Vingança Além do Túmulo
Assis Azevedo
Pelo Espírito João Maria
2007
Casa Editora
O Clarim
Índice
Capítulo I - Às vésperas do casamento 11
Capitulo II - Suicídio da noiva 18
Capítulo III - Exílio de Hugo 27
Capítulo IV - Carla no mundo espiritual 35
Capítulo V - Vingança 43
Capítulo VI - A mãe de Carla é internada 51
Capítulo VII - Albert à beira da loucura 59
Capítulo VIII - Hugo tenta esquecer a tragédia 68
Capítulo IX - Comentário sobre o suicídio 75
Capítulo X - Desespero no além 83
Capítulo XI - De volta ao passado 91
Capítulo XII - Hugo sonha com Carla 99
Capítulo XIII - Hugo e Viviane 107
Capítulo XIV - O Espiritismo 114
Capítulo XV - Perturbação de Carla 121
Capítulo XVI - Pai descobre porque a filha se suicidou
129
CapítuloXVII - Eu não morri! 137
Capítulo XVIII - Carla no cemitério 145
Capítulo XIX - Hugo estuda o Espiritismo 153
Capítulo XX - Hugo retorna à casa dos pais 161
Capítulo XXI - O psiquiatra 168
Capítulo XXII - Trama dos espíritos maléficos 176
Capítulo XXIII - Influência dos espíritos maus 183
Capítulo XXIV - O enviado do Senhor 191
Capítulo XXV - Recuperação de Albert 198
Capítulo XXVI - Porque aconteceu 204
Capítulo XXVII – Viviane 210
Capítulo XXVIII - Albert resolve buscar recursos 215
Capítulo XXIX - O sofrimento de Carla 223
Capítulo XXX - O verdadeiro amor 230
Capítulo XXXI - Albert desencarna 237
Capítulo XXXII - Carla nas zonas umbralinas 246
Capítulo XXXIII - Casa dos aflitos Jesus de Nazaré 253
Capítulo I
Às vésperas do casamento
O carro parou defronte a um portão blindado. Lentamente,
este se abria acionado por um pequeno controle, que
apareceu de repente na mão do motorista. Após o portão
deslizar sobre o trilho, o motorista dirigiu o carro sobre um
passadiço de concreto, ladeado por um formoso jardim, e o
estacionou na entrada de uma belíssima mansão. Enquanto
isso, se ouvia o tradicional barulho de ferro sobre ferro do
portão rodando novamente sobre o trilho, fechando-se para
o mundo e isolando a monumental residência erguida sob a
orientação de um perfeito artista da construção moderna.
Um rapaz abriu a porta do automóvel último modelo e saiu
correndo, passando pelo restante do jardim e por uma
passarela que se ligava a vários corredores. Ele continuou
correndo sem parar. Subiu uma escada de mármore de dois
em dois degraus, parando ofegante em frente de uma porta
que se encontrava fechada. Bateu de leve e ouviu alguém
falar em voz alta:
- Entre!
Hugo abriu a porta e encontrou um senhor com
aproximadamente sessenta e cinco anos de idade, branco,
cabelos lisos e brancos como algodão. Atrás de uma
escrivaninha e com óculos no rosto, o homem folheava
desinteressadamente um livro. O cômodo era o luxuoso
escritório privativo do dono daquela mansão.
- Papai! - gritou o rapaz, tentando controlar o desespero que
lhe ia na alma naquele momento. - Por que o senhor fez isso
comigo?
O genitor tirou os óculos e calmamente os colocou sobre a
escrivaninha. Ergueu a cabeça e, enquanto fechava o livro,
fuzilou o rapaz com seus olhos azuis, mostrando no fundo
deles um brilho cruel. Afastou um pouco a cadeira da mesa e
encarou diretamente os olhos do rapaz com um sorriso
irônico nos lábios finos, que demonstravam uma vontade
férrea misturada a uma frieza cadavérica.
O empresário, presidente de uma fábrica de carros de luxo
com filiais espalhadas pelo mundo inteiro, como se nada
tivesse acontecido para justificar o desespero do rapaz,
perguntou-lhe:
- O que aconteceu, meu filho?
O filho era alto, louro e tinha olhos azuis, talvez, herdados
dos pais que descendiam de europeus. A idade variava entre
os trinta e trinta e cinco anos. Era médico e diretor de um
dos maiores hospitais particulares da cidade, graças a seus
pais, principalmente à sua mãe, que lutou muito para que o
filho seguisse a sua vocação, mesmo contra a vontade do
marido, que desejava que o único herdeiro assumisse os
negócios da família.
Albert, pai de Hugo, homem de família tradicional e rica,
disse calmamente:
- Juro, meu filho, que não estou lhe entendendo.
O rapaz tirou um lenço do bolso do paletó e o levou ao
rosto, enxugando as lágrimas, que desciam sem sua
permissão.
Albert nada falou. Manteve-se calmo, enquanto brincava
com seus óculos e observava o filho, que continuava
tentando enxugar as lágrimas.
- O senhor gosta de me ver chorando, não é, pai? -
perguntou o rapaz entre soluços. - Sempre fui um fraco,
obedecendo cegamente todas as suas ordens, ou melhor,
seus caprichos de homem orgulhoso e acostumado a
mandar. Não é isso, senhor Albert?
Silêncio.
- Responda-me, pai!
Neste exato momento, uma mulher muito bela e elegante,
com biótipo de uma legítima italiana, entrou no escritório.
Era branca, tinha cabelos castanhos e curtos, olhos
amendoados e altura mediana. Sua beleza era tão radiante
que não era possível definir sua idade. Ao ver o médico
chorando correu para abraçá-lo.
- O que houve, meu filho?
- Pergunte ao seu marido!
A mulher encarou o marido, que se matinha impassível, e
perguntou-lhe:
- O que houve, Albert? Posso saber?
- Papai, por favor. Conte para a mamãe a canalhice que o
senhor fez. Albert levantou-se, fuzilando o filho com o
olhar de uma pessoa que perdera por completo o controle
dos nervos, aproximou-se e deu-lhe um tapa com as costas
da mão direita, deixando um pequeno corte feito pelo seu
anel no rosto de Hugo.
- Respeite-me, seu fedelho! - disse ele, com ódio.
Iolanda correu e ficou entre os dois homens, ordenando em
voz alta.
- Pare com isso, Albert!
- Então, controle a língua do seu filho!
O rapaz parou de chorar, levou a mão ao rosto e calou-se,
apertando os maxilares com tanta força, que qualquer pessoa
que se encontrasse no escritório poderia ouvir o ranger de
seus dentes.
- Maldito! - gritou o rapaz, demonstrando todo o desprezo
que sentia por aquele homem que lhe dera a vida. - Carla se
suicidou e levou consigo o nosso filho por sua culpa!
- Que história é essa, meu filho? - perguntou Iolanda
assustada. - Ontem à tarde ela esteve aqui, e passou um bom
tempo conversando com o seu pai. Até se despediu de mim
com um beijo quando foi embora. Não estou entendendo...
O rapaz voltou a chorar e tentou explicar tudo à sua mãe:
- Ela tomou uma forte dose de veneno letal, vindo a falecer
hoje, pela manhã.
O rapaz respirou profundamente e disse, olhando para o pai:
- Num último sopro de sua vida, ela ainda me disse: "Hugo,
jamais deixarei de amá-lo. Entretanto, odiarei o seu pai por
toda a eternidade".
Iolanda olhou para o marido, interrogando-o em silêncio.
Já sentado, Albert respondeu ao olhar interrogativo da
esposa:
- Não tenho nada a ver com a morte dessa moça.
O marido levantou-se e encaminhou-se para a porta de
saída, porém, antes de deixar o escritório, disse com ar de
enfado:
- Somente os covardes se suicidam. Isso prova que aquela
desclassificada não servia para ser nossa nora.
O homem passou a mão no terno, dando por encerrada a
conversa, e saiu batendo a porta.
Mãe e filho abraçaram-se e choraram.
- Onde está o corpo, meu filho?
- No IML.
- Tenha fé em Deus. Logo, você esquecerá essa moça.
- Mãe, eu não quero esquecer a Carla, entendeu? Jamais
esquecerei a única mulher que amei nesta maldita vida,
principalmente sabendo que ela levou consigo nosso filho.
Iolanda entendeu que seu filho sofria muito e não sabia o
que fazer para ajudá-lo.
Há momentos na vida em que ficamos totalmente
impotentes ante alguma adversidade que nos acontece, ou
melhor, não sabemos o que fazer para resolver o que não
tem solução.
- Como está a família dela?
- Inconsolável.
- Não entendo por que uma moça tão linda e cheia de vida
tomaria uma atitude dessas.
- Seu marido, o famoso Dr. Albert, sabe a resposta, dona
Iolanda - disse o filho, ironicamente, enquanto enxugava as
lágrimas, com o olhar perdido numa janela que se abria para
o belíssimo jardim.
- Meu filho, seu pai não tem nada a ver com isso.
- Então, por que ontem ela passou a tarde conversando com
o papai e antes de morrer disse-me que jamais o perdoaria?
Iolanda ficou em silêncio, sem saber o que responder, pois
pressentia que alguma coisa muito séria havia acontecido
entre o marido e a namorada do filho.
Carla era a filha caçula de uma família também rica, mas
considerada uma plebéia pelo pai de Hugo, pois não tinha
berço e seus pais eram "novos ricos" - como se diz por aí.
Uma hora depois, o casal estava sentado na sala privativa da
família quando Hugo apareceu com uma mochila nas costas.
Iolanda levantou-se surpresa e receosa abraçou o filho,
perguntando-lhe:
- Você vai viajar, Hugo?
Albert manteve o olhar num jornal que fingia ler e nada
falou. Com os olhos vermelhos de tanto chorar, Hugo
permaneceu imóvel, também em silêncio.
- Posso ajudá-lo, filho? - perguntou Iolanda.
Hugo não respondeu.
- Sua mãe lhe fez uma pergunta Hugo. Responda-lhe! -
ordenou o pai, aborrecido.
Hugo respirou profundamente e falou, tentando encontrar
uma calma que estava longe de sentir:
- Vou embora para sempre desta casa e da vida de vocês.
- Se sair por aquela porta sem minha autorização, esqueça
que é meu filho.
- Meu filho, durma um pouco e depois conversaremos. Não
tome uma decisão neste estado em que se encontra - disse-
lhe a mãe, fazendo um afago em sua cabeça loura.
Hugo nada falou, apenas girou os calcanhares e
encaminhou-se para a saída da mansão.
Iolanda correu e perguntou:
- Filho, você não vai levar seu carro?
Hugo respondeu sem se virar:
- Não possuo mais nada nesta vida. Adeus, mamãe.
- Pelo menos nos diga para onde vai.
Não recebeu resposta.
A mulher voltou furiosa para junto do marido e, num acesso
de raiva, tirou-lhe o jornal da mão e disse energicamente:
- Albert, escute-me, por favor!
O homem fitou a mulher com os seus olhos frios em
silêncio.
Iolanda sentou-se e começou a chorar, sentindo uma dor
indescritível no coração, por ver seu filho sair de casa sabe
Deus para onde. Entre lágrimas e soluços, ela perguntou:
- O que você disse para a Carla ontem, à tarde?
O todo poderoso, dono de mais da metade das ações da
fábrica de carros, levantou-se calmamente e respondeu em
voz baixa:
- Além de umas verdades, disse que ela não reunia atributos
para se casar com o nosso filho e ser nossa nora.
- Você sabia que ela estava grávida?
- Foi por isso mesmo que me adiantei e mandei chamá-la
para uma conversa, antes que fosse tarde demais.
- Você é um monstro!
- Não penso assim. Prometi a ela que a criança passaria a
morar nesta casa com todos os direitos, inclusive, levaria
nosso nome, contudo, não a aceitaríamos como nora,
porque não foi isso que sonhei para o Hugo.
Iolanda colocou as duas mãos no rosto e sem olhar para seu
marido, perguntou-lhe:
- Você sabe a extensão do mal que causamos ao nosso único
filho, humilhando a moça que ele amava? - perguntou a
mulher.
Albert sentou-se, cruzou as pernas e respondeu-lhe, de
braços cruzados:
- Isso não me interessa. Essa gentinha estava de olho na
fortuna e no nome que ia herdar quando o Hugo se casasse
com aquela moça.
- Você é um monstro!
Albert levantou-se novamente e começou a encaminhar-se
para a saída, fingindo não ouvir o que a esposa falava.
Iolanda também se levantou e acompanhou o marido.
- Vamos visitar o corpo da moça?
- Iolanda, deixe de pieguice! Quem se suicida é um pobre
coitado, fraco de caráter, e um inútil incapaz de viver neste
mundo. Entendeu, mulher? Vá sozinha e me deixe em paz!
- Ela estava esperando nosso neto - insistiu a mulher.
- Eu não tenho neto!
O homem foi se distanciando, enquanto Iolanda chamava o
motorista, aflita.
- Madame, a senhora me chamou?
- Sim. Vamos para a residência da namorada de Hugo. Você
sabe onde ela mora?
- O Dr. Hugo pediu-me para levá-la em casa algumas vezes.
- Pedro, você sabe me dizer qual o transporte que o Dr.
Hugo tomou?
- Um táxi.
- Obrigada. Vou retocar a maquiagem e dentro de alguns
minutos estarei pronta para irmos na casa de Carla.
- O que aconteceu com a Dra. Carla?
Iolanda baixou a cabeça, pensou e depois respondeu:
- Ela morreu, Pedro.
- Não é possível, patroa! A Dra. Carla não parecia doente.
Era muito alegre e cheia de vida.
- Pois morreu, meu caro Pedro.
- De que?
- Suicidou-se. Agora, deixe-me subir, senão vamos nos
atrasar.
O motorista ficou parado, em silêncio, talvez fazendo uma
oração simples como ele.
Capítulo II
Suicídio da noiva
Na véspera de sua morte, a Dra. Carla, namorada do Dr.
Hugo, foi convidada pelo Dr. Albert a comparecer em sua
mansão, para conversarem sobre algo importante. A bela
moça - morena clara, alta, com cabelos lisos e castanhos,
formada há dois anos em Medicina - terminava sua
especialização em Cirurgia Plástica e era residente no hos-
pital dirigido pelo namorado. A tarde, no dia marcado,
encontrava-se confortavelmente sentada numa poltrona do
escritório do pai de Hugo, sorridente e feliz. Ela amava de
todo o coração aquele rapaz bom e amigo, que prometera
casar-se com ela no mês seguinte, pois já não podia esconder
a gravidez de quase quatro meses.
Albert cumprimentou a moça com uma educação esmerada
e fez o possível para deixá-la à vontade. Sentou-se numa
cadeira próxima à moça e perguntou-lhe, com um sorriso
aparentemente despreocupado:
- Minha filha, eu posso saber de quantos meses você está
grávida?
- Vou completar quatro meses de gestação, Dr. Albert –
respondeu a moça exultante de alegria, pois, naquele
momento, achava que o pai do rapaz também estava alegre
por ser avô em breve.
Ninguém pode saber com precisão o que um homem pensa,
ou seja, o que realmente sente no exato momento em que
fala ou manifesta carinho, amor, dor, ódio ou desprezo,
enfim, tudo o que lhe vai ao coração quando entabula um
diálogo com o próximo.
- Você tem certeza que esta criança é meu neto? -
perguntou o pai de Hugo rindo, apontando para a barriga da
moça.
- O senhor me ofende ao fazer esta pergunta, Dr. Albert -
respondeu a moça também rindo, achando que o homem
brincava com ela.
Uma criada pediu licença e adentrou o escritório com uma
bandeja, oferecendo água, café e suco para os dois.
Albert tomou um pouco d'água e depois pôs café numa
xícara e o adoçou com duas gotas de adoçante artificial,
estendendo-a para a moça e perguntando:
- Quer mais uma gota de adoçante?
- Como o senhor sabe que não gosto de açúcar?
- Fácil! As mulheres têm medo de engordar, principalmente
quando estão grávidas.
- É verdade. Mas prefiro suco, se o senhor não se importar.
- Claro que não me importo. Fique à vontade. E dirigindo-se
para a empregada:
- Por favor, Margarida, sirva a doutora.
- A empregada serviu suco para Carla e café para o patrão,
deixando depois a bandeja numa pequena mesa.
Após tomar uma xícara de café, Albert levantou-se e foi até
a janela de seu espaçoso escritório, simulando observar o
tempo. Logo depois voltou e postou-se de pé, em frente à
moça.
A médica começou a perder a segurança e ficou com receio
de que o pai de Hugo quisesse lhe dizer algo mais sério.
- Carla, você é uma moça inteligente, mas não tanto para me
enganar.
A médica colocou o copo sobre uma pequena mesa.
Sentindo uma ligeira tontura, tentou se controlar e
perguntou:
- O que o senhor quer dizer com isso, Dr. Albert?
O homem sentou-se no braço de um sofá postado ao lado da
cadeira da moça, cruzou os braços e respondeu-lhe com a
maior naturalidade do mundo, sorrindo cinicamente:
- Você é uma pilantra, que deseja se casar com o meu filho
por causa da fortuna e do nome tradicional da nossa família.
A moça apertou os dentes, para não tremer, enquanto
apertava com força os braços da cadeira em que estava
sentada. Ficou por alguns minutos em estado de torpor, sem
saber o que falar. Sentiu pequenas gotículas de suor descer
pelo seu rosto, como se o tempo estivesse muito quente,
porém, agüentou firme para não perder os sentidos.
O homem continuou falando implacavelmente o que
pensava, conforme o seu orgulho de família privilegiada, rica
e influente na sociedade local e no mundo.
- Sendo assim, minha cara, perca a esperança de casar-se
com o meu filho, porque você jamais será nossa nora.
Quanto ao filho que está esperando, vou mandar o Hugo
trazê-lo para nossa casa, aonde terá o nosso nome e será
educado como um órfão de mãe, pois faremos com que ele
acredite mais tarde que você morreu após dar-lhe a vida.
Albert se levantou e disparou o golpe mortal, aproximando-
se calmamente mais um pouco da namorada do filho, como
se o que estava acontecendo fosse uma simples conversa:
- Diga quanto você quer para desaparecer da vida do meu
filho para sempre. Sei que mulheres como você sempre têm
um preço.
A médica tentou falar, todavia, não conseguiu balbuciar
nenhuma palavra. Encarou aquele homem e teve vontade de
torcer o pescoço dele, mas se controlou, pois sabia que isso
era impossível. Levantou-se e saiu do escritório correndo e
sem pedir licença. Passando pela sala, onde estava Iolanda,
cumprimentou-a rapidamente beijando-lhe o rosto; em
seguida correu em direção ao seu carro e partiu vacilante.
Sua vista estava embaçada, a cabeça doía e parecia que havia
inchado, ouvindo mil e um sons, que quase a deixavam
louca.
Chegou em casa, foi direto para seu quarto e deitou-se na
cama de bruços, dando toda vazão à sua dor, chorando e
soluçando. Naquele momento desejou morrer. Sumir para
sempre deste mundo. Não conseguiu fazer uma prece, pois
não era religiosa, como é comum nas pessoas jovens,
principalmente as que se dedicam à ciência.
Quando a humanidade se depara com algo adverso à sua
pretensão ou ante um problema qualquer que atravessa o seu
caminho, tirando-lhe a ilusão que construiu ao longo de
anos, o seu mundo acaba e com ele aparece o que todo
mundo chama de sofrimento, que causa danos inseparáveis
naqueles que não acreditam absolutamente em nada além de
suas convicções.
Carla ergueu-se cambaleante, sentindo um peso anormal
sobre o corpo, e com sacrifício desceu as escadas. Entrou no
carro novamente e começou a dirigir sem rumo certo, até
chegar a uma avenida que ficava à beira-mar, naquela cidade
abençoada por uma aquinhoada beleza natural.
Estacionou o veículo, abriu a porta e ficou com o olhar fixo
naquele mar, observando o céu se esconder nas ondas,
formando um gigantesco salão azul com um piso móvel de
diversas cores. "Acho que se eu começar a nadar agora,
alguém vai me ajudar a entrar naquele céu", pensou a moça.
O celular tocou, ela verificou o número da pessoa que estava
ligando e desligou. "É o Hugo. Coitado, não sabe o pai que
tem", comentou para si.
A noite chegava cobrindo o mundo com o seu manto
escuro, enquanto a cidade começava a iluminar-se aos
poucos, com sua luz artificial.
A moça fechou a porta do carro, ligou o motor e procurou a
direção de sua casa. O choro foi substituído por um imenso
vazio no seu coração, não mais conseguindo sentir dor ou
alegria. "Estou morta", pensou. Passou numa farmácia, tirou
da bolsa o seu talão de consultas e um pequeno carimbo com
sua assinatura, prescreveu o nome de um medicamento, em
seguida carimbou-o e o entregou ao atendente da farmácia.
Após receber o medicamento, pagou-o e guardou-o na bolsa,
dirigindo-se em seguida para sua residência. Chegando em
casa subiu diretamente para o seu quarto, que ficava na parte
superior da bela residência, e sentou-se na cama, ficando
com as mãos sobre a cabeça baixa por alguns minutos. Logo
depois tirou os sapatos brancos e ficou descalça.
- Filha! - sua mãe a chamava do lado de fora do quarto.
- Mãe, não quero falar com ninguém. Depois explico.
- O Hugo já telefonou várias vezes. O que digo para ele?
- Nada. Ou melhor, que estou doente e que amanhã cedo
nos veremos no hospital para conversarmos sobre a minha
viagem.
- Viagem? Você vai viajar, minha filha?
- Vou. Depois conversaremos, mãe. Agora, deixe-me só, por
favor.
- Nós a esperamos para jantar.
- Mãe, não quero jantar. Depois farei um lanche.
- Você precisa se alimentar. Cuidado com a criança, por
favor. Isabel, mãe de Carla, ficou preocupada.
- O que houve, Isabel? - perguntou o marido, que estava
lendo um jornal numa sala privativa. - Parece-me que você
está preocupada.
- A Carla não quer sair do quarto. Imagine que ela não quer
atender os telefonemas do namorado e nem jantar.
- Tenha paciência com ela. Você sabe muito bem que a
mulher fica enjoada quando está nesse estado. Lembra-se de
você, quando estava grávida?
- Ora, se me lembro! Acho que você tem razão.
- Então tenha calma.
- Estranho.
- O que é estranho?
- Ela falou que vai viajar. Por acaso você está sabendo de
alguma coisa?
- Não. Mas é assim mesmo: esse pessoal novo pensa
diferente de nós.
Carla andava pelo quarto sem parar. Sentava-se e apertava a
cabeça com as mãos, sentindo uma dor indescritível que se
irradiava para todo o corpo, às vezes, até sufocando-a e
deixando-a ansiosa. Ela foi até a janela do seu quarto e
observou durante alguns minutos as luzes do bairro onde
nascera e crescera. Sorriu quando se lembrou do dia em que
passou no vestibular de Medicina e chegara em casa toda
suja. "Como estava feliz, meu Deus", pensou.
Sentou-se novamente na cama, mas logo se levantou
inquieta. Foi até ao banheiro e abriu uma pequena farmácia,
que fizera para guardar os medicamentos que ganhava dos
representantes farmacêuticos -amostras grátis -, e ficou
examinando-a. Depois fechou o pequeno armário e
caminhou pelo quarto, começando a perder a lucidez e o
equilíbrio, comum às pessoas que estão atravessando sérios
problemas. Voltou ao banheiro e abriu novamente o
armário, pegando algumas caixinhas de comprimidos e, com
uma calma impressionante, retirou-os e colocou-os sobre a
cama. Em seguida abriu sua bolsa e retirou o medicamento
que comprara. Foi ao seu pequeno refrigerador e tirou uma
garrafa com água, que colocou em um copo. Lentamente foi
sorvendo os comprimidos com água, depois abriu o
medicamento que comprara na farmácia, fitou-o, colocou-o
num copo com água e o ingeriu de uma vez. Antes de
terminar essa macabra operação, ela começou a rir,
enquanto falava em voz baixa: "Vou para o inferno, seu
velho nojento, mas levo comigo o seu neto". E ria como
uma louca.
Carla deitou-se rindo, mas já praticamente sem voz, pois
sentia um frio esquisito e o estômago queimar, causando
uma dor insuportável. Correu para o banheiro, suspendeu a
tampa do aparelho sanitário e vomitou, enquanto comprimia
com as mãos o estômago e o frio se apoderava dela com mais
intensidade. Como médica, ela sabia que estava morrendo e
pensou: "Não posso ser covarde e pedir socorro; vou mostrar
àquele asno, quem é mais forte: ele ou essa filha do povo".
Isabel, que fora dormir preocupada com a filha, não
conseguia pregar os olhos. Quase ao amanhecer, levantou-se
sem fazer barulho e olhou para o quarto da filha, vendo luz.
"Graças a Deus, que ela está bem. Deve estar estudando",
pensou. "Mesmo assim vou levar um copo de leite para ela.
Pelo menos para alimentar o meu neto", disse ela
carinhosamente, em voz baixa.
Isabel preparou um copo de leite, biscoitos, suco e pão
assado, colocou tudo numa bandeja e subiu a escada que
terminava no quarto da filha. Bateu na porta e ninguém
falou, então resolveu abri-la, pois não estava trancada.
A porta abriu-se e apresentou um espetáculo inédito aos
olhos de Isabel.
Carla estava deitada de lado, encolhida com a mão na barriga
e com uma espuma amarelada saindo de sua boca. O lençol
da cama encontrava-se encharcado de sangue, pois abortara
a criança. Observava-se sobre a cama e no piso do quarto
algumas caixas vazias de um poderoso medicamento,
empregado no tratamento de perturbações psíquicas e dores,
e um pequeno frasco de um tipo de veneno doméstico usado
contra insetos. Um copo e uma garrafa vazia estavam
espalhados pelo chão.
Isabel soltou a bandeja, que fez um barulho macabro no
silêncio daquela madrugada fatídica. Levou a mão à boca e
soltou um grito com todas as forças, ecoando pela casa
inteira, talvez sendo levado pelo vento da madrugada,
revelando a dor daquela mãe que anunciava a morte da filha.
Em poucos minutos, seu irmão, os empregados e seu pai já
se encontravam no quarto. Com a cabeça da filha no colo,
chorando sem consolo, o pobre pai perguntava em voz alta:
- Meu Deus! O que fiz para o Senhor fazer isso comigo?
Passaram uns vinte minutos... Cada foi removida
imediatamente para o hospital onde trabalhava.
Hugo não saía de perto da namorada.
Logo, ligada a vários aparelhos, a moça abriu os olhos e
olhou para o namorado, que não falava e se limitava apenas a
chorar e a orar baixinho. Repetia uma oração qualquer que
aprendera com a sua mãe.
- Hugo, jamais deixarei de amá-lo. Mas odiarei seu pai, por
toda a eternidade.
Após falar essas palavras com dificuldade, sua cabeça pendeu
para um lado.
- Dr. Hugo, a Dra. Carla morreu! - disse um jovem médico.
- Não! - gritou o rapaz desesperado.
Fizemos tudo que estava ao nosso alcance, desde uma
lavagem estomacal, até os procedimentos legais de
desintoxicação. Infelizmente, nossa amiga estava
determinada a por um fim à sua vida - informou o médico. -
Ela pensou nos mínimos detalhes e não se apavorou, pois
não pediu socorro a tempo, deixando-se consumir
lentamente por uma poderosa mistura química.
Hugo levantou-se, pegou o seu carro e dirigiu
completamente descontrolado até a sua casa, pensando:
"Vou matar aquele velho prepotente, assassino do seu
próprio neto! Vou esganá-lo com as minhas próprias mãos".
Enquanto isso, do lado espiritual, Carla viu o próprio corpo
sendo levado para o IML e começou a chorar, pois não
conseguia ficar em pé. Sentia dores incapazes de serem
descritas por alguém, causadas pelo letal coquetel químico
que ingerira. Ela chorava com as mãos no abdômen e pedia
com voz pastosa: "Por favor, acudam-me! Estou morrendo!
Salvem pelo menos o meu bebê". Ninguém a ouvia. O corpo
dela já estava no necrotério sendo submetido à autópsia.
"Esse povo está ficando louco", pensava. Aproximou-se de
seu corpo, que estava sendo dissecado pelos legistas, e
comentou com um deles:
- Essa pobre moça se parece muito comigo.
Não ouviu resposta.
Algumas pessoas mal encaradas a observavam, entretanto,
ela gritava quando tentavam se aproximar:
- Não se aproximem, demônios! Nunca acreditei nessas
bobagens das igrejas! Vou chamar os seguranças do hospital
e mandar enxotá-los daqui!
- Agora, você é nossa. Fique calma - disse uma daquelas
pessoas com o aspecto horrível.
- Vamos conosco e deixe de bancar a orgulhosa. Chegou a
nossa vez, beleza - disse um homem com um olhar de
lascívia, parecendo o chefe daqueles bandidos.
- Não ousem se aproximar de mim! O meu noivo é o dono
de tudo isso e ele pode mandar prendê-los no momento que
desejar!
- Coitado dele, querida. Quem manda aqui, somos nós.
Entendeu? - disse uma moça com um ar de louca, fazendo
gestos obscenos.
Aos poucos, ainda muito fraca, Carla foi adormecendo
enquanto os bandidos do além caíram sobre ela, colocando a
boca em determinados locais daquele corpo espiritual, como
se estivessem se alimentando de algo.
- Pessoal, vamos aproveitar também aquele corpo apetitoso
que está sendo cortado.
Em questão de segundos, muitos espíritos, que ainda não
haviam sido recolhidos para as colônias espirituais,
cheiravam o corpo - forma como esses espíritos se
alimentam e fortalecem as energias vitais que ainda lhes
restam, pois ainda estão ligados ao mundo material.
Ao lado, uma equipe espiritual de socorristas do bem se
mantinha em silêncio.
- Irmão José, não iremos fazer nada? - perguntou um deles
ao espírito que parecia o chefe daquela equipe.
- Infelizmente, não. Pelo menos por enquanto. E vocês
sabem o porquê - respondeu o irmão José com lágrimas nos
olhos.
Todos da equipe baixaram a vista e começaram a fazer uma
prece.
Capítulo III
Exílio de Hugo
O ônibus rodava vencendo os vários quilômetros que
separavam os seus passageiros dos destinos escolhidos. Um
deles, um rapaz de boa aparência, estava sentado com a
cabeça recostada na janela. Ele não parava de chorar
baixinho e de enxugar o rosto com uma toalha que trazia
enrolada no pescoço. Enquanto fitava o asfalto que passava
rápido, vislumbrava sem muito interesse a paisagem que se
descortinava aos seus olhos. Ora surgia uma vegetação verde,
ora seca; ora pedregulhos, ora pequenas serras cortadas.
Todavia ele não se interessava muito pelas paisagens. Seus
pensamentos estavam voltados para alguém que estava
distante dali e não era esquecida por ele.
Após um dia e uma noite de viagem, um rapaz moreno que
se sentava ao lado dele, com cabelos castanhos escuros e
aparentando uma idade de trinta anos, perguntou-lhe:
- Amigo, desculpe-me incomodá-lo, mas depois de todo esse
tempo ao seu lado, fiquei curioso para saber o seu destino
final. Quem sabe podemos trocar informações, pois também
estou viajando para um lugar desconhecido por mim.
Hugo enxugou discretamente os olhos, voltou a cabeça para
o assento ao lado, onde o vizinho de viagem fitava-o com
um sorriso simpático, e falou pela primeira vez desde que
entrou naquele ônibus interestadual:
- Não sei.
- Meu nome é Júlio. E você? Como é conhecido? -
perguntou.
- Hugo.
- Bonito nome.
- Você conhece alguma pequena cidade que esteja
precisando de um médico? - perguntou Hugo sem encarar o
rapaz, depois de um longo silêncio sem ser interrompido
pelo colega de viagem.
Júlio pensou, passou a mão na cabeça como se estivesse
tentando se lembrar de algo para responder a pergunta do
rapaz, e depois informou, apontando para a rodovia federal:
- Nesse mesmo itinerário, tem uma cidadezinha ao lado da
rodovia que é muito simples, porém aconchegante. Seus
habitantes dedicam-se às pequenas lavouras, à criação de
gado bovino e suíno e ao comércio do que produzem. É
bem possível que o pessoal daquela cidade esteja precisando
de um médico.
- Você me avisa quando estivermos perto dela?
- Esse ônibus costuma parar numa pequena rodoviária,
situada ao lado de um posto de gasolina.
- Então, não se esqueça de me avisar quando chegarmos.
- Não esquecerei. Mas prepare-se, pois a próxima parada é a
sua.
Hugo passou a toalha no rosto, como se quisesse melhorar a
aparência e se preparar para descer do ônibus.
- Amigo, antes de você descer, posso lhe fazer uma
pergunta? - perguntou Júlio.
- Sim.
- Parece-me que você é médico. E pelos seus trajes, modo
de falar e educação, também acho que é rico - comentou
Júlio sorrindo. - Estou curioso para saber por que você quer
se esconder neste fim de mundo.
Hugo olhou para o amigo de viagem e pela primeira vez
apreciou a simpatia e a inteligência do rapaz, que conseguiu
penetrar no seu âmago e descobrir o que ia à sua alma.
- Coisas da vida - respondeu evasivamente.
Júlio ainda abriu a boca para falar algo, mas preferiu não
articular nenhuma palavra, pois sentiu que o rapaz não
saciaria sua curiosidade.
O ônibus parou numa pequena pensão de beira de estrada -
que também se fazia às vezes de rodoviária -, ao lado de um
posto de gasolina.
- Pessoal! - gritou o motorista. - Vamos permanecer vinte
minutos neste restaurante.
Hugo desceu com sua pequena mochila nas costas,
despediu-se de Júlio e encaminhou-se para o posto de
gasolina. Um frentista aproximou-se dele e perguntou-lhe:
- Deseja alguma coisa, patrão?
- Como chego ao centro desta cidade?
- Fácil, patrão! Gordo! - gritou o frentista.
Observando o vai-e-vem de veículos que transitavam na
rodovia, Hugo também viu se aproximar um rapaz baixo e
gordo, com a metade da barriga de fora que não podia ser
coberta pela camisa.
- O que aconteceu, Zé Amanso? - perguntou o Gordo. - Pelo
grito, parece que tem alguém morrendo!
- Pronto, chefe - disse o frentista batendo continência e
encarando o passageiro desconhecido. - O Gordo tem um
automóvel e pode levá-lo até lá.
Hugo olhou para o Gordo e perguntou sem preâmbulos:
- Amigo, você pode me levar até o centro da cidade?
O Gordo passou o palito que mastigava para o outro lado da
boca e respondeu com um sorriso que mais parecia uma
careta:
- São vinte reais, patrão.
- Vamos. Cadê o carro?
- Ali está - e apontou para um carro em péssimo estado de
conservação.
Hugo sorriu e rapidamente o comparou aos carros que
possuíra. Sim, esse é o termo certo, pois naquele momento
não tinha mais nem um calhambeque daqueles.
Entraram no carro e saíram da rodovia, desembocando
numa rua de barro misturado em alguns pontos com terra
batida. Aos solavancos e quase meia hora depois, o Gordo
falou para o médico, tirando a mão direita do volante e
apontando algumas casas que começavam a aparecer:
- Pronto, meu patrão! Estamos chegando na melhor cidade
deste país!
À proporção que o carro rodava, Hugo pôde ver que estava
numa pequena cidade do interior, com suas ruas assimétricas
e esburacadas, que desembocavam numa praça e de onde se
podia contemplar uma pequena igreja. Não passou
despercebido ao forasteiro que havia várias lojinhas ao redor
da igreja, formando o comércio local.
O médico meteu a mão no bolso, tirou algumas cédulas,
pagou o dono do carro e agradeceu. Quando ia se virando
para ir embora, perguntou:
- Moço, você sabe onde posso encontrar um hotel ou uma
pensão?
- Chefe, nesta cidade não há esses luxos.
- Obrigado.
- Um momento...
O Gordo passou a mão na cabeça, num gesto típico do
homem do campo, e perguntou:
- Você tem parentes por aqui?
- Não.
- Sendo assim, vou levá-lo para se hospedar na casa da
minha madrinha Viviane. Ela está com um quarto
desocupado.
Hugo nada falou e apenas acompanhou o Gordo. Este
atravessava uma rua, pulando umas poças de lama que
estavam no seu caminho.
Os dois homens chegaram numa casa de alvenaria pintada de
branco e com detalhes amarelo. Hugo observou que a casa
tinha um alpendre e um pequeno jardim que alegrava aquela
residência de interior.
- Madrinha Viviane! - gritou o Gordo.
- Já vai - respondeu alguém, com voz de mulher. - Vá
entrando, meu filho. Já vou atendê-lo.
Os homens entraram na casa e ficaram no alpendre. Hugo
olhou para o quintal e viu vários pés de manga, caju, jaca, e
uma plantação de feijão, milho e outras culturas. Notou
também que o terreno tinha um declive.
- Boa tarde.
Hugo voltou-se e viu uma senhora simples, aparentemente
com trinta e dois anos, bonita, branca, de altura mediana e
cabelos castanhos claros e lisos. Seu corpo era bem
distribuído e era sorridente e simpática.
Os rapazes responderam ao cumprimento de Viviane.
- O que você quer comigo, Gordo?
- Apresento-lhe um amigo que acabou de chegar da cidade
grande e pretende passar um tempo por aqui.
A bela mulher fitou os olhos do rapaz e estendeu-lhe a mão,
sentindo um grande bem-estar e uma saudade inexplicável.
Ela tentou disfarçar e cumprimentou o rapaz:
- Muito prazer em conhecê-lo, senhor.
A mulher passou a mão no cabelo, fazendo uma espécie de
coque, e comentou olhando de viés para o Gordo:
- Ainda não consegui entender o que você quer.
- Madrinha, sua casa é bastante grande e tenho certeza de
que a senhora tem um quarto desocupado.
- Sim. Tenho mesmo um quarto amplo desocupado. E daí?
- A senhora pode alugar esse quarto para o nosso amigo? -
Como todo mundo sabe, nesta porcaria de cidade não tem
um hotel ou uma pensão.
A mulher pensou, fitou o forasteiro com seus olhos verdes e
faiscantes e, com a sinceridade do povo simples do interior,
perguntou:
- O senhor veio visitar a nossa cidade ou comprar alguma
coisa?
- Nem uma coisa nem outra. Vim para ficar.
- O senhor aparenta ser um homem educado e rico. Não
entendo por que escolheu esse fim de mundo para morar.
Hugo ficou em silêncio. Ele olhou para o Gordo, que estava
distraído com um pequeno lago artificial, e falou em voz
alta: - Gordo!
- Sim, patrão?
- Vamos embora.
- Um momento, senhor...
- Hugo.
- Senhor Hugo - falou Viviane, fazendo um movimento
gracioso com a mão, como se estivesse com medo de algo -
Eu não disse que não havia um lugar para o senhor ficar,
pelo menos enquanto se arruma algo melhor.
Hugo e o Gordo se entreolharam.
- Isso quer dizer que a senhora vai me hospedar?
- Por enquanto. Por favor, entre e vou levá-lo ao quarto que
está desocupado.
O gordo despediu-se, colocando o seu carro à disposição do
novo amigo.
Hugo acompanhou Viviane e, chegando em uma grande
sala, dessas típicas de casas do interior, sentou-se na cadeira
indicada pela dona da residência.
- Senhor Hugo, eu não o conheço, e é por isso que desejo
saber algo de sua vida, para poder ficar tranqüila e hospedá-
lo em minha casa.
O rapaz não gostou da sinceridade da mulher e quase se
levantou para ir embora, pois não estava a fim de falar sobre
sua vida com ninguém.
Viviane notou que o rapaz não gostou da maneira sincera
que ela se expressara e apressou-se em se explicar:
- Senhor, sou viúva e tenho uma filha de dez anos. Além de
minha filha e meu irmão Jacó, também mora conosco uma
moça que me ajuda nos afazeres da casa.
A mulher fitou o homem e continuou:
- Senhor Hugo, não me interessa saber quem você é. Mas
como vou conceder-lhe um quarto em minha casa, talvez eu
tenha o direito de saber quem vai morar conosco, debaixo
do mesmo teto. Entendeu?
Hugo pensou e entendeu que a mulher estava com a razão.
Ele levantou-se e enxugou uma lágrima que teimava em
escorrer pela face. A mulher notou, mas se manteve
discreta.
- Senhora...
- Por favor, chame-me de Viviane. Somente Viviane, como
sou conhecida neste lugar.
- Viviane, eu estou fugindo.
A mulher ergueu-se demonstrando que estava bastante
preocupada com aquela revelação.
- Calma, Viviane. Eu estou fugindo de mim mesmo.
- Por quê?
- Há três dias perdi a mulher que mais amei nesta droga de
vida. Como não encontrei mais graça naquela maldita
cidade, resolvi sumir.
Hugo enxugou o rosto com a toalha que trazia no pescoço e
prosseguiu:
- Fui para o terminal rodoviário da cidade onde residia e
entrei no primeiro ônibus que pudesse me levar para bem
distante.
- Então veio para esta cidade?
Esta não era a minha intenção. Resolvi descer no meio da
viagem e vir para esta cidade por indicação de um
passageiro, que parece conhecer muito bem esse lugar.
- Entendo.
- Sou cardiologista e pretendo ficar por aqui, até o dia em
que Deus quiser - completou o rapaz.
- Hugo, você é rico?
- Minha família é rica, mas eu não tenho mais nada nesta
vida. Não pretendo voltar para casa e nem me interessa saber
qualquer notícia que me lembre o momento trágico que
vivi. Vou viver do pouco que ganhar nesta região, até que
um dia a Carla venha me buscar.
- Quem é Carla?
- Minha noiva.
"Coitado... É um caso de amor não correspondido", pensou
Viviane.
- Mas ela precisa saber onde você está morando, para poder
vir buscá-lo ou visitá-lo, sei lá - a mulher tentou descobrir
mais alguma coisa sobre aquela pessoa misteriosa.
Hugo sorriu.
- A Carla está morta.
Viviane baixou a cabeça e depois, sem fazer comentários,
convidou o rapaz a dirigirem-se ao fundo da vasta residência.
- Você me convenceu a hospedá-lo. Vamos conhecer o seu
quarto.
O quarto era espaçoso e ventilado, pois uma janela que se
abria para o alpendre recebia o vento das plantações ao redor
da casa. Tinha um banheiro privativo e uma pequena saleta,
espécie de um pequeno escritório.
- Fique à vontade, Dr. Hugo. Este é o melhor quarto da
minha casa. Era aqui que eu e o meu marido vivíamos,
quando ele ainda era vivo. Depois que o mataram, resolvi
mudar de quarto.
- Quanto vou pagar-lhe por todo este luxo? - perguntou o
médico, sentando-se na confortável cama.
- Depois conversaremos sobre isto. Apenas descanse e avise-
me quando estiver com fome, que farei algo para você
comer - disse a mulher fechando a porta.
Hugo tirou os sapatos e deitou-se na cama, fitando as telhas
do teto desforrado da casa.
Capítulo IV
Carla no mundo espiritual
Iolanda não escondia sua aflição. Seu nariz e olhos estavam
vermelhos de tanto chorar a falta do seu querido filho, que
há dias havia desaparecido sem deixar notícias para a família.
Não parava de andar pela casa e de perguntar aos
empregados se Hugo havia telefonado. Ora chorava, ora
tentava dormir à base de calmantes, e assim se passaram
alguns meses sem que recebesse qualquer notícia do único
filho que tivera.
Albert trancara-se num mutismo tão profundo, que passava
dias sem falar com ninguém, à exceção da diretoria,
empregados da fábrica e de outras pessoas ligadas aos seus
vários negócios.
Certa tarde a mulher entrou no escritório dele e sentou-se
num sofá posicionado perto da escrivaninha em que o
mesmo trabalhava, permanecendo em silêncio.
Após quase uma hora, Albert começou a ficar impaciente
com o silêncio irritante da esposa. Ele pôs os óculos sobre a
mesa, passou a mão no rosto e perguntou, olhando para
Iolanda com um ar incomodado:
- Quer falar algo, Iolanda?
- Não.
- Então, por favor, deixe-me trabalhar. Não preciso de
ninguém me vigiando.
A mulher levantou-se, aproximou-se da mesa do marido e
disse-lhe em voz baixa, mas segura:
- Assassino. Você é um assassino porque causou duas
mortes: a morte de Carla e a do seu neto. Além disso,
também é responsável pelo desaparecimento do nosso filho.
Albert encarou-a de cima a baixo. Seus olhos mudaram de
cor, talvez de ódio por estar sendo acusado pela própria
esposa do suicídio da médica grávida de seu neto e pelo
desaparecimento do filho.
- Iolanda, saia do meu escritório! - ordenou o marido
autoritário, em voz alta. - Vá com suas lamúrias idiotas para
outro lugar!
Em seguida, ergueu-se e num gesto brusco, porém seguro do
que fazia, segurou nos ombros da mulher e disse-lhe
olhando-a nos olhos:
- Não tenho culpa se aquela idiota da Carla foi fraca a ponto
de se suicidar e o louco do seu filho ter sumido de casa sem
deixar endereço. Espero que ele também tenha tido a
coragem de buscar a morte como consolo, pois este mundo
foi feito para homens como eu. Entendeu?
Albert dirigiu-se até a porta e a abriu, convidando a esposa a
se retirar do seu gabinete.
Iolanda encaminhou-se para a porta como uma sonâmbula,
como se estivesse hipnotizada, sem nada falar.
O homem voltou a sentar-se em sua escrivaninha.
Enquanto isso, na residência da família de Carla, uma grande
tristeza envolvera a casa desde o dia em que a médica
morrera.
Isabel, mãe de Carla, estava hospitalizada numa clínica de
repouso - um hospital para doentes mentais -, pois não
suportara perder a filha naquelas condições.
Edmundo, pai de Carla, também perdeu o gosto pelos
negócios. Se antes ele era um homem bem sucedido no
ramo de imóveis, depois da tragédia passou a beber além do
normal, tornando-se alcoólatra. Não ligava para mais nada,
até mesmo para a esposa, que ficava cada dia mais
desequilibrada. Quem tomava conta dos negócios era o filho
mais velho, entretanto o rapaz não tinha a vocação do pai, e
pouco a pouco a família começou a se desfazer de parte dos
seus bens para poder cobrir as dívidas que contraíra. O
descontrole abateu-se sobre a família de um modo geral.
Altas horas da noite, Edmundo chegou e entrou em casa
cantarolando uma música qualquer.
Augusto, filho mais velho do casal, viu o pai chegar e notou
que ele estava bêbado. Aproximou-se dele e abraçando-o,
tentou levá-lo para o quarto.
Quando sentiu o abraço do filho, Edmundo começou a
chorar e a soluçar enquanto falava, atropelando as palavras
por causa do efeito do álcool que ingerira:
- Meu filho, por favor, vá chamar sua irmã Carlinha. Diga
que estou esperando-a no jardim.
Augusto sentiu pena daquele homem forte, que vencera na
vida trabalhando duro e lutando para conseguir reunir um
considerável patrimônio, agora, totalmente comprometido
com os credores. Infelizmente, este homem se encontrava
ali, bêbado, fraco e precocemente envelhecido, pois não
suportara a perda da filha predileta, da qual tinha tanto
orgulho por ser médica.
- Pai, a Carla já não está conosco - disse-lhe o filho, também
sentindo a triste realidade.
- Onde ela está?
Augusto era um rapaz de trinta e dois anos, moreno, altura
mediana, cabelos pretos e lisos, educado e muito religioso.
Formara-se em Odontologia, mas deixara o consultório
entregue a um amigo, enquanto tentava ajudar a família a
sair daquele estado precário, principalmente, dos problemas
financeiros em que se encontravam.
- Pai, a Carla está em outro mundo. Um mundo que a
ciência não consegue explicar, pois ainda não reuniu provas
cabais de sua existência, e que está situado numa outra
dimensão.
Edmundo ergueu-se meio trôpego, fez um gesto com a mão
e falou com a língua enrolada:
- Filho, eu bebo e você é quem fica bêbado! Vou dormir
agora. Cuidado, senão daqui a pouco vou ser obrigado a
interná-lo junto com sua mãe.
Ele saiu cambaleante, gargalhando e dirigindo-se ao seu
quarto com dificuldade. O outro mundo ao qual seu filho se
referira era para ele uma piada.
- O Augusto realmente gosta muito da Carla. Essa é a única
explicação para essa loucura dele. Coitado, tão jovem! - disse
ao fechar a porta do quarto.
Augusto ficou sentado no banco do jardim, enquanto ouvia
seu pai rir e subir com passos incertos a escada para o quarto
dele.
- Acho que vou me cuidar, senão quem vai parar num
sanatório sou eu, principalmente depois que comecei a ler
aqueles livros esquisitos que o Ricardo me emprestou - disse
ele num murmúrio.
No dia seguinte, antes do almoço, Augusto esperava que o
pai acordasse para colocá-lo a par da situação dos negócios da
família.
Edmundo desceu do seu quarto com as mãos trêmulas, foi
até a geladeira e bebeu água. Olhou para o lado e viu o filho
encarando-o em silêncio. Não ligou e foi direto para uma
espécie de bar, que ficava na sala de visita. Pegou uma
garrafa, com um resto de bebida importada, e tomou-a toda
em um só gole. Depois de enxugar a boca, olhou para o filho
e se justificou:
- Isso é para rebater a ressaca - disse ao rapaz, que somente o
observava em silêncio.
Edmundo sentou-se num sofá com a garrafa na mão e
perguntou, sorrindo com ironia:
- Algum problema, doutor?
- Sim. E de difícil solução.
- Então diga logo. Tenho um encontro com alguns
companheiros. Sabe, filho, vou viver a minha vida e o resto
que se dane.
- Pai, estamos falidos - disse Augusto calmo e seguro.
- E você? O que está fazendo para resolver isso?
- Pai, eu sou dentista. Não tenho vocação para os negócios.
Tentei fazer alguma coisa, porém, não consegui.
- Quer dizer que estamos falidos?
- Exatamente. E talvez só nos reste algum dinheiro depois
que vendermos esta casa.
- Não acredito que após a morte da Carla, em poucos meses,
a situação esteja tão caótica assim.
- Verifiquei a contabilidade da imobiliária e dos outros
negócios ligados ao patrimônio da família e constatei que
esta situação vem se arrastando há mais de dois anos. O
senhor sempre conseguiu revertê-la, pois conhece muito
bem esse ramo de negócios e tem conhecidos e amigos nos
bancos.
- E por que você não conseguiu salvar as empresas?
- Porque não sou empresário, e quando tentei substituí-lo
por alguns dias, após a morte da minha irmã, não tive
competência suficiente para negociar as dívidas com os
credores e implementar novos negócios, como o senhor
sempre fez.
Edmundo, que já estava começando a ficar eufórico por
conta da bebida que ingerira ao acordar, pegou outra garrafa
e tomou outro gole, dizendo ironicamente:
- Pois, meu filho, isso não me interessa mais. Vocês que se
virem, porque eu não tenho mais alegria. Minha vida se
acabou quando sua irmã morreu e sua mãe se internou numa
clínica para doentes mentais.
- E o que faremos, papai?
- Não sei - respondeu o pai, abrindo a porta e saindo para
juntar-se aos amigos de vício.
Augusto ficou sentado, pensando: "Meu Deus, ilumine
minha mente! Preciso encontrar um meio de ajudar minha
família".
Enquanto isso, no mundo espiritual, o espírito Carla chorava
e se contorcia de dor, sentada numa cama próxima à mãe, na
clínica de repouso onde Isabel estava internada.
- Mamãe, por favor, ajude-me! Não agüento mais tanta dor!
Acho que vou enlouquecer ou morrer! Cadê o Hugo, que
não está ligando para mim, mamãe?
Em seu quarto na clínica, Isabel começou a gritar.
As enfermeiras correram apavoradas em direção aos gritos.
- Enfermeiras, por favor, ajudem minha filha! Ela está
deitada nessa cama ao lado, chorando e completamente
ensangüentada!
- Coitada da dona Isabel. Enlouqueceu mesmo - disse uma
delas.
- Tenho muita pena. Mas o que podemos fazer? - disse outra.
- Acho que agora, medicamento algum vai surtir efeito. Ela
enlouqueceu de vez - sentenciou a que parecia ser a
enfermeira-chefe.
O espírito Carla passou as mãos no baixo ventre e se
apavorou ao vê-las sujas de sangue. Logo começou a gritar,
em total estado de desequilíbrio e com as mãos na cabeça:
- Mãe, estou perdendo o meu filho! Estou sangrando muito,
mãe! Vou abortar!
Isabel se ergueu e sentou-se na mesma cama onde a filha
estava chorando e gritando de dor. Carinhosamente
começou a fazer-lhe um carinho e a embalá-la como fazia
quando ela era uma criança.
- Não chore, minha filha. A mamãe não vai abandoná-la.
Tenha fé em Deus, que você ficará boa.
Neste momento a porta se abriu e um médico,
provavelmente um psiquiatra, entrou no quarto. Ele
aproximou-se da mulher do rei dos imóveis e pediu com
calma e simpatia:
- Dona Isabel, por favor, vá para sua cama.
- Doutor, o senhor não está vendo que estou cuidando da
minha filha, que está bastante doente? - questionou Isabel,
fazendo gestos com as mãos, como se estivesse embalando
alguém. - O senhor deveria me ajudar a estancar essa
hemorragia dela.
- Vou ajudá-la, Dona Isabel. Mas agora, por favor, vá
descansar um pouco, enquanto cuido da sua filha.
Isabel se levantou e deitou-se na cama ao lado, porém, antes
falou para um ser invisível:
- Minha filha, o Dr. Jacinto vai cuidar de você. Tenha calma
e durma um pouco.
O médico fez um gesto com a cabeça para as enfermeiras e
autorizou a intervenção das mesmas.
Numa ação rápida e prática, as enfermeiras injetaram um
medicamento na paciente. Dentro de poucos minutos Isabel
dormia sob o efeito de uma alta dose de tranqüilizante.
Após medicarem a paciente, o médico e as enfermeiras
saíram do quarto. Eles comentavam entre si:
- Coitada da dona Isabel, doutor. Acho que ela enlouqueceu
mesmo - disse uma das enfermeiras.
- Concordo - disse a outra.
O médico caminhava pensativo e não fez nenhum
comentário. "Acho que a dona Isabel está precisando falar
urgentemente com alguém que entenda desse tal de
Espiritismo", pensou.
Edmundo voltou para casa somente à noite, em estado
lastimável e bêbado. Assim que entrou em casa, disse para a
empregada:
- Neuza, não vou jantar. Preciso dormir, pois estou bastante
cansado.
Ao subir para o quarto, o homem olhou para a ampla sala e
viu o espírito Carla encolhida no sofá, gemendo e falando
coisas que ele não entendia.
- Acho que hoje passei da conta. Bebi demais e estou vendo
até fantasmas - pensou em voz alta.
Ao chegar em seu quarto, deitou-se de qualquer maneira e,
quando olhou para o lado, ouviu a filha suplicar-lhe:
- Pai, ajude-me, por favor!
Edmundo pulou da cama, corno se não tivesse bebido uma
única dose de bebida, e disparou correndo escada abaixo,
abrindo a porta e sentando-se num banco do jardim.
- Neuza! - gritou Edmundo.
- Sim, patrão.
- O Augusto está em casa?
- Deve estar no quarto.
- Chame-o, por favor.
A empregada desapareceu por um corredor. Após alguns
minutos, Augusto encontrava-se sentado ao lado do pai no
jardim.
- O que houve, pai? - perguntou o rapaz. - Parece que viu
alma do outro mundo.
- Você adivinhou.
O pai contou o que viu e concluiu:
- Hoje, vou dormir por aqui. Não entro nessa casa nem
amarrado.
Augusto riu às gargalhadas.
- Por acaso contei alguma piada, meu filho?
- Não. Mas o senhor confirma o que estou lendo num livro
sobre uma tal de "Doutrina Espírita".
Edmundo olhou para o filho desconfiado e disse:
- Por hoje, não quero mais ouvir essas histórias.
- Ok, pai.
Capítulo V
Vingança
Um ano se passou desde a morte da Dra. Carla. Certa noite
um grito ecoou na mansão do empresário Albert.
Imediatamente os empregados correram em direção ao lugar
de onde havia partido o clamor, inclusive sua esposa que,
após o filho haver saído de casa, com destino ignorado,
dormia em quarto separado.
Bateram na porta do quarto do dono da mansão e em seguida
entraram.
- O que houve, Albert? - perguntou a esposa apreensiva. -
Você está bem?
O marido estava sentado na cama, molhado de suor, com os
olhos fechados e tapando os ouvidos com as mãos, num
verdadeiro estado de pânico.
Uma das empregadas correu, segurando um copo d'água nas
mãos trêmulas e olhos arregalados de medo e o entregou ao
patrão, esperando com esse gesto agradar aquele homem em
péssimo estado, mais parecendo um louco.
- Beba essa água, patrão.
Ao invés de pegar o copo com água, Albert deu um tapa na
mão da empregada, jogando o copo longe, que se quebrou e
molhou parte do colchão e do tapete. Repentinamente ele se
levantou e gritou:
- Seus inúteis! Saiam todos do meu quarto, imediatamente!
Os empregados abandonaram o quarto comentando o
ocorrido. Na residência corria um boato, entre eles, que o
patrão estava enlouquecendo, porque havia feito um pacto
com o demônio e não pagara a dívida.
O povo tem imaginação fértil, principalmente quando se
trata de inventar histórias a respeito de pessoas ricas e
famosas. Normalmente essas lendas nascem a partir da
crendice popular que envolvem tradições sociais e religiosas.
O padre da família havia sido chamado para expulsar o
"demônio" daquela casa, porém o exorcismo não deu
resultado, apesar do sacerdote ter recebido uma altíssima
quantia como benefício para sua igreja.
Trêmulo e com os olhos arregalados, Albert aproximou-se da
esposa, que continuava no aposento, e disse-lhe:
- Você está proibida de entrar nesse quarto. Entendeu?
Iolanda abriu a porta e saiu em silêncio, pensando: "O Albert
precisa urgentemente fazer um tratamento psiquiátrico".
Num canto do quarto, atrás de uma grossa cortina, o espírito
Carla sorria e chorava. Era ela que aparecia quase todos os
dias para Albert, em sonho, assustando-o a ponto dele
começar a perder o controle nervoso. "Maldito, sei que vou
morrer! Mas antes disso acontecer, transformarei sua vida
num inferno", prometia aquele espírito sofredor, escondido
atrás das cortinas para o seu desafeto não vê-lo, acreditando
que ainda estava vivo para o mundo material.
Após ficar sozinho, esfregando as mãos no pijama e
visivelmente nervoso, Albert começou a andar pelo quarto,
pensando: "Essa mulher maldita está me tirando o juízo! Que
ela vá para o inferno! Nunca me arrependi do que fiz,
porque tenho certeza que o meu filho iria cair no conto do
vigário, e com isso, nossa fortuna iria parar nas mãos daquela
gentinha".
Ao captar esse pensamento, sentada na cama, Carla começou
a gritar completamente descontrolada, chorando com as
mãos na cabeça. Seu maior sofrimento era causado pelo
estado de perturbação em que se encontrava, principalmente
por pensar que ainda estava viva.
- Maldito é você! Velho nojento, orgulhoso e avarento! Eu
amo o seu filho e não me interessa o seu dinheiro! Eu sou
médica e tenho coragem para trabalhar e viver com os frutos
do meu próprio suor!
Albert parecia assimilar o que o espírito falava, pois
respondia em voz baixa:
- Cadela! Você teve sorte, pois se não tivesse dado cabo à sua
própria vida, eu mesmo faria isso com as minhas mãos. Eu e
minha família não construímos um império, para vê-lo nas
mãos de pessoas desclassificadas e aventureiras como você e
sua família.
Carla correu e agarrou o pescoço do empresário, tentando
sufocá-lo com as mãos, enquanto dizia:
- Vou matá-lo, cão imundo!
Albert sentiu falta de ar e correu para janela, abrindo as
cortinas na esperança de respirar o ar da madrugada, porém
não conseguia, formando-se nesse momento uma perfeita
simbiose entre, ele e o espírito Carla.
Além de agarrar o pescoço do homem por trás, ela também
passou as pernas na cintura dele, em forma de alicate, como
se estivesse montada nele.
Albert sentiu um peso horrível nas costas e uma dor
insuportável no estômago, além de ficar perturbado, ansioso
e suar frio.
Já quase sem fala, o pai de Hugo entrou em pânico e gritou
com todas as forças de seus pulmões. O espírito repassava
para ele o mal-estar que sentia, inclusive, dando a impressão
que sujava o pijama dele, quando ela tentava estancar a
hemorragia e agarrava-se ao empresário com as mãos sujas.
A criadagem correu e encontrou o patrão de bruços e
desmaiado sobre o piso do quarto.
Prezado leitor, para o melhor entendimento desta obra,
solicitamos permissão para fazermos algumas elucidações a
respeito do que está acontecendo entre Albert e Carla no
campo extra-físico, à luz de uma Doutrina que apareceu no
século dezenove, publicada e divulgada pelo então professor
francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, discípulo de
Pestalozzi, atualmente cognominado de Allan Kardec, o
codificador da Doutrina Espírita.
Allan Kardec recebeu a missão de organizar e publicar,
posteriormente, as informações dos Espíritos Superiores que
elaboraram essa Doutrina, conhecida como Espiritismo, tão
incompreendida e ironizada pelas religiões e seitas existentes
no globo terrestre. Esta Doutrina é composta por cinco obras
básicas, todas escritas por Kardec, que cada dia mais fortalece
a certeza de que somos espíritos eternos.
Nas considerações gerais das questões cento e sessenta e
três, cento e sessenta e quatro e cento e sessenta e cinco,
intituladas "Perturbação Espiritual", de "O Livro dos
Espíritos" - uma das obras básicas do Espiritismo -, os
espíritos nos informam: "(...) Essa perturbação apresenta
circunstâncias particulares de acordo com o caráter dos
indivíduos e, principalmente, o gênero de morte. Nas
mortes violentas, por suicídio, suplício, acidente, apoplexia,
ferimentos, etc., o espírito fica surpreso, espantado e não
acredita estar morto. Sustenta essa idéia com insistência e
teimosia. Entretanto, vê, o seu corpo, sabe que é o seu e não
compreende que esteja separado dele (...)".
Era o que ocorria com Carla. Ela desencarnara há mais de
um ano; no entanto, ainda não havia entendido que passara
para o mundo espiritual. Outro ato infeliz era o fato dela ter
tirado a própria vida num momento de fraqueza, por não ter
suportado o peso de sua provação, que seria, talvez, vencer
as dificuldades que a impediriam de se casar com o homem
que amava. Ela imputou toda essa responsabilidade ao pai do
namorado, como é tão comum no espírito imperfeito e
moralmente atrasado, que transfere seus erros e
responsabilidades para alguém, como um meio de fuga ou
por covardia. Infelizmente, a nossa irmã Carla não foi
suficientemente forte para evitar tirar a própria existência e,
com isso, resguardar a vida de um ser inocente que a
escolhera como mãe.
Como resultado desse ato tresloucado, ela atentou contra as
leis de Deus, tirando o maior bem que ele pode nos dar - um
novo corpo -, para continuarmos com o nosso aprendizado.
Também esse ato infeliz interrompeu a existência de um
irmão que reencarnaria em breve.
Voltemos à mansão para saber o que está acontecendo com
o nosso Albert.
Albert abriu os olhos e viu o seu médico de confiança
sentado num confortável sofá ao lado.
- O que aconteceu, doutor? - perguntou o empresário,
sentando-se na cama abatido e pálido.
- Eu é que pergunto: O que houve, Dr. Albert?
Albert começou a andar no quarto como se procurasse algo.
Depois se sentou, passou as mãos na cabeça e falou com voz
trêmula:
- Artur, estou ficando louco.
O médico manteve-se calado, deixando o empresário à
vontade para falar o que quisesse.
Sonho diariamente com uma mulher diabólica que não me
deixa dormir, e agora, vejo-a em meu quarto até mesmo
quando estou acordado, como se fosse um fantasma. - Albert
suspirou e continuou. - Se continuar assim, sei que não vai
demorar muito para eu ser internado num manicômio ou
fazer uma loucura comigo.
- Que tipo de loucura? - perguntou o Dr. Artur preocupado
com o cliente.
- Morrer. Suicidar-me. Não agüento mais passar noites em
claro com medo de dormir, principalmente agora, que vejo
essa maldita mulher em estado de vigília.
Pensativo, o médico se ergueu e dirigiu-se a uma bandeja,
colocando água num copo. Sorvendo um pequeno gole do
líquido, voltou para perto do empresário e sentou-se ao lado
dele.
- Dr. Albert, lamento informá-lo que não entendo
absolutamente nada sobre problemas do sistema nervoso,
principalmente de distúrbios mentais. Mas vou indicá-lo a
um bom profissional da área.
- Você acha que estou ficando maluco?
- Não sei lhe responder, meu caro Dr. Albert.
- Por que, Artur? Você estudou Medicina e deve ter idéia
sobre qualquer doença.
O médico falou em voz baixa:
- Não acredito que a ciência tenha avançado tanto, a ponto
de entender certos mistérios que envolvem nossa mente.
- O que você quer dizer? - perguntou Albert, demonstrando
curiosidade pelo comentário do médico.
O médico ergueu-se, ficou de pé em frente ao seu paciente,
meteu as mãos no bolso da calça e fez um ar pensativo.
- Meu caro Dr. Albert, minha especialização médica não é
psiquiatria, porém, tenho lido bastante sobre esse assunto, e
sinceramente, não encontro nenhuma explicação plausível
para as enfermidades mentais.
- Por favor continue, doutor.
- A ciência tem progredido bastante na descoberta de
medicamentos paliativos – anti-depressivos, calmantes e
outros - que conseguem melhorar bastante o estado daqueles
que sofrem alguma alteração no quadro clínico mental.
- Ainda não consegui entender suas ilações, doutor. O que o
senhor quer me dizer?
- Nada. Esqueça. Vou pedir para que o meu amigo o procure
ainda hoje.
O médico escreveu algo num receituário e o entregou ao Dr.
Albert e, com o ar constrangido, despediu-se e foi embora,
deixando o seu cliente meio desconfiado.
Enquanto os homens conversavam, o espírito se encontrava
sentado atrás da cortina, com as costas na parede e com as
mãos no ventre, gritando e chorando de dor. "Meu filho, a
mamãe não vai lhe abandonar! O miserável do seu avô vai
pagar muito caro pelo mal que nos fez", pensava.
Albert deitou-se e começou a cochilar quando fechou os
olhos. Ele viu Carla sentada perto de sua cama, gritando e
contorcendo-se de dor. A moça estava um trapo,
descabelada e com um olhar de louca, soltando pela boca
uma baba amarela e uma espuma esbranquiçada.
O homem assustou-se e abriu os olhos imediatamente.
Saltou da cama e saiu correndo pelos corredores da mansão,
em pleno dia, antes das dez horas.
Iolanda, que estava sentada em seu pequeno escritório,
verificando alguns documentos que lhe pertenciam, viu a
porta se abrir de repente e o marido entrar gritando:
- Iolanda, ajude-me! Essa louca quer me matar!
- De quem você está falando, Albert? - perguntou a mulher
assustada.
- Desse demônio da Carla!
- O que ela lhe fez?
- Quando eu tentava dormir um pouco, após a saída do Dr.
Artur, a vi num estado horrível, parecendo que tinha vindo
do inferno só para atanazar a minha vida.
Iolanda ficou calada.
Albert não conseguia ficar quieto.
-Tome o medicamento que o médico lhe receitou.
- Já tomei, mas não fez efeito nenhum, pois continuo nesse
estado.
A esposa pediu ao marido para sentar-se um pouco. Ela o
abraçou pelas costas e fez um carinho em sua cabeça,
enquanto orava. Iolanda era uma mulher religiosa, ainda que
por conveniência; todavia, acreditava em Deus e tinha um
coração muito bom. Era querida pelos empregados e não
poupava esforços para ajudar aqueles que lhe pediam.
Aos poucos o marido foi se acalmando. Logo ele se levantou
e saiu do escritório da mulher em silêncio.
- Agora, tente dormir um pouco - pediu a esposa. - Não
esqueça de fazer uma oração, pedindo a Deus por essa
criatura sofredora. Quem sabe assim, você fica curado.
Albert fitou a esposa e falou mais calmo:
- Iolanda, eu quero que essa desgraçada vá para o inferno e
fique por lá.
- Albert, pense nos ensinamentos que Jesus Cristo nos
deixou em Seu Evangelho.
- Não conheço Esse tal de Jesus e nem me interessa saber
quem Ele é. Meu dinheiro é minha religião, entendeu?
Após essas últimas palavras, ainda de pijama, o marido
deixou o escritório da mulher, desceu os degraus da mansão
e começou a andar pelo jardim, provocando medo e
compaixão em seus criados.
O jardineiro olhou para o patrão meio desconfiado e
automaticamente fez o sinal da cruz, falando baixinho:
- Vá para as profundezas do inferno, satanás!
Uma moça que limpava as escadas começou a tremer de
medo e correu para o escritório da patroa esbaforida:
- Patroa, quero as minhas contas! Não vou mais trabalhar
nesta casa!
Iolanda sorriu com a ignorância daquele povo simples, que
no fundo tinha alguma razão.
- Maria, tenha paciência. Depois conversaremos sobre isso.
- Não demore muito, patroa. Resolvi mesmo ir embora.
- Ok. Agora, acalme-se, por favor.
Capítulo VI
A mãe de Carla é internada
No passado, a bela mansão que abrigava a clínica de repouso
onde a mãe de Carla estava internada havia sido a residência
de uma família rica e tradicional. A suntuosa habitação foi
adquirida por um grupo empresarial e transformada numa
clínica de recuperação para pessoas com problemas mentais,
que tivessem recursos suficientes para pagar os altos custos
do tratamento. Era uma clínica bastante ampla, com
requintes de luxo, que mais se assemelhava a um hotel para
turistas, pois naquela casa nada lembrava um hospital, a
começar pelos dormitórios, compostos por luxuosas suítes,
com uma ou duas camas. Os médicos, enfermeiras,
farmacêuticos e outros especialistas da área de saúde
vestiam-se como pessoas normais, sem aparentar que
pertenciam aos quadros de funcionários da clínica.
Numa ampla e aconchegante sala de espera, Edmundo
aguardava sua vez para poder visitar a esposa Isabel e a
oportunidade de falar com o Dr. Jacinto, que lhe enviara um
recado dizendo que desejava falar com ele. O pai de Carla
estava sóbrio naquela tarde de domingo, porque não queria
causar uma má impressão ao médico.
- Sr. Edmundo, pode entrar - uma enfermeira bonita, bem
vestida e elegante o chamou em voz baixa. - Sua esposa o
espera no pátio.
Edmundo caminhou até o final do corredor e adentrou uma
porta que se abria para um pequeno pátio muito arejado e
fresco - devido às plantas que ornamentavam o ambiente -,
onde os pacientes relaxavam e faziam suas pequenas
caminhadas. De longe ele avistou uma pessoa que
identificou imediatamente como sendo a sua esposa.
Alguns minutos depois, ambos se abraçaram, enquanto
Isabel chorava e falava coisas desconexas.
- Acalme-se, Isabel. Estou aqui, e nada vai lhe acontecer.
- Edmundo, por favor, leve-me para longe deste lugar. Eu
não estou maluca.
- Sente-se e vamos conversar, minha querida. Sei que você
não está louca, mas precisa repousar para aprender a lidar
com o episódio que levou nossa filha à morte - disse o
marido sem muita convicção, tentando acalmar a esposa,
que aparentemente estava com muito medo de algo.
- Todo mundo me trata como louca, depois que comecei a
ver a nossa filha sofrendo, gritando e pedindo ajuda.
- Você já me contou essas histórias várias vezes, Isabel.
- Então, o que você acha? - perguntou a esposa com voz
arrastada, em virtude dos medicamentos prescritos que a
mantinham sedada.
Edmundo começava a perder a paciência com a esposa. Não
agüentava vê-la sofrer daquela maneira sem poder fazer
absolutamente nada para ajudá-la. Ele também estava quase
ficando louco, pois a pressão dos problemas, principalmente
nos negócios, que iam de mal a pior, deixavam toda aquela
situação insuportável.
- Calma, calma.
- Sei que você também não acredita em mim. Senti isso, na
última vez que veio me visitar. - disse a mulher chorando. -
Já faz mais de um ano que estou internada e todos pensam
que estou piorando e que o meu caso não tem mais solução.
Nesse exato momento, aproximou-se um homem de óculos,
vestindo calça social e uma camisa azul - com um pequeno
detalhe em alto relevo no bolso -, muito simpático e
sorridente, estendendo a mão para o marido de Isabel.
- Muito prazer em revê-lo, senhor Edmundo.
O marido de Isabel se levantou e estendeu a mão ao médico,
correspondendo ao cumprimento dele.
- O senhor quer falar comigo, Dr. Jacinto?
- Quero. Após visitar sua esposa, procure-me no consultório
que fica no final daquele corredor - disse o médico,
apontando o lugar onde deveriam se encontrar.
Ao término da visita, Edmundo abraçou a esposa e a beijou,
despedindo-se e prometendo que logo voltaria para
conversar com mais calma sobre aqueles problemas
apresentados por ela, como se ele quisesse injetar nela um
otimismo que estava longe de sentir.
Após alguns minutos, Edmundo e o médico conversavam
sobre coisas triviais, sentados em confortáveis poltronas,
num pequeno consultório da clínica.
- Edmundo, o que você acha do estado de saúde de sua
esposa? - perguntou o médico, mudando o assunto de
surpresa.
- Ora, doutor! Nas últimas vezes que vim visitar minha
mulher, o senhor disse-me que ela havia piorado, porque via
a filha gritando e chorando deitada na cama ao lado dela.
Agora, o senhor me faz essa pergunta? Por direito, quem
deveria fazê-la seria eu.
O médico fitou o seu interlocutor, pensou como se estivesse
procurando palavras adequadas para continuar aquele diálogo
e disse-lhe:
- É verdade. O senhor tem razão.
O Dr. Jacinto ergueu-se, passou a mão na cabeça, tentando
encontrar uma maneira cordial, que não causasse um
impacto negativo, para abordar o assunto que desejava tratar
com o seu convidado. Sentou numa cadeira simples, mais
perto do marido da Isabel, e à queima roupa perguntou em
voz baixa:
- Meu caro Edmundo, você conhece uma religião
denominada Espiritismo?
- Já ouvi falar. Inclusive, meu filho anda lendo uns livros
estranhos e falando que devo me cuidar, para não ficar louco
como a mãe dele. Acho que ele também precisa de um
tratamento.
O Dr. Jacinto ficou em estado de alerta, após ouvir esse
comentário. Tentou dissimular o interesse que sentiu
naquele momento, mormente em saber quais livros o filho
de Edmundo estava lendo.
- O senhor sabe o nome desses livros estranhos?
Edmundo pensou, como se estivesse querendo se lembrar
do nome dos livros, depois fitou o médico e respondeu meio
vacilante:
- Lembro-me que ele fala sempre num tal de "O Livro dos
Espíritos" e outros, como um "O Evangelho Segundo o
Espiritismo". Livro desse pessoal que é médium. Enfim,
coisas de doido mesmo, doutor.
O Dr. Jacinto começou a rir, enquanto se erguia e sentava-se
em sua cadeira atrás da mesa.
- Falei alguma coisa engraçada, doutor?
- Você fala de uma maneira, como se o seu filho estivesse
precisando de um tratamento psiquiátrico só porque está
lendo esses livros.
- E não estou certo? - perguntou Edmundo fazendo um
gesto com as mãos, enquanto aparecia no rosto um trejeito
que indicava ironia.
- Não, você não está certo. Estamos falando de uma doutrina
chamada "Doutrina Espírita".
- É esse o nome certo, doutor. Exatamente esse aí. Imagine
estudar uma "doutrina de espíritos"? Isso é coisa de quem
está maluco.
Edmundo levantou-se e estendeu a mão para o médico,
despedindo-se. Mas antes que o homem deixasse a sala, o
médico perguntou:
- Por que o seu filho começou a falar com você sobre esses
livros?
- Sei lá. Um momento... - pensou o marido de Isabel. - Foi
depois que contei para ele que vi a alma de minha filha duas
vezes, uma na sala e outra em meu quarto.
- Eu imaginei isso - disse o médico satisfeito - Sente-se,
Edmundo, por favor, e ouça o motivo de tê-lo chamado para
essa conversa.
Edmundo, que já estava querendo ir embora para começar a
beber, falou impaciente:
- Deixe para outra vez, doutor. Agora, estou com pressa.
Tenho alguns compromissos urgentes para resolver.
Ao se voltar para ir embora, Edmundo ouviu o médico falar:
- É você quem está precisando ser internado para fazer um
sério tratamento.
- Eu? - encarando o médico, o marido de Isabel perguntou
surpreso, apontando para si.
- Sim. Você mesmo.
- O senhor está brincando comigo?
- Estou falando sério, meu amigo.
Edmundo sentou-se e ficou calado, aliás, ambos se calaram.
- Por que o senhor acha que estou precisando de um
tratamento, doutor? - perguntou Edmundo, rompendo o
silêncio que lhe provocava um grande mal-estar.
- Porque se a sua mulher, após ver a filha doente e gritando
de dor no quarto dela, piorou seu quadro clínico, você, que
também a viu por duas vezes, também deveria estar
internado nesta clínica ou num manicômio qualquer.
- O meu caso é diferente.
- Não. É igual - afirmou o médico com um gesto de cabeça. -
Você não viu a sua filha também?
- Vi.
- Tem certeza?
- É... Tenho.
- Então, por que a sua esposa está internada e o senhor não?
-perguntou o médico.
Edmundo ficou pensando.
- Acho que o senhor quer me dizer algo importante, doutor
-comentou Edmundo.
O médico se calou, enquanto Edmundo se irritava com o
silêncio do médico.
- Eu já vi a sua filha sentada no corredor deste hospital,
chorando e gritando com as mãos no ventre.
- O quê? - espantou-se o pai de Carla.
- Sim, senhor. Eu vi a sua filha.
- Não é possível! Ela está morta! - afirmou Edmundo.
- Aí é que você se engana. Ela está viva, como nós. A
diferença é que nós estamos visíveis, por causa deste corpo
temporário que abriga nosso espírito, e ela está no mundo
invisível - o mundo espiritual.
Edmundo empalideceu instantaneamente. Seu coração
acelerou e estava com dificuldades para respirar, mas assim
que conseguiu se controlar, chegou mais perto do médico e
perguntou com a voz quase inaudível:
- Doutor, o senhor tem alguma bebida bem forte?
- Bebida alcoólica, o senhor quer dizer?
- Sim.
- Não. Quer dizer... Um momento, por favor. O médico fez
um gesto com a mão e saiu da sala falando consigo mesmo:
- Não posso perder a oportunidade de conseguir a ajuda do
Edmundo para curar sua esposa.
Após alguns minutos o Dr. Jacinto voltou com uma garrafa
envolta num papel. "Tenho que prender o Edmundo por
mais alguns minutos", pensava o médico.
- Consegui uma garrafa de um bom vinho, próprio para
determinadas ocasiões - disse o médico sorrindo, enquanto
estendia ao seu convidado um copo. - Aceita uma dose?
- Aceito, com prazer - disse Edmundo pegando a garrafa,
despejando o seu conteúdo num copo plástico e bebendo-o
de uma vez.
O médico observava o visitante com ar de satisfação, pois
sabia que naquele dia havia conseguido um grande amigo,
mesmo infringindo as normas da clínica.
Edmundo olhou para o médico, como se estivesse pedindo
permissão para tomar outro gole, e novamente encheu o
copo e o entornou. Sentindo-se mais à vontade, sentou-se e
disse, passando a língua nos lábios.
- Agora, estou com os nervos aprumados. Pode falar, doutor.
O médico sorriu: "Ele é um alcoólatra, coitado", pensou.
- Somos imortais, meu caro Edmundo.
Já sentindo o efeito do vinho, Edmundo começou a soltar a
língua.
- O senhor está com a mesma conversa do meu filho
Augusto.
- É ele que lê esses livros estranhos?
- Sim. O senhor acredita nisso?
- Claro. Foi por isso que mandei chamá-lo. Para acharmos
uma maneira de curar a dona Isabel.
- Como?
- Aconselhando-o que a leve a um centro espírita.
Edmundo deu um pulo e falou sem aquela timidez de antes:
- Levar a Isabel num centro de macumba? De jeito nenhum!
- Calma, Edmundo! Estou falando de um centro espírita bem
orientado, para que ela possa falar com alguém que entenda
da Doutrina e possa informá-la a respeito dessa faculdade
que nós temos: eu, você e ela.
- Não entendi.
- A faculdade que algumas pessoas têm de ver coisas do
outro mundo.
- O que o meu filho Augusto chama de "mediunidade"?
- Exatamente. Você é um bom aluno.
- Não coloque coisas na minha cabeça. Dizem por aí que os
psiquiatras são malucos.
- Você acha?
- Prestando bem atenção, acho que o senhor é meio doido.
Edmundo pegou a garrafa e virou o restante do vinho na
boca, dispensando o copo. Olhou para o médico e disse, já
com a voz vacilante:
- É. Parece que o senhor tem razão. O meu filho falou que
quem vê espíritos tem uma tal de mediunidade chamada
de...
- Vidência - completou o médico.
- Exatamente. Essa tal de vidência. Mas, sabe como é que é,
dizem que esse pessoal é gente maluca mesmo.
O médico começou a rir, porque viu que o marido de sua
paciente começava a ficar tonto.
- Por que o senhor está rindo?
- Por hoje, já chega. Depois marcaremos um encontro e
conversaremos sóbrios.
- O senhor quer dizer que estou bêbado? - perguntou
Edmundo ofendido, como todo bêbado.
- Não disse isso. A verdade é que tenho uns compromissos
urgentes para resolver.
- Ah! Está certo. Vou embora, doutor.
O médico acompanhou Edmundo até a porta de saída da
clínica e talvez ambos selaram, com um aperto de mão, uma
parceria importante para a resolução do problema de saúde
de Isabel, e quem sabe, também de sua filha desencarnada.
Capítulo VII
Albert à beira da loucura
Albert aproveitava aquele momento, em que não sofria a
influência do espírito Carla, para dormir, recostado num
canto do jardim e ainda vestido de pijama. Passados alguns
instantes, um empregado se aproximou dele com o medo
estampado em seus olhos arregalados.
- Dr. Albert - chamou o empregado em voz baixa, tentando
não aborrecer o patrão.
- Fale - respondeu-lhe secamente o empresário.
- Tem um médico na sala de visitas que deseja falar com o
senhor.
- Deve ser outro médico incompetente que veio me ver -
comentou, enquanto levantava-se e se encaminhava para o
quarto - Acompanhe o médico aos meus aposentos.
- Sim, senhor.
Albert arrumou no encosto da cabeceira da cama alguns
travesseiros com capas de cetim e recheados de um material
macio, recostou-se e esperou o médico indicado pelo Dr.
Artur, seu médico de confiança.
Alguém bateu de leve na porta do quarto do empresário e
ouviu uma ríspida permissão:
- Entre!
A porta se abriu e o médico pôde ver aquele homem de
aspecto autoritário, prepotente e orgulhoso sentado na cama,
encostado nos vários travesseiros que forravam a cabeceira
do leito. Observou o semblante dele e pensou: "Esse cidadão
está precisando urgentemente de um tratamento, senão, vai
enlouquecer de uma vez".
- O senhor é o médico indicado pelo Dr. Artur?
- Sim. Meu nome é Maurício. Sou doutor em Psiquiatria,
com várias especializações em Psicanálise nos Estados
Unidos e na França - respondeu o médico, aproximando-se
cautelosamente do leito e estendendo a mão para aquele
homem com ar de dono do mundo.
Após os cumprimentos e apresentações, Albert apontou
com o queixo um sofá ao lado.
- Sente-se, doutor - disse ele, como se fosse uma ordem.
Em poucos minutos o empresário do ramo de automóveis
narrou o que estava acontecendo consigo nos últimos meses,
principalmente o abalo que vinha sofrendo com toda aquela
situação.
O médico apenas escutava em silêncio e fazia algumas
anotações. Após a narração do empresário, o Dr. Maurício
levantou-se e se aproximou de Albert, examinando-o com os
instrumentos que retirava de sua maleta. Assim que concluiu
sua inspeção, ele voltou a sentar-se pensativo, limitando-se a
fitar o doente.
Impaciente, Albert lhe perguntou autoritário:
- Então, Dr. Maurício, o que o senhor acha do meu caso?
O médico escreveu algo num receituário e destacou a folha
aonde havia prescritos alguns exames. Depois repetiu o
mesmo processo em outro tipo de receituário e se
aproximou novamente do empresário. Tentando ser
educado, mesmo não tendo simpatizado com aquele
homem, entregou a ele as receitas e repassou as informações
que estavam contidas nelas.
- Pronto, Dr. Albert. Por favor, faça esses exames e compre
esses medicamentos. Tome um comprimido três vezes ao
dia.
O médico fechou a maleta e disse-lhe em pé, junto ao leito
do homem:
- Agora, tudo que podemos fazer é esperar pelos resultados
dos exames. Todavia, posso adiantar, pela minha experiência
na área, que o senhor está gozando da mais perfeita saúde
mental.
O Dr. Maurício não esperou resposta, despedindo-se e
deixando o quarto imediatamente.
Albert ficou pensando: "Esse médico não gostou de mim.
Mas não me interessa. Vai fazer o que eu quero, porque
estou pagando, e muito caro. A porcaria de uma simples
consulta em domicílio custou-me uma fortuna".
Certa tarde, na sua residência, o pai de Carla estava deitado,
ainda sóbrio, pensando na conversa que tivera com o Dr.
Jacinto. De repente, o homem levantou-se de um salto,
desceu correndo os degraus da escada que terminava na sala
de visitas e gritou:
- Augusto!
- O Dr. Augusto está estudando no quarto - informou uma
empregada.
Edmundo correu para o quarto do filho e entrou sem bater,
pedindo desculpas por aquele gesto indiscreto.
- Está desculpado, pai. O que aconteceu desta vez?
Edmundo sentou-se ofegante e contou tudo que ouvira do
Dr. Jacinto, por ocasião da visita que fizera à esposa.
Augusto deu continuidade ao trabalho que realizava no
computador, aborrecendo o pai, que logo perguntou:
- Meu filho, você prestou atenção ao que eu acabei de falar?
Augusto tirou os óculos de grau e girou na cadeira, ficando
de frente para o seu pai. O rapaz falou sorrindo:
- O senhor não descobriu e nem está me falando nada de
novo.
- Não entendi, Augusto!
- Papai, a mamãe não está mentalmente doente. Já expliquei
tudo o que o senhor ouviu do Dr. Jacinto, mas "santo de casa
não obra milagre".
Edmundo passou a mão na cabeça e admitiu que o filho
estava com a razão.
- Então, o que vamos fazer?
- Espere o Dr. Jacinto telefonar para sabermos o que ele tem
em mente e só depois pensaremos numa maneira de
resolver esse problema da mamãe e, quem sabe, o seu
também.
- O meu? - perguntou o pai espantando, apontando para o
seu peito com o dedo polegar. - Sua mãe adoece e sou eu
quem fica doido? Muito engraçado isso!
- Talvez tenha cura para a mamãe, porque tudo indica que o
problema dela é somente espiritual, como falou o Dr.
Jacinto, mas o seu caso é diferente; trata-se de uma
enfermidade, pai.
- Continuo sem entender o que você está querendo insinuar!
-redargüiu o pai aborrecido.
- Se o senhor continuar bebendo desse jeito, não tenho
dúvida alguma que vai parar num manicômio do governo,
encharcado de droga, pois nem dinheiro temos mais para
pagar uma boa clínica.
Edmundo baixou a cabeça e levantou-se pensativo e com
medo do que o filho falara. Antes de sair, perguntou:
- E os negócios como vão?
- Já vendi mais da metade do patrimônio para pagar os
credores e estou tentando negociar o resto da dívida. Caso
eu não consiga negociá-la, vamos ter que vender os dois
prédios, a fazenda e todos os terrenos. Resumindo: estou
muito otimista de que no final de tudo fiquemos pelo menos
com esta casa, que o senhor construiu com tanto sacrifício.
Edmundo saiu: "Ele tem razão. Se eu não parar de beber, vou
cair mesmo em um hospício de pobres", pensou.
No dia seguinte, na mansão do pai de Hugo, o Dr. Maurício
se encontrava sentado no mesmo sofá do quarto do
empresário, com os resultados dos exames na mão,
verificando minuciosamente o que havia de errado com o
seu paciente. Após esse minucioso exame, colocou o
resultado dos exames sob uma pequena mesa e retirou os
óculos. Olhando para Albert, disse-lhe peremptoriamente:
- O senhor não está mentalmente doente. Aliás, sua saúde
mental é melhor do que a minha neste momento.
O médico levantou-se e estendeu a mão para o homem,
despedindo-se, quando ouviu Albert perguntar:
- Quer dizer que não estou ficando maluco?
- Exatamente. Inclusive, me enganei quando o vi pela
primeira vez, assim aqui cheguei. Acho estranho, mas a
verdade é que o senhor é um homem sadio de corpo e
mente.
- E como se explica tudo o que venho sentindo? Ora, chego
até a ver alma de outro mundo!
O médico sentou-se novamente e estendeu a mão para uma
mesinha ao lado, colocando café numa xícara, que foi
adoçado e sorvido calmamente, como se fosse um ritual.
Albert estava à beira de um colapso nervoso, vendo a calma
e a tranqüilidade daquele psiquiatra.
- Sou um médico e cientista nesse campo - disse-lhe o
médico de chofre e apontando para a cabeça do empresário.
- Tudo o que a ciência me ensinou concede-me o direito de
dizer que o senhor é um homem mentalmente saudável.
O médico fitou o empresário e sentenciou:
- Se eu fosse desonesto ou um pilantra, poderia inventar
várias doenças para o senhor, com a finalidade de extorqui-
lo, porém não preciso disso.
O Dr. Maurício levantou-se novamente e falou entre dentes,
já se voltando para sair do quarto:
- Não consigo entender o que está acontecendo com o
senhor...
- Falou alguma coisa, doutor? - perguntou Albert.
- Esqueça, Dr. Albert - disse o Dr. Maurício em voz alta,
saindo em seguida do seu quarto.
- O quê? - perguntou o suposto doente. - Volte aqui, seu
médico de meia tigela!
O Dr. Maurício já ia longe, caminhando apressado, como se
estivesse fugindo de algo.
Albert levantou-se e gritou a plenos pulmões:
- Iolanda!
Em poucos segundos a mulher estava ao lado dele,
perguntando preocupada:
- O que houve, Albert? Parece que está ficando maluco de
vez!
- Isso não são horas para brincar com coisas sérias!
- Então, fale o que houve!
- Esse doutorzinho disse na minha cara que sou um homem
fisicamente e mentalmente saudável. Só faltou me
aconselhar a ir a um pai-de-santo para resolver meu
problema de saúde!
A mulher começou a rir.
- Por que está rindo? - perguntou o marido. - Por acaso
contei alguma piada?
- Se o médico disse que sua saúde está boa, então, o que
vamos fazer? - perguntou a mulher. - Quanto a esse negócio
de pai-de-santo, ao qual você se referiu, achei engraçado,
porque todo mundo, inclusive a criadagem, só fala nisso.
- Não quero saber a opinião dessa gente ignorante! Agora,
por favor, deixe-me só. Já estou bem e amanhã cedo irei para
a fábrica.
A mulher fitou-o sorrindo e saiu do quarto. "Coitado, vai
sofrer tanto. Ele nem desconfia, mas é muito mais ignorante
do que essas criaturas que tratamos como criados", pensou.
Albert estava mais otimista e realmente não sentia mais
nada, a não ser o orgulho que o tornava doente,
principalmente no trato com seus empregados. Ninguém era
melhor do que ele. Somente o que ele falava tinha valore
crédito.
À noite, quase adormecendo, viu Carla sentada ao seu lado
na cama, gritando impropérios:
- Seu velho assassino! Pensou que ia ficar assim? Deixei
aquele colega de profissão examiná-lo, só para falar no
ouvido dele que você não é doente, e sim, um sujeito mau.
Fui eu que o fiz ir embora, antes de convencê-lo a matá-lo.
Albert tentava gritar, mas não podia. Ele estava tendo um
pesadelo, ou seja, mesmo num estado que ainda não é o de
sonolência, seu espírito entorpecido libertou-se de suas
amarras, podendo ver e ouvir o espírito Carla sem conseguir
reagir.
O espírito Carla continuava doente. Chorando e gritando de
dor, aparentava o pior aspecto que um ser humano podia
apresentar. Suja, descabelada e com os olhos arregalados
semelhantes aos dos animais, ainda tinha as mãos
ensangüentadas, sempre levando-as ao baixo ventre, de onde
se esvaia numa hemorragia incessante.
Albert tentava levantar-se, mas não podia, e assim ficou por
alguns minutos, debatendo-se naquele sonho aflitivo, até
que conseguiu gritar.
A criadagem correu no meio da noite, junto com a esposa do
dono da casa, e entraram no quarto de Albert, deparando-se
com um quadro caótico. Ele esmurrava o ar, como se
brigasse com um ser invisível.
Ao presenciar o estado do marido, sem saber que atitude
tomar, Iolanda correu e sentou-se na cama procurando
acalmá-lo, fazendo um carinho em seus cabelos.
- Calma, Albert. Tenha fé em Deus, que tudo vai passar.
- Peça para esse demônio me deixar em paz, senão vou
mandar matá-la de verdade!
- De quem você está falando? - perguntou a esposa.
- Dessa infame! Dessa vigarista que tentou nos roubar e que
terminou sendo a responsável pelo desaparecimento do
Hugo!
- Patrão, por favor, seja mais claro: de quem o senhor está
falando? - perguntou um dos empregados.
- Dessa maldita Carla!
Ao ouvirem o nome de uma pessoa que já havia morrido, os
empregados começaram a correr pelos corredores e
voltaram para os seus quartos. Uns se benziam e outros
tremiam de medo, mas todos faziam o sinal da cruz.
A humanidade tem a intuição de que existem outros mundos
além desse em que vivemos, mas ninguém quer ver ou ouvir
em falar em espíritos que vivem no mundo invisível.
O homem que havia feito a pergunta era moreno claro e
tinha cabelos lisos. De altura mediana, aparentava ter mais
ou menos trinta anos, e demonstrava no porte e nos gestos
uma certa elegância.
Ele trabalhava naquela mansão como secretário do patrão,
mas não morava lá, porém, naquela noite, com todos os
problemas dos negócios da família, resolveu dormir no
quarto de hóspede.
- Que a sua alma descanse em paz, Dra. Carla - falou o
secretário do Dr. Albert.
Já calmo, Albert olhou para o secretário e perguntou meio
desconfiado:
- Edvaldo, você conhecia a Carla?
- Claro. Inclusive, quando eu ia ao hospital dirigido pelo Dr.
Hugo, era a Dra. Carla que sempre me atendia. Lembro-me
que era uma moça muito bonita e educada. Foi uma pena ter
desencarnado tão jovem, e principalmente, daquela maneira
drástica.
- Desencarnado? - perguntou surpreso o patrão.
- Sim. Desencarnado.
- O que significa esse termo?
- Esse termo é usado pelos adeptos da minha religião.
- Qual a sua religião, Edvaldo? - perguntou Iolanda, que até
então se mantinha em silêncio.
- Sou espírita.
- O quê?! Espírita?! - disse o patrão surpreso. - Ponha-se
daqui para fora, seu macumbeiro! Depois passe no meu
escritório para acertamos suas contas!
- Calma, Albert - pediu a esposa.
- Você ainda me pede para ficar calmo, com uma pessoa que
eu pensava ser um bom profissional e que é formado em
Administração de Empresas?
- E o que tem a ver minha formação acadêmica com a
religião que professo? - perguntou Edvaldo.
- Fora! - gritou o patrão.
Iolanda fez um sinal e o rapaz saiu cabisbaixo.
- Coitado! Como esse homem é ignorante! Achava que essas
pessoas ricas, principalmente essas metidas a nobres, fossem
informadas em todas as áreas do conhecimento humano -
pensava o rapaz em voz alta, ao sair do quarto.
Após a saída de Edvaldo, Iolanda falou com naturalidade,
evitando ao máximo irritar o marido, que já estava
desequilibrado.
- Eu acredito na religião do Edvaldo.
- Você também! Ponha-se para fora do meu quarto, sua
cascavel! A mulher de um homem como eu, não pode
pensar como essa gente sem classificação!
Iolanda foi saindo do quarto e, ao abrir a porta, voltou-se
para o marido e falou sorrindo:
- Precisamos mesmo de um bom pai-de-santo, como
ironizou você, quando o Dr. Maurício disse que sua saúde
era excelente.
- Fora, sua traidora! - gritou o marido, jogando um
travesseiro na esposa.
Num canto do quarto, Carla chorava, ria e gritava ao mesmo
tempo, sentindo-se feliz com o sofrimento do homem.
- Mais um pouco e vou fazer com que ele seja internado para
sempre num hospício - dizia ela envolvida em pensamentos
vingativos.
- Viu, meu filho, como o seu avô está com medo? - passando
a mão na barriga, perguntou ao espírito que achava carregar
em seu ventre.
Capítulo VIII
Hugo tenta esquecer a tragédia
Passou um ano e três meses após a tragédia que se abateu
sobre o casal Hugo e Carla.
No pequeno posto de saúde de uma cidadezinha perdida no
interior do país, um rapaz louro, de pele branca tostada pelo
sol, educado e muito servidor, atendia várias pessoas
humildes, principalmente crianças e idosos, que, pelos
olhares que lhes dirigiam, tinham uma verdadeira adoração
por ele.
Num pequeno consultório, o Dr. Hugo atendia com muito
carinho e desvelo uma mocinha com aproximadamente
treze anos, de aspecto pobre e doentio. A menina era
magérrima e estava pálida e trêmula, demonstrando extrema
fraqueza ao ser amparada por uma senhora, que, pelos
cuidados e tratamento íntimo, só poderia ser sua mãe.
- Leninha, você vai ficar boa. Mas é preciso que tenha fé em
Deus, porque sem a autorização Dele, nós não podemos
fazer absolutamente nada - disse Hugo com a simplicidade
dos humildes.
- Doutor, eu rezo todos os dias - disse a mocinha com
tuberculose, provocada pelo excesso de trabalho na rocinha
da família e, principalmente, pela falta de recursos para se
fazer uma boa alimentação.
- Por favor, Dona Josefa, não se esqueça de trazê-la aqui,
diariamente, para tomar essas injeções, durante o período
prescrito na receita. Tenha cuidado com a nossa menina. Ela
precisa de muito repouso e uma boa alimentação.
- Não vou esquecer, doutor. A saúde de minha filha é muito
importante para nós.
- Vou ajudá-la, arranjando esses medicamentos com os
amigos. Quanto à alimentação, deixe comigo, pois vou
mandar para sua casa algumas provisões necessárias à
recuperação dela.
O médico ergueu-se e abraçou a mocinha e a mãe com
doçura nos gestos, conduzindo-as até à porta de saída.
- Que Deus o abençoe, doutor - disse Josefa com lágrimas
nos olhos, agradecendo àquela alma boa que apareceu por lá
havia mais de um ano.
Mais ou menos às treze horas, Viviane trouxe uma marmita
que continha o almoço do médico, além de uma garrafa com
café e outra com suco.
- Hugo, está na hora de parar um pouco para almoçar - disse
com carinho na voz e sorrindo, a bela e simpática amiga e
dona da casa onde o médico residia.
- Não se preocupe. Ainda não estou com fome.
- Você vai se alimentar agora mesmo, e só depois volta a
atender. Se adoecer, quem vai ajudar todo esse povo que está
na frente do posto de saúde, doutor?
- Então, aguarde um momento, certo?
Quando o Dr. Hugo chegou àquela pequena cidade, foi
informado que não havia clínico - nem nos municípios e
povoados adjacentes - porque o antigo médico havia
morrido e não fora substituído. Imediatamente ele procurou
o prefeito e se ofereceu para substituir o cargo vago no posto
de saúde.
- Dr. Hugo, pertencemos a uma comunidade pobre,
composta de pequenos agricultores e criadores, sem muitos
recursos para manter um médico, principalmente um vindo
da cidade grande.
O prefeito era um homem ainda jovem, moreno e com
cabelos cortados tipo escovinha. Além disso, era criador de
gado e o homem mais rico daquela região, segundo os
padrões das redondezas.
Após a resposta do prefeito, Hugo, que havia simpatizado
com o administrador daquela cidade, disse-lhe, entregando
um diploma de médico:
- Prefeito Marcondes, eu sou pobre e estou me oferecendo
para assumir a vaga do médico que faleceu, pensando num
emprego para sobreviver e ajudar essa comunidade que me
acolheu no momento em que eu mais precisava.
O prefeito ajeitou-se na cadeira e encarou o médico com um
sorriso simpático, pois havia se estabelecido uma empatia
mútua entre eles. Ele disse:
- Continue, doutor.
Senhor, deixe-me trabalhar e ajudar sua comunidade, os
habitantes desta cidade e dos lugares adjacentes.
O prefeito fitou aquele homem de traços finos. Olhou de
soslaio para as mãos do médico e observou que eram mãos
de um homem que jamais havia conhecido o trabalho duro
do campo: "Quem será esse homem? É muito educado e fino
e tem traços de uma pessoa rica", pensou.
- Mesmo assim, qual o seu preço? - perguntou o executivo
da cidade. - Aviso que a nossa prefeitura não tem verba.
Hugo ficou pensativo por alguns minutos, depois respondeu
com calma e educação.
- Que não me façam perguntas sobre o meu passado.
O prefeito ficou em silêncio e perguntou, tentando não ferir
o homem desconhecido:
- O senhor tem dívida com a Justiça?
- Não. Quanto a esse detalhe, fique tranqüilo: nada devo à
Justiça.
O prefeito levantou-se e aproximou-se do médico,
estendendo-lhe a mão.
- A vaga é sua, Dr. Hugo.
Os dois homens se cumprimentaram e ambos serviram-se do
líquido da garrafa posta sobre uma bandeja.
- À sua função como médico da cidade, Dr. Hugo - disse o
prefeito, levantando o copo com vinho e brindando ao
acordo com o novo médico.
- À sua consideração, por ter me aceitado - brincou o
médico, demonstrando felicidade por ter sido admitido
naquela abençoada cidade.
A partir daquela data Hugo arregaçou as mangas e se
entregou de corpo e alma ao trabalho. Durante os dias da
semana clinicava naquele pequeno posto de saúde, passando
a ser reconhecido por sua competência. À noite dedicava-se
a uma escola de alfabetização para todas as idades,
principalmente para os adultos que não tiveram condições
de freqüentar regularmente um colégio. Sempre que podia,
também ajudava Viviane e o irmão a plantar e a cuidar dos
poucos animais que possuíam. Embora a dona da
propriedade reclamasse dessa ajuda, o médico dizia que
aquele trabalho servia para pagar as despesas dele, porque o
pouco que recebia da prefeitura mal dava para comprar o
essencial que necessitava para sobreviver, e o restante era
utilizado para auxiliar os mais pobres da redondeza.
A casa de Viviane se transformou na residência mais
conhecida dos arredores, porque o povo sempre procurava o
Dr. Hugo com pequenos presentes - animais, cereais,
verduras, frutas e outros - ou simplesmente para conversar
com o bondoso médico.
Após quase um ano desde que o médico se hospedara em
sua casa, numa certa noite de lua cheia de um sábado,
Viviane o viu sentado numa cadeira no alpendre e na
penumbra. Ela se aproximou temerosa em invadir a
privacidade do rapaz e logo notou que ele estava chorando,
embora tentasse disfarçar.
Silenciosamente a moça sentou-se numa cadeira ao lado e
ficou meditando na situação daquele rapaz, evitando puxar
conversa para não atrapalhar o seu estado, pois lhe doía o
coração ver aquela criatura que lhe era muito cara sofrer
daquela maneira.
- Estou incomodando, Hugo?
- Não. Fique à vontade.
Um silêncio mortal se abateu entre os dois. Era possível se
ouvir qualquer tipo de barulho da mata que rodeava a cidade.
A mulher ergueu-se com elegância e entrou em casa,
voltando depois com duas xícaras de café. Entregou uma das
xícaras ao médico e ficou com a outra, sentando-se
novamente na mesma cadeira, em silêncio.
- Viviane, você sentia muita dor e falta do Antônio, quando
ele morreu? - perguntou o médico de surpresa, enxugando o
rosto com um lenço.
A mulher tomou um gole de café. Pensou um pouco, fitando
a lua que ia se escondendo atrás de uma pequena montanha
distante, e respondeu com a voz calma:
- Um pouco. Eu não amava o meu marido. Gostava, porém,
não o amava. Mas sim, senti sua morte, principalmente a
falta de um companheiro, pois o Antônio era um homem
muito bom.
Hugo calou-se por alguns momentos, enquanto tomava seu
café.
- Nunca pensou em se casar novamente?
A mulher pensou, fez um ar de surpresa, e respondeu
sorrindo:
- Não.
- Por quê? Não gostou da experiência de ser casada?
Viviane riu, levantou-se e pegou a xícara do médico, e
dirigiu-se para a entrada da residência sem responder a
pergunta do amigo.
- Um momento. Volto logo - avisou antes de entrar em casa.
Minutos depois, a viúva encontrava-se sentada no mesmo
lugar, ainda pensativa.
Como um verdadeiro cavalheiro, Hugo esperava a resposta
sem ser indiscreto.
- Fui feliz enquanto estava casada com o Antônio - disse ela
rompendo aquele silêncio. - Ele fazia todos os meus gostos.
Era responsável, cumpridor de suas obrigações, além de ser
um bom pai, que amava com loucura a nossa filha.
O médico manteve-se quieto, sem fazer perguntas e
evitando assim, interromper sua anfitriã.
- Quando mataram meu marido, senti uma dor atroz dentro
do meu peito. Dias depois fiquei sabendo que o Antônio
havia surrado o seu assassino numa cidade próxima à nossa,
por uma pequena bobagem - disse a mulher suspirando,
talvez porque não desejava se lembrar do passado. - Naquele
momento descobri que eu não sentia nada pelo meu marido
- falo de amor -, a não ser uma amizade de criança. Acho
que eu gostava dele, porém, nunca o amei de verdade -
concluiu.
- Você quer dizer que se amasse o Antônio, o fato dele ter
surrado uma pessoa não iria fazer diferença?
- Exatamente, meu caro. Quem ama realmente, não pensa
em si, pois não há espaço no coração para outra pessoa, a
não ser a pessoa amada - respondeu a mulher. - Se eu amasse
o Antônio, não seria uma pequena bobagem dessa que
abriria os meus olhos. Entendeu, doutor?
- Entendi.
Ambos ficaram em silêncio. Hugo olhou de soslaio para
aquela mulher nativa da região e pôde ver o quanto ela era
bonita, de corpo esbelto e bem distribuído, esculpido pela
luta do dia-a-dia no campo. Notou ainda que ela tinha uma
certa educação e polidez em seus gestos e palavras. "Se essa
mulher recebesse um tratamento de beleza, dessas que as
mulheres das grandes cidades fazem, ela se transformaria em
uma rainha", pensou.
- Hugo, você nunca me contou o que o fez deixar a vida na
cidade. Sei apenas que sua família é rica e que sua noiva
morreu.
O médico levantou-se de surpresa e começou a caminhar
pelo alpendre, como se tivesse sido picado por um inseto.
Viviane notou que ele se sentiu incomodado, pois segundos
depois tirou o lenço do bolso e enxugou o rosto, como se
estivesse transpirando.
Hugo sentou-se em sua cadeira de cabeça baixa e começou a
falar com a voz vacilante.
- Eu era noivo da mulher mais bonita e inteligente que já
conheci nesta vida. Ela era médica e se especializou em
Cirurgia Plástica, trabalhando nessa área até o dia de sua
morte, quando se suicidou.
O médico narrou sua história, até o dia em que chegou
naquela cidade, com a finalidade de esquecer esse passado
que estava mais vivo do que nunca.
Após ouvir aquela triste história, Viviane passou as mãos nos
olhos, tentando enxugar as lágrimas que desciam pelo seu
belo rosto, independentemente de sua vontade. "Meu Deus,
como este homem sofreu e tem sofrido até agora", pensou.
"O que será que posso fazer para ajudá-lo a carregar esse
fardo tão pesado?" Passou automaticamente as mãos nos
cabelos, ajeitando-os num gesto feminino.
- Será que a Carla era realmente meu verdadeiro amor? -
perguntou o rapaz fitando o vazio da noite.
- Não sei. Esta pergunta somente você sabe responder -
respondeu a mulher sorrindo e tentando deixar o rapaz mais
relaxado.
- E você? Nunca amou?
A moça não respondeu, simplesmente riu, com sua maneira
simpática e educada.
Hugo não insistiu.
A partir daquela data, Viviane começou a cuidar mais do seu
hóspede, principalmente da saúde dele. Agora ela entendia
porque o médico não parava de trabalhar. Era para esquecer
aquele passado repleto de dor. Quantas vezes ela se levantara
à noite e procurara escutar atrás da porta do quarto dele,
com medo de que ele fizesse uma bobagem qualquer, e o
ouvia chorar baixinho. Ela também chorava, porque como
mulher tinha uma alma sensível e podia imaginar o que se
passava naquele coração tão sofrido.
A vida naquela cidade seguiu seu rumo e o Dr. Hugo passou
a ser mais adorado que os santos de devoção daquelas
pessoas simples, honestas e trabalhadoras.
Voluntariamente, o Gordo tomou-se o fiel segurança do Dr.
Hugo. Ninguém conseguia falar com o médico, sem antes
falar com ele, que deixara de trabalhar no carro velho para
ajudar o médico no posto de saúde.
"Alma boa e caridosa, esse rapaz", pensava o médico, quando
o Gordo entrou em seu consultório dizendo:
- Doutor, eu já dispensei o pessoal que faltava para ser
atendido. Avisei que agora, só amanhã.
- Ok amigo.
Capítulo IX
Comentário sobre o suicídio
Na mansão de Albert o martírio prosseguia. Ele já não
conseguia dormir, mesmo com o auxílio de tranqüilizantes
fortíssimos. Andava pelos corredores falando sozinho e
gesticulava como se conversasse com alguém.
- Malditos, vou mandar matar todos vocês! Não brinquem
comigo! Sou rico, poderoso e capaz de acabar com a raça de
todos aqueles com os quais não simpatizo, entenderam? -
dizia ele furioso.
Iolanda fizera de tudo, chegando até a mandar rezar uma
missa na mansão, porém, de nada adiantou.
À noite, Albert costumava gritar e sair correndo pelo jardim
da imensa casa, assombrando os poucos empregados que
ainda restavam na mansão, talvez por apreço à patroa,
mulher que respeitavam e aprenderam a amar como a uma
pessoa da família.
Os enfermeiros que se alternavam, dia e noite,
acompanhavam os passos do empresário como verdadeiras
sombras, para evitarem que o mesmo cometesse alguma
loucura. Quando Albert ficava muito agitado e agressivo,
aplicavam-lhe medicamentos de efeito poderoso, que o
acalmavam e o deixavam com um aspecto doentio e apático,
chegando até a babar involuntariamente.
Iolanda chorava muito. Apesar de não amá-lo, ela gostava
muito dele e não se conformava em vê-lo sofrendo tanto, a
ponto de perder a razão e enlouquecer daquela maneira.
- Meu Deus, por favor, mostre-me uma maneira de ajudá-lo!
-rogava ela em voz baixa. - Não agüento mais vê-lo sofrer
como um alienado!
Todavia a perturbação sofrida por Albert em decorrência da
influência do espírito Carla se tomava mais evidente a cada
dia que passava. Uma atração muito forte não a deixava se
afastar daquela mansão, com exceção dos momentos em que
visitava o pai e a mãe, em busca de recursos para amenizar
seu sofrimento.
Ela começou a ver pessoas horríveis e de aspectos maléficos
-verdadeiros monstros -, que a insuflavam a continuar
perseguindo Albert, tendo em vista que eles também
desejavam se vingar das maldades causadas por ele.
- Vamos arquitetar um plano para enlouquecer esse maldito
e fazê-lo se suicidar? - convidava um deles, em péssimo
estado.
- Não é perigoso levá-lo à morte?
- Deixe de bobagens! Ele merece ser castigado por suas
maldades, principalmente pelas pessoas que mandou matar
para satisfazer seu maldito orgulho!
Além do predomínio maléfico imposto por Carla, Albert
começou a ser influenciado por outros espíritos de um
passado distante, que também sofreram as conseqüências de
suas maldades. Mesmo passando por toda aquela situação
desesperadora, ele mantinha-se orgulhoso, desprezando os
pobres e humildes e colocando-se acima de Deus, apenas
por ser descendente de uma rica e influente família nobre da
Europa.
Carla padecia há mais de um ano e por isso estava numa
situação caótica. Os socorristas do além tentavam ajudá-la,
mas não conseguiam, porque sua vibração mental era muita
baixa e ela ainda guardava, na tela mental de sua memória
perispiritual, muita dor e mágoa devido ao pai do homem
que amava. Os espíritos responsáveis pelo socorro às pessoas
sofredoras não encontravam oportunidades para levá-la a
uma colônia espiritual, lugar adequado onde poderia ser
tratada. Um deles falou para aquele que parecia ser o
responsável pela operação:
- Acho que a nossa irmã ainda vai sofrer bastante, porque ela
cometeu dois crimes contra as leis de Deus.
No entanto, outro da equipe contemporizou:
- Isso depende do merecimento e progresso dela.
Nossa irmã Carla tem um relatório muito positivo a seu favor
- disse um deles, com o semblante preocupado. - No passado
ela resgatou muitas dívidas, dedicando-se ao próximo numa
guerra na qual desencarnaram milhões de irmãos.
Um deles pensou e retrucou:
- É provável que a Divindade leve em conta esse relatório
repleto de trabalhos relevantes ao próximo.
Não conseguindo um só momento de paz, Carla pensou em
sua casa e no mesmo instante se encontrou deitada no sofá
da sala de sua residência. Lamentando-se de sua dor,
observou que o irmão Augusto, o pai e um desconhecido
conversavam ao redor de uma mesa.
Carla levantou-se curiosa e aproximou-se deles, com as mãos
no ventre ensangüentado, tentando escutar o que eles
diziam.
Edmundo havia marcado um encontro com o Dr. Jacinto em
sua casa, para tratar do assunto que o médico queria falar
com ele, conforme ficou combinado na clínica de repouso.
Após as apresentações entre Augusto e o médico, eles se
sentaram ao redor de uma mesa que havia na sala, sugestão
do Dr. Jacinto, e começaram a conversar sobre coisas sem
importância.
Os três homens ficaram calados por alguns instantes, como
se estivessem com receio de tocar no assunto que era o
motivo daquele encontro.
Edmundo, que se mostrava ansioso e enxugava o suor do
rosto com um lenço, fitou o filho e em seguida o médico,
perguntando sem preâmbulos, talvez antes que perdesse a
coragem para falar.
- Então, Dr. Jacinto, sobre qual assunto iremos conversar?
Seria uma continuação daquele que não concluímos no
hospital?
Calmamente, o médico pôs as duas mãos sobre a mesa,
olhou de viés para Augusto e respondeu com naturalidade:
- Exatamente, amigo. É o mesmo assunto.
Edmundo notou o vacilo e o olhar de indagação do médico
em direção ao seu filho, talvez se perguntando se poderia
falar sobre aquele assunto na presença dele.
- Pode falar, doutor - disse Edmundo. - O Augusto já sabe do
que houve.
- Bom, então vamos ao assunto propriamente dito - disse o
médico mais à vontade. - A dona Isabel está perfeitamente
sã. E isso foi comprovado pelos vários exames aos quais foi
submetida e que tiveram excelentes resultados.
Edmundo olhou de soslaio para o filho, visivelmente
espantado com a afirmação do médico, mas ficou em
silêncio.
- Ela está apenas muito abalada por causa do que aconteceu
com a filha. Entretanto seu estado se agravou, e hoje, ela
realmente acha que está doente, ou melhor, louca - disse o
médico. - Mas na realidade, o que a dona Isabel está
sentindo é a influência dos espíritos sofredores.
- É por isso que ela vê a minha irmã? - perguntou Augusto,
não se surpreendendo com o que acabava de ouvir.
- Exatamente. Ela tem a faculdade de ver e ouvir o que se
passa no outro mundo - mundo invisível -, que se encontra
em uma dimensão ainda não comprovada pela ciência.
Edmundo ora olhava para o médico, ora para o filho, sem
entender o que eles estavam falando.
- Então, é verdade que a minha filha não morreu? - arriscou-
se a perguntar Edmundo. - Quer dizer que a Carla, segundo
essa Doutrina, apenas passou desse mundo para outro.
- Exatamente, meu pai. O senhor está compreendendo bem,
onde nós queremos chegar.
- Mas vale salientar que esse mundo onde sua filha se
encontra atualmente é aquele que a Doutrina Espírita chama
de "mundo espiritual", e que de fato existe - disse o médico.
O pai de Carla se ergueu e caminhou pela sala sem saber o
que pensar. Ele não conseguia entender completamente
aquele assunto tão estranho, pois era acostumado a lidar com
fatos concretos, com negócios financeiros, que não
deixavam dúvidas quanto ao tipo de transação. Sentou-se
novamente, sendo observado pelo médico, enquanto o filho
sorria, tamborilando com os dedos na mesa.
- O que o senhor quer dizer com isso, doutor? - perguntou
ele.
- Que não é aquele mundo convencionado pelas religiões,
quando alguém diz que "fulano passou dessa para uma
melhor", como uma forma decorada de se prestar
condolência.
- Doutor, eu não sou tão burro assim. Eu compreendo que
esse mundo ao qual vocês estão se referindo realmente
existe, segundo essa Doutrina esquisita da qual tanto falam.
Augusto sorriu satisfeito. Ainda vacilante, seu pai conseguia
depreender daquela conversa alguns aspectos da Doutrina
Espírita.
- Continue, doutor. Estou muito interessado nesse assunto -
pediu-lhe o pai de Carla.
Neste momento o espírito, irmã de Augusto, que havia
ouvido a conversa entabulada por aqueles homens, ficou em
pânico, principalmente quando abordaram aquele assunto
sobre essa tal de Doutrina Espírita.
- Eles acham que eu morri? Não posso acreditar nessa
mentira! Vou embora agora mesmo, porque essa gente está
ficando louca!
E sendo assim, Carla saiu correndo pelas ruas gritando e
chorando, ora botando a mão no ventre, ora tapando os
ouvidos, como se pudesse afastar os ecos daqueles
comentários que tanto a perturbaram.
- Não posso acreditar que morri - repetia Carla deitada perto
da cortina do quarto do Albert.
Ela aproximou-se do pai de Hugo, que estava deitado,
dormindo sob o efeito de um fortíssimo medicamento.
- Viu, seu velho nojento? Dizem que você me matou - disse
ela sentada ao lado de Albert. - Vou descobrir se realmente
aquela conversa é verdadeira e depois conversaremos, seu
demônio!
Enquanto isso, na casa de Edmundo, todos notaram que
havia alguma coisa diferente, porque um clima pesado
pairava no ar.
- Você viu algo, Edmundo? - perguntou o médico, saindo do
torpor..
- Não sei.
- Pai, o senhor viu ou não viu algo?
Edmundo ficou pensando por alguns minutos e depois
respondeu com cautela, meio vacilante:
- Acho que estou precisando beber algo bem forte.
- Vamos, papai. O senhor viu alguma coisa diferente?
- Acho que vi a minha filha - respondeu o pai.
Silêncio.
- Ela estava próxima a nós, com a mão no ventre? -
perguntou o médico.
- Não posso afirmar, mas me parece que estava suja de
sangue, do mesmo jeito que a vi no dia em que cometeu
aquele ato impensado.
- Então, doutor, o papai pode ser um médium vidente? -
perguntou Augusto.
- Pode ser.
- Neste caso, está provado que a minha filha ainda vive,
conforme a Doutrina Espírita?
- Sem dúvida, meu pai. A diferença é que ela deixou o corpo
material no cemitério e continua com o seu corpo espiritual,
mas viva e sofrendo muito, pois, como é um espírito
imperfeito, ainda não conseguiu se desligar das sensações do
seu corpo material. Ela sente dor, ressentimento, chora
porque acha que abortou o filho e não pensa na possibilidade
de ter desencarnado, pois ainda se vê viva. Inclusive, deve
ter ficado bastante perturbada ao ouvir o que falamos sobre o
estado dela.
A empregada aproximou-se dos homens e pediu licença,
deixando sobre a mesa uma bandeja com café, suco, água,
biscoitos, copos e xícaras.
Os participantes daquela reunião serviram-se em silêncio.
O médico notou a ansiedade estampada no rosto de
Edmundo e comentou:
- Agora, o problema é outro.
- Qual? - de olhos arregalados, Edmundo perguntou
imediatamente, pegando no braço do médico.
- Temos que ajudar na recuperação da dona Isabel e depois
procurar um meio de conscientizar a Carla de que ela já
desencarnou.
O rapaz estava calado, pensativo.
- No que está pensando, meu filho?
Augusto olhou para o doutor Jacinto e perguntou-lhe:
- Qual será a reação da minha irmã quando ela souber que se
suicidou?
- Ela ainda não sabe que se suicidou? - perguntou o pai,
surpreso.
- Ela deve ter consciência de que atentou contra a própria
vida; todavia, como ainda se encontra viva, é possível que
fique bastante perturbada ao se lembrar do ato que a tirou do
mundo corporal, sem entender o que está se passando
consigo - revelou o médico.
Fizeram uma pausa.
- Quando ela souber que não tem mais um corpo físico, que
provocou sua própria destruição, aí sim, o seu sofrimento
será inenarrável - arriscou-se a dizer o Dr. Jacinto.
- Meu Deus! Coitada da minha querida filha! - disse o pai
chorando.
- É. Nem o mais talentoso dos escritores conseguiria narrar o
terrível sofrimento pelos quais os suicidas passam no mundo
espiritual - disse Augusto.
- Nem quem um dia já atentou contra a própria vida,
consegue descrever de maneira integral o que passam do
outro lado.
O Dr. Jacinto falou de maneira calma, fitando um ponto
qualquer na mesa.
- Já li algumas obras mediúnicas, e a que mais se aproximou
do sofrimento pelo qual alguém passa quando recorre a esse
ato extremo, foi o livro "Memórias de um suicida", da
médium e escritora espírita Ivone do Amaral Pereira.
- Estamos esquecendo um detalhe importante - disse
Augusto, repentinamente, com a mão na testa. - Minha irmã
estava grávida, quando se suicidou.
Edmundo chorou.
Augusto passou as mãos no rosto, enxugando umas lágrimas
que desciam involuntariamente.
O Dr. Jacinto pensava: "Como é difícil vencer as dificuldades
de uma existência, principalmente quando estamos afastados
de Deus".
- Bem, meus amigos, o meu tempo terminou, pois daqui a
pouco tenho de estar na clínica. Outro dia continuaremos
nossas considerações, procurando uma maneira de ajudar a
nossa irmã Isabel e sua filha Carla - disse o médico
erguendo-se e se encaminhando para a porta de saída.
- Doutor, não se esqueça de telefonar, avisando o dia em que
retornaremos a essa conversa, que muito me animou - disse
o dono da casa.
- Talvez, da próxima vez, encontraremos mais respostas a
respeito desse polêmico assunto - comentou Augusto,
apertando a mão do Dr. Jacinto.
Capítulo X
Desespero no além
Carla estava completamente desesperada e fora de si, após
ouvir na residência do pai que havia morrido. O seu estado
precário se alternava entre raros minutos de consciência e o
restante do tempo de perturbação, sem saber o que fazia e
nem onde estava. Qualquer pessoa normal e sensível, que
observasse o estado daquele espírito, não reconheceria nela
a bela e inteligente médica, namorada do Dr. Hugo, filho do
poderoso empresário Albert.
Após sair da residência do pai e ter ido atrás de Albert,
correu, em seguida, sem destino certo, sempre maldizendo
tudo e a todos pela sua desdita, até que se deitou num lugar
qualquer da cidade, lamentando-se, enquanto tentava
suportar sua superlativa dor, falando impropérios em voz
alta.
- Não acredito que não estou viva - dizia ela. - Não posso ter
morrido, pois ainda sinto essas malditas dores no abdômen e
não paro de sangrar, o que me causa essa fraqueza horrível,
efeito daqueles medicamentos que ingeri e que de nada me
serviram, pois continuo viva e pior do que estava antes.
Ninguém quer conversar comigo e não aparece um amigo
para me atender. Minha própria família não liga para o que
aconteceu comigo. Até meu namorado Hugo deve ter
fugido, porque eu nunca mais soube notícias dele.
Enquanto isso, na mansão de Albert, o Dr. Maurício, com
um vinco na testa, demonstrando estar bastante preocupado,
procurou a esposa do doente e calmamente comentou:
- Dona Iolanda, não tenho mais como ajudar o Dr. Albert.
Pouco a pouco o vejo perdendo a razão, sem que eu possa
fazer nada para neutralizar essa doença que o está
consumindo.
- O que o senhor aconselha? - perguntou a mulher, aflita.
O médico ficou calado por alguns minutos: "Por enquanto,
não tenho alternativa, a não ser solicitar sua internação",
pensou.
- Interná-lo - respondeu o médico vacilante.
- O senhor não acha essa medida muito radical?
- Acho, e por isso lhe recomendo uma clínica de repouso,
onde existem bons médicos e enfermeiras treinadas para
tratar com discrição e eficiência pessoas que estão
mentalmente perturbadas. Esse tipo de clínica é ideal para o
seu marido, que é uma personalidade muito influente e
visada em toda a sociedade.
- O senhor quer dizer que tudo será feito no mais absoluto
sigilo?
- Exatamente. Ninguém saberá de detalhes sobre a
internação do Dr. Albert, entendeu?
- Acho que entendi.
- E como vou administrar os negócios, principalmente a
fábrica?
- Como secretário de confiança do seu marido, o Sr. Edvaldo
deve assessorá-la e informá-la de tudo.
- Mas como vou conseguir que ele assine uma procuração
para que eu possa administrar os negócios na ausência dele?
- Acho que isso não vai ser problema. A Justiça pode expedir
um mandado de segurança, autorizando-a a assumir o
controle dos negócios por um tempo determinado, e que
pode ser renovado, com base no parecer de uma comissão
médica.
Dois meses se passaram.
Vamos encontrar o poderoso Albert internado numa das
melhores clínicas de repouso do país. Naquela clínica ele
estava em segurança e não poderia fugir ou cometer algum
ato desesperado contra a sua vida ou contra a das pessoas que
o cercavam.
O pai do Dr. Hugo parecia um espectro. Caminhava como
um autômato, sempre com os olhos fixos em algo invisível,
e envelhecera dez anos em pouco mais de alguns meses.
Gesticulava exageradamente e conversava com uma pessoa
que somente ele via. Às vezes se tornava agressivo, o que
obrigava os enfermeiros a manietá-lo para evitar graves
acidentes.
Iolanda não conseguia deixar de chorar quando o visitava,
porque era demais para ela ver naquele trapo humano, o
homem que um dia controlou a todos e os negócios da
família com competência e, às vezes, também com uma
certa truculência, pois não hesitava em tirar do seu caminho
aqueles que não o obedeciam por puro orgulho e vaidade.
- Iolanda, mande essa gente me deixar em paz, senão, vou
ser obrigado a tomar sérias providências - dizia Albert,
quando a mulher o visitava.
- O que você está vendo, querido? - perguntava a esposa,
aproveitando para sondar o que realmente o marido sentia. -
São pessoas conhecidas?
- Veja - apontou o homem para um lugar. - É essa filha do
demônio, que não me deixa sossegar um instante! Agora,
imagine que esta pilantra arranjou amigos semelhantes a ela,
que estão ajudando-a a infernizar minha vida.
Iolanda estava apavorada com as alucinações do marido: "Ele
ficou louco de vez! Acho que não tem mais cura", pensava.
Certo dia, após visitar o marido, ela passou numa livraria,
aproximou-se de uma moça e perguntou em voz baixa,
como se estivesse envergonhada:
- Moça, por favor. Você pode me indicar algum livro
espírita, para eu tirar umas dúvidas que estão me deixando
sem sono?
A atendente olhou para a distinta mulher e perguntou com
educação e uma certa meiguice na voz:
- Senhora, posso saber o que está acontecendo? Assim, posso
lhe indicar um livro mais específico para o assunto.
Iolanda pensou e logo chamou a moça para um canto da
livraria.
- Eu queria ajudar o meu marido, que está internado numa
clínica psiquiátrica - disse-lhe em tom confidencial.
- Entendo.
A moça olhou para Iolanda com os olhos repletos de
compaixão e pediu, fazendo um gesto com a mão:
- Um momento, senhora.
Minutos depois ela voltou com um livro na mão e,
entregando-o a Iolanda, disse-lhe:
- Esse é o livro adequado para a senhora tirar suas dúvidas.
Iolanda pegou o livro e olhou de esguelha para o público que
estava na livraria, como se estivesse com receio de que
alguém a reconhecesse e a visse segurando aquele livro.
- "O Livro dos Espíritos"?
- Exatamente, senhora. Esse é o primeiro livro das obras
básicas da Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec.
Acho que a senhora vai encontrar informações preciosas
para começar a resolver o caso do seu marido.
Iolanda pagou o livro e foi embora apressada, sempre
olhando para trás.
Chegou em casa nervosa e deu ordens para os empregados
não a incomodarem em seu escritório particular. Também
pediu que Edvaldo só a procurasse em caso de extrema
necessidade.
No dia seguinte, enquanto caminhava impaciente por seu
escritório, Iolanda ouviu alguém bater de leve na porta.
- Entre - disse Iolanda.
Ao entrar na sala, Edvaldo viu que a patroa estava inquieta e
bastante preocupada, porém, não fez nenhum comentário a
esse respeito, limitando-se a perguntar:
- O que aconteceu, patroa?
- Muita coisa, meu caro Edvaldo. Se tudo que li neste livro
for verdade, acho que o seu patrão vai se recuperar o mais
rápido possível - disse ela, estendendo o livro para o
secretário.
Edvaldo leu o título do livro e o devolveu para Iolanda.
- Parece que você não ficou interessado no livro, Edvaldo? -
perguntou a mulher, estranhando o comportamento do
funcionário.
- Não é o que a senhora está pensando.
- Você ficou com medo, porque o livro é espírita?
- Não, senhora. Eu não poderia ficar com medo, porque sou
espírita. Lembra-se da pergunta que a senhora fez na noite
em que o Dr. Albert estava bastante agitado, quando ele quis
me despedir porque eu disse que era espírita?
- Agora estou me lembrando... Ele só não o despediu,
porque pedi e fiz com que ele entendesse que você era uma
pessoa dedicada e honesta e jamais encontraria um substituto
a altura para ser seu secretário de confiança.
- Obrigado, patroa.
- Edvaldo, no primeiro tempo que encontrar livre, à tarde,
por favor, venha conversar comigo a respeito dessa Doutrina
que você conhece tão bem.
- Combinado, dona Iolanda. Logo que eu conseguir resolver
alguns compromissos e mandar todos os memorandos para a
fábrica, falaremos sobre esse assunto. Mas vou avisando que
não sei tanto, como a senhora pensa. O Espiritismo é uma
Doutrina muita vasta em informações sobre todos os
aspectos, sejam estes filosóficos, científicos ou religiosos.
- Vá logo, Edvaldo, resolver esses problemas e venha
conversar comigo, para tentarmos ajudar seu patrão.
Edvaldo fez uma menção de respeito e retirou-se do
escritório da mulher do patrão.
No meio da tarde, Edvaldo estava sentado num confortável
sofá no escritório de Iolanda, com as pernas cruzadas e
tomando a xícara de café oferecida pela empregada particular
da patroa.
Após assinar os documentos que Edvaldo havia levado,
Iolanda ergueu o rosto e encarou o rapaz. Passado alguns
segundos, ela resolveu perguntar:
- Então, podemos conversar sobre aquele assunto?
- Estou à sua disposição, patroa.
A mulher ergueu-se e foi se sentar num sofá próximo ao
empregado, demonstrando bastante ansiedade.
- Recordo-me que naquele dia em que o Albert quis demiti-
lo, você disse-me que era espírita.
- Exato.
- Eu li "O Livro dos Espíritos" num tempo recorde, todavia,
confesso que não entendi todas as respostas das perguntas
que são feitas aos espíritos, conforme informações do
codificador do Espiritismo.
Edvaldo ouvia a patroa sem interrompê-la, para tentar
descobrir aonde ela queria chegar.
- Compreendi perfeitamente que essa Doutrina está calcada
em alguns princípios, como a existência de Deus, a
imortalidade da alma, a comunicabilidade dos espíritos, a
reencarnação, a pluralidade dos mundos e a lei de ação e
reação. Isso significa que sua religião nos informa, entre
outras coisas, que somos imortais e fomos criados simples e
ignorantes.
O rapaz limitou-se a anuir com um gesto de cabeça,
confirmando o que a patroa falava.
Iolanda parecia inquieta, quase que perdendo o controle,
pois ela era uma mulher calma e dona de si, principalmente
diante dos problemas sérios que geralmente se
apresentavam. Assim que ela se ergueu na intenção de se
servir de uma xícara de café, ele fez um sinal com a mão.
- Por favor, senhora, deixe-me servi-la.
Mais calma, a patroa de Edvaldo passou a falar sobre o livro.
- Meu caro Edvaldo, esse assunto é longo, bem o sei,
portanto, vou tentar resumi-lo ao máximo.
- A senhora é quem sabe.
Depois da leitura desse livro, cheguei a uma conclusão,
embora sem uma confirmação plausível.
- Qual?
- O meu marido não está louco.
- O que a faz ter essa certeza, dona Iolanda?
- Simplesmente, pelo fato da Carla estar tão viva quanto nós,
mesmo num mundo muito complicado para ser explicado,
principalmente por mim, que ainda não sei quase nada a
respeito do Espiritismo.
- E daí, patroa?
- Se a Carla está viva, como afirmam os espíritos no livro de
Allan Kardec, então, a loucura de Albert deve-se ao fato de
ele realmente ver essa moça em sonhos, ou até mesmo em
estado de vigília, através de alguma faculdade que possa ter.
- Vidência é a faculdade de ver os espíritos, segundo Allan
Kardec - completou o secretário.
- Exatamente isso - confirmou Iolanda, fazendo um gesto
com a mão. - Antes de interná-lo, o Dr. Maurício falou que
os exames não acusaram absolutamente nada de anormal no
cérebro de meu marido. Portanto, creio que ele está
visivelmente abalado com os fantasmas que vê, acreditando
que isso são coisas de sua mente doente.
- E de fato, não são fantasmas. São apenas pessoas que estão
vivendo nesse mundo que a senhora diz ser "muito
complicado para ser explicado".
- Acertou. Como o Albert é ateu, orgulhoso, materialista e
não acredita absolutamente em nada que ele não domine ou
controle, é por isso que está em estado de loucura, pois não
consegue explicar o que está acontecendo consigo.
- A senhora quer dizer que ele está vendo a Carla no outro
lado da vida, com os seus sofrimentos e dores, e por não
acreditar em uma vida após a morte, ele não aceita essa
versão, e por esse motivo ficou mentalmente doente?
- Exato. Ainda bem que você é espírita- disse Iolanda. - A
Carla deve estar bastante perturbada e também deve odiá-lo,
pois foi ele, de certa forma, quem causou a desgraça que se
abateu sobre ela e o meu filho.
- Agora, ele fala que está vendo outras pessoas, porque os
chamados bandoleiros do além, que se uniram por afinidade
à nossa infeliz irmã, com o objetivo de fazer o mal, também
passaram a persegui-lo - completou Edvaldo.
A patroa de Edvaldo ficou pensativa durante alguns minutos,
mas logo encarou o empregado e perguntou:
- Você tem idéia de como podemos ajudar esses dois, a Carla
e o Albert?
- Tenho.
- Como?
Edvaldo ergueu-se e respondeu, fitando a patroa:
- Por enquanto, vamos estudar com calma uma maneira para
ajudá-los. Depois voltaremos a falar sobre esse assunto.
- Não demore muito, pois pode ser tarde demais.
- Tenha paciência e fé em Deus, patroa. Encontraremos um
meio para ajudar essas criaturas.
- Deus o ouça, meu amigo.
Capítulo XI
De volta ao passado
Albert continuava internado. O seu estado de saúde piorava
a cada dia que passava, preocupando a esposa e os médicos,
que já não tinham mais o que fazer para a recuperação do
famoso empresário. O pai de Hugo também não cessara de
brigar com as pessoas invisíveis que teimavam em humilhar
e ameaçar de morte.
- Mandei matá-los e não sei como vocês ainda estão vivos! -
dizia ele. - Mas desta vez vou acabar definitivamente com a
vida de todos esses crápulas que se dizem nobres!
Um desses espíritos doentes e perturbados gritava
impropérios contra Albert e chorava de dor e ódio. Ele teve
sua última existência na França do século XVIII, como um
nobre da corte e amigo de um certo Duque muito conhecido
pelas maldades, traições, truculências e por praticamente ter
levado o país ao caos, devido sua forte influência sobre o rei
e a Igreja. O Albert de hoje, fora aquele Duque de ontem,
amigo desse espírito que o perturbava. Esse irmão sofredor
que se destacava nos momentos de alucinações do
empresário, no passado fora vítima de uma traição que o
levou à morte, deixando uma esposa e filhos, além de seus
pais doentes.
- Nunca o perdoarei, Duque! Hei de odiá-lo para sempre e
um dia vingar-me-ei de tudo que o senhor me fez! - disse o
nobre, poucos minutos antes de sua execução.
- Meu único objetivo é vê-lo sofrer e morrer pedindo
clemência - disse o espírito Louis, o então nobre e amigo do
Duque - o Albert de hoje.
Enquanto caminhava pelos corredores da clínica de repouso,
Albert falava e gesticulava apontando para um ser invisível,
inclusive, assustando os outros pacientes internados.
- Nunca pedirei clemência a esse povo sem alma, Louis!
Você não tem sangue azul como o meu! Sua nobreza vem da
minha influência como Duque, pois fui eu que o tornei um
cavaleiro do rei!
O pai de Hugo gargalhava, falava, e não parava de passar as
mãos nos poucos cabelos brancos que ainda lhes restavam,
enquanto caminhava pelo pátio da clínica.
- SOCORRO! - implorava Albert, gesticulando como se
estivesse se defendendo do ataque de pessoas invisíveis. -
Tirem essa gente imunda de perto de mim!
As enfermeiras corriam para atender o poderoso dono da
fábrica de automóveis de luxo, pois tinham medo de que a
culpa recaísse sobre elas, e conseqüentemente fossem
despedidas, se algo acontecesse com ele. O homem era
possuidor de um dos maiores impérios econômicos do país,
e por isso, tinha tratamento diferenciado dos outros pobres
mortais.
- Calma, Dr. Albert. Não vai acontecer nada com o senhor.
- Bando de médicos e enfermeiras incompetentes! -
queixava-se o doente. - Vou comprar essa pocilga que vocês
chamam de clínica e mandar queimá-la com todo mundo
dentro!
Os outros doentes faziam o sinal da cruz, quando passavam
correndo por Albert, e as enfermeiras choravam de tanta
humilhação. Já os médicos, estes fingiam que não ouviam o
que o Albert falava, porque para eles, o paciente era apenas
mais um esquizofrênico, um maluco.
Cinco dias após a última conversa que Iolanda tivera com o
secretário Edvaldo, eles voltaram a se encontrar no mesmo
lugar - no escritório da esposa do magnata dos veículos de
luxo.
Ambos estavam em silêncio.
- Não consigo ter um pouco de otimismo quanto à
recuperação do Albert, nem mesmo com as explicações que
tenho encontrado na Doutrina Espírita- rompeu o silêncio a
elegante esposa do doente. - Confesso que antes eu tinha
alguma esperança em vê-lo curado, porém, passados todos
esses dias, vejo-o cada vez pior.
Edvaldo mantinha-se em silêncio, observando e prestando
atenção à dor refletida nas feições da bela mulher, que
tentava extravasá-la através daquele diálogo, que mais
parecia uma confissão.
A esposa de Albert narrava o que havia acontecido nos
últimos dias, inclusive, o surgimento dessas novas
personagens invisíveis, que segundo Albert, o ameaçavam
de morte.
- Como você explica esse mistério, Edvaldo?
O rapaz pensou antes de responder:
- Estive conversando com um amigo, que tem muita
experiência com esses fenômenos extra-físicos.
Iolanda mantinha-se calada, com receio de atrapalhar
Edvaldo.
Ele ergueu-se e começou a caminhar, deixando Iolanda
ansiosa e quase irritada com o silêncio do funcionário,
principalmente com aquele vai-e-vem pelo seu escritório.
- Homem de Deus, por favor! Fale alguma coisa, antes que
eu sofra um colapso nervoso!
- O Dr. Albert está sendo perseguido e influenciado pelos
espíritos que se tornaram seus inimigos no passado - disse o
rapaz, sentando-se e cruzando as pernas. - Talvez seu esposo
tenha cometido atos não condizentes com os ensinamentos
do nosso Mestre Jesus, em um passado recente ou até
mesmo remoto.
- Que passado é esse, Edvaldo?
- Refiro-me a outras existências, outras reencarnações.
A mulher levantou-se e pôs as mãos sobre a escrivaninha,
sem saber o que falar.
- Por favor, explique-me melhor esse assunto.
- Essas criaturas do mundo espiritual estão ameaçando-o e
cobrando-lhe uma dívida passada, o que provoca no Dr.
Albert um grande desequilíbrio entre seu espírito,
perispírito e corpo material. Se não tomarmos providências
urgentes, o quadro clínico dele será praticamente
irreversível.
O rapaz respirou profundamente e continuou:
- Os novos fatos que a senhora terminou de narrar provam
que essas criaturas pertencem a um passado remoto, e tudo
indica que eles realmente conhecem o Dr. Albert, pois
segundo suas informações, esse Louis se refere ao seu
marido como "Duque", e o Dr. Albert, por sua vez, fala em
nobreza, quando se refere a esse espírito. Além de Louis,
talvez, em séculos passados, seu marido tenha feito vários
outros inimigos, que também estão atuando e contribuindo
para o desequilíbrio dele.
- Você quer dizer que além de Carla, outros espíritos que
também foram prejudicados pelo Albert estão
influenciando-o e agravando o quadro de demência dele, o
que se caracteriza como "obsessão"?
- Exatamente, patroa.
- O que você realmente entende por "obsessão"?
O rapaz pensou e meteu a mão no bolso, tirando um papel
com algo escrito.
- Há várias definições. A definição mais completa e simples
para mim é que está em "A Gênese", uma das obras básicas
da Doutrina Espírita, na qual Allan Kardec nos informa, no
número quarenta e cinco, do capítulo décimo quarto: "(...) A
obsessão é quase sempre um fato de vingança exercida por
um espírito, e que mais freqüentemente tem sua origem nas
relações que o obsedado teve com ele, em uma existência
precedente. (...)".
- Então, esses espíritos são maus, até mesmo a Carla? -
perguntou a mulher do obsedado.
- Sim - ele respondeu. - Todos que vivem neste mundo de
expiações e de provas, com raríssimas exceções, ainda têm
defeitos inerentes aos espíritos atrasados.
O secretário fez uma pausa, fazendo sinal com a mão, como
se não tivesse terminado seu raciocínio, e depois continuou:
- Portanto, não tenha dúvida quanto a real possibilidade de
nos tornarmos um espírito mau, porque tudo depende da
causa que nos levou a sermos vingativos.
- Então, conforme suas explicações, qualquer um de nós
pode se tornar mau de um momento para outro,
dependendo do motivo que venha a alimentar esses defeitos
inerentes à humanidade dos mundos inferiores e que podem
estar apenas adormecidos?
- A senhora disse muito bem: "... defeitos inerentes à
humanidade dos mundos inferiores e que podem estar
apenas adormecidos".
- Todos habitantes dos mundos inferiores têm esses defeitos?
- Nem todos. Levemos em consideração que o progresso
espiritual dos espíritos, assim como o intelectual, não se dá
na mesma proporção.
- Explique melhor, meu amigo Edvaldo.
O rapaz passou a mão na cabeça, como se procurasse as
palavras certas para se fazer compreender.
- Vou tentar explicar através de exemplo: quando uma
pessoa não pensar mais em roubar, ela não tem mais esse
defeito - baniu para sempre a vontade de cometer esse tipo
de delito -, conseqüentemente, por mais que viva em
situação de penúria, faltando-lhe o suficiente para
sobreviver, ela não roubará mais, pois já venceu essa
tentação.
- Entendo. Significa que se ainda tenho adormecido o
instinto de vingança, a qualquer momento, conforme a
situação, posso me tornar vingativa, e com isso, um espírito
mau?
- Acertou em cheio, patroa. Mas também podemos aprender
a dominar nossas más tendências, conforme as informações
de Allan Kardec contidas em "O Evangelho Segundo o
Espiritismo": "Reconhece-se o verdadeiro espírita, pela sua
transformação moral e pelos esforços que faz para dominar
suas más inclinações".
- Trocando em miúdos, Allan Kardec quer nos dizer que,
embora um espírito tenha determinadas imperfeições, ele
pode dominá-las e evitar se transformar em um mau espírito
nos momentos difíceis de sua existência.
- Exatamente.
- Agora entendo perfeitamente o que está acontecendo com
o Albert e com a Carla, que sempre me pareceu ser uma
moça muito boa de coração.
Cabisbaixa, a mulher falou para si:
- Realmente, é muito difícil para qualquer um, agüentar a
humilhação pela qual a Carla passou, quando ouviu de Albert
"sabe Deus o quê", e não guardar qualquer sentimento de
mágoa ou até mesmo ódio.
- Dona Iolanda, isso é o que temos conhecimento até agora.
- É verdade. Talvez ele tenha cometido mais males a outras
pessoas inocentes, tanto em um passado recente quanto em
um distante.
O rapaz se ergueu, demonstrando que já estava de saída, mas
antes, Iolanda pediu-lhe:
- Por favor, Edvaldo, sente-se um momento.
O rapaz se sentou e esperou pacientemente.
- Edvaldo, quer dizer que o Albert não tem mais jeito?
- Patroa, eu não disse isso em momento algum. Deus é
infinitamente misericordioso e bom. Jesus disse um dia:
"Nenhuma das ovelhas que o Meu Pai Me confiou se
perderá". Portanto, patroa, lutaremos muito para ajudar o
Dr. Albert.
Iolanda começou a chorar, pensando na tortura pela qual o
marido estava passando.
Emocionado, Edvaldo se aproximou da patroa e colocou a
mão em sua cabeça, começando a orar.
Iolanda se acalmou.
- Edvaldo, eu estou com uma dúvida.
- Qual?
- Se o Albert é um espírito tão mau, então, por que eleja
reencarnou, enquanto esse espírito Louis permanece do lado
de lá, ainda envolvido em seus pensamentos vingativos?
- Porque apesar de o Dr. Albert ser um espírito devedor e
considerado maléfico pela nossa ignorância, acredito que
tenha feito algo relevante para aqueles que lhes enviam
orações e agradecem pelo bem que receberam dele um dia.
- Você acredita que ele pode ter feito o bem a alguém,
mesmo sem perceber?
- Sim. O exemplo disso é a fábrica que ele administra. Ela
mantém milhares de pessoas que não se esquecem de incluí-
lo em suas orações, apesar da fama de orgulhoso, prepotente,
egoísta, truculento e outros defeitos imputados a ele.
- Apesar das maldades que ele faz?
- Sim. Sou secretário do Dr. Albert e nunca o vi deixar de
cumprir suas obrigações para com os seus funcionários. Isto
conta muito em seu currículo espiritual, pois seus
empregados não sofrem as conseqüências de um patrão
"bonzinho", que não perde a oportunidade de explorar o
pobre, principalmente no pagamento de serviços prestados.
- Ah! Agora entendo porque ele já teve outras oportunidades
de reencarnar e esse irmão Louis ainda não possui condição
para ter uma nova existência.
A mulher ficou calada, como se estivesse fazendo uma
oração.
Em respeito à patroa, Edvaldo se manteve em silêncio.
- Não consigo entender porque ele continua tão orgulhoso e
ainda maltrata as pessoas, se ao receber permissão para
reencarnar e ter feito seu programa de vida, pediu para ter
uma existência rica, como o poderoso dono de um vasto
patrimônio - disse Iolanda, rompendo o silêncio.
- Patroa, o objetivo fundamental da reencarnação é
progredir na matéria, tanto intelectualmente como
moralmente, com a finalidade de banir para sempre os
defeitos sobre os quais falamos, e gradativa-mente
conseguirmos pôr em prática os ensinamentos que o Mestre
Jesus nos ensinou.
O rapaz fitou Iolanda e disse-lhe:
- É difícil vencer a matéria e, principalmente, os defeitos
que nos acompanham desde que fomos espíritos primitivos.
- Então, por que ele não pediu uma existência de penúria e
sofrimento para resgatar as dívidas do passado e aprender a
ser humilde?
- Quantas vezes ele já deve ter reencarnado nessa situação
que a senhora citou? Não sabemos, mas talvez por isso tenha
pedido para vir rico nessa, para lutar e conseguir vencer essa
prova difícil, que é a riqueza.
- É, mas falhou - completou a mulher do magnata,
demonstrando uma certa irritação. - Agora vai sofrer
novamente até aprender a curvar-se e a crer em Deus, pois
ele não acredita em nada, a não ser nele mesmo.
Silêncio.
- Por enquanto, o que podemos fazer por ele, meu caro
amigo?
- Preces. Vamos tentar ajudá-lo, através do Espiritismo.
- Como faço para chegar até esse centro espírita que você
freqüenta?
Edvaldo passou um papel para Iolanda, com a programação
do centro que freqüentava.
A mulher olhou o papel e ergueu-se, estendendo a mão ao
funcionário.
- Vou começar a freqüentar as reuniões espíritas. Talvez
possamos ajudá-lo - disse Iolanda resolvida.
Despediram-se e Edvaldo deixou o escritório da patroa.
Capítulo XII
Hugo sonha com Carla
O Dr. Hugo acordava e levantava-se cedo, quase de
madrugada. Acompanhava o irmão de Viviane à roça e o
ajudava a arar o solo até o Sol nascer espalhando seus raios,
iluminando o mundo, inclusive aquele bendito pedaço de
terra. Após o Sol aparecer por completo no horizonte,
avisando a chegada de um novo dia, ele voltava para casa,
trocava de roupa, tomava café e, pontualmente às oito horas,
já se encontrava em seu pequeno consultório no posto de
saúde, atendendo seus pacientes com satisfação. Também
sempre agradecia com um leve sorriso e cumprimentos as
sinceras manifestações de carinho do povo simples que
habitava aquela pequena e aconchegante cidade do interior.
Certo dia, ao chegar no seu pequeno consultório, não se
sentiu bem, pois não havia conseguido dormir direito.
Passou toda a noite tendo pesadelos horríveis, que
atrapalharam o seu sono.
Uma senhora que o ajudava no posto, trabalhando como
enfermeira, comentou ao ver as olheiras no médico:
- Parece que o senhor não dormiu direito ontem à noite,
doutor.
- É verdade, Verônica. Tive um pesadelo horrível e não
consegui mais pregar os olhos, até a hora em que acordei e
fui ajudar o Jacó na roça.
A enfermeira, uma dessas mulheres da roça que conhecia a
vida através de suas próprias experiências, encarou meio
desconfiada o médico e perguntou inocentemente:
- O senhor está namorando, doutor?
- Não. Acho que não terei mais ninguém para dividir minha
vida, querida amiga.
- É uma pena ver um homem como o senhor, na flor da
idade, médico e de boa aparência, já tão desiludido com a
vida - disse a mulher, com a voz triste. - Vou fazer um café
forte, para ajudá-lo a espantar o sono.
- Não se preocupe comigo. Mas como sei que você não vai
desistir, pode fazer o café e só me resta agradecer o favor.
- Não precisa agradecer, doutor. É minha obrigação cuidar
do nosso médico.
O Dr. Hugo sorriu e começou a atender um senhor que
estava queixando-se de dores e febre.
À noite, Hugo refugiou-se no alpendre, aproveitando para
pensar na vida, quando notou que Viviane aproximava-se
lentamente, como se não quisesse incomodá-lo.
- Posso ajudá-lo em alguma coisa ou estou incomodando?
- Não. Está tudo bem comigo e você nunca me incomoda.
- Sei disso. Mas ontem, sem querer, vi que você passou a
noite em claro.
- As mulheres prestam atenção em tudo! - brincou Hugo,
rindo à vontade. - Você tem razão; ontem à noite não
consegui dormir mesmo. Tive um pesadelo que me deixou
impressionado e me fez perder o sono.
A mulher ficou calada. Pediu licença, puxou uma cadeira e
sentou-se próximo ao médico.
- Você pode me contar esse pesadelo, doutor? - perguntou
Viviane educadamente, com sua maneira graciosa que
desarmava o médico.
- Está bem. Vou contar-lhe o tal pesadelo.
O rapaz passou as duas mãos nos cabelos louros e rebeldes,
afastando-os do rosto, enquanto fitava um ponto distante na
noite estrelada. Pensou e começou a falar pausadamente e
vacilante:
- Sonhei que a Carla chorava desesperada e me pedia ajuda,
pois segundo a mesma, ela não conseguia encontrar o nosso
filho. Ela também maldizia a todo instante o meu pai,
dizendo que não descansaria enquanto não o levasse à
loucura e à morte, sempre o culpando por tudo que
acontecera conosco.
O médico tirou o lenço do bolso e enxugou os olhos,
sentindo que as lágrimas teimavam em descer pelo seu rosto,
e prosseguiu:
- Ela estava suja de sangue, tinha os cabelos desgrenhados e
as mãos encrespadas, como se segurasse algo junto ao
abdômen. Ora chorava, ora gritava e outras vezes, ria.
Parecia que havia enlouquecido.
Hugo baixou a cabeça e ficou quieto por um tempo, olhando
para o piso da varanda. Logo depois recomeçou a falar, desta
vez sem olhar para Viviane, que naquele momento não sabia
o que fazer para ajudar aquela alma atormentada.
- Não sei mais o que fazer da minha vida e ajudar a única
mulher que amei nesta vida, principalmente sabendo que a
mesma está sofrendo muito do lado de lá.
E finalizou abatido:
- Por isso, não consegui mais dormir. Fiquei pensando no
sofrimento pelo qual ela está passando, principalmente
porque pensa que o nosso filho nasceu e desapareceu.
A bela Viviane levantou-se e encostou a cabeça do rapaz em
sua cintura, tentando ajudá-lo, acariciando seus cabelos em
silêncio e dando-lhe o que podia naquele momento: sua
ternura e compreensão.
Hugo acalmou-se um pouco.
Viviane foi até a cozinha e trouxe uma xícara de café bem
forte e um copo de suco de maracujá.
- Beba esse suco, que é bom para acalmar os nervos - disse a
mulher ao rapaz, com carinho e atenção.
Após tomar o suco, Hugo ouviu Viviane dizer-lhe, como se
ordenasse um comando:
- Agora, tome esse café bem forte para se animar.
Houve uma pausa entre eles, enquanto o médico se refazia.
- Desculpe-me, Viviane.
- Não sei pelo que você está se desculpando, Hugo.
- Da minha fraqueza.
- Você não é um fraco, e sim, um herói. Mesmo depois de
tudo o que aconteceu, você continua trabalhando, sempre
servindo ao seu próximo, ao invés de cair em um vício
qualquer ou de se entregar ao desânimo - disse Viviane com
carinho, porém, firme. - O povo desta cidade o tem como
um verdadeiro pai, e isso é o suficiente para que você
continue lutando para esquecer essa terrível situação que se
abateu sobre vocês.
- Estou com medo de que tenha acontecido algo com os
meus pais, principalmente com o meu pai, pois não deixei de
amá-lo mesmo depois do que ele me fez. Não sei explicar,
mas não consigo esquecê-lo ou condená-lo. Não gosto nem
de pensar que ele foi capaz de fazer isso comigo.
- Isso é um bom sinal, doutor.
Hugo fitou a bela moça e perguntou:
- Por quê?
- Ora, se, depois de tudo o que o seu pai fez, chegando até a
causar uma tragédia na família, você ainda fala nele com
carinho e cuidado, é porque nunca o condenou - respondeu
a mulher. - Significa que o Dr. Hugo tem um bom coração,
incapaz de guardar ressentimento ou de odiar alguém,
principalmente quando se trata do próprio pai.
- Mas não consigo esquecer o que ele nos fez,
principalmente por ter deixado a Carla nessa situação.
- Você fala como se sua noiva não tivesse morrido.
O rapaz pensou e falou, com receio de ser mal
compreendido pela amiga:
- A Carla está viva. Não acredito na morte.
A dona da casa ficou pensativa por um momento, mas logo
fitou o rapaz e passou a mão nos cabelos, perguntando em
seguida, como se não estivesse interessada no assunto:
- Você acredita nessas "coisas"?
O médico sorriu e respondeu com outra pergunta:
- A que "coisas" você está se referindo?
"É tão difícil conversar com pessoas inteligentes e vividas,
principalmente quando se trata de um médico estudioso
como o Hugo", pensou Viviane.
- Ora, essas coisas que fazem parte do folclore do povo, de
quem acredita em almas do outro mundo.
- Mesmo sendo médico, sim, acredito que existe algo além
desta vida.
- O quê?
- Vida - respondeu o rapaz, com firmeza.
Como era uma mulher inteligente, Viviane não contestou o
médico, todavia, ficou pensativa, com a mão no queixo.
O médico ergueu-se, pediu licença e foi até seu quarto,
trazendo um livro ao voltar. Assim que se acomodou
novamente, ele estendeu para a amiga o livro que trazia nas
mãos e disse-lhe:
- Quando a Carla morreu, fiquei tão confuso, que até achei
certo a atitude que ela tomou.
Enquanto ele falava, a moça lia o título do livro.
- Antes de viajar para essa cidade que me acolheu, passei
numa livraria e comprei este livro, por indicação de
Augusto, irmão de Carla. O médico apontou o livro que
estava na mão da amiga e perguntou:
- Conhece este livro?
- Não.
- Pois foi este pequeno livro, que leio desde que cheguei
nesta cidade, que esclareceu algumas dúvidas que eu
carregava comigo.
- Como podemos acreditar que existe uma vida após a
morte? - perguntou Viviane.
- A morte não existe, porque somos imortais - afirmou o
médico.
Enquanto folheava o livro, Viviane tentava compreender o
que queria dizer as palavras escritas na capa daquela obra:
"Nosso lar. Autor espiritual, André Luiz. Psicografado pelo
médium espírita Francisco Cândido Xavier".
- Você pode me emprestar este livro?
- Sim. Contanto que depois possamos conversar a respeito
desse polêmico assunto.
- Prometo que vou ler este livro mais rápido do que você
pensa.
- Espero.
A anfitriã ergueu-se, beijou a face do rapaz, pediu licença e
entrou em casa, deixando o médico entregue aos seus
pensamentos. Assim que a mulher se retirou,
instintivamente o rapaz passou a mão no rosto, demorando-
se no lugar onde havia recebido o beijo da linda Viviane.
No dia seguinte, enquanto tomava o café da manhã, Hugo
notou o quanto Viviane estava calada.
- O que aconteceu? - perguntou o rapaz, após tomar uma
xícara de café.
- Nada. Estou bem.
- Parece que você está preocupada com alguma coisa.
- Talvez seja sono. Passei a noite inteira lendo o "Nosso Lar"
e já estou quase terminando.
Hugo ficou em silêncio.
E assim prosseguiu no seu vai-e-vem para servir o café da
manhã a todos, com o auxílio da moça que a ajudava.
Hugo se levantou sorrindo e disse:
- Pessoal, vou trabalhar. Já estou atrasado.
Viviane acompanhou o médico até a saída e disse-lhe:
- Agora, entendo porque você acredita que não existe morte.
- Porquê?
- Estou quase chegando à mesma conclusão. Aliás, talvez eu
já soubesse algo a esse respeito, só não queria acreditar.
Hugo riu e foi para o posto de saúde.
À noite, após o jantar, Hugo procurou o seu canto no
alpendre, onde refletia sobre a vida, e sentou-se pensando:
"Preciso fazer alguma coisa pela Carla. Ela deve estar
sofrendo bastante. Mas o que posso fazer?"
- Posso sentar para conversarmos a respeito do livro?
- Fique à vontade, Viviane - assentiu o rapaz. - Já terminou
de ler o livro?
- Por isso, estou aqui.
Demonstrando surpresa, Hugo fitou a mulher e achou-a
mais bonita, principalmente pelo sorriso que trazia
constantemente estampado no rosto.
- Estou com algumas dúvidas a respeito desse livro, Dr.
Hugo.
- Não me faça perguntas, porque não estou em condições de
respondê-las. Conheço esse assunto tanto quanto você.
- Você não conhece outros livros dessa Doutrina?
- Não.
- Por que não adquiriu outros livros?
O rapaz pensou e respondeu:
- Medo.
- Medo de quê?
- Dessa Doutrina me mostrar que estou sendo um covarde.
Que estou evitando a realidade e não estou ajudando meus
pais e a Carla, que está tão viva quanto nós.
- Ainda está em tempo, doutor.
- Você acha?
- Claro. Procure um motorista que vá para a cidade e peça-
lhe para comprar alguns livros dessa Doutrina.
- E como vou saber quais livros devo encomendar?
- Telefone para o seu amigo. Talvez ele mesmo possa enviar
os livros que você precisa.
- É verdade. Mas há um problema.
- Qual?
- Vão descobrir onde estou morando.
A mulher encarou Hugo, colocou a mão sobre a perna dele e
disse-lhe:
- Acho que já está na hora de se libertar desse medo.
Enfrente a realidade e viva, pois somente assim, você
conseguirá esquecer o passado e, quem sabe, reconstruir sua
vida.
- Agora, minha vida é esta.
- Não é. Deixe de se enganar, homem de Deus! Você é um
médico rico, famoso e dono de uma clínica.
- Mas eu perdi o que mais me importava nessa vida.
- Concordo. Mas será que a Carla pensa assim? - perguntou a
mulher. - Principalmente, se você tem certeza de que ela
está viva.
E finalizou categoricamente:
- Eu gostaria que você me trouxesse mais informações a
respeito dessa Doutrina que já aprendi a gostar, e depois,
parta para a casa de seus pais para ajudá-los, pois tudo indica
que eles estão sofrendo.
- Você venceu. Amanhã mesmo ligarei para o Augusto,
pedindo mais informações sobre os livros que devo adquirir,
para conhecer melhor essa religião.
Viviane encarou o rapaz de maneira misteriosa e sorriu,
mostrando os dentes brancos e perfeitos que embelezavam
sua face. Depois se levantou e beijou a testa de Hugo,
entrando em casa.
"Vou telefonar amanhã cedo para Augusto", pensou o rapaz,
enquanto novamente passava a mão onde a moça o havia
beijado.
Capítulo XIII
Hugo e Viviane
No dia seguinte, Viviane foi levar o almoço do Dr. Hugo e o
encontrou triste e pensativo: "Não estou gostando do
aspecto dele", pensou ela.
Hugo atendia um rapaz doente. Ele olhou de viés para
Viviane e manteve-se em silêncio, sem ao menos
cumprimentá-la.
A viúva estranhou a atitude do amigo, porém, não deu muita
importância ao fato, por saber que ele estava atravessando
um momento bastante difícil em sua vida, principalmente
após o sonho que tivera com sua falecida noiva. Dirigiu-se
para a sala privativa do médico e esperou que ele terminasse
de atender o pessoal da manhã e se preparasse para almoçar.
Após alguns minutos, o rapaz entrou na sala e foi direto ao
banheiro. Depois retornou e sentou-se cabisbaixo, sem falar
nada. Viviane ficou alarmada quando viu as lágrimas que
escorriam pela face do médico.
- O que houve, Hugo? Por que você está chorando? -
apressou-se em perguntar a mulher, bastante preocupada.
O médico enxugou os olhos e disse-lhe, depois de alguns
segundos, já refeito:
- Telefonei para o Augusto.
- Pediu os livros?
- Sim. Ele vai despachá-los ainda hoje, e devem chegar por
aqui, no máximo, depois de amanhã. Vou pedir para o Gordo
ficar de plantão no correio.
- Posso colocar seu almoço, antes que esfrie?
- Hoje, não quero almoçar.
- O que você soube de tão ruim por seu amigo? - perguntou
a mulher, preocupada com o médico.
- Como você sabe que ele me deu alguma notícia mim?
- Você ficou triste e até chorou após esse telefonema, Hugo.
O rapaz levantou-se, tomou um copo de suco e disse:
- Vou atender o pessoal. À noite, conversaremos.
A mulher também se ergueu e foi embora visivelmente
preocupada, pois sabia que o médico soubera de algo muito
grave através do amigo.
À noite, o rapaz sentou-se em seu lugar preferido.
Viviane aproximou-se com receio de incomodá-lo e
perguntou se podia se sentar.
- Sente-se, por favor. Fique à vontade.
Ambos ficaram um momento em silêncio.
Hugo ergueu-se por um instante e começou a caminhar pela
varanda. Encostou-se no parapeito do alpendre e ficou
observando o céu estrelado, como se estivesse fazendo uma
oração.
A moça não fez perguntas, pois sabia que o rapaz estava
inquieto e que algo o atormentava.
O médico sentou-se, cruzou as pernas e fitou um ponto
qualquer na parede. Logo abaixou a cabeça e disse, meio
vacilante:
- O meu pai está internado numa clínica de repouso.
- Ele está doente?
- Sim.
- Não se preocupe. Logo ele vai ficar bom.
- Você não entendeu, Viviane.
- Entendi, sim. Seu pai está doente e foi internado num
hospital.
- Sabe o que chamamos de "clínica de repouso"?
- Não.
- Manicômio, um hospital para alienados mentais - disse o
rapaz, tentando imprimir seriedade em suas palavras. -
Viviane, o meu pai está louco!
A mulher levou um susto. Instintivamente colocou a mão
no peito e exclamou:
- Meu Deus!
Silêncio.
- Edmundo, o pai de Carla, está quase na miséria e virou um
alcoólatra após a morte da filha - continuou o médico.
- Meu Deus! - exclamou novamente a mulher.
Silêncio.
- A dona Isabel enlouqueceu e também está internada -
completou o rapaz, levantando-se e caminhando inquieto.
Viviane também se ergueu e, sem saber o que dizer naquele
momento crucial da vida do médico, se aproximou e
segurou-lhe o braço com carinho, enquanto com palavras
tentava emitir-lhe força.
- Hugo, juro por Deus, como sinto uma dor enorme no peito
ao vê-lo sofrer assim - disse ela, com lágrimas nos olhos. - Se
eu puder fazer algo por você, por favor, conte comigo.
O rapaz olhou com carinho para aquela mulher humilde e
forte o suficiente para enfrentar as dificuldades de uma vida
cheia de sacrifícios, principalmente após a morte do marido.
- Obrigado - agradeceu o médico, sentindo um certo alívio
no coração oprimido pela dor.
- O que você pensa em fazer?
O rapaz pensou, passou a mão no rosto, tentando melhorar
seu aspecto, e respondeu-lhe, olhando para a amiga:
- Por enquanto, nada. O certo seria partir imediatamente
para junto dos meus pais, para tentar fazer algo por eles;
todavia, neste momento não estou em condições de
presenciar tanta desgraça. Preciso pensar e depois tomarei
uma decisão.
- Agora, o seu amigo sabe onde você está?
- Não. A não ser que ele descubra de onde eu telefonei.
- Isso é fácil para ele descobrir, se você tiver ligado para um
telefone residencial.
- Foi o que eu fiz. Liguei para a residência do Augusto.
Ambos sentaram-se novamente.
- Hugo, como médico, você acha que existe uma cura para o
seu pai?
- Tenho cá, minhas dúvidas. O Augusto falou que a dona
Isabel foi internada primeiro, depois foi a vez do meu pai.
- Como os médicos chegaram à conclusão que ambos
precisavam ser internados?
- O médico estava pensativo, com a mão no queixo, ao ser
surpreendido pela pergunta de Viviane.
- É isso que me deixa preocupado. Os dois foram internados
com os mesmos sintomas, à exceção de papai, que tem um
quadro clínico mais grave.
A viúva ficou calada, com vergonha de fazer alguma
pergunta indiscreta. Ela deixou o rapaz à vontade, para que
falasse quando quisesse.
- O papai e a dona Isabel foram internados, porque o estado
deles se agravou e, segundo o Augusto, foi necessário que
eles se submetessem a uma minuciosa observação médica-
disse Hugo. - Todos os dias, ambos viam a Carla em sonho, e
essa situação se tornou insustentável quando também
passaram a vê-la em vigília, nas chamadas alucinações.
Interessadíssima no assunto, Viviane aproximou mais sua
cadeira do médico.
- O Augusto falou que sempre eles viam a Carla chorando,
gritando ou rindo, com a mão no ventre sujo de sangue.
- Mas esse quadro é idêntico ao que você viu no sonho.
- Exatamente. E é isso que me deixa bastante preocupado.
- No que você está pensando, doutor?
Hugo olhou a mulher de soslaio e respondeu meio sem jeito:
- Minha querida amiga, eu sou um médico com doutorado e
várias especializações no exterior.
- Aonde você quer chegar?
- Não posso crer em algo que seja contra tudo o que estudei
e pesquisei. Sou um médico por vocação, porque acredito na
ciência - respondeu o rapaz, deixando algo nas entrelinhas. -
Fui contra a vontade do meu pai ao estudar Medicina, ao
invés de me formar em outra área com a finalidade de
assumir os negócios da família.
"Está acontecendo alguma coisa no interior desse rapaz que
não consigo entender", pensou a dona da casa.
- Acho que dentro de dois dias receberei os livros que o
Augusto possivelmente já enviou - disse o médico, como se
estivesse pensando alto. - Assim que esses livros chegarem
vou tirar minhas dúvidas, e só então terei condições de
resolver esse conflito que vai dentro de mim.
Demonstrando cansaço, Hugo se ergueu e convidou Viviane
para entrarem.
Viviane era uma mulher simples, de cidade pequena do
interior, mas bastante inteligente, pois tivera oportunidade
de estudar na cidade grande, chegando, inclusive, a entrar
numa faculdade, da qual foi obrigada a desistir para cuidar do
genitor doente. O pai era um dos homens mais influentes e
de maior poder econômico daquela cidade, porém, com a
sua morte, metade do seu patrimônio foi gasto com a sua
doença e uma parte foi vendida para pagar as dívidas. Restou
apenas aquela casa, alguns hectares de terra - que eram
cultivados por ela e o irmão - e um pequeno comércio, que
sustentava sua família.
- Hugo, eu estou com vergonha de lhe fazer uma pergunta.
O rapaz, que já estava se encaminhando para dentro da casa,
parou e perguntou, encarando a mulher:
- Essa pergunta é tão desagradável assim?
- De certa forma, sim.
- Por quê?
- Porque acho que é muito íntima.
O rapaz encostou-se na parede da casa e disse para a
simpática criatura que Deus colocou em seu caminho:
- Faça a tal pergunta. Acho que você tem esse direito. E
depois, entre nós não há segredos.
A mulher ergueu-se, colocou as mãos na cintura num gesto
gracioso, e perguntou:
- Em relação à doença do seu pai e da sua quase sogra, o que
está deixando-o em conflito com a ciência?
O rapaz sorriu meio encabulado, sentou-se novamente e
ficou pensativo.
A mulher também voltou a sentar-se no mesmo lugar e
olhou para o rapaz como se estivesse querendo descobrir
algo.
- O Augusto disse-me que o pai dele e o Dr. Jacinto estão
empenhados em estudar a Doutrina Espírita, com a
finalidade de achar uma cura para a Dona Isabel.
- A Doutrina ao qual o livro "Nosso Lar" pertence?
- Exatamente.
- E o que tudo isso tem a ver com o seu conflito interior?
- Minha querida Viviane, você sabe quem é o Dr. Jacinto?
Quem é o homem que está estudando essa Doutrina
juntamente com o Augusto e o Edmundo?
- Não sei mesmo.
- Ele é um dos melhores psiquiatras da minha cidade e a
dona Isabel é paciente dele.
- Começo a entender sua preocupação.
- Sabe qual é a profissão do irmão da Carla?
- Não.
- Ele é dentista.
- O que você quer me mostrar, é que o irmão da Carla
também é um homem da ciência?
- Acertou, querida.
- O seu conflito está entre a religião e a ciência, não é? Ou
seja, entre a fé e o conhecimento racional acerca da doença
de seu pai e de dona Isabel.
- Agora você conseguiu entender a minha real preocupação.
Não posso acreditar que um psiquiatra recorra à métodos
utópicos para a cura de uma pessoa que perdeu a razão.
Viviane colocou a mão no queixo e ficou pensando, como se
estivesse duvidando do que ouvia.
Hugo se ergueu, em companhia da amiga, e ambos se
encaminharam para a entrada da casa.
- Quer tomar alguma coisa antes de dormir? - perguntou a
dona da casa. - Hoje, você quase não se alimentou.
- Aceito um copo de suco de maracujá, para relaxar e tentar
dormir. Enquanto você o prepara, vou tomar um banho e
me trocar.
Após alguns minutos, a mulher caminhou em direção ao
quarto do médico, levando numa bandeja um copo de suco e
outro de leite. Bateu de leve na porta e o médico apareceu
sorrindo e, ao ver aquela bandeja, disse:
- Isso é muito. Mas pode deixar. Obrigado.
- Boa noite, doutor.
- Boa noite.
- Não se esqueça de que você foi o primeiro a dizer que
estava convicto de que a morte não existe, por ocasião do
sonho que teve com a Carla.
O médico ficou sério e perguntou, encarando a mulher que
continuava em pé junto à porta do quarto:
- Você quer me dizer algo?
Sem responder a pergunta do médico, a mulher retirou-se,
caminhando com passos rápidos em direção à cozinha.
O médico fechou a porta do quarto e, com o cenho franzido,
sentou-se na cama, falando consigo:
- O que será que essa criatura quis me dizer?
Capítulo XIV
O Espiritismo
Certa noite, por volta das dezenove horas, uma senhora
elegante, bonita e distinta, encontrava-se sentada ao lado de
um rapaz bem vestido e também elegante, num grande
salão, parecido com um auditório, com capacidade para
receber aproximadamente cem pessoas sentadas. O salão era
simples, mas muito asseado e confortável. Nas paredes
estavam distribuídas umas pequenas caixas de som, que
espalhavam pelo recinto uma música suave e clássica, talvez
com o objetivo de acalmar as pessoas que aos poucos iam
chegando e lotando o ambiente.
- Este é o centro espírita que você freqüenta? - perguntou
Iolanda.
- Sim - respondeu Edvaldo. - Está perto de começar a
reunião pública.
- Esse lugar é aconchegante e passa uma paz muito grande -
disse a mulher de Albert, realmente impressionada com
aquele ambiente, até então, desconhecido para ela. "Eu
pensei que um centro espírita era diferente do que estou
vendo", pensou a mulher, com receio de que alguém ouvisse
seus pensamentos.
Iolanda não perdia nenhum movimento e acompanhou
bastante interessada a palestra da noite, que fora discorrida e
se intitulava "Reconcilia-te com o teu adversário, enquanto
estás a caminho com ele".
Após o encerramento da palestra, Edvaldo ergueu-se e fez
uma menção discreta para a patroa, que também se levantou
e o acompanhou em direção a uma sala que, discretamente,
se localizava atrás da tribuna da instituição. Dentro de alguns
minutos, ambos estavam sentados em cadeiras simples, num
pequeno cômodo modesto e sem enfeites, defronte a uma
mesa estrategicamente posicionada, quando entrou um
senhor ainda jovem, simpático, educado e humilde. Eles
levantaram-se e, após os cumprimentos e apresentações,
novamente se sentaram.
Iolanda estava nervosa, porque soube que aquele senhor era
o presidente do centro e Edvaldo um trabalhador da
instituição.
Marcelo, presidente do centro, sentou-se com um sorriso
discreto nos lábios e olhou para o Edvaldo. Depois fitou com
simpatia a distinta senhora e perguntou, num gesto de quem
tentava iniciar um diálogo:
- Então, a senhora é a esposa do Dr. Albert, o famoso rei da
indústria automobilística?
Ora Iolanda olhava para Marcelo, ora para Edvaldo, tentando
entender o que estava por trás daquela pergunta. Sem mais
demora, resolveu se pronunciar:
- Como o senhor sabe que sou esposa do Albert?
O homem sorriu e fitou Edvaldo, que se mantinha
impassível. A esposa do empresário notou a troca de olhares
entre eles, então sorriu e comentou:
- Entendi. O senhor já deve ter conhecimento do problema
que estamos enfrentando, em relação ao meu marido.
- Exato. Narrei ao Marcelo tudo que está acontecendo com o
Dr. Albert - disse Edvaldo, apressando-se para desfazer
aquele mal entendido, como se tivesse sido repreendido pela
patroa.
Silêncio.
- Então, dona Iolanda, o que podemos fazer pela senhora?
Aliás, nós não, o nosso Mestre Jesus.
A mulher ficou meio confusa, pois não estava acostumada a
ser tratada com respeito e educação, sem que houvesse
alguma intenção de interesse ou medo, afinal, ela era a
esposa do todo poderoso Albert.
Vendo que a mulher estava embaraçada, Marcelo olhou para
o amigo Edvaldo e falou de modo gentil, para deixá-la à
vontade:
- Dona Iolanda, nossa casa é simples e muito abençoada,
pois, aqui, funciona um pronto-socorro espiritual que atende
os irmãos necessitados como o Dr. Albert.
- Então, já que o senhor sabe do que se trata, o que podemos
fazer pelo meu marido, ou melhor, o que o Espiritismo pode
fazer por ele?
Marcelo fitou a bela senhora e perguntou-lhe:
- A senhora tem fé em Deus e em nosso Mestre Jesus?
- Tenho. Não duvido de minha fé em Deus e, além disso,
sou católica; comungo uma vez por mês e sempre deixo uma
oferta para ajudar a paróquia.
O presidente da instituição trocou um olhar significativo
com Edvaldo ao ouvir aquela resposta. Porém não deixou
que a distinta senhora percebesse e, com naturalidade, expôs
durante uns quinze minutos, à luz da Doutrina Espírita o que
realmente estava acontecendo com o Dr. Albert.
- Infelizmente, não podemos fazer muito por seu marido,
tendo em vista sua internação impedi-lo de participar
pessoalmente de nossas reuniões - rematou Marcelo.
- Que dizer que não podemos fazer nada pelo Albert, porque
ele se encontra internado? - perguntou Iolanda.
- Vamos fazer o que estiver ao nosso alcance.
- O quê?
Marcelo pensou e disse calmamente, fitando a mulher:
- Dona Iolanda, já que o Dr. Albert se encontra
impossibilitado de freqüentar as nossas reuniões, vamos
realizar um tratamento paliativo, até que ele melhore e possa
procurar um centro espírita.
- Que tratamento é esse?
- Por favor, eu peço que a senhora siga essas instruções - e
Marcelo entregou um papel com algumas orientações.
- Quer dizer que eu tenho que comparecer a essas reuniões e
fazer tudo o que está escrito aqui?
- Exatamente. A equipe de socorro espiritual desta casa pode
atender o seu marido no hospital.
- Entendi. O Edvaldo vai me ajudar a cumprir com suas
orientações.
- Pode contar comigo, patroa - prontificou-se o rapaz.
Com um sorriso nos lábios, Marcelo se levantou e estendeu a
mão para a mulher, cumprimentando-a:
- Que Jesus a abençoe e ao nosso irmão Albert.
Iolanda entendeu que o presidente do centro estava dando a
entrevista por encerrada.
- Obrigada. Farei o possível para não faltar às reuniões.
Iolanda e Edvaldo levantaram-se e se despediram de
Marcelo.
A partir daquela data, Iolanda passou a freqüentar as
reuniões indicadas pelo presidente do centro, sempre
recebendo a colaboração do seu secretário.
Após um mês, Edvaldo estava no escritório na mansão,
quando Iolanda entrou sem pedir licença, demonstrando
uma grande alegria estampada em seu rosto.
Edvaldo ergueu-se surpreso e perguntou:
- O que houve, patroa?
- Adivinhe o que aconteceu?
- Não tenho a menor idéia, patroa.
Sorrindo, Iolanda abraçou o rapaz e disse-lhe:
- O Albert recebeu alta da clínica!
- Fico muito satisfeito com a notícia, senhora!
- Mas o médico disse para termos bastante cuidado, pois ele
ainda não está totalmente curado.
A mulher sentou-se e pediu água, sendo prontamente
atendida.
- Edvaldo, valeu o trabalho que os espíritos fizeram pelo seu
patrão.
- Como a senhora sabe que foram os espíritos, os
responsáveis pela melhora do Dr. Albert?
- Questão de lógica, meu caro amigo - respondeu a mulher. -
A recuperação do Albert só começou, após o tratamento
espiritual ao qual ele foi submetido.
- É... A senhora tem razão. Mas ainda estou preocupado.
- Com o que, homem de Deus?
- Temo que o Dr. Albert não aceite ser tratado por um
centro espírita, mesmo à distância.
- Eu não tinha pensado nisso. Mas o importante é que, ainda
hoje, ele estará de volta à nossa casa.
- Concordo.
No dia seguinte, Edvaldo entrou no escritório da mansão e
encontrou o Dr. Albert sentado em sua escrivaninha,
mexendo em alguns papéis e aparentemente calmo.
- Bom dia, Dr. Albert. Fico satisfeito pelo seu
restabelecimento.
- Bom dia, Edvaldo. Eu não estava tão doente assim, para
merecer tanta preocupação de vocês.
Envergonhado e desconfiado do estado de saúde do patrão,
Edvaldo baixou a cabeça e passou a se ocupar com seus
afazeres, enquanto se perguntava: "Será que o Dr. Albert está
bem mesmo? À noite, vou falar com o Marcelo para saber o
que está acontecendo", pensou.
No centro espírita, Edvaldo procurou o presidente e
perguntou-lhe sem preâmbulos:
- Marcelo, será que o Dr. Albert está se curando?
- Posso saber qual o motivo desta pergunta?
- O Dr. Albert teve alta do hospital.
- Fico contente com essa notícia, principalmente pela dona
Iolanda, que deve estar bastante contente com a volta do
marido ao lar.
Edvaldo ficou calado.
- O que está havendo, Edvaldo?
- Hoje, quando cheguei ao escritório, encontrei o Dr. Albert
trabalhando - disse Edvaldo. - Mas fiquei meio desconfiado
quando o cumprimentei e o elogiei pela sua recuperação.
- O que houve?
- Ele disse que não estava doente.
- Realmente, o Dr. Albert não estava doente do ponto de
vista material. Digamos que ele estava sofrendo uma
influência espiritual de Carla e de outros espíritos vingativos.
- Mas isso não justifica que ele tenha se esquecido do
desequilíbrio pelo qual passou quando esteve sob a
influência de Carla e do tal Louis, durante o período em que
foi tratado como doente mental pelos médicos.
- Concordo - disse Marcelo passando a mão no rosto. -
Agora, entendo sua preocupação.
Ambos ficaram entregue a seus pensamentos.
- A equipe espiritual encarregada de ajudá-lo tentou afastar
momentaneamente os espíritos que o influenciavam e
causavam aquele desequilíbrio - disse Marcelo meio
desconfiado e sem muita convicção.
- Por isso ele teve essa melhora, praticamente voltando ao
seu estado normal e esquecendo que esteve bastante doente
e desequilibrado durante vários meses - comentou Edvaldo.
- Exato. Porém, se o Albert não der seguimento ao
tratamento, principalmente no centro espírita, os espíritos
obsessores vão voltar a influenciá-lo e tentarão acabar com
ele de uma vez.
- O que terá acontecido com a Carla e o Louis, para terem se
afastado temporariamente dele?
- Talvez estejam sob o efeito de um forte medicamento.
Entretanto, os espíritos socorristas não têm permissão para
intervir no livre arbítrio de ninguém.
- Isso quer dizer que, assim que passar o efeito dos
medicamentos administrados pelos espíritos do bem, eles
voltarão a fazer a mesma coisa?
- Ou pior, meu irmão Edvaldo.
- É tão grave assim?
- Mais do que você imagina. Porque eles estavam se
alimentando das energias fluídicas do Albert.
- E quando voltarem a si, estarão precisando de alimentos
que só encontrarão em seu desafeto?
- É isso aí, Edvaldo.
- Então vou tentar trazê-lo até aqui.
- Se conseguirmos isso, os espíritos terão a oportunidade de
continuar o tratamento de Carla e do restante dos obsessores
de Albert. Você sabe muito bem que cessada a causa que o
desequilibra, não tenho dúvida de que o mesmo ficará
curado.
Nos dias seguintes, tanto Iolanda como Edvaldo fizeram o
possível para que o Dr. Albert freqüentasse as reuniões do
centro espírita, alegando que ele só havia melhorado, graças
ao tratamento espiritual ao qual fora submetido, à distância.
- Não quero mais ouvir falar nesse tal de Espiritismo! Isso é
coisa de gente ignorante e pobre! - disse Albert. - Não posso
acreditar que um homem como você, Edvaldo, com
formação acadêmica, e uma mulher inteligente como a
Iolanda, estejam freqüentando esses cultos infestados de
doentes mentais, para não dizer malucas mesmo.
- Querido, é para o seu bem. Você está bem melhor, graças a
ajuda dos espíritos - disse-lhe Iolanda. - Não custa irmos
pelo menos uma vez, assistir uma reunião espírita.
Albert olhou para Iolanda e para Edvaldo e ergueu-se com o
olhar furioso.
- Saiam os dois do meu escritório! Não acredito em nada
nesta vida a não ser em mim, no meu poder e,
principalmente, no dinheiro! Entenderam? - falou Albert,
gritando de raiva. - Estou bom e nunca estive doente! E se
estive, foi por causa do estresse e nada mais!
Envergonhados, Iolanda e Edvaldo baixaram a cabeça e
saíram do escritório.
A mulher chorava e Edvaldo tentava consolá-la.
- Tenha calma e fé em Deus, dona Iolanda. O Dr. Albert não
é tão mal quanto parece.
- Não sei não - disse a mulher cansada e pessimista.
Carla havia acordado do sono induzido pelos socorristas do
mundo espiritual e estava sentada em frente ao Albert
gritando:
- Velho nojento, estou de volta! Vou acabar com você! Só
não sei o que fizeram comigo, pois ainda estou meio
sonolenta.
Albert havia entrado numa faixa de vibração tão ruim, que
trouxera de volta Carla e Louis. Com isso, logo ambos
estariam com os seus amigos no encalço dele.
Capítulo XV
Perturbação de Carla
O espírito Carla aproximou-se de Albert - que estava
sentado, acalmando-se da raiva que teve, ao expulsar Iolanda
e Edvaldo de seu escritório -, e o abraçou por trás, aspirando
as emanações dele. Ela vociferava em voz alta:
- Seu monstro! Você vai pagar por ter me separado do único
homem que amei nesta vida!
- É isso aí, vamos acabar com esse traidor, levando-o a
morte! - dizia o espírito Louis, rindo como um louco e
fazendo gestos de incentivo àquele espírito sofredor. - Ele
pensa que eu morri, que fui executado, mas estou aqui, vivo
e pronto para cobrar minha dívida!
Albert começou a sentir um mal-estar, então se ergueu e
caminhou pelo espaçoso escritório. Tomou água, afrouxou o
nó da gravata, foi à janela respirar o ar do lindo jardim e
depois se sentou num confortável sofá, percebendo que não
estava bem. Sua cabeça ficou pesada e o estômago doeu,
fazendo com que ele apertasse o abdômen com as mãos,
enquanto seus pés e mãos suavam. Imediatamente passou a
sentir uma ansiedade incontrolável, no mesmo instante que
as batidas do seu coração se aceleraram.
Carla chorava e expelia pela boca uma saliva avermelhada,
talvez por estar misturada a sangue, enquanto queixava-se de
dores terríveis no estômago.
- Meu Deus, ajude-me, por favor! Não agüento mais essas
dores insuportáveis no estômago! Parece que estou
queimando por dentro e aquele medicamento miserável não
resolveu nada! - queixava-se o espírito, nos poucos
momentos de lucidez.
Ela permanecia colada a Albert pelo pescoço, dizendo-lhe:
- Você é o culpado por tudo isso!
Albert sentiu falta de ar e entrou em pânico. Meteu a mão
no bolso e tomou alguns comprimidos receitados pelo seu
médico, que não surtiram efeito. Abriu a porta e começou a
andar pelos corredores da mansão extremamente
descontrolado, falando coisas ininteligíveis e causando medo
nos poucos empregados domésticos que ainda trabalhavam
na residência.
- Dona Iolanda, o Dr. Albert está andando pelos corredores
e falando coisas que não entendemos - avisou um dos
empregados.
Iolanda, que conversava com Edvaldo em seu escritório
particular, ergueu-se em companhia do funcionário e ambos
correram em direção ao lugar onde o empresário se
encontrava. A mulher olhou significativamente para
Edvaldo, ao avistarem Albert. O rapaz entendeu e fez um
gesto com a cabeça. Ela aproximou-se do doente com
cautela.
- O que está acontecendo, Albert? - perguntou a esposa. -
Você chegou tão bem.
- Deixe-me, miserável! Não tenho satisfação a dar-lhe dos
meus atos! - respondeu-lhe o marido.
- Largue-me, sua imunda! Não tenho outra alternativa, a não
ser matá-la pessoalmente! - disse o marido para um ser
invisível, como se estivesse tentando se desvencilhar de algo
que o incomodava.
Ele corria pelo jardim e pelos corredores da ampla mansão
como se brincasse de esconde-esconde, sempre ameaçando
alguém.
- Está com medo, sua desclassificada? Deixe-me pegá-la, que
vou torcer o seu pescoço!
Carla ria e chorava de dor, sempre acompanhada por seu
amigo de desdita, o espírito Louis.
Iolanda estava paralisada sem saber que atitude tomar.
O ser humano, em determinado momento, não sabe o que
fazer e que atitude tomar quando acontece algo adverso na
vida, principalmente quando não estava esperando. A esposa
de Albert estava em pé e com as mãos na boca, como se
estivesse sufocando um lamento que tentava sair, sem ter
nenhuma idéia para ajudar o marido, e por isso, sentia-se
impotente naquele instante.
Com sua experiência de espírita, Edvaldo fechou os olhos e
fez uma oração, mas não conseguiu mudar aquela situação,
porque o ambiente não estava preparado e ele sentia-se mal.
Então, ao ouvir risos e choro, ficou com medo e não pôde
continuar em prece.
Tudo o que é desconhecido intimida, e é por isso que o
sobrenatural deixa-nos temerosos com algo que não sabemos
explicar, principalmente quando se trata de seres extra-
físicos.
A noite já estava chegando, quando Albert viu o espírito
Louis e partiu para esbofeteá-lo, dizendo-lhe:
- Cão imundo! Você também não morreu? Pois vou acabar
com a sua vida com as minhas próprias mãos, seu covarde!
Iolanda viu o marido gesticular, como se tivesse agarrado
alguma coisa. Ela olhou para Edvaldo e o viu paralisado, sem
ação. Aproximou-se dele e perguntou:
- O que está havendo, Edvaldo?
- Ouço risos e um choro sofrido.
- Você está sentindo algo? - perguntou a mulher notando a
palidez dele.
- Sim. Sinto frio e um mal-estar indescritível.
No mesmo instante a mulher saiu daquela inércia e também
começou a se apavorar. O aspecto do marido causava-lhe
medo e uma dor terrível no peito, ao vê-lo naquela situação
caótica, praticamente louco e totalmente entregue às
entidades inferiores, como entendem os espíritas.
- Você tem idéia do que está acontecendo?
- Mais ou menos. Como sou sensitivo, deve ser por isso que
estou captando as sensações de um dos espíritos que
apareceram para o Dr. Albert. Talvez seja o sofrimento da
Dra. Carla, que estou sentindo nesse momento. Não se
preocupe, dona Iolanda. É normal acontecer isso com as
pessoas que percebem o lado espiritual.
Albert havia tirado o paletó e arregaçado as mangas da
camisa, como se estivesse desafiando alguém para uma briga
corpo a corpo, enquanto falava coisas que ninguém
entendia. Ele babava, gritava e rasgava a camisa que trajava.
Os empregados desapareceram como num passe de mágica.
Iolanda olhou para Edvaldo.
- E agora, o que vamos fazer? - perguntou a esposa do
homem.
- Não vejo alternativa, a não ser chamar o Dr. Maurício.
Telefonaram para o médico. Em poucos minutos o Dr.
Maurício entrou na mansão e viu o paciente totalmente
descontrolado. Ele ficou alguns momentos em silêncio,
apenas observando aquele homem e tentando descobrir,
através de seus conhecimentos científicos, o que estava
acontecendo com o empresário, pois tinha certeza absoluta
que o mesmo não estava louco.
O médico aproximou-se do Dr. Albert e o cumprimentou,
mas o doente riu e disse-lhe:
- Dr. Maurício, ajude-me a pegar esse safado! Vou torcer o
pescoço dele com as minhas próprias mãos!
O médico se assustou e percebeu que o estado do Dr. Albert
era muito mais grave do que pensava. Caminhou em direção
à dona Iolanda, que estava em pé junto a Edvaldo num canto
da mansão.
- Então, doutor, o que vamos fazer?
- Interná-lo novamente.
- Faça o que for necessário, doutor - permitiu Iolanda.
Em poucos minutos, uma ambulância adentrou o jardim da
bela mansão conduzindo, além do motorista, dois
enfermeiros truculentos, treinados para aquele tipo de
situação.
Ao sinal do Dr. Maurício, os dois enfermeiros manietaram o
pobre doente e um deles aplicou uma injeção que teve um
efeito quase imediato.
Acomodaram o Dr. Albert na ambulância, vestido numa
camisa-de-força, e partiram para o hospital.
Iolanda ficou chorando. Ela não conseguia aceitar o que se
passava com o marido, e embora compreendesse
perfeitamente os ensinamentos espíritas, há momentos em
que precisamos ter muita fé em Deus para não desabar e
deixar de acreditar em tudo, principalmente nos espíritos
inferiores que habitam mundos como o nosso.
Edvaldo pensava: "Acho que agora, ele chegou ao estado
máximo de uma obsessão: a subjugação".
Os empregados reapareceram desconfiados. A empregada
mais velha, ama de leite de Hugo, estava com um terço na
mão, rezando pelo patrão, que mesmo sendo tão mal, era
muito amado por ela, porque fora ele que lhe estendera a
mão no momento em que mais precisava.
Iolanda convidou Edvaldo a acompanhá-la ao seu escritório
particular.
- Patroa, já está ficando tarde. Ainda vou para o centro
espírita.
- Edvaldo, por favor, fique mais um pouco. Não estou me
sentindo bem.
- Posso imaginar o que a senhora está sentindo.
A mulher desabou a chorar, como se naquele momento,
pela primeira vez, estivesse dando vazão à sua dor de esposa
e mãe. Ela tremia, enquanto as lágrimas desciam pela sua
face ainda bela.
Edvaldo fez uma prece e aplicou um passe na patroa.
- Não sei se vou agüentar tanto sofrimento, meu amigo -
disse Iolanda.
- Tenha fé em Deus, dona Iolanda. O Pai jamais abandona
Seus filhos.
- Abateu-se sobre a minha família tanta desgraça em tão
pouco tempo, que não posso acreditar que tudo isso esteja
acontecendo. Às vezes, penso que é somente um pesadelo.
Edvaldo estava em silêncio, apenas ouvindo o desabafo
daquela mulher tão rica e sofredora.
- Daria tudo o que tenho para estar ao lado do meu marido e
do meu único filho. Por onde você andará, meu filho? -
falou a mulher.
A mulher começou a chorar novamente ao se lembrar do
filho amado.
- Dona Iolanda, não se preocupe com o Dr. Hugo. Talvez ele
esteja bem, apenas esperando uma oportunidade para voltar
para casa - disse-lhe o funcionário, tentando consolá-la.
- Que você esteja falando pela boca de um anjo, meu
querido amigo! No entanto, acho difícil que o meu Hugo
volte para esta casa.
Na clínica de repouso, o empresário já se encontrava deitado
e manietado pela camisa de força. Babando e com os olhos
esgazeados, ele tentava falar, pois o medicamento não havia
surtido o efeito esperado, ou seja, não o dopara por
completo.
O Dr. Maurício estava em pé, olhando o paciente deitado na
cama. "Não consigo aceitar que ainda hoje, a ciência não
tenha formulado medicamentos ou criado meios para curar
uma pessoa que perdeu a razão. A ciência terá que se aliar à
religião para progredir nesse campo tão delicado, que é a
mente?".
Uma enfermeira pediu licença e perguntou ao médico:
- Quando o Dr. Albert acordar, podemos deixá-lo livre?
- Avisem-me antes. Não posso confiar nesse homem, e se
acontecer alguma desgraça, já sabem de quem é a
responsabilidade.
- O senhor tem razão, doutor.
Carla estava num canto do quarto da clínica falando
palavrões e rindo por qualquer coisa.
- Ouviu o que esse maluco do Dr. Maurício falou, amigo? -
perguntou Carla ao espírito Louis.
- Vamos acabar com ele também?
- Não. O Dr. Maurício foi meu professor na faculdade e é
gente boa.
Após alguns minutos de silêncio, Carla volta a perguntar:
- Como faremos para acabar com a vida desse maldito
Albert?
- Deixe de ser maluca! Ninguém morre!
- O quê? - surpreendeu-se Carla.
- Exatamente. Há muitos anos fui executado na França e até
agora não consegui morrer. Só vim compreender isso, após
um século que havia deixado o mundo dos vivos.
- O mundo dos vivos? Que história é essa? - perguntou
Carla, com os olhos arregalados.
- Sim, minha cara. Informaram-me que esse mundo onde as
pessoas têm um corpo é o mundo dos vivos, e esse em que
estamos é o mundo dos mortos - disse Louis.
- Que loucura é essa? Não acredito nisso! Sou médica e não
acredito nessas bobagens de religiosos fanáticos! Não existe
um mundo de vivos e outro de mortos!
- É modo de falar...
- E qual é a verdade mesmo? - perguntou Carla, com uma
cara de quem sofria muito.
Louis riu como um louco.
- Veja essa marca em meu pescoço - disse Louis, mostrando
o pescoço para Carla.
- Estou vendo... E daí?
- É a marca de uma corda.
E completou, como se estivesse relembrando o momento:
- Fui executado por enforcamento, por ordem do rei da
França.
- E por que você está vivo? - perguntou Carla.
- Porque não morremos nunca, minha cara.
- Não acredito nessa bobagem!
- É verdade. Já tentei me matar várias vezes, por não
agüentar mais tanto sofrimento, e não consigo morrer - disse
Louis. - Em alguns lugares por onde passei, me disseram que
somos imortais.
- Não posso acreditar nisso! - disse Carla, que no mesmo
instante passou a correr e a gritar pelas ruas da cidade.
Louis ficou ao lado de Albert.
- Lembra que fui seu melhor general nas batalhas e que você
nunca admitiu derrotas, fazendo de tudo para vencer, nem
que para isso tivesse que sacrificar parentes, amigos e até a
própria esposa? - perguntava Louis ao obsedado.
Louis ria e ora aparecia vestido como um guerreiro,
empunhando uma espada, ora com uma roupa de gala de
uma época distante.
- Lembra, excelência, das batalhas que ganhamos? Você era
mais temido e poderoso que o rei, aquele pobre coitado!
Albert sentiu a presença de Louis e começou a gritar,
fazendo para isso um esforço muito grande, pois estava
dopado.
As enfermeiras se apressaram e viram o empresário se
contorcendo na cama.
- Coitado, enlouqueceu de uma vez - comentou uma delas.
- Pessoal, vamos tomar cuidado. Ele pode fazer uma loucura
consigo mesmo, e aí sim, estamos perdidas - comentou
outra.
- Vocês já pensaram na repercussão negativa que a clínica
teria se acontecesse algo com alguém da posição do Dr.
Albert? - perguntou a enfermeira-chefe.
- Nem gosto de pensar nisso - comentou a que tentava
acomodar o paciente. - Bem, vamos embora. Ele não oferece
mais perigo, pelo menos, por enquanto.
Capítulo XVI
Pai descobre porque a filha se suicidou
A situação na residência de Edmundo permanecia a mesma,
mas a família, mesmo se acostumando àquele momento pelo
qual passava, ainda tinha esperança de que Isabel se
recuperasse, com a ajuda da Doutrina Espírita.
Edmundo acordou cedo e levantou-se bem disposto.
Dirigindo-se à sala de refeições, ele passou pelo bar da
residência e assim que o avistou, foi como se tivesse sido
hipnotizado pelas garrafas de bebida. Chegou até a pegar um
copo, mas hesitou: "Não vou beber. Não sou obrigado a
continuar bebendo. Onde está a minha força de vontade?".
Olhou para o copo e o recolocou no lugar, indo para a
cozinha.
Surpresa por ver patrão de pé tão cedo, a empregada
apressou-se em atendê-lo.
- Bom dia, patrão. O senhor deseja alguma coisa?
Edmundo cumprimentou-a com um sorriso simpático e
pediu:
- Por favor, faça um café forte para mim.
- Aguarde um minuto, patrão.
Edmundo foi para o jardim meditar. Assim que Augusto
acordou e se preparou, ele desceu e foi de encontro ao pai,
cumprimentando-o com um sorriso e fazendo um afago nas
costas dele.
- Bom-dia, pai. O senhor está com uma boa aparência.
- Graças a Deus. Eu estava pensando, meu filho... Acho que
irei amanhã ao escritório, para tomar pé de toda a situação e
tentar salvar alguma coisa do nosso patrimônio.
- É assim que se fala, papai! Estou gostando de vê-lo tão
otimista.
- Hoje, quando pensei em tomar uma dose, entendi que não
posso continuar bebendo. Por isso, vou tentar largar esse
vício aos poucos.
- Fico feliz com essa notícia.
- Meu filho, espero ter força suficiente para lutar contra essa
situação drástica que se abateu sobre a nossa família. Senão,
o que sua mãe vai pensar de mim quando chegar?
- É verdade. O Dr. Jacinto disse que a mamãe está muito
bem e receberá alta, talvez, ainda nesta semana.
- Será que ela está curada mesmo, Augusto?
- Segundo o Dr. Jacinto, não há porque ela continuar
internada - respondeu o filho, fazendo um afago no pai e
dirigindo-se para o seu carro.
Após um certo tempo, Edmundo interrompeu seus
pensamentos ao receber a bandeja que a empregada havia
trazido para ele.
Ele abriu o jornal que a empregada trouxera e, após ler
algumas notícias, o fechou e o colocou em cima de uma
mesa que estava ao seu lado. "Vou visitar o quarto de Carla.
Desde que ela morreu, ninguém mais entrou naquele
quarto", pensou. Então, imediatamente ergueu-se e se dirigiu
para o quarto que pertencera à filha.
Ao abrir a porta do dormitório, Edmundo sentiu o pó
penetrar em suas narinas, pois havia quase dois anos que
ninguém entrava lá. Ele caminhou em direção à janela e a
abriu, clareando o ambiente. Sentou-se na cama e começou
a esquadrinhar o lugar, que fora o palco de uma tragédia
gravada para sempre na memória dos que presenciaram o
estado de Carla, naquele momento terrível. No mesmo dia,
ele proibiu qualquer pessoa de entrar lá; além disso,
deveriam deixá-lo do mesmo jeito que estava quando a filha
se suicidou.
- Como estou satisfeito com a Doutrina Espírita - disse em
voz alta. - Se não fossem as informações dessa Doutrina,
acho que eu não teria tido forças para superar toda essa
tragédia que envolveu a minha família.
Edmundo observava o quarto da filha, sem tocar nos objetos.
Viu os bichinhos de pelúcia empoeirados nas prateleiras que
adornavam as paredes. Abriu o armário cheio de roupas,
sapatos, livros e estojos de maquiagem, e pensou ao vê-los:
"Vou doar tudo isso para uma casa de caridade,
possivelmente para o centro que freqüento, para ajudar nos
bazares de usados que ele promove". Relanceando o olhar
pelo ambiente, viu uma bolsa em cima de uma cadeira e,
com receio de invadir a privacidade dela, pensou: "Mesmo
nessa situação, não está certo abrir a bolsa de alguém, sem
permissão". Então se afastou; todavia, como a curiosidade
ainda é algo inerente às imperfeições dos espíritos atrasados,
voltou e pegou a bolsa, não tocando em nada, e disse para si
mesmo: "Vou pedir para a mãe dela verificar o que tem de
importante nessa bolsa, para doá-la também". Mas antes de
fechar a bolsa, viu um receituário. Pegou-o e falou em voz
alta:
- A Carla seria uma grande médica...
Entretanto, enquanto novamente guardava o receituário na
bolsa, ele viu algumas palavras em sua capa. Sem muito
interesse pelo que estava escrito, Edmundo começou a
empalidecer ao ler a acusação escrita com a letra da filha.
Desorientado, sentou-se na cama com os olhos fixos naquela
frase: "Albert, você acabou com a minha vida!".
Edmundo ergueu-se, colocou o receituário dentro da bolsa e
desceu apressado, indo direto para o bar. Serviu-se de um
copo cheio de bebida e a sorveu de um gole só. Depois,
sentou-se no sofá da sala e tentou refletir: "O que o Dr.
Albert tem a ver com a morte da minha filha? Eu sei que ele
não aceitava o namoro entre ela e Hugo, mas por que a Carla
escreveria isso?" E como se tivesse sido impulsionado por
uma mola, levantou-se decidido e se dirigiu para a casa do
Albert.
- Dona Iolanda, o senhor Edmundo encontra-se na sala de
espera anunciou um empregado. - Ele parece nervoso e quer
falar urgentemente com a senhora.
- Por favor, avise que já vou atendê-lo.
"Estranho... O que será que o Edmundo quer comigo?",
perguntava-se Iolanda.
Ao entrar na sala, a esposa de Albert viu o homem
caminhando inquieto pela sala.
- Bom dia, Edmundo. Seja bem vindo à nossa casa.
- Bom dia, Iolanda.
- Há quanto tempo não nos vemos, não é mesmo? - disse a
mulher. - Como vai a Isabel?
- Ela está bem. Talvez ela tenha alta, ainda nessa semana.
- Graças a Deus. Pena que não posso dizer o mesmo de
Albert. - Por que, Iolanda?
Ele teve de voltar à clínica, sedado e manietado por uma
camisa de força.
"Coitada. Será que é certo tirar minhas dúvidas num
momento como esse? Bem, preciso saber o que houve entre
a Carla e o Dr. Albert", refletia Edmundo.
- O que está acontecendo, Edmundo?
O homem passou a mão na cabeça meio vacilante.
- Dona Iolanda, apesar do Dr. Albert não estar bem, preciso
lhe fazer uma pergunta - disse o homem armando-se de
coragem e seguindo firme em seu propósito.
- Fique à vontade - disse a esposa do empresário, tentando
manter-se tranqüila, porém não conseguia, pois sabia que a
pergunta do pai de Carla não era boa.
O homem pensou por um instante e logo revelou:
- Encontrei algo na capa de um receituário da Carla que me
deixou confuso.
- Pode falar, Edmundo - a bela senhora tentou encorajá-lo.
- Encontrei uma frase que dizia: "Albert, você acabou com a
minha vida!".
A mulher ergueu-se nervosa e perguntou:
- O que você quer saber, meu caro Edmundo?
- A senhora sabe por que a minha filha escreveu essa frase
tão.. .
- Comprometedora? - completou Iolanda.
- Sim. Comprometedora.
Iolanda sentou-se num sofá próximo a Edmundo e ficou
calada. Edmundo sentiu novamente vontade de beber, mas
se controlou e tentou se concentrar apenas na situação.
- Você não sabe qual o conteúdo da conversa que eles
tiveram, antes dela cometer aquele ato tresloucado contra a
própria vida? - perguntou a esposa de Albert.
- Não. Sei apenas que ele não aceitava o namoro dos nossos
filhos e que as coisas pioraram depois de saber que a minha
filha estava grávida do Dr. Hugo.
"Ele não sabe da história, na íntegra. Será que devo contar
tudo que aconteceu?", pensava.
Muito nervosa, Iolanda ergueu-se e passou a caminhar pela
sala, respirando com uma certa dificuldade. Mais calma,
sentou-se novamente perto do pai de Carla e narrou toda a
história, com voz vacilante e pausada, tentando não omitir
nenhum detalhe importante, para que Edmundo pudesse
compreender o que havia se passado entre Albert e a filha
dele.
Edmundo ficava ofegante à medida que ouvia a mãe de
Hugo, e não se contendo, enxugou discretamente, com um
lenço que havia retirado do bolso, as lágrimas que desciam
pelo seu rosto.
- E isso é tudo que sei - finalizou ela. - Você tinha o direito
de saber a verdade. Pensei que o meu filho havia lhe
contado o que realmente aconteceu.
Após um longo silêncio, Edmundo se aproximou da esposa
do empresário e estendeu-lhe a mão, em sinal de respeito.
Em seguida, ainda sem falar nada, deixou a bela mansão.
Já era quase meia-noite e Augusto se encontrava
visivelmente ansioso e com a mente recheada de
pensamentos negativos, à espera do pai. Sentado num
recanto discreto do alpendre, perguntava-se aflito: "Será que
o papai voltou a beber?".
Poucos minutos depois, um carro atravessou o jardim e
parou em frente à residência. Augusto ergueu-se e foi de
encontro ao pai que, agora, descia do veículo.
Augusto ficou surpreso ao ver que o pai havia ingerido
pouca bebida alcoólica e estava sóbrio.
Edmundo abraçou o filho e começou a chorar.
- O que houve, papai?
- Sua irmã foi assassinada pelo crápula do Albert! - disse-lhe
o pai desesperado.
Augusto colocou a mão no ombro do pai e o levou para casa
em silêncio, talvez procurando palavras que pudessem ajudá-
lo naquele momento.
Ambos sentaram-se nos confortáveis sofás que decoravam a
ampla sala de visita da família. Assim que se acomodaram,
Edmundo disse:
- Fui na residência de Albert e Iolanda me contou toda a
história.
"Ele já sabe de tudo", pensou Augusto.
Silêncio.
- Meu filho, eu tomei três copos de vinho e rodei esta cidade
inteira, atormentado pelos meus pensamentos.
Augusto ficou de sobreaviso.
- Por quais pensamentos, pai? - perguntou o filho, receoso
com a resposta que poderia ouvir.
Edmundo encarou o filho e respondeu enérgico, sem
vacilar:
- Eu pensava numa maneira de mandar para o inferno aquele
velho asqueroso e orgulhoso! Aquele assassino, Augusto!
Augusto se assustou com o que acabara de ouvir.
- Em matar o Dr. Albert?
- Isso mesmo, filho - confirmou o pai. - Vou matar o todo
poderoso desta cidade, o assassino de minha filha!
"Meu Deus, o que faço para impedir mais uma desgraça em
nossa família?", tentava Augusto encontrar forças.
Edmundo chorava em silêncio.
- Agora, entendo o conflito, a angústia e, sobretudo, a
humilhação que a minha filha sofreu - disse ele. - Acho que
ela ficou tão perturbada, que não encontrou outra solução a
não ser acabar com a própria vida.
O filho aproximou-se do pai e ficou em silêncio, enquanto
passava a mão na cabeça dele. Depois começou a falar com
naturalidade:
- Papai, é difícil saber o que aconteceu com a minha irmã no
dia de sua morte. Todavia, desculpe-me por falar isso, mas
nenhum ser humano pode tirar sua própria vida. Nada
justifica um ato como esse, pois este corpo que usamos,
enquanto estamos encarnados, é um presente de Deus, que
serve para o nosso aprendizado na matéria.
- O que você quer dizer?
- Que embora a Carla tenha tido motivos suficientes, em
virtude da maldade do Dr. Albert, ela não poderia haver se
suicidado - disse o rapaz, com lágrimas nos olhos. - Não
precisava ter chegado a esse ato extremo, pois cuidaríamos
dela e do meu sobrinho com carinho e amor e, hoje, ela não
estaria sofrendo e fazendo tanta gente infeliz.
- Você está me dizendo que a Carla estava errada ao se
suicidar, mesmo depois do que passou por causa do Dr.
Albert?
- Papai, não me julgo com o direito de dizer o que é o certo
ou errado - respondeu o filho muito emocionado que, afinal
de contas, falava de sua querida irmã suicida.
Augusto ergueu-se e foi até seu quarto, voltando com "O
Evangelho Segundo o Espiritismo" nas mãos. Sentou mais
próximo ao pai e pediu-lhe:
- Pai, por favor. Ouça o que Allan Kardec, o codificador do
Espiritismo, fala a respeito dos suicidas.
- Augusto, você está começando a ficar fanático. Há coisas
que não podemos esquecer e nem fechar os olhos, como se
nada tivesse acontecido.
- Concordo, pai - disse o filho. - Mas deixe-me ler um
pequeno trecho deste Evangelho, que se encontra no
número dezesseis, do capítulo quinto.
Edmundo calou-se.
Augusto começou a ler:
- A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias
materialistas, numa palavra, são os maiores excitantes ao
suicídio: elas dão a covardia moral. Quando se vêem homens
de ciência se apoiarem sobre a autoridade do seu saber para
procurarem provar aos ouvintes, ou aos seus leitores, que
eles nada têm a esperar depois da morte, não os conduzem a
essa conseqüência de que, se são infelizes, nada têm melhor
afazer do que se matar? Que lhes poderiam dizer para disso
desviá-los? Que compensação poderiam lhes oferecer? Que
esperança poderiam lhes dar? Nenhuma coisa senão o nada.
De onde é preciso concluir que se o nada é o único remédio
heróico, a única perspectiva, mais vale nela cair imedia-
tamente que mais tarde e, assim, sofrer por menos tempo.
(...)
O rapaz fechou o livro e ambos ficaram em silêncio por um
momento, cada qual entregue aos seus pensamentos.
- Como encontraremos coragem, no lugar de covardia, para
enfrentarmos uma situação tão difícil como essa, que só
pode ser descrita por quem passa por ela? - perguntou o pai.
- Sua irmã deve ter tido o inferno dentro de si, antes de
tomar essa decisão fatal.
- Concordo. Mas o senhor também sabe que a minha irmã
dizia sempre que só acreditava na ciência e que religião era
coisa de velho ou gente ignorante - disse o filho, com pesar
na voz.
Depois de meditar no trecho lido do Evangelho, Edmundo
ergueu-se e abraçou o filho com lágrimas nos olhos.
- Perdoe-me, meu filho! Deus, como ainda somos frágeis!
Augusto não respondeu. Limitou-se a abraçar o pai pelos
ombros e ambos se retiraram para os seus quartos, em
silêncio.
Capítulo XVII
Eu não morri!
No dia seguinte, enquanto o Sol desmaiava no horizonte,
deixando a noite cobrir a cidade com o seu manto escuro, o
Dr. Augusto caminhava impaciente pelo jardim da casa,
bastante nervoso, à espera do pai, que ainda não havia saído
do quarto e nem se alimentado durante o dia. Ele temia que
Edmundo estivesse tramando algo contra a vida do Dr.
Albert.
- Por favor, vá chamar o papai - pediu Augusto à empregada,
não suportando mais a ansiedade.
- Sim, senhor.
Alguns minutos depois, Edmundo apareceu com a aparência
de quem ainda não havia dormido, passando as mãos nos
cabelos com gestos nervosos e a feição de quem estava
preocupado com algo.
- O que houve, pai?
O pai acenou para o filho e se dirigiu a um banco do jardim,
sem responder a pergunta.
Augusto acompanhou o pai em silêncio e ambos sentaram-
se no mesmo banco.
Com o semblante contraído e pálido, Edmundo fitava um
ponto qualquer do belo jardim, quando passou a mão no
rosto, ergueu-se, foi até a uma roseira e lá parou por alguns
instantes. Depois voltou, sentou-se novamente e perguntou
ao filho:
- Você lembra quem plantou esse jardim?
- É óbvio que lembro. Foi a mamãe e a Carla, quando esta
casa ainda estava em construção.
- Como elas eram felizes naquela época, meu filho!
Finalmente conseguíamos construir uma bela casa, e uma
como essa sempre foi o maior sonho da sua mãe!
Augusto mantinha-se em silêncio, apenas ouvindo o
desabafo do pai, através daquelas belas lembranças que já
iam longe, num passado no qual realmente foram felizes,
pois foi à custa de muito trabalho que Edmundo havia
conseguido construir um belo patrimônio, coroando todo o
êxito de uma vida com a construção daquela mansão.
Silêncio.
Edmundo passou o lenço no rosto, as mãos na camisa -
como se estivesse se preparando para um ritual - e cruzou as
pernas, surpreendendo o filho. Logo, se pôs a falar com o
olhar perdido no jardim:
- Ontem à noite, enquanto me trocava para deitar, olhei para
minha cama e numa fração de segundos vi sua irmã sentada
ao meu lado. Fiz uma prece e não consegui mais dormir.
Passei o dia pensando em mil coisas, e só quando meditei
sobre o que conversamos é que tive um pouco de paz e
pude adormecer por alguns minutos.
Nesse exato momento a empregada anunciou a visita do Dr.
Jacinto, que prontamente foi recebido por Edmundo e o
filho, com os cumprimentos de praxe, e depois todos se
encaminharam para a sala de visita. Já acomodados, notava-
se que eles apresentavam os semblantes carregados, embora
tentassem dissimular seus sentimentos.
Impaciente e discretamente, Augusto se aproximou do pai e
perguntou-lhe, sussurrando:
- Como estava a Carla?
- Ela apresentava um aspecto horrível. Sua aparência
causaria comoção em qualquer um que tenha o mínimo de
sensibilidade.
Sem querer ser indiscreto, o Dr. Jacinto não pôde deixar de
ouvir o diálogo entre eles, todavia não fez nenhum
comentário, em respeito à confidencia entre pai e filho.
Após conversarem sobre assuntos menos importantes, os
homens ergueram-se e o Dr. Jacinto convidou:
- Vamos, meus amigos. Já está ficando tarde.
- Vamos, senão perderemos a reunião no centro espírita -
anuiu Augusto, olhando significativamente para o pai.
Carla, que ouvira a conversa entre eles, resolveu
acompanhá-los para saber o que eles iam fazer naquele lugar,
sobre o qual já havia ouvido falar e que acreditava ser um
ambiente freqüentado por gente maluca e fanática.
No centro espírita, Carla resolveu sentar-se ao lado do pai e
do irmão, perto da tribuna - local onde alguém faria uma
palestra dentro de poucos minutos -, com o objetivo de
descobrir o que estava acontecendo com ela, pois desde de
algum tempo ansiava por aquela oportunidade. No entanto,
ela não sabia que uma pessoa de aspecto bondoso tentava
ajudá-la - seu protetor espiritual -, aplicando-lhe passes para
diminuir sua dor e desequilíbrio, durante a palestra pública.
A tribuna do centro espírita era simples, e ao seu redor se
sentou o dirigente da reunião, o palestrante da noite, além
de outros trabalhadores da casa.
Após a prece inicial, um jovem de aspecto sério e simpático
ergueu-se e falou para o pequeno público:
- Meus queridos irmãos, hoje nós iremos falar sobre o
capítulo quinto e, principalmente, sobre o capítulo quatorze
de "O Evangelho Segundo o Espiritismo" - o suicídio e a
loucura.
Augusto olhou de soslaio para o Dr. Jacinto e o pai, como se
estivesse querendo dizer algo.
Carla se inquietava à medida que o orador discorria sobre o
assunto, e sem se conter e bastante assustada com o que
ouvia, começou a gritar:
- É tudo mentira desse impostor!
O orador prosseguiu protegido pelos espíritos do bem,
responsáveis pelo funcionamento da instituição religiosa e
por aquela reunião pública.
- Sou médica e a ciência nunca provou essa tal imortalidade!
Isso é bobagem de pessoas ignorantes, sem conhecimento
acadêmico, e que nunca puderam estudar Filosofia! - gritava
Carla totalmente desequilibrada, blasfemando contra as
divindades.
Edmundo começou a suar frio. Arregaçou as mangas da
camisa e passou um lenço no rosto, tentando enxugar aquele
suor indesejado.
Notando o mal-estar que o pai sentia, Augusto não deixou de
perceber sua palidez e a forma como apertava o estômago,
como se estivesse sentindo uma dor insuportável.
- O senhor está bem? - perguntou ele, preocupado com o
pai.
- Sinto um grande mal-estar. Uma sensação horrível, e
parece que estou ouvindo sua irmã gritar.
- Eu não morri! E como o efeito desse veneno miserável não
foi suficiente para tirar-me a vida, prometo que não vou
tentar o suicídio novamente, senão, vou acabar matando
meu filhinho! - dizia Carla, embalando uma criança que não
existia.
O orador continuou sua preleção.
- Portanto, meus irmãos, Allan Kardec encerra esse assunto,
sobre o suicídio e a loucura, com o último parágrafo do
número dezesseis, do mesmo capítulo: "(...) Comparando-se,
pois, os resultados da doutrinas materialistas e espírita, sob o
único ponto de vista do suicídio, vemos que a lógica de uma
a ela conduz, enquanto que a lógica da outra dele desvia, o
que está confirmado pela experiência".
- Mentira! - berrou Carla, erguendo-se, dando um murro no
ar e desmaiando em seguida, de tanta dor.
O palestrante da noite deu por encerrada suas considerações
evangélicas.
Após a reunião, o Dr. Jacinto, Augusto e Edmundo
conversaram um pouco, antes de irem embora.
No carro, pai e filho mantinham-se calados.
Assim que acordou, Carla saiu correndo da sala onde
desmaiou e foi direto para clínica de Albert. Ela corria
desesperada, sempre reclamando que estava muito cansada.
"Hugo, onde está você?", perguntava-se, enquanto vários
bandoleiros do além a seguiam gritando:
- Beleza, vamos brincar? - convidou um deles tentando
agarrá-la.
- Solte-me, seu imundo!
Os espíritos gargalhavam como se fossem alienados.
- Vou matar com as minhas próprias mãos, aquele homem
asqueroso que me tirou o amor de minha vida! - dizia ela,
fechando as mãos num gesto de quem ia esmurrar alguém.
Na clínica de repouso, Albert estava inquieto. Os
medicamentos que lhes eram administrados não estavam
mais fazendo efeito, preocupando os médicos,
principalmente o Dr. Maurício, que já havia feito de tudo e
não conseguira mudar o estado de saúde de seu paciente.
Assim que entrou no quarto de Albert, o espírito Carla ficou
completamente louco. Pulou no pescoço do empresário e
começou a gritar no ouvido dele:
- Crápula nojento! Eu vou matá-lo com as minhas próprias
mãos! Enquanto eu viver, você jamais terá paz! Vou
infernizá-lo até sua morte, seu cretino e assassino do próprio
neto! - esbravejava ela do lado espiritual.
Albert começou a gritar, chamando a atenção do pessoal da
clínica. O Dr. Maurício ordenou que lhe fosse administrada
uma dose altíssima de tranqüilizantes, pois achava muito
perigoso o estado no qual o paciente se encontrava. Logo,
em poucos segundos, o empresário se acalmou e ficou
encolhido, tentando falar algo, mas não pôde devido ao
efeito do medicamento. Ele estava todo retorcido e tinha os
lábios inferiores caídos, o que o fazia babar
involuntariamente.
Abraçado ao seu desafeto de séculos passados, Louis fitou
Carla e disse-lhe, rindo como um louco:
- Muito bem! Vamos acabar com esse animal!
Louis aproximou-se da mulher e disse-lhe em seu ouvido:
- Temos de nos cuidar agora, minha cara. Se ele enviar
alguma ordem para sua guarda particular, ainda hoje, nós
seremos executados.
- Louis, há quanto tempo esse homem mandou matá-lo? -
perguntou ela.
- Há mais de três séculos.
Carla sentou-se num canto da clínica e ficou em silêncio,
tentando concatenar as idéias num segundo de sobriedade.
- O que houve, Carla?
- Não sei. O pessoal do lado de cá diz que somos imortais.
Também já me levaram em locais estranhos, onde também
ouvi dizer que somos espíritos imortais.
Nesse exato momento um homem com aspecto feroz, que
conduzia um chicote, e dois acompanhantes, que se
portavam como seus seguranças, entraram no ambiente. As
três figuras apresentavam um aspecto aterrorizante.
Louis levantou-se tremendo, demonstrando bastante medo
daquele espírito com feições animalescas, pois tudo naquele
homem era asqueroso e ele não se assemelhava a um ser
humano.
Louis tentou se desculpar, caindo de joelhos aos pés daquele
ser:
- Patrik, meu senhor! Ainda não consegui levar esse imundo
para a nossa cidade!
- Quem é essa? - perguntou Patrik, apontando para Carla.
- Meu amo, essa é a mulher da qual lhe falei.
- Aquela que pensa que morreu através de um suicídio?
- Exato.
- Coitada - disse o homem, gargalhando espalhafatosamente.
Patrik estava sujo de sangue, tinha cabelos longos e
desgrenhados e, com um olhar de pura maldade, carregava
uma espada. Apesar de sua indumentária estar
completamente esfarrapada, dando-lhe uma aparência
sofredora de mendigo, ele não perdia a pose de quem era
acostumado a mandar e ser obedecido.
Ao ver aquele homem, Carla encolheu-se no canto do
quarto, amedrontada com o ar sombrio estampado no rosto
dele.
Patrik aproximou-se do espírito sofredor e disse-lhe, com
um sorriso de deboche:
- Agora, você faz parte da minha falange de espíritos que
não obedecem a ninguém, a não ser a mim. Eu sou o senhor
desta região!
- Não obedeço a ninguém, muito menos, um ignorante, sujo
e mal educado como você!
Mal terminara de pronunciar estas últimas palavras e Carla
saiu voando pelo quarto com o soco que aquele ser lhe dera.
Ela cuspiu e sentiu o gosto de sangue na boca.
- Quem manda em todos vocês, sou eu! Entendeu?
Carla nada respondeu.
Louis, na primeira oportunidade que tiver, leve esta mulher
para falar comigo, em meu castelo.
- Certo, meu chefe.
Patrik olhou para Carla e ordenou-lhe:
- Quero que você continue desequilibrando esse maldito.
Meu projeto é conduzi-lo para o nosso mundo, pois ele teve
sua oportunidade e não soube aproveitar.
- Você o conhece? - perguntou o espírito Carla.
- Fomos amigos.
- Por que você o odeia tanto?
- Ele me matou num duelo e tomou todas as minhas
propriedades, inclusive, minha esposa Elizabeth.
- Mas você ainda está vivo - comentou Carla.
O homem riu, girou nos calcanhares e deixou o quarto, sem
retrucar o comentário da mulher.
- Por que ele saiu rindo, Louis?
- Porque a morte não existe, Carla.
- Não posso acreditar nisso. Olhe para mim: estou viva,
porque o veneno que ingeri não fez o efeito esperado.
Louis gargalhou como se tivesse ouvido uma piada.
- Você não morreu mesmo, porém, não pertence mais o
mundo material.
- Então, prove o que você está dizendo.
- Acompanhe-me.
Em frações de segundos, ambos se dirigiram para um grande
cemitério. Era noite e havia um movimento muito grande
de pessoas. Umas choravam, outras estavam deitadas sobre
os túmulos e algumas cavavam o chão com as próprias mãos,
como se procurassem algo. Enfim, o espetáculo era inédito e
macabro.
Louis fitou Carla, após aproximar-se de um túmulo.
- De quem é aquela fotografia e aquele nome? - perguntou
Louis, apontando para uma cruz posta sobre um túmulo em
especial.
Carla aproximou-se e, à medida que lia, empalidecia e
começava a se transformar.
- Não é possível! Não posso estar enterrada aí! - gritava
Carla, desesperada.
- Então, certifique-se da verdade.
- Como? - perguntou Carla.
- Olhe dentro do caixão e veja se aquele é mesmo o seu
corpo.
Com as mãos na cabeça, Carla se desesperou ao pensar na
proposta de Louis, e imediatamente se viu atraída para
dentro de um caixão, sentindo-se como o cadáver que nele
estava sepultado. Gritou apavorada, ao ver os vermes
passearem sobre o que restou daquele bonito corpo, e não
agüentando mais aquele pesadelo, sentiu-se sufocar. Tentou
abrir o caixão com as mãos e não conseguiu, e como seu
sofrimento era enorme, ela perdeu os sentidos e desmaiou.
Quando voltou a si, estava deitada na lápide de seu próprio
túmulo, contorcendo-se de dores no estômago. Suando
muito e padecendo, ela gritava alucinada:
- Eu quero morrer!
Capítulo XVIII
Carla no cemitério
No horizonte, paulatinamente, os raios de sol anunciavam
sua chegada para clarear a Terra, enquanto a lua pálida e
quase tétrica, aos poucos deixava de iluminar o cemitério,
escondendo-se dos raios do astro rei. Na madrugada fria e
triste, um vento insistente uivava por entre os galhos das
árvores, verdadeiras guardiãs daquele lugar onde são
guardados os corpos que um dia os espíritos animaram, por
ora, vivendo na pátria espiritual.
Carla ergue-se da lápide com a mão no ventre e começa a
perambular pelo cemitério, ora rindo como louca, ora
gritando e gemendo de dor.
- Será que morri mesmo? - questionava-se em voz alta,
como se falasse com o vento. - Mas estou viva... Como vou
entender isso?
O dia chegou e o espírito ainda caminhava ao léu pelo
cemitério. Somente quando um certo homem chamou sua
atenção, é que ela sentou-se no chão e começou a observar
o desconhecido. O tal homem estava bem vestido -
demonstrando em seus traços que ainda não completara
quarenta anos - e naquele momento chorava ajoelhado ao
lado de um túmulo. Ela aproximou-se e ouviu as
lamentações da criatura, compreendendo que ele havia
perdido uma pessoa muito querida para a morte.
- Meu amor, eu não posso acreditar que você me deixou! -
dizia ele, passando as mãos no rosto e enxugando as
lágrimas.
Por um momento o desconhecido abaixou a cabeça,
apoiando-a nas mãos postas, com os dedos entrelaçados,
como se estivesse orando aos céus.
- Há dez anos você me deixou e ainda não consigo me
conformar com a sua partida - continuava ele a lamentar-se.
- Nosso filho já está um rapazinho e sempre pergunta por
você.
De repente apareceu uma jovem linda, branca e diáfana,
vestida com uma túnica branca. Ela aproximou-se do
homem e o abraçou por trás, enquanto afagava o rosto e o
cabelo dele, dizendo com um sorriso:
- Querido, não se preocupe comigo. Estou muito bem.
Talvez eu volte ao mundo corporal nos próximos meses,
para dar continuidade ao meu aprendizado.
O homem ergueu a cabeça, passou um lenço nos olhos e
perguntou:
- Ana Paula, é você que está aqui?
A moça o beijou e lentamente desapareceu.
Carla, que tudo assistia sem perder nenhum detalhe,
aproximou-se do homem e perguntou:
- Senhor, quem é essa moça tão bonita?
O espírito não recebeu resposta e tudo indicava que o
homem solitário não havia ouvido a pergunta, mas após ter
se erguido e se despedido, ele disse, talvez intuitivamente:
- Fique com Deus, minha adorada esposa. Sei que você está
bem; sou eu que não consigo aceitar essa realidade, mesmo
tendo certeza de que a morte não existe.
Ao saber que a esposa daquele homem já havia morrido e
por ter presenciado o momento em que ela o abraçou e
falou com ele, Carla saiu correndo e gritando palavras sem
nexo.
Após se cansar, parou e sentou-se sob um viaduto, enquanto
repetia sem cessar que não acreditava que aquela mulher
estava morta, se ela mesmo a viu conversando com o
esposo.
- Mentira! - repetia. - Se estou morta, como posso sentir
fome e sede? Acho que vou desmaiar... Preciso ir para a
minha casa...
Em poucos segundos, ela se encontrou deitada em sua cama,
na casa de seu pai. Gritava pela empregada e ameaçava
despedi-la, pois a mesma não cumpria com as ordens dadas
por ela. Irritada, desceu, foi até a cozinha e gritou nos
ouvidos da cozinheira:
- Quero comer e beber! Estou morrendo de fome!
A velha empregada da família parecia não ouvi-la. Carla
tentava pegar algo para comer, mas não conseguia. Ela
desesperou-se novamente e saiu correndo pelas ruas da
cidade. Sentou-se num banco de uma praça abandonada e
ficou se lamentando, quando se aproximou um homem de
aspecto asqueroso e perguntou-lhe:
- O que está acontecendo com você, boneca?
- Respeite-me! Você sabe com quem está falando?
- Não e nem me interessa saber - disse o homem, que
também era um espírito errante.
- Muito cuidado com o que fala! Sou médica e noiva do Dr.
Hugo, filho do poderoso Dr. Albert, dono de uma empresa
multinacional de automóveis!
- Por que você deixou o seu mundo? - perguntou o espírito.
- De que mundo você está falando?
- Ora essa! Do mundo dos vivos!
Carla se ergueu e ouviu o homem perguntar-lhe, assim que
começou a se afastar:
- Você já comeu?
- Não.
- Vejo que você é novata por aqui.
- E por que você acha isso?
- Porque você ainda não sabe se alimentar...
Mais calma, Carla voltou e sentou-se novamente, embora
não tivesse parado de sentir dores insuportáveis. "Não posso
desmaiar. Preciso saber onde e como consigo um pouco de
alimento", pensava ela.
O homem ergueu-se e fez um gesto para ela acompanhá-lo.
Em poucos minutos, ambos estavam na porta de um
restaurante de última categoria.
- Vamos comer, boneca?
- Nesse restaurante imundo? - perguntou Carla, com ar de
asco, acostumada que era a freqüentar os melhores
restaurantes da cidade e do país em companhia do noivo.
- Sim. Vou ensiná-la a alimentar-se, agora que deixou o
corpo físico.
- Por favor, chame-me de Carla.
- Eu me chamo Gregório.
O espírito Gregório fez um gesto com a mão, indicando a
porta do restaurante, e ambos entraram.
- Olhe como faço para comer e beber.
Carla viu o ser asqueroso se aproximar de quatro pessoas que
riam em redor de uma mesa, repleta de pratos ensebados
com comidas, copos de água e garrafas de bebidas alcoólicas.
Gregório começou a cheirar a comida e o corpo das pessoas
que ali estavam. Assim, fez com aqueles que bebiam.
Curiosa, ela pôde observar como ele colava a boca em
determinadas partes do corpo das pessoas e parecia sorver
algo.
Passados alguns minutos, Gregório voltou para junto de
Carla e disse-lhe satisfeito:
- Pronto. Estou farto.
Apesar das dores e do mal-estar horrível que sentia, Carla
prestou atenção àqueles movimentos estranhos que
Gregório fez ao se alimentar.
Caríssimo leitor, para melhor compreendermos o ritual feito
por Gregório para se alimentar, vale a pena recorrermos às
elucidações do capítulo quatro, do livro "Missionários da
Luz", ditado pelo espírito André Luiz e psicografado pelo
saudoso médium Francisco Cândido Xavier, quando o
mesmo fala sobre "vampirismo": "(...) Absolutamente sem
preparo e tendo vivido muito mais de sensações
animalizadas que de sentimentos e pensamentos puros, as
criaturas humanas, além do túmulo, em muitíssimos casos
prosseguem imantadas aos ambientes domésticos que lhes
alimentavam o campo emocional. Dolorosa ignorância
prende-lhes os corações, repletos de particularismos,
encarceradas ao magnetismo terrestre, enganando a si
próprias e fortificando suas ilusões. Aos infelizes que caíram
em semelhante condição de parasitismo, as larvas que você
observou servem de alimento habitual - disse Alexandre a
André Luiz". O instrutor de André Luiz ainda elucida:
"Naturalmente que a fauna microbiana, em análise, não será
servida em pratos; bastará ao desencarnado agarrar-se aos
companheiros da ignorância, ainda encarnados, qual erva
daninha aos galhos das árvores e sugar-lhes a substância vital
(...)".
Gregório fitou a companheira e, sorrindo num esgar,
apontou para o pessoal que comia e bebia naquele lugar.
- Vá comer alguma coisa! Você está horrível!
Carla não aceitou a sugestão e logo voltou a correr pelas ruas
da cidade qual louca, sem ter nenhuma noção do que fazia.
- Vou acabar de uma vez com esta minha vida! Posso já não
saber o que faço, mas prometo que antes, vou ajudar Louis
acabar com a vida daquele maldito Albert!
Carla corria pelas ruas da cidade gritando de dor,
completamente perturbada e apavorada, não entendendo
por que não havia morrido envenenada - se suicidado -, e
como poderia estar viva em outra dimensão inexplicável.
Talvez a maior dor de um suicida, seja o fato de ter atentado
contra a própria vida e ainda permanecer tão vivo quanto
antes. Nesse dilema, ele entra em pânico quando descobre
que não morreu e não consegue falar com as pessoas no
mundo material, como antes.
Perturbação, dores superlativas causadas pela maneira
escolhida para o desencarne, abandono, uma forte ligação
com o corpo material, fome, sede, frio e dor; são todas essas
sensações do mundo material, o que um suicida continua
sentindo ao acordar na espiritualidade.
Suicídio é a negação da existência de Deus, pois quem pensa
que com a morte do corpo físico tudo se acaba, não pode
pensar que é filho Dele, a Inteligência Suprema.
Não há um escritor em toda a esfera terrestre que possa
descrever com fidelidade o sofrimento de um suicida,
mormente o horrível e supremo desespero pelo qual esse
espírito errante passa após sua suposta morte.
Talvez, nesse sentido, a Doutrina Espírita seja uma religião
única, ao apresentar meios para alertar os filhos de Deus do
perigo que eles correm quando cometem um ato tão
extremo como o suicídio, porque, simplesmente, a morte
não existe, pois o espírito é imortal.
Além do sofrimento causado por não entender o que se
passava consigo, achando que com a morte do corpo físico
tudo cessaria, Carla sofria ainda mais por rever diariamente,
há quase dois anos, o momento em que tomou o veneno
que lhe tirou o corpo material. Fixou-se em sua memória
perispiritual a cena que acabou com o seu corpo material.
- Não consigo esquecer esse maldito veneno, meu Deus! Já
não agüento mais tomar essa porcaria! - maldizia-se a filha
de Deus que atentara contra o vaso físico concedido para
que pudesse continuar seu aprendizado neste mundo
inferior.
- Vou para perto do velho nojento que me deixou nesta
situação! - disse ela.
Ela chegou na clínica de repouso, no momento em que
Albert gritava com as mãos nos olhos, como se estivesse
apavorado com a visão de alguma coisa.
- Tirem essa gente de perto de mim!
- Calma, Dr. Albert - pedia uma das enfermeiras.
- Não agüento mais isso! - dizia ele. - Chamem a Iolanda,
agora mesmo!
- Vamos chamá-la, mas tenha calma, por favor.
Carla agarrou o pescoço de Albert e o apertou, ou melhor,
ela plasmou em seu pensamento que estava esganando o
infeliz doente.
- Tirem essa louca de cima de mim! Ela está me sufocando!
Vou morrer! - dizia Albert sentindo-se sufocar, pois era essa
mensagem que a mente do espírito mandava para a mente
do doente.
O Dr. Maurício foi chamado imediatamente. Ao entrar no
quarto do paciente, ele manteve-se em pé, ainda na porta,
apenas observando a cena. Homem estudioso, cientista e
profundo pesquisador da mente humana, ele tentava a toda
custa não rejeitar seu estudo acadêmico, mas, às vezes, não
conseguia prender o pensamento, deixando-o vagar entre a
fé e a religião. "Há casos piores do que esse, relatados no
Evangelho de Jesus, e todos foram curados apenas quando
Ele expulsou os demônios", pensava o médico.
- Dr. Albert, quem é essa mulher que está tentando sufocá-
lo? - perguntou o médico.
- É aquela imunda e desclassificada da Carla! - respondeu-lhe
o paciente. - Ela quer se vingar, porque não aceitei o
casamento dela com o meu filho!
O médico ficou quieto, observando tudo o que acontecia.
"Sou um médico, um homem da ciência. Não posso pensar
nessas coisas místicas", dizia para si mesmo o Dr. Maurício.
O médico fez um sinal para a enfermeira, indicando que um
calmante deveria ser aplicado naquela alma sofredora.
Em poucos minutos Albert caiu, amparando as costas na
parede, até se sentar no canto do quarto, com as pernas
esticadas, como estivesse sem vida. Seu aspecto dava piedade
em qualquer pessoa que o conhecera antes de ser internado.
Estava barbado, tinha cabelos grandes e despenteados, olhos
sem vida, com as pupilas dilatadas sob efeito da enorme
carga de medicamentos que tomava, e babava como um cão
hidrófobo. Tentava levantar os braços e não conseguia, pois
o efeito do calmante que lhe aplicaram era suficiente para
torná-lo um ser impotente.
No lado espiritual, Louis se acabava de tanto rir, sendo
prontamente imitado pelos amigos que reuniu para apressar
a morte de Albert, o Duque de ontem.
- Acho que ele não vai agüentar muito tempo, pessoal - disse
Louis. - Gostei do que você fez com ele, Carla.
Carla chorava deitada na cama, com as mãos no ventre,
rolando de dor e desmaiando em seguida.
- Temos que desequilibrá-lo o mais rápido possível. Meu
chefe Patrik não vai mais aceitar desculpas.
- O que você acha que podemos fazer para acabar com essa
peste nociva? - perguntou Carla, assim que voltou a si.
- Temos que arquitetar um plano para ele mesmo acabar
com esse corpo material: ele deve se suicidar como você.
Ao ouvir aquela palavra - suicídio -, Carla ficou
completamente desorientada e desapareceu do quarto,
correndo sem destino. Após um longo tempo, ela parou e
resolveu seguir em direção à igreja onde fizera a primeira
comunhão.
De repente encontrou-se sentada, ouvindo a missa rezada
pelo padre da paróquia. Ela relanceou o olhar pelos santos,
pelo padre e pelas pessoas que assistiam a missa, e se deteve
num crucifixo com a figura de Jesus.
- Tudo invenção para enganar o povo - falou baixinho,
deixando em seguida a igreja e novamente se pondo a
correr. De súbito perdeu os sentidos.
Capítulo XIX
Hugo estuda o Espiritismo
No final da tarde, o Dr. Hugo chegou em casa,
demonstrando que estava bastante cansado, e pôs sobre um
sofá uma pequena maleta, que sempre conduzia consigo
quando ia para o posto de saúde.
Com um sorriso nos lábios, Viviane se aproximou e com o
seu jeito carinhoso, perguntou-lhe:
- Você quer algo para comer ou beber?
- Sim. Um pouco de água e uma xícara de café, por favor.
Após tomar um gole de água e sorver o café, ele se ergueu e
ouviu a moça anunciar sorridente:
- Tenho uma surpresa, Dr. Hugo. O médico se voltou para a
mulher.
- O que você está me escondendo, Viviane?
Ela olhou para o rapaz sorrindo, pegou em seu braço e o
conduziu até uma mesa que se encontrava ao lado,
apontando para um pacote que estava sobre ela.
- Este pacote está endereçado a você.
Hugo se encaminhou para a pequena mesa e, surpreso e
ansioso, abriu o pacote e nele encontrou os livros referentes
à Doutrina Espírita, que havia encomendado.
- São os livros que eu pedi para o Augusto - disse Hugo
sorrindo.
Enquanto isso fitava a bela mulher, que estava com a mão na
boca num gesto gracioso e feminino, curiosa para saber que
livros eram aqueles.
- Posso saber que livros são esses?
- São as obras básicas da Doutrina Espírita e toda a coleção
das obras de André Luiz, psicografadas pelo grande médium
brasileiro Francisco Cândido Xavier - disse ele, após abrir o
pacote.
- Agora sim, você vai poder estudar, à luz dessa Doutrina, o
que está se passando com o seu pai e a dona Isabel.
- Exatamente, minha querida.
Viviane sentiu uma súbita felicidade invadir-lhe todo o ser.
Seu coração acelerou, faltou-lhe o ar e pela primeira vez
olhou para o Dr. Hugo de maneira diferente. "Cuidado,
Viviane. Você não é mulher para o Hugo", pensou.
Hugo pediu licença e levou o pacote para seu quarto,
deixando Viviane no meio da sala, entregue aos seus
pensamentos.
A partir daquela data, nos momentos de folga, o Dr. Hugo
fechava-se no quarto e lia avidamente todos aqueles livros,
sem tempo para mais nada.
Certa noite, Viviane passava pelo corredor, quando se
deteve em frente ao quarto do médico. Olhou por baixo da
porta e viu a luz da lâmpada, ainda acesa àquela hora.
- Deve estar lendo - disse para si mesmo.
"Tenho quase certeza de que ele vai embora daqui quando
terminar de ler aqueles livros", pensou e instintivamente
passou a mão pelo belo rosto, enxugando as lágrimas que
corriam sem pedir licença.
- O que será que está acontecendo comigo, meu Deus? -
perguntou-se suspirando, e logo se retirou para seu próprio
quarto.
Deitada de bruços, começou a chorar, tentando sufocar os
soluços no travesseiro.
- Meu Deus, que dor esquisita estou sentindo no coração! -
exclamou em sua solidão.
Uma semana após a chegada dos livros, o Dr. Hugo chegou
em casa em seu horário habitual e cumprimentou Viviane
sorrindo, com um beijo na testa, dizendo em tom de
brincadeira:
- Dona Viviane, após o jantar, convido-a para conversarmos
um pouco. Faz dias que não conversamos.
- Combinado - disse a mulher feliz e apreensiva.
A noite chegou, cobrindo com o seu manto escuro aquela
pequena cidade do interior.
Hugo procurou o seu lugar preferido para meditar e esperou
pela amiga, como havia combinado.
Viviane havia se produzido como se fosse a algum lugar
especial, o que imediatamente chamou a atenção do rapaz.
- Você vai sair? - perguntou Hugo.
- Não. Por que a pergunta?
- Está toda produzida, como se fosse sair. Aliás, diga-se de
passagem, você está linda.
- Assim, vou ficar encabulada.
- Sente-se, por favor.
Ambos ficaram em silêncio por alguns minutos. Hugo fitava
algo no vazio da imensa escuridão perdida nos campos da
lavoura.
Viviane mantinha-se em silêncio, esperando que o médico
tomasse alguma iniciativa. Ela tinha certeza de que não havia
sido convidada para uma simples conversa.
- Você acredita em Deus? - perguntou o rapaz de repente,
sem desviar o olhar do vazio.
A moça espantou-se com a pergunta, mas respondeu
imediatamente.
- Claro que acredito! Sem dúvida alguma!
- Acredita em espíritos?
- Não sei explicar o porquê, mas sim, acredito. Acho que
porque ouvi muitas histórias de parentes de pessoas que já
morreram.
- Será que existe um outro mundo, além desse em que
vivemos? - perguntou o médico.
A mulher pensou e respondeu com segurança.
- Eu acho que sim.
- Então, esse mundo é invisível? É um mundo que existe em
outra dimensão?
- Sim.
Ambos se calaram e ficaram pensativos.
- A Bíblia Sagrada e outros códigos divinos da Terra falam
sobre espíritos, almas e outros mundos além desse em que
vivemos - comentou Viviane, rompendo o silêncio.
Hugo voltou o rosto para Viviane completamente surpreso e
a encarou por um momento.
A dona da casa manteve-se em silêncio e aquele meio
sorriso já havia desaparecido de seu rosto.
- Entre as numerosas curas realizadas por Jesus, conforme o
Evangelho, há a expulsão de demônios dos possessos. A
Doutrina Espírita, principalmente através do livro "A
Gênese", esclarece com muita propriedade que eram os
espíritos sofredores ou maléficos que manipulavam aquelas
criaturas curadas pelo Mestre Divino - comentou o médico.
- O que você quer dizer, doutor?
O rapaz ficou sério. Então, se ergueu, passou a mão no rosto
e caminhou pelo espaçoso alpendre. Após alguns minutos,
sentou-se.
- Acho que pode haver alguns espíritos sofredores, ou até
mesmo maléficos, que, por algum motivo desconhecido,
estão contribuindo para que o meu pai e a dona Isabel se
encontrem tão debilitados. Essa seria uma explicação para
essa aparente esquizofrenia que acometeu os dois, conforme
o diagnóstico dos psiquiatras - disse ele com o olhar perdido
no vazio da escuridão.
- Vejo que você assimilou rapidamente as informações dessa
Doutrina - comentou a amiga.
- É verdade. E apesar de não haver lido todos os livros, já
consegui entender muita coisa através de "O Livro dos
Espíritos", "O Livro dos Médiuns" e "A Gênese".
- Você leu todos esses livros em apenas uma semana? -
surpresa, perguntou Viviane.
- Sim. Mas preciso estudá-los com paciência, para entender
melhor o que se passa com aqueles dois.
A moça fitou Hugo e aproximou sua cadeira dele. Próxima
ao rapaz, pôs a mão direita no joelho dele e perguntou-lhe:
- Hugo, qual seria exatamente o problema do seu pai?
O rapaz baixou a cabeça e respondeu com cuidado,
colocando sua mão sobre a mão da mulher:
- O meu pai está sob um forte processo de obsessão.
Hugo passou a mão no rosto e continuou:
- Se não tomarmos providências urgentes, ele realmente
enlouquecerá, e as conseqüências serão tão graves, que não
poderemos sequer imaginar o que pode acontecer.
- Você sabe ou tem idéia de quem seriam esses espíritos que
estão influenciando seu pai e a dona Isabel, a ponto de
ambos estarem internados? - perguntou a bela moça,
retirando a mão do joelho do rapaz.
Hugo pensou e respondeu calmamente:
- O meu pai é uma pessoa muito orgulhosa, egoísta e, às
vezes, tem acessos de crueldade. Se essa Doutrina estiver
certa, possivelmente, além da Carla, que se suicidou por
causa dele, não tenho dúvidas de que ele contraiu outras
dívidas no passado - continuou Hugo. - Com isso, meu pai
está atraindo vários inimigos desencarnados de outras
existências, que estão infernizando a vida dele, deixando-o à
beira de cometer uma loucura.
Ambos ficaram em silêncio, apenas ouvindo os vários sons
da noite.
- Amanhã cedo partirei para a casa dos meus pais, minha
querida amiga. Eles precisam de mim - disse o médico,
repentinamente, fitando a mulher.
Viviane levou um choque ao ouvir aquela notícia. Sentiu lhe
faltar o ar e o sangue parecia correr mais rápido em suas
veias, acelerando o batimento de seu coração. As pernas dela
começaram a tremer e sentiu um líquido quente e salgado a
descer pelas suas faces. "Não posso chorar", pensou ela.
"Ajude-me, meu Deus! Jamais pensei amar alguém, como
amo esse homem! Sim, é essa a verdade: parece que sempre
amei esta criatura, que só agora apareceu em meu caminho"
continuou pensando.
Hugo não percebeu nada, pois estava com o olhar perdido
num ponto qualquer da escuridão, pensando na viagem e no
estado no qual encontraria o pai e a dona Isabel. Pensava em
sua mãe, com carinho. "Assim que chegar em casa irei
procurar o Augusto, para juntos, conversarmos com o Dr.
Jacinto e tentarmos ajudar nossos velhos", pensava o médico
sem ressentimentos, talvez arrependido por não estar
presente para ajudar a mãe.
- Hugo, você vai fazer muita falta por aqui, mas o
importante nesse momento, é ajudar o seu pai - disse a
moça, discretamente passando a mão nos olhos.
Hugo olhou para Viviane como se a visse pela primeira vez,
e seus olhos envolveram carinhosamente aquele belo rosto,
sentindo algo diferente dentro de si. "O que está
acontecendo? Nunca havia visto Viviane com outros olhos,
a não ser como uma grande amiga, porém, agora, estou
sentindo algo tão diferente e bom dentro de mim", pensou.
Ele sacudiu a cabeça e disse para si mesmo: "Deve ser a
emoção".
- Assim que o meu pai estiver curado, imediatamente
voltarei para cá, pois, hoje, tenho certeza absoluta de que o
meu lugar é nesta bendita cidade que me acolheu no
momento em que eu mais sofria - disse o rapaz,
aproximando-se de Viviane.
Ele segurou as mãos da bela moça com carinho e as levou à
boca, beijando-as.
A mulher sentia o peito ofegante e as lágrimas quentes
desciam à vontade pelo seu rosto, esquecendo-se da
realidade.
Hugo ergueu-se e, segurando as mãos de Viviane, fez-na
levantar-se também. Eles ficaram um longo tempo fitando-
se nos olhos, em silêncio. Mas logo se aproximaram e se
abraçaram por um longo tempo, e como se fossem
conduzidos por uma mão invisível, encostaram os lábios e se
procuraram num longo beijo. Depois de tanto tempo,
finalmente puderam dar vazão àquele sentimento reprimido,
pois somente naquele instante, seus corações se
reencontraram. Seria o amor que chegava para eles?
Nada falaram.
Eles entraram de mãos dadas na silenciosa casa e Viviane,
num gesto natural, abraçou o médico e o conduziu para o
seu quarto.
O galo cantou.
- Meu Deus, estou atrasado! Tenho que pedir para o Gordo
comprar uma passagem para a minha cidade! - disse Hugo
em voz alta, sentando-se na cama ainda meio sonolento,
enquanto esfregava os olhos, sem conseguir entender direito
o que havia acontecido.
Viviane estava deitada de lado, com as costas voltadas para
Hugo, fingindo que dormia.
Hugo olhou para a mulher deitada ao seu lado e ficou por
alguns momentos sentado na cama, pensando: "Eu pensei
que estava sonhando, mas, vejo que é mesmo realidade. Eu
finalmente estive com a mulher que sempre amei". E
resolveu: "Não vou acordá-la. Vou deixá-la dormir mais um
pouco e depois a desperto, para que possa me ajudar com os
preparativos da viagem". Com isso, aproveitou para admirar
Viviane, que estava ao natural, com seus cabelos cobrindo
parte de suas costas.
Assim que colocou os pés no chão, ele ouviu:
- Não vou ganhar um beijo, doutor?
Hugo notou que Viviane havia acordado e começou a rir.
- Pensou que eu estava dormindo? - perguntou a mulher,
virando-se e beijando o médico.
- Pensei, sim. Mas já que você está acordada, temos muito o
que conversar antes de eu viajar - disse Hugo,
correspondendo ao beijo daquela linda e simpática mulher.
- Você pensou, doutor?
- Em quê?
- No que aconteceu?
- Precisa pensar? - perguntou o médico, rindo meio
encabulado com a pergunta da Viviane.
- Precisa sim, senhor.
- Por quê?
- Porque eu era uma mulher solitária e você um homem
desiludido e ferido, quando chegou aqui.
- Não entendi!
A mulher riu, encostou seus lábios nos lábios do rapaz e
disse-lhe:
- Será que é amor o que você sente por mim?
- Não tenho a menor dúvida.
- E a Dra. Carla?
Hugo passou a mão na cabeça e respondeu, beijando-a
novamente:
- Não sei. Hoje, só sei que você é a mulher da minha vida.
Entendeu?
- Acho que entendi - disse Viviane, beijando o homem pelo
qual sempre esperou e que somente agora havia aparecido.
Capítulo XX
Hugo retorna à casa dos pais
Hugo pagou o táxi e, após descer, ficou parado em frente à
entrada da bela mansão de seus pais, pensando no dia em
que deixou aquela casa aos prantos. Naquele dia fatídico, ele
havia decidido nunca mais voltar ali, todavia, às vezes, as
coisas não acontecem como queremos, e sim, conforme a
vontade de Deus e do nosso merecimento. Com passos
firmes aproximou-se e apertou o botão do interfone,
ouvindo a voz do segurança:
- Quem é?
- Sou eu, Hugo.
- Quem?
- Hugo. O Dr. Hugo.
- Não é possível! Faz mais de um ano que o Dr. Hugo,
viajou!
- Fale com sua patroa, por favor.
- Um momento.
Após alguns minutos, o portão se abriu diante de Hugo e sua
mãe apareceu, chorando e se atirando em seus braços. Ela
não conseguia sequer articular uma frase completa, apenas
falando qualquer coisa e dando vazão à alegria de poder
rever o filho.
- Não posso acreditar que seja você, meu filho! - disse a mãe,
abraçando e beijando-o, como se estivesse com medo de
estar num pesadelo ou de que ele fosse embora novamente.
- Calma, mamãe. Sou eu mesmo.
- Ainda não acredito que você está aqui!
Hugo abraçou a mãe e caminhou em direção à mansão,
enquanto um serviçal levava sua pequena mala. Observou
que Iolanda estava mais magra, sem maquiagem e com
olheiras, o que o deixou apreensivo. Num gesto de extremo
carinho, aconchegou-a no peito e lhe beijou os cabelos bem
cuidados, porém, sem aquele toque de vaidade feminina, tão
comum às madames milionárias. Ele prometia para si
mesmo: "Vou cuidar de vocês, mamãe".
- Meu filho, por onde você andou? O que aconteceu, para
você sumir daquela maneira?
- Vamos com calma, mãe - pediu o rapaz. - Vou explicar
tudo, mas antes, quero tomar um banho e descansar um
pouco, pois viajei dois dias sem conseguir dormir.
- Menino, de onde você vem? - perguntou Iolanda. - Por
acaso, estava na Europa?
Hugo riu e abraçou a mãe. Ela achava que uma viagem tão
longa só poderia ter o exterior como destino, pois pensava
no transporte aéreo.
- Estou vindo de um lugar abençoado. Depois lhe conto
tudo, mamãe. Agora, deixe-me tomar um banho.
- Fique à vontade, meu filho - disse a mãe, com um sorriso
de felicidade no rosto. - O seu quarto continua o mesmo.
E enquanto subia para seu quarto, ouviu a mãe perguntar
receosa:
- Filho, não quer saber como vai o seu pai?
Hugo parou na escada e se voltou para Iolanda. Com a mão
na cabeça e visivelmente preocupado, ele respondeu-lhe:
- Temos tempo para isso, mamãe. Depois conversaremos
com calma a esse respeito.
- Você já sabe de alguma coisa?
Hugo pensou, como se quisesse pesar as palavras que diria, e
por fim resolveu responder:
- Sim, pouca coisa. Mas sei que o meu pai não está bem. Não
se preocupe, mãe, pois eu vim para isso.
- Graças a Deus, meu filho, que você está em casa
novamente - disse a mulher, fazendo um gesto com as mãos
postas, como se estivesse agradecendo aos céus, a volta do
filho amado.
Hugo retomou a direção de seu aposento, com um sorriso
no rosto, e logo se encontrou sentado na cama de seu amplo
e luxuoso quarto. Deitou-se de costas e ficou um longo
tempo fitando o teto, tentando colocar os pensamentos em
ordem e lembrando-se do que acontecera consigo naquele
espaço de tempo, principalmente da bela Viviane, que
certamente também pensava nele. Levantou-se e foi para o
banheiro tomar uma ducha. Enquanto relaxava da tensão
provocada pela viagem, se perguntou: "Por que você fez
isso, Carla? Será que não pensou em nosso filho?".
O espírito Carla, que estava junto ao pai de Hugo, ouviu seu
nome e em frações de segundos sentiu-se atraída para o
quarto do rapaz. "Que lugar é esse? Parece o quarto de
alguém muito rico", pensou. Gemendo de dor e
completamente perturbada, olhou para a pessoa que saia do
banheiro. "Esse rapaz se parece com o Hugo", pensou
desconfiada. Em seguida sentou-se ao seu lado e o
reconheceu. Tentou abraçá-lo, mas foi repelida por uma
força magnética tão forte, que não a deixou encostar um
dedo no rapaz.
- Hugo, por favor, ajude-me! - pedia. - Há quanto tempo não
o vejo, querido! Estou com muita saudade de você! - dizia
Carla, começando a chorar e a se lamentar, pois não
conseguia abraçar o rapaz.
Carla não conseguiu se aproximar fisicamente do rapaz,
porque ele vibrava numa faixa totalmente diferente da dela.
O espírito sofredor estava envolvido por energias fluídicas
malsãs impregnadas de ressentimentos e ódio, e sua
memória perispiritual arquivou voluntariamente a destruição
de seu corpo material, enquanto Hugo, ao contrário, estava
envolvido por fluídos benéficos, com o coração voltado para
o bem, pois realizara, durante quase dois anos, um
prestimoso trabalho de auxílio ao próximo, como médico e
amigo dos habitantes daquela cidadezinha que o hospedara
durante todo o tempo que ficara longe de casa. Aproveitou
também para estudar a Doutrina Espírita com a finalidade de
ajudar seu pai e a dona Isabel. Enfim, até aquele momento,
não praticara nenhum ato grave contra as leis de Deus.
Quando praticamos de coração os ensinamentos do Mestre
Divino, somos protegidos pelos nossos irmãos do bem, tanto
no mundo espiritual como no material. Isto é uma lei e um
dos princípios básicos da Doutrina Espírita: a lei de causa e
efeito.
Naquele momento, embora Hugo estivesse protegido contra
os fluídos dos espíritos sofredores, ele ainda captou algumas
energias malsãs e sentiu-se mal. Com uma súbita dor de
cabeça, ele se arrepiou, como se estivesse com os sintomas
de uma gripe, e sentiu muito sono. "Estou muito cansado",
pensou. Em seguida, deitou-se e dormiu.
Ao dormir, o médico desprendeu-se de seu corpo físico e
penetrou o mundo espiritual. Viu Carla chorando, sentada
numa cama. Ele aproximou-se e comentou com o coração
doído, após verificar o estado de sua ex-noiva:
- Carla, eu não posso acreditar no que vejo! Vou levá-la
agora mesmo para um hospital!
Calmamente, o espírito protetor de Hugo se aproximou e
disse, após colocar a mão no ombro dele:
- Meu querido irmão, você terá várias outras oportunidades
para ajudar nossa irmã, mas por enquanto, isso não vai ser
possível, pois ela ainda não está em condições para receber
qualquer tipo de auxílio.
Hugo olhou para a pessoa que havia falado e viu um homem
de aspecto bondoso, envolvido por uma luz que levava paz e
equilíbrio para aquele ambiente.
- Quem é o senhor?
- Sou um amigo de vários séculos. Se quiser um nome, pode
me chamar de Domingos.
Hugo despertou de repente, suando e sentindo um ligeiro
mal-estar. Foi até a pia do banheiro e lavou as mãos e o
rosto. Depois abriu uma garrafa de água, que estava no
refrigerador de seu quarto, e bebeu um pouco do líquido.
Caminhando pelo quarto, ele refletia sobre o que havia
acontecido: "Acho que sonhei com a Carla. Ela deve estar
sofrendo bastante". Sentou-se num sofá e resolveu fazer uma
prece sincera pelo espírito.
Ao ver o ex-namorado fazendo uma prece, o espírito saiu do
quarto correndo.
- Até o Hugo anda pensando nessas bobagens! - gritava Carla
aborrecida. - Não duvido que ele também esteja louco como
o pai!
Depois de uma hora pensando no que aconteceu e tentando
colocar as idéias em ordem, o Dr. Hugo sentiu que
melhorava da dor de cabeça. Sendo assim, se trocou e foi se
encontrar com a mãe no escritório dela.
Assim que viu o filho entrando no escritório, Iolanda se
ergueu e foi abraçá-lo:
- Filho, deixe-me matar as saudades!
- Não precisa ficar aflita, mãe. Já estou de volta e temos
muitas coisas para resolver.
Hugo sentou-se numa poltrona perto da mãe e em poucos
minutos narrou tudo o que lhe acontecera nesses meses que
passou longe de casa, desde o dia do suicídio da namorada.
Não se esqueceu de falar de Viviane com carinho na voz e
também de Augusto, que havia lhe informado tudo o que
acontecera durante a sua ausência.
- Então, você está a par de tudo o que ocorreu por aqui,
desde que viajou?
- Em parte, mamãe. Só sei o que o Augusto me informou
num rápido telefonema.
Segurando a mão do filho, Iolanda pensou por um instante e
narrou tudo o que se passara com Albert, inclusive, como
ele começou a ficar desequilibrado.
Ambos ficaram calados.
- O que você pensa fazer? - perguntou a mãe.
O rapaz aproximou sua cadeira e começou a fazer um
carinho em Iolanda, afagando as mãos dela.
- Como se chama o rapaz que assumiu o controle dos
negócios, com a autorização da senhora?
- Edvaldo.
- Eu conheço o Edvaldo. Parece-me uma pessoa honesta. A
senhora confia nele?
- Sim, sem dúvida. Além disso, meu filho, ele entende
bastante dessa Doutrina conhecida como Espiritismo.
Hugo ergueu-se de repente e começou a andar pelo
escritório da mãe, bastante inquieto. Depois se sentou e
perguntou:
- A senhora tem certeza de que o Edvaldo conhece a
Doutrina Espírita a ponto de podermos confiar nele?
- Claro, filho. Foi ele que me passou força e informações a
respeito de assuntos que eu não conhecia, para enfrentar a
doença de seu pai e os problemas que ele nos causou.
- Mãe, antes de visitar o meu pai, quero falar com o médico
que cuida dele.
- Com o Dr. Maurício?
- Esse mesmo.
- Quando você quer falar com ele?
- Ainda hoje. E se possível, agora mesmo.
- Meu filho, já está tarde e não sei se ele pode atender o
nosso pedido.
- Telefone para ele e tente marcar um encontro entre nós
dois - pediu o filho.
Iolanda telefonou para o Dr. Maurício e conseguiu que ele
viesse até a mansão em trinta minutos.
Enquanto isso, Hugo telefonou para o irmão de Carla.
- Alô! Augusto?
- Hugo! É você mesmo?
- Claro! Estou em casa!
- Quando vamos nos encontrar, amigo?
- Dentro de trinta minutos.
- Você está brincando, Hugo?
- Augusto, dentro de mais ou menos trinta minutos, falarei
com o médico do meu pai, um tal de Dr. Maurício, e quero
você presente, para tentarmos salvar os nossos pais
enquanto é tempo.
- Ok. Daqui a pouco estarei aí - anuiu Augusto.
Ao desligar o telefone, Hugo fitou a mãe e perguntou-lhe:
- Mãe, será que o Edvaldo pode participar dessa minha
conversa com o Dr. Maurício?
- Não sei, filho. Mas é fácil. Vou telefonar para o escritório.
Após alguns minutos, Iolanda disse sorrindo para o filho:
- O Edvaldo vai poder participar da reunião.
- Confirmado? - perguntou o rapaz.
- Claro.
Desconfiada, Iolanda se aproximou do filho, que estava
sentado, afagou-lhe os cabelos e perguntou-lhe:
- Por que toda essa pressa, meu filho?
- Não temos mais tempo a perder, mãe - respondeu-lhe o
filho. -Vamos agir com urgência, para tentar salvar o papai
de uma tragédia pior do que a de Carla.
- Assim você me assusta, meu filho!
- Apenas estou sendo realista.
Após quarenta minutos, encontravam-se sentados em
confortáveis poltronas, numa sala privativa, Iolanda, Hugo,
Edvaldo, Augusto e o Dr. Maurício, conversando sobre
amenidades, embora todos estivessem curiosos a respeito do
assunto que seria abordado pelo filho de Albert.
Capítulo XXI
O psiquiatra
O Dr. Hugo, filho único de Albert e Iolanda, cruzou as
pernas, após tomar um pouco d'água, e encarou diretamente
o Dr. Maurício, num misto de admiração e dúvida, como se
procurasse palavras adequadas para ajudá-lo a abordar o
objetivo daquela reunião informal.
- Dr. Maurício, desculpe-me, mas preciso lhe fazer uma
pergunta -disse o filho do empresário, com educação e
firmeza.
- Fique à vontade, Hugo. E conte comigo para auxiliá-lo no
restabelecimento da saúde do Dr. Albert.
Hugo sabia que aquele médico era bastante conceituado no
mundo da ciência, pois era doutor em psiquiatria e
diplomado em patologias relativas à mente humana. O rapaz
passou a mão no rosto, meio hesitante, e fitou os presentes.
Sem mais demora perguntou, firmando o olhar no
psiquiatra:
- O senhor acha que o meu pai é um alienado?
Também calmo e firme, o psiquiatra fitou o rapaz e ficou
pensativo durante alguns segundos. Em seguida, não
querendo mais prolongar uma situação angustiante para as
outras pessoas presentes, que esperavam uma resposta do
famoso médico, ele respondeu aquela pergunta inteligente:
- Não.
Os presentes suspiraram, principalmente pela resposta ter
partido de um médico conceituado como o Dr. Maurício, e
ficaram na expectativa sobre o que mais ele iria falar.
O Dr. Maurício, médico e cientista, além de ter seus artigos
publicados nas melhores revistas da área e ser respeitado
pela comunidade cientista, também tinha fama por ser muito
inteligente.
- Pessoalmente realizei vários exames no Dr. Albert e não
constatei nada de anormal em seu cérebro, que pudesse ter
causado o desequilíbrio que o acometeu, a ponto de se
tornar indispensável sua internação - completou o famoso
psiquiatra.
Hugo se remexeu na poltrona, demonstrando sua
inquietação ante a resposta do médico.
- E qual é a doença do meu pai?
- Não sei - respondeu o médico com a maior tranqüilidade. -
Desconheço o motivo que levou o Dr. Albert a esse
desequilíbrio mental. Em outras palavras, e conforme o que
já aprendi com a ciência, ele não foi acometido por
nenhuma doença que requeira um tratamento psiquiátrico.
Todos permaneceram em silêncio. Ninguém ousava
perguntar ou comentar nada a respeito da doença do Dr.
Albert, afinal de contas, o médico presente era um
renomado psiquiatra.
- Então, por que ele continua internado? - Iolanda foi a
única que se atreveu a perguntar, ainda assim, com receio de
ser desagradável naquele momento tão delicado.
- Para evitarmos que ele cometa um ato impensado contra
ele mesmo ou contra vocês - respondeu o psiquiatra. -
Albert necessita ser vigiado por uma equipe de profissionais
que possa mantê-lo sobre controle.
- Ainda não entendo o que o senhor quer dizer - replicou
Iolanda.
- Calma, minha querida mãe - pediu o filho com carinho,
para não aborrecer Iolanda. - Eu esperava exatamente essas
respostas, quando pedi para chamar o Dr. Maurício. Agora
que tudo foi esclarecido, vou chegar exatamente onde eu
queria.
- Então, pelo amor de Deus! Fale logo, meu filho! - pediu a
mãe, aflita e nervosa.
- Calma - insistiu o filho com um sorriso, tentando apaziguá-
la.
Hugo ergueu-se e foi até a janela, observando um ponto
qualquer no belo jardim que rodeava a mansão, enquanto
vislumbrava o Sol desmaiar no horizonte. Voltou a sentar-se
e notou que os convidados estavam impacientes, talvez com
medo do que pairava sobre a mente de cada um deles.
- Edvaldo, eu soube que você é espírita - disse ele
repentinamente.
- É verdade, Hugo.
- Minha mãe também me disse que vocês estão tentando
ajudar meu pai, através das informações transmitidas pela
Doutrina Espírita.
Edvaldo olhou para Iolanda, como a lhe perguntar algo com
o silêncio de um olhar, e fez um gesto afirmativo com a
cabeça, confirmando:
- Realmente, temos tentado ajudar o Dr. Albert em nossas
reuniões.
- Conseguiram algo?
- Quando seu pai foi internado pela primeira vez,
conseguimos que ele se livrasse temporariamente da
influência dos espíritos sofredores e, talvez, de seus
perseguidores de existências passadas.
- E por que ele piorou quando teve alta e voltou para casa? -
perguntou Hugo, demonstrando um vivido interesse pelas
respostas do funcionário das empresas da família.
- Convidamos seu pai a participar das reuniões no centro
espírita, porém, ele se recusou a ir, além de criticar e gritar
para todo mundo que não acreditava nessas bobagens -
respondeu o rapaz. - Não se passou muito tempo e ele teve
que voltar para o hospital completamente manietado, pois
parecia um alucinado.
Augusto pediu licença com um gesto de mão e falou meio
temeroso de ser criticado:
- Ainda não me considero espírita, todavia acredito no
Espiritismo disse ele. - A mamãe volta para casa amanhã,
pois o médico disse que não há mais motivo para ela
continuar internada.
- Vocês buscaram recursos no Espiritismo, para cuidar de
dona Isabel? - perguntou Hugo.
- Exatamente - confirmou Augusto. - Graças a Deus, a
mamãe está muito bem e parece que até os problemas
causados pela morte da minha irmã estão sob controle.
Vendo que os presentes mantinham-se em silêncio, ele
aproveitou para falar um pouco mais sobre sua família, pois
talvez isso ajudasse o amigo em sua tarefa.
- O papai, que estava se entregando ao vício da bebida,
conseguiu se recuperar e tomar conta dos negócios da
família. Enfim, o enorme desequilíbrio causado pela tragédia
que se abateu sobre nós, aos poucos está deixando de existir.
Com calma e fazendo algumas anotações em uma agenda, o
Dr. Maurício perguntou:
- Você atribui a melhora de seus pais ao Espiritismo?
Augusto pensou: "Tenho que tomar cuidado com essa
resposta, pois esse médico é um especialista no assunto".
- Em parte, sim - disse Augusto. - Mas não podemos nos
esquecer de que a clínica de repouso foi imprescindível na
cura de minha mãe, pois ela também precisava ser
acompanhada por profissionais da área.
- Mas a cura propriamente dita, você atribui à fé de vocês
nos espíritos? - redargüiu novamente o Dr. Maurício,
tentando fazer pressão sobre o dentista, talvez para fazê-lo
cair no ridículo.
Augusto encarou o amigo Hugo e respondeu calmamente,
agora, olhando diretamente para o psiquiatra:
- Sim.
- Augusto, eu o conheço desde a época de faculdade; por
isso, não posso crer que você está desprezando a ciência em
detrimento de uma fé utópica.
Silêncio.
O filho do empresário ora olhava para o amigo Augusto, ora
para o Dr. Maurício, tentando compreender as minúcias
daquele diálogo, pois também havia estudado a Doutrina
Espírita e era médico.
- Maurício, você está enganado - rebateu Augusto. - Sim,
acredito na ciência; entretanto não posso renegar uma
Doutrina que tem ajudado muita gente. Nós a ignoramos por
desconhecer esse outro lado.
- A qual lado você se refere?
- A religião, à fé em Deus. Nada podemos fazer sem o aval
do nosso Pai.
- Meu amigo Augusto, eu também acredito em Deus, mas
devemos tomar cuidado para não cairmos em histórias sem o
devido aval da ciência do homem - também rebateu o Dr.
Maurício.
Edvaldo pigarreou e pediu licença para falar.
- Sou administrador de empresas e secretário de confiança
da família do Dr. Albert - disse Edvaldo, tentando se
expressar de maneira que todos entendessem sua mensagem.
- Todavia, isso não me isenta de procurar um amigo que seja
formado em outras áreas, para ajudar-me a compreender
alguns problemas que fogem à minha formação acadêmica.
- O que você quer dizer com isso? - perguntou o Dr.
Maurício, demonstrando uma certa irritação.
- Que a ciência precisa aliar-se urgentemente à religião, para
conseguir êxito nos vários casos complicados que os
profissionais da área se deparam, porque acreditam apenas
neste mundo material - respondeu Edvaldo. - O que a
ciência descobriu, há cinqüenta anos, hoje está
completamente obsoleto, porém os ensinamentos do nosso
Mestre Jesus, que esteve na Terra há mais de vinte séculos,
continuam os mesmos até os dias de hoje.
Todos ficaram em silêncio. A noite havia chegado e a
reunião prosseguia, pois o assunto era empolgante do ponto
de vista religioso e científico.
Foi servido um lanche e logo depois os presentes voltaram a
conversar.
Quando Edvaldo falou no nome de Jesus, houve uma
imediata transformação no ambiente. Todos se acalmaram e
ficaram com os corações mais solidários. Houve até quem
sorrisse, enquanto brincavam uns com os outros.
Ninguém percebeu que na sala estava presente o espírito
Domingos, mentor espiritual do Dr. Hugo, saturando o
ambiente de energias fluídicas benéficas, tornando-o mais
leve e receptivo às informações acerca da Doutrina Espírita.
O Dr. Maurício, que já estava mais à vontade e com a feição
descontraída, pensava com mais cuidado sobre o assunto,
tendo em vista que ele também tinha suas dúvidas a respeito
da doença do Dr. Albert.
- Augusto, quem participa desse grupo que estuda o
Espiritismo com você? - perguntou ele.
- O meu pai, o Dr. Jacinto e a minha mãe, que tem se
dedicado à compreender a Doutrina Espírita, mesmo
estando internada.
- O Jacinto? - o Dr. Maurício perguntou surpreso. - Aquele
que é o diretor responsável pela clínica onde sua mãe está
internada?
- Ele mesmo, doutor.
- Acho muito perigoso um médico conhecido como o Dr.
Jacinto se envolver com coisas não validadas pela
comunidade científica - disse o Dr. Maurício, erguendo-se
visivelmente preocupado. - O que o público vai pensar a
respeito das clínicas especializadas para tratamento de
doentes mentais, se os próprios médicos buscam recursos
em algo abstrato?
- Não vejo perigo algum e muito menos acredito que o
público criticará um nosocômio qualquer, simplesmente em
virtude da religião de seus pacientes - comentou Augusto.
- Até porque, hoje em dia, os hospitais aceitam de bom
grado que os religiosos visitem os doentes, principalmente
aqueles que estão em estado grave. Alguns médicos
descobriram que os doentes que tem fé nas palavras dos
religiosos recuperam-se com mais rapidez - Edvaldo deu sua
opinião.
Hugo sinalizou, pedindo licença para falar.
- Meus amigos, sou médico e passei um longo tempo
tentando esquecer aquele fatídico dia, no qual a Carla se
suicidou. Voluntariamente me exilei numa pequena cidade
do interior, onde aprendi muitas coisas que não são
ensinadas em clínicas de luxo e nos bancos acadêmicos das
grandes cidades - disse o filho de Albert.
Os presentes ouviam com atenção o jovem médico.
- Meu amigo Augusto, antes de viajar, presenteou-me com
um livro intitulado "Nosso Lar", ditado pelo espírito André
Luiz e psicografado pelo médium Francisco Cândido Xavier
- prosseguiu o filho de Albert.
Graças a esse livro pude entender muitas coisas, inclusive
que a morte só existe em relação aos nossos corpos físicos,
pois o espírito é imortal, conforme o autor do livro. Na
época, mesmo acreditando nessas verdades, eu ainda tinha
muitas dúvidas.
- Quer dizer que, agora, você concluiu que esse livro não
passa de uma história esquisita, sem nenhuma comprovação
científica? - indagou o Dr. Maurício.
Hugo sorriu e respondeu-lhe com a calma e a firmeza de
quem sabia o que dizia:
- Ao contrário, Dr. Maurício. Agora, não questiono mais
essa Doutrina e creio piamente em seus princípios básicos -
disse Hugo. - Foi através dela que cheguei à conclusão de
que o meu pai realmente não é um alienado. E isso, foi o
senhor mesmo que confirmou.
- O que o fez ter essa certeza? - perguntou Dr. Maurício.
- Li todas as obras básicas da Doutrina Espírita - disse o
médico. - Estudei e percebi, mesmo não sabendo explicar
como, que o meu pai é um obsedado, ou seja, ele está sob
influência de espíritos perversos ou doentes, que o
desequilibraram completamente.
- Quer dizer que o seu pai não precisa mais de
acompanhamento psiquiátrico?
- Não é isso que quero dizer, doutor.
- Então, o que é?
- Meu pai e dona Isabel são portadores de faculdades
desconhecidas pela ciência.
- Você quer dizer que eles sentem ou têm contato com o
mundo espiritual - completou Augusto.
- Exatamente isso. Eles vêem, ouvem ou sentem o que uma
pessoa comum não sente.
- Por isso ficam desequilibrados, quando entram em contato
com o mundo extra-físico, onde vivem os espíritos de
pessoas que já morreram - comentou Edvaldo.
- Então, além de possuir essa faculdade da qual vocês falam,
seu pai também tem muitos inimigos de existências
passadas? - indagou o Dr. Maurício, com os braços cruzados
e um ar desafiador.
- É verdade - confirmou o Dr. Hugo. - Mas não esqueçam de
que tudo começou quando a Carla se suicidou.
- Você quer dizer que a minha irmã é um dos espíritos que
perturbam o seu pai? - perguntou Augusto.
- Ela não só o perturba, como tem razão para fazê-lo -
afirmou Hugo. - Lembra-se das circunstâncias que a levaram
ao suicídio voluntário?
O Dr. Maurício ergueu-se e disse:
- Pessoal, acho que entendi o chamado do Hugo e confesso
que estou inclinado a acreditar no que ouvi de vocês,
espíritas.
Iolanda também se levantou e se aproximou do médico,
perguntando-lhe:
- E quanto ao meu marido?
- Vou observá-lo mais alguns dias e depois darei alta para ele
vir continuar o tratamento em casa, pois não adianta deixá-
lo internado. Talvez, em casa, com a ajuda da família e a fé
de vocês, o Albert consiga ficar curado desse desequilíbrio
que o acometeu.
O Dr. Maurício, Edvaldo e Augusto despediram-se e foram
embora. Hugo abraçou a mãe com carinho e disse-lhe
preocupado, enquanto passava a mão em sua cabeça:
- Mãe, eu vou visitar o papai amanhã cedo.
- Vou com você, meu filho.
Capítulo XXII
Trama dos espíritos maléficos
Enquanto isso, no mundo espiritual, mais precisamente em
uma cidade localizada na zona umbralina, lugar aonde os
espíritos sofredores e malévolos se encontram conforme as
afinidades de cada um, um grupo aterrorizante estava
reunido. Em uma caverna envolvida por um clima denso,
quase escuro, e que exalava um cheiro pútrido, semelhante
aos odores de um pântano, Patrik conversava com vários
amigos mal encarados, com ares desequilibrados e doentios.
Numa cadeira improvisada, construída de pedras e ossos de
animais, estava sentado um ser que personificava o mal, pois
tudo nele cheirava a ódio e a desprezo pelos outros. Coberto
de sujeira, ele trajava roupas esfarrapadas de épocas remotas
e demonstrava nas feições demoníacas uma visível
impaciência, esmurrando o ar com um aspecto asqueroso e
animalesco, enquanto fuzilava com o olhar aqueles espíritos
subordinados à sua autoridade.
- Chefe, precisamos acabar imediatamente com o Albert,
pois a família dele está se mobilizando para protegê-lo - disse
Patrik, com receio daquele espírito demoníaco, dono de um
poderoso e maléfico magnetismo.
O homem que estava sentado na cadeira improvisada como
trono - se é que podemos considerar aquela criatura um ser
humano -, era o chefe daquele grupo de celerados do além.
Navarro, o chefe, pensou e fez um esgar com a boca, como
se tivesse nojo de tudo que o rodeava.
- Navarro, o que você vai decidir? - perguntou novamente
Patrik, preocupado com uma possível punição em virtude de
sua insistência.
- Hoje, acompanhei o Dr. Maurício à casa de Albert e
presenciei uma reunião convocada pelo filho dele - disse
Louis, que também estava naquela macabra caverna.
Navarro permaneceu calado e apenas rosnava como um
animal quando algo o incomodava. Todavia podia se notar
que aquele ser bestial era bastante astuto e dono de uma
inteligência privilegiada voltada para o mal e utilizada para
dominar os mais fracos, como aqueles que o rodeavam.
Navarro ergueu-se e todo mundo emudeceu. Ele tinha quase
dois metros de altura, empunhava uma espada medieval nas
mãos, apresentava um corte profundo no pescoço, como se
tivesse sido degolado, e sua cabeça tentava equilibrar-se no
pescoço a qualquer custo.
- Patrik! Ordene aos homens que deixem o canalha do
Albert ir para casa e, durante alguns dias, ninguém deve
interromper o trabalho que o filho dele fará para tentar
salvá-lo! - ordenou o chefe, com uma careta que escondia
um sorriso irônico.
- Chefe, é perigoso deixar o patife do Albert solto. Ele pode
recuperar-se com a ajuda daquele pessoal "bonzinho" e
nunca mais teremos uma chance como esta - alertou Patrik
com muito cuidado, para não irritar aquele ser doente e
afastado de Deus.
- Deixe de ser burro, seu verme! - gritou Navarro, deixando
escorrer pela boca uma gosma amarela. - Aquele traidor
conseguiu afastar de si, por muito tempo, os "anjos
protetores"!
- Concordo com o chefe - disse Louis. - Além disso,
aumentamos o número de inimigos em cima daquele
monstro - explicou, apontando para Carla, que estava deitada
num canto da caverna, gritando de dor.
- Cuidado com essa mulher - alertou o chefe.
- Por quê? - perguntou Louis.
- A qualquer momento ela pode ser levada para um lugar de
difícil acesso para nós - disse Navarro, passando a mão na
velha espada e olhando para a médica.
Navarro era o chefe daquela falange de espíritos maléficos
por sua inteligência e crueldade.
- Chefe, essa mulher está completamente dominada por nós;
além disso, temos a nosso favor o ódio que ela nutre pelo
Duque - completou o espírito Louis.
- Foi ele que provocou a vinda dela para o nosso mundo,
antes do tempo - confirmou Patrik.
Navarro continuava em pé, com olhar perdido em algo que
somente ele via. De repente fitou o subchefe Patrik e disse-
lhe, com uma voz cavernosa e firme:
- Essa mulher é muito mais perigosa do que você pensa.
Silêncio.
- Por que a Carla é tão perigosa assim, chefe? - perguntou
Patrik, curioso.
Navarro passou a mão na boca, tentando limpar a baba que
escorria continuamente, e sentou-se em sua cadeira,
demonstrando todo seu poder sobre aqueles pobres coitados.
- Ela foi a querida filha única do Duque Antoine, hoje Albert
- disse Navarro cuspindo a baba amarela no chão.
- Não é possível, chefe! - espantou-se Patrik.
- Ela teve a ajuda de seus amigos do bem, após ter sido
assassinada à chicotadas, pelo Duque Antoine, seu pai na
época - disse Navarro, novamente cuspindo de lado. - Mas à
nosso favor, não se esqueçam de que nessa última existência
ela pôs fim à sua própria vida. Enfim, ela teve essa e duas
outras existências, após ter seu corpo material destruído pelo
Duque de L.
- Então vamos despachá-la para outro lugar, pois a qualquer
momento, podemos sofrer uma represália dos amigos dela,
que são poderosos e vivem em lugares superprotegidos pelos
mensageiros do poderoso "Homem da Cruz" - opinou Louis.
- Não.
- Por quê? - indagou Patrik.
- Por enquanto ela nos poderá ser útil, fornecendo-nos
informações sobre aquele nojento - respondeu o chefe,
passando a mão no nariz, como se espantasse um inseto
invisível.
- Entendi, chefe.
O espírito Louis passava freqüentemente a mão na cabeça,
demonstrando bastante preocupação.
- Parece que você está preocupado, Louis - comentou
Patrik.
- É verdade - confirmou Louis. - Estou aqui pensando... Por
que o chefe ordenou para cessar o assédio sobre o diabólico
Albert?
Navarro encarou o subordinado com ódio e ele mesmo
respondeu a pergunta:
- Sou um guerreiro! E guerreiros raciocinam
estrategicamente, seu idiota!
- E qual seria essa estratégia, Navarro? - perguntou Patrik.
- Deixem a família pensar que ele está curado e que pode
voltar para casa - disse Navarro. - Depois de uma semana,
voltaremos a influenciá-lo de tal maneira, que ele não
suportará a pressão e recorrerá ao suicídio, deixando aquele
mundo e caindo em nossas mãos.
Todos ficaram boquiabertos com o que acabaram de ouvir.
- Agora, obedeçam minhas ordens e estão dispensados -
disse Navarro, finalizando a reunião.
- E a Carla? - perguntou um deles.
- Por enquanto, deixe-na fazer o que quiser. Depois faremos
do ódio que ela nutre pelo Albert uma ponte que nos levará
até o campo da memória perispiritual do invencível Duque
de L.
- Agora entendi, chefe - disse Patrik com um sorriso idiota,
que mais parecia uma máscara horrenda.
Navarro fitou Carla por um momento e ordenou ao Louis
que a trouxesse até os seus pés.
Louis pegou o pobre espírito pelos cabelos e o arrastou aos
pés do chefe.
- Carla, levante sua cabeça e saúde nosso chefe! - ordenou
Louis.
O espírito ergueu a cabeça, olhou para Navarro e, com as
mãos ensangüentadas, começou a chorar e a gritar
descontrolada.
Navarro ergueu-se com um gesto imponente de seu trono,
símbolo do poder máximo sobre aqueles espíritos
desesperados, sofredores e malévolos, e gritou:
- Antonieta! Depois de tanto tempo encontramos o seu pai e
não vai ser agora que vamos perdê-lo de vista novamente! -
disse Navarro, segurando Carla pelos cabelos, com os olhos
vermelhos de ódio.
- Não sei de quem o senhor está falando - disse Carla. - Por
favor, solte-me! Estou quase desmaiando de tanta dor!
- Já se esqueceu do seu diabólico pai, Duquesa Antonieta?
- Continuo não entendendo o senhor.
Navarro fez um gesto com a mão direita, da cabeça aos pés
dela, e perguntou em seguida:
- O que você vê, Antonieta?
Com os olhos fixos, Carla começou a gritar desesperada,
como se estivesse sendo surrada.
Espírito inteligente, Navarro magnetizou-a, mostrando o
quadro de séculos passados, no qual ela vivera como filha do
Duque de L.
- Não vou agüentar mais, meu pai! - disse ela. - Mande parar
de me surrar, pois vou morrer e o senhor não vai conseguir
o que quer!
- Acabe com ela! Não quero uma filha desonrada por um
plebeu nojento! - ordenou o Duque Antoine, com os braços
cruzados e a feição inalterada, pois era mau e de coração frio
como gelo.
Carla arregalou os olhos, num misto de dor e surpresa, e deu
um grito ainda mais desesperado, desmaiando em seguida.
- Acorde-a! - ordenou o chefe.
Alguém deu um pontapé nas costelas de Carla, o que a fez
voltar ao seu estado normal.
Navarro se aproximou dela.
- Lembrou agora, Duquesa, quem é o seu pai?
- Sim. Mas isso já faz muito tempo.
- E você sabe como ele se chama atualmente?
- Sim. Ele é o Albert, pai de Hugo, meu namorado.
- Lembra-se também de Hugo?
- Sim. Ele foi um homem de confiança do meu pai, porém,
como era plebeu, meu pai, o Duque de L., mandou surrar-
me até a morte e acabou com a vida de meu bem amado
Jean, o Hugo de hoje.
Navarro voltou a sentar-se em sua defectiva cadeira e ficou
em silêncio.
Carla chorava baixinho, principalmente agora, que havia se
recordado de sua existência como filha do Duque de L.
- Está disposta a cooperar para acabar com o Albert, seu pai e
algoz de ontem?
A mulher ficou pensativa.
- Não sei. Agora não tenho mais certeza se desejo vingar-
me, pois ele foi meu pai. Lembro-me de tudo e de que fui a
Duquesa Antonieta, filha de Antoine. Acho que não tenho
mais coragem para concretizar minha vingança.
- Por quê?
- Acho que amo esse homem, não sei se como pai. Estou
confusa...
Carla recebeu no ventre um chute do cruel e sanguinário
Navarro. Ela se contorceu de dor e gritou com tanta força,
que o eco repercutiu na caverna e apavorou os espíritos
comandados por Navarro, que tremeram de medo daquele
representante das entidades maléficas.
- Estou esperando uma resposta, Duquesa - disse o chefe
como se nada tivesse acontecido. - E deixe de
sentimentalismo bobo, pois esse asno não merece outra
coisa, a não ser sofrer mais ou como nós.
- Quem é o senhor? - perguntou Carla.
- Fui o Duque Navarro, chefe da guarda real naquela época,
porém o rei mandou degolar-me a pedido de seu pai, que era
poderoso e temido, inclusive, pelo próprio soberano -
respondeu Navarro. - Para desgraça de seu pai, não morri,
como muitos pensaram e continuam pensando. Estou neste
mundo sem um corpo físico, mas nada me impede de lutar
para continuar vingando-me desse miserável.
- Por que você diz que continua se vingando dele? -
perguntou Carla, como se estivesse com pena de Albert.
Navarro começou a andar pelo minúsculo espaço da
caverna, chutando tudo que aparecia em seu caminho.
Sentou-se e respondeu-lhe com ódio, encarando-a
friamente:
-Aquele crápula já teve outra existência, após ter sido
enforcado por traição pelo novo rei, na época em que foi seu
pai.
O chefe ficou pensativo e disse, com um sorriso esquisito de
satisfação:
- Ele teve uma existência terrível, pois optou por ser um
pirata que matou muita gente nos mares do sul, saqueando
os navios da coroa britânica.
- Onde você entra nessa história?
Navarro gargalhou, como se pela primeira vez alguém o
fizesse rir, depois de tantos séculos pensando em uma
maneira terrível de se vingar do inimigo Antoine.
- Assumi o comando do navio dele e o levei a enfrentar uma
armada enviada pela coroa, que o capturou e o levou para a
Inglaterra.
Gemendo de dor, Carla conseguiu perguntar:
- Como você assumiu o comando do navio?
- Eu o influenciei a enfrentar a armada enviada pela coroa
britânica.
- Se o senhor não o tivesse influenciado a enfrentar a
armada da coroa, o que ele teria feito?
- Fugido - respondeu Navarro. - Ele teria conseguido fugir,
pois era um profundo conhecedor dos mares.
- E o que aconteceu com ele na Inglaterra?
Navarro pensou e respondeu satisfeito:
- Após sofrer vários dias de fome, sede e escárnio da
população, fora enforcado e os restos do seu corpo físico
jogados às feras de um circo.
Carla deu um grito horrível, que ecoou por toda a cidade
umbralina, e começou a chorar, desmaiando de dor logo
após.
Navarro encarou Patrik desconfiado e fez um gesto para que
a levassem dali. Ele já estava perdendo a paciência com
aquele tipo de conversa.
Capítulo XXIII
Influência dos espíritos maus
Albert teve alta da clínica.
Homem estudioso e profundo observador das reações
humanas, o Dr. Maurício meditava em seu consultório sobre
seu paciente, mormente por ele ter conseguido uma
melhora considerável em menos de vinte e quatro horas,
após a conversa que tivera com o filho dele, juntamente
com Iolanda, Edvaldo e Augusto.
Albert chegou em casa, acompanhado pelo filho e pela
esposa e estava calmo. Após tomar banho e descansar um
pouco em seu quarto, foi para o escritório conversar com
seu secretário, aproveitando a prosa para tomar
conhecimento a respeito do andamento dos negócios.
Edvaldo não estava à vontade, pois notara que apesar da
aparente calma do patrão, pairava no ar um clima diferente,
embora ele não soubesse explicar porque sentia isso.
Albert foi restrito ao falar com Hugo. Era perceptível que o
mesmo mantinha uma certa distância, evitando fazer um
contato mais íntimo, como seria o normal entre pai e filho.
Não perguntou o que o médico fizera durante o tempo que
ficara ausente e nem se interessou em saber como ele estava.
Antes dos primeiros raios de sol anunciarem o fim da noite,
Albert acordou e, mesmo pensando em ficar de repouso,
resolveu erguer-se da cama e fazer sua higiene matinal. Bem
disposto foi passear pelo imenso jardim, aproveitando para
aspirar o perfume que exalava das flores, por ocasião do
nascimento de um novo dia.
Em sua caminhada, ele encontrou o filho concentrado na
leitura de alguns documentos. Após cumprimentá-lo, Hugo
tentou conversar com ele; entretanto o pai deu-lhe as costas
e continuou seu passeio, ignorando-o por completo.
O café da manhã transcorreu num clima ameno e silencioso
e tudo indicava que Albert estava evitando qualquer tipo de
conversa com a família.
Às nove horas, o empresário se encontrava sentado em uma
confortável cadeira de espaldar alto, atrás de sua
escrivaninha, folheando alguns documentos sob o olhar
atento do secretário.
"Acho que o Dr. Albert está curado", pensou Edvaldo. "Só
acho muito estranho a rapidez com que essa cura se deu",
concluiu.
- Edvaldo.
- Sim, patrão?
- Vou descansar durante uns dias e só depois passarei a
assinar e a verificar pessoalmente os negócios,
principalmente a situação das empresas.
- Certo, senhor.
Albert ergueu-se e foi ler jornal em uma outra sala, deixando
o funcionário de confiança trabalhando.
Iolanda ligou para o secretário e perguntou, com voz
preocupada:
- O que você acha, Edvaldo?
- Ele parece estar muito bem, senhora. Mas não estou
gostando dessa calma.
- É assim mesmo. Talvez, aos poucos, esteja voltando ao seu
estado normal; afinal de contas, ele ficou sob o efeito de
medicamentos por vários dias. Lembre-se, meu amigo, que
os tais remédios eram tranqüilizantes fortíssimos.
- Concordo.
Iolanda desligou.
Hugo ouviu aquele diálogo entre a mãe e o secretário e
aproveitou para perguntar:
- O que o Edvaldo está achando?
- Ele acha que seu pai está muito bem, embora não esteja
gostando da súbita calma dele.
- Também não estou gostando disso.
À tarde, Iolanda pediu licença e adentrou a sala onde o
marido lia um livro. Sentou-se e notou que Albert não parou
de ler, porém, sem erguer a vista, perguntou:
- Você quer alguma coisa?
- Sim. Quero lhe fazer um convite.
- Estou ouvindo - disse-lhe o marido, mantendo o olhar no
livro. A mulher estava com receio da reação de Albert,
quando o convidasse para freqüentar uma reunião espírita.
- Estou esperando, Iolanda - disse Albert, tirando os óculos e
encarando a mulher.
- Albert, você sabe por que está melhor?
- Sim. Estou bem, porque nunca estive doente - respondeu o
marido. - Aquele teimoso do Dr. Maurício só me internou
por causa do meu nervosismo, causado por estresse de
trabalho.
- Concordo - disse Iolanda. - Mesmo assim, posso fazer-lhe
um convite?
- Sim.
- Vamos assistir à uma reunião no centro espírita, que eu,
Edvaldo e o Hugo estamos freqüentando?
Albert ergueu-se com o rosto vermelho, pôs o livro sobre
uma pequena mesa e aproximou-se da mulher.
- Iolanda, não acredito nessas bobagens - disse ele. - Só creio
em duas coisas neste mundo: dinheiro e poder.
Albert pegou o braço da mulher com firmeza e ordenou-lhe:
- Saia de minha sala e deixe-me em paz! Só acredito no que
sou e possuo, entendeu?
Ao ouvir o marido, Iolanda tremeu como se aquelas palavras
tivessem selado algo em definitivo para aquele ser humano
orgulhoso.
Num canto da sala, os espíritos Louis e Patrik riam
satisfeitos, enquanto Carla chorava.
- Por que você está chorando, Carla? - perguntou-lhe Patrik.
- Eu não concordo com a armadilha que vocês estão
preparando para o meu pai. Ele não merece. Sei que foi e
continua mau, mas já fez muito bem neste mundo, até
mesmo sem saber.
Os espíritos obsessores riram novamente, como se tivessem
ouvido uma piada.
Iolanda saiu correndo pelos corredores da mansão e entrou
em seu quarto chorando e pedindo perdão a Deus pela
ignorância do marido.
Após cinco dias, Albert entrou no escritório e
cumprimentou o secretário, que já estava trabalhando.
- Edvaldo, por favor, ponha sobre a minha mesa todos os
documentos que foram assinados pela Iolanda, durante a
minha ausência - ordenou Albert.
- Sim, senhor.
Neste momento, os espíritos Patrik e Louis adentraram a sala
puxando Carla pelos cabelos e a jogaram no chão, ao lado da
cadeira de Albert.
- Agora, cadela, chegou a sua vez de trabalhar!
- Não farei isso!
Nem bem terminou de falar, Patrik agarrou-lhe os cabelos e
a esbofeteou.
- Vocês podem me surrar à vontade, pois sei que mereço,
por não ter contido o meu orgulho e atentado contra a
minha própria vida.
Nesse momento Navarro apareceu, acompanhado por dois
seguranças animalescos.
- Ou você cumpre as minhas ordens ou vamos acabar com a
sua família - disse Navarro, rosnando. - Nosso alvo é esse
miserável, mas podemos mudar os planos a qualquer
momento.
- Meus pais não merecem! Isso é uma injustiça! - gritou
Carla, completamente atormentada.
Navarro agarrou o pobre espírito pelos cabelos e passou a
mão nos olhos dela, num gesto de quem sabia exatamente
como magnetizar uma pessoa.
- Veja quem foram os seus pais atuais numa época não muito
distante - disse Navarro rosnando como um animal.
- Não é possível! - gritou Carla. - O meu pai não foi isso que
estou vendo! Você está mentindo!
- Esse vagabundo do Edmundo e a cadela da Isabel foram
verdadeiros mercadores do sexo e do aborto, portanto, não
tenho nenhuma dificuldade em dominar-lhe as mentes.
- Não faça isso! - gritou Carla. - Prometo que cumprirei suas
ordens!
Carla ficou atrás de Albert e se pôs a entrar em sintonia com
a mente dele. O pai de Hugo começou a passar mal, pois
passou a absorver o sofrimento do espírito.
Ele tirou os óculos e perguntou ao secretário, passando a
mão no rosto:
- Quem deu ordens para Iolanda assinar esses papéis?
Edvaldo ficou com medo, pois tudo indicava que o patrão
não tinha conhecimento da ordem judicial que fora
expedida em favor de Iolanda. Tentando contemporizar a
situação, ele falou.
- Chefe, o senhor sabe que na sua ausência, é a vice-
presidente, sua esposa, quem assume o seu lugar nas
empresas.
- Mas por um tempo determinado, a não ser que seja
constatado algo que legalmente impeça o presidente de
assumir definitivamente o controle da empresa.
- Certo, chefe - disse Edvaldo, entendendo que o patrão não
sabia da interferência da Justiça no caso, que o julgou
temporariamente incapaz de gerir os negócios da família e
deu plenos poderes à Iolanda.
Edvaldo fitou o patrão e narrou toda a história, desde o
afastamento do mesmo da presidência das empresas, por
motivos de saúde. Em seguida, estendeu uma documentação
para ele.
Albert pegou os documentos e ia mudando de cor à medida
que os lia, empalidecendo como se estivesse doente.
Ergueu-se lentamente, com o semblante transfigurado de
ódio, pois a ação perturbadora dos espíritos Carla, Patrik e
Louis deixava-o, aos poucos, completamente fora de si, e
gritou:
- Iolanda!
Iolanda correu para atender ao chamado do marido e
perguntou:
- O que houve, Albert?
Edvaldo olhou para a mulher e disse-lhe:
- Ele leu o documento no qual a Justiça lhe concedeu
permissão para assumir a presidência das empresas.
Albert partiu em direção a mulher e com a mão direita deu-
lhe um tapa no rosto, perguntando-lhe:
- Quem permitiu tudo isso?
- Isso o quê? - perguntou Iolanda, querendo ganhar tempo.
- Que uma comissão de médicos me julgasse mentalmente
inapto para dirigir minhas empresas?
A mulher abriu a boca para explicar, mas não conseguiu,
porque recebeu outro tapa.
- Albert, acabe com esta safada! Não se esqueça de que você
é a maior autoridade do reino! - berrava o espírito Patrik. -
Você se esqueceu de que é o Duque mais temido dessas
redondezas?
Albert caminhava descontrolado pelo escritório. Quando se
dirigiu novamente à mulher, encontrou o filho encarando-o
e erguendo a mãe, que havia caído no chão.
- Saia da minha frente! - disse Albert, sem pronunciar o
nome do filho.
- Pai, o senhor não vai encostar mais um dedo sequer em
minha mãe! - disse Hugo encarando o genitor.
Hugo pôs a mão sobre o ombro da mãe e viu que o
escritório estava um caos, com papéis por todo canto e
móveis revirados.
Albert partiu para cima de Hugo, tentando agredi-lo, mas o
rapaz evitou ser espancado.
- Maldito! Vou matá-lo novamente!
Os espíritos Patrik e Louis gritavam em coro.
- É isso aí! Acabe com este plebeu ingrato, que desonrou a
Duquesa Antonieta!
Albert retrocedera no tempo e deslocara no espaço, pois os
espíritos penetraram em sua mente perispiritual e o
conduziram de volta ao passado, quando era então o velho
Duque Antoine.
Hugo meteu a mão no bolso, tirou o celular e discou o
número do Dr. Maurício.
- Alô!
- Dr. Maurício? Sou eu, Hugo! Venha imediatamente para
cá, pois meu pai está completamente fora de controle!
Desligou.
Em menos de quinze minutos, uma ambulância entrou na
mansão e imediatamente dois enfermeiros manietaram
Albert. Por ordem do Dr. Maurício, também lhe aplicaram
uma altíssima dose de tranqüilizantes e o conduziram aos
aposentos dele.
Sob o olhar de piedade da esposa e do filho, o empresário
Albert adormeceu.
- Vamos levá-lo novamente para a clínica - disse o
psiquiatra. Hugo olhou para o pai, que estava deitado em sua
cama, dormindo sob o efeito dos medicamentos, e dos seus
olhos rolaram lágrimas de compaixão por aquele ser tão
orgulhoso.
- Dr. Maurício, o senhor acha mesmo necessário interná-lo
novamente? - perguntou o filho de Albert.
- Não. Mas para a segurança de vocês, e mesmo a dele, acho
que essa é a melhor opção.
- O que a senhora acha? - perguntou o filho à mãe.
- Dr. Maurício, vamos dar mais uma chance a ele, por favor
-pediu Iolanda.
- Bem, Maurício, por enquanto, deixe-o por aqui - anuiu
Hugo.
- Então, vocês devem assinar este documento. Somente
assim isentarão a clínica e a mim de qualquer
responsabilidade sob o que possa acontecer ao doente fora
de nosso alcance - disse o psiquiatra, estendendo um papel
para Iolanda e o filho.
Hugo leu o documento, pensou por alguns minutos, e logo
depois o assinou, juntamente com a mãe.
- Dr. Maurício, caso ele piore, vamos interná-lo
imediatamente. E se isso acontecer, de lá ele só sairá quando
estiver completamente curado, conforme a sua ciência -
disse Iolanda.
O médico despediu-se e foi embora.
Capítulo XXIV
O enviado do Senhor
Navarro caminhava inquieto pelo interior da caverna.
Chutava tudo que encontrava pela frente e esmurrava o ar
com ódio estampado no rosto. Fluía de sua boca uma baba
esverdeada, que era constantemente limpa com as costas da
mão.
- Patrik, hoje à noite, nós iremos desfechar o golpe de
misericórdia no Duque.
- O que você pretende fazer, chefe?
- Trazê-lo para cá o mais rápido possível, antes que o filho
dele encontre alguma solução e o canalha possa ser
protegido pelo pessoal do tal centro espírita.
- Qual é o seu plano? - perguntou Louis, tentando disfarçar o
medo que sentia daquele espírito diabólico.
- Quero persuadi-lo a se suicidar ainda hoje - respondeu o
chefe.
- Acho que os protetores daquela casa não vão permitir -
alertou Patrik.
Navarro não respondeu, limitando-se a caminhar,
visivelmente perturbado, pois o inferno de Dante parecia
materializar-se à frente daquela criatura de Deus, que tanto
sofria com o ódio e o orgulho que alimentavam seus
sentimentos de vingança.
Enquanto isso, Hugo conversava com a mãe, numa sala
privativa da família.
- Mamãe, eu soube que a dona Isabel voltou para casa.
- O Augusto comentou que ela está passando muito bem -
completou a mãe. - Mas, meu filho, ela já não larga "O
Evangelho Segundo o Espiritismo", isso desde quando esteve
internada. Foram o filho, o marido e o Dr. Jacinto que a
ajudaram a se recuperar, com o auxílio da Doutrina Espírita
e dos medicamentos e terapias da própria clínica de repouso.
- Mas, segundo o Augusto, ela realmente só começou a ficar
bem, a partir do momento em que a família passou a
freqüentar as reuniões de um centro espírita muito
conhecido na cidade, juntamente com o Dr. Jacinto - disse
Hugo. - E não vamos nos esquecer de que o Edmundo
assumiu novamente a frente dos negócios, para tentar recu-
perar os bens perdidos e salvar o patrimônio da família.
- É verdade. O Edmundo estava enveredando pelo caminho
dos vícios, mas parece que agora está tudo sobre controle -
replicou o filho.
Iolanda se ergueu e, aproximando-se do filho, fez-lhe um
carinho e perguntou-lhe:
- Meu filho, o que vamos fazer para acalmar o seu pai,
quando ele acordar?
O rapaz olhou para Iolanda e convidou-lhe:
- Vamos para o quarto dele, mãe.
- Agora?
- Sim. Pegue "O Evangelho Segundo o Espiritismo" e vamos
fazer uma pequena reunião no quarto do papai.
- E se ele acordar? - perguntou a mãe, surpresa com aquela
decisão do filho.
- Mãe, não temos tempo a perder.
Naquele exato momento, o mentor espiritual de Hugo, o
espírito Domingos, o orientou a tomar aquela decisão, pois
os espíritos da falange de Navarro estavam se organizando
com o objetivo de acabar com a atual existência do outrora
Duque Antoine.
Ambos levantaram-se imediatamente e se encaminharam
para o quarto de Albert.
Após adentrarem o quarto, Hugo e Iolanda colocaram um
copo com água sobre uma mesa. Em seguida, fizeram uma
prece e leram um trecho do Evangelho. Ambos pediram
perdão a Deus, para aquele espírito ignorante que tanto
sofria e que não demonstrava por causa de seu orgulho,
constantemente alimentado por energias fluídicas malsãs,
ligadas a sentimentos de vingança de seus inimigos do
passado.
Todas as tentativas de influenciar Albert foram em vão.
Navarro, Patrik, Louis e outros não conseguiram sequer se
aproximarem de Albert, pois naquele quarto acontecia algo
inexplicável.
Somente Carla, que chorava baixinho num canto do quarto,
com medo da violência de Navarro, viu uma luz forte saturar
o ambiente de uma imensa energia benéfica, chegando ela
mesma a sentir alguns minutos de alívio em suas dores.
Hugo e Iolanda foram iluminados durante a leitura do
Evangelho e, assim, Albert pôde receber os fluídos
benéficos transmitidos pelo filho e pela esposa, com a
orientação de um espírito belo, simpático e benévolo - o
espírito Domingos.
- Chefe, eu avisei que esse canalha do Jean, o fiel escudeiro
do Duque, estava trabalhando para salvá-lo de nossa
vingança.
- Você se refere ao Hugo?
- Exatamente.
Navarro rosnava, enquanto caminhava do lado de fora do
quarto, procurando uma maneira de adentrar o recinto.
- Não vejo alternativa a não ser acabar com esse safado, o
traidor Jean - disse Navarro babando de ódio.
- Lembre-se que nesta existência ele é filho do Duque -
alertou Louis.
- Não interessa! Vamos acabar com ele mesmo assim!
- Como vamos entrar neste quarto, chefe? - perguntou
Patrik, com receio daquele espírito vingativo e mau. -Temos
que sair daqui o mais rápido possível. Eu já estou
enfraquecendo, e nesse estado sou uma presa fácil para os
servidores do "Homem da Cruz".
- Está com medo, Patrik? - perguntou o chefe aos gritos.
- Não. Mas não pretendo deixar isso acontecer novamente -
redargüiu, o espírito. - Já fiquei alguns dias preso em suas
enfermarias e não quero repetir a dose.
- Então, covardes, mostrarei como se faz com a plebe! -
gritou Navarro avançando para o leito de Albert.
De repente os espíritos ouviram um grito e viram o chefe
voar pelos ares, desaparecendo do ambiente.
Patrik olhou para Louis e ambos também sumiram, rumo à
caverna que servia de quartel-general para eles.
Somente Carla ficou, chorando baixinho. Em frações de
segundos ela viu Hugo e a mãe dele, todavia não conseguiu
se aproximar deles.
Na caverna, Navarro se encontrava todo queimado e suas
mãos e pés eram os mais afetados pelas queimaduras. Ele
babava com mais intensidade e rosnava de ódio. Quem
estivesse ali naquele momento, e observasse mais
detalhadamente, veria que aqueles espíritos tomavam várias
formas, inclusive a de animais.
- Covardes! Só atacam pelas costas! Ninguém tem coragem
de me enfrentar frente-a-frente, com as armas nas mãos!
Patrik deixou escapar um discreto sorriso e isso foi o
suficiente para Navarro descarregar toda a raiva que lhe ia na
alma. Surrou e torturou-o com os seus métodos, deixando os
outros apavorados.
De repente um ser com a aparência de lobo apareceu na
tétrica caverna, fuzilando os presentes com os seus olhos de
cor vermelha e soltando chispas de fogo pelas narinas. O
espírito era a personificação do demônio, conforme algumas
lendas religiosas.
Navarro fez uma reverência, como se aquele ser fosse
alguém superior, digno de respeito. O medo estava
estampado nas feições dos espíritos presentes no recinto.
- Seja bem-vindo, Barão Pátulo - saudou Navarro, com
visível espanto e medo no olhar.
O Barão cruzou os braços e virou as costas para aqueles
celerados do além, permanecendo em silêncio por alguns
minutos.
- Navarro! - chamou o Barão com a voz tonitruante, que
fazia estremecer toda a caverna.
- Sim, mestre.
- Eu estou a par de todas as atividades, mormente a situação
de Antoine.
Silêncio. Ninguém ousava interromper o Barão Pátulo.
- Vocês não conseguirão realizar esses projetos contra o
Duque. A cada dia que passa, a família dele torna-se mais
forte, pois aderiu a essa Doutrina responsável pelo aumento
no número de baixas em nossas fileiras - disse o Barão, com
firmeza. - Antes de sua existência como Jean, escudeiro de
Antoine, o Hugo já era protegido por amigos do bem.
Enfim, o que quero mostrar, é o quanto vai ser difícil pene-
trarmos nas mentes deles, para conseguirmos nossos
objetivos. A Carla cometeu um ato contra as leis do
"Maioral", entretanto, também está sob a proteção de vários
amigos do bem, pois não aceita ser cúmplice na destruição
de Albert, somente porque soube que ele fora o seu pai, o
Duque Antoine - completou o Barão Pátulo.
- Afinal de contas, o que podemos fazer para acabar com
aquele crápula? - impaciente, Patrik atreveu-se a perguntar.
- Por enquanto, nada.
- Então, o Duque vai ficar impune? - perguntou Navarro.
O Barão Pátulo fuzilou o subordinado com um olhar cheio
de ódio e respondeu-lhe, segurando-o pela garganta, como
se desejasse sufocá-lo:
- Deixe de ser estúpido! - respondeu Pátulo, largando sua
presa. - Como sou chefe dessa falange há séculos, tenho
experiência suficiente para afirmar que vocês não vão
conseguir destruir o Albert com esses métodos
ultrapassados.
- E o senhor tem algum plano mais eficiente? - perguntou
Navarro, passando a mão no pescoço.
- Sim.
- Qual?
- Por enquanto é segredo - respondeu Pátulo. - Reuniremo-
nos quando chegar a hora e resolveremos esse e outros
assuntos pendentes.
- Podemos saber que outros assuntos são esses, chefe? -
perguntou Navarro.
- São aqueles ligados aos responsáveis pelos fracassos
sucessivos que temos sofrido.
- O senhor está falando dos seguidores dessa maldita
Doutrina? - perguntou Patrik.
- Exatamente - respondeu Pátulo, desaparecendo sem se
despedir.
Os homens de Navarro ficaram pensativos, olhando de
soslaio para ele. "Eu mesmo vou acabar com aquela serpente
do Albert", pensou Navarro.
Enquanto isso, no quarto de Albert, mãe e filho se
aproximaram da cama dele. Hugo fez um gesto com a mão,
no sentido da cabeça aos pés do pai, que naquele momento
dormia e em seguida retiraram-se.
O espírito Domingos aproximou-se de Carla e com carinho
pousou sua mão no ombro dela, dizendo-lhe:
- Minha filha, você fez uma bobagem com o seu corpo físico
em um momento de desespero e ignorância.
Humildemente, solicite ajuda ao Pai e ao nosso Mestre Jesus,
pois tenho certeza de que Eles não lhe negarão amparo em
Seus corações.
- Lamento, meu senhor, mas não sou adepta dessas crenças
ignorantes. Sou médica e só espero melhorar para poder
voltar a trabalhar.
Domingos elevou os olhos para os céus e fez uma prece
fervorosa por aquela irmã sofredora. À medida que a prece
era proferida, desciam como flocos de neves, energias
balsâmicas que vinham ajudar Carla, porém ela estava tão
arraigada ao mundo material, que os fluidos não conseguiam
ser absorvidos por seu corpo espiritual. Tão logo se sentiu
um pouco mais calma, levantou-se e saiu correndo feito
louca pelas ruas da cidade.
O espírito Domingos chorava por nossa irmã Carla,
enquanto dizia:
- Pai Amado, é por isso que no capítulo sétimo, de "O
Evangelho Segundo o Espiritismo", o codificador Allan
Kardec faz as seguintes considerações: "... Se se recusam a
admitir o mundo invisível e um poder extra-humano, não é,
entretanto, porque isso esteja acima de sua capacidade, mas
porque seu orgulho se revolta com a idéia de uma coisa
acima da qual não podem se colocar, e que os faria descer de
seu pedestal. Por isso, eles não têm senão sorrisos de desdém
por tudo o que não é do mundo visível e tangível; eles se
atribuem muito de espírito e de ciência para crerem nessas
coisas, segundo eles, boas para as pessoas simples, tendo
aqueles que as levam a sério por pobres de espírito".
Domingos olhou para o Albert e pensou: "Você conseguiu
proteção do alto, através desse espírito bom que reencarnou
como seu filho".
Mãe e filho conversavam, enquanto caminhavam de mãos
dadas pelos corredores da mansão:
- Meu filho, você acha que o seu pai vai conseguir se curar?
- Não tenho dúvidas, minha mãe - respondeu o filho. - Por
que a senhora acha que eu voltei?
A mulher passou a mão no cabelo, num gesto feminino, e
perguntou-lhe:
- Então quer dizer que você voltou pelo seu pai? E eu
pensando que você gostava um pouquinho de mim...
Hugo abraçou a mãe e disse-lhe rindo:
- Bobagem, mamãe. Eu sempre amei vocês, mesmo quando
estava magoado e ressentido com o meu pai.
- Compreendo, meu filho. Vocês nunca foram amigos, mas
o seu pai nunca deixou de fazer seus caprichos.
A mulher se calou e ficou pensativa.
- O que foi, mamãe? Por que a senhora se calou de repente?
- Estou tentando descobrir por que o seu pai não aceitou seu
namoro e muito menos seu casamento com a Carla.
Hugo ficou em silêncio. "Mistérios que um dia a Doutrina
Espírita vai explicar", pensou.
Capítulo XXV
Recuperação de Albert
No dia seguinte, ao acordar, Albert levantou-se disposto e
com o aspecto mais otimista e calmo. Estava bastante fraco,
ainda sentindo os efeitos da medicação administrada pelo
Dr. Maurício, por ocasião do surto que tivera no dia
anterior. Ele ouviu alguém bater na porta do seu quarto.
- Entre!
Meio desconfiado, Hugo entrou no aposento do pai,
aproximando-se do leito, e o cumprimentou.
- Aproxime-se, meu filho - pediu o pai. - Há quanto tempo
não nos vemos? Por onde você andava, garoto?
Hugo permaneceu em silêncio e em estado de alerta.
"Estranho... Parece que ele está me vendo somente agora",
pensou.
O filho chegou mais perto do pai, que abriu os braços e o
abraçou, como se nada tivesse acontecido.
- Desculpe-me, filho, pelas grosserias que falei quando você
chegou disse ele, fazendo um carinho na cabeça do médico.
Hugo percebeu que o pai havia tido conhecimento da sua
chegada e até da maneira como ele o tratou. "Talvez ele
realmente esteja melhor, ou livre, pelo menos por alguns
dias, do assédio de seus perseguidores do outro mundo",
concluiu.
- O senhor não tem de que se desculpar, pai - disse o filho,
correspondendo ao abraço dele.
- Por favor, sente-se - convidou o pai, apontando um lugar
na cama.
Hugo sentou-se e viu que o pai havia melhorado
consideravelmente.
Pai e filho conversaram durante quase uma hora e falaram
sobre tudo.
Hugo narrou onde estivera durante todo aquele tempo,
porém, em momento algum mencionou qualquer assunto
que relembrasse a ex-namorada Carla. "Devo evitar esse
assunto por enquanto e também acho prudente omitir o
meu relacionamento com Viviane", pensou.
- Filho, você já está pronto para reassumir a direção do
hospital? - perguntou o pai de surpresa, enquanto se
levantava e vestia um paletó, aprontando-se para deixar o
quarto.
Hugo pensou e respondeu, tomando cuidado com as
palavras que iria pronunciar:
- Voltei para isso, pai.
- Então, mãos à obra! Aquilo lá deve estar entregue às
baratas - disse Albert segurando o braço do filho e
encaminhando-se para porta.
- Eu estive doente, mas já estou me recuperando. Logo vou
estar completamente curado.
- Claro, pai - concordou o filho, pondo a mão no ombro dele
com carinho.
Iolanda estava sentada no jardim, quando viu que o marido
caminhava em companhia do filho e conversava
normalmente. "Não posso acreditar no que estou vendo!
Obrigada, meu Deus! Parece que o Senhor atendeu nossas
preces", disse emocionada para si mesma. Ela ergueu-se e foi
ao encontro dos dois, mesmo bastante desconfiada da súbita
melhora do marido.
Os dois homens aproximaram-se dela. O marido beijou-lhe a
face e cumprimentou-a, dizendo:
- Tudo bem com você, Iolanda?
- Tudo, querido - respondeu a esposa feliz.
O filho enlaçou a mãe com carinho, também demonstrando
sua felicidade com a recuperação do pai, e disse-lhe:
- Veja aí, o nosso grande Albert, mamãe!
- Estou vendo, filho.
- Estou faminto, Iolanda - disse o marido. - Tem algo bom
para se comer nesta casa?
- Claro que tem, meu querido. Vamos para a sala de
refeições, que a mesa está preparada.
Alguns minutos após a refeição matinal, o trio se dirigiu para
o escritório do empresário. Edvaldo passou a conversar com
o patrão sobre os negócios, mas não tirava os olhos de Hugo
e Iolanda, desconfiado de que alguma coisa não estava bem.
Iolanda meditava sobre tudo que havia acontecido nos
últimos dias, principalmente no que se refere à doença do
marido. Ela não conseguia acreditar naquela recuperação
milagrosa.
Hugo ergueu-se e sinalizou que deixaria o escritório, mas
ouviu uma voz ordenar:
- Por favor, Hugo, sente-se - disse Albert, de cabeça baixa,
verificando uns papéis.
Iolanda enregelou de medo, todavia, manteve-se calma e em
silêncio, enquanto se perguntava: "Meus Deus, será que o
Albert voltou a ser o que era?".
Hugo fitou a mãe de soslaio e continuou sentado como se
não tivesse percebido a preocupação dela. Ele sorriu para o
pai e esperou que o mesmo se pronunciasse.
Albert ergueu-se e começou a andar pelo luxuoso escritório,
parando aqui e acolá, como se estivesse pensando em algo.
Disfarçando o que se passava em seu interior, ele fingia olhar
com muito interesse as preciosas peças de artes que
adornavam o seu ambiente de trabalho. Sentou-se
novamente à sua escrivaninha e calmamente pôs os coto-
velos sobre a mesa, de maneira que seu queixo ficasse
apoiado pelas suas mãos.
- Será que estou realmente bem? - perguntou Albert,
surpreendendo a todos com um meio sorriso estampado no
rosto.
Adquirindo mais confiança, Hugo se ergueu e respondeu,
aproximando-se do pai:
- Claro. Logo o senhor estará novinho.
- Eu tenho uma vaga lembrança de tudo o que aconteceu
ultimamente, inclusive, dos dias em que estive hospitalizado
e do horror que senti quando vi aquelas pessoas que mais
pareciam demônios - disse Albert, passando a mão no rosto,
como se quisesse espantar os maus pensamentos.
Edvaldo fitou a patroa de viés e continuou em silêncio. No
fundo, ele não acreditava muito na recuperação do patrão.
Albert olhou para o secretário e lhe pediu com delicadeza:
- Por favor, Edvaldo, deixe-nos a sós. Hoje você está
dispensado, mas amanhã, vamos arregaçar as mangas e
tentar recuperar o tempo perdido.
Imediatamente, Edvaldo se levantou e pediu licença para
deixar o recinto.
Após a saída do secretário, Albert encarou a mulher e o filho
e perguntou-lhes, com as mãos sobre a mesa:
- Iolanda e Hugo... Alguma vez deixei de cumprir com os
meus compromissos, principalmente aqueles referentes à
minha família e aos meus funcionários?
Iolanda foi surpreendida pela pergunta, mas mesmo assim,
não se deixou abalar e respondeu:
- Não, Albert. Você sempre foi um fiel cumpridor de seus
deveres com a família e, principalmente, com os seus
funcionários.
- Então, por que tudo isso aconteceu comigo? - perguntou o
marido abaixando a vista.
- Papai, talvez o fato de o senhor ter sido um bom patrão
para os nossos funcionários, é que o salvou das garras dos
seus perseguidores. Seu enorme senso de responsabilidade
para com aqueles que trabalham para o senhor é um gesto
extremamente relevante e bem visto aos olhos de Deus - o
filho atreveu-se a responder.
- Hugo, eu nunca soube que tinha inimigos, exceto os
nossos concorrentes, e mesmo assim, por motivos
profissionais. Sempre cumpri todos os meus compromissos
e, portanto, não entendo aonde você quer chegar.
O filho sentiu que havia falado demais, mas agora teria que ir
até o fim.
- Papai, nós sabemos que os nossos funcionários respeitam-
no e o admiram, pois o senhor jamais deixou de pagá-los em
dia, cumprindo com todos os compromissos legais de uma
empresa. Além disso, o senhor nunca os espoliou, pelo
contrário, todos ganham acima do teto salarial pago pelas
outras empresas.
- Ainda não entendo o que você quer me dizer, filho - disse
Albert cruzando os braços e encarando rapaz.
- Ele quer dizer que você é um bom patrão e que, embora
enérgico, sempre cuidou muito bem de seus funcionários. É
por isso que Deus o tem protegido - tentou esclarecer
Iolanda. - Querido, lembre-se de que você é responsável
pela sobrevivência de milhares de pessoas espalhadas pelo
mundo.
- Como assim, Iolanda? Explique-se melhor, por favor.
- Você sustenta centenas de famílias espalhadas no mundo
inteiro, com seus vários negócios, principalmente com a
fábrica de automóveis, que tem filiais em vários países.
Albert ficou sério e fez um sinal para que a esposa
prosseguisse com sua explicação.
Iolanda encarou o filho e percebeu pelo olhar do mesmo
que deveria parar por aí.
- Não tenho mais nada a dizer, Albert.
Albert olhou para o filho e perguntou:
- E você, Hugo? Tem algo a falar?
- Por enquanto, não.
- Então, por favor, deixem-me trabalhar. Tenho que
verificar como estão os negócios.
Mãe e filho ergueram-se e se retiraram em silêncio.
Iolanda não parava de pensar numa possível recaída do
marido, pois segundo o que ela aprendera na Doutrina
Espírita, os perseguidores do marido estavam apenas se
reorganizando para voltarem a atacar novamente.
- Mamãe, a senhora está preocupada?
- Claro que estou, filho. Imagine se os inimigos de seu pai
voltarem a atacar? Tenho quase certeza de que ele não
suportará, pois eles virão preparados para acabar com o
Albert de uma vez por todas.
- A senhora tem algum plano?
Iolanda olhou para um lado e outro, certificando-se de que
não havia ninguém por perto, convidou o filho:
- Vamos conversar em seu quarto?
Hugo anuiu com um sinal de cabeça e ambos se
encaminharam para o quarto dele.
Capítulo XXVI
Porque aconteceu
Iolanda conversava com o filho, esforçando-se ao máximo
para evitar que alguém os ouvissem. Ela dialogava com o
rapaz como se estivesse conspirando.
Preocupado e em silêncio, Hugo permanecia sentado ao lado
da mãe, ouvindo-a atentamente e tentando entender o que
ela queria transmitir com aquelas palavras.
- Chegou o momento de tentarmos convencer o seu pai a
freqüentar o centro espírita. E isso deve acontecer antes que
seus obsessores voltem a atacá-lo - disse Iolanda, segurando
as mãos do filho. - Você concorda comigo?
Hugo, que meditava sobre as palavras da mãe, voltou a
cabeça para ela e respondeu-lhe com uma pergunta:
- A senhora notou que ele não se referiu à Carla em
momento algum?
- Sim. Talvez ele não queira falar sobre esse assunto tão
delicado.
- Pode ser.
- Parece que você está preocupado com alguma coisa -
comentou Iolanda, notando a seriedade estampada no rosto
do filho.
- Mamãe, se nós conversamos sobre vários assuntos, e ele
deu a entender que se lembrava de tudo, por que o papai
não falou sobre a Carla e o convite que fizemos?
Iolanda ficou em silêncio.
- É estranho mesmo. Mas vamos tentar conversar com o
seu pai a esse respeito.
- Quando?
- Agora mesmo, filho.
Hugo encarou a mãe com os olhos muito abertos, surpreso
com a decisão dela, mas anuiu com a cabeça.
Ambos se ergueram e se dirigiram ao escritório de Albert.
Albert estava de cabeça baixa, folheando um documento,
quando ouviu a mulher e o filho pedirem licença para
falarem com ele.
- Entrem e fiquem à vontade - disse Albert, erguendo a
cabeça e colocando os óculos sobre a mesa. - Sentem-se, por
favor. Pelo aspecto de vocês, acho que vamos ter uma
conversa séria.
Hugo fitou a mãe de esguelha e recebeu o sinal.
- Vocês têm algum segredo para me contar? - perguntou o
empresário, sorrindo.
Hugo ganhou coragem com aquele sorriso e com muito jeito
perguntou-lhe:
- Papai, o senhor se lembra de tudo que aconteceu quando
esteve doente?
O homem passou a duas mãos nos cabelos brancos, que já
estavam rareando, e como se estivesse se espreguiçando,
talvez querendo ganhar tempo para responder a pergunta do
filho, ficou em silêncio por alguns momentos.
- Quase tudo, filho - disse ele.
- O senhor sabe por que adoeceu?
Albert fitou o filho com seus olhos azuis - que agora
mudavam de cor, sinal de que ele não estava gostando da
conversa - e tentou se controlar.
Hugo observou que o pai havia fechado os punhos, como se
quisesse, num esforço muito grande, dominar o próprio
gênio.
- Sua ex-namorada Carla foi o começo de tudo -
respondeu o pai sério, não deixando dúvida de que aquele
assunto não o agradava - Era isso que você queria saber,
Hugo?
O filho baixou a cabeça por alguns segundos e depois
perguntou ao pai, com calma e muito cuidado para não
desequilibrá-lo:
- O senhor ainda continua ressentido com o que
aconteceu entre mim e Carla?
Albert limitou-se a riscar um papel que estava à sua frente
como se não tivesse ouvido a pergunta do filho.
Iolanda, que ainda não havia se pronunciado, perguntou de
chofre, tentando desviar o assunto.
- Querido, você se lembra de que nós o convidamos para
participar de uma reunião num centro espírita?
Albert fitou a esposa e fez um gesto com a cabeça,
confirmando que se lembrava do convite.
Um silêncio mortal tomou conta do ambiente.
Albert estava com o olhar perdido, fingindo que observava
um belíssimo quadro pendurado logo à sua frente. Ele evitou
comentar a pergunta da esposa.
Enquanto isso, o mentor espiritual de Hugo - o espírito
Domingos - estava em prece, próximo à porta.
Do lado de fora do escritório e acompanhado de seus
asseclas, em vão Navarro estudava uma maneira de envolver
Albert, porém, não conseguia, pois Hugo e Iolanda se
mantinham em silenciosa prece.
- Não adianta tentar controlar o Duque, Navarro - disse
Patrik, nervoso e aborrecido. - Ele encontra-se protegido
por uma energia poderosa, enviada pelas preces da esposa e
do filho.
- Chefe, sinto que tem alguém muito poderoso neste
lugar, enviado pelo dirigente deles - alertou Louis.
- Não vejo mais ninguém, além desse canalha e sua família
- disse Navarro, furioso com os empecilhos que
atrapalhavam sua vingança tramada há anos contra o então
Duque Antoine.
Aos poucos o espírito Domingos foi aparecendo para aqueles
espíritos sofredores, mas para isso, tivera que graduar sua
faixa de vibração com a deles, para que os mesmos pudessem
perceber a presença do mensageiro do Senhor que protegia
Albert e família.
- Não consigo entender porque esse canalha tem a
proteção desse pessoal - disse Navarro, expelindo uma saliva
grossa e esverdeada, enquanto encarava Domingos
desconfiado.
Louis também pôde ver o espírito do bem que estava à
postos naquela residência, ao ouvir o comentário do chefe.
- Chefe, o Duque de L. tem ajudado muita gente. Nesta
existência ele é um dos homens mais ricos do país e do
mundo e ajuda milhares de pessoas, empregando-as em suas
fábricas - disse ele, recebendo intuitivamente essas palavras
do espírito Domingos. - Imagine, chefe, quantos pedidos de
proteção são dirigidos ao Todo Poderoso para esse elemento
ignóbil que acabou conosco, quando era o Duque Antoine.
- Não me interessa essa história, Louis! - gritou Navarro. -
Tenho que encontrar uma maneira de fazê-lo pagar pelo que
fez conosco!
- Lembre-se, chefe, que éramos nós que conspirávamos
contra o Duque, no sentido de delatarmos ao rei toda a
estratégia dele para usurpar o trono - disse Patrik. - Sendo
assim, ele teve lá suas razões para mandar acabar conosco.
Navarro deu um pulo, agarrou o pescoço do seu lugar-
tenente e perguntou com o rosto congestionado de ódio:
- Você está defendendo esse canalha?
- Não. Sei que ele merece deixar esse mundo, porém,
eleja fez coisas que nós ainda não fizemos, pois estamos, há
mais de três séculos, vivendo somente para a vingança e
esquecendo-nos de progredir como ele.
- Seu safado! Vou castigá-lo por isso e também para
aprender a me respeitar! - berrou Navarro. - Você está se
deixando seduzir pela conversa desse pessoal sem
personalidade, que acredita nas promessas dessa gente
metida a boazinha!
De repente o chefe sentiu-se preso por algo invisível.
Atordoado, ele perguntou:
- O que está acontecendo? Quem está me prendendo?
Navarro pôs a mão no rosto, sentindo um terrível mal estar,
e como se estivesse retrocedendo no tempo e no espaço, se
viu no exato momento em que foi executado. Assim que
voltou ao normal, ele se encontrou deitado no chão de sua
caverna - lugar que plasmara em seu subconsciente
perispiritual como um castelo, sua residência na sua última
existência em uma pequena cidade da França.
Apavorados com aquele estranho acontecimento, Louis e
Patrik correram em direção à caverna deles, pois no fundo
acreditavam na força do espírito enviado pelo poder maior
desse universo: Deus.
Caríssimos leitores, voltaremos ao solar de Albert, para
sabermos como está o diálogo entre pai, mãe e filho.
Albert pousou as duas mãos sobre a mesa, vislumbrando
com admiração e orgulho o portentoso anel incrustado com
um diamante puro, herança de família, e depois relanceou o
olhar entre o filho e a esposa. Calmamente ele disse:
- Meu filho, eu pensava que agia certo quando tomei
aquela decisão sobre o relacionamento de vocês e, por isso,
não sinto remorso algum quanto ao que aconteceu. No que
diz respeito ao convite que vocês me fizeram, para ir a um
centro espírita, minha resposta é não. Não tenho religião e
não acredito em nada que não seja palpável, todavia, não
vou proibi-los de seguir a religião que desejarem.
Albert ergueu-se e finalizou a conversa com um ar sério.
- Agora, por favor, deixem-me só. Tenho muito trabalho
para pôr em ordem.
Esposa e filho ergueram-se e deixaram o escritório em
silêncio. Ambos se dirigiram para um banco do jardim e,
após acomodarem-se, Iolanda perguntou ao Hugo:
- O que você achou da conversa, filho?
- Melhor do que eu pensava.
- Por que?
- Ora, mãe! A senhora mesma ouviu que ele falou sobre a
Carla de outra maneira. E a respeito do nosso convite, o fato
dele não ter intenção de impedir nossas escolhas, já foi um
grande progresso para afastar seus inimigos.
- É verdade, filho.
Iolanda fitou o rapaz e perguntou em voz baixa:
- Ele já sabe do que você sente por Viviane?
- Não.
- Como você acha que ele vai receber essa notícia?
- Não tenho idéia - respondeu o filho. - Mas algo me diz
que ele mudou um pouco, e para melhor.
- Deus o ouça!
Capítulo XXVII
Viviane
Carla encontrava-se deitada nos degraus de uma igreja
bastante conhecida da cidade. Desesperadamente, ela
chorava, gritava e contorcia-se de dor. Ora apertava com as
mãos a cabeça, ora o estômago e ora a boca, como se
quisesse evitar o vômito. Aquele pobre espírito não esquecia
por um segundo a maneira como havia encerrado sua
existência. Havia plasmado em sua memória perispiritual o
momento em que ingerira as substâncias que a conduziram
de volta ao mundo espiritual.
- Hugo! Por favor, ajude-me! - gritava ela, lembrando-se
do ex-namorado.
Em frações de segundos, Carla se encontrou no quarto de
Hugo, entretanto, notou que não podia aproximar-se do
rapaz, pois se chocava em uma barreira, não podendo tocá-
lo.
Com a bondade daqueles que trabalham na seara do Mestre
Divino, o espírito Domingos apareceu novamente -
entendendo o sofrimento da médica que, num momento de
fraqueza e afastamento da Divindade, tirou a preciosa
existência que Deus nos dá como instrumento de progresso
- e graduou sua faixa de vibração para permitir que o espírito
sofredor pudesse vê-lo.
Assim que captou a presença do espírito, e prevendo que ele
lhe passaria um sermão, a pobre moça falou aborrecida:
- Meu senhor, perdoe-me a ignorância, mas não suporto
seus conselhos. Isso me cheira a sermão de gente alienada,
que vive perambulando pelas igrejas e lugares semelhantes.
Aviso-lhe que não tenho religião e não acredito nisso,
porque sou uma médica e cientista.
- Minha querida irmã, deixe-me tentar fazer algo por você
- pediu o espírito chorando, pois ele a conhecia de outras
existências.
A moça encarou o espírito e, num rito de dor estampada no
rosto, causada pelo seu superlativo sofrimento, baixou a
cabeça e resmungou:
- Ninguém pode me ajudar, senhor - disse ela, tentando
compreender o belo homem que desejava ajudá-la. - Quero
morrer e não consigo. Não agüento tanta dor e já estou
enlouquecendo por isso.
Domingos orava, pedindo a clemência do Pai para aquela
criatura sofredora.
- Domingos! - alguém chamou o espírito.
Ele viu uma bela mulher, com a feição iluminada por um
sorriso de bondade e simpatia, pegar em seu braço e dizer-
lhe:
- Querido, não se esqueça do livre-arbítrio que Deus deu
aos Seus filhos. Nós é que escolhemos as provações e as
expiações pelas quais passaremos para resgatarmos suas
dívidas.
- Amanda! Como estou feliz com a sua presença!
E como se a tristeza tivesse novamente nublado seus olhos,
disse-lhe:
- Desculpe-me, querida amiga, mas não consigo ver a
nossa Antonieta sofrendo dessa maneira - disse Domingos. -
Você sabe muito bem que essa filha de Deus tem um
coração de ouro.
Amanda fez um gesto afirmativo com a cabeça e disse:
- Sei tanto quanto você que nossa irmã vem vencendo
suas provações, até esta, quando não agüentou o peso do
orgulho, reativado pela sua formação acadêmica, e renegou a
fé no Ser Supremo - disse o formoso espírito, chorando.
- Você não acha que o Albert contribuiu para que ela
cometesse esse ato insano contra as leis do Criador? -
perguntou Domingos.
- Querido Domingos, conforme o que está registrado na
memória perispiritual dela, foi o orgulho que destruiu seu
corpo material, simplesmente porque o pai do Hugo não fez
a vontade da mesma. Por outro lado, o Albert foi contra o
casamento dela com o filho dele, também porque o orgulho,
juntamente com as lembranças do passado que estão
arquivadas na memória perispiritual dele, veio à tona na-
quela ocasião.
- As lembranças de quando ele era o Duque Antoine,
Carla sua filha Antonieta e Hugo seu fiel servidor Jean -
completou Domingos.
- Exatamente, meu irmão - confirmou a bela Amanda. –
Além disso, conhecemos vários inimigos do pretérito de
Albert que sempre o perseguiram, exercendo uma influência
muito forte sobre ele, com o objetivo de destruí-lo em todas
as existências que tivera, após ter sido um nobre na corte
francesa do século XVIII.
- É verdade. Isso sem levarmos em consideração as
existências que ele tivera antes desta como o Duque
Antoine.
Ambos ficaram em silêncio, como se estivessem em prece, a
fim de receberem orientações do alto.
Carla ergueu-se e saiu novamente correndo e gritando,
misturando a dor que sentia à revolta pelo mundo, porque se
sentia uma desventurada e inútil. A vontade de morrer
tornava-a cada vez mais desequilibrada, pois não conseguira
acabar com a vida no momento em que tentara o suicídio.
Domingos aproximou-se de Amanda e perguntou-lhe, com a
educação dos espíritos evoluídos:
- Querida irmã, você acha que o Albert vai conseguir
vencer os seus perseguidores nessa existência?
- Eu não posso responder essa pergunta, meu caro
Domingos. Todavia, algo me diz que aquelas duas almas boas
que estão ao seu lado conseguirão amenizar um pouco o
orgulho secular do famoso Duque Antoine, neutralizando as
ações de seus inimigos.
- Você está se referindo ao Hugo e
Iolanda? - Exato.
Após esse diálogo, ambos se despediram e foram para as
colônias espirituais aonde estavam lotados, prestando
serviços no mundo espiritual.
Enquanto isso, na caverna aonde se reunia os espíritos
inimigos de Albert, o Barão Pátulo chutava tudo que
encontrava pelo caminho e esmurrava as paredes com ódio,
causando medo em seus subordinados, que se mantinham
encolhidos no fundo.
Navarro observou que os olhos do Barão emitiam chispas de
ódio, o que os tornavam vermelhos e semelhantes aos de
um cão raivoso. Mesmo assim, aproximou-se com muito
cuidado do chefão e perguntou:
- O que houve, Barão? O que o atormenta?
Visivelmente fora de si, Pátulo voltou-se para o
companheiro de infortúnio e gritou totalmente
descontrolado: -Cale-se, seu inútil! Silêncio.
Navarro baixou a cabeça e concluiu que não devia continuar
fazendo perguntas, sob pena de receber um castigo terrível
daquele ser que mais parecia um animal.
- As chances que tínhamos para destruir aquele cão
danado se acabaram - disse o Barão, falando para si mesmo.
- Do que o senhor está falando? - atreveu-se a perguntar
Navarro. -De Viviane.
- Quem é Viviane?
- A princesa Angelina, filha do rei naquela época.
Atualmente, ela se chama Viviane e reside numa pequena
cidade, onde Hugo ficou algum tempo exilado e se
apaixonou por ela.
- Qual era o seu plano? - perguntou Patrik.
- Tentar dominar a mente de Viviane e insuflar a vingança
no coração de Hugo.
- Chefe, mas ainda está em tempo - disse Navarro,
demonstrando esperança na voz.
O Barão Pátulo, que caminhava enfurecido dentro da
caverna, voltou-se para o capanga e respondeu:
- Não há como interferir na relação entre os dois, pois eles
nutrem um amor de séculos. Naquela época, a princesa
Angelina já amava o escudeiro do Duque, e quando soube da
relação amorosa entre Jean e a Duquesa Antonieta, sufocou
o seu sentimento e não deixou que ninguém soubesse.
- Como o senhor descobriu? - perguntou Navarro.
- Conheço Viviane, a princesa Angelina de ontem, há
vários séculos. Havia esquecido desse detalhe, até o dia em
que fui ver de perto a mulher pela qual Hugo havia se
apaixonado.
- Foi aí que o senhor lembrou do passado dela? -
perguntou Patrik.
- Sim.
- Mas se dominássemos a mente dela, talvez
conseguíssemos - disse Louis.
-Deixe de ser ignorante! Lembre-se que ninguém consegue
interferir no amor puro entre duas pessoas! - disse o Barão.
- Isso é verdade - concordou Patrik, passando a mão no
rosto disfarçadamente, como se estivesse enxugando uma
lágrima.
- E agora, chefe? - indagou Navarro.
- Vamos pensar.
O Barão Pátulo foi embora, deixando Navarro e seus asseclas
pensativos.
- Não me conformo em perder para esse demônio do
Albert - disse Navarro.
- Deve haver uma maneira de levá-lo à loucura - disse sem
muita convicção Patrik.
Navarro caminhava inquieto pela caverna. -Ainda não
consegui entender porque esse asno do Albert está sob a
proteção do Todo Poderoso - falou Navarro.
- O motivo já foi explicado - disse Louis timidamente.
- Eu sei - disse Navarro aborrecido e dispensando seus
homens com um gesto.
Enquanto isso, em seu escritório, Albert pensava: "Não sei o
que está acontecendo comigo". Ele ergueu-se, começou a
caminhar pelo luxuoso escritório e refletia em agonia: "Por
que eu fiz aquilo com a Carla, inclusive renegando meu
próprio neto? Tenho que encontrar respostas para essas
perguntas que martelam em meu cérebro, senão vou
enlouquecer novamente e dessa vez será irreversível".
Albert sentou-se numas das confortáveis poltronas e se
entregou completamente às suas indagações.
Capítulo XXVIII
Albert resolve buscar recursos
Albert ergueu-se da cadeira na qual estava sentado em seu
escritório e se dirigiu a um pequeno jardim localizado no
interior da mansão, onde a sua esposa e filho conversavam
acomodados em aconchegantes poltronas.
Ao ver o marido encaminhando-se em direção a eles,
Iolanda ergueu-se surpresa, no que foi imediatamente
imitada pelo filho, e ambos cumprimentaram o homem,
desconfiados. "Nunca vi o Albert se aproximar
voluntariamente de nós, sem que estivesse em seu
escritório", pensou Iolanda.
Albert respondeu ao cumprimento, sorriu e sentou-se numa
cadeira. Ficou em silêncio por alguns minutos, talvez
procurando palavras adequadas para entabular um diálogo
com eles.
Ninguém se atreveu a fazer qualquer comentário ou
perguntar-lhe algo. O homem encarou Iolanda e depois o
filho, enquanto tirava os óculos com gestos lentos e
estudados - como era de costume sempre que desejava falar
sobre algo importante.
- Aonde fica esse centro espírita? - indagou o empresário
em voz baixa, fitando um ponto invisível ao lado e
demonstrando aparente enfado.
Iolanda imediatamente olhou para o filho, surpresa com a
pergunta do marido.
- De carro, fica a uns trinta minutos daqui - respondeu
Hugo, tão surpreso quanto à mãe.
O pai ergueu-se, aproximou-se de uma planta que estava
florida e fingiu que a observava para ganhar tempo, tentando
reassumir o controle, como se estivesse vivendo um conflito
interno.
- Eu irei com vocês na próxima reunião, para conversar
com o responsável por esse tal de centro - disse Albert, com
as costas voltadas para a família.
- Querido! Como fico feliz em saber que você aceitou o
nosso convite! - disse a esposa, demonstrando uma enorme
satisfação pela decisão que o marido havia tomado.
- Preciso conversar com a pessoa que dirige essa seita,
para tirar algumas dúvidas.
- Papai, o Espiritismo não é uma seita, e sim, uma religião,
embora seja uma Doutrina que abrange vários assuntos,
como filosofia, ciência e religião. Quanto à pessoa que o
senhor deseja conversar, tenho certeza de que o mesmo vai
esclarecer todas as suas dúvidas.
- Espero, filho. Vou viajar para inspecionar as fábricas e
não quero ficar pensando no que pode dar errado. E sendo
assim, se esse é o caminho para ficar completamente curado,
vou sim, recorrer a esses métodos estranhos - disse o pai,
afastando-se em direção ao seu escritório.
Após o homem ter deixado o local, Iolanda aproximou-se do
filho e perguntou:
- O que você acha disso, filho?
Hugo pensou, passou as mãos nos cabelos louros, num gesto
de satisfação, e respondeu:
- Acho que ele refletiu sobre tudo o que lhe ocorreu, e
como não encontrou explicações através da ciência, agora,
decidiu tentar entender, a qualquer custo, o que realmente
lhe aconteceu, por ocasião de sua internação.
- Você acha que o presidente daquele centro conseguirá
ajudar seu pai?
- Não sei, mamãe - respondeu o filho. - Mas não custa
nada que ele tenha uma conversa com alguém que possua
mais conhecimento acerca da Doutrina Espírita.
- Estou com medo, filho.
- Onde está a sua fé, mãe?
Silêncio.
Após alguns minutos, ambos ergueram-se e tomaram a
direção de seus aposentos.
No dia seguinte, à noite, Albert e família encontravam-se no
interior do pequeno salão do centro espírita, no horário
previamente combinado.
Albert tirou um lenço do bolso e o passou numa cadeira,
sentando-se com o seu jeito imponente e orgulhoso.
Iolanda olhou de esguelha para o filho e se sentou ao lado do
marido.
Após alguns minutos, Edvaldo, que já tomara conhecimento
do fato, aproximou-se do patrão e convidou-o com um
sorriso:
- Por favor, acompanhe-me, Dr. Albert.
Albert sentiu algo estremecer dentro de si. Ele não sabia que
naquele momento os espíritos Navarro, Patrik e Louis
estavam tentando controlar sua mente, induzindo-o a não
conversar com o presidente do centro. Ele encarou o
funcionário e com muito esforço se ergueu e o seguiu.
Em poucos minutos, encontravam-se reunidos em silêncio
Marcelo, homem ainda jovem, calmo, carismático, atrás de
uma mesa simples, e defronte a si o empresário, que tentava
transmitir calma, para mostrar àquele senhor humilde sua
superioridade.
Na porta da sala, o espírito Domingos estava de plantão, para
evitar que os asseclas de Navarro atrapalhassem a conversa
entre Albert e Marcelo, o presidente do centro. Os espíritos
rebeldes esmurravam o ar e seus olhos fuzilavam Albert com
ódio, revoltados por não conseguirem seu intento.
- Não consigo acreditar nessa tal de justiça! - disse
Navarro, soltando uma saliva amarelada pela boca,
semelhante a um cão raivoso.
- Por que, chefe? - perguntou Patrik.
- Não entendo porque esse canalha é protegido por essa
gente que nos impede de concluirmos nossa vingança!
- Concordo, chefe! - disse Louis.
Enquanto isso, Domingos fazia uma prece, pedindo a Deus
por aqueles espíritos perseguidores de Albert, que
plasmaram em suas memórias perispirituais, há mais de três
séculos, um dos mais terríveis defeitos da humanidade: a
vingança.
- Albert é um ser que está sob a proteção do bem pelos
seus próprios méritos - disse Amanda, aparecendo de
repente. - Navarro jamais entenderia essa proteção do alto,
principalmente a dessas criaturas que estão tentando ajudá-lo
- mãe e filho.
- Concordo, irmã - disse Domingos. - Mas se Navarro
conseguisse se vingar do Albert, levando-o à loucura ou ao
suicídio, como era o plano dele, não seria apenas o
cumprimento da Lei de Causa e Efeito?
- Não, meu querido irmão.
- Por quê?
- Lembre-se que Jesus disse um dia: "Eu não vim destruir a
lei, e sim, dar cumprimento a ela".
- Não entendi, irmã Amanda.
- Todos que estão sob a proteção de Albert em suas
empresas e fábricas, agradecem diariamente a Deus por ter
um patrão como ele - elucidou Amanda. - Se o patrão fosse
arrancado do corpo material antes do tempo, o que
aconteceria com eles?
- Mas isso não o isenta das dívidas contraídas com esses
irmãos sofredores do mundo espiritual.
- Certamente. Mas não se esqueça de que enquanto os
seus perseguidores ainda vivem envolvidos por fluídos
malsãos, Albert, apesar de ser orgulhoso e prepotente,
também é honesto e não pára de trabalhar, enquadrando-se
nas leis de trabalho e progresso.
- Por isso, ele consegue a proteção do alto?
- Exatamente, caríssimo irmão.
Domingos, que já sabia desse pormenor, pois também era
um espírito bastante evoluído, pensou: "As leis de Deus são
perfeitas".
Na sala de Marcelo, Albert estendeu a mão em direção a um
copo que se encontrava na sua frente e tomou um gole
d'água. Em seguida, olhando diretamente para os olhos do
presidente daquela instituição religiosa, falou tentando se
controlar:
- O senhor é médico? - indagou Albert, fitando Marcelo
com um certo desdém na voz.
- Não. Sou um simples funcionário público.
- Não sei como uma pessoa tão desqualificada vai poder
tirar minhas dúvidas - disse Albert, levantando-se. -
Desculpe-me, senhor Marcelo, mas nada temos a falar.
- Concordo, senhor Albert.
Quando Albert abriu a porta para sair e ir embora, ouviu
Marcelo falar:
- O senhor teve muita sorte, quando a misericórdia divina
atendeu aos vários pedidos de seus funcionários e evitou que
seus perseguidores se vingassem, levando-o à loucura e ao
suicídio.
Albert parou e repousou uma mão no trinco da porta, sem
abri-la.
- Deus é infinitamente bom e justo - prosseguiu Marcelo. -
Não se esqueça de que o seu filho Hugo perdeu uma pessoa
que ele pensava amar, unicamente por causa desse seu
orgulho que nada constrói, e mesmo assim ele está ao seu
lado, tentando ajudá-lo.
O presidente do centro espírita respirou profundamente e
com as duas mãos sobre a mesa continuou:
- Mas logo o senhor terá uma grande surpresa, pois ele
encontrou o verdadeiro amor.
Albert girou sobre os calcanhares num gesto de surpresa e
sentou-se novamente em silêncio, enquanto ouvia aquele
porta-voz de um ser invisível.
Naquele momento, a irmã Amanda estava em perfeita
sintonia com a mente de Marcelo, falando através dele ao
orgulhoso empresário.
- Deus é o criador de todos os seres e de todos os mundos,
e nada acontece sem a permissão Dele - disse Marcelo. -
Todas as Suas criaturas têm o chamado "livre-arbítrio", desde
que não ultrapassem essa liberdade para fazer o mal a quem
não merece.
Marcelo fez uma pequena pausa e logo prosseguiu, olhando
diretamente para os olhos de Albert:
- Meu irmão Albert, nunca desdenhe do nosso Criador.
Você tem muitas dívidas a pagar e precisará de muita
coragem para resgatá-las no tempo previsto.
E finalizou:
- Albert, daqui para frente, tudo depende de você: vencer
ou não, essa existência.
Após esse instante, ele se calou e permaneceu em silêncio e
de olhos fechados durantes alguns minutos. Em seguida,
como se saísse de um transe, Marcelo respirou
profundamente e perguntou:
- Meu irmão, estou à sua inteira disposição, para informá-
lo sobre qualquer dúvida a respeito da Doutrina Espírita.
O famoso empresário Albert baixou a cabeça e apenas disse,
como se estivesse envergonhado:
- Desculpe-me, senhor Marcelo, pela minha grosseria.
- Não tenho porque desculpá-lo, senhor. Nossa humilde
casa está à sua disposição.
Albert ergueu-se para sair, mas ouviu o presidente do centro
falar:
- Por favor, senhor, compareça às nossas reuniões. É para
o seu bem.
Albert estendeu a mão e despediu-se de Marcelo com um
sorriso, dizendo:
- Farei o possível para freqüentar todas as suas reuniões,
pois necessito entender melhor essa Doutrina.
- Vá com Deus, meu irmão!
Albert assistiu a reunião pública, ouvindo com atenção a
explicação evangélica prevista para aquela noite.
Ao retornarem para o lar, Iolanda e Hugo se entendiam
através do olhar, perguntando-se o que havia acontecido
com Albert.
Já em casa, Albert sentou-se num banco do jardim e
permaneceu em silêncio. A esposa e o filho notaram que ele
desejava ficar só, por isso cumprimentaram-no e seguiram
em frente.
"Como aquele homem sabia que eu não acreditava em Deus?
E por que não consegui rebatê-lo, logo, uma pessoa
aparentemente sem instrução ou recursos?", perguntava-se o
empresário. Ele levantou-se e andou pelo jardim. "Todo
mundo sabe o que houve com Carla, principalmente que fui
contra o casamento dela com o Hugo, mas ele deixou claro
que o Hugo não sentia amor por ela", continuou a pensar.
De repente ele se encaminhou apressado para o interior da
mansão e encontrou a esposa conversando com o filho
numa pequena sala íntima.
Iolanda e Hugo ergueram-se assustados, pois não esperavam
aquela visita inesperada.
- Papai, sente-se, por favor - convidou o filho.
- Obrigado.
Silêncio.
Albert aproximou-se do filho, que estava sentado, e
perguntou-lhe:
- Hugo, você pode me tirar uma dúvida?
- Com prazer, meu pai.
- Você amava a Carla?
Hugo deu um pulo, erguendo-se da cadeira como se algo o
tivesse impulsionado automaticamente.
- Por que a pergunta? - respondeu o rapaz com outra
pergunta.
- Responda, Hugo, por favor! - pediu o pai em voz
enérgica.
- Papai, nunca amei a Carla, porém, só descobri isso após
alguns meses.
- Quando?
Hugo olhou para a mãe e recebeu um sinal.
- Quando descobri que amava outra moça.
- Quem?
- A dona da casa onde passei os quase dois anos do meu
exílio. Albert contraiu as mandíbulas num gesto típico de
quem tentava controlar a raiva. "Então, é verdade o que o
Marcelo falou", pensou.
- Você falou isso para o Marcelo?
- Somente minha mãe sabe disso. Eu pretendia informá-lo
de tudo, mas esperava uma oportunidade para explicar-lhe
toda a situação.
Ele foi até a janela, respirou o ar perfumado do jardim e se
voltou para a família.
- Vou para o meu quarto. Depois conversaremos, Hugo.
Antes de deixar a sala, ele fitou a esposa e perguntou-lhe:
- Você falou sobre esse assunto com mais alguém?
- Não. Esse é um segredo que o Hugo guarda à sete
chaves. Albert apertou os punhos e saiu da sala.
Capítulo XXIX
O sofrimento de Carla
Nem por um segundo o espírito Carla conseguia paz, pois
não esquecia o momento infeliz em que destruiu o seu
corpo material. Não podemos infringir as leis de Deus, sob
pena de sofrermos as conseqüências desses atos. Sabemos
que Deus é onipotente e infinitamente bom, porém
precisamos respeitar Suas leis, para continuarmos o apren-
dizado através da pluralidade das existências e assim nos
libertarmos da matéria e progredirmos intelectualmente e
moralmente, a fim de galgarmos mundos superiores, com
nossas consciências tranqüilas ante ao Criador.
"O melhor mesmo é seguirmos os conselhos dos próprios
suicidas que se comunicam com os médiuns: - Que os
homens suportem todos os males que lhes advenham da
Terra, que suportem a fome, desilusões, desonra, doenças,
desgraças sob qualquer aspecto, tudo quanto o mundo
apresente como sofrimento e martírio, porque tudo isso
ainda será preferível ao que de melhor se possa atingir pelos
desvios do suicídio. (...)", diz a médium Yvonne do A.
Pereira, no seu livro "A Luz do Consolador", edição da FEB.
O espírito Carla recorreu a esse ato tresloucado movido pelo
terrível defeito da humanidade denominado orgulho. No
capítulo décimo, de "O Evangelho Segundo o Espiritismo", o
codificador comenta o seguinte, no número dez: "...
Incontestavelmente, é o orgulho que leva o homem a se
dissimular os próprios defeitos, tanto ao moral como ao
físico. (...) Se o orgulho é o pai de muitos vícios, é também a
negação de muitas virtudes; encontramo-lo no fundo e
como móvel de quase todas as ações. Por isso, Jesus se
dedicou a combatê-lo como o principal obstáculo ao
progresso". Portanto, conforme essas considerações
evangélicas, tanto Carla como Albert são vítimas dessa chaga
que ainda manipula a humanidade habitante dos mundos
inferiores. Albert deixou-se envolver por esse sentimento
que nega a caridade para com o próximo e Carla, se achando
ofendida, porque o pai do namorado não lhe fez os
caprichos, fortaleceu ainda mais esse defeito horrível não
acreditando na imortalidade do espírito e tentando
inutilmente acabar com apropria vida.
Mesmo com uma existência distanciada dos ensinamentos
do Mestre Divino, o empresário Albert ainda possuía
créditos junto ao Criador, pois, apesar de seus defeitos, ele
também lapidou algumas virtudes ao longo do tempo, como
honestidade e trabalho, e administrou com sabedoria os bens
que Deus lhe emprestou para ajudar os milhares de espíritos
que estavam sob sua responsabilidade. Quanto à Carla,
mesmo sendo um espírito bom, caridoso e trabalhador, num
momento de fraqueza pôs fim a sua última existência,
cometendo, assim, uma das mais graves transgressões às leis
de Deus. Dessa forma, ela vai sofrer as conseqüências de
seus atos, até encontrar condições necessárias para sua
recuperação.
A cada dia que passava, Carla se desequilibrava mais, ficando
à mercê dos espíritos maléficos das zonas umbralinas.
Apenas quando erguer os olhos para o alto e pedir perdão a
Deus, reconhecendo Nele o Criador, com a sinceridade
advinda do princípio espiritual, é que ela será imediatamente
atendida e conduzida para um lugar adequado à recuperação
dos suicidas.
Os familiares de Carla, inclusive sua mãe, tornaram-se
espíritas e trabalhadores da Seara do Mestre, ajudando os
necessitados e estendendo as mãos para aqueles que sofrem
as adversidades na existência material. Aprenderam com o
desencarne dela que precisavam estar sempre ancorados
pelo nosso Criador, para vencer as agruras das existências,
principalmente as dos mundos inferiores.
Enquanto isso, Albert e família freqüentavam o centro
espírita tentando ajudar-se mutuamente.
Com sua vontade férrea, o empresário levava à sério os
ensinamentos dos espíritos, e embora ainda se considerasse
cético, pois não conseguia acreditar em um ser invisível, que
havia criado o universo com todas as suas criaturas, ele já se
deixava meditar sobre o assunto.
Iolanda e Hugo estavam satisfeitos com a melhora dele, e
principalmente, com a transformação pela qual ele passava.
Albert havia desenvolvido um verdadeiro respeito por
Marcelo, presidente da instituição espírita, pois durante os
dois meses em que freqüentava o centro, ele estava sempre
por perto tentando tirar suas dúvidas.
- Meu caro Marcelo, eu ainda não consegui entender por
que você disse que a minha doença foi causada pela
perseguição de meus inimigos do passado - disse Albert,
enquanto caminhava com o amigo, visitando as instalações
do centro. - Pessoalmente, nunca conheci nenhum inimigo,
pois sempre cumpri minhas obrigações, a não ser os
concorrentes que, por motivos comerciais, às vezes,
tornam-se adversários no mundo dos negócios.
- Sou médico e confesso que tudo isso foge aos meus
estudos, a respeito da mente humana - também disse o Dr.
Maurício, que acompanhava os dois homens naquela
ocasião.
Marcelo, que mostrava ao empresário um terreno ao lado do
centro, onde pretendia construir um pequeno hospital para
o tratamento dos irmãos perturbados, parou e falou sorrindo,
voltando-se para Albert e o Dr. Maurício:
- Segundo a Doutrina Espírita, os espíritos influenciam em
nossos pensamentos muito mais do que imaginamos.
Quando me refiro à perseguição de inimigos do passado, não
falo em inimigos desta existência.
- Você quer dizer que esses inimigos são de minhas vidas
passadas? - perguntou Albert.
- Exatamente, meu caro Albert - confirmou Marcelo,
fitando o terreno ao lado do centro.
- É difícil acreditar nisso, Marcelo - disse o Dr. Maurício
com a mão no queixo, como se estivesse tentando vencer
um conflito que lhe ia na alma.
Os homens continuaram a caminhar em silêncio.
- Não creio que tive outras existências - disse Albert sem
muita convicção.
- Quer dizer que tudo que estudei e todos os tratamentos
comprovados cientificamente, segundo seus
esclarecimentos, são inúteis? - perguntou o Dr. Maurício,
aproveitando o comentário do empresário.
Marcelo parou e respirou profundamente, talvez tentando
encontrar palavras adequadas para elucidar os
questionamentos daqueles homens. Pensou um pouco e
depois disse:
- Albert, como um espírito imortal, logo você vai deixar
este corpo que lhe serve de moradia, porém, no futuro,
Deus lhe concederá outras moradas, outros corpos materiais,
nas quais você terá novas existências. Isso prova que a vida
continua após a morte.
- Quanto à sua dúvida, Dr. Maurício - continuou Marcelo.
- Você é um médico, com aval da ciência e de Deus, apto a
prestar seus serviços ao próximo, pois, enquanto os espíritos
viverem em mundos inferiores, eles necessitarão da ajuda
dos profissionais de várias áreas para poderem progredir.
Sendo assim, caro Maurício, continue estudando e
exercendo sua profissão, pois a Doutrina Espírita nos
informa que a Lei do Trabalho é fundamental para o
progresso do espírito.
Durante todo aquele tempo, desde sua volta para casa, Hugo
pôs em ordem o hospital no qual era diretor. Após muito
trabalho e graças às informações da Doutrina Espírita e a
ajuda de seu amigo espiritual Domingos, conseguiu ajudar o
pai a ficar equilibrado.
Certo dia, enquanto estava entregue ao trabalho em seu
consultório, ele recebeu a visita de Albert.
Após os cumprimentos de praxe, Albert sentou-se e ficou
em silêncio, apenas observando o filho, que simulava pôr
em ordem alguns documentos.
Albert ergueu-se e se pôs a observar um bonito vaso de
porcelana que adornava uma das mesas do escritório do
diretor do hospital.
- Você vai viajar? - perguntou Albert repentinamente,
analisando os outros objetos de arte que o filho colecionava.
Hugo se assustou com a pergunta, pois realmente pretendia
viajar para visitar a sua amada e o pai jamais havia
perguntado algo sobre Viviane. "Meu Deus, acho que
chegou a hora de passarmos tudo a limpo", pensou.
- Vou visitar a minha namorada - respondeu o filho
receoso.
- Quem? - perguntou Albert fazendo-se de desentendido.
- Viviane?
- Sim.
Silêncio.
O empresário aproximou-se do filho e perguntou-lhe, pondo
as mãos sobre a mesa dele, com um sorriso sem jeito:
- Por que você não traz essa moça, para que eu e sua mãe
possamos conhecê-la?
Hugo pensou: "Obrigado, meu Deus, por esse presente que
recebo nesta manhã!".
- Posso convidá-la para passar uns dias aqui conosco -
comentou o filho. - Mas não garanto se vou conseguir
convencê-la.
Albert fez um pequeno afago na cabeça do filho e
encaminhou-se para a porta de saída, mas antes falou sem se
voltar, como era de costume:
- Parece que já conheço essa moça. Sabe, filho, não quero
que se repita com ela o que aconteceu com a Carla.
Albert tirou um lenço do bolso do paletó, enxugou uma
lágrima e saiu do consultório de Hugo.
Hugo baixou a cabeça e começou a chorar, pois seu coração
foi envolvido por sentimentos de amor e fraternidade pelo
pai, que finalmente havia demonstrado um pouco de
sensibilidade naquele coração tão conhecido por ele.
- Por isso é que Kardec diz em "O Evangelho Segundo o
Espiritismo", que "se reconhece o verdadeiro espírita pela
sua transformação moral e pelos esforços que ele faz para
dominar as suas más inclinações" - emocionado, disse Hugo
para si mesmo.
"Parece que meu pai está mesmo se esforçando para
melhorar sua conduta como filho de Deus", pensou e se
ergueu, saindo apressado pelos corredores do hospital e
deixando que seus funcionários notassem toda a alegria
estampada em seu rosto com um largo sorriso. Entrou num
consultório e falou para um senhor de branco, com
aproximadamente sessenta e cinco anos, que transmitia
bondade em seu semblante:
- Dr. Valdomiro, assuma a direção do hospital,
imediatamente.
O médico subdiretor do nosocômio ergueu a cabeça e
levantou-se para abraçar o amigo Hugo, perguntando-lhe
sorrindo:
- Posso saber o que houve, meu amigo?
- Se possível, viajarei ainda hoje.
- Por que tanta urgência? - perguntou o amigo. - Você me
avisou que só viajaria dentro de cinco dias. Aconteceu algo?
- Aconteceu. Mas não tenho tempo para narrar-lhe o que
houve - respondeu o rapaz. - Quando voltar, e com mais
calma, o colocarei a par de tudo.
- Tudo bem, meu caro Dr. Hugo. Vá com Deus e deixe
comigo a direção do hospital. Farei o possível para cumprir
todas as normas.
- Obrigado, amigo - agradeceu Hugo, saindo do
consultório do médico em direção à sua residência.
No carro, Hugo cantarolava uma música, visivelmente
alegre, com a felicidade própria das pessoas possuidoras de
um bom coração. Ele entrou na mansão, desceu do carro e
correu para o seu quarto. Assim que lá entrou, passou a
colocar algumas roupas dentro de uma pequena valise.
Iolanda soube que o filho havia chegado; então logo se
encaminhou para os aposentos dele. Mas ao saber o quanto o
rapaz estava agitado, segundo informações dos empregados,
imediatamente ficou apreensiva e com receio do que estaria
por vir.
Hugo ouviu uma leve batida na porta. Ele falou em voz alta,
sem dar muita importância ao fato.
- Entre.
Iolanda entrou no quarto com o coração batendo forte e
descontrolado, a ponto dele quase sair pela boca.
Verificando que o ambiente estava um caos, só pôde se
acalmar quando viu que o filho sorria.
- Mamãe, ajude-me a arrumar esta mala, por favor.
- Para onde você vai, meu filho?
- Vou ver a Viviane - respondeu o filho. - Quero fazer
uma surpresa para ela.
- Filho, aconteceu algo?
- Sim, mas depois eu lhe conto.
- Pelo menos, me diga se foi bom ou ruim.
- Não se preocupe, mãe. Aconteceu algo muito bom. -
Graças a Deus.
Correndo, Hugo jogou duas valises no porta-malas de seu
carro; depois abraçou a mãe e se despediu.
- Meu filho, cuidado! - pediu Iolanda. - Não precisa essa
pressa toda!
- Mãe, o papai está quase bom. Agora, vou poder cuidar da
minha vida.
O filho já estava dentro do carro, ligando o motor, quando a
mãe indagou-lhe:
- O seu pai já sabe dessa viagem?
- Claro. Ele foi se despedir de mim no hospital.
- Graças a Deus, meu filho.
Iolanda viu o filho fazer a curva que rodeava o jardim e
dirigir-se para o portão de saída. Sentindo que alguém a
observava, olhou instintivamente para a sacada de uma das
janelas do quarto do marido e o viu afastar-se
sorrateiramente. Ela sorriu e pensou: "Temos que conversar,
senhor Albert... Mas há muito tempo para isso".
Capítulo XXX
O verdadeiro amor
Viviane costumava regar o seu belo jardim todos os dias,
quando o Sol buscava seu esconderijo e deixava a Terra
mergulhada na escuridão. "Meu Deus, o que aconteceu ao
meu Hugo?", pensava a linda mulher, enquanto tentava
regar uma planta que ficava longe do alcance do jato d'água
do regador. Ela trajava uma calça branca, que moldava suas
formas, e uma blusa de seda azul clara amarrada nas pontas
na altura da cintura, que a deixava mais jovem, sensual e
alegre, tal qual uma adolescente. "Já faz quinze dias que não
recebo nenhuma carta! Meu Deus, proteja o meu querido
Hugo! Quase chego a sufocar de tanta saudade!", continuava
pensando.
O espírito Barão Pátulo tinha razão, quando afirmava que
Viviane era a princesa Angelina reencarnada. Aquela
mulher tinha traços nobres no rosto, nos gestos e ao falar,
mesmo levando uma vida simples no campo. Ela era
graciosa, bonita e tinha um sorriso permanente
emoldurando-lhe o rosto corado, além de gestos femininos e
um comportamento especial, próprio das pessoas educadas e
espiritualmente elevadas.
- Mãe! - gritou a filha, gesticulando com as mãos, como
fazem as crianças em sua inocência.
- Sim, filha - respondeu Viviane agachada, enquanto
cortava um galho seco de uma de suas roseiras.
- Adivinhe quem está aqui?
- Minha filha, eu não sou adivinha - respondeu a mulher,
acarinhando com um sorriso uma linda rosa.
- Mãe! - chamou novamente Soninha, abraçando-se
beijando-a no rosto, numa demonstração de alegria.
- Sim, querida - disse a mãe, correspondendo ao abraço da
filha e beijando-lhe a face com carinho.
- Olhe para trás!
Viviane sentiu um choque e intuitivamente pensou: "Meu
Deus, o Hugo está aqui!". Ela não teve tempo para voltar-se,
pois logo sentiu dois braços conhecidos que a abraçavam por
trás e um sussurro em seu ouvido:
- Não posso viver sem você, mulher de minha vida!
- Hugo! - disse Viviane soltando o regador, com as pernas
trêmulas.
- Não posso acreditar que você está aqui!
A bela mulher voltou-se e se atirou nos braços de Hugo,
chorando e dando vazão à toda saudade que sentira durante
a ausência do homem que tanto amava. Ficaram se olhando
por alguns minutos, se acariciando e conversando numa
linguagem muda, típica dos enamorados. Depois, ambos
buscaram os lábios um do outro e se beijaram, enquanto as
lágrimas escorriam por suas faces. Naquele momento o
mundo deixou de existir, pois aqueles filhos de Deus
encontravam-se novamente neste mundo inferior, tão
importante para a evolução espiritual e intelectual dos seres,
principalmente para os seres humanos.
Passada as primeiras emoções do reencontro, o casal
encaminhou-se para casa, onde algumas pessoas que foram
visitar o amigo e bondoso médico da cidade, o Dr. Hugo,
esperavam-no para cumprimentá-lo pelo seu retorno.
- Dr. Hugo, eu já estava ficando impaciente com a sua
demora! -disse o amigo Gordo, que viu quando o carro do
médico entrou na pequena cidade.
- Eu tinha que resolver alguns problemas. Mas agora, está
tudo sob controle.
Viviane não se cansava de olhar para o namorado, pensando:
"Meu Deus, acho que podes até me levar, pois tenho a
impressão de que procuro esse homem há muito tempo e só
agora o encontrei, graças a Ti. Obrigada, Senhor!"
O Gordo não parava de rodear e passar a mão no carro do
amigo, semelhante a uma criança quando brinca com algo
que há tanto sonhava. "O homem é rico mesmo! E quem
diria que a madrinha iria encontrar um milionário para se
casar depois de viúva?", pensava satisfeito.
Quando o pessoal que fora visitar o Dr. Hugo se retirou, o
médico foi tomar banho e trocar-se.
- Não demore, querido. Já mandei preparar o jantar para
comemorarmos sua chegada - disse Viviane com um gesto
gracioso e um lindo sorriso estampado no rosto simples,
expressivo e feliz.
- Hugo, você trouxe alguma coisa para mim, da cidade
grande? - perguntou Soninha, rindo com gestos de menina-
moça.
- Isso é surpresa - disse o médico.
- Minha filha, isso é falta de educação!
- Deixe, querida - pediu o rapaz, encaminhando-se para o
seu quarto.
Após mais ou menos uma hora, Hugo apareceu na sala com
o aspecto mais descansado.
- Onde está Viviane? - perguntou Hugo a Jacó.
- Assim que você foi para o seu quarto, ela também
desapareceu. Meu amigo, você sabe como são as mulheres.
Hugo conversava com a filha e o irmão de Viviane, quando
sentiu um aroma agradável de perfume. Ele voltou-se e viu a
mulher mais linda de sua vida. Então, se ergueu e foi ao
encontro dela, abraçando-a, enquanto lhe falava em voz alta,
como se quisesse que todos ouvissem aquele elogio vindo de
um coração apaixonado e simples.
- Você parece uma princesa!
- Hugo, não me deixe envergonhada!
- Mamãe, eu queria ser linda como a senhora - disse a filha
rindo e passando a mão no vestido.
- Filha, por favor, não diga isso nem de brincadeira.
Viviane estava com um vestido simples, mas como era uma
mulher elegante, tudo que vestia deixava-a radiante. A
essência de sua beleza estava na alma, e o seu corpo apenas
resplandecia o bem e alegria que o seu coração enamorado
refletia de outra dimensão invisível, ou seja, o seu perispírito
envolto em sentimentos puros, a tomava uma princesa saída
diretamente dos contos de fada.
- Já chega de tanto elogio, pessoal - disse a mulher
sorrindo. - Vamos jantar?
- Um momento - pediu Hugo, em voz alta. - Aguardem
um instante, enquanto vou ao meu quarto.
Todos estavam ansiosos para saber o que o médico tinha ido
fazer em seu quarto. De repente viram o rapaz com vários
pacotes. Ele começou a distribuir para todos, os presentes
que trouxera da cidade onde morava.
Soninha pulava de alegria, abrindo os pacotes que Hugo lhe
dera, sem saber qual era o mais bonito.
Jacó agradeceu com lágrimas nos olhos, os aparelhos
eletrônicos que o amigo lhe presenteou.
A moça que trabalhava para Viviane não se cansava de
agradecer ao médico pelos presentes que também recebera.
Hugo olhou pela janela e viu o Gordo ainda admirando o seu
luxuoso carro. Ele o chamou em voz alta:
- Gordo!
- Pronto, doutor!
- Entre um momento, por favor.
O Gordo entrou e viu a alegria estampada nos rostos dos
familiares de sua madrinha.
- O que está acontecendo por aqui? - perguntou o rapaz.
- Nada de mais - respondeu o médico, entregando um
pequeno pacote ao amigo.
O afilhado de Viviane abriu o pacote e se deparou com um
relógio que o deixou sem fala por alguns minutos. Ele o
colocou no braço e, enquanto admirava o presente do
amigo, começou a chorar, sendo mimado pela madrinha.
- Não posso aceitar este presente, madrinha! - disse o
Gordo. - E muito caro para mim!
Hugo aproximou-se do amigo e carinhosamente o abraçou.
Sorrindo, ele disse-lhe:
- Você merece muito mais, amigo. Acho que foi Deus que
o colocou em meu caminho.
O Gordo não parava de admirar o seu presente. Viviane ria
discretamente com a alegria do irmão, da filha e do afilhado,
que abraçavam o médico, agradecendo-lhe os presentes.
- Querida, por favor, feche os olhos - pediu o médico,
fitando a namorada.
A bela mulher fechou os olhos e ficou em pé, perto da mesa.
Hugo aproximou-se por trás e colocou algo em seu pescoço.
Em seguida, pegou a mão direita da mulher e pôs um anel
em seu dedo.
- Pronto! Agora abra os olhos! - pediu o rapaz, com os
braços abertos, num gesto espontâneo de alegria.
Viviane abriu os olhos e ficou lívida quando viu o belíssimo
colar de pérolas e diamantes que estava em seu pescoço,
enfeitando-lhe o colo branco, e o anel que cintilava em seu
dedo. Ela começou a chorar e, não se contendo, correu e
abraçou o rapaz, sem nada falar. Pôs o rosto no ombro dele e
começou a beijá-lo em silêncio.
- Agora, se aceitar, você é minha noiva, e em muito em
breve, será a esposa que sempre sonhei - disse Hugo,
segurando as duas mãos da bela namorada que, naquele
momento, realmente parecia uma deusa inacessível ao ser
humano, como nas lendas. - Resta-me saber se você aceita o
meu pedido de casamento.
A moça fitou o rapaz e o beijou com todo o amor que lhe ia
na alma. Depois do beijo aplaudido pelos presentes, ela disse:
- Eis a minha resposta, pois não tenho palavras para
descrever a felicidade que sinto neste momento.
O casal continuou abraçado durante uns minutos e depois se
sentou à mesa.
O jantar transcorreu num clima de paz, harmonia e uma
grande alegria se irradiava por toda a residência.
Após a refeição, Soninha notou que os dois queriam ficar a
sós. Ela se ergueu e, aproximando-se da mãe e de Hugo,
beijou-os.
- Vou dormir. Boa-noite. Obrigada, mais uma vez, meu
futuro pai - disse ela, piscando para o médico.
O restante das pessoas também cumprimentou o casal e com
uma desculpa qualquer deixou o ambiente.
Hugo ergueu-se e procurou sua cadeira no alpendre,
sentando-se em silêncio.
Viviane sentou-se no braço da cadeira, enlaçando o rapaz
pelos ombros e beijando seus cabelos, também em silêncio,
como se estivessem combinados.
Hugo pôs as mãos nas pernas da namorada e começou a
falar, narrando tudo o que lhe aconteceu desde a sua
chegada na residência dos pais.
Viviane sentou-se numa cadeira, cruzou elegantemente as
pernas e ficou ouvindo aquele homem que ela não parava de
admirar, principalmente após ouvir a sua história.
Enquanto isso, num canto do alpendre, o espírito Barão
Pátulo, acompanhado de seus asseclas, comentava:
- Agora vocês entenderam por que não podemos fazer
nada contra essa gente?
- Chefe, será que não existe uma pequena possibilidade de
conseguirmos acabar com o canalha do Albert? - perguntou
Navarro, contorcendo-se e com os olhos vermelhos de ódio.
- Neste momento, não vejo como, pois há uma proteção
tão forte em torno destes dois, que se irradia até mesmo para
aqueles que estão vinculados a eles.
O espírito Domingos, que estava presente, baixou a sua faixa
de vibração e se deixou vislumbrar pelos espíritos
sofredores.
- Que a paz do Divino Mestre esteja conosco - saudou-os,
o espírito amigo do Dr. Hugo.
Pátulo e seus acólitos ficaram paralisados e surpresos com a
visão daquele ente iluminado.
- Meus queridos irmãos e filhos de Deus, não lutem contra
as forças do bem, pois elas são infinitamente poderosas e
pertencem ao Criador - disse Domingos, irradiando luz para
aqueles seres arraigados na vingança. - Desistam de se vingar
do nosso irmão Albert, pois, enquanto ele estiver protegido
pelas suas ações no bem, jamais o atingirão, pelo menos, não
nesta existência.
Pátulo ergueu a mão fechada como se desejasse enfrentar
Domingos, contudo, não conseguiu o seu intento, porque,
naquele momento, tudo ao redor da casa de Viviane se
iluminou, com aquele abençoado casal selando mais uma
vez, diante de Deus, o amor que os uniu através dos séculos.
- O que aconteceu? - perguntou Patrik, visivelmente
assombrado.
- A força que move o universo está nesta casa - disse
Domingos com a calma dos justos.
- Eu amo você - disse Viviane naquele exato momento,
ajoelhada aos pés do doutor, como se estivesse hipnotizada.
O rapaz nada falou, mas beijou a amada com tanto amor, que
a casa foi revestida por uma camada fluídica benévola,
levando a paz para todos que viviam nela e adjacências.
- Vamos - ordenou Pátulo aos seus asseclas.
Todos sumiram como que por encanto.
Domingos ficou pensando: "Os mundos foram construídos
por Deus e mantêm-se girando em torno de seus eixos no
universo, sustentados por essa força inigualável - o amor".
O médico ergueu-se e abraçou a amada, convidando-a a
entrar, enquanto as estrelas pareciam mais vivas ao
cintilarem, talvez uma maneira do Criador também se fazer
presente na felicidade irradiada por aqueles jovens
abençoados.
Capítulo XXXI
Albert desencarna
Alguns anos se passaram.
Numa bela tarde de primavera, um homem corria, pelos
corredores da imensa mansão da família de Albert, atrás de
um garoto louro, de olhos azuis e com aproximadamente
quatro anos.
- Albert Neto, entre no carro! - ordenou o motorista. - Sua
mãe está nos esperando no escritório da fábrica!
- Não vou! - retrucou a criança, cruzando os braços e
batendo com o pé no chão. - Quero brincar com o meu avô!
- Mas seu avô está descansando.
Uma senhora de feições distintas encaminhou-se para o
homem que corria atrás do garoto e disse-lhe com educação:
- Gordo, deixe o Netinho comigo.
- Patroa, a madrinha não vai gostar.
- Eu me responsabilizo pelo menino - disse a simpática
mulher, piscando o olho para o homem.
O Gordo entrou no automóvel, suando em seu apertado
uniforme de motorista e resmungando, enquanto passava a
mão na cabeça e desabotoava alguns botões da camisa para
deixar a barriga mais à vontade. Depois colocou o boné de
motorista e saiu em direção ao escritório da patroa.
- A madrinha vai me dar a maior bronca. Mas eu não tenho
culpa se a dona Iolanda quer ser a mãe do Netinho.
Iolanda agachou-se e, com carinho, passou a mão na cabeça
loura da criança. Sorrindo, convidou:
- Netinho, vamos fazer uma visita ao seu avô?
Muitos fatos aconteceram, desde o dia em que Hugo noivara
com Viviane, havia mais de cinco anos.
Hugo casou-se e, com muito custo, conseguiu convencer a
esposa a se mudar para a mansão de sua família.
Albert conheceu Viviane antes do casamento e logo no
primeiro momento simpatizou com a moça, como seja a
conhecesse de longa data. Aceitou de bom grado o enlace e
não parava de elogiar o filho pela noiva que escolhera.
Iolanda também simpatizou com Viviane, praticamente
deixando a mansão aos cuidados dela, pois a nora se
comportava como uma verdadeira dama. Ela estava feliz e
satisfeita com a escolha do filho.
Viviane aceitou mudar-se para a casa dos pais do marido,
porém, disse que não queria ser um simples enfeite na
mansão.
À pedido do sogro e com o consentimento do marido, a bela
esposa do Dr. Hugo, além de concluir um curso superior, já
havia feito vários outros cursos e estágios, inclusive no
exterior, com o objetivo de conhecer os segredos dos
negócios, principalmente os da família.
Conhecendo a rara inteligência da nora, aos poucos Albert
entregou a direção da fábrica a ela, nomeando-a diretora-
presidente e dando-lhe inteira autonomia para gerir parte da
empresa sediada no país onde moravam.
Um ano depois do casamento de Hugo e Viviane, nasceu o
bem-querer do empresário e de Iolanda. Era o garoto que o
motorista corria atrás para levá-lo consigo, por ordem da
mãe dele.
Hugo tornou-se um dos grandes executivos no ramo da
saúde. Era presidente da associação médica da cidade e
bastante conhecido pelo seu esforço em criar um plano de
saúde acessível ao público carente, com o total apoio e
cooperação dos donos dos hospitais particulares amigos seus,
evitando assim, que o poder público interviesse em seus
objetivos.
Soninha, filha do primeiro casamento de Viviane, com
quase dezoito anos, havia entrado na faculdade e estudava o
que sempre quis: Direito. Ela morava com a mãe e era
querida por Albert e Iolanda, tanto que os chamava de
"avós", assim como o padrasto Hugo de "pai".
O Gordo, afilhado de Viviane e amigo de Hugo, foi
convidado a ser o motorista particular da madrinha dele.
Após deixar Albert Neto aos cuidados de Iolanda, Gordo foi
apanhar a patroa. Ao entrar no imenso pátio da fábrica onde
a madrinha trabalhava, ele estacionou o carro e
encaminhou-se para o escritório dela.
Numa luxuosa sala, uma bela e elegante mulher ergueu os
olhos de um documento que lia e viu o afilhado entrando no
ambiente, após bater de leve na porta.
- Vamos, meu filho. Estou atrasada e ainda quero levar o
Netinho ao escritório do Hugo, para participarmos da
recepção de inauguração de uma unidade de saúde que vai
atender muita gente carente nesta cidade.
O Gordo passou a mão na cabeça e disse sem jeito:
- A dona Iolanda ficou com Netinho, alegando que iria levá-
lo para visitar o Dr. Albert.
Viviane riu, ergueu-se e disse, enquanto retocava a
maquiagem na frente do afilhado:
- A mamãe ainda vai atrapalhar a educação do Albert
Neto. Espero que ele não herde da família aquela empáfia do
avô.
- A senhora está falando comigo, madrinha?
- Não. Pensava em voz alta.
- Ah!
À noite, toda a família, menos o garoto, estava reunida em
torno do patriarca Albert, tentando convencê-lo a viajar
para o exterior, para fazer uma cirurgia e se tratar contra um
câncer que havia aparecido em seu pulmão.
- Meus filhos, não adianta tentar me convencer. Não me
afastarei da minha família para fazer um tratamento em
outro país; além disso, estou feliz e satisfeito com a vida que
Deus me deu nestes últimos anos ao lado de vocês.
O homem de olhar firme observava seu anel, enquanto
pensava: "Sei que Deus já sentenciou a minha volta e que
estou cumprindo com a minha promessa de voltar através
dessa doença infeliz".
Iolanda pensava: "A maior graça que esse homem recebeu
na vida foi acreditar em Deus. Eleja fala no nome Dele com
naturalidade e respeito".
- Cadê o Netinho? - perguntou o enfermo.
- Foi dormir - disse a nora.
O homem olhou para a bela esposa do filho e ficou um bom
tempo encarando-a.
- Obrigado, minha filha. Você trouxe para essa casa,
principalmente para nós, eu e Iolanda, o maior presente que
Deus podia me dar: meus dois netos e a felicidade de meu
filho - disse Albert repentinamente.
Viviane não conseguiu conter as lágrimas, emocionada com
aquele homem que, apesar do orgulho e prepotência
estampada em sua feição, era sincero em seus sentimentos,
coisa muito rara entre os espíritos imperfeitos.
- Papai, então vamos fazer essa cirurgia aqui mesmo? -
disse o filho, passando a mão na cabeça do velho Albert, já
com mais de oitenta anos.
- Hugo, vocês vão perder tempo comigo. Sou velho e
tenho certeza absoluta que não suportarei essa cirurgia; além
disso, essa maldita doença já se espalhou pelo meu corpo -
disse Albert, com segurança.
- Peço-lhes que atendam ao meu pedido. Evitando a
cirurgia, não significa que desejo me suicidar, quero apenas
viver mais um pouco para gozar da alegria que vocês me
proporcionaram nesses últimos anos.
- O senhor foi o culpado disso - disse Viviane, com
lágrimas nos olhos.
- Sei que fui culpado, minha filha, mas tive medo de ir
embora antes do tempo. Quando recebi os primeiros
resultados dos exames, resolvi ficar calado para participar
dessa felicidade que ora estou sentindo, pois graças ao meu
silêncio, pude ver o meu neto me chamar de "avô" pela
primeira vez - disse Albert, sorrindo. - Existe maior
felicidade que esta?
- Albert, nunca consegui entendê-lo - disse Iolanda.
- Não se preocupe com isso, minha querida - o marido
tentou acalmá-la. - Agora, meus filhos, tentem espantar essa
tristeza, porque já estou preparado para voltar para essa tal
de "pátria espiritual". Só espero que o Marcelo não esteja
enganado ou me enganando.
- Papai! - alertou o filho, com o dedo indicador na boca.
- É verdade, meu filho. Até hoje, não creio que voltarei
para um lugar onde não terei mais esse corpo e que depois
de muito tempo estarei de volta.
- Você não tem jeito, meu velho!
Notava-se no semblante de Albert que, aos poucos, a vida
deixava aquele corpo. Gradativamente, o tônus vital cessava
de animar o corpo material daquele homem que trabalhou
dia e noite para manter a empresa funcionando, garantindo
assim, emprego e sustento para milhares de famílias.
Hugo deixou o quarto após beijar os cabelos brancos do pai e
dirigiu-se para uma pequena sala em companhia da mãe, da
esposa e da enteada, onde se sentaram e começaram a
conversar à vontade, enquanto tomavam chá.
- Meu filho, como médico conceituado e colega de
excelentes profissionais, você já conversou com eles a
respeito do seu pai? - indagou a mãe, disfarçadamente
enxugando uma lágrima que teimava em escorrer pelo seu
rosto.
- Sim, mamãe. Inclusive, com um colega francês.
Entretanto, todos são unânimes, quanto à resposta.
- E que resposta é essa, meu filho? - perguntou a mãe.
- As chances de sobrevivência do meu pai são mínimas ou
nenhuma.
- Mas e se ele fizer essa cirurgia, para extirpar os nódulos,
as chances de prolongar o tempo de vida dele aumentará? -
perguntou a esposa.
Hugo fez um carinho no rosto da mulher e respondeu com
cuidado:
- Não. Ele conseguirá viver mais algumas semanas, se
continuar assim como está.
- Não posso acreditar nisso - disse Iolanda.
- Acredite, mãe. Se o papai submeter-se a uma cirurgia, ele
terá de fazer um tratamento agressivo, muito pior do que o
próprio câncer, isto se sobreviver à retirada dos nódulos,
devido a sua idade.
- Pai, você está falando em quimioterapia e radioterapia? -
perguntou Soninha.
- Exatamente, minha filha.
Albert exigiu que fossem postas à sua disposição, em sua
própria casa, uma equipe médica e equipamentos, com o
objetivo de atendê-lo em domicílio, pois ele estava decidido
a não ser hospitalizado. Como sempre, sua palavra era ordem
e não deixava margens a qualquer tipo de questionamento.
O empresário definhava a olhos vistos, contudo, recusava-se
a passar por qualquer tipo de tratamento, alegando que não
havia cura para a sua doença, no que era abalizado pelos
melhores especialistas no assunto. Ele sentia dores terríveis,
minoradas apenas com medicamentos à base de morfina. Sua
alimentação era composta por líquidos, pois já não conseguia
mais engolir alimentos sólidos.
Certa tarde, com a respiração ofegante, o famoso empresário
abriu os olhos e viu ao redor de si a mulher e o grande
amigo Marcelo, presidente do centro espírita.
- Pensei que você tivesse... me esquecido... presidente -
disse Albert, tentando encontrar ar nos pulmões para falar.
- Fiquei com vergonha de visitar um homem tão
importante como você, meu caro Albert - disse Marcelo,
também tentando sorrir com otimismo.
O empresário fez sinal com a mão e pediu que o amigo se
aproximasse mais um pouco.
Esforçando-se para não chorar, pois era triste a situação do
amigo, Marcelo ficou com o rosto perto dele.
- Como vai o hospital?
- Está quase pronto.
- Será que o dinheiro... será suficiente para concluí-lo.
- Claro. Não se preocupe. Em pouco tempo vamos
inaugurá-lo com a sua presença.
Albert sorriu e disse-lhe, respirando com dificuldade:
- Não sou iludido... meu amigo. Sei que o meu fim está
próximo... Ou como você diz... a minha partida... para o
mundo espiritual... está chegando.
Marcelo viu que o amigo estava realmente indo embora. Ele
beijou sua mão em silêncio e foi embora com lágrimas nos
olhos.
No dia seguinte, antes das oito horas, Albert mandou o
médico de plantão chamar a família, que estava tomando
café em silêncio.
- Dona Iolanda, com licença - solicitou a médico,
adentrando a sala onde a família fazia a primeira refeição do
dia.
- O que houve, doutor?
- O Dr. Albert pediu a presença de todos.
Hugo ergueu-se de repente e saiu correndo em direção ao
quarto do pai, sendo acompanhado pelo restante da família.
Em poucos minutos, Albert estava rodeado pelos familiares.
Ninguém reconhecia naquele homem magérrimo, com o
rosto envelhecido e encovado, o famoso e orgulhoso
empresário que causara tanto medo nas pessoas,
principalmente em seus adversários.
- Papai, o senhor mandou nos chamar? - perguntou o
filho. Albert gesticulou afirmativamente e manteve-se em
silêncio. Mesmo com os olhos fechados, todos viram
lágrimas rolarem pelo seu rosto branco como cera. Ninguém
ousou falar.
Albert abriu os olhos e, num sorriso que mais se
assemelhava a um esgar, a um ricto de dor, ofegante e com
dificuldade, falou com a voz quase inaudível:
- Não sei fazer... uma prece...
- Calma, meu querido - pediu Iolanda. - Não precisa se
cansar. Silêncio.
- Orem ... o "Pai Nosso"...
Todos que estavam ao redor da cama começaram a chorar,
pois sabiam que o patriarca estava se despedindo deste
mundo material. Mesmo assim, eles oraram o "Pai Nosso"
em voz alta.
Albert fechou os olhos por alguns segundos. Em seguida
abriu-os novamente e disse, fazendo um esforço sobre-
humano:
- Obrigado. Sempre quis... aprender essa oração..., mas
tinha vergonha.
Após essas palavras, Albert virou o rosto para o lado e ficou
inerte.
Hugo apressou-se em tomar a pulsação do pai, para
encontrar vida naquele velho corpo carcomido por uma
doença que já ceifara milhares de vidas, e começou a chorar
quando informou à família:
- O papai desencarnou. Todos choraram com a notícia. Os
empregados souberam que o patrão havia desencarnado e
também choraram, pois, ao jeito de cada um, eles gostavam
dele.
Após dois meses da partida de Albert para a pátria espiritual,
muita gente - principalmente Iolanda, Hugo, Viviane,
Soninha, Albert Neto, Augusto, Edmundo, Isabel, o Dr.
Maurício e o Dr. Jacinto - estava presente no centro espírita
participando da inauguração de um hospital para doentes
mentais, anexo às instalações da instituição espírita,
denominado "CASADOS AFLITOS JESUS DE NAZARÉ".
Após a simples cerimônia de inauguração, quando todos já
estavam se retirando, Marcelo aproximou-se da família do
Albert, apontou para o hospital e falou sorrindo:
- Hugo, solicito que você, como um homem que está
tentando ajudar os carentes desta cidade, também administre
este hospital.
Hugo pôs a mão no ombro do amigo e disse:
- Meu amigo Marcelo, não posso aceitar sua oferta. Este
hospital é propriedade da instituição espírita.
Marcelo sorriu e fez um gesto com os ombros, sendo
observado pela família de Albert. Ainda sorridente, ele
revelou para o jovem médico:
- São ordens do seu pai.
- O que o meu pai tem a ver com isso?
- Foi ele que mandou construir este hospital em segredo e
deixou ordens, por escrito, para que você o administrasse,
como faz com o seu hospital particular - disse Marcelo. -
Acho muito justo, pois não tenho condição de administrar
um manicômio. Mas o seu pai sabia que você, como espírita,
médico e dono de hospital, reunia todos os requisitos para
não deixar que essa belíssima obra caísse nas mãos de
aventureiros.
Iolanda puxou um lenço da bolsa e começou a enxugar as
lágrimas de emoção que desciam pelo seu rosto.
Hugo olhou para esposa e recebeu um lindo sorriso e aceno
de cabeça em sinal de aprovação.
- Parece que o meu pai nos deixou uma mensagem,
quando deu ordens para que este hospital fosse inaugurado
após sua partida.
- Que Deus o abençoe aonde ele estiver - disseram todos
em uníssono.
O espírito Domingos, que também estava presente, sorriu e
disse em pensamento: "Nunca é tarde para se fazer o bem,
arrepender-se dos erros cometidos e pedir perdão a Deus".
Capítulo XXXII
Carla nas zonas umbralinas
Após um longo tempo em completo estado de perturbação,
Carla despertou e ficou observando o lugar onde se
encontrava. Notou que estava sentada encostada na parede
de uma caverna. Observou o seu estado e ficou com medo e
perplexa com o quadro que o seu aspecto apresentava.
Estava semelhante a um espectro saído dos contos de terror
-esquálida, cabelos desgrenhados, olhos vermelhos quase
saindo das órbitas encovadas e trajava verdadeiros trapos.
Além disso, continuava sentindo a mesma terrível dor no
estômago e o sangue não cessava de escorrer entre suas
pernas, sujando-a por completo.
O espírito se ergueu e, apoiando-se na parede daquele lugar
lúgubre, que exalava um mau cheiro nauseabundo, começou
a caminhar com passos vacilantes, pisando sobre uma lama
fétida e pegajosa. Viu uma luz opaca, que a direcionou até a
entrada daquele lugar, e vislumbrou fora da tal gruta um
espetáculo dantesco. Uma paisagem infernal apresentava um
espetáculo teatral nunca visto ou imaginado por um ser
humano. Vários espíritos caminhavam em movimento
circular, como se estivessem hipnotizados, gritando,
chorando e blasfemando contra o Criador.
- O que será isso? - perguntou-se Carla saindo da caverna e
juntando-se àquelas criaturas semelhantes a zumbis.
Ela sentiu que a atmosfera era pesadíssima e difícil de
respirar, pois praticamente não existia ar. Não havia
vegetação e a luz do Sol parecia chegar até aquele lugar com
uma certa dificuldade, pois tudo estava envolvido por uma
penumbra fantasmagórica. O clima era seco e abafado,
impossível para a sobrevivência de um ser humano normal.
- Que lugar será este? - perguntou-se, enquanto
caminhava com a lama lhe cobrindo os pés.
Os gritos das criaturas eram ensurdecedores e a visão
daquele lugar não poderia ser descrita por nenhum poeta,
escritor ou pintor, pois a humanidade não é capaz de criar
absolutamente nada que se compare àquela cena lúgubre.
Carla caminhava como uma sonâmbula, acompanhando
aqueles seres sofredores de aspectos horríveis. Em certo
momento observou uma daquelas pessoas sentada, com as
pernas abertas na lama do lugar, que se assemelhava a um
imenso charco, apontando para o seu ouvido o que parecia
ser um revólver. Com uma certa dificuldade, ela aproximou-
se do espírito e perguntou, tentando dominar sua dor:
- O que o senhor vai fazer?
- Vou acabar com esta maldita vida - respondeu o homem
que mais se assemelhava a um animal.
-Senhor, não faça isso!
- Por quê?
- Dizem por aí, que nós não morremos.
O homem baixou a arma e ficou pensando por algum
momento. Depois fitou o espírito com seus olhos
esbugalhados e vermelhos e comentou:
- Já ouvi falar sobre isso, mas não acredito. Isso se trata de
conversa de pessoas ignorantes, que vivem nas igrejas
ouvindo histórias de carochinhas narradas pelos religiosos,
principalmente por espíritas.
Carla ficou em silêncio.
- Você está vendo aquele lá? - perguntou o homem
apontando para um homem deitado.
- Sim.
- Ele se jogou sob as rodas de um veículo em alta
velocidade.
- Ninguém o levou para um hospital? - perguntou Carla
sentindo lhe faltar ar.
- Não. Dizem que não adianta, porque ele já está morto.
- O quê?
- Sim. Dizem que ele já morreu.
- Não acredito nisso! Então, como ele pode falar e se
mover?
- Pois é... Dizem que todos nós estamos mortos - o
homem se lamentou. - Você mesma disse que ouviu por aí
que nós não morremos.
Carla deu um salto para trás e gritou com os olhos
arregalados:
- Mentira! Estou viva!
O homem limpava o sangue que teimava em escorrer de seu
ouvido direito. Às vezes, colocava a palma da mão sobre ele,
tentando em vão estancar aquela hemorragia.
- Por que este sangue não pára de sair do seu ouvido?
- Há dezenas de anos tento estancá-lo e não consigo -
respondeu o homem, erguendo-se com dificuldade. - Dizem
que foi com um disparo desse revólver, que me suicidei.
- Isso não pode ser verdade!
O suicida gargalhou, ergueu-se e, como um louco, saiu
correndo, falando coisas sem nexo.
Carla sentiu a cabeça girar e de repente se encontrou
correndo por uma vereda, em um lugar onde não conseguia
enxergar, pois era envolvido por um nevoeiro escuro e frio,
que causaria calafrios em qualquer um. Ela caiu e ficou
deitada contorcendo-se de dor, enquanto batia desesperada
as mãos fechadas no chão, perguntando-se:
- O que está acontecendo comigo?
A moça sentou-se, ouvindo gritos e lamentações de pessoas
que passavam correndo enlouquecidas. De repente ela
sentiu uma dor indescritível e ergueu-se com dificuldade,
caminhando cambaleante, talvez sem saber quem era ou
onde estava. Caiu novamente e ficou com o rosto apoiado
no chão, chorando desesperadamente, porém, num impulso,
ergueu a cabeça para o alto e pediu num sussurro sofrível,
chorando e cansada, numa demonstração de que suas forças
já haviam desaparecido:
- Meu Deus, por favor, ajude-me!
Pela primeira vez naquela existência, e após a sua
desencarnação, Carla havia falado em nome do Criador,
reconhecendo que Ele existia e que realmente era o Senhor
do Universo. Com essa súplica, ela curvou-se à Divindade e
pediu clemência em um momento crucial, pois já estava
sendo preparada pelos espíritos das trevas para ser conduzida
à lugares infernais.
Um espírito de aspecto simples e saturado de energias
fluídicas benéficas aproximou-se de Carla, desmaiada,
envolveu-a em seu peito, como se fosse uma criança, e
desapareceu do lugar em direção à colônia espiritual
responsável por aquele setor.
Após um longo período, o espírito Carla despertou e ficou
observando em silêncio.
Ela pôde perceber que estava em uma pequena enfermaria,
onde havia médicos, enfermeiras e outras pessoas envolvidas
naquele trabalho. Viu também que estava vestida com uma
roupa limpa e sua aparência estava melhor. Tentou lembrar-
se das dores, mas não as sentiu. Continuou em silêncio e aos
poucos adormeceu novamente.
Depois de alguns dias, Carla acordou e prosseguiu
observando o vai-e-vem daquele pessoal parecido com seus
amigos de profissão.
- Bom dia, irmã.
- Bom dia - respondeu a moça, notando que o
cumprimento vinha de um médico ainda jovem, com
aspecto bondoso e um belo sorriso estampado no rosto.
- Você está melhor?
- Sim. Já não sinto aquelas dores horríveis.
- Esperamos que você melhore mais um pouco, para
encaminhá-la a um dos nossos hospitais da colônia, para o
seu completo restabelecimento e recuperação.
- Desculpe-me, doutor... Mas onde estou?
O médico sorriu e, com um gesto carinhoso, passou a mão
nos cabelos da moça e respondeu-lhe:
- Você está numa enfermaria de urgência. Aqui,
prestamos os primeiros socorros aos espíritos que são
recolhidos das zonas umbralinas.
Carla sentou-se imediatamente na cama e perguntou-lhe
com os olhos fixos no médico:
- Que pronto-socorro é este?
O medico fitou a moça e disse-lhe com cuidado: , - Este
pronto-socorro fica situado na Terra. Mais precisamente,
num centro espírita.
- O quê? Estamos num centro espírita?
- Exatamente, minha querida.
- E como não estou vendo ninguém trabalhando, como vi
quando visitei um?
- Nós estamos no lado invisível. Ou seja, em outra
dimensão que não pode ser vista pelos olhos das pessoas
encarnadas.
- Doutor, o senhor está me deixando confusa.
- Porquê?
- Do jeito que o senhor fala, tudo indica que realmente
estou morta.
- Mas como você está morta, se estamos conversando?
A moça ficou em silêncio, pensando na pergunta do médico,
e logo depois respondeu:
- Sei lá... Mas do jeito que o senhor explica as coisas,
parece que já morri.
- Carla, você não morreu. Simplesmente, passou para o
outro mundo, aquele que não acreditamos enquanto estamos
encarnados.
A moça estava entregue aos seus pensamentos, quando
perguntou repentinamente:
- Que dia é hoje?
O médico sorriu e apontou para um calendário que estava
pendurado na parede da enfermaria improvisada.
- O quê? Há quanto tempo estou aqui?
O médico sorriu.
- Por que o senhor está rindo?
- Somente nesta enfermaria, você está há dez anos.
- O senhor está brincando comigo?
- Não. Antes de ser recolhida nesta enfermaria, havia
quinze anos que você perambulava pelas zonas umbralinas,
contudo, sem passar pelas zonas infernais.
O médico observava a reação daquele espírito que tanto deu
trabalho à equipe de primeiros socorros.
Por sua vez, Carla continuou sentada na cama, esfregando as
mãos uma na outra, num visível estado de nervosismo e
lutando para não se desequilibrar.
- Como é o seu nome?
- Luís. Sou o médico responsável pelos primeiros socorros
prestados aos irmãos desequilibrados atendidos neste centro
espírita.
- Sabia que sou médica?
- Sim.
Silêncio.
- Dr. Luís, não consigo entender como um centro espírita
também pode se transformar num pronto-socorro -
comentou a moça, tentando se controlar.
O médico espiritual aproximou-se de Carla e cruzou os
braços, tentando explicar-lhe:
- Minha querida amiga, há muitos centros espíritas na
Terra que são verdadeiros postos de socorros de urgência,
com o objetivo de dar os primeiros atendimentos aos irmãos
sofredores e depois encaminhá-los aos hospitais adequados
nas colônias, a fim de que se recuperem por completo.
- Esse é o meu caso?
- Exato.
Carla pensava: "Não consigo me lembrar o que me trouxe a
este lugar. Acho que morri mesmo. Agora, passar esse
tempo todo para ser atendida, está me intrigando".
O médico espiritual captou os pensamentos da moça e
sorriu, enquanto fingia escrever algo em uma caderneta de
anotações.
- Posso saber por que você está rindo,
Luís? - Depois nós conversaremos.
- Por favor, Luís, ponha-me a par do que realmente
aconteceu comigo, antes de morrer.
Percebendo que a moça ficava nervosa, Luís passou a mão
em sua cabeça e em questão de segundos ela adormeceu.
"Preciso perguntar ao diretor do pronto-socorro se tenho
permissão para contar a Carla o que aconteceu com ela, até
sua chegada aqui", pensou o médico espiritual.
Após alguns minutos, dois médicos conversavam, enquanto
caminhavam pela pequena alameda que ligava duas
enfermarias.
- Luís, você acha que a Carla já está em condições de
ouvir a própria história? Esse momento é fundamental para
sabermos se ela está apta a ser transferida para a colônia
espiritual.
O Dr. Luís encarou o companheiro, que era o diretor
daquele posto avançado de urgência radicado na Terra, e não
respondeu de imediato.
O diretor era muito jovem, porém, dono de um cabedal
muito grande de conhecimento, sendo reconhecido pelos
superiores como o médico que mais estava preparado para
ser um dos mentores daquele centro espírita, onde se
localizava o pronto-socorro.
- Rogério, eu tenho acompanhado de perto o caso de
Carla, e acho que já está na hora de tentarmos informá-la de
sua real situação, principalmente, o que aconteceu em sua
última existência.
O diretor do pronto-socorro parou e perguntou-lhe, com as
mãos no bolso do avental:
- E se ela se desequilibrar novamente?
O diretor do pronto-socorro pensou e disse, após alguns
segundos:
- Meu irmão, amanhã, nós resolveremos o que faremos
em relação à nossa querida Carla.
- OK, colega.
Ambos se despediram e rumaram para os lugares onde
exerciam suas atividades.
Capítulo XXXIII
Casa dos aflitos Jesus de Nazaré
Depois de dois dias, Carla despertou do sono provocado pelo
Dr. Luís. Observando a enfermaria onde estava internada,
resolveu descer da cama e caminhar até uma ampla janela,
que se abria para um jardim envolvido por um belo pomar.
Ali se podia vislumbrar várias pessoas sentadas nos bancos
que ladeavam o jardim e as alamedas que atravessavam o
pomar. Tudo cheirava ao aroma de flores e uma paz
indescritível era sentida no ambiente.
- Acho que o Dr. Luís deve ter se enganado. Isso não
pode ser o pronto-socorro de um centro espírita - disse a
moça em voz baixa. -Nada aqui se parece com uma
instituição religiosa.
Discretamente, o Dr. Luís aproximou-se da moça em
companhia do diretor Dr. Rogério.
Carla apressou-se em pedir desculpas aos médicos por ter
saído da cama.
- Não há do que você se desculpar, minha irmã - disse o
Dr. Luís. - Aproveito este momento para apresentá-la ao
nosso diretor, o Dr. Rogério.
- Muito prazer, doutor - disse Carla, estendendo a mão
com reserva.
- Prazer, querida irmã. Fico feliz em saber que você está
bem - disse o Dr. Rogério, também estendendo a mão.
Carla encaminhou-se em direção ao seu leito, acompanhada
pelos médicos.
O diretor do pronto-socorro fez um sinal, chamando uma
enfermeira que circulava entre os leitos, atendendo os
pacientes. De pronto ela atendeu.
- Às suas ordens, doutor.
- Por favor, atenda nossa querida irmã Carla e depois a
leve até o meu consultório.
- O que irei fazer em seu consultório, Dr. Rogério? -
perguntou Carla.
O médico pensou e respondeu, após fitar o colega Dr. Luís,
ambos se entendendo numa comunicação muda:
- Já que você está bem, chegou a hora de conversarmos
um pouco a respeito de sua situação.
A moça pensou e perguntou, olhando para a enfermeira:
- Será que já estou pronta, enfermeira?
- Vamos melhorar esta aparência. Depois de trocar a
roupa, irei acompanhá-la até o consultório do diretor.
Uma hora se passou.
- É este o consultório particular do Dr. Rogério - disse a
enfermeira, apontando para uma porta.
Carla viu que a porta se abriu automaticamente, sem esperar
que alguém batesse.
- Entrem, por favor - disse o Dr. Luís, com um sorriso.
- A irmã Carla está pronta - avisou a enfermeira, enquanto se
afastava discretamente.
Timidamente, Carla olhou para o interior da sala e viu o Dr.
Rogério em pé, atrás de uma mesa, enquanto o Dr. Luís
apontava uma cadeira.
- Sente-se, por favor, Dra. Carla.
- Obrigada - agradeceu a moça, sentando-se e estranhando
aquele tipo de tratamento.
O trio estava sentado, em silêncio, talvez esperando uma
oportunidade para iniciarem um diálogo a respeito do
assunto que os trouxeram ali.
O Dr. Rogério ergueu-se e começou a passear pelo
consultório. Inesperadamente, parou e comentou:
- Ao visitá-la, há pouco, você dizia para si mesma que o Dr.
Luís havia se enganado.
A moça confirmou, ainda tentando ficar à vontade diante
dos médicos:
- É verdade, doutor. Não acredito que este pronto-socorro
fica localizado num centro espírita.
- Então, você já conhece um centro espírita?
- Já. Fui levada pela curiosidade a conhecer um,
freqüentado pela minha família.
O diretor encarou o amigo, ao entender que a moça não
sabia o porquê havia sido levada a um centro espírita, e com
bastante cuidado perguntou:
- Querida, o que você foi fazer num centro espírita?
Carla se entregou aos seus pensamentos, antes de responder
aquela pergunta. De repente ergueu-se impaciente e disse,
sentando-se novamente:
- Não sei. Aliás, esqueci muita coisa. Não consigo me
lembrar de quase nada do meu passado, a não ser desse
centro espírita. Porém, lembro-me que sou médica e que
me encontro internada neste pronto-socorro.
O Dr. Rogério apontou uma pequena cama ao lado e pediu:
- Será que você pode se deitar naquela cama?
Carla se virou para a cama e perguntou:
- Agora?
- Sim.
A moça se ergueu sem falar nada e deitou-se.
- Relaxe e mantenha os braços soltos ao longo do corpo.
- O senhor vai me hipnotizar?
- Não tenha medo, irmã - pediu o médico, sem responder
a pergunta.
Carla pôde ver que o Dr. Luís estava postado atrás de sua
cabeça, enquanto o diretor Dr. Rogério mantinha-se ao seu
lado, de braços cruzados.
- É verdade que você não se lembra qual o motivo que a
trouxe a este lugar?
- Sim. É verdade.
- E mesmo assim está preparada para saber toda a verdade?
- perguntou o Dr. Rogério.
- Sim.
Carla notou que o diretor fez um leve sinal ao amigo.
O Dr. Luís gesticulou e dentro de poucos segundos a moça
se encontrava em sono profundo. Após um breve instante,
os médicos notaram que ela passou a se mexer na cama. Aos
poucos foi ficando mais agitada, com uma intensa sudorese,
e tentava respirar com dificuldade. Logo começou a gritar e
a pedir socorro. Debatia-se na cama e somente depois de dez
minutos se acalmou com o auxílio dos médicos e de outros
espíritos que prestavam serviços no pronto-socorro.
Já refeita, Carla abriu os olhos e imediatamente sentou-se na
cama, vendo que havia outras pessoas deixando o ambiente,
além dos médicos conhecidos.
O Dr. Luís apressou-se em oferecer um copo com um
líquido, que ela bebeu sem perguntar o que era. Sentiu-se
melhor.
- Ajude-a a descer da cama, Luís.
Passados alguns minutos, os três estavam novamente
sentados em pequenas cadeiras, num canto do consultório.
Carla ajeitava os cabelos, sob o olhar do Dr. Rogério e do Dr.
Luís.
- Agora, minha querida irmã, você relembrou algumas de
suas existências, principalmente a última, na qual foi noiva
do Dr. Hugo - elucidou o Dr. Rogério, sorrindo.
- E também sabe o motivo que a trouxe até este pronto-
socorro - completou o Dr. Luís.
A moça permaneceu em silêncio.
- Onde se encontra a pessoa que me guiou durante essa
experiência?
- Nosso irmão Domingos é uma pessoa muito ocupada. Ele
nos atendeu, porque vocês se conhecem há muito tempo -
respondeu o diretor do pronto-socorro.
A moça baixou a cabeça, como se estivesse recordando tudo
que viu e ouviu durante o sono provocado pelos médicos.
- Quer dizer que sou uma suicida? - perguntou Carla,
discretamente passando os dedos nos olhos, como se
quisesse estancar as lágrimas que desciam pelo seu rosto.
Ninguém respondeu, pois ela sabia perfeitamente a resposta
para a própria pergunta.
- Meu Deus, quanto mal eu fiz para as pessoas que tanto
amo e para mim mesma! Como tive coragem de tirar o
corpo material que o Senhor me deu para continuar meu
aprendizado?
Os médicos se entreolharam surpresos com o comentário de
Carla, ao notarem o quanto ela era esclarecida no
Espiritismo.
- Você já conhecia a Doutrina Espírita? - questionou o Dr.
Luís.
- Não. Mas sei que somos imortais e que o corpo material
é um instrumento valioso, nos emprestado por Deus para
progredirmos.
Os médicos se entreolharam novamente e ficaram em
silêncio. Rompendo o silêncio, o diretor perguntou à moça:
- Aonde você conheceu esses ensinamentos?
- No Evangelho de Jesus. Sempre fui religiosa. Na minha
penúltima reencarnação, fui uma fiel servidora do Mestre
Divino, quando resolvi abdicar de tudo e vesti um hábito de
freira para ajudar os irmãos que sofriam os horrores de uma
grande guerra.
O diretor ergueu-se inquieto e perguntou-lhe, como se
quisesse descobrir algo mais a respeito da vida da moça:
- Minha irmã, eu posso lhe fazer uma pergunta indiscreta,
e até certo ponto desagradável?
- Sim. Fique à vontade, doutor.
- Por que você se suicidou em sua última existência?
Carla se dirigiu a uma janela do consultório e se sentou
novamente após retornar para onde estava. Fitando o Dr.
Rogério, ela respondeu com franqueza:
- Orgulho, meu caro irmão. Esse sentimento que destrói
os melhores sentimentos ligados ao nosso Pai e causa as
piores desgraças nos mundos inferiores - respondeu a moça,
chorando. - Foi esse defeito horrível que me levou a acabar
com o meu próprio corpo, ser ingrata com Deus e com
todos que conviveram comigo, principalmente meus pais,
meu noivo e o homem que vem reencarnando comigo há
vários séculos.
Os médicos permaneceram em silêncio, enquanto a moça se
refazia.
- Meus amigos, esse sentimento nefasto foi o que me
levou a acabar com a minha própria vida, apenas para
vingar-me - prosseguiu a suicida arrependida.
- Vingar-se de quem, Carla? - perguntou o diretor.
A moça abaixou a cabeça, como se estivesse com vergonha,
e respondeu com a voz baixa:
- Do Albert. Foi por querer me vingar dele que cometi
esse ato tresloucado contra o meu corpo e as Leis Divinas.
- Quem é Albert? - perguntou o Dr. Luís, bastante
interessado.
- Ele é o pai do meu namorado Hugo, em minha última
existência.
- Ainda não consegui entender bem o que você quer
dizer, Carla. A bela moça respirou profundamente e narrou,
com voz quase sumida, toda a trama que a fez cometer
aquela tragédia.
Ao fim da narrativa, o diretor ergueu-se e disse:
- Bem, agora que você tem conhecimento de tudo o que
lhe aconteceu e porque está neste pronto-socorro, só nos
resta encaminhá-la para o hospital de uma colônia espiritual,
aonde você receberá um atendimento específico e será
reeducada para mais uma experiência na matéria.
A moça também se ergueu, acompanhada pelo Dr. Luís, e
perguntou antes de sair do consultório:
- Eu posso ver o lado material do centro espírita onde fica
localizado este pronto-socorro?
- Você já tem condições de realizar esse desejo
independentemente de nossa ajuda.
A moça se concentrou e imediatamente viu um belo
hospital ao lado de uma edificação pequena.
- Casa dos Aflitos Jesus de Nazaré - era o nome que estava
escrito na placa e que ela leu em voz alta.
Surpresa, olhou para o Dr. Rogério e comentou:
- Eu já estive neste centro espírita, quando o meu pai
buscava recursos para mim e minha mãe. Ele continua quase
do mesmo jeito, com exceção deste belíssimo hospital.
- Este nosocômio foi construído para abrigar os irmãos
encarnados com problemas obsessivos e outras doenças do
espírito - sorrindo, informou o diretor, como se estivesse
escondendo algo.
- Por que o senhor está rindo?
- Este hospital foi construído por um homem que, apesar
de seus defeitos, nos últimos anos de sua última existência,
conseguiu aproximar-se de Deus e fazer algo relevante pelos
irmãos deserdados da sorte ou com problemas que as
experiências científicas ainda não conseguiram explicar.
A moça entendeu que o médico espiritual referia-se ao
espírito Albert. A mesma baixou a cabeça e começou a
chorar.
- Por onde ele andará?
- Quem?
- Albert.
- Há anos foi recolhido de zonas umbralinas e atualmente
se encontra numa colônia, refazendo-se dos ataques que
sofreu de seus inimigos desencarnados. Ele trabalha para
dominar suas más tendências e poder assumir uma grande
missão.
- Posso pedir para ir para a mesma colônia?
- Não precisa. Nossos superiores já ordenaram sua ida para
a mesma colônia, para ajudá-lo.
- Obrigada, meu Deus! - agradeceu a moça, fitando o céu
azul daquele lugar envolvido por um cordão fluídico,
semelhante a uma corrente que parecia protegê-lo.
O trio voltou para o lado espiritual e se encaminhou para a
enfermaria onde Carla estava internada. De repente ela
parou e perguntou, segurando o braço do Dr. Luís.
- Que missão será esta para a qual o Albert está se
preparando? Os médicos riram.
- Um dia você saberá, minha querida Carla - disse o
diretor.
- Lembre-se apenas que nós sempre estaremos perto de
vocês, sejam encarnados ou desencarnados.
- Por quê?
- Essa é nossa missão.
Ela riu e notou que não adiantava mais fazer perguntas a esse
respeito, pois sabia que elas não seriam respondidas.
Muita paz !
Bezerra
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PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."
JOSÉ IDEAL
' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL
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