumar e perfumar o hálito. Não queremos estragar tudo por
causa desse maldito vício, não é mesmo?
No fim da tarde, Marcos levou o carro à oficina, deixando-
o lá para ir buscá-lo no outro dia. Quando, na saída, o
celular tocou, ele o apanhou com ansiedade, olhos vidrados
no visor à espera de ver ali grafado o número de Carla. Ficou
decepcionado. Era Raquel. Atendeu com uma contrariedade
que nem mesmo ele percebeu.

— Alô?
— Oi, meu bem. Onde você está?
— Na oficina. Acabei de deixar o carro para consertar.
— Está a pé?
— Estou.
— Vai para casa?
— Vou.
— Quer que eu vá buscar você? Estou morrendo
de saudades.
O interesse dela balançou seu coração. Afinal de contas,
Raquel sempre se importara com ele. No seu íntimo,
sabia que a amava, embora reconhecesse estar encantado
com Carla. Entre o remorso e a saudade, sentiu uma vontade
louca de estar com Raquel.

— Venha — concordou ele, a voz cheia de amor.
— Também estou louco para ver você.
428


Coração aos pulos, Raquel desligou. Nos últimos dias,
Marcos andava estranho. Embora não houvesse mais tocado
no assunto que quase os levara a brigar no motel, ele
demonstrava um desinteresse desconcertante por sexo.

— Oi, meu amor — cumprimentou ele, dando-lhe um
beijo mais caloroso do que o habitual.
Ela correspondeu com alegria, abraçando-o bem
apertado.

— Que saudades! Nem parece que nos vimos ontem.
Na portaria do edifício, Marcos fez sinal para o porteiro
abrir o portão da garagem, a fim de que Raquel estacionasse
o carro numa de suas duas vagas.

— Vamos subir? — convidou ele. — Estou morrendo
de fome. Com essa de passar na oficina, pedi para sair mais
cedo do trabalho e nem tive tempo de almoçar.
Subiram abraçados. Clementina, sentada na sala, assistia
a um filme num canal de TV por assinatura.

— Olá, crianças — cumprimentou ela.
— De novo na frente da televisão, mãe?
— Nunca vi tanta TV, desde que deixei de trabalhar.
E esses canais pagos são uma maravilha. Passa filme toda
hora. Adoro filmes, mas confesso que estou ficando um
pouco preguiçosa.
— Bobagem, dona Clementina — cortou Raquel, dando-
lhe um abraço. — A senhora já trabalhou muito, e ainda
trabalha, cuidando da casa e do Marcos. Seu descanso é
mais do que merecido.
— Estou com fome, mãe. Tem alguma coisa para comer?
— O jantar já está pronto. Vou pôr a mesa.
Ela foi para a cozinha, deixando Marcos e Raquel a sós
na sala.

429


— O que pretende fazer depois do jantar? — indagou
ela, maliciosamente. — Por que não vamos lá para o quarto
e aproveitamos a sobremesa?
— Será possível que você só pensa em sexo? — retrucou
ele rindo, mas com um tom de censura quase imperceptível
na voz.
— Você não gosta?
— Gosto. Mas minha mãe está em casa.
— E daí? Ela sempre está e nunca se importou. Nem sequer
bate à porta do quarto ou pergunta o que estamos fazendo.
— Isso porque ela já sabe e nos respeita. Mas será
que nós a estamos respeitando?
— Se ela não se incomoda, não vejo por que não a
estaríamos respeitando.
— Garanto que, na sua casa, você não faria isso.
— É diferente — disse ela, com uma pontinha de mágoa.
— Eu moro com meus pais, na casa deles. Aqui, sua
mãe é que mora com você, na sua casa.
— Dá no mesmo.
— O que há, Marcos? Por que, de uma hora para outra,
você deu para recriminar tudo o que eu faço? Por acaso
está arrependido de ter começado a me namorar ou simplesmente
está cansado de mim? Seja o que for, pode dizer.
A explosão dela tinha fundamento. Na mesma hora,
ele se arrependeu, não tinha motivos para tratar Raquel daquele
jeito.

— Venha cá, querida — falou com doçura, puxando-a
para si. — Perdoe-me. Não estou arrependido nem cansado
de você. Eu a amo.
— Então, por que está me tratando assim? O que foi
que eu fiz?
— Nada. Não é você, sou eu. Acho que ainda não
consegui digerir direito tudo o que me aconteceu.
— Até quando as mudanças na sua vida vão servir de
desculpas para o seu comportamento arredio?
430


— Não são desculpas. Se quer saber, o que acontece
mesmo é que tenho sentido falta da igreja. Sempre gostei da
igreja, mas, depois que começamos a namorar, nunca mais
frequentei os cultos. Isso está me fazendo um certo mal.
— Não é culpa minha se você não vai à igreja. Mais
uma vez, você usa uma desculpa para justificar seus atos.
Só que não quero que essa desculpa seja eu. Nunca lhe
pedi para não ir à igreja ou a qualquer outro lugar. Você é
livre e respeito sua liberdade.
— Não se importa mesmo que eu vá?
— Você sabe que não. Se quiser, posso até acompanhá-lo.
— Mas não vai acreditar em nada do que ouvir.
— Não se trata disso. Acreditar, eu acredito, só que a
leitura que eu faço das coisas sagradas é diferente. Nós já
conversamos sobre isso muitas vezes.
— Tem razão. Então, acho mesmo que vou voltar a frequentar
os cultos. A palavra do pastor é sempre esclarecedora.
— Ótimo. Só espero que você não mude de ideia
quanto a mim e ao nosso namoro.
— Por que diz isso?
— Parece que o sexo o incomoda. Não vai voltar
atrás, vai?
— É com isso que está preocupada? Com sexo?
— Também.
— Não se preocupe. Quero voltar à igreja para conforto
da minha alma. Não tem nada a ver com você.
Não tinha, de verdade. Tinha a ver com Carla, fato que
Marcos não admitia nem para si mesmo. Sentia falta dos
cultos sim, mas somente porque conhecera Carla, que despertara
nele o desejo de retornar à igreja. E se Carla fosse
sua namorada, em lugar de Raquel? Não precisaria fingir
nem se aborrecer. Não seria tudo perfeito?

Pensar nessa possibilidade assustou-o imensamente.
Gostara de Carla porque ambos professavam a mesma
religião, partilhavam ideias semelhantes. Seria bom manter

431


um relacionamento com ela, não estivesse ele apaixonado
por Raquel. Imaginar a vida sem Raquel abriu um vazio em
sua alma. Não podia substituí-la por nenhuma outra mulher.
Com essa certeza, puxou Raquel e deu-lhe um beijo amoroso,
para depois concluir:

— Daqui a pouco, vamos para o quarto. Quero amar
você muito, mas muito mesmo... para sempre. Você é a
mulher que eu amo.
Dali em diante, ele conseguiu afastar Carla de seus
pensamentos, certo de que jamais tornaria a vê-la ou falar
com ela. No fundo, entendia por que ela mexera tanto com
ele. Mas fora uma impressão passageira, uma fantasia de
momento, algo que não poderia alimentar por faltar o ingrediente
essencial do amor. Era Raquel que ele amava. Se tivera
dúvidas naqueles dias, elas já se haviam dissipado só
com a perspectiva de ficar sem ela.

Terminado o jantar, permaneceram algum tempo conversando
com Clementina, até que ela adormeceu diante
da televisão, e eles se retiraram para o quarto, em silêncio.
Deixaram-se ficar abraçados por muito tempo, mesmo depois
do completo anoitecer, presos na emoção daquele momento.
A faculdade ficou esquecida, o carro batido deixou
de existir e Carla desapareceu sob as carícias de Raquel,
que suplantaram todas as incertezas que Marcos julgava ter.

432


CAPÍTULO

50

Satisfeito com o conserto do carro, Marcos pensou em
ligar para Carla e agradecer. O medo, contudo, levou-o a
desistir. Talvez não fosse uma boa ideia falar com ela novamente.
A fragilidade de Carla poderia levá-la a alimentar
falsas ilusões, caso ele insistisse em procurá-la. Na verdade,
Marcos temia por si mesmo. Receava, mais uma vez, utilizar-
se de desculpas para obter o que realmente queria.

Ela, por sua vez, ligara para a oficina e ficara sabendo
do prazo para os reparos. Aguardou um dia e telefonou para
Marcos, sob o pretexto de saber se o conserto ficara bom.
Era hora do intervalo na faculdade, como Elói lhe dissera.
Marcos, certamente, estaria ao lado de Raquel.

Realmente, os dois, juntamente com Arnaldo e Paulo,
discutiam um caso a uma mesa da cantina. Na outra ponta,
Nelson os olhava com rancor, sem se atrever a se aproximar,
apenas aguardando o resultado do plano. Marcos consultou

o visor do celular e hesitou.
— Não vai atender? — perguntou Raquel, vendo-o parado
com o aparelho na mão.
— Hã? Melhor não.
— Por quê? Quem é?
— A mulher que bateu no meu carro.
— Ora, Marcos, então você tem que atender.

— Por quê? Ela é muito chata.
— Ela deve estar querendo saber se está tudo ok.
Arnaldo e Paulo pareciam não ter se dado conta do telefonema,
de tão entusiasmados com a discussão. Por que
justo Raquel fora notar?

— Tem razão — concordou ele desanimado, pressionando
a tecla do celular. — Alô? Ah... oi, Carla... Sim, foi
consertado... Está tudo bem, obrigado... Tchau...
Desligou rapidamente. Sorriu para Raquel, deu de
ombros, tentando reintegrar-se ao debate com os amigos.
Não conseguiu. Ouvia tudo sem compreender. De vez em
quando, dava uma opinião superficial, que os amigos rechaçavam
com argumentações poderosas. Ele nem ligava.
Estreitou Raquel com o braço e desistiu de falar.

Carla, por outro lado, mal continha a indignação. Esperava
uma recepção mais calorosa. Se Elói soubesse que
ela estava perdendo terreno, ia se decepcionar com seu trabalho,
e adeus dinheiro. Pensando bem, talvez não fosse
isso. Com a namorada ao lado, Marcos não podia falar direito.
Isso significava que não seria boa ideia ligar de novo.
O que precisava fazer era dar um jeito de provocar um
novo encontro casual.

Poucos dias se passaram antes que Carla conseguisse
uma nova investida. A distância, seguiu Marcos em seu carro,
aguardando uma oportunidade de se aproximar. Cedeu
a vez a alguns veículos, impediu a passagem de outros. Por
fim, perto de onde haviam batido, conseguiu posicionar-se
ao lado dele no sinal vermelho.

Distraído como sempre, Marcos não notou a presença
dela. Ouviu uma buzina insistente, olhou pelo espelho, mas
não viu nada. Só percebeu que era ela quando o vidro do
carro ao lado baixou e uma voz familiar chamou o seu nome:

— Marcos! Ei, Marcos, sou eu!
— Carla! — surpreendeu-se ele. — Você por aqui
de novo?
434


— Moro logo ali — apontou para um lugar inexistente.
— E você?
— Também.
— Que coincidência, hein?
Com a mudança do sinal, buzinas impacientes soaram
atrás deles. Carla se adiantou e ligou a seta para a esquerda,
sinalizando que ia parar. Sem graça de seguir adiante,
Marcos estacionou atrás dela. Saltaram quase ao mesmo
tempo, ela, já com a mão estendida para ele.

— Como vai? — perguntou de forma gentil, porém, formal.
— Bem, e você?
— Bem também. E o carro ficou bom?
— Perfeito.
— Você escolheu uma boa oficina — elogiou, vistoriando
a traseira do automóvel. — Nem dá para perceber
que houve uma batida.
— Foi só uma batidinha à toa.
Fingindo embaraço, ela olhou dele para o chão e murmurou
hesitante:

— Sabe o Sérgio? — Ele assentiu. — Terminei tudo
com ele.
— Não me diga! E aí?
— Ele ficou furioso, mas acabou aceitando.
— Parou de ameaçá-la?
— Parou. Acho que se convenceu de que eu não valia
tanto a pena assim.
— Não diga isso, Carla. Você é uma pessoa de muito
valor, principalmente pela sua coragem.
— Eu não teria conseguido sem você.
— Eu?! Mas eu não fiz nada.
— Fez muito mais do que imagina. Você é um bom
cristão, respeita as Escrituras. Foi o seu exemplo que me
deu forças para enfrentar o Sérgio, pedir perdão a Deus e
me modificar.
435


Ele enrubesceu diante da imagem que Carla criara
dele. Há um bom tempo não se considerava um bom cristão.

— Não sei se respeito tanto as Escrituras como você
pensa.
— Como assim? Você me pareceu tão seguro na sua fé.
— Deixemos isso para lá, sim? O importante é que
você conseguiu se libertar daquele infame.
— E me voltei para Jesus. Aleluia!
Ela jogou as mãos para o céu e fechou os olhos em
aparente contrição, mas, na verdade, tentava não encará-
lo, para não cair na gargalhada. Que papel risível estava
fazendo. Esperava que nenhum conhecido a visse naquela
situação absurda, irreal e ridícula.

O teatro, no entanto, surtiu o efeito desejado. Enquanto
ela ocultava a comicidade, ele refletia na fé.
"Também eu devia me voltar para Jesus", pensou. "Há
muito o abandonei."
Com esse pensamento, ele tocou de leve o ombro
dela, que finalmente abriu os olhos.

— Onde fica a igreja que você frequenta? — indagou
interessado.
Prevendo aquela possibilidade, Elói preparara tudo. Fizera
Carla frequentar uma igreja bem grande pelas redondezas, de
forma a dificultar que alguém a reconhecesse. Ela detestava
aquele culto, ou qualquer outro, porém, não tinha jeito. O plano
tinha que sair certinho, ou Marcos não iria se convencer.

— Por acaso é aqui perto — informou ela, vitoriosa.
— Fico muito feliz — fez uma pausa e continuou pensativo:
— Agora veja, o tempo todo você aqui pertinho de mim,
e tivemos que nos conhecer em circunstância tão desastrosa.
— Vai ver já nos esbarramos muito aqui pelo bairro,
mas, como não nos conhecíamos, não nos demos conta.
— É verdade. E agora que nos conhecemos, parece
que, coincidentemente, nos encontramos sempre.
— Não exagere, Marcos. Essa é a segunda vez.

A cumplicidade que antes surgira entre eles começava
a ganhar forma. Marcos se pegou adiando a hora de ir
embora, sua vontade era ficar ali conversando com ela. O
celular dele tocou. Era Raquel. Pela primeira vez, não sentiu
vontade de atender, mas o remorso o incomodou e ele premiu
a tecla correspondente.

— Alô?
— Oi, querido, onde está?
— Estou na rua. Quando chegar em casa, ligo para você.
Desligou apressado e fitou Carla, que parecia sem graça.
— Era a sua namorada?
— Era sim.
— Sérgio sempre queria saber onde eu estava. Ficava
o tempo todo me controlando.
— Raquel não me controla — objetou ele, irritado consigo
mesmo por dar razão a ela.
— Eu não disse isso. Estou falando de Sérgio. Raquel
deve ter outros motivos para ligar para você. Na certa o ama.
— E eu a ela.
Havia um tom de desafio na voz dele que Carla imediatamente
percebeu. Não era ainda a hora de confrontar-se
com Raquel.

— Fico feliz por você. Tem sorte de amar e ser amado.
Propositadamente, ela imprimiu uma nota de tristeza
a suas palavras, despertando nele mais do que compaixão,
um enorme desejo de confortá-la.

— Não fique triste — disse ele, compassivo. — Você
também vai encontrar alguém que a ame.
— Espero que seja alguém feito você, capaz de perdoar
os pecados de uma mulher, mesmo não tendo cometido
pecado nenhum.
— Como você sabe que não cometi nenhum pecado?
— exasperou-se, maldizendo a si mesmo por se deixar incomodar
tanto com o que ela dizia.
437



— Perdão, estou sendo indiscreta — contemporizou
em tom humilde. — Não são comentários que se faça. Não
tenho nada com isso.
— Não, sou eu quem deve lhe pedir desculpas. Acabei
sendo grosseiro sem querer. Mas é que você faz uma ideia um
pouco romântica de mim. Esse homem perfeito não sou eu.
— Não tem importância. O que você faz da sua vida
não é problema meu.
Aflito para remediar a situação e não deixar marcada
uma imagem rude, Marcos acabou se abrindo:

— Mas somos amigos e podemos confiar um no outro,
não é?
— Sim, claro, podemos.
— Pois vou lhe confessar uma coisa, Carla. — Ela o
olhou curiosa, e ele prosseguiu bem baixinho: — Raquel e
eu fazemos coisas semelhantes ao que você e Sérgio faziam.
Ela não era mais virgem quando a conheci, de forma
que sempre nos relacionamos sexualmente.
Carla arregalou os olhos, demonstrando visível surpresa.

— Oh, Marcos! Lamento — balbuciou. — Eu não sabia...
— Não precisa se lamentar. Sou humano como todo
mundo, portanto, falível.
— Mas você é homem. Sempre vai haver uma desculpa
para o que você faz.
— Não é bem assim. Você sabe que temos que nos
manter puros até o casamento. E, assim como você, também
fiz com Raquel coisas das quais não me orgulho.
— Por isso você me compreende tanto! — exclamou
ela. — Porque passa pelas mesmas coisas que eu passei.
— Sim, as semelhanças são muitas. Raquel também
é espiritualista. A conversa dela é muito parecida com a do
seu ex-namorado.
— Sério?
— Tem coisas que ela fala que são iguaizinhas às que
você me contou. Fiquei ressabiado.

— Você acha que ela também está a serviço de Satanás?
— Não creio. Amo Raquel, ela é muito doce e sincera.
Não consigo acreditar que tenha algo demoníaco nela. Mas
que ela fala coisas estranhas, verdadeiras heresias, isso fala.
— Raquel deve ser uma boa moça — tornou ela, sem
muita convicção. — Talvez esteja só iludida com as mentiras
que os enviados do demônio andam pregando por aí. Ela
não deve conhecer as Escrituras, é isso. Sérgio conhecia,
mas dizia que elas haviam sido escritas por homens que
distorciam a palavra de Deus. Onde já se viu?
— Raquel diz a mesma coisa! — Carla emudeceu, e
ele continuou exaltado. — Mas ela não tem nada de demoníaco,
não tem!
— Acalme-se, Marcos, por favor. Ninguém está dizendo
que ela tem. E você não devia mais pensar nisso. O importante
é que vocês se amam.
Ele a olhou em dúvida. Cada vez mais, desconfiava
de Raquel. Amava-a profundamente, mas temia estar sendo
enganado pelo coração e trazendo para sua vida uma
mulher infernal.

— Não fale mais nada, Carla, por Deus. Está me deixando
confuso.
— Sinto muito, eu não pretendia. Perdoe-me, por favor,
e esqueça tudo o que falei. Não devia ter dito nada, sou
uma idiota mesmo! Falo coisas sem pensar... Mas não ligue.
Raquel não é Sérgio...
— Não. Deixe estar. Você não é idiota nem eu tenho
nada que perdoar. É sincera e pura, mesmo depois de tudo
o que passou.
— Olhe, Marcos, não vamos mais falar nisso, está
bem? Eu preciso ir para casa, e você também. Raquel
está esperando o seu telefonema.
— Não sei se quero ir.
— Esqueça tudo o que eu disse, por favor. Se você
brigar com Raquel, vou me sentir tremendamente mal.
439


— Não vou brigar com ela. Raquel é como é, conheci-
a desse jeito. Se alguém foi imprudente, fui eu, que aceitei
todas as suas iniquidades. Mas o coração é tolo, não enxerga
a razão. Raquel não tem culpa. O culpado sou eu, por
amá-la tanto e não conseguir viver sem ela.
— Isso vai passar. Quando ela estiver em seus braços,
verá que o amor de vocês supera tudo.
— Espero.
— Se você precisar de alguém para conversar, pode
ligar para mim. Quero ser sua amiga e retribuir todo o bem
que você me fez.
Ela estendeu a mão para ele, que a tomou e puxou-a,
dando-lhe dois beijinhos no rosto.

— Vou ligar para você. É só aguardar.
— Ligue sim.
Ela saiu com o carro, virando na primeira esquina.
Olhou pelo retrovisor, para se certificar de que ele não vinha
atrás dela. Como ele não apareceu, ela entrou na rua
seguinte, indo para sua casa, distante dali, repleta de satisfação.
Elói ficaria contente.

440


CAPÍTULO

51

Raquel estranhou Marcos não ter ligado, porém, preferiu
não telefonar. Não queria parecer uma daquelas garotas que
grudam no namorado, sem lhe dar chance de respirar. Ela
não era desse tipo, e, se às vezes insistia, era porque se preocupava
com ele. Marcos andava diferente, alternando momentos
de carinho e atenção com outros de frieza e distância.

Esperou até o dia seguinte, quando o encontrou na
faculdade. Logo que Marcos a viu, seu coração disparou.
Estava vivendo um conflito atroz, mas não queria dividi-lo
com ela. Raquel nada disse sobre o esquecimento dele,
apenas correspondeu ao seu abraço. Queria que ele soubesse
que não estava ali para lhe fazer cobranças, só para
dar-lhe apoio no que precisasse.

Quando as aulas terminaram, ele a acompanhou até o
carro, como sempre fazia.

— Já marquei o almoço — anunciou Raquel, com cautela.
— Que almoço?
— Marcos! Esqueceu? O almoço para você conhecer
minha família.
— Ah! Para quando?
— O próximo sábado. Tudo bem?
— Tudo bem.

Depois, não disse mais nada. Conhecer a família de
Raquel não seria uma boa ideia naquele momento, mas ele
não podia agora voltar atrás. Despediu-se dela com um beijo,
seguindo para o trabalho, pensativo.

À noite, quando chegou em casa, encontrou a tia e o
pai aguardando-o.

— Está tudo bem? — indagou ele, estranhando aquela
visita inesperada.
— Tudo, meu filho — respondeu Clementina, dando-
Ihe um beijo na face.
O pai o abraçou e a tia beijou-o também.
— Por que estão aqui? — insistiu desconfiado. —

Alguma coisa aconteceu.

— Seu pai e sua tia querem lhe dar uma notícia — informou
Clementina.
— Que notícia?
— Sente-se, meu filho — pediu Romualdo.
Ele se sentou, pondo-se à espera de que lhe dissessem
algo. Leontina tomou a palavra:

— Bom, Marcos Wellington, estamos aqui porque queríamos
lhe dar a notícia... — calou-se, perdendo a coragem.
— Que notícia? — insistiu ele.
— Sua tia e eu resolvemos nos casar — anunciou
Romualdo prontamente.
— Não me digam!
Ante a surpresa genuína, Marcos olhou para a mãe
com preocupação.

— Por mim está tudo bem — comentou Clementina, percebendo
a inquietação dele. — Estamos divorciados, e você
sabe que não quero mais nada com seu pai há muito tempo.
— Essa situação é inusitada — ponderou ele. — Vocês
têm certeza?
— Absoluta — confirmou Romualdo. — Não que eu
faça questão, mas sabe como é sua tia.
442


— Estamos vivendo em pecado há muito tempo —
lastimou ela.
— Sei, tia, mas a igreja não vai aceitar o casamento de
vocês. Meu pai é adúltero e...
— Sabemos disso tudo, Marcos Wellington — cortou
ela. — Mas estou disposta a me casar mesmo assim.
— Como? O pastor não vai querer celebrar a cerimônia.
— Faz tempo que não vou à igreja — disse ela, com
um certo sofrimento. — O pastor já mandou me chamar várias
vezes, mas não consigo encará-lo. Não teria coragem,
depois de tudo, de lhe pedir que nos casasse.
— Vamos nos casar apenas no civil — contou Romualdo.
— E a senhora vai se conformar com isso, tia? Logo a
senhora, sempre tão apegada às Escrituras?
— Estou disposta a mudar isso também.
— Mudar como? Não se pode mudar o que está escrito.
— Mas posso mudar de igreja.
— A senhora? Mudar de igreja? Não acredito!
— Para você ver do que o amor é capaz — gracejou
o pai.
— Não brinque, Romualdo, isso é coisa séria — censurou
Leontina. — Refleti muito sobre isso, sei que vou sentir
falta da igreja, contudo, não tem outro jeito. Não me atrevo
a pedir bênção para o meu casamento a nenhum pastor.
Contudo, depois de casados, passarei a frequentar outra
igreja, onde, espero, ninguém me pergunte nada.
— Ninguém vai perguntar nada — protestou
Clementina. — Já disse a ela que, se ela quisesse se casar
em outra igreja, nenhum pastor ia perguntar o motivo do divórcio
de Romualdo. Mas ela não quer.
— Repudio a mentira, minha irmã, e você sabe disso.
Uma coisa é calar-me. Outra é mentir.
— Não vejo diferença. Em ambas, está enganando alguém,
ainda que a si mesma.
443


— Não estou me enganando! — objetou Leontina
com veemência. — E estou disposta a acertar minhas contas
com Deus no dia do juízo.
— Por que não deixamos isso para lá? — interveio
Marcos, de forma conciliadora. — Se minha tia e meu pai
estão contentes com o casamento dessa forma, tudo bem.
É o que importa.
— Importa para nós a sua opinião — falou Leontina.
— Sua mãe já disse que não se incomoda. E você?
— Eu?! Se minha mãe não liga, por que eu ligaria?
Vocês são adultos, sabem o que fazem.
— Quer dizer que não se opõe? — tornou Romualdo.
— Não. Se está tudo bem para minha mãe, está bem
para mim também.
— Podemos então dar entrada na papelada? — indagou
Leontina.
— Por mim, podem — respondeu Marcos.
— Ótimo! Amanhã mesmo vamos providenciar tudo.
Queremos nos casar o mais rapidamente possível. Viver em
pecado está me fazendo mal.
Depois que eles saíram, Marcos foi ter com a mãe.

— Tem certeza de que está tudo bem?
Clementina o fitou com os olhos úmidos. Segurando
as mãos dele, disse:

— Está, meu filho. Confesso que, num primeiro momento,
levei um choque. Mas não posso contrariar algo que
eu mesma incentivei. Quando seu pai voltou para casa, sua
tia veio me procurar. Disse a ela que não o queria mais. Por
que agora haveria eu de ir contra o casamento?
— Você não o ama mais?
— Não. Disso tenho certeza. Só eu sei o que já sofri por
causa dele. Por ele me meti na bebida, e foi difícil sair. Foi o
seu amor que me tirou do vício, Marcos Wellington, não ele.
— Mas você não sentiu nada? Até eu fiquei chocado
na hora.
444


— Se alguma coisa senti, foi orgulho ferido. Mas que
direito tenho eu de me sentir assim? Não fui a primeira a tirar
Romualdo de sua tia? Então agora, nada mais faço do que
lhe devolver o amor de sua vida.
— É só por isso que concorda? Porque se sente culpada
por ter tirado meu pai dela?
— Não me sinto culpada. O que quero dizer é que não
posso dar asas ao orgulho, já que, de amor mesmo, não sinto
nada. Ninguém nos pertence, Marcos Wellington, ainda
que nos enganemos assim.
— Você é uma mulher incrível — elogiou ele, beijando-
a na testa.
— Sei, sei — brincou ela, enxugando duas pequeninas
lágrimas. — Vamos deixar isso para lá. Quero saber de você.
— De mim? Estou bem, por quê?
— Não tem falado de seu trabalho na companhia de
seu avô. Está gostando?
— Até que estou. Todos na empresa são educados e
atenciosos, não tenho de que me queixar. Meu avô me trata
muito bem, se esmera para me ensinar tudo. Acabou me
colocando no departamento jurídico. Aos poucos vou me inteirando
de contratos, concessões do governo, direitos trabalhistas.
É interessante.
— Muito bem. E Raquel?
— Está bem.
— Tem certeza?
— Por que pergunta isso?
— Noto que algo está diferente em você. O que é?
— Não tem nada diferente em mim.
— Ah! Tem. Você não me engana. Não quer me contar?
— Não consigo esconder nada de você, não é mesmo?
— Sou sua mãe, conheço-o melhor do que ninguém.
Vamos, conte-me: o que o preocupa tanto?
Marcos se desvencilhou dela e sentou-se no chão, enlaçando
os joelhos.

445


— Sabe o que é, mãe? Conheci outra garota.
— Ah...! Só podia ser.
— Não é o que você está pensando. Essa garota é
muito diferente de Raquel. Mais parecida comigo.
Em breves palavras, ele contou a ela como conhecera
Carla, confessando as dúvidas que o afligiam.

— E agora você acha que Raquel está a serviço de
Satanás, e essa Carla é que é pura?
— Mais ou menos.
— Vou lhe confessar uma coisa, Marcos Wellington.
Quando conheci seu pai, eu também não era mais virgem.
Sendo assim, dormimos juntos muitas vezes antes do casamento.
E sua tia, que é tão fanática, também perdeu a
virgindade com ele. Você acha que alguma de nós duas tem
algo a ver com o diabo?
— Não. Mas é diferente. Você se voltou para a igreja
depois, e minha tia viveu em abstinência esses anos todos.
Foram perdoadas dos seus pecados.
— Qual! Você, um menino tão inteligente, acredita
mesmo nisso? — Ele balançou a cabeça hesitante. — Pois
eu acho isso tudo uma besteira. Não acredito em pecado.
Não dessa forma. O que vale são as atitudes da pessoa.
Se ela age no bem, então está com Deus. Se não, pode-se
dizer que ela própria é o diabo.
— Que coisa, mãe. Parece até a Raquel falando.
— Você sabe o quanto gosto da Raquel. Ela é sincera,
não tem medo de dizer o que pensa. Isso de não ser mais
virgem não tem importância. Quem hoje em dia é? Você
não, espero.
Ele riu envergonhado e protestou num gracejo:

— Mãe! Isso é pergunta que se faça ao filho?
— O que é que tem? Já não lhe falei que não casei
virgem? Nenhum Deus vai me punir por causa disso.
— A igreja a salvou...
— Mentira! Eu só fui para a igreja porque sua tia insistiu.

— Falando desse jeito, parece que a igreja é um mal.
— Não é. Foi bom para mim naquele tempo, não nego.
Evitou que eu caísse na vida, pois eu tinha uma tendência
à libertinagem, assim como foi bom para você, pois o impediu
de aderir ao vício e ao tráfico. O que eu não gosto é
desse fanatismo, dessa mania de achar que tudo é pecado
e que seremos punidos. Você acha que, se Deus nos ama
tanto, vai nos condenar a um sofrimento eterno? Não consigo
acreditar nisso.
— Pois vou lhe confessar uma coisa também, mãe.
Estou sentindo falta da igreja.
— Era só o que me faltava! E eu que achei que agora
você estava começando a ter uma vida normal.
— Talvez vá à igreja da Carla.
— Cuidado, Marcos Wellington. Não vale a pena trocar
uma menina decente feito a Raquel por essa Carla que
você mal conhece. Não é só porque ela é da sua religião
que é boa. Já pensou que ela pode estar mentindo sobre
tudo que falou? Quem lhe garante que as coisas aconteceram
da forma como ela lhe contou? Para mim, parece mais
que ela se entregou ao sujeito e depois se arrependeu ou,
então, ele lhe deu o fora, porque ela deve ser uma chata.
— Mamãe! Não fale assim de quem não conhece.
— Dois encontros não me parecem suficientes para
se dizer que se conhece alguém.
— Pois ela me pareceu bem genuína.
— Sei. Tome cuidado. Pense bem antes de magoar
sua namorada.
— Não pretendo magoar ninguém. Amo muito a Raquel.
— Ama, mas está aí empolgado com essa outra.
— É só afinidade por causa da religião e do que
nós passamos.
— Ela pode ter passado uns maus pedaços, se é que
o rapaz a forçou a alguma coisa. Mas você, não. Ou será
que Raquel o obrigou a dormir com ela?
447


— É claro que não!
— Você foi porque quis, não foi? — Ele assentiu. — E
gostou, não gostou?
— Isso não vem ao caso.
— Vem sim. Você gostou, que eu sei. E Raquel é uma
moça inteligente. Já conversei com ela e acho as ideias que
tem muito interessantes.
— Logo vi. É por isso que você veio com essa conversa.
Já se deixou contaminar pelas birutices de Raquel.
— Não acho birutices. Ela é bem sensata. E você não
devia falar assim dela. Sabia que ela é louca por você?
— Eu sei, mãe. Também sou louco por ela. Não se
preocupe, não pretendo trocá-la por nenhuma outra.
— Ainda bem.
— Boa noite, mãe. Vou tomar um banho e dormir.
— Não vai jantar?
— Não. Comi um lanche na rua.
Depois dos beijos de boa noite, Marcos seguiu para
seu quarto pensativo. Ouvir a mãe lhe fizera tremendo bem.
Não concordava com a opinião que ela formara de Carla,
no entanto, os elogios que tecera a Raquel o deixaram mais
tranquilo. Embora não fosse religiosa, Clementina era uma
mulher muito sábia, com uma visão clara da vida. Sabia que
podia confiar nela.

448


CAPÍTULO

52

Tarde da noite, Elói e Carla terminavam de se vestir
enquanto conversavam.

— Você tem que agir logo! — exaltou-se ele. — Está
demorando muito.
— Acho que não vai dar certo. Quando me vê, sinto
que ele se empolga, mas depois vem a sua irmã e ele se
afasta. Não adianta, Elói. É dela que ele gosta.
— Você é mulher, possui armas para conquistar
os homens.
— Sua irmã possui as mesmas armas. Com uma
vantagem: ele está apaixonado por ela. Assim, fica praticamente
impossível.
— Não existe isso de impossível. O que existe é
a incompetência.
Ela soltou um suspiro desanimado e rebateu
com azedume:

— Então, mostre você que é competente e faça. Eu
estou fora.
— Calma aí, querida — contemporizou ele. — Não
precisa exagerar.
— Olhe aqui, Elói, eu estou me desdobrando para
conquistar o cara, mas não está dando. Ele não quer. Deu
para entender? Ele não está a fim de mim.

— Tudo bem, não precisa ficar nervosa. Eu só acho
que você tem meios de conquistá-lo. E não se esqueça
de que lhe dei muito dinheiro para isso.
— Devolvo tudo, se você quiser.
— Não precisa. Basta armar para cima do Marcos.
Não pode ser tão difícil.
— Lá vamos nós de novo... Quantas vezes vou ter que
repetir que ele não quer?
— Não quer? Vamos ver até que ponto ele é durão.
— Em que está pensando?
— Tive uma ideia. Será nossa cartada final. Se depois
disso ele não cair, desisto. E você pode ficar com o dinheiro.
Carla achou a ideia interessante e concordou que poderia
dar certo. Três dias depois, puseram o plano em prática.
Marcos e Raquel saíam da faculdade quando o celular
dele tocou. O número era de um telefone desconhecido. Ele
atendeu, reconhecendo, no mesmo instante, a voz histérica
de Carla.

— Marcos! Pelo amor de Deus, me ajude! — disse soluçando.
— Estou desesperada. Sérgio me bateu... E agora,
o que é que eu faço? O que eu faço?
Ela chorava descontrolada. Ele olhou para Raquel em
pânico. Não queria que ela ouvisse o choro de Carla.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou a namorada.
Ele não respondeu, mas disse ao telefone:
— Está bem, acalme-se e me aguarde. Já estou indo.
— Mas, Marcos, você nem sabe onde estou...
— Ligue-me daqui a dez minutos, por favor.
Ele desligou. Beijou Raquel e concluiu apressado:
— Sinto muito, Raquel, surgiu uma emergência.
— O que foi?
— Depois conversaremos. Agora tenho que ir, está bem?
Deu um beijo nos lábios dela e esperou até que ela
saísse. Já em seu carro, trancou a porta e aguardou. Exatos
dez minutos depois, o celular tocou novamente.

450


— Marcos? — lamuriou-se Carla, aos prantos, do
outro lado da linha. — Ah! Marcos, sinto envolvê-lo nisso.
Estou desesperada, não tinha a quem recorrer. Sérgio ficou
com ódio e me largou aqui sozinha, sem dinheiro, sem nada.
— Tudo bem, Carla, eu só quero que você se acalme.
Onde é que você está?
— Num motel, na Washington Luiz18 — ela deu o endereço
e continuou eufórica: — Você vem?
— Já estou a caminho.
Assim que ele desligou, Carla olhou para Elói com um
brilho vitorioso no olhar.

— Ele está vindo — falou exultante.
— Ótimo! Vamos logo concluir essa maquiagem.
Tenho que ir embora o mais rápido possível.
— Não precisa de mais nada. Já está bom.
Elói apalpou os falsos hematomas no rosto de Carla e
balançou a cabeça em dúvida.

— Essa maquiagem custou uma nota — comentou.
— Tem certeza de que é à prova d'água?
— De maquiagem, eu entendo. Não se preocupe, não
vai sair. Os machucados não estão ao alcance das lágrimas, e
é claro que não vou esfregar o rosto na água nem deixar que
Marcos fique me alisando. Quando ele tocar, vou dizer que dói.
— Ótimo! Então, vou embora. Não podemos nos arriscar.
— Certo.
— Tome cuidado. Não dê bandeira, ou ele vai perceber.
— Já sei, já sei. Vá logo, ande. Ele deve estar chegando.
Algum tempo depois que Elói saiu, Marcos bateu à porta
do quarto. Carla se olhou no espelho, imprimiu uma expressão
de sofrimento ao rosto e indagou com voz trêmula:

— Quem é?
— Sou eu. Marcos. Abra.
18 Rodovia Washington Luiz.


Ela abriu a porta devagar, os olhos baixos, fingindo
constrangimento. Vestia uma camiseta de malha branca
bem curtinha, além da calcinha. Marcos ficou atônito, tentando
não olhar para o corpo bem torneado de Carla.

— Entre — pediu ela com timidez. — E, por favor, não
olhe para mim.
— Mas o que é isso? — indignou-se ele, levantando o
queixo dela. — O que foi que esse cafajeste lhe fez? Carla,
você tem que ir à polícia! Um sujeito como esse é um criminoso,
não pode andar solto por aí!
— Por favor, Marcos, polícia, não. O que vou dizer a
meus pais? Que um marginal me espancou no motel porque
eu não quis dormir com ele?
— Carla, Carla, por que fez isso? Não disse que tinha
terminado tudo?
— E tinha. Mudei até de celular, para ele não conseguir
mais falar comigo. Mas ele me procurou, disse que
queria conversar...
— No motel?
— Era para termos mais privacidade. Ele me garantiu
que não faria nada.
— E você acreditou?
— Ele disse... — calou-se, engasgada com um falso
soluço.
— Você ainda gosta dele, não é? — ela não respondeu.
— Meu Deus, Carla, o homem é um animal!
— Eu sei...
Ela se sentou na cama, de cabeça baixa, fingindo chorar
de mansinho. Estava com uma aparência tão fragilizada
que Marcos deixou-se envolver completamente pela aura de
tragédia que ela criara. Sentado ao lado dela, puxou-a para
ele, pousando a cabeça dela em seu ombro.

— Não fique assim — confortou ele. — Eu estou aqui.
Sou seu amigo e vou levá-la embora. Onde está o seu carro?
452


— Numa esquina aqui perto — respondeu, aproximando
bem as coxas das dele.
— Então venha — ele quase suplicou, confuso ante
aquele contato perturbador.
— Não posso — sussurrou ela. — Como vou chegar
em casa assim? E meus pais?
— Vai ter que enfrentá-los. Você não pode ficar aqui.
— Vou esperar até amanhã. Compro uma maquiagem,
óculos escuros e disfarço os hematomas.
Ela olhou diretamente para ele, que ficou impressionado
com a coloração excessivamente arroxeada dos machucados.

— Dói muito? — perguntou ele, tocando-os de leve.
— Ui! — fez ela, puxando o rosto para trás e segurando
os dedos dele.
— Desculpe-me.
Ela levou os dedos dele aos lábios, deixando-o transtornado
e surpreso. Marcos tentou puxá-los de volta, mas ela
não permitiu. Aproximou a mão dele de seu rosto, numa parte
não ferida. Depois, voltou a beijar-lhe os dedos, um a um,
encarando-o com um brilho de sedução inocente no olhar.

— Carla, por favor, não...
Ela não lhe deu tempo de terminar a frase. Encostou-
se totalmente nele, beijando-o entre espaçados soluços.
Marcos quis resistir, tentou empurrá-la gentilmente, mas ela
manteve o corpo firmemente colado ao dele.

— Por favor, Marcos, não me rejeite — murmurou.
— Você é a única pessoa que se importa comigo.
Movido mais pela compaixão do que propriamente pelo
desejo, Marcos cedeu ao beijo. Logo estavam se amando,
sem que ele percebesse os cuidados que ela tomava para
não manchar a maquiagem do rosto. Ao final, Marcos deixou

o corpo cair ao lado dela, exausto. Durante uns momentos,
permaneceu calado, fitando-se pelo teto espelhado. Logo
a vergonha e o arrependimento o dominaram. Ver a si mesmo
e a Carla, nus e entrelaçados, causou-lhe indescritível
453


mal-estar. Imediatamente caiu em si, sentindo-se dominar
pelo pânico. Por que fora trair Raquel? Se ela descobrisse,
nunca iria perdoá-lo.

Marcos desvencilhou-se de Carla, sentando-se na cama
para não ter mais que encarar a si mesmo pelo espelho.
Engoliu as lágrimas, temendo pelo futuro. Satisfeito o desejo,
via agora que Carla não representava nada em sua vida. Nem
era assim tão diferente de Raquel. Deixara-se envolver pelas
manhas de um canalha, mas, ainda assim, transara com ele.
Por que achava que Carla não pecara ao fazer sexo antes do
casamento, e Raquel, sim? Raquel, ao menos, não o seduzira.
O que ele sabia realmente de Carla? Nada. Agora, raciocinando
com mais clareza, achava estranho o fato de que
ela tivesse se entregado a ele tão facilmente. Se estava mesmo
arrependida, não devia insistir no pecado, muito menos
provocá-lo. E as coisas que ela fizera não condiziam com
sua condição de menina abusada. Ao contrário, Carla era
uma mulher experiente, fazia sexo com desenvoltura, sem timidez
alguma, utilizando-se de práticas que aparentemente
nem Raquel conhecia. Talvez a mãe tivesse razão, e tudo o

que Carla lhe contara fosse mentira.

Eram desculpas, mais uma vez, ele sabia. Carla po


dia ser mentirosa, mas ele se deitou com ela porque quis.

Ninguém o obrigou. Com aquele breve momento de fraqueza,

podia ter destruído a vida com seu verdadeiro e único amor.

Sentindo as mãos dela em suas costas, Marcos disse

com uma certa aspereza:

— Vista-se. Vamos embora.
— Marcos...
Ela tentou abraçá-lo, mas ele não permitiu.
— Chega, Carla. Nós não devíamos ter feito isso.
Tenho uma namorada e gosto dela. O que aconteceu entre
nós foi mera casualidade. Não significou nada.
— Como pode dizer uma coisa dessas? Foi tudo
tão lindo!
454


— Deixei-me levar pelo momento, mas isso não vai se
repetir, até porque, não pretendo tornar a vê-la.
— Por quê? — perguntou ela em lágrimas. — Marcos,
acho que amo você.
— Isso é impossível. Nós mal nos conhecemos.
— Como não? Você foi o meu salvador, meu único amigo...
— Com quantos homens você dormiu antes de
Sérgio? — disparou ele.
— Como assim? Não estou entendendo. Você sabe
que Sérgio foi o primeiro.
— Não foi o que me pareceu. Para alguém sem experiência,
até que você sabia coisas demais.
— Sabia porque Sérgio me ensinou — revidou com raiva.
— Pelo visto, você aprendeu muito bem.
— Não estou entendendo, Marcos. Por que quer me
humilhar? O que foi que eu fiz? Pensei que você fosse diferente.
Agora vejo que é igual a todos os homens.
Tocado pelas palavras dela, Marcos contemporizou:

— Não quero magoar você, Carla. Perdoe-me. O que
acontece é que eu amo a Raquel. Vamos deixar as coisas
como estão.
— Você não pode fingir que não houve nada entre nós!
— Não estou fingindo. O que houve foi um acidente,
fruto do seu sofrimento e da minha compaixão.
— Nem eu estava sofrendo, nem você demonstrou
estar com peninha de mim quando nos amamos. Deu a impressão
de que sentia prazer.
— Prazer não necessariamente tem a ver com amor.
Não amo você, Carla. Amo Raquel. Vamos esquecer que
isso aconteceu.
Ela abaixou a cabeça, fingindo chorar.

— Não posso esquecer. Não tenho mais como apagar
você da minha vida.
— Sinto muito. Não era para isso acontecer. Vamos
embora.
455


Vestiram-se em silêncio, e Carla engolia o ódio que
sentia dele naquele momento. Depois de pagar a conta,
Marcos levou-a até onde ela havia deixado seu carro.

— Espero que você não me procure mais — pediu
ele, sem olhar para ela. — Foi um erro o que aconteceu, e
você sabe.
— Não fiz nada sozinha. Você transou comigo porque
quis.
— Estou bem ciente disso.
— Está com raiva de mim, mas não o obriguei a nada.
Você não tem de que me culpar.
— Não a estou culpando. Culpo a mim mesmo por ter
sido tão fraco.
— Vai voltar correndo para sua namoradinha? — irritou-se.
— Por favor, deixe Raquel fora disso.
Sem dizer nada, Carla entrou em seu carro e bateu a
porta. Marcos deixou-a sem olhar para trás. Só pensava em
Raquel. Chegou atrasado à empresa, mal se concentrando no
trabalho. O avô perguntou se tudo estava bem, mas Marcos
achou melhor não o envolver em seus problemas emocionais.

Carla voltou para casa exultante, orgulhosa de sua atuação.
Depois de tirar calmamente a maquiagem, ligou para Elói.

— Deu tudo certo — anunciou vitoriosa.
— Vocês transaram? — surpreendeu-se ele.
— É lógico.
— Eu sabia! Meu plano foi infalível, não foi?
— Mais ou menos. Marcos se arrependeu. Está com
raiva de mim agora.
— Isso não importa. Vá procurá-lo amanhã, antes que
ele conte o que fez a Raquel.
— Deixe comigo.

No dia seguinte, ao chegar à faculdade, Marcos mal
conseguia encarar Raquel. Ela o recebeu com o carinho de
sempre, mas percebeu que havia algo estranho na forma
como ele agia.

— Está tudo bem? — indagou.
— Está.
Durante o resto do dia, ele permaneceu quieto, lutando
entre o desejo de contar-lhe tudo e o medo de perdê-la.
Quando o celular tocou, ele não atendeu, reconhecendo o
novo número de Carla no visor. Ela telefonou várias vezes
e ele ignorou todas as ligações. Mesmo quando ela ligou
de um aparelho fixo, ele não atendeu, desconfiado de que
poderia ser ela. Resolveu então não atender mais nenhuma
ligação de números desconhecidos.

A consciência dizia que ele devia contar tudo a Raquel,
todavia, faltava-lhe coragem. O medo de perdê-la era maior
do que o desejo de ser sincero. Tinha agora quase certeza
de que Carla o enganara. Só não entendia por quê.

A maior surpresa veio dois dias depois, ao término das
aulas. Ao chegar ao estacionamento da faculdade, Marcos
teve desagradável surpresa ao encontrar o carro de Carla
parado ao lado do de Raquel. Gelou. Sua vontade foi dar
meia-volta e sumir com a namorada. Não teve tempo, porém.
Carla saltou do carro tão logo os avistou pelo retrovisor.

O sangue fugiu do rosto de Marcos, que puxou Raquel
para trás. Sentindo a resistência dele, ela parou.

— O que foi que houve? Esqueceu alguma coisa?
— Esqueci! — ele quase gritou. — É isso, esqueci...
minha lapiseira.
— Ah! Marcos, dá um tempo. Não vai me fazer voltar
tudo isso só para buscar uma lapiseira que nem deve estar
mais lá. Amanhã compro outra para você.
Marcos maldisse a si mesmo pela resposta infeliz.
Raquel recomeçou a andar, praticamente arrastando-o pela
mão, tagarelando, alheia à presença da outra. Ela abriu a

457


porta do carro e virou-se para se despedir de Marcos, mas
Carla havia-se interposto entre eles.

— Precisamos conversar — falou ela, ignorando o ar
de surpresa de Raquel.
Marcos ficou confuso. Por uma fração de segundos,
seus olhos e os de Raquel se cruzaram. Ela compreendeu
tudo antes mesmo que ele pensasse.

— Agora não — respondeu ele em desespero, lutando
para passar por ela e chegar até Raquel.
— Agora sim — prosseguiu Carla.
— O que está acontecendo? — interveio Raquel, tentando
não acreditar em sua voz interior.
— Pergunte a ele — falou Carla secamente.
Raquel o questionou com o olhar. Ele lhe devolveu outro,
de súplica, de medo.

— Vamos embora, Raquel — implorou.
— Você é mesmo um covarde — disparou Carla. — O
que há? Tem medo de dizer a verdade?
— Não tenho medo de nada — enfureceu-se, encarando-
a com ar hostil. — Suma daqui, antes que eu perca a
cabeça e não responda por mim.
— Está me ameaçando? Vai me bater?
— Não. Vou chamar a polícia.
Ela hesitou por um momento, o suficiente para ele empurrar
Raquel para dentro do carro e correr para o lado do carona.

— Isso, fuja! — gritou Carla. — Mostre a sua namorada
que, além de infiel, você é também covarde.
Marcos bateu a porta do seu lado, aguardando que
Raquel desse partida no motor. Ela, contudo, não se mexia.

— Ande, Raquel — pediu ele. — Ligue logo esse carro.
Raquel o encarou com olhos úmidos. Conhecia, em
seu íntimo, a razão daquele escândalo.

— O que você fez? — exprimiu num sussurro.
— Vamos sair daqui, Raquel. Conversaremos em outro
lugar.
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— Não. Quero saber o que houve entre vocês.
Não foi preciso esperar pela resposta. Com os nós dos
dedos, Carla batia no vidro de Raquel.

— Não se deixe enganar, moça. Esse que está aí é
um cafajeste, canalha, ordinário. Transou comigo, me usou
o quanto quis e agora volta para a noivinha com ar arrependido.
Ele não presta! Safado! Ordinário!
— Isso é verdade? — indagou Raquel, as lágrimas a
um passo de despencar.
— Raquel, por favor...
— É verdade ou não é?
— Não é o que você está pensando...
— É verdade ou não é? — repetiu, sentindo a raiva
tentando dominá-la.
Ele não ousou responder. De olhos baixos, balançou a
cabeça em afirmativa, enquanto Carla continuava a esbravejar
do lado de fora:

— Venha aqui para fora, cretino! Exijo uma explicação...
— Saia — ordenou Raquel, os olhos ardendo, prestes
a transbordar de lágrimas.
— Raquel...
— Saia! — vociferou, debruçando-se sobre ele para
abrir a porta do carona.
Sem alternativa, Marcos saltou. Imediatamente, Raquel
girou a chave na ignição, saindo do estacionamento o mais
calmamente que pôde. Não queria dar a eles o gostinho de
vê-la desesperada. Marcos permaneceu parado, vendo o
carro se afastar com o peito inflado de dor.

— Por que fez isso? — perguntou a Carla, só agora
notando que os hematomas dela haviam desaparecido.
— Nada pessoal.
Certificando-se de que o carro de Raquel já ia longe,
Carla entrou em seu próprio automóvel, deixando Marcos
ainda mais estupefato, sem entender nada. Carla simplesmente
destruía seu relacionamento com Raquel, aparentemente

459


sem motivo algum. Não. Tudo tinha um motivo. Ela não podia
ter entrado em sua vida surgindo do nada. Alguém a colocara
ali. Não era preciso pensar muito para descobrir quem fora.
Todas as evidências apontavam para Nelson.

— Quanto foi que Nelson lhe pagou para fazer isso?
— questionou com raiva, mas Carla já havia ligado o carro
e ido embora.
Pelo retrovisor, viu-o parado no estacionamento, a lividez
do espanto cedendo lugar à vermelhidão do ódio.
Tateando na bolsa ao lado com uma das mãos, ela apanhou

o celular. Ligou para Elói e, assim que ele atendeu, disse
com simplicidade, porém, em tom de vitória:
— Feito.
Foi a última vez que Marcos viu Carla.
460


CAPÍTULO

53

O pastor Euzébio teve uma grande surpresa ao entrar
na igreja. Ainda era cedo, nenhum culto estava programado,
de forma que os bancos estavam todos vazios, à exceção de
um dos primeiros, onde um rapaz orava contrito. Passou em
silêncio para não o interromper, mas, ao perceber que se
tratava de Marcos, não conseguiu conter a curiosidade.

Sentou-se em um banco mais atrás. Podia simplesmente
ir embora, mas algo lhe dizia que Marcos, que não
vinha à igreja havia tanto tempo, estava atravessando algum
problema difícil, ou não teria aparecido fora dos horários
dos cultos, só para rezar. Passados alguns minutos,
Marcos abriu os olhos, sentindo-se melhor, mais tranquilo.
Levantou-se calmamente. Ao se virar, avistou o pastor parado
mais atrás e o cumprimentou:

— Bom dia, pastor.
— Bom dia, Marcos Wellington. Faz tempo que não o vejo.
— É verdade.
— E a sua tia também. Ela não atendeu a nenhum de
meus chamados.
— Nós nos mudamos.
— Fui avisado. E você, como está?
— Não muito bem, para dizer a verdade.
— Alguma coisa em que eu possa ajudar?

— Acho que não.
— Você sabe que pode confiar em mim, não sabe?
Estou à disposição para ajudá-lo a enfrentar seus problemas
e a vida.
— Mesmo que meus pecados sejam muitos?
— Quem não comete pecados não tem problemas. E
qual é o homem que não tem problemas?
Com um sorriso desanimado, Marcos sentou-se ao
lado dele.

— Pastor... — começou de forma hesitante — tenho
feito coisas das quais não me orgulho.
— Que tipo de coisas? — Marcos não respondeu, visivelmente
envergonhado. — Por que não me conta tudo?
— Para começar me apaixonei por uma moça que não é
da nossa fé. Raquel é maravilhosa, mas tem ideias estranhas.
— Essa Raquel é a moça que o afastou da igreja?
— Ninguém me afastou da igreja — protestou ele com
veemência. — Eu só estou sem tempo.
— Sempre há tempo para as coisas de Deus, meu filho.
— Eu sei, pastor, mas minha vida anda meio complicada.
O senhor sabe de tudo, não sabe? De meus pais verdadeiros,
de meus avós em Belford Roxo?
— Fui eu que recebi o detetive e aconselhei sua tia a
contar a verdade. Fiquei muito satisfeito em saber que tudo
acabou bem.
— Meus avós têm sido maravilhosos comigo.
— Mas não são evangélicos, suponho.
— Não.
— Uma pena. Enfim, cada um escolhe seu caminho,
não é mesmo? O mais importante é respeitar Deus e ser
uma boa pessoa.
— Eles são boas pessoas. Quanto a eles, estou tranquilo.
Contudo, desde que conheci Raquel, uma sucessão
de desgraças tem acontecido na minha vida. Minha mãe foi
462


acusada de um furto que não cometeu, perdi meu emprego,
envolvi-me com outra mulher.

— Outra mulher? — surpreendeu-se.
— Uma mulher que eu conheci na rua.
— A que ponto foi esse seu envolvimento com ela?
— Marcos abaixou a cabeça, envergonhado, e Euzébio
prosseguiu: — Você fornicou com ela, não foi? E com sua
namorada também.
— Falando assim, o senhor faz parecer que sexo é
uma coisa feia e nojenta.
— Não é, desde que dentro do casamento. Mas você
não é casado. Nem poderia ser com duas mulheres!
— Eu sabia que não devia ter lhe falado nada — irritou-
se Marcos, erguendo o corpo do banco. — Já começou
o julgamento.
— Não, Marcos, espere, não vá embora. Perdoe-me
se o estou julgando. É que me preocupo com a sua alma.
— Olhe, pastor, eu agradeço, mas agora é tarde. Se
quer mesmo saber, dormi, sim, com Raquel e com Carla,
mas só quanto a esta me arrependo. O que sinto por Raquel
é amor, e não posso me arrepender de amar.
— Fique calmo, meu filho. Encontrarei um jeito de ajudá-
lo. Deus sempre perdoa os que se arrependem sinceramente.
— O senhor não está entendendo. Com todo respeito,
não vim aqui em busca da sua ajuda. Vim apenas me
reconciliar com Deus, conversar com Ele, pedir o seu perdão
pelo que fiz a Raquel. Enganei a mulher que sempre foi
sincera comigo, duvidei de sua lealdade, cheguei mesmo a
pensar que ela estivesse a serviço de Satanás. É disso que
me arrependo.
A situação em que Euzébio se encontrava não era das
mais confortáveis. Fora-se o tempo em que a rigidez levava
a bons resultados. Mais valia ceder para tentar reconquistar
a confiança de Marcos do que perder sua alma para
Satanás. Era preciso ser cuidadoso, medir bem as palavras,

463


para evitar que o rapaz, sentindo-se ofendido, fosse embora
para sempre.

— Muito bem, Marcos — disse ele com cautela. — Se
você está realmente arrependido, Deus irá perdoá-lo. Ele,
mais do que ninguém, pode ler o coração dos homens.
— Sei disso.
— Arrependa-se e ore, pedindo perdão. Depois, case-
se com Raquel.
— É o que pretendo, se ela ainda me quiser.
— Se vocês se casarem, Deus perdoará seus pecados.
Os olhos de Marcos se encheram de lágrimas, que ele
enxugou rapidamente.
— O senhor não faz ideia do quanto amo Raquel —
confessou. — Se ela não me perdoar e não me quiser mais,
não sei o que será de mim. Juro que nunca mais amarei outra.

Comovido com a sinceridade de Marcos, o pastor deu-
Ihe um abraço fraterno e concluiu:

— Não se preocupe. Se ela o ama também, vai perdoá-lo.
— Ah, pastor! O que devo fazer?
— Já experimentou procurá-la?
— Ela não atende o telefone. E não foi à faculdade hoje.
— Uma hora vocês vão se encontrar. Quando isso
acontecer, coloque-se na posição humilde do pecador que
reconhece o seu erro. Não tente rebater o que ela diz nem
se justificar. Assuma o que fez e demonstre arrependimento.
Mostre-lhe o quanto ela é importante, submeta-se ao castigo
que ela quiser lhe dar. Se possível, deixe de dormir com
ela até o casamento. Isso irá ajudá-los a se purificarem.
Marcos deu um sorriso sem graça e não contestou. O
pastor tentava manter sua fidelidade à igreja mudando de
atitude. Combater Raquel não era uma boa tática. O que
ele pretendia era trazê-la para perto. Se eles se casassem
e ela passasse a frequentar a igreja, tudo estaria resolvido.
Mas Marcos, que a conhecia muito bem, sabia que isso seria
praticamente impossível.

464


— Obrigado, pastor — falou Marcos ao final. — Vir
aqui e conversar com o senhor deixou-me bem melhor.
— Ótimo. Eu só quero o seu bem.
— Eu sei. Agora, preciso ir. Estou atrasado para o trabalho.
— Vá, meu filho. Mas volte. E diga à sua tia para vir
também. Precisamos conversar.
— Estamos morando mais longe agora, e não sei se
continuaremos a frequentar esta igreja. Talvez procuremos
outra, mais próxima de nossa casa.
— Que pena! Mas, enfim, o importante é não deixar
de lado os ensinamentos sagrados e manter a fé em Jesus.
Não deixem morrer essa fé em vocês. Procurem outra igreja,
mas não se afastem dela.
— O senhor é um bom homem, sábio e amigo. Vou
sentir sua falta.
— Também vou sentir a sua e a de sua tia. Estou nessa
congregação há mais de vinte anos. Conheço-os há muito
tempo.
— Prometo vir visitá-lo quando puder.
— Não se comprometa com promessas que sabe que
não irá cumprir. Acredito que os sentimentos bons que construímos
com os outros nunca se perdem, mas a distância
cria obstáculos à assiduidade. Tem sempre o trânsito, o cansaço,
a preguiça, a hora. Não faz mal. É parte da vida. Só
espero que as boas sementes que ajudei a plantar no seu
coração frutifiquem em qualquer outro lugar.
— Isso, sem dúvida. Os valores morais que aprendi
com o senhor são para sempre.
— Muito bem, Marcos. Você é um bom rapaz. Sempre
foi. Vá, meu filho, e seja feliz.
— Obrigado — concluiu Marcos, apertando as mãos
do pastor.
Saindo dali, Marcos foi direto para o trabalho, mas não
conseguiu se concentrar, só pensando em Raquel. Tentou
ligar para ela várias vezes ao longo do dia, mas ela não

465


atendeu. Tampouco compareceu à faculdade nos dias que
se seguiram. Desesperado, Marcos pensou em procurá-la
em sua casa, mas o medo de ser atendido pelos pais dela o
impediu. Não sabia mais o que fazer.

— Não estou aguentando mais — queixou-se ele a
Arnaldo. — Raquel não vem mais às aulas. Preciso falar com ela.
— O que foi que houve entre vocês?
— Fiz uma burrada, Arnaldo. Envolvi-me com uma
aventureira.
Em breves linhas, Marcos colocou Arnaldo a par de tudo.

— É, foi uma besteira — concordou o amigo. — Mas
será que ela não irá perdoá-lo?
— Não sei. Ela sumiu.
O professor entrou, silenciando a turma. Sempre que a
porta se abria, o coração de Marcos disparava, na esperança
de que fosse Raquel. Mas nunca era. Os dias foram se
passando, e nada de sinal da moça. Ela não atendia o celular
nem o telefone. Ele até tomou coragem para procurá-la em
sua casa, mas foi informado de que ela não estava. Como
a insistência não era de sua natureza, preferiu respeitá-la e
não a procurou mais.

Certa manhã, ao entrar na sala de aula, encontrou
Arnaldo e Paulo conversando. Cumprimentou-os, sentou-se
ao lado deles, mas não se interessou pela conversa. Até que
Arnaldo o introduziu no assunto:

— Você tem visto o Nelson?
Marcos levantou a cabeça, olhando ao redor.
— Engraçado, agora que você comentou é que reparei
que ele também anda sumido.
Arnaldo e Paulo se entreolharam, e este se adiantou:

— Isso é porque agora ele está estudando no turno da
noite — Marcos ergueu uma sobrancelha. — E Raquel também.
— O quê? Como isso foi possível? No meio do semestre!
— Não é impossível, Marcos. Basta um problema
convincente.
466


— E o problema sou eu? É isso?
Os dois deram de ombros, e Paulo prosseguiu:
— Soube que, assim que ela mudou para o turno da
noite, Nelson pediu a transferência dele.
— Cafajeste — Marcos rilhou entre os dentes. — Não
gosto de ter esses pensamentos contra ninguém, mas acho
que Nelson armou para mim.
— Como assim?
— Pensem bem. Se Carla era tão apaixonada por mim
como dizia, por que iria sumir? Não era o caso de ela aproveitar
que Raquel não quer mais me ver para tentar me conquistar?
— Você acha que Carla estava a serviço de Nelson?
— indignou-se Arnaldo.
— É uma possibilidade.
— Não sei se Nelson seria capaz de uma coisa dessas
— objetou Paulo. — Não é o jeito dele. Nelson resolve tudo
na força. Não tem cabeça nem inteligência para arquitetar
um plano como esse.
— Vocês repararam nas coisas estranhas que me
aconteceram desde que comecei a namorar Raquel? —
prosseguiu ele. — Primeiro foi aquele episódio lamentável
com a minha mãe no Pão de Açúcar. Depois, foram as
acusações de assédio, perdi meu emprego. Por fim, veio
Carla. E agora, depois de tudo isso, finalmente Raquel me
deixa e quem é que surge logo em cena? O Nelson.
— Se foi ele, não agiu sozinho — insistiu Paulo. — Volto
a afirmar que Nelson não tem cabeça para isso. Alguém deve
ter idealizado tudo para ele.
— Quem?
— Antônio? — sugeriu Arnaldo.
— Duvido muito. É outro que não está acostumado a
usar a cabeça.
— Então quem?
— Não sei. Mas é o que vou tentar descobrir.
467


CAPÍTULO


54


Como a concentração de Marcos andava péssima nos
últimos dias, o avô chamou-o à sua sala para uma conversa.
Graciliano recebeu-o com a afetuosidade de sempre, abraçando-
o com carinho.

— O que foi que houve, Marcos? — perguntou interessado.
— Você tem andado estranho ultimamente. Aconteceu
alguma coisa?
— Problemas pessoais, nada com a empresa.
— Então você está com problemas. Será que posso
ajudá-lo?
— Não, obrigado. Estou tentando resolver sozinho.
— É algo com a sua namorada?
— Como é que sabe?
— Meu filho, eu já tive a sua idade. Bernadete foi minha
única namorada, acredita? Quando ela brigava comigo,
eu ficava assim, jururu que nem você.
Marcos achou graça da forma como ele falava e retrucou
com um pouco mais de ânimo:

— O senhor não faz ideia do quanto amo Raquel.
— Ama e não faz nada para tê-la de volta?
— Eu não disse que a perdi.
— E nem precisa. Não sou tolo. Então, o que fez para
tê-la de volta?

— O que posso fazer? Ela não quer falar comigo. Até
transferiu a faculdade para o turno da noite.
— Já experimentou lhe mandar flores? — Marcos meneou
a cabeça, surpreso. — E uma caixa de bombons? E um
bichinho de pelúcia, desses bem engraçadinhos? Ou, quem
sabe, um livro de poemas? Como vê, há muitas maneiras de
agradar uma mulher. Só não mande jóias. Ela pode pensar
que você está querendo comprá-la.
— O senhor acha que adianta? — retrucou Marcos,
bastante interessado.
— Desde que você não escreva um cartão imenso,
cheio de pedidos de desculpas... Um simples eu te amo basta.
— Sabe que o senhor me deu uma ótima ideia?
— Ela pode até nem falar com você ou fingir que não
liga. Mas que vai gostar, isso vai.
— Mas, se ela não falar comigo, de que vai adiantar?
— O amor está presente nesses simples gestos,
e ela vai sentir isso. Aos poucos, o coração magoado de
Raquel vai perceber seu arrependimento sincero.
— E depois?
— Depois, ela vai dar mostras de que você pode
procurá-la.
— Como?
— Pode ser de várias maneiras. Basta você estar atento.
Marcos sentiu como se uma luz se acendesse no mar de
sombras que aparentemente o envolvia. Abraçou o avô com
entusiasmo, pronto para iniciar seu plano de reconquista.

As primeiras flores chegaram à casa de Raquel na manhã
seguinte. Quando ela voltou de sua caminhada matinal,
encontrou-as em um jarro em seu quarto, com um cartão que
dizia simplesmente: eu te amo. Estava assinado por Marcos.

Ela amassou o cartão, atirando-o longe. Depois, pegou
as flores e jogou-as na lixeira, arrependendo-se em seguida.
Mas, como as flores já haviam descido pelo duto de lixo,
não pôde pegá-las de volta. Apanhou, contudo, o cartão.

469


Desamassou-o, leu novamente aquele eu te amo. Lágrimas
lhe vieram aos olhos, ela apertou o cartão contra o peito, ainda
se perguntando como Marcos fora capaz daquela traição.

Dois dias depois, recebeu uma caixa de bombons em
forma de coração, com um cartão que continha apenas as
palavras eu te amo e a assinatura dele. Dessa vez, não a
jogou fora. Abriu a caixa, cheirou-a. Experimentou um bombom,
saboreando-o com prazer, como se tocasse os lábios
de Marcos. Mais uma vez, os olhos umedeceram, extravasando
a saudade que pressionava seu peito.

Na sexta-feira, a surpresa foi redobrada. O auditório
estava aberto para uma palestra sobre direito civil, a ser ministrada
por um importante jurista da atualidade. Toda a faculdade
estava presente, inclusive Marcos, sentado numa das
primeiras filas com Arnaldo e Paulo. Ele olhou para ela e sorriu,
mas não fez nenhum gesto que indicasse aproximação.

A presença dele deixou-a desconcertada. Na mesma
hora, seu coração perdeu o ritmo, numa aceleração frenética
que quase a fez tropeçar. Nelson também notou que ele
estava ali, cerrando os punhos com ódio, louco de vontade
de acertar-lhe um murro.

Vê-lo despertou ainda mais a saudade em Raquel.
Observava-o discretamente, acompanhando todos os seus
passos. Ele estava tranquilo, aparentemente desinteressado
dela, mas Raquel sabia que ele apenas fingia. Quando, por
vezes, ele se virava para trás, seus olhos se cruzavam, e era
como se um mundo de emoções os convidasse a viver.

O final da palestra foi como o despertar de um sonho.
Marcos se despediu dela com um aceno, que ela respondeu
mais entusiasticamente do que pretendia. A seu lado, Nelson
se remoía por dentro, sem conseguir evitar o despeito.

— Não sei o que ele veio fazer aqui — comentou
com raiva. — Não estuda de manhã?
— A palestra é para todos os alunos — defendeu ela.
— Não importa o turno.
470


Nelson tentou não pensar em Marcos. Queria atrair a
atenção de Raquel só para si.

— Quer ir a um cinema mais tarde? — convidou.
— Hoje? Acho que não. Já está tarde.
— E amanhã?
— Não sei. Por que não me telefona?
Ele telefonou. Era sábado, mas ela não quis sair.
Deliciava-se com as poesias de Vinícius de Moraes que
Marcos lhe enviara, lendo para si mesma:

"No entanto a tua presença é qualquer coisa como a

luz e a vida..."19

Era a primeira vez que alguém lhe enviava poesias, gesto
que ela achou de um romantismo extremo. Deliciava-se tanto
com os versos marcados por ele que ninguém conseguiria
tirá-la dali. Ouviu batidas na porta, e Elói entrou em seguida.

— O Nelson está ao telefone — anunciou. — Quer falar
com você.
Levantando os olhos da leitura, ela apanhou o fone da
mão do irmão. Enquanto falava com Nelson, Elói puxou o
livro e folheou-o, notando as várias marcações românticas
e a dedicatória feita por Marcos. Com o sangue fervendo,
perguntou irritado, assim que ela desligou:

— Desde quando você se interessa por poesia?
— Desde que Marcos as manda para mim.
— Vocês não terminaram? — Ela não respondeu.
— Nelson não vai gostar de saber disso.
— Nelson não é nada meu. E agora, dê-me licença,
sim? Quero terminar de ler.
Elói fechou a porta furioso. Nelson estava facilitando
demais, dando espaço para que Marcos enchesse Raquel de
presentinhos idiotas.

19 Extraído do poema Ausência, em Antologia Poética, Livraria José
Olympio Editora, 25a edição.


Embora ela ainda estivesse aborrecida com a traição
de Marcos, acostumara-se a receber seus presentes. E se
ligasse para ele a fim de agradecer? Não seria nada de mais,
apenas um gesto de educação. Segurou o celular na mão,
pensando se devia ou não ligar. Olhou para sua escrivaninha,
cheia de flores que ele lhe mandava. Marcos devia estar
muito arrependido para enchê-la de presentes daquela
forma. E sempre coisas delicadas. Bonito, inteligente, simpático
e agora rico, podia ter as mulheres que desejasse.
Contudo, persistia tentando reconquistá-la. Talvez devesse
lhe dar uma chance. Resolveu ligar.

Ele atendeu com voz trêmula, visivelmente se esforçando
para conter a explosão de alegria.

— Raquel! Que surpresa maravilhosa!
— Estou ligando para agradecer os presentes que
você me mandou. São todos lindos.
— Não foi nada. É só uma forma de lhe mostrar o
quanto a amo.
— Será que me ama mesmo?
— Você ainda duvida?
— Não sei. Não depois de tudo o que você fez.
— Por que não conversamos e me deixa explicar?
— Explicar o quê? Que você me traiu com aquela mulherzinha
à toa?
— Não é bem assim, Raquel. Alguém armou para
mim e...
— Armou para você? Essa é muito boa! Arranjando
desculpas, como sempre.
— Carla não significou nada. Por favor, Raquel, deixe-
me explicar. Foi tudo uma armação de Nelson.
— De novo com essa história? Não dá mais, Marcos.
Nelson pode ser um grosseirão, mas não é justo você tentar
se justificar seus atos colocando a culpa nele.
— Não é nada disso.
472


Todo o romantismo que ela vira nos agrados de Marcos
se perdeu nas palavras inúteis dele. Seria muito mais fácil
ela aceitar que ele tivera um deslize se ele fosse sincero.
Mas tentar colocar a culpa em outra pessoa lhe parecia indigno,
um ato de desespero em nada condizente com os
princípios de Marcos.

— Olhe, Marcos, esse assunto já morreu — rebateu
ela com frieza. — Só eu sei como me senti naquele dia.
Agradeço o livro e as flores, mas não tente me convencer da
sua inocência. Você, como sempre, procura se safar com alguma
desculpa. Chega. Acabou. E, por favor, não me mande
mais presentes. A partir de hoje, não os aceitarei mais.
Ele desligou arrasado. Bem que o avô o avisara. Estava
tudo indo tão bem, por que ele tinha que acusar Nelson,
ainda mais sem provas? E agora, o que faria? Se não podia
lhe mandar presentes, como fazer para reconquistá-la?
Precisava pensar em algo que a sensibilizasse e que ela não
se atrevesse a devolver. Mas o quê?

A ideia surgiu de repente, quando ele fazia uma pesquisa
na internet. Uma foto que ele vira num site. Conhecendo Raquel
como conhecia, tinha certeza de que ela ficaria encantada com

o presente. Era algo que ela, mesmo que não aceitasse, não
poderia jogar fora. Teria que ir, pessoalmente, devolver.
No fim da tarde de sexta-feira, o presente chegou. Era
uma caixinha vermelha, pequena, amarrada com um imenso
laço de fita dourada. Mesmo contrariada, a curiosidade foi
maior. Raquel soltou o laço, levantando a tampa. Levou um
susto. De dentro, uma gatinha angorá, branca e de olhos azuis,
a fitou com espanto, toda trêmula. Soltou um miado fraquinho,
sedutor, que logo a encantou. Raquel não resistiu. Apanhou a
gatinha no colo. Verificou a coleirinha vermelha que ela usava e
que exibia uma plaqueta com seu nome: Raquel.

— Eu não acredito! — entusiasmou-se ela. — Veja, mãe,
Marcos me deu uma gatinha com o meu nome. Ele é louco!
473


— Nós não podemos ter um gato em casa! — objetou
Elói com raiva.
— Por que não? Ela é tão bonitinha! Posso ficar com
ela, mãe?
— Por mim, tudo bem, desde que ela não suje a
casa toda.
O cartão vinha com o costumeiro eu te amo. Raquel abraçou
a gatinha, sentindo-lhe a maciez do pelo e a língua áspera.

— Ela é uma gracinha. Está até me lambendo. Acho
que gostou de mim.
— Isso vai dar é trabalho — replicou Elói, de má vontade.
— Odeio gatos. Só mesmo um idiota feito o seu namoradinho
para lhe mandar um presente de grego desses. E
aqui em casa nem tem lugar para ela.
— Ela vai ficar comigo, no meu quarto.
— Quero só ver quando ela começar a emporcalhar tudo.
— Ela não vai fazer isso. Gatos são limpinhos. Vou sair
agora mesmo para comprar ração, caixa de areia e outras coisas.
— Vou com você, filha — anunciou Ivone. — Preciso
dar uma passada no shopping.
— Ótimo.
— Então vamos.
— Vou deixar a gatinha no meu quarto, Elói. Nem se
atreva a lhe fazer algum mal.
Depois de acomodar a gata no quarto, Raquel saiu em
companhia da mãe. Na garagem, experimentou a chave,
que não abriu a porta do carro, só então percebeu que apanhara
o chaveiro errado.

— Ora essa, mas que azar. Trouxe a chave do carro
de Elói. Espere só um instante, mãe. Vou lá em cima pegar
a minha.
Sem nenhum tipo de preocupação ou desconfiança,
Raquel voltou ao apartamento. Ao passar pela sala, ouviu a
voz do irmão ao telefone. Ele estava sentado no sofá, com
a televisão ligada, de frente para a janela, e não viu quando


ela entrou. Raquel não teria se detido para ouvir, não tivesse
ele pronunciado o nome de Nelson:

— É o que estou dizendo, Nelson. O idiota agora mandou
uma gatinha para ela. E ela, a tonta, se derreteu toda. É
nisso que dá a sua pasmaceira. Por que não faz nada? Está
esperando o quê? Que ela volte com Marcos? — Fez-se silêncio,
provavelmente porque Nelson respondia alguma coisa,
até que Elói prosseguiu: — E daí? Você está perdendo
terreno. De que adiantou eu gastar meu dinheiro com a Carla
se você não faz a sua parte? — Novo silêncio, nova resposta
de Nelson. — O que quero que você faça? Que tome
uma atitude de homem! — Pausa. — Não, não vou contratar
Carla novamente. Não vai mais adiantar, Marcos não é bobo.
Você agora tem que se virar sozinho. Já está tudo pronto, só
depende de você. Vire-se!
Elói bateu o telefone e desligou a televisão. Ao se virar
para sair, seu corpo todo gelou. Em pé atrás do sofá, Raquel

o fitava em choque.
— Elói, o que você fez? — esbravejou. — Que história
foi essa que eu ouvi?
Mudo de espanto, Elói passou por ela feito uma bala.
Raquel segurou-o pelo braço, olhando-o com ódio.
— Largue-me, Raquel — disse ele entre os dentes. —
Não lhe devo satisfação da minha vida.

— Eu ouvi o que você disse. Você pagou essa Carla
para seduzir Marcos e aprontar aquele escândalo? Foi isso?
Mas por quê? Só para eu voltar com Nelson?
Nesse momento, a mãe entrava em casa, preocupada
com a demora de Raquel. Vendo os filhos em posição de
guerra, assustou-se e correu a interceder:

— O que está acontecendo aqui? Vocês estão brigando?
— Pergunte ao Elói o que ele fez.
Ivone olhou para o filho sem entender, mas ele não
disse nada.

475


— Vamos, conte a ela o que você fez — desafiou
Raquel. — Não foi homem para pagar a vagabunda? Pois
seja homem agora para admitir.
— Não tenho que admitir nada — rosnou ele, puxando
o braço.
— Covarde! Entendi bem o que você fez. — E, virando-
se para a mãe, revelou: — Elói pagou uma vadia para
seduzir Marcos, transar com ele e fazer escândalo na porta
da faculdade. Tudo isso para eu voltar com Nelson. Por quê?
— Elói! — indignou-se a mãe. — Você realmente fez isso?
— É o que Raquel está dizendo.
— Eu ouvi! — confirmou ela. — Cheguei aqui para buscar
a chave do carro, e ele estava ao telefone com Nelson.
Não minta, Elói, eu ouvi tudo!
Não adiantava mais tentar esconder. Elói replicou em fúria:

— Fiz mesmo, e daí? Por culpa sua, Raquel. Onde
já se viu uma moça branca e de classe envolvida com um
negro pé-rapado e favelado? Não podia permitir que você
manchasse o nome da nossa família.
— Que preconceito! — indignou-se Ivone. — Meu filho,
onde você aprendeu a ter preconceito? Em nossa casa
que não foi.
— Ele pode ter o preconceito que quiser — interveio
Raquel. — Desde que não prejudique ninguém, muito menos
faça armações para destruir a vida dos outros. Que coisa
feia, Elói! Digna de um cafajeste. É isso que você é? Meu
irmão é um cafajeste?
— Veja lá como fala, Raquel! Não vou permitir que ninguém
me ofenda dessa maneira. Ainda que minha própria irmã.
— O que você vai fazer? Contratar alguém para dar
um jeito em mim, assim como contratou uma prostituta para
seduzir o Marcos?
— Não me aborreça, Raquel. Foi para o seu bem.

— Para o meu bem? Essa é muito boa. Agora compreendo
tudo: o furto no Pão de Açúcar, as garotas fazendo
queixa de Marcos... Você queria destruí-lo, não é?
— E daí? É o que ele merece.
— Então você admite?
— Admito. E qual o problema? Estava apenas tentando
defender minha família. A mãe dele é gentinha, não
é ninguém especial. E quem garante que ele não passou
mesmo a mão naquelas garotas? Quanto a Carla... Bom, ele
transou com ela porque quis. Ninguém o forçou. Você devia
me agradecer.
Foi uma afronta. Raquel, descontrolada, deu-lhe um
bofetão na face e, olhos em chamas, esbravejou:

— Canalha! Tenho vergonha de dizer que sou sua irmã.
Ela deu as costas aos dois, deixando Elói a cargo da
mãe. Apanhou a chave de seu carro, pegou a gatinha no
colo e saiu desabalada. O irmão tinha razão quando disse
que Marcos dormira com Carla porque quisera. No entanto,
diante das circunstâncias, ele merecia uma chance de se
explicar. E ela agora estava disposta a ouvir.


CAPÍTULO


55


Raquel nunca sentira tanta raiva em sua vida. Nem
quando descobrira a traição de Marcos. Ser enganada pelo
namorado era algo realmente doloroso, mas os amores podiam
se alternar na vida com a mesma intensidade. Já o
irmão era o seu sangue. Um namorado ou marido podiam
deixar de sê-lo. Um irmão, não.

Chegou em frente ao prédio em que Marcos residia com
a máxima rapidez possível. Estacionou e olhou para o alto do
edifício, tentando localizar a janela dele. Estava acesa, o que
foi um alívio. Ele já havia voltado do trabalho. Ela apanhou a
gatinha e trancou a porta do carro. O porteiro já a conhecia,
de forma que ela não teve dificuldade em subir sem ser anunciada.
Tocou a campainha, Clementina a recebeu.

— Ora, Raquel! — exclamou ela com alegria. — Que
surpresa agradável! Marcos vai ficar feliz em ver você.
— Ele está?
— Chegou agora do trabalho. Está no quarto.
Quando Raquel passou, Clementina afagou a cabecinha
da gata, dando mostras de que sabia da história. Ela
bateu à porta do quarto, mas ninguém respondeu. Deitado
em sua cama, com fones no ouvido tocando alto um gospel,
ele não escutou. Raquel bateu novamente. Como ele não
atendesse, ela abriu a porta devagarzinho, espiando para


dentro. Marcos estava deitado de costas, o braço encobrindo
os olhos, os pés sobre a cabeceira da cama, balançando
levemente ao ritmo da música.

Ela entrou sem fazer barulho, pousando a gatinha, suavemente,
em cima dele. Ele abriu os olhos espantado, surpreendendo-
se mais ainda com o animalzinho em seu peito.
Não sabia se devia sentir-se alegre ou preocupado. Retirou os
fones do ouvido, sentou-se, deixando o animal em seu colo.

— Raquel... — sentiu a voz faltar e engoliu em seco.
— Veio devolver a gata?
— Não. Vim para conversar com você. Posso?
— Você pode tudo — disse, embevecido.
Raquel sentou-se ao lado dele e apanhou a gatinha.
— O que deu em você para me mandar um presente
desses? — indagou ela, virando o animal para ele.
— O que melhor do que uma gatinha para alegrar outra
gatinha?
— Quanta originalidade! — zombou ela, mas com ternura.
— Sei que você gosta de gatos. Nunca me esqueço
daquele dia no Pão de Açúcar. Quase perdi você para aquele
vira-lata.
— Não fale assim. Ele era tão bonitinho!
— Eu sei. Como você.
Sem conseguir ocultar o rubor, Raquel disse sem jeito:
— Ela é linda. Obrigada.
— Quer dizer que vai ficar com ela?
— Quem é que resiste a uma coisinha dessas? Até minha
mãe se apaixonou por ela. — Marcos sorriu de prazer, e
ela prosseguiu: — Mas não foi exatamente por isso que vim
até aqui.
— Não?
— Na verdade, queria que você me contasse o que
houve entre você e aquela... — calou-se, sem coragem de
dizer o nome de Carla.
479


Para Marcos, era a chance que ele tanto esperava.
Contudo, ver-se diante de Raquel sem nenhum preparo
para falar da outra causou-lhe um certo pânico, que ele teve
que conter para não perder a namorada de vez. Era preciso,
sobretudo, não acusar ninguém para não parecer que ele,
mais uma vez, buscava justificativas para seus atos.

— O nome dela é Carla... — começou, num esforço
tremendo para não perder a voz. — Eu a conheci por acaso...
ela bateu na traseira do meu carro.
Sem omitir nenhum detalhe nem tentar diminuir sua participação
nos eventos, Marcos narrou-lhe tudo, desde o aparentemente
casual acidente até seu último encontro na faculdade.

— Sei que foi uma estupidez... — balbuciou ele, olhos
marejados. — Não adianta dizer que eu não queria.
— Se não quisesse, não teria ido até o motel.
— Acredite, Raquel, até então, eu estava sendo ingênuo.
Achava que iria tirá-la de lá e levá-la de volta para casa.
Nem me passou pela cabeça encontrá-la seminua, pronta
para me seduzir. Eu pensava que ela gostava do tal Sérgio,
que acho que nem existe. Só sei que depois daquele episódio
na faculdade, ela nunca mais apareceu.
— Por que foi vê-la novamente? Não podia simplesmente
consertar o carro e nunca mais falar com ela?
— Confessar é difícil para mim, mas eu estava realmente
impressionado com ela. Ela me pareceu tão linda, tão
frágil... Mas não foi isso o decisivo para eu me envolver com
ela. Foi eu pensar que ela era evangélica e acreditava nas
mesmas coisas que eu.
— E o que o fez mudar de ideia?
— O amor que sinto por você. Podia estar confuso por
causa dessa coisa de religião. Mas, assim que terminei de
transar com ela, dei-me conta do que havia feito. Senti meu
corpo todo vazio, a garganta embolada, o coração comprimido.
Naquele momento, tive certeza de que era você que
480


eu amava e imediatamente me arrependi. Foi uma fraqueza,
Raquel, não um ato de amor.

— Compreendo.
— Por favor, diga que me perdoa. Estou sofrendo muito
sem você.
Por alguns segundos, Raquel não fez nada além de
olhar nos olhos dele. Acreditava em tudo o que ele dissera.
A sinceridade dele era inquestionável, suas palavras, autênticas.
Não tinha como duvidar.

— Sabe, Marcos, o que mais me doeu não foi a traição.
Foi achar que você não me amava mais.
— Como pôde pensar uma coisa dessas, Raquel?
Você é tudo para mim.
— Nem tanto. A traição traz para o círculo energético
do casal uma vibração estranha e oportunista, capaz de se
aproveitar dos momentos de fraqueza para gerar desequilíbrio.
Foi exatamente o que aconteceu. Seus questionamentos
sobre religião favoreceram a atuação da energia interesseira
de Carla, e a minha raiva facilitou o desentendimento.
— E como se conserta isso?
— Com o perdão, que é um dos muitos frutos do amor.
— Você me perdoa?
— Como poderia não perdoar alguém que está sendo
verdadeiro? É claro que fiquei magoada e triste. Mas conhecendo
a vida espiritual como conheço, considero que a traição
aconteceu por um desequilíbrio qualquer de nós dois.
Ninguém é vítima. E não acho justo nem válido terminarmos
o nosso relacionamento por causa do orgulho.
— Orgulho?!
— É o orgulho que impede o perdão. Mas, se há amor,
o perdão há de conviver com ele.
— Você me perdoa mesmo? — insistiu ele.
— De corpo e alma.
Beijaram-se com ardor, cada vez mais conscientes
do quanto se amavam. Não demorou muito, estavam nos

481


braços um do outro, concretizando o que sentiam. Após o
ato de amor, permaneceram abraçados, Marcos acariciando
os cabelos de Raquel. A gatinha, posta momentaneamente
de lado, fora colocada de volta em cima da cama, ronronando
com as carícias que ambos lhe faziam.

— Tem algo que preciso lhe dizer — anunciou ela,
olhando-o gravemente.
— O que é?
— Pensei muito se lhe contar traria algum benefício,
mas não acho justo você passar o resto da vida sem saber o
que realmente aconteceu.
— Do que está falando?
— Dos incidentes dos últimos tempos.
— Como assim?
— De Carla, das garotas, do furto envolvendo sua mãe
no Pão de Açúcar.
Marcos sentou-se, surpreso.

— Você sabe o que aconteceu?
— Descobri hoje. Tenho até vergonha de lhe contar, já
que Elói é meu irmão.
— Seu irmão? — espantou-se ele. — Mas eu nem conheço
o seu irmão.
— Elói é amigo de Nelson e não suporta você. Foi por
puro preconceito que armou tudo isso para nos separar. Eu
ouvi a conversa toda ao telefone.
Diante de um Marcos espantado e atônito, Raquel narrou
tudo o que descobrira sobre o plano de Elói.

— Foi por isso que você resolveu me procurar? — indagou
ele.
— Achei que devia ao menos dar-lhe a chance de se
explicar. Fiz mal?
— Ele a abraçou novamente e falou com emoção:
— Acho que devemos nos casar.
— Casar?! Mas ainda estamos estudando!

— Agora sou um homem rico. Tenho um emprego e
um futuro na empresa do meu avô. Mais tarde, pretendo
abrir meu próprio escritório de advocacia e ajudar as pessoas.
Com dinheiro, poderei fazer isso. Vou continuar a obra
do meu avô, mas vou conciliá-la com meus próprios projetos
pessoais. Para isso, vou precisar de ajuda. E quem melhor
do que a minha esposa para me auxiliar nesse sonho?
— Além de me propor casamento, está me oferecendo
um emprego?
— Permanente — brincou ele. — Ambos, o casamento
e o emprego.
— Ah! Marcos...
Após um beijo longo, ele questionou:
— Esse ah quer dizer que aceita?
— O que você acha, tolinho? Vamos logo contar a
sua mãe.
Foi um momento de prazer e alegria. Clementina dividiu
com eles aquela emoção, partilhando de uma felicidade
que também lhe pertencia. Raquel passou a noite com
Marcos. No dia seguinte, ligou para a mãe e anunciou em
breves palavras:

— Mãe, Marcos e eu queremos convidar você e papai
para almoçar conosco. Finalmente vão conhecê-lo.
— Está bem, minha filha. Onde vai ser o encontro?
— Aqui mesmo, na casa dele, por volta de uma hora.
Vocês podem vir?
— Tudo bem. Estaremos aí.
— E, por favor, não tragam Elói. Durante um bom tempo,
não quero falar com ele.
À uma hora em ponto, o porteiro interfonou, anunciando
a chegada deles. Raquel os recebeu e fez as apresentações.
De imediato, os pais de Raquel simpatizaram
com Marcos e Clementina. Como o almoço era em família,
Leontina e Romualdo também estavam lá. Apesar das colocações
inconvenientes de Romualdo e das observações

483


fanáticas de Leontina, o almoço transcorreu agradável, deixando
os pais de Raquel muito satisfeitos com o rapaz.

Em dado momento, após a sobremesa, Raquel entrou
com uma bandeja cheia de taças, uma garrafa de champanhe
e outra de guaraná.

— Raquel e eu gostaríamos de dizer que estamos muito
felizes com esse encontro — disse Marcos. — Por isso,
queremos fazer um brinde. Um brinde muito especial.
A um olhar seu, Raquel abriu a garrafa de champanhe
e a de guaraná. Serviu as taças, entregando-as uma para
cada um.

— Algumas contêm guaraná — informou Raquel. — É
que a família de Marcos não bebe.
Depois que cada um estava com sua taça na mão,
ele prosseguiu:

— O motivo do brinde não é apenas comemorar a harmonia
desta reunião em família. Na verdade, reunimos todos
aqui porque queremos anunciar que Raquel e eu resolvemos
nos casar.
Foi uma surpresa geral, exceto para Clementina, que
já sabia.

— Para quando será isso? — perguntou o pai de
Raquel, mal contendo a surpresa.
— Para o mais breve possível — respondeu Marcos.
— Amanhã mesmo vamos dar entrada nos papéis.
Foi o que fizeram. No dia seguinte, logo cedo, estavam
no cartório com toda a documentação necessária. Em
seguida, Marcos foi trabalhar. Na hora do almoço, Raquel
estava com ele na casa de Graciliano e Bernadete, que receberam
a notícia com genuína alegria.

— Isso é maravilhoso! — comentou Bernadete.
— Acho que você escolheu a moça certa, Marcos.
— Obrigada — respondeu Raquel com um sorriso tímido,
porém gracioso.
484


— Deixem-nos dar-lhes uma festa de presente — pediu
Graciliano.
Embora Raquel e Marcos estivessem pensando numa
festa simples, permitiram que os avós fizessem de seu jeito.
Nada lhes custava dar-lhes aquela alegria.


Aquele fora o primeiro passo. O próximo seria a reconciliação
de Marcos com a igreja. Embora Raquel e ele
fossem muito diferentes nas questões religiosas, o contato
com a igreja era extremamente salutar a ele, que sentia
falta das pregações e vigílias, das quais gostava e o faziam
sentir-se bem.

— O que você acha, Raquel? — sondou ele. — Vai
aborrecê-la se eu voltar para a igreja?
— Meu querido — respondeu ela amorosamente —,
iria aborrecer-me se você me deixasse em casa para encher
a cara com os amigos.
— Quer dizer então que você não se incomoda?
— Não. Desde que você não queira me converter, tudo
bem. Podemos ter as nossas conversas, como sempre, que
serão construtivas se soubermos nos respeitar.
— Eu a respeito, Raquel, e sei que você sempre
me respeitou.
— Cada um é livre para seguir o caminho que escolher,
e nenhum é melhor do que o outro, pois todos conduzem
ao mesmo lugar. A ilusão do homem é que o coloca
como senhor dos caminhos e detentor da verdade, sem saber,
mais uma vez, que tudo isso está no domínio de Deus.
— Você tem razão. Prometo que não vou insistir para
que você vá comigo.
— Ir com você eu até posso ir. A oração e o trabalho
no bem jamais vão me incomodar. Só não quero fazer parte
485


da sua congregação por uma divergência de compreensão
e exteriorização das doutrinas.

— Sei disso, Raquel, e não vou lhe pedir para seguir a
minha crença em detrimento das suas. Se nos respeitarmos,
poderemos ser felizes.
— E não quero que você minta para o pastor. Ele tem
que saber que eu aceito e respeito a sua religião, mas que
não é a minha. Não gosto de enganar ninguém.
— Eu também não. Minha tia descobriu uma igreja
aqui perto, e estou pensando em ir até lá com ela.
— Ótimo, vá. Só cuidado com a sua tia. Você sabe
como ela é com essas coisas de igreja.
— Não se preocupe. Tia Leontina é uma boa pessoa e
não vai interferir na nossa vida.
O casamento de Leontina e Romualdo realizara-se no
próprio cartório, com a presença apenas de Marcos e Raquel.
Depois de casada, sentindo muita falta da sua religião, ela
saiu à procura e encontrou uma igreja perto de casa, que
passou a frequentar. Enchendo-se de coragem, retornou à
sua antiga igreja e despediu-se de Euzébio. Apesar de não
aprovar o novo casamento de Leontina, o pastor não a recriminou.
Lembrou-lhe apenas as palavras das Escrituras e
prometeu orar por ela.

Posteriormente, quando Marcos se juntou a ela na
igreja escolhida, sentiu que sua vida voltava ao normal. Era
como se Deus houvesse desistido de puni-lo.

486


EPÍLOGO



O dia do casamento de Marcos e Raquel amanheceu
envolto numa aura especial. Os noivos receberam muitas visitas
de amigos espirituais, que vieram até a Terra para derramar
sobre eles energias de luz e amor. Toda vez que um
acontecimento dessa natureza ocorre no mundo físico, os espíritos
se felicitam, porque a vibração de alegria dos encarnados
reflete também no invisível, que trabalha para espalhar as
energias de felicidade por todo o planeta. Quanto mais gente
vibrando alegria, maior a carga energética lançada no ar
e, consequentemente, mais próxima se encontra a vitória do
bem, que necessita de bons sentimentos para se consolidar.
Um dia, quando todo o ódio, a depressão e a vingança forem
tocados pela alegria genuína do ser consciente de seu papel
no mundo, as guerras, a fome, a corrupção e a dor deixarão
de existir, transformadas que estarão em novas partículas de
uma luz sem sombras, que só há de refletir o amor.

Mas não apenas os espíritos iluminados são tocados
pela felicidade dos encarnados. Há aqueles que, ainda apegados
à ilusão do mal, deixam-se envenenar por sentimentos
de inveja, despeito, ódio, e partem para um possível
ataque espiritual, sendo contidos ou não por seres astrais
encarregados da proteção espiritual dos noivos, dependendo
de sua condição moral.


Não foi por outro motivo que as visitas de seres iluminados
se sucederam na casa de Raquel e Marcos, parentes
desencarnados e companheiros de outras vidas que acompanhavam
ou se interessavam pelo progresso espiritual
dos noivos. A primeira visita de Marcos foi do pai biológico.
Anderson chegou em companhia daquela que fora sua avó
em vida, e sentiu imensa alegria em ver que o filho estava
conseguindo cumprir a sua tarefa, e muito mais ainda com a
amizade que surgira entre ele e seus pais.

Como não podia deixar de ser, Margarete apareceu de
braços dados com Félix, chorando de alegria. Seu corpo
fluídico, já quase inteiramente livre dos efeitos deletérios do
álcool, não acusava mais perda de energia.

— E então? — indagou Laureano, que também havia
comparecido. — Como se sentem?
— Com a satisfação do dever cumprido — afirmou Félix.
— É muito mais do que isso — acrescentou Margarete.
— Para mim, é a consolidação do amor.
— A intervenção de vocês foi decisiva para que tudo
desse certo — disse Laureano. — Parabéns.
— Ninguém, mais do que eu, está feliz — assegurou
Margarete.
Laureano segurou os dois pela mão e perguntou
docemente:

— Prontos para partir? — Margarete olhou para Félix.
— Um merecido lugar de luz e descanso os aguarda.
— Estamos prontos — afirmou Félix.
— E você, Margarete?
— Estou pronta. Sei que, de onde estiver, poderei
acompanhar a vida de Marcos, sem prejudicá-lo nem interferir.
Aprendi a aproximar-me dele apenas com a oração.
— Muito bem. Agradeçamos a Deus e vamos.
De mãos dadas, partiram os três, deixando no ambiente
uma cintilação luminosa, radiante, feliz.

488



Na casa de Raquel, seus muitos amigos espirituais revezavam-
se nas felicitações. O quarto da moça recebia uma
constante chuva de luz, que se espraiava para além das paredes.
Eram tantas as vibrações que, inevitavelmente, acabaram
penetrando no aposento vizinho, onde uma nuvem cinza
de frustração e aborrecimento envolvia o corpo de Elói.

Desde que Raquel descobrira o que ele fizera, nunca
mais falara com ele, deixando-o triste e sombrio. E tudo
para quê? Para nada. Nem Nelson se interessava mais por
ela. Soubera, por amigos, que ele se cansara e se envolvera
com outra garota.

A entrada da luminosidade refrescante no quarto de
Elói, embora não fosse suficiente para dissipar as energias
densas do desânimo, serviu para diminuir um pouco seus
efeitos, levando-o a chorar de mansinho. Raquel nem o convidara
para o casamento. Mas também, ele não merecia ir. O
que faria lá, se não gostava de seu futuro cunhado?

Uma voz interior lhe dizia que tudo aquilo era ilusão.
Que a cor da pele não qualificava ninguém, que todas as
criaturas eram iguais em essência. Incentivava-o a deixar de
lado o preconceito para abraçar a irmã e pedir-lhe perdão.
Elói nem percebia que havia um espírito amigo junto a ele,
mas recebia suas palavras em pensamento.

Durante o dia todo, ficou oscilando entre a raiva e o
desejo de falar com Raquel. Próximo da hora de sair, ele
ainda não havia se decidido a procurá-la. Raquel não queria
que ele fosse ao casamento, contudo, não o impedira propriamente.
Na verdade, não dissera nada. Não o convidara
nem o repelira.

Alguém bateu à porta, e ele foi abrir. Era o pai.

— Você não está pronto? — indagou, perplexo.
— Não. Eu não vou.
— Tem certeza? Não faça isso.
489


— Não vou, pai. Primeiro porque não concordo com
esse casamento. Segundo, porque Raquel não me quer lá.
Aliás, não tenho mesmo nada que fazer numa igreja de crentes.
— Deixe de bobagens, Elói — censurou Ricardo. — O
que tem contra a religião do rapaz?
— Nada — respondeu de mau humor. — Mas mesmo
assim não vou.
— Você é quem sabe.
No mesmo momento, Ivone conversava com Raquel.
— Tem certeza de que não quer que seu irmão vá? —
perguntou ela.

— Tenho, mãe. O que Elói fez foi baixaria.
— Não é você mesma que diz que todo mundo merece
uma segunda chance?
— É, mas ele é muito orgulhoso. Por que não vem falar
comigo e me pedir perdão?
— Por que você não vai até ele e diz que o perdoa?
— Eu o perdoo, mas ele é que tem que vir falar comigo.
Não fui eu que pisei na bola.
— Isso não é orgulho também?
Raquel não respondeu. No fundo, a mãe tinha razão,
mas lhe era difícil tomar a iniciativa para reparar uma situação
desconfortável que não fora ela que criara. Todavia,
envolvida pela leveza de toda aquela vibração, intimamente
alimentava o desejo de que uma chance surgisse para que
ela e o irmão pudessem se falar.

Quando a vontade é grande, a realização acontece.
Assim que a maquiadora terminou seu trabalho, Raquel pôde
finalmente olhar-se no espelho. Estava muito bonita em seu
vestido branco, de véu e grinalda. Sorriu para si mesma e
enxugou as lágrimas dos olhos da mãe com divertimento.

— Chorando antes da cerimônia? — brincou.
Ivone deu um tapinha bem-humorado na mão de
Raquel e observou:

— Você está linda! A noiva mais linda que eu já vi.
490


— Aposto como toda mãe diz isso.
O pai entrou no quarto e parou embevecido, repetindo
as mesmas palavras de Ivone:

— Minha filha, você é a noiva mais linda que eu já vi!
— Vocês são maravilhosos! — falou ela, abraçando-
se aos dois.
Ricardo deu-lhe o braço, que ela segurou, saindo para

o corredor com Ivone e a maquiadora, que tentava levantar
o véu para que não se sujasse.
— Não acha melhor colocar o véu no carro? — perguntou
ela.
— Não — objetou Raquel. — Quero sair de casa pronta.
Ao atravessarem o corredor, uma porta se abriu. Elói se
encostou no portal para admirá-la. Raquel nunca estivera tão
linda. Precisava dizer-lhe isso, mas, e a coragem? Agora, vendo-
a tão bonita, tão feliz, já não sabia mais se acreditava em
seu preconceito. Queria poder partilhar com a irmã daquele
momento de felicidade, porém, não conseguia desvencilhar-
se do orgulho e admitir que aceitar um negro na família não
era nada de mais. Não depois de tudo o que fizera. Ao passar
por ele, Raquel parou, atraída por seu olhar de admiração.

— Você está linda — elogiou ele, lutando para conter
as lágrimas.
— Também vai dizer que sou a noiva mais linda que
você já viu? — retrucou ela, tentando segurar a emoção.
— Não quero ser repetitivo, mas é verdade. Nunca vi
noiva mais bonita.
— Até parece que você já viu muitas noivas. Nunca vai
aos casamentos a que é convidado.
— Tem razão. Não sou muito ligado nessas coisas.
— É por isso que não vai ao meu?
A pergunta saiu sem querer, embora resumisse bem o
que Raquel queria dizer. Ricardo e Ivone se entreolharam, torcendo
pela reconciliação dos filhos, até que Elói respondeu:

491



— Não. O seu é diferente. Torço para que vocês sejam
felizes, mas não posso ir. Tenho que ser fiel a mim mesmo.
— Fiel a si mesmo? O que quer dizer isso? Que precisa
ser fiel a atitudes ruins?
— É complicado, Raquel. Deixe isso para lá. Não vamos
estragar o seu casamento.
— Tudo bem, se é o que você quer.
Ele segurou a mão dela. Olhando-a fixamente nos
olhos, falou com voz trêmula:

— Perdoe-me.
Raquel deu um breve sorriso e beijou-o na testa. Saiu
sem dizer nada, deixando o ar carregado de emoção. Elói
balançou a cabeça. Tinha entendido o gesto sem palavras
que revelava o perdão.


Quando o coro da igreja começou a tocar Agnus Dei20,
Raquel fez sua entrada triunfal na igreja. No altar, Marcos
andava de um lado a outro, contido por Arnaldo, seu padrinho.
Ela foi caminhando lentamente, sob o olhar admirado
dos convidados, numa cerimônia religiosa que misturava
evangélicos, católicos, espíritas e gente sem religião alguma.
O pai de Raquel entregou a noiva nas mãos de Marcos,
que a recebeu com indescritível emoção.

Seguiram-se as comoventes palavras do pastor, alertando
os jovens para as responsabilidades do casamento e
a necessidade de cultivo constante do amor em família. As
alianças foram ungidas, os noivos prestaram o compromisso
de amor e fidelidade perante Deus.

Encerrada a cerimônia, o casal seguiu para os cumprimentos
no salão de um clube elegante, onde Graciliano

20 Música de Michael W. Smith, cantor e compositor americano de música
cristã contemporânea, do álbum Worship, 2001.


e Bernadete ofereceriam um coquetel. Tudo muito bonito e
de extremo bom gosto. Para agradar a todos, a orquestra
alternava música popular, clássica, gospel, tornando o clima
descontraído, de muita alegria.

Terminados os cumprimentos, Marcos abraçou Raquel,
admirando a movimentação dos convidados.

— Feliz? — perguntou ele.
— Muito. Vivo agora um sonho.
Marcos tomou-a nos braços, rodopiando com ela na
pista de dança colocada no meio do gramado. Nada, naquele
momento, poderia estragar tanta felicidade. Todas as dificuldades
que Marcos atravessara pareciam não ter mais
importância. A vida, que fora difícil no começo, mostrara-lhe
que o esforço da alma na direção do bem sempre traz recompensas,
e o prêmio de maior valor são as pessoas que se
conquistam e com as quais se aprende que vale a pena viver.

FIM




---------- Mensagem encaminhada ----------
De: Reginaldo Mendes








O Grupo Allan Kardec lança hoje mais um livro digital !
Desejamos a todos uma boa leitura !

Apesar de Tudo... Mõnica de Castro

Livro digitalizado por Fernando José dos Santos e revisado por  André Luiz de Menezes


Sinopse - Apesar de tudo... - Mônica de Castro

A renomada escritora espiritualista Mônica de Castro lança seu 17º título, Apesar de Tudo..., pela Editora Vida & Consciência . Nesse novo romance, o estilo de vida de pessoas batalhadoras e humildes muda completamente após um segredo de família vir à tona, causando dúvidas e revelando preconceitos. Com personagens complexos, histórias de vidas complexas, omissões, amor e rancor são alguns dos ingredientes que desafiam o leitor a mergulhar neste enredo envolvente. Tudo se inicia quando Margarete, empregada na casa de uma família rica do Rio de Janeiro, tem um caso com Anderson, um menino de apenas 14 anos, filho de seus patrões, e acaba por engravidar. Revoltados, Bernadete e Graciliano a despedem e proíbem o filho de assumir a criança. Desesperada, Margarete se deixa levar pela bebida ainda grávida e, quando o filho nasce, vaga pela cidade sem saber o que fazer. Acaba abandonando-o em uma lata de lixo. Arrependida, horas depois, vai a procura da criança, que já havia sido encontrada por Clementina e Leontina, irmãs tementes a Deus. Desesperada, Margarete entra no primeiro bar que vê e é expulsa por não ter dinheiro. Morre atropelada próximo ao local onde abandonara seu filho. Sem perceber que havia desencarnado, Margarete conta com a ajuda de Félix, companheiro de vidas passadas, para compreender o que havia acontecido. Por caminhos intrincados e surpreendentes, a história de Margarete está enredada na de Clementina e na de outros personagens. O destino de Marcos Wellington, filho abandonado por uma e adotado por outra, começa apenas a ser traçado. Ele irá encontrar o amor, mas enfrentará o preconceito social e racial, além de ciúmes, inveja e vingança. Ele e outros personagens vão também descobrir o verdadeiro significado do perdão e da liberdade de escolha de cada um. As dificuldades que a vida impõe servirão para mostrar que o esforço da alma rumo ao bem sempre traz recompensas. O prêmio maior são as pessoas que se conquista


Este livro representa uma contribuição do Grupo Espírita  Allan Kardec aos deficientes visuais.

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JOSÉ IDEAL

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