E se eu fosse cego?
Narrativas silenciadas da deficiência
Bruno Daniel Gomes de Sena Martins
(c) 2006, Bruno Sena Martins e Edições Afrontamento
Imagem da capa: Eduardo Basto
Edição: Edições Afrontamento/ Rua de Costa Cabral, 859/ 4200-225 Porto
www.edicoesafrontamento.pt/geral@edicoesafrontamento.pt
Colecção: Saber Imaginar o Social/ 22
N.º de edição: 1009
ISBN 10: 972-36-0816-2
ISBN 13: 978-972-36-0816-2
Depósito legal: 242883/06
Impressão e Acabamento: Rainho & Neves, Lda./ Santa Maria da Feira
Maio de 2006
ÍNDICE
Prefácio
Introdução
I
Naufrágios de um Sentido
1. "Perfume de Mulher": Fragrâncias situadas
2. A Bíblia: Luz, Trevas e o Evangelho nos Corpos
3. O Legado Grego: Homero, Tirésias e Édipo
4. A Idade Média: A cegueira num mundo encantado
II
O Des-encantamento da Cegueira
1. A Promessa Iluminista: De Diderot a Luís Braille
2. O Visualismo Moderno: A sacralização da visão na "doutrina da imaculada percepção"
3. A Invenção da Deficiência: O "biopoder" e a "hegemonia da normalidade"
4. Corpos Tangíveis: A cegueira feita materialidade
5. Capitalismo Industrial e Individualismo: Contributos para um ancoramento incapacitante da "deficiência"
5.1. A Industrialização
5.2. O Individualismo
6. A Politização da Deficiência: Reabilitar quem?
6.1. O Modelo Social da Deficiência
6.2. Direitos Humanos: Cumplicidades transnacionais
III
"Pelos Teus Lindos Olhos"
1. A ACAPO como uma Estranha Forma de "Campo"
IV
Nas Costas do Elefante: as vidas da Cegueira
1. Os Caminhos de uma Bengala Branca: Ao encontro de narrativas silenciadas
1.1. Educação
1.2. Emprego
1.3. Tacteando os Obstáculos
1.4. O "tic-tac": estigma e poder
2. A Barqueira Indecisa: ACAPO e as travessias do querer ao poder
3. Deficiência e Política Associativa no Contexto Português
V
O Corpo Transgressor: Construções Sensoriais do Mundo, Leituras do Sofrimento
1. A Experiência Incorporada e os Limites da linguagem
2. Tragédia, Sofrimento e Liminaridades
3. "E Se Eu Fosse Cego?": A cegueira como projecção nos acolhedores corpos que a pensam
VI
Conclusão: "Vamos tomar café lá longe"
Lista de Acrónimos
Referências Bibliográficas
Para a minha mãe
Disse para comigo: já que perdi o querido mundo das
aparências, tenho de criar outra coisa: tenho de criar o futuro,
o que sucede ao mundo visível que, de facto, perdi.
Jorge Luis Borges
PREFÁCIO
Este livro resulta de um longo texto que irrompeu na minha vida. Certamente que o busquei quando me lancei no encalço das "vidas da cegueira", mas, como quase
sempre acontece, fi-lo então em termos bem distantes daqueles que aqui chegam à "solenidade do papel". Essa inevitável "perda de controlo" poderá resultar do caminho
errante que a escrita e as ideias tantas vezes tomam, surpreendendo o seu próprio autor. No entanto, este caso é sobretudo a expressão de como podemos ser desconcertados
por "segredos sociais" e por desconhecidos contadores de histórias.
Segredos estes que mais não são do que realidades sistematicamente relegadas para esconderijos da nossa cultura. Romper esses segredos equivale a romper com preconceitos
longamente estabelecidos, implica dar atenção a existências pouco consideradas, e instiga a reconhecer vozes que raramente podem assumir uma autoria na vida social.
É o sistemático silenciamento dessas vozes que explica largamente porque é que as perspectivas "informadas" das pessoas cegas vieram, também para mim, tomar o lugar
antes ocupado pelo desconhecimento e pelos preconceitos acerca da cegueira. Na verdade, constituiu uma enorme aprendizagem poder partilhar algo do "mundo novo" trazido
por aqueles que de facto conhecem a cegueira "na carne". Um conhecimento incrustado num duplo sentido: pelo facto das pessoas cegas viverem numa realidade em que
a visão está ausente enquanto instrumento de realização e conhecimento, mas também, e isto é fulcral, por experimentarem de modo incontornável o estigma e a vivência
da opressão.
A decisão de me dedicar à cegueira, enquanto tema de investigação, nada deveu a alguma aparição mais significativa dessa condição na minha história pessoal. Foi
assim como um daqueles deliciosos mistérios que as contingências da vida nos ofertam. Por isso, quando lá tinha que ir contando o que andava a "fazer da vida" era
frequente os meus interlocutores ensaiarem algo do género: "interessante..., mas como foste aí parar? Mas a cegueira..., em que sentido?".
Primeiro. Como vim aqui parar? Realmente é uma questão de resposta pouco óbvia. Apenas poderei aventar que a vontade de escolher uma área de estudo social, pouco
desbravada, com possibilidade de trabalho empírico, me levou ao encontro de experiências que até então só conhecia de passagem; literalmente: pela passagem na rua
de pessoas "tacteando" o caminho com as suas bengalas. No fundo, à boleia de um propósito académico, acabei por descobrir todo um universo de vivências desconhecidas
que cedo se enlaçaram na minha vida: pela extensiva convivência e prática de trabalho de campo/voluntariado junto das pessoas cegas, pelos amigos e relações que
perduram no tempo, e pelo forte impacto advindo do confronto com uma gritante situação de marginalização social.
A cegueira em que sentido? Responder à segunda parte do eco suscitado pela minha ideia de pesquisa não me é difícil. Por ora direi, tão-só, que procurei compreender
como é que as representações culturais da cegueira se relacionam com as reflexões e histórias de vida das pessoas cegas. E, nesse sentido, há duas grandes linhas
de abordagem que se entretecem tanto no texto deste livro como nas vidas com que estabeleci proximidade.
Por um lado, temos que mergulhar num tempo longo, pois é nele que achamos os múltiplos significados que historicamente foram sendo associados à experiência de
quem se encontra privado do sentido da visão. Esta linha de abordagem coloca--nos - desde Tirésias, Édipo, Sansão, Jesus, etc. - perante curiosas heranças históricas
da cultura ocidental, duradouras pérolas simbólicas associadas à cegueira. Mas tal empresa obriga-nos também a considerar a experiência cegueira por relação com
alguns dos traços mais marcantes da cultura ocidental, e é só nessa relação contingente entre cegueira e cultura que ganha sentido a genealogia de uma invenção,
a invenção da moderna de ideia de deficiência e, no seio desta, da ideia de deficiência visual.
Por outro lado, importa atender a um curto tempo onde adquirem inequívoca centralidade as histórias de vida e as experiências quotidianas das pessoas cegas. Só
assim é possível aferir do efectivo lugar ocupado pelas ideias que estão mais fortemente associadas à experiência da cegueira: sofrimento, incapacidade e infortúnio.
É também nesta inquirição, próxima das vivências dos sujeitos, que se desenha o quadro das condições sócio-culturais e sócio-políticas que, no contexto português,
condicionam as realizações e os ensejos das pessoas cegas.
Devo este aprendizado sobre a cegueira e aquilo que dele resulta à generosidade daqueles que, emprestando as suas vidas, o seu afecto, e a sua sagacidade, me
ajudaram a calcorrear os caminhos que aqui me trouxeram. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao meu orientador, Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos, pelo fundamental
suporte que sempre me dedicou, pelo seu cuidado, pela sua confiança e incentivo, e pelo modo como sempre me desafiou com a inefável sapiência das suas sugestões
e questionamentos. Quero também agradecer aos demais professores do Mestrado, ao Prof. Dr. Arriscado Nunes, ao Prof. Dr. José Pureza e à Prof. Dra. Ioannes Baganha,
pelos seus ensinos enriquecedores, e pela atenção amiga com que sempre acorreram aos meus ensejos e preocupações. Pelo seu insuperável esmero em tantas horas importantes,
queria agradecer também à La Salette.
Junto da ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal) e das pessoas com deficiência visual, conheci vidas que muito me ensinaram, estabeleci também fortes
amizades que os anos fracassarão em apagar. Quero agradecer às pessoas cegas e amblíopes pelo seu acolhimento ao meu projecto. Agradeço a todos que se ofereceram
às minhas perguntas, entrevistas, ou que, simplesmente, acederam a partilhar comigo conversas e momentos das suas vidas. Devo salientar os nomes daqueles que incansavelmente
me apoiaram: o Dr. José Caseiro, o Dr. José Guerra, a Dra. Elisabete Domingos, o Micael Lopes, a Graça Lopes, o Dr. Joaquim Cardoso e o Dr. Fernando Correia.
Não poderia deixar de me dirigir para as pessoas que constroem a tessitura dos nossos quotidianos, infundindo-os de partilhas várias. Gostaria de agradecer primeiramente
aos que tiveram uma intervenção mais directa na feitura deste trabalho. Assim, quero agradecer ao Telmo Clamote, ao Jorge Rocha, ao Francisco Curate, à Marta Pinto,
ao João Nogueira, ao Lennard Davis, ao Rui Branco e ao Bernardo Jardim. Nomes a que necessariamente acrescento alguns daqueles que, com o seu afecto e presença amiga,
teceram as linhas que fatalmente compõem aquilo que escrevo e digo. Queria agradecer à Cristina Gomes, ao David Morgado, à Palmira Natal, à Jamira Sousa, ao Carlos
Barradas, ao António Farinhas, ao Sérgio Oliveira. A minha gratidão também àqueles que sem delongas se fizeram antigos companheiros dos dias que passam: o João Paulo
Dias, a Cristina Santos, a Marisa Matias, a Teresa Maneca, o Fernando Fontes, a Paula Fernando e o Jorge Almeida. Não poderia deixar de mencionar as turmas dos mestrados
da globalização, onde descobri tantos viajantes bonitos com vontade de acreditar noutros mundos feitos possíveis. À Madalena Duarte, agradeço, enfim, por essoutro
segredo em forma de vaga.
Gostaria de agradecer à Fundação para a Ciência e Tecnologia pelo importantíssimo apoio que conferiu a este projecto por via da bolsa que me foi atribuída.
Não poderia deixar de expressar o conforto e alento que sempre encontro nas palavras que me falam da vida de Jesus.
INTRODUÇÃO
Há algo de profundamente instigante no modo como a nossa ocidental cultura apreende a experiência da cegueira. A cegueira constitui uma experiência que povoa os
nossos imaginários, ancorados que estão a uma história, como outrora os mendigos cegos povoavam as ruas das cidades. Ela está profundamente presente nessa paisagem
imaginária, a que, querendo, podemos chamar de cultura. Ora vem sob a forma de figuras históricas e mitológicas, ora preenche devaneios filosóficos, questionando
as profundezas da existência, ora, ainda, aparece como metáfora polivalente, daquelas que nos permitem falar ou que, generosas, nos enriquecem as glândulas do pensar.
Mas, coisa curiosa, essa presença aparece-nos quase sempre como um lastro de quem passa, como uma posição no mundo que é sempre pensada de alhures, em termos que
lhe são exteriores.
Nesse sentido, creio que o modo como a experiência cultural da cegueira é evocada na matriz ocidental revela, antes de mais, uma presença assombrada pelo desvanecimento.
A condição de alguém que está privado do uso da visão é uma presença cultural espectral, em que ideias várias sobrevêm ao reconhecimento da densidade dessas existências
- as das pessoas cegas - para as quais a cegueira não representa uma metáfora itinerante, ou sequer uma figura da paisagem, mas sim uma duradoura marca da experiência
de "ser-no-mundo". A grande ironia será, creio, podermos perceber em que medida as vidas das pessoas cegas se encontram ensombradas, não pela impossibilidade de
ver, mas pelos valores e representações dominantes que se erigem sobre a cegueira. Inscreve-se aí uma perniciosa cumplicidade entre a exclusão social e o silenciamento
de leituras singularmente informadas. Leituras em que os matizes vivenciais dessa privação sensorial a que chamamos cegueira, as suas implicações, obstáculos e desafios,
são conhecidos nos territórios de uma biografia. São pulsados "na carne".
O desafio que para mim constitui a realização deste trabalho parte de uma perplexidade que é também o reconhecimento de um enlace tão nefasto como duradouro. A
perplexidade que me traz prende-se com a inequívoca situação de exclusão e marginalização social vivida pelas pessoas cegas na nossa sociedade, uma constatação não
difícil, que de ponta a ponta se liga com a negação da autoria social advir da subjectividade das pessoas cegas. É com esse nexo que as vivências da cegueira se
debatem, desde os estigmas que quotidianamente se lhes apõem, até às estruturas e valores que consentem na exclusão de áreas tão fundamentais como o ensino e o emprego.
Temos, pois, uma situação estruturante que é largamente partilhada com a realidade de outras deficiências, num parentesco que iremos tentar decifrar.
De facto, é fulcral o reconhecimento da diferença das pessoas cegas - o mesmo é dizer, o reconhecimento das reflexividades que emanam da experiência da cegueira
- para que se opere uma urgente transformação ao nível das políticas sociais, educativas e laborais, ao encontro de uma sociedade inclusiva. No entanto, creio que
o encontro com as vivências da cegueira induz, primordialmente, ao reconhecimento dos constrangimentos que são colocados, a montante, por uma gramática cultural
que permeia as suas vidas, fazendo com que a sua situação social seja naturalizada com base na assinalada magnitude da limitação que se lhes adscreve. Refiro-me,
portanto, à persistência de uma avaliação redutora das pessoas cegas por referência à ideia de um dilacerante défice sensorial. Esta é uma propensão que nos envia,
creio, para a portentosa vitalidade, ao nível das representações culturais da cegueira, de uma "narrativa da tragédia pessoal" (Oliver, 1990). Identifico aqui como
central uma gramática hegemónica sobre a cegueira, uma construção infundida das noções de infortúnio e incapacidade, onde se enfatiza a magnitude da limitação que
decorre da cegueira. Alego que essa construção transporta uma violência na medida em que estabelece uma clara disparidade, quer com a reflexividade produzida pelas
pessoas cegas - onde releva uma capacidade de ajustamento às circunstâncias de existência -, quer com as suas mais triviais capacidades de realização.
A assunção dessa leitura dominante da cegueira enquanto uma elaboração sociocultural que, embora não sendo informada pelas experiências da cegueira, as informa
como um sério constrangimento às suas possibilidades e expectativas, levar-nos-á a pulsar as familiaridades entre a cegueira e os seus referentes: a tragédia, a
incapacidade e o infortúnio. Porque o fatalismo sobre as aspirações das pessoas cegas opera, não raras vezes, como uma profecia que funda as condições para a sua
auto-realização, proponho uma abordagem construtivista. No coração desta deverá militar o reconhecimento do quão imperiosa e pertinente é a evocação dos quadros
culturais mais amplos, assim como uma persuasão acerca da contingência que lhes assiste, e dos constrangimentos que eles inscrevem na experiência das pessoas cegas.
No fundo, quero afirmar que estamos perante um contexto de pensamento que potencia a prevalência de construções das pessoas, construções que, num mesmo momento,
afirmam a centralidade das limitações físicas associadas à cegueira, e engendram a invisibilização das barreiras socialmente produzidas. As representações disseminadas
acerca da cegueira constituem um referente cultural que, manhã após manhã, se levanta para um duelo com os intentos e quereres das pessoas cegas, cujas vidas se
encontram sobretudo marcadas pela ausência de estruturas para o desenvolvimento e realização das suas capacidades, pela esmagadora realidade do desemprego, e pelos
preconceitos e estereótipos que em todo o lugar as esperam.
Nesse sentido, importará evocar uma rica e cativante etno-história ocidental acerca dos significados que foram sendo ligados à cegueira e à vida das pessoas cegas,
legados que permanecem connosco, e cuja presença podemos ainda perceber na vida social, ou reconhecer nos ecos e usos metafóricos da linguagem. São significados
que, no entanto, ficaram grandemente "fora do tempo" com os quadros de pensamento modernos, de onde se nutriram, igualmente, inflamadas promessas para um horizonte
de integração social. Não obstante, a constituição de uma leitura contextual da apreensão social das mulheres e homens cegos nos nossos dias, permanece com irrefutável
centralidade nessa mesma novidade prenunciada pelo pensamento iluminista. Particularmente, pela compreensão de como o advento da modernidade reinventou o significado
da cegueira, descrevendo-a por apelo ao idioma da deficiência. É perseguindo de que modo a "narrativa de tragédia pessoal" se aloja nas entranhas da modernidade
que poderemos ler como as promessas de integração social, concretizadas no surgimento do Braille, resultam desse movimento pelo qual se operou uma persuasiva reinvenção
da exclusão social.
Será, pois, por referência a uma profundidade histórica que nos fala do conforto que as concepções incapacitantes da cegueira encontram no nosso quadro de valores,
que procuraremos entender como tais leituras convivem com as perspectivas de quem é cego. O lugar destas perspectivas, sobejamente conhecedoras da cegueira, será
articulado com a realidade da ACAPO (a instituição representativa das pessoas cegas no contexto português) enquanto um espaço criativo e catalisador de perspectivas
contra-hegemónicas acerca da cegueira. A acção da ACAPO será explorada por relação aos ensejos de transformação social alimentados pelas pessoas cegas, numa incursão
que nos permite questionar em que medida são ali suficientemente desafiados os limites daquilo a que designaremos por "abordagem reabilitacional". Mas, igualmente,
e por contraponto com as lutas políticas de outros contextos nacionais, procuraremos perceber de que modo a acção da ACAPO se articula com as especificidades da
sociedade portuguesa. Interessará aceder às condições, estruturais e conjunturais, que vêm marcando a interiorização de uma linguagem de direitos, a fim de que a
integração social possa articular-se com intensificação democrática a advir da participação reivindicativa das pessoas cegas.
Pensar a cegueira também nos insta, fatalmente, a pensar no lugar do corpo numa pluralidade de dimensões. Para a temática da cegueira o corpo é feito presente,
antes de mais, pela diferença suscitada no reconhecimento de um importante défice sensorial. Curiosamente, há como que uma corporalidade excessiva ditada por uma
ausência, a do sentido da visão. Importa "chegar aos corpos" por via de duas linhas distintas. Na primeira, procurarei perceber como é que o significado do corpo
é constituído, questionando para isso os itinerários por via dos quais o corpo é socialmente feito objecto. Por aí se sondam os valores e as relações de poder que
lutam pela definição do sentido dos corpos, mas também se inquire a relação que as construções acerca do corpo - e suas diferenças - estabelecem com as formas de
realização pessoal que a sociedade elege. Num segundo momento iremos confrontar-nos com o corpo vivido enquanto condição fenomenológica, ou seja, o corpo como forma
de "ser-no-mundo". Para tal mergulharemos tanto nas experiências de quem nasceu ou ficou cego como nas "adivinhações" que se nutrem a partir dos "corpos que vêm".
Portanto, ainda que reconhecendo a incontornável riqueza de sentidos e divagações que a cegueira permite elaborar, procurarei ater-me neste texto às realidades
que marcam as vidas das pessoas cegas. Por muito nobres e instigantes que nos apareçam alguns questionamentos existenciais e filosóficos, aceder às experiências
das pessoas cegas implica, de modo flagrante, uma atenção a percursos onde a aspereza dos mundos da vida se revela sempre mais premente que as leituras que tendem
a fazer da cegueira "boa para pensar". Falo de um enfoque nos "mundos da vida" que é interessantemente defendido a partir de uma deliciosa história que Clifford
Geertz nos conta:
Há uma história Indiana - pelo menos ouvi-a como sendo uma história indiana - sobre um homem inglês que, tendo-lhe sido dito que o mundo repousava sobre uma plataforma
que por sua vez repousava nas costas de uma tartaruga, perguntou: e a tartaruga repousava sobre o quê? Outra tartaruga. E essa tartaruga? Ah, Sahib, a partir daí
são tartarugas sempre até ao fim. (Geertz, 1993: 29, minha tradução)
Com a evocação deste diálogo, que é também um diálogo entre cosmovisões culturais, Geertz queria apontar para o perigo da análise cultural perder contacto com
as duras superfícies da vida em busca de tartarugas demasiado profundas. Ou seja, o perigo de se descurarem, atrás da última tartaruga, as realidades políticas,
económicas em que as mulheres e homens estão em todo o lado imersos, assim como as necessidades biológicas em que essas superfícies assentam. Tendo presente este
privilégio de análise, pretendo compor um itinerário em que as leituras da cegueira não fiquem reféns de discussões filosóficas em torno da última tartaruga. E será
a partir da minha experiência etnográfica, desenvolvida tomando como ponto de partida a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), que procurarei inquirir
acerca das vivências das pessoas cegas e do lugar que nelas ocupa uma "narrativa da tragédia pessoal". Nas costas do elefante, pois.
Abordar o tema das deficiências implica contemplar as linhas que definem as desigualdades nas sociedades contemporâneas. Isto o atesta, sonante, uma declaração
do secretário-geral da ONU, Koffi Annan, datada de 1997:
Tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, [as pessoas com deficiência] enfrentam a discriminação e estão desproporcionalmente representados
entre as mais pobres da sociedade: esta é uma "crise silenciosa" que afecta não só as pessoas com deficiência e suas famílias mas também o desenvolvimento económico
e social de sociedades inteiras (apud Guimarães, 2002: 65, 66).
Portanto, além da prevalência de deficiências reflectir já as injustiças sociais que marcam a distribuição da riqueza no mundo, confrontamo-nos com uma sobrer-representação
das pessoas com deficiência entre "os mais pobres dos pobres" nas diversas sociedades, constituindo, para a realidade ocidental, uma importante parte daquilo que
se costuma designar por "terceiro mundo interior". O facto da situação das pessoas com deficiência ter o estatuto de uma "crise silenciosa", investe de relevância
a exploração que aqui pretendo realizar em torno das pessoas cegas. De facto, perante a afamada vocação da análise sociológica para as questões relacionadas com
a desigualdade social, é deveras instigante a reduzida atenção que as pessoas com deficiência têm merecido ao nível das ciências sociais em relação a outros grupos
minoritários. Falamos de pessoas que se encontram entre as mais sistematicamente marginalizadas das nossas sociedades, e que constituem uma minoria numericamente
bem mais significativa do que aquilo que a sua situação de invisibilidade estrutural frequentemente faz supor.
Ademais, reconhecido que é o lugar que os corpos e as suas diferenças ocupam nos discursos legitimadores das relações de opressão, como locus de algumas das mais
fundamentais centrais formas de desigualdade e de controlo social na sociedade contemporânea (Turner, 1994: 28), mais surpreendente se torna o parco investimento
da crítica social em torno das experiências "marcadas" pelas diferenças corporais a que chamamos deficiências. Assim, creio que ganha solidez a ideia de que o reduzido
investimento crítico em torno das deficiências é também um indicativo de uma "vocação" social mais ampla para a naturalização/somatização1 da situação de exclusão
das pessoas com deficiência. A questão prende-se, creio, com o facto de que o elemento biológico na opressão social das pessoas com deficiência torna bem mais difícil
desnaturalizar a inferioridade do que, por exemplo, os elementos que estão na base das construções de raça ou diferença sexual. Precisamente porque os corpos das
pessoas com deficiência são tomados como explicação suficiente para a sua situação de marginalidade social - entendida como fatal - é que esta problemática vem mostrando
ser particularmente fugaz à crítica e à mobilização social. Impõe-se, portanto, o apelo a uma sensibilidade crítica em prol de uma perspectiva que, reconhecendo
as diferenças adstritas às deficiências como elementos deveras tangíveis - diferenças que de modo algum se esgotam nos discursos -, vingue em superar as noções redutoras
da deficiência. Ousando, consequentemente, seguir o encalço dos processos que saturam de valores e demarcam como tal - marginalizando - as pessoas com deficiência.
A nossa hipótese de partida é que a situação de marginalização social vivida pelas pessoas cegas em Portugal está profundamente ligada à singular vigência de uma
"narrativa da tragédia pessoal" ao nível das representações da experiência da cegueira. Denuncia-se nesta hipótese uma gramática hegemónica na apreensão da cegueira
que condiciona as experiências, possibilidades e expectativas das pessoas cegas enquanto um pernicioso "regime de verdade".
Investidos desta questão perseguiremos três linhas de abordagem. A primeira sustenta que os quadros culturais modernos por via dos quais se objectificou a experiência
da cegueira são, em larga medida, inconciliáveis com a transformação da situação de marginalidade vivida pelas mulheres e homens cegos. Tentamos assim desvelar como
é que na modernidade se operou uma "reinvenção da exclusão social" em relação às pessoas com deficiência, através de elementos que viriam a naturalizar a sua inferioridade
à luz de uma "monocultura da naturalização das diferenças" (Santos, 2002: 247). Emerge dessa transição histórica uma perspectiva em que a cegueira e as suas implicações
se apreendem por uma somatocracia (hierarquia com base nos corpos) assente nas limitações funcionais e défices associados à impossibilidade de ver. A segunda linha
procura perceber que lugar é que as reflexões, experiências e formas de mobilização política das pessoas cegas assumem na construção de perspectivas contra-hegemónicas
da cegueira, onde a incapacidade e o infortúnio são negados enquanto referentes centrais. Neste sentido, procuraremos conferir centralidade às narrativas pessoais
das pessoas invisuais, à relação que elas têm com o associativismo da deficiência, e ao modo como esse associativismo desafia as condições que estruturam a opressão
das pessoas cegas. Finalmente, a terceira linha de abordagem procura aferir como é que o corpo e a experiência incorporada participa nos significados produzidos
e reproduzidos acerca da cegueira, enquanto condição vivida pelas pessoas que nascem ou ficam cegas, e enquanto projecção corporalmente informada por "corpos que
vêem".
No primeiro capítulo, evidenciamos a contingência que assiste à apreensão ocidental das diferenças que culturalmente aprendemos a pensar como deficiências. Contrapomos
a singularidade da historicidade ocidental com uma análise trans-cultural, a partir de dados etnográficos onde os "sentidos que as "deficiências" fazem" nos surgem
vinculados às mundividências particulares que as pensam. É também neste momento do trabalho que se prefiguram afinidades entre o sociocultural e o sociopolitico
como forma de "aprender com o Sul" (Santos, 2000). Segue-se uma análise em que procuramos perseguir o lastro histórico da cegueira na cultura ocidental, numa exploração
que atenta particularmente ao contexto bíblico, à antiguidade grega e à Idade Média.
No segundo capítulo, analisamos o "des-encantamento da cegueira". Dirigimos a nossa atenção para os novos valores e construções que iriam libertar as pessoas cegas
da pletora de interpretações nutridas durante a Idade Média para, nesse mesmo movimento, inscreverem as suas experiências em quadros de significado caracteristicamente
modernos. Articulamos uma leitura das promessas trazidas pela modernidade à cegueira com a materialização desta condição à luz de vários eixos. É dado particular
destaque ao modo como a apreensão da cegueira nos aparece enquanto um produto subsidiário de um discurso biomédico, que se estabeleceu na modernidade ocidental,
numa leitura que nos coloca na esteira do nexo de conhecimentos e saberes que Michel Foucault designou de bio-poder. São também considerados os termos em que o visualismo,
o individualismo e o capitalismo industrial viriam a participar na tessitura que veio a condicionar os entendimentos e abordagens da cegueira. Finalmente, mostramos
como as consequências da objectificação moderna das deficiências foram politicamente debatidas noutros contextos (com particular atenção ao britânico) a partir dos
anos (19)60, num ensejo que nos coloca perante o surgimento de uma fractura epistemológica na cultura ocidental no que ao significado da deficiência diz respeito.
No terceiro capítulo, são abordadas algumas das questões pessoais e metodológicas centrais no trabalho etnográfico que foi levado a cabo junto de pessoas cegas,
tomando a ACAPO, quer como ponto de partida central, quer como objecto de análise. Passeamos assim pela entrada em cena da investigação, pelos seus contornos na
articulação com a prática de voluntariado, pelas formas de interacção pessoal, pelos métodos de recolha de informação, e pelas reflexões biográficas e pessoais que
essa experiência promoveu em mim.
No quarto capítulo, vamos ao encontro das histórias de vida e narrativas pessoais das experiências da cegueira, resgatando as reflexões, obstáculos, dificuldades,
relatos de superação, que emergem das vozes das pessoas cegas. Procuramos perceber como é que as concepções dominantes acerca da cegueira se atravessam nos percursos
biográficos e quotidianos de quem não vê. Nesse sentido, tentaremos perceber o lugar que a ACAPO desempenha na capacitação identitária das pessoas cegas, na criação
de condições para a concretização dos seus objectivos, mas também ao nível de uma acção sociopolítica investida na desmobilização dos elementos estruturais promotores
da sua exclusão social. Intentamos uma caracterização da ACAPO, da sua história, da sua relação com outras organizações de deficiência, e um olhar para o modo como
a natureza desta instituição se apreende por algumas das características da sociedade portuguesa.
No quinto capítulo, exploramos os limites das leituras discursivas do corpo. Procurando superar as costumeiras abordagens do corpo na Sociologia e na Antropologia,
visamos aferir da pertinência que o carácter incorporado da experiência assume para a temática em causa neste trabalho. Primeiro, como forma de pulsar o que há de
efectivo nas experiências de sofrimento e privação mais directamente associadas à cegueira; um intento que também implica contemplar as reconfigurações vivenciais
e narrativas de quem, de facto, conheceu a cegueira como uma tragédia pessoal. Em segundo lugar, como forma de perceber como é que as imaginações empáticas corpóreas
de quem vive um mundo eminentemente visual laboram sobre o silêncio das experiências de cegueira, participando na (re)produção de um imaginário incapacitante e de
uma lógica compassiva com a desgraça.
Notas
1 Do grego soma: corpo. Uso a noção de somatização para restringir o significado de naturalização - conceito mais amplo - àquilo que é naturalizado pela afirmação
do carácter auto-evidente do corpo-
-natural.
I
NAUFRÁGIOS DE UM SENTIDO
1. "PERFUME DE MULHER": FRAGRÂNCIAS SITUADAS
Qualquer forma de ver é igualmente uma forma de não ver.
Steven Lukes
Naquela que é uma genealogia mais que improvável, Jorge Luis Borges (1998a) compõe uma cintilante e insuspeita linhagem, onde filia um punhado de homens cuidadosamente
resgatados do lastro de muitos séculos. Por via dessa singular investida, surgem no texto do argentino nomes de personagens como Homero, Tâmiris, Sansão, John Milton,
James Joyce, José Marmol, Paul Groussac e ele, o próprio Borges. Não tenhamos dúvidas, une-os a todos a literatura, ou pelas palavras que disseram e escreveram,
ou pelas palavras através das quais as suas vidas foram memoradas. De facto, há nestas figuras uma disposição, efectivada de tempos em tempos, que como que as induz
a evocarem-se umas às outras, entreglosando as suas narrativas como se um ancestral totémico as ligasse ultimamente. Podemos talvez entrever no abraço histórico
de Borges, a confirmação dessa pujante intertextualidade, que assiste à emergência de todo o sentido. Na realidade, o texto de Borges não fala das vidas dos que
estão postos antes dele, fala, sim, dos livros que deles falam ou que por eles foram falados. Mas isto pouco acrescenta à forma geral da criação de significado,
será apenas uma das suas concretizações. O que liga Jorge Luis Borges a todas estas figuras é o facto de todas as suas narrativas biográficas terem acolhido nalgum
momento a intimidade da cegueira. Assim, o que o autor compõe é, afinal, a curiosa ancestralidade de uma colecção de homens que "conheceram" a cegueira.
Colhendo implicações da intrigante genealogia de Borges para a análise dos valores que rodeiam a condição das pessoas cegas na modernidade ocidental, confrontamo-nos
com duas asserções que me parecem significativas. Em primeiro lugar, o carácter pessoal e contingente da filiação estabelecida - como bem o atesta o facto de dois
desses ancestrais terem sido directores da mesma biblioteca do que Borges - não deixa de ser uma formação canónica de figuras marcadas por um carácter de excepcionalidade.
Facto que nos confirma que não estamos perante uma "família" que sequer possa aspirar a representar as vidas das mulheres e homens cegos que foram habitando os sucessivos
momentos históricos. Mas, se a notoriedade histórica e/ou literária dos nomes que se cruzam na narrativa de Borges nos coloca, de algum modo, perante uma intertextualidade
deliberadamente "viciada", de que o sexo dos eleitos é a apenas uma expressão, surge como segunda asserção um elemento que parece deslindar implicações não menos
profundas. Em causa está o facto de a leitura histórica de Borges apenas contemplar pessoas que se encontram inscritas na matriz da tradição ocidental, facto que
fatalmente insta a uma leitura da cegueira dentro de um jogo de singularidade e repetição. Um jogo que interessará desestabilizar no fechamento de significado que
inevitavelmente o marca.
Considero central que se aceda à historicidade que engendrou a forma como a cegueira é presentemente entendida nos regimes de significado dominantes no Ocidente.
Só assim será possível recolher todo o conjunto de valores e representações - presentes ainda nas marcas afectivas das palavras - que o peso dos séculos fracassou
em apagar, por um lado, e, por outro, aceder às novidades, descontinuidades e contraposições que foram sendo geradas e que assistiram ao recente nascimento de construções
que parecem vigiar já os limites da nossa compreensão. Nesse sentido, creio, limitamos as possibilidades de uma leitura crítica se nos detivermos na constituição
de uma análise dentro de uma intertextualidade domesticada, dentro da "província finita do sentido" (Geertz, 1993: 121) que é a cultura ocidental. Para isto mesmo
nos chama a atenção Michel Foucault em As Palavras e as Coisas (1998) quando fala desse fado - que, afinal, é também o seu - das culturas se pensarem dentro da pluralidade
domesticada que são as suas referências.
Ao denunciar o estreitamento do sentido que as formações culturais sempre forjam, Foucault fracassa reconhecer em que medida essas elaborações não escapam à relação
com outras culturas. Seja porque os contactos e apropriações nunca foram inexistentes, seja, sobretudo, porque a lógica do fechamento de sentido é, muitas vezes,
o produto de relações, contactos e proximidades que inspiram a ansiosa necessidade de demarcação e de exageração da diferença, como há muito nos disse Frederic Barth
em "Ethnic groups and boundaries": "as distinções étnicas não dependem da ausência de interacção social e aceitação, mas, muito ao contrário, são frequentemente
as fundações em que os sistemas sociais se constroem" (1981: 199, minha tradução). Haveria assim que considerar esses "outros significativos" que a um tempo precedem
e acompanham o forjar de lógicas culturais internamente referenciais. Não obstante, parece-me deveras importante a que a desconstrução da história da cegueira acolha
o perigo do fechamento que faz com que a maior distância possível ao nosso pensamento seja aquela que separa a cegueira de Borges da cegueira de Homero. Defende-se
assim a relevância do conhecimento de outras culturas, outras significações. Na convicção de que os seres humanos são tão diversos como aquilo em que acreditam,
importa aceder às respostas que outros nos deram guardando outras ovelhas noutros pastos, noutros vales (Geertz, 1993: 30, 122).
Ao reflectir acerca da disseminação das crenças das tecnologias e da ciência, Sandra Harding reequaciona as ambições totalitárias ligadas ao prestígio do pensamento
científico ocidental, afirmando que algumas ideias de facto "viajam bem", persistindo e vingando tornar-se úteis noutros tempos e espaços diversos daqueles da sua
origem (2000: 136). Tomando como ponto de partida a concepção de cegueira que a modernidade ocidental consagrou, diria que a hipótese de Harding importa ser pensada
e apropriada, mas enquanto estratégia negativa, menos vocacionada para o proselitismo de um sentido particular, do que para a visibilização da particularidade desse
sentido. Neste intuito, fazer viajar a noção cegueira dominante no nosso contexto de significado, implica experimentar os seus limites, conhecer a diversidade dos
espaços de vivência de pessoas cegas, mas também fazer da viagem uma descoberta que permita enriquecer o espectro de significações a partir de outras cosmovisões.
Isto implica que teremos que estar dispostos a aceitar a radical desestabilização que outras culturas oferecem a um quadro de valores que a todo o momento nos convoca,
quer para a segurança das referências de partida, quer para o ensejo de fazer de qualquer viagem um "circuito do mesmo" (Spivak, 1999: 79). Ilustrativo dessa destabilização
é o facto do percurso enriquecido na diversidade poder implicar coisas tão paradoxais como termos de nos "libertar" da noção de deficiência para compreendermos os
valores que marcam a vida das pessoas que aprendemos a chamar deficientes
Erigem-se para esta análise, creio bem, as virtualidades dos registos etnográficos informados por outros contextos de significado; outras sociedades, a partir
das quais o retorno à história dos nossos valores permite alimentar um estranhamento passível de fazer jus à nossa "exorbitante singularidade". Portanto, sustenta-se
uma leitura que tem como propósito último investir de "novo" a nossa relação com aquilo que daqueloutra linhagem que nos é contemporâneo: os sucessores dessa genealogia
da cegueira, de que Borges não é o último descendente.
Nesse sentido, importa definir como ponto de partida a problematização do modo como o nosso contexto de valores sustenta uma relação necessária entre a cegueira
e as trágicas limitações que dela resultam. O Filme de 1992, Scent of a Woman1, obra que em Portugal conheceu o nome de "Perfume de Mulher", é, sem dúvida, uma das
mais importantes evocações do tema da cegueira na cultura mediática2. A narrativa desta película conta a história de Frank Slade (papel representado por Al Pacino),
um Tenente-Coronel que após um quarto de século de serviço às forças armadas americanas é remetido à reserva na sequência de um acidente que o deixou irremediavelmente
cego.
A acção do filme principia quando estão seis meses decorridos desde que Frank Slade deixou de distinguir completamente a luz do escuro, a exacta altura em que
este decide pôr um anúncio num liceu de Boston para que alguém o acompanhe a um fim-de-semana a Nova Iorque. É um tímido rapaz, Charles Sims, quem se apresenta em
sua casa para responder à solicitação. Desde logo, nas primeiras trocas de palavras, o solitário Tenente-Coronel, mostra ser bastante desagradável no trato para
com o jovem estudante, assumindo uma atitude onde se parece combinar a austeridade militar com a revolta de uma pessoa profundamente amargurada. Dado esse que fica
sintetizado quando, já na partida para Nova Iorque, Fank interroga o estudante: "És cego?! Então porque raio me agarras o braço?! Eu é que sou cego, eu é que agarro
o teu!" (minha tradução).
O fim-de-semana em Nova Iorque parece cumprir um anseio há muito guardado em Frank, que, inclusive, investe nele todas as suas poupanças de forma a se presentear
no desfrute do luxo e requinte da suite de um prestigiado hotel. Todavia, apenas pouco antes do regresso a Boston, e após um conjunto de incidências que viriam a
criar uma cumplicidade entre o ex-militar e Charles, é que o propósito último da viagem é desvendado. Ao entrar de surpresa na suite, Charles confronta-se com a
imagem do Tenente-coronel, vestido com o seu uniforme militar, empunhando um revólver. Na verdade, Frank havia planeado a viagem a Nova Iorque com o objectivo de
provar pela última vez alguns dos prazeres que se tinham feito distantes, para no fim se suicidar envergando o símbolo da dignidade que a cegueira lhe havia roubado.
Pasmo, ao confrontar-se com este cenário, Charles procura dissuadir o Tenente--Coronel do acto que este estava determinado a levar a cabo. Ocorre então um diálogo
intenso que emerge como o nódulo de todo o fio narrativo e através do qual somos colocados perante o questionamento que, afinal, a cegueira faz suscitar:
Charles: - "... o senhor está a atravessar uma fase má!"
Frank: - "Uma fase má?! Não é isso, eu sou mau, sou péssimo!"
Charles: - "Não é mau, simplesmente está a sofrer..."
Frank: - "O que sabes tu de sofrimento?!" (...)
Charles: - "... Vá para a frente com a sua vida!..."
Frank: - "Que vida?! Eu não tenho vida! Eu estou aqui na escuridão! Será que não percebes, eu estou na escuridão!" (minha tradução, minha ênfase).
A cegueira compõe-se nesta cativante narrativa como uma particular expressão da tragédia e do infortúnio. Após o acidente que lhe provocou a cegueira, a vida
de Frank adquire o sentido de uma forma liminar de experiência, uma fronteira onde se parece questionar aquilo com que é possível o "ser" transigir. No fundo, a
cegueira emerge como uma condição que se oferece a interrogar ontologicamente o valor de um mundo destituído de um tão importante sentido, nas palavras da personagem:
"Eu não tenho vida! Eu estou aqui na escuridão!"
A alusão a este artefacto ocidental, resgatado como referência de partida a um olhar a outras realidades culturais, tem o propósito de espelhar aquelas que serão
as crenças hegemonicamente detidas no nosso contexto de valores acerca da cegueira. No fundo, estou como que a calibrar das construções dominantes que nos instam
à "colagem" da experiência da cegueira à noção de tragédia. No entanto, a evocação desta narrativa não visa negar o seu carácter de verosimilhança e exequibilidade,
tal seria negar a um tempo, quer o modo singular e idiossincrático como determinadas experiências são vivenciadas pelos sujeitos, quer a magnitude do impacto de
uma cegueira subitamente infligida por um acidente. A relevância desta singular consagração mediática do tema da cegueira, legitima-se, sobretudo, pela persuasão
de que a leitura ali suscitada reflecte, ou pelo menos é em tudo congruente, com aquela que é interpretação ocidental dominante para captar a experiência das pessoas
cegas. Uma perspectiva que vincula a vida das pessoas cegas ao peso da tragédia, do infortúnio e da incapacidade, naquilo que Michael Oliver (1990) designa por "narrativa
da tragédia pessoal". Esta é uma construção que no fundo opera como uma narrativa social que funda as condições da sua verdade, realizando-se por via dos valores
que tendem a ser projectados na vida das pessoas cegas, naquilo que não é senão uma mui insidiosa forma de opressão.
O que me parece relevante, neste âmbito, é a elaboração de uma exploração mais abrangente que expresse em que medida a transversal noção da cegueira enquanto
uma condição irrevogavelmente marcada pela aura da tragédia e da incapacidade, traduz valores que têm menos a ver com as pessoas cegas do que com um contexto particular.
Um contexto em que a cegueira é pensada por discursos em que a reflexividade das pessoas que a "incorporam" está largamente ausente, e onde valores culturais, historicamente
constituídos, favorecem uma leitura da cegueira enquanto signo de infortúnio, incapacidade, improdutividade, dependência, vulnerabilidade, ignorância, alienação
e reclusão no mundo das trevas. Associações que nalguma medida são meros avatares do laço apertado que num reduto último firma a cegueira à morte. Este é, na verdade,
um dos subtextos fortes da célebre e relevante obra de José Saramago, o "Ensaio sobre a Cegueira", aliás, como fica singularmente manifesto numa inferência de uma
das suas personagens: "a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança" (Saramago, 1995: 204).
De facto, o "Ensaio sobre a Cegueira" ilustra bem a pletora de significados simbólicos a que a que cegueira está socialmente ancorada entre nós. Nessa obra, Saramago
narra o surgimento de uma inexplicável epidemia de cegueira, um estranho fenómeno que as autoridades procuraram desde logo controlar, encetando um encarceramento
repressivo de todos os infectados, numa lógica em tudo similar às históricas leprosarias. É do manifesto fracasso destas medidas e da consequente disseminação da
cegueira por toda população, que se gera a narrativa de um romance em que a precariedade da dignidade humana se torna uma asserção cintilante. Pela pena de Saramago,
a contaminação de uma cegueira branca por toda a população engendra um efeito nos sujeitos que tem tanto de transformador das atitudes individuais, pelo pânico que
provoca, como de revelador das lógicas perversas que vêm formando a pessoa humana. O surgir de um contexto de calamidade promove o confronto dos sujeitos com as
suas necessidades de sobrevivência, ansiedades egoístas e desmesuradas ambições que vingam em reinvestir a sociedade de novas relações de desigualdade e lógicas
de dominação. Nesta narrativa de forte sentido alegórico, José Saramago constrói uma profusão de metáforas e analogias, onde são patentes as inúmeras ramificações
simbólicas a que a cegueira se oferece na matriz ocidental: a ignorância, a alienação, a morte, a ganância, o negrume, etc. - no fundo os sinónimos que a cegueira
evoca nas entradas de um qualquer dicionário. Mas, num sentido mais premente, a cegueira constitui no ensaio de Saramago a metáfora fundadora que concorre para a
negação de uma humanidade cujos valores são representados no período calamitoso provocado pela epidemia de cegueira. Numa construção próxima da declaração de Walter
Benjamin, quando o historiador afirmava que o estado de emergência é a regra e não a excepção, Saramago compõe o retrato de uma cegueira fulgurante que mais não
faz que tornar evidente uma outra cegueira, essa que já lá estava: "Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que
vêem; cegos, que, vendo, não vêem" (Saramago, 1995: 310).
As experiências das pessoas cegas estão ausentes da narrativa de Saramago, trocadas que foram pela "riqueza" de valores culturalmente associados à ideia de cegueira.
No entanto esta troca mais não faz do que imitar uma outra bem mais grave. Tal como no romance, também na nossa sociedade as narrativas e reflexões das pessoas cegas
encontram-se largamente submersas pelos valores cultural e historicamente ancorados à cegueira. Nesse sentido, a subsequente leitura de dados etnográficos, será
também uma afirmação do mesmo relativismo presente na declaração de Steven Lukes (1973: 149) quando refere que "qualquer forma de ver é igualmente uma forma de não
ver". Esta interessante expressão permite sintetizar três instigantes textos: expõe o quanto a nossa linguagem se encontra permeada pelas relações entre visão e
conhecimento; anuncia a estreiteza de uma sociedade que reiteradamente silencia as narrativas das pessoas cegas (no sentido em que ver é uma forma de não ver), e
aponta para o modo como a natureza precária e contingente das construções de um contexto sócio-histórico tende a conviver com a negação dessa mesma contingência.
Deveremos, pois, nutrir uma perspectiva transculturalmente informada em prol de um olhar que não deverá visar tanto a apropriação da criatividade existente em lugares
específicos da vida humana, mas sim o contacto com um conhecimento inspirador das inúmeras possibilidades para a reconstrução inventiva dos nossos contextos de sociabilidade.
O intuito de aceder a registos etnográficos que nos coloquem perante formas de encarar a cegueira diversas daquelas que a modernidade ocidental consagrou, é seriamente
comprometido pelo desinteresse que as ciências sociais vêm dedicando a estas temáticas. De facto, é raro encontrarmos um estudo etnográfico que se demore na análise
da articulação entre os valores dos diferentes contextos sociais e as pessoas com deficiência, ou cuja alusão mais não seja que uma referência de passagem, absolutamente
marginal aos programas epistemológicos, tendencialmente mais dedicados a matérias como o género, a religião, a mitologia, os rituais, as relações de parentesco,
a propriedade, as hierarquias sociais, a sexualidade, etc. Por isso mesmo, a obra recentemente organizada sob o título Disability and Culture (Ingstad e Whyte (orgs.),
1995a), constitui uma oportunidade tão rara como preciosa para possibilidade para uma análise translocal que se dedique às deficiências em particular. Os diversos
trabalhos etnográficos que dão corpo a esta colecção reúnem-se sob um objectivo de partida: a análise das apreensões das deficiências em diferentes contextos socioculturais.
Somos, por esta via, brindados por um conjunto de análises de pendor eminentemente antropológico, onde, embora esteja sempre implícito um contraponto com a realidade
ocidental - de que o porto de partida dos investigadores é garante3 -, está longe de se esboçar uma "pedagogia ingénua" que apenas consigne elementos passíveis de
nos servirem como exemplares. Poderei talvez referir que as análises pecam por não apresentarem com maior acutilância aquelas que são as perspectivas e reflexões
das "pessoas com deficiência". Não obstante, erige-se uma robusta persuasão de que, sendo universais as limitações permanentes das faculdades mentais, dos sentidos,
e das actividades motoras, as suas vicissitudes e implicações não poderão ser minimamente captadas por via de uma ênfase exclusiva nas condições biológicas. Aliás,
é essa ênfase que tende a postular a centralidade do óbice que as deficiências constituem. No fundo, a ênfase que sustenta a desqualificação das pessoas com deficiência
no contexto ocidental.
A abordagem que é sugerida pelas autoras que organizam a edição da obra, distingue dois posicionamentos relativistas possíveis em relação ao modo de se pensar
como as diferentes formações socioculturais reflectem e informam a vida das pessoas com deficiência. Assim, identifica-se um relativismo mais comum onde se sustenta
que a desvantagem implicada por uma deficiência está incontornavelmente ligada às capacidades mais valorizadas nos contextos particulares. Mas a este posicionamento
relativista acrescenta-se um outro que as autoras definem como mais radical, um relativismo que consigna uma disposição para se compreender o lugar da deficiência
por relação com as cosmovisões que a pensam. Só uma tal perspectiva pode acalentar o ensejo de aceder ao vínculo entre a existência de uma deficiência e as elaborações
culturais sustentadas pelos diversos grupos sociais acerca da sua causalidade e significado. Nomeadamente, este relativismo forte enfatiza que a apreensão social
das pessoas com deficiência depende sempre dos postulados que em determinado contexto definem o que é ser uma pessoa, dos tipos de identidades e valores aí se estabelecem
e da relevância conferida à capacidade individual como referente da identidade social. É daqui que nasce a importância de se contemplar se, e em que medida, determinada
diferença é obstáculo às formas de realização pessoal socialmente prescritas (Ingstad e White, 1995b: 6, 7). É para esta perspectiva, senão mais radical, pelo menos
mais ambiciosa e problematizadora, que nos tendem a conduzir as etnografias abaixo evocadas.
O artigo produzido por Nayinda Sentumbwe (1995), a partir do trabalho de campo que desenvolveu entre 1987 e 1989 no Uganda, mostra-se particularmente significativo
para este âmbito, por constituir um raro registo etnográfico em que a cegueira se encontra analisada em exclusividade. Nayinda Sentumbwe refere que no Uganda a cegueira
é (no presente etnográfico) considerada a mais grave das deficiências físicas, dado ser tida como a condição mais incapacitante em termos funcionais. Por esta razão,
são amplamente disseminadas as percepções e comportamentos negativos em relação às pessoas cegas; valorações que, como atestou Sentumbwe, tendem a colidir com a
afirmação de capacidades veiculada nas entrevistas que realizou com pessoas cegas, onde igualmente se assinala o facto das suas possibilidades de realização serem
frequentemente feitas reféns dos preceitos familiares e sociais em relação à cegueira.
A autora dá-nos conta de que as concepções detidas em relação às pessoas cegas muito se devem ao fenómeno de "difusão". Consiste este na assunção socialmente
detida de que a incapacidade visual afecta outras funções físicas básicas e as competências sociais, avaliação que, juntamente com o facto de a cegueira ser entendida
como uma forma persistente de doença, sustenta a persuasão da extrema vulnerabilidade das pessoas cegas e a sua exclusão de um largo espectro de actividades (Sentumbwe,
1995: 161-163).
Nayinda Sentumbwe dirige uma particular atenção para o modo como as interpretações da cegueira no contexto do Uganda têm implicações diferentes para os seus portadores
em função do seu sexo, nomeadamente na relevante instituição social do matrimónio. De facto, embora seja socialmente aceite para um homem não inabilitado em termos
visuais manter relações sexuais com uma mulher cega, já não é concebível que case com a mesma. Isto porque, a incapacidade de realização quotidiana que se atribui
às pessoas cegas colide com os padrões pelos quais as mulheres são valorizadas como esposas, ou seja, com a importância conferida ao desempenho de uma esposa no
que concerne à manutenção da casa, ao cuidado com os filhos e a outras funções que normalmente lhe são adscritas. Como a escolha por parte do homem está sujeita
a um forte escrutínio crítico em função da competência matrimonial, torna-se compreensível a extrema raridade de casamentos entre homens que vêem e mulheres invisuais.
Já o inverso, o casamento entre um homem cego e uma mulher que vê, ocorre com relativa frequência, e é sancionado pelos padrões culturais que apreendem com naturalidade
a possibilidade de um homem depender dos cuidados da sua esposa (Sentumbwe, 1995).
Segundo Sentumbwe, a desvalorização das mulheres cegas no que ao matrimónio diz respeito, e das pessoas cegas em termos gerais, é, fundamentalmente, o resultado
de uma projecção de incapacidade que pouco tem a ver com as limitações realmente impostas pela falta de visão. Esta é uma evidência manifesta no facto dos casais
constituídos por duas pessoas cegas auto-subsistirem com relativa naturalidade, sendo notório o modo como as mulheres assumem com competência o papel social conferido
às esposas no Uganda (Sentumbwe, 1995: 169, 170).
A análise realizada por Sentumbwe permite compreender em que medida a relativa exclusão social vivida pelas pessoas cegas no Uganda se encontra umbilicalmente
ligada às construções e valores que são localmente detidos. Nomeadamente, a vulnerabilidade que a cegueira faz supor, quer porque expressa uma debilidade física
permanente e incurável, quer porque se crê comprometer outras funções corporais e competências sociais. A etnógrafa mostra-nos ainda que os valores inscritos na
experiência das pessoas cegas interferem diferentemente nas expectativas de matrimónio, em função dos diferentes papéis e valorizações culturais adscritos a mulheres
e homens. Embora estejamos longe de um exemplo que se erga como instrutivo em relação à integração social das pessoas cegas, torna-se aqui patente em que medida
o significado e as consequências da cegueira nos enviam sempre muito para além dela.
Os Maasai (Maa-sai, meu-povo) são um grupo étnico africano que habita o sul do Quénia e o norte da Tanzânia, desde que para aí foi remetido pela colonização inglesa.
Apesar das enormes pressões exteriores que têm sofrido, os Maasai têm mostrado particular resistência e apego a um modo de vida tradicionalmente marcado por uma
errância seminómada e uma dedicação à pastorícia. Aud Talle (1995) realizou trabalho de campo entre os Maasai no Quénia entre 1979 e 1981, onde teve de oportunidade
de investigar as percepções e práticas deste povo em relação às "pessoas com deficiência" no seu seio.
Para os Maasai, ser uma pessoa - oltungan - consiste em viver comunalmente no âmbito de grupos alargados de residência, onde a partilha, a generosidade e a cooperação
são atributos altamente valorizados. Acredita-se que a sua prosperidade e perpetuação muito depende destes contextos de comunalidade. A deficiência, categoria irrevogavelmente
ocidental, não é reconhecida enquanto uma dimensão unificada, sendo impossível apreender um conjunto mais ou menos estandardizado de comportamentos que a ela se
dirijam. Segundo a autora, o que neste contexto poderá apresentar alguma "semelhança de família" com o que designamos de deficiência, é a noção de olmaina, conceito
que incorpora uma forte dimensão de incompetência prática. Na verdade, olmaina refere uma incapacidade ou dificuldade de andar, dado que está intrinsecamente relacionado
com a relevância que a mobilidade naturalmente detém numa sociedade de pendor nómada. Já as condições corporais - as restantes "deficiências" - que não interferem
na capacidade de locomoção, são representadas por termos específicos que não são susceptíveis de ser abarcados por um qualquer conceito mais inclusivo que nelas
funde algum parentesco (Talle, 1995: 58, 59).
De facto, as pessoas com deficiência não são unificadas nem entendidas pelos Maasai pela disparidade que nelas se assinala em relação a um padrão, são, isso sim,
identificadas as formações corporais que implicam uma dependência física nas tarefas de todos os dias. Nessa leitura, uma pessoa que se encontre com dificuldades
temporárias na locomoção devido a uma perna partida, por exemplo, será igualmente designada de olmaina, o mesmo conceito que se emprega frequentemente para as pessoas
de idade mais avançada, caso esta acarrete uma considerável dependência para a execução das tarefas do dia-a-dia (Talle, 1995: 59, 60). É frequente as pessoas deficientes
serem identificadas pela sua diferença corporal particular, no entanto, este costume, segundo Abu Talle, não implicaria uma inferiorização de qualquer ordem, mas
antes um reconhecimento e aceitação da diferença, como o atesta o facto de qualquer pessoa com uma característica biológica predominante poder ser identificada através
dela; na realidade, os Maasai entendem que a "pessoa com deficiência" não poderá ser culpada pela sua condição, dado que não seria seu desejo ser assim (Talle, 1995:
59-61).
Entre os Maasai, quando uma criança "com deficiência" nasce é entendida como um infortúnio (enterroni) que é desde logo incorporado como um escolho que toma parte
nas árduas condições de vida que mapeiam as suas vivências. Estes eventos indesejados são normalmente atribuídos aos ditames de Deus ou da natureza. Não obstante,
a "deficiência" da criança poderá igualmente ser interpretada como um castigo que resulta de algum pecado (engoki) cometido por um ancestral, trata-se, por isso,
de um desígnio divino cuja causalidade não pode de modo algum ser imputada à criança. As crianças nascidas com alguma deficiência são cuidadas exactamente como as
restantes, e se é verdade que não lhes é dada menos atenção do que às restantes - o que seria, aliás, considerado um pecado (engoki) perante Deus - elas também não
são alvo de qualquer tipo de cuidado especial. Com este tratamento indiferenciado combinam-se as vantagens da integração social e psicológica das crianças, com os
eventuais riscos no que concerne à sua sobrevivência (Talle, 1995: 61, 62, 67)
Poderá ainda ocorrer que a deficiência resulte de uma maldição (oldeket), uma sanção ritual que é declarada publicamente, sendo que esta, para ser efectiva, terá
que ser moralmente justificável. Por isso, o acometimento de uma maldição ou a sua mera ameaça é considerado um importante elemento na preservação e reposição da
ordem social (Talle, 1995: 63-65).
O casamento é entendido como uma etapa crucial no percurso de vida dos Maasai, sobretudo porque é por via da maternidade/paternidade que um indivíduo se torna
definitivamente uma pessoa, de tal maneira que, se alguém morre sem filhos, o seu nome como que é apagado da memória (Talle, 1995: 69). Todas as pessoas, a menos
que tenham um retardamento mental profundo ou tenham sido desqualificadas por infracções de conduta muito graves, têm a possibilidade de casar e de se reproduzir,
garantindo, assim, uma etapa fundamental na valorização social entre os Maasai. Portanto, as "pessoas com deficiência" não são, em termos gerais, excluídas da vida
da comunidade, participando na vida local no melhor das suas possibilidades. Sendo conciliada a identificação das várias ordens de diferença física com um horizonte
de realização social, como, aliás, o atestam os diversos exemplos de que Talle dá conta. Na verdade, e como refere a autora, um homem com uma deficiência física,
pode, inclusive, se for inteligente e tiver o dom da oratória, ser entronizado como o líder político eleito no seu grupo etário (Olaiguenami), atribuição que corresponde
ao mais importante cargo político entre os Maasai (Talle, 1995: 69).
Aud Talle refere que no seu contexto de estudo pôde conhecer várias pessoas deficientes perfeitamente inseridas socialmente, casadas, com filhos, possuidoras
de cabeças de gado e participativas na vida comunitária naquilo em que as suas condições o permitiam. Além de ser notória a impossibilidade de projecção de um conceito
de deficiência para apreender a mundividência dos Maasai, estes dados mostram que o significado de todo um espectro de infortúnios, de que o surgimento de uma "deficiência"
é entendido como parte, depende sempre das relações percebidas na ordem cósmica e social. É nas interpretações aí engendradas, nas causalidades reconhecidas, que
se desvela o significado de uma "deficiência", um significado que serve para pensar a conduta dos sujeitos perante os valores da sociedade e perante Deus.
Ainda procurando aceder a outras constelações de significado que se inscrevem na vivência das pessoas com deficiência, importa considerar a análise que Bernard
Helander realizou com os Hubeer, um clã com cerca de 15 000 pessoas que habita no sul da Somália. O estudo realizado por Helander entre 1983 e 1985 tinha como propósito
central analisar o tema das deficiências naquele contexto, projecto que desde logo se viu confrontado com um problema. O facto dos Hubeer não estabelecerem qualquer
distinção entre o que ocidentalmente se nomeia respectivamente por doença e deficiência desconcertou a empreitada do pesquisador, que assim se viu perante a impossibilidade
de aceder a um conjunto de valores e atitudes que se dirigissem especificamente às pessoas com deficiência (Helander, 1995: 73, 74).
A noção de pessoa entre os Hubeer repousa na ideia que cada sujeito se encontra num entreposto onde se intersectam um conjunto de influências transformadoras.
Daqui decorre que as pessoas são conceptualizadas como entidades em fluxo, inerentemente incompletas, detentoras de uma flexibilidade que emerge como resultado de
um torrente contínua de influências a que estão sujeitas (Helander, 1995: 76-78). Portanto, a partir desta concepção, a inactividade e a imobilidade são lidas como
condições deveras indesejáveis que, por isso, entram em conflito com a natureza em fluxo das pessoas (Helander, 1995: 78).
O acometimento de uma doença entre os Hubeer dá lugar um processo de busca de tratamento, longo e profundamente negociado, não só devido ao pluralismo da tradição
médica somali, a que acrescem os cuidados oferecidos em instituições de países ocidentais, mas também, e sobretudo, pelo imperativo das famílias administrarem os
seus escassos recursos na busca da solução mais apropriada. Para esse processo é essencial que se defina a "doença" (o que o autor designa de illness-label), em
construções que são produzidas no seio da família e que muito dependem daquela que é considerada a causa. Só então é que se inicia a busca de cura, num processo
que conta com o empenho de toda a família e que pode levar até vários anos. O carácter incurável de uma doença, seja ela qual for, é definido pelo cessar da busca
de cura, sendo definido somente quando os recursos da família se esgotam (Helander, 1995: 78-88).
No contexto de valores e práticas dos Hubeer, as "pessoas com deficiência" tendem a ser entendidas de um modo negativo, estando os seus papéis sociais muito restringidos
a actividades como a mendicância. No entanto, a posição pouco favorecida das pessoas deficientes não é explicável, entre os Hubeer, à luz de uma qualquer dicotomia
norma/desvio, mas com base oposição entre mobilidade e imobilidade. Formação cultural que se impõe, não só porque a "deficiência" poderá implicar uma relativa inactividade,
mas também porque a noção de doença incurável, com que se define grosso modo aquilo a que chamamos deficiência, faz supor uma impossibilidade de transformação. Assim,
nesta percepção desprestigiante, as pessoas deficientes são entendidas como estando fora do fluxo de influências transformadoras a que as restantes pessoas estão
sujeitas (Helander, 1995: 78, 88, 89). Bernard Helander mostra-nos, deste modo, que as valorações projectadas nas deficiências muito dependem da consagração dos
sujeitos como correntes fluidas, tendo igualmente que ser percebidas como parte do conceito mais amplo de "doenças incuráveis", conceito que decorre das lógicas
de busca de tratamento. A pertinência que a busca de cura adquire entre os Hubeer na conceptualização da "deficiência" torna evidente o que Marc Augé (1991) apresenta
acerca da apreensão de doença em algumas sociedades africanas. Aí, relevam-se os quadros de valores locais e as interpretações sociais que o acometimento da enfermidade
evoca: "pensar a doença é já fazer referência aos outros" (1991: 36).
No estudo que Ida Nicolaisen (1995) realizou entre os Punan Bah revela-se particularmente pertinente a relação entre a deficiência e os valores que definem o
que é uma pessoa. Os dados obtidos por Ida Nicolaisen referem-se ao período entre 1973 e 1986, constituindo os sujeitos de análise, os Punan Bah, um pequeno grupo
étnico minoritário de cerca de 15 000 pessoas residentes na ilha do Bornéu central. Diz-nos Nicolaisen, que entre os Punan Bah uma criança só é reconhecida como
um ser humano (linou) quando o espírito do antepassado toma residência definitiva no seu corpo, algo que normalmente ocorre por volta dos seis meses, quando se dá
o nascimento do primeiro dente, ou quando a criança ganha capacidade para se virar autonomamente. Só então é que a criança recebe um nome e é considerada um membro
da sociedade e de uma dada família. As pessoas mentalmente retardadas não são consideradas completamente humanas, são stenga-linou (meio-humanas), elas são tidas
como o produto de um espírito que não é bom, sendo aceite a sua incapacidade para cumprir tarefas ou para assumir atribuições sociais como as restantes pessoas (Nicolaisen
1995: 44, 45). Já os indivíduos loucos ou com epilepsia são entendidos como estando sujeitos a condições temporariamente des-humanizantes, o seu comportamento é
interpretado como sendo resultado de espíritos não humanos que invadem e tomam conta do corpo, relegando o espírito do corpo para uma posição secundária. (Nicolaisen,
1995: 45). As deficiências físicas como a cegueira, a surdez, e as deficiências de ordem motora, recebem interpretações bem diversas. Segundo nos diz Nicolaisen,
para os Punan Bah estas condições não põem em causa a humanidade ou a identidade social dos que por ela são atingidos. Isto resulta do facto de que estas circunstâncias
físicas não são associadas àquele que é identificado como o espírito do corpo, elas são, isso sim, consideradas a consequência da ausência ou imperfeição de um dos
outros espíritos com de que as pessoas são imbuídas. Estes espíritos secundários encontram-se adscritos de um modo individualizado aos sentidos da audição, da visão
e às faculdades motoras. Assim, e a título de exemplo, a ocorrência de uma cegueira congénita pode ser explicada pela ausência do espírito do olho. Já as perdas
de visão por cataratas ou glaucoma são atribuídas ao gradual desaparecimento do espírito do olho. A causalidade destas situações é normalmente atribuída ao pai,
tido como o criador da criança, no entanto, existem situações em que se identifica a génese da situação nalgum comportamento da mãe durante a gravidez (Nicolaisen,
1995: 46).
Nas suas vivências quotidianas, as pessoas com deficiências físicas ou mentais vivem no seio das suas famílias bastante alargadas, comendo e dormindo junto dos
seus parentes e, na medida das suas possibilidades, participando como os restantes nas tarefas de casa, envolvendo-se também nas actividades produtivas. Tomam igualmente
parte nas muito importantes actividades de lazer que ocorrem no espaço convivial situado entre as casas das diversas famílias. De um modo expressivo, a autora fala-nos
com particular ênfase de um homem cego que conheceu e que era o mais reputado trepador de palmeiras de cocos. Este mesmo homem pescava habitualmente com a ajuda
de uma criança e participava na limpeza da floresta com a sua faca de mato. Nicolaisen refere-se ainda a outro homem, também cego, que conduzia o seu barco, inclusive
por zonas de rápidos, apenas com umas palavras de orientação de uma criança que se sentava na proa (Nicolaisen, 1995: 47, 48).
Apesar dos dados que atestam da participação das pessoas com deficiência na vida social e produtiva da família e da sociedade, o elemento mais relevante para
a nossa análise reside sem, sem dúvida, na asserção veiculada por Nicolaisen segundo a qual entre os Punan Bah a capacidade individual está longe de constituir um
elemento crucial na formação da identidade social. Assim, a formação discursiva que assiste valorização social dos indivíduos dá-se por critérios como a família
de pertença a idade, o sexo, o estatuto conjugal, a descendência, etc. (Nicolaisen: 47, 49). Neste quadro o casamento e a paternidade/maternidade são etapas altamente
valorizadas na afirmação social das pessoas entre os Punan Bah. Particular relevância é dada à existência de descendência4, uma vez que a inexistência de filhos
equivale a que os indivíduos se perpetuem numa fase liminar entre um estatuto infantil e um estatuto adulto. As "deficiências" físicas e mentais implicam um certo
óbice ao casamento, na mesma medida de outras situações, como sendo a fealdade, obesidade, magreza, temperamento intempestivo, egoísmo, preguiça, etc. No entanto,
isto não implica que as pessoas deficientes tenham comprometidas as suas possibilidades de aceder a um elemento tão central para a realização social como é descendência.
Isto porque, além das deficiências não obstarem ao casamento de uma forma taxativa, a eventual ausência de filhos pode ser resolvida no interior da família. O facto
de um sujeito não possuir descendentes constitui uma situação de desprestígio social que não apenas afecta um sujeito, mas toda a família a que ele/a pertence. Assim,
nos casos de ausência de casamento ou outras situações como a infertilidade de um dos consortes, é usual que o problema da descendência se resolva pela adopção de
um dos filhos das irmãs ou dos irmãos (Nicolaisen: 48-52).
Na leitura de Nicolaisen, pelo menos no que concerne às "deficiências" físicas, ninguém é estruturalmente inabilitado como agente social, algo que ocorre muito
por culpa da primordialidade conferida às relações sociais e a uma vivência marcada por uma forte comunalidade que permite a participação social e a realização pessoal
dos indivíduos. Segundo a autora, o quadro captado junto dos Punan Bah permite estabelecer um forte contraste com a invisibilidade social que marca a vida das pessoas
com deficiência no contexto ocidental.
Aos dados conferidos por estes registos etnográficos - testemunhos articulados que se investem, fundamentalmente, em visibilizar a itinerância dos valores que
acolhem as "deficiências" em função de narrativas culturais mais amplas - poderíamos acrescentar outras mundividências em que as deficiências suscitam comportamentos
de divinização (cf. Devlieger, 1995), ou mesmo os choques resultantes do confronto entre as lógicas das organizações ocidentais e outras culturas e (cf. Ingstad,
1995a, 1995b; Sachs, 1995). No entanto, creio que as descrições apresentadas permitem já a visibilização de alguns elementos que se torna fulcral articular e contrapor
com a historicidade ocidental. Concretamente, o facto da construção moderna ocidental de pessoa conferir centralidade à capacidade individual de realização. Penso
que os estudos a que aludimos nos colocam perante contextos sociais onde a "deficiência", longe de ser somaticamente inscrita, naturalizada no corpo, constitui um
fenómeno que convoca questionamentos mais amplos acerca da natureza das relações sociais e do cosmos. No entanto, a importância destes dados reside tanto no facto
de visibilizarem a nossa singularidade cultural, como na sustentação que dão a uma ideia mas geral, que importa prefigurar. A ideia de que o reconhecimento, nomeação
e interpretação das alterações e diferenças nos corpos, é sempre um processo eminentemente social; mesmo num limite - o nosso - em que essa elaboração social conduz
a uma incrustação do sentido no corpo capaz de o subtrair às relações sociais que o geram.
Nesta perspectiva, informado que me encontro pelas vivências, pela reflexividade e pelos ensejos político-associativos das pessoas cegas, a denúncia de uma narrativa
dominante que vigia as expectativas e possibilidades das pessoas portadoras de cegueira, é, simultaneamente, o anúncio da existência de outras perspectivas e narrativas
silenciadas. Assim, ao acedermos às diferentes formas de captar a cegueira e outras deficiências noutros quadros culturais sublinhamos o carácter culturalmente contingente
da nossa forma, dominante, no entendimento dessas realidades. Emerge assim uma afinidade entre as narrativas silenciadas e suprimidas nos quadros ocidentais, perspectivas
cujo reconhecimento nos coloca perante uma fractura epistemológica nas lutas pelo significado da cegueira, e a des-familiarização promovida por outras constelações
de significado não ocidentais. Uma afinidade que identifico numa partilhada vocação para a para a elaboração de narrativas sociais da deficiência. É nesse porto
que um questionamento sociocultural viajado poderá vir a abraçar as formulações sociopolíticas das pessoas com deficiência no nosso contexto.
Uma tal afinidade é singularmente captada pela necessidade, preconizada por Boaventura de Sousa Santos, de "aprender com o sul" (Santos: 2000). No fundo, a ideia
e o imperativo de aprender com o Sul constitui-se como uma poderosa metáfora, em tudo congruente na invocação que o autor faz de uma sociologia das ausências que
nos permita aceder a conhecimentos alternativos que não chegaram a ocorrer porque foram impedidos de surgir e a alternativas que foram marginalizadas e desqualificadas
(Santos, 2000: 225). A metáfora "aprender com o sul" mostra-se útil para pensar a irmandade entre um percurso crítico informado por experiências fora da matriz ocidental
e pelas narrativas silenciadas das pessoas cegas no nosso contexto.
Em primeiro lugar, surge a noção fundadora de uma divisão geográfica do planeta que, grosso modo, capta as abismais desigualdades económicas estruturantes do
sistema-mundo em que vivemos. Nesse sentido, o enfoque nas realidades das vivências da deficiência no Sul não pode de modo algum esquecer que, segundo dados da ONU,
das mais de 500 milhões de pessoas no mundo com alguma deficiência, cerca de 80% vivem em países em vias de desenvolvimento (ONU, 2003), ou, no que refere à cegueira
em particular, a existência de 150 milhões de pessoas com deficiência visual (das quais 38 milhões serão cegas) (OMS, 1997), sendo que as percentagens reflectem
de modo igualmente flagrante em que medida a pobreza, a fome e a guerra se distribuem no mundo em que vivemos. Assim, o confronto com outras experiências da deficiência
não poderá deixar de atentar para o facto que a grande maioria das deficiências são evitáveis, estando a sua distribuição vinculada a um mundo injusto e desigual.
Numa segunda instância, o aprender com o Sul toma a forma que vimos explorando neste capítulo, ou seja, releva a importância de se considerarem outras epistemologias
e significados que nos colocam perante diferentes contextos de integração social das pessoas deficientes, mas, sobretudo, visibilizam a singularidade com que os
quadros da modernidade ocidental pensam as deficiências. No fundo, este ensejo baseia-se na necessidade da tradição imperialista ocidental abandonar a arrogância
com que o conhecimento moderno, e o científico em particular, vem negando as possibilidades criativas e questionadoras de certezas que residem noutros saberes e
vivências sociais. O reconhecimento das epistemologias do Sul recolhe, nesta perspectiva, um sentido próximo do que é defendido por Ernesto Laclau (1996: 34) quando
afirma que é necessário que se resolva a tensão entre particularismo e universalismo por um "sistemático descentramento do Ocidente", passível de negar o correlato
estabelecido entre as ambições universalistas ocidentais e o seu projecto imperialista.
Finalmente, esta metáfora permite considerar em que medida, para se pensar a questão da deficiência, importa coligar e irmanar formas de subalternidade e marginalização
que, por sua vez, permitam entender de que modo a historicidade ocidental veio a fundar um quadro de valores que vinga em silenciar a reflexividade das pessoas com
deficiência e em negar as suas aspirações. De facto, "o que melhor identifica o Sul é o facto de ter sido silenciado" (Santos, 2000: 344).
Neste contexto, aprender com o Sul é, em bom rigor, reconhecer os "Suis" criados pelo "capitalismo predatório" (Falk, 1999), pela arrogância epistemológica do
pensamento moderno, e pela sistemática negação do valor da subjectividade das pessoas com deficiência. No fundo, o tema da cegueira parece enviar-nos para a convicção
expressa por Homi Bhabha (1994: 172):
.. as teorias críticas sugerem que é daqueles que sofreram a sentença da história - subjugação, dominação, diáspora, deslocalização - que aprendemos as mais duradouras
lições para viver e pensar.
Investidos da des-familiarização promovida por um entendimento mais viajado da cegueira, importará agora voltar aos universos de significado presentes na tal
genealogia de Borges, o mesmo é dizer, importará aceder à visão muito particular com que o Ocidente vem narrando historicamente a experiência das pessoas cegas.
Perceberemos assim, não só as raízes e as rotas dos significados que hoje são hegemonicamente vinculados à cegueira, mas também a intrigante razão porque as diversas
pessoas reunidas sob o conceito de deficiência reflectem uma perspectiva particular sobre a nossa sociedade. Falo, claro de uma comunalidade nas formas de opressão
que são exercidas sobre uma heterogeneidade de condições.
Já cego, Sansão socorreu-se de um criança para o conduzir às colunas que, uma vez derribadas, uniriam a sua morte à de milhares de Filisteus (A Bíblia Sagrada
- Juízes, 16: 26-30). Num certo sentido, os matizes que envolvem o fim trágico de Sansão prenunciam um perigo que nos cabe contornar: esse "malogro de uma cultura
soterrada pelos seus próprios monumentos" (Foucault, 1998: 95). Ao mesmo tempo a história de Sansão é a premonição representativa do modo como encontramos hoje a
cegueira: soterrada pelos monumentos de uma cultura.
2. A BÍBLIA: LUZ, TREVAS E O EVANGELHO NOS CORPOS
Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.
Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e untou com o lodo os olhos do cego. (João 9: 6)
Para um olhar sobre a história ocidental da cegueira, entendo como ponto de partida central uma interpretação do texto bíblico. Esta persuasão justifica-se, em
primeiro lugar, pelo facto de uma tal análise nos conduzir a um contexto sócio-histórico particular, temporalmente distante, singularmente documentado, e que vem
suportar o carácter contingente do tecido de valores e relações em que é possível encontrar as vivências das pessoas privadas da visão. Perspectiva que tende a sublinhar
o que há de destabilizador e expansivo na evocação de outras constelações de significado. Em segundo lugar, este enfoque recolhe o valor que se reconhece à tradição
judaico-cristã enquanto herança fundadora do mundo ocidental. Uma tradição de que somos irrevogável produto, quer pelas continuidades que a ela nos ligam, quer pelas
construções que surgiram por contraponto à sua hegemonia na vida social, de que somos também herdeiros.
Uma exploração dos dados contidos no Velho Testamento coloca-nos perante uma ambiguidade no modo como a lei hebraica se dirige às pessoas cegas e portadoras de
outras deficiências. Essa ambiguidade reside, por um lado, nas prescrições rituais estabelecidas no culto a Deus e, por outro, na existência de ditames que estabelecem
uma salvaguarda da situação dos menos afortunados.
No Velho Testamento, em particular nos livros de Levítico e Deuteronómio, é possível dar conta de um amplo quadro de normas que organizam com minúcia os mais
elementares actos da vida do povo hebraico. Os ensinos da Lei definem um rígido código de conduta que se encontra estabelecido em estreita ligação com as noções
de pureza que aí se definem. Na realidade, como analisa Mary Douglas em "As Abominações do Levítico", capítulo constituinte da obra, Pureza e Perigo (1991), os critérios
de pureza e os perigos da sua transgressão estão profusamente disseminados nas prescrições que sancionam a observância das determinações divinas. Deste modo, a exigência
de vigilância em relação às formas de poluição, orienta áreas da vida tão diversas como os sacrifícios rituais, a alimentação, a sexualidade, o cuidado com o corpo,
a actividade agrícola, a pastorícia, etc. No seio desta constelação normativa, assume incontornável relevância para o presente estudo o texto onde se estabelecem
critérios precisos para a participação no culto a Deus:
Falou mais o senhor a Moisés, dizendo: Fala a Arão, dizendo: Ninguém da tua descendência, nas suas gerações, em que houver algum defeito, se chegará a oferecer
o pão do seu Deus. Pois nenhum homem em quem houver alguma deformidade se chegará; como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato, ou de membros demasiadamente compridos,
Ou homem que tiver quebrado o pé, ou a mão quebrada, Ou corcunda, ou anão, ou que tiver defeito no olho, ou sarna, ou impigem, ou que tiver testículo mutilado. Nenhum
homem da descendência de Arão, o sacerdote, em quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer as ofertas queimadas do senhor; defeito nele há; não se chegará
para oferecer o pão do seu Deus. Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do santo. Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar, porquanto
defeito há nele, para que não profane os meus santuários; porque eu sou o senhor que os santifico. E Moisés falou isto a Arão e a seus filhos, e a todos os filhos
de Israel. (Levítico5 21: 16-24, minha ênfase).
A exclusão dos homens com "alguma deformidade" na participação activa no culto a Deus, assente na negação do desempenho das funções sacerdotais da entrega de
oferendas, constitui uma demarcação simbólica com óbvias consequências negativas na apreensão social dos indivíduos em que recai a interdição. Tanto mais assim será
se tivermos em atenção que as leis em causa, no fundo, negam aos indivíduos em que se assinala algum "defeito", uma proximidade com o divino. Portanto, embora podendo
participar do culto e comer do pão do Senhor, estão excluídos de uma relação mais íntima com o "Deus de Moisés". Uma distância que é concretizada topograficamente
pela proibição de ultrapassarem o véu que assegurava a "separação entre o santuário e o lugar santíssimo" (Êxodo 26: 33) e de, assim, se aproximarem do altar.
Os dados até aqui considerados permitem supor que a marginalização do ritual religioso sancionaria uma marginalização social mais ampla das pessoas cegas e portadoras
de outras condições. No entanto, deveremos atender igualmente à existência no Velho Testamento de normas que determinavam formas de assegurar a protecção das pessoas
mais carenciadas. Estas estatuíam, concretamente, que se fizesse a recolha incompleta das colheitas para que os remanescentes pudessem ficar para proveito dos pobres
e dos estrangeiros (cf. Levítico 19: 9-10; 23: 22). Conforme refere Margaret Winzer (1997: 87), estas leis revelam o incentivo de uma atitude preocupada que perpassa
no Velho Testamento em relação ao cuidado com os mais desfavorecidos de um modo geral, onde se incluem as pessoas portadoras de deficiência. Disto expressivo é a
passagem presente em Levítico 19: 14: "Não amaldiçoarás ao surdo, nem porás tropeço diante do cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor".
Penso ser possível afirmar que a ambivalência que resulta da tomada em consideração de uma exclusão religiosa e simbólica, por um lado, e de formas de protecção
e cuidado, por outro, não será demasiado forte para permitir desafiar a persuasão de que as pessoas cegas e portadoras de outras deficiências estariam sujeitas ao
jugo de marginalização que a primeira prescrição suscitaria. Nesse sentido, torna-se importante compreender em que medida a mensagem trazida por Jesus veio desestabilizar
o lugar até então adscrito às pessoas tidas como impuras e entendidas como evidência de pecado.
A ideia de Jesus enquanto judeu, uma evidência bíblica, parece negar-se ou esquecer-se com demasiada frequência e facilidade, à luz do confronto histórico que
o cristianismo veio a estabelecer com judaísmo a respeito de Jesus. Na realidade, Jesus foi criado e viveu no seio das tradições e costumes do povo hebraico, assumindo
uma posição de relativo respeito para com os valores da dita Lei de Moisés: "Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir" (Mateus
5: 17). No entanto, do mesmo modo que se assinala o judaísmo de Jesus, deverá reconhecer-se que são muitos os elementos de subversão que o Messias apresenta em relação
à lei do Velho Testamento e ao modo como ela vinha sendo apropriada. Esta dissenção fica particularmente manifesta no modo como Jesus se relaciona com os fariseus,
os saduceus e os escribas, que eram tidos como os detentores privilegiados da Lei da Torá, quer no seu conhecimento, quer na sua observância. No relato que os evangelhos
fazem da vida de Jesus, são diversas as referências a situações em que a acção de Jesus e dos seus discípulos é alvo da crítica dos fariseus por não se encontrar
em conformidade com as leis6. As disputas suscitadas por estas acusações constituem singulares momentos de clarificação de perspectivas, ocasiões em que Jesus se
investe na denúncia da uma relevância exagerada conferida ao formalismo religioso - baseado na observância dos rituais prescritos -, invocando, ao invés, a centralidade
da autenticidade de sentimento em que se deveria fundar uma efectiva comunhão com Deus e o próximo. Jesus denuncia, igualmente, a indevida primordialidade que as
tradições dos homens detêm sobre o mandamento de Deus nas práticas e costumes, questionando a autoridade dos que eram tidos como os guardiães da palavra. Portanto,
não se podendo dizer que Jesus vem negar a Lei do Velho Testamento, torna-se evidente, no mínimo, que existe na sua mensagem o desígnio de reorientar os discursos
e práticas para aquele que deveria ser o "espírito da lei". Algo expresso quando Jesus elege os maiores dos mandamentos:
"Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento.
E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes." (Marcos 12: 30, 31).
Do confronto a que fazemos alusão, é ilustrativa uma passagem em que Jesus responde à acusação de um fariseu por ter iniciado a refeição sem se lavar previamente,
conforme o determinaria a palavra da lei: "Agora vós, ó fariseus! Purificais o exterior do corpo e do prato, e por dentro estais cheios de rapina e de perversidade!"
(Lucas 11: 39). Estes elementos mostram como Jesus vem relativizar a importância dos critérios de pureza herdados do Velho Testamento, os mesmos à luz dos quais
as pessoas com "deformidade" eram demarcadas. A questão não é mais se uma pessoa está purificada, mas se tem um coração puro (Striker, 1999: 34). O desejo de elevação
do "espírito da lei", no coração do qual se coloca o amor ao próximo, juntamente com a advogada necessidade de levar a todos a mensagem da salvação7, investe de
particular valor evangélico a proximidade estabelecida por Jesus com aqueles que anteriormente eram tidos como impuros ou manifestações do pecado humano.
A exploração destes elementos estruturantes da mensagem do Novo Testamento, e da sua relação com os ensinos da Torá, legitima-se certamente pelo importante papel
que desempenharam na afirmação da caridade/amor para com o próximo enquanto princípio fundamental da vida cristã. Uma influência que em termos históricos detém uma
enorme relevância, e que permanece até aos nossos dias. Legitima-se, igualmente, porque estes elementos se tornam essenciais à compreensão da relação que Jesus fundou
com as pessoas em que se assinalava alguma deformidade, em particular, através dos eventos que materializam essa relação - as curas.
Os episódios das curas realizadas por Jesus são eventos particularmente relevantes, não apenas por serem recorrentemente relatados no texto dos evangelhos, mas,
igualmente, por constituírem eventos de particular impacto simbólico no percurso de Jesus8. As histórias das inúmeras curas realizadas por Jesus a cegos, coxos,
leprosos, paralisados, etc., sintetizam poderosamente muitos dos valores que se estabelecem ao centro da mensagem do Novo Testamento. Em primeiro lugar, constituem
eventos extraordinários que afirmam o carácter sobre-humano do "filho do homem"9. Em segundo lugar, e como já referido, implicam uma subversiva proximidade enquanto
relação com o divino daqueles que por serem tidos como impuros e/ou manifestações do pecado estavam afastados da graça de Deus. Em terceiro lugar, representam a
objectificação material da transformação que Jesus pretende trazer à humanidade, constituindo os indivíduos curados uma afirmação indelével da necessidade do novo
nascimento invocada por Jesus (cf. João 3: 1-7).
Podemos analisar alguns dos muitos dos elementos que aqui referi pela evocação do relato de um episódio em que Jesus cura um homem cego que encontrou de passagem
na cidade de Jerusalém:
E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus
respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus. Convém que eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é
dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e untou
com o lodo os olhos do cego. E disse-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que significa o Enviado). Foi, pois, e lavou-se, e voltou vendo. Então os vizinhos, e
aqueles que dantes tinham visto que era cego, diziam: Não é este aquele que estava assentado e mendigava? (João 9: 1-8).
Numa primeira instância, esta narrativa de cura revela-nos que a mendicância era actividade conhecida do homem cego que entretanto foi curado. No mesmo sentido,
outros relatos de cura, quando fazem alguma alusão à vivência anterior das pessoas cegas curadas por Jesus, referem o facto de estas subsistirem enquanto mendigos
(cf. Mateus 22: 36-40; Marcos 12: 29-3 e Lucas 10: 26, 27). Dado este que, sendo consentâneo com os relatos de cura de portadores de outras deficiências, vem reforçar
a ideia da marginalização social por estas vivida.
No entanto, este episódio em particular é especialmente valioso porque deixa perceber como nas visões da época as pessoas com "deformidade" eram entendidas como
o resultado de algum pecado. Elemento que fica patente na questão que os discípulos colocam a Jesus: "Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?".
Em causa está aqui, não somente o estabelecimento de uma ligação entre a cegueira e o pecado, mas igualmente a eventual atribuição de uma culpa individual ao portador
da deficiência, sendo que, neste caso, esta imputabilidade é problematizada pelos discípulos por saberem que o homem era cego desde nascença. Esta mesma ideia fica
evidente quando, na continuação desta narrativa, os fariseus vão interrogar o cego miraculosamente curado por Jesus e, perante a fé deste no estatuto divino do galileu,
o desqualificam: "Tu és nascido todo em pecados, e nos ensinas a nós? E expulsaram-no" (João 9: 34). O alcance desta associação entre pecado individual e deficiência
fica aqui bem expresso, e embora não se possa encontrar uma base bíblica clara para a sua vigência, ela será subsidiária da ideia de que os eventos que ocorrem são
o resultado da vontade de Deus, como podemos ver numa passagem do Velho Testamento em que Deus se dirige a Moisés: "E disse-lhe o Senhor: Quem fez a boca do homem?
ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o Senhor?" (Êxodo 4: 11).
Perante a interpretação da condição do homem cego feita pelos discípulos, Jesus rejeita a associação entre a cegueira e qualquer acto pecaminoso que a justificasse:
"Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus". Assim, por um lado, a proximidade que Jesus estabelece com as pessoas
com deficiência constitui uma transgressão por referência ao véu da separação do Velho Testamento. Mas, por outro lado, Jesus confronta as interpretações da época
negando a existência de transgressão nessa proximidade, uma vez que retira o ónus de impureza/pecaminosidade que era atribuído às pessoas com "defeito". Haverá portanto
aqui uma paradoxal transgressão que reside na negação das fronteiras, na negação da transgressão, portanto.
No assinalável impacto simbólico das curas, quer para a percepção social das pessoas com deficiência, quer no contexto amplo da mensagem da salvação, faltará
abordar em que medida estas representam uma objectificação simbólica da transformação que Jesus pretende operar na humanidade. É neste sentido que julgo ser possível
afirmar um particular significado simbólico das curas realizadas às pessoas cegas10, onde a "materialização" dessa transformação corresponde a uma "iluminação".
A Bíblia no seu todo encontra-se profusamente pontuada por uma linguagem marcada pela oposição entre luz e trevas. Este registo metafórico percorre o Velho e o Novo
Testamento, sustentando uma associação entre luz e Deus, por antagonismo à qual se constitui a confluência entre a escuridão e o que não é com Deus, trevas que se
confundem com a cegueira, a morte, o diabo e o mal (Synnott, 1993: 209). Esta demarcação simbólica surge, aliás, desde os primórdios da criação (presente no 4.º
versículo da Bíblia), estabelecendo-se logo aí como uma das linhas de separação orientadoras da formação do mundo: "Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a
luz e as trevas." (Génesis 1: 4). Na realidade, é possível definir este dualismo com um dos elementos mais constantes e recorrentes de todo o texto bíblico.
É por referência à identificação de Deus com a luz que se sustenta a defesa que faço do especial significado simbólico nas curas de pessoas cegas. Novamente,
surge como ilustrativa a passagem acima citada, onde podemos verificar que Jesus, antes de ter dado a visão ao mendigo cego, afirma: "Enquanto estou no mundo, sou
a luz do mundo. Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e untou com o lodo os olhos do cego." (João: 9: 5, 6). Jesus apresenta-se, assim, como
a luz da revelação divina que materializa no homem cego a "iluminação" que a sua mensagem pretende trazer ao mundo. A restituição do sentido da visão a quem dele
estava privado deverá assim ser entendida como um duplo acto de iluminação, física e espiritual, que retira o cego do mundo da escuridão e o converte para o mundo
da luz. A centralidade desta linguagem simbólica evidencia-se novamente quando Jesus explica ao homem curado o significado da sua visão: "E disse-lhe Jesus: Eu vim
a este mundo para juízo, a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem sejam cegos". Como ficará claro no diálogo que à frente Jesus estabelece com os fariseus,
acusando-os da sua incapacidade para reconhecer a própria cegueira11, com esta afirmação Jesus pretende designar como propósito da sua missão iluminar quem não vê,
e fazer com que quem julga que vê reconheça a sua cegueira a fim de poder ser iluminado.
Este jogo simbólico de grande profundidade hermenêutica entre luz e escuridão, cegueira e visão, viria a ser reactualizado após a morte de Jesus. Saulo, na altura
um judeu que perseguia cristãos (que depois se chamaria Paulo, e se tornaria um dos grandes evangelizadores da igreja primitiva e autor das epístolas constantes
no texto bíblico), foi interpelado a caminho de Damasco por uma grande luz que se identificou como sendo Jesus. Foi nesse momento que Jesus falou ao prostrado Saulo
e o investiu da missão de espalhar a mensagem cristã. Este, após ter visto a luz de Jesus ficou três dias cego, até que:
Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes
a ver e sejas cheio do Espírito Santo. E logo lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e recuperou a vista; e, levantando-se, foi baptizado (Actos, 9: 17, 18).
Observamos neste relato que se recuperam os significados que os episódios das curas permitiram recolher. Paulo só reconhece realmente a luz de Jesus após entender
que estava cego, e a verdadeira conversão para o mundo da luz ocorre, mais uma vez, como um duplo processo de iluminação, expresso pelo facto de Paulo voltar a ver
no mesmo momento em que aceita a soberania de Jesus e se baptiza.
Creio ser possível encontrar nas reflexões que Jacques Derrida desenvolve sobre a relação entre cegueira e a pintura, um tributo para o particular significado
simbólico de que vimos investindo a cura das pessoas cegas. Defende o autor que os evangelhos constituem a pessoa cega como a "testemunha privilegiada da salvação",
isto porque, na narrativa bíblica é ela a vidente a quem cabe atestar, por via da visão instaurada, a verdade da luz divina (Derrida 1993: 20, 112-116). É por referência
ao impacto deste privilégio simbólico nutrido nas representações culturais que penso ser possível deduzir que o particular significado simbólico da conversão ao
mundo da luz das pessoas cegas terá contribuído para o especial cuidado com que as práticas da caridade sempre se dirigiram aos indivíduos privados da visão.
É manifesto que, no relato dos evangelhos, as pessoas cegas, e outras pessoas onde se assinalava deformidade, emergem, por via das curas, como testemunhas singulares
da nova aliança. O protagonismo que assumem nos relatos da vida de Jesus constitui-as como significantes importantes da mensagem da salvação e investe-as de valores
bem diversos daqueles em que se vinha fundando a sua demarcação social. No entanto, importa considerar que a importante transformação que Jesus opera nas concepções
que rodeavam as pessoas cegas, desmobilizando as noções que suportavam a demarcação social, não apaga a renitente associação com o pecado. Filiação que, como veremos
à frente, haveria de vigorar por muitos séculos. Se é verdade que o Novo Testamento consagra os indivíduos cegos como a evidência iluminada da passagem do Messias,
também deixa espaço para que se sustente a ideia de que o cego que permanece cego (não curado, portanto) se subtrai, de algum modo, à esfera do poder curativo e
redentor de Jesus, persistindo por isso no mundo das trevas. Estará porventura aqui criado o espaço para que se pense a pessoa cega como um remanescente resistente
à iluminação salvífica da boa-nova, como um não convertido à luz.
Se o Velho Testamento resiste, nalguma medida, à ideia de uma forma unificada e homogénea de relação para com as pessoas cegas e deficientes em geral, o contraponto
com os textos do Novo Testamento remete-nos para uma tensão não resolvida entre continuidades e descontinuidades. Uma tensão em que a consagração de uma relação
investida de novidade (fundadora da centralidade assumida pelas práticas de caridade) se articula e co-existe com concepções mais antigas, de cuja resistência a
história atesta. Na verdade, a Bíblia suporta valores e interpretações passíveis de legitimar diversos modos de agir e pensar as pessoas cegas. O que é inegável
é que podemos encontrar neste contexto e nas suas heranças para o porvir, a sede de representações que viriam a interagir, debater-se e consolidar-se, ao longo dos
séculos, permeando, não sem contradição, as vivências das pessoas cegas e portadoras de outras deficiências.
3. O LEGADO GREGO: HOMERO, TIRÉSIAS E ÉDIPO
Ó luz, seja esta a última vez que te encaro.
Sófocles, Rei Édipo
A tentativa de compreender o modo como a cegueira era entendida e vivida no contexto da Grécia Antiga, coloca esse empreendimento, desde logo, perante a contingência
de fazer apelo a elementos de origem muito diversa. No entanto, penso que o recurso à história, à mitologia, ao teatro e à filosofia, revela ser um expediente frutuoso
para consolidar algumas das construções que nos falam da apreensão social e cultural da cegueira naquele contexto. Uma análise que não é apenas um olhar sobre as
possíveis especificidades de um contexto que se sabe diverso, mas também um assumido esforço de narrativização de concepções que vieram a marcar o futuro das leituras
ocidentais das pessoas cegas.
O primeiro dado importante a considerar, e que nos remete para o tratamento das pessoas com deficiência de um modo geral, é a evidência histórica da existência
de práticas de infanticídio em Atenas e em Esparta. Nestas cidades-estado é conhecido o costume de se deixarem morrer as crianças em que se assinalava algum tipo
de deformidade física ou atraso mental. Estas formas de infanticídio eram levadas a cabo pela exposição aos elementos naturais das crianças com as referidas características,
sendo normalmente abandonadas em contextos naturais hostis, como sendo zonas montanhosas, zonas desérticas, vales profundos ou em rios. Deste modo, a muito provável
morte de crianças portadoras de alguma deficiência, constituía-se como um procedimento de selecção humana, sendo que, em termos simbólicos, a responsabilidade sobre
a vida da criança era partilhada com os desígnios dos deuses e da natureza. De referir que a negação da legitimidade à vida das crianças com deficiência era suportada
por Platão e Aristóteles (Martinez, 1991), tendo inclusive defendido o último, em Política (1998), a existência de uma lei que assegurasse que nenhuma criança deformada
sobrevivesse. Num sentido próximo dos filósofos questionava Hipócrates que crianças deveriam ser criadas (Winzer, 1997: 82).
No contexto de Esparta a prática de "exposição" estava profundamente inculcada, estando até estabelecido o imperativo das crianças serem examinadas pelos anciãos
após nascerem, a fim de que estes pudessem determinar a sua aptidão para a cidadania. Com base nessa avaliação definia-se então as crianças que deveriam ser expostas.
Esta selectividade da vida humana está intimamente ligada ao facto de as crianças serem entendidas como pertencentes à comunidade e não aos seus pais. De facto,
a compreensão deste mecanismo de infanticídio passa, em larga medida, pela concepção partilhada na Grécia Antiga, segundo a qual a vitalidade do Estado estaria intimamente
dependente da força inata dos seus cidadãos. Portanto, não é difícil de entender que esta leitura se oferecesse a um questionamento dos neo-natos que deveriam ser
criados e tomar parte na organização social (Winzer, 1997: 82). Sendo de facto importante dar conta da existência e advocacia destas práticas, de modo algum a elas
se poderá associar a ideia da inexistência de pessoas com deficiência nos contextos onde eram realizadas, quer porque o cumprimento da exposição nunca era total,
quer porque muitas deficiências eram posteriormente adquiridas.
Convirá ainda aludir ao facto de que a prática de exposição foi adoptada por Roma nos seus primeiros tempos, sendo neste caso atribuída a autoridade sobre a vida
ao paterfamilias. Entretanto a prática de exposição foi sendo cada vez menos praticada até que, no século II (d.C.), foi legalmente proibida (Striker, 1999: 39;
Winzer, 1997: 82, 83).
É no contexto grego que se localiza a consagração do cânone dos 5 sentidos que ainda hoje vigora na epistemologia ocidental. O seu autor foi Aristóteles que,
ao nomear os 5 sentidos que hoje damos por certos, reformulou a enumeração das percepções de Platão, onde constavam: a visão, a audição o olfacto, a percepção do
quente, a percepção do frio, o prazer, o desconforto, o desejo e o medo (Classen, 1993: 2). Como nos mostra Constance Classen (numa exploração brilhantemente intitulada
de Worlds of Sense), a contingência dos 5 sentidos que a história nos legou, com base numa autoria/autoridade individual, mostra ser consentânea com a diversidade
de formulações culturais existentes em torno de concepções próximas daquilo a que designamos sentidos.
Aristóteles não se limitou a definir os sentidos humanos, o filósofo investiu-se igualmente numa análise em que se estabelecia uma hierarquização dos sentidos.
O filósofo, defendia ser a visão o sentido mais primorosamente desenvolvido e mais relevante no que às necessidades da vida diz respeito (Winzer, 1997: 86, 87),
colocando-a no topo da sua hierarquia dos sentidos, seguida da audição e do olfacto (Synnott, 1993: 132). O próprio Platão, que na célebre alegoria da caverna estabelece
uma cisão entre o mundo sensível e o mundo inteligível, consagra a hegemonia da visão, que emerge no mito, quer como representação de um envolvimento sensual com
o mundo, neste caso o mundo espeleológico das sombras, quer como metáfora para o conhecimento das ideias e da verdade, que é representado pela visão do mundo da
luz e do sol. De facto, a desqualificação da ilusória relação sensual com o mundo em favor das construções fundadas em ideias, não impediu Platão de celebrar a visão
como fonte de singulares privilégios, e a reconhecesse imprescindível à filosofia, a maior dádiva dada pelos deuses ao homem mortal (Synnott, 1993: 131).
As considerações filosóficas aqui veiculadas constituem certamente um registo pessoal que ganha relevância pela autoridade dos seus autores. No entanto, é preciso
notar que a afirmação da hegemonia e centralidade da visão em Platão e Aristóteles, simultaneamente toma parte e é reflexo de uma representação dominante fortemente
inculcada no contexto grego. A primordialidade que a visão recolhe na Grécia antiga resulta, por um lado, da ligação simbólica do vigor da vida ao acto de ver, como
analisaremos mais à frente, e por outro, de uma consolidada equação entre visão e conhecimento.
Na realidade, a génese do centrismo visual que vigora no mundo ocidental já se situa na confluência estabelecida no pensamento grego entre ver e conhecer. Uma
associação que consagra o privilégio da visão por relação aos outros sentidos e cujo legado ganha evidência nos usos quotidianos que fazemos da linguagem, profundamente
permeados pelo governo das metáforas visuais sobre os mundos da razão e do entendimento (Synnott, 1993: 208). Como lembram Lakoff e Johnson (1999: 48) analisando
as metáforas reinantes no nosso pensamento e linguagem: "A visão é o domínio metafórico base para conceptualizar o conhecimento" (minha tradução). Desta relação,
já sedimentada no contexto grego nos dá conta a evolução etimológica da palavra "ideia" nas línguas europeias: Idein, Eidos, Idea. Uma genealogia cuja origem nos
transporta ao verbo grego Idein que significa "ver", constituído esta uma prova emblemática de que "o modo como pensamos acerca do modo como pensamos é orientado
na cultura ocidental por um paradigma visual" (Jenks, 1995: 1).
Torna-se particularmente instigante notar que a consagração redutora contida na associação conhecer e ver vigorou na sociedade grega, coexistindo e articulando-se
com uma transmissão da cultura que se sabe ter sido essencialmente oral. O reconhecimento desta aparente inconsistência, em meu entender, vem dar razão a Clifford
Geertz (1993: 17) quando este afirma que a busca da coerência não poderá ser o teste de validade de uma descrição cultural. Ou, num sentido mais específico, converge
com o que defende Constance Classen (1993: 135): "o sentido que simbolicamente é mais elaborado por uma cultura não é necessariamente o sentido de maior importância
prática, como meio de comunicação, ou noutras actividades" (minha tradução). De facto, embora se produzissem crescentemente registos escritos, a transmissão cultural
no contexto grego tinha um predomínio da palavra dita, como o atesta o facto de não se conhecer nenhum escrito autorado por Sócrates, considerado um dos grandes
vultos do conhecimento na história ocidental. Não surpreende assim o facto de Aristóteles, não obstante a primordialidade conferida à visão, ter defendido ser a
audição o mais importante sentido no que ao desenvolvimento do intelecto diz respeito, apreciação que funda no filósofo a convicção de que as pessoas cegas não seriam
inferiores em inteligência às que vêem (apud Winzer, 1997: 86, 87).
De facto, a oralidade da cultura grega mostra ser uma questão incontornável numa avaliação da vivência das pessoas cegas nessas sociedades, nomeadamente por
este factor lhes permitir uma participação activa na vida intelectual e política. De outro modo seria impossível conceber a incomparável notoriedade alcançada na
cultura grega e na história ocidental por Homero, o celebérrimo poeta cego, autor dos épicos Ilíada e Odisseia. A possibilidade das pessoas cegas participarem numa
cultura e numa vida intelectual onde a oralidade permitia que a ausência da visão não constituísse um obstáculo significativo, teve certamente implicações muito
positivas na sua integração e valorização social. Sobretudo, dada a relevância que se atribuía à vida intelectual e à posse de uma reputação cultural como forma
de valorização social.
A oportunidade dada às pessoas cegas para a aquisição de um prestígio intelectual fica exemplarmente ilustrada no confronto com as limitações que se colocavam
aos indivíduos surdos. Como nos dá conta a análise de Martha Ewards (1997), a apreensão social das pessoas surdas no contexto grego era profundamente subalternizante
e depreciativa. Isto porque, dado o carácter eminentemente oral da comunicação, acrescido da ausência de uma linguagem gestual, a surdez era associada à inaptidão
intelectual. Esta avaliação decorria de uma justaposição tácita entre capacidade de comunicação oral e a destreza de raciocínio, à luz da qual a não participação
nos mundos da comunicação verbal permitia que se concluísse acerca da ausência de faculdades cognitivas. Deste modo, e em flagrante oposição com as pessoas cegas,
as pessoas surdas, não somente estavam excluídas de uma importante esfera da vida social, como eram ainda sujeitas às consequências da menorização da sua aptidão
intelectual.
Importa referir que sendo viável às pessoas cegas uma valorização social através da participação na vida intelectual e política, estas possibilidades não deixavam
de obedecer a outro tipo de condicionantes que marcavam a vida das poleis gregas de um modo geral, como sendo a exclusão das mulheres e daqueles que não detinham
o estatuto de cidadão. O autor Albert Esser (1961) refere em particular o facto de que, embora fosse possível encontrar homens cegos como filósofos, juristas e políticos
(a que se acrescentam as suas valorizadas actividades artísticas como músicos, cantores e poetas), as suas oportunidades estariam intimamente relacionadas com a
classe social a que pertenciam. Assim, nas classes inferiores seria comum encontrarmos as pessoas cegas como mendigos, ou trabalhando em ofícios cujas condições
eram bastante precárias.
A Grécia antiga lega-nos a personagem de Homero, uma figura lendária cuja história e obra incorpora emblematicamente aquelas que seriam as possibilidades de participação
cultural e social dos homens cegos. Uma referência canónica da história ocidental, cuja influência fica bem expressa, quando, 27 séculos após a sua morte, em pleno
clima iluminista, a sua vida foi evocada por algumas figuras que então equacionaram a possibilidade das crianças cegas poderem ser instruídas no seio de instituições
educativas. Mas, a Grécia antiga inscreveu na história do Ocidente uma outra personagem, esta resolutamente pertencente ao mundo da mitologia, onde se corporiza
a figura, que se tornaria secular, do cego vidente. Refiro-me, claro, a Tirésias. De facto, a origem ocidental da construção do cego cuja incapacidade de ver o que
os outros vêem lhe permite ver o que mais ninguém vê, encontra-se no contexto grego, e envia-nos mais exactamente para a eternização substanciada nos usos criativos
das metáforas de luz e trevas presentes na poética de Sófocles. Criações em que a visão e cegueira emergem como importantes correlatos, e cuja síntese se substancia
singularmente no mito de Édipo e, particularmente, na personagem de Tirésias, o adivinho cego.
Segundo a narrativa de Sófocles, Édipo, já entronizado rei de Tebas e casado com sua mãe, Jocasta, procura descobrir a causa da epidemia que assola a sua cidade.
Após saber que a calamidade se deve à presença na polis do assassino de Laio, seu pai e antigo rei, busca descobrir a identidade do regicida, ciente que da morte
ou exílio do assassino depende o restabelecimento do equilíbrio em Tebas. E é nesta persecução da pessoa cuja existência compromete o bem-estar de toda a comunidade
que "entra em cena" Tirésias, o adivinho cego que Édipo manda chamar, dado este ser considerado "o único de entre os homens em que a verdade lançou raízes" (Sófocles,
1995: 74). Nas diversas versões mitológicas a vidência de Tirésias decorria de um castigo imputado pelos deuses para punir uma visão proibida de alguma divindade,
um dom que vem desempenhar na narrativa a função de desencadear a revelação, catalisando o desenlace da tragédia. Assim, após ser trazido à presença de Édipo, Tirésias,
que caminhava coadjuvado por uma criança, acaba por revelar o percurso de Édipo desde o assassínio do próprio seu pai até ao incesto vigente com a sua mãe. Situação
que colocou o rei perante a irónica conclusão de ser a sua própria presença a provocar os males que então assolavam Tebas.
A construção cultural da personagem de Tirésias, que Sófocles actualiza, é nutrida pela ideia da cegueira como castigo divino, remetendo-nos para uma causalidade
da cegueira próxima da que herdámos da tradição judaico-cristã. Mas, talvez mais importante é perceber de que modo a proximidade da cegueira com os desígnios do
divino se estabelece aqui num enlace que viria a durar pelos séculos, contribuindo para a mistificação das pessoas cegas. Na realidade, Tirésias, o homem cego detentor
da verdade divina, a instância do saber em quem as trevas físicas convivem com a luz reveladora, estabelece-se como a conspícua ruptura com a equação entre visão
e conhecimento de que o contexto grego também é a sede (Fialho, 1988: 92). A inversão materializada na figura de Tirésias das associações entre visão e conhecimento,
cegueira e ignorância (no fundo, as metáforas fundadoras), veio a ocupar, também ela, um lugar no imaginário ocidental. Estabelecendo-se assim uma relação de intimidade
entre a cegueira física e as formas de conhecimento sobre-humanas.
O vínculo apadrinhado na antiguidade grega entre a cegueira e esferas de saber tidas como sobre-humanas, contribuiu para a consolidação, ao longo dos séculos,
de um imaginário social em torno da cegueira. A asserção deste impacto confronta--nos, sobretudo, com o facto de, até à emergência do iluminismo, a experiência
das pessoas cegas ter sido marcada pelo espectro do fantástico que daqui decore, contribuindo, juntamente com elementos da tradição judaico-cristã, para o encerramento
das suas vivências em interpretações que as ligavam a "outros mundos".
No entanto, os dados socioculturais que o mito de Édipo descortina sobre as representações que acolhem a cegueira, estão longe de se esgotar no reconhecimento
da durabilidade histórica da figura do cego vidente, concretizada em Tirésias. De facto, a aparição da cegueira na narrativa não se detém no adivinho portador da
ciência divina, ela liga-se ao próprio Édipo, que viria a ficar, também ele, privado do sentido da visão. Quando Édipo recebe de Tirésias a revelação do seu percurso
trágico, estabelece-se um interessante jogo de luz e sombra, vidência e obscuridade, em que a recusa da verdade se inscreve em Édipo como uma forma de "cegueira"
que contrasta com a clarividência reveladora manifestada pelo cego Tirésias. Este paradoxo é narrativamente explorado e feito verbo nas palavras acusadoras do adivinho:
"Tu vês e não tens olhos para a cegueira a que chegaste..." (Sófocles, 1995: 82). Estes jogos de luz e sombra são absolutamente estruturantes da história, marcando
o corolário da tragédia na cegueira do próprio Édipo, que se virá a justapor a um completo conhecimento e lucidez acerca da sua posição no mundo e nas teias de relações
(Fialho, 1988: 139-150; Fialho, 1995: 29-31). Após ter finalmente aceite a reconstituição biográfica que Tirésias lhe confiou, onde figuravam o assassinato do pai
e o casamento com a mãe, Édipo decide auto-infligir-se com a cegueira. Este acto revela uma muito intrincada acepção simbólica que se mostra decisiva, quer para
a compreensão das conotações presentes no mito, quer para uma efectiva apreensão dos valores inscritos na cegueira.
Antes de se privar da visão Édipo prenuncia de forma singular o acto que haveria de realizar:
Ai, ai de mim! Tudo parece tornar-se claro. Ó luz, seja esta a última vez que te encaro, eu que me revelo nascido de quem não devia e, unido a quem não devia e,
de quem me era vedado, o assassino (Sófocles, 1005: 136).
O desejo de não mais ver a luz, expresso por Édipo, não faz da cegueira a consequência óbvia, como se poderia depreender. Isto porque, a despedida da luz constituía
para o contexto grego uma forma tradicional de referir a morte, como nos diz Mosh Barasch (2001: 36): "A cegueira é vista como morte porque no contexto grego a luz
é vista como a própria vida". Assim, quando Édipo exclama "Ó luz seja esta a última vez que eu te encaro..." (Sófocles, 1995: 136), isto sugere ao ateniense do século
V a.C., não apenas o augúrio da cegueira, mas uma ambiguidade entre a cegueira e a morte (Fialho, 1988: II, 111, 131).
O facto de o contexto grego fazer da visão da luz uma expressão simbólica da vida, faz com que o adeus à luz corresponda a uma despedida da vida, que, não implicando
a morte, implicaria, simbolicamente, o anúncio e sagração da cegueira enquanto uma forma de morte. Portanto, a cegueira emerge não apenas como uma forma particular
de mutilação, mas como a concretização do significado simbólico por que se representa a morte: a negação do contacto visual com a luz. Assim sendo, a cegueira de
Édipo constitui a irónica consumação da sentença que ele havia determinado para o regicida, que se veio a revelar ser o próprio Édipo. A sentença auto-infligida
constitui, portanto, a despedida do mundo luminoso dos vivos, um corte radical com o mundo da luz; neste sentido, a cegueira do protagonista é a um tempo signo de
uma forma de exílio e de uma forma de morte.
Torna-se de facto instigante dar conta que a Grécia nos legou representações da cegueira que não apontam num sentido unívoco no que a sua possibilidade de integração
e valorização social diz respeito. Importa contemplar em que medida essas representações co-existiram influenciando as vivências das pessoas cegas, como importa
atender ao impacto que esses valores tiveram na definição posterior dos modos de pensar e agir para com as mulheres, crianças e homens cegos. Fica assim o registo
entretecido de figuras e representações várias: Homero, expressão das possibilidades de participação cultural em sociedades predominantemente fundadas na comunicação
oral; Tirésias, representação da cegueira como castigo e expressão da vocação dos cegos para "verem" coisas que restantes mortais estão vedadas; Édipo, afirmação
da cegueira enquanto forma de exprimir a morte.
4. IDADE MÉDIA: A CEGUEIRA NUM MUNDO ENCANTADO
A queda do Império Romano do Ocidente é comummente aceite como o evento que assinala a génese da época medieval, consagrando também esta datação uma demarcação
em relação à vigência das culturas clássicas. A ideia de que as sociedades medievais são marcadas por uma profusa heterogeneidade, ainda que domesticada pela hegemonia
dos valores e instituições cristãs, e por uma vaga semelhança nas formas de exercício da soberania, não obsta a que se esbocem neste período algumas transversalidades
no que às pessoas com deficiência diz respeito. Efectivamente, a análise dos indícios relativos às vivências de pessoas cegas, surdas, com dificuldades de mobilidade,
com membros amputados, com lesões na medula espinal, etc., permitem a constituição de algumas linhas comuns de análise relativas a este espaço-tempo. Aportes que,
em temos largos, se orientam em três ideias com que é possível caracterizar este período. Em primeiro lugar, a co-existência dos valores legados pela cultura grega
e judaico-cristã, com particular relevância para o impacto das práticas fundadas na caridade cristã. Em segundo lugar, a vitalidade de interpretações onde a relação
com os mundos sobre-humanos adquire particular relevância. Finalmente, e numa oposição ao conhecimento moderno, o facto de as pessoas com deficiência não serem tidas
como grupo definido em relação a uma qualquer normalidade corporal, o que implica, desde logo, o reconhecimento do anacronismo no uso do conceito de deficiência
que aqui faço.
O impacto que os valores cristãos viriam a ter no mundo ocidental, seria certamente improvável de se supor até à conversão do imperador romano Constantino e à
consequente definição do Cristianismo como a religião oficial do Império, em 313 d.C. Somente após a cristianização de Constantino e do seu Império poderemos compreender
em que medida a leitura da vida e dos ensinos de Jesus se constitui enquanto referência incontornável, quer para o entendimento das sociedades medievais de um modo
geral, quer, em particular, para um questionamento do lugar das pessoas com deficiência nesses contextos.
É bem sabido que na Idade Média foi deveras substancial a importância das instituições e das práticas fundadas e promovidas a partir dos valores da caridade inspirados
em Jesus. Os objectos do exercício da caridade seriam as pessoas desfavorecidas em sentido amplo, onde as pessoas com deficiência se incluíam numa tripla pertinência:
primeiro, porque as condições precárias e incertas da existência, comuns naquele tempo, marcariam com maior incidência os mais vulneráveis; segundo, porque os relatos
da vida de Jesus conferem particular ênfase ao encontro transformador com as pessoas em que então se assinalava alguma doença ou "deformidade" corporal12; terceiro,
porque a existência de condições que eram tidas como incapacitantes operava como forma de legitimar a necessidade de cuidado, subtraindo os sujeitos a eventuais
acusações de aproveitamento e ociosidade13.
O dispositivo caritário medieval, importante que foi, mitigando as árduas condições de vida prevalecentes, não deixa, no entanto, de ser marcado por uma forte
ambivalência no que às pessoas com deficiência diz respeito. Isto porque, a atenção privilegiada que estas recebiam no fornecimento de cuidados, oferta de esmolas
e acolhimento em instituições, convivia com interpretações dominantes, inspiradas pelos valores cristãos, que lhes eram profundamente desfavoráveis. O acometimento
da deficiência era mormente interpretado no período medieval como o resultado de uma punição divina, associando a pessoa com diferenças corporais visíveis à ideia
de pecado. Vingava igualmente como tese explicativa a associação com as forças do mal. Não surpreende, portanto, que Santo Agostinho tivesse afirmado que todas as
enfermidades dos cristãos devessem ser atribuídas aos demónios (apud Bowker, 1997: 367). Assim, estas concepções tomavam parte de uma mundividência em que as formas
de enfermidade permanente sugeriam uma distância dos seus portadores em relação a Deus e à observância dos seus mandamentos. Como refere Bryan Turner, a ocorrência
de enfermidades na Idade Média invocava sempre formulações acerca do mal, da justiça divina e, portanto, da teodiceia14 (1984: 67). Estes valores, naturalmente,
aportavam negativamente na vida social das pessoas com deficiência, ou porque promoviam actos de cumplicidade com a punição divina, ou porque sustentavam o desejo
de distanciamento em relação ao que supunha serem expressões da presença demoníaca.
Sendo verdade que o discurso e as práticas da Igreja se investiam marcadamente em promover o amparo dos mais necessitados, a ambivalência que acima referimos
permite ler algumas das contradições que presidiam ao cumprimento destes ideais. Em primeiro lugar, as práticas da caridade não se inseriam num qualquer projecto
de transformação social, emergindo, tão-somente, como realizações paliativas em sociedades onde a fome, a pobreza e a doença eram comuns e ciclicamente disseminados,
e onde assimetrias na distribuição da riqueza eram aceites e naturalizadas. Em segundo lugar, a acção caritária resulta menos de uma continuidade com os valores
de amor ao próximo, advogados por Jesus, do que de uma ênfase na necessidade de, por essa via, o crente alcançar uma forma de redenção e a salvação. Portanto, em
larga medida, os sujeitos eleitos como "objectos" da caridade, entre os quais se encontravam as pessoas com deficiência, são consagrados como provações divinas,
como veículos para o exercício da virtude, no fundo, meios para a salvação das almas dos seus benfeitores (Striker, 1999: 73, 74).
Entre as pessoas com deficiência, as pessoas cegas sempre ocuparam lugar especial enquanto destinatários de cuidado, podendo inclusive afirmar-se que foram dos
mais beneficiados com a centralidade adquirida pelas instituições eclesiásticas (Martinez, 1991: 540). De facto, o relato da disseminada presença de pessoas cegas
nas ruas e nas portas das igrejas, faz da figura do mendigo cego uma imagem central na Idade Média (Barash, 2001: 93), cujo relativo privilégio na obtenção de cuidado
fica singularmente patente no facto de Carlos Magno ter consagrado um édito em 798 (d.C.) com o fim de promover atitudes piedosas para com os cegos. A especial atenção
que as formações discursivas da caridade conferiam à cegueira fica ainda consubstanciada a nível institucional. Nos espaços normalmente criados para o provimento
de assistência caritária conferia-se alimentação, protecção e cuidados de saúde, de um modo indiscriminado aos mais necessitados que ali acorriam. Embora só a partir
dos séculos XVII e XVIII se viesse a assistir à emergência de asilos especializados dirigidos para as condições particulares dos utentes, assim estes fossem definidos
como mendigos, inválidos, doentes, loucos, delinquentes, etc. (Foucault, 1961; Striker, 1999: 102-119), existem dados que referem a existência de espaços dirigidos
para a assistência individualizada às pessoas cegas desde o século IV (d.C.) (Martinez, 1991: 471). Elemento que constitui uma evidente expressão do "prestígio"
detido pelas pessoas cegas no exercício da caridade, e cuja justificação residirá algures entre a relevância simbólica que as personagens cegas alcançam nos evangelhos,
e a persuasão de que a cegueira, mais do que outras condições, obviaria à auto-subsistência dos seus portadores.
Em todo o caso, poderemos afirmar que o exercício da caridade, nas suas múltiplas vertentes, terá constituído uma das formas centrais de objectificação sociocultural
da experiência da cegueira na Idade Média. Assunção que aporta nos nossos dias, tanto ao nível das instituições presentes nas sociedades civis, como nos valores
que permanecem ligando a cegueira à vivência da vulnerabilidade, da piedade e da dependência15.
Em grande medida, a apreensão sociocultural na Idade Média das pessoas deficientes estaria ancorada às práticas instigadas pela caridade cristã, por um lado,
e por outro, pelas visões inspiradas na tradição judaico-cristã, onde as deficiências surgem mormente como concretizações materiais do castigo divino e da presença
demoníaca. No entanto, as leituras culturais suscitadas por pessoas cegas, surdas, com diferenças físicas assinaláveis e/ou incapacidades funcionais aparentes, vão
muito para além do que seriam os valores fundados na cristandade medieval. De facto, as deficiências são acolhidas nos saberes socialmente produzidos como expressões
das mais diversas causas, poderes e relações. Numa linguagem que nos é modernamente familiar para falar de eventos com os quais largamente nos des--familiarizámos,
poderíamos afirmar que no período medieval era grande a sensibilidade geral para as manifestações sobrenaturais, constituindo a deficiência, a este propósito, um
caso particular dessa sensibilidade. No entanto, estaríamos olvidar o facto de que a cisão entre o natural e o sobrenatural simplesmente não existiu até ao século
XVI (Febvre, 1970: 487), asserção que é certamente mais forte para a conclusão de que na cosmovisão da época estamos perante "um mundo povoado de poderes invisíveis,
de forças, de espíritos, de influências, que nos rodeiam por todos os lados, nos assediam e regulam a nossa sorte." (ibidem: 487).
Não surpreende, portanto, que esta mundividência compusesse as deficiências como signos de manifestações satânicas, de espíritos, de criaturas semidivinas, de
acções penalizadas por Deus, de pactos faustinianos, etc. Numa leitura retrospectiva, poder-se-ia aventar que a vigência destas construções exotizantes das pessoas
deficientes fosse gradualmente perdendo pertinência até à sua desmobilização, em consequência da dominação do pensamento iluminista e pela emergência do dispositivo
tecno-científico moderno. No entanto, a hipótese desta gradual evanescência fica fortemente comprometida, e de um modo mais evidente para os países do sul da Europa,
em consequência do clima engendrado pela Inquisição. Nesse ambiente persecutório as associações das pessoas deficientes às forças sobre-humanas viriam a tomar maior
vigor e pertinência social. Assim, nos séculos XV e XVI ter-se-á assistido a um apogeu na demarcação das pessoas com deficiência, num clima em que a "caça às bruxas"
também significou a perseguição das pessoas assinaladas como diferentes (Winzer, 1997: 93, 94).
É de supor que as associações das pessoas cegas com o divino e o demoníaco tivessem instaurado um tecido de relações e valores culturais profundamente promotores
da sua subalternização. No entanto, não podemos incorrer numa generalização que capte apenas atitudes de temor, menorização e desdém social, dos que por elas eram
avaliados. Na verdade, em contraponto com valorações depreciativas, podemos encontrar o registo de comportamentos de veneração e reverência para com as pessoas invisuais,
a quem, não raras vezes, eram atribuídos dons de profecia e adivinhação (Belarmino, 1997: 30; Martinez, 1991: 481). Estas construções que associavam a cegueira a
formas extra-ordinárias de vidência fundavam-se na convicção de que a privação da visão implicada na cegueira tenderia a co-existir com outras formas de ver o mundo
a partir de uma intimidade com o que está fora dele. Podemos desenhar aqui uma continuidade em relação à centralidade que a figura do cego vidente adquiriu no contexto
da Grécia Antiga, e que a mitologia tão bem epitomizou na personagem do adivinho Tirésias. Esta construção, embora mais positivamente valorativa da experiência da
cegueira, inverte sem subverter, uma vez que continua vinculando as vivências das pessoas invisuais às associações sobre-humanas que os olhos velados fazem supor.
Os silêncios na história da Idade Média relativamente às experiências das pessoas com deficiência (Striker, 1999: 65) instauram-se largamente como evidência de
que determinado tipo de características corporais e mentais não eram unificadas nessa categorização que hoje detemos. No entanto, e como o atesta a análise feita
em torno da cegueira, esta asserção é congruente com a ideia de que as diferenças assinaladas nas diversas condições sempre estiveram sujeitas a vários valores e
crenças. Podemos assim dizer, por contraponto às construções modernas, que as representações que a Idade Média herdou e apropriou para a cegueira e para outras condições,
sempre co-existiram com uma noção relativista do corpo que haveria de persistir até ao século XVIII (Mirzoeff, 1997: 384). Assim, além de uma panóplia de valores
associados à cegueira, retemos em que medida as diferenças físicas eram inscritas de significados particulares sem que estes subsistissem enquanto produtos subsidiários
da noção de normalidade corporal, aquela hoje nos norteia e de que decorre o próprio conceito de deficiência.
Notas
1 Esta película é uma adaptação da obra Profomo di Donna, realizada em 1974 por Dino Risi.
2 Se é verdade que este artefacto cinematográfico constitui uma evidente emanação ocidental, ele toma parte de um nexo económico-cultural de alcance global que nos
remete para o âmbito daquilo que Arjjun Appadurai designa por mediascapes (1998).
3 Como dizia Lévi-Strauss, assistimos sempre ao espectáculo do outro a partir dos vagões da nossa própria cultura.
4 A autora assinala que o facto de a descendência se assumir como a mais relevante etapa no percurso individual de um indivíduo é particularmente agudizado em contextos
como os do Punan Bah em que a sociedade é entendida como sendo a descendência de um ancestral comum (Nicolaisen, 1995: 52, 53).
5 As passagens do texto bíblico aqui referidas ou citadas estão presentes A Bíblia Sagrada (1997).
6 Conferir Mateus 12: 1-13; Marcos 2: 24-27; 7: 1-23; Lucas 5: 30-39; 6: 1-9; 11: 37-44, 14:1-6; 5:1-7 e João 9: 16.
7 A universalidade dos destinatários da "boa-nova" é representada pela ênfase nas franjas marginalizadas da sociedade: "O Espírito do Senhor é sobre mim, Pois que
me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração, a pregar liberdade aos cativos, E restauração da vista aos cegos, A pôr em liberdade
os oprimidos, A anunciar o ano aceitável do Senhor." (Lucas 4:19; minha ênfase).
8 Na verdade, a importância simbólica das curas persistiria após a vida de Jesus. Isto o atesta o facto da cura de um homem coxo ter sido a primeira prova pública
de que os discípulos de Jesus haviam sido divinamente investidos na sua missão (cf. Actos 3: 1-12).
9 Mosh Barash (2001: 48) refere o particular impacto da cura dos cegos enquanto afirmação de um poder sobre-humano, por referência o carácter singularmente insólito
desta ocorrência, cuja excepcionalidade só é suplantada pelos eventos de restituição de vida aos mortos.
10 Deste particular significado simbólico, dá testemunho um vasto repertório de obras de pintura que, ao longo dos séculos, representaram as diversas cenas bíblicas
de Jesus a curar pessoas cegas. Obras a que Jacques Derrida dedica uma demorada análise em Memoirs of the Blind, (1990), sendo igualmente examinadas na obra Bodyscape
(1995) por Nicholas Mirzoeff.
11 "E aqueles dos fariseus, que estavam com ele, ouvindo isto, disseram-lhe: Também nós somos cegos? Disse-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas
como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece" (João 9: 40, 41).
12 São Tomás de Aquino estabelecia claramente na sua Summa Theologica o cuidado com os enfermos como um dos principais actos da caridade cristã (apud Turner, 1984:
67).
13 A este respeito, Jesus Martinez (1991: 485) refere a não rara existência de formas de exploração de crianças com alguma deficiência, cuja condição seria capitalizada
na mendicância, por parte de seus pais ou de outros adultos. O autor sustenta, inclusive, a existência de lesões corpóreas que eram deliberadamente infligidas nas
crianças ou noutros indivíduos vulneráveis para que, mais tarde, os seus executores pudessem tirar partido do que viria a ser auferido por via da mendicidade. Mosh
Barasch (2001: 97) sublinha ainda que, dado o capital simbólico que a cegueira assegurava na mendicância, seria comum a existência de cegueiras forjadas, estando
por isso disseminado um clima de suspeita em relação aos mendigos que se identificavam como cegos.
14 A afirmação da bondade e justiça de Deus perante a existência do mal e do sofrimento.
15 Note-se o uso corrente de expressões que são disto ilustrativas: "não tenho dinheiro nem para mandar cantar o cego!" ou "não batas mais no ceguinho!".
II
O DES-ENCANTAMENTO DA CEGUEIRA
. A PROMESSA ILUMINISTA: DE DIDEROT A LUÍS BRAILLE
Como é que um cego de nascença forma as ideias das figuras?
Denis Diderot
O advento da modernidade é transversalmente marcado pela ideia da promessa, ou, para dizer de outra maneira, o poder "evangélico" da promessa é constitutivo do
paradigma sociocultural da modernidade. Nele se define um amplo augúrio, celebrado pelos horizontes que descortina e pela novidade por que é tocado, sabemo-lo: a
emergência de conhecimentos e vontades de saber que adquiriam o prestígio canónico de Ciência, o surgimento de inovações tecnológicas capazes de confrontar a precariedade
humana na relação com a natureza e, por fim, a desmobilização/recomposição das hierarquias sociais até então vigentes, num projecto que se articularia com os princípios
da igualdade, liberdade e cidadania.
Neste quadro amplo de valores a experiência da cegueira foi também significativamente visitada pelas possibilidades a que o pensamento moderno abriu caminho. Nas
vidas das mulheres e homens cegos, o anjo moderno assumiu duas formas, distintas, mas convergentes. A primeira decorre da negação das construções que vinham mapeando
a experiência da cegueira e sustentando a sua marginalização social - construções estavam fundadas na elaboração de um vínculo forte com toda uma a pletora de crenças
acerca de poderes e manifestações sobre-humanas. A segunda deriva das possibilidades que foram acalentadas em relação ao acesso das pessoas cegas à cultura e ao
conhecimento, factor tão mais importante na medida em que o acesso ao saber se consolida como uma das formas centrais de valorização social nas sociedades que a
modernidade viu nascer. Cumprindo num mesmo momento estas formas de substanciação, o avatar moderno a dirigir-se à experiência das pessoas cegas dá pelo nome de
Denis Diderot (1713-1784), célebre enciclopedista francês e figura de destaque do Iluminismo.
Diderot publicou clandestinamente em 1749 uma carta que se revelaria deveras relevante; para o próprio, uma vez que o documento se alistaria entre os que viriam
a conduzir à sua detenção em Vincennes; mas também para as pessoas cegas, cujo porvir ficaria indelevelmente marcado pela autoria de Diderot. A carta em causa, cujo
título original é Lettre sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient, constitui a mais significativa reflexão sobre a cegueira realizada num espaço de muitos séculos,
pelo carácter precursor do seu conteúdo e pelo simples facto de ter colocado o tema da cegueira entre as elites culturais. Nessa carta de Diderot é manifesta a busca
de um entendimento sobre a cegueira que tem a marca da reinauguração do pensamento comum ao Iluminismo. De facto, a especulação informada de Diderot sobre a experiência
das pessoas cegas, poderia levar os mais incautos a deduzir que em 1749 estaríamos perante uma descoberta da cegueira. Este sentimento veicula a exacta medida em
que Diderot se despoja dos valores que até então poderiam infundir o entendimento da cegueira para a ela aceder em novos termos.
Diderot na sua carta investe-se mormente na análise da vida de dois personagens cegos: Nicholas Saunderson (1682-1739), um matemático que leccionou em Cambridge
com alguma notoriedade e cuja biografia chegou a Diderot; e um culto homem da nobreza francesa que Diderot visitou, personagem que na Lettre é designado por "cego
de Puiseaux", por referência à vila francesa onde este residia. Ambas as personagens representam as possibilidades de desenvolvimento intelectual das pessoas cegas.
No entanto, revelando ainda uma perspectiva deveras exotizante da experiência da cegueira, Diderot, quer na conversa com o cego de Puiseaux, quer na evocação da
narrativa de Nicholas Saunderson, investe-se em demarcar as diferenças a advir de uma relação com o mundo diferentemente construída.
Nesse sentido, Diderot questiona em que medida a cegueira favorece um entendimento diferente acerca da existência de Deus: "Ah! madame, como a moral dos cegos
é diferente da nossa!" (1972: 36, minha tradução). Aliás, foram estas divagações de ordem metafísica que fizeram com que as autoridades encontrassem na Lettre de
Diderot elementos atentatórios à "Religião, ao Estado e aos Costumes", e, consequentemente, justificativos da prisão do filósofo. Para além dos dados relativos às
relações metafísicas, tema pujante na subversão iluminista, Diderot procurou também entender em que medida as pessoas cegas de nascença percepcionam o mundo circundante
e acedem ao conhecimento: "Como é que um cego de nascença forma as ideias das figuras?" (ibidem: 37, minha tradução). Se é verdade que a análise que Diderot faz
da experiência da cegueira fica de certo modo refém de uma epistemologia sensualista, que o autor pretende corroborar, acabando por formular uma certa exageração
da diferença mental implicada pela cegueira, importará notar que Diderot não opera qualquer tipo de hierarquização inferiorizante da experiência da cegueira. Para
isto mesmo nos chama a atenção Nicholas Mirzoeff (1997). O autor defende que a reflexão que Diderot dirige à cegueira, embora tendente a ampliar a sua diferença,
nutre uma perspectiva relativista em relação ao corpo, numa leitura que está longe de constituir a ideia da cegueira como uma mera ausência de um sentido. De facto,
Diderot equaciona todo um conjunto de diferenças decorrentes do ver ou não ver, apontando as vantagens que a cegueira pode trazer em coisas tais como a elaboração
de juízos metafísicos, a construção de pensamento abstracto, a preservação de uma memória táctil, etc.
Diderot demora-se em compreender de que modo Nicholas Saunderson e o cego de Puiseaux adquiriram um património cultural e intelectual na impossibilidade de uma
relação visual com os artefactos culturais. Ao verificar que ambos os cegos sobre os quais se debruça haviam desenvolvido os seus próprios sistemas de escrita e
leitura, como forma de tomar notas que pudessem por eles ser interpretadas, Diderot não apenas veicula uma apologia das capacidades passíveis de conviver com a cegueira,
mas forja ainda um profecia que o futuro haveria de consentir. Substancia-se esta na defesa de um sistema de símbolos que se prestasse ao tacto, e que permitisse
que as pessoas cegas não tivessem que criar, a título individual, as suas próprias soluções para ler e escrever.
A busca do mundo criado pela cegueira, na persuasão de que tal mundo existe, engendra uma leitura das pessoas cegas que terá mais a ver com os pressupostos filosóficos
do autor do que com os sujeitos da sua análise. Em todo o caso, a carta de Diderot representa o fim de um tempo para a experiência ocidental da cegueira, esse tempo
em que a ausência de visão se fez signo de "um mundo encantado", no sentido de Weber, e em que o seu significado estava primordialmente dependente de todo um conjunto
de manifestações metafísicas que eram culturalmente percepcionadas. Conforme assinala Moshe Barasch, a carta de Diderot representa o ocaso de uma tradição que persistiu
envolvendo a cegueira durante quase toda a duração da cultura europeia. Diderot, cumprindo o desígnio emancipatório da aurora da modernidade, escreveu as linhas
que marcam o "des-encantamento da cegueira" (Barash: 2001). Cessa aqui um determinado modo de apreender a invidência de alguns no mesmo movimento em que se denuncia
a invidência de um tempo.
O carácter precursor da carta de Diderot ficaria substanciado num evento simbólico protagonizado por um leitor seu, 25 anos depois da primeira edição da Lettre
sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient. No ano de 1774, Valentin Hauy, um reputado linguista e tradutor, convidava François Lesueur, um jovem cego com a idade
de 16 anos, a abandonar as imediações do pórtico da igreja Saint Germain em Paris, local onde este encontrava habitualmente a pedir esmola para garantir a sua subsistência.
Conta a tradição que Valentin Haüy ofereceu uma moeda de prata ao jovem mendigo que, reconhecendo-a pelo tacto, questionou ao seu doador se este não se haveria equivocado
ao conceder tão generosa oferta. Ao perceber a inteligência e integridade moral de François Leseur, Valentin Haüy decidiu fazer dele o primeiro aluno daquela que
viria a ser a primeira escola para pessoas cegas do mundo ocidental, retirando-o, assim, a uma vida mendicante que se afigurava como mais que fatal destino. Este
interesse já se encontrava no espírito de Haüy desde que ele, em 1771, na feira de Santo Ovídio, assistiu a um espectáculo burlesco em que as pessoas cegas eram
ridicularizadas a troco de algum dinheiro. Desde essa data, Hauy vinha-se dedicando a estudar por toda a Europa métodos de escrita e leitura desenvolvidos por e
para pessoas cegas, visando a criação de um sistema de ensino sistemático para instruir crianças invisuais (Martinez, 1992: 64-72).
Em face do sucesso conseguido com François Leseuer, Valentin Haüy viria a estender os seus ensinos a outras crianças, sendo reconhecida oficialmente a Institution
Nationale des Jeunes Aveugles em 1784, para mais tarde, após a Revolução Francesa, ser incorporada na administração do Estado. Torna-se interessante notar que as
circunstâncias do nascimento de tão marcante instituição combinam o legado religioso e caritário com o nascente espírito iluminista. Este entretecido de tradições
históricas fica bem patente no percurso pessoal do próprio Valentin Haüy. Valentin Haüy foi criado juntamente com o seu irmão numa abadia de monges premonstratenses,
facto que marca decididamente o cuidado que sempre dedicou a obras beneméritas e a sua filiação em sociedades filantrópicas, tendo sido nesse âmbito de relações
que recolheu os primeiros apoios para a concretização da sua escola. Por outro lado, a consideração que este intento mereceu a Haüy e a sua consequente materialização,
encontra-se permeada pelo pensamento iluminista, quer na ênfase com que este contempla o projecto da disseminação da cultura e do conhecimento, quer na afirmação
da razão enquanto fundamento supremo que se estabelece reinante sobre as anteriores apreensões da cegueira constituídas em torno das intervenções divinas. Bem instrutivo
da novidade que presidia aos valores que animaram a empresa de Haüy, é o facto de ele ter tido necessidade de travar uma árdua luta para persuadir a sua sociedade
de que era possível conferir educação às crianças cegas e instruí-las para o exercício de uma profissão. Nos primeiros tempos que precederam a formação da escola,
Haüy foi recorrentemente acusado de estar a criar ilusões desnecessárias às crianças, fazendo-as acreditar que poderiam estudar e realizar-se como as demais. Inclusive,
aquele que foi o Ministro da Fazenda francês entre 1783 e 1787, Charles Calonne, chegou a acusar o filantropo de forjar as cerimónias onde eram exibidos os conhecimentos
e capacidades adquiridas pelas crianças cegas, tal era o cepticismo que então vigorava (Martinez, 19992: 71).
O inegável carácter precursor da instituição fundada por Valentin Haüy torna-se uma evidência, assim nos detenhamos no facto de que, nos anos subsequentes à implantação
da histórica instituição parisiense, foram profusamente disseminados por toda a Europa e América do Norte diversos estabelecimentos inspirados na escola de Haüy.
No congresso de professores de cegos realizado em Viena, em 1873, cerca de 100 anos depois do encontro histórico entre Valentin Haüy e François Lesueur, haveria
já cerca de 150 instituições especificamente dirigidas para o ensino de pessoas cegas (Lowenfeld, 1981: 169). No entanto, estamos ainda longe de apreender totalmente
a magnitude da importância histórica da escola de Haüy. Teremos, para tal, que contemplar o advento inventivo daquele que foi o seu mais célebre aluno. Refiro-me,
claro, a Louis Braille.
O método para escrita e leitura dos alunos cegos usado nos primeiros tempos da instituição parisiense havia sido elaborado pelo próprio Valentin Haüy, e consistia
em normais caracteres do alfabeto que eram imprimidos em relevo para poderem ser detectados pelo tacto. No entanto, esse sistema apresentava diversas dificuldades,
entre as quais se contam o número exíguo de livros que permitia produzir, o elevado preço da impressão, o enorme tamanho dos volumes e a morosidade da leitura. Louis
Braille (1809-1852) ficou cego devido a um acidente nos primeiros anos de vida, na sequência do qual veio a abandonar a sua aldeia para ingressar internato na instituição
fundada por Haüy em 1819. Seria ali que tomaria contacto com um sistema de traços e pontos, desenvolvido por um capitão do exército, que tinha propósito de permitir
que as comunicações de ordem militar operassem em circunstâncias em que não houvesse luz. Ao perceber as potencialidades desse sistema, Louis Braille dedicou-se
arduamente a construir a partir dele um código de signos reconhecíveis ao tacto, capaz de reproduzir os caracteres da linguagem escrita. Após a apresentação em 1825
do sistema de pontos que Louis Braille ardilosamente concebeu, este veio a tornar-se o suporte para o ensino oficial na escola em 1829, consagrando-se como o sistema
para o ensino de cegos em França no ano de 1854 (Martinez, 1992). Desde então o Sistema Braille, embrionado na primeira escola para cegos do mundo ocidental, universalizou-se,
passando a constituir o meio de escrita e leitura para as pessoas cegas um pouco por todo o mundo. O surgimento do Sistema Braille constitui a revolução tecnológica
mais importante que a modernidade trouxe à vida das mulheres e homens privados do sentido da visão. Através dele se efectivou a viabilidade do acesso à literacia,
ao conhecimento e à comunicação das pessoas cegas. O advento moderno do Sistema Braille, cuja génese necessariamente recapitula a importância fundadora de Denis
Diderot, Valentin Haüy e Louis Braille, constitui igualmente a materialização da expectativa de que a experiência das pessoas cegas deixasse de estar fadada a uma
demarcação social e cultural.
Interessantemente, a crença nas possibilidades de realização das pessoas com diversas deficiências dá-se a par com a proliferação de instituições segregadas onde
estas pudessem ser atendidas na especificidade da sua condição física. Nesse sentido, nos séculos XVIII e XIX assistimos à criação de um amplo conjunto de asilos
e asilos-escola que emergem como evidente expressão de que, apesar do inegável passo constituído pelo surgimento da educação especializada, a resposta social da
modernidade à deficiência esteve incontornavelmente ligada à institucionalização e à segregação. Uma matriz que foi sendo crescentemente articulada com a ideia de
que a potenciação das competências das pessoas cegas e portadoras de outras deficiências deveria visar a sua integração social na vida adulta. Só na década de 70
do século XX é que se disseminaria a ideia de que o ensino e a formação das pessoas com deficiência deveria ser feita nos mesmos contextos das outras pessoas.
O percurso que levou François Lesueur a abandonar a mendicância junto ao pórtico da igreja de Saint Germain para ingressar na primeira instituição de ensino para
pessoas cegas, representa de modo sublime o itinerário emancipatório moderno, feito largamente da desqualificação das interpretações religiosas e metafísicas. O
percurso emancipatório em que assenta o reconhecimento da viabilidade e importância da educação das crianças cegas, sublinhado pelo advento do Braille, permitia
vislumbrar um porvir em que as suas expectativas e possibilidades deixassem de estar irrevogavelmente constrangidas pela sua limitação sensorial e pelas interpretações
exotizantes da sua condição. Tal não aconteceu, verificou-se, isso sim, que as sucessivas conquistas desde a carta de Diderot se vieram a defrontar com os tenazes
obstáculos criados pelo modo como a modernidade, a mesma que consagrou o nascimento do Braille, reinvestiu de significado a experiência da cegueira. Portanto, importa
aceder à leitura sociocultural que o pensamento moderno faz da experiência da cegueira. Aí se funda a persuasão de que o des--encantamento da cegueira, longe de
dar lugar a uma qualquer neutralidade objectiva, se deu a par com um processo de objectificação que, embora imbuído da novidade moderna, criou as condições para
a perpetuação do que vinha sendo a marginalização e subalternização das pessoas cegas. Nesse sentido, teremos de ir para além de uma perspectiva triunfalista, até
aqui sugerida, do acolhimento moderno da cegueira. Implica isto contemplar todo um conjunto de construções que se tornaram características do nosso tempo e que desenham
os contornos do moderno significado de não ver. Uma tal leitura da cegueira assinala, no fundo, em que medida há que considerar a coexistência, formadora do projecto
da modernidade, entre promessas cumpridas, promessas cumpridas em excesso e promessas que não poderão ser cumpridas a menos que se apreendam as impossibilidades
criadas pelas possibilidades que engendrou (Santos, 2000).
Laclau (1996) refere que os filósofos do Iluminismo, ao pretenderem fundar uma sociedade presidida pela Razão, foram consequentes, pois definiram e identificaram
como irracionalidade aquilo que os precedia ou estava fora de um tal novo projecto. Na verdade, é sobretudo por oposição aos valores dominantes do mundo medieval
que se erige o tesouro da racionalidade moderna, tido achado tão precioso que deveria ser feito património do homem em todos os lugares. Assim, o triunfo da razão
que se proclama, não vê chegar apenas o seu estreitamento pela articulação com o sistema económico que se tornaria dominante - o capitalismo industrial e pós-industrial.
Havia um estreitamento que estava já definido na oposição excludente para com as diversas formas de não-razão. Concretizando, o carácter contingente e excludente
da emergência razão moderna, e do que ela traz de emancipatório para as pessoas cegas, expressa-se mormente num aspecto. Refiro-me ao facto de a demarcação em relação
às leituras metafísicas, profusamente disseminadas, ter favorecido o privilégio de conhecimentos marcados pela vanguarda da racionalidade científica. Isto num salto
emancipatório que, no entanto, não deixou de constituir uma exclusão desqualificante de outras formas de racionalidade. Com particular ênfase para o desmerecimento
da reflexividade vivencial das próprias pessoas cegas.
Por certo que o quadro atrás desenhado tornaria absurda qualquer nostalgia em relação à situação vivida pelas pessoas cegas no período medieval. No entanto, torna-se
fulcral perceber como é que a promessa emancipatória que a modernidade trouxe à cegueira se articula com toda uma pletora de valores que conduzem à permanência estrutural
da exclusão e marginalização das pessoas cegas. No fundo, perceber como é que a falência de um paradigma histórico dá lugar a caminhos que negam outros caminhos.
Em particular, denuncia-se como a cegueira foi re-investida de significado de um modo que nega a intervenção social das subjectividades das pessoas cegas e mitiga
o impacto capacitante das possibilidades auguradas pelo Iluminismo. A narrativa Iluminista de uma radical transformação das percepções sociais da cegueira desenha
uma história que ainda passa bem sem a voz das pessoas cegas, porventura consagrando Denis Diderot e Valentin Haüy como umas possíveis testemunhas articuladas. Preserva-se
assim a subalternidade do silêncio.
A emergência de uma leitura pós-metafísica da cegueira e o reconhecimento das capacidades das pessoas cegas representa, sem dúvida, um itinerário emancipatório.
No entanto, este itinerário não incorpora ainda a reflexividade das pessoas cegas, que permaneceram marcadas por estigmas que as encerraram numa posição de opressão
estrutural que nutre inevitáveis comunalidades entre elas. A emergência simultânea de uma transformação positiva e humanista da vida das pessoas cegas e o adiamento
das suas vozes é, de facto, uma expressão forte das exclusões pelas quais a transformação social sempre procede.
O humanismo que o advento moderno advoga não é certamente a libertação ou expressão de uma qualquer essência humana, é, isso sim, uma radical formulação contingentemente
estabelecida por oposição à pré-modenidade ocidental. Importa aceder às implicações que as constelações de práticas e valores daí dimanados dirigem à experiência
das pessoas cegas, numa perpetuação da sua situação de subalternidade estrutural. Uma permanência que na leitura que aqui se aventa resultará, quer do carácter excludente
de um itinerário emancipatório particular, quer das novas formas de controlo social que a modernidade veio a produzir. Ou seja, a perpetuação da subalternidade resulta
da natureza contingente e excludente de toda a promessa emancipatória (Laclau, 1996), por um lado, e, por outro, do modo como a modernidade se veio a caracterizar
por uma tensão desequilibrada entre os eixos emancipação e regulação (Santos 1995a, 2000).
O des-encantamento da cegueira representou uma transformação que, não obstante ter subtraído as pessoas de leituras profundamente excludentes, criou as condições
para o continuado silenciamento das suas experiências e subjectividades. É partindo dessa perplexidade que procuraremos perceber como é que é modernamente entretecida
uma descrição nova da cegueira que forja o silenciamento das suas subjectividades. A questão é contemplar como é que a diferença através da qual se define a cegueira
coloca as vivências das pessoas cegas nos limites das "ontologias e dos esquemas de inteligibilidade disponíveis" (Butler, 1993: 224). Falamos, creio bem, da reinvenção
da exclusão social.
Seguidamente abordarei os significados com que o sentido da visão foi modernamente investido. Um elemento prévio que se impõe neste ensejo mais amplo de definir
as questões estruturantes que vieram a condicionar as apreensões da experiência da cegueira. Reside aqui um vector incontornável se queremos aceder aos contornos
da objectificação da experiência da "não-visão" pela perspectiva moderna.
2. -O VISUALISMO MODERNO: A SACRALIZAÇÃO DA VISÃO NA "DOUTRINA DA IMACULADA PERCEPÇÃO"
A conversa entre a modernidade e a cegueira que aqui tentamos entabular estabelece como um dos seus temas centrais o significado dado à visão, no fundo, a faculdade
a partir da qual a experiência de determinadas pessoas se reúne sob o conceito de cegueira. Existe, portanto, uma relação de contraposição entre os valores associados
à capacidade de ver e os que infundem a experiência da cegueira.
A persecução desta relação funda-se no postulado de que, tal como os corpos, suas configurações e usos, também os sentidos são socialmente construídos, nos diferentes
contextos, pelas diferentes populações (Synnott, 1993: 1). Como demonstra Constance Classen, o significado e a relevância conferida aos sentidos depende profundamente
dos mundos de sentido em que eles são experimentados e pensados. Certamente que existem elementos que nos colocam perante o modo como os sentidos foram diferentemente
estruturados na história evolutiva da humanidade, como o facto de o córtex visual ser o maior dos centros sensoriais do cérebro, uma expressão de que a visão tenderá
a ser o sentido dominante na experiência humana (Classen, 1993: 9). No entanto, nada disto obsta à importante asserção de que ao longo da história e nas diferentes
culturas se engendram formas bem diversas de elaborar as implicações de ver, tocar, cheirar, gostar e ouvir (para usar o cânone dos sentidos que Aristóteles nos
legou).
Como pudemos perceber na análise atrás realizada, há muito que a hegemonia da visão se encontra presente nas raízes do pensamento ocidental No entanto, e não obstante
a reconhecida ancestralidade deste privilégio visual, é possível afirmar que o período moderno tem sido dominado pelo sentido da visão de um modo que o demarca claramente
dos períodos precedentes (Jay, 1992). Vivemos, é certo, numa época ineditamente oculocêntrica.
Lucien Febvre (1970) produz uma asserção deveras ilustrativa ao mostrar como o século XVI dá ainda conta de um amplo espectro sensorial nas relações com o mundo
e a natureza. Nesse tempo ainda não era notório um resoluto privilégio da visão, havendo uma forte sensibilidade para toda uma pletora de "sons, ruídos, vozes, prazer
auditivo" (Ibidem: 473). Lucien Febvre nota, por exemplo, como os jardins eram mais valorizados pelos aromas que emanavam do que pela estética que ofereciam ao olhar.
No mesmo sentido, Constance Classen (1993) historiciza como as rosas em todo o período medieval eram tratadas pelos floristas com o fim de se obter o odor desejado,
só mais tarde passariam a ser tratadas e cultivadas mormente em função dos imperativos da sua aparência visual. Lucien Febvre analisa em que medida os escritores
e os "homens de ciência" do século XVI deixam ainda perceber uma relação com o mundo não eivada de um estreitamento visualista que mais tarde se acometeria na percepção
ocidental do mundo. Na poesia desse século, Febvre encontra um interessante suporte em que se reifica a ideia de uma ecologia de sentidos: "Com o ouvido e cheiro
apurados, os homens desse tempo tinham, sem dúvida alguma, o olhar penetrante. Mas não tinham posto de lado ainda os outros sentidos" (Febvre, 1970: 482).
Nesta leitura, e como o faz notar Constance Classen (1993: 27), o Iluminismo enquanto iluminação toma o sentido quase literal enquanto afirmação da importância
que a visão adquiriu com a emergência do paradigma moderno. Dois factores centrais emergem para a consolidação do centrismo visual como uma das matrizes que singularizam
a modernidade ocidental. Por um lado, a disseminação da palavra escrita como central suporte de informação e comunicação, dado para que concorre tanto a sedimentação
do uso da imprensa como um clima que celebra a importância do acesso ao conhecimento. Na verdade, a vulgarização do livro impresso e da literacia, constitui a etapa
final e decisiva na viragem de uma cultura tradicionalmente baseada na comunicação oral do conhecimento, para um contexto crescentemente fundado na faculdade de
ler e escrever:
Por outro lado, o centrismo visual moderno é-nos trazido pelo modo como o conhecimento científico veio consolidar a dominação da visão sobre os outros sentidos.
Portanto, a apreensão do visualismo enquanto uma das marcas de água da modernidade muito depende do reconhecimento do quanto a hegemonia da visão é co-extensiva
com a hegemonia da ciência na modernidade, no fundo, do reconhecimento da visão como "o sentido da ciência" (Classen, 1993: 6). Na influente obra Time and the Other,
Johanes Fabian (1983) denuncia o lugar ocupado por aquilo que denomina visualismo, conceito por via do qual o autor intenta apreender um quadro de pensamento em
Antropologia que tende a equivaler a capacidade para "vizualizar" uma cultura com a capacidade de a compreender. Tal crítica está longe de estabelecer como uma mera
crítica disciplinar, o visualismo de que nos fala Johanes Fabian capta uma sensibilidade das ciências sociais, e da Antropologia em particular, para um centrismo
visual que a modernidade ocidental herdou e potenciou. É neste sentido que o autor afirma que o visualismo presente na prática etnográfica e na consagração da observação-participan
te diz respeito a uma "corrente ideológica do pensamento ocidental" (1983: 123) que revela um "um viés ideológico cultural em relação à visão como o mais nobre dos
sentidos e em relação a uma conceptualização gráfica e geométrica como a forma mais "exacta" de comunicar o conhecimento" (ibidem: 106, minha tradução). Deste modo
a referência a esta crítica à Antropologia mais não é do que uma expressão particular e representativa de um traço cultural ocidental a um tempo antigo e recente.
Grosso modo, é a esta corrente ideológica que Martin Jay (1992), no seu influente argumento em torno do oculocentrismo moderno, designa por "perspectivismo cartesiano".
O autor funda este conceito, inerentemente híbrido, quer das noções renascentistas de perspectiva desenvolvidas ao nível das artes visuais, quer nos princípios que
René Descartes estabelece acerca da racionalidade. Assim, Martin Jay desenvolve uma persuasão que capta esse impulso que o Renascimento e a revolução científica
criam na ambição de se alcançarem representações fiéis do real, num movimento em que a visão emerge como um elemento metodológico e simbólico absolutamente central
para fundar as possibilidades de uma relação literal e metafórica com o mundo. Sob o cunho das ideias que se tornaram dominantes na epistemologia moderna, o oculocentrismo
que o perspectivismo cartesiano contempla capta essa "dramática confluência de uma tradição filosófica empírica, de uma estética realista, de uma atitude positivista
em relação ao conhecimento e de uma ideologia tecnocientífica" (Jenks, 1995: 14, minha tradução).
Nos estudos que realizou sobre óptica, René Descartes deixa bem patente a primazia e honorabilidade que reconhece ao sentido da visão, reproduzindo de algum modo
a hierarquia sensorial já presente nos clássicos gregos:
A nossa vida depende inteiramente nos nossos sentidos, e uma vez que a visão é o mais nobre e mais completo dos nossos sentidos, as invenções que servem para aumentar
o seu poder estão, indubitavelmente, entre as mais úteis que pode haver (Descartes, 1998: 60).
É nesse suposto que o autor se investe em aquilatar das possibilidades que todo um conjunto de dispositivos técnicos que permitem acrescentar e corrigir aos dados
captados pela visão. No entanto, e não obstante a sua "ode" aos frutos visuais, a importância de Descartes para a inculcação do centrismo visual moderno relaciona--se
fundamentalmente com o modo como a sua filosofia sustenta a ideia de que a mente deve aspirar a representar o mundo para lá das - muitas vezes falaciosas - evidências
dos sentidos. Assim, a questão central decorre do modo como Descartes contribui para uma epistemologia positivista que, embora negando os sentidos como forma directa
de acesso ao real em favor da reflexão mental, consagra a visão como metáfora estruturante de um conhecimento objectivo da realidade. Portanto, desde o pensamento
de Descartes que a epistemologia positivista, crente na possibilidade de reportar o real tal como ele é, vem aprofundando a equação entre ver e conhecer pelo uso
da visão enquanto metáfora fundadora da empresa de aceder à "verdade do mundo". Em conformidade, a própria construção de representações mentais capazes de apreender
o mundo pelo método e raciocínio, sustenta a ideia de um real visto pela mente para além dos sentidos, estabelece, pois, um "olho da mente":
Na concepção de Descartes - aquela que se tornou a base da epistemologia "moderna" - o que está na "mente" são as representações. O olho interno vigia estas representações,
esperando encontrar uma qualquer marca que testemunhe a sua fidelidade (Rorty: 1988).
De um modo significativo, Richard Rorty, em A Filosofia e o Espelho da Mente (1988), analisa a influência das construções cartesianas no pensamento filosófico
do século XX. Em particular, Rorty critica a permanência de construções que suportam a ideia do conhecimento como representação do real e as visões que consagram
o progresso do saber como o caminho para se obterem correspondências mentais mais exactas do mundo1. É neste intuito que Rorty se confronta com a força das metáforas
oculares que se apossaram dos fundadores do pensamento ocidental, e que sustentam a ideia da mente humana como um espelho onde é possível as imagens do mundo serem
reflectidas. Portanto, ao definir a prevalência do imaginário da mente enquanto espelho da natureza como um dos vícios fundamentais da epistemologia moderna, Rorty
denuncia também o papel central e a quase inelutável prevalência das metáforas oculares, enquanto traves mestras da persuasão positivista em que o conhecimento é
tido como representação do real, traves que se insistem em manter-se mesmo quando essa persuasão é negada.
Mas se na linhagem filosófica cartesiana o visualismo emerge fundamentalmente como metáfora para os processos mentais, o reconhecimento da dominância do perspectivismo
cartesiano dirige-se também, de modo significativo, às tradições realistas das ciências empíricas. De facto, a moderna tradição empírica e positivista potenciou
os sentidos como indicadores do real. (Jenks, 1995; 12). Nos métodos definidos para a perseguição do real, os sentidos assomam enquanto vias capazes de apreender
a verdade do mundo, assim eles sejam colocados no interior das disciplinas operacionais da ciência positiva. Mas nenhum outro sentido seria entronizado nessa ambição
como a visão, apenas ela capaz de alicerçar a persuasão positivista de uma relação distanciada, neutral e objectiva com o mundo. A visão é, sem dúvida, o instrumento
privilegiado do saber científico empirista. Isto o ilustra a alusão de Lineu quando, na Philosophie Botanique, estabelece que para o estudo de uma planta se deveriam
rejeitar todos os dados que não adviessem da visão ou do tacto, relegando a função deste último para algumas distinções grosseiras como entre o rugoso e o liso,
fazendo assentar, na prática, a quase totalidade das descrições nos dados visuais (apud Foucault, 1998: 182). O que parece ser importante notar na sagração da visão
nas ciências empíricas, é a medida em que ela se estabelece dentro da associação, modernamente aprofundada, entre visão e verdade (Barry, 1995: 54). É a este aspecto
a que Chris Jenks se dirige ao fazer notar que o privilégio da visão simultaneamente ratifica e é ratificado pela vigência daquilo que o autor ironicamente designa
por "doutrina da imaculada percepção". Ou seja, Jenks coloca o olhar na tradição empirista em íntima relação com uma postura analítica que insistia em negar na produção
de conhecimento o lugar das contingências históricas, sociais, políticas, psicológicas, bem como a incorporação dos sujeitos.
Portanto, a sacralização da visão como conhecimento decorre tanto do seu papel enquanto meio para a consolidação de um entendimento do mundo, como do seu papel
no suporte ideológico desse projecto, definindo-o segundo termos objectivos e desvinculados das condições particulares do cientista. A visão vem operar um sentido
duplo de metonímia2 da relação sensorial com o mundo e de metáfora das condições positivas dessa mesma relação.
Desse modo, a crítica ao que há de excludente no visualismo da modernidade, quer para uma qualificação cultural de outros elementos da experiência sensorial, presentes
em todos os sujeitos, quer para a valorização de relações sensoriais com o mundo estabelecidas na ausência da visão (nosso propósito), intersecta-se largamente com
aquela que é a crítica ao próprio positivismo. É exactamente nesse duplo nexo que Donna Haraway (1998) assinala uma forma de olhar que emerge associada às formas
hegemónicas do poder moderno, olhar que a autora designa por "olhar conquistador de nenhures (minha tradução)". Esse olhar de nenhures que Haraway denuncia é o olhar
apadrinhado por uma concepção positivista, a partir da qual se nega a localização do sujeito que conhece, sendo este investido da autoridade de uma espécie de "olhar
de Deus". Mas o que Haraway defende não é a democratização de uma tal autoridade desvinculada das condições particulares de cada sujeito. Pelo contrário, a autora
propõe uma "doutrina de objectividade incorporada" que reconheça o carácter inerentemente situado de todo o conhecimento.
A apologia de uma objectividade incorporada sustenta uma localização do conhecimento que rompa com a legitimidade de visões que se arroguem absolutas e universais.
Frisa a autora que toda a visão se encontra situada num corpo e num contexto, portanto, a ênfase na localização insta-nos a acolher as consequências interpretativas
de estar num lugar particular incorporado, a partir do qual só podemos obter perspectivas parciais.
A crítica de Haraway preserva ainda uma imaginação visualista que usa conhecimento e visão como termos reversíveis. Não obstante, com a denúncia do carácter incorporado
de toda a visão (todo o conhecimento), a autora pretende distanciar-se da objectividade, neutralidade e des-localização que a ênfase na visão vem conferindo às concepções
positivistas. Ao "localizar" o acto de ver, Haraway vai bem ao coração da discursividade positivista, estruturada que está numa mitologia que transcendentaliza o
olhar, criando o olhar de Deus.
A análise que autora realiza mostra-se deveras valorosa para pensarmos as relações entre o centrismo visual moderno e a cegueira. Em particular, a necessária localização
proposta por Haraway constitui o visualismo moderno como uma "visão parcial" que, como todas as perspectivas, comporta limites e promove ocultações. Nessa leitura,
importa-nos reconhecer as consequências do centrismo visual da modernidade ocidental para a conceptualização da cegueira. Assim, a humildade de todo o conhecimento
conduz-nos para uma irónica asserção: a "visão a partir de um corpo" (1998: 197), nos termos em que Haraway a coloca, faz surgir a experiência da cegueira enquanto
uma muito singular visão parcial, que acrescenta aqueloutra: aquela que é produzida pelo oculocentrismo moderno. Portanto, e um pouco paradoxalmente, o reconhecimento
dos saberes que convivem com a cegueira implica, a um tempo, a negação da equação simbólica entre ver e conhecer, e o confronto com a desqualificação que daí resulta
para as pessoas cegas.
O impacto para as pessoas cegas de um paradigma cultural em que o conhecimento surge redutoramente associado à visão revela-se desde logo ao nível da linguagem,
onde se usa um vocabulário abundantemente permeado por termos visuais para referir compreensão e conhecimento. Na experiência que tive junto de pessoas cegas, pude
verificar os constrangimentos no uso de uma tal linguagem que se colocam para a grande maioria das pessoas que não estão habituadas a interagir com a cegueira. Não
só é possível compreender uma contínua vigilância, de modo a se evitarem expressões corriqueiras como "está a ver", "se não nos virmos", etc., como se denota o embaraço
causado quando alguma expressão visual é referida em conversa com uma pessoa cega. Para a generalidade das pessoas cegas incomoda mais o cuidado e o pouco à vontade
causado nos interlocutores do que o uso desse vocabulário. Na verdade, nos primeiros contactos que estabeleci, embora informado da naturalidade com que a linguagem
visual é usada pela maioria das pessoas cegas, pude perceber como ela era evocada com denodada frequência, de modo a que eu ficasse à vontade no estabelecimento
de um diálogo. Assim, e a título de exemplo, recordo uma situação em que o treinador de uma equipa de goalball (desporto praticado por pessoas cegas) referia, ao
fazer o balanço de um jogo perdido: "eles atiravam as bolas com tanta força que vocês nem as viam!". Uma afirmação reflexiva que se enquadrava na pesarosa análise
a um jogo perdido. No mesmo sentido, se fala de "ver a novela" ou "ver o futebol", para referir a audição da televisão ou mesmo da rádio, sendo comum que para pedir
uma coisa se diga "deixa cá ver", ou que alguém, dando pela minha presença ou de outra pessoa, exclame: "ainda não te tinha visto!". Portanto, da experiência que
pude partilhar com pessoas cegas, assinalo uma utilização deveras desinibida do legado visualista, no fundo, o reconhecimento de que o seu evitamento constituiria
uma forte limitação linguística.
No entanto, o impacto de uma cultura visualista nas vidas das pessoas cegas vai muito para além das incidências relacionadas com os usos da linguagem. Na verdade,
a actualidade de uma linguagem visualista, quotidianamente utilizada, exprime um substrato simbólico que constitui a experiência da cegueira sob o estigma da ignorância,
da alienação e da clausura em relação ao mundo. Ao aprofundar a equação entre ver e conhecer, a modernidade ampliou fortemente a efectiva importância que a visão
tem para o conhecimento do mundo e, assim, reinvestiu a cegueira desse correlato. Conforme defendem Lakoff e Johnson (1999), a oposição entre cegueira e conhecimento
encontra-se entre as metáforas básicas que estruturam o nosso pensamento, as nossas concepções e a nossa linguagem: "Alguém que é ignorante está na escuridão, enquanto
que alguém incapaz de conhecer é cego" (ibidem: 239). Certamente que esta conceptualização parte importância que a visão tem para qualquer pessoa que dela possa
fazer uso; a questão é que a vigência de um quadro cultural que amplia essa importância, tomando a parte (visão) pelo todo (conhecimento), cria um sério entrave
cultural, quer para a percepção das pessoas cegas enquanto repositórios de saberes, quer para a compreensão da riqueza que o mundo encerra, mesmo para quem o conhece
na ausência do sentido da visão.
Assim, as perspectivas parciais da cegueira elaboradas no quadro do oculocentrismo moderno são, pois, eivadas de uma portentosa amplificação das privações na relação
com o mundo que a ela se adscrevem. Para a cegueira a precariedade da existência, a ignorância e a incapacidade, são, sem dúvida, valorações potenciadas pelo visualismo
presente na concepção hegemónica do saber moderno; por essa via, a desqualificação e o des-conhecimento erigem-se como os vectores centrais para a apreensão social
dos sujeitos invisuais.
Em íntima relação com o centrismo visual que a ciência moderna cavou, mas não se sobrepondo totalmente a ele, interessará considerar as implicações de uma cultura
visual e dos seus artefactos. Mais do que nunca, vivemos naquilo a que se pode chamar uma "cultura visual" (Jameson, 1991; Jenks, 1995; Mirzoeff, 1998), concepção
que, em temos gerais, se refere aos "elementos da cultura cuja aparência visual é um importante traço da sua existência ou do seu propósito." (Jenks, 1995: 16, minha
tradução). Ou, numa leitura mais contextualizada com os processos contemporâneos poderíamos dizer que uma tal cultura designa "eventos visuais em que a informação,
o significado e o prazer são buscados pelo consumidor numa interacção com a tecnologia visual" (Mirzoeff, 1998: 3). Na verdade, é a espantosa proliferação dos artefactos
visuais, em relação com a lógica de disseminação transnacional capitalista e com a tecnologia electrónica, que nos permite dizer que hoje vivemos numa época em que
a experiência humana é mais visual e visualizada do que nunca. É exactamente para este fenómeno que Arjun Appadurai aponta ao consagrar, como uma das dimensões centrais
dos fluxos culturais globais, as mediascapes, conceito que o autor usa para referir as produções informativas e de entretenimento que resultam de aparatos electrónicos
e que, significativamente, tendem ancorar-se em imagens (1998: 35, 36).
Na cultura contemporânea, e a uma escala tendencialmente globalizada, confrontamo-nos, com toda uma pletora de artefactos culturais que estabelecem a visão como
sentido primordial: internet, jornais, revistas, televisão, catálogos, cinema, fotografia, documentários, publicidade, etc. De facto, estamos num período que vê
triunfalmente, um período que se pulsa com uma objectiva, onde o fluxo acelerado do tempo se confunde com o discorrer de imagens, onde a testemunha é a vidente oportuna,
onde as palavras desenham retratos, onde as informações são ilustradas. Esta vocação visual da cultura contemporânea contrasta fortemente com outros períodos históricos
em que as expressões culturais, a informação e a comunicação não dependiam tanto da visão.
A consequência desta primazia sensorial nos itens culturais, aspecto que alguns entendem definir como marca da pós-modernidade (e.g. Jameson, 1991; Mirzoeff,
1998), tem, obviamente, profundas consequências para a exclusão das pessoas cegas, que, desse modo, são colocadas à margem de expressões culturais absolutamente
centrais para o nosso tempo. É, pois, óbvio que, por essa razão, se denote uma diferença nos investimentos culturais das pessoas cegas, como fica bem representado
no maior pendor destas para a utilização do meio radiofónico. De facto, é possível verificar que o uso da rádio é deveras comum - inclusive, algumas pessoas andam
sempre com o seu transmissor portátil -, como comuns são as conversas acerca dos locutores e dos programas de rádio das diversas estações, constatação que leva a
inferir que estamos perante um património cultural que é tendencialmente mais prevalente entre as pessoas cegas. No entanto, o alcance da exclusão ou da diferenciação
promovida pela hegemonia dos artefactos visuais nunca é tão amplo quanto se poderia supor. Entre outros aspectos, pude dar conta de como as pessoas cegas acompanham
telenovelas, telejornais, documentários, de como se interessam em registar determinados momentos em fotografia para mostrar a outrem, etc.
Mas se é verdade que o carácter visual da cultura contemporânea surge intimamente associado às tecnologias electrónicas, importa também referir que o desenvolvimento
destas também deverá ser considerado para se apreenderem as possibilidades que vêm trazendo às pessoas cegas. Nomeadamente, no que concerne ao nível das tecnologias
informáticas, onde, por via dos sintetizadores de voz, das linhas Braille, das impressoras Braille e da Internet, assistimos, desde os últimos 15 anos, ao surgimento
de inúmeras virtualidades para as pessoas cegas ao nível da comunicação e da informação3. Elementos deveras relevantes que, no entanto, não obstam à persuasão que
nos vem conduzindo, a persuasão de que o carácter visualista da cultura contemporânea engendra a exclusão de quem não vê.
Na novidade moderna, quer ao nível das construções epistemológicas que a fundam, quer ao nível dos artefactos culturais que se tornaram dominantes - a começar
pelo livro impresso -, o centrismo visual constitui um poderoso factor na desqualificação das possibilidades e expectativas das mulheres e homens cegos. Por esta
via, a ideia de que a experiência da cegueira transporta uma perspectiva parcial, que acrescenta às perspectivas dominantes na organização e nas representações da
nossa sociedade, tem ficado cativa do mundo enclausurado que se supõe existir para as pessoas cegas. É certo que todas as visões comportam ocultações, limites e
contradições, mas, o reconhecimento das perspectivas a advir das pessoas cegas deverá começar exactamente por essa ideia.
3. A INVENÇÃO DA DEFICIÊNCIA: O "BIOPODER" E A "HEGEMONIA DA NORMALIDADE"
Se percorrermos os autores que no âmbito das ciências sociais conferiram atenção analítica ao tema do corpo, ora colocando-o ao centro das suas preocupações ora
tratando-o de um modo mais indirecto e difuso, erigem-se contribuições tão distintas com as de Durkheim, Marcel Mauss, Norbert Elias, Pierre Bourdieu ou Mary Douglas.
Como assinala Bryan Turner, em Regulating Bodies (1992), uma obra onde se exploram demoradamente os usos do corpo na história da teoria social, estas abordagens
comungam de um enquadramento estruturalista que se investe em analisar o modo como as práticas e as técnicas corporais são culturalmente moldadas, assim como os
termos em que os corpos são inscritos de significado no seio dos sistemas culturais. De facto, é para uma tal sensibilidade crítica que nos enviam construções teóricas
como as "técnicas do corpo", o "habitus", a noção do corpo como capital simbólico ou o seu reconhecimento enquanto símbolo natural. Grosso modo, estamos perante
leituras que se enquadram na recursividade entre o corpo físico e corpo social, de que nos fala Mary Douglas (1973: 93):
O corpo social condiciona o modo como o corpo físico é percebido. A experiência física do corpo, sempre modificada pelas categorias sociais porque é conhecido, suporta
uma visão particular da sociedade.
É esta co-implicação do corpo físico e do corpo social que a tentativa de compreensão dos obstáculos colocados às pessoas cegas nos convoca a perceber. O lugar
do corpo na crítica social das últimas décadas viria a ficar irremediavelmente marcado pela centralidade que este tema recebeu na obra de Michel Foucault, ali o
corpo surge como locus privilegiado de actuação das formas de poder que a modernidade consagrou. Portanto, é a partir das leituras empreendidas pelo filósofo que
o modo como o corpo é socialmente objectificado - por via dos valores que nele são investidos e das relações de poder que sobre ele se inscrevem - se tornaria um
questionamento com a relevância que hoje lhe reconhecemos. Procurarei resgatar as complexidades e limites impostos pela objectificação da cegueira enquanto um fenómeno
pertencente ao campo dos saberes médicos
A apreensão da cegueira que é realizada a partir da carta de carta de Diderot, e do subsequente surgimento de instituições educacionais especializadas, constitui
um vector sumamente relevante na apreensão das especificidades das pessoas cegas. No entanto, o enfoque que esse itinerário sugere, fracassa em identificar os outros
elementos que enformam essa mesma especificidade, construções que tendemos a tomar como dados da experiência, e cuja vigência surge como um sério entrave para um
questionamento radical da realidade contemporânea das pessoas cegas.
A questão central que aqui procurarei abordar funda-se na persuasão de que o ocaso dos idiomas, eminentemente morais, metafísicos e religiosos, que vigiaram a
experiência pré-moderna da cegueira, deu lugar a formas de objectificação corporal que emergem como produtos do lugar ocupado no mundo ocidental pelo paradigma biomédico.
A objectificação da cegueira enquanto deficiência visual, empreendida sob a égide de discursos fortemente medicalizados, coloca-nos perante uma crítica da razão
moderna. Nela, a análise de Foucault estabelece-se na linhagem "da "lei de ferro" da racionalidade burocrática de Max Weber até à "sociedade administrada" de Adorno
e à "colonização do mundo da vida" de Habbermas" (Santos, 1999: 203). O nosso enfoque deverá, portanto, deter-se no modo como a experiência das pessoas cegas passou
a estar culturalmente mapeada por um quadro de sentido que desaloja as interpretações metafísicas, mas que, apenas aparentemente se liberta de uma espessura cultural
e social, para fazer emergir a cegueira como uma mera condição física associada à ausência da visão.
Embora os valores seculares e os aparelhos estatais tivessem assumido crescente protagonismo nas acções desenvolvidas para com as pessoas deficientes, o papel
das instituições e das práticas da caridade nunca se elidiu por completo (Striker, 1999: 171-183). Havendo certamente um peso diferente das obras de caridade nos
diferentes contextos do mundo ocidental, é um facto que a sua persistência, ao fim de tantos séculos, continua a representar um papel assinalável nos dias de hoje.
Constituindo, na maior parte dos casos, uma perniciosa influência para as pessoas deficientes. Isto porque a lógica assistencialista que lhe preside tende a inconciliar-se
com horizontes de transformação que se sustentem numa linguagem de direitos. No entanto, neste momento do trabalho, bem mais relevante do que uma análise do papel
ainda desempenhado pelas instituições de índole caritária, relevará reconhecer que o suporte conferido às pessoas deficientes nos últimos dois séculos, quer no contexto
das instituições de vocação caritária, quer no contexto da intervenção estatal, habita já o universo de significado que o paradigma biomédico introduziu no mundo
ocidental. É por referência a esse idioma que teremos que procurar os "Tirésias entre nós".
A perseguição das configurações que viriam a inscrever a cegueira na corporalidade confere particular relevância às genealogias históricas envidadas por Michel
Foucault. Particularmente, pelos termos em que nelas se assinala a emergência de uma nova lógica do poder moderno, a par com a valorização do corpo como objecto
de saberes. Uma contribuição valiosa para a compreensão dos processos a partir dos quais se forja a ideia de deficiência, e no seio desta, a de deficiência visual,
à luz de uma grelha crescentemente minuciosa em relação à vida e suas formações.
Num primeiro momento, surge a arqueologia da loucura que Michel Foucault empreende em Histoire de la Folie (1961). Aqui, a partir de uma narrativa concreta, o
autor traz à luz o processo que conduziu à separação da loucura de outras formas de desrazão, numa articulação histórica que se deu a par com o desenvolvimento de
um dispositivo específico investido na separação entre o normal e o anormal. É esta relação entre a razão moderna e uma desrazão que é identificada com lhe sendo
exterior, entre o normal e o anormal, que nos permite pulsar elementos importantes acerca dos legados e processos que viriam a informar a invenção moderna da deficiência
visual. Como asserção de partida, detemo-nos na evidência de que o século XVIII foi portador de uma ruptura em relação ao modo indistinto e confuso com que as práticas
da caridade se dirigiam aos mais necessitados. Facto que fica bem expresso pelo facto de o termo "pobre" designar indiscriminadamente, até ao século XVIII, toda
uma pletora de sujeitos e condições: viúvas, órfãos, doentes, inválidos, loucos, etc., ou pela circunstância dos serviços médicos serem fundamentalmente prestados
no seio de instituições caritárias, onde mais não eram do que uma das componentes da assistência (Foucault, 1980: 168, 169).
Para esse mesmo quadro aponta Foucault ao analisar o movimento histórico que designa por "Le Grand Renfermement", conceito que procura apreender o substancial
aumento dos internamentos ocorrido por toda a Europa a partir de meados do século XVII. Segundo Foucault este amplo movimento que, inclusive, veio a encher os espaços
abandonados das leprosarias medievais, ter-se-á devido à crise económica que então afectava todo o mundo ocidental: baixos salários, desemprego, rarefacção da moeda.
Nesse sentido o internamento dever-se-ia a uma tentativa dos soberanos de lidar com a ameaça que a proliferação de mendigos e ociosos colocavam à ordem social, se
não para minorar a crise económica - a partir do trabalho que ali se promovia -, pelo menos para mitigar as suas consequências (Foucault, 1961: 66, 67).
Ao contrário das instituições especializadas que haveriam de proliferar por todo século XVIII, o Grand Renfermement dirige-se indistintamente uma miscelânea populacional
que juntava sob o mesmo tecto, mendigos, doentes, promíscuos, deficientes, ociosos, loucos, etc., numa mescla em que a pobreza se constituía como o único denominador
comum, e a separação entre trabalhadores e as franjas inactivas da população como a única linha de fronteira vislumbrável. E seria exactamente nesse espaço confuso
do internamento, ao lado de cegos, acamados, amputados, mendigos, etc., que Foucault descobre aqueles que se tornariam as figuras centrais da arqueologia da loucura
por si empreendida, a arqueologia do silêncio a que a loucura esteve sujeita pelo monólogo da razão moderna (1961: 9). À medida que a noção do pobre se vai esmiuçando,
numa primeira fase para distinguir os merecedores de cuidados daqueles que poderiam trabalhar para seu sustento (1980: 169), deixando o internamento de ser praticado
de uma forma tão abrangente, a reclusão institucional ganha centralidade no que diz respeito a criminosos e pessoas cujo perfil da experiência faça supor a ausência
de razão, numa sensibilidade que se desenvolve no decorrer do século XVIII, porventura porque o contínuo estreitamento da razão moderna implicasse que esta se libertasse
de um modo decisivo das formas de desrazão com que durante tanto tempo havia constituído um só corpo. Seria portanto, entre os muros da reclusão e no seio de libertinos,
blasfemadores, homens que desejavam deixar de o ser, que, segundo Foucault, a loucura viria a surgir como uma inflexão particular, singularizada no seio das outras
formas de desrazão.
A descoberta singularidade do louco seria crescentemente investida de saberes ao longo de todo século XVIII. Portanto, é esta singularização gradual a partir da
profusa heterogeneidade que compunha os espaços de internamento, a progressiva redução da experiência da desrazão a uma percepção estritamente moral da loucura,
consolidada na segunda metade do século XVIII, que constituiu a base das concepções científicas, positivas e experimentais que durante o século XIX tomariam conta
da loucura (Foucault, 1961: 198).
O engendrar dos contornos específicos da loucura, e a sua subjugação a vectores de intervenção distintos dos que se dirigiam a outras formas de desrazão, recolhe,
segundo Foucault, do momento decisivo que é representado pelas reformas impulsionadas por Qwacker Tuke e por Philippe Pinel. O autor analisa o papel precursor destes
homens que fundaram no século XIX, em Yorke e Paris, respectivamente, os asilos que iriam libertar os loucos dos grilhões do cativeiro e da companhia dos criminosos,
sob a égide da uma ciência médico-terapêutica. Mas, na leitura de Foucault, os asilos constituem-se, não como lugares de filantrópico abrigo, mas como espaços privilegiados
para o investimento da razão sobre a loucura numa incessante inquietude. A loucura é ali é continuamente sancionada, julgada e vigiada, estando qualquer manifestação
da sua anormalidade sujeita à angústia da culpa que sobre ela se projecta. A loucura é tida como um erro moral que importa suprir sob a lei da conformidade e de
uma normalização que se impõe, e para qual se dirigem todos as técnicas e estratégias que dão significado ao espaço do asilo.
Esta passagem assume alguma relevância simbólica para a genealogia moderna de Foucault, onde se elabora um distanciamento crítico em relação às vozes que se acostumam
a celebrar o humanismo trazido pela razão iluminista, sustentando-se ainda a ideia de que o surgimento da racionalidade deverá ser lido como legitimação de formas
novas de poder e não a sua negação (Jones e Porter, 1994). Assim, conforme refere Anthony Giddens, a "imagem de Pinel a libertar os dementes das suas correntes poderia
ser entendida como representativa do ímpeto da modernidade como um todo" (1997: 147), um ímpeto para que se torna essencial a ideia de que as correntes não foram
de facto extinguidas, mas antes substituídas por outros dispositivos de dominação.
Nos contextos altamente simbólicos e precursores criados por Pinel e Tuke, o louco já não se encontra preso de movimentos como nos anteriores espaços institucionais,
ao invés, é instado a gerir a sua liberdade sob a constante vigilância (surveilhance), o perpétuo julgamento da razão. Temos, pois, um espaço de sínteses morais
que guardam os limites exteriores da sociedade (Foucault, 1961: 270). E seria exactamente ali, nos espaços asilares fundados por Pinel e Tuke, que a psiquiatria
se iria desenvolver como uma forma particular de medicina, enquanto ciência das doenças mentais. Nesta perspectiva, haveria um processo de co-evolução entre a loucura
e o corpo de saberes que assumiria o nome de psiquiatria. Portanto, se seguirmos a leitura proposta por Foucault, o monólogo da razão que a psiquiatria consolida
sobre loucura não vem para se dedicar ao desvio que a precede, mas para o constituir e definir como desvio, a par da sua própria criação.
No paralelismo elaborado a partir desta alusão à constituição histórica da loucura, pretendo depurar, numa primeira instância, a asserção do parentesco social
que inicialmente ligava loucos, cegos e todo um conjunto de condições reunidas sob a noção de pobreza. Por outro lado, quero explorar a relação entre a objectificação
da loucura - como da cegueira - e as lógicas caracteristicamente modernas que lhe presidem. Neste último aspecto, colocado ao centro da leitura de Foucault, situa-se
um elemento crucial para que possamos contemplar o carácter fugidio da exclusão promovida pelas configurações que definiram modernamente a cegueira.
A genealogia moderna de Foucault sustenta uma visão historicista, congruente com o fechamento de sentido e com a assunção dos limites que assistem às "condições
de possibilidade" para um dado contexto. Nessa perspectiva histórica, a achada singularidade do poder moderno emerge ligada a uma inédita proliferação de saberes
que sustentam e são sustentados pelas relações de poder:
Em vez de se partir de uma repressão geralmente admitida e de uma ignorância conforme ao que se procura saber, há que partir destes mecanismos positivos, produtores
de saber, multiplicadores de discursos, indutores de prazer e geradores de poder, segui-los nas suas condições de aparecimento e de funcionamento e procurar ver
como se distribuem relativamente a eles as parcelas de interdição e de ocultação que lhes estão ligados (1994: 77).
Interessa-nos, portanto, aceder ao carácter produtivo das configurações de saber que se abaixam sobre a cegueira e que a constituem num fechamento de sentido
a que viríamos a chamar deficiência visual. É esta vocação epistemológica, criativa, a que Foucault se refere na consagração do "poder disciplinar da modernidade".
A identificação deste poder caracteristicamente moderno dá-se por oposição às formas de poder detidas pelos monarcas num período pré-moderno, um poder definido como
jurídico-político, e que constituía essencialmente uma instância negativa e repressiva que se fundaria no funcionamento da interdição. Foucault advoga que a modernidade
inaugura uma sociedade disciplinar que apresenta como marca fundamental a singularidade do seu poder. Assim, a ideia defendida por Foucault de uma sociedade disciplinar
moderna envia-nos para um idioma crítico na identificação de uma nova economia do poder que surge nas sociedades industriais modernas, uma gramática das relações
que não mais opera pelo peso da negação que transporta, mas se funda, ao invés, nos efeitos positivos que engendra, na sua capacidade de emanar saberes e fazer proliferar
discursos, produzindo realidade.
De facto, a assunção da deficiência visual enquanto uma das narrativas persuasivas da modernidade, envia-nos para a espessura de saberes que a modernidade gerou,
mas também para as "condições de impossibilidade" criadas por poderes, cuja natureza escapa largamente à ordem da repressão. Na verdade, o distanciamento de Foucault
em relação a uma concepção tradicional do poder, enquanto mecanismo essencialmente negativo e repressivo, constitui uma evolução no seu próprio pensamento que se
tornaria mais claramente expressa a partir de Surveiller et Punir (1975), como próprio autor o assume (cf. Foucault, 1980: 183-185). De facto, embora em Folie et
Déraison e (1961) Surveiller et Punir (1975) a análise de Foucault surja ligada ao que de repressivo existe nas instituições que acolhem o louco e o criminoso, respectivamente,
dever-se-á responder pela negativa à questão que o próprio autor coloca: "a mecânica do poder, e em particular a que funciona numa sociedade como a nossa, será efectivamente,
no essencial, da ordem da repressão?" (Foucault, 1994: 16). Portanto, central é contemplar em que medida o nascimento de discursos e saberes que procuram actuar
sobre o louco e o criminoso, transformando-os, faz parte da lógica que preside às relações de poder na sociedade moderna. É isso mesmo que Foucault sugere quando,
em Surveiller et Punir (1975), empreende um movimento a partir das disciplinas normalizadoras empreendidas em instituições fechadas para a caracterização da sociedade
como um todo, uma "sociedade carcerária", uma sociedade disciplinadora que busca a supressão do desvio pela normalização. É bem esta pulsão normalizadora presente
no tecido social que fica inequivocamente expressa na História da Sexualidade (1994). Portanto, a irmandade possível entre a identificação da loucura e a objectificação
da cegueira enquanto deficiência visual, resultará de uma analogia nas condições do seu nascimento, ou da sua individualização, à luz de uma economia de poder-saber
distintamente moderna. Uma economia singular de onde radica toda uma parafernália de práticas heterogéneas, "práticas de separação" onde a doença é distinguida da
saúde, do crime, a loucura da sanidade, a ociosidade da incapacidade, etc. (Rose, 1994: 49).
A centralidade do poder disciplinar moderno na inteligibilidade moderna da experiência da cegueira permite forjar um paralelismo em relação à constituição da loucura.
A relação que parece emergir entre a leitura foucauldiana das formas de dominação que a modernidade inaugurou e a cegueira ganha ainda mais pertinência dada a importância
que o corpo assume enquanto lugar de actuação dessas novas formas de poder. Portanto, o encalço da criação da deficiência visual enquanto idioma cultural para a
apreensão moderna da cegueira liga-se, pois, a uma valorização do corpo como objecto de saberes e poderes ocorrida a partir do século XVII (Foucault, 1994: 110).
Nesse sentido é incontornável aquilatar do papel que viria a ser desempenhado pela emergência de um paradigma biomédico na nossa sociedade.
Conforme afirma Foucault, a medicina constituiu-se com uma armadura científica mais sólida que a psiquiatria, mas encontra-se, não obstante, igualmente imbuída
nas estruturas sociais (1980: 109), forjando-se no seu discurso uma inédita relação entre o biológico e o político (1994: 144). Assim o dispositivo biomédico é passível
de ser interpretado como uma expressão particular da tecnologia do poder moderno constituída pelo conhecimento científico. Na verdade, a fulcral importância que
Foucault confere ao corpo e ao conhecimento médico, não é senão manifestação da centralidade que o filósofo atribui às formas de poder e enquadramentos de normalidade
que acompanham o estabelecimento dos saberes da biomedicina, forma particularmente totalitária da ciência ocidental. O alcance dos valores emanados do paradigma
biomédico fica também expresso na sua apetência para "produzir" realidade. Constituindo esta virtualidade um dos elementos que concorre para a nossa dificuldade
em conferir sentido a outras visões culturais do mundo que não estejam de acordo com os mundos apreendidos pelas ciências naturais (Good, 1994: 10).
Surge, portanto, uma configuração de poder cuja mais alta função não é matar, mas antes, investir a vida de ponta a ponta (Foucault, 1994: 142). A articulação
dos fenómenos da vida com a autoridade política assume duas formas distintas, embora relacionadas. Uma tem início no século XVII, diz respeito às estratégias, disciplinas
e concepções que consagram o corpo como máquina, visando a sua utilidade, aproveitamento económico e a sua integração em sistemas de controlo. Estamos em face de
uma "anátomo-política do corpo humano" que visa a produção de "corpos dóceis" (Foucault, 1980: 172; 1994: 142). A outra forma da relação entre o poder e a vida,
tem início no século XVIII e centrou-se num conjunto de "controlos reguladores" do "corpo-espécie": a saúde, a longevidade, a natalidade, a mortalidade, etc. Elementos
em torno dos quais se erigem as "biopolíticas da população", onde o enfoque conferido às incidências e variáveis da vida articulam-se com o facto da "população"
ter surgido no final do século XVIII como uma questão económica e política, cujo o conhecimento se tornou essencial para a governação (Foucault, 1980: 166-182; 1994:
29; Rose, 1994: 54, 55). É a esta recente aparição da vida (Foucault, 2002: 210) sob a égide de uma autoridade médica e política que Foucault chamaria de biopoder
(1994: 142).
O lugar da norma enquanto princípio regulador da vida social surge como característica central do poder disciplinar, exactamente por culpa do seu papel estruturante
do edifício biomédico. Aliás, a este propósito, Foucault não poderia ser mais afirmativo: "Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de
poder centrada na vida" (1994: 146). De facto, um aspecto que permeia a consolidação do paradigma biomédico, em todas as suas instâncias, é a absoluta centralidade
do conceito de norma enquanto princípio regulador de discursos e práticas.
Recapitulando em muito o influente trabalho de Georges Canguilhem, Claudine Herzlich (1991) vem defender que a medicina se deve à criação da ideia de norma alterada.
Na verdade, desde esse tempo, a história dos corpos jamais se libertaria da consagração do modelo biomédico do corpo enquanto norma reguladora das práticas discursivas
da medicina e não só. Uma transformação nas configurações dos corpos cujo decisivo ponto de viragem Nicholas Mirzoeff localiza no século XVIII:
Na segunda metade do século XVII, a ciência médica começou a sustentar-se numa distinção entre os estados normais do corpo e as suas patologias, isto é as suas doenças
e anormalidades (1995: 45, minha tradução).
Temos, portanto, uma radical transformação das constelações de sentido acerca dos corpos, que assim deixam de estar ligados a uma concepção relativista do corpo,
que nos acompanhou até ao século XVIII (Mirzoeff, 1995), para passarem a serem infundidos de sentido por relação a uma plataforma cujo referencial central é a noção
biomédica de norma corporal. É na matriz fundada por estes valores estruturantes do biopoder moderno, denunciados por Foucault, que a experiência da cegueira é decisivamente
vinculada à ideia de patologia, figurando nesse novo idioma como uma forma particular de deficiência: a deficiência visual. A cegueira conhecia aí uma demarcação
que era ao mesmo tempo a inauguração de um parentesco cultural para com as pessoas surdas, as pessoas com lesões na medula, as pessoas com os membros amputados,
as pessoas mentalmente retardadas, as pessoas com trissomia, etc.
Certamente que a natureza incurável da maioria das formas de cegueira a subtrai à mesma efectividade que a acção médica detém para a doença física ou mental ou,
pelo menos, à relevância que os processos de busca do estado normal de saúde detêm na definição das patologias como condições marcadas pelo signo do desvio (Herzlich,
1991, 195)4. No entanto, isto não obsta à persuasão de que a demarcação do estatuto simbólico das pessoas com deficiência se constitui como um inegável produto do
paradigma biomédico. Embora o exercício da medicina, enquanto prática curativa, pouco interviesse nos corpos descritos como deficientes, são os seus modelos e discursos
que, até hoje, suportam a conceptualização e informam respostas sociais dominantes à deficiência.
Uma vez desmobilizada a panaceia de crenças que envolviam as pessoas cegas, a experiência da cegueira surge, à luz da razão moderna, enquanto uma emanação da biomedicina.
Por essa via a cegueira estabeleceu-se no quadro as nossas representações culturais como uma condição patológica a que se chamou deficiência visual, nascendo no
crivo moderno sob o signo de um desvio em relação ao modelo biomédico do corpo.
Assim, o processo que conduziu ao desenvolvimento de uma percepção social individualizada das pessoas cegas, a par com o surgimento de práticas e instituições
específicas para as atender na especificidade da sua condição, encontra-se inerentemente ligado às nascentes formas de objectificação corporal. Dado a que não é
alheio o facto do conhecimento das características e varáveis da população se ter tornado um elemento indispensável para a organização da sociedade. É por referência
a estes dados que podemos ler o surgimento no século XVIII, particularmente na segunda metade, de todo um conjunto de instituições que não mais se dedicam à pobreza
de um modo indiscriminado, mas antes se estruturam para acolher a especificidade das diferenças identificadas e criadas no crivo da razão moderna. Temos, pois, a
produção de grelhas de análise crescentemente minuciosas e fraccionadas, que são, no fundo, distribuições operadas em torno da norma. Portanto, o itinerário onde
se consubstancia a promessa moderna para a cegueira terá que ser entendido como parte desta crescente especialização da vida. Na verdade, a carta de Diderot, escrita
em 1749, pode ser tida como uma representação desta nova percepção cultural, simbólica e institucional que condições identificadas como deficiências, juntamente
outras configurações, vieram a receber na segunda metade do século XVIII. Isto mesmo sugere Henri-Jacques Striker:
O texto de Diderot inaugura o período em que a aberração, a monstruosidade e as faculdades diminuídas serão consideradas como meras deficiências. Elas serão entendidas
do interior, subjectivamente. Finalmente começam a ser objectos de tratamento compensatório (1999: 103).
Deste modo, na leitura das condições estruturais que mapeiam as expectativas e possibilidades das pessoas cegas, somos colocados perante uma hipótese porventura
mais radical. Se por um lado o percurso emancipatório iniciado na "dinastia" de Diderot a Louis Braille colide com as formas de regulação ligadas à objectificação
moderna da cegueira enquanto deficiência, por outro, não estamos senão face a perspectivas co-implicadas de um mesmo fenómeno histórico. Os limites - que adiante
aqui relataremos - colocados pelas representações modernas que consignam a cegueira enquanto patologia, não devem, pois, ser entendidos como constrangimentos que
se opõem ao impulso humanista representado pelo surgimento de estratégias dirigidas às suas especificidades. A questão é que a constituição de um conjunto de saberes
que se dirigiram às pessoas cegas não pode ser pensada fora do processo que lhe foi contemporâneo: a progressiva individuação da apreensão da cegueira enquanto uma
forma particular de deficiência. Temos, pois, que o reconhecimento de uma fracção populacional com necessidades específicas - e para qual se constitui a partir do
século de XVII toda uma pletora de espaços institucionais - nutre da mesma senda histórica que descreveu a cegueira enquanto um fenómeno biomédico. O percurso promovido
pela carta de Diderot é, a um tempo, produto e parte desses novos mundos que novas descrições da realidade permitem criar:
Quando novas descrições se tornam disponíveis, quando elas entram em circulação, ou mesmo quando se tornam coisas que podem ser ditas ou pensadas, então há novas
coisas que podemos escolher fazer (Ian Hacking apud Quintais, 2001: 325).
A questão que se afigura pulsante recolhe da ideia de que a redescrição moderna da cegueira padece, tal como a da loucura de que nos fala Foucault, de um intento
de superação daquilo mesmo que lhe parece ser característico. Falo da imanência social da norma enquanto valor, e dos imperativos normativos que acompanham a nomeação
da cegueira enquanto deficiência visual. Podemos dizer, portanto, que há um intento normalizador que se impõe como consequência da nomeação da cegueira por referência
à normalidade da visão de que está excluída: "O conceito de normalidade fecha a distância entre o "é" e o "deve ser". No nosso conceito de normalidade estão incluídas
duas ideias: preservação e melhoria" (Kleinman et al. 1997: xix).
O autor Lennard Davis (1995) elabora, num mesmo fôlego, uma análise histórica do surgimento do conceito de deficiência, e uma crítica à "hegemonia da normalidade"
que se estabeleceu nas sociedades modernas, uma hegemonia de que momentos tão marcantes como os extermínios perpetuados pelo regime nazi não são mais do que expressões
particulares, e extremas, pois. Numa primeira instância, Davis dedica-se a uma pesquisa etimológica em que se suporta a persuasão de que as palavras para designar
norma, normal, normalidade e média, só surgem nas línguas europeias nos meados do século XVIII. Em particular, Davis faz notar que o étimo normal só entra na língua
inglesa com um sentido próximo de padrão em 1840, referindo antes dessa data configurações geométricas (1995: 94). Estes dados suportam a ideia que estes conceitos,
que se tornaram estruturantes das mais diversas aparições da vida social, constituem, na verdade, uma invenção com menos de dois séculos.
Particular relevância é dada por Lennard Davis à contribuição do estatístico francês Adolphe Quetelet5 (1796-1847), atenção que se justifica, quer pelo facto das
suas elaborações terem constituído das primeiras e mais importantes contribuições para a afirmação da norma como imperativo, quer pelo carácter ilustrativo das ideias
por si desenvolvidas. Foi Adolphe Quetelet quem, apropriando a "lei do erro" desenvolvida na astronomia para estimar a posição das estrelas por relação às observações
realizadas, sugeriu que esta poderia igualmente ser aplicada para as distribuições das características humanas como a altura e o peso. Assim investido, o estatístico
viria a desenvolver o crucial conceito de "l'homme moyen" ("o homem médio"), elaboração onde se reitera uma combinação das características físicas e morais aritmeticamente
inferidas como médias para um determinado contexto, ou seja, a articulação do "homem médio físico" e do "homem médio moral" (Davis, 1995: 26, 28). Na realidade,
a ideia de homem médio que Quetelet desenvolveu, foi celebrada como uma espécie de ideal, onde se supunha estar sintetizado o que de melhor existe na espécie humana.
Porém, Davis nota como esta configuração de ideal é bem distinta da que prevaleceu na Grécia antiga; ali a ideia do corpo ideal associado aos deuses, erigia-se como
um valor superior que à partida não estava ao alcance dos homens mortais. Já os valores permeados pela noção de norma consagram formações idílicas, é certo, mas
que se estabelecem como percursos a serem percorridos, utopias normalizantes a serem perseguidas pelo engenho e pelo progresso humano: "a média torna-se então, paradoxalmente,
uma espécie de ideal, uma posição votada a ser desejada". (1995: 25, minha tradução). O subtexto desta utopia normalizante, pernicioso, diria, reside na asserção
de que o seu desígnio passa, incontornavelmente, pela supressão das formas desviantes, e pela eliminação dos defeitos como forma de aperfeiçoamento humano (1995:
27, 28).
O entendimento pelo qual Lennard Davis contrapõe a construção da deficiência com a noção de "hegemonia da normalidade", revela ser particularmente instigante pelo
facto de, por via dela, se tornar manifesto como a criação de uma alteridade fundada no conceito de deficiência esteve, desde cedo, decisivamente imbricada com a
sua inferiorização. Ademais, a noção de "hegemonia da normalidade" - de que as concepções eugénicas são uma expressão limite, pese embora o facto de estarem disseminadas
por todo o mundo ocidental até ao extermínio perpetrado por Hitler - vinga em captar o que há de insidioso na desqualificação das formas do vivo identificadas como
desviantes: "A hegemonia da normalidade é tão efectiva, tal como outras práticas hegemónicas, graças à sua invisibilidade" (Davis, 1995: 170, minha tradução).
Porém, a leitura de Lennard Davis mostra carecer de alguma complexidade quando o autor, analisando as formas de estigmatização a que as pessoas deficientes são
contemporaneamente sujeitas pelos media, constata que "o corpo "normal" existe sempre numa relação dialéctica com o corpo deficiente". (Davis, 1995: 157; minha tradução).
De facto, embora o inverso se verifique, a saber, a já referida constituição da deficiência por oposição à efectividade da norma, a cuja génese histórica nos vimos
referindo, a hegemonia de uma normalidade corporal terá que ser entendida por referência a uma pluralidade de desqualificações dos corpos e dos seus usos, elaborações
culturais onde os discursos da biomedicina assumem papel central. Assim, penso que a constituição dos imperativos de normalidade terá que ser entendida por relação
a um conjunto de topografias de desvio, de que a deficiência é parte. Aportamos assim na ideia, particularmente cara às perspectivas feministas sobre a deficiência6,
de que a desqualificação da pessoa deficiente está, de algum modo, ligada à opressão cultural do corpo real de toda a gente (Wendell, 1997). Regressamos, igualmente,
à ampla latitude das elaborações normativas investidas sobre os corpos, a que a persuasão da emergência de um biopoder nos havia conduzido.
4. CORPOS TANGÍVEIS: A CEGUEIRA ENQUANTO MATERIALIDADE
O reconhecimento da "invenção" da deficiência visual, que assim passou a ser culturalmente descrita enquanto uma condição patológica por oposição à condição normal
de visão, recobre-se das mais profundas implicações para que se possam apreciar os constrangimentos que aí se inscreveram nas possibilidades inserção social das
pessoas cegas. Identifica-se o nascimento de um investimento na cegueira claramente marcado pelos discursos e práticas da medicina, vocacionado a negligenciar as
condições sociais mais amplas da vivência da cegueira e a privilegiar os discursos de profissionais em detrimento da reflexividade das pessoas cegas.
Estamos perante uma lógica médica que funda um investimento de saberes sobre a cegueira que, na impossibilidade da cura, propõe a reabilitação e, na impossibilidade
da adesão à norma, propõe a possível supressão do desvio, com a perene subalternidade que daí advém. Num nexo a cujas implicações nos dedicaremos adiante, identifico
as continuidades entre a moderna objectificação das pessoas cegas enquanto deficientes visuais, e a persistência de uma lógica de promoção e integração social que
se dirige a uma valorização quasi-exclusiva da necessidade de um percurso pessoal da pessoa cega. Dirigimo-nos, pois, à instigante asserção de que sendo as culturas
redes de significado que nos permitem conferir significado ao mundo, nós tanto as possuímos, como somos possuídos por elas (Hannerz, 1996: 58). Assim, assumindo,
como assumo, que as persuasões dominantes de uma cultura vigiam, a cada passo, as possibilidades de as negarmos no interior dela mesma, mais vale trazer à discussão
uma pergunta que cedo ou tarde nos visitaria (e com razão, reconheçamos): será que a descrição moderna da cegueira, enquanto uma condição somática e patológica,
não surge, afinal, como a re-localização da cegueira no lugar?
Há, sem dúvida, um indisfarçável construtivismo no modo como acolho a cegueira enquanto um produto moderno. Este fica particularmente manifesto no paralelismo
que esboçámos entre a entre a deficiência visual e a loucura, respectivamente lidas como emanações do desenvolvimento da ciência médica e da psiquiatria. No entanto,
é necessário determinar os termos da proximidade que, ancorados à cegueira, estabelecemos em relação ao papel constitutivo que Foucault confere às práticas discursivas,
com base num posicionamento nominalista em que "os discursos produzem os objectos de que falam" (Foucault: 1969: 67). E se é verdade que esta atitude epistemológica
parece não ser demasiado problemática para uma categorização tão controversa como a da loucura - visibilizando o quão debatível é a relação da psicopatologia com
as suas produções (Freundlieb, 1994) - a questão assume contornos diversos para a inegável materialidade corpórea que se liga à nomeação cultural da cegueira. E
se parece ser pacífico afirmar, como o faz Luís Quintais - analisando a Desordem de Stress Pós-Traumático - que "toda a experiência mantém uma extrema porosidade
à sua descrição e às condições de possibilidade (históricas e políticas) da sua descrição" (2000: 31), confrontamo-nos aqui com uma inelutável materialidade corporal,
que se liga ao modo como determinadas pessoas se encontram privadas do sentido da visão.
Conforme assinala Judith Butler, importa reconhecer a instável relação do corpo com o idealismo linguístico do pós-estruturalismo. De facto, acredito ser possível
referir que a cegueira foi inventada como deficiência visual. No entanto, a menção à cegueira não nos envia para uma qualquer pureza pré-moderna, uma vez que, como
vimos, ela sempre esteve imbuída de valores particulares. Nem, tão pouco, podemos nós falar da cegueira sem estarmos vinculados aos termos em que ela foi modernamente
entendida como uma deficiência. Na verdade, a desconstrução histórica que proponho não é senão um sintoma dessa firmada ligação que se procura superar. O que parece
ser certo é que existe uma comunalidade corpórea, trans-histórica e trans-cultural, ligada àquilo a que alternada e sucessivamente temos chamado cegueira e deficiência
visual. Portanto, não sendo ainda este o momento para aceder a aspectos mais vividos da existência incorporada da cegueira, julgo relevante que procuremos pulsar
as virtualidades e limites de um saber em que as diferenças do corpo nos surgem como construídas.
A obra Bodies that Matter (1993) autorada por Judith Butler, numa evidente inspiração pós-estruturalista, oferece-nos uma portentosa reflexão em torno das relações
entre a crítica social contemporânea, nascente das "ruínas do logos", e a materialidade dos corpos. Instigada a confrontar-se com a denúncia de que o corpo vem sendo
contemporaneamente acolhido na teoria social - e na sua própria obra - por visões idealistas e que tendem a negar corpo enquanto entidade material, Butler propõe
fixar-se no reconhecimento da realidade material do corpo: "Seguramente os corpos vivem e morrem, comem e dormem, sentem dor, prazer, suportam doença e violência;
e esses factos, pode-se proclamar cepticamente, não podem ser desmobilizados como mera construção" (Butler, 1993: xi, minha tradução). No entanto, Butler recolhe
o significado profundo do seu próprio fracasso: a impossibilidade de se deter nas fronteiras dos corpos para os conhecer e compreender enquanto instâncias materiais.
Ao procurar fixar-se nos estritos limites dos contornos dos corpos, Butler repetidamente era enviada para além deles. Concluiu então que os corpos não apenas tendem
a indicar um mundo para além deles, mas esse movimento para fora dos seus limites mostra ser central para o que os corpos "são" (1993: ix).
A autora coloca-nos perante o carácter incontornável de toda a construção de significado enquanto um "constrangimento constitutivo", sugerindo que os corpos só
existem dentro de esquemas regulatórios que criam a circunscrição do entendimento cultural. Em particular, numa perspectiva que se nutre de uma leitura feminista,
Judith Butler dirige-se para um olhar inspectivo das elaborações pelas quais os corpos nos surgem demarcados pelos ideais regulatórios: masculino e feminino. O desafio
que Butler coloca à sua empreitada analítica consiste em tentar conciliar uma perspectiva alimentada pela crítica feminista contemporânea, onde se nega a distinção
entre sexo (material) e género (construção social), com o reconhecimento da existência material dos corpos a que chamamos masculino e feminino. Assim, numa primeira
instância, Butler recusa a versão do feminismo que, ao sustentar a diferença entre o género e o sexo como o investimento do social sobre o natural, remete o natural
para aquilo que está antes da inteligibilidade. Butler assinala que o sexo que é referido como estando antes do género, numa eventual pureza corpórea, é, ele próprio,
um postulado elaborado na linguagem. Nesse sentido, ao assentirmos no carácter incontestável do sexo ou na sua materialidade, estamos sempre a conceder a alguma
versão do sexo, a alguma versão da sua materialidade (Butler 1993: 10), as diferenças corporais emergem, portanto, incontornavelmente ligadas aos jogos de linguagem
em que ganham sentido, onde se constituem como existentes:
Se o corpo significado como sendo anterior à significação é um efeito da significação, então o estatuto representacional ou mimético da linguagem, que reivindica
que os signos seguem os corpos como os seus espelhos necessários, não é de forma alguma mimético. Pelo contrário, é produtivo, constitutivo, poderíamos mesmo dizer
performativo, na medida em que este acto significante delimita e estabelece os contornos do corpo que considera encontrar antes de qualquer e toda a significação
(ibidem, minha tradução).
Ao negar a distinção entre sexo e género, e ao entender a materialidade do sexo e da diferença sexual como produtos dos discursos e de critérios de inteligibilidade
historicamente reformuláveis, Butler parece não se libertar de um nominalismo que contempla os corpos como meros produtos da linguagem. E se é verdade que a análise
da autora não deixa espaço para que se contemplem aspectos mais vividos da experiência corpórea dos sujeitos, o corpo como "o modo de ser da vida", a riqueza da
sua abordagem advém das construções de significado do corpo serem entendidas como processos de "materialização". Ou seja, as elaborações culturais por via das quais
o sentido dos corpos nos é dado erigem-se como materializações que definem o que é a existência material de um corpo, as sua fronteiras e contornos, criando o efeito
de uma superfície a que chamamos matéria. Portanto, reconhecer a materialização como uma forma particular de construção por que se define o que são os corpos, não
corresponde à negação da materialidade dos corpos, mas sim à aceitação da indeterminação no modo como essa materialidade nos é dada. Como assente Nicholas Mirzoeff
(1995: 21): "O corpo é o objecto de cuja materialidade mais certos estamos, mas o indefinível potencial dessa materialidade, inevitavelmente incompleta, permanece
como uma constante fonte de ansiedade" (minha tradução). Assim como não há um sexo puro que preceda o género - a suposta elaboração cultural do sexo -, do mesmo
modo inexiste uma materialidade pura do corpo, que embora não se resuma ao modo como nos aparece pela linguagem, também nunca lhe escapa completamente:
A linguagem e a materialidade estão inteiramente imbricadas uma na outra, quiasmáticas na sua interdependência, mas nunca colapsadas uma na outra, i.e., reduzidas
uma à outra, e, ainda assim, uma nunca excede completamente a outra. Sempre já co-implicadas, sempre já excedendo uma à outra, a linguagem e a materialidade não
são inteiramente idênticas nem inteiramente diferentes (Butler, 1993: 69, minha tradução).
Sabemos, pois, que existe uma materialidade dos corpos que escapa aos discursos que a definem, mas não podemos saber o que é essa materialidade sem aludirmos às
formações de sentido em que ela se torna conhecida. Ou seja, a "materialização" pela qual a matéria do corpo adquire sentido é entendida como uma prática de criação
e reiteração, através da qual as relações de poderes e as lógicas de dominação se confirmam e reproduzem (1993: 14, 15; 106-108). Butler recupera aqui a questão
foucauldiana da imanência da poder ao significado, questionando em que medida a assunção do género masculino ou feminino se constitui como uma materialização que
ratifica os valores patriarcais e heterossexistas.
Portanto, é importante a relação que os processos de "materialização" estabelecem com as relações de dominação. A interpretação feminista de Butler concede prioridade
a pulsar de que modo a hegemonia heterossexual se reproduz na identificação da diferença sexual das mulheres e dos homens. E, apesar dos interesses particulares
de Butler, essa mesma leitura constitui-se como um poderoso elemento na apreciação da objectivação corporal das pessoas deficientes enquanto tal.
Como já referimos noutro lugar, as implicações vivenciais da cegueira estão longe de se esgotar nas diferentes formas de objectificação cultural que a definem.
No entanto, mais importante é notar como as concepções modernas que se investem sobre a cegueira, tendem a naturalizar as expectativas e possibilidades das pessoas
cegas na limitação sensorial que se lhes identifica, simultaneamente negando o que há de construído nessa identificação redutora. Assim, ainda que não nos envie
já para as implicações fenomenológicas, vivenciais, do corpo vivido, a interpretação de Butler permite-nos reconhecer a inegável materialidade da cegueira, reconfigurando
a sua construção moderna como deficiência visual enquanto uma forma de "materialização". Ou seja, ao defender que a cegueira foi modernamente reinvestida de significado
à luz do biopoder e da hegemonia da normalidade, não estou a negar a materialidade da cegueira mas antes a perseguir os itinerários dominantes de sentido pelos quais
a materialidade da cegueira nos aparece enquanto a evidência bastante para explicar, per se, o fado moderno das pessoas cegas.
A proposta de Butler ajuda-nos a reconfigurar a persuasão de que a cegueira foi construída/inventada pela razão moderna enquanto deficiência, explicando os termos
dessa elaboração cultural como uma forma de "materialização" elaborada por referência à nascente hegemonia da normalidade. Esta precisão que nos convida a perceber
como a cegueira foi biologicamente materializada mostra ser de fulcral importância por duas principais razões.
Primeiro, porque nos instiga a recusar a ideia de um corpo puro, concretamente a existência prévia de uma deficiência e de uma condição patológica a ser mediada
por interpretações culturais. Ou seja, tal como a negação da distinção entre o sexo e o género se erige contra a existência de um sexo puro antes da significação,
consentindo que quando falamos desse sexo o fazemos sempre por referência a algum código de inteligibilidade, também a busca dos termos em que a cegueira foi definida
como materialidade nos convoca para descortinarmos a versão de materialidade que a modernidade nos oferece acerca da cegueira. Portanto, o facto de a cegueira ter
vindo a vigorar nas representações culturais dominantes, enquanto uma forma particular de patologia e um desvio em relação a um padrão de normalidade, não constitui
uma invenção cultural que se erige contra a materialidade de uma privação sensorial, mas é o itinerário por onde essa materialidade se constitui para a modernidade.
Por onde ela nos é dada.
Em segundo lugar, porque ao articularmos a constituição da materialidade de uma deficiência com aqueles que são traços estruturantes da epistemologia moderna dirigimo-nos
a um ponto essencial para a análise que a aqui se pretende. Refiro-me à capacidade do discurso científico positivista alegar a exactidão da representação na definição
do natural, enquanto separado da cultura. Embora Judith Butler se tenha dirigido para os contornos da diferenciação sexual a partir de um enfoque da sua definição
à luz da normatividade heterossexual7, a leitura que a autora oferece abre caminho para que nos possamos dirigir ao reconhecimento daquilo que poderíamos designar
por estratégias somatizantes. Ou seja estratégias para mostrar os corpos como realidades naturais, auto-evidentes, que nada têm a ver com as valorizações sociais.
Isto é sugerido quando Butler afirma que ao se negar distinção entre sexo e género, se recusa a incontaminação cultural de um sexo posto antes do género, negando-se
assim o "estatuto representacional ou mimético da linguagem" (1993: 30). Butler aponta, pois, para um sexo que se constituiu como materialidade através de uma construção
que cristaliza a representação tirando-a do discurso. Estamos perante uma representação que retira o corpo da representação ou, mais especificamente, uma "materialização"
que constitui o corpo como materialidade, apartando-o da cultura pela linha divisória da cisão entre natureza e cultura. Um corpo posto fora da representação é um
"corpo materialmente óbvio" que é subtraído de questionamentos culturais mais amplos. Fronteira que Maurice Merleau-Ponty (1999: 51) assim desmistifica: "É absurdo
pretender que a natureza seja, mesmo que só em intenção, o objecto primeiro da nossa percepção: ela é muito posterior à experiência dos objectos culturais, ou antes,
ela é um deles".
Neste sentido, a ênfase nas estratégias somatizantes (raciais, sexuais, relacionadas com as deficiências, etc.) permite-nos aceder a algo que Judith Butler só
aflorou marginalmente, a saber, a relação dos processos de naturalização corporal com a epistemologia moderna. Esta questão é tão mais central dado que se relaciona
com a necessidade de reconhecer e desafiar a vocação da modernidade ocidental para o naturalismo e para o reducionismo biológico (Good, 1994: 166). Emergem assim
dois vectores absolutamente constituintes das ciências modernas e das ciências naturais em particular: a separação entre natureza e cultura, que tende a olvidar
que "toda a natureza é humana" (Santos, 1996: 44), uma vez que foi a humanidade que inventou um tal conceito, e a crença na possibilidade da ciência espelhar a realidade
natural, representando-a tal como ela é. É este nexo epistemológico, que nos reporta igualmente para uma matriz cultural ocidental, que importa juntar na leitura
da "materialização" moderna da cegueira.
A "materialização" da cegueira por referência à medicina e ao modelo biomédico do corpo, enquanto uma condição patológica, surgiu na persuasão de que essa "materialização"
mais não é do que a recuperação das condições naturais, da realidade da cegueira, agora separada dos espíritos, demónios, castigos, e dons com que durante tanto
tempo formou um só corpo. Não havendo corpos puros, como nos mostrou Butler, a assunção moderna da materialidade da diferença corporal das pessoas cegas emerge ligada
ao biopoder, à hegemonia da normalidade e à "materialização" enquanto objecto biomédico. Portanto, a "contaminação" cultural por que se veio ligar a cegueira à ideia
de deficiência, passa inevitavelmente por reconhecer as formas de objectificação da medicina enquanto narrativas culturais sobre os corpos, suas características
e diferenças. Portanto, a biomedicina, longe de se estabelecer como uma mera mimese da realidade dos corpos, toma parte de uma linguagem cultural a partir da qual
a materialidade dos corpos é passível de ser conhecida:
A linguagem da medicina está longe de ser um simples espelho do mundo empírico. É uma rica linguagem cultural, ligada a uma versão altamente especializada da realidade
e a um sistema de relações sociais, e que, quando empregue no tratamento médico, reúne profundas preocupações morais com as suas mais funções técnicas. (Good, 1994:
5, minha tradução)
Sem traficar com qualquer tipo de idealismo linguístico ou somatofobia - o corpo, obviamente, é bem mais que um texto -, a argumentação que venho desenvolvendo
instala-nos numa persuasão anti-positivista. Esta assume-se relevante na medida em que nos insta a negar que a "verdade" da cegueira possa consistir ou resumir-se
aos termos da sua objectificação biomédica e do reducionismo biológico - fatalmente inferiorizante das pessoas cegas - que dela decorre. Em causa está, sobretudo,
o facto de se fomentar uma leitura da cegueira enquanto objecto médico. O que acontece é que essa perspectiva conduz a uma apreciação redutora centrada na limitação
identificada, promovendo respostas sociais que copiam os modelos médicos, que estão vocacionados em actuações sobres os indivíduos e os seus corpos. É esse fechamento
que a materialização da cegueira para a modernidade induz.
Portanto, o surgimento da deficiência visual constitui uma nova apreensão das incidências da cegueira que naturaliza a sua inferioridade pela distância para com
uma noção de uma norma corporal. Neste quadro, a supressão da situação de marginalidade das pessoas cegas é feita depender de um percurso unívoco, um percurso normalizador
que mais não visa do que minimizar as consequências individuais que uma patologia incurável sempre acarreta. Ou seja, na impossibilidade da cura física promove-se
um percurso de habilitação pessoal, um percurso que pode pouco na ausência de questionamentos mais amplos. Partindo da objectificação à luz dos saberes da biomedicina,
a recapitulação da lógica médica, em última instância, significa isto mesmo para as pessoas descritas como deficientes: quando a cura não é possível, tudo o que
nos resta são cuidados paliativos.
A apreensão redutora que a modernidade fez da cegueira pela crivo da biomedicina, representa, assim, o germe de uma oportunidade perdida para a formação de uma
sociedade mais inclusiva, um contexto organizado de relações e valores inspirado numa pluralidade de reflexividades. Portanto, importa recuperar aqui a pergunta
que nos vinha guiando nesta fase: será que a descrição moderna da cegueira, enquanto uma condição somática e patológica, não surge, afinal, como a re-localização
da cegueira no lugar? Respondo então. Sendo verdade que as pessoas cegas foram retiradas às interpretações culturais de vocação metafísica que sobre elas se abatiam,
o reconhecimento da sua condição enquanto um fenómeno corporal, natural, médico, está longe de se constituir como um mera asserção daquilo que a cegueira "é". A
constituição da cegueira no natural por oposição ao sobrenatural, além de a submeter a uma subalternização por relação a um corpo normal, constitui uma forma de
localização que retira uma diferença do campo das representações culturais e da organização social, para a naturalizar enquanto inferioridade. A localização corporal
da cegueira enquanto deficiência física opera um exílio paradoxal, um exílio do contexto de significado que lhe dá sentido e por referência ao qual ela existe enquanto
realidade cultural. Incontornável se torna perceber que aquilo que a cegueira é e implica dependo do modo como ela é culturalmente pensada e acolhida na organização
social.
Construo um itinerário que fala do biopoder - atentando para as formas de regulação e normalização que a modernidade inaugurou gerando uma "sociedade somática".
Fala da "hegemonia da normalidade" - reconhecendo as topografias de desvio e subalternização resultantes da consagração e um modelo biomédico do corpo. Fala da hegemonia
das lógicas somatizantes - enfatizando o lugar de um reducionismo biológico que tende a naturalizar e medicalizar as relações sociais, representando o corpo como
algo que está fora da representação, fora de questionamentos sociopolíticos mais amplos. Analisando a cegueira como produto das formações de poder/conhecimento caracteristicamente
modernas, a questão não é perceber como os discursos lesam os corpos, mas, conforme afirma Judith Butler, compreender como certas construções os remetem para os
limites dos esquemas de entendimento existentes (1994: 224). Assim, o que se lesa são as possibilidades para os sujeitos e as diferenças corporais se moverem de
outro modo nos contextos de valores e relações. Concretamente, trata-se de perceber em que medida a objectificação da cegueira como deficiência contribui para cristalizar
e ampliar o lugar central de uma limitação sensorial, contribuindo para a invisibilização dos estigmas culturais que decorrem dessa mesma objectificação, e, logo,
para que se mantenham inquestionáveis as formas vigentes de hierarquização social. Conforme sintetizam pujantemente Barnes et al., "o efeito da medicalização dos
problemas sociais é a sua despolitização" (1999: 60; minha tradução). É deste efeito que decorre largamente a irmandade entre a perpetuação da marginalidade das
pessoas cegas e a não convocação dos condicionantes sociais que constrangem as suas vivências.
Boaventura de Sousa Santos (2002), no seio de uma crítica mais ampla da racionalidade moderna, aponta exactamente para um questionamento das formas de naturalização/somatização
das hierarquias sociais. O autor identifica como elemento central a vigência na modernidade de uma razão, por si designada de indolente, que apresenta como central
característica um contracção do presente e uma ampliação do futuro. Ou seja, identifica-se a vigência de um regime de razão que num mesmo momento adia o futuro,
tornando longínquas as expectativas do agora, e contrai o presente, estreitando-o pelo desconhecimento e pela desqualificação da inesgotável experiência social existente
no mundo. Entrevemos nesse quadro um nexo de impossibilidades em que o empobrecimento dos conhecimentos e experiências tidos como válidos no presente, prefigura
o estreitamento e/ou adiamento de expectativas de transformação para o "por-vir".
Assim, segundo Boaventura de Sousa Santos, uma das formas características centrais da razão indolente reside na sua vocação metonímica, ou seja, na sua vocação
para tomar a parte pelo todo. E é exactamente a operacionalidade dessa razão metonímica que me interessa convocar para o seio da presente análise:
A forma mais acabada de totalidade para a razão metonímica é a dicotomia, porque combina, do modo mais elegante, a simetria com a hierarquia. A simetria entre as
partes é sempre uma relação horizontal que oculta uma relação vertical (...) todas as dicotomias sufragadas pela razão metonímica contêm uma hierarquia... (Santos,
2002: 242).
A linha desta reflexão desde logo nos reporta, pelas ressonâncias que oferece, para relação entre normalidade e deficiência, uma dicotomia moderna cuja simetria
e horizontalidade temos vindo a negar com base na ideia da hegemonia da normalidade. Mas, dado que a implicação central associada à vigência de uma razão metonímica
é o desperdício da experiência que por ela não pode ser valorizada ou reconhecida, a sua identificação envia-nos, antes de mais, para a centralidade que conferimos
às condições históricas pelas quais as pessoas descritas como deficientes vêem negada a sua reflexividade e intervenção social. Estamos perante as condições de produção
de não existência de que nos fala Sousa Santos: "Há produção de não existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou
descartável de um modo irreversível." (2002: 246). Das lógicas que estão identificadas por Boaventura de Sousa Santos como traves sustentadoras do estreitamento
arrogante de que padece a razão moderna - e que estão directamente implicadas na produção de não-existência -, duas delas assomam com particular vigor na linha argumentativa
que aqui venho desenvolvendo.
A primeira, diz-nos Sousa Santos, relaciona-se com "uma monocultura do saber e do rigor do saber" (ibidem: 247). Aqui a produção de não existência decorre mormente
do modo como a ciência moderna se estabeleceu como único critério de verdade, numa monocultura que opera pela desqualificação de outras discursividades. Aspecto
que nos reenvia para a medida em que as formas modernas de objectificação da cegueira foram embutidas numa noção de real, construída por saberes periciais, pouco
conciliáveis com o surgimento e valorização de outras perspectivas. No fundo, outras realidades em cuja criação a autoria, experiência e reflexividade das pessoas
cegas pudessem participar.
A segunda lógica de produção de não existência, assinalada por Boaventura de Sousa Santos, e cuja construção se mostra valiosa para este contexto, é a lógica da
classificação social. Esta funda-se numa "monocultura da naturalização das diferenças" cujo aporte é central é a "distribuição das populações por categorias que
naturalizam as diferenças" (ibidem: 247). O lugar desta lógica implica-se com a denunciada vocação da nossa epistemologia para o reducionismo biológico, cujo estreito
enfoque contribui para a naturalização da situação das pessoas cegas que assim tendem a ser pensadas fora das condições sociais incapacitantes. O carácter mais perverso
desta hierarquização reside no facto da inferioridade ser inscrita das diferenças corporais, enquanto fatal, ao mesmo tempo em que se propala o desejo da superação
da inferioridade por via de estratégias normalizantes. A isto mesmo faz alusão Boaventura de Sousa Santos ao evocar o paradoxo central do projecto colonizador: ao
mesmo tempo que se erigia como legitimação da dominação colonial uma missão civilizadora que pretendia resgatar o colonizado da sua inferioridade, sustentava-se
que essa inferioridade era insuperável na medida em que estava fatalmente inscrita numa "natureza" dita inferior. Entendo que o processo de normalização que se dirige
às pessoas cegas, fundado numa classificação hierárquica entre a normalidade (ausência de deficiência) e deficiência física, emerge como uma resposta social que
se funda num paradoxo análogo.
Identificamos, pois, um fechamento imposto sobre as pessoas cegas a partir de uma monocultura da classificação social. Dela decorrendo a consagração de um percurso
de adequação à normalidade que consiste numa abordagem medicalizada que localiza os problemas evocados pela deficiência no corpo que é também a sede de saúde ou
doença. Uma abordagem que, no essencial, aceita a norma, aceita a deficiência como um desafio individual, preservando intactas as margens da sociedade (Striker,
1999: 135, 142). Portanto, não colocando em causa intervenções inteiramente apropriadas das práticas médicas, como sendo a diagnose da deficiência, a estabilização
da condição médica após um trauma, o tratamento da doença ocorrendo independentemente da deficiência, ou a provisão de reabilitação física, haverá que procurar analisar
como podem ser profundas e negativas as consequências das classificações médicas (Oliver, 1990: 48, 49).
A abordagem medicalizada a que me refiro viria a ficar consagrada nos discursos dominantes como a "abordagem reabilitacional8". Noção que, além de afirmar a da
ideia de supressão de disparidades por via do restabelecimento das capacidades tidas como normais, assume a existência de um estado normal anterior (Striker, 1999:
122). O que a torna largamente desadequada à situação de uma pessoa que seja, por exemplo, cega congénita. O reconhecer da efectividade desta abordagem para uma
perpetuação das formas de discriminação social das pessoas invisuais, será recuperado quando nos dirigirmos à crítica social estabelecida com o surgimento de movimentos
promovidos por organizações de9 pessoas deficientes, um pouco por todo o mundo ocidental, a partir dos anos (19)70. Procurarei ainda demonstrar em que medida o modelo
reabilitacional persiste informando o associativismo em torno da cegueira no contexto português.
No entanto, o aspecto que importa aqui colocar, desde já, é o tráfico de sentido entre uma objectificação da cegueira à luz de "monocultura da naturalização das
diferenças" e a ambivalência fundadora das organizações políticas e institucionais que desde o século XVIII se dirigem às pessoas cegas. Refiro-me, concretamente,
à promoção exclusiva de um percurso que se investe em adequar as pessoas cegas a um padrão de normalidade, pressupondo ao mesmo tempo a incontornável inferioridade
inscrita na sua limitação sensorial. Henri-Jacques Striker (1999: 150) afirma mesmo que "o desejo da sociedade, expresso através do tratamento da deficiência, é
tornar idêntico sem fazer igual" (minha tradução). Embora seja problemático falar do "desejo da sociedade", o que parece certa é a vigência hegemónica de uma lógica
cujo enfoque limitado limita também os objectivos que propala. O eterno fracasso é, pois, algo de constitutivo da lógica reabilitacional. Uma mitologia que apenas
se pode negar pela celebração de formas individuais de heroísmo, excepções que são hasteadas enquanto formas exemplares que, por isso, legitimam a regra.
Alojando-se numa crítica à razão metonímica, identificada enquanto promotora de um empobrecimento da riqueza das experiências do presente, Boaventura de Sousa
Santos vem propor que a "lógica da classificação social", ancorada que está a uma "monocultura da naturalização das diferenças", possa dar lugar a uma "ecologia
de reconhecimentos" (Santos, 2002: 252). Esta transição implica o resgate de perspectivas descredibilizadas, permitindo que a problematização da sobreposição entre
hierarquia e diferença possa dar lugar a "diferenças iguais". Ou seja, implica reconhecer que há diferenças que não fazem sentido fora das hierarquias que consagraram
a sua distintividade, e, sobretudo, importa defender "uma ecologia de diferenças feita de reconhecimentos recíprocos" (Santos: 2002: 252). É, sem dúvida, para esta
ecologia de reconhecimentos que a valorização da intervenção e da reflexividade das pessoas cegas nos envia, num horizonte intimamente ligado a um aprofundamento
democrático feito pela valorização plural de perspectivas, com ênfase para os grupos que têm sido reiteradamente encostados ao silêncio. Assim, procurando distanciar-nos
das estratégias somatizantes características do pensamento moderno, colocamo-nos próximos do imperativo de uma epistemologia dos conhecimentos e dos agentes ausentes
(Santos, 2000: 229-232).
No entanto, a advocacia da necessidade da superação de uma hierarquia naturalizadora das diferenças, em prol uma ecologia de reconhecimentos, não se mostrará tão
problemática para construções como o sexo ou o género - classificações que Sousa Santos toma como manifestações mais salientes dessa lógica. A questão é que se hoje
lidamos com o disseminado descrédito dos discursos sexistas e racistas, demonstrando-se em que medida são falíveis as formas de cientificidade que se articularam
com desígnios políticos e sociais opressivos, a deficiência persiste sendo pensada num hoje num redutor ancoramento às limitações funcionais que se lhe adscrevem.
Portanto, o itinerário para se pensar a cegueira e outras condições descritas como deficiências num plano de "diferenças iguais" é, pois, duplamente problemático:
por um lado, pelas efectivas limitações de actividade que poderão estar associadas à experiência das pessoas descritas como deficientes visuais, por outro, pela
teimosa vitalidade com que as construções redutoras subalternizantes, elaboradas pela ciência moderna, subsistem marcando as vivências das pessoas cegas, ligando-as
à incapacidade e ao infortúnio.
Porque o significado de um corpo está sempre para além dele (Butler, 1993), e porque as implicações de uma deficiência dependem sempre assunções culturais temos
acerca da natureza, funcionamento e objectivos das pessoas (Ingstad e Whyte, 1995b), impõe-se um outro olhar. Esse olhar deverá ser capaz de atentar noutras construções
que a modernidade consagrou e que se articularam com a objectificação médica da cegueira para uma cristalização da subalternidade das pessoas cegas.
5. CAPITALISMO INDUSTRIAL E INDIVIDUALISMO: CONTRIBUTOS PARA UM ANCORAMENTO INCAPACITANTE DA "DEFICIÊNCIA"
As teias de sentido por via das quais a cegueira veio a ser percepcionada na modernidade consagram como central a objectificação medicalizada das pessoas cegas;
no entanto, dificilmente poderemos aceder às implicações dessa narrativa histórica, a menos que contemplemos a intervenção de outras transformações que vieram habitar
a casa da modernidade. Há, pois, que considerar outros valores e enredos históricos que se articularam com a passagem histórica por via da qual a cegueira veio a
ser entendida como uma deficiência física. Destaco dois elementos que foram parte dessa metamorfose cultural: o capitalismo industrial, uma transformação radical
nos modos de produção dominantes, e o individualismo, uma alteração não menos radical nas formas de apreensão e valorização dos sujeitos.
Portanto, o respigar dos elementos que se erigiram contribuindo para a negação da participação social das pessoas cegas na nossa sociedade, cruza-se largamente
com alguns dos traços estruturantes da vida moderna. No fundo, confrontamo-nos com a pungente asserção de que "os valores culturais que dão forma e conteúdo à nossa
vida em sociedade marginalizam uma parte considerável da população" (Associação Portuguesa de Deficientes, 2002: 11).
5.1. A industrialização
As transformações ocorridas na economia produtiva surgem como um elemento absolutamente fulcral na marginalização social das pessoas que viriam estar reunidas
sob o conceito de deficiência. Como já analisámos, é bem verdade que o período pré-industrial está longe de nos oferecer um retrato idílico no que concerne integração
social das pessoas cegas, isto, muito por culpa da miríade de associações e crenças reinantes. Não obstante, permanece enquanto válida a persuasão de que na pré-modernidade
as "pessoas com deficiência" contribuíam para as actividades produtivas, realizadas em contextos familiares, na agricultura e nas pequenas manufacturas. Esses contextos
que permitiam que todos dessem o seu contributo consoante as suas características específicas e os seus ritmos particulares.
A revolução industrial e o subsequente desenvolvimento dos processos industriais trouxe uma abrupta transformação daquelas que eram as condições de produção vigentes
até ao século XVIII. A partir dessa altura surgiram contextos profundamente estandardizados e inflexíveis às diferenças individuais. Emergiu um sistema de produção
cujos padrões se inconciliam com a participação das pessoas com deficiência, legando-as à completa exclusão da economia produtiva ou, na melhor das hipóteses, a
uma residual contribuição no seio das muitas "instituições totais" que se criaram a partir do século XVIII para albergar as diversas deficiências. De facto, o advento
da industrialização vem tornar o corpo da pessoa deficiente demasiado "presente", excessivo nos seus défices, na sua disparidade para com a norma corporal, incapaz
de se adequar aos novos imperativos laborais:
A velocidade do trabalho fabril, a disciplina imposta, as normas de produção e de poupança de tempo - todas estas foram transformações altamente desfavoráveis em
relação aos métodos de trabalho mais lentos, mais autodeterminados e flexíveis, em que as pessoas com handicaps tinham estado integradas (Oliver, 1990: 27, minha
tradução).
O surgimento de uma rigorosa disciplina na actividade fabril e a imposição de uma lógica de maximização do rendimento, implicou que o corpo humano se constituísse
largamente como uma extensão da maquinaria industrial na realização de práticas estandardizadas. Daqui emerge uma visão mecanicista e funcional do corpo, que é feito
parte de um dispositivo complexo, repetitivo e que se estabelece por referência central a uma optimização da rentabilidade na produção.
O que se torna crucial para este âmbito é o facto de o processo industrial ter estado ligado a uma nascente definição do corpo em termos de capacidade produtiva
e a uma emergente concepção acerca de uma perfeição mecânica do corpo humano (Davis, 1995: 87). Numa primeira instância, este fenómeno conduziu a uma efectiva exclusão
das pessoas incapazes de se adaptarem às condições de produção estabelecidas ou que estivessem abaixo de um determinado padrão de produtividade. No entanto, a emergência
de uma concepção mecanicista do corpo acarretaria também implicações decisivas ao nível das representações culturais. Delas destaco o modo como esta concepção viria
a infundir as noções de normalidade promovidas no âmbito da ciência médica. Claudine Herzlich (1991: 206) aponta exactamente para esta questão quando sublinha a
influência constituída pelo regime de trabalho que acompanhou o desenvolvimento industrial, no surgimento de uma associação entre saúde e capacidade de trabalho
e, por oposição, entre doença e inaptidão laboral. Despertamos assim para o facto de que o modelo biomédico do corpo, a estabelecida norma na regulação dos discursos
e práticas da medicina, se encontra ancorado, desde a sua origem, pelas concepções mecanicistas do corpo geradas a partir da revolução industrial.
Portanto, confrontamo-nos com um entretecido de valores que se reúnem no modelo biomédico do corpo e que, por isso, vão estar implicados nos corpos definidos como
desviantes. Deste modo, por contraponto às concepções mecanicistas que informam as concepções de norma corporal, a concepção de deficiência física surge adscrita
àquilo que Barnes et al. (1999: 65) designam por "modelo biomédico do corpo da máquina imperfeita". A construção, moderna, científica e médica do conceito de deficiência
é indelevelmente marcada pelo impacto do capitalismo industrial, tendo-se constituído um de conceito de saúde compatível com os interesses capitalistas nas disciplinas
de trabalho (Turner, 1984).
A deficiência física surge-nos, portanto, como uma elaboração associada à patologia, à anormalidade e à incapacidade funcional, elementos presentes nas noções
que até hoje nos acompanham. Podemos dizer, por isso, que a noção moderna de deficiência é, grosso modo, uma interligação entre o carácter duradouro ou permanente
de uma anormalidade física, a visibilidade dessa anormalidade, e a incapacidade funcional que ela implica. São estes os contornos que desenham a representação de
uma deficiência. Em particular, o ancoramento da pessoa com deficiência à limitação funcional e à incapacidade é algo de absolutamente estruturante do conceito de
deficiência. Um conceito que nos acompanha há cerca de 200 anos e cujo significado veio a ser disputado desde há umas décadas, sendo hoje possível distinguir uma
concepção hegemónica das elaborações que lhe resistem.
A concepção dominante é a mais antiga, é a que ainda vigora nas nossas sociedades e que está mais próxima das concepções positivistas, de uma vocação para o reducionismo
biológico, e dos padrões de capacidade funcional que a revolução industrial nos emprestou. Os valores entretecidos na ideia de deficiência que nasceu com a modernidade
ficam bem sintetizados nas definições elaboradas pela Organização Mundial de Saúde num documento designado International Classification of Impairments, Disabilities,
and Handicaps (ICIDH) OMS, 1993 (1983). Este documento foi elaborado a partir de uma discussão levada a cabo na década de (19)70, tendo sido publicado em 1980. Nele
emergem três definições centrais:
Impairment: no contexto da experiência de saúde, impairment é qualquer perda ou anormalidade psicológica, fisiológica ou anatómica da estrutura ou função (ibidem:
26, muinha tradução).
Disability: no contexto da experiência de saúde, disability é qualquer restrição ou ausência (resultando de um impairment) da capacidade para realizar uma actividade
do modo ou dentro dos âmbito considerado normal para um ser humano (ibidem: 27, minha tradução).
Handicap: no contexto da experiência de saúde, um handicap é uma desvantagem para um dado indivíduo, resultando de um impairment ou disability, que limita ou impede
o cumprimento de um papel que é normal (dependendo da idade, sexo, factores sociais e culturais) para dado indivíduo (ibidem: 28, minha tradução).
É possível afirmar-se que estas definições denotam já alguma preocupação em relação à necessidade da deficiência ser pensada por referência aos diferentes contextos
socioculturais. Intenção que fica sobretudo expressa na inclusão da noção de handicap, definida de modo tal que a desvantagem para as pessoas com deficiência é feita
depender dos contextos e requerimentos socioculturais. No entanto, a ambição trans-cultural e universalista destas definições encontra-se comprometida por um flagrante
centrismo ocidental que fica patente, em particular, no modo como a noção de norma se estabelece como o ponto de partida para pensar a deficiência e as suas consequências.
A cristalização que é operada por esta formulação das noções de normalidade que a modernidade consagrou tem sido denunciada enquanto uma reprodução de plataformas
conceptuais que mereceriam ser mais problematizadas. Tal criticismo está presente tanto nas perspectivas antropológicas que apelam a uma compreensão contextual daquilo
que designamos deficiência (cf. Ingstad e White 1995b: 5,6), como nas mobilizações políticas das pessoas com deficiência, que emergiram no mundo ocidental, investidas
em denunciar os efeitos negativos da perpetuação naturalizadora da ideia de normalidade funcional10 (cf. Oliver 1990: 4-6; Barnes et al., 1999: 25).
Na verdade, estas primeiras definições propostas pela OMS representam de modo sublime em que medida a noção de deficiência assenta, desde a sua génese, naquilo
que Harlan Hahn designou por "paradigma das limitações funcionais" (1997: 172). Com essa denúncia Harlan Hahn pretende assinalar o lugar que as visões mecanicistas
do corpo ocupam nas representações culturais em torno das pessoas com deficiência, numa ênfase que tende a minorar a importância do que de limitativo existe nos
contextos de vida das pessoas rotuladas como deficientes. A sedimentação histórica de uma narrativa que estas definições mecanicistas representam, exprime bem o
papel desempenhado pelos imperativos da industrialização na definição moderna do corpo, a sua normalidade e os seus desvios.
Aportamos assim nas modernas construções essencialistas à luz das quais a cegueira é socialmente pensada em termos da disparidade em relação ao modelo biomecânico
do corpo. Nessa leitura as limitações funcionais que se associam à cegueira assomam como um insuperável "princípio de realidade".
Embora seja sumamente importante reconhecer o papel que o surgimento do trabalho industrial desempenhou na marginalização social das pessoas cegas, haverá a ressalvar
o facto da exclusão da actividade fabril não se estabelecer como uma imperiosa consequência. Aliás, uma das pessoas que prestou alguma atenção à exclusão laboral
das pessoas com deficiência foi exactamente Henry Ford (1863--1947), que, inclusive, foi convidado para uma "Conferência Internacional de Cegos e Surdos-Mudos"
ocorrida em 1908, em Manchester. As reflexões de Henry Ford, assim como as suas experiências, expressam a ideia que as pessoas com deficiência podem contribuir laboralmente,
mesmo no trabalho industrial, assim lhes sejam dadas as condições e oportunidades. Referindo-se às ocupações industriais, Ford afirma, numa asserção que ficaria
célebre: "há mais lugares para cegos, do que cegos para lugares; mais lugares para deficientes do que deficientes para lugares" (Ford, 1926: 226).
As palavras daquele que foi considerado o pai da linha de montagem constituem uma constatação de possibilidades a advir de uma organização do dispositivo industrial
atenta e diferenciada. Se mais não representa, constitui este um registo significativo de que mesmo nos contextos potencialmente mais problemáticos não existe fatalidade
na exclusão. Em congruência com as palavras de Henry Ford, conheci, durante a minha experiência etnográfica, várias pessoas cegas que se encontravam empregadas no
sector industrial, nas mais diversas actividades produtivas: embalagem de produtos alimentares, metalurgia, ou cerâmica. Embora tenha tomado contacto com algumas
situações de trabalho precário11, no geral as pessoas mostraram sentir-se realizadas com as funções que desempenham, com a valorização do seu trabalho, e com facto
de saberem que o seu rendimento nada deixa a desejar em relação aos seus colegas sem limitações visuais. Não obstante estas ressalvas, permanece a asserção de que
as transformações ocorridas na economia produtiva participaram tanto no perfil excludente da arena laboral como na definição de uma concepção normativa e mecanicista
do corpo.
5.2. O individualismo
Um outro elemento que se torna incontornável para a nossa análise reside na assunção do individualismo enquanto um valor que veio a permear decisivamente o "sentido
do ser" no Ocidente. Na verdade, a emergência do individualismo encontraria um estreito parentesco com a emergência do capitalismo industrial. Basta atentar para
o facto de que ambos se consagraram a par com as visões liberais promovidas com a ascensão do poder da burguesia.
Uma qualquer leitura das implicações socioculturais da inculcação de um ethos individualista terá que considerar, em primeiro lugar, o inegável lugar que os valores
individualistas ocuparam na oposição aos regimes autoritários, e ao subsequente desenvolvimento dos Estados liberais democráticos fundados no sufrágio universal
e nos direitos dos indivíduos (Lukes, 1973: 153). No entanto, se por um lado é saliente a importância que as concepções individualistas detêm nas possibilidades
de articulação das garantias políticas e sociais dos sujeitos - reiterada com a sedimentação da arquitectura normativa dos direitos humanos -, por outro elas são
nutridas e tomam parte de uma lógica que permeia o tecido social engendrando outro tipo de constrangimentos. Concretamente, ao trazer aqui a questão do individualismo
moderno, procuro relacionar esta construção com a cegueira a partir de duas linhas de análise distintas. A primeira liga-se à identificação do individualismo como
uma elaboração cultural que desempenhou um papel central para que as implicações e respostas pensáveis à deficiência se confinassem a um olhar sobre os seus portadores.
Um enfoque que colateralmente indefere uma problematização dos contextos onde a deficiência ganha significado e onde se mapeiam as vivências das pessoas com deficiência.
A segunda linha de análise envia-nos para a relação entre os valores promovidos pelo individualismo e as emergentes formas de valorização social das pessoas.
Partindo da primeira abordagem referida, acima de tudo importa perceber como a afirmação do "paradigma das limitações funcionais" na apreensão cultural das pessoas
deficientes é permeada e reforçada pelos valores do individualismo moderno. Em causa está uma ênfase nas condições e capacidades do indivíduo que tende a subvalorizar
a relação entre as possibilidades individuais e os contextos que as estruturam. Emerge assim uma asserção profundamente paradoxal. Por um lado é central contemplar
o lugar ocupado pela reivindicação dos direitos individuais das pessoas com deficiência, mormente o direito ao emprego, à educação e à segurança económica. Neste
caso os valores individualistas mostram ser uma plataforma de sentido para que as pessoas cegas possam confrontar as formas de opressão e discriminação a que estão
sujeitas. Por outro lado, os processos que reduziram as implicações da deficiência terão que ser entendidos, não como um assalto à individualidade humana, mas ao
próprio itinerário de sentido através do qual a individualidade ganha uma fundação sólida e literal (Amstrong, 1994: 22).
Assim, para que se contemplem os obstáculos criados pelos preconceitos e formas de organização social que cercam as vidas das pessoas cegas, importa que possamos
estabelecer uma visibilização do lugar ocupado pelo individualismo para o escamoteamento desses mesmos factores. Para isto mesmo se dirige João Pina Cabral (1995)
quando reflecte acerca das formas modernas de formação da identidade. Afirma o autor que a ciência social contemporânea deverá ser capaz de constituir "um distanciamento
crítico por relação à ideologia individualista que caracteriza a modernidade ocidental". Sendo que "um dos seus processos centrais é a naturalização da identidade
pessoal através de uma atribuição de maior verdade à pessoa física que aos laços sociais" (ibidem: 202). Assim, na já aludida centralidade do paradigma biomédico
na reificação12 da deficiência enquanto uma patologia respeitante ao corpo, uma instância separável, orgânica em si, será relevante considerar o modo como o individualismo
ocidental aí se imbrica. Concretamente, contribuindo para a desmobilização de uma crítica social da situação das pessoas com deficiência.
Dirijo-me agora para o segundo aspecto que acima referi: a relação entre o individualismo e as formas de valorização social prescritas na modernidade ocidental.
Procuro pulsar as consequências da celebração moderna do indivíduo, de onde derivam imperativos e constrangimentos de adequação que, embora se imponham sobre todos
os sujeitos, se mostram particularmente opressivos para as pessoas portadoras de deficiência. A ênfase que os valores do individualismo colocam na capacidade individual
de realização marcam, quase inescapavelmente, os investimentos, aspirações, frustrações, preocupações e ansiedades que pontuam as vivências das mulheres e homens
modernos.
Portanto, evocando a reflexão acima realizada, é possível perceber a ligação entre o modo como a noção de deficiência está ancorada à incapacidade das pessoas
identificadas como deficientes, e o predomínio que o desempenho individual adquire nas modernas formas de valorização dos sujeitos. De facto, aquilo a que David
Cooper (1978: 46) se refere como os imperativos moralistas da sociedade capitalista ocidental em relação à necessidade de se ter êxito e de se ser economicamente
independente, detém uma inegável pertinência na vida das pessoas cegas. A questão que parece ser central é o modo como estes valores encontram um quadro - como aquele
que Portugal nos confere - marcado pelas reduzidas oportunidades de realização profissional e económica concedidas às pessoas cegas. Deste modo, um contexto social
que favorece a inactividade profissional das pessoas cegas, inibe a sua contribuição para a economia produtiva e fomenta a sua dependência económica das famílias,
das pensões sociais e subsídios de desemprego, é também um contexto que, à luz dos valores individualistas, lhes imputa um fortíssimo descrédito social. Apreciações
que se abatem com um efeito particularmente danoso nas construções das narrativas identirárias das pessoas cegas.
Fazendo apelo a elementos recolhidos na minha experiência de campo, identifico algo de profundamente perverso na desvalorização social que resulta da tensão entre
os valores emanados pelo individualismo e os obstáculos que vigoram na realização social das pessoas cegas. A questão é que o facto de muitas pessoas cegas não participarem
activamente na esfera produtiva é interpretado de forma compassiva. Ou seja, às pessoas que não são activas e não produzem é frequente imputar--se a desqualificação
da "ociosidade". Mas com as pessoas cegas isso não acontece, pelo facto de as perspectivas fatalistas sobre a cegueira sancionarem essa mesma situação de exclusão.
Há portanto uma irónica e complacente legitimação que aparta as pessoas cegas das acusações de "parasitismo" a que estão sujeitos outros grupos de inactivos, desculpando-as
pela identificação de uma incapacidade. A questão é que essa desculpabilização olvida o desejo de auto-suficiência e realização profissional das pessoas cegas. Portanto,
em última instância, na ênfase que as associações de pessoas com deficiência tendem a dar à educação, ao emprego e à segurança económica, não são certamente estranhos
os imperativos individualistas vigentes nas nossas sociedades.
No mesmo sentido, é possível descortinar o lugar dos imperativos do individualismo ocidental na ênfase dada pelas ONG'S de deficiência à necessidade dos indivíduos
adquirirem, na medida do possível, formas de realização autónoma nas mais diversas arenas da vida quotidiana. De facto, a desvalorização pessoal e social que resulta
da dependência de outrem, mesmo nas mais triviais realizações quotidianas, torna-se amiúde uma questão problemática para as pessoas com deficiência. Isto ocorre,
quer porque a realização autónoma de determinadas actividades se torna inviável em face de determinadas desvantagens funcionais, quer porque em contextos de anonimato
a aceitação de ajuda poderá constituir uma sujeição a atitudes paternalistas e subalternizantes deveras comuns para com as pessoas que são identificadas como portadoras
de alguma deficiência13. Portanto, e não se podendo negar o esforço acrescido que as pessoas com deficiência têm que realizar para adquirir o estatuto de um indivíduo
autónomo e independente (Murphy, 1995), haverá que questionar como os valores do individualismo poderão constituir uma poderosa forma de opressão. Sobretudo quando
as respostas sociais à questão da deficiência instigam os sujeitos a uma heróica superação pessoal, num óbvio menosprezo das transformações passíveis de serem empreendidas
no meio cultural, social, e físico que as acolhe.
No entanto, percebo um perigo analítico nesta visibilização do lugar particular que os imperativos individualistas vêm ocupar nas vidas das pessoas cegas. De facto
a apreciação das formas de pressão social, emanadas pelo individualismo, permite estabelecer um interessante contraponto com outros contextos culturais em que a
valorização das pessoas não se encontra tão dependente da capacidade autónoma de realização e do sucesso pessoal. Factor que muito influencia as diversas apreciações
culturais em torno das pessoas com deficiência (Ingstad e Whyte, 1995b). Perante o facto, sublinhado por Giddens, de ser "característico da modernidade que a auto-realização
se torne fundamental para a auto-identidade" (1995: 129), creio que a inquirição socioantropológica deverá sustentar duas linhas possíveis de questionamento. Uma
passa por questionar o lugar que os ditames individualistas ocupam na construção das narrativas pessoais de todos, promovendo percursos que colocam um forte peso
nas conquistas pessoais, menorizando a competência para viver em comunidade. A outra linha de questionamento assenta numa perplexidade em relação ao modo como o
acesso às formas culturalmente sancionadas de realização se encontra diferentemente distribuído nas sociedades pelos diferentes grupos, onde notoriamente se encontram
as pessoas com a deficiência entre aqueles a quem esse acesso tende a ser negado.
Ao definir estas perspectivas procuro negar uma outra que poderia ficar aqui implicitamente sugerida com uma mera visibilização dos ditames individualistas. Refiro-me
à possibilidade de se colocar em causa ou de se desenvolver uma leitura irónica em relação às aspirações de realização profissional, de autonomia e de auto--suficiência
económica alimentadas pelas pessoas com deficiência. Neste sentido valerá a pena evocar a asserção realizada por Anthony Giddens quando afirma que uma das mais gritantes
expressões das formas de desigualdade social vigentes na modernidade consiste num acesso diferenciado à auto-realização e à capacitação identitária dos sujeitos.
É esta desigualdade que importa considerar para que a realização pessoal das pessoas com deficiência não seja um exclusivo daquilo a que Goffman chama "heróis da
adaptação" (1990: 37).
Suficientemente expressivo da desqualificação de que as pessoas deficientes são alvo no quadro moderno de relações é a própria designação que se sedimentou no
nosso senso comum. Na verdade, embora eu aqui venha privilegiando a designação "pessoas com deficiência" - em consonância com a linguagem utilizada nas organizações
que por elas são dirigidas, que assim negam a totalização da pessoa na ideia de deficiência -, uma tal denominação é, não tenhamos dúvidas, um "cuidado de linguagem"
que procura contrariar as representações linguísticas presentes no senso comum. Concluímos, pois, que a nomeação de "pessoa deficiente" é, na verdade, aquela que
melhor representa os valores dominantes acerca da deficiência que a modernidade nos legou. À luz desses valores a identificação da deficiência corresponde a uma
avaliação que define determinadas pessoas como incapazes ou menos capazes, substanciando, por referência às tais concepções mecanicistas e individualistas, a ideia
de "menos pessoa".
Estamos certamente longe da imagem canónica que Jesus Martinez (1991) nos veicula: as ruas medievais de Paris pejadas de mendigos "invidentes", um espectáculo
de cegueira, pobreza, condenação e caridade, vocacionado a perpetuar-se. Sem qualquer dúvida, o advento da modernidade trouxe uma ruptura para com os valores e práticas
que vinham marcando as pessoas cegas. Elas foram sendo tiradas das ruas, intitucionalizadas, ensinadas - algumas - e libertas dos vínculos interpretativos pré-modernos.
No entanto, e como procurámos mostrar, a experiência da cegueira foi investida de toda uma míriade de saberes e poderes, cujo correlato, para a vida das pessoas
cegas foi, essencialmente, uma reasserção da sua situação de marginalidade social. O visualismo, o biopoder, a medicalização da cegueira, a hegemonia de normalidade,
a concepção mecanicista de saúde, o capitalismo industrial e o individualismo, são edificação da modernidade que favorecem a prevalência de construções essencialistas
e inferiorizantes das pessoas cegas. As percepções da cegueira que a modernidade nos lega permanecem imbuídas de uma violência simbólica, a mesma que é suscitada
pelos ecos, metáforas e conotações que a riqueza da palavra cegueira convoca. A violência simbólica que se abate sobre as pessoas pode bem ser sintetizada na vigência
de uma leitura dominante que as fecha nos corpos: a "narrativa da tragédia pessoal" (Oliver, 1990). Esta violência cessa de ser simbólica, ou realiza o seu desígnio
fora do campo estritamente simbólico, a partir do momento em que uma tal narrativa detém as condições para se transformar num "regime de verdade".
Mark Hobart (1995) conta-nos a história de um episódio ocorrido num circo romano nos tempos áureos do império. Conta o relato, cujo vínculo com a realidade é no
mínimo precário, que, tendo sido colocado um grupo de cristãos perante o eminente ataque de leões, um gigante Núbio tomou o acto heróico de avançar perante as feras,
usando o seu invulgar poderio físico para derrotar os imponentes felinos e defender os seus irmãos na fé. Dado que se criou na assistência uma previsível insatisfação
com o inabitual decurso dos acontecimentos, os organizadores do espectáculo decidiram enterrar o Núbio até ao pescoço para assim o deixar à mercê de um leão faminto.
Ocorreu então uma aproximação exploratória do leão que começou por cheirar cuidadosamente a sua presa, asseverando-se da qualidade do prometido repasto. Acontece
que o Núbio, vislumbrando uma aberta, uma vez mais contorceu o destino, investindo-se numa audaz mordida aos genitais do leão. Consta então que, indignado com tão
insólito desfecho, alguém na assistência terá vociferado em revolta: "Luta justo, seu negro bastardo" (Hobart, 1995: 303). Esta narrativa algo lendária constitui
uma interessante ironia trágica cujo principal mérito reside em mostrar como é possível que num dado contexto sócio-histórico determinados valores e práticas, que
são profundamente opressivos de determinados grupos de pessoas, sejam tomados como referentes éticos e émicos. Estamos, pois, perante "províncias finitas do significado"
(Geertz, 1993: 121) que obviam à construção de outros percursos.
Este relato histórico serve a ideia de que surgiu com a modernidade um quadro de valores que amarra poderosamente a experiência da cegueira à vivência da exclusão
e da marginalidade social. Se é verdade que o insólito passado no circo romano nos coloca perante uma proverbial assimetria nas relações de poder, por via da qual
as concepções de justiça ganham insuspeitos matizes - "Luta justo, seu negro bastardo" -, já a vivência moderna da deficiência tende a escapar às ideias de opressão
e injustiça social. Perante a excessiva "realidade" dos corpos das pessoas com deficiência, a inferioridade tende a assomar não como uma forma de opressão, mas como
uma constatação de partida, de onde deverão decorrer as possíveis respostas sociais. Paliativas, pois.
Em algumas circunstâncias a cegueira poderá constituir uma verdadeira tragédia, ou uma condição profundamente incapacitante para as pessoas por ela atingidas.
Realidades que pulsaremos mais à frente. Mas, quando assinalo a violência que as elaborações culturais exercem em relação à experiência das pessoas que conhecem
na carne as suas implicações, refiro-me a outro tipo de tragédia: a disseminada tragédia de alguém ter que viver refém de limitações que ousou superar. Postos que
estão quase dois séculos desde o advento do Braille, num momento histórico em que os desenvolvimentos informáticos materializam facilidades inéditas para o acesso
à comunicação e informação, as vivências das pessoas cegas persistem sendo mapeadas pelos referentes do infortúnio e da incapacidade.
Antes de me dedicar aos dados recolhidos no trabalho etnográfico, procurarei aquilatar de que modo os valores que a modernidade verteu na definição das pessoas
com deficiência foram politicamente contestados desde as década de (19)60; será esta uma forma de actualizar politicamente alguns dos elementos a que nos dedicámos
acima. Assim, acedendo às formas de mobilização surgidas noutros contextos, não apenas vemos emergir concepções contra-hegemónicas sobre a deficiência, como recolhemos
um precioso correlato comparativo para podermos pulsar a realidade do contexto associativo das pessoas cegas em Portugal.
6. A POLITIZAÇÃO DA DEFICIÊNCIA: REABILITAR QUEM?
A concepção de deficiência que foi desenhada no século XVIII, que nasceu e se consolidou alojada nas próprias estruturas culturais, sociais e económicas em que
assentam as sociedades modernas, viria a subsistir incólume até ao final da década de 60 do século XX. Altura em que pela primeira vez foi seriamente denunciada
a cumplicidade entre a noção de deficiência hegemonicamente estabelecida, as formas vigentes de organização social, e as experiências de profunda marginalização
então vividas pelas pessoas descritas pelo idioma da deficiência. A noção de deficiência que se instalou nas entranhas do advento moderno persiste vigorando nas
sociedades ocidentais. No entanto, hoje é possível distinguir uma concepção hegemónica de deficiência de uma concepção contra-hegemónica.
Interessantemente, ao mesmo tempo que é possível identificar a violência simbólica e vivencial que as representações modernas infundiram na experiência da deficiência,
é possível analisar os matizes de um tempo curto. Falo de uma temporalidade que nos reporta à década de (19)60, a partir de quando é possível ler em que medida nas
diferentes sociedades os valores hegemónicos constituídos sobre as pessoas com deficiência foram desestabilizados como forma de negar o seu impacto. Na realidade,
numa perspectiva radicalmente instigante, mais do que um conjunto de atributos objectivamente identificáveis ou definíveis, a opressão social será, porventura, a
única coisa que as pessoas deficientes têm em comum (Wendel, 1997: 264). Portanto, ciente do perigo de universalizar uma diferença que assenta numa demarcação contingente,
definida historicamente, ao referir-me às deficiências (físicas) em termos mais generalistas, viso contemplar elementos comuns da subalternização das pessoas com
deficiência. Aqueles mesmos que foram identificadas no próprio processo histórico da emergência de movimentos políticos em torno das deficiências.
O surgimento, nos finais da década de (19)60, dos movimentos estudantis e das lutas pelos direitos civis constituiu uma profunda reestruturação das práticas e
valores democráticos até então vigentes. Por um lado, foi aí achada a falência das formas tradicionais de participação política, assentes na representatividade partidária
e na equação minimalista do exercício da cidadania ao voto. Por outro lado, o surgimento de tais reivindicações veio tornar clara a tensão oposicional entre a noção
moderna liberal de cidadania e a subjectividade individual (Santos, 1999: 204-208). Denuncia-se aí como a universalização dos sujeitos operada pela noção cidadania
- substanciada no princípio da igualdade de todos perante a lei - apaga a diferença que reside na subjectividade dos indivíduos, nas suas narrativas pessoais, nas
suas reflexividades, nas suas orientações sexuais, nos seus sexos, nas identidades ligadas à diferença dos seus corpos, etc.
Portanto, a génese de uma profusão de organizações insurgentes e reivindicativas nas décadas de 60, 70 e 80 - sociologicamente definidas pela designação de "novos
movimentos sociais" - reporta-nos para a dissenção que as lutas dos anos 60 estabeleceram em relação aos poderes estabelecidos e às formas de tradicionais de os
opor. Os novos movimentos sociais surgem então como uma proliferação de coalescências políticas estabelecidas à margem dos campos ortodoxos de luta política, fundando-se
numa afirmação solidária de identidades em que o pessoal se torna político. Deste modo, surgiu toda uma constelação de lutas sociais apontadas às diversas formas
de opressão que marcam as vidas dos sujeitos. A luta política passou a estar mais sensível às relações de poder que estão presentes na vida quotidiana e ao efeito
das representações culturais. Por esta via deu-se um alargamento do panorama democrático e um aprofundamento da própria ideia de democracia, cunhada pela articulação
de formas de contestação cujos propósitos indicam, não raras vezes, a necessidade de uma radical reconfiguração das traves económicas e socioculturais em que se
fundou a vida moderna.
A aparição de toda uma miríade de organizações e movimentos sociais assentes em solidariedades políticas que visavam as causas mais diversas, veio criar um inédito
espaço de enunciação para a reiterada experiência de exclusão e despossessão vivida pelas pessoas com deficiência. Assim, nos anos 70, um pouco por todo o mundo,
viriam a criar-se e a reformular-se estruturas organizativas que estabeleceram como propósito central, por vezes único, a visibilização das múltiplas formas de opressão
a que as pessoas com deficiência estão sujeitas. Objectivo a que se juntou a necessidade de uma transformação social passível de reverter as lógicas propiciadoras
dessa mesma opressão. Identifica-se, pois, uma convergência entre os novos movimentos sociopolíticos que se desenvolveram nas décadas de 60 e 70 e as vozes contestatárias
das pessoas com deficiência. Na minha leitura, a afinidade que ligou as pessoas com deficiência a esse momento sociopolítico, reside fundamentalmente no facto de
se ter estabelecido uma leitura crítica da sociedade vocacionada a denunciar as múltiplas faces da opressão. Uma leitura que reconhece, ademais, em que medida o
exercício da opressão se dá muitas vezes de forma insidiosa, inculcando-se frequentemente no corpo social sob formas que escapam às lógicas da violência e da coerção.
Essa articulação dos percursos emancipatórios das pessoas deficientes com outras propostas de transformação social viria também a advir do facto de o corpo se
ter tornado num locus privilegiado das lutas pelo significado. Em particular, as pessoas com deficiência encontraram nos discursos anti-racistas e feministas uma
assunção fundamental do incontornável lugar ocupado pelos discursos opressivos reificados nos corpos e nas suas diferenças.
No entanto, e ainda que a entrada em palco da insurgência activa das pessoas com deficiência nos envie para a senda dos novos movimentos sociais, creio ser necessário
que reconheçamos o carácter singular dos desafios que se lhes colocaram, e colocam, na denúncia das condições de opressão a que as sociedade modernas as votaram.
Um aspecto sempre central é a criação de novas configurações culturais em que os atributos distintivos possam ser requalificados e libertos do ónus da inferioridade.
Honi Haber (1994: 125), num ensejo propositivo, sintetiza bem este imperativo:
(...), os grupos social e politicamente marginalizados precisam de continuar a construir a sua voz e a lutar pelo poder. Mas para fazer isso os indivíduos e os grupos
têm que aprender primeiro a valorizar as suas diferenças. Isto deve acontecer antes das estratégias e demandas políticas poderem ser formuladas (ou talvez ambos
aconteçam simultaneamente). Para valorizar as diferenças nós temos que aprender a reconhecer as diferentes identidades que existem não apenas na sociedade amplamente
considerada, mas também em cada um de nós (minha tradução, minha ênfase).
Assim, a valorização de diferenças opera como um importante significante. Na verdade, é para este segundo aspecto que bell hooks (1995: 119) se dirige quando afirma
a "auto-estima como uma radical agenda política" (minha tradução). A questão que se torna premente para uma avaliação dos desafios que se colocam à articulação política
a partir das deficiências, e em contraponto com outras formas de assunção identitária, é o carácter infinitamente mais problemático da valorização e celebração da
diferença que está na base dos esquemas classificatórios das deficiências físicas.
As configurações materiais que identificamos como deficiências pertencem ao mundo fenomenológico. O facto de alguém não ver, não ter uma perna ou ter uma lesão
na medula, não é completamente redutível ao carácter contingente das apreensões culturais num dado contexto de crenças. Portanto, ao abordarmos as configurações
físicas que nos surgem sob o conceito de deficiência importa considerar que estamos perante condições que muitas vezes implicam ou estão associadas a experiências
de privação e sofrimento físico que vão para além das formas de opressão social. No caso da cegueira, aquele que conheço melhor, poderei referir a título ilustrativo
situações tais como a dor física que muitas vezes acompanha a evolução de um glaucoma, a frustração de uma mãe que não pode conhecer os olhos do filho de cuja beleza
tanto ouve falar, a maior tendência para a ocorrência de pequenos acidentes e quedas (embora este dado se associe muitas vezes ao modo como o ambiente físico é elaborado),
a profunda experiência de privação sentida para quem perde a visão de repente, a impossibilidade de desempenhar profissões que realmente dependem da visão, ou de
realizar actividades quotidianas como conduzir um carro.
Sendo possível e desejável uma valorização das pessoas com deficiência, das suas capacidades, dos seus intentos vivenciais e das suas propostas de transformação
social, a pouco exequível celebração da diferença implicada por uma deficiência constitui uma especificidade político-identitária que importa relevar. O cerne da
questão é que afirmações contra-hegemónicas que procuram valorizar a diferença, tais como Black is Beautiful ou Glad to be Gay, denotam uma celebração que as aparta
radicalmente das pessoas com deficiência. Não é expectável que se celebrem do mesmo modo as diferenças que estão na base na catalogação identitária de quem é percebido
enquanto deficiente. É exactamente pela presença fenomenológica deste materialidade veiculada pelo conceito de deficiência, que se torna mais ardilosa uma desnaturalização
ou des-somatização das hierarquias sociais e económicas vigentes nas vidas das pessoas com deficiência.
Um outro elemento que singulariza os desafios que se estabeleceram, e estabelecem, nos movimentos políticos de pessoas com deficiência, é sem duvida o modo como
a opressão social das pessoas com deficiência tende a ser escamoteada por uma atitude condescendente e paternalista por parte dos poderes e da sociedade num sentido
mais amplo.
De facto a possibilidade de se articularem resistências depende da existência de condições opressivas promotoras da desigualdade social, mas também, e de um modo
assinalável, da visibilidade que num dado contexto sócio-histórico é possível dar a essa mesma opressão. Deste modo dirijo-me, por um lado, para inelutável saliência,
na enunciação politica das pessoas com deficiência, dos discursos e práticas congruentes com aquilo que Martine Xiberras (1993: 16) identifica como sendo uma das
mais perniciosas formas de opressão: a compaixão. Ou seja, um conjunto de valores e procedimentos que se dirigem paternalistamente às pessoas com deficiência e que
assumem o infortúnio e a inferioridade como dados que devem ser minorados na medida do possível. Por outro lado, emerge, mais uma vez, o facto de a exclusão vivida
pelas pessoas cegas ser facilmente percebida no seio de uma sociedade somatizante enquanto a consequência natural das suas limitações funcionais.
Identificamos, assim, como entraves que demarcam a articulação de um movimento social em torno da deficiência, a ideia que dificilmente existe uma diferença que
possa ser celebrada, e a constatação da prevalência de uma atitude social que longe de ser hostil e violenta para as pessoas com deficiência, tende a ser compassiva,
benevolente e provedora de formas minimalistas de suporte. No fundo, a dificuldade de se traduzir a vivência das pessoas com deficiência para uma linguagem reivindicativa
de direitos. Se por um lado importa reconhecer estes obstáculos que distinguem a deficiência dos restantes movimentos sociais identitários, a tentativa da sua superação
permitiu que as pessoas com deficiência assumissem um lugar na vaga a que costumeiramente se chama de novos movimentos sociais. É aos discursos aí formulados que
procurarei dedicar alguma atenção.
6.1. O modelo social da deficiência
A primeira insurgência activa das pessoas com deficiência com um impacto assinalável deu-se nos Estados Unidos na passagem da década de (19)60 para a de (19)70.
O contexto americano encontrava-se então profundamente marcado pelo impacto das pessoas que adquiriram deficiências na Guerra do Vietname, pela convulsão social
provocada, mormente, pela luta estudantil contra essa mesma guerra, e pela defesa dos direitos das pessoas negras. O surgimento de um projecto de visibilização das
condições das pessoas com deficiência deu-se a partir da cultura universitária, com a criação do primeiro centro para a vida independente (center for independent
living), a partir de uma residência destinada a estudantes. A ideia do surgimento deste centro partiu da identificada necessidade de um espaço de suporte gerido
pelas próprias pessoas com deficiência, constituído de molde a conferir-lhes o necessário apoio para sua integração na sociedade (mainstream society). Estes centros
viriam a disseminar-se por todo o país articulados com um amplo movimento social de pessoas com deficiência - donde se destacou a American Coalition of Citizens
with Disabilities -, investido em pugnar pelo fim das relações de dependência, e pela visibilização dos obstáculos presentes no meio envolvente (Barnes et al. 1999:
68; Barnes e Oliver 1993: 10). Criou-se então aquilo que ficou designado como o Independent Living Movement, um movimento que se centrou na defesa dos direitos das
pessoas com deficiência, e cuja emergência viria a ter repercussões noutros contextos. Entre eles, o contexto britânico, de onde emergem discursos que mostram ser
particularmente interessantes para a nossa análise. Isto assim é, quer porque eles se tornaram influentes nas organizações internacionais de pessoas com deficiência,
ou noutras sedes, como a OMS; quer porque nos conferem a mais interessante plataforma conceptual onde se vertem e subvertem as implicações da noção dominante de
deficiência que a modernidade consolidou.
O movimento das pessoas deficientes no contexto britânico viria a assumir uma fulcral importância com a criação em 1974 de uma supra-organização onde se agregavam
várias organizações de pessoas com deficiência, a Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS). A UPIAS surgiu por reconhecer o limitado alcance
das principais organizações de pessoas deficientes que se haviam constituído antes dela. Nesse sentido o UPIAS procurava superar as concepções que vinham alimentando
a ideia de que a central reivindicação das pessoas deficientes deveria ser a demanda de melhores pensões sociais. Ao invés, esta organização colocou no primeiro
plano a necessidade de se transformarem, quer as concepções dominantes detidas em torno das pessoas com deficiência, quer a organização social que excluía as pessoas
deficientes da sociedade, remetendo-as à experiência da segregação e pobreza.
Os influentes valores e discursos que presidiram à acção da UPIAS, e que constituem a estrutura fundamental do que se tornaria o "modelo social da deficiência",
visam, sobretudo, reconceptualizar a deficiência enquanto uma forma particular de opressão social. A matriz dessa insurgência destabilizadora ficaria reificada na
formulação dos "Princípios Fundamentais da Deficiência" ("Fundamental Principles of Disability"), que foram publicados pela UPIAS em 1976. Uma formulação em cuja
autoria se destaca o nome de Vic Finklestein, um importante activista tanto a nível nacional como a nível internacional. O corolário da nova perspectiva aí contida
ficaria significativamente sintetizado nas definições oferecidas aos conceitos de impairment e disability14:
Impairment: Ausência de parte ou da totalidade de um membro, ou existência de um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso;
Disability: Desvantagem ou restrição de actividade causada por uma organização social contemporânea que tome pouca ou nenhuma consideração pelas pessoas com impairments
físicos, e que, assim, as exclui da participação nas actividades sociais centrais. A deficiência física é, portanto, uma forma particular de opressão social. (apud
Oliver 1996: 22, 23; minha ênfase, minha tradução).
Estas definições fundam-se numa separação crucial entre impairment, definida como uma condição biológica, e disability, reconceptualizada como uma forma particular
de opressão social. A fronteira estabelecida entre estes dois conceitos, embora peque por elaborar uma essencialização do elemento físico numa pureza material pré-cultural,
define-o sem referir a consagrada noção de normalidade. Esta cristalização do impairment enquanto dado natural chama-nos a atenção para o facto de que estamos perante
uma desconstrução que não foge à estrutura conceptual da discursividade de partida. No entanto, isto não obsta à radical transgressão que reside nestas definições.
Sobretudo pelo facto da noção de disability, aquela que é primordialmente usada para identificar o grupo populacional (correspondendo nesse sentido à noção de deficiência
utilizada na língua portuguesa), ter sido desvinculada da corporalidade para significar o conjunto de valores e estruturas que excluem determinadas pessoas das "actividades
sociais centrais". A reconfiguração do conceito de disability para a afirmação de uma opressão vigente torna-se particularmente eficaz na medida em que faz uso de
uma subtileza linguística em que a designação usada para identificar as pessoas com deficiência, disabled people, é apropriada como a própria afirmação da situação
de opressão social vivida por uma ampla minoria populacional. Ou seja, as disabled people são ali entendidas como as pessoas deficientadas/incapacitadas pelos valores
e formas de organização presentes na sociedade:
Portanto, a partir das perspectivas desenvolvidas nos Princípios Fundamentais da Deficiência da UPIAS, a noção hegemónica de deficiência é disputada por uma outra
que retira as suas implicações do corpo físico para as trazer para a arena das relações sociais. É nos anos 70 que a secular noção de deficiência deixa de vigorar
em termos monoculturais. A partir daí passa a ser identificada uma leitura dominante da deficiência em relação à qual se erigem perspectivas alternativas oposicionais,
que ficam formuladas de um modo particularmente consistente nas definições que a UPIAS consagrou. Significativamente, os valores daqui emanados viriam a constituir
um importante catalisador. Por um lado, no modo como propiciou uma assunção identitária capacitante das pessoas com deficiência, que assim encontraram um projecto
de transformação social que lhes permita libertarem-se dos fatalismos que vinham marcando as suas vivências. Por outro lado, pelo facto de os discursos e práticas
das organizações de pessoas com deficiência terem encontrado ali um eixo importante para a articulação das suas vozes, e das suas reivindicações em relação à exclusão
social.
Esta conceptualização da deficiência, com evidente vocação para a transformação social e para a emancipação pessoal e política, estabelece um gritante contraste
com as visões hegemónicas, tão bem epitomizadas nas definições propostas em 1980 pela OMS, elemento a que já aludimos atrás. De facto, as novas leituras, que os
anos 70 nos trouxeram, acerca da temática da deficiência, nutrem de uma visão dualista e oposicional que viria a ficar consolidada no desenvolvimento do "modelo
social da deficiência". O conceito de "modelo social da deficiência" foi cunhado pela primeira vez em 1983 por Michael Oliver, um sociólogo e activista político,
que a partir dos empreendedores conceitos do UPIAS procurou constituir um corpo teórico capaz de conferir uma perspectiva compreensiva dos problemas enfrentados
pelas pessoas com diversos tipos de deficiência. Foi grande a importância das estruturas conceptuais que germinaram deste itinerário, não só para o contexto britânico,
mas para a luta das pessoas com deficiência no mundo. Isto o prova o facto de as definições da UPIAS terem sido adoptadas pela secção europeia da Disabled People
International (DPI), a mais importante estrutura internacional de pessoas com deficiência, fundada em 1981; tendo-se tornado igualmente as definições operativas
da BCODP, a organização que haveria de suceder à UPIAS enquanto estrutura "guarda-chuva" das organizações de deficiência no Reino Unido, ela própria membro fundadora
da DPI (Oliver, 1996: 28; Barnes et al., 1999: 6,7).
O modelo ou teoria social da deficiência, que Michael Oliver desenvolveu, parte exactamente da identificação de um conceito de deficiência entendido como profundamente
incapacitante e contrário, quer à transformação social conducente à integração das pessoas com deficiência, quer à visibilização da situação de opressão que a reclama.
Essas concepções dominantes são denunciadas numa leitura em que se assinala como dominante o "modelo individual/médico da deficiência", no fundo, a sedimentação
histórica que se procura superar e cujos termos nos remetem para o percurso que realizámos na persecução da invenção moderna da deficiência. Um modelo que se identifica
inconciliável, tanto com a assunção de controlo das pessoas deficientes sobre as suas vidas, como com possibilidade de transformação dos contextos sociais e culturais
da sua existência.
O modelo individual/médico da deficiência, cuja vigência hegemónica nas sociedades ocidentais Michael Oliver (1990; 1996) denuncia, apresenta como consequência
central a eleição de uma abordagem que, apropriando os discursos correntes e hegemónicos em torno da deficiência, se designa de "abordagem reabilitacional" (Striker,
1999). Seguindo a leitura de Michael Oliver - uma leitura que, não tendo uma grande densidade histórica, identifica os valores e estruturas que obviam à transformação
e politização da deficiência -, deverá relevar-se, em primeiro lugar, o modo como no modelo individual/médico da deficiência as pessoas com deficiência são sujeitas
a lógicas cuja autoria tende a escapar-lhes. Emerge aqui, quer o legado das instituições de carácter privado e matriz filantrópica, quer as políticas e estruturas
organizativas desenvolvidas pelo Estado. Sendo que, em ambas as situações, a capacidade de decisão acerca das vidas pessoais é remetida para peritos, profissionais
e voluntários, no seio de estruturas que tendem a consagrá-las como objectos passivos de cuidado. No fundo, esta leitura chama a atenção para o modo como um modelo
hegemónico de apreensão da deficiência, que paulatinamente articulou a segregação institucional em asilos com a promoção da educação e da integração social, vigora
numa lógica em que as pessoas deficientes não são reconhecidas como agentes centrais. Aspecto que apresenta uma evidente continuidade com as respostas caritárias
que marcaram a pré-modernidade.
Oliver desvela nesta passividade a que as pessoas deficientes são remetidas a vigência de uma lógica medicalizada, por via da qual as pessoas deficientes se viam
perante a arbitrariedade de terem que assumir, nas diversas esferas da sua vivência, o papel social do doente/paciente. Assim, Oliver atenta para a "medicalização
da reabilitação" (1990: 53) - na verdade a própria noção de reabilitação está já imbuída de valores médicos - para denunciar o papel de médicos, assistentes sociais,
psicólogos, educadores, agentes de solidariedade, na consagração das pessoas com deficiência enquanto objectos passivos de tratamento e reabilitação. Daqui decorre
a identificação de uma estrutura erigida para dar resposta à diferença suscitada pela deficiência, e que vai operar uma completa "medicalização da vida" (Illich
apud Barnes et al., 1999: 59), mesmo que não estejam necessariamente médicos envolvidos. Portanto, a ênfase que os movimentos surgidos nos anos 70 conferiram à autodeterminação
das pessoas com deficiência é sem dúvida produto da ideia de que a medicalização dos problemas sociais tende a ser adversa à sua politização, uma politização que
se mostrava necessária para efectivar a transformação de horizontes. Mas é também expressão da proposição mais geral de que "ninguém pode libertar outrem, porque
a liberdade é o acto de a tomar." (Cooper, 1978: 91).
Um outro aspecto que Michael Oliver faz constitutivo do modelo médico da deficiência é o calvário pessoal que resulta do facto de a lógica reabilitacional celebrar
as possibilidades de integração pessoal investindo no apoio aos sujeitos ao mesmo tempo que estabelece como postulados as enormes dificuldades que, fatalmente, se
lhes colocarão. Estamos perante uma lógica que aceita aquilo a que, num colóquio a que assisti, alguém chamava, com propriedade, "o calvário da integração", uma
lógica que, na maior parte das vezes, tem como única ambição minimizar as consequências da deficiência. Sendo verdade que a legitimação da abordagem reabilitacional
muito depende do papel simbólico desempenhado por casos emblemáticos de integração de pessoas com deficiência, o carácter excepcional destas situações é, por outro
lado, bem expressivo do quão ilusório é um horizonte em que a realização das pessoas com deficiência seja feita dependente de um tremendo esforço individual de acomodação.
Aliás, a ênfase nas excepcionais narrativas das pessoas com deficiência que vingaram em superar preconceitos e obstáculos de vária ordem é bem captada por Tom Shakespeare.
Este autor reflecte interessantemente sobre as representações das pessoas com deficiência na cultura mediática e no cinema em particular. Nessas leituras, diz-nos
Tom Shakespeare (1999a: 164, 165), é possível desvelar três estereótipos centrais: o inválido trágico, o amargurado que se procura vingar do mundo e alcançar a cura
a qualquer custo, e o herói que triunfa sobre a tragédia. É esta última representação que se articula com o mito fundador das possibilidades promovidas no seio de
uma abordagem reabilitacional.
No fundo, o que Oliver retoma, ao denunciar o vínculo entre o modelo médico e a constituição da deficiência enquanto um desafio individual, é, uma vez mais, o
efeito da clausura de uma questão social no corpo físico. O autor identifica ainda o modo como as práticas e os discursos da reabilitação efectivam na vida quotidiana
das pessoas com deficiência uma reverência à normalidade física e funcional dos demais sujeitos, uma perspectiva que Oliver informa com a sua própria narrativa pessoal,
mas também com outras que lhe são próximas:
O objectivo de fazer regressar o indivíduo à normalidade é a pedra de esquina sobre a qual assenta toda a estrutura da reabilitação. Se, como aconteceu comigo após
a minha lesão na medula, a deficiência não pode ser curada, as assunções normativas não são abandonadas (...) A filosofia da reabilitação enfatiza a normalidade
física e o alcance das capacidades que permitem ao indivíduo aproximar-se o mais possível de um comportamento de normalidade corporal (Finkelstein apud Oliver, 1990:
54, minha tradução).
Ou seja, reflectindo, por via de experiências pessoais, no modo como as pessoas com deficiência são "acolhidas" no modelo médico/individual da deficiência, Michael
Oliver como que denuncia o pernicioso lugar ocupado por uma normalização que impõe necessidades em vez de as reconhecer (Cooper, 1978: 10). Portanto, é fundado nas
definições da UPIAS que Michael Oliver constrói um corpo teórico onde se identifica e recusa o modelo médico/individual e a abordagem que este promove, como uma
estrutura que só poderá ser superada pela assunção de um modelo social por parte dos movimentos de pessoas com deficiência.
Esta visão dualista que Oliver, melhor que ninguém, consolidou como uma estrutura operativa na luta política, apoia-se, interessantemente, numa luta do significado
acerca da deficiência. Uma luta em que duas formas de entender a deficiência se debatem. É nesta contraposição que o autor e activista vê a possibilidade de se negar
a grande narrativa que marca a vida das pessoas com deficiência, a "narrativa da tragédia pessoal". Assim, negar o modelo médico é negar a abordagem reabilitacional
reconhecida como base central para que a deficiência seja pensada como uma tragédia pessoal e não como o produto de relações opressivas.
Na verdade, a "narrativa da tragédia pessoal" e a sua hegemonia sobre as experiências da deficiência é um dos conceitos que eu coloco no centro deste trabalho.
No modo como a aproprio, nela se sintetizam as lutas simbólicas e as representações culturais num decisivo trânsito entre o pessoal e o político. É no questionamento
dessa narrativa que se perscruta a pertinência biográfica que é possível atribuir às ideias de infortúnio e incapacidade. E, finalmente, é a identificação dessa
estrutura de significado que permite indagar da permeabilidade dos sujeitos aos "regimes de verdade" em que a cegueira assume a configuração de um infortúnio particularmente
atroz.
Pela óptica do modelo social da deficiência, a natureza da experiência das mulheres e dos homens deficientes emerge, fundamentalmente, como produto de circunstâncias
sociais e de imaginários culturais opressivos que importa recusar e transformar. A ideia central que esta influente proposta apresenta é a negação do infortúnio
e da incapacidade, afirmando-se, ao invés, as virtualidades de uma minoria populacional cuja realização e inclusão depende do efectivo reconhecimento das diferenças
que as deficiências transportam, e da consequente uma destabilização do status quo. No fundo, o modelo social da deficiência sugere que é a sociedade que importa
reabilitar.
Apesar do impacto do modelo social na capacitação pessoal das pessoas deficientes, na criação de movimentos políticos, na reconversão de instituições e na criação
de articulações entre as diferentes deficiências, esta formulação não deixou de estar sujeita a um importante criticismo. Este tomou como mais importante argumento
o facto da reconceptualização da deficiência como uma forma de opressão não considerar as experiências de dor, sofrimento e privação que podem estar associadas à
condição física da pessoa com deficiência:
(...) existe uma tendência no modelo social para negar a experiência dos nossos próprios corpos, insistindo que as nossas diferenças físicas e restrições são inteiramente
criadas socialmente. Sendo as barreiras ambientais e as atitudes sociais uma componente crucial da nossa experiência de deficiência [disability] - e de facto incapacitam--nos
-, tende-se a sugerir que isso é tudo que existe, para negar a experiência pessoal de restrições físicas ou intelectuais, de doença, do medo da morte (Morris apud
Barnes et al., 1999: 91, minha tradução).
Tais visões críticas dirigem-se para o perigo de que o reconhecimento da reflexividade social e das capacidades das pessoas com deficiência dê lugar a outro silenciamento.
O silenciamento de experiências eminentemente físicas, passível de ocorrer quando se substitui o modelo médico por um modelo social que reduza a experiência da deficiência
à experiência da opressão. É exactamente para este aspecto que Sally French (1999) pretende dar visibilidade quando se devota a relatar algumas das experiências
que a sua deficiência visual implica na sua vida quotidiana. Descrições que põem a ênfase no facto de que nem todas as limitações de actividade são redutíveis às
restrições socialmente engendradas.
Este mesmo debate envia-nos para uma discursividade que poderá ser considerada como a mais emblemática "versão"de um modelo social, no que à cegueira em particular
diz respeito. Refiro-me às ideias influentes ideias que Kenneth Jernigan sustentou em prol de uma afirmação positiva da cegueira e das pessoas cegas. Kenneth Jernigan
foi, desde 1968 a 1986, o presidente da National Federation of the Blind (NFB), a mais importante e mais representativa associação de pessoas cegas nos Estados Unidos,
que conta hoje com mais de 50000 sócios. Kenneth Jernigan foi também uma figura importante no plano internacional, ocupou cargos importantes na União Mundial de
Cegos, preservando-se como uma importante referência mesmo após a sua morte em 1998. Através dos seus discursos e intervenções públicas, Kenneth Jernigan desenvolveu
aquilo que ficou designado como a "filosofia positiva da cegueira", uma construção que se tornou absolutamente constitutiva dos intentos da NFB. A necessidade de
se constituir uma filosofia positiva decorreu da relação que Jernigan identificou entre os limites vivenciais que se colocam às pessoas cegas e os mitos que povoam
os imaginários sociais em torno da cegueira:
O que nós pedimos da sociedade não é uma mudança de coração (o nosso caminho para o asilo tem sido sempre pavimentado por boas intenções), mas uma mudança de imagem,
uma troca de velhos mitos por novas perspectivas (Jernigan, 1970, minha tradução).
Kenneth Jernigan entendia, pois, que a persecução de qualquer actividade em prol das pessoas cegas deveria tomar como central ponto de partida uma desmobilização
das ideias de desastre irremediável que sobre elas se abatiam. Essa foi uma plataforma que se mostrou central naquela que foi a acção da NFB desde as lutas pelos
direitos civis. Assim, da filosofia positiva que Jernigan inculcou releva uma afirmação que ficaria estabelecida até hoje como emblemática da NFB:
O verdadeiro problema da cegueira não é a perda de visão. O verdadeiro problema da cegueira é falta de compreensão e a ausência de informação que existe. Se uma
pessoa cega tiver a instrução adequada e se tiver oportunidades, a cegueira é só um incómodo físico (1970, minha tradução, minha ênfase).
Apesar do importante papel que estas formulações tiveram na mobilização das pessoas cegas no contexto americano, também elas foram alvo de contestação por menorizarem
a relevância das experiências de sofrimento que poderão estar directamente associadas à condição física de uma pessoa cega. Aliás, esta filosofia positiva foi alvo
de um interessante debate entre a NFB e outras associações de pessoas cegas, com particular destaque para o American Council of the Blind. De facto, pode alegar-se
que tais elaborações - onde se acalenta a ideia da cegueira como um mero incómodo físico - fracassam em apreender determinadas experiências subjectivas vividas pelas
pessoas cegas.
Quando nos confrontamos com as ideias que são expressas no modelo social da deficiência ou na "filosofia positiva da cegueira", assim como com as críticas que
essas elaborações suscitam, somos levados a considerar em que medida as experiências das pessoas deficientes tendem a decorrer num espaço in between. Isto é, algures
entre as circunstâncias sociais e a tangibilidade fenomenológica/ /vivencial das suas experiências corpóreas. No entanto, mesmo sendo possível afirmar que ao o
modelo social da deficiência escapará um espectro de experiências pessoais, tal asserção não implica necessariamente que essas formulações estejam marcadas pela
incompletude. Ao analisarmos o modo como a cegueira emergiu para a racionalidade moderna, coloquei ênfase na fundadora tensão entre emancipação e regulação (Santos
1995, 1999, 2000), mas também, de um modo mais abstracto, no carácter antagónico e historicamente contingente de todo e qualquer projecto que vise a emancipação
de um grupo social (Laclau, 1996). Portanto, creio que a emergência do modelo social da deficiência deverá ser lida por referência às coordenadas sociopolíticas
que o reclamam, e ao facto assinalado por Laclau (ibidem: 6): todo o projecto emancipatório necessariamente se constitui numa historicidade em que a sua autoridade
sobre o real é contingente do que se procura superar: "Dicotomias parciais e precárias têm que ser constitutivas do tecido social" (ibidem: 17).
As coordenadas sociopolíticas do surgimento do modelo social da deficiência são bem explicitadas por Michael Oliver quando afirma que a omissão das dores e privações
associadas às condições físicas não é o produto de uma negligência. Defende o autor que essa omissão não é bem uma negação, mas sim uma tentativa pragmática de identificar
os aspectos que podem ser transformados através da acção colectiva. Como reforça Mairian Corker, esse novo discurso da deficiência obedece ao princípio da "optimização
da transformação social" (1999: 92). Ou seja, a afirmação da deficiência enquanto uma questão social visa negar a um tempo o fatalismo da marginalização de um significativo
grupo populacional, e a naturalização dessa marginalização nos corpos: "Mencionar a biologia, admitir a dor, confrontar os nossos impairments, tem sido permitir
que os nossos opressores ponham em evidência que afinal a deficiência é "realmente" uma questão de limitações físicas (Shakespeare apud Oliver, 1996: 39, minha tradução).
É o desígnio tornar visíveis realidades sociais tão longamente ignoradas que assiste à afirmação da deficiência como uma forma particular de opressão. Portanto,
a exclusão da dor e da privação física surge como algo de tão contingente como necessário, irrompe como aquilo a que Judith Butler se refere como a "necessária violência
da linguagem política". No entanto, o facto do discurso oposicional realizar sempre escolhas que produzem exterioridades, exclusões, não deverá ser aceite como um
dado. Ou seja, a consciência da inevitabilidade das exclusões que se criam, deve ser acompanhada da consciência da sua contingência, da permanente possibilidade
da sua superação.
6.2. Direitos humanos: cumplicidades transnacionais
Se é verdade nos anos 70 irromperam, sobretudo nos países centrais do sistema mundial, perspectivas sociais da deficiência articuladas com um idioma de direitos,
(direito à dignidade, ao trabalho, à segurança económica, à saúde, ao lazer), os anos 80 marcariam a crescente internacionalização do tema da deficiência e a sua
articulação com a linguagem dos direitos humanos. Este processo deveu-se ao importante papel desempenhado pelos fóruns e organizações internacionais em torno da
deficiência, assim como ao crescente envolvimentos da Nações Unidas com este tema. Procurarei dar conta dos acontecimentos e evoluções que marcaram a agenda da deficiência
e da cegueira no plano internacional.
Em 1975 a Assembleia-geral das Nações Unidas adoptou a "Declaração sobre os Direitos das Pessoas Deficientes", documento onde se proclama a igualdade de direitos
civis e políticos das pessoas com deficiência. Mas o momento mais importante deu-se em 1976 com a proclamação, pela mesma Assembleia-geral, do ano de 1981 como o
Ano Internacional das Pessoas com Deficiência (Resolução 31/123). Do ano de 1981 veio a emanar como mais importante consequência o "Programa Mundial de Acção relativo
às Pessoas Deficientes" adoptado pela Assembleia-geral das nações Unidas em 1982 (resolução 37/52). Foi declarada para o cumprimento deste programa, a década de
1983-1992 como a "Década Das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência".
Nesta fase as medidas tomadas em relação às pessoas com deficiência na arena internacional ainda padeciam de uma reduzida participação e poder de decisão das próprias
pessoas com deficiência. Situação que se veio a ser crescentemente superada, muito por culpa do surgimento da Disabled Peoples' International (DPI). Esta organização
surgiu a partir da tomada de consciência das pessoas com deficiência dos limites à sua participação no seio da Rehabilitation International (RI), organização constituída
em 1922 e que sempre foi dominada pelos profissionais da reabilitação. A DPI foi fundada em 1981, data a partir da qual adquiriu um importante papel consultivo junto
das Nações Unidas e das suas agências, tendo participado desde logo na formulação do "Programa de Acção" para a década 1982-1993 e nas actividades subsequentes.
A DPI é hoje uma organização que congrega organizações de cerca de 135 países, e vem lutando pelos direitos das mais de 500 milhões de pessoas com deficiência
que existem hoje no mundo. Crescentemente engajada com o discurso dos direitos humanos, a DPI veio a estabelecer em 1992 a ideia que a deficiência é, primeiro que
tudo, uma questão de direitos humanos. Nesse sentido, a luta pelos direitos das pessoas com deficiência articula-se decisivamente com o regime de direitos e princípios
de dignidade de que a "Declaração Universal dos Direitos do Homem" é documento fundador. Desta importância adquirida pelos direitos humanos é bem esclarecedora a
"Declaração de Sapporo", emanada do Congresso Mundial da DPI realizado em 2002. Onde, além de se defender o fim das guerras e da pobreza (factores conducentes às
deficiências), a erradicação de todas as formas de discriminação, particularmente em relação às pessoas com deficiência, se colocou a tónica numa convenção internacional
de direitos humanos especificamente dirigida às pessoas com deficiência.
Aliás, esta reivindicação tem estado na primeira linha das organizações internacionais de deficiência. No entanto, à acção da DPI na arena internacional desde
os anos 80 haverá que juntar a das organizações já constituídas. Além da já referida RI, merecem destaque as organizações estabelecidas em torno de deficiências
particulares: da surdez, a World Federation of the Deaf, e da cegueira, a World Blind Union (WBU). A WBU é a organização mundial que reúne as organizações de todo
o mundo em torno da cegueira. A WBU resulta da World Council on the Welfare of the Blind, uma organização que foi criada em 1949 e onde prevaleciam as organizações
e agências prestadoras de serviços às pessoas cegas, e da International Federation of the Blind, fundada em 1964 e onde se reuniam organizações de pessoas cegas.
Seriam estas duas organizações que se iriam fundir em 1984 para dar origem a WBU, uma coalescência onde se reúne uma muito ampla heterogeneidade de instituições
ligadas à deficiência visual, de cerca de 158 países. Portanto, a sua natureza institucional é bem diversa da DPI, uma vez que reúne as organizações de pessoas cegas
e as organizações para as pessoas cegas.
O documento que emanaria da "Década das Nações Unidas para as Pessoas Deficientes" seria aprovado em 1993, sob a designação de "Regras Gerais sobre a Igualdade
de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência". Embora este documento seja o mais importante texto internacional no que diz respeito ao tema da deficiência, foram
goradas algumas expectativas, uma vez que a sua redacção fazia supor a possibilidade de as Regras Gerais desembocarem numa convenção, cuja subscrição vincularia
os Estados. Assim não aconteceu. Alguns Estados não quiseram pôr em causa a sua soberania nas medidas para com as pessoas com deficiências, outros pretenderam evitar
que se tornasse notório o expectável incumprimento das directivas sob o recorrente argumento mais recorrente de que os direitos das pessoas com deficiência já estão
contemplados noutros documentos mais gerais como a "Declaração Universal dos Direitos do Homem" e as convenções que se lhe seguiram (Guerra, 2001). Por esta razão,
a reivindicação central partilhada hoje pelas organizações internacionais de deficiência é a defesa de uma convenção que tome por base o texto aprovado em 1993,
como recomendação para os Estados, sem valor vinculativo. Em todo o caso, como defende José Guerra, importante ex--dirigente associativo na área da cegueira em
Portugal, as regras ali constantes "não deixam de ser um referencial de altíssimo relevo na definição de qualquer política nacional de reabilitação" (2001: 3), sendo
ainda de notar, como também salienta José Guerra, que a primeira regra se refere à consciencialização social, numa clara sanção do modelo social em detrimento do
modelo médico.
Uma das mais simbólicas conquistas que resultou do movimento político de pessoas com deficiência, foi a reformulação das definições constantes da International
Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps (ICIDH), publicada em 1980 pela OMS15. A presença das noções de normalidade e a consagração de uma perspectiva
individualizada e medicalizada da deficiência foi desde logo alvo da crítica dos movimentos das pessoas com deficiência. Em consequência, já com a participação de
organizações não governamentais de pessoas com deficiência, foi elaborada na década de 90 uma nova classificação destinada de avaliar a capacidade funcional de todas
as pessoas. Dela resultaria um documento que foi aprovado pela OMS em Maio de 2001 sob a designação de International Classification of Functioning Disability and
Health (texto que ficaria conhecido por ICF, ou ICIDH-II, por referência ao seu predecessor). Esta nova formulação já não se funda na demarcação e definição dos
conceitos de impairment, disability e handicap. Estabelecendo-se ao invés sobre três dimensões estruturantes: 1) Funcionamento corporal, (funções fisiológicas ou
psicológicas) e estrutura (partes anatómicas); 2) Actividades ao nível individual; e 3) Participação na sociedade. É à luz destas três dimensões que a noção de deficiência
passa a ser pensada no ICIDH-II, numa elaboração que constitui uma evidente negociação entre o modelo médico da deficiência e o modelo social (OMS, 2001).
Paralelamente, também no espaço da União Europeia, onde se estima existirem cerca de 37 milhões de pessoas com deficiência, vêm ocorrendo eventos relevantes. Uma
consequência concreta da publicação em 1993 das "Regras Gerais sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência" decorreu esta da regra 18, onde
se definia o importante papel a ser dado às organizações representativas das pessoas com deficiência nas matérias que lhes dissessem respeito:
Os Estados devem reconhecer às organizações de pessoas com deficiência o direito de representar essas pessoas a nível nacional, regional e local. Os Estados devem
reconhecer igualmente o papel consultivo das organizações de pessoas com deficiência na tomada de decisões sobre assuntos relativos à deficiência. (SNR, 1995: 37).
Como resultado, formou-se o Fórum Europeu da Deficiência, como um interlocutor da União Europeia, onde se fazem representar as organizações dos diferentes Estados.
Este Fórum adquiriria estatuto jurídico em 1996, tornando-se a voz representativa das pessoas com deficiência no espaço da União Europeia. Significativamente, o
Conselho da EU anunciou o ano de 2003 como "O Ano Europeu das Pessoas com Deficiência", como forma de assinalar os 10 anos passados desde a adopção das Regras Gerais
pela ONU. Este evento, que foi concebido pela Comissão Europeia em colaboração com o Fórum Europeu da Deficiência, erigiu--se com o objectivo de tornar efectivos
nos diversos países os princípios da não discriminação e da integração das pessoas com deficiência, constantes na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
(artigos 21.º e 26.º respectivamente). Com o objectivo de estabelecer uma plataforma conceptual para o Ano Europeu das Pessoas com Deficiência, realizou-se em Março
de 2002, em Madrid, o primeiro Congresso Europeu de Pessoas com Deficiência. Um encontro onde estiveram presentes cerca de 600 participantes de 34 países europeus.
Desse congresso emanou um importante texto, produto de um consenso entre a Comissão Europeia, o Fórum Europeu da Deficiência e a presidência espanhola da União Europeia.
Esse texto haveria de ficar conhecido como "A Declaração de Madrid". Aí ficou expressa uma visão da deficiência que se pretende distante das visões individualizadas,
medicalizadas e caritárias, ao encontro de uma linguagem de direitos. Além de medidas concretas para o fim da discriminação e promoção da integração de pessoas com
deficiência, sob o lema "não discriminação + acção positiva = inclusão social", é de ressalvar o facto da declaração apresentar como ponto primeiro do seu preâmbulo
a ideia de que "A deficiência é uma questão de Direitos Humanos".
Portanto, os últimos 30 anos revelam, quer no âmbito de alguns contextos nacionais, quer ao nível internacional, uma importantíssima transformação impulsionada
pelas ONG's de pessoas com deficiência. Por via dela, as visões hegemónicas da deficiência que se inscrevem no paradigma moderno, vêm sendo desafiadas pela ideia
da deficiência como uma forma particular de opressão fundada em argumentos biológicos. Em particular, vem sendo disputado o fatalismo que resulta do facto do modelo
biomédico da máquina imperfeita se assumir como referente central, isto em prol de perspectivas questionadoras dos valores e formas de sociabilidade que excluem
as pessoas deficientes. Assim tem emergido, desde os anos 70, uma plataforma conceptual e política em que as vivências das pessoas com deficiência se articulam decisivamente
com uma linguagem fundada na reivindicação de direitos sociais, económicos e políticos. Particularmente instigante é o papel que a linguagem dos direitos humanos
adquiriu na agenda das pessoas com deficiência.
Esboçando um quadro histórico da emergência dos direitos humanos, Richard Falk (1999, 2000) afirma que nos primeiros 20 anos do pós-guerra, embora estivessem já
estabelecidas as fundações para uma cultura dos direitos humanos, as condições políticas e económicas para a sua actualização eram inexistentes e nem se estabeleciam
no horizonte. Portanto, e por referência ao contexto político do seu nascimento - em que os direitos humanos foram usados como de arremesso entre os dois blocos
da guerra fria - assistimos nas últimas décadas a uma interessante reversão histórica no modo como os direitos humanos vêm sendo apropriados por ensejos contra-hegemónicos
e agendas emancipatórias, a partir de articulações políticas transnacionais das sociedades civis dos diferentes países (aquilo a que Richard Falk (1999) designa
por "novo multilateralismo" e José Pureza (2001) por "novo internacionalismo").
Assim, é interessante notar como a recente conceptualização da deficiência como uma questão de direitos humanos ocorre num duplo processo de descoberta e criação,
temos um vínculo onde se engendra uma dupla relação performativa: na transformação das experiências de exclusão das pessoas com deficiência, e na afirmação do potencial
emancipatório reconhecido aos direitos humanos. Um outro aspecto importante é o facto da centralidade dos direitos humanos articular o tema da deficiência com formas
cruzadas de desigualdade; mormente no que se refere à desigual distribuição da riqueza no mundo e às lógicas que a fomentam. Algo de que é pungente expressão o facto
de das mais de 500 milhões de pessoas no mundo com alguma deficiência, cerca de 80% viver em países em vias de desenvolvimento (ONU, 2003).
No entanto, se a conceptualização da deficiência como uma questão de direitos humanos, assim como a aspiração a uma convenção internacional no seio da ONU, constitui
uma apropriação que em certa medida toma parte de uma lógica que escapa às condições da sua criação, existirá talvez uma continuidade tão profunda quanto esquecida.
Podemos descobrir uma ancestralidade entre os direitos humanos e o tema da deficiência. Na verdade, como bem lembra Rachel Hurst16 (2002), importa lembrar que a
Declaração Universal surgiu como um desejo de "nunca mais" no rescaldo das atrocidades nazis, onde se conta o extermínio sistemático de centenas de milhar de pessoas
com deficiência. Mais significativo se torna perceber esta ligação raramente lembrada entre direitos humanos e deficiência se lembrarmos que teorias eugenistas na
base de tal atrocidade estavam muito divulgadas em todo o mundo ocidental, constituindo uma emanação da casa da modernidade, um produto da "hegemonia da normalidade"
que nela se estabeleceu (Davis, 1995: 23-49).
Partindo das referências trans-culturais, históricas, teóricas e sociopolíticas até aqui articuladas em torno do tema da cegueira, procuro enfim dedicar-me às
questões analisadas e desenvolvidas a partir do trabalho etnográfico que desenvolvi com pessoas no contexto português. É no diálogo com a vida real de pessoas concretas
que a persecução das construções acerca da experiência da cegueira recebe primeiramente sentido.
Notas
1 Como assinala o próprio Rorty (1992: 44) a ideia de que existe no mundo uma natureza intrínseca à qual seria possível aceder é, em certa medida, um remanescente
no positivismo da ideia do mundo como um projecto coerente divinamente elaborado.
2 Metonímia: figura de estilo que no uso que lhe dou designa a operação de tomar a parte pelo todo.
3 Por exemplo, a possibilidade de rapidamente converter material em tinta para formato digital por via de um scanner ou de aceder a jornais on-line através da Internet,
representa bem as dificuldades que as novas tecnologias permitem hoje superar.
4 Aliás, conforme assinala pertinentemente Henri-Jacques Striker (1999: 104), a fatal incurabilidade que se associava às deficiências constituiu um dos factores
que contribuiu para a sua caracterização enquanto tal, isto por oposição à doença enquanto um desvio temporário e portanto, socialmente sancionado (Herzlich, 1991:
202).
5 A relevância do trabalho de Adolphe Quetelet é igualmente considerada em Le Normal et le Patologique (1984), a já mencionada obra de Georges Canguilhem.
6 Sobre visões feministas da questão da deficiência vide, por exemplo, Ash e Fine. (1997), Wendell (1997), Thomson (1997) e Thomas (1999).
7 A autora reconhece o que há de excludente nesta opção, assentindo na existência de outros regimes regulatórios que concorrem para os processos de definição e diferenciação
corporal (cf. 1993: 17, 18).
8 Uma evidente expressão da importância que o cuidado às pessoas deficientes adquiriu nas políticas sociais em consequência da relevância conferida às vítimas das
Guerras Mundiais. Aliás, é a partir do facto de as práticas dirigidas às vítimas de guerra terem assumido, ao longo do século XX, e a partir dos anos 20, um papel
central no mapeamento das intervenções dirigidas às pessoas deficientes, que se torna possível compreender a especificidade da noção de reabilitação (Striker, 1999:
120-124).
9 Ênfase com que procuro acentuar a oposição que estabelece em relação às organizações para pessoas com deficiência.
10 Significativamente, e na sequência da contestação internacional de que estas definições foram alvo, sobretudo por organizações de pessoas deficientes, começou-se
a desenvolver em 1995 o ICIDH-II, de que resultou em Dezembro de 2000 uma pré-versão. O novo documento funda-se na distinção entre impairment, e actividade individual,
categoria de que constam as limitações de actividade (activity limitations) e as restrições de actividade (activity restriction). A inovação destes conceitos reside
sobretudo no modo como se retira o papel central anteriormente ocupado pelas noções de norma, enquanto plataforma conceptual.
11 Nomeadamente situações de desemprego temporário de pessoas que se integraram no mercado de trabalho em tempos mais recentes. Condições devidas à tentativa das
empresas empregadoras em não estabelecer vínculos definitivos com os trabalhadores.
12 Reificação designa, grosso modo, a concretização material de uma ideia.
13 No entanto, esta situação é muito bem gerida por muitas pessoas cegas que aprenderam a negociar a aceitação de ajuda sem que a sua auto-representação de independência
e autodeterminação seja posta em causa.
14 Conceitos a que na língua portuguesa só podemos aceder através de uma muito grosseira tradução e demarcação que equacione impairment a "deficiência" e disability
a "incapacidade".
15 As definições centrais desse documento encontram-se transcritas na página 118*.
16 À data (2001), ocupava o cargo de Presidente da Disability Awarness in Action.
III
"PELOS TEUS LINDOS OLHOS"
1. A ACAPO COMO UMA ESTRANHA FORMA DE "CAMPO"
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra era insegura sob
seus pés. Tudo se afastava e se confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fingir sem deslustre.
"Já não verei - percebeu - nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão". Dias e noites passaram sobre este desespero na sua carne,
mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo
isto já lhe tinha acontecido e que o encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade.
(...)
Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.
Jorge Luis Borges
Desespero na carne. Amanhecer sem espanto. Este poema é a prosa do insolúvel esvaecer desse mundo acossado pela penumbra. A pena do autor, do Borges já cego, não
se deteve com a sua própria cegueira, mas é o seu conto que cessa antes que a última sombra se aprume para Heitor. Descer é, pois, o modo órfico de conhecer a sombra,
na perda, na dissolução e no temor. Há, no entanto, outras encarnações, outras "aparições" da cegueira que nem sempre imitam esse lento pôr-do-sol.
É onde cessa aqui o enigma da escrita, a escrita de Borges, que se inicia para mim o temor de falar de outrem, de contemplar as suas vivências, os seus ensejos
e angústias. Talvez viva o temor de uma distância que se postula insuperável, em que ver ou não ver é a questão central. Falo do estatuto precário advindo de uma
exterioridade, corporalmente materializada, em relação ao universo sensorial das pessoas a cujas vivências procuro aceder. Poderia eleger esta como a agonia fundadora
do meu percurso de investigação sobre a cegueira. Mas decerto tomo parte de um temor mais antigo, o temor de falar do outro na certeza de que sempre que o fazemos
nos confrontamos com os irredutíveis da experiência humana.
Por isso, o discurso sobre o social, creio bem, é sempre um discurso agonístico. Nesse sentido, a cegueira, mais não faz do que despertar a consciência do lapso
que sempre se interpõe entre diferentes culturas, diferentes cosmovisões, diferentes pessoas e, no limite, entre as diferentes vivências, espraiadas no tempo, a
que procuramos dar coerência numa narrativa do "eu". Mas, para que o evento agonístico da escrita sobre o social não se torne paralisante, importa evocar o que nos
diz Clifford Geertz quando reflecte acerca do trabalho etnográfico. Afirma o antropólogo que, forçados que somos a postular a impossibilidade de vivermos as vidas
de outras pessoas, tudo o que nos resta - e não é pouco - é ouvir o que, em palavras, em imagens e em acções, as pessoas dizem acerca das suas vidas (Geertz, 1986).
Foi, pois, esta busca que permeou o trabalho que realizei junto das pessoas cegas. Recordo de na altura estarem bem presentes em mim as leituras de Anthony Cohen
no que respeita a auto-reflexividade (self-consciousness) dos sujeitos. Este autor suporta uma consistente crítica ao modo como a reflexividade do self havia sido
historicamente negligenciada nas ciências sociais, em abono de elaborações marcadas por um certo determinismo sociocultural. No seu texto está presente uma resoluta
recusa das perspectivas sob cuja óptica a formação da identidade emerge como algo de socialmente imposto, como uma comunalidade presente em determinados grupos culturais
e em determinados estratos populacionais. É contra a elisão das constelações de sentido de que cada sujeito é detentor, que Cohen sustenta a necessidade, cada vez
mais trivializada, de procuramos aceder aos pensamentos e reflexões dos sujeitos enquanto produtos de idiossincrasias, narrativas marcadas pela singularidade (Cohen,
1992a, 1994).
Como afirmam acutilantemente Devva Kasnitz et al. (2001), o estudo e a investigação acerca das pessoas com deficiência facilmente assume o estatuto de uma renovada
busca antropológica da alteridade: o resgate do outro mais outro, num tempo em que a ocidentalização do mundo é por muitos vista como um inexorável processo de domesticação
da diferença, a que acresce o irónico cúmulo dessa alteridade não nos "aguardar" na Melanésia, mas sim ao dobrar de umas tantas esquinas da cidade. O pressentimento
do espectro desta possível rescrição da narrativa fundadora da Antropologia ficou expresso numa reflexão presente na minha tese de licenciatura:
Quando decidi fazer da cegueira a temática central do meu trabalho, não raras vezes me apercebi do perigo da minha escolha poder ser entendida como uma tentativa
tão desesperada quanto anacrónica de rescrever noutros termos a viagem antropológica ao remoto e ao prístino (Martins, 2001: 1).
Na verdade, a assunção da minha opção de investigação sempre me trouxe um leve desconforto, advindo, porventura, da ideia que o meu intento se fundava nesse imaginário
ancestral, que se nutre do prestígio de experiências que nos aparecem como exóticas. Sendo possível afirmar em meu favor que não foi o apelo de uma alteridade exótica
que me conduziu até às pessoas cegas, mas sim a busca de experiências silenciadas que desafiam padrões comuns de existência, devo assentir que a metáfora da viagem
a um lugar distante permanece operativa para captar o meu aporte na experiência da cegueira. De facto, quando no fim da minha licenciatura em Antropologia, me vi
perante a necessidade de eleger uma temática para a monografia de investigação - à qual eu desejava dedicar uma forte componente de trabalho empírico - decidi enveredar
por uma realidade em relação à qual não tinha qualquer ligação biográfica ou mesmo teórica. Portanto, inevitavelmente, a persecução de uma perspectiva informada
em relação aos aspectos culturais, sociais e políticos relevantes à experiência das pessoas cegas, tendo como único pressuposto a experiência de exclusão por elas
vivida, partiu também, em alguma medida, dos postulados sociais dominantes em mim presentes. Postulados cuja versão menos nobre conhece o nome de "preconceitos".
Uma das experiências pessoas mais marcantes do meu trabalho de campo, creio, mostra-se particularmente reveladora das concepções que são cultural e intersubjectivamente
constituídas em relação à cegueira - falo, claro, de uma intersubjectividade que tende a caracterizar-se pela omissão da subjectividade das pessoas cegas. Aconteceu
numa das primeiras situações em que a minha participação nas actividades da ACAPO justificou uma convivência permanente de vários dias. Foi um campismo que se realizou
no Luso, organizado pela Delegação Regional do Centro da ACAPO. Na verdade, embora estivéssemos num parque de campismo, os sócios da ACAPO, alguns familiares, pessoal
de apoio e eu, estávamos mais precisamente alojados em bungalows. Foi num deles que, na primeira noite, dormida após um cansativo dia de actividades, tive um sonho
que simboliza, de alguma maneira, a minha passagem iniciática decorrente da intimidade da cegueira. Em bom rigor, foi um pesadelo dilacerante, do qual acordei a
meio da noite com alívio quando me apercebi que... já não estava cego. O facto de nessa primeira noite da nossa estadia eu ter sonhado que tinha ficado cego, projectando
em mim a experiência daqueles que queria estudar, reportar-nos-á para elementos da experiência incorporada e da assunção corpórea do significado vivencial da cegueira,
aspectos a que me dedicarei adiante. Por ora, importa perceber que aí se poderá ler já a expressão de uma preliminar associação entre a experiência da cegueira e
um dramatismo dilacerante, ao nível existencial.
Um dos aspectos prévios que mais desconforto me causou, quando deliberei que queria dedicar-me ao tema da cegueira, foi exactamente a intuição de que, ao dirigir-me
a reflexões e histórias de vida de pessoas cegas, estaria a lidar com narrativas "pesadas", para cujo o dramatismo eu poderia não ter a devida preparação ou sensibilidade.
A este respeito o antropólogo Renato Rosaldo (1993) oferece-nos uma interessante reflexão. O autor alude à morte acidental da sua esposa e colega, Michelle Rosaldo,
no decorrer do trabalho de campo realizado entre os Ifugaos, e ao papel que esta experiência desempenhou no surgimento de uma nova sensibilidade analítica no que
respeita aos dados por si recolhidos entre os Ilongot. Esta constatação é, em primeiro lugar, uma asserção do etnógrafo, enquanto um "sujeito posicionado". Mas,
com maior relevância para o aspecto que pretendo frisar, uma tal correspondência, sugere a Renato Rosaldo, as limitações que poderão decorrer da juventude de um
etnógrafo. Nomeadamente, o autor detém-se na possibilidade de vivências que provavelmente não foram marcadas por perdas importantes, poderem ter que se confrontar
com a centralidade que as experiências de sofrimento e privação ocupam nas narrativas dos sujeitos em análise. Reconhecendo pertinência a esta reflexão, e uma vez
que o meu intento passava pelo acesso a histórias de vida eventualmente marcadas por eventos carregados de dor e sofrimento, deverei dizer que ela se actualizou
em mim no desconforto que senti, pelo facto da minha reduzida idade1 e experiência me poder tornar um interlocutor pouco preparado e pouco verosímil.
Este desconforto acabou por não encontrar correlato na prática efectiva. Primeiro, porque tive a possibilidade de alcançar uma proximidade com a ACAPO e com as
pessoas cegas que inspirou um clima de partilha e confiança em que os meus referentes etários e a circunstância de ser um "estudante"2 não detinham relevância assinalável.
Mas o elemento mais importante no esbatimento desse desconforto de partida decorreu da asserção de que a centralidade por mim atribuída aos temas da dor e do sofrimento,
era, ela própria, excessiva em relação às experiências das pessoas cegas. Não recuso que estas vivências tendam a ser mais marcadas pelo cunho da privação vivencial
do que as experiências da generalidade das pessoas sem deficiência nos mesmos contextos sociais; nem tão pouco diluo a experiência de sofrimento no inexorável lugar
que a exclusão social aí ocupa. O que me aparece como uma constatação que se oferece à nossa reflexão é o facto do meu imaginário prévio sobre a cegueira alojar
então um dramatismo desadequado porque excessivo. Mas se é verdade que esse dramatismo postulado não se mostrou desadequado em relação às experiências e reflexões
das pessoas cegas, estou persuadido que ele exprime, em larga medida, as representações culturais dominantes sobre a cegueira. Portanto, assoma aí com pungente veemência
a denúncia da vigência de uma "meta-narrativa da tragédia pessoal" em torno da qual gravitam as representações culturais sobre a cegueira. É nessa medida que acredito,
sem quaisquer pretensões demasiado ego-centradas, que o meu percurso pessoal se mostra expressivo do lapso que separa o imaginário social sobre a cegueira das experiências
de quem a conhece na carne.
A minha relação empírica com o tema da cegueira iniciou-se no âmbito da minha tese de licenciatura em Novembro de 1999. Após uma série de leituras exploratórias,
onde se assinalava a estreiteza dos materiais, ora dirigidos a aspectos pedagógicos, ora a consagrados a títulos próximos de "Como ajudar um cego na rua", e convencido
da inutilidade de um documento do Conselho Científico que tardava, decidi que era chegada a hora de me fazer ao caminho. Um caminho que no máximo demorou cinco minutos
desde minha casa até à Delegação Regional do centro da ACAPO.
Na verdade, a sede regional da ACAPO, situada em Coimbra na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, estava há anos no mapa dos meus percursos diários para a Universidade.
No entanto, esse facto curioso muito pouco terá contribuído para que a questão da cegueira se tornasse uma realidade mais conhecida. Isto porque, além da sede, situada
na subcave de um prédio a que se acede pelas traseiras (singelamente assinalada por um discreto reclamo), apenas poderei assinalar como consciência dessa proximidade
geográfica as ocasiões em que me cruzava com pessoas cegas utilizadoras das instalações da associação. Nesses momentos em que via uma pessoa cega palmilhando a rua
ao som do "tic-tac" da bengala - um som que se tornaria parte daquelas melodias que reconhecemos como "nossas" -, era comum surgir em mim um certo fascínio. Porventura
o fascínio que exercem em nós as realidades que não conhecemos, mas acerca das quais postulamos uma radical diferença, um apriorismo que as singulariza. Haveria
portanto em mim uma curiosidade que não chegava a ser já um interesse epistemológico articulável enquanto questão social.
Nesse dia 11 de Novembro, toquei à porta da ACAPO, mal me lembrando de que, por ser sábado, me arriscava a não encontrar ninguém. Abriu-me a porta - onde estava
a afixado um papel dizendo "A ACAPO está com Timor" - o coordenador da área de Desporto, que me disse que naquele dia estava a decorrer a uma reunião da direcção
nacional, mas que trataria de me marcar uma entrevista com presidente da Delegação Regional para semana seguinte. Assim foi, dirigi-me ao gabinete de José Caseiro,
a quem disse que me interessava, mais do que uma entrevista pontual, conhecer as actividades e as pessoas que são a razão de ser da ACAPO. Após conversarmos um pouco,
mostrou-me o amplo espaço da subcave onde se aloja a delegação da ACAPO, seguimos pela secretaria, pelo bar, balneários, gabinetes, salas de aula, terminando no
"salão", onde acontecem as comemorações e as assembleias. Esta será só a primeira das visitas guiadas em que José Caseiro, cego desde os seus 19 anos, faria de meu
cicerone. Tempos depois, no âmbito de uma prova de ciclismo, dar-me-ia a conhecer a sua aldeia. Recordo de como me descreveu as paisagens de Carapito, evocando as
suas memórias de infância, as suas memórias visuais, não deixando de as informar pelas passagens que já não viu, como quando me apontou para uma zona ardida poucos
anos antes. Nessa mesma tarde José Caseiro disse que passaria a contar comigo para fazer voluntariado junto da ACAPO, ficou ainda de me disponibilizar uma sala para
as entrevistas que eu quisesse vir a realizar com os associados. Assim se fez: ao princípio de um modo mais esparso, mas depois com maior regularidade, fui sendo
requisitado para as diversas actividades, momentos que não apenas me serviram como um precioso espaço de observação, mas também como uma plataforma para conhecer
pessoas cegas, fazer amigos, entrevistas e recolher documentação. Da documentação cujo acesso me foi facilitado, especial destaque merecerá a revista Luís Braille,
publicação oficial da ACAPO, onde, além de toda uma diversidade de matérias relacionadas com a cegueira, encontrei retratados aspectos importantes da vida da associação.
A estas fontes, que me permitiram apreender as práticas rotineiras do funcionamento da associação, assim como elementos marcantes da sua história, acrescem outras
que, ao longo do meu trabalho etnográfico, me foram disponibilizadas, como sendo planos e relatórios de actividades, circulares enviadas aos associados, artigos
surgidos na imprensa, propostas eleitorais, actas de reuniões, etc.
A ACAPO foi fundada em 1989, é a associação representante em Portugal das pessoas com deficiência visual, sendo composta por 3 a 4 mil associados, onde, além dos
sócios efectivos, pessoas com deficiência visual, contam-se uns quantos sócios cooperantes, que contribuem com as suas quotas com o intuito de ajudar a associação.
Embora a cegueira seja a condição emblemática e mais representada na ACAPO, a associação também conta com muitas pessoas portadoras de deficiência visual menos severa,
as ditas amblíopes3. Nas próprias pessoas definidas em termos médicos como cegas há inúmeras matizes até à cegueira total, havendo também toda uma pletora de condições
singulares sob a noção de ambliopia (e.g. as pessoas que à noite vêem nada, outras que não vêem de dia, outras que têm visão tubular, etc.). Dado que o meu interesse
analítico se refere com maior acutilância para as pessoas cegas, e dado o carácter sempre precário das avaliações médicas de incapacidade perante variáveis tão vastas,
defino as pessoas cegas como aquelas que são socialmente identificadas como tal, o que, grosso modo, se conflui com as pessoas que não conseguem tirar partido da
visão para a execução de qualquer actividade. Não obstante, devo referir que foram instrutivas as conversas e entrevistas estabelecidas com pessoas amblíopes, primeiro
porque elas detinham um conhecimento informado acerca da realidades e vivências das pessoas cegas, e porque as questões implicadas pela visão muito limitada se confluem
amiúde com as que se colocam às pessoas cegas. Segundo, porque muitas situações de ambliopia são devidas a doenças degenerativas (e.g. retinopatia pigmentar, glaucoma)
cujo diagnóstico é, muitas vezes, uma progressão contínua para a cegueira.
Para além da direcção nacional, sedeada em Lisboa, a estrutura da ACAPO conta com três delegações regionais (a do Norte, no Porto; a do Centro, em Coimbra; e a
do Sul e Ilhas, em Lisboa) e várias delegações locais espalhadas pelo país. Com objectivo ilustrativo, falarei de leve do dia-a-dia da delegação, onde se representa
largamente os termos da relação da ACAPO com os seus associados.
O quotidiano da delegação do centro é fundamentalmente marcado pelas actividades da formação profissional, onde se ministram cursos4 que são apoiados pelo Fundo
Social Europeu. Por via deles, entre 20 e 30 pessoas com deficiência visual de toda a zona centro, ficam a residir em Coimbra, acorrendo diariamente à delegação,
onde são ministradas as aulas. Acrescendo aos formandos, muitos são os sócios que acorrem com frequência à ACAPO. Alguns fazem-no por uma mera questão de sociabilidade,
frequentando o bar, não só para privarem com os consócios (dirigentes incluídos), mas também com os funcionários (onde se contam, de modo mais continuado, as assistentes
sociais, a psicóloga, os formadores, as administrativas, o responsável pelo desporto, as encarregadas pela limpeza e pela manutenção do bar). Nesta sociabilidade,
as funcionárias do bar assumem particular relevância, sendo porventura o espaço do balcão o epicentro da sociabilidade quotidiana da delegação. A importância que
este espaço de sociabilidade detém para as pessoas que lá vão no fim do trabalho, das aulas, ou, no caso de estarem desempregadas, a qualquer hora, fica bem patente
no facto de muitos sócios levarem o seu bolo de aniversário para a delegação, para ali comemorarem os seus anos. Outros sócios acorrem à associação como utentes
de serviços: em busca de informação em suportes específicos para deficientes visuais, livros em Braille, em formato digital, e áudio; para comprar produtos específicos
como bengalas, relógios, réguas; para se candidatarem a ajudas técnicas; para andarem de bicicleta com o apoio de um atleta-guia; para frequentarem cursos de informática,
etc.
Mas, para além das incidências diárias, a vida da ACAPO é também marcada por outros eventos, dos quais alguns dizem directo respeito à vida da associação, como
as assembleias-gerais e regionais - os órgãos deliberativos a nível nacional e regional, respectivamente -, e o aniversário da associação. Outros eventos reportam-se
mais ao âmbito recreativo e convivial, como sendo, a festa de Natal, as excursões, as visitas a museus, as jornadas desportivas, o campismo, as férias de verão,
os magustos, as comemorações do Dia Mundial da Bengala Branca, etc.
A minha presença nas diversas actividades depressa se tornou conhecida e trivializada. Para tal contribuiu o facto de eu emergir como um elemento útil para "dar
apoio" às pessoas cegas e amblíopes numa série de situações. O grosso das actividades organizadas pouco diferem das de um qualquer espaço de partilha e convívio,
ocorrem num ambiente em que as visitas e as provas desportivas desembocam em alegres almoçaradas, onde a questão do ser ou não ser cego raramente o chega a ser.
No entanto, estas actividades também se empreendem com o propósito manifesto de passar uma imagem diferente das pessoas com deficiência visual. Na verdade, o simples
facto de elas surgirem nos espaços públicos, em situações de diversão e recreação é entendido como algo que contribui para passar uma imagem diferente. De facto,
é notório como a generalidade das pessoas, ao ser confrontada com presença de grupos constituídos com pessoas cegas em determinadas práticas, vê os seus arquétipos
serem desestabilizados.
A ACAPO e os espaços por onde as suas actividades organizadas se deslocam são constituídos pelas pessoas deficientes visuais e pelas pessoas que as conhecem, os
sócios, os familiares, funcionários, etc. Nesse sentido, a minha presença não encaixava em nenhuma dessas modalidades, e, embora toda a gente soubesse que eu fazia
entrevistas por causa de um trabalho, eu era na maior parte das vezes visto como alguém próximo da pessoas cegas, que se prestava a apoiar na realização das actividades.
Assim, comecei por fazer algumas entrevistas a alunos da formação profissional, mais disponíveis por estarem todos os dias na ACAPO. O facto de eu os conhecer, ou
de ter sido referido como um amigo do presidente, permitia desde logo criar um ambiente de cumplicidade onde eu era entendido como uma pessoa próxima. Ademais, com
o decorrer das actividades e com o aprofundar das relações, não só fui fazendo entrevistas a um mais amplo leque de sócios, como a confiança em mim depositada foi
aumentando. O campismo e as férias, períodos de longa permanência em comunidade, foram fundamentais nesse aspecto. Esse acréscimo de confiança foi-se reflectindo
no nível de partilha estabelecida nas situações mais formais de entrevista, e nas histórias de vida que aí me foram sendo contadas, mas também no surgimento de situações
espontâneas de partilha em que pude ir pulsando as implicações vivenciais da cegueira e das suas narrativizações. Estou certo de se ter criado um contexto de relações
que me permitiu ir muito além da história que a pessoa com deficiência deverá ter preparada para repetir inúmeras vezes. De facto, e como bem nota Dona Avery, existe
uma história prescrita que a pessoa com deficiência deverá enunciar como resposta à questão: "como aconteceu?" (1999: 119)5. A superação deste sentido fechado deu-se,
creio, quer pela natureza das preocupações com que eu ia acompanhando a histórias de vida, quer por essa crescente cumplicidade que permitiu frequentemente a emergência
de uma reflexividade fora de uma mera lógica de auto-asserção.
A minha abordagem de cariz eminentemente etnográfico fundou-se numa pletora de ilações que foram sendo extraídas da mera presença observante na ACAPO e nas suas
actividades, das muitas conversas que mantive, de perguntas que ia fazendo a propósito de situações particulares, e também de situações em que se estabeleciam situações
mais ou menos formais de entrevista. Estas consistiram mormente em entrevistas semiestruturadas onde as minhas questões acerca das vivências da cegueira se articulavam
com as histórias de vida dos que me iam sendo então contadas. No caso das entrevistas com dirigentes com importante intervenção ao nível dos destinos da ACAPO, privilegiou-se
um trânsito entre a narrativa pessoal e a reflexividade político-associativa. Realizei algumas entrevistas, poucas, com pessoas que não sendo cegas estavam profissionalmente
ligadas à cegueira. No total, foram levadas a cabo 48 situações de entrevista semiestruturada ao longo do trabalho etnográfico.
Desde a realização da minha tese de licenciatura venho participando de uma forma regular na vida da ACAPO. Houve, no entanto, uma intermitência, tendo essa relação
de colaboração voltado a tomar contornos de investigação mais efectiva aquando do ano da minha dissertação de Mestrado. Curiosamente, esse período de menor relação
epistemológica com a ACAPO e com o tema da cegueira, deu-se num período em que aceitei um convite para trabalhar precisamente na delegação regional do centro da
ACAPO, enquanto responsável pelo gabinete de inserção na vida activa. Terminada a minha licenciatura, com vista a manter uma actividade remunerada que me permitisse
ingressar em mestrado, trabalhei como funcionário da ACAPO. Naturalmente que este período me permitiu conhecer algo do quotidiano da associação, dar conta, no dia-a-dia,
de dificuldades que já me haviam sido relatadas, participar na realização e concepção de alguns eventos. No entanto, quer porque a minha liberdade de movimentos
estava coarctada a um horário laboral com um forte pendor burocrático, quer porque o tempo restante foi dedicado às leituras e escritas da parte curricular do mestrado,
houve, creio, uma fase menos produtiva, em que os dados adquiridos sobre o tema que viria a estar na base da presente dissertação eram parcos e redundantes.
Com o terminus da parte curricular do mestrado e, sobretudo, com a obtenção da bolsa de apoio à dissertação concedida pela Fundação para a Ciência e Tecnologia,
pude de novo dedicar-me à investigação empírica, participar de um quadro mais amplo de actividades, realizar entrevistas pelo país a figuras relevantes ligadas ao
dirigismo da deficiência, e da cegueira em particular, recolher reflexões e histórias de vida numa diversidade de contextos, e acompanhar alguns itinerários pessoais
a que anteriormente havia acedido. Deste modo, também significativamente nutrido por novas perspectivas que o mestrado me concedeu, pude ampliar e aprofundar questões,
preocupações e persuasões acerca da manifesta situação de exclusão social das pessoas cegas do contexto português. Ao longo deste tempo de investigação, a ACAPO
- ao nível regional e nacional - foi indubitavelmente a base do trabalho de campo, isto embora tenha estabelecido relação, sobretudo por via de entrevistas, com
outras realidades institucionais.
Na relação que estabeleci com a ACAPO, que iniciei com propósitos académicos, e que se preservou como uma conversa inacabada entre a lógica de reciprocidade que
permitia o trabalho de campo, e o voluntariado per se, assumi um amplo espectro de papéis, realizei uma panóplia de funções. Durante dois verões passei férias com
a ACAPO, participei ainda num campismo onde eu era "monitor". Nesse âmbito, assim como em outros eventos pontuais, desempenhei tarefas muito diversas: guiei as pessoas
em contextos desconhecidos, onde a bengala é de pouca valia; servi à mesa nas refeições e nos cafés; participei nos treinos e competições de goalball, dando apoio
aos atletas; realizei ciclismo tandem (bicicletas de dois lugares em que a pessoa cega vai atrás) como atleta-guia em passeios e competições (chegando a ganhar algumas
medalhas); assisti sócios nas actividades semanais de natação; ajudei na elaboração de alguns documentos; realizei um curso de mobilidade destinado a professores
de apoio; tomei parte em "acções de sensibilização" em que os transeuntes eram convidados a andar de bengala; tomei conta de stands de divulgação; dei apoio na resolução
de alguns problemas informáticos; li correspondência; resolvi questões com os telemóveis; participei na concepção de exposições de pintura e escultura para cegos;
acompanhei visitas de estudo, etc. Esta minha ligação à ACAPO, que se iniciou como um projecto de investigação, e que na verdade nunca o deixou de o ser completamente,
adquiriu importantes matizes afectivos, sobretudo pelas amizades que desenvolvi, mas também passou, em alguns momentos, pelo assumir da perspectiva das pessoas cegas
de um modo mais engajado. Tal acontecia quando era pedida a minha colaboração para a realização de um documento ou para a preparação de um evento, ou mesmo nas situações
em que no Dia da Bengala Branca6 eu ia para a rua com ACAPO participar em realizações de divulgação, empresas que, no discurso associativo, recebem o nome de "acções
de sensibilização".
Na naturalização da minha participação, cedo emergiu o facto da minha visão emergir como uma mais valia para diversas situações, sendo importante que as actividades
tivessem sempre as ditas "pessoas normovisuais" para "dar apoio". Evoco, por isso, para título desta secção, em que procuro dar uma perspectiva mais pessoal do trabalho
de campo, uma expressão que, com graça, alguém costumava usar quando me chamava para ajudar nalguma situação: "Bruno, pelos teus lindos olhos...". A ironia dessa
pessoa nunca ter visto os meus olhos apenas reforça a poética que encontro neste doce chamamento. Invocações que, pese embora os "copos" que às vezes me eram oferecidos
em jeito de agradecimento, se enquadraram fundamentalmente numa lógica de reciprocidade que o meu conhecido propósito legitimava. Eu era também uma parte interessada,
alguém que queria conhecer e aprender sobre a sua realidade. Não obstante, este era um dado de partida que tendia a elidir-se, e só era tornado presente para os
sujeitos quando, por exemplo, eu pedia a alguém para me conceder uma entrevista, ou quando aproveitava uma conversa para colocar algumas questões. De um modo um
pouco inesperado, esta minha ligação com a ACAPO foi sublinhada quando, em Outubro de 2003, me foi entregue, na celebração do aniversário da instituição, um testemunho
de gratidão. Ele surgiu como uma forma - deveras simpática e honrosa, acrescentaria - de sublinhar meus préstimos à vida da instituição nas ditas actividades de
voluntariado, assim como o facto de eu dedicar os meus interesses académicos ao tema da cegueira. Um testemunho que, devo confessar, me deixou desarmado, na medida
em que as possibilidades que me foram conferidas nunca estiveram desvinculadas de um certo benefício pessoal. Isto é, não obstante o facto de eu ter como absolutamente
premente o reconhecimento da perspectiva que as pessoas com deficiência oferecem à transformação da sociedade, e de encontrar aí um móbil fortíssimo para um empenho
mais aturado, a prática de investigação é, na esmagadora maioria dos casos, congruente com os benefícios pessoais de quem investiga. A realização de teses não escapa
a uma lógica de valorização individual de quem inscreve o seu nome na capa, nem tão pouco ao lastro de sabedorias pessoais que a intimidade com diferentes realidades
sociais concede. Creio que desta reflexão não deve resultar uma qualquer questão ética agonística ou paralisante do trabalho antropológico, mas sim uma constatação
que enfatiza que, nesses termos, a aceitação de um testemunho de gratidão, qualquer que seja, deverá ter em conta um incontornável nexo entre dádivas e dívidas.
Com a confiança pessoal que a minha presença assídua foi permitindo conquistar, também eu depressa comecei a conhecer pessoas pelas suas idiossincrasias, em contraponto
com as quais o facto da cegueira foi sendo subsumido nas minhas percepções enquanto referente central dos sujeitos. De tal maneira isto se naturalizava, que apenas
se actualizava em mim o facto de estar perante pessoas cegas quando me apercebia dos comentários ou olhares de outras pessoas, revelando estranheza, ou quando entrava
num gabinete em que alguém estava a trabalhar com a luz apagada, ou ainda quando alguém operava no computador (internet, processamento de texto) deixando o monitor
desligado. Esta elisão da cegueira acontece também porque uma das primeiras ilações que o contacto com as pessoas cegas oferece é a constatação do quão pouco impeditiva
a cegueira pode ser na realização das mais diversas actividades, quotidianas ou profissionais. Pessoas há que andam com a bengala por todo o lado e depressa conhecem
novos contextos espaciais, casais de cegos que criam filhos sozinhos, cozinham, passam a ferro, lavam a loiça, especialistas informáticos capazes de tudo, pessoas
que arranjam bicicletas, cozem pão, trabalham em fábricas, plantam batatas, trabalham com centrais telefónicas, praticam kick boxing, jogam xadrez, leccionam nas
mais diversas áreas, trabalham com telemóveis, dominam a legislação, acompanham novelas, vibram com jogos de futebol, adivinham os percursos nos transportes, retiram
inúmeras ilações acerca do que acontece à sua volta, etc. Realizações mais ou menos triviais cuja menção apenas se justifica pelos inúmeros pressupostos incapacitantes
que povoam os imaginários em torno de quem é cego, como o atestam alguns excertos de entrevistas e histórias de vida:
.. as pessoas atribuem dramatismo à cegueira porque captam toda a informação através da visão ignorando outras vias;
.. mesmo as pessoas cultas, tira muita força quando fazem perguntas: "Tu consegues?" Desmoraliza, desmotiva;
Levaram-me para uma entrevista de emprego, desisti logo que ele me perguntou: "como é que você pode marcar o telefone?";
A minha orientadora não queria uma orientanda cega, achava que os cegos não deveriam dar aulas a alunos normais e incentivou-me a desistir;
Às vezes as pessoas perguntam cada coisa: "como é que vai à sua mulher?" "como é que lava a roupa?";
As pessoas não acreditam que eu faço as coisas;
Relativamente ao emprego, é complicado porque as pessoas das empresas não sabem aquilo que podemos fazer;
Quando ceguei deixei o emprego e fiquei fechada. Nem sabia que podia escrever num computador.
Realidades estas que eu próprio pude constatar. Com efeito, presenciei uma pluralidade de situações - sobretudo em momentos triviais - em que fui confrontado com
inúmeras respostas incapacitantes em relação pessoas cegas. Se por um lado me é possível encontrar no meu sonho tortuoso o momento simbólico onde se representa a
angústia que a condição das pessoas cegas pode fazer supor, o "amanhecer sem espanto" é, pois, perceber em que medida o encontro com as pessoas cegas tende a elidir
a suposta centralidade das ideias de infortúnio e incapacidade. Construções que recorrentemente são negadas pelos sujeitos, a par com a afirmação das possibilidades
que uma vida sem visão reserva, ou poderia reservar, assim elas fossem conhecidas, assim elas tivessem oportunidade de se manifestar nas arenas da vida social. Neste
sentido, tão importante como verificar as insuspeitas competências de que os indivíduos são capazes na ausência da visão, é a asserção do modo como as suas vidas
se distanciam da questão do ser ou não ser cego. Distanciando-se, igualmente, de uma ênfase na exclusão dos "prazeres da visão" (Magee e Milligan, 1995: 87), para
se dirigir a questões pragmáticas que se prendem com as realizações profissionais, educacionais e económicas.
Perante um tão amplo espectro de elementos susceptíveis de serem trazidos a estas linhas acerca das condições que mapeiam as vivências das pessoas cegas no contexto
português, tento dirigir-me para pontos que assumiram indiscutível protagonismo nas construções narrativas e nas observações a que acedi entre as pessoas cegas.
Numa primeira instância, torna-se essencial contemplar neste espaço a importância que a afirmação positiva da cegueira ocupa nos discursos e práticas das pessoas
cegas. Sobretudo pelo facto da celebração das potencialidades e capacidades das pessoas emergir como uma enunciação fulcral, cujo reconhecimento nos envia para uma
encruzilhada de sentidos, onde se confrontam as narrativas pessoais da cegueira, as representações hegemónicas acerca de uma tal condição, e os discursos promovidos
pelo associativismo. É, pois, nesta encruzilhada que eu vislumbro a via de acesso para as tensões, valores e expectativas cuja visibilidade é hoje absolutamente
premente para que se possa questionar reinventar um contexto social que exclui, oprime e desqualifica as pessoas cujo modo de estar no mundo não é mediado pelo sentido
da visão.
Quando realizei um curso de orientação e mobilidade para formadores de pessoas cegas incorporei interessantes experiências em que, com a ajuda de uma venda, era
convidado a aprender as práticas alternativas de segurança e eficiência que devem ser levadas a cabo por quem não vê. Esse curso, promovido pela ACAPO - com o propósito
habilitar educadores do ensino público na formação de crianças e jovens cegos -, culminou com aprendizagem do uso da bengala branca nas deslocações. Nessa fase fui
desafiado a errar por alguns percursos apenas com o apoio da bengala. Essa singela experiência permitiu-me valorizar de modo insuspeito os saberes empregues pelos
"cegos a sério" quando os vejo caminhar autonomamente na rua. Iniciarei o meu percurso de encontro aos elementos que estruturam as vivências das pessoas cegas recapitulando
esse curioso exercício em que, desta vez metaforicamente, empregarei a bengala branca para me guiar. Perante a complexidade que sempre encontramos em representar
as complexidades do vivido, pretendo que os obstáculos e pontos de referência que formos desenhando nesse percurso reflictam os que mapeiam as vidas das pessoas
cegas. Na bengala branca, nos seus usos e representações, encontro um tema que, além de se revestir de uma forte carga vivencial, como veremos, constitui também
preciosa virtualidade interpretativa para acedermos às lutas de significado que, a diferentes escalas, se jogam em torno da cegueira.
Cruzando as vivências pessoais com os valores e formas de sociabilidade vigentes, invisto-me ainda em aceder ao papel desempenhado pelo associativismo político
na superação da exclusão e da marginalização social que surge associada à experiência da cegueira de um modo absolutamente flagrante. Procurarei, por um lado, perceber
a actividade da ACAPO na sua relação com a materialização moderna da cegueira. Em particular, pelo modo como aí se fundou uma hegemonia da normalidade à luz de um
biopoder que naturalizou a inferioridade das pessoas cegas favorecendo a despolitização das suas vidas. Por outro lado, tentarei perceber a natureza institucional
da ACAPO relacionando-a com as especificidades da sociedade portuguesa. Será esta uma forma de relacionar a emergência de vozes políticas capazes de desestabilizar
as construções hegemónicas com um "curto tempo" histórico em que a natureza do tecido social português emerge como um dado premente.
Notas
1 Na altura do início do trabalho projecto etnográfico tinha 21 anos.
2 Na percepção que tenho, "estudante" é uma designação social que, em meios não académicos, denota, frequentes vezes, uma associação quer à ideia de juventude/imaturidade,
quer a uma situação de privilégio que se supõe tomar pouco contacto com as agruras e dificuldades que marcam as vidas da maioria das pessoas.
3 No seio da ACAPO emergem três termos para designar as pessoas em função da sua condição visual. Os "normovisuais", para designar as pessoas que "vêem bem", os
amblíopes, para designar as pessoas têm uma acuidade visual limitada, e as pessoas cegas, para referir as que não podem contar com a visão para o exercício das suas
actividades. A definição legal vigente em Portugal considera cegas as pessoas definidas como tendo pelo menos 9/10 de deficiência visual (cf. Decreto-lei n.º 49331/69),
enquanto que são normalmente consideradas amblíopes aquelas que têm menos de 6/10 de acuidade visual. Estas definições chamam a atenção para a continuidade existente
na acuidade visual que pode ir, por exemplo, de uma ligeira miopia à cegueira total. Continuidade esta que permite, por si, problematizar e desconstruir qualquer
definição de normalidade. Estas definições tornam igualmente evidente que a cegueira não é uma categoria estanque, uma vez que pode ir da cegueira total até um considerável
resíduo visual (Lowenfeld; 1987): uma pessoa cega com 1/10 de deficiência pode percepcionar formas e cores, conseguindo ver, no limite, dedos a 2.5 m (Dias, 1995:
VII).
4 Cursos de pré-formação, onde se ensinam competências mais básicas, cursos de telefonistas, de assistentes administrativos e assistentes comerciais.
5 Deborah Marks (2002) evoca as questões que segundo Stuart Hall são as mais recorrentemente colocadas aos imigrantes: "Porque é que estás aqui?" "Quando regressas?"
(minha tradução). Segundo
a autora elas são análogas às interrogações a que as pessoas com deficiência são sujeitas: "Como ficaste assim?", "Podes ser curado?" (minha tradução).
6 Efeméride que se realiza no dia 15 de Outubro e que corresponde à ideia de um Dia Mundial da Cegueira.
IV
NAS COSTAS DO ELEFANTE: AS VIDAS DA CEGUEIRA
1. -OS CAMINHOS DE UMA BENGALA BRANCA: AO ENCONTRO DE NARRATIVAS SILENCIADAS
E basta ouvir o que as pessoas dizem quando passamos na rua.
Nota de campo
Segundo os censos de 2001, o primeiro levantamento censitário em que o tema da deficiência foi contemplado, existem em Portugal 636 059 pessoas com deficiência,
o que corresponde a 6, 1% da população. Dos diferentes tipos de deficiência, a visual foi a que apresentou valores mais significativos, correspondendo a 25,7% do
total das deficiências (a motora 24,6%, a auditiva 13,2%, a mental 11,2%, a paralisia cerebral 2,4% e outras deficiências 23%) (Gonçalves (INE), 2003), cifra que
faz supor que existam em Portugal cerca de 166 mil pessoas com alguma deficiência visual. Os valores do total da população com deficiência entram em conflito com
os dados obtidos pelo projecto Quanti, do Secretariado Nacional da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência (SNRIPD), realizado entre 1993 e 1995, onde
se estimaram existir 905 488 com alguma deficiência. Estas asserções resultam do cruzamento de dados feito possível pelo facto do INE ter trabalhado em cooperação
com o Departamento de Estatística do ex-Ministério do Emprego e da Segurança Social. Por esta razão, os dados obtidos pelos censos, baseados na auto-avaliação dos
respondentes em relação às suas características individuais, ou na avaliação dos familiares, são contestados por várias organizações de pessoas com deficiência:
"Segundo o INE existem em Portugal 634.408 indivíduos com deficiência, dados que a APD [Associação Portuguesa de Deficientes] rejeita liminarmente" (APD, 2002a).
A possibilidade dos dados dos censos pecarem por defeito é aventada como resultado da falta de campanhas de sensibilização e esclarecimento. Estas campanhas foram
pretendidas pelas ONG's de deficiência de molde a que o facto dos dados não serem cruzados com outras fontes não fizesse emergir as inibições susceptíveis de assistir
aos respondentes. Como assinala José Guerra, em função da disparidade com os dados obtidos pelo SNRIPD e por comparação com as percentagens de outros países, é de
supor "a possibilidade séria de muitos cidadãos deficientes ou as suas famílias não terem preenchido ou respondido às questões relacionadas com a sua situação de
deficiência, já que em Portugal há algum "pudor" em aceitar essa realidade" (Guerra, 2003: 1). Ou seja, os estigmas associados à deficiência podem ser vistos como
uma perturbação importante aos dados que emergiram dos censos.
Em todo o caso, os números aqui avançados sedimentam a persuasão de que a invisibilidade social das pessoas com deficiência no nosso país resulta da sua exclusão
social e não da sua reduzida relevância populacional. Em Portugal, como no resto do mundo, as pessoas com deficiência encontram-se entre as mais pobres das pobres,
e entre as mais marginalizadas das marginalizadas. Embora os resultados dos censos não permitam aquilatar em especificidade as implicações de deficiências tidas
como mais graves, eles expressam já o facto desta parte da população assinalar em Portugal níveis de literacia, escolaridade e taxas de empregabilidade, bem inferiores
ao resto da população (Gonçalves (INE), 2003).
1.1. Educação
Ao nível do ensino, seguindo as tendências vindas de outros países europeus, a educação especial e as suas instituições viriam a ser progressivamente desmobilizadas
em favor do ensino integrado no sistema educativo regular público. Esta passagem começou a ser paulatinamente introduzida em Portugal nos anos 60 e ficou estabelecida
com a definição, na Constituição da República, publicada em 1976, de políticas de integração das pessoas deficientes na sociedade (Dias, 1995: 16, 17). E, em termos
internacionais, daria um passo mais com a consagração do conceito de escola inclusiva, promovido na conferência de Salamanca, organizada pela UNESCO em 1994, sob
o tema das necessidades educativas especiais.
Como várias organizações de deficiência em Portugal veiculam, na verdade, operou-se uma destruição de estruturas de ensino especial, para se dar lugar a um ensino
integrado em que a escolaridade e aprendizagem das pessoas com deficiência é marcada por uma profunda precariedade. Embora seja consensualmente aceite o princípio
de que o ensino em instituições regulares confere às pessoas deficientes o benefício de estudar num ambiente regular, preparando-as desde logo para uma vida em sociedade
(a que se junta também o papel pedagógico para a sociedade advindo da intimidade com a diferença da deficiência), o que se verifica é que este princípio não tem
sido feito valer com meios que permitam uma educação apropriada às crianças, jovens e restantes pessoas com deficiência. Verifica-se que o legislado no Decreto-lei
n.º 319/91, onde se contemplam os imperativos em relação aos "alunos com necessidades educativas especiais" e a desejável construção de uma "escola para todos",
está longe de ser alcançado na prática. Isso bem o representa este excerto constante do Livro Branco dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência (APD, 2002a)
(publicado pela Associação Portuguesa de Deficientes):
Contactei a senhora directora da escola e fiquei a saber que a escola não tinha muitos meninos com problemas e que a escola inclusiva não tem condições, nem meios
para ser uma escola inclusiva e o Ministério, quando decidiu isso, não sabia o que estava a fazer.
Falando em particular da cegueira, são muitas as situações em que o acesso ao material em formato disponível se dá tardiamente, e em que os professores de apoio,
já de si escassos, revelam uma assombrosa falta de formação específica, desconhecendo na maior parte dos casos coisas tão elementares como o Braille ou técnicas
de mobilidade1. Como resultado, verificam-se não apenas taxas de abandono escolar que tendem a ser elevadas entre as pessoas cegas, mas também carências de aprendizagem,
de saberes específicos necessários a quem é cego, sendo que por vezes, devido a algum facilitismo, as competências adquiridas nem sequer correspondem aos níveis
de escolaridade obtidos pelos alunos. Como refere Fernando Jorge (ele próprio cego, dirigente regional da ACAPO e professor de apoio educativo ligado à deficiência
visual) num texto apresentado no grupo consultivo da Direcção Nacional da ACAPO, que me foi confiado:
É claro que, perante tantas contradições e tantas dificuldades ao nível da formação de recursos humanos e no apetrechamento das escolas com meios materiais, por
vezes é natural que se caia no desânimo. (...) manuais que chegam muitos meses depois de serem precisos, transcrições para Braille feitas com a conhecida máquina
Perkins, pouco cuidado com o ensino das Técnicas de Orientação e Mobilidade e com a utilização dos meios informáticos. (...) O que tem acontecido com os alunos deficientes
visuais, e em especial com aqueles que usam o Braille, é estarem na completa dependência do Sistema, o qual é claramente ineficaz, tanto ao nível da produção de
material adaptado como no âmbito do apoio por pessoal qualificado.
Este é, sem dúvida, um grave problema, que naturalmente afecta as possibilidades das pessoas com deficiência, na aquisição de competências pessoais, culturais,
e, em particular, nas suas perspectivas no mercado de trabalho, estando gravemente lesado o princípio da igualdade de oportunidades no que às possibilidades de habilitação
educativa diz respeito. Por outro lado, e para cúmulo, os últimos anos têm assistido a tendências que se dirigem não no sentido de colmatar os défices todos os dias
sentidos por alunos e professores, mas no sentido inverso. Questão que Fernando Matos (na altura membro da direcção nacional da ACAPO) analisa, evocando um quadro
amplo, num artigo constante da revista Luís Braille significativamente intitulado "Sinais Preocupantes na Educação Especial":
O surgimento da vaga neoliberal, que veio pôr em questão a viabilidade do Estado--providência, reduzir os financiamentos públicos das políticas sociais e defender
a privatização dos sectores da protecção social; o crescimento exponencial dos utentes a atender, entre outros aspectos, constituem fortíssimas condicionantes de
qualidade desta modalidade educativa [os alunos com necessidades educativas especiais] (Matos, 1999).
Aliás, no ano de 2002 surgiu uma forte contestação dos sindicatos de professores e das associações de pessoas com deficiência em relação a uma proposta governamental
de revisão do Decreto-lei n.º 319/91/23/08, que implicaria uma redução dos professores de apoio educativo que se dirigem aos alunos com necessidades especiais.
A situação que se vive no ensino superior está, também ela, longe de oferecer uma visão optimista acerca do lugar que a educação poderia e deveria ocupar no alicerçar
das possibilidades de inserção social das pessoas com deficiência. Em primeiro lugar, haverá a considerar o modo como tem sido inviabilizado o acesso de pessoas
com deficiência a diversos cursos superiores, com base em pré-requisitos existentes. A questão é que estes requisitos se fundam frequentemente em preconceitos discriminatórios,
ou mais não são do que a assunção da ausência de estruturas e recursos para que o acesso dos estudantes com deficiência ao ensino superior possa ser feito em igualdade
de oportunidades com os demais. Depois, para cúmulo, se até ao secundário nos deparamos com situações em que a responsabilidade do estado na inclusão das pessoas
com deficiência não obedece aos princípios legislados, na universidade existe um vazio legal, dependendo da vontade de cada instituição a criação de organismos próprios.
Como algumas pessoas cegas que se licenciaram me disseram, é necessário muito sacrifício pessoal, muito uso da cultura do "desenrasca", muita dependência da solidariedade
de colegas, professores e familiares para adquirir uma formação superior. Isto, sendo que, muitas vezes, as escolhas dos cursos obedecem menos à vocação do que à
menor exigência de recursos implicada, daqui decorrendo, por exemplo, uma grande preponderância das formações na humanidades entre as pessoas cegas. O vazio legislativo
existente faz com que apenas 4 universidades em Portugal tenham desenvolvido, por sua iniciativa, estruturas de apoio às pessoas com deficiência, estruturas que
não obedecem a uma qualquer lógica comum. E, consoante me referia Dra. Isabel Patrício, que então dirigia um desses centros (o Gabinete de Apoio Técnico-Pedagógico
ao Estudante Deficiente que existe na Universidade de Coimbra desde 1992), mesmo na Universidade de Coimbra, em que uma tal estrutura existe, estão longe de serem
criadas, em termos de recursos físicos, humanos e materiais, condições para que as pessoas com deficiência possam estudar autonomamente, e em igualdade de oportunidades
com os demais. Este é um dado que se mostra significativo em relação à situação vigente na esmagadora maioria de instituições universitárias, onde não existe qualquer
tipo de estrutura de suporte.
1.2. Emprego
Portanto, a educação emerge, logo à partida, como um factor que promove a discriminação das pessoas com deficiências, cerceando o seu acesso ao conhecimento e
à obtenção de um património que permita a inserção no mercado de trabalho. A situação de desemprego e trabalho precário, que afecta uma grande percentagem das pessoas
com deficiência, resulta certamente das vulnerabilidades do sistema educativo. Mas, a este facto haverá que acrescentar o modo como a activação de preconceitos contribui
para que as competências das pessoas com deficiência sejam sistematicamente desqualificadas pelos empregadores, que tantas vezes lhes recusam aprioristicamente qualquer
oportunidade. Como refere o plano nacional de emprego, publicado em 3 de Dezembro de 2003 no Diário da República (8142 - I Série-B n.º 279): "Embora a informação
disponível seja escassa, tudo aponta para que as pessoas com deficiência tenham não só baixas taxas de emprego como problemas especiais de inserção no mercado de
trabalho". Disso não restará a menor dúvida. Inclusive, os dirigentes da ACAPO estimam, em suposições que me foram expressas, mas que também são frequentemente veiculadas
para a comunicação social, que exista em Portugal uma taxa de desemprego para as pessoas cegas na ordem dos 80%. Este estudo não corresponde a nenhum estudo exaustivo,
mas se consideramos a elevadíssima percentagem de desempregados entre os associados da ACAPO, a tendência para as pessoas ligadas à ACAPO terem recursos pessoais
mais desenvolvidos e uma leitura mais capacitante da cegueira, assim como e o elevado número de pessoas cegas fora de qualquer contexto associativo ou reabilitacional,
é possível supor que uma tal taxa não esteja muito distante da realidade laboral das pessoas cegas no nosso país.
As "Regras Gerais sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência" aprovadas em 1993 pela ONU são claras em relação ao papel que os estados
devem assumir no fim das discriminações no acesso ao emprego vividas pelas pessoas com deficiência (SNR, 1995):
Os Estados devem apoiar activamente a integração das pessoas com deficiência no mercado normal de trabalho. Este apoio dinâmico pode realizar-se através de diversas
medidas, tais como: a formação profissional, esquemas de quotas de emprego, reserva de emprego ou em áreas específicas, empréstimos ou subsídios à instalação de
pequenas empresas, contratos de exclusividade ou direitos prioritários de produção, benefícios fiscais, preferência contratual e outras formas de apoio técnico ou
financeiro às empresas que contratem trabalhadores com deficiência. Os Estados devem ainda incentivar os empregadores para que tomem as medidas adequadas à adaptação
de postos de trabalho e eliminação de barreiras arquitectónicas facilitadoras do emprego de pessoas com deficiência.
A questão é que, em Portugal, pouco tem sido feito no sentido de quebrar com o fado que tem vindo a remeter as pessoas com deficiência a situações de desemprego
que, em muitos casos, duram o tempo de uma vida. Após a aprovação da Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, estabeleceram-se
algumas medidas legislativas importantes, por via do Decreto-lei n.º 247/89, que essencialmente confere incentivos financeiros aos empregadores que contratem pessoas
com alguma deficiência. No entanto, e conforme eu pude perceber quando exerci funções na unidade de inserção na vida activa da ACAPO, existe um amplo desconhecimento
entre empregadores e pessoas com deficiência destes incentivos, um défice de informação que vem ratificando a situação de exclusão vigente. Ademais, mesmo quando
estes instrumentos legislativos são dados a conhecer no mercado de trabalho, sobretudo por via das organizações de pessoas com deficiência, verifica-se que há uma
activação dos preconceitos existentes na nossa sociedade em relação às pessoas com deficiência, onde as ideias de incapacidade e improdutividade se erigem frequentemente
como obstáculos que inviabilizam sequer uma entrevista ou um período de experiência.
Por outro lado, a introdução de uma legislação de quotas só aconteceu em 2001 - muito por resultado da pressão das organizações de pessoas com deficiência -, três
anos após Portugal ratificar a Convenção de 1983 da Organização Internacional do Trabalho, respeitante à readaptação profissional e ao emprego de pessoas com deficiência,
oito anos após a necessidade das quotas ser definida como uma prioridade de inserção nas "Regras Gerais" aprovadas pela ONU. Mas, como as organizações de pessoas
com deficiência afirmam, a legislação das quotas surgida no Decreto-lei n.º 29/2001, onde se consagra uma quota de 5% às pessoas com mais de 60% de incapacidade,
peca pela estreiteza da sua aplicabilidade. Isto porque esta legislação apenas se dirige aos serviços e organismos da administração central, regional autónoma e
local, deixando de fora, quer o sector privado, quer o regime referente a instituições que estão sob gestão indirecta do Estado. Conforme me dizia José Guerra, um
ex-dirigente da ACAPO:
... saiu a lei, passado dias entrou este governo e disse estão congeladas as admissões para a administração pública, logo ali a administração central ficou rapada,
não serve para nada isto. (...) Sabia-se que a administração pública está saturada, sabia-se que a tendência era mais de diminuir efectivos do que de aumentar, portanto
há um concurso ou outro onde é possível haver, mas tem pouco efeito! Não houve aí vontade política grande para resolver o problema, houve uma vontade de responder
à vontade das associações, que isso era uma lei que já estava nas gavetas há que tempos e o argumento do estado nessas primeiras versões era que devia também abranger
as empresas privadas e o estado dizia "não podemos mandar nas empresas privadas".
No mesmo sentido me dizia Joaquim Cardoso dirigente da APD e da CNOD (Confederação Nacional das Organizações de Deficientes): "O próprio ministro disse que é difícil
aplicar a lei, numa reunião que tive com ele em 27 de Julho de 2001 recebeu a APD". Mas, para além da reduzida aplicabilidade da lei, haverá a notar que, mesmo nas
situações em que as pessoas com deficiência podem concorrer aos concursos públicos, fazendo constar que detêm uma incapacidade superior a 60%, ocorrem amiúde situações
de ilegalidade. Eu próprio tive acesso à documentação da candidatura de um concurso público em que um sócio da ACAPO concorreu a uma autarquia declarando a sua deficiência.
No resultado enviado ao candidato foi omitida qualquer referência aos lugares que, em função do número de vagas a concurso, ficariam destinados a pessoas com deficiência.
Após interposto recurso, e uma vez que a classificação inicial obrigaria a que o candidato fosse seleccionado, o júri enviou uma carta dizendo que tinha havido um
erro na acta que produziu a anterior listagem. Ao corrigi-la, atribuiu desta feita uma classificação negativa ao candidato, de modo a inviabilizar o lugar que a
primeira classificação e a lei das quotas lhe garantiam. De igual modo, no Colóquio "Direitos do Cidadão com Deficiência", realizado em Coimbra a 20 de Novembro
de 2003, vários juristas, pessoas com deficiência e suas organizações, falavam da reduzida efectividade de uma tal lei, e das situações de ilegalidade processual
que frequentemente ocorrem.
Em todo o caso, o que se torna manifesto são as condicionantes de ordem cultural e social que esvaziam muitas vezes a legislação, mesmo onde esta consagra medidas
de acção positiva em relação à empregabilidade das pessoas com deficiência. Denota-se aqui, não apenas a ausência de uma lógica solidária que dê sequencia à discriminação
positiva legislativamente consagrada, mas, mais importante, a vigência de preconceitos que irremediavelmente encerram as pessoas com deficiência nos estigmas da
improdutividade. Preconceitos desconhecedores dos muitos exemplos em que as capacidades das pessoas - consonantes com as suas características pessoais - acrescidas
da vontade de provar valor, mostram o quanto a empregabilidade deste grupo discriminado pode responder às lógicas de produtividade e competitividade vigentes.
Na verdade, aqui como noutras áreas da deficiência que vimos analisando, tanto quanto eventuais insuficiências da legislação, deparamo-nos com um abismo entre
o legislado e o aplicado. Vários dirigentes de organizações de deficiência me expressaram que a legislação portuguesa é, nalguns aspectos, bastante progressiva,
de tal modo que uma leitura à letra da lei não faria supor o quão flagrante é a situação de exclusão vivida pelas pessoas cegas. Neste sentido, torna-se particularmente
pertinente a inferência com que Boaventura de Sousa Santos analisa o carácter inconsequente da legislação que foi sendo publicada em Portugal ao encontro de grupos
subalternizados: "quanto mais caracterizadamente uma lei defende os interesses populares e emergentes maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada" (1999:
155). Portanto, perante essa evidência, determinados avanços legislativos podem inclusive ser entendidos como elaborações que, ao mitigarem o descontentamento social,
por via da discursividade que engendram, pouco mais fazem do que contribuir para a perpetuação do status quo.
Haverá ainda que referir que no encerramento do Ano Europeu da Pessoa com Deficiência foi anunciada pelo Primeiro-Ministro, Durão Barroso, a introdução na Proposta
de Lei de Bases da Prevenção, Habilitação, Reabilitação e Participação da Pessoa com Deficiência de uma quota de 2% para a deficiência no sector privado, nas empresas
a partir de um certo número de trabalhadores2. Uma iniciativa que assoma como uma medida positiva, mas cuja efectividade, à semelhança de medidas anteriores marcadas
pelo insucesso, muito vai depender das formas de fiscalização e controle que se venham a estabelecer. Ademais, haverá a considerar que neste momento o acesso ao
emprego das pessoas com deficiência é também ameaçado pelos factores de instabilidade geral que se abatem sobre os demais trabalhadores, onde o desemprego e a perda
de garantias laborais constituem factores que ameaçam todos, atingindo em particular aqueles cujo acesso ao emprego é já mais precário. Facto que fica bem patente
no modo como a revisão do código laboral tem sido apontada como um elemento atentatório das condições já difíceis das pessoas com deficiência (cf. e.g. CNOD, 2002;
Guerra, 2002a).
Como salienta a já referida "Declaração de Madrid", o emprego constitui-se um elemento chave na inclusão social da deficiência. Como eu próprio pude aferir, as
consequências do desemprego nas pessoas deficientes conduzem frequentes vezes à precariedade económica, à inactividade - ou, em alternativa, a sucessivos e repetidos
cursos de formação profissional, e a um indesejável sentimento de inutilidade que potencia no sujeito, muitas vezes, a incorporação da incapacidade com que a sociedade
tende a pensar a cegueira. Na verdade, em muitas situações me foi afirmada a importância que as situações de trabalho, ainda que temporário ou no âmbito de estágios
de formação, detêm para a auto-estima de pessoas que, enfim, têm a oportunidade de mostrar que o facto de não verem não as inibe de serem trabalhadores capazes,
saudáveis e competentes. É este o quadro de uma antiga e continuada exclusão que marca as vivências de muitas pessoas que vim a conhecer na ACAPO.
1.3. Tacteando os obstáculos
Mesmo que o número de 166 mil pessoas com deficiência visual, apuradas pelos censos de 2001, peque por defeito, e considerando a hipótese da "deficiência visual"
contemplar um amplo espectro de condições de limitação do sentido da visão3, o facto de a ACAPO contar com apenas 3 a 4 mil sócios é bem representativo de uma disparidade.
Esta deve-se a diferentes razões. Em primeiro lugar ao facto de a ACAPO não ter uma grande projecção mediática, algo que se deve ao facto de, por um lado, os meios
de comunicação raramente conferirem espaço aos temas e eventos relacionados com a deficiência e, por outro, à relativa ausência de iniciativas com singular impacto
público. Este reduzido alcance mediático da instituição é bem expresso pelos muitos sócios que nas suas histórias de vida me afirmaram nunca ter ouvido falar da
ACAPO até terem ficado cegos ou até terem sido conduzidos à instituição em busca de alguma situação específica.
Em segundo lugar, haverá que assinalar o facto de o processo de descentralização dos grandes centros urbanos só ter começado muito tarde com a criação da delegação
local dos Açores em 1995. Até então, só Lisboa, Porto e Coimbra (desde 1992) é que tinham estruturas estabelecidas4. Facto que inevitavelmente contribuiu para o
menor alcance da instituição. Em terceiro lugar, segundo me referiu um importante ex-dirigente da instituição, contará o facto de que muitas pessoas adquirem deficiência
visual em idade avançada, tendendo por isso a não se ligarem à vida associativa. E, finalmente, haverá que contemplar o facto de que a instituição ainda tem pouco
para a oferecer às crianças e aos adolescentes cegos e amblíopes.
Em último lugar, ressalta o facto de existirem muitas pessoas cegas, e sobretudo amblíopes que, embora pudessem beneficiar do envolvimento com a ACAPO, procuram
demarcar-se do estigma da deficiência e de um meio associado a uma condição, a cegueira, sobre a qual existem construções sociais profundamente depreciativas. Isto
mesmo me dizia um dirigente regional: "os amblíopes só recorrem à associação quando estão quase totalmente cegos, pretendem demarcar-se do estigma associado à cegueira
e só muito tardiamente procuram desenvolver estratégias alternativas". Haverá, na verdade, uma tentativa de distanciamento em relação a um meio conotado com a ideia
de deficiência, mas também, inextricavelmente, a dificuldade em lidar com a carga simbólica que em termos pessoais implica reconhecer determinado tipo de necessidades
específicas. Por exemplo, havendo condições congénitas como a retinite pigmentar - uma importante causa de cegueira no mundo - que lenta e fatalmente conduz à cegueira
(normalmente já na idade adulta), são poucas as pessoas que têm a coragem de se antecipar começando a aprender a ler Braille ou a usar uma bengala. E, mesmo as pessoas
capazes dessa antecipação não desconhecem uma luta onde se mistura a dificuldade de assunção de algo que é socialmente apreendido como uma deficiência, e a renitência
em aceitar a inevitabilidade da cegueira.
Uma conversa que mantive com o presidente da recentemente (Maio de 2001) inaugurada delegação local de Leiria, mostrou-se igualmente representativa da reacção
de evitamento passível de ser suscitada pela ligação a uma instituição como a ACAPO. Em particular, relatou-me vários episódios de algumas pessoas cegas que haviam
estado todas as suas vidas relegadas ao espaço doméstico. O que acontecia, sobretudo nos meios rurais circundantes a Leiria, é que o incentivo que era dado às pessoas
cegas para participarem nas actividades da ACAPO, tinha que se confrontar, muitas das vezes, com a oposição das famílias tendentes a agir por uma certa vergonha
e a veicular, igualmente, uma descrença nas possibilidades e capacidades do seu familiar. Na verdade, segundo me revelou o dirigente, a necessidade desse trabalho
a ser feito com as famílias, mostrando-lhes que há uma pluralidade de coisas em que os sujeitos invisuais podem participar, tem sido um dos principais desafios postos
à expansão da abrangência da delegação formada. Um exemplo que mostra ser ilustrativo do efeito dos preconceitos e comportamentos de superprotecção instalados na
sociedade e nas famílias, sobretudo nos meios não urbanos.
O que pretendo reter é o facto de apenas uma reduzida parcela das pessoas cegas estarem ligadas à ACAPO. Uma tal constatação obriga ao cuidado de admitir que o
trabalho etnográfico aí fundado pudesse aceder a uma depuração da realidade das pessoas cegas em Portugal. Essa possibilidade tornou-se para mim presente sobretudo
pelo receio de, por via da ACAPO, apenas poder ganhar acesso a narrativas e reflexões sobre a cegueira que fossem pouco representativas das pessoas cegas de um modo
geral. Em particular, equacionava em que medida acederia a perspectivas que, por estarem enformadas pelo discurso associativo, não permitissem contemplar as tensões
que se jogam com as percepções sociais dominantes nas vidas das pessoas. Embora eu tenha verificado uma correlação entre o envolvimento com a associação e as perspectivas
veiculadas pelos sujeitos em relação à sua condição, foi-me dado a conhecer um conjunto deveras heterogéneo de formas de pensar a cegueira e as suas implicações.
Perspectivas onde encontramos as lutas e tensões centrais que marcam a vida de todas as pessoas cegas no nosso país. Esta diversidade de narrativas e percepções
da cegueira, que eu vim a encontrar, justifica-se, antes de mais, pelo facto de haver formas muito heterogéneas de envolvimento por parte dos associados. Incorrendo
no perigo de algum reducionismo classificatório, e não negando as inevitáveis sobreposições, evoco aqui uma distinção que fiz noutro lugar (Martins, 2001: 82, 83)
no sentido de captar o espectro de relações que os sócios estabelecem com a ACAPO. Temos portanto:
1 - -Os sócios que constituem o suporte da dinâmica da instituição. Pessoas que assumem cargos de responsabilidade e dedicam uma considerável parte do seu tempo
livre à consecução dos serviços, relações e eventos empreendidos. Apesar de relevantes excepções (como sendo o Presidente da Direcção Nacional da ACAPO desde 1999),
surgem aqui sobretudo pessoas com formação superior, uma sobrerepresentação que se torna tão mais aguda quanto a população cega tende a ter níveis de escolaridade
mais baixos do que a média. Haverá ainda a referir a prevalência masculina na assunção de poderes/responsabilidades, um dado que reflecte a sociedade mais ampla
e que fica claramente manifesto na composição das assembleias de representantes.
2 - -Os sócios que embora não ocupem cargos conferem assinalável relevância às relações sociais nutridas no seio da instituição. Pessoas que participam com alguma
regularidade nos eventos comemorativos, nas actividades de lazer, convívio e comensalidade, no desporto recreativo, nas férias, ou que simplesmente aparecem com
frequência nas instalações das delegações para falar com alguém ou frequentar o bar. Não é incomum haver nestes sócios situações de envolvimento dos familiares sem
deficiência ou de famílias em que há mais do que uma pessoa cega, sobretudo como produto de casamentos surgidos dentro da ACAPO, das instituições que a precederam
ou dos centros de reabilitação dirigidos à cegueira.
3 - -As pessoas cuja relação com a ACAPO não é movida por um envolvimento social ou político, mas sobretudo com o usufruto dos serviços e facilidades que são
prestados pela associação. Nestes se incluem os sócios que só muito ocasionalmente visitam a associação e mantêm uma relação que se poderia designar de instrumental.
Esta heterogeneidade de ligações com a ACAPO permite explicar parcialmente a razão porque esta instituição confere acesso a um amplo espectro de perspectivas e
não a uma reprodução de uma visão associativa, onde uma leitura positiva da cegueira pudesse eventualmente subsumir o impacto das lutas e contradições que a maioria
das pessoas cegas enfrenta. Mas, muito mais importante do que perceber a riqueza da constelação dos vínculos que as pessoas cegas estabelecem com a ACAPO - e que
parte da premissa de "diferentes pessoas diferentes perspectivas" -, foi perceber uma ambivalência presente no "mesmo". Falo de uma coexistência tensa que reside
em muitas pessoas com quem falei, entre um discurso de que a ACAPO é catalisadora, e as concepções dominantes que no "mundo lá fora" se sustentam acerca da cegueira.
Uma oposição que reconheci como absolutamente fundadora. Por um lado, os discursos promovidos no meio associativo, onde é enfatizada a importância de se "assumir
a cegueira" de um modo positivo, afirmativo das potencialidades e capacidades das pessoas cegas. E, por outro, um certo derrotismo, que tende a assinalar a magnitude
das dificuldades que se colocam, algo que muitas vezes se mostra congruente com a interiorização dos referentes de incapacidade e infortúnio detidos nas concepções
socialmente disseminadas acerca da cegueira.
Considero relevante esta tensão não apenas pelo facto de estar narrativamente presente em muitas das pessoas cegas com quem falei, mas também, e sobretudo, porque
entendo que essa oposição nos confere acesso às lutas de sentido entre as concepções da cegueira que a modernidade herdou e reactualizou sob o signo da deficiência,
e as perspectivas contra-hegemónicas que emergem e se catalisam a patir das próprias pessoas cegas. Neste sentido, a vitalidade dessa oposição não pretende ser representativa
das pessoas cegas que encontrei na ACAPO, onde a assunção positiva da cegueira é frequentemente posta inequivocamente. Pretende, isso sim, ser ilustrativa das concepções
antagónicas que se jogam acerca do significado e das implicações da cegueira na nossa sociedade. É nesta busca que a análise dos usos e discursos em torno da bengala
branca assoma como um poderoso elemento interpretativo que advém daquela que, por uma série de razões, se tende a constituir como uma prática crucial nas vidas das
pessoas cegas.
Quando procurei compreender em que medida as representações incapacitantes acerca da cegueira aportavam nas vivências das pessoas cegas, verifiquei, na inibição
ou na resoluta recusa em utilizar a bengala branca por parte de alguns indivíduos, a mais expressiva demonstração da dificuldade de que se pode revestir o confronto
com as construções culturais hegemónicas constituídas em torno da cegueira. Mesmo em termos do trabalho de campo, a bengala apareceu como um precioso elemento no
acesso a algumas complexidades. Na verdade, nas muitas histórias de vida em que as pessoas vinham dando conta da sua adaptação pessoal à vivência da cegueira, reparei
que o facto de eu fazer alguma menção ao uso da bengala emergia como um elemento precioso para germinar reflexões mais ricas, porque mais complexas, por vezes tensas,
acerca da assunção pessoal e social da cegueira. Nesse ensejo, e antes de me centrar na questão da bengala branca, ou como prefácio da sua entrada em papel, começo
por invocar uma narrativa pessoal, como forma de contemplar previamente a complexidade presente nos mundos da experiência vivida. Lara5 nasceu numa aldeia próxima
de Castelo Branco em 1975. Por via de uma retinopatia pigmentar, uma doença congénita que progressivamente conduz à cegueira, e para a qual não se conhece cura,
tinha já na sua infância sérias limitações visuais, tendo-lhe então sido diagnosticada uma acuidade visual de 3/10. Fez a primária e o ensino preparatório na sua
terra de origem, sempre com algum apoio, mas baseando-se ainda na sua visão para ler e escrever. [As pessoas mais velhas que Lara, e que tinham sérias limitações
visuais na infância, estudaram invariavelmente em instituições de ensino especial dedicadas a pessoas deficientes visuais, onde, normalmente em regime de internato,
desde logo eram ensinadas as técnicas dirigidas às pessoas cegas ou amblíopes (dactilografia, estenografia Braille, trabalhos manuais, orientação e mobilidade, etc.).
Seguindo as tendências vindas de outros países europeus, a educação especial e as suas instituições viriam a ser progressivamente desmobilizadas em favor do ensino
integrado no sistema educativo regular público].
Após terminar o liceu, Lara candidatou-se para a licenciatura de Geografia em Coimbra. No entanto, foi excluída porque, embora tivesse média para o ingresso, o
curso define como pré-requisito a capacidade visual. [Uma das importantes lutas da ACAPO foi denunciar os obstáculos que muitas faculdades colocavam ao ingresso
de pessoas cegas nos seus cursos, por vezes mesmo em disciplinas pouco prováveis de os erigir, como História. Apesar de vigorarem ainda critérios excludentes que
são alheios à realidade de outros países, foram-me relatadas algumas das conquistas da ACAPO nesse domínio]. Em consequência, Lara entrou no curso de Ciências de
Educação. Com a sua visão a piorar progressivamente, Lara contou com algum apoio do Gabinete de Apoio ao Estudante com Deficiência. No entanto, só conseguiu concluir
o curso com o apoio de colegas e com a sua força para improvisar soluções. E foi no decorrer da sua licenciatura que veio a saber da existência da ACAPO, mais exactamente
quando tentou recolher dados para um trabalho que pretendia fazer sobre o tema da deficiência visual. Depois de se ter dirigido à ACAPO acabou por se fazer sócia
e começou a participar nalgumas actividades, no entanto, ainda preservava um certo distanciamento. A sua proximidade com a ACAPO só se tornaria mais efectiva após
ser convidada em 2000 pelo presidente da Delegação Regional do Centro a integrar a lista para a direcção, apelo a que anuiu passando a fazer parte do elenco directivo.
[O referido Presidente da direcção confiou-me que muitas vezes elabora os convites num duplo sentido, prevendo a mais valia que uma pessoa possa trazer a ACAPO,
mas também no sentido de ajudar essas pessoas a assumirem a sua deficiência e encararem com maior naturalidade o uso dos meios alternativos que a ACAPO divulga e
disponibiliza].
Lara, após se ter tornado membro da direcção, começou a ter uma acção muito mais activa e próxima das realizações que iam sendo promovidas. Constatação que advém
das suas palavras, mas que retiro também do facto de a ter visto surgir como uma presença crescentemente assídua nas lides da associação. Contou-me que após se ter
aproximado da ACAPO começou a superar algumas dificuldades pessoais, "sobretudo o assumir a deficiência, que é o primeiro passo". Deixou de ter tantos problemas
em pedir ajuda, começou a rir-se com situações que noutro tempo lhe teriam causado grande constrangimento, nutrindo alguma força e coragem pelos exemplos que conheceu:
"vejo aqui pessoas em condições bem piores que a minha e elas conseguem e penso que também vou conseguir". Quando falei com a Lara em Dezembro de 2002 tinha ainda
2/10 de visão, começando a ter aquilo que se chama cegueira nocturna, ou seja, a incapacidade de ver o que quer que seja em ambientes escuros. Tinha terminado o
curso e estava a fazer um estágio profissional na ACAPO estando responsável pela formação de uma digiteca.
Quando lhe perguntei como lidava com o facto de saber que muito certamente poderia vir a ficar cega respondeu-me:
"Isso... [silêncio], há momentos em que me sinto com força, tomo uma postura de coragem nas dificuldades. Observo as pessoas e vejo-as rirem-se e fazerem tudo, para
mim esses modelos são uns heróis e penso que quando lá chegar e se cegar, quero rir-me das coisas fazer as coisas como eles fazem. Só que há outros momentos em que
eu penso: "porquê eu"?". Há tantas pessoas ruins, é muito duro, muito difícil pensar que isso me poderá acontecer, penso, ainda o ano passado lia o jornal, agora
já não consigo... mas orgulho-me do que fiz até agora e do que consigo fazer e do que tenho feito.
Lara falou-me ainda de uma prima que reside em Castelo Branco que, tal como ela, também tem retinopatia pigmentar. Lamenta o facto de ela ser tão dependente, de
nunca sair de casa sozinha, e de tentar ocultar uma condição que já toda a gente conhece. Atribui a sua forma de encarar a sua condição visual à superprotecção a
que sempre esteve sujeita, vendo com preocupação o facto de ela estar a perder visão e ser incapaz de tomar uma atitude previdente, aprendendo formas de realização
que lhe pudessem conferir autonomia e preparar para a eventual cegueira trazida pelo porvir. Quando perguntei a Lara qual tinha sido o passo mais difícil de dar
para se adaptar à sua visão evanescente a sua resposta foi peremptória: "usar a bengala!, e só o fiz porque teve mesmo que ser!". A minha pergunta não foi inocente,
porque, além de saber o impacto que o uso da bengala frequentemente carrega para muitas pessoas cegas totais, eu já tinha estado presente em situações em que essa
questão havia sido levantada a Lara ainda nos seus primeiros tempos da ACAPO. Particularmente num campismo de 4 dias a que Lara foi e onde estava igualmente presente
um professor de "Orientação e Mobilidade". Recordo de conversas em que o tal professor a procurava mentalizar para a necessidade de começar a aprender a usar a bengala
e a "treinar o ouvido". Referia-lhe o quanto essa aprendizagem seria importante, por exemplo, se tivesse algum trabalho em que saísse à noite. Na altura, Lara ia
tentando mentalizar-se, mas não estava claramente preparada para um passo com tão grande impacto emocional. Na verdade foi incapaz de iniciar a sua aprendizagem
com a bengala até precisar mesmo dela.
Contou-me que começou a confrontar-se com o imperativo de usar a bengala quando começou a trabalhar na ACAPO. Como a certa altura do ano começava a ficar de noite
à hora da sua saída, a questão erigiu-se com denodada premência: "Começar a usar a bengala foi algo de extremamente difícil, mas é algo de que muito me orgulho.
Pensei: "o que é que é melhor? Ultrapassar isto e usar a bengala, ou andar aí a partir a cabeça todos os dias?".
A questão forte a que me dedicarei reside no "isto" que Lara identifica. Lara confessa o quão terrível foi das primeiras vezes que usou a bengala, apesar do percurso
não ser superior a 50 metros: "eu pensava que estava toda a gente a olhar para mim!". Apesar de a sua vida associativa profissional e social já passar há algum tempo
por um contexto de pessoas cegas, apesar de já estar a aprender o Braille e de dominar o uso da ampliação de imagem e os sintetizadores de voz para os computadores,
o passo mais doloroso e mais decisivo (daí o manifesto orgulho) foi sem dúvida ter segurado uma bengala branca para andar na rua. Quando lhe propus reflectir sobre
o facto da utilização da bengala comportar um impacto de assinalável magnitude respondeu que "a bengala pesa muito". Perguntei-lhe porquê. Ergueu o olhar e riu-se
manifestando a impossibilidade de encontrar uma resposta lógica. Mas é esse mesmo peso que para já torna impensável para Lara o uso da bengala na sua terra de origem,
afirmando que não se imagina a usá-la na aldeia onde vivem os seus familiares, amigos e conhecidos.
Além do que me foi confiado nas entrevistas, também outros dados que pude conhecer são expressivos da combatividade vivencial de Lara. A forma acidental como veio
a conhecer a ACAPO, primeiro, e o convite que a levou a ligar-se à associação com maior efectividade, depois, são momentos de um percurso pessoal em que a assunção
da sua ambliopia e possível cegueira se dá junto de pessoas com situações semelhantes. A superação da inibição inicial em se identificar com um espaço emblemático
da cegueira e da deficiência visual tem no seu caso uma dupla razão de ser. Por um lado, o facto de ter incorporado identitariamente a condição de pessoa com deficiência,
com os estigmas e preconceitos que isso implica. Por outro, o facto de ter encarado de frente a mais que provável eventualidade de vir a cegar, iniciando aprendizagens
- como o Braille - que lhe poderão ser valorosas para o futuro. Neste percurso, em que se mistura o confronto com o fatalismo dos diagnósticos médicos (um confronto
que nunca é total, persistindo sempre o "se eu vier a cegar") e a identificação com um meio de pessoas com deficiência, a bengala emerge como a "última fronteira".
Uma fronteira que não foi totalmente transposta, uma vez que assume não se sentir capaz de se pensar a usar a bengala na sua localidade de origem.
A narrativa de Lara mostra ser preciosa pela profunda transformação que o contacto com o meio das pessoas com deficiência visual trouxe à sua forma de estar perante
a sua retinopatia pigmentar. Sendo de ressaltar o incentivo que retira das experiências de pessoas que sempre foram ou ficaram cegas, e que lhe deram provas de uma
capacidade de realização e de uma alegria de viver que julgava improváveis. O facto da bengala emergir como um passo difícil poderia ser interpretado como parte
de uma história de vida particular, onde se enfatizaria a longa ausência de qualquer relação com as pessoas cegas. No entanto, o "peso" que a bengala detém é um
elemento cujo reconhecimento se recolhe na quase totalidade das narrativas, sendo, depois, diversamente gerido pelos sujeitos.
1.4. O "tic-tac": estigma e poder
Na realidade, assim que comecei a estabelecer contacto com a ACAPO tornou--se evidente o incontornável papel simbólico que a bengala detém. De igual modo se tornou
patente o modo como o seu uso era celebrado por quem a empregava na locomoção autónoma. Este facto é em larga medida congruente com o papel que a bengala branca
ocupa enquanto objecto representativo das pessoas cegas e da cegueira. Isso o atesta o facto do dia mundial consagrado às pessoas cegas se designar por "Dia Mundial
da Bengala Branca", ou a circunstância do símbolo da ACAPO, como outros nas organizações congéneres de outros países, consistir numa mão que segura uma bengala.
De igual modo, e a título individual, uma pessoa cega é identificada pelos demais pelo uso da bengala, constituindo a uniformidade da cor uma chave para que os automobilistas
e transeuntes a possam reconhecer enquanto tal (Guerra, 1999). No entanto, a importância que a bengala encerra nos discursos associativos e nas reflexões pessoais
está longe de se esgotar no seu papel representativo e identificativo da cegueira. Começamos a perceber algo mais da sua importância simbólica quando atentamos na
consonância que se procura entre o símbolo da ACAPO e o mote que o suporta: "Querer é poder".
De facto, na mesma medida em que se torna patente de que modo se confere elevada relevância à capacidade de locomoção autónoma, quer pelos sujeitos que celebram
o uso a bengala nos seus percursos, quer nos discursos emanados pela associação6, também me foi possível perceber que o emprego da bengala constitui uma inibição
difícil de ultrapassar para muitas pessoas cegas. É por referência a esta evidência de sentido antagónico que a centralidade da bengala branca enquanto símbolo da
cegueira terá que ser entendida. Portanto, este objecto não só tem a função emblemática de representar a cegueira, como toma parte de um texto de capacitação identitária
onde a afirmação da importância da locomoção autónoma conluia com a afirmação das possibilidades das pessoas cegas. Assim, a acutilância que os discursos e práticas
em torno da bengala branca assumem vai para além da partilhada referência ao símbolo representativo das pessoas cegas, e envia-nos para a "versatilidade dos símbolos"
de que nos fala Anthony Cohen (1992b: 18). Com esta noção, o autor dirige-se para o modo como as demarcações identitárias das comunidades se podem operar a partir
da apropriação de símbolos que embora sejam comuns, ou comummente conhecidos, ganham novas significações a partir de diferentes perspectivas. Podendo, em última
instância, suportar concepções que se antagonizam. É o que se passa com a bengala.
A bengala branca constitui, juntamente com o cão-guia, uma forma de permitir às pessoas cegas a locomoção autónoma em segurança. No nosso país o número de cães-guia
é muito exíguo, algo que se deve ao facto de apenas existir uma escola para os formar, num ensino que já de si é moroso e dispendioso. Não obstante, paulatinamente,
alguns utilizadores de cães guia vão entrando na paisagem das nossas ruas. Indicativo da sua importância é o facto de em 1999, por via da acção da ACAPO, pela primeira
vez, ter surgido legislação (Decreto-lei n.º 118/99) regulando o acesso destes animais a locais, transportes e estabelecimentos de acesso público. Ainda assim, a
bengala branca é, em Portugal e no mundo, o instrumento esmagadoramente usado pelas pessoas cegas para a sua locomoção.
A utilização da bengala para uma efectiva locomoção segura, seja em espaços interiores, seja nas ruas, implica a aprendizagem de um conjunto de técnicas onde relevam
o domínio da bengala para a identificação de perigos e obstáculos, mas também de estratégias que permitam a orientação dos sujeitos no espaço. Este conjunto de saberes
adquire-se no âmbito da disciplina de Orientação e Mobilidade, onde se ensina, por exemplo, que o movimento pendular (hoover) deverá ser 3 a 4 cm exterior à largura
dos ombros, que o toque da bengala deve ser sincronizado com o lado do pé que vai atrás, ou onde se estudam caminhos específicos para se identificarem elementos
que sirvam como ponto de referência. A mobilidade de uma pessoa cega faz apelo à cinestésica (percepção dos movimentos do próprio corpo), ao sentido do tacto (no
reconhecimento de pisos e no próprio uso da bengala), à audição (para identificar, por exemplo, a aproximação de um carro) e ao olfacto (o cheiro à porta de uma
pastelaria pode servir como forma de orientação).
A bengala opera como uma extensão da percepção táctil da pessoa cega, permitindo-lhe antecipar obstáculos, reconhecer referências no caminho, constituindo igualmente
uma forma de se assinalar para os demais a presença de alguém invisual. Função identificativa que se mostra importante quando a bengala é exposta numa passadeira,
numa paragem de autocarro para que o motorista possa identificar a linha, ou, mais trivialmente, para que os peões se possam desviar no passeio. O facto de uma pessoa
cega se poder deslocar livremente, andando a pé ou de transportes públicos, sem ter que depender de alguém que a acompanhe, constitui um elemento fundamental para
que a cegueira não obste à consecução dos propósitos dos sujeitos. Na verdade, este constitui-se como um elemento fundamental para que as mulheres e homens cegos
não tenham que se remeter a gravosas situações de inactividade e dependência. Expressivas desta relevância são as conclusões de uma conferência consagrada ao tema
"A Orientação e Mobilidade dos Deficientes Visuais" que a ACAPO realizou em 1991, como forma de comemorar o "Dia Mundial da Bengala Branca". Deste evento resultou
uma expressiva conclusão: "A Mobilidade foi considerada a actividade de maior relevância no currículo reabilitacional dos cegos por ser o caminho para a sua independência
e autonomia" (ACAPO, 1991).
Em certa medida, a ênfase passível de ser dada à prática da mobilidade autónoma, de que a bengala é instrumento e símbolo, será explicável pela relevância que
ela ocupa na actividade das pessoas cegas. Mas o texto que figura nas conclusões da mesma conferência indicia já algo mais: "Existe nos cegos uma inibição psíquica
na conquista do espaço exterior e uma limitada capacidade de tomar contacto com as pessoas e coisas, restringindo-lhes o livre movimento no espaço" (ACAPO, 1991).
É por relação ao espectro desta inibição que a ênfase que a bengala branca recebe nos discursos poderá ser mais completamente captada. Apesar de poder ser o produto
de uma contingência, o facto da referência à inibição causada pelo contacto com as pessoas preceder a alusão ao contacto com os obstáculos, mostra-se congruente
com os dados que eu apreendi no trabalho de campo: o principal factor na inibição que muitas pessoas cegas têm em relação à mobilidade autónoma é o implicado confronto
com os estigmas e preconceitos com que as pessoas cegas são entendidas à luz dos valores dominantes.
Portanto, quando o então presidente da ACAPO, Francisco Alves (1991), afirmava, num artigo da Revista Luís Braille, que a Bengala Branca deve ser encarada pelas
pessoas cegas como uma "bandeira de autonomia e independência", estamos em presença de um discurso capacitante que visa, antes de mais, instigar a necessidade de,
num mesmo momento, se confrontarem e negarem as representações paternalistas que se tendem a dirigir às experiências das pessoas cegas. A afirmação da bengala como
uma bandeira da independência, sintetiza bem o lugar que este objecto toma na luta pelo significado da cegueira. Um lugar que supera em muito o mero papel de ícone
representativo das pessoas cegas. Na verdade, a afirmação de Francisco Alves, na exaltação do orgulhoso uso da bengalha, tem por contraponto a "vergonha" sentida
por muitas pessoas cegas. Isto é bem patente numa crítica que dirige aos que utilizam bengalas articuladas pela possibilidade de as esconderem:
É uma bengala vendida na UET [unidade de equipamentos tiflotécnicos] da ACAPO e não é mais cara que as outras, mas que tem um grande inconveniente para quem encara
a bengala como um estorvo, uma marca negativa e estigmatizante e não como uma ajuda preciosa, como um computador de acesso à informação, é inteiriça, ou seja, não
se pode meter no bolso e esconder no autocarro continuando hirta como uma bandeira, diremos, de autonomia e de independência (Alves, 1991).
É neste sentido que a importância que a centralidade merecida pela bengala branca no contexto associativo das pessoas cegas nos envia para além da inegável importância
que a locomoção autónoma tem, e para além do seu papel enquanto símbolo representativo da cegueira. A bengala emerge como um símbolo de um poder, onde se reifica
e afirma o poder das pessoas cegas em confrontar os estigmas e contornar os obstáculos que se desdobram nas suas vidas. Esta é uma afirmação de poder contra-hegemónico,
no sentido em que reconhece a magnitude das dificuldades existentes, e dos constrangimentos impostos à inserção e à participação activa das pessoas cegas na sociedade.
Mas é também contra-hegemónica na medida em que as dificuldades que são enfatizadas têm menos a ver com os limites impostos por uma limitação sensorial ou com as
dificuldades de ordem técnica na realização de actividades, do que com as dificuldades impostas pela persistência de pré-concepções estigmatizantes acerca da cegueira,
socialmente dominantes. Nos usos da bengala em particular, a questão que se erige com maior pertinência está próxima daquilo que, numa entrevista que me concedeu,
o mesmo Francisco Alves designou en passent de "incompreensão das ruas". É nesta incompreensão das ruas que se jogam significados antagónicos em torno da cegueira:
a que afirma a capacidade de realização autónoma das pessoas, e a concepção culturalmente dominante em que a cegueira se erige como uma condição evocativa das ideias
de tragédia, infortúnio, dependência e incapacidade.
A questão para que estas preocupações nos enviam prende-se com este facto: quando uma pessoa caminha autonomamente e é identificada como cega pela bengala que
segura, fica sujeita a comentários paternalistas e inferiorizantes, a "ofertas" compulsivas de ajuda, a expressões de curiosidade invasivas e que exotizam a vivência
da cegueira. Portanto, na base da tensão que o uso da bengala é passível de gerar está o inevitável confronto com as percepções socialmente disseminadas acerca da
cegueira enquanto uma vivência de fronteira, uma experiência trágica marcada pela incapacidade. Disto fala Teresa Maia num artigo em que reflecte acerca da tensão
que muitas vezes se coloca à assunção pessoal da cegueira, evocando para tal a sua experiência de muitos anos enquanto utilizadora da bengala:
Recordemos que bengala e sistema Braille são, por assim dizer, símbolos ou sinónimos da cegueira. Portanto não aceitar a realidade e a inevitabilidade desta última
é impeditivo de aceitação das duas primeiras. (...) Um cego jamais passa anónimo e despercebido no meio de uma multidão; é forçado a "exibir" publicamente a sua
deficiência. Isto exige do indivíduo cego uma determinação e um "arcaboiço" bastante grandes e constantes (Maia, 1998: 48).
O necessário "arcaboiço" de que nos fala Teresa Maia ou o confronto com a "incompreensão das ruas" que Francisco Alves tão bem nomeia envia-nos para um dos momentos
emblemáticos da análise sociológica. Refiro-me às interacções sociais em situações de co-presença na vida quotidiana que a obra de Erving Goffman celebremente tematizou.
Particular relevância adquire aqui o livro Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity (1990). Ao centro desta obra o autor coloca os encontros entre os
indivíduos normais e os indivíduos estigmatizados, situações em que a pessoa estigmatizada se expõe aos estereótipos e preconceitos dos demais. São os "encontros
mistos" que Goffman observa focalizando o modo como os sujeitos estigmatizados articulam a sua identidade social, "a apresentação do eu" com a visibilidade de um
atributo passível de que comportar descrédito social. Embora a leitura de Goffman tenda a resvalar para uma certa essencialização do estigma e da normalidade, o
autor concebe o estigmatizado e o normal não como pessoas, mas como perspectivas e adscrições que são socialmente elaboradas. Diferentes papeis sociais que cada
indivíduo poderá desempenhar em diferentes momentos das suas vidas. Isto embora existam atributos que numa determinada sociedade estão quase sempre associados a
um profundo descrédito social (Goffman, 1990: 13-14, 63-64). A análise que Erving Goffman faz dos encontros mistos enfoca em particular a performance social dos
sujeitos estigmatizados e o modo como eles constroem e projectam a sua identidade social nas representações quotidianas. Conforme nos diz Goffman estes "encontros
mistos" podem ser geradores de grande tensão e ansiedade, podendo implicar, em última instância, formas defensivas de antecipação que levem os sujeitos estigmatizados
a evitá-los.
São exactamente estas formas de ansiedade, causadas pelos encontros mistos, que fazem do uso da bengala uma prática em que o confronto com o estigma da cegueira
assume o lugar de um importante desafio pessoal ou mesmo de uma inibição insuperável. A relevância destas situações de interacção social - de que eu me pude aperceber
sobretudo por reflexões e relatos deferidos, mas também por situações que presenciei7 - merece aqui uma atenção que muito deve ao lugar que as tensões e conflitos
aí gerados detêm na vida de muitas pessoas cegas. No entanto, as práticas, as narrativas, as reflexões individuais, e os discursos de grupo que se dirigem ou evocam
o espectro destes encontros mistos mostram-se centrais, não pelos encontros em si, mas porque nos conferem acesso a uma luta pelo significado da cegueira. É nessa
luta que os legados históricos e as construções modernas que o Ocidente investiu na experiência da cegueira se jogam com as perspectivas informadas na "carne" que
se lhes contrapõem, por vezes agonisticamente.
Portanto, a "ordem da interacção" e os palcos quotidianos têm um interesse limitado se não forem articulados com as narrativas e discursos que os pensam. Por outro
lado, a centralidade que eles aí adquirem releva, sobretudo, para um movimento interpretativo que permita articular a "ordem da interacção", a que Goffman se consagrou,
com a ordem social, em particular, com uma ordem social em que as pessoas cegas vivem numa manifesta situação de exclusão. De facto, investido que estou em pulsar
construções que detêm uma profunda dimensão histórica e cultural, o que assume maior proeminência é aquilo que há de congruente entre a situação de reduzida participação
social das pessoas cegas e os valores que se tornam presentes nos quotidianos. Abre-se aí também a porta para uma apreciação de como a "narrativa da tragédia pessoal"
é vivencial e politicamente desafiada. A haver aqui um subtexto ele é, sem dúvida, a persuasão do carácter transversal e omnipresente das representações que associam
a cegueira a uma tragédia inapelável, e, igualmente a persuasão do lugar que estas representações ocupam na perpetuação de uma antiquíssima exclusão social.
Procuro apresentar elementos das minhas entrevistas e observações que veiculem a forte tensão que se joga na apresentação pública da cegueira. O facto de começar
por fazer referência a casos em que essa luta tem um mais forte impacto nos sujeitos tem sobretudo um propósito ilustrativo que, em certa medida, representa, não
as pessoas cegas de um modo geral, mas sim os obstáculos a superar no sentido da afirmação das suas possibilidades e capacidades. Algo que nos envia para a questão
central nas narrativas pessoais: o "assumir da cegueira".
Numa primeira instância dirijo-me para o que me dizia um dirigente da ACAPO: "... a bengala pode ser traumatizante, sobretudo para quem cegou há pouco tempo".
De facto, nas narrativas a que acedi, a dificuldade em usar a bengala surge frequentemente associada ao período que se segue após o surgimento da cegueira. Os problemas
colocados aos indivíduos no confronto com a apreensão pública da cegueira são precedidos e acompanhados das questões que se prendem com a sua própria aceitação da
cegueira. Essa questão põe-se com óbvio impacto quando alguém cega. Podemos dizer que o acometimento de uma cegueira, gradual ou repentino, traz primeiramente implicações
que são vivenciadas ao nível pessoal e das relações próximas. Mesmo que as projecções de valores sociais estejam sempre presentes, só decorrida essa primeira fase
é que o efectivo confronto com as percepções públicas se torna uma questão pensável.
Sobre as respostas dos sujeitos às experiências de perda com forte carácter fenomenológico trazidas pela cegueira, debruçar-nos-emos adiante. Por ora, importa
salientar que o período posterior à cegueira tende a suscitar reacções negativas, quer à proximidade com meios de pessoas cegas, quer à aprendizagem das competências
que são específicas em relação à cegueira. Perante a revolta e angústia que se tendem a instalar na pessoa que fica cega, o uso da bengala revela-se como uma das
etapas mais difíceis e decisivas pelo facto de implicar a assunção social no espaço público de uma deficiência tão negativamente carregada. Nas fases posteriores
à cegueira são particularmente activas as pré-concepções que a enculturação inculca em todas as pessoas, mesmo naquelas que um dia vêm a cegar, como alguém me dizia:
"E sinceramente sempre me fez um pouco de impressão ver os cegos na rua, e hoje faço a mesma figura que eles faziam". No mesmo sentido John Hull (1997: 54), num
livro biográfico em que relata a experiência da sua cegueira, enfatiza que, após ter cegado, a sua autopercepção foi fortemente marcada pela presentificação dos
arquétipos que até então detinha em relação às pessoas cegas. Custava-lhe, em particular, rever-se aos olhos dos outros da mesma forma que ele próprio havia apreendido
as pessoas cegas. De facto, são comuns nestas narrativas as ambivalências em relação às concepções que as próprias pessoas ainda detêm das pessoas cegas, e a sua
própria identificação como tal.
Na verdade, nos casos de uma cegueira recentemente acontecida, a assunção da locomoção autónoma é um período particularmente difícil nos processos de adaptação
que, consoante as circunstâncias, poderão ser mais ou menos dolorosos. Carlos, embora hoje se orgulhe em afirmar que leva a bengala para todo o lado, para o emprego,
para a ACAPO, para ir buscar os filhos à escola, para ir às compras, etc., lembra a fase de evitamento que teve em relação a tal instrumento, após ter cegado. Devido
a um glaucoma, Carlos é amblíope desde a infância. Como nasceu ainda na década de 60, e a sua baixa visão não lhe permitia acompanhar as aulas, abandonou a sua aldeia
na Beira Baixa para vir estudar para Coimbra, com 7 anos, no Instituto de Cegos do Loreto. Sempre viveu com crianças cegas, porque mesmo após terminada a primária,
no Instituto de Cegos do Loreto - que para mais não oferecia resposta - foi encontrada uma solução criativa para os alunos com deficiência visual. Entretanto, o
glaucoma de Carlos foi progredindo, o que, apesar de já estar há muito integrado num meio de pessoas cegas, e de ter tido toda uma aprendizagem que o preparou para
sua possível cegueira, não deixou de acarretar reacções de não--aceitação quando, por volta dos 18 - em 1980 - cegou:
Não é um processo que ocorra de um momento para o outro, leva ali uns meses até ficar completamente cego, depois verifica-se a situação contrária, aqueles a quem
eu tinha dado apoio são aqueles que me vão apoiar, porque há ali um período em que para além de psicologicamente abalado, acarreta-me dificuldades de locomoção,
de sair de casa, perco um pouco a noção do espaço. E há ali um período, das primeiras vezes que sou obrigado a usar a bengala e que o faço com alguma adversidade,
não é um aspecto que me agrade... quer dizer..., e das primeiras vezes isso para mim é uma preocupação o procurar livrar-me da bengala, esconder a bengala, é o choque!
(...) logicamente que me limitou nos primeiros tempos a acção, queria ir aqui ou ali e não me atrevia, tinha a memória visual das coisas mas tinha medo, e percebo
hoje quando as pessoas se inibem porque eu também senti isso, depois o uso da bengala ainda não estava muito incutido na minha mente. Depois na universidade libertei-me
de todas essas situações, tinha mesmo que me desenrascar, e a partir daí assumi a bengala para todo o lado.
Como nota Carlos, uma das dificuldades que uma pessoa que cega sente é a própria construção do espaço e orientação nele, havendo certamente algum temor devido
ao receio de ferimentos por falta de experiência No entanto, a bengala surge também como algo que se evita não apenas na exploração do espaço e na locomoção, mas
também como um objecto cuja posse se deseja esconder assim que deixa de ser necessário. Portanto, apesar de Carlos ter toda uma sociabilidade junto da deficiência
visual, e de a sua cegueira se ter dado como um lento anoitecer de muitos anos, tal não obvia à manifesta dificuldade em ostentar o objecto identificativo das pessoas
cegas, que só anos mais tarde, na universidade, seria aceite como um elemento omnipresente.
Estes processos de passagem tornam evidente a complexidade das questões pessoais emocionais, e o grande esforço implicado até se chegar a um estágio em que os
sujeitos consigam integrar a cegueira como um incontornável traço da sua identidade, para então o exibirem publicamente. No entanto, esse desafio faz-se sentir na
sua magnitude não apenas para quem teve a experiência de perder a visão, mas também para quem nasceu cego ou cegou na infância. Ademais, falemos de cegueira congénita
ou adquirida, a sua superação nem sempre é conseguida.
Várias pessoas que nasceram cegas me revelaram as dificuldades que tiveram em aceitar andar com a sua bengala, denotando em particular as inibições que surgem
no período da adolescência, período em que os olhares e as apreciações dos demais assumem um inédito relevo. Isto expressa bem o que nos diz Teresa, cega congénita
cuja infância foi passada num instituto para crianças cegas:
Pegar numa bengala tem uma técnica, nós não pegamos numa bengala como pegamos numa vassoura, e depois é também o problema de muitas pessoas terem problemas em usar
a bengala, eu própria quando era mais nova tinha... [risos]... quando tinha 11, 12 não sei porquê, deve ter sido a fase da parvalheira! Não sei porquê não gostava
da bengala, mas tive o acompanhamento de um professor de mobilidade, e pronto, lá consegui ultrapassar isso, e agora sem bengala não sou nada, nem consigo afastar-me
dela, acho que não há necessidade de andarmos a bater com a cabeça nos postes ou andar arrastar os pés à procura do lancil do passeio para descer, quer dizer, acho
que damos mais mau aspecto ao fazer isso do que ao andar com a bengala tactear onde é que estão as coisas, mas pronto, é um bocado um problema de mentalização da
pessoa.
Embora eu tenha aqui começado por apontar percursos e fases em que a necessidade de tal "mentalização" tende a ser mais crítica, as preocupações e implicações
adstritas ao uso da bengala emergem numa pluralidade de narrativas. Qualquer pessoa cega que ouse andar na rua recebe o embate das construções que renitentemente
associam a cegueira à vivência da incapacidade. As expressões mais emblemáticas dessa realidade são, sem dúvida, as enunciações compassivas a que as entrevistas
pessoais dos sujeitos aludiram quase invariavelmente: "coitadinho" e "ceguinho". Asserções que são expressas por palavras, ou cujo sentido é tornado implícito em
outro tipo de interacções a que as pessoas cegas quotidianamente têm que fazer face: "... nós andamos aí na rua, agora já não há tanto, mas ainda há com muita frequência
aquele tipo de intervenção de comiseração, piedade, coitadinho... e isso afecta a nossa auto-estima". Em causa está fundamentalmente a necessidade da valorização
e autovalorização das pessoas cegas - de que a mobilidade e o uso da bengala é parte constitutiva - ter que se confrontar com os valores sociais que tendem a negar
as veleidades de uma tal construção positiva e capacitante.
Muitas pessoas falam no potencial de desmotivação passível de advir do confronto com leituras socialmente disseminadas acerca da cegueira. É particularmente instrutivo
o que partilhou comigo um dos dirigentes mais relevantes na história da ACAPO, falando da sua experiência:
Uma pessoa acreditava que era válida, e depois chegava a uma esquina: "coitadinho não vê!". Aqueles comentários deitavam por terra toda uma construção, depois, um
dia, vacinei-me contra isso! Encontrei o meu caminho, as minhas compensações e hoje esses comentários divertem-me!
Aqui se confirma o potencial incapacitante advindo do modo como os "normovisuais" em geral tendem a pensar a cegueira. Salienta-se ainda em que medida o surgimento
de uma imunidade dependeu do surgimento de formas inequívocas de afirmação do valor individual (neste caso resultantes das realização académicas e profissionais).
Mas nem sempre as pessoas se conseguem "vacinar" contra o efeito deletério que a incompreensão das ruas e as asserções de inferiorização vêm a ter na sua autovalorização.
Quando perguntei a Teresa em que momentos mais sentia as perspectivas inferiorizantes das pessoas cegas referiu:
Quando vou na rua, quando as pessoas querem que me sente à força nos autocarros, ou quando alguém quer que eu atravesse a estrada e eu não quero atravessar... [risos]...
"ai coitadinha", "ai é tão bonita", se eu visse ninguém diz que era tão bonita, então na zona onde eu moro apanho autocarros que vêm de zonas ainda mais rurais que
a minha e as pessoas comentam muito "é muito triste!" "não sei quê...", acho que hoje em dia se valoriza muito a visão, e acho que as pessoas dão um valor excessivo
a esse sentido, as pessoas estão muito habituadas a usá-lo.
Há pessoas que enfrentam as reacções da rua e seguram orgulhosamente a bengala, outras usam-nas apenas nas situações em que é estritamente necessária, mas também
há quem se recuse determinantemente a usá-la. Assim acontece com Sara (cega de nascença), uma sócia que estava a fazer formação profissional na ACAPO na altura da
entrevista:
Sou sincera sinto uma certa inibição em andar com a bengala na rua, sinto-me muito excluída pela sociedade. As pessoas não acreditam que eu faço as coisas. ...
É frustrante fazer o curso, as empresas não estão informadas. Tenho mandado o meu currículo e as pessoas perguntam. O que é que um invisual é capaz de fazer? Enerva-me
que me chamem coitadinha, às vezes passa-me ao lado...
O modo como Sara expõe a sua incapacidade para andar com a bengala mostra--se instrutivo. Ali se identifica uma continuidade entre os valores que a inibem a expor-se
como uma pessoa cega, e os que a conduzem a uma situação de desemprego em que os repetidos cursos de formação profissional emergem como uma forma de não estar parada.
Esta é sem dúvida uma questão central: as concepções que fazem da bengala um objecto profundamente ambivalente para as pessoas cegas são aquelas mesmas que contribuem
para a sua exclusão das mais importantes arenas da vida social, onde o emprego ocupa uma posição absolutamente central. Assim, os palcos quotidianos não são mais
do que uma expressão particular desta omnipresença opressiva da equação entre cegueira e incapacidade. A permeabilidade dos sujeitos cegos e das sua narrativas a
esses valores é também aí bem representada, no sentido em que quando uma pessoa de algum modo se mostra incapaz de enfrentar as respostas incapacitantes e compassivas,
as realiza enquanto profecias que se autocumprem. Interioriza-as, portanto.
Virgínia sabe que está a cegar e tem já bastantes dificuldades em explorar os espaços autonomamente. Quando a entrevistei já estava a ter aulas de Braille no âmbito
do curso de formação profissional para se preparar para o futuro. Mas, depois de algumas aulas de mobilidade, sentiu que não conseguiria continuar: "Quando ia com
a bengala na mão havia comentários, além do mais tenho vergonha das pessoas que me conhecem, talvez se fosse noutra cidade...". Joana é cega congénita, sempre foi
muito superprotegida pela família, e, embora já se tenha aventurado a andar com a bengala em Coimbra, na sua aldeia de origem nunca andou sozinha: "nos meios pequenos
ouve-se muito "coitadinha!", na minha aldeia nunca saio sozinha (...), porque não me sinto com autonomia e porque tenho vergonha, mas julgo que mesmo que tivesse
autonomia continuaria a sentir-me inibida".
Em diferentes momentos falei com dois professores de Orientação e Mobilidade, dos poucos que existem em Portugal, ambos com vasta experiência no ensino das pessoas
cegas. Ambos me referiram a importância que a capacidade de uma pessoa cega se locomover autonomamente tem na sua inserção ou reinserção social. Questionei ambos
sobre os imensos obstáculos que as vias públicas e os erróneos comportamentos colocam à exploração do espaço físico por parte das pessoas cegas. Tal como havia aferido
com muitas pessoas cegas, também eles me disseram que os espaços públicos constituem muitas vezes "verdadeiras pistas de obstáculos" mais apropriadas para "corredores
de gincanas": carros estacionados no passeio, passadeiras mal sinalizadas, semáforos sem sonorização, pilaretes com correntes colocados nos passeios, mobiliário
urbano com arestas, etc. Um deles, que trabalha há algum tempo como técnico de acessibilidade da ACAPO, falou-me de como as construções urbanísticas se vêm mostrando
continuadamente negligentes em relação às pessoas com mobilidade condicionada. Há, na verdade, um disseminado incumprimento do que ficou legislado no Decreto-lei
n.º 123/97 de 22 de Maio, cujo preâmbulo refere a necessidade da supressão das barreiras urbanísticas e arquitectónicas com via à integração social das pessoas com
mobilidade condicionada. Para o referido técnico, a legislação é de pouca valia se não houver maior fiscalização, e se as questões do design universal não começarem
a ter lugar nas faculdades.
No entanto, quando referi ter notado uma forte inibição no modo como muitas pessoas cegas encaram o uso da bengala e a locomoção autónoma, os aspectos técnicos
da locomoção foram secundarizados. Perante essa questão, a tónica foi posta no temor manifestado, pelas pessoas que cegaram há pouco tempo, ao nível da exploração
do espaço e, em sentido mais geral, na dificuldade que muitos ainda têm em assumir a cegueira. Foi-me relatado o facto de muitos alunos se sentirem incomodados com
as atitudes paternalistas, com as ajudas compulsivas, com os comentários, e até com ofertas económicas de ajuda quando, por exemplo, viajam no metro8. Como me referia
um dos professores:
Sim, na realidade há muitas pessoas que ainda não estão preparadas para assumir a cegueira. Não é o caso do Zé Francisco ou do Cruz [pessoas presentes no contexto
da entrevista, um treino de goalball], mas principalmente daqueles que cegaram há não muito tempo, ou então daqueles que, sendo cegos de nascença, sempre foram muito
protegidos com os pais. E, na realidade, ainda têm medo de assumir a cegueira perante a sociedade. (...) Já tive que lidar com muitas pessoas que se recusavam a
pegar na bengala. Inclusive um miúdo que tinha cegado aos 11 anos (é uma idade dramática!), e que foi meu aluno [no instituto de cegos do Loreto] e que pura e simplesmente
se recusava a pegar na bengala. A certa altura disse-lhe, não há aqui atrelados! Acabou por correr uma meia maratona com a bengala na mão!
Quando o questionei acerca do impacto relativo que os obstáculos físicos e as questões sociais detêm na inibição que tende a acometer as pessoas cegas, respondeu-me
de pronto:
.. há realmente algumas situações, por exemplo passadeiras mal sinalizadas, em que o cego requer algum apoio, mas o principal dificuldade é de ordem psicológica,
a dificuldade de relação social entre o cego e pessoas que não estão habituadas a lidar com cegos - e lá vai então um "coitadinho" quando eu estou presente muitas
vezes tomo posição e digo: "calma aí!" (minha ênfase).
Muitas vezes a dificuldade em assumir a cegueira e, por consequência, a bengala, coloca-se só em relação aos meios de origem das pessoas, onde normalmente uma
"certa vergonha" se torna mais premente. Alberto, que cegou em 1982, já na idade adulta, conta como, depois de tanto tempo passado, ainda sente algumas reticências
em andar com a bengala, sobretudo na sua zona de residência. Alberto, residente em Leiria, trabalhava na construção civil, e sempre teve uma visão reduzida que foi
piorando com o tempo, até o deixar cego em 1982 e incapaz de realizar as funções de até então. Em 1983 foi para Lisboa para o Centro de Reabilitação Nossa Sra. dos
Anjos. [Em Portugal existem apenas dois centros de reabilitação dedicados às pessoas cegas, ambos localizados em Lisboa, que têm listas de espera às quais dificilmente
conseguem dar vazão. São eles o referido centro de Reabilitação Nossa Sra. dos Anjos, pertencente ao Estado, e a Fundação Raquel e Martin Sain, que é uma Instituição
Particular de Solidariedade Social]. Ali aprendeu as coisas necessárias para se adaptar a viver como uma pessoa cega, desde a execução das tarefas mais triviais
do quotidiano até à aprendizagem do Braille e da Orientação e Mobilidade. Após ter estado 4 meses na Nossa Sra. dos Anjos a fazer a sua reabilitação inscreveu-se
na Fundação Sain para fazer uma formação profissional e esperou em casa. Esteve lá em 1985-86 onde se especializou a fazer assentos de palha, mas, dado que pouco
se aprendia por lá, voltou para casa. Como não surgisse nenhuma possibilidade de emprego, e sem vontade de ficar a viver longe da mulher e da filha, ficou em casa
até 2000: "então fiquei por casa, porque andar num curso ou andar na reabilitação na minha mente era governar duas casas". Como era sócio da Luís Braille (uma das
instituições de que a ACAPO resultou) desde 1983, e consequentemente da ACAPO, ia recebendo alguma correspondência: "comecei a ver, e via pelas revistas que mandavam
que as pessoas já mexiam em computadores, e um dia apareceu-me uma comunicação para me inscrever num mini-curso". Após fazer o mini-curso inscreveu-se na pré-formação
ministrada pela ACAPO e na altura da entrevista (2002) estava a fazer a formação profissional, residindo para tal em Coimbra. [Estas deslocalizações são comuns a
muitas pessoas cegas que fazem formação nalguma das três delegações regionais da ACAPO, nos já referidos centros de reabilitação, ou ainda na Associação Promotora
do Emprego dos Deficientes Visuais (APEDV) ou na Associação Promotora do Ensino dos Cegos (ambas IPSS's localizadas em Lisboa). O facto destas formações implicarem
que as pessoas vão residir para os centros urbanos recobre-se de maior pertinência biográfica por serem raras as situações de contratação, o que faz com que muitos
formandos por vezes repitam 3 e 4 cursos seguidos longe de casa - sem grandes alterações de conteúdo - apenas como forma de não estarem inactivos e poderem receber
o subsídio de formação. Como alguém me disse em tom irónico existe entre os cegos portugueses uma classe que são os "formandos profissionais"].
Quando perguntei a Alberto se já era capaz de se assumir como uma pessoa cega, respondeu-me que sim, embora referisse que sempre sentiu em relação aos meios de
pessoas cegas - desde que os conheceu em 1983 - uma certa distância pelo facto ter visto durante grande parte da sua vida. Quando o questionei como encarava o uso
da bengala, disse:
.. Ah!... (silêncio) Isso é outra situação que estou também um pouco a ultrapassar, na minha freguesia foi se calhar a última em que comecei a andar com a Bengala,
em Lisboa, pois claro, tinha que me mentalizar, precisava dela, comecei a andar em Leiria, prontos, nos outros lados. Um dia pus na cabeça as pessoas já nos iam
ver em Leiria, etc. e se nos vêem na freguesia o embate não é tão forte. - Porque é que lhe custava? - Sei lá... se calhar complexo, depois um dia... "estou-me a
chatear para quê?" Comecei a circular e se as pessoas tiverem que falar se tiverem que olhar ficam a olhar 2 ou 3 dias ou uma semana e depois isso passa. Mas levou
algum tempo, posso dizer que levou algum tempo, comecei nas partes circundantes e só em último é que comecei a andar na freguesia, depois já não há qualquer problema,
está ultrapassado. É aquela questão os comentários que as pessoas fazem, coitado ficou cego, e nós por vezes apercebermo-nos e ficamos mais magoados assim.
Após ter realizado a reabilitação profissional, Alberto ficou 16 anos em casa. Esta sua longa reclusão é expressiva do fechamento a que as pessoas cegas ficam
votadas pela inexistência de alternativas de emprego, ou mesmo de formações conciliáveis com a vida familiar. Estas situações de inactividade são tão mais relevantes
porque apenas as podemos adivinhar e supor, dado que raramente surgem nos espaços onde podem adquirir alguma visibilidade. A relação de Alberto com a sua cegueira
e com a assunção dela é bem interessante e expressiva de um fenómeno que se tornou recorrente. Quando Alberto afirma que na sua freguesia foi o sítio onde mais lhe
custou a usar a bengala não se referiria certamente a problemas de ordem técnica, dado que esse é, afinal, o espaço que melhor conhece. Mas sim ao tal complexo que
se prende com a dificuldade em aparecer como cego perante outros significativos que o conheceram vendo. Apercebi-me da existência de muitas pessoas cegas que, embora
tendo vidas activas, utilizando e assumindo a bengala nas situações sociais, se confessam incapazes de a usar nos seus meios de origem, normalmente rurais. Junta-se
aí o facto das "mentalidades" nesses meios ligarem mais fortemente a cegueira à ideia da desgraça, e ao modo como a prevalência dos vectores sociais de honra e vergonha
(cuja proeminência Pitt Rivers influentemente associa às sociedades tradicionais mediterrâneas) induz muitas vezes as famílias à "ocultação" da deficiência.
Tive duas experiências bastante interessantes, em duas provas de bicicleta que foram organizadas nas aldeias de dois sócios. Nessas ocasiões em que eu participei
pedalando e tomando igualmente parte nas "comezainas" que se seguiam às provas, pude perceber o profundo efeito pedagógico nas populações do aparecimento de uma
dúzia de pessoas cegas praticando desporto, rindo, falando das suas profissões, apresentando a família. Apesar dos sócios em causa estarem bem integrados nas respectivas
comunidades, pude perceber nos seus conterrâneos o desvanecer de um olhar que tende a exotizar o "único cego conhecido" no confronto com as constelações de diferença
que cada pessoa cega ali trazia. A certa altura um senhor dirigiu-se a mim e perguntou se um rapaz era filho de um casal de pessoas cegas com quem eu tinha ido.
Respondi que sim e verifiquei como essa asserção o fez reflectir acerca do seu conterrâneo cego. Essas duas experiências em particular, por terem ido ao encontro
de comunidades específicas de origem de sócios, foram uma boa prova do papel que as meras actividades de recreação também operam na transformação das concepções
acerca da cegueira.
Muitas pessoas me disseram que se nota uma diferença nas reacções às presenças de uma pessoa cega consoante os meios, sendo que os meios urbanos, onde circulam
mais pessoas cegas, tendem a ser aqueles em que as pessoas tendem a agir menos por preconceito. Verifica-se que a idade das pessoas também é um factor que faz acrescer
as possibilidades de surgirem respostas inferiorizantes, isto quer seja nos palcos da rua, quer seja numa entrevista de emprego - as situações respondem a uma lógica
similar. Também em termos diacrónicos várias pessoas me referiram que embora a ideia do ceguinho e as suas versões surjam em muitos palcos da vida social, haverá
a registar uma ténue transformação no modo como as percepções evoluem no sentido de reconhecer as pessoas cegas como agentes capazes. No entanto, permanecem com
relativa força as lógicas fundadas no paradigma ocidental, onde o défice implicado pela cegueira é ampliado, e a meta-narrativa da tragédia pessoal persiste sendo
uma lógica que, manhã após manhã, se levanta para um duelo com os intentos e quereres das pessoas cegas.
O lugar que estes duelos assumem, e a dificuldade que criam para a assunção pessoal da cegueira passa por muitos elementos que se prendem com as políticas sociais
capazes de confirmar o potencial de realização que reside nas pessoas cegas. A questão forte é que, enquanto tal não acontece, são as mais triviais capacidades -
como andar com uma bengala na rua - que são cerceadas pelo impacto das concepções que renitentemente entendem a cegueira pela lógica do desvio e da tragédia. Como
me dizia uma psicóloga que trabalhava na ACAPO:
(...), aqui na ACAPO tudo bem, mas quando vão lá para fora é complicado, o simples facto de alguém lhes chamar coitadinhos é algo que lhes custa muito, e modo como
o mundo lá fora olha para a cegueira acaba por lhes tirar força porque eles interiorizam a visão de que o cego não consegue. É claro que eles estão limitados para
muitas coisas, a visão é importantíssima, mas muitas vezes essa interiorização leva-os a não lutar por aquilo que está ao seu alcance.
"Assumir a cegueira" implica enfrentar o estigma portentosamente alojado nas elaborações do nosso paradigma cultural, implica reconhecer as capacidades que convivem
com a falta de visão. A mais representativa expressão da força que o embate com os preconceitos e estereótipos erigidos em torno da cegueira ocupa nas narrativas
pessoais, e do papel quase mágico ocupado pela bengala, ter-me-á sido porventura confiado numa interessante enunciação pessoal de José Guerra. Ex-presidente9 da
ACAPO, José Guerra é, juntamente com Francisco Alves, a figura mais importante na curta história da associação iniciada em 1989. Após uma granada que lhe roubou
a visão enquanto estava ao serviço da força aérea como piloto, tirou o curso de direito, a que se seguiu uma pós-graduação em arquivo bibliográfico, com base na
qual exerce funções desde há um tempo na Câmara Municipal de Coimbra, enquanto responsável pela secção dirigida às pessoas com deficiência visual. Guarda como grande
frustração o facto de, apesar das suas notas, não ter podido ingressar na carreira de Juiz, quando noutros países várias pessoas cegas o fizeram. Após ter falado
com o ex--dirigente sobre algumas questões associativas sobre as quais à frente me debruçarei, pedi-lhe que me contasse a sua história de vida. Ciente de todas
as suas conquistas pessoais após ter ficado abruptamente cego, assim como do seu envolvimento na causa das pessoas deficientes em Portugal, perguntei-lhe como é
que, em termos emocionais, se tinha dado a sua assunção da cegueira. Respondeu-me com uma instigante honestidade, questionadora de si próprio:
Assumi e não assumi. Por exemplo, eu nunca andei de bengala na minha terra, a bengala é o sinal, e quer se queira quer não é estigmatizante, na minha terra eu ando
com pessoas da família e toda a gente sabe que sou cego, o certo é que sempre senti essa inibição, com a bengala é outra coisa. E basta ouvir o que as pessoas dizem
quando passamos na rua... nunca o fiz na minha terra, não quer dizer que numa situação imperiosa não o fizesse, mas como nunca fui forçado a tal... (minha ênfase).
A questão que José Guerra levanta não põe em causa as suas possibilidades de realização, uma vez que em Coimbra, onde reside, usa a bengala como um precioso instrumento
nas suas lides diárias. No entanto, este reconhecimento de uma possível inibição em usar a bengala na própria terra - que algumas pessoas por vezes escamoteiam dizendo
apenas que não usam porque não precisam - mostra-se valoroso para se pensar essa "outra coisa" que a bengala é. A questão é que José Guerra já apareceu por inúmeras
vezes na televisão representando a ACAPO identificando--se como pessoa cega, de igual modo na sua terra toda a gente sabe que é cego. No entanto, esse sinal da
cegueira ainda preserva algum peso. Podemos perceber aqui que, sendo a questão central o modo como a cegueira identifica uma pessoa enquanto cega, evocando construções
desqualificantes, há também um efeito de des-identificação e despersonalização que é sentido pelos sujeitos quando seguram uma bengala. A questão é que, mesmo que
toda a gente saiba da cegueira de determinada pessoa, o uso da bengala, ao constituir a incorporação de uma imagem emblemática do cego, faz subsumir as referências
idiossincráticas dos sujeitos ao ícone do "cego". Utilizando a formulação de Alfred Gell (1999) sobre a tecnologia do encantamento e o encantamento da tecnologia,
a bengala não é um qualquer objecto artístico que exerça sobre nós um feitiço pelo modo como a tecnologia foi encantada na sua feitura. Ao contrário, a bengala é
um objecto trivial. No entanto, coloca os sujeitos que a usam perante o espectro de um encantamento, aquele por via do qual a Sara, o Carlos, o Alberto, a Lara,
etc., percebem o espectro dos seus nomes feitos significantes secundários em relação à bengala que os demarca enquanto pessoas com deficiência, enquanto pessoas
cegas. Este facto expressa-se também na tendência para que as pessoas cegas sejam confundidas umas com as outras, para se supor que todas se conhecem entre si, ou
para se emitirem opiniões generalistas das pessoas cegas a partir de experiências pontuais. Aliás a consciência desta des-identificação é fortemente vivida no seio
da ACAPO e revela-se na responsabilização das acções de cada pessoa pela imagem dos restantes. Várias vezes assisti a discussões e conversas em que os comportamentos
de alguém num estágio de emprego ou nas interacções sociais são pensados como ocorrências que perigam a imagem das pessoas cegas (ou da "malta cega" como muito frequentemente
se diz). Lembro, por exemplo, de sócios discutirem com os formandos por estes terem deixado que os motoristas dos autocarros municipais parassem mesmo em frente
à DRC da ACAPO, onde não há paragem. Embora os formandos alegassem que os carros naquela zona costumam estar sempre no passeio (um facto), esta prática era tida
por alguns como uma ratificação de visões caritárias que acabam por se dirigir à generalidade das pessoas cegas.
Mas a questão que nos trazia deve ao facto de a desapropriação da identidade implicada pelo uso da bengala ser tão mais dolorosa quando o significado da cegueira
tende a resvalar, à luz dos valores hegemónicos, para as ideias de infortúnio e incapacidade, valores cuja disseminação no tecido sociocultural adquire por vezes
a efectividade de uma profecia que se autocumpre, de um "regime de verdade". O nível de desemprego, que na ACAPO se estima na ordem dos 80% para as pessoas cegas,
é a mais poderosa representação do fracasso das políticas educativas e de emprego, mas é também, e sobretudo, a expressão dos preconceitos que na nossa sociedade
vigiam as capacidades e intentos de quem é cego. Tudo num ciclo vicioso em que o status quo tende a ser consentido a partir de uma totalização da incapacidade a
ser implicada pela cegueira.
Interessantemente, a partir do discurso germinado e catalisado no seio da ACAPO a não utilização da bengala envia os sujeitos para o reconhecimento de uma grave
incompletude pessoal. Assim, as narrativas dos sujeitos, uma vez tocadas pelos discursos associativos, tendem a ser postas perante um imperativo: "ainda hoje me
custa a pegar na bengala, sei que é errado, mas é uma falha que eu assumo". A noção do erro que reside na recusa das capacidades e possibilidades reservadas às pessoas
cegas é o outro lado do papel que a ACAPO tem na capacitação dos sujeitos, instando-os a superar as dificuldades e a enfrentar o estigma.
Quando uma pessoa deficiente visual, em algum momento do seu percurso de vida, se aproxima da ACAPO - dos serviços que esta presta, dos eventos que organiza e
das relações sociais que nutre - toma contacto com exemplos de superação e realização de outras pessoas cegas. Aproximando-se assim também de uma discursividade
cujos termos se encontram bem reificados e representados num artigo constante da revista Luís Braille, onde se designam os imperativos que uma pessoa cega deverá
seguir de modo a singrar enquanto um indivíduo capaz e valorizado. Conforme se apresenta no excerto que aqui transcrevo, "Um cego ajuda-se a si próprio":
- -Ao ter a consciência da sua real capacidade intelectual;
- -Ao ter consciência da sua verdadeira capacidade para realizar uma tarefa, seja no âmbito familiar, no escolar ou no profissional;
- -Ao exigir os seus direitos, responsabilizando-se pelo cumprimento dos seus deveres;
- -Ao reconhecer a necessidade de aprendizagens específicas, sem complexos;
- -Ao consciencializar-se da necessidade de usar uma bengala;
- -Ao ter de se comportar socialmente, defendendo-se se e quando é agredido, mas não ofendendo nem agredindo se e quando é tratado com correcção e com espírito solidário;
- -Ao transmitir a terceiros as suas experiências, para que esses possam ajudar outros deficientes carecidos;
- -Ao tornar-se autónomo, relativamente à superprotectora família, com correcção, de modo pedagógico, mas com firmeza, pois não é tarefa fácil;
- -Ao mostrar respeito pelos outros e por si próprio. (Portugal, 2000, minha ênfase).
É este o texto próximo daquele que na ACAPO se erige em prol de formas de capacitação passíveis de tornar os sujeitos cegos capazes de se imunizarem e fazerem
frente às construções que sobre eles se erigem. Uma luta tensa que atravessa as incidências pessoais, escolares e profissionais nas biografias dos sujeitos, e cuja
superação fica significativamente epitomizada na vitória sobre o constrangimento que quase invariavelmente - em algum momento de cada história pessoal - se apõe
ao uso da bengala. Tal ideia fica igualmente bem expressa no que me disse Francisco Alves, num discurso em que a necessidade do confronto com as representações dominantes
e a assunção da cegueira, enquanto a negação dessas representações, se diluem num só imperativo:
"... eu para me integrar tenho que me aceitar como sou, e se eu sou cego não posso querer ser não cego. Os cegos só têm que compreender uma coisa: o cão ou uma
bengala! Essa limitação [da mobilidade autónoma] é uma lacuna grave da falta de educação e de formação. E era preciso ensinar aos jovens: "é mais importante tu andares
pendurado na tua mãe ou seres autónomo e andares por onde queres?", "É mais importante andares com a mão à frente e caíres ou desviares-te das coisas e não ter acidente
nenhum?" Agora também já andam a dizer que não querem ensinar o Braille, é o país do facilitismo, são situações que têm que ser supridas, eu conheço casos dramáticos,
uma rapariga amiga de uma minha sobrinha que não anda sozinha na rua!, isto é dramático!, é uma coisa que não tem explicação! Mas enfrentar a sociedade será às vezes
um pouco complexo...? Mas é demonstrando o contrário que alteramos. Se a sociedade está errada, não é a fugir desse problema, é enfrentando. Eu sou contra o termo
invisuais sou contra os eufemismos, temos que enfrentar as coisas como elas são! ...não é fácil porque não foram educadas e reabilitadas! Está a perceber? Essas
pessoas são duplamente cegas! Não tenho mais comentário a fazer! Uma pessoa que não se aceita como é, não se integra!"
É muito claro como se erige uma perspectiva que é, ao mesmo tempo, optimista e pragmática, que muitas vezes toma as dificuldades socialmente impostas como um dado
que o sujeito deve estar preparado para desafiar. Assim, o cego que é duplamente cego, é aquela pessoa que no seu viver se ajusta às conotações incapacitantes que
socialmente se adscrevem à cegueira. Na verdade, o discurso associativo não apenas invoca os sujeitos a reconhecerem as capacidades que residem na cegueira, negando
as visões dominantes, como também apropria essas mesmas visões para desqualificar aqueles que delas se mantêm reféns. Ou seja, as ideias veiculadas nas expressões
"coitadinho" e "ceguinho" são recusadas, mas tidas como apropriadas para falar de quem não consegue contrariá-las activamente nas suas vivências e nas suas relações
com a própria cegueira. Temos, pois, que, à luz de uma tal discursividade, uma pessoa cega é de facto um ceguinho, um coitadinho, quando incorpora os valores culturalmente
disseminados em relação à cegueira, ou se mostra incapaz de os enfrentar. É um ceguinho quando calibra as suas possibilidades com a limitação que é hegemonicamente
adscrita à sua deficiência, confirmando-a na sua atitude perante a vida e os obstáculos que a todo o momento se colocam no seu caminho.
Há aqui um uso discursivo que capta bem uma leitura resistente que, entre as pessoas cegas, se erige para lutar por um outro significado da cegueira: uma leitura
que põe a cegueira fora da "narrativa da tragédia pessoal", e que nega a autoria moderna vocacionada a consagrar a anormalidade, o défice, a imperfeição corporal,
o oculocentrismo, a limitação, o desvio e a prisão sensorial, como os referentes a partir dos quais a cegueira é passível de ser entendida. Esta apropriação criativa
e oposicional das leituras que desqualificam as pessoas cegas fica sublimemente representada numa situação de campo, mais exactamente num campismo, em que um senhor
cego, dando pela ausência da sua bengala, exclamava: "ando aqui sem bengala, pareço um ceguinho!". Portanto, na lógica associativa os "ceguinhos" existem de facto:
são aqueles que ao não conseguirem assumir a sua cegueira afirmando as suas capacidades, permitem que as narrativas de infortúnio e incapacidade se realizem nas
suas vidas. Em certo sentido, as questões e ambivalências ligadas aos usos da bengala branca emergem como uma expressão metonímica de uma luta simbólica em que o
significado da cegueira é disputado, ao nível associativo e ao nível pessoal. Esta é uma luta que apresenta profundas implicações identitárias nas pessoas cegas
e que, grosso modo, as coloca entre o fatalismo derrotista e a afirmação positiva da cegueira: uma insurgência activa que consiste, muitas vezes, na mera resistência
em acreditar no muito que podem realizar nas diversas arenas das suas vidas.
Mas, se aqui dei ênfase ao vigor com que as representações dominantes podem obviar aos percursos pessoais das pessoas cegas, importará que refira igualmente os
muitos casos de realização pessoal, académica e profissional que conheci no seio da ACAPO. Muitos dos quais se referem a pessoas que fazem da sua vida uma forma
"evangélica" de transformar as visões prevalecentes sobre a cegueira, quer pelo modo como se "dão" à ACAPO, quer pela forma como gerem os seus encontros quotidianos.
Devo dizer que tomei contacto com pessoas cujas conquistas são produto de uma enorme envergadura humana perante as dificuldades. Mas, creio que mais do que conhecer
"grandes mulheres" ou "grandes homens", compreendi como as mulheres e os homens tantas vezes se engrandecem perante a adversidade, tornando-se capazes de a demover
enquanto tal. No que concerne ao uso da bengala, em particular, conheci muita gente que a usa orgulhosamente - muitos atribuem-lhe um nome afectuoso - e que nas
suas lides diárias, mais do que ignorar a "incompreensão das ruas" procuram exercer uma pedagogia com a sua forma de estar, em que a desdramatização pelo uso do
humor emerge frequentemente como um elemento fundamental. Uma personagem dessa capacidade de superação com que me familiarizei é bem incorporada por Afonso, um sócio
que conheci numas férias que passei em Mira com a ACAPO. Tinha cerca de 60 anos quando falou comigo. Após ter ficado cego, aos 50 anos, aprendeu o Braille (nas suas
palavras foi aprender a ler outra vez), Orientação e Mobilidade, e mudou de funções no seu trabalho. A cegueira veio lentamente ao longo da sua vida adulta, soube
recebê--la: "Sempre que piorava continuava a andar em frente... comecei a assumir que tinha que ser cego, comecei a utilizar a bengala muito antes de precisar dela".
Figura elegante (apesar de nada ver não prescindia dos seus óculos, porque quando cegou havia já 40 anos em que pô-los era a primeira coisa que fazia no seu dia),
Afonso é uma pessoa de uma enorme capacidade de adaptação, um exímio "observador" dos contextos, sendo capaz, por exemplo, de se ausentar durante horas para passear
pelas ruas de uma localidade que lhe era desconhecida, contando para isso com um óptimo sentido de orientação e com uma grande facilidade em se relacionar com as
pessoas e lhes pedir ajuda em caso de necessidade:
O modo como as pessoas lidam com o deficiente visual também depende dele, mesmo que não me conheçam eu peço ajuda, não tenho problema. (...) Quando ouço dizer "deixa
passar o ceguinho" deixo-os a falar sozinhos e continuo, eu não tenho vergonha de andar com a bengala, a bengala é o símbolo do cego!
Um elemento importante na vida de uma pessoa cega é o modo como lida com a necessidade de ajuda em situações onde a visão possa emergir como uma mais valia. Na
verdade, como refere Afonso, a aceitação de ajuda é passível de ser incorporada numa narrativa de capacitação e autonomia. Portanto, o "assumir a cegueira" poderá
constituir não só a elaboração de uma resistência pessoal em relação às recorrentes asserções piedosas e inferiorizantes, mas também, e concomitantemente, a elaboração
de uma valorização pessoal em que o sujeito é capaz de aceitar e pedir ajuda sem que com isso a sua auto-estima seja posta em causa. No entanto, esta situação é
bem gerida por muitas pessoas cegas que aprenderam a negociar a aceitação de ajuda sem que a sua auto-representação de independência e autodeterminação seja posta
em causa. Se é verdade que muitas vezes as ofertas de ajuda infantilizam as pessoas cegas, pelo seu carácter compulsivo e porque negam amiúde à pessoa cega a sua
autodeterminação e o seu poder de decisão, a capacidade dos sujeitos para com elas lidarem está, na leitura que faço, muito ligada às suas narrativas pessoais.
Quando falava, em situações informais da vida pessoal, sobre o tema da minha tese e sobre as pessoas cegas, não era incomum alguém me referir já ter vivenciado
interacções em que se teria notado da parte destas um "complexo" em aceitar ajuda. Do mesmo modo, aconteceu no contexto da ACAPO algumas pessoas cegas imputarem
noutras um "complexo" que tornaria difíceis as suas interacções com os "normovisuais" e, em particular, a aceitação de ajuda: "muitos cegos não admitem ajuda, eu
até peço, temos que admitir as nossas limitações!". Como referi, isto muito deve ao desconhecimento das pessoas que abordam as pessoas cegas frequentemente investidas
de atitudes paternalistas que lhes ferem a sensibilidade pessoal. Falo, por exemplo, das situações em que, sem que seja perguntado se a ajuda é precisa, as pessoas
cegas são empurradas para se desviarem dos obstáculos ou para atravessarem a estrada; das comunicações orais quase gritadas como se a cegueira implicasse surdez;
ou das ofertas de lugares nos autocarros como se a cegueira estivesse associada a um problema motor10.
Procurando explorar a relevância dos referidos "complexos" nas experiências a que acedi, verifico que eles são, no fundo, uma sensibilidade mais viva e defensiva
em relação aos processos quotidianos de estigmatização e às práticas - como a aceitação da ajuda - que possam reforçar as visões dominantes sobre a cegueira. Uma
"sensibilidade" que muito deve à percepção que as pessoas têm em relação ao lugar que os estigmas sociais ocupam nas suas narrativas de vida. Isto é, as pessoas
cegas que têm oportunidade de trabalhar, de proverem o seu sustento económico, de se preencherem socialmente, e onde a cegueira, em suma, não representa um obstáculo
à realização pessoal, tendem a ter uma maior capacidade de gerir as suas interacções minimizando o impacto de asserções incapacitantes sem que a sua auto--estima
seja posta em causa. Já a presença de um designado complexo, muitas vezes manifesto pelo desconforto com a aceitação de ajuda, ainda que ela possa ser necessária,
surge normalmente associado a narrativas pessoais onde se denota uma "revolta pessoal" - muitas vezes legítima, diria. Uma revolta em que os preconceitos e estereótipos
em relação à cegueira são denunciados como um obstáculo a formas de realização pessoal, e onde a negação de oportunidades laborais emerge como o elemento mais premente.
Portanto, esta possível relação inóspita para com as pré-concepções ligadas à cegueira, e a dificuldade em se assumirem certas limitações implicadas com a cegueira
em prol da aceitação de apoio, resulta de dois elementos. Por um lado, resulta da dificuldade em assumir a cegueira enquanto parte da identidade (mais frequente
nos casos de cegueira recentemente adquirida), por outro, resulta da identificação de uma continuidade entre os valores que poderão presidir a certas interacções
- encontros mistos - e estigmas que marcam a experiência da exclusão ao nível biográfico.
Erving Goffman (1990) entendia como uma componente fundamental dos grupos de estigmatizados, e de pessoas com deficiência em particular, o facto das suas associações
permitirem a criação de "espaços de conforto", espaços em que os sujeitos obtêm uma aceitação longe das formas de desqualificação a que estão submetidas pelos valores
dominantes na sociedade mais ampla. Esta é sem dúvida uma das vertentes do espaço de sociabilidade que vim encontrar na ACAPO que, embora não sendo exclusivamente
constituído por pessoas deficientes visuais, se nutre de uma fusão entre estas e indivíduos informados acerca das suas características. O enclave social que a ACAPO
constitui em termos de valores sobre a cegueira é atestado por um registo de partilha onde, na maioria das vezes, se exorcizam as construções que no "mundo lá fora"
carregam negativamente as pessoas cegas. Disso é expressão o humor descontraído com que frequentemente se parodiam as percepções sociais das pessoas cegas. Presente,
por exemplo, no uso de termos como "cegueta" ou "pitosga", autodesignações que servem uma paródia do modo como as pessoas invisuais se vêm encerradas em rótulos
desprestigiantes.
Do mesmo modo se lêem as brincadeiras com as incidências e particularidades a que as pessoas deficientes visuais estão sujeitas. Disso dão nota situações que presenciei
recorrentemente, em que, por exemplo, uma pessoa cega bate numa parede e alguém brinca: "Tu não há maneira de acertares com a porta!", ou, estando um rapaz cego
ajoelhado a procurar algo no chão, se justifica: "estou a espreitar as saias das gajas", ou uma festa de anos em que alguém lembra: "não vale a pena apagar as luzes
é quase tudo cego!". Estive em muitos outros momentos em que esse carácter de "espaço de conforto" se tornava evidente, como nos eventos em que, estando um grupo
reunido à volta de uma mesa ou ao serão, iam sendo evocadas histórias pessoais de acidentes, naquilo que eu descreveria como um registo absolutamente hilariante:
"Entrámos e perguntámos que bolos é que havia, o senhor respondeu: "nenhuns, isto aqui é uma marisqueira!"; "disse que tinha o pé dormente, não ia dizer que caí!";
"umas raparigas estavam a dizer "Que gajo giro!" mandei uma testada no portão: "Coitadinho é cego". Doeram-me mais as palavras delas que a testada no portão!"; "ela
ligou-me para o telemóvel porque eu não chegava, e eu ao lado dela!", etc. Como é óbvio, estes registos de sociabilidade não seriam possíveis noutros contextos,
dado que, em vez de piadas possíveis por uma partilha de saberes informados acerca das pessoas cegas, seriam reconfigurados, à luz das concepções dominantes, como
confirmações das representações vigentes em torno da cegueira.
Existe de facto esse carácter de espaço de conforto. Mas a ACAPO é bem mais do que um "espaço de conforto", é um espaço que se oferece a sustentar os desafios
das pessoas cegas. Tal acontece, quer pelos serviços que se prestam, quer pelo papel capacitante dos discursos e experiências que ali oferecem perspectivas contra-hegemónicas
acerca daquilo que a cegueira é ou do que permite.
O percurso aqui encetado, a passo com o ritmado tanger de uma bengala, assertoa-nos do lugar da mobilidade como uma expressão particular do modo como as representações
culturais detidas sobre a cegueira concorrem para acrescentar limitações funcionais às que são implicadas, de facto, pela ausência do sentido da visão. Esta constitui-se
como uma reflexão que, a um tempo, nos coloca perante a efectividade, na vida de todos os dias, das concepções incapacitantes que se nutrem em relação à cegueira,
e perante o forjar de um novo significado em que se intenta uma construção positiva e capacitante da cegueira
Portanto, aquela que é, sem dúvida, a prática mais emblemática da cegueira, uma pessoa caminhando na rua com o auxílio de uma bengala, surge-nos agora marcada
por uma ambiguidade onde os valores historicamente detidos e reactualizados se confrontam com as narrativas de poder fundadas na reflexividade das pessoas cegas.
Assim, quando uma pessoa cega anda na rua com a sua bengala, temos, por um lado, a expressão mais visível de pessoas cuja biografia se supõe indelevelmente marcada
pelas ideias de tragédia e incapacidade e, por outro, partindo de uma reflexividade que o contexto associativo cataliza, cruzamo-nos, afinal, com afirmações de uma
capacidade de contornar os obstáculos e enfrentar o estigma, naquilo que comummente se designa pelo "assumir da cegueira". Isto é, cruzamo--nos com uma singular
e pouco percebida afirmação de poder, cruzamo-nos com um texto cuja centralidade resulta menos daquilo que é visível nas ruas do que das condições agonísticas que
vigiam o nascimento desse sentido, essa enunciação que aparece na rua. Portanto, a bengala branca, longe de se constituir como um elemento "naturalmente" associado
à pessoa cega, toma parte de um importante jogo de poder e afirmação identitária, onde se esgrimem significados antagónicos, cuja leitura parece tornar possível
uma assunção da medida em que o contexto da ACAPO se constitui como um palco de novas oportunidades de realização e possibilidades discursivas.
A questão forte é que, na leitura que faço, esse suporte que a ACAPO confere às pessoas cegas e amblíopes não é apenas a face da sua acção que foi tornada visível
pelo facto de, através da bengala branca, nos termos debruçado sobre o confronto das narrativas pessoais com os estigmas hegemonicamente adscritos à cegueira. Ou
seja, entendo que a acção da ACAPO, mesmo quando analisada num âmbito mais amplo, tem ainda um forte pendor de capacitação e prestação de serviços aos seus associados.
Esta é uma dimensão da actividade associativa que adquire maior relevância nos esforços e recursos investidos, subsumindo de algum modo o seu papel sociopolitico
na transformação das condições e das representações culturais que marcam as dificuldades que as pessoas cegas têm que enfrentar no seu caminho para a realização
social. No entanto, mais importante do que o peso relativo dos investimentos da ACAPO, é o facto da criação de condições para a prestação de serviços às pessoas
cegas diluir em muito a necessidade de inculcação de uma linguagem de direitos e o imperativo de intervenção social reivindicativa investida em transformar as condições
de opressão que as pessoas cegas enfrentam. Portanto, a acção da ACAPO na transformação social e cultural está em certa medida refém, quer dos esforços dedicados
à prestação de serviços, quer do facto da manutenção desses serviços obedecer muitas vezes a uma lógica estratégica percebida inconciliável com a assunção de um
papel mais reivindicativo e interventivo.
Como analisámos atrás, a objectificação moderna da cegueira como uma deficiência mostrou-se congruente com a naturalização da exclusão social das pessoas cegas,
com o privilégio de respostas sociais alojadas nos limites do esquema reabilitacional, e com o adiamento das vozes das pessoas cegas. A imperiosa passagem de um
conceito de deficiência que enfatiza as limitações funcionais dos corpos de quem não vê, para uma concepção em que a deficiência é entendida como uma continuada
forma de opressão exercida com base em argumentos biológicos, deverá realizar igualmente uma superação das narrativas de tragédia e infortúnio que se abatem sobre
as pessoas cegas. Ou seja, a transformação das condições estruturais que negam oportunidades de realização e integração social às pessoas cegas é uma perspectiva
que necessariamente terá que nutrir uma destabilização das representações dominantes da cegueira, num percurso que terá que partir do reconhecimento da centralidade
de vozes que até aqui vêem sendo largamente silenciadas. Neste sentido é essencial o papel a ser desempenhado pela ACAPO. Só desse modo o portentoso impacto de uma
lógica que aqui pulsámos, uma "lógica da classificação social", vinculada a uma "monocultura da naturalização das diferenças", poderá dar lugar a uma "ecologia de
reconhecimentos" (Santos, 2002: 252). Só uma tal ecologia, assente nas experiências das pessoas cegas, permitirá uma desdramatização da cegueira, uma apreciação
das capacidades que com ela convivem, e a aspiração a um horizonte em que os preconceitos e as formas de organização social não acrescentem constrangimentos àqueles
que a ausência de visão permite superar.
Na leitura que faço da acção da ACAPO percebo uma organização mais vocacionada para capacitar as pessoas cegas no confronto com as dificuldades e constrangimentos
sociais do "mundo lá fora" do que para a transformação desses constrangimentos, em particular, as representações dominantes detidas em torno da cegueira. Neste sentido
a ACAPO, não obstante a sua importância para tantas e tantas pessoas, mostra-se ainda largamente congruente com uma abordagem que, segundo analisámos atrás, se tornou
a resposta dominante da modernidade ocidental para com a deficiência, uma abordagem definida como reabilitacional, medicalizada e individualizada. Uma abordagem
historicamente privilegiada, sobre cujas virtualidades e (sobretudo) limitações para uma efectiva integração das pessoas com deficiência atentámos. Tal foi feito
quer por via de uma leitura mais estrutural onde se revelam as condições de emergência das construções que a modernidade viria a privilegiar, quer por apelo à denúncia
realizada pelos movimentos sociais surgidos noutros contextos a partir do fim dos anos 19(60). Mas, para que possamos realizar uma análise do lugar que a ACAPO ocupa
na transformação das condições de existência das pessoas cegas no nosso país, importa que percebamos a sua história e a sua articulação com aquelas que são algumas
das matrizes descritivas da sociedade portuguesa.
2. A BARQUEIRA INDECISA: ACAPO E AS TRAVESSIAS DO QUERER AO PODER
Só em 1887, cerca de 100 anos após se ter criado em Paris a escola de Valentin Hauy, é que surgiria em Portugal uma instituição dirigida ao ensino das pessoas
cegas. Ou seja, só muito tardiamente seriam acolhidos em Portugal os desenvolvimentos há muito introduzidos em França e noutros países europeus. Ao encontro das
ideias de Boaventura de Sousa Santos, também aqui se manifesta o carácter periférico de Portugal em relação à Europa, e o carácter intermédio que resulta da simultaneidade
dessa posição com a de um império colonial de vários séculos (Santos, 1999: 58-61; 2001).
Portanto, até ao ano de 1887, o panorama das pessoas cegas em Portugal era fundamentalmente marcado pela vivência no seio das famílias, pela mendicância, pelos
cantadores de rua e pela assistência que as instituições caritárias prestavam aos mais necessitados. Até quase aos finais do século XIX as pessoas cegas em Portugal
viviam num contexto em que o acesso ao ensino, à cultura e a profissões remuneradas não contava com qualquer tipo de estrutura institucional. Há, no entanto, uma
interessante excepção de onde se retira, inclusive, um instrutivo registo histórico. Socorrendo-se de uma análise realizada por Manuela Domingos acerca do mercado
livreiro, Filipe Oliva (2001) oferece-nos o relato histórico da criação, em 1749, da Irmandade do Menino Jesus dos Homens Cegos. Esta irmandade, conhecida como a
Irmandade dos Cegos, foi estabelecida contando com um favor régio de D. João V que concedia o privilégio da venda exclusiva de "folhinhas, histórias, relações, reportórios,
comédias portuguesas e castelhanas, autos e livros usados" (Oliva, 2001: 2). Este estatuto haveria de durar até às primeiras décadas do século XIX, havendo vários
registos em que os cegos vendedores de "folhinhas" eram tidos como parte da paisagem urbana, juntamente com os mendicantes e os restantes vendedores ambulantes,
ocupando um lugar a considerar enquanto agentes do mercado livreiro. Embora a actividade dos "irmãos cegos" estivesse num limbo entre comércio e mendicância, o que
é certo é que o privilégio real permitiu a muitos cegos em Portugal terem uma actividade remunerada durante algumas décadas. Mas este proteccionismo recebeu nos
primeiros tempos acesa contestação dos livreiros estabelecidos. Particularmente interessante é a reivindicação que consta num requerimento que os livreiros de Lisboa
fizeram à rainha em 1779. Nele podemos notar os valores profundamente depreciativos então manifestos acerca das pessoas cegas, sem dúvida um pujante reflexo das
concepções da época:
Os segundos [os cegos] porque sendo os cegos a classe de homens mais inerte, e menos intelligentes deste mundo tanto em razão da sua cegueira, que os priva de semilhantes
conhecimentos, como em razão dos seus anteriores exercicios, e ignorancia crassa, mal poderem dezempenhar com satisfação do publico hum negocio em que he necessario
ao commerciante ter ao menos huma não leve noticia do merecimento das obras, dos seus impedimentos, ou liberdades, do numero de tomos de cada jogo, da superioridade
das ediçoens, e de outras coizas similhantes. (...) Alem disto os cegos são huma classe de homens, que pela sua summa pobreza, e pela mizeria em que os constituio
a sua molestia, não tem forças, nem dinheiros para manejarem hum trafico de tanto custo, de que rezulta que por mais exuberantes que sejão os seus privilegios nunca
estes podem deixar de andar importunando a Republica, e viver da caridade do seu proximo. Por esta forma a sua mizeravel condição os faz incapazes de poder recahir
sobre elles com proveito seu e do publico, a beneficentissima liberalidade de V. Magestade (apud Oliva, 2000: 4).
Neste quadro de valores, seria a influência das ideias vindas de outros países que se constituiria decisiva para o surgimento de uma preocupação em relação ao
ensino das pessoas cegas. A este factor haverá que juntar o papel mobilizador do surgimento de casos de cegueira entre as elites. São exactamente estas as condições
que se juntam para a fundação da Associação Promotora do Ensino dos Cegos em 1887. A cegueira de uma das filhas do francês Xavier Sigaud fez com que este, que trabalhava
no Brasil como o médico privado do Imperador D. Pedro II, se dedicasse à causa da cegueira, e, importando as realizações do seu país de origem, criasse uma escola
para cegos no Rio de Janeiro. Do mesmo modo, uma das suas filhas, Madame Sigaud Souto, consciencializada pela cegueira da irmã e pela iniciativa do pai, após o seu
casamento, que a trouxe para Portugal, tudo fez para que se criasse neste país uma escola dedicada à cegueira. Nasceu assim a Associação Promotora do Ensino dos
Cegos (APEC), a primeira instituição a ministrar educação às crianças cegas em Portugal, e cuja actividade até ao ano de 1975 consistiu fundamentalmente no Asilo-Escola
António Feliciano Castilho (Oliva 2001). O modo como o espírito iluminista e o triunfalismo moderno do progresso está presente no surgimento de métodos de ensino
para as pessoas cegas - a que nos referimos aquando do século XVIII francês - fica primorosamente expresso na letra do cântico que ficou consagrado como o hino da
APEC:
Em o século das luzes chamado, / Nossa estrela também despontou. / A miséria e o horror do passado, / Para nós felizmente acabou. / Oh! Bem haja esse impulso gigante
/ / Da ciência e virtude sem par, / Hoje o cego é feliz e prestante / Saber ler e escrever, trabalhar. / Do progresso a vitória saudemos, / Que ela o cego ao vidente
irmanou. / Nosso brado bem alto elevemos, / Viva o século que a luz nos criou!
Ainda no final do século XIX haverá a realçar o papel de José Cândido Branco Rodrigues, um benemérito que se dedicou à causa das pessoas cegas e ao seu acesso
à cultura. Criou em 1899 o Jornal dos Cegos em Portugal, e no mesmo ano viajou pela Europa por conta do governo de modo a conhecer os métodos que então eram empregues
para o ensino das pessoas cegas. Branco Rodrigues, com a sua denodada dedicação, foi o principal responsável para que o Estado decretasse o ensino das cegas em Portugal
em 1894; não obstante, e segundo Jesus Martinez, Portugal terá sido o último país da Europa a intervir no ensino das pessoas cegas (1993: 611). De referir que, bem
ao contrário da rede de ensino especializado que se criou, por exemplo, em França no século XIX, em Portugal, no ano de 1940, só existiam, entre as obras privadas
e as do Estado, 3 instituições de ensino dirigidas à cegueira: 2 para rapazes, o Instituto de Cegos Branco Rodrigues (situado no Estoril) e o Instituto de Cegos
do Porto e, para raparigas, o já referido Instituto Feliciano Castilho (Daciano, 1949: 4).
As raízes institucionais do que se veio a tornar a ACAPO começariam a estabelecer-se em 1927, com a criação da Associação de Cegos Luís Braille (ACLB). O surgimento
desta associação, que era então presidida por pessoas normovisuais, é bastante curioso. Ela surgiu como forma de proteger os interesses das muitas pessoas cegas
que viviam da música, uma grande percentagem das quais havia estudado nos institutos especializados criados no início do século XX, onde a aprendizagem da música
detinha uma grande quota nos currículos ministrados. Assim, numa época em que os aparelhos de reprodução electrónicos ainda estavam pouco disseminados, os músicos
cegos que actuavam na rua, em festas privadas ou em locais de diversão, necessitavam de algum apoio, em particular de arquivo de música em Braille onde pudessem
aceder ao estudo de novas composições musicais (Oliva, 2001: 6). Aliás, Francisco Alves, que foi empossado em 1979 como primeiro presidente cego da referida associação,
falou-me do enorme acervo de música em Braille que a associação possuía como marca indelével dessa vocação primeira. Instrutivamente, o primeiro lema da Associação
Luís Braille era: "auxílio dos trabalhadores cegos - propaganda da habilitação profissional dos cegos" (apud Oliva, 2001: 6).
Com o surgimento do Estado Novo a natureza da associação ficou mais claramente definida numa lógica caritária e assistencialista. Inclusive, com a revisão dos
estatutos, em 1935, mudou de nome passando a designar-se Associação de Beneficência Luís Braille. Só voltaria a retornar ao nome original em 1977. Portanto, durante
muitos anos, a "Luís Braille" constitui fundamentalmente um espaço em que se organizavam festas e bailes, sendo igualmente um ponto de encontro e de suporte aos
músicos cegos, cuja actividade foi também sendo crescentemente desprestigiada e relegada para as ruas com a disseminação das tecnologias de difusão musical. A matriz
de actividades desta associação fica bem representada numa análise retrospectiva que tomou lugar em 1977, data do quinquagésimo aniversário da instituição. Daí resulta
uma longa recitação onde se espelha com traços precisos a natureza do assistencialismo - por vezes insólito - que marcou a história da instituição:
Apoio aos músicos de rua, Assistência, Saúde, Educação, Trabalho, Cultura e Lazer. Como acções e funções principais podem destacar-se: função de local-base em relação
às deambulações diárias dos músicos de rua; diligências para libertação destes músicos quando detidos na via pública por uso de zonas da cidade não autorizadas;
tentativas de resolução deste complexo problema; atribuição de subsídios - de nascimento, casamento, velhice e funeral; oferta de vestuário, calçado e brinquedos
a filhos de sócios cegos; cedência gratuita de instalações na sede a sócios para actividades beneficentes em seu proveito; manutenção de uma cantina para abastecimento
de géneros; contribuição para um serviço de refeições a preços bonificados; obtenção de licenças e vacinas gratuitas para cães; obtenção de consultas gratuitas e
de amostras de medicamentos; atribuição de subsídios a sócios doentes; manutenção de salas de estudo; atribuição de subsídios a estudantes; constituição da biblioteca
e do arquivo de música ligeira; atribuição de subsídios para aquisição e reparação de instrumentos; obtenção de facilidades fiscais e outras para entidades patronais
que tomassem ao seu serviço músicos cegos; criação e obtenção de postos de trabalho para os sócios; promoção da realização de cursos de massagem; contribuição para
a realização de encontros sobre problemas de trabalho; obtenção de entradas gratuitas para espectáculos; patrocínio de deslocações no país e ao estrangeiro para
visitas e estudos; promoção de um certame de jogos florais; promoção de um simpósio e outros encontros para debate de temas tiflológicos11; apoio à prática e vulgarização
do xadrez; apoio à prática de outros jogos de sala; oferta de condições para convívio entre sócios (Oliva: 2001: 10).
Nos anos 50, a "Luís Braille" começou a dar apoio a estudantes, alguns deles universitários, que pretendiam a prossecução dos estudos fora da área da música, começando
assim a criar-se uma maior heterogeneidade entre os associados. Com a descoberta, em 1949, de um caso de corrupção criou-se uma cisão que levou a que alguns sócios
saíssem em ruptura criando uma nova associação, a Liga de Cegos João de Deus (LCJD) (Oliva: 1991: 7). A sede desta viria a situar-se a cerca de um quilómetro da
anterior, ficando ali topograficamente inscrita uma irónica situação de divisão entre as pessoas cegas portuguesas12. A Liga de Cegos João de Deus nasceu em 1951,
emergindo num clima de hostilidade para com a "Luís Braille". Embora a sua natureza fosse muito semelhante à da primeira, a LCJD ganhou um cariz mais académico ao
criar salas de estudo quer eram frequentadas sobretudo por estudantes ex-alunos do instituto Branco Rodrigues.
Em 1958 criava-se no Porto a Associação dos Cegos do Norte de Portugal, uma instituição que, no fundo, levou para o Norte os modelos e práticas que vigoravam nas
congéneres de Lisboa. E seriam estas três associações que estariam na base da criação da ACAPO em 1989. Tendo vivido no Estado Novo num ambiente em que as visões
caritárias e mendicantes prevaleciam sobre as pessoas cegas, estas instituições foram, até muito tarde, inteiramente consonantes com uma lógica assistencialista
de prestação de serviços e de promoção de convívio dentro de um grupo populacional profundamente marginalizado. Portanto, o papel social destas associações estava
limitado a um apoio directo das pessoas cegas, num contexto em que, apesar das excepções que foram surgindo, a ideia da cegueira estava intimamente ligada à mendicância
e às "profissões de rua". De referir que, além das pessoas cegas que sempre viveram em Lisboa e no Porto, muitas havia que tinham ficado a residir nestes centros
após a formação realizada nos institutos especializados de ensino ou, a partir dos anos 60, nos centros de reabilitação.
Embora as percepções da cegueira viessem sendo informadas por algumas vozes que defendiam as possibilidades de participação social das pessoas cegas, sustentadas
em exemplos vindos do estrangeiro, as concepções presentes no século XX português estavam ainda fortemente dominadas pelo peso da história e por experiências largamente
alojadas numa visão mendicante da pessoa cega. Isto o ilustram três textos de meados do século. Por alguns "os cegos" eram entendidos como um problema social que
só poderia ser debelado quando fosse debelada a cegueira: "é simples provar que os 7.916 cegos recenseados em 1911 representam para a economia nacional um encargo
de cerca de dois milhões de escudos". Assim sendo haveria que agir "diminuindo as hostes dessa legião de infelizes, para quem a vida não é senão uma noite perpétua"
(Santos, 1945: 19, 1). Outros, mais preocupados com a situação social das pessoas cegas, não deixavam de apontar um quadro deveras grave para aquele estrato populacional,
denunciando uma disparidade entre as capacidades que residem na cegueira e as oportunidades para a sua realização:
Mas, no caso de Portugal, onde a incompreensão do público chega a atingir, e não raras vezes infelizmente, um grau que sem exagero se pode considerar piegas, será
possível que neste ambiente os cegos logrem os seus legítimos anseios de redenção social? (...) Mas um cego instruído - as possibilidades actuais são escassas pois
em Portugal pouco se vai além da 4.ª classe e dos estudos musicais - ... será ainda mais martirizado, porque tem a exacta noção da vida sem perspectivas que está
vivendo (Baptista, 1957: 7,8).
Pôr então os cegos no mesmo mundo em que se encontram os que vêem, deixá-los no meio destes, sem trabalho, sem emprego, totalmente entregues a uma caridade problemática,
incerta, inconstante, não é só injustiça; é mais que isso: é crime (Daciano, 1949: 5).
Embora um clima piedoso e assistencialista fosse a regra, existiam já vozes, sobretudo ligadas às três associações de cegueira referidas, que não só reclamavam
a melhoria dos serviços prestados às pessoas cegas, mas sustentavam já uma lógica de integração social fundada nos direitos. Isto o nota uma referência a um editorial
de Albuquerque e Castro na revista Poliedro, publicado em 1958, cujo conteúdo é singularmente considerado por J. Pecegueiro como uma carta de alforria das pessoas
cegas:
Podemos considerar como a sua carta de alforria os princípios expressos no editorial de "POLIEDRO" de Janeiro de 1958: "O cego quando não afectado por deficiências
devidas a causas patogénicas localizadas fora do aparelho visual, mostra-se psicológica e socialmente, normal, tanto mais quanto mais tarde perdeu a vista e na medida
em que haja recebido educação adequada. Tem, portanto, os mesmos direitos básicos que toda a gente e, em especial: direito à instrução e à cultura, direito ao trabalho
remunerado, direito à vida familiar, direito ao convívio social, direito a participar na discussão dos seus próprios problemas" (Pecegueiro, 1960).
O título do artigo que J. Pecegueiro escreve em 1960, apesar de emergir de um período político marcado pela repressão das liberdades individuais e colectivas,
é bem significativo do papel que as pessoas cegas teriam (e têm) que vir a assumir na transformação das suas próprias condições de existência: "Os cegos devem organizar-se
e dignificar-se a si próprios". A possibilidade deste profético imperativo encontrar um correlato com o real viria a tornar-se mais pensável com a introdução de
um regime democrático em Portugal, após o 25 de Abril de 1974.
Na verdade, logo após a "revolução dos cravos" surgiram dois movimentos que, num mesmo momento, procuravam a unificação das associações de pessoas cegas e a assunção
de um associativismo com maior capacidade de representação e intervenção na sociedade portuguesa. O primeiro desses movimentos traz claramente as marcas do clima
revolucionário de que emerge, num contexto em que a dimensão política se tornava mais premente e largamente inconciliável com a lógica filantrópica que vinha presidindo
a actividade das associações de pessoas cegas (Correia, 2000: 22). O movimento germinado em 1974 e surgido em 1975, designou-se por Movimento de Unificação das Associações
de Cegos (MUAC), e o seu cariz esteve intimamente associado à prevalência que nele havia de simpatizantes e militantes do Partido Comunista Português. Aliás, essa
mesma prevalência foi-me afiançada por José Carvalho, um sócio da ACAPO que participou activamente no MUAC como um "operacional de base", tendo estado presente em
todas as assembleias--gerais promovidas nesses anos quentes pós-revolução. A natureza e os ensejos do MUAC encontram-se bem patentes nalguma documentação a que
acedi por via do referido José Carvalho. Assim, da primeira reunião, realizada na Liga de Cegos João de Deus, emerge um comunicado em que se manifesta o intento
de se assumirem as direcções das duas associações de Lisboa como primeiro passo para a criação da "Organização Nacional de Cegos":
Este Grupo proporá, antes de proceder, à Direcção ou Direcções das instituições, a solução das suas deliberações. Se se constatar desinteresse ou incompetência para
a resolução das mesmas, o Grupo actuará com medidas revolucionárias.
A aventada possibilidade de entrada em cena de medidas revolucionárias é a mais poderosa expressão dos horizontes definidos no clima sociopolítico de 1975. Mas
o plano de acção aprovado em 1975 (embora tenha chegado incompleto aos nossos dias) mostra mais que isso, mostra, acima de tudo, em que medida se erige já a consciência
que as pessoas cegas devem assumir o controle das questões que lhes dizem respeito directo numa lógica de direitos, subtraindo-se a uma relação paternalista com
os poderes:
[...]
3. A Organização Nacional de Cegos deverá assumir o controlo de todos os Centros de Reabilitação.
4. Criação de Centro de Profissionalização de Cegos com vista à sua Formação Profissional.
5. Formação de uma equipa de investigação sobre a adaptação de máquinas e aparelhos, os quais venham a ser fabricados com as necessárias adaptações para uso dos
cegos.
6. Exigir do governo o acesso a postos de trabalho de acordo com as possibilidades dos cegos.
7. Criação de uma indústria caseira destinada a ocupar os indivíduos cegos incapacitados de executar o trabalho normal assim como as donas de casa que por razões
válidas não possam ser empregadas.
8. Criação de uma rede de quiosques em pontos estratégicos que poderão garantir não só emprego para os cegos mas também o escoamento de artigos fabricados em regime
doméstico.
9. Criação de formas de apoio a cegos de idade avançada e mais necessitados a avaliar pelo serviço social a instituir.
10. Reivindicar que uma parte do totobola reverta para o desenvolvimento das actividades mais convenientes para os cegos.
11. Que a organização disponha de todos os materiais de apoio aos cegos desde que se destine à actividade doméstica.
12. Formação de um gabinete com funções de secretariado de estado para os assuntos de deficientes neste caso dos cegos.
13. Que venha a ser da competência da organização Nacional de cegos a redacção dos projectos leis relacionados com estes a apresentar aos órgãos competentes.
Independentemente dos aspectos estratégicos de pormenor, três elementos surgem relevantes nos ensejos do MUAC: primeiro, a necessidade de uma organização que represente
e defenda os interesses das pessoas cegas; segundo, a exigência de uma fonte de financiamento pré-definida que sustente a actividade da organização (falava-se numa
parte das receitas do totobola) e, em terceiro lugar, a prioridade que deve ser dada às perspectivas nutridas no seio das pessoas cegas. No entanto, os propósitos
do MUAC viriam a ser comprometidos pela falta de adesão que o projecto mereceu e pelos resultados das eleições nas associações de então. A falência do MUAC deveu-se
a um compósito onde se reuniu a falta de credibilidade alcançada por este projecto, o facto de emergir marcadamente associado a uma sector específico do espectro
político-partidário, e os "anti-corpos" que existiam nas associações em relação à própria ideia de unificação, algo que ficava a dever a um certo "bairrismo" e rivalidade
entre as três instituições. Mas o MUAC não seria a última tentativa gorada de criação de uma associação nacional que representasse as pessoas cegas. Em 1979 surgiria
o Movimento para a Organização dos Cegos Portugueses (MOCEP) que visava igualmente a unificação das associações de pessoas cegas. Este movimento emergiu de um conjunto
de pessoas que eram tidas como intelectuais, ou seja, pessoas mais velhas com formação académica, ligadas profissionalmente à actividade cultural. Estando ligadas
quer à imprensa Braille do Porto, quer à Biblioteca Nacional. Este movimento adquiriu uma expressão maior do que o MUAC, primando sobretudo pela capacidade de concepção
documental e pelo estatuto detido pelas pessoas que o compunham. No entanto também ele não singrou, o que se terá devido sobretudo a uma incapacidade de cativar
os sócios ligados às três associações então existentes.
A unificação das associações portuguesas de pessoas cegas só haveria de se consumar em 1989, dez anos depois do MOCEP e 15 anos após o 25 de Abril. O processo
que conduziu à unificação por que se criou a ACAPO dá bem conta dos obstáculos e das negociações que foi necessário realizar para transformar a situação de divisão
reinante. Esse percurso, que aportaria na constituição da ACAPO, está indissociavelmente ligado ao papel desempenhado por Francisco Alves, e à sua liderança. Na
longa conversa que com ele mantive na sua casa começou por me relatar o que os fracassos anteriores lhe ensinaram:
Foi muito duro, houve, que eu conheça, dois movimentos anteriores a este, o MOCEP e o MUAC. Eu não participei em nenhum destes movimentos, mas reflecti sobre o que
aconteceu. No movimento do MOCEP a primeira coisa que fizeram foi criticar as associações, e eu pensei eu não posso correr esse erro, eu pensei se quero fazer a
unificação terei que a fazer por dentro e não por fora, com as associações e não contra as associações. (...) O MUAC não chegaram a ter... foi um momento mais de
base, de reuniões, próprio daquelas reuniões dos PREC's [Processos Revolucionários em Curso], mas não tiveram grande expressão. (...) O Muac era mais interno, o
MUAC era mais de base, estava muito politizado e não tinha essa capacidade.
Francisco Alves nasceu em Trás-os-Montes; um problema degenerativo da sua visão fez com que fosse cegando progressivamente ao longo da sua adolescência e idade
adulta. Interrompeu os estudos aos 14 anos, aos 19 foi para Lisboa fazer reabilitação no Centro de Reabilitação Nossa Sra. dos Anjos. Empregou-se como telefonista,
e, já usando por suporte o sistema Braille, fez o liceu e o curso de Filosofia. Após isso abandonou a sua profissão de telefonista e dedicou-se ao ensino. Logo após
ir para Lisboa começou a frequentar a Liga de Cegos João de Deus e a Associação de Cegos Luís Braille, encontrando desde então um certo "ridículo" nas "guerras"
que se viviam entre as duas associações. Depois afastou-se um pouco das associações por se ter apercebido de situações menos próprias na LCJD. Anos depois voltaria
a ligar-se de um modo bem mais decisivo:
Então vem o 25 de Abril, aquela consciência cívica que aparece. Já tinha feito a escola, andava na faculdade, e na altura convidaram-me para integrar um projecto
na Luís Braille. E eu aceitei! Aceitei presidir uma associação em 1979, foi a minha primeira coisa séria!
Deste modo Francisco Alves tornava-se em 1979 o primeiro presidente cego da "Luís Braille", desenhando-se já aí o objectivo de unificar as organizações de pessoas
cegas: "a única coisa que eu consegui nessa altura, foi meter nos estatutos que um dos objectivos da instituição era trabalhar para a unificação". Depois de ter
sido colocado a dar aulas fora de Lisboa, Francisco Alves esteve uns anos afastado das lides associativas. Em 1986, quando é de novo convidado para presidir à Luís
Braille, estabelece como condição que a unificação seja de uma vez por todas levada a sério:
Em 86 não tinha ninguém para continuar, quem estava não podia! E convidaram-me para liderar uma nova equipa, ainda hesitei, eu era novo, e depois tinha verificado
que por muita visão nacional que se tivesse era difícil fugir do bairrismo. Depois ia-se ao governo e eles diziam: "quem é que representa quem?", depois havia um
conjunto de situações... estava desmotivado! E então eu pensei vou liderar, mas com condições, porque se era para ir para lá era para mudar alguma coisa, senão não
estava para me chatear! Aí os opositores da unificação, que os havia e eram ferrenhos, já não conseguiram fazer nada.
Segundo me disse o protagonista da criação do que hoje é a ACAPO, o processo que levou à unificação das três associações foi muito duro, obrigando a muito trabalho
nos bastidores, exigindo negociações com os partidos políticos, com o Secretariado Nacional da Reabilitação (organismo governamental então dirigido à questão da
deficiência) e com a Once (Organização Nacional dos Cegos de Espanha). Ao nível dos partidos a questão prendia-se sobretudo com o poder dos elementos ligados ao
partido comunista, que inicialmente tendia a ser contra a unificação:
A questão dos partidos políticos é que o partido comunista estava muito infiltrado nas associações e esteve sempre. Porque era o único partido que tinha capacidade
de organização a nível de bases, tinha células que reuniam, e tinha trabalho organizado... mas era preciso ganhar esses partidos, o Partido Comunista, o Partido
Socialista, era preciso ganhá-los e nós tivemos que intervir a esse nível!
Quando o questionei se o peso político-partidário nas associações era assim tão relevante foi peremptório:
Sim, sim, totalmente. Isso está documentado, como há ali trabalho organizado vamos a uma reunião, um vem daqui outro vem dali, um grupo que saiba o que se trata
domina a assembleia, e isso está documentado Onde? Quer dizer isto é secreto..., documentos que temos... mas acho que ainda é um bocado cedo para fazer essa história!
Mas existem as pessoas que sabem e confirmam. Nós conseguimos ganhar o partido comunista para a unificação, que a maioria era contra.
Francisco Alves conseguiu igualmente reunir importantes apoios junto do Secretariado Nacional da Reabilitação, devido à confiança pessoal que ganhou, e também
pelo facto de se tornar desejável a existência de um interlocutor que pudesse representar as pessoas cegas e as questões com elas relacionadas. O outro "bastidor
que foi ganho" pela sua direcção que então presidia à "Luís Braille", foi o apoio da ONCE. A ONCE, a organização das pessoas cegas de Espanha constitui um caso singular,
porventura no mundo. Por razões históricas que se prendem com os combatentes que cegaram na Guerra civil Espanhola, a ONCE forma-se em 1938 com amplos privilégios,
em particular, a concessão de uma lotaria de âmbito nacional. Esta viria a permitir a associação constituir-se com vultuosos rendimentos, que seriam ainda incrementados
com a entrada na ONCE na actividade empresarial, detendo universidades, rádios, um clube de ciclismo, etc. Por essa razão a acção da ONCE é responsável pelas excelentes
condições que as pessoas cegas em Espanha detêm, contando com bibliotecas, museus, material técnico, universidades especializadas, actividades onde as pessoas cegas
são empregues, registando-se, como mais significativo indicador do papel da associação/empresa, baixos níveis de desemprego entre os espanhóis invisuais. A abismal
diferença de possibilidades entre a ACAPO e a ONCE ficava caricaturada no que me disse um dirigente: "Há ainda uma grande diferença de Portugal para os outros países
europeus no que concerne a possibilidades de sensibilização, nós tivemos que mendigar por um Tempo de Antena grátis, A ONCE comprou um canal!". Por essa razão, a
proximidade da ONCE e a assombrosa distância nas realidades consagra a associação espanhola como uma "miragem". Um espectro que cava a situação de precariedade económica
com que a ACAPO se defronta na realização das suas metas.
Também o apoio da ONCE para a unificação das organizações portuguesas da cegueira se deve a questões pessoais e biográficas. Durante o seu curso universitário
(a partir de 1977) Francisco Alves frequentou a biblioteca de Madrid da ONCE, estabelecendo contactos com pessoas que, após a democratização daquela instituição
(durante muito tempo os militares detinham cargos vitalícios), viriam a ocupar cargos de relevo. Desse modo conseguiu que a ONCE mostrasse disponibilidade em colaborar
com as pessoas cegas portuguesas, com a condição que estas definissem melhor a questão da sua representatividade. E, na verdade, a ONCE viria mais tarde a colaborar
com a ACAPO, não só ao nível do apoio técnico, mas também ao nível financeiro, concedendo importantes empréstimos para a compra de instalações.
Portanto, após se persuadirem as direcções da Liga de Cegos João de Deus e da Associação de Cegos do Norte de Portugal das vantagens da unificação, estavam criadas
as condições para que se encetasse o processo de constituição da ACAPO. Ele culminaria com a sua constituição legal, enquanto Instituição Particular de Solidariedade
Social, em Outubro de 1989. A ACAPO nasceria sob o lema "Querer é Poder", um grito cujo ensejo co-implica a afirmação das capacidades quem não vê com o papel de
transformação a ser realizado pela organização que as representa.
A constituição da ACAPO, enquanto um processo profundamente negociado, implicou que se perpetuassem algumas das lógicas e estruturas que vinham das associações
que a precederam. Nomeadamente, alguns serviços que pesavam à associação em termos financeiros. A formação da ACAPO visava não apenas uma fusão que permitisse a
criação de uma instituição de âmbito nacional. Pretendia igualmente, na mente dos seus impulsionadores, a criação de uma lógica associativa diferente, menos assistencialista,
menos mitigadora das condições de precariedade das pessoas cegas até então vigente, e mais vocacionada para a representação, para a informação do público, e para
uma intervenção social e política que conduzisse à integração deste grupo social. Ou seja, pretendia-se uma associação mais capacitada do que as suas predecessoras
para defender os direitos das pessoas cegas e para agir transformativamente sobre a sociedade. Isso mesmo me foi dito, quer por Francisco Alves, quer por José Guerra,
indiscutivelmente as duas figuras de proa que trabalharam em parceria na primeira década da ACAPO. José Guerra foi vice-presidente nos dois primeiros triénios directivos
da ACAPO em que Francisco Alves foi presidente, assumindo ele próprio a presidência no triénio que findou em 98. Durante esse mesmo período ambos alternaram funções
na direcção e na direcção adjunta da revista Luís Braille, constituindo, portanto, as mais importantes referências no surgimento da ACAPO. Tanto um como outro me
referiram o "peso" que constituiu para a ACAPO a herança das práticas que marcaram durante décadas as instituições precedentes, o que, nas palavras de Francisco
Alves, constituiu fundamentalmente uma cedência que se mostrou necessária para que a unificação pudesse ser uma realidade. Elementos que constituíam um importante
fardo em termos de recursos, tais como: a atribuição de subsídios de velhice, subsídios para estudantes, subsídios de alimentação e ainda a manutenção de um refeitório
situado na antiga LCJD. Estas expensas que foram recebidas das anteriores instituições implicaram alguns constrangimentos financeiros, tanto mais que, desde a sua
fundação, a ACAPO contou mormente com as parcas receitas advindas de um sorteio de carros, de subsídios estatais e donativos. Mas a manutenção de serviços que se
sobrepunham àquela que deveria ser a segurança social do Estado também tinha o papel simbólico de ancorar a ACAPO a práticas do passado menos vocacionadas para integração
social do que para minorar os efeitos da exclusão.
Nesse sentido, os referidos dirigentes contavam-me a sua oposição em relação a determinadas permanências simbólicas, como sendo a existência de uma costureira
para as pessoas cegas ou a existência de uma máquina de lavar, serviços que estavam ligados à ideia da associação como "uma segunda casa dos cegos". Ou seja, procurava-se
já impor a ideia que, não devendo a ACAPO ter apenas uma função de representação social e política, os serviços a serem prestados - e os recursos neles investidos
- deveriam dedicar-se fundamentalmente à promoção das condições de inserção social das pessoas cegas. A relação da ACAPO com a sua herança fica bem sintetizada no
primeiro editorial da Revista Luís Braille assinado por Francisco Alves (1991):
Sem dúvida que a ACAPO nasceu da vontade de mudança que os cegos e amblíopes portugueses sentiram de alterar o que no associativismo estava mal ou não funcionava.
Contudo, não nos podemos esquecer que a ACAPO não caiu do céu e que não herdou apenas as contas bancárias das associações antigas, mas todo um passado que não podemos
enjeitar ou ignorar se queremos alterar esta realidade no futuro.
Não haverá dúvidas da vantagem que a ACAPO constituiu para as pessoas cegas portuguesas, fundamentalmente por se ter criado como a interlocutora representativa
das suas especificidades num amplo campo de questões. No entanto, e não obstante as diversas formas de intervenção social, cultural e política que marcam a história
da ACAPO, a matriz da sua acção, como avancei no capítulo anterior, encontra-se largamente vinculada à providência de serviços para as pessoas cegas. Foi esta a
apreciação que me foi dada a perceber pelo mapeamento que fui fazendo das actividades que iam decorrendo, assim como pela história das realizações da associação.
Assim, o elemento que se torna mais saliente é o modo como a ACAPO procura conferir suporte aos seus associados, quer velando por condições de precariedade social13,
quer, sobretudo, na armadura que tenta prover para desafios que se colocam a cada pessoa que procure a realização pessoal e a integração na sociedade.
Naturalmente que esta encontrada predominância da prestação de serviços, que os diversos interlocutores e protagonistas da vida da associação tenderam a ratificar,
não colide com o reconhecimento do longo caminho já feito pela ACAPO na defesa dos interesses das pessoas cegas, elemento em que assomam como relevantes algumas
"conquistas", legislativas e outras. Destas realizações dava conta o dirigente nacional da ACAPO, Jacinto Moita, num editorial de uma revista Luís Braille de 2001:
A capacidade associativa e reivindicativa dos deficientes visuais tem contribuído decisivamente para a conquista de alguns benefícios e compensações, dos quais mencionamos,
a título de exemplo: a circulação gratuita de cecogramas, abatimento no IRS e no IA [Imposto automóvel], atribuição de ajudas técnicas, isenção de pagamento de bilhete
de bilhete para o acompanhante nos caminhos de ferro portugueses, a quota nos concursos externos para o emprego, semáforos sonoros em algumas cidades, sinalização
nas estações de metropolitano e a instalar brevemente nas estações da CP, a adaptação de máquinas multibanco, a lei dos cães guia, etc.
Elementos que, mesmo acrescidos de outras iniciativas promovidas pela ACAPO, como a organização de colóquios, conferências e "acções de sensibilização", não elidem
grandemente a asserção de que o papel reivindicativo, junto dos poderes, e de informação, junto da sociedade, tem sido uma vertente não central naquela que vem sendo
a actividade da ACAPO. Reflexo disso mesmo é a reduzida visibilidade mediática que a associação detém, e, por consequência, o limitado alcance da ACAPO na transformação
dos valores socialmente embutidos na experiência da cegueira. Aliás, esta dimensão que reputo de fulcral na luta contra a exclusão das pessoas cegas, encontra-se
bem presente no primeiro capítulo dos estatutos da ACAPO, no artigo dos "Fins": "d) desenvolver, junto da opinião pública, todas as acções necessárias à promoção
de uma imagem fiel dos Deficientes Visuais".
Portanto, quando considero que a ACAPO é definível essencialmente como um espaço de prestação de serviços, construo um subtexto em que se assinala a menor relevância
de um investimento na transformação social. Algo que, à luz da leitura do quadro moderno em que a cegueira se define, ratifica uma lógica reabilitacional em que
a integração das pessoas cegas é pensada por referência às limitações presentes no corpo individual e na disparidade aí inscrita em relação às construções de normalidade.
A questão que ganha premência é o papel que as pessoas cegas e portadoras de deficiência podem desempenhar na reinvenção de uma gramática social e cultural que
reconheça as suas diferenças, considerando o desafio que elas trazem a um status quo que sistematicamente as vem relegando para as franjas da sociedade. Creio pois
que a desmobilização da gritante exclusão social que as pessoas cegas vivem no nosso país está profundamente dependente da eventualidade da sua organização representativa
assumir um papel forte na reivindicação dos seus direitos. Para tal haveria que se assumir a necessidade de uma acção sociopolítica, a ser engendrada por via da
democracia participativa, que se mostrasse capaz de articular a manifesta diferença implicada pela cegueira com uma efectiva equalização de oportunidades. Nesse
sentido, o que afirmo é, no fundo, o reconhecimento da inadequação das lógicas que consagram a cidadania, afirmando a igualdade dos cidadãos perante a lei, como
uma perversa e insidiosa elisão das diferenças que, de facto, existem. Um cânone democrático baseado na democracia representativa, na homogeneização da cidadania,
nega a equalização de oportunidades, e pouco mais promete do que a ratificação da muito moderna ideia da deficiência como fatal desvio, como uma inferioridade inapelável
de que o corpo tangível seria testemunho. Portanto, a situação das pessoas com deficiência no nosso país mostra ser uma pujante concretização da falência do cânone
hegemónico da democracia liberal, cuja vocação para a universalização da diferença sanciona a perpetuação das diferenças subalternizadas. Isto mesmo nos dizem Boaventura
de Sousa Santos e Leonardo Avitzer (2002) quando assinalam a necessidade de uma ampliação do cânone democrático que se mostre capaz de superar a vigência de democracias
de baixa intensidade. Só assim, defendem, a inclusão social e o reconhecimento da diferença poderão ocorrer nas sociedades contemporâneas, que, por essa via, tenderão
a adquirir a capacidade de a um tempo identificarem e forjarem a pluralidade que as compõe. Reinventando-se. O que assume maior importância na leitura dos autores
para este texto, é em que medida esta ampliação do cânone democrático passa por um debate entre a democracia representativa e a democracia participativa; onde a
"patologia da representação" - o facto dos cidadão se considerarem cada vez menos representados pelos que elegeram -, se complemente com formas inventivas de engajamento
democrático; com uma intensificação da democracia a advir da riqueza e heterogeneidade do tecido social que compõe qualquer sociedade. As pessoas com deficiência
são, sem margem para dúvida, um importante grupo social que acrescenta heterogeneidade à nossa sociedade, e cujas experiências se encontram subtraídas do espectro
que é politicamente representado e socialmente reconhecido.
Mas, como estas questões não se colocam apenas no abstracto, mas sim em circunstâncias reais, teremos que considerar sobretudo o legado institucional que veio
a condicionar a acção da ACAPO, os parcos recursos de que a associação dispõe, e o facto desta associação se obrigar a prestar serviços que, de outro modo, não seriam
prestados de todo. Deste último aspecto me dava conta, em jeito lapidar, um dirigente regional da associação: "Se nós não o fizermos mais ninguém o faz!". Há, portanto,
um papel em que a ACAPO se substitui ao Estado, e que vai comprometer uma acção reivindicativa mais significativa, tanto pelos recursos materiais e humanos14 que
nela se investem, como pela necessidade de parcerias com as entidades estatais, com vista à concessão desses serviços, poder ser entendida, como veremos à frente,
enquanto algo de inconciliável com uma atitude mais reivindicativa.
O reconhecimento da tensão entre a prestação de serviços e reivindicação encontra-se em muitas das reflexões que acedi sobre a vida associativa. José Guerra, quando
concluiu o mandato como presidente em 1998, fazendo um balanço, afirmava que se tinha feito um percurso de continuidade desde 1989, admitindo, no entanto, que a
prática directiva em que participou desde o início sempre havia estado sujeita, até ali, a um certo imediatismo, difícil de contornar. Recordou, ainda assim, uma
tentativa de um desenho mais estrutural da acção associativa aquando do início do triénio que presidiu: "esta Direcção declarou-se, ab initio, tendencialmente mais
reivindicativa do que prestativa de serviços. Temos um entendimento bastante lato daquilo a que temos vindo a designar (em escritos anteriores) por "vertente reivindicativa
ou sindicalista" (Guerra, 1998b).
Podemos definir 1998, data em que findou a direcção presidida por José Guerra, como o fim de um ciclo na vida da ACAPO, um período marcado sobretudo pela criação
e consolidação da instituição, pela sua afirmação como única representante nacional das pessoas cegas, pelo início da descentralização dos grandes centros urbanos
(iniciada em 1995), pela compra e beneficiação de instalações, pelo acréscimo de notoriedade da ACAPO como um interlocutor incontornável para os temas relacionados
com a deficiência, e pela crescente capacidade nos serviços prestados às pessoas com deficiência. Por esta razão, na minha perspectiva, o texto intitulado "O Render
da Guarda", surgido na revista Luís Braille, emerge como um registo deveras relevante e simbólico acerca do rumo da ACAPO. Nele, José Guerra faz uma retrospectiva
em que analisa como é que a ACAPO havia caminhado até então, afirmando que, passado que foi o período de estruturação, a associação deveria procurar fazer opções
estruturais na sua transformação, sendo claro a esse propósito: "A mudança passa pelo recurso à dicotomia vertente reivindicativa/vertente prestação de serviços".
Assim, no seu entender, posto que havia sido o período de consolidação da ACAPO, seria tempo da instituição procurar enveredar por uma actividade mais vinculada
à defesa dos direitos das pessoas com deficiência visual. Isto mesmo me disse quando o entrevistei:
Eu concordo que prestemos determinados serviços, porque podemos fazê-lo melhor, mas eu defendo e sempre defendi uma linha mais reivindicativa. Isto não é só teoria,
prende-se com questões pragmáticas: os sócios exigem muito da instituição, os sócios deviam pedir a ACAPO para bater o pé em relação ao governo.
José Guerra afirmava a necessidade de se estabelecerem os serviços prioritários a serem desempenhados pela ACAPO, cuja consecução deveria estar a cargo de profissionais
e técnicos estabelecidos em estruturas estáveis e autónomas. Para tal seria necessário que o Estado pudesse assegurar o financiamento e as condições para que esses
serviços fossem prestados. No seu entender, seria a estabilização desses serviços, e a inerente responsabilização do Estado, que poderiam conferir, a um tempo, a
independência da ACAPO e a libertação dos seus recursos e dirigentes para as actividades que, em última instância, deveriam constituir a sua razão de ser:
Só quando se atingir um determinado grau na estabilidade, profissionalismo e autonomização dos serviços que prestamos, é que podemos contar com a Direcção em pleno
para aquela que é a verdadeira essência do associativismo dos deficientes: igualdade de oportunidades, defesa dos direitos, promoção dos interesses, dignificação
da imagem, intervenção social e politica (Guerra, 1998b).
Esta posição reforça a crítica que José Guerra fazia ao facto da acção da ACAPO poder confundir os fins com os meios. Ou seja, na sua leitura, o facto dos esforços
da ACAPO terem que se centrar na criação de condições para a prestação de serviços aos associados leva muitas vezes a que estes sejam entendidos como um fim em si
mesmo quando, na verdade, o objectivo é a integração social das pessoas com deficiência.
Aqui, a questão que se torna central é o facto das atribuições que a ACAPO assume em prol das pessoas com deficiência visual deverem ser apreendidas e vindicadas
como atribuições cuja responsabilidade caberia ao Estado garantir em prol da igualdade de oportunidades das pessoas com deficiência, aliás, como previsto no Artigo
71.º da Constituição Portuguesa (2003):
2. O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio
às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva
realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores. 3. O Estado apoia as organizações de cidadãos portadores de deficiência.
Isto mesmo discutia José Guerra (2002) num texto em que debatia o estatuto jurídico das organizações de deficiência. Ali reflecte afirmando que o facto da ACAPO
se ter constituído enquanto uma IPSS (modelo estatutário previsto no Decreto-lei 119/83) se terá devido menos a uma questão identitária do que a uma perspectiva
mais pragmática: "Algumas associações, como a ACAPO, dado inscreverem nos seus estatutos fins de solidariedade social, requerem a qualificação como IPSS, de modo
a poderem beneficiar de determinado tipo de financiamento estatal". Neste sentido, o que José Guerra questiona será a importância da ACAPO equacionar assumir um
estatuto diferente a partir da Lei das Associações de Pessoas com Deficiência, a Lei 127/99, que, apesar de ter sido publicada em 20 de Agosto de 1999, ainda não
foi regulamentada pelo governo. No entanto, o ponto que parece fulcral no entendimento de José Guerra é a necessidade de uma reconfiguração de perspectivas, em que
a prestação de serviços não comprometa a capacidade financeira e humana, nem tão pouco a autonomia política das organizações de deficiência. Sendo que, nesta leitura,
a apologia de organizações de deficiência do "tipo reivindicativo" não nega que estas prestem serviços, simplesmente afirma que a sua concretização não deve obstar
a - o mesmo é dizer que se deve fundar - numa "permanente exigência perante os poderes políticos, na medida em que é obrigação desses poderes políticos procederem
com justiça e igualdade a todos os cidadãos, tomando em linha de conta as particularidades das pessoas com deficiência" (Guerra: 2002b: 5).
Deste modo, "a prestação de serviços às pessoas com deficiência deve representar para as suas organizações um meio a utilizar, naquelas áreas onde se mostre oportuno
e conveniente, mas necessariamente elas devem estar ao serviço do que é essencial" (Guerra, 2002). Ou seja, a criação de condições de inclusão social. Portanto,
nesta leitura, que acompanho largamente, enquanto imperativo de transformação das condições de existência das pessoas com deficiência, capaz de as subtrair ao paternalismo
do poder, estamos claramente a pulsar as condições de um aprofundamento democrático. Estamos a aquilatar das possibilidades a emergir de uma articulação entre democracia
participativa e a efectivação da equidade de oportunidades, um nexo que se quer capaz de consagrar enquanto tal as diferenças de que parte a opressão social, apagando,
ao mesmo tempo, as diferenças que a opressão cava.
Na verdade, pude perceber que em muitos sócios da ACAPO se estabelece uma relação de "cobrança" em relação à instituição, e às condições que esta oferece aos seus
associados, onde muitas vezes se esquece o facto que, no fundo, a ACAPO supre, com os seus parcos recursos, aquelas que deveriam ser atribuições e responsabilidades
do Estado. Portanto, para esta menor capacidade de transformação social que pude constatar em relação à ACAPO concorrem diversos factores: o legado das associações
que estiveram na sua base; a escassez de recursos humanos e financeiros; a reduzida interiorização de uma linguagem de direitos (assinale-se a este respeito a gritante
ausência nos discursos da ACAPO da gramática dos direitos humanos na denúncia das situações de exclusão a que a esmagadora maioria das pessoas cegas está sujeita);
e a necessidade de cobrir as muitas carências e omissões nos serviços directamente prestados pelo Estado. Joaquim Cardoso, uma figura há muito (desde 1971) envolvida
com os vários quadrantes das organizações portuguesas de deficiência15, uma realidade que, pela sua actividade, conhece como poucos, falava-me em tom crítico - tanto
das associações como dos poderes estatais - do panorama português a este respeito:
Todas as associações prestadoras de serviços têm dificuldade em passar à assunção de direitos, mantêm um lastro assistencialista muito pesado. Estou a preparar um
livro sobre Direitos Humanos, e já escrevi e apaguei muitas vezes. Mas uma das coisas que eu não tenho dúvida é que as associações prestadoras de serviços, pela
própria dependência que criam, ficam sob o poder, não tem havido a capacidade... Se o próprio poder fosse um poder realmente democrático contribuía para isso, mas
o governo tem que ter sempre cãezinhos atrelados.
Este nexo de razões históricas, económicas e sociopolíticas, de onde emergem algumas singularidades próprias é, contudo, largamente consentâneo com o retrato largo
porque se apreende a sociedade civil portuguesa. Dele sobressaem como vectores dominantes, por um lado, a recente história democrática e o carácter infante de uma
cultura de direitos, e, por outro, a força que detêm as relações de entreajuda no tecido social em face das carências do Estado.
A análise com que Boaventura de Sousa Santos vem abordando algumas das singularidades da sociedade portuguesa mostra ser bastante preciosa neste particular. Em
primeira instância, deveremos apreciar o facto da sociedade civil portuguesa se mostrar fraca no que respeita à capacidade de intervenção cívica e política, podendo
inclusive falar-se de um "défice de movimento social" (Santos, 1999: 230), dado que assoma de um modo mais óbvio quando comparamos Portugal com a realidade dos países
centrais europeus. Este dado, para que concorrem inúmeras razões, prende-se fundamentalmente com o facto de Portugal ter vivido longo tempo sob um regime autoritário
e de este ter sido desmobilizado apenas há 3 décadas. A longa herança de um passado de repressão tem tido óbvias implicações na capacidade do tecido social emergir
sob formas organizadas de intervenção que acrescentem à lógica da democracia representativa, elemento que se erige a par com uma incipiente interiorização de uma
cultura de direitos. Assim, o menor relevo da acção transformadora de elaborações mais ou menos formais deve-se, em grande medida, ao facto de, muito tardiamente,
velhos e novos movimentos sociais terem surgido ao mesmo tempo.
Por outro lado, o Estado português, quando contraposto com os Estados dos países centrais, apresenta uma centralidade mais autoritária (1999: 115, 116). Expressão
óbvia deste autoritarismo estatal é o modo como as entidades estatais se relacionam com as organizações de pessoas com deficiência, ao nível da sua participação
nas matérias que lhes dizem respeito; uma postura pouco democrática que é denunciada sobretudo por aquelas ONG's cuja acção é eminentemente reivindicativa, a saber,
a APD e CNOD. Assim, assinala-se com frequência a encenação da participação das organizações de pessoas com deficiência, facto que se encontra em óbvia contradição
com o papel primordial que importantes documentos internacionais, como as "Regras Gerais sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência", ou
a "Declaração de Madrid", conferem às ONG's de deficiência na definição de politicas sobre matérias que lhes digam directo respeito. Uma tal postura manifesta-se
pelo facto das ONG's de pessoas com deficiência serem consultadas para determinadas matérias com prazos muito curtos, como aconteceu recentemente em relação à revisão
da Lei de Bases da Prevenção, Habilitação, Reabilitação e Participação das Pessoas com Deficiência. Facto que mereceu a seguinte reflexão na contribuição de revisão
que um grupo de sócios deu à proposta da ACAPO:
Infelizmente, o caso presente, em que se solicita a organizações totalmente dependentes do trabalho voluntário dos seus dirigentes que, somente em duas semanas,
se pronunciem sobre um assunto com a importância de que se reveste a revisão da lei 9/89, constitui o exemplo, uma vez mais, do que não deveria acontecer, e reiteradamente
acontece, quanto a esta matéria (GESTA, 2003).
No entanto, esta reduzida democraticidade para com as pessoas com deficiência não é denunciada apenas na construção de simulacros de consulta ou encenações participatórias,
ela aponta-se igualmente no descrédito da estrutura que serve de interlocutor governamental às ONG's de deficiência, o Secretariado Nacional da Reabilitação e Integração
das Pessoas com Deficiência (SNRIPD). É no seio do SNRIPD que as ONG's de deficiência são consultadas no Conselho Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas
com Deficiência. A questão que me foi apontada por vários dirigentes associativos (ACAPO, APD, CNOD) é que, embora fosse suposto o SNRIPD constituir uma estrutura
transversal, que tem como uma das suas atribuições intervir junto dos diversos ministérios nas questões que tenham implicações nas pessoas com deficiência, tal nunca
terá acontecido cabalmente. Ou seja, é denunciado o facto de o SNRIPD não ser "ouvido" em muitas leis e decisões importantes para as pessoas com deficiência, facto
que se deverá à reduzida relevância que a sua acção detém no seio da estrutura governamental. Como me dizia Joaquim Cardoso:
Só quando o secretariado for equiparado a Secretaria de Estado, quando houver garantia que essas coisas sobem ao nível da decisão..., é que não sobem! Nós [CNOD]
defendemos desde o 4.º congresso nacional de deficientes que a secretariado devia passar a secretaria de estado. (...) Era suposto que toda a legislação fosse consultada
pelo secretariado, mas não é!".
Mas, regressando àquele que é o outro lado da moeda, a fragilidade reivindicativa e interventiva da sociedade civil portuguesa, apreciamos não só aquele que é
o cariz da ACAPO, mas também o facto do movimento das pessoas com deficiência em geral não deter uma grande capacidade de mobilização nem alcançar uma visibilidade
similar à de outros contextos.
No entanto, esta leitura da fragilidade da sociedade portuguesa é parcial e deverá ser complexificada. Isto porque, se é possível assinalar um "défice de movimento
social", uma tal perspectiva, no entender de Boaventura de Sousa Santos, ao ser estritamente política, não permite avaliar aqueles que são os méritos e capacidades
do tecido social português. Assim, o autor defende a enorme apetência da sociedade civil portuguesa para colmatar no seu seio, por via dos seus próprios mecanismos,
aquelas que são as deficiências da providência estatal, minorando os efeitos de eventuais situações de precariedade. O Estado português, quando comparado com os
dos países centrais, nunca foi um verdadeiro Estado-providência. Um dado que resulta do facto do desenvolvimento de uma tal configuração do estado só se ter dado
muito tardiamente (após o fim do Estado Novo, quando noutros países ele emergiu após a segunda Guerra Mundial), exactamente quando este modelo entrava em crise nos
contextos da sua constituição genésica. Assim, o que existe em Portugal é um "semiEstado-providência" ou um "quasi-Estado-providência" (Santos, 1993: 20), algo que
é possível avaliar no sentido técnico nas despesas investidas16 (Santos, 1998: 214, 253), mas igualmente pelo facto de "a administração pública ainda não ter interiorizado
a segurança social como um direito, continuando em alguns aspectos a considerar que se trata de um favor concedido pelo Estado, tal e qual como se pensava durante
o regime do Estado Novo17" (Santos, 1993: 45).
Assim, o que ressalta é o facto de um Estado-providência fraco ser compensado em Portugal por redes de relações emanadas da malha social, podendo falar-se, por
contraponto e complementaridade à actuação do Estado, de uma forte sociedade--providência, um conceito que Boaventura de Sousa Santos define do seguinte modo:
Entendo por sociedade-providência as redes de relações de interconhecimento, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança,
através das quais pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil e com uma lógica de reciprocidade semelhante à da relação de dom estudada
por Marcel Mauss (Santos, 1993: 46).
Neste sentido, a sociedade civil portuguesa compor-se-á de uma fragilidade ao nível da participação sociopolítica e de uma "intrínseca" capacidade de entreajuda
que permite suprir aqueles que são os défices de um Estado-providência que nunca o foi realmente, e que, devido às pressões neoliberais, o é cada vez menos. E se
também é verdade que as transformações no tecido social põem em causa o papel que foi sendo desempenhado por estas redes tradicionais, Boaventura de Sousa Santos
assinala igualmente a emergência de novas formas de providência no seio da sociedade portuguesa, com um carácter mais formal e diferenciado (a nova sociedade-providência
ou sociedade emergente), e de que as Instituições Particulares de Solidariedade Social são uma expressão (1995b: v, vi).
Neste sentido, a forte componente de prestação de serviços que existe na ACAPO permite que possamos entender que esta instituição toma parte, de algum modo, numa
sociedade-providência emergente. Uma leitura em que o cariz da ACAPO se apreende largamente naquelas que são as matrizes da sociedade civil portuguesa. Assim, podemos
entender a ACAPO como uma instituição que, em prol das pessoas deficientes visuais, procura suprir as muitas carências ao nível da providência estatal, que se evidenciam
em coisas tão flagrantes como no reduzido número e lotação dos centros de reabilitação; nas carências do ensino integrado; na inexistência de estruturas compreensivas
para a formação profissional de pessoas cegas, para o ensino da informática, para a inserção profissional, para a aquisição de material específico, etc.
Mas a apreensão da actividade da ACAPO pela perspectiva da sociedade-providência, embora complexifique sem dúvida as virtualidades e fragilidades da sociedade
civil nas suas várias vertentes, parte de uma divisão que segue o trilho da divisão entre Estado e sociedade civil, e assenta na ideia do Estado como uma criação
da sociedade civil. Mas os termos desta divisão tendem a esbater quando consideramos o modo como o Estado se estende nas instituições privadas sem fins lucrativos
condicionando a sua acção por via de apoios e financiamentos àquelas que deveriam ser as suas atribuições.
Portanto, ao mesmo tempo que a prevalência da prestação de serviços na actividade da ACAPO poderá ser entendida à luz do conceito de sociedade-providência, importa
pensar em que medida esse corpo de práticas emerge como uma extensão do Estado. Esta segunda possibilidade substancia-se na ideia de uma "sociedade civil secundária",
conceito por via do qual se apreende o espaço da sociedade civil que é criado pelo Estado no fortalecimento de determinadas práticas dos agentes sociais privados
sem fins lucrativos (Santos, 1998: 222). A desafiante ideia da sociedade civil secundária, constitui uma dissolução dos termos que criaram o dualismo entre Estado
e sociedade civil e coloca-nos, nalguma medida, perante a construção de um poder que nasce do Estado e se reproduz no tecido social; tendendo a operar nessa criação
uma perpetuação das relações de poder vigentes na ordem social. Esse poder reside sobretudo na selectividade dessa criação por parte do estado:
Embora a criação da sociedade civil secundária vise consolidar a capacidade de organização dos interesses sociais, o seu carácter selectivo ao mesmo tempo que potencia
a organização ou corporativização de certos interesses, planta obstáculos à organização ou corporativização de outros interesses (Santos, 1998: 223).
Neste sentido, e seguindo a leitura de Boaventura de Sousa Santos, produz-se uma desarticulação na sociedade civil, formando-se uma sociedade civil "íntima ao
Estado" e a sociedade civil "estranha ao Estado". Na leitura que faço, esta dicotomia mostra-se absolutamente central: na definição das tensões que assistem à definição
de posicionamentos e práticas das organizações de pessoas com deficiência; na composição do espectro das organizações de pessoas com deficiência no contexto português
e na inexistência de um movimento social mais abrangente.
Este itinerário que nos colocou perante algumas das características centrais da sociedade portuguesa faz-nos aportar a três ideias para a leitura do papel da ACAPO.
Em primeiro lugar, expressa-se como a reduzida capacidade da ACAPO para uma mobilização transformadora das formas de organização e dos valores detidos na sociedade
mais ampla não escapa a um contexto social que apresenta uma parca vocação reivindicativa. Em segundo lugar, percebemos na ACAPO o imperativo de ter que acorrer
à prestação de bens e serviços de forma a suprir as carências da providência estatal em relação às pessoas cegas, constituindo-se nessa medida como parte de uma
sociedade-providência. Em terceiro lugar, acedemos a um conceito - sociedade civil secundária - que capta o facto da prestação de serviços da ACAPO estar intimamente
vinculada a uma dependência em relação ao Estado, que, sobretudo por via dos financiamentos, estende a sua acção reproduzindo-se em alguns espaços da sociedade civil.
Um quadro em que a precariedade financeira obriga frequentemente a que os fundos disponíveis sejam destinados à vertente que aparece mais premente no imediato: as
despesas correntes e os serviços destinados aos associados.
Esta tendência para o prolongamento do Estado denota uma matriz bem diversa daquela que as "Regras Gerais" da ONU estabelecem, naquilo que é uma posição claramente
votada a enriquecer a arena social com as perspectivas das pessoas com deficiência e a promover a sua relevância no seio de uma democracia mais participativa:
Os Estados devem promover e apoiar financeiramente e de outras formas a criação e consolidação de organizações de pessoas com deficiência, de associações de famílias
e/ou de pessoas que defendam os seus direitos. Os Estados devem reconhecer o papel daquelas organizações no desenvolvimento das políticas em matéria de deficiência.
Todas estas questões estruturais, que se prendem com as singularidades do contexto português, um contexto semiperiférico no sistema mundial, congeminam-se com
as questões específicas da história da ACAPO (desde logo, o facto de ser uma história muito recente), concorrendo para a explicação da reduzida acutilância da acção
desta instituição na defesa dos direitos das pessoas cegas. Contribuem igualmente para dar corpo justificativo à asserção de que a actividade da ACAPO ratifica largamente
uma abordagem que atrás identificámos como abordagem reabilitacional. É nesse sentido que designo a ACAPO como uma barqueira indecisa: ainda próxima da margem de
partida, a lógica reabilitacional/prestação de serviços, a ACAPO hesita em se aproximar da outra margem, a lógica reivindicativa/ transformação sociocultural. A
ACAPO é a barqueira temerosa desse momento em que ambas as margens parecem igualmente distantes.
Mas, antes de atentarmos nos desenvolvimentos mais recentes da ACAPO, tomando como ponto de partida o texto com que José Guerra encerra o terceiro mandato, importa
que nos debrucemos um pouco sobre outras organizações de deficiência que compõem o panorama português. Nomeadamente, aquelas cuja acção se funda numa perplexidade
em relação à situação vivida pelas pessoas com deficiência no contexto português. Refiro-me à Confederação Nacional dos organismos de Deficientes (CNOD), a estrutura
"chapéu-de-chuva" das organizações de deficiência em Portugal, e à Associação Portuguesa de Deficientes (APD), a maior organização do âmbito no nosso país. Um olhar
que se mostra essencial para que possamos aceder às estruturas que em Portugal mais se investem, seja em denunciar a situação de exclusão em que se encontram pessoas
com deficiência, seja em desafiar a hegemonia da abordagem reabilitacional e individualizada vigorante nas respostas sociais aos problemas suscitados pela deficiência.
Mas também porque a relação com essas organizações se mostra importante na compreensão daquele que, desde 1998, se consolidou como o posicionamento da ACAPO na defesa
dos interesses dos deficientes visuais.
3. DEFICIÊNCIA E POLÍTICA ASSOCIATIVA NO CONTEXTO PORTUGUÊS
A APD e as CNOD são, indubitavelmente, as organizações em Portugal que assumem uma posição reivindicativa mais forte na defesa dos direitos das pessoas com deficiência,
constituindo-se como as instituições de pessoas com deficiência que mais claramente se poderiam definir como parte de uma "sociedade civil estranha ao Estado". A
APD é actualmente a associação de pessoas com deficiência que conta com maior número de sócios, cerca de 24 mil, e, entre delegações distritais e locais, encontra-se
disseminada pelo território através de um total de 21 delegações. A APD é também a associação que granjeou maior visibilidade no seio da opinião pública em prol
da inclusão social das pessoas com deficiência.
O início da APD remonta a 1970, altura em que foi proposta na Assembleia Nacional de então uma Lei de Bases sobre Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência
- que haveria de resultar na Lei de Bases 6/71. Conforme me contou Joaquim Cardoso, um dos 50 sócios fundadores da APD, o debate promovido por essa lei (nomeadamente
uma série de reuniões organizadas na Fundação Calouste Gulbenkian) fez convergir mormente pessoas que haviam ficado deficientes na guerra colonial e as pessoas com
deficiência que estavam ligadas ao meio universitário. Esse debate acabou por congregar um grupo de pessoas cujos interesses comuns conduziram à formação da APD
em 1972. E embora fosse já patente um distanciamento da APD para com as lógicas assistencialistas que marcavam as associações até então existentes, só em 1974 com
a revolução é que a APD assumiria o recorte intransigentemente reivindicativo que hoje detém. Nesse mesmo ano criar--se-ia também a Associação dos Deficientes das
Forças Armadas (ADFA), constituindo esta, quer uma "separação de águas" em relação à APD, quer uma resposta às insuficiências que os "deficientes de guerra" há muito
encontravam na Liga dos Combatentes. A ADFA constitui-se fundamentalmente com o propósito de defender a reparação das perdas dos seus associados e das suas famílias
com a guerra e com os ferimentos nas forças armadas. Emerge por isso com um conjunto de preocupações mais específicas, relacionadas com as compensações aos danos
sofridos ao serviço do Estado português, estando tais pessoas abrangidas por uma moldura legislativa específica. A defesa de certas regalias para os "deficientes
de guerra" marca o posicionamento desta associação, que estabeleceu laços com as autoridades governamentais sobretudo por via do ministério da defesa, uma estrutura
tradicionalmente mais ligada a interesses e valores conservadores. Esta associação detém hoje cerca de 14 mil associados e, além da representação política dos interesses
dos "deficientes de guerra", presta serviços aos associados e suas famílias, fundamentalmente ao nível do apoio jurídico e administrativo, mas também na vertente
médico-social.
Em 1976 a transformação do regime político seria reificada na transformação dos estatutos da APD, que assumiria então o seu carácter reivindicativo. A acção da
APD estaria na base da realização do 1.º Congresso Nacional de Deficientes, que levaria à criação da Comissão Coordenadora Nacional dos Organismos de Deficientes,
a actual CNOD. A estrutura que hoje corresponde à CNOD visava coordenar as acções das ONG's de pessoas com deficiência - à imagem da acção reivindicativa central
que as ditas estruturas "chapéu-de-chuva" tiveram noutros contextos - com o propósito de fazer emergir um movimento nacional das pessoas com deficiência. O contexto
de emergência da CNOD foi impulsionado pelo facto de em 1981 se ter realizado o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência. A APD fez parte da comissão executiva
do "Ano Internacional" em Portugal, estrutura que abandonaria como forma de denúncia do aproveitamento político que, no seu entender, o governo de então fez daquele
evento. Fica já aqui registado um certo distanciamento e uma "hermenêutica da suspeita" que até hoje é um traço distintivo da relação da APD com os poderes.
O ano de 1981 seria ainda marcante pela criação da DPI, a mais importante organização internacional de pessoas com deficiência, a cuja constituição já fizemos
referência. O facto da APD se ter filiado nesta associação com a qual tem mantido estreita ligação, teve consequências deveras importantes, uma vez que a DPI nasce
nutrida de discursos profundamente progressistas e radicalmente reivindicativos em relação à defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Este contacto com as
construções discursivas de outros países operou fortemente para consolidar uma crítica sistemática à falta de reconhecimento que as pessoas com deficiência e as
suas associações detêm na sociedade portuguesa. Portanto, a denúncia de estruturas adequadas para a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiências, assim
como o apelo para a realização de transformações (organizativas, culturais, sociais, arquitectónicas) que permitissem a sua inclusão social, esteve sempre articulada
com uma leitura em que os problemas implicados pela deficiência são localizados fora dos corpos dos seus portadores. Bem ao contrário das perspectivas individualizadas
e reabilitativas, a APD vem identificando como principal factor para a exclusão social das pessoas com deficiência:
(...) a forma como organizamos a vida, as cidades, as infra-estruturas de educação de ensino, de cultura, a lógica produtiva e organizativa das empresas que está
em jogo, na justa medida em que os valores culturais que dão forma e conteúdo à nossa vida em sociedade marginalizam uma parte considerável da população (APD, 2002a:
11).
Podemos, pois, dizer que o trânsito de intentos emancipatórios fomentado pelo contacto com a DPI foi um elemento de suma importância para que se inculcasse no
nosso contexto algo próximo de um modelo social da deficiência. Construção que atrás identificámos e cuja "inovação" central é a reconfiguração da deficiência como
uma forma de opressão social. O facto da APD ter adoptado uma leitura marcadamente social da deficiência, na qual faz sustentar a sua acção reivindicativa, fica
bem patente no texto que a associação elaborou como proposta para a revisão da lei de bases da prevenção, habilitação, reabilitação e participação das pessoas com
deficiência, em particular na definição de pessoa com deficiência que ali surge:
Pessoa com deficiência é aquela a quem é imposta a perda ou limitação de oportunidades com base em argumentos biológicos. A perda ou limitação de oportunidades de
participação em igualdade de circunstâncias é devida a um conjunto complexo de situações criadas pelo meio ambiente e social que impedem ou limitam o reconhecimento,
usufruto ou exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais (Documento realizado pela APD em 2003)18.
Mas, para além do enfoque nas condições do meio social que negam oportunidades às pessoas com deficiência, haverá a assinalar o facto da relação com a DPI também
se ter mostrado importante para que o discurso dos direitos humanos assumisse uma relevância central na definição dos propósitos da APD. Esta ligação ficou simbolicamente
representada na Conferência Internacional de Direitos Humanos que a APD e a DPI organizaram conjuntamente em Junho de 2000, da qual resultaria o Livro Branco dos
Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência (2002). A APD afirma-se inequivocamente como uma "organização de direitos humanos", fundamentando a luta contra a discriminação
das pessoas com deficiência nos direitos civis, culturais, económicos, políticos e sociais consagrados no regime dos direitos humanos.
A APD é uma organização que confere absoluto primado a uma actividade reivindicativa que actue sobre as políticas estatais, e que ajude a transformar o modo como
as pessoas com deficiência são socialmente pensadas. Esse duplo propósito é virtualmente alcançado quando as lutas pela igualdade de oportunidades alcançam a opinião
pública, pois assim se veicula a ideia de que a tragédia na vida das pessoas com deficiência não está necessariamente já "lá", tendendo antes a reactualizar-se pelas
condições sociais vigentes. Quando nos integramos numa análise do contexto português podemos supor que a continuada acção de exigência, crítica e reivindicação da
APD, muito deve ao facto desta associação nunca se ter comprometido grandemente com a prestação de serviços19. No entanto, a APD não deixa de revelar algo da fragilidade
reivindicativa dos movimentos sociais no contexto português, facto expresso na constatação de que - mesmo sendo a maior associação de deficientes portuguesa - não
detém no seio da opinião pública uma grande visibilidade. Um elemento que deverá algo à pouca atenção conferida pelos media, mas sobretudo à dificuldade que existe
em mobilizar um número alargado de sócios para as jornadas de contestação ou outras. Algo que, na opinião de Joaquim Cardoso, também se prende com as dificuldades
relacionadas com os transportes, mas que não deixa de estar fortemente ligado com o facto de muitos sócios não estarem suficientemente "alertados para os seus direitos".
Um nexo de factores a que não é obviamente estranho o modo precário como as organizações de pessoas com deficiência são financeiramente apoiadas pelo Estado.
Importa agora regressar à CNOD, uma estrutura organizativa que, na sua génese, pretendia congregar e coordenar as acções reivindicativas das organizações de pessoas
com deficiência. No entanto, a CNOD nunca conseguiu alcançar a abrangência que organizações similares lograram noutros países. Actualmente, a CNOD congrega 29 associações,
num quadro heterogéneo em que, além das associações que são efectivamente dirigidas pelas próprias pessoas com deficiência, encontramos algumas das ditas "associações
de técnicos" ou de "pais e amigos" - mormente as que estão ligadas à deficiência mental - ou que apresentam como única vertente a realização de serviços. Por essa
mesma razão, embora a CNOD tenha um discurso reivindicativo de cariz semelhante ao da APD, apoiando-se igualmente em documentos internacionais bastante progressivos20,
não deterá porventura uma "liberdade de movimentos" tão grande como a APD. Disso mesmo me dava conta Joaquim Cardoso, dirigente nacional de ambas as organizações,
quando me referia a necessidade de, no seio da CNOD, se gerirem as susceptibilidades diversas resultantes da presença de algumas "organizações de serviços". Afirmando
igualmente que, embora seja costume a APD e a CNOD articularem as suas iniciativas de luta, nalguns casos a APD tem que "avançar sozinha". No entanto, o elemento
mais saliente nas associações que compõem a CNOD é a ausência de algumas importantes associações de deficiência. Desde logo a de associações como a ADFA, a ACAPO
ou a Associação Portuguesa de Surdos.
O facto de à CNOD não estar vinculado um conjunto de associações mais alargado explica-se, em grande medida, pela circunstância de no contexto português muitas
associações de deficiência não assumirem uma postura reivindicativa de oposição ao poder, preferindo tomar parte na "sociedade civil íntima" de que há pouco falávamos.
Mas existe igualmente um outro factor que teremos que convocar: a questão político-partidária. Tanto a APD como a CNOD nasceram num contexto em que a sociedade civil
estava profundamente marcada pelo activismo de pessoas ligadas ao Partido Comunista Português, sendo assumido o facto de na emergência destas organizações estarem
muitos elementos com relações partidárias a esse mesmo partido. No entanto, segundo perspectivas a que acedi, a ligação ao partido comunista tem sido um estigma
de que estas organizações nunca se conseguiram libertar completamente. Em todo o caso, releva-se o facto de a APD, mais do que a CNOD, vir conseguindo nos últimos
tempos passar uma imagem de maior autonomia em relação às estruturas do PCP. Embora Joaquim Cardoso me referisse que no seio dessas associações a militância politica
não é um factor a que se dê importância, o que é facto é que a visão que muitas pessoas têm em relação a estas associações é mediada pela questão das ligações partidárias.
Este factor ganha alguma importância uma vez que, por circunstâncias da história portuguesa, a ligação ao Partido Comunista detém um capital de desqualificação de
um movimento. Isto porque, a patir daí pode-se supor a existência um firme "controlo partidário", ou mesmo a ideia de que o movimento mais não é do que a extensão
dos interesses partidários. No entender de Joaquim Cardoso, a acusação de comunismo muitas vezes emerge como uma arma de arremesso, em que se mobilizam os fantasmas,
muitas vezes a um limite em que qualquer discurso que se assuma como reivindicativo e de oposição ao poder está sujeito ao estigma do comunismo:
Quando se trata de reivindicar procura-se o fantasma político para esconder o fantasma dos direitos. Se eu disser que quero o direito à reabilitação e ao trabalho
se calhar vão-me chamar comunista, mas de facto essa perspectiva do fantasma apela ao irracional. Eu não digo que não haja militância!
Falei com Albertino Santana, que foi secretário da direcção da CNOD desde 1990 a 1999, como representante da ACAPO. Quando o questionei acerca da influência do
Partido Comunista na CNOD, e da possibilidade de haver trabalho concertado entre os militantes no seio da CNOD, afirmou nunca ter conseguido sedimentar uma noção
consistente acerca da existência desses condicionamentos. Explicou-me, no entanto, que a influência do PCP nunca deixou de ser um ponto central de discussão entre
as associações que compunham a CNOD. Querendo guardar para si a sua opinião mais estritamente pessoal acerca de uma eventual existência de condicionamento partidário,
afirmou, no entanto, que independentemente da extensão desse factor, a postura da CNOD foi, de facto, sempre de clara oposição ao modo como os sucessivos governos
negligenciaram a situação social das pessoas com deficiência. Quando fazemos uma análise dos discursos da APD e da CNOD vemos que, mais do que numa questão partidária,
as reivindicações assentam em documentos internacionais que são muito avançados na defesa dos direitos das pessoas com deficiência. E, perante a realidade do contexto
português, qualquer citação das directivas germinadas nos fóruns internacionais de deficiência, emerge como um texto de inconformismo e insurgência. No entanto,
não podemos subestimar a eventual depuração da participação que ocorra nestas organizações pela existência de agendas partidárias ou de células partidárias que procurem
concertar posições no seio das associações de deficiência, nem tão pouco o facto de essa denúncia surgir, muitas vezes, como forma de desqualificação do outro no
jogo sociopolítico. Sobretudo no seio da ACAPO, embora com algumas reservas para falar no assunto, várias pessoas me referiram a existência de formas de organização
entre as pessoas com deficiência ligadas ao partido comunista, que acabavam por ter um papel na vida das associações. E se é verdade que o cuidado com que o tema
é abordado faz com que não seja muito fácil determinar onde começa a análise factual e o jogo político-associativo, não deixa de ser constatável a existência de
um objectivo do PCP em exercer uma influência concertada junto das associações de deficiência. Isto fica bem expresso nas resoluções da 5.ª Assembleia da Organização
Regional de Lisboa:
Na região de Lisboa, estão sediadas as principais associações de deficientes - APD, ADFA, ACAPO e CNOD (Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes), entre
outras. (...) Devem ser linhas de acção e luta dos comunistas nesta frente de trabalho: (...) Para o reforço do Movimento dos Deficientes e alargamento da influência
do Partido é necessário levar à prática medidas e linhas de orientação, designadamente o reforço do trabalho junto das associações no distrito (PCP; 2003).
Assim como nas resoluções do 16.º Congresso do PCP realizado em 2000 (PCP, 2000):
O Partido goza de um real prestígio nesta camada [pessoas com deficiência]. Muitos membros do Partido desempenham importantes responsabilidades em diferentes associações
de deficientes e no movimento CERCI e têm tido papel de vulto na preparação e dinamização da acção reivindicativa. Entretanto, há a assinalar sérias insuficiências
e mesmo retrocessos no trabalho partidário desenvolvido nesta frente. Não se alargou a compreensão da organização do Partido quanto à importância desta frente de
trabalho que abrange um milhão de pessoas com graves problemas sociais e humanos. Importantes orientações aprovadas no XV Congresso não se concretizaram. Reduziu--se
o número de quadros envolvidos na frente, aumentaram as dificuldades no que toca à renovação de quadros associativos, diminuiu o número de organismos e o seu funcionamento
é irregular. Esta situação facilitou o desenvolvimento de tendências institucionalistas de colaboração com o governo de alguns quadros associativos. É necessário
adoptar medidas para alterar esta situação, de modo a que os membros do Partido possam intervir nas estruturas para salvaguardar e reforçar a unidade do Movimento
dos Deficientes, para garantir a sua autonomia face às tentativas de governamentalização das estruturas, (...). Para o reforço do Movimento dos Deficientes e alargamento
da influência do Partido é necessário levar à prática medidas e linhas de orientação, designadamente: criar organismos, reactivar outros e desenvolver esforços para
destacar mais quadros para esta frente de modo a assegurar um trabalho regular e sistemático (PCP, 2000).
Estes elementos, emanados do próprio Partido Comunista, deixam claro um objectivo de definição das linhas de um "Movimento dos Deficientes", cuja concretização
passaria por um acréscimo da influência nas diferentes organizações. Este elemento não é de todo desprezável, não só pela possibilidade de surgirem nas associações
posições concertadas que emanam do Partido Comunista, mas também pelo facto da assunção de um discurso contestatário de oposição ao poder estatal facilmente ser
conotado com o comunismo no seio do jogo político-associativo. Não obstante, convém frisar o facto de ter vindo a ser aquele o partido que mais tem visibilizado
e defendido, nomeadamente em sede de Assembleia da República, a causa das pessoas com deficiência.
Esta questão da influência partidária nunca esteve ausente da vida da ACAPO, como pudemos apreciar no próprio processo de formação da instituição. No entanto,
nos últimos anos, ela recuperou actualidade ao nível do debate interno, tendo estado ligada à desvinculação da CNOD, a cuja estrutura a ACAPO pertenceu até ao ano
de 2000. Mas, para tal, temos que retornar ao ano de 1998.
Após o "render da guarda" da direcção dirigida por José Guerra, criou-se um novo ciclo na vida da ACAPO. Depois de algumas pessoas, que haviam assumido cargos
directivos de relevo, terem mostrado a sua indisponibilidade para assumir a presidência da ACAPO, encontrou-se uma alternativa que se mostrou mais ou menos consensual.
Foi convidado José Arruda para liderar uma lista que, após ter cegado no serviço militar obrigatório em Moçambique, tinha feito a sua vida associativa no contexto
da ADFA. Portanto, embora fosse sócio da ACAPO e tivesse estado na primeira Assembleia de Representantes da associação, José Arruda era, como ele próprio me asseverou,
alguém estranho às vivências do associativismo da cegueira. Quando foi convidado aceitou com uma condição: "não queria estar contra Francisco Alves nem contra [José]
Adelino Guerra", as figuras marcantes da primeira década da ACAPO. A direcção presidida por José Arruda viria a ser eleita em 1999. Segundo me contou Fernando Matos21,
o primeiro vice-presidente dessa direcção, a constituição da lista eleita definiu-se mais como um somatório de nomes, sem que houvesse uma filosofia de acção muito
definida. Como resultado, haveriam de surgir incompatibilidades e conflitos que Fernando Matos atribui a diferentes socializações organizacionais, e ao facto de
o processo de conhecimento e de adaptação de José Arruda ter contrastado pungentemente com um posicionamento mais assertivo de Fernando Matos no modo de gerir as
questões.
Na sequência, a direcção demite-se e são convocadas novas eleições. Esta primeira direcção que não acabou o seu mandato, e o subsequente processo eleitoral que
opôs as candidaturas de José Arruda e de Fernando Matos, deixou marcas profundas na ACAPO. Sobretudo porque dividiu muitos dos principais quadros que haviam conduzido
os destinos da ACAPO, sendo significativo o facto de José Guerra e Francisco Alves terem ficado em lados diferentes da "barricada". Mas também pelo facto de o processo
eleitoral ter sido marcado por uma grande hostilidade que, segundo pude perceber, frequentemente derivou para as questões mais pessoais e para as acusações politico-partidárias.
Nomeadamente foi explorada a ligação da candidatura de José Arruda ao partido socialista e a da de Fernando Matos ao partido comunista, pelo facto de os respectivos
líderes estarem filiados nesses mesmos partidos. No entanto, importa salientar que a denúncia de ligações ao partido comunista opera um efeito de desqualificação
bem mais relevante, quer pela pertinência do já referido trabalho de bases desse partido, que coloca mais fortemente a suspeita sobre um possível controlo partidário
da associação, quer pelo facto de se mobilizar toda uma história de demonização do comunismo - que em Portugal é activada pela experiência pós-revolucionária -,
a que aludia o próprio Fernando Matos: "O Bruno sabe que essa história o papão comunista ainda colhe!"
Após um árduo combate eleitoral, que José Arruda ganhou com uma margem de 28 votos, a ACAPO passou a viver uma situação de grande divisão. Esta divisão ficaria
consubstanciada na formação em Abril de 2001 do Grupo de Estudos Sociais, Tiflológicos e Associativos - Movimento Progressista (GESTA-MP). Este grupo, presidido
por Fernando Matos, surgiu como uma forma de fundar uma oposição à estratégia seguida pelas direcções de José Arruda, mas também como forma de criar um espaço de
estudo e reflexão sobre os temas relacionados com a cegueira de molde a consolidar uma filosofia de acção para a criação de uma alternativa consistente para o futuro
da ACAPO. Esta estrutura criada no seio da ACAPO, sem personalidade jurídica, inspirou-se na União Progressista, uma organização análoga que existe na ONCE. Desde
logo a oposição à direcção da ACAPO ficou marcada pelo facto de, na moção de estratégia do GESTA, se defender uma postura de não colaboração com a direcção da ACAPO,
o que, dada a relevância e experiência de muitas das pessoas ligadas ao GESTA, e à crónica falta de quadros nas associações de deficiência, implicou um evidente
enfraquecimento da capacidade da ACAPO. Sublinhando a necessidade de maior reflexão de modo a subtrair a lógica associativa a um certo imediatismo, o GESTA apresenta-se
com um discurso progressista, significativamente fazendo constar da sua carta de princípios referências aos Direitos Humanos e à democracia participativa (GESTA,
2001). A afirmação do GESTA como um movimento de pendor mais reivindicativo ou - de um modo mais premente - a identificação de duas pessoas ligadas ao Partido Comunista,
faz com que uma acusação muito comum entre os seus detractores fosse a denúncia de um eventual controlo partidário desse grupo.
Na minha experiência etnográfica acedi ao clima conflituoso que, ao nível político, se vive dentro da ACAPO; algo que é perceptível nas conversas com alguns sócios,
com alguns dos protagonistas, no mapeamento das discussões levadas a cabo no grupo de discussão da ACAPO22, e nas duas assembleias de representantes a que tive a
oportunidade de assistir. Vários participantes nas actividades associativas da ACAPO me referiram o facto dos contextos das pessoas cegas serem tradicionalmente
conflituosos. Com experiência de outros contextos associativos de deficiência, isso mesmo assinalava Joaquim Cardoso: "Eu estava na assembleia--geral [Assembleia
de Representantes] da ACAPO, nunca mais lá fui, quando se perde uma hora para discutir uma vassoura, como uma vez em 1993...". Na verdade, se quiséssemos procurar
uma genealogia dessa "vocação" para a conflitualidade nas organizações de pessoas cegas decerto aportaríamos no facto de, durante cerca de 40 anos, as duas associações
de Lisboa terem coexistido em clima de hostilidade lado a lado. No entanto, creio que mais do que as reminiscências do passado, importará atentar para uma possibilidade
de resposta que também me foi avançada por alguns dos meus interlocutores. As pessoas cegas, mesmo entre as pessoas com deficiência, encontram-se entre as que mais
excluídas e marginalizadas são. Assim, poder-se-á supor uma relação entre o facto da vida associativa emergir para muitos como um raro espaço de poder e afirmação
pessoal, e o modo como são ampliadas as tensões e as lutas que consomem a democracia associativa.
No entanto, esta conflitualidade recente será de um outro tipo ou, melhor dizendo, prende-se com uma conjuntura política de grande divisão no seio da associação.
Particularmente nas Assembleias de Representantes a que assisti, foi patente essa clivagem, o carácter muito aceso das tomadas de posição e um resvalar para a personalização
das questões. Também foi interessante notar como os elementos ligados ao GESTA estão sujeitos às acusações de "comunismo"; recordo em particular uma ocasião em que,
após uma intervenção de um elemento filiado ao GESTA, alguém perguntava: "Foi isso que te ensinaram no Partido Comunista?".
Estabelecido o quadro interno da ACAPO nos últimos anos importa agora atentar brevemente no caminho que a ACAPO tomou. Procuro perceber em que medida a ACAPO persiste
a laborar no quadro fechado de uma abordagem reabilitativa.
Os dados emanados pelas direcções presididas por José Arruda nesse sentido são algo contraditórios. Um dos problemas chave da ACAPO é a falta de recursos económicos.
Ao longo dos tempos a ACAPO tem tentado assegurar uma forma de financiamento estável que garanta condições de sustentabilidade para a actividade e crescimento da
instituição. Neste particular, emerge com singular contraste o caso da ONCE, a congénere espanhola que naquele país detém o produto das receitas da principal lotaria
nacional. Também a ACAPO intentou conseguir uma lotaria ou mesmo uma raspadinha, mas as suas pretensões sempre se confrontaram com o inculcado monopólio da Santa
Casa da Misericórdia. José Guerra contou-me que essa hipótese foi colocada pela ACAPO numa reunião com Silva Peneda, o então Ministro do Emprego e da Segurança Social.
A resposta não podia ser mais conclusiva: "Falei-lhe nisso e ele disse: "olhe é mais fácil mudar a constituição que mudar a portaria que faz a distribuição do jogo
pela Santa Casa da Misericórdia". Isso é uma coisa que vem desde a D. Leonor". O facto da Santa Casa da Misericórdia deter o monopólio dos recursos dos jogos não
deixa de ser um elemento mais, de origens históricas bem profundas, para a asserção de que em Portugal o financiamento da sociedade civil de modo algum privilegia
a capacitação dos agentes representantes dos grupos excluídos e marginalizados.
Até ao ano de 2000 as fontes de receitas da ACAPO, para além dos parcos valores provindos das quotas e dos subsídios estatais23, advinham de um sorteio de carros.
Este sorteio foi herdado da ACLB e era levado a cabo por via de uma autorização concedida pela Santa Casa da Misericórdia e pelo Governo Civil de Lisboa. Embora
as margens de receitas fossem estreitas (33% para prémios, 40% para o encarregado e o resto para a associação), o sorteio representava ainda assim uma importante
fonte de receitas, permitindo, ademais, a existência de dinheiro em movimento. No entanto, desde há muito se equacionava o fim do sorteio, pelo contínuo decréscimo
das receitas de exploração, mas também porque a venda estava, desde há muito, a cargo de um "encarregado" que "contratava gente inqualificável". O que acontecia
era que a venda do sorteio ficava a cargo de pessoas que davam uma péssima imagem à ACAPO, sobretudo pelo recurso àquilo que alguém, noutro contexto designava por
"prostituição da deficiência". Ou seja, o uso do discurso dos "coitadinhos que não vêem", ao estereótipo de cego mendicante e o apelo a uma lógica caritária e paternalista.
Aliás, eu próprio me recordo de ser abordado por esses vendedores nesses termos. Esta prática tinha um efeito muito pernicioso na imagem das pessoas cegas; enquanto
que a ACAPO tentava passar uma imagem positiva a prática que constituía a sua fonte de recursos tomava partido do capital de "solidariedade com o infortúnio" e paternalismo
que a cegueira detém.
Mas, apesar disso, o sorteio ia persistindo, dada a ausência de fontes de receitas alternativas. Quando em 2002 se decretou o fim do sorteio, somos colocados perante
o primeiro elemento que se mostra relevante para a promoção da imagem das pessoas cegas junto da sociedade. A procura de um saneamento financeiro da instituição
e também a resposta ao fim das receitas do sorteio fez com que ACAPO acabasse também com a herança dos subsídios que eram atribuídos a alguns sócios (subsídios da
terceira idade, de estudo e de alimentação). A cessação destas prestações que tomavam parte de uma lógica de segurança social que acrescentava à do Estado foi igualmente
um passo para que práticas bastante onerosas não pesassem a instituição, e libertassem os seus recursos para outras actividades.
No entanto, se estes elementos parecem sugerir, ora um cuidado com a imagem pública da ACAPO, ora uma tentativa de a libertar de uma lógica marcadamente assistencialista,
o percurso das direcções recentes tem que ser compreendido também por outros elementos. Nomeadamente a procura de uma relação estreita com o Estado, numa lógica
de parcerias, e uma certa demissão de uma prática mais reivindicativa e contestatária. Essa opção estratégica, a que não é alheio um realismo financeiro que se consubstanciou
na atribuição de ajudas extraordinárias pelo Estado, ficou bem clara na longa entrevista que me deu José Arruda.
Um elemento central dessa nova postura foi a desvinculação da CNOD que, ao consubstanciar-se em 2000, quebrou uma filiação organizativa que vinha desde a génese
da ACAPO. Consoante me disseram vários dirigentes e ex-dirigentes da ACAPO, a acção da CNOD sempre deixou muito a desejar. Essa insatisfação, conforme me disse Francisco
Alves, devia-se sobretudo a "uma tensão entre o particular e o geral", ou seja, ao facto de as reivindicações específicas da ACAPO serem continuadamente subsumidas
na agenda da CNOD. Facto que junto à falta de qualidade, várias vezes referida, dos quadros daquela instituição e a um denunciado controlo partidário, sempre gerou
algum descontentamento dentro da ACAPO. Por isso mesmo, já em 1993 Francisco Alves havia proposto a desvinculação. Esta não foi aceite na assembleia de representantes
da ACAPO. No entanto, na altura, a ACAPO fez pressão para que os estatutos da CNOD se alterassem de modo a serem menos directivos em relação às associações filiadas.
Essa alteração aconteceu e fez com que a CNOD abandonasse o seu anterior nome, União Coordenadora dos Organismos de Deficientes, para passar a ter a designação que
hoje detém (Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes). Algumas das pessoas com quem falei, contrárias à desvinculação da CNOD, defendem que se a ACAPO
não concordava com alguns aspectos do funcionamento daquela organização de cúpula, deveria ter tentado "mudá-la por dentro". Isto porque, no seu entender, em muitos
casos faz todo o sentido que as lutas e reivindicações das pessoas com deficiência se possam articular.
Quando a ACAPO se desvinculou, em 2000, os argumentos apresentados prenderam-se sobretudo com o facto de a CNOD não conseguir ser uma efectiva organização de cúpula,
que representasse todas as pessoas com deficiência, mas também, e sobretudo, com as fortes ligações que eram denunciadas entre a CNOD e o partido comunista. Elemento
central apontado por todos quando procurei aquilatar das razões da saída da ACAPO da CNOD. Isto mesmo me disse José Arruda, que me referiu a sua oposição em relação
a uma certa instrumentalização das pessoas com deficiência para fins partidários. Albertino Santana, que esteve na CNOD até 1999 em representação da ACAPO, foi contrário
a essa desvinculação. Embora não negue o facto de existirem coisas que funcionavam menos bem na CNOD (inclusive alguns eventos de que o próprio se sentiu vítima),
que poderiam legitimar a acusação da ACAPO de condicionamento partidário, este ex-dirigente é de opinião que a ACAPO se subtraiu demasiadamente cedo a um papel construtivo
que poderia e devia ter continuado a realizar no seio da organização.
Tanto Joaquim Cardoso da CNOD como Fernando Matos do GESTA, defendem a ideia que a desvinculação da ACAPO se terá devido sobretudo a uma estratégia de aproximação
ao poder estatal. Assim comentava o dirigente da CNOD: "foi uma questão política, um frete ao poder em busca das benesses que daí viessem, o poder tem sido sempre
hostil à CNOD!". Já Fernando Matos, para além de denunciar um "oportunismo político" que teria obrigado a uma estratégia que mais agradasse ao governo, coloca também
a tónica na relação entre a presença de "quadros do PS" na direcção da ACAPO que propôs a desvinculação, e o facto de ser esse o Partido que estava no poder aquando
do processo de desfiliação da CNOD24. De facto, conforme me chamou a atenção o líder do GESTA, na reunião que a direcção da ACAPO teve em 26 de Setembro de 2000
com o Secretário de Estado Adjunto do Ministro do Trabalho e da Solidariedade, entre outras coisas que foram faladas, como as dificuldades financeiras da instituição,
a ACAPO fez questão de dar a conhecer ao governante o facto de se ter desvinculado da CNOD. Um elemento que é certamente expressivo e que, inclusive, ficou registado
num artigo da revista Luís Braille (2000) em que foi noticiado o referido encontro.
O que se torna óbvio é que, a partir da direcção eleita em 1999, a ACAPO enceta um percurso de maior aproximação aos poderes governamentais. Aliás, isto mesmo
é assumido pelo seu presidente que, por ter apoiado o PS nas legislativas de 2001, faz questão de salientar que esse vínculo mais forte foi conseguido tanto sob
a governação do PS como após a ascensão ao poder do PSD:
Qualquer associação tem que ter relações com o poder. Dantes não havia. Nós recebemos apoio PS e apoio PSD. Não nos colámos a nenhuma força. Quando entrámos era
o PS e depois era o PSD. (...) Hoje uma organização de âmbito social tem que ter outra postura, comprometer o poder, muda o poder e temos apoio. Eu tive o apoio
do PS muda o poder, PSD e tenho apoio outra vez.
Isto também fica presente no relatório de actividade de 2002:
Em 2002 a ACAPO "abraçou" relações muito fortes com as entidades oficiais. Adivinhava-se um ano que iria trazer algumas dificuldades ao nível dos contactos com o
novo Governo. No entanto a ACAPO não desistiu, lutou e conseguiu e prova disso são as audiências e reuniões e eventos em que estivemos presentes e os resultados
que obtivemos.
É de notar que esta proximidade em relação ao poder emerge como uma forma pragmática de se conseguir um saneamento financeiro (que nalguns momentos passou inclusive
pela negociação de subsídios extraordinários). No entanto, mais relevante será notar como a leitura de José Arruda desenha a existência de uma incompatibilidade
entre a componente social da ACAPO - a prestação de serviços - e uma atitude reivindicativa. Isto mesmo ficou claramente expresso quando eu comentava o facto de,
ao contrário da APD e da CNOD que muitas vezes não comparecem a eventos comemorativos organizados pelo governo, como forma de protesto, a ACAPO vir participando
em eventos que muitas pessoas com deficiência reputam de actos de propaganda:
Pois, a APD não foi! Mas essa prática... Eles são contrapoder. Aliás, eu condeno o apoio que o governo possa dar a uma organização que é contrapoder. Os nossos objectivos...
Se é reivindicativa não pode pedir dinheiro para reivindicar.
Uma perspectiva que expressará um parco enraizamento de uma cultura de direitos, por um lado, e, por outro, uma certa descrença em relação à importância da insurgência
activa e da democracia participativa concorrerem para um enriquecimento da diversidade sociocultural. Um contrato social de que, pelo menos em termos constitucionais,
o Estado se entroniza como garante. José Arruda expressa uma perspectiva em que a melhoria das possibilidades de vida das pessoas cegas é feita depender, dentro
de um quadro de contingências, sobretudo da melhoria dos serviços que a ACAPO presta.
Aquela que foi definida como a bandeira reivindicativa das suas direcções foi a reactualização de uma demanda que estava presente num caderno reivindicativo apresentado
pela ACAPO em 1992: a ideia de uma pensão de cegueira. Esta ideia surgiu após uma visita que a ACAPO fez a Itália, logo após a sua constituição, onde todas as pessoas
cegas recebem uma pensão que visa cobrir os custos suplementares implicados pela deficiência. Esta proposta nunca recebeu grande receptividade e são raras as pessoas
que na ACAPO acreditam que alguma vez possa ser conseguida, pelas questões de justiça social que levantaria quer em relação às outras deficiências, quer em relação
às pessoas cegas que não têm carências económicas, e pelo facto de as tendências da segurança social portuguesa dificilmente apontarem para um quadro de investimento
desse tipo. Por outro lado, a resposta encontrada para se fazer face às dificuldades financeiras da ACAPO, agravadas com o fim do sorteio, passa por um quadro em
que as diversas delegações devem, a nível distrital, negociar acordos atípicos com a segurança social para a consecução de projectos. Este caminho, que já vem sendo
seguido, torna claro o que já vinha presente no relatório de actividades de 2002: o facto de a ACAPO passar a assumir uma política de actuação baseada em projectos.
Neste sentido, e a seguir-se este caminho, a acção da ACAPO ficará cada vez mais ligada às práticas locais, às relações com os centros distritais de segurança social
e com as entidades financiadoras da formação profissional. Sendo possível supor um eventual esvaziamento de uma lógica mais nacional, e uma perda de relevância da
própria Direcção Nacional, que poderá vir a ficar progressivamente despojada de capacidade de agregação e de âmbito de actuação.
Embora nos últimos anos haja a ressalvar o fim do sorteio enquanto um elemento deveras positivo na imagem das pessoas cegas, o que se torna evidente é que a precariedade
de recursos financeiros, e o imperativo de prestar serviços às pessoas cegas, tem feito com que esta instituição venha assumindo um caminho menos vocacionado para
a transformação social. O entendimento da necessidade de uma maior intimidade com o poder estatal, o recurso a financiamento de projectos que são seleccionados e
aprovados por entidades ligadas ao aparelho de Estado, são elementos que resultam objectivamente na diminuição do potencial emancipatório da instituição. Isto, quer
para um questionamento das estruturas que promovem a exclusão de quem não vê (com especial relevância para as questões relacionadas com o emprego e a educação),
quer para uma pedagogia que permita fazer com que as reflexividades informadas da cegueira demovam as representações culturais disseminadas, onde a experiência da
cegueira é pensada, e determinada, pela vigência de uma "narrativa da tragédia pessoal".
São muitas as dificuldades que se colocam no contexto português à inclusão social das pessoas com deficiência:
a) -A vigência de um Estado que frequentemente menoriza a participação e a consulta das pessoas com deficiência, mostrando remanescentes de um antigo autoritarismo;
b) -Uma postura estatal que, ao nível financeiro, apoia muito precariamente a acção das ONG's de pessoas com deficiência, pouco contribuindo em prol de
um aprofundamento da democracia participativa;
c) -As carências na providência estatal e nos mecanismos de criação de igualdade de oportunidades;
d) -O carácter pouco reivindicativo das organizações de deficiência que tendem agir como parte de uma "sociedade-providência"/"sociedade civil secundária"/"sociedade
civil íntima do Estado";
e) -A falta de visibilidade e capacidade de mobilização das associações eminentemente reivindicativas;
f) -E a ameaça/suspeita de controlo partidário que paira sobre as lógicas de contestação, enfraquecendo-as.
O Ano Europeu da Pessoa com Deficiência, assinalado em 2003, fundado nas resoluções da Declaração de Madrid, tinha como objectivo central alertar as sociedades
para a necessidade de transformação da situação de exclusão das pessoas com deficiência. Mas, segundo o que a APD e a CNOD denunciaram ao longo de todo o ano de
2003, foi pouco o empenho e escassos os recursos que foram disponibilizados pelo governo em prol desta iniciativa, que muitos esperariam que se pudesse tornar um
ponto de viragem. Na verdade, foi muito reduzido o impacto social e político das realizações que tiveram lugar em Portugal no Ano Europeu das Pessoas Com Deficiência.
Não surpreende que as principais organizações tenham visto as suas expectativas profundamente defraudadas e o tenham definido como "um grande desapontamento para
as pessoas com deficiência em Portugal" (APD, 2003b). Para além da ausência de iniciativas de impacto na opinião pública ao longo de todo o Ano Europeu25, o balanço
negativo assinala também o facto das medidas governamentais tomadas durante o ano europeu se terem cingido à aprovação em Conselho de Ministros da Proposta de Lei
de Bases da Prevenção, Habilitação, Reabilitação e Participação da Pessoa com Deficiência, onde se prevêem quotas de emprego de 2% a serem aplicadas em determinadas
empresas. Uma proposta de lei que, para cúmulo, foi aprovada sob forte protesto tanto da CNOD como da APD, que denunciam a ausência de um efectivo processo democrático
na sua elaboração de molde a que as perspectivas das pessoas com deficiência fossem minimamente consideradas. Ao invés, denuncia-se uma Lei de Bases aprovada à pressa
para escamotear o que não se fez no Ano Europeu, onde o apontado paternalismo benemérito terá substituído a participação democrática. Por outro lado, apesar de alguma
comunicação social ter feito eco do descontentamento das ONG's de deficiência, estas, as poucas que assumiram abertamente o seu descontentamento, nunca tiveram uma
capacidade de mobilização e de intervenção que levasse decisivamente o tema da deficiência para a opinião pública.
É, pois, possível fazer uma leitura do Ano Europeu da Pessoa com Deficiência como uma oportunidade perdida, um evento que simboliza um continuado adiamento das
vozes e das expectativas de integração de uma minoria profundamente excluída na nossa construção social. Neste adiamento, ironicamente simbólico - que no fundo faz
parte de uma continuada invisibilização de uma forma de opressão tão insidiosa como tenaz - reificam-se alguns dos elementos que estruturam o mapa social e político
português. Temos, assim, que a situação das pessoas com deficiência ratifica aquelas que são as incontornáveis marcas de uma sociedade semiperiférica, e que ficam
bem sintetizadas nas conclusões da uma conferência que a APD promoveu em 2003:
Os progressos evidenciados pelo país, em termos políticos, económicos e sociais desde o 25 de Abril de 1974, não se traduziram proporcionalmente na melhoria significativa
dos índices de qualidade de vida das pessoas com deficiência. Nesta matéria, Portugal, apesar da legislação existente, está mais próximo dos países menos desenvolvidos
do que propriamente dos seus parceiros da União Europeia (APD, 2003c).
No encalço das especificidades que marcam as vivências das pessoas cegas no contexto português, desenhámos um percurso que nos trouxe desde a criação da Irmandade
do Menino Jesus dos Homens Cegos, no século XVIII, até às mais recentes questões associativas e vividas no seio da ACAPO. Errando entre os elementos que nos colocam
entre as contingências históricas das instituições criadas em torno da cegueira e alguns dos traços marcantes da sociedade portuguesa, definimos os contornos de
um quadro em que as capacidades e possibilidades das pessoas cegas dificilmente encontram espaço para sua afirmação. A ideia de que as pessoas deficientes oferecem
à construção da sociedade uma perspectiva cujo reconhecimento as faria capaz de acolher as suas diferenças esbarra de modo flagrante numa continuada experiência
de exclusão e silenciamento. Aportamos num contexto em que um alargamento de sentidos e visões do mundo a serem propiciadas por uma democracia de maior intensidade
- significativamente fundada na agência dos interessados - é relegado para segundo plano, em prol de uma acção que, na medida do possível, procura suprir as carências
dos serviços do Estado. Esta lógica, além de pouco mais conseguir fazer do que ser um paliativo para as graves carências existentes na habilitação e reabilitação
das pessoas cegas, adia significativamente uma acção mais investida em transformar as concepções detidas sobre as incidências e implicações da experiência da cegueira.
O texto deste trabalho tem vindo a assentar grandemente nas representações culturais construídas em torno da cegueira; sem dúvida um elemento que me vem cativando
na empreendida observância das leituras históricas que se foram sucedendo e apondo até à decisiva passagem para a modernidade. A perpetuação hegemónica das representações
que vinculam as vidas das pessoas cegas à "narrativa da tragédia pessoal" coloca-nos perante uma realidade social que se mostra muito pouco informada da reflexividade
das pessoas cegas, seja pelo facto das formas de organização social se preservarem imunes às transformações que as pessoas cegas entendem desejáveis - persistindo
bem longe de uma arquitectura inclusiva a ser feita de uma ecologia de reconhecimentos -, seja pelo facto de as ideias de incapacidade e infortúnio abarcarem as
leituras da cegueira, mobilizando-se para a vida de todos os dias em preconceitos deveras subalternizantes.
Parece, no entanto, que existe um elemento que desde sempre vem fazendo subtis incursões neste texto sem nunca ter entrado nele completamente. Refiro-me à experiência
incorporada, a insolúvel pertinência do corpo vivido, o corpo que somos. Como dizia Foucault, sem que nunca tivesse inquirido tais territórios de sentido, o corpo
é "o modo de ser da vida, (...) aquilo mesmo que faz com que a vida não exista sem me prescrever as suas formas" (2002: 354). Quero assim levar a minha análise do
significado que é construído acerca da experiência da cegueira, a novos questionamentos. A novos lugares de inquirição em que esse "modo de ser da vida" receba a
centralidade fenomenológica que detém na nossa relação com o mundo. Ao dirigir-me para as implicações do corpo vivido dos sujeitos, a sublime "prisão" da existência,
pretendo desenhar duas linhas que, creio, expandem e seguem as preocupações deste trabalho. Em primeiro lugar, abro a porta para que possam ser contempladas as experiências
corporais de dor, sofrimento e privação. Vivências que, afinal, marcam as vivências dos sujeitos em geral, mas cuja acuidade é incrementada - em diferente medida
- nas incorporações e construções da deficiência. Em segundo lugar, quero explorar o modo como a experiência incorporada da visão convida à elaboração de respostas
corpóreas empáticas que vão concorrer para o ancoramento da cegueira às ideias de tragédia.
Estendendo as leituras culturalmente mediadas da cegueira para os terrenos da experiência incorporada, esta última fase do trabalho, no modo como a insiro, surge
quase como uma irónica adenda àquele que seria o final prenunciado pelas abordagens tradicionais das ciências sociais, costumadas que estão em negligenciar determinadas
dimensões da experiência. A pertinência deste enfoque, embora pretenda dar corpo a dados tornados inequivocamente relevantes na investigação empírica, merece ainda
algum cuidado teórico, que entendo necessário pelo carácter relativamente incipiente de uma tal abordagem na escrita socioantropológica. Neste sentido, o corpo transgressor
que enuncio é também aquele que, nalguma medida, me leva a transgredir os costumeiros "tempos do texto".
Notas
1 Elementos que fazem parte das conclusões da Vídeo-Conferência sobre Braille, Novas Tecnologias, Orientação e Mobilidade, organizada pela ACAPO em Maio de 2001
e onde estiveram presentes muitas pessoas ligadas ao ensino. Uma das conclusões referia tão-somente: "Deve-se levar para a Escola Inclusiva os aspectos positivos
da Escola do Ensino Especial".
2 Esta proposta encontra-se no artigo 28.º da proposta de Lei de Bases que foi aprovada em Conselho de Ministros no final de 2003: "As empresas devem, tendo em conta
a sua dimensão, contratar pessoas com deficiência, mediante contrato de trabalho ou de prestação de serviço, em número não inferior a 2% do total de trabalhadores".
3 Na população com um grau de incapacidade atribuído por autoridades médicas (46, 5% do total), 27, 6% apresentam um grau de incapacidade classificado como sendo
superior a 60% (INE, 2002).
4 Actualmente, para além da Direcção Nacional e das Delegações Regionais, a ACAPO totaliza 12 Delegações locais espalhadas pelo país.
5 Nome ficcionado. Os nomes ficcionais serão usados sempre, à excepção das situações em que se fizer referência a histórias e reflexões que ganhem particular pertinência
com o conhecimento da identidade dos sujeitos, mormente pelo seu papel na vida associativa.
6 Refiro-me nomeadamente às continuidades verificadas nas entrevistas com os dirigentes de maior destaque, aos artigos da Revista Luís Braille, às conclusões dos
congressos e aos comunicados da associação.
7 Recorrentemente, quando caminhava com alguma pessoa cega que se guiava pelo meu braço, ou quando estava próximo de alguém que andava adjuvado pela sua bengala,
eu tomava a contacto com todo um conjunto de respostas que a identificação da deficiência visual tende a suscitar. Refiro-me a comentários compassivos, a conversas
em surdina e a olhares profundamente curiosos e invasivos.
8 Um dos professores de mobilidade falou-me do papel negativo que a pessoa cegas que pedem esmola nos vagões do metro de Lisboa acaba por ter nos utentes com deficiência
visual. A questão, no seu entender, é que uma pessoa deve ser ajudada porque está desempregada ou não tem recursos, não por ser cega. E quando a cegueira é mostrada
como móbil para a mendicância opera-se uma ratificação dos valores que inferiorizam a generalidade das pessoas cegas.
9 Foi vice-presidente da direcção nacional durante os dois primeiros mandatos. No terceiro triénio assumiu o cargo de presidente da direcção, que deixou em 1998.
Foi também um dos empreendedores e dinamizadores da Revista Luís Braille, desde 1990, ano de seu início, tendo ocupado até ao ano 2000 sempre cargos de responsabilidade,
ou como director, ou como director-adjunto.
10 As interacções na rua e o modo como os indivíduos cegos são abordados foi durante muito tempo alvo de um espaço humorístico na revista Luís Braille designado
"Jeremias Bengaladas"; ali se retratavam as situações a que as pessoas cegas estão quotidianamente sujeitas no espaço público, pelas atitudes das pessoas e pelas
condições presentes no espaço urbano.
11 Tiflologia refere-se à instrução e à formação profissional das pessoas cegas.
12 A sede da "Luís Braille" e da Liga de Cegos João de Deus localizavam-se respectivamente rua de S. José e a Rua de Sta. Marta em Lisboa, uma curta distância que
separa os espaços em que se actualmente se alojam a Direcção Nacional da ACAPO e a Delegação Regional Sul e Ilhas.
13 Este elemento prendia-se mais com a atribuição de subsídios, que entretanto foram extintos, transformação a que nos referiremos adiante.
14 A falta de quadros para preencher os órgãos sociais é um dos problemas com que a ACAPO, à semelhança de outras organizações de pessoas com deficiência, se debate.
Algo que resulta do facto de apenas um restrito número de pessoas estar disposto a dedicar o seu tempo e trabalho à associação em actividades que podem ser muito
exigentes. Por esta razão, muitas organizações de deficiência vêm reclamando que "o prometido estatuto de ONG para as organizações de Reabilitação e Integração da
Pessoa com Deficiência, onde se preveja para os seus dirigentes (a exemplo do que acontece com as leis sindicais) um crédito de horas e um regime especial de destacamento,
está a tornar-se uma exigência cada vez mais actual e indispensável, sob pena das ONG perderem a sua capacidade de intervenção" (Guerra, 1998a).
15 Joaquim Cardoso é cego e sócio da ACAPO, mas tem estado sobretudo envolvido com a vida associativa por via dos importantes cargos directivos que vem ocupando
no seio de organizações que abarcam a deficiência em termos gerais (nomeadamente a APD e a CNOD), organizações cuja acção é eminentemente reivindicativa e a que
nos referiremos com mais cuidado adiante.
16 A este propósito António Barreto analisava recentemente o facto de Portugal apresentar a mais baixa percentagem do PIB em despesa anual com a protecção social
(2003).
17 O autor refere igualmente o facto de esses direitos não terem sido completamente interiorizados pelos seus titulares. O que muito deverá à circunstância de o
dramático incremento de direitos sociais que se registou após o 25 de Abril não ter sido o resultado de lutas continuadas, tendo-se gerado um pacto social fora de
uma "maturação social" que levasse a uma efectiva assunção dos direitos por parte dos seus titulares (Santos, 1998: 225).
18 Uma definição bem diversa da que se encontra presente na proposta de Lei de Bases que o governo aprovou em Conselho de Ministros no final de 2003: "Considera-se
pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas,
apresente dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os factores do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a participação em condições de
igualdade com as demais pessoas."
19 A prestação de serviços da APD limita-se a actividade desenvolvida por gabinetes de apoio onde se confere encaminhamento e se presta informação acerca de questões,
jurídicas, sociais e arquitectónicas.
20 Convém salientar que a CNOD é a representante portuguesa no Fórum Europeu da Deficiência, uma estrutura europeia de organizações de deficiência que se assume
como o interlocutor da Comissão Europeia.
21 Fernando Matos esteve ligado desde 1993 à vida político-associativa da ACAPO, tendo feito parte da última direcção que José Guerra presidiu entre 1996 e 1998.
22 Acesso em: http: //br.groups.yahoo.com/group/acapo/
23 Para que se tenha uma ideia, a prestação anual que a ACAPO recebe do Estado através do secretariado Nacional da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência,
ficou-se tanto em 2001 e 2002 pelo montante de 82302 Euros, cerca de 16500 contos (elemento extraído do relatório de actividades da Direcção Nacional da ACAPO respeitante
ao ano de 2002).
24 Em 2001, criou grande polémica na ACAPO o facto de José Arruda aparecer como presidente daquela instituição na lista de apoio à candidatura do PS para as eleições
legislativas.
25 Com a possível excepção da cerimónia de encerramento, transmitida no canal 1 da RTP, onde estiveram presentes importantes figuras do panorama cultural e político
português.
V
O CORPO TRANSGRESSOR: CONSTRUÇÕES SENSORIAIS
DO MUNDO, LEITURAS DO SOFRIMENTO
1. A EXPERIÊNCIA INCORPORADA E OS LIMITES DA LINGUAGEM
O corpo de Foucault não tem carne.
Terence Turner
Na análise empreendida no encalço da objectificação moderna do corpo deficiente procurei confrontar-me com os limites de um proverbial nominalismo que contempla
os corpos como meros produtos da linguagem. Ao recusarmos o corpo como mera construção onde se reificam os significados culturais e as relações de poder, elaborámos
um quadro em que se colocou ao centro a co-implicação entre a linguagem e a materialidade, substanciada na ideia que é impossível negar a materialidade do corpo:
"Seguramente os corpos vivem e morrem, comem e dormem, sentem dor, prazer, suportam doença e violência; e esses factos, pode-se proclamar cepticamente, não podem
ser desmobilizados como mera construção" (Butler, 1993: xi, minha tradução). Mas, ao mesmo tempo, alegámos que aquilo que essa materialidade é está sempre fora dela,
no sentido em que qualquer noção daquilo que seja a materialidade pura do corpo nos é sempre dada por um esquema de inteligibilidade particular. Portanto, os valores
culturais que se debatem em torno do corpo não o inventam, mas antes participam na sua "materialização", a prática de criação e reiteração pela qual a matéria do
corpo adquire sentido (Butler, 1993: 14, 15).
O interessante diálogo que Butler realiza entre as leituras incorpóreas do corpo e a assunção da sua materialidade fracassa, contudo, em explorar um questionamento
capaz de transgredir o estudo das representações para aceder a elementos mais vividos da experiência corpórea dos sujeitos. No fundo, ao negligenciar a dimensão
a que Maurice Merleau Ponty se refere quando fala do corpo como "veículo do ser no mundo" (1999), Judith Butler atém-se ao conforto das leituras discursivas do corpo.
Ao longo do trabalho etnográfico foram-se adensando algumas questões que se iam mostrando crescentemente pertinentes na persecução de alguns elementos relacionados
com as experiências das pessoas cegas. E foi exactamente a tentativa de dar corpo a essas inquietudes, construindo para elas algumas linhas explicativas que me colocou
perante o que Terence Turner sintetiza de modo sonante quando afirma que: "o corpo de Foucault não tem carne" (1994: 36). Quando, na continuada reflexão no decorrer
do trabalho etnográfico, me coloquei perante a necessidade de perceber o lugar ocupado pelas experiências de sofrimento, dor e privação física, senti-me enviado
a recolher os despojos da enunciação de Bryan Turner quando este afirma que "acreditar que as questões da representação são as únicas legítimas ou cientificamente
interessantes é adoptar uma posição de idealismo em relação ao corpo" (1992: 41, minha tradução). De facto, se quisermos contemplar uma perna que dói, a pele queimada
pelo sol, a sede e a fome que nos constrangem, o imperativo de urinar e defecar, a importância de um beijo, de um carinho, de um abraço, de uma cópula, de um tom
de voz, estaremos sempre a considerar experiências culturalmente mediadas. Experiências diferentemente designadas, diferentemente representadas, que são contextual
e intersubjectivamente vividas, mas que nos lembram que somos um corpo onde e por via do qual vivemos. Tudo.
Estas são questões que inevitavelmente afloram em muitas das vidas da cegueira. Como o denota, por exemplo, a resposta que me foi dada por Ricardo, quando, algum
tempo após uma das "recaídas" em que perdeu alguma visão, eu lhe perguntava como encarava a provável possibilidade de vir a cegar:
Vai ser um choque grande para mim... se assim já é! Se me fizerem uma operação é só depois de eu cegar completamente, porque agora ainda posso manter este bocado
de visão que tenho... se mexerem na vista pouca probabilidade de existir melhoria ou menos manter a pouca visão que tenho, porque se ainda posso ver o sol ainda
posso diferenciar algumas cores, ver algumas silhuetas, não é? Ainda consigo ver, se for em câmara lenta, as imagens na televisão... ver o meu glorioso que o Bruno
não gosta nada! Mas penso que se assim já é difícil...
Estamos, pois, em face de realidades que fogem às apreensões discursivas, e onde o corpo vivido assoma com incontornável fulgor. Vergílio Ferreira, discutindo
a tese de Michel Foucault acerca da recente invenção do homem como centro de saberes, fazia notar que o homem sempre esteve lá, "apenas não precisou de o saber".
Reforçando esta ideia, o autor continua com uma interessante analogia: "como se não dá conta de um órgão antes dele nos doer... Não pensamos no nosso corpo enquanto
temos saúde. Mas a doença não o inventa..." (Ferreira, 2002: 43). Como bem expressa esta alusão, tal como a doença, eventos há que nos alertam para a centralidade
do corpo, mas esses eventos não criam por si a centralidade do corpo, uma vez que ele é um dado incontornável da existência, esses eventos trazem, isso sim, a consciência
do carácter incorporado da existência.
É exactamente esta a tese fundamental que Drew Ledder sustenta em The Absent Body (1990). Este autor, partindo de uma evidente orientação fenomenológica, procura
confrontar o paradoxo da ausência corpórea. Um tal paradoxo parte da ideia que, sendo os nossos corpos uma presença inescapável na nossa vida, eles tendem a preservar-se
num estado de latência ou invisibilidade na quase totalidade das nossas existências e das nossas acções quotidianas. Portanto, durante a maior parte do tempo e na
maioria dos sujeitos, o corpo tende a não ser trazido à consciência, permanecendo numa espécie de presença não notada e não tematizada. Como mostra Ledder, esta
ausência do corpo da consciência do sujeito é apenas suspensa em situações muito particulares: no escrutínio dos olhares de outros, no confronto com a própria imagem
corporal, numa digestão ruidosa, na necessidade de urinar, na fome, na doença, na dor, etc. Isto é, o corpo é feito saliente nas experiências que tornam presente
e que promovem aquilo que o autor designa por "acrescida consciência corporal". Nos termos em que aqui a pretendo abordar, a questão da cegueira acentua a consciência
do corpo por via daquilo que Ledder designa por "dys-appearrence". Um conceito que refere uma das vias por que o corpo aparece à consciência. Esta formulação é explicada
do seguinte modo: "Eu tenho utilizado o termo "dys-appearance" para me referir à tematização do corpo que acompanha a disfunção e estados problemáticos" (Ledder,
1990: 86). Assim "dys-appearance" - cujo sufixo dys o autor extrai do grego para dizer "mal" - nomeia o acréscimo de consciência do corpo por via de uma irregularidade,
de uma perda ou excesso no seu funcionamento.
Embora na cegueira a presença do corpo ganhe importância por outros meios, tais como o escrutínio suscitado pelos olhares alheios, os modos alternativos de realização
de actividades, ou a construção diferente do mundo sem a visão, pretendo aqui dar ênfase à pertinência que o corpo da pessoa cega assume enquanto expressão de uma
perda e de uma privação. Portanto, procuro resgatar o corpo na cegueira por via de uma dys-appearance, uma aparição do corpo por via de um "mal", vivido ou projectado.
Deste modo, curiosamente, sigo uma linha em que o défice sensorial que a cegueira faz supor torna acrescido o lugar do corpo. Sendo que o acréscimo em causa mais
não é do que uma inflacionada consciência em relação à omnipresença de um corpo pelo qual somos no mundo.
O reconhecimento trazido da prática etnográfica em relação à impossibilidade de me ficar pela representação cultural enquanto domínio para pensar o corpo, foi
para mim algo complexo. Pese embora o facto de ter realizado uma Licenciatura em que as ciências biológicas e as humanidades se articulavam, por via da Antropologia
Biológica e da Antropologia Sociocultural, constatei, inspirado que estava por esta segunda vertente, que algumas das minhas preocupações relacionadas com a experiência
incorporada se localizavam num espaço de fronteira cujo mapeamento trazia consigo a marca de uma estranheza. E essa dificuldade não era apenas minha, mas antes estava
profundamente ligada com o património e com o percurso histórico das ciências sociais. Numa certa perspectiva, a tentativa de apreensão do corpo pela perspectiva
da experiência incorporada dos sujeitos deu--se como o ensejo de um abraço que depressa constatou a fugacidade do corpo desejado. Esta fugacidade deve-se ao carácter
híbrido deste corpo à luz dos esquemas de entendimento que dispomos, pelo que a incursão nos territórios da experiência incorporada se dá sob o espectro daquilo
a que chamo o abraço fugaz do híbrido.
O reconhecimento do corpo como lugar fulcral de algumas das mais centrais formas de desigualdade e de controlo social na sociedade contemporânea (Turner, 1994:
28), tem estado associado a um grande volume de trabalhos investidos em deslindar os processos e implicações da inscrição de sentido nos corpos e nas suas diferenças.
No entanto, torna-se igualmente perceptível que as leituras discursivas de que o corpo vem sendo alvo nas últimas décadas reproduzem, frequentemente, um silenciamento
e exclusão do corpo, na dimensão incorporada da experiência. Conforme sintetiza Miguel Vale Almeida no seio de numa análise retrospectiva: "privilegiou-se a inscrição,
negligenciou-se a incorporação" (1996: 16).
O descuramento nas ciências socais do corpo vivido, do corpo como condição de ser no mundo, da centralidade das experiências do próprio corpo e do conhecimento
incorporado, muito deve ao facto de estas ciências se terem desenvolvido desbravando as exterioridades das ciências naturais, ao mesmo tempo que se inspiram nos
princípios positivistas que viram nascer estas suas precedentes. Falemos primeiro do quanto os olhares ao corpo se ficaram pelas exterioridades das ciências naturais.
De facto, os estudos que se dedicam ao carácter contingente do corpo no seio dos sistemas de significado alojam-se num dos lados da "grande divisão" entre as "duas
culturas" (Snow apud Nunes, 1999), as ciências e as humanidades e os seus objectos: o mundo natural e a cultura humana. E se é verdade, como afirma Arriscado Nunes
(1999: 26), que no seio desta divisão as ciências sociais adquirem um estatuto incerto, a questão é que as abordagens do corpo neste ramo do saber estiveram sempre
vinculadas à oposição entre natureza e cultura, à luz da qual o corpo foi sempre abordado de forma parcial, na cultura, negligenciando-se as dimensões que diriam
respeito às ciências naturais. O facto das leituras do corpo, ao seguirem o trilho da "grande divisão", sempre se terem detido nas proximidades da fronteira, dentro
dos terrenos da análise cultural, tendo deixado, por isso, francamente inexploradas dimensões do corpo vivido que importaria trazer para os questionamentos sociais
e culturais. A questão é que a premência do corpo, dos seus usos e das suas diferenças, nos coloca perante um híbrido entre o natural e o sociocultural, um híbrido
que as ciências sociais se mostraram grandemente incapazes de considerar, tendo enveredado quase sempre pela confortável pureza de um dos lados da fronteira. No
entanto, a ausência deste corpo-híbrido não é igualmente sensível ou problemática para as construções das classificações raciais, como o é, por exemplo, para as
questões de sexo, ou, de um modo ainda mais forte, no que respeita às deficiências físicas, onde o corpo vivido é, por assim dizer, "mais real". O que pretendo defender
é que o corpo que vem sendo acolhido crescentemente enquanto realidade culturalmente significativa, é ainda um corpo refém, um corpo parcial, o produto de uma negligência
que, sem ser necessária, está profundamente inscrita numa das cisões fundadoras do conhecimento na modernidade ocidental.
As dificuldades que as ciências sociais têm tido para abraçar o corpo, acedendo à natureza incorporada da experiência, poderão assim ser entendidas, em larga medida,
por referência ao modo como este insiste em transgredir a fronteira entre a cultura humana e a natureza enquanto domínios, respectivamente, das humanidades e das
ciências. Começa pois a desenhar-se essa vocação do corpo para um trânsito pouco domesticado.
A outra razão para a negligência da experiência incorporada prende-se com a adesão das ciências sociais dos princípios positivistas sobre o conhecimento. Assim,
a denúncia da epistemologia moderna, na negligência do carácter incorporado da experiência, não serve apenas para reconhecer o lugar de experiências de privação,
dor e sofrimento, mas também para contemplar a desqualificação do lugar corpo no nosso acesso a todo o conhecimento. Ao trazer aqui a experiência incorporada quero
também frisar em que medida a cegueira nos coloca perante corpos que pensam. Uma ideia profundamente antipositivista. Torna-se central contemplar o impacto da profunda
inculcação de um dualismo cartesiano que fundou uma separação entre corpo e mente, e que haveria de atravessar toda a epistemologia ocidental moderna, seja na consagração
do carácter desincorporado do conhecimento - que se tornou fundamental como suporte de neutralidade e objectividade -, seja no menosprezo ao lugar do corpo e dos
sentidos no acesso ao mundo. Interessa-nos em particular esta segunda implicação para nos dirigirmos ao trânsito entre consolidação redutora da mente como lugar
do conhecimento, e a desvalorização do corpo e dos sentidos na apreciação das formas de produção, reprodução e partilha de significados. Esta é uma dimensão que
assume incontornável pertinência na minha análise sobre a experiência e as representações da cegueira. Sobretudo porque neste particular perseguir o corpo implica
também acompanhá-lo para além da equação entre mente e conhecimento, implica superar o legado cartesiano, robustamente estabelecido nas nossas concepções científicas
de conhecimento, ao encontro de corpos que conhecem e pensam.
Mas existe ainda um outro factor que se articula com (e acrescenta) aos elementos até aqui considerados para a longa negligência da experiência incorporada. Ele
prende-se com o facto de a crítica social das últimas décadas se ter desenvolvido tendo presente a memória das violências e extermínios, ocorridos no seio de determinados
regimes sociopolíticos, que se legitimaram pela atribuição de naturezas aos corpos. Por esta razão podemos reconhecer que existe um ímpeto na teoria social das últimas
décadas para negar o lugar "excessivo" que a ênfase no corpo natural e na afirmação do carácter intrínseco das suas diferenças ocupou na legitimação de regimes totalitários
e hierarquias naturais. Sobre isto mesmo fala Anne Harrington (1997: 200) quando insere o surgimento de conceitos chave no pós--modernismo e no pensamento contemporâneo
(como "desconstrução" e "logocentrimo"), que se investem largamente em contrapor os regimes de significado que apelam à natureza fixa dos corpos, num "protesto"
contra o uso que os argumentos biológicos tiveram no nazismo. Portanto a fobia dos corpos na teoria social, de que já Judith Butler nos falava, não é separável de
um desejo de não voltar atrás em relação às construções essencialistas e somatizantes que tiveram o seu apogeu no nazismo. Esta é uma dimensão histórica que permite
compreender que o aparecimento do corpo como um importante objecto analítico nas teorias sociais ocorreu a par de um impulso estratégico antiessencialista que veio
corroborar, em parte, a já referida propensão das ciências sociais para a negligência de um corpo dito natural.
Exactamente nesse sentido, Frederik Jameson, num claro registo de contracorrente, oferece-nos uma leitura que se dirige para a razão de ser do antiessencialismo:
a negação de uma verdade fixada nas diferenças dos corpos. O antiessencialismo é por ele percebido através de um propósito de superação das construções fascistas
e as formas de solidariedade por elas criadas. Partindo de François Lyotard, para quem todos os desejos e posições políticas são libidinalmente iguais, Jameson defende
que o antiessencialismo corresponde a um desejo, a uma estratégia e a uma pulsão libidinal, que se opõe a discursos fascistas, racistas e patriarcais. Assim sendo,
segundo o autor, a natureza aparece como o grande inimigo do pensamento antiessencialista: "desfazer-se dos últimos remanescentes da natureza e do natural é certamente
o sonho e aspiração secreta de todo o pensamento pós-moderno, contemporâneo ou pós-contemporâneo" (Jameson, 1994: 46).
Penso que relações para que Anne Harrington e Frederik Jameson apontam têm uma pertinência que de modo algum deve ser esconjurada desta análise. No entanto, creio
que a identificação desse "desejo antiessencialista", embora se mostre fundamental para que possamos historicizar as abordagens na teoria e na crítica social, não
deverá descurar a história trágica que paira sobre os saberes vocacionados a perscrutar aquilo que de natural há nos corpos e nas suas diferenças. Temos, assim,
uma história cautelar sobre as perigosas consequências sociais quando nos dirigimos ao corpo para aceder a elementos que, aparentemente, se subtraem às elaborações
sociais de sentido.
Apesar das razões para a negligência da experiência incorporada preservarem pertinência para um olhar crítico da incompletude que tende a marcar as leituras sociológicas
do corpo, é de assinalar que este vazio tem sido alvo, desde os anos (19)90, de uma renovada atenção. Um momento importante para que a escrita em torno da experiência
incorporada se consolidasse nos estudos socioantropológicos foi, sem dúvida, a publicação em 1994 de Embodiment and Experience, obra organizada por Thomas Csordas,
e que é constituída por um conjunto de artigos de diferentes autores, cujos textos gravitam na órbita do tema abrangente da incorporação e da experiência incorporada.
A proposta de Thomas Csordas revela-se deveras oportuna para a consubstanciação de um cuidado analítico em relação a aspectos eminentemente relacionados com a fenomenologia
do corpo vivido.
Na realidade, as formulações teóricas que conduzem Thomas Csordas à organização da obra Embodiment and Experience, já se encontravam largamente presentes num
galardoado artigo publicado em 1990 na revista Ethos, com o título de "Embodiment as a Paradigm for Anthropology"1, pelo que o reconhecimento da importância do livro
em questão não poderá ser realizada sem referência ao seu predecessor teórico. O interesse de Thomas Csordas radica exactamente da identificação da omissão do corpo
ou, pelo menos, da sua presença muito parcial no seio da análise social. Em particular, Thomas Csordas produz uma crítica que se consubstancia na ideia de que as
abordagens do corpo nas ciências sociais vêm sendo mapeadas por aquilo que o autor considera ser uma aceitação tácita do legado cartesiano, à luz do qual o corpo,
separado da mente, tem sido sistematicamente desqualificado enquanto sujeito de conhecimento e de cultura (cf. Csordas, 1990; Csordas, 1994b; Csordas 1994c). Csordas
define assim como uma das principais características do tema da incorporação o facto de ele necessariamente produzir a falência das dualidades entre mente e corpo,
sujeito e objecto. Tomado o ponto de partida, Csordas procura afirmar as virtualidades na assunção do corpo como forma incontornável de engajamento com o mundo e
como fundamento perceptivo no seu conhecimento (1990; 1994b). Defende, portanto, a assunção do corpo como sede inescapável da condição de "ser-no-mundo" e de um
posicionamento, numa perspectiva incorporada, no acesso a esse mesmo mundo. Assim, ao querer estabelecer a incorporação como um novo paradigma para a Antropologia,
Thomas Csordas pretende afirmar a necessidade do corpo não ser apenas entendido como um objecto em relação à cultura, um texto em que esta se inscreve ou que por
ela é interpretado, mas, igualmente, como sujeito de cultura. Ou seja, Csordas releva a importância de acedermos às implicações do corpo como a base existencial
da cultura (Csordas, 1990).
Thomas Csordas resgata o corpo da pletora de objectos do mundo a que a cultura se dirige; mostra, pois, que este é um objecto especial. Assim, o autor investe-se
nas consequências de pensarmos o corpo não apenas como objecto, mas como um sujeito, um sujeito produtor da cultura, e para o facto de que os outros objectos do
mundo existem para nós por via de uma relação sensorial de que o nosso corpo é fundamento primeiro. O corpo é o objecto primeiro através do qual conhecemos todos
os outros. O pensamento de Csordas inspira-se fortemente na Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty (1999), fundando-se em particular no postulado que
orienta largamente o trabalho do filósofo, segundo o qual o corpo, embora constituindo uma realidade material culturalmente objectificada, é, antes de mais, uma
realidade prévia, pré-objectiva, que se estabelece inescapavelmente como a base dos processos perceptivos que terminam na objectificação:
Embora eu veja ou toque o mundo, o meu corpo não pode no entanto ser visto ou tocado: o que o impede de ser alguma vez objecto, de estar alguma vez "completamente
constituído", é o facto de ele ser aquilo por que existem objectos (Merleau--Ponty, 1999: 136)
Diz-nos, portanto, Merleau-Ponty, que o nosso corpo fenomenal, a nossa âncora existencial, não deve nem pode ser esquecido na análise dos itinerários por que ele
ganha sentido cultural: "não é nunca nosso corpo objectivo que movemos, mas nosso corpo fenomenal, e isso sem mistério" (ibidem: 153). A localização do corpo emerge
assim como um ponto de partida existencial numa relação com o mundo. No entanto, a defesa da presença de um corpo que "permite a existência" não poderá ser dissociada
dos contextos de significado socialmente produzidos. É exactamente à necessidade de contextualização e ao perigo da incorporação ser equacionada com perspectivas
universalistas que apaguem as diferenças culturais que Thomas Csordas responde (1990: 10; 1994c: 270), quando refere que, ao se afirmar o corpo como realidade pré-objectiva,
e como irrevogável localização posicionada no acesso ao mundo, não se poderá entender a experiência incorporada como estando fora ou sendo anterior à cultura. Na
sua leitura, o significado cultural deverá ser reconhecido enquanto intrínseco à existência incorporada, ao nível existencial de "ser-no-mundo".
Quando evoco aqui a questão da experiência incorporada, não pretendo fazer apelo a universalismos existenciais que nos enviem para fora do âmbito de uma contextualização
sociocultural, o mesmo seria negar o percurso até aqui realizado em torno da cegueira. A inserção no âmbito deste trabalho desta dimensão, supõe a sua relevância
no que ela nos poderá informar acerca do modo como se (re)produzem as representações culturais em torno da cegueira, pretendendo ser uma extensão analítica de uma
contextualização sociocultural e não a sua negação. A questão que aqui se mostra preciosa para a vigilância das intimidades que procuro desvelar entre cegueira e
a experiência incorporada fica bem sintetizada no alerta de que "uma atenção demasiado focalizada no corpo se arrisca a negligenciar a necessidade de apresentar
sempre corpos em contexto" (Durand, 1996: 100).
Na atenção que pretendo dar ao tema da experiência incorporada, perseguindo um encadeamento com as narrativas pessoais e representações culturais da cegueira,
acolho a necessidade, preconizada por Csordas, de atentarmos para um corpo que não é apenas objecto da cultura, mas, igualmente, um vínculo existencial que participa
na sua (re)produção. Este enfoque, no entanto, longe de nos subtrair das relações entre experiência e cultura, pretende, isso sim, acrescentar à premência da nossa
insofismável existência dentro de corpos. Falo, pois, de uma outra âncora existencial, vivemos sempre no seio de relações sociais, por isso elas são, também, incontornáveis.
A plataforma de reflexão analítica que a minha experiência etnográfica suscitou, e que Thomas Csordas largamente substancia nas suas preocupações, coloca-nos,
num só momento, perante a necessidade de trazermos o corpo sob novas formas para a arena da produção teórica e empírica das ciências sociais, e perante o perigo
de se perder contacto com os contextos de sociedade e cultura. Para que o abraço ao híbrido que o corpo é não fique condenado à fugacidade, importa aceitar a indomesticável
pluralidade das suas aparições, a sua impureza que habita a um tempo a existência a experiência humana e a cultura. Chamo, por isso, a este corpo por que vivemos,
um corpo transgressor, porque tende a transgredir-nos de diversas formas. É este corpo transgressor que quero articular com as experiências e representações da cegueira.
A primeira forma da sua transgressão é aquela que vimos analisando neste capítulo. Prende-se com o facto da assunção do carácter incorporado da experiência nos obrigar
à superação de um desconforto, uma "crise de vocação" que se deve às fronteiras disciplinares e aos constrangimentos históricos que trilharam durante muito tempo
o estudo da sociedade e da cultura.
A questão da experiência incorporada surgirá neste trabalho num diálogo entre as experiências das pessoas cegas e as representações culturalmente dominantes acerca
da cegueira. Concretamente, intento uma travessia que tomará como ponto de partida um enfoque naquilo que de verídico existe no laço entre a cegueira e as ideias
de tragédia, sofrimento, infortúnio e incapacidade. Procurarei, por isso, dirigir-me em particular às narrativas em que essas ideias adquirem pertinência, narrativas
em que atento às limitações, dores, privações e angústias que se relacionam com a experiência incorporada da cegueira e que, portanto, não são passíveis de serem
apreendidas apenas à luz das condições impostas às pessoas cegas num determinado contexto social.
Mas, ao mesmo tempo que esta atenção no corpo vivido e às suas "dores" subtrai a minha leitura de um eventual idealismo discursivo, algo que resultaria caso eu
me ficasse por uma apreensão eminentemente sócio-histórica da cegueira, ela constitui o ponto de partida para se perceber, numa nova perspectiva, a forte resistência
das representações dominantes. Esta travessia terá como propósito um questionamento daquilo que nas concepções dominantes é o produto das respostas corpóreas ao
outro da cegueira, respostas constituídas fora de uma relação com as experiências, narrativas e reflexões das pessoas cegas, e que, assim mesmo, as firmam à "narrativa
da tragédia pessoal". Este jornadear pelos territórios da experiência incorporada, ao mesmo tempo que nos leva a considerar como a cegueira pode estar associada
a grande sofrimento e a verdadeiras tragédias pessoais, resulta numa curiosa reactualização do fosso que separa as formas dominantes de se pensar a cegueira das
suas efectivas incorporações.
2. TRAGÉDIA, SOFRIMENTO E LIMINARIDADES
Um dia cheguei junto de um senhor de quem era fornecedor pouco depois do acidente. Não teve coragem de me encarar. Fugiu a chorar para trás da pilha de madeira.
Nota de Campo
A relevância da visão está inerentemente ligada aos meios de partilha e comunicação da informação que são característicos dos diversos contextos. Não obstante,
é inegável que este sentido ocupa uma importância muito grande para quem dele pode tirar partido. Pode inclusive afirmar-se que 80% da informação que a maioria das
pessoas retira do mundo deriva do sentido da visão (Dodwell, 1996). Aliás, esta mesma relevância da visão é sugerida por Constance Classen. Apesar desta autora colocar
a tónica nas diferentes formas como os sentidos são usados e representados ao longo da história e através das culturas, ela não deixa aludir ao facto do córtex visual
ser o maior centro sensorial do cérebro, um indicador de uma tendência para que este sentido seja dominante na experiência humana (Classen, 1993: 9).
Portanto, em face da importância que a visão assume para quem vê, não é de algum modo elidível a existência de experiências subjectivas, relacionadas com a cegueira,
marcadas por profunda privação, dor e sofrimento. Embora os constrangimentos implicados pela cegueira aos seus portadores estejam profundamente intrincados nas concepções
culturais dominantes e nas formas de organização vigentes, procurarei aceder neste capítulo a narrativas e experiências em que o impacto pessoal da cegueira se manifesta
também para além dessas contingências sócio-históricas. Busco confrontar-me com a efectividade de experiências em que a própria cegueira é subjectivamente vivenciada
como uma privação sensorial, como uma limitação incapacitante, e como causa de um penoso sofrimento.
No entanto, ao analisar estes elementos mais imediatamente ligados às experiências corpóreas dos indivíduos cegos, não estou particularmente interessado em explorar
os mundos fenomenológicos constituídos a partir da diferença sensorial aí desvelada. Aliás, são essas as questões que mais frequentemente surgem nos questionamentos
que o senso comum dirige à cegueira: "como são os sonhos de quem nunca viu?", "como é que as outras pessoas são identificadas?", "como será o mundo apenas feito
de sons, do toque, de odores e de paladares", "o que dizem as cores para que nunca as viu?", etc. Na realidade, o propósito central que me guia nesta etapa é menos
uma curiosidade em torno dos mundos constituídos na ausência da visão, do que um interesse no modo como emergem, nas narrativas e nos relatos autobiográficos dos
sujeitos, situações de sofrimento directamente relacionadas com a experiência de privação.
O sofrimento é uma das bases incontornáveis da experiência humana (Kleinman e Kleinman, 1997: 1), estando associado a um enorme espectro de eventos que marcam
a existência: a dor física, a experiência da humilhação, a fome, a morte de um ente próximo, a solidão, o vislumbre da própria morte, o fim de uma relação amorosa,
a desqualificação social, o acometimento de uma depressão, a perda de uma capacidade funcional, o desfiguramento físico, etc. Nas representações dominantes na nossa
sociedade a ideia da cegueira encontra-se firmemente vinculada ao tema do sofrimento e da tragédia, constituindo uma projecção que tende a pensar as vidas das pessoas
cegas imputando-lhes as noções de infortúnio, incapacidade e tragédia, como marcas identitárias poderosamente incrustadas, estigmas que frequentemente conflituam
com as concepções positivas e os desejos de realização de quem é cego. A isso mesmo foi dado ênfase quando, a partir dos usos da bengala branca, analisámos o lapso
central nas construções do sentido da cegueira: aquele que se estabelece entre as leituras afirmativas e positivas da cegueira que encontrei nas narrativas e vivências
dos sujeitos, assim como no discurso associativo, e as persuasões sedimentadas na sociedade mais ampla que descrevem a cegueira por apelo à "narrativa da tragédia
pessoal".
No entanto, e como então afirmei, a assunção deste lapso, que se tornou etnograficamente óbvio, não equivale a afirmar que experiências de profundo sofrimento
e as ideias de tragédia não surgissem na realidade específica que estudei: "depois de cegar só pensava que mais valia ter morrido a ficar assim". Surgem, em termos
que vão para além da evidência que todas as vivências são marcadas por eventos de sofrimento, e em termos que nem tão pouco se diluem no facto de que as pessoas
cegas são alvo de uma poderosa depreciação e exclusão social. É exactamente a esse sofrimento, que as concepções hegemónicas sobre a cegueira exacerbam, sobrepondo-o
com essa condição de ponta a ponta, que pretendo atentar neste momento do trabalho. A essoutro sofrimento/privação ligado à cegueira e que escapa à relação com a
experiência de exclusão a que as pessoas cegas estão sujeitas, chamo a angústia da transgressão corporal. É esta angústia que procuro pulsar sobre duas modalidades
que nos importam para aceder às representações da cegueira. Em primeiro lugar, pretendo focar como a angústia na transgressão é vivida no próprio corpo, no corpo
de que conhece a cegueira na carne. Em segundo lugar, dirijo-me ao modo como a transgressão vivencial e corporal, supostamente implicada pela cegueira, é "conhecida"
como uma projecção empática nos "corpos que vêm".
Dedico-me nesta secção à primeira modalidade aventada, a que se refere à angústia suscitada pelo experiência da cegueira no próprio corpo, e para o modo como um
tal advento pode actualizar a vulnerabilidade da existência. No trabalho etnográfico que realizei foram vários os factores que se esboçaram para a asserção de algumas
recorrências na relação das pessoas com a própria cegueira. Como atrás mostrámos, o ajustamento das pessoas à sua condição sensorial muito depende dos ensejos de
realização pessoal, dependendo, também e por consequência, do lugar que a cegueira possa ocupar como obstáculo a esses ensejos. Elementos que naturalmente não são
dissociáveis dos aspectos socioculturais que vimos colocando no centro da análise. Mas, para além destas questões que se prendem com os projectos pessoais dos sujeitos,
foi possível ler outros factores no modo como a cegueira e as dificuldades por ela implicada são acolhidas pelos seus portadores. Numa primeira instância poderia
dizer que os elementos que se revelaram mais prementes nas convivências quotidianas, nas reflexões e nas histórias de vida, foram: o facto da cegueira ser de nascença
ou não, o tempo decorrido desde a perda da visão (no caso da cegueira ser adquirida), e as circunstâncias da perda - fundamentalmente o facto de esta se ter dado
de um modo progressivo ou súbito.
Relativamente ao primeiro facto, verifiquei algo que também se encontra presente nas construções reflexivas de quem trabalha profissionalmente com pessoas cegas.
Ou seja, o facto das pessoas cegas de nascença tenderem a mostrar uma maior adaptação à sua condição e de nelas ser menos patente a existência de sentimentos de
inconformismo ou "revolta" pelo facto de serem cegas. Isto acontece porque, em grande parte dos casos, houve uma aprendizagem desde a infância que lhes transmitiu
as competências e técnicas a serem empregues para a realização das mais diversas actividades. Mas também, e sobretudo, porque nesses casos não existe uma experiência
de perda, não há um mundo empobrecido naquilo que nele se pode apreender, não há um constrangimento em relação aos modos de realizar, nem tão pouco um confronto
com as coisas que se tornaram impossíveis de fazer. Não há, portanto, a experiência de uma ruptura, nem a submissão a uma imperativa metamorfose no modus vivendi.
É óbvio que as pessoas que já nasceram cegas têm uma noção do lapso que as separa de quem vê, um lapso que é actualizado quotidianamente na comparação com os outros,
e na percepção das facilidades que a visão permite na apreensão de elementos da realidade e na execução de algumas tarefas. Isto mesmo me disse Vítor quando lhe
perguntei como é que o facto de nunca ter visto se concertava nele com a noção da privação implicada pela cegueira:
Sentes-te privado de alguma coisa por não veres? Claro que sinto, desde uma coisa tão simples como ir ver um filme ao cinema, olhar para uma fotografia, para uma
pessoa, isso há muito coisa de que estamos privados... Agora não significa que não se possa viver sem elas tão bem como se não as tivéssemos De que aspecto é que
sentes mais falta? Não posso dizer o que sinto mais falta, porque nunca conheci outra coisa, sempre fui cego, nunca vi... de uma certa forma habituas-te a fazer
as coisas...
Aliás, foram várias as pessoas que me referiram que não tiveram, até certa altura na sua infância, sequer a noção de que estarem privadas de algo. Assim foi o
caso de Fernanda que, até à altura de ir para a escola, tinha por hábito brincar na rua com as restantes crianças: "só me apercebi que era diferente quando os meus
amigos foram para escola e eu fui para o colégio de cegos". Para quem é cego de nascença as privações implicadas pela cegueira são, portanto, conhecidas na comparação
com as experiências de quem vê. Algo que faz com que a efectividade de um défice sensorial apenas se actualize nos sujeitos perante algumas realizações que lhes
estão vedadas. Esta forma de perceber a sua diferença favorece a que a cegueira seja acolhida sem particular dramatismo, tendendo a verificar-se um maior ajustamento
pessoal ao encontro do reconhecimento e afirmação das capacidades que residem na cegueira. É óbvio que as experiências que acedi por via da ACAPO, por ali me terem
sido permitidas, não deixam de operar uma triagem das narrativas, sendo plausível supor que entre aqueles que nunca se subtraíram a formas de superprotecção das
suas famílias vigorem perspectivas mais incapacitantes acerca da cegueira. No entanto, o que aqui importa registar é a relação entre a inexistência de uma situação
de perda e uma "incorporação" mais "natural" da cegueira enquanto incontornável marca da existência. Por esta razão, não é incomum ouvir nestas pessoas afirmações
que representam uma desdramatização que para quem vê ou já viu soam a excessivas. Recordo uma, decorrida num ambiente de lazer com duas associadas cegas congénitas:
"Olha, tenho mais desgosto em ser gorda do que ser cega, mas é óbvio que gostava de ver, gostava de poder ver os meus filhos..."; "eu só queria ver para poder conduzir,
porque ao fim de semana fico para lá sem transportes...".
Em todo o caso, a asserção que se sedimenta quando apreciamos as narrativas das pessoas que nasceram cegas, ou que cegaram muito cedo na infância, é a inexistência
de uma qualquer ruptura vivencial provocada pela cegueira, a ausência de um qualquer itinerário que um dia se tenha prostrado à dissolução de referências. Assim,
esse corpo que é sede de uma relação com o mundo que desconhece a visão, é um corpo em que não está implicada a experiência presente ou passada de uma transgressão,
seja ela a transgressão de um modo de vida e de uma concepção do mundo fundada na visão, fosse ela a transgressão do próprio sentido da vida.
Deste modo, a ilação fundamental que permanece é que, em muitas das narrativas pessoais da cegueira, as das pessoas cegas de nascença, está ausente a premência
das ideias de perda, de tragédia e de infortúnio, enquanto produtos da própria cegueira. Percebemos, pois, que a evidência da cegueira não se liga necessariamente
à angústia da transgressão corporal, pese embora a sua omnipresença nas representações dominantes da cegueira. Portanto, em última a instância, "a narrativa da tragédia
pessoal" - a plataforma conceptual culturalmente privilegiada para a apreensão da existência das pessoas cegas - e aquilo que nela há de suposição de uma ruptura
corporal e existencial, mostra ser profundamente desadequada para captar as experiências de quem nunca viu. Ademais, existem histórias de vida em que mesmo havendo
uma perda e uma ruptura profunda, a cegueira emerge num contexto em que essa dissolução é relativizada. É o caso de Carolina, que apesar de ter cegado abruptamente
aos 14 anos, justifica o optimismo com que sempre encarou a sua cegueira (e que se tornava quotidianamente patente), pelas circunstâncias em que perdeu a visão:
"fui operada em último grau, era operada ou morria, perdi a visão, do mal, o menos!". Leituras que estão inevitavelmente vinculadas a idiossincrasias pessoais, mas
que esvaziam, nuns casos, ou oferecem complexidade, noutros, às hermenêuticas das pessoas cegas reiteradamente elaboradas pelo crivo de uma perda dilacerante.
É esse mesmo acréscimo de complexidade que se verifica quando acedemos às narrativas das pessoas que perderam a visão. Novamente a efectividade de um evento trágico
que conduz à cegueira é frequentemente negado, desta vez pelo modo como muitas formas de cegueira baixam sobre as pessoas num lento declive em que o ajustamento
ao esmaecer da visão se faz de modo progressivo. Na verdade, há várias doenças de gradual degenerescência, muitas delas de carácter hereditário, que conduzem a uma
lenta cegueira. Por isso, muitos dos casos de cegueira são o resultado de um processo lento e anunciado, que, assim, permite aos sujeitos anteciparem a eventualidade
de uma perda que ocorre, muitas vezes, como um vagaroso anoitecer de muitos anos.
O escritor Jorge Luis Borges alude em vários momentos da sua obra, directa ou indirectamente, à cegueira que lhe sobreveio lentamente até lhe roubar a visão aos
55 anos. Uma inevitabilidade que soube aceitar e que já havia visitado o seu pai e a sua avó: "Pedir que não me anoiteçam os meus olhos seria uma loucura; sei de
milhares de pessoas que vêm e que não são particularmente felizes, justas ou sábias" (Borges, 1998d: 394). Numa curiosa fábula, Jorge Luis Borges evoca o encontro
sonhado de si consigo mesmo; aí se conta como no banco de um jardim, junto ao rio, tomou lugar o diálogo mágico de um Borges septuagenário com o seu jovem predecessor.
Um encontro dos diferentes tempos de uma vida em que profecias e memórias se cruzam, e onde a cegueira é tranquilamente revelada pela voz do ancião: "Quando atingires
a minha idade terás perdido quase por completo a vista. Verás a cor amarela e sombra e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é coisa trágica. É como um
lento entardecer de Verão." (Borges, 1998e: 14). Apesar de Borges ter visto durante grande parte da sua vida, a possibilidade de antecipar a cegueira e a mansidão
da sua chegada assomam nele como factores que fazem com que um tal evento não se assuma como algo de trágico, como o autor reitera noutro lugar:
O meu caso não é especialmente dramático. É dramático o caso dos que perdem bruscamente a vista: trata-se de uma fulminação, de um eclipse, mas no meu esse lento
crepúsculo começou (essa lenta perda de vista) quando comecei a ver. Prolongou-se desde 1899 sem momentos dramáticos, um lento crepúsculo que durou mais de meio
século (Borges, 1998a: 289).
A experiência de Borges reporta-nos para uma questão que se prende com um factor que tende a mitigar em muito o dramatismo implicado pela perda de visão. Evoco
a narrativa de Borges porque ela é congruente com as ilações que extraí e com as histórias pessoais a que acedi durante o trabalho de campo. Ou seja, os casos de
cegueiras anunciadas e graduais, embora não deixem de ser fonte de grandes angústias, ansiedades e tensões, tendem a favorecer uma consciencialização da necessidade
de se viver com a cegueira, conduzindo mesmo, nalguns casos, a uma aprendizagem antecipada das competências necessárias para uma vida sem visão. À possibilidade
desta preparação antecipada, acresce o facto do caminhar vagaroso da cegueira não implicar um corte abrupto na relação com o mundo, eminentemente visual - o tal
eclipse de que falava Borges -, levando a que a perda sensorial seja lentamente digerida.
No entanto, as doenças degenerativas da capacidade visual variam no modo da sua evolução, como variam os casos particulares. Recordo de contactar com pessoas cujos
momentos de tristeza mais aguda resultavam da consulta médica periódica, por aí tomarem conhecimento do valor da diminuição da acuidade visual. Noutros casos, o
processo não se dá por um declive mas antes por pequenas quedas que são claramente percebidas pelos sujeitos, levando a momentos de maior angústia. Eu próprio assisti
ao evoluir de algumas situações, como por exemplo a de Ricardo, cuja visão foi piorando de modo notório ao longo da formação profissional que realizava na ACAPO:
Há três anos conseguia ver... mais ou menos bem, agora há três anos agravou por causa do descolamento da retina que tenho, e tem tendência a piorar, a tendência
é mesmo cegar completamente, agora já só vejo vultos... às vezes consigo ver a pessoa mas é muito raro... lá há um dia ou outro em que consiga vislumbrar mais alguma
coisa, mas normalmente só consigo ver vultos.
Do mesmo modo pude dar conta da progressão de Rita que pouco tempo antes da entrevista que me deu havia tido uma perda de visão importante: "Piorei há 4/3 semanas,
passei a só a ver vultos e a ter percepção de luz". Mas, como referi, também há outros casos em que a cegueira chega pé ante pé, durando por vezes dezenas de anos
a consumar-se. Alberto cegou ao longo da vida, já via mal na infância e, por via de um num lento esmaecer, só haveria de ficar completamente cego por volta dos 35
anos:
Na primária via mal, mas pensava que toda a gente era assim, só depois comecei a ver a facilidade com que as pessoas se deslocavam, comecei a aperceber-me que via
de um modo diferente lá para os 10 anos. (...) à medida que a visão ia diminuindo eu ia indo aos médicos, passei da mota para a bicicleta, a certa altura [1982]
tive que abandonar tudo. (...) eu não sei se senti mesmo a fundo o facto de estar a cegar, se calhar nunca recebi esse choque, como uma pessoa que tem um acidente...
Alberto teve que abandonar o seu trabalho na construção civil, e, logo após ter ficado cego, foi fazer a reabilitação no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos
Anjos. Nessa altura, o pesar de Alberto prendeu-se com facto de ter ficado incapacitado de trabalhar nas suas antigas funções e de, mesmo após a reabilitação e a
formação profissional, nunca ter conseguido arranjar emprego. Como o próprio refere, nunca vivenciou propriamente um "choque" com a perda de visão, tal foi a suavidade
do seu anoitecer. Embora não sejam elidíveis momentos de alguma dor - como quando se deixa de ser possível ler um jornal, andar autonomamente na rua sem bengala,
reconhecer as caras das pessoas, realizar as funções profissionais de então, etc. - estes processos tendem a conferir aos sujeitos uma mais fácil capacidade de ajustamento
à própria cegueira. Portanto, não estando ausente o confronto com a vulnerabilidade do próprio corpo - sendo às vezes detectável um grande inconformismo ou a busca
de um sentido, como quem pergunta "corpo, porque me transgrides?" - a verdade é estamos perante cegueiras cuja evolução ocorre muitas vezes sem momentos críticos
de ruptura existencial ou drásticas alterações do modus vivendi. Assim antecipava a Lara a sua possível cegueira: "Observo as pessoas e vejo-as rirem-se e fazerem
tudo, para mim esses modelos são uns heróis e penso que quando lá chegar e se cegar, quero rir-me das coisas e fazer e fazer as coisas como eles fazem".
É perante esta possibilidade de um "amanhecer sem espanto" (Borges, 1998d) que as narrativas de cegueiras progressivas e previsivelmente vindouras nos colocam.
Uma possibilidade que sem ser obviamente necessária - quer pelo modo como as cegueiras se encostam no tempo, quer pelas particularidades que envolvem (e que são)
os sujeitos - sustenta a certeza de que em muitos casos de perda de visão estão ausentes o drama e a tragédia que uma tal transição irremediavelmente parece fazer
supor.
Os elementos até aqui evocados concorrem para a persuasão de que as vivências da cegueira e as suas narrativas pessoais desvelam muitas vezes - porque é de nascença
ou porque é adquirida num processo gradual - a ausência de eventos de perda dilacerantes e de ruptura existencial. Este encontro com a pluralidade das narrativas
de cegueira é relevante, sobretudo pelo facto de acentuar uma distância entre a espessura histórica dos eventos pessoais de cegueira e o modo como a ideia de perda
trágica participa na vigência hegemónica de uma meta-narrativa da tragédia pessoal, que é culturalmente interposta na vida das pessoas cegas. O mesmo não implica,
de modo algum, a negação de experiências de profundo sofrimento associadas à privação sensorial, aspecto que eu aqui procuro pulsar. Um elemento cuja relevância
se relaciona mais claramente com as experiências incorporadas e com lugar que nelas ocupa aquilo que designo por angústia da transgressão corporal.
De facto, sendo constatável que o sofrimento implicado pela angústia da transgressão corporal está totalmente ausente de muitas das narrativas de cegueira, ele
não deixa de comparecer pungentemente em muitas das histórias de perda de visão. Como verificámos, o impacto dessa perda pode ser bastante relativizado e atenuado
nas muitas situações de cegueira gradual. No entanto, menos relativizável é certamente o sofrimento implicado nos casos em que a perda de visão acontece sem aviso,
de modo abrupto. Nas muitas histórias de vida que recolhi, um substancial sofrimento mais directamente implicado pelas dimensões corpóreas da experiência, encontra-se
mormente associado a essas experiências de profunda privação e ruptura vivencial, em que a perda de visão surge de facto como cataclismo:
Ainda me lembro, naquele dia era a final entre Porto e Setúbal, ia para casa comecei a ver um formigueiro, comecei a olhar para o céu não via nada, olhei para o
chão não via nada, fui chorar para casa com a minha mãe. Estava cego.
É nas narrativas marcadas por esse tipo de experiências que me procurarei deter. Nas histórias, a que acedi, de cegueiras inesperadamente infligidas de um modo
súbito, somos colocados perante eventos a que os sujeitos se referem como profundamente traumáticos, rupturas que tendem a desencadear um confronto agonístico com
a possibilidade de uma vida sem visão, em que o ser ou não ser aparece, não raras vezes, como questão. Mas, se é verdade que as ideias de desastre e tragédia ganham,
de facto, efectividade nessas experiências, também pude perceber como nas narrativas pessoais o reconhecimento do impacto de uma perda passada se articula com um
distanciamento pessoal - que também é temporal - de sujeitos que aprenderam a começar de novo. Portanto, é de frisar que essas experiências de perda dilacerante
chegam na esmagadora maioria dos casos por via de narrativas pessoais onde se expressa uma capacidade de acomodação que também importa considerar. Longe de pretender
reescrever por esta via alguma forma de idealismo que apague as implicações pessoais de uma tão significativa transgressão das referências corporais e sensoriais,
entendo que os mundos da experiência não podem ser lidos fora das narrativas dos seus protagonistas. Neste particular, torna-se importante que as experiências de
sofrimento possam ser integradas nos percursos pessoais e nas suas construções reflexivas, elaborações que nos colocam amiúde perante histórias de resistência. Concordo,
portanto, com o que diz Arthur Kleinman, quando este coloca ao centro da análise da dor e do sofrimento, a necessidade de se contemplarem as construções elaborados
nos mundos locais da experiência dos sujeitos:
Para uma etnografia da experiência o desafio é descrever a elaboração processual da exposição, da resistência, do suporte da dor (ou perda ou outra tribulação) no
fluxo vital dos engajamentos intersubjectivos num mundo local particular (Kleinman, 1992: 191; minha tradução).
Jorge estava estudar Português-Francês na universidade quando, aos 22 anos, viajando num autocarro, apanhou com uma cotovelada que levou a um descolamento da retina.
Em consequência disso cegou do olho direito. Jorge conta que teve extrema dificuldade em conviver com esse momento doloroso, que também fez aumentar em muito uma
certa desmotivação que já sentia em relação ao seu curso, contribuindo para que durante alguns anos se alheasse: "Andei assim um bocado perdido, não me adaptei bem
à situação, faltava às aulas, houve anos que não frequentei". Só mais tarde, com 27 anos, voltaria a recuperar o alento para continuar a estudar. Mas no ano em que
pediu o reingresso começou a ter alguns problemas no olho esquerdo. Foi ao oftalmologista e descobriu que tinha uma doença rara. Segundo me explicou, trata-se de
uma patologia de origem genética que faz com que o corpo produza anticorpos a mais, anticorpos esses que vão impedir a circulação nos capilares da retina. Os problemas
aí causados levaram a que viesse a cegar com cerca de 29 anos. Apesar de ser provável que a condição genética de Jorge tivesse conduzido per se à cegueira de ambos
os olhos, o percurso da sua perda de visão acaba por ficar marcado por duas circunstâncias deveras insólitas, a cotovelada involuntária no autocarro e o acometimento
de uma doença rara. Quando perguntei a Jorge qual havia sido o seu momento mais difícil, respondeu:
Acho que foi a partir dos 27 anos, mais ou menos, eu tinha... [suspiro] havia coisas que eu gostava imenso de fazer, que era... gostava de desenhar, pintar... depois
também não conhecia a ACAPO, não sabia nada de Braille! Também se calhar na altura não estava interessado... estava tão completamente fora de mim e se calhar não
estava interessado.
Jorge esteve um longo período sem que conseguisse reagir ao desastre que sobre ele se abateu. E se é verdade que então também pesava o desconhecimento acerca daquilo
que as pessoas cegas podiam fazer, assim como a agonística incorporação dos preconceitos detidos em relação à cegueira, o facto mais premente foi, sem dúvida, o
impacto da perda de visão, decerto ampliado pelo gosto que tinha em relação às artes visuais2. Como se poderá supor, esse impacto foi dolorosamente vivido, tendo
levado a que Jorge se fechasse ao mundo por algum tempo:
Ao princípio foi bastante mal... mesmo! Bastante mesmo!... (...) Costumo dizer que estive pelo menos 3 anos a reciclar em casa, sem fazer nada. Depois em fins de
99 é que fui fazer reabilitação em Lisboa na Nossa Senhora dos Anjos, reabilitação, aprender as bases do Braille e outras coisas. Mobilidade também! E depois acho
que re..., como um professor que lá estava costuma dizer é preciso renascer... acho que agora me estou a dar um bocado bem, estou mais animado..., É isso mesmo,
uma pessoa quando fica cega tem mesmo que esquecer um bocado o que estava para trás e abrir outras perspectivas, outras portas e também não sentir como mártir, martirizada,
coitadinho como se costuma dizer, acho que é preciso levar as coisas para a frente e saber que nós também temos capacidades.
Os três anos que Jorge esteve em casa correspondem a um período de moratória que as pessoas quase sempre apõem à inesperada chegada da cegueira. Também no caso
de Jorge se torna notório o fulcral papel que o Centro de Reabilitação Nossa Senhora do Anjos desempenhou em tantas histórias de vida a que acedi. São de destacar
os inúmeros conhecimentos que ao longo de uns meses ali se adquirem acerca das capacidades e alternativas das pessoas cegas, com aprendizagens que abrangem coisas
tão amplas como o Braille, a mobilidade, a higiene pessoal, a cozinha, a limpeza da casa, a comunicação interpessoal, etc. Igualmente fulcral naquele contexto é
o suporte mútuo que se cria entre pessoas, sobretudo para aquelas que vêm de rupturas dramáticas nas suas existências após cegarem, e que frequentemente ali conhecem
pela primeira vez outras pessoas cegas.
Este clima de partilha entre sujeitos que realizam a reabilitação inicial - tendo ou não atravessado por experiências de perda similares - é também a partilha
de uma situação de marginalidade social. Em parte porque muitas pessoas cegas são relegadas para as franjas da sociedade, mas também porque o ingresso num tal centro
de reabilitação faz supor a ausência de um património pessoal de competências passíveis de conferir aos sujeitos a capacidade para uma participação social mais activa.
Por estas razões, nas muitas histórias de vida que recolhi, o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos emerge como um espaço onde singularmente se elabora
a ideia de um espaço de solidariedade entre pessoas que se encontram na mesma passagem, em busca de aprendizagens e de uma conformação com a cegueira que as capacitem
para a integração social. De um modo que se torna flagrante em muitas narrativas pessoais, o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos constitui-se como um
espaço profundamente representativo daquilo que Victor Turner designa por "communitas" (1974), conceito autorado a partir da análise dos ritos de passagem, para
com ele referir o ambiente de cumplicidade, partilha, comunidade, camaradagem e de horizontalidade, que se gera entre os indivíduos que estão colocados à margem
da sociedade, sem um estatuto social definido, e que vivem em conjunto a ambiguidade algures entre o já-não e o ainda-não, a ambiguidade entre duas fases da vida
pessoal e social. Numa palavra, a liminaridade.
Quando falei com Jorge (em 2002), haviam decorrido cerca de três anos desde a altura em que ficou cego total. Namorava então com uma rapariga cega que conheceu
na ACAPO, mostrando todos os dias uma capacidade e vontade de superação que, como o próprio assume, e eu pude atestar, muito depende, no seu caso, do uso do humor
para desdramatizar as dificuldades. Contou-me que o seu objectivo seria empregar-se como telefonista-recepcionista num hotel, tomando partido do francês fluente
que adquiriu pelo facto de ter estado emigrado durante a adolescência, para então poder concluir a sua licenciatura, já apoiado no domínio do Braille. A pessoa com
quem falei era certamente alguém que havia passado por experiências profundamente dolorosas, mas onde era também já patente uma reconfiguração do "mundo da vida",
substanciada na sedimentação de luta por projectos em que a cegueira era já tomada como um dado. Aliás, o sucesso da sua adaptação ao doloroso processo por que passou
fica também patente, quer no modo aproblemático com que se adaptou ao uso da bengala branca, quer na e na forma como diz enfrentar as expressões de preconceitos
quotidianamente reiteradas em relação à cegueira:
Sempre aquela coisa do coitadinho, do ceguinho, por pena, se calhar... A mim não me afecta muito até percebo a opinião das pessoas, mas em colegas meus na ACAPO
às vezes vejo que revoltam-se com a situação, não gostam de ser chamados assim, outros não gostam de ser ajudados a subir no autocarro ou a atravessar a rua... eu
não tenho problema até agradeço, depois trocam-se opiniões conversa-se um bocado, até é uma forma de sensibilização...
A narrativa de Jorge expressa a vivência de uma liminaridade induzida pelo sofrimento implicado pela privação da visão, significativamente expressa na citação
da ideia de um renascimento. Igualmente elucidativa de uma liminaridade, de uma passagem transformadora mediada por um período em que o indivíduo se retira dos mundos
da vida social, é a narrativa de Rui. Rui cegou subitamente, em 1982, em consequência de uma explosão. Na altura Rui já era casado e tinha uma filha, trabalhava
como fornecedor de madeira, passando o grosso da sua actividade a conduzir veículos pesados. Ao fortíssimo choque que constituiu a sua cegueira acresceu o facto
de esta ter implicado um profundo corte com aquelas que até então eram as suas actividades profissionais: "Olhe, é muito difícil... só lhe digo isto...! Tinha uma
vida muito activa, de um momento para o outro parei!" Após cegar esteve dois anos em que praticamente não saiu de casa. Durante esse período persistiu em busca de
médicos, sempre alimentando uma esperança que parecia não ter correlato nos diversos diagnósticos. Chegou a ir a uma reputada clínica oftalmológica em Espanha e
à medida que a impossibilidade de recuperar a visão se sedimentou, assume ter equacionado por várias vezes a hipótese de suicídio. Ademais, teve ainda a dificuldade
de enfrentar o seu trauma acolhido naqueles que o conheciam:
Um dia cheguei junto de um senhor de quem era fornecedor pouco depois do acidente, não teve coragem de me encarar, fugiu a chorar para trás da pilha de madeira.
Mas eu compreendo as pessoas que reagem como reagem em relação à pessoa cega, eu só tinha visto uma vez na vida uma pessoa cega e pensava como é que isto pode ser?
Só dois anos após o acidente que o vitimou, e muito por via do apoio e incentivo da família, é que Rui encontrou alento para realizar a reabilitação:
Só quando perdi a esperança é que fui ter com a Sain [Fundação Raquel e Martin Sain] e foi uma maravilha! Morri e voltei a nascer!, deixei de pensar no que não podia
fazer, para me preocupar com o que podia fazer. Como me disse um senhor na casa do povo: "Isto a vida é assim, agora vais ter que te habituar a viver de outra maneira!"
(minha ênfase).
Na altura que falei com Rui (2002) a sua vida estava já completamente reconstituída. Cumprindo o desígnio do seu amigo, habituou-se a viver de outra maneira. Após
a reabilitação empregou-se como funcionário público, exercendo as funções de telefonista, havia tido outra filha e era, quando falámos, um activo dirigente regional
da ACAPO. A narrativa de Rui representa poderosamente o quanto a vivência da cegueira pode conduzir a uma dissolução dos termos da existência, espoletando mesmo
um questionamento passível de evocar a hipótese do suicídio. Neste sentido, podemos dizer que determinados casos de cegueira visitam as vizinhanças de uma morte
metafórica - o fim do modo de vida que a visão permitia -, por um lado, e, por outro, mais literalmente, o fim da vida como "saída" possível para o desastre acontecido.
Se aqui evoco as narrativas em que a cegueira foi vivenciada de um modo mais dramático, pretendo certamente anuir ao impacto da desestruturação relacionada com a
transgressão do próprio corpo. Mas viso também realçar o que há de profundamente instrutivo na assunção da capacidade dos sujeitos, mesmo nas situações mais extremas,
para reconverterem o sentido das suas vidas, renovando expectativas, prioridades e ensejos de realização pessoal. E esta passagem liminar, fica mais uma vez sintetizada
na ideia de um renascimento, que Rui tão proverbialmente narratizava: "Morri e voltei a nascer!".
Foi essa mesma metáfora de resignificação existencial, que significativamente atravessa as narrativas em que a cegueira esteve ligada a uma verdadeira tragédia
pessoal, que encontrei na história de vida de José Guerra3. Dessa passagem que nos fala um belo texto seu que me foi confiado, ilustrativamente intitulado "Renascer",
onde o autor relata o dia da sua chegada ao centro de reabilitação, tempos depois de ter cegado pela explosão de uma granada. Transcrevo aqui um pequeno excerto
desse texto:
Das zonas mais recônditas e obscuras da minha alma, emergiam todos os medos, todas as incertezas. Como seria a vida no futuro? Oh! A condição humana! Ontem intrépido,
vigoroso, seguro. Hoje inválido, cego, dependente. Como justificar a teimosia de ainda estar vivo? Uma mão amiga pousou no meu ombro, e numa voz tranquila, o psicólogo
Martinho do Rosário (Bernardo Santareno para a Literatura Portuguesa), disse--me: vem meu amigo! Foram estas as primeiras palavras que ouvi do homem que, mais tarde,
desceria ao fundo das minhas angústias e desesperos para me acompanhar no retorno à vida.
A história de vida de José Guerra dá conta de um momento simbólico para esse renascer, que a reabilitação permitiria consubstanciar, acontecido algum tempo após
ter cegado por via de um acidente militar ocorrido numa situação de rotina:
Depois de cegar não queria usar a bengala, pus a bengala de lado, e andava sempre no hospital [militar], não queria usar a bengala! Sentia-me incomodado! Um dia
o tenente-coronel que me apoiou muita naquela altura perguntou: - porque é que não vais...? - Estou à espera da enfermeira. - Pega na bengala e vai!
Nesta narrativa, a afirmação do tenente-coronel - onde encontramos interessantes ressonâncias bíblicas: "levanta-te e anda!" - emerge como o momento simbólico
a partir do qual José Guerra se iria mentalizar para a necessidade de assumir que é cego e de superar as dificuldades que essa nova situação acarretava. Como atrás
apreciámos, é esse o duplo texto que é feito presente na invocação "pega na bengala e vai", em que o imperativo da assunção da cegueira se conflui com a ideia que
a vida continua e que, portanto, haveria que seguir em frente.
As narrativas que aqui apresento são representativas de uma capacidade de superação perante a perda que a cegueira poderá constituir. E se é verdade que me pude
confrontar com reflexões pessoais marcadas pela frustração, elas surgem quase invariavelmente relacionadas com a exclusão e os estigmas sociais a que as pessoas
cegas estão sujeitas. Portanto, o que há de dramático na própria perda de visão, além de estar associado a um espectro particular de histórias de vida, também nos
coloca perante o distanciamento narrativo que os sujeitos criam em relação às experiências de tragédia e desastre inapelável. Um distanciamento que é produto de
um processo de reconstrução pessoal, em que, perante novas referências, as pessoas se capacitam para "nascer de novo". Entrevistei Arménio Sequeira, o director do
Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, instituição que é, em Portugal, o espaço privilegiado da reconstrução existencial das pessoas que cegaram recentemente.
Arménio Sequeira trabalha há mais de duas décadas ligado a esta instituição, a única em Portugal onde se faz a dita reabilitação inicial das pessoas cegas. A sua
reflexão, assumidamente dirigida para oferecer uma perspectiva positiva das deficiências, não deixa, no meu entender, de veicular algum idealismo pelo modo como
prefere não contemplar - para não enfatizar, reiterando, as visões dominantes das deficiências - a densidade fenomenológica do sofrimento associado a uma privação
física como a cegueira. No entanto, a reflexividade de Arménio Sequeira expressa, quer a capacidade dos sujeitos para reconfigurarem as suas vidas, quer o papel
de viragem desempenhado por aquele centro de reabilitação. Algo que é largamente congruente com as histórias de vida que pude conhecer junto da ACAPO:
Eu não tenho ideia nenhuma de um caso em que a pessoa não se tenha adaptado à vida com a cegueira, em 20 e muitos anos... Apesar de ser psicólogo não faço abordagens
psicologizantes. E conseguem! Conseguem por elas próprias e aprendem muito com isso, aprendem a viver com facto que se cria, as pessoas resolvem, vencem, e vencem
em conjunto com os outros em todo um quadro em todo um contexto.
Esta combatividade pessoal, capaz de fazer frente às experiências passadas de despossessão, foi sem dúvida o elemento mais saliente do itinerário narrativo dos
sujeitos em relação ao impacto de uma não desprezível angústia da transgressão corporal trazida pela cegueira. Um elemento que, para mim, chegou não apenas pelas
histórias de vida que recolhi, conversas e entrevistas que realizei, mas também por uma continuada vivência de proximidade no seio do trabalho etnográfico. Na verdade,
embora todas as pessoas cegas possam passar por momentos de alguma "revolta" em relação às dificuldades implicadas pela sua condição - uma revolta em que se mistura
a indignação social e o questionamento de alguma forma de justiça, o "porquê eu?" - apenas numa pessoa que conheci a inconformidade em relação à cegueira acontecida
assumia ainda uma centralidade continuada, premente e incontornável. Falo de Eduardo, que conheci no início de 2000 com 30 anos de idade, cerca de 3 anos depois
de ter cegado de modo súbito.
Conforme eu disse noutro lugar (cf. Martins 2001: 107), Eduardo patenteava ainda o impacto do trauma que representou o facto de ter perdido a visão havia tão pouco
tempo. Depois de cumprir o tempo obrigatório na tropa, Eduardo ficou vinculado por contrato. Foi após ter contraído sucessivas conjuntivites que se descobriu um
vírus raro que, segundo os que lhe disseram os médicos, poderia levar à cegueira. À medida que a cegueira piorava foi internado no hospital militar, onde, devido
à sua dificuldade em reagir à aventada eventualidade, também teve consultas de psicologia e psiquiatria. Foi um período muito difícil, em que a cegueira foi avançando,
a sua depressão foi-se aprofundando, e na muita medicação que tomava incluíam-se momentos particularmente dolorosos como injecções nos olhos. Um ano após ter sido
diagnosticado o vírus, Eduardo estava completamente cego. Disse-me que por várias vezes se pensou em suicidar no período subsequente à descida da última noite nos
seus olhos. Quando Eduardo me contou a sua história, em 2000, houve muitos aspectos a que não acedi pela dificuldade que o próprio ainda tinha em falar de um assunto
que ainda lhe era tão doloroso. Fiquei a saber que, depois da tropa, passou pelo Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, e que pouco tempo depois foi encaminhado
para a formação profissional na ACAPO, que então realizava em Coimbra. Se mais não soube nessa altura, fiquei no entanto com a certeza de que Eduardo estava longe
aceitar o desastre que a cegueira para ele representou:
Quando saí da tropa disseram-me logo que não tinha possibilidades de voltar a ver, mesmo assim já corri muitos médicos e todos me dizem que não posso voltar a ver,
sei que nos Estados Unidos inventaram uns biónicos que permitem a visão a preto e branco e por isso a esperança de voltar a ver persiste. (...) Não sei se algum
dia aceitarei, ver é ver... Na ACAPO encontro os cegos divertidos a dizer que são capazes de fazer tudo o que os outros fazem, o que eu não concordo, mas, de qualquer
modo, comecei a ter uma ideia mais positiva acerca do que é ser cego. (...) Eu já vi, e para mim isso significa muito!
Na relação inicial que tive com as experiências da cegueira, Eduardo constituiu, indubitavelmente, a mais forte e viva expressão do impacto potencialmente desestruturante
de uma cegueira subitamente infligida. Eduardo denotava uma descrença nas possibilidades das pessoas cegas. Ademais, a sua reflexividade colocou-me fundamentalmente
perante um sobrevivente, alguém que tinha recusado suicidar-se, mas que ainda não se sentia preparado para viver enquanto uma pessoa cega. Em Junho de 2003, procurei
saber dele junto da ACAPO, interessava-me seguir a sua história, voltar a falar com ele três anos depois da primeira entrevista que me deu. Cederem-me o telefone
da câmara em que ele trabalhava como telefonista. Liguei-lhe, lembrava-se de mim e de termos falado, disse-lhe que gostaria de falar com ele com alguma demora, acedeu
simpaticamente. Combinámos um dia, fiquei de ir ter com ele à Câmara no fim do trabalho. Na minha 4L fomos até sua casa, feita de novo, situada num lugarejo a cerca
de 10 quilómetros da cidade. No caminho contou-me do muito trabalho que tinha na Câmara, de como era acarinhado pelos colegas. Disse-me que se havia casado, fazia
então cerca de um ano. A sua actual esposa, amblíope, conheceu-a enquanto fazia a formação profissional na ACAPO. Falou-me da sua frustração por ficar limitado em
casa ao fim-de-semana, por não haver transporte, e por nem ele nem a sua mulher poderem conduzir. Estas e outras incidências da sua vida actual me foi contanto enquanto
me indicava o caminho que não via mas adivinhava: "agora quando vir aí à sua esquerda...".
Convidou-me para sua sala, estava calor, ofereceu-me uma cerveja, invejou-me, disse que ainda não podia beber porque ainda estava a tomar uns medicamentos para
a "cabeça". Liguei o gravador, e pedi-lhe que me recapitulasse aquilo por que passou desde a sua cegueira até aquele dia. Era claramente um homem diferente que me
falava, esmiuçando os pormenores do suplício que viveu, um espaço de enunciação que, nitidamente, só a distância temporal e emocional criada para com esses eventos
permitia. Apesar de permanecer cego, o sofrimento e a agonia do período que o levou à cegueira emergiam então como evidências de que o pior já havia passado:
Foi uma fase muito complicada da minha vida, sinceramente. Deus queira que eu não passe por mais nada assim. (...) Aquilo que eu senti é que os médicos sabiam que
eu ia cegar, mas eu não queria ver as coisas assim e acabava por sofrer muito mais. A certa altura disse: "estou cego, mas não estou bem psicologicamente, tenho
que fazer alguma coisa pela minha vida ou então suicido-me!". E pensei: "bem suicidar-me é a pior coisa que eu posso fazer. Vou tentar levantar a cabeça".
De particular interesse se reveste o relato da sua chegada ao Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, da sua incredulidade em relação à alegria de outras
pessoas cegas, do primeiro diálogo que estabeleceu com alguém que também não via, e a história desse súbito conforto de saber que não estava só no mundo:
Depois a minha mãe levou-me até à porta cá em baixo do Centro de Reabilitação. Depois veio a funcionária pegou em mim e levou-me pelo braço, chego lá em cima ela
diz-me assim: "agora sentas-te aqui e começas a falar com os teus colegas!". Eu pensei: poça, para onde eu vim!... Calha de ter ao meu lado uma mesa e estava um
cinzeiro, puxo por um cigarro e começo a fumar, e eu a ouvir... uns tocavam e outros dançavam e outros riam-se, no primeiro andar, e eu assim "então mas o que é
que é isto? Então eu pensei que vinha para uma casa de cegos e agora estou numa casa de pessoas que vêem?", pensei eu cá para mim. E eu com o meu cigarro, deixo-me
estar, estive ali uns minutos a ouvir, entretanto chega-se lá uma pessoa e senta-se na mesa, e eu disse: "Olhe desculpe isto aqui é uma casa de cegos?". E ele disse:
"É, é uma casa de cegos". E eu disse: "é que eu sou cego" e ele vira-se para mim e diz: "eu também." "Ah o senhor é cego?". Já fiquei mais contente. Foi a primeira
pessoa cega com quem falou? Foi... foi sim... Eu perguntei-lhe se só nós os dois é que éramos cegos, e ele disse-me: "aqui todos são cegos!".
Contou-me que durante os 7 meses que esteve no Centro de Reabilitação partilhou a sua vida com cerca de 25 outras pessoas, a maioria das quais tinha acabado de
cegar, num contexto de solidariedade que acabou por lhe dar alguma força. Falou-me dos tempos difíceis que passou ainda na ACAPO: do primeiro estágio profissional
que fez sem ficar integrado, até que veio a conseguir um estágio na Câmara Municipal perto da sua terra de origem. Considera que teve sorte, e que conseguiu, juntamente
com a sua esposa, alcançar uma boa vida: "Estamos a trabalhar os dois, tenho a minha casa, tenho a minha vida, tenho a certeza que há pessoas que vêem - era bom
que não houvesse - mas que não têm a mesma qualidade de vida que eu". Apesar de ter conseguido encontrar ânimo para viver com a cegueira, confessou-me que ainda
não desistiu de ver. Inclusive, telefonou em tempos para falar com o Dr. João Lobo Antunes, mas soube que teria de pagar por um sistema de óculos e câmara de vídeo
ligada ao cérebro, que lhe poderia dar uma visão bastante grosseira, cerca de 18 mil contos. Acredita que um dia haverá solução, mas, apesar de ainda achar que é
difícil uma pessoa conformar-se completamente a uma tal perda, afirma que se sente feliz por se saber uma pessoa válida e apreciada pelos outros relevantes, de quem
se afastou nos tempos de maior dor. Apesar de a usar, Eduardo reconhece que ainda sentia uma certa vergonha em segurar a bengala branca. Não obstante, considera
que o seu exemplo, a sua vida activa, tem servido para que, num meio pequeno, muitas pessoas alterem a sua ideia da cegueira. A sua vida é, pois, no seu entender,
a prova de que cego não tem que ser um "ceguinho".
Depois de insistir em me oferecer um licor dos Açores, que aceitei hesitante - pela viagem que se adivinhava -, e após me asseverar da serenidade com que encara
a vida, e a sua cegueira nela, perguntei-lhe que sentido lhe era possível fazer de tudo aquilo por que havia passado, a agonia da perda da visão, a desmobilização
das referências num mundo visualmente construído, e, enfim, todo o sofrimento que o acompanhou ao ponto de o colocar perante a eminência de um suicídio:
Se calhar até foi um castigo de Deus... O sentido... o sentido... para mim fez sempre um grande sentido lutar, não me entregar e ter força interior para os momentos
que tive enfrentá-los, ir à luta. Quando penso no que passei e como estou sinto-me muito orgulhoso.
A resposta de Eduardo mostra-se profundamente instrutiva. Por um lado vemos a centralidade da teodiceia, conceito que Max Weber colocou ao centro das formas culturais
de lidar do sofrimento: "Se calhar até foi um castigo de Deus...." Ou seja, a teodiceia como sendo as elaborações religiosas através das quais a persuasão na omnipotência
e na bondade de Deus se articula com a evidência do sofrimento que permeia a experiência humana. É exactamente esta necessidade de dar resposta às ambiguidades e
paradoxos da existência, de que o sofrimento é uma expressão forte, que Clifford Geertz (1993) coloca ao centro do seu conceito de cultura, fortemente investido
em enfatizar como os seres humanos são primordialmente conduzidos pela necessidade de conferir sentido à sua vida e ao que os rodeia. Assim, no seu entender, do
ponto de vista simbólico e religioso, "O esforço não é negar o inegável: que existem eventos inexplicados, que a vida dói, ou que a chuva cai sobre os justos - mas
negar que haja eventos inexplicáveis, que a vida não é suportável, e que a justiça é uma miragem (Geertz: 1993: 108, minha tradução). Portanto, haveria como que
uma necessidade de sentido que participaria na criatividade cultural e religiosa como forma de responder ao imperativo de atribuir explicação às experiências do
mundo, algo que a alusão de Eduardo ao castigo de Deus claramente denota.
Temos pois esse instigante olhar para as construções culturais e religiosas através de uma necessidade de sentido perante experiências que trazem o espectro de
uma dissolução ontológica das culturas e dos sujeitos. É nesse sentido que, recapitulando Max Weber, Clifford Geertz atenta para o imperativo criativo que advém
do confronto com experiências como a dor física, a perda pessoal, a contemplação da agonia de outrem, em "criações" que poderão ser lidas como emanações de sentido
que permitem que determinados eventos sejam suportados; "sofríveis" (sufferable), portanto (Geertz, 1993: 104). Importante como é a leitura do sofrimento pelas epistemologias
que o tornam suportável - ancorando-o à possibilidade dos sujeitos e grupos para lhe atribuírem um sentido -, estamos, no entanto, perante uma perspectiva que não
deixa de ser parcial pelo modo como a capacidade de tornar determinados eventos sofríveis se vincula ao sentido que deles é possível fazer. Daí a riqueza da persuasão
última da resposta de Eduardo: "O sentido... o sentido... para mim fez sempre um grande sentido lutar, não me entregar e ter força interior para os momentos que
tive enfrentá-los, ir à luta". Esta declaração abre a porta para que as experiências de sofrimento dos sujeitos possam também ser pensadas fora da disposição "intelectualista"
das ciências sociais, para que, em última instância, possamos contemplar a capacidade dos sujeitos para resistirem a experiências e sofrimentos para os quais muitas
vezes não encontram um sentido. Ou, como afirma, Eduardo, eventos em que o único sentido que se encontra é resistir.
Ao encontro desta ideia surge a interessante proposta de Arthur Kleinman (1992). Kleinman defende que, se por um lado as leituras biomédicas do sofrimento fracassam
em aceder às questões teleológicas e existenciais que este coloca, as interpretações culturalistas também tenderam a tornar-se reféns de uma leitura estritamente
intelectualista do sofrimento. Isto, sobretudo pelo facto de, na esteira de Max Weber, se ter colocado no centro das abordagens do sofrimento a produção de discursos
que contemplam o seu lugar no seio de narrativas coerentes da existência (Kleinman, 1992: 189, 190). Este autor sugere que as leituras das experiências de dor e
de sofrimento poderão ser profundamente enriquecidas se forem apreendidas enquanto formas de resistência ao fluxo da experiência no seio dos "mundos locais" dos
sujeitos. Uma formulação que me parece deveras valorosa para que se possa contemplar o carácter instável das continuadas construções e reconstruções com que os sujeitos
apreendem determinados eventos a partir dos seus "mundos locais". Mas também porque muitas experiências são vivenciadas, não como teodiceias, mas como formas de
alienação que convocam um mundo caótico, e são vividas como eventos desestruturantes que fracassam em encontrar lugar na "linguagem".
Neste sentido, a resposta de Eduardo mostra-se instrutiva de uma ilação mais ampla que me ficou do confronto com experiências em que o acometimento da cegueira
esteve associado a eventos de sofrimento. A ideia de que os sujeitos resistem a momentos de profunda privação, e que encontram formas de reconstruir as suas narrativas
e existências caminhando para além do impacto de uma tal perda sensorial. Num processo em que, muito mais importante do que o sentido interpretativo que esses eventos
adquirem, é o reconhecimento de como a reconfiguração da existência se faz por apelo a uma capacidade de resistência ao sofrimento implicado na perda; "... não me
entregar e ter força interior para os momentos que tive enfrentá-los, ir à luta". De tal modo que, nas narrativas pessoais, esse sofrimento surge amiúde como algo
datado no passado: "(...) Quando penso no que passei e como estou sinto-me muito orgulhoso".
Adquire aqui particular vigor a assunção, claramente presente no percurso de Eduardo, de que a capacidade dos sujeitos para reconstruírem as suas vivências a partir
dos seus "mundos locais", é menos a capacidade para aceitar o sentido do que aconteceu do que a capacidade para resistir à dissolução existencial que a perda de
visão pode evocar. Eduardo é a mais poderosa representação de algo com que me defrontei no trabalho de campo: a capacidade dos sujeitos de superarem experiências
de perda e de reconstruírem o sentido das suas vidas mesmo quando fracassam em encontrar sentido para o sofrimento provocado por essa perda.
Nas histórias de vida em que o surgimento da cegueira invoca o lugar de um sofrimento que é possível associar à angústia da transgressão corporal, pude perceber,
como elemento mais premente, o facto desse sofrimento surgir narrativamente como parte de um passado que se fez estranho. Este percurso através da diversidade das
experiências da cegueira coloca-nos, numa primeira instância, perante a evidência da impossível generalização da relação entre a cegueira e a ideia de trágica privação.
Seja porque muitas pessoas nascem cegas, seja pelos muitos casos em que a cegueira surge de um modo gradual, por aí se denunciando, desde logo, a desadequação biográfica
da "narrativa da tragédia pessoal" - e a falácia que constitui a sua projecção enquanto meta-narrativa - naquilo que nela há de projecção de uma insolúvel perda
dramática. No entanto, alojados no propósito de reconhecer o eventual papel desestruturante da perda de visão nas experiências corpóreas da cegueira, contemplámos
mais demoradamente algumas narrativas em que a cegueira surgiu num contexto de absoluta ruptura vivencial, tornando-se evidente como, em determinados sujeitos, a
perda de visão constitui um verdadeiro cataclismo pessoal. Estabeleceu-se assim um enfoque que procurou pulsar aquele espectro de experiências em que a ideia da
cegueira como uma perda questionadora do sentido da encontra, efectivamente, um correlato nas experiências dos sujeitos. Mas se é nesse enfoque depurador da diversidade
de vivências da cegueira que se torna possível pulsar a acuidade de experiências em que a cegueira surge como negação da vida, e como uma magna privação, esta atenção,
que também nos procurou subtrair a uma perspectiva idealista da cegueira, colocou-nos perante a vigência de leituras positivas e capacitantes da cegueira exactamente
onde elas seriam mais improváveis: "Olhe, é muito difícil... só lhe digo isto...!".
Pude constatar que as ideias de perda, tragédia, incapacidade e privação, não sendo meras projecções destituídas de qualquer correlato nas experiências das pessoas
cegas, além de surgirem num espectro particular de histórias de vida, aparecem nas narrativas que me foram veiculadas enquanto elementos de uma paisagem distante,
ou melhor, de uma paisagem que se fez distante nas vidas reconfiguradas de quem um dia viu. É o tal renascer de que se falava, a partir do qual os ensejos, expectativas
e frustrações dos sujeitos vão-se ligar, não com o ser ou não ser cego, mas, fundamentalmente, com os obstáculos e estigmas que marcam o horizonte de quem é cego.
Poder-se-á alegar que o facto da capacidade de "seguir em frente" ter surgido como o elemento mais expressivo resulta da circunstância de eu ter tomado a ACAPO como
ponto de partida. Mas, para além do amplo espectro de relacionamentos que as pessoas cegas estabelecem com esta instituição e com um discurso positivo da cegueira
ali catalizado, o aspecto que parece mais instigante do ponto de vista analítico prende-se menos com uma ambição representativa da experiências da cegueira do que
com a asserção que estas narrativas veiculam de um pernicioso jogo de liminaridades.
O confronto com as experiências em que a cegueira surge na vida dos sujeitos associada a uma forte ruptura vivencial e a um forte sofrimento pessoal, foi também
o confronto com as suas capacidades de ajustamento. Essas construções narrativas denotam em particular a passagem órfica, a descida ao inferno: "morri e voltei a
nascer". Portanto, se é possível dar conta da acuidade que o tema do sofrimento ocupa nalgumas narrativas de cegueira, importa apreciar como as ideias de dor e perda
emergem vinculadas nessas auto-histórias a um espaço-tempo particular que se fez passado. A experiência do impacto da perda como um cataclismo pessoal surge narrativamente
contextualizado num tempo da existência, normalmente associado ao "luto perda". O sofrimento parece assim encontrar morada numa fase liminar, numa passagem em que
"o modo de ser na vida" é transformado, assim como a identidade social do sujeito que cega. Portanto, o sofrimento que pode estar associado à experiência da cegueira
não poderá ser atribuído a um mero equívoco social em relação ao significado da cegueira. No entanto, a contextualização narrativa pelos sujeitos de experiências
de perda e sofrimento, não deixa de tornar notória a disparidade imposta pelas representações culturais hegemónicas que congelam os sujeitos numa posição de liminaridade
social.
O conceito de liminaridade foi introduzido na análise socioantropológica por Arnold Van Gennep em Les rites de passage (1909). Este autor analisou os ritos que
acompanham as transições de lugar, de estado, de posição social e de idade, dividindo-os em três fases. A fase de separação, onde se representa o apartamento do
indivíduo ou do grupo de um determinado ponto da estrutura social ou de um determinado conjunto de condições sociais; a fase liminar, em que o sujeito do ritual
se encontra numa situação ambígua, estando numa fase que é destituída dos atributos do estado anterior e do vindouro; e a agregação, a fase em que a passagem é consumada
(Turner, 1967: 94). Esta fase de liminaridade viria mais tarde a ser elaborada e alargada no seu âmbito por Victor Turner que empregou o conceito de liminaridade
na análise dos ritos de passagem e o estendeu para a leitura dos dramas sociais. Nas narrativas de cegueira em que pulsámos o sofrimento implicado na transgressão
vivencial, a premência desse mesmo sofrimento surge contextualizada numa fase de luto e de resignificação existencial. Neste sentido, o laço apertado que a projecção
hegemónica da "narrativa da tragédia pessoal" estabelece entre cegueira, infortúnio, incapacidade e privação, aparece-nos largamente desadequada da reflexividade
das pessoas cegas, mesmo daquelas em que a angústia da transgressão corporal esteve, de facto, em algum período, associada à vivência da cegueira.
Portanto, procurando investir-me mais directamente no modo como a cegueira foi acolhida pelos sujeitos como uma limitação sensorial, verificamos que o sofrimento
associado à cegueira é subjectivamente inscrito em períodos liminares, em passagens às quais os sujeitos apõem a sua capacidade de superação e reajustamento. É,
portanto, nesse período ligado à perda de visão - em que tende a ocorrer um "luto da perda", numa situação de marginalidade, invisibilidade social, indeterminação,
ambiguidade, e perda de referências no mundo - que podemos encontrar a força da angústia da transgressão corporal.
No entanto, sendo notório que o ajustamento pessoal permite criar as condições para que um novo ânimo para viver se reencontre com uma leitura positiva da cegueira,
verifica-se igualmente que esse renovado ensejo vai ter que se confrontar com os constrangimentos postos à integração das pessoas cegas na nossa sociedade. Ou seja,
ainda que as narrativas de superação a que acedi pudessem estar triadas pelo meio onde as obtive, a perplexidade se torna saliente surge-nos particularmente cruel:
os sujeitos que vingam em relegar as ideias de infortúnio e incapacidade para uma passagem da sua biografia acabam por ter que se confrontar, socialmente, com a
perpetuação da sua liminaridade. Acabam por ter que viver numa passagem sem chegada. A desgraçada ironia disto reside no facto da manutenção dessa liminaridade social
muito dever à permanência no meio cultural dos referentes - perda, infortúnio, incapacidade e tragédia que foram superados custosamente numa passagem pessoal e subjectiva.
Este jogo de liminaridades, que assinalo a partir das narrativas pessoais da cegueira, ganha relevância à luz da análise que Robert Murphy (1995) realiza. Robert
Murphy encontrou no conceito de liminaridade, desenvolvido por Victor Turner num ensaio designado "Betwix and Between" (1967), uma construção conceptual deveras
adequada para captar a situação ambígua vivida pelas pessoas com deficiência no contexto americano. Aponta o autor para o modo como as pessoas com deficiência estão
suspensas numa fase liminar, não sendo consideradas nem doentes, nem com saúde, nem mortas, nem totalmente vivas, estando destinadas a viver numa situação de marginalidade
e invisibilidade social (1995: 153, 154). Esta denúncia de Robert Murphy parece-me profundamente apropriada para caracterizar a actual situação das pessoas com deficiência
e das pessoas cegas no contexto português, particularmente a sua situação de exclusão e invisibilidade social. Estamos, de facto, perante uma liminaridade que, ao
contrário do que o conceito original supõe, não se dá entre dois momentos, mas que, ao invés, se encontra definida estruturalmente na marginalidade social das pessoas
portadoras de deficiência. Mas a questão forte que o reconhecimento dessa "perpétua liminaridade" traz para este momento do trabalho prende-se com o modo como ela
choca com as experiências das pessoas que de facto viveram essas mesmas ambiguidades numa "passagem" da sua existência, em períodos de sofrimento, retiro e invisibilidade,
por via de razões subjectivas que foram superadas. É perante esta superação que ganha saliência o confronto com o facto de tais indivíduos serem submetidos a uma
permanência da sua situação de marginalidade como produto de uma projecção que os congela numa liminaridade social, e os impede de aceder à "agregação social", tornando
as suas vidas reféns dos referenciais de incapacidade e tragédia.
Portanto, o enfoque no sofrimento corpóreo que pode estar associado à cegueira, vem aportar de modo pungente numa renovada perplexidade que nos envia para os termos
da opressão social das pessoas cegas. Ainda que a ênfase seja dada ao que pode haver de "tragédia pessoal" na descida de uma cegueira sobre a carne, a reflexividade
das pessoas cegas obriga-nos a perceber o des-centramento oferecido nas vidas em que o impacto da perda é narrativamente contextualizado. Assim, reconhecer a efectividade
da angústia da transgressão corporal na relação com a cegueira, implica reconhecer como é que essa transgressão é reconfigurada pelos próprios num outro modo de
ser na vida, um modo para o qual as representações dominantes da cegueira e as respostas sociais - insuficientes e eminentemente reabilitativas - assomam com renovada
centralidade. Mais. O acesso a estas experiências de liminaridade, ligadas a uma resignificação existencial que se segue ao advento da cegueira, mostrou-me o quão
difícil é a passagem final para a "agregação social" plena, quando a integração em causa se enseja para o seio de uma estrutura sociocultural em que a desqualificação
das pessoas cegas se encontra sedimentada. Ou seja, a passagem vivida por estas pessoas que são separadas da estrutura social pelo advir da cegueira, e que após
a sua moratória recuperam o alento para viverem enquanto pessoas cegas, dificilmente poderá ficar completa se a reintegração social tomar como um dado a estrutura
social reinante, em particular o modo como esta se relaciona com as pessoas com deficiência e com a cegueira.
No fundo, este congelamento na liminaridade social, passível de acontecer mesmo após uma transição subjectiva capacitante, toma parte numa persuasão mais ampla.
Por um lado, a persuasão de que o lugar das pessoas cegas na nossa sociedade se encontra vinculado a uma perspectiva fatalista e incapacitante da cegueira. Por outro,
a persuasão de que a transformação para uma tessitura social mais inclusiva depende do reconhecimento da reflexividade e das narrativas pessoais das pessoas cegas;
seja pela assunção contra-hegemónica de como a cegueira pode ser vivida em termos positivos, seja pelo modo como as vozes das pessoas cegas denunciam uma organização
social que está muito longe de garantir a equidade de oportunidades.
Ao verificarmos essas elaborações subjectivas mesmo nas histórias de perda súbita de visão - onde se suporiam como mais improváveis - somos colocados perante a
ênfase que Victor Turner veio a conferir ao carácter criativo dos períodos liminares, definidos como momentos de onde novos valores, paradigmas e modelos são passíveis
de emergir. Ou seja, o reconhecimento da reconstrução existencial por que os sujeitos poderão passar após a perda súbita de visão é algo que acrescenta às formas
como a nossa estrutura social pensa a cegueira, inscrevendo as incapacidades nos corpos, subestimando o impacto dos obstáculos que são colocados às pessoas cegas.
Assim alojamo-nos na persuasão de Victor Turner segundo a qual as novas construções e símbolos a advir da liminaridade podem informar transformativamente as estruturas
que sustêm a sociedade (1985: 9). As pessoas que cegam subitamente empreendem uma dolorosa experiência de aprendizagem e reconstrução, em que o significado da vida
e o significado da cegueira tendem a dançar juntos. Seria importante que uma aprendizagem social, informada pelas experiências das pessoas cegas, pudesse acompanhar
as reconfigurações biográficas das implicações da cegueira.
A continuada situação de liminaridade, que tantas vezes é vivida por quem já superou as implicações de uma experiência de perda, reconfigurando os termos da existência,
resignificando a vida de ensejos, diz-nos, de modo pungente, que a fatalista ideia de tragédia pessoal, não sendo um equívoco social associado à cegueira, é certamente
uma estrutura conceptual desinformada das reflexões e experiências das pessoas cegas. De facto, no contacto que estabeleci com as narrativas das pessoas cegas, frequentemente
marcadas por experiências de exclusão, o que assoma como trágico é o facto de alguém ter que viver refém de valores que ousou superar.
Concluímos daqui que, antes de se postularem os desconfortos vários da crítica social perante os "corpos com carne", e antes que nos inclinemos perante os incomensuráveis
da experiência que o tema da incorporação frequentemente evoca, importa que se procurem os mundos de sentido, as reflexões nascidas em subjectividades incorporadas.
Construções que, neste particular, parecem sugerir que a centralidade do infortúnio e da incapacidade se elide quando colocamos os corpos no contexto de narrativas
pessoais, reactualizando-se quando os colocamos no seio de relações sociais opressivas que permanecem largamente indiferentes a essas narrativas. Independentemente
do facto dos sujeitos terem sofrido ou não o impacto da perda de visão, a experiência da superação e a necessidade de uma contínua luta contra as estruturas vigentes,
emerge como um elemento que irmana toda uma diversidade de narrativas de cegueira. Assim, o tema do sofrimento e o reconhecimento da sua pertinência biográfica,
longe de nos enviar para fora da "irmandade da opressão social", oferece-lhe matizes particularmente cruéis: ainda que as ideias de incapacidade e infortúnio sejam
subjectivamente desvinculadas da vida de quem cegou subitamente, a experiência da vida em sociedade apresenta uma disposição para as reactualizar.
3. "E SE EU FOSSE CEGO?": A CEGUEIRA COMO PROJECÇÃO NOS ACOLHEDORES CORPOS QUE A PENSAM
Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo mesmo, na adolescência, ao jogo do "E se eu fosse cego".
José Saramago
Propus-me atrás a pulsar a angústia da transgressão corporal por via de duas linhas de análise, ambas relacionadas com questionamentos em torno do tema da experiência
incorporada. Num primeiro momento, procurei incidir na vivência da angústia da transgressão do próprio corpo, aquilatando das experiências das pessoas que perderam
a visão, e em cujas vivências a ideia de tragédia pessoal poderia encontrar um efectivo correlato. Invisto-me agora na segunda dimensão que aventei, ou seja, no
lugar que a angústia da transgressão corporal ocupa, não enquanto experiência que visita o próprio corpo, mas enquanto a projecção de uma angústia. Em particular
procurarei compreender como o corpo de quem vê participa na produção e reprodução de sentido em torno da cegueira. Viso assim questionar em que medida uma diferença
definida a partir dos corpos que pensam concorre para a inculcação da "narrativa da tragédia pessoal".
No poema "Musée de Beaux Arts", W.H. Auden (1994: 13) reflecte sobre as possíveis relações que podemos estabelecer com o sofrimento de outrem. Em particular Auden
resgata para os seus versos a "Queda de Ícaro", quadro pintado por Pieter Brueghel. Aí se representa a queda e sofrimento do homem-pássaro, cujo desastre divide
a tela com um agricultor e um pastor que, de costas voltadas para a tragédia, lavram mansamente as suas vidas:
No Ícaro de Brueghel, por exemplo: tudo volta
Pacificamente as costas ao desastre; o lavrador terá
Ouvido o mergulho, o grito desamparado;
Mas, para ele, não foi um fracasso importante;4
A evocação poética de Auden, consoante sugere David Morris (1998), ao dirigir-se à relação entre sofrimento e indiferença, não aborda a aversão ao sofrimento
como um fracasso moral. De facto, o texto do poeta denotaria sobretudo o alheamento ao sofrimento como o produto de uma posição estrutural diferente que o "não-sofredor"
inevitavelmente ocupa. Partindo desse inevitável distanciamento que o texto de Auden enfatiza, Morris vem sugerir que as diferentes posições estruturais dos sujeitos
poderão implicar uma inevitável lonjura em relação ao sofrimento do outro. Nesse sentido, como o retrata a queda de Ícaro, o mundo da pessoa que sofre é marcado
pelo espectro da "solidão" desse sofrimento. Esse mesmo pressentimento subjaz à persuasão de Boaventura de Sousa Santos quando afirma que "(...) o sofrimento possui
uma dimensão individual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas sim os indivíduos (1997: 24, 25). Esta ideia é profundamente debatível, sobretudo porque
determinado tipo de eventos que afectam os grupos sociais nos colocam perante formas de sofrimento que só poderão ser entendidos enquanto fenómenos colectivos ou
intersubjectivos5. No entanto, esta dimensão irredutivelmente individual do sofrimento, reiteradamente actualizada quando se aborda a incomunicabilidade da dor física
(cf. e.g. Kleinman, 1992), tende a substanciar-se por referência - explicitamente enunciada ou não - ao carácter corpóreo da experiência, e às incomensurabilidades
que essa dimensão da existência faz supor. Veena Das (1997: 69, 70) evoca Wittgenstein, numa curiosa expressão da impossibilidade de apreendermos a dor do outro.
O filósofo encena uma hipótese representativa da capacidade de uma pessoa aceder ao sofrimento corpóreo de outrem. A alguém que sente uma dor na mão esquerda é-lhe
pedido que feche os olhos e que toque o sítio que lhe dói com a sua mão direita, após tal ser feito a pessoa reconhece que estava a tocar afinal a mão do seu vizinho;
e seria então isto a dor sentida num outro corpo.
A questão que com A Queda de Ícaro pretendi trilhar traz-nos até ao corpo e à existência incorporada como uma posição estrutural que irremediavelmente nos separa
de determinadas experiências de sofrimento. Na verdade, o sofrimento somático é apenas uma expressão particular das posições estruturais, irremediavelmente diversas,
que separam as existências corpóreas dos sujeitos. No entanto, o tema do sofrimento ganha aqui acuidade, na medida em que pretendo incidir no modo como a cegueira
é pensada enquanto dor, perda e incapacidade por referência a uma posição estrutural diferente. Não negando os matizes e idiossincrasias de todas as experiências,
quero deter-me, em particular, nas implicações do modo como a cegueira é pensada como uma posição estrutural radicalmente diversa a partir de corpos que vêem. Ou
seja, quero conferir relevância aos termos em que a alteridade da cegueira é constituída como uma projecção a partir de experiências corpóreas profundamente fundadas
na visão. Uma tal abordagem implica mergulhar na experiência incorporada reconhecendo o corpo como um relevante sujeito de conhecimento. A centralidade do sofrimento
que aqui se elabora, ao contrário da representação de Ícaro, não tem tanto a ver com a efectiva experiência do sujeito sofredor, mas sim com a projecção de uma transgressão
corporal, indiciadora de sofrimento, a partir do corpo de quem vê.
Importantes estatísticas realizadas nos Estados Unidos mostram que a cegueira é uma das condições mais temidas pela população, só sendo precedida pelo Cancro e
pela Sida (cf. NFB, 2002). Este dado não deixa de ser relevante, e embora seja congruente com todo um conjunto de construções e itinerários históricos a que atrás
nos dedicámos, ele reflecte também, creio, a ansiedade pessoal que a cegueira muitas vezes suscita nas pessoas que vêem. Nesse sentido, haveria a considerar as percepções
da cegueira também como o correlato negativo da importância que a visão detém para quem dela pode tirar partido. E é a projecção da incapacidade e da prisão sensorial
que a cegueira faz supor para quem o mundo é uma realidade marcadamente visual, que faz com que o impacto sociocultural da "narrativa da tragédia pessoal" tenda
a ser - como o reflectem as referidas estatísticas - muito mais premente para a cegueira do que para outras deficiências físicas.
Na verdade, este é um dado que se foi tornando crescentemente importante ao longo do meu envolvimento com o tema da cegueira. Poderia evocar como expressão pessoal
dessa mesma ansiedade o pesadelo que tive aquando da minha primeira permanência em trabalho de campo. Foi uma experiência deveras intensa: um sonho que me fez acordar
da tortuosa narrativa da minha própria cegueira. A minha experiência junto das pessoas cegas operou uma profunda elisão do dramatismo com que eu pensava a experiência
da cegueira. Mas, ao mesmo tempo que as minhas próprias concepções, informadas que foram pelas experiências das pessoas cegas, nutriram de uma profunda desdramatização
do que é ser cego, os termos em que a generalidade das pessoas tende a apreender a cegueira, fundadas nas suas projecções pessoais foi adquirindo uma inelutável
centralidade analítica. Ou seja, tornou-se importante perceber como a relevância que a visão ocupa na vida de quem vê concorre para as representações dominantes
da cegueira. E foi, sem dúvida, esta dimensão, que se tornou absolutamente relevante na minha experiência etnográfica, que eu tive mais dificuldade em articular
à luz do idioma das ciências sociais em que estava imbuído.
O reconhecimento desta fonte para as representações hegemónicas da cegueira torna imperativo, em particular, a negação do dualismo cartesiano à luz do qual o corpo
vem sido reiteradamente desqualificado enquanto sujeito de conhecimento. São, pois, as implicações dos saberes engendrados por uma diferente posição estrutural-corpórea
em relação à cegueira - a posição das pessoas para quem a visão é um elemento fulcral na experiência - que se torna premente explorar, a fim de trazermos outras
fontes de sentido que continuam a laborar, em congruência com valores históricos e culturais, sobre o reiterado silenciamento das experiências de quem conhece a
cegueira no próprio corpo.
No entanto, como referimos, a ênfase nos corpos enquanto a base existencial da cultura, enquanto sujeitos de conhecimento (Csordas, 1990, 1994a), não equivale
à negação da imersão cultural, da partilha de esquemas interpretativos da realidade e da codificação de determinadas experiências. Como mais poderosa expressão disto
mesmo, destaco aquele que é um dos momentos críticos mais bem conseguidos de Embodiment and Experience (Csordas (org.), 1994a), a já mencionada obra que Thomas Csordas
organiza.
Refiro-me ao artigo em que Lindsay French (1994) elabora naquilo que considero ser uma instrutiva articulação entre a iniludível imersão cultural das apreensões
da diferença corporal e a pertinência de que se pode revestir a assunção do corpo enquanto produtor de sentido. Partindo de uma etnografia realizada num campo de
deslocados situado na fronteira entre o Camboja e a Tailândia, Lindsay French procura analisar os "mundos morais locais" em que se inserem as experiências dos muitos
ex-soldados que ficaram com os membros amputados, em virtude das minas antipessoal profusamente disseminadas durante a guerra. Numa primeira instância, o baixo estatuto
social das pessoas amputadas surge permeado pelos elementos económicos, políticos e culturais que pontuam a vida no campo de refugiados. Assim haveria a considerar
diversos elementos. Primeiro, o facto da amputação impedir a realização dos trabalhos, eminentemente físicos, disponíveis no campo de deslocados, ficando os homens
amputados ainda mais sujeitos às condições de profunda precariedade económica que se faziam sentir no campo. Situação que acarretava uma profunda depreciação social,
uma vez que a capacidade de prover sustento e segurança para a família se estabelece como um elemento central no prestígio social dos homens. Mas, ainda mais importante
do que as consequências económicas da perda de um membro, são as construções culturais e religiosas que pensam uma tal diferença corporal, sustentando relações de
poder profundamente danosas para os homens amputados. Particularmente importante é a hierarquia de mérito e virtude estabelecida naquele contexto à luz do Budismo
Theravada, construção intimamente relacionada com os conceitos de karma e reincarnação. Perante as apropriações correntes de tais construções naquele contexto, a
experiência da amputação constitui uma profunda descida no estatuto de virtude, representando um karma de estatuto inferior, marcado pelo demérito e pelo espectro
do infortúnio. No entanto, Lindsay French traz ainda um outro elemento que no seu entender concorre para a compreensão das respostas sociais às pessoas amputadas.
A autora considera o facto de insoluvelmente vivermos em corpos e através deles como um postulado do que imporá revisitar, para que se possa apreender em que medida
a relação com o dano corporal de outrem é mediada por um movimento projectivo pelo qual esse dano é "trazido para casa". Ou seja, urge reconhecer o lugar eminente
ocupado pelas ansiedades pessoais suscitadas pela projecção no próprio corpo da amputação:
Nós respondemos visceralmente ao espectro da amputação: desafia o nosso sentido de integridade corporal, e evoca os pesadelos do nosso próprio desmembramento. Nós
sentimos instintivamente uma identificação simpática com o amputado em virtude da nossa existência incorporada, mas a nossa identificação faz-nos temer; assim simultaneamente
somos enviados para os amputados e repelidos por eles, tanto sentindo como receosos de sentir que nós somos (ou podemos ser) "tal como eles" (French, 1994: 73, 74;
minha tradução).
O que eu pretendo considerar são exactamente as ansiedades pessoais suscitadas por uma relação visceral simpática com o corpo do outro, esse espectro do próprio
desmembramento. A identificação empática com o outro corpo é, pois, um dos mecanismos pelos quais diferentes posições estruturais entram em relação. E, como nos
diz Lindsay French para o caso da amputação, a criação de uma identificação visceral com o corpo do outro induz à criação da ideia de que se apreende de facto a
experiência do outro. Mas, essa construção, inevitavelmente descontextualizada, é também uma elaboração que cria a persuasão errónea que é possível entender, por
exemplo, os termos corpóreos da experiência da perda de uma perna. É precisamente o lugar desta construção simpática corporal a que julgo ser relevante atentar,
enquanto fonte de formulações empáticas da experiência da cegueira.
Maurice Merleau-Ponty afirmava categoricamente: "Estamos presos ao mundo e não chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo" (1999: 26). Conforme
constata o filósofo, estamos, isso é certo, presos a um corpo pelo qual existimos no mundo. É a pertinência desse enlace co-extensivo com o ser que se torna pertinente
explorar. O estatuto de um corpo cognoscente revela-se como uma incontornável marca da relação com o mundo. Uma importante contribuição para o reconhecimento desse
corpo que conhece tem vindo das ciências cognitivas, estabelecendo-se como momento precursor a publicação de The Embodied Mind em 1991 (Varela et al., 1991). Nesta
obra os autores exploram a incorporação da mente, naquilo que é uma óbvia crítica às ambições de um conhecimento transcendente, desincorporado e separado das contingências
sócio-históricas, que se estabeleceu como dominante na epistemologia ocidental:
Foi erradamente assumido que apenas uma perspectiva que transcenda a incorporação humana, a imersão cultural, a compreensão imaginativa, e a localização dentro de
tradições historicamente mutáveis pode garantir a possibilidade de objectividade (1991. 138).
Neste sentido recuperamos a apologia daquilo que, seguindo a crítica de Donna Haraway, atrás se designou como a "doutrina da objectividade incorporada". Aí se
enuncia a necessidade de reconhecimento da localização dos sujeitos em pontos de vistas particulares, e a inevitabilidade de perspectivas parciais. Tentando não
perder contacto com o modo como as experiências são codificadas e interpretadas por referência às comunidades de sentido, a obra Embodied Mind emerge como um influente
texto que, na esteira de Maurice Merleau-Ponty, coloca ao seu centro a importância de se considerar seriamente o carácter incorporado de todo o conhecimento. Uma
persuasão que se investia com particular acutilância para questionar o modo como a mente vinha sendo dissociada do corpo, à luz da metáfora do computacional que
se estabeleceu como modelo interpretativo dominante da mente humana no seio das ciências cognitivas. Na senda deste trabalho influente, é igualmente das ciências
cognitivas que surge a formulação que mais consistentemente articula a premência dos corpos que pensam com a relevância que quero atribuir às projecções da cegueira.
Refiro-me à poderosa persuasão construída em Philosophy in the Flesh: The Embodied Mind and its Challenge to Western Thought (Lakoff e Johnson, 1999).
Contra as teorias tradicionais do conhecimento humano, os autores chamam a atenção para o facto de que a razão, longe de ser desincorporada, emerge das características
do nosso cérebro, dos nossos corpos, da experiência corporal, da nossa estrutura neuronal, e do meio em que estamos imersos. Em articulação com esta tese central,
que vincula a razão no corpo que a permite, Lakoff e Johnson defendem também outras especificidades da razão humana que são frequentemente negligenciadas e que aqui
destaco.
A assunção de que os processos cognitivos estão profundamente marcados pelas implicações da nossa existência incorporada e pelas características dos sistemas sensório-motores
conduz os autores a negar a tradicional divisão entre percepção e concepção. Portanto, mais do que chamar a atenção para a contaminação da concepção pelos processos
perceptivos, eminentemente associados ao corpo e ao sistema sensorimotor, os autores defendem a insustentabilidade de uma tal divisão à luz da ideia de que a percepção
e os processos corporais não só informam a concepção, mas moldam a razão por que se elaboram os conceitos (Lakoff e Johnson, 1999: 37, 38). É esta incontornável
importância do corpo no conhecimento, nas ideias formadas sobre o mundo - e sobre outros corpos no mundo -, que a crítica destes autores releva para que possamos
aceder ao modo como se forma e sustenta um conceito de cegueira elaborado a partir de corpos cuja experiência está profundamente estabelecida sobre a visão.
Sustentados neste quadro de ideias, os autores defendem o conceito de "realismo incorporado". À luz de um tal conceito a capacidade de conhecer, de aceder ao real,
não tem por objectivo uma ideia das coisas como elas são, mas sim a construção de um conhecimento que nos permita funcionar e florescer no mundo. Assim, ao mesmo
tempo que o realismo incorporado nega a possibilidade de uma descrição definitiva do mundo, uma vez que uma tal empresa se vincula à natureza relativa dos nossos
corpos, cérebros e interacções com o meio, ele nega um relativismo extremo, no sentido em que supõe a possibilidade de, na ciência e na vida de todos os dias, se
consolidarem descrições estáveis do real.
A persuasão de que pensamos embutidos na carne, e que damos carne aos conceitos através de metáforas e da imaginação, conduz-nos precisamente ao reconhecimento
das projecções imaginativas corpóreas como uma via para a produção de sentido acerca de outras posições estruturais, isto é, como via para as relações empáticas
com outros corpos. É precisamente a relevância que encontrei nestas elaborações de sentido, fundadas no modo como os eventos acontecidos noutros corpos são "trazidos
para casa", que Lakoff e Johnson reconhecem quando defendem a capacidade para a imaginação projectiva como uma faculdade cognitiva vital (Lakoff e Johnson, 1999:
565). Como os autores afirmam, a imaginação e a incorporação articulam-se na possibilidade do conhecimento, fundando a própria possibilidade de ciência:
Como criaturas imaginativas incorpóreas, nós nunca estamos separados ou divorciados da realidade numa primeira instância. O que sempre permitiu a ciência é a nossa
a incorporação e não a sua transcendência, e é a nossa imaginação, não a sua recusa (ibidem: 93, minha tradução).
O carácter imaginativo da razão, e o vínculo que a liga ao facto da incorporação, tem como uma das suas mais poderosas expressões na projecção empática, o processo
pelo qual o sujeito "sai do seu corpo" para vivenciar a experiência do corpo de outrem. Para o texto deste trabalho, assoma com indelével fulgor a relevância que
a obra de Lakoff e Johnson permite atribuir à imaginação corpórea e às relações empáticas entre corpos. É sobre esta espécie de transcendência imanente ao facto
de sermos corpos que pretendo pensar as representações da cegueira:
Uma função central da mente incorporada é a empática. Desde o nascimento nós temos a capacidade para imitar os outros, para intensamente imaginarmos ser outra pessoa,
fazendo o que essa pessoa faz, experienciando o que essa pessoa experiencia. A capacidade para a projecção imaginativa é uma faculdade cognitiva vital. Vivencialmente
é uma forma de "transcendência". Através dela podemos experienciar algo próximo a "sair dos nossos corpos" - no entanto, é uma capacidade eminentemente corporal...
Não há nada de místico nela. Ainda assim esta mais comum das experiências é uma forma de transcendência, uma forma de estar no outro (ibidem: 1999: 565, minha tradução,
ênfase no original).
É esta forma de "ser no outro", por via de projecções imaginativas em que o próprio corpo é feito um "tubo de ensaio" da cegueira, que labora para que as concepções
hegemónicas da cegueira sejam, nalguma medida, o produto das ansiedades com que ela é empaticamente percebida. Tento, pois, conceder relevância a esse experimentalismo
sensorial que a cegueira evoca nos corpos cuja construção do mundo - cosmovisão ou mundividência - é eminentemente visual. As conclusões advindas de uma tal relação
empática são instrutivamente tocadas por José Saramago (1995: 15) referindo-se a uma das personagens do Ensaio Sobre a Cegueira:
Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo mesmo, na adolescência, ao jogo do E se eu fosse cego, e chegara à conclusão, ao cabo de cinco
minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dúvida alguma uma terrível desgraça, (...)
Esta construção empática imaginativa a que, seguindo as palavras do escritor, poderíamos chamar de "o jogo do e se eu fosse cego", tende a elaborar a ideia da
cegueira como uma desgraça, uma infelicidade. Em face da extrema importância que a visão detém para quem dela possa tomar partido, a projecção no próprio corpo da
sua ausência irrevogável faz supor uma atroz experiência de privação. Tal como na reacção visceral para com a imagem da amputação de que Lindsay French nos falava,
também aqui há uma identificação descontextualizada com o "mal físico" do outro. No entanto, no caso da cegueira, a imaginação empática corpórea que permite "ser
no outro" não tem a ver com aquilo que se vê, mas com a imaginação da impossibilidade de ver.
A questão que me parece central é o facto do espectro da cegueira, acolhido no corpo de quem não é cego, poder ser tomado como forma de acesso à experiência das
pessoas cegas, tornando-as repositórios correlativos das ansiedades aí suscitadas. A relevância destas ansiedades, seja nas construções estabelecidas acerca da cegueira,
seja nas respostas sociais concretas às pessoas cegas, consolidou-se ao longo do trabalho de campo, mas também se revelou, desde logo, fora dele. Nas muitas conversas
que estabeleci com amigos e conhecidos, em que, a propósito do tema da minha tese, falava da cegueira, pude perceber, uma vez mais, o quanto as perspectivas da cegueira
era fundadas nas ideias de infortúnio e incapacidade, em claro contraste com as vidas das pessoas cegas que foram dadas a conhecer. Mas, com maior importância para
este momento do trabalho, pude perceber o quanto essas construções são fundadas em respostas ansiosas e viscerais ao espectro da própria cegueira, não sendo incomuns
expressões como: "não sei como é que eles conseguem...", "acho que preferia suicidar-me", "faz-me tanta impressão", "não sei como é que reagiria", "penso nisso sempre
que fico às escuras", etc. No fundo a experimentação da angústia da transgressão corporal espoletada pela imaginação da cegueira. Estas mesmas respostas à cegueira
ficaram curiosamente expressas na edição portuguesa de um popular reality show televisivo, o Big Brother. No dia 15 de Outubro de 2002, como forma de comemorar o
"Dia Mundial da Bengala Branca", foi proposto aos concorrentes que escrevessem uma mensagem alusiva. Para tal foram realizadas algumas experiências, em que eles
tentavam realizar algumas actividades sempre com uma venda nos olhos. Na troca de ideias foram enunciadas variadas expressões ansiosas viscerais, onde se esboçava
o quão terrível deveria ser a cegueira. Uma das concorrentes foi peremptória nesse particular: "Eu, se ficasse cega preferia morrer!". Na verdade, após as experiências
de experimentalismo sensorial da cegueira, todas as reacções tendiam a questionar o valor da vida e a adivinhar a angústia que a cegueira haveria de implicar para
cada um.
No mesmo sentido foram as reflexões de algumas pessoas com quem falei após uma actividade proposta pela ACAPO em que os transeuntes eram convidados a usar a bengala
com uma venda nos olhos: "Sabe bem poder tirar a venda", "se eu ficasse assim não sei o que faria..., "deve ser uma coisa terrível". Elementos que ficaram igualmente
reificados no pânico de algumas das pessoas que, após uns segundos com a venda, se mostraram incapazes de completar a experiência por não conseguirem suportar, ainda
que por momentos, o desconforto da privação de visão.
Na relação com as pessoas cegas, a relevância das ansiedades pessoais que se desenvolvem em relação à cegueira tornaram-se patentes em muitos momentos das actividades.
Particularmente naquelas situações em que eu as acompanhava, sozinhas ou em grupo, e ouvia as conversas suscitadas pela nossa presença, as perguntas que às vezes
me faziam, ou as abordagens que eram feitas a quem me acompanhava. Elementos que tornavam patente o quanto as atitudes compassivas e paternalistas se articulam com
uma suposição ansiosa do quão terrível deverá ser a cegueira. Aí pude denotar profusamente reacções semelhantes às que citei a propósito das minhas conversas pessoais,
mas também, a difícil aceitação de que a felicidade e realização das pessoas cegas - ou a sua busca - não está refém, na esmagadora maioria dos casos, da eventualidade
de poderem ver. Criou-se assim um óbvio contraste entre a familiaridade que estabeleci com vidas e momentos de partilha em que a cegueira era desdramatizada e trivializada,
raras vezes surgindo como uma questão fora das minhas próprias preocupações académicas, e o impacto destabilizador que se tornava notório na generalidade das pessoas.
Mas este elemento não se tornou presente apenas nas actividades que observei. As ansiedades suscitadas pela transgressão de referências que a cegueira evoca manifestaram-se
igualmente, com recorrência, nos relatos deferidos que me foram sendo confiados. Particularmente, nas recorrentes alusões presentes nas reflexões e histórias de
vida, onde se denota o quanto as apreensões sociais das pessoas cegas são fundadas em imaginários informados por apreensões ansiosas e pessoais em relação às implicações
da cegueira. Foram-me contadas inúmeras situações em que o facto das "pessoas normovisuais" afirmarem conseguir imaginar o que é ser cego se articula as suas atitudes
compassivas em relação à cegueira.
Uma situação ilustrativa passou-se numa conversa, num contexto de férias, em que um associado, falando para mim e para mais duas pessoas na mesa do café, contava
o trauma por que passou aquando da cegueira, há muito trazida por um acidente, e do processo de reconstrução existencial que se lhe seguiu. A réplica ansiosa que
foi dada por uma senhora, esposa de um colaborador da ACAPO , é representativa daquilo que aqui venho pretendendo enfatizar: "Sabe, muitas vezes fecho os olhos tentando...,
mas... não consigo imaginar!". Sendo evidente, naquela mesa, o contraste para com o homem para quem a sua cegueira estava há muito distante de tais agonismos. Por
outro lado, era bem patente, na referida senhora, como a ideia que ao longo dos anos havia elaborado acerca da experiência da cegueira estava ainda dependente da
projecção no seu próprio corpo da angústia da transgressão corporal. Ou, melhor dizendo, era patente o confronto entre um conhecimento das formas de ser e estar
de algumas pessoas cegas para quem a vivência da cegueira é entendida de modo positivo, e as recapitulações pessoais corpóreas do drama que a cegueira deveria ser,
ainda assim.
A questão é que a esmagadora maioria das pessoas, não tendo qualquer contacto com as vivências das pessoas cegas - em congruência com os valores sócio-históricos
que, como analisámos, tendem a vincular a cegueira à experiência da marginalidade e aos referentes de infortúnio e incapacidade - tende a presumir um "conhecimento"
que lhes advém da experiência do próprio corpo. O ponto central é que as elaborações empáticas, por via das quais as implicações da cegueira são adivinhadas, no
fundo, como forma de superação da diferente posição estrutural implicada por diferentes incorporações, produzem uma identificação necessariamente fora do contexto.
Como assinalava Lindsay French, elabora-se uma relação empática que leva à produção de uma identificação que mais não é do que a errónea persuasão de que se acede
à experiência do outro. Neste caso, à experiência da cegueira.
Na verdade, o "conhecimento corpóreo" da cegueira permite supor a magnitude do impacto da perda de visão, assim como a angústia da privação implicada por uma tal
experiência. Nesse sentido, a incorporação imaginativa da cegueira confere acesso à transgressão que está implicada nas experiências de cegueira abrupta, pelo contraponto
imediato que estabelece com uma existência sensual visualmente informada. Mas, exactamente por isso, tende a fomentar uma premonição da cegueira pelo prisma de um
défice e de uma ruptura drástica com o mundo eminentemente visual de quem vê. Ou seja, um corpo que se move num mundo de que a visão é parte essencial, consegue
adivinhar o eventual impacto da perda desse sentido. Mas fracassa em perceber como é que o mundo se constrói ou reconfigura sem a visão como um campo de múltiplas
possibilidades. Isto é, fracassa em aceder às experiências da cegueira após a liminaridade da perda, e fracassa em apreender as experiências em que a perda foi lentamente
conhecida ou não se fez sentir de todo. A cegueira ansiosamente pulsada nos corpos de quem vê é uma elaboração imaginativa em que irredutibilidade da experiência
corpórea se torna flagrante, e onde a vinculação da cegueira ao tema do sofrimento se constitui como o produto mais saliente da tentativa de superação, pela imaginação
empática, dessa inevitável lonjura do outro.
Portanto, é minha persuasão que a vigência da narrativa da tragédia pessoal nas representações hegemónicas da cegueira é relevantemente nutrida pelas imaginações
empáticas, por via das quais a cegueira é "trazida para casa" dos corpos que a pensam. A consubstanciação desta dimensão mais fenomenológica enquanto um dado relevante
para os contextos de relações das pessoas cegas constitui uma abordagem pouco maturada nas ciências sociais, mas que parte, afinal, da relevância do corpo que somos.
No sentido que dele fiz, perseguir um corpo transgressor implicou três movimentos diferentes. Primeiro, que fossem cruzadas as fronteiras disciplinares tradicionais
no esforço de análise. Em segundo, o reconhecimento de como a experiência corpórea da cegueira pode violar os termos da existência - naquilo que chamei a angústia
da transgressão corporal. E, em terceiro, implicou perscrutar a relevância das concepções incapacitantes da cegueira enquanto suposições advindas de projecções empáticas.
No entanto, a relevância sociocultural que as projecções empáticas da cegueira assumem na nossa cultura não poderá ser entendida fora da sua congruência com os
traços e itinerários culturais estruturais a que longamente fizemos referência. É, pois, por referência às heranças históricas e simbólicas da cegueira, à sua definição
enquanto condição patológica, ao tráfego dessa definição com o capitalismo industrial, aos trilhos modernos de valorização pessoal e ao visualismo, que as elaborações
empáticas corpóreas ganham relevância para a consolidação de um imaginário incapacitante e excludente. Deste modo podemos identificar uma dramática confluência entre
1) os valores historicamente herdados na estigmatização da cegueira 2) as condições estruturais que ratificam o silenciamento das experiências das pessoas cegas
e 3) a transgressão existencial prefigurada nas imaginações corpóreas que pensam a cegueira de alhures.
Portanto, longe de nos enviar para fora das particularidades de um contexto cultural e político, ou para a reconstrução de universalismos, o reconhecimento da
relevância do tema da experiência incorporada coloca os corpos em contexto, enunciando, por outro prisma, o imperativo do reconhecimento das perspectivas e reflexões
das pessoas cegas. Assevera-nos, mais uma vez que, na impossibilidade de vivermos as vidas dos outros, devemos procurar ouvir o que eles têm a dizer sobre si. Lembra-nos,
com ironia, que "qualquer forma de ver é uma forma de não ver" (Lukes, 1973: 149). Portanto, a imaginação que importa realmente é aquela que seja capaz de fundar
uma transformação cultura e social, em que os ensejos e a vontade de viver das pessoas cegas sejam entendidos como aspirações que urge reconhecer enquanto um campo
de imensas possibilidades que, desgraçadamente, quase sempre ficam por cumprir.
Notas
1 Embora o uso da noção de paradigma possa parecer um pouco pretensiosa, com ela Thomas Csordas (1990: 5) pretende referir apenas "uma perspectiva metodológica consistente
que encoraje reanálises de dados existentes e sugira novas questões para a pesquisa empírica" (minha tradução).
2 Inclusive, nos primeiros anos da sua licenciatura, e por via de alguma desmotivação, chegou a pôr a hipótese de se transferir para um curso ligado às artes plásticas
e ao Design.
3 Nome real.
4 Tradução de José Alberto Oliveira.
5 Vide, a este propósito Social Suffering (1997), obra organizada por Arthur Kleinman, Veena Das e Margaret Lock, e que é constituída por um conjunto de contribuições
em que o carácter social do sofrimento se coloca como uma questão transversal.
CONCLUSÃO:
"VAMOS TOMAR CAFÉ LÁ LONGE"
That willing suspension of disbelief for the moment, that constitutes poetic faith.
Coleridge
A incursão, aqui realizada, pela história e pelos diferentes contextos culturais de sentido, mostrou-nos como a modernidade operou uma radical transformação no
modo como a cegueira foi inscrita pela biomedicina, tendo sido subtraída de questionamentos mais amplos acerca da natureza das relações sociais e do cosmos. No entanto,
como atentámos, não só a materialização moderna da cegueira está saturada de valores e de "tecnologias positivas do poder", como também a análise das vidas das pessoas
cegas nos coloca perante a realidade de um grupo social que encontra os seus ensejos de inserção social largamente soterrados pelos monumentos de uma cultura. Identifica-se,
assim, de modo proverbial, o carácter metonímico da razão moderna que, ao des-encantar a cegueira enquanto uma condição patológica corpórea, também a separou do
campo de relações que, afinal, determinam as expectativas e possibilidades dos seus portadores. É, portanto, aí, na complexa tessitura da vida social, que se jogam
as cartadas mais importantes para que as apreensões da cegueira se convertam num "amanhecer sem espanto".
Só um conhecimento informado das vidas e reflexões de quem vive sem o sentido da visão - nutrindo, frequentes vezes, um alento vivencial que fracassa em encontrar
lugar no modo como a cegueira é socialmente apreendida - poderá esconjurar o assombro suscitado pela ideia dominante acerca de uma tal relação sensorial com o mundo.
O trabalho etnográfico que realizei constituiu, antes de mais, o ensejo para aceder a experiências que desdizem, de modo pungente, o fatalismo incapacitante que
a cegueira evoca nas leituras hegemónicas, onde ela é sistematicamente pensada de alhures. Concretamente: a partir de uma antiquíssima história de desprestígio dessa
"escuridão", a partir de uma estrutura social imune às transformações que seriam passíveis de conduzir a uma equalização de oportunidades, a partir de formas estreitas
de valorização social dos sujeitos, a partir de construções sensorialmente redutoras das formas de agir no mundo e de o conhecer, e a partir de corpos que pulsam
a cegueira como perda dilacerante. Mas o trabalho etnográfico foi igualmente instrutivo no modo como tornou evidentes os constrangimentos apostos à realização pessoal
das pessoas cegas, nos obstáculos sustentados em estreita ligação com as concepções profundamente discriminatórias que quotidianamente as visitam. Nesse sentido,
tornou-se fulcral perceber o tráfego entre histórias de vida, que inevitavelmente se confrontam com o peso das concepções dominantes da cegueira, e as concepções
positivas que emergem e se catalisam no espaço da ACAPO. Este enfoque permitiu-nos apreender como é que as narrativas pessoais e as subjectividades das pessoas cegas
se confrontam com os valores disseminados acerca da cegueira, debatendo-se entre uma incorporação incapacitante, e uma afirmação discursiva e vivencial das suas
capacidades.
No entanto, a inserção social das pessoas cegas, fomentada por - e fomentadora de - novas representações dessa condição, aparece-nos dependente de um outro tráfego,
um tráfego capaz de fazer face aos entraves que estruturalmente condicionam a vida de quem é cego em Portugal. Refiro-me a um trânsito passível de resultar do sucesso
das pessoas cegas na intervenção sociopolítica, no sentido de imbuírem as percepções da cegueira das suas perspectivas informadas, e de transformarem as políticas
sociais que a elas se dirigem, para que de "cuidados paliativos" estas passem a consagrar direitos efectivamente conducentes a um horizonte de participação social.
Após aportar no mundo novo que para mim constituiu a intimidade com as experiências de pessoas cegas, identifico três elementos centrais que vêm obstando a um
cenário inclusivo feito de uma "ecologia de reconhecimentos". O primeiro envia-nos para um longo tempo onde se desvelam as heranças simbólicas, negativas e excludentes,
que ao longo dos tempos foram vertidas sobre a cegueira; uma perspectiva historicamente ampla que também nos remete para o modo como a cegueira foi objectificada
enquanto deficiência visual, à luz dos saberes biomédicos. Particularmente relevante é a referência ao modo como uma tal objectificação informa a abordagem reabilitacional
da deficiência que, desse modo, se instalou nas entranhas da modernidade. Uma abordagem sobre cujos limites atrás nos debruçámos, e que, na leitura que faço, continua
a vigorar enquanto dominante, quer ao nível das políticas estatais dirigidas às pessoas com deficiência, quer ao nível daquele que é o cariz de acção da ACAPO.
O segundo elemento prende-se com as particularidades da história da ACAPO e do quadro sociopolítico português. Neste quadro, a relevância é conferida à reduzida
maturação de uma cultura de direitos na ACAPO, e a uma frágil capacidade de intervenção das organizações de deficiência portuguesas, de um modo geral. Dados estes
que apenas podem ser percebidos na sua relação com algumas das mais centrais características da sociedade portuguesa, onde a juventude de uma cultura democrática,
os remanescentes do autoritarismo estatal, e os défices na construção de um Estado-providência, assomam como obstáculos centrais a uma transformação a advir das
formas participativas de democracia.
O terceiro elemento coloca-nos perante as leituras descontextualizadas que são formuladas a partir de corpos vinculados a uma existência sensorial em que a visão
assume inegável protagonismo. Defendo, portanto, que é também partir de "corpos que pensam" que se (re)produz a associação entre a cegueira e as concepções trágicas
e incapacitantes desta condição. Como referi, a relevância que atribuo a este erróneo "trazer para casa" da cegueira adquire sentido na relação com um contexto em
que a reflexividade das pessoas cegas se encontra estruturalmente silenciada.
Identificados que estão os dolorosos obstáculos com que os intentos das mulheres e homens cegos no nosso país se defrontam, creio que o fim da experiência de exclusão
a que as pessoas com deficiência estão votadas, um pouco por todo o mundo, depende grandemente da inculcação de um modelo social da deficiência. Um modelo que, contra
as lógicas medicalizadas, seja capaz de reconhecer na deficiência uma forma particular de opressão social. Nesse sentido, importará que o associativismo em torno
da cegueira possa, num mesmo tempo, contemplar as especificidades da marginalização das pessoas cegas e aquilo que há de comum na opressão a que as pessoas designadas
como deficientes estão sujeitas. De facto, parece crucial a possibilidade dos movimentos de pessoas com deficiência assumirem, isoladamente, e em conjunto, uma postura
de maior reivindicação política e social. Só o reconhecimento do potencial democrático passível de emergir de uma coligação de organizações de deficiência, assim
elas vinguem em subtrair-se a uma "sociedade civil íntima ao Estado", é que poderá operar uma urgente e radical transformação das lógicas vigentes. Assim, importaria
recusar a dominância de uma perspectiva reabilitacional e o consequente adiamento de transformações sociais mais amplas; importaria suprir os enormes défices existentes
nas próprias lógicas que promovem a habilitação e a reabilitação das pessoas com deficiência; e importaria a consecução de uma intervenção na opinião pública que
permitisse desmobilizar os fatalismos e preconceitos que em todo o lugar precedem as pessoas portadoras das diferentes deficiências. Estamos, pois, perante a urgência
de reconhecer a voz emanada de experiências que vêm sendo longamente silenciadas e que, por isso, muito acrescentam à criatividade que deverá assistir à reinvenção
de novos contextos de sociabilidade.
Complementarmente, creio que uma tal reconfiguração social não poderá deixar de fazer apelo ao caminho já percorrido pelo idioma dos direitos humanos no âmbito
da deficiência, e ao potencial que nele reside para a transformação social das condições a que as pessoas com deficiência estão sujeitas. Ademais, importa que os
Estados assumam um papel na superação desta "crise silenciosa", por um lado, concedendo condições para uma efectiva igualdade de oportunidades, por outro, reconhecendo,
incentivando e financiando a participação democrática das organizações de deficiência. Neste sentido, seria importante que pudesse concretizar-se, no seio da ONU,
a almejada Convenção Internacional de Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência, como forma de comprometer os Estados signatários com uma renovada atenção para
com este fenómeno social. Ademais, os direitos humanos mostram ser um recurso com potencialidade para a criação de pontes entre os intentos de justiça social das
pessoas com deficiência e outras situações que cumulam de injustiças o mundo em que vivemos. Os direitos humanos podem, assim, ser mais um recurso na aspiração a
traduções que tornem as diferentes lutas mutuamente inteligíveis (Santos, 2000:27). A ser assim, teríamos leituras mais amplas das diversas formas de opressão a
que uma pessoa com deficiência pode estar sujeita, fomentando-se, igualmente, elos emancipatórios para com outros grupos excluídos. Particularmente, ao nível das
políticas do corpo, estabelecendo solidariedades políticas com aqueles grupos que também são alvo de lógicas somatocráticas (mulheres, negros, LGBT, etc.). Mas a
acção dos movimentos de deficiência poderá também assumir um papel importante aliando-se a outras lutas no confronto com as lógicas que fomentam o surgimento de
deficiências, como sendo: a abismal desigualdade económica no mundo, as guerras ou a precariedade de condições laborais. Do mesmo modo, os movimentos que se debatem
contra as diferentes formas de exclusão deverão ser confrontados com o reiterado esquecimento a que têm votado a questão da deficiência, uma forma de exclusão que
os discursos emancipatórios dirigidos a uma reinvenção social abrangente tendem a naturalizar na sua frequente omissão.
A cegueira conduziu-nos a terrenos cujo questionamento socioantropológico é, entre nós, profundamente embrionário. Da minha parte, procurei atentar na profusa
teia de especificidades que pontuam a vida das pessoas cegas, numa incursão que também pretende constituir uma forma de conferir centralidade a uma realidade social
mais vasta, aquela que irmana as pessoas em cujos corpos se identifica uma deficiência.
Acreditar noutros lugares para a vivência humana implica, na maior parte dos casos, aceitar a importância de crermos naquilo que não vemos. Como dizia Coleridge,
a fé poética faz-se de uma desejada suspensão da descrença, uma fé poética por via da qual se convertem itinerários impensáveis em verosimilhanças desafiantes. Creio,
pois, que o reconhecimento do lugar ocupado pela "narrativa da tragédia pessoal" nas experiências da cegueira, deverá levar-nos a nutrir a insolúvel urgência de
uma "fé poiética", uma fé em "narrativas da transformação social".
LISTA DE ACRÓNIMOS
ACAPO - Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal
ACLB - Associação de Cegos Luís Braille
ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas
APD - Associação Portuguesa de Deficientes
APEC - Associação Promotora do Ensino dos Cegos
APEDV - Associação Promotora do emprego do Deficientes Visuais
CNOD - Confederação Nacional das Organizações de Deficientes
CRNSA - Centro de Reabilitação Nossa Sra. dos Anjos.
DPI - Disabled People International
GAPED - Gabinete de Apoio ao Estudante Deficiente da Universidade de Coimbra
GESTA - Grupo de Estudos Sociais e Tiflotécnicos
ICIDH - International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps
IDA - International Disability Alliance
INE - Instituto nacional de Estatística
IPSS - Instituição particular de Solidariedade Social
LCJD - Liga de Cegos João de Deus
LGBT - Lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros
MOCEP - Movimento para a Organização dos Cegos Portugueses
MUAC - Movimento de Unificação das Associações de Cegos
NFB - National Federation of the Blind
OMS - Organização Mundial de Saúde
ONCE - Organização Nacional dos Cegos de Espanha
ONG - Organização não Governamental
RI - Rehabilitation International
SNRIPD - Secretariado Nacional da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência
UPIAS - Union of the Physically Impaired Against Segregation
WBU - World Blind Union
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