R. J. ELLORY
Uma Cren�a
Silenciosa em
Anjos
TRADU��O DE ADALGISA CAMPOS DA SILVA
Dedicado a Truman Capote (1924-84)
AGRADECIMENTOS
Talvez, em algum lugar, haja obras criativas realizadas por
uma pessoa s�. Esta n�o foi uma delas. Como sempre, meu
eterno agradecimento a Jon, a Genevieve, Juliet, Euan e
Robyn. A Paul Blezard, Ali Karim e Steve Warne, sou grato
pelo apoio constante. A Guy. A Victoria e a Ryan.
As lembran�as da inf�ncia s�o eternas � fantasmas
permanentes, selados, assinados, impressos, sempre vis�veis.
CYNTHIA OZICK
PR�LOGO
Tiros, como ossos estalando.
Nova York: seu alvoro�o constante, �speros ritmos
met�licos e percuss�o de passos, em staccato e ininterruptos;
seus metr�s e engraxates, seus cruzamentos engarrafados e
seus t�xis amarelos; suas brigas de namorados; sua hist�ria e
sua paix�o, sua promessa e suas ora��es.
Nova York engoliu sem esfor�o o espocar dos tiros, como se
n�o fosse um ru�do mais significativo do que a batida isolada
de um cora��o solit�rio.
Ningu�m ouviu em meio a tanta vida.
Talvez por causa de todos esses outros barulhos.
Talvez porque ningu�m estivesse escutando.
At� a poeira, surpreendida num raio de luar que entrava pela
janela do hotel de tr�s andares, deslocada subitamente pela
reverbera��o dos tiros, retomou seu caminho ao l�u, mas
progressivo.
Nada aconteceu, pois aquela era Nova York, e tais fatalidades
solit�rias e abafadas eram incont�veis, quase naturais,
lembradas por pouco tempo e facilmente esquecidas.
A cidade seguia sua rotina. Um novo dia logo come�aria, e
nada t�o banal como a morte tinha o poder de retard�-lo.
Era s� uma vida, afinal de contas; nem mais nem menos que
isso.
Sou um exilado.
Aproveito um instante para recordar toda a minha vida, e
tento v�-la pelo que foi. Em meio � loucura que encontrei, �
correria e ao choque, e � brutalidade das colis�es da
humanidade que presenciei, houve momentos. Amor.
Paix�o. Promessa. A esperan�a de algo melhor. Isso tudo.
Mas defronto com uma vis�o, e para onde quer que me volte
agora, tenho essa vis�o. Eu era o "Apanhador" de Salinger,
ali parado � beira de um campo alto de centeio, consciente
da algazarra de crian�as que eu n�o via brincando entre as
ondula��es e o balan�o da cor, ouvindo suas risadas no pega-
pega, suas brincadeiras � sua inf�ncia, digamos�, e
prestando aten��o � hora em que poderiam chegar muito
perto do limite do campo. Pois o campo flutuava livre e
solto, como se estivesse no espa�o, e se elas chegassem �
beira n�o daria tempo de segur�-las antes que ca�ssem. Por
isso eu vigiava, esperava, escutava e procurava t�o
intensamente aparecer antes que elas ca�ssem no precip�cio.
Pois, ent�o, j� n�o daria para resgat�-las. Desapareceriam.
Desapareceriam, mas n�o seriam esquecidas.
Essa foi minha vida.
Uma vida desenrolada como um fio, de resist�ncia incerta,
comprimento desconhecido; quer termine de chofre, quer
corra indefinidamente, ligando mais vidas no seu curso;
num caso, n�o mais que algod�o, apenas suficiente para unir
uma camisa nas costuras; no outro, uma corda � de tr�s
fios, n�s de cabe�a de turco, todos os fios e todas as fibras
alcatroados e torcidos para repelir �gua, sangue, suor e
l�grimas; uma corda para levantar celeiro, fazer bolina
portuguesa e tirar crian�a quase afogada da enxurrada,
segurar �gua alaz� e dom�-la, amarrar homem em �rvore e
espanc�-lo por seus crimes, i�ar vela, enforcar pecador.
Uma vida para segurar, ou para ver escorrer pela palma de
m�os indiferentes e desatentas, mas sempre uma vida.
E quando uma nos � dada, desejamos ter duas, ou tr�s, ou
mais, esquecendo-nos com a maior facilidade da que
tivemos e gastamos sem crit�rio.
O tempo corre reto como uma linha de pesca auspiciosa, as
semanas formando meses, formando anos; mas, com esse
tempo todo, um instante de d�vida, e l� se vai o pr�mio.
Momentos especiais �: espor�dicos, como n�s apertados,
espa�ados irregularmente como corvos num fio de tel�grafo
�, esses lembramos e n�o nos atrevemos a esquec�- los,
pois muitas vezes s�o tudo o que resta para mostrar.
Recordo todos eles, e muitos outros mais, e em algumas
ocasi�es me pergunto se a imagina��o n�o influiu no
desenho da minha vida.
Pois � isso que foi, e sempre ser�: uma vida.
Agora que chegou o capitulo final, acho que � hora de
contar tudo o que aconteceu. Pois este � quem fui, quem
sempre serei... nada mais que o contador de hist�rias, o
contador de lendas, e se � para ser feito um julgamento de
quem sou ou do que fiz, ent�o, que seja.
Pelo menos isso representar� a verdade � um testamento,
digamos, at� mesmo uma confiss�o.
Estou sentado em sil�ncio. Sinto a quentura do meu sangue
nas m�os, e quero saber por quanto tempo continuarei
respirando. Olho para o corpo de um homem morto diante
de mim e sei que, de alguma forma, a justi�a foi feita.
Voltemos agora ao come�o. Venha comigo, se quiser, pois
nada mais posso pedir, e embora tenha cometido tantos
erros creio que o que fiz de certo � suficiente para merecer
esse tempo.
Encha o peito de ar. Prenda. Solte. Tudo tem de estar em
sil�ncio, pois quando eles vierem, quando finalmente
vierem me buscar, precisaremos estar bem quietos para
ouvi-los.
UM
Rumores, boatos, folclore. Fosse qual fosse a forma como
uma pluma branca pousasse ou descansasse, diziam que
indicava a visita de um anjo.
Na manh� de quarta-feira, 12 de julho de 1939, eu vi uma.
Era comprida e fina, diferente de qualquer tipo de pluma
que eu j� tivesse visto. Rodeou a quina da porta quando abri,
quase como se tivesse aguardado pacientemente para entrar,
e a correnteza do corredor a carregou para o meu quarto.
Peguei-a, segurei-a com cuidado, depois a mostrei a minha
m�e. Ela disse que era de um travesseiro. Fiquei um bom
tempo pensando naquilo. Fazia sentido travesseiro ser
recheado de plumas de anjos. Era da� que vinham os sonhos
� das lembran�as dos anjos se infiltrando na cabe�a da
gente quando dormimos. A pluma me deixou pensando
nessas coisas. Coisas como Deus. Coisas como Jesus
morrendo na cruz por nossos pecados, sobre as quais ela
tantas vezes me contava. Jamais gostei da id�ia, nunca fui
um garoto religioso. Mais tarde, anos depois, eu entenderia a
hipocrisia. Era como se minha inf�ncia fosse infestada de
gente que dizia uma coisa e fazia outra. At� nosso ministro,
que percorria a par�quia a cavalo para fazer suas prega��es, o
reverendo Benedict Rousseau, era hip�crita, um charlat�o,
uma fraude: uma das m�os indicando o Caminho dos Livros
Sagrados, a outra, perdida nas pregas sem fim da saia da irm�.
Naquela �poca, quando eu era crian�a, nunca via realmente
essas coisas. As crian�as, embora perspicazes, t�m vis�o
seletiva. V�em tudo, n�o se discute, mas escolhem
interpretar o que v�em de uma forma que convenha �s suas
sensibilidades. E assim foi com a pluma: nada demais, mas,
de alguma forma, um press�gio, um agouro. Meu anjo viera
me visitar. Eu estava plenamente convencido, ent�o os
acontecimentos do dia pareceram, todos, ainda mais
disparatados e incongruentes. Pois esse foi um dia em que
tudo mudou.
A morte chegou naquele dia. Profissional, met�dica,
indiferente aos costumes e �s conveni�ncias; sem respeitar
P�scoa, Natal, pr�ticas religiosas ou qualquer tradi��o. A
morte chegou � fria e insens�vel, a coletora dos impostos
da vida, o pagamento devido pelo ato de respirar. E quando a
Morte chegou eu estava no quintal no meio da terra solta e
seca, cercado de molugos, cer�stios e gaulth�rias. Ela veio
pela High Road, acho eu, acompanhando a divisa entre a
terra do meu pai e a dos Kruger. Acho que caminhava,
porque mais tarde, quando olhei, n�o havia rastro de cavalo,
nem marca de bicicleta, e a menos que a Morte pudesse
andar sem tocar o ch�o, presumi que tivesse vindo a p�.
A morte veio para buscar meu pai.
O nome do meu pai era Earl Theodore Vaughan. Ele nasceu
em 27 de setembro de 1901, em Augusta Falis, Ge�rgia,
quando Roosevelt era presidente � da� seu nome do meio.
Ele fez o mesmo comigo, deu-me o nome de Coolidge em
1927, e l� estava eu � Joseph Calvin Vaughan, filho de meu
pai �, parado no meio dos molugos, quando a morte veio
fazer uma visita no ver�o de 39. Mais tarde, depois do
choro, do funeral e do vel�rio sulino, amarramos a camisa
de algod�o dele a um galho de sassafr�s e tocamos fogo.
Ficamos vendo aquilo se consumir totalmente, a fuma�a
representando a alma dele passando desta terra mortal para
um plano mais elevado, mais justo e mais equitativo. Ent�o,
minha m�e me pegou de lado, e com seus olhos inchados e
marcados de olheiras contou-me que meu pai morrera de
reumatismo no cora��o.
� A febre o levou � disse, a voz embargada de emo��o. �
A febre chegou aqui, no inverno de 29. Voc� era s� um
bebezinho, Joseph, e seu pai tinha muco e saliva suficiente
para irrigar meio hectare de terra boa. Quando a febre agarra
o cora��o da gente, ele enfraquece, n�o consegue mais se
recuperar, e houve uma �poca, talvez um m�s ou mais, em
que s� est�vamos apostando quantas horas faltavam para ele
morrer. Mas ele n�o foi nessa ocasi�o, Joseph. O Senhor
achou por bem deix�-lo aqui por mais alguns anos; quem
sabe o Senhor estivesse imaginando que ele deveria esperar
at� voc� come�ar a virar adulto. � Tirou um trapo cinzento
do bolso do avental e enxugou os olhos, borrando de kohl
metade do rosto; tinha o jeito abatido de um lutador de boxe
sem luvas, desanimado e derrotado numa noite de s�bado.
� A febre estava no cora��o dele � murmurou �-, e foi
sorte a gente ficar com ele esses anos todos.
Mas eu sabia que o reumatismo n�o o tinha levado. A Morte
o levou, chegando pela High Road, voltando pelo mesmo
caminho, deixando somente seu rastro na terra junto �
cerca.
Mais tarde, minhas lembran�as de meu pai ficariam
fragmentadas e ampliadas com a dor; mais tarde, eu pensaria
nele como Juan Gallardo, talvez, corajoso como aquele
personagem de Sangue e Areia, mas nunca inconstante, e
sem a beleza de Valentino.
Ele foi sepultado num caix�o largo, de pinho simples e
empenado, e os fazendeiros das glebas vizinhas, Kruger, o
alem�o, entre eles, levaram seu corpo pela estrada do
interior numa picape de carroceria aberta. Mais tarde
reuniram-se, tristes e paramentados, em nossa cozinha, em
meio ao cheiro de cebola frita em gordura de frango, ao
aroma de bolo, ao perfume da �gua de lavanda num jarro de
cer�mica ao lado da pia. E falaram de meu pai, expondo suas
reminisc�ncias, suas hist�rias, contando lendas dentro de
narrativas mais amplas, cada uma enfeitada e embelezada
com fatos que eram fic��o.
Minha m�e estava sentada muda e vigilante, com uma
express�o simples e ing�nua, os olhos delineados com kohl
mais fundos que po�os, as pupilas dilatadas negras como
piche.
� Uma vez o vi a noite toda com a �gua � disse Kruger. �
Ficou ali deitado at� o sol nascer alimentando a pobrezinha
com punhados de al�tris para parar a c�lica.
� Vou contar uma hist�ria sobre Earl Vaughan e Kempner
Tzanck � disse Reilly Hawkins.
Inclinou-se � frente, as m�os vermelhas calejadas como
pencas de alguma fruta seca ex�tica, movendo os olhos para
c� e para l� como se sempre � cata de algo que tivesse o
objetivo de evit�-lo. Reilly Hawkins cultivava uma gleba ao
sul da nossa, e j� l� estava bem antes de nossa chegada.
Recebeu- nos logo no primeiro dia como amigos que havia
muito n�o encontrava, levantou um celeiro com meu pai, e
n�o aceitou nada al�m de uma jarra de leite pelo trabalho. A
vida lhe deixara uma p�tina, fei��es gretadas com rugas
finas, escleras feito madrep�rola, o tipo dos olhos lavados
pelas l�grimas derramadas por amigos falecidos. Familiares
tamb�m, todos mortos havia muito, e quase esquecidos; uns
em guerras, inc�ndios ou inunda��es, outros em acidentes
ou em fatalidades bobas. N�o deixava de ser ir�nico o fato de
momentos impulsivos � em si mesmos nada mais que
esfor�os para animar e dar vida � exist�ncia � terminarem
em morte. Como com o irm�o ca�ula de Reilly, Levin, aos
dezenove anos, na Feira Estadual da Ge�rgia. Havia um
piloto acrob�tico meio b�bado e falador que tinha um
Stearman ou um Curtiss Jenny e fazia fumiga��es quando
era a �poca; sa�a para assustar a copa das �rvores e dar
rasantes nos telhados dos celeiros, com suas piruetas malucas
e arrogantes, e Reilly tinha desafiado e seduzido Levin a
voar com o homem. O di�logo entre os irm�os foi um pas de
deux, uma dan�a a dois precisa, um tango de desafios e
provoca��es, cada frase um passo, um p� esticado, uma
inclina��o do tronco, um ombro agressivo. Levin n�o queria
ir, disse que tinha a cabe�a e o cora��o feitos para observar
do ch�o, mas Reilly ficou insistindo, apelou para o lado
fraternal, apesar da experi�ncia que tinha, apesar da aura de
malte que envolvia o piloto, apesar do fim da luz do poente.
Levin cedeu, subiu rezando para dar tudo certo por um
quarto de d�lar, e o piloto, bem mais corajoso do que capaz,
tentou uma parab�lica descendente seguida de uma manobra
acrob�tica: um estol hammerhead. O motor morreu no
�pice. Longo sil�ncio sem respirar, lufada de vento, depois
um estrondo de choque de trator em muro. Morreram os
dois. O piloto e Levin Hawkins chamuscados feito dois
bichos atropelados na estrada. Espiral de fuma�a de cem
metros de altura e uma sombra dela persistindo at� o raiar do
dia. O pau para toda a obra que trabalhava com o piloto, um
garoto entre dezesseis e dezessete anos, no m�ximo, ficou
rondando horas com cara de morto, e a� tamb�m sumiu.
Os pais de Reilly Hawkins morreram logo depois. Ele tentou
manter a fazendinha depois da morte deles, os dois arrasados
com a perda de Levin, mas at� os porcos pareciam olh�-lo
de esguelha, como se entendessem sua culpa. Nenhuma
palavra para recriminar Reilly, mas o velho Hawkins, mas-
cando sem cessar seu fumo Heidsieck sabor champanhe,
observava o irm�o mais velho como se houvesse uma d�vida
a ser paga, e ele estivesse esperando Reilly se imolar.
Contra�a os olhos como ex-fumante em loja de charuto.
Nenhuma palavra dita, mas a palavra sempre presente.
Reilly Hawkins nunca se casara, segundo alguns, porque n�o
podia ter filhos, e n�o se envergonhava de admitir isso.
Acho que Reilly nunca se casou porque teve um desgosto
amoroso, e achou que um segundo o mataria. Diziam que
era uma garota do condado de Berrien, bonitinha como um
beb� chin�s. Ele preferiu n�o se aventurar, pois tinha outras
raz�es para viver. Poderia ter escolhido uma garota
falastrona de uma fam�lia muito numerosa, uma garota que
usasse vestido de chita, enrolasse os pr�prios cigarros e be-
besse direto da garrafa � isso, ou a solid�o. Parece que
optara pela �ltima, mas nunca falara disso abertamente, e eu
nunca perguntara abertamente tamb�m. Esse era Reilly
Hawkins, o pouco que eu sabia dele na �poca, e n�o dava
para adivinhar seu objetivo nem seu rumo, pois em geral
parecia um homem cuja teimosia superava a sensatez.
� Earl foi um lutador � disse Reilly naquele dia l� na
cozinha, o dia do enterro.
Olhou para minha m�e. Ela n�o se mexeu muito, mas sua
express�o e a forma como retribuiu o olhar dele eram uma
autoriza��o para que prosseguisse.
� Earl e Kempner foram para l� de Race Pond, at� Hickox,
no condado de Brantley. Foram l� falar com um homem
chamado Einhorn, se n�o me falha a mem�ria, um homem
chamado Einhorn que tinha um alaz�o para vender. Pararam
num lugar no caminho s� para beber alguma coisa, e quando
estavam descansando um brutamontes entrou e come�ou a
gritar, como uma banshee de cocar. Era um sujeito que
perturbava, perturbou os dois e irritou e enfezou o pessoal,
a� Earl sugeriu que ele fosse gritar no mato, onde ningu�m o
ouvisse.
Reilly tornou a olhar para minha m�e, depois para mim. N�o
me mexi, queria ouvir o que meu pai tinha feito para
acalmar aquele brutamontes perto de Hickox, no condado
de Brantley. Minha m�e n�o levantou a m�o nem a voz, e
Reilly sorriu.
� Para encurtar a hist�ria, aquele brutamontes tentou
derrubar Earl com um soco. Earl se esquivou e o cara voou
porta afora e se estatelou na terra. Fui atr�s dele, tentei
cham�-lo � raz�o, mas o homem tinha um cora��o e uma
cabe�a agressivos e n�o dava para dialogar com ele.
Kempner foi l� fora bem na hora em que o homem se
levantou de novo e partiu para cima de Earl com uma t�bua.
Earl era como um daqueles acrobatas chineses de circo,
dan�ando e rodando, os punhos parecendo pist�es, e um
desses pist�es pegou o nariz do grand�o, e deu para ouvir o
osso quebrando em dez lugares. Cascata de sangue, o
homem com a camisa toda ensopada, ajoelhado ali na terra
gritando feito um porco ferido.
Reilly Hawkins inclinou-se para tr�s e sorriu.
� Ouvi dizer que o nariz do garot�o nunca mais parou de
sangrar... ficou escorrendo at� ele se esvair todo...
� Reilly Hawkins � disse minha m�e. � Essa hist�ria
nunca foi verdade, e voc� sabe.
Hawkins ficou encabulado.
� N�o quis ofender, minha senhora � disse, e inclinou a
cabe�a com defer�ncia. � Longe de mim querer irritar a
senhora num dia desses.
-� A �nica coisa que me irrita s�o inverdades, meias-
verdades e mentiras deslavadas, Reilly Hawkins. Voc� est�
aqui para se despedir do meu marido, que parte ao encontro
do Senhor, e eu agradeceria se tomasse cuidado com seu
palavreado, com seus modos, e n�o abrisse a boca para
contar balela, especialmente na frente do menino.
Olhou para mim. Eu estava ali sentado, de olhos arregalados,
admirado, mais curioso ainda para saber os detalhes
sangrentos relacionados com meu pai: um homem capaz de
quebrar o nariz de um brutamontes com um gancho de
direita e provocar a morte por sangria.
Mais tarde eu me lembraria do enterro de meu pai.
Lembraria aquele dia em Augusta Falis, condado de Charlton
� uma excresc�ncia de antes da guerra civil �s margens do
rio Okefenokee �, me lembraria de uma gleba que era mais
p�ntano que terra; da maneira como a terra simplesmente
sugava tudo, sempre com fome, insaci�vel. Aquela terra
inchada absorveu meu pai, e eu o vi partir; eu com onze
anos, ele apenas com trinta e sete, e minha m�e em p� com
um grupo de fazendeiros ignorantes e solid�rios dos quatro
cantos do mundo, as mangas dos palet�s lhes cobrindo todo
o dorso da m�o, as cal�as de sarja grosseira deixando �
mostra um bom peda�o das meias pu�das. Toscos, talvez,
mais simpl�rios que afetados, mas fortes de cora��o,
saud�veis e generosos. Minha m�e segurou minha m�o com
um pouco de for�a demais, mas eu n�o disse nada nem
retirei a m�o. Eu era seu filho �nico, porque � a acreditar
nas hist�rias, e eu n�o tinha motivo para duvidar delas �
fora um filho dif�cil, resistente � expuls�o, e o esfor�o do
parto estragou os aparelhos internos que ensejariam uma
fam�lia maior.
� S� voc� e eu, Joseph � murmurou ela depois. As pessoas
haviam ido embora (Kruger e Reilly Hawkins, outros com
caras conhecidas e nomes incertos) e est�vamos parados
lado a lado olhando pela porta da frente de nossa casa, uma
casa erguida � m�o � custa de suor e boa madeira. � S� voc�
e eu de agora em diante � disse mais uma vez, e a�
entramos e fechamos a porta para a noite.
Mais tarde, deitado na cama, o sono me fugindo, pensei na
pluma. Quem sabe, pensei, havia anjos que entregavam e
anjos que levavam.
Gunther Kruger, um homem que apareceria mais na minha
vida com o passar do tempo, me disse que o Homem vinha
da terra, que se n�o voltasse para a terra haveria um
desequil�brio universal. Reilly Hawkins disse que Gunther
era alem�o, e que os alem�es n�o conseguiam ter uma vis�o
maior das coisas. Disse que as pessoas eram esp�ritos.
� Esp�ritos? � perguntei. �Voc� quer dizer fantasmas?
Reilly sorriu, balan�ou a cabe�a.
� N�o, Joseph � murmurou. � N�o como fantasmas...
mais como anjos.
-� Ent�o meu pai virou anjo?
Hawkins ficou calado um instante, a cabe�a inclinada,
olhando de forma estranha.
-� Seu pai, anjo? � disse, e deu um sorriso esquisito, como
se um m�sculo tivesse se contra�do num lado do seu rosto e
n�o pudesse ser relaxado com muita facilidade. �Talvez um
dia... acho que tem que trabalhar um pouco, mas, sim, talvez
um dia ele vire anjo.
Dois
No litoral da Ge�rgia � em Crooked River, Jekyll Island,
Gray�s Reef e Dover Bluff� as estradas n�o passavam de
arremedos de pontes e elevados com a pretens�o de ser
estradas, a toda hora pulando trechos de �gua como pedras
chatas lan�adas com efeito por m�os de crian�as; uma
sucess�o alagada de ilhas, regatos, lagos, marismas e bra�os
de rio, �rvores envoltas em barba-de-velho, troncos unidos
formando passarelas sobre os p�ntanos mais fundos, ao passo
que as plan�cies no sudeste se elevavam gradualmente pelo
estado afora at� os Apalaches. Os georgianos cultivavam
arroz, e a� Eli Whitney inventou a descaro�adora de
algod�o, e os b�ias-frias colhiam amendoim, e os colonos
extra�am a resina dos pinheiros para encerar cordas, calafetar
as costuras das velas com piche e terebintina para tinta. Cem
mil quil�metros quadrados de hist�ria, uma hist�ria que
aprendi, uma hist�ria em que eu acreditava.
Uma cadeira com apoio lateral; uma escola de uma sala s�;
uma professora chamada srta. Alexandra Webber. Uma cara
larga que era uma campina aberta, olhos de um tom azul de
cent�urea, simples e descomplicados. Seu cabelo era cor de
linho cru, e ela sempre cheirava a alca�uz e hortel�, e um
leve tra�o de gengibre ou salsaparrilha. N�o tinha pena de
ningu�m, nem esperava que tivessem pena dela, e o
tamanho de sua paci�ncia s� se equiparava � for�a de sua
raiva, se ela sentisse que voc� a desobedecera de prop�sito.
Eu me sentava ao lado de Alice Ruth Van Horne, uma
menina estranha e meiga, de quem descobri que gostava de
uma forma inexplic�vel. Havia algo simples e comovente na
maneira como ela enrolava a franja quando se concentrava,
toda hora me olhando como se eu tivesse a resposta que ela
n�o conseguia achar. Talvez eu lhe desse a impress�o de
entender aquilo que ela buscava, talvez s� para valorizar a
aten��o dela, mas quando ela estava ausente eu tinha
consci�ncia dessa aus�ncia de uma outra maneira al�m da
presen�a f�sica. Eu tinha onze anos, perto de completar
doze, e �s vezes pensava em coisas que n�o ficaria bem
dividir com terceiros. Alice representava algo que eu n�o
entendia completamente, algo que eu sabia que seria
dific�limo de explicar. Nos quatro anos que eu freq�entara a
escola, Alice esteve presente, � minha frente, ao meu lado,
por um trimestre sentada atr�s de mim. Quando olhava para
ela, ela sorria, �s vezes corava, e a� desviava os olhos, s� para
esperar um pouco e me olhar de novo. Eu achava que o
sentimento dela era descomplicado e puro, e que um dia,
quem sabe, n�s dois poder�amos recordar isso como uma
lembran�a perfeita de quem hav�amos sido em crian�a.
A srta. Webber, por�m, representava algo totalmente
diferente. Eu amava a srta. Alexandra Webber. Meu amor
era claro como suas fei��es e definido com a mesma
simplicidade. A srta. Webber conduzia suas aulas seguindo
as regras de Robert, e sua voz, seu sil�ncio, tudo que ela era
e tudo que eu imaginei que ela algum dia seria foram um
paliativo, uma panac�ia depois da morte de meu pai.
� Cavalheiro Johnny Burgoyne... quem j� ouviu falar no
cavalheiro Johnny Burgoyne?
Sil�ncio. Nada al�m do barulho do meu cora��o enquanto eu
a observava.
�ramos dezessete, espremidos naquela sala estreita de t�buas
de madeira, e ningu�m levantou a m�o.
� Estou decepcionada � disse ela, e sorriu com
compreens�o. Ao que parecia, a srta. Webber tinha vindo de
Syracuse para ser nossa professora. As pessoas de Syracuse
respiravam um ar diferente, um ar que deixava a cabe�a mais
esclarecida, a mente mais agu�ada; as pessoas de Syracuse
eram uma ra�a diferente.
� O cavalheiro Johnny Burgoyne nasceu em 1722 e morreu
em 1792. Foi um general brit�nico na Revolu��o. Viu-se
cercado por nossas tropas em Saratoga em 17 de outubro de
1777. Foi a primeira grande vit�ria americana e uma batalha
verdadeiramente decisiva da guerra.
Fez uma pausa. Meu cora��o disparou.
� Joseph Vaughan?
Quase engoli a l�ngua.
� Aonde voc� foi, Joseph Vaughan... imagino que n�o esteja
neste mundo...
� Estou, professora... estou sim, claro.
Risos abafados, como os fantasmas de crian�as na
brincadeira "gostosura ou travessura" de Halloween.
Crian�as que eu conhecia do condado de Liberty e
Mclntosh, outras de Silco e Meridan. Alice estava entre elas.
Alice Ruth Van Horne. Laverna Stowell. Sheralyn Williams.
Elas vinham dos arredores para aprender sobre a vida com a
srta. Alexandra Webber.
� Bem, fico muito satisfeita em ouvir isso, Joseph Calvin
Vaughan. Agora, para demonstrar o quanto estava prestando
aten��o hoje � tarde, pode se p�r de p� atr�s de sua carteira e
nos explicar o que aconteceu em Brandywine, no sudeste da
Pensilv�nia, naquele mesmo ano.
Meu resumo foi sem gra�a e sem subst�ncia. Fui instru�do a
ficar at� mais tarde e lavar os apagadores.
Ela ficou me vigiando. A princ�pio, achei que fosse para ver
se eu me esquivaria da obriga��o, talvez para me repreender
mais por minha falta de concentra��o.
� Joseph Vaughan � come�ou.
A sala de aula estava vazia. Era de tarde. Meu pai j� tinha
morrido havia quase tr�s meses. Eu faria doze anos dali a
cinco dias.
� Nossa aula de hoje... tive a n�tida impress�o de que voc�
estava entediado.
Fiz que n�o com a cabe�a.
� Mas voc� n�o estava prestando aten��o, Joseph.
� Desculpe, professora... eu estava pensando em outra coisa.
� E em que seria?
� Eu estava pensando na guerra, professora.
� J� ouviu falar sobre a guerra na Europa? � perguntou ela.
Parecia admirada, mas eu n�o sabia porqu�.
Fiz que sim.
� Quem lhe contou?
� Minha m�e, professora... minha m�e me contou.
� Ela � uma mulher culta e inteligente, n�o �?
� N�o sei, professora.
� Esteja certo disso, JosephVaughan, qualquer americana
moradora da Ge�rgia que saiba sobre Adolf Hitler e a guerra
na Europa eu j� lhe digo que essa mulher � uma pessoa culta
e inteligente.
� Sim, professora.
�Venha c�, Joseph � disse a srta. Webber.
Olhei para ela. Eu era alguns anos mais mo�o e talvez uns
quinze cent�metros mais baixo.
Ela indicou sua mesa, na frente da sala de aula.
�Venha � disse. � Sente aqui e converse um pouco
comigo antes de ir embora.
Obedeci. Tinha a sensa��o de ter pele demais para a minha
estrutura. Sentia o esqueleto lutando enquanto lidava com
aquela flexibilidade e aquele desconjuntamento todo.
� Diga-me outra palavra que signifique cor � disse ela.
Olhei para ela visivelmente perplexo.
Ela sorriu.
� N�o � uma prova, Joseph, � s� uma pergunta. Sabe alguma
outra palavra para cor?
Assenti.
� Diga.
� Tom, professora.
� �timo � disse ela, e abriu um sorriso. Seus olhos de
cent�urea floresceram ao sol de Syracuse.
� E mais outra?
� Outra?
� Sim, Joseph, outra palavra para cor.
� Matiz, talvez, tonalidade... algo assim?
Ela assentiu.
� E consegue pensar em outra palavra que signifique
muitos?
� Muitos? Uma quantidade, uma infinidade?
A srta. Webber inclinou a cabe�a para um lado.
� Uma infinidade?
Fiz que sim.
� Onde encontrou uma palavra como essa, Joseph
Vaughan?
� Na B�blia, srta.Webber.
� Sua m�e faz voc� ler a B�blia?
Fiz que n�o.
�Voc� l� por sua conta?
� Um pouco.
� Por qu�? � perguntou ela.
� Eu queria... � Eu sentia o rubor colorindo minhas faces.
Quantas palavras para um sentimento desses?, pensei.
�Voc� queria o que, Joseph?
� Eu queria aprender sobre os anjos.
� Os anjos?
Concordei.
� Os serafins e os querubins, a hierarquia celeste.
A srta.Webber riu, e depois se controlou.
� Desculpe, Joseph. Eu n�o tinha a inten��o de rir. Voc�
simplesmente me surpreendeu.
Fiquei calado. Minha cara ardia; feito o ver�o de 33, quando
o rio secou.
� Fale-me sobre a hierarquia celeste.
Mexi-me sem jeito na cadeira. Estava meio encabulado. N�o
queria que a srta.Webber perguntasse sobre meu pai.
� H� nove ordens de anjos � disse eu, a voz pegando no
fundo da garganta como se tivesse encontrado um pu��. �
Os serafins... criaturas ardentes de seis asas que guardam o
trono de Deus. S�o conhecidos como o Ardor Sagrado.
Depois h� os querubins, que t�m asas grandes e cabe�a hu-
mana. S�o os servos de Deus e os Guardi�es dos Lugares
Sagrados. Depois h� os tronos, domina��es, virtudes,
potestades, principados, e depois v�m os arcanjos, como
Gabriel e Miguel. Finalmente, h� os pr�prios anjos, os inter-
medi�rios divinos que protegem as pessoas e as na��es.
Fiz uma pausa. Tinha a boca e a garganta secas.
� Miguel lutou contra L�cifer, que o lan�ou na Geena.
� Geena? � perguntou a srta. Webber.
� Sim � disse eu. � Geena.
� E por que Miguel lutou contra L�cifer?
� Ele era o portador da luz � disse eu. � � isso que seu
nome quer dizer... Lux significa luz efere significa portar.
Alguns o chamam de estrela da manh�, outros o chamam de
portador da luz. Ele era um anjo. Deveria levar sua luz
adiante e mostrar a Deus onde o homem tinha pecado.
Dei uma olhada para a porta. Senti-me idiota, como se eu
estivesse sendo engambelado para ficar falando. Olhei para a
srta.Webber e ela apenas sorria. Com uma express�o de
interesse e curiosidade.
� Ele trazia sua luz e mostrava a Deus onde o homem tinha
pecado, e colhia provas, mais ou menos como um policial
colheria. Ent�o, contava para Deus, e Deus punia as pessoas
pelo que elas tinham feito.
� Ent�o, o que h� de errado nisso? � perguntou a srta.
Webber. � Parece que ele estava s� fazendo o trabalho
dele.
Fiz que n�o com a cabe�a.
� No come�o, sim, mas depois achou mais interessante
agradar a Deus do que dizer a verdade. Come�ou a induzir as
pessoas a fazer coisas ruins para poder contar tudo para
Deus. Trouxe a tenta��o para o Homem, e ele pr�prio foi
tentado. Come�ou a mentir, e Deus ficou muito irritado com
ele. Ent�o, L�cifer tentou iniciar um motim entre os anjos, e
Miguel o combateu e ele foi lan�ado na Geena.
Parei de falar. Minha boca tinha se deixado levar por ela
mesma. Quando percebi aonde ia, ela j� havia atravessado o
horizonte. A poeira deixada em seu rastro ressecava minha
garganta e me fazia tossir.
� Quer beber um pouco d'�gua, Joseph? � perguntou a
srta.Webber.
Fiz que n�o.
Ela tornou a sorrir.
� Estou impressionada, Joseph. Impressionada com o muito
que voc� sabe sobre a B�blia.
� N�o sei muito sobre a B�blia � retruquei. � S� um
pouquinho sobre os anjos.
�Voc� acredita em anjos? � perguntou ela.
Assenti.
� Claro que sim. � Achei estranho ela fazer uma pergunta
daquelas.
� E por que quis aprender sobre os anjos, Joseph?
Engoli meu medo ruidosamente. Restou um n� do tamanho
de uma noz na minha garganta.
� Por causa do meu pai.
� Ele queria que voc� aprendesse sobre os anjos?
� N�o, professora... porque Reilly Hawkins me contou que
se meu pai se esfor�asse para valer, ele poderia virar um.
Ela parou um instante. Olhou para mim, talvez com mais
aten��o do que antes, mas n�o deu sequer um esbo�o de
sorriso.
� Ele morreu, n�o?
� Morreu, professora.
� Quando ele morreu, Joseph?
� No dia 12 de julho.
� N�o faz muito tempo.
� �, professora, faz uns tr�s meses.
� E quantos anos voc� tem, Joseph?
Sorri.
� Fa�o doze daqui a cinco dias.
� Cinco dias, hein? E voc� tem irm�os?
Fiz que n�o.
� S� voc� e sua m�e?
� Sim, professora.
� E quem ensinou voc� a ler?
� Minha m�e e meu pai... Meu pai me dizia que era uma das
coisas mais importantes para se fazer. Dizia que a gente
podia passar a vida toda num barrac�o de um quarto numa
cidade min�scula, mas podia ver todos os lugares do mundo
na imagina��o desde que soubesse ler.
� Era um homem s�bio.
� Com um cora��o doente � disse eu.
Por um momento ela pareceu desconcertada, como se eu
tivesse dito algo errado.
� Desculpe � comecei.
Ela levantou a m�o.
� Tudo bem.
� Acho que j� est� na hora de eu ir embora, srta. Webber.
Ela concordou.
� �, acho que sim. Prendi voc� por muito tempo.
Contornei a cadeira e fiquei em p� ao lado da mesa. Segurei
meu cora��o, fr�gil como um passarinho numa gaiola de
palha.
� Foi bom conversar com a senhora, professora � disse eu
�e me desculpe por n�o ter prestado aten��o a Brandwyne.
Ela sorriu. Esticou a m�o e tocou meu rosto. S� por um
�timo, uma fra��o de segundo. Senti uma energia me
percorrendo, uma energia que me enchia o peito, me
inchava a barriga, me dava a sensa��o de precisar mijar.
� N�o tem import�ncia, Joseph... Acho que voc� estava
num lugar muito mais importante. � Deu uma piscadela. �
V� � disse. � Pode ir agora, e fique com o olho da
intelig�ncia aberto.
Meu anivers�rio foi num s�bado. Acordei com negros
cantando no campo de Gunther Kruger. Na varanda estava
um embrulho de papel pardo com meu nome escrito com
letras claras e inconfund�veis � JOSEPH CALVIN VAUGHAN.
Levei-o para dentro e mostrei-o a minha m�e.
� Ent�o abra, menino � insistiu ela. � Deve ser um
presente, talvez dos Kruger.
O Vale sem Fim, de John Steinbeck
Dentro, trazia a dedicat�ria: Viva a vida com coragem,
Joseph Vaughan, pois a vida � muito pequena para det�-lo.
Tudo de bom pelo seu d�cimo segundo anivers�rio, sua
professora, srta. Alexandra Webber.
� � da minha professora � disse eu. � � um livro.
� Estou vendo que � um livro, filho � disse minha m�e, e
secando as m�os na frente do avental tomou-o de mim. A
capa era dura, as p�ginas cheiravam a tinta fresca, e ao me
ser devolvido o livro trazia o apelo para que eu cuidasse bem
dele.
Segurei-o e me abracei com ele, quase com medo de deix�-
lo cair, e ent�o esperei um pouco antes de abri-lo. Fechei os
olhos e agradeci o que quer que tivesse inspirado a srta.
Webber a demonstrar tamanha generosidade.
O Cris�ntemo
A neblina alta de sarja cinza do inverno isolou o vale de
Salinas do c�u e do resto do mundo. Em todos os lados,
assentava-se como uma tampa em cima das montanhas e
transformou o grande vale numa panela tampada.
Levei o livro para a varanda, sentei na escada, envolvido
pelo barulho dos negros nos campos, pelo cheiro das
panquecas e pela nova manh�, e li � p�gina ap�s p�gina,
passando voando por palavras que n�o entendia nem estava
interessado em entender, porque ali encontrei algo que me
desafiava e me assustava, que me entusiasmava com uma
onda de febre e paix�o indescrit�vel.
Mais tarde, contei a minha m�e que eu queria escrever.
� Escrever para quem? � perguntou ela.
� N�o � disse eu. � Quero escrever... um livro, escrever
v�rios livros. Quero ser escritor.
Ela se debru�ou sobre mim, puxou os len��is para me cobrir
o pesco�o e me deu um beijo na testa.
� Escritor, �? � disse ela, e riu. � Ent�o acho melhor voc�
come�ar a andar sempre com um l�pis.
Sexta-feira, 3 de novembro de 1939, o corpo de Alice Ruth
Van Horne foi encontrado. Eu a conhecia melhor do que
qualquer um dos meus colegas de sala. Alice tinha olhos
verdes, e um cabelo que n�o era nem louro nem ruivo nem
castanho, mas tinha a profus�o de tons de mil folhas mortas.
Quando ria, parecia uma ave ex�tica entrando por engano
pela nossa janela. Na merendeira, trazia sandu�ches que eu
sabia terem sido feitos por ela mesma. A casca do p�o era
cortada e embrulhada � parte.
� Por que voc� faz isso? � perguntei-lhe uma vez.
� Quer um? � Ela me ofereceu um pauzinho marrom.
Fiz que n�o com a cabe�a.
� Prove � disse ela.
Peguei aquilo com muito cuidado.
Ela riu.
� Prove � repetiu.
Tinha gosto de uma coisa quente, como canela, eu n�o
conhecia nada igual.Tinha um gosto maravilhoso.
Ela p�s a cabe�a de lado.
� Bom, hein?
Assenti.
� Bom mesmo.
� Por isso est�o separadas. N�o d� para sentir t�o bem o
gosto se a gente deixa as casquinhas no sandu�che.
Alice foi encontrada morta num campo no fim da High
Road, onde a Morte deve ter come�ado sua jornada quando
veio buscar meu pai. Tudo indicava que a Morte n�o viera
para busc�-la; Alice lhe poupara esse inc�modo indo at� l�
ao seu encontro. A merendeira foi encontrada ao seu lado.
Era de tardinha, bem depois da escola, e na merendeira s�
havia papel de embrulho e o cheiro das cascas.
Alice tinha onze anos. Ao que parecia, algu�m a tinha
despido e espancado, feito coisas com ela "que nenhum ser
humano normal faria com um cachorro, muito menos com
uma garotinha", Reilly Hawkins disse isso; disse em nossa
cozinha, sentado ali ao lado de Gunther Kruger, que havia
trazido uma jarra de barro de limonada enviada pela sra.
Kruger, e minha m�e lhe dissera:
� Psiu, Reilly, n�o quero falar dessas coisas na frente do
menino.
Mais tarde o menino em quest�o foi para a cama. Esperei at�
a casa ter parado de ranger e estalar, sa� furtivamente do
quarto e me postei como um fantasma em meio �s sombras e
�s lembran�as no alto da escada.
� Ela foi estuprada � ouvi Reilly dizer. � Garotinha, sem
nada... e foi estuprada, espancada e esganada por um animal
at� morrer, e depois largada no campo no alto da High Road.
� Desconfio que foi um daqueles crioulos � disse Gunther
Kruger.
Minha m�e se voltou contra ele, com palavras firmes e
implac�veis.
� Chega dessa conversa, Gunther Kruger. Agora mesmo os
seus conterr�neos est�o deixando um tirano empurr�-los
para a guerra que todos n�s rezamos para que nunca
acontecesse. O governo polon�s est� exilado em Paris; at�
ouvi dizer que Roosevelt vai ter que ajudar os brit�nicos a
comprar armas e bombas dos Estados Unidos. Milhares,
centenas de milhares, talvez milh�es de pessoas v�o
morrer... tudo por causa do povo alem�o.
� � um ponto de vista injusto, sra.Vaughan... nem todos os
alem�es...
� E nem todos os negros, sr. Kruger.
Kruger ficou calado. O vento virara e desenfunara suas velas.
Ele deixou que a �gua o levasse para o baixio do
constrangimento sem olhar para a embarca��o contr�ria.
� E n�o permito esse tipo de conversa na minha casa �
disse minha m�e. � N�o estamos na Idade M�dia. N�o
somos pessoas ignorantes. Adolf Hitler � branco, da mesma
maneira como Gengis Khan era mongol e Cal�gula era
romano. N�o � a nacionalidade, nem a cor, nem a religi�o...
� sempre s� o homem.
� Ela tem raz�o � disse Reilly Hawkins. � Ela tem raz�o,
Gunther Kruger.
Kruger perguntou se Reilly ou minha m�e queriam mais
limonada.
Fui de fininho para minha cama e pensei em Alice Ruth Van
Horne. Eu me lembrava do som de sua voz, de seu jeito de
sorrir das coisas mais bobas. Recordava-me de uma
brincadeira que fizemos uma vez no campo com a cerca
quebrada, uma brincadeira em que ela caiu e ralou o
cotovelo, e eu a acompanhei at� em casa ao encontro da
m�e.
Era uma menina meiga, sempre alegre, ao que parecia.
Eu me lembrava do seu jeito de me olhar, do seu jeito de
sorrir, de virar as costas, de me olhar mais uma vez... sempre
esperando uma resposta que nunca dei.
Chorei por ela.
Percebi que minha lembran�a de Alice, uma lembran�a que,
imaginei, seria sempre perfeita, agora n�o passaria de uma
sombra em meu cora��o.
Tentei imaginar o tipo de ser humano que faria uma coisa
daquelas com Alice Ruth. Se � que uma pessoa dessas fosse
um ser humano de alguma esp�cie.
Quando acordei, meu travesseiro estava molhado. Achei que
devia ter chorado dormindo.
Imaginei que Deus tinha transformado Alice imediatamente
em um anjo.
Na manh� seguinte, recortei um artigo do jornal, e escondi-
o numa caixa embaixo da cama.
DI�RIO DO CONDADO DE CHARLTON
S�bado, 4 de novembro de 1939
Menina da regi�o encontrada morta
Na manh� de sexta-feira, 3 de novembro, o corpo de uma
menina da regi�o, Alice Ruth Van Horne (11), foi
encontrado em Augusta Falls. Alice, aluna da Escola
Prim�ria de Augusta Falls, foi achada por um morador da
regi�o. O xerife Haynes Dearing teria dito: "Estamos atentos
� presen�a de qualquer vagabundo ou desconhecido na �rea.
Declaramos estado de emerg�ncia em todo o condado, para
vigorar imediatamente, o que nos permite prender quaisquer
suspeitos. O assassinato de uma menina, de nossa pr�pria
comunidade, de forma t�o brutal, deu a todos n�s motivo
para estar conscientes de qualquer ocorr�ncia incomum ou
que chame a aten��o em nosso meio. Pe�o a todos os
cidad�os que n�o entrem em p�nico, mas que fiquem
sempre atentos ao paradeiro de seus filhos." Quando lhe
perguntaram mais detalhes da investiga��o desse assassinato
hediondo, o xerife Dearing se absteve de fazer outros
coment�rios. Arthur e Madeline Van Horne, pais da menina
assassinada, moram em Augusta Falls h� dezoito anos.
Freq�entam a Igreja Metodista do condado de Charlton. O
sr. Van Horne administra sua propriedade dentro dos limites
urbanos de Augusta Falls.
Tentei n�o pensar na sensa��o de ser espancado e esganado
at� morrer, mas, quanto mais tentava n�o pensar, mais isso
enchia minha imagina��o. Depois de alguns dias, parei de
me preocupar, o que parecia ser o que todo mundo em
Augusta Falls queria fazer.
E h� �pocas de que eu me lembro � dias de ver�o,
sobretudo; enevoados, abafados e ensolarados, e o sr.
Tomczak arrastando seu gramofone Victrola para o quintal,
e discos de baquelita pesados como pratos; e os adultos
ficavam, de certo modo, descontra�dos, e apesar de ningu�m
ter dinheiro nenhum, e muito provavelmente nunca fosse
ter, n�o tinha import�ncia, porque havia riqueza na amizade
e na comunidade.
E as crian�as nos campos brincando de pega-pega-com-
beijo, e uma pessoa tinha um engradado de cerveja para os
pais, e outra fazia coquetel de melancia para as senhoras.
Minha m�e botava uma bata de ver�o, e uma vez dan�ou
valsa com meu pai, e ele ostentava um sorriso como uma
medalha: por coragem, por fidelidade, por amor.
E os dias de que me lembro s�o dias idos. Escoaram
silenciosamente para um passado indistinto. N�o s� idos,
mas tamb�m esquecidos. S�o dias que, acho, n�o tornaremos
a ver. N�o aqui, n�o em Augusta Falls, nem em lugar
nenhum. Tudo inundado do del�rio animado da celebra��o
espont�nea, uma celebra��o sem outro motivo sen�o estar
vivo. E o som de algo familiar, mas distante�- um jogo de
beisebol no r�dio, o barulho das tampinhas verdes de Coca-
Cola sendo abertas � e de repente o passado est� a�. Em
tecnicolor e com sistema de som que faz vibrar as cadeiras:
Cecil B. DeMille, King Vidor. Ent�o, um sil�ncio bem-vindo
ap�s um barulho sem fim.
E espetadas entre essas lembran�as, como dentes de metal
enferrujados, h� outras lembran�as...
As meninas.
Sempre as meninas.
Meninas como Alice Ruth Van Home, a quem amei como
s� uma crian�a pode amar algu�m � deforma simples,
tranq�ila, perfeita.
Suas vidas como papel molhado torcido, bem amassado e
jogado fora.
Ent�o algo aconteceria � algo silencioso e lindo � e eu
come�aria a achar que havia esperan�a de que o mundo
pudesse ser posto em ordem.
N�o aconteceu. N�o �quela altura.
Talvez, de alguma forma, o que fiz agora restitua o
equil�brio.
Talvez agora os fantasmas que me assombraram esses anos
todos desapare�am.
Suas vozes se calar�o � finalmente, pacificamente,
irrevogavelmente.
Tenho em m�os um peda�o de jornal. Levanto-o e atrav�s
do papel fino, agora manchado com meu sangue, vejo a luz
da janela, a silhueta do homem morto � minha frente.
"Est� vendo?", digo. "Est� vendo o que voc� fez?"
E a� sorrio. Estou ficando mais fraco. Tenho uma sensa��o
de encerramento.
"Nunca mais", murmuro. "Nunca mais."
Tr�s
� Pegue uma palavra � disse a srta.Webber. � Pegue uma
palavra e pense no maior n�mero de palavras com
significado igual ou parecido. S�o chamadas sin�nimos essas
palavras que t�m um significado igual ou parecido. Escreva-
as em seu caderno, Joseph, e quando quiser formar uma
frase, procure no caderno e use as palavras mais
interessantes ou adequadas que encontrar.
Assenti.
Ela contornou a escrivaninha e sentou-se na cadeira com
apoio lateral ao lado da minha. A sala de aula estava vazia. Eu
ficara depois da hora, por instru��es dela. Est�vamos a duas
semanas do Natal e nos �ltimos dias de aula.
� J� ouviu falar no Julgamento do Macaco? � perguntou.
Fiz que n�o.
� H� alguns anos, em 1925, acho eu, houve um professor
de biologia chamado John T. Scopes, de uma cidade
chamada Dayton, no Tennessee, que ensinava aos alunos
uma coisa chamada evolu��o. Sabe o que � evolu��o,
Joseph?
� Sei, professora... � mais ou menos a id�ia de que �ramos
todos macacos nas �rvores muito tempo atr�s e, antes,
�ramos peixes ou coisa assim.
Ela riu.
� O sr. Scopes ensinava aos alunos dele a teoria da evolu��o,
em vez da teoria da Cria��o como est� na B�blia. Ele foi
processado pelo estado do Tennessee, e o advogado de
acusa��o era um homem chamado William Jennings Bryan,
um orador muito conhecido e tr�s vezes candidato �
presid�ncia. O defensor do sr. John Scopes foi Clarence
Darrow, um criminalista americano muito famoso. O sr.
Scopes perdeu a batalha e teve que pagar uma multa de cem
d�lares, mas em nenhum momento abriu m�o da posi��o
dele. � A srta. Webber aproximou-se mais um pouco de
mim. � Em nenhum momento, Joseph Vaughan, ele disse
o que achava que as pessoas desejavam ouvir. Disse o que
considerava certo.
Recostou-se na cadeira.
�Voc� quer saber por que estou lhe contando isso?
Fiquei calado, apenas olhei para ela e esperei que falasse
mais.
� Estou lhe contando isso porque temos uma Constitui��o e
a Constitui��o diz que devemos dizer o que pensamos, e
sustenta nosso direito de falar a verdade da forma como a
vemos. Isso, Joseph Vaughan, � o que voc� deve fazer com
sua escrita. Se quer escrever, deve escrever, mas lembre-se
sempre de escrever a verdade da forma como a v�, n�o
como os outros querem que seja vista. Entende?
� Entendo � respondi, achando que o fazia.
� Ent�o, nas suas f�rias de Natal, quero que me escreva um
conto.
� Sobre o qu�?
Ela sorriu.
� Isso � uma coisa que voc� tem que decidir. Escolha algo
que tenha um significado para voc�, algo que sinta que
provoque uma emo��o, um sentimento... algo que deixe
voc� zangado, com �dio, ou algo que o fa�a vibrar, quem
sabe. Escreva uma hist�ria real, Joseph. N�o precisa ser
longa, mas tem que ser sobre algo em que voc� acredite.
A srta. Webber se levantou e ficou em p� ao meu lado. Mais
uma vez, encostou a m�o em meu rosto.
� Bom Natal, Joseph, e vejo voc� no in�cio de 1940.
Gunther Kruger era o homem mais rico do condado de
Charlton. A casa dos Kruger era duas vezes maior que a
nossa. Na sala, eles tinham um r�dio de cristal Atwater Kent,
e a fam�lia Kruger � Gunther, a mulher, os dois filhos e
uma filha � sentava diante do r�dio com fones de ouvido e
escutava m�sica e conversas que vinham de Savannah,
passando por Hinesville e Townsend, Hortense e Nahunta.
Aqueles sons atravessavam n�o sei como o p�ntano de
Okefenokee sem afundar. Era m�gico e estranho, uma janela
para um mundo que eu n�o conseguia entender. Na
cozinha, eles tinham uma m�quina de lavar Maytag e uma
batedeira Sunbeam, e a sra. Kruger, que usava saias de l�
grossa, fazia salsichas de Viena e salada de batata, e falava
comigo com seu sotaque de ingl�s macarr�nico.
�Voc� � um esbandalho � dizia ela.
Eu franzia a testa, inclinava a cabe�a e dizia:
-� Esbandalho?
� Para esbandar afes � explicava ela. � Como se vosse
veido te baus e roubas felhas, sim?
� Paus e roupas velhas � eu repetia, e a� abria um sorriso.
� Um espantalho.
� Sim � concordava ela. � Como x� tisse, um esbandalho!
A�ora coma antes que as afes chequem, sen�o foc� fai
assust�-las. H�, h�!
Comecei a ir � casa dos Kruger mais ou menos uma semana
antes do Natal. Em geral, o sr. Kruger n�o estava, e minha
m�e me dizia para s� ficar l� at� que ele voltasse do servi�o
em que estivesse envolvido.
� O homem j� tem muita crian�a em volta � dizia. � Ele
chega e voc� agradece e volta para casa, entendeu?
Eu entendia; n�o queria abusar da hospitalidade deles. Al�m
disso, Elena Kruger, de nove anos, com uma boca muito
cheia de dentes, orelhas como velas de fortuna � espera de
uma corrente do golfo, parecia determinada a me provocar
at� eu ficar violento sempre que eu l� estava.
Eu precisava ter uma paci�ncia de J� para n�o chicotear
Elena Kruger por suas provoca��es e suas maldades. Seus
irm�os, Hans e Walter, pareciam alheios ao seu
comportamento invasivo, mas ela estava l� � implicando e
desejando, atormentando e aborrecendo � desde a hora em
que eu chegava at� quando ouvia as sonoras boas-vindas do
sr. Kruger, ao entrar em casa pela cozinha.
Ela era uma crian�a bastante meiga, tenho certeza, mas para
um garoto de doze anos, uma menina de nove parece uma
harpia da pior esp�cie. Sua voz era fina, como um espeto
enferrujado me ferindo os ouvidos, e embora mais tarde ela
tivesse ficado doce e suave, e os seus modos, muito sens�veis
e bonitos, na �poca era como um rem�dio amargo para uma
doen�a debelada havia muito. Elena Kruger era t�o bem-
vinda como uma jarra de leite espumante, que n�o acaba
nunca, provocando arrotos cada vez mais azedos.
S� uma vez vi suas equimoses. Era de tardinha, dias antes do
Natal, e o sr. Kruger ainda n�o tinha voltado dos campos
com Walter. A sra. Kruger chamou a filha para ajud�-la na
cozinha, e Elena foi. Fiquei no corredor que separava a sala
da parte dos fundos da casa, e dali dava para eu ver pelo v�o
da porta.
A m�e mandou Elena arrega�ar as mangas da blusa, e ela o
fez, at� os ombros, e ali, de v�rias cores � roxo, marrom-
avermelhado, amarelo e carmim �, equimoses lhe
marcavam os dois bra�os do cotovelo para cima. A
impress�o que dava era a de ter sido agarrada com muita
for�a, m�os grandes segurando-a pelos bra�os, talvez a
sacudissem, talvez apenas a imobilizassem.
� Epilepsia � disse minha m�e quando lhe contei o que
vira.
� Voc� n�o deve dizer uma palavra, lembre-se � frisou ela.
� Elena Kruger tem crises epil�pticas, ataques do grande
mal, como s�o chamados, e os pais dela, �s vezes, t�m que
imobiliz�-la com for�a na cama ou no ch�o para que n�o se
machucasse.
Perguntei por que tinha crises; minha m�e riu e deu de
ombros.
� Por que uma pessoa tem uma perna torta ou um olho que
n�o enxerga direito? Quem vai saber, Joseph... � a natureza
das coisas.
Imaginei m�os fortes segurando Elena deitada, m�os que
impediriam que ela se debatesse no ch�o, como sua saia
ficaria suja, como ela morderia uma correia de couro
toscamente lavrado de quinze cent�metros para impedir que
cortasse a pr�pria l�ngua.
Depois disso, as implic�ncias e os xingamentos de Elena
nunca mais me incomodaram tanto. Bastava eu imaginar a
terr�vel viol�ncia de um sofrimento f�sico daqueles e meu
cora��o, embora pequeno e fr�gil, percebia sua dor. Ela j�
sofria mais do que poderia me fazer sofrer, e eu achava que
se tirasse um pouco desse sofrimento talvez ela melhorasse.
Eu era ing�nuo, tolo talvez, mas isso me parecia fazer
sentido na �poca. Acho que foi ent�o que comecei a v�-la
por um prisma diferente, e embora ela tivesse dois irm�os
mais velhos � Hans tinha doze, e Walter, dezesseis, quase
homem feito � senti uma atra��o fraternal por ela. Ela
parecia fr�gil e desconsolada, � deriva num mundo onde as
palavras do pai, dos irm�os, pareciam prevalecer.
Eu a imaginava como uma alma delicada e solit�ria, uma
alma sem amarras nem �ncora, e me determinei a tentar �
de alguma forma � tornar sua vida mais feliz.
O Natal chegou e passou. Escrevi minha hist�ria. Chamava-
se "A corrida com dribles", e era sobre Red Grange, como
ele agarrava a bola e corria campo afora como um
dachshund atr�s de um coelho. Eu o vira no cinema uma
vez, numa matin� de s�bado, com meu pai: um notici�rio da
RKO Radio Pictures, meia hora de Pete Smith Specialty,
depois um curta, antes da atra��o principal. Red Grange,
talvez o maior corredor da hist�ria do futebol americano,
pernas se movendo como pist�es a vapor. Usei palavras
como ligeiro e mercurial, atl�tico e herc�leo. A srta.
Webber substituiu-as por palavras que, na sua opini�o, todos
entenderiam, e depois se postou na frente da turma e
mandou todo mundo fechar os olhos.
� Isso mesmo � disse ela baixinho. � Fechem os olhos... e
n�o os abram at� eu terminar.
Leu minha hist�ria para a turma. Quem dera n�o tivesse
feito isso. Meu cora��o, batendo como um motor de tra��o,
poderia ter propulsionado um barco a vapor de Minnesota
at� o golfo do M�xico. Foi um sentimento que nunca
esquecerei, e quase serviu para me dissuadir de perseguir o
sonho de escrever.
Quando ela terminou, parecia haver um pequeno abismo de
sil�ncio no qual ca�. Ningu�m dizia palavra. A srta.Webber
esticou a m�o metaf�rica e me resgatou daquele abismo.
Ela n�o elogiou nem contestou a hist�ria. N�o a pegou como
uma esp�cie de exemplo para as outras crian�as da turma.
Simplesmente perguntou se algu�m havia conseguido
enxergar Red Grange e sua corrida.
Ronnie Duggan levantou a m�o.
E tamb�m Laverna Stowell. Virg�nia Grace Perlman.
Catherine McRae, seu irm�o Daniel.
Mantive a cabe�a ereta e o olhar fixo. Minha cara se
ruborizava.
Logo havia mais crian�as com as m�os levantadas do que
abaixadas.
Ent�o a srta. Webber disse:
� �timo... �timo mesmo. Isso se chama imaginar, e
imaginar � um dom vital e necess�rio neste mundo. Todas as
grandes inven��es aconteceram porque houve gente capaz
de imaginar coisas. Voc�s devem alimentar e cultivar seu
dom de imaginar. Cada um deve deixar a cabe�a se encher
de imagens das coisas sobre as quais pensa e descrev�-las
para si mesmo. Deve fazer de conta...
Eu a ouvia. Eu a amava. Anos depois, uma �poca muito
diferente, eu pensava em interromper meu trabalho, depois
me lembrava de Alexandra Webber e deixava minha cabe�a
se encher de imagens.
Eu fazia de conta, s� isso, e de alguma forma as coisas
pareciam menos sombrias.
Fevereiro chegou. O tempo virou. Gunther Kruger foi visitar
minha m�e, disse-lhe que iam fazer um passeio de carro
margeando o rio de St. Mary e passar o dia na praia
Fernandina.
� Gostar�amos muito que voc�s viessem conosco � disse
ele, e minha m�e, mal olhando para mim, explicou ao sr.
Kruger que agradecia muito, mas infelizmente n�o poderia
ir.
� Mas Joseph adoraria � disse ela. � Prometi � sra.
Amundsen que eu bateria a manteiga com ela, e se n�o
fizermos isso hoje o leite vai talhar...
O sr. Kruger, sempre cavalheiro, fez um gesto com a m�o e
deu um sorriso largo. Poupou a minha m�e o
constrangimento de explicar sua recusa.
� Quem sabe da pr�xima vez � ajudou ele, e depois me
disse que sairiam de casa �s seis da manh�.
� N�o mande comida � disse o sr. Kruger a minha m�e. �
A sra. Kruger vai fazer o suficiente para alimentar um
batalh�o.
Na manh� seguinte, chovia. Uma chuva fina, a princ�pio,
depois mais forte. Assim mesmo, fomos margeando o rio de
St. Mary at� a praia Fernandina, e quando chegamos o sol
tinha sa�do e o c�u estava limpo.
Foi um dia raro. Observei a fam�lia Kruger � a sra. Kruger,
Walter, os dois filhos menores � e ela parecia a
representa��o de um id�lio, um padr�o pelo qual todas as
fam�lias deveriam ter sido julgadas. N�o brigavam, n�o
discutiam; viviam rindo, sem nenhum motivo �bvio; e me
pareciam um s�mbolo de perfei��o num mundo
indiscriminadamente imperfeito.
Quando voltamos, o sol estava mais suave e j� pensava em se
retirar. A n�voa do entardecer pairava como um fantasma de
calor � nossa volta, os bra�os largos e envolventes, e quando
levamos os cestos e as mantas para o carro, o sr. Kruger
emparelhou comigo e me perguntou se eu tinha gostado do
dia.
� Gostei sim, senhor, muito � disse eu.
� �timo � disse ele baixinho. � At� voc�, Joseph
Vaughan... at� voc� deve ter algumas lembran�as para
guardar com carinho quando for mais velho.
N�o entendi o que ele quis dizer, nem perguntei.
� E Elena � disse ele.
Virei-me e olhei para ele.
Ele sorriu.
� Eu queria agradecer sua paci�ncia com ela. Ela � uma
crian�a delicada, e sei que voc� fica com ela quando talvez
preferisse brincar com Hans e Walter.
Fiquei sem jeito e encabulado.
� Tudo bem, sr. Kruger, n�o tem problema algum.
�Voc� significa muito para ela � prosseguiu ele. � Ela fala
sempre de voc�, Joseph. Tem dificuldade de fazer amigos, e
eu agrade�o o apoio que lhe d�.
� Sim senhor � respondi, e fiquei olhando para a estrada �
frente.
Durante mais de nove meses eu observara a ferida sarar.
Achava que sempre haveria uma cicatriz, bem ali, embaixo
da minha pele, vis�vel s� para mim, e a cicatriz me lembraria
o que acontecera com Alice naquele inverno de 1939 � as
coisas que eu tinha entreouvido do patamar da escada
enquanto Reilly e minha m�e conversavam na cozinha...
Durante mais de nove meses os moradores de Augusta Falls
tinham feito de conta que o ocorrido era um sonho
tenebroso e esquisito. Algo acontecera em outro lugar, n�o
ali, em sua pr�pria cidade, e eles ouviram falar naquela
barbaridade e davam gra�as a Deus por n�o ter acontecido
com eles. Foi assim que lidaram com aquilo, e tinham
sobrevivido. Conseguiram atravessar as sombras, e sa�ram do
outro lado.
Durante nove meses dizia-se que tudo ficaria bem.
Mas n�o ficou.
Laverna Stowell foi encontrada morta no fim do ver�o de
1940. Tinha nove anos e faria dez em 12 de agosto, tr�s dias
ap�s a descoberta de seu corpo num campo na periferia de
Silco, condado de Camden. Foi encontrada numa sexta-feira,
como Alice Ruth Van Horne. Estava nua, s� de meias e um
sapato no p� direito. Eu soube disso porque li uma
reportagem no jornal na quarta-feira seguinte. Recortei o
retrato dela e o artigo que estava abaixo.
DI�RIO DO CONDADO DE CHARLTON
Sexta-feira, 9 de abril de 1940
Segunda menina encontrada morta
Na manh� de sexta-feira, 9 de agosto, os cidad�os de Augusta
Falls assistiram a mais uma terr�vel descoberta. O corpo de
Laverna Stowell, filha do casal Leonard e Martha Stowell,
residente em Silco, foi encontrado totalmente despido
exceto pelas meias e o p� direito do sapato. O segundo
assassinato se segue � morte de Alice Ruth Van Horne, em
novembro. O xerife Ford Ruby, do condado de Camden,
n�o quis fazer coment�rios, mas admitiu que daria in�cio a
uma opera��o conjunta com o xerife do condado de
Charlton, Haynes Dearing. A srta. Alexandra Webber,
professora da Escola de Augusta Falls, onde Laverna Stowell
estudava, disse que Laverna era uma menina inteligente e
extrovertida, que n�o tinha dificuldade de fazer amizades.
Disse que as crian�as foram informadas da situa��o, e que
durante toda a pr�xima semana seriam feitas ora��es pela
manh�, na hora da chamada. Cidad�os de Augusta Falls e de
Silco j� se encontraram e ser� marcada uma assembl�ia
municipal para discutir a possibilidade de uma a��o
conjunta. O xerife Haynes Dearing ressaltou mais uma vez a
import�ncia de os cidad�os de ambas as cidades e seus
arredores manterem a calma. "N�o h� nada pior do que
p�nico nessas situa��es. Estou aqui para reafirmar a todos
que h� um procedimento policial empregado na investiga��o
de cada assassinato, e que � dever da pol�cia estabelecer e
levar a cabo esse procedimento. Se desejarem ajudar, as
pessoas podem ficar atentas para quaisquer indiv�duos
estranhos ou desconhecidos, e tamb�m ter o cuidado de
sempre garantir a seguran�a e o bem-estar de seus pr�prios
filhos." Quando indagado se houve algum progresso na
investiga��o do assassinato de Alice Ruth Van Horne, o
xerife Dearing se recusou a comentar, declarando que "todos
os detalhes de uma investiga��o em andamento precisam
permanecer confidenciais at� que o assassino tenha sido
preso e processado".
Segurei o recorte nas m�os e meus olhos se encheram
d'�gua. Imaginei como me sentiria se tivesse sido Elena.
Chorei de novo, mas dessa vez havia algo mais subjacente �
sensa��o de perda: medo. Um medo cortante e profundo,
que me transpassava, envolvido numa sensa��o de raiva,
quase de �dio por quem quer que tivesse feito aquilo.
Laverna vinha todos os dias de Silco, no condado de
Camden, e, embora n�o tivesse trocado mais que uma d�zia
de palavras com ela fora da sala de aula da srta.Webber, eu
estava convicto de que deixara de fazer alguma coisa por ela.
Por que, eu n�o sabia, mas achava que tanto Alice Ruth
como Laverna estavam sob minha responsabilidade.
� Voc� n�o pode se culpar � disse-me minha m�e quando
expliquei meus sentimentos. �Tem gente por a�, Joseph,
que n�o v� a vida como n�s a vemos. Eles n�o d�o
import�ncia nem valor � vida, e s�o quase incapazes de se
controlar quando se trata dessas coisas terr�veis.
� Deve haver alguma coisa que a gente possa fazer...
� Podemos ficar atentos � disse ela. Chegou mais perto de
mim, como se para me contar um segredo que n�o deveria
ser dividido com ningu�m. � Devemos nos acostumar a
ficar atentos a n�s mesmos e a qualquer um. Sei que voc� se
sente respons�vel, Joseph, � do seu feitio, mas
responsabilidade e culpa n�o s�o a mesma coisa. Voc� deve
se responsabilizar se sentir que � seu dever, mas nunca deve
se culpar. N�o pode se punir pelos crimes de outra pessoa.
Ouvi. Entendi. Eu queria fazer algo, mas n�o sabia o qu�.
Vieram dois homens. Vestiam ternos escuros e chap�u.
Minha m�e me disse que eram do Departamento de
Investiga��o da Ge�rgia, que haviam sido designados para
assessorar o xerife Dearing. Eles percorreram o estado todo
fazendo perguntas diretas e indelicadas, e, pelo que
entreouvi da cozinha, as pessoas logo come�aram a reclamar
de sua presen�a. Ao que parecia, Dearing havia pedido que
os acompanhassem, mas os agentes Leon Carver e Henry
Oates n�o permitiram, alegando que era um assunto federal,
que a objetividade era fundamental. Vi Carver uma vez, um
homem alto e imponente, cujo nariz parecia um punho
fechado listrado de veias roxas. Com olhos fundos sob
sobrancelhas pesadas, parecia estar sempre olhando de uma
sombra permanente. N�o falei com ele, nem ele comigo. Ele
me observou como se eu n�o fosse de confian�a, e virou as
costas. A dupla ficou tr�s dias em Augusta Falls, depois
rumou para o sul, fez um circuito amplo no sentido hor�rio
pelas cidades vizinhas, depois sumiu. N�o tivemos mais
not�cias dos agentes, e nunca se falava neles.
Mais tarde, conversei com Hans Kruger.
� Um bicho-pap�o � disse. � Tem um bicho-pap�o por a�
e ele vem para comer crian�a.
Fiquei indignado.
� Quem lhe contou isso?
� Walter � disse na defensiva. � Walter me disse que foi
um bicho-pap�o, algu�m que ressuscitou dos mortos e
precisa se alimentar de gente viva para ficar vivo.
� E voc� acredita nessas bobagens?
Hans hesitou um pouco.
� E ele diz essas coisas para Elena? � perguntei.
Hans balan�ou a cabe�a.
� N�o, ele n�o diz essas coisas para Elena. Eu tenho que
contar a Elena para ela saber...
Agarrei-o de repente pelo colarinho. Ele tentou recuar, mas
segurei firme.
� N�o diga nada a Elena! � falei bruscamente. �- Deixe
Elena em paz. Ela j� est� bastante assustada sem voc� lhe
contar hist�rias bobas sobre coisas que nem existem!
Walter apareceu na esquina da casa.
� Ei! O que � isso a�? Voc�s n�o devem brigar!
Hans esquivou-se, desvencilhou-se de mim e voltou
correndo para a frente da casa.
Fiquei ali, envergonhado, meio assustado com Walter.
� O que est� acontecendo aqui? � perguntou ele.
� Falei para ele n�o contar hist�rias de bicho-pap�o para
Elena � disse eu. � N�o quero que ela se assuste. Hans
disse que ia contar a Elena sobre o bicho-pap�o.
Walter riu.
� Disse, foi? Vou botar isso em pratos limpos.
� N�o o machuque, Walter.
Walter p�s a m�o no meu ombro.
� N�o vou machucar, Joseph. S� vou lhe dar uma li��o.
� N�o � um bicho-pap�o... � uma pessoa que est� fazendo
essas coisas, uma pessoa terr�vel.
Walter sorriu com compreens�o.
� Eu sei, Joseph, eu sei. Deixe a pol�cia cuidar disso, sim? A
pol�cia vai descobrir quem est� fazendo essas coisas e det�-
lo. Deixe que eu cuido de Hans e Elena.
Fiquei calado.
� Tudo bem? � ele me animou.
Fiz que sim.
�Tudo bem � disse, mas s� da boca para fora. Walter
passava o dia fora, com o pai, trabalhando na fazenda,
ganhando o sustento da fam�lia. Eu tinha decidido cuidar de
Elena, e nada me faria mudar de id�ia.
� Agora v� � disse ele. �V� para casa. Vou falar com Hans
e garantir que ele n�o assuste a irm�.
Fui correndo para casa. N�o disse nada a minha m�e. Fiquei
na janela do meu quarto e olhei para a casa dos Kruger em
frente. Achava que se acontecesse alguma coisa com Elena
eu nunca conseguiria me perdoar.
Depois que os federais foram embora, os xerifes de cada
condado � Haynes Dearing, um homem de trinta e muitos
anos, j� com cara de velho para sua idade, e Ford Ruby �
tiveram uma reuni�o no restaurante Quinn Cumberland, um
estabelecimento respeit�vel e asseado na zona norte de
Augusta Falls, de propriedade de duas vi�vas, que o
administravam.
Haynes Dearing era metodista, freq�entava a Igreja
Metodista do Condado de Charlton. O xerife Ford Ruby era
episcopalista e freq�entava a Communion Church of God
em Woodbine. Apesar das diferen�as em rela��o a John
Wesley e � interpreta��o das escrituras, consideravam que a
morte de uma menina era mais importante que as
diverg�ncias religiosas.
A morte de uma segunda menina os uniu, e eles juntaram
seus recursos. Falou-se at� num homem vindo de Valdosta,
um homem do governo com um detector de mentiras e uma
assessora, mas ningu�m jamais apareceu. Os xerifes Dearing
e Ruby, comissionando quase todo homem capaz de andar
em linha reta sem ajuda, vasculharam as matas e os
barrancos nos arredores de Silco, e at� voltaram e
vasculharam o final da High Road mais uma vez, s� para ver,
para ter certeza. De que, eu n�o sabia, nem perguntei, pois
mais uma vez ouvia conversas sussurradas na cozinha da
minha casa.
As buscas n�o deram em nada, e por fim, como n�o podia
deixar de ser, Haynes Dearing e Ford Ruby voltaram ao
debate sobre John Wesley e as escrituras e continuaram
discutindo at� chegar � conclus�o de que havia sido um erro
trabalharem juntos, terem sequer cogitado que poderiam
trabalhar juntos, e juraram que aquilo jamais se repetiria. No
fim de agosto, eu j� n�o ouvia mais falar em Laverna
Stowell. Talvez ela fosse um anjo tamb�m, ela e Alice Ruth
Van Horne, e talvez meu pai, se tivesse conseguido manter
as m�os limpas e se empenhado bastante para merecer o
privil�gio, estaria sentado ao lado delas. Talvez eu tivesse me
convencido de que o pesadelo realmente j� tivesse acabado.
Talvez eu achasse que um vagabundo, louco, violento e
perverso havia passado por nossas vidas e j� tivesse
desaparecido. Por uma raz�o qualquer, ele fizera duas visitas,
mas isso eu n�o levava em conta. A verdade e o que eu
imaginava ser a verdade n�o eram a mesma coisa. Eu me
perguntava se algum outro pa�s, algum outro estado, estava
agora perdendo suas crian�as para aquele bicho-pap�o.
Mantinha os olhos abertos e os ouvidos atentos, mesmo �
noite; o barulho de animais andando entre a nossa casa e a
dos Kruger �s vezes me acordava, e eu ficava deitado na
cama, gelado e com medo. Depois de algum tempo,
preparando-me para o que poderia ver, eu me esgueirava de
debaixo das cobertas e ia titubeando at� a janela. N�o via
nada. A noite se abria � minha frente numa monocromia
serena e est�tica, e eu me perguntava se minha imagina��o
n�o estava alimentando minhas id�ias com mentirinhas
fr�geis. Torcia com todas as for�as para que o pesadelo
tivesse passado, mas no fundo, no fundo do cora��o, eu
sabia que n�o tinha.
Quatro
� Um concurso � disse a srta. Alexandra Webber.
Cinco meses haviam se passado desde a morte da menina
Stowell, cinco meses e mais um Natal.
O Natal fora duro para minha m�e. Ela e a sra. Kruger, cujo
nome eu agora entendia ser Mathilde, haviam se oferecido
como volunt�rias para dar assist�ncia num surto de gripe que
come�ara entre as fam�lias negras. Minha m�e passou muitos
dias chegando em casa tarde e saindo cedo, e eu ficava a
maior parte do tempo na casa dos Kruger. Eu tinha treze
anos, era alguns meses mais velho que Hans Kruger e alguns
anos mais mo�o do que Walter. Mesmo assim, apesar de
sermos quase da mesma idade, pouco t�nhamos em comum.
Cada um tinha uma opini�o sobre a guerra; diziam que Adolf
Hitler era louco, que os Estados Unidos seriam arrastados
para o conflito. Roosevelt tomou posse pela terceira vez, e j�
se falava em os brit�nicos usarem armas e equipamentos
americanos, cujo pagamento s� seria solicitado ap�s o
t�rmino do conflito. Alguns � Reilly Hawkins em
particular � diziam ser aquilo o primeiro passo para a
colabora��o.
�V�o nos convocar � dissera ele. � Convocar para lutar
na Europa.
� E voc� iria? � perguntou minha m�e.
� Sem d�vida � disse Reilly. � Temos que morrer por
alguma coisa, certo? Acho melhor morrer num campo na
Europa, lutando por algo em que se acredita, do que aqui
nesses p�ntanos, de gripe negra.
� Reilly � advertiu minha m�e.
� Sim, minha senhora � disse ele encabulado. � Me
desculpe, minha senhora.
� Em que voc� acredita? � perguntei a Reilly. � � a favor
da guerra?
Reilly riu e fez que n�o.
� N�o, Joseph, n�o, n�o sou a favor da guerra. Vou lhe dizer
em que acredito... � Parou de repente e olhou para minha
m�e como se pedisse licen�a para falar.
�V� em frente, Reilly Hawkins, mas lembre-se de que
estou ouvindo, e lhe avisarei se tiver ido longe demais.
� Eu acredito � disse Reilly � � na liberdade de pensar e
acreditar e dizer o que a gente acha que � certo. Esse
homem, esse Adolf Hitler, bem, ele n�o passa de um fascista
e de um ditador. Est� deixando todos aqueles alem�es
inflamados e cheios de �dio contra os judeus, contra os
povos n�mades, contra quem n�o tem a mesma apar�ncia
ou n�o fala do mesmo jeito ou n�o freq�enta as mesmas
igrejas. Est� impondo suas pr�prias opini�es a um pa�s, e
esse pa�s est� enlouquecendo. � o tipo de mentalidade que
se propaga pelo ar, como um v�rus, e se as pessoas boas,
honestas, gente como a gente, se n�o fizermos o que
pudermos para det�-la, vamos encontr�-la em todo canto.
Por isso eu vou, se me convocarem.
No dia seguinte, perguntei � srta. Webber sobre a guerra,
sobre o que Reilly Hawkins dissera a respeito dos judeus e
dos povos n�mades.
Por um momento, ela ficou espantada, depois, algo em seu
rosto falou de tristeza, de l�grimas contidas, talvez.
Foi a� que mencionou o concurso. Mudou de assunto - de
repente � e eu esqueci tudo sobre Adolf Hitler e como ele
estava deixando as pessoas inflamadas e cheias de �dio.
� Que concurso?
� Um concurso de contos; um concurso para as pessoas
escreverem e apresentarem contos.
Inclinei a cabe�a para o lado.
� N�o fa�a isso, Joseph Vaughan � disse ela. � D� a
impress�o de que voc� s� tem meio c�rebro e sua cabe�a
est� pesando para o lado.
Endireitei a cabe�a.
� Ent�o escreva um conto � disse ela. � Pode ser sobre
qualquer coisa, mas, como j� discutimos antes, � sempre
melhor escrever sobre um assunto que nos interesse
pessoalmente, ou que tenhamos vivenciado. N�o deve
ultrapassar duas mil palavras, e se voc� escrever com uma
letra bem caprichada, eu datilografo com as corre��es na
minha Underwood e n�s mandamos para Atlanta.
N�o falei muito. N�o me lembrava muito bem daquele
momento. Acho que fiquei com os olhos arregalados e a
boca ligeiramente aberta.
� O qu�? � perguntou a srta. Webber. � Por que est� a�
em p� assim?
Um segundo depois, balancei a cabe�a.
� Por nada em particular � respondi.
�Voc� est� parecendo aquele tipo de menino que precisa
que lhe enxuguem a boca a cada quinze minutos... v� se
sentar na sua carteira, Joseph.
� Sim, professora.
� E comece a desenvolver algumas id�ias. O prazo para a
entrega do conto � daqui a um m�s.
Tr�s dias depois topei com uma palavra: "traquinices". N�o
me lembro como topei com ela, mas topei. Era uma palavra
do final do s�culo xviu, e significava brincadeiras e
travessuras, o tipo da coisa que as crian�as fazem quando
querem perturbar. A palavra me agradou, e me fez sorrir,
ent�o a usei como t�tulo do meu conto.
Escrevi sobre ser crian�a, pois era o que eu era. Escrevi
sobre ter treze anos e n�o ter pai, sobre a guerra na Europa e
algumas outras coisas que Reilly Hawkins me contara.
Paralelamente a isso, escrevi sobre o que eu fazia para
manter a mente ocupada, para esquecer que minha m�e
estava cansada, que Hitler era um louco e, em algum lugar, a
milhares de quil�metros, as pessoas estavam sendo mortas
porque pensavam ou falavam de maneira diferente. Escrevi
sobre brincadeiras que eu e os garotos Kruger t�nhamos
feito. Sobre a vez em que encontramos um guaxinim morto
e o enterramos. Arrancamos uma madressilva e a plantamos
na pequena sepultura, e dissemos algumas palavras, e
fizemos votos para que o guaxinim encontrasse Alice Ruth e
Laverna e lhes fizesse companhia no c�u. Escrevi sobre
essas coisas e assinei com letra leg�vel embaixo � Joseph
Calvin Vaughan �, e inclu� minha idade e minha data de
nascimento porque achei que o pessoal em Atlanta poderia
querer saber desses detalhes.
Entreguei meu conto � srta. Webber na sexta-feira, 11 de
fevereiro. Na segunda, ela me disse que o havia datilografado
e enviado para Atlanta, e me mostrou Atlanta no mapa.
Parecia muito longe. Fiquei pensando se meu conto estaria
diferente quando chegasse l�.
Pensei muito nisso por algum tempo, depois esqueci. Eu
tinha a impress�o de que escrever as coisas era uma forma
de faz�-las se afastar.
� Voc� pode enxergar dessa maneira � disse-me a srta.
Webber. � Ou pelo prisma de que escrever as coisas as faz
durar para sempre. Como aquele livro que lhe dei no Natal
passado... que foi escrito e ainda est� aqui. H� milhares de
exemplares daquele livro pa�s afora, mundo afora. Agora
mesmo, pode haver algu�m na Inglaterra, algu�m em Paris,
na Fran�a, algu�m tamb�m em Chicago, lendo esse mesmo
livro, e a leitura de cada um ser� muito diferente da que
voc� achou que fazia. Um conto � como uma mensagem
com um significado diferente para cada pessoa que a recebe.
Dei ouvidos ao que a srta. Webber disse porque tudo que ela
dizia fazia sentido.
Quando a primavera chegou, minha m�e adoeceu. Ficou
p�lida e an�mica. O dr. Thomas Piper veio v�-la v�rias
vezes, e sempre parecia preocupado e importante. O dr.
Piper usava um terno escuro com um colete e um rel�gio de
bolso preso numa corrente de ouro, e levava uma maleta de
couro de onde sacava abaixadores de l�ngua e vidros de iodo.
� Quantos anos voc� tem? � perguntou-me.
� Treze � respondi. � Fa�o catorze em outubro.
� Bem, muito bem.Voc� � um homem, ao que me consta.
Sua m�e tem o sangue fraco. Fraco em nutrientes, fraco em
ferro, fraco em quase tudo em que devia ser forte. Ela
precisa fazer repouso no leito e ter sossego, talvez por um
m�s, e precisa ter uma dieta rica em verduras e carne boa. Se
ela n�o fizer isso, voc� n�o ter� m�e por muito mais tempo.
Fui at� a casa dos Kruger depois que o dr. Thomas Piper saiu.
� Vamos cuidar dela � disse Mathilde Kruger. �Vou
mandar Gunther todos os dias com sopa e repolho, e quando
ela estiver mais forte vamos lhe dar para comer ling�i�a e
batata. N�o se preocupe, Joseph, voc� pode ter perdido seu
pai, mas n�o vai perder sua m�e. Deus n�o � t�o cruel assim.
Tr�s semanas depois, no dia em que Reilly Hawkins me
contou que o presidente Roosevelt estava enviando soldados
para a Groenl�ndia, a srta. Webber me fez ficar at� depois da
aula.
� Tenho uma carta � disse ela, e sacou um envelope de
dentro da escrivaninha. � � uma carta de Atlanta,
Ge�rgia.Venha sentar aqui e eu a leio para voc�.
Fui para a frente da sala de aula e me sentei.
� "Prezada srta. Webber" � come�ou ela. � "� com
grande prazer que escrevemos para inform�-la dos
resultados de nosso concurso. Ficamos bastante
impressionados com o padr�o do material apresentado este
ano, e embora o julgamento de um leque t�o amplo de
estilos e temas diferentes nunca seja f�cil, acreditamos que
este ano tenha sido mais dif�cil do que nunca."
A srta. Webber fez uma pausa e olhou para mim.
� "� com certo pesar que devemos inform�-la de que
'Traquinices�, de Joseph Vaughan, n�o chegou ao est�gio
final da competi��o, mas assim mesmo quer�amos lhe
comunicar o prazer coletivo que sentimos com rela��o a
esse trabalho da melhor qualidade. 'Traquinices� provocou
mais que algumas l�grimas e muitas risadas entre nossos
leitores, e, quando ficou claro que havia sido escrito por um
menino de treze anos, a validade da identidade autoral foi
seriamente questionada. Tal questionamento foi logo
refutado, pois, obviamente, estamos mais do que cientes de
sua reputa��o e credibilidade como professora. N�o
obstante, n�o deixou de nos surpreender o fato de uma
composi��o com estilo narrativo t�o natural e t�o perspicaz
ser obra de uma pessoa t�o jovem."
A srta. Webber tornou a fazer uma pausa. Tudo o que
entendi foi que eu n�o ganhara nada. N�o me emocionei
muito, se � que me emocionei, com o assunto.
� "Portanto, para terminar, gostaria de elogiar
entusiasticamente o sr. Joseph Vaughan por seu conto,
'Traquinices': uma leitura muito prazerosa, e prova de que
temos entre n�s, aqui na Ge�rgia, um jovem autor brilhante
e talentos�ssimo que, confiamos, continuar� se saindo cada
vez melhor em suas aventuras liter�rias. Com os nossos
melhores votos. A Comiss�o Julgadora dos Jovens
Contistas."
A srta. Webber virou-se para mim e sorriu. Franziu a testa,
depois inclinou a cabe�a para um lado. Tive vontade de lhe
dizer que ela dava a impress�o de estar com metade do
c�rebro faltando.
� N�o est� satisfeito, Joseph? � perguntou ela.
Fiquei calado. Eu queria saber com o que ela achava que eu
poderia estar satisfeito.
� A Comiss�o Julgadora lhe escreveu, de Atlanta, para lhe
dizer que seu conto recebeu uma men��o especial. Eles
dizem que voc� � brilhante e talentos�ssimo. Entende isso?
� Entendo que n�o ganhei, srta. Webber � disse eu.
Ela riu, e era uma profus�o de luz despontando.
� N�o ganhou? Ganhar n�o � a �nica raz�o para se fazer
alguma coisa. �s vezes, a gente faz algo pela experi�ncia, ou
simplesmente por prazer; outras vezes, para provar a si
mesmo que � capaz de fazer, a despeito do que os outros
achem.Voc� escreveu um conto, era apenas o segundo
conto completo que j� escreveu, e a Comiss�o Julgadora de
Atlanta lhe mandou uma men��o especial, manifestando
seus votos para que se saia cada vez melhor na literatura.
Isso, meu caro Joseph Calvin Vaughan, � algo de que se
pode ter orgulho.
Fiz que sim e sorri. As aulas haviam terminado fazia quinze
minutos e eu queria ir para casa. Ao sair pela manh�, minha
m�e parecera particularmente fr�gil.
A srta. Webber dobrou a carta cuidadosamente e a rep�s no
envelope.
� Esta carta � para voc� � disse, e entregou-a a mim. �
Voc� deve guard�-la, e quando achar que sua capacidade
est� sendo questionada, quando achar que deve fazer outra
coisa sen�o escrever, deve tornar a l�-la e sentir sua firmeza
de prop�sito. Escrever � um dom, sr.Vaughan, e negar sua
import�ncia, ou fazer outra coisa sen�o usar seu g�nio, seria
um erro grave e importante. � Ela tornou a sorrir. � Agora
v�... v� para casa!
Agradeci � srta.Webber e sa� da sala. Fui andando depressa,
peguei a High Road e me mantive junto � cerca. O sr.
Kruger me dissera que depois da chuva a terra ficava muito
fofa para ag�entar o peso de uma crian�a, quanto mais o de
um jovem como eu, e que se passasse por aquele caminho
eu devia me manter junto � cerca e longe das �rvores.
Quando cheguei em casa, fiquei alguns minutos na cozinha.
Com a perspectiva do tempo, sempre nosso conselheiro
mais perspicaz, percebi que n�o tinha dado import�ncia �
carta de Atlanta. Era o meu primeiro reconhecimento
verdadeiro, e, no entanto, parecia n�o ter significado
nenhum. Tirei a carta do bolso e a reli inteira. As palavras
eram recebidas, mas n�o assimiladas.
Mais tarde, a carta passaria a significar muita coisa e, de
alguma forma, funcionaria como uma �ncora em meio �
tempestade de inseguran�a cr�tica e mordaz que viria, mas
ent�o � ali na cozinha � era apenas uma mensagem de
fracasso. A srta. Webber n�o tinha culpa. A carta me dizia
que eu poderia fazer melhor, e de alguma forma talvez eu j�
houvesse determinado o padr�o que almejaria.
Foi ent�o que ouvi vozes, acima de mim, achei, e fiquei
intrigado. Minha m�e estava sozinha na casa e doente, e, no
entanto, as vozes pareciam uma conversa. Ser� que o mal de
que sofria a levara � loucura?
Meti a carta no bolso e recuei at� o p� da escada. N�o ouvi
nada. Ser� que estava imaginando coisas?
Fui subindo p� ante p�, ouvidos atentos e alertas. Quando
cheguei ao patamar superior, tornei a ouvir as vozes �
minha m�e, sua entona��o clara e n�tida, inclusive com um
vest�gio de riso, e outra voz, mais grossa, quem sabe com
sotaque.
Fui pelo corredor at� a porta dela. Estava bem fechada, mas
indiscutivelmente era de detr�s daquela porta que vinham as
vozes.
Bati uma vez.
� M�e? � perguntei.
Acho que ouvi um alvoro�o, sussurros, outros barulhos, e
quando eu ia girando a ma�aneta, ela gritou:
� Um segundo, Joseph, um segundo, por favor.
Esperei, perplexo e confuso.
Trinta segundos, talvez mais, depois a porta foi aberta por
dentro e Gunther Kruger estava ali parado me olhando,
sorrindo de orelha a orelha, as faces coradas.
�Joseph! � exclamou, pronunciando "Iossef", como os
Kruger faziam. Ele parecia mais surpreso que contente. �
Ol�. Que surpresa!
Balancei a cabe�a. Surpresa por qu�? Eu sempre ia para casa
depois da escola.
Olhei em volta dele e vi minha m�e deitada na cama,
coberta at� o pesco�o. Ela tirou um bra�o de debaixo das
cobertas e estendeu a m�o na minha dire��o.
� Entre, Joseph � disse. �Voc� chegou cedo.
� N�o � retruquei. � Sempre chego a essa hora.
Ela franziu a testa.
� Mas e sua aula particular com a srta.Webber...
� � �s segundas-feiras � interrompi. � Hoje � sexta.
Ela riu.
� Claro que �. Bobagem minha. O sr. Kruger aqui s� estava
me trazendo uma sopa.
Olhou para a c�moda, e ali � na panela de barro que a sra.
Kruger mandava quase diariamente � estava a sopa. Estava
intocada, a julgar pela panela ainda bem tampada.
� Ah! � disse eu.
� Bem � disse o sr. Kruger �, acho que est� na hora de eu
ir embora. Foi bom ver voc�, Joseph, como sempre. Devia ir
l� em casa mais tarde ver Hans e Walter, sim?
� Sim � disse eu, ainda um pouco desconcertado.
O sr. Kruger pegou o palet� pendurado na cadeira atr�s da
porta e, sem vesti-lo, passou depressa por mim e desceu a
escada. Ouvi seus passos cruzando o ch�o de cer�mica da
cozinha, e depois a porta dos fundos batendo abruptamente.
Ele se esquecera de se despedir da minha m�e.
�Venha c� � disse ela. �Venha sentar ao meu lado na
cama.
Atravessei o quarto. Tudo recendia a lavanda e canja de
galinha.
� Sente aqui � disse ela, dando palmadinhas no colch�o. �
Como foi seu dia, Joseph?
� Recebi uma carta.
� Uma carta?
Fiz que sim.
� Uma carta de quem?
� Do pessoal que julga o concurso de contos em Atlanta.
Ela sentou, olhos arregalados, uma express�o
interessad�ssima.
� E ent�o?
Tirei a carta do bolso e mostrei-a.
Ela leu em sil�ncio, depois olhou para mim com l�grimas
nos olhos e esticou o bra�o. Pousou a m�o no meu rosto.
� Meu filho � disse, a voz um sussurro entrecortado. �
Parece que voc� encontrou sua voca��o.
Encolhi os ombros.
� N�o pare � disse ela. � Nunca pare de escrever. � assim
que o mundo vai descobrir quem voc� �.
Por algum motivo, tive vontade de chorar, mas n�o chorei.
Eu tinha treze anos, era quase um homem, e embora a srta.
Webber e minha m�e tenham dado muito mais import�ncia
� carta do que eu, aquilo n�o era motivo de tristeza.
Cerrei os dentes. Deitei-me ao lado de minha m�e, ali
mesmo em cima da colcha de retalhos, e fechei os olhos.
Ela tirou meu cabelo da testa, depois me deu um beijo.
� Seu pai ficaria muito orgulhoso � disse. � O filho dele,
escritor.
Cinco
A terceira menina tinha sete anos. Foi encontrada no
s�bado, 7 de junho de 1941. Assim como Alice Ruth Van
Horne e Laverna Stowell, acharam-na nua e espancada. Seu
nome era Ellen May Levine. Havia uma incis�o larga e
profunda no meio do seu corpo, como se tivessem tentado
cort�-la em duas. Quem sabe come�aram a fazer uma coisa
dessas e n�o tiveram coragem de terminar.
Eu a conhecia havia menos de tr�s meses. Ela viera de
Fargo, perto do rio Suwannee, no condado de Clinch, para
estudar com a srta. Webber, em mar�o daquele ano. Foi
encontrada numa cova rasa a menos de seiscentos metros da
nossa casa, l� nas �rvores � beira da divisa de Gunther
Kruger.
O xerife Haynes Dearing se reuniu com o xerife Ford Ruby,
e os dois foram juntos de carro para se reunir com o xerife
Burnett Fermor, do condado de Clinch. Dizem que os tr�s
passaram mais de duas horas juntos. Solicitaram mapas
detalhados dos tr�s condados e fizeram mais de dois pedidos
de caf� e sandu�ches. Quando a reuni�o terminou, os tr�s
n�o sabiam mais do que quando haviam come�ado, mas pelo
menos n�o tinham discutido por causa de John Wesley e das
escrituras.
Mais de dez homens foram comissionados. Chegaram com
picapes e c�es e vasculharam o campo de horizonte a
horizonte. Havia grupinhos conversando na rua. Parecia que
todo dia o jornal tinha algo mais a dizer, sem dizer muito ou
coisa alguma. As pessoas at� mencionavam os nomes dos
agentes Carver e Oates, do Departamento de Investiga��o da
Ge�rgia, como se, trazendo-os � baila, algo pudesse ser
diferente da investiga��o anterior. Carver e Oates nunca
apareceram, nem o homem deValdosta com um detector de
mentiras e uma assistente. O xerife Dearing tinha um ar
sempre exausto, como se o sono fosse um colega do
assassino e estivesse fugindo dele com grande habilidade.
Falava-se em armas assassinas, facas, cutelos e outras
suposi��es do g�nero. Eu observava tudo, cada coisa, e me
perguntava como achariam algu�m cujo objetivo era
permanecer oculto. Todo mundo sabia que era inocente,
mas todo mundo sabia que era suspeito, e continuaria sendo
at� o culpado ser identificado.
N�o foi, e, n�o sei por que, achei que continuaria n�o sendo.
� Isso � ruim, muito ruim � disse Reilly Hawkins. Mais
uma vez, ele estava sentado em nossa cozinha. Minha m�e
j� se restabelecera, embora o sr. Kruger ainda trouxesse sopa
e ling�i�as da cozinha da mulher duas ou tr�s vezes por
semana. Eu sabia que era assim, porque quase sempre,
depois da escola, minha m�e mandava que eu fosse � casa
dos Kruger com panelas e pratos limpos e os seus
agradecimentos.
� Esse neg�cio com essas crian�as...
Minha m�e balan�ou a cabe�a.
� N�o � uma coisa que eu queira discutir, Reilly � disse.
� Quero falar sobre isso � disse-lhe eu. � J� tenho idade
para saber o que � assassinato, e para saber que existe gente
doida. A srta. Webber nos disse que os alem�es est�o
botando os judeus em campos de concentra��o e que
muitos, muitos milhares morreram...
� Ela est� dizendo isso? � interrompeu minha m�e. � N�o
acho que seja mat�ria adequada para ensinar a crian�as
pequenas.
� N�o t�o pequenas � falei. � Sei que a pol�cia francesa
est� prendendo judeus em Paris e os entregando aos
alem�es, mil de cada vez. Sei tamb�m que James Joyce
morreu na Su��a e que Virg�nia Woolf se afogou num rio...
� Basta � disse minha m�e. � Ent�o voc� sabe um monte
de coisas, Joseph Vaughan, mas isso n�o significa que vamos
discutir o assassinato de meninas na cozinha aqui de casa.
Olhei para Reilly Hawkins. Ele desviou o olhar.
� Eu conhecia as tr�s � disse eu. A emo��o embargava
minha voz. Senti as l�grimas chegando. � Eu conhecia
todas as tr�s. Sabia o nome delas, conhecia o rosto delas. Era
colega de sala delas na turma da srta. Webber, e �s vezes a
srta. Webber me fazia ler um conto para todo mundo, e
Ellen May vinha se sentar bem perto como se quisesse
escutar cada palavra que eu dizia. � N�o consegui me
segurar. Levantei-me. � Quero falar sobre isso! Quero saber
o que est� acontecendo e por que n�o podemos fazer nada a
respeito dessas coisas terr�veis!
� J� chega! � disse ela bruscamente. �Voc� tem tarefas
para fazer.V� limpar a janela do seu quarto, depois pode ir �
casa dos Kruger se quiser.
A raiva cresceu no meu peito. Fuzilei minha m�e com o
olhar, e por um momento vi o que havia por tr�s de sua
express�o determinada. Ela estava com medo, tanto quanto
eu; ela n�o sabia o que dizer para tornar aquilo um pouco
melhor.
Senti que devia tentar me aproximar dela. Achava que seria
certo pedir desculpas, dizer-lhe que eu estava confuso e com
medo, e precisava dizer a algu�m como me sentia. Mas isso,
em minha vis�o pequena e estreita, seria o mesmo que
admitir a derrota diante da autoridade. Fiz a cena de ir
batendo os p�s escadas acima e corredor afora. Quando
cheguei � porta do meu quarto, eu a abri e bati, como se
tivesse entrado, depois voltei pelo mesmo caminho e fui de
fininho para o topo da escada.
� ... teimoso ele �, mas raramente desobediente � estava
dizendo minha m�e. � Tem uma mente brilhante e curiosa
como o pai, e quando segura alguma coisa, n�o larga.
� N�o sou de fazer julgamentos � disse Reilly. � Ele � o
�nico menino de quem j� me aproximei, e gosto muito dele.
Essas coisas recentes... esses assassinatos... s�o terr�veis.
Quando uma coisa dessas acontece, bem, n�o se pode nem
come�ar a imaginar como os pais devem se sentir.
� Conhe�o os pais da segunda menina, mas n�o temos
maiores rela��es, veja bem � disse minha m�e. � Leonard
e Martha Stowell. Gente boa. N�o conheci a filha deles. Era
a ca�ula, parece. Acho que me lembro de que havia mais
tr�s, dois meninos e uma menina.
� Uma trag�dia, uma trag�dia terr�vel. E pensar que uma
barbaridade dessas � obra de um ser humano.
� Ser humano � modo de dizer. Na verdade, n�o chega a ser
isso, acho.
Reilly pigarreou.
� N�o sei, Mary, parece que o mundo est� se tornando um
lugar horr�vel, com essa guerra na Europa, as coisas terr�veis
que estamos ouvindo sobre os poloneses e os judeus. Ouvi
dizer que os alem�es est�o procurando e matando todos os
intelectuais: m�sicos, artistas, escritores e poetas, at�
catedr�ticos e professores, qualquer um que de algum modo
seja contra as opini�es deles. Est�o procurando essas pessoas
e �s vezes simplesmente as executam no meio da rua.
� Esse n�o � o mundo, Reilly. S�o s� alguns loucos usando
seu poder sobre os ignorantes. Essa propaganda contra os
judeus come�ou h� uns vinte anos, no m�nimo. Adolf Hitler
anda envenenando lentamente a mente e o cora��o do povo
alem�o, e j� fazia isso bem antes de ir para a guerra. S� es-
pero que essa guerra acabe antes de sermos mais arrastados
para ela.
� N�o me consta que se possa evitar uma coisa dessas �
disse Reilly. � Na condi��o de povo livre e democr�tico, �
nossa responsabilidade nos insurgir contra esse tipo de
persegui��o.
� Pois � � disse ela �, mas primeiro � nosso dever
proteger nossos vizinhos e nossos amigos do monstro que
est� entre n�s.
Mais tarde, voltei de fininho para o meu quarto. Da minha
janela, fiquei vendo Elena Kruger ajudando a m�e a
pendurar a roupa no quintal.
Tr�s dias depois, Elena Kruger come�ou a freq�entar as aulas
da srta. Webber. Sentava na fileira � minha esquerda, uma
carteira � frente.
Sentava onde Eilen May Levine sentara, antes de ter sido
cortada ao meio.
Para mim, era uma injusti�a a doen�a de que Elena Kruger
sofria. Nunca presenciei nenhum de seus epis�dios do
grande mal, mas as equimoses em seus bra�os e nos ombros
estavam nitidamente vis�veis quando fomos nadar num dos
pequenos afluentes do Okefenokee. Junho foi quente, mas
em julho fez um calor de rachar, e quando as f�rias afinal
come�aram, na primeira semana de agosto, nadar era a �nica
coisa que pod�amos fazer para suportar aquela temperatura
violenta. O sol brilhava com intensidade total, duro como
um soco, sem dar tr�gua at� entardecer, quando ia repousar
para ganhar for�a para o dia seguinte. Reilly disse que foi o
ver�o mais quente de que se tinha registro; Gunther Kruger
disse que Reilly n�o tinha acesso a esse tipo de registro, e
duvidou que ele soubesse de uma coisa dessas. N�o estava
nem um pouco interessado em saber como tinha sido
qualquer outro ver�o, aquele j� era mais que suficiente.
Walter Kruger trabalhava quase o dia inteiro com o pai, e
assim n�s tr�s, eu, Hans e Elena, nos acostumamos a nos
meter embaixo da casa Kruger para fugir do calor. L�
embaixo era fresco e �mido, quase um outro mundo, e
apesar dos insetos e da sensa��o de estarmos sempre com a
pele melada, a sombra que aquele lugar nos proporcionava
era muito mais toler�vel que o sol violento e inclemente.
"Acho... acho que se continuar assim por mais tr�s semanas
os p�ntanos v�o ficar t�o secos que a gente vai poder andar
em cima deles", dissera Hans.
Eu achava Hans meio lerdo � bem-intencionado, sim, mas
um pouquinho obtuso, como se todos os seus pensamentos
tivessem uma hora determinada para chegar, e mesmo assim
conseguissem se atrasar. Mas ele idolatrava Walter, olhava-o
como se ele fosse a fonte de toda sabedoria e de toda
verdade. A palavra de Walter era sagrada. Um pouco disso
foi passado de Hans para Elena, e mais tarde me senti na
obriga��o de defend�-la das brincadeiras e das pe�as que eles
pregavam. Uma ocasi�o, anos antes,, Hans tinha mandado
Elena comer uma minhoca. Disse que Walter lhe tinha
mandado o recado, que era uma instru��o categ�rica de
Walter que ela comesse uma minhoca. Inteira. Ela n�o fez
nenhuma pergunta; passou uns quatro ou cinco minutos
catando uma at� que o pr�prio Walter apareceu e por acaso
lhe perguntou o que estava fazendo. Talvez aquilo fosse
coisa de alem�o, a vis�o de que sempre se devia obedecer
aos mais velhos. Se algu�m me dissesse que Walter tinha me
mandado comer uma minhoca, bem, eu o teria mandado
enfiar aquela minhoca onde o sol n�o brilhava, e n�o era
embaixo da casa Kruger que eu queria dizer...
O calor n�o continuou por mais tr�s semanas, continuou at�
a �ltima quinzena de setembro, e a essa altura o Okefenokee
estava fazendo for�a para chegar at� a divisa do condado.
Nunca descobrimos se os p�ntanos estavam bastante secos
para se andar em cima deles. A encefalite eq�ina chegou
como um press�gio de morte e contaminou cavalos de
Winokur, ao norte, a St. Georges, ao sul. Tra�avam-se linhas
em mapas, e esses mapas eram distribu�dos em assembl�ias
municipais por todo o estado. As linhas eram as divisas
territoriais, e as pessoas eram proibidas de cruz�-las para n�o
transmitir a doen�a em novas �reas. O inacredit�vel � que,
apesar de sermos vizinhos, uma linha passava bem entre o
nosso terreno e o dos Kruger. S� pude visit�- los perto do
Natal, mas toda semana minha m�e me mandava ir at� o fim
da High Road e ali, embrulhado num pano e escondido
embaixo da mesma pedra, havia um pacote deixado pelo sr.
Kruger. In�meras vezes fui buscar esse pacote, nada mais
que um peda�o de couro enrolado e amarrado com um
barbante, e eu sempre o entregava a minha m�e sem fazer
perguntas. Acabei sendo vencido pela curiosidade. Peguei o
couro embaixo da pedra e fiquei ajoelhado ali no ch�o um
instante. Pensei no que meu pai poderia achar; se ele tinha
se esfor�ado o suficiente para virar anjo e se poderia ler
meus pensamentos. A curiosidade em minha mente era
maior que a amea�a de censura, e desamarrei aquele
barbante, prestando aten��o em cada volta para poder
amarr�-lo de novo depois de ter olhado o que havia dentro.
Sete d�lares.
Uma nota de cinco e duas de um.
Achei estranho Gunther Kruger mandar sete d�lares todas as
semanas para minha m�e.
Meti as notas no mesmo lugar; enrolei o couro em volta
delas; amarrei-o de tal maneira que s� eu saberia, e fui
correndo para casa.
Dei o dinheiro a minha m�e e nunca disse uma palavra.
N�o sei por qu�, mas eu me sentia como Judas.
Dezembro de 1941.
Em outubro, t�nhamos ouvido que Adolf Hitler estava �s
portas de Moscou; que um navio de guerra americano � o
USS Reuben James � havia sido atacado quando
acompanhava um comboio a oeste da Isl�ndia. Setenta
marinheiros morreram, quarenta e sete foram resgatados.
Prendemos a respira��o, talvez com medo de nos mexer.
Reilly Hawkins disse que alguma coisa ruim iria acontecer,
que tivera um pressentimento quando fazia um servi�o para
algu�m em White Oak.
O pressentimento de Reilly Hawkins se realizou.
Em 7 de dezembro os japoneses bombardearam Pearl
Harbour.Trezentos e sessenta avi�es de guerra japoneses
atacaram a frota americana do Pac�fico no Hava�. Atacaram
tamb�m bases americanas nas Filipinas, em Guam e em
Wake. Duas mil e quatrocentas pessoas morreram.
Quatro dias depois, Hitler e Mussolini, o ditador fascista da
It�lia, declararam guerra aos Estados Unidos.
Em seis semanas, tropas americanas desembarcariam no
norte da Irlanda. Foram as primeiras a p�r os p�s na Europa
desde o desembarque das For�as Expedicion�rias na Fran�a
na Grande Guerra de 1914-1918.
Reilly Hawkins foi at� Fort Stewart, que ficava ao lado de
Savannah, mas o Ex�rcito lhe disse que ele tinha p� chato e
n�o podia carregar um fuzil para Roosevelt. Nunca vi um
homem t�o arrasado e abatido; passou tr�s dias sem sair de
casa, e quando apareceu n�o tinha feito a barba nem trocado
de camisa. Minha m�e disse que nada era capaz de deixar um
homem t�o acabrunhado quanto lhe dizer que ele n�o
poderia ajudar.
Quatro dias antes do Natal Gunther Kruger veio ver minha
m�e. Hans estava doente � eleva��es bruscas de
temperatura, febre recorrente, dores musculares, del�rio.
Minha m�e chamou o dr. Piper e ele examinou o menino.
� Streptobacillus moniliformus � sentenciou solenemente.
� Traduza � disse minha m�e.
� Febre do rato � disse-lhe o dr. Piper. � O menino foi
mordido por um rato. Est� vendo aqui � disse ele,
indicando uma marca supurada no tornozelo de Hans. �
Mordida de rato.
� O senhor pode tratar isso? � perguntou ela.
� Claro que sim � disse o dr. Piper �, mas � necess�rio
que haja um programa para eliminar e destruir os ratos.
Minha m�e sorriu e fez que sim. Virou-se para mim.
� V� correndo � casa de Reilly e lhe diga que o dr. Piper
precisa dele na casa dos Kruger.
Reilly come�ou trabalhando sozinho, mas no fim da semana
seguinte havia sete homens ao todo. A Unidade de Combate
a Pragas de Augusta Falls. Foi o nome que minha m�e lhes
deu, e o dr. Piper lhes disse que se os ratos contaminados
n�o fossem encontrados todas as crian�as de Augusta Falls
estariam correndo perigo. Era necess�rio para o moral, para
o bem-estar das fam�lias, que aquela tarefa fosse levada a
cabo com efici�ncia, disciplina militar e rapidez. Reilly era o
chefe. Deveria ser tratado como tal. Deveria haver rifles
calibre .25 com a muni��o paga integralmente pela
municipalidade; havia ratoeiras, redes, botas pesadas, outros
itens secund�rios e exig�ncias, tudo oficial, tudo, � sua
maneira, vital para o esfor�o de guerra.
O chefe Hawkins da Unidade de Combate a Pragas se
barbeava diariamente, vestia-se com uma camisa limpa,
patrulhava os caminhos que as crian�as usavam para ir �
escola. Levava um rifle no ombro, os bolsos cheios de balas,
e trabalhava conscienciosamente para livrar Augusta Falls
dos ratos.
� Sempre haver� ratos � disse o dr. Piper a minha m�e. �
N�o se pode achar que Reilly Hawkins v� de algum modo
eliminar os ratos do condado inteiro... e, mesmo se fizer
isso, ouvi dizer que os ratos de Clinch e Brantley s�o muito
maiores e muito mais feios do que qualquer um que
possamos ter em Charlton.
Minha m�e sorriu para ele.
� Eu nunca disse que uma coisa dessas era poss�vel,Thomas,
mas v� falar com Reilly Hawkins quando tiver tempo, e me
diga se a auto-estima dele n�o est� maior do que nunca.
O dr. Piper riu.
� Quem dera que todas as mulheres de Augusta Falls
tivessem a sua perspic�cia, sra.Vaughan.
Minha m�e inclinou ligeiramente a cabe�a.
� Quem dera que todos os homens fossem orientados com
tanta facilidade para a��es construtivas, hein, dr. Piper?
Nada mais foi dito. Reilly Hawkins e sua Unidade de
Combate a Pragas continuaram encontrando e destruindo
ratos. Mantinham um registro, detalhado e preciso. Em
fevereiro de 1942, quando os japoneses invadiram um lugar
chamado Sumatra, a Unidade de Combate a Pragas afirmava
ter sido respons�vel pela morte de mais de quatrocentos e
trinta ratos. Nenhum foi poupado. N�o houve prisioneiros
de guerra. Fez-se um buraco de dois metros e meio de
profundidade no meio de um bosque de choupos e nissas no
limite do campo mais ao sul de Gunther Kruger, e os ratos
mortos eram n�o s� jogados ali aos baldes como tamb�m
incinerados.
Foi a �ltima vez que Gunther Kruger e Reilly Hawkins
concordaram a respeito de alguma coisa, porque, quando
passou o Natal e entramos em 42, a cor e o tom de tudo em
Augusta Falls pareceram mudar.
Foi a guerra que provocou a mudan�a; talvez nem tanto a
guerra, mas o que a guerra passou a representar. Essa
mudan�a nos dizia que havia uma diferen�a entre as pessoas;
que em algum lugar a milhares de quil�metros nossa gente
estava morrendo por algo que nem sequer t�nhamos
come�ado. Dizia que n�o se podia confiar nos alem�es, que
os Estados Unidos tinham sido manipulados de alguma
forma para entrar num conflito que n�o era cria��o sua.
"Intoler�ncia religiosa", dissera-nos a srta. Alexandra
Webber. "Preconceito, intoler�ncia religiosa, uma
verdadeira ca�a �s bruxas se quiserem... � o que est� sendo
cometido contra os judeus. � um desafio a tudo em que os
Estados Unidos da Am�rica acreditam, um desafio �
Constitui��o. N�o h� como n�o querer se envolver. N�o se
trata de uma guerra entre a Inglaterra e a Alemanha, nem
entre os Estados Unidos e o Jap�o. E uma guerra entre os
Aliados e as pot�ncias do Eixo, e o Eixo representa tudo o
que abominamos e condenamos. Trata-se de uma guerra
pela liberdade, pelo livre-arb�trio, pela toler�ncia religiosa.
Pode acreditar, se eu fosse homem, estaria l� no setor de
recrutamento."
Direta, ela poderia ser, mas Alexandra Webber era honesta.
O consenso se voltou contra os estrangeiros � contra os
italianos, os alem�es, at� alguns imigrantes do Leste europeu
que haviam colonizado fazendas perto de Race Pond. Havia
uma tens�o em assembl�ias municipais, algo intang�vel, mas
�bvio. Os estrangeiros passaram a n�o se expor em p�blico.
At� Gunther Kruger mantinha os filhos em casa. Era
evidente assim.
A tens�o foi quebrada na quarta-feira, 11 de mar�o de 1942,
com a descoberta da quarta menina morta.
Seu nome era Catherine Wilhemina McRae. Tinha oito
anos. A cabe�a decapitada foi descoberta por crian�as que
brincavam perto do mesmo bosque de choupos e nissas
onde estivera o buraco dos ratos. N�o havia raz�o para supor
que o assassino de Catherine McRae n�o fosse a mesma
pessoa que matara Alice Ruth Van Horne, Laverna Stowell e
Ellen May Levine, e assim a suposi��o foi feita.
Eu conhecia mais o irm�o de Catherine, Daniel, do que ela.
Daniel era um m�s mais jovem que eu. Eu estava na sala
quando o pai dele veio busc�-lo na aula da srta. Webber.
Ficamos em sil�ncio vendo-o ir embora. O pai estava com a
cara vermelha de tanto chorar. Daniel estava branco como
cera e aparvalhado.
Os tr�s xerifes � Dearing, de Charlton, Ruby, de Camden, e
Fermor, de Clinch � voltaram a se reunir. Dessa vez n�o
havia mapas, sandu�ches nem caf�; dessa vez havia uma
for�a-tarefa de tr�s condados mobilizada para vasculhar os
campos e seus arredores � procura de qualquer coisa que
pudesse ter rela��o com o assassinato da menina McRae.
A Unidade de Combate a Pragas de Reilly Hawkins foi
institu�da com um nome diferente. Veio gente de Folkston,
Silco, Hickox, Winokur. Vieram g�meos de Statenville, no
condado de Echols, parentes xerife Fermor pelo lado da
m�e; dirigiram mais de cento e sessenta quil�metros num
caminh�o caqu�tico para se unir � fileira. Essa fileira era
constitu�da por mais de setenta homens na manh� de
quinta-feira, dia 12, e sem uma palavra, sem nenhuma
declara��o ou edital, a aus�ncia dos estrangeiros era vis�vel.
N�o havia nenhum alem�o, nenhum italiano; at� os
poloneses e os franceses ficaram em casa. Eram s�
americanos, irlando-americanos, dois escoceses e um
canadense caolho chamado Lowell Shaner. Talvez tenha
sido a� que o problema come�ou de fato. Talvez tenha sido
nesse momento que a maledic�ncia e os boatos se tornaram
combust�vel de um violento inc�ndio de acusa��es, a
princ�pio n�o mais que uma centelha, uma brasa, mas,
depois de dois dias vasculhando campos e abismos � cata de
alguma pequena pista do assassino da menina McRae, a
conversa que se espalhava se tornou incendi�ria.
� Um americano n�o faria uma coisa dessas.
� Quem pode ter matado quatro meninas? Certamente, tem
de ser algu�m sem o respeito pela vida que n�s temos.
� O homem capaz de fazer isso n�o � um homem que
freq�enta a igreja, podem estar certos.
Ent�o, � sua maneira tacanha, o povo de Augusta Falls
come�ou sua pr�pria linha de interrogat�rio. Havia
falat�rios, boatos, rumores, disse-me-disse � em parte
caluniosos, em parte fic��o, em parte gerados pelo tipo de
gente cujo maior prazer era incitar a maledic�ncia e os maus
sentimentos entre pessoas que antes tinham uma rela��o
neutra.
Falava-se tanto nas mortes que eu achava dif�cil evitar esse
tema. Talvez tenha sido a primeira vez em que tive medo do
mundo. A guerra me assustava � ainda que fosse apenas da
perspectiva proposta pela srta. Webber.
� Sabemos, como seres humanos que somos, que estamos
numa situa��o dif�cil quando a guerra se torna simplesmente
uma quest�o de lan�ar bombas de avi�es e matar centenas se
n�o milhares de pessoas. A hist�ria nos mostrou uma coisa:
que quanto mais a tecnologia avan�a mais gente podemos
matar sem jamais ver seus rostos. Um dia, tenho certeza, v�o
inventar uma bomba capaz de destruir uma cidade inteira, se
n�o um condado. E isso, seguramente, marcar� o ponto em
que esta civiliza��o iniciar� sua lenta e inevit�vel
decad�ncia.
Isso disse a srta.Webber, mas apesar de sua previs�o
perturbadora a guerra ainda era algo que nem sequer estava
sendo travado em meu pa�s, algo que existia a muitos
milhares de quil�metros dali. At� o ataque a Pearl Harbour
levara os soldados americanos a deixar os Estados Unidos. A
guerra n�o estava sendo travada em territ�rio americano,
portanto, de certa forma, consegu�amos nos convencer de
que era algo que n�o nos envolvia.
Os assassinatos eram diferentes. O assassinato de quatro
meninas acontecia ali entre n�s. Elas eram crian�as que eu
conhecia, o que, apesar da insignific�ncia dessa realidade
diante do front europeu, era mais apavorante ainda.
Um dia, mais um em que fiquei depois da aula para lavar os
apagadores, falei dos meus temores com a srta. Webber. Ela
sorriu e balan�ou a cabe�a.
"Ent�o escreva para desabafar", dissera. "Escrever � um
exorcismo do medo e do �dio; pode ser uma forma de
superar o preconceito e a dor. Se puder escrever, voc� pelo
menos tem uma chance de se expressar... pode expor seus
pensamentos ao mundo, e mesmo se ningu�m de fato os ler
ou os compreender, eles j� n�o estar�o presos dentro de
voc�. Sufoque... sufoque seus pensamentos, Joseph
Vaughan, e um dia � prov�vel que voc� exploda!"
Mais tarde, muitos anos depois, como suas palavras se
mostrariam precisas. Mas naquela �poca, aos catorze anos,
eu s� queria entender por que aquelas coisas me assustavam
tanto. Achava que se pudesse entender o homem eu n�o
teria mais medo dele. O homem que havia feito barbaridades
com as meninas. Tentei imaginar que tipo de vida ele teria
tido, como veria o mundo, aparentemente o mesmo mundo
que eu via, mas de alguma forma diferente. Quando eu via a
luz do sol, ser� que ele s� via sombras? Quando eu acordava
de um pesadelo, todo suado e aliviado, ser� que ele tentava
voltar ao pesadelo para experiment�-lo mais um pouco?
Cerrei os dentes. Cerrei os punhos. Fechei os olhos e tentei
imaginar como a pessoa tinha de ser louca para matar
algu�m. Para matar uma crian�a. E escrevi:
Os olhos dele estavam inchados de tanto chorar, ou talvez de olhar para algo. Ou
talvez estivessem inchados porque ele era louco, o tipo de homem cujo retrato se
guardaria para assustar crian�as quando elas fossem m�s.
Batendo com for�a no lado ruim da vida. Batendo com for�a nas quinas, nos
�ngulos mais duros, nos �ngulos que deveriam ter sido suavizados por coisas como
amor, toler�ncia e paci�ncia.
E as pessoas olhariam para ele de soslaio, e se perguntariam o que seria necess�rio
para tornar um homem t�o sinistro e t�o louco. Cabelo ralo, olhos agu�ados, boca
amea�adora, queixo forte � mas forte com �dio e paix�o, n�o com for�a de
car�ter e determina��o. Um homem assim conheceria a escurid�o, pensariam. Um
homem assim conheceria sombras e esconderijos, por�es, masmorras e catacumbas, e
conheceria muito bem as correntes tilintantes arrastadas pelos cavaleiros sem cabe�a
quando entravam a galope nos sonhos.
Com um homem assim n�o se falava, n�o se estabelecia contato visual, nem sequer
se cogitava registrar sua presen�a quando ele passava por n�s. Caso se pensasse
nele, ele veria os pensamentos, saberia que algu�m estava pensando nele, e isso o
atrairia como um �m�. E uma vez que ele pegasse voc�, bem, ele pegava. N�o dava
para fugir, entende?
Mas ningu�m sabia de fato o que ele pensava, porque ningu�m jamais lhe havia
perguntado. Ele simplesmente estava presente, sempre estivera; era a intimidade mais
estranha nas trilhas e atalhos, abrigando-se embaixo das �rvores quando come�ava a
chover, talvez fumasse um cigarro e falasse em outras l�nguas com os fantasmas que
andavam com ele, ao lado dele, dentro dele at�.
Ele faz parte da nossa cidade, parte da nossa casa, e talvez todo mundo ache que
se n�o levar isso em conta, se n�o pensar no assunto, ele vai embora. Vai
desaparecer nas sombras no meio dos barracos caindo aos peda�os na Cooper's
Row. Sumir. Evaporar-se e ser esquecido para sempre.
Quem dera, amigos e vizinhos.
O nome dele era desconhecido, o rosto, tamb�m. Na primavera, quando as pessoas
acreditavam na bondade b�sica de todas as coisas na terra verde de Deus, ele
chegou em casa para o povo de Augusta Falls, Ge�rgia, de v�rias maneiras.
As coisas n�o desaparecem se a gente finge que elas n�o existem; uma li��o
aprendida.
Talvez, �s vezes, as li��es tenham que doer para entrar na cabe�a.
Mostrei � srta.Webber o que eu havia escrito. Ela leu em
sil�ncio, a express�o impass�vel, depois fechou meu caderno
e o empurrou para mim.
� N�o � um conto para a Comiss�o Julgadora dos Jovens
Contistas de Atlanta � disse baixinho, e depois sorriu, mas
s� com a boca e n�o com os olhos.
De alguma forma eu soube, talvez apenas por intui��o, que
eu a perturbara. Eu n�o tinha coragem de lhe perguntar
diretamente, e, portanto fiquei calado.
� Sei que � segunda-feira, Joseph � disse ela �, mas estou
com muita dor de cabe�a, e estava pensando que talvez voc�
n�o se incomodasse de ficar at� mais tarde amanh� para sua
aula particular.
� N�o tem problema � disse eu. Recolhi minhas coisas.
Olhei para ela.
Ela sorriu.
� N�o � nada � disse. � V�. V� para casa. Amanh� vamos
falar de James Fenimore Cooper e os moicanos.
No fim da rua da escola, olhei para tr�s. A srta. Webber
tinha sa�do junto comigo e parado ali na varanda na frente
do pr�dio. Olhava para o horizonte, os olhos fixos em algum
ponto distante e indistinto. Parecia pensativa, quase perdida.
Eu queria voltar e lhe perguntar o que havia de errado. N�o
fiz isso. Dei meia-volta e fui para casa.
Agora vejo e entendo que s� poderia terminar assim.
Talvez sim.
O que dizia a B�blia?
"Todo aquele que derramar o sangue humano ter� seu
pr�prio sangue derramado pelo homem."
Olho por olho.
Uma vida em troca de trinta.
Tento me lembrar de quando percebi a verdade, quando
entendi que s� o homem � minha frente poderia ter feito
aquelas coisas.
Mas as lembran�as se cruzam e saem da seq��ncia.
S�o como reflexos no merc�rio, sempre procurando o
caminho de menor resist�ncia. Gravitam como �m�s.
Fundem-se e se unem.
Tudo o que sobra � um reflexo de mim mesmo. Vejo a
imagem distante da crian�a que fui, a realidade do homem
que me tornei.
Fecho os olhos.
Tento respirar profundamente, mas d�i.
Sei que estou morrendo.
Seis
Era segunda-feira � segunda-feira, 23 de mar�o de 1942 �,
doze dias ap�s a descoberta da cabe�a decapitada de
Catherine McRae; doze dias durante os quais os homens de
Augusta Falis e Folkston, Silco e Winokur n�o haviam
encontrado coisa alguma que os levasse � identidade do
assassino de crian�as em seu meio... foi nesse dia que tudo
mudou.
E come�ou l� em casa, a casa onde eu morava, onde nasci e
cresci, onde perdera meu pai quando a Morte chegou pela
High Road e s� deixou o rastro e uma perda irrepar�vel;
come�ou quando voltei da escola, deixando a srta.Webber
com sua dor de cabe�a e seu olhar distante...
Come�ou com as risadas no andar de cima da casa, as
mesmas vozes que eu havia ouvido uma vez, e comigo me
esgueirando pelo patamar, o cora��o na boca, o pulso
disparado, a testa coberta de suor � a tens�o de um medo
indescrit�vel me impelindo adiante.
Minha m�o na ma�aneta da porta do quarto de minha m�e.
O barulho l� dentro.
Uma intui��o, a id�ia, talvez, de onde vinha o dinheiro toda
semana, o dinheiro embrulhado num peda�o de couro e
enfiado embaixo de uma pedra pesada. Estivera l� em cima,
junto � cerca que corria ao lado da High Road. A estrada na
qual a Morte andara.
Mesmo agora, passados esses anos todos, vejo o rosto dela.
Abri a porta e os vi ali � ela de quatro na cama, nua como
veio ao mundo, e ele, Gunther Kruger, bem ali por tr�s dela,
tamb�m nu, m�os nos ombros dela, a cara afogueada e suada,
as roupas de ambos espalhadas pelo ch�o como se nada
valessem.
Ningu�m falou.
Tr�s pessoas e ningu�m falou.
Empurrei a porta. Bati a porta, acho eu. Dei meia-volta e sa�
correndo � desci a escada e sa� pelos fundos para o quintal.
Continuei correndo.
Ouvi uma hist�ria uma vez. Era sobre um menino cujo pai
vivia amea�ando bater nele. O menino n�o era maior que
um mour�o de cerca, e tinha medo de apanhar. N�o se via
ag�entando uma surra t�o generosa, pois seu pai parecia uma
�rvore, daquelas que nem furac�o derruba. Ent�o, o menino
come�ou a correr. Diariamente. Ia correndo para a escola,
voltava para casa correndo, antes do jantar, dava tr�s voltas
correndo no campo perto de casa. A m�e achou que ele
tivesse ficado maluco, os irm�os e as irm�s ca�oavam dele.
Mas o menino continuava correndo, correndo e driblando
como Red Grange. Mais tarde o m�dico disse que ele tinha
um "cora��o de atleta", dilatado por causa do exerc�cio
constante. Mais tarde, disseram um monte de coisas. O
cora��o do menino arrebentou, ao que tudo indica. Quase
explodiu. Correr da coisa que mais o apavorava finalmente o
matou. � ir�nico, mas � verdade.
Fugi de casa correndo assim. Corri pela cerca que margeava
a High Road, cortei caminho pelo bosque de nissas e
atravessei o canto do alqueive de Kruger at� chegar � casa de
Reilly Hawkins.
Reilly n�o estava, talvez estivesse atr�s dos ratos, ou do
matador de crian�as, e aguardei no sil�ncio refrescante de
sua casa mais de duas horas.
�Jesus, Maria M�e de Deus! � gritou ele quando surgi do
canto escuro de sua cozinha. E depois: � Jesus, Joseph, o
que aconteceu? Parece que algu�m andou em cima da sua
tumba.
Contei-lhe o que vi.
Ele ficou calado um bom tempo. Balan�ou a cabe�a e
suspirou. Parecia pensar, n�o sobre o que dizer, mas como
dizer de forma que eu entendesse.
� As pessoas s�o complicadas � come�ou. � As pessoas se
sentem sozinhas, ficam com medo, e �s vezes s� conseguem
se sentir melhor quando est�o com outra pessoa, no sentido
b�blico.
� Eles estavam fazendo sexo, n�o? � perguntei.
� Sim, pelo que voc� me diz, certamente parece que
estavam.
� E isso n�o est� na B�blia.
Reilly sorriu.
� Claro que est�...
� Eu sei � interrompi. � Eu sei que o sexo est� na B�blia,
mas n�o esse tipo de sexo... n�o o tipo de sexo que um
homem faz com uma mulher que n�o � a esposa dele.
Reilly assentiu com um gesto.
�Voc� me pegou em cheio nessa, Joseph. A B�blia diz que
esse tipo de sexo � exatamente o que deixa a pessoa em
pecado.
Ficamos algum tempo calados.
� Ela vai ficar doente de preocupa��o, sabe? � disse Reilly
por fim. �Vai procurar voc� pelos campos.
Encolhi os ombros.
�Voc� vai ficar aqui, Joseph � disse ele. �Vou l� na sua
casa dizer a ela onde voc� est�.Vou dizer que voc� vai
dormir aqui esta noite.
Tornei a encolher os ombros.
� Tem leite fresco e uns peda�os de frango fiito na geladeira
� disse Reilly.� Nessas horas � bom comer. Coma.Vou
achar sua m�e, depois volto e lhe mostro onde voc� pode
dormir.
� N�o quero que voc� v�, Reilly � disse eu.
Reilly atravessou a cozinha e veio se sentar ao meu lado.
� Tenho que dizer a ela, Joseph... ela deve estar quase louca
de preocupa��o, sabe?
� N�o quero saber.
Ele sorriu, compreensivo.
� Voc� diz isso agora, mas de manh� vai se arrepender de
ter pensado uma coisa dessas.
� Pensar e fazer n�o s�o a mesma coisa.
� N�o, n�o s�o, mas assim mesmo n�o � bom pensar nem
fazer algo de que a gente se arrependa depois.
Deixei Reilly ir. Uma boa meia hora depois ele estava de
volta, trazendo minha m�e junto. Ela estava com cara de
quem andara chorando, e quando entrou na cozinha
controlei-me para n�o olhar para ela. N�o diretamente. Eu
queria chorar tamb�m, mas n�o me atrevia. Sabia que se
chorasse de manh� estaria arrependido.
� Joseph � disse ela, sua voz macia como uma brisa, como
a sensa��o de um len�ol limpo de algod�o ondulando em
cima da gente quando nos deitamos para dormir. � Meu
Deus, Joseph, n�o sei o que voc� est� pensando agora, mas
garanto que boa coisa n�o pode ser.
Virei mais ainda a cabe�a. Senti os m�sculos se alongando
em meu pesco�o. Eu queria cobrir a cabe�a com alguma
coisa. Estava furioso com Reilly por t�-la levado com ele.
Achava que tinha me tra�do.
Minha m�e sentou-se diante de mim, ali � mesa da cozinha.
Ela estendeu o bra�o na minha dire��o e tentei me afastar
mais ainda, embora n�o tivesse para onde ir.
� Quer me dizer o que est� pensando?
Fiz que n�o com a cabe�a. Fechei os olhos e torci para ela
desaparecer.
� Joseph... estou falando com voc�. E falta de respeito n�o
fazer caso de quem fala com a gente.
Virei-me de repente, os olhos arregalados.
� Falta de respeito � tirar a roupa e fazer essas coisas com o
marido de outra!
Ela ficou aturdida, desconcertada. Piscou v�rias vezes. Em
seguida, levantou-se da cadeira e ficou ali parada me
olhando.
Reilly tamb�m estava ali. Eu sentia a presen�a dele � porta da
cozinha.
� O dinheiro era para isso? � perguntei. � Os sete d�lares
por semana eram para isso? Para ele poder ir fazer essas
coisas?
Minha m�e baixou a cabe�a, n�o de vergonha; ela era muito
orgulhosa para se envergonhar. Baixou a cabe�a como se
reconhecendo uma pequena derrota, o in�cio de uma guerra
que ela sabia n�o poder vencer numa hora daquelas.
� Quando estiver pronto para falar comigo... para falar
comigo como um adulto, como um rapaz, ent�o eu ou�o �
disse ela. � Pode ficar aqui enquanto Reilly Hawkins estiver
disposto a ficar com voc�, e quando estiver pronto para ir
para casa, a porta estar� aberta. N�o vou lhe pedir desculpas,
Joseph Calvin Vaughan, porque voc� n�o tem o direito de
me julgar. Sinto muito ter perturbado voc�, mas � s� por isso
que sinto muito.
Fez um cumprimento de cabe�a e saiu da cozinha. Ouvi-a
trocar umas palavras com Reilly Hawkins, e quando a porta
dos fundos bateu percebi que ela havia ido embora.
Reilly apareceu � porta da cozinha.
� Tenho um quarto vago l� em cima � disse, num tom
compassivo, de uma compreens�o infinita. -� Pode dormir
aqui hoje, e depois a gente v� o que vai fazer amanh�. �
Fez uma pausa, sacudindo a cabe�a. � Ou talvez depois de
amanh�.
Tr�s dias depois � quinta-feira, 26 de mar�o, o mesmo dia
em que os nazistas come�aram a deportar uma enorme
quantidade de judeus para um lugar chamado Auschwitz, na
Pol�nia � falei com a srta. Webber.
� Quanto pesa? � perguntou ela.
Olhei-a com o canto do olho.
� A carga que voc� anda carregando � respondeu ela. �
Quanto pesa?
Sorri e balancei a cabe�a.
� Tanto quanto uma casa � respondi.
Ela me olhou de um jeito que, como eu veria nos pr�ximos
anos, s� mulher olha para a gente: os olhos dela, toda a sua
express�o trazendo mais mensagens complexas do que as
palavras jamais seriam capazes de transmitir.
� Nessas horas, � bom falar.
� Reilly disse que era bom comer.
� Imagino que Reilly Hawkins esteja bastante certo, mas
neste momento ele est� muito mais bem-informado do que
eu. � Ela pegou a pasta e come�ou a ench�-la com nossos
cadernos, os prec�rios trabalhos de imprecis�o liter�ria que
apresentamos para sua avalia��o. N�o disse mais nada, mas
eu ouvia o mecanismo de sua mente ligado.
� � pessoal.
Ela assentiu.
� Me parece que qualquer coisa que tenha a ver com a vida
de uma pessoa � pessoal, Joseph.
� Quero dizer... quero dizer que isso � pessoal mesmo.
� N�o quero me intrometer, Joseph, s� estou manifestando
minha preocupa��o, como sua professora e sua amiga, com o
seu bem-estar.
Fechou a pasta e afivelou-a. Pegou-a da mesa e a colocou no
ch�o. Ficou em p� im�vel, im�vel a n�o ser pelas voltas que
sua mente dava.
Eu sentia que ela estava me atraindo. Sabia o que ela estava
fazendo. Acho que n�o conhecia nem jamais conheceria
algu�m que tivesse o seu cuidado e a sua delicadeza para
tentar conseguir uma comunica��o. Havia algo em sua voz,
algo direto e sedutor. Mesmo no meio de um grupo, quando
ela comandava a resposta das tabuadas, a conjuga��o dos
verbos perfeitos, dava para ouvir seu tom de voz singular,
mais alto, e ao mesmo tempo mais baixo do que o coro da
turma. Quando ela lia contos, a gente ouvia os sons que ela
descrevia, sentia o cheiro da fuma�a dos inc�ndios de
rancheiros embaixo da montanha Red Top ou das cataratas
do Amica- lola, ouvia as ondas intermin�veis do milharal,
sentia o sol bruto e inclemente amaldi�oando a nuca... essas
coisas todas estavam presentes. Faziam a gente querer ouvir,
e quando ela perguntava, a gente tinha vontade de falar.
� Minha m�e...� comecei. Olhei para ela, os olhos
arregalados quando as l�grimas se insinuavam por tr�s deles,
amea�ando romper a superf�cie e escorrer pelo meu rosto.
� Minha m�e foi infiel, srta. Webber.
Olhei para o ch�o.
A srta. Webber deu um passo � frente. Senti a seguran�a
calorosa de sua m�o em meu ombro.
Eu tinha a sensa��o de que minha mente era um campo
seco, �rido e rachado, e minha consci�ncia, uma �rvore
idosa, as ra�zes se agarrando desesperadamente ao p�
ressequido, sem perder a esperan�a de permanecer. A
consci�ncia escorregava, escapulia, e logo levaria um tombo.
Nas frondes dessa �rvore j� haviam florescido a lealdade, a
f�, a confian�a e o dever, tudo o que antes representava a
fam�lia. Ao falar, eu quebrara um pacto de sil�ncio, um
consentimento t�cito em n�o tocar no assunto fora de casa.
� N�o entendo � disse a srta.Webber. � Sua m�e � vi�va...
� Com o marido de outra mulher � interrompi, e depois
que as palavras sa�ram de minha boca fez-se um sil�ncio
sepulcral.
A srta. Webber expirou lentamente e sentou-se.
Olhei para ela; estava emba�ada e et�rea atrav�s das minhas
l�grimas.
� Ningu�m � perfeito � disse ela baixinho. � Nem todo
mundo pode estar � altura do que a gente espera, Joseph. O
ser humano � humano. Todos n�s ca�mos em desgra�a em
algum momento.
Fiz que sim lentamente. Minha respira��o saiu curta e
acelerada.
� Eu sei � murmurei. � Eu sei, srta. Webber... mas uma
coisa dessas nunca seria perdoada, e isso significa que ela
nunca ser� anjo... o que significa que ela nunca tornar� a ver
meu pai... e... a senhora n�o tem id�ia de como isso vai
mago�-lo.
Fiquei mais um dia com Reilly Hawkins. Ele falou comigo
sobre coisas sem import�ncia. Deu-me um livro chamado
The Life and Times of Archy and Mehitabel. Archy era um
poeta reencarnado como barata que datilografava cartas para
o autor do livro. Sendo uma barata, ele n�o alcan�ava a tecla
shift, e assim tudo o que escrevia sa�a em letra min�scula.
Mehitabel era um gato vira-lata, vivido e sarc�stico. Archy
era filos�fico, mais tolerante e misericordioso, e juntos eles
botavam ordem no mundo � sua maneira inimit�vel. Li o
livro, que me fez rir, e por algum tempo n�o pensei em
minha m�e.
A noite, Reilly me contou hist�rias de sua fam�lia,
principalmente de seu irm�o Lucius.
� Achei que voc� s� tivesse um irm�o � disse eu.
� Levin? Sim, tinha o Levin. Mas Lucius era mais velho que
n�s dois.
� O que aconteceu com ele?
� Lucius era um homem com uma chama interior.
Trabalhava na firma de Daly & Hearst, a Companhia
Anaconda de Minera��o de Cobre, e a� ouviu falar da guerra
na Espanha. Deixou os Estados Unidos em 36 para lutar ao
lado dos legalistas contra Franco. Foi morto por um dos
pr�prios companheiros, pisoteado por um cavalo com o
cavaleiro fugindo de um celeiro em chamas. Lucius era
louco e lindo, moreno com olhos que eram como safiras
iluminadas. Meu pai costumava dizer que ele era um g�nio
ou um tolo, e nunca conseguiu decidir qual dos dois. Mas
afinal de contas meu pai tamb�m era louco. � Reilly riu;
parecia uma r� num balde descendo num po�o. � Sabe o
que � laxante?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Havia um preparado laxante chamado Serutan. Tinha um
bord�o... dizia: "Serutan � natures ao contr�rio." Entendeu?
Bem, meu pai tomava isso porque achava gostoso, depois
soltava gases at� a casa ficar com cheiro de ovo frito em
enxofre. Eu, Lucius e Levin, minha m�e tamb�m... a gente
sa�a de casa e ficava em p� no quintal at� o ar limpar e
podermos voltar para dentro. � Reilly balan�ou a cabe�a. �
Ele parecia quase normal, e o que falava tamb�m, at� a gente
come�ar a prestar aten��o �s palavras e perceber que John
Hawkins era doido como uma lebre de mar�o em
novembro. Tinha os olhos baixos, um modo de crispar o
l�bio que lhe conferia o aspecto de uma caricatura louca de
um homem mais louco ainda, e quando se irritava e gritava
conosco, fios de saliva ficavam balan�ando para l� e para c�
em cima dos dentes dele como se houvesse uma aranha ali,
criando defesas para o inverno. � Reilly balan�ou de novo a
cabe�a. � Era louco, ele e provavelmente cada um dos
antepassados dele. Loucos de pedra.
� O que aconteceu com ele? � perguntei
� Teve c�ncer, sabe? Comeu ele por dentro. Ele vivia
fumando aqueles cigarros pretos imundos que vinham s�
Deus sabe de onde. Enfim, o c�ncer atacou os pulm�es e a
garganta dele. Era para ter morrido logo, mas claro que
adiou. Viu alguma paisagem ao sair, quem sabe, e pegou o
caminho mais comprido para o cemit�rio. Ficava na
varanda, sentado na cadeira de balan�o, fumando aqueles
cigarros pretos nojentos, um chiado de furac�o no peito
encatarrado, s� olhando para o horizonte. N�o havia nada l�,
quase nada sen�o o mau tempo e a dist�ncia � e na certa
uma tempestade adicional mais adiante �, mas mesmo
assim ele ficava l� como se estivesse esperando alguma coisa.
� Estava esperando a Morte vir busc�-lo � disse eu. � Da
mesma forma que a Morte veio pela High Road buscar meu
pai.
Experiente, Reilly concordou com a cabe�a e piscou um
olho para mim.
� Acho que nesse ponto voc� est� certo, sr. Joseph
Vaughan... acho que voc� tem raz�o.
S�bado de manh� Reilly fez fil� de frango frito, disse-me que
seria minha �ltima refei��o em sua casa daquela vez, que eu
deveria mastig�-la bem, fil� tem muitos nutrientes bons,
sabe, e depois eu deveria ir para o quintal onde eu estava
cortando lenha na v�spera. Deveria terminar e amarrar a
pilha, e quando tudo estivesse varrido e lavado, deveria ir
para casa. N�o para a de Reilly, mas sim para aquela onde
nasci.
�Voc� j� viu flores na beira da estrada? � perguntou.
Fiz que sim com a cabe�a.
� Sabe para que est�o l�?
� Um idiota que se embebedou e bateu com o carro numa
�rvore, imagino.
Reilly concordou.
� O luto deve durar o mesmo tempo que as flores, e acabou-
se. A vida continua. Verdade? Vou lhe dizer uma verdade.
H� mais conversa sobre a guerra atualmente. Antes era
sobre a Depress�o. Seja para que lado for, tem gente
morrendo a cada minuto de cada dia. N�o importa se de
fome, de frio, de doen�a ou das balas de Adolf Hitler. Morto
� morto n�o importa como morra. Em tempos assim � que
as pessoas trabalham na cama. Gente nova � feita quase com
a mesma velocidade com que os velhos morrem. Gente
nova � feita com mais facilidade e menos complica��o do
que panqueca de cereja. Parece o jeito que a natureza tem
de limpar o passado e arrumar o futuro.Voc� me entende,
Joseph Vaughan?
Fiz um sinal positivo.
� Ent�o deixe o passado ser o que foi, o presente, o que �, e
o futuro, o melhor poss�vel. L� est� o Diabo vestido de anjo,
se algum dia voc� quiser v�-lo.
Ri. N�o entendi muito bem o que ele quis dizer, mas �quela
altura n�o importava. Eu j� tinha decidido ir para casa
naquele dia.
Minha amargura, minha sensa��o de ter sido tra�do foram
t�o passageiras quanto as estreitas coroas de flores secas �
beira da estrada, flores para um b�bado, um apressado ou
simplesmente um distra�do; algu�m que perdeu a vida e tudo
o que vinha com ela numa fra��o de segundo. O jeito que a
natureza tem de podar os fracos, os doentes, os fr�geis.
Talvez n�o. Talvez s� o Diabo vestido de anjo: branco por
fora, preto por dentro.
Minha m�e e eu nunca falamos no epis�dio com Gunther
Kruger. O que eu poderia ter dito? O que ela poderia ter
retrucado?
As coisas foram entrando na rotina e se normalizando. Eu
n�o me opus a esse movimento. S� uma vez minha m�e
disse algo que pareceu relevante. Naquele s�bado � tarde,
debru�ada sobre mim, beijando minha testa quando eu
virava a cabe�a para o travesseiro, ela murmurou:
� Reze por mim, sim,Joseph... reze por mim tamb�m.
Sorri, disse que rezaria, segurei a m�o dela um instante, e
tamb�m o olhar.
Senti-a relaxar por dentro, como se, ao confirmar seu
pedido, eu lhe tivesse concedido a absolvi��o e o perd�o. Eu
n�o possu�a tal autoridade, mas ent�o reconheci que a
autoridade auto-atribu�da n�o era nada comparada �quela
conferida por terceiros. Minha m�e me conferiu a dose que
necessitava que eu tivesse, depois aceitou minha b�n��o
t�cita.
Eu decidira nunca mais ver Gunther Kruger, nem sua
mulher enganada, mas sentia por Elena. N�o conseguia
larg�-la. Observava-a na aula, e pensava nas meninas que
haviam morrido, e depois pensava no pai dela e em minha
m�e, e no modo como os encontrara. Talvez eu tenha
decidido acreditar em outra coisa, que fora um engano, que
eu n�o havia presenciado nenhum incidente daqueles.
Empurrei a sombra para o fundo da mem�ria, e l� ela ficou,
cada dia mais fraca, desejando luz, desejando aten��o e nada
recebendo.
Alguns dias depois de ter voltado para casa acompanhei
Elena at� o fim da rua. Ali, ela se virou para ir para casa, mas
estiquei a m�o e toquei em seu bra�o. Ela hesitou, sem saber
por que eu a havia detido, e embora meu sorriso fosse o mais
sincero poss�vel, ela parecia nervosa.
�V� um pouco mais devagar � disse eu.
Ela franziu a testa.
� Est� com pressa?
Ela fez que n�o.
� N�o. Por que est� perguntando?
Baixei os olhos. Por um momento, fiquei sem jeito.
� Eu s� queria... � olhei para ela. Ela parecia muito fr�gil.
� O que, Joseph? Queria o qu�?
Balancei a cabe�a.
� Eu s� queria... queria que voc� soubesse que estarei
sempre aqui se voc� precisar de alguma coisa.
Elena n�o disse uma palavra em resposta. Sua express�o
quase n�o mudou. Ela desviou a vista e olhou em dire��o �
sua casa. Pareceu distante por um bom tempo, depois tornou
a olhar para mim e sorriu.
� Eu sei � disse ela, t�o baixinho que mal ouvi. � Sei,
Joseph. � Esticou a m�o e tocou em meu bra�o. �
Obrigada � murmurou, e antes de acabar de falar, j� ia
embora, quase correndo.
Observei-a ir. Eu dissera o que queria dizer. Torcia para que
fosse suficiente.
Anos mais tarde, depois que todas as barbaridades pareciam
ter terminado, achei que foi nesse momento que a escurid�o
come�ou. Um halo, um peso, um v�u, uma sombra no
fundo da minha mem�ria encontrando alimento suficiente
para crescer.
Eu n�o sabia, e talvez jamais soubesse.
Continuei escrevendo: escrevia at� desabafar e ficar com a
m�o doendo. Mas escrever n�o exorcizou meu medo, minha
raiva, meu sentimento de responsabilidade pelo que
acontecera. Foi ent�o que resolvi fazer alguma coisa. Foi
ent�o que resolvi fazer tudo o que pudesse para garantir que
n�o morreria mais nenhuma menina.
Falei com Daniel McRae, com Hans Kruger; falei em voz
baixa com outros garotos da turma � Ronald Duggan,
Michael Wiltsey, Maurice Fricker. Seis de n�s ao todo.
Faltavam sete meses para eu fazer quinze anos, e nossa
diferen�a de idade era de menos de um ano. Concordamos
em nos reunir depois da aula, no bosque no fim do campo
da cerca quebrada, e uma hora antes do fim das aulas eu j�
estava suando nas m�os.
Fui correndo para casa e peguei os recortes de jornal na
caixa embaixo da cama. Alice, Laverna, Eilen May e
Catherine. Reunimo-nos ali, n�s seis, e mostrei as tiras de
papel, com os cantos virados como folhas de outono
amareladas.
Observei Daniel quando ele viu o nome da irm� no jornal �
sua frente. Senti que se contraiu, como se sua alma tivesse
encostado numa cerca eletrificada. Por alguma raz�o, olhou
para os sapatos; pequeno furo no ded�o, pele t�o preta por
baixo que n�o se notaria o furo se n�o se olhasse bem.
Talvez seus pais � envolvidos demais pela dor � tamb�m
n�o tivessem visto aquele furo. Disse tudo o que precisava
ser dito. Deu a impress�o de que ia come�ar a chorar, mas os
m�sculos em seu queixo tremeram, e deu para sentir que ele
se segurava.
Ningu�m disse uma palavra. A tens�o como uma respira��o
presa.
� Ent�o... ent�o, o que vamos fazer? � disse por fim Ronald
Duggan.
Ali em p�, a franja nos olhos, uma cabe�a mais baixo que eu,
a palidez de
quem tinha sido criado comendo sobras, uma fina camada
de suor brilhando na testa. Estava nervoso. Droga, todos eles
estavam nervosos, mas eu sentia o esp�rito, o sentimento de
solidariedade que vinha quando eu estava com um, dois, tr�s
deles, e sabia que eles queriam fazer algo para ajudar.
� Alguma coisa � disse Hans Kruger. � Temos que fazer
alguma coisa.
� Acho que a gente deve deixar o xerife Dearing fazer o que
ele � pago para fazer � disse Maurice Fricker.
� Mas ele n�o est� fazendo nada � disse Hans.
� Coisa alguma � disse Daniel. � Ele n�o est� fazendo
coisa alguma.
� � aquela cuco cl� � disse Michael Wiltsey. � Eles � que
est�o fazendo essas coisas. N�o consigo pensar em mais
ningu�m t�o mau a ponto de fazer aquilo com meninas
pequenas.
� Ku Klux Klan � disse eu �, e eles n�o se interessam por
meninas brancas, Michael. S� se interessam por negros...
eles simplesmente odeiam os negros, sem motivo nenhum.
N�o tem nada a ver com eles.
-� Ent�o quem �? � perguntou Daniel. � Se voc� � t�o
esperto diga para a gente quem est� fazendo essas coisas.
Fiz que n�o com a cabe�a. Perguntei-me se era um erro
discutir aquilo, como se ao falar lev�ssemos o pesadelo cada
vez mais para perto.
� N�o sei quem est� fazendo isso, Daniel, nem o xerife
Dearing, nem Ford Ruby. Esse � o problema. Alguma coisa
est� acontecendo e ningu�m sabe por que, e ningu�m sabe o
que fazer a respeito.
� E voc� acha que podemos fazer alguma coisa a respeito?
� perguntou Michael.
� Droga, Michael, acho que pod�amos pelo menos tentar.
� Tornei a mostrar os recortes de jornal, de modo que todo
mundo pudesse ver com clareza. � N�o quero ler essas
coisas sobre conhecidos nossos. Olhem o Daniel...
Todos olharam, um por um, timidamente � quase como se
estivessem com medo de enxergar.
Daniel McRae ficou im�vel. Dava a impress�o de ter se
retirado em esp�rito, deixando o corpo ali em p�.
� Daniel perdeu a irm�.Voc�s t�m alguma id�ia do que deve
ser isso?
Daniel parecia a ponto de explodir. Seus olhos lacrimejavam.
� Eu n�o... eu n�o quero... � come�ou ele, mas segurei seu
ombro. Ele inclinou a cabe�a, e do fundo do seu peito eu
ouvia os pequenos espasmos de seus solu�os contidos.
� Temos que fazer alguma coisa � disse eu. � Alguma
coisa � muito mais do que nada. J� temos idade para ficar de
olho nessas crian�as, n�o?
� Ent�o � isso que vamos fazer? � perguntou Hans. �
Vamos... vamos vigiar as meninas?
�Vamos ser guardi�es � disse eu.
� Como um clube secreto � disse Ronald Duggan com uma
voz esgani�ada. � Podemos nos chamar assim. Podemos
nos chamar de os Guardi�es.
� O nome n�o quer dizer nada � disse Daniel. Sua voz
ficou embargada no meio da frase. � O nome n�o tem
import�ncia. O importante � o que voc�s fazem... s� isso.
� Os Guardi�es � disse Michael. � � isso que somos... e
devemos fazer um juramento. Devemos fazer aquela coisa
onde se... onde se... voc�s sabem aquela coisa?
� De que diabo voc� est� falando? � perguntou Maurice.
Ele franziu o cenho fazendo uma cara de nojo; parecia que
tinham emendado as sobrancelhas dele em cima do nariz.
� Aquela coisa de irm�os de sangue � respondeu Michael.
� Em que a gente d� um talho na m�o e junta as palmas, e
a� faz um juramento sobre o que vai fazer.
� Ningu�m vai dar talho na m�o de ningu�m -� disse eu.
� A gente devia � disse Daniel. Falou baixinho, a voz quase
sumida no fundo da garganta. � A gente devia fazer isso
porque tem um significado, e porque � importante, Joseph.
Minha irm� foi morta por esse... esse bicho-pap�o.
� Santo Deus, voc� andou falando com Hans Kruger �
disse eu. � N�o existe bicho-pap�o nenhum.
� � s� um nome � retrucou Daniel. � O nome n�o
significa nada. A gente se intitula os Guardi�es e chama ele
de bicho-pap�o. Quer dizer que sabemos do que estamos
falando, mais nada. E temos que fazer alguma coisa para
mostrar que estamos juntos. Acho que devemos fazer isso, e
devemos fazer um juramento, e depois devemos planejar o
que vamos fazer para aquilo n�o voltar a acontecer.
Hans Kruger tinha um canivete. A l�mina n�o tinha mais
que tr�s dedos.
� Tenho uma pedra, e passo a l�mina ali at� dar para cortar
um papel ao comprido � disse.
Estendeu a m�o, e quando passou o fio da l�mina na carne
macia embaixo do polegar, gemeu. O sangue acompanhou a
linha da faca, e em segundos se insinuava pelas linhas da
palma de sua m�o.
Peguei o canivete. Segurei-o por um segundo. Pressionei a
l�mina na palma, fechei os olhos, cerrei os dentes. A
princ�pio, n�o senti nada, depois uma fisgada fina me
transpassou.Vi sangue, e senti uma fraqueza moment�nea.
Um de cada vez, um ap�s o outro, e ent�o cada um colou a
m�o na m�o do outro.
�Vamos morrer de envenenamento de sangue � disse
Maurice Fricker. � Voc�s s�o um bando de malucos. �
Mas quando estendemos a m�o � frente, cada um de n�s
sangrando, havia uma determina��o implac�vel em sua
express�o que me disse que ele acreditava no que est�vamos
fazendo.
� Juramos � disse eu. �Juramos proteger as meninas...
� Elena � disse Hans Kruger.
Michael Duggan ergueu os olhos.
� E Sheralyn Williams... e Mary.
� E minha irm� � acrescentou Ronald Duggan.
� Sua irm�? � disse Daniel. � Sua irm� tem dezenove
anos. Mora num sobrado e trabalha nos correios em Race
Pond.
� Vamos tomar conta de todas elas � disse eu. � N�s, os
Guardi�es, por esse pacto prometemos tomar conta de todas
elas, e prometemos manter nossos olhos e nossos ouvidos
sempre atentos, e prometemos ficar acordados at� tarde e
vigiar as estradas e os campos e...
� E nos reunir todas as noites aqui � disse Hans. � Depois
sa�mos e patrulhamos a cidade e garantimos que nada
aconte�a...
� Do que voc� est� falando? � perguntei. � Que diabo deu
em voc�? Essas meninas n�o foram tiradas da cama. Foram
levadas em plena luz do dia, levadas bem nas nossas barbas e
mortas onde qualquer um poderia ter visto.
� O que significa que deve ter sido algu�m que elas
conheciam, certo? � disse Ronald. � Do contr�rio teriam
fugido. Todas sabem que n�o devem se aproximar de
estranhos.
Houve um sil�ncio sereno.Todo mundo se entreolhou. Era
como se um fantasma tivesse passado por cima de mim.
� Ningu�m vai a nenhum lugar sozinho � disse eu. � E
vamos fazer a promessa de manter os olhos e os ouvidos
atentos, e se virmos alguma coisa suspeita, vamos avisar ao
xerife Dearing, certo?
� E o que vamos fazer � disse Maurice.
� Concordo � disse Daniel.
� Ent�o est� combinado. Os Guardi�es foram institu�dos.
Ningu�m fala sobre isso � disse eu. � Se for algu�m
conhecido, n�o vamos querer que todo mundo fique falando
no assunto. N�o queremos dar a esse... bicho-pap�o
nenhuma chance de descobrir que estamos � espera dele.
Minutos depois, fui embora, os recortes dobrados e
guardados no bolso da cal�a. Minha m�o do�a, e antes de
entrar em casa lavei-a no reservat�rio de �gua da chuva no
fundo do quintal.
Senti-me uma crian�a. Pela primeira vez, talvez, eu tenha
realmente sentido que enfrent�vamos alguma coisa que nem
sonh�vamos entender. Estava assustado. Todos est�vamos. O
que quer que estivesse por ali era muito mais apavorante do
que uma guerra em outro pa�s. Mas havia algo mais, uma
coisa insignificante e, todavia importante. Custei um pouco a
detectar o que era, mas quando detectei, vi logo.
Era a primeira vez que me sentia parte de alguma coisa. Foi
s� isso, mas me parecia importante e especial. A primeira
vez que eu estava no lugar certo.
Tr�s dias depois nos encontramos depois da aula e decidimos
o local da nossa primeira reuni�o.
� No fim do campo de Gunther Kruger � disse eu. � O
mais afastado da rua em dire��o � curva do rio.
� N�o sei onde � � disse Daniel McRae, e por um
momento me perguntei se era simplesmente medo que
provocava aquilo. Tive a impress�o de que ele n�o queria ir,
que tinha jurado fazer tudo o que pudesse e agora estava
com medo.
� Sabe onde a rua da sua casa encontra a da escola? � disse
Hans Kruger.
Daniel fez que sim com a cabe�a; n�o havia como ele dizer
que n�o sabia onde era.
� Encontro voc� ali � disse Hans. � Encontro voc� ali e
lhe mostro o caminho.
Os olhos de Daniel brilhavam de nervoso. Ele olhou para
mim. Dei um sorriso tranq�ilizador. Ele n�o sorriu de volta.
Depois da escola, cada um foi para o seu lado, para jantar em
casa. Minha m�e planejava passar a maior parte da noite fora.
Perguntou o que eu iria fazer.
� Ler um pouco � disse eu. �Tamb�m tenho trabalho para
fazer.
� Se tiver fome, tem leite e fiambrada na geladeira.
Minha m�e saiu pouco depois das sete. Esperei at� as oito,
sentindo um nervoso na boca do est�mago, e a� vesti uma
jaqueta escura, peguei uma caixa de f�sforos no fog�o e,
debaixo da cama, peguei uma faca de dez cent�metros com
uma bainha, que meu pai tinha me dado mais ou menos um
ano antes de morrer.
�Voc� n�o pode dar isso a ele � dissera minha m�e.
� Pelo amor de Deus, Mary, ele j� � grande. De qualquer
maneira, a faca � t�o afiada como uma folha de alface. Com
muita sorte, talvez ele possa dar um arranh�o letal em
algu�m.
Os dois discutiram mais um pouco. Tive que devolver a faca.
Mais tarde, meu pai tomou meu partido, disse que a havia
escondido embaixo da minha cama, que eu n�o deveria
dizer uma palavra. Nosso segredo.
Meti a bainha no c�s das cal�as, enfiei a camisa por cima.
Olhei mais uma vez para a cozinha, sa� pelos fundos e
atravessei o quintal em dire��o aos campos.
No fim da rua, Hans e Daniel se encontraram comigo. Eles
haviam vindo pelo caminho mais longo. N�o dissemos nada,
seguimos reto, com passos confiantes, como se tent�ssemos
nos convencer de que sab�amos o que est�vamos fazendo.
Quando chegamos ao final do campo dos Kruger, todo
mundo estava l�, menos Michael Wiltsey. Ningu�m disse
uma palavra. Simplesmente nos cumprimentamos com um
gesto de cabe�a, tentamos sorrir, cada qual esperando que
algu�m dissesse algo significativo. Dez minutos se passaram.
Maurice Fricker sugeriu que procur�ssemos Michael, mas eu
lhes disse que ficassem a postos, que ele logo apareceria.
Quando ele chegou, j� passava das nove. Ronnie Duggan
havia trazido o rel�gio de bolso do pai e uma lanterna.
Sugeriu que a acend�ssemos. Eu disse que acender uma
lanterna era o mesmo que anunciar quem �ramos e o que
est�vamos fazendo. Mesmo assim, ele insistiu em lev�-la
consigo.
� Ent�o, aonde estamos indo? � perguntou.
� Vamos contornar este campo e descer para a igreja �
disse eu. � Atr�s da igreja a gente vira na dire��o da escola,
mas antes de chegar � rua cortamos por tr�s da minha casa e
rumamos para a delegacia...
� A delegacia � perguntou Michael Wiltsey.
� N�o vamos para a delegacia � disse eu �, s� naquela
dire��o, s� at� a curva, e a� voltamos pelo mesmo caminho.
� Diabo, Joseph, s�o quase cinco quil�metros � protestou
Daniel. � E quase o contorno de Augusta Falls...
� N�o � esse o objetivo? � perguntou Hans. � N�o � esse
o objetivo... tentar vasculhar o m�ximo poss�vel da cidade?
Todos ficaram em sil�ncio at� Maurice Fricker se adiantar,
olhos arregalados, branco como cera, e dizer:
� Fizemos um juramento. Prometemos que �amos fazer
isso. Ent�o vamos fazer, ahn? Ou algum de voc�s vai
amarelar e dar no p�?
Ningu�m amarelou. Fui andando. Hans atr�s de mim, e os
outros acompanhando em sil�ncio.
Menos de uma hora. O ar estava gelado, o c�u, de um azul-
meia-noite que deixava nosso rosto e nossas m�os com um
brilho quase branco. Eu via como Daniel McRae estava
apavorado, sobressaltando-se com cada barulho, o menor
farfalhar da sebe na beira da estrada, das asas de um p�ssaro
decolando de uma �rvore. A certa altura, percebi o medo
dele, e me perguntei se ele achava que o assassino o
encontraria pelo cheiro, o reconheceria como um
McRae.Viria terminar o trabalho que come�ara com a irm�
dele. Eu queria lhe dizer para n�o se preocupar, que o
assassino s� queria saber de garotinhas, mas n�o estava
muito convencido disso para que minhas palavras soassem
verdadeiras. Ensaiei as frases mentalmente, mas elas n�o
funcionaram. Fiquei calado. Observei Daniel, e quando
chegamos � curva e come�amos a voltar pelo mesmo
caminho nossos olhos se encontraram por um momento. Eu
sabia que ele queria ir embora. Sabia que ele queria voltar
correndo para casa, trancar a porta, esconder-se no quarto,
meter-se embaixo das cobertas e fazer de conta que nada
daquilo tinha acontecido. Mas ele n�o podia pedir. N�o
podia quebrar o juramento, ent�o, facilitei a coisa para ele.
� Daniel � disse eu.
Daniel estremeceu.
Seus olhos se arregalaram.
� O que est� havendo? � perguntou Hans Kruger.
Os outros nos rodearam. J� est�vamos andando aos
trope��es no escuro havia mais de uma hora. N�o t�nhamos
visto nada, j� ach�vamos que n�o havia nada para ver, e
talvez todos os meninos esperassem que tivesse sido
concedida uma esp�cie de dispensa, que seriam mandados
para casa.
� Preciso que Daniel volte para a casa dele � disse eu.
� Por qu�? � perguntou Maurice Fricker. � Por que ele
deveria ter licen�a para ir para casa?
Olhei para Maurice, para cada um deles.
� Daniel � o �nico que perdeu uma pessoa da fam�lia �
disse eu. � Estou preocupado que o homem que assassinou
a irm� dele possa estar vigiando o resto da fam�lia. Preciso
que Daniel v� ver se est� todo mundo bem.
Era uma raz�o tola e superficial. Todos sabiam disso, mas
ningu�m se atreveu a desafiar Daniel McRae, porque ele
havia perdido a irm�, era o �nico a ter perdido uma pessoa
da fam�lia, e eu sabia que seriam tolerantes com ele por
causa disso.
Os olhos de Daniel estavam mais arregalados do que nunca.
Pelo rosto, ele estava prendendo a respira��o.
� Sim � disse Hans Kruger. � Ele deve ir.
Olhei para Hans. Pela maneira como ele retribuiu meu olhar
deu para ver que entendia o que eu estava fazendo.
�V� � disse Hans. �V� correndo, e no caminho, pode dar
uma olhada l� em casa para ver se n�o tem ningu�m atr�s da
minha irm�.
Daniel deu no p� � de repente, inesperadamente. Tentou
sorrir para mim, tentou dizer alguma coisa, mas parecia que
todos os m�sculos do seu corpo estavam preparados para
correr e nada, al�m disso. Foi embora � Red Grange
driblando todo mundo �, e ficamos ali olhando enquanto
ele ia sumindo de vista em dire��o ao fim da rua at�
finalmente desaparecer.
Algum tempo depois, ouvimos o barulho.
Vinha das �rvores � minha direita. Hans tamb�m ouviu,
Maurice Fricker, Michael Wiltsey, tamb�m. Ficamos sem
respirar e calados, e a� � quase como uma infer�ncia � vi
algo piscando nas �rvores.
Meu cora��o parou. Meu corpo inteiro ficou paralisado um
segundo depois.
Fiquei pensando se estaria imaginando alguma coisa, se a
for�a do meu medo havia projetado algo no escuro, algo que
s� existia na minha imagina��o.
�Viu isso? � sibilou algu�m, com uma voz desesperada.
Perguntei-me quantas crian�as assustadas eram necess�rias
para criar um fantasma.
A luz de novo, e dessa vez com certeza. Respirei fundo.
Senti meus olhos se arregalarem. Uma sensa��o de pavor
abjeto veio chegando do fundo das minhas entranhas,
estremecendo todo o meu corpo.
Ouvi a voz de Ronnie Duggan ent�o, n�o mais que um
sussurro petrificado.
� Minha nossa... � ele...
Recuei. Hans estava ao meu lado. Dei meia-volta e fui em
dire��o � mureta que marcava o limite do campo. Toquei no
cabo da faca que levava na cintura, agarrei-o com firmeza,
perguntei-me se teria alguma chance de causar algum dano
aquela coisa se ela viesse para cima de n�s.
Ronnie largou a lanterna. Ouvi o vidro quebrando. O
barulho pareceu alt�ssimo.
� Merda � disse ele, e eu sabia que n�o era por causa da
lanterna do pai, mas sim porque agora ele tinha deixado mais
do que claro onde est�vamos.
� Atr�s do muro � sussurrou Hans, a voz como o chiado
do vapor que escapa de uma panela bem tampada.
Cinco de n�s, trope�ando nos pr�prios p�s, cada um
tentando desesperadamente alcan�ar o muro.
Olhei para tr�s, e no lugar onde t�nhamos ouvido alguma
coisa � l� nas �rvores � vi uma luz piscar. Meu cora��o
batia violentamente no peito, e enquanto alcan��vamos a
mureta de pedra, eu j� tinha sacado a faca cega da bainha.
Agachei-me ali com o cora��o aos pulos, suando frio. Tudo
o que eu ouvia era o barulho de cinco crian�as procurando
com todas as for�as prender a respira��o.
Tentei fingir que o assassino n�o nos havia visto, que pararia
um instante, olharia a rua, n�o veria nada e voltaria pelo
mesmo caminho que viera.
Em menos de um minuto vi que n�o era esse o caso. Vi o
facho de luz balan�ar ao longo das �rvores e vir pousar na
rua a uns quinze metros de onde est�vamos agachados,
encostados no muro.
Comecei a rezar, e a� vi que n�o adiantava. Todas elas
tinham rezado. Cada uma tinha rezado, se n�o por si mesma
ent�o pelas outras. A srta. Webber nos fizera rezar por Alice
Ruth Van Horne, por Laverna Stowell. Ela nos fez pedir a
Deus que achasse por bem impedir aquele assassino de levar
mais crian�as. E de que adiantara? De nada. Em vez de rezar,
agarrei a faca. Olhei para Hans, e vi nos seus olhos
esbugalhados que ele estava com tanto medo quanto eu.
Ouvi passos. O brilho da lanterna iluminou a rua a uns dez
metros de onde est�vamos escondidos. Atr�s do muro, cinco
garotos assustad�ssimos, e um assassino na estrada, lanterna
na m�o, � espreita para ver se avistava qualquer um de n�s...
talvez nos farejasse, talvez conseguisse correr mais do que
n�s, fosse forte o suficiente para envolver todos n�s num
abra�o e nos esmagar.
Ronnie Duggan deixou escapar um grito. Um choramingo
apavorado, mas foi a conta.
A luz da lanterna ficou im�vel. Os passos pararam.
Dava para ouvir a respira��o dele, �spera, como alguma coisa
enorme com sangue borbulhando no peito...
Dava para sentir o cheiro ruim e envenenado do seu bafo, o
cheiro de couro, de um cutelo de metal enferrujado... dava
para ouvir seus pensamentos, sentir o que ele queria, me ver
pendurado de cabe�a para baixo numa �rvore e esfolado
vivo, todo em carne viva... eu levaria horas para morrer, e
cada segundo seria um inferno...
Quando ele falou... quando aquelas primeiras palavras foram
pronunciadas pelo assassino na estrada, Michael Wiltsey deu
um grito t�o alto que daria para ouvir no condado de
Camden.
Penso nos Guardi�es.
Uma grata recorda��o, como um sil�ncio sereno ap�s um
barulho intermin�vel.
Lembro-me da cara deles. Ronnie Duggan com uma franja
que a m�e nunca achava por bem cortar. Michael Wiltsey, o
rei do bicho-carpinteiro. Maurice Fricker, a cara do pai, e
como conseguia envesgar os olhos e depois botar um para
cada lado como se estivesse olhando ao mesmo tampo para a
esquerda e para a direita. Garotos assustados, �ramos todos. E
a� tinha Hans. E a primeira vez que me lembro de pensar em
Hans. Parece que o tirei da cabe�a, porque pensar nos
Kruger era muito doloroso. Um pouco doloroso demais. A
noite em que fomos pegos pelo xerife Dearing, a forma
como achamos que t�nhamos sido encurralados pelo
assassino. O rastro da lanterna dele balan�ando ao longo do
muro onde est�vamos agachados, cada um de n�s branco de
medo, suando frio, batendo queixo. Todos arrepiados, os
nervos mais tensos do que um torniquete para estancar um
sangramento. Eu agarrado a minha faca cega como se ela
fosse servir para alguma coisa.
"Quem est� a�?", gritara ele.
Michael tinha dado um grito, t�o alto que podia ser ouvido
em outro condado.
Ningu�m se atrevia a se mexer, afazer qualquer movimento.
E n�o achei a voz do xerife Dearingparecida com a de
ningu�m que eu conhecesse.
Mas sab�amos de uma coisa... uma coisa, com certeza.
Sab�amos que est�vamos liquidados. Mais que liquidados.
Ele nos pegou escondidos ali atr�s do muro, sua lanterna
iluminando nossos rostos apavorados, a sensa��o
moment�nea de al�vio que parecia lavar suas fei��es como
�gua lavando tinta, como se ele tamb�m estivesse com
medo, mesmo, tanto quanto n�s, e depois ficou furioso,
danado da vida, gritando a plenos pulm�es na escurid�o,
esbravejando sobre como �amos ficar todos de castigo, que
nossos pais estariam � nossa espera para nos dar uma boa
surra... o tipo da surra que nunca esquecer�amos.
Botou-nos, os cinco, no banco de tr�s do carro, levou meia
hora para deixar todo mundo em casa, e minha m�e, quando
me viu saltando daquele carro de pol�cia, come�ou a chorar.
Chorar como no enterro do meu pai, mas um pouco
diferente.
Estava furiosa como eu nunca a tinha visto, mas sem querer
me largar, me apertando tanto que eu n�o conseguia
respirar, dizendo que eu era a pior esp�cie de filho que uma
m�e poderia ter � teimoso, desobediente, turr�o, at� cruel.
Mas ainda me abra�ando, me abra�ando e chorando,
dizendo meu nome sem parar.
"Oh, Joseph... Joseph... Joseph..."
O xerife Dearing foi � escola no dia seguinte. N�o nos
identificou pelo nome, mas falou olhando para cada um de
n�s, prendeu-nos com um olhar inflex�vel ali na cadeira e
disse que tinha havido um problema, que as coisas estavam
fugindo do controle, e como ele impunha um toque de
recolher para n�s crian�as.
Em casa �s seis horas, no m�ximo. Em casa e trancados,
onde n�o poder�amos causar nenhum problema. Para nosso
pr�prio bem, disse, e a� ficou ali parado em sil�ncio,
enquanto a srta. Webber fazia um gesto de assentimento
com a cabe�a.
Reunimo-nos depois da aula, n�s, os Guardi�es. Juntamo-
nos e tentamos fingir uns para os outros que n�o t�nhamos
ficado t�o assustados, que se tivesse sido o assassino n�s o
ter�amos sobrepujado, derrubado, chutado de tudo quanto
era lado. A gente lhe teria dado um chute que o faria parar
no inferno para sempre.
Sab�amos que est�vamos nos enganando. Sab�amos
exatamente como est�vamos apavorados naquela noite.
Apavorados feito garotinhas.
Sete
N�s lutamos contra os japoneses na Batalha do Mar de Coral,
depois em Midwaw. Um homem chamado Churchill veio da
Inglaterra e falou com Roosevelt. Eisenhower foi para
Londres como comandante-em-chefe das for�as americanas
na Europa. Cada vez mais o r�dio dava not�cias da guerra.
Toda semana a srta. Webber contava para a turma sobre
outro pai de aluno, outro filho tendo que ir para a luta.
Alguns deles voltariam alquebrados, derrotados. Outros
jamais voltariam.
O tempo, de algum modo, pareceu acabar com a dist�ncia
existente entre mim e minha m�e. Voltei a ir � casa dos
Kruger. At� aprendi a olhar nos olhos da sra. Kruger sem
pensar no marido dela e em minha m�e da maneira b�blica.
A rotina e a previsibilidade trouxeram n�o s� aceita��o, mas
tamb�m esquecimento. Algumas das coisas que escrevi na
�poca, coisas que eu analisaria mais tarde, at� sugeriam que
havia um sentimento de felicidade em mim. Eu estava com
quase quinze anos. Olhava para as meninas de um jeito
diferente. Pensava na srta. Webber, e alguns dos
pensamentos encabulavam at� a mim. Mas isso parecia n�o
ter import�ncia. Nada parecia ter import�ncia. De tanto
ouvir falar da guerra, perceb�amos que qualquer dissabor ou
constrangimento que pud�ssemos sofrer era insignificante e
irrelevante
diante do sofrimento real que estava acontecendo. A srta.
Webber nos disse que j� t�nhamos idade para entender o
que estava acontecendo de verdade. Falou que havia mais de
meio milh�o de judeus nos guetos de Vars�via, que se
negavam provis�es m�dicas para menores de cinco anos ou
maiores de cinq�enta; que todas as crian�as judias eram
obrigadas a usar a estrela-de-davi na lapela; que os nazistas
haviam assassinado setecentos mil poloneses, cento e vinte e
cinco mil na Rom�nia e mais de um quarto de milh�o na
Holanda, na B�lgica e na Fran�a. Mostrou-nos onde ficavam
esses lugares no globo. Olh�vamos em sil�ncio. Algumas
meninas choravam, entre elas Elena Kruger. Estendi o bra�o
para dar a m�o a Elena, mas ela sorriu encabulada e enxugou
os olhos com a manga do vestido. Disse que estava bem. A
srta. Webber disse que com freq��ncia os homens da aldeia
eram obrigados a cavar muitas valas, e depois esses mesmos
homens, suas mulheres e seus filhos tamb�m, eram
executados por pelot�es de soldados alem�es. Eu pensava
nas meninas que haviam sido assassinadas aqui em Augusta
Falls. Pensava no quanto os homens podiam ser maus. �s
vezes, pegava os recortes de jornal e os estudava com
aten��o, tentando fazer aqueles rostos em preto-e-branco
ganharem vida em minha mente. Mas nunca consegui isso.
Sentia que aquelas meninas tinham ido para um al�m vago,
indefin�vel. Talvez aguardassem a reden��o, a salva��o do
seu sofrimento. Na verdade, eu esperava que elas fossem
anjos, mas parecia que minha f� era t�o fr�gil quanto a
lembran�a delas.
No fim daquele m�s, cheguei em casa e comecei a escrever
um conto. N�o tinha t�tulo � eu achava que n�o precisava
de t�tulo at� estar terminado. Senti-me mal com o conto,
pois me pus na pele de uma crian�a judia em Paris usando a
estrela-de-davi, com um olhar pesaroso e abatido. Ficava
sentado na janela do meu quarto, o queixo quase encostando
no peitoril, e olhava a noite. O c�u duro como pedra, as
nuvens velozes, finas e fr�geis, como se bastasse um
peteleco para dissip�-las, mas tudo de uma beleza frag-
mentada e aleat�ria; fantasmas das nuvens diurnas, id�ias
tardias iluminadas com uma luz de fundo para nos lembrar
da manh�. A manh� passada, a manh� vindoura... n�o
importava qual. No ar, a vivacidade fresca do pinheiro e do
jun�pero tornava o sabor da respira��o �cido e agitado. As
estrelas me olhavam, talvez os anjos tamb�m �Alice Van
Horne, Laverna Stowell, Eilen May Levine. Lembrei-me da
menina McRae, de como sua cabe�a foi encontrada no meio
dos choupos e das nissas, seu corpo, no barranco do rio.
Homens de quatro condados procuraram com afinco
durante muito tempo qualquer sinal do assassino, durante o
dia e depois � noite com lanternas. Veio gente com c�es �
c�es com tanto faro quanto um gato �, mas as pessoas os
traziam, e a algazarra dava para levantar um defunto da
sepultura, mas n�o encontraram nada.
Essas pessoas tinham casa e emprego, tinham filhos, todo
tipo de ganha-p�o, mas largaram seus ganha-p�es como
batatas quentes e vieram correndo. Ser� que vieram por
medo? Medo de que o pr�ximo pudesse ser um de seus
filhos? N�o, eu achava que n�o, porque muitos deles
deixaram os filhos sozinhos em casa, mesmo depois de ter
anoitecido, para poderem vir ajudar. N�o, n�o era tanto o
medo que os impelia, era um sentimento muito mais
generoso e piedoso.
Sentimos medo na �poca. Todos n�s. Pelo menos
ach�vamos que era o que est�vamos sentindo. Na verdade,
ainda n�o t�nhamos visto nada. A bem da verdade, n�o
t�nhamos id�ia de como ficaria ruim. O medo real veio com
a quinta menina. Foi a� que veio.Veio como a Morte pela
High Road. Como o carteiro, como o vendedor de bombas
para moinho, como qualquer um que entrasse em Augusta
Falis com mercadorias para vender, f�rmulas m�gicas ou
equipamentos autolubrificantes para tratores, pronto para
pegar quem n�o devia cair nessa. E s� para afastar esse
vendedor da porta de suas casas as pessoas compravam o que
quer que fosse oferecido, s� para lhes sobrar mais tempo
para se amaldi�oar depois. Mas a� o vendedor j� tinha ido
embora. Como os redemoinhos que surgiam no horizonte,
com for�a suficiente para dar sumi�o numa vaca � n�o um
animal doente ou um bezerro de pernas bambas, mas um boi
feito, com chifres, baba e maus modos. Tornados,
redemoinhos, o que quer que fossem � a gente os via, e
eles j� desapareciam.
Mas o medo real era diferente. Vinha com a mesma rapidez,
mas entrava direto como se tivesse recebido um convite
para visitar a fam�lia. As vezes, parecia que a Morte tinha
vindo buscar cada um de n�s, os coitados, e simplesmente
come�ara pelas crian�as porque as crian�as n�o tinham a
mentalidade de contra-atacar.
A quinta menina era a que se sentava ao meu lado na sala da
srta. Alexandra Webber. Sentava t�o perto que eu sabia o
nome dela, como ela escrevia o n�mero cinco ao contr�rio.
Que diabo, sentava t�o perto que eu conhecia o cheiro dela.
Encontraram-na segunda-feira, 3 de agosto de 1942.
Encontraram a maior parte dela, para ser preciso.
Os pesadelos chegaram. Durante algum tempo, era toda
noite. Sempre os mesmos, talvez pequenas varia��es de
tempo e lugar, mas sempre os mesmos.
Come�avam com um barulho.
Bangue!
Bangue!
Bangue!
Como um bast�o pesado arrastado por uma cerca de madeira
ou pelos degraus da escada, por�m mais pesado que isso,
como algu�m dando uma paulada em alguma coisa, uma
paulada para valer. E um barulho voltando, chegando perto,
mas sem d�vida voltando, quase como um eco, mas n�o um
eco, porque n�o era o mesmo barulho, porque o barulho que
acompanhava o Bangue! era um barulho fraco, como algo
explodindo, talvez uma melancia, mas uma passada, passada
e macia, e madura demais, o tipo da melancia que a gente
joga da varanda s� de brincadeira, s� para se divertir, s� de...
traquinice!
E a� eu a via. Ela estava deitada.
Deitada como se estivesse tirando um cochilo.
Um longo cochilo. Um cochilo t�o longo como sua pr�pria
vida.
Eu via as solas dos seus sapatos.
Subindo o morro, s� um morrinho, podia ter no m�ximo
sete metros, e bem ali no topo via as solas dos seus sapatos.
Novos. Solas novas de sapatos novos. Solas de sapatos de
frente para mim, e por um momento sentia uma sombra de
constrangimento perturbando meu rosto porque imaginava
que, se podia ver as solas de seus sapatos, eu poderia ver por
baixo do vestido at� a...
Tentava n�o pensar em nada, sen�o: Por que ela est�
deitada?
Por que uma garotinha iria l� em cima e se deitaria no
morro, ficaria ali deitada para qualquer um poder chegar e
ver as solas brancas dos seus sapatos?
N�o parecia haver nenhum tipo de resposta para uma
pergunta como aquela.
Ent�o ouvia a voz da srta.Webber, e ela dizia: "A amarga
contradi��o de fazer tudo o que se pode para ter sucesso, e
depois pedir desculpas quando fez... que tipo de vida � essa?"
No alto, havia folhas de outono engelhadas nos galhos como
m�os de crian�as, m�os de beb�s: um �ltimo esfor�o
queixoso para captar os resqu�cios do ver�o da pr�pria
atmosfera, e segur�-los, segur�-los na pele, pois logo seria
dif�cil recordar qualquer coisa, salvo a intensa umidade
amea�adora que parecia sempre nos envolver. O inverno na
Ge�rgia era sui generis; de uma atrocidade marcante e
arrogante, como um parente mal-humorado e grosseiro que
viesse se instalar de vez e se intrometesse nas intimidades e
nas conversas com os punhos cerrados e bafo de u�sque,
com toda a etiqueta de um pelot�o de fuzilamento unionista.
De novo a srta.Webber:
"Isso n�o � Arist�teles, Joseph Calvin Vaughan. Isso n�o �
preto e branco sem nenhuma sombra de cinza no meio...
Isso � a vida, e a vida acontece, e continuar� acontecendo
n�o importa o que se fa�a para acabar com ela..."
E a�, Quer parar!, grita a garotinha, mas est� escuro, o escuro
da Ge�rgia, e n�o h� uma s� luz na terra sen�o a do
caminh�o de algum fazendeiro a mil quil�metros dali; ou
talvez um inc�ndio em alguma clareira onde os rancheiros
sentam para comer algo fedorento, botas descal�adas e com
as solas viradas para cima impedindo a entrada de insetos e
aranhas e coisas rastejantes que possam morder seus ded�es
quando o dia raiar.
Quer parar! Socorro... ai Jesus, socorro!
Uma garota assim, os bra�os, uns gravetos, as pernas, uns
cambitos, cabelo feito linho, cheiro de p�ssego, os olhos,
duas contas de safira, talvez quartzo, alguma coisa contida
num veio no subsolo durante um milh�o de anos at�
aparecer...
E a garotinha, ela escava e esgravata, as m�os como
pequenos amarrados de facas esfregando o ch�o, como se, ao
esfregar o ch�o, uma mensagem profunda, quase subliminar,
fosse se transmudar por osmose, absor��o, alguma coisa,
qualquer coisa... como se a terra fosse capaz de ver o que
acontece com ela e transmitir a mensagem atrav�s do solo,
das ra�zes e das hastes, atrav�s dos olhos e dos ouvidos das
minhocas e dos insetos e das coisas que fazem cricri de noite
quando ningu�m consegue v�-las, o tipo de coisa que o olho
humano n�o consegue ver, coisas que os cientistas de
insetos pegam e examinam ao microsc�pio; e quando as
vemos nos olhando pelo tubo polido de um ocular,
prendemos a respira��o, porque elas t�m olhos de noite,
olhos s�bios, olhos que tudo v�em, e as fei��es delas t�m um
sorriso c�mplice. Como se soubessem que est�o mortas e
esmagadas entre placas de vidro, mas isso n�o tivesse
import�ncia, porque toda a sabedoria que se filtrou pelo
ch�o ainda est� dentro delas. Essa sabedoria toda � algo que
nunca se poderia tirar � nem matando algo com fei��es
daquelas se poderia tirar.
Talvez aquilo levasse uma mensagem?
Ent�o talvez... talvez... talvez fosse para isso que a garotinha
torcesse � para que, de tanto esfregar, arranhar, chutar,
socar o ch�o e lutar com ele... de tanto fazer essas coisas,
acabasse por se fazer ouvir, e algu�m chegasse correndo e
visse o homem curvado ali em cima, o homem com o
ombro curvado e a testa suada, o homem com a faca
enferrujada e pele fedendo a latrina e p�ntano mef�tico, a
lama de rio, a peixe cru, e a galinha crua � t�o crua e velha
que est� azul, murcha e com cheiro de podre... o tipo da ga-
linha que a pessoa d� para um c�o comer e sabe que vai
precisar chamar o veterin�rio...
Algu�m chegaria e veria aquele homem, curvado e
trabalhando, dando duro como se esse fosse o trabalho dele,
e um trabalho de verdade, n�o feito esses burocratas
an�micos com aquelas cal�as passadas, arquivando coisas,
como se arquivar coisas tivesse alguma import�ncia no
inferno...
Mas ningu�m chegou.
Ningu�m.
Eu, por�m, cheguei. Cheguei na manh� seguinte, e �quela
altura ela j� tinha passado a noite toda ali, deitada no bosque
no limite do terreno de Gunther Kruger, e quando tropecei
nela, ela esquartejada em quatro � n�o, cinco � peda�os, e
cada peda�o atirado para um lado, mas o maior e o melhor
era a cabe�a, porque o homem trabalhador tinha mais ou
menos serrado, tirando uma diagonal desde o lado do
pesco�o at� embaixo do bra�o direito, e l� estava aquilo � a
cabe�a, o ombro direito, o bra�o direito, a m�o direita so-
zinha. Uma das m�os que tinham arranhado, raspado e
cavado o ch�o...
E no ar estava a lembran�a do grito dela: Socorro socorro ai
Jesus Nossa Senhora M�e de Deus Pai Nosso que estais no
C�u santificado seja o vosso nome venha a n�s o vosso reino
seja feita...
Mas aquele barulho s� durava algumas fra��es de segundo,
porque o homem trabalhador se ergueu e se abaixou, e com
a ponta da sua l�mina enferrujada encontrou um ponto entre
as costelas dela e a� empurrou o cabo devagarinho, e sentiu
que a l�mina enferrujada n�o encontrava resist�ncia
nenhuma.
Os olhos dela se arregalaram, e por um instante parecia que
tudo ia dar certo, porque tinha uma luz, uma luz de verdade
como uma estrela caindo, e ela sorriu, um sorriso raro e
bonitinho, e se perguntou se viraria anjo imediatamente, ou
se aqueles maus pensamentos que tinha tido em rela��o �
av� no Natal passado significavam que tinha umas tarefas
para cumprir...
Quando ele come�ou a fazer coisas com ela, ela estava
morta, o que provavelmente foi bom.
Chamava-se Virginia Grace Perlman, e seu pai era um
homem baixinho que trabalhava no banco na cidade, um
banco insignificante, daqueles que um ladr�o de banco
recusaria se lhe oferecessem, mas mesmo assim um banco. E
ele era judeu, e ela era sua filha judia, de oito anos e meio, e
algu�m lhe cravou uma faca no cora��o, e depois fez coisas,
coisas b�blicas, coisas que fariam um homem suar. E fez
essas coisas com ela nas �rvores junto ao rio � o mesmo rio
que tinha um barranco onde a maior parte de Catherine
McRae tinha sido encontrada cinco meses antes �, e
quando acabou de fazer essas coisas, cortou-a em cinco
peda�os, e um desses era a cabe�a e o pesco�o com o bra�o
e o ombro direito pendurados, e outro era o resto do tronco
� o bra�o e o ombro esquerdos, quase todo o flanco, mas
sem a m�o esquerda... e procuraram durante muito, muito
tempo, mas nunca encontraram aquela m�o esquerda, e
outro desses peda�os ainda era quase toda a metade inferior,
que estava numa posi��o tal que a gente s� via as solas
brancas dos seus sapatos novos quando ia chegando no alto
da colina...
E foi isso que encontrei.
Eu ia fazer quinze anos dali a dois meses, e na manh� de 3
de agosto encontrei uma menina morta em cinco peda�os,
sem a m�o esquerda, a menos de mil e seiscentos metros de
onde eu morava.
No dia seguinte, recortei a coluna do jornal e botei numa
caixa com as outras. Suei fazendo isso, e n�o consegui cortar
reto.
Durante uma semana, n�o consegui escrever nada, e depois
escrevi sobre outra coisa.
Talvez tivesse sido diferente se ela n�o fosse judia. Mas era.
Eu me lembrava dela da minha sala. Eu gostava dela. Ela n�o
falava muito, nunca tinha falado, e agora n�o falaria mais.
Talvez tivesse sido diferente se n�o houvesse uma guerra na
Europa. Ou talvez pudesse haver uma guerra, mas sem
nenhum americano envolvido.
A guerra era culpa dos alem�es.
Os alem�es, sem d�vida, definitivamente, eram maus.
Os alem�es n�o gostavam dos judeus, detestavam-nos a
ponto de matar mais deles do que algu�m poderia imaginar.
Talvez tenha sido assim que tudo come�ou � a palavra que
se propagou, uma palavra sem subst�ncia, sem comprova��o
nem n�cleo.
Uma palavra sem valor.
Talvez tivesse alguma coisa a ver com quem ela era.
Talvez porque fosse judia.
Uma bonequinha de trapo judia, quebrada e abandonada
para morrer.
Os pesadelos chegaram, e eram assim.
Eu via tudo, pelo menos o que imaginava. Como ela lutara e
brigara, como sulcara o ch�o com os dedos, como ele lhe
cravara a faca enferrujada no cora��o para que ela parasse de
gritar.
Fechava os olhos e via isso.
Minha m�e entrava quando eu acordava, entrava no meu
quarto e sentava comigo, segurando minha cabe�a de
encontro ao peito, e eu me sentia como um punhado de
nada que se dispersaria com menos que um sopro. Era assim
que eu me sentia. Como se n�o houvesse mais nada. Como
um fantasma.
Tentei n�o dar import�ncia ao fato de ter sido eu quem
encontrou Virginia Grace Perlman. Tentei n�o transformar
isso no foco da minha aten��o, mas era dif�cil, dific�limo,
deixar de lado.
E muitas vezes � ah deitado, tiritando � eu imaginava
como poderia ter sido diferente.
Eu fazia de conta que os surpreendia no ato. Foi � noitinha
que ele a pegara, pelo menos foi o que presumiu o xerife
Dearing. Pegara-a no lusco-fusco, na rua, quando ela ia
sozinha para casa. N�s, os Guardi�es, est�vamos de olhos e
ouvidos tapados naquela noite. Eu n�o conseguia me
lembrar do que fazia na hora. Era t�o importante que eu
nem conseguia lembrar. Eu fazia de conta que estivera l�.
Fazia de conta que vira o homem debru�ado em cima de
Virg�nia Grace, que a vira lutando e brigando pela vida, e
partira para cima deles, e de repente os Guardi�es estavam
atr�s de mim, todos gritando e berrando como banshees, e o
homem soubera que o servi�o ficara por fazer, e sa�ra
disparado como o louco que era, e n�s a hav�amos levado
morro abaixo para a cozinha l� de casa, onde estavam minha
m�e e Reilly Hawkins, e a sra. Kruger fora chamada, e
algu�m fora correndo buscar o xerife Haynes Dearing...
E o pai de Laverna Stowell chegou com dois cachorros �
medonhos, mas bons de faro �, que cheiraram a roupa da
menina, pegaram o cheiro dele e foram embora, e o pai de
Laverna Stowell teve que segurar os bichos at� algu�m
trazer uma picape com ca�amba, que vinha cheia de
homens, homens como William Van Horne, Henry Levine
e Garrick McRae, e cada um deles tinha machados e porretes
de nogueira, e o caminh�o voava atr�s dos cachorros, e eles
seguiam as barrancas do rio, descendo at� cruzar o limite do
pasto de Lucas Laundry, e a� viam o homem, correndo
como um bicho enlouquecido, como um animal ca�ado...
Pegavam-no perto da cerca de estacas do dr. Piper, e o xerife
Haynes, que estava l�, depois jurou que ningu�m podia ter
feito nada porque o louco, aquele que tinha matado as
meninas, corria muito, as pernas mais ligeiras que o corpo, e
quando viram que ele ia entrar pela cerca adentro j� n�o
dava para fazer nada para segur�-lo... porque ele corria feito
um furac�o, sabe, e quando bateu na cerca, caiu em cima
dela como uma �rvore abatida, a cerca quebrou e uma das
estacas encontrou-o como algu�m que n�o o via fazia muito
tempo, e entrou pela cintura dele.
E n�o quiseram remov�-lo, embora ele gritasse como um
condenado uma coisa qualquer para Deus e o Diabo ao
mesmo tempo, ali com uma estaca de cerca enfiada na
barriga, e o dr. Piper tinha ido l� fora ver o que havia
acontecido mas n�o pudera fazer nada porque era s� um
m�dico de farm�cia, n�o era cirurgi�o, e algu�m teve a id�ia
de chamar o veterin�rio de Race Pond, mas todo mundo
achou que do jeito como o matador estava espetado, que o
sangue inundava a estaca e escorria para o ch�o, n�o fazia
muito sentido chamar ningu�m... que Deus me proteja, essa
� a verdade verdadeira, e que um raio me parta se eu tiver
dito uma palavra de mentira.
Devia ser verdade, porque havia um m�dico e um xerife e
tr�s testemunhas, uma das quais �William Van Horne �
era meirinho do tribunal do condado de Clinch at� ouvir
que a �gua corria melhor em Augusta Falls e resolver se
mudar para c� com a mulher, os filhos e o gado.
Mas n�o aconteceu assim.
Cheguei sozinho, e cheguei atrasado. Muitas horas
atrasado.Virginia Grace j� estava morta.
Droga, n�o era minha culpa, mas pelo fato de t�-la
encontrado eu n�o conseguia tirar da cabe�a que tudo aquilo
tinha alguma coisa a ver comigo.
Como a culpa quando n�o existe crime.
� Quero ajudar voc�, Joseph � disse minha m�e. L�grimas
nos olhos.
� Culpa � uma coisa amarga e indigesta, mesmo quando �
feita sob medida para voc�. � Os olhos dela estavam
arregalados e �midos, e meio perdidos.
� Eu fiz umas coisas...
� M�e...
� Ou�a at� o fim, Joseph. Voc� j� tem idade para saber a
diferen�a entre o certo e o errado. J� � hora de voc� encarar
uma coisa e v�-la pelo que ela �. Isso que aconteceu entre
mim e...
� M�e, por favor � disse eu. � J� passou, tudo isso j�
passou. Esse � um assunto sobre o qual eu n�o preciso saber
nada.
� Seu pai dizia que n�o havia nenhum assunto no mundo,
nenhum mesmo, sobre o qual n�o se devesse saber alguma
coisa. Dizia que a ignor�ncia era a defesa do homem burro.
Ela mencionara meu pai; n�o havia nada que eu pudesse
dizer em resposta.
� Isso que aconteceu... que aconteceu entre mim e o sr.
Kruger, e o dinheiro que voc� ia pegar. � Ela se virou para a
janela. �A verdade, Joseph? A verdade � que, �s vezes,
fazemos o que for preciso para manter nossas vidas
funcionando no rumo certo. Algumas dessas coisas s�o feitas
para se ter companhia, porque na minha idade a gente pode
ficar terrivelmente solit�ria quando n�o h� nada para se
enxergar sen�o a dist�ncia e o tempo. Eu tinha muitas
saudades do seu pai, tantas que voc� n�o iria acreditar.
� Eu tamb�m tenho, m�e... Eu sei o que voc� quer dizer.
Ela virou, estendeu a m�o e tocou no meu rosto.
� Sei que tem, Joseph, mas ter saudades de pai � diferente
de ter saudades de marido... Passamos treze anos nos
preocupando com os assuntos um do outro e terminando as
frases um do outro. � Ela sorriu. � Enfim, ele era um em
um milh�o, e demorei muito a ao menos cogitar o fato de
que a tristeza que eu sentia pela perda dele tinha se
transformado na dor da solid�o. Aqui � sussurrou ela �,
aqui no meio do nada, � dif�cil ser mulher e m�e. � dif�cil
viver sozinha sem um homem do lado. Dinheiro � dif�cil.
N�o se encontra trabalho, e o sr. Gunther � um amigo
querido da gente, ele e a mulher dele, e �s vezes os adultos
t�m uma maneira diferente da dos jovens de expressar a
gratid�o pela bondade dos outros.
Balancei a cabe�a.
� N�o precisa me dizer, m�e... e n�o precisa ficar triste nem
como se eu a culpasse por alguma coisa. Eu nunca lhe pedi
para falar sobre isso, e n�o pedi porque n�o era da minha
conta. O que passou, passou. Papai morreu. Encontrei uma
garotinha no morro. Algu�m fez coisas horr�veis com ela.
�s vezes, n�o durmo muito bem e n�o sei quanto tempo vai
levar at� eu voltar a dormir direito. Tenho quase quinze
anos. Penso na srta. Webber de maneira b�blica.
Minha m�e riu.
� O qu�?
� Maneira b�blica. Voc� sabe.
Ela assentiu, sorrindo para si mesma.
� Certo � disse. � Maneira b�blica.
� Ent�o as coisas est�o nesse p�, e � assim que me sinto, e
voc� � minha m�e e amo voc� n�o importa o que tenha
acontecido. Droga, m�e, n�o importa que voc� saia e se sinta
bem com o sr. Kruger domingo sim, domingo n�o de hoje
at� o Dia de A��o de Gra�as. N�o sei o que dizer. As coisas
est�o muito confusas. Tenho pesadelos e gostaria de ter
podido fazer alguma coisa para salvar aquela garotinha.
Quando os pequenos entravam na aula da srta. Webber,
como �s quartas e �s sextas � tarde para ouvir uma hist�ria...
bem, aquela menina, a Virg�nia Grace, sentava ao meu lado.
Lembro-me da gargalhada dela. M�e, eu me lembro do
cheiro dela... de morango, morango amargo, uma coisa
assim. Foi nisso que pensei quando a vi l� em cima... toda
despeda�ada e jogada ali como uma coisa sem valor
nenhum, nenhum. Foi isso que vi, e acho que quando se v�
uma barbaridade dessas, n�o h� nada que se possa fazer para
apagar as imagens na cabe�a da gente, e elas v�o ficar
gravadas na minha at� eu ser pasto para as minhocas. Isso
muda minha vis�o das coisas. Me faz pensar que n�o se pode
fazer nada com a vida sen�o viv�-la da melhor forma
poss�vel, e se a gente erra, pelo menos erra tentando fazer
algo bom, ou tentando fazer algo melhor, ou pelo menos
tirando um pouco de conforto e amor de onde pode tirar,
embora um padre fosse considerar isso pecado. � Ri, um
riso seco e amargo. � Pelo que ouvi dos padres, acho que
tudo que � bom faz a gente ir direto para a Geena.
Minha m�e balan�ou a cabe�a.
� Parece mais seu pai falando do que ele mesmo.
Segurei a m�o dela. Levantei-a e beijei-a.
� O que passou, passou � disse eu. � Para mim, nada
desde que papai morreu � t�o importante do que o que
aconteceu com essas meninas. Tudo nesse meio-tempo
parece... Jesus, m�e, tudo parece sem sentido diante de uma
coisa como essa. E tenho certeza de que o sr. Kruger
concordaria.
� Tenho certeza que sim � disse ela baixinho.
E a� ficamos calados, e mais tarde pareceria ir�nico que � luz
daquela nossa conversa toda em que falamos de assuntos
como culpa, responsabilidade, meu pai e os assassinatos
recentes, � luz de tudo aquilo, a palavra final fosse do sr.
Kruger. Gunther Kruger, o alem�o, o homem mais rico de
Augusta Falis, o homem com um r�dio de cristal Atwater
Kent e uma batedeira Sunbeam na cozinha.
Gunther Kruger, que se relacionara com minha m�e no
sentido b�blico, que a ajudara nos tempos dif�ceis deixando
sete d�lares num embrulho de couro embaixo de uma pedra
junto � cerca.
Gunther Kruger, cujos filhos eram como os sobrinhos do
Capit�o, cuja mulher era um punhado de massa fermentada
enrolada em forma de mulher e se encaixava numa cozinha
como uma m�o se encaixa numa luva, e a maneira como
nada era muito problema para ela, porque a vida dela eram
seus filhos, os filhos de qualquer pessoa, e por isso a porta
estava sempre aberta para mim...
Gunther Kruger, pai de Elena.
O corpo esfria. A frente da camisa dele est� preta de sangue
seco. Por alguma raz�o, estou com fome, e olho o rel�gio.
H� duas horas estou sentado aqui. Duas horas ao todo. Estou
cansad�ssimo, absolutamente sem energia. Cansado de
pensar, de lembrar, de falar com algu�m que nunca
responde. Nunca responder�. Internamente, estou em sil�n-
cio, e a onda de barulho que encheu minha mente por
tantos anos parece ter se calado.
Talvez eu possa me obrigar a morrer: limitando-me a ficar ali
sentado, freando os batimentos card�acos at� interromp�-
los, como os budistas fazem, e a�, afinal, irreversivelmente, o
cora��o parar�.
Talvez eu consiga fazer isso, e eles nos encontrem mortos,
os dois juntos, e se perguntem o que aconteceu aqui, neste
quarto de hotel de um terceiro andar.
Porque ningu�m ouviu os tiros. Ningu�m gritou. N�o se
ouviu correria no corredor. Nem socos na porta, nem berros
de "O que est� acontecendo aqui? Ei! Abra a porta! Abra a
porta sen�o vamos chamar a pol�cia!".
S� sil�ncio � dentro e fora.
Eu me mexo um pouco. Minhas pernas est�o dormentes.
Ponho a arma no ch�o diante de mim e aproveito para
massagear a coxa direita. Sinto a dor do sangue me correndo
nas veias, nas art�rias, e ao me mexer ou�o o ro�ar dos
recortes que me enchem os bolsos.
Paro. Prendo a respira��o por apenas um segundo. Chego
mais perto do morto. Vejo meu reflexo nos olhos dele.
"De uma coisa eu sei com certeza", murmuro. "Sei que voc�
nunca ser� anjo."
Oito
O ver�o grudava na gente, punhos cerrados e tenso; o calor
era um soco na cara quando se sa�a na varanda; a fome era
pouca, a sede, implac�vel, e as pessoas ficavam
enfraquecidas e teimosas, apesar de saberem que desidra-
ta��o e falta de alimenta��o eram um caminho r�pido para a
irritabilidade e o rancor.
O sol, belo e imp�vido, n�o estranho � paisagem da Ge�rgia,
alvejava o c�u como a �gua em t�mpera de albumina, era
uma gema inteira e perfeita, o ar branco, esparso e rarefeito.
O ch�o que sublinhava o horizonte era de uma tonalidade
ocre, uma mancha de ferrugem no algod�o; sombras de co-
res, imprecisas e indefinidas, e poeira, borrachudos e lagartas
por todo canto, a atmosfera aparentemente incapaz de
sustentar qualquer peso. Por fim, a gente j� n�o percebia o
calor ou � mais precisamente � percebia-o do modo como
percebia a respira��o ou a claridade: s� notava sua aus�ncia.
Eu costumava me sentar � sombra embaixo da escada da
varanda e observar uma fam�lia de mariposas que tivera a
mesma id�ia. Ouvia as vozes nos campos e imaginava que
eram as garotinhas brincando de pega-pega, suas gargalhadas
aliviadas quando algu�m lhes dava um banho de mangueira
no calor do meio da tarde.
Eu ouvia os barulhos de suas vidas, suas vozes enquanto elas
pulavam corda juntas.
"Um dois... feij�o com arroz... tr�s, quatro... feij�o no
prato... cinco, seis... falar franc�s... sete, oito... comer
biscoito..."
"Palma... palma... palma..."
O medo estava instalado em mim como uma bola de
m�sculo, como um cora��o a mais, um cora��o que
conhecia o medo, a desesperan�a e o sentimento de que a
vida podia atirar alguma coisa na gente, uma tacada certeira
vindo da esquerda, sem que houvesse nada no mundo que
se pudesse fazer a respeito. Eu ro�a as unhas e pensava em
Virg�nia Grace Perlman. Fechava os olhos e via as solas
brancas dos seus sapatos novos no alto de uma pequena
eleva��o abrupta. Cheiro de pinho no ar, pinho e algo
terroso, algo subjacente a tudo, como uma sombra.
Custei um pouco a entender o que era. Sangue, s� isso. Era o
cheiro met�lico de sangue derramado que se entranhava na
terra.
Fui at� l� em cima algum tempo depois. Fiquei no meio das
�rvores e olhei na dire��o da minha casa, da dos Kruger
tamb�m. Vi Elena na escada dos fundos esfregando alguma
coisa nos ombros esfolados para manter a inclem�ncia do sol
a dist�ncia. Queria acenar para ela. Queria que ela me visse.
Eu teria gritado seu nome se houvesse alguma chance de ela
ouvir.
Queria lhe dizer que eu estava l�; que podia v�-la e que,
desde que eu pudesse v�-la, ela estaria a salvo.
Ningu�m vai pegar voc� enquanto eu estiver aqui, enquanto
eu estiver vigiando. Cheguei atrasado da �ltima vez, mas da
pr�xima... se houver uma pr�xima, os Guardi�es v�o estar
prontos...
Queria dizer a ela que tudo ia dar certo.
N�o ia, e eu mais ou menos sabia que estava me enganando.
Ouvi as palavras, e as palavras eram amargas e sinistras, e
parecia que o calor do alto ver�o n�o fazia nada para
estimular o crescimento de tais palavras. Era a guerra; eram
os alem�es e o que eles estavam fazendo com os judeus; era
o fato de que cinco meninas haviam morrido num espa�o de
menos de tr�s anos, e os xerifes de tr�s condados
continuavam sem saber mais do que quando Alice Van
Horne foi encontrada nua num campo no final da High
Road.
Essa era a verdade, e a verdade era azeda como um lim�o
estragado.
Mais tarde naquela mesma noite. N�o conseguia dormir.
Medo, talvez. Revirando-me na cama como um garotinho
sonhando que se afogava. Levantei-me no lusco-fusco fresco
da aurora e fiquei em p� junto � janela, olhando para al�m
dos campos.
Observei e esperei, de vez em quando prendendo a
respira��o o m�ximo que conseguia. Apertava os olhos,
chapando as cores, eliminando a perspectiva. Caolho v�
tudo chapado, disse-me meu pai certa vez. N�o tem no��o
de dist�ncia. N�o avalia bem a proximidade de uma coisa em
rela��o a outra. Tentei n�o pensar em meu pai, no som de
sua voz, no seu cheiro � ma��s amargas, alcatr�o de carv�o,
�s vezes charuto. N�o pensei em mais nada. Esperei e
observei, e esperei mais um pouco. Tentei respirar fundo, de
forma constante e lenta. Tentei n�o ouvir os insetos e as
�rvores, o vento e o riacho. Tentei ouvir outras coisas.
Coisas que vinham da escurid�o.
Tentei ser corajoso. Tentei ser um Guardi�o.
Estava tudo parado. Como um cemit�rio, um barrac�o vazio,
um lago de �gua estagnada dando a impress�o de que
ag�entaria seu peso se voc� ousasse atravess�-lo.
Um rangido.
Senti o sobressalto, as fisgadas nos rins, o jeito como essas
fisgadas foram dan�ando pela minha coluna at� levantar
meus cabelos da nuca. Virei para a porta do quarto, e por um
momento, uma fia��o de segundo, imaginei ter visto a
ma�aneta come�ar a girar. Um leve som assustado escapou
dos meus l�bios � um som involunt�rio, o som do meu
corpo reagindo a algo que minha mente n�o queria
entender.
Observei. Aguardei que a porta abrisse devagar, mas nada
aconteceu. Fechei os olhos, percebi que cerrara os punhos
com tanta for�a que estava deixando a marca das unhas na
palma das m�os.
Abri a m�o. Vi a cicatriz fina do corte que nos fizemos no
juramento. O juramento de proteger. O juramento de
manter os olhos e os ouvidos abertos.
Quem quer que estivesse ali, talvez tivesse nos ouvido, lido
nossos pensamentos, percebido o que faz�amos, e ao me ver
ali parado no meio dos outros, me assinalado como o l�der
do grupo, o encrenqueiro.
Vou mostrar a ele, pensara.Vou mostrar a ele como � sentir
medo.
E pegara Virg�nia Perlman e a matara s� por mim.
Abri os olhos, virei-me novamente para a janela.
E o vi.
Fiquei gelado. Fechei os olhos com for�a, obriguei-me a
pensar com clareza, a parar de imaginar coisas e s� ver o que
estivesse � minha frente.
Tornei a abri-los.
Continuava ali. Um vulto escuro parado no fim da rua que
sa�a da nossa casa.
S� ali parado. Sem fazer nada. Talvez ouvindo, vigiando os
campos e as trilhas � espreita do sinal de algu�m sozinho,
outra menina, algu�m que ele pudesse subtrair para a
escurid�o e...
Senti as l�grimas aflorarem, a pura paralisia de n�o conseguir
fazer nada, nem mesmo gritar, as m�os cerradas e prontas
para bater na vidra�a, e, no entanto, desnecess�rias,
apavoradas, atadas e incapazes de se mexer...
E a�, ele se virou.
Virou-se como se para me encarar.
Gunther Kruger parou um pouco, depois come�ou a se
afastar, voltando para casa, o casac�o balan�ando em volta
das pernas como um manto.
A sensa��o de al�vio era avassaladora.
Comecei a chorar, n�o de medo ou pavor, mas sim de al�vio.
Observei-o desaparecer entre as casas, depois ouvi a porta
abrindo e fechando.
Um Guardi�o, pensei, e por um momento o imaginei como
um de n�s, parado ali no escuro para garantir que ningu�m
viesse pela High Road para roubar sua filha para a noite.
Demorei muito a dormir, mas, quando o fiz, dormi sem
sonhar.
No dia seguinte, os Guardi�es se encontraram nas �rvores
perto do campo da cerca quebrada.
� Temos um problema � disse-me Hans Kruger. Estava
junto de mim, e a dist�ncia entre n�s e os outros n�o era
grande. � Minha irm� � continuou. � Ela acha que
estamos tramando alguma coisa. Acha que estamos
envolvidos em alguma coisa, e se eu n�o disser o que �, vai
contar para o meu pai.
� Ent�o diga a ela que voc� n�o vai fazer nada...
Hans deu uma gargalhada, inesperada, e eu me perguntei por
um momento se ele j� n�o havia lhe contado sobre os
Guardi�es. Talvez buscasse a aprova��o dela; talvez achasse
que podia brilhar aos olhos dela como o irm�o mais velho.
�Voc� conhece Elena como ningu�m � disse. � Ela �
louca por coisas assim. Se acha que tem alguma coisa
acontecendo, n�o desgruda at� saber tudo a respeito.
Lembra-se daquela vez com o guaxinim... aquele que a gente
enterrou?
Eu lembrava muito bem, como ela choramingou e nos
bajulou e amolou at� lhe contarmos o que �amos fazer, e a�
ela insistiu em ir junto apesar de ter gritado ao ver o bicho,
gritado e chorado porque ele fora atropelado por um
caminh�o ou coisa assim e tinha perdido grande parte das
patas traseiras.
Fiz que sim.
� Lembro � disse eu.
� Ent�o o que vamos fazer? � perguntou Hans, depois deu
meia-volta quando algu�m veio pelo meio das �rvores e
apareceu � beira do caminho.
Elena Kruger, de onze anos, marias-chiquinhas no cabelo
que balan�avam de um lado para o outro como hastes de
flor, com um la�o de fita amarrado na ponta como um ma�o
de p�talas irregulares, e sorrindo como se soubesse de tudo o
que havia para saber no mundo.
� Elena! � disse Hans rispidamente.
�Vi voc� vir para c� � disse. �Vi voc�s todos virem para
c� e quero saber o que est� havendo... voc�s t�m que me
contar o que est�o fazendo sen�o vou fazer queixa.
Dei um passo � frente de Hans.
� Deixe que eu cuide disso � disse eu com firmeza.
Aproximei-me, de cara fechada, uma express�o de
autoridade, e fiquei
diante dela, uma cabe�a mais alto, e olhei-a de cima do jeito
como a srta. Webber �s vezes me olhava.
�Voc� tem que ir para casa � disse eu.
� N�o tenho que fazer nada que voc� diz � disparou ela.
� Elena... � s�rio. Isso n�o � coisa para voc�. Tem que ir
para casa e n�o falar nada para ningu�m.
Ela inclinou a cabe�a para o lado. Bateu as p�lpebras e olhou
para mim com uma express�o que me fez corar por dentro.
� Elena, estou falando s�rio. Isso � um assunto s�rio.
A essa altura, os outros j� vinham se aproximando de n�s.
Eu sentia os olhos deles nas costas, e a� Maurice Fricker
chegou do meu lado e olhou para Elena Kruger.
� Que diabo ela est� fazendo aqui?
� Eu podia lhe perguntar a mesma coisa, Maurice Fricker �
disse Elena. � Conhe�o seu irm�o, conhe�o sua m�e e seu
pai tamb�m, e se voc� n�o me contar o que est� havendo
vou correndo na sua casa contar que vi voc� fumando
cigarro.
Maurice levantou a cabe�a.
� Ora, sua...
Interpus-me entre eles, junto de Elena; peguei-a pelo bra�o
e levei-a rapidamente para longe do grupo.
Fomos andando um pouco em dire��o �s �rvores, ent�o
diminu� o passo e parei.
� Sente a� � disse eu. � Sente a� e me escute.
Contei-lhe quem n�s �ramos. Contei-lhe sobre os
Guardi�es. Contei- lhe sobre a promessa que hav�amos feito
de manter os olhos e os ouvidos atentos para qualquer coisa
que acontecesse. Contei-lhe porqu�, e depois expliquei
como ela nunca poderia participar de uma coisa daquelas.
Ela estava ali para ser protegida, n�o para proteger.
� Mas tenho ouvidos e olhos como qualquer um � disse
ela, e por um momento ficou com cara de que ia chorar.
Olhei para os cinco meninos. Ronald Duggan estava em p�
com as m�os nos quadris, parecendo ter levado um bofet�o.
Hans s� estava sem jeito, como se fosse o �nico culpado e
respons�vel pela chegada da irm�.
Olhei de novo para ela.
� Elena, estou falando s�rio.Voc� n�o pode se envolver
nisso. E perigoso para voc�.
Ela balan�ou a cabe�a.
� Porque sou menina, n�o �?
Dei uma gargalhada.
� N�o, pelo amor de Deus, Elena, n�o � porque voc� �
menina.
� Ent�o por qu�? Por que n�o posso participar disso?
Olhei para o grupo. Eles estavam esperando que eu me
irritasse com Elena e a mandasse para casa. Esperavam que
eu dissesse algo r�spido, direto e significativo. Eu n�o podia
fazer uma coisa daquelas; n�o com Elena Kruger.
� Elena... o neg�cio � que... o neg�cio � que voc� � muito
importante para mim. � Olhei para ela. Havia algo em seu
olhar que eu nunca havia visto antes. Eu estava tentando
planejar o que dizer, mas n�o tinha controle; as palavras
mais ou menos escapavam, � minha revelia. � Gosto muito
de voc�, Elena... de verdade. N�o posso suportar a id�ia de
alguma coisa acontecendo com voc�, n�o posso mesmo.
Voc� tem que confiar em mim nesse assunto. Tem que
entender que garantir que nada aconte�a a voc� � a parte
mais importante do meu trabalho. Eu vigio a rua que vai para
as nossas casas. Garanto que nada aconte�a... Vou garantir
que nada aconte�a com voc�, e a id�ia de voc� por a� no
escuro, n�o importa com quem esteja... a id�ia de voc� por
a� no escuro, onde pode lhe acontecer alguma coisa,
simplesmente � insuport�vel para mim.
Parei de falar. Eu estava olhando para os dedos, torcendo-os,
sentindo um frio na barriga.
Virei-me lentamente quando senti sua m�o em meu bra�o.
Elena Kruger, olhos arregalados e lacrimosos, duas marias-
chiquinhas no cabelo, uma lembran�a remota de uma
garotinha magra com equimoses nos bra�os, empertigou-se
e me deu um beijo no rosto.
Olhei para ela. Vi inoc�ncia, ingenuidade, uma confian�a
cega em seus olhos.
� Tudo bem � murmurou, depois se levantou devagar,
sacudiu a poeira da saia e sorriu.
� Meu Guardi�o, certo? � disse, num tom triunfante. �
Meu Guardi�o Joseph Vaughan. � O olhar de quem agora
me confiava sua vida.
Senti-me corar e tive que olhar para o outro lado.
� N�o vou dizer nada � disse ela, ent�o virou as costas de
repente e saiu correndo.
Levantei e fiquei observando enquanto ela desaparecia entre
as �rvores.
Sim, pensei. Serei seu Guardi�o. Aconte�a o que acontecer,
estarei l�.
Fim de agosto. Os alem�es prenderam mais cinco mil judeus
na Fran�a; os marines desembarcaram em Guadalcanal e nas
ilhas Gilbert; algu�m jogou uma pedra no p�ra-brisa do carro
de Gunther Kruger. O xerife Haynes Dearing organizou a
coloca��o de cartazes em �rvores e port�es em volta de Au-
gusta Falis. Os cartazes mostravam a figura de um homem,
apenas a silhueta, como uma sombra em p� � e embaixo da
sombra havia a legenda: N�O FALE COM ESTRANHOS. N�O SAIA
COM ESTRANHOS. FIQUE ALERTA. FIQUE SEGURO.
Parecia agravar as coisas, n�o melhorar. Lembrava a todo
mundo que havia algu�m entre n�s, e se porventura voc�
esquecesse isso, os cartazes estavam ali para fazer lembrar.
Se era ou n�o o bicho-pap�o, agora parecia mais real do que
nunca.
Ent�o, em 27 de agosto, uma quinta-feira, um tiro de
espingarda fez um buraco na janela do quarto de Gunther.
Gunther Kruger chamou o xerife Haynes Dearing; o xerife
Dearing ficou preocupad�ssimo, nunca tinha ouvido nada
parecido, pelo menos dirigido a um branco, mas n�o p�s em
d�vida que havia sido um disparo acidental.
Sexta-feira � noite houve um alvoro�o perto dos choupos, e
quando foi l� de manh� Gunther Kruger viu que tinham
matado seu c�o, abriram-no do pesco�o ao rabo e deixaram-
no assar ao sol.
Gunther chamou o xerife Dearing pela segunda vez; Dearing
fez perguntas sobre pessoas que Kruger poderia ter
chateado, sobre se algu�m desejava se vingar de algo. Ser�
que ele invadira o terreno de algu�m, passara uma cerca dez
metros mais perto do que deveria, deixara seu c�o matar uns
frangos no quintal de algu�m?
� Isso n�o tem rela��o com frango nem cerca nem qualquer
outra coisa, e voc� sabe disso!
O xerife Dearing disse como Gunther Kruger devia se
comportar quando estivesse falando com um homem da lei.
� Ent�o fa�a alguma coisa � insistiu Kruger. � Minha
mulher e meus filhos est�o em perigo por causa desses
loucos... Os Estados Unidos s�o a terra da justi�a e da
liberdade...
O xerife Dearing disse ao sr. Kruger que ele n�o devia dizer
nada negativo sobre os Estados Unidos e os americanos.
� Mas os americanos... os americanos jogaram uma pedra no
p�ra-brisa do meu carro. Deram um tiro na janela do
segundo andar da minha casa, poderia ter acertado em mim
ou na minha mulher, ou em algum dos meus filhos, e agora
um americano matou meu cachorro, cortou o bicho ao meio
e o deixou exposto para todo mundo ver. Sabe o quanto
minha filha gostava daquele cachorro?
O xerife Dearing levantou as duas m�os, como se estivesse
se rendendo, deu um passo atr�s e come�ou a fazer que n�o
com a cabe�a. Disse a Kruger que ele n�o ganhava nada com
aquelas acusa��es inflamadas, e que se desejasse ver as coisas
por aquele �ngulo, bem, n�o adiantava muito o xerife
Dearing ficar ali falando. Poderia falar at� o sol se p�r e a
posi��o de nenhum deles evoluiria.
� Mas pelo menos se voc� ficasse at� escurecer poder�amos
ver outro americano desrespeitar minha casa e minha
fam�lia � disse Kruger, gaguejando a toda velocidade,
moedas despejadas de um ca�a-n�queis, e n�o foi preciso
mais nada para ver o xerife Dearing entrar no seu carro e
partir pela rua de terra para pegar a rodovia sem nem olhar
para tr�s.
Eu quis saber se algu�m tinha visto Gunther Kruger fora de
casa naquela noite, a noite em que o vi da minha janela. Eu
o vira ali e tirava a conclus�o errada.
O xerife Dearing n�o deveria ter dito nada, mas era s�bado �
noite, e era anivers�rio de Clement Yates, que uma vez fora
comissionado e ajudara Dearing a capturar um menor
foragido do abrigo para menores infratores em Folkston.
Clement Yates tinha uma cara sem gra�a e normal, sen�o
pelo olho direito, que era repuxado para cima no canto com
uma cicatriz acentuada, como se o tivessem pescado pela
testa e depois puxado o anzol para solt�-lo. Mais do que isso,
ele era um pouco lerdo, e a inclina��o da sua boca, a flacidez
do seu queixo, davam a impress�o de que ele de fato havia
engolido aquele anzol, com a linha e a chumbada, e agora
esperava pacientemente para consumir o cani�o. Quando
Clement tinha uma id�ia, raiava uma luz naqueles olhos
mortos, uma luz como o fogo-de-santelmo, e certamente a
not�cia sairia no r�dio.
Havia alguns homens no Bar da Queda, que n�o passava de
duas mesas de cerveja, uma bomba, uma mesa de canto para
casais, uma mesa de madeira para sentar e comer, um ch�o
coberto de serragem e cuspe e a cabe�a de um alce caolho
na parede. O nome do lugar era um jogo de palavras. O dono
se chamava Frank Turow, e no dia da inaugura��o da casa
ele caiu na escada da adega e quase quebrou a coluna. Frank
tinha um rosto estranho, como se o seu cr�nio nunca tivesse
endurecido; como se um empurr�o brusco, uma briga na
porta de casa ou coisa assim tivesse amassado sua cara. As
fei��es cederam e ficaram para sempre daquele jeito. Nem
bonito nem feio, mas sim na zona intermedi�ria indecisa
habitada por todos aqueles que s�o alvo de um olhar
espantado ou intrigado.
Presentes ao anivers�rio de Yates, al�m do xerife Dearing e
do pr�prio Yates, estavam Leonard Stowell e Garrick
McRae, Lowell Shaner � o canadense caolho que integrou
a fileira dos setenta homens em mar�o ap�s o assassinato da
filha de Garrick McRae, Frank Turow, que tinha sessenta e
oito anos e era forte como um touro, um metro e oitenta de
m�sculos rijos e agilidade para enterrar qualquer um que se
atrevesse a desafi�-lo, e por fim Gene Fricker, pai de
Maurice, colega Guardi�o. Gene Fricker trabalhava na loja de
gr�os e tinha cheiro de saco de semente molhada; era
parrudo, lerdo como Yates, mas lerdo de uma forma
met�dica e diligente, nunca tolo, e sim seletivamente
ignorante do que n�o lhe interessava. Sete homens, dois
barris de cerveja tosca que tinha gosto de fermento
dissolvido em mijo de guaxinim, e l�nguas destravadas pela
camaradagem, pelo desejo de se mostrar superior aos demais
e, sobretudo, desequilibradas por uma garrafa de Calvert que
Turow conservara para a ocasi�o.
� N�o � americano � disse Yates.
� O qu�? � perguntou Leonar Stowell.
� Esse que est� fazendo essas coisas com essas meninas.
Haynes Dearing levantou a m�o.
� J� chega. Eu ainda sou a lei e vou baixar uma aqui. Isso �
uma festa de anivers�rio para Clement Yates, e assim vai ser.
N�o vamos ficar falando dessas coisas agora.Temos Leonard
Stowell e Garrick McRae aqui, que perderam suas filhinhas.
� Dearing ergueu os olhos e depois acenou com a cabe�a
para cada um deles. � Uma not�cia diferente para um dia
diferente, concordam?
� N�o vim aqui para falar de nada � disse McRae �, mas
enquanto esse bolo estiver na mesa, eu corto um peda�o...
Concordo com Clement, anivers�rio ou n�o, ele n�o �
americano.
� A �ltima menina era judia � observou Frank Turow.
� N�o importa o que ela era � disse Lowell Shaner. � O
neg�cio � que era filha de algu�m, e eu estava l� na fila
depois que a filha do Garrick foi assassinada... Estava l�
observando homens adultos que nunca a tinham visto antes,
e eu vi esses homens quase chorarem. Eles foram l� porque
queriam ajudar... e vou lhe dizer uma coisa agora, xerife...
Dearing inclinou-se � frente, a cabe�a metida entre os
ombros encurvados como um c�o de briga.
� E o que voc� vai me dizer, Lowell Shaner?
Por uma fia��o de segundo Shaner deu a impress�o de estar
em d�vida, mas olhou para Garrick McRae, viu o r�ctus
severo da boca do homem, a dureza de seus olhos, e a
obtusidade daquela express�o foi a conta para faz�-lo se
decidir.
� Que se nada for feito imediatamente...
� A� voc�s v�o se encharcar de aguardente e formar um
grupo de linchamento, v�o se meter na carroceria de uma
picape e partir a toda para St. George ou Moniac e enforcar
um pobre crioulo indefeso. Digam que estou errado e dou
um d�lar a cada um.
Um sil�ncio constrangido entrou na festa.
� Os crioulos s�o americanos � disse baixinho Clement
Yates.
� Bem, correto � disse Dearing. � Sinto muito, n�o
entendi o sentido. Voc�s est�o falando � de achar um
assassino de crian�as estrangeiro... como um irland�s, talvez,
ou talvez um daqueles suecos que passaram por aqui a
caminho dos campos madeireiros... ou, que diabo, um
alem�o? Tem muito alem�o aqui. Os alem�es est�o causando
toda essa confus�o de guerra, matando nossos filhos na It�lia
e s� Deus sabe onde, e est�o matando judeus l� tamb�m, e a
�ltima menina que foi morta era judia. Como pudemos
esquecer disso? Isso quer dizer que deve ser um alem�o.
Tem que ser um alem�o.
� Haynes � Gene Fricker falou alto. � Voc� est� ficando
irritado e magoado � toa. Ningu�m est� dizendo...
� Qualquer coisa que fa�a sentido, Gene � disse Dearing
com objetividade. � Isso, meu amigo, � o que ningu�m est�
dizendo.
Recostou-se na cadeira e endireitou o n� do cintur�o. Era
um ato insignificante, teria passado despercebido em
qualquer outra ocasi�o, mas �quela altura parecia ter um
objetivo; lembrava a todos os presentes que Dearing era a
lei, que era o �nico a estar armado, e estava porque a lei o
autorizava.
� N�o vamos ter problema nenhum aqui em Augusta Falls
� disse ele baixinho. Inclinou-se � frente mais uma vez e
pousou as m�os na mesa, as palmas para baixo. � N�o
vamos ter nenhum problema aqui, e n�o vai ser porque eu
disse n�o, vai ser porque o que temos aqui s�o cidad�os
honrados, sensatos, todos voc�s mais do que capazes de
juntar palavras para formar uma frase, todos com experi�ncia
de vida, todos sofrendo um pouco com o calor, a safra ruim,
talvez... mas nenhum de voc�s sofrendo da doen�a violenta
e tola chamada ca�a �s bruxas. Estamos de acordo quanto a
isso?
Houve um momento de hesita��o enquanto os homens se
entreolhavam.
� N�s estamos de acordo quanto a isso? � Dearing
perguntou uma segunda vez.
Um murm�rio de assentimento cruzou da esquerda para a
direita.
� Ouvi dizer que criaram problema para Gunther Kruger �
disse Dearing. � Garanto que voc�s n�o t�m nada a ver
com isso, e n�o estou pedindo que ningu�m venha confessar
ou negar. Estou dizendo a voc�s que qualquer problema que
tenha sido criado para Gunther Kruger j� � um caso
encerrado, e quem n�o der o recado para os vizinhos que
encontrar por a� � imprudente e tolo. Posso ser muito
conservador, um pouco convencional demais e teimoso,
mas n�o vou gostar de baixar gente enforcada em �rvore este
ver�o.
� Entendemos tudo � disse Gene Fricker. �Voc� j�
construiu o muro, Haynes, n�o precisa refor��-lo com
estacas. A constru��o vai ficar em p� sozinha.
� Ainda bem que nos entendemos... ainda bem que de fato
nos entendemos. As pessoas est�o assustadas, e quando est�o
assim, n�o pensam direito. Cada um passou a enxergar o
outro de maneira diferente depois desses crimes. Voc�s
podem ter suas queixas a respeito de como estamos lidando
com isso, e n�o posso dizer que n�o tenham raz�o, mas o
fato � que aqui somos todos bons cidad�os e nenhum de n�s
quer ver tudo se repetir. Fiquem de olhos abertos. Procurem
qualquer coisa fora do normal, e se virem algo, venham me
contar e eu investigarei no ato e sem demora. Est�o
entendendo?
E parece que nada mais foi dito, ou assim correu de boca em
boca, porque n�o paravam de falar nessa reuni�o, e at� Reilly
Hawkins falou nela dias depois. Talvez nenhum dos
presentes tivesse inten��o de causar mais problemas, mas o
problema chegou, depressa e com viol�ncia. A noite
seguinte, domingo, 13 de agosto, foi uma noite que marcaria
um divisor de �guas na minha vida, e na vida de muita gente
em Augusta Falls.
Talvez eu devesse ter visto o problema chegar, pois havia
uma tens�o no ar, uma eletricidade tang�vel. Quem sabe eu
tivesse me convencido que de fato n�o havia nada. At� me
lembro da noite de s�bado, quando eu estava deitado na
cama enquanto o xerife Dearing, Leonard Stowell, os outros
do Bar da Queda, comemoravam o anivers�rio de Clement
Yates. O mundo girava, as pessoas seguiam tranq�ilamente
na sua rotina; li Steinbeck at� meus olhos se fecharem
sozinhos, e parecia que o dia seguinte seria igual a qualquer
outro domingo passado ou futuro.
Se eu soubesse o que depois vim a saber � a perspectiva que
o tempo d� � sempre o conselheiro mais astuto e mais cruel
�eu teria tirado os Guardi�es da cama, e juntos ter�amos
roubado n�s mesmos a menina de casa e a escondido em
algum lugar at� aquilo terminar.
Mas n�o sab�amos, nem ela, e minha m�e, apesar de toda a
sua sabedoria, tamb�m desconhecia.
A Morte voltou a Augusta Falis, percorreu toda a High Road;
profissional, met�dica, indiferente aos costumes e � boa
educa��o; sem respeitar P�scoa, Natal, pr�ticas religiosas ou
qualquer tradi��o. A Morte chegou � fria e insens�vel, a
coletora dos impostos da vida, o pagamento devido pelo ato
de respirar, uma d�vida sempre em atraso.
Eu vi a Morte lev�-la, eu a vi de perto, e quando olhei em
seus olhos s� vi o meu reflexo.
Nove
O barulho de um soco numa vidra�a, um soco com o punho
enrolado numa toalha, uma toalha roubada da corda que ia
da porta dos fundos at� o mour�o do port�o, enrolada num
punho e arremetida contra o vidro, uma explos�o surda, um
barulho quente de alguma forma, quente e firme, um
barulho quente e firme que conseguiu chegar � minha
consci�ncia embora eu estivesse dormindo.
O calor perto, muito perto, a pele que uma cobra anseia por
trocar; o calor da Ge�rgia no fim de agosto, um calor
magn�fico que nos desafia a dormir apesar dele, e quando
consegue dormir, a gente n�o quer perder o sono, n�o quer
emergir dali, da escurid�o segura para a luz dolorosamente
forte, quer se deixar tragar de novo para a inconsci�ncia
quando a explos�o quente l� fora vira algo parecido com
facas e vidros, vidros e facas, tudo amarrado junto num saco
de couro e sacudido, sacudido, sacudido...
Algu�m est� me sacudindo.
M�sculos em cascata, destravando-se como se de um rigor
prematuro, cada um cutucando o seguinte, alertando-o, o
efeito domin� do neur�nio para a sinapse para o nervo para
a resist�ncia quando o sono amea�a estourar como um bal�o
cheio de �gua. Ceder, render-se, mas contra a vontade, pois
uma vez perdido n�o ser� recuperado. Como Johnny
Burgoyne em Saratoga: cavalheiro ou n�o, ele ainda assim se
rendeu.
�Joseph!
Um silvo urgente.
� Joseph! Acorde!
Sonhos, talvez, sonhos com a srta. Webber, seu rosto largo
aberto como uma campina, olhos azul-cent�urea, simples e
descomplicados; como aqueles olhos de cent�urea floriam
sob o sol de Syracuse.
Joseph!
Parecia a voz do meu pai � s�bita e urgente, n�o irritada,
n�o zangada, apenas insistente. Eu estava lutando com algo,
algo pesado, com uma press�o, como um afogamento talvez.
A sensa��o de movimento, m�os embaixo de mim, e depois
eu estava abrindo os olhos e o rosto de Reilly Hawkins me
olhando, minha m�e ao lado dele.
� Depressa, Joseph! � insistia ela.
�Venha, Joseph... vista-se depressa, precisamos sair da casa.
Foi ent�o que senti o cheiro acre e amargo da fuma�a. Achei
que dava para sentir o calor atrav�s das paredes, mas talvez
fosse a imagina��o floreando a lembran�a.
Vesti-me correndo, inseguro, agitado, mas compreendendo
que a rapidez era essencial. Algo havia acontecido; algo
ruim, eu achava. Minha m�e e Reilly Hawkins foram na
minha frente. Eu ouvia os passos deles na escada de madeira,
como um pau arrastado numa cerca.
L� embaixo, encontrei a cozinha toda alagada. Havia baldes
e panelas espalhados no ch�o e l� fora no quintal... um
burburinho de vozes vindo l� de fora, e de repente apareceu
Clement Yates, todo vermelho, a camisa empapada de suor e
�gua, olhos arregalados, a pele cinza e listrada de preto.
� Um balde! � gritou para mim. � Pegue um balde,
menino... pegue um balde de �gua e ande depressa! Ande
depressa, pelo amor de Deus!
O balde era pesado. Quase escorreguei e o larguei quando sa�
da porta e fui para o quintal.
Foi a� que vi as chamas, punhos laranja brilhantes cerrados
no teto da casa dos Kruger, e depois investindo para o c�u
como se com raiva. O cheiro era denso e claustrof�bico, um
cheiro de madeira e algod�o queimados, de l� e pedra
queimando, de terra assada no calor intenso; eu nunca havia
sentido um cheiro como aquele, porque, por baixo dele,
preso como uma corrente trai�oeira sob a superf�cie, estava
o cheiro da Morte.
Quantas pessoas estavam l�, eu n�o sabia. A casa de Gunther
Kruger ardia, e parecia que toda Augusta Falis tinha acorrido
para ajud�-lo a apagar o fogo. O rugido e a crepita��o eram
brutais, as janelas estourando com o calor, as vigas rangendo
quando cediam � fornalha, o estrondo dos ladrilhos,
estalando como chicote, o cheiro de jun�pero e erva-mate
explodindo atr�s da casa, os gritos, o medo, a percuss�o dos
passos, as duas fileiras de homens � uma da nossa cozinha
para os fundos da casa de Kruger, a outra partindo do
barranco �; duas fileiras de homens passando baldes de m�o
em m�o e, entre esses homens, estavam Gunther Kruger,
Hans e Walter, Clement Yates, Leonard Stowell, Garrick
McRae e Gene Fricker. O xerife Dearing tamb�m estava, eu
ouvia a voz dele mas n�o o via. Mais tarde soube que era ele
quem estava nas entranhas ardentes do pr�dio, quem
arrombava portas e lutava com a fuma�a. N�o se conseguia
enxergar nada, ouviam-se vozes e os trope��es no escuro
cada vez mais denso, na imund�cie preta e acre, tudo em
v�o.
Os homens os tiraram da casa � Gunther e Mathilde,
Walter e Hans.
Ela n�o conseguiu: Elena Kruger, com seus bra�os
machucados e seus ataques do grande mal. Faltavam onze
dias para ela completar doze anos, e ela morreu na escada do
por�o, descendo para o escuro para fugir do calor.
Lembrei-me da promessa que fiz, parado em cima do morro
onde encontrei Virg�nia Perlman, a promessa de velar por
Elena e assegurar que nada de mau lhe acontecesse. Quebrei
essa promessa como se ela nunca tivesse significado nada.
No fundo, eu sabia que de algum modo eu tinha feito aquilo
acontecer.
Minha m�e estava l�, af�nica de tanto gritar, as roupas
imundas, as m�os e os joelhos sujos de carv�o e lama. Reilly
Hawkins teve que arrast�-la para tr�s quando o telhado
finalmente cedeu, pois todos sabiam que a menina estava
perdida. Antes disso, havia esperan�a � equivocada,
otimista, mas assim mesmo esperan�a. Quando as madeiras
da cumeeira vieram abaixo, uma ap�s a outra, quando
aquelas enormes l�nguas de fogo sa�ram de todas as portas e
janelas, todos viram que n�o havia nada que pudessem fazer.
Elena Kruger ainda estava l� dentro, e a� as paredes
cambalearam como um b�bado, e quem quer que se
aventurasse para al�m dos limites do terreno seria queimado
de dentro para fora antes mesmo de alcan�ar a alvenaria
carbonizada.
Fiquei parado olhando, o cora��o inflamado e quente, num
ritmo disparado, meus punhos fechados, os dentes t�o
cerrados que do�am, e l�grimas escorrendo pelo meu rosto,
l�grimas por causa da fuma�a e da afli��o de respirar � e da
devasta��o, quando percebi o que tinha acontecido.
Tinham posto fogo na casa dos Kruger.
Foi depois que vi a Morte. Apenas uma sombra, um
espectro, mas estava l�. A mesma que levou meu pai.
Madrugada de segunda-feira, talvez duas ou tr�s da manh�.
Continu�vamos acordados, todos n�s, mas delirando por
causa do fogo, da fuma�a, do cansa�o, do pesar. O inc�ndio
estava apagado, a casa dos Kruger, nada mais que uma
sombra negra no terreno, cravejada aqui e ali com resqu�cios
de parede como dentes quebrados se projetando das
gengivas da terra. Dava para ver onde tinha sido a cozinha,
sentir o cheiro das salsichas de Viena com salada de batata
que a sra. Kruger fizera para alimentar o "esbandalho".
Levaram Elena para cima ent�o. Gunther Kruger, o xerife
Dearing, o caolho Lowell Shaner e Frank Turow.
Encontraram-na nos degraus do por�o, o corpo carbonizado
e irreconhec�vel. Enrolaram-na numa manta, subiram com
ela para a meia-luz da aurora. A sra. Kruger ficou para tr�s
observando, desesperada, ap�tica, sem conseguir chorar
mais. A certa altura, dobrou-se naturalmente at� o ch�o, e
minha m�e estava ali, minha m�e e Reilly Hawkins, e eles a
levantaram, levaram-na para a cozinha da nossa casa.
Fiquei olhando da janela do meu quarto, a que dava para o
quintal dos Kruger. Ent�o via Morte, ao lado da prociss�o
f�nebre que seguia como um fantasma pelo bosque a
caminho da River Road. Frank Turow tinha uma picape
aberta, e ali colocaram o corpo de Elena Kruger para a
viagem at� a casa do dr. Piper. A Morte estava l�, mas n�o ia
andando nem flutuando, pois estava nas sombras entre as
�rvores, nas sombras dos homens que caminhavam com
Elena, no ru�do das botas pesadas esmagando as folhas
molhadas e os gravetos quebrados, no ru�do do cascalho no
cap� quente, no vapor que sa�a da boca dos homens quando
pigarreavam e falavam baixinho, quando levantaram o corpo
e o puseram no caminh�o. Ela estava l�. Eu sabia que ela me
via, via que eu A observava. Por alguma estranha raz�o,
achei que estivesse com tanto medo quanto eu.
Foi ent�o, pouco antes de a levarem embora, que senti a
tens�o e a perturba��o dos meus piores medos.
Assim como acontecera comVirginia Grace, veio a id�ia.
A id�ia de que Ela sabia o que est�vamos pensando, sabia o
que nos passara pela cabe�a, e eu, ao permitir que Elena
soubesse sobre n�s, ao prometer que a protegeria,
condenara-a �quele destino terr�vel.
Ela zombava de mim.
Como se estivesse dentro de mim, e eu tremia
descontroladamente e n�o conseguia parar.
O motor foi ligado. A picape se afastou com Frank Turow e
o xerife Dearing na frente. Gunther Kruger ia ajoelhado ao
lado do corpo morto de sua �nica filha, cabisbaixo, abatido.
Lowell Shaner ficou parado na beira da estrada. Ficou
im�vel at� a picape sumir de vista, e a� sentou no ch�o, ali
mesmo, a testa nos joelhos, sem se mexer por um bom
tempo.
Se eu soubesse, teria gritado o nome do sr. Kruger, embora
ele n�o fosse me ouvir. Se eu soubesse que Gunther Kruger
iria partir por tanto tempo, teria gritado alguma coisa,
alguma palavra de conforto, de esperan�a, algo que pudesse
fazer com que ele sentisse que o mundo inteiro n�o estava
contra ele. Mas eu n�o sabia, e portanto fiquei calado.
A sra. Kruger e seus dois filhos ficaram com Reilly Hawkins
naquela noite. No dia seguinte, o sr. Kruger foi busc�-los, e
eles foram com a roupa do corpo, pois era s� o que
possu�am, e Frank Turow os levou de carro at� Uvalda, no
condado deToombs. L� havia uma fazenda de propriedade
da mulher do primo de Mathilde Kruger, ent�o vi�va, mas
que ainda conservava alguma terra, uns porcos, um ganha-
p�o modesto.
Eu n�o procurei saber dos Kruger. Talvez eles tivessem sido
amaldi�oados, e eu tinha medo que aquilo fosse contagioso.
O terreno deles, a marca de sua casa, foram lavados pela
chuva e pela mudan�a das esta��es. O por�o foi aterrado e o
mato cresceu em cima e as pessoas andavam ali. Plantaram
uma �rvore, uma coisinha de um metro no m�ximo, mas
balan�ava ao vento e me fazia pensar em Elena e no
sofrimento terr�vel de sua vida breve.
Os Kruger estavam ali, participando mais da nossa vida do
que qualquer pessoa que conhec�ssemos, e de repente n�o
estavam mais.
O xerife Haynes Dearing n�o fez perguntas sobre o
inc�ndio. N�o quis saber; achei que ele tamb�m estivesse
com medo do que poderia descobrir. Houve falat�rio, como
era de esperar, e as pessoas tentavam encontrar explica��es
e justificativas, o porqu� de uma coisa daquelas ter
acontecido.
Come�aram a falar das equimoses de Elena, a dizer que
poderiam ter sido infligidas pelo pai, que ela havia sido
v�tima de abuso e maus-tratos, que at� fora violentada; que
esses atos de crueldades foram cometidos ao longo de
muitos anos, e finalmente o pai teve que fazer alguma coisa
para impedi-la de falar. Lembro-me do xerife Dearing
visitando minha m�e. N�o ouvi a conversa deles, mas senti o
clima. Ele a estava alertando, dizendo-lhe que tinha
suspeitas, que Gunther Kruger fora embora e que ela deveria
se abster de entrar em contato com ele.
Por que todos os Kruger haviam sobrevivido, menos Elena?,
perguntou.
Por que ela foi encontrada no por�o quando todos os outros
estavam no t�rreo?
Seria Gunther Kruger culpado das coisas que haviam sido
sugeridas? Seriam as equimoses de Elena causadas por sua
m�o, afinal de contas?
Haveria alguma possibilidade de Gunther Kruger ter matado
a pr�pria filha para impedi-la de falar?
Lembro-me da noite em que vi Gunther Kruger parado na
estrada, calado e im�vel, o casac�o como uma mortalha, o
medo que senti quando eu tinha imaginado quem ele
poderia ser.
Como eu o vira como apenas uma sombra.
Eu ouvia o que as pessoas diziam, fazia o poss�vel para n�o
acreditar em ningu�m; achava que mentes sinistras criavam
pensamentos mais sinistros ainda. As pessoas sempre teriam
motivos suficientes para aceitar essas coisas. Possivelmente,
porque n�o conseguiam conceber algu�m, algum
desconhecido, causando o inc�ndio da casa dos Kruger por
preconceito ou discrimina��o. Talvez, porque a mente
humana p�e ordem nas coisas da forma que pode, fosse mais
f�cil categorizar e resolver tudo se o pr�prio Kruger fosse
culpado. Al�m disso, ele era estrangeiro, alem�o, e se o que
se dizia na Europa fosse verdade, se os alem�es fossem de
fato respons�veis pelas atrocidades cometidas l�, ent�o, sem
d�vida, aquilo estava no sangue deles, uma doen�a
heredit�ria que causava atos de viol�ncia e abuso. Augusta
Falls era uma cidade pequena. Os Kruger a deixaram para
tr�s, e s� ficou a lembran�a da filha deles.
Os Guardi�es, de seis, passaram a cinco. Hans Kruger tinha
ido embora, e, de alguma forma, eu estava aliviado. Achava
que n�o conseguiria mais olh�-lo de frente.
O restante de n�s passou um m�s sem se reunir, e quando
nos reunimos o clima era sombrio e reservado.
� Acha que o assassino p�s fogo na casa dos Kruger? �
perguntou Michael Wiltsey.
Est�vamos sentados em fila, de costas para o velho muro de
pedra na beira do campo de Lowell Shaner. Era o �ltimo dia
de setembro de 1942, uma quarta-feira, e embora o resto do
mundo fosse se lembrar daquele m�s pelo massacre de
cinq�enta mil judeus e pela ofensiva de Hitler contra
Stalingrado, n�s cinco nos lembrar�amos daquele dia por um
motivo totalmente diferente.
Balancei a cabe�a.
� N�o.
� O que lhe d� tanta certeza? � perguntou Ronnie Duggan.
Afastou a franja dos olhos e me olhou franzindo a vista.
� Talvez tenha sido algu�m que achasse que Gunther
Kruger era o assassino das crian�as.
�Voc� acha? � perguntou Daniel.
A irm� dele tinha morrido havia pouco mais de seis meses,
mas ele levava sua sombra aonde quer que fosse. Quem o via
de longe, achava que ele estava sendo seguido. �s vezes eu
pegava a srta.Webber observando-o quando ele n�o estava
olhando.
Fazia dezoito meses que os Guardi�es tinham se reunido
pela primeira vez, e eu me lembrava daquele dia como se
tivesse sido, no m�ximo, havia uma semana. Dezoito meses
em que morreram Eilen May Levine, Catherine McRae e
Virg�nia Perlman. Elena se fora tamb�m, e embora tivesse
sido eu quem encontrou Virg�nia, era a morte de Elena que
eu mais sentia.Talvez ela me seguisse. Talvez quem me visse
tamb�m achasse que eu carregava um fantasma.Talvez s� os
outros conseguissem ver essas coisas.
� Eu acho � disse eu. � Acho que foi isso que aconteceu.
� Meu pai tem uma arma, voc� sabe � disse Maurice
Fricker.
� O pai de todo mundo tem uma arma, Maurice � disse
Ronnie Duggan. � Meu pai fica no quintal e atira em
garotos tolos. Acho que � melhor voc� ir para casa por outro
caminho.
� Estou falando s�rio � disse Maurice.
� Eu... eu poderia arranjar uma tamb�m � disse Michael.
� N�o, caramba � disse Daniel. � Se a gente der uma arma
para voc�, do jeito que sua m�o n�o p�ra quieta, voc�
mataria todo mundo que estivesse em p�.
� J� chega � disse eu. Levantei-me, meti as m�os no bolso.
� Isso � maluquice. Ningu�m vai pegar arma nenhuma,
certo?
� Ent�o o que vamos fazer? � perguntou Daniel.
�Vamos combinar um m�todo � disse eu.
� Sistema? � disse Maurice. � M�todo para qu�?
� Para patrulhar a cidade... para patrulhar a cidade e
assegurar que vejamos tudo o que acontece.
� Lembram o que aconteceu da �ltima vez? � interrompeu
Ronnie Duggan. � Dearing foi l� na escola. Meu pai ficou
t�o possesso que mal conseguia respirar. Com certeza, eu
n�o vou fazer isso de novo.
� N�o � para ser daquele jeito � disse eu. � N�o estou
falando de sair furtivamente no escuro. Estou falando de
combinar uma maneira de seguir o movimento das pessoas.
� N�s cinco? � perguntou Michael. Eu via que ele estava
nervoso. Remexia-se mais ainda nessas ocasi�es. � Como
n�s cinco vamos vigiar a cidade inteira?
Dei um passo � frente, virei-me e olhei para os quatro ali
sentados encostados no muro.
� Quem tem papel? � perguntei. Tirei um l�pis do bolso.
� Eu tenho � disse Ronnie Duggan.
Levantou-se, pegou um ma�o de papeizinhos do bolso.
� Para que � isso? � perguntou Daniel.
Ronnie ficou sem jeito, olhou para mim como se eu pudesse
ter uma resposta para ele. Encolhi os ombros.
�Voc� sabe � disse Ronnie. Tirou a franja dos olhos. � Se
eu estiver na rua... sabe?
� Na rua? � perguntou Daniel. � Na rua onde? Do que
voc� est� falando?
� Ora essa � disse Maurice Fricker, e caiu na gargalhada. �
� se ele precisar dar uma cagada quando estiver na rua.
Daniel ficou chocado. Parecia estar se controlando, mas de
repente teve um ataque de riso.
Ronnie Duggan jogou o ma�o de pap�is para mim e eu o
agarrei. Segurei-o um instante, e depois o larguei, quase sem
querer.
� Cristo, � s� papel � disse Ronnie.
� Mas � papel higi�nico! � gritou Daniel.
Fiquei observando os tr�s, Maurice, Michael e Daniel, se
dobrando de tanto rir.
Ronnie Duggan ficou apenas me olhando, atrav�s daquela
sua cortina de franja.
� Droga,Joseph... quer fazer o favor de mandar eles
pararem?
Abaixei-me para pegar o papel.
� N�o toque nisso! � berrou Maurice. � N�o toque no
papel higi�nico!
Fiquei olhando para eles. Eu queria rir, mas n�o conseguia.
Por causa de Ronnie, pelo motivo pelo qual est�vamos ali.
Sentei no ch�o de pernas cruzadas, peguei o papel e o l�pis,
e esperei que eles se acalmassem.
� Parecem crian�as � disse Ronnie, e tamb�m se sentou.
N�o estamos longe disso, pensei. Faltava um m�s para eu
fazer quinze anos. Os Guardi�es eram tudo o que eu tinha.
Parecia que Augusta Falls n�o era a cidade onde eu tinha
vivido a inf�ncia e a adolesc�ncia. Aquela cidade era uma
sombra do que fora, sua metade mais sinistra, e eu estava ali
sentado naquele campo com um ma�o de pap�is no colo, e
olhava para os �nicos amigos de verdade que eu tinha e que
ainda estavam vivos. Ronnie, Michael, Maurice e Daniel.
N�o sei como, acabei me tornando o l�der n�o eleito deles, o
porta-voz, o capit�o. Talvez eu estivesse com mais medo do
que qualquer um deles e, vendo-os rir, eu sabia que suas
gargalhadas eram uma fuga, uma v�lvula de escape, uma
breve tr�gua do fardo opressivo que estava sepultando todos
n�s.
� Ent�o por quem a gente p�e a m�o no fogo? � perguntei.
� Quem sabemos que n�o poderia ser o assassino?
Minhas palavras os silenciaram. Eles se controlaram.
� Meu pai � disse Daniel McRae.
� E o meu � repetiu Maurice.
� E o meu � acrescentaram Michael e Ronnie.
Anotei os nomes. Se meu pai estivesse vivo, o nome dele
tamb�m teria ido para a lista. Se meu pai estivesse vivo,
jamais teria havido uma segunda menina. Eu queria acreditar
nisso, e acreditava.
� O xerife Dearing, Lowell Shaner, Reilly Hawkins � eu
prossegui. � E o dr. Piper.
� O dr. Piper � maluco � disse Daniel. � Uma vez ele me
examinou. E me fez tirar as cal�as, segurou minhas bolas e
me mandou tossir.
Ri para ele.
� Isso � disse eu � � uma das trist�ssimas obriga��es de
um m�dico.
� Falando s�rio � disse Michael. � Quem mais que
conhecemos n�o poderia fazer isso?
� Todos os familiares das garotas assassinadas � respondeu
Maurice. � Os pais, os irm�os, qualquer uma dessas pessoas.
Quer dizer, caramba, ningu�m vai matar uma pessoa da sua
fam�lia, vai?
Anotei os sobrenomes das que t�nhamos perdido, al�m de
Catherine McRae �Van Horne, Stowell, Levine e Perlman.
� Frank Turow � disse Ronnie. � Clement Yates, Gene
Fricker.
Os nomes deles foram para a lista. Eram pessoas que eu
conhecia, da vida inteira. Estavam entre os que fizeram
parte da fileira de setenta homens depois da morte da irm�
de Daniel.
� S� tem gente de Augusta Falls � disse Maurice Fricker.
�Acho que n�o � ningu�m daqui.
� N�o se trata disso � disse eu. � Estamos eliminando
gente. Estamos excluindo da equa��o quem sabemos que
n�o poderia ser. Ent�o sabemos quem n�o estamos
procurando, certo?
� E prestamos aten��o em todos os outros � disse Ronnie.
� N�o d� para vigiar uma cidade inteira, mas n�o
precisamos, certo, Joseph?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Certo. S� ficamos de olho em quem n�o estiver na lista.
� Mas pode ser qualquer pessoa � disse Michael. � Pode
ser algu�m de Camden, ou Liberty ou Appling. Qualquer um
poderia vir de qualquer lugar desses arredores, e a gente n�o
iria saber.
� Temos que saber � disse eu. � Da� estarmos fazendo
isso. Vamos manter di�rios. Vamos nos reunir uma vez por
semana, aqui mesmo, e examinar qualquer coisa que pare�a
estranha, deslocada. Fazer o que sempre dissemos que
far�amos... manter os olhos abertos, tomar conta uns dos
outros, e acima de tudo, tomar conta dos pequenininhos.
� N�o vai tornar a acontecer � disse Daniel McRae.
Virei-me para olhar para ele e havia l�grimas em seus olhos.
A lembran�a de rir de Ronnie Duggan pertencia a uma vida
completamente diferente.
� Isso n�o pode tornar a acontecer � disse eu, e rezei, com
todas as for�as, para que estivesse certo.
Outubro virou novembro que virou dezembro; reun�amo-
nos semanalmente como hav�amos planejado. Fal�vamos de
quem hav�amos visto, onde e quando. Tent�vamos
encontrar anomalias, singularidades em hor�rios e rotinas.
Fomos � beira da via f�rrea desativada uma tarde e
encontramos um homem dormindo numa vala junto da
beira. Ele tinha cheiro de guaxinim morto, e quando
acordou e nos viu ali parados, berrou como um porco en-
curralado e saiu correndo para o bosque e pelo alqueive de
Lowell Shaner. Nosso esp�rito coletivo se enfraquecia mais a
cada reuni�o. Sab�amos que n�o est�vamos conseguindo
nada. Faz�amos de conta que o assassino tinha deixado
Charlton havia muito, talvez at� tivesse morrido, talvez
tivesse ca�do num precip�cio, ou se afogado num p�ntano,
at� se suicidado de vergonha e culpa e do horror daquilo que
cometera.
Mesmo a silhueta nos cartazes come�ou a parecer algo
criado pela imagina��o de crian�as assustadas. �s vezes n�o
t�nhamos nada para relatar, e nos entreolh�vamos meio
perdidos, meio desesperados. Nessas horas eu me sentia
desnorteado, sem �ncora, sentia que o foco que eu me
obrigava a dar a eles j� n�o existia. Eu queria ser o l�der
deles, seu capit�o destemido e direto, queria orient�-los e
lhes dar um rumo positivo. Uma vez cancelei uma reuni�o
por n�o conseguir encar�-los de novo.
Achei que todos compreend�amos nosso fracasso. Elena
Kruger havia morrido, e apesar de sabermos que ela n�o
havia sido levada diretamente pelo assassino, ainda assim ela
fora levada. T�nhamos nos designado como respons�veis
pelas crian�as de Augusta Falls, e eu mesmo havia prometido
n�o deixar que nada de mau lhe acontecesse, custasse o que
custasse. Como indiv�duos, hav�amos fracassado, como
grupo, hav�amos fracassado, e depois de algum tempo nossas
reuni�es passaram a n�o ser mais do que um lembrete
constante e doloroso de nosso fracasso.
Nada foi dito diretamente, foi mais um acordo t�cito.
Separamo-nos. Os Guardi�es deixaram de existir. Talvez
ach�ssemos que, de algum modo, �ramos respons�veis pela
morte de Elena. Eu n�o sabia ent�o, e imaginava que n�o
ficaria sabendo mais olhando para tr�s. Pensei em Michael
Wiltsey, em Maurice Fricker, em Ronnie Duggan e Daniel
McRae. Pensei em Hans Kruger, que devia ter se sentido
pior do que todos n�s juntos, pois estivera l� dentro da casa
quando o inc�ndio come�ou. Ele poderia ter feito alguma
coisa. Imaginava que ele achava que devia ter feito alguma
coisa.T�nhamos nos esfor�ado ao m�ximo, mas esse m�ximo
de nada adiantou. Os Guardi�es estavam acabados.
Com o Natal chegando, simplesmente parec�amos estar
observando e esperando que a Morte levasse mais uma.
Dez
O presidente Roosevelt congelou os alugu�is, os sal�rios e os
pre�os dos produtos agr�colas, os Aliados derrotaram
Rommel em El Alamein; cento e quarenta mil soldados
americanos desembarcaram no norte da �frica para
combater algo chamado o Governo de Vichy; j� n�o
pod�amos comprar caf� nem gasolina; os alem�es, sitiados na
cidade devastada de Stalingrado, se renderam aos russos.
Sobreviveram tr�s semanas comendo os cavalos da Divis�o
de Cavalaria Romena.
Minha m�e me deu uma caneta-tinteiro de Natal, Reilly
Hawkins me deu um caderno para eu escrever nele, as
p�ginas em papel grosso com marca-d'�gua, a capa de couro
lavrado. Escrevi meu nome ali dentro, a data, minha idade,
depois fechei o caderno.
Um novo ano estava a caminho. A guerra n�o terminara.
Muitas coisas haviam mudado desde a morte de Elena
Kruger e a partida de sua fam�lia. Eu n�o via Reilly com
muita freq��ncia, e uma vez entreouvi algu�m dizer que eu
era filho dela. Mais tarde ficaria sabendo que os boatos sobre
Gunther Kruger prosseguiram, embora agora tivessem
passado a incluir minha m�e. Diziam que minha m�e n�o s�
tivera rela��es com Gunther Kruger, como tamb�m soubera
que ele violentava a filha, e nada fizera. O xerife Dearing foi
visit�-la, e eles falaram baixinho na cozinha. Pareceu-me
que quando ele foi embora ela n�o estava menos preocupada
do que quando ele chegou.
"Palavras s�o apenas palavras", dissera-me a srta. Webber. Eu
verbalizava meus pensamentos com freq��ncia. Ficava
muitas vezes at� mais tarde para pedir que ela lesse algo que
eu havia escrito, e se eu parecesse distra�do, talvez
perturbado, ou se passasse v�rios dias sem lhe mostrar
alguma novidade, ela me chamava num canto e me
perguntava o que estava acontecendo.
"As palavras n�o s�o atos. As palavras s�o ditas e esquecidas
assim que s�o pronunciadas." Ela me disse isso com toda a
sinceridade, mas o que disse n�o era verdade. As palavras
n�o eram esquecidas. As palavras eram lembradas, e o tempo
parecia s� lhes dar for�a. Pensamentos sinistros pareciam
amadurecer e crescer com a idade, e quanto mais fossem
compartilhados maior sua influ�ncia e sua efic�cia.
Minha m�e os ouviu. Ela via como as pessoas a evitavam e
exclu�am. N�o era alheia aos cochichos com que deparava, a
como algumas mulheres viravam as costas e sa�am de uma
loja quando ela entrava. Foi informada de que n�o tinha
mais uma linha de cr�dito dispon�vel no com�rcio da
cidade. Reilly Hawkins fez o poss�vel para nos ajudar, mas
era ineg�vel que o dinheiro custava a entrar e era curto.
Minha m�e n�o aceitaria caridade, muito menos pediria. Ela
se ofereceu para lavar roupa, costurar para fora e outras
tarefas semelhantes, mas as pessoas iam l� em casa cada vez
mais raramente.
Em pouco tempo, passado o Natal, parecia que o peda�o de
terra dos Vaughan era um pequeno e n�tido gueto cercado
por uma cerca de estacas necessitad�ssima de pintura.
Augusta Falis nos isolara. Isolara minha m�e. Ela perdera o
marido, o ganha-p�o, a no��o de comunidade, os amigos.
Qualquer que fosse o grau de companheirismo que ela
compartilhasse com Gunther Kruger, isso tamb�m lhe fora
tirado. Ao que parecia, tudo o que sobrava era eu; ela n�o
podia me perder, porque eu n�o tinha planejado fazer outra
coisa sen�o ficar. Ent�o perdeu o ju�zo. Pouco a pouco,
cent�metro a cent�metro, a lenta deteriora��o da percep��o,
do julgamento, deu lugar � pura dem�ncia.
"N�o sou alienista", disse-me o dr. Piper.
Era a terceira vez que eu falava com ele, a segunda que ele
visitava minha m�e. A primeira vez que o chamei, ela n�o
queria sair do quarto. Eu a ouvia l� dentro, �s vezes
chorando baixinho, �s vezes em sil�ncio, e nada do que eu
dissesse ou fizesse a levava a destrancar a porta. Corri para a
loja de gr�os e perguntei se Gene Fricker poderia telefonar
para o dr. Piper. Quando o dr. Piper chegou, ela havia sa�do
do quarto e estava parada no quintal dos fundos olhando
para a lembran�a da casa dos Kruger. O dr. Piper apareceu e
ela estava l�cida e racional como nunca.
Na segunda vez, eu mesmo telefonei para o dr. Piper. Ele
disse que n�o podia vir. Estava indo fazer um parto.
Na terceira vez, pedi a Gene Fricker para cham�-lo porque
minha m�e n�o comia havia quase uma semana. Eu sabia
disso porque havia bem pouca comida em casa. Todo dia,
quando eu voltava da escola, a comida continuava l�. Eu
sabia que ela n�o tinha sa�do para comer fora porque eu
metia uma cunha de papel no trinco da porta, na frente e
nos fundos. Esses pap�is continuavam ali quando eu voltava.
Quando me falava de coisas que haviam acontecido muitos
anos antes, ela lhes dava uma import�ncia muito maior do
que mereciam, agia como se tivessem acontecido muito
recentemente. Perguntava se eu tinha ido � casa dos Kruger;
perguntava por Walter, Hans e Elena.
� Quando estiver com a srta. Webber, n�o deixe de lhe
dizer para mandar minhas recomenda��es ao sr. Leander...
sabe, o velho que mora ao lado da casa dela.
Eu assentia com um gesto de cabe�a.
� Sim senhora. Eu digo.
Ela sabia t�o bem quanto eu que o sr. Leander morrera no
inverno de 38, fora encontrado de joelhos, congelado, no
quintal, olhos arregalados, boca aberta, as m�os grudadas na
ma�aneta da porta dos fundos.
Contei ao dr. Piper tudo o que consegui me lembrar das
coisas que ela dizia.
"Ela est� sofrendo de uma esp�cie de estresse mental",
dissera-me Piper, "mas, como eu disse, menino, n�o sou
alienista. Resfriado, tosse, parto, febre alta, atestado de �bito.
E isso que fa�o. Eu n�o olho mais longe do que consigo
enxergar, e o que quer que sua m�e tenha, eu n�o enxergo.
O m�ximo que posso fazer � procurar marcar uma consulta
para ela com um m�dico-chefe do hospital para doen�as
nervosas em Waycross, no condado de Ware. Tem gente l�
com mais letras depois do nome do que no pr�prio. S�o
essas as pessoas com quem voc� precisa falar.
Falei com Reilly Hawkins. Falei com Alexandra Webber.
Eram boas pessoas, mas n�o sabiam nada sobre doen�as
mentais.
O dr. Piper marcou a consulta. Reilly nos levou de carro.
Minha m�e ia ao meu lado calada, uma tens�o no ar que eu
nunca tinha sentido antes. Eu sentia falta do meu pai. Sentia
falta da cozinha da sra. Kruger. Ela teria cuidado da minha
m�e. Teria feito caldo e sauerkraut, teria feito que ela falasse
de crian�as e confec��o de roupas, de maridos in�teis e
filhos malcriados. A sra. Kruger teria dado apoio a minha
m�e, a despeito das desconfian�as que pudesse ter em
rela��o a Gunther e suas infidelidades.
Era quinta-feira, 10 de fevereiro de 1943. Hospital
Comunit�rio de Waycross, condado de Ware, estado da
Ge�rgia. Eu tinha quinze anos, e uma mentalidade talvez
mais madura. Fiquei em p� ao lado da minha m�e em frente
a uma grande mesa no sagu�o do hospital. Eu sentia o cheiro
de rem�dio, aquela combina��o doce-amarga da infus�o
alco�lica de adstringentes e analg�sicos. Estava assustado,
mais do que assombrado, com o tamanho e a circula��o de
gente no local. As pessoas estavam vestidas de branco,
tinham o rosto branco, severo, aparentemente indiferente e
calmo. Se eu n�o tivesse voz, se o dr. Piper n�o tivesse
marcado uma consulta com o dr. Gabillard para minha m�e,
acho que ter�amos passado o resto do dia ali em p�.
Minha m�e n�o disse nada de importante. Perguntou se eu
tinha deixado os sandu�ches que ela fizera no carro de Reilly
Hawkins. Perguntou se o m�dico faria suas dores de cabe�a
passarem. Lembrou-me de dizer a meu pai que t�nhamos
prometido fazer um almo�o para Haynes Dearing no
domingo, que um frango estaria bom.
Aguardei com paci�ncia, duas horas sozinho. Sentei numa
cadeira de pinho num corredor no terceiro andar enquanto
minha m�e falava com o dr. Gabillard: Gabillard era mais
jovem do que eu imaginara, tinha uns trinta e cinco ou
quarenta anos. Eu achava que qualquer pessoa que en-
tendesse a mente humana precisaria ter no m�nimo cem.
Mas o cabelo do m�dico j� era grisalho, ralo no alto, e
quando o vento batia eu via como o seu cr�nio era brilhante.
Daria para eu ver meu rosto refletido se ele se inclinasse para
mim. Imaginei que ele devia lustr�-lo com uma cera
francesa, deixava-o brilhante como um sapato de domingo.
Ele ria demais, como se tentasse reafirmar a todos os
presentes que tudo, simplesmente tudo, iria dar certo,
cert�ssimo.
N�o iria. Eu sabia que n�o antes mesmo que ela entrasse ali.
Eu queria sair e esperar com Reilly Hawkins, ou pedir que
ele entrasse e fosse esperar comigo. Uma escolha dif�cil. Eu
n�o queria sair para n�o me desencontrar dela. Reilly n�o
queria entrar, disse que, se o visse, um m�dico de cabe�a o
internaria no hosp�cio em Brunswick.
� � para l� que mandam os loucos � disse. � Quer dizer,
loucos de verdade, o tipo de gente que bota coisas na cabe�a
e late para poste de luz. Loucos desse tipo.
Perguntei a ele, e ele riu.
� N�o � garantiu-me no tom mais convicto. � Sua m�e
n�o vai para Brunswick.
Aguardei no corredor. As cinco da tarde, achei que ia me
mijar.
� Ela est� sedada � disse o dr. Gabillard. �Vamos mant�-la
aqui um pouco para deix�-la repousar.
Ele me perguntou sobre meu pai, sobre parentes vivos,
sobre amigos da fam�lia com quem eu poderia ficar
enquanto ela se tratava.
�Voc� � um menino inteligente � disse-me �, ent�o vou
lhe falar um pouco sobre o que vamos fazer e porqu�. Est�
bem?
� O senhor vai fazer com que ela melhore, certo?
Gabillard sorriu. Sorriu com a boca e n�o com os olhos.
� N�o vai ser assim t�o simples � disse. � O c�rebro � uma
m�quina complexa, e n�o sabemos muito a respeito dela.
Consertar um c�rebro n�o � igual a consertar um bra�o
quebrado, Joseph.
� N�o acho que haja alguma coisa errada com o c�rebro dela
� disse eu. � Acho que � a mente dela que ficou
perturbada com todas as perdas que sofreu.
Gabillard sorriu de novo e tocou no meu ombro como se
estivesse sendo paciente e compreensivo com algu�m que
n�o devia ter a menor id�ia do que estava acontecendo.
Decidi n�o dizer mais nada, imaginei que, se discordasse, eu
poderia me ver a caminho de Brunswick.
� Seda��o induzida por hidrato de cloral � disse Gabillard
num momento.
Em outros, mencionou um tratamento de di�xido de
carbono para limitar o suprimento de oxig�nio ao c�rebro e
assim diminuir a vida dos v�rus mentais de que ela sofria;
falou de Librium para ajud�-la a dormir, Escopolamina para
provocar pensamentos e sentimentos subjacentes que nem
minha m�e conhecia, Veronal para sedar, e para estimular a
suscetibilidade ao hipnotismo; e mais tarde falou de um
h�ngaro chamado von Meduna que inventara a terapia de
choque de Matrazol.
� Est� vendo? � concluiu. � H� muitas coisas que
podemos tentar, e todas, eu lhe garanto, v�o contribuir para
que sua m�e se sinta muit�ssimo melhor. Agora, Joseph,
suponho que seu pai tenha feito um seguro para fins
m�dicos...
Eu a vi uma vez antes de ir embora. Ela estava deitada numa
cama num quarto branco. Pelo visor de vidro na porta
trancada s� dava para ver as solas dos seus sapatos.
Como Virg�nia Grace Perlman no alto do morro.
Visitei minha m�e uma vez por semana durante onze meses.
No in�cio, eu ia de carro com Reilly Hawkins, mas em abril
de 43 ele disse que n�o queria mais ir.
"N�o vai dar para eu fazer isso toda semana, Joseph... Com
certeza, n�o vai dar mais para eu fazer isso. N�o � que eu
n�o goste muito de voc� e da sua m�e, mas que diabo,
Joseph, eu n�o suporto mais ver aquele lugar. N�o suporto
pensar no que podem fazer l� dentro, e tenho certeza de
que n�o quero ir l� ver por mim mesmo."
Compreendi. Facilitei as coisas para Reilly. Eu tamb�m n�o
suportava, mas ia assim mesmo. Fazia o trajeto quase
inteiramente de �nibus, e, no final, seguia a p�.
Minha m�e, Mary Elizabeth Vaughan, em solteira,
Wheland, nasceu em 19 de dezembro de 1904, em
Surrency, condado de Appling, pr�ximo �s margens do rio
Little Satilla; casou-se com Earl Theodore Vaughan ap�s um
namoro de treze meses, casou-se no dia em que fez vinte
anos; deu-lhe seu �nico filho em 11 de outubro de 1927,
enterrou o marido em julho de 39, ap�s apenas catorze anos
de casamento; enviuvou aos trinta e quatro anos e n�o se
casou de novo porque come�ou a perder o ju�zo. A mim
pareceu que o hospital emWaycross terminou o trabalho
para ela.
Ela se mudou deste mundo para um mundo s� dela. A
mudan�a foi progressiva. No ver�o de 43, ela j� n�o me
reconhecia. Eu estava um pouco mais velho, mas meu rosto
n�o tinha mudado tanto. Gabillard me disse que Haynes
Dearing fora v�-la duas vezes, talvez tr�s, mas Dearing
nunca mencionou isso para mim. Imaginei que ele devesse
achar muito duro falar do que ela havia se tornado.
Os alienistas e m�dicos em Waycross continuavam me
dizendo que havia sinais de recupera��o.
� Recupera��o de qu�? � perguntava eu, e eles sorriam e
balan�avam a cabe�a.
� N�o � assim t�o simples, Joseph.
Depois de algum tempo, parei de perguntar e eles pararam
de falar. Eu subia ao terceiro andar, sentava ao lado da cama
dela, segurava sua m�o, enxugava sua testa, e ela me olhava e
me dizia coisas que eu sabia que eram s� imaginadas.
Eu nunca via a Morte. A Morte nunca se sentava ao meu
lado. Nunca assombrou o quarto em que minha m�e dormia,
esperando a hora em que viria busc�-la. Houve ocasi�es,
segundos apenas, em que desejei que viesse. N�o por mim,
mas por ela. Eu achava que praticamente perdera minha m�e
na noite de domingo, 13 de agosto do ano anterior. A noite
em que Elena Kruger morreu. A noite em que minha m�e
reconheceu que a vida que ela almejava ter e a que tinha
nunca seriam iguais. Eu achava que ela via o mundo pelo
que era, e que a id�ia de enfrent�-lo sozinha era demasiado
opressiva. Eu n�o conhecia as pessoas. N�o conhecia suas
complexidades nem suas anomalias. Mas conhecia minha
m�e. Ela encontrou uma fuga, e s� o que eu podia fazer era
continuar indo visit�-la enquanto ela n�o morria.
Mais tarde, com a perspectiva do tempo e a maturidade,
reconheci minha pr�pria retirada silenciosa e gradual.
Fiquei na casa, o lar onde nasci e me criei. Eu trabalhava
depois da escola, fazia qualquer servi�o que encontrasse, e
parecia � por solidariedade e compaix�o � que as pessoas
estavam dispostas a me deixar fazer coisas que elas mesmas
poderiam resolver. Nos meses de ver�o, eu trabalhava at�
estar escuro demais para enxergar. Trabalhos simples.
Consertar cercas, limpar o terreno para arar, derrubar
�rvores, coisas assim. E depois eu ia para casa escrever.
Escrevia meus pensamentos, meus sentimentos; enchi o
caderno de capa de couro que Reilly Hawkins me dera, e
pedi � srta. Webber que arranjasse uns dez cadernos de
exerc�cios. Quando eu enchia aqueles, pedia mais. Ela queria
saber o que eu estava escrevendo.
"O que penso... �s vezes o que sinto", respondia, mas nunca
levava os cadernos para ela ler. Talvez achasse que se
escrevesse bastante sobre a realidade eu acabaria me
esvaziando, e no v�cuo apareceriam os frutos da imagina��o
e da inspira��o. Eu ent�o escreveria algo como Steinbeck ou
Fenimore Cooper, uma obra de fic��o em oposi��o a uma de
circunst�ncia. S� mais tarde � que entendi como as duas t�m
liga��o: que a experi�ncia, moldada pela imagina��o, se
tornava fic��o, e a vida, vista com as cores e os tons da
imagina��o, tornava-se algo que se podia entender e tolerar
melhor. Eu floreava minhas lembran�as com sons e cenas
que sabia n�o terem ocorrido, pelo menos n�o da forma
como os escrevia. Pensei por um momento que talvez
estivesse me afastando da raz�o e da l�gica, mas me dava
conta de que havia uma escolha consciente de minha parte.
A despeito do que escrevia, a despeito de como retratava
algo, eu sabia, com certeza, o que era fato e o que era fic��o.
Lia com voracidade, pegava livros emprestados com a srta.
Webber, com Reilly Hawkins, na Biblioteca Municipal de
Augusta Falis. Sem distin��o de autor, local, tempo, sem
levar em conta simpatias ou antipatias, estilos ou temas, eu
lia todos eles. Ler tornou-se minha raison d'�tre.
�s vezes eu pensava nos Guardi�es, mas tentava n�o pensar.
�ramos crian�as, nada mais que isso, e o mundo diante de
n�s sempre fora vasto o suficiente para nos engolir. Eu n�o
via Maurice nem Michael, nem Ronnie Duggan com aquela
franja nos olhos; talvez eu n�o desejasse v�-los, pois
simplesmente me lembrariam mais uma vez de que n�o
hav�amos conseguido proteger as crian�as.Ver o rosto deles
teria sido ver Elena, a forma como o corpo dela foi
carregado para a carroceria da picape na noite do inc�ndio.
Essas coisas alimentariam nossos fantasmas, e eu queria
deixar os fantasmas para tr�s.
Quando fiz dezesseis anos, em outubro de 43, achava que a
guerra na Europa n�o poderia continuar por muito mais
tempo. Talvez eu tamb�m achasse que as coisas terr�veis que
tinham acontecido em Augusta Falls fizessem parte de um
passado que era melhor esquecer. Os cartazes que o xerife
Dearing pendurara nas �rvores e nas cercas j� haviam se
dissolvido debaixo de chuva e do tempo. A vida continuava,
apesar de tudo, e quem perdera seus filhos havia de alguma
forma assimilado a perda e sobrevivido. As pessoas tinham
parado de perguntar por minha m�e, e as viagens de quase
tr�s horas de ida e outras tantas de volta que eu fazia a
Waycross agora n�o aconteciam mais que uma vez por m�s,
�s vezes nem isso. Em dezembro pr�ximo, ela faria trinta e
nove anos. Vendo-a em Waycross, deitada na cama, �s
vezes sentada numa cadeira de vime ao lado da janela, com
uma fresta aberta, o cabelo ficando grisalho, o rosto sugado e
an�mico, a gente lhe daria cinq�enta. O esp�rito que
porventura ela tivesse tido havia sido roubado ou quebrado,
n�o sei dizer qual dos dois, mas a mulher que eu visitava n�o
era minha m�e. Era uma concha, retorcida de medo e
desespero no interior, sempre em outro lugar, os olhos me
vendo, mas traduzindo outra coisa. Em sua cabe�a, suas
palavras eram l�gicas e racionais para mim, n�o passavam de
murm�rios e disparates, e ru�do desconcertante. Eu sabia
que Haynes Dearing a havia visitado. Falei com Gabillard
uma vez, outra vez com uma enfermeira, e eles me disseram
que o xerife estivera l�. Agradeci-lhe em sil�ncio por isso.
Torci para que ele continuasse a visit�-la, que n�o f�ssemos
s� eu e minha m�e contra o mundo. Nunca falei com ele
sobre as visitas, e ele nunca as mencionou para mim. Acho
que ambos est�vamos muito sem jeito e encabulados para
saber o que dizer.
Depois do meu anivers�rio, comecei a pensar em partir, e
embora minha partida s� acabasse acontecendo alguns anos
depois, a semente estava plantada. Talvez as coisas que eu
lia, talvez o fato de me dar conta de que havia um mundo
para al�m de Augusta Falis, um mundo onde a amargura e as
recrimina��es mesquinhas do passado n�o teriam
import�ncia, tenham precipitado essa id�ia. O anonimato me
atra�a, o anonimato que se experimentaria numa cidade
cheia de vida e de gente, t�o barulhenta que um rosto
isolado, uma voz isolada, mal seriam notados. Talvez essa
id�ia fosse meu meio de fugir de tudo o que havia
acontecido, mas enquanto minha m�e continuasse vivendo
emWaycross eu n�o poderia deix�-la para tr�s.
Ent�o fiquei. Fechei-me no sil�ncio. Morava sozinho.
Ganhava o suficiente para segurar a mente e o corpo, para
comprar l�pis e cadernos, para pegar o �nibus para o
condado de Ware uma vez por m�s e ver a mulher que
tinha sido minha m�e.
Se n�o fosse pela srta. Alexandra Webber, talvez eu tivesse
ca�do no anonimato, mas no ver�o de 45, quando o mundo
suspirou aliviado com o fim da guerra, ela foi me visitar.
"Para ver o que voc� andou escrevendo esses anos todos",
disse, e sorriu com muito carinho, os olhos de Syracuse
azul-cent�urea, as fei��es claras, confi�veis e lindas.
"Vim ouvir voc� ler, Joseph Calvin Vaughan", e sentou-se
em frente a mim � mesa da cozinha, ela com vinte e seis
anos, eu com dezessete, e me lembrei do arrepio de desejo
que tomava conta de mim quando crian�a.
Eu pensara em Alexandra Webber, e os pensamentos eram
t�o definidos como silhuetas recortadas em papel. Minha
cabe�a, minhas m�os, meu cora��o, minhas esperan�as;
ora��es como desejos, feitos e depois esquecidos.
A solid�o � uma droga, um narc�tico; cresce nas veias, nos
nervos e nos m�sculos; assume um direito de posse sobre
seu corpo e sua mente; alimenta-se e cria sua pr�pria
exig�ncia. A solid�o e o isolamento s�o paredes.
Alexandra Webber veio ver o que eu escrevera naquelas
paredes, e embora eu achasse que nelas n�o havia nenhuma
porta, ela conseguiu encontrar uma.
Escolhi recuar calado e deix�-la passar.
Torno a me mexer enquanto a dorm�ncia paralisa minhas
pernas. Por cima do ombro do homem, olho pela janela para
as luzes de Nova York. Vejo carros passando nas ruas,
adiante, os milhares de luzes de um milh�o de janelas, e
atr�s de cada uma, a vida que se desenrola, cada qual alheia �
do lado, cada qual muito envolvida consigo mesma.
Minha voz parece a de outra pessoa, como se meu corpo
estivesse parado diante da janela mas eu n�o estivesse ali.
"Nunca lhe perguntei porqu�", disse eu. "Nunca lhe
perguntei como aquelas coisas aconteceram, perguntei?"
Olho para o corpo sentado na cadeira � minha frente, a
cabe�a ca�da para tr�s, a cor do cabelo, a largura dos ombros.
Sei que n�o haver� resposta, mas por alguma raz�o o sil�ncio
me perturba.
"Voc� ao menos entendia o que estava fazendo? Alguma vez
pensou no que fez? Alguma vez se sentiu culpado? Teve
remorso?" Cerro os punhos. "Como p�de fazer essas coisas?
Como qualquer ser humano poderia fazer uma coisa dessas
com uma crian�a? Uma crian�a, caramba."
Fecho os olhos. Tento me lembrar dos rostos. Qualquer um
deles. Alice Ruth Van Home. Virg�nia Grace Perlman.
Tento me lembrar de Alexandra, de como ela era quando
chegou naquele dia, no dia em que invadiu minha solid�o e
me fez acreditar que eu poderia viver de novo.
Tento imaginar minha m�e, como ela era quando eu ia
visit�-la em Waycross.
Mas n�o h� quase nada. As formas e as fei��es s�o vagas e
indistintas.
"Alguma vez pensou no que aconteceu com os pais delas,
com os irm�os? Pensou?"
Balan�o a cabe�a. Olho para o ch�o. E como se estivesse
flutuando perto do teto e embaixo de mim est� meu corpo,
pequeno e insignificante. Minha voz parece um murm�rio
numa tempestade. Nada. Menos que nada.
Penso no que fiz.
Fico pensando � por uma fra��o de segundo � se sou
pouco mais do que um hip�crita da pior esp�cie.
Olho por olho?
Ser� que isso algum dia poderia ser certo?
Mas agora � tarde demais. Est� feito.
Estou sentado em sil�ncio.
Quero saber quanto tempo eles v�o demorar para chegar.
Nessas horas finais tudo que posso fazer � tentar me lembrar
de tudo que aconteceu, e a� acho que sinto o passado vir ao
meu encontro, sinto...
Onze
Ar limpo, uma brisa da costa; carregava o cheiro de nissa,
jun�pero, sassafr�s talvez. Eu estava na janela de casa, olhava
para al�m do terreno dos Kruger, agora vazio, e n�o fossem a
recorda��o e a mem�ria eu nunca saberia que existira. As
sombras atr�s das �rvores eram anil, cinza, cinza mais
escuro, correndo para o azul-meia-noite. Cheiro de lenha
rec�m-cortada empilhada no galp�o, a seiva de pinho
escorrendo para a terra, pegando lagartas e borrachudos,
conservando-os at� chegar a hora de arderem.
Foi da mesma janela que a vi chegar.
Cora��o apertado.
Ou�o os passos dela l� embaixo. Ou�o-a fazendo comida,
disse que sabia fazer os melhores ovos dessa banda do rio
Altamaha.
Em meus sonhos, ela era mais jovem, o cabelo ca�do de
lado, uma cascata no ombro: seda crua escura em ocre, siena
e castanho-amarelado. Seu cheiro era fresco, c�trico, macio e
sedutor. Sua pele, perfeita, inocente, limpa e clara como seus
olhos, e recendendo a sab�o, a camada fina de suor que lhe
brotava na testa quando ela se debru�ava sobre mim numa
escola de uma sala s� e me fazia recitar algo importante. Ou
sem import�ncia. N�o importava lembrar.
Passos no ladrilho l� embaixo. Sapatos baixos de Syracuse,
sapatos de professora � previs�veis, pragm�ticos, funcionais.
Dedos pegando ovos no compartimento de um isopor,
segurando-os, quebrando-os, a clara e a gema escorrendo
como as entranhas de algo numa tigela. O barulho do garfo
enquanto ela os batia freneticamente.
O barulho do meu cora��o, do meu pulso, do sangue
correndo nas veias; o barulho do suor saindo pelos poros; o
barulho de cabelo e unha crescendo; o barulho da espera.
Ela chegou cedo, a luz fragmentada e estranha da aurora
ainda preenchendo o intervalo entre a noite e o dia.
Eu a vi se aproximando da casa, estava l� para abrir a porta
quando ela chegou.
�Joseph CalvinVaughan � disse ela, como se meu nome
fosse algo que n�o conhecesse.
� Srta. Webber � respondi.
�Voc� j� � um rapaz, Joseph, n�o � mais crian�a. J� n�o sou
sua professora h� quase dois anos. Pode me chamar de
Alexandra.
� Alexandra � falei.
� � o meu nome � disse ela, e riu com os olhos assim
como com a boca.
Ficamos calados por alguns segundos.
�Vai me convidar para entrar � disse ela, mais uma
afirma��o que uma pergunta.
Inclinei a cabe�a para o lado.
�Vou?
Ela fez que sim com a cabe�a.
�Vai � murmurou, passando por mim e entrando no
corredor estreito.
Eu vestia jeans, camisa com no m�ximo dois bot�es
abotoados. Estava descal�o. Tinha tomado banho, mas n�o
estava completamente vestido para ir trabalhar. Havia uma
cerca de quatrocentos metros para levantar no lado estreito
da �rea desmatada. Frank Turow estava pagando metade, o
cunhado de Leonard Stowell, a outra metade. Era um bom
dinheiro, e eu n�o queria que fosse parar nas m�os de um
diarista itinerante com um martelo e um saco de pregos.
Mas a� Alexandra Webber chegou a minha casa para fazer
ovos, bater papo e fazer de conta.
Depois, quando ela chamou do p� da escada, quase morri de
susto. Eu tinha cal�ado os sapatos, mas eles pareciam n�o
aderir ao ch�o; fui andando com cuidado, vacilando, como
um potro rec�m-nascido, os joelhos muito frouxos para
ag�entar meu peso.
�Voc� cuidou da casa � disse ela. Entrou na cozinha,
olhou em volta, indicou a mesa com a cabe�a. � Posso me
sentar? � perguntou.
� Claro � respondi.
Lembrei-me de que aquela era a minha casa, se n�o minha,
ent�o de minha m�e, e eu n�o precisava me sentir como um
h�spede indesejado.
� Como vai, Joseph?
Afastei-me da porta, dando um passo para a direita. N�o
tirava os olhos de Alexandra Webber. Fui andando de lado
at� sentir a beira da bancada de madeira tosca nos rins. Botei
as m�os atr�s das costas e agarrei a beirada. Eu tinha a
sensa��o de que precisava me agarrar a alguma coisa.
Alguma coisa que eu conhecesse, alguma coisa familiar.
�Vou levando � disse eu. � Sabe como �, certo?
Ela balan�ou a cabe�a lentamente. Afastou com a ponta do
dedo uma mecha de cabelo para tr�s da orelha.
Aconteceram coisas em partes do meu corpo que eu nunca
tinha sentido antes. Era uma dor na entre-perna, a sensa��o
de algo puxando por dentro. Minha boca estava seca, com
gosto de cobre e terra.
� Como �? � perguntou ela. � N�o, acho que n�o sei
como �, Joseph... me diga.
Sorri, encolhi os ombros.
� Tem sido duro... esses dois anos t�m sido duros,
srta.Webber...
� Alexan...
� Alexandra � interrompi. � Sinto muito... n�o consigo
deixar de pensar em voc� como minha professora.
Alexandra riu.
� Eu fui sua professora -� disse. � Mas era sua amiga
tamb�m, n�o? � Hesitou um instante, o olhar interrogativo.
� Era � disse eu.
� Voc� vinha falar comigo sobre todo tipo de dificuldade e
problema, e depois, quando aconteceu isso com sua m�e...
� Ela olhou para a janela.
� Quando aconteceu isso com sua m�e, imaginei que voc�
tornaria a vir falar comigo para pedir ajuda com ela... mas
n�o veio. Eu queria saber se fiz alguma coisa para aborrecer
voc�.
Ri, de repente, mais por nervoso do que por achar gra�a. Era
uma rea��o, nada mais que isso
� Me aborrecer? � balancei a cabe�a. � Nem se tentasse
voc� poderia me aborrecer.
Ela levara uma Writer's Digest. Dentro, havia os detalhes de
um concurso de contos. Ri. Lembrei-me de "Traquinices" e
da carta de Atlanta.
� Ainda tem a carta? Fiz que sim.
� L� em cima.
� Quer ir buscar?
� Quer que eu v�?
� Claro, v� pegar a carta... n�o me lembro do que dizia. Vou
fazer alguma coisa para comer. � Inclinou a cabe�a para o
lado. � Gosta de ovo... Fa�o os melhores ovos dessa banda
do rio Altamaha.
Levantei da cadeira. Dei um passo em dire��o � porta.
� Gosto � disse eu, quase como se s� tivesse pensado nisso
depois.
� Ovo est� �timo.
Subi. Eu a ouvia na cozinha l� embaixo, quebrando ovos
numa tigela, batendo-os.
Fechei os olhos e imaginei tudo que algum dia quisera
imaginar sobre Alexandra Webber.
Eu achava que a amava.
De todas as maneiras. Inclusive a b�blica.
Ela leu a carta. Sorriu, deu risadas, me fez perguntas que
depois esqueci. Estava muito interessado em olhar para ela.
Comemos os ovos. Bolachas Uneeda e picles de melancia
tamb�m. Estava bom. Eu n�o sabia se os ovos eram
melhores do que qualquer coisa daquela banda do Altamaha,
mas estavam bastante bons para mim.
Pensei no trabalho da cerca, na �rea desmatada, em Frank
Turow e no cunhado de Leonard Stowell.
Que v�o todos para o inferno, pensei. Eles s�o homens.
Entenderiam minha situa��o.
� Ent�o, como vai indo? Empurrei o prato para o lado. �
Vou indo bem.
� E sua m�e? Balancei a cabe�a.
� Ela foi embora, srta. Webber, foi passar o inverno no sul e
n�o volta mais para casa.
� � uma trag�dia... parece que tudo foi uma trag�dia para
voc�. Seu pai, o que aconteceu com os Kruger e agora sua
m�e.
� � a vida... acho que a vida d� o melhor que pode, certo?
Ela tocou minha m�o. Pronto; o estalo e o zumbido da
eletricidade; meus cabelos da nuca ficaram em p�. Uma
onda de expectativa me encheu o peito.
� Senti saudades de ser sua professora � murmurou ela.
� Senti saudade de ser seu aluno.
�Voc� sempre foi meu aluno preferido. �Voc� sempre foi
minha professora preferida. Ela riu.
� Isso n�o � justo... Fui sua �nica professora. Sorri.
� Sopra, sopra, vento invernal... N�o �s assim t�o infernal,
como � a humana ingratid�o.
Ela ficou s�ria, sua testa franziu no meio como uma costura.
� Shakespeare?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Como gostais.
� Est� dizendo que sou ingrata, Joseph Vaughan?
� Estou dizendo que voc� n�o viu o elogio. �Vi muito
bem.
� Ent�o vou repetir... sempre foi minha professora favorita.
� E voc� est� lendo Shakespeare? Encolhi os ombros.
� �s vezes... Em geral leio os gibis do Red Ryder e do Little
Beaver.
� N�o l�.
� Leio tamb�m.
�Voc� est� brincando comigo, Joseph Vaughan.
Olhei para minhas m�os. Estavam cruzadas na mesa como se
fossem de outra pessoa, como se algu�m tivesse esquecido as
luvas e eu as tivesse deixado prontas para serem apanhadas.
� N�o estou entendendo, srta.Webber.
� N�o precisa me chamar assim... n�o temos uma diferen�a
de idade t�o grande.
� � a mesma de sempre.
Sil�ncio. Meu cora��o batendo na boca. A boca t�o cheia
que eu me perguntava como conseguira falar tanto. Meus
pensamentos estavam estra�alhados como caquinhos de
cer�mica. Eu via cada um daqueles pensamentos, e eram
todos sobre a srta. Alexandra Webber, e a maioria era
b�blica.
�Voc� tem que trabalhar hoje?
Fiz que n�o.
� N�o tenho que fazer nada.
� Quer passar o dia comigo?
Olhei bem para ela, sem pestanejar, e sorri.
� Pode ser � disse eu.
Ela corou visivelmente.
� S� um pode ser?
� Pode ser � bom, Alexandra Webber. Pode ser n�o quer
dizer n�o.
� O que voc� est� dizendo, Joseph Calvin Vaughan?
Sorri. Tirei o cora��o da boca e segurei-o com as m�os.
� N�o estou dizendo nada, srta. Webber. Nada de nada.
Acho que j� senti uma quantidade de coisas que n�o sei se
entendo. Sempre achei voc� linda, e sempre imaginei que
fosse inteligente, e como sempre tinha tempo para tudo que
eu queria dizer... e acho que a via como uma crian�a v� uma
professora. A� eu cresci, comecei a pensar diferente, mais ou
menos como as pessoas pensam nas outras quando querem
se aproximar e se sentir bem, e qualquer que fosse o meu
enfoque, quando eu tinha um pensamento assim, voc�
estava ali, no centro, como se aquele fosse o seu lugar...
Ela agarrou minha m�o.
� Pare � disse, num tom de urg�ncia.
� Por qu�? Quem vai me ouvir? Quem vai ouvir al�m de
voc�? �Voc� n�o sabe o que est� dizendo!
� N�o? � Eu j� estava no meio do caminho, imaginei que a
dist�ncia era a mesma para voltar ou ir at� o fim. � Ent�o
me diga por que veio aqui.
A srta. Alexandra Webber olhou para o outro lado.
� Srta. Webber?
Ela levantou a m�o, e a voz tamb�m.
� Tudo bem, acabou, Joseph! Se isso estiver indo para onde
acho que vai, a primeira coisa que voc� pode fazer � me
chamar pelo meu nome de batismo.
Fiz que sim com a cabe�a.
� Ent�o me diga por que veio aqui, Alexandra.
� Alex � disse com simplicidade. Fiquei calado, com o
olhar firme.
O reconhecimento estranho de uma respira��o
desconhecida; a percep��o de que o cheiro, a pele, o cabelo
em que meus dedos tocavam n�o eram meus.
� Tudo bem � sussurrou ela, e sua voz veio como o
barulho do mar dentro de uma concha.
�Voc� vai saber o que fazer.
Olhei para ela, t�o de perto que dava para sentir no rosto o
movimento das suas pestanas.
� E se eu n�o souber?
� Ent�o � disse, a voz quase perdida no barulho do seu
cora��o. � Ent�o eu lhe mostro.
� Por que vim aqui? � Balan�ou a cabe�a e virou para o
outro lado.
� N�o sei, Joseph... talvez porque achei que voc� se sentisse
sozinho.
� Sozinho? Ela sorriu.
� Claro. Sozinho. Voc� sabe o que quer dizer sozinho.
� Sei � disse eu. � Sei tudo sobre ser sozinho.
� Como se fosse seu of�cio, hein?
� Meu of�cio? � Sorri e dei uma risada. A sensa��o era de
al�vio emocional, como um cinto muito apertado agora
desafivelado. � Sim, voc� poderia dizer isso... ser sozinho
era o meu of�cio... E voc�?
Ela se inclinou para o lado, com a m�o no rosto, o cotovelo
na mesa para apoiar o queixo.
� Eu? Assenti.
� �, voc�. Voc� tamb�m se sentia sozinha, certo?
Alex beijou meus olhos, um de cada vez; seus l�bios
molhados, o toque dos seus dedos, a press�o do seu peito no
meu bra�o. O calor do seu corpo...
A maciez da cintura dela at� a coxa e subindo de novo por
sua barriga. Seu vestido era abotoado nas costas, e ela se
virou devagar, pegou minha m�o, mostrou-me onde
estavam os bot�es. Despiu-o como se fosse uma segunda
pele. O farfalhar do algod�o mantendo a promessa com
gravidade. Ela recuou.
Eu, com o ar preso na garganta, um p�ssaro no al�ap�o,
assustado. Ela riu.
Deu de ombros. Uma mecha de cabelo saiu de tr�s da orelha
dela e afagou seu rosto. Ela levantou a m�o e puxou-a para o
seu lugar.
� Todo mundo se sente sozinho, Joseph.
� E � por isso que voc� est� aqui... porque achou que n�s
dois nos sent�amos sozinhos e quis fazer alguma coisa a
respeito.
Ela fez que sim, quase sorrindo.
� Pode ser � disse.
� Pode ser? � perguntei. � Sou de dizer pode ser. Voc�?
Voc� nunca foi, Alex... foi sempre simples, objetiva, preto
no branco.
� Importa por que eu vim? Balancei a cabe�a.
� N�o, Alex, n�o importa.
Ela se levantou da cadeira. Recuou, depois deu um passo �
frente, um s�, mas foi como se tivesse eliminado a dist�ncia
entre a imagina��o e a realidade.
� Quer que eu v� embora?
� N�o, Alex... n�o quero que v� embora nunca.
Depois, n�o consegui me lembrar como fomos parar l� em
cima. Depois, tentando lembrar, achei que n�o tinha
import�ncia.
Levantei a m�o e toquei em seu bra�o, seu ombro, sua nuca.
Suas m�os encontraram minha cintura, os bot�es da minha
cal�a.
� Tira � sussurrou.
Lutei com minhas roupas.
A brisa levantou as cortinas da janela atr�s de mim, arrepiou
os p�los na minha pele, me fez estremecer um instante.
Ela recuou um passo, mais outro, e sentou na beira da cama.
Fiquei na frente dela, a m�o direita no seu rosto, seu cabelo
entre meus dedos. Ela beijou minha barriga, rodeou meu
umbigo com a ponta da l�ngua, depois baixou a cabe�a e
abriu a boca. Um pequeno inc�ndio come�ou dentro de
mim.
N�o mais que dez segundos e ela olhou para mim.
� Sabe como � isso, certo?
Fiz que sim.
Ela avan�ou lentamente, desvencilhou-se da an�gua. Deitou
no colch�o e esticou a m�o.
�Venha, ent�o � disse �, antes que eu morra de vontade.
De algum modo encontramos um ritmo, a princ�pio
estranho, mas encontramos. N�s o seguimos: levou-nos
aonde n�o hav�amos planejado ir. O tipo do lugar de onde
n�o se quer ir para casa.
Depois de algum tempo eu ria, mas depois n�o me lembrava
por qu�.
Alex estava deitada ao meu lado, o corpo colado ao meu, o
bra�o dobrado sob a cabe�a, e de vez em quando eu virava
para v�-la enquanto ela falava, para interromp�-la com um
beijo, e pouco depois eu dizia: "De novo", e ela fechava os
olhos e se deitava e eu me aconchegava a ela.
S� sa�mos do meu quarto quase de noite.
Semanas se passaram.
Os sonhos voltaram. Os sonhos que eram assombrados pela
m�o esquerda.
A m�o de Virg�nia Grace Perlman. A m�o que nunca foi
encontrada.
Augusta Falls tinha se convencido a esquecer as mortes. Tr�s
anos passados, a mente coletiva de uma cidade conseguira se
fechar em rela��o ao passado. Eu n�o.
Alex vinha me ver cada vez com mais freq��ncia, e eu
falava com ela sobre as meninas, os assassinatos, sobre quem
poderia ter feito aquilo; fal�vamos dos Kruger, da morte de
Elena, de tudo que transpirara.
� O que quer que tenha acontecido � disse ela �, acabou...
faz tanto tempo.
� N�o teve nada a ver com os Kruger � disse eu. � Eu
conhecia Gunther Kruger... conhecia a mulher e os filhos
dele.
Fiz uma pausa e olhei para a janela da cozinha. Novembro
estava chegando ao fim. Havia quase tr�s meses que Alex ia
l� em casa duas, tr�s, �s vezes quatro vezes por semana.
Faz�amos amor � �s vezes furiosamente, como se dentro de
n�s houvesse um sentimento que precisasse ser descoberto
e s� com for�a e paix�o houvesse uma chance de libertar e
revelar esse sentimento; outras vezes lentamente, como se
embaixo d'�gua, cada palavra, cada suspiro, cada segundo de
contato f�sico estendido ao m�ximo. Eu fizera dezoito anos
havia um m�s. Alex Webber faria vinte e sete em fevereiro
de 46. Quase nove anos n�o parecia muito. J� havia quase
quatro que Reilly Hawkins me levara com minha m�e para o
Hospital Comunit�rio Waycross, que eu falara com o
m�dico-chefe sobre di�xido de carbono para privar o
c�rebro de alimento, Librium para ajudar a dormir,
Escopolamina para encontrar seus sentimentos verdadeiros
reprimidos, Veronal para sedar. Era como se minha m�e
tivesse entrado num lugar escuro e silencioso, e nenhuma
droga que lhe davam nem coisa alguma que faziam parecia
adiantar. A escurid�o e o sil�ncio permaneciam. O
tratamento s� servia para impedir que ela gritasse por
socorro.
Alex preenchera um vazio, um v�cuo. Tudo que trazia, eu
consumia, e ainda ficava com fome. L�amos livros juntos, �s
vezes a noite toda. Steinbeck, Hemingway, William
Faulkner, Walt Whitman, Flaubert, Balzac, A rainha de
Monserau, de Dumas, A letra escarlate, de Hawthorne, O
vermelho e o negro, de Stendhal. O que eu n�o entendia, ela
explicava. Fiquei relapso no trabalho. Havia gente que n�o
queria mais me contratar. Parei de me barbear, depois
resolvi deixar crescer a barba. Meu cabelo passava dos
ombros.
� Bo�mio � dizia Alex, e ria, e me beijava a testa e me
agarrava pela barba e me conduzia para o colch�o.
Mais tarde, falei com Alex sobre Nova York, minha vis�o,
meu ideal.
� Manhattan soberba! Camaradas americanos! A n�s, ent�o,
afinal vem o Oriente. A n�s, minha cidade. Onde nossas
belezas em m�rmore e ferro de altas cumeeiras se alinham
em lados opostos, para andar no meio.
� O qu�?
� Walt Whitman � disse, e riu de mim. � Seu
escrevinhador bo�mio e ignorante!
� Ignorante? Fique sabendo que comecei um livro.
� O qu�?
� Um livro. Um romance � disse eu. � Comecei a
escrever um romance.
Ela se sentou. O len�ol lhe caiu do pesco�o, drapeando em
sua cintura. Seus seios perfeitos, o arco do seu ombro, seu
pesco�o, seu queixo. Estiquei a m�o. Ela me bateu no pulso,
agarrou-o, abaixou-o.
� Me diga! � disse irritada. � Me diga o que �, Joseph
� N�o � nada... droga, Alex, � s� uma id�ia que eu tive.
Comecei ontem � noite... � Fiz uma pausa, franzi a testa. �
N�o, anteontem... na noite em que voc� disse que viria e
n�o veio.
� Ent�o me conte � insistiu. � Conte sobre o que �.
Puxei o travesseiro de debaixo de mim e coloquei-o atr�s da
cabe�a. A express�o de Alex estava animada, entusiasmada;
parecia genuinamente entusiasmada.
� � s� uma coisa tosca � disse eu.
� Feito voc� � brincou ela.
� Voc� vai ver o que � tosco � disse eu, e de brincadeira
agarrei seu cabelo.
� N�o � disse ela. � Falando s�rio... Conte o que est�
escrevendo.
� � sobre um homem.
Ela sorriu, inclinou a cabe�a para o lado.
� Bom come�o... tipo "Era uma vez um homem", �?
� Espertinha, Alex Webber, espertinha demais.
� Ent�o me diga � disse ela. � Diga sobre o que �.
� � sobre um homem chamado Conrad Moody... e ele faz
uma coisa terr�vel. Mata uma crian�a. Um acidente, mas ele
� fatalista, acredita na Provid�ncia e nas Tr�s Parcas... sabe
que em algum momento deve ter cometido um crime e
escapado do castigo, e agora est� recebendo o castigo. Passa
o resto da vida expiando a morte da crian�a, uma crian�a
que ele tinha prometido proteger.
Alex ficou calada.
� O qu�? � perguntei.
Ela balan�ou a cabe�a.
� Tem algum trecho que possa ler para mim?
� Agora?
Ela assentiu.
� Sim � disse.
Debrucei-me e pus a m�o embaixo da cama. Tateei o ch�o
at� tocar no caderno. Peguei-o e me sentei, Alex do meu
lado, me olhando, a express�o serena e distante.
� Quer que eu leia agora?
� Quero � murmurou. � S� um pouquinho.
Abri o caderno, encontrei uma p�gina. Pigarreei e comecei.
� Ele pensava em algo como um punho no plexo solar, mas
essa n�o � a descri��o real da tens�o interna. Ele pensava
numa represa, como uma press�o de setecentas libras por
polegada quadrada, ponto de ruptura, algo mais que isso, mas
sentia que essa imagem n�o definia. Ficava aqu�m da
verdade; uma afirma��o que, sem d�vida, dizia pouco.
Tens�o como um cordel de chicote tenso, uma corda de
piano, um fio todo retesado que n�o se podia torcer nem
mais uma fra��o de mil�metro, voltando com for�a e
cortando alguma coisa talvez. Revestido de ferro, ele era.
Imperfeito, sim, mas revestido de ferro. E acreditar naquelas
imperfei��es o tornava humano. Isso � o que lhe fora dito, e
ele nunca se interessou em duvidar, pois a f� sempre fora
sua base firme, e sem isso as paredes dentro dele teriam
desabado. Conrad Moody escrevia sobre aquelas paredes, e
elas ouviam. Ouviam tudo o que ele desejava dizer. Bastante
simples. Bastante forte. Bastante forte para ag�entar tudo
sozinho...
-� Pare � disse ela.
Olhei para ela. Uma l�grima solit�ria brotou devagarinho no
olho dela e rolou. Franzi a testa, tentei sorrir.
� O qu�? � disse eu. � O que �? Droga, Alex...
� � sobre voc�, n�o �?
� Ahn?
�Voc�... E sobre voc� e a menina Kruger, n�o �? Voc�
prometeu tomar conta dela, n�o, Joseph? Naquele dia de que
voc� me falou, olhando l� de cima do morro para ela no
quintal. Voc� prometeu a si mesmo que garantiria que nada
de ruim aconteceria com ela.
N�o respondi; eu n�o tinha palavras.
� Mas n�o deu certo, n�o �? � disse Alex. �Voc� n�o
conseguiu cumprir a promessa e ela morreu.
Fiquei calado.
� At� quando vai ficar se torturando com isso? �
perguntou.
� Acho que n�o...
Ela levantou a m�o, colou o dedo nos meus l�bios. Balan�ou
a cabe�a, fechou os olhos por um segundo e me puxou para
junto dela.
� Psiu � suspirou. � N�o diga nada. Est� tudo bem,
Joseph.Vamos fazer um beb�. � simples assim.Vamos fazer
com que tudo fique bem.Vamos trazer uma crian�a ao
mundo e restabelecer o equil�brio... vamos quebrar o
encanto.
� Alex...
� Psiu, Joseph... chega.Vamos fazer tudo ficar bem de
novo...
Meu cora��o retumbava, um punho preso no peito. Eu
suava, a pele melada, mas estava com frio, quase tiritando.
Alex puxou o len�ol e nos enrolou com ele. Deitou, e deitei
com ela na cama, deixando o caderno cair no ch�o.
� Agora � murmurou ela.
Doze
Tr�s dias antes do Natal visitamos minha m�e no Hospital
Comunit�rio de Waycross. Peguei emprestada a picape de
Reilly e fomos para l�. S�bado, 22 de dezembro de 1945, um
c�u encoberto e opressivo, as �rvores ao longo da estrada
como m�os tentando agarrar alguma coisa.
Eu n�o queria que Alex a visse, n�o como ela estava, mas
Alex insistiu.
� � Natal. Ela � sua m�e. N�o � o tipo de coisa que se pode
contornar ou adiar.
Uns oitenta quil�metros, mais ou menos, mas em linha reta.
Fizemos um trajeto cheio de voltas, vimos o c�u abrir de
manh�, espantar as sombras quando o sol se levantou, as
casas aparecendo como se do nada. Nuvens de tempestade
se empurravam buscando uma vaga no horizonte a oeste
como uma amea�a iminente, a promessa de vingan�a por
algo n�o dito, mas a toda hora um raio de luz as atravessava,
como um trinchante cortando a madeira morta para
encontrar o veio exato no cerne.
Pouco falamos, Alex e eu, mas a toda hora eu olhava seu
perfil e ela parecia contente. O otimismo corria em suas
veias.
Vimos vultos colhendo algod�o no campo; homens
empilhando troncos para a passarela, outros dividindo esses
mesmos troncos para fazer dormentes de estrada de ferro.
Percorremos mais de uma hora e ainda est�vamos na metade
do caminho para Waycross. N�o havia pressa. A estrada se
desenrolava atr�s de n�s, corria � nossa frente como uma fita
negra, e n�s a segu�amos simplesmente porque uma decis�o
fora tomada, �amos visitar Mary Elizabeth Vaughan, a
mulher que me deu � luz, �amos porque Alex achava que ela
era nossa fam�lia, agora tanto dela quanto minha. Ela me
declarara seu amor. Eu retribu�ra a declara��o, ao que ela
retrucara:
� Ent�o, quando se ama uma pessoa, a gente assimila tudo
dela, todas as afei��es, todas as obriga��es. Assimila a
hist�ria, o passado e o presente. Assimila tudo, ou nada. E
assim, Joseph, assim mesmo.
Alex n�o discutia, n�o contestava; expunha pontos de vista
com objetividade. Eu me preparava para um desafio e ela
tirava o vento da minha vela antes que eu levantasse �ncora.
Eu me submetia a deixar passar essas coisas. Ela era de
Syracuse, e essa gente tinha uma mentalidade diferente.
O meio da manh� come�ou sufocante e �mido, um vento
abafado e muito molhado. Parei a picape de Reilly Hawkins
na beira da estrada, um lama�al cheio de buracos que fazia os
pneus irem para a esquerda e para a direita ao mesmo tempo
e tornava o ato de dirigir antes um sacrif�cio do que um
prazer. Alex disse que estava com sede, queria abrir uma
garrafa t�rmica de caf� que havia levado, e ficamos um
pouco sentados ali, bebendo da mesma x�cara, um ap�s o
outro, e conversando sobre nada para passar o tempo.
� Temos um cobertor � disse ela algum tempo depois.
� Claro � disse eu.
� Eu n�o estava perguntando, Joseph, estava dizendo.
Encolhi os ombros.
� Pois ent�o temos um cobertor.
� Temos uma picape de carroceria aberta. Temos um
cobertor. Temos uma estrada livre sem ningu�m � vista.
� O que voc� est� dizendo, Alex?
� Tudo o que voc� est� imaginando, Joseph.
Olhei para ela com um risinho maroto.
�Voc� est� dizendo que quer ir para a traseira da picape e
dar um amasso...
� Muito rom�ntico! Credo, vamos dar o nome aos bois.
� Ora, que diabo, Alex, foi voc� quem teve a id�ia.
Ela encolheu os ombros.
� Pois n�o � complicado... ponha o cobertor na traseira da
picape e venha me comer, sim?
� Caramba, Alex, n�o d� simplesmente para a pessoa se
meter na traseira de uma picape no meio da estrada e comer
algu�m.
� Por que n�o, droga? Onde est� escrito que n�o se pode
fazer isso?
Eu estava espantado.
� Alex, n�o � dessa maneira que voc� vai engravidar.
� Ora, Joseph, isso n�o tem a ver com engravidar, tem a ver
com fazer sexo na traseira de uma picape.
� Quer mesmo fazer isso? Quer mesmo que eu ponha um
cobertor l�...
� E me coma. � o que eu quero. Quero que voc� fa�a isso
j�, antes que eu mude de id�ia, antes que voc� consiga matar
cada grama de romantismo espont�neo que tenha surgido,
certo?
Botei o cobertor na traseira da picape.
Alex foi at� l�, tirou a calcinha e atirou-a em cima de mim.
Subiu na carroceria aberta e deitou-se. Aquela altura, eu
estava rindo, rindo tanto que demorei a me recompor para
executar a tarefa em quest�o.
Eu estava consciente do espa�o aberto, do ru�do dos p�ssaros
nas �rvores, consciente da maneira como Alex mais ou
menos me fez deitar de costas � for�a e montou em mim. Eu
ria muito para lev�-la a s�rio, e a�, num momento de
assombro, me pareceu extraordin�rio estar ali, e Alex
Webber � a professora � estar comigo.
� O que �? � perguntou ela.
Franzi a testa, balancei negativamente a cabe�a. Era dif�cil
respirar com o peso dela em cima de mim.
� O que foi? � disse ela. � De que est� rindo.
� N�o estou rindo � respondi sem ar. � Puxa, Alex, voc�
tem que sair de cima de mim antes que eu sufoque.
� Sufoque? N�o estou sufocando voc�. N�o peso nada.
� Nada? Tudo bem...
� Voc� est� dizendo que sou pesada? Est� dizendo que sou
pesada demais? E isso que est� dizendo, Joseph Vaughan?
� N�o me chame assim!
� Por qu�? E o seu nome, n�o?
� E o meu nome, sim. Puxa, Alex, do jeito que voc� fala
parece que estou na escola.
Ela deu uma gargalhada estridente.
�Joseph Vaughan! � melhor voc� entregar o dever de casa
pontualmente sen�o vai ter que lavar os apagadores.
� Alex! � disse eu. � Falando s�rio... voc� tem que sair de
cima de mim antes que eu morra.
Ela ficou de lado, tirou o peso do meu peito, depois chegou
para tr�s, a m�o embaixo do corpo, me achando, me
guiando, rindo mesmo quando se abaixava.
Segurei-a pela cintura, olhei para a tenda do cobertor
pendurado em cima da sua cabe�a.
Ela olhou para mim, estendeu as m�os de lado. Peguei-as,
nossos dedos entrela�ados, e ela come�ou a balan�ar para
tr�s e para a frente.
Aquilo parecia muito certo, certo demais, talvez. Como se
fosse a s�ntese de tudo o que eu queria em algu�m. Ser� que
o primeiro amor era sempre assim?
Eu estava consciente do cheiro dela, do sorriso, de sua
press�o em cima de mim, do sentimento de estar quase
sendo consumido por algo extraordin�rio.
Consciente, afinal, do barulho de um carro se aproximando,
de estar deitado de costas com Alex por cima, colada em
mim, n�s dois quase pelados, cobertos s� com um cobertor,
tentando n�o rir, n�o fazer nenhum som, consciente da
minha m�o na bunda dela, de sua saia levantada at� a
cintura, de minhas cal�as baixadas at� os tornozelos, e da
forma como o carro parou ao nosso lado.
� Ih, caramba � murmurei.
� Psiu � murmurou ela em resposta.
Meus olhos estavam arregalados. O carro estacionou. Eu
nunca tinha me sentido t�o vulner�vel. Escutei a porta do
carro abrindo, fechando, escutei as botas na estrada, o ranger
do cascalho embaixo do chassi.
� A cabine est� vazia � disse a voz. �A cabine est� vazia,
e tenho certeza absoluta de que n�o vejo ningu�m na
estrada nem no meio das �rvores. E melhor sa�rem de
debaixo desse cobertor de cavalo e mostrar a cara.
Alex chegou para um lado, muito ligeiramente, mas me senti
saindo de dentro dela. O romantismo espont�neo do
momento teve uma morte abrupta. Como se Cupido tivesse
levado bala.
� Aqui � o xerife falando, o xerife do condado de Clinch,
meu nome � Burnett Fermor, e o que quer que voc�s
estejam fazendo na traseira da picape... bem, est�o fazendo
aqui numa das minhas estradas. Vou pedir que saiam da�
debaixo, quem quer que sejam, e mostrem a cara, ou a coisa
vai ficar feia.
Meus olhos mais arregalados, a express�o de Alex quase de
puro terror, meu cora��o fugindo para as �rvores.
�Vou contar at� tr�s, gente. S� at� tr�s. Ent�o l� vai... um...
dois...
�Tudo bem! � gritei. Levantei-me e puxei o cobertor,
espiei pela borda e olhei para o ch�o da carroceria, olhei para
o corpo enrolado de Alex, consciente das minhas cal�as
baixadas at� o tornozelo, da saia dela levantada at� a cintura,
de que, se eu puxasse mais o cobertor, ela ficaria com a
bunda de fora.
O xerife Burnett Fermor, com ar dur�o, rosto cheio de
�ngulos esquisitos, o polegar da m�o esquerda enfiado no
cinto, a m�o direita descansando na coronha do rev�lver.
� Bem, e a�, garoto? � falou com voz arrastada. Os
m�sculos do seu queixo se contra�am quando ele falava. Os
olhos franzidos por causa do sol lhe davam o aspecto de
algu�m saindo do por�o para a claridade, algu�m que tivesse
ficado trancado no subsolo para sua seguran�a e a dos outros.
� Est� embaixo do cobertor sozinho ou temos companhia
hoje de manh�?
Alex mexeu-se. Seus dedos apareceram na borda do cobertor
e ela o puxou mil�metros para baixo. Sorriu sem jeito.
� Bem, ol�, mo�a � disse Fermor. Aproximou-se um passo
da traseira da picape.
Alex levantou-se ligeiramente. Sorria amarelo.
� Ol�, xerife � disse.
� Bem, n�o tem nenhuma crian�a aqui, n�o �? � disse. �
Acho que n�o sobra muita coisa para a imagina��o. Vou ter
que pedir que os distintos elementos venham c� para a beira
da estrada.
� Poderia nos dar s� um segundo? � perguntei.
� Um segundo, filho? Para que voc� pede um segundo?
Senti a tens�o na boca do est�mago.
� Para a gente se arrumar um pouco antes de sair daqui.
O xerife Burnett Fermor olhou para mim.
� Acho que estamos numa situa��o dif�cil. Eu n�o gostaria
de constranger voc�s, mas ao mesmo tempo n�o gostaria de
olhar para o outro lado enquanto voc�s v�m para c�. N�o
tenho a menor id�ia de quem voc�s possam ser, e n�o estou
inclinado a lhes dar as costas enquanto n�o tivermos a
oportunidade de nos conhecer.
� Posso lhe garantir, xerife...
Burnett Fermor levantou a m�o e sorriu.
� Desculpe interromp�-lo, meu filho, mas voc� n�o est� em
condi��es de me garantir coisa nenhuma.Vou desviar os
olhos um pouco, s� para lhes poupar o que for poss�vel de
constrangimento, mas a verdade � que vou precisar que
voc�s venham c� para a beira da estrada.
� Mas a senhora...
Fermor fez um gesto negativo com a cabe�a.
� Meu filho � disse, com uma voz resignada, um tanto
exasperado. � Mais uma vez, n�o vou ficar fazendo jogo de
palavras com voc�s. N�o vamos falar na senhora, certo?
Acho que qualquer jovem que se encontra na traseira de
uma picape em plena luz do dia envolvida em algum tipo de
atividade de quarto... bem, acho que n�o vamos discutir os
pontos mais delicados do decoro e da etiqueta, certo?Vou
pedir s� mais uma vez, depois vou ligar para a delegacia
pedindo que um comiss�rio venha aqui...
� Vamos sair � disse eu. Olhei para Alex. Ela fechou os
olhos e ficou balan�ando a cabe�a de um lado para o outro.
Sa� sem jeito, pus de lado o cobertor e deslizei de bunda at�
o fim da picape. Saltei e levantei as cal�as. Fermor se
limitava a me olhar serenamente. Alex fez o que p�de para
se esconder atr�s do cobertor, abaixando a saia e indo de
joelhos para a traseira da picape. Estava aflita e humilhada, o
cabelo em p� de um lado, descal�a, a vergonha estampada na
cara.
Fermor olhou o rel�gio.
� Ainda n�o s�o onze horas, e voc�s est�o de sacanagem na
traseira deste ve�culo aqui. Que raio de comportamento �
esse?
Abri a boca para falar.
Fermor fez que n�o com a cabe�a.
�Vou lhe dizer a verdade, s� quero ouvir o seu nome, meu
filho. � Sacou um bloco e uma caneta do bolso da camisa.
Olhou para mim, empurrou o chap�u um pouco para tr�s.
Fiquei calado, olhei para Alex.
� Seu nome? � repetiu Fermor.
�Vaughan � disse eu. �Joseph Calvin Vaughan.
Fermor escreveu meu nome no bloco com muito capricho.
� E de onde veio hoje de manh�, sr. Joseph CalvinVaughan.
� Augusta Falis � respondi.
� Augusta Falis? � no condado de Charlton, certo?
� � sim, senhor.
� Augusta Falis, condado de Charlton...Voc� deve conhecer
meu colega de l�, o xerife Haynes Dearing.
� Sim, senhor � conhe�o o xerife Dearing.
Fermor ergueu os olhos, franzindo-os embaixo da aba do
chap�u.
� J� teve alguma discuss�o com o xerife Dearing em
Augusta Falis, sr. Vaughan?
Balancei a cabe�a.
� N�o, senhor.
Fermor levantou as sobrancelhas.
� Ent�o como o conhece?
� O lugar n�o � grande, xerife. Conhe�o quase todo mundo
l�.
� Conhece mesmo?
� Conhe�o, senhor.
� E o que faz l� em Augusta Falis, meu filho?
� Trabalho com cerca, derrubo �rvores, qualquer coisa desse
tipo... um pouco de trabalho de fazenda em �poca de
colheita, o que aparecer.
�Voc� tem casa l�, uma moradia?
� Tenho sim, senhor.
� E quantos anos tem, sr.Vaughan?
� Dezoito anos.
� E mesmo? Dezoito anos, nada mais nada menos.
Fermore escreveu mais outra coisa no caderno, depois
dirigiu a aten��o para Alex.
� Agora voc�, senhorita... seu nome?
� Alexandra Madigan Webber.
� Alexandra Madigan Webber... e � de Augusta Falis, certo?
� Sim, xerife, de Augusta Falis.
� E o que voc� estaria fazendo viajando a essa hora do dia?
� Est�vamos indo para o Hospital Comunit�rio em
Waycross.
� Certo, certo � disse Fermor com a voz arrastada. � E
por que estariam indo para o Hospital Comunit�rio, srta.
Webber?
- �amos visitar... � olhou de soslaio para mim. Estava com
uma cara tensa e ansiosa.
�Visitar? � ajudou Fermor.
� �amos visitar a m�e de Joseph.
Fermor balan�ou a cabe�a lentamente, sem tirar os olhos de
Alex.
� E havia alguma raz�o especial para acharem necess�rio
parar aqui, srta. Webber... em vez de seguirem direto pelo
condado de Ware?
Alex olhou para mim, depois de novo para Fermor. Ele
fizera a pergunta s� para deix�-la mais sem jeito, e ela sabia.
Fez que n�o com a cabe�a devagar.
� N�o, senhor � disse, com a voz embargada de emo��o.
Senti a raiva me subindo do est�mago para o peito.
� Bem, est� certo � disse Fermor, e escreveu mais uma
coisa em sua caderneta.
� Sentimos muito � disse eu. � Est�vamos viajando, e
decidimos dar uma paradinha...
Fermor levantou a m�o.
� N�o sei se preciso saber todos os detalhes constrangedores
desse encontro de voc�s, sr.Vaughan, a n�o ser para
entender que isso aqui � uma estrada p�blica. O tipo da
estrada onde as pessoas andam a p� ou a cavalo, ou at� de
carro, e a �ltima coisa no mundo que querem ver � uma
dupla de elementos envolvidos no tipo de comportamento a
que assistimos hoje de manh�. O fato � que isso h� de ser
uma infra��o em algum lugar...
Alex abriu a boca para falar. Deu um passo � frente.
� Xerife...
Fermor tamb�m deu um passo � frente. Havia algo
amea�ador na forma como ele fez isso, um contraponto em
rela��o a Alex, um desafio.
� Quero lhe perguntar uma coisa, srta. Webber � disse. �
Quantos anos tem?
Ela franziu a testa.
� Que diferen�a faz a minha idade?
� Perguntei com educa��o, srta. Webber, espero uma
resposta educada.
Ela balan�ou a cabe�a.
� Tenho vinte e seis, xerife.
� E o que faz l� em Augusta Falls?
Alex pigarreou.
� Sou professora � murmurou.
� Est� dizendo professora, srta. Webber?
Ela fez que sim.
� � a professora de Augusta Falls? � perguntou Fermor,
surpreso.
� Sou, sim. Sou a professora de Augusta Falls.
Fermor apontou para mim com um gesto de cabe�a.
� E este rapaz aqui... este rapaz � um dos seus alunos,
srta.Webber?
Ela deu um riso nervoso.
� N�o, senhor, ele n�o � um dos meus alunos.
Fermor ajustou o chap�u na cabe�a.
� Bem, gra�as a Deus, srta. Webber, pois isso seria o maior
abuso de poder e responsabilidade que eu poderia imaginar.
� N�o h� nada na lei que diga que uma pessoa de dezoito
anos...
Fermor sorriu, deu mais um passo � frente.
� Eu sou a lei aqui, srta. Webber, e se algu�m vai citar a lei
serei eu. A verdade � que voc�s, dois encrenqueiros, me
aborreceram muito com essas travessuras na picape, e vou
levar voc�s e fichar por um motivo ou outro, e talvez voc�s
aprendam uma li��o, certo? Talvez da pr�xima vez que
entrarem no condado de Clinch a caminho de algum lugar
voc�s se limitem a ir direto para esse lugar... em vez de parar
na beira da minha estrada e fazer coisas que s� deviam
acontecer atr�s de portas fechadas, depois que o sol se p�s.
� Ah, pelo amor de Deus! � disse Alex.
� Pelo amor de Deus!, srta. Webber? Voc� freq�enta a
igreja em Augusta Falls? � respons�vel pela educa��o moral
e religiosa dos seus alunos naquela sua escola? Eu diria que
sim, se essa escola for parecida com a nossa, certo? �
Fermor balan�ou a cabe�a. � Portanto, eu n�o tomaria
nenhum nome em v�o, menos ainda o de Deus,
considerando a posi��o em que voc�s se encontraram nesta
linda manh�. Vou pedir que calcem os sapatos e se vistam
direito, um de cada vez, e depois se coloquem aqui ao lado
do meu carro e esperem para que eu os algeme.
� Nos algemar? � perguntei, agora desconfiado,
come�ando a achar que algo vingativo e injusto estava
acontecendo.
� Pois �, sr.Vaughan, algem�-los. � isso que vou fazer, e
voc�s v�o colaborar, sen�o, como eu disse antes, vou ligar
para a delegacia e uns dois comiss�rios vir�o aqui e vamos
fazer uma festa com isso.
A m�o que estava apoiada na arma chegou dois cent�metros
para tr�s. Olhei para Alex. Seus olhos estavam arregalados,
marejados. Ela parecia uma crian�a assustada.
Colaboramos. Cal�amos os sapatos e nos endireitamos.
Fomos um atr�s do outro para o carro de Fermor e ele
algemou minha m�o esquerda na direita de Alex, depois a
minha direita a uma barra que corria por cima da janela.
Nem Alex nem eu falamos uma palavra durante a viagem.
Quando nos aproxim�vamos de uma lombada na estrada,
olhei a picape de Reilly Hawkins no acostamento. Quis
saber se ainda estaria ali quando volt�ssemos.
A delegacia do condado de Clinch era um bloco sem gra�a
na beira da estrada na periferia de Homerville. Parecia algo
que algu�m tinha deixado cair quando entrava na cidade e
achara que n�o valia a pena voltar para buscar. Ent�o l�
ficara, e uma vez l� dentro, cada um de n�s preso em celas
separadas, mas de frente uma para a outra, com um corredor
estreito no meio, comecei a pensar que talvez aquele
acontecimento fosse o ponto alto da semana do xerife
Fermor. Postado no fim do corredor estava um comiss�rio,
n�o mais velho que eu, de boca fina e ar s�rio, abatido com a
grandiosidade e a seriedade de sua tarefa. Informou-nos que
n�o dever�amos conversar. Olhei por entre as grades para
Alex. Ela estava sentada na cama, encostada na parede, os
joelhos levantados, o queixo descansando em cima deles, e a
toda hora me olhava, olhos arregalados e confusa. Balancei a
cabe�a e sorri. Vai dar tudo certo, tentei transmitir. Isso n�o
� um bicho-de-sete-cabe�as, n�o vai dar em nada... e n�o, eu
n�o culpo voc�.
Ela sorriu timidamente, e depois fechou os olhos e baixou a
cabe�a. Acho que talvez tenha adormecido.
A como��o come�ou mais ou menos uma hora depois. A
porta no fim do corredor se abriu e Fermor ficou ali parado.
� Vamos botar esses pervertidos para fora daqui � disse
com objetividade. � Temos coisa mais importante para
tratar.
O comiss�rio ficou nervoso, parecia inseguro.
�V�! � rosnou Fermor.
O garoto veio correndo em nossa dire��o, as chaves
tilintando no cinto, e pelejou para abrir a porta do xadrez.
Alex se empertigou.
� O que...
� Estamos liberados � disse eu, e fui para a porta da cela.
Minhas m�os instintivamente agarraram as barras.
Fermor veio para o lado do comiss�rio.
�Voc� � Joseph Vaughan de Augusta Falls � declarou
sonoramente.
Assenti. Senti a tens�o nas m�os, senti os n�s dos dedos
ficarem brancos.
� Foi voc� quem encontrou a menina Perlman em agosto
de 42.
Tornei a assentir.
� Fui eu sim, senhor.
� Bem, meu filho, temos mais uma, em Fleming, condado
de Liberty. Vou para l�, levando o comiss�rio Edgewood
aqui comigo, e n�o tenho tempo para tratar de papelada
nenhuma de voc�s.
Senti meus olhos se arregalarem. O sangue me fugiu do
rosto. Meu cora��o disparou; senti as pernas bambas. Por um
momento, n�o consegui registrar nada do que ele dizia.
Outra menina. Tr�s anos depois de Virginia Grace Perlman,
outra menina fora morta.
� Tem certeza... tem certeza de que... � gaguejei.
� Ainda n�o tenho certeza de nada � disse Fermor.
Pigarreou, enfiou os polegares no cinto. � S� vou dizer essa
�nica coisa antes de botar voc�s daqui para fora. N�o gosto
muito que voc�s entrem no meu condado para cometer esse
delito. Fui olhar na lei. O que voc�s estavam fazendo era um
delito, puro e simples. Expondo-se em lugar p�blico e
envolvendo-se em conduta l�brica e lasciva. E o fato de
voc� ser professora, srta. Webber... � Ele fez uma pausa de
efeito, e fitou Alex com um olhar duro de desaprova��o. �
O fato � que voc� � respons�vel pela instru��o dos jovens de
Augusta Falls, bem, n�o quero usar o vocabul�rio que eu
gostaria de usar porque fui bem-educado demais para isso...
A voz de Fermor era uma confus�o de sons sem sentido em
meus ouvidos. Eu olhava sua boca se mexer, sua express�o
mudar enquanto ele falava, e aquilo n�o queria dizer nada
para mim. Eu s� enxergava as solas brancas dos sapatos de
Virginia no alto do morro.
� Vou tomar provid�ncias para que voc�s fa�am um balan�o
do que aconteceu aqui hoje, para que considerem isso uma
li��o e uma sorte... sorte que tenha sido eu que encontrei
voc�s e n�o outra pessoa de mentalidade mais severa. Eu s�
n�o vou fich�-los por causa dessa coisa horr�vel no condado
de Liberty; tenho que ir l� e dar assist�ncia ao meu colega, o
xerife Landis. � Fermor fez um gesto positivo, depois se
virou para o comiss�rio. � O comiss�rio Edgewood vai lev�-
los de volta ao ve�culo de voc�s, e depois eu lhes pediria que
seguissem viagem para o Hospital Comunit�rio de Waycross
e tratassem dos seus assuntos. � s� o que tenho a dizer, mas
vou rezar por voc�s domingo que vem como gosto de fazer
nesses casos. Desejo- lhes tudo de bom, mas n�o ficarei
triste em v�-los fora do meu condado.
Fermor tornou a fazer um gesto de cabe�a, e depois se
voltou para Edgewood.
� Pegue o segundo carro, leve essas pessoas para a picape
delas, e depois v� para Fleming.
� Sim, xerife � disse Edgewood, e ficou olhando Fermor se
dirigir a passos largos para a frente do pr�dio. Pouco depois,
ouvimos o ronco do motor do seu carro.
O comiss�rio Edgewood ficou ali parado um momento,
nervoso, sem saber talvez o que vinha em seguida, depois
deu um passo � frente e pegou a chave que abriria minha
cela.
� Solte a senhora primeiro � disse eu.
Ele parou, olhou para mim, olhou por cima do ombro para
Alex, e ent�o disse:
� Sim, claro. A senhora. Sim... certo, desculpe.
Alex saiu, esperou pacientemente enquanto Edgewood se
atrapalhava com as chaves at� encontrar a certa, abria minha
porta e recuava para me deixar passar para o corredor.
Edgewood mandou que f�ssemos para a frente do pr�dio e
esper�ssemos por ele. Dei a m�o a Alex, e quando sa�mos do
corredor estreito passei o bra�o em volta de seu ombro e a
puxei com for�a.
� Que sorte � murmurei, mas o que eu realmente queria
dizer era Outra menina... encontraram outra menina.
Ela se virou e olhou para mim, as p�lpebras inferiores e
superiores borradas de kohl, a pele p�lida. Simplesmente
balan�ou a cabe�a, sem dizer nada, e enquanto esper�vamos
por Edgewood, limitei-me a abra��-la com toda a for�a.
A viagem transcorreu em sil�ncio. Acho que Edgewood n�o
saberia o que fazer se eu come�asse a conversar com ele,
mas eu n�o tinha capacidade de falar. Senti os tr�s anos
passados se fecharem sobre mim como uma sombra, senti o
cora��o retumbando no peito, senti a presen�a de algo que
eu tanto tentara esquecer me devastar.
Edgewood nos deixou na picape, deu meia-volta e rumou
para o trevo onde poderia virar para o condado de Liberty.
� Quero ir l� � disse eu a Alex.
� Onde?
� Fleming.
Ela franziu a testa.
� Por que, Joseph, por que quer ir l�?
Balancei a cabe�a.
� N�o sei, Alex... droga, n�o sei, s� tenho a sensa��o de que
preciso ir l�.
� E ver o qu�? Outra menina que foi assassinada?
Ficamos um de cada lado da picape olhando para o outro por
cima do cap�. Olhei para o ch�o, para os meus sapatos, e
quando ergui os olhos vi que n�o havia como explicar o que
eu sentia.
Eu achara Virg�nia Perlman. Fizera uma promessa para Elena
Kruger, a promessa de garantir que nada de ruim lhe
acontecesse, e falhara. Eu � que n�o tomara nenhuma
atitude enquanto Gunther Kruger e sua fam�lia eram alvo de
ressentimento e �dio injustificados, e isso indiretamente
tivera como conseq��ncia a morte de sua filha, mas tamb�m
a perda da minha m�e como eu a conhecia. Eu era arrastado
para aquilo, era s� o que sentia, mas sabia que n�o tinha
como fazer Alex entender isso. Pensei nos Guardi�es, em
onde estariam, no que estariam fazendo... e soube mais uma
vez que tudo o que t�nhamos tentado realizar n�o passara de
tolice infantil.
�Voc� quer mesmo ir? � perguntou ela.
Assenti. N�o havia hesita��o nem d�vida em meu esp�rito.
� E sua m�e? Quando acha que vai visit�-la?
Encolhi os ombros.
� N�o sei, Alex, talvez na volta... mas se n�o quiser vir
comigo posso deix�-la em casa.
Ela fez que n�o com a cabe�a.
� Eu queria ir ver sua m�e � disse baixinho. � Tenho
certeza absoluta de que n�o quero ir a Fleming.
� Eu quero... eu preciso ir, Alex... n�o me pergunte por que,
pelo amor de Deus, nem eu sei, mas tem alguma coisa nisso
que simplesmente... simplesmente...
� Se voc� vai, bem... ent�o v� sozinho � disse ela. � Se
realmente tem que fazer isso, ent�o vai ser assim... N�o
quero me envolver. N�o quero participar dessa barbaridade.
� Entendo -� disse eu. �Vou deixar voc� em casa.
Levei duas horas para chegar a Fleming. Segui para nordeste,
peguei um caminho que passava por Hickox, Nahunta, fui
acompanhando a divisa do condado de Glynn-Brantley at�
Everett, depois segui pelo condado de Long e entrei em
Liberty. Quando cheguei era de tardinha, de um dia
encoberto e opressivo. Na periferia de Fleming n�o havia
indica��o da presen�a da pol�cia, mas trezentos metros em
dire��o � cidade vi um ajuntamento de carros pretos e
brancos, representantes de Charlton, Clinch, Camden, do
pr�prio Liberty; outro carro com o escudo do condado de
Tattnall na porta. Parei a picape do lado esquerdo e esperei
alguns minutos. Minha sensa��o era de urg�ncia, uma
sensa��o de ter que saber o que acontecera, ter que saber
quem era, o que fora feito, se era atribu�vel � mesma pessoa
respons�vel pelas mortes anteriores. A direita da estrada,
havia um dique, e atr�s do dique uma eleva��o que subia
para uma moita de arbustos e �rvores baixas. Um cavalete de
madeira fora colocado em cada ponta de uma extens�o de
dez metros, uma corda esticada entre eles; do outro lado,
indica��es de movimento e atividade no bosque. Saltei da
picape e fui para o lado direito, contornei a corda e
atravessei a linha das �rvores uns cinq�enta metros mais
abaixo. Desejei que eles estivessem comigo � Maurice,
Michael, Ronnie, at� Hans.
De uma dist�ncia de uns vinte metros eu via os xerifes
Burnett Fermor e Haynes Dearing, e um terceiro homem
que presumi ser o xerife do condado de Liberty. Edgewood
estava l�, mais atr�s, � esquerda. Estava r�gido, como se
tivesse dificuldade de lidar com o que quer que estivesse ali.
Continuei andando, diminu� um pouco o passo, e mesmo
sabendo que haveria problema, mesmo sabendo que Fermor
e Dearing teriam o que falar, n�o consegui deixar de ir.
As primeiras impress�es foram de uma confus�o no terreno.
De onde eu estava, os poucos segundos que Fermor e
Dearing levaram para me ver, para situar quem eu era, para
me perguntar por que cargas-d'�gua eu estava ali, se eu tinha
seguido Edgewood, se Edgewood tinha me levado, e a
garota... onde estava a garota, e que diabo eu pensava que
estava fazendo chegando no meio da cena de um crime...
caramba, que diabo era aquilo? Naqueles poucos segundos,
lutei para entender o que estava � minha frente. Acho que
nem consegui relacionar o que meus olhos viam com a
sucess�o de pensamentos e perguntas que se seguiram at�
Edgewood e Dearing estarem parados em cima de mim na
beira da estrada.
A menina fora cortada ao meio. O corpo fora cortado pelo
meio, cada parte enterrada numa cova rasa, mas cada cova a
menos de dois metros da outra, e, quando as duas partes
foram desenterradas, o aspecto era de um corpo de dois
metros e meio, a metade superior se projetando do ch�o, a
do meio afundada, a inferior aparecendo a certa dist�ncia.
N�o era uma imagem que encontrasse algum ponto de
refer�ncia com nada. Era uma ilus�o, um engano, uma
quimera.
Mais uma vez, senti o sangue me fugir do rosto, das m�os,
das pernas. Senti tudo dentro de mim retroceder, como se
fosse uma tentativa de recuar do horror que eu estava
presenciando. Senti as pernas bambas, e por um momento
n�o ouvi nada, embora o xerife Dearing estivesse me
rosnando uma pergunta atr�s da outra.
"... fazendo, e agora voc� est� aqui..."
"... exatamente est� acontecendo, e � melhor eu ter
respostas claras..."
"... uma esp�cie de..."
Tapei os ouvidos e ca� de joelhos. Foi ent�o que senti as
algemas se fecharem nos meus pulsos pela segunda vez no
mesmo dia. Uma sombra envolveu meu cora��o. Olhei para
eles, todos eles � Edgewood, Dearing, Fermor, Landis, do
condado de Liberty �, e fiz men��o de falar.
� N�o diga nada! � rosnou Fermor para mim. � N�o sei
que diabo est� acontecendo aqui, garoto. Cad� a garota?
Cad� a garota que estava com voc�? O que fez com ela?
Eu n�o conseguia falar.
Dearing agarrou a corrente entre as algemas e me suspendeu
at� eu ficar em p�. A dor que eu sentia nos pulsos e nos
antebra�os era atroz. Eu n�o conseguia respirar direito, e
quando ele se virou e come�ou a me empurrar para a
estrada, senti as pernas bambearem de novo.
Eles me jogaram na traseira do carro do xerife Landis. Landis
e Fermor ficaram para tr�s, Edgewood recebeu ordens de
dirigir, e o xerife Haynes Dearing, do condado de Charlton,
um homem que eu conhecia desde que nasci, entrou no
carro e se sentou ao meu lado e mandou Edgewood ir para a
delegacia do condado de Liberty.
� N�o sei o que est� acontecendo aqui, menino � disse,
num tom seco e acusativo �, mas antes do fim da tarde
vamos ter umas respostas claras.
Comecei a dizer alguma coisa.
� Nem uma palavra � sibilou ele. � Nem uma palavra a�,
garoto. Voc� j� est� bastante encrencado assim. S� vai
agravar a situa��o me contando alguma coisa agora.
Fiquei bloqueado. Pensei em Alex, em minha m�e. Virei-me
e olhei pela janela. Havia nuvens carregadas no horizonte.
Come�ara a chover.
Elena.
Sua garotinha meiga, calada, perdida.
Penso na mulher que voc� teria se tornado. Quero saber se
existe um lugar que encerre todas essas vidas inacabadas.
Outro plano, outro mundo, paralelo ao nosso, l� onde
encontraremos os mortos, retomando suas vidas
incompletas e vivendo-as at� o fim.
E lembro-me de ocasi�es em que tentei muito entender o
tipo de pessoa que poderia ter matado tantas crian�as.
Havia os pecados imaginados de minha m�e � terr�veis,
assassinos at�, e havia os meus pr�prios pecados � pecados
nascidos do medo, um medo t�o grande que me fazia
acreditar que o que eu estava fazendo de certa forma se
justificava. Mas aquele pecado era diferente. Muito, muito
diferente. Os pecados que cometemos eram guiados por um
sentimento de moralidade, de justi�a, de necessidade de ver
aquilo terminado.
Mas os seus...
Mesmo agora, n�o consigo pensar na mente que deve ter
inspirado tais atos.
Lembro-me do semblante do xerife Dearing quando se
desinteressou do que hav�amos feito. A maneira como me
olhou, como virou as costas e olhou para tr�s.
Talvez ele soubesse, mesmo naquela ocasi�o.
Talvez ambos soub�ssemos.
E mais cedo, antes de tudo mudar, houve aquele dia em
Liberty, condado de Fleming, em que eles acharam que
talvez eu fosse o culpado... Lembro-me muito bem. Eu
achava que Virg�nia Grace havia sido a �ltima, em agosto de
42. Mas n�o, houve mais, e n�o s� a que foi encontrada ali.
Como me sentei em frente a Dearing, um homem que
atravessou minha inf�ncia comigo, e o jeito como seu rosto
se pregueava em volta dos olhos, um sentimento de derrota,
um fantasma em seus ombros, e o tom de sua voz quando
ele disse...
Treze
� Esther Keppler.
� Quem?
� Esther Keppler � repetiu o xerife Haynes Dearing.
Eu estava sentado na frente dele. Era tarde. Eu n�o tinha
id�ia de que horas eram, mas pelo frio que fazia podia dizer
que o sol j� se escondera. Da saleta dos fundos da delegacia
do condado de Liberty, onde eu estava, n�o dava para ver
nenhuma janela. J� estava ali havia duas, talvez tr�s horas. A
maior parte do tempo, estive sozinho, imaginando que diabo
eu fazia l�. A certa altura, eu fizera a pergunta, e Dearing
respondera:
� Temos exatamente a mesma pergunta para voc�.
Ent�o ele balan�ou a cabe�a e saiu da sala sem exigir de mim
uma resposta. Fiquei aliviado, porque n�o tinha nenhuma.
Perguntei quanto tempo ficaria l�; disse que estava com
fome.
� N�o sei quanto tempo � dissera ele �, pode demorar
mais um pouco...Vou mandar trazer comida para voc�.
Uma hora depois, o comiss�rio Edgewood entrou na sala
com um prato de sandu�ches e uma garrafa de Coca-Cola.
� Pode me dizer que diabo est� havendo aqui? � perguntei-
lhe.
Ele n�o devia ser muito mais velho que eu; eu tinha
esperan�a de que me ajudasse a sair de l�.
Edgewood fez que n�o com a cabe�a.
� N�o � respondeu categoricamente. � N�o posso lhe
dizer nada.
Ele recuou at� a porta, saiu e a fechou ao passar. Trancou-a,
como fora feito todas as vezes.
Comi os sandu�ches. Bebi a Coca-Cola. Depois de algum
tempo, precisei ir ao banheiro. Fui at� a porta e bati com a
parte inferior da palma da m�o.
� Ei! � gritei. �Tem algu�m a�?
Nada aconteceu � nenhuma resposta, nenhum barulho.
Tornei a bater, mais alto, e levei um susto quando algu�m
bateu na porta do outro lado.
� Cala a boca a� dentro! � ouvi algu�m dizer do outro lado,
com toda a clareza.
� Preciso ir ao banheiro!
� Bem, voc� pode esperar, droga!
� Voc� n�o pode fazer isso comigo! Eu n�o fiz nada! Tenho
meus direitos...
� Direitos? Quais s�o? � respondeu a voz, e fez-se sil�ncio.
Tornei a bater na porta. Nada.
Fui sentar de novo na cadeira de pinho.
Esperei mais meia hora, talvez mais, e foi ent�o que Dearing
apareceu e me disse o nome da menina que eles haviam
encontrado.
� N�o conhe�o ningu�m com esse nome � disse eu. � Ela
� daqui?
Haynes Dearing puxou a cadeira da mesa e sentou-se.
� E, ela � de Fleming. Nove anos.
� Foi assassinada como... como as outras?
Dearing assentiu.
� Parece que sim... e houve mais duas desde a que voc�
encontrou em Augusta.
� Mais duas?
� Sim, mais duas... num total de oito.
Minha cabe�a parou de funcionar. Fiquei arrepiado. Os
cabelos da minha nuca ficaram em p�. Minha boca ficou
seca, com um gosto amargo. Acabei encontrando a voz, e
disse:
� Nove, xerife Dearing... foram nove.
Dearing franziu a testa.
� Nove?
� Elena Kruger... lembra?
� Claro que lembro, mas ela n�o foi morta pela mesma
pessoa. Morreu no inc�ndio.
� N�o pela mesma pessoa � disse eu �, mas pode contar a
morte dela entre essas, porque foi diretamente causada pelo
que aconteceu.
� Seja como for � disse Dearing �, tenho oito assassinatos,
todos de meninas, esta �ltima morta hoje, cortada ao meio,
meu Deus, e as metades enterradas separadas. � Fez uma
pausa e olhou para mim. � � verdade sobre hoje de
manh�... que Burnett Fermor encontrou voc� e Alexandra
Webber fazendo o que voc�s estavam fazendo na traseira de
uma picape?
Fiz que sim.
� Caramba, o que � isso? De quem � essa picape, afinal...
com certeza n�o � sua.
� � de Reilly
� Reilly Hawkins?
� �, Reilly Hawkins.
� E o que voc� estava fazendo, Joseph? Aonde ia?
� Visitar minha m�e no Hospital Comunit�rio de Waycross.
� E para que parou, hein? Esse n�o � o tipo de
comportamento que espero de voc�, e certamente n�o da
srta. Webber. Ela � a professora, sabe?
Sorri.
� Eu sei, xerife, eu sei que ela � a professora.
� E quanto tempo tem essa... essa rela��o entre voc� e a
srta.Webber?
Encolhi os ombros.
� N�o sei, quase seis meses, talvez.
� Seis meses?
� Mais ou menos seis meses.
� Quantos anos voc� tem?
� Dezoito.
� E a srta. Webber?
� Ela tem vinte e seis, faz vinte e sete em fevereiro.
Dearing balan�ou a cabe�a devagar.
� Faz vinte e sete em fevereiro... tudo bem, tudo bem.
Ficamos algum tempo calados. Eu tinha consci�ncia da
press�o no meio do meu corpo. Ainda n�o tinha ido ao
banheiro, achava que estava me concentrando nisso para
pensar o menos poss�vel no que Dearing me dissera. Mais
duas meninas. Oito ao todo. Eu queria lhe perguntar quem
eram, o que lhes acontecera, por que uma informa��o
daquela n�o nos fora comunicada. Eu queria saber por que
ele n�o conseguira nada, n�o s� ele mas tamb�m as
delegacias de v�rios condados.
� N�o consigo acreditar que voc� tenha sido preso � disse
Dearing. � Mas o fato de que estava preso lhe d� um �libi
muito substancial, n�o?
Franzi a testa, fiz que n�o com a cabe�a.
� Como assim, �libi?
� O fato de estar trancado no xadrez quando ela foi morta
me diz que voc� n�o poderia ter feito isso...
� Eu n�o poderia ter feito isso? O que isso quer dizer, meu
Deus?
Dearing levantou a m�o e me fez calar.
�Voc� tem alguma id�ia de como algu�m que n�o o
conhece veria isso? Quer dizer, pelo amor de Deus, Joseph...
� Sua voz foi sumindo. Ele balan�ou lentamente a cabe�a,
ficou algum tempo calado, depois disse:
� E como aconteceu essa, essa rela��o? � uma coisa que
come�ou h� seis meses... n�o come�ou antes?
� Antes, xerife? Como se ela tivesse me seduzido quando eu
n�o tinha idade legal para praticar sexo consensual?
Dearing pareceu um pouco surpreso.
� � isso que est� perguntando, xerife? Se estiver
perguntando isso, diabo, pergunte logo. N�o � complicado.
No que me diz respeito, n�o tem mist�rio.
Dearing pigarreou.
� Bem, ent�o tudo bem... � isso?
� Ela induziu voc� a algum tipo de rela��o sexual antes que
voc� fosse legalmente respons�vel por tais decis�es?
� N�o.
� N�o?
� Exatamente � disse eu. � N�o, ela n�o me induziu a
nada. A srta. Webber e eu nos conhecemos h� muitos
anos...
�Voc� era aluno dela, certo?
� Eu fui aluno dela, xerife. Ela e eu ficamos amigos depois
que sa� da escola. E continuamos amigos. Agora temos uma
rela��o, e est�vamos indo visitar minha m�e emWaycross
hoje de manh� quando...
Dearing levantou a m�o.
� J� sei o que aconteceu. N�o preciso de mais detalhes.
� Tudo bem... Posso ir ao banheiro agora, xerife Dearing?
� Daqui a pouco, meu filho, daqui a pouco. Primeiro preciso
lhe perguntar o que est� fazendo aqui em Fleming quando
houve mais uma menina assassinada.
Olhei para Dearing. A pergunta dele de repente me trouxe
de volta � realidade. Eu andara falando de Alex, defendendo
minha situa��o. Quase me esquecera onde eu estava, e a� era
isso � a raz�o da minha presen�a em Fleming. Mais uma
menina fora assassinada. Antes dela, mais duas.
� O senhor disse que mais duas foram assassinadas?
Dearing assentiu.
� Parece que sim. Uma em Meridan, em setembro de 43,
outra em Offerman, condado de Pierce, em fevereiro
passado... e essas s�o as que a gente sabe.
� Portanto, quem quer que tenha matado as meninas em
Charlton e Camden, foi embora antes do inc�ndio da casa
dos Kruger...
� N�o estamos tirando conclus�es precipitadas, Joseph. N�o
sabemos se esses assassinatos foram cometidos pelo mesmo
homem.
� Mas a forma como essas meninas desapareceram, como
foram encontradas... H� semelhan�as suficientes para
relacion�-las?
Dearing balan�ou a cabe�a.
� N�o estou dizendo nada... n�o posso dizer nada, e mesmo
se pudesse n�o diria. O fato � que outra menina foi morta, e
queremos saber o que voc� est� fazendo aqui, Joseph. Voc�
mora em Augusta Falls, sua m�e est� no Hospital
Comunit�rio em Waycross, mas voc� est� em Fleming
porque ouviu dizer que uma menina foi assassinada. Quer
me contar alguma coisa que fa�a sentido? Voc� � da minha
jurisdi��o. � um dos meus conterr�neos. Conhe�o voc�,
conhe�o sua m�e h� n�o sei quantos anos... diga alguma
coisa que eu possa entender, certo?
Fiquei calado.
� Joseph?
Olhei para Haynes Dearing. Balancei a cabe�a.
� N�o tenho uma resposta para o senhor, xerife.
Dearing assentiu.
� Como soube disso?
� Da menina?
� Sim, da menina... do que aconteceu aqui em Fleming.
� O xerife Fermor nos contou... Bem, ele veio mandar o
comiss�rio Edgewood soltar Alex e a mim porque tinha que
ir a Fleming.
� Ent�o voc� o entreouviu falando com o assistente dele?
Sorri, encolhi os ombros.
� Eu n�o diria que entreouvi, xerife. Ele n�o chegou a fazer
segredo disso..
� Tudo bem � disse Dearing pensativo. Olhou para a porta,
numa rea��o mais ou menos instintiva, como se tivesse tido
uma id�ia que o impedisse de me encarar.
� O que �?
Dearing meneou a cabe�a.
� N�o, o qu�? � tornei a perguntar. � Em que est�
pensando?
� Estou pensando em coincid�ncias, Joseph... que quatro
dessas meninas eram de Augusta Falls...
� Tr�s � disse eu. � Tr�s de Augusta Falls. Alice Ruth Van
Horne, Catherine McRae e Virginia Perlman.
� Ellen May Levine tamb�m.
Fiz que n�o com a cabe�a.
� Ellen May era de Fargo, no condado de Clinch. Foi
encontrada em Augusta Falls, mas n�o era de l�.
� Parece que voc� sabe mais que eu sobre isso, Joseph.
Ri, e me dei conta de que meu riso deve ter dado a
impress�o de ser uma rea��o nervosa. A inten��o n�o fora
essa.
� � a minha cidade � disse eu. � Essas coisas me
perturbam, xerife, especialmente depois de ter sido eu quem
encontrou o corpo de Virginia.
� Certo, claro que foi voc� � interrompeu Dearing. � Eu
tinha esquecido que foi voc� quem a achou.
� N�o, n�o tinha � comecei com objetividade. � Que
diabo � isso? O que est� acontecendo aqui, xerife? O senhor
cogitou que eu tivesse algo a ver com essas mortes?
Dearing sorriu. Foi um sorriso aut�ntico. Ele parecia o
modelo da autoridade paternal que sempre o considerei na
minha inf�ncia distante e esquisita.
� Isso n�o me passa pela cabe�a, Joseph. Em todo caso, voc�
mesmo criou essa situa��o para voc�.
� Que situa��o? Como assim?
Dearing recostou-se e cruzou os bra�os sobre a vasta barriga.
�Voc� tem cabelo quase at� os ombros. Tem barba Joseph,
uma baita de uma barba. Foi preso por andar de sacanagem
com uma professora de vinte e seis anos na traseira de uma
picape de propriedade de Reilly Hawkins. Mora na mesma
cidade que tr�s das v�timas, e a quarta tamb�m foi
encontrada l�. Era vizinho dos Kruger, e se o inc�ndio na
casa dos Kruger fez alguma coisa foi dar a todos a id�ia de
que talvez Gunther Kruger tivesse alguma rela��o com o que
tinha acontecido. E depois... droga, Joseph, depois houve
esse caso com sua m�e e Gunther Kruger, algo que foi muito
dif�cil para muita gente fingir que n�o viu, e t�o logo ele
partiu de Augusta, sua m�e foi parar no Hospital
Comunit�rio de Waycross, e todo mundo est� achando que
talvez ela soubesse de alguma coisa, alguma coisa t�o
importante para deix�-la se sentindo muito mal a respeito,
algo que perturbou as id�ias dela, e agora ela est� aos
cuidados daqueles especialistas l�...
� Todo mundo? � perguntei, interrompendo o xerife
Dearing enquanto ele vomitava aquele mon�logo inc�modo.
� � isso que todo mundo pensa?
Pensei nas visitas que ele lhe fazia, que ele nunca me
contara, e aparentemente n�o estava preparado para me
contar agora.
Dearing riu.
� � uma express�o, Joseph, uma maneira de falar. Voc� sabe
o que eu quero dizer.
� Sei mesmo? Tem certeza de que sei, xerife?
� Tudo bem, tudo bem, j� basta... isso aqui n�o � para ser
um confronto, Joseph. Trata-se de um preocupado membro
da delegacia do condado seguindo uma linha de
investiga��o.
� Uma linha de investiga��o sobre quem? Sobre mim? Se
estive envolvido em algumas dessas mortes? Ou talvez sobre
minha m�e e por que ela enlouqueceu... Diabo, xerife, talvez
ela tenha matado todas essas meninas. O que acha disso?
Que tal seguir isso como sua linha de investiga��o?
O xerife Dearing sorriu, compreensivo.
�Voc� est� cansado, Joseph. Teve um dia longo.Vou
mandar levarem voc� at� sua picape. Acho que deve voltar
para casa hoje � noite. Mas preciso que entenda isso. �
Dearing inclinou-se � frente. � Eu posso confiar em voc�.
J� o conhe�o h� bastante tempo para achar improv�vel que
esteja envolvido nessas coisas, mas Burnett Fermor, os
outros aqui... Diabo, eles n�o sabem quem � voc�. Querem
mant�-lo aqui. Embora essa menina tenha morrido
enquanto voc� estava no xadrez de Burnett Fermor, ele
ainda n�o aceita que deve soltar voc�. Seu �libi �
circunstancial, foi o que ele disse. Disse que o m�dico-legista
poderia estar errado, que a hora da morte � estimada. Quer
lhe fazer algumas perguntas, come�ar a ver se voc� tem ou
n�o �libi para as outras.
Fiquei horrorizado, impressionado que algu�m pudesse
sequer cogitar num absurdo daqueles. Fiz men��o de falar,
mas Dearing levantou a m�o.
� Pegue a picape de Reilly Hawkins e v� direto para
Augusta Falls. N�o v� a lugar nenhum a n�o ser para casa.
Esteja l� quando eu passar para v�-lo amanh� ou depois.
� E aonde eu iria, xerife... Ah, sim, claro, para alguma outra
cidade onde houvesse meninas sendo assassinadas, certo?
Dearing balan�ou a cabe�a com paci�ncia.
�Vou atribuir a esse coment�rio a import�ncia que ele
merece, Joseph. � Recuou a cadeira e se p�s de p�. �Vou
mandar o comiss�rio Edgewood lev�-lo de volta ao seu
ve�culo. Irei falar com voc� nos pr�ximos dias, e voc�
responder� �s minhas perguntas com sinceridade, entendeu?
Dearing levantou-se da cadeira.
� Xerife?
Ele parou e se virou; olhou para mim. Por um instante me
senti como a crian�a que eu fora. Ele sabia o que eu ia lhe
perguntar; eu podia ler isso em seus olhos.
� Por que isso continua a acontecer? Como pode continuar
acontecendo depois desses anos todos?
Dearing recuou e tornou a se sentar.
� Voc� n�o pode me perguntar isso � disse baixinho. �
Essa � uma pergunta que estamos nos fazendo h� pouco
mais de seis anos.
� E n�o t�m nada?
Ele emitiu um ru�do como se fosse rir, e reconheci um
desespero absoluto em seu olhar.
� Nada? Temos oito meninas mortas, Joseph... Eu n�o
chamaria isso de nada.
� O senhor sabe o que eu quero dizer, xerife.
Dearing inclinou a cabe�a. Juntou as m�os, palma com
palma. Um homem rezando.
� J� tivemos nossas suspeitas � disse. � J� fomos de casa
em casa em v�rios condados diferentes. J� pedimos aux�lio,
mas h� uma guerra acontecendo caso voc� n�o tenha
reparado. As pessoas de que necessitamos s�o necessitadas
em outro lugar, entende? Essas mortes ultrapassaram os
limites da cidade, os limites do condado. � Parou
abruptamente. � Nem sei por que estou lhe contando isso.
� Sorriu sem convic��o, balan�ou a cabe�a.
� Digamos apenas que eu finja que vou dar de cara com ele
um dia, e embora eu n�o tenha id�ia de como ele �, vou
saber que � ele, e... � parou um instante, olhou para o outro
lado, pensativo. � N�o vou fazer perguntas, Joseph... N�o
vou algem�-lo nem lev�-lo para a delegacia. Vou
simplesmente lhe dar um tiro na hora, e a� estar� tudo
acabado.
� Seis anos � disse eu. � Oito meninas, se n�o incluirmos
Elena Kru- ger. E essas duas �ltimas, as de Meridan e
Offerman?
� O que tem elas?
� A mesma coisa... o mesmo tipo de morte?
� �, exatamente o mesmo... como se ele tentasse sepultar o
que faz. Como se tentasse separar tudo e lan�ar aos quatro
cantos da Terra, mas n�o conseguisse se decidir a fazer isso.
Limita-se a deix�-las jogadas onde possam ser encontradas...
� Dearing se calou. � Chega � disse. Levantou-se da
cadeira mais uma vez, e por um momento pareceu sem
jeito, como se percebesse que andara dizendo alguma
inconveni�ncia. Se alguma vez vi algu�m que precisasse
falar, precisasse desabafar, era Haynes Dearing.
� As primeiras tinham liga��o com Augusta Falls, n�o? �
perguntei.
� Mas agora elas est�o espalhadas, certo?
Dearing balan�ou a cabe�a.
� Est� na hora de voc� ir para casa, Joseph. Est� na hora de
ir para casa.
� N�o fale com estranhos � disse eu. � N�o saia com
estranhos. Fique alerta. N�o se arrisque.
Dearing me olhou com aten��o.
� Lembra-se disso?
� Lembra-se dos Guardi�es?
Ele franziu a testa.
� Eu, Hans Kruger e os outros. Daniel McRae, Ronnie
Duggan, Michael e Maurice. Era assim que a gente se
intitulava. Os Guardi�es. E aqueles cartazes que o senhor
pendurou em todo lado. Lembra-se disso, n�o �?
� Eu me lembro que uma noite peguei voc�s � disse
Dearing. � Muitas vezes quis saber que diabo voc�s
achavam que estavam fazendo.
Sorri.
� Est�vamos fazendo alguma coisa, xerife, s� isso. S�
est�vamos tentando fazer alguma coisa para ajudar a pegar o
assassino.
� Meu Deus, voc�s podiam ter se metido na maior
encrenca.
� J� est�vamos encrencados, xerife. Havia algu�m por ali
assassinando crian�as. Acho que isso j� poderia ser
considerado uma encrenca, n�o acha?
Dearing assentiu, depois se virou para a porta.
� Preciso ir � disse. � Tenho esse assunto para resolver.
Algu�m tem que ir contar aos pais da menina.
� Estamos no condado de Fleming. O xerife Landis n�o
deveria fazer isso?
Dearing olhou para mim, e tornei a me sentir como uma
crian�a.
� Atualmente � disse ele baixinho � a gente trabalha em
dupla. Quinze minutos depois de o xerife Dearing ter sa�do
da sala o comiss�rio Edgewood veio me levar at� a picape de
Reilly. Passei a viagem toda calado.
Catorze
� Bagre frito � disse minha m�e. � Pod�amos ter ostras �
Rockefeller para come�ar, e depois frango ao curry com
bolinhos de milho, torta de batata-doce e bagre frito. � Riu,
tirou o cabelo da testa. � Adoro bagre frito, voc� n�o,
querida?
Alex me olhou. Fiz que sim com a cabe�a. Alex se virou e
sorriu para minha m�e.
� Depois, eu poderia fazer tortas. Fa�o uma torta
maravilhosa. De chocolate, talvez, at� nozes com mel ou
creme de mirtilo. Poder�amos fazer sorvete tamb�m, sabe?
Minha enfermeira poderia vir. Ela adora uma boa torta. O
nome dela � irm� Margaret. Era freira. Da Ordem Sagrada do
Imaculado Cora��o de Maria. Maria, viu? Como o meu
nome. Ou�o dizer que muitas freiras gostam de torta... J�
ouviu isso, Joseph?
�J�, m�e, j� ouvi � respondi, entregue ao fato de que
minha m�e achava que receberia Alex, sua fam�lia, talvez a
elite da Ge�rgia para um lauto banquete sulino.
� Febre cerebral � murmurou ela para Alex. � Tive uma
febre cerebral no ver�o passado. Tanto sofrimento! E fiquei
debilitada com tanto mal-estar e nervosismo. Nunca se viu
nada igual. Enfim, espero que d� tudo certo com voc� e
Joseph. Meu Deus, estou muito orgulhosa de voc�s, muito
orgulhosa. Voc�s v�o se casar, n�o �?
Olhei para minha m�e. O cabelo dela estava branco e ralo,
cabelo solto de av�. Ela estava com quarenta e um anos.
Parecia quase sessenta. Tinha a pele do rosto e das m�os
inchada, era s� assim que eu poderia descrever. Pelo jeito, a
medica��o que tomava provocava tal efeito colateral. Eu n�o
suportava pensar no que estavam lhe dando, portanto n�o
perguntava.
Era domingo. Na noite anterior, eu voltara de Fleming. Parei
na casa de Alex e expliquei o que acontecera, que o xerife
Dearing estava l�, que eu tinha passado algum tempo com
ele.
� Por qu�? � perguntara ela.
� Ele tinha umas perguntas, Alex, nada de importante.
-� Perguntas? Perguntas sobre o que, Joseph?
� Sobre os Kruger, s� isso. Eles eram vizinhos nossos, n�s
os conhec�amos bem, talvez melhor do que ningu�m, e ele
queria saber se havia acontecido alguma coisa na �poca que
poderia ajud�-lo.
� E ent�o?
� Nada � respondi. � N�o consegui lhe contar nada.
N�o contei a ela sobre as outras duas meninas, as de Meridan
e Offerman.
Passei a noite l�, dormi ao lado dela, sabendo que ela ficara
acordada muito tempo, mas eu nada dissera.
Ela acabou adormecendo. Esperei at� sua respira��o ficar
profunda e regular, ent�o sa� do quarto, p� ante p� pelo
patamar superior, e fiquei olhando pela janela estreita no
fim. Os campos estavam planos e azuis, a n�voa entrava do
Okefenokee e criava fantasmas que pairavam acima do ch�o.
Entre esses fantasmas havia as crian�as, todas elas, e fechei
os olhos e fiz-de-conta. Fiz-de-conta que, se me
concentrasse muito, eu poderia ouvi- las, seus assobios, seu
riso, seu �mpeto de vida repentinamente interrompido agora
brotando de alguma outra forma, em alguma outra realidade
et�rea. Estavam todas l�. Crian�as fantasmas. Filhas dos
mortos. Agora vivas, sua respira��o vis�vel na n�voa, de
m�os dadas, cada passo deixando um rastro na terra �mida
� e atr�s delas, fechando a retaguarda, observando-as e
assegurando-se de que nada de ruim lhes acontecesse, estava
meu pai. Meu pai, o anjo.
Por um instante, prendi a respira��o, pensei em Alex. Pensei
em minha m�e. Pensei na vida que viera correndo ao meu
encontro e me pegara desprevenido. �s vezes me parecia
n�o ter tempo algum. Dezoito anos � um piscar de olhos,
uma fra��o de segundo. Outras vezes, parecia que cada emo-
��o que eu era capaz de experimentar havia sido socada
nesses anos e se avolumava dentro de mim at� me esgar�ar.
O que eu tinha? Meus pais haviam morrido � meu pai,
fisicamente. Minha m�e, mentalmente. Eu tinha Alex, era o
que eu tinha, e mesmo enquanto pensava nisso, sabia que
chegaria uma hora em que a rela��o n�o poderia existir mais.
N�o era tanto a diferen�a de idade, certamente n�o meu
ponto de vista sobre tal diferen�a, mas o ponto de vista do
mundo.
Uma rela��o era uma troca: companheirismo contra o
controle da vida do outro. Eu n�o tinha a menor d�vida de
que amava Alexandra Webber, e mesmo quando pensava
nos acontecimentos que haviam nos unido a rela��o ainda
me parecia irreal. Eu n�o pensava nela como professora, e
talvez nunca pensara. Ela era minha amiga, isso antes de
tudo, e ao que parecia eu n�o tivera muitos amigos na vida.
Reilly Hawkins, os Kruger pequenos, Mathilde e Gunther, e
por algum tempo e de uma forma especial os Guardi�es.
Al�m dessas pessoas, aparentemente n�o havia ningu�m
sen�o Alex Webber, a mulher que for�ou minha m�o e me
fez escrever.
Voltei depois de algum tempo, fiquei parado ao lado da
cama, vendo-a dormir. Prestei aten��o ao som da sua
respira��o, at� botei a m�o em seu peito para sentir seu
cora��o. Ela era tudo o que eu tinha. Era important�ssima
para mim, mas eu sabia que o que quer que pudesse ganhar,
de alguma forma eu perderia, e portanto, dentro de mim, eu
me esfor�ava.
Mais tarde, dormi � um sono agitado, intermitente �, e
sonhei com crian�as mortas andando pelos campos da
Ge�rgia.
Na manh� seguinte, levantei antes de Alex, sa� e comprei
um jornal. Recortei a not�cia, uma coluna de 5 cent�metros
sobre uma menina assassinada em Fleming. Guardei-a com
as outras � seis ao todo � e pensei nas duas que estavam
desaparecidas.
� Dev�amos ir visitar minha m�e � disse eu. � Ela fez anos
dia 19. Depois de amanh� � Natal. Eu devia ir, Alex, devia
mesmo, e quero que voc� venha comigo.
� Ent�o vamos. � Assim, muito direta. -� Reilly vai nos
emprestar a picape?
� Claro que vai... mas dessa vez n�o paramos no caminho.
Ela riu, aproximou-se de mim. Avancei um passo, peguei-
lhe a m�o, puxei-a para mim e a abracei.
� Acho que a gente devia cortar seu cabelo e raspar sua
barba � disse. � Assim voc� n�o fica com cara de homem
da montanha maluco que desceu para assustar os alde�es.
� Agora n�o. Agora vamos visitar minha m�e.
Foi o que fizemos, e chegamos sem incidentes, e quando
encontramos minha m�e � no sol�rio nos fundos do pr�dio
�, contei-lhe que Alex era minha namorada.
� Um mundo muito moderno � disse. � Namorada. �
Riu. O riso era de outra pessoa. N�o da mulher que me
criou. � Pode-se ficar parado ao sol � prosseguiu ela,
levantando a m�o e indicando os gramados atr�s do pr�dio
atrav�s das janelas altas do sol�rio. � Pode-se ficar parado ao
sol... sentir o calor do sol. D� a sensa��o de ser a impress�o
digital de Deus na alma da gente. � Ela se virou e sorriu
para Alex, mas como se n�o a visse, como se n�o houvesse
reconhecimento. Eu me perguntava se minha m�e se
lembrava do pr�prio nome. � E d� para ouvir as vozes dos
anjos. � Ela me encarou. A sensa��o de algo andando na
minha nuca me fez estremecer. Fugaz como a sombra de
uma nuvem num campo.
� Anjos? � perguntei.
Minha m�e fez que sim, tornou a sorrir, mas dessa vez
houve uma liga��o moment�nea, como se ela visse que eu
era seu filho. De verdade, ela viu o filho.
� Anjos � murmurou. � Vozes de anjos... como aquelas
garotinhas, Joseph, as que foram com o Diabo, lembra?
Assenti. Estava constrangido.
Ela se aproximou mais de mim.
�Venha c� � murmurou, num tom conspirat�rio, talvez
paran�ico.
Cheguei mais perto.
� Sei quem levou as meninas � disse.
Franzi a testa.
� As meninas, Joseph... sei quem as levou.
� Como assim? � indaguei.
Eu me perguntava o que tinha realmente acontecido com
minha m�e. Eu me perguntava sobre a mente, como
funcionava, de que maneira podia se avariar e se fechar de
maneira t�o definitiva.
� Todas para o inferno � sibilou.
De repente fiquei abatid�ssimo. Olhei com o canto do olho
para Alex. Ela parecia t�o nervosa quanto eu.
Peguei a m�o de minha m�e.
Seus olhos eram azul-claros e parados, como se refletissem
um brilho.
� Elas est�o por a� � disse. � Alice e Laverna, Ellen May,
Catherine... a que voc� encontrou, Joseph... Como era o
nome dela?
Balancei a cabe�a.
� Voc� sabe o nome dela, m�e.
� Virg�nia, certo?
� Certo, m�e, Virg�nia Perlman.
� Ou�o todas elas... ou�o seu pai tamb�m, e �s vezes ou�o
Elena, e ela est� perdida, Joseph, n�o sabe de onde veio e
com certeza n�o sabe aonde deve ir. Diz que est� me
esperando, e vai esperar o tempo que for necess�rio, e
quando eu chegar l� posso dar a m�o a ela e mostrar o
caminho...
� M�e... por favor...
Ela parou, talvez ofendida com minha interrup��o, depois
balan�ou a cabe�a, piscou para mim como se f�ssemos
coniventes.
� Tudo bem, Joseph, nem mais uma palavra. Mas voc� tem
que me prometer uma coisa, Joseph...
� O que, m�e, o que quer que eu prometa?
� Que voc� vai falar com o xerife Dearing, dizer a ele o que
eu disse... ali�s, diga a ele que venha me ver. Diga a ele que
sei a verdade. Diga a ele que sei quem � esse assassino de
crian�as.
Fiquei com o cora��o apertado.
� Sim � disse eu, e na hora em que a palavra saiu de minha
boca, me perguntei se algum dia voltaria a falar com minha
m�e. Falar com a mulher que me criara, a mulher que amara
meu pai, que o sepultara e de alguma forma s� continuara a
viver por causa do filho. � Eu digo a ele � murmurei, a
voz embargada de emo��o, os punhos cerrados, usando toda
a minha for�a de vontade para segurar as l�grimas. � Assim
que eu voltar, digo a ele. � Sorri como pude. Eu torcia para
que ela n�o dissesse aquele tipo de coisa para os m�dicos,
para os outros pacientes. Deus sabe o que eles fariam com
ela se lhes contasse que falava com o marido morto e
meninas assassinadas, que conhecia a identidade de um
assassino de crian�as que escapava da pol�cia de v�rios
condados havia tantos anos.
E foi ent�o que ela falou das ostras � Rockefeller e do creme
de mirtilo, sobre o banquete que prepararia para n�s, para
sua enfermeira, para a elite da Ge�rgia. Tornou-se a mulher
confusa e distante que eu j� imaginava, com o olhar apagado,
sem mencionar os mortos.
Ficamos mais um pouco, enquanto pude ag�entar ficar
sentado com a mulher que um dia fora minha m�e, e depois
nos despedimos.
� Muito triste � murmurou Alex. Ela pegou meu bra�o e
meio me puxou enquanto nos afast�vamos. � Uma mulher
t�o culta e t�o inteligente... e agora... � A voz dela foi
sumindo at� se transformar num sil�ncio fr�gil e
emocionado.
Encontramos a enfermeira Margaret, a enfermeira de minha
m�e. Ela era mag�rrima; suas fei��es pareciam quase
imprecisas, como uma aquarela. Seus olhos eram cinza-
claros e desbotados, como se ela tivesse passado quase a vida
inteira chorando. Uma solteirona do sul, imaginei, boca fina
e contra�da, toda contida, o tipo de mulher que desejava
amor, mas nunca encontraria.
� Ela disse a voc�s que... que eu era freira? � perguntou. �
Meu Deus... posso imaginar que eu seria a �ltima pessoa no
mundo para se pensar uma coisa dessas. � Balan�ou a
cabe�a. � N�o, sou s� Margaret, simples assim, nada mais
complicado que isso.
Sorriu calorosamente, depois conduziu Alex e a mim para
longe das pessoas que esperavam sentadas na sala do outro
lado do sol�rio.
� Ela vai levando de alguma forma � disse. � De vez em
quando a gente v� alguma coisa, como se houvesse uma luz
por tr�s dos seus olhos, e � essa a verdadeira Mary Vaughan,
a que existia antes da doen�a.
� O que h� de errado com ela? � perguntou Alex. Olhou
para mim, quase como se temesse que eu me ofendesse com
a pergunta.
Margaret sorriu com compaix�o.
� N�o sou psiquiatra, querida � disse. � Estou aqui porque
entendo de medica��o, nada mais que isso. Se quiser uma
opini�o, deve falar com o m�dico dela. S� sei o que ou�o, e
o que ou�o n�o faz muito sentido. N�o sei se algu�m
entende mesmo o que acontece quando as pessoas... �
Margaret olhou para mim, depois para Alex. �Voc�s sabem
o que quero dizer... ningu�m sabe realmente quando as
pessoas ficam perturbadas. � Suspirou e balan�ou a cabe�a.
� Quem me dera saber, a� pelo menos eu teria a sensa��o
de poder fazer alguma coisa para ajudar.
Alex virou-se para mim.
� Dev�amos falar com o m�dico dela.
Meneei a cabe�a.
� J� falei. V�rias vezes. Eles n�o sabem qual � o problema
dela, nunca souberam e provavelmente nunca v�o saber. S�
est�o tentando mant�-la tranq�ila.
� S�o as vozes que ela ouve � disse Margaret, e nos fitou
um de cada vez, com uma express�o de medo naqueles
olhos cinzentos desbotados.
� As meninas? � acrescentou, depois me encarou, como se
eu fosse esclarecer o assunto.
Fiquei calado.
� Ela consegue falar sobre o tempo, sobre as flores nos
jardins, sobre outros pacientes. � Margaret brincava com a
borda do bolso do vestido.
� Parece toda interessada nisso, sabem? � capaz de ficar
sentada uma hora conversando, �s vez mais, e a gente acha
que ela est� se recuperando bem, sendo racional... e de
repente, do nada, come�a a falar com outra pessoa, algu�m
que a gente n�o v�. Ent�o digo a ela: "Mary? Com quem est�
falando, querida?", e ela se vira e me olha como se eu fosse a
louca, e diz: "Ora, Margaret, estou falando com...", e a� diz
um nome, de uma menina pelo que entendo, e vai em
frente, contando a quem passar na sua frente sobre o seu dia,
falando com algu�m chamado Earl.
Balancei a cabe�a.
� Earl era o marido dela... morreu em 39.
Margaret sorriu, como se lhe tivessem feito uma pergunta e
ela tivesse entendido.
� Sim, Earl � repetiu. � Falando sobre algo que fez com
Earl, e, mesmo quando a gente vai embora, ela continua
falando, como se n�o fosse dar tempo de falar no dia
seguinte. � Margaret parou de repente. Ficou sem jeito,
como se tivesse falado demais. � Sinto muito � deixou
escapar. � N�o me compete ficar falando dessas coisas.
Pe�o desculpas. E que voc�s s�o as �nicas pessoas que
vieram visit�-la em muito tempo.Tem o outro cavalheiro.
Ele veio algumas vezes, mas nunca se demora...
� Haynes Dearing � disse eu.
Margaret balan�ou a cabe�a.
� N�o sei o nome dele. Ele nunca me disse e eu nunca
perguntei.
Toquei no bra�o dela.
� Tudo bem � disse eu. �Voc� ajudou muito, Margaret.
Foi muito bom falar com voc�. Por favor, n�o fique achando
que disse alguma coisa inconveniente.
Margaret sorriu. Com aqueles olhos desbotados, olhou para
um lado e para o outro como se esperasse que algu�m
aparecesse. Quanto tempo faltava para Margaret come�ar a
conversar com gente invis�vel?
Partimos sem falar com o dr. Gabillard. Eu nem perguntei se
ele continuava tratando de minha m�e. Era in�til falar mais.
� Acha mesmo que n�o se pode fazer mais nada? �
perguntou-me Alex quando deix�vamos o Hospital
Comunit�rio Waycross para tr�s.
� Ela j� est� l� h� quase quatro anos, Alex.
Alex ia dizer alguma coisa, talvez fazer outra pergunta, mas
ficou calada. Olhou para mim, sentada ali no banco do
carona enquanto segu�amos na picape de Reilly Hawkins
para a auto-estrada. Olhei para ela e sua express�o era vazia,
uma declara��o simples de nada. Seus olhos estavam vazios,
como se ela tivesse visto tudo o que havia para ver e pouco
mais sobrasse.
Peguei sua m�o.
� J� venho aqui faz tempo. Depois de um ano, um ano e
meio, j� n�o sentia mais que ia visitar minha m�e. Agora s�
venho por obriga��o... Talvez mais pela mem�ria do meu
pai do que qualquer outra coisa.
�Voc� se lembra de me falar sobre os anjos? � perguntou
Alex.
Sorri.
� N�o me lembre disso.
� Por qu�?
� Porque eu era muito garoto na �poca, e voc� era minha
professora, o que torna estranh�ssimo isso que fazemos
agora.
�Voc� se sente assim?
Balancei a cabe�a.
� N�o at� voc� come�ar a falar sobre anjo e o Concurso de
Contos de Atlanta, e me dar um livro de Steinbeck de
anivers�rio.
�Voc� devia escrever um livro sobre tudo isso � disse.
Franzi a testa.
� Tudo isso o qu�?
� Sua vida. Seu pai, as meninas que foram assassinadas, o
que aconteceu com os Kruger, o que aconteceu com sua
m�e, n�s... essas coisas todas. Voc� devia escrever sua
autobiografia.
Comecei a rir.
� Tenho dezoito anos, Alex, dezoito anos. Pelo que voc�
diz, at� parece que eu n�o tenho muito mais vida para viver.
� Acha que ela sabe?
� Ahn?
� Sua m�e? Acha que ela sabe quem fez aquilo?
� Fez o qu�? Do que voc� est� falando?
� As meninas que foram mortas, Joseph.Voc� ouviu o que
ela disse.
Balancei a cabe�a.
� Alex, minha m�e � maluca. Ela est� na ala psiqui�trica do
Hospital Comunit�rio de Waycross. Conversa com meu pai,
e ele morreu em julho de 1939. Tenho certeza de que n�o
tem a menor id�ia de quem foi o respons�vel...
� E o respons�vel, Joseph... as mortes continuam
acontecendo.
� Tudo bem, tudo bem... Tenho quase certeza de que ela
n�o tem a menor id�ia de quem � o respons�vel por essas
coisas.
� Mas e se ela souber? E se tiver ficado assim porque sabe e
n�o consegue fazer nada a respeito...
� Ficado maluca, Alex. E se tiver ficado maluca porque
sabe? Vamos dar o nome aos bois. N�s nos conhecemos
bem o bastante para n�o ficar com rodeios. Ela � maluca.
Pancada, pirada...
� Pare � disse Alex secamente. � Basta!
� Basta digo eu, Alex. N�o quero mais ouvir falar nisso,
certo? Ela n�o sabe quem matou essas meninas... perd�o,
quem est� matando essas meninas. Ela n�o sabe. Nunca
soube e tenho certeza de que nunca vai saber.Vai continuar
vivendo em Waycross. Provavelmente, vai passar o resto da
vida l�, e vou continuar indo visit�-la at� n�o ag�entar mais,
ou at� ela nem sequer me reconhecer. Ent�o ficarei com
pena, mas ao mesmo tempo sentirei um peso enorme sair
dos meus ombros, porque voc� n�o tem a menor id�ia de
como � ir l� e ficar ouvindo sua m�e extasiada conversando
com gente que j� morreu, especialmente quando um dos
mortos vem a ser seu pai.
� Sinto muito...� come�ou ela.
Olhei para ela. Pus a m�o em seu rosto.
� Alex, amo voc�. Amo voc� mais que qualquer coisa ou
qualquer pessoa no mundo. N�o estou zangado com voc�.
N�o estou nem ligeiramente irritado com voc�. Estou
chateado com a situa��o. N�o h� nada que eu possa fazer
sen�o ficar chateado uma vez ou outra, mas n�o � com voc�.
Na verdade, � com o pessoal do Waycross, os que disseram
que iriam fazer alguma coisa para ajud�-la e parece que a
deixaram pior. S� isso. O que acontece com minha m�e,
quem ela �, como se comporta... isso n�o s�o coisas com que
voc� deva se preocupar. Certamente n�o s�o coisas que eu
quero que atrapalhem nossa rela��o. � Parei para ganhar
f�lego. � E s� isso, sem tirar nem p�r, e eu n�o quero, n�o
quero mesmo, falar mais sobre isso, certo?
� Certo � disse ela baixinho. Segurou minha m�o, beijou a
palma. Sorriu, e no lusco-fusco de um entardecer da
Ge�rgia, com a brisa c�lida entrando pela janela da picape,
ela dava a impress�o de ser mais do que eu jamais poderia ter
desejado.
Fechou os olhos, apertou de novo minha m�o, depois a
soltou.
Olhei para a estrada vazia � nossa frente.
Ficamos calados um bom tempo, e quando falamos n�o
dissemos nada de importante.
Depois do assassinato em Fleming da menina Keppler,
depois de visitar minha m�e e ouvir aquela sua conversa de
doido, fiquei pensando se eu estava destinado a carregar o
peso daqueles fantasmas para sempre. Se eu poderia, de
alguma forma, ter feito algo para impedir aquelas mortes, e
nada tendo feito, condenei-me a carregar o fardo da culpa
pelo resto da vida.
Depois da menina Keppler os sonhos passaram a vir com
mais freq��ncia.
Sonhei que era assassinado. Sonhei que correra como o
vento pelo meio das �rvores e dos campos, a consci�ncia de
algo me perseguindo, algo que eu n�o via mas percebia com
uma certeza t�o grande como a que eu tinha do meu nome.
Sonhei que estava sendo ca�ado. Seguido. Acossado. Sonhei
que ficava mais cansado a cada passo, uma exaust�o
profunda, uma fadiga da mente, do cora��o, da alma. Sonhei
que cada passo que eu dava era sempre o �ltimo, mas de
alguma forma eu dava outro, e mais outro. Andando mais
devagar, por�m, mais devagar e trope�ando, at� o que me
perseguia estar em cima de mim, e olhei para uns olhos de
postigo, e dei um grito silencioso, e quando o sil�ncio
acabou, fez-se um sil�ncio maior e mais profundo, um
sil�ncio que me engolia inteiro e n�o me soltava.
Ent�o me levantaram da carroceria aberta de uma picape, e
Kruger estava l�, e chorava em cima de mim, e suas l�grimas
ca�am e encostavam na minha pele. Lowell
Shaner, Frank Turow, Reilly Hawkins... estavam todos l�, e
olhando da traseira do ve�culo embaixo da lombada eu via
minha m�e, e os fantasmas de crian�as mortas atr�s dela. E
elas choravam em sil�ncio, e havia uma sensa��o de tudo
chegando a um fim... e uma sensa��o de saber de algo, saber
quem estivera ali, quem estava dentro da minha certeza
invis�vel enquanto eu corria nos campos e pelo meio do
mato, enquanto eu cambaleava com os p�s pesados na beira
do p�ntano de Okefenokee... e havia m�sica, m�sica como a
que tocavam na igreja...
Ent�o fui sepultado, minha express�o de terror congelada
para todo o sempre. Baixei � sepultura vestido com minhas
roupas de domingo, sapatos engraxados, cabelo penteado, e
as pessoas estavam em p� ao redor da cova que ficava cada
vez mais funda, e eu ouvia a terra caindo em cima de mim, e
sabia que jazeria ali para todo o sempre, e a grama cresceria,
e as esta��es mudariam, e pessoas que eu amara envelhe-
ceriam e morreriam, e haveria sil�ncio em minha mente em
vez de vozes...
Eu estaria ali, meus pensamentos para sempre beirando a
certeza... de que eu soubera quem era... de que eu soubera
quem era... de que eu soubera quem era...
E ele n�o era uma figura num cartaz preso na coluna de uma
cerca. N�o era figura nenhuma. Era um ser humano � um
aut�ntico ser humano de carne e osso, que comia, respirava
e falava.
E estava por ali.
Em algum lugar.
Quinze
Natal de 1945. O "Old Blood and Guts" Patton morreu em
conseq��ncia de ferimentos que sofrera num acidente de
carro na Alemanha. O homem que conquistara a Sic�lia em
trinta e oito dias, que fora rebaixado de posto duas vezes por
causa de seu temperamento irritadi�o e dif�cil, foi ferido
mortalmente num trecho deserto de estrada. Parecia a ironia
mais sinistra, e refletia perfeitamente o tratamento que o
mundo julgava necess�rio dispensar a n�s, seres humanos.
Alex foi visitar os pais em Syracuse dois dias antes do Natal.
Ela planejava passar mais ou menos uma semana fora. Levei-
a � rodovi�ria de Augusta Falis, e aguardei com ela. Quando
o �nibus se afastou, percebi que n�o tinha nenhum motivo
para ir para casa. Fiquei algum tempo na cidade. Sentei num
restaurante na rua Manassas e observei as pessoas andando
de um lado para o outro. Apesar da �poca, todas pareciam
partir animadas e chegar a contrariadas, com uma express�o
grave e expectante de quem vive entre filhos ingratos e pais
senis. No meio, para elas, sobrava pouco. Talvez, imaginei...
talvez fosse assim mesmo. Quando sa�, vi o xerife Haynes
Dearing do outro lado da rua. Ele acenou, me chamando.
�Voc� por aqui? � perguntou.
� Trouxe Alex aqui para pegar o �nibus para Syracuse.
�Vai visitar a fam�lia?
�Vai passar o Ano-novo com eles.
�Voc� n�o quis ir com ela?
Encolhi os ombros.
� N�o gosto muito dos rapap�s que um h�spede precisa
fazer.
� Nem eu � disse Dearing. � Minha mulher est�
recebendo a irm� com o marido, e apesar de ser nossa casa
me irrita como ela vive esquentando a cabe�a com
bobagens. Fico doente com essas coisas.
Assenti. Eu queria ir para casa.
� J� est� indo? � perguntou Dearing.
� Estou, sim.
� Est� com pressa, certo? � perguntou ele, mas do jeito
como perguntou n�o era tanto uma pergunta quanto um
desafio para recusar sua companhia.
� Pressa? Diabo, como sempre, xerife. H� coisas para fazer,
sempre coisas para fazer, como bem sabe.
� Mas voc� tem um tempinho para mim, para fumar um
cigarro e conversar sobre uns assuntos?
De novo, a pergunta foi mais uma afirma��o ou um convite
para contrari�-lo.
� Nunca me dei bem com cigarro � disse eu. � Tentei
algumas vezes, acabei ficando rouco e me sentindo
estranho. Conversar, eu posso... nunca tive problema com
isso.
� Ent�o venha comigo at� meu gabinete, � um convite
social, n�o tem nada de oficial, ver se consegue esclarecer
algumas coisas para mim, que tal?
� Isso � mesmo uma pergunta, xerife?
Dearing riu e balan�ou a cabe�a.
� N�o, que diabo. Acho que n�o, Joseph.
�Vou por livre e espont�nea vontade. N�o quero que pense
que tenho alguma coisa a esconder.
� �timo, Joseph, �timo � disse Dearing, e deu meia-volta e
foi andando na frente.
O gabinete do xerife Haynes Dearing era um anexo para as
partes da sua personalidade que ele n�o queria carregar. Na
parede ele havia anexado uns quadros, nada mais que t�buas
de pinho, onde prendia com percevejos fotos, notas e
bilhetes, certificados disso e daquilo, cupons, vales de Hot
Shoppes e Howard Johnsons, um lado de uma caixa de
cereais Cream of Wheat, uma receita de Betty Crocker de
torta de ma�� que parecia ter sido recortada de jornal, um
desenho infantil a l�pis de cera do "Cherife Derin", uma
tabela detalhando o alfabeto fon�tico, uma escala com todo
tipo de pesos e medidas e dist�ncias; outras coisas desse
g�nero. No canto direito, embaixo de um letreiro do Servi�o
Postal dos Estados Unidos, estava o seu lema: "Nem neve
nem chuva nem calor nem o escuro da noite impede esses
mensageiros de completar com presteza os circuitos que
lhes foram designados." Dearing notou como isso me
chamou a aten��o.
� Meu pai � disse ele. � Entregava a correspond�ncia.
Incr�vel. Quarenta e tantos anos. Pendurei isso a� para me
lembrar da persist�ncia e da resist�ncia dele, e porque
combina com o que fa�o.
Franzi a testa.
� N�o entregar a correspond�ncia. E como livrar de delitos,
sabe? � Ele sorriu, mais ou menos deu de ombros, e sentou-
se pesadamente em sua cadeira. A cadeira, de ripas de
madeira, com rodinhas nos p�s, rangeu incomodamente sob
seu peso. � Que diabo, n�o sei, Joseph, talvez n�o tenha
semelhan�a nenhuma... talvez "Proteger e Servir" n�o
parecesse bastante importante. � Ele riu para si. � Sente-se
� disse. � Quer um caf� ou alguma outra coisa?
Fiz que n�o.
� Ent�o voc� finalmente foi a Waycross visitar sua m�e?
� E, a gente foi domingo passado, dois dias antes do Natal.
� E ent�o?
� N�o sei o que dizer, xerife... ela n�o � mais minha m�e. Eu
converso com ela... puxa, n�o � bem uma conversa. �
Balancei a cabe�a. � Na �ltima visita, ela me disse que sabia
a identidade do assassino das crian�as.
Dearing ergueu as sobrancelhas, e ent�o pareceu
preocupado, interessado. Mexeu-se em sua cadeira e
inclinou-se � frente para me olhar mais de perto.
� Sinto muito saber disso, Joseph, muito mesmo. N�o sei o
que dizer. O que acontece aqui. . � Bateu com o indicador
na testa. � Raios me partam se eu souber o que faz as
pessoas funcionarem, sabe? � Respirou lentamente e
recostou-se na cadeira. � Fui l� visit�-la umas vezes � disse
ele.
� Eu sei, xerife... Sei que foi visit�-la e agrade�o muito.
� Pareceu a coisa certa a fazer. Sentei para conversar com
ela e n�o sei se ela lembra quem eu sou.
� Eu n�o sei... � Olhei para o ch�o, balancei a cabe�a com
resigna��o. � O que quer que estejam fazendo com ela, n�o
est� consertando nada. J� lhe deram drogas e todo tipo de
tratamento. Toda vez que vou l�, eles t�m outra inven��o
que � a f�rmula m�gica. Tudo me parece panac�ia universal
ou erva-do-diabo. O m�dico vem, com um terno de setenta
e cinco d�lares, todo afetado, com ar de superioridade, e o
que ele me diz n�o serve para nada.
� Sinto muito, Joseph. Mas isso n�o me surpreende muito
tratando-se de m�dicos e afins. Parece que esse pessoal fica
s� olhando o que j� aconteceu com a pessoa em vez de olhar
o que vai acontecer com ela.
Levantei as m�os e encolhi os ombros resignado.
� E o que �, xerife.
� O que a srta. Webber acha?
Ergui os olhos, intrigado.
� Alex?
� Claro, ela � professora, n�o? Mais esperta do que tr�s ou
quatro leigos juntos. N�o serve s� pra voc� comer, certo?
Ri. As palavras de Dearing sa�ram de forma direta e franca,
um boxeador profissional perfurando o espa�o entre n�s.
Palavras assim pareciam feitas de algo mais material do que
som; palavras sem luvas, com o nariz sangrando e feias. Era
uma qualidade que eu podia apreciar.
� O que ela acha? � respondi. � N�o sei... N�o perguntei
muito. Foi a primeira vez que a levei l�. Ela falou um pouco
no caminho, nada de especial de fato, mas eu n�o gosto de
conversar muito quando vou a Waycross.
� O que houve com Gunther Kruger?
A pergunta saiu do campo esquerdo com uma bola curva.
Desviei-me mas ela me pegou de esguelha e machucou um
pouco. No dia seguinte eu ainda a sentiria, talvez uma
equimose.
� Gunther Kruger? � Esquivei-me.
� A gente v� o que v�, Joseph � disse Dearing. Parecia
uma afirma��o bastante simples, mas, pela forma como ele
disse, pareceu outra coisa. �Voc� � escritor, n�o?
� Mais ou menos.
� Quer saber o que penso dos escritores?
� Muit�ssimo.
� Acha que eu n�o leio? Li aquele Rider Haggard,
Hemingway, gente assim. Li The informer, do irland�s,
como � o nome dele?
� O'Flagherty � disse eu. � Liam O'Flagherty.
� � esse a�.
� Estou admirado.
� Que eu saiba ler?
� N�o, xerife, que leia coisas assim.
� Tenho uma prima que trabalha na Biblioteca Estadual da
Ge�rgia em Savannah. Todo ano eles se desfazem sabe Deus
de quantos livros... ela seleciona algumas d�zias e manda
para mim.
� Ia me contar o que achava dos escritores.
� Eu ia � disse ele. � �s vezes eu gostaria de transformar
o que digo numa viagem para sentir que cheguei ao destino
quando n�o me perco.
Fiquei calado, esperando.
� Os escritores v�em o que os outros n�o v�em.
Ergui as sobrancelhas.
� Estou certo � disse Dearing. � Talvez seja mais preciso
dizer que v�em as coisas de maneira diferente. Concorda?
Encolhi os ombros.
� Acho que todo mundo v� o que eles v�em, e tem uma
maneira de ver diferente.
� Talvez � retrucou Dearing. � Mas um escritor nota
detalhes e coisas assim que os outros n�o notam, e v� esses
detalhes porque olha com outros olhos.
� Talvez � disse eu. � E est� me dizendo isso por causa
de...
� Por causa do que aconteceu com sua m�e e Gunther
Kruger.
N�o respondi.
Dearing sorriu, com uma express�o compreensiva.
� N�o estamos mais na escola, Joseph. � Inclinou-se �
frente e pousou as palmas das m�os na mesa. Pensei que
fosse usar o apoio para se levantar, mas ele simplesmente se
inclinou mais e olhou para mim. � N�o sou de
escarafunchar a vida pessoal de ningu�m. N�o considero que
seja da minha conta, e acho que nem se me oferecessem eu
haveria de querer.
Sua m�e e Gunther Kruger se acostumaram a ter a
companhia um do outro, isso � fato. Eu sei disso. Voc� sabe.
� certo como dois e dois s�o quatro que a sra. Kruger sabia.
N�o sei em rela��o �s crian�as. Crian�a, �s vezes, engana.
Olhos arregalados e inocentes, mas ouve cada palavra. �
Dearing fez uma pausa, recostou-se na cadeira. A cadeira,
talvez resignada com tal castigo, apenas resmungou um
pouco. � Eu me lembro, uma ocasi�o, uns tr�s ou quatro
anos atr�s. Um cara disse que a mulher foi envenenada... �
Dearing parou de repente. � Diabo, voc� n�o vai querer
ouvir hist�rias velhas sobre esse tipo de coisa. Outra hora a
gente fala disso. Enfim, onde � que eu estava?
� Minha m�e e Gunther Kruger.
� Certo, certo. Ent�o, como eu disse, acho que talvez
tenham acontecido coisas naquele tempo sobre as quais
voc� n�o pensava falar na �poca. Talvez n�o parecessem
importantes. Talvez n�o fossem, sabe? O tempo nos d� um
enfoque e uma situa��o diferentes. Eu me pergunto se voc�
pode ter alguma lembran�a que nos d� uma pista.
� Sobre as meninas que foram assassinadas?
� Claro, sobre as meninas que foram assassinadas.
� E acha que eu poderia saber de algo sobre isso porque era
vizinho dos Kruger.
� N�o, n�o porque voc� era vizinho dos Kruger... porque
tr�s das meninas eram daqui, uma era de Fargo, mas foi
encontrada no terreno de Kruger.
� Espere a� � disse eu. � Tenho a sensa��o de estar sendo
conduzido, xerife.
Dearing sorriu e balan�ou a cabe�a.
� Ningu�m est� conduzindo ningu�m, Joseph.
� Ent�o me pergunte o que quer perguntar que eu
respondo.
Dearing pigarreou.
� Sei que fui falar com voc� depois, mas n�o sei se algum
dia entendi o que aconteceu com a menina Keppler.
Franzi a testa.
� Me diga a verdade,Joseph... por que foi a Fleming naquele
dia?
Sorri e balancei a cabe�a.
� Isso � um trem, certo? Devia ter me contado que eu tinha
ganhado uma passagem e eu teria feito uma malinha para a
viagem.
-� N�o tem passagem nenhuma, Joseph.Vou lhe dizer uma
coisa. A curiosidade que tenho � mais ou menos desse
tamanho. � Dearing abriu os bra�os. � Acho estranho
voc� ter sabido da morte de uma menina de quem nunca
tinha ouvido falar, e ter ido at� o condado de Liberty. Isso
me fez pensar.
� Pensar em que, xerife... em como um assassino pode
voltar ao local do crime?
� N�o s� o assassino, Joseph, talvez algu�m que saiba algo
sobre o assassinato.
N�o respondi.
�J� tinha ouvido falar dessas coisas?
Fiz que n�o com a cabe�a.
� Acha que foi Gunther Kruger, n�o? Acha que Gunther
Kruger matou aquelas meninas na �poca, e voltou a matar de
novo, certo?
� O que acha?
� N�o acho nada, xerife Dearing.
� Ele parece o tipo de homem capaz de matar algu�m?
� Capaz de matar algu�m? Acho que qualquer um � capaz
de matar algu�m. D�-lhe o motivo e a oportunidade certos,
bem, quem sabe, hein? Talvez at� o senhor, xerife.
� Eu n�o estou em pauta, Joseph. O que est� em pauta � se
houve ou n�o alguma coisa naquela �poca que tenha lhe
dado a impress�o de que Gunther Kruger pudesse ter algo a
ver com as mortes. Na �poca, havia uma linha de a��o...
� Uma linha de a��o que p�s fogo na casa e matou a filha?
� perguntei. Eu estava come�ando a ficar irritado.
� Uma barbaridade � disse Dearing. � O que aconteceu
ent�o, n�o h� a menor d�vida. Foi uma barbaridade, uma
barbaridade, e eu, de minha parte, sinto uma
responsabilidade tremenda...
-� Por que se sentiria respons�vel? O senhor n�o acendeu o
fogo, n�o �? Ou acendeu, xerife? Ser� que aquela era uma
situa��o em que havia motivo e oportunidade suficientes...
Dearing ergueu a m�o.
-� H� li��es para se aprender na vida, Joseph. A gente pode
fazer uma experi�ncia e aprender com ela. E se precisar
repetir mostra que � tolo.
Franzi a testa.
�Voc� me aborreceu uma vez, indo para Fleming. Que
diabo, a �ltima pessoa que eu esperava ver l� era voc�. N�o
quero que me aborre�a de novo, Joseph.
Ergui a m�o de maneira conciliadora.
� Gunther Kruger era suspeito na �poca. N�o me importo
de lhe dizer isso. Sabe de uma coisa?Vou lhe contar isso por
um tost�o e voc� n�o precisa me pagar na hora. N�o havia
nada, absolutamente nada, que indicasse que a filhinha dele
tinha convuls�es...
� Ela era epil�ptica, xerife...
� Agora era? � Dearing recostou-se na cadeira. Enfiou o
polegar direito no cinto, com cara de quem estava satisfeito
consigo mesmo.
� Est� dizendo que n�o era?
Dearing fez que n�o com a cabe�a.
� Estou dizendo que n�o h� nenhum registro de que a
menina tivesse o grande mal ou qualquer coisa parecida.
� Ent�o as equimoses que vi...
� Eram simplesmente as equimoses que voc� viu, nada mais
nada menos que isso. Que diabo, Joseph, por mais que se
disfar�asse, havia alguma coisa errada naquela fam�lia. Eu sou
republicano, tanto quanto Robert Taft era, e n�o sei se sou a
favor de se vender terras da Ge�rgia para estrangeiros e
afins, mas tenho um respeito fundamental por meus
semelhantes e n�o lhes tenho rancor. Mas... � Dearing fez
uma pausa melodram�tica. Inclinou-se � frente para
enfatizar sua posi��o e a import�ncia de seu ponto de vista.
� Quando se trata de matar meninas, n�o tenho opini�o
formada sobre ningu�m, s� acho que a pessoa pode ou n�o
estar envolvida. N�o sou um desses ignorantes que odeiam
uma pessoa s� porque ela � de outro lugar. N�o importa
quem elas sejam, que cor tenham, que l�ngua falem, todas
s�o iguais perante a lei. O fato � que sua m�e, que Deus a
aben�oe, faz com o sr. Gunther Kruger igual a Lana Turner
naquele filme O Carteiro... O fato � que ela era uma mulher
decente e temente a Deus... Bem, que diabo, Joseph, n�o
consigo aceitar o fato de que sua m�e ter se envolvido com
Gunther Kruger sirva como alguma refer�ncia para o car�ter
dele. Eu... n�s... achamos que ele batia na menina, eu, Ford
Ruby, o xerife Fermor... Ele o � que voc� teve o prazer de
conhecer naquela tarde com a srta. Webber, certo?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Lembro-me dele, sim.
� Ent�o n�s tr�s tivemos umas reuni�es, e fizemos o que
fizemos, fizemos nossas perguntas e seguimos nossas pistas,
e n�o voltamos com nada para apresentar. Nada a n�o ser a
coincid�ncia do lugar onde as meninas foram encontradas.
Isso e o fato de considerarmos Gunther Kruger uma pessoa
que batia em crian�a.
� O que n�o � muito para acusar algu�m de assassinato.
� � verdade, mas, por mais inteligente que voc� seja, por
mais que fale dif�cil, e por mais que eu seja lento e met�dico
e n�o tenha mais centelhas na cabe�a do que um petardo
molhado, vou lhe dizer uma coisa que eu tenho, Joseph
Vaughan...Tenho persist�ncia, entende? Persist�ncia. Sou do
tipo que quando mete uma id�ia na cabe�a ningu�m
consegue tir�-la dali sen�o depois de muita briga, e, mesmo
assim, quem brigou sabe como foi dif�cil.
� Ent�o, o que est� dizendo? � perguntei.
Dearing recostou-se na cadeira. Assumiu o ar resignado e
filos�fico de quem tenta obter uma informa��o se fazendo
de descansado, quase como se o que eu pudesse dizer n�o
fosse muito relevante.
� O que estou dizendo � que tive Alice Ruth van Horne,
Laverna Stowell, Ellen May Levine, Catherine McRae e
Virginia Perlman, todas mortas entre novembro de 39 e
agosto de 42. Depois acontece isso com os Kruger. O
inc�ndio. A menina morre no inc�ndio, certo? Os Kruger
foram embora para onde quer...
� Uvalda, condado de Toombs � interrompi. � Parece que
uma prima dela tem uma fazenda l�.
Dearing balan�ou a cabe�a.
� Foi para l� que foram � disse �, mas n�o onde ficaram.
Franzi a testa. Eu perdera contato com os Kruger, nunca
perguntara o que acontecera com eles. Talvez, de alguma
forma, tenha sido um al�vio v�-los partirem. Sua presen�a
constante me lembraria a infidelidade do sr. Kruger e a
morte de Elena.
� Foram parar em Jesup.
� Onde?
� Jesup � disse Dearing. � No condado de Wayne. �
Abriu uma das gavetas da escrivaninha e retirou um mapa.
Desdobrou-o na mesa, levantou-se e fez um gesto para que
eu olhasse. P�s o dedo num ponto e olhei para esse ponto.
� A sexta menina, Rebecca Leonard, encontrada em 10 de
setembro de 1943, aqui em Meridan, condado de McIntosh.
Coloque o dedo ali.
Obedeci.
� A s�tima menina, Sheralyn Williams, encontrada em 10
de fevereiro de 1945, em Offerman, condado de Pierce. �
Dearing pegou uma moeda no bolso e colocou-o no ponto.
� E a� a oitava menina, como voc� sabe, encontrada aqui
em Liberty, condado de Fleming. Esther Keppler. Isso foi
justamente h� uns dias, em 21 de dezembro. � Dearing
olhou para mim, cada um de n�s de um lado da mesa,
debru�ados sobre aquele mapa com nossos dedos ali em
cima como se f�ssemos Bl�cher e Wellington em Waterloo.
� Ent�o, o que v�?
�Vejo tr�s locais com Jesup no centro.
�Vejo a mesma coisa. Os tr�s n�o ficam a mais de
cinq�enta quil�metros em linha reta.
� O que n�o quer dizer grande coisa.
� Mas ao mesmo tempo n�o quer dizer nada.
� E o fato de essas tr�s localidades formarem um tri�ngulo
em cujo centro est� Jesup lhe diz que Gunther Kruger foi o
autor dessas mortes.
Dearing riu com desd�m e dobrou o mapa.
� N�o, merda, n�o me diga nada disso.
Fiquei intrigado. N�o sabia aonde Dearing queria chegar
com suas insinua��es e indiretas.
� Tenho oito meninas mortas, Joseph, nove contando com
a menina Kruger. Ela n�o faz parte disso na minha cabe�a.
Kruger n�o teria posto fogo na pr�pria casa. Aquele inc�ndio
foi causado por algu�m que achava que Kruger merecia. Ou
isso, ou por acidente. Ent�o, como eu disse, tenho oito
meninas mortas, a mais mo�a de sete anos, a mais velha, de
onze, e quatro xerifes de quatro condados diferentes
incapazes de responder a quaisquer perguntas dos pais das
v�timas sobre o que poderia ter acontecido e quem poderia
ter feito isso. Tenho um suspeito, talvez dois, e nada sobre
nenhum deles. Estou nisso, e esses crimes come�aram h�
seis anos...
� � o que a gente acha � interrompi.
� O qu�?
� H� seis anos, � o que a gente acha � repeti. � Os crimes
podem estar acontecendo h� muito mais tempo, a gente
podia s� n�o saber.
Dearing fez que n�o. De perto percebi o quanto ele tinha
envelhecido. Seu rosto estava todo sulcado com vincos
finos, n�o tanto rugas como pontos de deteriora��o, onde a
for�a invasora do tempo usurpara o territ�rio da juventude.
Seu rosto parecia uma foto amassada e desamassada que
nunca voltaria a ficar lisa.
� N�o sei se quero ouvir uma coisa dessas � disse Dearing
baixinho. Sua voz estava cansada, um tanto perturbada.
� Sinto muito, xerife, n�o tive a inten��o de...
Dearing levantou a m�o e balan�ou a cabe�a.
� Esque�a. S� estou a fim de falar, e o conhe�o desde que
voc� era dessa altura, e isso com a srta. Webber... �
Dearing fez uma pausa e olhou para mim. � Que idade ela
tem, Joseph?
Sentei-me e olhei para ele.
� Tem vinte e seis, xerife, eu j� lhe disse.
Dearing tamb�m se sentou, empurrou o mapa para a beirada
da mesa.
� Claro que sim, claro que sim. Mas...
Sorri para Dearing.
� Sabe de uma coisa? Meu racioc�nio � sempre reto e direto,
xerife. O senhor tem uma opini�o, eu vou ouvir. N�o tem
problema se a gente concorda ou n�o. Cada um tem sua
opini�o, sempre foi assim, sempre ser�. Tenho certeza de
que tem gente que se consola criticando os outros. Essa
gente, no que me diz respeito, � amarga e cheia de
schadenfreude.
� Shada o qu�?
� Schadenfreude... � uma palavra que descreve o tipo de
pessoa que se compraz com a mis�ria alheia. Sabe o que
quero dizer, certo?
� Que diabo, se eu sei o que voc� quer dizer � disse
Dearing. � Isso resume a irm� da minha mulher, a velha
falsa que �.
Ri da express�o de Dearing, como se ele tivesse tomado um
bocado de limalhas de cobre.
� Enfim, se tem alguma coisa a dizer, ent�o diga. N�o sou
do tipo que se ofende facilmente.
Dearing encolheu os ombros.
� Droga, Joseph, essa sua cara... Cristo, n�o sei bem que
diabo voc� lembra. Rasputin ou coisa assim, certo? Seu
cabelo est� comprido demais, e essa barba que voc� parece
t�o decidido a usar deixa-o com cara de maluco. E agora isso
com a professora. Voc� quase foi parar no tribunal do
distrito por se expor num lugar p�blico, por conduta l�brica
e lasciva... Voc� teve sorte, s� isso, sorte por Burnett Fermor
n�o ter lhe tirado o couro ali. Esse tipo de coisa, ao lado da
sua apar�ncia... bem, Joseph. Burnett Fermor n�o foi o �nico
a olhar na sua dire��o por causa dessas mortes.
Levei um susto. Por um instante, n�o consegui respirar.
Tentei dizer algo, mas nada sa�a.
�Voc� encontrou a menina Perlman � prosseguiu
Dearing. �V�rias das v�timas foram encontradas perto da
sua casa. � at� poss�vel que o inc�ndio tenha sido causado
por voc� para desviar o foco da aten��o.
� O qu�?
� N�o � nada, Joseph... s� pessoas assustadas com mais
medo do que bom senso. � assim que come�a qualquer tipo
de preconceito. As pessoas ficam com medo,
principalmente as ignorantes, e n�o t�m o que fazer, ent�o
enchem o tempo com afli��es. � f�cil... olhe como � com os
negros. Se falta alguma coisa, bem, tem que ser um negro. Se
ouve dizer que uma casa foi arrombada, bem, tem que ser
um negro. O neg�cio aqui em Augusta Falls n�o �
brincadeira, e quem deve lhe dizer isso sou eu porque, com
certeza, ningu�m mais vai dizer.
� N�o acredito!
�Voc� tem que acreditar no que est� acontecendo aqui,
Joseph. J� est� acontecendo h� anos. As pessoas est�o
realmente apavoradas. Querem saber o que est� havendo.
N�o querem ouvir falar no n�mero de pistas que seguimos,
nos boatos que ouvimos. N�o querem saber dos vagabundos
que tiramos de dentro de furg�es e seguramos por dois dias e
duas noites antes que estivessem bastante s�brios para
responder a perguntas. Querem que a gente lhes entregue a
cabe�a de um assassino de crian�as, � s� o que querem. �
Dearing suspirou exasperadamente. � Telefonemas
an�nimos. Nossa, voc� quer saber dos telefonemas
an�nimos, e todos eles, sem exce��o t�m que ser
rastreados... � Fechou os olhos. � O que voc� tem que
entender, Joseph, talvez mais do que qualquer outra coisa, �
que � preciso respeitar as expectativas dos outros, sen�o h�
preconceito.
� Isso � loucura, xerife � interrompi. � Isso � t�o al�m...
� Acalme-se � disse Dearing.
Eu agarrava os bra�os da cadeira com tanta for�a que minhas
m�os do�am.
� Isso n�o � uma acusa��o, Joseph. N�o � nada sen�o boatos
e disse-me-disse espalhados por gente que devia conhec�-lo
melhor. � gente que est� assustada, gente que perdeu uma
filha e quer respostas, quer saber quem � o respons�vel, e
quando se tem gente assustada falando junto o instinto
natural � olhar para quem quer que seja um pouco diferente,
um pouco fora do comum.
� Mas o senhor n�o pode estar falando s�rio... n�o pode me
dizer que as pessoas em s� consci�ncia acham que tive
alguma coisa a ver com o assassinato das meninas.
� O que as pessoas acham e o que � verdade n�o s�o a
mesma coisa, pode acreditar. S� estou dizendo que quando
Gunther Kruger estava aqui, elas viam um estranho, um
alem�o, e uma menina com manchas roxas no bra�o. Havia
uma guerra acontecendo. J� havia um clima azedo, e conse-
guiram se convencer de que Kruger era o homem. Sei que
n�o foi voc� quem p�s fogo na casa. Acho que n�o tem
nenhuma id�ia assassina. Mas agora Kruger foi embora,
como se tivesse desaparecido da face da Terra, e as pessoas
est�o sem nada. Ent�o, o que v�o fazer, hein? O que v�o
fazer sen�o olhar para o outro que sobressai, que � um
pouco diferente?
Dearing fez uma pausa para recobrar o f�lego.
� E o senhor deixa que pensem isso? � perguntei, sem nem
acreditar que estivesse envolvido numa conversa daquele
tipo.
� Caramba, Joseph, quem voc� pensa que eu sou? Acha que
tenho alguma influ�ncia no que as pessoas pensam e fazem?
Elas n�o est�o infringindo a lei tendo opini�o pr�pria, e se
come�am a falar quando tomam umas cervejas, se as
mulheres naquelas reuni�es para confeccionar colchas
come�am a dar corda umas �s outras, o que diabo devo
fazer? Acha que devo fazer que me convidem para todas as
reuni�es sociais em Augusta Falls s� para entreouvir cal�nias
a respeito de Joseph Vaughan e dizer o que penso?
Fiz que n�o. Estava nervoso e envenenado. N�o sabia o que
dizer.
� S� estou lhe dizendo que voc� deve se responsabilizar um
pouco pela forma como as pessoas o v�em. Est� me
entendendo? Voc� n�o � mais crian�a, Joseph. N�o � mais
um dos Guardi�es. J� � adulto, e a imagem que as pessoas
fazem de voc� � baseada no que v�em, nada mais nada
menos que isso.
Encarei Dearing. Eu sentia que a cor me fugira do rosto.
Imaginei que parecesse um homem assombrado, talvez o
fantasma que estivesse assombrando.
� Est� dizendo que devo consertar minha imagem para ser
igual a todo mundo. Sen�o podem vir tocar fogo na minha
casa enquanto eu estiver dormindo. E a�, que diabo, podem
pegar a professora tamb�m, e isso n�o tem a menor
import�ncia porque ela � s� a mulher que est� dando para o
assassino das crian�as afinal de contas.
Dearing franziu a testa e balan�ou a cabe�a.
� Merda, garoto, voc� est� brabo, n�o?
Inclinei-me � frente. Eu estava cansado. Minha
determina��o diminu�a, como a press�o de um pneu com
um pequeno furo. O cora��o como um punho que estivesse
cerrado s� para se mostrar. Esse punho n�o planejava se ligar
com nada.
� O qu�? � perguntou Dearing.
Franzi a testa.
� Parece que voc� est� pronto para...
� Matar algu�m? � disse eu num tom sarc�stico e amargo.
�Voc� � que est� dizendo � retrucou Dearing.
� Mas o senhor me botou a id�ia na cabe�a.
� O diabo bota id�ias assim na cabe�a das pessoas, Joseph.
� � mesmo?
� Creio que sim.
Assenti com um gesto de cabe�a, olhei para a porta.
� Tem uma linha interna com ele? Ele mandou o senhor vir
falar comigo?
Dearing fez um gesto de desaprova��o. A boca virou para
baixo nas comissuras como se ele fosse dobr�-la e mand�-la
embora.
� Agora voc� est� dizendo um total desatino.
� Bem, se matei algumas dessas meninas e toquei fogo na
casa de Gunther Kruger... ah, caramba, n�o podemos
esquecer que trouxe a professora para o mau caminho e...
Dearing ergueu a m�o.
� N�o vamos ter esse tipo de conversa, Joseph Vaughan.
Conhe�o voc� melhor do que pensa. Sei que n�o matou
ningu�m. Sei que n�o incendiou a casa do Kruger e nunca
disse que fez isso. Estou cuidando de voc�, garoto. Estou lhe
dizendo que as pessoas ficam assustadas. Essas pessoas n�o
s�o as mais espertas, hein? Aquele seu amigo, Reilly
Hawkins. Com certeza, ele n�o � a luz mais brilhante do
porto, mas � o mais esperto que voc� conhece. Basta uma
palavra. Voc� sabe o que eu quero dizer: Joseph Vaughan...
que diabo, ele n�o tem um aspecto direito... J� ouviu falar
dele com a professora? Uma mo�a boazinha daquelas,
tomando conta daquela crian�ada toda. Ouvi dizer que ele
foi com ela de carro ao condado de Clinch e fez coisas com
ela na traseira de uma picape e Burnet Fermor teve que ir l�
lhe fazer uma advert�ncia... Entende aonde vou chegar com
isso, Joseph, ou saltou no �ltimo cruzamento?
Fiz que sim. Eu me sentia abatido. Sabia o que estava
acontecendo. Sabia que Dearing n�o estava me coagindo.
Me incomodava o fato de questionarem quem eu era, de
quererem que eu mudasse de apar�ncia, de jeito... Que
diabo, me incomodava o fato de n�o poder ser quem quer
que eu quisesse ser sem que as pessoas interferissem.
� Compreendo � disse baixinho.
� �timo � respondeu Dearing. �Ainda bem.
� Posso ir agora?
� Pode. Acredito que vamos continuar nos dirigindo a
palavra, n�o �, Joseph? � Dearing levantou-se da cadeira
surrada e estendeu a m�o.
Aceitei-a e nos cumprimentamos.
� Com certeza, nunca foi diferente.
� E voc� vai dar uma olhada numas coisas e talvez...
� Imaginar como convencer o povo de que n�o sou um
assassino de crian�as?
Dearing apertou os olhos. Inclinou a cabe�a de lado e me
olhou com o canto do olho.
� Menos humor, Joseph... N�o � o tipo do humor que o
pessoal daqui entende. N�o se esque�a de que � bem mais
esperto que a maioria. Eles n�o entendem o sarcasmo. Voc�
diz coisas que eles n�o entendem e eles simplesmente se
tornam maldosos.
� Tudo bem. Estou cansado. Vou para casa. � Levantei-me
e me encaminhei para a porta.
� Venha falar comigo se houver algum problema, sim?
Acho que � meu dever tomar conta de voc� considerando o
que aconteceu com seus pais.
� Agrade�o, xerife, mas acho que n�o precisa se preocupar.
Dearing sorriu.
� � a preocupa��o que me deixa com uma apar�ncia t�o
jovem.
Tirei a barba. Cortei-a com a tesoura e depois ensaboei o
rosto com alcatr�o de carv�o e raspei tudo. O homem que
me olhava havia perdido v�rios anos. Eu tinha o rosto do
adolescente que era.
Durante a semana que Alex esteve fora, quase n�o sa�.
Escrevi bastante. Frases, par�grafos, pensamentos aleat�rios.
Enchi um caderno e a� comecei a escrever em peda�os
soltos de papel.
No dia 4 de janeiro fui de carro � rodovi�ria peg�-la, e ela
olhou duas vezes quando me viu ali em p�.
� Sua barba � disse.
Sorri. Senti-me incrivelmente jovem. Ela estava com um
vestido de seda � azul-claro debruado de marfim na bainha
e nos punhos. N�o parecia velha, mas parecia mais velha do
que quando partira. Como se a diferen�a entre n�s tivesse
aumentado.
Abra�amo-nos na cabine da picape. Ela era quente, era real e
acess�vel. A solid�o n�o combinava comigo.
� Preciso que corte meu cabelo quando a gente chegar em
casa � disse.
Ela franziu a testa.
� Por qu�?
� Democracia.
� Democracia?
� Um estado, ou uma sociedade, caracterizado por
toler�ncia para com as minorias, liberdade de express�o,
respeito pela dignidade e pelo valor do indiv�duo humano
com oportunidades iguais para cada um se desenvolver
plenamente...
�Joseph! � cortou ela. � Chega... O que � isso? O que est�
havendo?
� Democracia, o que supostamente temos neste pa�s. �
Contei-lhe sobre meu encontro com Dearing no dia em que
ela partiu. � Ent�o voc� entende � acrescentei. � Depois
que Gunther Kruger desapareceu, tornei-me o Inimigo
P�blico N�mero 1.
Ela riu.
�Vamos para casa � disse.
Balancei a cabe�a.
�Voc� n�o entende.
� Entendo que passou uma semana sozinho. Entendo que
viveu � base de cerveja de salsaparrilha e hamb�rguer, que
deve ter passado as noites inteiras escrevendo furiosamente,
que precisa de um banho quente, uma boa trepada, e a� o
que sair da sua boca vai parecer muito menos louco e menos
paran�ico.
� � s� o que tem a dizer?
Alex virou-se e me olhou. Ergueu as sobrancelhas e inclinou
a cabe�a para o lado.
� Dirija � disse com objetividade, fazendo um gesto com a
m�o em dire��o ao p�ra-brisa. � Cale essa boca e dirija, seu
maluco.
No dia seguinte, fui � cidade fazer um servi�o. Parei na
biblioteca p�blica, pedi jornais de tr�s anos antes. Encontrei
aquelas mat�rias dedicadas a Rebecca Leonard e Sheralyn
Williams. Nada me esclareceram, a n�o ser que as meninas
haviam sido encontradas mortas. Rasguei as p�ginas e as
roubei. Mais tarde, em casa, recortei as mat�rias e guardei-as
na caixa. Oito recortes. Oito meninas mortas. Imaginei o que
Dearing diria se desse uma busca na minha casa e os
encontrasse.
As For�as americanas prenderam Ezra Pound na It�lia e o
deportaram para os Estados Unidos. Ele foi declarado louco e
internado no manic�mio de St. Elizabeth, em Washington,
D.C. Dizia-se que cinq�enta mil mo�as inglesas
embarcariam para os Estados Unidos, todas "noivas de
guerra" de soldados lotados no estrangeiro. Houve motins
em Paris por causa da falta de p�o. A Uni�o Sovi�tica relatou
a descoberta de cento e noventa mil cad�veres na Sil�sia.
Acreditava-se que fossem prisioneiros de guerra russos,
ingleses, poloneses e franceses. Os nazistas que haviam
escapado do Tribunal de Nuremberg procuravam ref�gio na
Argentina. Li os jornais. Observei o mundo se
desvencilhando dos horrores da guerra. Tais acontecimentos
eram os marcos da minha vida; os sinais de pontua��o que
quebravam o ritmo da minha exist�ncia.
Continuei trabalhando fora, consertando cercas, ajudando na
perfura��o de covas para semear e nas colheitas. Alex e eu
falamos em nos mudar de Augusta Falis, mas depois ela
concordou em lecionar por mais dois anos na escola. N�o
brigamos por causa dessa decis�o, embora ela parecesse ir
contra o que hav�amos imaginado. A verdade era simples:
apesar de ter pensado em me mudar, tamb�m me dei conta
de que n�o havia para onde ir. Sem uma dire��o, nunca
houvera de fato um plano. Sem uma dire��o, n�o havia
ilus�o.
Quando n�o estava trabalhando, eu ficava em casa e
escrevia. Escrevi um conto sobre um homem que escapou
de morrer por um triz, e depois ficou achando que enganara
a Morte. Imaginava que via a Morte nas sombras, "olhos
amarelos, de um amarelo vivo como uma chama de enxofre,
e em volta o cheiro desagrad�vel do metal quente, nas m�os,
oferendas como pneumonia, pelagra, estrangulamento,
gangrena, uma queda sufocante de alguma altura sem fim", e
quando o conto ficou pronto, enviei-o � New York Review.
Eles me mandaram quarenta e sete d�lares e publicaram o
conto na terceira semana de junho. Recebi a carta de um
leitor, encaminhada da reda��o da Review, e o leitor � "Sr.
Cordeiro de Deus Arrependido � me explicou em termos
que n�o davam margem a d�vida que eu estava defendendo
e favorecendo a obra de L�cifer ao apoiar uma publica��o
daquelas; e citando Ezequiel: "Visto que fizestes ser
lembrada a vossa iniq�idade, descobrindo-se as vossas
transgress�es, aparecendo os vossos pecados em todos os
vossos atos (...) est� erguida uma espada para a carnificina,
est� polida a ponto de desprender clar�es..." Pensei em
responder e perguntar como o Sr. Cordeiro de Deus
Arrependido conseguira seu exemplar da Review, mas n�o
fiz isso. Guardei a carta com a da comiss�o julgadora do
concurso de contos de Atlanta. Eram a prova de que de
alguma forma eu alcan�ara o mundo, e o mundo respondera.
Quando se aproximou o inverno, passei mais tempo com
Reilly Hawkins. Ele parecia envelhecer dois ou tr�s anos
para cada um dos meus. Estava mudado. Os olhos quietos e
reflexivos como se h� muito tempo exaustos de carregar um
fardo sem fim, como se uma filha tivesse desaparecido, ou
uma esposa tivesse ido embora com um homem inferior.
Reilly nunca tivera nem perdera, mas mesmo assim seus
olhos falavam de uma fome espiritual jamais saciada.
� Eu tinha uma irm�, sabe? � disse uma ocasi�o. Est�vamos
sentados na cozinha.
Ergui as sobrancelhas.
� Uma irm�? Pensei que s� fossem voc�, Levin e Lucius.
� N�o, a gente tinha uma irm� tamb�m. Uma s�. � Reilly
sorriu com nostalgia. � Linda. Cabelos cor de areia. Foi
atingida por um raio quando pequena. � Reilly olhou para
mim e sorriu. � Depois disso, n�o podia usar rel�gio... se
pusessem um rel�gio nela, os ponteiros andavam para tr�s.
Incr�vel. A coisa mais estranha que j� vi. � Reilly encolheu
os ombros. � Hope... era o nome dela. Hope Hawkins.
� E onde est� ela? � repeti.
� Hope? Ela tamb�m j� morreu.
� Morreu como?
� Caiu do cavalo e quebrou o pesco�o. Com onze anos.
� Meu Deus, Reilly, por que n�o me contou sobre isso
antes?
Reilly baixou a cabe�a e respirou lentamente. Quando olhou
para cima, tinha os olhos marejados.
� Acho que tem algumas coisas que a gente treina a mente
para n�o lembrar.
Pensei em como eu fora aos poucos apagando minha m�e
dos meus pensamentos do dia-a-dia. Ela me pegava
desprevenido de vez em quando. Um cheiro, um som, algo
no fundo de uma gaveta, um pequeno objeto sem im-
port�ncia de repente com for�a suficiente para evocar uma
lembran�a com todas as cores e todas as emo��es que
acarretava. Tais coisas ocorriam, mas, com a idade, achei que
eu as fizera surgir cada vez com menos regularidade.
� Sei como � � arrisquei.
Reilly sorriu.
� Sei que sabe � murmurou. � Sei que sabe.
N�o tornamos a falar de Hope, nem de Levin. Bebemos
limonada e depois ele montou uma polia no celeiro para i�ar
o motor do seu trator.
Mais tarde Reilly disse que tinha lido meu conto, que Alex
lhe dera um exemplar da New York Review.
�Voc� deve seguir a luz � disse.
� Luz? Que luz?
� Algumas pessoas t�m uma luz, Joseph... como um
caminho, uma raz�o de ser. Uma coisa dessas � rara, e
quando se tem uma, deve-se segui-la. Seu conto fez muito
sentido para mim. Voc� consegue encadear todo tipo de
palavra de tal forma que as pessoas entendem. E isso que
voc� deve fazer, n�o sujar as unhas de graxa consertando
motores comigo.
� Gosto de ajudar voc� � disse eu. � Gosto de consertar
motores.
Reilly balan�ou a cabe�a.
� Esteja � vontade, Joseph Vaughan.
N�o disse mais nada, mas depois falei com Alex.
� Ent�o escreva o livro � disse ela.
� O livro? � retruquei, e pensei em como come�ara algo
havia tanto tempo. Pensei em Conrad Moody, na
Provid�ncia e nas Tr�s Parcas.
� O que est� sempre dentro de voc� � disse Alex.
Eu ri.
� Estou falando s�rio � disse ela. Levantou-se da cadeira �
mesa da cozinha. Deu a volta e ficou em p� atr�s de mim.
Massageou meus ombros e senti a tens�o do dia escoar como
�gua. � Todo mundo tem um livro no cora��o � disse ela.
� Algumas pessoas t�m dois ou tr�s ou vinte. Quase todo
mundo sabe disso, mas n�o consegue fazer muita coisa a
respeito. Voc� pode, ent�o deve. Sen�o vai ficar aborrecido
com voc� mesmo, o tipo do aborrecimento que est� toda
hora voltando para lhe lembrar que n�o vai embora.
Na manh� seguinte, fui de carro at� a Fl�rida. Encontrei uma
livraria de tr�s andares em Jacksonville, comprei um
exemplar de Vocabularies, de Hartrampf, The Thirty-Six
Dramatic Situations, de Polti,um livro chamado Plotto: A
new method of plot suggestion for writers of creative
fiction, de William Wallace Cook. Sentei numa loja de
refrigerantes na esquina de Cecil e Fernandina. Bebi um 7-
Up, li uns par�grafos, tentei me convencer de que era aquilo
que eu faria: escreveria um livro: O grande romance
americano, de Joseph Calvin Vaughan. Minha confian�a
durou pouco mais que vinte minutos. Juntei os livros e
joguei-os numa lata de lixo na cal�ada em frente. Perambulei
por mais uma hora, depois voltei para Augusta Falis.
Quando cheguei � tardinha, com um exemplar da revista
Mademoiselle para Alex, fiquei sabendo que outra menina
havia sido assassinada.
Era quinta-feira, 10 de outubro de 1946, v�spera do meu
d�cimo nono anivers�rio.
DEZESSEIS
A imagem de Virginia Grace Perlman invadiu meus sonhos.
Sons tamb�m... Como o som de um pau pesado arrastado
por uma cerca de estacas, ou escada abaixo, por�m mais
pesado que isso, como algu�m golpeando algo...
E sentimentos que estavam apertados no meu peito,
apertados como a fam�lia; sentimentos que tive quando a vi.
Deitada, ela estava.
Deitada como se estivesse descansando.
Um longo descanso. O longo descanso do resto da sua vida.
Vi as solas dos seus sapatos.
E por mais que eu tentasse, por mais que falasse com Alex,
por mais que acordasse suando na friagem do alvorecer,
continuava sentindo aquelas coisas, vendo...
... folhas de outono se enrolando nos galhos como m�os de
crian�a, m�os de beb�: um �ltimo esfor�o desalentado para
captar os resqu�cios de ver�o da pr�pria atmosfera, e segur�-
los, segur�-los na pele, pois em breve seria dif�cil recordar
qualquer coisa sen�o a umidade triste e inchada que parecia
nos envolver sempre.
E pensando em como ela deve ter se sentido...
Pare! Me ajude... Ai, Jesus, me ajude!
Uma garota assim, os bra�os, uns gravetos, as pernas, uns
cambitos, cabelo feito linho, cheiro de p�ssego, os olhos,
duas contas de safira desbotadas.
E perceber que acontecera de novo.
E dessa vez, como na outra, n�o houvera ningu�m para
ajud�-la.
O nome dela era Mary. Como o de minha m�e. Mary Tait.
Nascida em Surrency, condado de Appling, a trinta e dois
quil�metros de Jesup, e oito para l� da divisa do condado de
Wayne. Tinha doze anos, nunca faria treze. Quatro dias
depois de seu corpo ter sido descoberto, uma foto foi
publicada na Gazeta do Condado de Appling. Mary Tait era
uma menina bonitinha de olhos grandes que pareciam
esperar o que ela achava que o mundo lhe daria, o que
achava que poderia dar em troca, e essa express�o seria tudo
o que o mundo conheceria dela. Recortei o artigo, guardei-o
na mesma caixa que os outros. Alguns deles estavam
desbotando, as letras como se vistas atrav�s de uma n�voa.
O pouco que sobrou do tronco e da cabe�a de Mary Tait fora
encontrado numa cova rasa perto de Odum. Odum ficava
perto do rio Little Satilla, um afluente de seu grande irm�o
que bifurcava perto de Screven. As duas m�os haviam sido
cortadas, assim como as pernas e as coxas. Estas nunca foram
encontradas, e pelo que se podia ler na terra e nas pedras
parecia que as partes do corpo haviam sido atiradas no rio e
levadas pela correnteza. Odum ficava pr�ximo ao condado
de Wayne, a terra natal de Mary Tait era Appling. Agora
havia um representante de cada delegacia: Dearing, de
Charlton; Ford Ruby, de Camden; Fermor, de Clinch; Lan-
dis, de Liberty, e os dois novos � John Radcliffe, de
Appling, e George Burwell, de Wayne.
A primeira reuni�o deles se realizou em Jesup, um ponto
central e mais pr�ximo do local onde o corpo de Mary fora
encontrado. Era quinta-feira, 15 de outubro. A chuva
martelava as estradas e os campos, brutal e sem tr�gua, e o
abafamento da atmosfera se prestava � melancolia sinistra da
reuni�o. Eles se encontraram no meio da tarde, mas o c�u
encoberto trouxera as sombras mais escuras da noite.
Pensei em minha m�e; que ela julgava saber a identidade do
assassino das crian�as.
� Acho que n�o � disse Alex. � Ela �... bem, ela �...
� Louca? � arrisquei.
Est�vamos sentados na cozinha da casa de Alex. Eu sabia da
reuni�o de Jesup. N�o conseguia pensar em quase mais nada.
Seis condados, seis xerifes, nove meninas mortas.
Alex sorriu e desviou o olhar.
� N�o h� uma maneira f�cil de dizer a verdade, h�?
� Por que procurar uma maneira f�cil � perguntei. � A
verdade � a verdade. Seja l� qual for. Ela � louca. N�o sei por
que, e agora n�o importa muito. Aonde quer que tenha ido,
n�o tem volta. Isso eu sei. Ela � louca, Alex. Talvez a culpa a
tenha feito perder a cabe�a.
� Culpa?
Ri. Saiu um som oco, com contornos de amargura, mas eu
n�o me sentia amargo � n�o ali, n�o depois daqueles anos
todos, de tudo o que aconteceu.
� Aquilo que aconteceu com Gunther Kruger...
Alex ergueu a m�o.
� Sim � disse ela com �nfase. � Sim, claro... sinto muito,
pensei que voc� estivesse falando de outra coisa.
N�o respondi. Fui at� a janela. A chuva, uma torrente suja,
a�oitava sem piedade; um ataque fluido. O c�u estava
alaranjado, ficando acinzentado nas beiradas, como carne
estragada. O ar estava carregado, e dif�cil de respirar. Parecia
que o c�u tinha jogado uma cortina entre n�s e o restante do
mundo. Mais tarde, minutos talvez �- eu estava sem no��o
do tempo �, ela perguntou:
� Em que est� pensando?
� Pensando? � Virei-me. � Estou pensando na reuni�o em
Jesup.
� � por causa da menina que voc� encontrou?
Franzi o cenho.
� O qu�? Como assim?
Alex olhou para mim sem se enganar.
� O fato de voc� n�o conseguir largar isso. O fato de que
isso parece consumir voc�.
� Isso n�o me consome � retruquei. � O que lhe d� a
impress�o de que me consome?
Ela fez um gesto despreocupado com a m�o.
� N�o sei para onde voc� foi... sinto que voc� tamb�m n�o
sabe.
Sorri. Alex tinha um jeito de me lembrar quando os limites
entre o que era interno e o que era externo desapareciam.
� O que aconteceu com seu livro? Voc� ia escrever um
livro.
Abri a boca para falar, fechei-a, balancei a cabe�a.
� Acho que n�o tenho muito que dizer neste momento.
Alex ficou algum tempo calada, depois se levantou e veio ao
meu encontro. A express�o de seu rosto era inescrut�vel, a
pele, clara e luminosa, um c�ntaro de orqu�dea iluminado
por tr�s pela luz da manh�. Seus olhos, fundos, se
estreitavam � medida que ela se aproximava de mim. Eu j�
vira aquilo.
Fiz men��o de falar.
Ela me alcan�ou, ergueu a m�o, encostou o indicador na
minha boca.
� Fantasmas � murmurou. Inclinou-se � frente e colou o
rosto no meu.
� Fantasmas? � perguntei.
� Todo mundo tem fantasmas, Joseph... fantasmas do
passado, fantasmas do presente, fantasmas do futuro.
� N�o enten...
� Psiu. � Ela chegou um pouquinho para tr�s e me encarou
com aqueles olhos cor de cent�urea que de alguma forma
ainda lembravam o sol de Syracuse. � Ningu�m sabe o que
aconteceu. Ningu�m sabe, salvo o pr�prio assassino. Sua
m�e n�o sabe, seis xerifes de seis condados n�o sabem. Eles
n�o v�o parar de falar no assunto, mas, a menos que ele fa�a
alguma coisa para lhes dar um nome, um rosto, uma pista da
sua identidade, vai ser tudo conversa. As palavras s� t�m
utilidade se dizem algo que valha a pena ouvir.
Alex fez uma pausa; agarrou minha m�o direita, levantou a
sua esquerda e encostou-a no meu rosto.
�Voc� tem muita coisa a dizer, Joseph Vaughan, sempre
teve. Mesmo na inf�ncia...
� N�o quero que me lembrem da minha inf�ncia...
Ela riu.
� Por qu�? Deus, Joseph, voc� tem dezenove anos. J� � um
homem, n�o um garotinho. Temos uma boa diferen�a de
idade, e se ainda n�o aceitou isso, provavelmente nunca vai
aceitar.
Ela tentou se afastar.
Agarrei-a, segurei-a com firmeza, puxei-a para mim e a
beijei � for�a.
Alex me empurrou e se afastou de novo.
� Talvez voc� deva pensar no que tem, n�o no que...
Colei minha boca na dela e a fiz se calar. Senti seus olhos se
arregalarem. Recuei e olhei para ela.
� Ent�o? � disse ela.
� Ent�o o qu�?
� Ent�o voc� vai continuar mal-humorado e atormentado
por causa de algo a respeito do qual n�o pode fazer nada, ou
vai ser um escritor?
Sorri e fiz que n�o com a cabe�a.
� Esse � um gesto de reconhecimento da sua burrice ou de
d�vida quanto � sua resposta?
� O primeiro.
�Voc� admite ser burro? � brincou ela.
� Admito ser burro o bastante para tolerar sua companhia.
� � mesmo?
� Sim.
� E acha que esse � o tipo da conversa que seduz uma
mo�a?
� N�o tenho que seduzir voc�.
� Ah, n�o tem, �? E por qu�? Eu ri.
� Porque voc� � minha, Alexandra Webber, porque voc� �
minha.
� Foda-se, Joseph Vaughan.
� Foda-se voc�.
� N�o depois do jeito com que voc� me falou.
� � mesmo?
Ela sorriu com mal�cia.
� �.
Agarrei as m�os dela, segurei-as junto � lateral de seu corpo,
depois a girei, deixando-a de frente para a porta da cozinha.
� Para cima � disse eu, e me inclinei para morder seu
ombro.
Ela uivou de dor e tentou se desvencilhar. Segurei-a com
mais firmeza, levei-a at� o p� da escada.
� Se voc� acha que vai me fazer subir, isso vai ter
conseq��ncias � disse ela.
� Ah!, eu tenho aqui uma conseq��ncia, amorzinho, pode
acreditar... E sem d�vida nenhuma j� est� quase no ponto.
Ela riu tanto que quase a soltei.
Naquela noite, a noite da reuni�o dos xerifes em Jesup,
fizemos amor como se quis�ssemos nos vingar de um crime
desconhecido.
Dez dias depois, voltei da casa de Reilly, onde estava
fazendo um servi�o. Atravessei o campo e peguei a rua da
minha casa.
Avistei Alex na varanda a uns cinq�enta metros. Ela estava
parada, e mesmo sem se mexer havia algo nela, algo que
senti...
Acelerei o passo. Sa� correndo. Quando cheguei ao fim da
rua e peguei o caminho, eu ofegava.
Ela n�o se mexeu. Nem quando a alcancei, de bra�os
abertos, ela se mexeu.
Abri a boca para lhe perguntar o que tinha havido.
Ela abriu um sorriso. Logo estava �s gargalhadas.
� N�o... � disse eu. -�Tem certeza?
Ela fez que sim, recuou e sentou-se na escada.
� Tenho certeza, Joseph... absoluta.
� Ah, meu Deus � murmurei. Ajoelhei-me diante dela.
Abracei sua cintura, apertei-a, e a�, lembrando-me de
repente da press�o, soltei-a. � Desculpe � falei, notando o
quanto eu a espremera.
� Tudo bem � disse ela. �Tudo bem.
Fiquei euf�rico, num entusiasmo quase sem f�lego; e senti
outras coisas que eu n�o conseguia nem come�ar a
descrever. Era, mais do que nunca, como se eu estivesse
nascendo.
�Meu Deus, Alex... vamos ser pais.
Ela passou a m�o no meu cabelo, apertou-me tamb�m.
� Eu sei � murmurou. � Eu sei...
Mais tarde naquela noite, acordado na cama enquanto Alex
dormia profundamente, pensei no que acontecera, e em
como aquilo parecia reequilibrar as coisas. Como Alex
dissera uma vez: uma vida criada para uma vida perdida.
Mais uma crian�a fora assassinada, e eu ia ser pai. Na �poca,
eu n�o sabia bem o que me assustava mais.
Algumas vezes, j� achei que a idade � inimiga da verdade.
Quando ficamos mais velhos, com o ceticismo e a amargura
se acumulando em n�s ao longo dos anos, perdemos a
inoc�ncia infantil e, com ela, aquele dom de enxergar o
cora��o dos homens. Olhe nos olhos deles, eu me dizia, e
olhando voc� ver� quem realmente s�o. Os olhos s�o as
janelas da alma; olhe com mais aten��o e ver� os aspectos
mais sombrios refletidos.
Agora estou velho, e embora a verdade esteja diante de
mim, embora eu nunca tivesse chegado t�o perto da verdade
do que aconteceu, vejo-me com medo de olhar. O que mais
temo � ver meu reflexo.
Lembro-me de Alabama e Tennessee. Lembro-me de
cidades como Union Springs, Helfin e Pulaski. Lembro-me
dos quil�metros que viajei, da pessoa que me tornei, e
pensar nessas coisas me d� a sensa��o de ter vivido tr�s ou
quatro vidas simultaneamente. Envelheci com cada viagem,
cada quil�metro e cada passo. Fiquei mais amargo e
perturbado, e vi coisas em mim que esperava nunca ver. Vi
o impulso de matar, mas n�o apenas de matar... Vi o impulso
de fazer aquele homem sentir tamanha dor. Olho por olho.
Agora ele est� diante de mim e, mesmo estando morto,
imagino que consiga ouvir meus pensamentos. Quero que
entenda o que fez, as vidas que destruiu, a tristeza que
causou a seres humanos inocentes. Preciso que sinta o terror
que infligiu, e apesar de saber que n�o sente nada disso, s�
posso torcer.
Tor�o para que haja um lugar melhor para mim.
Um lugar pior para ele.
Dezessete
No fim do primeiro trimestre de Alex est�vamos passando
dificuldades. O dinheiro entrava a conta-gotas. Ela se
cansava � toa. O dr. Piper disse que havia ind�cios de anemia
e defici�ncia de ferro, recomendou um consumo elevado de
hortali�as verdes e carne malpassada. Igual a minha m�e.
Fiquei pensando se o dr. Piper s� era capaz de dar um �nico
progn�stico, um �nico diagn�stico, uma �nica panaceia. N�o
t�nhamos dinheiro para aquilo. Alex faltou tanto ao trabalho
que a diretoria da escola contratou uma substituta. A
substituta, uma solteirona amargurada, aparentemente mais
desesperada que honesta, enviou um longo relat�rio �
Secretaria Estadual de Educa��o detalhando anomalias entre
o curr�culo exigido e as avalia��es trimestrais de Alex. Um
inspetor foi � escola no fim de janeiro e entrevistou algumas
das crian�as. Ele n�o encontrou nenhum motivo para
alarme, mas, pelas normas da Secretaria, qualquer relat�rio
tinha que ser analisado cuidadosamente antes que se tomasse
alguma medida ou se arquivasse o caso. At� l�, Alex estava
suspensa. Continuava recebendo um sal�rio, mas o valor era
de um quarto do oficial. A substituta manteve o emprego.
Alex ficava em casa sentada pelos cantos, cada vez mais
abatida e p�lida. Eu trabalhava tanto quanto poss�vel, usava
meu relacionamento com os fazendeiros e propriet�rios
vizinhos para fazer alguns trabalhos manuais e tarefas
rotineiras. Pensei em vender a casa, mas n�o pude. Minha
m�e, embora entregue aos cuidados do Estado, estava viva e
fisicamente bem. A lei exigia uma carta de inten��o
juramentada, uma procura��o por instrumento p�blico,
antes que eu pudesse agir em seu nome dentro dos
par�metros legais. Na primavera de 47, quando Alex entrou
no terceiro trimestre, pegamos as coisas dela e nos mudamos
para a casa de minha m�e. N�o consegu�amos pagar o
aluguel da casa de Alex, e assim a perdemos. Ela passou dois
dias chorando, ia dormir chorando e j� acordava chorando.
Mal comia. Chamei o dr. Piper, e ele lhe aplicou inje��es �
base de ferro. Ela sentia c�licas estomacais e aparecia sangue
na privada. Alex n�o dizia nada quando eu perguntava.
Afastou-se de mim, das pessoas que conhecia, do mundo.
Em maio levei-a ao Hospital de Waycross, supostamente
para visitar minha m�e, e enquanto est�vamos l� afastei-me
um instante e falei com um dos atendentes. O atendente
disse que faria que um m�dico passasse por n�s e
comentasse sobre o aspecto de Alex, perguntasse como ela
estava passando e a levasse para ser examinada.
O estratagema deu certo, e na aus�ncia de Alex fiquei
sentado de m�os dadas com minha m�e enquanto ela me
observava com olhos que pareciam envoltos em fuma�a. Eu
a olhava e sabia que ela n�o estava ali. Minha m�e partira
havia muito tempo, e v�-la daquele jeito me assustava. Eu
fora at� l� por Alex, n�o por minha m�e, e achava que n�o
seria capaz de tornar a v�-la em tal estado.
Durante a hora que passamos a s�s, ela falou de coisas
totalmente sem sentido. Falou de gente que eu n�o
conhecia, nomes que nunca tinha ouvido, e quando tentei
esclarecer algo, ela simplesmente me olhou com uma
express�o que fez com que eu me sentisse uma crian�a tola e
ignorante. S� uma vez ela disse algo que tinha liga��o com
meus pensamentos, e quando as palavras deixaram seus
l�bios, fiquei gelado por dentro.
Ela divagava e tagarelava, as palavras se atropelando na
pressa de sair de sua mente, e no meio de um mon�logo
esquisito sobre "Edward John Tyrell, sabe? Ele era
igualzinho ao Edward John Tyrell, com aquele terno todo
passado e os sapatos brilhando como far�is, ali em p� com
cara de quem tinha feito uma maldade, sabe?" E a� se
inclinou para a frente, e o meio sorriso se transformou em
algo definitivamente mais sinistro, e ela disse: "Como as
crian�as."
Naquele momento seus olhos estavam l�mpidos, azuis e
penetrantes.
� As crian�as? � perguntei.
� Ah! As crian�as! Voc� n�o pode saber nada sobre as
crian�as! Eu fui a �nica que j� soube das crian�as... eu e ele,
claro. Ele sabia tudo sobre as meninas porque ele sabia quem
tinha feito aquelas barbaridades...
A� parou no meio da frase e ficou me olhando, literalmente
me prendendo na cadeira.
� Quem � voc�? � perguntou de repente. � O que est�
fazendo aqui? N�o vou lhe contar nada enquanto voc� n�o
me disser quem �!
Franzi a testa.
� Sou Jos...
Ela ergueu a m�o.
� Ali�s, n�o quero saber! N�o quero saber quem voc� �. N�o
quero saber nada sobre quem voc� � nem sobre o que faz.
Quero que saia j� daqui... �, quero que saia j�. Eu estava
passando bem at� voc� chegar e come�ar a me pressionar
para responder a perguntas, perguntas que nem quero
responder. � Fez uma pausa para tomar f�lego. Seus olhos
pareceram se toldar de novo e ela virou o rosto. � Eles n�o
v�o me envenenar, sabe? Eles tentam me envenenar com as
mentiras e as sujeiras deles, as coisas que dizem... Eu as
escuto, sabe? Escuto todas elas, os gemidos, o choro, e elas
n�o querem entender que n�o h� nada... � Minha m�e
olhou para mim. � N�o h� nada que eu possa fazer para
ajud�-las. Agora � tarde, � tarde demais para fazer qualquer
coisa.
Come�ou a chorar em sil�ncio, o peito subindo e descendo
enquanto continha os solu�os. Levantei-me, fiquei parado
um instante olhando para ela, e achei que seria melhor ela
morrer. Tal pensamento n�o parecia um crime, mas antes
um momento de compaix�o misericordiosa.
Retirei-me do quarto e fui para a rua. Passei meia hora
andando de um lado para o outro. Quando voltei, encontrei
Alex sentada na recep��o. Ela estava com a apar�ncia de que
tamb�m andara chorando.
Falou pouco, mas a� chegou o dr. Gabillard e me chamou
num canto. Falou baixo. Eu me esquecera dele, evitara
procur�-lo todas as vezes que l� fora.
� Ela precisar� de repouso at� o parto. � Sua express�o era
s�ria e preocupada. � Precisa se alimentar bem e repousar.
Precisa de uma boa dieta, uma dieta muito boa. Precisa se
alimentar por dois, e at� agora ela mal se alimenta por um...
� Entendo � comecei, mas o m�dico me interrompeu.
� Ela me explicou a situa��o -� prosseguiu Gabillard. � Eu
n�o perguntei, ela simplesmente me contou. Compreendo
seu problema, com sua m�e aqui e sem um apoio legal nessa
situa��o. � Balan�ou a cabe�a lentamente. � O fato � que
sua m�e n�o est� bem. Ela n�o responde ao tratamento que
tentamos, e a triste verdade � que acho que nunca
responder�. A meu ver, ela nunca sair� de Waycross.
Gabillard aguardou que eu falasse, mas n�o conseguia atinar
com o que dizer.
� Fale com um advogado � disse ele baixinho. � Mande
um advogado preparar um documento para transferir o
controle dos neg�cios de sua m�e para voc�, e farei o que
puder para conseguir que ela os assine. � Fez uma pausa e
respirou fundo. � Isso n�o � da minha al�ada nem � minha
responsabilidade profissional, mas n�o posso evitar o fato de
que sou humano. Sua m�e... bem, sua m�e vai morrer antes
de sair daqui, e n�o posso ficar sem fazer nada e deixar uma
mulher gr�vida sofrer. Fa�a isso, sr.Vaughan, e sejam quais
forem as quest�es morais que possam ser levantadas, seja
qual for a import�ncia que d� � opini�o da sociedade,
tamb�m recomendo seriamente, muito seriamente, que se
case com essa mulher antes do nascimento do seu filho.
Fiz men��o de falar.
� Na verdade, vou condicionar a isso minha ajuda nessa
quest�o. Volte logo para falar comigo com uma certid�o de
casamento e sua procura��o e farei o que estiver ao meu
alcance. E s� o que posso fazer.
Gabillard, mais uma vez, aguardou que eu falasse.
� Considerarei seu sil�ncio um sinal de anu�ncia � disse, e
apertou meu ombro. � Case com ela. Arrume os pap�is.
Faremos o que for poss�vel.
Soltou-me e foi andando.
� Doutor?
Ele diminuiu o passo e virou-se para tr�s.
� Quanto tempo ela tem? Minha m�e. Quanto tempo acha
que ela tem?
Gabillard balan�ou a cabe�a devagar.
� Acho que todo tempo que tinha j� se esgotou h� anos.
Ele sustentou meu olhar mais um pouco, depois tornou a
virar as costas e se afastou.
Fiquei im�vel. Olhei para Alex, ali sentada numa cadeira, a
cabe�a apoiada nas m�os, a atitude de algu�m destro�ado.
"Chega", pensei, e fui na dire��o dela.
Voltamos para casa. Falei do futuro. Disse-lhe que ir�amos
nos casar. Contei-lhe o que Gabillard falara sobre a
procura��o e seu desejo de nos ajudar. A atitude de Alex
mudou completamente. Ela at� riu uma certa hora. N�o falei
de minha m�e, das coisas que ela dissera sobre as meninas. A
cabe�a de minha m�e era uma cama de gato de mentiras,
meias-verdades, imagina��o e paran�ia. Ela n�o podia saber
nada sobre as crian�as. Eu tinha que acreditar que o que ela
dizia n�o passava de divaga��es de uma pessoa sem ju�zo.
Eu acreditava nisso.
Tinha que acreditar.
Casei-me com Alexandra Madigan Webber numa quarta-
feira, 11 de junho de 1947, no Pal�cio da Justi�a do condado
de Charlton, perante o juiz Lester Froom. As testemunhas
foram Reilly Hawkins e Gene Fricker, da loja de gr�os. Ap�s
a cerim�nia breve e mec�nica, Reilly nos levou ao escrit�rio
de Littman, Hackley e Dohring, Advogados, e ali, por tr�s
d�lares, Leland Hackley preparou uma procura��o. Redigiu-
a de tal maneira que tudo que minha m�e teria que fazer era
assin�-la, e a casa pertenceria a mim. Reilly nos levou a
Waycross, eu de terno, Alexandra de saia e blusa creme, o
cabelo preso de um lado e enfeitado com uma flor, e ali
encontramos o dr. Gabillard.
� N�o quer v�-la? �- perguntou Gabillard ao pegar o
documento da minha m�o.
Balancei a cabe�a.
� N�o � respondi. � Hoje n�o.
Ele assentiu, deu um sorriso compreensivo, nos desejou
felicidade pelo casamento e foi andando.
� Quando eu...
Gabillard virou-se e encolheu os ombros.
� N�o sei � disse. �Tem que deixar isso comigo. Farei o
que puder... n�o prometo nada, sim?
Virou as costas mais uma vez e sumiu no hospital.
A tempestade durou oito dias sem parar. O ch�o inchou, a
princ�pio, mas afundou, vencido, deixando � vista as ra�zes
lavadas das �rvores. Como dedos nodosos e com artrite, elas
se aferravam com tudo que tinham para manter a terra sob
controle. As �guas correram e alagaram as lavouras. Reilly
Hawkins foi nos visitar uma semana ap�s o casamento e s�
se atreveu a voltar dois dias depois. Levou comida e vinho, e
as poucas provis�es que conseguiu, e ficamos falando sem
parar sobre o que ir�amos fazer e aonde ir�amos. Se Gabillard
tivesse mandado alguma not�cia, n�o chegaria a n�s.
A tempestade amainou no dia 21 de junho, um s�bado, e o
sol despontou alto e claro no horizonte magoado. Nove
pessoas se afogaram, sete delas negros nos campos, as outras
duas um casal de Folkston que tentara chegar a Kingsland
pelo rio de St. Mary. Equipes de volunt�rios chegaram das
cidades vizinhas e observaram a devasta��o. Muitas deram
meia-volta e retornaram para casa.
Segunda-feira chegou uma carta de Gabillard. Dentro estava
a procura��o devidamente assinada. Reilly me levou para
falar com Leland Hackley, que autenticou o documento e
redigiu uma carta de autoriza��o para o banco. Em uma hora
foi levantado um empr�stimo de mil e quinhentos d�lares
garantido pela propriedade. Saquei duzentos d�lares em
esp�cie, meti-os nos bolsos e fui com Reilly ao Bar da Queda
para comemorar nossa mudan�a de sorte.
�Voc� vai ter uma picape nova � disse-lhe. � Podemos
jogar a velha no p�ntano do Okefenokee.
Rimos de uma aventura dessas na volta para casa, e de como
Alex n�o conseguiria se conter quando descobrisse o que
havia acontecido.
Reilly parou o carro no fim da rua.
� Entre � falei.
� Pelo amor de Deus, n�o � disse ele, rindo. � V� l� para
dentro e divida a boa not�cia com sua mulher, Joseph. Voc�
n�o vai me querer rondando por ali meio de porre com cara
de idiota numa hora dessas.
� N�o � retruquei. �Voc� � t�o parte disso quanto eu. Eu
n�o poderia ter mantido isso tudo sem voc�, Reilly. Entre,
por favor, pelo menos s� um pouquinho. � Virei-me e
gritei em dire��o � casa. �Alex! Alex! Reilly est� aqui e n�o
quer entrar para falar com voc�!
� Ei! � disse Reilly. � N�o � verdade. Voc� n�o pode dizer
isso a ela, caramba.
Eu estava rindo a essa altura, indo da picape para o port�o.
� Alex! Venha ver o que conseguimos! Venha aqui fora ver
o que conseguimos. � Tirei as notas de um d�lar dos bolsos
e segurei-as como buqu�s de flores para Alex.
Reilly j� estava atr�s de mim, e quando me virei para olhar
para ele, notei alguma coisa. Um ind�cio de alguma coisa em
seus olhos. Ele balan�ou a cabe�a, depois olhou para a casa e
come�ou a gritar a plenos pulm�es:
-�Alex! Alex! Voltamos!
N�o aconteceu nada.
Meu cora��o disparou. Olhei para Reilly de novo, e ele fez
um sinal de cabe�a. Foi andando mais depressa para o
port�o. Cheguei l� primeiro, passei, depois de quase
desmont�-lo, e disparei, com Reilly atr�s de mim, n�s dois
gritando o nome de Alex.
Irrompi porta adentro, parei subitamente, tomado pelo
medo, e Reilly, que vinha atr�s, se chocou comigo como um
trem de carga, mas ao deparar com o que estava ali, ouvi que
deu um suspiro. Larguei o dinheiro. Dezenas de notas de um
d�lar foram caindo e se espalharam pelo ch�o.
Se Alex tivesse ido conosco, as coisas poderiam ter sido
diferentes. Ela teria ido ao escrit�rio do advogado, depois ao
banco; talvez tivesse tomado uma bebida conosco no Bar da
Queda. Mas n�o estava bem, queixara-se de n�usea e
tonteira. Preferira ficar em casa, pois n�o ir�amos demorar
� uma hora, talvez duas. Se tiv�ssemos voltado direto do
banco poder�amos ter visto quando ela caiu, mas n�o vimos.
Ela caiu mesmo como um fio de prumo do alto da escada, e
quando chegamos a encontramos inconsciente no corredor,
a saia encharcada de sangue, a respira��o curta e
entrecortada.
Mais tarde eu me lembraria do p�nico e da confus�o. Mais
tarde quis recordar exatamente tudo o que me passou pela
cabe�a, mas, por mais que tenha tentado, n�o consegui.
Lembro-me de ter gritado o nome dela � plenos pulm�es.
Lembro-me do sangue quando tentei levant�-la, da sensa��o
�mida e fria em minhas m�os, em meus bra�os e no meu
rosto quando o colei no peito dela para ver se ainda
respirava. Lembro-me de carreg�-la para a picape, de como
eu segurava sua cabe�a no meu colo enquanto Reilly seguia
sacolejando pelas trilhas esburacadas para a casa do dr. Piper.
Lembro-me de notas de um d�lar ensang�entadas grudadas
em suas roupas, uma em seu cabelo, outra no bra�o.
Lembro-me de como o dr. Piper, imediatamente tomado
pelo que viu, mandou que f�ssemos direto para Waycross, e
de como essa viagem pareceu n�o acabar nunca. Lembro-me
de Gabillard se encaminhando enquanto entr�vamos com
Alex, da cacofonia de vozes, da como��o que partiu de n�s
como uma onda. Lembro-me da fisionomia dele � s�ria e
sombria, de como ele levou os dedos ao pulso dela, ao pes-
co�o, como vociferou ordens para as enfermeiras.
Recordei essas coisas com clareza, e as repassei mentalmente
como se pusesse para tocar um disco de baquelita antigo �
vezes sem conta, at� os sulcos se desgastarem, os sons
ficarem mudos e n�o sobrar nada sen�o o vasto po�o de
desespero e dor em que ca�.
�s dezesseis horas e quatro minutos de uma segunda-feira,
23 de junho de 1947, Alexandra Vaughan, futura m�e, com
doze dias de casada, faleceu. Com ela, uma crian�a sem
nome, um menino. Meu filho.
Quem me deu a not�cia foi Gabillard, um homem que fizera
tudo o que p�de para nos socorrer de nossa indig�ncia e de
nosso desamparo; um homem que tomara medidas que
teriam garantido a sobreviv�ncia e o bem-estar da minha
fam�lia. Parecia que ele era meu anjo, pelo menos naquele
dia. Ele deu, e depois me informou que aquilo que fora dado
agora havia sido tirado.
Eu tinha dezenove anos. Alex, vinte e sete.
Acostumei-me a me perguntar que crime eu cometera para
merecer tal castigo.
Anos depois, quando eu recordava, os meses seguintes �
morte de Alex pareciam se esfumar nas beiradas e se
desintegrar entre meus dedos. Enterrei Alexandra Vaughan,
enterrei meu filho, e com eles enterrei as duas primeiras
d�cadas da minha vida. As pessoas tentavam entrar em
contato comigo � Haynes Dearing, Gene Fricker, Lowell
Shaner, at� Ronnie Duggan e Michael Wiltsey apareciam no
fim da rua perto da minha casa, paravam, olhavam, trocavam
umas palavras e iam embora. Seus esfor�os n�o eram
recompensados. Reilly, eu via sempre, mas era como se
nossas vidas apenas se cruzassem periodicamente, e
enquanto est�vamos juntos, essas vidas eram deixadas para
ser vividas depois, at� a gente se separar de novo. Nossos
encontros foram se espa�ando, e quando chegou o primeiro
anivers�rio de morte de Alex, s� nos v�amos uma vez por
m�s. N�o visitei mais minha m�e. Eu j� n�o conseguia
enfrentar o que ela se tornara, e achava que n�o conseguiria
enfrentar o dr. Gabillard. Parecia que tudo que pudesse me
lembrar do meu passado tinha que ser cauterizado ou
amputado por completo. Dinheiro n�o me faltava; quando
acabaram meus mil e quinhentos d�lares, eu simplesmente
rolei meu empr�stimo com o banco e transferi uma
porcentagem maior da casa. Esperei que algo mudasse.
Esperei pacientemente, fazendo o poss�vel para escrever,
para manter corpo e esp�rito unidos, mas senti que as
minhas amarras iam se desgastando. As coisas que me
prendiam ao mundo foram se tornando fr�geis e passageiras:
visitas mensais para buscar mantimentos, uma visita ao Bar
da Queda a cada cinco ou seis meses e, a n�o ser isso, eu era
isolado e distante. De vez em quando sentia necessidade de
companhia, mas superava isso com a certeza de que o que
quer que pudesse ganhar logo seria perdido. Como Reilly
Hawkins, que nunca se apaixonava por achar que seu
cora��o n�o ag�entaria um segundo desgosto amoroso, eu
n�o arriscava nada com a convic��o de que, assim, n�o
poderia perder. Era uma exist�ncia digna de pena, mas eu
n�o sentia pena de mim mesmo. Usava uma capa de
resist�ncia e for�a capaz de suportar os estragos da culpa e da
emo��o.
Perto do Natal de 1948, Truman tendo conservado a
presid�ncia contra Thomas Dewey, pensei na possibilidade
de deixar Augusta Falls. N�o era da cidade nem do condado,
nem na verdade da pr�pria Ge�rgia, mas de mim que eu
acreditava poder me separar se fosse para algum lugar
distante.
� Para onde? � perguntou-me Reilly quando toquei no
assunto.
� Nova York.
Reilly quase engasgou com a cerveja.
� Nova York. Nova York? Por que em nome de Deus voc�
haveria de querer ir para Nova York?
� Porque � completamente diferente daqui.
� S� por isso?
� Parece um motivo t�o bom quanto outro qualquer.
Reilly balan�ou a cabe�a e se inclinou para mim. Est�vamos
no Bar da Queda, era uma noite de s�bado. A nossa volta, o
burburinho de vozes, as nuvens de fuma�a de cigarro, o som
de um violino tocando na sala.
� N�o basta para ir embora para Nova York � disse ele.
� Vai ver que n�o preciso de nenhum motivo. Vai ver que
posso ir por impulso.
�Voc� tem que ter um motivo � disse Reilly.
� Ser�?
Ele fez que sim.
� Claro. Tem que haver um motivo para tudo, sen�o n�o h�
um objetivo. Seu problema � que voc� nunca teve um
objetivo. Por isso sua vida est� desaparecendo, Joseph...
� Minha vida n�o est� desaparecendo.
Reilly sorriu, balan�ou a cabe�a.
�Tem raz�o... claro... me desculpe. Para uma coisa
desaparecer primeiro tem que existir.
�Voc�...
Reilly levantou a m�o.
� Encare os fatos, Joseph. Alex se foi. Ela morreu...
� N�o quero falar nisso, Reilly.
� N�o quero saber se quer falar nisso ou n�o, � a verdade.
N�o se pode mudar a verdade, aconte�a o que acontecer. Ela
morreu, Joseph. J� faz quanto tempo? Um ano e meio,
certo?
� Um ano e meio, sim.
� E o que aconteceu nesse tempo? Vou lhe dizer o que
aconteceu. Nada. Foi isso que aconteceu. Absolutamente
nada. O que salva � voc� n�o ser alco�latra. Eu? Diabo, eu
teria bebido toda a bebida do condado e depois me mudado
para Brantley. Mas � a �nica coisa que eu vejo, Joseph.Voc�
tem a casa. N�o v� ningu�m, a n�o ser a mim, de vez em
quando. Se ficar esse tempo todo sozinho vai enlouquecer.
� � por isso que estou pensando em me mudar, Reilly.
� Mas logo para Nova York? O que tem em Nova York para
voc�?
� Mais importante, que diabo tenho eu aqui?
� Sua m�e � arriscou ele.
Balancei a cabe�a.
� Ela se foi, Reilly, ela se foi h� muito tempo, e voc� sabe
disso. Minha m�e n�o � mais minha m�e.
Reilly ficou calado, depois olhou para mim do outro lado da
mesa, com um olhar de compaix�o, quase solid�rio.
�Voc� j� � adulto. Conheci-o quando tinha uns dois ou tr�s
anos. Sempre dei apoio � sua fam�lia. N�o posso nem ousaria
lhe dizer o que fazer. Voc� tem for�a de vontade, eu
concordo, e de alguma forma conseguiu manter a cabe�a no
lugar apesar de tudo o que aconteceu com seus pais e agora
com Alex. Respeito voc� por isso, mas um dos motivos
pelos quais o respeito � que voc� pensa com l�gica. H� uma
racionalidade por tr�s das coisas que voc� faz. Essa hist�ria
de Nova York n�o tem l�gica nenhuma...
� O que pode ser a melhor raz�o para considerar a hip�tese.
�Voc� tem determina��o, como eu disse. Acho que nada
que eu diga vai influenciar sua decis�o. Fa�a o que achar que
deve fazer, Joseph Vaughan.
� N�o decidi nada, Reilly... S� ando pensando no assunto.
� Ent�o pense mais um pouco, e me diga o que decidiu.
� Claro que digo.
� Que diabo, se for para Nova York talvez voc� possa
encontrar algu�m.
Franzi a testa.
� Algu�m?
� Algu�m a quem possa amar.
Balancei a cabe�a, desviei o olhar.
� Acho que nunca conseguiria amar algu�m como amei
Alex.
� Claro que conseguiria. Voc� � jovem. Seu cora��o �
bastante forte para sobreviver a isso.
� Um amor assim � retruquei. � Acha que algo t�o bom
assim pode acontecer duas vezes na vida?
Reilly deu um suspiro, e foi ent�o que vi um peso em cima
dele, um peso bastante largo para nos esmagar ali mesmo.
� Duas vezes? � sussurrou ele. � Pelo que j� vi, em geral
n�o acontece nunca.
Fez-se sil�ncio por algum tempo, depois ele olhou para
mim.
� Parece que a gente teve uma vida com imprevisibilidades
de sobra e previsibilidades de menos, n�o acha?
� Acho, Reilly, acho sim.
N�o falamos mais naquilo. Decidi n�o decidir, s� isso, e
quando a id�ia me passou de novo pela cabe�a era fevereiro
de 49, e tinham encontrado outra menina.
Foi a d�cima, e era de Sellman Bluff, condado de McIntosh.
Seu nome era Lucy Bradford. Tinha oito anos e um irm�o de
doze, chamado Stanley. Eu n�o sabia quem ela era, nunca a
tinha visto, mas ela � mais que tudo � foi o que finalmente
me levou a partir.
"Voc� conhecia Alexandra, n�o?", pergunto ao homem
morto diante de mim. "Voc� a conhecia, mas posso imaginar
que nunca a tenha compreendido realmente... nunca
compreendeu realmente ningu�m, certo? Talvez pensasse
que entendia as pessoas... mas era s� imagina��o. Voc� n�o
podia ter um pingo de compaix�o ou de sentimento de
solidariedade... para ter feito o que fez esses anos todos."
Quero ficar em p� e ir at� a janela, mas n�o consigo. Estou
ficando cansado. Penso no que teria acontecido se eu n�o
tivesse puxado o gatilho, se eu de alguma forma o prendesse,
o amarrasse numa cadeira, o fizesse explicar quem era, o que
fizera... se eu o fizesse me contar que tipo de pessoa poderia
ter matado, matado e matado como ele matou.
Quero esticar a m�o e chap�-la na janela. Quero olhar entre
os dedos e ver a cidade diante de mim.
"Ela morreu, sabe?", digo, minha voz pouco mais que um
sussurro. "Estava gr�vida de mim e morreu. Durante muito
tempo, pensei que isso fosse o meu castigo por Elena.
Prometi que iria proteg�-la. Eu estava parado no alto de um
morro e olhei para Elena l� embaixo no quintal nos fundos
da casa, e jurei que iria proteg�-la, que nada de ruim lhe
aconteceria." Fa�o uma pausa, baixo os olhos e respiro
fundo. "Mas aconteceu... e n�o foi como as outras." Sorrio e
balan�o a cabe�a. "N�o posso acreditar que se passaram esses
anos todos, e agora estou aqui, no mesmo quarto que voc�, e
voc� nem tem chance de se explicar. Como � essa sensa��o,
hein? Como � essa sensa��o? N�o era s� disso que se tratava?
N�o se tratava apenas de voc� estar tentando dizer alguma
coisa para o mundo, tentando fazer todo mundo entender a
loucura que est� por tr�s do que fez? E agora est� aqui, agora
finalmente arranjou uma plat�ia, e n�o pode falar. " Rio: um
riso nervoso, assustado. "Que ironia, hein? Que ironia, essa."
Abaixo-me e pego minha arma no ch�o. Levanto-a devagar
e colo-a na testa do morto. Puxo o c�o. O barulho � alto,
como um galho estalando, como uma descarga el�trica em
algum campo distante da Ge�rgia.
"Fale", sibilo. "Fale agora... ou cale-se para sempre."
O sil�ncio ruge para mim, interna e externamente, e fico
pensando � s� por um momento � se n�o cometi mais um
equ�voco terr�vel.
Dezoito
L�grimas n�o bastavam.
Uma menina chorando levaria muitos homens �s raias da
compaix�o, mas n�o esse.
Que amigo temos em Jesus...
Rezando mentalmente talvez.
Do lado da vit�ria, do lado da vit�ria, nenhum inimigo nos
intimida, nenhum temor nos assalta...
Palavras rondando em sua mente. Olhos bem fechados
como janelas no inverno.
D�-me �leo em minha lamparina, mantenha-me
queimando, d�-me �leo em minha lamparina, eu pe�o...
Cheiro de coisa morta.
Cheiro de couro de sapato, de algo com cheiro de couro, e
ap�s o choque de ter sido arrebatado, ap�s o momento de
expectativa da risada, de que aquilo fosse uma brincadeira, s�
uma brincadeira, s� uma brincadeira engra�ada...
�, mesmo caminhando no vale da sombra da morte eu nada
temerei...
Como pique-esconde, pega-pega, mam�e posso iiiiir...
Mas veio o estalo! Repentino como o bater de uma porta.
Bangue! Uma coisa, agora outra, e depois a compreens�o de
que a press�o que ela sentia no pesco�o, o fato de que a
outra m�o entrou embaixo da sua saia e a tocou onde ela n�o
se atrevia a se tocar nunca foram parte de nenhuma
brincadeira de que ela se lembrasse.
E a� ela n�o conseguiu respirar.
N� na garganta, e a compreens�o de que o que quer que
estivesse acontecendo n�o era para acontecer em nenhum
tipo de mundo que ela imaginava.
Sensa��o de m�os � uma no pesco�o, uma embaixo da saia,
e o cheiro de �lcool, o cheiro de tabaco, o cheiro de couro
ou algo como couro...
Agora luta. M�sculos contra�dos. Sistema nervoso carregado
de eletricidade, pipocando dentro dela como uma m�quina
que ela certa vez viu na Feira Estadual. Um grande globo
prateado soltando fa�scas, algu�m encostando nele e ficando
com o cabelo todo eri�ado... e crian�as rindo, e o homem ali
parado com o cabelo igual a algod�o-doce... e o cheiro, o
cheiro e o chiado desagrad�vel da energia sendo liberada...
D�-me �leo em minha lamparina, mantenha-me
queimando... mantenha-me at� o raiar do dia...
E tudo dentro dela mandava aos gritos que ela se afastasse,
sa�sse correndo, fosse como o vento para casa, chispando
pelo campo.
Mas os bra�os � seu redor, apertando, inflex�veis e
implac�veis, e a press�o aumentando em seu peito, em sua
garganta, e ela achando cada vez mais dif�cil respirar, e cores
explodindo em sua retina, e o desejo de gritar, gritar como
nunca, gritar como uma sirene de inc�ndio, como uma
grande ave de rapina mergulhando sobre a presa, como um
cavalo selvagem, a crina voando para tr�s como as cores de
cem ex�rcitos, desfraldadas e estalando ao vento... gritando
como uma menina morta de medo...
Oito anos. A quatrocentos metros de casa.
Entreabriu os olhos.Viu a depress�o e a subida repentina do
morro, e que a rua seguia para leste e depois para nordeste e
novamente para leste, e atr�s da subida para a direita, e l�
atr�s onde ficava a �rvore alta com a outra mais baixa, era a
casa dela.
Se n�o fosse a lombada, ela poderia ter visto a casa, a casa
dela, de onde ela sa�ra quando ele surgiu do nada.
Cheiro de escurid�o, cheiro de escuro e fundo. Cheiro de
velho; mais velho que Deus e beisebol.
Cheiro de que Jesus n�o estava � vista.
Um homem atr�s dela, bra�os troncudos, um homem que
tinha cheiro de j� ter feito aquilo antes.
E a� ela come�ou a gritar, e foi quando ele a golpeou, com
for�a, plaft!, barulho de chicotada, e a fisgada no lado da sua
cabe�a foi igual �quela vez em que caiu da �rvore e ficou
com o nariz ensang�entado e o rosto machucado, e passou
tr�s semanas com o barulho da sua cabe�a batendo na terra
ecoando no ouvido direito.
Come�ou a gritar, e ele lhe deu um bofet�o, e ela soube que
era ele porque s� um homem poderia t�-la apertado tanto, e
s� um homem tinha m�sculos t�o duros e pele t�o �spera e
m�os t�o calejadas.
O grito foi engolido pela escurid�o da noite, e cada um dos
pensamentos que ela teve era mais apavorante que o outro, e
quando ela percebeu o que ele ia fazer foi como se o sangue
tivesse congelado em suas veias.
Agora no ch�o, m�o no seu pesco�o, outra m�o lhe puxando
as roupas, arrancando algod�o e renda e um detalhe de cetim
p�ssego, puxando os la�os de fita cor-de-rosa dos seus
cabelos... e ela sentiu o ar fresco na pele, e o ch�o embaixo
da cabe�a, a umidade da terra, sentiu o cheiro de folhas mor-
tas e gravetos quebrados, ouviu a respira��o ofegante em
cima dela, fechou os olhos para fazer de conta que o que ela
n�o via n�o podia acontecer.
Mas aconteceu.
As cores nas suas retinas como turbilh�es caleidosc�picos, e
o barulho em seus ouvidos do sangue correndo no seu
corpo... sangue assustado, sangue tentando escapar.
Golpeou-a de novo. Plaft! Lanho vermelho em seu rosto, e
os olhos abertos vendo atrav�s das l�grimas o brilho nos
olhos dele � postigo, brilho vermelho � e dentes brancos,
e o cheiro daquele bafo f�tido, ran�oso, e aquela barba lhe
arranhando a barriga, aquelas m�os se enfiando dentro dela
com aqueles dedos que machucavam e causavam uma dor
t�o grande como ela jamais imaginara que algu�m pudesse
sentir, que algu�m pudesse infligir. Mas podiam..
E ent�o a decis�o de ficar im�vel, mal respirando, mal
pensando, mal esperando qualquer coisa agora, enquanto ele
faz coisas, coisas ruins... coisas que homem n�o faz com
menina pequena...
Dor dentro dela. Dor lancinante. Dor como se estivessem
empurrando suas entranhas para a garganta. Sensa��o de
sufoca��o, depois a m�o na sua garganta apertando mais, e
seus olhos inchando dentro das �rbitas, olhos prestes a
explodir, e o barulho do sangue como uma trovoada, como
um trem de ferro, como aqueles cavalos galopando � noite
pelos campos.
Debatendo-se agora, e enquanto se debate, o peso e a dor
aumentam, e a� ela sabe que est� indo embora, deslizando
para um lugar fresco e seguro, onde tais coisas n�o podem
mais ser sentidas, e ela d� as boas-vindas para o sil�ncio
iminente, a sensa��o de imobilidade, de calma, que invade
cada cent�metro do seu corpo.
Sente o homem em p� em cima dela, uma �nica fita cor-de-
rosa na m�o. Ele faz uma pausa, e mete a fita no bolso.
E a� tudo vai embora.
Tudo.
A sensa��o do nada, do vazio, uma brisa como o ver�o.
Imaginou que seria crian�a por algum tempo mais.
Pelo menos isso.
Xerife do condado de McIntosh. Chamava-se Darius
Monroe. O pai foi xerife, o av� tamb�m, e antes disso sua
linhagem remontava a ladr�es de cavalo, assaltantes,
b�bados e ladr�es de b�bados. Todos eles da for�a bruta,
homens duros, sem consci�ncia. O bisav� Monroe teve
quase vinte filhos de quatro mulheres diferentes. Menos
uma fam�lia do que uma dinastia. Nenhum deles se casou.
Ganhava a vida jogando cartas nos vapores. Brilho sedutor
nos olhos de jogador, bigodes encerados, brilhantina no
cabelo, uma vida cheia de fatos vergonhosos mas, na cabe�a,
nenhum pensamento vergonhoso. Darius Monroe tinha
cinq�enta e tr�s anos e estava cansado. N�o se casara e
jamais se casaria. A fam�lia acabaria nele, de chofre, uma
cor�a baleada na cabe�a. Cara amassada. Boca fechada como
bolsa de vi�va. As palavras sa�am aos tost�es, troco do
�ltimo d�lar, e duas semanas at� o dia do pagamento. Olhos
como os de seus ancestrais jogadores, penetrantes e r�pidos,
nunca traindo nada, poupando tudo at� chegar a hora de
mostrar as cartas e pegar a bolada. Devido a sua posi��o, as
pessoas tinham que confiar nele, mas sentiam que n�o
deviam.
O primo de Darius Monroe por parte de m�e, Jackson
"Jacko" Delancey, homem de aspecto esquisito, alto demais,
joelhos e cotovelos desproporcionais, e com uma cor que
revelava um namoro com �ndios, algo nos genes � cabelo
escorrido, preto retinto, nariz quase romano, fei��es muito
imponentes para um homem t�o humilde. O que Jacko
encontrou naquela sexta-feira de manh� o humilhou mais
ainda. Falava sobre aquilo meses depois � nos bares,
encostado nas cercas, levando cavalos para o pasto, regando
os canteiros de ervas que sua mulher insistia em manter
apesar da mancha na terra que vinha do p�ntano. O que ele
encontrou naquela sexta-feira de manh� � 11 de fevereiro
� o deixou gelado e calado, suando apesar do frio fora de
esta��o, e o fez recuar e se afastar, dar meia-volta e ir
andando uns bons trinta ou trinta e cinco metros, e depois
voltar para se certificar de que n�o estava tendo uma
alucina��o. N�o estava. J� sabia que n�o estava. Mas o
absurdo do que estava diante dele faria qualquer homem s�o
pensar duas vezes.
A certa altura, ajoelhado ali na terra, ele at� estendeu o
bra�o e tocou os dedos dela. Dedos que se prendiam a uma
m�o. M�o que n�o se prendia a absolutamente nada. O
corpo estava cortado em mais peda�os do que ele se deu ao
trabalho de contar, e os peda�os, espalhados pelo ch�o,
ocupavam um espa�o igual ao da sala da sua casa. Mas a
camada grossa de sangue entre eles dava a impress�o de que
ainda estavam ligados.
Foi ent�o que ele vomitou.
Ent�o Jacko Delancey, um homem desengon�ado feito de
joelhos e cotovelos, correu como uma lebre corre do cheiro
de um c�o. Correu os oitocentos metros at� sua casa, onde
desamarrou uma �gua e foi direto para a casa do primo.
Darius Monroe estava em casa, tinha resolvido chegar ao
trabalho depois do almo�o. Jacko o levou � entrada com
marteladas retumbantes na porta, e, entre gritos e arquejos,
deu a not�cia.
O xerife Darius Monroe pegou o carro, mandou Jacko para
casa com o cavalo, chamou pelo r�dio e mandou o
comiss�rio Lester Ellis encontr�-lo l�.
O xerife Monroe chegou pouco depois das nove. Viu o que
viu e ficou feliz por ter tido a precau��o de n�o tomar caf�-
da-manh�. Pegou fitas e estacas na mala para cercar a cena.
Aguardou a chegada de Ellis. Fumou um cigarro e ficou o
tempo todo olhando para o outro lado. Talvez nada mais que
premoni��o, rumores, outra coisa qualquer, mas ele vira
quando a menina Leonard foi encontrada em setembro de
43 e se perguntara quando chegaria de novo a hora dele.
Chegara. Mas a previs�o, ou fosse l� como chamassem
aquilo, nada fizera para prepar�-lo para a realidade medonha
do que Jacko Delancey encontrara.
Ellis apareceu em vinte minutos, deu uma olhada, ficou
branco como cera, p�s para fora o caf�-da-manh� e as tr�s
refei��es da v�spera por cima da cerca. Pensou na pr�pria
filha, que completara quatro anos havia duas semanas, e se
perguntou se o que ensinavam na aula de catecismo era
verdade. Deus � misericordioso, Deus � justo, Deus �
onisciente e protege os mansos e os inocentes. Deus, com
certeza, estava ocupado em algum lugar na noite anterior, e
deixara outra alma jovem passar desta para melhor. Ellis
ligou para a delegacia e mandou chamar o legista dos tr�s
condados. As dez e meia, o homem chegou numa
caminhonete em peti��o de mis�ria. Chamava-se Robert
Gorman. Gorman era respons�vel pelos condados de
McIntosh, Wayne e Pierce. Trabalhara nos casos de Rebecca
Leonard, em setembro de 43, de Sheralyn Williams, em
fevereiro de 45; estivera ao lado do xerife George Burwell
quando o corpo de Mary Tait foi descoberto em outubro de
46. As jurisdi��es, para as obriga��es tanto da pol�cia quanto
do legista, eram confusas. As v�timas de um condado haviam
sido encontradas em outro, e ningu�m sabia exatamente
onde tra�ar as divisas.
�s onze horas, a not�cia corria. Foi marcada uma reuni�o em
Eulonia para as quinze horas daquele mesmo dia, e presentes
estavam todas as partes interessadas. Sete condados, sete
xerifes, seus respectivos comiss�rios e assistentes, uma
reuni�o de dezessete homens, todos s�brios, todos
perplexos.
Haynes Dearing, de Charlton, comandava os
procedimentos, fazia perguntas, aguardava as respostas.
Poucas foram informativas. Nenhum daqueles presentes
jamais presenciara nem estivera envolvido em semelhante
barbaridade. O que tinham era um assassinato em massa.
Porque ningu�m achava que houvesse mais do que um
culpado.
�Vai ser necess�ria uma for�a-tarefa � arriscou Burnett
Fermor.
� Uma for�a-tarefa s� pode ser constitu�da de cidad�os dos
diferentes condados � disse Ford Ruby �, mas damos
in�cio a isso e vamos ter uma ca�a �s bruxas nas m�os.
� Ent�o, qual � sua sugest�o? � perguntou Fermor.
� Sugest�o? � disse Ruby, em tom de desafio. � Minha
sugest�o � cada um se responsabilizar por seu pr�prio
condado e por seus cidad�os. Formar grupos. Pegar os
homens entre dezesseis e sessenta anos, sem excluir
nenhum, e ir de casa em casa fazendo perguntas.
� �timo � disse Dearing. � Parece um come�o bom como
outro qualquer. E temos que estabelecer um ponto central,
um lugar onde fiquem centralizados todos os arquivos e
registros para podermos ter acesso e coordenar isso juntos.
Ningu�m teve peito para sugerir que tal provid�ncia j� devia
ter sido tomada havia muito tempo.
Radcliffe de Appling sugeriu Jesup; a reuni�o anterior fora l�,
em outubro de 46.
� Est� bom assim �- disse Dearing, e se deu conta de que
aqueles crimes j� estavam acontecendo havia dez anos.
A primeira menina foi Alice Ruth Van Horne, em
novembro de 39. Sobreviera uma guerra. Deus sabe quantas
vidas foram perdidas, entre elas a de centenas de milhares de
americanos do outro lado do mundo, mas tal acontecimento
parecia de alguma forma insignificante diante dessa mons-
truosidade. Acontecia em casa, era pessoal, era uma invas�o
de um territ�rio completamente diferente.
� Ent�o � para l� que vai tudo � prosseguiu Dearing. �
Todos os arquivos, todos os relat�rios do legista, todos os
documentos, todas as entrevistas, tudo isso vai para a
delegacia do condado de Wayne amanh� de manh�.
� Acha que Gus Young vai ter algum problema com isso? �
disse Radcliffe, referindo-se ao vereador de Jesup, um
homem conhecido pela irritabilidade e pelo temperamento
explosivo.
Dearing fez que n�o com a cabe�a.
� Conhe�o Gus Young desde crian�a. Gus Young vai fazer
tudo que estiver ao seu alcance para nos ajudar.
� Gus Young � vereador de Jesup � interrompeuu George
Burnwell. � Eu sou o xerife do condado de Wayne. Gus
Young vai fazer exatamente o que eu mandar.
A reuni�o foi encerrada. Cada homem voltou para seu carro.
Lester Ellis recebeu uma mensagem no r�dio. A menina fora
identificada.
� Ai, pelo amor de Deus � disse Darius Monroe baixinho.
� A menina Bradford, n�o.
� Conhece a fam�lia dela? � perguntou Ellis.
Monroe fez que sim. Parecia mais abatido e exausto do que
nunca.
� O menino mais velho � meu afilhado � disse.
� Quer que eu v� l�? � perguntou Ellis, sem perder a
esperan�a de que n�o tivesse que ir.
Monroe ficou calado, e depois se virou para seu comiss�rio.
� Mas que tipo de homem eu seria se deixasse outra pessoa
fazer isso?
Ellis n�o respondeu.
Dezenove
S� ouvi falar da morte tarde no dia seguinte. Ouvi da boca de
Haynes Dearing, e foi ent�o, na cozinha l� de casa, que ele
me contou que quis ir me visitar quando soube de Alex.
� N�o � f�cil � disse. � Essas coisas nunca s�o f�ceis.
Levantei a m�o e ele parou.
�-Acabou � disse eu. -� Ela se foi. Morreu, e � s� isso. J�
pensei e falei no assunto o bastante para o resto da vida,
xerife. Parece que eu falo e tudo volta para me assombrar. Se
n�o se importa, eu preferiria n�o me estender sobre isso
hoje.
� � assim que voc� quer?
Assenti.
� � assim que quero, xerife. Nada contra o senhor.
Ele concordou; ficou ali sentado um pouco, os pensamentos
quase aud�veis, e a� me contou sobre Lucy Bradford, a
reuni�o que acontecera na v�spera, a decis�o que fora
tomada no sentido de que cada xerife fosse respons�vel por
seu condado.
� E estou na sua lista de suspeitos? � perguntei.
Dearing sorriu com cumplicidade.
� Joseph, todo mundo est� na minha lista de suspeitos.
� Mas sou a primeira pessoa que procura, certo?
Dearing negou.
� Para dizer a verdade, n�o �. Ora, acha que deveria ser?
� N�o estou de brincadeira com o senhor, xerife, falo s�rio.
� Isso n�o � brincadeira, Joseph, � uma coisa s�ria. Crian�as
foram assassinadas...
� Estou ciente disso, xerife... e o senhor quer que eu fa�a o
qu�?
Dearing recostou-se na cadeira. Tinha o chap�u no colo e o
girava nervosamente, com o dedo na aba.
� J� tivemos uma discuss�o...
� Tivemos?
� Nada de brincadeira, Joseph... estabeleceu-se uma regra,
ent�o se aplica a n�s dois.
Fiquei calado.
�J� tivemos uma discuss�o, no Natal, depois que a guerra
acabou, alguns dias depois que a menina Keppler foi
encontrada.
Eu me lembrava do dia, o dia em que eu levara Alex �
rodovi�ria para ela ir visitar os pais.
� Eu lhe fiz umas perguntas. Disse-lhe umas coisas. Pedi
que ficasse de olhos e ouvidos atentos, pelo que me lembro.
� Pediu, sim, e tamb�m sugeriu que as pessoas poderiam
pensar em mim quando estivessem imaginando quem
poderia ter feito essas coisas...
� O que eu disse, est� dito. O que eu disse, precisava ser
dito. N�o falei com ningu�m que tivesse sugerido uma coisa
dessas.
� Ent�o, do que estamos falando?
� Do fato de que outra menina morreu. Nem quero lhe dar
uma id�ia de como ela foi encontrada, o estado em que
estava... tudo o que tenho � outra menina morta e um
condado cheio de suspeitos. Tr�s delas eram daqui de
Augusta Falls. Alice Van Horne, Catherine McRae...
� E Virginia Perlman � interrompi.
Dearing balan�ou a cabe�a.
� E Ellen May Levine, em junho de 41. Era de Fargo... foi
encontrada a menos de seiscentos metros desta casa.
� E o que quer que eu fa�a, xerife?
Dearing pigarreou.
� Quero sua ajuda.
Inclinei-me � frente, ergui as sobrancelhas.
� Minha ajuda?
Dearing fez que sim.
� Sim, Joseph... Quero que voc� fa�a uma coisa para mim.
Fiquei calado. Esperei.
� Quero que v� a Jesup visitar os Kruger.
Fiquei um bom tempo sem dizer nada.
Domingo, fui ao t�mulo de Alex. Ajoelhei no ch�o, li a
inscri��o em sua l�pide, e quando eu ia tocar na superf�cie
lisa do m�rmore come�ou a chover. A chuva descia como
uma cortina, e batia na minha cabe�a e nos meus ombros
sem piedade. As flores que levei e encostei na l�pide viraram
punhados de p�talas encharcadas. Segurei as p�talas nas
palmas das m�os e fiquei vendo a chuva as arrastar de novo.
Continuei ali at� quase n�o ag�entar ficar em p� com o peso
das minhas roupas, e pensei em Alex, no filho que ter�amos
criado, e n�o chorei. Achei que n�o tinha mais l�grimas, e
assim o c�u chorava por mim.
Na noite anterior, eu fora at� a casa de Reilly e lhe contara o
que tinha acontecido. Contei-lhe sobre a menina Bradford
de Shellman Bluff, a visita de Dearing, o pedido que ele
tinha feito.
� Dez meninas? � perguntou ele.
� Dez meninas, sim.
� E Dearing est� de olho em Gunter Kruger por causa disso?
� Acho que Haynes Dearing � um homem perdido num
mar de perguntas. Ele n�o sabe nada, mas � a lei, e agora �
obriga��o dele fazer tudo o que puder para acabar com isso.
� E eles tiveram uma reuni�o, todos os xerifes?
� Sim. Criaram uma central de coordena��o em Jesup.
� Por que Jesup?
� � um ponto central, o que mais se aproxima disso, afinal
de contas. H� sete condados envolvidos, n�o incluindo as
�reas onde os corpos foram encontrados. Dearing explicou
como p�de, disse que era loucura. H� dossi�s vindos de todo
canto, mais homens envolvidos do que eles s�o capazes de
organizar, e precisam de toda a ajuda que puderem ter.
�Voc� vai l�... vai falar com Gunther Kruger?
Balancei a cabe�a.
� N�o sei, Reilly, simplesmente n�o sei.
� Como pode n�o ir, Joseph?
Sorri.
� � f�cil. Simplesmente n�o indo.
� Mas e se for ele? E se ele tiver matado essas meninas
todas?
Dei um suspiro. Senti minhas id�ias e minhas emo��es
chegarem ao limite.
� Reilly, voc� conhece Kruger t�o bem quanto eu. Via
quando ele ia l� em casa conversar com a gente na cozinha.
A mulher dele, os filhos... caramba, acha mesmo que ele � o
tipo de homem que poderia fazer uma coisa como essa?
Reilly Hawkins fez que n�o. Tinha a express�o sombria.
� Tenho certeza de uma coisa... que a gente nunca conhece
as pessoas, Joseph.
N�o falamos mais no assunto, mas no dia seguinte, quando
eu estava ajoelhado diante do t�mulo de minha mulher e de
meu filho, um filho que eu nunca vi, um filho que nunca
sequer teve nome, decidi que faria o que Haynes Dearing
me pedira.
Eu iria a Jesup, condado de Wayne; falaria com Gunther
Kruger; veria se seus olhos refletiam as caras das dez
meninas enquanto a vida delas se apagava.
Se eu soubesse naquela altura o que aconteceria, se tivesse
consci�ncia de como fevereiro de 1949 de alguma forma
assinalaria o fim do meu tempo na Ge�rgia, quem sabe teria
tomado decis�es diferentes. Esse sinal n�o era vis�vel para
mim, n�o ali �s margens do rio Crooked, nem na ilha Jekyll,
nem em Grays Reef; nenhuma indica��o em meio ao mar de
ilhas, riachos, marismas ou canais; nada pregado nas �rvores
em cima de seus mantos de barba-de-velho; nenhuma
palavra na textura dos troncos unidos das passarelas para
contornar as trilhas nos p�ntanos mais profundos. Em
noventa e sete mil quil�metros quadrados de hist�ria, uma
hist�ria que aprendi, uma hist�ria em que eu acreditava, n�o
havia nada que me mostrasse as cores do que estava por vir.
Quem sabe eu desejasse muito voltar a ser crian�a, uma
crian�a com m�e e pai, uma crian�a nutrindo um amor
silencioso e n�o declarado pela srta. Alexandra Webber.
Quem sabe eu s� estivesse criando raz�es convincentes para
partir, pois deixando a Ge�rgia eu poderia imaginar que a
vida mudaria a tal ponto que as recorda��es do passado se
perderiam. N�o se perderiam, e eu sabia, mas achava que
tentar era melhor do que n�o fazer nada.
Na manh� de ter�a-feira, 15, fui falar com Haynes Dearing.
Contei-lhe que iria a Jesup conversar com Gunther Kruger.
Dearing nem sorriu nem me agradeceu. Ficou sentado � sua
mesa olhando para mim.
�Voc� entende que vou precisar do m�ximo de
informa��es que voc� tirar dele?
� Entendo o que quer, xerife. N�o estou certo de que v�
conseguir.
� Quero que fa�a tudo o que puder para determinar por
onde ele tem andado e o que tem feito. Quero que lhe
pergunte sobre as meninas que foram assassinadas. Quero
saber as rea��es dele �s perguntas, o que ele se lembra de
quando elas foram encontradas. Quero saber o que ele ouviu
e o que achou do que ouviu.
� E o senhor n�o pode ir porque...
� Porque sou o xerife. Porque sou a lei. Porque sempre que
pergunto algo a pessoa acha que tem o dever de esconder
tudo de mim.
� E pensa que ele vai deixar escapar alguma coisa?
Dearing balan�ou a cabe�a.
� N�o penso nada, Joseph... s� tor�o.
� Espantalho � disse eu, e sorri quando Mathilde me
abra�ou.
� "Esbandalho" � repetiu ela, e riu animadamente.
Mathilde mudara muito. Fazia apenas seis anos e meio que
os Kruger haviam deixado Augusta Falls, e ela parecia ter
envelhecido mais de vinte. Mas a casa onde eles moravam
agora em Jesup, condado de Wayne, era igual � casa dos
Kruger de Augusta Falls. Recendia a sauerkraut e bratwurst,
caf� preto, a cora��es generosos e ao bem-estar alheio. A
casa dos Kruger encarnava a mem�ria de minha m�e tal
como ela fora e a ajuda que essas pessoas lhe deram. Eu n�o
conseguia imaginar que Gunther Kruger soubesse alguma
coisa sobre as dez meninas mortas e as atrocidades que
haviam sido cometidas.
Cheguei no fim da manh� de quarta-feira, 16. Viera de
Charlton na picape de Reilly.
"Voc� devia comprar o raio do seu carro", dissera ele, e riu,
e alguma coisa estranha naquela risada me disse que ele
entendia como a viagem seria dif�cil.
"Boa sorte", acrescentara quando me debrucei na janela e
levantei a m�o. "Melhor voc� do que eu", foi o que acho que
ele disse quando me afastei, mas n�o tenho certeza.
� Gunther saiu com os meninos � explicou Mathilde. �
Ih, digo meninos. Eles n�o s�o meninos. J� s�o homens.
Ambos s�o homens, como voc� � e me abra�ou de novo,
me deu a m�o e me levou para a cozinha.
Mathilde Kruger entreteve-se com caf� e doces.
� N�o estou com fome � disse-lhe.
Ela riu.
� Esbandalho vive com fome. Sente a�. Eu fa�o caf�, certo?
Sorri, comecei a rir. Fingi que n�o estava nervoso, fingi que
minha visita era apenas social.
� Sua m�e � disse Mathilde. � Eu soube que ela est� num
hospital para doen�as nervosas, n�o �? Estou errada, n�o �?
Fiz que n�o. Mathilde trouxe o caf� e o colocou na minha
frente. Sentou-se.
� N�o est� errada � falei. � Ela est� no hospital para
doen�as nervosas. Est� em Waycross.
� Que mulher! � disse Mathilde, num tom t�o cheio de
compaix�o e solidariedade que fui invadido por uma
sensa��o de culpa; est�vamos falando da minha pr�pria m�e,
e havia bastante tempo que eu pouco pensava nela, ou nem
isso.
� Que mulher, tantas dificuldades para ela nesta vida, hein?
Mathilde baixou os olhos, corando ao reprimir as l�grimas,
depois balan�ou a cabe�a e sorriu bravamente.
�Vai dar tudo certo, vai dar tudo certo, n�o �?
Fiz que sim e dei um sorriso compreensivo.
� �. Tenho certeza de que vai dar tudo certo.
� Ent�o voc� est� trabalhando em Augusta?
Balancei a cabe�a.
� Bastante, sim. Vou sobrevivendo.
Mathilde pegou minha m�o e a apertou.
� �timo. Voc� est� muito magro, Iosseph, sempre muito
magro, mas d� para ver que est� bem, n�?
Minha mente divagava: eu achava que podia enxergar
atrav�s de Mathilde Kruger, como se ela fosse uma janela
para o passado. Eu olhava para esse passado, a hist�ria triste e
estranha a que sobreviv�ramos juntos. Eu me perguntava se
ela sabia sobre o marido e minha m�e. Eu me perguntava
quanto tempo ela passava pensando em Elena, na forma
como seu corpo fora carregado da casa na manh� depois do
inc�ndio.
Lembrei-me de novembro de 45. De falar com Alex sobre as
meninas, os assassinatos, sobre quem poderia ter cometido
tais atrocidades, e sobre os Kruger, a morte de Elena, tudo o
que transpirara. Lembrei-me de como estava certo de que
Gunther Kruger nada tinha a ver com aquilo. Naquela �poca,
eu tinha certeza absoluta, mas agora...? Agora, eu estava
sentado na cozinha de Mathilde Kruger esperando Gunther
Kruger chegar em casa. Estava numa miss�o para o xerife
Haynes Dearing. Uma miss�o de investiga��o baseada em
suspeitas, respaldadas em nada mais substancial que o medo.
Talvez eu estivesse errado; talvez da minha perspectiva, com
o vi�s da desconfian�a, eu enxergasse um reflexo de algo
interno. Possivelmente, minha imagina��o queria criar algo
para justificar minha visita.
Gunther Kruger chegou em menos de uma hora. Na frente
da casa, chamou pela mulher, e quando entrou na cozinha,
eu vi.
Vi a culpa.
Mais tarde, com a perspectiva do tempo como conselheira,
disse a mim mesmo que era a culpa que ele carregava pela
rela��o com minha m�e.
Isso explicaria a surpresa que manifestou, e no entanto, por
baixo disso, a sombra �bvia do reconhecimento contrariado.
A express�o dele traiu tudo: ali estava eu, uma imagem do
passado � um rosto, uma voz, nada mais que isso, mas
suficiente para lembr�-lo de algo havia muito sepultado
embaixo de um sud�rio de justifica��es. Joseph Vaughan
estava diante dele, o filho de uma mulher com quem ele
dormira enquanto a esposa estava a menos de trinta metros
de dist�ncia. Gunther, o fornicador. Gunther, o ad�ltero.
Gunther, o mentiroso.
� Joseph! � Ele se adiantou, bra�os abertos, e agarrou
meus ombros com firmeza. � Ach! Nicht wahr? Voc� est�
aqui! Joseph Vaughan. Ah!
Ele me abra�ou, mas senti algo na press�o dos seus bra�os ao
redor das minhas costas. Ele me apertou, e quando j� me
apertava com uma press�o suficiente, subitamente apertou
um pouco mais. Fui pego desprevenido, admirado com a
press�o repentina, e fiquei sem ar. � por minha mulher que
estou lhe mostrando como estou feliz em ver voc�, dizia
aquele gesto. Estou dizendo a ela que n�o tenho nada a
esconder. Mas, sem que ela saiba, quero machuc�-lo por ter
vindo. Por voltar a uma vida que j� n�o tem mais nada a ver
com voc� ou sua gente. Fingirei que voc� � bem-vindo, s�
pelas apar�ncias, e depois que for embora voc� n�o deve
voltar.
� Gunther � respondi com entusiasmo. � Prazer em v�-
lo! Meu Deus, deve fazer uns seis anos. Seis anos e voc� n�o
mudou nada... nenhum de voc�s.
� Ach, muito gentil � sussurrou Mathilde. � Sei que est�
sendo muito gentil. Estamos ficando velhos... daqui a pouco
velhos demais para manter a fazenda aqui.
� Eu? � interrompeu Gunther. � Eu nunca vou parar de
fazer isso. Vou puxar um arado at� cair morto na lama! R�,
r�, r�!
Sentamos � mesa e Mathilde trouxe caf�. Gunther abasteceu
o cachimbo e come�ou a impregnar o ambiente com uma
fuma�a amarga e acre.
� Ent�o voc� continua morando em Augusta Falls? �
perguntou-me.
� Na mesma casa, sim � respondi. � Minha m�e...
Gunther deteve-me.
� Eu sei, eu sei,Joseph... Eu soube que ela n�o est� bem h�
alguns anos, n�o �?
� Sete anos � disse eu, e por alguma raz�o achei que o fato
de ter sido em fevereiro que Reilly e eu a levamos para
Waycross era significativo. Dia 10 de fevereiro de 1942.
Est�vamos em fevereiro de 1949. Eu tinha catorze anos
ent�o; agora, vinte e um. Perdera uma mulher e um filho.
Mais sete meninas haviam sido assassinadas.
� Ent�o as coisas v�o bem para voc� l�, n�o �?
Olhei para Mathilde, parada em frente � pia. A mulher
nunca ficava mais de um segundo sentada, nunca parava de
fazer coisas; parecia que conseguira organizar sua cabe�a de
tal maneira que exclu�sse tudo em que ela n�o desejava
pensar. Possivelmente, sabia a respeito do marido, do caso
com minha m�e; possivelmente, pensava na filha, e como a
perdera; talvez soubesse das mortes e ficasse calada.
� As coisas v�o bem � respondi. � Est� tudo certo,
Gunther... mas anda acontecendo o mesmo problema... �
Minha voz foi sumindo. Eu estava sem jeito, como se ali,
premeditado e falso, eu tentasse induzir Gunther Kruger a
dizer algo que de algum modo o incriminasse.
� Problema? � perguntou Gunther. � Que problema?
Balancei a cabe�a.
� N�o � disse eu. � N�o quero falar nisso. � Olhei para
Gunther, virei-me para Mathilde enquanto ela se afastava da
pia. Sorri para ela, mas em seu rosto havia algo... uma
sombra, um fantasma... que era indescrit�vel. � Vim aqui
visitar voc�s � prossegui, imediatamente nervoso com a ex-
press�o de Mathilde. �Vim contar a voc�s como v�o as
coisas, saber de Hans e Walter...
Virei-me para Gunther.
� Conte que problema � encorajou ele.
Suspirei e balancei a cabe�a. Eu tamb�m agora era
mentiroso, e de fato me sentia assim.
� Essas coisas... essas coisas terr�veis, sabe?
Gunther franziu a testa e balan�ou a cabe�a. Estava com um
ar preocupado, paternal; o rosto do homem que tinha
dirigido por toda a estrada que costeava o rio de St. Mary
para a gente poder passar o dia na praia Fernandina; do
homem que dissera que at� eu, Joseph Vaughan, deveria ter
recorda��es para lembrar com carinho quando ficasse mais
velho.
� Essas meninas, Gunther. � Ergui os olhos. Encarei-o. S�
havia paci�ncia e curiosidade em sua express�o. � As
meninas que foram assassinadas
Mathilde se aproximou. Apareceu atr�s de Gunther e botou
a m�o em seu ombro.
� N�o � disse. � Isso ainda continua?
Fiz que sim com a cabe�a.
�J� s�o dez. Dez meninas morreram. � Olhei para
Gunther Kruger. Se ele sabia de qualquer coisa, qualquer
coisa, ent�o havia uma barreira clara entre sua lembran�a e
sua rea��o, uma barreira que nada conseguia atravessar.
� Dez meninas � disse Gunther, e mais uma vez sua voz
desmentia qualquer conhecimento. Mas a� houve algo.
Algo? Mais tarde eu nem poderia determinar o que eu vira.
Uma sombra, um sinal em seus olhos? Fiquei olhando para
ele, t�o fixamente que o senti ficar constrangido. � N�o en-
tendo uma coisa dessas � falou, e olhou para tr�s, para a
mulher. Pareceu ent�o que fez isso s� para evitar meu olhar.
Mathilde n�o olhou para ele; manteve a aten��o em mim.
� E a pol�cia? � perguntou Gunther. � Eles n�o t�m nada?
Fiz que n�o com a cabe�a.
� H� rumores. As pessoas ligam para eles dando todo tipo
de informa��o sobre coisas que julgam ter visto. N�o sei
quantas pistas falsas j� seguiram. Sei que j� tentaram trazer a
Secretaria de Investiga��o da Ge�rgia para c� de novo, mas
isso nunca deu em nada. A verdade � que, em rela��o a
quem cometeu essas atrocidades, acho que eles hoje n�o
sabem mais do que quando come�aram.
Gunther virou-se para me encarar. Por um momento,
fechou os olhos. Quando tornou a abri-los, pareceu que
tamb�m estava contendo as l�grimas.
� Em que mundo a gente vive! � disse, emocionado. �
Um mundo onde as pessoas s�o capazes de cometer essas
atrocidades.
� � dif�cil entender � retruquei. � Mas eu n�o vim para
falar disso. Onde est�o Hans e Walter?
Gunther sorriu.
� V�o ficar quase todo o dia fora. Est�o trabalhando em
Walthourville. Acho que n�o voltam antes de escurecer.
� Que pena � disse eu. � Eu gostaria tanto de encontr�-
los.
�Voc� precisa ficar � disse Mathilde. � Eles n�o v�o
gostar que tenha vindo de t�o longe e n�o os veja, n�o �?
� N�o posso demorar muito... tenho que voltar para o meu
trabalho. Estava indo para Glenville e tive a id�ia de dar uma
passada aqui.
� Ent�o venha � disse Gunther, come�ando a se levantar
da mesa. �Voc� precisa ver nossa fazenda.
� Claro � respondi, e tamb�m me levantei. Gunther foi na
frente at� a porta dos fundos.
� Prepare alguma coisa para Joseph comer na viagem �
disse a Mathilde. � Uma ling�i�a com p�o de centeio,
alguma coisa para engord�-lo!
� Gunther riu e sa� atr�s dele para o quintal.
A nove metros da casa, ele diminuiu o passo. Pegou meu
bra�o e me puxou um pouco mais para perto.
� Sinto muito por sua m�e � disse. �Voc� j� � um
homem... � Ficou me olhando um pouco, depois olhou
para o outro lado, como encabulado.
� Foram coisas que aconteceram muito tempo atr�s...
� Gunther... � comecei, mas ele me interrompeu.
� Deixe-me dizer o que preciso dizer, Joseph. Passaram-se
muitos anos e sua m�e n�o anda bem. Sempre tentei ao
m�ximo ser um homem honesto, um homem temente a
Deus, mas aconteceram coisas quando est�vamos em
Augusta Falls que mandariam at� o homem mais correto
para o inferno, sim?
� Acho que isso � um pouco duro, Gunther.
� A B�blia diz o que diz, Joseph. Deitar com uma mulher
que n�o seja nossa esposa � pecado mortal. Carrego esse
pecado no cora��o esses anos todos. Mathilde � ele olhou
na dire��o da casa �, Mathilde n�o sabe nada sobre isso, e
n�o pode saber nunca, entende?
� N�o precisa se preocupar comigo, Gunther... Eu nunca
contaria a ningu�m.
� Mas voc� precisa compreender que rezo pelo
restabelecimento da sua m�e. Rezo dia e noite para o Senhor
fazer que ela se restabele�a dessa doen�a que tem.
� Eu sei, Gunther, e agrade�o seus pensamentos e suas
ora��es. A verdade � que n�o � prov�vel que ela se
recupere, mas os m�dicos est�o fazendo o que podem.
� Ah! Esse pessoal, esses m�dicos, eles n�o sabem nada.
Sabem consertar sua perna se ela quebra. Sabem suturar um
ferimento e estancar o sangue. Mas a alma? Eles n�o sabem
nada de doen�a da alma. E s� pela gra�a de Deus que essas
coisas podem ser remediadas. Sua m�e foi... sua m�e � uma
boa mulher, uma mulher forte e boa. Essas coisas s�o um
crime contra...
� Gunther.
Ele parou no meio da frase.
�Chega � disse eu baixinho. � J� chega. � muito tarde
para arrependimentos. O mundo � assim mesmo, e n�o h�
nada que possamos fazer agora. Vim ver voc� para lhe dizer
que eu estava bem. Vim para ver Hans e Walter...
� E Elena � interrompeu Gunther. �Voc� veria Elena
tamb�m, se ela n�o tivesse sido arrebatada de n�s.
� Eu sei, eu sei, e ainda � dif�cil para mim pensar sobre isso.
H� muitas coisas pelas quais podemos chorar, mas, se
acreditamos em Deus, tamb�m devemos ter f� nas decis�es
Dele.
� Em seus castigos � disse Gunther.
Franzi a testa.
� Castigos?
Gunther olhou para o ch�o.
� A B�blia nos conta que tudo acontece por uma raz�o.
� N�o � disse eu. �Voc� n�o pode come�ar a pensar
assim, n�o pode se punir pela morte de Elena. Como pode
achar que teve algo a ver com o que aconteceu?
Gunther ficou calado.Virou as costas para mim e olhou em
dire��o � casa.
� Eu fiz uma coisa horr�vel � disse. Sua voz era quase um
suspiro.
� Ela se sentia sozinha. Meu pai tinha morrido. Posso
entender a natureza humana, Gunther, e voc� tamb�m. Se
Deus nos fez � Sua pr�pria imagem, ent�o tamb�m deve ter
feito a gente sentir o que sente.Voc� � um homem bom,
Gunther Kruger, e ao que me consta nunca fez outra coisa
sen�o nos ajudar, e acho que se punir pelo que aconteceu
com minha m�e � t�o absurdo como achar que teve alguma
participa��o na morte de Elena. Essas coisas acontecem, e o
verdadeiro teste de for�a � seguir vivendo apesar delas. �
Quando acabei de falar, lamentei ter aberto a boca. Eu queria
saber se a coisa horr�vel que ele mencionara era sua
infidelidade, ou outra coisa.
Gunther fez que sim com a cabe�a. Olhou para mim com
l�grimas nos olhos.
� Ach, voc� tem raz�o, Joseph. Ficou esperto e inteligente
em poucos anos, n�o �?
Fiz um gesto descartando seu coment�rio.
�Voc� se mudou para c� e sua fam�lia est� bem. Mathilde
est� feliz, n�o �? Os meninos tamb�m, me parece.
� Hans vai se casar no ver�o � disse ele. �Voc� tem que
vir assistir ao casamento. Precisa vir assistir ao casamento,
n�o �?
Fiz que sim com a cabe�a e sorri. Segurei o ombro de
Gunther.
�Virei assistir ao casamento... Ser� uma honra.
� �timo, ent�o est� resolvido. Agora voc� precisa ir... ou
pode ficar mais um pouquinho?
� Tenho que ir � menti. Eu me sentia cruel e insens�vel.
� Muito bem � disse Gunther. � Venha se despedir de
Mathilde e pegar uns sandu�ches para a viagem.
Depois de quinze minutos em dire��o a Glenville dei meia-
volta e rumei para Augusta Falls. Cheguei no meio da tarde.
O c�u estava triste e sem gra�a.
Levei a picape de Reilly para sua casa, estacionei na rua,
fiquei feliz por n�o ter nenhum sinal dele. Fui a p� para casa;
come�ou a chover, como se o Deus cujo nome eu usara em
v�o estivesse tentando lavar minha culpa. N�o havia nem
chance de isso acontecer. A culpa era interna.
Eu frustrara o xerife Dearing, perdera a coragem. Deveria ter
pressionado Gunther Kruger, deveria ter perguntado o que
ele quis dizer quando falou na coisa horr�vel que havia feito,
Mas, na minha cabe�a, eu achava que sabia, devia saber. Eu
me lembrava de estar ajoelhado em frente a minha janela
naquela noite, tantos anos antes. Recordava-me de ver
Gunther ali parado no escuro, o casac�o parecendo uma
mortalha, e de como fiquei engasgado, de como aquela m�o
fria agarrou meu cora��o e espremeu o sangue dele at� a
�ltima gota. Ser� que Gunther Kruger poderia ter feito
aquelas coisas? Ser� que um homem como ele era capaz de
cometer crimes horr�veis como aqueles?
Eu queria que algu�m fosse respons�vel. Queria que algu�m
pagasse pelo que acontecera.
Naquele momento, eu tentava acreditar, tentava com tanta
for�a que do�a.
Fiquei parado na janela da cozinha e olhei para fora.Via o
velho s�tio dos Kruger, e com isso veio a imagem de Elena
sendo carregada embaixo da mortalha para a traseira da
picape aberta de Frank Turow. A morte estivera ali aquela
noite. Nem andando nem flutuando, pois estivera nas
sombras no meio das �rvores, nas sombras dos homens que
caminhavam com Elena, no barulho das botas pesadas
quando esmagavam folhas molhadas e gravetos quebrados,
no barulho do cascalho no cap�, no vapor que lhes sa�a da
boca quando eles pigarreavam e murmuravam palavras,
quando levantaram o corpo e o colocaram na picape. Ela
estivera ali. Eu sabia que me vira, e ela sabia que eu andara
observando-a.
Estremeci.
Perguntei-me se a Morte viera na forma de Gunther Kruger.
Eu sabia que devia ir falar com Haynes Dearing, mas n�o
conseguia enfrentar isso. Resolvi que iria v�-lo no dia
seguinte.
Se eu tivesse ido, ele poderia ter dito alguma coisa; poderia
ter feito algo que mudaria o que aconteceu. Mais tarde, a
perspectiva do tempo lan�ando um reflexo distorcido e me
mostrando o que poderia ter sido, entendi que eu estava
enxergando a situa��o da mesma maneira que tinha
discutido com Gunther Kruger. Eu lhe dissera como ele n�o
tinha responsabilidade nenhuma naquilo, que n�o poderia
ter feito nada. Como aconselh�vamos depressa os outros e
depois deix�vamos de aplicar os mesmos conselhos � pr�pria
pessoa.
A verdade era a verdade, por mais dif�cil que fosse enfrent�-
la.
Quando falei com Hans Dearing, a realidade era irrevers�vel.
Contei-lhe o que Gunther Kruger dissera. Contei-lhe o que
eu pensara, talvez o que eu imaginara. Vejo agora que lhe
contei aquilo em que ele tanto queria acreditar. A realidade,
t�o mais dif�cil de enfrentar que a imagina��o ou as
conjecturas, havia deixado claro seu ponto sem d� nem
piedade.
Era a� que tudo mudaria, e eu � t�o acostumado ao pior que
poderia acontecer � achei dif�cil acreditar que minha vida
mudaria para melhor.
As engrenagens haviam girado. Entre elas ficam as vidas das
pessoas, e uma vez que suas revolu��es se completam, nada
mais parece restar.
Era uma vida, mas muito distante daquilo que eu esperara.
Sou culpado pelo que fiz?
N�o somos todos culpados de alguma maneira?
Ser� que disse o que julguei ser verdade, ou aquilo em que
queria acreditar? Ser� que disse o que achei que o xerife
Haynes Dearing queria ouvir, ou o que eu queria que ele
ouvisse?
Ser� que fiz isso porque achei que tudo fosse parar, que de
alguma forma o passado se desvaneceria em sil�ncio, para
nunca mais me perseguir de novo?
N�o posso responder a estas perguntas. Mesmo agora, ap�s
esses anos todos, ainda n�o sou capaz de responder a estas
perguntas.
Meu pecado. Meu crime. Meu tormento.
Lembro-me do rosto de Dearing quando falei com ele, da
forma como ele levantou as sobrancelhas e n�o disse nada,
como arregalou os olhos, da luz da percep��o que de algum
modo acendi dentro dele. E eu deveria ter justificado
minhas palavras, deveria t�-las moderado com d�vidas, com
reservas, mas n�o o fiz. Moderei-as com medo, raiva e dor;
com a tristeza que sentia pelo que acontecera entre Gunther
Kruger e minha m�e, pela morte da filha dele... por todas as
coisas de que me julgava culpado.
Responsabilizei-o de alguma forma pela dissolu��o da minha
vida. Fiz com que carregasse o fardo da minha perda.
Julguei-o pela morte de minha m�e, pela morte de Elena, a
quem eu prometera proteger.
Eu era juiz, j�ri e testemunha de acusa��o. N�o revi os fatos.
A defesa n�o se manifestou. Determinei a culpa e n�o
considerei a possibilidade de inoc�ncia. Quis que algu�m
pagasse pelo que fora feito. S� quis que algu�m pagasse.
Vinte
Ainda estava escuro quando ouvi o motor em frente de casa.
Levantei-me. Fui nu at� o canto da janela e espiei l� para
baixo. O ve�culo preto e branco era inconfund�vel. Quando
vi Haynes Dearing deslizar com ar cansado do banco do
motorista, endireitar o cintur�o, enganchar a fivela; quando
o vi meter a m�o dentro do carro e pegar seu chap�u, bot�-
lo na cabe�a como um sinal de pontua��o; quando o vi
aguardar um instante, olhar para a rua e depois para a casa,
como se seu pr�prio anjo da morte estivesse planejando
aparecer l� de dentro, eu soube.
Eu soube.
Recuei e peguei a cal�a e a camisa. Vesti-me lentamente,
pelo menos assim pareceu; imaginei que Dearing demoraria
bastante para andar at� a porta apesar da curta dist�ncia.
Senti-o parar v�rias vezes, como se considerando as raz�es
de seu ato, e cada vez que pensava em dar meia-volta algo o
instigava a prosseguir.
Eu estava l� embaixo antes que ele batesse.
Abri a porta e n�o disse nada. Sua express�o era neutra. Para
al�m dele, o c�u continuava dormindo; muito cedo para
fen�menos atmosf�ricos.
� Imaginei que pudesse dar uma volta comigo � disse
Dearing.
� Agora? � perguntei.
Ele fez que sim.
� Agora � repetiu, e virou as costas para ir andando.
� Aonde vamos? � gritei para ele.
Dearing n�o diminuiu o passo nem se virou para responder.
Entrei de novo em casa para buscar os sapatos e o casaco.
No caminho, falei duas vezes. Em ambas, Dearing apenas
balan�ou a cabe�a. Pensei numa terceira tentativa, mas
desisti antes de resolver o que dizer. Ele pegou um caminho
por Hickox, Nahunta e Screven. Eu sabia aonde est�vamos
indo, e adivinhei por qu�. Observei as m�os de Dearing no
volante, sua pele curtida, cicatrizes e marcas, as manchas de
nicotina em seu dedo m�dio e na polpa do polegar. Uma ou
duas vezes olhei de canto de olho para seu perfil � quase
todo na sombra, pouco mais que uma silhueta, a forma como
os m�sculos se retesavam e inchavam em seu queixo. O
homem estava todo contra�do e tenso. Uma palavra errada,
um movimento muito repentino, e ele explodiria como um
boneco de mola pulando da caixa. Olhei para a estrada.
Guardei meus pensamentos para mim mesmo.
A beira da estrada era coalhada de barrac�es de p�-direito
baixo e birutas. Caixas de correio a cada dez ou quinze
metros, todas famintas de algo que era improv�vel que
chegasse. Pilhas de pneus como uma larga coluna negra, de
onde pendia um cartaz � ovos frescos � e uma seta
apontando para um caminho sinuoso e esburacado. No
cruzamento a mil e oitocentos metros de Jesup, um trator
consumido pelo fogo parecia um c�o paciente ansiando por
um dono ca�do. As janelas sem vidro, as cores havia muito
comidas pela ferrugem e pela corros�o, a grade da frente
qual uma boca zangada quase transbordando de palavras
amargas, incapaz de falar.
Parecia-me uma regi�o triste e desolada. Regi�o da minha
inf�ncia. Regi�o do passado.
� Eles n�o est�o a� � disse Dearing quando parou na beira
da estrada. Est�vamos a quarenta e cinco metros da casa dos
Kruger. Eu j� vira as luzes, os girosc�pios piscando, sentia o
burburinho e a como��o que nos aguardava na lombada.
Soube que ele se referia a Mathilde e aos meninos.
Sete carros, contei. Rostos, eu vi, reconheci um ou dois. Um
deles era de Burnett Fermor, lembrei-me do pequeno
entrevero que tivemos no Natal de 45. Senti-me como um
fantasma, sentado no banco da frente do carro do xerife
Dearing e olhando os vivos pela janela.
� Est�o todos aqui. � Dearing disse a certa altura. � Ford
Ruby, Landis, John Radcliffe, Monroe do Condado de
McIntosh... todos eles, sete condados.
Fiquei calado.
Mais tarde, horas depois, s� ent�o com uma leve esperan�a
de entender o que havia acontecido, eu pensaria nele como
uma ab�bora de Halloween. Cabe�a toda inchada, olhos
meio acesos. L�ngua azul pendendo da boca. "Gostosura ou
travessura" � pensei, e entendi que n�o era nem uma coisa
nem outra.
� Quero ir l� � disse a Dearing.
Dearing fez que n�o com a cabe�a.
� N�o quer n�o.
Pensei em insistir, mas sabia que qualquer coisa que dissesse
cairia em ouvidos moucos.
� Enforcou-se � disse Dearing.
Por um momento, tentei n�o ver nada, mas a� pensei nele
balan�ando numa corda, para tr�s e para a frente enquanto o
caibro que o segurava rangia com a tens�o do peso.
� Achamos que foi hoje de manh� � disse Dearing. �
Walter... Lembra-se de Walter?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Walter o encontrou.
N�o respondi. Observei em sil�ncio o legista dos tr�s
condados deixar seu carro e se dirigir para o celeiro de
Gunther.
� Ele tinha uma fita cor-de-rosa na m�o � disse Dearing.
Fechei os olhos, tentei respirar fundo. A emo��o subia no
peito.
� Achamos outras coisas... um sapato, um colar que
julgamos que pertencia � menina Keppler... � Sua voz
morreu.
Depois de algum tempo, Dearing tornou a falar, algo sobre
culpa, sobre seu temor de que o suic�dio pudesse tornar a
perturbar as pessoas, mexer com tudo o que elas haviam
tentado esquecer. Eu s� ouvia meu assustado cora��o
batendo.
Minha m�e, minha m�e louca e triste, se deitara e tivera
intimidades com um assassino de crian�as.
Dez meninas, todas espancadas e violentadas, muitas delas
esquartejadas e seus peda�os espalhados aos quatro ventos...
Gunther Kruger � meu amigo, meu vizinho, o amante de
minha m�e...
Gunther Kruger fora ali para falar com a Morte e a Morte o
pendurara nos caibros.
Perdi totalmente o controle a certa altura e comecei a
chorar.
� Chega � disse Dearing, e eu o ouvi como se ele falasse de
muit�ssimo longe.
� Finalmente acabou � disse baixinho.
Ent�o levou a m�o � igni��o, deu a partida no carro e voltou
pelo mesmo trajeto da ida.
Menos de uma semana depois, Haynes Dearing mandou que
eu fosse embora de Augusta Falls.
� N�o � uma boa �poca para nenhum de n�s � disse.
Estava sentado � mesa da cozinha, o chap�u no colo, a,
express�o indecisa, quase nervosa.
� Isso a�... isso a� com Gunther Kruger... � Suas palavras
estranhas foram seguidas de sil�ncio, e ele desviou a vista. �
Tem gente que acha que voc� pode ter tido algo a ver com o
que aconteceu l�.
� O qu�?
Dearing levantou a m�o.
� N�o me entenda mal. Essa afirma��o n�o vem de
nenhuma fonte oficial, Joseph. Temos um problema aqui, o
pior desde que estou no condado de Charlton. As pessoas
est�o apavoradas. Mais inseguras do que com qualquer outra
coisa. Gunther Kruger era um homem conhecido, um
membro respeitado da comunidade. Uma coisa assim, as
pessoas acham dif�cil de entender, e come�am a achar que...
� Achar o que, xerife? O que as pessoas acham?
� Que diabo, Joseph, isso n�o faz mais sentido para mim do
que para voc�. Eu n�o devia ter mandado voc� ir l�. N�o
devia ter lhe pedido para ir falar com ele. � bom que eu
saiba o que poderia ter feito melhor. O fato � que coloquei
voc� numa situa��o vulner�vel. As pessoas v�o achar bom
pensar que isso teve mais a ver com sua visita do que com
qualquer outra coisa.
� O senhor n�o pode estar falando s�rio. Caramba, xerife,
que diabo � isso? Elas ainda acham que tive alguma coisa a
ver com esses assassinatos?
Dearing fez que n�o com a cabe�a.
� N�o, caramba, acho que n�o.
� E ent�o? O que acham que eu posso ter feito?
� Talvez algo a ver com o que aconteceu com Kruger...
� Que eu matei Gunther? � isso que est� dizendo?
� N�o estou dizendo nada diretamente, Joseph. � Dearing
p�s o chap�u na mesa e inclinou-se � frente, as m�os juntas,
dedos cruzados. Sua express�o era circunspecta e s�ria.�
Talvez sejam s� os garotos Kruger. Talvez seja s� um boato
que tenha partido deles. Voc� imagina como eles devem
estar se sentindo? N�o querem achar que o pai � um
assassino de crian�as, caramba. N�o querem achar que...
� Ent�o est�o dizendo que fui eu, que matei essas meninas e
fiz parecer que tinha sido o pai deles.
Dearing ficou calado. Seu sil�ncio era toda a confirma��o de
que eu precisava.
� O senhor n�o pode pensar que h� qualquer...
� Eu n�o penso � declarou Dearing com �nfase. � Sei que
voc� n�o teve nada a ver com isso. Encontramos coisas na
casa, coisas que estavam escondidas no ch�o do celeiro.
Encontramos coisas que pertenciam a quase todas aquelas
meninas.
� Ent�o, por que n�o conta para as pessoas... por que n�o
conta o que aconteceu de verdade?
� Porque Kruger est� morto e n�o pode refutar nenhuma
acusa��o.
� O qu�? � Eu n�o acreditava. N�o conseguia crer no que
Dearing estava dizendo.
� A lei � a lei, Joseph. Temos um homem enforcado, que se
suicidou, n�o h� d�vida. Encontramos pertences daquelas
meninas na casa dele. N�o vai haver julgamento nenhum,
nada de advogados, ju�zes, nem mais investiga��es policiais.
� o que �. Seja qual for esse pesadelo infernal, bem, acabou.
N�o vai haver mais nenhuma menina morta na Ge�rgia,
pelo menos pela m�o de Gunther Kruger. Ele vai enfrentar a
justi�a dele l� no diabo que o carregue. Eu s� tenho um
bando de gente apavorada e perturbada, e numa situa��o
dessas a gente faz tudo que pode para eliminar qualquer
coisa que lembre os horrores que aconteceram.
� E eu sou uma dessas coisas, certo?
� As pessoas sabem que voc� encontrou a menina Perlman.
Sabem que foi visitar Kruger em Jesup. Vinte e quatro horas
depois, ele se enforca. Seja qual for a perspectiva pela qual se
enxergue o fato, voc� participou dele, Joseph.Voc� � um
ator involunt�rio nesse teatro...
� N�o fique po�tico, xerife. Isso � muita besteira.
� Acho melhor voc� se mudar, Joseph. N�o h� nada que o
prenda aqui em Augusta Falis. Voc� � jovem. J� teve suas
dificuldades aqui. Nunca combinou com essa gente lenta do
interior que vive em cidades como esta. V� para algum lugar
onde possa se dar bem. Use o dom que recebeu. Escreva uns
livros, ganhe algum dinheiro. Case-se e recomece a vida.
Voc� poderia vender esta casa. Eu poderia mandar algu�m
cuidar disso para voc�... venda tudo e pegue o dinheiro,
comece tudo de novo. Deixe para tr�s todo esse passado
ruim. Eu cuido do que est� aqui e voc� vai construir a vida
que merece.
� E que vida seria essa, xerife?
Dearing balan�ou a cabe�a.
� Que diabo, Joseph, n�o sei... parece que est� na hora de
voc� buscar um pouco de felicidade.
Mais tarde, bem depois de o xerife Dearing ter ido embora,
sentei na beira da cama de minha m�e e chorei.
Chorei por ela, por Gunther Kruger; chorei pelas dez
meninas que talvez merecessem a felicidade mais do que
qualquer um de n�s; chorei por Elena, por Alex, pelo filho
que perdemos. N�o chorei por mim. N�o adiantava. Agora
eu carregava algo dentro de mim, e n�o era o fantasma
daquelas crian�as. Eu carregava a verdade do que
acontecera, e talvez isso fosse o mais apavorante de tudo.
Pensei em partir. Eu n�o tinha medo do que as pessoas
poderiam dizer ou fazer, nem do que poderiam achar de
mim. Pensei em partir porque fazia sentido come�ar de
novo. Pensei em Nova York, no livro que prometera a Alex
escrever. Fiz de conta que poderia sobreviver a tal mudan�a,
e tentei me convencer de que tudo que acontecia tinha um
motivo.
Eu me perguntava se os pais das meninas algum dia tentaram
pensar assim.
�V� � disse Reilly.
Era o in�cio de mar�o. Reilly fora jantar comigo, passara a
noite e grande parte do dia seguinte. Ficamos sentados na
varanda, Reilly fumando, a luz do entardecer lembrando
todas as primaveras anteriores da Ge�rgia. O inverno n�o
deixava pegadas indel�veis naquela terra. A tristeza e a
solid�o eram fatores presentes fosse qual fosse a esta��o.
�V�... v� para Nova York � repetiu ele, e a insist�ncia em
seu tom me alcan�ou, apesar das minhas divaga��es
distra�das. � Como Dearing disse, n�o h� nada que o prenda
aqui, Joseph. Quantos anos voc� tem?
�Vinte e um.
Ele sorriu sem jeito.
� N�o est� nem come�ando.
Olhei para Reilly Hawkins.
�Voc� diz que n�o h� nada que me prenda aqui. O que o
faz pensar que haver� algo num lugar como Nova York?
Reilly sorriu e baixou os olhos.
� Que diabo, n�o sei. Um lugar como este n�o � nada. Um
lugar como este � para a gente nascer e se mudar, a n�o ser,
obviamente, se tiver fam�lia ou coisa assim.
�Voc� est� aqui... n�o tem fam�lia e ficou aqui.
Reilly riu, com uma ponta de resigna��o e tristeza.
� Eu? Eu sou o melhor motivo para voc� ir embora daqui.
Eu sou voc� daqui a trinta anos se n�o tomar uma
provid�ncia, sabe? Al�m do mais, foi voc� quem come�ou
essa conversa de Nova York.
Olhei para o horizonte. Um mar de arbustos baixos, alsinas,
gaulth�rias, choupos raqu�ticos e um salgueiro que chupara
muita �gua do p�ntano e ficara baixo e feio; tudo pontuado
pelas casas baixas, casas que pareciam agachadas na terra para
evitar serem descobertas, esperando surpreender quem quer
que viesse de visita. Eu me perguntava se s� estava com
medo do desconhecido, medo do futuro. Eu me perguntava
que significado teria minha vida se eu continuasse ali, e n�o
conseguia pensar em nenhum. Casar com uma garota de
fazenda de mentalidade tacanha, criar alguns filhos, ficar
velho e ressentido e morrer de arrependimentos e falta de
ar. Parecia que l� s� havia dureza; que tudo o que se ganhava
acabava sendo tirado. Nova York acenava como um barulho
alto e bem- vindo ap�s um sil�ncio longo e constrangedor.
N�o fiz caso dos garotos Kruger, nem sequer tinha certeza
de que houvera boatos, e imaginei que o xerife Dearing
tivesse suas raz�es para achar que eu estaria melhor se
partisse. Achei que era ele que n�o queria que lhe
lembrassem de Gunther Kruger. Nada fora dito � o n�mero
de pessoas que eu via n�o bastava para saber se me olhavam
de maneira estranha. Eu sabia havia muito tempo que a
�nica raz�o para ficar era minha m�e, e at� mesmo desta eu
me escondera. N�o a via desde maio de 47, a visita que
fizera a Gabillard pouco antes de me casar com Alex. Quase
dois anos. Eu me perguntava que idade ela aparentaria.
�Talvez eu deva ir � disse eu, e minha voz seguiu em
dire��o �s �rvores e se perdeu no meio delas.
� Acho que devia � respondeu Reilly, e n�o falamos mais
no assunto.
Considerando o passado, minha vida parecia uma seq��ncia
de incidentes ligados. Como uma fila de vag�es
descarrilados, cada qual independente mas atrelado ao
seguinte. Um vag�o saiu do trilho � talvez a morte de meu
pai �, e tudo a partir da� o seguiu rapidamente,
resolutamente. Comecei a achar que eu tamb�m estava
atrelado, e se n�o me desengatasse me lan�aria da beira de
algum lugar para lugar nenhum.
Isso e os poloneses foram as raz�es que finalmente me
fizeram partir.
O nome dele era Kuharczyk, Wladyslaw Kuharczyk, e ele
foi l� em casa na primeira semana de abril de 1949.
� Seu xerife � disse num ingl�s extraordinariamente bom.
�Venho aqui porque o seu xerife diz que talvez voc� v�
vender esta casa e este terreno e deixar esta cidade.
Wladyslaw Kuharczyk tinha uns bons dois metros de altura,
mas apesar do tamanho n�o tinha nada que intimidasse. Suas
fei��es falavam de algo delicado e sens�vel.
� Eu vem com minha mulher � disse. � Temos tr�s filhos.
Minha fam�lia... � Abaixou a cabe�a e fechou os olhos. �
Todo mundo foi morto pelos nazistas, todo mundo menos
n�s... Eu tinha sete filhos, agora s� tr�s. Tenho pais, minha
mulher tamb�m, e ela tem av�s. Todos mortos pelos
nazistas. S� somos cinco agora, e eu venho para os Estados
Unidos. Temos dinheiro. Meu irm�o, ele tamb�m morreu,
mas faz muito dinheiro em Pol�nia antes da guerra. Eu
tenho dinheiro agora para comprar esta casa e este terreno...
e esse terreno onde essa outra casa pegou fogo...
� Kuharczyk olhou por cima do ombro para o terreno dos
Kruger.
� Ent�o eu vem aqui falar sobre isso porque seu xerife est�
dizendo � gente que talvez voc� v� embora daqui para n�o
voltar. Eu vem ver se essa casa est� � venda.
� Entre � disse eu. � Entre e vamos sentar.
� Minha mulher... meus filhos tamb�m...?
Franzi a testa.
� Est�o aqui?
Kuharczyk fez que sim com a cabe�a. Abriu um sorriso
largo.
� Ali � disse, e apontou para uma moita de �rvores na beira
da estrada. Levantou o bra�o e acenou. Apareceu uma
mulher, e logo depois um monte de crian�as estava atr�s
dela, e por um momento pensei serem Mathilde Kruger,
Hans, Walter e Elena. Foi ent�o, naquele exato momento,
que eu soube que partiria, que Wladyslaw Kuharczyk e sua
fam�lia assumiriam o posto que os Kruger haviam deixado
vago, que eu faria o que havia v�rios anos muitos desejavam
que eu fizesse: JosephVaughan desapareceria da Ge�rgia
Kuharczyk e eu combinamos um pre�o, um pre�o muito
bom, pela casa e pelo terreno. Mais tarde eu soube que,
apesar do documento assinado por minha m�e, o produto da
venda teria que ser mantido sob cust�dia at� ela morrer. Fiz
um acordo com o banco para levantar recursos, e embora
n�o fosse muito dinheiro, achei que seria suficiente para me
levar at� Nova York, para um lugar chamado Brooklyn.
Havia lido sobre o Brooklyn em revistas e livros; sabia que
era habitado por escritores, poetas, artistas e outros da
mesma inclina��o e natureza. No Brooklyn era onde eu
moraria e trabalharia, onde escreveria o romance que
abrangeria tudo o que minha vida fora, e anunciaria tudo o
que ela viria a ser. O Brooklyn haveria de ser meu lar
espiritual, talvez o lugar que Alex teria escolhido para mim.
Vi duas pessoas antes de partir: Haynes Dearing e Reilly
Hawkins. Dearing foi quase monossil�bico, apertou minha
m�o, agarrou meu ombro com tanta for�a que doeu.
� N�o me escreva � disse. � Voc� vai ter mais o que fazer
do que escrever cartas, e, com certeza, estarei ocupado
demais para as ler. Saia daqui. Um lugar como este vai acabar
arrancando tudo de voc�.
� Xerife... Eu..
Dearing balan�ou a cabe�a.
� Que diabo, Joseph, eu n�o estou a fim de ouvir nada do
que voc� tem a dizer. Voc� e eu j� conversamos tudo o que
t�nhamos que conversar h� muito tempo, certo? � Ele
sorriu e levou a m�o � aba do chap�u em sua cabe�a. �
Ouvi dizer que algu�m arrancou uns trinta ou quarenta
metros de cerca perto da casa de Lowell Shaner... Tenho
que ir cuidar disso agora. V� para onde quiser ir e d� um
jeito de construir sua vida, est� bem?
� Est� bem, xerife.
Dearing assentiu.
� �timo, Joseph, �timo. �Tornou a sorrir, estendeu a m�o
e me cumprimentou, e depois virou as costas e se afastou.
� Xerife?
Dearing parou e deu meia-volta.
� Sabe que eu n�o tive nada a ver com a morte de Gunther
Kruger, n�o?
Dearing baixou os olhos. Levantou ligeiramente o p� direito
e come�ou a cavar um buraco no ch�o com a ponta da bota.
� Acho que muita �gua suja passou por baixo de algumas
pontes incendiadas. Acho que n�o importa como uma coisa
dessas possa ter acontecido, Joseph. � Ele parou de cavar,
ergueu os olhos e sorriu. � Lembra daquela palavra dif�cil
que voc� usou, aquela sobre algu�m se deleitar com a
desgra�a alheia?
� Schadenfreude.
� Essa mesma. � bem o que estou sentindo em rela��o ao sr.
Gunther Kruger agora... entende o que quero dizer?
� Entendo, xerife � respondi. � Claro que entendo.
� Bom, ent�o tudo bem, Joseph... acho que n�o temos
muito mais a dizer a n�o ser boa sorte e adeus.
Levantei a m�o.
� Cuide-se, Joseph Calvin Vaughan, cuide-se.
Fiquei ali em sil�ncio enquanto o xerife Dearing virava as
costas e se afastava. Esperei um pouco, depois fui at� a casa
de Reilly.
Vinte e um
Peguei um �nibus. Uma viagem por cinco estados pela
frente � as duas Carolinas, Virg�nia, Maryland e New
Jersey. O p�ntano Okefenokee, o rio Althama, a ilha Jekyll e
o penhasco Dover: tudo atr�s de mim. Olhando da janela
enquanto as rodas lutavam com trilhas esburacadas e curvas
dif�ceis, eu sa�a da Ge�rgia como se acordasse de um sonho,
observava a suave aspereza dar lugar a cores claras e vivas.
Sa�a do passado para o futuro � o futuro que estava � minha
espera. Eu acreditava nisso; precisava acreditar.
Espremido de forma desumana num ve�culo apertado e
abafado, encontrei os barulhos e os cheiros de gente
diferente: um soldado atr�s de mim, fitas de condecora��es
esfarrapadas presas na aba do chap�u, a mente perdida em
alguma recorda��o sombria da Europa que iria para sempre
persegui-lo. Julguei tamb�m ouvir as vozes deles. Uma
velha, o rosto como um pergaminho cuja mensagem tivesse
sido completamente apagada, olhos como furos feitos na
claridade para encontrar a escurid�o silenciosa do outro lado.
Eu queria saber se ela estava indo ou voltando. Todos n�s �
nossas vidas epis�dicas, dilaceradas pela mudan�a �
amontoados enquanto a noite encurtava, enquanto
salt�vamos do �nibus em cidades como Goose Greek e
Roseboro, Scotland Neck e Tuckahoe, e faz�amos fila para
nos registrar em mot�is baratos e pernoitar em quartos
austeros. Len��is ralos e paredes cinzentas, cobertores
muito curtos para abrigar o rosto e os p�s ao mesmo tempo,
tiritando constrangidos, desafiando a natureza, resistindo �
vig�lia. Centenas de quil�metros. Horas e horas. Joelho,
cotovelo, ombro e cora��o espremidos. Ar, espa�o,
esperan�a, espremidos. Limites urbanos e divisas de
condados, campos, florestas, nascer e p�r-do-sol, horizontes
angulares a�oitados pelo vento sempre ao longe. Mil, dois
mil ou tr�s mil quil�metros ou mais. Troca de �nibus, outros
rostos: uma garota bonitinha com um beb� min�sculo, um
atleta universit�rio arrogante com dentes demais, um
homem de meia-idade chorando de olhos fechados sem
dizer uma palavra de Richmond a Arlington. Rito de
passagem. Um relato de viagem. Uma peregrina��o. Essa
viagem; a minha viagem. Alex em meus sonhos, o filho
tamb�m, e eu acordando com um gosto amargo de limalha
de cobre na boca. Pensando na Ge�rgia, em Reilly Hawkins,
em Virg�nia Grace Perlman, em homens andando lado a
lado, um bra�o de dist�ncia entre eles, vasculhando um
caminho acidentado no meio do mato e dos pantanais para
encontrar crian�as perdidas que jamais voltariam. Minha
m�e: velha, enferma, louca. Um pai morto, levado na High
Road. Gunther Kruger azulado e inchado balan�ando de um
caibro. Essas coisas todas; coisas importantes, significativas,
com uma magia sombria e indefin�vel em meio �s
corriqueiras e mon�tonas. Minha vida. Nada mais nada
menos que isso.
A estrada se desenrolava atr�s de mim. Levamos dias para
chegar a New Jersey. O �nibus engui�ou pr�ximo a Perth
Amboy. Fiquei parado na beira da estrada, um tique nervoso
na perna esquerda.
� Cigarro? � perguntou um homem.
Virei-me, sorri, fiz que n�o com a cabe�a.
� Staten Island � disse ele, e inclinou os olhos para
nordeste. � � de onde venho. � para onde vou. Voc�?
� Brooklyn � respondi, e olhei para o rosto do homem
pendurado embaixo da aba larga de um chap�u maior ainda.
Pele amarelada e brilhosa, bochechas cor de cera, marcadas
de var�ola e rugosas. Pelo visto, era um homem que
sobrevivera a uma doen�a terr�vel.
�Voc� n�o parece ser do Brooklyn.
� Sou da Ge�rgia.
� Ge�rgia, �? E o que est� fazendo indo para aquelas bandas?
�Vou ser escritor � disse eu. Ouvi sinos distantes, uma
torre de igreja, passados tr�s morros e um vale estreito. Um
som fantasma.
� Escritor, �? E sobre o que vai escrever no Brooklyn?
Encolhi os ombros e sorri.
� N�o sei...Vou ver quando chegar l�.
� Entrada para os Hamptons � disse o homem, e deu uma
tragada no cigarro. � Scott Fitzgerald, hein?
� Algo do tipo.
� Bem, algo do tipo vai ser algo bom � disse ele, e deu
outra tragada no cigarro.
Esperamos uma hora por outro �nibus. Veio de Linden nos
buscar.
Mais uma noite. C�u escuro, chuva forte, o tamborilar da
�gua no teto do ve�culo, incessante e intermin�vel. Dormi
todo encolhido, levei dez ou quinze minutos para recuperar
a circula��o quando acordei. Ponte de Williamsburg.
Claridade esmaecida, eu me sentindo desconcertado e vazio.
Bolsos recheados de d�lares, totalmente desorientado. Achei
que j� tivesse idade para me virar, encontrar um lugar para
ficar, um lugar onde pudesse me deitar esticado como uma
t�bua e s� acordar quando tivesse vontade.
E o Brooklyn me veio como uma coisa selvagem. De
arranha-c�us e esperan�a; luz batendo entre os pr�dios que
se estendiam a perder de vista, o vidro de um milh�o de
janelas de Manhattan, e gente, muita gente, gente demais
para se enxergar algu�m como indiv�duo. Broadway, Union
Avenue, placas de escolas e igrejas, centros m�dicos,
an�ncios e cartazes com cores e mensagens
resplandecentes; e mais gente, mais gente numa cal�ada do
que passava em Augusta Falis durante tr�s esta��es.
Saltamos do �nibus na avenida Lafayette. Peguei minha
mala, devia ter uns vinte e dois quilos, e carreguei-a para o
Brooklyn sem uma id�ia clara do lugar para onde estava
indo. Depois de tr�s quarteir�es, n�o consegui mais andar.
Encontrei um hotelzinho, parecia asseado, e peguei um
quarto para pernoitar. Tirei umas coisas da mala. Lavei o
rosto e fiz a barba. Vesti uma camisa limpa, um palet�
amarrotado e me aventurei num mundo que era estranho e
ao mesmo tempo meu novo lar. Perambulei durante uma
hora, caderno em punho, tive certeza de estar perdido e a�
dobrei a esquina e deparei com o hotel. Senti-me tolo. Eu
era um caipira, um matuto, um pe�o nascido no
interior.Tamb�m estava desesperado de fome, e num
restaurante de fachada estreita, na avenida Lewis, pedi
comida que daria para dois. Observei o mundo novo da
janela. Carros p�ra-choque com p�ra-choque, luzes
piscando, motoristas apoiados na buzina, guarda de tr�nsito
com um olho implac�vel entrando no meio do
engarrafamento sem se preocupar com o seu bem-estar.
Tempo e gente passando, o passado passando pelo presente e
virando o futuro sempre maior. Sorri como o tolo que eu
era. Ali estava algo que valia a viagem; ali estava a cidade de
Nova York, o cora��o dos Estados Unidos, suas ruas como
veias, bulevares como art�rias, suas avenidas como r�pidas
sinapses el�tricas, canalizando, alcan�ando; um milh�o de
vozes, com outro milh�o falando ao mesmo tempo, todo
mundo junto como uma fam�lia, mas s� vendo a si mesmo.
Ali estava um lugar em que se podia ser algu�m num
cruzamento, e ningu�m quando se atravessava para o outro
lado. Nova York me golpeava. Tudo o que eu via era
luminoso, ousado e arrogante. O corte dos ternos, os l�bios
escarlates das garotas com rostos de revistas e filmes, os
carros com um quil�metro de cromo polido, rodas raiadas e
grades, quebra-ventos como olhos e espelhos; crian�as
vestidas com suas melhores roupas, como se para ir � igreja.
Majestosa. Imponente. Uma cidade cerrada como um
punho. A casa sem p�ra-raios da humanidade.
Nova York me tirou o f�lego. S� o recuperei mais de dois
dias depois.
Segunda-feira, 2 de maio de 1949. Ali, no sagu�o central do
hotel onde estava hospedado; um jornal na varanda me
chamou a aten��o; uma linha embaixo do cabe�alho, um
conto de um homem chamado Arthur Miller, um
dramaturgo, um �cone ao que parecia; recebera um Pr�mio
Pulitzer por A morte do caixeiro-viajante. A zeladora passou
voando por mim, abriu a porta, pegou o jornal do ch�o e
voltou para o lugar de onde tinha sa�do. Detive-a um
instante, indaguei sobre uma pens�o, apartamentos ou quar-
tos para alugar. Mulher de meia-idade, olhou para mim
debaixo de sobrancelhas pesadas que se uniam no meio.
� Throop e Quincy � disse, como se atirasse pedrinhas. �
Um lugar na esquina da Throop com a Quincy se pretende
algo mais permanente. Minha irm� tem uma casa l�. O nome
dela � Aggie Boyle, srta. Aggie Boyle... diga que eu o
indiquei.
Agradeci calorosamente a zeladora. Seixos desconfiados no
lugar dos olhos. Recuou, olhou-me de alto � baixo por uma
fra��o de segundo, depois virou as costas sem mais palavra e
desapareceu em dire��o aos fundos do pr�dio.
Depois do caf�-da-manh�, aventurei-me a ir a Throop e
Quincy. Ruas apinhadas de gente. Mon�litos alt�ssimos para
todos os lados. Carros com a frente colada na traseira do
outro nos cruzamentos, encurvados como bichos esquisitos.
Encontrei a casa; cartaz na janela: aluga-se quarto. Aggie
Boyle tinha tanta solidez quanto sua pens�o.
� Oito d�lares por m�s, sem comida, uso das instala��es,
�gua quente das seis da manh� �s oito e meia da noite.
Seu tom era sucinto e profissional, rosto de solteirona
tirolesa, sem filhos, talvez sem nunca ter sentido a m�o de
homem al�m dos simples gestos de cortesia ao subir uma
escada ou embarcar num trem; muito pouca semelhan�a
entre Aggie e a irm�, salvo nos olhos, agachados embaixo de
sobrancelhas vicejantes, precipitando-se de um lado para o
outro como se esperassem um movimento s�bito. Embaixo
de hectares de saia havia hectares de carne, e por baixo disso
havia ossos fortes, cortados de �rvores velhas, pregados
juntos para durar, talvez suficientes para faz�-la chegar ao
al�m. As m�os de Aggie eram grosseiras, com dedos t�o
largos que sempre formavam um leque, e quando ela virava
a cabe�a, esta acompanhava os ombros em un�ssono, como
um elefante ou um rinoceronte. Mas havia nela uma certa
simpatia. Lotada na terra para servir a algum prop�sito, para
fornecer cama e desjejum aos cansados e agitados. Imaginei
que houvesse um passado; que houvesse hist�rias de Aggie e
da irm�, dos anos que viveram, do que as levou para o
Brooklyn.
� Mais quatro inquilinos � contou-me Aggie enquanto
sub�amos para o quarto do s�t�o. � Dois cavalheiros, duas
senhoras. O sr.Janacek. Ele � do norte da Europa. Est� aqui
h� uns bons meses. N�o se mete com ningu�m, prefere que
ningu�m se meta com ele tamb�m. O sr. John Franklin. Ele
l� o Brooklyn Courier, certifica-se de que escrevam as
palavras corretamente e n�o deixem de botar as v�rgulas. A
sra. Letitia Brock. J� est� aqui h� mais de quinze anos. Uma
senhora idosa, ajuda na biblioteca �s quartas e sextas. Por
�ltimo, tem a srta. Joyce Spragg, auxiliar administrativa do
St. Joseph s College, pr�ximo � De Kalb e ao parque
Underwood, conhece?
Sorri, fiz que sim com a cabe�a. Eu n�o tinha id�ia de onde
ficava o St. Josephs College.
� Se ficar, voc� os ter� como amigos e vizinhos, portanto
conv�m ser educado at� conhec�-los.
O quarto era asseado e funcional, com espa�o para uma
cama, duas cadeiras na janela, uma escrivaninha encostada
na parede da esquerda, um arm�rio com um trilho para
pendurar roupas.
Fui at� a janela e olhei para a rua.
�Vou ficar com o quarto � disse eu. Virei-me e olhei para
Aggie Boyle.
� N�o precisa pensar? � perguntou ela, num tom surpreso.
� Para qu�?
Ela sorriu, balan�ou a cabe�a.
� Acho que n�o tem muito para qu�.
� Ent�o est� feito. � Meti a m�o no bolso, peguei um
punhado de d�lares. � Quanto lhe pago agora?
� Duas semanas adiantado, e depois eu cobro �s sextas-
feiras.
Contei dezesseis d�lares e lhe entreguei. O dinheiro
desapareceu no bolso do seu avental.
� Sou escritor � disse a Aggie. �Vou trabalhar aqui
tamb�m. Acha que o barulho de uma m�quina de escrever
vai incomodar algu�m?
Aggie tornou a sorrir, mostrou o tipo de dentes cariados de
quem masca cana-de-a��car direto do p�.
� Acho que ningu�m vai reclamar. S� quem se preocupa
com barulho � a sra. Brock, e ela est� do outro lado da casa.
Balancei a cabe�a e retribu� o sorriso.
� O banheiro � no fim do corredor, � direita. Fica em frente
ao quarto da srta. Spragg, portanto n�o saia de l� ao natural,
certo?
� Certo, srta. Boyle.
� Aggie � retrucou ela. �Todo mundo me chama de
Aggie.
� Certo, Aggie.
� Bem, vou deixar voc� se instalar... vai precisar buscar suas
coisas e traz�-las para c�. Quando estiver pronto para sair,
venha buscar sua chave.
� Obrigado.
Aggie Boyle adiantou-se. Olhou para mim com seus olhos
penetrantes e franziu a testa.
� Voc� carrega muito peso para algu�m t�o jovem � disse.
� � sua maldi��o de escritor ou passou por maus momentos
l� no lugar de onde veio?
Ri, desconcertado.
� Maldi��o de escritor?
� Que diabo, todos eles t�m uma maldi��o. J� vi chegarem e
irem embora. Os atores s�o iguais. Carregam centenas de
pessoas na cabe�a. Alguma coisa a ver com criatividade e
tudo isso.
� N�o sei de maldi��o nenhuma � disse eu.
� Ent�o voc� passou por maus bocados.
� Muito maus.
Aggie balan�ou a cabe�a.
�Vi isso. Acho que ent�o o Brooklyn � o melhor lugar para
voc�.
� Como assim?
� � um lugar t�o movimentado que a gente s� tem tempo
de olhar para fora, entende o que quero dizer?
Pensei nas pessoas na cal�ada, no cheiro do lugar, nos
restaurantes apinhados, na casa sem p�ra-raios da
humanidade.
� Acho que sim � respondi. � Acho que sei o que quer
dizer.
� Bem, se n�o souber, vai descobrir logo � retrucou Aggie,
e com isso virou as costas e sumiu no corredor.
Fiquei mais alguns minutos, a cabe�a oca, os pensamentos
contidos. Senti cheiro de tinta fresca, de vazio, de um quarto
aguardando ser preenchido por algu�m. Eu chegara. Chegara
a algum lugar vindo de outro. Um recome�o, um
renascimento.
Os fantasmas estavam ali, alguns deles � talvez todos �,
mas por ora estavam quietos. Fechei os olhos e tentei ver o
rosto de minha m�e, mas n�o consegui. Meu pai era uma
mancha monocrom�tica indistinta, como a lembran�a de
uma fotografia desbotada. E as meninas � todas elas, lado a
lado em algum lugar, aguardando as asas talvez, aguardando
virar anjo.
Peguei tudo o que possu�a para me lembrar um pouco da
Ge�rgia, e de alguma forma achei que estava bom.
Fiquei seduzido pela srta. Joyce Spragg, auxiliar
administrativa do St. Josephs College, na tarde de domingo,
12 de junho.
A srta. Spragg tinha quarenta e um anos, mais vinte do que
eu.
�Venha tomar uma garrafa de vinho comigo, Joseph �
disse ela.
Eu estava sentando � minha escrivaninha, talvez sonhasse
acordado, tentando sem muito entusiasmo trabalhar, e
deixara a porta aberta.
Levantei-me da cadeira e atravessei o quarto. Quando
cheguei � porta, ela a abriu com o p�. Ficou ali com um
vestido de algod�o estampado, uma garrafa de vinho em uma
das m�os e dois copos na outra. Tinha o cabelo, escuro e
exuberante, afastado do rosto. Era uma bela mulher, l�bios
pintados de carmim, olhos de um azul esfuma�ado.
� Uma bebida � repetiu. �A menos que eu esteja
interrompendo seu trabalho.
Fiz que n�o e sorri.
� N�o estou de fato trabalhando.
� Ent�o est� combinado � disse ela. � Vamos tomar esta
garrafa de vinho e falar de coisas sem import�ncia esta noite.
Acompanhei-a pelo corredor at� seu quarto. Comparado ao
meu ex�guo habitat, era ricamente mobiliado com colchas
de brocado e almofadas de seda estampadas. Afastado da
parede, havia um biombo de madeira decorado, um penhoar
pendurado ali, e � direita uma berg�re funda de couro. A
srta. Spragg e eu j� hav�amos nos falado muitas vezes, um
cumprimento social quando nos encontr�vamos no corredor
ou na cozinha l� embaixo, mas nunca mais que isso.
�Voc� � escritor � come�ou. � Aggie me contou que
voc� veio para o Brooklyn para escrever um livro.
Assenti com a cabe�a e sorri.
� Sim � falei.
� Sente-se... por favor � disse ela, apontando a garrafa para
uma espregui�adeira ao p� da cama por fazer. Ent�o abriu a
garrafa com um grau de destreza que eu s� podia atribuir �
pr�tica, e encheu os dois copos.
� A um romance incr�vel � disse �, e a seu grande
sucesso � brindou.
Ergui o copo e agradeci a delicadeza.
� Ent�o, voc� � Joseph Vaughan, da Ge�rgia � explicou-
me, indo at� a cama e sentando-se na beiradinha. � Soube
que sofreu uns percal�os.
Fiz que n�o com a cabe�a.
� � uma quest�o de ponto de vista � disse eu. � Sou
bastante saud�vel...
� Mas o esp�rito � disse ela � e o cora��o � que s�o
tomados pelas sombras e as asperezas da vida, n�o?
Ela riu. Parecia descontra�da, segura, consciente de sua
atra��o e sem medo do que se poderia pensar dela. Invejei
sua seguran�a.
- As pessoas s�o feitas de a�o � disse eu. � Sobrevivem a
traumas e perdas bem maiores do que os que sofri.
� Ent�o me conte � disse ela. � Me conte o que
aconteceu na Ge�rgia.
� Achei que �amos falar de coisas sem import�ncia.
Ela sorriu.
� � voc� que est� me dizendo que n�o sofreu nenhum
grande trauma ou perda... ent�o essas s�o as coisas sem
import�ncia de que vamos falar.
Falei durante quase uma hora. Por uma ou duas vezes, ela
me interrompeu, para esclarecer um ponto, pedir que eu me
aprofundasse mais ou desse mais detalhes, mas o tempo todo
parecia satisfeita de ouvir pacientemente enquanto eu falava
de meu pai, de minha m�e, de Alex e do beb�, dos as-
sassinatos das meninas, de Virg�nia Perlman, da morte de
Gunther Kruger. Contei-lhe tudo, at� da carta do pessoal dos
Contos de Atlanta, da cole��o de recortes de jornal que eu
carregara comigo, e quando terminei ela se levantou da
cama e encheu novamente meu copo.
Tornou a sentar-se, a express�o distante e pensativa.
� Perturbei voc�, srta. Spragg � disse eu.
Ela sorriu e fez que n�o com a cabe�a.
� De jeito nenhum, e pare de me chamar de srta. Spragg,
pelo amor de Deus. � Riu. � Quantos anos voc� tem?
�Vinte e um, fa�o vinte e dois em outubro.
� E j� viveu o tipo de vida que poderia virar um livro.
Encolhi os ombros.
� Tome mais um pouco de vinho � disse, e se levantou
para encher meu copo.
Quinze minutos depois ela encheu meu copo pela quarta
vez. Seu vestido subiu acima do joelho quando ela cruzou as
pernas. Olhei para elas, e quando tornei a erguer os olhos ela
sorriu para mim. Sabia que eu olhara, e houve um momento
de constrangimento.
� N�o � pecado olhar � disse. � N�o � pecado ter
pensamentos, Joseph. E quase sempre � s� a consci�ncia de
outra pessoa que diz que o que voc� est� fazendo � pecado.
Se voc� vive a vida de cora��o aberto e com um sentimento
de integridade... bem, se realmente vive o momento, nunca
d� tempo para olhar para tr�s e se arrepender. � A srta.
Spragg inclinou-se � frente, apontou o queixo para mim e
fechou os olhos por um pouquinho mais de tempo do que o
esperado.
� Est� pronto para viver o momento, Joseph?
Ri, com um pouco de nervosismo talvez. Eu sentia seu
perfume � floral, adocicado, algo por baixo disso, talvez o
alm�scar de seu corpo, e essas fragr�ncias juntas se traduziam
em promessa, transmitida numa linguagem de sedu��o e
sexualidade.
Pousei meu copo e tamb�m me inclinei � frente, nossos
rostos paralelos. S� alguns cent�metros os separavam.
� Estou pronto para viver � murmurei, e levantei da
espregui�adeira para abra��-la.
Eu me lembrava do som de seu copo batendo no ch�o do
outro lado da cama, achei incr�vel que n�o tivesse quebrado,
e a� ela estava em cima de mim, parecendo me consumir
como uma onda.
Mais tarde, ambos atordoados com o �mpeto da paix�o, ela se
deitou em cima de mim, a cabe�a no meu peito, e me disse
que o que acontecera n�o era muito importante nem muito
significativo.
Olhou-me, e por um momento enxerguei atrav�s da capa de
sua seguran�a. Foi como se a verdadeira Joyce Spragg
aparecesse atrav�s do aspecto externo. O brilho de seus
olhos pareceu menor, o tom de sua pele, cansado como o de
uma velha cortes�. Cada tra�o delineado por pequenas
sombras, as rugas estreitas que falavam em l�nguas
epid�rmicas: aqui, uma trai��o, ali, uma desilus�o; e
finalmente o sinal vis�vel de um desgosto amoroso. Seu
rosto contava uma hist�ria � ou talvez n�o tanto uma
hist�ria quanto uma saga de sonhos afogados em �lcool antes
que tivessem ganhado for�a suficiente para se soltar e
caminhar sozinhos. Seu pessimismo fora uma �ncora para
todas as suas aspira��es, suas tentativas de promover
oportunidades foram desastradas e canhestras. Ali estava
uma pessoa que achava que o mundo sempre estaria em
d�bito com ela e que morreria convencida de n�o ter
recebido o que lhe era devido.
Ou assim acreditava eu naquele momento, acreditava e n�o
me importava. Pois a srta. Joyce Spragg, auxiliar
administrativa do St. Josephs College na De Kalb, me
pareceu um pequeno desejo de perfei��o num mundo muito
imperfeito.
� Import�ncia e significado s�o relativos � murmurei. �V�
dormir.
Toda vez que eu visitava Joyce, ela me lembrava que nossa
uni�o n�o tinha import�ncia nem um significado maior.
Toda vez eu sorria. Era como se ela me visse por uma luneta,
meu significado infinitesimal, mas, quando queria se esgotar
na minha cama, eu via que eu era tudo o que ela de fato
possu�a. Joyce Spragg era uma fachada, sua ambival�ncia, um
v�u atr�s do qual ela se escondia do mundo.Talvez ela
achasse necess�rio ser d�bia e amb�gua.Talvez considerasse
essas qualidades atraentes. Eu nunca a amei, nunca fui tolo
de pensar que a amava. Nossa rela��o era uma conveni�ncia,
um meio de termos companhia, e embora f�ssemos amigos
nunca passar�amos disso. Por�m, apesar de todas as suas
idiossincrasias, Joyce me apresentou ao pequeno c�rculo de
literatos que freq�entavam o F�rum dos Escritores da
universidade. Reun�amo-nos nas noites de s�bado, fui
apresentado na primeira semana de julho de 1949, e a� eu
esbarrei com as pessoas que eu desejava conhecer quando
deixei a Ge�rgia pelo Brooklyn.
O F�rum dos Escritores da universidade era um porto para
desajustados e inconformistas, aqueles que talvez n�o
pudessem encontrar companhia em mais nenhum outro
lugar; e embora fossem as pessoas mais inteligentes e
perspicazes que eu j� conhecera, eram tamb�m as mais
estranhas. Naquela primeira noite de s�bado, fui com Joyce
simplesmente porque ela me convidou.
� V�o tentar explicar a poesia cl�ssica que n�o entendem �
disse ela � e v�o beber enormes quantidades de vinho tinto
barato, e divertir todo mundo com suas tentativas medonhas
de criar pent�metros i�mbicos e prosa livre.
O F�rum acontecia num sal�o de reuni�es a meio quarteir�o
do campus da universidade. Joyce, auxiliar administrativa,
tinha autoriza��o para levar quantos convidados quisesse,
desde que n�o fossem imbecis, ignorantes ou "estrangeiros".
� Estrangeiros? � perguntei. � Est� dizendo que s� a
literatura americana � considerada digna?
Ela riu.
� Estrangeiros s�o os que freq�entam as faculdades rivais.
N�o se admitem estrangeiros no F�rum.
Como eu n�o pertencia a nenhuma das categorias exclu�das,
fomos. Lance Forrester, o presidente da segunda esta��o,
nos recebeu. O ano n�o era dividido em trimestres, mas sim
em esta��es, e eram, na ordem, "final de inverno", "aurora",
"equin�cio" e "solst�cio".
� Uma licen�a po�tica � explicou Joyce. �A tudo que
fazem, e quero dizer tudo, atribuem um significado e uma
profundidade maiores que o merecido.
Lance Forrester apareceu, trazendo um ma�o de folhas com
a ponta virada. O cabelo esticado para tr�s no cr�nio com
brilhantina de ma��, uma risca no meio, reta como raio de
roda. Parecia observar os l�bios quando fal�vamos, meio
surdo, talvez, ou quem sabe encabulado a ponto de renun-
ciar ao contato visual e se fixar nos l�bios. Jeito estranho,
todo anguloso, um ziguezague de linguagem corporal
espremido dentro de um homem. Pareceu-me que Lance
Forrester precisava de uma boa mulher para aparar as arestas,
passar a ferro as rugas emocionais, mas uma mulher dessas
exigiria tr�s doses de paci�ncia e, quem sabe, motivos
ocultos. Quando ele olhava para Joyce, seus olhos faiscavam
como n�s de madeira num inc�ndio; os l�bios tremiam
como se temessem que as palavras escapassem s� para
humilh�-lo. Os pensamentos dele eram dele. De mais
ningu�m. Levava-os para casa e os contemplava. Parecia ter
inveja de beleza, encantos, amigos. Talvez pensasse em
garotas e chorasse, ou se masturbasse, ou simplesmente
odiasse todos. Os pensamentos tamb�m, mas, sobretudo as
garotas: a aus�ncia que representavam, o vazio instilado.
� Dizem � contou-nos Lance, falando baixinho como se
desse not�cias de alguma suspeita ou de um jogo sujo. �
N�o foi confirmado, mas dizem que Fulton Oursler poderia
visitar nosso pequeno enclave.
Franzi a testa e olhei para Joyce.
� Editor... era o editor da revista Liberty... � come�ou ela.
� � da Metropolitan. � um autor publicado, sabem? �
explicou Lance.
Sorrimos de modo am�vel, Joyce e eu, e passamos com
delicadeza por Lance Forrester em dire��o ao bar
improvisado na parede do fundo.
Foi l�, naquela mesma noite, que conheci Paul Hennessy.
Pouco mais alto que eu, cabelo louro-escuro, comprido no
cocuruto e curto atr�s. Parecia estar sempre com um sorriso
ir�nico, como se ca�oasse do absoluto rid�culo do mundo �
sua volta. Vestia-se excepcionalmente bem, � depois
descobri � quando o conheci melhor � que n�o era o
dinheiro que lhe dava aquele jeito e aquela apar�ncia, mas
sim o cuidado que dedicava a isso. Hennessy tinha uma
capacidade infinita de tirar o melhor partido de tudo, e com
suas fei��es enrugadas, seu queixo marcante, seu olhar
ligeiramente triste, poderia ter ido para Hollywood. Se eu
soubesse a import�ncia que ele teria no meu futuro, o futuro
que ainda era desconhecido, teria deixado o F�rum e voltado
para a Ge�rgia. Hennessy era um anacronismo deslocado
tanto em termos de tempo quanto de lugar, mas seu charme
era ineg�vel. Naquela noite, ele n�o estava sozinho. Havia
uma mulher ao seu lado, que parecia ficar sem ar a cada
palavra que ele pronunciava. Tinha o cabelo eri�ado e fixado
com laqu�, formando uma corajosa e prec�ria crista, como
uma �rvore petrificada de repente no auge da flora��o, e nos
olhos, baixos em seu rosto, havia certa tristeza e certa
nostalgia. Quando ela sorria, parecia expressar a melancolia
bela e profunda que s� pode ser expressa na companhia de
poetas vivos ou de viciados em �pio falecidos.
Com o tempo, passei a participar do F�rum tanto quanto
qualquer um, e fiquei conhecendo bem Hennessy. Ele
chamava quase todos os homens de "Jackson", numa esp�cie
de jarg�o de jazz abreviado; as garotas eram "curvas" ou
"amassos", e ele se referia a si pr�prio na terceira pessoa,
numa esp�cie de pronunciamento solene � "Hennessy n�o
seria encontrado morto num lugar como aquele!" ou
"Hennessy n�o aceitaria esse tipo de desafio deitado, sabe?".
Falava de Nietzsche e Schopenhauer, de Gibran e Tolst�i
como se cada um fosse seu amigo pessoal, e citava trechos
de O profeta e de Assim falou Zaratustra como se fossem
temas ligeiros de gente comum. Quando Hennessy entrava
numa sala, sozinho ou acompanhado, agia como se o pr�prio
Sam Falk pudesse aparecer a qualquer momento para fazer
fotos para a imprensa.
� Est�vamos no Top of the Mark, sabe? � dizia ele. �
Aquele barzinho na cobertura do Hotel Mark Hopkins em
S�o Francisco � e cansado de saber que nenhum de n�s
jamais fora a S�o Francisco, muito menos ao bar da
cobertura. Falava de beber u�sque com soda e Tom Collins
em copos longos, e de ouvir conjuntos de jazz: -� M�sicos
extraordin�rios, realmente extraordin�rios! O �nico
problema era que cada um tocava uma m�sica genial
diferente em ritmo onze por quatro, e eu e Clara, sabe, ela
era meu principal amasso na �poca... bem, direi que eu e
Clara n�o sab�amos se est�vamos descendo da Carolina ou
subindo de Boston!
Hennessy misturava as met�foras com mais desenvoltura do
que a maioria dos barmen de Manhattan misturava seus
coquet�is, e quando estava b�bado, apenas ficava mais
ruidoso, mais insistente, agressivo como um jornalista do
Hearst. Vivia bocejando, dando a todo mundo a impress�o
de absoluto t�dio.
"Um problema de sa�de", confidenciara-me certa vez. "Falta
de vitamina E. Meu corpo luta por oxig�nio. Tenho que
comer sempre amendoim e camar�o. Sen�o, fico let�rgico...
e que letargia... e ficaria propenso a coisas terr�veis como
tromboflebite e gangrena diab�tica."
Durante algum tempo, achei que procurava Hennessy por
seu humor, sua conversa incessante. Ele parecia ser pelo
menos uma panac�ia para minha solid�o, para a sensa��o de
vazio que me vinha cada vez que eu pensava em Alex.
Depois de conhec�-lo melhor, percebi que tinha um total
magnetismo, e por interm�dio dele eu conhecia gente que
n�o conheceria de outra maneira. Era esse turbilh�o de
atividade que me ajudava mais do que qualquer outra coisa.
Hennessy n�o foi a causa de recupera��o nenhuma que eu
possa ter experimentado, mas certamente foi um marco no
caminho.
Durante algum tempo, ele se habituou a trazer outra mulher
mais velha com ele, uma mulher chamada Cecily Bryan.
"Tenho um cat�logo de admiradores feios", dizia-me ela,
falando enrolado, com bafo de gim e cigarro. "Mas
francamente, meu querido, podem ser feios � vontade,
desde que continuem me admirando."
Depois, ela ria, e era uma risada n�o s� �spera e adstringente
como tamb�m com volume suficiente para encher a sala e
dar vontade de fugir.
No outono daquele ano, come�aram as festas, festas que
eram encorajadas no F�rum e continuavam muito al�m das
paredes daquele pr�dio. O pessoal invadia Nova York,
fazendo a cidade de playground, como se a aula tivesse
terminado. Paul Hennessy e Cecily Bryan sempre chegavam
b�bados, pareciam capazes de determinar a exist�ncia de
uma reuni�o em qualquer lugar da cidade. Eram atra�dos
pelo �lcool como uma necessidade aparentemente gen�tica,
e embora quase nunca fossem convidados oficiais, sempre
atribu�am tal omiss�o ao Correio Federal, talvez a um
mensageiro com o endere�o errado. Ent�o se embebedavam
e permaneciam b�bados. Passado algum tempo, Hennessy
fingia estar s�brio, mas, apesar de n�o se mexer nem falar, a
atonia facial e a boca mole o tra�am. E Cecily: um
entusiasmo desleixado, inchado e exuberante, em cujo
campo visual tudo balan�ava, uma exist�ncia de quinas
atenuadas e contornos vagos em que nada do que se dizia ou
fazia era bastante incisivo para esvaziar a bolha protetora de
dipsomania. Eles viviam discutindo, Cecily e Paul; discutiam
sobre coisas insignificantes e irrelevantes, e a� ficavam
efusivos e compassivos, e davam um jeito de ir para o
banheiro, e ele a comia ruidosamente como um tipo de
compensa��o por ser t�o babaca. E depois, talvez na cozinha
ou na varanda, Cecily Bryan bebia gim e chorava pelas m�es
dos rapazes mortos na guerra.
"Podiam todos ter ido para Cornell", dizia. "Podiam ter ido
para Cornell e se alojado em Ithaca... J� foi a Ithaca?
Conhece Ithaca? Talvez... talvez pudessem ter ido para
Notre-Dame, quero dizer, se fossem cat�licos, sabe? Garotos
mortos cat�licos que jogam futebol, hein? Centenas deles
correndo pelas ruas procurando as m�es... m�es cuja vida
agora � apenas a liga��o com a American Gold Star ou a
Christian Temperance Union.
E a� bebia mais gim, e chorava mais um pouco, e bem mais
tarde Paul Hennessy simplesmente a levantava de onde quer
que ela estivesse sentada e a carregava para seu carro.
Apareceram outros tamb�m � pessoas que pareciam
"literatas" e "cultas". Mais tarde eu soube que eram parasitas,
nem artistas nem escritores. Eram, principalmente, gente de
ag�ncias de publicidade, trabalhando para estabelecimentos
t�o reputados como Batten,Barton Durstine e Osborn Inc., a
companhia que tinha a carteira do Recrutamento da
Marinha Americana e da Sopa Campbell. Citavam cap�tulos
do Relat�rio Starch e usavam roupas de tweed de grife da
Abercrombie & Fitch. Tinham a apar�ncia esguia e a
constitui��o atl�tica de quem correu pela equipe da escola
secund�ria, e quando j� n�o conseguia fazer mil e seiscentos
metros em cinco minutos concorria ao Senado. Uma vida
aben�oada aguardava aquela gente. Sua desvantagem era n�o
enxergar a magia.
Havia tr�s irm�os que sempre andavam juntos, e embora
diferentes fisicamente, tinham um jeito provocador e
agressivo que os identificava como da mesma cepa. Os tr�s
trabalhavam na E. I. de Pont Nemours & Company, e
quando apareciam, Paul Hennessy ria e dizia: "L� v�m o
Recruta Zero, o Sargento Tainha e o General Dureza",
referindo-se �s personagens dos quadrinhos de Mort
Walker. "Esses meninos entendem tanto de literatura como
eu de Impressionismo franc�s", dizia ele, e depois os
envolvia numa conversa
Em nossa primeira festa, numa casa alta em Bedford
Stuyvesant, cujo endere�o era t�o misterioso para mim na
�poca como � agora, Hennessy soube que eu era do sul.
� N�o do p�ntano Okefenokee! � exclamou, e quando
informei que o p�ntano Okefenokee ficava a menos de
quinze minutos a cavalo de onde eu morava, ele zombou,
dizendo: �� cavalo? Menos de um quarto de hora a cavalo?
C� num pode t� falando s�rio, seu! Deve ter ouvido falar no
Pogo � enrolando a voz para imitar mais ou menos o
sotaque da divisa Mason- Dixon. � Pogo que mora no
p�ntano Okefenokee, Pogo, o gamb�.
Sorri com a maior sinceridade poss�vel, achei o homem uma
besta quadrada, e virei as costas para ir embora, quando
ent�o ele me agarrou pela manga e se dignou a pedir
desculpas.
Mais tarde descobri que de fato havia um quadrinho de um
homem chamado Kelly, e a personagem que ele desenhava
era um gamb� chamado Pogo, um habitante do mesm�ssimo
p�ntano. Ent�o aquilo nos pareceu um assunto
engra�ad�ssimo, mas acho que nossas gargalhadas foram
alimentadas pelo �lcool, e n�o pela gra�a inerente a um
gamb�.
Na segunda festa, ele veio direto at� mim, meteu uma ta�a
de champanhe na minha m�o e disse:
� Sabe esse neg�cio todo de direitos civis?
Franzi a testa.
� Direitos civis?
� Claro, direitos civis... Como esse Martin qualquer coisa
King, jovem, pouco mais de vinte anos. Defendendo
resist�ncia passiva � segrega��o, sabe? Voc� j� deve ter
ouvido falar disso, com certeza.
Admiti saber alguma coisa, mas n�o o bastante para ter uma
opini�o relevante.
� Sabe como tudo isso come�ou? � perguntou Hennessy.
Fiz que n�o.
� Na Segunda Guerra Mundial.
� O qu�?
� Na Segunda Guerra Mundial.
Franzi a testa.
� N�o sei se entendi.
� Soldados negros estavam lotados na Inglaterra � disse
Hennessy. � Eles foram para a Inglaterra e as garotas,
garotas brancas inglesas, os tratavam como seres humanos.
Ouvi hist�rias de bailes, coisas assim, bailes que se rea-
lizavam semanalmente, e as garotas brancas tiravam os
soldados americanos negros para dan�ar e os soldados
recusavam sempre, porque achavam que se dan�assem com
uma branca poderiam ser linchados. � Hennessy sorriu,
olhou para o outro lado. � Houve at� um soldado negro
acusado de estuprar uma garota branca em algum lugar. O
cara foi � corte marcial, foi considerado culpado, e os
militares estavam prontos para enforc�-lo. O pessoal da
aldeia sabia que ele n�o tinha feito aquilo, sabia que a garota
que dera queixa contra ele tinha inventado tudo, ent�o se
uniram e assinaram uma peti��o, e mandaram para
Eisenhower. Eisenhower dissolveu a corte marcial e suspen-
deu a pena do negro tr�s dias antes da data marcada para a
execu��o.
Balancei a cabe�a.
� Continuo achando que n�o entendi o que isso tem a ver
comigo.
Hennessy sorriu.
� Espere a�, Vaughan, ainda n�o terminei. Como eu ia
dizendo, Eisenhower suspendeu a pena do cara, e os
soldados negros, soldados negros americanos dos estados do
sul, n�o conseguiam acreditar, n�o conseguiam acreditar que
um bando de brancos boc�s conseguiriam organizar uma
coisa como aquela, e foi isso, a maneira como foram tratados
na Inglaterra, que os fez perceber que n�o era certo eles
serem tratados do jeito como eram na terra deles. Foi assim
que come�ou essa resist�ncia toda � segrega��o... foi
exatamente assim que come�ou.
Hennessy era assim: tinha opini�o; n�o aconselhava
ningu�m a n�o ser ele mesmo, e quando achava que voc�
estava pronto para receber a opini�o dele, ele dava, com
tudo o que tinha direito.
Certa vez, fomos ver F�ria Sanguin�ria, supostamente por
respeito a James Cagney, e na verdade porque Hennessy e
eu �ramos apaixonados por Virg�nia Mayo. Em outra
ocasi�o, lembro-me de uma viagem impulsiva e espont�nea
� praia no extremo de Staten Island, perto de Perth Amboy,
e l�, s�brios como ju�zes, tomamos picol� de fruta da
Fl�rida, e sorvete com casquinha de chocolate no palito, e
comemos pretzels quentinhos com sal grosso. Havia um
ambiente de camaradagem agrad�vel, e em ocasi�es como
aquela Hennessy se mostrava seco e sarc�stico, talvez um
pouco pessimista, mas sempre engra�ado, sem recorrer �
linguagem chula que parecia na moda.
"A esperan�a", dizia ele, "� uma mercadoria supervalorizada,
Vaughan. Pegue a grande maioria daqueles sujeitos l� no
Brooklyn. Eles t�m esperan�a de algo melhor em vez de
reconhecer que h� algo bem na frente deles que pode ser
aproveitado pelo que �." Sorria e piscava o olho para mim.
"Como agora... aqui e agora. C� estamos n�s, dois jovens
saud�veis transbordando de horm�nios, e o que vemos?
Vemos fileiras e fileiras de garotas, qualquer uma delas t�o
engra�adinha como uma atriz de George Petty... e temos
coragem e charme para falar com elas, para convid�-las para
jantar, para qualquer coisa que quisermos, n�o? S� estar aqui
j� � bastante agrad�vel... fa�amos ou n�o alguma outra coisa.
Aqueles garotos de l�... bem, posso lhe dizer agora, eles
reclamavam do sol, se queixavam de falta de dinheiro para
tomar o �nibus de volta para a cidade, alfinetando-se sobre
quem se arriscava a conversar com alguma jovem, e
nenhum deles tinha coragem de fazer isso. E depois se
perguntavam por que o mundo tinha um lugar escuro e
decepcionante como aquele. Eu? Eu n�o dou a m�nima para
o que as pessoas possam pensar de mim! Estou vivendo a
vida, vivendo-a de todas as maneiras poss�veis, e se eu tiver
vivido por nada, quem vai se importar? A vida n�o � um
ensaio geral, Vaughan. � para valer, sabe?"
Hennessy ria, e a� procurava Cecily Bryan e eu ouvia os dois
rindo juntos. Tinham uma irresponsabilidade canhestra
quase contagiosa, e passei a gostar dos dois por causa disso.
Quando est�vamos de caixa baixa, Hennessy e eu
tom�vamos cereal matinal Cream of Wheat, e depois � no
meio da tarde, quando a fome nos ro�a como um vira-lata
roendo um osso � �amos at� a Horn & Hardarts Automat e
divid�amos um prato de sopa e um sandu�che. Uma vez
est�vamos os dois gripados e Hennessy, por puro desespero,
roubou caixas de Citroid e Superanapac de uma Drogaria
Rexall nos arredores de Bedford-Stuyvesant.
"Confie em mim, Vaughan", dizia ele, com uma voz t�o
s�ria que parecia estar preparando uma cena da Inquisi��o.
"Ningu�m vai me ver e, mesmo que algu�m veja, o que vai
acontecer? V�o me perseguir por um d�lar e meio de
rem�dios para resfriado? N�o sei porqu�, acho que n�o."
Ent�o, Paul Hennessy roubou os rem�dios, e ningu�m viu,
ou se algu�m viu, n�o teve vontade nem disposi��o de
persegui-lo. Tomamos a medica��o; ficamos curados.
Quando est�vamos bem de dinheiro, �amos � loja Macys, um
mon�lito de onze andares que tomava um quarteir�o inteiro
do midtown de Manhattan, e l� � entre as pechinchas do
subsolo � encontr�vamos roupas que n�o us�vamos mais de
uma vez. Compr�vamos ternos de sarja e anarruga na Hart,
Schafiher e Marx, e depois �amos passeando at� o
Metropolitan Museum e fing�amos ser estudantes de arte do
Leste europeu, rosnando um para o outro com um sotaque
de falsete entrecortado, dando opini�es como se tiv�ssemos
algo digno de ser dito, e depois � Cecily, eu e Paul de
bra�os dados � compr�vamos uma garrafa de u�sque Calvert
e sent�vamos num banco perto do Central Park.
Cant�vamos "Days of 49" e can��es dos Gershwin,
observ�vamos os Buicks, Cadillacs e Lincoln Continentais
seguirem para a Broadway ou atravessarem aquele peda�o da
cidade � e eu nunca pensava em minha m�e, em Gunther
Kruger, no passado que eu deixara para tr�s. Quando estava
s�, bem, era diferente. S�, eu pensava em Alex e no filho
que perdi. Tomar u�sque e rir com Paul e Cecily tinha o
efeito de uma panac�ia, parecia me alvejar o passado da
mente.
Mais tarde, muito mais tarde, ouvi dizer que Cecily Bryan
voltou para o Missouri. No dia 11 de setembro de 1961,
apesar da retirada bem-sucedida de um milh�o de pessoas
quando o furac�o Carla provocou inunda��es e tornados em
Missouri,Texas, Louisiana e Kansas, Cecily foi uma das
quarenta v�timas que morreram. Ela n�o merecia morrer.
Apesar de sua dipsomania e do seu palavreado que seria
praticamente todo condenado pela sociedade Watch &
Ward de Boston, Massachusetts. Cecily Bryan era uma faixa
de uma cor viva num mundo, n�o fora por ela, quase todo
monocrom�tico, e s� em sua aus�ncia se notava que pessoa
intrinsecamente delicada, perdida e desnorteada ela era. A
�ltima lembran�a que eu tinha dela foi uma viagem que
fizemos a Nova Brunswick, em New Jersey. Cecily queria
conhecer Camp Kilmer, o lugar onde os refugiados h�ngaros
ficaram abrigados por um tempo. Trinta e sete mil deles
foram para os Estados Unidos, e Cecily imaginou que essas
pessoas tinham algo de desesperadamente rom�ntico e
apavorante. Meteu bra�adas de exemplares da Saturday
Evening Post e da American Weekly numa mala surrada e
arrastou-a para a varanda da frente. Paul tentou lhe explicar
que com certeza os h�ngaros n�o falavam ingl�s.
� Mas falam americano, certamente � disse com voz
esgani�ada, e insistiu para levarmos as revistas. �V�o querer
saber algo sobre a nova terra deles � prosseguiu, enquanto
Paul me olhava e balan�ava a cabe�a, resignado.
No mundo de Cecily Bryan, refugiados que n�o falavam
ingl�s estavam interessad�ssimos na reportagem sensacional
de William Randolph Hearst; talvez tamb�m gostassem das
p�ginas c�micas, das �ltimas fa�anhas de Homer Hoopee e
Li'l Abner. Sugeri que lev�ssemos um r�dio. Os h�ngaros
certamente haveriam de gostar de Dragnet e do The Jack
Benny Show.
Paul riu.
� S� queremos os fatos, minha senhora � disse, com um
sotaque de Joe Friday muito pass�vel.
� Rid�culo � disse Cecily. �Voc�s garotos s�o
absolutamente rid�culos... Esse r�dio deve pesar no m�nimo
uns doze quilos. Voc�s podem querer carregar isso no trem,
mas eu certamente n�o quero.
Diziam que Cecily era de uma fam�lia que havia sido muito
rica, que perdera tudo no crack da Bolsa de 29. Seu pai
botara uma pistola na boca e puxara o gatilho. Precisou ter
um caix�o fechado porque seu rosto parecia um punhado de
baquelitas fumegantes. Eu achava, talvez por experi�ncia
pr�pria, que a morte fortalecia ou desmontava as pessoas.
Algumas, desafiadas n�o s� mental como tamb�m emocional
e espiritualmente, encontravam na morte das pessoas
queridas a for�a de vontade e a determina��o para reafirmar
sua presen�a e sua convic��o junto �s demais. Outras, cujas
liga��es com o mundo j� eram fracas, simplesmente ca�am
num universo que elas mesmas criavam. Portanto, de
alguma forma Cecily Bryan foi um reflexo de minha m�e, e
talvez esse paralelo secreto me tenha dado uma sensa��o de
perda desproporcional ao meu v�nculo emocional. Cecily
Bryan era louca, mas de uma forma linda, po�tica e
magn�fica, e por isso eu estava certo de que tinha se tornado
um anjo.
Assim foram as semanas e os meses que fecharam o ano de
1949 e abriram o de 1950. Uma �poca de novos rostos e
experi�ncias; nomes e lugares diferentes; uma �poca de
esperan�a, talvez. Parecia que eu passara de um mundo para
outro. Foi um per�odo de grande mudan�a para mim,
coincidindo com grandes mudan�as para os Estados Unidos,
e do meu quarto na esquina da Throop com a Quincy, com
de meus encontros irregulares e clandestinos com Joyce
Spragg e minha amizade com Hennessy, consegui
estabelecer alguma no��o de quem eu era e por que eu
optara por fugir do passado.
Em julho de 1950, escrevi para Reilly Hawkins. Falei de
Nova York: Uma grande faixa de ru�do com uma enxurrada
de gente dentro. Parece que n�o h� espa�o suficiente nas
cal�adas e nas ruas, como se tanta gente assim n�o coubesse
nas casas e nos apartamentos existentes, mas se espremesse
de alguma forma, alheia aos sentimentos e � sorte dos
outros. Acho dif�cil entender como pode haver tantas
pessoas juntas, mas sempre t�o isoladas.
E, ao escrever, revelei onde estava, e ao revelar onde estava,
criei uma janela pela qual a Ge�rgia podia entrar de novo na
minha vida.
E foi isso que aconteceu. Em outubro de 1950 chegou uma
carta na casa de Aggie Boyle, e a pr�pria Aggie a passou por
baixo da minha porta enquanto eu dormia.
Lembro-me precisamente do dia. Lembro-me do cheiro de
outono no ar � do espectro de folhas mortas, do fedor de
putrefa��o, da dissolu��o de uma esta��o. Ali junto � janela,
segurando a carta que pesava muito mais do que on�as ou
gramas. A letra, eu n�o reconhecia, s� sabia que n�o era de
Reilly, e ao entender isso entendi tamb�m que aquela
mensagem seria uma invas�o. Antes mesmo de abri-la vi
que, por sua vez, a carta abriria algo dentro de mim. Uma
ferida. Uma falha. Uma fissura entre o cora��o e a mente. A
raz�o e o desejo de me libertar haviam me levado embora da
minha terra. Eu procurara al�vio do peso da perda. Quisera
acreditar que esse al�vio, uma vez alcan�ado, podia ser
conservado. Como se eu o tivesse merecido.
Eu n�o tinha.
Eu n�o merecera nada.
Eu sabia que precisava voltar, voltar para a Ge�rgia, para
Augusta Falls; para onde aquilo come�ara.
E o que me assustava, assustava mais do que qualquer coisa,
era achar que se voltasse eu nunca mais escaparia.
Abri a carta...
Eu me julgava um escritor, um poeta, um homem de vis�o,
um homem previdente.
Eu me julgava forte, decidido, equilibrado e calmo.
Achava que poderia voltar para a minha terra, e de alguma
forma permanecer distante. Como se s� enviasse meu corpo,
minha mente. Eu permaneceria em Nova York e veria tudo
de alguns milhares de quil�metros de dist�ncia. Meu cora��o
era forte. Reilly Haivkins n�o me dissera isso? Mas seria
forte o bastante para voltar ao passado? Eu tinha medo �por
mim, por minha m�e, pelo que poderia acontecer.
Temia que a lembran�a de Gunther Kruger e das dez
meninas me perseguisse para sempre.
Eu sabia o que acontecera naquela �poca. Sabia o peso que
Dearing devia ter carregado na consci�ncia quando se
afastou daquele celeiro, Kruger pendurado nos caibros, o
rosto inchado, a l�ngua azul, a fina fita cor-de-rosa
entrela�ada nos dedos.
Talvez eu temesse o que se poderia ter dito, os rumores que
poderiam ter chegado �s pessoas daquela cidade. Sete
condados, sete mundos separados, e eu era um fantasma para
todos eles assim como eles eram para mim.
Convenci-me de que aquilo era um teste: a minha volta.
Convenci-me de que se eu pudesse sobreviver �quilo
poderia finalmente enterrar o passado e continuar com a
minha vida.
Mas eu sabia que n�o. Sabia muito bem que elas sempre
estariam l� � as lembran�as das meninas, do som da voz de
Alex dentro da casa de minha m�e, do som do choro do
meu filho na escurid�o, de como eu nunca entenderia nem
acreditaria que uma vida pode ter sido t�o curta.
Eu estava diante de um conflito que me desafiava. Amea�ava
me quebrar todos os ossos do corpo, toda a determina��o da
mente. Assumia uma natureza e uma caracter�stica pr�prias,
e sua natureza era l�gubre, solit�ria, a natureza de uma linha
t�nue tra�ada entre o que eu julgava ser e o que eu temia me
tornar. Eu tentara exorcizar essas coisas, achando que minha
fuga para Nova York era uma catarse para a alma, mas era
apenas isto e nada mais: uma fuga.
Se eu tivesse ido para algum outro canto distante da Terra,
ela me acharia, pois a Ge�rgia n�o era algo do mundo
exterior, era algo interno.
Vinte e dois
�Voltar para casa � natural como respirar � disse Joyce
Spragg � a menos que voc� esteja se afogando.
Sorri. Segurei a m�o dela.
� Voc� voltar�... vai dar tudo certo � ela murmurou.
Aproximou-se mais de mim. Ali no vest�bulo da casa de
Aggie Boyle. Eu com a mala no ch�o, o casaco abotoado por
causa do frio, e ela colada em mim, os l�bios na minha
orelha. � Tudo o que eu disse antes... eu n�o estava falando
s�rio. Foi importante, sabe? Isso que a gente teve... foi
importante.
Quando se afastou, tentava conter as l�grimas. Estendi o
bra�o e encostei a m�o em seu rosto.
� Eu sei � disse eu. �Voc� � uma grande mentirosa, Joyce
Spragg.
A despedida foi estranha. Eu achava que quando voltasse, se
voltasse, as coisas n�o seriam as mesmas entre n�s.
Uma hora depois eu estava em p� na rodovi�ria. Esperava
com paci�ncia. Tremia. Desejava que o mundo ao qual eu
voltava fosse um mundo que eu quisesse. N�o era.
A carta fora breve e sucinta.
Caro Joseph,
Espero que esteja bem. Reilly Hawkins me mostrou sua carta. Ainda bem, pois do
contr�rio n�o saberia como entrar em contato com voc�. Escrevo-lhe sobre sua m�e.
Ela n�o anda bem h� muito tempo, como sabe, e recentemente piorou ainda mais.
Temo que n�o chegue at� o fim do ano. Achei que devesse saber disso caso deseje
v�-la de novo. O xerife Haynes Dearing veio v�-la algumas vezes, mas n�o ficou
muito tempo. Falou com ela, mas acho que ela n�o o reconheceu. Estou lhe
pedindo o favor de vir. Ela fala em voc� com freq��ncia, embora eu n�o saiba ao
certo se entende o que diz.
Penso em voc�, e espero que volte. Escrevo nessa expectativa. Cordialmente,
Dr. Lawrence Gabillard
No fundo, fiquei com raiva de minha m�e � de sua doen�a,
de sua loucura, da forma como um simples bilhete podia me
afastar de algo que eu tanto almejara.
Mas fui; peguei o �nibus para o meu passado, e meu passado
aguardava ali para me receber como se eu nunca tivesse
partido.
Ge�rgia: luz mais sombria do meu cora��o.
O sol, que j� estivera alto e corajoso, agora parecia frio e
agressivo. As cores pareciam fr�geis e imprecisas, como se
carecessem de afirma��o, como se a pr�pria terra j� tivesse
visto muitos dias sombrios para ter for�a para continuar.
Fiquei parado na beira da estrada olhando para a casa da
minha inf�ncia. N�o vi a fam�lia que agora morava nela, mas
senti sua presen�a, vi sinais de sua ocupa��o. Era lusco-
fusco, o anoitecer do dia 13 de outubro, uma sexta-feira, e
apesar de nunca ter sido supersticioso senti que l� estavam
ao mesmo tempo o fim de uma coisa e o come�o de outra.
Havia luzes acesas atr�s das janelas. A fuma�a subia da
chamin� como um espectro. Um c�o latiu.
Estremeci e me afastei.
Peguei um quarto para pernoitar no Bar da Queda. Eu estava
fora havia um ano e meio. Pensei em ir at� a casa de Reilly
Hawkins, mas por algum motivo n�o consegui. Frank Turow
morrera, eu soube; a casa agora pertencia a algu�m chamado
McGonagle. Um homem corpulento, maior do que a m�dia,
mas mesmo com aquele tamanho todo parecia delicado, um
gigante delicado, com fei��es suaves e equilibradas, cabelo
de um louro-acinzentado e espetado, e olhos p�lidos. Havia
algo nele que logo despertava simpatia.
� Sim, Frank Turow morreu � disse McGonagle, a voz t�o
suave como seus maneirismos, quando o acompanhei at� o
quarto do s�t�o. � AVC, acho eu. Voc� o conhecia?
� Um pouco.
� J� eu n�o o conhecia... Comprei esta casa na palavra no
inverno passado e Frank Turow tinha morrido uns meses
antes. � Senti um meio sorriso em sua voz. � Estranho...
�s vezes penso que ele est� por a� para se certificar de que
cuido da casa dele. � Riu, uma risada quase impercept�vel.
N�o perguntei mais nada. De alguma forma, eu n�o queria
saber de Frank Turow nem de Lowell Shaner, Clement
Yates e Leonard Stowell. O passado era passado.
Perguntei, sim, pelo xerife Dearing.
� Haynes Dearing � disse McGonagle, diminuindo o passo
e virando-se para mim. � N�o soube daquilo?
Gelei e estremeci por dentro. Como eu soubera que minha
volta n�o seria um feliz ataque de nostalgia?
Fiz que n�o.
� Tr�gico... tr�gico mesmo.
� O que foi? � perguntei, aflito.
� O que aconteceu com a mulher dele, sabe?
Fiz que n�o.
� N�o sei os detalhes � disse McGonagle. �Vamos ver...
Comprei esta casa no inverno retrasado. Deve ter sido em
mar�o... n�o, em fevereiro deste ano. Sim, em fevereiro
deste ano. Claro, n�o sou de detalhes, mas pelo que ouvi...
bem, ela se matou.
� Suicidou-se?
� Parece que sim... suicidou-se.
� Por qu�? � eu estava aturdido. N�o conheci a mulher de
Dearing, mas a id�ia de algu�m se matar me atordoava e me
perturbava.
McGonable encolheu os ombros.
� Como eu disse, mo�o, n�o sei os detalhes. Por que uma
pessoa se mata? Alguma coisa que ela quer e n�o pode ter.
Alguma coisa que tem e que n�o quer. N�o � muito mais
complicado que isso.
Eu n�o conseguia falar, e custei um pouco a conseguir me
mexer.
Por que a Ge�rgia era t�o cheia de mortos e moribundos? Ou
seria eu? Seria eu um emiss�rio da Morte? Ser� que eu trazia
dentro de mim algo como um cheiro, algo embutido, uma
mancha na alma que impregnava o ar � minha volta?
� E o xerife Dearing?
McGonagle encolheu os ombros.
� Foi embora... se mandou uma ou duas semanas depois.
Demitiu-se do posto de xerife e foi para algum lugar. Isso
deve ter sido em mar�o. Ouvi dizer que estava um trapo...
Bebendo, acho eu, mas n�o tenho certeza... N�o sei para
onde foi. Nunca mais ouvi falar dele.
Fiquei ali no v�o da escada, o cora��o na boca, suando frio
na testa, nas costas das m�os, e fiz de conta de que jamais
tinha voltado, de que poderia fechar os olhos e desejar estar
de volta em Nova York, e tudo desapareceria.
�Voc� est� bem, mo�o? � perguntou McGonagle.
Assenti.
� Estou... sim, estou bem.
� Bom, ent�o venha. Deixe-me lhe mostrar o quarto.
Mais tarde, no m�nimo uma hora depois, fui para junto da
janela olhar as sombras de Augusta Falls. O mundo estava
em sil�ncio, salvo pelos fantasmas do dia, e eles pareciam
com medo de sair.
Um ano e meio, menos quinze dias. Aquele lugar engolira
mais um pouco do meu passado, e tudo sem que eu tivesse
consci�ncia.
No dia seguinte, eu iria a Waycross ver minha m�e.
No dia seguinte, eu enfrentaria a escurid�o interior.
Amanheceu cedo. O sol apareceu alto e cheio, branco como
neve, lan�ando sombras n�tidas e definidas. Fora uma noite
fria, um sono estranho, joelhos e cotovelos para fora do
colch�o, e quando levantei meus m�sculos doloridos
latejavam de cansa�o. N�o se tratava de um desconforto
f�sico, mas sim de outra coisa. Talvez meus ossos, criados
naquela terra, sentissem seu lar e, enquanto eu dormia,
tivessem tentado me arrastar para o ch�o. Eles almejavam a
terra, sempre impregnada de umidade. Lavei-me com �gua
fria na pia do banheiro, esperando que o choque gelado de
alguma forma me refrescasse. N�o refrescou. Consegui
chegar ao estado de consci�ncia, as grades da mem�ria
margeando o mundo ao meu redor.
"Dormiu bem?", perguntou McGonagle, e p�s um prato na
minha frente na cozinha.
Resmunguei alguma coisa sem compromisso, e enfrentei o
m�ximo que pude da refei��o. Minha garganta se fechava
com cada bocado.
Sa� depressa, sem olhar para tr�s, e fui ligeiro para a casa de
Hawkins.
A casa estava destrancada, mas vazia. Sua picape estava
parada no quintal, as chaves na igni��o. Na cozinha, escrevi
um bilhete, fiz um furo no meio e pendurei-o na ma�aneta
do lado de fora.
Na picape de Reilly, fui acompanhando o curso serpeante do
Suwannee em dire��o a Waycross, o cora��o apertado, sem
enxergar nada a n�o ser a fina faixa de estrada � frente.
Cheguei ao per�metro da cidade em menos de uma hora e
encostei o carro. Tentei visualizar a cena. Um encontro com
minha m�e. Pensei em Alex e chorei. Pousei a testa no
volante.
Quinze minutos depois dei novamente partida no carro.
Consegui chegar ao hospital, o que, em si, foi um milagre.
Gabillard foi chamado. Aguardei-o cabisbaixo, m�os nos
bolsos. Quando o vi, achei-o bem mais envelhecido, o
cabelo j� branco nas t�mporas.
� Joseph � disse, e ao tentar sorrir aparentou estar apenas
aflito.
� Dr. Gabillard.
�Voc� recebeu minha carta, ent�o.
Fiz que sim.
�- Sinto muito...
Levantei a m�o e ele se calou.
� Onde ela est�?
Ele inclinou a cabe�a.
� Acompanhe-me � sussurrou, virando as costas e pondo-
se a andar.
Senti a esperan�a do meu futuro se afastar enquanto
caminhava, meus passos no lin�leo como o ritmo de um
cora��o machucado.
A express�o dela era perdida. Um vazio de humanidade. O
cabelo, um emaranhado de fios brancos, a pele toda
enrugada em volta dos olhos e nas comissuras da boca, as
pupilas dilatadas pelo efeito da morfina. Estava recostada na
cabeceira com travesseiros, um cobertor metido embaixo do
queixo como uma mortalha rec�m-colocada, e quando me
olhou, eu me senti mais fr�gil do que julgava ser poss�vel.
� Mary � arriscou Gabillard. � Mary... Joseph est� aqui,
seu filho Joseph.
Adiantei-me, como se seu campo visual n�o chegasse at� o
p� da cama.
Minha m�e, aos quarenta e cinco anos, aparentava quase
setenta.
� Joseph? � grunhiu ela. � Que Joseph?
� Sou eu, m�e � disse eu, convocando todas as minhas
for�as para me abster de virar as costas naquela hora e fugir
correndo daquela terr�vel m�scara mortu�ria.
� M�e? � disse ela. �Voc� est� a�, m�e?
Dei mais um passo � frente.
Gabillard estava atr�s de mim com uma cadeira e a colocou
no ch�o, encostando-a atr�s dos meus joelhos. Sentei
instintivamente. Estiquei o bra�o e pus a m�o sobre a dela.
� Joseph, voc� diz?
Ela virou o rosto para mim, e vi que minha m�e havia muito
deixara aquela casca para encontrar um lugar melhor, mais
agrad�vel.
� Sim, m�e, sou eu... Joseph.
Senti Gabillard se retirar. N�o me atrevi a olhar para tr�s.
� Joseph � disse ela, com a sombra de um sorriso no rosto.
�Joseph. Joseph. Joseph. Esperei muito tempo por voc�,
querido.
� Eu sei, m�e, eu sei.
� Mas eu queria que voc� viesse... queria que voc� viesse
para ouvir as pessoas.
Aproximei-me mais.
�- Ouvir quem, m�e? Para eu ouvir quem?
Ela tornou a sorrir, e havia algo em seus olhos, algo que me
fez pensar que havia uma liga��o entre n�s, que ela teve
consci�ncia � ainda que por uma fra��o de segundo � de
quem era e de que seu filho estava ao seu lado.
� Todas as pessoas, Joseph... estou ouvindo todas agora,
sabe?
� Quem? Quem voc� ouve? � Meu cora��o retumbava.
Minha cabe�a girava. Eu julgava saber o que vinha pela
frente, embora nunca tenha compreendido como.
� As meninas � murmurou, e foi como o farfalhar de uma
brisa, uma aragem, um sopro apagando uma vela, uma
nuvem passando, algu�m andando num trigal alto.
Meu cora��o parou. Meus olhos se arregalaram.
� N�o tenha medo � disse. -� Elas sabem que voc� n�o
teve culpa. Voc� n�o fez nada para machuc�-las.
� Quem, m�e? N�o fiz nada para machucar quem?
� Todas elas... as meninas.
Ela olhou para a janela.
� Eu sabia que era ele... soube depois da segunda ou da
terceira. Soube que era ele l� no escuro, com aqueles seus
pensamentos perversos. Soube que ele estava matando
aquelas meninas com pensamentos sinistros e aquelas m�os
sinistras, sabe? Eu soube por Ellen May e Catherine...
Balancei a cabe�a.
� N�o � disse eu, com uma voz fraca e embargada de
emo��o.
Minha m�e virou a m�o e agarrou a minha, os dedos fortes
como garras.
Pareceu me puxar mais para perto, pois me senti arrastado
para ela, e em um instante meu rosto estava a cent�metros
do dela.
� O tempo todo... o tempo todo eu sabia, por isso aquilo
teve que ser feito, Joseph, por isso aquilo teve que ser feito.
� O qu�? � perguntei, e o pavor me inundou por dentro
como uma onda.
� Eu nunca tive inten��o de machucar a menina... s� ele.
N�o podia contar a ningu�m. Ningu�m acreditaria em mim.
Tinha que exorcizar o dem�nio, exorcizar o dem�nio.
Limpar o terreno. Limpar a terra que ele pisou. Tinha que
erradic�-lo com a luz da verdade... tinha que trazer luz para
as trevas e mostrar �s pessoas a cor da alma dele...
Sua voz sumiu. Tentei retirar minha m�o, mas ela segurava
firme.
� Tive que erradic�-lo com um fogo purificador, Joseph...
tive que... tive que...
E a� eu soube. Antes de ela dizer mais uma palavra, eu
soube.
Os olhos dela se arregalaram, e ent�o vi que ela estava
chorando. L�grimas brotavam e rolavam pelo seu rosto.
� Tive que queim�-lo, Joseph... tive que queim�-lo para ele
sair daquela casa.
Fechei os olhos. Minha respira��o estava curta e acelerada.
Senti uma onda de n�usea me percorrer.
� Eu tive, Joseph... Eu tive.
Puxei a m�o. Levantei-me e fui me retirando.
�Joseph... n�o,Joseph, n�o v� embora... voc� n�o entende.
N�o entende o que aconteceu. Eu tinha que fazer alguma
coisa... N�o tinha escolha... n�o havia nada que eu pudesse
fazer para...
� Chega! � disse eu secamente. Recuei mais um pouco,
comecei a virar as costas, e foi ent�o que vi Gabillard.
Havia algo em seus olhos, algo que me disse que ele sabia.
� Ela lhe contou �- disse eu. Minha voz n�o parecia a
minha.
Gabillard n�o respondeu, apenas desviou a vista, e quando
tornou a olhar para mim ficou �bvio que ele sabia.
Comecei a balan�ar a cabe�a, passei por ele e pela porta,
quase correndo, e acelerei o passo no corredor, rumando
com estr�pito para a sa�da como se todas as coisas das quais
eu desejava fugir estivessem no meu encal�o.
Sa� porta afora para o ar frio. Tossi, e antes de conseguir
recuperar o equil�brio eu j� ca�ra de joelhos. Fiquei ali
ajoelhado um instante, tentando segurar tudo dentro de
mim, mas n�o deu. Vomitei mais uma vez, e mais outra, e
era como se minha garganta estivesse sendo arrancada pela
boca.
� N�o! � arfei. � N�o! N�o! N�o!
Mas a verdade estava revelada. O inc�ndio da casa dos
Kruger. A morte de Elena. Minha m�e assassinara a menina
e pagara com sua sanidade.
Durante um bom tempo fiquei im�vel. Ningu�m foi me
ajudar. Talvez ningu�m tenha visto.
Quando me mexi, foi para voltar � picape, e mesmo sem
estar em condi��es de dirigir consegui chegar � casa de
Reilly Hawkins.
Eu ficara sabendo de uma verdade; uma verdade simples e
dolorosa.
Minha m�e era t�o culpada quanto Gunther Kruger.
Passei mal duas vezes na casa de Reilly. Ele estava sentado
calado, esfregou minhas costas enquanto eu me debru�ava
na pia sem botar nada para fora a n�o ser mais dor. Ele n�o
disse uma palavra at� eu me controlar e sentar � mesa da
cozinha.
Quando olhei para ele, ele sorria.
� Foi seu anivers�rio � disse.
Franzi a testa.
� H� tr�s dias... seu anivers�rio, lembra?
Tentei sorrir. Fiz que n�o.
� N�o � murmurei, a voz rouca, como se tivesse l�minas
na garganta.
� Sim � disse ele. � E se eu soubesse que voc� vinha, teria
comprado um presente.
� Se soubesse que eu vinha, voc� teria me alertado para
ficar no Brooklyn.
Reilly Hawkins sorriu com compaix�o.
� Eu n�o podia saber, Joseph... como podia saber de uma
coisa dessas?
� Eu estava falando hipoteticamente.
� N�o sei se algum dia a gente vai saber a verdade...
� J� ouvi verdade at� dizer chega � disse eu. � Acho que
n�o consigo pensar em mais verdade.
�Voc� n�o pode ter certeza de que ela fez isso. Ela �...
bem, ela �...
� Louca � disse eu com objetividade. � Sim, ela � louca.
Louca de pedra. E acho que � por isso que � louca. �
Inclinei-me � frente e pousei a testa na beira da mesa. �
N�o sei o que aconteceu naquela noite... n�o sei se algum dia
vou entender o que aconteceu. Talvez ela tenha achado que
ele estava l� sozinho... Deus sabe, Reilly...
� E Deus vai julg�-la, Joseph, n�o cabe a n�s...
Ergui os olhos e sorri.
� N�o sou capaz de pensar em religi�o nenhuma, Reilly...
agora n�o, sim?
Reilly fez que sim com a cabe�a.
� Sim, Joseph, sim. � Inclinou-se � frente, apertou minha
m�o. � Ent�o me conte sobre o Brooklyn.
� O Brooklyn?
� Claro, Brooklyn. � tudo que voc� imaginou que seria?
Pensei em Aggie Boyle e Joyce Spragg. Pensei em Paul
Hennessy, Cecily Bryan, no F�rum de Escritores do St.
Joseph. Pensei nos punhados de p�ginas rasgadas que
supostamente seriam o in�cio do Grande Romance
Americano. Pensei no que Alex acharia da pessoa que eu
tentava me tornar.
� O Brooklyn � um mundo � parte � disse eu. � Brooklyn
e Augusta Falls nem s�o do mesmo mundo.
� E voc� est� trabalhando em alguma coisa? Est�
escrevendo?
� Um pouco � disse eu. � Nem de longe tanto quanto eu
esperava, mas sim, estou tentando escrever alguma coisa.
� E o t�tulo qual �?
� � s� um t�tulo provis�rio � disse eu. � Chama-se "A
volta ao lar".
� E � meio autobiogr�fico, n�o?
� N�o, nada autobiogr�fico. Pura fic��o.
� Ent�o, o que vai fazer?
� Fazer? � perguntei. � Como assim?
� Sobre isso... isso com sua m�e.
� N�o vou fazer nada, Reilly. O que quer que eu fa�a?
Gunther Kruger morreu, Haynes Dearing foi embora... S�
Deus sabe para onde...
� Para dentro de uma garrafa em algum lugar... pelo menos
foi o que ouvi dizer.
� Por falar nisso, voc� tem alguma coisa a�?
� Uma garrafa de u�sque � disse, e se levantou da cadeira.
Pegou-a no arm�rio em cima da pia, trouxe dois copos para
uma dose pura, e encheu-os.
Ergueu o copo quando se sentou.
� A vida. Ao futuro de alguma coisa diferente disso, certo?
� �timo � respondi, e bebi o u�sque de um s� gole. O calor
cru me encheu o peito. Era uma sensa��o nova, algo
diferente do medo e da n�usea, e por isso eu estava
agradecido. Peguei a garrafa e tornei a encher o copo.
�Voc� vai voltar?
� Para o Brooklyn? Claro que vou. N�o tenho por que ficar
aqui.
� � verdade � disse Reilly. � E vai escrever esse livro...
essa volta ao lar?
� Vou tentar, Reilly. Vou realmente tentar.
� Ent�o passe a noite aqui, sim? Fique s� esta noite e volte
amanh�.
� Isso eu posso fazer � disse eu. � Posso ficar uma noite.
� Tenho outra garrafa... a gente bebe at� cair.
� Essa � a l�ngua que eu entendo, Reilly Hawkins, essa � a
l�ngua que eu realmente entendo.
Vinte e tr�s
No alto, folhas de outono. Folhas retorcidas nos galhos
como m�os de crian�as. Como m�os de beb�s: um
derradeiro esfor�o queixoso para captar os resqu�cios do
ver�o da pr�pria atmosfera. E segur�-los. Segur�-los na pele.
Logo ser� dif�cil recordar qualquer coisa sen�o a umidade
intensa e amea�adora que parecia sempre nos envolver.
Aquele inverno foi sui generis. De uma atrocidade
acentuada e arrogante. Punhos serrados e bafo de u�sque.
A menina.
Ela cava e esgravata. M�os como pequenos amarrados de
facas esfregando o ch�o.
Acha que se esfregar o ch�o uma mensagem profunda, quase
subliminar, h� de se transmudar por osmose, absor��o,
alguma coisa, qualquer coisa...
Como se a terra fosse capaz de ver o que acontece com ela e
transmitir a mensagem atrav�s do solo, das ra�zes e das
hastes, atrav�s dos olhos e dos ouvidos das minhocas e dos
insetos e das coisas que fazem cricri � noite, quando
ningu�m consegue v�-las, o tipo de coisa que o olho
humano n�o consegue ver.
Algo com um rosto daqueles...
Esfregar, arranhar, chutar, socar o ch�o...
Que, com isso, talvez se fizesse ouvir e algu�m viesse
correndo e visse o homem.
Curvado sobre ela. Ombro arqueado. Testa suada. Faca
enferrujada. Pele fedendo a latrina e p�ntano pestilento, a
lama de rio, a peixe cru e galinha crua � t�o crua e velha
que est� azul, murcha e com cheiro de podre...
Algu�m iria chegar e ver.
Gunther Kruger curvado sobre ela. Trabalhando. Com
afinco. O servi�o dele. Um servi�o de verdade.
Mas n�o veio ningu�m.
Ningu�m.
Perdi a consci�ncia, um estrondo vazio explodindo dentro
de mim. Sil�ncio explosivo. Como cambalear � beira de
algum abismo escuro e depois cair para cima, desafiando a
gravidade, batendo no calor e no escuro enquanto eu
tentava me desvencilhar de len��is e cobertores.
Engasguei, depois ca� de lado no ch�o frio e duro. Fiquei ali
aturdido e sem ar por algum tempo. Ouvi passos. Por uma
fra��o de segundo achei que a Morte havia chegado, viera
pela High Road para me buscar. Minhas contas pagas. A
d�vida por continuar a respirar atrasada. Me levar embora no
rio negro, �gua qual obsidiana, �gua sem reflexos, rostos
velados pairando na minha dire��o, o cora��o mais devagar,
a respira��o falha, eu j� me calando, fechando os olhos...
� Jesus Cristo, o que aconteceu?
Reilly Hawkins pairava sobre mim, m�o estendida,
ajudando-me a me erguer at� ficar sentado com a cabe�a
encostada na cama.
Fechei os olhos e olhei para minhas m�os. Tremiam.
� Um sonho...
� Mais um pesadelo � disse ele, pegando-me pelas axilas e
me levantando at� eu sentar na beira da cama.
� Quer �gua?
Fiz que sim com a cabe�a.
Reilly desceu correndo. Estendi as m�os � minha frente. Era
imposs�vel mant�-las paradas.
Apertei-as contra o peito, senti como se um grande animal
alado estivesse lutando para se soltar do meu peito. Fechei os
olhos e me recostei.
Vi o rosto de minha m�e.
Tive que erradic�-lo com um fogo purificador, Joseph... tive
que... tive...
� N�o! � gritei, um ru�do involunt�rio que me assustou. Eu
n�o estava controlando meus pensamentos, meus reflexos.
Reilly apareceu � porta, um copo de �gua em uma das m�os,
a garrafa de u�sque na outra.
Pousou-os no ch�o e ajudou-me a levantar, conduziu-me
para fora do quarto e pelo corredor. Sentou-me na beira de
sua cama, enrolou-me num cobertor e voltou para pegar os
copos.
� S� a �gua � disse eu, e peguei o copo de sua m�o.
Ele sorriu sem jeito.
� O u�sque � para mim � sussurrou. �Voc� quase me
matou de susto, Joseph Vaughan.
Destampou a garrafa e tomou um trago.
� M-me d-desculpe � gaguejei.
� Que � isso? � respondeu ele. �Voc� tem direito de ficar
desorientado por algum tempo.
Fiz que sim, tentei respirar fundo.
� Deite-se � disse Reilly. � Tente voltar a dormir. Fico
com voc�, certo?
Fiquei calado. Entreguei-lhe o copo e deitei devagar. Senti o
sono me puxando de volta, e tive medo de me deixar ir.
Mas acabei deixando, e parecia que a escurid�o que havia
dentro de mim se dissipara.
Volta ao lar, pensei, e adormeci em sil�ncio.
Tarde na manh� seguinte, quatro dias antes do meu vig�simo
terceiro anivers�rio, minha m�e tamb�m se apagou em
sil�ncio.
Faltavam dois meses e quatro dias para ela completar
quarenta e seis anos.
Eu n�o estava presente quando ela morreu, e me senti de
certa forma agradecido, como se uma pequena gra�a nos
tivesse sido concedida. Ela encontrara a sa�da.
J� havia anoitecido quando soube de sua morte, sentado na
cozinha de Reilly Hawkins, uma refei��o intocada � minha
frente, sem for�as para me concentrar em nada, o dia tendo
passado sem nenhuma defini��o e nenhuma clareza. Reilly
ficara comigo, mas pouco hav�amos falado. Ele n�o me
perguntara sobre minha partida, sobre o regresso ao
Brooklyn que eu planejara, e se tivesse perguntado, eu n�o
teria sido capaz de responder.
Foi o dr. Piper quem veio. Foi at� a casa de Hawkins porque
imaginou que eu estaria l�.
Quando chegou, eu sabia o que ele diria, mas ele falou bem,
e parecia que aquilo estava na sua constitui��o.
� Morreu � disse baixinho. � Em paz, sorrindo, Joseph,
mas morreu.
Ele n�o sabia do crime dela, e n�o seria eu quem iria lhe
contar. Eu n�o contaria a ningu�m, e o segredo que ela
dividira comigo ficaria em meu cora��o enquanto eu
ag�entasse guard�-lo.
Talvez haja cicatrizes � na mente, no cora��o � que nunca
fechem. Talvez haja palavras que nunca possam ser ditas
nem murmuradas, palavras para escrever num papel que se
transforme num barco que des�a um rio para ser engolido
pela mar�. Talvez haja sombras que persigam a pessoa para
sempre, que envolvam a pessoa naqueles momentos de
escurid�o particular, e talvez s� ela consiga reconhecer os
rostos que essas sombras apresentam, pois s�o as suas
sombras, as sombras dos seus pecados, e nenhum exorcismo
terreno consegue expuls�-las. Vai ver que n�o somos t�o
fortes, afinal. Vai ver que mentimos para o mundo, e ao
mentir para o mundo mentimos para n�s mesmos.
Mais tarde, as palavras do dr. Piper apenas uma lembran�a,
chorei por minha m�e.
Chorei principalmente por Elena Kruger: aquela que eu
prometera proteger.
De manh� cedo. C�u como cobre batido. Cora��o apertado.
Chuva fina feito p�.
Enterrei minha m�e. Caix�o de pinho igual ao do meu pai.
Dessa vez n�o houve vel�rio � moda do sul. N�o queimei as
roupas dela amarradas num ramo de sassafr�s. Gunther
Kruger n�o carregou o corpo pela estrada de asfalto numa
picape de carroceria aberta. Depois, n�o houve reuni�o na
cozinha da minha inf�ncia para contar hist�rias e narrativas
maiores sobre a vida que ela levara.
Dessa vez n�o houve nada.
N�o chorei pela mulher que morrera; chorei pela mulher de
quem eu me lembrava. Fiquei em p� em cima da sepultura e
disse uma esp�cie de ora��o, algumas palavras na t�nue
esperan�a de algo melhor. Olhos bem apertados, enrugados
como papel amassado; boca fechada, uma linha fina e
irregular; dedos nos ouvidos at� darem a impress�o de que as
pontas se encontrariam atr�s das minhas narinas. O resto do
mundo estava em outro lugar, sete l�guas � minha frente, e
ainda a favor do vento.
Ent�o, fui embora, ladeado por Reilly Hawkins e pelo dr.
Thomas Piper.
Era quarta-feira, 18 de outubro de 1950.
� Talvez haja um lugar melhor � disse Reilly.
� Talvez n�o � respondi.
� Acho que vamos custar um pouco a descobrir, certo?
Fiz que sim com a cabe�a, mas fiquei calado.
Dois dias depois, sexta-feira � tarde, Reilly Hawkins me
levou � rodovi�ria de Augusta Falls.
Comecei a longa viagem de volta ao Brooklyn.
Prometi a mim mesmo nunca mais voltar � Ge�rgia.
Vinte e quatro
No ver�o de 1951 eu voltara � minha escrita. O dinheiro da
venda da casa fora liberado, e eu recebera mais de tr�s mil
d�lares. Continuei na pens�o de Aggie Boyle, mas muitas
coisas haviam mudado. Eu observara meu cora��o ir sarando
aos poucos, e da confiss�o de minha m�e eu n�o disse nada.
Minha rela��o com Joyce Spragg, por mais significativa que
pudesse ter sido, morrera de uma morte lenta mas indolor.
Eu continuava filiado ao F�rum dos Escritores, e Paul
Hennessy se tornara meu melhor amigo. Foi ele quem me
estimulou a continuar "A volta ao lar".
�Voc� s� precisa de uma primeira linha � disse. �Todo
grande livro come�a com uma grande primeira linha, sabe?
� Tal como?
Ele riu.
� Que diabo, Joseph, o escritor � voc�. Eu sou apenas um
humilde leitor. Reconhe�o uma grande primeira linha
quando leio uma, mas quando se trata de escrever, acho
dif�cil preencher at� a inscri��o para um trabalho.
� Tenho uma primeira linha.
� Qual �?
Est�vamos no meu quarto. Eu estava � minha escrivaninha e
Paul, numa poltrona na janela. Contra a claridade da tarde,
ele era pouco mais que um contorno.
Peguei o ma�o de pap�is em que escrevera o in�cio de meu
romance havia tanto tempo e o folheei.
� Aqui � disse eu. � Est� preparado?
� Manda ver, Jackson.
Sorri.
� Nunca houve uma �poca em que achasse que a vida seria
outra coisa sen�o linda...
Ele balan�ava a cabe�a.
� N�o, n�o, n�o � disse. � � canhestra. N�o tem poesia.
Tamb�m parece banal.
� Mais algum problema?
Paul levantou da cadeira e foi at� a estante.
�Vamos ver o que temos aqui � disse. Pegou um volume.
� A Rua das Ilus�es Perdidas, de John Steinbeck.
� Isso � covardia.
� Cale a boca e escute. � Hennessy pigarreou. � "A Rua
das Ilus�es Perdidas em Monterey, Calif�rnia, � um poema,
um esc�ndalo, um barulho irritante, uma certa luz, um tom,
um h�bito, uma nostalgia, um sonho. -� Fechou o livro e
sorriu. � Est� vendo? Poesia. Um pouco de magia. Evoca
toda uma atmosfera em uma frase. Pegou outro. William
Faulkner. Palmeiras selvagens.
� Pr�mio Nobel de Literatura ano passado � disse eu. �
Esse p�reo � muito duro para mim.
� � exatamente disso que voc� precisa.Vamos l�. "Ouviu-se
de novo a batida, ao mesmo tempo discreta e perempt�ria,
enquanto o m�dico descia as escadas, o facho da lanterna se
lan�ando � sua frente pelo v�o encardido da escada abaixo e
para dentro da caixa de t�buas encardidas com encaixe
macho-e-f�mea do hall inferior." Que tal isso para um pouco
de mist�rio, hein? Quem � o m�dico! Ser� que est� em sua
pr�pria casa? O que significa a batida? Algu�m � porta?
Quem estaria batendo � porta �quela hora da noite? Tem
algu�m doente? Algu�m morreu?
� J� chega. Entendi seu ponto de vista.
� Ent�o me escreva uma grande primeira linha.
� Agora?
� Claro que sim, por que n�o? O que est� esperando? Sabe o
que dizem... dez por cento de inspira��o...
� Noventa por cento transpira��o. Eu sei.
� Ent�o vou sentar perto da janela e cuidar da minha vida
enquanto voc� termina.
Debrucei-me na mesa, caneta em punho, e fechei os olhos.
Pensei na cena de abertura. A chegada de amigos a uma
casa. Amigos havia muito esquecidos. Amigos que, ao passar
por uma cidade, decidem visitar o personagem central. Ele
fica surpreso, perplexo, mas o entusiasmo e o charme dos
amigos parecem cativ�-lo. Tem a sensa��o de que ali h� algo
que perdeu. Anseia pelo passado, uma �poca em que amigos
como aqueles eram s� o que importava, e decide que a vida
que escolheu foi um desperd�cio. Come�a uma viagem de
volta �s ralzes.Viaja a p�, de trem, de �nibus, de carro�a e de
carona. Atravessa os Estados Unidos de leste a oeste e vive a
vida como deve ser vivida. Jamais chega � sua cidade natal,
mas encontra seu lar. Uma alegoria, uma f�bula, um mito.
Comecei a escrever.
� N�o estou ouvindo pena arranhando pergaminho � disse
Hennessy de seu banco na janela saliente.
� Psiu � sibilei. � N�o v� que estou trabalhando?
Minutos depois ergui os olhos, recostei na cadeira, virei-me
com o papel na m�o e sorri.
� J� tenho � disse eu com orgulho.
� �timo. Ent�o vamos ouvir.
� Houve um tempo em que parecia que cada dia poderia
explodir de paix�o; um tempo em que a vida era impregnada
de magia e desejo; um tempo em que eu achava que o futuro
s� podia ser perfeito. Esse tempo existiu. E em minha
juventude, em minha inoc�ncia e meu ardor assombrados,
senti que fora aberto um caminho para mim que s� poderia
levar acima...
� Uau, basta � interrompeu Hennessy. � Isso � mais do
que uma primeira linha.
Ergui os olhos.
� Tenho mais.
� N�o pedi mais.
� Ent�o, o que achou?
� Melhor � disse, conservador. � Melhor que a
outra.Voc� d� a id�ia de que h� uma escurid�o iminente.
Um desapontamento. Aconteceu algo para apagar o
entusiasmo desse sujeito, certo?
� Sim, isso. Alguns amigos dele...
Hennessy ergueu a m�o.
� N�o me conte, escreva. Escreva primeiro, depois pode me
contar.
Sorri.
�Voc� pretende ser minha musa � disse eu.
� Nossa, n�o, Vaughan. Musa deve ser do sexo feminino,
uma mulher com intelig�ncia e gra�a. Sim, acharemos uma
musa para voc�, algu�m inteligente e elegante, mas n�o t�o
bonitinha que seja uma distra��o constante, certo?
Eu j� falara de Alex com Paul muitas vezes. Naquele
momento, eu n�o poderia suportar tornar a mencion�-la,
portanto fiquei calado.
�Vai continuar escrevendo?
�Vou � respondi. �Voc� me deu o primeiro empurr�o
agora.
� Ent�o,Vaughan, meu trabalho est� feito... hei de deix�-lo
com as maquina��es e as elucubra��es da sua cabe�a.Vou
achar um bar e beber at� n�o conseguir enxergar direito.
� Fa�a bom proveito � disse eu.
� Farei,Vaughan, farei mesmo.
Trabalhei com persist�ncia. Encontrei um trilho, um ritmo,
e entre o nascer e o p�r-do-sol consegui me disciplinar o
bastante para datilografar minhas palavras. Comprei uma
m�quina de escrever Underwood nova, coloquei-a sobre um
cobertor dobrado em cima da mesa, para minimizar o
barulho, preenchi p�gina atr�s de p�gina. Comecei a fumar,
uma afeta��o nauseante em que prontamente me viciei, e
com freq��ncia sa�a � noite com Hennessy, e
experiment�vamos tantas bebidas diferentes quanto
consegu�amos at� ficarmos enjoados como c�es.
O passado tentava me deixar em paz, mas eu esbarrava nele
inesperadamente a toda hora. Pensava nas meninas que
haviam sido assassinadas, e seus nomes me voltavam: Alice
Ruth Van Horne, Rebecca Leonard, Catherine McRae,
Virg�nia Grace Perlman, outras cujos rostos jamais conheci,
jamais conheceria. Pensava no dia em que encontrei
Gunther no quarto de minha m�e, e depois pensava nela
saindo furtivamente de casa tarde naquela noite de agosto
para provocar o inc�ndio. Tentei me convencer de que ela
n�o poderia ter feito uma coisa daquelas, mas sabia que
fizera. Tentara exorcizar o dem�nio de Augusta Falls, um
dem�nio que ela permitira que entrasse em sua cama, em
sua vida, em seu cora��o talvez. Culpa, raiva, dor, sua cons-
ci�ncia, coisas desse tipo acabaram perturbando-a, e ela
infligira sua pr�pria loucura ao mundo. Essa loucura
crescera, comera-a por dentro, e finalmente a matara. Eu
pensava nela n�o com pesar, mas com muita pena. Pensava,
sim, em meu pai. Muitas vezes me perguntei o que teria sido
de n�s se ele n�o tivesse morrido. Pegava minhas emo��es e
as colocava em "A volta ao lar", e de alguma forma aquilo
parecia melhorar as coisas.
No in�cio de setembro do mesmo ano, com a primeira
vers�o de "A volta ao lar" praticamente terminada, registrei-
a na biblioteca mais pr�xima que encontrei. Ali, peguei
Mundos em Colis�o, de Imanuel Velikovski; bra�adas da
Writer's Digest, coisas de Ezra Pound; O pr�ncipe, de
Maquiavel, e Satanstoe, de Fenimore Cooper. E foi ali que a
vi. Eu a vi pela primeira vez, e embora suas fei��es n�o
tivessem nenhuma curva ou linha discern�vel, nenhuma
caracter�stica que sobressa�sse; embora seus olhos n�o
fossem verde-esmeralda nem azul-safira nem negros, mas
sim calorosos, de uma cor de mogno, meticulosamente
lixado at� o veio aparecer, glorioso, a superf�cie ficar lisa
como manteiga; embora seu rosto tivesse o ar familiar de
uma pessoa pr�xima que h� muito se perdera de vista, como
se v�-la despertasse n�o s� um sentimento de afinidade, mas
tamb�m o fantasma g�meo da nostalgia... A despeito de n�o
haver algo que pudesse ser mencionado como caracter�stica
isolada, parecia que tudo nela tinha uma aura de magia. Mais
tarde, ao relembrar, talvez fosse a sensa��o de que l� estava
uma mulher que n�o precisava de ningu�m, e isso em si
mesmo fosse a qualidade que a tivesse tornado t�o
insuportavelmente atraente para mim.
Eu a vi na biblioteca, ela tamb�m segurando um punhado de
livros, e achei que alguma sele��o sobrenatural designara
aquela hora, aquele dia, aquele momento, como de grande
import�ncia.
As palavras, que costumam ser meu ponto forte, me faltaram
com o acanhamento. No primeiro dia, n�o consegui dizer
nada de importante ou significativo. Simplesmente sorri na
esperan�a de que ela me retribu�sse o sorriso. Ela n�o o fez.
Senti meu cora��o se encher de m�goa.
Voltei � biblioteca todos os dias por quase uma semana, e
num fim de tarde de uma sexta-feira ela apareceu de tr�s de
uma estante com um exemplar de A rua das Ilus�es Perdidas
na m�o.
Lembro-me da linha, da primeir�ssima linha, uma linha que
eu decorara depois da minha conversa com Paul; sorri,
pigarreei; falei.
� "A Rua das Ilus�es Perdidas em Monterey, na Calif�rnia, �
um poema..."
A mo�a franziu a testa, ficou desconcertada.
� "um cheiro, um barulho irritante, uma certa luz, um tom,
um h�bito, uma nostalgia, um sonho."
Ela balan�ou a cabe�a.
� Como �?
� A primeira linha � disse eu, com certo orgulho, embora
me sentisse um idiota. � A primeira linha de A Rua das
Ilus�es Perdidas... o livro que voc� tem a�.
A mo�a ergueu as sobrancelhas, espiou o volume fino em
sua m�o.
� � mesmo? � perguntou. � Eu jamais saberia... Ainda n�o
li.
� Eu j�.
� � o que parece.
Abaixou a m�o para esconder o livro, depois foi andando
como se quisesse passar por mim.
� Desculpe � disse eu. Recuei, tentando ser menos
intimidante, tentei sorrir, um sorriso genu�no, algo sincero e
caloroso, mas meus m�sculos se contra�ram. Ela me achou
louco de pedra. � Eu n�o tive inten��o de interromp�-la �
prossegui. � � s� que, quando vemos algu�m com um livro
que adoramos, achamos que poderia haver alguma... �
Minha garganta fechou. Eu n�o sabia o que planejava dizer.
� Alguma o qu�? � perguntou ela.
� N�o sei � respondi. Meu constrangimento logo chegava
�s raias da ang�stia. �Sinto muito mesmo... Eu quis falar
com voc� da �ltima vez em que voc� estava aqui. Eu j� vou.
S� estou fazendo papel de bobo.
A mo�a sorriu.
� Tudo bem � disse delicadamente.
Tornou a chegar para a esquerda como se fosse passar por
mim.
Eu sabia que se a deixasse ir naquela hora na certa nunca
tornaria a v�-la. Assim eram as Parcas.
�Venho aqui muito � disse eu. �Acabei de me mudar
para c�... n�o conhe�o mesmo ningu�m... estava pensando
se...
Ela me olhou de soslaio. Parecia irritada.
Levantei a m�o e recuei.
� Essa conversa n�o est� indo do jeito que eu queria � disse
eu.
� E o que voc� queria? � perguntou ela.
� N�o sei... Eu s� queria me apresentar. Queria lhe dar um
al�. Queria arranjar um pretexto para falar com voc�, s� isso.
� E sobre o que queria falar comigo?
Encolhi os ombros.
� Qualquer coisa mesmo. Livros. Quem voc� �. De onde
vem. Se a gente podia ou n�o... sei l�... se a gente podia ou
n�o se conhecer. Achei que poder�amos ter algo em
comum... literatura, sabe? Poder�amos descobrir que temos
algo em comum, e depois voc� poderia ser a �nica pessoa
que eu conhe�o no Brooklyn.
Ela sorriu.
� Qual o seu nome?
�Vaughan � disse eu. �JosephVaughan.
� Bem, Joseph Vaughan, foi muito bom conhecer voc�, mas
estou com pressa. Tenho que voltar para casa agora, ent�o,
se n�o se importa...
Mais uma vez ela chegou para a esquerda para passar por
mim.
� Quem sabe a gente poderia se encontrar de novo? -�
perguntei. Eu chegara a um ponto que n�o tinha volta. N�o
tinha nada a perder. Minha dignidade, meu amor-pr�prio,
tudo ficara esquecido.
� Certo � disse ela. � Mas a� eu veria voc� de novo, o que
n�o significa que eu queira tornar a v�-lo. Como hoje... o
fato de estarmos por acaso na mesma biblioteca na mesma
hora n�o significa nada al�m de que viemos aqui para pegar
livros. Coincid�ncia, n�o �?
N�o mencionei que eu fora l� todos os dias na expectativa de
encontr�-la.
� N�o acredito muito em coincid�ncias � disse eu.
� N�o? � retrucou ela, uma pergunta ret�rica. � Parece
tamb�m que n�o acredita muito em reconhecer quando
algu�m n�o tem tempo para ficar em p� falando com
estranhos.
Pronto. Ela conseguira me esmagar completamente.
� Desculpe � disse eu encabulado. � Sinto muito mesmo
por ter incomodado voc�. Eu n�o pretendia dar a impress�o
de ser...
� Voc� deu uma impress�o boa, Joseph Vaughan, e tenho
certeza de que foi muito bom conhecer voc�, mas tenho
que ir agora. Tenho coisas para fazer.
Dessa vez ela veio em minha dire��o com mais
determina��o, quase com autoridade, e sa� da frente.
� Ent�o a gente se v� de novo � disse eu.
� Quem sabe � respondeu ela, e a� virou no fim da ala e
desapareceu.
Fiquei ali parado alguns instantes, o cora��o retumbando, os
nervos tensos, e quis me obrigar a fazer alguma coisa.
Qualquer uma.
Botei os livros que eu selecionara na beira da prateleira mais
pr�xima e corri para a rua. A meio quarteir�o dali encontrei
um florista, joguei-lhe um d�lar e agarrei o buqu� mais
pr�ximo. Ele me chamou gritando para me dar o troco, mas
eu j� voltava correndo para a biblioteca.
Eu estava ali em frente quando ela saiu e come�ou a descer
as escadas.
Fiquei firme, sem ar, vermelho, o ramo de flores como um
escudo contra sua poss�vel rejei��o.
Ela me viu, e por um momento pareceu surpresa, confusa,
depois sorriu, abriu um sorriso mais largo e come�ou a rir.
�Voc� � um bobo � disse ela, ecoando meus
pensamentos. � O que est� fazendo agora?
� Comprei umas flores para voc� � disse eu, declarando o
�bvio.
� Para qu�?
� Para me desculpar por perturb�-la.
� Voc� n�o me perturbou. � Ela acabou de descer a escada
e ficou parada na cal�ada.
� Olhe � disse eu, sentindo uma esp�cie de irrita��o
vencer meu constrangimento. � N�o fa�o id�ia do que h�
em mim que lhe provoca nojo. Sinto muito por ter esse
rosto. Sinto muito por ret�-la quando voc� obviamente tem
mais o que fazer, acho que se a gente n�o falar com as
pessoas, se de alguma forma n�o puxar conversa com
algu�m, vai passar o resto da vida s� e arrependido. Vi voc�
uma vez antes. Voc� parecia ter uma boa conversa. Desde
ent�o, vim aqui todos os dias na esperan�a de tornar a v�-
la...
�Voc� fez o qu�?
Percebi que eu tinha conseguido me explicar s� para dizer
outra asneira.
�Vim aqui ontem, anteontem, trasanteontem... vim at�
encontrar voc� de novo, e a� n�o pude deixar de dizer
alguma coisa. O fato de ter dito a coisa totalmente errada n�o
vem ao caso. A verdade � que, aconte�a o que acontecer
agora, eu n�o vou ficar com raiva de mim por n�o ter
puxado conversa.
� E o que acha que deve acontecer agora? � Sua express�o
era antip�tica e petulante.
� Eu... bem, ahn... bem, imaginei que poder�amos tomar
um refrigerante, um caf� ou outra coisa qualquer. Imaginei
que voc� pudesse dizer seu nome... pelo menos isso.
Ela sorriu. Pareceu relaxar um pouco, deixar cair as defesas.
� Meu nome? Claro que posso lhe dizer meu nome.
Fiquei calado, aguardando.
� Bridget � disse ela. � Meu nome � Bridget McCormack.
� Muito prazer, Bridget McCormack.
Ela assentiu.
� Igualmente, Joseph Vaughan.
� Ent�o voc� gostaria de ir tomar um refrigerante...
� Ou um caf�?
� Certo, sim... um caf�.
� Por me aborrecer, voc� n�o ganhou ponto nenhum. Por
pedir desculpas, ganha cinco numa escala de dez. Pelas
flores? � Ela balan�ou a cabe�a. � N�o precisava.
Botei as flores atr�s das costas.
� Mas vou aceitar mesmo assim, s� para voc� n�o achar que
desperdi�ou seu dinheiro.
Apresentei as flores.
� Pela persist�ncia, voc� ganha dez numa escala de dez, e
sim, vou tomar um caf� com voc�... mas n�o hoje. Hoje
estou de fato indo para um lugar, e por causa desse pequeno
desvio j� estou bastante atrasada, portanto, se n�o se
importar...
� Ent�o quando � perguntei.
� Quando o qu�?
� Quando posso lev�-la para tomar um caf�?
� Segunda-feira � disse Bridget McCormack
peremptoriamente. � Pode me encontrar aqui ao meio-dia,
segunda-feira, e me levar para tomar um caf�, tudo bem?
� Tudo bem � respondi, e abri um sorriso.
� Embora isso n�o signifique que vamos ter algo em
comum, ou mesmo gostar um do outro, ali�s.
Balancei a cabe�a.
� Entendi, mas pelo menos podemos tentar.
� Isso podemos � disse ela. � Isso podemos.
� Muito bem ent�o, fica combinado segunda-feira...Vou sair
com voc� ent�o, srta. McCormack.
Ela riu e passou por mim.
�Voc� realmente � um bobo, Joseph Vaughan.
Exultei. Fiquei calado. Continuei ali parado na cal�ada,
vendo-a descer a rua e desaparecer na esquina. Ela n�o
olhou para tr�s, e fiquei grato por isso, ali com as m�os nos
bolsos, um sorriso do tamanho do Mississippi nos l�bios.
Bridget McCormack n�o era Alexandra Webber. Bridget
tinha o mesmo grau de intelig�ncia e leitura, mas havia nela
algo singular que facilitava que isso n�o fosse lembrado. Ela
n�o era parecida com Alex. Sua voz era diferente, e quando
ria parecia cheia de seguran�a e autocontrole. Ningu�m
jamais poderia ter substitu�do Alex, ningu�m jamais poderia
tomar seu lugar em meu cora��o, mas Bridget, de alguma
forma, conseguia me fazer sentir alegria de viver. Eu
experimentava emo��es que estiveram ausentes durante
anos, e ao experiment�-las percebi a falta que faziam. Bridget
tinha vinte e um anos, era filha de irlandeses, cat�lica n�o
praticante, estudava ci�ncias humanas na Brooklyn
University e pretendia escrever poesia e ensaios, cartas e
artigos para revistas ecl�ticas, estudar arte, viver a vida, ser
aut�ntica.
Encontramo-nos naquela segunda-feira seguinte.
Caminhamos tr�s quarteir�es e paramos numa delicatessen.
Ficamos ali sentados quase duas horas, e ela deixou que eu
falasse de mim, da raz�o de estar no Brooklyn, do meu
trabalho em andamento.
� Ent�o me conte sobre esse livro � disse ela, e contei,
num desabafo que poderia parecer estranho considerando
que aquele era nosso primeiro encontro.
�Voc� est� apaixonado por isso, n�o? � disse ela quando
terminei.
� Desculpe � respondi. � Quando engreno, a escrita mais
ou menos toma conta de mim.
Ela estendeu o bra�o e tocou na minha m�o.
� N�o se desculpe � disse. � A gente s� pede desculpas
pelo que fez e n�o devia ter feito, n�o por nossas
convic��es. Da pr�xima vez, traga alguma coisa, sim? Eu
gostaria de ler o que voc� escreve.
Eu disse que levaria. Qualquer coisa para ganhar um segundo
encontro. Ela me atra�a com a for�a da gravidade.
Nos meses subseq�entes, encontr�vamo-nos duas, tr�s vezes
por semana, �amos ao cinema, com�amos num restaurante �
beira da Bedford-Stuyvesant, passe�vamos no parque
Tompkins at� ficar com as m�os congeladas e o nariz azul.
Aprend�amos novidades um sobre o outro a cada vez, e ela
me estimulava a trabalhar em "A volta ao lar", assim como
Alex teria feito.
Perto do Natal reconhecemos que gost�vamos mais de estar
juntos do que separados, e foi na v�spera de Natal daquele
ano, mais ou menos uma semana depois que datilografei as
�ltimas linhas do meu romance, que Bridget McCormack
chegou � pens�o na esquina da Throop com a Quincy e
consumiu meu cora��o.
O amor, mais tarde eu chegaria � conclus�o, era tudo para
todo mundo. O amor era o que fazia sofrer e parar de sofrer.
O amor era mal interpretado, o amor era f�, o amor era a
promessa do agora que se tornava esperan�a para o futuro. O
amor era um ritmo, uma resson�ncia, uma reverbera��o. O
amor era estranho e tolo, era agressivo e simples, e com
tantas qualidades indefin�veis que nunca poderiam ser
transmitidas em palavras. O amor era ser. A mesma
gravidade que me puxava sem cessar foi desafiada quando
subi para algo que se tornou tudo.
Eu amava Bridget McCormack, e naquela noite, segunda-
feira, 24 de dezembro de 1951, ela retribuiu meu amor.
Por um instante, o fantasma de Alexandra Webber pareceu
estar ali entre n�s, e depois senti que fora embora. Passou
em sil�ncio, de forma quase intang�vel, levando junto a
lembran�a do filho que nunca existiu. O passado era como
um olho, e �s vezes eu estava � frente dele, �s vezes atr�s,
mas ele estava sempre ali... abrindo, fechando, abrindo
novamente.
Vinte e Cinco
O Brooklyn era meu novo mundo. Estava tudo ali. Aquilo de
que eu me lembrava do momento em que cheguei: os
pr�dios altos e promissores, a luz batendo, a multid�o de
gente, os carros p�ra-choque com p�ra-choque, motoristas
apoiados na buzina, tempo e gente passando, o passado
passando pelo presente e virando o futuro sempre maior. L�
estava minha Nova York, o cora��o das Am�ricas, suas ruas
e bulevares como veias, suas avenidas como r�pidas sinapses
el�tricas, canalizando, alcan�ando, um milh�o de vozes,
com outro milh�o falando ao mesmo tempo, todo mundo
junto como uma fam�lia, mas s� vendo a si mesmo. Ali �
como eu imaginara � era um lugar onde eu poderia ser
algu�m. Nova York me golpeava, e meu cora��o palpitava.
Naquela cidade, que era um punho cerrado, eu tamb�m era
um punho cerrado. Naquela casa sem p�ra-raios da
humanidade, eu, definitivamente, me tornara o homem que
desejava ser.
E ela estava ali. Bridget McCormack estava ali. Ela acreditava
em mim, e eu acreditava tamb�m.
Foi ent�o que julguei ter finalmente sepultado o fantasma da
Ge�rgia. Apesar da minha lembran�a e da minha
consci�ncia, apesar da lembran�a de minha m�e e de tudo o
que acontecera em Augusta Falls, julguei que me libertara.
Achei que n�o era tanto uma fuga quanto um perd�o. Eu
cumprira minha pena; fizera-se justi�a; minha pena fora
suspensa.
Parecia adequado. Certo. Justo.
Conheci os pais de Bridget. O pai, um irland�s cat�lico
fervoroso, cara de ovo cozido que levou um tombo, ainda
em certa forma apesar do ziguezague de fissuras e
rachaduras. Unhas ro�das at� o sabugo, dedos parecendo em
carne viva, machucados e in�teis para pegar qualquer coisa
menor que sapatos. Dentes tortos e esquisitos, pil�es de cais
corro�dos pelo sal. E quando falava seus pensamentos sa�am
como nacos �speros de som; tinha ouvido para palavras
dif�ceis: disposi��o, crucial, exigente. Cada frase considerada
cuidadosamente, pesada e avaliada, como quando se blefa ou
se paga para ver numa parada de mil d�lares. Brilhantina
num cabelo que poderia ser alugado para a crian�ada; tren�s
improvisados do cocuruto � testa, uma corrida reta e
ininterrupta. Descendo �s gargalhadas, com medo, mas
agitados. A m�e mi�da e et�rea, perseguindo as beiradas das
conversas, fragmentos de palavras como se recortadas de
uma revista. Mentimos para eles, eu disse que era cat�lico
quando eles chegaram. Rimos secretamente. Mostr�vamos
nossa cara ao mundo, e o mundo se acostumou a nos aceitar
incondicionalmente e sem reservas.
Pela primeira vez desde Alex eu estava feliz de verdade.
Hennessy permanecia em sil�ncio � margem, sempre
estimulando, sempre paciente. N�o questionava nem
invejava o que eu tinha. Mostrava que era mesmo um amigo
verdadeiro e fiel.
No in�cio de 1952, quando eu achava que as coisas n�o
poderiam melhorar, Bridget veio falar comigo na pens�o.
� Voc� vai ficar zangado comigo � disse quando abri a
porta para ela entrar.
� Zangado com voc�? Por que eu ficaria zangado com voc�?
Ela estava parada no corredor, cabisbaixa.
� Fiz uma coisa, Joseph... Fiz uma coisa sem lhe contar... e
acho que voc� poderia ficar danado comigo, e fiquei o dia
inteiro adiando vir aqui...
� O qu�? � disse eu. � O que aconteceu.
Ela balan�ou a cabe�a.Tornou a baixar os olhos. Olhou para
cima. Olhar esquisito. Meio furtivo.Trocava de p�, direito
para o esquerdo, esquerdo para o direito.
� Caramba, Bridget... o qu�?
� Primeiro prometa � disse ela. Uma crian�a repreendida.
Menina perdida.
� O qu�?
� Que n�o vai ficar zangado.
Perdi a paci�ncia. Abri os bra�os, m�os espalmadas. Olhe,
disse eu sem palavras. N�o h� nada aqui. Absolutamente
nada.
� Mandei seu livro para uma pessoa � disse ela, a voz
contida, n�o mais que sussurros.
Franzi a testa.
� Meu livro? Como assim, mandou meu livro para uma
pessoa?
� Mandei para uma pessoa... uma pessoa numa empresa em
Manhattan.
� Que empresa em Manhattan?
� Uma editora, Joseph, que tipo de empresa poderia ser?
Abaixei os bra�os, as m�os ao longo do corpo.
Bridget meteu a m�o no bolso do casaco e sacou uma carta.
� Eles me escreveram � disse. � Aqui... � E mostrou a
carta. Peguei-a de sua m�o, tirei uma �nica folha do
envelope. Morrison, Brennan & Young, dizia o cabe�alho
em letras cursivas.
Cara srta. McCormack,
Embora n�o tenhamos o h�bito de responder a outra pessoa sen�o o autor de um
manuscrito apresentado, obviamente n�o temos meios de entrar diretamente em
contato com o sr. Joseph Vaughan, por isso respondemos � sua carta e ao
respectivo anexo com grande interesse.
Ap�s as devidas delibera��es, n�s da Morrison, Brennan & Young gostar�amos muito
de discutir a possibilidade de publicar "A volta ao lar", e ficar�amos muito gratos se
pudesse encaminhar os detalhes ao autor e solicitar que ele compare�a a este
escrit�rio t�o logo poss�vel.
Agradecendo sua apresenta��o direta desse manuscrito, e aguardando encontrar o sr.
Vaughan para discutir seu trabalho,
Atenciosamente,
Arthur J. Morrison,
Diretor editorial s�nior
Li aquela carta duas vezes. Comecei a sorrir. N�o conseguia
ficar s�rio.
� N�o est� zangado? � perguntou Bridget.
Comecei a rir. Parece que passei uma semana rindo. Ri a
viagem toda para Manhattan em 24 de janeiro.
E Manhattan estava l�. Manhattan, ali do outro lado do East
River. Manhattan � uma cidade que poderia encerrar o
Brooklyn.
Esquina da rua Onze Oeste com a Sexta � a avenida das
Am�ricas �, ali, ao lado da Biblioteca Jefferson Market, eu e
Bridget McCormack sentados em cadeiras de couro de
espaldar alto no escrit�rio de Arthur Morrison, diretor
editorial s�nior.
Saud�vel e direto, rosto redondo e generoso; o rosto do
vento, o esbo�o de um anjo, l�bios contra�dos que
adornavam mapas arcaicos, sudoeste no cabo da Boa
Esperan�a. Marinheiros, cuidado. Rochedos irrompendo da
espuma e da mar� como a m�o �spera de Netuno.
Mas seu jeito era de tio endinheirado; tom encantador nas
palavras, generoso em elogios ao meu estilo.
� Ing�nuo � disse. � Simples, ing�nuo, modesto, e, no
entanto, de alguma forma complexo, e muito profundo. Um
trabalho excelente, sr. Vaughan, de fato excelente.
Agradeci.
� E t�o jovem! � disse Arthur Morrison, e sua fisionomia
come�ou a rir antes que o som da risada se fizesse ouvir.
Quando se fez, foi como um trem saindo de um t�nel,
tornando-se mais ruidoso � medida que se aproximava, e
ent�o ele se levantou de detr�s de sua ampla mesa e foi at� a
lareira. Ficou ali um instante, bra�o dobrado e equilibrado na
cornija, e balan�ava a cabe�a para cima e para baixo como
um aparelho de corda. Seus movimentos eram
metron�micos, quase hipn�ticos. Parecia estar em outro
lugar, momentaneamente perdido. Depois, com delicadeza e
sem esfor�o, voltou.
� � dif�cil acreditar que algu�m t�o jovem tenha sido capaz
de escrever algo t�o profundo emocionalmente.
Falou mais um pouco, e depois disse o que pensava em
rela��o a custos e competi��o, algumas frases que pareciam
decoradas e ensaiadas sobre a natureza desafiadora da
ind�stria editorial, e chegou � conclus�o com habilidade e
seguran�a.
Eu lhe disse que sim, que assinaria o contrato, e sim,
trezentos e cinq�enta d�lares seria um adiantamento
aceit�vel sobre os direitos autorais de A volta ao lar, e
Arthur Morrison sorriu como o querubim esticado e cor-de-
rosa que era, e nos apertamos as m�os na frente da lareira, e
Bridget me beijou.
� Eu disse, eu disse, eu disse cem vezes, e continuaria
dizendo se voc� tivesse me dado a mais leve impress�o de
estar ouvindo � anunciou Hennessy.
O dia seguinte. Manhattan era uma vaga e agrad�vel
lembran�a. Est�vamos sentados num bar na rua Van Buren
� Hennessy, eu e Bridget - e ficamos horas bebendo
cerveja e conversando muito sobre nada de importante.
� E ela tamb�m acreditou em voc� � acrescentou, e
ergueu o copo para Bridget, e Bridget abriu um sorriso, e eu
tamb�m, e parecia que o mundo tinha voltado ao normal no
Brooklyn.
O burburinho, os rostos das pessoas na rua olhando para n�s
com inveja, embora n�o soubessem por que, e a fuma�a e a
trepida��o e a euforia do �lcool, e saber que em menos de
seis meses eu entraria na mesma biblioteca onde conhecera
Bridget McCormack e poderia pegar emprestado um
exemplar de A volta ao lar, de Joseph Vaughan. Paul e
Bridget eram as pessoas mais importantes do mundo. Um
mundo pequeno, mas assim mesmo um mundo, e para
variar parecia um mundo criado por mim, algo que eu
constru�ra com o suor do meu rosto, com a for�a de minhas
pr�prias m�os e do meu cora��o.
Dessa vez durou. Dessa vez n�o havia plumas brancas em
portais, levadas por uma leve brisa da janela para o ch�o.
Dessa vez parecia que todas as decis�es haviam sido tomadas
a s�rio, e o mundo respondera com a mesma determina��o.
Eu seria publicado, e durante o processo de edi��o,
diagrama��o, revis�o de provas, durante discuss�es
unilaterais com rela��o a capas e tipos de letra, mantive meu
sentimento de dignidade e reserva. Fiz de conta que eu era
importante, que sob a apar�ncia externa havia um homem
culto e equilibrado, ao passo que � na verdade � eu me
sentia um garoto de sete anos na v�spera de Natal.
A primavera de 52 foi uma euforia de cor e inspira��o. O
F�rum dos Escritores tornou-se meu segundo lar, e algumas
noites um grupinho vinha com Bridget e comigo � pens�o
de Aggie Boyle. Aggie parecia no seu ambiente, assim como
Joyce Spragg, pois a casa retumbava com o movimento dos
jovens passando, injetando vida, amor e frivolidade em tudo.
�Voc� � o novo Scott Fitzgerald! � gritava Joyce para mim
do patamar superior da escada, e a� era agarrada por tr�s por
algum sedutor. Havia alegria. Havia bebida. Havia magia.
Foi no fim de maio que conheci Ben Godfrey.
� Zona norte e Jackson Heights � disse ele. � Sou judeu
de terceira gera��o. Moro perto dos cemit�rios Mount Zion
e New Calvary. � Riu, n�o s� com o rosto, mas sim com o
corpo inteiro. � Um pessoal de mentalidade liter�ria aprecia
a nobreza triste, a atua��o austera e grandiosa da morte.
Querem todos ser Shelley e Byron, mas n�o podem porque
s�o judeus.
Riu de novo, um barulho meio irritante, como uma garrafa
vazia rolando no ch�o do �nibus.
� Mas, mesmo assim, observamos tudo. Rosh Hashan�.
Yom Kippur. Sucot. Chanuc�. Purim. Pessach. Shavuot. �
Riu mais, a risada ecoando, ecoando.
Hennessy estava ao lado. Revirou os olhos, a boca mole; fez
cara de maluco.
�Voc� � escritor? � perguntei a Godfrey.
� Sou, sou, sou � declarou. � Tenho uma coisinha no
prelo neste momento. Uma novela, na realidade, umas
quarenta ou cinq�enta mil palavras talvez. Tem alguma coisa
para beber por a�, alguma coisa para comer a n�o ser esse
raio de p�o �zimo?
Entreguei a Ben Godfrey um copo, uma garrafa de Calvert.
Ele pegou os dois com uma das m�os e me deu tapinhas no
ombro. Gostei do homem. Ele enchia a sala com algo mais
que tamanho e volume. Tinha um charme tosco, e pela
maneira como se vestia parecia que dinheiro n�o lhe faltava.
� E voc�? Pelo que vejo voc� � o chefe desta casa.
Fiz que n�o com a cabe�a. Estendi a m�o para Bridget e ela
se aproximou de mim.
Godfrey ficou aceso como uma ab�bora.
� Bem, bem, bem � disse ele. � E quem seria voc�,
jovem?
Bridget riu dele. Godfrey talvez achasse que ela estivesse
rindo com ele.
� Bridget � disse ela.
� Bem, ol�, Bridget � disse ele lentamente. Insinuou-se
mais um pouco e olhou para ela.
-� Ol� para voc� tamb�m � respondeu ela, e meteu a m�o
embaixo do meu bra�o. Puxou-me com for�a. Sua
mensagem era clara.
� Ent�o o que temos aqui? Uma reuni�o de beberr�es
liter�rios com a mesma opini�o, acho eu � disse Godfrey.
� Parece um cen�rio perfeito para pessoas em sua pouco
respeit�vel linha de trabalho, voc� n�o acha?
E Ben Godfrey tornou-se um de n�s naquele dia. Eu e
Bridget, Paul Hennessy e Benjamin Godfrey, judeu de
terceira gera��o da zona norte de Jackson Heights. Ele tinha
vinte e sete anos, mais tr�s do que eu, e conquistou os
encantos de Aggie Boyle e Joyce Spragg com facilidade. At�
comprou ch� e cestas de frutas para Letitia Brock, a inquilina
idosa do final do corredor do andar de cima. Godfrey
conhecia literatura, e uma vez que se penetrava no seu
exterior despreocupado e agrad�vel, uma vez que se
desencavava o homem verdadeiro por baixo daquela
apar�ncia, ele demonstrava ser �tima companhia,
extremamente generoso.
Quando seu livro foi publicado, pegamos um �nibus para
Manhattan e compramos dois exemplares cada um. Era um
livro fino intitulado Dias de inverno, e gostei da linguagem
dele, de seu estilo seco e conciso. Julguei ter encontrado
algu�m do meu tempo, e conversamos sobre como nos
tornar�amos modelos de uma nova Zeitgast, o sangue novo,
o talento ousado de uma nova era liter�ria.
Meu caso com Bridget ficava mais intenso. Eu a amava e era
amado. Onde antes eu tinha os nervos tensos como uma
catraca torcida, r�gidos at� zumbir com a promessa de se
romper, e meu cora��o era uma fornalha fria � nada sen�o
cinzas e brasas, os resqu�cios chamuscados de um calor
ardente mais antigo �, onde antes eu me julgara vazio,
incapaz de paix�o, agora entendia que ficara totalmente
curado, que a Ge�rgia n�o passava de uma nostalgia l�gubre
em que eu pouco pensava e cujo esquecimento agradecia.
Em Bridget vivia a lembran�a de Alexandra Webber, mas
uma lembran�a vivida sem dor, sem arrependimento, sem
desejo.
Foi uma mar� alta de euforia, e quando junho chegou, e
fic�vamos de m�os dadas entre as prateleiras estreitas da
livraria Langton Brothers na rua Monroe, quando levamos
um exemplar de A volta ao lar � caixa registradora e pagamos
com o nosso dinheiro, parecia que minha hist�ria fora uma
exist�ncia completamente outra.
� O come�o do resto de nossas vidas � disse Bridget
enquanto sa�amos da loja, meu bra�o em volta dos seus
ombros, o sol aquecendo o rosto ao deixarmos a sombra do
toldo.
Paul Hennessy e Ben Godfrey estavam na pens�o de Aggie
Boyle quando voltamos. Haviam preparado uma mesa de
frios e queijos, bolachas d'�gua e vinho. Comemoramos o
dia, o momento, a promessa do futuro.
Naquela noite Bridget e eu fizemos amor, e eu senti que
ent�o cada um de n�s consumia um pedacinho do outro.
�ramos um s� � Bridget McCormack e Joseph Vaughan �
e ach�vamos que seria assim eternamente.
E foi nessa noite que vi a pluma. Nu junto � janela, Bridget
dormindo na cama ao meu lado, um vento frio me
enregelando. Eu vi a pluma ent�o, observei-a quando
enfeitava o ar com arabescos e volteios, quando flutuava
cada vez para mais perto, quando pousou no parapeito ao
alcance da minha m�o.
N�o a peguei. Senti o medo fechar minha garganta. Senti
uma sombra do passado ir atravessando pouco a pouco a
janela aberta e se fechando ao encostar em mim.
Fechei os olhos, a mente, o cora��o. Desejei que
desaparecesse. Quando tornei a olhar, ela ainda estava l�,
mas s� por uma fra��o de segundo, pois suspirei com
impaci�ncia e observei-a desaparecer no escuro.
Andar para tr�s.
Se tivesse a oportunidade de andar de costas, eu andaria,
mesmo agora. Um por um, lenta e hesitantemente, eu
voltaria sobre cada passo, e minhas decis�es seriam
diferentes. Eu perdoaria as indiscri��es de minha m�e, as
infidelidades de Gunther; teria mantido Bridget perto de
mim, como minha pr�pria sombra, e nunca a perderia de
vista; eu estaria na rua com os Guardi�es, e veria o assassino
das crian�as, e o xerife Dearing correria conosco at� estar
prestes a cair de exaust�o, e aquilo teria terminado, assim
como terminou agora, mas diferente.
Mais que tudo, eu n�o faria promessas que n�o pudessem ser
cumpridas.
O tempo proporciona uma perspectiva perspicaz, �s vezes
cruel, �s vezes mais honesta do que se � capaz de ag�entar.
Tudo � f�cil retrospectivamente, e se eu soubesse, se tivesse
vislumbrado uma fra��o da verdade definitiva disso, eu teria
fugido de Nova York... fugido como o vento daquilo tudo,
Bridget ao meu lado, como minha sombra, e nunca teria
olhado para tr�s.
Mas eu n�o sabia, e ficaria sem saber ainda por muitos anos.
Aqueles anos agora se desenrolam atr�s de mim. S�o como
marcos da estrada que peguei, cada passo � seja corajoso ou
temeroso, honesto ou enganador � refletindo em todas as
suas facetas o homem que me tornei.
Eu sou quem eu sou. E quem sou nunca ser� t�o importante
quanto o que fiz. Tudo retorna ao ponto de partida, girando
sobre si mesmo e me levando de volta ao come�o.
O sangue em minhas m�os j� secou. Tornei-me o que eu
mais temia; e isso me assusta.
Vinte e seis
O outono chegou depressa. Os meses que o precederam
pareciam vagos e t�nues. Mais tarde, muito mais tarde, eu
pensava nas semanas entre junho e novembro, e elas eram
um tanto ralas e inconsistentes, como se nunca tivessem
acontecido. Paul estava entre essas recorda��es, assim como
Ben Godfrey � sempre rindo, brincando com Bridget, n�o
fazendo mist�rio de que a amava tamb�m. Bridget lidava
com ele de uma forma objetiva e pol�tica, apressando-se
sempre em deixar claro que era sua amiga, mais nada.
Durante algum tempo Ben levava com ele uma garota: Ruth
Steinberg, uma judia alem� cujos pais a animaram a sair de
Munique t�o logo o nacional- socialismo aumentou seu
controle violento sobre a na��o. Seus pais, os av�s, o irm�o,
n�o sobreviveram, e Ruth morava com uma tia por afinidade
por parte de m�e, uma mulher amarga e ressentida que
aturava a responsabilidade com algo que n�o era lealdade
familiar. Eu gostava de Ruth, mas ela n�o servia para Ben.
Eles se separaram no fim de agosto, e mais uma vez Ben
ficou sobrando.
Chegou meados de novembro. Est�vamos planejando uma
grande festa de A��o de Gra�as na pens�o de Aggie Boyle, e
na quinta-feira, 20, fui a Manhattan falar com Arthur
Morrison. A volta ao lar vendera um total modesto de mil e
cem exemplares em cinco meses, mas Morrison n�o estava
desanimado. Queria um segundo romance, algo com
"esp�rito e paix�o".
Bridget n�o fora, estava cuidando de assuntos familiares.
Perdi o primeiro �nibus, o segundo atrasou por algum
motivo. Eu poderia ter ido a p�, mas optei por n�o fazer isso.
Fiquei algum tempo olhando algumas livrarias, depois sentei
na rodovi�ria e li um jornal jogado fora at� sermos chamados
para embarcar. Quando parti, sabia que chegaria quase duas
horas atrasado.
Morrison ignorou minha falta de pontualidade. Foi generoso
e efusivo como sempre.
"Essas coisas s�o consolidadas", dissera-me ele.
"Consolidamos essas coisas lentamente. Publicamos um
livro, depois publicamos outro. Fazemos as pessoas
repararem. Persistimos at� termos sucesso."
Voltei � noitinha. O vento estava cortante. Peguei um
�nibus para a rodovi�ria perto de Throop e Quincy e parei
numa delicatessen para me esquentar antes de ir a p� para
casa. Pedi um caf�, puxei uma conversa r�pida com a
gar�onete, uma mulher de meia-idade sorridente, e depois
caminhei os tr�s ou quatro quarteir�es. Meu encontro com
Morrison me inspirara a escrever outro livro, a investir nele
meu cora��o e minha alma, e eu estava ansioso para falar
com Bridget, a fim de conseguir seu est�mulo, seu apoio,
suas id�ias ousadas.
Meus pensamentos transbordavam.Vi-me falando sozinho
enquanto caminhava, murmurando e batendo queixo, e sorri
da minha tolice. Eu estava todo amassado por dentro, meus
pensamentos torcidos como len��is de amantes num quarto
de motel. Acelerei o passo. Sabia que Bridget j� teria
chegado, estaria � minha espera para que eu lhe contasse de
Manhattan, do local para onde nossas vidas agora se
dirigiriam.
Dobrei a esquina no alto da rua. Cerca de trinta metros
depois dava para avistar a casa. As luzes estavam acesas,
todas, mas tudo ali, os beirais, as t�buas dos degraus, o metro
de terra batida entre a cal�ada e a parede, tudo me sugeria
que eu chegara atrasado.
Parei. Intrigado.
Ouvi o r�dio tocando por uma janela no alto, atr�s de mim, a
voz quente da cantora:
...para cada cora��o arrasado havia uma promessa, e em cada
promessa quebrada havia um suspiro, e a cada suspiro de seu
rosto eu me lembrava, e a cada lembran�a eu ca�a em
prantos...
Recomecei a andar, agora mais devagar. Algo n�o ia bem.
Algo desafiava meu sentimento de expectativa.
Foi ent�o que vi o carro. Um carro policial preto e branco.
Um homem l� dentro. Policial.
Meu cora��o bateu depressa. Comecei a correr. Pensei em
Letitia Brock, em seus quadris problem�ticos, na maneira
como ela balan�ava ao andar, na for�a com que segurava o
corrim�o quando descia a escada estreita. Meu cora��o
disparou. Atravessei a rua e passei correndo pelo port�o. O
policial reagiu t�o r�pido que n�o deu para ver, saltou,
contornou o carro e postou- se � porta para barrar minha
entrada.
� Fique onde est�, droga! Aonde pensa que vai?
� L� dentro! � arfei. Meu peito arquejava. Uma camada de
suor cobria minha testa.
� Nem pensar � disse ele. � Ningu�m entra... sem
autoriza��o. Sem motivo suficiente.
� Eu moro aqui! � falei, e fiz men��o de empurr�-lo para
passar.
Ele agarrou meu pulso quando estiquei o bra�o. Agarrou
com for�a, me segurando.
� Nome? � perguntou.
�Vaughan � respondi. � Joseph Vaughan.
O policial arregalou os olhos. Ficou s�rio. Apertou mais meu
pulso, e pareceu me puxar mais para perto. Inclinou a cabe�a
para tr�s e gritou a plenos pulm�es.
� Sargento! Eu o peguei! Sargento... Eu o peguei aqui!
Naquele momento, era como se todas as coisas que levaram
anos sendo constru�das desmoronassem em segundos.
Duas d�cadas para construir uma catedral. Meia hora para
implodir e sobravam s� a poeira no peito e um punhado de
lembran�as.
Sargento Frank Lansford. Fei��es de chapa de a�o,
perfuradas por olhos como balas, tortos. A boca, um rasg�o
desbei�ado no tecido da face. Andava desajeitado dentro da
roupa, cal�as muito curtas, mangas muito compridas, como
se de uma modelagem �nica nunca vista por um alfaiate.
Narinas extraordinariamente largas, talvez para sentir cheiro
de sangue, cordite, outros ind�cios de caos. Orelhas chapadas
no cr�nio, bem coladas. Estava sentado na cadeira da
cozinha de Aggie Boyle, uma cadeira feita para pessoas de
tamanho normal. Um homem que procurava conforto e
raramente encontrava. N�o usava alian�a. Jeito solit�rio que
falava de dias preenchidos com rela��es oficiais e
necess�rias; sem amigos, sem filhos, sem amante, sem
humor. Como se a vida agora fosse vista pela lente c�ncava
de um fundo de garrafa. Achei que um homem daqueles
teria a sabedoria de escolher uma profiss�o que inspirasse
respeito, admira��o e outros sentimentos semelhantes.
Algu�m acabaria por am�-lo pelo que tivesse feito, por
perdo�-lo pelo que tivesse sido. Mas, n�o, ele era um
policial. M� escolha. Tinha perdido antes de ter tido chance
de vencer.
� ... e voc� chegou aqui sem fam�lia, ou pelo menos � o que
me diz seu amigo.
Tom de voz com um vi�s de suspeita. Tudo suspeito.
Acusador, exaltado.
Fiz que n�o com a cabe�a.
� N�o...
Olhei para cima, atrav�s do teto para o ch�o do meu quarto.
Eu queria ir l�. Eu queria v�-la.
� Nada para ver � dissera Lansford. Dissera isso antes.
Quando saiu para me encontrar na escada do p�rtico. Veio
devagar, como se sa�sse rolando da casa, e ficou ali algum
tempo me olhando.
�Voc� � o amante da garota, certo? � foi sua primeira
pergunta.
Olhos arregalados. Querendo saber o que tinha acontecido.
� Garota? � disse eu. � Que garota?
Lansford sorriu.
-� N�o se fa�a de bobo.
� Bridget? � perguntei. � O que est� havendo?
� Essa mesma � respondeu Lansford. � Bridget
McCormack...Voc� � o amante dela, certo?
Fiz que sim. Aperto no peito. Suando apesar do frio. Cora��o
retumbando, prestes a explodir. Meu pulso continuava
sendo apertado.
� E onde andou o dia inteiro, caramba?
� Em Manhattan � disse eu. � Fui a Manhattan falar com
uma pessoa.
� � mesmo? � Lansford pegou um bloco do bolso, uma
caneta de dentro da jaqueta. Escreveu algo sucinto.
� O que diabo est� acontecendo? � perguntei. � Por que
n�o posso entrar?
Lansford balan�ou a cabe�a.
� Ningu�m entra at� eu mandar. � Fez outra anota��o,
maior.
� Onde est� Bridget?
Lansford parou de escrever e olhou para mim.
�Voc� n�o sabe?
Fiz que n�o.
� N�o sei o qu�? N�o entendo o que est� acontecendo. Era
para ela estar aqui... era para ela estar aqui quando eu
chegasse.
� E pode provar que esteve em Manhattan, sr.Vaughan?
� Provar? Por que eu teria que provar alguma coisa? Me diga
que diabo est� acontecendo aqui.
� J� basta � disse o policial. � Este aqui � o sargento
Lansford. Departamento de Pol�cia do Brooklyn. Um pouco
de respeito da sua parte, sim?
Olhei para o ch�o. N�o conseguia respirar.
� Por favor � arfei. � Algum de voc�s poderia fazer o
favor de me dizer que diabo est� acontecendo aqui? Onde
est� Bridget? Aconteceu alguma coisa com ela? Por favor...
Pelo amor de Deus, me digam por favor!
�Aconteceu alguma coisa, sim � disse Lansford
objetivamente. � Com certeza, aconteceu alguma coisa,
sr.Vaughan... parece que tinha algu�m l� em cima no seu
quarto com ela...
� Meu quarto, sim. Ela devia estar no meu quarto. � onde
ela devia estar.
� E � onde ainda est�, sr.Vaughan.
Dei um suspiro. Senti uma onda de al�vio. Quase perdi o
equil�brio. Comecei a sorrir, comecei a rir.
� Gra�as a Deus! � disse eu. � Ah, gra�as a Deus... posso
subir para v�- la... por favor, o senhor quer me deixar entrar
na minha pr�pria casa para ir falar com ela?
� N�o vai dar, infelizmente � disse Lansford.
� N�o vai dar... por qu�? Por que n�o daria?
� Porque ela est� morta, sr.Vaughan... sua namorada est� no
seu quarto e est� morta. Parece que algu�m fez umas coisas
com ela... que coisas s� Deus sabe, mas algu�m fez umas
coisas ruins com ela e depois quase cortou ela ao meio...
Foi ent�o que tudo desmoronou.
Eu n�o me lembrava de nada a n�o ser da m�o do policial
tentando me segurar.
A cozinha.
Na minha frente, uma x�cara de ch� forte, ado�ado com
colheradas de a��car. M�os tremendo demais para levant�-
la, enjoado com o cheiro doce. Tentei acender um cigarro,
n�o consegui. Lansford o acendeu e o passou para mim. Dei
uma tragada funda, senti a n�usea me encher o peito com a
fuma�a.
Olhos vermelhos de chorar. Durante algum tempo, sem
conseguir falar, pensar, quase respirar.
Pluma branca. Foi o que vi. Pequenas plumas brancas. Na
mesa, em volta dos meus p�s, ali ao longo da bancada,
saindo dos arm�rios.
Todo mundo na sala dos fundos ao lado da cozinha. Aggie
Boyle, Letitia Brock, Emil Janacek e John Franklin. Paul
estava tamb�m, assim como Ben Godfrey. Dava para ouvir
uns balbucios, pequenas pontua��es entre os arquejos que
me sa�am da garganta enquanto eu tentava me controlar o
bastante para falar.
� Ent�o, a que horas saiu? � perguntou Lansford,
aparentemente pela terceira ou quarta vez.
Ouvi passos l� em cima, as t�buas estalando nos assoalhos e
nos corredores. Havia gente l� em cima. Outros policiais.
Um legista.
� Sa� daqui pouco antes das oito � disse eu.
� Para pegar um �nibus �s oito e quinze, certo?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Que n�o pegou.
� Perdi � disse eu. � Perdi o �nibus e tive que esperar at�
pouco depois das dez.
� Dez em ponto?
� Dez e dez... O segundo �nibus saiu �s dez e dez.
� E das oito e quinze �s dez e dez... durante essas duas
horas, onde voc� estava?
� Na rodovi�ria... li um pouco, dei uma volta no quarteir�o,
olhei umas livrarias.
� Podia ter ido a p� para o seu encontro. Ou poderia ter ido
esperar em casa... por que n�o fez isso?
Encolhi os ombros. Tornei a olhar para cima. Um sonho.
Um pesadelo. Nada que se enquadrasse em nenhuma
refer�ncia. Mais tarde eu iria fechar os olhos, abri-los, ver
que era tudo imagina��o minha. Eu continuava dormindo
no �nibus de Manhattan. Nem chegara ao Brooklyn. Eu
estremeceria. Depois sorriria. A� come�aria a rir quando
percebesse que meus piores temores n�o passavam de uma
excresc�ncia sinistra de uma imagina��o cansada e explorada
al�m dos limites.
� N�o estava a fim de ir a lugar nenhum. N�o me importei
de esperar e parecia que n�o tinha cabimento ir para casa �
disse eu. � Bridget passaria o resto do dia fora...
Lansford balan�ou a cabe�a.
� Tudo leva a crer que n�o.
� O que quer dizer?
�Tudo leva a crer que n�o, � o que quero dizer. Segundo a
srta. Spragg... Conhece a srta. Spragg, certo?
Fiz que sim.
� Segundo a srta. Spragg, Bridget McCormack chegou aqui
pouco antes das nove da manh�.
Balancei a cabe�a.
� Eu n�o entendo... ela disse que tinha que fazer alguma
coisa com a fam�lia dela.
� O que tamb�m foi confirmado pela srta. Spragg. �
Lansford meteu a m�o no bolso e pegou seu bloco. Folheou
pelo menos umas dez p�ginas. � Aqui � disse, consultando
os pr�prios hier�glifos. � A srta. Spragg disse que estava
saindo para o St. Joseph�s por volta das dez para as nove.
Quando chegou ao corredor, Bridget McCormack entrou e
falou com ela, disse que estava planejando fazer alguma coisa
com a fam�lia dela naquele dia mas que o programa tinha
sido adiado e ela achava que iria passar o dia aqui. Disse que
tinha umas coisas para ler, que ia fazer uma pequena faxina
no quarto. A srta. Spragg acha que ela se referia ao seu
quarto, sr. Vaughan. Disse que o senhor e Bridget
McCormack passavam quase todas as noites juntos aqui,
morando juntos, se o senhor prefere.
� Sim, pode-se dizer isso. Pass�vamos mais tempo juntos do
que separados. � Parei. Olhei para Lansford, para o policial
parado junto � pia. � Isso � uma loucura � disse eu. � O
que est� acontecendo aqui? � Comecei a levantar da
cadeira. O policial se adiantou e me segurou os ombros.
� E aonde vai, sr.Vaughan? � perguntou Lansford num
tom severo.
� Preciso v�-la � disse eu.
Senti novamente a onda de emo��o, como uma multid�o de
punhos no meu peito. Coisas negras balan�avam diante dos
meus olhos. Plumas. Mais plumas. Agora estavam dentro da
minha cabe�a, bem na minha retina.
Pensei em anjos.
Pensei em meu pai. Como a Morte viera pela High Road e o
levara. Pensei em Gunther Kruger pendurado no caibro de
um celeiro, uma fitinha cor-de-rosa entrela�ada nos dedos
da m�o direita.
Pensei em minha m�e, ela pr�pria uma assassina de crian�as,
e em como se tornara exatamente o que tentara evitar.
Comecei a solu�ar. Um engulho no meio do meu corpo, e
depois fiz um gesto largo, acertei a x�cara, mandei-a girando
para o outro lado da cozinha, seu conte�do doce e morno
salpicando o lin�leo.
� Chame o m�dico � disse Lansford. � Chame o m�dico
aqui imediatamente!
O policial deu um pulo, soltou-me, virou as costas de
repente e saiu da cozinha. Ouvi-o subir a escada correndo.
Ouviam-se vozes. Senti as m�os de Lansford em meus
ombros, me segurando na cadeira. Ali na cozinha de Aggie
Boyle.
Vi o rosto de minha m�e. A m�e de que eu me lembrava,
n�o a que enterrei.
Vi as solas dos sapatos de Virg�nia Grace Perlman, eu vi
quando apareceram no alto do morro.
Vozes novamente. Uma sensa��o de estar sendo tratado
com brutalidade. E a� veio a picada. Uma fisgada no meu
bra�o. Lutei contra aquele estado, violentamente. Mas ele
chegou. Chegou como uma nuvem me atravessando, e n�o
havia nada que eu pudesse fazer para aliviar a sensa��o que
provocava. A sensa��o de estar me afogando no escuro, mas
sustentado por plumas, um cobertor de pluminhas brancas
que tentava me fazer flutuar mas n�o conseguia ag�entar
meu peso.
Dobrei-me em sil�ncio. Mergulhei na escurid�o.
Custei muito a vir � tona, e quando vim lembrei-me de que
meu mundo tinha acabado.
Acordei num hospital, mas n�o era nenhum hospital
conhecido. As paredes eram brancas, assim como o teto, os
len��is e as camas. Era uma esp�cie de dormit�rio, uma
�nica porta no fundo, com barras na janela estreita. Quando
me mexi, vi que minhas m�os estavam algemadas na cama, e
foi ent�o que a realidade chegou. Como um punho. Como
uma bala. Como um barulho retumbante.
Fechei os olhos, n�o suportava tornar a abri-los. Achei que
fosse morrer.
Ao relembrar, talvez tivesse sido melhor.
Horas depois � eu n�o tinha como determinar o tempo �
Lansford foi me ver.
� O que est� acontecendo? � perguntei-lhe. � Onde
estou? Que diabo estou fazendo aqui?
Lansford puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da
cama.Trazia na m�o uma pasta fina de papel manilha que
abriu e equilibrou sobre os joelhos.
� Sedado... tivemos que sedar voc� � disse objetivamente.
Seu tom era seco e profissional. Senti a press�o da amea�a.
�Voc�, de alguma forma, se descontrolou � acrescentou.
� L� na casa. Tivemos que chamar o m�dico para sed�-lo.
� Onde estou?
� Na ala m�dica � disse Lansford. � Pris�o de Brooklyn.
� Pris�o? Que droga estou fazendo na pris�o? � Tentei me
sentar, mas as algemas em meus pulsos n�o me deixavam.
� Preciso fazer umas perguntas. Preciso de algumas
respostas. Isso n�o � uma quest�o de negocia��o. N�o �
assunto para discuss�o. A hora da morte da garota
McCormack demonstra que voc� teve tempo de sobra para
voltar para casa quando perdeu o �nibus, violent�-la e mat�-
la, e ainda voltar � rodovi�ria a tempo de pegar o segundo
�nibus para Manhattan.
� O qu�? Do que est� falando? N�o est� falando s�rio
quando diz...
� Ainda n�o acabei. Eu agradeceria se n�o me
interrompesse, sr. Vaughan. Como estava dizendo, levando
em conta a hora da morte, voc� teve tempo de sobra para
voltar para casa e fazer aquela coisa horr�vel, portanto tempo
n�o est� em quest�o. M�todo? Bem, isso parece bastante
simples. A mo�a foi atacada, e h� ind�cios de que foi
estuprada. Parece, pelo menos de acordo com o relat�rio
inicial do legista, que foi atacada com tal viol�ncia que
quebrou o pesco�o ao ser empurrada contra a parede. Em
seguida, parece que tentaram de fato cortar seu corpo em
dois. Portanto, o m�todo foi esse, sr. Vaughan...
Minha cabe�a se fechava. Imagens me bombardeavam. O
barulho de gritos, a vis�o de sangue. A lembran�a de
Bridget...
� O senhor est� louco...
� Sr. Vaughan! � rosnou Lansford com arrog�ncia. � J�
lhe pedi uma vez, acho que com educa��o, para n�o me
interromper. Tornarei a pedir, e n�o vou gostar nada se o
senhor n�o colaborar. Ora, como eu ia dizendo... se
entendesse algo de procedimentos de investiga��o da
pol�cia, saberia que os primeiros fatos que precisam ser
estabelecidos s�o triplos. M�todo, motivo e oportunidade. O
primeiro e o �ltimo s�o �bvios, mas o segundo, o motivo do
ataque brutal, ainda n�o foi determinado, mas achamos que
talvez tenhamos algo substancial a considerar.
Fiquei calado. Mil perguntas enchiam minha cabe�a. A
ang�stia me devastava o corpo inteiro, percorrido por uma
dor que era mais que mental. Eu mal conseguia respirar.
Percebi aonde aquilo ia dar. Percebi o que aquele sargento
da pol�cia pensava.
Lansford parecia esperar que eu dissesse alguma coisa, mas
eu n�o conseguia falar.
� O senhor entende, naturalmente, sr. Vaughan, que nesse
nosso sistema democr�tico um homem � inocente at� prova
em contr�rio?
Fez mais uma pausa. Eu ainda n�o conseguia falar. As
palavras estavam ali, aos milhares, mas nenhuma delas sa�a.
� Ent�o, at� podermos demonstrar com certeza que uma
pessoa � culpada, trabalhamos com base no princ�pio de que
ela tem todo direito de se defender, de procurar
aconselhamento legal. No seu caso... bem, no seu caso, sr.
Vaughan, sugiro que trate disso imediatamente. Arranje um
advogado, e esteja preparado para um longo inqu�rito sobre
a morte dessa pobre jovem. O senhor est�, digamos, mais ou
menos na linha de fogo no que se refere a essa quest�o.
Lansford ficou calado um instante, depois se levantou da
cadeira e tornou a devolv�-la ao seu lugar encostada na
parede.
� Eu... eu n�o entendo o que est� acontecendo �
resmunguei. Minha garganta estava apertada. Minha cabe�a
latejava sem piedade. � N�o vejo que motivo eu poderia ter
para cometer essa... essa atrocidade.
Lansford sorriu, com um pouco de compaix�o, a princ�pio
pareceu, depois fechou o rosto.
� A garota � disse. � Essa Bridget McCormack que foi t�o
brutalmente estuprada e morta... ela estava gr�vida, sr.
Vaughan... bem no in�cio da gravidez.
Senti toda a vida se esvair de dentro de mim
� E hoje em dia... bem, � triste quando um filho n�o
desejado provoca um assassinato, mas a verdade � o que se
v�, n�o?
Lansford recuou e se dirigiu � porta. Uma vez l�, voltou-se
novamente para mim.
�Vou mandar um guarda tomar as provid�ncias para que o
senhor chame um advogado. Como disse antes, recomendo
que fa�a isso imediatamente.
Eu me lembrava de ter ouvido a porta se fechar com um
barulho met�lico. Recordava a chave arranhando a
fechadura, depois se fez sil�ncio, salvo pelo barulho da
minha respira��o, e atr�s disso a dor no meu peito enquanto
sentia meu mundo inteiro ir abaixo.
Talvez eu tenha dormido. Talvez n�o. Acho que sonhei.
Bridget vinha at� mim. Estava em p� junto a minha cama,
sem dizer nada. Estendi a m�o para toc�-la e ela se dissipou
como uma nuvem. Dissolveu-se completamente, com o
ru�do de uma brisa.
O guarda chegou muito tempo depois e me disse que era
domingo. S� no dia seguinte eu poderia chamar algu�m. Ele
levou uma comida que n�o comi. Perguntou se eu queria
alguma coisa.
� Minha vida de volta � disse eu. � S� quero minha vida
de volta.
O guarda sorriu.
� Acho que isso � uma coisa que n�o posso fazer.
Observei-o desaparecer, e s� ent�o, quando ele fechou a
porta de uma forma t�o inapel�vel, comecei a enfrentar a
verdade do que havia acontecido. Julguei entender o que
acontecera na casa da esquina da rua Throop com a Quincy,
por�m, mais importante, comecei a entender porqu�.
Vinte e sete
Segunda-feira � noite chegou um advogado. Thomas Billick,
defensor p�blico nomeado pelo estado. Minhas algemas
foram retiradas para permitir que eu me sentasse na cama, e
quando Billick chegou, fui autorizado a usar uma cadeira.
Billick era um homem deslocado. Olhos apertados, �culos de
aro de metal, rosto constrangido se adaptando ao
desconforto do ambiente � sua volta. Carregava uma pasta
surrada, agarrava-a com ardor, como se fosse um objeto de
defesa, e quando falava suas palavras eram t�midas e
hesitantes.
� Eu... eu n�o estou muito familiarizado com essas coisas �
explicou Billick. Balan�ou a cabe�a, brincou com a haste dos
�culos. Quando a largou, os �culos estavam meio tortos. �
Foi feito o indiciamento...
� Indiciamento? � disse eu. � Que indiciamento?
� Indiciamento por homic�dio, sr. Vaughan � disse Billick.
� N�o sabia que o senhor foi indiciado por isso?
� Como assim? N�o pode estar falando s�rio...
� Ah, estou falando muito s�rio, sr. Vaughan, muito s�rio
mesmo. O senhor foi indiciado no s�bado...
� Deus, eles devem estar... n�o, n�o pode estar acontecendo
isso. Eu nem estava consciente no s�bado... est� me dizendo
que fui indiciado enquanto estava inconsciente?
Billick encolheu os ombros.
� N�o tenho nada aqui que diga que o senhor estava
inconsciente, sr. Vaughan. � Abriu a pasta
desajeitadamente. Voaram pap�is para o ch�o e ele demorou
um pouco para cat�-los. � Aqui � disse finalmente.
Segurou uma folha de papel. � Aqui diz que �s treze e dez
de s�bado, 22 de novembro, o senhor foi formalmente
indiciado pela morte de Bridget McCormack, que lhe leram
os seus direitos e o aconselharam a procurar um advogado
imediatamente. Ao que tudo indica, o senhor optou por n�o
fazer nada at� hoje de manh�. � Billick olhou para mim e
franziu a testa. � Por que, sr. Vaughan? Por que optou por
n�o fazer nada em rela��o a procurar um advogado at� hoje
de manh�?
� Isso � uma loucura total! � disse eu. � N�o posso
acreditar que esteja acontecendo. S� ontem fui informado
de que deveria contratar um advogado, e quanto a terem me
indiciado ou lido os meus direitos... n�o posso acreditar que
tenham feito isso! Me indiciaram e leram meus direitos
enquanto eu estava inconsciente.
Billick balan�ava a cabe�a.
� N�o de acordo com este documento. � Mostrou-me a
folha, e quando fui peg�-la, ele rapidamente tornou a
guard�-la na pasta. � Preciso guardar este papel � disse. �
Tem que ficar com o restante do seu processo.
� Ent�o, e agora? Que diabo deve acontecer agora? �
perguntei.
� Amanh� de manh� o senhor ser� citado, e, feita a cita��o,
ser� transferido para a Pris�o Estadual de Auburn no norte
do estado de Nova York. Ali ficar� at� ser marcada a data do
julgamento, e durante o tempo em que estiver preso, que
esperamos n�o seja muito longo, a pol�cia preparar� o
processo para a promotoria distrital, e eu estarei trabalhando
na sua defesa.
� Julgamento? Vou ser julgado?
� Sim, sr. Vaughan, n�o h� d�vida. A data do julgamento,
com certeza, ser� daqui a uns quatro ou seis meses...
Enquanto isso, o senhor deve tentar se lembrar de tudo que
aconteceu naquela manh�. Minha primeira id�ia � que
devemos tentar alegar homic�dio simples, e se isso n�o se
sustentar ent�o devemos tentar um acordo com a
promotoria alegando homic�dio qualificado. � Ele sorriu
com sinceridade. � Assim, como sabe, evitaremos a pena
de morte.
Eu n�o conseguia falar. Olhei para Billick enquanto ele
fechava a pasta e se levantava da cadeira.
� Ent�o, at� voltarmos a falar amanh�, cuide-se bem, sr.
Vaughan.
Billick sorriu de novo, e depois atravessou o aposento e
bateu duas vezes na porta. O guarda do outro lado a abriu e o
deixou sair. Ele ficou parado um instante, olhando pelas
grades que guarneciam a janela estreita, depois desapareceu.
Pouco depois o guarda entrou e perguntou se eu queria
continuar sentado ou voltar para a cama.
Fiquei im�vel, calado, ent�o ele me algemou � cadeira onde
eu estava sentado.
Paul Hennessy estava presente, Ben Godfrey tamb�m, assim
como estavam Joyce Spragg, Aggie Boyle e a irm�, outras
pessoas cujos rostos reconheci vagamente do F�rum dos
Escritores do St. Joseph. Estavam calados, inexpressivos,
sentados ali na galeria do Tribunal de Justi�a da cidade do
Brooklyn ter�a-feira de manh�. Os procedimentos foram
breves e superficiais.Thomas Billick quase n�o disse nada em
resposta ao representante da promotoria distrital, Albert
Oswald. Fui chamado perante o juiz, um homem que n�o
parecia ter mais de quarenta anos e me olhava com um ar
superior e desdenhoso. O representante da promotoria, de
terno e sapatos de verniz, fez um gesto de desd�m com a
m�o quando Billick insinuou que eu ainda n�o fora indiciado
por homic�dio culposo.
� A acusa��o j� foi levantada e registrada � disse Oswald.
� Enquanto o r�u permanecer em pris�o preventiva na
Estadual de Auburn, haver� tempo de sobra para o defensor
p�blico apresentar quaisquer informa��es ao promotor
distrital, Merit�ssimo.
O juiz fez um gesto de cabe�a indicando que a acusa��o
estava conclu�da.
� J� ouvi o que preciso ouvir. O r�u fica sob a cust�dia da
Casa de Corre��o Estadual de Auburn at� ser marcada uma
data para o julgamento. � Sorriu com indiferen�a. � Sr.
Billick?
Billick ergueu os olhos com nervosismo.
� Se houver alguma pergunta em rela��o � veracidade ou
validade da acusa��o tal como exposta aqui, sugiro que se
apresente para um acordo com a promotoria o quanto antes.
A corte n�o ser� morosa no cumprimento do seu dever.
Muito tempo e muito dinheiro ser�o gastos no processo de
sele��o do j�ri e na prepara��o do julgamento. N�o ficarei
muito satisfeito com surpresas inesperadas em rela��o a
acusa��es ou defesa... entende?
Billick olhou para mim, depois assentiu para o juiz com um
gesto de cabe�a.
� Sr. Billick?
� Sim, Merit�ssimo � disse Billick. � Claro... tudo ser�
providenciado de forma r�pida e ordenada.
� Bem, assim espero � retrucou o juiz. �Afinal de contas
� a vida de um homem que est� em jogo, n�o?
Dois guardas se adiantaram e me algemaram. Viraram as
costas para me levar embora.
� Seja forte! � gritou uma voz da galeria, e, erguendo os
olhos, vi Paul Hennessy ali em p�, chorando, as m�os
segurando a barra � sua frente.
Inclinei a cabe�a. Fui levado embora, Billick alguns passos
atr�s de mim. N�o pude olhar para os meus amigos.
No dia de Natal de 1952, eu perdera meu nome.
No final de janeiro, abandonara minha identidade.
Um m�s depois, deixara de ser um ser humano.
De algum recesso da minha mente lembrei-me de uma frase
de Democracia na Am�rica de Tocqueville: "T�nhamos a
sensa��o de estar atravessando catacumbas; havia mil seres
vivos, e no entanto era uma solid�o de deserto."
Ele escreveu estas palavras sobre a Pris�o Estadual de
Auburn, condado de Cayuga, em algum lugar desumano
entre Buffalo e Syracuse.
Na chegada, naquela noite de fim de novembro, minha
cabe�a fora rapada. Tiraram minhas roupas, e ficamos nus �
eu e mais doze homens �, enquanto um m�dico nos
examinou grosseira e superficialmente. Fomos conduzidos
por um p�tio aberto cercado por muros altos, e no frio da
madrugada fomos instru�dos a ficar parados � pernas
afastadas, bra�os abertos na altura dos ombros � e fomos
pulverizados com um fino p� acre anti-piolhos. Por mais
trinta minutos permanecemos em p�, narinas e olhos
ardendo, querendo gritar, chorar, desmaiar ali mesmo. Um
homem desmaiou, um careca de ombros estreitos, e um
guarda bateu nele com uma vara at� ele tornar a se levantar.
Dali fomos conduzidos por um longo corredor revestido de
pedra at� as duchas. A �gua veio como agulhas de a�o,
pinicando-me a pele at� eu ter a sensa��o de que me tiravam
sangue. Cada um de n�s recebeu um quarto de p�-direito
baixo pintado de branco, coloquialmente conhecido como
"os cubos", e num fino colch�o de crina fiquei deitado
tiritando e aturdido at� o sono me pegar desprevenido e
fazer meu pesadelo desaparecer por um tempo m�nimo.
Meu primeiro dia: uma premoni��o de tudo que estava por
vir. Ficamos dentro daquelas quatro paredes estreitas, sem
nada para ver sen�o tinta branca e as t�nues mudan�as entre
noite e dia por um olho-de-boi na parede externa. Tr�s
semanas. Nenhum movimento sen�o andar os dois metros e
trinta de um lado para o outro. A comida vinha numa
bandeja de metal por uma abertura na metade inferior da
porta, e cada vez que a estreita grade da "caixa de correio"
era aberta e depois fechada novamente eu sentia aquela
batida met�lica reverberar em cada osso, cada nervo, cada
tend�o do meu corpo. Espiritualmente, mentalmente,
emocionalmente, eu estava em outro lugar. Passeava com
Bridget, sentava � minha escrivaninha e escrevia um livro
para Arthur Morrison, algo com esp�rito e paix�o e din�mica
humana. Sentia Joseph Calvin Vaughan ir desaparecendo
calado. Observava-o indo embora. Ele n�o olhou para tr�s,
pois se o fizesse me veria, talvez sentisse tanta pena de mim
que voltaria. Esse risco ele n�o poderia correr, portanto
continuou seletivamente cego.
Tr�s semanas depois fomos transferidos para celas de tr�s
homens. Fui alojado com dois irm�os, Jack e William
Randall, assaltantes � m�o armada de Odessa, no condado de
Schuyler. Tinham uma diferen�a de idade de onze meses,
uma semelhan�a assombrosa: fei��es brutas, de su�no, olhos
apertados, andavam com os ombros curvados para a frente,
como pistoleiros fora do tempo e do espa�o.
Falei-lhes da minha inoc�ncia.
Jack Randall sorriu, colocou a m�o com firmeza em meu
ombro.
� Aqui � disse � s� tem dois tipos de gente... os guardas e
os inocentes.
William riu com entusiasmo, e continuou me socando o
ombro.
� J� VIMOS ESSES LUGARES MUITAS VEZES � DISSE. � D�
PARA a gente se acostumar. T�m as suas pr�prias regras, e
desde que fique quieto e se cuide, a gente se d� bem � disse
abrindo um sorriso caloroso. � Eu e o Jack aqui VAMOS
FICAR DE OLHO EM VOC�...PARA GARANTIR QUE UM
BRUTAMONTES DESTE CORREDOR N�O VENHA FAZER VOC� DE
MONTARIA, CERTO?
Tornaram a rir, se entreolhando, como se fossem o reflexo
um do outro, e eu me fechei mais um pouco, trancando o
pouco que restava de mim dentro do peito.
Thomas Billick chegou na terceira semana de fevereiro. Fui
levado da minha cela e algemado, nos pulsos e nos
tornozelos. Andei muito por corredores mon�tonos e
id�nticos, arrastando os p�s desajeitadamente entre dois
guardas mudos. A corrente entre meus tornozelos pesava e
as argolas de metal me cortavam os calcanhares. Fui levado
para uma sala estreita e mal iluminada, e ali � sentado em
sil�ncio, encostado na parede � estava meu advogado de
defesa. Pelo visto, n�o podia estar mais constrangido e mais
nervoso.
�Voc� est� bem? � perguntou, sem necessidade.
Fui empurrado para me sentar numa cadeira de frente para
Billick, e ent�o os dois guardas recuaram e sa�ram da sala. O
rangido �spero de uma barra externa, o barulho das chaves
na fechadura, a sensa��o de que, para onde quer que me
virasse, havia outro meio de evitar que eu me movimentasse
livremente.
� Ent�o, temos boas not�cias � disse Billick. � O promotor
distrital ouviu nossa apresenta��o do caso, e concordou em
aceitar uma confiss�o de culpa por homic�dio qualificado. �
Billick abriu a pasta e retirou um ma�o de pap�is. �
Homic�dio qualificado � considerado intencional, mas n�o
premeditado nem planejado. � Olhou para ver se eu
prestava aten��o. � Diz aqui que tal crime n�o � cometido
no calor da paix�o, mas causado pela �bvia falta de
preocupa��o do r�u com a vida humana. � Billick sorriu
como se estivesse dando um presente de anivers�rio a uma
crian�a pequena. � Isso significa que n�o h� pena de morte,
Joseph... n�o � uma boa not�cia?
Abaixei a cabe�a, olhei para as algemas em meus pulsos.
� Ent�o, tudo que voc� precisa fazer � se declarar culpado
de homic�dio qualificado, e n�o s� evitaremos quaisquer
riscos de um julgamento capital como tamb�m limitaremos
drasticamente a dura��o dos procedimentos. Os ju�zes
sempre t�m mais boa vontade quando um caso assim �
apresentado. E muito menos dispendioso para o Estado e o
pa�s quando o r�u se declara culpado sem rodeios...
Olhei para Billick.
� Mas eu n�o sou culpado, sr. Billick... N�o sou culpado de
nenhum tipo de homic�dio, e n�o vou me declarar culpado
de algo que n�o cometi.
Billick primeiro pareceu chocado, depois, aflito e agitado.
� Acho que n�o entendeu toda a gravidade da sua situa��o,
sr. Vaughan. H� uma acusa��o muito s�ria contra o senhor,
e eu n�o estaria sendo negligente com minha promessa de
sigilo se lhe dissesse que n�o h� outras linhas de investiga��o
ora em andamento. A pol�cia j� esgotou todos os seus
procedimentos para apurar o envolvimento ou n�o de
terceiros....
� O que significa isso?
Billick pigarreou.
� Significa que a data do seu julgamento foi marcada para 30
de mar�o, daqui a pouco mais de um m�s... e o senhor ser�
julgado por esse homic�dio, sr. Vaughan, n�o haja nenhum
equ�voco quanto a isso.
Tentei levantar as m�os, mas as algemas me impediram.
� N�o entendo o que est� acontecendo aqui, sr. Billick...
algu�m matou Bridget, algu�m entrou na casa onde eu
morava e matou a mulher que eu amava...
Billick balan�ava a cabe�a.
� Para todos os efeitos, sr. Vaughan, essa pessoa foi o
senhor.
� N�o � disse eu com veem�ncia. Senti a onda de medo e
raiva no peito. Mais uma vez tentei gesticular, para de
alguma forma dar �nfase ao que eu dizia. � N�o matei
ningu�m, pelo amor de Deus! � gritei. � N�o matei
ningu�m, droga, sr. Billick... quanto tempo vai levar at�
algu�m entender o que est� acontecendo aqui? Isso � uma
loucura! Essa justi�a � uma farsa! Quero falar com algu�m...
qualquer pessoa. Encontre Paul Hennessy. Ben Godfrey! V�
falar com Ben Godfrey... ele vai lhe dizer que eu n�o poderia
fazer uma coisa dessas. Eu tenho dinheiro, sr. Billick. Tenho
tr�s mil d�lares...
Billick tornou a balan�ar a cabe�a.
� Tinha tr�s mil d�lares, sr. Vaughan.
Parei de s�bito. Franzi a testa.
� Como assim? Do que est� falando? Tenho tr�s mil d�lares
da venda da casa da minha m�e.
� Uma conta que est� embargada pelo Estado, sr. Vaughan.
O dinheiro est� tanto � sua disposi��o quanto � minha.
� O senhor n�o pode fazer isso! Que diabo lhe d� o direito
de fazer isso?
� Eu? � perguntou Billick. � Eu n�o estou fazendo nada,
sr. Vaughan. N�o fui eu quem o acusou de um crime
grav�ssimo... o crime de homic�dio, e se esse homic�dio foi
planejado ou n�o, se foi simples ou qualificado, ainda assim
foi homic�dio. O homic�dio de uma jovem indefesa e
inocente. Uma jovem gr�vida, sr. Vaughan.
Senti o sangue se esvair do meu rosto. Vi o rosto delas.
Todas. Virg�nia Perlman, Laverna Stowell... todas. Ouvi suas
vozes em algum lugar. Olhei para tr�s, quase esperando ver
uma delas ali, branca e beat�fica, inocente como Bridget,
como Alexandra... e achei que eu poderia ter sido o mensa-
geiro da Morte.
Meu pai, minha m�e, Alex... dez meninas... Elena Gunther...
E agora Bridget... entregues � mesma sorte, e essa sorte
entregue pela mesma m�o.
Eu sabia, sabia com todas as for�as, que a morte delas fora
obra minha. Indiretamente, sim, mas, todavia eu devia ser
responsabilizado. Aquele era o meu castigo pelo que fizera
em Augusta Falls. Eu sabia que Haynes Dearing seria o �nico
a entender. Mas Haynes Dearing seria a �ltima pessoa a ir
me ajudar.
Comecei a chorar. Inclinei-me � frente e senti meu peito
arfar. Estava com tanta dor, que mal conseguia respirar.
Billick levantou-se da cadeira e foi de costas para a porta.
Bateu sem se virar, e logo escutei o ranger das grades, as
chaves na fechadura, e os guardas o deixaram sair. Olhei
enquanto as portas tornavam a se fechar, e vi Billick � o
rosto branco me espiando pelo estreito olho-de-boi.
� Me tire daqui! � gritei para ele. � me tire daqui, droga!
O rosto de Billick desapareceu.
O sil�ncio na sala era total a n�o ser por minha respira��o
dif�cil.
N�o havia nada que eu pudesse fazer, ningu�m com quem
pudesse falar.
Ent�o eu soube � sem d�vida ou hesita��o � que o fim se
aproximava rapidamente.
Meu julgamento come�ou no dia 13 de mar�o de 1953, �s
oito e cinq�enta. A acusa��o era de homic�dio simples, pela
recusa em me declarar culpado de homic�dio qualificado; eu
estava � merc� da promotoria distrital. Era uma segunda-
feira e o juiz era o mesmo homem que supervisionara minha
acusa��o. Seu nome era Marvin Baxter. Parecia mais velho
do que eu me lembrava, o cabelo cortado rente ao cr�nio, os
olhos muito separados, a boca fina e descorada, uma linha de
determina��o e austeridade. O promotor
Oswald estava em p� calado e determinado, s� me olhara
uma vez quando entrei no tribunal. Tudo parecia pesado e
opressivo, mas de alguma forma fr�gil, como se, com um
aceno de m�o, eu pudesse fazer aquilo sumir como uma
cortina de n�voa. Mas eu n�o podia mexer as m�os. Estavam
algemadas aos bra�os da cadeira.
Billick pouco falou, fez poucas obje��es, mesmo quando o
que se dizia contra mim s� poderia ter sido dito sobre uma
pessoa totalmente diferente. Todo o meu passado parecia se
desenrolar a partir da boca de pessoas que eu nunca vira,
com quem nunca falara. Elas falavam de minha m�e, da
morte do meu pai; falavam de como eu descobrira o corpo
morto de uma menina no alto de um morro. Mencionavam
isso de passagem, como se nada fosse, mas eu observava os
jurados e eles pareciam atentos, s�rios e muito alertas. Leva-
ram para a sala caixas de pap�is, coisas que eu havia escrito, e
leram aquilo tudo em voz alta como se fossem refer�ncias
do meu car�ter. Perguntas eram deixadas no ar como
fantasmas.
N�o havia not�cias de Haynes Dearing, e ele n�o foi me
socorrer,
Os dias foram passando, um ap�s o outro, e � noite eu era
preso numa cela embaixo do tribunal, escura e �mida, as
pr�prias paredes impregnadas de desespero e degrada��o.
Mais tarde eu pouco conseguia me lembrar dos
procedimentos: o vaiv�m das perguntas, os interrogat�rios
esquisitos, a presen�a no banco das testemunhas de Aggie
Boyle, sua irm�, Joyce Spragg e Letitia Brock. Os pais de
Bridget tamb�m foram. O pai falou de seu fervor religioso,
sua dedica��o ao Senhor, sua ades�o vigilante aos Dez
Mandamentos, suas esperan�as para sua filha, uma filha
�nica, e atr�s de mim, tr�s filas atr�s para a esquerda, a sala
silenciosa escutava os solu�os abafados da m�e de Bridget.
Quase seis semanas se passaram sem nenhum ponto de
jun��o entre um dia e outro. Nos fins de semana eu era
devolvido a Auburn e mantido na solit�ria. Um jurado ficou
gripado, e entre 16 e 22 de abril o juiz Marvin Baxter
suspendeu as sess�es.Voltamos no dia 23, e foi ent�o que
comecei o primeiro dos quatro dias de interrogat�rio no
banco dos r�us.
Achei que minha alma fora arrancada para algum outro
lugar. Eu n�o acreditava em nada sen�o num desejo puro de
sobreviv�ncia, e na certeza da minha pr�pria inoc�ncia. Do
banco eu via Paul Hennessy e Ben Godfrey, outros rostos
que eu conhecia do Brooklyn, e, na �ltima semana,
Reilly Hawkins apareceu. Foi ent�o que finalmente cedi sob
o peso do que acontecera. O passado fora me achar em Nova
York. Um passado que eu vivera para sobreviver a ele, mas
agora um passado que me veria ser engolido inteiro.
Chorei no banco. Abri meu cora��o ao juiz Marvin Baxter, a
Albert Oswald, da promotoria distrital, mas eles n�o
acreditaram em mim.
Ter�a-feira, 12 de maio de 1953, um j�ri composto por
meus pares � oito homens e quatro mulheres que nada
sabiam da verdade sen�o meu nome � voltaram de suas
delibera��es.
Meu cora��o, �quela altura nada mais que uma pequena
pedra escura no meu peito, era uma bola de fogo vermelha
de tens�o.
� O r�u queira se levantar.
Juntei o que sobrava de mim como pude, e com a ajuda dos
guardas de algum modo me pus de p�.
� O j�ri chegou a um veredicto?
O sangue latejava nas veias das t�mporas. O frio da sensa��o
de vazio no peito foi substitu�do subitamente por um pavor
abjeto e desesperado.
� Sim, Merit�ssimo. � O representante dos jurados se
levantou e ficou calado.
Havia palavras, tantas palavras que eu queria dizer. Aquelas
palavras me subiam at� a garganta mas, ao engolir, eu perdia
todas elas. Os olhos arregalados, a face sugada e exangue,
minhas m�os algemadas se agarravam � barra � minha frente
como se fosse uma balsa salva-vidas.
� Muito bem. Em rela��o � acusa��o de homic�dio simples,
de que o r�u, Joseph Calvin Vaughan, assassinou
deliberadamente a pessoa de Bridget Sarah McCormack na
quinta-feira, 20 de novembro de 1952, o j�ri considera o r�u
culpado ou inocente?
Cora��o como um martelo batendo numa bigorna.
O representante, rosto de ab�bora de Halloween, incapaz de
olhar para mim embora soubesse que eu estava ali,
pigarreou. O oficial de justi�a atravessou a estreita passagem
entre o banco e os corredores e pegou das m�os dele um
peda�o de papel dobrado.
Voltou lentamente, cada passo evocando uma marcha
f�nebre.
Ele tamb�m n�o olhou para mim. Nenhum deles conseguia.
Pensei em me virar e olhar para Hennessy, para Ben
Godfrey, para Reilly Hawkins. Minha mente gritava por
liberdade, por perd�o pelo que quer que eu tivesse feito para
merecer uma coisa daquelas, mas s� se ouvia o farfalhar do
papel enquanto o juiz o desdobrava e olhava o veredicto.
� N�s, o j�ri, consideramos o r�u, Joseph Calvin Vaughan...
culpado.
Parei de respirar.
Senti os joelhos desabarem embaixo de mim.
Comecei a gritar, a chorar, a solu�ar, segurando na barra
enquanto os guardas tentavam me arrancar dali. Lembro-me
de gritar a plenos pulm�es.
� N�o fui eu... n�o fui eu! Foi ele! O mesmo que matou as
meninas... ele matou Bridget! Ele matou Bridget!
� Oficial! � gritou o juiz Marvin Baxter em meio ao
alvoro�o. � Oficial... evacue a sala imediatamente.
Ouvi aquelas palavras. Al�m disso, pouco havia para ouvir
sen�o uma correria, uma correria nos meus ouvidos, uma
correria que enchia o meu corpo, a mente, a alma.
E a� apareceu uma pluma, uma �nica pluma branca que
atravessou meu campo visual e desapareceu num raio de luz
da janela.
Eu ia morrer. Isso eu sabia.
Rezei para que ela chegasse depressa, em sil�ncio,
profissional, met�dica...
Rezei para que a Morte chegasse logo, fria e insens�vel...
Vi-me em crian�a, parado ali no quintal no meio da terra
solta e seca, cercado de molugos, cer�stios e gaulth�rias, mas
dessa vez ela vinha me visitar.
Em pouco tempo, bem pouco... l� vai ela... nada de rastro de
cavalo, nem de bicicleta...
A Morte viria para me buscar.
Em meus sonhos, posso ir a p� at� a Ge�rgia.
Em meus sonhos, as paredes n�o me prendem mais que a
n�voa ou a fuma�a, e as atravesso sem esfor�o ou restri��o, e
uma alameda se estende rumo ao horizonte, e meu rosto
est� envolvido na n�voa cor de laranja de moscas minadoras
da folha de bruxo, e meu esp�rito est� inflex�vel, e meus
pensamentos � lentos e tranq�ilos � pertencem a uma
�poca anterior a meu pai, anterior �s dez meninas, anterior a
Elena e Gunther Kruger, anterior a Alex, Bridget, Auburn e
ao condado de Cayuga.
Em meus sonhos, sou um homem livre.
O c�u aumenta. A perspectiva de fios telegr�ficos, p�ssaros
como grupos de semi-breves na pauta, piscando os olhos,
grasnando sua m�sica, e feixes de capim murcho e terra
impregnada de chuva, e um cachorro ao longe ganindo para
ir para casa.
Cabanas de madeira e casinhas caindo aos peda�os, e placas
enferrujadas anunciando Mobil e Chevron e Red Parrot
Diesel; homens curvados com cargas pesadas, terra amarela,
cheiro de carne de porco salgada, e roupas secando na corda,
tremulando ao vento como as cores de alguma legi�o
fantasma, e o barulho de cavalos, de p�s pisando em
mont�culos de lama enquanto caminho, e marcas de picapes
como as pegadas do tempo, e o movimento de um sil�ncio
solit�rio que ecoa o passado e o espectro da bruma, o
fantasma da chuva fina em meu rosto como verniz de pele,
e estou quase em casa... l� em casa... l� em casa...
E a� acordo.
Lembro-me de Auburn.
Uma descida em c�mera lenta para as trevas, os ru�dos
e os cheiros da humanidade despojados de todo valor
e toda identidade. O fedor de suor e de terra, a
intermin�vel m�quina rolante de homens, as filas
algemadas de ombros ca�dos e costas curvadas, o
clangor de enxadas e picaretas na terra, nas pedras e
nas rochas inflex�veis; as noites insones, as tosses
encatarradas, os peitos tuberculosos, os incha�os e as
dores de entorses e distens�es musculares; o ranger
de catres e redes, a chuva escorrendo no telhado
corrugado e nas paredes finas de madeira; o guincho
de ratos, o chiado dos insetos, o canto hipn�tico das
cigarras. Preso no ventre da fera, e a fera era negra,
faminta e insaci�vel.
Lembro-me de Auburn.
Os sussurros e os gemidos de homens em meio a
pesadelos em que a culpa sepultada no fundo do peito
nunca era aliviada; as lambadas do couro do chicote
na carne exposta, na pele queimada de sol, em
esp�ritos quebrados; o choque e a pressa da manh�, a
impiedosa trovoada de ver�o, os pisos encharcados, o
cheiro de podre, o fedor da macega impregnada de
�gua estagnada; as roupas imundas, a aus�ncia de
alimento, a escurid�o, a dor, o desejo, o desespero.
Lembro-me de Auburn.
A solit�ria: destacando-se no meio do p�tio, muito
baixa para um homem sentar empertigado l� dentro,
muito apertada para ele se deitar de lado com as
pernas encolhidas. Vinte e quatro horas. Encolhido,
testa no joelho, a coluna doendo, o teto atr�s da
cabe�a. Orif�cios de ventila��o na frente, num �ngulo
que permitia uma insola��o implac�vel. Sem �gua.
Sem palavras. Sem al�vio.
Vinte e quatro horas e um homem chorava at� o sal
lhe riscar as p�lpebras e pinicar como �cido. Trinta e
seis horas e ele tinha engulhos e vomitava e gritava
numa loucura estranha. Arrastado para fora dali,
levava de tr�s a quatro horas para endireitar o corpo.
Tentativas de fuga. Cr�ticas. Um guarda que
antipatizava com algu�m dizia "Para a solit�ria" e a
pessoa desaparecia, e voltava outra.
Lembro-me de Auburn.
A Balan�a da Justi�a, chamavam. O homem tinha talas
de madeira amarradas �s pernas para n�o se dobrar.
Enterrado at� as coxas no ch�o, a terra compactada,
dura, inclemente, sem esperan�a de movimento.
Bra�os abertos, em cada m�o uma ca�amba cheia at� a
metade com meio litro de �gua. Ficava assim, bra�os
abertos por duas, tr�s, quatro horas de cada vez. Se
entornasse a �gua, come�aria a contar o tempo do
zero.
� Uma hora na Balan�a � dizia algu�m, e ele estava
l� cavando a pr�pria cova antes que os curadores lhe
amarrassem as pernas. Rezava a lenda que um homem
ficara em p� setenta e duas horas ao todo. Desde
ent�o passou a dormir de bra�os abertos, ficou nove
semanas sem falar, e quando falou disse "Ca�amba,
ca�amba, ca�amba", sem parar, at� que isso virou seu
nome. Ca�amba do condado de Cayuba. Ca�amba do
Inferno.
Billick veio uma vez. Tinha um ar satisfeito consigo
mesmo.
� Nada de pena de morte � disse. � O senhor � um
homem de muita sorte, sr. Vaughan. Seu j�ri n�o
votou pela pena de morte, mas sim pela pris�o
perp�tua. D� gra�as a Deus por isso, ahn?
"Perp�tua quer dizer para toda a vida", eles ficavam
dizendo.
"Perp�tua quer dizer para toda a vida", diziam, at�
isso ecoar em meus ouvidos, reverberar na minha
mente como a lembran�a do homem que eu j� havia
sido.
Imagens de Bridget, de Alexandra, de Elena, de
minha m�e.
Imagens de alguma outra p�lida exist�ncia que se
apagava at� quando meus pensamentos a tocavam.
Tinha que me impedir de pensar. Se pensasse nelas de
novo, desapareceriam para sempre.
Lembro-me de Auburn.
Primeiro m�s como um cobertor em volta de mim, eu
dentro do casulo. Segundo m�s como uma camisa-de-
for�a, apertada, bra�os amarrados em volta da cintura,
afivelados nas costas. Terceiro e quarto como uma
mortalha t�o pesada que eu mal conseguia respirar.
Depois disso, os meses se misturavam,
claustrof�bicos, intensos, impiedosos.
� N�o se pode quebrar o esp�rito de um homem �
disse-me Jack Randall. � Algo dentro de um homem
voc� n�o pode quebrar nunca. Quebre todos os ossos
do seu corpo e voc� ainda encontrar� algo ali dentro,
lutando.
Acreditei em Jack Randall at� ele e seu irm�o
tentarem fugir.
Fim de novembro de 1959. C�u sem nuvens. Lua alta.
Vento suave do sul, que se insinuava entre os catres e
parecia de alguma forma refrescante. Lembran�a de
uma �poca diferente, um lugar diferente.
Barulho de cigarras no campo al�m do fio. Jack e
William Randall. O rosto sujo de terra. Sa�ram por um
buraco no ch�o e rastejaram na terra. Fizeram catorze
metros ao longo da divisa do complexo e foram
avistados.
Inferno total. C�es. Guardas. Comiss�rios. Luzes. Caos
e loucura estourando como uma trovoada.
Constru�ram outra solit�ria. Erguidas lado a lado. Uma
semana l� dentro para cada homem.
O que quer que eles pudessem ter possu�do, o que
quer que Jack Randall tivesse dentro dele, foi partido
ao meio e transformado em nada.
William cortou os pulsos em janeiro de 1960.
Jack morreu de solid�o na primavera.
Lembro-me de Auburn... sobretudo do pensamento
que me acompanhava todas as horas do dia: de que eu
sabia quem matara Bridget, e que sabia porqu�. Eu
n�o tinha o nome, n�o conhecia a identidade dele,
mas ele estava l� � em meus sonhos e quando eu
acordava, colando a alma sinistra dele em mim como
um lembrete da minha trai��o.
Vinte e oito
Estou aqui para toda a vida. At� meu corpo exalar o �ltimo
suspiro.
Quatro paredes, um ch�o de pedra, uma cama de ferro, um
dia invari�vel virando outro, de cor e ritmo iguais.
Aqui para o resto da minha vida natural.
Joseph Calvin Vaughan, o assassino.
Naqueles anos todos, nunca mais tornei a ouvir falar em
Thomas Billick. Aguardei com paci�ncia os meses de junho,
julho, agosto e setembro. Segui as filas, as regras e as normas;
esperei o momento oportuno, mas no Natal parece que
esqueci o que eu estava esperando.
No Ano-novo de 1954 efetivamente tive not�cias do mundo
exterior, e foi Hennessy quem veio, Paul Hennessy, e
sentou-se com o rosto comprido nas m�os na estreita sala de
visitas, e por um bom tempo n�o conseguia olhar para mim
sem conter as l�grimas.
Ir�nico, mas passei grande parte do tempo em que
estivemos juntos consolando-o. Perguntei-lhe sobre o
Brooklyn, sobre onde ele morava, sobre o trabalho que ele
estava fazendo, sobre seus novos amigos, seus planos.
� Voc� precisa escrever � disse-me. � Precisa escrever
tudo, Joseph... escrever tudo o que aconteceu e me dar. Vou
garantir que algu�m veja o relato. Vou retirar esse relato
daqui e fazer as pessoas compreenderem o absurdo que
aconteceu com voc�. Voc� precisa fazer isso, Joseph... se
n�o por voc� mesmo, ent�o que seja por mim. N�o posso
continuar sabendo que nada est� sendo feito para ajud�-lo.
� Nada pode ser feito � disse-lhe. � O que acha que vai
acontecer? Segundo todo mundo, foi um julgamento justo.
N�o pude me defender. N�o pude provar onde estive
naquelas duas horas daquela manh�. Viram o que quiseram
ver, acreditaram no que foram induzidos a acreditar, e agora
estou aqui para o resto da vida.
� N�o � insistiu Hennessy. � N�o posso deixar isso assim.
Levei seis meses para arranjar coragem para vir visit�-lo.
Falei com a pol�cia. Escrevi uma carta para o governador de
Nova York... J� fiz tudo o que podia. Ningu�m quer ouvir.
Ningu�m se importa com o que acontece com voc�,
Joseph... ningu�m sen�o eu. Eu preciso que voc� escreva sua
experi�ncia. Preciso que me d� algo que eu possa usar para
ajud�-lo.
Tornei a lhe dizer que eu n�o podia fazer nada, disse-lhe a
mesma coisa todos os meses at� o fim do ano. Finalmente,
cedi; comecei a escrever. Tarde da noite, eu escrevia no
papel grosseiro que era usado para embrulhar frutas e
hortali�as na cozinha. Todos os meses Hennessy ia me ver e
sa�a levando algumas folhas dobradas e escondidas, que
datilografava com dedica��o.
Comecei do come�o. Primeiro com a morte do meu pai, e
detalhei os acontecimentos da minha vida.
Uma coisa escolhi n�o escrever. Um acontecimento, uma
recorda��o. Uma coisa que ficar� comigo at� a hora da
minha morte, e a�, quando ela chegar, talvez eu lhe conte, e
ela poder� fazer seu julgamento.
Tr�s ou quatro p�ginas por m�s, ano ap�s ano, Hennessy
implorando para que eu escrevesse mais depressa, que s�
detalhasse o que dissesse respeito � morte de Bridget. Mas
n�o consegui. Eu decidira contar ao mundo quem eu era, e a
partir da� as pessoas poderiam escolher em quem desejavam
acreditar.
Lembro-me das palavras da minha m�e, um dia em Augusta
Falls, mil anos antes.
� N�o pare � disse ela. � Nunca pare de escrever. � assim
que o mundo descobrir� quem � voc�.
Tr�s dias ap�s o assassinato de John F. Kennedy, um
novembro frio em 1963, escrevi minhas palavras finais. Os
Randall estavam mortos. Julguei estar tamb�m.
Eu estava esgotado, vazio, exausto.
Achava que meu destino passaria para as m�os de outra
pessoa que n�o eu.
J� estava em Auburn havia dez anos e meio. Tinha trinta e
seis anos, s� um ano a menos que meu pai quando a febre
reum�tica parou seu cora��o.
Talvez eu fosse apenas um eco dele, e esse eco se dissiparia
no sil�ncio, e no sil�ncio eu caminharia para encontrar meu
fim.
Pareceria adequado; acima de tudo, pareceria adequado.
Condensada naquelas p�ginas estava uma vida.
Talvez o valor de uma vida daquela fosse medido pelo peso
do papel, pela quantidade de tinta, a profundidade da
impress�o em cada p�gina.
Talvez fosse representado pela import�ncia daquelas
palavras, pelas emo��es que evocavam e criavam.
Talvez n�o houvesse valor nenhum sen�o aquele em que eu
acreditava � e eu acreditava que n�o haveria outra forma de
transmitir a perda e o desespero provocados por tais
acontecimentos.
Minha vida come�ou, continuou, e ent�o parecia decidida a
se encerrar.
Se aquelas palavras eram tudo o que restava, ent�o que fosse.
Talvez alguns de n�s voltem... talvez alguns de n�s tenham
aprendido o bastante para fazer uma diferen�a, para
influenciar as situa��es para melhor... para ficar
observando... para esperar a hora certa e ent�o agir.
E apesar das apar�ncias, apesar de todas as indica��es em
contr�rio, apesar da reserva por medo do que os outros
pudessem pensar, eu ainda sentia que todos n�s t�nhamos
aquela cren�a silenciosa.
Uma cren�a silenciosa em anjos.
Mais tarde, muito mais tarde, Paul Hennessy me contou os
acontecimentos que se seguiram.
Ele trabalhou furiosamente, muitas vezes sem descanso por
horas a fio. Preencheu p�gina ap�s p�gina, deixando de lado
os amigos, vendo a pr�pria vida se dissolver � sua volta, e a�,
em janeiro de 1965, foi a Manhattan falar com Arthur
Morrison.
Morrison, ao que parecia, recebeu o livro que sempre me
pedira, um livro de esp�rito e paix�o.
Hennessy escolheu o t�tulo, e em junho do mesmo ano
Uma Cren�a Silenciosa em Anjos foi publicado.
Ele veio me ver em maio de 66. O mundo para l� dos muros
da Auburn era um mundo diferente. O homem chegara �
Lua; uma guerra sangrenta era travada numa selva do
Sudeste asi�tico, num pa�s chamado Vietn�, e os Estados
Unidos estavam enviando para l� dezenas de milhares de
soldados para perder a vida; as marchas por direitos civis
conduzidas por um homem chamado King, um homem de
quem o pr�prio Hennessy falara havia mil anos, fizeram que
esse mesmo homem fosse preso por falar a verdade;
Kennedy estava morto, uma na��o ainda estava de luto.
Hennessy e eu nos sentamos frente a frente, confinados
numa cabine de visita. Pela grade de arame, ele parecia
distante, quase inating�vel, mas suas palavras chegaram
claras e sucintas.
� Impetramos recurso junto � Suprema Corte dos Estados
Unidos � disse ele. Enquanto falava, continha as l�grimas,
mas eu n�o sabia se eram l�grimas de desculpas antecipadas
ou l�grimas pela aparente inutilidade da sua tarefa. � Seu
livro n�o p�ra de vender � prosseguiu. O rosto dele estava
indistinto.Tudo era feito de sombras e reflexos,
inconsistente, quase sem defini��o. � N�o est�o
conseguindo rodar tiragens numa velocidade que d� para
atender � demanda, Joseph. Morrison teve de suspender os
servi�os da gr�fica e mandar os cilindros de impress�o para
uma empresa em Rochester. As pessoas est�o revoltadas.
Perguntam se o livro � fic��o... N�o conseguem acreditar
que uma farsa dessas possa ter ocorrido nos Estados Unidos.
Alguma coisa vai acontecer, Joseph, alguma coisa, sem
d�vida, vai acontecer.
� Estou desaparecendo � disse eu. � N�o sei que dia �...
n�o me lembro h� quanto tempo estou aqui. � Senti meu
rosto se enrugar com um sorriso sem jeito; tens�o nos
m�sculos que me diziam tratar-se de uma express�o
desconhecida.
�Voc� n�o pode abandonar a esperan�a � sussurrou
Hennessy. Sua voz era urgente, insistente, e olhando seu
rosto lembrei-me de Cecily Bryan, das noites que
pass�vamos no F�rum dos Escritores do St. Joseph, noites
em que caminh�vamos por Manhattan cantando Days of 49
e bebendo Calvert.
� Fiz uma coisa horr�vel � disse eu, e fechei os olhos
timidamente.
�Voc� n�o fez nada � replicou ele. � Essa � a quest�o,
Joseph... essa � a quest�o... todo o trabalho que fizemos para
retirar a verdade daqui de dentro, e tivemos sucesso contra
todas as probabilidades. As pessoas sabem, Joseph, elas
sabem o que aconteceu. Elas v�em como isso foi um erro
terr�vel...
Levantei-me lentamente da cadeira. Fiquei em p� olhando
para o �nico amigo que eu tinha.
� N�o tenho nada a dizer. N�o sou capaz de sentir
esperan�a. N�o sou capaz de ver nada sen�o o que eu tenho
aqui... � Minha voz falhou, e senti o peso dos �ltimos doze
anos se abater sobre mim.
�Voc� n�o pode abrir m�o da esperan�a! � insistiu
Hennessy. � N�o pode, Joseph, n�o pode...
Sua voz sumiu enquanto eu me afastava.
Um guarda me fez sair para o corredor. Tentei n�o olhar
para ele. Se me vissem chorar, eu seria mandado para a
solit�ria.
Hennessy voltou no dia seguinte. Foram me buscar, mas eu
n�o fui. Mais tarde me disseram que ele havia deixado uma
carta. N�o li.
Fiquei deitado no meu catre observando a sombra das grades
no teto. As semanas se transformaram em meses. Mais
cartas, mais visitas de Paul. Eu n�o tinha condi��es de v�-lo.
Perdi a no��o do tempo. Reconhecia a diferen�a entre a
noite e o dia, mas, al�m disso, pouco mais.
�Vaughan! Joseph Vaughan!
Meu nome estava sendo chamado na passarela suspensa.
Virei de lado e fechei os olhos.
� Joseph Vaughan... saia para falar com o diretor. Joseph!
Levantei-me e sentei-me na beira do catre. Meu cora��o
come�ou a bater mais depressa. Eu n�o conseguia me
perguntar o que estava acontecendo. Estava com medo,
apavorado.
Um guarda se postou diante do port�o. Fez um sinal de
cabe�a da passarela.
� Abra a cela n�mero oito!
Aberta a tranca, o port�o tornou a ser fechado.
� De p�, Vaughan.Voc� vai falar com o diretor.
Catei meus sapatos. Calcei-os e fiquei em p� com cautela.
Senti o suor brotando na testa.
� Ande, pelo amor de Deus!
Comecei a andar; tropecei e agarrei as grades para me apoiar.
O guarda esticou a m�o e me pegou pelo bra�o, puxou-me
para a passarela e gritou mandando fechar a cela. Ela bateu
com estrondo atr�s de mim, e j� me faziam ir correndo para
a escada no final.
Minutos depois, esperei um tempo intermin�vel em p� num
corredor sem janela. Fiquei calado, im�vel. No final, dois
comiss�rios me observavam por uma grade na porta. Por
fim, a porta atr�s de mim foi aberta, e me mandaram entrar.
Deparei com uma sala externa em frente ao gabinete do
diretor. Meu cora��o disparou, ficou apertado, pareceu
muito grande para o meu peito. Fechei os olhos e engoli em
seco. Esperei algo horr�vel acontecer.
Uma jovem entrou. Sorriu timidamente, mas eu n�o
conseguia retribuir nada.
� Por aqui, Vaughan � disse ela, e sua voz parecia estranha.
Percebi que n�o ouvia uma mulher falar havia mais de dez
anos.
O diretor Forrester. Imponente em tamanho e em fama. Um
brutamontes. Olhos como far�is embaixo de sobrancelhas
grossas, nariz torto como se fosse heran�a de um boxeador
profissional. Levantou-se de detr�s da mesa e encaminhou-
se para mim.
�Joseph Vaughan � disse, e a voz que emergia dos seus
l�bios era completamente enganosa. Havia quase certa
compaix�o em seu tom.
� Sim, senhor � respondi.
�Voc� tem um anjo da guarda, ao que parece. � Sorriu,
virou-se para a mulher e pediu-lhe que buscasse uma cadeira
para mim.
� Sente-se, Vaughan, sente-se.
Forrester voltou para sua mesa. Equilibrou-se na beira do
tampo.
Sentei-me tamb�m, olhei para ele.
� Consta que n�o andou querendo receber visitas nem abrir
nenhuma correspond�ncia encaminhada a voc�.
Fiz que sim com a cabe�a.
� Sim, senhor.
�Talvez devesse ter aberto, Vaughan. � Forrester virou-se
e pegou uma pilha de envelopes na escrivaninha.
� A maioria delas vem de um homem chamado Hennessy,
outras de um tal Arthur Morrison. Conhece essas pessoas?
� Conhe�o, sim senhor.
� E eu posso perguntar, sr. Vaughan, por que anda t�o
avesso a receber qualquer contato que venha do mundo
externo?
Pigarreei. Pisquei como se eliminasse o sono dos olhos.
� N�o sei, senhor. Eu... achei melhor n�o saber o que estava
acontecendo l� fora.
Forrester balan�ou a cabe�a. Come�ou a folhear as cartas.
� Esta aqui � disse � lhe informaria que foi impetrado
recurso junto � Suprema Corte dos Estados Unidos em maio
de 1966. � Forrester botou a carta no fim do ma�o e
escolheu outra. � Esta, de novembro do mesmo ano, lhe
diria que a Suprema Corte acusou o recebimento das
transcri��es originais do seu caso e as estava estudando. E de
janeiro de 1967 temos uma carta, novamente de Paul
Hennessy, dizendo que a Suprema Corte concordou com
uma sess�o e estava pronta para interrogar um tal Thomas
Billick, um certo juiz Marvin Baxter, algumas testemunhas-
chave que foram chamadas para a acusa��o.
Forrester ergueu os olhos. Achei que esperava uma resposta
minha. Eu n�o tinha nada a dizer.
� Esta vem da promotoria distrital do estado da Ge�rgia. O
promotor tem coisas muito c�usticas a dizer sobre a forma
como sua defesa foi feita... e aqui, de duas semanas atr�s,
temos outra carta do sr. Hennessy, para dizer que seu
recurso estava sendo reexaminado e que deveriam ter uma
resposta em uma semana.
Forrester deixou o ma�o de cartas cair na mesa. Juntou os
dedos no colo e sorriu.
� Essa resposta chegou hoje de manh�, sr.Vaughan. Hoje,
segunda-feira, 20 de fevereiro de 1967, a Suprema Corte dos
Estados Unidos decretou que sua condena��o se baseou
apenas em provas circunstanciais. Marcaram a data para um
novo julgamento, sr. Vaughan.
Parei de respirar. Senti o sangue subir � cabe�a, e era tudo o
que eu podia fazer para permanecer sentado.
� Entende o que isso significa, sr. Vaughan? � perguntou
Forrester.
Olhei para ele � sem fala, sem compreender nada.
� Significa que sua condena��o anterior foi recha�ada pelo
mais alto tribunal dos Estados Unidos, e que haver� um
novo julgamento.
Comecei a chorar.
Forrester fez um sinal de cabe�a para a jovem e ela se
adiantou com um len�o. Quando o peguei, ela pareceu tocar
minha m�o por um segundo a mais que o necess�rio. Olhei
para ela, e atrav�s das minhas l�grimas ela parecia vaga e
indistinta. Sorriu com tanta compaix�o e sentimento, que
n�o dava para responder.
Forrester inclinou-se � frente e p�s a m�o no meu ombro.
Treze anos e nove meses.
Eu tinha trinta e nove anos.
�s dezesseis horas e dez minutos daquela tarde fui
conduzido por corredores e gabinetes que eu nunca vira
antes. Vi janelas sem grades. Vi mais c�u do que algum dia
eu poderia lembrar.
Mandaram que eu tomasse uma ducha, vestisse uma camisa
limpa, cal�as de brim, uma jaqueta de algod�o. Recebi
sapatos com cadar�o. Mandaram-me assinar pap�is, e esses
pap�is foram colocados em pastas com meu nome na frente.
Fiquei esperando um quarto de hora numa salinha. Havia
duas portas, uma, � minha esquerda, outra, � minha frente.
Estavam abertas, nenhuma delas estava trancada. As pessoas
passavam, algumas sorriam, outras apenas faziam um gesto
de cabe�a, e a cada rosto novo eu imaginava que a pessoa iria
parar, olhar para mim, franzir a testa sem jeito e come�ar a
explicar que tinha havido um erro terr�vel.
Eu achava que poderia acordar e entender que sonhara.
�s dezessete horas e oito minutos, chegou um homem pela
porta � minha esquerda.
�Voc� � Vaughan, certo?
Fiz que sim com a cabe�a, tentei sorrir.
� Estamos aqui para transport�-lo para uma pris�o
tempor�ria. Voc� ter� um novo julgamento, come�a depois
de amanh�.
Fiquei calado. J� n�o tinha mais palavras. Seguia as
instru��es conforme me eram dadas. Respondia �s perguntas
quando me eram feitas. Viajei calado no banco traseiro de
um carro, ainda algemado, ainda descrente, e fui levado para
outra cela, em outra ala, de outra pris�o.
Os limites se confundiam. Eu n�o precisava v�-los, pois
sempre havia algu�m para me guiar. Tornei a ver Billick, ali
em p� no banco dos r�us, respondendo a perguntas sobre
meu julgamento original. Hennessy estava presente, Arthur
Morrison, outros que eu n�o conhecia. Jornalistas, gente que
queria me fotografar. Parecia que cada dia que eu sa�a do
tribunal era obrigado a enfrentar uma barreira de flashes.
Tudo parecia acontecer muito rapidamente, e depois,
quando percebi, j� estavam de novo mandando que eu me
levantasse, e uma pessoa estava olhando para mim, dizendo-
me que o passado nada significava, que o que acontecera
fora um erro, que havia erros judiciais e outras coisas assim.
E a� a pessoa sorriu, balan�ou a cabe�a, e por um momento
pareceu fechar os olhos como se estivesse se deleitando com
o que ia dizer, e o que disse foi:
"Joseph CalvinVaughan, voc� foi considerado inocente da
morte de Bridget McCormack. Est� livre. Meirinho...
providencie que o r�u seja solto."
Uma hora depois, em p� em outro gabinete. Um homem me
olha nos olhos.
� Este � o seu pagamento, Vaughan. � Entrega-me um
envelope marrom. � Assine esta guia aqui... e aqui.
Assinei o papel.
� Um d�lar e oitenta por semana � diz. � N�o � muito,
mas com isso voc� chega a casa, certo?
Vira as costas e sai pela mesma porta.
Abro o envelope. Notas de cinq�enta d�lares, vinte e quatro
delas, umas notas de cinco, umas de um. Pouco mais de mil
e duzentos d�lares.
� N�o quero mostrar esse dinheiro, Vaughan.
Ergo os olhos. Outro homem na minha frente. Ele sorri.
� O lugar completamente errado para exibir um dinheiro
desses, voc� n�o acha? � Come�a a rir. � Enfim, est�
pronto?
� Pronto? � pergunto.
� Para sair � diz o homem, surpreso. � Tem uma pessoa a�
fora que veio busc�-lo � diz ele, e ent�o indica que devo
acompanh�-lo.
Dobro o envelope com o dinheiro dentro e meto-o no bolso
da jaqueta.
Acompanho o homem, e ele atravessa outro gabinete e
segue por um corredor comprido. No final, destranca a
porta, passa, e antes que eu passe, estende a m�o.
� Fa�a o bem a� fora � diz, e aperta minha m�o. �Voc�
me entende?
Fico calado.
� Ent�o v� � e olha para a esquerda.
Acompanho sua linha visual, e ali � levantando-se de uma
cadeira de pinho encostada na parede � est� Hennessy.
Vinte e nove
Manhattan era uma vis�o de outro mundo. Os carros, as
pessoas, as roupas; parecia que o universo entrara em outro
eixo n�o identificado e tudo mudara.
Eu tamb�m mudara, talvez de modo irrevers�vel.
Fomos de carro naquele dia de Auburn at� Manhattan.
Rodovia 20, pegamos a Interestadual 81, atravessamos
Binghamton e entramos em Scranton, Pensilv�nia; pegamos
a Interestadual 380 para Stroudsburg, atravessamos
Morriston, Paterson, tornamos a cruzar a divisa do condado
de Nova York e atravessamos o extremo norte de New
Jersey.
�s vezes par�vamos, s� porque eu tinha que parar. Ficava
em p� na beira da estrada olhando o horizonte, e mal
conseguia respirar. Hennessy ficava ao meu lado. N�o dizia
nada, apenas segurava meu bra�o para o caso de eu cair.
Ainda bem que ele n�o falava, como se entendesse que n�o
dava para eu absorver o que via e falar tamb�m. Eu me
sentia perdido, sem �ncora, e cada vez que fechava os olhos
e tornava a abri-los achava que veria paredes pardas,
manchas de umidade; achava que sentiria o fedor de gente
enclausurada � o suor, a frustra��o, a loucura. Sa� das
catacumbas para a claridade do dia, e a claridade gravava
impress�es em meus olhos que eu sabia que recordaria para
o resto da vida. Campos, cabanas caindo aos peda�os,
algumas agrupadas, outras espa�adas, como se espalhadas ao
acaso por uma m�o invis�vel; vacas e cavalos, silos
erguendo-se altaneiros como templos da terra; lavouras de
sorgo-branco, milho e sorgo; estradas de ferro que corriam
em linha reta por centenas de quil�metros para todos os
lados que eu olhasse; tudo vasto, assombroso e de tirar o
f�lego.
Seguimos em frente, paramos uma vez num restaurante de
beira de estrada, onde me sentei no canto mais afastado da
porta, de costas para a parede. Cada vez que uma pessoa
atravessava a sala e entrava no banheiro, eu observava, e
quando ela sa�a eu tornava a observar, at� ela estar bem
instalada na mesa que escolhera.
"Est� tudo bem", Hennessy me assegurava, e eu assentia,
tentava sorrir, e observava mais um pouco as pessoas.
Hennessy pediu ovos, bacon, batata frita com cebola. Comi
devagar, mas comi todo o meu prato e grande parte do dele.
Quando sa�mos, senti n�usea, e me virei para vomitar toda a
refei��o no estacionamento em frente ao restaurante. Eu
estava habituado a batatas cozidas, tiras de carne cozida,
farinha de aveia, bacon e couve tronchuda. Meu corpo n�o
estava preparado para um banquete daqueles. Hennessy
voltou para buscar uma x�cara de caf� preto, e sentei-me no
banco do carona, com a porta aberta e os p�s no asfalto.
Observava as pessoas indo e vindo, observava-as com
aten��o. Percebi que procurava algu�m que eu nunca
reconheceria.
Era tarde quando chegamos a Stuyvesant, no Brooklyn. As
ruas estavam claras como o dia, l�mpadas amarelas de s�dio,
cartazes de n�on, fachadas de lojas e vitrines
iluminad�ssimas.
Acompanhei Hennessy por cal�adas desconhecidas at� um
pr�dio de arenito pardo de tr�s andares sem elevador.
Segundo andar, dando para o novo mundo, ele tinha um
apartamento confort�vel. Mostrou-me seu quarto e um
quarto em frente onde havia uma cama feita. Fiquei ali um
instante, depois me virei para ele. Estendi os bra�os e o
abracei, com tanta for�a que ele n�o conseguiu respirar,
ent�o entrei no quarto e me deitei. Dormi vestido, e quando
acordei j� era noite do dia seguinte, e Hennessy tirara meus
sapatos. Ao lado da cama havia uma pequena caixa de
papel�o. Abri-a com cuidado, e o que vi l� dentro me fez
prender a respira��o. Meus recortes de jornal amarelados,
com as pontas viradas, e ao folhe�-los vi cada rosto, li cada
palavra como se eu estivesse ali de novo. Embaixo dos
recortes havia uma fotografia de Bridget, e quando a tirei da
caixa achei que o mundo inteiro iria se fechar em volta de
mim e eu sufocaria l� dentro. N�o chorei ao v�-la. N�o
conseguia. J� chorara tudo o que podia chorar no primeiro
m�s em Auburn. No fundo, estava a carta da Comiss�o
Julgadora dos Jovens Contistas de Atlanta. Era uma caixa de
sonhos mortos e esperan�as distantes. E de pesadelos.
Tornei a guardar tudo l� dentro, fechei-a bem, e sentei-me
no ch�o de pernas cruzadas com aquilo no colo.
� Sobre o quarto � disse-me depois Hennessy. � Sobre a
pens�o de Aggie Boyle. Fui l� depois, sabe? Depois... � Ele
me olhou dolorosamente. � Depois que tudo foi...
Sorri para Paul Hennessy e ele ficou calado.
� Est� tudo bem � murmurei. � E obrigado.
Passei duas semanas sem sair de casa. N�o vi ningu�m sen�o
Hennessy. O pouco que eu falava era irrelevante. Hennessy
tentou me fazer sair. Falava de pessoas que eu devia ver �
Arthur Morrison, at� Ben Godfrey. Disse que jornais haviam
ligado, gente de revistas e peri�dicos. Pediam entrevistas.
Queriam falar com o homem que escrevera Uma Cren�a
Silenciosa em Anjos.
Eu n�o conseguiria enfrent�-los, ent�o n�o enfrentei.
Fevereiro virou mar�o. As folhas come�aram a aparecer nas
�rvores da rua. Muitas vezes Hennessy se ausentava por
horas a fio, e eu ficava sentado junto � janela vendo os
carros passarem, as pessoas na cal�ada. Um dia, vi um grupo
de crian�as, uma mo�a no in�cio da fila, e o grupo se deu as
m�os para atravessar a rua. Chorei ao ver as crian�as, e a� me
afastei da janela e passei dois dias sem me atrever a olhar
para fora.
Eu me sentia sendo observado. Sentia que todos os meus
movimentos eram pr�-ordenados e determinados
externamente. N�o se passava uma hora sem que eu
pensasse em Bridget, em meu filho n�o nascido, no homem
que fizera aquilo. Achava que era o mesmo homem, achava
que ele carregara sua loucura l� da Ge�rgia, e com sua
loucura destru�ra tudo o que eu possu�a. Arrancara a
inoc�ncia da minha inf�ncia, mostrara-me um mundo
sinistro e depravado onde os pesadelos se tornavam
realidade, onde crian�as eram tiradas de suas fam�lias, eram
espancadas e seviciadas, estupradas e mortas. Esse homem
perseguira Haynes Dearing, ocupara seus pensamentos es-
tivesse ele acordado ou dormindo, e Dearing fora compelido
a fazer algo em que, n�o fora por isso, jamais teria pensado.
Dearing tomara provid�ncias para que Gunther Kruger
morresse na forca. Por sua pr�pria m�o, ou diretamente pela
de Dearing. Eu n�o soube o que acontecera naquela manh�,
nem precisava saber. Sabia que Gunther Kruger n�o matara
aquelas crian�as. Acreditava nisso piamente. Minha m�e
estava errada. Ela considerara Gunther culpado, portanto
tentara acabar com ele incendiando a casa. Eu achava que a
culpa dela fora o fator predominante, que talvez ela j�
estivesse perturbada da cabe�a bem antes do inc�ndio, que
pensava que livrar Augusta Falis de Gunther Kruger era a
�nica maneira de acabar com os lembretes di�rios de sua
infidelidade.
Eu achava que o assassino de crian�as continuava solto, que
me seguira at� Nova York e matara Bridget. Tamb�m sabia
que, fosse qual fosse seu motivo, eu n�o entenderia at�
defrontar com ele. Eu me perguntava por qu�. Por que eu?
Por que aquela vida fora escolhida para mim? Mas n�o havia
resposta, e eu sabia que uma pergunta dessas s� seria
respondida quando eu o achasse. Era com esse fantasma que
eu existia, num territ�rio incerto entre a vida e a morte,
temendo olhar para o mundo, com medo de que o mundo
me encontrasse. Eu gostava muito de Paul Hennessy;
entendia que ele me libertara de Auburn, mas sabia que ele
nunca compreenderia tudo por que eu tinha passado.
Quando nos tiram tudo, o que tememos perder? Nada, e
assim me resignei a deixar o Brooklyn e voltar para a
Ge�rgia. Eu estava � deriva, sem objetivo ou motiva��o real,
e sabia que n�o poderia infligir uma coisa semelhante �
pessoa que mais gostava de mim.
A Ge�rgia estava no centro das minhas lembran�as como
uma �rvore escura e envenenada � bastante frondosa para
encerrar o c�u; a Ge�rgia era meu lar, minha vingan�a, de
alguma forma a salva��o que eu imaginava.
Na terceira semana de mar�o de 1967 contei a Hennessy o
que pretendia fazer.
Ele balan�ou a cabe�a lentamente e olhou para a janela.
Acompanhei seu olhar, e ali atrav�s do vidro estavam os
milhares de luzes de uma cidade cuja import�ncia eu
esquecera. Nova York me chamara para sair da Ge�rgia, e ali
estava eu desejando voltar. Nova York representava o
futuro, representava tudo o que eu algum dia desejara vir a
ser, mas, no entanto, ali estava eu rumando para o passado.
O medo dentro de mim era um n� g�rdio. Para qualquer
lado que me virasse, o que quer que fizesse para tentar me
desvencilhar, o n� ficava mais apertado e mais entran�ado.
Estavam todas l� � as meninas, a lembran�a de Elena, de
Alex, at� de Bridget �, e �s vezes, deitado, sem conciliar o
sono no frio do alvorecer, eu me lembrava do rosto delas, e
a� suas vozes vinham, e eu entendia que o medo n�o passaria
at� aquilo ser feito.
�Voc� n�o pode voltar, Joseph � disse-me Hennessy.
Sua voz revelava preocupa��o e pesar. Talvez ele achasse
que eu voltaria de uma vez, que a vis�o de Nova York me
despertaria para quem eu havia sido. Talvez imaginasse que
eu voltaria p� ante p�, com passos lentos e cautelosos, um
homem com um equil�brio estranho, mas n�o obstante
avan�ando. O que ele n�o entendia, talvez nunca fosse
entender, era que o Joseph Vaughan de que ele se lembrava
desaparecera havia muito tempo. Tentei ao m�ximo
permanecer implac�vel, mas o passado tinha um jeito de me
envolver; Paul Hennessy era minha �ncora, e eu estava
pronto para partir.
� Preciso voltar � disse eu. � N�o posso nem ter a
pretens�o de que voc� entenda...
� Eu entendo � interrompeu ele.
Est�vamos sentados � mesa de sua cozinha estreita. A janela
ao lado estava entreaberta e uma brisa entrava pela fresta.
Estremeci.
� N�o digo que entendo tudo por que voc� passou, Joseph,
mas o conhe�o melhor do que ningu�m. Se seguir essa
coisa, ela vai acabar matando voc�. Deixe o passado ir...
Fiz que n�o com a cabe�a, e j� via na express�o dele o
quanto se sentia in�til.
� N�o posso deixar � disse eu. Peguei a m�o dele. �
Preciso de dinheiro.
Ele fez que sim com a cabe�a.
�Voc� tem dinheiro que n�o acaba mais. O livro...
Interrompi.
� S� preciso de uma pequena quantia � disse eu. � N�o
quero muito. O restante � para voc�.
Hennessy riu nervosamente.
� Eu n�o posso...
� Pode, sim, Paul. O dinheiro � seu. Me arranje mil d�lares,
� tudo de que preciso. Me arranje mil d�lares e o resto pode
guardar.
� Mil d�lares? � exclamou ele. � Tem id�ia de quantos mil
d�lares esse livro fez?
Encolhi os ombros.
� N�o quero saber, Paul. N�o preciso saber. Me arranje mil
d�lares, � s� o que pe�o, e o restante � seu para voc� fazer o
que quiser. � isso que eu quero.
� Como seu amigo, Joseph... Deus, como seu amigo, n�o
posso deixar voc� fazer isso.
Sorri.
� Como meu amigo, Paul, o �nico amigo de verdade que
tenho, voc� tem que me deixar fazer isso. N�o posso ficar
aqui. N�o posso me limitar a ficar sentado num apartamento
em Nova York enquanto essa coisa me persegue. � minha
vida, entende? � quem eu sou. � Olhei para a janela e
fechei os olhos.� �s vezes acho que essa � a raz�o da
minha exist�ncia.
� Ent�o, para onde vai?
Abri os olhos e olhei para Hennessy.
� Ge�rgia � disse. � Para Augusta Falls. Tenho que
encontrar Dearing... tenho que encontr�-lo e convenc�-lo a
fazer isso comigo.
� E acha que ele estar� disposto a ajud�-lo?
� N�o sei. Nem sei se ele ainda est� vivo. Se estiver, hei de
ach�-lo, e quando o achar saberei se est� disposto a me
ajudar.
� E se voc� for morto? E ent�o?
� Voc� entende aonde quero chegar? � perguntei. � Se eu
morrer, pelo menos terei morrido tentando.
Hennessy n�o respondeu logo. Olhou para um espa�o
indistinto entre a parede e o ch�o, depois se virou para mim
e balan�ou a cabe�a.
�Vou arranjar o dinheiro � disse.
� �timo � respondi. � Eu sabia que podia contar com
voc�.
Dois dias depois, quinta-feira, 24, eu estava parado no
corredor do apartamento de Hennessy, aos meus p�s uma
sacola de couro com as poucas coisas de que precisava. No
bolso eu tinha mil d�lares, um punhado de passagens de
trem que me levariam de volta para a Ge�rgia, e a fotografia
de Bridget McCormack. Num envelope no fundo da sacola,
estavam a carta de Atlanta e os recortes de jornal, todos em
ordem cronol�gica de novembro de 39 a fevereiro de dez
anos depois. Lucy Bradford morrera quase vinte anos antes.
Se estivesse viva, teria 26 anos, talvez estivesse casada, com
filhos, lembrando-se de um pesadelo distante da sua
inf�ncia, quando meninas foram arrebatadas da sua cidade
natal e brutalmente assassinadas.
Abracei Paul Hennessy, e me perguntei se algum dia
tornaria a v�-lo.
� Acho que tenho...� come�ou ele,mas eu o soltei e
balancei a cabe�a. � Joseph...
� J� vou indo � disse eu. � Ligo para voc�, se puder.
� Se precisar de dinheiro � disse ele � posso transferir
mais para voc� se precisar.
Sorri, abaixei-me e peguei a mala.
� At� a pr�xima � disse eu, e ent�o virei as costas, sa� do
apartamento e desci para a rua.
Quando cheguei ao cruzamento, virei-me e vi o rosto de
Hennessy na janela. Ele levantou a m�o uma vez, depois
desapareceu.
Da Pensilv�nia para Maryland, passando pela Virg�nia
e entrando nas Carolinas. Wilmington, Baltimore,
Richmond, Raleigh e Col�mbia. Rostos novos a cada
parada. Pela janela, a extens�o do sudeste. O barulho
do trem me envolvendo, chacoalhando, ribombando
e estrondeando rumo ao horizonte, o dia virando
noite e tornando a virar dia. Fazendo de tudo para
dormir, n�o pensar, n�o ter medo. Encolhido em meu
vag�o-leito, cada sacolejo me despertando, cada apito
rasgando meus sonhos e me lembrando de onde eu
estava indo, e porqu�.
Pensando em Haynes Dearing, e o que foi feito
naquele dia horr�vel. Pensando em Reilly Hawkins e
se eu o encontraria vivo, ou sepultado numa terra que
ele nunca deixara. N�o o via desde o julgamento,
havia catorze anos. Ele devia estar velho, e n�o se
refizera do desgosto amoroso causado pela menina
bonitinha do condado de Berrien. O tempo n�o
curava essas feridas. O tempo s� fazia nos lembrar de
que estava sempre se esgotando.
Domingo, 26, cruzamos a divisa da Ge�rgia. Lembro-
me de ir at� o fim do trem e ficar parado na janela
vendo os trilhos se agitando como fitas atr�s de n�s.
Olhei para o horizonte e senti a for�a da mem�ria, e
embora houvesse uma nostalgia nas imagens � minha
frente havia tamb�m a imensa sensa��o de perda que
a Ge�rgia representava. A terra mudara, mas n�o
tanto que parecesse diferente do que era.
Era a minha inf�ncia, a morte de meu pai, minha m�e;
era perder; era a cozinha dos Kruger, o cheiro de
bratwurst e de bolo; era um vel�rio do Sul em que
minha m�e expressava seu sil�ncio vigilante, os olhos
sublinhados de kohl negros como antim�nio. Eram os
Guardi�es e o assassino das crian�as � os cartazes
colocados em cercas e port�es, os toques de recolher
e os alertas, a vis�o de Gunther parado no escuro me
deixando morto de medo; era Alex Webber, a escola,
as carteiras com prancheta acoplada, as solas de
sapatos brancos no topo de um morro; eram as dez
meninas enfileiradas aguardando suas asas. Era
Augusta Falis, meu lar do cora��o, por mais
desgostoso que estivesse.
Lembro-me dessas coisas todas no quarto de hotel do
terceiro andar. Deslizo para o lado. Quase n�o sinto as
pernas. O sangue est� secando e coagulando. Sinto o
cheiro forte e t�rgido, e me lembro desse cheiro do
dia em que encontrei Virg�nia Grace Perlman, do dia
em que fui a Fleming e encontrei Esther Keppler. O
presente ecoa o passado, e olhando para mim mesmo
me pergunto se afinal n�o me tomei aquilo que me
persegue.
Fecho os olhos um instante, abro-os e olho para o
homem � minha frente.
"Voltei por voc�", sussurro, e minha voz soa distante
e fraca.
Torno a fechar os olhos.
Quero dormir agora, s� isso.
S� quero dormir.
Trinta
Por dezessete anos eu estive fora. Augusta Falls tentara ser
outra coisa, mas n�o mudara tanto assim. A cidade estava ali
� tudo o que eu me lembrava �, mas havia novidades. Um
motel em forma de crescente para l� da terra que pertencera
ao irm�o de Frank Turow; uma pequena loja de
departamentos com ares de ter visto dias melhores; a loja de
gr�os de Gene Fricker tinha desaparecido completamente, e
em seu lugar havia um posto de gasolina Mobil, bombas
vermelhas a postos no p�tio como sentinelas. Para onde
quer que olhasse, eu via os fantasmas do passado, as pegadas
indel�veis de pr�dios que j� haviam estado em p�. Um
visitante nunca teria visto essas coisas, mas eu conhecia
Augusta Falis, a cidade fazia parte de mim, um elemento
intr�nseco a mim � tanto assim que uma nova pintura ou
uma cerca diferente e placas alteradas n�o conseguiam
mudar o que eu lembrava.
Fiquei no motel em forma de crescente. Paguei em esp�cie e
peguei uma chave, e ent�o me tranquei l� dentro e dormi
quase vinte e quatro horas. Acordei na manh� de ter�a-feira,
28 de mar�o, e o atendente do motel me olhou com
perguntas nos olhos que ele nunca teria ousado fazer. Queria
saber ent�o se a pessoa que eu era, a raz�o de estar ali, o
motivo da minha volta podiam ser captados ou percebidos.
Ser� que as pessoas me olhavam e viam uma personifica��o
dos boatos que tinham ouvido sobre aquela cidade assassina?
Mesmo ent�o, quase vinte anos depois, ser� que estavam
sempre vigiando os filhos, sabendo que aquilo j� acontecera
uma vez, ali mesmo, e poderia muito bem tornar a
acontecer?
Disse ao atendente que ficaria pelo menos por mais uma
noite.
Ele me olhou de esguelha. N�o teria mais de vinte e cinco
anos, e seu jeito j� era meio desconfiado.
� Mais uma noite? � perguntou.
� Talvez duas � disse eu. �Tem umas pessoas com quem
preciso falar.
O atendente franziu a testa.
�Voc� � daqui ent�o?
� Era � respondi. � Muitos anos atr�s.
Ele fez um movimento de cabe�a.
� Eu n�o sou � disse. � Sou da regi�o de Race Pond.
Sorri, lembrei-me da hist�ria que Reilly Hawkins me
contara sobre meu pai. Ele e Kempner Tzanck indo para l�
de Race Pond para falar com um homem em Brantley.
Como meu pai mandara a m�o no rosto de um brutamontes
e ele sangrara at� morrer.
� Est� procurando algu�m em particular? � perguntou o
atendente.
� Hawkins � disse eu. � Um homem chamado Reilly
Hawkins.
O rapaz fez que n�o com a cabe�a.
� N�o sei se j� ouvi falar. A melhor coisa a fazer � ir falar
com o xerife. Chama-se Dennis Stroud. J� est� aqui h� uns
bons quinze anos. Com certeza, vai ajud�-lo.
� Obrigado � disse eu. �Volto mais tarde.
Encontrei a delegacia sem dificuldade. Era um pr�dio novo,
mas de onde estava, dava para ver a �rea da escola. Talvez
sua casca ainda estivesse ali, eu n�o saberia dizer, pois a �rea
fora ampliada com um anexo baixo de tijolos aparentes com
mais janelas do que parecia ser necess�rio.
Cheguei at� a porta da delegacia, abri-a e entrei.
Uma jovem ergueu os olhos de uma m�quina de escrever.
Bonitinha, cabeleira loura toda cacheada, sorriu com do�ura
e perguntou se poderia ajudar em alguma coisa.
� Gostaria de falar com o xerife Stroud � disse eu.
� E posso dizer a ele do que se trata, senhor?
� Estou procurando umas pessoas... pensei que ele talvez
pudesse me ajudar.
Algum tempo depois eu estava sentado numa cadeira diante
do xerife Dennis Stroud. Tinha um rosto infantil, de lua,
olhos parecendo muito pequenos, mas com uma express�o
sincera e um jeito que me garantia ser ele um homem
decente. Depois do Brooklyn, depois de Auburn, depois de
tudo por que passei, achava que tinha capacidade de
identificar essas coisas.
� Vaughan? � perguntou, e a� franziu a testa e co�ou a
cabe�a com o l�pis que segurava. � Vaughan, voc� diz? N�o
o Joseph Vaughan?
Sorri.
� Depende de quem seria o Joseph Vaughan.
Stroud inclinou-se � frente e abriu a gaveta da mesa. Dali
retirou um exemplar de Uma Cren�a Silenciosa em Anjos.
Mostrou-o.
� Este � o Joseph Vaughan � disse.
Ri com vontade, e ent�o ele se levantou da cadeira. Deu a
volta na mesa e estendeu a m�o. Retribu�, e com as duas
m�os ele apertou a minha.
� O filho famoso de Augusta Falls � disse o xerife Stroud.
� Parece que voc� � a �nica pessoa que j� saiu desse lugar e
conseguiu ser algu�m.
� Fui preso por homic�dio, xerife Stroud � disse eu. �
Passei quase catorze anos em Auburn...
� Por um homic�dio que n�o cometeu, certo?
� Claro, por um homic�dio que n�o cometi, mas...
� Que diabo, sr. Vaughan, n�o h� nada que os americanos
gostem mais do que um homem que sobreviva contra todos
os progn�sticos. Por aqui voc� � uma esp�cie de her�i local.
� Ficou parado um instante, e depois mais ou menos
inclinou a cabe�a para o lado, e disse: � Para minha mu-
lher... � Estendeu o livro. � Quer autografar este livro para
minha mulher? Ela j� leu tr�s vezes, acho eu, e ainda chora
quando l�. Vai ficar felic�ssima, sr. Vaughan, n�o faz id�ia.
Peguei o livro da m�o dele, e ele me deu uma caneta.
� Como � o nome dela? � perguntei.
� O nome � Elizabeth, mas eu a chamo de Betty. Se
escrever para Betty, fica muito mais pessoal, certo?
Para Betty, escrevi. Com meus melhores votos para
voc� e sua fam�lia. Cordialmente, Joseph Vaughan.
Devolvi o livro. Stroud leu e sorriu.
� Muito agradecido, sr.Vaughan, de verdade. Agora acho
que n�o est� aqui s� de visita... n�o �?
� Por assim dizer � respondi. �Vim � procura de umas
pessoas.
� Que pessoas? � O xerife Stroud deu a volta pelo outro
lado da mesa e sentou-se.
� Reilly Hawkins...
Stroud balan�ou a cabe�a.
� J� se foi, sr.Vaughan. H� uns anos. Cora��o, acho eu.
� Morreu?
Stroud fez que sim. Sua express�o era de solidariedade.
� Sinto muito, sr.Vaughan.
Por um momento, eu n�o conseguia pensar. N�o conseguia
me lembrar do rosto de Reilly, depois fui visualizando,
lentamente, mas com seguran�a, e fechei os olhos. Assim
como Hennessy representava tudo o que era Nova York,
Reilly Hawkins representava tudo o que era a Ge�rgia.
� O xerife Dearing? � disse eu, aflito para mudar de
assunto. Eu pensaria em Reilly depois, quem sabe visitaria
seu t�mulo, e s� ent�o me permitiria expressar o que sentia.
� Haynes Dearing? � perguntou Stroud. � E por que est�
t�o interessado em Haynes Dearing?
� Ele era minha consci�ncia � respondi. � Era o xerife na
minha inf�ncia, e foi at� eu sair da cidade. Voltei para c� em
1950 quando minha m�e morreu e soube que ele tinha ido
embora.
� Caramba, sr.Vaughan, isso j� � s� uma hist�ria. Sim, ele
foi embora. J� faz muitos anos.Voc� soube da mulher dele,
n�o?
� Ela se suicidou, me parece.
� Com certeza. Foi mais ou menos por volta de 1950.
Quando o senhor voltou?
� Em outubro de 50.Voltei para o enterro da minha m�e.
� Certo, certo. Ent�o ela deve ter se suicidado talvez em
janeiro ou fevereiro, e Haynes foi embora logo depois, em
mar�o. Transferido para Valdosta por alguns anos, talvez at�
1954 ou 55, depois se aposentou da pol�cia. N�o sei para
onde foi dali. � Stroud fez uma pausa e olhou para mim. �
Saiu da escola, sabe, mas ouvi dizer que teve um problema
de bebida. Isso, e o fato de que parecia incapaz de trabalhar
em qualquer outra coisa... � Stroud deixou a frase no ar. �
Esse n�o � um assunto que eu deveria estar discutindo, sr.
Vaughan, como sabe. � um assunto da pol�cia.
Recostei-me na cadeira. Olhei para a janela.
� Eu encontrei uma daquelas meninas � falei. � Aqueles
assassinatos. Faz muitos anos. Encontrei uma daquelas
meninas, xerife.
Stroud fez um gesto de cabe�a.
� Li o seu livro, sr. Vaughan.
� E a� passei treze anos na pris�o por um assassinato que n�o
cometi. Perdi quase toda a minha vida, xerife, a melhor
parte da minha vida j� passou, e agora estou de volta
tentando entender alguma coisa do que aconteceu, e por
que tive que ser envolvido. Tem alguma id�ia de como me
sinto?
Stroud fez que n�o com a cabe�a.
� N�o, sr. Vaughan, n�o tenho.
� Acho que voltei aqui para procurar algo... algo que me
ajude a entender tudo isso. Foi aqui que cresci, e acho que
quase todo mundo que cresceu comigo foi embora ou j�
morreu, ou mudou tanto que n�o daria para eu reconhecer.
Haynes Dearing era parte disso, uma parte muito
importante. Ele conhecia meus pais, e depois que meu pai
morreu foi muito bom conosco. Visitava minha m�e,
mesmo depois do inc�ndio na casa dos Kruger, mesmo
depois da morte de Elena, a filhinha dos Kruger.
� O que quer de mim, sr. Vaughan?
Balancei a cabe�a.
� N�o sei, xerife... acho que eu torcia para que houvesse
algo... qualquer coisa... que me ajudasse a entender o que
aconteceu depois que fui embora. Fui para Nova York.
Conheci uma mo�a ali. Ela tamb�m foi assassinada, xerife,
assassinada como as meninas em Augusta Falls, e...
� E acha que foi o mesmo homem, certo?
Olhei para Stroud, admirado por ele ter declarado o �bvio de
forma t�o clara.
� Acha que quem quer que tenha perpetrado esses
homic�dios em Augusta Falls tamb�m matou sua namorada
em Nova York? Quero dizer, essa certamente � a impress�o
que se tem lendo o seu livro. � a vers�o em que o pessoal
daqui come�ou a acreditar tamb�m, e eu diria que Haynes
Dearing talvez fosse quem mais acreditava.
Franzi a testa.
� Se repetir uma palavra disso v�o me arrancar o couro, sr.
Vaughan, est� me entendendo?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Nem uma palavra, xerife, nem uma palavra.
Stroud levantou-se da cadeira e foi para o fundo da sala.
Abriu um arquivo e pegou uma pasta fina de papel manilha.
� Quando Dearing se aposentou, quando se mudou de
Valdosta para onde quer que tenha ido, me mandaram uns
arquivos, uma papelada relacionada com os assassinatos de
Augusta Falls. Esta aqui cont�m algumas coisas que... Bem,
d� uma olhada e veja se faz algum sentido para voc�.
Stroud me entregou o dossi�. N�o pesava quase nada, e
quando o abri uma cole��o de recortes de jornal caiu no
ch�o. Peguei-os rapidamente, puxei a cadeira para a frente e
os arrumei na beira da mesa de Stroud. Estavam todos ali.
Poderia ser a mesm�ssima cole��o de recortes que estava no
fundo da minha mala no motel em forma de crescente.
Folheei-os � li o nome delas, vi seus rostos: Alice Ruth van
Home, Ellen May Levine, Rebecca Leonard, Mary Tait...
Passei os recortes um a um, e a� o ar me faltou. Havia um
completamente diferente, de um jornal de Nova York.
MO�A DE 20 ANOS ASSASSINADA BRUTALMENTE NO BROOKLYN.
Desviei a vista. N�o consegui ler a mat�ria, n�o suportei ver
o nome de Bridget escrito com os mesmos caracteres de
todas as outras.
Olhei para Stroud. Ele espiava os artigos de jornal por cima
da mesa.
� Tem mais � disse baixinho.
Tornei a abrir o dossi�, e havia outros recortes que n�o
tinham ca�do no ch�o.
Peguei-os um por um.
Alabama, o UNION SPRINGS CONVIER, 11 de outubro de 1950:
MENINA DE 10 ANOS RAPTADA, ENCONTRADA MORTA.
Mais uma vez no Alabama, numa cidade chamada Heflin,
em 3 de fevereiro de 1951: Crian�a assassinada, pol�cia
perplexa.
O �ltimo era de Calhoun, de novo na Ge�rgia, em 10 de
janeiro de 1954: Menina desaparecida encontrada morta.
�V� aonde ele estava indo? � perguntou Stroud.
Olhei para Stroud.
� Merda, sr. Vaughan, voc� est� branco, quase como um
len�ol.
� O neg�cio continuou � disse eu, mal conseguindo falar.
O cora��o parou no meu peito, uma sensa��o de
claustrofobia, uma tens�o que me segurava firme na cadeira.
� Com certeza, parece que o xerife Dearing era dessa
opini�o � disse Stroud.
� E continuava procurando o assassino... Depois desses anos
todos Dearing sabia que ele continuava por a� e estava
tentando encontr�-lo, n�o?
Stroud ficou algum tempo calado. O sil�ncio era tang�vel.
Depois:
�Voc� estava aqui quando Kruger se enforcou, certo?
Fiz que sim.
� Em fevereiro de 49. Fui para o Brooklyn uns meses
depois.
� Ouviu boatos?
� Sobre o qu�? Sobre Gunther Kruger?
Stroud fez que sim:
� Sobre ele n�o ter sido respons�vel por aqueles
assassinatos.
Balancei a cabe�a.
� Gunther Kruger est� morto, xerife, e n�o h� nada que
possamos fazer para mudar isso. N�o sei se Haynes Dearing
teve algo a ver com a morte de Gunther Kruger, pelo menos
diretamente...
� Mas correram boatos, sr. Vaughan.
� Boato � boato, xerife Stroud. Vim aqui em busca de uma
interpreta��o confi�vel.
Stroud balan�ou a cabe�a.
� Nisso n�o posso ajud�-lo. Voc� est� falando de coisas que
aconteceram h� mais de vinte ou trinta anos. Aqui n�o
restam tantos conhecidos seus. As pessoas se mudaram,
foram para lugares diferentes, como acontece. Outras
morreram, como Reilly Hawkins, Frank Turow. At� Gene
Fricker... o homem mais saud�vel que conheci... foi
atropelado por um carro no condado de Camden. Morreu na
hora. O filho continua aqui, mas tem a fam�lia dele. Trata da
pr�pria vida, sabe? N�o sei se posso necessariamente falar
por todos eles, mas acho que n�o haveriam de querer
desenterrar o passado.
� N�o estou aqui para perturbar as pessoas, xerife.
Stroud sorriu, mas foi num tom meio desconfiado que
perguntou:
� Ent�o exatamente por que est� aqui, sr. Vaughan?
Pensei por um momento no que dizer a ele.
� N�o sei, xerife. Acho que n�o tenho nenhuma raz�o
espec�fica para estar aqui.
� Esse pessoal � gente simples, sr. Vaughan. Esta cidade
passou por uma experi�ncia terr�vel, mas isso foi h� muitos
anos. As pessoas optaram por esquecer o que aconteceu, e
embora eu possa entender sua situa��o, n�o posso incentiv�-
lo a continuar a mexer em coisas que n�o t�m relev�ncia
para Augusta Falls como � atualmente. N�o posso impedi-lo
de estar aqui, nem desejo fazer isso, mas posso pedir que seja
discreto, fale com quem quer que tenha vindo aqui para falar
e depois v� em frente.
Juntei os recortes de jornal e os devolvi ao dossi�. Entreguei
a pasta a Stroud e me pus de p�.
� Tem alguma id�ia de onde posso come�ar a procurar
Haynes Dearing? � perguntei.
Stroud tamb�m se levantou, e senti que ficou aliviado por eu
estar indo embora.
� Haynes Dearing? Jesus, eu n�o saberia por onde come�ar.
O �ltimo lugar onde soube que ele esteve foi Valdosta, como
eu disse. Voc� pode ir � delegacia de l� e ver se algu�m sabe
o que aconteceu com ele. Nem sei se ainda est� vivo, sr.
Vaughan.
Estendi a m�o, agradeci ao xerife Stroud pela ajuda, e virei as
costas para sair. Foi a� que vi um peda�o de papel embaixo
da cadeira na qual eu estava sentado. Abaixei-me para peg�-
lo. Ali, com a letra inconfund�vel de Dearing, estava escrita
uma �nica pergunta: Aonde o garoto foi depois de Jesup?
Mostrei-o a Stroud.
� Sabe o que isso significa? � perguntei.
Stroud pegou o peda�o de papel, leu a pergunta, fez que n�o
com a cabe�a.
� N�o tenho a menor id�ia, sr. Vaughan. � Guardou-o na
pasta com os recortes de jornal. � A fam�lia Kruger n�o
acabou em Jesup?
N�o respondi. Uma imagem voltou a mim. Gunther Kruger
em p� na estrada naquela noite, seu sobretudo, o medo
sinistro que me invadiu quando o vi. E a� ele se virou e
voltou depressa para casa. Ser� que eu poderia ter me
enganado? Ser� que n�o era mesmo Gunther Kruger?
� Acho que sim � disse eu abruptamente. � Acho que
acabaram l�, sim.
Despedi-me do xerife Stroud e sa� de seu gabinete. Voltei
depressa para o motel e para o meu quarto. Sentei na beirada
da cama. Peguei um peda�o de papel e escrevi os nomes das
cidades do dossi� de Stroud. Union Springs, Heflin, Pulaski e
Calhoun. Minha mente girava. Tudo que eu pensara de
repente estava de pernas para o ar. Ser� que n�o era mesmo
Gunther Kruger? Ser� que era algu�m vestido com o casaco
de Gunther? E por que minha m�e estava t�o convencida de
que o assassino das crian�as estava na casa naquela noite em
que provocou o inc�ndio?
Fiquei ali por um tempo. Mal conseguia respirar. Deitei-me
e tentei fechar os olhos, mas uma imagem atr�s da outra
invadia meu pensamento e me deixava nauseado. Acabei
atravessando o quarto estreito e abrindo a porta. Fiquei ali
respirando fundo, tentando manter a calma, fazendo o
poss�vel para continuar com os p�s no ch�o. Mas o ch�o
mudara e estava inst�vel, e tive que recuar e tornar a sentar.
Agarrei-me � beirada da cama e as paredes se envergavam e
balan�avam de um jeito estranho.
Passou-se uma hora, talvez mais. Abri os olhos e vi que me
deitara no colch�o e adormecera. A porta do quarto
continuava entreaberta, e fui fech�-la. Lavei o rosto com
muita �gua no banheiro min�sculo e sequei as m�os numa
toalha que era encardida e pu�da em alguns pontos.
Eu queria ir embora de Augusta Falls. Tudo que eu imaginara
estar ali j� n�o estava mais. N�o eram os pr�dios, n�o eram
ruas ou marcos, era o esp�rito do lugar. Talvez pelo fato de
eu n�o ser mais crian�a, e n�o ver aquelas coisas com os
olhos de antes.
Pouco depois peguei os recortes de jornal da mala e guardei-
os no bolso da jaqueta. Tranquei a porta do quarto, passei
pela recep��o e me encaminhei para o centro da cidade.
Havia uma lavanderia na esquina, e ali perguntei a uma
mulher se sabia onde era a casa dos Fricker.
� Maurice Fricker? Claro que sei onde ele mora. Saindo
daqui, vire � direita, v� at� o fim da rua da delegacia. No
cruzamento, vire � esquerda, e mais ou menos uns
quatrocentos metros adiante tem uma casa � sua esquerda.
N�o tem erro. Tem alizares azuis, e na frente tem uma caixa
de correio com uma biruta em cima.
Agradeci � mulher, segui suas instru��es, e em quest�o de
minutos estava diante da casa de Fricker. Havia uma caixa de
correio com uma biruta em cima, e sentada nos degraus do
p�rtico estava uma menina de uns oito ou nove anos no
m�ximo, o cabelo preso para tr�s com uma tiara. Inclinou a
cabe�a, usou a m�o para proteger os olhos do sol.
� Seu pai est� em casa? � perguntei.
A menina me olhou, subiu correndo a escada, e foi entrando
pela porta de tela.
Pouco depois, a porta interna se abriu, e pela tela deu para
ver algu�m ali parado.
� Voc� veio fazer alguma coisa aqui? � a pessoa gritou, e na
mesma hora, sem a menor d�vida, reconheci a voz de
Maurice Fricker.
� Maurice? � gritei em resposta. � � voc�, Maurice?
O homem hesitou, esticando a m�o para abrir a tela, e fui me
encaminhando para a casa.
� Puta que pariu � sibilou entre os dentes. � Caramba. �
voc�, n�o �? Joseph Vaughan.
Maurice Fricker empurrou a porta e desceu a escada. Parei
no jardim. Ele sempre foi parecido com o pai, Gene, mas
ent�o, aos quarenta anos, era igualzinho.
Maurice me abra�ou at� eu ficar sem ar, me deu tapinhas
efusivos nas costas. Recuou, me segurou pelos ombros e me
deu mais um abra�o.
� Meu Deus, Joseph... Achei sinceramente que nunca mais
o veria. Puxa, vamos entrar para tomar uma cerveja. Foi a
maior sorte voc� me encontrar aqui. Trabalho em White
Oak e estou de folga hoje. � Deu meia-volta, foi andando, e
a� parou e tornou a se virar para mim. � Meu Deus, cara, �
incr�vel. Pensei que nunca mais voltaria a v�-lo. Caramba,
nem sei o que lhe dizer.
Acompanhei-o at� o p�rtico, e do outro lado, � esquerda,
havia uma varanda com umas cadeiras de madeira de
espaldar alto.
Maurice convidou-me a sentar, e ent�o recuou, abriu a porta
interna e gritou para dentro de casa.
� Ellie, seja boazinha... v� pegar umas cervejas para o papai
l� na geladeira!
A menina com a tiara apareceu minutos depois.
� Ellie... este � o Joseph � disse Maurice.
� Oi, Ellie � disse eu, e sorri.
Ellie ficou encabulada, tentou retribuir o sorriso. Deixou as
garrafas de cerveja no p�rtico depois voltou correndo para
dentro de casa.
� Ela � a t�mida � disse Maurice. � Tenho outra menina, o
nome dela � Lacey. Ela e a m�e est�o na casa da av�, em
Homeland. Lembra-se do Bob Gorman, o legista dos tr�s
condados?
� Lembro, claro.
� Casei com a ca�ula dele, a Annabel.Voc� a conheceu?
Balancei a cabe�a.
� N�o, acho que n�o.
� Uma garota incr�vel, Joseph, incr�vel mesmo. � Abriu
uma garrafa de cerveja e me entregou.
Ficamos sentados em sil�ncio por alguns instantes, e eu
sentia aquilo em volta de Maurice � a certeza do que me
levara ali, e subjacente a essa certeza, o desejo de que eu n�o
tivesse ido.
� Ent�o foi uma cagada, n�o foi? � disse ele. � L� em
Nova York.
Sorri, olhei por cima da balaustrada da varanda para os
campos ao longe.
Minha inf�ncia estava ali, correndo por milharais e trigais
altos, carregando os livros da aula da srta. Webber, ouvindo
Reilly Hawkins contar hist�rias em sua cozinha.
� Pode-se dizer que sim � respondi.
� E aquilo... aquilo com a mo�a...
� Bridget � disse eu, e era muito esquisito falar com
Maurice Fricker sobre um assunto sobre o qual ele nunca
poderia saber nada.
�Voc� leu meu livro?
Maurice encolheu os ombros.
� Algumas passagens � disse. � Nunca fui de ler muito,
sabe? � Sorriu, e pareceu cansado, desgastado nas beiradas.
� Minha mulher leu... Mas, que diabo, ela n�o conheceu
voc�, ent�o, para ela, era como ler um romance. Acho que
quem n�o era daqui nunca poderia entender como foi. �
Bebeu a cerveja dele. � Soube de Reilly Hawkins?
Fiz que sim.
� Meu pai tamb�m... foi atropelado por um babaca que
dirigia embriagado no condado de Camden. Tenho minha
mulher, minhas duas filhas, sabe? � Riu. � Elas me
mant�m alerta, vinte e quatro horas por dia, sete dias por
semana. As vezes acho que me ocupo tanto com o presente
que n�o tenho tempo de pensar no passado.
� E os outros? � perguntei. � Voc� v�?
Maurice franziu a testa.
� Os outros?
� Daniel McRae, Ronnie Duggan, Michael Wiltsey...
lembra, o Rei do Bicho-carpinteiro?
� Lembro, caramba, eu me lembro dele. Ele continua aqui,
Joseph, mas Daniel foi embora h� muito tempo. Entrou para
o Ex�rcito em... quando foi? Deve ter sido h� dez anos.
Queria ver o mundo, achou melhor fazer isso por conta do
Tio Sam.
� Os Guardi�es � disse eu, e senti o ar esfriar de repente.
Maurice riu, pelo menos tentou rir, mas foi um riso ansioso.
� Isso foi... foi h� mil�nios. �ramos crian�as, Joseph, apenas
crian�as assustadas. Ach�vamos que pod�amos fazer alguma
coisa, mas...
Maurice Fricker olhou para mim e havia l�grimas em seus
olhos.
� N�o se passou um ano em que eu n�o pensasse naquelas
meninas, Joseph. Agora tenho minhas filhas. Annabel diz
que vivo preocupado, que fico exageradamente cheio de
cuidados com elas. Ela me diz que as meninas t�m de
aprender a ser independentes, devem escolher o pr�prio
caminho, mas ela n�o estava aqui, certo? N�o estava aqui
quando aquelas meninas foram assassinadas. O pai dela era o
legista. �s vezes, me pergunto se ela n�o estava de alguma
forma acostumada com aquilo, mas ela � o tipo de pessoa
que v� o bem em tudo e em todo mundo. Fa�o quest�o que
leve e busque nossas filhas na escola. Os outros pais n�o
fazem isso. Deixam os filhos ir a p� os oitocentos metros e
voltar, at� no inverno quando escurece cedo. E �s vezes
vejo coisas que me lembram como est�vamos todos
assustados. Quando fizeram aquelas obras todas de amplia��o
na escola, ningu�m ficou mais feliz do que eu. Antes, toda
vez que eu passava por ali eu me lembrava... � Maurice se
calou.
� Acho que ainda est� acontecendo � disse eu.
Maurice fez que n�o com a cabe�a.
� N�o, n�o est�, Joseph. Voc� est� enganado. Descobriram
quem foi e ele se enforcou. O alem�o. Gunther Kruger. Ele
era o assassino de crian�as, certo? Todo mundo sabe que ele
matou aquelas meninas, e isso � tudo. J� acabou.Terminou. E
tudo o que tenho a dizer sobre isso, Joseph.
Dei outro gole na cerveja e botei a garrafa no ch�o.
Levantei-me devagar da cadeira e olhei para Maurice
Fricker.
� Tudo bem � disse eu, sabendo que qualquer tentativa de
envolv�-lo naquilo s� serviria para sentir-se culpado por n�o
fazer nada. �Voc� deve ter raz�o, Maurice, sabe? Acabou.
Acabou naquela �poca. � Sorri como pude. � Talvez isso
tudo tenha sido um tanto demais para mim. Passei muitos
anos na cadeia.Vai ver que isso me deixou meio maluco,
hein?
Maurice n�o se levantou. Olhou para mim quando eu me
encaminhava para a porta.
�Voc� tem uma filha linda � falei. � Fez a coisa certa,
Maurice. Pode acreditar, voc� fez a coisa certa. Fez o que eu
deveria ter feito. Deveria ter ficado aqui e me casado, tido
filhos como voc�. Nunca deveria ter ido para Nova York.
Maurice balan�ou a cabe�a lentamente.
� Voc� n�o era igual a todo mundo, Joseph. Nunca foi nem
nunca vai ser. Conseguiu fazer a srta. Webber se apaixonar
por voc�, certo?
Fiz que sim com a cabe�a.
� Claro que consegui.
� Voc� sempre foi o diferente � disse Maurice. � Vivia
fazendo perguntas sobre coisas a respeito das quais ningu�m
estava a fim de saber nada. Escrevendo contos. Escrevendo
livros que eram publicados. Acho que voc� � mais vivido
que todos n�s juntos.
� Mas essa viv�ncia toda n�o me trouxe muita coisa, trouxe?
� disse eu, e abri a porta. �J� vou indo � falei. � Cuide-
se bem, Maurice... e cuide bem da sua mulher e das suas
filhas. E n�o se preocupe com o que ela diz... acho que
cuidado com os filhos nunca � demais, mesmo hoje em dia.
Maurice levantou a m�o.
� Quem sabe a gente n�o se v� outra vez, Joseph? Eu
convidaria voc� para ficar para jantar, mas...
� Fantasma n�o vem jantar, Maurice � disse eu, e fui
embora.
Olhei para tr�s quando cheguei ao fim do jardim, e ali, atr�s
da porta, vi Ellie me observando pela tela. Ela poderia ser
qualquer uma delas � Laverna, Elena,Virginia, Grace...
Prendi a respira��o, e a� ela levantou a m�o e acenou apenas
uma vez antes de sumir no escuro.
Encontrei Ronnie Dugan em frente ao que tinha sido o Bar
da Queda. A franja parecia finalmente ter admitido a derrota.
Seu cabelo estava rareando, a nascente recuando num rosto
ainda jovem, mas havia uma amargura em volta de seus
olhos que o sorriso n�o conseguia disfar�ar.
� Ouvi dizer que estava aqui � foi sua sauda��o, e ele mais
ou menos se encostou na grade da frente do pr�dio. �
Dennis Stroud me ligou dizendo que voc� tinha voltado.
� Ol�, Ronnie � falei, e vi que n�o era bem-vindo.
� Ol�, Joseph � disse ele. � Liguei para Michael, disse que
ele devia vir aqui dar um al�, mas ele teve que levar a
mulher a uma aula de bridge ou coisa assim.
� O Bar da Queda � disse eu, olhando para o pr�dio atr�s
dele.
� N�o durou muito. Frank Turow morreu, sabe, e a� teve
um cara chamado McGonagle. Agora pertence a uma
empresa de Augusta e servem cerveja quente e vinho
branco com soda. N�o � mais o mesmo lugar... que diabo,
Augusta Falls n�o � mais o mesmo lugar.
� Percebi isso.
� � bom ver voc� � disse. Enfiou os polegares no cinto do
jeans.
� Acho que n�o �, Ronnie.
� Merda, ningu�m me chama de Ronnie agora, Joseph. Esse
era o meu apelido de crian�a.Todo mundo me chama de
Ron. S� Ron, nada mais.
� Falei com Maurice...
� Maurice � um homem bom, Joseph. Tem mulher, duas
filhas, um cachorro e um gato. Tem um bom emprego na
Secretaria de Limpeza Urbana em White Oak. O cara
arranjou uma coloca��o aqui, vai ficar aqui at� morrer.Vai
ver netos, quem sabe at� mais, e acho que a �ltima coisa que
ele quer ver � voc�.
Olhei para o ch�o. Lembrei-me dos Guardi�es. Parecia que
eu era o �nico que lembrava.
� N�o vou ficar aqui, Ron � disse eu. � Mas quero lhe
perguntar umas coisas antes de ir embora.
Olhei para ele, olhei com aten��o, e apesar do cabelo ralo,
apesar da express�o cautelosa, eu ainda via Ronnie, a franja
nos olhos, sempre mexendo em alguma coisa, uma pedra,
uma bola de gude, um peda�o de pau.
� O que come�ou aqui, terminou aqui, Joseph. � o que eu
acho, e penso que � assim que quase todo mundo aqui quer
que fique. Sinto muito pelos seus problemas. Soube da Alex
Webber com o beb� que morreu e tudo, e depois aquele
problema que voc� teve no Brooklyn... sabe, o fato de que
passou aqueles anos todos preso...
� Acha que foi Gunther Kruger? � interrompi.
Ron Duggan bufou.
� Gunther Kruger se enforcou. Acho que essa � a melhor
admiss�o de culpa que algu�m pode dar.
� Acha que ele fez isso, ou acha que estava escondendo
algu�m... acha que talvez ele soubesse quem era e estivesse
protegendo a pessoa?
Duggan se adiantou. Seus polegares sa�ram do cinto e ele
parou ali, abrindo e fechando os punhos.
� Parece que tem que ser um pacto bem firme algu�m se
matar por outra pessoa, Joseph.
� Uma pessoa da fam�lia?
-� Fam�lia? Do que voc� est� falando?
� Estou dizendo que talvez n�o tenha sido Gunther mesmo.
Talvez...
Ronnie Dugan levantou a m�o.
�Talvez nada, Joseph.Talvez n�o seja nada. � isso que estou
dizendo. � o que estou tentando lhe dizer, mas voc� parece
ser seletivamente surdo. Isso terminou em 1949. H� quase
vinte anos.
� Acho que n�o terminou, Ronnie... e acho que o xerife
Dearing teve a mesma impress�o.
�J� chega. N�o quero saber dessa conversa, nem agora nem
nunca. J� n�o somos mais crian�as, Joseph. Temos uma vida
para continuar vivendo. Tem gente aqui que decidiu deixar
o passado para tr�s, e acho que seria muito inteligente se
voc� fizesse o mesmo. Ningu�m quer isso, ningu�m quer
essas lembran�as todas sendo remexidas outra vez. Estamos
em 1967. O mundo mudou. Augusta Falls n�o � mais sua
cidade natal.Voc� deve voltar para Nova York... Volte e
resolva o que tem que resolver, mas deixe esse caso em paz,
Joseph. Pelo amor de Deus, deixe o assunto morrer.
� N�s �ramos os Guardi�es � disse eu. � Fizemos um
juramento, uma promessa...
� �ramos crian�as, porra! N�o pass�vamos disso. Nunca
ir�amos impedir o que aconteceu, e sab�amos disso.
Est�vamos assustados e desesperados, e fizemos de conta
que pod�amos fazer algo a respeito, mas n�o pod�amos. N�o
pod�amos naquela �poca e n�o podemos agora.
� Agora? Como assim, agora? Voc� sabe que nunca parou de
acontecer, n�o sabe?
Vi um lampejo de raiva nos olhos de Ronnie. Ele deu um
passo na minha dire��o, e eu via os m�sculos do seu queixo
tremendo.
� Olhe para mim, Ronnie... olhe para mim e me diga que
sabe que foi Gunther Kruger.
Ronnie Duggan me encarou com um olhar feroz e firme.
� Eu sei que foi Gunther Kruger � disse. � Est� feliz
agora? � isso que quer que eu diga, ent�o pronto. Eu sei que
foi Gunther Kruger, e o filho-da-m�e perverso se enforcou
no pr�prio celeiro, e encontraram uma fita na m�o dele, o
tipo da coisa que s� podia ter vindo daquelas pobres me-
ninas. Ele matou todas elas. Estuprou, seviciou, matou e
esquartejou todas elas. Jogou peda�os delas pela porra da
zona rural, e a� morreu e foi para o inferno, onde era o lugar
dele. E o que estou dizendo, porque � disso que estou
convencido.
� Est� convencido ou quer se convencer?
Ele ficou um instante calado, e a� olhou para o horizonte e
sorriu.
� Eu j� vou indo, Joseph. N�o posso dizer que foi um prazer
tornar a v�-lo. Agradeceria se fizesse o que quer que tivesse
que fazer e fosse embora assim que pudesse. Vou transmitir
suas lembran�as a Michael, a algumas das outras pessoas que
voc� conhece, e vou lhe dar adeus. � Adiantou-se e
estendeu a m�o. Peguei-a, e ele apertou a minha m�o com
uma firmeza excessiva e me olhou nos olhos. � Ent�o �
adeus, Joseph, e acho que � a �ltima vez que vamos nos
falar.
Soltou minha m�o, e deu meia-volta para ir embora.
� E se n�o tiver parado, Ronnie? E a�?
Duggan tornou a dar meia-volta.
� Ent�o v�o ser os filhos de outra pessoa, Joseph... n�o os
meus, n�o os de Michael, nem de Maurice. O pesadelo
visitou Augusta Falls, depois foi em frente. N�o estou
evocando os fantasmas s� para ver se isso volta. � Sorriu de
novo. � Cuide-se agora, Joseph Vaughan, sim?
Assenti, observei em sil�ncio Ronnie Duggan se afastar. Os
Guardi�es � o que quer que tiv�ssemos acreditado ser �
haviam morrido com o assassinato de Elena Kruger, a que eu
prometera proteger, a que provara aos Guardi�es que, a
despeito do que fiz�ssemos, n�o pod�amos mudar nada.
Fiquei ali algum tempo, e voltei para o motel pelo mesmo
caminho que fizera antes.
Pensando naquele momento, n�o posso deixar de
sorrir internamente. O que eu esperara? A quem eu
estava enganando?
�ramos os Guardi�es. Eu e Michael Wiltsey, Ronnie
Duggan, Daniel McRae e Maurice Fricker. Aqueles
anos todos depois, o que me fez imaginar que
ficariam felizes de me ver?
T�nhamos medo na �poca, todos n�s, mas o tempo
passara e o tipo de medo que sentiam mudara. Agora
temiam estar errados. Temiam que o pesadelo do
passado n�o tivesse acabado. Temiam que, se
despertassem os fantasmas, tudo voltaria para os
perseguir. Eles n�o haviam esquecido. Nunca
esqueceriam. Sabiam disso, e isso � acima de tudo �
talvez fosse o que mais temessem.
Eu fizera uma suposi��o, e fora uma suposi��o errada.
Afastei-me do Bar da Queda, e sabia quem estava
procurando. Pensei em Gabillard, em Lowell Shaner,
em outros que haviam estado ali, e me perguntei se
haveriam de querer saber o que acontecera. Fiquei
sentado no quarto daquele motel barato, a porta
escancarada, um ventinho brando entrando, e percebi
que o fim daquilo n�o estava longe. Ser�amos apenas
n�s dois. Joseph Vaughan contra o assassino de
crian�as. Como um filme B antigo de terror. Ese
morresse... bem, se morresse n�o haveria ningu�m
atr�s de mim. N�o haveria ningu�m guardando
posi��es, jun tando for�as, se preparando para um
segundo ataque. Por alguma raz�o, eu n�o sentia
medo. Claro, n�o havia d�vida de que eu estava
assustado, mas parecia que a sensa��o de conclus�o
que eu captava era mais forte que as emo��es que
aquilo provocava. Eu compraria uma arma, isso pelo
menos j� resolvera. Encontraria uma loja numa ruela
escondida que vendesse artigos excedentes do
Ex�rcito e compraria um rev�lver. Sempre se
encontravam lugares desse tipo � um cidad�o
indiferente e irrespons�vel que pegaria cinq�enta
d�lares e n�o faria perguntas.
Decidi rumar para Columbus, uma cidade de bom
tamanho para encontrar uma loja dessas, e depois
cruzaria a divisa do condado e entraria no Alabama.
Visitaria Union Springs, o primeiro daqueles lugares
sobre os quais Dearing guardara recortes de jornal.
Em outubro de 1950, outra menina morrera. Talvez
algu�m lembrasse. Talvez algu�m fosse capaz de dizer
algo que me pusesse no rumo certo.
Fechei aporta do quarto. Deitei e dormi vestido. N�o
sonhei, e por essa pequena gra�a, fiquei grato.
O frio da madrugada me acordou. Juntei meus poucos
pertences, paguei a conta e deixei o motel.
Peguei o �nibus para Tifton, e, ali, esperei na
rodovi�ria por uma conex�o para Columbus. Sa� em
dire��o � divisa estadual da Ge�rgia como o fantasma
que eu era. Achei que ningu�m se lembraria de mim,
e, se algu�m lembrasse, eu achava que esqueceria.
Trinta e um
Reilly Hawkins ocupava meus pensamentos enquanto
rum�vamos para Columbus. Eu pensara em ir ver seu
t�mulo, talvez ir ver a casa em que ele morara, descobrir se
os Kuharczyk continuavam l�, mas n�o consegui. Achei que
ver tais recorda��es s� provocaria raiva, talvez dor, quase
certamente desespero. Por duas vezes eu voltara, e por duas
vezes perdera uma pessoa querida. Sabia que nunca poderia
voltar.
E Michael? Ronnie, Maurice Fricker, Daniel McRae � que
havia escapado, assim como eu, mas o fizera com
intelig�ncia, atravessara meio mundo �, e eles? Eles
pertenciam ao passado que ficara para tr�s, e n�o desejavam
me acompanhar. Eu era o tolo, n�o? Era aquele que deixara
tudo aquilo virar um peso.
Columbus era uma cidade nova. Um lugar que eu n�o
conhecia.Valorizei o anonimato que sentia, e quando me
registrei num hotel na noite do dia 29 fiquei junto � janela e
olhei as luzes que brilhavam na escurid�o. O c�u estava
claro, azul-meia-noite, e a lua cheia ia alta e resplandecente.
Fechei os olhos e pensei na casa da esquina das ruas Throop
e Quincy, em Aggie Boyle, em Joyce Spragg e em Ben
Godfrey. Pensei em Arthur Morrison e em A volta ao lar e
recordei o dia em que Bridget e eu entramos na livraria e
achamos
que o mundo e tudo o que ele tinha a oferecer estavam ali
na nossa frente, s� esperando para serem agarrados.
Perdemos a oportunidade que nos foi dada. Esta era a
simplicidade da quest�o: foi-nos dada uma oportunidade e
n�s a desperdi�amos.
Dormi bem. Os ru�dos da rua l� embaixo eram
desconhecidos, e isso era um consolo. Acordei com o dia
claro, a rua cheia de movimento; lembrei-me do meu
primeiro dia no Brooklyn.
Caminhei at� a fome me assaltar, e a� parei num restaurante
e tomei o caf�-da-manh�. Caminhei mais um pouco, por
becos, ruelas, atento para ver se encontrava uma loja de
penhores. Encontrei uma na esquina da Young com a rua
Nove, e ali � atr�s de um balc�o gradeado � estava
exatamente o tipo de homem que eu procurava. Quinze
minutos e setenta e cinco d�lares depois eu sa�a da loja. Fui
depressa para o hotel, peguei minha mala e me dirigi para a
rodovi�ria, no centro.
Uma hora e meia depois cheguei ao Alabama. Chovia fino, e
ao saltar do �nibus soube instintivamente que Union Springs
vira o mesmo fantasma que andara em Augusta Falis. Senti
isso. Algo sobrenatural e intuitivo. Achei que seria a mesma
coisa em Heflin, em Pulaski e em Calhoun, e soube ent�o
que visitar tais cidades de nada serviria. O estrago fora feito.
Mas eu sabia que haveria outras. Cidades recentes,
assassinatos recentes. Dei meia-volta e rumei para a
rodovi�ria. Peguei um �nibus para Montgomery, a cidade
mais pr�xima onde haveria uma biblioteca de registros. Eu
perseguia uma miragem, um fantasma, um espectro, e estava
me perdendo no processo. Minha mente estava focada,
pensando s� naquilo, imperturb�vel. Eu n�o pensava em
comer nem dormir. A necessidade me obrigava a essas
coisas, e sem essa necessidade eu teria continuado andando
at� cair. J� passava da meia-noite quando cheguei a
Montgomery e chamei um t�xi. Pedi ao motorista que me
levasse ao hotel mais pr�ximo, e ali no banco traseiro me dei
conta de como minha apar�ncia estava horr�vel e de como
eu cheirava a azedo. Ele me deixou na frente de um pr�dio
imponente com portas girat�rias de vidro. Esperei o t�xi se
afastar e ent�o fui andando depressa pela rua at� encontrar
um lugar caindo aos peda�os com um letreiro luminoso
quebrado. O primeiro hotel nunca teria me deixado entrar,
mas ali eles n�o ligariam.
Uma vez l� dentro, despi-me e tomei um banho. Lavei o
cabelo, barbeei-me com todo o cuidado poss�vel e passei
algum tempo tentando botar a cabe�a no lugar.
Montgomery teria a informa��o de que eu precisava; em
algum lugar naquela biblioteca municipal haveria jornais do
estado e de muitos estados para al�m daquele, e haveria
semelhan�as. Sempre havia semelhan�as.
Passei a noite acordado, e quando uma claridade acinzentada
se infiltrou pelas cortinas, levantei-me e me vesti.
Eu j� estava na porta quando a biblioteca abriu, e perguntei
onde ficava a se��o de registros p�blicos. Comecei com
Alabama; encontrei a garota de Union Springs, uma menina
de oito anos chamada Frances Resnick. Encontrada
assassinada na quarta-feira, 11 de outubro de 1950. Frances
Resnick fora estuprada e decapitada. Seu corpo sem cabe�a
fora jogado num barranco e coberto com pedras e terra.
Heflin, s�bado, 3 de fevereiro de 1951, uma menina de onze
anos chamada Rita Yates foi encontrada morta depois de
estar desaparecida por dois dias. Os bra�os foram amputados
do tronco, um foi localizado, o outro, n�o. Ela tamb�m foi
atacada sexualmente. Pulaski, Tennessee, s�bado, 16 de
agosto, 1952, um pe�o de fazenda da regi�o encontrou os
parcos restos mortais de Lilian Harmond, a filha de doze
anos do chefe dos correios. Seu corpo fora cortado em dois
na altura do diafragma, a metade superior encontrada numa
cova rasa, a inferior largada embaixo de uma �rvore. O pe�o,
um jovem chamado Garth Trent, teria dito textualmente:
"Eu n�o conseguia acreditar no que estava vendo... era como
se ela estivesse ali sentada, mas s� havia as pernas... s� as
pernas."Pensei emVirginia Perlman, e entendi � com
muito mais clareza do que Garth Trent jamais entenderia �
exatamente o que ele sentira. E ent�o de novo na Ge�rgia. A
pequena cidade de Calhoun. Domingo, 10 de janeiro de
1954, o corpo desmembrado de Hettie Webster, de sete
anos, foi encontrado por um grupo de crian�as. Primeiro,
acharam o bra�o esquerdo, depois, o ombro direito e quase
toda a cabe�a. Ent�o foram embora correndo. Hettie voltava
a p� sozinha da aula de catecismo. Era o fim da manh�, um
dia bonito, e ningu�m vira nada. A pol�cia estava aturdida.
Os cidad�os de Calhoun se sentiam mais ou menos como os
de Augusta Falls.
Durante duas horas nada encontrei. Minha vista do�a. Minha
cabe�a latejava nas t�mporas de tanta dor, mas folheei os
jornais encadernados � p�gina ap�s p�gina, volume ap�s
volume. Examinei Alabama,Tennessee, Ge�rgia e Mississippi
� procura do assassino de crian�as. Encontrei-o em 1956
numa cidadezinha chamada Ridgeland, Carolina do Sul. A
cidade ficava a apenas alguns quil�metros do rio Savannah,
no m�ximo a duzentos quil�metros de Augusta Falls. O
nome da garota era Janice Waterson. Tinha nove anos; era
filha �nica. Seus pais, Reanna e Milton, disseram a todo
mundo que ela era uma menina "inteligente e curiosa,
sempre prestativa, sempre educada, apesar de nunca termos
tido que lhe ensinar a ter bons modos... era da natureza
dela". Seus p�s foram decepados nos tornozelos, assim como
as m�os o foram nos punhos. Ela foi enterrada sem essas
partes, que nunca foram encontradas. Os pais tamb�m
providenciaram um caix�o fechado, pois grande parte de seu
rosto foi cortada com uma serra.
Pareceu ent�o que eu estava sintonizado com os
movimentos dele. Parecia que eu os encontrava com mais
facilidade, e eu contava � medida que avan�ava, tomava
notas de nomes e datas e lugares; detalhes sobre a forma da
morte, a maneira como as meninas foram encontradas,
quem as achara e o que disseram. Era como se estivesse
seguindo sua pista � Moncks Corner, Sparta, Enterprise,
Alexander City, pelos anos de 57, 58, 61, 63. Eu j� via seu
rosto. Enxergava seu padr�o. Cidades pequenas, nunca longe
da rodovia, meninas de, no m�nimo, sete anos, no m�ximo,
doze.
E continuei pensando no bilhete rabiscado no arquivo de
Dearing: Aonde o garoto foi depois de Jesup?
Quando terminei, j� era de tardinha. Eu n�o comera, nem
sa�ra da mesa. A bibliotec�ria � uma mulher de meia-idade,
cabelo grisalho preso num coque apertado de cada lado do
cr�nio, batom cor de berinjela, saia de um estampado vivo e
cardig� pesado de l� � reparara em mim pouco depois das
catorze horas.
� Tudo bem a�? � perguntara, e eu lhe dera um sorriso
simp�tico, dizendo que estava tudo bem, que estava fazendo
uma pesquisa para um livro, que era meio obsessivo com
meu trabalho.
� Se precisar de alguma coisa, n�o hesite em vir falar
comigo � retrucara ela, e depois se afastara.
Deixei a Biblioteca Municipal de Montgomery com uma lista
de dezenove nomes, o �ltimo menos de quatro meses antes,
numa cidade chamada Stone Gap, poucos quil�metros ao sul
de Macon. Vinte-e nove assassinatos ao todo, num per�odo
de quase trinta anos. Um por ano ao que parecia, mas eu
sabia que eram mais. As que foram dadas como
desaparecidas e nunca encontradas. E, o que era mais
tr�gico, as que desapareceram e seu desaparecimento n�o foi
comunicado.
Voltei ao hotel do letreiro quebrado. Sabia que precisava
encontrar Dearing. Ele estava por ali, em algum canto.
Estava por ali, � procura da pr�xima. Est�vamos correndo
nos mesmos trilhos, paralelos e interligados.
O �ltimo assassinato fora na Ge�rgia, quinta-feira, 29 de
novembro de 1966; uma menina de nove anos chamada
Rachel Garrett. As mem�rias estariam recentes, as pessoas se
lembrariam de um homem como Dearing. Ningu�m assistira
ao seq�estro da crian�a. Mas um homem chegando ap�s o
ocorrido, um estranho fazendo perguntas? Com certeza,
algu�m se lembraria de uma coisa daquelas...
Quando cheguei ao quarto do hotel, fiz a mala, depois sentei
na beirada da cama e repassei mentalmente tudo o que
acontecera. Era como se eu estivesse chegando ao fim de
um cap�tulo da minha vida, um cap�tulo que come�ara com
a morte de meu pai, a alian�a de minha m�e com Gunther
Kruger e o assassinato de Alice Ruth van Horne.
Elas estavam todas por ali, cada uma delas, e eu sabia que
estavam esperando.
Esperando que eu encontrasse seu assassino e as libertasse.
� noite, os Guardi�es chegaram, e chegaram como
crian�as.
Chegaram de bra�os abertos, como se para me dar as
boas-vindas, e quando os alcancei eles viraram as
costas. Ouviu-se uma gargalhada encobrindo um
choro, que por sua vez encobria o barulho do
trabalho do Diabo que um homem s�rio fazia.
Ossos sendo serrados, sangue correndo, a vergonha, a
culpa, a f�ria e a ang�stia.
E a� soprava um vento frio, e, nesse vento, ouvi o
farfalhar de asas, com isso veio uma sensa��o de
calma.
Adormeci de novo. N�o sonhei.
De manh�, chovia.
Trinta e dois
S�bado, 1� de abril. Sentei no fundo do �nibus e fui embora
do Alabama. Tornei a cruzar a divisa estadual da Ge�rgia e
rumei para Stone Gap. Eu sabia qual seria o aspecto da cidade
antes de chegar. Sabia como seria a voz das pessoas, a cor
dos seus olhos, a profundidade de sua suspeita. Talvez elas
me vissem como eu era, talvez me vissem como algo a
temer. N�o importava. Nada importava sen�o encontrar
Haynes Dearing.
Stone Gap, como eu sabia muito bem, era uma pequena
cidade sulina. O clima, a umidade vari�vel, a trivialidade da
vida. Nada jamais acontecia em lugares como Stone Gap;
ningu�m famoso procedia de suas escolas ou da pequena
Faculdade Metodista. As ruas eram irregulares, os carros,
antigos, os pol�ticos, indefinidos. Stone Gap afirmava ter
uma comunidade de mentalidade religiosa, dotada de
toler�ncia e sobriedade, mas os bares viviam cheios, e nos
arredores da cidade haveria uma casa de propriedade de uma
mulher solteira, e morando nessa casa, haveria duas ou tr�s
garotas. Os homens visitariam essa casa, como faziam havia
centenas de anos ou mais, mas ela n�o seria mencionada nos
registros da cidade. Era como se n�o existisse e nunca tivesse
existido, e tal omiss�o nunca seria questionada no censo da
regi�o. Para l� dos limites imediatos da cidade as casas
ficavam menores e
mais espa�adas, como se os moradores dali tivessem sido
banidos. O povo de Stone Gap abominava viol�ncia, mas
todos os homens possu�am uma arma e todas as mulheres j�
haviam sujado as m�os de sangue cortando o pesco�o de um
porco. Havia um jeito de fazer as coisas, e era um jeito
antigo, mas Stone Gap sabia � sempre saberia � que os
jeitos antigos eram os melhores. Cidades como Nova York e
Las Vegas, mesmo lugares como Montgomery, re-
presentavam uma Am�rica de outro tipo, uma Am�rica que
se esquecera da terra e de suas leis, da presen�a da natureza,
da inexorabilidade do tempo.
Um lugar desses n�o desejaria se lembrar da morte de uma
crian�a, mas n�o conseguiria esquecer o fato. Esse tipo de
acontecimento ficava sepultado sob a superf�cie como um
traumatismo indel�vel, mencionado apenas em olhares e
trejeitos, cada pessoa sabendo sem palavras o que a outra
dizia. E, como Augusta Falls, Stone Gap sabia que uma
atrocidade daquelas n�o poderia ter sido perpetrada por um
de seus filhos. Tinha que ser um estrangeiro, um forasteiro,
e por muitos anos depois do ocorrido qualquer um que
chegasse e n�o fosse natural dali encontrava pouco aux�lio e
n�o recebia muita aten��o.
Parei em frente � rodovi�ria, nada mais que uma meia-�gua
de t�buas com um telhado corrugado, e conheci Stone Gap
t�o bem como se fosse minha cidade natal. Aquele era o
mundo que eu buscara deixar, mas minha partida apenas
tentara o destino a me trazer de volta. O destino tivera �xito,
mais vezes do que eu gostava de lembrar, e cada uma servira
para sinalizar que aquilo que me fora dado poderia ser tirado
com a mesma facilidade. Stone Gap perdera uma de suas
filhas: eu podia sentir no ar, ver no rosto das pessoas que
passavam por mim, e fiz o poss�vel para evitar contato
visual, para n�o ser notado, para n�o provocar perguntas.
A delegacia era uma constru��o baixa de tijolinhos no fim da
rua principal. Erguia-se isolada, �bvia em seu prop�sito e sua
import�ncia, e quando subi no p�rtico e abri a porta de tela,
vi o pr�prio xerife pela porta aberta de um gabinete bem em
frente.
� Meu nome � Joseph Vaughan � disse-lhe � e sou
escritor.
O xerife NormanVallelly tinha sessenta e poucos anos. Tr�s
quartos do seu rosto eram enrugados e o quarto restante era
salpicado de p�s-de-galinha, os olhos quase desaparecendo
quando ele franzia a testa. E esses olhos brilhavam como
moedas de um centavo; olhos que haviam visto tudo o que
as pessoas podiam fazer, tudo o que elas pensavam. Mas
havia uma tranq�ilidade naquele olhar, algo que me dizia
que o homem que ele interrogasse seria incapaz de dizer
qualquer coisa sen�o a verdade.
� A menina assassinada? � perguntou-me. � E por que
cargas-d'�gua voc� haveria de querer saber sobre uma coisa
dessas?
Recostei-me na cadeira. Eu n�o percebera como estava
exausto. Se o xerife Vallelly tivesse demorado a falar, eu
poderia ter fechado os olhos e adormecido.
� Estou trabalhando num livro � disse eu. � Um livro...
� Como aquele tal de Capote, certo? �Vallelly balan�ou a
cabe�a como se agora tivesse entendido. � Aquele tal de
Capote com aquele A sangue-frio... a hist�ria daquela fam�lia
do Kansas. Minha mulher leu o raio daquele livro tr�s ou
quatro vezes.
� Sim. Como Capote.
� Bem, sr. Vaughan, acho que o senhor n�o vai tirar
nenhum tipo de livro disso mas, se tirar, precisa mandar um
exemplar para minha mulher.
� Claro � falei. � Claro que mandarei.
� Sabe que outro sujeito esteve aqui perguntando sobre esse
assassinato?
� Um homem mais velho, de uns sessenta e dois, sessenta e
tr�s anos?
� Isso mesmo � disse Vallelly. � Xerife aposentado,
chamado Geary ou algo assim.
� Dearing � disse eu. � Haynes Dearing.
� Esse mesmo! Voc� o conhece?
� Conhe�o, conhe�o, sim. Ele era o xerife de Augusta Falls,
a cidade onde nasci.
� Ele veio aqui praticamente logo que aconteceu. A not�cia
n�o devia ter sa�do no jornal havia mais de um dia e ele j�
estava na porta fazendo todo tipo de perguntas.
� Disse que estava procurando algu�m?
� Claro que sim.
Ergui as sobrancelhas, curioso.
Vallelly chegou a cadeira para a frente e pousou os bra�os na
mesa.
� Quer que eu lhe diga quem ele estava procurando?
� O senhor poderia?
� Ele n�o sabia, filho. N�o sabia quem procurava, salvo que
poderia ser um alem�o.
� Um alem�o?
Vallelly fez que sim com a cabe�a.
� Foi o que disse. Disse que procurava um alem�o.
� Mencionou algum nome?
� N�o, n�o me deu nome nenhum. Primeiro imaginei que o
seu Haynes Dearing pudesse ter sido convocado para nos
ajudar com essa coisa, mas ele n�o se demorou mais de uma
ou duas horas e foi embora.
� Disse para onde?
� Nem se despediu. Entrou e saiu daqui afobado.
� E a investiga��o? � perguntei.
Vallelly recostou-se na cadeira e franziu a testa.
� N�o posso lhe dizer qual � o rumo de uma investiga��o
em curso, meu filho. Simplesmente n�o posso divulgar esse
tipo de informa��o.
� Mas ningu�m foi preso, certo?
Vallelly fez uma pausa, depois sorriu com sarcasmo.
� Digamos que n�o saiu nenhuma manchete sobre isso no
Stone Gap Herald e vamos ficar nisso.
� E o senhor n�o teve mais not�cias do xerife Dearing? �
perguntei.
Vallelly fez que n�o.
� N�o, nenhuma. Ele disse que me informaria se sua
investiga��o desse em alguma coisa. Voc� disse que era de
Augusta Falls?
Assenti.
� E ele era o xerife de l�?
� Era, sim, e foi por muitos anos.
� E tiveram o mesmo problema l�?
� Foram dez � disse eu. � Entre 39 e 49. Dez meninas
foram assassinadas.
� Todas na mesma cidade?
Fiz que n�o.
� N�o, algumas eram de condados vizinhos. No fim, havia
uns cinco distritos policiais envolvidos.
Vallelly assobiou entre os dentes. Pegou o cachimbo na
mesa e come�ou a abastec�-lo de fumo.
� E � a mesma pessoa?
� N�s acreditamos que sim.
� N�s?
� Eu e Haynes Dearing.
� Sim, claro. E est� tentando encontrar esse tal de Dearing
para poderem investigar isso juntos?
� Sim.
Vallelly olhou para mim por cima do fornilho do cachimbo.
� E voc� � escritor e ele � xerife aposentado.
� Sim.
� E voc�s acham que v�o se dar melhor do que eu e um
bando de outros xerifes de meia d�zia de condados?
Sorri.
� N�o, claro que n�o. Isso j� vem acontecendo h� trinta
anos. Houve assassinatos no Mississippi, no Tennessee, no
Alabama e na Carolina do Sul. At� onde sei, houve pelo
menos uns trinta ao todo, talvez mais. Muitos dos agentes
originais n�o est�o mais na ativa. Imagino que alguns
estejam aposentados, outros tenham morrido. Acho que n�o
se compreendeu realmente a natureza do problema. S�o
muitos anos e muitos lugares diferentes. Cada cidade tem
seu pr�prio povo e sua pr�pria investiga��o, mas nunca
houve uma coordena��o.
� E est� planejando escrever um livro sobre isso?
� O primeiro passo � encontrar Haynes Dearing, ver o que
ele sabe, ent�o talvez tentar instigar uma esp�cie de
opera��o de uma for�a-tarefa que reunir� todas as
informa��es e ver se h� um padr�o, uma forma de fazer todo
mundo trabalhar em conjunto.
Vallelly ficou calado. Acendeu o cachimbo, e a crepita��o da
combust�o do tabaco era o �nico ru�do que se ouvia na sala.
Arabescos de fuma�a subiam para o teto, e a luz que entrava
pela janela os transformava em fantasmas.
� N�o sei o que lhe dizer � disse por fim. �Tenho uma
menina morta. Foi pega perto da casa dela, ao meio-dia.
Ningu�m viu nada de anormal, nada de que se lembrem. Ela
foi encontrada horas depois...
� Como foi encontrada, xerife?
Ele franziu a testa.
� Como foi encontrada? Voc� quer dizer quem a
encontrou?
� N�o � disse eu. � Quero dizer: O que ele fez com ela?
Vallelly olhou de novo para mim.
� N�o sei se isso � algo que eu queira comentar com
algu�m.
� Eu encontrei uma delas.
Vallelly ficou desconcertado.
� Quando eu tinha catorze anos. Encontrei uma delas no
alto do morro perto da minha casa. � Senti a lembran�a me
invadindo, me angustiando. � Quando digo que a
encontrei, � mais preciso dizer que encontrei a maior parte
dela.
� Jesus � disse Vallelly, e a palavra foi contundente e
s�bita.
� Eu sei o que ele faz. J� vi de perto. J� li e j� falei a respeito,
carrego isso desde que me lembro...
� Ele a cortou ao meio, sr. Vaughan � disse Vallelly. �
Cortou-a ao meio como se ela fosse um saco de nada.
Deixou-a no meio de um bosque na beira da estrada, onde
poderia ser encontrada por qualquer pessoa, inclusive por
crian�as. Nunca vi nada parecido, e espero em Deus nunca
tornar a ver. Foi o que ele fez com ela, sr. Vaughan, cortou
uma menina de nove anos ao meio e largou-a na beira da
estrada.
Ficamos os dois calados algum tempo, depois Vallelly ergueu
os olhos e disse:
� Ent�o, o que vai fazer agora, meu filho? Tem algum plano
sobre como encontrar esse seu amigo?
� Nada de espec�fico � disse eu.
� Nada de espec�fico n�o vai resolver, vai?
� N�o, n�o vai.
� Quer que eu emita para voc� algum tipo de alerta para ele?
� O que quer dizer isso? � perguntei. � Um alerta.
� Posso enviar uma mensagem por teletipo para cada
delegacia do estado. Posso dar o nome e a descri��o do
homem. Posso dizer que ele n�o est� sendo procurado por
qualquer tipo de investiga��o, mas que precisa ser
localizado. Quer que eu avise aos delegados que digam a ele
que voc� o est� procurando?
� Claro que sim � falei. � Se algu�m o vir, pode lhe avisar
que quero falar com ele.
� E podem dar a ele seu nome?
� Sem d�vida, sim. Eu ficaria muito, muito grato, xerife.
� Considere isso feito, sr. Vaughan. Eu tenho um monte de
gente que quer descobrir o que aconteceu com Rachel
Garrett, e se houver algo que v� me ajudar a conseguir isso,
ent�o � simplesmente meu dever providenciar, voc� n�o
acha?
Agradeci ao xerife NormanVallelly t�o efusivamente que
achei que ele ficou sem jeito. Avisei-lhe que ficaria um ou
dois dias em Stone Gap, talvez mais um pouco. Ele
prometeu me manter a par de qualquer informa��o que
recebesse, e pediu-me que o informasse do meu paradeiro se
resolvesse ir embora. Recomendou-me o Hotel Excelsior na
Rua Fallow, tr�s quarteir�es � direita.
� Parece o Ritz ou coisa assim, mas com certeza n�o � nada
disso. � bastante asseado, cobra um pre�o justo por um
quarto, e saberei onde encontr�-lo.
Tornei a agradecer aVallelly, apertei-lhe a m�o e sa� do seu
gabinete.
Caminhei tr�s quarteir�es e encontrei o Excelsior, um
pr�dio de tr�s andares pintado de uma cor esbranqui�ada,
com janelas creme.Tive a sensa��o de que algo estava
acontecendo. Pela primeira vez desde que me lembrava eu
achava que poderia haver uma chance. T�nue e
inconsistente, mas mesmo assim uma chance. �quela altura,
estava grato por qualquer coisa, e optei por n�o questionar
minha esperan�a.
Na quarta-feira, 5, eu estava subindo pelas paredes do meu
quartinho de hotel. Por duas vezes fora at� o gabinete do
xerife Vallelly, tendo, na primeira, encontrado a porta
fechada, as luzes apagadas e o xerife ausente; na segunda, na
noite de segunda-feira, ele apenas olhou para mim de detr�s
de sua mesa, aqueles mesmos olhos franzidos, e fez um
gesto negativo com a cabe�a. N�o falou nada, eu tamb�m
fiquei calado e fui embora.
Da janela do meu quarto eu via o cruzamento da rua Fallow
com a outra rua. � minha direita, ligeiramente escondida,
ficava a escola de Stone Gap, um conjunto de pr�dios de
tijolos aparentes com um campo atr�s. Certas horas, ouvia o
riso e a algazarra das crian�as � de manh� cedo, por volta
do meio-dia e, depois, no meio da tarde, quando eram
liberadas para ir para casa. Pouco depois das tr�s, na quinta-
feira, eu estava deitado na cama, e o barulho de risadas de
meninas veio entrando pela janela. Era alguma brincadeira
de pular, e, chegando mais perto, ouvi o que diziam. Ao
ouvir suas vozes, s�bita e inesperadamente, gelei.
� Um dois... feij�o com arroz... tr�s quatro... feij�o no
prato... cinco seis... falar franc�s... sete oito... comer
biscoito... nove dez... comer past�is...
� Palma... palma... palma...
Fiquei ali ajoelhado, os bra�os no parapeito, o queixo
apoiado nas m�os. Olhos fechados. Cada vez que elas
cantavam aquele refr�o eu sentia um arrepio na nuca. Era
como se soubessem que eu estava ali, e estivessem sim-
plesmente me lembrando do motivo. Por fim, eu n�o
poderia dizer quando, ouvi o sil�ncio.Voltei para a cama e
me deitei. Meu rosto estava molhado de l�grimas, mas eu
n�o me lembrava de ter chorado.
Quarta-feira �s dezessete horas tornei a ir ao gabinete de
Vallelly. Apareci na porta de tela e ele chamou meu nome e
fez sinal para que eu entrasse.
� N�o tenho nada para voc� � disse. � Sei que deve ser
frustrante, mas no momento acho que n�o h� muito mais
que eu possa fazer. Seu amigo est� por a� em algum canto, e
a menos que j� tenha sa�do do estado, com certeza algu�m
vai v�-lo. � Sorriu com boa vontade. � A �nica coisa que
n�o podemos prever � quando ser� isso.
� Estou pensando em voltar para Nova York � disse eu,
constatando que expressava algo em que nem sequer
pensara seriamente. Foi uma id�ia passageira, e, enquanto
passava, eu me perguntava por que resolvera dizer aquilo.
� Parece uma id�ia t�o boa como outra qualquer � disse
Vallelly. �Voc� pode me ligar assim que chegar l� e me
dizer como encontr�-lo. Quando chegar l�, talvez eu j�
tenha not�cias dele.
Adiantei-me e sentei-me de frente para o xerife.
� Eu poderia ficar esperando a vida inteira � disse eu com
resigna��o. Dei-me conta de que n�o falava com ningu�m
havia mais de tr�s dias, queria falar, queria ouvir o som da
minha pr�pria voz, ouvir algu�m responder e retrucar. A
solid�o se instalara e eu n�o estava gostando. � � crucial
que eu me encontre com ele, mas sinto que ficar aqui n�o
est� adiantando nada...
� A n�o ser me lembrar de que n�o consegui o que voc�
queria � disse Vallelly.
E sorriu, sorriu como o Haynes Dearing de que eu me
lembrava da minha inf�ncia, e me doeu pensar nele, em
tudo por que passamos, e l� est�vamos os dois � tantos anos
depois, ainda perseguindo os mesmos fantasmas.
�Vou lhe dizer uma coisa � falou Vallelly. Tornou a pegar
o cachimbo, repetiu o ritual de ench�-lo e apertar o fumo.
� Quando se chega � minha idade, com esses anos todos de
experi�ncia nesse departamento, a gente come�a a se
perguntar se n�o existe uma porcentagem da popula��o que
n�o vamos entender nunca. Uma coisa como essa, o
assassinato de crian�as... e n�o s� o assassinato, mas tamb�m
a maneira como foram massacradas e atacadas... � Vallelly
fechou os olhos por um momento e balan�ou a cabe�a. � O
senhor entende uma coisa dessas, sr. Vaughan?
� N�o � disse eu. � N�o entendo nem sei se quero
entender. Uma pessoa como essa...
� � o tipo mais doente de indiv�duo que se vai encontrar �
interrompeu Vallelly. � � o que penso.
Sorri e olhei para o ch�o.
� Parece que essa situa��o existe desde que me entendo por
gente. Come�ou quando eu era pequeno e... bem, droga,
parece que contaminou tudo o que fiz desde ent�o.
� E essa � a raz�o do livro?
Franzi a testa.
� O livro?
� Claro, o livro que est� escrevendo. Acho que botar tudo
no papel vai ser uma esp�cie de exorcismo para voc�, certo?
Encolhi os ombros.
� Talvez � disse eu. � Vamos ver, n�o?
� Ent�o me diga uma coisa � disse Vallelly. Inclinou-se �
frente, apertou os olhos. � O que o fato de ver uma coisa
dessas faz com uma crian�a?
� Faz que pense na natureza transit�ria de tudo � respondi.
� N�s �ramos um grupo. Cham�vamos a n�s mesmos os
Guardi�es. Haynes Dearing pendurou uns cartazes por toda
Augusta Falls. Eram avisos dirigidos a n�s, lembravam-nos
de que dever�amos estar todo tempo alertas, atentos a
estranhos. No cartaz, botaram a silhueta de um homem. S�
isso. Talvez tenha sido a coisa mais importante que j� fiz.
Reuni aqueles garotos, e fizemos um juramento. At�
cortamos as m�os e fizemos aquele pacto todo de irm�os de
sangue. Prometemos garantir a seguran�a das crian�as,
tomar conta delas, n�o deixar que nada de ruim lhes
acontecesse.
� Mas o problema n�o parou, certo?
� N�o, n�o parou. E voltei a Augusta Falls poucos dias atr�s,
e procurei alguns desses garotos...
� E deixe-me adivinhar... eles n�o tinham tempo para voc�.
� Isso mesmo.
Vallelly sorriu com compreens�o.
� Eu imaginava. J� s�o adultos, j� t�m filhos. O que quer que
tenha acontecido naquela �poca n�o est� acontecendo agora,
portanto, n�o tem nada a ver com eles.
Assenti.
� � a natureza humana, sr. Vaughan. Acho que nunca foi
assim, mas agora �. O mundo mudou. As pessoas mudaram
mais. N�o sei se necessariamente gosto do rumo que tudo
est� tomando, mas, com certeza, n�o vou impedir nada
sozinho.
� Ent�o a gente faz o que pode e torce para que isso fa�a
alguma diferen�a, certo?
� Certo -� disse Vallelly. � Como o senhor e seu amigo
Haynes Dearing.
Comecei a me levantar da cadeira.
� Pode acreditar, sr. Vaughan, quero que o descubra �
disse Vallelly. � Quero que se encontre com ele e veja se �
poss�vel fazer alguma coisa para impedir que isso v� adiante.
Farei o que puder. Enviarei outro telex, e assim que chegar a
Nova York me ligue e me informe onde posso encontr�-lo,
sim?
�Vou ligar � disse eu.
Estendi a m�o e o xerife Norman Vallelly e eu nos
cumprimentamos. Ent�o, virei as costas e sa� do seu
gabinete.
Voltei ao Excelsior e fiz minha mala. Na recep��o, indaguei
sobre os �nibus, fui orientado a pegar uma conex�o para
Atlanta, e ali encontraria um Greyhound que me levaria de
volta a Nova York.
Eu n�o queria partir, mas achava que n�o poderia ficar.
Entre a cruz e a espada. Partir parecia mais f�cil, ent�o fiz
isso.
Sa� de Atlanta para Nova York. � tardinha, quinta-
feira, 6 de abril de 1967. Se eu soubesse ent�o que
tudo terminaria em alguns dias, me pergunto se teria
atrasado a viagem. Estranho pensar nisso agora, mas a
pergunta em minha mente era o que eu faria quando
aquilo terminasse. Qualquer que fosse o resultado, em
algum momento, aquilo acabaria, e a�, aonde eu iria?
Peguei o Greyhound, dormi como pude. Viajamos
durante oito horas, depois paramos por alguns
minutos. Saltei do �nibus e fiquei na beira da estrada.
Meu corpo do�a. Minha mente estava sepultada em
um po�o fundo de ang�stia. Olhei para meus
companheiros de viagem; um homem acima do peso
com um chap�u de feltro que recendia a lo��o p�s-
barba de loja popular e a cigarro de trinta centavos;
uma jovem gr�vida, no m�ximo dezenove ou vinte
anos, carregando tudo o que possu�a numa sacola
Samsonite surrada; um vendedor de sapatos,
cinq�enta e tr�s anos e morto de cansa�o, na carteira
uma foto da esposa que o largara, do filho que n�o lhe
telefonava havia onze anos; ao lado dele, um zagueiro
universit�rio louro de dentes grandes com um joelho
problem�tico, finalmente resignado a viver sem
animadoras de torcida, vesti�rios e fric��es com
�lcool. Essas pessoas eram fantasmas, imagens
daquelas que povoavam um outro mundo, um mundo
do qual eu parecia ter saltado, talvez para nunca
voltar. Tentei falar com elas, mas o que eu poderia
dizer? "Venho
da pris�o por um crime que n�o cometi. Perdi mais
gente do que jamais ganharei. Estou atravessando os
Estados Unidos para encontrar um homem que me
ajudar� a identificar o matador das crian�as. Pelos
meus c�lculos, h� vinte e nove crian�as mortas.
Ou�o-as, todas. O rosto de algumas est� gravado
deforma indel�vel em minha retina. Quando fecho os
olhos, elas s�o tudo o que consigo ver. Agora, sobre o
que voc� queria falar comigo?"
Entramos em Nova York domingo de manh�. Nova
York mudara, mas, assim como acontecia com
Augusta Falis, a Nova York de que eu me lembrava
continuava ali, sob a superf�cie. Lembrei-me da
primeira vez que eu vira a cidade, em abril de 1949.
O impacto que me causara. Tudo brilhante, ousado e
arrogante. Majestoso. Imponente. A casa sem p�ra-
raios da humanidade.
Eu me lembrava de como Nova York me tirara o
f�lego, e me deixara por mais dois dias sem ar.
Dezoito anos haviam se passado. Senti-me como um
velho em compara��o.
O Brooklyn me atra�a, magn�tico e fascinante, e segui
essa atra��o.
Fiquei ali parado na esquina da Throop com a Quincy.
A casa de Aggie Boyle desaparecera. N�o era mais a
mesma rua, nem o mesmo cruzamento, mas eu sentia
a lembran�a de Bridget ali. Ela tamb�m era um
fantasma que me perseguia.
Parecia adequado estar ali. Estar onde come�ara meu
pesadelo pessoal. Para fazer uma catarse, talvez, ou
apenas tentar o destino, peguei um quarto de hotel a
menos de noventa metros de onde eu virara a esquina
e sa�ra correndo naquele dia em que voltei de
Manhattan, direto para o pior dia da minha vida. Ou
talvez n�o � parecia ter havido tantos! Como eu
merecera uma vida daquelas? Que crime cometera que
me valera uma justi�a daquelas?
Eu n�o sabia. Nem me atrevia a perguntar. Deixei
minha mente se calar, e fiquei sentado junto � janela
do meu quarto vendo o Brooklyn com outros olhos.
De manh� eu ligaria para o xerife Vallelly e lhe diria
onde estava.
Trinta e tr�s
� Temos not�cias dele � disse Vallelly t�o logo a liga��o se
completou.
� Dearing?
� Exatamente. Ele foi visto em Baxley.
� Baxley? � perguntei. Baxley ficava no m�ximo a uma
hora de Augusta Falls.
� Um conhecido meu de l�. Trabalh�vamos juntos quando
eu estava em Macon.
� Cristo � disse eu entre os dentes. Estava na recep��o do
hotel. Atr�s de mim, pela janela da frente, teria dado para eu
ver o cruzamento da Quincy. Dei as costas para a
recepcionista numa tentativa de manter um m�nimo de
privacidade.
� Sr.Vaughan? Est� na linha?
� Sim... ahn, desculpe... Estou, sim. Tudo bem, ent�o ele
esteve em Baxley. Como falaram com ele?
� Ele parou no acostamento com um pneu furado... Meu
amigo, que � o sub-xerife de l�, parou para dar uma ajuda, e
os dois come�aram a conversar. Meu amigo disse que ele
devia entrar em contato comigo, que eu tinha not�cias de
um velho amigo que queria visit�-lo.
-� Deram meu nome?
� N�o, eu n�o dei seu nome. Estou torcendo para seu fulano
me ligar, entrar em contato comigo, e a� posso dar a ele seu
paradeiro.
� Ele n�o disse aonde estava indo?
� Disse que estava saindo da Ge�rgia, indo para o norte,
acho que disse. Parece que n�o falou muito, mas disse que
me ligaria.
Fiquei calado.
-� Essa not�cia o surpreendeu um pouco, sr. Vaughan.
Respirei fundo, prendi o ar um instante.
-� Sim -� disse eu. � A chance era, na melhor das
hip�teses, m�nima. Cristo, n�o sei o que dizer.
� Bem, n�o h� muito o que dizer at� Dearing entrar em
contato comigo, e a� vamos ver o que vamos fazer. Certo?
� Certo. E obrigado. Fico muito grato por tudo o que est�
fazendo para ajudar.
� Que diabo, sr. Vaughan, como eu disse antes, se � para
acabar mais depressa com esse problema, � mais do que um
prazer ajudar. Ent�o fique a�, sim? E se Haynes Dearing me
ligar, vou me certificar de que ele entre logo em contato
com voc�.
� Obrigado. Sim, t�o logo saiba de alguma coisa, ligue.
� Agora cuide-se, sr.Vaughan, e tomara que eu tenha
not�cias para lhe dar.
Agradeci novamente ao xerife Vallelly e desliguei. Disse ao
recepcionista que me chamasse t�o logo recebesse alguma
liga��o.
O recepcionista � um baixinho com uma calva incipiente
chamado Leonard, mechas de cabelo esquisitas se
projetando na horizontal de detr�s das orelhas, me olhou
por cima dos �culos meia-lua.
� Problemas? � perguntou, desconfiado.
Sorri, fiz que n�o.
� Um pouco ansioso � disse eu. � Um amigo de longa
data. N�o nos falamos h� muitos anos e h� chance de eu t�-
lo encontrado.
Leonard sorriu, aliviado.
� Boa sorte � disse. � Pode deixar que mando chamar o
senhor se receber uma liga��o.
Voltei para o quarto, sentei na beirada da cama. Tinha a
sensa��o de que meus ombros n�o estavam ag�entando o
peso da minha cabe�a e me deitei, puxei um travesseiro para
me recostar e tentei pensar.
Augusta Falls. Xerife Haynes Dearing. Os Guardi�es versus o
assassino de crian�as. Recapitulei tudo o que tinha
acontecido, tudo de que eu conseguia me lembrar. Pensei na
palestra de Dearing na escola, na forma como ele olhou para
cada um de n�s, sem mencionar nossos nomes, mas
deixando claro a quem se referia. A viola��o do toque de
recolher. Os avisos. Minha m�e. A maneira como ela
deslizou irreversivelmente para algo apavorante. Elena
Kruger. O fato de n�o t�-la protegido. Os juramentos que
fiz�ramos quando crian�as, e como os quebr�ramos.
E pensei no assassino, nas meninas que tinham sofrido nas
m�os dele. Tentei entender o que levaria um homem a tais
barbaridades. Raiva. �dio. Ci�me. Uma loucura indescrit�vel
que vinha do fundo da alma e jamais poderia ser exorcizada.
Uma loucura que Laurence Gabillard, a despeito da
quantidade de letras ap�s seu nome, jamais poderia esperar
compreender.
E a� pensei na Ge�rgia, em tudo o que a Ge�rgia fora, em
tudo o que representava. Em Reilly Hawkins, Frank Turow,
no caolho Lowell Shaner, que integrou a fileira dos setenta
homens e chorou por uma menina que n�o conhecia. Os
aromas e os barulhos da cozinha dos Kruger, de Mathilde e
das crian�as.
Da pergunta no dossi� de Haynes Dearing: Aonde o garoto
foi depois de Jesup?
Aonde o garoto foi?
As s�bitas batidas na porta me sobressaltaram. Desequilibrei-
me na beirada da cama. Levantei-me de repente, o sangue
subindo � cabe�a. Estava totalmente desorientado. Fui at� a
porta, abri-a, e Leonard estava ali parado � afogueado,
agitado.
� Sua liga��o � disse. � Sua liga��o l� embaixo.
Passei por Leonard correndo e desci como um raio. Cheguei
� mesa e peguei o telefone.
� Joseph � disse Haynes Dearing.
� Xerife Dearing?
Ele riu.
�Jesus, j� nem me lembro da �ltima vez que me chamaram
assim. Puxa, filho, como vai voc�?
Comecei a rir. Senti uma enxurrada de emo��es me
percorrer. Fiquei tonto, quase enjoado, e custei um pouco a
encontrar algo para dizer.
� Eu vou... eu vou bem. Vou bem, sim, xerife. Ando
procurando o senhor.
� Foi isso que eu soube � disse Haynes Dearing, e ao ouvir
sua voz todas as lembran�as que eu tinha dele voltaram
como se tiv�ssemos conversado ainda na v�spera. Eu tinha
tudo para lhe dizer, mas mal conseguia formar uma frase.
� Ent�o, onde voc� est�? � perguntou ele.
� Em Nova York � respondi. � No Brooklyn.
� Jesus, logo no Brooklyn. Imaginei que estivesse farto
desse lugar... sabe, com tudo o que aconteceu naquela
�poca.
� Tudo na minha vida, xerife � disse eu. � Eu esperava...
� Que pud�ssemos nos encontrar?
� Sim, sim, que pud�ssemos nos encontrar. Onde o senhor
est�?
� Nossa, por a�. Mas posso ir v�-lo � disse Dearing. �
Posso ir a Nova York falar com voc�, Joseph... se � isso que
voc� quer.
� Sim � falei. Eu estava uma pilha de nervos. Estava com
medo, exausto e n�o ag�entava mais de impaci�ncia. Eu
veria Haynes Dearing. Entre n�s, entender�amos e
encerrar�amos aquilo. Eu sabia. Eu acreditava nisso. Tinha
que acreditar.
� Tudo bem, ent�o, estamos combinados � disse Haynes
Dearing. � Vou a Nova York. Me diga onde est�.
Dei-lhe o endere�o do hotel. Disse-lhe que n�o sairia dali, e
que veria quando ele chegasse. Agradeci por ter ligado, por
concordar em ir, pela possibilidade de finalmente podermos
conversar e chegar mais perto da verdade.
Haynes Dearing me desejou boa sorte, e desligamos.
Fiquei ali com o fone queimando na m�o at� Leonard tom�-
lo de mim e pous�-lo de novo no gancho.
� Est� tudo bem? � perguntou.
Olhei para ele. Eu sorria como um tolo.
� N�o podia estar melhor � disse eu. � N�o podia estar
melhor.
Uma hora depois, sa� para comprar comida � p�o, queijo,
presunto, umas ma��s. Eu n�o queria precisar sair do hotel.
Levei as compras para o quarto e coloquei-as na mesa perto
da janela. Fiquei sentado em uma das duas cadeiras que havia
encostadas na parede.
N�o consegui ficar assim por muito tempo. Comecei a andar
de um lado para o outro. Fui at� a janela e fechei a cortina.
Queria que fosse noite. Queria dormir, n�o pensar em nada,
queria que j� fosse o dia seguinte e eu estivesse vendo Hayes
Dearing l� embaixo na rua se encaminhando para o hotel.
Desci e liguei para o xerife Vallelly para comunicar que
Dearing havia ligado e lhe agradecer pela ajuda. O telefone
tocou do outro lado da linha. Ningu�m atendeu.
De volta ao quarto, fiquei andando entre a janela e a porta
do pequeno banheiro. Eu tinha a sensa��o de estar de novo
em Auburn, contando passos para n�o pensar em nada.
Achei que iria explodir, que entraria em combust�o
espont�nea ali naquele quarto. Os sentimentos que me
assaltavam eram indefin�veis, mas pr�ximos, muito mais
pr�ximos que qualquer outra coisa. Tentei pensar em textos
que lera, em filmes que vira. Tentei pensar em Alex, em
Bridget, tentei visualizar o rosto delas para me lembrar da
raz�o pela qual estava fazendo aquilo. Elas n�o vieram, quase
como se sentissem minha perturba��o e n�o desejassem
participar dela.
Acabei me deitando na cama. Fechei os olhos, e o sono me
puxava; eu resistia, mas o sono era forte; meu corpo estava
cansado, e minha mente achava que eu n�o ganharia nada
lutando. E enquanto estava ali deitado imaginei meu
encontro com Haynes Dearing, as coisas sobre as quais
falar�amos, os anos que ele passara viajando por aquele pa�s
procurando se redimir. Ele matara Gunther Kruger, isso eu
sabia ser verdade, e me perguntava at� que ponto o remorso
por esse ato o perseguira.
Estou perdido, diria ele. Passei vinte anos andando e
continuo perdido, continuo na mesma, sem entender nada.
Tudo bem, eu lhe diria. Tudo bem, porque entre n�s vamos
acabar com isso de uma vez por todas. Voc� est� aqui agora,
e � s� o que importa, e quero que me diga o que viu e ouviu,
o que acha, por que pensa que isso tudo nunca terminou.
Voc� pode fazer isso, n�o? Pode fazer isso por mim?
E Dearing se sentaria na cadeira ao lado da janela, e atr�s
dele, com o sol do poente, seu cabelo seria uma aur�ola, e eu
pensaria em anjos, e essa id�ia me faria lembrar do rosto
delas, e nesse momento eu estremeceria ao reconhecer
aquilo, e me daria conta do motivo pelo qual me deixara
consumir.
Ent�o fale, eu lhe diria. Conte-me tudo, que serei todo
ouvidos.
E ele espalharia os recortes de jornal na cama, e olhar�amos
juntos para os rostos delas, e ele me diria por que achava que
haviam morrido, e por que Bridget fora assassinada a menos
de noventa metros de onde est�vamos sentados ent�o. E eu
tentaria entender o que ele dizia, as conclus�es que tirara
naqueles anos todos em que estivemos separados, e ele
falaria de como tamb�m era perseguido por fantasmas do
passado, que tamb�m podia fechar os olhos, ver o rosto
delas, ouvir suas risadas, seus assobios e suas brincadeiras
infantis. E talvez chorasse, e ao chorar juntos talvez
compartilh�ssemos um sentimento fraternal, uma
camaradagem, e saber�amos que t�nhamos vivido aquilo
juntos embora separados. E a� ele falaria do que fazer, de
onde iria, de como aquilo terminaria.
Falar�amos de medo, de frustra��o; falar�amos de raiva, de
�dio; falar�amos das noites em que enfrentamos aquele
homem em nossos sonhos, e de como o hav�amos matado.
Matado mil vezes. E de como acordar�amos, e nos dar�amos
conta de que a justi�a que julg�vamos ter feito n�o passava
de ilus�o, uma assombra��o, um fantasma... assim como o
matador de crian�as.
Essas coisas todas, e por baixo delas estaria a lembran�a
daquele tempo em Augusta Falis, do come�o do pesadelo, e
de como tudo deveria ter terminado l�.
Um c�rculo, eu diria.
E Haynes Dearing me olharia, e em seus olhos eu veria um
homem mais jovem, um homem que de alguma forma
gostava de mim, de minha m�e, que a visitara quantas vezes
pudera, que falara com ela e a fizera se decidir. Quando todo
mundo nos repudiava, o xerife Dearing nos dera apoio. Ele
nunca desistira. Uma rocha. Um pilar de for�a. Um homem
pouco transigente e reservado.
Foi dif�cil. Eu lhe diria. Sofrer tantas perdas. Minha m�e.
Alex. Bridget. Elena e todas as outras. N�o sei como algu�m
pode suportar perder tanta gente e ainda acreditar na
bondade fundamental do ser humano.
� porque temos f�, diria ele. � porque acreditamos no que
estamos fazendo, venha de que lado vier, acreditamos no
que estamos fazendo.
Ao chegar mais perto de mim agora, sussurrando talvez,
num tom quase conspirat�rio, como se s� n�s dois
compreend�ssemos a natureza do que acontecera.
E temos que fazer algo para impedir que isso continue, diria
eu, e Haynes Dearing acenaria com a cabe�a e concordaria,
e a� me contaria a respeito dos anos que passara percorrendo
os Estados Unidos � procura da pr�xima menina, talvez
esperando contra todas as probabilidades que n�o houvesse
outra, mas sabendo, sabendo, que haveria.
Lembra-se dos Guardi�es?, perguntaria eu, e Dearing riria.
Era assim que nos intitul�vamos, os Guardi�es. Eu, Hans
Kruger, Maurice Fricker � lembra-se dele? Estive com ele
recentemente...
Recentemente?
Sim, uns dias atr�s. Sabe que o pai dele morreu?
Gene morreu?
Sim, morreu. Foi atropelado em algum lugar no condado e o
motorista fugiu. Maurice � igualzinho ao pai. Sempre foi,
mas agora que est� mais velho � mais ainda. E Michael
Wiltsey? O Rei do Bicho-carpinteiro, n�s o cham�vamos.
N�o conseguia parar quieto. E havia Daniel McRae... E
fic�vamos sempre de olho nele, sabe? Porque a irm� dele foi
uma das que morreram. Fic�vamos de olho como falc�es,
como se a qualquer momento ele pudesse desabar e
f�ssemos ficar com os destro�os nas m�os. E Ronnie
Duggan. Conhece Ronnie Duggan?
Sim, eu me lembro dele. Um miudinho, sempre com o
cabelo nos olhos.
Esse mesmo. Ele tamb�m estava conosco. E o senhor
espalhou aqueles cartazes pela cidade toda, aqueles da
silhueta.
Eu me lembro disso... Jesus , h� muitos anos que n�o penso
nisso.
Sim... e eram os Guardi�es contra o assassino de crian�as, e
embora soub�ssemos que n�o pod�amos fazer de fato nada
para impedi-lo, pelo menos tentamos, certo? Tentamos fazer
o que pod�amos para impedir que esse horror acontecesse.
Sei que voc� tentou, Joseph, sei que tentou. E o que eles
disseram quando o viram?
Eles n�o quiseram saber, xerife, simplesmente n�o quiseram
saber. Tentaram fingir que era coisa do passado. Que tinha
parado de acontecer em Augusta Falls, quando Gunther
morreu.
Sim... quando Gunther morreu.
Sobre isso, eu sei, xerife. Sei o que aconteceu naquele dia.
Sei que sabe, Joseph. Sei que voc� imaginou o que
aconteceu. E entendo por qu�.
Entende?
Sim, acho que sim. Porque voc� queria que todo mundo
voltasse para sua vida normal. Queria que tudo voltasse a ser
o que era antes que aquilo tudo come�asse, e achou que se
soubessem quem era o culpado as pessoas parariam de se
preocupar, parariam de ter medo, e Augusta Falls poderia ser
a cidade que era antes de Alice ser assassinada.
Dearing ficaria calado, e olharia para mim com l�grimas nos
olhos, e assim como minha m�e quando falava do que
houvera entre ela e Gunther Kruger, eu veria que ele queria
que eu o perdoasse.
Posso tentar entender... mas n�o posso perdo�-lo, xerife.
N�o posso absolv�-lo dos seus pecados. Isso � algo que o
senhor tem que resolver quando procurar sua reden��o.
Eu sei, Joseph, eu sei. Queria muito que tudo terminasse. Sei
que voc� compreende. Queria que tudo voltasse a ser o que
era antes. Devo ter achado que se tivessem algu�m em quem
p�r a culpa, seria uma esp�cie de liberta��o. Devo ter
achado...
Tudo bem, xerife, tudo bem. Agora acabou, e podemos falar
o quanto quisermos, mas o que aconteceu n�o vai mudar.
E agora, Joseph? E agora?
Agora? Que diabo, n�o sei. Parece que foi h� tanto tempo...
h� tanto tempo que eu �s vezes me pergunto se n�o foi tudo
um sonho, um sonho t�o real que achei que tivesse
acontecido.
Aconteceu, Joseph, aconteceu, sim.
Eu sei, xerife, eu sei.
Ent�o, o que vamos fazer agora, Joseph?
Eu esperava que o senhor tivesse uma resposta.
Eu? Por que acha que eu teria respostas melhores que as suas
sobre isso?
Porque o senhor estava l�. Esses anos todos... enquanto eu
estava no Brooklyn, enquanto estava preso em Auburn, o
senhor ainda estava l�, procurando.
S� porque estava procurando n�o quer dizer que tenha uma
id�ia melhor sobre o que fazer. A �nica diferen�a � que vi
mais disso do que voc�, s� isso. Nem mais nem menos que
isso, Joseph... A �nica diferen�a � que vi mais.
E o fato de ter visto mais faz que entenda melhor o que
aconteceu, xerife?
Sil�ncio por uma eternidade, e ent�o, com os olhos
marejados, ele olharia para mim e diria: porque matou a
primeira menina, e a partir da� ficou com vergonha. Acho
que ela falava com ele, zombava dele, seguia-o aonde quer
que fosse, e cada menina que ele via o fazia lembrar da
primeira, e depois da segunda, e depois da terceira. E ele
tinha que calar a voz delas, Joseph. Acho que elas falavam
com ele e o deixavam louco. N�o o deixavam dormir. N�o o
deixavam ter vida de esp�cie alguma. Tinha que faz�-las ir
embora... e, finalmente, todas elas passaram a ser a mesma, e
olhavam para ele do mesmo jeito, e suas vozes eram como
uma s� voz, e o �nico jeito de silenci�-las era mat�-las.
Culpa, entende? A semente da culpa foi plantada, e a partir
dali ele n�o poderia fazer nada sen�o tentar fazer a culpa
desaparecer.
Acha que foi isso que aconteceu?
N�o sei, Joseph. N�o sei se algu�m algum dia entender�. J�
tentei, pode acreditar, j� tentei... mas, quanto mais penso,
mais confuso fico.
Chega... j� chega. S� temos que decidir o que fazer... s�
isso... s� temos que decidir o que fazer.
Na manh� de quinta-feira, 11, acordei de repente. Minhas
roupas estavam encharcadas de suor. A claridade tentava
penetrar no quarto pelas cortinas cerradas, mas o barulho da
rua me dizia que outro dia chegara. Olhei para o rel�gio.
Passava das onze.
Levantei e tomei uma ducha. Fiz a barba, mudei de roupa.
Fiquei diante do espelho e me perguntei se estava pronto
para me encontrar com Haynes Dearing, se n�o naquele
momento, ent�o quando?, perguntei-me, tentando ser forte,
tentando conservar a determina��o em rela��o ao que estava
fazendo.
Tentei comer um pouco de p�o com queijo, mas n�o tinha
fome.
O quarto nada mais era do que minha cela, e embora
pudesse sair � vontade, embora n�o houvesse tranca na porta
nem ningu�m do outro lado para impedir minha sa�da, eu
n�o poderia sair com mais facilidade do que quando estava
em Auburn. Tudo no presente parecia mero eco do passado.
Em algum lugar eu tomara uma decis�o � talvez algo
simples, at� insignificante �, e por causa dessa decis�o tudo
dali para a frente ficara torto, em outro eixo. O verdadeiro
Joseph Vaughan existia num mundo paralelo, um mundo
sem crian�as mortas, um mundo onde ele crescera com
Alex Webber, onde sua m�e vivera at� uma idade avan�ada,
onde estava sempre presente, sempre bela, sempre satisfeita
com a vida que criara para si mesma e para o filho. Ou talvez
antes ainda. Uma outra vida, onde o cora��o de Earl
Vaughan fosse forte e saud�vel, um cora��o de gigante, e ele
n�o sofresse de nada mais grave que rinite. Ele estava em
algum lugar mesmo agora com a mulher, e embora os dois
s� tivessem tido um filho, esse filho �nico era uma
inspira��o para eles. Era escritor, e as pessoas sabiam seu
nome. Era o filho de Augusta Falis, e Augusta Falls seria
lembrada por esse filho.
Um outro mundo. Uma outra vida.
N�o esta.
�s duas horas, eu j� abrira a janela, me sentara ali numa
cadeira com os bra�os apoiados no parapeito. Observando e
aguardando, torcendo para que Dearing n�o tivesse mudado
de id�ia. Ele estava vindo. Eu tinha que acreditar nisso.
Desejava com todas as for�as que ele viesse. Concentrei-me
nisso, e transmiti meu pensamento. Queria v�-lo virar a
esquina no cruzamento. Queria v�-lo vir andando pela
cal�ada com aquele seu andar inesquec�vel. Queria que
olhasse para cima e me visse, que levantasse a m�o, sorrisse
e come�asse a falar comigo antes mesmo que eu pudesse
ouvi-lo.
Observei os carros e os t�xis descendo lentamente a rua,
torcendo para que qualquer um deles parasse junto ao meio-
fio, para que a porta traseira se abrisse e, ap�s um momento
de hesita��o, Haynes Dearing aparecesse, e eu s� veria a
copa do seu chap�u quando ele saltasse, mas saberia que era
ele. Na certa. Sem d�vida. Haynes Dearing no Brooklyn e
no meu hotel.
Quando o sol come�ou a se p�r, eu n�o cabia em mim de
nervosismo. N�o conseguia falar. Tentei me olhar no
espelho, fingir ser outra pessoa, puxar uma conversa s� para
ouvir uma voz. Qualquer uma. Nada sen�o um som
estrangulado saindo da boca, e fechei os olhos e respirei
fundo.
Sou um exilado, pensei, e me perguntei se ali eu ficaria. Para
sempre preso numa armadilha que eu pr�prio criara,
apanhado em algum hiato do tempo e do espa�o, esperando
algu�m que nunca chegaria.
Sou um exilado, e ningu�m sabe que estou aqui sen�o o
homem que estou aguardando. E ele n�o vir� nunca. Jamais
teve inten��o de vir. Fez uma promessa e a quebrou. Igual �
promessa que fiz a Elena. Promessas quebradas. Pactos
rompidos. Votos sem valor. Foi isso que me tornei, foi essa
situa��o que criei para mim. S� eu sou respons�vel por isso.
S� eu.
Trinta e quatro
Estava escuro. Por uma fresta na cortina vi a lua cheia, alta
no c�u. Entrou no meu quarto brilhando como um olho s� e
me achou ali, sentado no ch�o, encostado na parede ao lado
da cama.
Ouvi o carro estacionar. Ouvi um di�logo abafado. Ouvi a
porta fechar, o motor pegar, o carro se afastar.
Meu corpo lutou comigo, mas me levantei do ch�o e fui at�
a janela.
Abri a cortina, levantei a janela e olhei para baixo. Olhei
para baixo e poderia ser o mesmo dia.
Quinta-feira, 17 de fevereiro de 1949.
Seu rosto era o mesmo daquele dia. Quando veio me levar
para Jesup.
Quando o vi esperar um instante, olhar para a rua e depois
olhar para a casa como se seu pr�prio anjo da morte
estivesse planejando surgir l� de dentro, eu soube.
Eu soube.
Ele levantou a m�o.
Estiquei o bra�o pela janela aberta.
� Joseph � disse ele, e a voz era quase um sussurro.
� Terceiro andar � falei. � O quarto no final do corredor.
Ele assentiu com um gesto, p�s o chap�u na cabe�a como se
fosse um sinal de pontua��o, depois se encaminhou
lentamente, num passo f�nebre, para a porta de entrada.
Procurei na sacola. Juntei os recortes de jornal e os coloquei
em cima da cama. Meu cora��o retumbava no peito, minhas
m�os suavam. Minhas t�mporas latejavam e minha cabe�a
estava pronta para explodir. Tirei as cadeiras de perto da
janela e as coloquei frente a frente no meio do quarto.
Encaminhei-me para a porta.
Ouvi seus passos na escada. Aguardei um pouco. Tentei
respirar fundo. Tentei me controlar. Recuei, sentei na
cadeira e fechei os olhos.
A porta diante de mim come�ou a ser aberta. Eu via a
ma�aneta girando. Quase morri, achando por um momento
que estaria completamente perdido. Observei a porta se abrir
cent�metro a cent�metro, e a� Haynes Dearing estava diante
de mim sorrindo, alegre e bem-apessoado, e embora
estivesse mais velho, embora eu j� n�o o visse havia quase
vinte anos, eu o via.Via-o talvez pela primeir�ssima vez.
� Joseph � disse ele, e entrou no quarto, fechando a porta
ao passar.
� Xerife Dearing � disse eu.
� � bom ver voc�.
� � mesmo?
Ele olhou para a cama, viu os recortes de jornal espalhados
ali. Sorriu com compreens�o, at� mesmo com compaix�o.
� Esses s�o os nossos fantasmas, n�o?
� Acho que sim, xerife � disse eu, e encontrei dentro de
mim um po�o de determina��o e for�a interior. � Venha se
sentar. Venha se sentar e me contar como anda passando.
Dearing n�o trazia mala nenhuma. Usava um casac�o, e
levou um minuto para tir�-lo. Dobrou-o com cuidado e o
deixou na mesinha ao lado da cama.
� Est� aqui h� muito tempo, Joseph? � perguntou ao vir se
sentar.
� H� uns dias.
Ele sorriu, deu uma risada.
� O quarto cheira a defunto, Joseph, cheira mesmo.
� Talvez haja algum por a�.
N�o havia nada entre n�s por um momento, e ent�o
Dearing p�s a m�o no bolso da jaqueta e sacou sua pistola.
Apontou-a com exatid�o para o meu peito.
� H� quanto tempo � perguntou, e sua voz pareceu
interessada e atenciosa.
� H� quanto tempo? � repeti. � N�o sei, xerife. Tudo se
confunde como uma coisa s�. Olho para tr�s e vejo tudo
como se tivesse acontecido ontem.
�Voc� entende alguma coisa do que aconteceu? �
perguntou ele.
� Entendo que o senhor fez minha m�e se voltar contra os
Kruger, que a levou a pensar que Gunther Kruger, talvez at�
Walter, fosse o respons�vel pela morte das meninas. Acho
que foi o senhor que deu um tiro na janela de Kruger e ainda
matou o cachorro dele. Acho que botou fogo na casa de
Kruger e depois foi todas aquelas vezes visitar minha m�e
em Waycross para convenc�-la de que ela � quem tinha
feito aquilo.
Dearing me fitou com um olhar implac�vel. Sua boca se
contraiu um pouco, e foi s� isso que me disse que ele
continuava vivo. Seus olhos estavam sombrios, apagados e
fundos. Eu me vi refletido ali, e me assustei.
� E foi l� e enforcou Gunther Kruger. O senhor me usou,
n�o? Me usou como seu bode expiat�rio. Foi l� e o matou, e
p�s aquela fita na m�o dele, e aquelas coisas embaixo do
piso... sua prova de que Gunther era o assassino das crian�as.
Dearing fechou os olhos, e quando os abriu tinha um sorriso
vago e distante nos l�bios.
�Acho que botou aquele bilhete no dossi� que deixou em
Valdosta. Queria encontrar os garotos Kruger, talvez
temesse que se dessem conta de que tinha assassinado o pai
deles. As pessoas viam aquele bilhete e achavam que o
senhor desconfiava de um deles. Walter? Era ele quem o
senhor temia?
Dearing n�o respondeu. Senti meu cora��o martelando sem
tr�gua no peito.
� O senhor tinha medo dele e queria encontr�-lo tamb�m,
n�o? E tinha medo de mim tamb�m... do que eu sabia, do
que poderia dizer. Acho que veio matar a mim e a Bridget
naquele dia, e como eu n�o estava, matou-a, apenas. Acho
que falou com a pol�cia, que talvez os tenha feito pensar n�o
s� que eu era respons�vel pela morte de Bridget, mas
tamb�m que, como as mortes de Augusta Falls al�m de n�o
terem sido esclarecidas haviam continuado, Gunther Kruger
n�o poderia ter sido o autor. Acho que botou essa d�vida na
cabe�a da pol�cia e os levou a me odiar a ponto de fazer
qualquer coisa. Convenceu a pol�cia a n�o procurar mais, e
n�o procuraram, e por causa disso perdi quase catorze anos
da minha vida... uma vida que o senhor j� tinha
praticamente destru�do.
Dearing levantou a arma e apontou-a para o meu rosto.
� Chega � disse. � N�o quero ouvir mais...
� E as meninas � disse eu, a voz falhando enquanto eu
olhava o cano da arma de Dearing. � Tantas! E o senhor
pegou todas em plena luz do dia. Ficava de uniforme, n�o?
Vestia o uniforme e ia de cidade em cidade, e as pessoas o
viam e n�o prestavam aten��o porque o senhor era um
policial. Nem mesmo as meninas, nem mesmo elas
desconfiavam de quem o senhor era. Estou certo, n�o, xerife
Dearing? Foi isso que aconteceu, n�o?
Senti a m�o dele apertar a arma, e peguei a minha embaixo
da cadeira e puxei o gatilho.
Os tiros foram quase simult�neos. Quando vi o impacto da
bala no peito de Haynes Dearing, senti a dor intensa do
mesmo impacto no ombro, no peito e no cora��o.
Larguei a arma, como Dearing largou a dele, e por um
momento ficamos ali nos olhando.
Dearing fez men��o de falar, mas seus olhos j� estavam se
fechando. Resmungou algo inintelig�vel, e ent�o sua cabe�a
tombou para a frente.
O quarto estava em sil�ncio a n�o ser pelo ru�do da minha
respira��o, e era uma respira��o d�bil, falha, e me senti
deslizando para algo de onde achei que nunca voltaria.
A escurid�o ent�o chegou � ondas cinzentas de dor,
lampejos rubros dentro de mim, e embaixo dos lampejos um
po�o de escurid�o que parecia me engolir. Eu ia para a frente
e para tr�s, consciente e inconsciente, e ouvia o meu
cora��o, e um pouco mais baixo, o barulho tr�mulo do ar
passando por pulm�es perfurados, e soube que n�o duraria
muito tempo.
Forcei-me a permanecer acordado, a me concentrar, e olhei
para Haynes Dearing e comecei a falar com ele.
"Sou um exilado", disse eu, e minha voz era d�bil, pouco
mais que um sussurro. "Aproveito um instante... para
examinar... minha vida do in�cio ao fim... e... tento v�-la
pelo que foi..."
Fiquei muito tempo falando com ele, e a� n�o consegui mais.
A certa altura, entrou uma brisa pela janela que pareceu
encher o quarto, e ent�o fechei os olhos e n�o senti
absolutamente nada.
Minha m�e estava l�, meu pai tamb�m; Elena, Alex e
Bridget. Estavam todos l�, e me observavam dar o primeiro
passo em sua dire��o.
E a� eu vi luz, e ouvi vozes, e as pessoas estavam gritando, e
por um momento julguei ter aberto os olhos e visto Reilly
Hawkins em p� ao meu lado, rindo do tolo que eu era. E
quando abriu a boca, come�ou a gritar a plenos pulm�es, e o
que disse n�o fazia nenhum sentido...
"Porra... chamem um m�dico, porra! Este aqui ainda tem
pulso, caramba! Chamem um m�dico!"
Juro pela minha vida que n�o sabia do que estavam falando,
e, por alguma raz�o, n�o importava.
Ep�logo
SUPLEMENTO LITER�RIO DO New York Times
Segunda-feira, 15 de agosto de 2005
AUTOR RECLUSO ENCANTA NOVA YORK
Ontem � noite, diante de uma superlotada Academia do
Brooklyn, Joseph Vaughan (77) � autor recluso e enigma
liter�rio � fez a leitura de sua �ltima obra, um
complemento de seu pol�mico romance de 1965, Uma
Cren�a Silenciosa em Anjos. Intitulado Os Guardi�es, o livro
conta a vida de Vaughan ap�s sua liberta��o da Pris�o
Estadual de Auburn em fevereiro de 1967. Seu primeiro
livro, um romance intitulado A volta ao lar, foi publicado
em junho de 1952, e depois disso n�o se ouviu mais falar em
Vaughan at� ele ter sido preso injustamente em novembro
desse mesmo ano. Vaughan foi julgado e condenado � pris�o
perp�tua. Com a ajuda de um amigo, Paul Hennessy, a obra
autobiogr�fica de Vaughan, Uma Cren�a Silenciosa em
Anjos, foi manuscrita na pris�o, e levada clandestinamente
para ser datilografada para publica��o. O lan�amento
provocou um protesto que fez o caso de Vaughan ser levado
� Suprema Corte dos Estados Unidos. Sua condena��o foi
recha�ada e ele foi solto ap�s ter cumprido mais de treze
anos da pena.
Ao ser solto, Vaughan comprometeu-se a identificar o autor
de mais de trinta e dois assassinatos de crian�as, em cinco
estados e ao longo de mais de tr�s d�cadas. A investiga��o
de Vaughan resultou na descoberta e no disparo contra um
xerife aposentado da Ge�rgia, Haynes Dearing, um ato
cometido em leg�tima defesa enquanto o pr�prio Vaughan
era baleado. Vaughan ent�o sumiu mais uma vez, e n�o
apareceu at� o outono passado, quando correu a not�cia que
mais um livro fora escrito. A Academia do Brooklyn lotou
na primeira leitura de sua obra. Antes de falar, Vaughan
dedicou o livro "a Elena, a Alex e a Bridget... e tamb�m a
minha m�e, que me diria que esperei muito para escrever
isso".
Os Guardi�es dever� ser lan�ado na pr�xima segunda-feira, e
j� se diz que ser� o livro mais vendido do ano.
Esp�rito feminino do folclore ga�lico cujos gritos anunciam uma morte na fam�lia. (N. da T.)
Regras criadas em 1876 por um general aposentado regulamentando como um grupo de pessoas
deve se comportar numa reuni�o. (N. da T.)
Alcunha pela qual era conhecido o general Patton. Literalmente, "Sangue Velho e Coragem". (N. da
T.)
Durante quarenta anos, foi fot�grafo do New York Times. (N. da T.)
Uma Crença Silenciosa em Anjos - R. J. Ellory Digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia agradecimentos a Arlene pela doação do ebook para o Memorial do Conhecimento Sinopse: 1939. Em Augusta Falls, na Geórgia, uma comunidade rural no sul dos Estados Unidos, Joseph Vaugham, de 12 anos, é informado sobre o assassinato de uma colega da escola - o primeiro de uma série de crimes que, ao longo de uma década, vão arruinar as relações entre os habitantes daquela cidadezinha. Joseph e seus amigos estão determinados a proteger o lugar. Para isso, formam um grupo batizado "Os Guardiões". Mesmo depois de os crimes terem cessado, uma sombra de medo e pavor persegue Joseph. O passado parece enterrado, mas, cinquenta anos depois, ele se defronta com o pesadelo que abalou toda a sua existência.
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