Henri Loevenbruck
O Testamento
dos Séculos
2a. Edição
Tradução de Karina Jannini
BERTRAND BRASIL
2010
A Delphine
PRÓLOGO
O vento noturno soprava sobre as montanhas gredosas do
deserto da Judéia. Era o sopro grave e contínuo que anuncia
a vinda da alvorada, a hora em que os primeiros abutres
começam sua ronda silenciosa além dos cumes da Palestina.
À leste, as estrelas de um céu cinzento ainda se refletiam na
água oleosa do Mar Morto, em meio a grandes e cinzentos
blocos de sal. O ponto mais baixo do globo. Lá soprava o
vento que se precipitava entre as dunas brancas, nos vales
sinuosos, através dos acampamentos dos beduínos e até os
cânions culminantes.
A alguns quilômetros de Jerusalém e, no entanto, tão
distante do mundo, no segredo dos cimos invisíveis
escondia-se a silhueta baixa de um antigo monastério. Bloco
de pedra escurecido unido à parede rochosa. Austera
construção aberta apenas por primitivas janelas. Nenhuma
via, nenhum caminho podia conduzir o viajante imprudente
ao local. Nada parecia unir essa construção inacessível ao
resto do mundo. Ali reinava soberano o silêncio do deserto.
Esparsos cabritos-monteses circundavam o edifício nas raras
zonas de vegetação, escalando amplas escadarias erodidas,
talhadas na rocha amarela. Uma polia de madeira rangia ao se
balançar ao longo da fachada. No primeiro andar, a luz
vacilante de uma vela brilhava por trás de uma janela.
Nesse pequeno cômodo desnudo orava um ancião.
Vestido de branco, com o crânio calvo, os olhos fechados,
salmodiava ajoelhado, curvado diante da janela. A longa
barba grisalha roçava seu peito ao ritmo de suas reverências.
Apesar do silêncio do lugar, mal se ouvia o som de sua voz
grave.
Ao terminar a oração, levantou-se lentamente, depois
caminhou em direção ao fundo do cômodo, onde uma
grande bacia de pedra se destacava da parede. Estava cheia
de água fria, e nela o homem mergulhou as mãos. Deixou a
água correr em sua fronte, em seu rosto, depois em seus pés,
pronunciando novas indistintas orações. Caminhava
descalço, como símbolo de sua comunhão com a Terra. Pois
ali a Terra era um ser vivo e sagrado.
Por fim, retornou a seu modesto leito, uma coberta colocada
diretamente sobre o chão. Nela se estendeu de costas e
manteve os olhos abertos por alguns instantes. Nenhum dos
outros doze religiosos que viviam nesse monastério
esquecido havia despertado ainda. As paredes ancestrais do
local eram preenchidas por um silêncio magistral. Mas, do
lado de fora, o ancião podia ouvir o barulho contínuo da
noite. Deixou seu espírito evadir-se no murmúrio noturno.
Acalentou o sono ao ritmo da respiração.
Era um homem justo e ponderado, que havia consagrado
toda uma vida à comunidade do monastério, aguardando,
como seus irmãos, o advento da Nova Aliança. Havia sido
iniciado com a idade de treze anos e jamais deixara o
monastério desde então. Como seus irmãos, observava
escrupulosamente todas as leis da comunidade, só se
alimentava de pão, água, raízes selvagens e frutas, e tentava
cultivar em si a pureza e a humildade. Como seus irmãos,
dividia seu tempo entre a meditação, a agricultura e o
artesanato. E, como seus irmãos, havia muito tempo
esquecera a realidade do mundo profano. Esquecera seus
pais, sua família, Jerusalém e o que dela os homens haviam
feito. Apenas Deus ocupava sua vida. Deus e seu último
segredo.
De repente, foi como se a noite se calasse, sufocada. Os
lamentos dos chacais apagaram-se de uma só vez, e os
abutres ficaram em silêncio.
O monge abriu os olhos e se ergueu lentamente. Aguçou a
audição. Mas tudo já se havia calado. Restava apenas o sopro
do vento. Algo anormal.
De repente, houve o ruído ensurdecedor de uma enorme
explosão. Como uma fermata incongruente no silêncio
noturno. As paredes e o chão vibraram, e uma grande luz
branca surgiu além das janelas.
O ancião se levantou e correu para a porta. Ao sair no longo
corredor que encimava os jardins do monastério, descobriu
com horror as altas chamas que invadiam as paredes. Depois,
houve nova explosão, e mais outra. O eco ensurdecedor das
deflagrações parecia nunca querer apagar-se. Blocos inteiros
de pedra foram arrancados do teto e das paredes e vinham
estilhaçar-se ao longo do corredor ou nos jardins embaixo
dele.
O ancião não sabia o que fazer. Em que direção correr. Onde
buscar refúgio em meio àquele dilúvio incompreensível.
Pouco a pouco, surgiram outros monges às portas do
corredor. E seus semblantes, como o do ancião, estavam
marcados pelo terror. Ninguém conseguia compreender a
origem daquele apocalipse repentino no meio da madrugada.
Logo, uma fumaça opaca subiu até o primeiro andar e
envolveu todo o edifício.
O velho monge tossiu para expulsar o fumo ácido que
penetrava sua garganta, depois, em pânico, decidiu correr
em direção às escadas mais próximas. Curvado, costeou a
balaustrada de pedra e atravessou as chamas e a fumaça no
tumulto. No meio do corredor, percebeu de repente um dos
membros de sua comunidade despencando em sua frente
como que fulminado. Era o último que havia chegado. O
mais jovem.
Com as mãos trêmulas, os olhos cheios de lágrimas,
aproximou-se lentamente por cima do corpo já sem vida de
seu irmão. Longos traços de sangue se desenhavam
progressivamente sobre sua comprida veste branca.
A atmosfera tomava-se cada vez mais irrespirável, e o calor
das chamas mordiscava suas bochechas. O ancião deixou-se
cair sobre os joelhos. Naquele momento, já não havia
nenhuma dúvida. Nunca sairia vivo daquele inferno. A
morte estava por toda parte ao seu redor. Em pouco tempo
ela o levaria.
Pegou a mão do companheiro estendido à sua frente e
fechou os olhos. Um único pensamento o habitava naquele
instante. Era ele puro? Havia alcançado a pureza no seio de
sua comunidade, agora que devia encontrar o Eterno?
Havia um segredo no fundo de sua alma. Um segredo jamais
partilhado. Como no coração de todos os homens. A última
muralha da intimidade. Então, era puro?
Orou para que Deus o aceitasse em Seu reino e, de repente,
sentiu uma dor imensa no peito. Como uma ferroada
fulminante.
Encontrou força para sorrir; depois, quando as chamas já
circundavam seu corpo imóvel, morreu.
Quando o tumulto enfim se calou, dez silhuetas negras
saíram rápida e silenciosamente do edifício em chamas. Dez
homens com o rosto mascarado. Com armas automáticas
MP-5 modificadas, sistemas de mira a laser, bússola, GPS,
comunicadores de última geração, macacões de Kevlar,
carregavam no corpo quase cinqüenta quilos de
equipamento.
A invasão havia sido estudada e preparada com minúcia.
Cada um sabia o que tinha a fazer. A planta dos edifícios
havia sido anexada aos comunicadores. Gestos cem vezes
repetidos.
O ataque havia durado apenas alguns minutos. Os pontos
vermelhos que piscavam se apagaram um a um nas telas de
vidro. A maioria dos monges foi morta enquanto dormia.
Nenhum deles dera o alarme. Nenhum sobreviveu.
Quando os dez mercenários desceram a ladeira ocre do
monte em chamas, levando um tesouro cuja importância
não podiam imaginar, o vento noturno ainda soprava sobre
as montanhas gredosas do deserto da Judéia.
Sou o tenebroso — o viúvo —, o inconsolado,
O príncipe da Aquitânia na Torre abolida:
Minha única estrela está morta — e minha lira constelada
Traz o Sol negro da Melancolia.
Gérard DE NERVAL, El Desdichado
Capítulo Um
Havia onze anos que não via meu pai quando um tabelião me ligou
para avisar que ele estava morto.
Nunca se sabe realmente o que dizer nesses momentos, e sentia que
o sujeito do outro lado da linha estava ainda mais sem graça do que
eu.
O silêncio que se instalou nada mais tinha a ver com o
deslocamento do som entre Paris e Nova York, nem com o
fato de que já devia fazer uns bons quatro ou cinco anos que
eu não pronunciava nenhuma palavra em francês.
Simplesmente eu não sabia o que dizer.
Fazia onze anos que eu vivia em Nova York, sete que
trabalhava como roteirista para a televisão e que os
produtores da casa ficavam em êxtase diante do French
Touch que eu havia trazido ao Saturday Night Live, três que
minha série Sex Bot fazia sucesso na HBO, pois os
espectadores não tinham o hábito de ouvir falar tão
abertamente de sexo na televisão, e apenas um ano que eu
havia decidido parar de apostar nos milionários desiludidos,
que esbanjam seus dólares em cocaína e em restaurantes de
luxo, pois já não sabem o que fazer com os zeros que se
acumulam no banco. No dia em que Maureen me deixou,
compreendi que a América fizera de mim o pior dos
americanos e que eu ultrapassara havia muito tempo alguns
limites que não mereciam ter sido ultrapassados. Tomar um
pé na bunda de uma atriz de segunda categoria, que passa
mais tempo com o nariz no pó do que num palco, é para
colocar logo as idéias no lugar. Nunca mais voltei a tocar em
cocaína. Ninguém pode odiá-la mais do que aquele que um
dia a amou tanto. Tudo isso acabou me colocando numa
espécie de bom caminho. Um caminho triste e solitário, mas
no qual eu tentava não fazer mal a mais ninguém nem a
mim, em primeiro lugar.
Em suma, a França já não era nem mesmo uma lembrança,
meu pai, quando muito, era um pesadelo, e Paris se resumia
a uma torre Eiffel de cartão-postal. Meu passado estava tão
distante que, nos restaurantes de Greenwich Village, achei
exótico que os garçons me dissessem "Monsieur" num
francês cambeta.
— Como aconteceu? — balbuciei finalmente, na falta de algo
melhor.
— Um estúpido acidente de carro. Meu Deus, foi tão
estúpido... O senhor acha que pode vir a Paris?
Ir a Paris. Imediatamente, a idéia de que meu pai estava
morto tornou-se mais real. Mais concreta. Era um daqueles
momentos em que o presente é carregado com um
acontecimento tão forte que se pode sentir os segundos
passar. Chega-se quase a ouvir o tique-taque do gigantesco
mecanismo de um relógio imaginário. Nunca tive tanta
impressão de viver quanto durante esses silêncios. Os
silêncios que acompanham os dramas. Sou daqueles caras
que passaram horas diante da CNN, engolindo seus flashes
um atrás do outro durante as guerras do Golfo ou o ataque ao
World Trade Center, pois eu tinha a sensação de, dessa
forma, me inscrever na História, de viver cada segundo de
uma passagem, de um ponto de articulação militar. De
participar de uma comoção em massa. Em suma, de estar
vivo.
E, naquele momento, silencioso diante do meu telefone
como diante das imagens das duas torres que desabam, me
sentia vivo. E, no entanto, fazia muito tempo que eu não
ligava para o destino do homem que me colocara no mundo.
— Eu... eu não sei. E mesmo necessário?
Eu podia imaginar a surpresa do tabelião do outro lado do
Atlântico.
— Bom — começou lentamente —, é preciso tratar das
questões da herança, e também tem o enterro, sabe como
é... O senhor é a única família dele... Mas se isso realmente
lhe causa algum problema, podemos tentar arranjar tudo
pelo telefone.
Eu bem que tinha vontade de dizer melhor assim. Dar uma
bela banana para aquele velho tacanha que, afinal de contas,
tampouco tinha tentado entrar em contato comigo durante
esses onze anos. Mas alguma coisa me impeliu a ir. Talvez
essa vontade de mudar. De voltar a colocar os pés no chão. E
depois, embora eu estivesse protegido havia onze anos no
casulo nova-iorquino, alguma coisa se havia rompido no
meu amor por esse país tão idiota. Eu tinha dificuldade de
continuar a bancar o americano. No fundo, a morte do meu
pai quase caía bem. Uma boa desculpa para rever a França.
— Vou tentar pegar um avião amanhã mesmo — soltei
finalmente num suspiro.
No dia seguinte, após ter resolvido mais ou menos todos os
detalhes com meu agente desnorteado, decolei às 14h28 do
JFK rumo a Paris, deixando para trás o skyline desfigurado do
reino da TV a cabo.
Logo tive a certeza: estava feliz de voltar a Paris. Ou de dei-
xar Nova York. Minha vida nos Estados Unidos havia ficado
muito complexa. Apaixonante e aterrorizante ao mesmo
tempo. Como a maioria dos habitantes de Manhattan, eu
tinha com a ilha que nunca dorme uma relação de amor e
ódio misturados, que precisava de um pouco de afastamento.
Contrariamente à imagem puritana que os franceses têm da
América, eu havia encontrado na TV a cabo de Nova York
muito mais liberdade do que qualquer produtor do
Hexágono poderia me oferecer. Em cada episódio de Sex
Bot, eu contava a movimentada vida sexual de um novo
habitante de Manhattan. Nos mínimos detalhes. Um por um,
eu pintava os costumes de todos os habitantes da cidade, sem
nenhum tabu, sem nenhuma discrição, mas, sempre que
possível, com uma pitada de cinismo. Homossexualidade,
triolismo, ejaculação precoce, troca de casais, quanto mais eu
acrescentava, mais agradava. E claro que a televisão
americana não precisava de mim para falar de sexo, mas
creio ter sido o primeiro roteirista a colocar em cena uma
verdade tão crua. A primeira camisinha que estoura na
televisão, lá estou eu. Os primeiros debates sobre o cheiro do
suor depois do amor... eu de novo. Todo o mundo tirava
proveito. Os obcecados se deleitavam nas cenas quentes, os
neuróticos se sentiam menos solitários, os nova-iorquinos se
compraziam em sua especificidade, os outros se extasiavam
ou fingiam estar chocados... A nova moda consistia em
adivinhar, quando se encontrava alguém, qual era seu
personagem preferido na série. Em suma, o sucesso foi
muito mais longe do que eu havia imaginado, e sobretudo
muito mais rápido. Sex Bot estava na moda. Trendy, como
eles dizem. Caiu no lugar certo, na hora certa. De repente,
eu já não tinha necessidade de fazer reservas com meses de
antecedência para jantar nas melhores mesas da cidade.
Viam minha cabeça em todos os palcos televisivos e na capa
das piores revistas. Depois me vi nos braços de Maureen,
antes de passar para os braços da cocaína e terminar naqueles
de um médico especialista em toxicomania e de um
advogado especializado em divórcios de celebridades... Para
a maioria das pessoas, muitas vezes o casamento é o dia mais
feliz de suas vidas. Para mim, talvez tenha sido meu
divórcio. Nova York me ofereceu tudo isso e muito mais.
Aqueles anos haviam passado muito rápido, até demais, eu
nunca havia parado realmente para refletir sobre o que tinha
desabado em cima de mim. Era hora de partir. De
reencontrar um sujeito que eu podia ver no espelho ao
acordar, sem me perguntar quem ele era e o que estava
fazendo ali. E, sobretudo, já não estava sendo tão bom viver
na casa do Tio Sam.
Com a cabeça colada contra o vidro do táxi branco que me
conduzia ao hotel, eu redescobria Paris em silêncio através
das ondas de vapor que minha respiração desenhava no
vidro à minha frente. Eu havia pedido ao motorista que
passasse pelo centro da cidade para aproveitar de imediato o
espetáculo. A chuva, no final das contas, não atrapalhava em
nada. Envolvia a cidade num estrépito estranho e pesado,
fazia com que as calçadas brilhassem, as ruas soassem, as
pessoas corressem. Balés de guarda-chuvas se cruzavam nas
faixas de pedestres. Tudo estava num cinza-azulado. As
pessoas, as casas, o Sena e seus cais escondidos, o céu. Nada
podia acolher melhor meu humor indiferente e frio naquele
dia. Eu estava feliz por estar triste.
Paris não tinha mudado muito em onze anos, a não ser
talvez a Bastilha, que parecia trazer uma máscara desajeitada,
uma camada de platina muito espessa, mal espalhada. Todos
os cafés lembravam os lounge bars de Nova York, laranja
com preto e revestidos de madeira, abarrotados e, ao mesmo
tempo, frios. E a ópera de vidro, por mais bonita que fosse,
desequilibrava o todo, como se tivessem deslocado o centro
de gravidade dessa praça ancestral. Eu partira para Nova
York logo depois de terminada a ópera e não tive tempo de
me habituar a ela.
Em resumo, eu estava me deleitando com a idéia de visitar
novamente a cidade da minha infância quando o táxi
finalmente parou na frente do meu hotel, na praça
Vendôme. Dave, meu agente, como bom americano, não
havia encontrado nada melhor do que me colocar no Ritz, o
que não me causava nenhum grande entusiasmo.
Eu havia deixado Paris sem um tostão no bolso e agora vol-
tava riquíssimo. Gastar meus dólares na América já não me
dava medo desde meu divórcio — quero me dar o que
minha ex não vai ganhar —, mas ali, naquela cidade, onde eu
tinha minhas raízes, aquela cidade que me vira menino
perdido ou adolescente apaixonado, eu sentia uma espécie de
mal-estar só de pensar em desembarcar num hotel onde
onze anos antes não poderia nem mesmo ter me dado um
café da manhã sem precisar pedir ao meu velho Uma mesada
que eu nem sequer queria.
Apressei-me para mandar subir minha mala, achei graça no
quarto suntuoso — dourações, revestimentos em madeira e
tecidos de primeira à vontade — e deixei o hotel
ultradecorado para ir ao tabelião. Por mais que eu temesse
esse encontro, queria me livrar do caso o mais rápido
possível.
O escritório de Maitre Paillet-Laffite ficava num imóvel
antigo na rua Saint-Honoré. Todo rodeado de ardósias cinza-
azuladas, com fachada de pedras brancas, escurecidas pelos
canos de descarga, grandes portas de vidro, tapetes e
elevador ridiculamente apertado no vão muito estreito de
uma escada, era o imóvel parisiense por excelência. Maitre
Paillet era o tabelião da família, do meu pai e do meu avô,
mas eu só o vira uma vez, e não nas melhores circunstâncias,
no dia em que minha mãe foi enterrada no cemitério
Montparnasse. Como a maioria dos amigos da família, ele
comparecera para descobrir com horror que eu estava
sozinho diante do túmulo. O canalha do meu pai nem sequer
havia aparecido.
— Sente-se, Maitre Paillet irá recebê-lo num instante.
Eu me havia esquecido do barulho mágico dos antigos
assoalhos parisienses. Não há um único apartamento em
Nova York em que o chão ranja com esse charme antiquado.
Ao passar pela porta que me era aberta pela roliça secretária,
toda sorridente, não pude deixar de pensar na sala de espera
do consultório dentário onde eu passava tantas horas em
minha infância, morrendo de inquietação diante das pilhas
amarrotadas de Madame Figaro, Paris Match e outras
gloriosas revistas, ouvindo de longe o grito estridente das
brocas...
Mas o tabelião não me deixou esperar muito, e logo me vi
diante de seu amplo escritório de ministro, admirando um
falso Dali às suas costas. Um quadro de Jesus, extremamente
branco, como se esperasse em sua cruz que Martin Scorcese
chegasse para distraí-lo.
— Bom-dia, senhor Louvei, obrigado por ter vindo tão
rápido...
Na verdade, o Cristo de Dali em contre-plongée e com o
corpo pálido parecia velar por ele.
Pousou as duas mãos à sua frente, sobre a pasta de papelão.
— Desculpe-me se pareço indiscreto — retomou —, mas o
senhor não via seu pai desde...
Parei de olhar o quadro e sorri para o tabelião. Era um
homenzinho gordo, de pele bronzeada e enrugada. De
cabelos escuros, curtos, espessos e olhos profundos, tinha o
físico de um corso, mas o tato discreto de um inglês.
Segundo meus cálculos, devia contar uns sessenta anos, mas
não parecia ter mais de cinqüenta. Era um desses tipos que,
depois de certa idade, assustados com o tamanho da barriga,
abandonam o scotch e passam à Perrier com uma rodela de
limão. Eu o imaginava muito bem jogando golfe em Saint-
Nom-la-Bretêche ou tênis intramuros. E também o
imaginava morrendo, com a cabeça afundada na terra batida,
fulminado por uma crise cardíaca sob o olhar aterrorizado de
um amigo advogado que o fizera correr demais.
— Há onze anos. Eu o vi uma única vez depois do enterro,
não tive coragem de lhe dar um soco na cara e parti para os
Estados Unidos.
O tabelião meneou a cabeça, fingindo não ter notado minha
última observação.
— O senhor é seu único herdeiro. Sua única família.
Ele falava rápido. Como se já tivesse repetido a cena dez
vezes em sua cabeça.
— ... Mas seu pai deixou tudo preparado, o senhor não vai ter
de se ocupar com o enterro, só terá algumas formalidades
para assinar.
— Tanto melhor.
— Em compensação, tem a sucessão... Ele lhe deixa todos os
seus bens, e o senhor terá de decidir o que quer fazer com
eles.
— Entendo. Realmente não estou interessado no dinheiro
dele. Mas talvez haja algumas coisas da minha mãe... Quanto
ao resto, damos às obras de caridade, isso evita ter de pagar
impostos, não?
Paillet coçou o queixo.
— Tenho aqui a lista dos bens, Damien. No entanto, seus pais
tinham muitos quadros de valor. Teremos de conversar a
respeito. E, de fato, certamente também há coisas que
pertenceram à sua mãe no apartamento de Paris, e talvez
algumas na casa de Gordes...
— Onde?
Levantou os olhos em minha direção, sem tirar os óculos
que mantinha colados ao rosto.
— Gordes. Seu pai comprou uma casa na Provence há cerca
de dois anos. O senhor não sabia? Foi lá que sofreu o
acidente. Fica em Vaucluse, mais precisamente...
— Mas o que ele foi fazer lá? Pensei que detestasse o interior!
O tabelião não respondeu. Parecia incomodado. Estendeu-
me
o que devia ser uma foto da casa.
— O... o corpo ainda está lá? — perguntei pegando a foto. A
palavra "corpo" é difícil de sair quando se fala do próprio
pai... Há certos tabus dos quais até os mais cínicos não
escapam.
— Não, foi repatriado a Paris, e o enterro, se o senhor não vir
nenhum inconveniente, será depois de amanhã.
— Em Montparnasse?
O tabelião aquiesceu, sem graça. O cafajeste do meu pai
tinha tido a cara de pau de pedir que o enterrassem junto de
sua mulher, no cemitério em que, pelo que sei, nunca pusera
os pés! Eu adivinhava no olhar de Maitre Paillet que ele
temia minha reação. Mas, depois de refletir, isso não me
incomodava tanto. Não sou do tipo que chora sobre um
túmulo. Não preciso de lápide para me lembrar das pessoas, e
esse símbolo pouco significava para mim. Se o velho tinha
alguma esperança de limpar a consciência pedindo para
descansar junto da mulher que ele havia abandonado, isso
nada mudava para mim. Quer ele seja enterrado lá, quer em
outro lugar, o mal estava feito, e isso tampouco mudaria
grande coisa para minha mãe naquele momento...
Olhei a foto. Era uma polaróide, mas dava para ver bem a
propriedade. Uma pequena casa de pedra, estreita, instalada
no meio de um jardim florido. Realmente não tinha nada a
ver com meu pai! Mas será que eu o conhecia de verdade?
Afinal, ele teve tempo para mudar durante aqueles anos.
Tempo o bastante para mudar.
— Gordes é uma das cidadezinhas mais bonitas da França,
sabe? Fica no alto de um rochedo, é... é magnífica.
Eu não o estava escutando realmente. Estava sim tentando
entender.
— Como aconteceu o acidente?
— Eram duas da manhã, seu pai passou direto numa curva e o
carro caiu no barranco... A cinco minutos da casa dele...
— E o que ele estava fazendo no carro às duas da manhã
nesse vilarejo perdido?
Maitre Paillet encolheu os ombros.
Havia alguma coisa nessa história que não batia. Eu não
conseguia imaginar a cena. O velho comprando uma casa
num pequeno vilarejo do sul da França. Talvez houvesse
uma mulher por trás disso. Mas o tabelião provavelmente
não estava a par...
Meu pai nasceu em Paris, onde sempre viveu. Lá estudou e
trabalhou. Conheceu minha mãe em Paris, casou-se em
Paris, fez-lhe um filho em Paris e a abandonou em Paris
quando o câncer começou a se manifestar. Tinha horror ao
campo, horror ao interior; para ele, o subúrbio já era longe
demais. Eu não conseguia encontrar uma única maldita
desculpa para que ele se tenha refugiado no sul como um
banqueiro aposentado.
— Eu gostaria muito de rever o apartamento de Paris —
declarei simplesmente, simulando um sorriso.
— Claro. Cuidado com o alarme, vou lhe dar o código. Com
todos aqueles quadros, seu pai mandou instalar um alarme de
última geração.
O tabelião estava manifestamente apressado para também se
livrar do caso. Não sei como acabaram ficando suas relações
com meu pai, mas eu via em seus olhos que ele não havia
esquecido o enterro sórdido da minha mãe...
Apresentou-me dois molhos de chaves e uma pasta de
papelão.
— Aqui estão o código do alarme, as chaves do apartamento,
as da casa, as do seu carro, que se encontra no
estacionamento em Paris... Vaga 114. É um 406. Ele também
tinha um carro em Gordes, mas já está no ferro-velho... Não
sei direito para que servem todas as outras chaves, mas
certamente você irá descobrir. E quando tiver tempo, seria
preciso dar uma olhada em todos esses documentos e assiná-
los...
Levantei-me estendendo-lhe a mão.
— Não preciso fazer nada para o enterro?
— Não, não, vou cuidar de tudo, seu pai já havia deixado isso
preparado. No entanto, pode avisar seus conhecidos...
Fiz que sim, mas, no fundo, eu me perguntava quem poderia
avisar.
O velho tinha morrido sozinho, e sozinho iria para debaixo
da terra. E se lágrimas tivessem de escorrer sobre minha
face, seriam por minha mãe, cuja lembrança eu não
conseguia evitar.
Meus pais não mudaram de casa depois que eu nasci. Bem de
vida, conservaram o moderno apartamento de cinco
cômodos na rua de Sèvres, de onde meu pai podia ir a pé até
a praça Fontenoy. Durante toda a sua vida, ocupou um alto
cargo administrativo na Unesco.
Meu pai era um sujeito estranho. Quando alguém não o
conhecia muito, parecia encantador. Atencioso, fino, culto.
Bibliófilo instruído, amante da arte, intelectual de centro-
esquerda, era ouvido nos salões falar de Montaigne ou de
Chagall, faziam-lhe um monte de perguntas e apresentavam-
no orgulhosamente aos amigos. E, além disso, o senhor
Louvel ainda encontra tempo para trabalhar na Unesco.
Muito alto, elegante, parecia estabelecido no charme dos
cinqüenta anos, com têmporas grisalhas, rugas ao sorrir.
Sempre mantinha uma das mãos no bolso da calça, com a
desenvoltura graciosa de um dândi. As pessoas o adoravam.
Mas, na realidade, meu pai era um perfeito canalha. Eu o vi
apertar muitas mãos, mas não tenho nem uma única
lembrança de vê-lo beijar a mulher. Ou o filho. Quando a
porta voltava a se fechar por trás do último convidado, meu
pai desaparecia em seu escritório, e não se ouvia mais sua
voz até a próxima recepção. Era como se esse homem
tivesse passado a vida lamentando não apenas o fato de ter-se
casado, mas, pior do que isso, de ter tido um filho. E quando
se é o filho em questão, é muito difícil aceitar.
Lembro-me de que um dia presenciei uma conversa bastante
comovente entre dois amigos. Um tinha um pai intelectual
que detestava esporte, e o outro, um pai esportista que
detestava os intelectuais. Resultado: meus dois amigos
tinham inveja um do outro por causa de seus pais. Já eu não
tinha nem um nem outro. Meu pai nada tinha a
compartilhar. Até mesmo seu amor por belos livros e por
quadros ele guardava para si. Contentava-se em colocá-los
num lugar suficientemente alto para que eu não pudesse
alcançá-los. Eu não tinha nenhuma relação com ele. Nem
afetuosa, nem conflituosa. Nada.
Mas foi somente quando os médicos anunciaram à minha
mãe que ela tinha um câncer que compreendi a que ponto
seu marido era um cafajeste.
Minha mãe era o oposto dele. Aliás, nunca compreendi de
fato por que os dois se casaram. Talvez por uma questão de
comodidade. Meu pai precisava de uma governanta, e minha
mãe, de uma boa conta bancária. A única coisa pela qual
posso recriminar minha mãe é por jamais ter ousado elevar o
tom de voz, nem comigo nem com o marido. Era uma
senhora generosa, afetuosa e doce. Era bonita, até nos olhos,
nos gestos das mãos, mas também nas escolhas. Filha de uma
família burguesa da região de Bordeaux, tivera de renunciar a
muitas coisas ao se casar com meu pai, e creio que, durante
toda a sua vida, tenha lamentado por ter deixado o interior
sem jamais ousar confessá-lo ao marido parisiense. Após o
terceiro aborto, o médico chegou a evocar a possibilidade de
que Paris não fosse o ambiente ideal para ela. No entanto,
nasci no ano seguinte. E creio que a alegria da minha mãe
tenha sido diretamente proporcional ao desgosto do meu pai.
Cada gesto, cada cuidado era como uma desculpa para o
egoísmo do meu pai. Como se ela quisesse compensar,
indenizar-me. Jamais deixei de adorar minha mãe. Passei
quatro meses ao seu lado, em seu quarto no hospital. Quatro
meses durante os quais invertemos os papéis. Fui eu quem
compensou a ausência cruel do meu pai e quem aprendeu o
segredo dos sorrisos sem jeito.
Sempre que a porta do quarto se abria atrás de mim, eu a via
levantar os olhos cheios de esperança. Mas nunca era meu
pai quem entrava. Então ela sorria ao visitante, ao médico, à
enfermeira. Sua boca sorria. Mas seus olhos, esses diziam
outra coisa completamente diferente.
Eu nunca soube encontrar as palavras que a pudessem ter
feito esquecer. Não sei ao certo se essas palavras existiam.
Quando penso nisso hoje, pergunto-me onde encontrei
forças para acompanhá-la daquele jeito, sozinho, até o fim.
Eu não me fazia essa pergunta na época.
Mas hoje acho que sei. Acho que sei de onde eu tirava
minha força. Do ódio. O ódio que eu dedicava ao meu pai.
No final das contas, penso que foi providencial ele não ter
aparecido nem no dia do enterro. A coisa poderia ter ficado
feia...
Em vez disso, parti para Nova York.
Eu estava com tudo isso na cabeça enquanto subia no peque-
no elevador da rua de Sèvres. Tudo isso e muita apreensão.
Ao abrir a porta, fui tomado pelo cheiro do apartamento, um
cheiro que eu não havia sentido por mais de dez anos.
Talvez ele nunca me tenha parecido tão forte. O perfume
seco e antigo do vime. O cheiro que, para mim, evocava
Bordeaux, meus avós, brincadeiras de infância, meses de
férias, minha mãe... Todas as persianas estavam fechadas, e o
apartamento mergulhado na escuridão total. Esperei um
momento antes de acender a luz.
Fechei lentamente a porta blindada atrás de mim e apertei o
interruptor. Vi então o que havia sido meu lar durante mais
de vinte anos. A sala dupla, de pé-direito bem alto, os
móveis antigos que me pareciam mais escuros e menores, os
numerosos quadros, pinturas contemporâneas originais,
dentre elas um Chagall — meu pai venerava Chagall — e um
óleo de Duchamp, a lareira condenada com seus dois
trasfogueiros em busto de hussardos, o lustre de madeira, o
grande sofá de couro escuro, as espessas cortinas azul-
marinho, o tapete persa gasto e, à direita, sobre uma mesa
baixa, aquele enorme televisor fora de moda, com grandes
botões cromados... Nada havia mudado. Nada, ou quase.
Uma única coisa diferia e me surpreendeu de imediato, de
tanto que essa diferença transformava o grande cômodo.
A biblioteca estava vazia.
Não continha um único livro, nem sequer um bibelô,
absolutamente nada sobre as prateleiras de carvalho que
traçavam listras na parede branca diante da janela. Nada além
de uma fina camada de poeira. Ora, meu pai tinha uma
coleção notável, inestimável. Edições originais, gravuras,
encadernações... Lembrava- me de algumas obras pelas quais
ele tinha particular apreço, como aquela edição original em
velino de A queda da casa Usher, traduzida por Baudelaire,
ou uma encadernação assinada por Dubois d'Enghien dos
Contos e novelas em verso, de La Fontaine, mas, sobretudo,
a obra completa em in-doze das Viagens extraordinárias, de
Júlio Verne, editada por Hetzel. Ainda consigo ouvi-lo
explicar a seus convidados que os colecionadores fazem mal
em negligenciar essa edição em formato de bolso, quando na
verdade ela constituía a edição original — além da
publicação em periódico —, e que esses livros muitas vezes
eram ornados com gravuras extraídas de publicações in-
oitavo, nem sempre encontradas nas edições mais célebres
em formato grande. Na época, para mim tudo isso não
passava de linguagem difícil, mas não me impedia, quando
caía a noite, de pegar escondido esses volumes para ler Júlio
Verne à luz fraca do meu criado-mudo, sentir o odor das
velhas páginas, passar os dedos sobre as finas gravuras,
viajando até a Índia ou ao centro da Terra.
Para onde então tinham ido todos aqueles livros? Decidi ir
mais longe, visitar os outros cômodos, e em alguns minutos
percorri o apartamento para descobrir que já não restava
nenhum livro na casa dos meus pais. E era tão mais
surpreendente que nada mais faltasse.
Abanei a cabeça para tentar aclarar minhas idéias. Será que
tinham assaltado o apartamento? Não havia nenhum sinal de
arrombamento. Será que meu pai bibliófilo tinha decidido
levar todos os seus livros para o Sul? Isso certamente era
possível, mas um pouco estranho devido a seu extremismo!
E por que teria levado todos os seus livros e nenhum
quadro? Poderia até ter-se contentado em fazer uma seleção
de obras, escolhendo aquelas que ainda não tinha lido, por
exemplo. Quanta gente não diz que vai esperar a
aposentadoria para ler a pilha de livros em atraso que se
acumula em todas as nossas bibliotecas? Chegou-se até a
inventar um termo para isso: bibliótafo. Mas daí a levar
tudo... Não, realmente havia alguma coisa estranha.
Decidi então ligar para o tabelião e, ao discar seu número,
dirigi-me à cozinha para me servir de uísque. Só um
uisquinho.
— Alô? Maitre Paillet? É Damien Louvel. Estou ligando da
casa do meu pai...
Ainda havia uma garrafa de O'Ban no armário embutido da
cozinha. A marca preferida do meu pai. Um dos raros gostos
que compartilhávamos.
— Está tudo bem? — inquietou-se o tabelião do outro lado da
linha.
— Sim. Só uma dúvida: o senhor sabe onde foram parar todos
os livros do meu pai?
— Ah, sim. De fato, deveria ter-lhe avisado. Ele vendeu tudo
há dois anos para comprar a casa de Gordes. Consegui
dissuadi- lo de vender os quadros, mas não os livros...
— Ele vendeu todos os seus livros? — espantei-me, fechando
a garrafa de uísque.
— A coleção completa. A um colecionador de Amiens.
— E isso foi suficiente para comprar a casa de Gordes?
— Não, mesmo assim, não foi. Se bem me lembro, ele
conseguiu levantar cerca de seiscentos mil francos. Por isso
também queria vender alguns quadros. Mas acabei por
convencê-lo de que era melhor vender suas ações...
— Suponho que o senhor tenha feito bem. Mas estou bastan-
te surpreso. Ele gostava tanto dos livros! Realmente devia
estar louco por essa casa!
O tabelião não respondeu. Eu lhe agradeci e desliguei.
Fiquei quase uma hora na sala, olhando aquela biblioteca
vazia, sentado no sofá, com meu copo de uísque na mão. Se
houvesse um controle remoto, talvez eu tivesse ligado a
televisão, pulado estupidamente de canal em canal,
embalado pela marcha cromática das emissoras. Mas eu
estava ali parado, imóvel, e as idéias se debatiam em minha
cabeça. Por que eu tinha a impressão tão forte de que alguma
coisa estava errada? Seria simplesmente porque eu me havia
tornado um estrangeiro e tinha dificuldade em admitir que
questões relativas à minha família pudessem me escapar
dessa forma? A casa no Sul, o acidente às duas da manhã, a
biblioteca. Realmente eu não conseguia entender a situação
e não estava controlando bem o meu humor. De vez em
quando, ondas de cólera chegavam para expulsar as de
nostalgia, depois o uísque misturava um pouco tudo isso, e
meu orgulho, por sua vez, recusava-se a admitir que a morte
do meu pai pudesse afetar-me de alguma maneira. E, no
entanto... Tudo isso parecia um folhetim de má qualidade.
Aquele em que um filho lamenta por não ter tido tempo de
se reconciliar com o pai. Só que, no meu caso, eu não
lamentava nada. Estava apenas triste e desnorteado. E,
sobretudo, estava sozinho. Sozinho de verdade pela primeira
vez. Não ter vontade de rever o pai é uma coisa, não poder
revê-lo é outra.
De repente, o toque do meu celular me tirou do torpor, e me
levantei para pegar o aparelho que vibrava em meu bolso.
— Alô?
Reconheci de imediato a voz de Dave Munsen, meu agente.
A Stephen D. Aldrich Artists Agency havia posto esse
sujeito na minha cola desde o sucesso de Sex Bot, e o coitado
fazia de tudo para me agradar sem conseguir esconder sua
angústia, que provavelmente era apenas um pálido reflexo
daquela de seus superiores: naquele momento, eu era a
principal fonte de renda deles e, se algum dia resolvesse
mudar de agência — eles já tinham contratado tantos
funcionários nos últimos tempos — iam ter de pedir
falência. Portanto, estavam cheios de cuidados comigo e pas-
saram a ser mestres na arte da bajulação... O que não sabiam
é que eu não tinha nenhuma intenção de abandoná-los, mas
devo confessar que não conseguia deixar de aproveitar a
situação para fazer com que continuassem com a dúvida no
ar... Eu me divertia como uma criança com o nervosismo de
Dave, um pequeno jogo cruel, é verdade, mas eu esperava
que o cara acabasse por não levá-lo a sério. E, no final das
contas, a porcentagem deles sobre meus direitos de Sex Bot
devia ajudá-los a suportar tudo isso...
— Está tudo bem, Damien?
Depois de dois anos que Dave se esforçava
consideravelmente para tentar pronunciar meu nome à
francesa, eu não conseguia deixar de rir sempre que ele se
dirigia a mim.
— Sim, Davê, está tudo bem. Não se preocupe!
— E o hotel?
— Bom, é o Ritz, né?...
— E, na verdade, não conheço, você sabe que nunca fui para
a França... Aliás, esqueci de lhe dizer ontem, mas temos uma
agência em Paris que nos representa. Se você precisar de
qualquer coisa por aí, tenho certeza de que poderão ajudá-lo.
Não é uma agência muito grande, os franceses não têm
grandes agências, mas são muito prestativos.
— Eu sei, Dave, sou francês, lembra?
— Sim, sim, claro. Quer o número?
— Não, não, não será necessário, obrigado... Por outro lado,
precisaria que você me alugasse uma moto.
— Não vai querer andar de táxi? — espantou-se.
— Em Paris, sim, mas vou fazer um longo trajeto...
Eu podia adivinhar sua cara só pelo silêncio que se seguiu.
Dave e provavelmente toda a equipe de Aldrich tinham
medo de que minha estada na França se perpetuasse. Eu já
estava duas semanas atrasado para a entrega final dos últimos
roteiros da terceira temporada de Sex Bot, e certamente a
produção ligava todos os dias para a agência para manifestar
sua impaciência crescente. Mas por que esses malditos
franceses estão sempre atrasados? Os roteiros estavam todos
prontos, meus produtores haviam contratado um exército de
roteiristas, de story editors e de script doctors, mas eu
sempre tinha de verificá-los, dar um palpite e a aprovação
final.
— Você... você vai aonde? — gaguejou Dave.
— Vou para o sul da França.
— O quê?
— Vou para Gordes, na Provence. Meu pai comprou uma
casa lá, tenho algumas coisas para resolver.
— Vai ficar muito tempo?
— Não sei.
Eu já podia imaginar os dedos de Dave se crispando no fone.
— Mas... E o deadline, Damien?
— Acabo de perder meu pai, Dave — respondi-lhe fingindo
estar chocado.
Será que eu podia ser mais cruel? O pobre rapaz ficou em
silêncio. Decidi pôr um fim em sua angústia...
— Fica tranqüilo, lá vou ter sossego e poderei terminar meu
trabalho com calma no casebre. Não vá preocupar a agência.
Vou enviar-lhe por e-mail a versão definitiva dos roteiros
nos próximos dias.
Desliguei sorrindo e olhei meu reflexo no grande espelho da
sala. Tentei ver em meu rosto os traços do meu pai.
Reconhecer seus olhos. Sua boca. Mas tudo o que eu via era
uma barba de três dias, olheiras e alguns redemoinhos
desordenados nos meus espessos cabelos escuros. Algo
irreal. Outro eu que eu não via havia muito tempo e que não
tinha nenhuma vontade de escrever histórias idiotas passadas
em Nova York...
Decidi aproveitar o tempo que me restava em Paris para gas-
tar sola de sapato em suas ruazinhas estreitas, beber até a
última gota o licor de uma Paname bicéfala: nobre e repleta
de história durante o dia, esnobe e sensual durante a noite.
Pulei de guia em guia, do Museu d'Orsay ao Louvre,
desfrutei do luxo do Dodin Bouffant e do steak tartare das
brasseries, admirei a paciência dos motoristas de táxi em
meio a um trânsito caótico, sorri às parisienses de pernas
longas nos Champs-Elysées, dei moedas para os cantores do
metrô, mergulhei no denso som eletrônico dos clubes
noturnos, onde bebi umas a mais, e passei a noite com uma
inglesa que nem me lembrava de ter convidado, quando, de
madrugada, levantei o lençol branco que cobria seu corpo
adormecido. Como posso apagar dessa maneira nos braços de
uma morena? Com quantas mulheres já dormi, ao sair das
noitadas nova-iorquinas, sem realmente me dar conta, sem
realmente querer, como o pior dos crápulas, o mais
indiferente dos cafajestes? E por quê? Depois de ter parado
de consumir pó, eu havia encontrado no álcool uma
companhia menos perigosa, mas que muitas vezes me levava
para aventuras inconfessáveis. O quarto do hotel trazia as
marcas de uma noite de abandono, e quando a jovem se foi,
discreta, não me deixou nem seu nome, nem uma promessa
estúpida, mas apenas um beijo carinhoso. Foi outra que
passou, como todas as que haviam deslizado entre meus
dedos desde minha separação e do seu pó infame. Naquela
manhã, como em muitas outras, prometi a mim mesmo
nunca mais beber daquele jeito.
Dois dias se passaram, e, com o rosto atacado por uma sólida
ressaca, enterrei meu pai, sozinho, sob o olhar discreto de
dois ou três funcionários da funerária. Quando desceram o
caixão para o fundo da cova, tentei ver a urna onde jazia
minha mãe, mas o fundo era muito escuro. Era um poço
imenso, preparado para receber gerações de cadáveres
empilhados, e de repente o conceito de morte me pareceu
terrivelmente material.
Dei duas notas a esses bons homens de azul, que passam o
dia partilhando de nosso luto e carregando nossos caixões,
depois saí para aproveitar minha última noite no Ritz e
degustar conhaque com trufas no bar Hemingway, ouvindo
um pianista muito bom, que tocava todas as suas canções
como baladas de Sinatra.
Capítulo Dois
Quem já percorreu um longo trajeto numa Harley, mesmo numa
Electra Glide, um dos modelos mais confortáveis da categoria, vai
entender por que preferi fazer a viagem em dois dias. Inicialmente,
para aproveitar a paisagem — o principal prazer de dirigir uma
motocicleta —, e depois para me poupar das dores que infernizam
todo traseiro submetido a vibrações prolongadas de um bicilindro em
V. Decidi, então, fazer um pequeno desvio turístico, a fim de cortar o
trajeto em dois.
Deixei-me finalmente encantar por esse país incrível, onde a
História surge em cada pequena aldeia, por trás de cada
colina, de campanários em abadias, de ruas pavimentadas em
estradas sinuosas, passando diante do olhar pacífico dos
idosos recostados nos bancos públicos, redescobrindo,
maravilhado, o cheiro e a atmosfera dos cafés onde todo o
mundo conversa com todo o mundo, e esquecendo Nova
York.
Passei uma noite terrível e barulhenta em Clermont-
Ferrand, num desses motéis cafonas e chinfrins, onde tive
de ficar de cueca na fila da ducha, e acabei chegando tarde
demais ao térreo para que o desagradável gerente aceitasse
me servir um miserável café da manhã. Depois de duas
noites no Ritz, o charme de um Formule 1, no fim das
contas, parece bem sem graça...
Desci correndo ao estacionamento para colocar novamente
em movimento o motor da minha bela imigrada, que —
como eu — ficou muito feliz de voltar às estradas, contornar
as curvas e ver o asfalto desfilar. Lancei-me nos desfiladeiros
de Lozère, sob um sol radiante. No final da manhã, fiz um
almocinho rápido e deixei a contragosto as belas montanhas
de Gévaudan para desviar rumo ao leste, onde eu esperava
encontrar as respostas às perguntas que me perseguiam havia
dois dias.
Logo cheguei ao planalto de Vaucluse e avistei, enfim, o
vilarejo do meu pai, como a luz ao sair do túnel.
O tabelião não havia mentido. Gordes é efetivamente uma
das mais belas cidadezinhas da França. Jamais esquecerei a
vista oferecida pelo relevo da estrada, quando se chega ao
flanco oposto e de repente surge a cidadela no alto, uma
pirâmide de pedras secas que sobem em espiral no meio dos
montes verdes.
Gordes é um dos milagres da paisagem francesa. Durante
centenas de anos, a cidade se erigiu com gosto, tendo sido
poupada pelo urbanismo selvagem, como se um bom gênio
tivesse velado por sua lógica arquitetônica ao longo dos
séculos. As casas cinzentas ou brancas, lá no alto, parecem
casar-se com o monte, desenhando nele colares de pedras.
Num encantamento monocromático, a cidade se destaca das
terras ocre da Provence como um bolo em andares, em que
a arquitetura dos homens e aquela da montanha se
confundem harmoniosamente. Entre as oliveiras, os
carvalhos verdes e brancos, os cedros e as acácias, as casas se
elevam acima das terras de Luberon, como que para velar
por elas.
Estacionei a moto do outro lado do vale, desci e fiquei lon-
gos minutos parado, estupefato com o esplendor único do
panorama. O sol de maio mal começava a desaparecer por
trás dos montes verdes. Subi novamente na Harley para
descobrir o coração do vilarejo sob os últimos raios de luz.
Minha chegada na pequena praça central, ao pé do
imponente castelo, não passou despercebida. Havia poucos
turistas naquele período do ano, e os roncos do meu motor
atraíram alguns olhares zombeteiros. Dirigi-me ao terraço de
um dos muitos cafés que circundam o adro, tirei o capacete
com dificuldade e perguntei a um garçom se ele podia me
indicar a rua onde se encontrava a casa do meu pai. Ele
aquiesceu, como se enfim compreendesse a razão de minha
presença, e me indicou o caminho a ser tomado.
Segui as ruelas pavimentadas que se insinuam nas sombras
do antigo vilarejo e cheguei diante da casa que vira na
polaróide do tabelião.
Ficava numa pequena rua, silenciosa e estreita, bastante
inclinada, e a casa de pedras secas e persianas fechadas
elevava-se atrás de um jardim pouco profundo, fechado por
um portão de ferro escuro.
Estacionei provisoriamente na calçada da frente, pois esta
última era um pouco mais larga. Prendi o capacete atrás do
banco, torcendo para que os ladrões em Gordes
proliferassem menos do que em Paris. No entanto, tirei a
mochila e o laptop das bolsas traseiras e os passei para os
ombros. Avancei na direção do portão coberto de hera,
procurando o molho de chaves no fundo do bolso. Meus
passos ecoavam entre os muros da ruela. Levei certo tempo
até encontrar a chave certa, mas quando, por fim, a fecha-
dura cedeu, empurrei o portão de ferro e entrei lentamente
no pequeno jardim, com o chão coberto de cascalho. Um
quadrilátero de carvalhos circundava a casa, e aqui e ali
sobreviviam com dificuldade alguns canteiros abandonados.
Eu tinha a estranha impressão de estar sendo observado.
Impressão provavelmente causada pelo silêncio repentino
que se seguira à extinção de meu motor. Lancei
discretamente um olhar às janelas das casas vizinhas, mas
não vi ninguém me espiando. Sorri para espantar essa
impressão estúpida e tratei de adentrar a casa.
Fiquei imóvel por um instante na entrada e observei tudo ao
meu redor. A idéia de que meu pai tivesse podido vender
todos os seus livros para comprar aquela casa continuava a
me espantar. Por mais bonito que fosse aquele vilarejo, não
imaginei meu pai entre aquelas paredes. E, no entanto,
parecia-me possível reconhecer um sobretudo, uma mesa,
talvez até aquele espelho. Meu pai tinha de fato vivido ali, e
tudo levava a crer que havia vivido sozinho. Talvez não
houvesse mesmo nenhuma mulher por trás disso...
Sem perder tempo de tirar a jaqueta, deixei minhas bagagens
na entrada e comecei a visitar todos os cômodos. No térreo,
havia apenas uma imensa sala de jantar, a saleta de entrada,
com uma pequena porta sob a escada, uma copa e uma
cozinha. Nada ali atraiu particularmente meu olhar. Os
cômodos eram funcionais e impessoais. Nenhum quadro,
nenhuma fotografia, nada que indicasse uma vontade do
meu pai de sentir-se realmente em casa. Tomei a escada de
madeira rangente e visitei o primeiro andar. Apertados sob o
teto em declive havia dois quartos e um banheiro. Um dos
quartos era o do meu pai, e o outro, mal-arrumado,
provavelmente não era usado havia muito tempo. Mas
tampouco notei algo de especial ali.
Que meu pai tivesse vendido todos os seus livros já era difícil
de acreditar, mas que em dois anos não tenha comprado
nem um único me parecia ainda mais inverossímil. E, no
entanto, por mais que eu procurasse por toda parte, nem um
único livro, nem um único quadro.
Observei do jardim duas lucarnas de cada lado da porta de
entrada, que demonstravam a presença de um subsolo. Era
minha última chance de encontrar uma resposta. Minha
última esperança. Desci sem demora na direção da pequena
porta que vira sob a escada.
De todas as portas da casa, aquela sob a escada era a única
que estava trancada. Tentei as numerosas chaves que o
tabelião me dera, mas nenhuma correspondia à fechadura.
Olhei ao meu redor, na entrada, perto do telefone, sobre
uma mesinha, mas em nenhum lugar vi outra chave.
Voltei para a sala, depois para os quartos, perdendo a
paciência, abri todas as gavetas, uma após a outra, os
armários, as caixas... Mas nada.
Sentei-me por um instante diante da entrada. Da poltrona
onde me havia instalado fiquei olhando a pequena porta de
madeira. O que poderia haver por trás dela? Por que meu pai
havia trancado o porão?
Já não conseguindo conter a curiosidade, levantei-me
precipitadamente e decidi arrombá-la. Evidentemente, foi
muito mais fácil decidir do que executar... Mas, depois de
algumas tentativas, um último chute conseguiu arrancar as
dobradiças, e a porta acabou cedendo. Desabou do outro lado
e desceu ruidosamente os degraus de uma pequena escada de
madeira. Quando o eco de sua queda finalmente se
extinguiu, avancei devagar na direção da soleira e procurei,
tateando, o interruptor do outro lado da parede.
O porão se encheu de luz, e vivenciei então o espetáculo
totalmente insólito que me oferecia o subsolo daquela
pequena casa de Vaucluse. Logo entendi que a estranha
impressão que me perseguia desde meu encontro com o
tabelião era mais que justificada.
Enquanto todo o restante da casa estava perfeitamente
arrumado e quase vazio, o subsolo estava lotado e numa
desordem indescritível. Era como se meu pai só tivesse
vivido naquele cômodo, como se só tivesse comprado a casa
por causa daquele surpreendente porão abobadado.
Estantes desequilibradas por pilhas de livros preenchiam três
das quatro paredes. Lá havia mais livros do que na coleção
parisiense que meu pai vendera. Eram centenas de volumes,
embaralhados uns sobre os outros sem nenhuma ordem
aparente. Na quarta parede, recortes de jornais, fotografias e
anotações manuscritas estavam afixados uns sobre os outros
numa confusão dos diabos. Parecia o quadro de avisos de
uma delegacia de subúrbio, em que os casos vão se
acumulando a cada dia. E, no meio da parede, como
apertadas entre as camadas de papel, brilhavam duas amplas
molduras.
Desci os degraus da escadinha, que mais parecia uma escada
portátil, e visualizei os dois quadros. Uma reprodução fiel da
Gioconda e uma gravura antiga, repleta de detalhes
minuciosos.
Franzi as sobrancelhas e transpus os últimos degraus.
No meio daquele cômodo úmido e sombrio, duas grandes
tábuas colocadas sobre cavaletes também suportavam altas
pilhas de obras antigas e modernas, algumas ainda abertas,
outras ameaçando desequilibrar a estrutura inteira. Também
se viam duas colunas de livros e papéis erigirem-se do chão
em meio a um amontoado monstruoso de garrafas vazias,
copos ou xícaras emborcados, papéis amassados, caixas de
papelão abarrotadas, embalagens, lixo transbordando...
Lentamente, aproximei-me do centro do porão, tentando
não derrubar nada com minha passagem. Um a um, vi os
títulos das obras amontoadas sobre os cavaletes. A princípio,
havia muitos livros de história; notei em desordem títulos
como A Igreja dos primeiros tempos ou Jesus em sua época,
Os árabes na história, Maomé e Carlos Magno, livros sobre a
Inquisição, sobre o papado, livros de arte, dos quais vários
sobre Leonardo da Vinci. Mas a maioria das obras que
estavam nessa biblioteca subterrânea tratava de esoterismo,
de história secreta e outras ciências ocultas, o que, no que se
referia a meu pai, me parecia totalmente inacreditável. Lá
estavam todos os tratados notórios do perfeito pequeno-
ocultista. Cabala, franco-maçonaria, templários, cátaros,
alquimia, mitologia, pedra filosofal, simbologia... Tudo o que
meu pai detestava, pelo menos era a impressão que me havia
deixado aquele cartesiano ateu.
Nada de Dumas, Júlio Verne, nenhum daqueles livros que
outrora eram o orgulho e a alegria do meu pai. Como ele
pôde ter vendido todas as edições Furne de Balzac para
comprar em seu lugar livros de bolso sem valor? Já não era a
biblioteca de um colecionador de livros antigos, mas a de um
estudante ou pesquisador. Nela, a edição não tinha nenhuma
importância, só o texto contava. E me parecia ainda mais
inacreditável que o objeto do seu estudo tivesse
aparentemente uma relação com o esoterismo...
Mas isso não era o mais surpreendente naquela biblioteca
subterrânea.
Depois de ter folheado alguns livros, incrédulo, notei no
canto do porão que estava à minha direita uma larga
estrutura de madeira das mais estranhas. Não se parecia com
nada que eu pudesse identificar, a não ser com um curioso
aparelho de medição ou de astronomia antigo, inacabado. O
conjunto tinha o tamanho de um móvel médio e se elevava
à altura do tórax. No centro da estrutura, uma caixa
compartimentada e perfurada parecia poder deslizar em
todos os sentidos, graças a uma rede de arcos de madeira
graduados que se cruzavam sobre ela.
Aproximei-me boquiaberto dessa enigmática composição e
pus a mão sobre a caixa. Com efeito, era possível deslizá-la
na horizontal e na vertical. E dentro dela se escondia uma
rede complexa de vidros e espelhos.
Recuei, estupefato, e me lancei numa cadeira no meio do
porão. Esfreguei os olhos, como para ter certeza de que não
estava sonhando. Será que eu me havia enganado de casa?
Impossível. Tinha a impressão de viver uma alucinação ou
uma encenação. Esperava ver surgir os fomentadores
eufóricos de uma grotesca câmera escondida. E, no entanto,
tudo aquilo era perfeitamente real. Não apenas meu pai tinha
de fato comprado uma casa em Vaucluse, mas também havia
feito pesquisas das mais estranhas, fechado num porão,
tomando um monte de notas sobre centenas de livros, antes
de morrer num estúpido acidente na estrada! Sem falar
naquela curiosa estrutura de madeira, que bem poderia ter
sido a invenção de um gênio monomaníaco de Júlio Verne.
A realidade estava pedindo demais à minha credulidade, que,
todavia, era benevolente... Em minha vida, eu havia escrito
um número suficiente de roteiros burlescos para recusar- me
a aceitar tudo aquilo como a simples verdade. Mas já que eu
não estava sonhando, certamente havia uma explicação.
Passada a surpresa, não consegui conter uma espécie de riso
incontrolável e perturbado, que ressoou no porão,
acentuando meu mal-estar e minha solidão. Será que meu
pai tinha ficado demente? Será que se tinha deixado levar
por uma seita ou sociedade secreta pseudo-esotérica? Eu
preferia acreditar que teve apenas uma inocente intenção de
se informar um pouco, mas a configuração daquele porão
demonstrava um frenesi e uma obstinação que pareciam
mais devidos ao fanatismo do que à curiosidade. Comecei a
pensar que meu pai devia ter ficado louco e sucumbido à
mania das analogias ocultas, em que história e mitos se
confundem numa floresta de contra-senso, de mentiras, de
ilusões mais ou menos voluntárias e espelhos deformadores.
Avancei novamente na direção das duas mesas e tentei
decifrar um caderno de anotações do meu pai. Inicialmente,
não consegui ler o que ele havia escrito. Reconhecia sua
escrita, mas não a linguagem que utilizava. Não se parecia
com nada. Depois compreendi.
As anotações estavam escritas ao contrário. Em francês,
claro, mas da direita para a esquerda. Desta vez, tive certeza,
meu pai realmente tinha enlouquecido. Decodifiquei com
dificuldade algumas linhas confusas, abreviadas, e marquei
duas ou três palavras que apareciam regularmente, quando,
de repente, o portão de ferro do jardim se abriu
ruidosamente sobre mim.
O rangido me fez dar um sobressalto, larguei o caderno de
anotações e me inclinei para tentar ver, através da lucarna,
quem podia entrar daquele jeito, sem avisar. Vi duas
silhuetas, vestidas com sobretudos pretos, que me pareceram
um pouco pesados para a estação... A descoberta do porão
me fez mergulhar num ambiente estranho, que deve ter
nutrido minha paranóia, e me levantei em silêncio, com as
mãos tremendo.
Quando a porta de entrada se abriu lentamente sem que nem
sequer se dignassem a tocar a campainha, o medo terminou
de me invadir e permaneci imóvel no fundo da escada. Ouvi
os ruídos de passos que se aproximavam da porta sobre mim.
Seriam assaltantes? Gente que sabia que meu pai havia
morrido e que a casa devia então estar abandonada? Mas,
nesse caso, por que não se espantaram de terem encontrado
a porta aberta? Tentei convencer-me de que meu medo não
tinha fundamento e cerrei os punhos para encontrar a
coragem de subir a escada.
Dei um passo em direção ao primeiro degrau. O barulho no
piso de cima havia parado. Inspirei profundamente. Dei um
segundo passo. O sangue fervia em minhas veias. Sentia dor
nas mandíbulas de tanto que cerrava os dentes. Tentei então
relaxar um pouco, quando vi surgir a silhueta de um dos dois
homens no alto da escada. Fiz um movimento de recuo e
prendi a respiração. Lentamente, o desconhecido avançava
em direção ao porão.
A idéia de que pudessem me prender por pensarem que eu
fosse um assaltante me levou a demonstrar minha presença.
Eu não tinha tempo para refletir. Meu instinto tomou a
dianteira.
— Quem está aí? — disse eu estupidamente, com a voz mais
séria que consegui arranjar.
Imediatamente a silhueta ficou imóvel, e os dois homens se
precipitaram rapidamente em direção à saída da casa.
Num impulso, subi a escada para alcançá-los.
Quando cheguei à entrada, ouvi seus passos no cascalho do
jardim. Lancei-me à perseguição. Enfim, consegui vê-los.
Nada tinham de simples ladrões. Um longo automóvel preto
os aguardava alguns metros diante da casa. Cada um passou
para um lado do veículo e abriu a porta.
Quase caí ao escorregar no cascalho do jardim, mas consegui
recuperar o equilíbrio e, de certo modo, isso acelerou minha
corrida. Quando alcancei a rua, o motor do automóvel foi
ligado. Precipitei-me à frente do veículo, do lado direito, na
esperança irrefletida de ver seus rostos ou talvez até de detê-
los. Agarrei-me à porta quando o carro arrancou cantando
pneus. Nesse instante, recebi o que devia ser um soco
violento, que pareceu vir do nada, e desmaiei bem no meio
da rua.
Quando recobrei a consciência, não tinha a menor idéia do
tempo que havia passado desmaiado. Mas, acima de mim,
lentamente, se desenhavam os traços de uma mulher que me
fitava.
As questões se agitavam em minha cabeça, mas eu ainda
estava atordoado, o sangue escorria no meu rosto, e esperei
um pouco antes de resolver falar. O cenário da rua girava ao
meu redor como num carrossel.
A mulher que me olhava devia ter uns trinta anos, talvez até
um pouco menos, tinha a pele terrivelmente branca, traços
finos, cabelos escuros e lisos, cuidadosamente cortados na
altura dos ombros e, por trás do vidro brilhante de seus finos
óculos dourados, havia em seus olhos negros uma espécie de
serenidade tranqüilizadora. Tinha um lado "anos loucos", que
estranhamente combinava com seu aspecto de mulher fatal.
Moderna e retrô ao mesmo tempo. Era magra, alta, e uma
maquiagem discreta completava sua imagem de manequim
de cera.
Desde o princípio fui tomado por uma analogia perturbado-
ra. Quase divertida. Ela era a cara da Mia Wallace, a
personagem de Uma Thurman em Pulp Fiction. Fria,
profunda, excessivamente sensual.
Esboçou um sorriso.
— Quem é você? — articulei enfim, logo me arrependendo
de ter falado, de tanto que minha cabeça doía.
A jovem colocou um dedo sobre meus lábios.
-— Uma amiga do seu pai.
Uma amiga do meu pai? Meu pai tinha amigas? Em Gordes?
— Levante-se, vou levá-lo para a minha casa, não é prudente
ficar aqui.
Não é prudente? Eu estava muito dolorido para protestar e a
deixei me ajudar a ficar de pé. Levou-me até seu carro, um
potente Audi A3 preto, parado no meio da rua. Sentei-me
no banco do passageiro, e ela me pediu as chaves para ir
fechar a casa.
Voltou com minha mochila e meu laptop, jogou-os no
banco traseiro e instalou-se ao volante.
— Não podemos deixar a casa desse jeito — resmunguei.
— Não se preocupe, fechei tudo. Voltaremos assim que eu
tiver cuidado de você.
Antes que eu tivesse tempo de me perguntar se podia
confiar nessa desconhecida, o carro já havia deixado Gordes,
e, alguns minutos mais tarde, eu estava deitado na casa dela,
uma pequena casa na parte baixa do vilarejo, num quarto
decorado como uma casa de boneca.
Havia duas malas colocadas sobre um sofá, uma mesa baixa
com uma bandeja com chá e uma decoração um pouco
kitsch, quadros feios e bibelôs desemparelhados.
A jovem apareceu novamente ao meu lado e começou a
desinfetar meu rosto com um algodão embebido em álcool.
Cerrei os dentes para não gritar ao contato ardente do
líquido em meu ferimento, depois ela fez um curativo com
delicadeza. Cativado por seu olhar, não opus resistência. Seus
pequenos óculos dourados davam a seus olhos negros um
brilho singular.
— Você bateu contra o muro de reboco ao cair — disse ela
afastando-se na direção de uma mesinha onde encheu um
copo d'água. — Você se cortou um pouco, mas nada de
grave.
Trouxe-me o copo e estendeu-me um comprimido.
— Isso vai aliviar um pouco a dor.
"Uma amiga do seu pai", ela dissera. Será que era sua amante?
Será que foi por causa dela que meu pai se havia enterrado
naquele lugar? Era difícil acreditar. Ela era muito mais jovem
e talvez muito Uma Thurman para ele... Engoli o
medicamento. Aquela moça me parecia estranha.
— Você chamou a polícia? — perguntei, tentando falar o
mais baixo possível, com medo de despertar novamente a
dor no meu rosto.
Ela hesitou antes de me responder.
— Não por enquanto. Se você quiser, podemos chamá-la,
mas primeiro temos que conversar... Talvez fosse melhor
que você descansasse, antes de mais nada.
A situação estava ficando cada vez mais surrealista. Levantei
o travesseiro atrás de mim e me endireitei com dificuldade.
— Não, não. Não estou entendendo direito o que está
acontecendo... Por que você me trouxe até sua casa? E a casa
do meu pai... Eles vão voltar!
Ela pegou meu copo vazio e voltou para a mesa.
— Você quer um pouco de chá? — perguntou-me servindo-
se de uma xícara.
— O que estou fazendo na sua casa? — repeti impaciente.
Ela levou a xícara fumegante até os lábios e tomou um gole.
— Acho que não é muito prudente ficar na casa do seu pai
por enquanto. Você está melhor aqui.
— Não é prudente ficar na casa do meu pai?!?
— Você viu sua cabeça? Acha que os dois caras que te
agrediram estavam lá por acaso?
Balancei a cabeça, consternado.
— Mas então por que não chamamos a polícia agora mesmo?
— Porque, meu caro, quando eu lhe disser o que tenho a
dizer, você já não vai ter vontade de chamar a polícia...
Meu caro? Mas que tom condescendente é esse? Não é de
espantar que seja uma amiga do meu pai...
— O que você tem a me dizer, minha cara?
Ela fez uma careta zombeteira.
— Para começar, diga-me o que viu na casa do seu pai —
questionou lentamente, como para acalmar o tom de nossa
conversa.
Suspirei. Tinha a impressão de que o pesadelo que havia
começado desde minha entrada no porão só estivesse
continuando. A calma e o carisma da jovem me deixavam
bem pouco à vontade; eu não entendia nada do que me
havia acontecido, e ela parecia ser dona da situação. Ou, em
todo caso, parecia saber muito mais do que eu. Eu precisava
de informações, mas estava claro que não as obteria sem dar
as minhas.
— Um monte de livros, anotações, papelada. Uma bagunça
só... O que sabe a esse respeito e de onde conhece meu pai?
Ela colocou a xícara vazia sobre a mesinha e veio se sentar à
minha frente, numa poltrona baixa. Cruzou as pernas num
gesto elegante e apoiou os braços nos da poltrona. Havia algo
de artificial em seus gestos sensuais. Como se ela participasse
de um jogo, cujas regras eu desconhecia.
— Está certo, vamos lá. Minha versão da história —
respondeu. — Sou jornalista. Trabalho para um canal de
televisão...
E, de repente, isto me pareceu uma evidência: quanto mais
eu a olhava, com sua espontaneidade e seu comportamento,
a segurança irônica em seus olhos, mais eu me dizia que
devia se tratar de uma mulher... com uma queda por
mulheres. Para simplificar, algo em seu aspecto lhe dava um
ar de lésbica. Ou talvez a imagem que imbecis como eu têm
de uma lésbica. Por mais que eu tivesse vivido durante mais
de dez anos em Nova York, por mais que tivesse escrito
sobre sexo e sexualidade, sempre ficava pouco à vontade em
relação à homossexualidade. Sobretudo quando ela se
escondia por trás do olhar de uma esplêndida mulher. Mas
por que diabos eu não conseguia reagir como adulto? Ou
como nova-iorquino? Não me abalar...
— Qual canal? — interrompi-a, tentando disfarçar minha
intuição.
— Canal Plus.
— Trabalha para os jornais?
— Não, faço mais documentários, jornalismo investigativo.
Trabalho para um programa chamado 90 Minutos...
— Muito original! — ironizei. — É o 60 Minutes da CBS, só
que mais longo, né?
— Se preferir... O programa americano 60 Minutes é, de fato,
uma das nossas referências. Uma alusão àquele jornalismo à
moda americana.
Uma jornalista engajada. Então era isso. Comecei a entender
melhor a personagem.
— Pessoalmente — retomei —, à parte o jornalismo gonzo,
que me divertia bastante, e exceções como Michael Moore e
sua equipe, acho os jornalistas americanos cada vez mais
afetados...
— Desde Reagan isso realmente acontece um pouco —
concedeu. — Bom, de todo modo, foi graças a esse
programa, sobretudo pelo que ele foi antigamente, que
demos ao nosso esse nome.
— Entendo.
— Esse tipo de programa faltava aqui...
— O que você faz exatamente?
— Desde o início da minha carreira me dediquei ao Oriente
Médio e ao Oriente Próximo, e me interesso cada vez mais
pelas religiões. Para dizer a verdade, comecei a ficar
conhecida pelo público por causa de uma investigação sobre
os reféns no Líbano... Lembra-se?
Lembrar. Desde meu retorno eu não fazia outra coisa.
Lembrar-me do meu pai. Da minha mãe. Da minha terra.
Como de um filme antigo, cujo nome do diretor é difícil de
recordar.
— Sim, sim, lembro que todas as noites, às vinte horas,
tínhamos direito a: 150 dias de cativeiro para Jean-Paul
Kaufmann, Marcel Fontaine e blá-blá-blá... Você deve ser
bem jovem!
Ela sorriu.
— Foi em 88, eu tinha dezenove anos. Com meu diploma de
segundo grau no bolso havia dois anos e outro de estudos
gerais em história, eu havia decidido bancar a guerrilheira.
Eu estava ainda crua, mas bastante motivada, e tive meus
quinze minutos de glória ao brincar de repórter antes da
hora. Depois, fiz uma porção de investigações sobre o Irã, o
Iraque, Israel e a Jordânia. Após várias estadas em Jerusalém,
me interessei pela história das religiões. Fiz dois
documentários sobre o Vaticano... Em suma, para voltar ao
nosso assunto, seu pai entrou em contato comigo há um ano
para me falar de uma descoberta extraordinária que ele teria
feito...
Tirou um maço de cigarros do bolso de sua calça e continuou
a falar, abrindo delicadamente a embalagem de celofane.
— Durante um ano ele me procurou diversas vezes. Eu não o
levava muito a sério, mas não tenho o hábito de mandar
passear quem me liga. Ele me fazia perguntas estranhas sobre
religião, sobre os árabes, dizia-me que tinha uma revelação a
me fazer, mas que ainda era muito cedo... Acabei por achá-
lo simpático.
— Simpático?
— Sim. Muito delicado...
— Delicadíssimo! — suspirei levantando os olhos.
A jornalista parecia achar divertida minha irritação.
— Depois, um dia, ele me prometeu exclusividade sobre suas
revelações se eu o ajudasse nas pesquisas, e há dez dias me
convenceu a vir para Gordes. Mas antes que pudesse me
dizer do que realmente se tratava, as coisas deram errado.
Franzi as sobrancelhas, mas ela continuou:
— Eu já ia voltar para Paris quando fiquei sabendo que você
estava desembarcando. Vim para preveni-lo de que talvez
não fosse prudente ficar na casa do seu pai, mas,
aparentemente, cheguei logo depois do gongo...
Passamos longos segundos nos fitando em silêncio; eu
tentando entender o que ela acabava de me dizer, e ela
esperando que minha ficha caísse. Acendeu um cigarro.
— O que significa toda essa bobageira? — balbuciei enfim. —
E que história é essa de que as coisas deram errado?
— Um carro sai da estrada às duas horas da manhã, sujeitos
vigiam você dia e noite, documentos desaparecem, são
coisas assim que chamo de dar errado... Para não falar do
belo galo na sua testa. Que, aliás, lhe cai bem que é uma
beleza.
Ela se calou e me encarou longamente. Eu podia ler em seu
rosto uma forma de desafio. Talvez eu me tivesse mostrado
um pouco precipitado demais. Não estávamos conversando,
estávamos travando uma luta. E alguma coisa me dizia que,
nesse jogo, eu não tinha razão nenhuma para ganhar.
Era preciso que eu desse outro futuro àquela conversa. Eu
tinha de me recuperar. Precisava que ela me contasse tudo
aquilo com calma. Tudo o que tinha a me dizer. Por mais
louca que parecesse sua história, eu devia ouvi-la até o fim.
— Como você se chama? — perguntei-lhe enfim.
Ela deu uma boa tragada e soltou a fumaça com um sorriso.
Não era boba. Acho que ela sabia exatamente por que fases
meu humor estava passando desde que me recolhera na rua.
Provavelmente isso faz parte das técnicas básicas de uma
jornalista. Uma forma de clarividência.
— Sophie de Saint-Elbe — disse-me estendendo a mão.
De Saint-Elbe? Combina muito menos com ela do que Mia
Wallace...
Foi minha vez de sorrir e apertar-lhe a mão.
— Ouça, senhora Saint-Elbe...
— Senhorita — corrigiu, fingindo-se ofendida.
— Senhorita, agora eu gostaria de um pouco de chá. Está com
um cheiro tão bom...
Ela aprovou.
— É Darjeeling. Só bebo esse. O chá é um pouco como o
tabaco. Vicia rápido. Só consigo fumar meus Chesterfield.
Apagou o cigarro num cinzeiro, levantou-se lentamente,
tirou os sapatos um após o outro, sem se abaixar, caminhou
na direção da mesinha e me serviu uma xícara. Cada um de
seus gestos era de uma sensualidade estranha. Seu jeito de
empurrar delicadamente os óculos com o indicador, seu jeito
de fumar, seu andar. Tinha o físico de uma jovem yuppie e
os gestos de uma velha atriz em decadência, uma antiga
pinup desiludida. Sem dúvida, um coquetel de poder erótico,
mas completamente fora de época...
— Entendo muito bem que é difícil para você acreditar em
mim — prosseguiu. — No início, eu mesma considerei seu
pai um gentil visionário. Quer leite?
— Por favor...
Ela deixou a infusão agir por um tempo antes de verter um
pouco de leite. Tirou outro cigarro do maço e o apertou na
borda dos lábios. Depois me trouxe a xícara de chá, sem
acender o cigarro. Cabeça ereta, lábios apertados, mãos
recolhidas nas mangas muito longas do grosso pulôver,
caminhava descalça sobre um fio imaginário, alinhando
graciosamente os passos. Sua atitude tinha algo de teatral.
Como se nada deixasse ao acaso.
Ela me estendeu o chá, e me levantei para encostar na
parede. Voltou à larga poltrona, apoiou-se nos braços do
assento para erguer os pés sobre ele e sentar-se à moda
indiana.
Tomei alguns goles. Seu chá estava delicioso. Seu sorriso...
nem se fala.
— Sophie, pode me contar toda essa história com um pouco
mais de detalhes?
Por muito tempo me lembrei da primeira frase da jornalista
quando ela começou a me contar toda a história. "Antes de
mais nada, quero que saiba que não sei que segredo seu pai
descobriu. Mas uma coisa é certa: enquanto eu não o
descobrir, viverei apenas para isso." Por muito tempo me
lembrei dessa frase, pois ela resume por si só o que se tornou
minha própria vida depois daquela tarde. E, justamente, eu
precisava de algo novo. Não havia ido à França
simplesmente por meu pai. Talvez de maneira inconsciente,
eu havia ido até lá em busca de mudanças. O que a jornalista
tinha a me oferecer certamente não era o que eu poderia ter
imaginado, mas não sou de criar caso.
Um ano antes, portanto, meu pai havia ligado para Sophie de
Saint-Elbe porque acreditava que ela se interessaria por sua
história e que, além disso, ela saberia colaborar e ser discreta.
Não se enganou a esse respeito. Em suma, anunciou-lhe que
havia feito uma descoberta fabulosa, que, segundo suas
próprias palavras, talvez fosse uma das maiores dos últimos
vinte séculos. Nada além disso.
— No início, fiquei bem desconfiada — explicou-me a
jornalista. — Você não imagina a quantidade de
engraçadinhos que nos ligam para dizer que têm revelações
incríveis a nos fazer... Mas seu pai não era como os outros.
-— É o mínimo que se pode dizer.
— Ele me ligou regularmente durante um ano, e nos
encontramos várias vezes. Era muito educado e me fazia
perguntas extremamente perspicazes. Para mim, acabou se
tornando um jogo encontrar as respostas. Às vezes, eu
precisava de vários dias de pesquisa para lhe dar uma
resposta. E depois, há pouco mais de uma semana, ele me
enviou dois documentos por fax e me deu 24 horas para
tomar uma decisão.
— Que decisão?
— Abandonar meu trabalho, vir para Gordes e ajudá-lo em
suas pesquisas, independentemente do tempo que isso fosse
tomar.
— Que documentos eram esses? — perguntei intrigado.
Sophie de Saint-Elbe, com uma lentidão exageradamente
dramática, pegou outro cigarro do maço. Sem deixar de me
olhar, acendeu-o.
— Você já ouviu falar da pedra de Iorden?
— Não — confessei.
Novo intervalo. Seus olhos me fitavam.
— É uma relíquia.
— Uma relíquia?
— Sim, o cristianismo está cheio de relíquias, umas incríveis,
outras nem tanto. É uma velha história...
— Você quer dizer uma relíquia como o sudário de Turim?
— Isso mesmo. Nos tempos antigos, para se consagrar uma
igreja, era absolutamente necessário que esta contivesse os
restos do santo a que era dedicada. Assim, o culto das
relíquias se perpetuou a tal ponto que se recensearam coisas
tão malucas quanto as plumas do arcanjo São Miguel, os
vários prepúcios de Jesus...
— Tá brincando?
— Nem um pouco. A Igreja consagrou ao menos oito
prepúcios de Jesus! Sem contar os inúmeros espinhos da
coroa, os quilômetros de pedaços da Cruz ou os litros de leite
da Virgem... Só a França reuniu uma coleção inteira: a cruz
de Cristo, seu sangue, os cueiros em que ele foi envolvido
quando bebê, a toalha da Ceia, o topo do crânio de São João
Batista e muito mais! Seja como for, a pedra de Iorden é uma
das relíquias mais misteriosas da história cristã. Uma jóia que,
segundo a lenda, pertenceu a Cristo.
— Uma jóia? Ele não tinha feito voto de pobreza?
— Não, a história não foi bem assim. Mas é verdade que é
difícil imaginar Jesus usando uma jóia. Garanto a você que
não era um anel Cartier. Devia ser algo bastante rudimentar.
E por certo essa jóia teria desaparecido ou, para muitos,
jamais teria existido... No entanto, seu pai me enviou por fax
dois documentos que, segundo ele, provam que essa relíquia
era bem real. Mas isso não é tudo. Ele me explicava ao
telefone que essa era apenas uma faceta da sua descoberta...
— Como assim?
— Suas pesquisas já não tendiam a provar que essa relíquia
existia, isso para ele era ponto pacífico, mas, antes, a
compreender o que ela significava. Pois, segundo ele, a
pedra tinha um sentido preciso e muito importante, mas ele
se recusava a me dizer mais a respeito se eu não aceitasse vir
ajudá-lo.
— E isso bastou para convencê-la? E um pouco esquisito,
não?
— Estudei seus dois documentos durante toda a noite e, no
dia seguinte, aceitei.
— Por quê?
— Um dos dois documentos que ele me enviou por fax é...
inédito. Era o início, em todo caso, a primeira página, de um
manuscrito de Albrecht Dürer, o pintor alemão. Após
algumas pesquisas, descobri que se tratava de um manuscrito
ao qual muitos críticos fazem referência, mas que jamais
havia sido encontrado. Se o documento do seu pai era
autêntico, isso já era um tema suficiente para mim... Eu não
estava convencida de que havia por trás de tudo isso uma
trama tão importante quanto pretendia seu pai, mas disse a
mim mesma que valia a pena olhar mais de perto.
—- Esse documento falava da tal pedra de Iorden?
— Não o decifrei por completo, e seu pai só me enviou o
início, mas, de fato, fazia referência a ela...
— E o outro documento, o que era? — pressionei-a,
intrigado.
—Um texto de Carlos Magno, fazendo um inventário dos
bens que ofereceu a Alcuíno, seu mais fiel conselheiro,
quando este último se retirou na abadia de São Martinho de
Tours.
— E então?
— Na lista, havia a pedra de Iorden.
— Interessante — admiti.
Ela desatou a rir.
— É o mínimo que se pode dizer! Dois documentos que
fazem referência a essa pedra, um datando do século IX, o
outro do século XVI, confesso a você que estava morrendo
de vontade de ver se eram de fato autênticos! Vim a Gordes
no dia seguinte mesmo. A princípio fiquei num pequeno
hotel no centro e me encontrei com seu pai no restaurante
do térreo. Ele estava completamente estressado, falava baixo,
olhava para todos os lados. Não quis me dizer nada de
preciso, me explicou que ainda era cedo demais e marcou
comigo um encontro para o dia seguinte, ao meio-dia, em
outro restaurante, mais discreto, segundo ele.
Ao sair, pediu-me para ter cuidado, mas não especificou com
o quê. Com toda a sinceridade, pensei que ele fosse
totalmente biruta. O problema é que nas 24 horas seguintes
tenho certeza de que fui espionada. No início, pensei que
fosse impressão minha, mas logo me dei conta de que não
estava sonhando. Fui seguida o dia todo por dois caras de
preto. Provavelmente os dois que bateram em você nesta
tarde. Por causa dos ternos pretos, eu os chamo de corvos.
No dia seguinte, seu pai não veio ao encontro. Ele havia
sofrido aquele acidente...
Levantou os olhos em minha direção com um ar desolado.
Hesitei para lhe dizer que a morte de meu pai não era tão
penosa assim para mim...
— Acha que não foi um acidente?
— Quando voltei ao hotel, haviam vasculhado meu quarto de
cima a baixo e roubado um dos meus blocos de notas e os
dois documentos enviados por fax pelo seu pai. Disse a mim
mesma que realmente havia acontecido alguma coisa
anormal e decidi investigar mais de perto. Liguei para nosso
redator-chefe para perguntar se eu poderia escrever uma
reportagem a respeito, caso encontrasse alguma coisa. Ele
me deu três dias. Em seguida, fiquei sabendo que você viria
para cá...
— Como? — interrompi.
Ela me olhou sorrindo. Como se apreciasse minha
desconfiança.
— Por sua agência. Seu pai me disse que tinha um filho,
fiquei com vontade de te encontrar para ver se sabia de
alguma coisa. Então pesquisei a seu respeito. Quando
descobri o que você fazia, fiz sua agência acreditar que eu
queria te entrevistar sobre o Sex Bot e que, por acaso, será
transmitido no Canal neste verão...
— Muito obrigado, estou sabendo...
— O pessoal da agência me disse que eu não teria como te
encontrar porque você havia partido para o sul da França,
para a casa do seu pai. Decidi esperar pela sua chegada,
continuando minha investigação. Após o episódio do hotel,
aluguei esta casa por conta do programa. Me registrei com
um nome falso, um pouco distante da cidade, mas não estou
certa de estar realmente anônima...
Ela fez uma pausa e brincou várias vezes com a tampa do seu
Zippo, antes de retomar:
— Então, na sua opinião, avisamos a polícia ou tentamos
entender o que aconteceu?
Eu teria jurado que havia algo malicioso em seu olhar...
— Você chegou a relatar aos responsáveis pelo hotel que
haviam vasculhado seu quarto?
Ela fez que não com a cabeça.
— Se contarmos isso tudo à polícia, vão nos tomar por lou-
cos! — declarei zombando.
— Você não sabia nada dessa história?
— Não. Vim para cá porque achei curioso que meu pai tenha
comprado essa casa... Pode imaginar? Foi isso o que achei
estranho!
Ela deu de ombros. Observou-me com uma intensidade
nova. Seus olhos exprimiam a sede do furo de reportagem.
— Senhor Louvei, diga-me exatamente o que viu no porão
— perguntou-me a jornalista inclinando-se em sua poltrona.
Nesse instante, eu tinha de tomar decisões importantes para
a seqüência dos acontecimentos. Ia mesmo tentar entender
os segredos do meu pai e, em caso afirmativo, fazê-lo com
Sophie de Saint-Elbe? Eu estava certo de que ela não contara
tudo. Era uma profissional e certamente guardava algumas
cartas na manga. Mas não tinha revelado o suficiente para
que eu decidisse confiar nela? Além do mais, se eu quisesse
entender alguma coisa nessa história, ela certamente me
seria de grande ajuda. E depois, sobretudo, a senhorita Saint-
Elbe era simplesmente uma mulher com a qual eu tinha
vontade de curtir um tempo... Tudo nela transpirava a
aventura, o inesperado, o inédito. Tudo o que me faltava
havia muito tempo. Pouco me importava que ela fosse
lésbica ou não. Sophie de Saint-Elbe era demais.
Dirigi-lhe um sorriso e tentei me lembrar do que havia visto
no porão.
Capítulo Três
A jornalista preparava um jantar enquanto eu lhe contava com a
máxima precisão possível o que havia visto na casa do meu pai.
Certamente, o mais simples teria sido voltarmos lá juntos, mas era
tarde, e a acolhida pouco calorosa que me haviam reservado nos
levou a esperar o dia seguinte para conduzir uma investigação mais
profunda.
— Já vou avisando — interrompeu-me — que não há grande
coisa nesta cozinha, não sei o que vai sair daqui para nós...
Vou tentar fazer alguma coisa bem simples: à moda
provençal.
Eu estava sentado na borda da mesa da cozinha, ainda um
pouco atordoado, e a olhava ir e vir dos armários ao fogão,
das gavetas à pia. Ela não estava na casa dela e buscava às
cegas tudo o que precisava. Mas sabia o que estava fazendo.
Havia muito tempo que eu não via uma mulher preparar um
jantar com tanta destreza. Após onze anos passados numa
cidade onde só se come em restaurante, eu havia esquecido
que o prazer da refeição começa por seu preparo. Todos
aqueles odores que se misturam, aquelas cores que se
compõem...
— O que mais me surpreendeu no porão — retomei
seguindo-a com o olhar — foi aquela estranha máquina
arcaica. Pensei que talvez fosse um objeto que já estivesse lá
quando meu pai comprou a casa, uma espécie de aparelho
antigo de medição ou sei lá o quê... Mas, na realidade, tenho
a impressão de que não estava lá por acaso. Ele não destoa do
restante do cômodo.
— Como assim? — perguntou enquanto fatiava e picava um
peito de peru.
— Havia uma reprodução da Gioconda numa parede e muitos
livros sobre Leonardo da Vinci. Bom, esse aparelho parecia
perfeitamente com as máquinas estranhas que Da Vinci
desenhava em seus códices, você sabe...
Ela balançou a cabeça. Parei para observá-la. Ela procedia
com agilidade e delicadeza. E gulodice. Dava para ver em
seus olhos.
Nunca eu saberia fazer aqueles gestos, que, no entanto, eram
tão simples. Só o seu modo de segurar a frigideira para dourar
a carne numa mistura de óleo e manteiga já demonstrava um
hábito e uma perícia que eu invejava. Mas eu era prisioneiro
do clichê masculino. Meu pai não cozinhava, eu não
cozinhava. Eu não passava de um pretexto a mais para as
feministas do mundo inteiro.
— Isso não é tudo — retomei assim que ela começou a cortar
os tomates e os pimentões em pequenos cubos sobre uma
tábua de madeira. — As anotações do meu pai estavam
escritas de trás para a frente...
— De trás para a frente? — espantou-se antes de se virar para
mim com uma faca na mão direita.
— Como aquelas do Leonardo da Vinci. Esse louco escrevia
todas as suas anotações de trás para a frente, da direita para a
esquerda, como num espelho. Não sabia?
— Agora que está dizendo, isso me faz lembrar de uma coi-
sa... Era só uma brincadeira, não? Nada de muito
extraordinário.
Ela se virou e fatiou a cebola, o alho e ramos de aipo.
Encolhi os ombros.
— Não, claro, tampouco nada de indecifrável. Mas devo
confessar que isso me deixa ainda mais perplexo do que eu já
estava... Parece-me uma incrível encenação. Meu pai não
era um sujeito normal, longe disso, mas tampouco um
psicopata. E, no entanto, o porão que visitei era o de um
doente mental!
Ela acrescentou legumes à carne, salpicou tudo com tomilho,
sal e pimenta, depois deixou cozinhar o prato que estava
atrás dela. Acendeu outro cigarro e me estendeu o maço,
que recusei fechando os olhos.
— Vamos — disse ela —, escrever de trás para a frente não
significa ser doente mental... Seu pai dizia ter descoberto um
segredo extraordinário. Talvez esse segredo, autêntico ou
não, o tenha mergulhado num ambiente um pouco místico...
O misticismo está muito na moda! A France Telecom tem
até organizado suas convenções em locais da Rosa-Cruz!
— Que horror!
— Ou talvez seu pai fosse simplesmente um fã de Leonardo
da Vinci. Escrever de trás para a frente não é uma
brincadeira mais louca do que fazer palavras cruzadas todo
dia no café da manhã... Teve tempo de ler as tais famosas
anotações?
— Vagamente. Não sou um profissional da leitura invertida!
— Notou algo especial?
— Não entendi grande coisa. Mas havia duas palavras que se
repetiam regularmente, em várias páginas.
— Quais? — pressionou-me.
— A primeira, lembro bem, era uma abreviação, "I.B.I."...
Logo vi em seus olhos que a abreviação tinha um sentido
para ela... Inclinei a cabeça na expectativa de uma
explicação.
— Yeshoua ben Yosseph — explicou. — Jesus, filho de José,
tal como fielmente traduzido por Chouraqui.
Aquiesci.
— Claro. Eu deveria ter imaginado...
— Como o segredo do seu pai aparentemente dizia respeito à
pedra de Iorden, de fato, nada há de surpreendente nisso... E
a segunda palavra?
O cheiro do peru e o dos temperos começavam a encher a
cozinha.
— Quanto a essa, não estou certo. Poderia ser alemão.
"Bildberger" ou algo do gênero...
— Bilderberg? — perguntou franzindo as sobrancelhas.
— Sim, isso mesmo! — exclamei surpreso que ela conhecesse
essa palavra que eu mesmo nunca ouvira antes.
— Tem certeza? — insistiu, como se a novidade a
perturbasse. Mas eu tinha absoluta certeza. A imagem
bastante precisa da palavra voltara à minha mente nesse
momento.
— Sim, Bilderberg. O que isso significa?
— Com toda a honestidade, não sei grande coisa a respeito.
Pergunto-me o que tem a ver...
— Mas é o quê? — insisti impaciente.
— Uma espécie de think tank internacional. Sabe, esses gru-
pos de pensamento que hoje em dia estão muito na moda
nos Estados Unidos.
Eu não estava entendendo direito do que ela estava falando.
Ela deve ter percebido e me sorriu sem graça.
— Realmente, não posso lhe dizer muito mais do que isso,
tenho apenas lembranças vagas sobre o Bilderberg. Devo ter
lido um artigo sobre eles há muito tempo num jornal, nada,
além disso. No geral, são membros de famílias reais,
políticos, economistas, empresários e intelectuais que se
encontram todos os anos de maneira mais ou menos oficial
para falar do futuro do mundo.
— Que encantador! Parece até que estamos em plena teoria
da conspiração... Não sabia que meu pai era fã de Arquivo X.
A jornalista inclinou a cabeça com um ar zombeteiro.
— Não vamos exagerar, essas pessoas não decidem nosso
futuro, pensam nosso futuro. Não creio que se possa
verdadeiramente falar de conspiração...
— Se você está dizendo! — ironizei. — Seja como for, é
estranho que vocês, jornalistas, não nos mantenham
informados sobre esse tipo de coisa!
— Há muito "esse tipo de coisa" a cobrir.
— Você tem acesso à internet?
— Há uma saída telefônica, e meu computador está no carro.
— Estou com o meu aqui. Poderíamos pesquisar sobre o
Bilderberg...
— Sim, mas primeiro vou terminar isto aqui — disse-me
mostrando a frigideira atrás dela —, e depois vamos comer
tranqüilamente, na mesa da sala de jantar, como pessoas
civilizadas...
— Claro — repliquei sem graça.
Ela se virou e engrossou o molho com algumas colheres de
sopa de creme de leite fresco. Deixou cozinhar seu prato por
mais uns dez minutos enquanto eu a ajudava a pôr a mesa.
Acho que em onze anos de vida nova-iorquina não pus a
mesa nem uma única vez em casa. Por pouco não errei o
lado de colocar as facas e os garfos. Eu tinha a impressão de
estar fazendo um tratamento de desintoxicação. De
reaprender gestos simples. Sentia vergonha, mas isso me
divertia.
Alguns minutos mais tarde, a jornalista entrou na sala com
seu prato e o anunciou imitando o sotaque meridional:
— Fricassê de peru à provençal! Um pouco elementar, mas
fazemos o que temos. Bom, não sou muito fã dos vinhos do
sul do vale do Rhône, a não ser o Châteauneuf-du-pape, é
claro, mas ele realmente é muito caro... Sendo assim, peguei
um do vinhedo Bagatelle.
— Qual?
— Um ótimo Saint-Chinian. Afinal de contas, não estamos
assim tão longe de Hérault...
Obviamente eu não conhecia esse vinho e me contentei em
concordar, mas, de todo modo, seu prato estava um
verdadeiro manjar. Ela se divertiu com meu silêncio
eloqüente durante toda a refeição, depois fui preparar o café,
esperando assim fazê-la esquecer um pouco minha ineficácia
culinária.
Quando a servi, notei que ela me olhava com um ar
estranho.
— O que foi? — perguntei, recolocando a cafeteira no lugar.
Ela acendeu um cigarro.
— Desde que nos encontramos, você se pergunta se sou
lésbica, não é?
Desabei em meu assento, e a vermelhidão subiu às minhas
bochechas.
— Bem, não, de jeito nenhum, eu...
— Vamos, seja franco, você está se perguntando se sou
lésbica!
— Não...
— Ficaria incomodado se eu fosse? — insistiu sem ter pena
do meu embaraço cada vez maior.
-— Claro que não! Afinal, não sou homófobo! Moro em
Nova York!
Ela desatou a rir.
— Não foi isso o que perguntei. Não quero saber se você é
homófobo. Quero saber se ficaria incomodado se eu fosse
lésbica.
Eu realmente não sabia como sair dessa situação. Por que ela
estava me perguntando isso? Significaria que era
efetivamente homossexual? Ela havia compreendido em
meu olhar que eu me fazia essa pergunta. Provavelmente era
um olhar ao qual estava habituada. Mas eu estava
completamente perdido. Decidi responder do modo mais
simples possível:
— Não, não ficaria incomodado. Ficaria um pouco triste
pelos homens, mas muito feliz pelas mulheres...
Ela meneou a cabeça com um ar consternado. Talvez não
tenha sido a resposta correta.
— Bem, mas por quê? Você é lésbica? — ousei num sorriso
caricato.
— Ah! Está vendo como estava se perguntando isso! Eu tinha
certeza!
Visivelmente, ela se divertia tanto quanto eu estava sem
graça. E eu ainda não sabia... Eu me dizia que o único meio
de sair dessa situação era tentar a sinceridade.
— Bom, tenho de confessar que, de fato, pensei que talvez...
Ela inclinou a cabeça, deu um largo sorriso, depois pousou
sua xícara de café, levantou-se, avançou na minha direção e
me deu um beijo na testa.
— Vamos fazer aquelas pesquisas no seu computador? —
propôs com desenvoltura.
Evidentemente, estava zombando de mim. E tinha razão de
fazê-lo. Eu estava tão atrapalhado que a situação ficou
ridícula.
— Sim, vamos lá — respondi estupidamente.
Subimos ao quarto para conectar meu laptop à saída telefôni-
ca e começar nossa pesquisa on-line, e, para minha grande
felicidade, não se falou mais em homossexualidade...
Por volta das duas da manhã, não tínhamos encontrado nada
de realmente interessante sobre o Bilderberg. A maioria dos
sites da internet que falavam a respeito era anti-semita de
extrema-direita, para os quais a mitologia da conspiração é
um cavalo de batalha. Alguns outros raros sites, mais dignos
de confiança, davam informações vagas sobre esse
misterioso grupo, mas nada de concreto e, sobretudo, nada
de oficial. E com razão. A única informação confiável que
descobrimos era que o Bilderberg não fazia anúncio na
imprensa e proibia a presença de jornalistas por ocasião de
suas reuniões anuais. Um bom motivo para alimentar os sites
extremistas com a teoria da conspiração, mas também para
despertar nossa desconfiança e inquietação. Se esse grupo era
apenas um think tank a mais, cujo único objetivo era fazer o
balanço anual de certo pensamento político internacional,
por que querer permanecer em segredo, e qual podia ser a
relação com a pedra de Iorden e as pesquisas tão misteriosas
do meu pai?
Quando o cansaço nos levou a interromper nossas
investigações, Sophie preparou-se para desligar a conexão da
internet.
— Espere! — exclamei, notando algo na tela do meu
computador.
-— O que foi?
— Esta mensagem aqui neste fórum — disse apontando o
dedo para a tela.
— E daí?
— Enviada pelo mesmo pseudônimo! Esfinge. E a quarta ou
quinta vez que noto esse pseudônimo nos diferentes fóruns
que visitamos.
— Tem razão — aquiesceu Sophie.
— A cada vez, suas intervenções são mais pertinentes e ela
parece ser bem-informada.
— Vamos tentar entrar em contato?
Fiz uma careta de ceticismo.
— Acha que vale a pena?
— Não custa nada — decidiu. — Vou deixar uma mensagem.
— Ela tem um e-mail?
— Não. Mas há o número do ICQ em sua assinatura. Você
tem ICQ no computador?
— Não — confessei. — O que é?
— Um programa que permite dialogar simultaneamente por
escrito. Vou fazer o download, assim poderemos ver se essa
famosa Esfinge está conectada.
Evidentemente, a jornalista estava muito mais acostumada a
esse tipo de coisa do que eu. Observei-a em ação, tentando
não sucumbir ao cansaço. Raramente eu me deitava antes
das três ou quatro horas da manhã em Nova York, mas,
depois de uma semana na França, começava a sentir os
efeitos do fuso horário.
Sophie voltou a colocar os óculos, fez o download do
programa, instalou-o e entrou no número do ICQ da
misteriosa Esfinge.
O pseudônimo apareceu numa pequena janela, mas com a
menção away.
— Ela não está no computador — explicou-me a jornalista.
— Mas podemos deixar uma mensagem.
Concordei. Ela digitou: "Jornalista. Busco informações sobre
Bilderberg. Agradeço se entrar em contato."
— O que acha?
— Bem, é um pouco direto, mas me parece bom. Vamos ver
amanhã — disse eu, tentando segurar um bocejo. — Espero
que nos responda.
— Tomara, veremos amanhã — disse Sophie, desligando meu
computador.
— Vou precisar ir à casa do meu pai. Tenho que recuperar
aquelas anotações de todo jeito. E minha moto também.
— Ah, aquela moto enorme que estava na frente da casa é
sua? — surpreendeu-se.
Aquiesci e ela desatou a rir.
— Bom, veremos tudo isso amanhã —- retomei, dando um
sorriso caricato, um pouco envergonhado. — Na pior das
hipóteses, se essa misteriosa Esfinge não nos responder,
tenho um amigo franco-maçom que está bem por dentro das
histórias de sociedades secretas e todos esses delírios. Talvez
ele possa nos ajudar.
— Um amigo franco-maçom? Sei. O Bilderberg não é bem
uma sociedade secreta...
— Entendi — repliquei —mas esse amigo não apenas tem
relação com a sociedade secreta, mas também é deputado...
Se há alguém entre os meus conhecidos que deve ter
informações sobre esse tipo de coisa, certamente é ele! Ele
saberá nos guiar em nossas pesquisas. Vou ligar para ele
amanhã.
— Um deputado franco-maçom? Perfeito! — exclamou a
jornalista sorrindo. — E sempre bom ter um amigo
mecânico, outro bombeiro e outro deputado franco-maçom.
Balancei a cabeça com um ar desolado.
— Vamos, vou deixá-lo dormir, Damien. Estarei no quarto ao
lado. O banheiro fica na frente da sua porta.
Era a primeira vez que ela me chamava pelo meu primeiro
nome. Decidi retribuir a delicadeza:
— Obrigado, Sophie. Obrigado por tudo. O primeiro que se
levantar acorda o outro?
— Combinado. Boa-noite, senhor motociclista!
Ela saiu e desabei na cama sem perder tempo em me despir.
O dia havia sido longo. Muito longo. Realmente aquela
semana havia sido mais rica em acontecimentos do que um
ano inteiro, e o ferimento em minha testa não ajudava em
nada. Não dormi por muito tempo, mas profundamente.
Fui acordado bruscamente pela jornalista. Ela bateu forte à
porta e entrou no meu quarto com um ar transtornado.
— Não ouviu os bombeiros? Levante-se depressa! A casa do
seu pai está em chamas!
Minha cabeça ainda doía, e por certo eu não havia dormido
nem metade do que meu corpo reclamava, mas me levantei
o mais rápido possível.
Vinte minutos mais tarde, depois de ter atravessado a cidade
furando alguns sinais vermelhos e entrando na contramão
em pelo menos duas ruas, descemos do Audi diante da casa
do meu pai, cercada por bombeiros e curiosos. Não trocamos
uma só palavra durante todo o trajeto, talvez tomados pelos
mesmos sentimentos de perplexidade, raiva e medo
misturados. Sem contar que eu estava ligeiramente crispado
pelo modo esportivo como a jornalista dirigia...
A fumaça se elevava por cima das casas, desenhando no céu
ameaças obscuras. Parecia que todo o vilarejo se havia
reunido entre os muros da ruazinha. Ouvia-se o vozerio
confuso dos aldeães inquietos ou espantados. Os
sinalizadores rotativos dos bombeiros não paravam de girar,
lançando flashes azuis sobre a multidão e os muros.
— Eu disse para você que não deveríamos ter deixado a casa
sem vigilância! — suspirei enfim, fechando a porta.
Insinuamo-nos com dificuldade na direção do portão de
ferro do jardim. O fogo estava quase extinto, mas os
bombeiros nos impediram de entrar. Tirei minha carteira de
identidade para me apresentar e peguei um bombeiro pelo
braço.
— O porão! — disse-lhe, mostrando meus documentos. — É
preciso tirar todos os documentos que estão no porão!
O bombeiro encolheu os ombros.
— Eu ficaria muito surpreso se restasse alguma coisa no seu
porão! Foi lá que o fogo começou, senhor.
Lancei um olhar desesperado a Sophie, e, uma hora mais
tarde, ela me acompanhava à delegacia, onde passamos boa
parte do dia.
Nunca gostei de ir a delegacias. Os delegados têm uma apti-
dão extraordinária a fazer com que você se sinta culpado
mesmo quando não há nada contra você. Silêncios
acusadores, olhares que confundem, e o barulho de seus
dedos batendo nos teclados parece simplesmente antecipar
sua propensão à digitação. Sempre tive medo dos tiras, e
entrar numa delegacia é um suplício tão insuportável para
mim quanto o odor dos hospitais depois da morte da minha
mãe.
Contamos nossa história uma primeira vez a um
investigador, ele nos pediu que esperássemos e desapareceu
em seguida no labirinto de corredores cinza-esverdeados,
depois outro investigador veio nos encontrar e nos conduziu
até seu escritório. Fez sinal para que nos sentássemos. Alto e
forte, tinha o olhar brilhante, as bochechas vermelhas, e seu
sotaque provençal o tornava simpático. Simpático, mas,
mesmo assim, policial...
— Bom — começou, pegando o teclado do seu computador.
— Vou resumir a situação para vocês. Recebemos nesta
manhã um chamado no centro operacional para nos
informar do incêndio na sua casa. O procurador foi avisado,
e, no momento, temos no local uma equipe da brigada
departamental de buscas que vai investigar para determinar
se a origem do sinistro é acidental ou criminosa. Mas
confesso a vocês, aqui entre nós, que já tendemos a achar
que o incêndio é de origem criminosa, pois levantamos
vestígios de solvente, do tipo white spirit.
— Entendo...
Que o incêndio provavelmente tivesse sido criminoso, para
mim era apenas a confirmação de uma evidência, e entrei
em pânico só de pensar em não demonstrar surpresa.
— A brigada local vai proceder paralelamente ao recolhimen-
to das inquirições, ou seja, das primeiras pessoas que
intervieram, dos bombeiros e das testemunhas. É nesse
quadro que vamos interrogá-los, e logo em seguida os
manteremos a par da investigação. Vão ficar por aqui?
-— Ainda não sei — respondi encolhendo os ombros.
Ele aquiesceu e voltou os olhos para a tela. Quando estava
pronto para digitar o depoimento em seu computador,
Sophie e eu lhe contamos mais ou menos tudo o que se
passara desde a véspera, omitindo um único detalhe: o
segredo do meu pai. Explicamos que Sophie era uma amiga
do meu pai (afinal de contas, foi assim que, no início, ela se
apresentou a mim), que havia chegado logo depois que fui
agredido e que ainda não tínhamos dado queixa à polícia
porque... porque Sophie decidiu antes cuidar de mim e
porque, como os fugitivos não haviam roubado nada,
achamos que não era assim tão grave...
Nossa versão um pouco hesitante dos fatos por certo não era
das mais convincentes, mas, naquele momento, o
investigador recebeu um telefonema que nos desculpava ao
menos em parte: os vizinhos haviam visto os incendiários,
dois homens vestidos de preto, que fugiram num carro, cuja
placa haviam anotado parcialmente.
— Bem, estamos avançando — confiou-nos o investigador.
— Poderemos fazer uma investigação no arquivo nacional
de habilitações e quem sabe identificar os dois fugitivos.
Infelizmente, temo, senhor Louvei, que seremos obrigados a
iniciar a partir desta tarde uma investigação de flagrante
delito.
— Por que o senhor diz infelizmente?
— Porque isso significa que vocês terão de permanecer em
Gordes por mais uns dias.
— Por quanto tempo?
-— As investigações de flagrante delito duram no máximo
oito dias.
Lancei um olhar a Sophie.
— O principal é que prendam os culpados — disse ela, como
para tranqüilizar o investigador.
— Claro. Mas, antes disso, ainda tenho algumas perguntinhas
a fazer ao senhor, questão de formalidade. Imagino que o
senhor esteja um pouco abalado, então, serei breve. Senhor
Louvel, é o único herdeiro do falecido senhor seu pai? —
perguntou-me o gendarme.
-— Sim.
— Bem.
Com os olhos pregados na tela, ele não parava de tirar e
recolocar seus óculos.
— E veio aqui para ver sua casa, é isso?
— Exatamente.
— Mas tem uma coisa que não entendo. O senhor nunca
tinha visto essa casa?
-— Não. Vivo em Nova York.
— Em Nova York? Achei que o senhor viesse de Paris...
— Não, em Paris fica o apartamento do meu pai.
— Ah, claro! Então é isso, eu me enganei.
Fez uma careta e corrigiu com dificuldade seu erro no
computador.
— Esse sistema está sempre mudando! Juro para vocês! Logo,
logo vai ser preciso estudar informática para se redigir um
depoimento!
— Ah, sim, no mínimo — repliquei, tentando disfarçar mi-
nha ironia com um sorriso falsamente compadecido.
— Bom, enfim, está corrigido. Então, como eu estava dizen-
do, o senhor notou alguma coisa especial na casa do seu pai?
Dei um pigarro com uma discrição que provavelmente faria
saturar o detector de mentiras.
— Não, nada de especial.
— Nadinha de nada?
— Nada — repeti.
Ele balançou lentamente a cabeça e coçou o nariz antes de
retomar:
— O senhor seu pai possuía objetos de valor?
— Não, na verdade não, em todo caso, não em Gordes.
Todos os quadros ficaram em Paris. Na casa só havia alguns
livros, móveis... Nem mesmo televisão.
— Segundo o senhor, nada foi roubado?
— Ontem não. Hoje não sei, a casa está carbonizada... É difí-
cil dizer. Sobretudo de fora.
— Sim, claro, sem dúvida. E os dois sujeitos que o agrediram,
o senhor poderia me fazer a descrição deles?
Seu colega já me havia feito essa pergunta duas vezes; eu
tentava manter a calma.
— Não. Não consegui ver o rosto deles. Eram homens altos e
fortes. Vestiam sobretudos pretos, como os bandidos nos
filmes americanos, e o carro também era preto. Acho que
era um Volvo, tenho quase certeza.
—- Certo. Veremos se o carro dos fugitivos visto por seus
vizinhos era um Volvo. Seu pai tinha inimigos? Pessoas que
lhe queriam mal?
— Não que eu saiba.
— Algum conflito com amigos, com a família?
-— Não.
— E com o senhor?
— Tampouco comigo. Moro em Nova York há mais de dez
anos, nem sabia que essa casa existia...
— Certo. Por enquanto, é suficiente.
Imprimiu o depoimento para que eu assinasse.
— Certamente tenho outras perguntas a lhe fazer mais tarde.
Ligarei para o senhor à noite, para lhe dizer se abriremos
uma investigação de flagrante delito. Cabe ao procurador a
decisão. Posso entrar em contato com o senhor pelo celular?
— Sim.
Reli o depoimento que ele me estendia e assinei-o em
silêncio.
— De todo modo, pediria que o senhor permanecesse em
Gordes nos próximos dias -— concluiu o investigador
solenemente, como um xerife pedindo a John Wayne que
não deixasse a cidade. — Por enquanto, não posso obrigá-lo
a isso, mas peço a gentileza de me avisar se realmente tiver
de partir.
— Pode deixar — respondi ao me levantar, com pressa para
sair. — Avisarei o senhor.
— Certo. E pode aguardar para ser incomodado pelo seguro
— acrescentou com ar irônico. — O acidente do seu pai, sua
agressão, a casa incendiada e todo o resto... Eles não vão
achar graça nenhuma em tudo isso.
— Ah, não? Pois eu quase morri de rir...
No espaço de um segundo houve quase compaixão em seu
olhar, depois voltou a mergulhar nos documentos...
Sophie e eu saímos rapidamente da delegacia, um pouco
perplexos, depois entramos no Audi, que estava parado no
estacionamento de nossos anfitriões de uniforme azulado, e
atravessamos a cidade no outro sentido para chegar à casa do
meu pai. Os bombeiros ainda estavam lá, assim como os
curiosos, e, saindo precipitadamente do carro, interpelei
mais uma vez o bombeiro que me havia respondido naquela
manhã:
— Não há mesmo nenhuma chance de que alguns documen-
tos tenham escapado do fogo no porão? — perguntei-lhe
suplicando.
— Isso me surpreenderia muito, senhor. Os raros papéis que
terão escapado das chamas não terão escapado das
mangueiras, se entende o que quero dizer...
Eu entendia muito bem o que ele queria dizer.
— Não posso entrar para ver? — arrisquei apontando
timidamente um dedo na direção do porão.
— Ah, não vai dar! Está ardendo lá embaixo, e depois, de to-
do modo, a polícia vai isolar a área para investigar. Vamos,
não passa de papelada, sinta-se feliz por não ter havido
vítimas...
— Claro, não passa de papelada — repeti olhando para Sophie
com um ar deplorável.
À medida que o dia avançava, o pânico e a angústia
lentamente se transformavam numa forma de terror. Aos
poucos, fui me dando conta da gravidade da situação. Não
apenas meu pai havia morrido num acidente de carro que
tinha grandes chances de não ser um simples acidente, mas
também tinham deliberadamente acabado de colocar fogo
em sua casa e, em particular, em seu porão, local de todas as
suas pesquisas e fonte essencial para as investigações que a
jornalista e eu nos preparávamos para conduzir. Eu não tinha
nenhuma idéia de qual poderia ser o segredo descoberto por
meu pai, mas, naquele momento, tinha uma certeza: havia
um jogo terrível por trás de tudo aquilo... Em todo caso,
outras pessoas além do meu pai pareciam acreditar nisso.
— Vamos! Vamos voltar para casa para comer alguma coisa.
Não colocamos nada no estômago o dia inteiro! — sugeriu
Sophie, pegando-me pelo braço.
— Permite que eu te siga de moto? —- perguntei-lhe
estupidamente. — Se eu te deixar aí, Deus sabe o que pode
acontecer contigo...
Ela sorriu
— Uma Harley, no meu jardim? Sei não... Só porque você
está triste e vulnerável?... Estou brincando. Faça o que quiser
com sua máquina, meu caro!
Ela se dirigiu para o carro, e eu, desconcertado, para a
Electra, e então, enquanto colocava o capacete, notei na
multidão um homem que me observava e que eu já tinha
visto ao chegar de manhã ao local do incêndio. Percebeu
que o notei e não desviou o olhar. Como se quisesse que eu
o visse.
Era um homem de cerca de sessenta anos, cabelos grisalhos,
e, ao me colocar na ponta dos pés para ver melhor, percebi o
colarinho branco sob sua roupa. Um padre.
Um caminhão dos bombeiros começou a andar, houve um
movimento da multidão, e já não vi o homem que me
espiava um segundo antes. Busquei-o com o olhar por entre
os curiosos, mas ele havia desaparecido.
Decidi esquecer e partir com a moto para alcançar a jornalis-
ta no fim da rua. Ela entrou no carro e a segui até sua casa.
Durante o trajeto, embalado pelo ronco grave do bicilindro,
eu me perguntava aonde tudo aquilo ia nos levar. Não estava
seguro de ter vontade de compreender. Vontade de saber.
Uma única coisa era certa: apesar da loucura daqueles
últimos dias, apesar do meu medo cada vez maior e do
perigo evidente, fazia muito tempo que eu não me sentia tão
bem com uma mulher.
François Chevalier era um amigo que eu havia conhecido
pouco antes de entrar no curso preparatório para a Escola
Normal Superior. Nossa paixão por Alexandre Dumas e
Umberto Eco, nosso ódio por Jean-Paul Sartre e Alain
Robbe- Grillet, nossa paixão pelos pubs irlandeses e pelos
filmes de Terry Gilliam, toda uma vida de cultura tão diversa
quanto compartilhada nos havia colocado no mesmo
caminho — um caminho pouco trilhado pelos outros alunos
— e havia selado nossa longa amizade.
No ano seguinte, logicamente, entrei para o curso
preparatório, enquanto ele decidiu mudar de rumo,
inscrevendo-se em Ciências Políticas, curso em que, de
resto, teve muito mais sucesso do que eu na Escola Normal
Superior. Todavia, nunca perdemos o contato, e, um ano
antes de eu partir para os Estados Unidos, François veio me
ver para me informar que estava entrando para o Grande
Oriente da França e me propor seguir pelo mesmo
caminho. Uma parte de mim tinha vontade de aceitar, mas a
doença da minha mãe me preocupava mais do que tudo
naquela época, e a idéia de pertencer a qualquer grupo me
assustava um pouco. Por mais que me sentisse seduzido pelas
idéias que se encontravam na base da franco-maçonaria,
declinei sua oferta, mas o encorajei em sua escolha. Durante
toda a vida, nunca deixei de oscilar entre o arrependimento
e o orgulho de ter recusado. Arrependimento porque nunca
tive a coragem de um engajamento filosófico qualquer, nem
mesmo político; orgulho, porque assim espero ter
conservado o exercício de certo livre-pensamento. Além
disso, ainda que os princípios originais da maçonaria me
agradassem, não confiava muito no que os homens
pudessem fazer com eles. A isso François me teria res-
pondido que o melhor meio de aperfeiçoar a maçonaria era
participar dela! Certamente. Aliás, ele me fazia o mesmo
discurso em relação à política.
E, efetivamente, da última vez que estive com François,
antes de deixar a França, ele me anunciou por fim que havia
decidido desposar a carreira política, que estava entrando
obviamente para um partido de extrema esquerda, e, anos
mais tarde, após o percurso habitual, tornou-se conselheiro
municipal, prefeito, depois deputado em Íle-de-France.
Durante os onze anos que passei em Nova York, não houve
um só mês sem que François não me enviasse notícias pelo
correio. Não tive o mesmo rigor, mas minha amizade por ele
nunca enfraqueceu.
Em algum lugar tenho um exemplar de Alice no país das
maravilhas, que François me havia oferecido. Uma edição
incrível, com ilustrações originais de John Tenniel. Como
símbolo de nossa amizade, ofereci-lhe exatamente o mesmo
livro. E em cada um fizemos uma dedicatória ao outro. A
idéia — tomada emprestada de Dançando nas nuvens, uma
antiga comédia musical dos anos 50, com Gene Kelly e
Stanley Donen, de quem éramos fãs — era de que devíamos
nos encontrar trinta anos mais tarde, cada um de posse de
seu exemplar do romance de Lewis Carroll, diante do liceu
Chaptal. Uma promessa de criança, claro, mas carregada de
sentido. Será que já sabíamos na época que a vida sempre
separa os amigos, mesmo os mais fiéis? Os trinta anos ainda
não haviam passado. Guardei meu exemplar de Alice no país
das maravilhas. E, chegado o dia, eu estaria diante do liceu
Chaptal, não importa o que acontecesse.
Portanto, eu gostaria de ter ligado para esse amigo tão fiel
sem ter nenhum favor a lhe pedir, simplesmente para
convidá-lo a beber alguma coisa, mas, diante das
circunstâncias, conforme decidi na véspera, telefonei na
mesma noite a meu amigo deputado para lhe pedir ajuda.
Após ter laboriosamente passado pelas múltiplas barreiras
burocráticas que separam um deputado do simples cidadão
que sou, ouvi enfim a voz de Chevalier do outro lado da
linha.
Eu nem tinha avisado François da minha estada na França, e
menos ainda da morte do meu pai, e ele ficou um pouco
confuso quando lhe contei minha história. Ele se mostrou
compreensivo, e acredito até que estivesse com lágrimas nos
olhos. Deixar o país do meu pai também me havia
condenado a viver distante da alma mais fraternal que a vida
me oferecera, e eu maldizia o tempo perdido. Por que eu
não fizera o esforço de voltar para ver François mais vezes?
Que monstro de egoísmo me mantivera tanto tempo longe
dele? Será que algum dia poderíamos recuperar os anos
perdidos, as longas conversas, as idas noturnas ao cinema, os
relatos de leitura, os copos de cerveja nos terraços dos cafés?
Mas será mesmo que eu o teria visto com tanta freqüência
depois que ele se tornou deputado? Tê-lo do outro lado da
linha fez com que eu percebesse a que ponto me tornara
solitário. Há tipos de solidão que só percebemos depois de
um tempo. Eu tinha a estranha impressão de estar à beira de
um abismo, mas de costas. Dependia apenas de mim não cair
para trás.
— François — prometi-lhe em voz baixa —, quando eu sair
de toda essa história maluca, irei a Paris fazer jus à nossa
amizade.
O silêncio de cada um de nós estava carregado de uma emo-
ção subentendida. E de milhares de arrependimentos.
— Bom, o que posso fazer por você? — perguntou, como
para pôr fim a um impulso de sentimentalidade que já estava
ficando embaraçoso...
— Para começar, gostaria que você me desse o número do
seu celular, para que eu possa encontrá-lo com mais
facilidade, meu velho, pois é capaz de eu ter de ligar para
você com mais freqüência do que seu exército de asseclas
poderá suportar...
Fiz sinal para Sophie me passar um bloco de notas. Vi então
que ela me olhava com uma intensidade nova. Como se
tivesse podido sentir a emoção em minha voz. Estendeu-me
o bloco de papel e anotei o número que Chevalier me ditava.
— É preciso que você se informe para mim a respeito do
Bilderberg.
— Bilderberg? — espantou-se. — O que o Bilderberg tem a
ver com seu pai?
— É o que eu gostaria de entender...
François hesitou por um instante.
— Talvez tenha a ver com o cargo na Unesco — adiantou.
— Isso me surpreenderia muito. Você pode verificar, mas
não creio. De todo modo, no momento, preciso de
informações gerais. Não estou conseguindo encontrar
grande coisa por conta própria.
— Francamente, também não sei grande coisa. Tudo o que
sei é que se trata de uma espécie de clube para ricaços... Se
quiser, posso ligar para você amanhã e terei mais
informações.
— Com prazer — aceitei. — E tente ver um pouco as notí-
cias atuais sobre eles também. O que estão fazendo no
momento, quem se ocupa do grupo, quando será a próxima
reunião...
— Está certo. Vou ver o que consigo encontrar. Fico feliz de
ter ouvido sua voz. Veja se consegue passar aqui para nos
visitar antes de voltar a Nova York.
— Você não me deu notícias da Estelle — intervim, antes de
ele desligar. — Ela está grávida, não está?
Eu acabava de me lembrar que ele me havia contado isso em
sua última carta. François vivia com Estelle havia muito
tempo. Já estavam juntos antes de eu conhecê-lo! Era o
típico casal ideal, que não deixava de me fazer perceber, já
na época, a que ponto eu estava fora da normalidade...
— Sim. Ela está no quinto mês — confirmou-me,
aparentemente surpreso por eu ter lembrado. — Vamos, não
se esqueça de passar para nos ver antes de partir.
— Combinado.
Agradeci-lhe e desliguei a contragosto.
Eu havia tomado algumas notas durante nossa conversa e
deixado Sophie ler por cima do meu ombro. Quando me
voltei, vi que ela segurava dois copos de uísque com gelo.
Estendeu-me um, sorrindo.
— Que tal tomarmos um pequeno fortificante e depois sair-
mos para comer? — propôs ao se levantar.
Ergui os olhos para ela, que inclinou a cabeça, esperando
uma resposta. Colocou meu copo sobre a mesa e acendeu
um cigarro. Peguei o copo de uísque e dei um gole.
— Faz muito tempo que uma mulher não o convida para ir a
um restaurante?
— Lá vem você com suas piadinhas — repliquei. —
Acredite, você não é a primeira a me convidar a ir a um
restaurante.
— Então, a resposta é sim?
— Com prazer — respondi sorrindo —, mas sou eu quem a
convida. E vamos nos distanciar um pouco de Gordes...
-— Está certo. Eu bem que iria a Avignon — sugeriu.
Nesse instante, meu telefone tocou. Suspirei e levantei os
olhos ao céu, sem atender. Podia sentir o celular vibrar em
meu bolso. Sophie me lançou um olhar desolado. A pequena
pausa de que nós dois precisávamos teria de esperar. E
quando tirei o telefone do bolso, soube que esse
contratempo era ainda mais inconveniente do que havia
imaginado.
Logo reconheci o número que aparecia na tela verde do meu
telefone. Dave, meu agente. Evidentemente eu havia
esquecido por completo aquela parte da minha vida e fiz
uma careta que, pelo menos, teve o mérito de divertir
Sophie.
Eu deixara Nova York há uma semana e não tinha lido
nenhum dos últimos roteiros... Havia muito tempo que
tomara o hábito de me atrasar, mas pela primeira vez eu me
perguntava como ia conseguir terminar meu trabalho, e
Dave deve ter percebido isso pelo tom da minha voz...
— Damien, o pessoal da HBO está ameaçando gravar os
episódios sem sua aprovação final!
— Eles não têm esse direito! — revoltei-me.
— A falta do seu approval antes do deadline previsto é moti-
vo para quebrar a porra do seu contrato, Damien!
Raramente Dave era grosseiro. Provavelmente ele estava
imaginando que eu ia mandar tudo pelos ares. E, quanto ao
contrato, ele tinha razão. Eu sabia tão bem quanto ele. Os
Estados Unidos talvez sejam o paraíso dos salários para os
roteiristas, mas também são o país onde os direitos autorais
estão menos protegidos, e faltava muito pouco para o
exército de advogados da HBO me tirar a guarda do meu
bebê, caso eu não encontrasse uma solução... Por mais que
eu tenha sido um membro fiel da corporação de roteiristas e,
portanto, relativamente bem protegido, não podia assumir o
risco de melindrar os produtores do canal.
— Já estou quase no fim! — menti, franzindo os olhos. —-
De todo modo, não há grande coisa a mudar. Diga-lhes para
esperarem um pouco... Já estou bem adiantado, eu lhe
garanto.
— Preciso enviar alguma coisa esta noite! — interrompeu-me
Dave. — Mande-me o que você tiver para que eu possa
acalmá-los.
— Mando tudinho amanhã! — esquivei-me, sabendo muito
bem que seria absolutamente impossível reler e modificar o
que quer que fosse para o dia seguinte. — Amanhã, Dave!
Juro!
Desliguei o telefone antes que meu agente ouvisse as risadas
que Sophie custava a conter.
— Merda! — resmunguei. — Tô ferrado!
— Deixamos Avignon para outra ocasião... — propôs. —
Você vai ter que trabalhar esta noite de todo jeito...
Problemas à vista...
— Não, não! Preciso reciclar minhas idéias... E, além do mais,
nunca fui a Avignon... Parece que tem uma ponte
extraordinária!
Sophie não insistiu por muito tempo, e logo partimos para a
cidade dos papas, onde o cenário e a fina gastronomia nos
encantaram, sem, no entanto, apagar por completo nossa
inquietação.
Todavia, descobri com o prazer de um expatriado a beleza de
Avignon, empoleirada no rochedo de Doms e estendendo-se
além dele, através de sucessivas muralhas, ornadas de seteiras
e ameias. O palácio, sua majestade gótica e seu imenso adro,
o labirinto de ruas pavimentadas e as lojas provençais do
Quartier de la Balance...
Encontramos refúgio num pequeno restaurante à beira do
rio Sorgue, atrás de uma série de plátanos que mal filtravam
o barulho das antigas rodas d'água. Eu já tinha tomado um
uísque antes de partir e, portanto, recusava-me a beber
qualquer gota de álcool. Sophie deve ter entendido que havia
uma história obscura entre mim e a bebida quando por duas
vezes pedi febrilmente água com gás. Não abordamos o
assunto, mas vi em seus olhos mais compreensão do que
havia esperado.
— Por que jornalista? — perguntei-lhe para pensar em outra
coisa, mas também porque tinha vontade de saber mais
sobre ela.
— Por causa de Alan J. Pakula.
— Como?
— Não viu Todos os homens do presidente, com Robert
Redford e Dustin Hoffman?
— O filme sobre Watergate?
— Sim... Vi esse filme quando tinha quinze anos. Meu pai
gravou da televisão. Gostei tanto que assisti uma segunda vez
de um fôlego só, depois ficou sendo meu cult. Sabe, aquele
filme que a gente assiste mil vezes.
— Sei, no meu caso era Sete homens e um destino! —
confessei rindo.
— Eu assistia pelo menos uma vez por semana — retomou.
— E, desde aquele dia, quando me perguntavam o que eu ia
querer fazer no futuro, respondia que queria ser jornalista do
Washington Post.
— Ah! Então ficou fiel à seu sonho de infância. Eu queria ser
uma estrela do rock. Mas não deu certo.
O garçom nos trouxe nossas sobremesas. Sophie acendeu um
cigarro. Ela devia fumar uns dois maços por dia. Talvez fosse
justamente isso o que deixava sua pele tão branca. Mas, no
fundo, combinava com ela que era uma beleza. Fazia parte
da sua personagem. Sem as olheiras nem as bochechas
pálidas, Sophie não teria aquele charmoso ar anos 50.
— Sabe o que mais me faz falta na profissão de jornalista?
Fiz um gesto negativo enquanto engolia uma colherada de
crème brülée.
— O barulho das máquinas de escrever. Adoro o som. No
filme, ouvem-se os jornalistas e as secretárias datilografarem
como obcecados em suas grandes máquinas de metal, o
barulho dos rolos quando se tira a folha de papel... É idiota,
mas adoro isso. Agora, com os computadores, esse barulho
desapareceu por completo das salas de redação. Até porque
os escritórios estão cada vez mais separados por divisórias.
-— E só você trabalhar com uma máquina de escrever!
— Que nada. Adoro o barulho, mas de todo modo o
computador é mais prático. E de mais a mais, hoje em dia
pessoas como eu ficam o tempo todo na internet.
— Pois é, pelo menos temos algo em comum: eu também
fico com o nariz grudado num monitor quase o dia inteiro.
— Não é o que diz seu agente!
-— Ah, não, não! Não me fale dele! Não se esqueça que
estou aqui para esquecer Nova York! Prefiro que fale de
você. Dos seus pais, por exemplo...
-— Nossa! Um interrogatório?
Sophie levantou as sobrancelhas e recuou a cadeira para
cruzar as pernas.
— Ei! Você conheceu meu pai! E eu nem sei se você tem
família! Não sei nada de você!
Ela sorriu. Avançou novamente sua cadeira, apoiou os
cotovelos na mesa, juntou os punhos sob o queixo e,
olhando-me diretamente nos olhos, decidiu responder-me.
Pelo menos em parte.
— Está certo. Então, vamos lá. Nasci em Paris, sou filha
única, igual a você. Meus pais estão aposentados... São
pessoas formidáveis. Tive muita sorte.
— Minha mãe era uma mulher genial, pode ter certeza...
Ela sorriu.
— E o que eles faziam antes? — retomei.
— Meu pai trabalhou a vida toda para a Educação Nacional,
ensinava filosofia nos últimos anos do liceu e na faculdade.
Foi ele que me ensinou a ter espírito crítico, como se diz.
No verão, como tinha dois meses de férias, me levava para
viajar um pouco, conhecer o mundo. Minha mãe ficava
conosco durante três semanas, mas, no restante do tempo,
eu ficava sozinha com ele. Era incrível! Fomos aos Estados
Unidos, à China, a Moscou e até ao Japão e à índia! Quando
penso nisso, fico com vergonha, de tanto que ele me
mimou! A única coisa que ele me pedia em troca era que eu
sempre fizesse um diário de viagem, escrevesse uma
redação...
— Que legal...
— Todos os verões eu escrevia num caderno grosso minhas
impressões sobre o país que visitávamos...
— Ainda tem isso?
— Claro. Estão muito mal escritas, mas meu pai lia cada
página com atenção, e eu ficava orgulhosa que só vendo. Eu
já me imaginava uma grande repórter...
— E sua mãe?
— Era médica. Era menos presente. Mas é uma mulher
extraordinária. Um temperamento forte, de muita coragem,
muita devoção..
— Em suma, teve uma senhora infância.
Parou de falar e inclinou a cabeça enquanto me observava,
como para analisar meu olhar.
— Sim, talvez. Está querendo dizer que sou uma menina
mimada, é isso?
Não consegui conter um sorriso.
— Nem um pouco! Não, ao contrário, é raro ver gente que se
dá conta do que deve aos pais. E bastante... comovente.
Você me deu vontade de conhecê-los!
— Quem sabe? Quando tudo isso acabar, poderíamos ir
visitá-los. Meu pai é um excelente cozinheiro...
— Ah, então foi a ele que você puxou... Engraçado, você
parece mais próxima do seu pai, no fim das contas. Já comigo
é o contrário.
— Foi o que imaginei...
Mais uma vez, mostrou-se discreta e não quis saber mais a
respeito. Provavelmente, podia sentir que eu não tinha
muita vontade de me estender sobre o assunto. Meu pai já
estava presente o bastante daquele jeito.
— Agora é minha vez — retomou. — Tenho uma pergunta.
Por que Nova York?
Arregalei os olhos.
— Por que Nova York? Sei lá! Francamente, acho que parti
sem pensar. Quando minha mãe morreu, eu só tinha um
desejo, que era me distanciar do meu pai. Os vôos para Nova
York não eram muito caros, não pensei duas vezes e meti as
caras. Não tinha realmente a intenção de ficar. Mas depois
acabei me apaixonando...
— Por uma nova-iorquina?
— Ah, não. Por Nova York.
— Tá bom. Não há nenhuma nova-iorquina na sua vida? —
espantou-se Sophie com um olhar zombeteiro.
— Não, não. Seria como ir para a cama com uma das minhas
personagens! Casei com uma californiana, mas obedecemos
às estatísticas e nos divorciamos após alguns anos...
— Espere. Um rico roteirista em Nova York, autor de uma
série de sucesso, e solteiro?
— Ah, não acredite nisso, essa condição não me dá sorte.
Abanou a mão com um gesto que não sei se exprimia
compaixão ou incredulidade.
— E você? Vive sozinha? — perguntei-lhe, com ar
indiferente...
— Não, vivo com meu laptop! — ironizou.
— Não, fale sério...
— Não sei se uma jornalista consegue viver com alguém,
sabe? Aliás, nem sei se eu teria vontade. Nunca paro, estou
sempre metida em pesquisas impossíveis, completamente
agitada... Passo metade do meu tempo no telefone e a outra
metade na internet. As raras pausas que faço são para ir ao
médico, para pedir que me prescreva calmantes! Não,
realmente eu não conseguiria viver com alguém.
— Já se apaixonou alguma vez? — arrisquei.
— Sim.
Um breve momento de silêncio. Uma hesitação. Como se
ela me avaliasse. Fiquei esperando.
— Apaixonei-me por uma... pessoa que ensina história da
arte e matemática.
Pronto. Ela hesitara em "pessoa". Mas eu tinha certeza de
que estava para dizer "mulher". Traíra-se. Sorri.
— E quem lhe disse que não estou apaixonada neste
momento? — brincou, fitando-me diretamente nos olhos.
Não respondi. Sophie tinha o dom de me deixar pouco à
vontade, e ela sabia disso. Adorava isso.
Mudei de assunto, e começamos a falar da chuva e do mau
tempo, de culinária, de cinema e de literatura. Ela gostava do
inverno; eu, da primavera. Ela detestava junk food, fingi que
também detestava. Ela gostava do Woody Allen, eu também.
Ela detestava Spielberg; eu não. Paul Thomas Anderson era
para mim a revelação da década; ela tinha gostado de
Magnólia, mas achou que eu estava exagerando. A cada dois
Lelouch, um a deixava indiferente; verificamos se eram os
mesmos que para mim. Ela tinha adorado O nome da rosa e
achou O pêndulo de Foucault uma chatice; adorei os dois.
Ela gostava de Proust às escondidas; Sobre a leitura era meu
livro de cabeceira... Expusemos nossos gostos e misturamos
nossas cores até tarde da noite. A maioria dos clientes já
tinha ido embora, e ela ainda estava dizendo do que gostava
ou não; quanto a mim, não a ouvia fazia tempo. Por mais que
eu fizesse de tudo para pensar em outra coisa, num ouvido
eu ouvia sexo, sexo, sexo e, no outro, lésbica, lésbica, lésbica.
De repente, notei que sua voz tinha se calado. Ela se levan-
tou e se aproximou para me falar ao pé do ouvido:
— Também gosto de rapazes — cochichou-me antes de se
dirigir ao toalete.
Fiquei ali parado, como um idiota, sozinho à mesa, ouvindo
repetidamente o eco da sua frase. Sua pequena frase
assassina. E quando ela voltou, era como se nada tivesse dito.
— Vamos? — propôs com um olhar cândido.
Num dos meus roteiros para o Sex Bot, o herói teria voltado
para casa e pulado em cima da jornalista, provavelmente
descobrindo, após algumas horas de sexo tórrido, que os
hábitos sexuais da morena eram totalmente incompatíveis
com suas próprias exigências. Eles se separariam de manhã
cedo, trocando a falsa promessa de se telefonar um dia, e
talvez até voltassem a se ver três ou quatro anos mais tarde,
só para tentar de novo e constatar que sua sexualidade
continuava incompatível... Meus ias teriam adorado isso.
Meus produtores também.
Mas, na vida real, paguei a conta e voltamos para casa pouco
depois da meia-noite. Ela me desejou boa-noite bocejando, e
eu me contentei em pensar nela enquanto esperava o sono
chegar.
Meia hora mais tarde, Sophie bateu à minha porta.
— Sim? — murmurei, já meio adormecido.
— Damien — cochichou.
Comecei a me perguntar o que ela queria. Meu coração
disparou.
— Damien! A Esfinge está conectada! Venha depressa! Ela
me respondeu!
A Esfinge. O cara dos fóruns. Nada do que eu tinha
imaginado. Esperado. Sacudi a cabeça para acordar.
— Já vou! — respondi me levantando.
Enfiei uma calça desajeitadamente e a encontrei em seu
quarto.
— Ele ainda não foi dormir a uma hora dessas? — perguntei,
sentando-me ao lado de Sophie.
— Quem sabe não está na França. Se for isso, talvez seja de
manhã para ele...
— Pra qual jornal você trabalha?
Sophie olhou para mim.
— Ufa! Ainda bem que ele não é de usar aqueles jargões
ridículos! Vai ter que maneirar comigo... Um dia
acompanhei uma conversa entre dois hackers e não entendi
nada. Bom, vamos jogar limpo com ele?
Dei de ombros.
— Não sei. Está tarde, não consigo raciocinar direito.
Contanto que você não lhe diga nada sobre meu pai... Deixo
por sua conta, você é a profissional!
Aproximando sua cadeira da escrivaninha, ela deu um suspi-
ro, esfregou as mãos e começou a digitar no teclado. Estava à
vontade como um peixe dentro d'água.
— Trabalho para o Canal Plus.
— Qual programa?
-— 90 minutos.
— Por que Haigormeyer?
— O que ele está dizendo? — espantei-me olhando para
Sophie.
— É meu pseudônimo no ICQ. Haigormeyer. E com esse
nome que apareço. Acho que ele está tentando me
identificar.
— Pequena referência ao Watergate. Alexander Haig fazia
parte da administração de Nixon, e Cord Meyer era um
agente da CIA. Haig or Meyer? Essas são as duas pessoas que
mais suspeito serem a fonte secreta dos jornalistas do Post.
— OK. O famoso "Garganta profunda". Divertido. Foi você
que fez o documentário sobre o caso Robert Boulin?
— Não. Foi outra equipe.
— E o que você já fez?
— O mais recente, sobre o urânio empobrecido.
A tela ficou vazia por quase um minuto. Sophie esperava. Eu
estava tenso. O ambiente era estranho. Um interlocutor
sobre o qual nada se sabe e que não se vê. Eu não estava
habituado a esse tipo de conversa.
— O que ele está fazendo? Não vai falar mais com a gente?
— Espere. Deve estar em várias conversas ao mesmo
tempo... Ou então...
— Sophie de Saint-Elbe, é isso?
— E o que me parecia. Fez algumas pesquisas.
— Ele é rápido! — exclamei.
Ela concordou.
-— Prefiro Haigormeyer.
— OK. O que quer saber sobre o Bilderberg? Está fazendo um
documentário sobre eles?
— Digamos que no momento estou me informando... Na
verdade, não sei grande coisa sobre o grupo, tudo o que você
tiver me interessa...
— E por que eu lhe responderia?
— Porque se eu encontrar alguma coisa, vou lhe mandar a
notícia em primeira mão pela internet. Estou trabalhando
num dossiê importante. Não posso dizer muito a respeito no
momento, mas prometo que, se encontrar o que estou
procurando, você será o primeiro a ser informado e terá a
exclusiva on-line. Está bem assim?
Lancei um olhar de censura a Sophie. Ela fez sinal para eu
não me preocupar. Decidi obedecer-lhe. Afinal de contas,
nada nos obrigava a contar tudo a esse personagem estranho.
Sophie parecia dominar a situação...
— OK
— Então me fale do Bilderberg.
— Não aqui.
— Por quê?
— Big brother is watching!
— Está sendo vigiado?
—- Sim. Of course. De todo modo, o ICQ não é seguro... E
depois, tem o Echelon... — OK.
— O que é isso? — intervim.
— Echelon. Nunca ouviu falar? Mas me diga uma coisa, você
lê jornal de vez em quando?
— Bem, sou roteirista de uma série cômica americana! Seja
como for, você não vai acreditar que não tenho tempo para
ler outra coisa além da People! — ironizei.
— Echelon é um sistema de vigilância elaborado pelos servi-
ços secretos americanos nos anos 50. Desde então, não
parou de evoluir. Hoje está tão desenvolvido que permite à
NSA vigiar as conversas telefônicas e os e-mails do mundo
inteiro, com um sistema desencadeado por palavras-chave.
— Está brincando?
— Nem um pouco. Um único computador do sistema
Echelon é capaz de vigiar dois milhões de comunicações
simultâneas. A tal ponto que alguns hackers se divertiram
divulgando as palavras-chave que desencadeiam o sistema de
vigilância, e recentemente houve uma jornada anti-echelon
na internet: em 24 horas, milhares de pessoas enviaram
milhões de e-mails contendo a maioria dessas palavras-
chave, a fim de sobrecarregar os servidores da NSA até fazer
com que parassem...
— Que loucura!
— É mesmo. Sobretudo porque, aparentemente, o Echelon
não é assim tão eficaz: não permitiu aos serviços secretos
americanos que evitassem o atentado ao World Trade
Center, por exemplo...
Uma nova mensagem da Esfinge apareceu na tela:
— Vamos para o IRC. E mais tranqüilo.
— Sinto muito, não conheço o IRC.
— Internet Relay Chat. Clássico, mas, se formos por um bom
servidor, estaremos tranqüilos. Era lá que Mitnick aparecia
nos bons tempos. E mais secure do que parece. Sobretudo os
servidores na América do Sul. Faça o download do programa
mIRC. Conecte-se ao servidor Unired, no Chile. Acabo de
pegar o lugar do administrador, ficaremos em paz. Se você
não se desconectar, reconhecerei seu endereço IP e
poderemos conversar com tranqüilidade.
— OK. Até já...
Eu não estava entendendo nada dessa linguagem toda, mas
Sophie bateu palmas. Estava completamente agitada. Eu
mesmo estava quase esquecendo meu cansaço!
— Tem certeza do que está fazendo?
— Por enquanto, não estamos arriscando nada... Espere,
preciso fazer o download do programa de que nos falou.
— Não vá fazer besteira! Se travar meu computador, meus
roteiros estão todos dentro dele!
— Quer que eu vá pegar o meu no carro? — propôs fazendo
careta.
— Não, não, vá em frente. Mas tenha cuidado.
Observei-a em ação. Ela dominava perfeitamente a internet.
Depois de três cliques no mouse, encontrou o programa e
esperamos quinze minutos até que fosse totalmente baixado
para meu HD.
Por volta das duas da manhã, finalmente estávamos
conectados com o Unired, o servidor sul-americano
mencionado pela misteriosa Esfinge, que nos esperava
pacientemente.
— Bravo. Bem-vinda a bordo, Haigormeyer.
— Obrigada. Então, o que sabe sobre o Bilderberg?
— O que devo lhe dizer agora é para você ter muito cuidado.
Falam muita besteira sobre o Bilderberg pelo fato de ele ser
secreto. E agitadores de extrema direita aproveitam para
veicular sua paranóia persecutória... Portanto, é preciso
desconfiar das revelações muitas vezes mentirosas dos
fascistas que brotam por toda parte. Mas o Bilderberg existe
sim, infelizmente.
— Não encontrei nada de interessante na rede...
— E normal. O Bilderberg não busca publicidade. O essencial
de sua atividade consiste numa reunião anual, em que
políticos e outros pensadores auto-proclamados chegam para
participar de uma sessão de masturbação intelectual mútua!
— Com que objetivo?
— Oficialmente, essas reuniões permitem a seus participantes
determinar um pouco a situação momentânea com base na
perspectiva político-econômica internacional. Talvez seja
por essa razão que interesse, sobretudo, a pessoas como o
chefe do IFRI...
— O que é isso? — perguntei ainda perdido.
— O Instituto Francês das Relações Internacionais —
especificou Sophie. — Um organismo que serve como
consultor aos políticos e aos industriais em matéria de
relações internacionais.
— Como se tomar membro?
— Pretende se inscrever?
— Ha ha.
— Há um sistema de apadrinhamento...
— Mas quem criou isso?
— O grupo foi criado no início dos anos 50.
-— Guerra fria?
— Claro! A primeira reunião oficial ocorreu na Holanda, no
hotel Bilderberg. Daí o nome. No início, era o príncipe
Bernhard, dos Países Baixos, quem organizava tudo, mas em
1976, por causa do escândalo das gratificações da Lockheed,
foi obrigado a ceder o lugar para... Rockefeller. De todo
modo, era ele desde o princípio, mas não oficialmente...
— Qual a importância real deles?
— Se estiver preparando um documentário a respeito, vai se
regalar. Peixe grande, muito grande. A organização do
Bilderberg está muito ligada a dois outros grupos que têm
mais ou menos o mesmo objetivo...
— Qual?
— Oficialmente, construir a unidade ocidental.
— E oficiosamente?
— Preparar o estabelecimento de um governo mundial.
— Sério?!?
— Eu lhe disse que estamos em pleno cenário de uma
conspiração! — exclamei.
Sophie levantou as sobrancelhas e recomeçou a digitar.
- E as outras duas organizações de que falou?
— A Trilateral, mais conhecida na França porque Raymond
Barre confessou fazer parte dela oficialmente nos anos 80, e
o Council on Foreign Relations, ou CFR. Já ouviu falar?
— Da Trilateral, sim, vagamente.
— Pois bem, reúna estas três, CFR, Trilateral e Bilderberg, e
terá a fina flor dos economistas, PhDs, políticos e outras
sumidades ultra-liberais do mundo inteiro. Geralmente a
maioria ê membro das três ao mesmo tempo ou, pelo menos,
de duas das organizações. Bush, Kissinger, o Barão de
Rothschild, o chefe do IFRI, Raymond Barre e talvez até
mesmo Jospin. E ainda há gente como o ex-secretário-geral
da OTAN, o editor do London Observer, ou Dulles, ex-
diretor da CIA.
— Encantador. Mas... Jospin? Tem certeza?
— Sei que participou de pelo menos uma das reuniões...
Creio que em 1996. E difícil ter certeza quando se trata de
gente desse nível! Mas Jospin não é o que interessa lá
dentro, e sim Kissinger ou Dulles. Se está procurando notícia
quente, é aí que precisa procurar...
-— E quando será a próxima reunião deles?
— É difícil dizer. Em geral, as datas permanecem muito
tempo em segredo, a fim de evitar que os jornalistas
apareçam... Estou organizando um concurso on-line este
ano. Ganha o primeiro que descobrir onde e quando
ocorrerá a reunião do Bilderberg! Conto com uma porção de
gente neste momento... Em 1993, um internauta já os havia
descoberto! A partir de então, ficaram mais desconfiados.
—- Mas por que têm medo dos jornalistas?
— Para ser honesto, às vezes há jornalistas. Lembro-me de
que William Rees, um cronista do London Times,
compareceu e até escreveu um artigo sobre sua presença na
reunião do Bilderberg. Na França, o chefe do Les Echos
também teria participado. Mas ê muito raro. Oficialmente, a
desculpa é de que a presença de jornalistas poderia
comprometer o caráter dos debates, pois os interventores
tenderiam a querer ser muito politicamente corretos diante
das câmeras... São esquisitos, não?
— OK. Mais uma perguntinha, Esfinge... Como você sabe de
tudo isso?
— Interesso-me de perto por tudo o que não querem nos
dizer. E a filosofia dos hackers. Enfim, dos verdadeiros
hackers. A informação pertence a todo o mundo.
— Essa é também a filosofia dos jornalistas investigativos.
Temos muito em comum...
— Veremos. Mantenha-me informado de seus avanços.
Volte aqui, a este servidor, quando tiver novidades.
— Combinado. Mais uma vez, obrigada, vou mantê-lo
informado.
— Conto com isso.
Sophie desligou a conexão e fechou meu laptop suspirando.
Virou-se para mim.
— E ai? Vai conseguir dormir?
— Não sei. Mas gostaria.
Ela aquiesceu.
— É... incrível, não? — disse-lhe.
— De todo modo, será preciso verificar tudo isso... Mas, se
estiver correto... Sim, é incrível!
— Vamos tentar dormir assim mesmo! — disse ao me le-
vantar.
Voltei para o meu quarto. Não sabia se era o cansaço ou o
que o hacker acabara de nos revelar, mas estava numa
espécie de transe. Não conseguia ter certeza de que tudo
aquilo era realmente verdade. E tive dificuldade para
encontrar o sono.
Capítulo Quatro
Quando meu telefone tocou em pleno café da manhã, esperei ouvir a
voz de François Chevalier e rezei para não ser Dave Murisen. Mas a
manhã nos reservava uma surpresa completamente diferente.
O homem do outro lado da linha tinha um forte sotaque italiano e se
apresentou com o nome de Giuseppe Azzaro. Disse que era jornalista
do La Stampa e me perguntou sem cerimônia se eu havia recuperado
"certo manuscrito de Albrecht Dürer sobre a Melancolia", que meu
pai teria prometido enviar-lhe havia vários dias!
Arregalei os olhos e lancei um olhar desnorteado para
Sophie. Ela não conseguia ouvir a conversa e me fez um
gesto de incompreensão. Afastei o celular da orelha para ver
se algum número aparecia no pequeno visor, mas era sem
identificação. Levantei- me de um salto para pegar uma
caneta e o bloco de notas no qual já havia escrito na véspera
e anotei o nome do meu interlocutor. Giuseppe Azzaro.
— Sinto muito, mas não, não recuperei o documento de que
está falando... A casa do meu pai pegou fogo, imagine... Mas
em que ocasião o senhor disse que encontrou meu pai?
Ele desligou em seguida.
— Que maluquice é essa?!? — exclamei ao desligar o celular.
— Quem era? — impacientou-se Sophie.
— Um cara que diz ser jornalista do La Stampa e que afirma
que meu pai lhe teria prometido enviar o manuscrito de
Dürer...
— Estranho — ironizou Sophie. — Um jornalista italiano?
Seu pai teria falado dele comigo, não?
— Sim, e, sobretudo, ele não teria desligado na minha cara
quando lhe pedi mais explicações!
Ela se levantou e me fez sinal para segui-la ao primeiro
andar, onde ligou meu computador. Pesquisou na rede o
número do telefone do La Stampa, ligou para Roma e, num
italiano que me pareceu totalmente correto, perguntou à
telefonista se havia alguém chamado Giuseppe Azzaro
trabalhando na redação. Evidentemente, não era o caso.
— Meu reino para saber quem era! —- lancei agitado. — E
também gostaria de saber como esse sujeito conseguiu o
número do meu telefone...
— E é lógico que o número dele estava oculto...
—- Estava! Mas talvez haja um jeito de descobrir mesmo
assim junto à companhia telefônica...
— Impossível. Eles não podem fazer isso.
— Eu sei, mas, nesse caso, talvez possamos pedir que bus-
quem, já que se trata de um caso especial! — protestei.
— Provavelmente seria necessária a autorização de um juiz
para obrigar sua operadora a fornecer o número, no âmbito
de uma investigação criminal... E, aliás, não seria você, mas a
polícia a investigar o número. Em suma, esqueça!
— É só pedirmos para os tiras de Gordes — brinquei.
— Claro, ou ao seu amigo deputado!
— Não é do feitio dele... E você? Não conhece ninguém que
possa nos ajudar a conseguir esse maldito número? Você
trabalha para o Canal Plus, não trabalha? Canal Plus,
Vivendi e pronto, SFR, não?
Ela sorriu, depois hesitou por um instante.
— Tem uma pessoa no RG que me deve um belo favor,
mas confesso que me incomoda um pouco queimar minha
única munição para conseguir esse número.
— E praticamente a única pista que temos por enquanto...
— Não é exatamente uma pista... Afinal de contas, talvez seja
mesmo um jornalista que ouviu falar de tudo isso, até por
terceiros, e que tentou tirar informações de você...
— Com certeza! — zombei.
Ela fez uma careta. Estendi-lhe meu celular.
— Vamos, Sophie, tente! Precisamos começar nossa
investigação por algum ponto!
Ela aceitou suspirando e ligou para seu contato no RG.
Afundei em minha poltrona para admirar a força persuasiva
da jornalista. O agente secreto do outro lado da linha se fez
de difícil por meia hora antes de dizer a Sophie que ia "ver o
que podia fazer". Sophie cerrou os punhos em sinal de
vitória e me devolveu orgulhosamente o celular. Levantei-
me e dei um beijo em sua bochecha.
— Bela jogada! — cumprimentei-a.
Descemos para terminar juntos nosso café da manhã. Fui
seguindo ela pela escada. Tinha um jeito incrível de andar.
Um quê de felino nos quadris, e seu caminhar parecia quase
difuso em câmera lenta.
Preciso parar de ficar olhando seu traseiro o dia inteiro! Vou
acabar com torcicolo!
Instalamo-nos novamente em torno da mesa do café da
manhã, e ela me serviu outra xícara de café.
— O italiano do outro lado da linha mencionou uma palavra a
respeito do manuscrito de Dürer — disse eu após tomar um
gole. — Não sei se é italiano ou latim...
— Melancolia? —- sugeriu Sophie.
Aquiesci.
— É o nome da gravura à qual se refere o manuscrito, cujo
trecho seu pai me enviou — explicou-me. — As gravuras de
Dürer são extremamente complexas e simbólicas, mas, como
eu já havia dito, ele tinha a bondade de oferecer à
posteridade notas explicativas sobre seus trabalhos.
Melancolia é a única gravura de Dürer cujas notas
correspondentes nunca foram encontradas. Não é minha
especialidade, mas fiz algumas pesquisas a respeito depois
dos vários telefonemas do seu pai. Os críticos Panofsky e
Saxl chegaram a mencionar a existência desse texto
explicativo, um manual completo, que teria pertencido ao
amigo de Dürer, o humanista Pirkheimer, antes de
desaparecer.
— Mas como você faz para guardar tudo isso na memória? —
espantei-me boquiaberto.
— E meu trabalho... Em suma, aparentemente, o manuscrito
sobre a gravura Melancolia seria aquele de que seu pai tinha
posse. Aliás, não sei como ele teria encontrado...
— Como é essa gravura?
— Representa um personagem com asas de anjo, sentado
perto de um pequeno edifício, com ar... melancólico! Há
objetos por toda parte ao redor dele... E difícil descrever, de
tão densa e rica que é essa gravura!
— Foi justamente a que vi no porão do meu pai, do lado da
reprodução da Gioconda. Precisamos de todo jeito entrar na
casa, não importa o que diga o bombeiro, talvez haja coisas a
serem recuperadas naquele maldito porão! Contanto que
sejamos nós a recuperá-las...
— A casa está interditada, Damien, e certamente os tiras
devem vigiá-la.
— Ah, não exagere, não vão passar dia e noite lá! Foi só um
pequeno incêndio... Afinal de contas, esse barraco me
pertence! Tenho o direito de entrar lá!
Sophie sorriu.
— Você está sugerindo uma pequena expedição noturna? —
perguntou maliciosamente.
— Gostaria de me acompanhar?
— Tem outro jeito? — suspirou. — Faz quase dois dias que
estamos tomando chá de cadeira nesta casa sinistra; se eu
ficar mais um dia aqui vou acabar botando fogo nestas
cortinas imundas ou jogando seu laptop pela janela... Não
tenho nada contra um pouco de ação — concluiu, dando
uma piscadela para mim.
É nessas horas em que me dão uma abertura que sou o mais
desastrado com as mulheres. Qualquer Bruce Willis da vida
teria aproveitado a ocasião para tascar um belo beijo em
Sophie, mas eu me contentei em sorrir estupidamente,
tentando me convencer de que, por certo, não havia
nenhum subentendido. Sem uma gota de álcool no sangue,
eu havia ficado incapaz de seduzir uma mulher, e menos
ainda uma lésbica. Meus fãs americanos certamente me
vaiariam se descobrissem minha timidez inesperada, mas
provavelmente ignoram o que todos os franceses sabem
muito bem: os que falam demais agem de menos.
Perto do final da tarde, fiquei com vontade de esticar as
pernas e desbravar Gordes sob uma luz melhor. Então decidi
dar uma volta na cidade. Sophie aproveitou para continuar a
pesquisa sobre Dürer nesse meio-tempo.
— De todo modo, tenha cuidado —- disse-me quando eu
saía de casa.
Saí a pé, subindo alegremente a longa encosta que conduzia
a Gordes. Entrar na cidade era como entrar num parque de
diversões. Era como se nada tivesse sido deixado ao acaso,
como se a cada noite funcionários invisíveis chegassem para
repintar os muros e limpar as ruas para conservar aquela
perfeição quase irreal. Até no olhar digno dos habitantes
brilhava a exceção da cidade.
Eu vagava pelas avenidas pavimentadas, com as mãos nos
bolsos. Passei diante das imobiliárias e dos anúncios de casas
imensas com piscinas azuladas. Admirei o alinhamento de
fachadas cinza, o arranjo de telhados laranja em nível
inferior, os bosques entre as casas, a rocha branca que
aparecia recortada aqui e ali. Entrei numa loja, olhei os
souvenirs e os cartões-postais, sem realmente vê-los. Meu
espírito estava em outro lugar.
Continuei a vagar assim pelas ruas da cidade; depois, sem
refletir, cheguei diante da igreja imensa que encima a praça
central. Parei à sombra das árvores, embalado pelo silêncio e
pelo vento. Ali, mais do que em outro lugar, naquele ponto
da cidade onde os terraços dos cafés se alinhavam, Gordes
parecia esperar pacientemente pelo verão, pelas hordas de
turistas trazidas pelo sol e que fazem tanto a alegria quanto a
infelicidade daqueles que os recebem. Espetáculo ridículo
sob o olhar ancestral da antiga igreja. Fixa no tempo.
Decidi entrar na igreja quando de repente percebi em sua
sombra, do lado direito, um padre, vestido todo de preto,
saindo por uma pequena porta de madeira. Caminhava com
um passo rápido, a cabeça afundada nos ombros, como se
estivesse com frio. A lembrança me veio de imediato. Era
ele. O padre que me havia fitado no meio da multidão,
diante da casa do meu pai. Por que me havia espionado
daquele jeito? Que olhar estranho! Era como se tivesse
alguma coisa a me dizer sem ousar vir me ver.
Hesitei por um instante, depois resolvi segui-lo. Deixou a
pequena praça sombreada em meio aos cafés e entrou numa
ruela em declive. Acelerei o passo até o alto da rua, depois
retomei o ritmo normal. Não queria alcançá-lo de imediato.
Queria ver aonde ia. Cumprimentou um casal que passava,
depois virou numa pequena rua à esquerda. Desacelerei,
afastei-me um pouco, com medo de que ele tivesse me visto
e me esperasse atrás do muro; depois, quando cheguei do
outro lado da rua, inclinei a cabeça e o vi desaparecer numa
casa um pouco mais alta.
Sem realmente refletir, corri até ele e o interpelei:
— Padre!
Teve um sobressalto. Quando me viu, entendi que me
reconheceu. Lançou um olhar por cima do meu ombro e me
fez sinal para entrar.
— Posso lhe oferecer um café? — propôs com uma voz
grave.
Um pouco surpreso, aceitei e segui o homem no que devia
ser o presbitério. A decoração parecia não ter sido mudada
desde os anos 30. Todas as cores estavam desbotadas, a
madeira, escurecida pelos anos, e o papel de parede, puído.
Os móveis rústicos, sem floreios, combinavam com as
paredes. Alguns horrendos bibelôs religiosos e quadros
bíblicos de mau gosto acabavam por lançar ao local um véu
sinistro e antiquado. Porém, reinava na sala um delicioso
odor de carne assada.
Uma mulher gorda e hirsuta surgiu de repente por trás de
uma porta com um avental grotesco — parecia uma
caricatura de Giscard com a frase "Adivinhe quem vem para
jantar?"— e chinelos enormes.
— Hummm. O cheiro está ótimo, Jeanne — afirmou o padre,
dirigindo-lhe um sorriso.
— Obrigada. O moço vai almoçar aqui? — perguntou
apontando o queixo para mim.
— Não, não — respondi, já que o padre me interrogava com
o olhar. — Não vou poder ficar.
A mulher anuiu e retornou à cozinha, arrastando os pés. O
padre fez sinal para que eu sentasse à grande mesa da sala,
desapareceu também na cozinha e voltou logo depois com
duas xícaras de café. Eu estava extremamente
desconfortável. Cruzei as mãos sobre a toalha de plástico,
com quadrados vermelhos e brancos.
— Sinto muito pela casa do seu pai — suspirou, enfim,
sentando-se à minha frente.
— O senhor o conhecia? — perguntei, aflito para entender
por que ele me havia observado na véspera e por que
naquele dia me convidava para entrar em seu sinistro
presbitério.
— Fui eu quem lhe vendeu a casa.
Pronunciou essa frase como se se tratasse de uma confissão,
um pecado imperdoável. Eu, o confessor, e ele, o pecador.
Tive a impressão de estar do outro lado do confessionário.
— Entendo...
O padre levantou os olhos em minha direção. Eu teria jurado
que havia medo em seu olhar.
— Ele chegou a lhe contar por que a queria? — perguntou.
— Não — respondi interessado.
— Ah. Gosta dessa região?
Levantei as sobrancelhas. O padre estava visivelmente mais
desconfortável do que eu. Era um daqueles momentos em
que os silêncios se incrustam entre as frases, pesados e
penosos, em que os olhares não sabem onde pousar, as mãos,
onde se esconder...
— Sim — respondi estupidamente. — É muito bonita. Ainda
não vi muita coisa, mas é muito bonita. Mas o senhor ia me
dizer por que meu pai...
— O senhor deveria visitar as bories — cortou-me. — É
muito impressionante. Uma espécie de vilarejo antigo, que
remonta a três mil anos...
— Por que meu pai comprou aquela casa? — insisti ao ver
que ele tentava mudar de assunto.
O padre esfregou as mãos com um ar incomodado.
— Aquela casa pertenceu a Chagall.
Fiz uma careta de espanto.
— A Chagall?
— Sim, como muitos pintores, viveu em Gordes nos anos 40,
antes de partir para os Estados Unidos. Tinha uma casa
grande com sua mulher, mas também tinha comprado
aquela... em segredo.
— Em segredo? Para receber suas amantes? — sugeri rindo.
— Não, absolutamente.
— Mas então por quê?
— Seu pai não lhe disse nada? — espantou-se o padre,
voltando a colocar a xícara de café sobre a mesa.
— Na verdade, não... já não nos falávamos. Mas agora preciso
saber. Encontrei todas aquelas coisas estranhas no porão...
O padre arregalou os olhos.
— Deveria esquecer tudo isso, meu jovem.
— Esquecer o quê? Do que o senhor está sabendo?
— Seu pai imaginou uma porção de coisas completamente
sem sentido. Essa casa pertencia a Chagall, e isso lhe subiu à
cabeça, ele começou a imaginar coisas...
— Mas do que o senhor está falando? O que havia no porão
não tem nada a ver com Chagall...
— Esqueça tudo isso! Venda a casa, volte tranqüilamente para
seu lar, não cometa o mesmo erro que seu pai!
Eu tinha a impressão de estar sonhando. As palavras do
padre pareciam cada vez mais confusas, cada vez mais
surrealistas. Como um folhetim de má qualidade. Ele falava
cada vez mais rápido e quase elevava a voz.
Levantou-se de repente e, com um ar severo, retomou:
— Sinto muito, mas preciso preparar a missa... Posso
acompanhá-lo à porta?
Ele estava com o semblante aterrorizado. Levantei-me
também. Eu queria ter insistido, mas não ousei falar mais.
Fiquei tão surpreso com a estranha atitude do padre que não
sabia direito o que dizer. Ele me acompanhou até a rua e,
antes mesmo que eu tivesse tempo de me despedir, fechou a
porta atrás de mim.
Fiquei imóvel na calçada por alguns segundos, com uma
vontade furiosa de arrombar a porta e pedir ao padre que me
contasse tudo. Balancei a cabeça, incrédulo, e decidi voltar
mais cedo para a casa de Sophie.
Meia hora mais tarde, estávamos jantando juntos, e lhe con-
tei toda a história.
— É realmente estranho — admitiu a jornalista.
— Meu pai adorava Chagall. Mas daí a comprar sua casa em
Gordes... Fico me perguntando o que esse padre tem a
esconder. Ele estava com medo. Pânico.
— Em todo caso, isso nos dá outra pista para seguirmos:
Chagall.
No começo da tarde, recebemos o telefonema que esperáva-
mos com impaciência. O contato da Sophie no RG nos deu
uma boa notícia. Tinha conseguido identificar a fonte da
nossa misteriosa chamada. Antes de revelá-la, disse a Sophie
que estavam quites e lhe pediu que prometesse nunca mais
lhe solicitar esse tipo de serviço. Ela respondeu que um dia,
por certo, teria outras reportagens a fazer sobre o Oriente
Médio, o que visivelmente bastou para que seu interlocutor
se colocasse em seu devido lugar. Não sei o que havia entre
eles, mas Sophie o "tinha na palma da mão", como se
costuma dizer.
Ele resmungou alguma coisa que não ouvi, depois ditou a
Sophie um nome e um número, que ela passou para o nosso
bloco de notas. Ela lhe agradeceu e desligou sem acrescentar
mais nada.
— Bingo! — soltou com um olhar cheio de orgulho.
— Então? — impacientei-me.
— Nosso amigo desta manhã nos ligou de Roma, mas não do
La Stampa. O chamado vinha dos escritórios de uma
sociedade chamada Acta Fidei.
— O que é isso?
— Não faço a menor idéia! — confessou Sophie ao se levan-
tar. — Mas não vamos demorar à saber...
Subimos de novo ao primeiro andar e voltamos para a frente
do meu computador para iniciar as pesquisas. Havia-se
tornado um ritual. Eu adorava esses momentos em que ela
digitava no teclado, investigava site por site, clicava em
links, suspirava, se entusiasmava, registrava as informações
essenciais sem nem mesmo me dar tempo para ler tudo. Ela
estava em seu universo. Rápida. À vontade. Fumava um
cigarro após o outro, apertando-os na borda dos lábios para
deixar as mãos livres, e franzia os olhos. A fumaça subia pelo
seu rosto e flutuava em direção à tela. Eu a observava
recuado, achando graça e me impressionando ao mesmo
tempo, e me esforçava para ouvir seus relatos.
Em pouquíssimo tempo, descobriu que a Acta Fidei era uma
organização religiosa, domiciliada no Vaticano. Certamente
uma organização oficial, mas muito... particular.
Inicialmente, sempre que encontrávamos uma vaga
indicação sobre a Acta Fidei, a expressão estava associada
àquela do Opus Dei. Com efeito, ambas as sociedades tinham
muitos pontos em comum, sendo que a maior diferença
entre elas era a de que a primeira, ao que parecia, não
buscava publicidade nem o recrutamento maciço com o qual
sonhava a segunda.
A Acta Fidei era, portanto, um movimento de espiritualida-
de, com objetivos um pouco vagos, e se beneficiava dos
favores mais ou menos diretos do Vaticano. Era pouco, mas
já era um começo. Porém, o que despertou nossa atenção foi
que tivemos tanta dificuldade de encontrar informações
sobre a Acta Fidei quanto sobre o Bilderberg. A mesma
indefinição misteriosa reinava em torno dessas duas
organizações. E nenhuma delas tinha site oficial, o que não
simplificava as coisas.
— Estamos totalmente na sua área — sugeri. — A religião.
Você precisa encontrar alguma coisa.
Ela deu de ombros.
— Conheço o Opus Dei, mas realmente nunca ouvi falar da
Acta Fidei...
— Bom, então me diga o que sabe do Opus Dei... Porque,
quanto a mim, confesso que não sei nada a respeito.
— É uma organização religiosa do início do século passado
que não deu muito certo, que muitas vezes faz lobby cristão
integrista e que se coloca à extrema-direita dos poderes
políticos.
— Ou seja?
— Desconfia-se de que, indiretamente, tenha defendido o
regime franquista, a ditadura de Pinochet...
— Ah, mais uma vez, só gente fina!
— Durante o Irangate, descobriu-se que o Opus Dei
participava do financiamento dos Contras da Nicarágua.
Eu estava com vergonha de confessar minha falta de cultura,
mas não tinha a menor idéia do que ela estava falando. Como
fiz Literatura, suponho que talvez tenha passado tempo
demais em cima dos clássicos do século XIX e não o
suficiente em cima dos jornais...
— Sei, mas o que são os Contras?
— Um grupo de extrema-direita que se opunha aos
sandinistas na Nicarágua. E o escândalo do Irangate? Tem
idéia do que seja?
— Sim — respondi timidamente. — Mas achei que tivesse a
ver com as armas que o Reagan vendia ao Irã...
— Isso, e o dinheiro lhe servia principalmente para financiar
os Contras. Exatamente como vários lobbies de extrema-
direita e, em particular, o Opus Dei, os americanos muitas
vezes cometeram o erro de querer combater o mal com o
mal, chegando a financiar falcatruas. Um pouco como o Bin
Laden no Afeganistão.
— Certo.
— Em suma, muitas vezes o Opus Dei foi citado em casos
bastante duvidosos. A fiscalização da organização, tentacular,
é das mais suspeitas, tanto que freqüentemente lhe dão o
nome de Santa Máfia... Quando se fica sabendo que os
Contras estabeleceram uma poderosíssima rede de tráfico de
cocaína, chega a ser engraçado dizer que eram financiados
pelos queridinhos do Vaticano, não?
— Cada vez mais interessante.
— O que mais posso lhe dizer? Ah, sim, outro exemplo
maravilhoso. O Opus Dei está intimamente ligado à
associação Human Life International.
— O que seria?
- Extremistas do pro-life. Se eu lhe disser o título da bíblia
deles, você vai entender: The abortion Holocaust, Today's
final solution. Comparar o aborto ao Holocausto e as pro-
choice aos nazistas é simpático, não?
— Ah, sei, esses comandos anti-aborto que entram à força
nos hospitais...
— Exatamente! São pessoas que não hesitam em tratar
publicamente os homossexuais como criminosos
desviantes...
— OK, já deu para ter uma idéia. Não é bem o que minha
mãe chamava de "bons cristãos", mas enfim... Qual o poder
real do Opus Dei?
— Sobretudo político. Sem querer cair de novo em delírios
paranóicos, é inegável que vários governos europeus foram
infiltrados por simpatizantes do Opus Dei. E seu poder
também é econômico. O Opus Dei possui muitas sociedades
anônimas que lhe servem de anteparo...
— Os bancos do Senhor são impenetráveis...
— Não poderia dizer melhor! Um dos simpatizantes do Opus
Dei não era outro senão o arcebispo Marckincus, que
infelizmente se tornou célebre. Era presidente do Instituto
para as Obras Religiosas, o banco do Vaticano, na época do
escândalo financeiro do Banco Ambrosiano... Lembra?
— Vagamente...
— A justiça italiana obrigou o banco a pagar 260 milhões de
dólares para reembolsar os credores após o escândalo. Muitos
analistas afirmam que foi o Opus Dei que teria pago a parte
do Instituto para as obras religiosas, o que provavelmente
explicaria por que o papa se sente devedor...
— Ah, sim, agora me lembro dessa história — admiti. —
Bom, há crápulas em toda parte... Desde que haja dinheiro
em jogo. Mas, enfim, mesmo assim, isso não significa que
todo o mundo no Vaticano esteja envolvido.
— É o que se espera... O Vaticano já tem outras glórias a
assumir. Uma pesquisa recente do London Telegraph acaba
de demonstrar que o banco do Vaticano era o principal
destinatário de mais de 55 bilhões de dólares sujos
provenientes da Itália e se colocava no oitavo lugar dos
destinos utilizados no mundo para a lavagem de dinheiro. A
frente das Bahamas, da Suíça ou de Liechtenstein...
— Tudo bem, mas novamente isso não implica a
responsabilidade de todo o mundo no Vaticano...
— Claro. Mas o problema, para voltar à vaca-fria, é que hoje
o Opus Dei se beneficia da proteção direta de João Paulo II,
que lhe deve mais ou menos sua ascensão ao Vaticano.
Resultado: o Opus Dei é quase inatacável. Assiste-se a um
verdadeiro levante quando se tenta tocar nos protegidinhos
do papa. Pessoalmente, o Opus Dei me dá mais a impressão
de ser uma seita muito lucrativa do que qualquer outra
coisa...
— É bem verdade que essa é um pouco a imagem que o site
deles mostra na internet. As fotos de crianças bonitas
sorrindo, o sol brilhando... Até parece que estamos na página
dos cientologistas!
— Acho que ainda prefiro os cientologistas, porque não se
beneficiam da proteção do papa... O que realmente me dá
asco é que recrutam menores. Aliás, pais de crianças que
foram recrutadas pelo Opus Dei montaram uma associação
para informar as pessoas sobre os perigos dessa seita.
— Em suma, são pessoas admiráveis. Mas qual é o vínculo
delas com a Acta Fidei?
— Não tenho idéia — confessou Sophie.
— E se perguntarmos ao nosso amigo hacker? Afinal de
contas, ele parece gostar desse tipo de mistério...
— Boa!
Ela entrou no programa de comunicação que havíamos
baixado e se conectou com o servidor da América do Sul. A
Esfinge não estava presente, mas apareceu alguns minutos
depois, talvez avisado da nossa presença no programa.
— Bom-dia, Haigormeyer. A caçada foi boa?
— Ela só está começando... Nenhuma grande novidade por
enquanto.
— Cuidado, a gente acaba pegando gosto pela coisa.
— Estou atrás de outra pista. Talvez você tenha informações
a respeito: Acta Fidei.
— Nunca ouvi falar!
Fiz uma careta.
— E uma organização religiosa domiciliada no Vaticano e que
parece ter relações com o Opus Dei...
— Olha só! Bilderberg, Opus Dei! Você está me saindo uma
investigadora de primeira! Tenho alguns arquivos sobre o
Opus Dei, mas não me lembro de ter visto a expressão Acta
Fidei...
— Será que você poderia fazer uma pequena pesquisa a
respeito?
— Normalmente é você a especialista em questões religiosas,
não? Qual a relação entre o Bilderberg e esse outro negócio?
— O que digo a ele? — perguntou-me Sophie.
— Seja vaga — sugeri. — Por enquanto, a curiosidade bastará
para fisgá-lo.
Ela concordou.
— Que eu saiba, nenhuma relação direta. Só estou me
informando sobre algumas organizações um pouco
misteriosas, nada além disso.
— Sei. Tudo bem. Me dê um pouco de tempo e vou ver o
que consigo lhe enviar.
— Obrigada!
— Em compensação, você poderia me fazer um favor...
Sophie suspirou.
— Estava demorando —- observei.
— Precisamos dele. Vejamos o que quer...
— Se estiver a meu alcance...
— Você tem amigos na imprensa escrita?
Sophie hesitou.
— Sim, claro.
— Você teria influência suficiente sobre algum deles para
convencê-lo a publicar uma foto de George Bush que vou
enviar a você?
— Que foto?
— Uma foto anódina, que poderia ilustrar qualquer artigo
sobre Bush... No momento, serve para muita coisa.
— Se é anódina, por que você quer que seja publicada num
jornal?
— Digamos que ela tem minha assinatura... Invisível a olho
nu. Nada de mal. Apenas um pequeno desafio para mim.
— Acho que não estou entendendo...
— Vou lhe enviar um anexo com a foto, e você dá um jeito
para que ela seja publicada num jornal de grande tiragem.
Em troca, encontro a preciosa informação sobre a Acta Fidei
para você. Simples, não?
Sophie coçou o queixo. Hesitou um instante, depois voltou a
digitar.
— Você não vai enviar um vírus a eles, vai?
— Não, nada do tipo, prometo.
— Negócio fechado.
— Vou lhe enviar o anexo agora mesmo e volto assim que
tiver alguma informação para você.
E ele se desconectou. Uma janela se abriu na tela com a
mensagem: Accept incoming file transfer? Sophie clicou
em OK e esperou o download terminar.
— Que história é essa? — perguntei desconcertado.
— Suponho que seja um joguinho de hacker. Freqüen-
temente os piratas se lançam desafios desse tipo. E para ver
quem deixará sua assinatura no maior número de sites...
Quando invadem um site, deixam um rastro da sua passagem
para demonstrar poder. Nesse caso, suponho que será ainda
melhor para ele: vai deixar sua marca off-line num jornal de
grande público.
— Sua marca? — espantei-me.
— É, provavelmente ele deixou uma mensagem criptografada
dentro da foto. Um truque que só se vê com a lupa ou algo
parecido...
— É um pouco cretino, não?
— Faz parte do jogo... E acho que está fazendo isso também
para me testar — acrescentou Sophie ao acender um cigarro.
Ela se levantou e foi deitar na cama, suspirando. Com os
olhos fixos no teto, dava longas tragadas em seu Chesterfield.
— Você acha que ele pode nos pedir outra coisa mais tarde?
— Se ainda precisarmos dele, é possível...
— E você tem como mandar publicar sua foto?
— No Libé, sem nenhum problema!
Não pude deixar de sorrir.
— Bom, o que fazemos enquanto esperamos? — perguntei
apoiando-me no batente da porta.
— Não sei, mas acho que encontramos um vínculo com o
padre...
— Como? Está brincando? Não está achando que há uma
ligação entre o louco que me ligou de Roma e o padre de um
vilarejo da Provence, está?
— E por que não? Você dizia que ele parecia ter muito medo.
O que mais poderia causar tanto medo a um padre além de
uma organização misteriosa e próxima do Vaticano?
Balancei a cabeça com um ar de dúvida.
— Se há uma ligação ou não — retomou a jornalista
sentando-se na cama —, a atitude desse padre foi realmente
estranha, não?
— Claro, mas...
— E se você tentasse mais uma vez? Se voltasse lá para vê-lo?
Poderia deixar escapar a expressão Acta Fidei na conversa e
ver como ele reage...
— Não estou certo de que aceitaria me ver — repliquei —
Ele quase bateu a porta na minha cara...
Sophie levantou-se e empurrou-me em sua frente na direção
da escada.
— Vale a pena tentar. Vamos. De todo modo, não temos
nada melhor pra fazer até a Esfinge voltar a entrar em
contato.
Saímos os dois de casa.
— Vamos a pé? — propôs.
— Bom, já andei um bocado... Posso te levar na minha moto?
— Ah, não, né? Vamos de Audi!
— Qual é o seu problema com os biciclos? — perguntei-lhe
irritado.
— Faz barulho, cheira mal, não é confortável, não dá para
carregar bagagem e não estou com vontade de me segurar
em seus quadris. E ainda por cima... Uma Harley! Você não
percebe a que ponto uma Harley está fora de moda?
— Bom, não — confessei, dando de ombros. —
Contrariamente ao que você diz, é confortável, legal de
dirigir, dá para ter contato direto com a paisagem,
proporciona sensações fortes...
— Veja meu carro, Damien. E um Audi. Você não está
achando que vou preferir seu vibrador americano imundo e
gigante à mecânica irrepreensível do meu alemão.
Dei uma gargalhada.
— Tudo bem, deixa pra lá — cedi levantando os braços.
Sentei-me a seu lado, e o carro lançou-se na estrada sinuosa
que subia a Gordes. Ao sul, as linhas do horizonte das colinas
se cruzavam a perder de vista, oceanos de bolinhas de gude
verdes, entalhados com carneiros brancos.
Estávamos sozinhos e longe de tudo. Eu, de Nova York, ela,
de Paris. Havia algo irracional em nossa presença. Como se
tivéssemos sido aspirados pela cidade. Gordes. Muitas vezes
se diz que as cidades têm um coração. Aquela tinha uma
alma. E talvez até várias, que flutuavam ao longo das ruas
pavimentadas, ricocheteavam no asfalto, insinuavam-se
como o vento ao longo dos muros rugosos até a copa das
árvores, escalavam as chaminés para entrar nas casas, tal
como Asmodeu arrancando os telhados.
Dei de ombros e espantei essa impressão ridícula.
Chegamos diante do presbitério por volta das dezoito horas.
Sophie estacionou o carro dois números mais para a frente.
A rua estava calma. Nenhum passante. A maioria das casas
parecia vazia. As venezianas estavam fechadas. Talvez as
casas ficassem cheias na alta estação.
Estremeci novamente. Eu já havia tido essa estranha sen-
sação. Em Saint-Malo ou Carcassonne, fora da estação, em
pleno inverno, quando o frio mandou embora até os turistas
mais persistentes. Mas a cidade continua. Esvaziada de gente,
porém cheia de alma. Não passa disso. A cidade. Essas ruas e
ruelas formadas pelo alinhamento das casas. Venezianas
fechadas como olhos que repousam. Portas fechadas para
que as residências se calem. São as mesmas fachadas, as
mesmas calçadas, o mesmo asfalto. Mas o ar é diferente.
Calmo e aterrorizante ao mesmo tempo.
— Fico esperando você no carro — propôs a jornalista.
Levantei-me, dei uma olhada dos dois lados da rua e avancei
na direção do presbitério, mãos nos bolsos. Com a cabeça
enfiada nos ombros, o olhar fugidio, eu tinha a impressão de
ser o detetive decadente de um romance policial ruim.
Ao chegar diante da velha casa do padre, lancei um olhar ao
redor; depois, não vendo campainha, bati à porta.
Nenhuma resposta. Bati novamente, mais forte. Ainda nada.
Dei um passo para trás e levantei a cabeça para enxergar o
primeiro andar. Nenhuma lâmpada parecia acesa, mas isso
não dizia nada, pois ainda era dia. Após dois bons minutos de
silêncio, concluí que a casa estava vazia.
Virei a cabeça para o carro de Sophie. Vi seu olhar no
retrovisor. Dei de ombros e levantei os braços com um ar
impotente.
A jornalista saiu do carro e veio prontamente a meu
encontro.
— Não tem ninguém — expliquei.
Sophie esticou a mão até a porta e tentou girar a maçaneta. A
porta se abriu à minha frente.
Eu olhei para ela perplexo.
-— Não é por isso que vamos entrar, né? — admirei-me.
— Quieto! Só um segundinho. Damos só uma olhada e vamos
embora! -— insistiu avançando pela entrada.
Eu estava me preparando para protestar, mas a jornalista já
estava dentro da casa. Praguejei, voltei-me para ver se
alguém nos observava e entrei no presbitério sem fazer
barulho, fechando delicadamente a porta atrás de mim.
— Você é completamente louca! — murmurei segurando-a
pelo ombro.
— Que nada! A porta estava aberta!
— E daí? Não é razão para entrar!
— Não seja tão antiquado! — zombou afastando minha mão.
-— Vamos, depressa.
Ela se precipitou na direção da sala, onde começou a abrir as
gavetas. Eu não estava acreditando no que estava vendo.
— Sophie! — insisti, elevando a voz. — Não! Realmente não
concordo!
— Escute — replicou em seguida, lançando-me um olhar
determinado —, esse padre está escondendo alguma coisa, e
eu tenho a intenção de saber o quê. Então, ou você me
ajuda, ou sai.
Ficou imóvel por alguns segundos, sem deixar de me enca-
rar, depois girou nos calcanhares e se pôs a vasculhar.
Fiquei desconcertado. Mas disse a mim mesmo que, se a
ajudasse, provavelmente seríamos mais rápidos, e mais
rapidamente sairíamos dali. Suspirei e me pus a vasculhar
também.
Abrimos todas as gavetas e todos os armários do térreo. Mas
nada atraiu nossa atenção. Tudo estava empoeirado. Bíblias
velhas, jornais velhos, livros velhos, discos velhos de música
sacra...
Sophie precipitou-se rumo à escada, e eu a segui até o
primeiro andar. O patamar dava para três portas fechadas.
Sophie me lançou um olhar interrogativo. Dei de ombros.
Tentou a primeira à esquerda. Banheiro. Logo a fechou e
tentou a segunda. Nesse meio-tempo, avancei lentamente
para a janela, para tentar ver através das cortinas se alguém
chegava.
Ouvi passos na rua. Salto agulha. Uma jovem. Segurei a
respiração. Ela passou na frente do presbitério sem parar e
continuou até o outro lado da rua.
Sophie entreabriu a porta. Voltei-me. Descobri por cima do
seu ombro um quarto escuro, de cortinas fechadas.
Provavelmente o da empregada. Não havia grande coisa em
seu interior, alguns bibelôs, algumas fotos, roupas de mulher,
um crucifixo acima da cama com um ramo seco, preso por
trás do Cristo.
Sophie se abaixou, deu uma olhada debaixo da cama e saiu do
quarto.
Nesse instante, houve um barulho no térreo. Sophie parou
bem à minha frente, arregalando os olhos.
Três golpes. Na porta de entrada. Depois, outros três golpes.
Um silêncio. Em seguida, a voz de uma mulher que
chamava:
— Seu padre? O senhor está aí?
Ouvimos o eco de sua voz na ruela através da janela.
Continuamos sem nos mover.
Lentamente, a porta de entrada se abriu rangendo.
Segurei Sophie pelo braço, aterrorizado.
— Seu padre? — insistiu a mulher no térreo.
Ouvimos seus passos na entrada.
— Tem alguém aí?
Depois ela murmurou alguma coisa a respeito da porta aberta
e saiu batendo-a. Ouvi seus passos afastando-se na rua.
Sophie soltou um longo suspiro de alívio. Uma gota de suor
escorria em minha testa. Enxuguei-me com a manga e
murmurei:
— Vamos embora.
— Espere! — respondeu. — Falta um quarto.
Avançou na direção da terceira porta e girou a maçaneta. A
fechadura emitiu um som metálico. A porta estava trancada.
— Droga! — exclamou a jornalista.
— Não sabe destravar portas? — perguntei-lhe em tom
zombeteiro.
— Sou jornalista, não ladra! — replicou fazendo careta.
— É mesmo?
Ela se pôs a procurar no patamar, talvez esperando que a
chave estivesse lá. Passou a mão por cima de um armário,
deslizou os dedos sobre uma moldura que corria ao redor de
todo o cômodo. Mas não encontrou nada. A chave estava
em outro lugar. Provavelmente no bolso do padre.
Sophie praguejou. Depois me lançou um olhar impaciente:
— Arrombamos a porta?
Comecei a rir.
— Mas você é completamente doida? Acabou de dizer que
não somos ladrões! Vamos, vamos embora!
Cedeu a contragosto e me seguiu na escada. Chegamos ao
térreo e, enquanto eu me preparava para abrir a porta de
entrada, Sophie me interpelou:
— Espere! Aquela pequena escrivaninha debaixo da escada.
Não olhamos ali.
— Seja rápida — supliquei-lhe, voltando a deixar cair os
ombros, exasperado.
Ela abriu o pequeno móvel e começou a vasculhá-lo.
— Tem uma carta do seu pai! — exclamou de repente.
Colocou o envelope no bolso, deu uma última olhada dentro
do móvel e me alcançou diante da porta.
Inspirei profundamente.
— Bom, vamos agora? — perguntei, esperando que não hou-
vesse ninguém do outro lado.
Ela fez que sim sorrindo.
Abri a porta e passei a cabeça para o lado de fora. O caminho
estava livre. Fiz sinal a Sophie para que me seguisse, e
corremos para o carro.
Já dentro dele, Sophie virou a cabeça para mim e deu uma
gargalhada.
— Roubar um presbitério! — exclamei. — Estou com
vergonha!
— Não exagere, Damien, só pegamos uma carta!
Virou a chave e, no mesmo instante, vimos aparecer a
silhueta do padre no retrovisor.
Deslizei para o chão para desaparecer por trás do encosto do
banco.
— Olhe ele aí! — murmurei.
Sophie tirou delicadamente o carro da vaga e se lançou na
ruela.
— O que você não me leva a fazer! — reclamei endireitando-
me assim que deixamos a cidade.
— É excitante, não? E espere só, ainda não terminamos.
Lembre-se de que hoje à noite vamos à casa do seu pai!
— Estou com medo!
Mas ela tinha razão. Era excitante. Muito mais do que eu
poderia ter imaginado. Em todo caso, muito mais do que
escrever roteiros para a televisão nova-iorquina.
Alguns minutos mais tarde, chegamos à sua casa, e ela se
precipitou primeiro até a escrivaninha para abrir o envelope.
Antes de ler a carta, voltou-se para mim.
— Posso ler? Afinal de contas, é uma carta do seu pai. Talvez
você queira...
— Não, não — interrompi. — Vamos! Leia em voz alta!
Alisou a folha à sua frente, aplainou-a sobre a escrivaninha e
começou a ler:
Padre,
Agradeço-lhe por sua última carta.
Sou-lhe muito grato pela diligência e pela boa vontade com
que se dedicou a esse caso. Graças ao senhor, felizmente
pudemos concluir uma operação que nos satisfaz por
completo. A casa é maravilhosa, e esse primeira estada em
Gordes realmente me agradou, mais até, me encantou. Por
mais que eu seja esse parisiense convicto que acreditava ser
– porém, devo confessar-lhe que recentemente ele mudou -,
pude encontrar em seu acolhedor vilarejo uma tranqüilidade
e uma serenidade que nunca serão marcadas pelo tédio.
Conforme prometido, eu o manterei informado a cada
mínima descoberta. Baseio minhas pesquisas numa
caderneta de anotações de Chagall que encontrei em Paris
num antiquário. Essa caderneta faz referência a documentos
relativos a Dürer que Chagall teria escondido nessa pequena
casa. Sei que o senhor parece não acreditar muito nisso, mas,
se o mestre do maravilhoso naif, do sonho e das
premonições lhe vendeu essa casa diretamente, e se o
senhor nunca encontrou nada do gênero, talvez seja porque
esses documentos continuam nas paredes. Em todo caso, as
anotações afirmam que o pintor deixou todas essas coisas no
local depois de partir. Como sou apaixonado pela obra e pela
vida de Chagall, eis a razão para minha desculpa ideal para
buscar um pouco de repouso (merecido) em Gordes!
Reitero minha promessa: manterei o senhor e o museu de
Gordes informados a respeito de minhas futuras descobertas,
e se de alguma maneira eu puder ajudá-lo na municipalidade
ou em sua paróquia, ficarei absolutamente feliz.
Tenha, padre, a certeza de meu profundo respeito.
Sophie parou de ler, dobrou, e recolocou a carta no
envelope.
— Interessante — disse simplesmente.
— Ele é um pouco condescendente demais, não? Parece até
um dedicado paroquiano, quando na verdade jamais botou os
pés numa missa!
Sophie levantou os olhos.
— Não é essa a questão! O que é interessante é que agora
sabemos qual a relação entre Chagall e o segredo. Foi Chagall
quem colocou seu pai na pista de Dürer.
— Sim, é espantoso.
— E foi por isso que comprou a casa.
— E, obviamente, encontrou o que estava procurando.
— O manuscrito de Dürer.
— O que não entendo é a atitude do padre. Meu pai parecia
ter boas relações com ele...
— Sim, mas esta carta é anterior à descoberta do manuscrito
de Dürer. Talvez as coisas tenham começado a se complicar
quando seu pai encontrou alguma outra coisa.
— Provavelmente. Em todo caso, esse padre sabe muito mais
do que quer dizer!
Nesse momento, o ícone do programa mIRC começou a pis-
car na parte inferior da tela e um bipe ressoou. A Esfinge
estava de volta.
Sophie se precipitou para o teclado e abriu a janela de
diálogo.
— Hello, Haigormeyer. Recebeu meu arquivo?
— Sim. Amanhã vou dar sua foto a um amigo que trabalha no
Libé. Mantenho-o informado. E você? Alguma novidade?
— Nossa, e como!
- ??
— Fiz um pequeno tour num servidor estranho, abrigado no
Vaticano. Esses cibercatólicos ainda têm muito o que
aprender em matéria de segurança...
— Quem sabe você não acaba dando aula para eles?
— Por que não? No final dos anos 90 fui pego por uma
bobagem. Eu ainda não tinha dezoito anos. A DST me
propôs um acordo: ou eu me apresentava ao juiz, ou dava
aulas!
— Incrível! E então?
— Aceitei ensinar alguns truques... Mas não se preocupe,
não disse tudo a eles!
— Divertido... Então, e a Acta Fidei?
— Encontrei um servidor registrado em nome de urna
sociedade que se chamaria Inadexa. Provavelmente uma
sociedade de fachada. Mas o que é interessante é que os
nomes de Acta Fidei e Opus Dei aparecem nela em vários
documentos. Após diversas pesquisas sem grande
importância, caí nos estatutos completos da Acta Fidei.
— Excelente!
— Sim, tanto mais que neles você encontrará o endereço da
sua sede em Roma, Washington e Paris, onde estão
instalados justamente com o nome fictício de Inadexa, e,
rufo de tambores, uma lista exaustiva dos membros do
escritório nos últimos cinco anos!
-— Esfinge, você é um gênio!
— Espere, não é só isso. Tomei a liberdade de dar uma
olhadinha nessa lista e, ao cruzar as referências, descobri
algo interessante em relação aos membros do escritório da
Acta Fidei.
— O quê?
— Dos quinze dignitários da organização listados nesse
documento, oito fazem parte do Opus Dei e dois da
Congregação para a Doutrina da Fé!
— Incrível!
— E mesmo! Você encontrou peixes grandes, minha cara...
Posso lhe mandar o arquivo?
— Mas claro!
— OK. Mantenha-me informado, isso está começando a me
interessar. Segue o documento.
O download foi rápido. O texto não era muito grande.
Sophie agradeceu à Esfinge e prometeu entrar em contado
novamente no dia seguinte. O hacker se despediu de nós e
desapareceu no limbo da rede.
Por certo, a jornalista e eu tivemos o reflexo de buscar, antes
de mais nada, o nome de Giuseppe Azzaro na preciosa lista,
mas infelizmente ele não estava lá.
— Teria sido fácil demais — suspirou Sophie.
Levantei-me e fui me sentar na beirada da cama.
— Não entendi muito bem o que seu amigo hacker disse a
respeito dos membros da Acta Fidei...
— Ele disse que vários faziam parte tanto do Opus Dei quan-
to da Congregação para a Doutrina da Fé.
— Justamente, não sou especialista em religião! O que é essa
congregação?
— Nada além da Inquisição, meu caro!
— Como assim, a Inquisição? — repliquei, com dúvida. —
Ela não existe mais...
— Ah, existe sim! Mudou duas vezes de nome, só isso.
Chamaram-na de Santo Ofício no início do século e, depois
do Vaticano II, o retorno, deram-lhe esse nome ainda mais
politicamente correto de Congregação para a Doutrina da Fé.
Mas trata- se da mesma congregação pontifical.
— Está brincando?
— Nem um pouco — assegurou-me.
— Mas o que fazem? Caçam bruxas e cátaros? — ironizei.
— Não ria. Tive a oportunidade de estudar de perto a história
da Inquisição e garanto a você que não há do que rir. Não
imagina quantos judeus, protestantes, supostos hereges e
livres-pensadores foram exterminados pela Igreja católica em
nome da Santa Inquisição. Um cara como você não teria
durado muito. Durante muitos séculos, homens, mulheres e
crianças foram torturados, mutilados, empalados e
queimados vivos. No século XIV, somente um inquisidor
espanhol chamado Tomás de Torquemada foi responsável
por nove mil mortes. E as tantas vítimas da Inquisição eram
conservadas pela Igreja. Hoje fazem parte de seu magnífico
patrimônio...
— Sim, tudo bem, mas foi há muito tempo; depois, seja como
for, a Igreja fez alguns progressos...
-— Claro — admitiu —, mas o fato de a Igreja ter decidido
conservar essa organização, que é a mais antiga das
congregações da Cúria romana, ainda que com outro nome,
eu pessoalmente não acho nada engraçado... Os historiadores
estimam que as vítimas da Inquisição foram mais de cinco
milhões ao longo da História...
— Que horror! Mas continuo sem entender para que ela
serve hoje...
— Que eu me lembre, segundo sua última constituição data-
da, tem por dever "promover e proteger a doutrina e os
costumes convenientes à fé em todo o mundo católico".
— E na prática?
— Publica textos sobre a doutrina católica. Nem sempre
muito leves... Recentemente, por exemplo, sua declaração
Dominus Iesus fez o maior alvoroço no mundo cristão. O
cardeal Ratzinger escreveu que "assim como existe apenas
um Cristo, também existe apenas um Corpo, uma única
Esposa: uma única Igreja católica e apostólica".
— E então?
— Uma maneira muito elegante de mandar às favas o resto
do mundo cristão, ao qual a Congregação não reconhece
nem mesmo o estatuto de Igreja. A julgar pelo fato de que o
Vaticano não é assim tão ecumênico quanto João Paulo II
tenta mostrar ao organizar grandes reuniões bastante
midiatizadas...
— E isso é tudo o que faz essa congregação?
— Não, ela também condena textos que julga inadequados à
doutrina católica e às vezes até excomunga seus autores.
— Mesmo hoje em dia?
— Claro. A última excomunhão de que me lembro data de
1998. Tratava-se de um teólogo jesuíta do Sri Lanka. Ironia
do destino, os primeiros inquisidores eram jesuítas...
— Estou um pouco surpreso — confessei.
— Você é praticante?
—- Como assim?
— Estou perguntando se você acredita em Deus.
Fiz uma careta de hesitação.
— Não sei muito bem... Meus pais eram católicos, fui criado
nesse meio. Meu pai nunca ia à igreja, mas minha mãe era
bastante religiosa...
— Sim, mas e você?
— Francamente, não sei. Depois de certo tempo, eu já estava
um pouco cheio de acompanhá-la. Depois ela morreu. Não
me faço essa pergunta, é mais prático.
— Ah, sim, é prático!
—- Acho que há muitos como eu. E você, é praticante?
— Não — respondeu logo. — Atéia roxa.
— Roxa? Ah. Porque dá para ser um pouco atéia ou atéia
roxa?
— Digamos que quanto mais pesquisas faço sobre as religiões,
mais elas me desagradam.
— O que lhe desagrada é Deus ou as religiões?
— Mais as religiões, é verdade...
— Olhe, talvez seja melhor assim para uma jornalista
especializada no assunto. Pelo menos, você não tomou
partido de nenhuma delas...
— Detesto todas...
— Bom, nesse caso, você não deve ser tão objetiva assim...
Ela sorriu.
— Espero não chocá-lo demais com essas histórias sobre a
Igreja — retomou com um ar interrogador.
— Que nada, encontrei na vida um ou dois padres
extraordinários, mas nunca me deixei iludir pela
exemplaridade das finanças do Vaticano.
Deu de ombros. Entendi em seu olhar o que ela estava
querendo dizer. As falcatruas financeiras da Igreja moderna
não chegam aos pés do que foi feito no passado... Lembrei-
me então de uma frase que meu amigo Chevalier me dissera
anos antes: "As seitas de hoje serão as Igrejas de amanhã. Em
breve, os cientologistas e outros crápulas da mesma espécie
terão adquirido uma reputação respeitável, e as multidões
terão esquecido seus crimes, como tentamos esquecer
aqueles das grandes religiões atuais, que, no entanto, outrora
causaram tantas mortes..." Ao que sua mulher, que era muito
mais religiosa e praticante do que nós, respondera que a
Igreja também havia salvado muitas pessoas... Mas quantos
será preciso salvar para desculpar as mortes?
— Ouça — retomou —, tudo o que podemos concluir por
enquanto é que, se os membros da Acta Fidei fazem parte
seja do Opus Dei, seja da Congregação, trata-se de ativistas da
fé extremamente... motivados, isso é tudo.
-— Em suma, gente que não brinca em serviço...
— De fato, no que se refere à Congregação, não é mesmo do
tipo de brincar em serviço. E, quanto ao Opus Dei, como eu
lhe dizia há pouco, realmente não estão pra brincadeira...
— Resumindo, você está me dizendo que há um cara em
Roma que é tanto um descendente dos inquisidores quanto
uma espécie de supersanto mafioso e que tem o número do
meu celular? Uau! Socorro!
Sophie levantou as sobrancelhas.
— Não é mesmo muito tranqüilizador. Mas o que nos prova
que o cara que ligou para você realmente faz parte da Acta
Fidei? O nome dele não aparece nos documentos...
— Seu nome? O que sabemos do seu nome? Certamente ele
não me deu seu verdadeiro nome...
— Sim, mas mesmo que seja realmente um membro da Acta
Fidei, o que nos prova que aja como tal?
— Grosso modo, não sabemos de nada — tive de concluir.
— Grosso modo — retificou —, tudo o que sabemos é que há
uma relação entre o segredo do seu pai, o Bilderberg e um
eventual membro da Acta Fidei.
— É pouco...
— É um começo.
Suspirei.
— Só nos resta esperar que haja um pouco mais de indícios
no porão...
— Pois é, justamente — replicou Sophie ao se levantar —,
vamos preparar nosso arsenal do perfeito ladrão e...
Segui-a maquinalmente, mas todo o meu espírito ainda esta-
va preocupado com as sucessivas revelações pouco
tranqüilizadoras que nos reservava o segredo do meu pai. Eu
me perguntava se simplesmente não seria melhor
entregarmos tudo aquilo à polícia. E provavelmente é o que
eu teria feito se não houvesse a Sophie...
Capítulo Cinco
Quando realmente nos demos conta do grau de imprudência
da nossa excursão, já era tarde demais para dar meia-volta.
Estávamos ridículos com nossas mochilas e lanternas de
bolso em meio a uma das ruas mais estreitas da cidade,
mas tínhamos tanta pressa em descobrir mais sobre meu pai
que nos esforçávamos para não pensar no assunto.
Eram quase duas da manhã quando chegamos diante do
portão de ferro do jardim. Havíamos deixado o carro três
ruas mais adiante e aguardado que todas as janelas da
vizinhança se apagassem, esperando que os vizinhos
tivessem o sono suficientemente profundo para não ouvir os
ridículos ladrões que éramos. A carreira de Sophie
provavelmente a preparou melhor para esse tipo de coisa,
mas, para mim, contando a excursão na casa do padre, aquele
era apenas meu segundo assalto! Seja como for, o fato de eu
ter guardado uma cópia das chaves simplificava a tarefa.
Quase não havia estrelas no céu, e estava tão escuro que tive
dificuldade em encontrar a fechadura do portão. Sophie fez
sinal para que eu me apressasse. Um carro se aproximava.
Atrapalhei-me um pouco com as chaves e consegui abrir o
portão pouco antes que os faróis do carro nos iluminassem.
Voltei a fechar o portão atrás de Sophie, e nos abaixamos
enquanto o veículo passava. Durante um breve instante,
perguntei-me se ele não ia parar na frente da casa, mas o
carro continuou e desapareceu no final da rua. Dei um
suspiro de alívio e avançamos lentamente em direção à
porta, tentando não fazer barulho no chão de cascalho.
— Somos mesmo uns loucos! — cochichei inclinando-me
para Sophie.
Ela me fez sinal para ficar calado e me empurrou para a
porta. Tirei o lacre da polícia, uma simples fita plástica, abri a
fechadura e finalmente entramos na casa.
— Precisamos tentar manter o feixe de luz das lanternas vira-
do para o chão — murmurou Sophie.
— Certo, chefa.
A casa ainda estava tomada pelo calor do incêndio, e nela
reinava um cheiro muito forte de queimado.
Dirigi-me para a porta que dava para a escada do porão. No
mesmo instante, o celular tocou em meu bolso, e Sophie e
eu tivemos um sobressalto.
— Merda!!! — exclamei tentando pegá-lo o mais rápido
possível.
Reconheci o número de Chevalier e atendi fechando os
olhos.
— Alô?
Era mesmo François. Tive um reflexo um pouco estranho de
me agachar, como se isso pudesse me proteger mais...
— E... François? Não posso falar muito alto — sussurrei. —
Consegue me ouvir?
— Sim, sim — assegurou-me.
Sophie pareceu mais tranqüila. Fez sinal para que eu
desligasse minha lanterna de bolso e veio sentar-se ao meu
lado.
— Você viu que horas são? — retomei.
— Vi, sinto muito, mas achei que você não se deitasse muito
cedo, com todas essas suas histórias. E depois, se estivesse
deitado, certamente estaria com o celular... Na verdade,
pensei em deixar uma mensagem... Estou incomodando?
— Sim, quer dizer, não, não exatamente... Tem alguma
novidade?
Ouvi que ele suspirava. Franzi as sobrancelhas.
— O que foi? — insisti, tentando não elevar o tom de voz.
— Digamos que caí numa estranha coincidência a respeito do
Bilderberg.
— Como assim? — pressionei-o.
— Aparentemente, acaba de haver uma espécie de cisma
entre os membros... Há apenas quinze dias. Um cisma bem
grande. Grosso modo, uma das duas facções fugiu com o
caixa. Foi um alvoroço monstruoso. E deram a entender que
minhas perguntas não eram bem-vindas. Aliás, nem um
pouco bem-vindas. Esses caras não são de brincadeira. Não
sei onde você foi meter o nariz, mas essa história fede!
— Achei que eram apenas pessoas que faziam conferências...
— Eu também achava. Talvez até eles achem isso. Mas parte
deles parece ter perdido a cabeça. Não consigo saber até que
ponto nem por que motivo. Tudo o que sei é que meu...
informante utilizou o termo "muito perigoso" e me pediu
que esquecesse tudo. Isso até me dá vontade de investigar
mais de perto, mas também me dá vontade de preveni-lo,
Damien...
— Sei...
— Não, você não sabe de nada! Não estou brincando! Se o
cara com quem falei ao telefone usou a palavra "perigoso" é
porque realmente é muito perigoso...
— OK, OK, já entendi. De todo modo, acho que já deu para
eu ter uma idéia...
— Damien, seria mais prudente você vir a Paris para conver-
sarmos. Temos de avisar os tiras...
— Não! — protestei e, desta vez, já não murmurava. — Não,
você não vai falar disso a ninguém, François, a ninguém, está
me ouvindo? Se daqui a uma semana eu não tiver mais
nenhuma informação a respeito, então pensaremos em
prevenir as autoridades, mas, enquanto isso, prometa que
não vai dizer nada! OK?
Ele suspirou.
— Você tem minha palavra. Acho isso totalmente insensato,
mas você tem minha palavra.
— Tenho minhas razões, meu velho. Confie em mim.
Também fiquei sabendo de umas coisas sobre eles. Mas esses
que provocaram o cisma, você sabe quem são?
— Evidentemente não tenho essa informação, Damien. Mas,
como vê, você está mexendo em casa de marimbondo.
Sendo assim, um bom conselho é que você seja prudente —
concluiu antes de desligar.
Sophie apertou meu ombro.
— Você ouviu? — perguntei-lhe.
— Mais ou menos.
— Então, o que fazemos?
— Para começar, vamos entrar nesse porão, certo?
Aceitei e passei à sua frente. Já não havia escada para descer.
Desloquei o feixe de luz da minha lanterna para o interior do
cômodo. Estava tudo escuro, havia destroços e cinzas por
toda parte. Agachei com as costas voltadas para a abertura e
deslizei no vazio para descer.
— Cuidado!
Sophie segurou meu braço e, com a outra mão, iluminou o
chão embaixo de mim para que eu pudesse ver onde ia
colocar os pés. Felizmente, a altura não era tanta. Pulei no
porão.
— Que calor faz aqui dentro! — exclamei enxugando as
mãos.
— Vou descer também — sussurrou Sophie.
— Não, fique aí em cima, vai me ajudar a subir. É inútil que
venha passar calor aqui comigo. Me dê as luvas.
Ela abriu sua mochila e me estendeu as luvas de jardinagem
que havíamos trazido e que, segundo esperávamos, deviam
permitir que não nos queimássemos.
O bombeiro não mentira. As chamas consumiram quase
tudo. Ao final de alguns minutos, entendi que era inútil
procurar por muito tempo. Todavia, encontrei três objetos
que sobreviveram, num estado bastante bom para que eu
pudesse levá-los. O primeiro eram os restos de uma
caderneta de anotações, milagrosa e parcialmente poupada,
talvez porque tivesse uma espessa capa de couro. Os outros
dois eram os quadros de Dürer e de Da Vinci. O vidro estava
completamente escurecido, mas, aparentemente, tinha
protegido ambas as reproduções. Havia pedaços de papel
aqui e acolá, mas não tive coragem de pegar essas migalhas
que provavelmente não conseguiríamos decifrar. E devo
confessar que tinha bastante pressa em deixar a casa.
Coloquei delicadamente as três relíquias em minha mochila
e decidi subir de volta ao térreo.
— Acho que não encontraremos nada melhor — expliquei a
Sophie ao levantar os braços.
— Já é alguma coisa... Ainda que eu não veja muito bem para
que os dois quadros poderão nos servir...
— Parece que havia anotações do meu pai na gravura. Daqui
não consigo enxergar, mas veremos melhor na sua casa.
Ela me ajudou a subir. Saímos do imóvel em silêncio,
recolocando cuidadosamente o lacre da polícia na porta, e
caminhamos a passos rápidos até o carro. Ninguém parece
ter-nos visto, e dei um longo suspiro de alívio quando
finalmente Sophie deu a partida no Audi.
A noite escura pesava sobre as ruelas de Gordes. Halos de luz
amarela inchavam com dificuldade em torno dos postes,
como bolhas de ar num aquário gigante. Toda a cidade estava
adormecida. O carro se insinuou nas vielas asfaltadas até a
grande descida que conduzia ao vale escuro.
Quando finalmente chegamos diante de sua casa, vi o rosto
de Sophie crispar-se. Ela freou bruscamente e apagou os
faróis do Audi.
— O que você está fazendo? —- perguntei-lhe surpreso.
— Tem um carro no meu jardim!
Inclinei a cabeça. A casa estava a poucos metros. Os ramos
da árvore escondiam a fachada. Avancei mais um pouco em
meu banco e também vi o veículo estacionado na frente da
casa. Não consegui distinguir a placa, mas tinha quase
certeza: era a longa berline preta dos meus dois agressores.
— Os corvos!
— Merda! — gritei batendo no painel. — Merda, merda! O
que vamos fazer?
Sophie havia parado o Audi bem na frente da porteira que
fechava a propriedade. O silêncio que se instalou pareceu
durar uma eternidade.
A porta da casa se abriu, e um homem alto, vestido com uma
longa capa preta, surgiu no patamar.
Sophie logo engatou a marcha à ré e fez o carro recuar até a
rua. Os pneus derraparam na terra.
O homem se precipitou na direção da berline. Um segundo
corvo saiu da casa. De repente, houve um forte estampido,
seguido de um barulho metálico, e levei um bom segundo
para me dar conta de que estavam atirando em nós. O
segundo homem corria em nossa direção, com o braço
esticado à sua frente, e logo outra deflagração ressoou,
precedida de um grande flash branco. A bala estourou o
retrovisor direito.
— Merda! — repeti estupidamente, abaixando-me por trás
do painel.
Sophie voltou a acender os faróis e pisou fundo no acelera-
dor. O Audi partiu como um furacão, cantando pneus. Já
bem longe do centro da cidade, não havia nenhum poste de
iluminação, e mal conseguíamos distinguir a beira da estrada.
Uma estrada sinuosa. Perigosa. Onde meu próprio pai havia
encontrado a morte. Um arrepio de angústia percorreu
minha coluna. Fechei os olhos e tentei espantar essa
imagem. A imagem do meu pai inanimado no metal
retorcido. Seu corpo ensangüentado.
Sophie girava o volante com manobras rápidas para evitar o
precipício. O carro não parava de derrapar, como se
fôssemos perder a estrada, mas eu sabia que ela
provavelmente se sairia melhor do que eu. Pelo que eu havia
entendido, ela amava velocidade e, em todo caso, conhecia
bem o próprio carro. Agarrando-me ao encosto do assento,
voltei-me para ver nossos perseguidores. A longa berline
acabava de ultrapassar a porteira e se lançava na estrada atrás
de nós.
— Segure-se! — gritou Sophie, pouco antes de fazer uma
curva fechada à esquerda.
Fui lançado contra a porta, batendo violentamente o braço.
Na saída da curva, voltei rapidamente para o assento e prendi
o cinto de segurança fazendo careta. No mesmo instante,
houve novo disparo. Depois outro. Um estampido seco e
metálico seguira as duas detonações. As balas se incrustaram
na lataria.
Lancei um olhar a Sophie ao meu lado. Com os lábios
contraídos, as sobrancelhas franzidas, ela tentava dirigir o
mais rápido possível, acelerando tanto quanto a visibilidade
lhe permitia. O Audi era sacudido ao ritmo das acelerações
violentas. Eu estava aterrorizado. Não via saída possível. Eles
acabariam por nos alcançar naquela longa estrada escura.
Os faróis da berline aumentavam no retrovisor interno.
Verifiquei o velocímetro. Sophie andava a quase cem por
hora. Na noite escura. Numa pequena estrada sinuosa,
rodeada de declives abruptos. O menor erro seria fatal. E
nossos perseguidores se aproximavam.
— E mais fácil para eles, estão aproveitando nossos faróis! —
resmungou Sophie, que também olhou no retrovisor.
— Por acaso você deixou sua arma no porta-luvas? —
perguntei.
— Não, tenho uma em casa e outra em Paris.
— Que ótimo!
Outra curva à direita. Ainda mais fechada. Agarrei a alça em
cima do meu assento e decidi não largá-la mais. Na saída da
curva, Sophie voltou a acelerar, mas a berline continuava
avançando.
— Estão se aproximando!
Ela aquiesceu.
— Ele não está atirando mais — acrescentou. — A munição
deve ter acabado.
— Sim, mas vão nos empurrar para o precipício! —
murmurei.
Sophie apagou os faróis. Já não se via a estrada. Praguejou e
os acendeu logo em seguida.
— Não tem jeito!
Nesse instante, a berline bateu em nossa traseira. O Audi
saltou para frente e continuou sendo empurrado. Bati com a
cabeça no encosto. Sophie recuperou a direção. Fez um
desvio para a esquerda para evitar um guardrail. Estávamos
passando sobre uma ponte. A berline freou atrás de nós,
evitando por pouco a cancela. Vi seus faróis ziguezaguearem.
Um breve instante de descanso. Depois nos alcançaram
novamente. Tentaram se colocar do nosso lado, para nos
fazer capotar. Sophie jogou violentamente o volante para a
direita e para a esquerda. Em alguns momentos, chegamos a
sair de leve da estrada, e o carro foi sacudido por montículos
das beiradas de terra.
A berline conseguiu enfim passar para o lado direito. Pude
ver o rosto do condutor, bem do meu lado. Cabelos pretos,
curtos, cerca de quarenta anos, mandíbula larga, queixo
duro. Um autêntico matador de aluguel. Um corvo.
O barulho das latarias se encostando, o pânico, a velocidade,
tudo se misturava. Sophie virou à direita e bateu na berline.
Houve um grande feixe de faíscas, e minha porta afundou de
um só golpe. Mas a berline era mais pesada e lentamente nos
empurrou de novo para a beira da estrada.
Ramos de vegetação começaram a bater no pára-brisa diante
de Sophie. Logo íamos cair no precipício. Gritando, agarrei o
painel com as duas mãos.
Poucos centímetros antes que nossas rodas ficassem sem
chão, quando o carro era sacudido pela aspereza do talude,
fomos salvos por uma curva providencial à esquerda. Sophie
virou no último segundo, e a longa berline emparelhada
conosco não pôde virar rápido o suficiente.
Houve um ruído estridente de pneus no asfalto, depois o
carro se enfiou numa árvore numa pancada ensurdecedora.
Sophie recolocou o Audi no meio da estrada, e me endireitei
bem a tempo de ver a explosão escarlate alguns metros atrás
de nós. Permaneci assim por longos segundos, com os olhos
arregalados, incrédulo.
— Puta que pariiiuuu! — soltei enfim, deixando-me cair no
assento.
Sophie manteve os olhos fixos na estrada. Ainda dirigia em
alta velocidade, como se a perseguição não tivesse
terminado.
— Acabou, Sophie, vai mais devagar.
Deu um longo suspiro e desacelerou. Lançou um olhar nos
retrovisores. As chamas se distanciavam atrás de nós.
— Quem você acha que eram? — perguntou. — Bilderberg
ou Acta Fidei?
— Não sei, mas aposto que são os caras que jogaram meu pai
no precipício.
Fechou os olhos para concordar. Ficamos em silêncio um
longo momento, cada um perdido em seus pensamentos e
medos. O carro entrou na cidadezinha de Cabrières.
— Vamos parar? — perguntou.
— Não sei.
Eu realmente não estava conseguindo refletir. Minhas mãos
tremiam. As de Sophie ainda estavam coladas no volante.
Lentamente, estacionou no acostamento. Estávamos bem no
centro da cidade, à sombra das grandes árvores que ladeavam
uma mureta de pedras cinza.
O barulho do motor ressoava na rua. Mas eu ainda ouvia os
batimentos do meu coração. Engoli a saliva.
— Vamos direto para Paris — decidiu calmamente, sem tirar
os olhos da pista.
— Como?
— Vamos voltar! — repetiu.
— E suas anotações?
— Está tudo no meu laptop, no porta-malas.
— E o meu computador! — exclamei. — Deixamos em casa!
Ela deu de ombros.
— Meus roteiros! -— protestei.
— Peça de manhã à seu agente que os envie de novo para
você por e-mail!
— E minha moto? — continuei com um tom cada vez mais
desesperado.
Lentamente, um sorriso se desenhou nos lábios dela.
— Não tem graça nenhuma! — protestei. — Aliás, se
tivéssemos pegado minha moto, teríamos escapado deles
com muito mais facilidade!
Deu uma gargalhada. E logo me juntei a ela. A tensão desfez-
se de repente. Eu estava quase com vontade de gritar.
— É só você pagar para alguém vir buscá-la.
Dei um suspiro.
— Sophie, não sei como vamos sair dessa merda! Os dois
caras que nos seguiram devem estar mortos, sua casa está
escancarada, demos no pé sem avisar; em suma, até um cego
veria que estamos envolvidos! Os investigadores virão atrás
da gente.
— Cada coisa em seu tempo. Por enquanto estamos tentando
escapar com vida, certo? Depois a gente cuida dos tiras.
Além do mais, talvez seja até bom não ficarmos por aqui.
Como você mesmo disse, eles virão atrás da gente, e
precisamos refletir.
— Sophie, estamos na merda! -— insisti.
— Melhor estar na merda do que no túmulo. Esses caras
tinham a intenção de nos matar!
Ela retomou o volante e partiu com o carro.
Afundei no assento, levando as mãos às têmporas. Seja como
for, ela tinha razão. Não tínhamos outra escolha. Mas era
duro aceitar.
Massageei a nuca, depois olhei para Sophie ao meu lado. A
mulher que acabara de salvar minha vida. Gotas de suor
escorriam por suas têmporas, mas ela estava bonita,
simplesmente bonita à luz do painel do carro.
— Obrigado — murmurei.
Ela sorriu e segurou minha mão na sua, apenas por alguns
segundos. Senti-me tão vulnerável!
— Onde você aprendeu a dirigir desse jeito?
Ela virou a cabeça e me fitou diretamente nos olhos.
— No Líbano. Outra hora te conto.
Depois, voltou a olhar para a estrada.
— Tem certeza de que quer ir direto a Paris? São quase três
da manhã. Seu carro está detonado. São mais de oito horas
de estrada... Vai agüentar?
— Vamos nos revezando na direção, tomamos um café. E
meu carro já viu coisas piores.
Observei-a arregalando os olhos. Sophie sempre com uma
resposta para tudo. Às vezes eu tinha a impressão de que ela
me considerava um garoto. De resto, certamente não estava
nem um pouco errada. Em todo caso, enfrentava as situações
bem melhor do que eu.
— Tem som neste carro?
Ela me indicou o porta-luvas. Encontrei a frente de um rádio
e alguns CDs.
-— Supertramp, Led Zeppelin, Barbara... Grease — enunciei.
— Não tem grande coisa, mas, pelo menos, é eclético.
Confesso que estou precisando de música. Vamos de Led?
— Tem certeza?!? — zombou.
— Ei, são seus CDs!
— E daí? Tenho o direito de achar engraçado que você esco-
lha este em particular — insistiu.
— Por que é engraçado?
— Porque você tem bem cara de quem ouve Led Zeppelin.
Aposto que tem a coleção completa do Deep Purple, do
Black Sabbath, do Rainbow...
Fiz uma careta.
— Não, me falta um Black Sabbath... Isso incomoda você? —
perguntei um pouco ofendido.
— Nem um pouco. Prova disso é que tenho um CD do Led
Zep no meu carro! Mas digamos que o clichê Harley
Davidson e rock pesado é uma bela cena, não?
— Não escuto só rock pesado! — defendi-me. — Adoro
Genesis e Pink Floyd... Higelin, Brassens... Tenho um gosto
bastante variado!
— E bem moderno! — zombou.
— Pode falar o quanto quiser! O CD mais recente no seu
carro é do Supertramp!
— E verdade... Ah, pertencemos a uma geração bem triste,
não é? Mas tenho coisas mais modernas na minha mala que
ficou em Gordes.
— Nem pensar!
— Bom, vá em frente, coloque o Zeppelin para nós... —
concluiu ao ligar o rádio.
O horizonte sombrio de Vaucluse distanciou-se ao ritmo das
guitarras de Jimmy Page, e, após alguns trechos, ao apoiar a
cabeça contra o vidro e deixar meu olhar se perder na
paisagem noturna, meus olhos embaciaram-se de lágrimas.
Virei ainda mais a cabeça para que Sophie não me visse. Era
a segunda vez em dois dias que eu chorava, e decidi
responsabilizar o estresse e o cansaço por isso, embora, no
fundo, eu soubesse que uma perturbação mais profunda
estava ocorrendo. Talvez eu finalmente devesse enterrar
muito mais do que meu pai...
Quando Robert Plant terminou a última canção do CD com
sua voz vibrante e aguda, já estávamos na rodovia. Tive de
lutar para ficar acordado. Foi uma noite estranha, da qual só
me lembro parcialmente, talvez por ter adormecido várias
vezes. Hoje as lembranças dos postos de gasolina, dos
pedágios e das máquinas de café se misturam na minha
cabeça. O olhar das pessoas, o carro desconjuntado, nossos
rostos desnorteados... Quando esgotamos nossa reserva de
CDs, Sophie decidiu sintonizar o rádio na estação FIP, o que
aumentou ainda mais essa impressão de irrealidade. As
músicas programadas durante a noite nessa rádio têm algo de
estranho. O sono, os faróis em sentido contrário e a fumaça
dos cigarros de Sophie deixavam meus olhos ardidos. Nossas
conversas eram entrecortadas por longos silêncios. Cada um
de nós pegou o volante duas vezes alternadamente, mas me
mostrei totalmente incapaz de dirigir tão rápido quanto ela.
O sol já se levantara havia tempo quando chegamos a Paris.
A fumaça branca dos grandes incineradores de Ivry, o fluxo
incessante da periferia, as ameias enevoadas das fileiras de
imóveis, os telhados azulados e em cascata, os outdoors, os
grafites, as ferrovias na parte de baixo. Um acolhimento na
boa e devida forma. Depois, cortando a cidade como duas
grandes benevolentes irmãs, Eiffel e Montparnasse, do outro
lado, pareciam tremer à luz matinal. Sempre de pé.
Sophie bateu no meu ombro para me tirar do torpor.
— Tem preferência por algum hotel? — perguntou-me. —
Eu ia propor a você ficar na minha casa, mas me pergunto se
é prudente.
Eu tinha dormido tanto que sua pergunta fez muitos desvios
até chegar a meu cérebro.
— Bem, alguma preferência? Não. Um hotel onde a gente
possa dormir de manhã...
Ela sorriu.
— Conheço um hotel tranqüilo e agradável no VII arrondis-
sement, mas é um pouco caro.
Virei os olhos para ela.
— Sophie, dinheiro não é problema.
Ela deu uma gargalhada.
— Então podemos pegar dois quartos separados?
Franzi as sobrancelhas.
— Se quiser...
— Brincadeira! — disse colocando a mão sobre meu ombro.
Eu não sabia se sua brincadeira se baseava no preço que
custariam dois quartos separados ou no fato de que podíamos
ficar no mesmo quarto, e recusei-me a tentar entender. De
todo modo, Sophie se divertia comigo desde o dia em que
tive a infelicidade de achar sua homossexualidade atraente, e
eu estava prevenido.
Entramos no engarrafamento da manhã parisiense e pouco
mais de uma hora depois dormíamos lado a lado, em duas
camas iguais no último andar do hotel Le Tourville, tentando
esquecer a morte que quase encontramos nas estradas da
Provence.
Capítulo Seis
Quando acordei no meio da tarde, Sophie estava sentada do
outro lado do quarto, debruçada sobre uma mesinha de
madeira. O sol desenhava grandes raios brancos através das
cortinas claras. Atrás delas, ouvia-se o barulho distante
das ruas parisienses. Era um quarto grande e luxuoso, cor de
areia, com móveis escuros e tecidos ocre. Por toda parte
onde meu olhar pousava surgiam flores: nos vasos, nas
mesas, ao longo das cortinas... As coisas da Sophie e as
minhas estavam negligentemente no chão, ao lado das
camas. Não havíamos tido tempo de arrumá-las quando
chegamos de madrugada. Ergui-me até a cabeceira da cama e
sentei-me contra a parede.
Sophie virou lentamente a cabeça para mim. Em sua frente,
vi a caderneta de anotações do meu pai e os dois quadros.
— Venha! — convidou-me ao ver que eu havia acordado.
Espreguicei-me resmungando, ofuscado pelos raios de luz.
Minhas costas doíam muito.
— Estou faminto! — reclamei.
— Venha ver, Damien! Seu pai havia escondido o manuscrito
completo de Dürer atrás da gravura Melancolia.
Extraordinário!
O manuscrito de Dürer. Meu pai. Tudo me voltava como a
lembrança de um horrível pesadelo. Sentei-me na beira da
cama, bocejando. Lancei um olhar para o despertador do
criado-mudo. Quatro da tarde.
— Permite ao menos que eu tome uma ducha? — ironizei.
— Como quiser! Tem um sanduíche para você no frigobar.
Seu celular não parou de tocar a manhã toda — acrescentou
antes de voltar a mergulhar no estudo do documento à sua
frente.
— Ah, é? — espantei-me. — Não ouvi nada.
— Tomei a liberdade de ativar o silencioso e colocá-lo para
vibrar.
—- Você viu quem chamava?
— Não todas as vezes. Mas quase sempre era o Dave não sei
o quê, seu agente, e um número do interior. Fiquei me
perguntando quem poderia ser, verifiquei na internet, e
eram nossos amigos da polícia...
Ela levantou a cabeça para mim e deu um largo sorriso.
— Merda! — exclamei, jogando-me de novo na cama.
Os tiras já estavam atrás de nós, e Dave devia estar à beira da
histeria do outro lado do Atlântico. Não apenas eu não havia
corrigido nenhum dos roteiros, como também já não os
tinha comigo... Meu computador ficara em Gordes.
— Sabia que estamos no bairro onde cresci? — perguntei.
— Sim. E daí?
— Não, nada. E que isso não me traz necessariamente boas
lembranças, só isso. A vantagem é que conheço bem as
redondezas... Bom — retomei ao me levantar —, vou ao
banheiro.
Após uma longa ducha e um sanduíche mais gostoso do que
eu esperava, fui me instalar ao lado de Sophie, entre duas
portas-balcão que davam para um pequeno terraço
particular, e ela me contou, toda empolgada, o que havia
descoberto:
— Olhe, é o manuscrito original!
Peguei delicadamente o manuscrito. Não era muito pesado e
parecia bastante frágil. Notei que tinha quase meio milênio.
Quantas coincidências sucessivas permitiram àquelas poucas
folhas atravessar os séculos para chegar justo a mim? Quase
tremi à idéia de possuir essa obra única, como se ela nos
ligasse através do tempo a seu autor desaparecido.
O velino estava rachado, e nele havia muitos vestígios de
umidade. O manuscrito continha cerca de trinta páginas,
unicamente frontais, com uma escrita clara, mas velada em
alguns lugares. Não possuía nenhuma iluminura, mas
desenhos nas margens, traçados com tinta vermelha. Virei
algumas páginas, ouvi o ruído do papel. Pelo que pude julgar,
parecia realmente autêntico.
— Isso não é tudo. No verso da Gioconda há uma referência.
Está escrita ao contrário, portanto, suponho que tenha sido
obra do seu pai.
— Ou de Leonardo da Vinci — ironizei.
— Muito estranho. Pesquisei na internet e se trata da
referência a um microfilme da Biblioteca Nacional.
—- Este hotel tem acesso à internet? — espantei-me.
— Claro! Pare de me interromper! Temos que ir à Biblioteca
Nacional para ver que microfilme é esse. Quanto ao
manuscrito de Dürer, ele é... Como posso dizer? Instrutivo!
Não entendo tudo, precisamos urgentemente encontrar um
dicionário alemão- francês!
Ela estava completamente agitada, e eu achava isso
encantador e enervante ao mesmo tempo. Sobretudo, eu
tinha dificuldade em perceber que esse manuscrito de várias
páginas havia sido redigido no século XVI por um pintor
alemão...
— Por enquanto — continuou —, o que entendi é que
Leonardo da Vinci havia descoberto o mistério da pedra de
Iorden, e que esse mistério teria sido confiado a Dürer, que
de certo modo se referia a ele em sua gravura Melancolia.
Está me acompanhando?
— Parcialmente...
— A parte que estou decifrando fala de uma mensagem que
Jesus teria legado à humanidade... Não entendi tudo, mas é
apaixonante!
— Achei que você fosse ateia...
— O que uma coisa tem a ver com a outra?
— Se você é ateia, o que numa mensagem de Jesus pode
interessar a você?
— Não é porque não acredito em Deus que questiono a
existência de Jesus! Aliás, tenho certeza de que era um cara
extraordinário. Não precisava que fizéssemos dele o filho de
Deus para que suas palavras, por mais deformadas que sejam
atualmente, tenham uma importância filosófica real.
— Se você está dizendo... O que mais descobriu? —
pressionei-a ao examinar o manuscrito por trás de seu
ombro.
— Escute, Damien, me dê um dicionário e algumas horas que
lhe direi mais.
— É sobre a Gioconda!
— Ah, sim, a Gioconda! Olhe — disse-me mostrando o qua-
dro em lamentável estado. — Não percebe nada?
— Bom, está meio chamuscado? —- brinquei.
— Olhe bem! Há leves marcas de lápis por toda parte.
Pequenos círculos. Eu os contei. São cerca de trinta
pequenos círculos espalhados aqui e ali pelo quadro.
Aproximei-me e, de fato, vi os traços que pareciam ter sido
feitos com um compasso.
— Que estranho — disse coçando as bochechas.
-— E o mínimo que se pode dizer. Não sei o que fazer com
isso, mas tenho certeza de que não foram traçados por acaso.
Seu pai estava procurando alguma coisa na Gioconda.
— Você teve tempo de dar uma olhada nas anotações do
meu pai?
— Sim, mas estão abreviadas, não estão muito claras. Acho
que será mais fácil decifrá-las depois que eu traduzir o
documento de Dürer, pois as anotações do seu pai fazem
muitas referências a ele.
— Bom, então você tem muito do que se ocupar! O que
fazemos com os investigadores?
— Por enquanto, não sabem onde estamos.
— E o que me preocupa! Vou ligar para eles.
— Está louco? Não, primeiro vamos resolver esse enigma,
depois contamos tudo aos tiras.
— Você é que está louca! Não estou a fim de acabar na
prisão!
Peguei meu celular e digitei o número da delegacia de
Gordes. Sophie tirou imediatamente o telefone das minhas
mãos e desligou.
— Quarenta e oito horas. Vamos nos dar 48 horas. Se daqui
até lá não tivermos resolvido nada, então ligamos para os
tiras. Afinal de contas, não temos nenhuma culpa no
cartório! Se ligarmos para eles agora, você pode dar adeus ao
segredo do seu pai.
Dei um longo suspiro. Ela estava completamente eletrizada,
e eu, mais para aterrorizado.
— O investigador pediu expressamente que eu o avisasse se
deixasse Gordes.
Sophie meneou a cabeça com um ar desesperado e me
estendeu o celular com despeito.
— Você é um zero à esquerda!
Peguei de volta meu telefone e digitei novamente o número
da delegacia. Sophie tinha razão. Eu era um zero à esquerda.
Mas não conseguia lutar contra isso.
— Senhor Louvel? — gritou o tira do outro lado da linha. —
Eu lhe disse para não deixar Gordes!
— Sinto muito, mas não gosto de ficar numa cidade onde
atiram em mim! -— repliquei. — Estou em Paris, e enquanto
o senhor não prender os caras que me agrediram duas vezes
no seu belo vilarejo, não vai me rever tão cedo!
— Dificilmente vou conseguir prender dois cadáveres
carbonizados! E no que se refere a prender alguém, o senhor
está no topo da minha lista, Louvei! Pedi ao procurador para
divulgar sua identidade no arquivo nacional...
Fiz uma careta.
— O senhor identificou os caras? — arrisquei baixando o tom
de voz.
-— Senhor Louvel, sinto muito, mas peço que se apresente
na delegacia mais próxima e...
Desliguei logo em seguida, sem ouvir o restante.
Sophie me encarou.
— Parabéns — ironizou.
— Você tinha razão — admiti franzindo as sobrancelhas. —
Quarenta e oito horas.
Ela sorriu.
— E seu agente?
Hesitei por um instante, desliguei o telefone, abri-o e tirei o
chip de dentro dele.
— Quarenta e oito horas — repeti colocando o chip no
bolso.
Ela aprovou.
— Trate de arrumar um chip provisório. É capaz de você
precisar de um telefone!
— Tudo bem. Também vou procurar um dicionário e,
enquanto você fica quietinha fazendo sua tradução, vou dar
uma olhada na sede parisiense da Acta Fidei, na Inadexa.
Ela se virou bruscamente para mim.
— Você está louco?
— Nem um pouco.
— E perigoso demais!
— E uma organização oficial, não é? Um dos seus membros
me telefonou. Simplesmente vou perguntar quem foi.
— Uma organização oficial, instalada em Paris com o nome
de uma sociedade de fachada... Não, não estou segura de que
seja uma boa idéia...
— Ouça, ou o cara que nos ligou não o fez no nome deles, e
nesse caso isso pode interessar a eles, ou estão envolvidos, e
provavelmente logo vou perceber isso. Vou na maior cara de
pau. Preciso saber.
Ela suspirou.
— Não é um método muito inteligente... Tenho uma arma
em casa — retomou —, talvez seja mais prudente ir buscá-la.
— Ah, não, né? Sou roteirista, não caubói! Além do mais, não
vamos à sua casa, é o primeiro lugar onde os tiras e os corvos
irão nos procurar...
Levantei, e ela me segurou pelo braço.
— Seja como for, tome cuidado — insistiu.
— Por enquanto, vou procurar um dicionário pra você, não
será muito perigoso.
Meia hora mais tarde, deixei um Larousse alemão-francês na
recepção do hotel, pedindo ao carregador que o levasse ao
nosso quarto, depois parti para a sede da Acta Fidei.
O acaso, em sua grande ironia, fizera com que a sede
parisiense da sociedade Inadexa se encontrasse na rua Jules-
César, atrás da praça da Bastilha, a poucos metros de um dos
centros da igreja de cientologia. Uma única rua para tanta
gente, só em Paris e em Nova York dá para ver isso. E,
justamente naquele dia, os cientologistas estavam na rua.
Esses dóceis adeptos fazem manifestações para protestar
contra o "racismo" de que se sentem vítimas na França. Às
vezes o Hospital tem uma incômoda tendência a zombar da
Caridade... Havia cientologistas de todos os países, talvez até
mais estrangeiros do que franceses. Alguns traziam enormes
insígnias amarelas em forma de estrela de Davi, em que
estava escrito "Membro de uma seita". Fiquei com vontade
de vomitar. Pensei na sorte de milhões de judeus meio
século antes, cuja memória estava sendo recuperada por
aqueles bandidos sem escrúpulos... Afinal de contas, a única
perseguição de que os filhos de Hubbard são realmente
vítimas em nosso país é a do fisco, que tenta fazer com que
paguem seus impostos! Comparar isso à sorte dos judeus
durante a Segunda Guerra Mundial ultrapassa em muito o
simples mau gosto.
Abri caminho por entre esses estranhos manifestantes,
tentei não levantar os olhos para evitar encontrar um de seus
olhares pegajosos, de medo de ser tomado pela vontade de
insultá-los.
O edifício da Inadexa era alto e estreito. Tratava-se de um
imóvel moderno em meio a outros mais antigos, construído
com pedras brancas e lisas, e cujas janelas eram grandes
espelhos azulados.
Parei ao pé do edifício. Não havia placa nem símbolo
indicando a natureza do local, mas isso não deixava
nenhuma dúvida. Eu tinha certeza do endereço. Duas
pequenas câmeras por cima da entrada permitiam adivinhar
que a segurança era levada a sério no reino de Deus.
Dirigi-me às grandes portas de vidro, que logo se abriram
deslizando. Entrei lentamente num grande hall branco, de
chão glacial. Uma porta de elevador dividia em duas a parede
do fundo, cercada em cada lado por elegantes escadas pretas.
Em vários lugares notei um símbolo que devia ser
justamente o da organização religiosa, pois figurava nos
estatutos da Acta Fidei que o hacker nos havia enviado. Uma
cruz sobre um sol.
A minha direita, uma mulher estava sentada à recepção,
digitando no teclado de um computador. Devia ter cerca de
trinta anos, era esbelta, estava excessivamente maquiada,
vestia um tailleur azul-marinho e tinha um sorriso artificial.
— Posso ajudá-lo?
Aproximei-me da recepção e coloquei ambas as mãos sobre
o guichê branco, tentando compor um sorriso tão largo
quanto o seu.
— Giuseppe Azzaro?
Tudo aconteceu enquanto nos olhávamos. Ela deve ter visto
a hesitação em meus olhos, assim como vi a surpresa nos
dela. Um breve segundo a mais em sua reação. Uma latência
pesada de sentido. Ela recuou, lançou-me um novo sorriso e
pegou o telefone. Dei um passo para trás, colocando as mãos
nos bolsos da calça para fingir certa desenvoltura, mas a
tensão estava bem presente, quase material.
Ouvi então algumas palavras em italiano, que ela cochichou
ao telefone. Não conseguia distinguir as palavras, já que meu
italiano é bem medíocre. Ela não parava de me dirigir
sorrisos. Sorrisos demais.
Ouvi passos à minha esquerda. Virei a cabeça. Dois homens
desciam as escadas à esquerda do elevador. Se os dois
matadores de Gordes não tivessem queimado ao pé de uma
árvore, eu teria jurado que eram os próprios. Longo
sobretudo preto, ombros largos, cara quadrada. Malditas
caricaturas. Malditos corvos.
Dei um passo para trás. No mesmo instante, pareceu-me que
aceleravam o passo. Virei a cabeça na direção da
recepcionista. Ela já não sorria. Na direção da escada. Os dois
cães de guarda caminhavam até mim. No último segundo,
decidi que era hora de dar no pé. Num salto, precipitei-me
para a grande porta de vidro, mas ela não abriu. Os dois caras
estavam correndo. Tentei separar ambas as portas.
Impossível. Tomado pelo pânico, dei um violento golpe com
o ombro. Um dos batentes cedeu e caiu na calçada. A porta
explodiu em mil pedaços, projetando pequenas pontas de
vidro para todos os lados.
Saí na rua. Dezenas de manifestantes me encararam
boquiabertos. Aqueles cientologistas doidivanas iam me tirar
daquela encrenca. Corri na direção deles, quando os dois
brutamontes estavam a apenas a dois passos de mim.
Insinuei-me entre os manifestantes atordoados, sem olhar
para trás. Trombei com vários deles, mantendo os ombros à
frente, e abri caminho naquela floresta de adeptos
hubbardianos até a rua de Lyon.
Atravessei o grande bulevar precipitadamente, sem me
preocupar com o tráfego que, no entanto, era intenso. Por
pouco um ônibus não me atropela, e desviou buzinando.
Uma vez na calçada, virei-me para ver onde estavam os dois
brutamontes. A vantagem com esse tipo de armário é que os
músculos desaceleram sua corrida... Ainda estavam na
calçada da frente e me procuravam com o olhar.
Curvei-me e saí correndo em direção à Gare de Lyon.
Passando rente aos muros sujos, fugindo entre os quiosques
e as fontes Wallace, tomei uma rua à esquerda e, quando
tive certeza de já não estar em seu campo de visão, pus-me
novamente a correr. Corri durante longos minutos e cheguei
sem fôlego às arcadas da avenida Daumesnil. Esgotado, parei,
escrutei o horizonte para ver se os cães de caça ainda
estavam atrás de mim e, como não os vi, decidi me refugiar
num café.
Entrei num bar-tabacaria do bulevar Diderot e, dando uma
olhada no lado de fora, aproveitei para comprar um chip
provisório para meu telefone celular. Depois, pingando de
suor, fui tomar um café no balcão, sob o olhar desconfiado
dos garçons.
Tentando passar despercebido diante do balcão, entre as
colunas acolhedoras, os bêbados barulhentos e os turfistas
excitados, bebi meu expresso perguntando-me a que tinha
servido minha pequena expedição até a Acta Fidei. Eu não
havia descoberto nada. Nada, a não ser que eu era conhecido
do serviço de segurança deles e que visivelmente tinham
vontade de me pegar... Até a recepcionista da sede parisiense
parecia estar informada! Aliás, informada de quê?
Todavia, o fato de os dois armários que me haviam persegui-
do aqui terem mais ou menos a mesma roupa daqueles de
Gordes não significava necessariamente que os quatro
pertenciam à mesma organização. Esses leões de chácara têm
todos, a mesma cara e as mesmas roupas de um extremo a
outro do planeta. Mas, mesmo assim...
Paguei meu café e saí tranqüilamente do bar. Quando já nem
pensava no assunto, dei de cara com os dois funestos vigias
da Acta Fidei. Evidentemente ainda estavam à minha
procura, mas pareceram tão surpresos quanto eu.
Sem refletir, precipitei-me no bulevar Diderot, erguendo a
cabeça como para tomar mais fôlego. Corri como já não se
corre na minha idade. Conduzi minhas pernas com todas as
minhas forças e busquei longe à minha frente os centímetros
que, uns após os outros, deviam afastar-me dos meus dois
cães de caça. Eu podia ouvir a respiração rouca deles atrás de
mim, o barulho de seus sapatos pesados no macadame. Os
transeuntes afastavam-se aturdidos com a nossa passagem.
Perguntavam-se quem deviam deter. O perseguido ou os
perseguidores. Mas não lhes deixamos tempo para escolher,
de tanto que corríamos.
Minha garganta estava queimando, minhas coxas
começavam a doer, e a força me faltava. Não ia conseguir
continuar por muito tempo. Decidi atravessar novamente,
lembrando-me de que os armários não gostavam desse
joguinho. Mas havia muito menos tráfego ali, e não tiveram
dificuldade alguma em me seguir.
Senti que estava perdendo velocidade à medida que subia o
bulevar, e meus perseguidores, por sua vez, não perdiam
distância. Os cães de guarda podem até ser meio lentos, mas
são tinhosos e persistentes.
Logo cheguei perto de uma entrada de metrô. Sem refletir,
desci correndo os degraus, precipitando-me na passagem
subterrânea. Ao pé da escada, perdi o equilíbrio e caí de
cabeça no corredor do metrô, arrastando um jovem com a
minha queda. Os dois vigias chegaram no alto da escada
gritando:
— Abram caminho!
Fiquei paralisado de medo. Eles iam conseguir me pegar. Já
os via caindo em cima de mim de punhos cerrados. Ia levar
pancada em meio a uma multidão indiferente.
A campainha do trem do metrô tirou-me do torpor. Era
minha última chance. Levantei-me bruscamente, apoiando-
me no peito do pobre rapaz que eu havia derrubado. Corri
para as catracas, saltei por cima delas e desci correndo a
escada que dava para a plataforma.
A campainha do trem parou. As portas iam se fechar. Saltei
os degraus de quatro em quatro. Ouvi o estalido das portas de
correr. O barulho metálico dos batentes que se fecham.
Saltei os últimos degraus e caí na plataforma. Um passo a
mais. Deu para deslizar justinho o pé na abertura. Depois
passei as mãos. Com todas as minhas forças, afastei as portas
e, por fim, insinuei-me no interior. Os dois batentes
fecharam violentamente atrás de mim, e o trem pôs-se a
andar.
Os dois vigias chegaram em seguida à plataforma.
— Merda! — gritou o primeiro.
Mas o segundo não tinha a intenção de me abandonar. Pôs-
se a correr ao lado do vagão e também puxou a maçaneta. A
porta estava bloqueada, mas o maluco tinha uns 130 quilos
de músculos. Os dois batentes começaram a se afastar um do
outro.
Sem hesitar, dei um belo chute em seus dedos. Ouvi o grito
de dor, e ele tirou a mão precipitadamente. As portas
voltaram a se fechar, e o trem continuou seu caminho,
distanciando-se do meu perseguidor, já quase sem fôlego e
com a mão ensangüentada.
Cheguei ao nosso hotel no final do dia, após várias complica-
das baldeações entre ônibus e metrô, preocupado em me
livrar definitivamente dos meus perseguidores. Mas o dia
acabou me deixando completamente paranóico. Eu me
sobressaltava sempre que encontrava um homem vestido de
preto, sempre que uma longa berline parava num semáforo,
sempre que me olhavam de viés...
Já tivera muitas psicoses na vida, e antigamente as drogas me
pregaram mais de uma peça desse tipo, mas nunca eu havia
sentido tamanha tensão psicológica. Várias vezes, tive que
parar para tentar entrar novamente em contato com uma
espécie de realidade. Para passar minha razão pelo crivo,
interrogar-me tão objetivamente quanto possível. Tantas
coisas estranhas se passaram em tão poucos dias que acabei
por duvidar do meu próprio discernimento. Será que meu
pai tinha preparado uma armadilha para mim? Será que
aqueles homens estavam realmente me perseguindo? Não
estaríamos Sophie e eu sofrendo de um delírio comum, de
uma paranóia persecutória — ela, levada pela busca de um
furo de reportagem, e eu, perturbado pela morte do meu pai?
A angústia continuava a me invadir. Milhares de vozes
gritavam para eu recuar, esquecer tudo. Eu tinha a sensação
de estar fazendo algo ruim. E, no entanto, precisava saber o
quê. Talvez a curiosidade me ajudasse a lutar.
Ao bater à porta do nosso quarto, entendi que Sophie ainda
estava mergulhada em sua tradução, pois levou certo tempo
antes de abri-la.
Quando lhe contei minha aventura, ela acendeu um cigarro
e, encostada contra a janela, disse lentamente:
— Pois bem, agora temos certeza de que a Acta Fidei está
envolvida. E se está, é porque tudo isso é muito sério.
Evidentemente era a última prova de que Sophie precisava
para se convencer de que não estávamos sonhando. A
fumaça do cigarro produzia uma cortina vaporosa diante do
seu rosto, e eu não conseguia ver se os olhos dela estavam
repletos de angústia ou de excitação. Mas então ela ficou em
silêncio e imóvel.
Olhei para a escrivaninha do nosso quarto de hotel. As
anotações do meu pai estavam espalhadas em volta do
manuscrito de Dürer, e Sophie havia coberto várias páginas
de uma grande caderneta.
Avancei até o mini-bar sob a televisão e me servi de um
uísque puro.
— Preciso muito de uma bebida. Quer alguma coisa? —
perguntei voltando-me à jornalista.
Ela fez sinal que não. Sentei-me diante da escrivaninha,
suspirando, e dei uma olhada em suas anotações.
— Vejo que avançou bastante...
Ela demorou para me responder, como se primeiro precisas-
se assimilar as últimas novidades da linha de frente.
— Pois é, avancei bastante. E... Francamente, tenho a
impressão de estar sonhando. Fico me perguntando onde
fomos nos meter, Damien. Sem dúvida, é uma história de
louco.
— Conte! — pressionei-a.
Apagou o cigarro no cinzeiro do criado-mudo e veio sentar-
se a meu lado, no braço da minha poltrona. Dei um gole no
uísque, e ela se pôs a falar.
— Só tenho o começo, mas já é alguma coisa. A partir do
manuscrito de Dürer, pude descobrir mais sobre a pedra de
Iorden. E as anotações do seu pai foram muito
esclarecedoras. Preste bem atenção, é um pouco
complicado.
— Estou ouvindo...
— Para começar, a coisa mais importante, e isso são,
sobretudo, as anotações do seu pai que explicam, é perceber
que não existe um único documento contemporâneo de
Jesus mencionando sua existência.
— Ou seja?
— Não há vestígio de Jesus nos escritos históricos dos seus
contemporâneos. Além dos Evangelhos, a menção mais
antiga, da mão de Plínio, o Moço, data de 112, quer dizer,
cerca de oitenta anos depois da morte de Cristo.
Ela parou de falar e deu uma olhada em suas anotações.
Tinha um jeito todo próprio de arrumar as hastes de seus
pequenos óculos enquanto falava que lhe dava ares de uma
estudante da faculdade de história, orgulhosa de suas
pesquisas.
— Em 125 — retomou —, Minúcio Fudano fala a respeito
num relato sobre o imperador Adriano. Mas Josefo Flávio,
um dos historiadores mais confiáveis da época, nem chega a
mencionar os primeiros cristãos. Em suma, além dos escritos
históricos de Plínio, o Moço, os únicos documentos que
temos sobre Jesus e os primórdios do cristianismo são textos
religiosos, inicialmente os Evangelhos, que, no entanto,
foram escritos entre cinqüenta e oitenta anos após a morte
de Cristo, e, em seguida, os Atos dos Apóstolos e as Epístolas
de São Paulo, também posteriores. Resumindo, nada
contemporâneo.
— Aonde você está querendo chegar?
— Espere... O último ponto importante nos escritos do seu
pai diz respeito à história do Novo Testamento. Uma história
conturbada, feita de traduções às vezes arriscadas, cópias
edulcoradas e até mesmo cortes radicais durante os primeiros
séculos, quando o texto não levava em conta as questões da
Igreja. O Novo Testamento só foi consolidado ao final de
vários séculos.
— Faz muito tempo...
— Nem me diga. Os Evangelhos, em sua origem, foram
escritos tanto diretamente por seus autores quanto por
escribas, em folhas de papiro que, em seguida, foram
enroladas ou reunidas em códice. Nem um único desses
originais chegou até nós. Hoje só possuímos alguns
fragmentos de cópias que datam do século II, e a única cópia
completa do Novo Testamento de que dispomos data de 340.
Além disso, ela está inteiramente em grego. Certamente era
a língua mais utilizada para a escrita da época de Jesus, mas,
de todo modo, parte dos originais devia estar em aramaico.
Resultado: atualmente, quando comparamos as diferentes
cópias da época, levantamos, preste bem atenção, mais de
250 mil variantes. As descobertas de Qumran permitiram
constatar que nossa versão do Antigo Testamento era muito
mais fiel ao texto original, no entanto, bem mais antigo, do
que o Novo Testamento.
— Você está me dizendo que o Novo Testamento não é
confiável?
— Em todo caso, não podemos absolutamente dizer qual seu
grau de fidelidade em relação aos textos originais. Mas isso
não é tudo. Há também o que a Igreja reconhece e o que
não reconhece. O Evangelho de Tome, encontrado em Nag
Hammadi, e os manuscritos do Mar Morto são apenas dois
exemplos entre todos os textos que constrangem a Igreja.
— Constrangem por quê?
— Ah, muitas vezes por detalhes. Jesus era casado? Tinha
irmãos? Questões estúpidas que incomodam a Igreja e
excitam os anti-clericalistas. Mas há outras questões muito
mais interessantes. Por exemplo: quando estudamos o início
do cristianismo, constatamos que a seita judaica de que os
primeiros cristãos mais se aproximam é a dos essênios.
— Os autores dos manuscritos do Mar Morto?
— Entre outros. Nos Atos dos Apóstolos, a imagem que
Lucas dá dos primeiros cristãos é curiosamente parecida com
aquela que Fílon dará dos essênios. Em sua celebração do
Pentecostes, por exemplo. A própria Ceia, um dos símbolos
mais profundos do cristianismo, é a reprodução exata de um
rito essênio, com a primeira bênção do pão e as mãos
esticadas. O conceito de comunidade dos bens é igualmente
partilhado pelos essênios e pelos primeiros cristãos. Barnabé,
por exemplo, vende sua terra e transfere o dinheiro aos
apóstolos. Muito instruídos, os essênios tinham fortes
crenças escatológicas. Portanto, há grandes chances de a
maioria deles ter-se convertido ao cristianismo. No entanto,
das três grandes seitas judaicas, a dos essênios é a única que
nunca é mencionada no Novo Testamento. Sem os
Manuscritos do Mar Morto, que a Igreja e Israel tentaram
manter escondidos por quase cinqüenta anos, não sabería-
mos grande coisa a respeito. Perturbador, né?
— É. Nunca entendi direito por que levaram tanto tempo
para publicar os Manuscritos do Mar Morto...
— Pedro, Tiago e João ocupam no Evangelho o primeiro
lugar. Dos doze apóstolos, três são privilegiados. Ora,
imagine que, tradicionalmente, o conselho da comunidade
essênia compreendia, como por acaso, doze membros, dos
quais três eram grandes sacerdotes.
— Realmente, cada vez mais perturbador... A Igreja teria
tentado esconder a origem essênia da cristandade?
— É uma pergunta que merece ser feita. Outro exemplo de
questão interessante: a importância de Tiago, não o apóstolo,
mas o "irmão do Senhor". Segundo seu pai, o papel dele é
mal representado na Bíblia, provavelmente porque ele
pertencia ao partido rival de Lucas e Paulo. No Evangelho de
Tomé, Tiago, o Justo, é aquele a quem os apóstolos devem
dirigir-se depois da Ascensão. Clemente, nas hipotiposes, o
menciona com João e Pedro como se tivesse recebido a
gnose de Cristo ressuscitado. E é aí que a coisa fica
interessante e que chegamos ao manuscrito de Dürer... Você
sabe qual o sentido da palavra evangelho?
— Não — precisei admitir.
— Vem do grego euaggelion e significa "boa nova". E qual é,
na sua opinião, essa boa nova?
—- Sei lá. Que Jesus ressuscitou?
— Claro que não! A Boa Nova está no ensinamento de Cristo.
O problema é que Jesus não para de repetir que veio trazer a
Boa Nova, mas nunca a dá claramente. Com pinceladas, ele
certamente emite uma mensagem de paz, de amor, mas não
é a Boa Nova que ele anuncia. E como se faltasse alguma
coisa...
— Bom, mas também não se pode exagerar! A mensagem de
Cristo é conhecida, e o mínimo que se pode dizer é que ele
teve sucesso...
— Não é porque é conhecida que é completa! A grande força
de Jesus é que ele se dirigiu ao povo judaico com
simplicidade, enquanto os Talmudes eram muito mais
elitistas e estavam totalmente por fora do cotidiano dos
contemporâneos de Jesus. Pensando bem, foi um pouco o
que aconteceu um milênio mais tarde com os cátaros, no sul
da França. Quando o discurso da Igreja se tornou muito mais
elitista e se distanciou bastante da mensagem clara e simples
de Jesus, quando as missas passaram a ser rezadas em latim,
os poucos padres que se puseram a falar com mais
simplicidade ao povo, numa língua que este compreendia,
tiveram um sucesso fenomenal. Um sucesso tão grande que
o papa teve medo da concorrência e ordenou que se
acabasse com todos, sem exceção...
— "Matem-nos todos..."
— Sim. Seja como for, você diz que o ensinamento de Cristo
é bem conhecido, mas mesmo assim há dois elementos
singulares. Para começar, a cena completamente
sobrenatural da transfiguração.
— Refresque minha memória...
— Grosso modo, Jesus conduz Pedro, Tiago e João a uma
montanha; aliás, não se tem certeza de que monte se trata,
talvez o Tabor, talvez o Hermon, e lá ele assume a figura
divina.
— Ou seja?
— Essa é a questão... Bom, você lembra que acabei de dizer
que Clemente, nas hipotiposes, mencionava outra cena
durante a qual Tiago, Pedro e João teriam recebido a gnose
de Cristo ressuscitado.
— E daí?
— Segundo o texto de Dürer e as pesquisas do seu pai, é aí
que se encontra a chave dos Evangelhos. Jesus teria
entregado uma mensagem, um euaggelion, mas que não é
diretamente revelado na Bíblia.
— Digamos... uma análise da cabala...
— Sim, ou da hermenêutica. Para Dürer, a mensagem real de
Jesus não estaria na Bíblia, que, segundo seu pai, não passaria
de um histórico truncado do predicado de Jesus. Em suma,
sua verdadeira mensagem estaria em outro lugar. A julgar
por esses manuscritos, Cristo seria um iluminado, no sentido
nobre do termo, o detentor de um segredo ou de um saber
absoluto, e seu ensinamento não teria outro sentido além
daquele de entregar esse saber.
— Um saber absoluto?
— Não sei... Uma revelação, uma verdade. O euaggelion.
— Algo do tipo "Deus existe"?
— Não. Na época, ninguém duvidaria. O furo de reportagem
seria, antes, "Deus não existe"... Mas não, acho que é outra
coisa.
— Mas o quê?
— Se eu soubesse, não estaríamos aqui... Acho que é
justamente esse euaggelion que era o objeto das pesquisas do
seu pai e que hoje é o da cobiça da Acta Fidei, do Bilderberg
e provavelmente de uma porção de outros curiosos.
— Que loucura!
— Nem tanto, se pensarmos bem. Mas, espere, a coisa ainda
vai mais longe. O que seu pai concluiu do manuscrito de
Dürer, que, vale lembrar, teria sido inspirado naquele de
Leonardo da Vinci, é o seguinte: Jesus recebeu um saber, um
segredo, não se sabe muito bem quando nem como, talvez
de João Batista, talvez diretamente, como uma presciência
ou um instinto...
— Do tipo Einstein, que acorda gritando "E = mc2"...
— Quem sabe? Em todo caso, ele começa a dizer que detém
um saber, uma boa notícia, digamos assim, que gostaria de
anunciar aos homens. Mas, pouco a pouco, descobre a
verdadeira natureza de seus contemporâneos e compreende
que não lhes pode dar diretamente sua mensagem. Eles não
estão prontos. Não compreenderiam. Não é ele mesmo
quem diz: "Não deis aos cães as coisas sagradas, não jogueis
pérolas aos porcos"?
— Não é muito delicado...
— Não. Jesus nem sempre é delicado. Então ele tenta fazer
com que os homens progridam para que estejam prontos
para receber sua mensagem. Abre-lhes o espírito. Segundo
seu pai, um dos principais ensinamentos de Cristo, "amai-vos
uns aos outros", seria apenas um meio de preparar os
homens para receber tal saber. De fato, todo o seu mistério
ia nesse sentido. Depois, vendo que foi traído e que ia
morrer, e constatando que os homens nem sempre estão
prontos para receber seu ensinamento, decide, então,
confiar seu segredo às gerações futuras, escondendo-o.
— Como?
— Criptografando.
— Tá brincando?
— Nem um pouco. A imagem segundo a qual Jesus lega sua
gnose a João, Pedro e Tiago, durante a transfiguração ou
depois da ressurreição, viria daí. E é aí que entra em jogo a
pedra de Iorden. Vários textos apócrifos fazem referência a
ela. Jesus teria oferecido sua única jóia, seu único bem, a seu
amigo mais fiel. A esse respeito, as versões diferem. Ora é
Pedro, ora é Tiago, ora é João, ora são os três. Um dos textos
de Nag Hammadi chega a dizer que Maria teria recebido a
jóia de Cristo.
— A pedra de Iorden conteria a mensagem secreta de Jesus?
Ela deu de ombros e sorriu para mim.
— E você diz que só traduziu o começo? — retomei
consternado. — Mas o que conta o restante do texto?
-— Calma, né? Está me pedindo demais! O restante do texto
parece contar a história da pedra de Iorden ao longo do
tempo. Dürer, assim como nossos diversos amigos,
certamente devia estar atrás dela e parece ter feito pesquisas
sobre o percurso dessa misteriosa relíquia. Mas não sei mais
do que isso. Vou continuar a traduzir amanhã.
Honestamente, estou esgotada
— E qual é a relação com a Melancolia?
— Não sei muita coisa. Talvez ela tenha servido de pretexto
para Dürer. Há muitos símbolos que levam a pensar em toda
essa história, mas ainda é cedo demais para eu compreender
qualquer coisa. Há um quadrado mágico, ferramentas, que
fazem muitos pensarem na simbologia maçônica, um
anjinho, uma pedra talhada... Não sei. Vou precisar olhar
tudo isso mais de perto.
Depois ela se calou. Parecia realmente esgotada. Mas podia-
se entrever um sorriso em seu rosto.
Dei um último gole no uísque.
— O que vamos fazer? — perguntei-lhe colocando o copo
vazio na escrivaninha à minha frente.
— Como assim?
— Sei lá... Tudo isso parece completamente absurdo. Tem
vontade de continuar?
— Quer desistir? — admirou-se. — Na pior das hipóteses,
toda essa história é falsa. Mas o que temos a perder? Uma
história falsa que interessou a Da Vinci, Dürer e que hoje
interessa ao Bilderberg e a uma organização de integristas
cristãos é sempre uma história que merece ser conhecida e
revelada, não? E, além do mais, há também a possibilidade de
essa história ser verdadeira...
— É justamente o que me preocupa! Uma mensagem secreta
de Jesus... Criptografada... Que teria ficado oculta por dois
mil anos. Acha realmente que cabe a nós procurá-la?
— Prefere que sejam os caras que o espancaram?
Obviamente, era difícil responder essa pergunta! De todo
modo, eu sabia que jamais poderia convencê-la a abandonar
o caso. Isso quase me convinha, dava-me uma desculpa na
falta de coragem... Pois, afinal de contas, tenho de admitir
que também estava com vontade de saber.
— Então continuamos?
— Claro! Preciso de uma boa noite de sono e amanhã
recomeço minhas pesquisas.
— E eu?
— Você vai à Biblioteca Nacional procurar o microfilme
mencionado pelo seu pai no verso da Gioconda.
— Ah. Vejo que você previu tudo...
Ela sorriu.
— Previ.
Nesse instante, seu laptop emitiu um ligeiro bipe. Ela voltou
a se sentar, e fui olhar por cima do seu ombro.
— Haigormeyer?
Era nosso amigo pirata. Não havíamos tido notícias dele des-
de Gordes. Fazia apenas dois dias, mas parecia uma
eternidade.
— Sim.
— Reconheço seu pseudônimo, mas não sua máquina...
— Como ele consegue reconhecer nosso computador? —
espantei-me.
— Simples — respondeu Sophie. — Principalmente para ele.
— Normal. Mudei de computador... Tive de reinstalar os
programas, mas sou eu mesma. Tive alguns problemas. Nada
grave.
— Justamente. Queria preveni-la de que a coisa esquentou
para o meu lado também.
Sophie franziu as sobrancelhas e me lançou um olhar
inquieto.
— Como assim?
— Depois que entramos em contato pelo ICQ meu
computador parece interessar a muita gente. Felizmente,
meu PC está blindado, mas os ataques não param.
— Alguém tentando invadir?
— Totalmente.
— O feitiço volta contra o feiticeiro...
— Sim, só que não corro nenhum risco. Já você...
— Acha que estão tentando invadir nossa máquina?
— E você não?
— Pois é, parece bem provável. O que podemos fazer?
— Como não entende grande coisa do assunto, podíamos
começar instalando um logger para você.
— O quê?
— Um pequeno programa que fiz e que permite salvar um
traçado de todas as transações IP na sua máquina. Isso não
vai protegê-la, mas vai permitir que veja tudo.
— Você não vai me mandar nenhum vírus, vai?
-PM
— Isso significa que vai ter acesso a meus arquivos?
— Se você estiver de acordo. Vale lembrar que o mais quente
dos seus arquivos fui eu quem lhe passou!
Sophie virou a cabeça para mim.
— O que fazemos? Confiamos nele?
— Muito honestamente, se ele quisesse invadir nosso
computador, tenho certeza de que já teria feito há muito
tempo... Aliás, talvez até já tenha feito.
— Então vamos deixar que instale esse negócio no meu
computador?
-— Se isso puder nos proteger um mínimo que seja...
-— OK. Pode mandar.
— Perfeito. Instale o programa e tire os arquivos realmente
importantes da máquina. Grave-os em disquete ou CD.
— Certo. A propósito, sua foto vai ser publicada no Libé de
amanhã.
— É mesmo? Ótimo!
— Voltamos a entrar em contato quando tivermos
novidades!
— Está bem.
Não havia restaurante no hotel, e decidimos sair para jantar.
Paris no mês de maio sempre teve alguma coisa de especial,
e não apenas depois de 1968 ou de Aznavour. É o final da
primavera, a chegada preguiçosa de um verão que sabe fazer-
se esperar, as folhas que retornam, os lilases que começam a
aparecer. Entre a torre Eiffel e a catedral dos Invalides,
caminhamos um pouco ao longo da Escola Militar, à sombra
da margem esquerda, com o sorriso forçado pelo ar fresco da
noite.
Após um pequeno desvio rumo ao Sena, finalmente
encontramos refúgio numa grande brasserie vermelha e
preta na praça da Escola Militar, a dois passos do Tourville.
Almocei lá diversas vezes em minha adolescência e,
portanto, tinha certeza de que seus frutos do mar eram
frescos... O local não mudara. Os mesmos bancos de couro,
os mesmos utensílios de cobre, a mesma agitação, o eco dos
pratos, dos talheres e das vozes que se misturam, a brasserie
parisiense em todo o seu esplendor. E o garçom, lógico, era
um pingüim dopado com anfetaminas que nunca olha você
nos olhos, traz o polegar imobilizado no abridor de garrafas
no bolso do avental e nunca esquece de trazer o vinho, mas
freqüentemente esquece a água ou o pão que pedimos várias
vezes.
Paris sempre será Paris. Comemos bem e depois voltamos ao
Tourville no meio da noite.
Mal entramos no quarto, Sophie tirou os sapatos, jogou-os
sob uma cadeira e foi se deitar. Eu a olhei estendendo-se na
cama, depois me instalei à escrivaninha e pus a cabeça entre
as mãos. O computador portátil da Sophie instalado à minha
frente me fez pensar em meu trabalho. Meus roteiros. Tudo
havia ficado em Gordes. Eu não tinha nenhum recurso para
fazer o que quer que fosse. E, de certo modo, estava quase
aliviado. Sex Bot já não me motivava. Até mesmo Nova York
não me fazia muita falta.
Quando voltei os olhos para a cama da Sophie, vi que ela
havia adormecido. A leve luz da luminária da escrivaninha
lançava sobre seu corpo longilíneo um suave véu amarelo, e
seu sono era cheio de graça. Seu rosto imóvel num sorriso
pacífico nunca me parecera tão terno. Ela era ainda mais bela
nos braços de Morfeu.
Eu tinha de admitir. Estava apaixonado por essa mulher.
Apaixonado por uma mulher que também gostava dos
rapazes. Para dizer a verdade, eu nunca tinha experimentado
nada igual por mulher alguma. Certamente não por
Maureen, mesmo nos primeiros dias. Sophie era diferente.
Independente. Bela em sua solidão. Inteira. Por que diabos
eu voltaria a Nova York?
Abri meu e-mail no computador da jornalista e comecei a
redigir um texto para meu agente.
Caro Dave,
Sinto muito por não ter podido lhe dar notícias antes.
Surgiram uns assuntos para tratar e realmente não tive tempo
para você, nem mesmo, devo confessar, para os roteiros.
Mas talvez seja melhor assim, pois isso já não me interessa.
Sex Bot já não me interessa. Creio que seja uma péssima
notícia para você, para a agência, mas não estou a fim de
enganar ninguém. A qualidade da série vai sair perdendo.
Peça a um de nossos script doctors para fazer a versão final
dos cinco últimos roteiros. Dou-lhe meu consentimento.
Melhor do que isso: tenho a intenção de ceder
integralmente os direitos da série à HBO. E gostaria que você
se encarregasse da transação. Sex Bot está no auge de sua
glória. Você vai conseguir levantar uma bela quantia. Envie-
me um contrato, cedo a você 15% daquilo que a HBO me
propuser. Faça com que a HBO mantenha os mesmos co-
roteiristas, eles fazem parte da equipe, e assim vocês poderão
manter o Sex Bot no catálogo da agência. Mas, para mim,
acabou.
Sinto muito por dar essa mancada com você desse jeito. Mas
é irrevogável. Por caridade, não tente me dissuadir.
Mantenha-me informado. Continuarei na França. Por muito
tempo, com certeza. Pode entrar em contato comigo nesse
endereço de e-mail. Não o dê a mais ninguém.
Obrigado por tudo.
Cordialmente,
Damien.
Hesitei por um instante antes de clicar em "enviar", depois o
fiz suspirando. O e-mail foi enviado num segundo. Um
único segundo para mudar de vida.
Desliguei o computador e o fechei. Meus olhos caíram então
sobre a gravura de Dürer. Eu ainda não tinha tido tempo de
observá-la bem.
A cena gravada situava-se num local alto, que oferece vista
para o mar e para uma costa. No centro, um personagem
alado, talvez uma mulher, talvez um anjo. O rosto e a veste
levavam mais a pensar numa mulher, mas seus membros e a
largura dos ombros a tornavam extremamente masculina.
Sentada diante de um edifício sem janelas, o cotovelo
esquerdo apoiado no joelho e a cabeça numa posição triste e
graciosa ao mesmo tempo. Na mão direita, um compasso,
mas seu espírito parecia em outro lugar, o olhar estava
perdido ao longe. Em sua cintura, na ponta de uma fita, um
molho de chaves. A seus pés, um cão sonolento. A seu lado,
notei um anjo, com asas ridiculamente pequenas e os cabelos
cacheados. Com o olhar sério, ele escrevia alguma coisa
numa pequena tábua. A seu lado, atravessando a gravura na
diagonal, como para separar o primeiro do segundo plano,
uma escada encostada contra o muro do edifício. Mas o que
eu não podia deixar de notar era o número incrível de
objetos colocados no chão ou presos à construção. Aos pés
do personagem alado, um fole, pregos, uma serra, uma
plaina, uma régua, uma esfera; atrás, uma espécie de enorme
pedra talhada com várias facetas, e, junto ao muro do
edifício, uma balança, uma ampulheta, um sino, um
quadrante solar e um misterioso quadrado mágico...
Uma floresta de símbolos, como diria o outro. Difícil imagi-
nar que se consiga encontrar alguma interpretação naquela
desordem que, no entanto, era elegante. Da gravura
emanava uma impressão extraordinária. Ilustrando
perfeitamente seu título, Melancolia, ela evocava a tristeza, a
solidão, a nostalgia. Uma espécie de dor suave.
Desliguei a pequena luminária sobre a escrivaninha.
Levantei-me e aproximei-me da cama de Sophie. Inclinei-
me lentamente por cima dela e dei-lhe um beijo silencioso
na testa antes de ir me deitar. Quando já estava instalado em
minha cama, ouvi atrás de mim o som de sua voz:
— Boa-noite.
Capítulo Sete
Bem cedinho, fui acordado por três batidas à nossa porta.
Sophie já estava toda vestida. Ela se dirigiu à entrada e abriu a
porta para deixar passar a pequena mesa com rodinhas,
trazida por um empregado do hotel. A jornalista havia
pedido dois cafés da manhã.
Deu uma gorjeta para o jovem e empurrou a mesa entre nos-
sas camas.
— Bom-dia, biker boy\ — disse abrindo as cortinas. — Olhe
esse sol! Não está um dia ideal para ir... à Biblioteca
Nacional?
Eu me ergui e me espreguicei.
— Ahn? O quê? — balbuciei.
Sophie voltou à pequena mesa, pegou um croissant e deu
uma mordida, olhando para mim com um ar zombeteiro.
— Dormiu bem?
— Dormi.
— Que bom. O dia será longo.
Foi sentar-se em sua cama, serviu-se de uma xícara de café e,
encostando-se na parede, começou a ler um exemplar do
Monde.
Eu não conseguia acreditar que, apesar de todos os nossos
problemas, ela pudesse ter um humor tão leve. De minha
parte, eu tinha dificuldade em recuperar-me das minhas
emoções da véspera. Mais uma vez, Sophie me
impressionava.
Servi-me de café e peguei um croissant suspirando. Estava
exausto. A longa perseguição da véspera me deixara moído.
Talvez eu não corresse daquele jeito desde o colégio, e era
um dos raros nova-iorquinos a não freqüentar academia.
De repente, Sophie se ergueu com os olhos arregalados.
— Há um artigo sobre nós no jornal! — exclamou.
Por pouco não engasguei ao dar um gole atravessado no café.
— Sobre nós?
—Sim, bom, não diretamente, mas sobre nosso acidente em
Gordes. Está na crônica policial. O jornalista menciona a
morte do seu pai, o incêndio e o carro que explodiu
anteontem... Aparentemente, não sabe grande coisa. "A
polícia se recusa, por enquanto, a fazer qualquer
comentário."
— Merda! E o que vamos fazer? Não podemos continuar
assim... Vamos ter que nos explicar!
— Em todo caso, o tempo urge — concedeu Sophie.
— Não podemos ir muito mais depressa...
— Não, mas tampouco podemos ficar eternamente neste
hotel.
—- Pra onde sugere que a gente vá? Quer voltar para
Gordes?
— Claro que não. Ainda temos que ficar escondidos, mas
preciso de algumas coisas. Preciso passar em casa...
— Não é muito prudente.
— Não sou obrigada a ficar lá. Só preciso pegar umas coisas e
uns documentos. Também vou precisar dar sinal de vida ao
pessoal do 90 minutos. Sabem que eu estava em Gordes. Se
derem de cara com esse artigo, certamente vão se preocupar.
— Pensei que precisássemos de um pouco de anonimato
enquanto resolvemos tudo isso...
— Eu sei — reconheceu. — Temos que encontrar uma
solução. Em todo caso, não há mais tempo a perder! Vou
tentar segurar um pouco a pressão por parte dos tiras. Com
um pouco de sorte, meu contato no RG talvez possa acalmá-
los. Mas não tenho certeza de que conseguirá. Quanto a
você, vá à Biblioteca Nacional encontrar o microfilme
mencionado pelo seu pai.
— E depois?
— Depois? Sei lá. Vamos ver no que tudo isso vai dar. Ainda
ficaremos afastados até eu conseguir terminar a tradução do
manuscrito de Dürer.
Suspirei.
— Não vamos dar marcha a ré agora! — disse Sophie
colocando minha mão entre as suas.
— Não, claro.
Aproveitei esse momento raro. Suas mãos sobre a minha.
Seu sorriso, simples. Depois voltou a ler o jornal.
— Vou me vestir.
Levantei-me e fui para o banheiro. O tempo nos faltava, mas
eu precisava de um bom banho, precisava relaxar um pouco,
pois sentia que o futuro próximo ia nos deixar pouco
descanso.
Deitado sob a espuma branca, ouvi do outro lado da porta
Sophie explicar a situação a seu contato no RG. Sem dizer
muito, fez-lhe compreender que precisávamos de um pouco
de tranqüilidade. De um pouco de anonimato. Mas, pelo som
de sua voz antes de desligar, entendi que seu interlocutor
não se mostrara nem um pouco confiante. Afinal de contas,
impedir que os policiais avançassem não era da sua alçada...
Depois de me enxugar, vesti as roupas da véspera e voltei
para o quarto.
— Sophie, você tem razão, eu também preciso de umas coi-
sas! Preciso de todo jeito ir buscar minhas roupas. Ficou tudo
em Gordes. Vai fazer três dias que não mudo de roupa!
A jornalista se voltou para mim com um sorriso nos lábios.
— Ah — disse constatando que eu usava a mesma camisa do
dia anterior. — De fato. Dá uma passada na loja de roupas
aqui embaixo. Poderão te vestir da cabeça aos pés em várias
versões. Vai cair muito bem.
— Ah, é? — espantei-me. — Você acha?
Ela balançou afirmativamente a cabeça e voltou ao trabalho.
Não sabia se estava zombando de mim ou me levando a
sério. Mas pouco importava: eu precisava de roupas, fossem
quais fossem.
Uma hora mais tarde, eu me havia efetivamente dado um
novo guarda-roupa. Devo ter passado por excêntrico quando
pedi aos vendedores para trocar todas as roupas no provador,
incluídas as de baixo, e foi um pouco difícil fazer com que
aceitassem entregar o restante delas no hotel... Mas na
França, como em qualquer outro lugar, o dinheiro acaba
resolvendo tudo.
Saí para chamar um táxi como um jovem yuppie.
O motorista falou-me durante todo o trajeto da dura vida dos
taxistas parisienses, dos horários impossíveis, dos
engarrafamentos, das agressões e dos malditos americanos,
que só querem pagar com cartão de crédito. Para evitar um
incidente diplomático, pedi-lhe então que estacionasse na
frente de um banco, a fim de que eu pudesse sacar dinheiro,
depois decidi terminar o trajeto a pé.
Caminhei ao longo do Sena até o cais François-Mauriac,
reconhecendo com dificuldade essa parte da margem
esquerda, que tanto mudara após minha partida. Novo
horizonte, nova ponte, novas esplanadas, novos passantes.
Novos nomes de ruas também. Aquelas quatro torres
erigidas no meio de uma planície de pedras cinza tinha algo
de fascinante, mas eu não podia deixar de pensar no charme
da antiga plataforma da estação, onde passara tanto tempo
durante minha adolescência. O charme da velha Paris, com
aquilo que ela comportava de sujeira e desordem,
certamente, mas também de vida!
Subi lentamente os degraus cinzentos da Biblioteca Nacional,
ao mesmo tempo maravilhado pela majestosidade do lugar e
horrorizado com os grandes painéis de madeira alaranjada
que apareciam por trás dos vidros das quatro torres. Uma
ruptura desajeitada na harmonia do azul-acinzentado do
edifício. Caminhei pelo adro gigantesco e decidi deixar-me
conquistar por sua beleza simples. Afinal de contas, um dia,
em algumas centenas de anos, a velha Paris seria aquilo ali.
Ao chegar ao centro da esplanada, descobri, aliás, com
prazer, os jardins flamejantes, escondidos na parte baixa da
biblioteca. Tudo ali era só vidro e concreto. E até que a
alquimia funcionava bem. Lembro-me de ter tido, antes de
partir para os Estados Unidos, a mesma reação com a
pirâmide do Louvre... Inicialmente, a idéia me parecera
ridícula, até mesmo cafona, mas, uma vez no local, a beleza
natural do monumento me seduzira. A pirâmide de vidro
nada tinha de cafona. Ao contrário, o Louvre nunca me
parecera tão belo.
Levado pelo vento que deslizava ao longo do adro da
biblioteca, dirigi-me rapidamente para a entrada. Depois de
preencher as formalidades administrativas, lancei-me à
pesquisa do meu microfilme. Não fazia idéia do que estava
procurando. Tudo o que tinha era uma simples referência.
Procurar daquele modo um microfilme sobre o qual eu nada
sabia tinha algo de instigante.
Impaciente, eu precisei, todavia, encontrar a sala certa. A
Biblioteca Nacional é dividida em dois níveis, o que fica
acima do jardim, de livre acesso, e o que fica no mesmo piso
do jardim, onde se encontra a biblioteca de pesquisa, que só
é acessível com autorização. Os dois andares contornam esse
surpreendente jardim retangular. Junto à vidraça, admirei
por um momento as inúmeras árvores, lançando um olhar
perspicaz às que serviram para fabricar os milhares de livros
acumulados naquelas altas torres.
Se o microfilme estivesse no andar de baixo, minha ida à
biblioteca de nada teria servido, e provavelmente seria
necessário que a própria Sophie se deslocasse até lá, munida
de sua carteira de jornalista. Porém, após algumas pesquisas
no catálogo interno, que podia ser consultado nos
computadores da biblioteca, descobri que o microfilme
estava no piso acima do jardim e, portanto, à meu alcance.
Dei algumas voltas antes de encontrar meu caminho naquele
labirinto de vidro e, finalmente, cheguei à sala J, alojada num
nível intermediário, do lado da torre das Letras. Era o
departamento de Filosofia, História e Ciências Humanas.
Uma espécie de alívio: eu não ia cair sobre um obscuro
tratado de matemática!
Subi os degraus e descobri a imensa sala de leitura, silenciosa,
alta e calorosa. Deixei-me embalar por um instante pela
atmosfera única das bibliotecas. A calma sagrada de uma sala
de orações. A presença discreta, mas palpável, dos outros
leitores. O ruído das páginas que viram, dos teclados de
computador, algumas palavras sussurradas.
Lancei um olhar circular na sala e no mezanino. Depois,
avancei na direção de uma bibliotecária, sentada atrás de um
guichê oval, com os olhos mergulhados na tela do seu
computador. Levantou a cabeça para mim. Era uma jovem
de cerca de vinte anos, cabelos castanhos, curtos, óculos
espessos, e tão esbelta quanto uma modelo inglesa dos anos
90. Tinha um ar um pouco entorpecido, mas sorridente.
— Posso ajudá-lo? — perguntou-me com uma voz fina.
Dei-lhe o número do microfilme, e ela foi vasculhar numa
gaveta a alguns metros dali. Esperei, impaciente, quase
inquieto. E se Sophie tivesse se enganado? Se aquele
documento nada tivesse a ver com nosso caso?
A moça parecia não conseguir encontrar. Com gestos
seguros, fazia desfilar centenas de fichas sob seus dedos.
Quando chegou ao final da gaveta, levantou as sobrancelhas
com um ar espantado e recomeçou desde o princípio.
Comecei a ficar de fato inquieto. Será que os outros foram
mais rápidos do que nós? Teriam roubado o microfilme?
A bibliotecária voltou com um sorriso contraído.
— Não o estou encontrando — disse com uma voz desolada.
— Ah, não? E possível que alguém tenha levado emprestado?
— espantei-me.
— Não, normalmente os documentos não saem da biblioteca.
Mas pode ser que alguém o esteja consultando neste
momento. Vou verificar.
Fiquei imóvel. De repente, a idéia de que outra pessoa
pudesse estar naquela sala de leitura para consultar o
microfilme me parecia não apenas improvável, mas também
aterrorizante. Um homem da Acta Fidei ou do Bilderberg
talvez estivesse a alguns metros dali. Talvez até me
observasse sem que eu pudesse vê-lo! Tentando não
demonstrar minha angústia, lancei um olhar ao meu redor.
— Que engraçado — retomou a bibliotecária sem tirar os
olhos da tela do computador.
— O quê? — pressionei-a.
— Esse microfilme foi depositado na Biblioteca Nacional há
quase dez anos, antes mesmo que mudássemos para cá. Não
foi consultado uma única vez nos últimos três anos — meus
registros não vão muito longe —, e há duas semanas foi
consultado quatro vezes! É algum tema da atualidade?
— Bem, sim — balbuciei. — Mais ou menos...
— Mas o curioso é que não está sendo consultado no
momento. Portanto, deveria estar na gaveta... Espere...
Voltou a digitar em seu teclado.
— Bem, aqui está. O senhor tem sorte. Há uma cópia do
microfilme com outra referência. Espere, vou ver se
encontro na gaveta.
Ela desapareceu novamente.
Eu tinha a impressão de estar sendo vigiado. Sentia como um
formigamento na nuca. Gotas de suor escorriam em minha
testa. E, em minha língua, um gosto que eu já começava a
conhecer. O sabor da angústia, da paranóia que desde o dia
anterior tinha decidido brincar com minha saúde mental.
A moça voltou com um belo sorriso nos lábios. Tinha algo
na mão.
— Aqui está. E a cópia. Vou precisar fazer uma pesquisa
quanto ao original. Espero que não tenha sido roubado...
Estendeu-me o microfilme, colocado dentro de uma
pequena caixa de papelão.
— Obrigado — disse dando um suspiro de alívio.
— O senhor sabe como funciona? — perguntou-me ao se
sentar.
— Não.
— Vá até aquela sala — disse-me indicando a porta do
mezanino —, nela há retroprojetores, e passe o microfilme
por baixo da lâmpada... Se não conseguir, volte aqui.
— Muito obrigado — disse dirigindo-me para o mezanino.
Caminhei dando passos rápidos, lançando olhares para a
direita e para a esquerda, vigiando os outros visitantes,
espiando o menor movimento suspeito. Mas ninguém
parecia prestar atenção em mim. A impressão de estar sendo
observado começava a se esvair.
Depois de ter subido as escadas, entrei na pequena sala.
Constatei com alívio que não havia mais ninguém lá dentro.
Havia vários retroprojetores alinhados em duas longas mesas,
e escolhi o mais distante da porta.
Levei certo tempo para encontrar o interruptor, depois pas-
sei o microfilme pela fenda. Um longo texto manuscrito
apareceu sobre a placa branca. Várias páginas se sucediam
em aposição, como sobre a chapa de um tipógrafo. O menor
movimento fazia a imagem desfilar a toda velocidade, tão
grande era a ampliação. Era preciso proceder com muita
delicadeza. Puxei lentamente o microfilme para baixo para
ler o início do texto na página que trazia em algarismos
romanos o número um.
Pude ver então o título do microfilme. "A retirada dos
Assayya." Comecei a ler o texto com curiosidade. Estava
escrito num estilo pseudo-jornalístico um pouco afetado —
o que era de surpreender, pois se tratava de um manuscrito.
Em nenhuma parte mencionava-se o autor do texto nem o
âmbito em que havia sido escrito. Mas logo fui cativado por
seu conteúdo. Depois compreendi que tinha sim um vínculo
com nossa história, ainda que eu não captasse bem o sentido.
"(...) O deserto da Judéia costeia o Mar Morto. Nele, o sol
deixa as pedras ardentes às dez horas da manhã. Encostado à
montanha esconde-se um monastério, que sobreviveu desde
os primeiros séculos às agressões dos homens e do tempo.
Nenhum viajante vindo da Europa, nenhum nômade surgido
do deserto profanou esse lugar ainda? Os monges que
ocupam essa região desolada são descendentes diretos dos
membros de uma seita — os Assayya, uma comunidade
religiosa marginal, contemporânea de Jesus? (...)"
Impaciente, pulei algumas linhas para ter uma idéia global do
conteúdo do texto antes de mergulhar nele com mais
atenção. O autor envolvia sua história em frases misteriosas,
que me faziam lembrar o que Sophie me dissera das palavras
do meu pai: "Nenhum beduíno teria tentado arrancar o
arcano que preside o destino desses dissidentes espirituais,
dissimulados em grutas! Os reclusos do deserto.
Sim! Durante dois mil anos, os Assayya permaneceram em
sua posição. Preservaram um cisma, que os manteve
separados das outras correntes do judaísmo, e foram
refugiar-se no seio mais árido da Palestina — o antigo Reino
de Judá, domínio dos uádis, dos canyons, das cristas e dos
ascetas.
'Convertei-vos, pois próximo é o Reino dos Céus!', procla-
mou ali João Batista.
Mais adiante, o microfilme relatava como os historiadores
pensavam que aquela comunidade havia desaparecido:
"(...) No entanto, em 70 d.C., na época da destruição do
Templo de Jerusalém e três anos antes da queda de Massada,
um massacre fez desaparecer os eremitas daquela região
inóspita e destruiu seu asilo. É o que se acreditava!"
A história do massacre era contada em detalhes. Pulei mais
alguns parágrafos. Sentia que o autor agora abordava o tema
central. Sua empolgação transparecia no tom das frases e até
na escrita. O estilo de sua prosa traía a vontade de convencer
o leitor de que estava para lhe dar uma informação da maior
importância. Assim, revelava que naquele monastério
escondido nas montanhas do deserto da Judéia ainda viviam
os descendentes diretos daqueles estranhos Assayya.
Atualmente. Quase dois mil anos mais tarde. Eu começava a
compreender o possível vínculo com a nossa história...
Nesse instante, a porta da sala se abriu bruscamente. Tive um
sobressalto, e o microfilme escorregou da fenda para cair
sobre a mesa de madeira. Voltei-me e vi um homem de seus
trinta anos que entrava com um microfilme na mão. Não
estava vestido com o terno preto dos nossos amigos da Acta
Fidei, mas sua cara de mafioso sádico tampouco me inspirava
confiança. Ou talvez fosse minha paranóia que continuava a
me pregar peças.
— Bom-dia — disse ele ao sentar-se e acender um
retroprojetor à sua frente.
Respondi com um sorriso e recolhi o microfilme sobre a
mesa. Ia reintroduzi-lo sob a lâmpada quando a voz do
recém- chegado me sobressaltou novamente.
— É incrível o que dá para encontrar nesses microfilmes,
hein? — disse sem me olhar.
Será que era minha desconfiança exagerada ou ele acabava
de dar uma evidente indireta? Eu sabia do que nossos
perseguidores eram capazes e decidi não correr nenhum
risco.
— Sim, é incrível — respondi sem convicção ao me levantar.
Passei o microfilme para a pequena caixa e precipitei-me
para
a saída sem hesitar. Não tive coragem de me voltar para ver
se o desconhecido me seguia e corri direto para as escadas. A
bibliotecária ainda estava atrás do guichê. Avancei
rapidamente em direção a ela.
— Já terminou? — perguntou-me levantando os óculos sobre
a testa.
— Bem, sim.
Lancei um olhar ao mezanino. A porta da pequena sala esta-
va fechada. Mas o desconhecido teria tido todo o tempo para
sair enquanto eu descia as escadas. Talvez estivesse
esperando por mim no hall.
— Só uma pergunta — disse aproximando-me da moça. —
Poderia me dizer quem depositou esse microfilme na
Biblioteca Nacional?
— Claro.
Fez uma pesquisa no computador. Minhas mãos estavam
suadas, e minhas pernas, formigando.
— Certo Christian Borella. Há dez anos.
— Tem mais outros dados?
— Ah, não. Sinto muito.
— Não tem problema. Obrigado. Até mais.
Ela se despediu e voltou à sua papelada. Respirei fundo e
dirigi-me à saída, angustiado. Será que eu ia dar de cara com
o desconhecido? Teria que fugir novamente? Teria forças
para isso?
Com prudência, olhando para todos os lados ao meu redor,
saí da sala de leitura. Não o vi em parte alguma. Sorri à idéia
de que talvez eu tivesse agido rápido demais, mas ainda não
estava totalmente tranqüilo. E, sobretudo, fiquei com raiva
por não ter podido ler o microfilme em detalhes.
Atravessei o longo corredor da biblioteca até a entrada.
Ninguém parecia seguir-me. Mas continuei sem parar. Uma
vez do lado de fora, tomei um táxi e só me senti aliviado
depois de alguns minutos, quando tive quase certeza de não
estar sendo seguido.
Era meio-dia quando cheguei à alameda lateral da avenida de
Tourville, diante da fachada branca do hotel. Paguei o táxi e
me precipitei para dentro, impaciente para contar minha
pequena aventura a Sophie e descobrir o que ela havia
traduzido.
Porém, mal cruzei a porta, fui interpelado pela recepcionista:
— Senhor!
Voltei-me espantado. Em geral, quando uma recepcionista
chama você é para lhe dar um recado. Ora, supostamente
ninguém sabia que eu estava ali. A não ser Sophie. E Sophie
devia estar lá em cima, em nosso quarto...
— Senhor -— retomou a moça com um sorriso sem graça. —
Sua mulher partiu há meia hora e me pediu que lhe
entregasse este recado.
Peguei o envelope que ela me estendia. Li o recado ali
mesmo, impaciente.
"Damien - temos que mudar de hotel - peguei nossas coisas -
não paguei - encontro você às 14 na frente do prédio onde
trabalha aquele cujos homens são do meu filme preferido."
Reli o recado duas vezes para ter certeza de que não estava
sonhando e porque o final da frase tinha um sentido
obscuro. Parecia a carta anônima de um antigo filme de
espionagem. Mas eu sabia que provavelmente era sério. Já
não precisava de provas para saber que Sophie e eu
estávamos em perigo permanente. Mas de que prédio ela
estava falando?
Refleti por um instante, depois, finalmente entendi. Aquele
cujos homens. Alan J. Pakula. Todos os homens do
presidente. Era seu filme preferido. Não havia dúvida. Ela
falava do Élysée. Tínhamos de nos encontrar às 14 horas
diante do Palácio do Élysée. Não tão obscuro assim. Mas o
que me espantava era que ela havia utilizado um código para
marcar um encontro comigo.
Significava que estávamos sendo seguidos de perto? Hipótese
das mais prováveis, já que Sophie dizia mesmo que tínhamos
que mudar de hotel. Eu só esperava que não fosse tarde
demais...
— O quarto está vazio? — perguntei à recepcionista fechan-
do a carta e colocando o envelope no bolso.
— Sim, senhor. Aqui está o cartão de crédito da sua esposa.
Ela insistiu em deixá-lo conosco como caução. Realmente
não era necessário...
Recuperei o cartão de Sophie sorrindo, achando graça que
ela se tivesse passado por minha mulher.
— Pode fazer o check-out? — perguntei ao pegar minha
carteira. — Vou acertar agora, preciso partir.
— Claro, senhor. Há também um entregador que trouxe essas
duas sacolas para o senhor.
Reconheci minhas roupas. Apressei-me para pagar e recolhi
as sacolas.
Eu tinha tempo de almoçar antes do encontro misterioso
com Sophie, mas alguma coisa me dizia que não era
prudente ficar por ali, então peguei outro táxi para me
aproximar do Élysée.
Pedi ao motorista que parasse nos Champs-Élysées e comi
rapidamente no Planet Hollywood, não por gosto, mas para
garantir o anonimato. Esse restaurante era escuro e cheio,
um bom jeito de passar despercebido. Eu parecia um turista a
mais no meio dos diversos acessórios e das roupas que
pertenceram às estrelas do cinema. Não havia janelas, só a
luz artificial dos néons rosa e azul e decorações tão
chamativas que não dava para reconhecer ninguém. Engoli
um menu americano, porém, não sem prazer, e um pouco
antes das 14 horas saí para os Champs-Élysées.
Aqueles que subiam rumo à Étoile encontravam aqueles que
desciam rumo à Concorde, como dois exércitos de formigas
que se ignoram. Já tanta gente, no meio do dia, no mês de
maio. Sempre tanta gente. Muitas moças bonitas, japoneses
curvados pelo peso das Nikons, estudantes matando aula,
jornalistas de meia-tigela em fila para assistir às sessões para a
imprensa, artistas de rua divertindo os turistas nos terraços
dos cafés um ao lado do outro, seguranças de braços
cruzados diante das lojas de grife, mendigos, tiras, cães, uma
Paris totalmente diferente, mas Paris de todo jeito.
Depois, as silhuetas dos passantes cederam lugar àquelas das
árvores, e continuei até a praça Clemenceau. À direita,
percebi a esbelta estátua do general De Gaulle, caminhando
com um passo decidido, o torso curvo, as pernas retas. Outra
novidade que surgira durante minha longa ausência. Virei à
esquerda na avenida Marigny e finalmente cheguei à rua do
Faubourg-Saint-Honoré, diante das muralhas bem vigiadas
do palácio presidencial. A bandeira francesa flutuava por
cima da grande porta abobadada, e uma figura de pedra
parecia lançar-me um olhar acusador.
Eu não tinha certeza de estar sendo discreto ao caminhar de
um lado para outro feito um imbecil, com minhas duas
enormes sacolas de roupas. Os militares que guardam o
Élysée deviam observar-me com um olhar esquisito. Mas,
felizmente, não precisei esperar muito tempo.
Ao final de alguns minutos, um New Beetle cinza parou ao
longo da calçada da frente, e vi aparecer o rosto de Sophie lá
dentro. Ela me fez sinal para entrar no carro. Atravessei a
rua, joguei minhas duas sacolas no banco de trás e sentei-me
do lado da jornalista.
— O que aconteceu com o seu Audi? -— espantei-me
admirando o interior impecável do Volkswagen.
—- Preferi alugar um carro. Precisamos de anonimato...
— Ah, sim, muito discreto esse New Beetle! Decididamente,
você adora os alemães! Bom, que história é essa de troca de
hotel e encontro secreto?
— A Esfinge me mandou uma mensagem nesta manhã,
dizendo que meu laptop havia sido invadido por um hacker
— anunciou-me Sophie, partindo com o carro. — Segundo
ela, alguém vasculhou meu computador a distância. E esse
alguém em questão também teria localizado meu ponto de
conexão com a web, o que, ainda conforme a Esfinge, não é
dado a qualquer um... Ela não pôde me garantir que isso
tivesse uma relação com minhas pesquisas, mas achei que
mesmo assim seria melhor darmos o fora e deixar de utilizar
meu laptop para nos conectarmos.
— Que história de maluco!
-— Estamos mesmo bem perto de enlouquecer! — ironizou
Sophie.
— Acha que foi a Acta Fidei?
— Ou o Bilderberg, ou qualquer outra pessoa... Mas se são
eles, quer dizer que têm um meio de saber que estávamos no
Le Tourville! Talvez também tenham conseguido ler os
arquivos que eu ainda não tinha tirado.
-— Você deixou no computador? A Esfinge te disse para
colocar tudo num CD!
— Tirei tudo o que lembrei. Mas a Esfinge me disse que não
suprimi meus e-mails nem alguns arquivos temporários que
ficam salvos na memória. E isso inclui o início da tradução
do manuscrito de Dürer! Realmente sou muito estúpida!
— Você não podia saber...
-— A Esfinge tinha acabado de nos prevenir! Sou uma
imbecil!
— O principal é que percebemos cedo o suficiente para sair
do hotel! Agora entendo melhor por que você codificou sua
mensagem para nosso ponto de encontro.
— Pois é, não foi uma codificação de alto nível, mas não tive
tempo de refletir. Em todo caso, devemos um belo favor à
Esfinge! Preciso de todo jeito entrar em contato com ela
novamente. Pouco antes de me desconectar, ela disse que ia
tentar identificar as pessoas que invadiram meu laptop graças
ao logger que nos enviou...
— Como podemos entrar em contato com ela se não pode-
mos utilizar seu computador?
— De um cibercafé. É o que há de menos arriscado.
Exprimi minha concordância com um gesto vago de mão.
— De todo modo — retomei —, com o que encontrei na
Biblioteca Nacional, a web ainda pode ser muito útil para
nós... Vamos precisar nos conectar em algum lugar.
— Encontrou o microfilme?
Enquanto o New Beetle entrava na praça Étoile, contei-lhe
minha história em detalhes. Quando lhe disse que os
religiosos aos quais o texto se referia chamavam-se Assayya,
Sophie arregalou os olhos.
— Não pode ser! — exclamou.
— O quê?
— Esse manuscrito sustenta que atualmente existe um
monastério dos Assayya no deserto da Judéia, é isso?
— Sim. Por quê? Sabe quem são? — perguntei intrigado.
— Sei. Assayya, em aramaico, significa "aqueles que cuidam".
— E daí?
— Em grego, isso deu essaioi... e, em francês, essênios! São os
essênios, Damien!
— Tem certeza?
— Ouça, não sei se esse texto diz a verdade, não sei se é
possível que uma comunidade de essênios tenha sobrevivido
durante dois mil anos, quando os historiadores dataram seu
desaparecimento no século II. Isso me parece possível, mas
o que sei é que Assayya era o nome dado aos essênios. E se
esse texto não estiver falando muita bobagem, isso quer
dizer... Não. É impossível. É completamente surrealista.
Seria demais! Como poderiam ter passado despercebidos por
tanto tempo? Como teriam se renovado? É loucura!
— Se você está dizendo... Em todo caso, é intrigante! Vou
precisar olhar esse texto mais de perto.
Sophie ficou em silêncio até chegarmos à avenida Carnot. Eu
bem reparei que ela estava refletindo, analisando a
verossimilhança daquela revelação. Corríamos de surpresa
em surpresa. E o pior é que provavelmente não estávamos
no fim.
Chegamos ao hotel Splendid, a poucos passos da praça Étoile,
onde desta vez pegamos dois quartos separados. Sem o
laptop, realmente já não tínhamos desculpa para dividir o
mesmo quarto.
O hotel, na esquina da rua de Tilsitt com a avenida Carnot,
era um quatro estrelas mais luxuoso e menos íntimo que o
Tourville. No entanto, tinha uma belíssima desculpa para a
tranqüilidade perdida: meu quarto Luís XV dava diretamente
para o Arco do Triunfo.
Depois que cada um de nós desfez as malas, fomos nos sen-
tar nas poltronas redondas do bar do hotel.
— O que você quer beber? — perguntou-me Sophie quando
me sentei à sua frente.
Hesitei por um momento. Sophie deu um breve suspiro e
aproximou-se de mim:
— Escute, Damien, você está levando muito a sério essas
suas histórias com a bebida! — cochichou fitando-me
diretamente nos olhos. — Solte-se um pouco, caramba! Não
é o fim do mundo você tomar umas doses, né? Não vai fazer
besteira sempre que tiver vontade de beber, vai?!?
Fiquei tão surpreso que nem consegui responder.
— Damien — retomou com um tom solene —, já é hora de
você voltar a confiar um pouco mais em si próprio. Não vou
dar uma de psicóloga de botequim, mas, francamente, você
se aflige demais!
Continuei imóvel. Eu estava ao mesmo tempo furioso e
desorientado.
— Não sei que merda de vida você teve antes, mas hoje a
vida é bela. Você tem o direito de relaxar.
Olhei-a com um ar estupefato. Eu nunca a tinha ouvido
nesse tom. Nunca vira aquele olhar. Tinha a impressão de
estar ouvindo Chevalier. Um grande irmão. Uma grande
irmã. Tocante e irritante ao mesmo tempo. Tão segura de si!
— A vida é bela? Relaxar? — consegui, enfim, balbuciar.
— Sim. Viver, ora! Você é um cara legal, mas torna a vida
complicada demais.
Fiquei com vontade de lhe dizer que ela era um dos elemen-
tos que deixavam minha vida complicada naquele momento,
mas não encontrei coragem.
— Nem todo o mundo consegue ficar tão relaxado quanto
você! — retorqui mesmo assim. — Claro, você não tem
nenhum complexo, parabéns! Mas nem todo o mundo pode
ser assim... extrovertido!
— Não sou extrovertida! Sou livre e não me preocupo com o
olhar das pessoas... Por exemplo, você se incomoda que eu
possa gostar tanto de garotas quanto de rapazes? Mas não
estou nem aí. Deixo a vida me levar. Se eu me apaixonar, me
apaixono e pronto...
— Assim é fácil!
— Nem tanto, mas, de todo modo, não é disso que se trata!
— defendeu-se.
— Se trata o quê?!? Não estou certo de ter entendido o que
você está tentando me dizer. Nem sei por que você veio
com essa conversinha!
— O que estou tentando lhe dizer é que você se culpa
demais. Em relação à sua ex, em relação ao seu pai, em
relação ao seu passado em geral, ao álcool, à cocaína, a Nova
York e não sei mais o quê... Você deveria respirar um pouco.
— Não estamos no contexto ideal para relaxar — repliquei
ironicamente.
— Tem toda razão — concedeu Sophie. — Mas, se você
conseguir relaxar agora, quando está mais difícil, então será
uma vitória. E me deixaria muito contente.
Fiquei em silêncio por um momento. No fundo, eu sabia o
que ela queria dizer. Talvez ela não tivesse encontrado as
palavras certas, mas tinha razão. Meu problema era simples:
eu não gostava do que havia me tornado em Nova York e
tinha vontade de me desintoxicar de tudo. De me purificar.
Absolver-me. E nunca poderia acreditar que conseguiria até
o dia do nosso encontro. Sophie era aquela que me podia
fazer renascer. Devolver-me o que meu passado me havia
tirado. Mas, pronto, havia um problema: eu a amava, e ela
amava as mulheres.
— Por que você está me dizendo isso agora, assim? —
perguntei-lhe baixando os olhos.
— Porque gosto de você. De verdade.
Por mais simples e desajeitada que fosse, essa era a coisa mais
gentil que me haviam dito depois de muitos anos. E também
era a mais embaraçosa.
— E depois — confessou —, porque fico bastante incomoda-
da de vê-lo entrar em pânico sempre que tem vontade de
tomar uma bebida. Ou de ficar comigo.
— Ficar com você? — melindrei-me.
— Isso mesmo, ficar comigo. Está tudo bem, Damien, você
tem o direito de querer ficar comigo! Você tem o direito de
ficar com quem quiser, assim como a pessoa com quem você
quer ficar tem o direito de ser receptiva ou não! Vê como
você leva tudo muito a sério?
Eu ainda estava chocado. Completamente perdido na
poltrona, e a olhava com um ar assustado.
— Então — insistiu sem pena —, o que vai beber?
Era inútil lutar. Sophie era uma adversária imbatível.
— Um uísque.
Ela sorriu.
— Duplo — acrescentei esboçando um sorriso.
Ela aplaudiu e fez sinal para o garçom. Ele anotou nosso
pedido e ficamos em silêncio, talvez um pouco
incomodados, até que nossas bebidas fossem servidas.
— Me desculpe por ter sido dura com você — insinuou
timidamente depois de dar alguns goles em seu
Cosmopolitan.
— Não, você fez bem. Tem razão. Não consigo relaxar...
Sabe, às vezes a psicologia de botequim não é totalmente
desprovida de sentido... De fato, acho que preciso parar de
me culpar.
E, nesse instante, no meio daquela tarde estranha, à sombra
daquele bar luxuoso, Sophie me beijou. Na boca.
Longamente.
Entreguei-me. Impotente. Estupefato. Extasiado. Depois ela
afundou na poltrona, deu-me um largo sorriso, bebeu um
gole e, olhando o canudo do seu Cosmopolitan na boca,
mandou:
— Nada mal para uma lésbica, né?
E deu uma risada. Mas não era uma risada zombeteira. Era
uma risada agradável, cujas notas eu não ouvia por completo,
de tanto que se misturavam no eco do meu estupor.
Virei meu uísque num gole só.
Depois também dei uma risada. Era como se a pressão incrí-
vel que nos perseguia havia vários dias finalmente
diminuísse. Um segundo de repouso em nossa corrida
desenfreada.
E, para mim, o beijo mais inesperado.
Ficamos em silêncio por mais alguns longos minutos antes
de Sophie decidir-se a retomar a conversa:
— Seja como for, tive tempo de avançar um pouco na tradu-
ção — anunciou em outro tom.
— Excelente! E então? — apressei-a aprumando-me em
minha poltrona para fingir desenvoltura.
Na verdade, eu estava com dificuldade em pensar em qual-
quer coisa além daquele beijo que ela acabara de me dar, mas
precisava me concentrar no trabalho. E Sophie mantivera os
pés no chão. Para ela, a vida era tão simples. Não estava
mentindo nem se fazia essas perguntas absurdas que me
impediam de avançar. E o beijo estava lá para provar isso.
— Não tenho nada muito concreto por enquanto. A grande
dificuldade consiste em compreender o texto que estou
traduzindo graças às notas do seu pai. E, francamente,
preciso de mais documentos para fazer minhas próprias
verificações.
Havia muito tempo eu esquecera o sabor desse tipo de beijo.
Um simples beijo de estudante. Não esses beijos
desenfreados que eu dava nas ficantes noturnas que iam
parar na minha cama nova-iorquina. Não, um beijo
verdadeiro, simples. Um beijo de apaixonados.
— E em que ponto você está? — perguntei um pouco
distraído.
— Ainda estou no começo. Dürer deu pistas para seguir a
história da pedra de Iorden, e seu pai fez algumas pesquisas,
mas estão incompletas. Por enquanto, se entendi direito,
Dürer explica que aquele a quem Jesus teria dado esse objeto
misterioso — quer se trate de João, de Tiago ou de Pedro —
confiou-o antes de morrer a monges da Síria. Preciso
verificar se isso é plausível e se podemos encontrar alguma
coisa a respeito na História... Honestamente, não creio que
eu vá conseguir fazer isso no hotel. Preciso ir trabalhar na
biblioteca.
— Talvez eu possa ajudá-la — propus.
— Não. Você precisa seguir a pista do microfilme. Essa his-
tória dos essênios é incrível!
— Não vou voltar à Biblioteca Nacional! É muito perigoso...
— Com certeza — admitiu —, mas como você tem o nome
da pessoa que depositou o microfilme, poderia tentar entrar
em contato. Ver se é um louco de pedra ou se é um cara
sério.
— OK.
— Lembra do nome dele, não?
— Christian Borella — confirmei.
— Ótimo. Tente encontrá-lo. Enquanto isso, vou trabalhar
no Beaubourg.
— Certo, chefa.
-— Primeiro vamos a um cibercafé entrar em contato com a
Esfinge, depois você pode fazer suas pesquisas sobre o autor
do microfilme.
— Vamos nessa — cedi colocando meu copo sobre a mesa.
Sophie me lançou um olhar intenso. Eu sabia exatamente o
que queria dizer esse olhar. Ela me perguntava se estava tudo
bem, se eu estava chateado por ela ter me beijado. Devolvi-
lhe
um sorriso. Eu estava bem, bem demais.
— Os caras que a hackearam são profissionais, não são
garotos se divertindo, e parece que agiram dos Estados
Unidos, mas não tenho como verificar isso por enquanto.
Sophie havia escolhido um cibercafé da moda, no coração da
avenida Friedland. Era um gigantesco loft mergulhado numa
penumbra elétrica, e a decoração parecia, ao mesmo tempo,
uma discoteca rococó dos anos 80 e uma lan house de Los
Angeles. Néons, diodos, spots, luz baixa dos monitores, e a
sombra dessa toca era transpassada por raios fluorescentes.
Ao longo das paredes alinhavam-se fileiras de computadores,
diante dos quais aglutinavam-se adolescentes inquietos, com
fones nos ouvidos, o olhar de mortos-vivos, lançando rajadas
com metralhadoras Uzi ou fuzis Kalachnikov em combates
em rede. Um dos rapazes da recepção, com cara de louco e
cerca de trinta anos, guiou-nos até o fundo do loft. De
cabelos longos, olhos vermelhos e olheiras por trás dos
óculos de armação pesada, com o corpo magro flutuando
numa camisa e em calças largas demais, ele parecia não
comer nem dormir havia dias. Nós o seguimos por uma
estreita escada de caracol, e ele enfim nos arrumou um canto
no mezanino.
— Podem ficar aí. Tem Explorer e Netscape. Não é possível
fazer nem instalação nem gracinhas. Para jogar é preciso...
— Não pretendemos jogar. Mas tem mIRC instalado?
Ele suspirou, vasculhou alguma coisa no computador, e um
ícone surgiu. O único programa de que precisávamos. Saiu
resmungando, com um cigarro na boca.
Estávamos bem tranqüilos no canto do mezanino. A
garotada em volta habitava um mundo completamente
diferente e nem nos viu chegar. Com seus fones de ouvido e
a música tecno difundida pelas caixas de som espalhadas por
toda parte, eles tampouco conseguiam nos ouvir, e podíamos
conversar sem medo. Ausentei-me por um momento,
cedendo a uma necessidade urgente, e Sophie aproveitou
para sociabilizar um pouco com a Esfinge. Revelou-lhe,
entre outras coisas, minha existência, além das informações
relacionadas à nossa pesquisa.
A foto de Bush que o hacker nos havia enviado acabava de
ser publicada no Liberation, o que deixou nosso amigo
invisível muito contente.
Ele era cada vez mais simpático conosco, e eu tinha vontade
de saber mais sobre ele. Afinal de contas, nem sabíamos qual
era a sua idade, embora tudo parecesse indicar que devia
tratar-se de um jovem de cerca de vinte anos.
Ao nos prevenir que havíamos sido hackeados e vigiados,
talvez tenha salvado nossa vida. Sophie prometeu-lhe que
saberíamos provar nosso reconhecimento.
— Você sabe se eles tiveram tempo de vasculhar todo meu
disco rígido?
— Sem nenhuma dúvida.
— Tem como identificá-los a curto prazo?
-— Talvez com o programa que pedi para vocês instalarem.
Mas vai levar tempo. Esses malditos mandaram para vocês
um Cavalo de Tróia, devem ter esperado o momento em que
vocês não estavam usando o PC para tomar conta da
máquina.
— Interessante. Só que agora já não posso utilizar meu
laptop, e isso não vai nos ajudar a terminar nossas pesquisas.
— Posso fazer mais alguma coisa por vocês?
— Por enquanto, nada de específico. Mas tenho certeza de
que em breve teremos novas perguntas a lhe fazer.
Enquanto isso, você poderia tentar identificá-los?
—- Vou fazer todo o possível. Vou tentar encontrar mais
coisas sobre a Acta Fidei. Essa história realmente está me
intrigando.
— Também pode tentar alguma coisa sobre o Bilderberg.
Ficamos sabendo, de fonte segura, que acabou de ocorrer um
cisma dentro do grupo... Certamente há o que procurar por
aí.
— OK. Voltamos a nos falar hoje à noite?
— OK. Depois do jantar.
Sophie fechou o programa e me cedeu seu lugar.
— Faça suas pesquisas sobre o autor do microfilme — disse
ela. — Vou ao Beaubourg. Nos vemos esta noite no hotel, às
oito horas, para jantar, depois vamos reencontrar a Esfinge
on-line.
— Combinado.
Ela me deu um beijo na testa e desapareceu por trás das
colunas de pedra que quadriculavam o mezanino do
cibercafé.
Suspirei e abri um navegador no micro à minha frente.
Decidi começar pelo site das Páginas Amarelas, mas como
não havia cidade específica nem mesmo região, logo
descobri que havia Borella demais na França para que minha
pesquisa fosse possível desse jeito. Só na região parisiense já
havia vários.
Sem grande convicção, abri um site de buscas e digitei o
nome do autor do microfilme. Após algumas páginas sem
importância sobre diversos homônimos, vi com surpresa um
link para um comunicado da AFP, de título sugestivo.
Impaciente, clique! no título "Israel: assassinato inexplicável
de um diretor da missão para os Médicos sem Fronteiras".
Lentamente, a página foi abrindo na tela do meu computa-
dor. Era uma nota curta, de algumas linhas:
"JERUSALÉM (AFP). O corpo de Christian Borella, diretor
da missão para os Médicos sem Fronteiras, foi encontrado
esta manhã num apartamento nos arredores de Jerusalém.
Morto com dois tiros na cabeça, o francês de 53 anos passou
boa parte da vida junto aos beduínos do deserto da Judéia.
Dado o caráter puramente humanitário de sua missão, a
polícia israelense estima que há poucas chances de o
assassinato ter relação com o conflito entre israelenses e
palestinos. Sendo assim, o motivo do assassinato permanece
misterioso por enquanto. Talvez um crime passional..."
Não havia dúvida. Certamente se tratava do autor do micro-
filme. A coincidência era grande demais. O monastério a que
o manuscrito da Biblioteca Nacional fazia referência
encontrava-se justamente no deserto da Judéia. Portanto, eu
tinha quase certeza de ter encontrado a pista. Mas,
infelizmente, era um provável beco sem saída, já que o
famoso Borella estava morto.
Em todo caso, definitivamente, havia o que pesquisar naqui-
lo tudo: dizer que sua morte tinha alguma relação com o
microfilme certamente não seria nenhuma viagem. Olhei a
data da nota. Era de quase três semanas. Cada vez mais
perturbador.
Agitado, continuei a esquadrinhar os anuários de pesquisa
para encontrar outras informações sobre Borella, mas, além
de uma notinha da Reuters mais ou menos similar àquela da
AFP, nada encontrei de concreto. Decidi então seguir a pista
dos Médicos sem Fronteiras e procurei seu número de
telefone.
Anotei as informações num pedaço de papel e apressei-me
em deixar a cacofonia do cibercafé.
Quando cheguei ao piso inferior, notei dois carros da polícia
estacionados em fila dupla bem na frente da entrada. Parei
de imediato. Estariam ali por minha causa? Eram policiais
comuns, e não investigadores. E daí? Eu não podia correr
nenhum risco. Praguejei. Talvez até já tivessem interpelado a
Sophie!
Devo ter feito uma cara muito esquisita, pois o sujeito da
recepção bateu no meu ombro.
— Preocupado?
Estremeci.
— Hein?
— Está preocupado? — repetiu o cabeludo, lançando um
olhar para a rua.
Hesitei.
— Tem outra saída?
Ele inclinou a cabeça. Olhou-me com um ar zombeteiro,
como se fosse dizer: "Quem poderia imaginar que um cara
como eu pudesse tirar um cara como você de uma encrenca,
hein?"
— Siga-me — propôs finalmente, como se tivesse decidido
que eu não tinha cara de criminoso.
E foi para o fundo do loft. Sem hesitar, segui seus passos por
entre as fileiras de gamers. Ele abriu uma pesada porta de
ferro bem ao lado da entrada dos banheiros. Dava para um
corredor cheio de caixas de computadores e cabos velhos
enrolados. Passei por trás dele.
— Pode sair por ali — disse-me indicando uma saída de
emergência no final do corredor.
— Muito obrigado — respondi meio sem graça.
— Sem problemas.
Voltou ao interior do cibercafé antes mesmo que eu pudesse
apertar sua mão.
Decidi sair. Eu estava do outro lado do imóvel e, para meu
alívio, não vi nenhum policial naquela rua.
Caminhei a passos rápidos, voltando-me freqüentemente
para trás, temendo vê-los na minha cola sempre que vibrava
o motor de um carro. Atravessei várias ruas até conseguir
encontrar um lugar calmo, longe das viaturas da polícia,
longe da Paris dos turistas, longe dos rostos tão numerosos
que não me deixavam esquecer a paranóia crescente.
Sentei-me num banco verde, à sombra das primeiras folhas
de um jardim, numa praça silenciosa. Dei um longo suspiro.
Não conseguia me habituar a essa nova vida. A fuga.
Pombos saltitavam na areia ao meu redor, em busca de
migalhas de pão que uma senhorinha devia jogar
regularmente daquele banco. Alguns arbustos, a estátua de
bronze de um marechal qualquer, treliças verdes ao pé dos
plátanos, eu estava na Paris da minha infância. Aquela onde
minha mãe me levava para passear às quartas-feiras à tarde.
Eu me lembrava da mão dela segurando a minha, me
ajudando a subir o meio-fio. O mercado de flores, os
espetáculos de marionetes no Jardin d'Acclimatation, os
sorvetes da sorveteria Berthillon... Era essa Paris que mais
me fizera falta.
Mas a hora não era para lembranças. Eu não podia deixar a
melancolia me vencer. Não nesse momento. Peguei o
celular no fundo do bolso. Ainda não tinha colocado o chip
provisório que havia comprado na véspera. Introduzi-o no
telefone e verifiquei que funcionava.
O logotipo de minha operadora apareceu na tela, e os
quadradinhos do sinal empilharam-se um a um. Digitei o
número dos Médicos sem Fronteiras. Uma moça atendeu. Eu
não havia preparado minha ligação. Improvisei.
— Bom-dia, aqui quem fala é Laurent Chirol.
Foi o primeiro nome que me veio à cabeça.
— Sou jornalista do Canal Plus — acrescentei.
Pura precaução. Na pior das hipóteses, se precisasse
comprovar minhas fontes, Sophie certamente poderia
assegurar minha retaguarda junto à emissora.
— Estou preparando uma pauta sobre Christian Borella...
Gostaria de falar com alguém daí que o conhecesse.
— Um momento — respondeu a telefonista num tom bem
artificial.
Cerrei os punhos, esperando que não me mandassem
passear. Quando a musiquinha de espera parou, foi uma voz
masculina que rompeu o silêncio. A telefonista havia passado
minha ligação.
— Senhor Chirol?
Era uma voz grave, segura, até um pouco pedante.
— Sim — respondi.
— Bom-dia, sou Alain Briard, trabalho no setor de expedição
da seção francesa e conhecia muito bem Christian. Line me
disse que o senhor está preparando uma pauta a seu
respeito...
— Exatamente.
— Muito bem. Na verdade, não sei se poderei ajudá-lo, mas
ficaria muito curioso para ver os resultados de sua matéria.
— Enviarei uma fita para o senhor — menti.
— O que quer saber?
— Christian chegou a lhe falar sobre temas de pesquisa liga-
dos a seu trabalho para os Médicos sem Fronteiras?
— Não exatamente.
— Nunca lhe falou de uma paixão que nada tinha a ver com a
humanitária? Ou de uma descoberta um tanto... digamos...
fora de propósito?
— Não — respondeu o interlocutor com uma voz perplexa.
— Sua grande paixão era o deserto da Judéia. Passava seu
tempo lá, e não creio que tenha havido espaço para muitas
outras coisas em sua vida...
— Sim, mas justamente, nunca lhe falou de qualquer coisa a
respeito do deserto da Judéia que não tivesse nenhuma
relação com os Médicos sem Fronteiras?
— Não entendo aonde o senhor quer chegar. Por acaso ele
encontrou algum tesouro por lá?
— Não, não, absolutamente — tranqüilizei-o.
— Sabe, ele não tinha tempo para se ocupar de outra coisa,
nem mesmo para se ocupar de sua filha em Paris...
— Filha?
— Sim, Claire, sua filha. Não sabia que ele tinha uma filha?
— É... não, estou bem no início da minha investigação...
— Deveria começar por aí! Ela certamente sabe mais do que
eu a respeito dele.
— Tem o endereço dela?
Hesitou por um instante.
— Ela morava na casa do pai, acho... Mas não posso lhe dar o
endereço. Isso faz parte de sua vida particular...
— Entendo.
Não quis pressioná-lo. Sobretudo, eu não podia chamar a
atenção. Mas já possuía todas as informações de que
precisava. Procuraria o endereço de certa Claire Borella ou
de seu pai, Christian, que morava em Paris. Desta vez, eu
tinha elementos suficientes para não tatear no escuro.
Agradeci ao senhor Briard, visivelmente decepcionado por
eu não lhe ter feito nenhuma outra pergunta, e desliguei.
Digitei em seguida o número da central de informações e
pedi sobre Christian Borella. Por sorte, havia apenas um em
Paris. Infelizmente, seu nome não estava disponível para
consulta.
Provavelmente eu não poderia ir muito mais longe sozinho,
ia precisar da ajuda da Sophie e do tal amigo do RG. Mas eu
ainda tinha tempo até as vinte horas e, podendo dar outros
telefonemas, decidi lançar mão de uma antiga pista que
havíamos negligenciado um pouco. O padre de Gordes.
Encontrei o número do presbitério com a ajuda do
departamento de informações e resolvi ligar para ele. Muitas
perguntas haviam ficado em suspenso depois do nosso
encontro.
Ele atendeu após o segundo toque.
— Bom-dia, padre. Aqui é Damien Louvei.
Ouvi-o suspirar.
— Bom-dia — respondeu igualmente.
— Incomodo? — arrisquei, embora a resposta não deixasse
dúvidas.
— Sim.
A situação tinha o mérito de ser clara.
— Sinto muito, padre, mas...
— Sabia que está sendo procurado pela polícia?
— Entre outros, sim...
— E não se abala?
— Digamos que isso ainda não está no topo da minha lista de
prioridades. Sinto muito por incomodá-lo, repito, mas
admita que o senhor terminou nossa conversa de modo um
pouco seco da última vez e...
— Imagine que, neste exato momento, estou encaixotando
minhas coisas — interrompeu-me exasperado.
— Vai partir? — espantei-me.
— Sim.
— Para onde?
— Para Roma.
— Como assim?!? — exclamei.
— Isso mesmo. Para Roma. Fui transferido, senhor Louvel.
— Transferido para Roma? Nossa, que bela promoção!
— Na verdade, não... Gosto muito da paróquia de Gordes e
bem que terminaria minha vida por aqui. Em suma, senhor
Louvel, não é exatamente uma promoção. E mais um beco
sem saída.
— Ah. E o senhor não pode recusar?
Ele suspirou novamente, tentando acalmar a voz.
— Claro que não!
— Não sei, não estou muito por dentro do direito do trabalho
eclesiástico — insinuei ironicamente.
— Fui transferido e pronto. Estou de partida.
Perdi o fôlego. Obviamente o padre recebera uma alta
promoção, e, sem querer, eu achava isso quase divertido.
— Acha que o transferiram para... silenciá-lo?
— Sem comentários.
Ouvi o barulho de um isqueiro. O padre estava acendendo
um cigarro. Cada vez melhor!
— Sabe quem pediu sua transferência?
Ficou em silêncio por um momento.
— Não. Nunca se sabe de quem vem.
Precipitei-me.
— E se eu lhe disser que sei de quem vem?
— Como assim?
— Sei exatamente quem pediu sua transferência e por quê.
Eu poderia lhe dizer mais, mas o senhor também tem umas
coisas a me dizer sobre meu pai, não é verdade?
Novo silêncio embaraçoso.
— Talvez — admitiu finalmente.
Cerrei os punhos. A coisa estava ficando interessante.
— Escute, seu padre, acho que precisamos conversar a res-
peito de tudo isso com mais calma. Será que o senhor
poderia tirar um dia ou dois de folga e me encontrar em
Paris?
Hesitou.
— Por que não...
— Anote o número do meu telefone. Não o divulgue em
hipótese alguma. Ligue-me assim que estiver em Paris. E
tome cuidado. De verdade.
— E a polícia?
— Não é obrigado a dizer a eles que falou comigo ao
telefone.
— Claro, claro. Segredo profissional, filho — respondeu antes
de desligar.
Capítulo Oito
O Le Pré Carré, restaurante do hotel Splendid, contava com
ambiente discreto e, no terraço, com uma calma ideal para se
conversar com tranqüilidade. O problema é que já eram
20h30 e Sophie ainda não tinha chegado. Estava meia hora
atrasada, e eu começava não apenas a ficar enjoado por causa
dos pistaches que a garçonete me havia trazido, mas também
seriamente preocupado.
Eu já tivera tempo suficiente para imaginar centenas de
cenários catastróficos nos quais Sophie era assassinada pelos
cães de guarda de um ou outro dos nossos obstinados
perseguidores. Sem falar da eventualidade cada vez mais
plausível de que os tiras a tivessem prendido na saída do
cibercafé. E eu não me imaginava assumindo nossa história
sozinho. Eu não era nada sem a Sophie. Precisava dela, da
sua coragem, da sua determinação, dos seus sorrisos, dos
seus...
Estava para pedir um segundo uísque quando vislumbrei
com felicidade a silhueta da jornalista através da janela do
restaurante.
Ela se aproximou da minha mesa, e na luz dos seus olhos vi
que nada grave havia acontecido.
— Sinto muito, me atrasei, fui cativada por minha tradução...
E estava com o pessoal do Canal ao telefone, eles estão
impacientes.
Sentou-se à minha frente. Os reflexos azulados dos discretos
plafonniers iluminavam seu semblante como um raio de sol
através de um vitral. A iluminação do Pré Carré tinha algo
feérico. Azul no teto, âmbar nos revestimentos de madeira e
nas paredes claras, alinhadas atrás dela. Pequenos biombos
de madeira, estofados em capitonê, separavam-nos das mesas
vizinhas a uma altura considerável, oferecendo ao nosso
canto um ar intimista. A mesa estava magnificamente
arrumada. Pratarias, cristais, toalhas macias e espessas.
Sophie acariciava com nervosismo a superfície do
guardanapo com o dorso da mão. Estava visivelmente aflita
para me contar o que havia descoberto, mas, tão logo se
instalou, pediu que eu começasse.
— Acho que os tiras estão atrás de nós. Havia duas viaturas
da polícia na saída do cibercafé.
— É mesmo? Tem certeza?
— Não fui até lá para perguntar. Saí pelos fundos. Mas se nos
seguiram até o cibercafé, quem nos diz que não sabem em
que hotel estamos?
Lançou um olhar ao nosso redor.
— Por enquanto, está tudo tranqüilo — disse sorrindo. —
Vamos ver...
— Vamos ver? Essa é boa! Não costumo ser procurado pelos
tiras.
— Nem eu, mas não podemos fazer grande coisa, a não ser
vigiar nossa retaguarda, como se diz. Então, o que você
descobriu?
— Borella já era —- respondi logo, bastante à vontade após
ter mudado completamente de assunto. -— Foi assassinado
em Jerusalém. Tem uma filha em Paris. Seu nome não está
disponível para consulta, acho que será preciso ligar para
aquele seu amigo do RG novamente.
Sophie riu.
— Coitado, vai ficar uma fera! -— avisou-me. — Se em vez
disso pedíssemos à Esfinge...
—- Por que não? De todo modo, você lhe disse há pouco
que voltaríamos a entrar em contato esta noite.
Uma funcionária do restaurante aproximou-se da nossa mesa
e nos estendeu o cardápio. Agradeci-lhe com um sorriso.
— Está com fome? -— perguntou-me Sophie quando a
garçonete se afastou.
— Digamos que nós dois merecemos uma bela refeição e que
falta em Nova York restaurantes como este...
— Pensei que houvesse um monte de excelentes franceses
por lá.
— Não é como aqui. A cozinha francesa nunca tem realmen-
te o mesmo gosto no exterior. Não sei por quê. Talvez
porque não se encontrem os mesmos ingredientes.
Ela aquiesceu sorrindo, depois mergulhou o olhar no menu.
— Então, vai pedir o quê? — perguntou sem levantar os
olhos.
Deslizei o dedo várias vezes pelo menu, indeciso. Que suplí-
cio ter de escolher numa lista em que tudo parece suculento!
-— Acho que de entrada vou sucumbir aos escalopes de foie
gras com pêssegos assados — anunciei finalmente.
Ela sorriu.
— Só isso? Ah, é verdade, você tem razão, vou pedir o mes-
mo. E depois?
— Estou entre as costeletas de cordeiro assadas com tomilho
e o coelho com pinhões e acelga...
Coçou o queixo, depois, ajustando os óculos, levantou a
cabeça para mim.
— Bom, peça o cordeiro que eu peço o coelho, e provamos
um do prato do outro.
— Combinado!
Chamei a garçonete, que não tardou em vir tomar nota dos
pedidos. Retirou-se depois que anunciamos nossas escolhas e
cedeu lugar a um rapaz gordinho.
— Vão querer vinho? — perguntou estendendo-me a carta.
Hesitei por um instante diante da lista bastante completa.
— Para o foie gras, acho que um Sauternes cai bem... Sophie?
— Pode ser. Ou um Barsac — sugeriu maliciosamente. —
Conhece? É bem próximo do Sauternes, porém mais suave
para o meu paladar.
— Perfeito — respondi entusiasmado.
Estendi-lhe a carta de vinhos um pouco envergonhado.
Sabia que ela era muito mais competente do que eu para
escolher nossa bebida. Aos diabos a tradição que mandava o
homem escolher! Eu preferia passar por um ignorante e
beber um bom vinho.
— Então vamos de Château Climens — concluiu Sophie.
— 1990? — sugeriu o sommelier.
— Ótimo. Em seguida, para os pratos, é difícil encontrar um
vinho que combine ao mesmo tempo com o coelho e o
cordeiro...
— Nesse caso, não conte comigo. Confio em você, Sophie.
— Um Panillac deveria dar conta do recado — propôs olhan-
do para mim. — Pelo menos para o cordeiro, não há nada
melhor.
Aquiesci, achando graça.
— Então aceitamos seu Pichon-Longueville.
— Temos um 90 também — respondeu o rapaz sorrindo. —
Safra excelente.
— Perfeito.
Pegou as cartas e partiu para a cozinha.
Quando Sophie se voltou para mim, dei uma risada.
— O que foi?
— Não, nada — respondi dando de ombros. — Você me faz
rir.
— Porque escolhi o vinho?
— Sei lá. Por tudo.
— Obrigada!
Creio que essa foi a primeira vez que a vi ofendida. Não sei
por quê, mas disse a mim mesmo que devia ser bom sinal.
— Onde aprendeu enologia? — perguntei-lhe com mais
gentileza.
— Não sou enóloga! Simplesmente meu pai tinha ótimas
garrafas, e eu o ajudava a atualizar seu livro de adega. Desde
os quinze ou dezesseis anos fui iniciada nos diferentes
vinhos.
— Você tem sorte...
— Sim. A vantagem, quando se começa a entender um
pouco do assunto, é que você pode encontrar ótimas garrafas
por um preço razoável, enquanto um leigo será obrigado a se
servir das coisas garantidas e mais caras...
— Tão caros quanto um Panillac, por exemplo? — ironizei.
— E verdade. No restaurante então...
— Imagino, depois sou eu quem paga a conta!
Começamos a rir. Nem era tão engraçado, mas nossos
nervos,
submetidos havia vários dias à dura prova, não estavam
exatamente num estado normal.
— Bom, quando você terminar de zombar da minha cara —
retomou acendendo um cigarro — vai ter que me contar o
que mais encontrou em relação à nossa história...
— Pois bem, como não consegui o telefone da filha do
Borella, fui atrás de outra pista. Liguei para o padre de
Gordes.
— Boa idéia. E então?
— Ele estava fazendo as malas. Foi transferido para Roma,
um beco sem saída, segundo ele.
— Veja só! Na sua opinião, isso tem alguma relação conosco?
— Deve vir da Acta Fidei, não? Me parece evidente.
— E provável.
— Em todo caso, não parecia contente. Mas a boa notícia é
que aceitou vir a Paris para podermos trocar informações.
Vou revelar a ele o que sabemos sobre a Acta Fidei, e acho
que ele ainda tem algumas coisas a me dizer sobre meu pai.
Dei meu número de telefone a ele.
— Você é louco! — exclamou.
— Não. Não sei porquê, ele me inspira confiança, apesar de
tudo.
— Espero que ele não te entregue! Sem contar que o telefone
dele provavelmente está grampeado...
— É verdade — concordei. — Talvez não tenha sido muito
inteligente da minha parte... Mas não via como agir de outro
modo para encontrá-lo. Não ia dar a ele o endereço do hotel!
Sophie fez uma expressão de incredulidade.
— E você? — retomei. —- Avançou bastante?
— Até que sim! — respondeu com uma ponta de orgulho.
— Sou todo ouvidos...
Sophie inspirou profundamente e pôs as mãos sobre a mesa.
— Por onde começar? E um pouco confuso. Tenho várias
pistas ao mesmo tempo...
— Vou tentar acompanhar — prometi.
Um casal acabava de se sentar à mesa atrás de nós, e Sophie
baixou um pouco a voz.
— Grosso modo, é o seguinte: se aceitarmos o fio condutor
de Dürer e do seu pai, supomos a existência de uma
mensagem criptografada de Jesus. Quem diz criptografia diz
chave. Portanto, há dois elementos. De um lado, uma
mensagem codificada, de outro, a chave que permite
decodificá-la. E, se entendi direito, a chave é a pedra de
Iorden.
— Ou seja?
— Acho que a pedra de Iorden é, de fato, uma espécie de
artefato que permite decodificar a mensagem de Cristo. E
também a conclusão à qual chegou seu pai.
— Vamos admitir essa hipótese. Então a pedra seria a chave.
E onde está a fechadura?
— Não faço a menor idéia e acho que seu pai também não
sabia. Parece que temos em mãos apenas metade das peças
do quebra-cabeça. Aquelas que dizem respeito à pedra de
Iorden. Em todo caso, decidi me concentrar inicialmente
nisso.
— Certo. E então?
— Então encontrei muito mais coisas do que havia esperado.
Você se lembra de que vários textos apócrifos contavam que
Jesus tinha dado a pedra ora a João, ora a Tiago, ora a Pedro?
— Ou talvez aos três — lembrei-me.
— Exato. Pois bem, segundo seu pai, seria antes Pedro quem
a teria herdado. O jogo de palavras sobre o nome do apóstolo
é um pouco fácil, e os próprios tradutores o adotaram com
prazer.
— "Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha Igreja"
— enunciei. — Mas Jesus não estava falando da pedra de
Iorden...
— Não, claro. Embora a aproximação seja tentadora.
— Então o que a faz pender em favor de Pedro?
— Dürer conta que inicialmente a relíquia teria sido escon-
dida na Síria. Outros documentos parecem confirmar essa
tese. Durante os primeiros anos que seguiram a morte de
Jesus, a principal fonte de expansão do cristianismo nascente
foi a Síria. Era de fato o primeiro centro cristão, depois de
Jerusalém, é claro. No final dos anos 30, quase todos os
helenistas expulsos de Jerusalém foram para Antioquia. Aliás,
a primeira crise da história cristã gira em torno da oposição
entre os cristãos helenistas da Síria e os judeus cristãos de
Jerusalém.
— Que tipo de crise?
— Como sempre, picuinhas. Histórias de tradições, de ritos.
Os helenistas questionavam a prática da circuncisão, o que
evidentemente não agradou aos cristãos da Judéia... E
adivinhe quem vai à Síria em 49 para tentar acalmar os
ânimos?
— Pedro?
— Exatamente. O ancestral dos papas. No fim das contas,
Pedro não alcança êxito na missão. Aquele ano de 49 marca,
ao contrário, a ruptura entre ambas as facções cristãs. Foi aí
que as coisas começaram a dar errado. De um lado, o
nacionalismo judaico, estimulado pelos zelotes, aumenta em
relação às pressões romanas, e, de outro, com Paulo,
desenvolve-se uma Igreja voltada mais para os gregos.
— Por que Paulo?
-— Um ano antes, em 48, os apóstolos reuniram-se no que
se chama Concilio de Jerusalém. Ao final dele, decidiu-se
que Pedro tinha por missão converter os judeus ao
cristianismo e que Paulo, por sua vez, tinha por missão
converter os pagãos.
— Sei...
— E, segundo seu pai, Pedro teria sentido que as coisas
poderiam funcionar melhor em Antioquia do que em
Jerusalém e decidido confiar a misteriosa relíquia aos
primeiros cristãos da Síria. Talvez esperasse recuperá-la
quando os ânimos se acalmassem, mas, infelizmente, cerca
de quinze anos mais tarde, acabou sendo crucificado no
monte Vaticano.
— Não entendo por que não teria ficado com a pedra de
Iorden...
— É o que também me perguntei. Mas Jesus, ao que parece,
havia explicado que esse objeto era dos mais preciosos e que
devia continuar sendo conservado em segurança. Imagino
que Pedro pensasse que se tornara perigoso demais guardá-lo
consigo, simplesmente. Então o teria entregado a uma
comunidade de cristãos da Síria, na qual devia confiar.
— Pode ser. Mas como podemos ter certeza de que a pedra
estava bem escondida na Síria?
— Justamente. Seu pai tinha encontrado a pista certa. Você
se lembra das duas cartas que ele me passou por fax para me
convencer a ir a Gordes?
— Sim, uma era o início do manuscrito de Dürer, e a outra,
um documento relativo a Carlos Magno...
— Exatamente! Temos, portanto, uma prova da existência da
pedra de Iorden nesse documento referente a Carlos Magno.
O que permitiu a seu pai, e a mim, em seguida, voltar no
tempo e reconduzir nossa pesquisa em sentido contrário...
Nesse instante, o sommelier nos trouxe o vinho de Barsac.
Sem se enganar, serviu um pouco a Sophie, para que ela
pudesse experimentá-lo. Segurando a taça com a mão direita,
ela girou o líquido xaroposo diante dos olhos, deixando
escorrer a fina camada dourada para observar as lágrimas
espessas desse vinho botritizado. Depois mergulhou o nariz
no copo, inspirou sem fazer barulho, antes de dar, enfim,
um pequeno gole. Manteve o vinho por um momento na
boca, aerou-o aspirando entre os lábios, bebeu-o e depois fez
sinal de que estava delicioso.
Sorri para o sommelier, que encheu ambas as taças.
— À sua saúde! — propôs Sophie.
Brindamos e, depois que nos trouxeram os escalopes de foie
gras, Sophie pôde continuar sua teoria.
— Pude constatar que, de fato, vários livros de história
faziam menção a relíquias cristãs, a pedra de Iorden não era
necessariamente nomeada, que Carlos Magno teria recebido
de presente de Harun al-Rashid. Então tentei voltar para trás
seguindo essa pista...
Dei de ombros.
— Sinto muito, mas agora você me pegou. Não faço a menor
idéia de quem seja esse Harun al-não-sei-do-quê...
Sophie não conseguiu segurar o riso.
— Al-Rashid. Deixe-me contar a história direito — propôs.
— E preciso voltar a Maomé. Você sabe que ele revirou a
história do mundo árabe...
— Claro.
— Logo no início do século VII, Maomé tem uma revelação,
uma iluminação. Convencido da existência de um deus
único e da iminência de um julgamento divino, entra em
conflito com a religião politeísta de Meca. E preciso observar
que Maomé havia se casado com a filha de um rico mercador
e que sua atividade de comerciante lhe permitiu encontrar
judeus e cristãos, o que explica especialmente seu
conhecimento das Escrituras e talvez seu gosto pelo
monoteísmo. Exatamente como Jesus, cuja força era falar a
língua do povo, Maomé prega em árabe, o que toca mais
diretamente o povo e, sobretudo, os pobres. Conhece tanto
sucesso que, novamente como Jesus, começa a incomodar.
Portanto, é perseguido, até que Medina, uma cidade vizinha
e concorrente de Meca, propõe recebê-lo. Em Medina
viviam ao mesmo tempo tribos judaicas, refugiadas da Judéia,
e tribos árabes...
— Tenho a impressão de estar voltando à escola...
— Espere, logo vai entender aonde quero chegar. Pouco a
pouco, os habitantes de Medina se unem a Maomé, tanto
que em 622 sua instalação na cidade é oficializada. Aliás, 622
é convencionalmente o início da nova era para o islã. A
força de Maomé é ter estabelecido ao mesmo tempo um
sistema religioso e político que não estava em ruptura com as
tradições locais. A Arábia da época era tribal, e as tribos eram
dirigidas por um chefe, o xeque. Maomé reproduz o mesmo
esquema, torna-se ele próprio um xeque, com a diferença de
que seu poder foi investido por Deus. Em contrapartida, sua
oposição aos coraixitas de Meca só aumenta, até que em 630
os discípulos de Maomé tomam de assalto a cidade e obrigam
os coraixitas a se integrar ao sistema político e religioso do
profeta. Maomé morrerá dois anos mais tarde, mas o islã
havia nascido, e aquele era o início da sua incrível expansão.
Isso refresca sua memória?
— Totalmente — menti.
— E preciso saber que, naquela época, o Oriente Próximo e o
Oriente Médio estão divididos entre dois impérios que se
opõem: Bizâncio e a Pérsia sassânida.
— Estamos bem na sua área!
— Sim, por enquanto! Infelizmente, as pesquisas que me
esperam em seguida podem estar muito mais fora do meu
assunto predileto, é o que temo. Seja como for, vou
continuar, se você me permitir...
Bebeu um gole e depois retomou:
— Em 628 acontecerão as duas últimas guerras entre esses
dois impérios. Lógico que Bizâncio sai vitoriosa, mas ambos
estão completamente enfraquecidos, o que vai deixar uma
brecha que logo os muçulmanos vão tratar de usar. Abu
Bakr, o sogro de Maomé, impõe-se como sucessor dele. É
nomeado califa, o que significa "deputado do Profeta", e,
para afirmar sua autoridade, vai começar as invasões e
conversões da Arábia. O movimento é lançado; o Iraque, a
Síria e o Egito virão em seguida.
— Voltamos à Síria! — intervim.
— Exatamente! Em 636, ou seja, quase seiscentos anos após
a viagem de Pedro a Antioquia, o exército do califa Abu Bakr
tomou toda a Síria. Jerusalém virá em seguida, em 638. O
importante é que, contrariamente às idéias preconcebidas, os
árabes não são bárbaros que destroem sistematicamente tudo
por onde passam. Ao contrário, têm a inteligência de
integrar as regiões que conquistam a seu próprio sistema, de
maneira suficientemente flexível para que essa integração
funcione. Praticam uma conversão progressiva. Assim, as
relíquias encontradas em Antioquia e em Jerusalém não
foram destruídas. Às vezes, os califas se apoderam delas, mas
as conservam por aquilo que têm de sagradas. Portanto, é
provável que a pedra de Iorden tenha sido recuperada
naquele momento por um califa e que, em seguida, tenha
sido transmitida de geração em geração. Em todo caso, de
uma coisa se tem certeza: no final do século VIII, ela estava
em posse de Harun al-Rashid, provavelmente o califa mais
importante da dinastia abássida.
— E como passou dele para Carlos Magno?
— Tenho uma pequena teoria a respeito, mas ainda não pude
verificá-la. Se tudo der certo, vamos falar sobre isso amanhã.
— Muito bem! Parabéns! E no mínimo... empolgante!
— É apenas uma hipótese, mas, como sabemos que a pedra
de Iorden passou de Jesus para Carlos Magno via Harun al-
Rashid, acho que é a hipótese mais verossímil.
— Em todo caso, é incrível!
— O mais espantoso é que nenhum dos seus detentores pare-
ce saber o que realmente representa essa pedra. Em todo
caso, nenhum deles tem consciência de que se trata de uma
chave para decodificar uma mensagem de Cristo...
— Se for realmente o caso — atenuei.
— Claro. Mas, seja como for, a relíquia está rodeada por uma
aura excepcional. Todo o mundo sabe que ela vem
diretamente de Jesus, e todo o mundo parece lhe atribuir
uma importância sem igual. É um pouco como se,
tradicionalmente, seus sucessivos donos tivessem passado
adiante a mensagem. Talvez o próprio Pedro estivesse na
origem dessa tradição. Certamente ele confiou aos cristãos da
Síria o valor inestimável da relíquia.
— Provavelmente — admiti.
Quando terminamos o foie gras, a garçonete levou nossos
pratos e voltou um instante depois com os pratos principais e
a garrafa de Pauillac.
Do lado de fora, a noite havia caído. As horas passavam, e
estávamos completamente enterrados em nossa incrível
pesquisa. Era como se estivéssemos fora do mundo, fora do
tempo. Eu me perguntava como tudo isso poderia terminar.
Ficamos em silêncio, degustando com prazer a delicadeza
dos nossos pratos, trocando discretamente algumas garfadas.
No final, já não tínhamos fome para uma sobremesa, mas
pedimos um café para cada um.
— Sophie — disse eu —, amanhã vai fazer mais de 48 horas.
— Como?
— Lembra-se? Havíamos decidido esperar 48 horas antes de
avisar os tiras... Nos demos 48 horas para resolver esse
enigma.
Ela colocou um cotovelo sobre a mesa.
— Está com vontade de desistir? — perguntou levantando
uma sobrancelha.
— Não exatamente. Mas devo confessar que não estou muito
tranqüilo. Não sei bem aonde vamos parar... Será que
estamos tentando entender essa história ou...
— Ou o quê?
Eu não conseguia acreditar no que estava para dizer:
— Ou será que... Será que estamos procurando a pedra de
Iorden?
— Sabe, Damien, acho que a pedra de Iorden não será
suficiente... Ela é apenas a chave que serve para decodificar a
mensagem.
— Sim, mas isso significa que a estamos procurando? —
insisti.
Sophie me encarou. Inclinou a cabeça como para adivinhar
meu pensamento.
— O que lhe dá mais medo? O fato de procurar ou a
possibilidade de encontrar a mensagem de Cristo?
— Você se dá conta do que acabou de dizer? Percebe a que
ponto somos pretensiosos de querer encontrar isso?
— Escute, Damien, quando os manuscritos do Mar Morto
foram descobertos, a Igreja se precipitou em cima deles e
nada ficamos sabendo de concreto durante quase cinqüenta
anos. Se essa pedra for encontrada, a edição completa que
acaba de ser publicada não será tão completa assim... Quando
JFK foi assassinado, a CIA se lançou sobre os dados da
investigação, que permanecerão secretos ainda por vários
anos, e olha que os fatos remontam a meados do século XX!
Se não formos nós a descobrir o sentido da pedra de Iorden,
quem nos garante que aquele que o fizer vai tornar pública
sua descoberta? Não sei se essa descoberta é realmente
importante, não sei se há realmente uma mensagem oculta
de Jesus, mas o que sei é que eu não vou deixar o Bilderberg
ou a Acta Fidei encontrar antes de nós.
-— E você me pergunta por que tenho medo? — ironizei.
— Até agora estamos nos saindo bem, não acha?
— Cada dia que passa multiplica nossas chances de
encontrarmos problemas. Quando você se atrasou agora há
pouco, fiquei realmente com muito medo.
— Sinto muito. Vamos ao cibercafé?
Sophie tinha o dom de passar de um assunto a outro,
sobretudo nos momentos dramáticos. Era sua força. Dar a
volta por cima. Sempre.
— Bem... não sei.
— Vamos, você acabou de dizer que já não tínhamos tempo
a perder...
— Sim, mas e os tiras que estavam lá há pouco?
— Podemos ir a outro...
Concordei. Paguei rapidamente a conta, e, meia hora mais
tarde, estávamos conectados à web, em meio a gamers
obstinados em trucidar os colegas na rede...
Outro cibercafé, outro ambiente. Com ar mais estudantil,
confinado, cabos para todos os lados, monitores grandes, luz
branca, paredes recentemente repintadas. Um pouco maior
do que uma padaria. A intimidade era menos evidente ali.
— Tenho uma notícia quentíssima para vocês!
A Esfinge nos esperava havia quase uma hora. Estava bastan-
te agitada.
— O que encontrou?
— Encontrei quem hackeou vocês!
— Fabuloso!
— Não pensei que eu fosse conseguir, mas coloquei várias
pessoas em ação nos provedores, e conseguimos chegar até a
origem. Esses filhos da puta são malandros. Utilizaram vários
provedores em série para tentar despistar, mas chegamos até
a origem, e imaginem que batemos num número de celular
nos Estados Unidos.
— E então?
— Não vão acreditar... O número está registrado em nome da
Simon D. School of Law Diplomacy de Washington.
— E daí?
— Sabem quem é o presidente?
— Não.
— Victor L. Dean, um antigo embaixador americano, que
atualmente é... o secretário-geral do Steering Committee do
grupo Bilderberg para os Estados Unidos!
Sophie me lançou um olhar estupefato.
— O Bilderberg está atrás de nós! — cochichou.
Eu não conseguia descobrir se ela achava isso aterrorizante
ou excitante. Talvez um pouco de cada. Quanto a mim,
estava horrorizado.
—Já se deram conta? O Bilderberg está no encalço de vocês!
E incrível!
— Você acha? Não faço a menor questão...
— Não ê para qualquer um! Para que tenham até hackeado
seu computador é porque vocês realmente estão
incomodando!
— Provavelmente... Nem sei por quê.
— Ora, vamos, é evidente. Vocês estão procurando a mesma
coisa que eles e devem estar lá na frente. Isso não parece
deixá-los contentes...
— Ainda não encontrei...
— Que bom! Do contrário, isso significaria que estão me
escondendo alguma coisa... Espero ser informado antes de
todo o mundo, hein?
— Fechado. Ainda precisamos de uma pequena informação.
— O que quiserem.
— Você consegue encontrar os dados de uma pessoa cujo
nome não está disponível para consulta?
— Moleza!
— Quanto mais isso dá certo — intervim sorrindo —, mais
me pergunto se não estamos lidando com um garoto de
catorze anos!
Sophie balançou a cabeça.
— Se for verdade, ele pode estar nesta sala! — disse mostran-
do todos os adolescentes cheios de espinhas ao nosso redor.
— Christian Borella, talvez também esteja no nome de sua
filha, Claire. Moram em Paris.
— OK. Já volto.
Quinze minutos mais tarde, a Esfinge nos enviou o número
de telefone e o endereço da nossa misteriosa desconhecida.
Despediu-se de nós, e Sophie prometeu falar-lhe das
novidades assim que possível.
Saímos do pequeno cibercafé e voltamos à Étoile. Esse bairro
de Paris nunca fica vazio. Há sempre gente nas calçadas,
luzes nas vitrines. Mas não são os mesmos semblantes. Me
fazia lembrar Nova York.
Quando chegamos ao bar do hotel, já era um pouco tarde,
mas assim mesmo decidi ligar para a filha do Borella. A
ansiedade acabava com toda a minha educação.
Chamou, chamou e entrou o bipe de uma secretária
eletrônica: "Você ligou para Claire. Por favor, deixe sua
mensagem após o sinal."
Hesitei. A vantagem da secretária é que não ia desligar na
minha cara, e a moça talvez pudesse ouvir minha mensagem
até o fim. Lancei-me.
— Bom-dia, a senhora não me conhece, mas acho que sei
por que seu pai foi assassinado e gostaria de falar-lhe a
respeito...
Houve outro clique, e entendi que ela havia tirado o fone do
gancho.
— Alô? — disse uma voz feminina.
Ela filtrava suas chamadas.
— Bom-dia.
— Quem é o senhor?
— Prefiro não lhe dar meu nome pelo telefone, se não for
um incômodo. Poderia lhe dar um nome falso, mas prefiro
ser sincero...
Ela ficou em silêncio.
— Concordaria em me encontrar? — arrisquei.
— Não se não me disser quem é...
— Realmente, não posso...
Novo clique. Ela havia desligado.
— Que merda! — soltei. — Ligo de novo?
Sophie sorriu.
— Não. Não é boa idéia. Acho melhor que vá ao encontro
dela. Tenho certeza de que você é mais convincente
pessoalmente.
— Ah é?
— É, depois vai poder dizer seu nome...
— De todo modo, o Bilderberg e a Acta Fidei já sabem quem
somos há muito tempo. Não vejo motivo para preocupações.
Sophie aquiesceu.
— Tá tarde — disse ela. — Acho que eu vou me deitar.
— Posso acompanhá-la? — propus.
— Acho que consigo encontrar o caminho até meu quarto!
Beijou-me carinhosamente na bochecha e desapareceu rumo
ao seu quarto. Dei um longo suspiro.
Nessa noite, passei várias horas sentado numa poltrona do
bar do Splendid. Pedi um uísque, depois outro, em seguida o
barman me ofereceu um terceiro, e bebi tranqüilamente,
deixando meu espírito vagar. Vi passar vários clientes do
hotel diante do salão vermelho e dourado onde eu estava
viajando. Divertia- me imaginando de onde vinham, o que
haviam feito à noite, quem eram. Eu lhes inventava nomes,
profissões, histórias de amor. Simplesmente não estava com
vontade de ir me deitar e achei a atmosfera do hotel ideal
para acompanhar meu estranho humor. Uma mistura de
melancolia, esperança, medo e tesão.
Perto do final da noite, senti uma profunda vontade de ligar
para o François. Precisava falar com ele. Precisava ouvir sua
voz. Procurei o número na carteira e o digitei no celular.
— Alô?
Ficou visivelmente surpreso que ligassem para ele tão tarde.
— François, aqui é o Damien...
— Damien! Seu cretino, faz dois dias que estou tentando
encontrá-lo! Que diabos você fez com seu telefone?
— Mudei de número. Anote este, é o que estou usando.
Sinto muito por não ter dado notícias.
— Como andam as coisas?
— Avançando.
— Ainda não quer avisar a polícia?
— Ainda não. De todo modo, os investigadores já estão mais
ou menos informados — ironizei.
— Damien, você está me assustando. Em que encrenca você
foi se meter?
— E você não sabe do pior — disse-lhe em tom de
confidência. — Estou apaixonado por uma lésbica!
Ele ficou em silêncio por um momento. Eu podia imaginar
sua expressão.
— Hein?
Dei uma gargalhada. O álcool começava a fazer efeito...
— Não, nada, estou um pouco bêbado — confessei.
— Damien, sinto falta de você. Vai com calma, quero vê-lo
inteiro, certo?
— Está bem, não se preocupe, cara. Te acordei?
— A mim não, mas acordou minha mulher.
— Estelle? Como ela está?
— Bem. Ela também gostaria muito de revê-lo.
— Mande um beijo para ela. E diga que mando parabéns pelo
bebê. Ela deve estar enorme! Onde vocês estão morando
agora?
— Numa casinha em Sceaux.
— Tá ganhando bem, deputado!
— Que nada. A bem da verdade, é a farmácia da Estelle que
está faturando...
— Sei. E pensar que da última vez que a vi ela acabava de se
formar, e agora vai ser mãe! Realmente sou um imbecil de
não ter voltado à França durante todos esses anos!
— E desta vez vai ficar?
Hesitei por um segundo. Olhei o bar ao meu redor.
— Acho que sim.
— Então está mesmo apaixonado! — exclamou François do
outro lado da linha.
— Boa-noite, amigo. Obrigado por tudo!
Desliguei. Fiz bem em ligar para ele. Isso me dava coragem
para continuar. Uma motivação a mais. Reencontrar
François, com o espírito livre. Por volta das duas da manhã,
o barman me propôs outra dose, mas resolvi ir deitar.
Quando me levantei na manhã seguinte, com a boca amarga
e a cabeça pesada, encontrei o bilhete que Sophie havia
deixado sob a porta: "Vou passar o dia no Beaubourg. Espero
terminar tudo hoje. Boa sorte com a filha do Borella. Beijos,
Sophie."
Essa era Sophie. Telegráfica. Quanto aos seus beijos, teria
preferido tê-los na pele a tê-los no papel, mas até que o dia
não começava tão mal.
Foi o tempo de tomar café da manhã no hotel, e já peguei
um táxi para o início da rua de Vaugirard, do lado dos
bulevares externos, onde se encontrava o apartamento de
Claire Borella. A rua de Vaugirard é a mais longa de Paris. E,
na parte onde eu estava, também era a mais impessoal.
Alinhamento de imóveis residenciais tipicamente
parisienses, algumas lojas aqui e ali, nada de fascinante. Uma
rua cinza, falsamente viva e sem graça.
Deviam ser umas dez da manhã quando toquei o interfone
no portão, e minhas chances de encontrar Claire Borella
eram bem pequenas. De fato, não houve resposta.
Decidi esperar num café bem na frente do edifício. Um des-
ses pequenos cafés inimitáveis, cujo segredo só a França tem.
Pequenos anúncios de revistas femininas na fachada de
vidro, um toldo vermelho estampado com marcas de
cerveja, algumas mesinhas redondas na calçada, o Parisien
fixo a um prendedor de jornais, cinzeiros, espelhos,
apetrechos de cozinha, cabideiros, tabacaria, uma vitrine da
loteria nacional, mesas em compensado alinhadas no salão,
um bar de zinco, onde bebem os habitués que falam alto e
chamam a dona pelo nome, e, no subsolo, os banheiros mais
sujos do planeta. Tudo banhado num odor de cigarro
apagado, no barulho da longa máquina de expresso prateada
e no vago eco da rádio Europe 1 no recinto de lastimável
qualidade.
Instalei-me num canto, bem na frente da vitrine, e bebi
várias xícaras enquanto vigiava a entrada do imóvel. Um
rapaz entrou no prédio para sair quinze minutos mais tarde;
houve também uma senhora de idade que saiu com seu
cachorrinho, mas nenhuma moça suscetível de ser minha
interlocutora misteriosa. O tempo passava.
Um casal de turistas americanos entrou no café, tentando,
sem grandes resultados, comunicar-se com o dono do local,
cujo nível de inglês não honrava o sistema escolar do nosso
belo país, e, em vez de ajudá-los, diverti-me em ouvi-los.
Houve até um momento em que o barman tentou fazer
graça, deu risada de tanto que a situação era cômica, e os dois
americanos riram juntos para não ofendê-lo, depois a mulher
voltou-se para o marido e cochichou: "What did he say?", "I
have no idea!", murmurou o brincalhão como resposta,
sem deixar de sorrir para o barman. Foi meu único
divertimento da manhã, e, por volta do meio-dia, quando
terminei de tirar um por um todos os papéis que estavam na
minha carteira e de recolocá-los com cuidado exatamente no
mesmo lugar, comecei a ficar impaciente de verdade.
Nesse instante, meu celular tocou. Olhei a tela e vi o número
da Sophie. Atendi.
— Damien, sou eu. Alguma novidade?
— Não por enquanto. E você?
— Estou avançando. Mas você vai precisar ligar para o seu
amigo Chevalier...
— Falei com ele ontem pelo telefone.
— Perfeito. Ligue de novo para ele.
— Por quê?
— Ainda não sei direito, mas há uma relação entre a pedra de
Iorden e a franco-maçonaria.
— Só faltava essa...
— Você tinha dito que ele era maçom, não?
— Sim. Que relação?
— Eu disse que não sei. Mas acabo de entender outra passa-
gem nas notas do seu pai. Ele faz uma ligação entre o
histórico da pedra de Iorden e o Grande Oriente da França.
Não tive tempo de me aprofundar, estou trabalhando com
outra coisa, mas talvez seu amigo saiba algo a respeito.
— OK, vou ligar para ele.
— Boa sorte.
Ela desligou em seguida. Sem esperar, digitei o número de
François.
— Alô?
— Sou eu, Damien.
— Tudo bem?
— Tudo.
— Depois de ontem à noite...
— Está tudo bem. Mas preciso ver você. Precisamos falar de
um assunto. Não pelo telefone.
— É urgente?
— Tudo tem ficado urgente no momento...
— Onde você está?
— No XV arrondissement. Mas antes tenho uma coisa para
fazer.
Hesitou.
— Bom, vou mandar o Badji até você.
-— Quem?
— O Badji. E um amigo que trabalha na segurança. Um
guarda-costas que abriu sua própria empresa. Prestou serviço
muitas vezes para mim. E um cara de confiança.
— Vai me mandar um cão de guarda?
— Vou. Essas suas histórias não me deixam muito sossegado.
Se quer que a gente se veja, ficarei satisfeito se ele o escoltar.
Se não tiver terminado o que tem a fazer, ele espera. Depois,
traz você até onde eu estiver. Está bem assim?
— Combinado — disse agradecido.
Dei-lhe o endereço de Borella e desliguei. Era agradável
dizer a mim mesmo que eu podia contar com ele. Como
antigamente, François era um cara que nunca dizia não aos
seus amigos. Existem outras maneiras de viver uma amizade?
Já ia pedir outro café quando vi aparecer uma moça que se
aproximava do pórtico do imóvel. Deixei uma cédula sobre a
mesa e precipitei-me para fora, quase deixando uma cadeira
cair.
— Claire! — gritei do outro lado da calçada.
Eu tinha uma chance em dez de que fosse ela.
Ela se voltou. Era uma moça de seus 25 anos, cabelos
castanhos cortados curtinhos, baixa e um pouco gordinha.
Lançou-me um olhar espantado. Tentou me reconhecer.
Atravessei e fui à seu encontro na entrada do edifício.
De pele alvíssima, tinha olheiras, algumas manchas
vermelhas no rosto e um ar cansado. E, no entanto, era
muito charmosa. Lábios bem desenhados, olhos muito
sorridentes e curvas que atenuavam-lhe os traços. As roupas,
largas demais, conferiam-lhe certa desenvoltura. O longo
lenço de seda fina chegava até a lhe dar um aspecto de
hippie anacrônica.
— Nos conhecemos? — perguntou ao me observar.
— De certa maneira, sim. Você desligou o telefone na minha
cara ontem à noite...
Ela suspirou.
— Ah, é você! Escute, não estou a fim de falar disso!
Virou-me as costas e tirou a chave do bolso.
— Espere! Me dê ao menos uma chance! Encontrei o micro-
filme do seu pai na Biblioteca Nacional!
Sua mão parou de imediato, a poucos centímetros da fecha-
dura. Ficou imóvel por um momento, depois se voltou
lentamente para mim.
— Você encontrou o quê?
— O microfilme do seu pai. O texto sobre os Assayya.
De repente, pareceu inquieta. Abriu rapidamente a porta do
prédio e me puxou pelo braço.
— Entre, depressa!
— Eu...
— Shhh! — disse-me, fazendo sinal para eu me calar.
Segui-a pelo hall do edifício, entramos num minúsculo
elevador, e ela ficou em silêncio até fechar a porta do
apartamento.
Era um imóvel grande, típico desses prédios do final do
século XIX, que enchem o bairro. Assoalho de madeira
rangente, pé- direito alto, molduras de gesso, grandes portas-
balcão, móveis antigos, quadros nas paredes... Não
correspondia ao personagem. Gótico flamejante demais.
Chique demais e clássico demais. Mas talvez fosse o estilo do
pai.
— O que você sabe sobre meu pai? — perguntou pegando-
me pelo cotovelo.
Ela nem havia tirado o sobretudo, e seu olhar estava, ao
mesmo tempo, cheio de angústia e furor.
— Sei que ele fez uma descoberta extraordinária sobre uma
comunidade religiosa no deserto da Judéia, sei que escreveu
um texto a respeito e que o depositou na Biblioteca Nacional
há dez anos, sei... que foi assassinado há três semanas em
Jerusalém e acho que tudo isso tem uma relação com uma
investigação que estou fazendo.
— Uma investigação sobre o quê? — pressionou-me.
— Realmente não poderei adiantar o assunto.
— Não vai começar de novo, vai? — retorquiu.
— Escute, já disse o bastante, e você não me disse nada.
— Qual é o tema da sua maldita investigação? — insistiu.
Mostrava-se quase ameaçadora. E isso tinha algo de tocante.
Eu entendia o que ela devia estar sentindo. A moça parecia
realmente estar com os nervos à flor da pele, e eu sabia que
não havia a menor maldade em seu coração. Recobrei o
fôlego.
— Meu pai foi assassinado mais ou menos na mesma época
que o seu. Eu não tinha nada a ver com isso. Moro nos
Estados Unidos. Mas quando comecei a investigar sobre o
que meu pai andava fazendo antes de morrer, descobri um
monte de coisas a respeito de Jesus, dos essênios, de um
grupo religioso chamado Acta Fidei e de um think tank mais
ou menos secreto chamado Bilderberg. Tenho todas as
razões para acreditar que meu pai foi assassinado por uma
dessas duas organizações ou por dissidentes. A referência ao
microfilme do seu pai se encontrava nas anotações do meu,
e, portanto, tenho quase certeza de que nossos pais foram
assassinados pelas mesmas pessoas. Pronto! Está satisfeita?
— Você é o filho de Etienne Louvei? -— perguntou a moça
franzindo as sobrancelhas.
Peguei minha carteira no bolso interno do blazer e tirei o
passaporte. Claire Borella viu meu nome e minha foto.
Soltou um longo suspiro.
— Ah, meu Deus! — desabafou quase chorando. — Eu... Eu
não sabia que Louvei tinha um filho...
Tirou o sobretudo, jogou-o sobre a mesinha da entrada e
dirigiu-se à pequena sala do apartamento. Deixou-se cair
num sofá Luís XV e segurou a cabeça com as mãos.
Entrei timidamente na sala e sentei-me numa cadeira à sua
frente. Ficamos em silêncio por um momento. Eu via que
ela precisava recobrar o ânimo.
— Certamente teria sido mais fácil se eu tivesse dito meu
nome ontem ao telefone — falei quando ela levantou a
cabeça. — Mas ando meio paranóico.
-— Com razão. Você fez bem. Sinto muito. Seja como for,
acho que fiquei ainda mais paranóica do que você. Estou
sempre com a sensação de estar sendo vigiada...
Levantou-se.
-— Quer uma bebida?
— Com prazer — aceitei.
— Uísque?
— Perfeito!
Desapareceu na cozinha e voltou alguns instantes depois
com um copo em cada mão.
Parecia perdida naquele apartamento tão grande. Confusa
pelos acontecimentos, abatida pela morte do pai, angustiada,
sozinha naquele imóvel fora de moda. Era como se não
estivesse à vontade em sua própria casa. A tristeza em seu
olhar era tão sincera que me senti quase embaraçado.
— Como disse que se chamam essas duas organizações? —
perguntou estendendo-me o uísque.
— Acta Fidei e Bilderberg. Que eu saiba, não têm ligações. A
primeira está sediada no Vaticano, mais ou menos vinculada
ao Opus Dei, e a segunda é uma espécie de sociedade secreta
ultra-liberal, ultra-poderosa e internacional.
Aquiesceu lentamente.
— Acho que papai chegou a me falar delas. Aquele idiota não
queria me dizer nada! Para me proteger!
— Não quer me contar o que aconteceu?
Ela me observou longamente, hesitante. Talvez tivesse
perdido o hábito de se entregar, fechada pela angústia desde
a morte do pai. Mas dava para sentir que ela estava
precisando. Falar. Desabafar. Sem deixar de me olhar, bebeu
um gole de uísque e lançou:
— Meu pai passou a maior parte da vida na Palestina.
Principalmente no deserto da Judeia. Trabalhava para os
Médicos sem Fronteiras, e sua verdadeira paixão eram os
beduínos do deserto.
Concordei sorrindo, para exortá-la a continuar. Começou a
tomar confiança.
— Há cerca de quinze anos, descobriu uma espécie de
monastério, não muito longe de Qumran. Há muitas
comunidades religiosas instaladas na região, mas essa era
muito... fechada. Quando ele quis se informar a respeito,
obteve respostas tão diferentes que isso o intrigou. Alguns
lhe diziam que se tratava de uma comunidade judaica, outros
sustentavam que se tratava de cristãos. Eram muito
herméticos e não aceitavam visitantes. Mas meu pai era um
homem teimoso. Muito teimoso. Tinha aprendido a ser
paciente com os beduínos. Acabou conseguindo entrar no
monastério e falar com seus ocupantes. E aí descobriu essa
coisa incrível.
— Eram essênios?
Balançou a cabeça afirmativamente.
— Em todo caso, é o que declaravam. Segundo eles, a
comunidade remontava à época de Cristo, e asseguravam
que a comunidade nunca havia mudado desde então.
— Parece incrível! Como encontraram novos membros?
-— Não sei. Tudo o que sei é que meu pai apaixonou-se pela
história deles. Ficou completamente louco. Escreveu
montanhas de textos sobre o assunto. Esse que está na
Biblioteca Nacional é apenas um excerto do que ele anotou.
— Por que o depositou?
— Não queria revelar sua descoberta a ninguém, mas queria
que ficasse protegida em algum lugar se lhe... Se lhe
acontecesse alguma coisa.
Bebeu outro gole de uísque, depois retomou:
— Há algumas semanas, quando ele estava em Jerusalém,
comecei a receber telefonemas estranhos. Gente que queria
falar com ele e que desligava quando eu explicava que não
estava em casa. Avisei meu pai, que me prometeu voltar o
mais rápido possível. Morreu alguns dias depois. Desde
então, não sei o que fazer. Não ouso atender ao telefone, não
ouso contar essa história à polícia e não vou ao trabalho há
três semanas. Estou aterrorizada.
Levantei-me e me instalei ao seu lado. Tentando esconder o
que passava na minha cabeça, coloquei suas mãos nas
minhas e procurei confortá-la. Ela se acalmou e me dirigiu
um sorriso, mas seus olhos não mentiam, estava apavorada.
— Como sabia o nome do meu pai? — perguntei-lhe.
-— Papai me falou dele. Ele me disse que seu pai talvez
tivesse uma explicação sobre os Assayya. Dizia que seu pai
era um sujeito extraordinário, talvez o único em que ele
confiava. Essa história também o deixou completamente
paranóico!
— Entendo...
— Mas não é tudo — disse Claire endireitando-se no sofá. —
Soube o que aconteceu com a comunidade?
— O quê?
— Encontrei um artigo alguns dias depois da morte do meu
pai, no Le Monde. Falava do massacre de uma comunidade
religiosa no deserto da Judéia. Simplesmente. Como um caso
da crônica policial em meio ao conflito entre israelenses e
palestinos!
— Foram massacrados? — espantei-me.
Ela aquiesceu febrilmente.
— Nem um único sobrevivente. E o monastério foi
queimado.
Fiquei boquiaberto. Mal conseguia acreditar.
— Guardou o artigo?
— Sim, claro.
Levantou-se e, nesse exato momento, houve uma violenta
deflagração. A janela da sala explodiu em mil pedaços. Cacos
de vidro voaram por todo o cômodo.
Tudo se passou em poucos segundos. Segundos confusos. O
barulho me fez dar um pulo tão grande que caí de costas.
Quando me preparava para levantar, senti um líquido
pegajoso sob a mão, no tapete. Baixei os olhos e descobri,
horrorizado, uma poça de sangue.
Lentamente, levantei a cabeça. Dei um grito de terror. O
corpo da moça estava estendido, imóvel, à beira do sofá, e
sangue escorria sobre o tecido branco ao seu redor. Fechei
os olhos. Não. Não era possível.
Um pedaço de vidro que havia ficado preso em equilíbrio na
borda da janela despencou no chão. O barulho me tirou do
torpor. Avancei um pouco. Vi então que a moça ainda
respirava. Não estava morta. A bala a atingira no ombro. A
dor ou provavelmente o choque a fez perder a consciência.
Levantei-me e dei um pulo ao som de uma nova deflagração.
A bala assobiou a poucos centímetros do meu rosto.
Mergulhei e rolei no chão, cortando as mãos e os pulsos nos
cacos de vidro.
A bala se alojou na parede. Lancei um rápido olhar em dire-
ção à janela. Havia uma janela bem em frente. Certamente o
atirador estava ali. Não hesitei nem um segundo a mais.
Peguei a moça pelo tornozelo e comecei a rastejar em
direção à entrada, arrastando-a atrás de mim, fora do alcance
da janela.
Quando estávamos protegidos, aproximei-me do rosto de
Claire Borella. Ela voltava lentamente a si. De repente,
arregalou os olhos. Estava entendendo o que havia
acontecido. O pânico invadiu seu olhar.
— Fique calma, fique calma! — cochichei. — Vou tirar você
daqui!
Ela olhou para mim aterrorizada. Minhas mãos tremiam. Eu
estava desnorteado. Não conseguia refletir. O que fazer?
Fugir? Esperar pela polícia? Ambas as alternativas eram
péssimas.
Se fugíssemos, o atirador ou um de seus cúmplices
provavelmente nos mataria na saída do prédio. Mas, se
esperássemos pela polícia, tudo iria pelos ares.
O problema é que, se escapássemos, a polícia acabaria por
me identificar. Havia sangue meu por toda parte no assoalho.
E tinham me visto no café a manhã inteira.
Mas eu não podia abandonar o caso naquela hora. Meu pai e
o da moça estavam mortos por causa dessa investigação, era
preciso ir até o fim. Custasse o que custasse. E a polícia
nunca iria me permitir isso. Tínhamos que sair dali.
Nesse instante, o celular tocou no meu bolso. Tive um
sobressalto. Quem poderia ser? Somente três pessoas
conheciam meu número: Sophie, François e o padre de
Gordes.
Claire olhou para mim. Estava se perguntando se eu iria
atender. Ouvi sua respiração a meu lado. O telefone
continuava a tocar. Decidi atender e enfiei a mão
ensangüentada no bolso da calça.
—- Senhor Louvel?
Não era a voz do padre. Era uma voz grave. Uma voz que eu
não reconhecia.
— Quem está falando?
— Foi o senhor Chevalier que me mandou. Estou na entrada
do prédio. Vim para buscar o senhor... E acabo de ouvir
tiros...
Mordi o lábio. Refleti. E se fosse uma armadilha? Tudo estava
indo tão rápido.
— Quem me garante que está com Chevalier?
— Sou Stéphane Badji. O deputado me disse que, se preci-
sasse me identificar, bastaria lhe falar do Alice no país das
maravilhas que o senhor acreditaria em mim.
Não havia dúvida. Era mesmo o amigo de François.
— Está certo. Pode nos tirar daqui?
— Bom, escute — retomou o sujeito com uma voz apressada
—, há uma escada metálica de incêndio que desce pela
fachada. Espero pelo senhor aqui embaixo, num Safrane
azul-marinho. Seja rápido, vi uns caras entrar no prédio.
Desliguei de imediato. Não havia tempo a perder.
Inspirei profundamente. Para ir ao outro lado do apartamen-
to precisávamos passar de novo pela zona exposta ao campo
do atirador. Eu conseguia ouvir as batidas do meu coração.
Claire Borella me olhava com um ar desorientado. O sangue
continuava a escorrer do seu ombro.
— Vamos descer pela escada de incêndio — expliquei-lhe.
Ela balançou a cabeça, balbuciando alguma coisa inaudível.
— Shhh! — interrompi-a. — Confie em mim. Pelo amor de
Deus. Se quiser que a gente saia vivo daqui, confie em mim.
Fechou os olhos e me fez sinal de que estava pronta,
tremendo.
Quando vi que ela estava preparada, resolvi agir. Levantei-
me para ir mais rápido, ajudei-a a se levantar e, encurvado,
atravessei o apartamento segurando-a à minha frente para
cobri-la. Empurrei-a para o cômodo oposto à sala. Ouvi
outro disparo. Rolamos para o lado. Mas a bala se alojou a
pelo menos um metro de distância, num armário. Estávamos
novamente abrigados. Era um pequeno escritório, com outra
porta à esquerda.
Claire estava encolhida contra a parede. Rastejei até a janela,
depois me estiquei para olhar do lado de fora. Lentamente,
conduzi meus olhos à altura da vidraça. Fiquei aterrorizado.
Talvez ali também houvesse um atirador. Não vi nada à
direita. Nenhuma escada. Inclinei-me para o outro lado. E
ali, duas janelas mais adiante, entrevi a tal escada metálica
que descia pelo prédio.
Deslizei para o lado, voltei a me levantar e abri a porta à
esquerda do cômodo. Prudentemente, entrei no quarto e
aproximei-me da janela, com as costas coladas contra a
parede.
Seria preciso fazer um pouco de escalada. Nada ideal para
uma vítima de vertigem como eu. Mas ainda era melhor do
que uma bala na cabeça.
Nesse instante, ouvi vozes na entrada. Alguém estava
tentando arrombar a porta. O tempo urgia.
Abri a janela e fiz sinal para a moça vir a meu encontro. Ela
hesitou, mas as vozes do outro lado da porta de entrada a
convenceram. Passou uma perna para fora. A escada estava a
dois metros de distância, no eixo do que devia ser o poço do
elevador do prédio vizinho. Havia uma cornija a meia altura
da janela. Não muito larga, mas suficiente para se colocar o
pé sobre ela. Ajudei Claire a subir enquanto eu me segurava
na moldura da janela. A moça soltou um grito de dor. Seu
ombro devia estar deslocado. Mas já não podíamos esperar.
Os golpes estavam cada vez mais violentos contra a porta de
entrada. Logo ela iria ceder, não havia dúvida. Minhas mãos
estavam úmidas e meus dedos escorregavam. Foi minha vez
de passar para fora. Com as pernas tremendo, colado contra a
parede do prédio, esforcei-me para não olhar o vazio atrás de
mim. Deslizei o pé direito para a escada. Depois o esquerdo.
Pouco a pouco, afastei-me da janela. Ao menor passo em
falso, cairíamos no vazio. Sem soltar a mão esquerda da
janela, estiquei o braço direito o mais longe possível e
coloquei a mão sobre o quadril de Claire, para tentar
tranqüilizá-la.
— Avance lentamente — disse-lhe sem fôlego. -— Um pé
depois do outro. A escada está bem próxima. Assim que
conseguir, segure-se no corrimão!
Ela avançou. Eu a segui. Depois tive de soltar a janela.
Crispei os dedos da mão esquerda contra o muro. Já não
tinha onde segurar. Mal conseguia respirar, tão grande era
meu medo. Um passo. Depois outro. Estávamos nos
aproximando da escada enferrujada. O vento soprava em
meus ouvidos. Em pouco tempo o corrimão já estava ao
alcance de Claire.
— Vamos, estique a mão.
— Estou com muito medo! — respondeu chorando.
Aproximei-me dela.
— Estou segurando você. Não corre nenhum risco.
Mentira. Nós dois corríamos risco de vida, nada menos.
Esticou o braço na direção da balaustrada. O contrapeso
quase a fez perder o equilíbrio. Voltou a se encostar contra a
parede. Recuperou o fôlego, deu um pequeno passo à direita
e tentou novamente. Esticava o braço como se tateasse no
escuro e estava com muito medo de olhar para trás.
— Mais alto — incentivei. — Levante o braço mais alto.
De repente, sentiu o contato do metal sob seus dedos.
Finalmente. Agarrou-se ao corrimão e deu os últimos passos
sobre a cornija antes de saltar para a escada. O degrau
metálico ressoou no corredor do prédio.
Fui à seu encontro.
— Desça! Depressa!
As vozes haviam cessado. Provavelmente a porta tinha cedi-
do. Claire pôs-se a descer os degraus o mais rápido que
conseguia. Eu a segui. Estava só um passo atrás dela.
Minha cabeça girava, mas eu me segurava firme no corrimão
para não cair. Descemos os seis andares à toda velocidade,
sem olhar para trás nem uma vez. Quando faltavam apenas
alguns degraus, pulei por cima da balaustrada e aterrissei na
calçada do beco, bem na frente de Claire. Estendi-lhe a mão
para ajudá-la a descer.
Mais adiante, no final do beco, vi com alívio um Safrane
azul-marinho. Fiz sinal para Claire.
— Rápido, precisamos entrar naquele carro! — apontei.
A moça começou a correr.
Nesse momento, houve novo tiro. A bala ricocheteou contra
um muro de tijolos vermelhos à nossa frente. Levantei os
olhos. Um homem à janela. Mirava-me com um revólver.
A porta traseira do Safrane se abriu. Faltavam poucos metros.
Disparei. Claire pulou dentro do carro. Ela gritava de horror.
Outro tiro. Foi minha vez de me precipitar.
O carro partiu a toda velocidade. Os pneus cantaram no
asfalto. A traseira do carro jogou para a direita. Fechei a
porta.
Depois, o Safrane entrou na rua de Vaugirard.
— Belo drible! — disse o motorista sem se voltar. — Tome, o
senhor Chevalier quer falar com você.
Estendeu-me um telefone. Dei uma olhada em Claire. Ela
retomara um semblante de calma e segurava o ombro
fazendo careta de dor.
— Damien? — exclamou François do outro lado da linha.
— Sim...
Eu estava sem fôlego, e o sangue pulsava contra minhas
têmporas.
— Está ferido?
Olhei minhas mãos ensangüentadas.
— Um pouco, mas quem está mesmo ferida é a moça que
está comigo. Ela levou um tiro no ombro.
— Quem é? A moça com quem você está desde...
— Não, não, depois te explico.
— Sim, claro. Eu... eu estou voltando para casa. Peça a
Stéphane para levá-los diretamente para lá. Vou falar para a
Estelle nos encontrar também. Agüente firme, a Estelle
cuidará de vocês em casa.
— Está certo. Obrigado...
— Até mais!
Desligou.
Estendi o telefone para o motorista.
— François nos espera em Sceaux — expliquei-lhe.
Ele aquiesceu. Era um cara de cerca de trinta anos, ombros
largos, negro, corpo de lutador de boxe, mas alto como um
jogador de basquete. Cabeça raspada, pequenos olhos
escuros, traços duros. Um físico de matador, mas um
matador que acabava de salvar nossa vida!
— Há uma caixa de primeiros socorros embaixo do seu banco
— disse ele recuperando o telefone.
Abaixei-me e peguei a caixinha branca. Quando levantei a
cabeça, vi que Claire havia desmaiado.
Tentando não ceder ao pânico, peguei o necessário na caixa
de primeiros socorros para cuidar melhor do ferimento dela.
Do lado de fora, as ruas desfilavam umas após as outras. O
motorista corria para fora de Paris.
As imagens se confundiam em minha cabeça. A morte, mais
uma vez, havia passado bem perto.
Capítulo Nove
A pequena casa onde vivia o casai Chevalier tinha tudo da
arquitetura inglesa. Na parte alta de Sceaux, numa longa rua
margeada por árvores e arbustos, ela se erigia, adelgaçada, em
meio a residências idênticas, todas elas em tijolinhos
vermelhos. Por trás de um modesto jardim, a fachada branca
e vermelha imitava a das casas vitorianas da periferia de
Londres. Devia haver nos fundos, outro jardim, exatamente
do mesmo comprimento daquele.
A rua parecia adormecida de tão calma. Mas no silêncio
dessa periferia chique eu ainda ouvia o eco irreal dos tiros
atrás de mim. Meus punhos só se soltaram quando
finalmente vi François no pequeno vestíbulo.
François Chevalier. Não havia mudado muito. Talvez
engordado um pouco. Mas sempre com aquele sorriso
profundo, perpétuo e, no entanto, sincero, aquele carisma
cativante, do alto do seu metro e noventa. Quando o
conheci, François já se vestia tão bem que tínhamos a
impressão de que havia nascido numa loja Yves Saint
Laurent. Os outros alunos do liceu Chaptal nos olhavam
como ETs. Eu com meus cabelos longos e minhas camisetas
sujas, ele com seus ternos e seu relógio de bolso. Eu, o rebel-
de um pouco perdido, e ele, o rapaz bonito, cheio de
charme, que sempre teve no fundo dos olhos a chama do
sucesso. Por trás de um grão de malícia.
Abraçou-me com certa força, depois acolheu a filha de
Borella e nos conduziu pela escada até uma salinha de
televisão, onde o conforto bem-vindo de um enorme sofá
nos aguardava. Acho que François falava comigo, mas eu não
o ouvia de fato. Era como se o choque tivesse esperado todo
aquele tempo para me paralisar inteiramente.
Estelle chegou alguns minutos depois de nós e também me
abraçou longamente. Já com a barriga bem redonda. Senti
meus olhos marejados. Ela estava esplêndida com seus
longos cabelos louros e as sardas, o rostinho de menina e o
olhar brilhante. Eu queria muito tê-la encontrado em outras
circunstâncias. Deu-me um beijo e cochichou "bem-vindo"
em meu ouvido.
— Eu... eu sinto muito — balbuciei sem graça.
Eu tinha sangue nas mãos, a aparência provavelmente
desnorteada, e de repente desembarcava na casa com uma
moça ferida. Condições nada ideais para um reencontro.
— Não tem que se desculpar... François e eu faremos de tudo
para ajudá-lo, Damien. Mas estou preocupada com você.
Abracei-a de novo. Senti seu ventre redondo contra o meu.
Depois vi que ela olhava Claire por cima do meu ombro.
— Vamos, venha, senhorita, vamos cuidar de tudo isso lá em
cima.
— Fique bem relaxada — aconselhei.
Estelle levantou os olhos para o teto, depois levou Claire para
o primeiro andar para lhe dispensar cuidados muito mais
profissionais do que os meus.
Fiquei no térreo com François e seu amigo, que me trouxe
um pouco de álcool e algodão para desinfetar os cortes nas
mãos e nos pulsos.
— Acho que seu amigo salvou nossa vida — disse eu sem
jeito, esboçando um sorriso.
— Tanto melhor — respondeu François dirigindo-se para o
sofá. — Ele tem esse costume. Mas agora você vai me contar
sua história, porque ela já está ficando séria demais...
— Não, François. Não agora.
— Não está falando sério!!! — encolerizou-se Chevalier.
— Você vai precisar confiar mais em mim — disse eu,
tentando acalmá-lo. — Não posso contar tudo agora; seja
como for, não tenho tempo. Em compensação, você pode
me quebrar mais um galho...
— Damien! Você acaba de ser perseguido com tiros em
pleno centro de Paris! Já passou da hora de você me dizer o
que está acontecendo...
— Não tenho tempo. Tudo o que posso lhe dizer é que,
resumindo, estou procurando uma coisa que meu pai
procurava e que, ao que parece, muitas outras pessoas
também estão procurando.
— O Bilderberg? Acha que foram eles que atiraram em você?
— Eles ou outros.
— Mas o que vocês estão procurando?
— Nem sei direito o que é...
— Deixe de brincadeira!
— Escute, François, ainda preciso da sua ajuda. Então, ou
você confia em mim e prometo lhe dizer tudo quando eu
souber mais, ou você esquece, eu desapareço e paro de
enchê-lo.
Suspirou.
— Que bela escolha!
— Preciso que você me faça dois favores.
— Estou ouvindo — soltou num tom exasperado.
— Primeiro, quero que mantenha essa moça em segurança.
Aliás, ela vai lhe contar um pouco melhor toda a história.
Não a conheço bem, mas sei que é uma moça direita.
— Então não é a moça de quem você me falou ontem ao
telefone?
— Não, absolutamente. A moça de quem lhe falei ontem ao
telefone é jornalista e também está metida comigo nessa
história. Aliás, preciso encontrá-la o mais rápido possível.
Mas primeiro me prometa que vai proteger Claire.
— Mas claro que vou protegê-la! — irritou-se.
— Bom. O segundo favor diz respeito a um objeto de que
talvez tenha ouvido falar, já que sempre se interessou por
coisas curiosas, com essas suas histórias de maçonaria...
Lancei um olhar sem graça a seu amigo guarda-costas. Eu
tinha quase esquecido sua presença.
— Não tem problema — tranqüilizou-me François. —
Stéphane sabe que sou franco-maçom. Que objeto é esse?
— Uma relíquia. A pedra de Iorden. Já ouviu falar?
— Nunca...
— E uma relíquia que teria pertencido a Jesus e,
aparentemente, tem uma relação com o Grande Oriente da
França. Não me pergunte porquê, não faço a menor idéia.
Pode verificar isso?
— Claro. A pedra de Iorden.
Pegou um bloco de notas, escreveu o nome, destacou a
pequena folha e a colocou no bolso.
— E só — disse ao me levantar. — Agora preciso ir. Sinto
muito, sei que estou abusando, mas preciso de todo jeito
terminar o que comecei.
— Espere! — interrompeu-me François, também ao se
levantar. — Aceito lhe fazer esses dois favores com uma
única condição.
— O quê?
— Que leve Stéphane com você.
Levantei as sobrancelhas.
— Hein?
— Badji. Ou você deixa que ele o acompanhe, ou vou pedir
que ele lhe dê uma surra agora mesmo e o mande para um
hospital psiquiátrico.
Não pude deixar de sorrir. Depois refleti por um instante.
— Honestamente, bem que eu gostaria que Stéphane, ou
melhor, o senhor Badji, viesse comigo... Se puder, é claro.
François finalmente deu um sorriso. Voltou-se para o amigo.
Este se levantou e voltou a abotoar o paletó do terno escuro.
— Posso ficar alguns dias com o senhor — afirmou-me Badji.
— Vou avisar lá na empresa e sou todo seu.
— Stéphane trabalhou várias vezes para mim ao longo dos
últimos cinco anos — explicou-me François, apontando para
o guarda-costas. — Tenho absoluta confiança nele.
Trabalhou muito tempo na Place Beauvau. Conhece muito,
muito bem o métier.
— Deu para perceber.
Nesse instante, Estelle e a moça desceram as escadas. Claire
Borella tinha um curativo em volta do ombro e uma tipóia
para sustentar o braço.
— Vai embora? — perguntou-me a mulher de François.
— Sim — confessei meio sem graça. — Não tenho escolha.
Preciso de todo jeito terminar o que tenho a fazer. Fico
envergonhado de me aproveitar assim de vocês, mas não
tenho escolha. Tudo bem? — perguntei olhando o ombro de
Claire.
— Vai melhorar. Extraí a bala — explicou Estelle apertando a
mão da moça. — Vou tirar uns dias de férias para ficar aqui
com Claire para que ela possa se recuperar de tudo isso. De
todo modo, com o bebê, que começa a mexer, ando morta
de cansada, também preciso de repouso.
— Obrigado. Mil vezes obrigado. Vocês são os melhores...
Estelle me deu um sorriso afetuoso. Pisquei para ela. Onze
anos não tiraram nada da amizade que unia a nós três. E a
gravidez lhe caía muito bem.
— Manterei vocês informados — prometi dirigindo-me à
porta.
O guarda-costas passou à minha frente.
Alguns minutos mais tarde, estávamos no Safrane e voando
rumo ao Beaubourg.
— Mais uma vez, obrigado pelo que fez há pouco — disse a
Badji enquanto ele dirigia. — Sem você, acho que teríamos
morrido.
Com a nuca colada contra o apoio de cabeça, os olhos fixos
na rua, eu me sentia um pouco idiota. Já era a segunda vez
em uma semana, e eu realmente não estava acostumado a
levar tiros. Mas imaginava que ele já devia ter visto coisa
parecida...
— O senhor se saiu muito bem.
— Pois é. Mas devo confessar que tive muito medo. Além
disso, sofro de vertigem. Eu não estava nem um pouco
tranqüilo na cornija!
Dirigiu-me um sorriso compreensivo.
— Agora vai precisar tomar muito cuidado. Já teve guarda-
costas?
— Não.
— Vou tentar permanecer o mais discreto possível e não
incomodá-lo, mas há certas regras básicas que será preciso
respeitar. A ameaça que espreita o senhor é muito séria...
— Deu para perceber? — ironizei.
— Deu. Fazia muito tempo que eu não via uma ação como
aquela. O senhor deputado não tem uma vida assim tão
movimentada...
— Trabalha bastante para ele? — espantei-me.
— Não, na verdade, muito raramente.
— Mas por que continua trabalhando de guarda-costas se tem
sua própria empresa?
— Ah, já não faço isso com tanta freqüência. Agora trabalho,
sobretudo, com treinamento. Preparo garotos de vinte anos
para se tornarem agentes de proteção a curta distância.
Todos eles imaginam que vão poder trabalhar com segurança
de um dia para o outro. A profissão está virando uma
bagunça. Tento transmitir o que aprendi. E, de tempos em
tempos, trabalho para o senhor
Chevalier. Não exatamente como guarda-costas, mas sim
para supervisionar a segurança quando ele organiza
colóquios ou coisas do tipo. Na verdade, ele nem precisa de
mim, mas nos entendemos muito bem. E, além do mais,
temos uma paixão em comum...
— Ah, entendi! — repliquei. — Você também é franco-
maçom.
Ele deu uma risada.
— Não, absolutamente! Sei que há muitos negros no Grande
Oriente, mas não eu!
— Desculpe — falei. — Então, o que é?
— O boxe.
— Hein? François luta boxe? — espantei-me.
Pôs-se a rir de novo. Tinha uma risada extraordinária, grave
e profunda, extremamente comunicativa.
— Não — explicou. — Vamos juntos assistir às lutas. Somos
dois grandes amantes do boxe. Gosta do esporte?
— Nem um tiquinho — confessei. — E um pouco violento
demais para mim... Não sabia que François gostava disso!
— Tá brincando. Não perdemos uma luta! Vamos sempre que
há competição na região parisiense e, quando não, seguimos
a WBC, a WBA e todos os campeonatos na casa dele, em
widescreen! A senhora Chevalier fica pra morrer!
— Imagino! E você já lutou boxe?
Levantou as sobrancelhas.
— Diz isso porque tenho nariz de boxeador?
Pôs-se a rir novamente. Comecei a achá-lo um sujeito
realmente simpático.
— Não — retomou. — Pratico muitos esportes de combate,
mas não o boxe. Pelo menos não pra valer.
Balancei a cabeça. Agora entendia por que François deve ter
simpatizado com ele. Parecia ser competente, honesto e não
se levar muito a sério. Talvez uma qualidade rara naquela
profissão. Em geral, costuma-se medir o profissionalismo de
um guarda-costas por sua seriedade... Mas Badji não tinha
medo de brincar. No entanto, alguma coisa me dizia que isso
não o impedia de ser extremamente profissional.
— Como se tornou guarda-costas? — perguntei quando
saíamos da via expressa.
— Ah! E uma longa história!
— Adoro longas histórias.
— Então vou lhe dar uma director's cut Cheguei à França
com quinze anos — começou.
— Chegou de onde?
— Do Senegal. Só fiz dois anos de escola, de tanto que eu era
largado. E não apenas no nível escolar, mas na vida em geral.
Uma coisa eu lhe asseguro: depois que o senhor passa a
infância inteira na África e de repente desembarca em Paris,
leva um baita de um choque. Eu não era muito feliz. Não
gostava das pessoas, não gostava das meninas, não gostava do
clima. Não gostava de quase nada, a não ser da televisão,
talvez. Resumindo, depois de bancar o ridículo na escola, fiz
a maior besteira da minha vida.
— Qual?
— Entrei para o curso preparatório dos fuzileiros navais e de
comando, em Lorient. Depois integrei o comando de
Penfentenyo.
— Isso não me diz grande coisa — confessei.
— Para lhe dar uma idéia, minha companhia era especializada
no reconhecimento de áreas e na informação tática. Nossas
operações habituais eram a coleta de informações, a
infiltração e a exfiltração de pessoal... Esse tipo de
divertimento.
— Legal.
— Pois é. Me tornei especialista em combate em ambiente
restrito, e nem sempre isso era divertido. Participei de
operações que não me trazem necessariamente boas
lembranças...
— Do tipo?
— Algumas missões no Líbano, entre 1983 e 1986, depois
em Mururoa, nas Comores, no Golfo. Na Somália, onde
participei da evacuação de residentes estrangeiros...
Levantei as sobrancelhas, perplexo.
— Pois é — retomou. — Nada de boas lembranças! Servi até
os 29 anos. Não é que eu não gostasse, mas, quanto mais os
anos passavam, mais eu me arrependia por não ter estudado.
Parece idiota dito assim, mas me dei conta de que tinha
perdido alguma coisa... Também não tinha nenhuma
vontade de fazer Ciências Políticas, sabe, isso eu lhe garanto!
Portanto, quando fiz 29 anos, época em que voltávamos de
uma operação na Bósnia, decidi pendurar o uniforme. Refleti
e, com aquilo que o exército me havia ensinado, entendi que
o melhor era me voltar para o treinamento ou para a
segurança. Aos poucos, decidi fazer direito.
— Ah, é?
— Difícil de acreditar, né? Um negão deste tamanho, do
comando da marinha, nos bancos da faculdade!
— Tinha seu diploma de segundo grau?
— Não, primeiro tive que fazer uma capacitação em direito
durante dois anos. Eu estava muito motivado. Em seguida,
pude me inscrever na faculdade.
— Parabéns!
— Obrigado. Depois, bem que eu gostaria de ter continuado,
mas financeiramente estava ficando difícil. Então montei
uma empresa de segurança, especializada na proteção a curta
distância de políticos. Com um currículo como o meu, logo
fui parar na Place Beauvau. Eu era meu próprio patrão, tinha
começado com dois funcionários, e, ao final de cinco anos,
éramos oito, e, com toda a franqueza, fiquei muito contente.
E o senhor? O que faz?
Dei uma risada.
— Eu? Bom, não sei bem. Antes eu escrevia histórias idiotas
para a TV nova-iorquina, e agora sou alvo móvel de todas as
máfias do mundo!
Reencontramos Sophie no último andar do Centre
Pompidou, no terraço da cafeteria. Eu havia conseguido falar
com ela pelo celular e lhe resumira a situação. A filha do
Borella, os tiros, François...
Quando cheguei, ela me abraçou e deu um longo suspiro.
— Quer desistir? — perguntou com ar desolado.
— Pelo contrário, nunca tive tanta vontade de continuar!
Ela aquiesceu, depois cumprimentou o guarda-costas atrás de
mim. Fiz as apresentações:
— Sophie de Saint-Elbe, Stéphane Badji, um grande amigo de
François que se propôs a nos ajudar. Ele trabalha com
segurança pessoal...
— Prazer. Como aconteceu? — perguntou ela, pegando-me
pelo braço.
— Não sei — confessei. — Acho que alguém devia estar
vigiando Claire havia muito tempo. Deve ter me visto entrar
no apartamento, e talvez até por isso tenham dado ordem
para atirar. É a explicação mais simples que consigo
encontrar. A filha do Borella foi baleada no ombro, e eu tive
uma sorte incrível.
— É hora de terminarmos. Não sei como acelerar as coisas.
Acho que teremos de encontrar a pedra...
— Pedi a François que se informasse a respeito. E você?
Terminou? — perguntei-lhe.
— No que se refere ao manuscrito de Dürer, sim.
As pessoas nos olhavam com estranheza. Eu com as mãos
machucadas, e Badji com seus ombros mais largos do que
uma cama de casal, realmente não éramos os mais discretos.
Fomos nos instalar numa mesa. Sophie pegou minhas mãos,
os cortes cheios de ataduras.
— Está doendo?
— Não, não.
Badji pigarreou e interveio:
— Sinto muito, mas vou ter de verificar uma coisa.
— O quê? — perguntei.
— Seu celular está no seu nome?
— Não. Peguei um chip provisório e estou usando um nome
fictício.
— Perfeito. E a senhora? — perguntou dirigindo-se a Sophie.
— Sim, ele está no meu nome. E o celular que costumo
usar... Acha que...
— Sim — interrompeu Badji. — Tire o chip agora mesmo.
Seria mais prudente que a senhora também usasse um
provisório por enquanto. Além disso, tenho coletes à prova
de bala no carro, seria bom, os dois usarem.
—- Está brincando? —- riu Sophie.
— Não, ele não está brincando — repliquei. — Acho que
tem razão. Garanto a você que a bala não passou longe, e
quero usar todos os coletes do mundo!
— Bom, então está certo — cedeu Sophie.
— Vistam assim que voltarmos para o carro — sugeriu Badji.
— Sinto muito por importuná-los com isso, mas, bem...
— Entendo — afirmou Sophie.
Dirigi-lhe um sorriso. Apoiei-me na mesa e aproximei minha
cadeira da dela.
— Então? — comecei. — O manuscrito...
-— Sim. O manuscrito. Onde havíamos parado? —
perguntou um pouco desorientada.
Sorri. Nossa conversa era quase surrealista, empoleirados que
estávamos no alto do Centre Pompidou.
— Em Carlos Magno — cochichei.
— Ah, sim. Quer realmente que eu conte isso agora?
— Resuma!
— Espere — propôs Sophie. — Primeiro vamos pedir alguma
coisa para beber.
— Eu não recusaria um uisquinho -— concedi. — Badji, você
toma alguma coisa?
— Uma Perrier com uma rodela de limão — respondeu o
guarda-costas mecanicamente.
Sophie fez o pedido.
— Então — retomei. — Você estava para me dizer como a
pedra de Iorden passou das mãos de Harun al-Rashid para as
de Carlos Magno.
Sophie me lançou um olhar cheio de simpatia. Parecia achar
engraçado o fato de eu estar com tanta pressa para saber o
que ela havia descoberto. Na verdade, a história da pedra de
Iorden era empolgante e, de mais a mais, eu não via a hora
de chegar ao fim. Eu só sonhava com uma coisa: colocar um
ponto final nesse caso e poder respirar junto com ela. Tirar
um descanso merecido. Oferecer a nós dois uma viagem, por
exemplo, longe de tudo aquilo. Mas, nesse momento, eu só
queria saber.
— Na verdade — começou, olhando ao redor para verificar
se alguém estava nos escutando —, tudo partiu de Carlos
Magno e da sua vontade de bancar o protetor do
cristianismo. Naquela época, os olhos dos cristãos do mundo
inteiro estavam voltados para Jerusalém. Ora, havia um
século e meio que a cidade santa estava nas mãos dos árabes.
— Isso não devia facilitar as coisas — supus.
— Era menos complicado do que se poderia acreditar —
retorquiu Sophie. — Como disse ontem, os muçulmanos
deixavam os cristãos tranqüilos, chegavam até a coabitar sem
grandes problemas. Uns rezavam na mesquita de Omar, mas
não impediam que os outros seguissem em peregrinação os
vestígios de Cristo nem o patriarca de Jerusalém de celebrar
todas as festas que quisesse. Em contrapartida,
freqüentemente as comunidades cristãs da Palestina eram
vítimas dos ataques de beduínos nômades. E é por essa razão
que Carlos Magno decidiu enviar embaixadores para
restabelecer o contato com o califa de Bagdá, a fim de que
este melhorasse a segurança dos cristãos.
— Mas Carlos Magno não estava em guerra contra os
muçulmanos?
— Não, não contra esses muçulmanos. Aliás, tinham até
inimigos comuns.
— Quais?
— O califado da Espanha, que representava ao mesmo tempo
uma ameaça de invasão para Carlos Magno e uma oposição
para Harun al-Rashid no mundo muçulmano, mas sobretudo
o Império Bizantino. Em resumo, como Carlos Magno e al-
Rashid tinham os mesmos inimigos, também tinham um
ponto de entendimento. Assim, os embaixadores francos
foram muito bem recebidos pelo califa de Bagdá. Entre 797 e
802, houve vários intercâmbios de embaixadores entre
Harun al-Rashid e Carlos Magno, e, a cada vez, essas missões
foram acompanhadas por inúmeros presentes. O mais
célebre deles era um elefante, o famoso Abul-Abbas, que o
califa ofereceu ao imperador.
— Ah, sim, isso me diz alguma coisa...
— Mas o mais interessante é uma história de protetorado
sobre os Lugares Santos.
— Ou seja? — perguntei completamente ignaro.
Nesse momento, a garçonete trouxe nossas bebidas. Tomei
com prazer um gole de uísque.
— Nem todos os historiadores concordam a esse respeito —
retomou Sophie —, mas, grosso modo, entre os favores que
o califa teria feito a Carlos Magno, teria havido uma
soberania sobre Jerusalém. Para alguns historiadores, al-
Rashid teria concedido ao imperador a soberania sobre toda a
Terra Santa; segundo outros, como Arthur Kleinclausz, mais
realista na minha opinião, ele apenas lhe teria oferecido
simbolicamente um protetorado sobre o Santo Sepulcro, e
até mesmo apenas sobre o túmulo de Cristo. Seja como for, o
símbolo era forte. O califa dava ao imperador a autoridade
sobre o centro geográfico da cristandade. Mas o que
Kleinclausz não conta é que Harun al-Rashid enfatizou esse
símbolo ao oferecer a Carlos Magno outro objeto
simbólico...
— A pedra de Iorden.
— Sim. A jóia que pertenceu a Cristo e que, segundo nossa
hipótese, estava em posse dos califas havia várias gerações.
— Como podemos ter certeza já que os próprios historiado-
res não contam essa história?
— Eu não disse que os historiadores não a contavam. Disse
que Kleinclausz não a contava. Por outro lado, e acredite,
pastei para verificar, num número da Revue historique de
1928, um artigo de Bédier sobre os presentes dos
embaixadores de Harun al-Rashid faz menção à pedra de
Iorden! E, para concluir, o documento do seu pai prova que
Carlos Magno estava de posse dela. Q.E.D.
— Bravo! E aí que termina o texto de Dürer?
— Não, absolutamente. Você se lembra de que o texto que
seu pai encontrou provava que Carlos Magno tinha oferecido
a pedra a Alcuíno...
Como sempre acontecia quando Sophie me fazia seus
pequenos discursos, eu me sentia completamente inculto.
Tinha cada vez mais vergonha, mas isso devia diverti-la mais
do que qualquer coisa. E eu via que, ao meu lado, Badji não
podia evitar ouvir nossa conversa. Ele também parecia achar
o assunto empolgante.
— ... Alcuíno era um clérigo anglo-saxão que dirigia a Escola
Catedral de York. Autor e pensador de rara inteligência, era
considerado um dos mestres da cultura cristã inglesa. Tanto
que Carlos Magno o mandou vir à França e decidiu oferecer-
lhe a presidência da escola do palácio de Aix-la-Chapelle. Os
dois se entenderam maravilhosamente bem, e Alcuíno
dirigiu a política educacional de Carlos Magno. Alcuíno
encontra-se na origem do que os historiadores chamam de
renascimento carolíngio. No final das contas, ele acaba se
tornando o conselheiro mais fiel do imperador e, em 796,
quando se retira na abadia Saint-Martin de Tours, Carlos
Magno o cobre de presentes, entre os quais a famosa pedra.
Temos prova disso especialmente pelo texto que seu pai
havia encontrado e me enviado por fax. Quando Alcuíno
morre, em 804, supõe-se que tenha deixado a pedra aos
monges da abadia, provavelmente aos copistas do
scriptorium. Depois, já no século IX, a abadia é saqueada
pelos normandos. E é aí que se perdem as pistas da pedra de
Iorden. Seu pai fez muitas pesquisas, mas visivelmente não
encontrou o paradeiro. Eu também pesquisei um pouco, mas
não obtive nenhum rastro da pedra durante quase três
séculos, até ela reaparecer em 1130, nas mãos de São
Bernardo, que fundou a abadia de Claraval, em 1115, e, por
conseguinte, tornou-se seu primeiro abade. E um
personagem essencial no mundo cristão, que intervinha
muito nas questões públicas sob Luís VI e seu filho, Luís
VII. Bastante polêmico, tampouco hesitou em aconselhar os
papas ou criticá-los. Mas o que nos interessa aqui é sua
relação com os templários...
— Não me diga que a pedra de Iorden também tem uma
relação com a Ordem do Templo? — interrompi-a incrédulo.
— Quem melhor que os guardiões do túmulo de Cristo podia
conservar um tesouro tão sagrado? Mas ainda não chegamos
lá... Vou lembrar o contexto para você. No final do século X,
as relações entre a França e os árabes já não são as mesmas
da época de Carlos Magno. Em 1095, o papa Urbano II faz a
convocação para a primeira cruzada. O momento é de
hostilidades. Os cruzados passam por Constantinopla, depois
pela Síria, tomam Antioquia...
— De fato...
— Pois é, e em 1099 tomam Jerusalém. Aos poucos, quatro
Estados latinos foram formados: o condado de Edessa, o
principado de Antioquia, o condado de Trípoli e, por fim, o
famoso reino de Jerusalém. O Ocidente cristão se instala
bem no meio do território ocupado pelos árabes. As
peregrinações podem começar, mas é uma viagem perigosa,
e é por essa razão que, bem no início do século XII, um
cruzado, Hugo de Payns, decide criar uma milícia para
proteger os que chegam a Jerusalém seguindo os passos de
Cristo.
— A Ordem do Templo...
— Exatamente. Mas ainda não tem esse nome. No início, são
chamados de Cavaleiros de Cristo, Miles Christi, e até
mesmo, na versão mais longa, a milícia dos Pobres
Cavaleiros de Cristo. Estamos por volta de 1120. A Ordem,
já religiosa, ainda não está oficializada e, para dizer a
verdade, causa alguns problemas devido à incompatibilidade
entre o estatuto de monge e aquele de cavaleiro. No
princípio, São Bernardo, que como eu dizia é um homem
bastante influente, se mostra hostil a essa milícia. Mas,
quando encontra Hugo de Payns, fica convencido da pureza
de suas intenções e, sobretudo, da necessidade desses
famosos Cavaleiros de Cristo. Em 1129, a regra dos
templários é estabelecida durante o Concilio de Troyes, na
presença de São Bernardo. E, para confortá-los, este último
irá até escrever um texto célebre, o De laude novae militiae.
Com esse texto, justifica a missão, explica que os lugares
sagrados lhes devem ser confiados, mas também que doações
lhes devem ser feitas para facilitar sua missão e a constituição
da Ordem. E, é lógico, dá o exemplo.
— Oferece a eles a pedra de Iorden?
— Não apenas ele a dá a eles, mas também lhes pede que a
levem a Jerusalém, de onde ela nunca deveria ter saído.
Alguns anos mais tarde, Balduíno II, que é o rei de
Jerusalém, os aloja numa ala do palácio, no local do Templo
de Salomão. E quando eles assumem o nome de Ordem do
Templo. Vários documentos da época mostram que a pedra
ficará em posse deles durante quase duzentos anos. Os
templários acabam perdendo Jerusalém em 1187, mas se
instalam em Acre e depois em Chipre, e, a cada vez, o grão-
mestre da Ordem leva consigo a pedra de Iorden entre
inúmeras outras relíquias do Santo Sepulcro. São Bernardo
havia feito uma previsão correta, pois os templários são os
guardiões mais seguros dessa preciosa relíquia. Infelizmente,
no início do século XIV, Filipe, o Belo, que deve muito
dinheiro aos templários e que inveja sua riqueza lendária,
busca um meio de eliminá-los...
— Ainda estamos falando do tesouro dos templários, mas será
que eram mesmo tão ricos?
— E como eram! A bula do papa Inocêncio II em 1139 não
apenas os exonerava dos dízimos, como ainda lhes dava o
direito de arrecadar fundos e esmolas. E quando se tratava de
fazer oferendas aos protetores do túmulo de Cristo, os
cristãos se mostravam muito, muito generosos. Além disso,
todos os nobres que entravam para a Ordem lhe cediam seus
bens, suas casas, suas terras, seu dinheiro... Em resumo, o
Templo, que também banca o usurário, possui uma fortuna
colossal, na mesma medida do ódio que lhes dedica o rei de
França. Os bens imobiliários da Ordem são extraordinários.
Só em Paris os monges-soldados possuem um bairro
inteiro...
— O bairro do Templo...
— Elementar meu caro Watson! — zombou Sophie. — Após
muitas manipulações, e apesar da proteção do papa, Filipe, o
Belo, manda prender os templários. No início, o papa
Clemente V condena; depois, vendo que talvez seja tarde
demais, não se opõe ao rei, mas exige que os bens do Templo
sejam tutelados pela Igreja.
— Não é bobo não...
— Os bens da Ordem haviam sido confiscados pelos agentes
do reino, mas, como o papa os reivindicou, depois de muitas
negociatas, no final do pseudo-processo, Filipe aceita confiar
todas as posses dos templários à Ordem do Hospital, que
havia nascido mais ou menos na mesma época em Jerusalém.
Resumindo, em 1312, depois de já estarem instalados há dez
anos na ilha de Rodes, os hospitalários de São João herdam o
famoso tesouro do Templo.
— Ao qual pertencia a pedra de Iorden.
Sophie confirmou com a cabeça.
— Exato. É assim que termina o manuscrito de Dürer.
Segundo ele, uma das relíquias mais misteriosas da História
se encontra em posse dos hospitalários. E preciso lembrar
que Dürer escreve isso por volta de 1514, pouco antes de a
Ordem do Hospital ter sido expulsa de Rodes pelo sultão
Solimão, o Magnífico, e de Carlos V lhes ceder a ilha de
Malta em troca de sua ajuda contra os turcos. Aliás, na época
são rebatizados de cavaleiros da Ordem de Malta... Mas, a
partir de então, já não há nenhum vestígio da pedra de
Iorden. Foi aí que parei... E seu pai tampouco foi mais longe.
— Então precisamos fazer mais pesquisas — propus.
— Sim. Temos a pista da franco-maçonaria, que seu pai
mencionou vagamente. O vínculo que surgiu com a Ordem
de Malta ou, pior, com os templários, me parece um pouco
forçado...
— Pedi a Chevalier que fizesse pesquisas a respeito. Um
nome como o dele tem autoridade.
Ficamos em silêncio por um instante. Eu a olhava com
admiração. Ela trabalhara com uma rapidez incrível. Meu pai
tinha acertado na mosca ao escolhê-la para ajudá-lo em suas
pesquisas. Sophie estava no seu hábitat, estava empolgada, e
sua erudição lhe permitia avançar muito mais depressa do
que eu.
— Sophie... Estou morrendo de fome!
— Não comeu?
— Entre os dois tiros que dispararam contra mim? Não, não
tive tempo! — ironizei.
— São quase oito horas. Um pouco cedo para jantar, mas
podemos descer para pegar um sanduíche para você num
café ou num McDonald's.
— Então vamos.
Badji nos precedeu prontamente. Quase me sobressaltei.
Tinha passado para o modo guarda-costas, e eu sentia um
pouco de dificuldade em me habituar. Seguimos logo atrás
dele.
Havia bastante gente nas escadas rolantes, que deslizavam ao
longo dos grandes tubos de acrílico transparente do
Beaubourg. Dezenas de visitantes que se deixavam levar, que
subiam ou desciam entre os andares. Pouco a pouco, senti
subir em minhas costas o formigamento familiar que me
havia feito fugir da Biblioteca Nacional. A impressão de estar
sendo observado. Todos aqueles olhares que encontrávamos,
será que um ou outro não estava demorando demais sobre
nós? Estaríamos realmente protegidos naquela grande
estrutura de vidro e acrílico?
Aproximei-me de Sophie nos degraus de aço da escada
rolante e peguei em seu braço. Ela me sorriu. Lancei um
olhar a Badji. Tentei ler em seu rosto o menor sinal de alerta,
a menor inquietação. Mas ele parecia sereno. Talvez meu
instinto estivesse me pregando uma peça. Tentei relaxar.
Esquecer os ferimentos nas mãos. O eco dos tiros. A sombra
dos corvos por toda parte ao meu redor.
Chegamos à praça externa do Centre Pompidou. Os turistas
se reuniam em torno dos artistas de rua. Um grande
guitarrista negro, de cabelos longos, agitava-se do lado de seu
amplificador, tocando Hendrix. Mais adiante, um faquir
caminhava sobre cacos de vidro. Insinuamo-nos entre os
curiosos e caricaturistas.
Quando chegamos à rua Berger, Badji me indicou uma
lanchonete com ar interrogativo. Aquiesci. Fomos nos
sentar na parte de dentro, e fiz o pedido.
Sophie começou, em voz baixa:
— Damien, precisamos definir nossa situação, decidir o que
vamos fazer agora. Quanto a mim, terminei o trabalho sobre
Dürer. Precisamos nos organizar.
— Qual pode ser a próxima etapa? Encontrar a pedra de
Iorden? — perguntei timidamente.
— Sim, mas isso não será suficiente. Vale lembrar que não é a
chave que permite decifrar a mensagem de Cristo, e sim a
mensagem em si, e ainda não sabemos onde ela está. Eu
esperava encontrar alguma coisa a respeito no final do texto
de Dürer, mas não há nada.
Dei um longo suspiro. Ambos tínhamos vontade de avançar
o mais rápido possível em nossas investigações, mas já não
sabíamos que pista seguir.
— Espere! — exclamei de repente. — Me esqueci de contar
uma coisa que talvez possa nos dar uma pista de
investigação.
— O quê? — replicou Sophie, impaciente.
A garçonete trouxe meu sanduíche e paguei a conta. Dei
uma mordida. Sophie fez sinal para eu me apressar. Engoli
com dificuldade uma mistura um pouco seca de pão com
frios.
— A filha do Borella — retomei — encontrou um artigo no
Le Monde que falava do massacre dos religiosos relatado
pelo pai dela.
— Os essênios?
— Sim, se de fato se trata de essênios... Seja como for, o
monastério teria sido inteiramente destruído e não haveria
nenhum sobrevivente. Aparentemente, o artigo não dizia
grandes novidades, além disso... Era tratado como um
simples caso de polícia. Com tudo o que acontece na região,
os jornalistas já não se impressionam com qualquer coisa.
Mas, de todo modo, são muitas coincidências. Borella
assassinado, a comunidade que ele havia descoberto
massacrada na mesma semana, meu pai, e hoje tentaram
matar a filha do Borella...
— Dá para supor que são as mesmas pessoas que fizeram o
serviço. Mas o que isso significa na sua opinião?
— Os essênios sabiam de alguma coisa... Queriam calá-los.
Ou então, o que é mais verossímil, eles possuíam alguma
coisa...
— O texto criptografado de Jesus? — sugeriu Sophie com
brilho no olhar. — Ou então a pedra de Iorden...
— Não — repliquei. — E mais verossímil que seja o texto de
Jesus, já que a comunidade se diz descender em linha direta
dos contemporâneos de Cristo. Ora, você descobriu que a
pedra de Iorden viajou um pouco por toda parte através da
História. Não, se essa comunidade permaneceu secreta
durante quase dois mil anos, provavelmente é porque ela
velava algo precioso, que permaneceu no lugar. A imagem
dos templários que guardavam o túmulo de Cristo, esses
religiosos protegiam outra coisa. Tiveram a sorte de estar
num lugar mais isolado, e não no coração de Jerusalém. E se
foram mortos depois de dois mil anos, é porque ainda
possuíam esse bem precioso. Eu tenderia mais a crer que era
a mensagem criptografada de Jesus.
Sophie concordou.
— Faz sentido. Devem ter ido lá para roubá-los; depois, para
evitar que falassem, devem ter matado todos. Em seguida,
eliminaram Borella, que sabia demais.
— Quanto à filha, devem ter esperado para ver se ela sabia de
alguma coisa, e, quando me viram entrar na casa dela,
decidiram acabar com ela também.
— "Eles" quem?
— Essa é a grande pergunta! O Bilderberg ou a Acta Fidei —
propus. — Agora sabemos do que são capazes.
— E só uma hipótese, mas é plausível. Isso quer dizer que
um dos dois elementos da investigação foi encontrado por
nossos inimigos invisíveis. O texto criptografado.
— E o segundo elemento, a chave, continua desaparecido.
— Mas, na minha opinião, nossos inimigos deviam acreditar
que seu pai possuía esse segundo elemento, a pedra de
Iorden, e é por isso que o assassinaram e que voltaram para
vasculhar a casa de Gordes quando você chegou.
— Claro! No momento, devem estar pensando que sou eu
quem tem a pedra de Iorden!
— A hipótese está cada vez mais plausível. Só tem uma coisa
que me aflige.
— O quê? — perguntei.
— A Gioconda. Leonardo da Vinci. Ainda não sabemos o
que isso tem a ver com o caso.
— Ah, sim. E a máquina estranha no porão do meu pai. Sem
falar na Melancolia, de Dürer. Ainda que seu manuscrito nos
tenha ensinado muito, não sabemos realmente qual é a liga-
ção do enigma como um todo com a gravura. Isso já nos
fornece um tema de pesquisa...
— Enquanto Chevalier encontra novas informações sobre a
pedra de Iorden.
— Excelente! — confirmei. — O que me dá medo é que, se
quisermos resolver esse enigma, uma hora vamos ter de
recuperar a mensagem criptografada de Jesus... Bom,
segundo nossa hipótese, uma das duas organizações a roubou
dos essênios. E acho difícil recuperá-la, quer junto ao
Bilderberg, quer na Acta Fidei. Não estou pronto para voltar
a pôr os pés lá.
— Cada coisa a seu tempo... Primeiro, a Gioconda.
Sophie se levantou e vestiu o sobretudo.
— Aonde vamos? — perguntei imitando-a.
— Para Londres.
Arregalei os olhos
— Como?
— Vamos para Londres — repetiu Sophie, toda orgulhosa do
seu efeito.
Stéphane Badji, por sua vez, não parecia achar isso divertido.
— Está de brincadeira! O que vamos fazer em Londres? —
espantei-me.
— Vamos à casa de uma das minhas amigas que talvez possa
nos ajudar quanto a Da Vinci e Dürer.
— Em Londres?
— Sim. Vamos, Damien, afinal, com o Eurostar, não é assim
tão longe.
Dei de ombros.
— Vamos partir assim, sem nada?
— Como assim sem nada?
— Bom, sei lá. Se quer mesmo que sua amiga nos ajude,
vamos precisar levar documentos para ela! O manuscrito de
Dürer, por exemplo...
— Está aqui.
Ela esticou o polegar por cima dos ombros para me mostrar
sua mochila.
— A cópia da Gioconda?
— Está aqui.
— Bom — suspirei. — Estou vendo. François é que vai ficar
contente! Não há ninguém um pouco mais próximo que
possa nos ajudar com Da Vinci e Dürer?
— Não. Não tão bem quanto ela. E sei que ela fará de tudo
para me ajudar.
— É uma artista? — perguntei.
— Não. Melhor do que isso. E uma pessoa que, ao mesmo
tempo, faz uma especialização em matemática e um
doutorado em história da arte.
— Original. E o que faz em Londres?
— Pesquisas sobre o Renascimento. Vai poder nos ajudar.
Conhece bem esse período, fez seu trabalho de conclusão de
curso sobre a homossexualidade nas pinturas do
Renascimento.
— Ah, entendo. Uma amiga sua... Mas, espere — dei-me
conta de repente. — Essa é aquela pessoa de que você me
falou outro dia?
Sophie se voltou e me lançou um olhar zombeteiro.
— Falei dela para você?
— Sim... Uma pessoa que ensina matemática e história da
arte e por quem você estaria apaixonada...
Ela deu meia-volta e partiu na nossa frente, rindo. Fiquei
surpreso. Sophie estava nos levando para ver uma de suas
antigas namoradas. Em Londres. Realmente, não era o modo
ideal de terminar a tarde.
Levantei os olhos para Badji, confuso.
— London, baby, yeah! — soltei ironicamente. — Vem
conosco?
— Claro. Não vou largar do pé de vocês. Mas teremos de
informar Chevalier. E, como o senhor disse, acho que ele
não vai ficar muito contente...
Dei de ombros.
— Mulher quando quer uma coisa...
Badji aquiesceu, depois esperou que eu avançasse para seguir
meus passos. Paramos diante de uma cabine, Sophie
telefonou para Londres para avisar sua amiga, e depois,
seguindo os conselhos de Badji, foi comprar um chip para o
celular. Enquanto isso, liguei para François para avisá-lo de
que faríamos um bate-e-volta até Londres.
No carro, Sophie e eu tivemos bastante dificuldade para ves-
tir os coletes à prova de baías de Badji. O Safrane foi
transformado em provador, o que provocou gargalhadas fora
de hora, devido à gravidade da situação.
Pouco menos de uma hora depois, chegávamos à Gare du
Nord.
Ao sair do carro na praça Napoléon III, levantei os olhos
para a gigantesca fachada da Gare du Nord e suas pilastras
coríntias. Notei com prazer como a pedra neoclássica
opunha-se com elegância às estruturas de ferro fundido e
vidro. A mistura de estilos havia sido levada ainda mais longe
desde que eu deixara a França: acrescentaram à direita do
edifício um novo terminal.
Aliás, foi na direção desse novo galpão branco que Badji nos
conduziu. Provavelmente queria evitar a multidão que se
apressava diante da entrada principal. Quando chegamos à
altura do hotel Apollo, atravessamos a rua em meio aos táxis
e ao engarrafamento, a buzinas e ruídos estridentes, depois o
guarda-costas nos deixou passar à sua frente no novo
edifício.
Empurrei a porta de vidro. A noite não ia demorar a cair,
mas a imensa cúpula ainda estava inundada de luz. A ampla
vidraça no teto e os vãos de vidro por cima das portas
deixavam entrar os últimos raios de luz, que se refletiam nas
paredes e no chão branco como em pleno dia.
Dirigi-me para os primeiros guichês, bem à minha frente. À
meio caminho, Sophie me deteve.
— Espere. Aqui só vendem passagens para a Ile-de-France.
O nosso é daquele lado — disse-me indicando a parte mais
antiga da estação, à esquerda.
Aquiesci, depois me voltei bruscamente. Sophie me olhou
franzindo as sobrancelhas. Fiz-lhe sinal para avançar.
Colocamo-nos a caminho.
Houve um anúncio indistinto nos alto-falantes do hall
vizinho. A voz da mulher ressoou no espaço imenso da
estação. Virei novamente a cabeça. Sophie me interrogou
com o olhar. Não respondi. Aproximei-me dela e peguei seu
braço. Quando um franco-atirador tenta te matar numa
emboscada e você sabe que é objeto de muita cobiça e pouca
simpatia, tem-se a desagradável tendência a ver inimigos por
toda parte...
De repente, Badji, também olhando para trás, empurrou
nossas costas para que acelerássemos o passo, e então
entendi que estávamos com a mesma impressão. Eu não
estava sonhando.
Ainda nos seguiam.
Os corvos. Como conseguiam seguir tão facilmente nosso
rastro? Desde quando estavam nos seguindo? Eu não os havia
visto ao sair da casa de François. Nem no Centre Pompidou.
Percebi no olhar de Sophie que ela também passara a sentir a
presença deles. Estavam bem ali. Como uma ameaça, uma
tempestade que se arma. Uma ou duas silhuetas vistas com
muita freqüência. Um movimento na multidão. Cada vez
mais próximo.
Tinham me perdido na rua de Vaugirard, não me perderiam
ali. Eu não poderia ficar fugindo eternamente.
— Não sei quanto a vocês — soltei ao me virar para Sophie
—, mas estou começando a ficar cheio dessa caçada humana.
Sophie pareceu espantada. Provavelmente havia na minha
voz algo que ela jamais ouvira antes. A indignação.
— Stéphane — retomei sem parar de avançar —, você os
viu?
Ele aquiesceu.
— Quantos são?
— Dois — respondeu fazendo-me sinal para não me voltar.
— Tem certeza?
— Noventa por cento.
— O que vamos fazer?
Badji hesitou, deu uma olhada na direção deles, depois fez
uma careta.
— OK — disse segurando nós dois firmemente pelo ombro.
— O embarque do Eurostar é feito no andar de cima. Se nos
virem subir, saberão que vamos à Inglaterra. Precisamos
dispersá-los a qualquer custo.
-— Não agüento mais fugir — repliquei. — Você não pode
simplesmente dar um jeito neles?
— Não dá, né? Vamos, não temos tempo a perder. Quando
eu der o sinal, vocês correm a toda na direção das escadas
rolantes, bem na frente da brasserie. Precisamos desaparecer
o mais rápido possível no andar de baixo. Lá existem longos
corredores que dão para o embarque no RER Vamos tentar
essa jogada. Eles pensarão que faremos uma viagem local. Na
verdade, vamos logo voltar aqui por outra escada. E
arriscado, mas é preciso tentar.
— Vamos perder o trem — interveio Sophie.
— Mexam-se, eles estão se aproximando.
Ela aquiesceu.
— Gol — lançou Badji logo em seguida, empurrando-nos à
sua frente.
Sophie passou primeiro, e corri atrás dela. Sem nos voltar-
mos para trás, precipitamo-nos na direção das escadas
rolantes, introduzindo-nos entre os passantes assustados e as
fileiras de colunas verdes de ferro fundido que sustentavam a
imensa vidraça da estação. Corríamos os três, um atrás do
outro. Com um pouco de sorte, as pessoas poderiam nos
tomar por retardatários e não nos dar muita atenção. Mas
não por muito tempo. Os corvos certamente iriam chegar.
Sophie saltou por cima de uma mala. Contornou uma
pilastra. Ladeou um quiosque. Depois, escorregando um
pouco no chão de plástico branco, lançou-se nas escadas
rolantes, deixando a mão deslizar ao longo do corrimão de
borracha. Eu tinha dificuldade em segui-la.
— Afastem-se! — gritava.
Saltávamos os degraus de dois em dois. Badji me segurava
pelos quadris, como se tivesse medo que eu caísse. As
pessoas se afastavam à nossa frente, deixando-nos descer a
escada, perplexas, Ainda não sabíamos se os corvos estavam
nos seguindo, mas, se estivessem, não tardariam a aparecer
no alto da escada rolante. Não podíamos perder nem um
segundo sequer.
Ao chegarmos lá embaixo, Sophie voltou-se para Badji com
os olhos arregalados. Ele apontou o dedo para uma das
alamedas brancas que conduziam ao RER.
— As escadas, ali! — cochichou.
Pusemo-nos de novo a caminho. Corríamos com todas as
nossas forças. Nossos passos ressoavam no longo corredor
subterrâneo. Comecei a ficar sem fôlego quando chegamos
ao final dos degraus. Ao subirmos novamente para as
plataformas, corríamos um grande risco. Se não nos tivessem
seguido, daríamos de cara com eles.
— Rápido! Subam! Fiquem rentes à parede! — ordenou Badji.
E se por sorte nos tivessem seguido, não era para nos verem
subir novamente. Sophie se decidiu. Eu a imitei. Meu
coração batia a toda. Sentia gotas de suor escorrerem pelas
têmporas e pela nuca. Os últimos degraus foram os mais
duros. A fadiga e o medo se misturavam. Sophie foi a
primeira a chegar. Eu a vi girar várias vezes em torno de si
mesma, buscando-os com o olhar. Mas Badji não nos deixou
nem um segundo sequer.
-— Precisamos ir aos guichês. Andem depressa, mas não
corram mais. Não devemos chamar a atenção. Caminhem
discretamente os dois, vou ver se os dispersamos. Comprem
as passagens. Nos encontramos na frente da escada que leva
ao embarque no Eurostar.
Hesitei por um instante. Não estava certo de querer me
separar do negão, mas Sophie me pegou pelo braço e me
puxou para os guichês.
Passamos sob o painel com os horários das chegadas. Havia
muita gente. Pessoas que se cruzavam em todas as direções.
Viajantes que esperavam, sentados sobre suas bagagens ou
então no final das plataformas para receber alguém. Alguns
nos olhavam quando passávamos. Estávamos ensopados de
suor. Sem fôlego. Mas, numa estação, logo se recupera o
anonimato.
À medida que avançávamos até os guichês, ficava cada vez
mais difícil ver Badji. Eu me voltava regularmente, mas,
depois de algum tempo, perdi-o de vista.
Chegamos diante de um longo balcão com os guichês de
venda e sua fileira de vidraças. Sophie se inclinou até uma
fresta do vidro
— Três passagens de ida e volta para o próximo Eurostar, por
favor.
Fiquei de costas para Sophie e apoiei os cotovelos na borda
para olhar ao redor enquanto ela comprava as passagens.
Esperava ver os dois corvos surgirem entre duas colunas
verdes. Atrás dos outros usuários ou dos enormes vasos de
flores, dispostos na frente do vendedor de jornais. Mas não.
Já não estavam lá. O plano de Badji dera certo. Era o que
parecia.
Eu ainda estava perscrutando a multidão quando Sophie
bateu em meu ombro
— Partida em 22 minutos — disse-me mostrando as passa-
gens. — Volta para amanhã. Temos que nos apressar.
— Perfeito. Vamos encontrar Badji.
Agilizei para dar meia-volta, mas logo vi o terror nos olhos
de Sophie. Como um choque elétrico. Nem tive tempo de
lhe perguntar o que estava acontecendo, ela me pegou pela
mão e me arrastou no sentido contrário. Fiquei sem fôlego.
Mas comecei a correr atrás dela. Por instinto. E logo entendi.
Sophie derrubou uma mulher de cerca de quarenta anos sem
nem mesmo pedir desculpas. A mulher caiu no chão e por
pouco não passei por cima dela. Quase perdendo o
equilíbrio, segurei na ponta do guichê à minha esquerda. Ao
me recompor, dei uma olhada para trás. E o que vi já não
podia me surpreender. O corvo não estava longe.
Sophie corria mais à frente. Hesitei por um segundo.
Conseguiríamos escapar dele? Até onde poderíamos fugir?
Mas se eu decidisse ficar para enfrentá-lo, não teria chance
alguma. Aqueles caras estavam prontos para me matar. E o
que tinham provado várias vezes. De punhos cerrados,
precipitei-me para alcançar Sophie.
As pessoas começaram a gritar na estação. O corvo devia
derrubar mais gente do que nós. Sophie corria à minha
frente, com as passagens na mão. Lançava olhares rápidos na
minha direção para verificar se eu a seguia. E, de fato, eu
corria bastante. Mas ainda não conseguia ver aonde aquilo ia
nos levar.
O condutor de um longo carro elétrico, que vinha em senti-
do inverso, buzinou ao nos ver correr contra ele, mas Sophie
não mudou de direção. Acelerando o ritmo da sua corrida,
passou na frente do veículo sem nem mesmo dirigir um
olhar ao motorista enraivecido. De repente, virou para a
esquerda. A saída da estação. Passou correndo por uma das
grandes portas de vidro. Deslizei atrás dela. O ar fresco bateu
em meu rosto. O corvo se aproximava. Estava a poucos
passos de mim. Esperei um segundo e, quando estava quase
me alcançando, bati a porta com violência. Não conseguiu
parar a tempo e entrou com cara e tudo. Uma breve pausa.
Pus-me a correr na calçada. Mas, atrás de mim, adivinhava
que ele logo voltaria a se levantar.
A noite já havia caído. Mas a rua não esvaziava. A calçada
formigava de pedestres. Sophie se precipitou para a entrada
de uma passagem subterrânea. Má idéia, pensei com meus
botões. Mas não tive tempo de dissuadi-la. Ela desceu os
degraus à minha frente. Corri atrás dela. Não havia muita luz.
Porém, depois de ter pulado alguns degraus, percebi que
aquela passagem estava fechada. No final dos degraus havia
três portas trancadas. Era o que eu temia. Sophie desacelerou
à minha frente.
— Merdaaa! — exclamou.
Parei na metade dos degraus. Sophie se voltou. Bastou-me
ver seus olhos para compreender o que se passava atrás de
mim. De todo modo, eu o ouvira chegar. Ele estava lá. O
corvo. Em cima de nós. No alto dos degraus.
Voltei-me lentamente e o vi, negra estátua que se recortava
na Paris noturna. Um revérbero atrás dele desenhava um
halo de luz em volta da cabeça. Não dava para ver seu rosto.
Mas eu podia jurar que estava sorrindo. Enfiando a mão no
bolso interno do sobretudo, colocou um pé no primeiro
degrau.
Desci recuando. Instintivamente, afastei os braços. Não sei
bem se foi um gesto de capitulação ou uma tentativa ridícula
de proteger Sophie atrás de mim. Engoli a saliva. Ninguém
podia nos ver. Eu queria gritar, mas não encontrava forças.
Estava esgotado e aterrorizado ao mesmo tempo. Dessa vez
ele não nos ia perder de vista.
Lentamente, vi sua mão sair do bolso. Deu mais um passo.
Seus ombros largos pareciam crescer a cada degrau. Depois,
o metal preto do revólver cintilou diante da gola do longo
sobretudo. Pensei nos coletes à prova de bala que estávamos
vestindo. Nunca iam conseguir nos proteger daquele
carrasco. Ele não iria embora enquanto não estivéssemos
mortos. Não dessa vez. Ia mirar em nossas cabeças. Não
havia dúvida.
De repente, surgiu uma sombra atrás dele. Um ruído seco.
Em seguida, a sombra se transformou numa forma que
apareceu em suas costas e ele desmoronou nos degraus. Seu
corpo rolou à nossa frente. Afastei-me e o vi cair até
embaixo, batendo contra cada degrau para finalmente parar
diante dos pés da Sophie. Ela deu um passo para trás e soltou
um grito. Levantei a cabeça e reconheci Badji.
Ele ficou imóvel por um segundo, depois desceu correndo
até nós.
— Sinto muito pelo atraso — murmurou. — Tive uns
probleminhas com... o colega dele.
Bateu em meu ombro, como para verificar se eu ainda
agüentava firme, depois estendeu a mão a Sophie, que
parecia paralisada.
— Vamos, venham, já não há o que temer.
— Eu sabia que você ia acabar dando um jeito neles — disse
eu.
Sophie deu um longo suspiro, saltou o corpo imóvel do
corvo e subiu os degraus atrás de Badji.
-— Vamos deixá-lo aí? — perguntei perplexo.
— Quer levar a peça até a seção de achados e perdidos? —
ironizou o guarda-costas. — Vamos, depressa. Dei uma
pancada nele, não vai demorar a voltar a si.
Eu estava para segui-los, mas hesitei por um instante. O
corvo já não se movia. Talvez estivesse morto. Abaixei-me e
deslizei a mão no bolso do seu sobretudo. Peguei sua carteira
e alcancei os dois.
O trem partiu às 19h34. Por pouco não o perdemos.
Mais uma vez, o amigo de François me salvara a vida.
Durante a primeira meia hora, não consegui falar. Ainda
estava em estado de choque, o dia havia sido louco demais
para mim. Sophie também ficou em silêncio. Só nos
olhávamos. Incrédulos. Ambos no mesmo barco.
Adivinhando os pensamentos um do outro. Dividindo a
mesma angústia, o mesmo cansaço. Nervoso. E, no entanto,
ainda tínhamos o que enfrentar. Autocontrole.
Mais tarde, quando a França do lado de fora havia
desaparecido por completo sob o véu negro da noite, decidi
falar:
— Obrigado, Stéphane.
Sorri para ele. Balançou a cabeça, mas tinha o ar sério.
Inquieto. Provavelmente se perguntava que outra surpresa
nos esperava. Ou talvez se perguntasse se estávamos
protegidos naquele trem.
— Então, e a carteira? -— perguntou Sophie voltando-se para
mim.
Aquiesci. Finalmente tínhamos um indício. Um meio de
identificar os corvos. Tirei-a do fundo do meu bolso, lancei
um olhar para os bancos vizinhos para verificar se não
tínhamos atraído a atenção dos outros passageiros, depois a
abri sobre os joelhos.
Encontrei documentos de identificação. Italianos. Paulo
Granata. Nascido em 1965. Estendi-os a Badji por cima da
mesinha que nos separava.
— Acha que são autênticos?
Ele deu uma olhada, depois deu de ombros.
— Acho que sim.
Não havia muita coisa, além disso, na carteira. Um cartão de
crédito com o mesmo nome dos documentos, alguns
recibos, um mapa de Paris, tíquetes de metrô... Mas também
havia um cartão que me saltou aos olhos. Um pequeno
cartão de visita em velino da melhor qualidade. Sem nome,
só com endereço. No Vaticano. E, na parte superior, um
símbolo que reconheci sem dificuldade. Uma cruz sobre um
sol.
Mostrei o cartão para Sophie. Ela fez uma careta.
— Isso só confirma o que já sabíamos.
Concordei. Era verdade. Só confirmava. Confirmava que
realmente estávamos na merda.
O silêncio se instalou novamente. Vi Sophie fechar os olhos.
Badji anunciou que ia pegar um café no vagão seguinte. Ele
começava a relaxar.
Encostei a cabeça na janela à minha esquerda. A paisagem
noturna que desfilava se confundia com o reflexo do interior
do trem no vidro. Eu não estava no meu estado normal.
Grogue, moído, como depois de um longo dia de exercícios.
As imagens das últimas 24 horas voltavam à minha mente
em cascata. Misturavam-se, vagas, imprecisas. Tudo se
acelerava. Era como se eu tivesse sido apanhado por um
tornado.
Tentei não pensar mais nisso, depois adormeci antes mesmo
que Badji voltasse.
Às 21h28, hora local, o trem entrou na estação de Waterloo.
Embarcar num trem em Paris e descer em Londres menos
de três horas depois, para um expatriado como eu, tinha algo
de inacreditável. Mas isso já não era um problema para mim.
A amiga de Sophie dissera que podíamos desembarcar em
sua casa a qualquer hora. Assim que chegamos a Waterloo,
tomamos logo um táxi.
Eu não visitava Londres havia anos — minha mãe me levara
lá duas ou três vezes —, e o trajeto pela cidade nos permitiu
admirar a capital sob sua veste noturna. O espetáculo era
magnífico e quase me fez esquecer as sucessivas desventuras
daquele dia horrível. No fundo, completava perfeitamente o
quadro surrealista em que tínhamos a impressão de sermos
apenas três pequenas pinceladas dadas por acaso.
O grande táxi preto saiu da estação de Waterloo, e o túnel
azul do Eurostar, como um longo cordão umbilical que unia
a Inglaterra à França, afastou-se lentamente atrás de nós. Ao
nos aproximarmos do Tâmisa, vimos desenhar-se a grande
roda gigante branca do London Eye, que girava lentamente e
levava seus visitantes aos céus como um gigantesco moinho
de água deslizando no rio. As pequenas cápsulas de vidro de
onde os espectadores se extasiavam brilhavam como ampolas
de néon no céu violeta.
O táxi entrou na Waterloo Bridge. Badji e Sophie também se
maravilhavam em silêncio. Virei a cabeça para a direita, e
meu olhar pousou um instante, ao longe, na cúpula branca
da catedral Saint-Paul, sustentada por um altivo colar de
colunas coríntias. Depois deixei meus olhos se perderem nas
curvas do Tâmisa. O longo corredor preto se lançava por
entre os imóveis iluminados pela luz sépia dos projetores e
dos postes.
Mais ao longe, como uma miragem no horizonte do deserto,
entrevia-se Canary Wharf, o novo pólo financeiro londrino,
um bosque de prédios de vidro, paraíso dos valores
agregados e dos pequenos acionistas. O táxi passou por uma
lombada no meio da ponte. Fechei as pálpebras por um
instante. Quando reabri os olhos, descobri a City e a sede dos
reis, Westminster. A velha Londres, uma cidade de ouro.
— Querem que eu encontre um hotel enquanto conversam
com sua amiga? — perguntou Badji.
— Não, não, não se preocupe, Jacqueline certamente irá
encontrar alguma coisa para nós.
O táxi chegou do outro lado do rio e virou à esquerda, na
The Strand, uma das mais antigas ruas de Londres, depois foi
até os leões gigantes da Trafalgar Square. Sorri. Tinha a
impressão de revisitar Londres em sonho. Dava quase para
imaginar a mão da minha mãe segurando a minha, sob a
mesma noite de primavera, naquela mesma praça. Era como
viajar nas minhas lembranças ou numa caixa de velhos
cartões-postais. As pombas, os leões, as colunas de Nelson, o
grande chafariz e depois aquelas nuvens de turistas, com as
mãos nos bolsos e os ombros levantados para espantar o frio
da noite. Como atraído pela luz dos néons e dos grandes
painéis luminosos da Coca-Cola e do Burger King, que
invadiam fachadas inteiras, o táxi encaminhou- se rumo ao
Picadilly Circus. O barulho do motor era tão presente e os
solavancos eram tão constantes que tínhamos a impressão de
ir muito rápido, e eu me perguntava como os freios podiam
parar uma massa tão grande, lançada na Regent Street como
um obus.
— Realmente é uma cidade magnífica — disse voltando-me
para Sophie.
— É simpática para passar um fim de semana, mas o ano
inteiro...
— É o que sempre se diz das cidades em que não se viveu! —
repliquei zombando.
— Por quê? Por acaso já viveu em Londres?
— Não, mas quando deixei Paris aprendi que é possível viver
em outros lugares.
— Eu nunca disse que não poderia viver em outros lugares...
Simplesmente não em Londres.
— Por quê?
— Cara demais, inglesa demais, artificial demais.
Caí na risada.
— Sinceramente, censurar a capital da Inglaterra por ser
inglesa demais... Mas então, onde gostaria de viver se não
fosse em Paris?
— Sabe, faço mais o estilo nômade. Gosto de viajar. Atraves-
sar os países. Os desertos. Gosto do norte da África, do
Oriente Médio... As paisagens nesses lugares estão muito
mais próximas do homem do que as nossas grandes cidades
ocidentais. Aqui construíram imóveis que já não têm a nossa
cara.
Dei de ombros.
— Que estranho. Eu já tenho a impressão de encontrar meu
lugar nessas grandes cidades ocidentais. Não são ruins. Veja
só...
O táxi estava atravessando Oxford Circus.
— ... Olhe toda essa gente. Noite e dia. Sempre tem gente!
De dia, vão às grandes lojas, Selfridges ou Harrod's. À noite,
passeiam, encontram-se ou se ignoram. Mas sempre tem
gente. E isso me tranqüiliza. Adoro.
Ela me olhou sorrindo.
— Sim, eu sei — disse colocando a mão sobre meu joelho.
E não era condescendência. Não. Em seu olhar, vi que estava
sendo sincera. Ela sabia. Sabia que eu precisava de gente, de
sentir o mundo à minha volta. Não me sentir sozinho.
Alguns minutos mais tarde, o táxi nos deixou diante do pré-
dio da tal amiga.
Se precisei de alguns dias para ter certeza das preferências
sexuais da Sophie, as da sua amiga não me deixavam
nenhuma dúvida. O apartamento de Jacqueline Delahaye era
cheio de livros sobre homossexualidade, de quadros bastante
sugestivos, e uma magnífica bandeira com as cores do arco-
íris pendia do teto do corredor de entrada.
Em todo caso, a amiga de Sophie não era uma mulher
comum. Extremamente agitada, ao mesmo tempo refinada e
bagunceira, cínica e carinhosa, era uma personagem sem
igual. Além disso, era muito simpática, vivaz, sempre com
uma resposta pronta, e visivelmente brilhante. Todavia, eu
não conseguia imaginar que ela e Sophie tenham podido um
dia ter um caso, mas me dei conta de que isso não me
incomodava tanto. Jacqueline era uma pessoa de bem e
ponto final.
No entanto, ela deve ter percebido que eu não estava
completamente à vontade com tudo isso e talvez tenha
compreendido que eu sentia por Sophie muito mais do que
amizade, pois me olhava com olhos cheios de malícia e,
quem sabe, até mesmo de compaixão.
Era muito mais velha que Sophie, mas tinha em seus olhos
uma juventude imutável. Usava grandes óculos de tartaruga,
um pesado e largo vestido de lã marrom e uma longa camisa
florida amarrotada. Em volta do pescoço, um lenço branco
que descia até as costas. Parecia uma professora de história
dos anos 70 e se integrava perfeitamente ao look e ao
espírito londrino.
— Então — disse após servir a todos um copo de brandy —-,
que história é essa? O que pode ter trazido a Londres esse
trio da pesada?
— Precisamos que você nos fale sobre a Gioconda e
Melancolia — respondeu Sophie sorrindo.
Ela morava num apartamento de três quartos no centro de
Londres, num imóvel antigo, onde nenhuma parede parecia
paralela. Acho até que nunca vi um apartamento numa
desordem tão gigantesca. Até o porão do meu pai em Gordes
parecia arrumado em comparação com aquilo. Já não se viam
os móveis, de tanto que estavam cobertos por uma bagunça
que evocava camadas sedimentares. Uma pequena televisão
ameaçava despencar do alto de uma pilha de revistas. As
prateleiras de uma grande biblioteca estavam transbordando
com várias fileiras de livros comprimidos uns contra os
outros, sob uma espessa camada de poeira, por trás de
amontoados de objetos diversos e variados, porta-retratos,
caixinhas, estatuetas africanas, despertador, canetas, xícaras,
telefone, walkman, máquina fotográfica, pôsteres entubados
e uma porção de utensílios estagnados e não identificados...
A sala inteira era um desafio às leis da gravidade. Por toda
parte, objetos repousavam em equilíbrio sobre outros objetos
que, por sua vez, provavelmente só não caíam por magia
vodu de um dos grandes feiticeiros, cujas máscaras estavam
penduradas nas paredes da entrada.
Lancei um olhar zombeteiro ao pobre Badji, que parecia
pouco à vontade no meio daquela bagunça indescritível. De
braços cruzados, não ousava sentar-se e se impacientava
num canto. Não havia assento em parte alguma para um
armário como ele.
— O grandalhão aí não quer mesmo uma cadeira? —
perguntou Jacqueline apontando o guarda-costas.
— Vou pegar uma na cozinha — respondeu Badji sorrindo.
Saiu balançando a cabeça.
Nós três estávamos cansados e com fome, mas não tínhamos
ido até lá de férias, e só uma coisa contava: avançar em nossa
investigação. Decidi animar a conversa:
— Sophie me disse que a senhora estudou matemática e arte
ao mesmo tempo — disse eu com educação, virando-me
para Jacqueline. — É espantoso!
— Nem tanto.
— Seja como for... Como é possível passar da matemática
para a história da arte?
Badji voltou com uma cadeira e se instalou diante de nós.
Jacqueline lhe dirigiu um olhar incomodado. Havia uma
tensão no ar. A amiga de Sophie estava visivelmente pouco à
vontade por ter um gorila em seu apartamento...
—- Bom, fiz dois anos do pós-segundo grau científico em
matemática — respondeu. — Depois, fiz uma especialização
em matemática para finalmente perceber que não podia ir
adiante nesse caminho. Sempre tive uma relação muito
especial com a matemática...
— Como assim?
— É difícil explicar... Gosta de música?
— Gosto.
Sophie me lançou um olhar zombeteiro.
— Damien é fa do Deep Purple.
— Perfeito — respondeu Jacqueline. — Quando escuta uma
canção, chega a ter arrepios a ponto de ficar com os pelos
eriçados?
— Bom, sim — confessei timidamente, bebendo um gole do
meu brandy.
— Pois bem, por mais estranho que possa parecer, é o que
sinto quando resolvo um grande problema de matemática.
— Ah, é?
— É. Isso o surpreende?
— Bom, sabe, para mim, a matemática... Chegava a me dar
alergia.
— Que pena. A matemática é como uma religião para mim. E
difícil que alguém entenda, eu sei... Mas, sabe, a matemática
é tão mal ensinada nas escolas que as pessoas se esquecem
que ela é pura magia. Pegue a Oferenda musical, de Bach.
Essa música é um exemplo maravilhoso de simetria bilateral.
Fiz uma careta estúpida.
— Pode explicar melhor?
— E uma espécie de cânone, se preferir. Os dois pentagramas
dessa música são simétricos um ao outro.
— Quer dizer que cada pentagrama é o oposto exato do
outro? — perguntei intrigado.
— Isso mesmo. Uma espécie de palíndromo musical. Isso
pode parecer completamente artificial, é matemática pura, e,
no entanto, a música é suntuosa! E, na verdade, nada tem de
surpreendente. No fundo, as leis da harmonia são apenas leis
matemáticas e físicas. O fato de uma quinta ressoar tão
perfeitamente com sua tônica não é uma questão de gosto,
de cultura ou de convenção. E uma lei natural. As duas
freqüências se harmonizam, se combinam e ressoam
naturalmente por mais tempo quando são tocadas juntas. A
natureza é matemática, e a natureza é estética... A arte,
como a matemática, nos permite perceber o ritmo das coisas,
os vínculos que unem todos os nossos sistemas. Entende?
Ela estava completamente empolgada, e, mesmo que eu não
tivesse certeza de entender aonde ela queria chegar, achei
tudo isso encantador.
— Matemáticos e artistas têm o mesmo comportamento.
Buscamos interpretar o mundo. Descobrir as rotinas, as
redes, a estrutura secreta das coisas.
— Concordo — afirmei.
— Resumindo, nessa época comecei a entrever uma ponte
ligando a matemática e a estética. Um vínculo evidente. E
em vez de fazer uma simples tese matemática, decidi
interromper os estudos dessa matéria e retomar os de
história da arte. No início me interessei pelo Renascimento
e, em particular, por Leonardo da Vinci.
— Vem bem a calhar — disse eu.
— Sabem o que Da Vinci dizia? Non mi legga chi non e
matemático.
— Não me leia quem não for matemático — traduziu Badji,
imóvel em sua cadeira.
Jacqueline lançou-lhe um olhar surpreso.
— Exato. Em resumo, se conhecerem um pouco da vida de
Leonardo da Vinci — prosseguiu —, a idéia de que há uma
relação evidente entre a arte e a matemática não lhes
parecerá assim tão estranha...
— Não, claro — concedi. — Mas aí estamos falando do sécu-
lo XVI. Os matemáticos da época tinham um quê romântico.
Já não é o caso hoje.
— Está redondamente enganado! Foi justamente esse o tema
dos meus estudos, meu caro! Os sistemas do caos na arte, na
filosofia e na matemática.
— Ah?
Ela deu de ombros com ar despeitado.
— A teoria do caos! E a maior revolução da física e da
matemática depois da relatividade e da mecânica quântica.
Seja como for, já ouviu falar da teoria do caos?
— Claro...
— Há muito tempo os cientistas tentam resolver problemas
cotidianos aparentemente insolúveis por serem
descontínuos e desordenados.
— Tipo?
-— Como se formam as nuvens? Como se explicam as
variações meteorológicas? A que lei obedece o trajeto da
fumaça que sai de um cigarro?
— Bom, ao acaso, ora bolas.
— Não! Ao caos. Em linhas gerais, uma minúscula
modificação, o menor desvio bem no início de um sistema
pode provocar no final deste uma mudança gigantesca.
— Entendo. Um pequeno imprevisto, e tudo pode mudar.
Daí aquela famosa história do batimento de asas da borboleta
— aquiesci.
— Exatamente. O batimento das asas de uma borboleta no
Japão gera no ar variações suficientes para influenciar a
ordem das coisas e provocar, por exemplo, uma tempestade
no mês seguinte nos Estados Unidos.
— É bonito.
— Não é?
-— E qual é a relação com a arte?
— Leia minha tese!
— Com prazer, mas talvez não esta noite...
— A beleza do caos reside na sua aparência enganosa. O caos
parece desorganizado e não obedecer a nenhuma lei. E, no
entanto, tem uma ordem inerente, a da natureza. E a arte
obedece às mesmas leis. E o que tentei demonstrar.
— Olhe, sinceramente, vou ler sua tese com prazer.
— Mas não é isso o que os traz aqui...
Sophie, que provavelmente se impacientava, concordou.
— Então — retomou a historiadora-matemática voltando-se
para Sophie —, a Gioconda e Melancolia... Não quer ser um
pouco mais precisa, porque realmente não sei o que poderia
lhe dizer sobre a Gioconda que já não tenha sido repetido
um bilhão de vezes...
— Você acha que a Gioconda poderia encerrar um mistério
milenar? — arriscou Sophie com uma voz insegura.
— Está falando sério?
— Estou — replicou Sophie. — Do contrário, não teria
atravessado o Canal da Mancha. Fizeram um alarde em torno
desse quadro, mas, na sua opinião, existe de fato um sentido
oculto ou algo do gênero?
— Como é que posso saber? Espere, se a Gioconda tivesse um
sentido oculto e único, teriam-no descoberto há muito
tempo, dado o número de horas que os historiadores e os
especialistas passaram em cima dela...
— De todo modo, há algo especial nessa pintura! — insistiu
Sophie.
— Mas não é para vir com uma bobagem dessas que você fez
todo esse trajeto depois de a gente ficar sem se ver por oito
meses! — retorquiu nossa anfitriã.
Eu não conseguia saber se ela estava realmente furiosa ou se
isso era apenas um joguinho entre as duas amigas.
— Jacqueline — retomou Sophie —, deixe eu explicar:
estou... estou fazendo um documentário sobre uma relíquia
que viria de Jesus. E uma relíquia muito misteriosa, a
respeito da qual Albrecht Dürer escreveu um longo texto.
— Dürer escreveu montanhas de textos. Entre eles, um tra-
tado sobre a perspectiva que é absolutamente notável...
— Sim — interrompeu Sophie. — Mas o texto de que estou
falando diz respeito à Melancolia, que Dürer tinha dado a seu
amigo, o humanista Pirkheimer, e que depois desapareceu...
— Ah, sim, Panofsky e Saxl falam dele num artigo sobre
Dürer. Eu achava que esse manuscrito fosse pura invenção...
— Não. Ele existe de fato. E, justamente, o pai de Damien o
encontrou.
Sophie colocou a mão sobre a mochila, a seu lado.
— Ele está aí? — perguntou Jacqueline, incrédula.
— Sim.
— Deixe-me ver...
— Daqui a pouco. Primeiro, responda às minhas perguntas.
Ao que parece, há uma relação misteriosa entre a Melancolia
de Dürer, a Gioconda de Da Vinci, e uma relíquia que teria
pertencido a Jesus. Nada, além disso. Encontramos no
âmbito da nossa pesquisa...
— Pesquisa que precisa de um guarda-costas? — interveio
Jacqueline apontando para Badji.
— Pesquisa que precisa de um guarda-costas, SIM! Se você
me conhece, já sabe a que ponto sou séria. Não sou
absolutamente do tipo que pega um guarda-costas de
brincadeira, OK? Então, continuando — retomou Sophie —,
no âmbito da nossa pesquisa, encontramos uma cópia da
Gioconda com cerca de trinta pontos circundados a lápis.
Temos certeza de que isso tem uma relação com a nossa
história da relíquia, porque Dürer fala disso em seu texto. Ele
explica claramente que Leonardo da Vinci... trabalhava sobre
esse mistério. Em suma, gostaríamos de saber primeiro se é
possível que a Gioconda encerre um mistério dessa natureza.
— Que história maluca! — exclamou a amiga de Sophie. —
Você caiu numa farsa gigantesca, pobrezinha...
— Não, garanto a você que é sério. Por favor, diga-me algu-
ma coisa que possa me ajudar! Reflita!
Jacqueline deu um longo suspiro. Pegou seu copo de brandy
escondido em meio a uma selva sobre a mesinha de centro
da sala, depois afundou no sofá coberto de roupas, cinzeiros
e outras revistas.
— Bom, vamos lá — começou num tom exasperado ao acen-
der um cigarro. — Primeiro, histórias e datas. A Gioconda
foi pintada entre 1503 e 1507. É uma das últimas obras de
Da Vinci, que morreu cerca de quinze anos mais tarde, em
1519. Quanto à Melancolia, se bem me lembro, a gravura de
Dürer data de 1515...
— 1514 — corrigiu Sophie.
— E Dürer morreu em 1528. Ou seja, igualmente cerca de
quinze anos mais tarde. Pronto, o enigma de vocês está
resolvido, obrigada, até mais ver!
As duas amigas caíram na gargalhada ao mesmo tempo.
Contentei-me em sorrir para não ofendê-las e dirigi a Badji
um olhar de espanto.
— Bom — retomou Jacqueline ao ver que eu não gargalhava.
— Agora, vamos falar sério. Sim, evidentemente a Gioconda
tem algo misterioso, mas não no sentido que vocês estão
buscando. Tem algo misterioso porque possuía um
significado particular para Leonardo da Vinci, e nunca se
descobriu o que era. A tal ponto que, embora tenha sido
uma encomenda de Juliano de Médici, e Francisco I tenha
proposto comprá-la, Da Vinci recusou separar-se dela, e a
pintura ficou escondida em seu ateliê até que morreu.
— Interessante — murmurou Sophie.
— Sim, mas não há nada de esotérico nisso. Simplesmente
havia muito tempo que Da Vinci estava em busca da
perfeição e provavelmente sabia que a Gioconda era sua obra
mais bem- acabada, para não dizer perfeita.
— Se você está dizendo — interveio a jornalista, talvez tão
cética quanto eu.
Jacqueline levantou o olhar para o teto com um ar
decepcionado.
— Já imaginaram milhares de explicações diferentes sobre a
especificidade estranha desse quadro, minha querida!
— Nada sério, tem certeza? — insistiu Sophie.
— Como saber? Seria a identidade secreta da modelo? Alguns
historiadores supõem que Da Vinci teria feito seu auto-
retrato camuflado no lugar de uma mulher imaginária. Não
acredito nem um pouco nisso, mas é divertido quando se
fica sabendo que Da Vinci era a maior bichona!
— Sério? — indignei-me estupefato.
— Ora, vamos, todo mundo sabe disso! Os historiadores
puritanos não pararam de imaginar meios de desmentir os
boatos, mas a verdade é que Da Vinci era gay e fim de papo.
Ele até foi citado por ocasião de um processo por sodomia
num rapaz de 17 anos, e se dessa vez foi liberado, três anos
mais tarde passou seis meses na prisão por "má conduta".
—- Juro que não sabia — confessei desconcertado.
— Pois é, muitas vezes se omite o fato em sua biografia...
Engraçado, não é? De todo modo, basta dar uma olhada nos
seus códices e ler as anotações ao lado dos seus desenhos
anatômicos para não ter mais dúvidas!
— Bom, que seja — interveio Sophie. — Mas e daí?
— Pois bem, talvez seja esse o mistério de vocês... Em todo
caso, é verdade que Da Vinci gostava particularmente desse
quadro.
— E a senhora não sabe nada de especial sobre como foi
produzido? — arrisquei perguntar.
— Eu poderia lhe falar horas a respeito da construção
geométrica da Gioconda, do olhar, do sorriso, da posição das
mãos. Mas não vejo em que isso os ajudaria. Talvez seja
preciso que me tragam essa cópia com os circulados, e aí
talvez eu veja alguma coisa que vocês não viram. O que mais
posso lhes dizer? O que é interessante a respeito da
Gioconda são os vernizes. Da Vinci pintava a óleo e
adicionava um pouco de querosene bastante diluído, o que
lhe permitia dispor várias camadas de cores transparentes.
Desse modo, conseguiu refazer indefinidas vezes o rosto, em
busca da perfeição. É o que ele chamava de sfumato.
Lancei um olhar para Sophie. Talvez essa fosse uma pista
interessante. Provavelmente naquele instante partilhávamos
do mesmo feeling. Da mesma premonição.
— Já, já vou lhe mostrar a cópia — prometeu Sophie. —
Talvez as marcações a lápis feitas sobre ela digam mais a você
do que a nós. Mas primeiro vamos falar da Melancolia. O que
pode nos dizer sobre a figura?
— Bem, essa é outra história. Pois se trata de uma gravura
simbólica, e que não é das mais simples! Não há um só
centímetro quadrado nessa gravura que não esteja repleto de
simbologia. Em resumo, imaginem as milhares de
interpretações possíveis que os historiadores e os críticos
fizeram desde que ela existe.
— Mas falando assim, de pronto, o que a senhora pode nos
dizer? — insisti. — O que representa aquele anjo...
— Não, não é um anjo! — corrigiu Jacqueline levantando os
olhos. — É uma alegoria. A alegoria da melancolia,
evidentemente! Aliás, o título exato da gravura não é
Melancolia, mas Melancolia I. E, acreditem, também
disseram uma porção de bobagens sobre esse I. Mas vamos
em frente. A personagem é então uma alegoria, tem todos os
atributos da Melancolia clássica, até o cachorro que dorme a
seus pés, e todos os símbolos que se referem a Saturno,
como o morcego, a balança e o braseiro dos alquimistas, que,
se bem me lembro, queima em segundo plano.
Sophie tirou uma cópia da gravura que tinha na mochila e a
estendeu à amiga.
— Obrigada. Isso mesmo, e aqui, vejam, muitos elementos
levam a pensar na interpretação cristã neoplatônica da
criação como ordem matemática...
— Como? — interrompi. — Sem palavras difíceis, por favor!
Sejamos simples... Sinto muito, mas sou facilmente alérgico
ao jargão dos críticos de arte.
Ela sorriu.
— Digamos que, como Leonardo da Vinci ou Jacopo de
Barbari, Albrecht Dürer achava que havia uma estreita
relação entre a geometria e a estética. A arte já se encontra
na natureza, na beleza das leis naturais, na harmonia, na
geometria, na aritmética...
— Está bem! Está bem! Vou ler sua tese! Mas, em termos
gerais, qual o sentido global da gravura?
— Em termos gerais, a Melancolia é a constatação do fracasso
da erudição profana. Está me acompanhando?
— Vagamente...
— Seja qual for nossa erudição, seja qual for nosso
conhecimento das artes, como as sete artes liberais,
representadas nessa gravura pela escala de sete barras, bem
aqui, nunca poderemos alcançar o conhecimento absoluto.
Olhei para Sophie. De repente, o vínculo com o nosso enig-
ma parecia evidente. O conhecimento absoluto. Não seria
essa a mensagem de Jesus? Não seria Jesus um iniciado,
aquele que recebera justamente tal conhecimento?
— Eu poderia fazer para vocês uma análise simbólica por
horas — retomou a historiadora mostrando-nos a gravura —,
mas o que é mais interessante é o vínculo entre Da Vinci e
Dürer. Pois aí é que reside um verdadeiro mistério.
Jacqueline apagou o cigarro no cinzeiro colocado sobre o
sofá e deu um passo em nossa direção.
— Não se sabe se chegaram a se encontrar — explicou. —
Muitas vezes se chamou Dürer de "Leonardo do Norte",
porque sua obra foi muito inspirada por Da Vinci. Para dizer
a verdade, Dürer era fascinado pelo trabalho dele. Copiou
especialmente a série de nós vincianos da Accademia e
continuou algumas das pesquisas sobre a natureza e as
proporções humanas feitas por Da Vinci. Também se sabe
que se interessou pelo compasso de Da Vinci, que permitia
traçar figuras ovais, para não falar do célebre perspectógrafo,
que Dürer representa em quatro gravuras e que
originariamente havia sido desenhado por Leonardo. Por
exemplo, o poliedro que se encontra em Melancolia é uma
homenagem a Da Vinci!
— Realmente, são muitas as referências...
— Há um quadro de meados do século XVI, portanto, feito
cerca de trinta anos após a morte de ambos, em que vemos
Leonardo representado entre Ticiano e Dürer.
— Isso significa que realmente se conheceram? —
questionou Sophie.
— Não dá para ter certeza, mas é provável. O quadro é
atribuído ao ateliê de Agnolo Bronzino. Não se sabe se se
trata simplesmente de uma pintura em homenagem a esses
três personagens ilustres ou se faz referência a uma cena que
realmente aconteceu. Nesse quadro, Da Vinci está voltado
para Dürer e fala com ele. Está de costas para Ticiano. Seria o
caso de dizer que não está nem aí para ele e que está muito
mais interessado em Dürer. Faz um gesto meio estranho
com as mãos, como se explicasse algo ao pintor alemão.
— Interessante.
— Em todo caso, o que sabemos — retomou — é que Dürer
foi à Itália e, numa de suas cartas, parece ter feito certa
referência a Da Vinci. Esperem, vou verificar isso.
Ela se levantou e desapareceu no quarto ao lado. Lancei um
olhar inquieto para Sophie.
— Acha que consegue encontrar alguma coisa nessa
bagunça? — cochichei.
A jornalista sorriu.
— Acho que sim, não sei como, mas acaba conseguindo se
encontrar...
Jacqueline apareceu alguns instantes mais tarde em seu gros-
so vestido de lã com um enorme volume aberto nas mãos.
— Aqui está. É uma carta de outubro de 1508. Dürer diz que
pretende ir de Veneza a Bolonha. Cito: "Por amor à arte da
secreta perspectiva, que alguém se dispôs a me ensinar."
Lançou-nos um olhar cheio de orgulho.
— Corto o saco se não é de Da Vinci que ele está falando!
Dei uma risada.
— Não será necessário — interveio Sophie. — Acreditamos
em você! Em suma, há de fato uma relação entre Dürer e Da
Vinci, e até mesmo entre Melancolia e Da Vinci, é isso?
— Inegavelmente — confirmou a historiadora. — Mas você
precisa me deixar dar uma olhada no seu manuscrito e na sua
Gioconda.
— Sim, mas vamos partir amanhã e não podemos deixá-los.
— Resumindo, só tenho esta noite...
Sophie lhe dirigiu um sorriso amarelo.
— Escute, se não encontrar nada, não tem problema, já nos
ajudou muito.
— Vou ver o que consigo fazer. Querem dormir aqui? —
propôs Jacqueline.
— Não, não — repliquei. — Não queremos incomodá-la.
Vamos procurar um hotel.
— À essa hora? Não vai ser muito fácil!
— Não queremos abusar da sua hospitalidade, minha querida
— disse Sophie.
— Mas não me incomodam nem um pouco... De todo modo,
pelo visto vou passar a noite trabalhando nessa questão de
vocês.
— Então tudo bem — respondeu Sophie antes que eu tivesse
tempo de recusar.
Por mais que Jacqueline fosse adorável, a idéia de dormir na
casa de uma antiga namorada de Sophie não me alegrava
nem um pouco. Mas tinha que me habituar.
Nesse instante, meu telefone tocou no bolso. Hesitei antes
de atender e olhei para Badji. Como se estivesse esperando
sua autorização. Deu de ombros. Tirei o telefone do bolso.
Atendi. Era o padre de Gordes.
Estava em Paris. Visivelmente apressado e inquieto, não me
deixou tempo para dizer grande coisa e simplesmente
marcou um encontro.
— Pode vir amanhã, às treze horas, à igreja de Montesson, na
zona oeste?
— Espere, eu... eu não estou em Paris neste momento. Não
sei se já terei retornado.
Voltei-me então para Sophie. Ela vasculhou a mochila e
checou as passagens de trem. O retorno para Paris estava
previsto para as 14h17.
— Não será possível — expliquei ao padre. — Poderia ser às
dezesseis horas.
— Combinado. Dezesseis horas na igreja de Montesson. O
padre de lá é meu amigo. Teremos tranqüilidade. Vai fechar
a igreja enquanto estivermos conversando. Até amanhã.
Desligou em seguida.
Fechei meu telefone e o deslizei no bolso. Sophie me
interrogou com o olhar.
— Era o tal padre de Gordes. Marcou um encontro comigo
amanhã.
Eu não queria dizer mais nada na frente da Jacqueline.
Sophie aquiesceu.
— Bom -— retomou a historiadora ao se levantar —, que tal
se pedirmos uma comida chinesa? À essa hora, não temos
muita escolha. Mas primeiro vou lhes mostrar os quartos. Só
restaram dois, vão precisar dividir...
— Posso dividir o quarto com Damien — respondeu Sophie
com toda a naturalidade.
Fiz um movimento de recuo, de tanto que fiquei surpreso.
Jacqueline franziu as sobrancelhas, depois pareceu
zombeteira.
— Vamos, venham, vou lhes mostrar os quartos.
Por volta da uma da manhã, depois de termos comido e
conversado, decidimos que era hora de deitar. Havíamos
tido uma jornada dura, e o dia seguinte certamente nos
reservaria outras surpresas. Jacqueline nos explicou que ia
trabalhar um pouco sobre o manuscrito e a Gioconda, depois
nos disse para nos sentirmos em casa.
Alguns minutos mais tarde, vi-me cara a cara com Sophie
num quarto minúsculo, onde só havia pilhas de livros e um
colchão de casal colocado no chão.
— Bom, tem certeza de que quer dormir junto comigo aqui?
— perguntei estupidamente.
— Ó, meu pobre Damien, não vou te obrigar a dormir com
seu anjão da guarda...
— Ah, ele é simpático, vai — repliquei.
— Se insiste...
Encolhi os ombros, um pouco sem graça. Ela sorriu. Voltei-
me para fechar as cortinas. Sophie não havia se mexido.
Estava bem na minha frente. Observava-me. Senti meu
coração disparar. Estava tão linda no jogo de sombras e halos
de luz alaranjada. Eu tinha certeza de que não estava
avançando, e, no entanto, nossos rostos pareciam se
aproximar. Lentamente. Ouvi o sopro tranqüilo da sua
respiração. Ela não sorria. Olhava-me fixamente. Serena.
Depois senti a mão sobre meus quadris. Um segundo. Sua
boca estava tão próxima da minha. Seus olhos nos meus. Deu
um último passo e me beijou com paixão. Deixei-me levar.
Ficou me olhando assim por longos segundos, bem contra
ela. Depois, lentamente, recuou o rosto. Eu tinha a
impressão de estar flutuando. De reviver emoções havia
muito esquecidas. Deu um passo para trás, pegou-me pela
mão e me conduziu atrás dela até o colchão. Decidi deixar-
me guiar. Simplesmente. E viver aquele instante como
Sophie vivia sua própria vida. Ouvindo minhas vontades.
Sob a luz discreta que vinha da entrada, como dois jovens
adolescentes que têm medo de serem surpreendidos,
fizemos amor longamente, em silêncio, até que nossos
corpos desabaram e se uniram de novo num sono pacífico.
Capítulo Dez
— Jacqueline vai com a gente,
— Como?
— Vou a Paris com vocês, Jacqueline estava preparando suas
malas, Sophie, atrás dela, olhou-me dando de ombros.
Acordei meio assustado naquele colchão velho do nosso
quartinho, e durante alguns segundos tive dificuldade em me
lembrar do lugar onde estava e do que tinha acontecido na
véspera. Quando finalmente consegui afastar o sono de vez,
dei-me conta de que Sophie já não estava ao meu lado e
vesti-me depressa para ver o que se passava na sala.
Sentado no mesmo lugar do dia anterior, Badji me dirigiu um
sorriso. Sorri-lhe de volta, um pouco sem graça. Aquele cara
tinha salvado minha vida duas vezes e ainda conseguia me
sorrir quando o havíamos levado para Londres sem ao
menos perguntar sua opinião. Claro, ele seria bem
remunerado. Mas podia ver no sorriso de Badji que estava ali
não apenas por razões profissionais.
Do lado de fora, o sol nascera havia pouco e ainda conserva-
va seus tons alaranjados. A luz do dia atenuava um pouco a
impressão de bagunça no apartamento.
— Descobriu alguma coisa? — perguntei coçando a cabeça.
-— Não exatamente. Mas agora estou convencida de que há
algo a ser descoberto e que vocês não chegarão a ele sem
mim. Tem café em cima da mesa. Sirva-se. E como precisam
voltar a Paris, vou junto.
— Mas...
— Não tem, mas, vou e pronto, é um prazer e não vamos
mais falar no assunto. Ainda mantenho um apartamento em
Paris, há muita documentação por lá, e poderei trabalhar
tranqüilamente. Q.E.D.
Ela falava depressa, sem me olhar, ocupada em encher a
bolsa de viagem bem no meio da sala. Vestia o mesmo
vestido de lã da véspera, e alguma coisa no seu penteado, as
olheiras e o nervosismo me permitiram compreender que
não tinha dormido.
— Está bem, obrigado — disse eu simplesmente, indo sentar-
me à mesa onde os três pareciam já ter tomado o café da
manhã.
— De nada — respondeu puxando o zíper da bolsa de uma só
vez.
Depois levantou-se, deu meia-volta e, com um largo sorriso,
perguntou-me:
— Então, dormiu bem?
— Ah, sim, claro — balbuciei, tentando não demonstrar
muito embaraço. — Bom, a que horas parte o trem?
Servi-me de uma xícara de café.
— As 10h23, ainda temos um tempinho — respondeu
Sophie. —- Badji e eu acompanharemos você a Montesson.
Enquanto isso, Jacqueline poderá continuar a análise do ma-
nuscrito.
Concordei e tomei meu café da manhã. Eu mal ousava olhar
para Sophie. Ela estava me tratando com formalidade.
Havíamos feito amor na véspera, mas ela ainda era formal
comigo. Gostaria tanto de ter ficado sozinho com ela pela
manhã. Conversar um pouco. Mas os outros dois estavam lá.
Badji não saía do nosso pé, o que não era muito prático. E,
de todo modo, realmente não tínhamos tempo.
Em nenhum momento tive a oportunidade de poder falar a
sós com ela, e logo partiríamos de novo para a estação para
voltar a Paris.
No trem que nos levava de volta à França, não consegui
afastar as imagens de Londres que assediavam minha
memória, as imagens da cidade onde eu me havia deitado
com Sophie.
Montesson fica a poucos quilômetros de Paris, mas já era
praticamente interior. Casinhas térreas, ruas em ladeira e, ao
longe, prados e serras quase faziam esquecer a capital que,
no entanto, estava tão próxima.
Havíamos deixado Jacqueline num táxi da Gare du Nord. Ela
fora para seu apartamento parisiense com o manuscrito de
Dürer e a cópia anotada da Gioconda, depois voltamos para o
Safrane para ir encontrar o padre na hora marcada na zona
oeste. Eu mal podia acreditar que naquela manhã mesmo
acordamos em Londres. E, no entanto, não estava sonhando.
O ritmo da nossa corrida parecia destinado a acelerar por
muito tempo ainda, provavelmente tanto quanto seria
necessário para resolver o enigma, a menos que alguém
conseguisse interromper nosso ímpeto.
Badji estava alerta. Como o encontro havia sido marcado por
telefone, nosso anonimato estava longe de ser garantido, e
ele esperava uma surpresa ruim a qualquer momento. Os
corvos nos tinham acostumado às suas aparições repentinas.
Ele estava com o humor menos leve do que na véspera.
Parou o Safrane num pequeno estacionamento ao abrigo dos
olhares, abriu-me a porta e passou à nossa frente.
A paisagem daquela periferia parisiense nada tinha a ver com
a Inglaterra. Ali não havia duas casas parecidas, não eram
brancas, mas cinzentas, e a arquitetura de modo geral tendia
mais para a desordem medieval do que para as casas de
boneca. Vez por outra, velhas vespas passavam na rua,
arrastando penosamente em seus selins vovôs de capacete.
A igreja ficava numa subida tão abrupta que, do lado da
fachada — anexa ao presbitério —, era preciso subir escadas
bastante íngremes para chegar à entrada. Com exceção das
mobiletes ocasionais e de uma ou duas senhoras que
passaram com seus cestos, não havia muita gente na pequena
praça triangular em plena tarde, e entramos os três, Sophie,
Badji e eu, sob a abóbada silenciosa e obscura de Notre-
Dame de l'Assomption.
Dois homens conversavam em pé diante do altar. Um deles,
que eu jamais vira, devia ser o padre de Montesson. Baixo,
de pele morena e olhos puxados. De onde eu estava não dava
para distinguir se era vietnamita ou coreano, mas tinha o
semblante tranqüilo dos asiáticos. O outro, que não vestia
seu hábito tradicional de padre nem o terno escuro com a
cruz na botoeira, não era outro senão o padre de Gordes à
paisana...
Quando nos viram chegar, despediram-se imediatamente. O
padre local passou por nós, dirigiu-nos um sorriso discreto,
depois saiu da igreja. Badji fechou o enorme portal atrás de
nós e verificou a solidez da fechadura. Eu o via inspecionar
cada centímetro com o olhar.
— Bom-dia, senhor Louvel — acolheu-me o padre, avançan-
do em nossa direção.
— São amigos próximos — expliquei apontando Stéphane e
Sophie.
— Senhora, senhor...
Cumprimentaram-se. O padre me estendeu a mão e a apertei
vigorosamente entre minhas palmas, como para agradecer-
lhe por ter vindo de tão longe. Com François, Badji ou
Jacqueline, ele era uma peça a mais ao meu lado no tabuleiro
de xadrez. Um pequeno guerreiro obstinado que aceitava
lutar, a seu modo, contra inimigos tão poderosos quanto
invisíveis.
O padre nos fez um sinal para segui-lo pela nave lateral.
Sentamos em cadeiras que ele havia disposto em círculo.
Badji ficou na retaguarda.
— Não temos tempo a perder — começou o padre com um
tom grave. — Estou intimamente convencido de estar sendo
vigiado. O padre Young aceitou nos receber aqui com
discrição. E um velho amigo. Já está habituado com as más
surpresas vindas do alto escalão, se é que posso dizer assim...
— As más surpresas vindas do baixo escalão nunca fazem mal
quando caem — insinuou Sophie.
O padre aquiesceu. Estávamos em sintonia.
— Estou disposto a lhes fornecer um elemento essencial para
a investigação, mas primeiro quero saber o que sabem a
respeito da minha transferência. Levo isso muito a sério,
acreditem.
— Conhece a organização Acta Fidei? — perguntei sem mais
esperar.
Fez que não. Lancei um olhar para Sophie. Ela entendeu o
que eu esperava e contou tudo o que sabia, todas as
informações que havíamos reunido ou que a Esfinge nos
havia transmitido a respeito da organização. O padre ouviu
com atenção e, quando a jornalista terminou sua
apresentação, estava abatido.
— Acham mesmo que o Vaticano está informado sobre tudo
isso? — perguntou após refletir longamente.
— A questão é quem no Vaticano. Não é tão simples assim.
Certamente há gente informada, já que vários membros do
escritório da Acta Fidei fazem parte da Congregação para a
Doutrina da Fé. Agora, se isso significa que outras pessoas no
Vaticano estejam informadas... não temos como saber.
— Se o que dizem for verdade, essa bomba precisa explodir
de todo jeito!
— Não de imediato! — interveio Sophie. — Acredite, vamos
explodi-la. Mas não já.
O padre concordou balançando a cabeça. Coçou o rosto com
um ar desesperado, depois tirou uma caderneta do bolso.
— Isto lhe pertence — disse estendendo-me um bloco de
notas.
— O que é?
— Seu pai me contou parte da história. Muito honestamente,
tenho certeza de que há um fundo de verdade em tudo isso,
mas tenho medo de que boa parte das coisas de que ele
falava seja uma completa tolice. Saibam que, com o que
acabaram de me dizer, estou pronto para tudo. Ele sabia que
eu era amigo de um relojoeiro de Gordes e me pediu para
encomendar a ele uma máquina.
— Que máquina?
— A que você viu no porão. E que queimou em seguida. Um
negócio completamente maluco. Ao que parece, seria uma
invenção de Leonardo da Vinci.
Lancei um sorriso a Sophie.
— Vocês vão ver, está tudo nesta caderneta, os esboços, as
instruções, as anotações do seu pai... Ele tentou me explicar,
mas confesso que não entendi grande coisa. Me contentei
em transmitir ao relojoeiro, que fabricou a máquina. Noutro
dia, o homem me ligou para dizer que havia esquecido de
devolver a caderneta a seu pai, e eu a recuperei. Espero que
vocês entendam alguma coisa disso tudo. Segundo seu pai, a
máquina permitia encontrar uma mensagem escondida
dentro da Gioconda!
Sophie me lançou um olhar perplexo. Extraordinário! O que
o padre acabava de nos dar era realmente extraordinário. Eu
já estava tremendo.
— Precisamos reconstruir essa máquina de todo jeito! —
exclamou Sophie me pegando pelo braço.
— Me espantaria se conseguissem assim tão facilmente —
interveio o padre. — E muito complexa. Há certos espelhos,
lupas, um sistema de engrenagens... Seria mais simples pedir
para o relojoeiro de Gordes refazê-la.
— Não temos tempo para voltar a Gordes! — protestou
Sophie, impaciente.
— E só fazer com que ele venha até aqui —- propus.
— Ah, não dá, né? — replicou o padre.
— E por que não?
— Ele tem mais o que fazer!
— O senhor tem o número de telefone dele?
O padre fez que sim.
— Pode me dar?
Lançou-me um olhar estupefato, depois vasculhou o bolso
balançando a cabeça.
— Tome — disse mostrando-me sua caderneta de endereços.
Liguei no mesmo instante do meu celular.
-— É — suspirou o padre —, vocês, parisienses, não perdem
tempo!
— Alô? — falei assim que o relojoeiro atendeu. — Bom-dia,
sou o filho do senhor Louvei.
— Ah, bom-dia — respondeu. — Minhas condolências.
— Obrigado. Tenho um favor a lhe pedir.
— Sei. Sinto muito, senhor, não quero parecer mal-educado,
mas sabia que a polícia está atrás do senhor?
— Sim, sim, eu sei. Quanto meu pai lhe pagou para fazer
aquela máquina que o senhor fabricou para ele?
— Meu Deus, aquela coisa esquisita, aquele aparelho! Até
hoje não descobri para que serve, mas sei que é uma
máquina extraordinária!
— Sim... Então, quanto?
— Acho que seu pai me deu 1.500 euros. Mas bem que valia,
levei um bom tempo nela, isso eu lhe garanto!
— Eu lhe ofereço dez vezes mais se aceitar vir agora mesmo
a Paris para fazer um segundo exemplar da máquina.
Houve um longo silêncio.
— Alô? — insisti, já que o relojoeiro continuava mudo.
Sophie ria a meu lado, e o padre pôs a cabeça entre as mãos.
Não estava acreditando no que ouvia.
— Está falando sério? — perguntou o relojoeiro, que também
parecia perplexo.
— Ofereço ao senhor 15 mil euros, em dinheiro, se aceitar
vir a Paris agora mesmo para refazer a máquina de Da Vinci.
Com todas as despesas pagas. Reembolso o TGV e arrumo
um lugar para o senhor ficar.
— Mas o senhor é completamente louco? — exclamou o
relojoeiro, incrédulo. — Tenho uma loja aqui!
-— Espere — disse eu —, não desligue.
Peguei o padre pelo braço.
— O senhor pode convencê-lo. Diga-lhe que sou muito sério
— cochichei. — Eu lhe suplico! Faça-o vir.
Forcei-o a pegar o telefone. O padre estava totalmente
atordoado.
— Alô, Michel? — balbuciou. — Sim, sim, é o padre. Não, o
senhor Louvel é muito sério. Claro. Não, não é uma
brincadeira.
Peguei a mão de Sophie e a apertei. Ela me deu uma gostosa
piscadela.
— Só terá de dizer a ela que vem me ajudar a preparar minha
ida a Roma — retomou o padre. — Bom, uma mentirinha de
vez em quando, tenho certeza de que será perdoado,
Michel. E depois, é só oferecer uma bela jóia à sua esposa
quando voltar que ela vai ficar muito feliz. Com o que o
senhor Louvel vai lhe dar, dinheiro para isso não faltará. Está
bem. Está bem. Certo. Combinado.
O padre me estendeu o telefone. Parecia ofendido por eu ter
lhe pedido para fazer isso.
— Ele concordou — esclareceu suspirando.
Cerrei os punhos em sinal de vitória.
— Está com o telefone do seu hotel? — perguntei
cochichando ao padre.
Ele vasculhou o bolso e me mostrou um cartão.
— Alô? — retomei pegando o celular. — Pronto, vou expli-
car o que deve fazer. Ligue para o padre quando souber a
hora de chegada do seu trem que mandarei alguém buscá-lo
na estação. Tente vir esta noite ou, no mais tardar, amanhã
de manhã.
Ditei-lhe o telefone do hotel.
— Agradeço-lhe mil vezes, senhor, está me fazendo um
enorme favor. Em quanto tempo acha que consegue fabricar
a máquina?
— E uma construção bem complexa, sabe? E, depois, não
estarei no meu ateliê... Vou tentar levar minhas ferramentas
e algum material, ainda me sobraram uns pedaços da última
vez. Levei duas semanas para fazer, mas, levando em conta
que já a produzi uma vez, acho que consigo ir mais rápido.
— Preciso que a construa em 24 horas.
— Mas o senhor não bate bem da cabeça!
— Vou lhe pagar muito bem! Até logo, senhor.
Despedi-me e desliguei. Sophie caiu na risada. Eu me havia
superado. Acabava de agir exatamente como a Sophie.
Entrando de cabeça. Daria até para dizer que ela estava
orgulhosa de mim. Na verdade, desde a perseguição na Gare
du Nord, eu havia decidido não mais me deixar levar pelos
acontecimentos. Se quiséssemos sair daquela situação,
tínhamos a todo custo de retomar o controle da
investigação, e não mais nos submeter a ela.
Deixar de ser peões para sermos rei e rainha.
Um pouco antes das vinte horas, chegamos enfim a Sceaux,
na casa dos Chevalier. Fiquei feliz de voltar ao conforto
delicado de sua pequena casa. Naquele momento, era o que
mais se assemelhava a um pouso para mim. Quase um lar.
Um domicílio fixo.
Estelle havia preparado o jantar para nós todos, e o odor de
madeira queimando da cozinha flutuava até a entrada.
François parecia impaciente para nos ver.
— Como foi em Londres? — perguntou pendurando nossos
sobretudos atrás da porta.
— Muito bem. A amiga da Sophie voltou conosco. Vai nos
ajudar.
— Perfeito. Tenho novidades para vocês, crianças! —
exclamou deixando-nos entrar em sua casa.
Claire Borella estava sentada na sala e sorriu ao nos ver
chegar. Parecia mais descansada do que na véspera e
visivelmente entendia-se muito bem com o casal Chevalier.
Passamos à mesa logo depois de pendurarmos os sobretudos.
François estava bastante agitado. Sophie sentou-se ao meu
lado. Claire, por sua vez, parecia já ter seu lugar habitual, à
direita de Estelle. Ambas conversavam e se olhavam como
velhas amigas.
— Ouçam isto — começou François servindo-nos vinho. —
Liguei para o bibliotecário do Grande Oriente de Paris, que
também é um bibliófilo extraordinário, um pouco como o
seu pai, Damien. Realmente, um sujeito genial. Em resumo,
como você estava procurando uma ligação entre a sua
investigação e o Grande Oriente, falei para ele da pedra de
Iorden. Pois bem, imagine você que ele me garantiu haver
vários documentos a esse respeito na biblioteca da rua Cadet.
— Excelente! — respondi.
— O que é que tem na rua Cadet? — perguntou Sophie.
— O templo do Grande Oriente da França — expliquei, pela
primeira vez sabendo mais do que ela.
— Ah, que ótimo! — zombou Sophie. — Vamos encontrar
nossas informações no coração da seita!
— Não é uma seita! — enervou-se François.
— Não ligue! — disse eu para acalmá-lo.
— Está certo. Bom, se quiserem — continuou —, posso levá-
los lá amanhã de manhã. Já organizei meus horários com a
minha secretária.
— Desde que não tente nos iniciar às escondidas! —
respondeu Sophie, que não perdia uma.
François não conseguiu evitar um sorriso. Em vez de se
ofender, decidiu participar do jogo.
— Minha querida, nenhuma loja iria querer saber de você,
não se preocupe — replicou.
— Agora, falando sério — engatei —, que isso não lhe traga
nenhum aborrecimento.
— Não, não, não tem problema, desde que sua amiguinha
saiba se comportar...
— Tem certeza? Não é arriscado demais entrarmos lá? —
acrescentei.
— Não. Aliás, a biblioteca fica aberta ao público a maior parte
do tempo.
— Claro, a maior parte do tempo — ironizou Sophie.
— Posso servir vocês? — propôs Estelle trazendo a entrada.
Começamos a comer tranqüilamente, aproveitando o breve
repouso e o ambiente familiar dos Chevalier. François
tentava não levar em conta as provocações de Sophie, que
gostava de exagerar um bocado sobre a franco-maçonaria,
mas no final ficou tudo numa boa.
De repente me dei conta de que eu provavelmente tinha à
minha frente as duas pessoas que mais amava no mundo
naquele momento. Sophie e François. E talvez isso tivesse a
ver com o fato de viverem de picuinha, como adolescentes.
Então, repentinamente, Sophie voltou-se para mim e disse:
— Meu bem, talvez seja o caso de você prevenir François
sobre o relojoeiro...
Arregalei os olhos.
— Veja só, me chamando de "meu bem" agora? — não pude
deixar de notar.
Sophie ficou imóvel. Circulou o olhar pelos outros convivas,
depois deu de ombros e me sorriu.
-— Sim, meu bem.
— Então está certo — respondi.
Levantei os olhos para François. Ele me fitava.
Pois é, meu amigo, foi em Londres. Fiz amor com uma
lésbica por quem estou apaixonado e que não gosta muito
dos franco-maçons nem dos padres. E assim e pronto. Não
tente entender. Eu mesmo não pesquei grande coisa nessa
história...
Fiquei em silêncio.
— Que história é essa de relojoeiro? — retomou finalmente
Chevalier.
— Ah, sim — disse eu, confuso. — É... tem lugar sobrando
na sua garagem, não tem?
— Que brincadeira é essa?
— Digamos que precisamos que você nos conceda um
pequeno espaço na sua garagem.
— Como é que é?
Expliquei nossa história em detalhes a François, que não
pareceu muito contente. Mostrei a caderneta de anotações
do meu pai e os esboços da máquina.
— O relojoeiro de Gordes aceitou vir aqui para reconstruir a
máquina de Leonardo da Vinci. Vamos precisar estudar de
perto as anotações do meu pai, que deverão nos servir para
decifrarmos uma mensagem oculta na Gioconda.
— Vamos ficar meio apertados aqui! — disse Estelle do outro
lado da mesa.
Mordi os lábios. Pobre Estelle. Dei-me conta do que
estávamos impondo àquela mulher, que já devia estar
passando o suficiente com a gravidez.
François lançou-lhe um olhar interrogador. Ela encolheu os
ombros.
— Bom, vamos dar um jeito de encontrar algum espaço —
suspirou sorrindo para mim.
Pisquei para ela. Era tão generosa quanto o marido.
— Posso deixar meu quarto para ele — propôs Claire
timidamente.
— Não se preocupe — interveio Estelle —, vamos arranjar
um lugar. Só que é você quem vai se ocupar de tudo isso,
François, porque estou esgotada! Mas confesso que não vejo
a hora de ver esse negócio! — entusiasmou-se ao olhar os
esboços na caderneta do meu pai.
François aquiesceu, e continuamos a jantar. Tentamos mudar
um pouco de assunto, esquecer por um instante o estresse,
mas sem conseguir de fato. Sabíamos que não estávamos no
fim e que nossas chances de ter êxito nessa corrida contra o
relógio eram bastante pequenas: os outros concorrentes já
estavam bem na frente e contavam com meios
desproporcionais.
Enquanto François trazia o queijo, Claire Borella contou-nos
um pouco da vida do pai. As missões para os Médicos sem
Fronteiras, as longas ausências, as descobertas... Dava para
perceber que nutria por ele um profundo respeito. Quase a
invejei por ela ter sabido o que era isso.
Por volta das onze horas, marcamos um encontro para o dia
seguinte, e Badji nos acompanhou ao nosso hotel.
Sophie dormiu num quarto, e eu, no outro. Talvez eu deves-
se tê-la convidado para ficar comigo. Talvez ela esperasse
que eu lhe pedisse isso.
Não é numa noite que se aprende a falar com as mulheres.
No dia seguinte de manhã, François e Badji vieram nos bus-
car na porta do hotel, rumo ao IX arrondissement.
— Alguma novidade do seu relojoeiro? — perguntou
François.
— Por enquanto não. Espero que venha logo.
Estacionamos na rua Drouot e subimos pela rua de
Provence,
ladeando os antiquários, as antigas filatelias e os escritórios
de leiloeiros. A rua Cadet, que tinha parte destinada à
circulação de pedestres, estava repleta de gente tanto nas
calçadas quanto no asfalto. Pequenos cafés, hotéis, açougues
e barraquinhas que se sucediam com a densidade de um
bairro popular.
O templo do Grande Oriente da França era uma construção
relativamente moderna e imponente, que se destacava em
relação aos imóveis antigos ao seu redor. A alta fachada
prateada deve ter parecido futurista na ocasião de sua
construção, mas agora tinha o charme kitsch de um cenário
de filme de ficção científica dos anos 70. De modo
semelhante à frente das igrejas, das escolas ou das sinagogas,
nesses tempos conturbados, a polícia havia instalado
barreiras ao longo da fachada para impedir que automóveis
estacionassem ali, o que dava ao templo um ar de embaixada.
Sem dúvida, Badji já havia acompanhado François ao Grande
Oriente. Com sua arma no coldre embaixo do braço, não
podia entrar e foi esperar num café bem em frente.
O guarda-costas piscou para mim antes de nos deixar. Desde
sua chegada, passei a me dar conta de que a paranóia estava
progressivamente me deixando. Ele havia prometido ser
discreto e, no fim, acabou sendo muito mais do que isso. Era
ao mesmo tempo caloroso e tranqüilizador. Como um
grande irmão e como um escudo, que recebia parte do
estresse em nosso lugar. E fazia bem isso. Flagrei-o
recebendo um ou dois telefonemas. Seus empregados
querendo saber se ainda ia ficar ausente por muito tempo.
Em cada vez explicou que estava "numa missão importante"
e que levaria o tempo necessário. Passou-nos à frente da sua
empresa e dos seus alunos. Era um cara legal. Um amigo do
François.
Depois de nos identificarmos na entrada do templo,
penetramos silenciosamente na biblioteca. Sophie estava à
espreita. Pronta para criticar o menor passo em falso, a
menor falta de postura.
O arquivista e bibliotecário viu François e nos acolheu
calorosamente. Era um homem de cerca de sessenta anos,
com óculos de meia-lua, cabelos grisalhos e encaracolados e
longas sobrancelhas brancas.
— Aqui está — disse estendendo uma folha a François —, a
palavra Iorden aparece ao menos uma vez em cada livro
listado aí. Cabe a você encontrar sua felicidade, irmão.
— Obrigado — respondeu François.
Instalamo-nos a uma das mesas da biblioteca enquanto
François foi buscar as diferentes obras listadas pelo
bibliotecário. Éramos os únicos visitantes, e cheguei a me
perguntar se François não tinha mandado abrir a sala só para
nós. Reinava uma atmosfera estranha. Quase mística. A
natureza do local impregnava o ar ao nosso redor.
— Pronto — cochichou François voltando com as mãos
cheias. — Aqui está, Damien, procure aí, e você, Sophie,
pegue estes livros!
Distribuiu igualmente os livros, e cada um de nós mergulhou
no trabalho como estudantes exemplares.
A pedra de Iorden nem chegava a figurar nos índices das
obras que François me havia passado, o que provava que as
referências do bibliotecário eram particularmente precisas, e
decidi folhear lentamente os dois volumes em busca da
nossa palavra-chave. O primeiro era um livro de história do
Grande Oriente da
França. Traçava o contexto em que a mais antiga obediência
francesa nascera em meados do século XVIII. Na verdade, a
primeira parte era uma reprodução de má qualidade de uma
obra bastante antiga, tanto que o conjunto dos caracteres
estava um pouco apagado e era difícil de ler. A segunda
parte, que cobria o período de 1918 a 1965, era de produção
e impressão mais modernas, portanto, mais agradável de
percorrer. Por mais que eu procurasse, não encontrava
nenhuma alusão à pedra de Iorden. O livro era bastante
volumoso, e eu não tinha certeza de que iria conseguir lê-lo
inteiro e com eficácia. Decidi colocá-lo de lado por um
instante e olhar a segunda obra, com bem menos páginas.
Tratava-se de uma revista, uma coleção de artigos diversos
ou talvez até mesmo de folhas escritas por maçons. Olhei os
títulos dos artigos para ver se algum deles podia evocar a
pedra de Iorden ou o restante da nossa pesquisa, mas nada
encontrei de flagrante. Mesmo assim, demorei-me num
artigo intitulado "Bens desaparecidos do GODF", que me
parecia oportuno. Percorri-o uma primeira vez, depois uma
segunda, mas em nenhuma parte vi a palavra que estava
procurando. Já me preparava para consultar outro artigo
quando de repente meus olhos foram atraídos por uma nota
de rodapé: "2. Ver a esse respeito o episódio da pedra de
Iorden na revista Nouvelles Planches, janeiro de 1963."
— Encontrei uma coisa! — anunciei tentando não falar alto
demais.
— Shhh! — replicou Sophie. — Eu também...
— Eu também encontrei uma coisa — emendou François.
— Esperem! — repetiu Sophie. — Deixem eu terminar!
Voltei ao meu artigo e subi os parágrafos para encontrar a
frase à qual correspondia a nota: "... durante a Segunda
Guerra Mundial, grande parte do patrimônio maçônico foi
vendida em leilão."
Nada encontrei de mais preciso e olhei de novo a primeira
obra. Após longos minutos de pesquisa infrutífera, levantei a
cabeça e esperei que Sophie terminasse de ler um artigo que
estava devorando com os olhos. Quando enfim terminou,
lançou-nos um olhar cheio de satisfação.
— O que encontrou? — perguntou-me em voz baixa.
— A referência a um artigo que contaria um episódio sobre a
pedra de Iorden — expliquei. -— Tome, dê uma olhada.
Mostrei-lhe a nota.
— Mas claro! — disse ela. — E o artigo que acabo de ler!
Levantou a revista que tinha nas mãos e me mostrou o
título.
— Bem... Eu não tinha como saber. E então?
— Então, por muito tempo a pedra de Iorden teria pertenci-
do a uma loja que se chamava Loja das Três Luzes, que fazia
parte do Grande Oriente da França e que hoje não existe
mais. Em 1940, teria sido vendida em leilão pelo governo...
— Incrível! — cochichei.
— Nem tanto — interveio François. — Foi o que aconteceu a
muitas lojas na época. A partir de 1940, a França ficou
extremamente anti-maçônica e anti-semita ao mesmo
tempo.
— Garanto a você que ainda hoje há gente que não é nem
um pouco chegada nos maçons — interveio Sophie com um
largo sorriso.
— Já deu para notar! — replicou François. —- Você deveria
se orgulhar, isso faz com que tenha ao menos um ponto em
comum com os nazistas!
— Bom, agora chega vocês dois! Já estão passando dos limi-
tes! Então, François, você dizia...
— Sim... Bom, é o seguinte: os maçons foram perseguidos
durante a guerra, todo o mundo sabe disso, não?
— E como seus bens puderam ser vendidos em leilão?
— Marquet, que era o ministro do Interior, interditou
legalmente as sociedades secretas em 1940, e o Grande
Oriente, como todas as obediências, foi dissolvido no
embalo. Se algumas lojas se apressaram em destruir seus
próprios arquivos para evitar que eles caíssem nas mãos dos
alemães, de todo jeito a Gestapo teve tempo de fazer muitas
prisões. Aliás, em toda a França, ocupada ou não, os templos
foram oficialmente convocados. Ou eram entregues ao
Tesouro, ou eram vendidos a particulares, ou ainda eram
emprestados a associações vichystas. Quanto aos bens
móveis, quadros e outros, de fato, foram leiloados.
— Nada nobre!
— Pois é, não é um período glorioso da nossa história. A
campanha anti-maçônica baseava-se, como sempre, na
acusação de complô, e censuravam os maçons por terem
servido aos interesses dos judeus... Seja como for, o governo
francês foi longe demais. Houve uma exposição anti-
maçônica no Grand Palais, que em seguida circulou em toda
a França e na Alemanha, e o auge foi que em 1941 o
governo mandou publicar no Journal officiel uma lista de
quinze mil pessoas acusadas de pertencer à franco-maçonaria
para denunciá-las perante a opinião pública.
— Cada vez mais encantador.
— E mesmo. Ah, mas há certos jornalistas que adorariam
renovar a proeza... Todos os anos a revista L'Express faz um
dossiê, por assim dizer, bem quente sobre nós. Vende que é
uma beleza...
Lançou um olhar falsamente aborrecido a Sophie.
— Está bem, chega! — cedeu ela. — Zombo de você, mas
também não sou do tipo de perseguir ninguém! As pessoas
devem fazer o que bem entendem...
— Sabiam, por exemplo, que o local em que estamos servia
de quartel-general à campanha anti-maçônica do governo?
— retomou François.
— Nossa! É de arrepiar. Bom, então, segundo o texto da
Sophie, a pedra teria sido revendida durante a guerra. E
você, o que encontrou?
— Encontrei uma alusão à pedra num capítulo referente a
Napoleão — respondeu François mostrando-nos o livro à sua
frente.
— Ah, é? Conte!
— Para começar, talvez seja necessário eu explicar para vocês
um pouco do contexto.
— Sim, vá em frente! Sophie é testemunha do quanto sou um
zero à esquerda em história!
— Está certo. Contrariamente ao que muita gente pensa, a
Revolução quase destruiu a franco-maçonaria na França.
Embora os valores maçônicos de igualdade, justiça e
fraternidade tenham em parte inspirado a Revolução, a partir
de 1792 o Grande Oriente se tornou cada vez mais crítico
em relação aos excessos da República nascente. Tanto que a
maçonaria foi suspeita de complôs anti-republicanos durante
alguns anos, um absurdo! Sendo assim, entre 1792 e 1795,
não era muito bom ser maçom na França, e muitas lojas
desapareceram. Em resumo, só em 1795, sob o impulso de
lojas parisienses e num clima um pouco mais favorável, é
que a franco-maçonaria voltou a se mexer um pouco.
Quando Napoleão tomou o poder, os maçons já não estavam
fora da lei, muito pelo contrário. E preciso dizer que a
família de Bonaparte era cheia de maçons. Seu irmão, seus
cunhados, todos camaradas, justamente! E ainda que nunca
se tenha encontrado a ata de iniciação, talvez o próprio
Napoleão tenha sido maçom. Em todo caso, seu irmão José
era grão-mestre do Grande Oriente da França! Sem falar de
Cambacérès, o arquichanceler do Imperador, que também
era maçom, ou de onze dos dezoito marechais nomeados
pelo Imperador que também haviam sido iniciados, como
Masséna, Brune ou Soult... Em suma, Napoleão vê na
maçonaria um aliado importante e tenta botá-la em seu
bolso. Olhem só, vou ler para vocês esta carta que Portalis,
ministro do Interior e dos Cultos, envia a Napoleão: "Foi de
infinita prudência dirigir as lojas, visto que não podiam ser
proscritas. O verdadeiro meio de impedir sua degeneração
em assembléias ilícitas e funestas foi conceder-lhes uma
proteção tácita, deixando que sejam presididas pelos
primeiros dignitários do Estado." Mais claro do que isso,
impossível. Ora, e é aí que está o que vai interessar a vocês.
Há um capítulo deste livro que conta de que modo Napoleão
doou vários objetos preciosos a certo Alès d'Anduze,
dignitário maçom, que não era outro senão o vigário-geral do
arcebispado de Arras. O texto explica, de maneira bastante
estranha, que Napoleão fazia particularmente questão de
oferecer esses objetos a esse homem da Igreja. Não entendo
bem por quê... Mas, por outro lado, entre essas doações,
adivinhem o que havia?
Respondemos em uníssono:
— A pedra de Iorden!
— Bingo! E, por ocasião da morte, Alès d'Anduze a legou à
sua loja, que se chamava...
— Três Luzes! — completou Sophie.
— Exatamente! O círculo se fecha...
— Sim — disse eu —, só que não sabemos como Napoleão
podia estar de posse da relíquia nem por que a deu ao
vigário.
— Tenho minha primeira hipótese a respeito — interveio
Sophie.
Pisquei para François.
— Estamos ouvindo — assegurou ele.
Sophie lançou um olhar ao bibliotecário. Ele parecia
absorvido por seu computador. Estávamos tranqüilos.
— Bem. O último vestígio que se tinha da pedra de Iorden,
como você se lembra, datava de cerca de 1312, quando o
papa Clemente V deu um jeito para que a Ordem dos
Hospitalários de São João recuperasse os bens dos templários.
Ora, onde os hospitalários vão parar em seguida?
— Em Malta...
— Exatamente. E em 1798... — começou Sophie...
— ... a frota de Napoleão toma a ilha de Malta! — terminou
François balançando a cabeça. — Mas claro!
— Epa, vamos devagar, vocês estão esquecendo que sou
inculto!
— OK, vou resumir para você — propôs Sophie. — Estamos
no final do século XVIII. A Ordem de Malta, pois esse é o
novo nome dos hospitalários, já não tem nada daquela aura
que tinha na Idade Média. Sua razão de ser é quase nula,
dada a queda do Império Otomano. E, sobretudo, a França,
que era a protetora tradicional da Ordem, meio que a
abandonou à sua própria sorte durante a Revolução,
chegando até a privar os cavaleiros da nacionalidade
francesa. Enfim, os habitantes da ilha de Malta suportam
cada vez menos a dominação desses cavaleiros arrogantes,
que os sobrecarregam de impostos exorbitantes. Em suma,
Napoleão, que ainda é apenas general e é mandado em
expedição ao Egito pelo Diretório, não tem dificuldade
nenhuma em obter a autorização do governo francês para se
apoderar da ilha em seu caminho.
— Ele vai atacar diretamente os hospitalários? — espantei-
me.
— Vai. Napoleão tem duas excelentes razões para querer
tomar Malta. Primeiro porque era uma posição estratégica
sem igual no Mediterrâneo, mas também por uma razão
menos oficial. Diziam que a cidadela de La Valette, sede dos
hospitalários, encerrava grandes tesouros, entre os quais
certamente aqueles herdados da Ordem do Templo. Ora,
Bonaparte precisa de muito dinheiro para comprar cúmplices
e preparar o golpe de
Estado do 18 de brumário. Resumindo, em junho de 1798,
toma a ilha e se apodera de parte do saque.
— É, portanto, provavelmente da pedra de Iorden.
— Provavelmente — confirmou Sophie. —- Alguns anos
mais tarde, talvez tenha conhecido a verdadeira natureza da
relíquia e dito a si mesmo que ela estaria melhor nas mãos de
um homem da Igreja... Talvez por essa razão a tenha doado a
esse famoso Alès d'Anduze.
— Talvez — repeti. — São muitos "talvez"...
— Em todo caso -— interveio François —, sabemos que ela
pertenceu à sua loja ainda no início da última guerra, 150
anos mais tarde!
— A questão — encadeou Sophie — é saber quem a com-
prou em 1940, quando o Estado a vendeu em leilão.
— Deve ser possível descobrir isso — replicou François
levantando-se. — Esperem, vou perguntar.
Dirigiu-se ao bibliotecário, e os dois irmãos entabularam uma
longa conversa em voz baixa. Sophie aproveitou para folhear
os outros volumes, e, pela velocidade com que examinava as
páginas, dava para ver que tinha hábitos de pesquisadora.
Observei-a em ação, encantado com a gravidade do seu
olhar. Ficava linda quando estava séria. Era uma roupa feita
sob medida para ela.
François voltou até nós, inclinou-se sobre a mesa e nos
explicou:
— Vou me ausentar por um instante. Realmente, estamos
com sorte. Todos os arquivos foram classificados pelos
alemães, que os levaram para Berlim, depois foram tomados
pelos russos! Imaginem o trajeto! Só recuperamos grande
parte dos arquivos do Grande Oriente há pouquíssimo
tempo, quando os russos decidiram devolvê-los a nós! Vou
dar uma olhada nos livros de contabilidade. Só que vocês...
é... não estão autorizados a me acompanhar. Mas podem me
esperar aqui ou ir encontrar Stéphane lá fora, no café, como
preferirem...
Interroguei Sophie com o olhar. Ela fez sinal de que nada
tinha visto de interessante nos livros e de que podíamos sair.
— Esperamos você lá fora — confirmei.
Lamentei não ter mais tempo para visitar o templo de que
François tantas vezes me falara, mas provavelmente não era
o momento adequado, e Sophie não era a pessoa ideal com
quem visitar um templo maçônico.
Saímos de braços dados.
— Estamos nos aproximando do objetivo — disse-me
enquanto avançávamos em direção à faixa de pedestres.
— Estamos. Só me pergunto onde exatamente vamos cair...
— Que engraçado. Ando tão concentrada na investigação
que nem pensei nisso ainda. O que vamos encontrar? O que
será que Cristo legou como mensagem à humanidade?
— De todo modo — respondi —, não sabemos se existe
realmente uma mensagem... Pode ser que tudo isso não
passe de uma grande farsa.
— Espero que não! — exclamou Sophie. -— Seria o fim da
picada, depois de tudo o que fizemos!
Apertei sua mão e atravessamos a rua. Stéphane nos viu
chegar através do vidro do pequeno café em que nos
esperava. Pegou outra mesa para juntá-la à sua e instalou
mais cadeiras em volta.
— O senhor deputado ainda está lá dentro? — perguntou ao
se levantar.
— Está sim, sente-se, vamos esperá-lo. O que quer beber? —
perguntei a Sophie.
— Um café.
Pedi dois expressos. Depois dei um largo sorriso.
— O que foi? — espantou-se Sophie ao me olhar.
— Nada, é que adoro esse ambiente. Não pode imaginar a
que ponto isso me fazia falta em Nova York. Realmente há
alguma coisa única na atmosfera dos cafés em Paris.
—- Damien, você é um grande romântico! Realmente é
preciso ficar muito tempo em Nova York para se dar conta
desse tipo de coisa — ironizou a jornalista.
— Provavelmente. E meio triste. A gente precisa ficar sem
ver as coisas durante muito tempo para se dar conta de como
elas são bonitas.
— Isso também se dá em relação às pessoas — assinalou
Sophie quando o garçom nos trouxe duas pequenas xícaras
brancas.
— Bom, sei lá, garanto a você que fiquei sem ver meu pai
durante dez anos e, quando voltei, ele continuava sendo um
imbecil para mim...
Badji quase engasgou. Sophie franziu as sobrancelhas.
— Nada muito delicado da sua parte — censurou-me ela. —
E não estou certa de que pensa como diz.
— Como assim?
— Tem certeza de que sua impressão sobre seu pai hoje é a
mesma de onze anos atrás?
Dei de ombros.
— Não penso nisso.
— Será? Vamos... Não se faz nenhuma pergunta? Os anos que
passaram não mudaram nada na imagem que fazia dos seus
pais?
— Sei lá...
Na verdade, eu sabia muito bem. Isso me horrorizava, mas,
no fundo, acho mesmo que estava perdoando meu pai. E
quase ficava com ódio de mim por já não ter ódio dele.
Esse sujeito tinha me feito sofrer tanto. E, no entanto...
Fiquei em silêncio por um momento. Sophie deve ter visto
que eu estava emocionado e pegou minha mão sob a mesa.
François apareceu pouco antes que nosso silêncio fosse
longo demais para continuar suportável.
— Bom — anunciou de pé, diante da nossa mesa —, estou
com o nome do cara que comprou a pedra em 1940.
— Ótimo!
— Nós o conhecemos?
— Acho que não — replicou François. Tirou um pedaço de
papel do bolso.
— Stuart Dean — leu. — Um americano, por mais
inacreditável que possa parecer!
Vi Sophie arregalar os olhos.
— Não pode ser!!! — soltou incrédula.
— O quê?
—- Damien! Não se lembra do nome do cara que mandou
hackear meu computador a partir de Washington?
— O secretário-geral americano do Bilderberg?
— Isso. Chamava-se Victor L. Dean! É muita coincidência! O
caso logo me veio á lembrança. Senti o coração bater.
Estávamos bem perto do fim. O círculo se fechava.
— Esperem — ponderou François —, há muita gente chama-
da Dean na América... Por que não James Dean, já que estão
falando disso?
— Sei lá. De todo modo, é uma bela coincidência. Mas você
tem razão — reconheceu Sophie. — É preciso verificar se
existe alguma ligação entre os dois.
— Não dá tempo de eu tomar um café? — reclamou François
ainda de pé.
— Vai ficar para mais tarde! — replicou Sophie ao se
levantar. Meu amigo deputado ficou boquiaberto. Dei uma
risada.
Stéphane não pôde deixar de sorrir e nos precedeu até o
Safrane. Provavelmente nunca vira alguém fazer gato-sapato
do seu amigo como a Sophie, e isso devia diverti-lo tanto
quanto a mim.
— Proponho o seguinte: — explicou Sophie sentando-se no
banco de trás do carro — você vai até um cibercafé para
verificar isso, e eu corro até a casa da Jacqueline para lhe
mostrar a caderneta de anotações e os esboços que o padre
nos deu.
— Você é quem manda! — capitulei.
Meia hora mais tarde, deixamos Sophie na porta do prédio da
Jacqueline e fomos para o cibercafé da avenida Friedland.
Era visível que François jamais colocara os pés num lugar
como aquele, e estava pouco à vontade.
Instalamo-nos em volta de um computador. Digitei a senha
que a pessoa da recepção me dera, e a tela do Windows
apareceu. Entrei na internet, abri um site de buscas e digitei
as palavras-chave. Estávamos os dois apertados um contra o
outro, com os olhos fixos no monitor, enquanto Badji ia e
voltava atrás de nós.
Os resultados da pesquisa surgiram na tela. Passei algumas
páginas, lendo rapidamente os títulos. Depois, de repente,
parei e cliquei num link. Uma biografia de Victor L. Dean,
nosso famoso embaixador.
O texto carregou aos poucos sob nossos olhos, com uma bela
foto desse homem de cinqüenta anos e sorriso forçado.
François começou a ler a biografia em voz baixa. Em
nenhuma parte fazia-se menção ao Bilderberg. Óbvio. Por
outro lado, a partir do final do primeiro parágrafo,
encontramos o que procurávamos: "(...) filho de Stuart Dean,
diplomata instalado em Paris entre 1932 e 1940."
— Aí está! — exclamei batendo o punho na mesa, um pouco
forte demais para o gosto dos outros internautas.
— Caramba! — soltou François, perplexo.
Peguei o celular e digitei o mais rápido possível o número da
Sophie.
— Alô? — atendeu ela.
— Encontramos. Stuart é pai do Victor, se entende o que
quero dizer.
— Eu sabia!
— O Bilderberg está com a pedra — articulei como se
estivesse com dificuldade para convencer-me.
— Isso significa que as duas peças do quebra-cabeça já estão
nas mãos do inimigo — suspirou Sophie.
— O texto criptografado de Jesus e a pedra de Iorden, que
permite decodificá-lo.
— Das duas, uma — propôs Sophie. — Ou é a mesma
organização que possui ambas as peças do quebra-cabeça, e,
nesse caso, estamos ferrados.
-— Ou cada organização possui uma, o Bilderberg estaria
com a pedra, e a Acta Fidei, com o texto.
— Nesse caso, nem uma nem outra podem decodificar nada
— concluiu Sophie.
— E nós estamos como imbecis no meio — suspirei.
— Bom, deixe-me pensar. Provavelmente a pedra está em
posse do Bilderberg há muito tempo, se supusermos que
Victor Dean a levou desde o inicio para sua organização.
— Certo.
— Quanto ao texto, nossa hipótese é de que foi roubado dos
Assayya da Judéia há cerca de três semanas.
— Certo — repeti.
— Ora, os caras do Bilderberg hackearam meu computador
há menos de uma semana. Se estivessem com o texto, por
que teriam feito isso no meu computador? Teriam
decodificado a mensagem de Cristo há muito tempo!
— OK — admiti. — Há três fortes probabilidades de que o
texto esteja nas mãos da Acta Fidei.
— E o que eu penso — confirmou Sophie. — Cada um está
com uma peça.
— E nós não temos nenhuma.
— Sim, mas talvez não seja tão grave. Começo a entender a
que poderia servir a Gioconda... Venha logo nos encontrar,
estamos tentando decodificar as anotações do seu pai.
— OK, estou indo.
— Espere! — retomou Sophie. — Antes, tente entrar em
contato com a Esfinge e peça-lhe para ver se a Acta Fidei
pode ter pegado o texto de Jesus. Peça-lhe também para se
informar sobre essa história de monastério destruído no
deserto da Judeia.
— Combinado.
Desligou.
Abri o programa do IRC sem mais esperar. Conectei-me ao
servidor da América do Sul. O nome da Esfinge apareceu no
nosso canal secreto. O hacker estava lá.
— Hello. Aqui é...
Eu precisava encontrar um pseudônimo. E bem rápido.
— Aqui é Alice. Sou amigo da Haigormeyer.
Pisquei para François. Ele não estava entendendo muita
coisa, mas ao menos entendera a referência ao nosso livro
cult, Alice no país das maravilhas.
— Amigo? Alice? Mas é nome de mulher!
— Ah, é? Alice Cooper é mulher, por acaso?
— Lol.
— O que quer dizer Lol? — espantou-se François.
— Laugh out loud. Quer dizer que achou engraçado.
— Você é o amigo que trabalha com ela?
— Sou.
— Ela me falou de você... Sou fã do Seix Botf
— Está certo. Vamos voltar ao meu anonimato.
— Não se preocupe, aqui estamos 100% seguros.
— Então vou lhe mandar um autógrafo.
Decidi que talvez fosse melhor me abster de prevenir a
Esfinge de que eu pretendia me livrar do Sex Bot. Não era o
local nem o momento, e tínhamos coisas muito mais
importantes para tratar.
— Então, quais são as novidades?
— Avançamos bastante. Lembra-se do Victor L. Dean?
— O pirata do Bilderberg?
— Ele mesmo. Pois bem, é ele quem está com a pedra de
Iorden.
— Xiii...
— Pois é. Agora precisamos que você faça uma nova pesquisa
sobre a Acta Fidei.
— E sempre um prazer! Tanto mais porque estou começando
a conhecer melhor o servidor deles...
— Há três semanas, um monastério isolado no deserto da
Judéia foi completamente destruído, e todos os seus
ocupantes... assassinados. Achamos que lá havia um
documento muito importante e que foi roubado durante o
ataque. Gostaríamos de saber se isso tem alguma relação com
a Acta Fidei e, se for esse o caso, se realmente recuperaram
tal documento... Ah, sim, uma especificação: os religiosos se
chamavam Assayya.
— OK. E um pouco vago como informação, mas vou ver o
que posso fazer.
— Obrigado! Você é extraordinário!
— Eu sei.
— Aliás, nunca nos explicou por que faz tudo isso...
— Sim, eu disse... É a filosofia dos hackers.
— Vá lá. Tudo bem, mas na origem, por quê?
— Chegou a hora das confidências?
— Ah, vai, você sabe muito mais a meu respeito.
— Faço isso porque... Bom, è uma história de família.
— É incrível mesmo! Todo o mundo tem uma história de
família.
— É. A minha seria do tipo do Zola. Meu avô, um judeu, foi
fuzilado durante a guerra, não conheço minha mãe, meu pai
é um ex-militante trotskista que está apodrecendo na cadeia.
Alguém dá mais?
— OK, tudo bem, eu me rendo... Seja como for, ele não está
na cadeia porque é trotskista!
— Não! Mas isso não deve ter ajudado... Em todo caso, quero
revanche. Minha válvula de escape é a internet.
— Tudo bem, já entendi.
— Bom, volto a entrar em contato com você quando tiver
novidades...
— Fechado.
Seu nome desapareceu da tela.
— Quem é esse cara? — perguntou François, cada vez mais
desorientado.
— Não sei bem. Nunca o vimos. Um garoto, provavelmente.
Nós o conhecemos on-line. Ele nos ajudou bastante. Depois
conto pra você!
— Pelo andar da carruagem, não vai demorar muito para
você escrever um livro!
— Não se preocupe, acho que a Sophie vai fazer um
documentário detalhado a respeito.
Desliguei o computador, e nos levantamos para sair do
cibercafé. Quando chegamos ao lado de fora, meu celular
começou a tocar. Atendi. Era o padre de Gordes, que me
dava a hora de chegada do relojoeiro. Estaria na Gare de
Lyon no começo da tarde. Agradeci-lhe e desliguei. Havia
sido rápido.
Lentamente, levantei os olhos para François.
— O que foi? — resmungou. — Ainda por cima quer que eu
vá buscar seu relojoeiro?
Fiz que sim com a cabeça, sem jeito.
— O que eu não faria por você? Bom, vou buscá-lo e depois o
levo para Sceaux.
— Vá com o Badji — sugeri —, eu me viro.
— Nada disso, Stéphane fica com você. Precisa muito mais
dele do que eu.
Eu sabia que era inútil discutir.
— Vai me manter informado? — insistiu.
— Lógico.
— Não se preocupe, vou fazer de tudo para facilitar o traba-
lho do relojoeiro.
Entrou no Safrane, e eu me dirigi com Badji para um ponto
de táxi. As coisas estavam se acelerando.
Chegamos à casa de Jacqueline Delahaye por volta do meio-
dia. As duas estavam sentadas no chão, em meio à desordem
fenomenal daquele apartamento do VII arrondissement.
Para dizer a verdade, este estava até pior que o de Londres,
pois Jacqueline já não vivia nele havia um bom tempo, e a
poeira, por sua vez, fizera dali a sua morada.
Tinham empurrado a mesa da sala, colocado os dois quadros
no chão e, sentadas à moda indiana no meio do cômodo,
cercadas de livros e documentos, trabalhavam em cima das
anotações do meu pai.
Jacqueline veio abrir a porta para nós e, para minha grande
surpresa, beijou-me calorosamente, depois me puxou para a
sala, completamente agitada, deixando Badji feito idiota na
entrada. O guarda-costas instalou-se discretamente no sofá e
pegou uma revista.
— Você vai ver, meu bem, descobrimos! — exclamou
convidando-me a me sentar ao lado de Sophie.
Ela também se pôs a me chamar de "meu bem"! Fiquei
bastante surpreso. Preferia não imaginar o que as duas amigas
podiam ter dito antes que chegássemos e me deixei guiar no
meio da desordem. Antes de mais nada, eu estava
impaciente para que me explicassem o que tinham
descoberto.
— É incrível! — confirmou Sophie, que nem sequer me
dirigira um olhar, com a cabeça mergulhada num enorme
livro.
— Bom, então contem! — supliquei.
— OK. Já vou avisando que essa história toma muitos rumos,
ainda não organizamos bem as coisas...
— Você vai ver, é fantástico! — insistiu Sophie.
Elas estavam insuportáveis, e eu suspeitava de que
estivessem exagerando um pouco...
— Bom, então vamos! Contem!
— OK. Desde 1309, antes de ir a Malta, os hospitalários
estavam instalados em Rodes, já que haviam tomado a ilha
dos bizantinos. Até aqui tudo bem?
— Claro!
— A Ordem ficou sendo senhora da ilha, local estratégico
por excelência, tanto do ponto de vista militar quanto do
comercial. Aproveitando essa situação excepcional,
banqueiros vindos de Florença, de Montpellier e de
Narbonne instalaram-se em Rodes para controlar o mercado
de especiarias e tecidos.
— E?
— Tudo ia bem até o final do século XV, época em que o
Oriente começa a novamente despertar. Já em 1444, o sultão
do Egito havia assediado a cidade, depois em 1480 foi
Maomé II de Constantinopla. E, desta vez, a Ordem diz a si
mesma que talvez fosse prudente mudar parte dos seus bens
de lugar. Uma tropa de cavaleiros vai embora e, depois dos
banqueiros florentinos que voltam para casa, eis que nossos
cavaleiros chegam ao Hospital de Florença. Os bens mais
preciosos da Ordem ficarão lá até os cavaleiros herdarem sua
nova sede, Malta. Ora, quem está em Florença em 1480?
— Leonardo da Vinci! — exclamou Jacqueline.
— Segundo o seu pai — continuou Sophie —, o pintor visita
o Hospital várias vezes e descobre a incrível relíquia. A
pedra de Iorden.
— Nessa época — encadeou Jacqueline, impaciente —, havia
muito tempo que Leonardo já estava apaixonado pela
ciência, pela geometria, pela técnica e até pela criptografia!
Por exemplo, passa seu tempo escrevendo da direita para a
esquerda, como num espelho...
— Eu sei! — interrompi. — Meu pai fez o mesmo em suas
anotações!
— Exatamente. Ora, no Codex Trivulziano, Da Vinci fala de
um objeto que teria visto em Florença e que trazia um
código secreto que ele estava tão orgulhoso de ter
descoberto que queria copiá-lo. Não chega a dar mais
detalhes, mas é aí que o manuscrito de Dürer entra em jogo!
— O pintor alemão — encadeou Sophie — explica que Da
Vinci lhe contou tudo. Leonardo, para provar à posteridade
que havia quebrado o código da pedra, teria decidido
reproduzi-lo, tornando-o mais complexo!
— Na Gioconda?
— Sim. Leva 25 anos para pôr em prática seu projeto! Vinte e
cinco anos, dá para imaginar?
— Incrível! De modo geral, isso significa que a Gioconda é
um substituto da pedra de Iorden?
-— Exatamente. Da Vinci copiou na Gioconda o código que
está escondido na relíquia. É por isso que seu pai passou a
dirigir suas pesquisas a Da Vinci, porque talvez soubesse que
não poderia encontrar a pedra, já que ela estava nas mãos do
Bilderberg.
— Ou seja — resumi —, se conseguirmos extrair o código da
Gioconda, poderemos abrir mão da pedra. Só nos faltará o
texto criptografado...
— Absolutely, my dear!
— Bom, isso não impede que tenhamos dificuldade para
colocar a mão nesse maldito texto — ponderei. — Não acho
que o pessoal da Acta Fidei vá querer emprestá-lo a nós.
— Veremos.
— Suponhamos que dê certo. Nesse caso, de que modo o
código estaria escondido na Gioconda? — pressionei-as.
— Não sabemos bem — confessou Jacqueline. — Mas temos
uma pista. Você sabe o que é esteganografia?
— É... não. Seria estenografia com uma sílaba a mais?
— Muito engraçado! — replicou Jacqueline. — Não, é um
procedimento de criptografia que, grosso modo, consiste em
dissimular uma mensagem em outra, até mesmo dentro de
uma imagem. Em vez de ter um código que salta aos olhos, o
código é escondido dentro de uma informação
aparentemente anódina. Hoje, com a informática, é um
procedimento usado com freqüência: nada mais fácil do que
esconder um código numa imagem, uma vez que ela mesma,
por ser digital, já é um código.
— Lembra-se da foto que a Esfinge nos pediu para publicar
no Libé? Muito provavelmente se tratava de esteganografia!
— Para esconder uma mensagem numa imagem digital, basta,
por exemplo, modificar alguns pixels cuja localização foi
combinada. Substituem-se esses pixels por outros, cujos
números codificam as letras da mensagem. A modificação é
invisível a olho nu.
— Genial! — admiti.
— Pois é isso — explicou Sophie. — Supomos que Da Vinci
tenha utilizado mais ou menos o mesmo procedimento. De
certa forma, ele seria o ancestral da esteganografia digital...
— Depois dele — explicou Jacqueline —, outros pintores se
divertiram escondendo coisas em seus quadros. Há um
exemplo célebre no quadro Os embaixadores, de Hans
Holbein. E uma obra de 1533, ou seja, catorze anos depois
da morte de Da Vinci. Um crânio humano está escondido na
parte inferior da pintura. Para enxergá-lo, é preciso ver o
quadro obliquamente, pois o desenho foi deformado. E o
princípio da anamorfose...
— Como no cinemascope? Incrível! E então, na Gioconda
também?
— Mais ou menos. O código estaria escondido em seu
interior. Provavelmente invisível a olho nu.
— Segundo o seu pai — explicou Sophie —, haveria 34 sinais
escondidos na Gioconda. Lembra-se? Ele havia feito círculos
no quadro.
Ela me mostrou a cópia deteriorada da Gioconda. De fato,
contei 34 marcações a lápis.
— E conseguiram enxergar alguma coisa?
— Nada — respondeu Jacqueline. — Não sabemos direito o
que procurar. Talvez letras minúsculas, mas isso me
espantaria, porque há séculos a Gioconda vem sendo
inspecionada à lupa milhões de vezes, e, se existissem letras,
já teriam sido vistas.
— Aparentemente — precisou Sophie —, só dá para ver os
tais sinais com a famosa máquina!
— Ai, caramba! — exclamei. — Que loucura!
— Nós avisamos!
— E isso não é tudo — retomou Jacqueline cada vez mais
empolgada... — Seu pai não descobriu isso por acaso.
Aparentemente, há um manual escondido na Melancolia, de
Dürer. Veja aqui, por exemplo. O quadrado mágico.
— E daí?
— A soma de todas as linhas horizontais, verticais ou
diagonais sempre dá 34.
— O número de sinais escondidos na Gioconda — acrescen-
tou Sophie.
— É extraordinário!
— Por enquanto, só conseguimos detectar as relações entre a
Melancolia e a Gioconda. Há ainda o cenário em segundo
plano, o personagem feminino, mas que, em ambas as obras,
tem um lado masculino perturbador, o poliedro da
Melancolia, que é uma referência direta a Da Vinci, e, por
fim, as proporções. A Gioconda foi pintada numa placa de 77
por 53 centímetros, ou seja, exatamente três vezes as
dimensões da Melancolia. Na verdade, acho que graças à
Melancolia vamos saber como usar a máquina criada por Da
Vinci e decodificar a Gioconda. Sophie me disse que a
máquina tem três eixos diferentes, portanto, várias posições
possíveis, e, sobretudo, espelhos e lupas, é isso?
— É.
— Posso apostar que há 34 posições possíveis, que devem
permitir ver na Gioconda os 34 sinais escondidos. O
problema é que me pergunto como podemos ter certeza de
que os sinais sobreviveram. A Gioconda não está num estado
muito bom de conservação: Leonardo, como bom químico
que era, fabricava suas próprias tintas. Isso certamente lhe
deixava uma liberdade maior, e, como eu dizia a vocês, pôde
fazer vernizes notáveis, mas o resultado é que as cores
escureceram muito sob o efeito do tempo. Além disso, é
uma pintura sobre madeira e, portanto, não se conservou tão
bem quanto uma tela...
— Sem contar que não nos vejo entrando no Louvre com
nosso aparelho para auscultar a Gioconda — acrescentou
Sophie.
— Será preciso fazer um teste com a cópia — sugeri. —
Vamos ver no que dá.
— Foi o que concluímos.
Olhei os dois quadros colocados no chão. Inspirei
profundamente, depois levantei os olhos para Sophie e
Jacqueline.
— Meninas, vocês são geniais! Convido-as para um almoço
com nosso amigo Badji, claro!
Sob o olhar petrificado de Stéphane, abraçamo-nos os três.
Dividíamos a impressão de ter resolvido um velho enigma
de vários séculos, e realmente era excitante.
— O que vamos fazer com tudo isso? — perguntou Sophie
mostrando os papéis e os quadros no chão.
— Peguem a Gioconda — propôs Jacqueline. — Certamente
vão precisar dela para fazer a decodificação quando o
relojoeiro terminar a construção. Mas deixem-me o restante,
vou dar uma olhada esta noite para ver se consigo descobrir
mais alguma coisa.
Meia hora mais tarde, almoçávamos os quatro num pequeno
restaurante embaixo do prédio da Jacqueline. Estávamos
incrivelmente relaxados, quase esquecendo a pressão que
não parara de aumentar havia dias.
Já quase no final da refeição, recebi um telefonema de
François.
— Estou incomodando?
— Estamos num restaurante — confessei.
— Bom, mas tem gente que não se incomoda!
— Está tudo bem? — perguntei sem graça.
— Sim, muito bem. Seu relojoeiro chegou, já instalou uma
pequena oficina na garagem e se pôs a trabalhar. Eu queria
que ele descansasse um pouco, mas parece bastante animado
com o projeto. Não sei o que você disse a ele, mas está
motivado!
Sorri.
— É simpático?
— Adorável! Parece até um personagem de desenho anima-
do, do tipo Gepetto, com seus óculos pequenos e suas velhas
ferramentas. Instalei-o num quarto no primeiro andar e lhe
disse para sentir-se em casa...
— Obrigado, François. Não sei o que faríamos sem você.
— As mesmas besteiras, provavelmente...
Desejou-me boa sorte para o resto do dia, anunciou-me que
tinha conseguido tirar folga no dia seguinte e me fez
prometer que eu ligaria para ele no final da tarde para lhe
falar das novidades.
Passamos a tarde na casa da Jacqueline, dando continuidade
às nossas pesquisas. Por volta das onze horas, cansados
demais para continuar, deixamo-la para voltar à Étoile.
Propus que fôssemos ver se a Esfinge tinha novidades para
nós. Sendo assim, demos uma parada no cibercafé, mas sem
sucesso. A Esfinge não estava conectada.
Após ter esperado por quase uma hora, navegando em
diferentes sites, decidimos desistir e voltar ao hotel para
dormir.
Badji marcou encontro conosco no dia seguinte de manhã, e
acompanhei Sophie até seu quarto. Pediu que eu ficasse com
ela. Não fizemos amor, mas ela me abraçou forte e dormiu
juntinho de mim em poucos minutos, tão doce, tão bela.
Capítulo Onze
Na manhã seguinte, fui acordado pelo barulho da ducha,
Sophie havia se levantado cedo. Curti mais um pouco minha
preguiça, depois levantei, vesti um roupão e liguei na tomada
a cafeteira que estava sobre a mesa, na frente da
janela. Abri parcialmente as cortinas, para deixar entrar a luz
da manhã. Liguei a televisão, recolhi o jornal que haviam
passado debaixo da porta e me instalei confortavelmente
numa das duas largas poltronas.
Ainda não estava completamente acordado. Com a cabeça
no encosto, fechei os olhos. Sophie saiu da ducha. Parou
atrás da poltrona, passou os braços em torno do meu pescoço
e me beijou. Abri um olho e sorri para ela.
— Vou ao Canal — disse indo pentear-se diante do espelho
do quarto.
— Ah, é?
— Preciso de todo jeito dar sinal de vida. Meu redator-chefe
vai acabar se aborrecendo comigo.
— E eu, o que faço? — perguntei. — Quer que eu vá con-
tigo?
— Não precisa. Tente ver se a Esfinge voltou a se conectar.
Talvez tenha encontrado informações sobre a Acta Fidei. No
mais, só nos resta esperar o relojoeiro terminar a máquina e
tentar descobrir o código escondido na Gioconda. Nos
encontramos no final da tarde na casa dos Chevalier...
— Não gosto muito da idéia de nos separarmos...
— Assim vamos mais depressa. E, depois, você não pode ir
até o Canal comigo.
Eu a via perambular atrás de mim no reflexo da televisão.
Tinha mudado tanto... ou talvez fosse meu olhar que tivesse
mudado. Eu a via mais frágil e mais generosa ao mesmo
tempo. Menos dura, menos fechada. Seu rosto já não era o
mesmo. Novas rugas haviam aparecido de tanto sorrir. Uma
nova boca, mais doce. Seus ombros. Sua postura. Sophie era
um quadro vivo. Minha Gioconda.
— Bom, vou indo! — anunciou pegando o sobretudo na
entrada. — Vou de metrô, pode pegar o Volkswagen se
quiser. Até mais!
— Tenha cuidado!
Ela sorriu e desapareceu atrás da porta.
Passei alguns longos minutos na frente da televisão,
zapeando entre LCI e CNN, tentando descobrir qual dos dois
era o mais parcial, divertindo-me com as diferenças como
um pai que olha os dois filhos e se pergunta como puderam
crescer sem se parecerem. Eu me sentia tão fora de tudo
aquilo. Os Estados Unidos, a França. Aquele cotidiano me
parecia irreal. Anedótico até...
Recebi um telefonema de Badji pela linha interna do hotel.
Estava me esperando no hall. A realidade me trazia de volta.
Fui ao seu encontro. Seja como for, deixou-me tempo para
tomar um café da manhã decentemente, depois partimos a
pé para o cibercafé. Já havia quase se tornado uma rotina.
Mas eu supunha que isso não incomodasse Badji. Sua vida
devia ser feita de rotinas. De trajetos mil vezes repetidos.
Instalamo-nos em nosso computador habitual. Os garotos e o
sujeito da entrada já nem se espantavam de nos ver. Àquela
altura, praticamente fazíamos parte da decoração. O negão e
o more- ninho. Certamente uma decoração pouco comum,
mas o que há de normal na atmosfera fluorescente de um
cibercafé?
Conectei-me ao servidor e iniciei o IRC. A lista dos canais
apareceu. Entrei naquele da Esfinge. Estava vazio. Nosso
amigo hacker ainda não estava lá. Fato raro, sem dúvida, mas
não exatamente inquietante. Decidi tentar outro meio que
havíamos utilizado para entrar em contato com ele pela
primeira vez. O ICQ. Encontrei novamente seu número no
fórum que tínhamos visitado e lancei a pesquisa. Mas
também não estava lá.
Lancei um olhar perplexo a Stéphane, depois deixei uma
mensagem:
— Passei por aqui ontem à noite e agora de manhã. Até +.
Alice.
— Espero que não tenha acontecido nada — disse voltando-
me para Badji. — Bom, vamos dar uma volta e retornamos lá
pelo meio-dia para ver se recebeu minha mensagem.
O guarda-costas aquiesceu, e saímos rumo à Etoile.
Lentamente, subíamos em direção à praça.
— Aonde quer ir? — perguntou Stéphane.
— Sei lá... Temos uma hora ou duas pela frente. Faz tempo
que isso não acontece comigo. Tem alguma idéia?
Badji deu de ombros. Olhou ao nosso redor.
— Sabia que a sala Wagram era um templo do boxe no início
do século? — disse apontando para a rua homônima um
pouco mais adiante.
— Não. E daí?
— Não, nada...
— Não está querendo fazer uma visitinha, está?!? — excla-
mei.
Ele riu.
— Não, não. De todo modo, não acho que isso tomaria duas
horas.
Vasculhei os bolsos, um pouco por acaso, e dei com a chave
do New Beetle alugado pela Sophie. Mostrei-lhe o molho.
— Vamos dar uma volta de carro — propus.
— Vim com o Safrane, como deve saber...
— Sei, mas estou com vontade de dirigir. Faz tanto tempo...
— Então é melhor mesmo não pegar o Safrane — devolveu
sorrindo.
Voltamos para o estacionamento do hotel e, alguns minutos
mais tarde, rodávamos no coração da capital. Eu não dirigia
um automóvel fazia uma eternidade e, mesmo que tivesse
preferido atravessar Paris em duas rodas, senti certo prazer
em descer as grandes avenidas, ladear os cais, atravessar as
pontes. Eu dirigia sem pensar, guiado por um sopro invisível.
Embalados pelo som de uma rádio que tocava Paixão
segundo São João, de Bach, Badji e eu nem sentíamos
necessidade de falar. Éramos os hóspedes de Paname, uma
pequena bola de chumbo que rolava nos corredores daquele
grande bilhar elétrico.
As ruas se encadeavam, os semáforos passavam para o verde,
as fachadas desfilavam, depois me perdi num doce devaneio.
De repente, percebi que tinha estacionado o carro. Quase
sem me dar conta.
— O que vamos fazer? — perguntou-me Badji com ar
inquieto.
Virei a cabeça para a esquerda. Reconheci o longo muro ao
meu lado. Era a muralha do cemitério Montparnasse. Que
gênio audacioso me havia levado até lá?
— Stéphane — suspirei —, acho que vamos dar uma volta até
o túmulo dos meus pais.
Fiz uma pausa, como que espantado comigo mesmo pelo que
acabava de dizer.
— Incomodo? — perguntei dirigindo-lhe um olhar meio sem
jeito.
— Nem um pouco. Vamos lá.
Saímos do carro e nos dirigimos à entrada principal. A rua
estava silenciosa e sombreada. As lembranças começavam a
voltar. As más lembranças. Mas eu tinha vontade de
continuar. Passamos sob a porta e logo tomamos a direita.
Após alguns passos, parei e mostrei a Badji o túmulo de Jean-
Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
— Esse cara me deu a maior trabalheira no curso preparatório
para a Escola Normal Superior — expliquei sorrindo. —
Nunca entendi nada do existencialismo.
Stéphane bateu em meu ombro.
— Talvez não houvesse grande coisa para entender.
Voltei a caminhar, agora com as mãos nos bolsos. Chegamos
ao final da avenida e dobramos à esquerda. Um arrepio
percorreu minha espinha. Só estive duas vezes nesse
cemitério. Primeiro, para enterrar minha mãe, depois, meu
pai. Portanto, era a primeira vez que ia lá sem enterrar
ninguém. Só para ver. Uma primeira peregrinação. Não era
do meu feitio. Provavelmente teria dado meia-volta se Badji
não estivesse ao meu lado. Como um escudeiro. Sua
presença me tranqüilizava, e eu teria me sentido idiota se
desistisse no meio do caminho.
Os túmulos se sucediam aos nossos flancos. Vi o de
Baudelaire à nossa esquerda. Este nunca me aborreceu. Os
versos do seu Spleen voltavam à minha memória
oportunamente:
Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
E uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Suspirei. Por muito tempo, François e eu partilhamos um
amor ingênuo pelo poeta e, com a arrogância dos jovens
letrados, cabia àquele que mais conhecesse versos brilhar nas
noitadas dos estudantes do curso preparatório. Que idiotas
que éramos! Mas essas linhas nunca me deixaram. Essas
linhas só existiam para fazer bem. Tocaram-me lá no fundo e
me tocavam ainda mais quando eu as recitava.
Enfim, alcançamos o túmulo dos meus pais. Fiz sinal a Badji
de que havíamos chegado. Foi difícil apagar do meu rosto
um sorriso um pouco estúpido. Era mais forte do que eu.
Sentia vergonha por querer ir até lá.
Fiquei ereto diante do túmulo, cruzando maquinalmente as
mãos. Tinha dificuldade em me concentrar. Não sabia o que
pensar.
Não me faço essa pergunta, é mais prático. Minhas próprias
palavras voltavam à mente como uma sentença.
Não podia ver Badji, que ficou recuado, mas sentia sua
presença. Ele devia pensar que eu estava rezando. É o que
fazem as pessoas que crêem. Mas eu não me faço essa
pergunta, é mais prático.
E ali, imóvel diante daquela pedra gravada, disse a mim
mesmo que não sentia nenhuma presença divina. Estava
simplesmente sozinho. Terrivelmente sozinho. E não sabia o
que fazer. Chorar. Lembrar. Perdoar.
Engoli a saliva e dei um passo para trás.
— Seus pais ainda estão vivos, Stéphane?
Aproximou-se lentamente.
— Sim. Mas voltaram para Dacar. Não os vejo há muito
tempo.
— Acredita em Deus, Badji?
Hesitou. Eu estava com os olhos fixos no meu nome gravado
no mármore, mas sabia que ele me olhava. Acho que tentava
entender o sentido oculto da minha pergunta.
— Sabe — disse finalmente com sua voz doce e grave —,
não é preciso acreditar em Deus para se recolher na frente
de um túmulo.
Balancei a cabeça. Ele havia entendido o sentido da minha
pergunta. Melhor do que eu mesmo a entendia.
Ainda fiquei alguns segundos imóvel, depois dei meia-volta.
— Já deu, vamos embora.
Sorriu para mim e fomos para a saída do cemitério. Eu tinha
um nó na garganta, mas estava bem. Estava melhor.
Já havia passado um pouquinho do meio-dia quando Badji e
eu entramos em outro cibercafé. Falei com o atendente e fui
me sentar diante de um computador. Estava impaciente para
ver se a Esfinge finalmente havia voltado. Comecei a ficar
um pouco preocupado. Não conseguia esquecer a frase que
ela dissera a Sophie em nossa primeira conversa: Big brother
is watching.
Percorri o conteúdo do computador, mas nem o IRC nem o
ICQ estavam instalados naquela máquina. Tive de instalá-los
eu mesmo para entrar em contado com a Esfinge. Cada vez
mais impaciente, entrei na internet para procurar os
programas num site de downloads. A transferência durou
vários minutos, depois, a instalação, exageradamente longa,
arruinou um pouco mais minha paciência.
Por volta de meio-dia e meia, conectei-me ao servidor
chileno. Com os dedos tremendo, procurei nosso
interlocutor misterioso. A lista dos canais apareceu na tela,
mas ainda nada da Esfinge. Dei um murro na mesa. Decidi
tentar nossa última chance, o ICQ. Digitei o número do
hacker. Nada. Não apenas não estava na linha, mas também
não respondera à mensagem que eu lhe deixara. Desta vez,
comecei a entrar em pânico. Havíamos sido nós a envolver a
Esfinge nessa história, e eu nunca poderia me perdoar se lhe
acontecesse alguma coisa.
— Merda! — soltei pegando o telefone no bolso.
Digitei o novo número da Sophie. Era preciso avisá-la e
perguntar-lhe se havia outro meio de entrar em contato com
o hacker. Mas caiu na secretária eletrônica.
— Sophie, sou eu, ligue para mim assim que receber minha
mensagem — anunciei antes de desligar.
Vesti o sobretudo.
-— Bom, vamos comer no hotel, assim passamos o tempo —
propus a Badji.
Após ter escapado dos engarrafamentos do meio-dia,
chegamos ao Splendid Etoile. Deixei o carro com um
funcionário do hotel, e passamos sob a marquise que cobria a
entrada. Fui diretamente para a recepção.
— Por acaso tem algum recado para mim?
Estávamos registrados com nomes falsos, e as chances de
alguém nos ter deixado algum recado eram pequenas.
Sophie, cheia de imaginação, não encontrara nada melhor do
que senhor e senhora Gordes.
A recepcionista fez que não com a cabeça, com ar desolado.
— Tem certeza? — insisti.
A recepcionista levantou as sobrancelhas.
— Absoluta. Não há nenhum recado. Bem, aquela moça ali
está procurando certa senhora de Saint-Elbe. Disse-lhe que
não temos esse nome no registro, mas ela insistiu em
esperar. Seria o nome da sua esposa?
Voltei-me imediatamente para olhar na direção indicada pela
recepcionista e vi, sentada num dos sofás do hall do hotel,
uma moça que devia ter no máximo dezoito anos. Tinha
longos cabelos castanhos, óculos redondos, era magra, vestia
jeans da cabeça aos pés, um enorme lenço amarrotado que
caía até os joelhos e mascava chiclete fazendo barulho.
Parecia angustiada e pouco à vontade. Nunca a vira em parte
alguma e me perguntava quem poderia ser.
Senti que Stéphane estava de prontidão. Observou a moça e
se deslocou para passar um pouco à minha frente.
— Tudo bem, Badji — tentei tranqüilizá-lo.
Avancei em direção à moça, que se levantou ao me ver
chegar.
— Bom-dia — disse-lhe franzindo as sobrancelhas. — Está
procurando a senhora de Saint-Elbe?
— Alice? — perguntou a moça fitando-me com a cabeça
inclinada. — Você é Alice?
— Esfinge?!? — espantei-me.
— Sim! — confirmou a moça levantando-se num pulo.
Houve em seus olhos uma expressão de alívio. Fiz um gesto
de recuo. Esperava tudo, menos aquilo. Uma menina.
Parecia inacreditável. E se não fosse realmente a Esfinge...
— Bom, como posso ter certeza? — perguntei um pouco sem
graça.
— Haigormeyer, Unired, Chile? — enunciou com ar
interrogativo.
Era ela. A própria.
— Mas quantos anos você tem? — não pude deixar de
perguntar, aturdido.
— Dezenove.
— O que você fica fazendo o dia todo na frente de um
computador? Não deveria estar na faculdade?
Fez uma careta.
— É um interrogatório? Fui expulsa em outubro.
— Expulsa de uma faculdade? Se esforçou hein! E agora, o
que faz?
Ela devia pensar que eu estava bancando o coroa idiota, mas
é que não dava mesmo para acreditar... Uma menina de
dezenove anos que passava seus dias fazendo investigações
mais ou menos piratas na internet. Chegava a ser
desconcertante.
— Escute, Damien — é esse seu nome, não é? —, tenho
dezenove anos, e não doze. Eu me viro, não se preocupe
comigo. Ganho melhor minha vida on-line do que se tivesse
feito medicina...
— Está certo — admiti.
Afinal de contas, depois do que havia feito por nós, eu que-
ria mesmo acreditar nela. Ainda estava chocado, mas
começava a aceitar a idéia.
— Bom, o que está fazendo aqui?
Já ia me responder, mas logo a interrompi:
— Espere, não vamos falar disso no saguão. Bom, lhe
apresento Stéphane, que nos acompanha.
— Bom-dia.
Ela falava rápido, como se tivesse medo de não ter tempo de
dizer tudo. Badji contentou-se em inclinar a cabeça.
— Já almoçou? — perguntei-lhe.
— Não. Preciso falar com você!
Esfregava as mãos, angustiada. Havia acontecido alguma
coisa.
— Bom, vamos pegar uma mesa tranqüila, e você vai me
contar tudo...
Seguiu-me até o restaurante do hotel. O garçom nos propôs
uma mesa afastada. Já estava se habituando com minha
necessidade de isolamento. Com meu comportamento
estranho e meu guarda-costas, devia achar que eu era um
mafioso ou agente secreto...
— O que está acontecendo? — perguntei à moça, tentando
tranqüilizá-la com um sorriso.
— Haigormeyer... Enfim, Sophie... Ela não está?
— Não.
— Encontrei o que estavam procurando.
— Tem informações sobre a Acta Fidei?
— Melhor do que isso.
Mordeu os lábios. Olhou rapidamente para trás. Parecia mais
paranóica do que eu.
— Invadi o servidor deles. Roubei o documento da morte!
— Como assim?
— Não vai acreditar.
— Diga logo!
— Uma foto da tabuleta que roubaram dos religiosos!
Arregalei os olhos.
— Está brincando?
— Não.
Pegou um CD no bolso do jeans gasto e colocou na minha
frente.
— Está tudo aí — garantiu-me sem afastar os olhos de mim.
Eu estava espantado. Aliás, não tinha certeza de ter entendi-
do bem. Será que ela havia realmente encontrado o texto
criptografado de Jesus? Ou será que se tratava de outra coisa?
— O texto de Jesus está aqui? — insisti.
— Pelo menos a foto, sim. Uma cópia escaneada e colorida.
De boa qualidade.
Olhei para ela aturdido. Tinha a impressão de estar
sonhando.
— É... — balbuciei. — Tem absoluta certeza? Levantou os
olhos para o teto.
— Estou sendo categórica. E a foto de uma tabuleta de pedra.
Há um texto gravado sobre ela. Enfim, não exatamente um
texto, mas letras.
— Quantas?
— Como assim quantas? Não contei!
— Mais ou menos? — insisti. — Umas dez ou umas mil?
— Umas trinta — estimou.
— Algo como 34? — sugeri, cada vez mais agitado.
— É possível.
— Em que língua?
— Sei lá, não são palavras, apenas letras, mas parecem mais
com o alfabeto grego...
— Cacetada! É... qual é seu verdadeiro nome?
— Lucie.
— Lucie. Você é demais!
— Sou mesmo, mas também estou na maior encrenca!
Acabei sendo pega!
— Como assim?
— Consegui mandar pelos ares a segurança do servidor deles,
mas deixei rastros. Sei que vão conseguir me pegar. Desliguei
meu PC na hora, mas já era tarde demais. Fugi de casa
imediatamente, mas se me descobriram, já devem estar lá.
— Merda! — soltei.
— Merda mesmo! E da grande! Porque esses caras que estão
atrás de vocês não são nada de brincadeira!
Refleti.
— Bom, não se preocupe. Vamos protegê-la por alguns dias
até darmos um jeito nessa situação.
— Nunca estarei protegida com esses caras atrás de mim! —
exclamou batendo na mesa.
Os outros clientes nos lançaram olhares exasperados.
— Estará sim. Garanto a você. Vamos encontrar um jeito.
Preciso ligar para a Sophie. Quero que ela esteja presente
quando formos olhar a foto. Depois, vamos a Sceaux, à casa
de um amigo meu.
Badji riu. Virei a cabeça. Entendi. Outra convidada para
François e Estelle. Estava ficando ridículo. Mas eu não tinha
escolha.
— Quem é esse seu amigo? — inquietou-se a moça.
— Não se preocupe. E um deputado. Certamente vai poder
cuidar da sua segurança. Mora sozinha?
— Moro.
— Está bem. Bom, vou ligar para a Sophie.
Digitei seu número. Novamente caiu na secretária.
— Que droga! Bom, vou tentar no Canal. Ela foi até lá falar
com seu redator-chefe.
Liguei para o serviço de informações, descobri o número da
emissora. Passaram-me para a redação do 90 minutos.
— Bom-dia, gostaria de falar com o redator-chefe.
— Um momento.
Tive direito à tradicional musiquinha de espera. Tamborilei
sobre a mesa, impaciente. Por fim, o jornalista atendeu:
— Alô?
— Bom-dia, aqui é Damien Louvei. Sou...
— Sim, eu sei quem é — interrompeu. — Sabe onde está
Sophie?
Parecia inquieto.
— Não está com o senhor?
— Tínhamos um encontro há duas horas e estou esperando
até agora.
Imediatamente, fui tomado pelo pânico. Era uma evidência.
Havia acontecido alguma coisa com a Sophie. Eu já não
conseguia falar. Meu coração batia com toda a força.
— Ela... Não teve nenhuma notícia dela? — balbuciei.
— Não. Estou tentando encontrá-la desesperadamente há
duas horas!
— Merda!
— Escute, não se preocupe tanto, não é a primeira vez que
ela se atrasa. Vou precisar me ausentar, mantenha-me
informado assim que tiver alguma novidade.
Não ousei dizer-lhe que, daquela vez, provavelmente tinha
realmente acontecido alguma coisa.
— Está certo — respondi apenas, antes de desligar.
Badji me olhava. Esperava que eu lhe dissesse o que fazer. Eu
via ondas de culpa nos seus olhos.
— Eu nunca devia ter deixado vocês dois se separarem! —
praguejou.
Mas eu mal o ouvia. Estava pensando. O que fazer? Aonde
ir? Avisar a polícia? Eu me sentia incapaz de tomar a mais
simples decisão. Estava completamente transtornado.
Segurando com firmeza o celular na mão, bati a antena na
mesa, como para ritmar minha angústia.
A moça torcia os dedos. Não ousava dizer nada.
Provavelmente, também estava aterrorizada.
— O que fazemos nesses casos? — perguntei a Badji. —
Chamamos os tiras? Ligamos para os hospitais?
—- Como ela foi para lá? — indagou o guarda-costas com ar
pensativo. — De táxi? Metrô?
Não tive tempo de responder-lhe: meu telefone começou a
tocar. O número de Chevalier apareceu na pequena tela.
— Damien?
— Sim.
— Raptaram a Sophie! — exclamou François do outro lado da
linha.
— Quem? Quando? Como sabe disso?
— Não sei quem! — irritou-se Chevalier. — Acabaram de
ligar para o celular da Claire Borella. Dizem que raptaram a
Sophie! Querem a pedra de Iorden em troca! Acha que estão
blefando? Ela não está com você?
Falava muito rápido. Mas eu não conseguia responder. Estava
sem fôlego. Mordi os lábios. Era preciso reagir.
— Damien? Está me ouvindo?
-— Estou. Não, ela não está comigo. E não foi encontrar o
chefe na emissora! Droga! Nunca deveria ter deixado ela
sozinha!
— Então realmente a pegaram! — lançou François.
— Disseram que querem trocá-la pela pedra de Iorden? —
perguntei incrédulo.
— Isso!
— Mas não estamos com a porra dessa pedra! —- exaltei-me.
— Bom, já estou indo aí!
Desliguei, levantei-me, vesti o sobretudo, deixei duas notas
sobre a mesa e fiz sinal aos outros dois para me seguirem
— Vamos direto para Sceaux — expliquei precipitando-me
para fora.
O pânico gelava meu sangue. O medo corroía meu ventre.
Meu estômago dava um nó. Eu sofria por não poder fazer
nada. Tinha vontade de voltar atrás. De desistir de tudo. De
dizer-lhes que não estava nem aí para a porra daquela pedra,
para a porra daquela mensagem. Tudo o que eu queria era
minha Sophie de volta.
Mas só havia o vazio da rua para ouvir meu terror.
— Vão ligar de novo para marcar um encontro — explicou-
me François, quando eu tentava em vão me acalmar,
estendido no sofá de couro. — Acham que você está com a
pedra. Sabiam que Claire podia entrar em contato contigo.
— Vão matá-la! — entrei em pânico. — Está na cara! Quando
virem que não tenho a pedra, vão matá-la!
Chevalier deu um longo suspiro. Desde minha chegada, ele
tentava me tranqüilizar, mas agora não conseguia
tranqüilizar nem a si mesmo. Estávamos todos reunidos na
sala, esperando, angustiados, o telefone tocar. Estelle, Claire,
François, Stéphane e até Lucie, que se encolhia toda numa
poltrona perto da lareira.
— Bom — retomei erguendo-me de uma só vez —, se "eles"
querem a pedra... É o Bilderberg que está com a pedra.
Portanto, provavelmente "eles" são a Acta Fidei. Têm o
texto. Disso temos certeza, porque a Lucie conseguiu fazer o
download da foto a partir do servidor deles. Sendo assim,
querem a pedra porque ela possui o código que permite
decifrar o texto deles. Não estamos com a pedra, mas ainda
temos uma chance de ter o código. Pois também está
escondido na Gioconda. A questão é: será que vão se
contentar com o código se eu lhes disser que não estou com
a pedra?
— De todo modo, não terão escolha — respondeu François,
levantando as mãos à sua frente.
— Então precisamos nos apressar para decifrar a porra desse
código. Estelle, sabe em que ponto está o relojoeiro?
— Não parou de trabalhar. Da última vez que fui vê-lo, estava
bem adiantado. Quer que eu vá perguntar de novo?
— Não, não, deixe que eu vou, não se canse.
Mas ela já estava de pé.
— Não se preocupe — disse-me —, isso vai refrescar minhas
idéias, e adoro vê-lo trabalhar.
Foi para a garagem. Dava para ouvir o barulho das
ferramentas, rangidos, golpes de martelo... Uma coisa era
certa: ele não tinha terminado.
— Bom, vamos tentar ficar calmos — disse eu, como para
confortar a mim mesmo.
François deixou-se novamente cair na poltrona. Badji estava
de pé, na entrada. Podia sentir sua frustração de onde eu
estava.
— E se você nos mostrasse a foto da tabuleta enquanto isso?
— perguntei a Lucie, tentando sorrir.
— Tem algum computador por aqui?
— Lá em cima — respondeu François. — Ou então meu
laptop, que está no carro.
— Vou buscá-lo, senhor! — interveio Badji, que visivelmen-
te tinha necessidade de se movimentar.
Reapareceu alguns instantes depois com o computador de
François, seguido de Estelle, que voltava da garagem.
— O relojoeiro acha que termina no final da tarde — ex-
plicou.
— Excelente!
— Está esgotado, coitado. E ouvindo nosso pânico. Confesso
a vocês que não está sendo fácil tranqüilizá-lo...
— Poderia ficar lá com ele? — supliquei-lhe. — Converse,
acalme ele, sei lá... Precisamos de um milagre, e você é a
rainha dos milagres!
— Não precisa rasgar essa seda toda! Claire, vem comigo?
A moça acompanhou-a, e ambas foram ao ateliê improvisado
onde o relojoeiro se havia instalado.
Ao meu lado, Lucie tinha ligado o laptop. Esperou terminar a
seqüência da inicialização, depois inseriu seu CD no leitor.
Deslizei sobre o sofá para me aproximar dela e olhar por
cima do seu ombro. François puxou a poltrona para mais
perto.
A moça abriu o Photoshop. O programa carregou lentamen-
te. Depois ela selecionou o leitor de CD-Rom e clicou num
arquivo intitulado "tab__af_ibi2.eps".
Aos poucos, a foto foi aparecendo na tela plana do
computador portátil. Nela, dava para ver uma tabuleta de
pedra cinza, retangular, bastante antiga, a julgar pelo estado,
e na qual estavam gravadas várias letras em seqüência.
Era mesmo o alfabeto grego. Não perdi nem um segundo
sequer e comecei a contá-las uma a uma.
— Vejam só! — espantei-me. — Que estranho. Só contei 33
letras!
Contei novamente. Mas não estava enganado.
— E por que é estranho? Por supostamente ser a idade de
Cristo quando morreu? — perguntou Lucie confusa.
— Não, isso é bobagem. Não, acho estranho porque pensei
que fosse haver uma letra a mais. Sophie e Jacqueline
disseram que, segundo a Melancolia, era possível supor que
o código possui 34 letras, pois indicaria 34 posições sobre a
Gioconda...
— O código — repetiu Lucie. — Mas este não é o código, é a
mensagem codificada! O código é que permite decifrá-la!
— Sim, bom, 34 elementos para decifrar um texto de 33
letras não deixa de ser estranho...
— A não ser que o 34° elemento do código sirva para codifi-
car os espaços, por exemplo — replicou Lucie.
— O que explicaria o fato de todas as letras estarem em
seqüência na tabuleta — encadeou François. — Bem
pensado!
Sorri para Lucie e olhei as letras mais de perto. Eram mesmo
letras gregas, lembrava-me vagamente dos cursos de idiomas
arcaicos que François e eu fizemos juntos antes do curso
preparatório, mas o que estava escrito ali não tinha sentido
algum.
— Por que está em grego? — perguntou Lucie.
— Segundo a Sophie, na linguagem escrita, era um dos
idiomas mais utilizados na época de Jesus, embora se falasse
mais o aramaico.
— Quantas letras tem o alfabeto grego?
— Vinte e quatro — respondeu François.
— Então, o código compreende mais elementos do que as
letras do alfabeto. Sendo assim, não é simplesmente um
alfabeto codificado. Se pensarmos que o 34° elemento do
código corresponde a outra coisa que não uma letra à parte,
como aos espaços, isso significa que há tantos elementos no
código quantas letras na mensagem. Trinta e três. O cara que
codificou isso era inteligente pra caramba...
— Ei, você provavelmente está falando de Jesus...
Começamos os três a rir. Apesar do estresse, dizer que Jesus
era "inteligente pra caramba" tinha algo de tão surrealista que
não podíamos resistir.
— Em suma, ele era... sim, inteligente — repetiu Lucie
fazendo uma careta.
— Por quê?
— O melhor meio de criptografar uma mensagem é fazer de
modo que haja uma chave por letra. Assim, sem ciclo, sem
motivo recorrente. E claro que o código é tão pesado quanto
o texto, o que faz com que raramente se criptografe um
texto muito longo desse jeito, mas, para uma mensagem de
33 letras, é o ideal.
— Você está querendo dizer que cada elemento do código é
uma chave diferente para cada letra da mensagem?
— Provavelmente — afirmou Lucie. — Bastaria, por exem-
plo, que fosse um simples número. Um número por letra,
que dê o deslocamento da letra no alfabeto.
— Dê um exemplo...
— Não conheço o alfabeto grego...
— Com o nosso.
— Se eu quisesse escrever SIM, por exemplo. A mensagem é
de três letras. Então preciso de três elementos no meu
código. Digamos, para simplificar, 1, 2 e 3. Então a
mensagem poderia ser RGJ.
— Ah, entendi — confirmei. — R + 1dá S; G + 2 dá
I e J + 3 dá M. O resultado é SIM. Nos deslocamos no
alfabeto. Entendido. 123 associado a RGJ dá SIM.
— Exatamente. A cada letra se associa um número. Portanto,
temos 33 letras na mensagem criptografada e 33 números no
código.
— Sim, só que, nesse caso, temos 34.
— De todo modo, nada podemos fazer enquanto não tiver-
mos a máquina.
Mas estávamos muito próximos. Estava tudo ali. Ao alcance
da mão. A máquina e, portanto, em breve, o código e a
mensagem.
Eu mal conseguia acreditar. Uma mensagem mantida em
segredo por dois mil anos.
Olhei para meus dois companheiros. Aquele excêntrico
deputado e aquela garota que crescera rápido demais.
— Vocês me prometem uma coisa? — pedi-lhes com uma
voz pouco confiante.
— O quê?
— Vamos esperar a Sophie. Quando tivermos o código, não
vamos decodificar a mensagem imediatamente. Vamos
esperar a Sophie. Devemos isso a ela.
— Entendo — afirmou Lucie.
— Mas claro! — exclamou François por sua vez.
Lucie fechou o arquivo no computador, tirou o CD e o
estendeu a mim.
— Tome. Vocês precisam fazer isso juntos, só os dois.
— Tem certeza?
— Tenho. De todo modo, não sou louca, guardei uma cópia!
— acrescentou fazendo uma careta. — Sendo assim, se
decidirem guardar segredo, garanto que não vou esperar
muito tempo.
— Não se preocupe, prometemos que lhe diríamos tudo. E
vamos lhe dizer tudo.
Levantei-me e fui colocar o CD no bolso do meu sobretudo.
— François — disse ao voltar para a sala —, precisamos
encontrar um meio de proteger a Lucie.
O deputado aquiesceu.
— Certo. Seja como for, pensei bastante e... sinto muito,
Damien, mas você só tem até esta noite para resolver seu
problema. E, aconteça o que acontecer, amanhã vamos
informar as autoridades. Isso já está ficando perigoso demais.
Balancei a cabeça, resignado.
— Vamos ter que explicar tudo isso à polícia, mas também
aos investigadores de Gordes... E, de uma maneira ou de
outra, vamos ter de avisar o Vaticano. Eles precisam pôr
ordem na casa! Quando tivermos revelado o que se passa nos
arquivos secretos da Acta Fidei, suponho que ninguém no
Vaticano vá achar isso muito católico...
— Provavelmente. Enquanto isso, precisamos descobrir um
meio de tirar a Sophie de lá!
Voltei a sentar-me no sofá, e assim ficamos por quase uma
hora, trocando algumas breves palavras, alguns olhares. Os
segundos passavam e levavam com eles minhas últimas
sombras de paciência.
No meio da tarde, Claire entrou precipitadamente na sala
segurando no alto o celular.
— Está tocando! — exclamou.
Tive um sobressalto. François se levantou. Estelle apareceu
por trás da moça. O telefone continuava a tocar.
— Quer atender? — perguntou-me Claire estendendo-me o
aparelho.
Fiz que sim com a cabeça. Peguei o telefone.
— Alô? — atendi um pouco rápido. — Alô?
Eu estava com os nervos à flor da pele.
— Senhor Louvel?
— Onde está Sophie? — gritei furioso. — Ela não tem nada a
ver com isso, deixem ela em paz!
— Às 22 horas, esta noite, na frente do túmulo de Michelet.
Leve a pedra ou ela morrerá.
— Mas não tenho...
Não tive tempo de terminar a frase. Tinham desligado.
Deixei-me cair novamente no sofá, com a cabeça entre as
mãos.
— O que disseram? — pressionou-me Badji, de pé diante de
mim.
— Às 22 horas, essa noite, na frente do túmulo de Michelet
— balbuciei.
— Onde está enterrado esse cara? — perguntou desajeitada-
mente o guarda-costas.
— No Père-Lachaise.
— A essa hora o Père-Lachaise está fechado — acrescentou
Badji.
— Talvez seja por isso que marcaram o encontro lá...
— Vamos ter que pular o muro — concluiu o guarda-costas.
— Fico me perguntando por que diabos escolheram o Père-
Lachaise... Meio louco, não? Podíamos esperar uma antiga
usina desativada na periferia, né?
— Não -— replicou Badji. — Não tem ninguém à noite no
cemitério, a não ser alguns punks drogados. É difícil chamar
por socorro. E, depois, há obstáculos por toda parte, é cheio
de lugares para se esconder... Me parece lógico.
— O que realmente me preocupa — interrompi — é o fato
de não termos a pedra!
— Hão de se contentar com o código — disse François. —
Ou então chamamos os tiras.
— Nem pensar! — fulminei. — Esse é o melhor meio de
matá-la. Não! Vamos lá, explicamos a eles que temos o
código, não a pedra, e rezamos para que aceitem se
contentar com isso.
— Esse é seu plano? -— interveio François. — Rezar?
— Você tem coisa melhor?
Fez que não com a cabeça. Virei-me para Estelle.
— Em que ponto está o relojoeiro?
— Avançado, mas ainda não terminou!
— Nem sei direito o que temos que fazer com a porra dessa
máquina. Preciso ligar pra Jacqueline!
Peguei o telefone e liguei logo em seguida para a amiga da
Sophie. Tentando não transmitir minha angústia, expus a
situação. Claro que ela começou a se desesperar, mas disse-
lhe que não tínhamos tempo para ceder ao pânico e que era
hora de agir.
— Bom, sendo assim, preciso do código para essa noite. O
que faço com a Mona Lisa? Teve tempo de avançar?
Eu só tinha visto Jacqueline duas vezes, mas tinha a impres-
são de conhecê-la havia muito tempo. Como se Sophie me
tivesse transmitido a estima que nutria pela matemática da
arte.
— Sim, avancei. Não tenho certeza de nada, mas vamos ten-
tar. Então, você precisa colocar a Gioconda na vertical, a
exatamente 52,56 centímetros da máquina.
— Quanto? — perguntei.
— 52,56 centímetros. Equivale a um cúbito. Não se contava
em metros na época de Dürer.
— Como descobriu isso?
— Quer realmente saber? E complicado.
— Tente mesmo assim — exortei-a.
— O quadrado mágico, além de dar um resultado de 34 em
todos os sentidos, também dá coordenadas a serem seguidas
no meio da gravura. Essas coordenadas incidem em objetos
ou sinais que formam uma espécie de frase, que, pelo que
suponho, é o modo de uso da máquina. Não tenho muita
certeza da minha hipótese, mas parece fazer sentido, o que
já é alguma coisa. De todo modo, não temos outra escolha.
— OK.
— Portanto, há duas coordenadas que, se entendi direito,
indicam a distância a que deve se encontrar a Gioconda: a
primeira incide bem no I de Melancolia I, e a segunda, no
cotovelo do personagem. De I e cotovelo deduzi que é
preciso colocar um cúbito, ou seja, 52,56 centímetros.
— Está certo. É forçar um pouco a barra, mas vamos tentar.
— Você tem proposta melhor?
— Não — confessei.
— Então vamos confiar na minha interpretação. Vamos ver
no que vai dar. Preste atenção, precisa estar totalmente na
vertical e exatamente a 52,56 centímetros da máquina, na
frente do cone que sai da caixinha.
— Espere! Vou ao ateliê! — expliquei saindo da sala. — A
máquina ainda não está pronta, mas já posso posicionar o
quadro... Ele não está em bom estado, por causa do incêndio.
Espero que funcione assim mesmo!
Cheguei ao ateliê. Cumprimentei o relojoeiro, que me
lançou um olhar petrificado. Não tinha tempo para explicar-
lhe o que quer que fosse nem de ser cortês.
Ao me voltar, vi que todo o mundo me havia seguido.
Nunca que iria caber.
— Todos para fora! — ordenei. — Menos a Lucie!
Ela era quem mais podia me ajudar nesse caso.
— Não desligue, Jacqueline, vou pegar um fone de ouvido,
assim posso fazer o que me disser e continuar falando com
você.
Saí da garagem para procurar o fone de Badji no carro e o
liguei no telefone. Prendi o celular na cintura e voltei
rapidamente para a garagem.
— Pronto, aqui estou eu. Então, você dizia que devo colocar
o quadro a 52 centímetros da frente da máquina?
— 52,56 centímetros, exatamente.
— Em que altura?
— A parte inferior do quadro precisa estar exatamente na
horizontal em relação à parte inferior do primeiro espelho...
— Como calculo isso?
— Não sei. Com uma régua e um nível de bolha ou um fio de
prumo!
— Deve ser fácil encontrar isso, afinal, estou na garagem de
um franco-maçom! — ironizei.
Comecei a procurar entre as ferramentas. Tentei não fazer
muito barulho para não incomodar o relojoeiro. Finalmente,
encontrei minha felicidade depois de desarrumar todos os
armários e tirar do lugar metade das caixas de papelão
empilhadas na garagem. Uma régua grande, um nível,
pregos, um martelo e dois altos tripés que provavelmente
haviam servido para sustentar muros.
Com a ajuda da Lucie, tentei fixar o quadro num dos dois
tripés. Depois de várias tentativas fracassadas, voltei a
colocar o quadro no chão, suspirando.
— Bom, Jacqueline, está um pouco complicado, vou desligar
e tentar fazer isso direito. Volto a ligar para você, tudo bem?
— Boa sorte!
Pedi socorro a François. Pelo modo como apareceu depressa,
devia estar esperando atrás da porta. Conhecia sua garagem
bem melhor do que eu e não teve dificuldade alguma em
encontrar as ferramentas mais apropriadas. Sem interromper
o trabalho na máquina de Da Vinci, o relojoeiro nos
prodigalizou alguns conselhos, e finalmente o quadro ficou
no lugar, solidamente ancorado.
François verificou várias vezes se estava na distância e no
alinhamento corretos. Todavia, era difícil ser de uma
precisão infalível... 52,56 centímetros! Com a ajuda do
relojoeiro, também fixou a máquina no chão para evitar ter
de recalcular tudo em seguida.
Peguei o telefone e liguei de novo para Jacqueline.
— Pronto — anunciei. — Mas é difícil ter certeza de que está
milimetricamente alinhado!
— Não tem problema — tranqüilizou-me. — Se entendi
direito, a primeira posição permite que você calibre o
aparelho.
— Ah, é? Ah, então talvez seja por isso que teria 34 letras
quando na verdade são só 33.
— Certamente. Na verdade, não entendo bem porquê, mas a
primeira posição lhe dá o que Dürer chamou de "paleta".
— E daí?
— Acho que significa que os elementos do código na verda-
de são cores.
— Mas as cores corresponderiam a números?
— Por quê? — perguntou Jacqueline.
— Porque, segundo a Lucie, é possível que o código seja uma
sucessão de números. Mas como as cores poderiam
corresponder a números?
Lucie me pegou pelo braço. Pediu que eu repetisse o que
Jacqueline me dissera ao telefone. Obedeci.
— E incrível! — exclamou.
— O quê?
A moça andava de um lado para outro. Estava completamen-
te agitada.
— Da Vinci era bom mesmo! — murmurou, como se
continuasse a compreender a resolução do enigma em sua
cabeça.
— Explique!
— Inventou a numeração antes da hora! Mais uma vez, é um
procedimento que se aproxima do que se faz em informática
hoje!
— Como assim?
— É mais ou menos o mesmo sistema de compactação dos
arquivos GIF. Cada imagem GIF dispõe de uma paleta de
cores que lhe é própria, uma espécie de índice numerado,
integrado ao arquivo. A cada cor é atribuído um número
preciso na paleta. E, portanto, Da Vinci já teria pensado
nesse sistema de codificação ultra-simples! Pense só! Ele não
podia correr o risco de utilizar códigos de cores sabendo que
estas poderiam envelhecer. Aliás, fez bem, pois de fato as
tintas das suas pinturas escureceram. Sendo assim, inseriu
sua paleta, a referência das suas cores, no próprio quadro! O
que faz com que a paleta tenha sofrido o mesmo
envelhecimento que as cores do quadro.
— Ah. E você entende como funciona isso?
— Claro! — replicou Lucie, completamente agitada. — Pelo
menos, é o que acho! Veja. A primeira posição da máquina
vai nos permitir ampliar o que deve ser a paleta. Se eu não
estiver enganada, vamos descobrir uma seqüência de 33
cores, alinhadas uma após a outra. Assim, saberemos que a
primeira cor corresponde ao número 1, a segunda, ao
número 2 etc. Em seguida, as 33 posições, posso até apostar,
vão nos dar 33 cores, uma a uma, e só precisaremos olhar a
posição dessa cor na paleta para encontrarmos a
correspondência em números.
— Bom, se você está dizendo!
— Mas claro! E perfeito! Teremos nosso código de 33
números!
— OK. Mas se há 33 cores ordenadas, então haverá números
de um a 33. Ora, só há 24 letras no alfabeto grego!
— Mas não se trata de letras, e sim de números! De números
que nos indicam em quantas posições é preciso deslocar as
letras da mensagem criptografada! É preciso considerar que o
alfabeto é um círculo. No nosso alfabeto latino, por exemplo,
se tivéssemos A e 2, isso daria C, certo?
— Sim. Isso eu entendi.
— Muito bem, se tivéssemos A e 30, isso daria... esperem,
vou calcular...
Mentalmente, vi-a fazer as letras desfilarem em sua cabeça.
— Daria E! Damos uma volta!
— Entendi. Está certo. Agora só nos resta esperar a máquina!
— exclamei impaciente.
— Vou terminar em pouco mais de uma hora! — interveio o
relojoeiro. — Mas preciso de um pouco de silêncio, se não
for incomodá-los.
Provavelmente o pobre homem estava com dificuldade para
se concentrar em meio à nossa efervescência. Fiz sinal aos
outros para saírem e voltamos à sala. Prometi a Jacqueline
que ligaria para ela assim que tivéssemos a máquina em
mãos.
Os minutos que se seguiram nos pareceram intermináveis.
Não parei de me levantar e voltar a me sentar, esfregando as
mãos como para espantar o estresse. Estelle fez chá para nós,
e Lucie tentou nos explicar melhor sua teoria sobre a paleta
de Leonardo. Estava encantada com a engenhosidade do
pintor italiano, e percebemos que queria ir falar a respeito
num dos inúmeros fóruns onde encontrava seus amigos
hackers. Mas a hora não era de vulgarização on-line.
Chegaria o momento certo para isso.
Mais tarde, bem no início da noite, Estelle propôs fazer algo
para nosso jantar. Mas ninguém estava com fome. François
se levantou para ligar a televisão, desligou-a pouco depois,
percebendo que não conseguia suportar o barulho.
De repente, o relojoeiro irrompeu na sala.
— Terminei! — anunciou sorrindo.
Levantamos todos num pulo.
— Opa! — encadeou, fazendo-nos sinal para que nos
acalmássemos. — Para ir mais depressa, deixei um pouco de
lado a solidez de algumas peças. Portanto, trata-se de um
aparelho muito frágil! Gostaria que tomassem bastante
cuidado!
— Claro — garanti-lhe. — Só Lucie e eu vamos entrar na
garagem; os outros vão olhar pela porta.
— Não vai querei esperar a Sophie? — questionou Estelle.
— Não! — interveio François impaciente. — Está louca? É o
código que estamos procurando! Vamos decodificar a
mensagem e procurar o código. Precisamos dele para libertar
a moça!
— Desculpem, mas é que esse negócio de vocês não é nada
simples!
Lucie e eu seguimos o relojoeiro. Ele nos mostrou com
orgulho sua obra-prima. Tinha trabalhado com uma rapidez
notável e uma discrição que exigia respeito. Apertei-lhe a
mão da maneira mais calorosa possível, depois liguei para
Jacqueline.
— Alô? E o Damien. Bom, aqui estamos. Estou diante da
máquina. Ela está pronta. E o quadro está no lugar.
— Perfeito! Então, deixe-me ver, meu caro. Está vendo a
parte central? Uma espécie de caixa que desliza sobre os
eixos denteados?
— Estou.
-— Leve-a o máximo possível para a direita, até ela se elevar
contra o pequeno calço.
Peguei o que parecia ser o célebre perspectógrafo de Da
Vinci e o deslizei para a direita. Ouviam-se pequenos estalos
à medida que a caixa avançava sobre os entalhes da
engrenagem, depois o conjunto se fixou na borda da
máquina.
— Pronto? — perguntou Jacqueline.
— Acho que sim.
Lucie sapateava atrás de mim.
— Bom, agora faça o mesmo, mas de baixo para cima.
Empurre a parte de trás da caixa para que a frente se levante.
— Certo.
Repeti o gesto minuciosamente. O relojoeiro, que estava
bem ao meu lado, olhava-me em ação. Ouvia sua respiração
inquieta às minhas costas. A pressão era enorme. Todo o
mundo me observava. Estava com medo de desmontar a
máquina ou de deslocá-la.
— Deu?
— Deu — anunciei soltando a pequena caixa de madeira.
— Bom. Agora, deve haver um pequeno buraco redondo
atrás da caixa, do seu lado. E um visor, como numa máquina
fotográfica...
— É... sim. Bom, não é redondo nem quadrado —
especifiquei —, mas acho que é porque o relojoeiro não teve
tempo de arredondá-lo.
Voltei-me. O artesão confirmou balançando a cabeça
rapidamente.
— Tudo bem. Olhe dentro dele e diga-me o que vê. Pela
lógica, você deveria ver o quadro ampliado centenas de
vezes.
Esfreguei as mãos e aproximei o olho da pequena caixa.
Tinha a impressão de estar olhando no microscópio mais
antigo do mundo. E não no mais prático.
— Bem, estou vendo cores, vagamente. Nada de muito
preciso.
— Certo. E que agora você vai poder ajustar a máquina —
explicou-me Jacqueline. — Já não é necessário mexer na
caixa, mas apenas na base. Normalmente, você poderia girá-
la da direita para a esquerda e de cima para baixo, bem
devagar. Um milímetro já deve ser suficiente. Você precisa
encontrar a paleta.
— Como assim? — perguntei começando a mover o
aparelho.
— Sei lá, uma seqüência de cores! Procure! Depois que
encontrar a paleta, não apenas ela lhe dará o índice das
cores, mas você também terá certeza de que a máquina está
bem calibrada para as 33 posições seguintes.
Meus dedos tremiam. Eu não estava conseguindo ser
preciso.
Voltei-me suspirando.
— Lucie, tente você! Não sou hábil o suficiente!
A moça tomou meu lugar. Media uns bons vinte
centímetros a menos do que eu, e o aparelho era mais
adequado para o seu tamanho. Mas, sobretudo, ela era muito
mais ágil e meticulosa. Delicadamente, girou a base da
máquina de Da Vinci.
— E então? — pressionei-a.
— Shhh! — fez sem se mexer.
Levantou uma das mãos no ar, ajustou mais um pouco o
aparelho, depois recuou lentamente.
— Pronto! Bem no eixo! E exatamente o que eu pensava,
olhe!
Avancei lentamente em direção ao visor. Fiquei com medo
de mexer no aparelho e desregular tudo.
— Espere! — gritou Jacqueline do outro lado da linha. —
Quando estiverem bem calibrados, antes de fazer alguma
bobagem, apertem o parafuso da base!
— Que parafuso?
O relojoeiro se aproximou.
— Ainda não coloquei parafuso — cochichou. — Esperem,
vou colocar um agora mesmo. Segurem bem a base, ela não
pode se mover!
Foi buscar um parafuso e uma chave de fenda, depois fixou
solidamente a base. Olhei bem de perto a abertura. Então,
efetivamente, percebi uma seqüência de cores perfeitamente
alinhadas, pequenas pinceladas na vertical, que Leonardo da
Vinci havia escondido no quadro. Uma espécie de código de
barras ancestral e colorido.
— Mas como ele conseguiu pintar detalhes tão pequenos? —
espantei-me. — Temos sorte de conseguir vê-los nesta
reprodução!
— É uma reprodução excelente! — interveio Jacqueline.
— É mesmo, e olhe que sobreviveu a um incêndio! Mas isso
não responde à minha pergunta...
— Acho que utilizou um sistema de lupa e um pincel com
um só pelo. Ou talvez tenha pintado com uma espécie de
agulha. Não sei...
-— Em todo caso, vejo nitidamente as cores. Vou tentar
contá-las.
Pus-me a contar várias vezes. As marcações estavam tão
próximas umas das outras que era difícil não se atrapalhar.
Mas as cores eram bem distintas. E mesmo que a Gioconda,
em seu conjunto, desse uma impressão bastante
monocromática, contei direitinho 33 cores diferentes,
dissimuladas naquele canto do quadro.
— Bingo! — exclamei. — Trinta e três cores! Que loucura!
Nem sei realmente onde estou no quadro. Provavelmente
numa das áreas circuladas a lápis pelo meu pai.
Lucie se aproximou da Gioconda e passou a mão sobre a
superfície até que eu pudesse ver seus dedos.
— Pare! — interrompi-a. — Pronto! E aí!
Ela estava com o dedo na parte superior direita do quadro,
justamente num dos locais marcados pelo meu pai.
— E isso mesmo! Então meu pai estava bem próximo do
objetivo!
— Bom — retomou Jacqueline do outro lado da linha —,
então agora vai ser um pouco complicado. Você precisa ter
uma boa memória visual. Um por um, desça os entalhes do
eixo horizontal e do eixo vertical. Um de cada ao mesmo
tempo. Desse modo, você deve encontrar 33 novas
posições. Cada uma deve lhe dar uma única cor do quadro.
— Certo — emendei. — E a posição da cor na paleta me dará
um número. Bem que a Lucie adivinhou...
— Excelente. Então vá!
Inspirei profundamente. Eu sabia que não ia ser fácil. Nunca
tive memória suficiente para me lembrar da posição desta ou
daquela cor na paleta, e seria necessário voltar regularmente
à primeira posição. Não era simples, mas não havia tempo a
perder.
Acionei a fabulosa máquina de Leonardo da Vinci. Uma a
uma, as cores foram aparecendo, luminosas, no pequeno
visor. Lucie me estendeu um papel e um lápis, e comecei a
anotar. Enganei-me várias vezes. Voltei. Rasurei o que havia
escrito Recomecei. Meus olhos começaram a arder. Minha
visão estava ficando turva. Recuei um pouco, balancei a
cabeça e voltei ao trabalho.
Era um instante mágico. O cômodo estava tomado por um
silêncio respeitoso e angustiado. Todos esperávamos o
segredo que Da Vinci nos transmitia pelos séculos. Eu tinha
a impressão de estar em seu ateliê em Milão. De ouvir sua
risada atrás de mim. Leonardo satisfeito. Sua astúcia se
preservara.
Meia hora depois, ou talvez mais, levantei-me e anunciei a
todo o mundo que havia terminado.
— Então? — perguntou-me François.
— Então o quê? — disse mostrando-lhe minhas anotações.
— São só números!
Olhei meu relógio. Eram 21hl5. Não tínhamos tempo de
olhar o código mais de perto. Os 33 números estavam ali. Na
minha mão. A chave que permitiria decifrar a mensagem de
Jesus. E eu tinha de entregá-la àqueles que haviam raptado
Sophie.
O que estariam esperando? Descobrir a mensagem antes de
todo o mundo e guardá-la para eles? Sabiam que havíamos
recuperado o texto e que também poderíamos decifrá-lo?
Será então que iam tentar nos eliminar? Era uma
possibilidade. Quase uma certeza. Mas eu não tinha tempo
para ficar divagando. Naquele momento, só uma coisa
contava. Salvar Sophie.
— Vamos! Precisamos levar isso imediatamente ao Père-
Lachaise. E nossa única chance!
— OK, vamos! — repetiu François.
— Não! — interrompi. — Você não. Vou sozinho com
Stéphane.
— Está brincando?
— Estou falando muito sério, François. Vocês todos vão ficar
aqui. Não estou a fim de estragar tudo. Vou sozinho, só com
Stéphane.
Badji avançou na sala
— Realmente está fora de questão que você vá, senhor. Me
recuso a correr esse risco. Por outro lado, senhor Louvel —
continuou, virando-se para mim —, certamente não iremos
sozinhos para lá.
— Que história é essa?
— Vou ligar para os meninos da minha empresa.
— Ficou louco? Não estamos indo em missão de comando!
— Escute, Louvei, gosto de você, mas, nesse caso, não temos
tempo para ficar discutindo, certo? Por acaso já segurou uma
arma?
— Não.
— Já participou de alguma operação de evacuação de reféns?
— Não, mas...
— Pois então — interrompeu-me —, esse é meu trabalho,
certo? Sendo assim, confie em mim e teremos todas as
chances de tudo acabar bem do nosso lado.
— Não pode dar errado de jeito nenhum! — repliquei.
Ele aquiesceu. Pegou o celular e foi para o carro. Vi que
vasculhava o porta-malas do Safrane enquanto falava com os
colegas do outro lado da linha.
François se pôs à minha frente.
— Ligue-me a cada três minutos, porque vamos morrer de
preocupação aqui!
-— Talvez não a cada três minutos — avaliei —, mas vamos
ligar, prometo!
Restavam-nos 45 minutos para chegar ao cemitério. Não
tínhamos nem um minuto sequer a perder. Só teríamos o
trajeto para nos prepararmos.
Estelle me trouxe o sobretudo. Coloquei no bolso o papel
onde havia copiado o código e fui para o Safrane.
Enquanto Stéphane me ajudava a prender meu colete à
prova de balas, vi que Lucie me observava. Acho que nunca
vi um olhar tão intenso. Como se estivesse tentando me
transmitir alguma coisa. Um pouco de coragem,
provavelmente. Pisquei para ela, enderecei um sorriso aos
Chevalier e sentei no banco do passageiro.
Acho que nunca fiquei tão angustiado em toda a minha vida
como durante os longos minutos que nos separavam do
encontro. Quanto a Stéphane, dirigiu ainda mais rápido do
que Sophie em nossa fuga de Gordes. Mas era um
profissional, e eu quase não sentia medo. Quase.
Durante todo o trajeto, Badji tentou me tranqüilizar. Estava
claro que tivera tempo de preparar um plano de última hora
com seus colegas e me explicou que ficaria escondido na
retaguarda, atrás de um túmulo, pronto para intervir à menor
ameaça.
— E os seus colegas? — perguntei inquieto.
— Caso não haja problemas, nem irá vê-los.
— Vocês não vão brincar de caubóis, né?
— Se tudo der certo, nem vamos intervir. A princípio,
estaremos lá para protegê-los.
Engoli saliva fazendo barulho e cerrei os punhos. Estava com
frio e me sentia fraco. Estava paralisado.
— Sobretudo — instruiu — não diga que não está com a
pedra. Não diga nada. Segure firme o papel com o código.
Será a isca para eles. Ainda que vejam que não é a pedra, vão
querer ver o que está escrito nele.
— Espero que esteja certo.
As luzes de Paris misturavam-se num quadro vago, que
desfilava por trás do vidro. Eu não sabia se Badji estava
falando comigo. Minha mente viajava por outro lugar.
Tomada pela lembrança de Sophie. Não vi passar os últimos
minutos. Os últimos metros.
Pouco antes das dez horas, chegamos diante do cemitério, ao
pé do XX arrondissement. O Père-Lachaise estava
mergulhado num crepúsculo de primavera. Algumas árvores
renascentes surgiam por trás da longa muralha que
circundava o cemitério. Badji estacionou o carro no bulevar
Ménilmontant. Veio abrir a porta para mim. Eu ainda estava
desorientado no interior. Imóvel. Depois, ao perceber que a
porta estava aberta, saí para a rua. Os revérberos se perdiam
na calçada, numa luz alaranjada. Stéphane bateu em meu
ombro. Eu precisava recobrar o sangue- frio. Pusemo-nos a
caminho.
O Père-Lachaise é uma aldeia de túmulos que se estende
sobre uma ampla colina entre caminhos pavimentados,
costeados por tílias e castanheiros. Mas à noite não passava
de uma grande massa obscura, onde as sombras das árvores
se confundiam com aquelas dos túmulos num grande afresco
inquietante. Tremi.
Todas as entradas estavam fechadas havia muito tempo, e
caminhamos ao longo do alto muro de pedra até uma
pequena rua que subia para a parte sul do imenso cemitério.
A conhecida rua do Repouso. Havia ali um local onde a
muralha era menos alta, e um poste junto ao muro nos
ajudaria a escalar. Uma das portas do cemitério não estava
nada longe, e seria preciso tomar cuidado, pois ali havia uma
construção que talvez fosse a casa do guarda.
Tive a mesma estranha impressão de quando fiz com Sophie
a expedição noturna à casa carbonizada do meu pai. A
impressão de ser um ladrão. Um ladrão bem medíocre. Mas,
desta vez, o medo era dez vezes maior. Era ele que dirigia
cada gesto meu.
O guarda-costas fez escada para mim. Agarrei-me ao poste.
Apoiei o joelho esquerdo contra o muro. A superfície áspera
me machucava através das calças. Mas comecei a escalar.
Apoiando- me contra a parede e me erguendo com a ajuda
do poste, finalmente cheguei ao alto e passei a perna por
cima do muro, tomando cuidado com as pontas de metal que
supostamente estavam ali para dissuadir visitantes
indesejáveis. Bem devagar, virei-me e estendi a mão para
Stéphane. Mas ele não precisou da minha ajuda e escalou
com a facilidade de um alpinista.
Saltei para o cemitério, seguido de perto por Badji, que
aterrissou bem ao meu lado, em meio aos arbustos. A nossa
frente erguia-se a perder de vista a colina de túmulos
devorados pela noite. Olhei o relógio. Oito minutos para as
dez. Tínhamos menos de dez minutos para chegar ao ponto
de encontro.
— Onde estão seus amigos?
— Já estão infiltrados. À postos.
De repente passou a falar como um militar.
— Mas nem sabemos onde é esse túmulo! — cochichei.
— Há uma lista próximo da entrada principal — informou-
me Badji.
E começou a correr na minha frente, tentando pisar macio e
evitar os galhos para não fazer muito barulho. Segui-o
olhando ao redor para ver se estávamos sendo vigiados. Mas
não vi ninguém. Corríamos entre os túmulos, saltando por
cima dos vasos de flores, curvados para a frente para nos
abrigarmos atrás das lápides e das pequenas capelas. A
muralha do cemitério projetava sobre nós uma sombra
protetora. Com tão pouca luz, achei que só os gatos podiam
nos ver, eles que dia e noite davam grandes passos no Père-
Lachaise, como almas penadas.
Chegamos esbaforidos diante de um velho painel verde que
dava a lista dos túmulos de celebridades. A tinta estava meio
apagada, mas mesmo assim encontrei o nome de Michelet
no meio de uma coluna. Divisão 52. Quase no centro do
cemitério. Os seqüestradores haviam escolhido um túmulo
suficientemente distante das portas e da casa do guarda para
garantir anonimato.
— Bom — começou Badji mostrando-me o mapa do cemité-
rio -—, vamos nos separar. E melhor que não nos vejam
chegar juntos. Na verdade, não devem me ver em hipótese
alguma. Tome o caminho mais direto, o mais lógico,
passando pelas ruas do cemitério. Vou tomar a posição de
retaguarda. Vou estar de olho em você.
Vasculhou o bolso e dele tirou um revólver.
— Tome.
Tive um gesto de recuo.
— Tem certeza de que é necessário?
— Não banque o idiota, Louvel.
Pelo menos, era uma resposta franca.
— Tem outro para você? — perguntei.
— Dois.
Inútil lutar. Na verdade, por mais que eu detestasse armas de
fogo, não era nada ma! estar protegido.
— Não vá fazer besteira — resmunguei, porém. — Preci-
samos tirar a Sophie dessa encrenca. Nada de tiros inúteis,
OK?
Achou que não era necessário responder. Conhecia sua
profissão e, provavelmente, estava mais preocupado
comigo... Eu tinha certeza de que ele faria tudo o que
pudesse. Mas, por outro lado, não tinha certeza de que seria
o suficiente.
Bateu no meu ombro, piscou para mim e desapareceu por
entre os alinhamentos de lápides cinza.
Foi então que realmente comecei a entrar em pânico.
Sozinho, no meio do cemitério, no absoluto breu da noite,
com a vida da Sophie nas mãos. A equação era simples. Eu
era o único que podia salvá-la. E não conseguia assumir essa
responsabilidade. Esse poder. Até porque a equação não
estava correta.
Eu não tinha a pedra.
Inspirei profundamente, tentei tomar coragem,
mergulhando nas minhas lembranças; o rosto da Sophie, seu
sorriso, sua força, sua vontade, sua ternura oculta. Nossa
noite em Londres. Depois aquelas que se seguiram. Segui em
frente.
O vento deslizava entre os túmulos, até nas minhas costas.
Gatos miavam, insinuando-se nas alamedas. Cada passo me
distanciava da vida de Paris. Cada metro me separava um
pouco mais do mundo real. Era como mergulhar no coração
das trevas. Abraçar o inferno. Eu caminhava sobre os mortos
para atravessar o Estige. Partia para uma ilha da qual não
queria voltar sozinho.
Meus passos ecoavam nas ruas pavimentadas do cemitério.
Alguns pombos, desnorteados, voaram à minha frente. Ao
longe, vi desenhar-se na sombra a pequena praça junto à
qual devia encontrar-se o túmulo de Michelet. Mas ainda
não via ninguém.
Enfiando as mãos nos bolsos, esquivando e abaixando a
cabeça, eu lutava contra o medo que me mandava dar meia-
volta. Cada passo era uma vitória e uma punhalada na
superfície das minhas veias. Lutar para avançar, lutar para
acreditar. Nunca me senti tão sozinho.
Em pouco tempo, sem realmente me dar conta do caminho
percorrido, vi-me diante do túmulo. Mal conseguia
distinguir o ambiente ao meu redor, floresta de sombras e
pedras. A sepultura de Michelet era um pequeno
monumento, ampla lápide em que um afresco, cercado por
duas colunas romanas, representava um espírito vestido que
se elevava por cima de um túmulo. A noite projetava
sombras inquietantes na alvura da sepultura. Estremeci.
De repente, ouvi um ruído atrás de mim. Tive um sobressal-
to. Lentamente, virei a cabeça. Mas nada vi. Comecei a
caminhar para trás, buscando uma referência, um apoio.
Estava aterrorizado. E o medo me congelava.
Então, uma sombra negra apareceu à minha frente, como se
tivesse surgido de um túmulo. Mantive-me imóvel. Duas
silhuetas se desenharam sob meus olhos, recortadas como
sombras chinesas sobre a parede branca de um jazigo atrás
delas. Havia um homem e uma mulher.
Rapidamente reconheci Sophie. Ela estava com as mãos ata-
das nas costas e uma mordaça. O homem ao seu lado
segurava um revólver em sua têmpora. Ele a empurrava à sua
frente.
Tremi. Ouvi a respiração cortada de Sophie. Certamente
estava chorando. Eu não podia ver seu rosto com clareza,
mas podia adivinhar o pânico em seus gestos e em sua
respiração. Estava ali, diante de mim, como uma promessa a
ser mantida. Tão próxima e, no entanto, inacessível. Eu
queria ter parado tudo. Queria que o mundo parasse.
Arrancar Sophie daquela história e fugir. Fugir com ela,
simplesmente.
— A pedra! — gritou o homem, apontando a arma contra a
testa da jornalista.
Gotas de suor escorriam pela minha nuca, e eu já não
controlava as mãos. Inspirei profundamente e tentei me
controlar. Sophie estava a poucos passos. Eu não podia errar.
Deslizei lentamente a mão no bolso. Senti o papel entre os
dedos. O código. Eles tinham de aceitar aquele código.
Engoli a saliva e, com as mandíbulas cerradas, tirei
lentamente a folha do bolso.
Era nossa única chance. A vida de Sophie por um pedaço de
papel.
— Aqui está — disse estendendo a folha à minha frente.
O papel tremia na ponta dos meus dedos. Retângulo branco
na noite escura. Houve um sopro de vento que levantou a
página. Duas vezes. Depois, ela ficou parada contra meu
polegar. Não me movi.
De repente, o desconhecido fez um gesto brusco. Sacudiu
Sophie, que ele segurava pelo braço.
— Está gozando com a minha cara? -—- gritou. — Não é a
pedra!
— Espere... — balbuciei. — É o código... Não tenho a pedra,
mas...
Não tive tempo de terminar a frase.
O tiro explodiu num clarão branco. Seco. Violento.
Repentino. Não sei se o som veio antes da luz. Mas pisquei
duas vezes. Tive dois sobressaltos. Houve um grito.
Provavelmente o meu. A detonação ressoou entre as pedras
tumulares. Voltou em eco.
Depois, lentamente, como à luz de um flash, vi o corpo de
Sophie caindo para a frente.
Suas mãos ficaram ao longo do corpo. Nenhum gesto para
deter a queda. Nenhum reflexo. Um manequim sem vida.
Com a cabeça projetada contra o peito, ela desabou
pesadamente, como uma boneca de carne.
Ouviu-se o barulho aterrorizante do seu crânio contra os
paralelepípedos. E talvez eu ainda estivesse gritando quando
eclodiu o segundo tiro. Mas eu já não via nada. Já não ouvia
nada. E senti que estava caindo, caindo.
O zumbido nos meus ouvidos se misturou aos outros tiros.
Deflagrações sucessivas. Ondas de ecos. Um tiroteio ao meu
redor. Mas eu já não estava lá. Clarões brancos.
Não. Assim não. Assim não.
De repente, fui projetado para trás. Uma dor terrível no
peito. Barulho de passos. Gritos. Outros tiros.
Depois o silêncio. E, lentamente, lágrimas que inchavam
meus olhos. Na minha garganta, um nó. A dor. Só me
lembro da dor.
Depois Badji. Pousando a mão em meu ombro.
Você levou um tiro.
Ele cochichava.
O colete segurou a bala.
Havia quanto tempo eu estava lá? Era a noite que estava
escura ou eu que não via nada? Queria ter desmaiado.
Desaparecido. Não saber mais. Não sentir mais. Que a dor
parasse. Afastar para longe de mim esse pensamento que
invadia minha cabeça. Aquela frase irreversível. Aquelas
poucas palavras a mais. Sophie está morta.
Mas já não havia nada, além disso. Isso e a dor.
Capítulo Doze
Até hoje, quando penso nesse assunto, ainda fico espantado
por ter conseguido sobreviver àquela mulher. Eu nunca
amara ninguém como amei Sophie e provavelmente nunca
mais terei força para amar...
Durante muito tempo, o mundo continuou girando sem
mim. Eu já não era agente no mundo, nem mesmo
testemunha. Não passava de um trapo, silencioso, cego e
surdo, no fundo de uma poltrona onde continuava a afundar.
Como se a queda nunca pudesse terminar. Como se aqueles
braços de couro me sugassem para uma fenda que voltava a
se fechar por cima de mim.
Sem Estelle nem François, certamente eu teria sucumbido à
vontade de pôr fim aos meus dias. Só me faltava a liberdade
para fazê-lo. Não a coragem. Mas cuidaram de mim como de
um amnésico que volta aos poucos ã vida. Eu não fazia nada
para ajudá-los. Não segurava nenhuma das mãos que me
estendiam. Acho até que nem as via. O amor deles era a
camisa de força que me impedia de cortar os pulsos, ponto
final.
Todos os dias falavam comigo. Tentavam fazer-me voltar ao
país dos vivos. Mantinham-me informado sobre a evolução
das coisas. Como para me dar referências.
Contaram-me tudo. Eu ia estocando as informações,
indiferente, e provavelmente perdi boa parte.
Explicaram-me o tiroteio no cemitério. A bala que Sophie
levara em plena nuca. Morreu na hora. Não teria sofrido. A
bala que levei. No peito. Salvo pelo colete à prova de balas.
Obrigado, Badji, mas eu preferia ter morrido. Não cheguei a
dizer isso, mas tenho certeza de que o liam nos meus olhos.
Os homens de Badji conseguiram interceptar dois dos
seqüestradores antes que saíssem do cemitério e os
entregaram à polícia. Após a investigação, descobriram que
estavam ligados à Acta Fidei. Evidentemente. Depois, houve
a longa investigação policial. Concluiu-se que meu pai e o de
Claire haviam sido mortos pelos mesmos caras que mataram
Sophie. Um grupo de loucos que havia escapado de uma
organização católica integrista. Algo mais ou menos assim.
Graças aos contatos de François, não me colocaram em
prisão preventiva durante a investigação, e as acusações de
que eu era objeto desde minha fuga em Gordes foram
retiradas sem questionamentos. Um psiquiatra foi me ver e
anunciou que eu ainda estava em estado de choque e,
portanto, sem condições de falar. Belo idiota. Estudou
psiquiatria para descobrir isso?
Mas continuaram a me informar. Um dia, François leu para
mim num jornal a declaração do Vaticano, que condenava
oficialmente a Acta Fidei. A organização foi desmantelada.
Mas suas relações com o Opus Dei e a Congregação para a
Doutrina da Fé mal foram evocadas. Era bom demais para ser
verdade. Os jornalistas deste país continuam uns cagões.
Durante as primeiras semanas, o padre de Gordes, de seu
novo posto no Vaticano, enviou cartas a François para lhe
contar como evoluía a situação, vista de dentro. Como em
Nova York e em Paris, houve em Roma muitas prisões,
seguidas de discretas mudanças internas, e, depois de ter sido
primeira página em todos os jornais italianos, o caso voltou a
cair no esquecimento. O padre de Gordes não conseguiu
saber mais. Quando perguntou a seus superiores se a Acta
Fidei estava na origem de sua transferência, riram na sua cara
e nunca mais teve oportunidade de se queixar.
Quanto ao Bilderberg, seu nome nem chegou a ser
mencionado pelos jornais. No entanto, François ficou
sabendo que os membros dissidentes estavam sendo presos
um a um, mas a imprensa não cobriu nenhuma dessas
prisões. De todo modo, a imprensa nunca fala do Bilderberg.
Nunca.
E, evidentemente, em parte alguma se tratou da pedra de
Iorden nem da mensagem de Cristo. Falou-se simplesmente
de um conflito de interesses entre meu pai, o de Claire
Borella e a Acta Fidei, mas nunca se especificou em que se
baseava esse conflito.
A mensagem de Jesus. A chave que lhes faltava.
Um por vez, vinham me ver para contar tudo isso. Estelle,
com sua voz doce e o bebê em seu ventre. François, o amigo
fiel. Badji, que me salvara a vida tantas vezes. Lucie, a
pequena Lucie, que me falava como a um grande irmão e às
vezes passava horas segurando minha mão. Todos falavam
comigo, suplicavam para que eu voltasse, mas eu não
conseguia reagir. Não conseguia me interessar. Depois de ter
perdido meus pais, eu perdera a primeira mulher que amei
de verdade. E já não encontrava a empunhadura para me
agarrar à vida.
Claire Borella me dizia que eu devia a nossos respectivos pais
terminar a investigação deles. Eu tinha todos os elementos
em mãos. Mas já não estava nem aí. A mensagem de Jesus
não me traria Sophie de volta. E isso Claire não podia
compreender.
Pouco a pouco, as pessoas desanimaram. Claire Borella dei-
xou a casa dos Chevalier. Vendeu o apartamento do pai,
mudou para uma quitinete algumas ruas mais distantes e
retomou sua vida normal.
François e Estelle, por sua vez, quase acabaram se
esquecendo de que eu morava com eles. Eu me havia
tornado um móvel da sala. Às vezes vinham falar comigo,
mas sem grandes esperanças.
Badji voltou a dar seus cursos.
Jacqueline prolongou sua estada na França. Era a única que
nunca falava comigo. Provavelmente entendeu que não ia
adiantar nada. Ou talvez sua dor fosse tão grande quanto a
minha. Uma vez por semana, ia à casa dos Chevalier,
sentava-se ao meu lado e servia-se de um uísque. Eu a ouvia
beber, brincar com o gelo no copo, suspirar, mas nem a via.
E, no entanto, um dia, voltei à superfície.
Foi bem no meio de uma tarde como outra qualquer. Meus
olhos queimados pelas lágrimas tinham acabado de se abrir.
Eu estava mergulhado na poltrona de sempre. Minhas mãos
roçavam o chão ao lado de uma garrafa vazia. Havia passado
um mês. Ou talvez mais. Lá fora, o verão começava a lançar
suas cores na minha indiferença. Era preciso muito mais do
que isso para eu decidir me movimentar. Eu nem estava com
calor. Só com sede.
Por volta das dezesseis horas, quando o sol de junho ainda
mal conseguia atravessar as persianas que eu deixava
fechadas, Lucie ligou para a casa dos Chevalier.
Como sempre, queria saber das novidades e conversar um
pouco com Estelle. Mas, desta vez, pediu que me passassem
o telefone. No entanto, sabia muito bem que eu ainda não
estava falando, que ainda me recusava a sair do mutismo.
François não estava em casa, ocupado com suas funções
políticas, e eu passava os dias com Estelle, que, por ironia do
destino, ocupava sua licença-maternidade cuidando de mim
como uma mãe.
Estelle aproximou-se e segurou o telefone contra minha
orelha, sem botar muita fé. Nem me mexi.
— Damien — começou Lucie com uma voz decidida —,
aqui quem fala é a Esfinge. Se em uma hora não tirar essa
bunda da porra dessa cadeira, vou decifrar a mensagem no
seu lugar.
Sua voz ressoou por muito tempo em minha cabeça. Como
se tivesse de percorrer um longo caminho antes de atingir o
objetivo. Mas a mensagem, por milagre, finalmente me
atingiu. Clique. Como uma engrenagem que se desoxida. E,
de repente, decidi abrir a boca. Finalmente. A primeira frase
que pronunciei desde a morte da Sophie foi:
-— Estou pouco me lixando!
Estelle, que ainda segurava o telefone contra minha orelha,
arregalou os olhos. Não ouvia minha voz havia tanto tempo
que mal conseguia acreditar.
— Ah, é? — insistiu Lucie. — Acho que a Sophie ficaria
orgulhosa de você. Muito orgulhosa. Seu imbecil!
Desligou. De repente.
Ouvi o tom do telefone contra minha orelha. Estelle não se
mexia. Observava-me. Acho que não percebeu que Lucie já
não estava do outro lado da linha. Mas, subitamente,
levantei-me xingando:
— Imbecil!!!
Precipitei-me na direção do primeiro andar da casa. Desatei a
correr na escada, abandonando Estelle na sala. Corria a toda
velocidade, como tomado de loucura. Estelle deve ter
achado que eu ia pular da janela. Também se levantou para
correr atrás de mim. Mas, quando chegou ao escritório do
marido, ofegante, segurando a barriga, viu que eu estava
sentado diante do computador, e não pulando para a morte.
Lágrimas corriam pela minha face. Mas eram lágrimas cheias
de vida. Meus olhos estavam bem abertos. Olhei fixamente
para a tela do computador. Devorei-a com o olhar.
Eu havia guardado o código no fundo do meu bolso desde a
morte da Sophie. Sempre o trazia apertado em minha mão,
pronto para jogá-lo fora, sem nunca encontrar coragem.
Com uma das mãos, segurava o código. Com a outra, a bala
retorcida que estourou contra meu colete, sobre meu peito.
A bala que deveria ter me matado.
Mas, naquele dia, tirei o código do bolso e o coloquei sobre a
escrivaninha. Fungando como um garoto em prantos, alisei-
o com a palma da mão.
Depois levantei os olhos para Estelle.
— Vá pegar o CD da Lucie no meu sobretudo — pedi-lhe
sem a menor educação.
Ela estava contente demais por ouvir o som da minha voz.
Sem hesitar, voltou para a escada, desceu os degraus tão
rápido quanto a gravidez lhe permitia.
Iniciei o Photoshop. O programa abriu lentamente. Estelle
voltou a aparecer no escritório. Estendeu-me o disco. Estava
com os olhos brilhantes. Esfreguei as mãos, depois peguei o
CD. Inseri-o no computador. Abri o arquivo.
Lentamente, a foto da tabuleta fixou-se sob meus olhos
cheios de lágrimas. Peguei o papel à minha frente e o levei
para o lado da tela. Como uma partitura.
Eu tremia. Todos os meus sofrimentos se resumiam àquilo.
Duas imagens sob meus olhos. Os dois elementos do quebra-
cabeça virtualmente reunidos diante de mim. O código da
pedra de Iorden, encontrado na Gioconda, e uma foto do
texto criptografado de Jesus. Inspirei profundamente e com a
manga da camisa sequei os olhos.
Comecei a comparar as duas imagens. À esquerda, números,
à direita, letras gregas. Eu só precisava decodificar. A
mensagem estava ali. De bandeja. Duas peças separadas que
esperavam havia milênios que alguém as reunisse
novamente.
Eu sabia como fazer. Como Lucie teria feito. Como Sophie
teria feito. Mas cabia à mim agir. Uma a uma, desloquei as
letras da tabuleta segundo o número correspondente.
Impossível memorizar. Peguei uma caneta na escrivaninha,
coloquei a folha do código sobre a mesa e recomecei a
decifrar, escrevendo as letras decodificadas uma a uma.
Estelle me olhava trabalhar, torcendo os dedos. Seus olhos
iam do papel a meu rosto, buscando uma resposta, um
alento. De repente, dei uma gargalhada.
Estelle teve um gesto de recuo. Devia achar que eu estava
louco.
— O que foi? — exaltou-se pegando em meu ombro.
— A gente deve ter se enganado em algum lugar, isso aqui é
pura algaravia! Não quer dizer nada!
— Tem certeza? — inquietou-se olhando a foto.
— Tenho! Olhe! Pura confusão... não quer dizer nada!
Mostrei-lhe o papel onde havia escrito a sucessão de novas
letras gregas. Nenhuma palavra aparecia. Não havia lógica.
Alguma coisa não estava dando certo.
— Não é possível! — exaltou-se. — Você está tão perto da
solução! Tente de novo!
Fiz algumas verificações, mas eu não me havia enganado. A
decodificação não fazia sentido algum.
— Essa tabuleta está do lado certo? — perguntou Estelle.
— Está sim, está do lado certo -— confirmei. — Dá para ver
que as letras estão no lugar.
Mostrei-lhe a foto no computador.
E, de repente, me veio a luz.
— Espere! — exclamei. — Mas é isso. Claro! Você tem razão!
Sou muito idiota!
— O quê?
Desatei a rir novamente. Peguei de volta a caneta que havia
jogado na escrivaninha e recomecei a escrever.
— Da Vinci escrevia ao contrário! — expliquei. — Esse
imbecil do Da Vinci escrevia da direita para a esquerda!
Deve ter feito o mesmo com a paleta! E preciso tomar os
números em outro sentido!
Eu já não sabia muito bem se as lágrimas que corriam na
minha face eram de tristeza ou de alegria. Provavelmente
um pouco das duas coisas.
Tentando manter a calma, transcrevi as letras uma após a
outra. A primeira. A segunda. Hesitei. Naquele momento
não havia dúvida. Eu ia decodificar a mensagem. Nunca
poderia ter certeza de que vinha mesmo de Jesus, mas devia
lê-la. Pela Sophie. Pelo idiota do meu pai.
Parei e coloquei a caneta sobre a página. Mordi os lábios.
— Estelle querida — disse voltando-me para ela —, você se
incomoda se...
Nem precisei terminar a frase. Ela entendeu e sorriu para
mim.
— Está bem, vou deixá-lo. Sem problemas. Vou descer!
Saiu lentamente do escritório, recuando. Estava sorrindo.
Seus olhos me diziam para continuar tendo coragem. Ela
sabia que eu precisava ficar sozinho.
Estelle era a melhor amiga com a qual eu podia sonhar.
Exatamente como François, ela me conhecia talvez até
melhor do que eu mesmo. Em todo caso, certamente gostava
mais de mim do que eu mesmo. Fechou carinhosamente a
porta do escritório.
Fiquei sozinho. Sozinho diante do final do enigma. Queria
tanto que a Sophie estivesse aqui. Mas eu tinha de fazer
aquilo sem ela. E por ela.
Elas estavam ali, as empunhaduras, para que eu me agarrasse
à vida. Naquela tabuleta. Diante de mim. Aquela mensagem
que só pedia para ser traduzida. Aquela mensagem, cuja
existência a imprensa não havia compreendido. Aquela
mensagem que nossos inimigos não puderam decodificar.
Pois as duas peças do quebra-cabeça ainda não estavam
juntas. Estava tudo por fazer. Balancei a cabeça, aproximei
lentamente minha cadeira da escrivaninha e recomecei a
transposição das letras. A mensagem me pertencia. Era
minha por direito. Era a herança que me deixavam Sophie e
meu pai.
Uma a uma, continuei a deslocar as letras. A terceira. A
quarta. Progressivamente, a mensagem tomou forma sob
meus olhos. Uma palavra, outra. Uma simples frase grega.
Talvez de dois mil anos de idade. A mensagem de Cristo à
humanidade.
O euaggelion.
O ensinamento que seus contemporâneos não eram dignos
de receber. E nós? Hoje? Éramos dignos, por fim, de
entender o que aquele estranho homem quisera nos ensinar?
Tínhamos progredido durante esses dois mil anos? Que
progresso havia na morte da Sophie? Nos crimes do
Bilderberg e da Acta Fidei? Éramos realmente mais dignos do
que os homens que o haviam crucificado? Quantos homens
foram mortos para conservar esse segredo, e quantos por
descobri-lo?
Meus dedos tremiam. Com a ponta do indicador, sublinhei o
texto que acabava de transcrever.
Oito palavras gregas. Jesus falava aramaico, mas nos legou sua
mensagem em grego. O nobre idioma. O idioma dos
instruídos. Eu não estudava grego havia mais de dez anos e
reli a frase várias vezes. Contudo, nem precisei de muito
tempo para entender, por fim, a mensagem.
Nada mais simples. Não era uma mensagem religiosa. Não
era uma revelação irracional. Não era um dogma. Não era
uma lei. Não era um mandamento. Uma simples afirmação:
E? ?? ???µ? ??µ?? µ???? ???????? ??? ???
Repeti a frase sorrindo.
En to kosmo esmen monoi pantaxou tés gés.
Transcrevi mentalmente a curta frase com palavras atuais:
"Estamos sozinhos no universo." Trinta e três letras gregas
para nos revelar um segredo tão simples e, no entanto,
essencial.
Escondido por dois milênios no coração de uma pedra, tal
era então o saber absoluto de Cristo. O conhecimento que o
tornava único. Ele sabia. Era essa a resposta à nossa questão
universal? Era esse o mistério da melancolia? A única coisa
que podemos conhecer, seja qual for nosso domínio das
ciências e das artes. Como saber, num universo infinito, se
outros seres nos esperam? Como responder a essa questão
eterna? Naquele momento eu compreendia. Saber que
estamos sozinhos é mesmo o conhecimento absoluto. Pois
nunca poderemos visitar o universo infinito. É a única
interrogação à qual jamais poderemos responder.
Não sei se essa mensagem é autêntica. Como saber? E se for,
nada prova que Jesus tenha tido razão. Seria ele o nobre
iluminado que recebeu a onisciência?
Mas então entendi que isso não tinha importância alguma.
Seja ela verdadeira ou não, essa frase mudou minha vida.
Melhor até, deu a ela um sentido.
Porque pela primeira vez na vida considerei que essa verda-
de pode ser absoluta. Considerei a possibilidade de que
realmente estamos sozinhos. Sozinhos no universo.
Percebi que isso voltava a colocar tudo em causa. Que muda-
va todas as nossas perspectivas.
A pergunta sempre foi feita. Há séculos o ser humano busca
outra presença no universo. Deuses, extraterrestres,
espíritos... Simplesmente uma presença. Não estar sozinho.
E continuamos a buscar. Para muitos, chega a ser uma
esperança. Mas será que essa esperança não nos distancia do
que realmente deveríamos buscar? Essa fuga para o outro,
para o desconhecido, não suprime nossas responsabilidades?
E se de repente essa dúvida fosse eliminada? Se, por um
instante, aceitássemos essa simples mensagem que percorreu
os séculos? Se ouvíssemos o ensinamento desse homem
nada comum? Se a dúvida já não fosse permitida? Se buscar
em outro lugar já não tivesse sentido?
Então não paro de pensar em nossa responsabilidade. No
sentido de nossas vidas, se deviam ser únicas. Na
importância de cada uma delas. Em relação a nós mesmos e
ao universo inteiro. Não paro de pensar no sentido da
humanidade. Da nossa humanidade. Da nossa presença.
Pois se estamos mesmo sozinhos, não temos o direito de
desaparecer. Não temos o direito de errar.
Tudo se resume a isso. Não temos o direito de nos deixar
extinguir.
Desde o dia em que traduzi a mensagem, não consigo deixar
de pensar na vida de Jesus. No sentido dos seus
ensinamentos. Tudo hoje me parece totalmente diferente.
Lembro-me das palavras de Sophie, que, no entanto, não
acreditava em Deus. Ela dissera alguma coisa como: "Um dos
principais ensinamentos de Cristo, 'amai-vos uns aos outros',
era apenas um meio de preparar os homens para receber sua
mensagem."
Todos os dias essas palavras ressoam na minha cabeça.
Não sei quais serão as conseqüências da nossa descoberta.
Segundo meu pai, Jesus não queria revelá-la a seus
contemporâneos porque julgava que ainda não estavam
prontos.
Mas a verdadeira questão é: estamos prontos hoje?
Como as pessoas vão reagir? Por acaso essa mensagem
questiona a existência de Deus? Deus não existe? Os homens
estão prontos para aceitar que estão sozinhos? Que não
haverá resposta em outro lugar? Que não haverá salvação em
outro lugar? E que, portanto, teremos de encontrar a
resposta em nós mesmos. Que só podemos confiar no
homem. E que, por isso, temos de nos tornar dignos de
nossa própria confiança.
Estamos maduros o suficiente para compreender o alcance
dessa mensagem?
Não sei.
Por enquanto, só penso numa coisa. Viver. E já é um primei-
ro passo.
Pergunto-me se realmente valia a pena que Sophie e meu pai
tivessem morrido por essa mensagem. Era tão importante
assim para que a Acta Fidei e o Bilderberg estivessem
prontos a matar? Não, claro que não. Nenhum segredo no
mundo poderia justificar a morte de quem quer que fosse.
Ninguém poderá me fazer esquecer Sophie. Ninguém poderá
curar minha ferida.
Mas é assim que as coisas são. A Acta Fidei e o Bilderberg
estavam prontos a matar para ouvir o segredo de Jesus. Aliás,
ainda não conheciam o conteúdo dessa mensagem quando
chegaram a esse ponto. Talvez imaginassem que esse
conteúdo representasse uma ameaça importante às suas
respectivas organizações. Ou talvez esperassem que esse
segredo lhes daria um poder que nada no mundo poderia
comprar.
De todo modo, enganaram-se, e Sophie está morta.
O redator-chefe do 90 minutos perguntou-me se podia
terminar a investigação de Sophie. Respondi-lhe que eu não
podia me opor a isso. Lembro-me mais ou menos das
palavras dela: "Se não formos nós a descobrir o segredo
oculto na pedra de Iorden, quem nos garante que aquele que
o fizer vai o tornar público?" Sim, ela certamente ia querer
que as pessoas soubessem.
No momento, preciso de tempo para refletir. Enxuguei
minhas lágrimas. Pedi perdão a François, a Estelle. A
pequena Lucie. Não voltarei a Nova York. Amanhã, vou a
Gordes. Tenho uma casa lá. Acho até que também tenho
uma moto para recuperar.
E talvez escute os conselhos de François: escrever um livro.
Se eu encontrar as palavras certas. O quarto do meu pai no
segundo andar da casa de Gordes deve ser um lugar ideal
para escrever com tranqüilidade. Finalmente escrever outra
coisa.
E depois tenho uma decisão a tomar. Estelle e François me
perguntaram se eu queria ser padrinho da filha deles. Por
que não?
Mas, antes de mais nada, vou até a casa da Jacqueline, antes
que ela volte para a Inglaterra. Tomaremos um uísque em
memória da mulher que amávamos. E tentarei rir.
Acho que, onde quer que esteja, Sophie vai gostar.
AGRADECIMENTOS
Tinha este livro no coração e na mente havia vários anos.
Concluí-lo era para mim um sonho que às vezes pareceu
inacessível. E se hoje esse sonho se tornou realidade é
especialmente graças àqueles que, de uma maneira ou de
outra, ajudaram-me a fazê-lo.
Sendo assim, eu gostaria de agradecer a Emmanuel
Baldenberger, Jean-Bernard Beuque, Stéphanie Chevrier e
Virginie Pelletier, James Gauthier, Philippe Henrat, Valentin
Lefèvre, Jean-Pierre Loevenbruck, Loic Lofflcial, Paula e
Michael Marshall Smith, Fabrice Mazza e Bernard Werber,
que me ajudaram ao longo de diversos estágios da redação
deste romance.
Mas também às famílias e aos amigos que sempre me
apoiaram: aos Loevenbruck, aos Pichon, aos Saint Hilaire,
aos Allegret, aos Duprez e aos Wharmby, a Barbara Mallison,
Stéphane Marsan, Alain Névant, David Oghia e Emmanuel
Reynaud.
E, por fim, às minhas duas musas, Delphine e nossa pequena
Zoé, a quem devo tudo.
Para mais informações visite: www.henriloevenbruck.com
A França, por sua forma cartográfica. (N. T.)
Apelido de Paris. (N. T.)
Restaurante no Quartier Latin. (N. T.)
Estilo de jornalismo criado por Hunter S. Thompson na década de 60, em que o repórter se torna
protagonista da notícia. (N. T.)
Respectivamente, jornalista e diplomata franceses seqüestrados pelo Hezbollah em 1985 e libertados
em 1988. (N. T.)
Sociedade franco-maçon. (N. T.)
Ministro do Trabalho na França, durante o governo de Giscard d'Estaing. Sua morte em 1979,
declarada como suicídio, não convenceu muitos jornalistas. (N. T.)
Kevin Mitnick, famoso hacker norte-americano. (N. T.)
Economista e político francês. (N. T.)
Jornal de economia e política na França. (N. T.)
Grupo de comunicações que detém diversos canais de entretenimento. (N. T.)
Empresa de telefonia móvel, subsidiária da Vivendi. (N. T.)
Renseignements Généraux: departamento de informações gerais da polícia francesa. (N. T.)
Cabanas de pedra, típicas da região. (N. T.)
Aceitar o arquivo a ser transferido? (N. T.)
Liberation: jornal de esquerda francês fundado por Sartre. (N. T.)
Direction de la Surveillance du Territoire (Direção da Vigilância do Território). (N. T.)
Lafayette Ron Hubbard, fundador da cientologia. (N. T.)
Tipo de fonte presente em toda a França e, sobretudo, em Paris, onde foi primeiramente implantada
por Richard Wallace. (N. T.)
Cursos temporários de água. (N. T.)
Museu de Arte Moderna de Paris. Centre Pompidou. (N. T.)
Agence France-Presse: agência de notícias francesa. (N. T.)
Comitê dirigente. (N. T.)
"O que ele disse?", "Não faço a menor idéia!" (N. T.)
Ministério do Interior da França. (N. T.)
Versão do diretor. (N. T.)
Quod erat demonstrandum (o que devia ser demonstrado). Fórmula usada para enunciar o
resultado de uma demonstração. (N. T.)
Trem expresso. (N. T.)
Réseau Express Regional: linha ferroviária metropolitana expressa da região parisiense. (N. T.)
Gravuras feitas com um traçado complexo e delicado. (N. T.)
Relativo ao governo do marechal Pétain, instalado em Vichy durante a dominação alemã na França
entre 1940 e 1944. (N. T.)
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução de Ivan Junqueira. 6a ed. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1985. p. 293. (N. T.)
Na mitologia grega, principal rio do Hades, pelo qual o barqueiro Caronte conduzia os mortos. (N.
T.)
O Testamento dos Séculos - Henri Loevenbruck Digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia Sinopse: Damien Louvel decidiu mudar-se da França para os Estados Unidos após perder a mãe. Em Nova York, tornou-se um rico roteirista de uma série televisiva de enorme sucesso. Agora, com a trágica morte do pai, precisará voltar a Paris. Chegando lá, irá descobrir que o pai estava mergulhado numa pesquisa sobre um misterioso objeto - a pedra de Iorden - que, ao que tudo indica, custou-lhe a própria vida. Ajudado por Sophie, uma jornalista pela qual nutrirá uma fascinação incomum, Damien decide dar continuidade às estranhas, porém fascinantes, investigações iniciadas por seu pai e se lança numa corrida desenfreada de vida e morte. Perseguidos e ameaçados por inimigos sombrios e inescrupulosos, Sophie e Damien não desistirão até desvendar a mais surpreendente mensagem que Jesus teria deixado à Humanidade. |
Muita paz !
Bezerra
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'TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!
PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."
JOSÉ IDEAL
' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL
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