P O D R I D �� O
Da mesma autora:
EU E O GOVERNADOR (12.a edi����o)
FAL��NCIAS DAS ELITES (4.a edi����o)
EU MATARIA O PRESIDENTE (5.a edi����o)
OS PADRES TAMB��M AMAM (5.a edi����o)
O COMIT�� (3.a edi����o)
ASCO (2.1 edi����o)
A MANS��O FEITA DE LAMA (2.a edi����o)
GENTE (2.a edi����o)
ESCURID��O (1.a edi����o)
CARNI��A ( 1 . a edi����o)
A D E L A I D E C A R R A R O
P O D R I D �� O
4�� Edi����o
L. OREN
EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA.
S��O PAULO
Capa:
J. CORTEZ
DIREITOS ADQUIRIDOS POR:
L. OREN ��� Editora e Distribuidora de Livros Ltda.
Impresso no Brasil
ENTREVISTA COM UM PEQUENO BRASILEIRO
��� Seu nome?
��� Caudio.
��� Cl��udio de que?
��� Num sei.
��� Sabe o seu sobrenome?
��� Num t�� registado.
��� Onde voc�� mora
��� Na Bahia.
��� Em Salvador?
��� N��o; Jacobina.
��� O que voc�� veio jazer em S��o Paulo?
��� Foi Deus que mandou.
��� Deus! Porqu��?
��� Proque sen��o eu morria l��.
��� Morria por qu��?
��� Porque l�� num tem n a d a ! . . .
��� Mas, Jacobina, dizem ser uma boa cidade.
��� Mais eu moro bem pr�� l�� da cidade, no meio do
m a t o .
��� E seu pae?
��� T�� a�� tabaiando de predero.
��� E sua m��e?
��� A m��e ficou t a b a i a n d o na inxada.
��� O que �� isso nos seus p��s? Essas pontas inchadas
e pretas.
��� Se a senhora corta essa pontinha preta, sae um
m u n d o de bicho!. ..
��� Quantos quilos voc�� pesa?
��� Onze.
��� Como voc�� sabe?
��� A Bete pesou eu.
��� Claudinho, voc�� tem a barriga muito grande...
A gente fica at�� impressionada!
��� O doto que a senhora mandou eu i disse que t��
cheio de bicho a�� drento.
��� Por que seu pai n��o te lera no m��dico l�� na Bahia?
��� Ele n��o tem dinhero.
��� Por que voc��, quando sobe a escada, chora.
��� Proque eu nurn g��ento as perna; fico morto de
cansado.
��� 8 ���
��� Por que voc�� �� t��o branco assim, esverdeado?...
E anemia, n��o ��?
��� N��o, dona; �� farta de comida.
��� �� que �� que voc�� comia l�� na Bahia?
��� Feij��o e farinha, e as veiz carne seca.
��� E suas roupas, onde est��o?
��� Eu s�� tenho essa, que t�� no corpo.
��� Cad�� o sapato?
��� A m��e num comprou.
��� E as meias?
��� Que �� isso, eu num sei o que �� m e i a . . .
��� Por que voc�� gritou, quando te dei banho de chu��
veiro?
��� Eu nunca vi chuv��ro!
��� Por que voc�� n��o senta na bacia da privada pra
jazer xixi?
��� Proque eu num sabia, l�� na Bahia a gente vae no
mato.
��� Do que voc�� mais gosta em S��o Paulo?
��� Da televis��o e de sorvete. Eu gosto muito de sor��
vete! Eu nunca vi sorvete na minha v i d a ! . . .
��� Voc�� conhece Papae Noel?
��� N��o.
��� E Deus?
��� Tam��m n��o.
��� Mas voc�� disse que foi Deus quem o mandou para
S��o Paulo...
��� Foi a mui��, que falou: Se Deus n��o mandasse
esse minino p'ra casa da dona Adelaide ��le tinha morrido
de t��o doente.
��� Mas voc�� nunca ouviu falar do papae do c��u?
��� N��o senhora. Tia, proqu�� os minino daqui tem
bicicleta, e eu n��o?
9
��� Porque os paes deles trabalham, ganham dinhei��
ro, e compram.
��� Mas o pae tam��m trabaia como um danado, e n��o
tem dinheiro p'ra compra.
��� Sabe Claudinho, voc�� �� um menino muito inteli��
gente. Acho mesmo que, se algu��m o ajudasse, voc��
seria um menino prod��gio.
��� Que �� isso?
��� �� que voc�� aprende tudo o que lhe ensinam, rapi��
damente. A gente vae dizer qualquer coisa e voc�� j��
sabe o final.
��� Proqu�� a sinhora n��o ajuda eu?
��� Eu j�� tenho a Bete, e tamb��m ganho pouco. Voc��
merece um bom col��gio; e um bom col��gio custa muito
dinheiro.
��� Ent��o quem pode me ajuda? Eu n��o quero mais
vort�� p'ra Bahia. Trais minha m��e, t i a . . . Arranja ar-
gu��m pra cuida da g e n t e . . . A senhora arranja tia?
��� N��o sei meu bem. Eu acho que... Bem, agora
v�� brincar. Eu vou pensar o que farei com voc��.
x x x
��� Tia, t i a . . .
��� N��o corra desse jeito Cl��udio, voc�� pode cair.
��� Tia, assunta, a s s u n t a ! . . .
��� Eu j�� te disse que n��o �� assunta; �� escuta!
��� Escuta, tia. Os minino, dissero que o Presidente
da Rep��brica pode me ajuda e at�� me d�� um brinquedo
de entra dentro. O Presidente da Rep��brica �� bonzinho,
n�� tia? Eu quero um carro grande que anda de verdade!
��� ��ra, Cl��udio voc�� nem sabe o que �� Presidente da
Rep��blica.
��� O minino disse que ��le manda em tudo. At�� onde
vende brinquedo.
��� Mas voc�� quer brinquedo, ou quer estudar?
��� Quero estuda primeiro. A senhora fala p'ra ��le?
��� Mas ��le mora longe!
��� Telefona a��, da dona Sara.
��� ��le n��o atende qualquer telefonema.
��� Mas a senhora fala que sou eu, que ��le atende.
Num atende?
��� Atende sim, meu bem.
��� Ent��o tia, vamo telefona.
��� Meu bem, eu acho melhor escrever uma cartinha
pra ��le, voc�� n��o acha?
��� Acho sim, a senhora escreve?
��� Escrevo.
��� E a senhora, n��o esquece de pedir um brinquedo
de entra dentro?
��� N��o.
��� A senhora diz p'ra ��le n��o esquece de manda me
busca, l�� em Jacobina, p'ra mim estuda.
��� Digo si7n, Claudinho. Digo a cie para n��o se es��
quecer de voc�� e de todos cs Claudinhos do Brasil.
��� Ent��o eu vou busca papel e l��pis p'ra senhora
x x x
Claudinho onde voc�� estiver, aqui est�� a minha pro��
messa. Tenho certeza que o Presidente da Rep��blica
atender�� o seu pedido. ��le cuidar�� com mais carinho e
cuidado de todas as nossas crian��as.
Sei que voc��, meu bem, n��o ter�� o fim de Raul e de
Jo��ozinho.
Voc�� ser�� um doutor como deseja, se Deus quiser.
S��o Paulo, 25 de mar��o de 1969.
ADELAIDE CARRARO
11
I
��rf��o
Se existissem macieiras, hoje por certo todas elas
estariam em flor, em Vargem Graryie do Sul, espalhadas
atrav��s da relva, que cresce pelos campos dessa cidade.
�� primavera. At�� no ar se sente a primavera. Em
verdade �� a mais bela ��poca do ano, em todas as partes
do mundo. Tamb��m em Vargem Grande do Sul a na��
tureza inteira se reveste de tons coloridos. Na pracinha,
os grupinhos formados �� sombra das frondosas ��rvores,
riem e conversam. �� p r i m a v e r a . . . mas n��o para Jo��o��
zinho! O menino de c��r preta e com seis anos de idade,
bem que gostaria de estar sendo beijado pelo sol, ofus��
cando por entre as flores e a relva do prado, ca��ando
borboletas, em vez de ficar sentado na penumbra de
seu quarto. Sentado, em sua cadeirinha de palha, ao
lado da cama de sua m��e, ��le a observa contorcer-se
em dores. Magrinho e franzino, o menino de olhos esbu��
galhados segue um por um os movimentos da mulher
doente. Nem mesmo tem coragem de respirar. Recusa
o peda��o de p��o oferecido pelo pai, com um meneio de
cabe��a, sem despregar os olhinhos da querida m��e, que
se agita, em espasmos. Sua inocente aten����o est�� con��
centrada naquela preta, jovem ainda, �� morte, doente
e sem recursos.
De repente, os movimentos da m��e cessam. Jo��o��
zinho sente grande alegria, acreditando que as dores
passaram, estando ela agora a dormir calma e tranq��ila.
Vai saindo do quarto, p�� ante p��, quando v�� mulheres
13
da vizinhan��a entrar no quartinho. Fica ext��tico. Uma
delas, com os olhos cheios de l��grimas, lhe ordena;
��� V�� brincar l�� fora! ��� e depois de olhar bem de
perto o rosto da mulher na cama, diz-lhe com voz bran-
da e baixa ��� N��s vamos arrumar sua m��e. Agora ela
vai embora. Vai morar no c��u!
Jo��ozinho sai e senta-se na pedra que serve de
degrau na porta da cozinha. V�� quando o pai, com ar
desolado, entra para o quarto. Instantes depois, sente
um rumor de movimento no aposento, e quando decide
entrar para satisfazer a curiosidade, a mesma mulher
sai e lhe diz:
��� Seu pai tamb��m vai para o c��u, morar j u n t o
com sua m��e. ��le acaba de morrer!
O menino adivinha o significado daquelas palavras,
e antes que a mulher possa imped��-lo, corre para o quar��
to, e chorando, atira-se sobre o corpo do pai. Do pai
mo��o e forte que costumava carreg��-lo nos ombros, e
agora tamb��m ia embora.
Agarrado ao cad��ver do preto, que j�� n��o era mais
seu pai, chorou desesperadamente.
��� Vamos, pobre m e n i n o . . . Deus quer que voc��
seja um forte! ��� Sim, tamb��m o pai lhe dizia isso.
��� Seja honrado, filho! Passe por todo o mal do
mundo, mas se lembre sempre que s�� ser�� feliz se estiver
em paz com voc�� mesmo! ��� E agora o pai o deixava!
Jo��ozinho sentiu um aperto no cora����o e, desesperada��
mente, relanceou os olhos entre as pessoas presentes.
Todos conhecidos da cidade, menos aquela preta baixi��
nha que vinha se dirigindo a ��le. Sua voz era suave
e quente.
��� Eu sou sua tia, e vou lev��-lo comigo para a
cidade grande!
Sufocado pelas l��grimas, o garoto respondeu:
��� 14 ���
��� N��o, n��o vou! Quero ficar com meu pai e
minha m��e!
��� Filhinho, eles v��o para o c��u! Seja bonzinho!
Vamos. ��� E com energia o puxou bruscamente pelo
bra��o, levando-o aos arrast��es para a esta����o.
***
As janelas do trem, escancaradas, deixavam entrar
vento em abund��ncia, enquanto o sol banhava a negra e
suarenta face de Jo��ozinho que, com o olhar triste e
distra��do, absorvia a paisagem, sem ver as ��rvores pas-
sando em corrida louca e vertiginosa, qual fant��stica
fita do cinema mudo.
De repente, o futuro h o m e m levantou o queixinho
firme, e sua voz encheu o vag��o, dizendo:
��� Tia! Quero ir para um bom col��gio. Tia, quero
ser um homem honrado, como papai falou.
��� �� l��gico, ��� respondeu-lhe a bondosa tia ��� Voc��
ir�� para um bom col��gio! Um col��gio do Governo,
que se chama Servi��o Social de Menores, na Av. Celso
Garcia. De l�� voc�� sair�� um homem muito ��til �� socie-
dade. Sair�� um homem honrado!
��� Mas, como �� um h o m e m honrado, titia? ��� Esta
suspirou fundo e gaguejou.
��� Bem, um homem honrado �� . . . aquele q u e . . .
obedece todas as leis. Um homem trabalhador que
respeita ao pr��ximo, que trabalha direitinho, e n��o
tem v��cios, q u e . . .
��� Um homem que n��o estuda pode ser honrado?
��� Claro que n��o. Mas, voc�� vai ser, porque voc��
vai estudar n u m bom col��gio! Ter�� bons professores,
boa comida e boa educa����o, voc�� vai ver!
��� 15 ���
Durante toda a viagem, Jo��ozinho antegozou a sua
ida ao maravilhoso col��gio da cidade grande. Encostou
a cabe��a no tosco banco de terceira classe, fechou os
olhinhos e ficou pensando na inveja que teriam seus
amiguinhos de Vargem Grande do Sul, quando ��le vol��
tasse nas f��rias e contasse que estudava em um col��gio
do Governo. Com o ego��smo pr��prio das crian��as,
pensou:
��� Foi at�� bom que Papai do C��u levasse o meu
paizinho para morar com ��le! Se n��o fosse assim, eu
nunca iria estudar num bom col��gio! ��� ��le nem acredi-
tava que iria ter a mesma vida do Luizinho e do Heitor-
zinho, os meninos mais ricos da sua cidade. Uma vez en��
quanto engraxava os sapatos do Luizinho, este lhe con��
tou que, no col��gio onde estudava, o programa de estudos
e de jogos era o mais completo do Brasil. De l��, s��
sairia para a Universidade. Para a Universidade!...
O cora����o de Jo��ozinho pulsou mais r��pido. Imagina n-
do-se no lugar do amiguinho, o pretinho se viu no col����
gio, tirando boas notas, sendo cumprimentado pelos
professores e tendo ordem de brincar no p��tio, como
pr��mio.
Viu-se a correr pelo ar livre, na t��pida tarde prima��
veril, correndo pelo campo de futebol, subindo numa
pequena colina, arrancando um ramo do chor��o que se
debru��ava �� beira da piscina, atirando-se nas ��guas de
roupa e tudo.
Imerso em seus sonhos e pensamentos, esqueceu-se
da amargura e soltou uma gargalhada feliz. A tia
assustou-se com isso e olhou-o interrogativamente. Cain��
do em s��, Jo��ozinho sorriu sem jeito e disse euf����
ricamente :
��� Ah, titia! Eu vou me jogar na piscina de roupa
e tudo!
��� Que piscina?!
��� L�� no bom col��gio!
��� 16 ���
II.
O bom col��gio
J�� em S��o Paulo, Jo��ozinho n��o estava compreen��
dendo bem o lugar onde estava. Sentia apenas em seu
cora����ozinho uma dor estranha. Uma sensa����o de
aperto e agonia. Em seu c��rebro giravam nomes estra��
nhos: "Servi��o Social de Menores, Abrigo de Meneies,
Avenida Celso Garcia."
A tia largou de sua m��ozinha, e em passos r��pidoa
afastou-se, sumindo rapidamente de sua vista. ��le n��o
compreendia, agora estava interno, em um "bom col��gio
do Governo".
Em p��, no p��tio sujo e de terra da frente do col��gio,
o menino olhava o velho casar��o. Este �� o col��gio? ���
Indagava a si pr��prio, com grandes d��vidas. ��� O
col��gio do Luizinho tinha na frente um belo parque
com jardins floridos ��� pensou. Arvores bem grandes,
onde cantavam mil passarinhos. Onde est��o as alame��
das e suas luxuosas casas, abrigando os estudantes in��
ternos, entregues aos cuidados de pessoas bondosas e
polidas?
Deu novamente asas �� imagina����o, e viu-se entrando
no sonhado bom col��gio.
Andou com passos firmes, e ia subir os degraus de
m��rmore da escadaria, quando uma linda professora
veio ao seu encontro, sorrindo. Convidou-o, ent��o, a
entrar em uma sala e lhe indicou uma cadeira. O ga��
roto sentou-se e retirou o casaquinho, entregando-o ��
17
mo��a, que o colocou sobre uma maravilhosa poltrona
de veludo azul.
��� Qual a sua impress��o deste bom col��gio, meu
bem? ��� a professora perguntou sorrindo.
��� Eu sonhava ser assim mesmo. T��o bonito!
A mo��a escolheu um livro de uma estante, fo��
lheou-o, chegou at�� onde estava Jo��ozinho e, puxando
um banquinho, sentou-se, ficando no mesmo n��vel que
��le. Abriu o livro e mostrou-lhe as figuras, e logo
depois perguntou:
��� Voc�� gosta de livros?
��� Eu n��o s e i . . . Eu nunca tive livros!
��� Ent��o tome. Este agora �� seu!
��� Meu?! ��� seus olhinhos brilharam de alegria.
��� Este livro representa o elo de amizade, entre
professores e alunos deste col��gio.
��� N��o entendo!
��� Voc�� vai entender! Voc��, minha pobre crian��
��a, perdeu seus pais. Sua tia n��o vir�� mais v��-lo. Vo��
c�� agora �� nosso. Ent��o, para mostrar que todos aqui,
alunos e professores, gostamos muito de voc��, eu lhe
dei este livro, servindo, como prova de que voc�� nunca
estar�� s�� e que sempre ter�� nosso amor, carinho e
compreens��o!
��� A senhora fala de coisas que eu nunca pensei
existirem!
��� Eu terei sempre oportunidade de conversar com
voc��, porque serei sua professora e segunda m��e. Ago��
ra lhe farei algumas perguntas para sentir como vo��
c�� vivia em sua casa. Assim criaremos um ambiente
igual, para que se sinta como se estivesse l��, pois a
felicidade dos nossos alunos �� a nossa felicidade!
Jo��ozinho n��o entendeu perfeitamente aquelas pa��
lavras e replicou.
��� N��o, n��o! Eu n��o quero voltar para casa. Que��
ro ficar aqui e aprender. Quero estudar e ser um doutor.
18
A mo��a acalmou-o, f��z com que se sentasse nova-
mente e sorriu.
��� Voc�� gostaria mesmo de ser um doutor?
��� Eu sempre quis ser, e sei que aqui neste bom
col��gio serei mesmo um doutor. Um bom doutor.
��� Que esp��cie de doutor?
O menino ficou pensativo e falou, r��pido.
��� Quero ser um doutor cantor.
��� E voc�� sabe cantar? ��� perguntou sorrindo.
��� Sei.
��� Ent��o cante um pouco para mim.
A voz angelical e bonita do garoto purificou o am��
biente, que ��le ainda desconhecia, mas, de repente gri-
tou de d��r, quando recebeu um soco na cabe��a, e ouviu
uma voz raivosa e petulante, transformando a imagem
da suave professora em verdadeira filha de Sat��.
��� Pare com esses grasnidos, seu crioulo de merda.
Vamos logo raspar esse pichaim! ��� e brutalmente em��
purrou-o para uma sala, raspando-lhe o cabelo com uma
navalha, com tanta grosseria e viol��ncia que, l��grimas
saltaram dos olhos da crian��a. Depois lhe vestiram uma
roupa caqui. Com os olhos arregalados de pavor, o ga��
roto n��o compreendia o que estava acontecendo. Olha��
va angustiadamente para todos os lados, na esperan��a
de vislumbrar a linda mo��a imaginada. Mas, s�� o que
via era um mulato grandalh��o, arrastando-o pelos som��
brios e g��lidos corredores. O pequeno ��rf��o passava as
m��os pela roupa grosseira e pensava:
��� O que ser�� isto? O Luizinho tem roupa linda
e macia. A camisa �� branquinha e a cal��a azul.
Foi empurrado para o meio de uma centena de
crian��as, que se vestiam daquela mesma maneira. Seus
olhos se perderam no comprido p��tio, at�� encontrarem
altos muros. No meio do p��tio um barrac��o cimen-
tado, onde ficavam as privadas e os lavat��rios. Nesse
19
local os meninos pequenos passavam a maior parte do
dia. No Abrigo de Menores havia dois pavilh��es: o n��-
mero um e o n��mero dois. Jo��ozinho ficou no n��mero
dois, pois, o outro se destinava aos maiores, entre quinze
e vinte anos de idade. Os rapazes maiores cuidavam dos
menores do pavilh��o n��mero um, sendo conhecidos como
"Os Graduados"
Os graduados eram rapazes que tinham crescido
no Abrigo de Menores. Eram revoltados, maldosos e
perversos. Tratavam os menores como foram tratados.
Triste legado!
Jo��ozinho caiu nas m��os de um dos piores gra��
duados que, �� guisa de trote aos novatos, chamou-o.
��� Vem c��, negrinho! ��� cabisbaixo, Jo��ozinho
aproximou-se e recebeu a primeira ordem: ��� Vamos,
o que est�� esperando? Ser�� que n��o sabe marchar?
Bata com os p��s no ch��o!
O menino olhou para os p��s das outras crian��as,
que o rodeavam e viu todos descal��os iniciando a mar��
cha, na certa, com a inten����o de ensinar-lhe os primei��
ros passos da rude disciplina interna. Todavia, um
grito do graduado os f��z estacar!
��� �� s�� o negrinho! ��� berrou o ilustre graduado.
Jo��ozinho timidamente come��ou a bater, com os
p��s, no ch��o, enquanto o graduado gritava:
��� Mais forte! Mais forte! ��� Jo��ozinho batia e
batia com os p��s no ch��o, j�� chorando de dor. Os
meninos, em solidariedade, lhe disseram baixinho:
��� N��o obede��a, bobo! Mande ��le tomar no c��.
Mande!
O graduado gritou:
��� Ouviu o que disseram! Agora voc��s v��o ver!
��� Em seguida, com ar perverso, o monstro come��ou a
escolher, entre os menores, aqueles que tinham os p��s
mais machucados, e os f��z marchar at�� sangrarem.
��� Agora podem xingar, seus cachorros sem dono.
20
Aproveitando-se da distra����o moment��nea do gra-
duado, o calouro Jo��ozinho afastou-se e procurou ref��-
gio atr��s do barrac��o, onde sentou-se no ch��o e come��
��ou a chorar.
A noite chegou e o menino passou-a, com os olhos
grudados nas vigas do teto. S�� conseguiu dormir pela
madrugada.
De manh��, acordou com uma dor aguda de cabe��a.
Ergueu os olhos e deu com o graduado a sua frente,
parecendo-lhe nesse momento, mais alto do que na v��s��
pera. Assustado e tremendo, o menino n��o compre��
endia como tinha ca��do da cama com colch��o e tudo.
Seus olhos esbulhados interrogavam o graduado,
que o f��z levantar-se do ch��o sob pancadas a torto e a
direito, como se fosse uma fera raivosa.
��� Esse �� o castigo para os que n��o acordam com
a chamada. E isto �� para que n��o se esque��a ��� unin��
do gesto �� palavra, despejou sobre a crian��a, um balde
de ��gua gelada.
��� Quem sabe, se assim voc�� fica menos fedorento,
seu coisa-ru��m!
Jo��ozinho pensou explicar que estava muito s��, e
passando por agonias e incertezas, e que at�� aquele
momento n��o tinha ainda compreendido porque l�� es��
tava, juntamente com aquele amontoado de crian��as
de olhos arregalados e ar de dementes. Coitado, ��le
que pensava ir para um bom c o l �� g i o ! . . .
N��o chegou a emitir um som, pois quatro bra��o.;
o levantaram e o atiraram longe. Sua sorte foi cair
em cima de uma cama. Aterrorizado, viu que os ra��
pazes vinham novamente em sua dire����o. Teria sorte
na segunda vez? Levantou-se r��pido e correu pelo dor-
mit��rio, enveredando pelos banheiros. Sem f��lego, dei-
21
xou-se cair no canto de um box. Um menino que to��
mava banho no outro box, espiou por cima da divis��o
de madeira, e olhou-o calmo, j�� acostumado ��quelas
cenas.
��� Voc�� est�� fugindo dos graduados, n��o ��?
A garganta seca do pretinho n��o deixava sair a
voz, como se mil alfinetes a tivessem atravessado.
��� Pode ficar a��, que eu n��o denuncio voc��. N��o
precisa ficar com medo, porque eles n��o mais v��o se
preocupar com voc��. J�� devem ter apanhado um outro
infeliz, como n��s.
��� Quem �� v o c �� ? . . . ��� perguntou o pretinho?
��� Meu nome �� Raul.
��� V o . . . voc�� �� parecido, com o menino J e s u s . . .
��� gaguejou Jo��ozinho, j�� esquecido dos graduados. ���
Nosso Senhor, tamb��m tem esses cabelos louros encara��
colados e olhos azuis.
Raul riu, e, fechando a torneira do chuveiro, saiu
do box. Apanhando a toalha do ch��o, continuou com
sua voz l��mpida e cristalina.
��� Mas, segundo dizem, meus olhos s��o azuis es��
verdeados. O olhar de Jesus era meigo e suave, e o
meu, �� olhar de tarado. ��� Come��ou a enchugar-se e
prosseguiu ��� Sabe o que dizem os g r a d u a d o s ? . . . "Es��
se menino tem olhar de quem est�� pedindo que durmam
com ��le!" Um dia, um deles quis me agarrar �� for��a,
e sabe o que eu lhe fiz?
Durante a luta, ao defender-me, dei-lhe uma mor��
dida no saco, e quase lhe arranquei um peda��o. Mos��
trei-lhe ser macho, e nunca mais me amolaram. Por
que aqui, quando os meninos s��o bonitinhos, e t��m a
bunda gordinha, t��m que passar todo o tempo com o
cu ardendo.
Jo��ozinho n��o compreendia aquela disserta����o, mas
falou a Raul, com um fraco sorriso.
��� Meu pai n��o queria que eu dissesse esse nome a��.
22
Raul come��ou a vestir a roupa surrada. ��� Ent��o
como �� que se refere a isso?
��� N��o sei!
��� Ent��o �� cu mesmo! Agora vamos, pois h�� uma
surra para cada minuto de atraso.
Jo��ozinho foi puxado pelo outro, que continuou
dizendo: ��� Eu tenho um irm��o que �� graduado, file
tamb��m foi criado aqui e aprendeu a ser perverso e mau.
N��o tem alma, cora����o, religi��o, respeito para com os
mais fracos, n��o tem nada! Mas, �� por ��le que os ou��
tros graduados me respeitam. No dia em que meu ir��
m��o soube que aquele cara quis me comer, brigou com
��le, e lutaram at�� tirar sangue. Eu vou falar com meu
irm��o, e lhe pedir para ser tamb��m seu protetor.
As duas crian��as se afastaram de m��os dadas, e
ficaram na fila com as outras, esperando os graduados
revistarem as camas. Aquelas molhadas ou sujas indi��
cavam que seus donos seriam duramente castigados.
Como dormiam dois em cada cama, no caso da
cama estar molhada, os dois apanhavam. Nada leva��
vam em conta, nem a pouca idade, nem defici��ncia nas
vias urin��rias. Os graduados s�� eram especialistas em
distribuir socos e tapas a granel.
O primeiro dia da nova vida de Jo��ozinho no bom
col��gio foi passado ajudando os outros menores, com��
panheiros de infurt��nio, a fazer a limpeza, no abrigo,
e catar lixo no p��tio.
Esse servi��o tinha de ser feito em quinze minutos.
O pretinho n��o perdia Raul de vista, e assim que
ouviu o sinal de: "Formar fila!", saiu correndo, como
um louco, a fim de n��o perder lugar j u n t o ao amigui��
nho. Com essa correria toda deixou cair um pouco
de lixo que trazia nas m��os.
Os menores iam mostrando o lixo aos graduados e,
em seguida, o jogavam no lat��o. Quem trazia pouco
lixo era obrigado a ficar em outra fila.
��� Onde est�� o lixo, crioulo?
��� 23 ���
O menino baixou a cabe��a em tempo de ver a bota
do graduado lhe passando pelas pernas, recebendo uma
rasteira diab��lica. E s p a r r a m a d o no ch��o, Jo��ozinho re-
lanceou os olhos at�� encontrar os de Raul, onde se fixou
com u m a s��plica m u d a .
Os passos de Raul foram firmes e sua voz vibrou
em tom viril quando chegou em frente ao g r a d u a d o .
��� Voc�� n��o vai bater mais nesse menino. ��le ��
pequeno e m a g r i n h o . Al��m disso, ��le �� novo aqui, e
n��o conhece os costumes do abrigo.
O g r a d u a d o empalideceu de raiva e olhou para o
menino de dez anos que ousava desafi��-lo. Encontrou
dois olhos frios como a��o, que despediam fa��scas. A
for��a e m a n a d a daquele olhar o deixou confuso, e at��
sua voz saiu incerta.
��� Eu tamb��m, quando cheguei, n��o conhecia os
costumes.
��� Por isso mesmo. Se voc�� lembra o que sofreu,
deve sentir quanto �� terr��vel a h u m i l h a �� �� o .
��� Eu sou m a n d a d o . . . se n��o cuido direito desses
m e r d i n h a s , t a m b �� m sou c a s t i g a d o . . . voc�� um dia tam��
b��m ser�� um g r a d u a d o , a�� vai ver como ��! Ter�� tam-
b��m que dar o cu!
Raul ficou vermelho, e sua voz soou rouca.
��� Nunca! J a m a i s ! Sou m a c h o ! Sou dur��o! Nun-
ca me deixarei vencer. N��o vou permitir que abusam
de mim. N��o vou deixar que me toquem!
Mais refeito, o graduado voltou �� arrogancia an��
terior.
��� Voc�� a c a b a r �� desistindo de lutar, vai ver!
Sem poder mais conter-se, Raul avan��ou para o
g r a d u a d o , cego de f��ria, com a boca entreaberta, respi��
rando e n t r e c o r t a d a m e n t e . Mas recebeu um soco no
nariz e sua cabe��a girou. Sentiu que o cimento do ch��o
velozmente se aproximava do seu rosto. Estonteado,
sentia o agrad��vel frescor do cimento, e n q u a n t o procu-
24
rava reanimar as for��as para levantar-se, quando a voz
de seu irm��o se f��z presente, como se tivesse vindo de
longe. Com esfor��o, ergueu-se e viu o rapaz aproximar��
se do graduado, que estava com um canivete na m��o.
Seu irm��o chegava, devagar, com o ��dio estam��
pado no rosto.
��� Filho da puta! Covarde! Por que n��o bate em
homem?
Os menores afastaram-se, deixando um claro em
meio �� roda onde, qual dois galos de briga, as duas
figuras se enfrentavam. Sentado no ch��o, com os olhos
rasos d'��gua, Raul, tr��mulo, viu os dois se agrarrarem,
rolando pelo ch��o. A l��mina brilhou no ar e cravou-se
na carne de seu irm��o, que amoleceu o corpo e parou
de lutar. Raul cerrou os olhos com tristeza, calculando
o que acontecera.
Foi a ��ltima vez que viu seu irm��o.
25
III
O juiz come��a a amar o menino
A ampulheta filtrou a areia dos dias, meses e anos,
e a vida no abrigo continuava vil.
Jo��ozinho estava com dez anos, e sentado n u m
canto do p��tio, contemplava o c��u sem nuvens, e nem
sentia o sol queimando-lhe a face. Pensava em sua
Vargem Grande do Sul, t��o distante. Parecia ouvir
o mesmo vento de l��, soprando c��lido, vindo das encos��
tas da montanha, e que fazia navegar o barco velho e
feio por ��le achado uma vez, no meio dos espessos ma��
tagais.
��le seguira a trilha e a vereda, entre as matas, e
l�� encontrara o barquinho, que parecia n��o ser usado
h�� muito tempo. Pegou-o, e todas as vezes, depois de
navegar, novamente o escondia entre a folhagem, e com
as m��os desmanchava as pegadas, para que ningu��m
descobrisse o seu precioso tesouro.
Mas, um dia o barquinho escapou de suas m��os,
e deslizou para o meio do lago, at�� perder-se de vista.
Todos os dias o menino se quedava �� beira da ��gua,
esperando, esperando, sua escuna voltar.
E um dia, voltou! O bote veio aproximando-se at��
encostar na margem, onde ficou �� sua espera.
Nessas medita����es, a sua esperan��a de inocente
crian��a era poder voltar �� terra amada, assim como o
seu barco voltara.
27
��� Sentido!
A voz inesperada o f��z estremecer e afastou de sua
mente o quadro t��o querido e sonhado. Levantou-se
rapidamente, e se postou ereto. Era costume dos gra��
duados nunca deixarem os meninos em paz.
��� Sentido, todos! ��� Estivessem onde estivessem,
at�� mesmo sentados na bacia da privada, tinham de
interromper o que estivessem fazendo e ficar em posi����o
de sentido.
Nesse dia n��o se ouviu as palavras "�� vontade",
m a s . . .
��� Todos pendurados no muro! ��� Era um dos cas��
tigos do bom col��gio! Todos tinham de se pendura��
rem no muro, e os menores tinham de ser ajudados
pelos maiores, devido n��o conseguirem alcan��ar o topo
do pared��o. Enquanto sentiam os bra��os adormece��
rem pelo esfor��o, e as m��os ficarem em fogo pela aspe��
reza das pedras, os graduados pegavam seus cintur��es
e zurziam nos trazeiros de cada um, com toda a for��a,
sem se preocuparem, com o fato de que as fivelas la��
nhavam as carnes das pobres crian��as.
No entanto, era prefer��vel isso do que cair do muro,
pois, aqueles que n��o aguentassem e ca��ssem, recebiam,
como brindes, socos e pontap��s.
Nesse dia o castigo foi aplicado pelo fato de um
bando de garotos ter tentado a fuga. Eles dormiam no
primeiro andar, e amarraram len����is, uns aos outros,
formando uma corda comprida, a qual jogaram pela
janela, prendendo a outra ponta no p�� de uma cama.
Os mais corajosos desceram, atravessaram o p��tio,
encostaram bancos no muro, e ganharam a rua e a
liberdade.
Mas, por fatalidade, naquele momento passava um
carro da pol��cia e os evadidos foram recambiados ao
Abrigo.
Entre os graduados aplicando o castigo, estava Raul,
agora com dezessete anos.
��� 28 ���
O mo��o, alto e magro, era de uma beleza de im��
pressionar. Cabelos louros, maravilhosos olhos azuis
esverdeados, fazendo contraste com a pele quase marron,
dava-lhe um aspecto muito atraente e sensual. O f����
sico perfeito real��ava, como um raro esp��cime de beleza
masculina.
Bastava as mulheres o verem, e no mesmo instante
se apaixonavam. Mas, o pior de tudo, �� que o mesmo
acontecia com os homens.
Uma vez, depois que seu irm��o, tamb��m interno,
fora levado, n��o se sabia para onde, Raul fugiu do
Abrigo de Menores. Sujo e maltrapilho vagou pela ci��
dade, at�� que deparou com um senhor de meia idade,
elegante e luxuosamente trajado. Conversaram e este
ofereceu sua casa.
Disse-lhe o dito senhor: ��� Somos um casal sem
filhos, tanto eu como minha mulher adorar��amos ado��
tar um menino como voc��! Tem dez anos, n��o ��?
��� J�� fiz onze.
��� Ah, tem onze anos! Muito bem! Pois voc��
disse n��o ter ningu��m, e estar empregado em casa de
um comerciante, e que ��le o mandou embora?
��� Isso m e s m o . . .
��� Ent��o voc�� quer ir para a minha casa e ser
meu filho?
��� O senhor me a c e i t a r i a ? . . .
��� Claro! Voc�� ficar�� conosco por uns tempos, e
se se acostumar, n��s o adotaremos. Mas, n��o quero
que minha mulher o conhe��a neste estado. Venha
comigo!
O cavalheiro o levou para uma loja e encomendou
roupas finas para o menino.
��� ��le tem onze anos, mas parece ter quatorze!
Disse o comerciante.
O dono da loja fitou Raul, e sem despregar os
olhos do menino, disse:
��� 29 ���
��� Parab��ns, senhor! O seu filho �� lindo! Nunca
vi um rapaz t��o bonito.
O homern, que era advogado e se c h a m a v a Paulo,
estremeceu.
��� Oh, sim. "Meu filho" �� uma linda crian��a!
Raul sentiu-se gelado. Um ��dio gerado pela pa-
lavra "beleza" lhe subiu at�� a gargantaA. N��o ouvia
outra coisa.
��� Que lindo! Parece at�� o anjo Gabriel!
��� Qual n a d a ! Parece at�� Apolo!
Ali parado, era alvo de todos os olhares! Mas,
sentia-se m a c h o . Sabia perfeitamente o que queriam
dizer, quando o a d m i r a v a m e a c h a v a m bonito!
Quis fugir, mas o dr. Paulo aproximava-se, e quan��
do percebeu a palidez do menino, assustou-se.
��� O que foi? Est�� sentindo-se mal?
Raul olhou-o com seus maravilhosos olhos j�� ful��
g u r a n t e s .
��� Em todos os lugares as pessoas me olham, olham,
e sei q u e . . .
Mas, o advogado n��o ouvia, perdido em seus pen-.
s a m e n t o s , sentindo dentro de s�� u m a coisa e s t r a n h a .
Aquele menino! Aqueles olhos a b r a s a d o r e s ! Conse��
guiu balbuciar.
��� V a m o s . . . Vamos e m b o r a . . .
Dr. Paulo corria a cem quil��metros por hora, a
c a m i n h o do Horto Florestal, onde morava. Raul se
deliciava com a velocidade. A m a r c h a do ve��culo n��o
diminuiu, nem mesmo quando f��z a volta para entrar
na alameda, onde estava a m a n s �� o .
A boca do dr. Paulo entreabriu-se n u m sorriso.
N��o se lembrava de j a m a i s ter voltado para casa t��o
contente. Nem mesmo quando, a i n d a em lua de mel,
sua esposa o esperava ansiosa.
��� 30 ���
Os olhos de Raul iam entrevendo os ramos das
��rvores da alameda, que absorviam os ��ltimos raios
solares, j�� no crep��sculo. O majestoso edif��cio ia fican-
do maior �� medida que se aproximavam.
Seus sentidos comparavam aquela enorme casa a
um pal��cio que vira certa ocasi��o em uma revista.
��� Entre. ��� convidou o dr. Paulo.
A criada que abrira a porta fitou-o admirada.
��� Vamos, vamos, Carlota. O que foi? Est�� achan��
do meu amiguinho muito feio? ��� sorriu, ironicamente.
��� Feio, dr. Paulo? �� a criatura mais linda que eu
j�� vi! Parece at�� m��sica de violino.
��� Saiba, Carlota ��� disse orgulhoso ��� essa m����
sica de violino agora �� nossa! Raul vai morar conosco.
Agora, prepare-lhe um banho. Pensando melhor, eu
mesmo preparo, enquanto voc�� providencia que sejam
levados para o quarto os pacotes que est��o no carro.
Raul, vamos?
Pegou a m��o do menino e conduziu-o para a gran��
de escadaria de m��rmore, guarnecida de corrim��o dou��
rado.
��� A patroa j�� chegou, Carlota?
��� Ainda n��o, doutor. Dona Helena telefonou avi��
sando que jantar�� com os Marcondes.
Um brilho de satisfa����o perpassou fugaz pelos olhos
do homem. E pensou, enquanto subiam as escadas.
��� ��timo! Hoje ��le ser�� s�� meu. A m a n h �� . . .
Entrou no enorme quarto de banho, e foi logo abrin��
do as duas torneiras da banheira. Enquanto a ��gua
t��pida jorrava, foi buscar o menino que, im��vel e per��
plexo, se deslumbrava com tudo." Os maravilhosos m����
veis, os quadros, os tapetes do Oriente e os cortinados
embelezando o confort��vel quarto.
Dr. Paulo quedou-se a olhar o menino, iluminado
apenas pela luz do crep��sculo, e seu.cora����o palpitou
mais forte, enquanto um fr��mito diferente lhe percor-
��� 31 ���
ria o corpo. Quantos meninos j�� tivera em seus bra��os?
Dez? Vinte? Perdera a conta. Mas nenhum dos outros o
fizera sentir aquela sensa����o esquisita que experimen��
tava agora. Antegozava a hora em que correria as
m��os por aquela pele de seda.
Disfar��ou o que sentia, e disse meigo para Raul:
��� O banho j�� est�� pronto, rapaz. Venha. Vou
ajud��-lo a despir-se!
��� Pode deixar, eu sei tomar banho sozinho ��� disse
Raul espantado.
��� Eu sei, meu bem, mas s�� quero lhe esfregar
as costas!
��� N��o �� preciso!
O advogado, n��o querendo ser precipitado, virou
as costas e fingiu arrumar as cortinas pl��sticas que
guarneciam a banheira. Teve a sensa����o de que o
garoto come��ava a despir-se. Sorriu satisfeito.
Afinal, tratava-se de uma crian��a.
Raul sentiu a ��gua morna envolver seu corpo, sen��
sa����o bem diferente daquela do Abrigo, onde s�� havia
chuveiro frio.
Come��ou a rir, e a espadanar-se na ��gua, jogando-
a para todos os lados, esquecendo-6e da presen��a do
dr. Paulo.
Disso aproveitou-se o advogado que, r��pido, desem��
bara��ou-se das roupas atirando-se tamb��m na banheira.
A crian��a aceitou a companhia, para a batalha na
��gua. As gargalhadas e os risos dos dois encheram a
casa de ambiente sempre triste e silencioso.
Inconscientemente Raul oferecia ao homem viciado
uma escala de desejos novos. O desejo de possuir seu
corpo e sua alma.
Paulo jamais pensara em desejar a alma de algu��m.
Sempre, em suas loucuras de sexo, s�� pensou em
gozar, s�� em gozar! Mas agora, enquanto o menino
pulava de c�� para l��, em cima do seu corpo, fingindo
��� 32 ���
ser um tubar��o que ia devor��-lo, pensava: "Como po��
derei, de agora em diante, separar-me deste menino?
Que influ��ncia m��gica! S�� pode ser sua alma que luta
para que-eu n��o a separe da harmonia de seu lindo
corpo! Que influ��ncia curiosa. Pergunto a mim mes��
mo, como compreender o que se passa comigo! Com
a minha idade n��o posso mudar meu conceito e vi��
s��o das coisas!
"Mas, agora sinto ser meu esp��rito presa f��cil de
um amor que n��o separa a alma do corpo".
��� Estou cansado de brincar ��� disse de repente
Raul. Quero sair da ��gua. N��o estou acostumado com
��gua quente. Parece que este calor vai sufocar-me.
��� Perdoe-me, meu bem. Estava t��o imerso em
meus pensamentos e esqueci-me de tudo!
Envolvendo o menino num olhar langroso, pulou
da banheira, observando a maravilhosa express��o de
cansa��o que cobria as faces daquele invulgar menino.
Embrulhou-se numa toalha e atirou outra a Raul,
que apanhou-a no ar, rindo.
��� Puxa! Banho quente d�� uma fome! Estou
at�� com as pernas bambas de tanto brincar.
��� Ent��o sente-se a�� nessa poltrona. Vou man��
dar trazer um suco de laranja bem gostoso.
Junto com o suco vieram as roupas novas. Raul
sorveu a bebida, sem descerrar os olhos, sobre os quais
tremiam os longos c��lios dourados, sentindo a leve m��o
do doutor lhe afagando a cabe��a.
��� Muito bem, meu r a p a z . . . Agora vista-se para
o jantar. Venho busc��-lo em seguida! ��� e desceu a
branca escada de m��rmore.
Raul admirava os quadros e est��tuas dispostos com
bom gosto, no corredor atapetado, quando uma porta se
abriu, surgindo o advogado. Os olhares de ambos en-
trecruzaram-se, e o dr. Paulo sentiu outra vez aquela
estranha sensa����o que o queimava e fazia sua garganta
sufocar. Disfar��ou a emo����o, com um sorriso.
33
��� Ah, voc�� est�� um perfeito cavalheiro. Um ca-
valheiro londrino.
Face a face com Raul, o advogado estremeceu. Mas,
afinal, o que seria aquilo? N��o quis admitir estar sen-
do dominado pelo jovem que o emocionava. Preferiu
pensar ser tudo consequ��ncia do banho muito quente.
Procurou convencer-se de ser sua imagina����o pregando-
lhe pe��as.
A sequ��ncia de seus pensamentos foi quebrada-pela
voz clara do menino.
��� O senhor escutou o que eu falei?
��� N��o, n��o, meu bem. Perdoe-me. Eu estava dis-
tra��do. Por favor, enquanto descemos, repita o que
disse. Prometo-lhe n��o me distrair novamente!
��� Ora, n��o era nada de importante. O senhor dis��
se que eu parecia um cavalheiro londrino. O que ��
isso?
��� Muitas palavras s��o incompreensivas para um
menino de sua idade ��� disse sorrindo ��� cavalheiro
�� ser assim, como voc�� est�� agora. Com uma roupa bem
composta, ar s��rio, compenetrado, descendo as escadas
sobriamente, com as m��os para tr��s e pose real.
��� Quem bom, o senhor estar contente com o meu
jeito!
��� Seu j e i t o ! . . . Ah, pensou ��� se ��le imaginasse
que somente sua presen��a j�� lhe trazia convuls��o ��nti��
ma e f��sica! Se ��le soubesse! Se ��le s o u b e s s e ! . . .
Puxou a cadeira para o menino sentar. N��o sabia
por que, mas tinha imenso prazer at�� nas pequenas
coisas para aquela bela crian��a.
Sentou-se defronte ao pupilo, tocou a campainha,
como chamando a criada.
Naquela noite o menino dormiu r��pido, com o dr.
Paulo sentado �� beira de sua cama, louco para pos��
su��-lo, mas n��o com ��le adormecido. O menino teria
tamb��m que am��-lo, que desej��-lo.
��� 34 ���
No dia seguinte, Raul acordou com a impress��o
de que o graduado virara seu colch��o e ��le estatelara
no ch��o, por n��o ter ouvido a sineta.
Por��m, o calor do sol entrando atrav��s do cortina��
do, banhava-lhe a cama, fazendo-o tomar conciencia do
lugar onde estava.
Sentia-se feliz. Felic��ssimo. Os ramos da ��rvore
florida ro��avam sua janela, impregnando o ar, com sua��
ve perfume. Espregui��ou-se e relaxou os m��sculos.
Lembrou-se da diferen��a, entre, aquele ambiente e o
do Bom Col��gio.
Gra��as aos c��us tudo aquilo estava longe.
N��o tinha vontade de levantar-se da cama coberto
por len����is de linho e travesseiros macios.
Ficou pensando no pijama, a mans��o, escadarias,
o suco de laranja. Tudo era novidade. Principalmen��
te o ar. Aquele ar fresco e puro agitando levemente as
cortinas transparentes das janelas. As cortinas sepa-
rando-o de tudo l�� de fora!
Tudo o que ��le imaginava agora, era esquecer!
Nunca mais voltaria ao Bom -Col��gio. Era homem!
Homem macho, por isso tivera sorte, e l�� ficaria para
sempre, vivendo como um milion��rio! N��o queria pen��
sar no futuro. Pretendia agora levantar-se e sair cor��
rendo pelos gramados.
Olhou o rel��gio. Seis horas apenas. O pouco que
sabia era que os milion��rios levantam-se bem tarde. Se
fosse correr e brincar nos jardins da mans��o, ningu��m
iria incomodar-se, pois ningu��m o veria.
Ficou em p��, na cama, e come��ou a deSpir o pija��
ma, quando a porta abriu-se.
Olhou assustado para o roup��o de fin��ssima seda,
c��r de rosa, envolvendo o corpo jovem e moreno da bela
mulher, que entrava no quarto, indo sentar-se na cama.
Tagarelava, enquanto o ajudava a despir-se.
��� 35 ���
��� Bom dia, meu amor. Dormiu bem? Espero que
nada o tenha incomodado. ��� Ela dobrou o pijama, co��
locando-o em cima de uma cadeira.
��� Sou a sua m��e. Que tal? Gostou de mim? Es��
pero que sim, porque estou encantada com voc��! Paulo
me disse ser voc�� bonito, como um anjo! Mas enga��
nou-se. Voc�� �� bonito como um Deus!
Somente quando Helena o envolveu em seus bra-
��os, Raul percebeu que estava nu. Ela o apertava
como se quisesse amass��-lo. ��le sentiu a maciez do seu
lindo vestido de seda, em sua pele, encantando-se com a
sensa����o de ser abra��ado por uma mulher.
Encostando-se a ela, disse sorrindo:
��� Gostei muito da senhora, sim!
��� Da "senhora"?... ��� Helena f��z um muxoxo e
beijou-o nos l��bios.
��� Da s e n h o r a . . . mam��e! Repita: Da se-nho-ra
mam��e!
Em p�� sobre a cama, seu rosto estava no mesmo n��
vel do rosto de Helena. T��o pr��ximos um ao outro,
que sentiam o calor do h��lito.
��� Da senhora, mam��e! ��� repetiu olhando-a pro��
fundamente os olhos.
Helena estremeceu. Suas m��os percorreram lenta��
mente o corpo macio da crian��a, e pensou, ent��o, que
��le n��o parecia t��o crian��a. Ou se enganara, ou ��le
vibrara, com o contato de suas m��os de unhas longas
e ovaladas. N��o queria olhar agora para envergonh��-
lo. Teria muito tempo para isso.
Outros meninos trazidos pelo marido n��o lhe trans��
mitiram aquela sensa����o viva e aquele calor formigan-
do-lhe os sentidos. Talvez, porque os outros, o marido
esfriava antes. Quando vinham para ela j�� estavam
desgastados pelo marido.
Mas, naquele anjo o marido n��o poria as m��os.
Exatamente por isso levantara-se primeiro e ali estava.
36
N��o deixaria Paulo a s��s com o garoto. Pretendia
ficar sempre alerta e vigilante, a partir daquele instante.
Beijou levemente os l��bios vermelhos da crian��a, e
o largo sorriso espelhado naquele rosto angelical a f��z
repetir o gesto. Dessa v��z um pouquinho mais demo��
radamente e, sentindo uma leve rea����o do menino, disse:
Todas as mam��es beijam seus filhinhos assim, vo��
c�� n��o sabia?
��� Eu n��o tenho m��e!
��� Voc�� gostou?
��� De que?
��� Do beijo da mam��e?
��� Gostei!
��� Se voc�� f��r bonzinho para mim, a mam��e lhe
dar�� muitos beijos, e . . . outras coisas boas.
��� Uma bola tamb��m? ��� perguntou ingenuamente.
��� Tamb��m ��� disse Helena com um sorriso c��nico.
��� Agora posso ir brincar no jardim?
��� Claro que sim, meu bem. M a s . . . voc�� me pro��
mete uma coisa. Promete?
��� Tudo o que a senhora quiser.
��� ��timo. Se seu pai o chamar, venha contar-me
primeiro. N��o quero que ��le se preocupe com voc��.
Coitado! ��le tem tanto que fazer, e se voc�� lhe der
um t r a b a l h o . . . ��le ser�� capaz de n��o querer voc�� aqui.
Helena sentiu pena da express��o e palidez que se
formou no rosto de Raul, quando ouviu aquelas pa��
lavras.
Mas, se n��o o assustasse, poderia perd��-lo. N��o
queria isso por nada deste mundo. Ansiava sentir e
possuir aquelas tenras e macias carnes em luta amoro��
sa ardente naquele instante, queimando-a at�� as en��
tranhas sequiosas por amor.
37
Com habilidade f��z que o menino se sentasse sobre
o leito e procurou desculpar-se, quando viu a tristeza
estampada no belo rostinho.
��� P e r d �� o . . . N��o s�� zangue comigo! Se o papai
n��o o quiser, eu o levarei para longe, bem longe.
��� Mas eu n��o quero ir para longe! Quero ficar
com a senhora e o com o dr. Paulo!
��� Naturalmente, minha pobre crian��a. Ficar�� co��
nosco. S�� n��o poder�� ficar se aborrecer o papai. Se
��le o chamar para passearem juntos, ou ficarem a s��s,
voc�� vem correndo para os bra��os da mam��e. Isso dei��
xar�� o papai contente.
��� Nesse caso, eu prometo n��o ficar a s��s, com o
dr. Paulo. Agora posso ir brincar?
O menino vestiu-se e saiu correndo do quarto, en��
quanto Helena permanecia pensativa, com o olhar per��
dido ao longe, ap��s vencer a primeira batalha.
38
IV
A mulher do juiz tamb��m ama
o menino
Um m��s passou voando. O pequeno Raul apro��
veitou o tempo da melhor maneira poss��vel para uma
crian��a de sua idade. Comendo, dormindo e sendo aca��
riciado pelo casal, como se fosse um filho verdadeiro.
Estava mais gordo e mais alto. Sua pele adquiriu
um tom bronzeado-dourado. Raul ria com simplicida��
de, feliz, devido o casal n��o se separar d��lc um instante
sequer. O dr. Paulo voltou a dormir com a esposa,
depois de seis anos de separa����o. Mas, era apenas para
vigiarem-se mutuamente. Dormiam sobressaltados,
cheios de medo. Raul teria que ser amante s�� de um
dos dois!
O dr. Paulo transferiu seu escrit��rio para a man��
s��o, e Helena n��o mais sa��a, nem mesmo para ir ao
cabeleireiro. Os dois viviam espreitando-se, numa ten��
tativa de terem uma chance de ser o primeiro a con��
quistar o garoto.
O advogado e a esposa estavam loucamente apai��
xonados pela crian��a. Ela vivia nervosa, emagrecia a
olhos vistos, e suas faces encovadas estavam at�� se tor��
nando amarelas. Passavam os dias tristes, e tremendo
de desejos.
E �� l e . . . ��le pensava at�� em mat��-la! O menino
tinha que ser seu! A sua pot��ncia, morta h�� tanto
tempo, renascia, crescia, vibrava, estourava, �� vista do
menino.
39
Como fazer para que aquela cadela o deixasse em
paz? J�� estava infernalmente aborrecido. Ah, se fos-
se poss��vel neste momento ter Raul em seus bra��os!
Daria tudj para isso acontecer! N��o haveria nada no
mundo que n��o sacrificasse para t��-lo, eternamente,
junto a si. Daria tudo, at�� a pr��pria alma.
Mas a c a d e l a . . . A cadela da mulher era um em��
pecilho que vivia sempre a vigi��-lo. Tinha de encon��
trar um meio para afast��-la! Paulo apertou a cabe��a
entre as m��os, e cerrou os olhos com for��a, para n��o
ver o menino saltitando pelo parque. Mas, mesmo sem
v��-lo, sentia sua presen��a. N��o precisava olhar para
saber quanto era cativante o sorriso que se espelhava
pelo semblante da crian��a, enquanto oferecia uma flor
a Helena. Ah, cadela!
��� R a u l . . . R a u l . . . ��� balbuciou o dr. Paulo.
Raul entregava uma rosa a Helena, perguntando:
��� Quer mais uma?
O menino parou de repente, e perscrutou as plantas
baixas que o circundavam.
Helena observou-o, surpresa.
��� O que foi, meu anjo? Parece haver ficado tris��
t e . . . Termine de falar. voc�� d i z i a . . .
��� N��o, n �� o ! . . . ��� voltou-se bruscamente ��� Papai
esta me chamando!
A express��o da jovem foi de profundo desagrado.
��� Chamando? N��o ouvi. voc�� deve ter-se en��
ganado!
��� Chamou, sim! Eu ouvi!
��� Mas meu bem, veja! Seu pai est�� longe. Com
a cabe��a entre as m��os! T��o longe! Se o tivesse cha��
mado, teria gritado, e eu tamb��m ouviria.
��� Mas eu ouvi! ��� Raul afastou-se correndo e afo��
gueado. Chegou perto do advogado e sua voz tirou o
homem do mundo das medita����es em que estava mer��
gulhado.
��� 40 ���
��� O senhor chamou?
Paulo estremeceu, como se uma corrente el��trica
o tivesse atingido. Levantou a cabe��a, e fitou perplexo
o menino.
��� Chamei?! ��� perguntou meio zonzo.
��� Sim. Eu ouvi o senhor chamar: Raul, Raul,
agora mesmo!
O advogado nao podia compreender. Balbuciara o
nome do menino, e ��le ouvira, l�� de t��o longe! Mas
como?
Pousou levemente a m��o no ombro de Raul.
��� voc�� ouviu! Ouviu sem mesmo que o chamassef
��� Ouvi perfeitamente! Sua voz soou bem den��
tro do meu c��rebro!'
Helena, que j�� se aproximara, disse:���
��� Imagine, querido. Raul garante que voc�� o cha��
mou! E eu n��o ouvi nada!
O olhar de ��dio lan��ado pelo marido f��z seu sangue
gelar nas veias.
��� Chamei-o, sim. Chamei-o. Sua voz era grave
e firme. ��le n��o permitiria a intromiss��o dela nesse
mundo novo que agora conhecia. O mundo da alma.
Helena franziu a testa.
��� Engra��ado! N��o ouvi nada. Ondulou o ar com
gestos leves, como fazia sempre, e pegando Raul pela
m��o, puxou-o para si, e enfrentando o marido com os
olhos brilhantes, perguntou:
��� O que voc�� quer dele?
Do alto de sua estatura, com a palidez espalhan��
do-se pelo rosto. Paulo arrancou o menino das m��os
da mulher e gritou:
��� ��le vai viajar comigo!
Ela riu, escarninha.
��� S�� se voc�� passar por cima do meu cad��ver.
��� 41 ���
Dentro d��le de repente- fervilhou uma raiva louca,
tal como animal selvagem. Detestava aquela mulher
nojenta, que j�� tinha cruzado suas carnes com as dele.
Apoderava-se de ��dio quando lembrava que, com ela,
j�� havia quase desmaiado de prazer! Que nojo! Seus
olhos esbugalhados, m��os crispadas. Aproximou-se com
andar lento, em dire����o �� mulher, assustando o meni��
no, que subitamente p��s-se a correr.
Coberto pelos arbustos, o advogado divisou um pe��
da��o de madeira. Apanhou-o sem tirar os olhos da mu��
lher que, apavorada permanecia ext��tica, sem conseguir
mover-se.
Apanhou o peda��o de pau, e seu bra��o girou no ar,
vibrando uma pancada seca.
��� As mulheres s��o t��o fr��geis ��� pensou ��� Des��
maiam apenas com uma pancadinha de leve. Sua rai��
va se desmanchava, vendo a mulher assim, ca��da no
ch��o.
Esfregou as m��os, limpando-as com a terra e, co��
mo se estivesse perseguido pelo dem��nio, saiu �� pro��
cura de Raul.
Os farrapos de nuvens eram esgar��ados pela brisa,
deixando o c��u pontilhado de estrelas. As altas ��rvo��
res gemiam, sacudidas pelas rajadas r��pidas de vento
que as despiam de suas folhas.
Com um gemido surdo, Helena esquadrinhou o ne��
gror da noite que a envolvia. Tremeu de frio, mas per��
maneceu im��vel, prostrada na terra ��mida onde havia
ca��do.
Pouco a pouco foi lembrando de tudo e, como ave
ferida, um grito estrangulado lhe passou pela garganta.
��� Raul! .
42
Sentou-se a custo e ficou a escutar. Tudo era si��
l��ncio. Olhou para a mans��o. Tudo ��s escuras. Es��
tava sem rel��gio e n��o tinha no����o do tempo. Que
horas seriam?
Levantou-se e, com passos cambaleantes, dirigiu-se
para a casa. Girou a ma��aneta. A porta estava tran��
cada. Tocou a campainha.
Ap��s alguns instantes de espera, Carlota, estremu��
nhada, abriu a porta, espantando-se ao ver a patroa
com a testa suja de sangue.
Helena apoiou-se na empregada, perguntando.
��� Que horas s��o?
��� Tr��s e meia!
��� Tr��s e meia?! Eu poderia ter apodrecido l�� no
parque e ningu��m se importaria!
��� Mas, mas ��� gaguejou a criada ��� O dr. Paulo
antes de sair em viagem com o menino, disse que a
senhora j�� tinha ido na frente, para preparar as aco��
moda����es!
��� Saia ��� gritou Helena.
A empregada afastou-se r��pida e assustada com a
express��o de ��dio estampada na fisionomia da patroa.
Helena dirigiu-se para a biblioteca, serviu-se de uma
generosa dose de whisky e, andando nervosa de um lado
para outro, procurou p��r seus pensamentos em ordem.
Sentou-se em uma poltrona. Levantou-se. Tornou a
caminhar. Que fazer! Que fazer?!
Compreendeu que, se demorasse a tomar uma reso��
lu����o, depois poderia ser tarde! S�� em pensar que a
essa hora o marido poderia ter iniciado o menino na��
quilo que ela temia, ah! O menino agora j�� poderia
ser um invertido. Ficaria doente e louca de ��dio!
Ouviu o carrilh��o da sala soar as seis horas.
Subitamente, veio-lhe a inspira����o! Apanhou um
casaco, no arm��rio do vest��bulo, e correu para o carro
desesperadamente, iniciando sem certeza, viagem para
o sem rumo.
43
V
O juiz quer o corpo e a alma
do menino
O hotel de Caraguatatuba estava lotado. No sal��o
e no bar, v��rias pessoas, em traje de banho, formavam
pequenos grupos coloridos, rindo e tagarelando. Em
volta das luzes giravam mariposas que, de quando em
quando ca��am ao ch��o e, num estalido seco, morriam
esmagadas por p��s que andavam de l�� para c��.
Raul, encantado, observava os insetos, enquanto o
advogado preenchia a ficha.
��� Tudo pronto, meu bem. A suave press��o da
m��o do advogado em seu ombro o f��z assustar. Virou-
se, r��pido. ��� Por que esses estremecimentos, Raul? Es-
t�� com frio? Ou com m e d o ? . . . Tem medo de mim?
��� N��o senhor.
��� Ent��o?
��� Nada. Estou com sono. E tamb��m pensando
em mam��e Helena.
Paulo sentiu uma pontada no cora����o.
��� Por favor! N��o me lembre d a q u e l a . . .
Sentiu que elevara demais a voz, e v��rias pessoas
os olharam. Pegou o menino pela m��o e seguiu es��
cadas acima.
O quarto era comum. Com cama de casal e um
banheiro. Raul sentou-se na beira da cama e, meio
45
triste, observava o dr. Paulo desfazer as malas. Ao lhe
dar o pijama, o advogado percebeu estar o garoto com
os olhos quase fechando. Sorriu e acercou-se dele.
��� Vamos, vista-se e meta-se na cama.
Raul esfor��ou-se por manter os olhos abertos, en��
quanto se vestia. Ao voltar do banheiro, Paulo notou
que ��le j�� estava dormindo, deitado meio de lado, com
as m��os debaixo do rosto, repousando serenamente.
O homem sentou-se em uma cadeira e f��z um es��
for��o para lembrar se imagem t��o encantadora j�� lhe
passara pelas retinas.
Lembrou-se sua inf��ncia de estudante rico. Os pais
morreram e lhe deixaram uma fortuna imensa, forti��
ficada com a uni��o �� fortuna da mulher. Fora feliz no
casamento, at�� que n��o conseguira mais satisfazer a
esposa. Fraqueza sexual disseram os melhores m��dicos
do mundo, com os quais se tratara. Mas, nenhum tra��
tamento dera resultado, at�� que um dia, sentado �� beira
da piscina de um clube, vira um garotinho espadanar-se
na ��gua. O menino come��ou a afogar-se, e ��le ent��o
atirou-se para salv��-lo. Quando apertou a crian��a nos
bra��os, sentiu toda a sua beleza de homem erguer-se,
firme e ereta.
Desde ent��o, s�� pensava em garotos. Apanhava-os
na rua e os levava para seu apartamento, na cidade.
L��, os penetrava devagar, bem devagarinho. Uns gri��
tavam, outros se recusavam a praticar aquilo. Mas um
saco de bom-bons ou um brinquedo lhes quebrava a re��
sist��ncia. Sorriu. Um dos maiores encantos das crian��
��as �� o fato de serem crian��as.
Algumas vezes passava dias inteiros com algum ga��
roto. Quando se fartava, dava-lhe alguma coisa para
faz��-lo dormir, e o carregava ent��o, escadas abaixo, at��
o carro que ficava guardado no por��o do pr��dio, e o lar��
gava na cal��ada de alguma rua deserta, mas sempre
com os bolsos de suas rotas vestes cheios de dinheiro.
Um dia, deixou um lindo garoto de doze anos s��
no apartamento, e desceu para comprar alguma coisa
��� 46 ���
para comerem. Ao voltar, encontrou Helena l��. O
menino, sentado em seu colo, lhe sugava os seios.
Ela sorrira, c��nica e, com um dedo nos l��bios, pe��
dindo sil��ncio, dissera-lhe com voz c��lida:
��� Estou dando de mamar para o nosso filhinho.
O garoto estava nu, e era perfeitamente vis��vel a
sua pot��ncia, que Helena acariciava com a m��o.
Sa��ra dali depressa, para n��o estrangul��-la!
Depois desse dia, tivera de dividir seus meninos com
ela. Ou ent��o, ela daria queixa �� pol��cia, conforme
amea��ara.
Mas este menino, que �� sua frente respirava rit��
madamente, ela n��o teria. Este seria somente seu, e se��
ria naquele instante.
O advogado despiu-se e nu, bem devagarinho para
evitar os estalidos do colch��o, deitou-se j u n t o ao garo��
to e, com os bra��os cruzados sob a cabe��a ficou medi��
tando, olhando fixamente o teto.
Engra��ado, pensava. Se fosse um outro garoto que
estivesse ali, t��o pertinho, ��le j�� teria feito o neg��cio.
N��o se importaria se o rasgasse ou arrebentasse. N��o
se importaria com gritos ou gemidos, ou sangue. Nada
o incomodava. Ficava vazio de outras sensa����es, como
uma fera no cio.
Levou as m��os at�� os test��culos, e sentiu-os du��
ros e ��speros. Sua m��o apertava, acariciava, alisava
aquela gl��ndula. Depois subia at�� o p��nis e descia no��
vamente, mas sua m��o n��o lhe trazia sensa����o algu��
ma. N��o sentia nada. Era uma m��o fria e meio suada
Existiam homens que experimentavam com a m��o
sensa����es e apagavam o desejo ardente. Mas as s u a s . . .
Relanceou um olhar ao encantador garoto que, au
seu lado, dormia inocentemente.
Sim, existiam m��os que substitu��am vaginas ou
��nus. Mas as suas, por mais qu�� voltasse ao passa��
��� 47 ���
do, nunca tinham lhe trazido nada. Suas m��os eram
como m��os mortas.
Continuou a pensar o que se passava com ��le.
Seu sexo estava intumescido de desejos, mas n��o se
atrevia a mexer-se. O menino, imerso ��m sono pro��
fundo, virara-se e pousara uma perna sobre seu corpo.
A carne dourada da crian��a misturava-se com a sua,
peluda e seca.
Estava mergulhado em lux��ria trazida pelo con��
tato da crian��a. O horr��vel desejo o torturava. Teria
de possuir aquele ��nus. Pretendeu virar o menino e
acabar com tudo. Parou.
��� N��o! Torceu convulsivamente as m��os e pulou
da cama. ��� N��o! Eu quero possuir tamb��m a sua al��
ma! Quero que ��le me ame! Quero possu��-lo com o
seu consentimento.
Mas o menino era inocente. Era uma pobre crian��
��a. N��o quis pensar de onde ��le poderia ter vindo, e
nem tinha interesse nisso. N��o lhe importava. Era
mais um dos quantos abandonados existiam na gran��
de cidade.
Andava pelo quarto nu, e a passos longos. Com
um chute, atirou longe um p�� de sapato que se atra��
vessou em seu caminho e, como animal enjaulado, sua��
va e resfolegava.
Por��m, bastava olhar para o leito, e as labaredas
-do desejo recrudesciam. Como um alucinado, vestiu
um short e correu para o mar. A ��gua gelada refres��
cou sua alma abrasada, e ainda sentindo fr��mitos es��
tranhos, o advogado saiu do mar e deitou-se na areia.
Adormeceu em meio �� t��nue n��voa da madrugada.
Raul comoveu-se diante do mar, assim como ficava
comovido com a m��sica. As montanhas ao longe, o
p��r-do-sol, a neblina envolvendo as matas, tudo isso o
comovia at�� ��s l��grimas.
Era isso que o advogado observava, olhando-o ago��
ra de soslaio, enquanto o menino quedava-se estranha��
mente ap��tico e silencioso, com o olhar perdido na vas��
tid��o do mar.
48
J�� estavam em Caraguatatuba h�� cinco dias, e a
atitude do garoto era sempre a mesma. Olhava o mar,
sempre com aquele sorriso de Gioconda a brincar-lhe
nos l��bios.
Mas depois que punha os p��s na ��gua, como por
encanto sua abstra����o desaparecia, e era um custo fa-
z��-lo voltar para terra. Nesses curtos dias, a fera que
o corpo do dr. Paulo abrigava, permanecia silenciosa e
quieta.
A brisa suave da noite quente sacudia as ��rvores e
entrava pela janela, espargindo a fragancia do mar
pelo quarto.
Deitado de bru��os na cama, olhando uma revista
em quadrinhos, Raul mascava chicletes, e marcava o
compasso da m��sica do r��dio port��til levantando e
abaixando as pernas. A porta do banheiro estava es-
cancarada, e o ru��do do chuveiro abafava o cantarolar
alegre do advogado.
Alguns minutos depois, enrolado numa toalha, ��le
entrou no quarto. Parou e a melodia trauteada mor��
reu-lhe nos l��bios. Tornou-se de uma palidez cadav����
rica, e uma zoeira tomou conta de seu c��rebro, qual
c��rculo de ferro, apertando-lhe as t��mporas. Seus olhos
se fixaram em um ponto. Aquela bunda sedosa que
enfeitava a cama, qual rosa esquecida.
L�� no fundo do seu ser a coisa come��ou a contor-
cer-se. O monstro crescia e rugia, feroz. A presa ino��
cente esticou as pernas, espregui��ando-se. O seu apeti��
te agora era de sangue e, como imensa aranha, come��ou
a rastejar, aproximando-se devagarinho do leito e ino��
pinadamente, como um louco, atirou-se sobre a crian��a.
Raul gritou e come��ou a debater-se, aterrorizado, pre��
tendendo livrar-se daquele peso que o esmagava.
Os seus movimentos mais inflamavam e intumes��
ciam seu sexo inchado de desejo, que procurava al��vio
em seu corpo dourado.
Mas nesse exato momento ouviram-se fortes bati��
das na porta. O advogado ficou estagnado por um ins��
��� 49 ���
tante, enquanto o monstro se evaporava no espa��o. Nu,
coberto de suor, o dr. Paulo correu para o banheiro.
Orlado pelos reflexos dourados dos cabelos, os l����
bios grossos entreabertos, onde despontavam os dentes
brancos, a confus��o no azul dos seus olhos emociona��
ram os policiais que, abrindo a porta, depararam com
aquela bela crian��a tr��mula, que se escudava num
canto do quarto.
Os policiais sabiam de quase tudo. Que o advo��
gado apanhara o menino na rua e que pretendia adot��-
lo. Mas, como andava muito nervoso e o garoto era
muito desobediente, resolvera lev��-lo para longe de He��
lena, que tinha muita pena da pobre crian��a e n��o
admitia que o advogado o castigasse.
Helena dera parte na pol��cia e pedira para que a
ajudassem a encontrar a linda crian��a.
Agora tudo estava bem, dizia Helena, entrando no
quarto e correndo a abra��ar o menino.
��� Agrade��o a ajuda de voc��s, e agora que encon��
trei Raul, tudo est�� bem. ��le nada mais precisa te��
mer, nada mais vai a c o n t e c e r . . . se �� que j�� n��o acon��
teceu!
Logicamente oa policiais nada entenderam do que ia
pela mente de Helena.
��� Muito obrigada, os senhores podem se retirar!
N��s levaremos o menino.
Helena se sentia como se uma bomba houvesse es��
tourado junto aos seus ouvidos. Seus t��mpanos ainda
assobiavam, e sua vista estava meio emba��ada.
��� Muito bem, senhora. N��s levaremos o menino.
Nesse momento o dr. Paulo saiu do banheiro, j��
vestido.
��� Ningu��m levar�� o menino! Viu Helena e den��
tro de seu c��rebro um vulc��o explodiu. ��� Sua filha
da puta! Rameira vagabunda!
Aquele casal, que um dia se unira pelos la��os do
matrim��nio, at�� que a morte os separasse, agora se de��
��� 50 ���
gladiava, soltando fa��scas pelos olhos. Os policiais in��
terrogaram Raul.
��� Onde voc�� mora?
Raul olhou-os com ar petulante e respondeu, em
desafio.
��� Em lugar nenhum!
��� O dr. Paulo achou voc�� na rua! N��o tinha
casa ent��o? Morava na rua?
��� No Abrigo de Menores!
��� Tinha fugido, hein?
��� Isso mesmo!
��� E por que?
��� Por que eles queriam comer o meu c��!
Uma cobrinha gelada percorreu a espinha do ad��
vogado que olhou para o menino, com o cora����o aos
pulos.
��� Ent��o ��le sabia dessas coisas?! ��� pensou ��� E
como o pequeno lutara! Qualquer coisa dentro dele
derreteu-se, enquanto permanecia de joelhos enfrente ��
crian��a, sussurrando.
��� Perd��o! Perd��o, meu querido Raul!
Um pux��o dos guardas e a querida crian��a saiu
cabisbaixa. Foi a ��ltima lembran��a que as l��grimas
n��o conseguiram cobrir!
51
VI
A Moedinha
Raul voltou para o Abrigo e com o passar dos anos,
se converteu em graduado. S�� assim preservaria a vir��
gindade do seu ��nus. Tornou-se mau, frio, calculista.
Em seu cora����o de dezessete anos, s�� n��o havia um pe-
cado: violar meninos!
Naquele domingo, ��le e tr��s outros graduados foram
escalados para tomar conta de menores que estavam
recebendo visita de parentes. O hor��rio de visitas era
das quinze ��s dezessete horas. Ao t��rmino desse hor����
rio, os menores perfilavam-se para serem revistados. Na��
da podiam levar para fora do sal��o de visitas, nem fru��
tas e guloseimas, e muito menos dinheiro.
Jo��ozinho, nesse dia, foi conhecer a m��e de um de
seus amiguinhos. Agora ��le esperava na fila a sua vez
de ser revistado, quando o amiguinho lhe falou:
��� Guarde a moedinha que minha m��e lhe deu, se��
n��o o graduado toma!
Jo��ozinho j�� sabia onde devia guard��-la, mas n��o
teve coragem.
��� Guarde no cu, Jo��o! Vamos, enfie logo, que
est�� chegando a sua vez.
��� E u . . . N��o posso! A moeda tremia na m��o do
pretinho. ��� N��o, n��o tenho coragem!
53
O graduado estava j�� bem perto. Decidindo-se,
Jo��ozinho enfiou depressa a moeda num buraquinho que
tinha feito na gola de sua camisa caqui.
O graduado era seu amigo Raul, que com um olhar
o interrogou.
��� Meu amigo R a u l . . . pensou o menino enquanto
era revistado. Como havia mudado! Qual larva trans��
formada em lib��lula, ele tamb��m havia se metamorfo��
seado. �� candura de menino ing��nuo j�� n��o mais exis��
tia. Agora era cruel e frio. Mas a culpa n��o era de��
le. E r a . . . De quem seria a culpa?
Sentiu o peso da m��o em seu ombro.
��� D��-me a moeda, Jo��o!
��� A moeda �� minha! respondeu o pretinho, len��
tamente tremendo de emo����o.
��� D��-me a moeda, repito! e tomando-se rubro,
agarrou o preto e o levantou, at�� �� altura de seu rosto,
fixando-o com olhar medonho.
��� Vi voc�� esconder a�� na gola! Entregue agora
mesmo, negro imundo.
��� Eu ganhei a moeda de presente! Ela me perten��
ce! respondeu o menino, com voz firme.
Com um safan��o, Raul atirou a crian��a longe. Ca����
do Jo��ozinho gritava.
��� Esse n��o �� voc��, Raul! N��o pode ser! Onde
est�� o meu amigo que sempre defendia os pequenos e
fracos? N��o �� poss��vel que agora voc�� me maltrate
por causa de uma m��sera moeda! Faz seis anos que
estou aqui neste asilo, e �� a primeira vez que ganho
alguma coisa. Agora voc�� quer roubar-me?
Em resposta, Raul aplicou-lhe um pontap��.
��� Eu n��o sou ladr��o! Recebo ordens!
O pequeno, ca��do, engoliu um solu��o e limpou com
a m��ozinha suja uma l��grima teimosa que rolava.
��� 54 ���
��� Ordens de quem? Quem �� o desalmado que
manda massacrar nosso corpo, nossa alma, nossas ilu-
s��es, nossa f��, nossa inf��ncia? Seus solu��os se perdiam
no sil��ncio ��� Quem �� que manda, Raul? Quem ��?
O adolescente olhava aquela figurinha ca��da aos
seus p��s, fazendo for��a para afogar o turbilh��o que lhe
ia n'alma. N��o sabendo o que dizer, escondeu o rosto
entre as m��os e saiu dali a passos largos.
Os outros graduados seguiram Raul, enquanto as
crian��as aproveitavam para ir devagar, bem devagari��
nho at�� a privada, para recuperar a moedinha que ti��
n h a m escondido no ��nus.
�� noite, Raul tamb��m estava entre os graduados
encarregados de acordar os menores para as necessida��
des fisiol��gicas. �� um verdadeiro supl��cio para os in��
ternos, acordar todas as noites, com o acender das lu��
zes e os gritos de "Vamos pulando depressa, que est��
na hora de ir �� privada. O filho da puta que cagar
na cama, j�� sabe"!
Aqueles que, por doen��a ou outro motivo qualquer
j�� haviam sujado na cama, podiam esperar as borra��
chadas.
Raul estava presente tamb��m, na hora da "Ordem
Unida", que era outro sofrimento para as crian��as.
Marchar, marchar sem desmanchar a fila e sem atraso.
Um passo errado e ganhava-se um bofet��o. Aqueles
que n��o conseguiam acertar o passo, ficavam em fila
separada e recebiam tapas e bofet��es, acertassem onde
acertassem.
A posi����o era de sentido, e com os olhos fechados
durante meia hora, uma hora, pernilongos, abelhas e
moscas que ficassem �� vontade, pois quem n��o obedecia
�� ordem de ficar parado e ereto, como est��tua, recebia
um soco no est��mago, que fazia vomitar at�� o que n��o
havia comido. Os meninos n��o tinham paz nem na
hora do recreio. Os graduados que estivessem aborre��
cidos com aquela vida, e n��o soubessem o que fazer pa��
ra se distrair, co��avam a cabe��a, �� cata de alguma id��ia
55
brilhante. E ent��o, sorrindo cinicamente, chegavam ao
meio do p��tio e gritavam:
��� "Sentido"!
Pobres crian��as, mal separadas da inf��ncia, a vida,
ao inv��s de lhes sorrir, era como uma estrada lodosa e
asfixiante, ond�� o ar pesado lhes deixava os ouvidos
surdos e as l��nguas secas na boca.
O eco dos gritos de mil dem��nios vibravam em seus
t��mpanos, e iriam persegu��-los sempre, sempre!
VII
Ser��, que tamb��m sou brasileiro ?
A paisagem agora era diferente, mas o esp��rito das
infelizes crian��as era o mesmo: negro e sombrio.
O abrigo onde chegava agora um grande magote
de meninos, vindo da Avenida Celso Garcia, era o "Edu-
cand��rio Dom Duarte". Entre eles estavam Jo��ozinho
e Raul.
O Educand��rio era pequena cidade onde existiam
mais ou menos dezesseis grandes casas e, em cada uma,
ficavam alojados trinta e seis menores. Essas casas
eram chamadas "lar", tendo cada um casal tomando
conta das crian��as.
Era obriga����o dos internos fazer a limpeza da casa,
quintal e tratar da horta.
Nos primeiros dias tudo foi alegria para a turminha
vinda da Celso Garcia. O educand��rio era sem muros,
com escola, cinema, comida e onde podiam at�� escovar
os dentes.
M a s . . . havia tamb��m pontap��s, tapas e socos, ago��
ra distribu��dos pelo casal. Qualquer falta, por menor
que fosse, os deixava sem comida.
Um dia, Jo��ozinho foi transferido do lar dez para o
catorze. Ficou content��ssimo, porque l�� reencontrou
seu amigo Raul, que vivia p��lido e triste, sempre pen��
sando num meio de fuga. Alegrou-se, tamb��m, com a
57
chegada do pretinho e, mal lhe deu as boas-vindas, sus��
surrou baixinho:
��� �� uma pena voc�� s�� agora ter vindo para c��!
��� Por que? Interrogou o pretinho.
��� Vou fugir esta noite!
Jo��ozinho, antes de haver sido transferido sofrera
uma sova t��o grande que at�� o tinha deixado doente,
motivando no mesmo instante, incisiva decis��o: "Eu
fujo com voc��, Raul! N��o adianta a gente ficar aqui.
N��o se aprende nada, mesmo!
Raul explicou rapidamente ao pretinho o plano de
fuga.
De madrugada, esperaram o vigilante da noite pi��
cotar o rel��gio, instalado no outro dormit��rio. Pegaram
a roupa dependurada no cabide do corredor e, p�� ante
p��, foram trocar-se no banheiro. Quando o vigilante
entrou no terceiro dormit��rio, as crian��as, descal��as,
atravessaram o sal��o e o refeit��rio e, como gatos, de��
pois de passarem pela cerca de arame farpado, atr��s
da horta, ganharam a estrada.
Os dois corriam como doidos pelo ch��o de terra
batida, deixando atr��s o lugar onde s�� conheceram a
descren��a, ignor��ncia, ��dio e falta de compreens��o.
J�� come��ava a amanhecer quando um caminh��o
lhes deu carona.
Da conversa travada com o motorista, ficaram sa��
bendo que o mesmo era dono de uma grande cria����o
de porcos, tendo concordado em abrig��-los em sua casa.
O velho casar��o da ch��cara comportava v��rias fa��
m��lias inclusive uma que tamb��m escondia um fugitivo
do Educand��rio D. Duarte. Os meninos gostaram logo
do lugar, fartamente arborizado.
Em troca da comida e de um monte de trapos para
dormir, os meninos tinham de limpar os chiqueiros,
que eram enormes, trocar a comida dos cochos, buscar
lenha no mato e, quando tinham uma folguinha, a mu��
lher do dono do chiqueiro mandava Jo��ozinho vender
mangas e bananas pelas ruas.
58
Todos os moradores do casar��o comentavam ser
pena um rapaz t��o lindo como Raul ter de limpar as
sujeiras dos porcos.
Quem mais se preocupava era a dona da casa. Ela,
era m��e de duas crian��as e essas serviam para aproxi��
m��-la do jovem.
��� Raul, v�� ao meu quarto e tome conta das crian��
��as, enquanto vou at�� a cidade. Meu marido viajou e,
enquanto ��le n��o est��, voc�� pode fazer servi��os mais
leves.
��� Vou j �� , senhora.
��� Ande logo. Mas, antes, tome um bom banho.
J�� deixei sabonete e toalha no banheiro e tamb��m rou��
pas limpas.
Raul, que puxava estrume dos animais com a en��
xada, olhou para Jo��ozinho, cambaleando com o peso
de uma lata de dezoito litros, cheia de ��gua para os
porcos, e encostou tristemente o queixo no cabo da en��
xada, lan��ando com pena os belos olhos nos olhinhos
empapu��ados do pretinho, magro e cansado. Em se��
guida Raul perguntou �� mulher.
��� E o meu companheiro? ��le pode parar de tra��
balhar hoje? O coitado nem pode parar em p�� de tanto
carregar ��gua l�� da bica, que �� t��o longe!
A mulher alta e gorda sorriu, mostrando os den��
tinhos de rato.
��� Depende s�� de voc��. Se q u i s e r . . . faremos um
trato?
��� Claro que quero!
��� Ent��o v�� logo para o b a n h o ! . . .
��� Vou primeiro avisar meu companheiro! Jogou
a enxada para um canto, e correu �� procura do pretinho.
��� Jo��o, voc�� n��o precisa mais trabalhar hoje, nem
amanh��, n e m . . .
��� Parar de trabalhar? Voc�� deve estar delirando,
Raul! J�� sabe o que acontece se a gente parar! Melan-
��� 59 ���
c��licamente sorriu, um sorriso triste de crian��a enve��
lhecida. ��� Ah, Raul! N��s fugimos do fogo e ca��mos na
fogueira. L�� ruim, aqui piora.
Raul sentou-se na beirada do cocho, tomou as m��o��
zinhas frias e calejadas do pequeno e disse meigamente:
��� Voc�� deve compreender. N��s, ��rf��os do gover��
no, s�� podemos esperar essa esp��cie de trabalho: catar
bosta, ou ser burro de carga pois o Brasil, nosso pa��s,
a nossa terra, tudo nega aos seus filhos, que por des��
gra��a s��o sozinhos no mundo. Voc�� tem de se con��
formar! N��o espere por um milagre como, por exemplo,
que uma fam��lia nos adote pr�� termos um lar! N��o
espere um milagre! Os olhos de Raul cintilavam, en��
quanto sacudia o negrinho. ��� Voc�� tem de se confor��
mar, Jo��o!
Jo��ozinho desvencilhou-se das m��os do outro e gri��
tou bem alto.
��� N��o me conformo! Algu��m tem de olhar para
mim! Deve existir, neste imenso Brasil, algu��m que ou��a
meu grito e me d�� a m��o! Algu��m deve curvar-se, para
n��o me afundar mais e mais nos sofrimentos desta vida!
Voltando-se para Raul, disse-lhe gravemente:
��� Eu fugi do asilo do governo, porque l�� poderia
morrer de tanto apanhar! Agora, meu corpo j�� n��o
aguenta tanto servi��o pesado. Estou fraco e doente,
mas vou em frente, vou em frente, at�� chegar aos p��s
do meu presidente e lhe pedir miseric��rdia para os
��rf��os do Brasil. Raul estava s��rio. Tudo lhe parecia
coisa de sonho, sonho mau, um pesadelo!
Duas crian��as esqu��lidas, discutindo, dentro de um
chiqueiro de porcos, o futuro dos ��rf��os brasileiros.
��� Chegar aos p��s do presidente, Jo��o? Presiden��
t e ? . . . Raul explodiu em uma risada estridente e ner��
vosa.
��� Pare de rir! Pare! Pare, pelo amor de Deus!
Mas Raul n��o podia controlar-se. Ria, ria ��s gar��
galhadas! Seus joelhos se dobraram, e ��le caiu no ch��o,
onde ficou, sobre o estrume, rindo a mais n��o poder.
60
��� Falar com o Presidente do Brasil! Essa �� m u i t o
boa! Como se ��le fosse preocupar-se com as crian��as
sem pai e m �� e .
��� Tenho o direito ��� disse Jo��ozinho g r i t a n d o ���
tenho o direito de contar ao Presidente o que se passa
no Abrigo e em outros asilos do governo. Vou at�� Bra-
s��lia e, q u a n d o chegar l��, at�� luto com os g u a r d a s , se
preciso, mas j u r o que entro e falo com o Presidente!
Com u m a risada feia e horripilante, Raul rolava
pelo ch��o, em meio �� sujeira, rolando, rolando sobre a
bosta. Presa de p��nico, a m e n t e de Jo��ozinho viu Raul
pouco a pouco t r a n s m u d a r - s e no Presidente da Rep����
blica do Brasil, rindo, rindo, naquele imenso chiqueiro
imundo.
Seus olhos se arregalavam mais e mais ao ver mui��
tas outras g a r g a l h a d a s se j u n t a r e m �� do Presidente.
Viu ministros, governadores, prefeitos, senadores, depu��
tados e vereadores. Todos g a r g a l h a n d o e se contorcen��
do em meio ao f��tido loda��al, que exalava um odor de
podrid��o, conspurcando o ar.
Como se fosse a vis��o do pr��prio S a t a n �� s e sua
corte, a figura de Raul apavorou a pobre crian��a, que
saiu correndo e se perdeu no cerrado m a t a g a l .
��� R a u l ! Raul! Chamou a m u l h e r dos porcos.
Raul olhou-a. Estava assustada e perplexa com
a cena.
��� Mas o que foi, menino? O que est�� fazendo? Le-
vante-se da��! Parecem loucos! O p r e t i n h o desembestou
para o mato, como se estivesse sendo perseguido pela
Mula-sem-cabe��a!
��� Eu n��o fiz nada, dona! Talvez ��le estivesse ape��
nas vendo em mim, o futuro das crian��as ��rf��s do Bra��
sil! Todas afundadas na bosta dos nossos governantes
e da nossa elite!
Como coment��rio, a mulher dos porcos a p e n a s emi��
tiu um g r u n h i d o inintelig��vel! Ou o g r u n h i d o seria
apenas de um dos p o r c o s ? . . .
A espuma do sabonete de boa qualidade era suave
e macia. T��o macia como a seda do pijama. Aquela
��� 61 ���
seda azul lhe trouxe �� lembran��a o dr. Paulo. Estre-
meceu. O que teria levado aquele homem t��o bom,
t��o fino, t��o inteligente, a querer fazer com ��le aquela
coisa horr��vel?
N��o querendo pensar naquilo, Raul procurou afas-
tar para longe esses pensamentos. Mas, tal como uma
ferida que volta a sangrar, a imagem do advogado no��
vamente insinuou-se em seu c��rebro.
Seria o dr. Paulo u m . . . u m . . . Como era mesmo
que .chamavam os homens que gostavam de homens?
��� Um pederasta? Sim, seria o advogado um pederasta?
Como ��le poderia ter sido feliz, se o dr. Paulo n��o ti��
vesse aquelas id��ias e fosse homem de verdade. Se n��o
tivesse pretendido penetr��-lo! Penetr��-lo! Raul por en��
tre os dedos e, rangendo os dentes, falou bem alto.
��� Juro, nem que tenha de matar, homem algum
h�� de comer meu cu! Eu juro! Eu juro!
��� Jura o qu��, meu bem?
Outro que n��o fosse Raul teria se apavorado ao
ouvir a voz da grotesca criatura �� porta. A figura da
mulher dos porcos tapava completamente a porta do
banheiro e, com olhar terno, percorria o corpo nu do
rapaz.
��� Quem diria! Voc�� �� mesmo um belo mocet��o!
Lentamente dirigiu-se para Raul e, levantando as enor��
mes m��os calosas acariciou-lhe os ombros, os bra��os, e
foi descendo, l��brica.
��� Voc�� j�� esteve com alguma mulher? J��, meu
bem?
Aquela m��o, em contato com sua pele, lembrava a
Raul uma aranha repulsiva que, descendo mais e mais,
procurava a regi��o mais sens��vel de seu corpo. Sob
as car��cias daqueles dedos gordos, o instinto de homem
macho falou mais alto do que a repulsa, o seu mem��
bro come��ou a crescer e latejar.
O cora����o pulsava-lhe fortemente, quando a mulher
o levantou nos bra��os fortes e o carregou para a cama.
Raul sentia seu esp��rito recusar tudo aquilo, mas
��� 62 ���
seu p��nis, duro como um ferro em brasa, toldava-lhe a
mente e, entrando e saindo daquele monte de carne,
fazia a mulher soltar grunhidos animalescos.
A ad��ltera o conservou preso a ela a tarde toda,
usando-o e abusando diversas vezes.
A noite ca��a, quando a megera lhe disse bem bai��
xinho ao ouvido, acariciadoramente.
��� Meu bem, v�� agora, e . . . traga o pretinho!
Quem sabe se ��le quer brincar um pouco, tamb��m!
Raul sentiu-se como se uma cobra de gelo o en��
volvesse em seus an��is. Asco e revolta lhe deram uma
sensa����o de n��usea. Pulou da cama e, apressado, pro��
curou suas roupas. Vestiu-se rapidamente, ouvindo a
mulher sussurrar.
��� N��o ponha toda a roupa, meu m o c e t �� o . . . Ain��
da quero mais! O pretinho �� s�� para beijar-me no meio
das coxas.
Raul sacudiu o pretinho, que dormia n u m monte
de trapos. Chamou-o diversas vezes, at�� qu�� Jo��ozinho,
estremunhado abriu os olhos.
��� Puxa, Raul! Onde voc�� se meteu? Ningu��m apa��
receu para me dar o jantar. Eu estava t��o cansado
e dormi assim mesmo, sujo e com fome.
��� Jo��ozinho, n��o h�� tempo a perder. N��s temos
de dar o fora j �� ! Voc�� deve voltar ao Educand��rio!
O corpo franzino do pretinho estremeceu.
��� Mas po�� que?
��� Depois explico. Vamos, levante!
��� Eu n��o quero voltar pro Educand��rio! Eles me
bateriam at�� matar. Eu fico aqui mesmo. A gente
trabalha como um escravo mas, pelo menos, tem um
pouco de liberdade. Aqui eu posso correr pelos cam��
pos e pela estrada.
��� Pare de falar e se apresse! A mulher dos porcos
�� louca. Prendeu-me a tarde toda e f��z o diabo comi��
go. Mas, eu sou homem e n��o me importo, e voc�� ain��
��� 63 ���
da �� uma crian��a. E ela o quer agora! Quer que eu
leve voc�� l��, e vai obrig��-lo a fazer coisas depravantes!
��� Raul, todo homem faz coisas com uma mulher.
L �� . n o col��gio todos os meninos sabem. Tamb��m que��
ro aprender!
��� Voc�� tem de aprender o certo! Ela quer ensi-
nar-lhe coisas que voc�� n��o deve aprender agora! Va��
mos, levante-se depressa!
Como o menino dormisse com as roupas de traba-
lho, tornou-se f��cil a Raul pux��-lo para fora da casa
e sua repugnante dona. Sorrateiramente dirigiram-se
para a estrada, tomando um ��nibus para a cidade. Quan��
do chegaram, Raul pediu ao pretinho que o esperasse
ali sentadinho num banco da Pra��a da S��, enquanto
tentaria conseguir algum lugar para comerem e dor��
mirem.
A noite ia alta e Raul n��o voltava. Um homem que
passava interessou-se pelo pequeno.
��� O que h��, meu rapaz? Algum problema?
Jo��ozinho, tremendo, contou-lhe que fugira do Edu��
c a n d �� r i o e para l�� n��o queria voltar. O homem se
prontificou a ajud��-lo. Levou-o at�� um bar pr��ximo,
pedindo, um sandu��che. Enquanto o garoto faminto
devorava o sandu��che, o homem telefonava.
O enorme carro do Juizado de Menores chegou e
levou Jo��ozinho diretamente para o Gabinete de Inves-
tiga����es, onde foi jogado na cela de menores. L�� ficou
dois dias. Depois foi levado novamente para o abrigo
da Avenida Celso Garcia.
Chegou apavorado, com a garganta seca e as m��os
geladas. Seu cora����o batia descompassadamente. Pa��
ra ��le, era como estar cruzando os port��es do Inferno.
J�� sentia na carne as pancadas dos graduados o
mimoseando. Mas ��le n��o sabia que o regime do Abri��
go havia mudado. Os graduados j�� n��o se encontra��
vam l��. Agora o chefe era um s��. Era o senhor Fer��
nando.
64
J o �� o z i n h o t i n h a ent��o treze anos. J u n t a m e n t e com
outros meninos, foi transferido para u m a esp��cie de
filial do Abrigo, situada na estrada principal do Guaruj��.
Aboletados em cima do c a m i n h �� o que os t r a n s p o r -
tava, os meninos c a n t a v a m alegremente, principalmen��
te quando a t r a v e s s a r a m , de balsa, o trecho separando
Santos-Guaruj��.
Ali o regime disciplinar era quase o mesmo, com a
diferen��a de que os meninos podiam frequentar a praia.
O mar, a praia, o b a n a n a l perdendo-se ao longe.
Reencontrou Raul e isto completou a felicidade do
garoto.
E n q u a n t o abra��ava o amigo, com o rosto b a n h a d o
de l��grimas, ouviu Raul p e r g u n t a r .
��� Vamos, m e n i n o . N��o chore! Diga a l g u m a
c o i s a . . .
��� N��o posso dizer nada! Nada importa agora. O
que poderia dizer depois de contemplar o mar, o c��u,
essa areia b r a n q u i n h a e ter novamente o meu melhor
a m i g o ! Jo��ozinho enxugou os olhos com as costas da
m��o.
Olhando fixamente Raul, agora mais alto e mais
belo, disse-lhe:
��� E n g r a �� a d o . . . se neste m o m e n t o algu��m me dis��
sesse que eu sofri t a n t o , nestes sete anos de asilos do
governo, eu daria uma boa risada.
��� Voc�� esquecer�� isso ��� afirmou Raul com voz
t e n r a . O tempo �� rem��dio para tudo. �� poss��vel es��
quecer esses tristes momentos que estamos passando,
porque n��o fomos corrompidos. Mas, os pobres meni��
nos violados e que tiveram sua honra atingida j a m a i s
esquecer��o!
Neste Abrigo a coisa �� bem grave, Jo��ozinho, pois
os que querem rasgar a gente s��o in��meros. �� preciso
at�� a n d a r a r m a d o para poder defender-se dos tarados.
��� Armado?! Os olhos do p r e t i n h o reviraram nas
��rbitas.
��� 65 ���
��� Sim, armado! Venha at�� aqui e lhe mostro a
faca que sou obrigado a carregar sempre. Os filhos da
puta dos grandalh��es acham que tenho cara de veado
e n��o me d��o sossego.,
Do meio das roupas amontoadas na areia, Raul ti��
rou uma faquinha meio enferrujada e mostrou ao amigo.
��� Mas v�� l��, hein! N��o conte a ningu��m, sen��o o
vigilante me tira a faca. Se os grandalh��es souberem
que estou desarmado, pobre do meu cu!
Jo��ozinho a tudo ouvia, tremendo.
��� Juro. N��o direi nada! Deus permita que nunca
fa��am nada a voc�� e nem seja preciso usar essa coisa.
��� Obrigado, Jo��o. Raul olhou-o com ar s��rio. O
tempo cura todas as feridas, menos e s s a . . . Defenderei
minha honra de macho nem que tenha de ser cha��
m a d o . . . assassino!
Nuvens cinzentas se enleavam umas entre as ou��
- tias, prenunciando tempestade. O ventinho frio e cor��
tante que dominava a praia f��z com que os meninos
Voltassem mais cedo ao Asilo.
Raul e Jo��ozinho resolveram cortar caminho pelo
bananal. Enquanto andavam, iam comentando a fuga
da casa da mulher dos porcos. Jo��o explicou sua parte
da hist��ria, e depois Raul lhe contou que consigo havia
acontecido quase a mesma coisa. Havia sido preso e
enviado ao Guaruj��.
Em dado instante, surge-lhe �� frente um dos in-
ternos, gritando:
��� Ei, voc��s! Ali atr��s tem uma turma comendo o
cu do Popota! Eu j�� comi! Voc��s tamb��m n��o querem
dar uma trepadinha?
Raul, branco como cera, segurou com for��a o bra��o
do pequeno, perguntando:
��� Onde eles est��o?
��� Ali no morro, no meio da moita cerrada!
66
O grande morro ficava bem atr��s do col��gio e, com
o pretinho em seu encal��o, Raul correu t a n t o que pare��
cia voar morro acima.
Atr��s de uma moita bem fechada, uma fila de me��
ninos esperava a vez de se deitar em cima de u m a crian��
��a, m o r e n a e gorda que, de bru��os, passivamente, acei��
tava t u d o .
O que estava em cima do menino, levantava-se
abotoando a cal��a, e dizia para o s e g u i n t e :
��� Eu j�� gozei! Agora �� a sua vez!
Os outros, sem qualquer express��o, sem ��nsia no
semblante, com o olhar inocente, aproximando-se, desa-
botoando-se e deitando-se em cima do menino, procura��
vam imitar o que t i n h a sa��do.
Jo��ozinho n��o teve for��as para impedir Raul de se
atirar, como um louco, para o meio da moita, e come��
��ar a esmurr��-lo, e n q u a n t o gritava.
��� Cachorro desgra��ado! Lazarento! Vou te moer
de pancada, filho da puta!
E seus p u n h o s fortes, na punjan��a de seus verdes
anos, desferiam a torto e direito t a p a s e bofet��es no
belo garoto de dez anos, que havia sido obrigado a ser��
vir de pasto aos desejos sexuais de quase todo o asilo!
O pequeno dobrou-se, protegendo a cabe��a com as
m��os, mas logo depois caiu ao ch��o desacordado e co��
berto de sangue!
Mesmo assim a f��ria de Raul n��o arrefeceu e, como
se quisesse esmigalhar a todos os pederastas do m u n d o ,
representados naquela crian��a, continuou a suplici��-lo.
Somente n��o o matou porque um vigilante interveio a
tempo.
Por ordem do diretor, Raul foi trancafiado na cela
e o Popota enviado �� enfermaria.
�� noite, quando a fila se formou para o banho, o
vigilante, com uma lista na m��o, foi dizendo.
��� Todos os meninos que eu chamar, devem ir for��
m a n d o u m a fila separada, naquele canto.
��� 67 ���
Foi c h a m a n d o os nomes e, cabisbaixos, os menores
formaram aMila, j�� pressentindo a l g u m a coisa.
��� Agora, gritou o vigilante, voc��s ser��o castigados,
pr�� aprender, pr�� resto da vida, que esse pinto que vo��
c��s t��m a�� pendurado, s�� �� pr�� enfiar em buceta de
mulher! Os cachorros que u s a r a m o Popota como mu��
lher v��o ver s�� u m a coisa! Agora, v a m o s ! Tirem a rou��
pa! Quero ver todo m u n d o nu!
Sem saber o que os esperava, os meninos vagarosa��
mente foram se desfazendo das r o u p i n h a s e, nus, fica��
ram de cabe��a baixa, a g u a r d a n d o o castigo.
��� Agora, todos de joelhos no ch��o, envergando o
corpo para a frente, assim!
Vasculhando o arm��rio, o vigilante encontrou vim
largo cintur��o de couro e, fazendo-o estalar no ar, falou:
��� Assim mesmo, cambada! B u n d a bem para o alto,
e cada um deve cheirar o cu de quem est�� na frente!
Isso mesmo! Desceu o cintur��o nas crian��as. ��� Agora
seus nojentos, mendigos do governo, voc��s v��o dar cinco
voltas de joelhos pelo dormit��rio!
Um dos pequenos chorava, sem se mexer. O cin��
tur��o cantou no ar e estalou na n��dega do menino, que
gritava n��o poder andar, pois seus joelhos j�� estavam
esfolados e s a n g r a n d o .
Mas o vigilante n��o parou de zurzir o cintur��o,
e n q u a n t o berrava:
��� Ent��o est�� s a n g r a n d o , hein, seu merda! E o cu
do Popota, n��o est�� s a n g r a n d o t a m b �� m , e todo arre��
bentado?
Tr��mulo, Jo��ozinho assistia a toda aquela mis��ria,
p e n s a n d o :
��� Ser�� que n��o h�� uma outra m a n e i r a de ensi��
n a r ? Outro modo de fazer para uma crian��a seguir o
caminho certo? Talvez se n��o dormissem dois j u n t o s
n a m e s m a c a m a ! . . .
68
VIII
Sou homem. Sou macho
Alguns meses j�� se haviam passado, desde que
Jo��ozinho chegara ao Guaruj��, e j�� ia ser transferido
para outra escola: a Col��nia Agr��cola de B a t a t a i s .
Fora avisado para a r r u m a r suas coisas, pois iria,
em c o m p a n h i a de outros menores, entre doze e quinze
anos. Deveria embarcar �� t a r d e . Era por isso que,
agora, corria para a praia, em busca de Raul.
Apesar da m a n h �� estar fria e garoenta, com pe��
sadas nuvens t a p a n d o o sol e um vento forte uivando
sombrio, os menores tiveram permiss��o para um passeio
pela praia.
Jo��ozinho apertava os olhos, a fim de conseguir
divisar Raul, em meio ao bloco de rapazes q��e rodeavam
a l g u m a coisa. L u t a n d o contra o vento, que erguia re��
demoinhos de areia, o pretinho aproximou-se do grupo.
Estacou petrificado.
Com os cabelos dourados revoltos, o rosto com u m a
palidez mortal, Raul afastava-se lentamente, deixando
entrever na m��o crispada, a l��mina da faca que empu��
n h a v a . Sem deixar os olhos da t u r m a que, qual harpias
esfaimadas, o rodeavam em semi-c��rculo, Raul procura��
va afastar-se, ouvindo as vozes roucas que diziam en��
tre d e n t e s :
��� Hoje voc�� n��o escapa, b a c a n �� o ! Vai ter que en-
trar na festa! Queremos seu cuzinho, meu bem! S�� isso!
- 6 9 ���
Qual pesadelo dantesco, Raul ouvia as gargalhadas
que se misturavam ao lamento do vento.
��� ��le deve ser bem apertadinho! Deve ser uma
foda e tanto! �� bonito e gostoso!
Mordendo os l��bios, Raul n��o perdia um s�� movi-
mento do grupo, que lentamente o cercava. Com agili��
dade, pulava de um lado para outro, tentando um meio
de fuga.
��� N��o queira bancar o valente, benzinho! Vamos
lhe tirar essa faca, e depois voc�� vai ver o que �� gos��
toso! Vamos lhe passar a vara como manda o figurino,
veadinho lindo!
��� Por que fugir, nego? Mais dia menos dia voc��
vai ter mesmo que dar esse cu gostoso pr�� algu��m!
��� Ent��o venha! Quem f��r macho que venha me
enfrentar! Eu sou muito homem, seus putos! Sou bas��
tante homem pr�� sangrar qualquer um de voc��s!
Jo��ozinho sentia como se um torniquete lhe aper��
tasse a garganta, quase ao ponto de lhe tirar a res��
pira����o.
Reviu Popota todo ensanguentado, e a fila de garo��
tos a lhe subirem em cima, onde ficavam em movimen��
tos ritmados e a respira����o entrecortada, at�� advir o
orgasmo!
Num esfor��o supremo, sacudiu o torpor que o in��
vadira e, correndo desesperadamente, p��s-se �� frente do
amigo, gritando:
��� .N��o se atrevam a tocar em Raul! Eu mato o
primeiro que se atrever a por-lhe as m��os!
��� N��o �� com as m��os que queremos tocar nele
negrinho imundo! �� com o cacete! �� o cacete que
queremos enfiar no cuzinho dele, que talvez at�� j�� es-
teja furado pelo pinto sujo de um negro!
Como uma onda subindo-lhe pela garganta, Raul
sentiu uma n��usea que quase o f��z cambalear. Com
o cora����o aos pulos e os olhos cegos, jogou-se no meio
do grupo e brandiu a faca desesperadamente, em golpes
a torto e a direito.
S�� ouvia gritos e sentia a l��mina da faca entrando
e rasgando coisas moles, enquanto um l��quido quente
e pegajoso lhe escorria pela m��o.
De repente, seus olhos se abriram e encontraram os
do pretinho, esbugalhados. Seguindo a dire����o do olhar
de Jo��ozinho, viu que a faca estava agora cravada no
cora����o de um dos seus algozes.
Limpou, com as costas das m��os, um fil��te de
sangue que lhe escorria da boca, enquanto abafava um
gemido surdo, subindo-lhe das entranhas.
O negrinho, estupidificado, viu os rapazes fugirem
em desabalada carreira, entremecendo ao ouvir a voz
arquejante de Raul dizer:���
��� Justamente hoje, em que completo dezoito anos!
71
IX
Saa excel��ncia
No velho pr��dio do Pal��cio da Justi��a, magotes de
gente apressada entravam e sa��am e, empurrando-se e
espremendo-se, tentavam entrar no pequeno elevador.
No meio desse aglomerado, um homem impeca��
velmente vestido, aparentando trinta e sete anos, pele
trigueira e rosto bem tratado, sobressa��a. Era, de fato,
um belo esp��cime masculino, que desceu do elevador
num dos andares e, apressado, entrou era uma das
salas de audi��ncia, onde cerca de oito funcion��rios sor��
ridentes levantaram a cabe��a para cumpriment��-lo.
��� Boa tarde, Excel��ncia!
Um leve movimento de cabe��a foi a resposta aos
cumprimentos. O elegante senhor sentou-se �� escura
mesa, onde uma plaqueta com letras bem vis��veis, dizia:
Dr. Paulo de Albuquerque ��� Juiz.
O juiz recebeu de uma funcion��ria a rela����o dos
casos que iriam ser julgados, e folheou-os com o cenho
carregado. Depositou os pap��is num canto da escriva��
ninha, cruzou as m��os de unhas polidas e, com voz
pausada, falou �� secret��ria:
Mande entrar o primeiro r��u.
A porta abriu-se, entrando um jovem ladeado por
dois policiais. Os cabelos caindo pela testa inclinada,
ocultavam parcialmente seu semblante. Entrou com
passos incertos, como se n��o conseguisse levantar os
7 3
p��s, cal��ados com grossos sapatos, ou como debilitado
pela vergonha das algemas, que cintilavam em seus
pulsos.
��� Aproxime-se.
Como o mo��o permanecesse im��vel, um dos mili��
cianos o empurrou levemente, obrigando-o a chegar-se
�� mesa.
O juiz, branco como cal ao fitar o rosto do rapaz,
levou as m��os ao peito, como se quisesse fazer parar o
cora����o, que batia descontroladamente. De sua gar��
ganta repentinamente seca, saiu um gemido estran��
gulado.
��� Raul!!
Todos fixaram boquiabertos Sua Excel��ncia que,
tr��mulo, repetia:
��� Raul! R a u l ! . . .
Os sentidos e faculdades do jovem presidi��rio esta��
vam totalmente paralizados pela dor e sofrimentos. Dava
a impress��o de que nada, nem um s�� pedacinho de sua
mente, iriam jamais vibrar.
Mas, como se mil campainhas tivessem soado em
seu c��rebro, e tivessem fendido o v��u negro que enco��
bria sua vontade, ��le foi levantando devagarinho a
cabe��a, ao ouvir seu nome. Com a mente ainda entor��
pecida, n��o lhe foi poss��vel reconhecer, naquele sussurro
louco, o dono da voz. A voz da autoridade, que tinha
nas m��os o seu destino. A voz do homem que t��o
loucamente o amava.
O triste olhar de Raul encontrou-se com o olhar
ardente do juiz, que parecia estar sofrendo horrivel��
mente, pois limpava com um len��o perfumado, o suor
escorrendo abundante pela testa abaixo, indo cair em
seus l��bios brancos e tr��mulos.
Um funcion��rio sol��cito pressurosamente lhe per-
guntou :
��� Posso ajud��-lo, dr. Paulo? Precisa de alguma
coisa? Est�� se sentindo bem? Dr. Paulo, posso
ajud��-lo?
74
Em meio ao nevoeiro em que estava agora seu c��re-
bro turbilhonando, aquelas palavras trouxeram �� lem-
bran��a de Raul uma outra tarde j�� distante, aquela
da fuga do Abrigo, quando apareceu sorridente o
famigerado dr. Paulo, perguntando:
��� Posso ajud��-lo, menino?
Em breve momento o jovem Raul reviveu todas
aquelas cenas, desde o Abrigo at�� Caraguatatuba,
quando sua lembran��a se fixou no ponto em que sentiu
aquele corpo ardente de desejos em cima do seu, lutando
pela virgindade.
Come��ou a contorcer as m��os algemadas e, como
se toda a dor do universo se abatesse sobre ��le, gritou
como um alucinado:
��� Tirem me daqui! Tirem-me daqui!
Os soldados o seguraram fortemente, enquanto Raul
lutava, desesperado para escapar da sala. Tentou
arrancar as algemas que mais e mais lhe apertavam os
pulsos, fazendo suas m��os come��arem a arroxear.
Como impulsionado por uma mola invis��vel, o juiz
pulou da cadeira e ordenou aos soldados que abrissem
as algemas e, aos gritos, mandou que todos sa��ssem da
sala, deixando-o sozinho com o r��u.
Raul dirigiu-se �� porta, querendo sair tamb��m,
mas o juiz a trancou rapidamente e, nela encostando,
pediu com voz tr��mula:
��� Pelo amor de Deus, R a u l . . . ou��a-me! Eu ainda
n��o sei o que o fez chegar at�� este ponto. Mas, seja
j�� o que f��r, vou ajud��-lo! Juro mover c��us e terras
para voc�� n��o ficar na cadeia! Juro!
Quando o juiz veio em sua dire����o, com os bra��os
estendidos, Raul teve um sobressalto.
��� N��o me toque!
Sua Excel��ncia deixou pender os bra��os e um
rictus de dor espalhou-se pelo seu rosto.
��� N��o fique agressivo, meu pobre rapaz. Sente-
se, pois quero falar-lhe seriamente.
��� 75 ���
Um riso amargo e sarc��stico desenhou-se na boca
rubra do rapaz que, deixando-se cair na cadeira dura,
exclamou, olhando fixamente para o dr. Paulo:
��� De que quer falar? Espero n��o ser para pedir-
me o rabo, em troca da liberdade!
��� Raul, abstenha-se dessas palavras terr��veis ���
gemeu o juiz ��� voc�� acaso n��o imagina que eu j�� te��
nha sido duramente castigado por ter tentado aquilo?
��� Aproximou-se mais da cadeira do jovem ��� Por aque-
le meu gesto? A voz do jovem, em resposta, saiu fria.
��� Ah, j�� se castigou? Aposto que rezou bastan��
t e . . . "Pai Nosso, n��o me deixe cair na tenta����o de
comer cu de g a r o t o . . . "
Num repente, o juiz prostrou-se ajoelhado aos p��s
de Raul, implorando:
��� N��o me fala assim! Cometi um erro, mas juro
estar arrependido! Acredite, por favor, que estou sendo
sincero!
Quando os grandes e gelados olhos azuis encon��
traram os seus, o juiz estremeceu, sentindo que o sangue
abrasava em suas veias, e que toda a sua pujan��a de ho��
mem estremecia e se levantava endurecida, desejando
derreter-se dentro daquele corpo jovem. F��z um es��
for��o sobre-humano para o jovem n��o perceber o que
lhe ia n'alma, e come��ou a falar, falar, falar.
P��lido e tr��mulo, o juiz parecia febril. Raul ob��
servava-o, analisando se ��le estava sendo sincero!
Poderia confiar n e l e ? . . . Mas, que diabo! J�� se
passaram sete anos! Raul lembrou-se da D e t e n �� �� o . . .
Aqueles presos t o d o s . . . aqueles presos malditos n��o
fazem outra coisa, s e n �� o . . .
Meu Deus ��� pensou ��� onde estariam os homens?
Sua voz soou estridente e estranha naquele am��
biente austero da sala de audi��ncias.
��� Est�� bem, dr. P a u l o . . . Eu n��o quero voltar
para a cadeia!
76
O j u i z levantou-se sorrindo, apertou as m��os ge-
ladas do rapaz, e depois correu para a mesa, p r o c u r a n d o
entre os processos, o de Raul. R a p i d a m e n t e escreveu
a s e n t e n �� a : ABSOLVIDO!
Os g u a r d a s e n t r a r a m e, a pedido do j u i z , levaram
Raul para as provid��ncias de praxe. O jovem despe-
diu-se e o s��brio dr. Paulo prometeu ir busc��-lo logo
que se livrasse dos outros processos.
C h a m a n d o os funcion��rios, esfregando as m��os de
alegria, comunicou que t i n h a absolvido o rapaz!
��� Absolvido? Mas, Excel��ncia, ele �� um assassino!
A palavra assassino ecoou nos seus ouvidos, como se
estivesse sendo perfurado por mil ferros em brasa!
��� Assassino!? Mas, por que?
Jogando-se na cadeira de espaldar alto, a p a n h o u o
processo de Raul e p��s-se a l��-lo, ignorando tudo o mais.
T e r m i n a n d o a leitura, p o n d e r o u :
��� Sim, s�� podia ser i s s o . . . o belo e orgulhoso jo��
vem tornou-se assassino em defesa daquilo que eu tam��
b��m me t o r n a r i a assassino para possuir!
77
X
Rani acredita que o juiz
n��o �� mais pederasta
O dr. Paulo mostrava sua nova resid��ncia a Raul,
pois a antiga tinha ficado com a esposa, ou melhor, com
a ex-esp��sa, j�� que eles tinham se desquitado.
Raul n��o continha sua admira����o ��o atravessar as
amplas salas, pisando nos fofos tapetes.
Os objetos nem pareciam reais! E os m��veis, ent��o!
Sem p��s? Toda a mob��lia da casa �� assim? Pendu��
rada no teto? N��o me lembro jamais de ter visto
mans��o t��o linda, nem mesmo no cinema! S��o lindos
os seus m��veis!
��� Os n o s s o s . . . querido Raul! Esta casa, e tudo
o que ela cont��m, desde j�� voc�� pode considerar seu!
Raul fingiu n��o ouvir a observa����o, olhando bo��
quiaberto as pesadas correntes e os cabos q��e, em ara��
bescos, sustinham o mobili��rio, elegante e luxuoso.
Prosseguindo, disse:
��� Esta casa faria inveja a qualquer milion��rio do
mundo, at�� mesmo ao Onassis! N��o acha meu gosto
apurado em mat��ria de est��tica? Assim como em de��
cora����o e . . . mulher!
��� Mulher?!
��� Sim, minha garota �� encantadora. Digo mais,
ela se enquadra direitinho neste ambiente!
79
Num gesto largo, Raul estendeu a m��o, em v��rias
dire����es. O j u i z teve um sobressalto e precisou apoiar-
se em um dos m��veis para n��o cair.
��� Voc�� tem n a m o r a d a ? N��o! Isso n��o �� poss��vel!
Fingindo-se distra��do, Raul olhou de soslaio, ana-
lisando o efeito das suas palavras. Paulo oscilou, como
sacudido por um vendaval e, com passos incertos, acer��
cou-se do sof��, onde se deixou cair p e s a d a m e n t e .
O jovem levantou a bela cabe��a e fixou o olhar no
vai-e-vem produzido pelo corpo, nas correntes que sus-
t i n h a m o sof��. Ao baixar o olhar, observou Sua Exce��
l��ncia, que parecia m e r g u l h a d a em profundas medita��
����es, com as p��lpebras fechando-se, como em transe hip��
n��tico.
Tentou falar-lhe mais sobre a n a m o r a d a , mas,
vendo que o j u i z , absorto, n��o lhe dava aten����o, saiu
por u m a das portas que levavam ao j a r d i m e, em passos
lentos, desceu a escadaria de granito, pensativo. O
cilrear dos p��ssaros do viveiro rodeado de arbustos flo��
ridos distraiu sua aten����o, esquecendo-se momentanea��
m e n t e de suas preocupa����es. Encostou a testa na tela
de a r a m e e sorriu ao ver os p��ssaros s a l t i t a n t e s .
Logo, o sorriso fugaz morreu-lhe nos l��bios, trazen-'
do-lhe uma sensa����o de medo, que n u n c a i m a g i n a r a
sentir, tendo-lhe esfriado o cora����o. Por que sentia
medo daquela variedade de avezinhas multicolores? Que
mal lhe poderiam fazer? T��o pequeninas indefesas e
presas naquela gaiola?
Como eram belas! Belas!
Qualquer coisa estalou em seu c��rebro. As aves
eram de uma beleza emocionante. Beleza rara e su��
blime! Onde j�� ouvira aquela frase! Apertou com
for��a os dedos no a r a m e f r i o . . .
S i m . . . fora dos l��bios do juiz que ouvira a m e s m a
frase h�� sete anos! Lembrava-se agora com t a n t a ni��
tidez, parecendo estar acontecendo neste mesmo instan��
te, o que era passado d i s t a n t e .
Sentia-se com dez anos e ouvia n i t i d a m e n t e os pas��
sos do dr. Paulo ao seu lado. Sentia o mesmo mor��
- 80 -
ma��o quente daquela tarde. Procurou, com os olhos, a
abelha que zunia estridentemente, escolhendo com dili-
g��ncia, as margaridas mais bonitas para sugar com de��
l��cia! Ouviu tamb��m como o ��co a sua cascata de
risos e as p a l a v r a s . . .
��� Venha tamb��m, papai! Corra! Vamos pegar
aquela abelha!
��le apertou mais a testa entre as m��os. Lem-
brou-se de que, naqueles poucos meses em que ficara
com o casal, fora intimado a cham��-los de papai e
m a m �� e ! ,
��le se viu precipitando-se para o canteiro das mar��
garidas, no encal��o da abelha que, em r��pidas voltas,
perdeu-se no espa��o. A inf��ncia gritava em seu ��nti��
mo, enquanto corria atr��s do inseto, afastando-se cada
vez mais do juiz, que corria com o olhar c��pido, fixado,
nas suas n��degas firmes e bem feitas. O menino perdeu
o interesse na abelha, quando deparou com o viveiro,
onde dezenas de p��ssaros raros pipilavam, em bandos
coloridos.
Quando o juiz se aproximou, viu que as m��ozinhas
de unhas sujas seguravam fortemente o arame do vi��
veiro, e que os olhos luminosos do garoto corriam de
um para outro p��ssaro, num encantamento que lhe fazia
tremular os longos c��lios.
Sorria, ingenuamente, quando um p��ssaro mais
afoito passava, esvoa��ando, bem perto do seu rosto.
O juiz, fascinado, olhava o menino, sem um piscar
de olhos, e sua voz era macia, aveludada, quando se mis��
turou ao cantar dos passarinhos.
��� Raul, voc�� �� belo. Sua beleza emociona. ��
uma beleza que devia estar assim, presa em uma gaiola
de ouro, revestida de cristal. Delicadamente despreen-
deu as m��os do menino, que seguravam o arame e, le��
vianamente, envolveu-as em suas grandes quentes m��os
��� continuando com a mesma voz morna.
��� Viajei o mundo todo para poder prender neste
viveiro a beleza rara dos p��ssaros. Por serem os belos
entre os belos, �� que est��o presos e admirados. Raul o
��� 81 ���
ouvia, como que hipnotizado. N��o despregou um ins��
tante, sequer, os seus olhos daquele fundo olhar, onde
dan��ava uma gravidade irreal, e em seus l��bios sucediam
em tons ternos as palavras.
��� Voc�� �� belo, Raul. Voc�� �� belo, como as aves.
Belo, belo. Voc�� devia estar preso a��, nessa gaiola, para
ser admirado" por todos.
Raul desprendeu suas m��os das do juiz, e voltou a
apertar a tela fria. Apertava, apertava, reintegrando
ao parque floriso a realidade.
O arame penetrava nas carnes de suas m��os, mas
��le n��o a sentia, e cada vez apertava mais e mais. Relan��
ceou o olhar pela imensid��o do jardim e encontrou a
esfera azul da grande piscina, circundada de cer��mica
branca, que morria na relva verde. O grande guarda��
sol aberto, que jogava sombras nas almofadas de espuma
rosa atrapalhava-lhe a vis��o, por isso ��le desprendeu
as m��os doridas e se afastou um pouco para continuar
analisando tudo no luxuoso parque. Quando seus olhos
buscavam as altas grades douradas que circundavam a
mans��o e o grande port��o fechado, sentiu um aperto
no cora����o.
Estaria trancado o port��o? Estaria fechado, como
na cadeia, com aquela enorme chave? Quantas portas
gradeadas havia mesmo, na cadeia, separando-o da
liberdade? Que liberdade? Apertou os olhos. Tirou a
m��o e continuou a pensar.
Grades do Abrigo de Menores. Grades do Educan-
d��rio Dom Duarte. Grades do Asilo de Guaruj��. Gra��
des e mais grades na Deten����o. Agora Raul olhava,
olhava, e as grades da mans��o pareciam crescer, cres��
cer. Repentinamente apoderou-se dele um ��dio irrefre����
vel contra tudo. Fervilhou nele uma raiva louca contra
as grades e saiu correndo como um animal perseguido,
jogando-se contra a grade do port��o, gritando:
��� Chega de grades! Chega de grades!
Com o impacto do corpo, o port��o se escancarou,
jogando-o para o meio da cal��ada. Estatelado no ch��o,
Raul n��o conseguia tirar os olhos daquele grande aberto
82
nas grades douradas. Levantou-se, sentindo uma calma
estranha. Entrou. Deu alguns passos. Voltou-se, sor��
riu para o port��o aberto e saiu para a rua. Entrou.
Voltou para o port��o e lentamente o fechou. Quando
o port��o se abriu novamente, ��le pensou que precisava
de ��leo. Ia fech��-lo novamente. N��o, pensou. O port��o
ficar�� aberto. Ficar�� aberto hoje, amanh�� e sempre.
Resolveu ficar com o juiz. Correndo, com o esp��rito
leve, entrou no sal��o.
Paulo continuava prostrado na poltrona.
��� Ora, que �� isso? Murmurou Raul. Papai ainda
dormindo.
O juiz abriu os olhos, levantou-se bruscamente e,
com os cenhos franzidos, olhou assustado para o jovem.
��� Santo Deus! Exclamou. Se o que ouvi �� ver��
dadeiro e u . . . Mas n��o completou o pensamento, pois
n��o poderia falar ao jovem sorridente que j�� n��o lhe
interessava mais ser chamado papai. N��o queria que
o rapaz "sentisse por ��le amor filial. Q u e r i a . . . que��
r i a . . . Apertou a fronte. Oh! Deus! Como ficava
perturbado, sentindo-o t��o perto, t��o jovem, refletindo
naquele sorriso a umidade ardente. Oh! Queria sugar
aqueles l��bios.
Disfar��ou tudo. F��z o imposs��vel para n��o estre��
mecer quando o mo��o apertou-lhe as m��os e lhe disse,
com simplicidade:
��� Papai! �� como sempre o chamarei, se atender
uma pretens��o minha!
N��o podendo mais disfar��ar o desejo que lhe revo��
lucionava as entranhas, o juiz arrancou suas m��os das
do jovem.
��� J�� est�� concedida.
Oh! Obrigado, obrigado. Quer dizer que j�� posso
mandar tirar todas as grades que circundam a casa?
��� Grades?
O j o v e m refletiu alguns instantes e respondeu.
��� 83 ���
��� Sim, as grades. Sinto-me mal, vendo-as. Essas
grades s��o como um c��rculo que a p e r t a m , a p e r t a m meu
c��rebro, fazendo-me relembrar o passado, que acabei de
m a t a r hoje. Agora quero a ajuda do senhor. Quero
t r a b a l h a r . Quero ser algu��m. Algu��m ��til. Quero ser
um cidad��o ��til. Raul falava, falava, falava, e o ma-
gistrado n��o o interrompia, pois n��o queria que aca-
basse aquela influ��ncia doce que e m a n a v a dele. En��
q u a n t o o fitava, lembrava-se como t i n h a sofrido, q u a n d o
a pol��cia o levara naquela tarde quente h�� sete a n o s .
T i n h a passado todo esse tempo sem esquec��-lo. Conti��
nuou a usar os garotos a b a n d o n a d o s e t a m b �� m os da
elite. Reviu os mocinhos dos col��gios de luxo. Esses
eram t��o exigentes! Sempre queriam m u i t o dinheiro.
Mas agora, agora n��o precisava mais a n d a r �� cata de
v a g a b u n d i n h o s , nem passar horas e horas nas portas
dos col��gios. Agora t i n h a ao alcance de suas m��os
quem sempre desejara. Era s�� lhe p r e p a r a r u m a da��
quelas beberagens que fizera outros jovens beberem.
Um m i n u t o e o belo jovem estaria dormindo profunda��
m e n t e , e nem sentiria quando sua carne p e n e t r a r i a nele
devagar, bem devagar.
O juiz levantou-se e come��ou a a n d a r pelo sal��o,
deixando o suor escorrer-lhe levemente pelo rosto. O
sil��ncio foi o que lhe f��z lembrar de que n��o devia trair-
se, sen��o perderia o jovem para sempre. Por isso,
voltou para a m e s m a poltrona e, desculpando se, pediu
a Raul que continuasse.
��� Desculpe-me, dr. Paulo. Ignorava estar abor-
recendo-o.
��� Meu q u e r . . . quero dizer, meu caro Raul, voc��
trouxe vida para esta casa. Espero que compreenda o
que isto significa. Significa que voc�� j a m a i s ter�� de
desculpar-se por qualquer coisa. Eu s�� terei prazer em
ajud��-lo, aconselh��-lo e prestigi��-lo em tudo. Com��
p r e e n d a t a m b �� m , se eu ��s vezes t o r n a r - m e um pouco
e s t r a n h o , deve ignorar, pois ser m a g i s t r a d o �� bem dif��cil.
Mas isso n��o deve interess��-lo. Quero dizer, m e u s pro��
blemas. Sei que voc�� sofreu m u i t o . Da�� a raz��o de lhe
oferecer esta casa, que ser�� nossa p a r a voc�� poder ter
u m a nova vida, como acaba de desejar. Voc�� pode man��
dar tirar as grades e fazer q u a n t a s reformas quiser.
84
Nem precisa falar comigo. Voc�� tamb��m �� dono de
tudo isso. Quero o que f��r bom para voc��.
Raul virou-se para ele emocionado. Pretendeu fa-
lar algo, mas a voz n��o lhe saiu. O dr. Paulo, experien��
te, aproveitou e continuou sua conquista.
��� Por isso, meu caro amigo, acho que voc�� n��o
deve preocupar-se t��o cedo com mulheres, namoradas.
Sua voz saiu tr��mula. A sua namorada. Quero dizer,
voc�� poderia deixar o namoro para mais tarde. Primeiro
deve pensar em estudar, trabalhar. Enfim, fazer o
que deseja. Digo mais. O que voc�� sabe fazer? Se
eu o ajudasse, poderia ser bem sucedido at�� a obtei
um emprego.
��� Nada.
O dr. n��o se admirou em ouvir esse "nada", "pois
estava cansado de saber que noventa por cento dos cri��
minosos julgados em sua sala, eram ex-internos dos
abrigos do Governo. Todos os curr��culos eram assim.
Sem profiss��o. Pais desconhecidos. Criado no abri��
go do Estado. Recorda����es tristes e pavorosas da in-
f��ncia. Sem religi��o.
��� Ent��o, continuou o juiz, voc�� n��o tem profiss��o,
n��o �� alfabetizado. D i g a m o s . . . n��o aprendeu nada.
O juiz interrompeu a frase, pois percebeu que o
rosto de Raul purpurejava-se.
Raul, num salto, p��s-se de p�� e, em passos largos,
dirigiu-se �� janela. Alguns momentos depois, voltou-se
bruscamente e, p��lido, gritou:
��� Eu aprendi. Aprendi muita coisa. Sei matar;
sei roubar. Num assalto sei andar leve, levemente como
um gato. Arrombar? Oh! Como �� f��cil arrombar!
O sr. j�� viu abrir uma fechadura com um grampo?
N��o? Mas, l�� no Juizado de Menores se aprende tudo
isso. Com os punhos cerrados e os olhos cheios de
l��grimas, Raul gesticulava.
��� �� por isso que eu os detesto, que eu os odeio.
Gostaria de e s t r a n g u l a r . . .
��� 85 ���
��� Estrangular quem, minha pobre crian��a?
Raul parou e quedou por longos minutos de p��, no
mesmo lugar. Depois sua voz saiu triste e embargada.
��� Sim, estrangular quem? Quer, dr. Paulo, quem?
Seu corpo tremeu. Deixou-se cair numa cadeira,
escondeu o rosto nas m��os. Quem �� o culpado de eu ser
um assassino, um analfabeto, um ignorante? Quem ��
o culpado de eu estar com o cora����o vazio de religi��o,
de amor e de Deus? Quem, diga-me, dr. Paulo.
��� N��o sei, Raul.
��� N��o sei. Ningu��m sabe. L�� no abrigo �� a per��
gunta que fazem todos os dias as crian��as que mal aca��
bam de deixar o bico do seio materno, ou sei l�� de quem.
Em vez de pronunciarem mam��e e papai, dizem:
��� Por que estou aqui? Por que me batem? Por
que?
E a resposta �� sempre a mesma:
��� N��o sei.
��� Vamos, meu rapaz. Agora voc�� n��o est�� mais l��.
A voz de Raul saiu fria e sarc��stica.
��� Eu n��o estou l��. Mas, e os outros? Gostaria
que o senhor ou quem quer que fosse, visse os outros.
S��o milhares e milhares de rostos miser��veis, estam��
pando a pr��pria mis��ria, ��rf��os abandonados, verda��
deiros malambos subnutridos, pedindo somente pelo
amor de Deus para n��o o deixarem ser mais tarde mar��
ginais.
O juiz come��ou a sentir-se nervoso, pois n��o gostava
de ouvir falar de crian��as infelizes. Crian��as pobres,
gente miser��vel, que era vista a qualquer hora do dia
ou da noite perambulando pelas ruas da cidade, implo��
rando asilos, escolas. Isto eram coisas que n��o lhe
interessavam muito. S�� mesmo se o pobre fosse um
garoto bonitinho. Por isso aproximou-se de Raul que
estava com a cabe��a apoiada de encontro ao vidro frio
da janela e disse, sorrindo:
86
��� Vamos, vamos, Raul. Pensemos em voc��, agora.
Os outros do Governo, os outros das ruas, ou sejam essas
crian��as de ningu��m, poder��o amanh�� encontrar algu��m
que as ajude.
Raul virou-se, com l��grimas escorrendo-lhe pelo
rosto.
��� Quando j�� foram criminosos?
��� Bem, Raul, nem todos podem ser pr��ncipes, ho��
mens de sociedade. Algu��m tem de ser criminoso.
��� Mas n��o fabricado. Aqui no Brasil os abrigos
do governo s��o verdadeiras f��bricas de marginais.
��� Cale-se, Raul! Voc�� fala de coisas que ignora.
�� dif��cil cuidar e educar a inf��ncia. O g o v e r n o . . .
Raul mordeu os l��bios e o interrompeu, falando em
tom de supremo desprezo*
��� Eu ignoro? Ora, dr., eu posso falar com con��
vic����o porque conhe��o todos os v��cios, toda a podrid��o,
toda a tara em que est��o envolvidas todas as crian��as,
sob a capa e prote����o do governo. Com o sangue todo
concentrado no rosto, Raul gritou:
��� Eu posso calar, dr., mas dentro de mim a revolta
gritar�� sempre contra o tratamento que os mandat��rios
do Pa��s dispensam �� crian��a ��rf��. Raul suspirou, foi
at�� �� mesinha, apanhou um cigarro. De um pulo, o
j u i z tirou o isqueiro do bolso, aproximou-se do j o v e m e
f��z men����o de acend��-lo, mas Raul esmagou o cigarro
entre os dedos e foi falando, como se consigo mesmo,
sem olhar para o advogado.
��� Eu s�� gostaria que o Presidente da Rep��blica
contemplasse por um minuto, os ��rf��os l�� do abrigo
de menores. Tenho certeza de que ��le ficaria branco
de terror. Sim, repetiu gravemente, com grande tris��
teza na voz ��� ficaria branco de terror. Raul apertou,
ainda os restos do cigarro. Dava longos passos, com
seus velhos e rotos sapatos, sobre o aveludado prateado
aa luxuosa sala.
O dr. Paulo n��o o perdia de vista. Estendido num
sof��, que oscilava levemente, ��le pensava:
��� 87 ���
��� Nunca poderia assustar-me com a grande admi��
ra����o que todos sentem por Raul pois, nesse momento,
��le encarna a pr��pria beleza, assim, com o rosto afo��
gueado, os l��bios t��o vermelhos e os olhos rebrilhando,
como j��ias azuladas.
Aquela beleza imaculada fazia crescer em seu ��ntimo
a paix��o que nutria pelo jovem. Era por demais en��
cantador e inteligente, como mo��o que se dizia anal��
fabeto. Como defender com tanto ardor os seus infe-
lizes colegas de infort��nio? Que chajnas cruzaram
aquela alma? Assassino. Filantr��pico? ��le falava. Que
voz bela! O dr. Paulo n��o o ouvia, pois procurava
n��o perder por um momento aqueles l��bios grossos,
��midos, sentindo uma vontade gritante de mord��-los.
Passou a m��o pela testa gelada de suor. Abaixou a
vista para seu corpo, onde a carne tremulava cheia de
desejos. 'Desejos que tentava abafar, mas que dormiam
em seu c��rebro e lhe envenenavam o cora����o.
O ��nico meio de livrar-se daquele tormento seria
ceder ao tormento, m a s . . .
N��o queria guardar daquele corpo recorda����o de
um prazer fugaz ou a saudade da vol��pia. Se matasse
agora seu desejo, seus ardores, s�� iriam restar lhe as
lembran��as, pois Raul desapareceria para sempre, e
disto tinha certeza o s��dico juiz.
N��o deveria for��ar o jovem a am��-lo. Preferiu
observar com um fino sorriso, pois Raul continuava
falando. Agora ��le ouvia, notando a mesma conversa,
os mesmos protestos. Todavia, preferia ouvir, ouvir
hoje, com a esperan��a do amanh��.
��� Quando algum jornal lembra de que o abandono
�� inf��ncia pode resultar na . . . perante o governo, as
metralhadoras do esquadr��o da morte, responde:
��� Foi de mim que aprendeu v��cios? Esse a�� tinha
tara no sangue. Seu esp��rito j�� era devasso, ainda na
barriga materna. Se o filho da puta escolhe estupida��
mente o esgoto, que �� que eu tenho com isso?
Raul soltou um riso amargo e levantou os punhos
cerrados.
88
��� Hip��crita! Hip��crita! Eles nos levam at�� ��
loucura, faz-nos descer at�� os abismos e depois, quando
nos v�� l�� embaixo mortos ou crivados de balas pela
pr��pria lei, ainda sorriem. P��lido e sarc��stico confir��
ma. E ainda sorriem.
��� Sim, Raul, creio que esteja com a raz��o, disse
sem interesse o juiz. Agora vamos beber algo. Estou
com a garganta seca.
Aos pequenos goles, Raul sorvia a bebida da ta��a
que tremia em suas m��os.
��� Meu jovem, hoje basta de protestos. Amanh��
ser�� outro dia. Voc�� n��o precisa envergonhar-se d e . . .
Raul o interrompeu:
��� Sempre me envergonharei em dizer que n��o sei
fazer nada. N��o saber nada me traz uma dor profunda
na alma.
��� Por isso mesmo, meu rapaz. Amanh�� vir��o os
professores que voc�� quiser. Nunca �� tarde para apren��
der. Desejo-lhe uma vida feliz e o esquecimento de
haver sido crian��a do governo.
89
XI
Raul, o bom amigo
Em que estaria pensando Raul, assim t��o triste,
estirado �� beira da piscina? Com a maleta de viagem
na m��o, o j u i z aproximou-se, assustando-se com o estra��
nho e inexplic��vel semblante do jovem. J�� bem perto,
sua voz o f��z estremecer.
��� Raul! Que aconteceu?
Raul levantou-se de um salto.
��� Que aconteceu?
��� Sim, n��o entendo, no meio dessa neblina toda e
com esse frio voc�� a �� . . . parecia t��o t r i s t e . . . em que
estava pensando?
��� Obede��a as leis, case-se e seja bom.
O j u i z bateu-lhe no bra��o.
��� Raul!!
Sacudindo a cabe��a e sorrindo, Raul encarou-o.
��� O pai de Jo��ozinho sempre lhe falava, queria
que o filho fosse um homem honrado e, para ser hon��
rado, tinha de obedecer ��s leis, casar-se e ser bom.
��� Quem �� Jo��ozinho?
��� �� o meu melhor amigo l�� d o . . . as m��os de
Raul crisparam-se.
91
��� Aonde ��le est�� agora? Continua l��?
Vestindo o roup��o que apanhara da cadeira, Raul
voltou-se.
��� N��o sei. Quando tudo aquilo aconteceu, pare-
ceu haver-me dito que ia para o Instituto Agr��cola de
Menores de Batatais. Mas n��o sei bem. N��o me lem��
bro bem. Est�� tudo t��o envolto em denso nevoeiro!
Jo��ozinho pulando na minha frente. O mo��o gritando,
a minha m��o de l�� para c��. A faca entrando na coisa
mole. O sangue. Os olhos arregalados de Jo��ozinho
e a cidade de Batatais.
Raul apertou a fronte com a m��o, e repetiu baixi��
nho, Batatais, sim, Batatais.
Raul levantou a cabe��a deixando todo o seu rosto
descoberto, recebendo gotinhas prateadas da garoa fini��
nha que come��ara a cair. Ent��o o j u i z p��de notar
quanto ��le se tornara mais belo, nesses seis meses sob
sua prote����o. Engordara e se tornara mais alto. Sob
a pele do rosto c��r de barro, sobressa��a um rosado de
sa��de, dando-lhe ao semblante um ardente ar de moci��
dade, respirando pureza. Observando-o agora, via-se
que seus olhos ganhavam centelhas azuladas e sobres��
sa��a nos l��bios vermelhos um sorriso perfeito e puro.
O juiz n��o queria perder de vista um ��nico movimento
de sua maravilhosa face. N��o sabia como poderia
passar os horrorosos dias de viagem longe do mo��o.
Tinha de representar o governo num congresso a ser
realizado na Argentina. Seriam, pensou, os mais tor��
tuosos dias de sua vida, pois nesses cento e oitenta dias
em que estiveram juntos, n��o deixara um minuto sequer
a sua companhia, at�� assistira as aulas do j o v e m e se
encantara com sua intelig��ncia. Aprendia tudo rapi��
damente, j�� lia e escrevia muito bem. Guiava como se
j�� nascera em um autom��vel. Jogava t��nis, nadava,
cavalgava, como se tivesse feito aquilo a vida inteira.
Raul, o seu Raul, era a j��ia mais preciosa do mundo.
Como ouvi-lo falar de um amigo, sem que seu cora����o
sofresse, como que apunhalado. O cora����o! ��le sentia
um ponta��o no cora����o, mas o que fervilhava era o
c��rebro. Era no c��rebro que sentia aquela coisa doer
e repetir-se.
92
��� ��le est�� pensando no amigo. Quem seria esse
amigo? Apesar do ci��me sufocar-lhe a garganta, a voz
saiu compreens��vel.
��� E s s e . . . esse seu melhor amigo �� simp��tico?
Uma palidez estranha matou o sorriso nos' l��bios
do mo��o, que secamente disse:
��� N��o sei o que possa interessar ao Senhor a
apar��ncia de meu amigo.
��� Meus Deus! Ser�� que deixei transparecer algu-
ma coisa? Por nada neste mundo quero que isso acon-
te��a. N��o viveria sem ��le. Juro que n��o viveria, pensou
o magistrado.
Ficou calado em frente a Raul por uns minutos,
sem saber o que responder, at�� que falou gesticulando:
��� Vamos, vamos, Raul, n��o se zangue. Vou ficar
uns dias fora do Brasil e gostaria que voc�� encontrasse
seu amiguinho. A voz saiu falsa, pois estava gelado
de ci��mes.
��� ��le para mim �� mais do que um a m i g o . . .
O juiz sentiu o corpo oscilar e uma nuvem cin��
zenta quase o cegou. Aguardou, com a boca, o final da
frase.
��� Jo��ozinho, continuou Raul, limpando a garoa do
rosto, �� uma esp��cie de irm��o.
O juiz riu, como um bobo.
��� Claro, claro. V�� at�� Batatais, use o melhor
carro. Compre o que quiser para presentear seu ami��
guinho. Quando voltar, quero-o completamente feliz.
��� Agrade��o por compreender-me, s e n h o r . . .
��� Que palavras cerimoniosas, meu caro, observou o
j u i z segurando o bra��o de Raul. Vamos, d��-me um
abra��o de despedida ou me acompanhe at�� o carro.
��� Prefiro acompanh��-lo, mas antes quero dar um
��ltimo mergulho.
��� 93 ���
O jovem arrancou o roup��o, subiu no murinho da
piscina, j u n t o u as pernas, esticou os bra��os e envergou-
se para a frente.
Os olhos do juiz a custo se despregaram daquelas
n��degas morenas e, com um grito surdo e apertado,
sufocado na garganta, afastou-se rapidamente, at�� cam-
baleando. Raul o viu entrar no autom��vel, que partiu
c��lere. Ficara sem compreender a fuga do juiz.
* *
Visivelmente admirado, Raul olhava em derredor,
sentindo uma suave e perfumada brisa sacudir leve��
mente os seus cabelos c��r de ouro.. Acendeu um cigarro
e, dando largas passadas, iniciou uma caminhada pelo
jardim da cidade de Batatais. Santo Deus! Nunca
pensara encontrar-se fora da Capital. Tanta beleza!
talvez nem mesmo a Capital possu��sse um jardim t��o
belo. Atirou-se em um banco e tranq��ilamente enxu��
gou o suor que lhe corria da fronte.
Estava em uma cidade do interior de S��o Paulo.
Pensou que sempre cultivara o desejo de conhecer uma
cidade do interior. Assim, envolvida em azul claro,
vindo dos c��us e resplandescendo do dourado ardente
do sol. Olhou para as flores. Seguiu os p��ssaros no
infinito e seus olhos encontraram a torre da Matriz.
O padre. Sim, o padre poderia lhe informar. Es��
magou com a ponta do car��ssimo sapato o toco do
cigarro. Levantou-se e alisou b luxuoso terno de tropi��
cal ingl��s. Apertou o n�� da gravata e, com passos
firmes, entrou na igreja. Vislumbrou na penumbra,
em todos os cantos das paredes, grandes e maravi��
lhosos quadros.
Aproximou-se. Ia de quadro a quadro e sempre
um oh! de admira����o. C��ndido Portinari! C��ndido
Portinari!
��� Est�� procurando alguma coisa, jovem?
94
A fisionomia bondosa do p��roco o acalmou e Raul
sorriu.
��� Oh! Nessa quietude o mais leve ru��do nos
assusta. O senhor tem uma bela igreja, hein padre?
��� N��o a conhecia, meu filho?
��� N��o, n��o. �� a primeira vez que venho a Bata-
tais. Venho para encontrar um amigo. Talvez o senhor
possa me ajudar.
Com todo prazer, meu filho. Sabe o nome da
fam��lia? Raul franziu a testa e disse: ��� O senhor n��o
entende.
��� Qual �� o seu sobrenome? Eu conhe��o todas as
fam��lias da cidade. Ser�� f��cil.
��� ��le n��o tem fam��lia.
��� N��o tem?!
Raul olhou para um Portinari. Portinari, pensou
Raul, retratou com impressionantes matizes os cad��ve��
res ambulantes que s��o os pobres nordestinos. N��o
teve oportunidade de retratar os pobres ��rg��os, as pobres
crian��as do Abrigo de Menores. Estremeceu, s�� em
pensar o que os brasileiros poderiam admirar. Os bra��
sileiros. Se importariam os brasileiros com o infor��
t��nio de seus irm��ozinhos?
A voz do padre foi crescendo.
��� P e r g u n t e i - l h e . . .
��� Ouvi, ouvi, padre, ��le n��o tem ningu��m. Est��
no Instituto Agr��cola de Menores, desta cidade.
��� Oh! O padre o analisava e Raul ficou com
medo. Sempre tinha medo que o descobrissem. ��le
n��o era nada. Todos os menores criados pelo governo
eram considerados "nada".
O sorriso nos l��bios do padre animou o seu cora����o.
��� Bons meninos os da Col��nia. Bons meninos.
Voc�� foi criado l��, meu filho?
��� 95 ���
Raul n��o respondeu. O padre c o n t i n u o u :
��� Alguns meninos de l�� se afastam de Deus, por-
que pensam que Deus os esqueceu. Mas, quando eles
virem voc�� a s s i m . . . como d i r e m o s . . . um perfeito cava-
lheiro, ir��o encontrar mais alegria e voltar��o a a m a r
o nosso Pai e ter��o mais alento e f�� no futuro. Voc��,
assim com esta boa a p a r �� n c i a e t��o bem vestido, levan-
t a r �� a m o r a l ' d e l e s . Est�� bem empregado, n��o ��, filho?
Tem boa profiss��o?
Raul sentiu as m��os frias de suor.
��� Sim, sim. Por favor, diga-me agora como devo
ir l��. Raul foi a n d a n d o apressado. Ali��s, n��o precisa.
Eu mesmo encontro o caminho. Quase correndo, Raul
desceu o ��ltimo degrau da escadaria e, como um a u t �� -
m a t o , entrou no luxuoso carro, fazendo os pneus guin-
charem nos paralelep��pedos. Guiou vestiginosamente
para fora da cidade.
Um caboclo indicou a estrada que o levaria at��
Jo��ozinho.
Um imenso canavial, um g r a n d e cafezal e o verde
m i l h a r a ! m a r c a v a m a Col��nia. Raul encostou o carro
na g r a n d e estrada poeirenta. Com suas m��os bem tra��
tadas de u n h a s polidas, apertou as grades do port��o
principal e seus olhos se p e r d e r a m pelos onze pavilh��es
circundados de estradas cal��adas com p e d r i n h a s mi��-
das, enfeitadas de belos e bem t r a t a d o s j a r d i n s .
��� ��, sem d��vida, pensou o jovem, tudo digno de
admira����o, mas vejamos o t r a t a m e n t o dispensado ao
menor.
O Cadilaque, suas roupas e seus modos cavalhei��
rescos foram seu cart��o de visitas at�� a g r a n d e casa do
diretor, sr. H e r n �� n i Albuquerque P a r e n t e .
��� Ah! O menor Jo��p de Souza. Veremos, .ve��
remos em que lar ��le se encontra. Chamou um fun��
cion��rio e deu-lhe algumas ordens.
O diretor, am��vel e sol��cito, t r a t a v a o jovem cor-
tezmente.
��� 96 ���
��� Imagine, se ��le soubesse quem eu sou, pensava
Raul. Bem, se ��le soubesse quem sou, nem me teria
recebido.
Agora o diretor lhe explicava o sistema de moradia
na Col��nia.
��� Cada pavilh��o era c h a m a d o lar, objetivando os
��rf��os crescerem com a id��ia do que seja um lar. Havia
u m a certa q u a n t i a de abrigados que recebia ordens de
um casal. Esse casal era c u i d a d o s a m e n t e escolhido.
Tinha de ser compreensivo, culto e formado. O menor
procurado por Raul era Jo��o de Souza, tendo, at�� data
bem recente morado no lar cinco, do qual o encarregado
um homem de todo o respeito e moral elevad��ssima. ��
um ��timo dentista e chama-se Eurico Pereira de Al��
meida. Os menores gostam muit��ssimo da senhora Pe��
reira de Almeida, pois �� uma verdadeira m��e para essas
pobres crian��as. O diretor sorriu, ela t a m b �� m �� dire��
tora do nosso Grupo Escolar. O diretor foi at�� �� ja��
nela e, voltando-se, continuou. Aqui na Col��nia os me��
nores s��o t r a t a d o s com todo o respeito e dignidade. Es��
t u d a m o prim��rio, t r a b a l h a m na lavoura, j o g a m fute��
bol, v��o ao cinema. Temos o nosso pr��prio cinema.
Seguem a religi��o cat��lica. Oh! Mas o que �� isso, por
favor, sente-se, senhor, perdoe-me, perdoe-me. Estava
t��o distra��do que nem lembrei-me da cadeira. Sente-se,
sente-se, vamos. Nem bem Raul t i n h a acabado de sen��
tar levantou-se p a r a um c u m p r i m e n t o .
��� Minha esposa. Chama-se Jamile, disse o diretor.
Esse jovem �� amigo do menor Jo��o de Souza.
��� Senhor H e r n �� n i ! Um funcion��rio chamou o di��
retor e, em um canto da sala, ficaram falando baixinho.
Raul f��z o poss��vel para prestar aten����o no que do��
na J a m i l e lhe falava.
��� Meus filhos querem muito bem a Jo��ozinho, pois
��le �� um m e n i n o m u i t o meigo e bondoso. Trabalhou
na limpeza de m i n h a casa m u i t o tempo. O E d u a r d o
e o Roberto a c h a m m u i t a falta na c o m p a n h i a do preti��
nho. At�� a S��nia, que ainda �� beb��, gosta dele.
��� I m a g i n e que, apesar de toda nossa amizade, ten��
tou fugir.
��� ��le tentou fugir e agora est�� de castigo. O se-
nhor ter�� de voltar outro dia. A voz da esposa do di-
retor ainda estava martelando em seu c��rebro, quando
��le parou o carro para atender o pedido de um menino,
que fazia sinais na estrada.
��� Tenho.de lhe falar.- Posso subir?
��� Falar o que?
��� Sobre o Jo��o de Souza.
Raul refletiu por segundos.
��� Pode, v��.
��� Voc�� n��o vai guiar?
��� N��o, o que voc�� tem de me falar �� pr�� ser logo,
e depois volte para a Col��nia. Acredito que voc�� n��o
tem ordem de ir muito longe.
��� Temos permiss��o de ir at�� a cidade. Pode dei��
xar-me l��.
��� Est�� bem. Como �� o seu nome?
��� Carlos.
��� Voc�� mora h�� muito tempo aqui?
��� Faz dois anos. Os outros treze anos passei no
Abrigo de Menores da Celso Garcia. Aqui �� melhor.
Tratam a gente bem. Mas, l�� no Abrigo, era um in��
ferno. O senhor tinha de ver. A gente sofria pra
caralho.
Raul estremeceu. O nome feio o chocou. H�� seis
meses n��o ouvia um. O menor continuou:
��� Jo��ozinho est�� na cela.
O carro parou num solavanco.
As flores, os pavilh��es bem cuidados, as estradas de
pedrinhas, a bondade do diretor, o verde do canavial,
os rubis dos cafeeiros, o ouro do milho e a cela. Tinha
de ser assim, Deus!
Em todos os lugares, em todos os cantos, em todas
��� 98 ���
as a����es, em todos os pensamentos, ficava sempre es��
condido algo ruim, algo pobre. Por que? Por que?
Carlos n��o compreendeu de que falava Raul. Sua
preocupa����o era de que o carro andasse. Olhava para
tr��s de minuto a minuto.
��� Vamos, mo��o, guie logo. Preciso chegar �� ci��
dade. O diretor mandou eu l�� para c o m p r a r . . .
��� Primeiro conte porque Jo��ozinho est�� na cela.
��� V�� guiando. V�� guiando que eu vou contando.
Olhe, ��le e outro menino do lar onze tramaram uma
fuga. Mas os bobos confiaram em outros menores e o
fim foi uma tremenda surra, dada por cinco vigilantes.
A surra foi tremenda, as borrachadas, os murros e os
pontap��s cantaram pr�� cima doa dois. Um ficou desa��
cordado, e o Jo��ozinho est�� l�� de cara inchada e nariz
sangrando. Est�� mo��do o coitado, e com a roupa toda
suja de sangue.
O carro parou outra vez. Raul pensou em voltar
e falar com o diretor. Mas olhou para Carlos. Teria de
envolver o menor. O outro apanharia e iria para a cela.
O que devia fazer?
��� N��o adianta o sr. voltar (Carlos parecia ler-lhe
os pensamentos), pois o diretor n��o o receberia. Ali��s,
nem poder�� transpor o port��o principal. �� melhor o
senhor voltar outro dia, como o diretor falou.
��� Eu estava ajudando a limpar a casa do diretor e
ouvi tudo o que disseram ao senhor. Como tamb��m sou
do lar onze, sei tudo o que aconteceu ao Jo��o. Por isso
resolvi contar-lhe a verdade.
��� Bem ��� Raul pensou alto ��� falarei com o dr.
Paulo para ajudar Jo��o.
Quando chegaram �� cidade, Raul perguntou ao
menino onde queria descer.
O menor olhou, olhou em todas as dire����es, apon��
tando para um lugar arborizado e deserto.
��� Olhe, fico ali. Carlos desceu, despediu-se de
Raul e, j�� um pouco afastado do carro, gritou:
��� �� melhor o sr. dar uma olhada nos pneus da
frente, parece que est��o com alguma coisa grudada.
Enquanto Raul, ajoelhado no ch��o preocupava-se
com os pneus, Carlos aproveitou e, furtivamente, escon��
deu-se no banco de tr��s do carro.
*
Raul acabara de guardar o carro e, assobiando qual��
quer coisa desafinada, sem som, ia abaixar a porta da
garagem quando, sobressaltado, ouviu algu��m falar:
��� Tudo isso aqui �� bem diferente do que l�� na Co��
l��nia, hein?
��� Carlos. Como veio parar aqui?
��� No seu carro!
��� Como!?
��� Escondi-me, quando menti haver uma coisa gru��
dada nos pneus.
��� O que voc�� pretende?
��� Ora, fugir. Fugir de l�� e s��.
��� E agora, para onde voc�� vai?
��� Vou ficar aqui.
��� Ficar aqui? Ora, voc�� est�� louco, menino. Esta
casa �� de um juiz.
Por um instante, Raul chegou a pensar que o me��
nino fosse ficar amedrontado, pois, vislumbrou um ar
de medo e ang��stia em seu rosto, mas ��le logo se recu��
perou e abriu os bra��os, esticando bem os dedos da m��o.
��� Eu n��o estou ligando a m��nima para este juiz.
��le que v�� para a puta que o pariu.
Raul fechou o carro.
100 ���
��� Olhe, �� bom voc�� ir embora daqui! Ou, ent��o
eu telefono para o juiz de menores.
��� Por que voc�� n��o quer que eu fique aqui?
��� Sua fuga poder�� trazer-me complica����es.
��� Que esp��cie de complica����es? Eu fugi: no que
isso poder�� complic��-lo?
��� Voc�� veio em meu carro. Quero, no carro do
juiz.
��� Ah! Carlos riu e esfregou uma m��o contra a
outra. Ent��o voc�� j�� est�� complicado, pois se n��o me
ajudar, falarei que voc�� me induziu a fugir.
Uma palidez de morte envolveu Raul. O menino
observava-lhe o rosto e alegrou-se.
��� Quer dizer que eu posso ficar, n��?
��� At��. o juiz chegar, sorriu Raul. Mas, no ��n��
timo tinha medo. S�� desejava, neste momento, a volta
imediata do juiz.
Raul, entrando na mans��o, pensou no juiz. Como
tinha necessidade dele, agora! Relembrou de todas as
vezes que se sentira s��, com medo, e sem uma m��o
amiga. Estufou o peito e respirou fundo.
Gra��as a Deus, agora tinha algu��m. Sentiu uma
for��a estranha anim��-lo, por isso chamou um dos cria��
dos e mandou arrumar acomoda����es para o fugitivo nas
depend��ncias dos empregados e, sem preocupar-se mais
com o mesmo, subiu para o banho. Quando desceu, ��
jovem viu que o menino percorria lentamente a sala,
balan��ando, nas passagens, os m��veis que eram presos
por correntes. Alto magro, at�� parecia um homem,
considerando-se seu corpo musculoso e rijo, todavia, seu
rosto demonstrava um ar infantil, duramente pronun��
ciado���: a boca, s�� a boca era de adulto, aquele tipo de
boca rija, com um rictus cruel.
Impinou a cabe��a para tr��s, aproximou-se e falou
alto, quando viu Raul.
��� Que m��veis mais engra��ados. Todos fincados no
teto. Este. balan��a. Este �� firme e duro. Os que s��o
101 ���
duros t��m cabo de a��o e os que balan��am s��o prega��
dos nas correntes. Riu. Esse homem. Quero dizer,
esse juiz, acho que �� biruta. Mas, sinceramente, �� uma
birutice de bom gosto, pois nunca vi nada igual, nem
em filmes ou revistas. O menino voltou a andar como
um gato na ronda de um rato.
Raul bebericando o u��sque que o criado acabara de
servir, virou-se para Carlos, sorrindo.
��� Bem, menino, sei que voc�� s�� tem andado no
meio de coisas e gente horr��vel. Por esse motivo, digo-
lhe com franqueza, n��o �� de espantar que seja assim,
quase um selvagem. Raul logo se arrependeu de haver
falado, pois a express��o de sofrimento naquele rosto
terrivelmente infantil o desconsertou.
��� N��o quero lembrar-me de coisas cru��is. Todos
foram positivamente c��es, uns filhos da puta, mas ago��
ra n��o vou mais para o meio deles. Silenciou. Ali��s,
um sil��ncio profundo cobriu a sala. Depois ��le veio at��
Raul, endireitou o corpo, apanhou a bebida, engolindo-a
num s�� gole, tossiu e mostrou os dentes.
��� Como �� simples e r��pido! Pensei ser mais dif��cil.
L�� sempre bebia uns goles de pinga, mas u��sque �� a
primeira vez. Logo depois come��ou a puxar o l��bio in��
ferior com os dedos, fixando Raul com os olhos semi-
fechados.
��� Toda vez que bebia a tal pinga, sentia uma coisa
gostosa dentro de mim. A gente sabia que era desejo de
mulher. Mas, como n��o tinha mulher, a gente pro��
curava o cu de algum viadinho. Piscou. Sabe, l�� tem
muitos que gostam de dar o cu a qualquer um. N��o se
topa todos os dias com coisas assim, n��o ��?
Raul levantou-se de um salto e gritou para o em��
pregado :
��� Leve, leve esse menino daqui. Ponham-no para
dormir e, a. partir de amanh��, est�� proibido de aparecer
na minha frente. Est�� ouvindo?
O empregado f��z men����o de pegar o menino, mas
este come��ou a lhe dar pontap��s.
102
Raul saltou da cadeira e vibrou uma violenta bofe��
tada em Carlos e explodiu:
��� Saia daqui, saia daqui.
Cambaleando e amparado no empregado, Carlos gri��
tava sem cessar:
��� Que �� que eu fiz? Que �� que eu fiz?
��� Que �� que eu fiz? Pensou Raul mordendo os l����
bios e apertando o copo entre os dedos. Voc�� f��z aquilo
que mais odeio entre homens. Voc�� f��z aquilo que me
tornou assassino.
Voltou a sentar-se. Largou o copo na bandeja e,
com a cabe��a entre as m��os, recordou aquele dia n��o
t��o distante, pois o crime estava ainda ardente em seu
��ntimo, revolvendo-lhe o esp��rito com algo inexplic��vel.
Sentiu que fora horr��vel e tr��gico o ato praticado, mas
sentia tamb��m que o faria de novo. Faria uma, dez, cem
vezes, ��em que por isso perdesse a pr��pria alma.
Perder a alma! A alma! Existiria alma? Mas os
homens, aqueles que ficavam furando a bunda de outros
homens, existiriam como homens ou seriam animais?
��le um dia tinha sentido as carnes quentes de um
desses homens contra as suas. As carnes do juiz. Gelou.
N��o podia mais suportar essas lembran��as. Levan��
tou-se e p��s-se a caminhar pela sala, com um sentimen��
to inexplic��vel rigindo em seu ��ntimo.
��� Malditos, malditos pederastas, gritou. Seus pas��
sos eram largos e silenciosos. Depois parou e lembrou-
se com uma calma estranha, como um sol iluminando-
lhe tudo por dentro e fazendo-o at�� sorrir. Lembrou a
faca amolecer dentro do cora����o daquele pederasta.
Com alegria, com muita alegria mesmo, relembrou
aquele dia.
Aquele dia ��� aquele d i a . . . Se Raul soubesse que
aquele dia marcara seu d e s t i n o . . .
- 103 ���
XII
Malditos Pederastas
No dia seguinte Raul acordou com as sacudidelas
do empregado:
��� Senhor, senhor, telefone.
��� Telefone! Espremendo os olhos, olhou num pis-
ca-pisca para o mo��o. Que aconteceu com o telefone?
��� �� um chamado interurbano da Argentina. Acho
que �� S. Excia.
��� S. Excia! Quem �� essa S. Excia.?
��� O juiz. �� o dr. Paulo.
��� Ah! Nunca ouvira ningu��m referir-se assim ao
Juiz e tamb��m nunca atendera um chamado in��
terurbano.
A voz vinha t��o clara!
��� Al��.
��� Raul?
��� Sim.
��� Sou eu.
��� Ah!
��� Como vai?
��� E u . . . b e m . . . quero d i z e r . . .
105
��� O que h��?
��� �� o Carlos.
��� Carlos?! Quem �� o Carlos? Vamos, diga quem
�� o C a r l o s . . . Raul, Raul.
Agora a voz do j u i z vinha aos ferros, ferindo-lhe
os t��mpanos ��� Raul! Raul!
��� C a l m a . . . calma, dr. Paulo.
��� Diga quem �� o Carlos. Chame o empregado.
Raul gritou para o empregado atender o telefone
l�� embaixo mesmo, e ficou sentado na cama, pensando
no que estaria acontecendo. Falara algo de errado para
o advogado ficar assim furioso?
O empregado voltou, entrando sem bater.
��� O dr. Paulo voltar�� hoje para o Brasil.
��� Por que?
��� ��le estava muito nervoso.
��� Mas, por que?
��� N��o sei, senhor. T a l v e z . . . t a l v e z . . .
��� T a l v e z . . . fale, h o m e m . . . o que voc�� acha que
aconteceu?
��� �� por causa do Carlos.
��� Ah! Fico contente. �� bom que ��le veja e d��
um jeito nesse pilantrinha.
��� Mas parece que ��le vir�� por outra coisa.
��� Outra coisa?
��� Sim.
��� Que coisa?
��� C i �� m e s . . .
Encararam-se.
Raul, p��lido, ouvia naquele zunido incessante rios
ouvidos, a voz horripilante do empregado:
��� 106 ���
��� Ora, ningu��m leva a s��rio as rela����es entre ho-
mens, o senhor deve saber. Jamais o senhor encontrar��
nesta ��poca, gente que os despreze por causa disso.
Ningu��m cr�� que possa ser s��rio o amor entre homens,
mesmo o dr. Paulo. Durante a viagem chegar�� �� con��
clus��o de que a estadia do menino Carlos aqui n��o ��
uma brincadeira para encium��-lo.
O est��mago de Raul foi-se comprimindo e sua testa
come��ou a umidecer. Olhou rapidamente para os lados
e alcan��ou a estatueta em cima do criado-mudo.
Com os olhos arregalados de ��dio foi andando deva-
gar, devagar, at�� o criado. Esse s�� teve tempo de abai-
xar a cabe��a; pois os peda��os de porcelana invadiram
o quarto.
��le n��o entendia o que gritava Raul e teve s�� um
pensamento: correr dali.
Logo depois Raul jogou-se dentro do carro e partiu.
A noite ainda n��o havia retornado e o juiz j�� o esperava.
O empregado, numa curva demorada, explicou que
Raul tinha sa��do pela manh�� e o mocinho Carlos tinha
permanecido o dia todo no quarto dos criados.
O j u i z mandou imediatamente chamar o rapazinho.
Um rapazelho r��seo e meigo. Estava coberto de
uma frescura inexperiente, pensou o juiz quando o en��
carou. Jamais poder�� conquistar Raul!
��� Ent��o, mocinho, voc�� �� quem me f��z abandonar
uma importante confer��ncia.
O menino, de cabe��a baixa, n��o respondeu.
��� Vamos, fale, garoto. Voc�� surgiu de onde?
O garoto continuou quieto.
��� A id��ia de vir para c�� foi sua? Vamos, diga!
��� Sim. Carlos levantou a cabe��a e encarou o ad��
vogado.
��� Se o senhor prometer n��o me mandar de volta
para l��, conto-lhe tudo.
��� 107 ���
��� Ent��o conta, disse o juiz com voz branda.
��� Eu fugi de l�� porque eles me judiavam muito.
Durante aqueles minutos em que o menino descre��
via a sombra negra, envolvendo as crian��as asiladas, fa��
zendo-as lutar desesperadas para enxergar um pouco de
sol, o juiz sentiu, at��, uma pontinha de remorsos por
ter aproveitado tanto de crian��as iguais ��quela, olhan-
do-o assustado e passando a l��ngua nervosamente pelo
l��bio inferior.
��� Al��m disso, continuou d��bilmente o menino,
tenho medo de aprender a ser um marginal. L�� na
Col��nia todos pensam, quando estiverem em liberdade,
em praticar crimes para ^se vingarem do tratamento
recebido nos asilos do governo. Fui tamb��m muito
infeliz l��, mas tenho um ideal e por isso n��o quero
mais voltar. Eu sou bom. Correu para o juiz e este
sentiu o contato daquelas m��os ��speras. Pegou as
m��os do garoto e as olhou. Grossas e cheias de bolhas.
O menino olhou das m��os para o rosto do juiz.
��� Eu capino a ro��a da Col��nia, mas do que gosto
mesmo �� de tocar piano. Sonho estar tocando, tocando
e foi tirando as m��os devagar das do juiz, com toda
brutal calosidade, o rosto triste e a voz embargada por
soluces entristecendo o alegre ambiente.
��� Esse �� o meu ideal. Quero ser pianista.
Aquela express��o de piedade que assentara no rosto
do juiz foi variando e recebeu, em seguida, uma palidez
profunda, quando seus olhos encontraram tonalidades
azuladas e cintilantes entre as grossas cortinas da
grande porta que levava ��s escadarias do belo jardim.
Com o cora����o palpitando, o juiz viu o azul vir
para pie, passar por ��le e subir lentamente ao andar
superior. Ia correr em sua dire����o, quando seus ouvi��
dos se encheram de gritos angustiosos e doridos.
��� O senhor me ajuda? O senhor me ajuda? Eu
n��o quero ser marginal. O menino, ajoelhado, agar��
rava-se ��s suas pernas.
��� 108 ���
Mas o juiz n��o o ouvia. Eram gritos mudos. O
juiz s�� pensava em uma coisa. Raul, o seu Raul. Olhou,
como se n��o visse a crian��a ajoelhada no meio da
luxuosa sala e, com passos firmes, come��ou a subir a
escadaria de m��rmore.
Bateu no quarto de Raul. Uma, duas, tr��s vezes.
Nada. J�� ia esmurrar a porta, quando esta se abriu,
e dois olhos nadando em profundas olheiras n u m rosto
abatido, o fitaram.
��� Saia. A voz do juiz era dura e fria.
O j u i z n��o despregou os olhos dos seus. Sentia-se
como se houvesse sa��do de uma ressaca. Pernas moles,
tonteiras e aquele amargor na boca.
Depois de vinte e quatro horas, somente vinte e
quatro horas longe dele, e agora a sua presen��a lhe
trazia tudo aquilo. Como era fant��stica sua alta figu-
ra! A luz vinda do quarto cobria-lhe as costas, dei��
xando, na penumbra, o longo peito coberto de p��los,
cheirando a suor, cheirando a macho, dar vertigens na
voz umidecida do magistrado.
��� Mas, por que?
Por��m, no mesmo instante recuperou-se e, com voz
nova, autorit��ria, gritou:
��� Que diabo! Nem saio e tudo vira b a l b �� r d i a . . .
o que aconteceu? O que h�� com voc��?
��� Que �� que h��? Raul abriu os bra��os e se firmou
nas laterais do arco da porta. Apertava-a tanto que, no
moreno de sua pele, as j u n t a s dos dedos tornaram-se
n��veas.
��� O senhor deve saber agora o que pensa o criado
a nosso respeito.
Um iongo sil��ncio.
��� E o que pensa o criado?
��� Pergunte a ��le.
��� N��o. Quero que voc�� me diga.
��� 109 ���
��� Nunca.
��� Por que?
��� Porque n��o quero matar pela segunda vez.
��� Matar?!
��� Matar ..
��� Voc�� est�� louco?
��� Se f��r verdade, eu fico.
��� Verdade o que?
��� V��. Pergunte ao criado.
��� Diga voc��. Voc�� n��o �� homem?
��� Sou homem, e homem macho.
��� Ent��o diga.
��� Voc�� �� covarde.
��� Saia daqui.
��� Covarde?
��� Sim, covarde e medroso.
��� Medo.
��� Vive cheio de medo. Tem medo at�� de falar.
Por pior que seja a coisa, um homem macho fala sem
hesitar.
��� O senhor �� homem?
��� Sou.
��� Homem macho?
Tinha que fingir.
��� Homem macho.
��� Tem palavra?
��� Claro!
��� Jura?
��� Juro.
��� Responda-me sinceramente.
��� Respondo.
��� Responde?
��� 110 ���
��� Respondo.
��� O senhor tem ci��mes de mim?
O peito, a barriga, a cara, pernas e tudo daquele
homem se envolveram em densa neblina. Sentiu um
tremor sacudir suas entranhas. Sentia-se cair, uma
coisa o puxava. Cair, cair. Agarrava-se a Raul. Ti��
nha de falar a verdade. Que largara a importante con��
fer��ncia porque morria de ci��mes dele. S�� pensar que
��le podia estar com outro homem aniquilara seu esp����
rito. Devia falar que o amava e morria por ��le. Mas,
m a s . . .
��� Voc�� est�� louco, Raul. Que besteira �� essa?
Eu com ci��mes? Ci��mes de voc��?
��� O criado pensa sermos amantes.
��� Amantes. Milh��es de sinos penetraram-lhe no
c��rebro e o fogo do desejo fervendo-lhe nas veias. To��
davia, ainda com vil habilidade, disse:
��� Isso �� uma inf��mia.
Seu sexo levantando, esticando, endurecendo, gri��
tava Raul, Raul. Mas sua habilidade dizia: isso �� uma
inf��mia.
Do��a-lhe a cabe��a pelo nervosismo sexual, mas
dizia: isso �� uma inf��mia. O que aconteceu no pas��
sado, digo-lhe mais uma vez, foi uma loucura. Nunca
tinha praticado antes um ato t��o animalesco. Jamais
me passou pela cabe��a que o mesmo sexo pudesse satis��
fazer qualquer ambi����o de meu corpo e alma. Tenho
nojo de homens que assim procedem. O j u i z tornou-se
eloq��ente. Tinha de encenar direitinho, sen��o poderia
perd��-lo para sempre.
��� Esses pederastas. Esses miser��veis. Como voc��
pode pensar que. um magistrado seja um deles? Mal��
dito criado, ir�� para tr��s das grades. Eu juro.
Abria os bra��os e gesticulava para todos os lados.
Parecia um ator. Parou em frente a Raul.
��� Se voc�� n��o confia em mim, pode ir para outro
lugar.
111
Raul tremeu.
��� Outro lugar?
��� Sim. O juiz morria de medo que ��le aceitasse.
��� Pode ir para uma pens��o, para um hotel, eu
me responsabilizo at�� voc�� arranjar um emprego. Mas,
se voc�� confia em mim, se voc�� n��o me considera isso a��,
ent��o d��-me a m��o e fique.
O mal de .Raul era acreditar muito r��pido.
Do contato de sua m��o, o juiz sentiu que, nem que
fosse para desenterr��-lo da pr��pria sepultura, Raul
teria de ser seu, houvesse o que nouvesse, morresse
quem morresse, e podia a imprensa publicar. Nada
mais importava: dinheiro, posi����o, social ou religi��o.
Queria Raul ou a morte. Esse seu veredito era a sen��
ten��a de sua pr��pria vida. Era j�� uma paix��o, n��o
mais uma simples tara.
��� Por que essa casa t��o grande e rica, com jardins
e parques tem a cerc��-la um muro t��o baixinho? Se
eu fosse o dr. Paulo, mandaria colocar, em volta, grades
bem altas, disse Carlinhos. Passeava com Raul pelo
parque, esperando algu��m do juizado que viesse busc��-lo
a pedido do juiz, pois h�� quinze dias fugira do Abrigo,
refugiando-se na mans��o.
Carlinhos ignorava que, ia voltar para a Col��nia.
Confiava em morar com o dr. Paulo. Nos dias que l��
passara, s�� tinha um pensamento: aprender a tocar
piano. Seria algu��m, algu��m.
Raul viu o carro do juizado chegar. Os homens
desceram e vieram at�� eles. N��o teve coragem de aler��
tar Carlinhos que, inclinado, colhia na relva uma flor.
��� Tenho absoluta certeza de que uma grande alta,
bem alta, impediria a entrada de malandros.
112
Soprava um vento forte, desprendendo folhas e flores
das ��rvores; impedindo Carlinhos de ouvir os passos dos
homens, j�� bem perto.
��� Como �� bonito tudo isso aqui, hein, Raul? To-
m a r a que o j u i z pe��a ao diretor da Col��nia para eu
ficar aqui. Puxa, como seria legal! Mas, a n t e s , ��le
tem de falar com o j u i z de menores. Voc�� n��o a c h a ?
Depois, viria um comiss��rio de m e n o r e s . . .
��� Comiss��rio de menores, uma voz elevou-se no
g r a n d e p a r q u e .
Carlinhos virou-se e encarou os dois h o m e n s . Na
expectativa daquilo que eles iam dizer, Raul j u l g o u
ouvir as batidas do cora����o do m e n i n o . Carlinhos,
como u m a lebre assustada, olhava para todos os lados,
vigiado pelos olhos astutos dos comiss��rios.
��� Viemos busc��-lo, menino. Vamos, vamos.
Foi a g a r r a d o . Um comiss��rio de cada lado o segu��
rava firme pelos bra��os. Carlinhos umideceu os l��bios
com a l��ngua e olhou triste para Raul.
��� Voc�� sabia que eles viriam, n��o ��, seu covarde?
Voc�� e aquele velho veado.
Arrastado pelos comiss��rios, j�� ia bem longe. O
cora����o de Raul gelava mais e mais, ouvindo o menor
repetir sem p a r a r :
��� Velho veado, velho veado.
��� Meus Deus! Pensou Raul a p e r t a n d o a fronte
com a m��o. Primeiro o empregado e agora o Carlinhos.
Mas o dr. Paulo lhe dissera que n��o era, que n��o era
a q u i l o . . .
Eles estavam e n g a n a d o s , t i n h a m que estar.
XIII
Presidente da Rep��blica, olhai
por n��s. Am��m...
No m��s seguinte, Raul voltou a Batatais para visi-
tar Jo��ozinho e o encontrou ajoelhado, munido de um
ferro ponteagudo, tirando os matinhos que cresciam
entre os paralelep��pedos da rua.
Magro e abatido, o negrinho solu��ava nos bra��os
do amigo.
Parados um diante do outro, n��o sabiam o que
falar, at�� que Jo��ozinho disse:
��� Puxa, esse servi��o �� cacete. �� ruim pr�� xuxu,
sabe? A m��o da gente fica toda esfolada, o joelho
doendo e, quando vou lavar-me a ��gua cai nas feridas
da m��o e arde como se estivesse queimando com ferro
e fogo. �� um servicinho muito cansativo, ainda mais
pr�� quem se levanta ��s cinco horas e fica trabalhando
na lavoura at�� as dezesseis horas. Passou as m��os
calejadas pelos cabelos empoeirados.
��� Por que voc�� n��o passa uma pomadinha na
m��o? Tem um sabonete muito bom. Deixe ver se me
lembro o nome.
Jo��ozinho riu.
��� Nem se esforce. Sabonete aqui nunca se viu.
Aqui �� no sab��o de lavar roupa.
Ficaram calados novamente.
115
Jo��ozinho se ajoelhou.
��� Vou terminar o servi��o e depois falo com voc��,
viu?
Raul pegou-o por um bra��o e o levantou.
��� J�� falei com o diretor e ��le permitiu que eu o
levasse at�� a cidade.
Um brilho feliz iluminou os olhos de J o �� o .
��� Mas assim, sujo. . .
��� Vamos l��.
De m��es dadas, percorreram a rua, sob os olhares
curiosos dos outros meninos sofredores que p a r a v a m
de t r a b a l h a r na limpeza das pedrinhas, afastando-se
para eles passarem. E n t r a r a m no luxuoso carro do juiz
e voaram para a cidade. Jo��o n��o escondia a alegria
de rever o amigo, mas Raul notou que, l�� bem no fundo
de seu olhar, t i n h a alto de e s t r a n h o . Por a l g u m a s
vezes reparou que o pretinho o olhava como se o re��
provasse .
��� E esse carro. Voc�� n��o devia vir at�� aqui cem
esse carro.
��� Por que?
��� Por que voc�� �� pobre.
��� O carro �� de um amigo.
��� O j u i z ?
Raul ficou branco e espantado e olhou para o
p r e t i n h o .
��� Como voc�� sabe?
��� Oh! Todos sabem.
��� Todos!!
��� O Carlinhos. Jo��ozinho abaixou a cabe��a e foi
sacudido por um tremor.
��� Raul, vamos sentar ali na confeitaria.
��� 116 ���
Eu quero lhe contar como vivemos aqui. Raul
sentiu que ��le queria mudar de assunto. Encostou o
carro e sentaram-se em uma mesinha da confeitaria.
O pretinho n��o lhe deu tempo de abrir a boca e, engo��
lindo uma colherada de sorvete, foi falando:
��� Aqui �� melhor, em rela����o aos outros abrigos do
Estado. O diretor, o dr. Hern��ni Albuquerque Parente,
�� justo e compreensivo. Mas falta muita coisa. Prin��
cipalmente aprender uma profiss��o. O que temos
aprendido at�� agora �� capinar. Falta tamb��m o di��logo.
O di��logo �� muito importante, principalmente nos
abrigos. Digo isso porque a revolta cresce nos menores,
quando s��o castigados injustamente e quando sentem
serem tratados como seres inferiores. Aqui, como nos
outros Abrigos, a quem estiver internado, ningu��m per��
gunta o porqu�� de se estar errando, apenas acham que
�� erro, e v��m logo cobrindo a gente de borrachada, socos
e pontap��s.
Depois �� lavar banheiros, corredores, regar jardins.
��s sete horas, uns v��o para o grupo escolar, instalado
na Col��nia e outros, inclusive eu, vamos para a ro��a.
Como voc�� deve ter visto, a lavoura �� enorme, o
cafezal se perde de vista. O milharal, o arrozal, man-
diocal, a planta����o de batata, mandioquinha, salsa, cana,
tudo �� cuidado pelos menores.
A gente gosta da lavoura mas, se quando a gente
fosse homem, ganhasse um peda��o de terra para culti��
var e viver disso, a�� sim, a gente teria ��nimo. Mas
pelo que sabem os meus quatorze anos, s�� quem tem
terra nesse Brasil �� gente rica. P o b r e . . . bem como
ia lhe contando, o ch�� de erva cidreira me d�� um
bruto enj��o. N��o quis queixar-me e por isso fui para a
ro��a assim mesmo. Quando comecei a capinar em volta
de caf��, senti que piorava. Uma fraqueza pelo corpo,
dor de cabe��a e tontura, fizeram com que eu me debru��
��asse no cabo da enxada. Fazia um esfor��o enorme
para n��o vomitar, sentindo aquele suor frio correr pelas
costas e empapar as palmas de minhas m��os.
De repente, senti algu��m dar varadas, com toda
for��a, em minhas costas e cabe��a. Gritando de dor,
��� 117 ���
virei o rosto para ver o que acontecia e varadas t a m b �� m
no rosto t a p a r a m - m e os olhos.
�� o funcion��rio (��le se c h a m a M��rio), sempre
b a t e n d o .
��� T r a b a l h a , negro filho da puta. Voc��s est��o
t r a b a l h a n d o para comer. N��o pensem que v��o comer
�� custa do governo. Trabalhe, vamos. Louco de dor,
sa�� em desabalada carreira, deixando golfadas de v��mito
pelo meio do cafezal.
Isso acontecia todos os dias com os i n t e r n a d o s .
Agora diga. Se o governo pusesse funcion��rios bem
pagos e habilitados em t r a t a r com crian��as, a coisa n��o
seria diferente? Jo��ozinho raspou o fundo da ta��a.
Como n��o sa��a mais nem um p o u q u i n h o de sorvete,
encostou-se na cadeira e olhou para o alto.
��� O que vou falar �� um sonho, mas digamos que,
futuramente, aconte��a. Eu estava ali na enxada, pas-
sando mal e o funcion��rio chegaria preocupado e per-
g u n t a r i a , com voz meiga:
��� Algum problema?
��� Eu levantaria a cabe��a e o olharia bem nos
olhos.
��� Sim, sr. M��rio. Estou me sentindo muito mal.
��� Mas o que est�� sentindo?
��� Dores, enj��o de est��mago e fraqueza nas p e r n a s .
��� Vamos, vamos, n��o fique assustado, vou ajud��-lo.
Sente-se ai, na sombra. Vou c h a m a r outro menor para
a c o m p a n h �� - l o at��' o lar. Mas, antes, tome um golinho
de ��gua de m i n h a garrafinha. Assim. Agora, pare a
m��o, eu vou ench��-la de ��gua e voc�� passa no rosto.
Assim, assim, sente-se melhor agora? Daria para voc��
ir a n d a n d o at�� o lar?
��� Sim, senhor. Ali��s, j�� est�� passando, senhor.
Acho que era esse sol m u i t o forte na cabe��a e o ch��
de cidreira.
��� Ch�� de cidreira?
��� Sim, senhor. N��o suporto o ch��, mas como
n��o tem outra c o i s a . . . e depois, eu n��o queria vir para'
a ro��a de est��mago vazio.
��� Vou conversar com o dr. Eurico Pereira de Al-
meida ou com a dna. Antonieta; eles c o m p r e e n d e r �� o .
Voc�� n��o vai mais tomar ch�� de cidreira. Bem, vou
providenciar a sua volta. Hoje vai descansar.
��� N��o, n��o, senhor M��rio, j�� estou m e l h o r a n d o .
Penso que, se ficar um pouco mais aqui na sombra, o
mal-estar vai passar.
��� Voc�� a c h a ?
��� Sim, por favor. N��o quero a t r a s a r meu servi��o.
Sei que passaria, s�� ern ficar sentado �� sombra porque,
q u a n d o tinha me visto bem longe do funcion��rio, sentei-
me debaixo de um p�� de caf�� e o mal-estar passou.
J o �� o z i n h o parou e encarou Raul.
��� Voc�� n��o a c h a r i a legal, se houvesse di��logo?
Raul n��o respondeu. Pois era sonho. O que valia
responder? O p r e t i n h o sorriu. Um sorriso a m a r g o e
triste.
��� Sonho, sonho e dos grandes. Mas, vamos voltar
�� realidade.
��� Como �� horr��vel t r a b a l h a r na ro��a. Voc�� nem
imagina. Com o sol causticante, com fome, descal��o,
pisando em cada puta espinho, que entra t��o dolorido,
a r r e p i a n d o at�� os cabelos. Quando se pisa em caco de
vidro, pode-se tingir toda a Col��nia de sangue, mas n��o
se pode parar de capinar. E quando se afunda n u m
formigueiro! P u t a merda, a gente sai p u l a n d o feito
bode e por mais que cata com as m��os nos p��s, as
formigas c o n t i n u a m g r u d a d a s .
��� Voc�� j�� se imaginou sentado no cabo da enxada,
t i r a n d o espinho do p��, e logo um pesco����o e cair de
cara no ch��o? �� de encher o saco, n��o? Agora, o pior
era q u a n d o t i n h a de se t r a b a l h a r dentro do brejo.
Aquela �� g u a b a r r e n t a , super-gelada, quase encobrindo
os pequenos de 9 ou 10 anos, que b a t i a m e batiam com a
enxada e sempre arranjavam cortes enormes no ded��o
��� 1 1 9 ���
do p�� e gritavam de dor. Queriam sair da ��gua porque
aquilo ai'dia como pimenta. Mas n��o sa��am, n��o. E
cada bicho que d�� no brejo! Cada aranha! As cobras
d agua, ent��o! Passam pelas caras dos pequenos, que
��icam petrificadas de medo.
��� E as cobras venenosas que ficam debaixo do
p�� de caf��?! Voc�� precisa ver. �� s�� a gente enfiar
a enxada para limpar as folhas perto do tronco e sa��a
cada cobra! Se a gente n��o soubesse mat��-las, o ��nico
rem��dio era sair correndo (ali��s, era o que sempre
acontecia), sen��o estava-se perdido. Para isso o fun��
cion��rio era bom, porque s��dicamente matava os r��pteis.
Cada um ter por tarefa capinar quarenta p��s de
caf��. Quem acabar primeiro pode descansar. Mas isso
nunca acontecia, pois, por mais r��pida que a crian��a
seja, na hora de ir embora o medo das cobras fazia
a gente lerdear.
��� Outra coisa chata na lavoura �� tamb��m quando
termina a ��poca do milho. O milharal fica sequinho
e n��s temos de arrancar p�� por p��, depois de tirar as
espigas. E dif��cil qualquer dos meninos ir de boa von��
tade trabalhar no milharal, apesar de ser um dos
servi��os mais leves da lavoura, mas existem muitas
caixas de marimbondos; bastando a gente ter a infeli��
cidade de esbarrar nas mesmas, as vespas atacam am
bandos, n��o adiantando a gente correr mais e mais,
pois sempre se chega ao lar com a cara ou os olhos
inchados das doloridas picadas.
��� O que mais cansa a crian��a �� cortar cana, fa��
zer feixes e lev��-los nas costas at�� a carreta, pic��-la e
dar ao gado. Jo��ozinho pediu mais um sorvete.
��� Quando voltamos da ro��a, ainda temos de tra��
balhar no lar, arrancar o matinho que cresce entre as
pedrinhas, como voc�� me viu hoje. Veja como ficam
as m��os da gente. Feridas e mais feridas. Algumas
vezes, quando voltamos da ro��a jogamos bola.
��� Antes de irmos para a. escola, fazemos o servi��
��o da horta. As professoras da escola s��o todas donas
dos lares. At�� dna. Joaninha, a mulher do diretor,
�� professora.
��� Estudamos a li����o �� noite, e coitado daquele
que n��o estuda, fica sem ir ao cinema no s��bado. Quan-
do passa filme de mulher de pernas de fora, a turma
fica doida. Quase todos v��o para o banheiro bater
p ou. ent��o, pegam um pequeno e o obrigam
a dar o cu.
As m��os de Raul se crisparam. Foi o ��nico mo��
vimento feito, durante todo o tempo em que o pequeno
ficou falando. Jo��ozinho viu o rosto de Raul cobrir-
se de uma palidez mortal.
��� Quer que eu pare de contar, hein, Raul?
��� Continue.
��� Parece que voc�� est�� doente.
��� Continue.
��� Bem, na Col��nia tamb��m tem uma fanfarra,
tr��s tambores, seis cornetas, dois bumbos e um contra��
baixo. Marchar �� tamb��m um supl��cio, pois marcha-
mos cinco horas sem parar. Os que tocam bumbo fi-
cam com as m��os calejadas.
��� Um dia resolvi fugir com os outros meninos.
Foi depois de levar uma tremenda surra. S�� porque
o funcion��rio cismou que est��vamos conversando na
sala de aula. Gritou:
��� Ah! Negrinho, espera s��, quando voc�� passar
por essa porta para sair da sala, a�� voc�� vai ver. Quan��
do passei, ��le me puxou para um lado e foi me dando
socos e pontap��s. Com o nariz sangrando e o corpo
dolorido, consegui livrar-me do brutamontes e correr
em dire����o �� administra����o.
��� Os outros apanharam com a sineta de ferro, na
cabe��a e por todo o corpo. A�� nasceu a id��ia de fugir.
��� De manh�� ainda escuro, corremos para a por��
teira que dava para o est��bulo. Como estava dif��cil
abri-la, tive de passar por baixo. Os est��bulos esta��
vam cheios de buracos e eu ca��a a todo instante. Foi
dif��cil alcan��ar a estrada, e depois o mato. Ja longe,
ouvimos a sirene tocar tr��s vezes. A Col��nia j�� sabia
da fuga. Corr��amos mais e mais. Ca��amos, levan-
- 121 -
t��vamos. Como tinha espinho naquele mato! Puxa vi��
da! Parecia que todos os espinhos da terra tinham se
reunido naquele mato. Era cada grito de dor! Nossas
camisas j�� estavam em farrapos e as costas todas ar��
ranhadas devido ��s cercas de arame farpado. Passa��
mos quase todo o dia correndo. Uma vez ou outra to��
m��vamos f��lego e continu��vamos a correr. Eu s�� ti��
n h a um pensamento: n��o ser encontrado, porque sabia
do ��dio desumano dos funcion��rios quando �� procura
de fugitivos. Tinham de andar no meio do mato, horas
e horas, sem comer e ultrapassando o hor��rio de tra��
balho. Ficavam nesta vida at�� nos encontrarem. Quan��
do a noite come��ava cobrir tudo de negro e os pios das
corujas cortavam aquele mato sem fim, um dos me��
nores de nove anos come��ou a chorar e a gritar de
desespero:
��� Ai, m��e! Ai, m��e! Ajude! Ajude seu filhinho
doente e com fome.
��� O diabo era que o menino nem tinha m��e.
Ali��s, nenhum dos cinco fugitivos tinham m��e ou pa��
rentes. Numa certa altura, j�� n��o enxerg��vamos mais
nada e deitamos no mato. Na escurid��o de breu, a
voz de um menor se elevou:
��� Olhe, o nosso neg��cio �� chegar a S��o Paulo pe��
lo mato. N��o podemos pensar em ir pela estrada.
��� E quando chegarmos a S��o Paulo? Perguntei.
Um longo sil��ncio se misturou com a escura noite
sem lua.
��� Bem, a gente chegando na capital, vai procurar
um jornal e conta a hist��ria pr�� rep��rter. A gente pe��
de pr�� ��le arranjar uma fam��lia pr�� cuidar de n��s.
Voc��s j�� pensaram como vai ser legal a gente ter fa��
m��lia? Nesta hora estar dormindo em cama, com co��
berta e tudo, e quando acordar ter m��e e pai e talvez
irm��os. Bem, irm��os n��o faz muita falta, porque j��
estou com o saco cheio de ver tantos meninos. Gos��
taria de uma irm��.
No dia seguinte, nosso almo��o foram mangas apa��
nhadas em uma mangueira distante de algumas casi��
nhas. Esse segundo dia tamb��m passou com a gente
122
a n d a n d o , a n d a n d o sem parar, e j�� ia caindo a n o i t i n h a
quando vimos um c a m i n h �� o e pedimos carona. Os dois
homens disseram que iam a Ribeir��o Preto. Pulamos
p a r a cima das lonas e, mortos de cansa��o, dormimos.
��� Acordei com algu��m me p u x a n d o de cima do
c a m i n h �� o e largando o bra��o, eram tapas e pontap��s
para todos os lados. Gritando de dor, olhei para quem
me batia e o reconheci. Era um dos funcion��rios da
Col��nia. Devassei o olhar para mais longe e encontrei
o pr��dio da a d m i n i s t r a �� �� o , onde ficamos at�� a chegada
do diretor, que t a m b �� m nos deu uns tapas e chamou
o senhor J o a q u i m Camilo, chefe do lar onze, onde t i n h a
as celas, e n��s fomos presos. Neste dia recebemos a
visita do nosso chefe do lar cinco, que t a m b �� m nos
cobriu de socos.
Os meninos presos dormiam no ch��o. Se quises-
sem ir �� privada, t i n h a m de bater na porta at�� al��
gu��m abrir.
��� Quando fomos libertados, tive a desagrad��vel
supr��sa de saber que seria h��spede do lar onze e t i n h a
de t r a b a l h a r na ro��a e, desta vez, com m a c h a d o . Cor��
tar grossos troncos de ��rvores. Nesse lar onze impera
o diabo, pois para o senhor J o a q u i m Camilo s�� existe
uma lei: a lei do tapa. Qualquer coisa que a gente
faz, por mais insignificante, ��le desce o bra��o, sem d��
nem piedade. Como no lar onze estavam os meninos
maiores, ��s vezes ��le pedia para o funcion��rio da ro��a,
ajudar a bater. A m u l h e r dele �� outra filha da puta,
s�� fala com os menores aos gritos.
��� Desse modo o tempo foi passando, at�� que um
dia, depois de levar u m a t r e m e n d a surra, tendo ficado
desacordado, resolvi pensar em u m a nova "fuga. N��o
sei quem contou ao chefe do lar. S�� sei que q u a n d o
voc�� foi me visitar, eles ficaram com medo e me dei��
x a r a m sair da cela, pois eu estava todo ferido.
Raul relanceou o olhar pela confeitaria e depois
os pousou no pretinho, q u e ' o olhaya um t a n t o inti��
midado, talvez j�� a d i v i n h a n d o o que o jovem iria per��
g u n t a r . Por isso, ensaiando um sorriso, levantou-se
e disse:
123
��� Devo voltar. O diretor vai dar a bronca s e . . .
Raul o puxou pelo bra��o e o fez sentar-se nova��
mente. Estava p��lido.
��� O que o Carlinhos disse?
��� O Carlinhos?!
��� Sim, Jo��o, n��o se fa��a de esquerdo. Voc�� foi
toda a vida meu amigo. Quero saber o que lhe contou.
��� Mas eu preciso ir.
��� Voc�� tem de me contar.
��� �� prefer��vel voc�� n��o saber.
��� Eu preciso saber.
��� Raul, pelo amor de Deus!
��� Eu �� quem digo, Jo��ozinho, pelo amor de Deus!
��� Eu n��o acredito no que Carlinhos falou.
Raul fazia um esfor��o enorme para controlar-se,
j�� um tanto desesperado.
��� Mas o que voc�� n��o acredita?
��� Que voc�� troca todo o luxo p e l o . . . p e l o . . .
��� Pelo?!
��� Cu.
Raul esperava a resposta, mas, mesmo assim, sen��
tiu uns estranhos sinos nos t �� m p a n o s e um n�� a p e r t a n -
do-lhe a g a r g a n t a . Uma neblina cinzenta f��z Jo��ozinho
dan��ar ante seus olhos. F��z um esfor��o herc��leo para
n��o perder a consci��ncia. Quando se recuperou, a voz
lhe saiu entre os dentes.
��� Isso �� r e p u g n a n t e . Como pede inventar t a n t a
inf��mia?
��� ��le �� pequeno, mas sabe inventar cada est����
ria! . . . O pior �� que os outros meninos a c r e d i t a m .
Quando eu voltar para l��, v��o fazer a maior goza����o.
��� Oh! Deus meu! Raul escondeu o rosto nas m��os.
Ser�� que n u n c a vou livrar-me d e s s a conversa? �� nos
abrigos de menores, �� na cadeia, �� em liberdade, e s��
se encontra veado e filho da puta. S�� se houve essa
��� 124 ���
conversa. O juiz n��o �� veado. ��le, uma vez, quando
eu era pequeno, se atirou sobre mim, mas jurou que
a q u i l o . . . bem aquilo n��o era um desejo de comer o
meu cu. ��le nunca f��z isso com mais ningu��m. O
j u i z n��o �� um veado, eu juro, juro que n��o ��!
Jo��ozinho abaixou a cabe��a.
Raul esfriou
��� O que e, Jo��o?
��� Bem, eu acho que uma coisa o Carlinhos n��o
mentiu.
��� Que coisa?
��� ��le disse que o juiz, todas as noites, antes de
dormir, fica beijando um retrato seu, e o guarda debaixo
do travesseiro. ��le esfrega o retrato pelo corpo todo,
beija, beija, e depois geme e cai, como se estivesse com
ataque.
��� Mentira! Raul levantou-se de um salto. Aper��
tava tanto as bordas da mesa com a m��o, que as jun��
tas estavam brancas, como seu rosto ��� �� mentira,
juro que �� mentira.
O pretinho timidamente olhou para os lados.
��� Todos est��o olhando, Raul. �� melhor a gente
parar com essa conversa.
��� Que olhem.
��� Mas e u . . . se eles contarem ao diretor que a
gente estava d i s c u t i n d o . . .
��� Desculpe-me. Desculpe-me. Ccnte-me tudo di��
reitinho. Juro que ouvirei calado.
��� Raul, n��o tenho muito a contar. ��le disse que
voc�� vivia com um homem podre de rico, em troca d e . . .
��� Sei n��o precisa repetir.
��� Que o homem (��le vigiava o juiz sempre) quan��
do est�� s��, vive falando: eu te amo, Raul, eu te amo,
Raul. Disse tamb��m que o Juiz fica escondido atr��s
das cortinas, esperando voc��, quando voc�� est�� com os
��� 125 -
professores. Que qualquer sorriso seu para um pro-
fessor, ��le fica branco e esfrega as m��os, tremendo, co-
mo se estivesse doente. Disse tamb��m que existe um
lugar, onde ��le espia voc�� no banho. O Carlinhos pro��
curou o buraco, mas n��o encontrou. Deve ser algum
segredo.
Raul n��o dizia nada. Tinha os cotovelos fincados
na mesa e as m��os cruzadas, segurando o copo. Seus
olhos, seus belos olhos vagavam no infinito, com um
lampejo de ��dio.
��� Carlinhos est�� louco, Jo��ozinho, louco.
Levantou-se, foi por tr��s da cadeira e passou as
m��os no ombro do menino. Elas pesavam como ferro.
Era" um peso capaz de esmagar a humanidade.
��� Preciso voltar para S��o Paulo. O timbre da voz
de Raul f��z o. pretinho estremecer. Levantaram-se ner��
vosamente e, em seguida, calados, voltaram para a
Col��nia.
O pretinho saltou do carro. Fechou a porta, e de-
bru��ado na portinha, falou com voz riste.
��� Raul, tenho de continuar aqui. N��o sei quanto
tempo ainda. Talvez por mais quatro anos. O pre��
tinho n��o sabia o que falar, pois via pelo semblante,
quanto Raul estava sofrendo.
��� Olhe, Raul, eu sei que muitos homens s��o calu��
niados, como voc��. Voc�� n��o v�� como falam de muitos
cantores? Falam que eles s�� conseguiram a fama por��
que deram o cu aos seus empres��rios. Eles nem ligam.
��� Mas eu ligo, Jo��ozinho. Eu sou homem. Sou
macho. Ningu��m, ningu��m vai comer meu cu. Agora,
adeus, Jo��ozinho.
��� Adeus.
��� Sim, adeus. Sua voz era dura, fria, selvagem,
Talvez voc�� me visite na cadeia.
��� Por que, Raul? Olha o que vai fazer. R a u l . . .
R a u l . , .
��� 126 ���
Mas o carro j�� desaparecia, encoberto pela poeira
da estrada l o n g �� n q u a e a b a n d o n a d a , como as c r i a n �� a s
da Col��nia.
Raul entrou na m a n s �� o como u m a rajada de vento
e correu ao q u a r t o do j u i z . Nunca t i n h a e n t r a d o na��
quele quarto, mas isso n��o t i n h a i m p o r t �� n c i a . Foi di��
r e t a m e n t e p a r a a cama e levantou o travesseiro.
Raul sentou-se p e s a d a m e n t e na cama, p a r a n��o
cair. De seus l��bios b r o t a r a m uns gemidos m u d o s e
seu corpo come��ou a tremer. Seus olhos estavam arre��
galados e pregados no m e n i n o louro e risonho que, de
short, o encarava.
Ficou assim sentado por q u a n t o tempo? Nem sabia.
S�� sabia que de longos a longos tempos era sacudido
por fortes estremecimentos.
Quando a p a n h o u o r e t r a t o suas m��os t r e m i a m . O
r e t r a t o . O r e t r a t o . E n t �� o era verdade. O j u i z o es��
preitava. O j u i z . . .
O j u i z entrou no q u a r t o .
E n c a r a r a m - s e . O j u i z leu ��dio e desprezo nas man��
chas azuis e b r i l h a n t e s que o p r e s c r u t a v a m .
��� J�� sei de tudo. Algu��m l�� de B a t a t a i s telefo��
nou para o meu escrit��rio. Estava nervoso e chorava.
Era a voz de u m a crian��a. Disse que voc�� iria matar��
me. O ju��-z deu alguns passos para ��le. Aqui estou.
Raul levantou-se l e n t a m e n t e , olhou para o j u i z e
p e r g u n t o u , cheio de s a r c a s m o :
��� Est�� aqui para que? Comer o meu cu? Chegou
mais perto. Vamos, diga! Diga agora, gritava, com o
bra��o levantado e o p u n h o cerrado. Quer meu cu?
E n t �� o venha. Venha, miser��vel. Mentiroso. Venha,
me toque com a p o n t a dos dedos sequer, para ver o
que acontece. Agarrou o j u i z pelo colarinho, mas sol��
tou-o logo, g r i t a n d o :
��� Seu contato r e p u g n a - m e . N��o vou m a t �� - l o , n��o,
j u i z . N��o vou mat��-lo porque voc�� n��o me tocou. An��
dou em dire����o �� porta.
��� 127 ���
��� Mas vou embora, e para bem longe, para n��o ter
de enfrentar uma cadeia por causa de um sub-homem
que enoja a sociedade.
O juiz correu para a porta, fechou-a encostando-se
nela.
��� Raul, -Raul. Ou��a-me. Voc�� n��o vai sair en��
quanto n��o me ouvir. Sua voz estridente encheu o
quarto.
��� Saia da��, juiz. Eu n��o quero encostar as mi��
nhas m��os em voc��. N��o quero sentir mais n��useas
como as que senti hoje. Saia! saia!
��� Por piedade, ou��a-me.
��� M��o tenho nada para ouvir.
��� Raul, o Carlinhos tem raz��o.
Os gritos sa��ram tr��mulos.
��� Saia! saia!
��� Eu o amo, Raul. Eu o adoro, Raul.
��� Cale-se! Pelo amor de Deus, cale-se! Raul tam��
pou os ouvidos com as m��os e, voltando-se, correu at�� a
janela. As janelas tinham grades. Grades! A voz
transpassava em seus ouvidos e suas m��os continuavam
nos ouvidos.
��� Mas �� um amor sem corrup����o. Sem vest��gios
de ignom��nia. �� um amor puro, um amor paternal.
Raul parou com um gesto de desprezo feroz.
��� �� um amor de esfregar o retrato neste corpo
imundo. �� um amor de tarado. Agora chega de men��
tiras e me deixe sair.
O juiz caiu de joelhos e, abra��ando as pernas de
Raul. implorava, com os olhos cheios de l��grimas.
��� Raul, n��o me olhe dessa maneira. Eu n��o te��
nho culpa de trazer na alma esse grande amor que ��
somente seu. N��o me deixe, por Deus. N��o sei como
viverei sem voc��.
��� 1 2 8 ���
��� N��o invoque Deus nessa s��rdida conversa, dou-
tor.
Raul sentia as pernas estarem cada vez mais aper-
t a d a s . L u t a v a a g a r r a n d o os cabelos grisalhos e sacudin��
do a cabe��a do j u i z com u m a for��a que o diabo lhe em��
prestava. Mas de n a d a a d i a n t a v a .
��� Deus f��z nascer em meu cora����o esse amor irre-
prim��vel, por isso Deus deve estar em n��s, Raul.
��� Largue-me, seu desprez��vel. Seu velho nojento.
��� S�� depois de me prometer n��o me deixar. Agora
seus solu��os enchiam tudo. Meu Deus! Que terr��vel ��
esse amor!
Raul deu-lhe u m a j o e l h a d a que o f��z perder o equi��
l��brio e estender-se no ch��o. Com um gemido surdo,
��le f��z men����o de lan��ar-se n o v a m e n t e aos seus p��s, m a s
Raul j�� havia aberto a porta e descia as escadas, cor��
rendo e com a voz do j u i z a persegu��-lo.
��� Oh! N��o me a b a n d o n e ! N��o me a b a n d o n e !
��� 129 ���
XIV
Compre uma rosa, doto
Raul desceu do ��nibus da Pra��a do Correio. Ainda
n��o conhecia a pra��a. Andou pelas ruas, chegando at��
a Pra��a da Rep��blica, ao pequeno lago. D e b r u �� a n d o -
se na cerquinha de ferro que ladeia a pequena ponte,
ficou olhando os peixes vermelhos indo e vindo na �� g u a
esverdeada. Minutos depois recome��ou a andar. Sen��
tou-se em um banco, sob u m a das frondosas ��rvores e,
atrav��s de seus galhos, ficou olhando os altos edif��cios
que c i r c u n d a v a m a pra��a, abra��ando-se em seu seio
u m a mescla de seres pobremente vestidos que, cheios de
a d m i r a �� �� o , olhavam para Raul, bem vestido e lindo co��
mo Apolo.
Olhou o rel��gio. Vinte e duas horas.
��� Puxa, n��o pensei ser t��o tarde, pensou. Le��
vantou-se, deu mais alguns passos. Agora estava de��
fronte ao magn��fico Edif��cio It��lia.
��� L�� de cima se avista toda a cidade de S��o
Paulo. �� uma m a r a v i l h a ! Vamos, benzinho, j a n t a r l��
em cima. Voc�� me m a n d o u escolher o lugar que mais
me agradasse, n��o foi, meu bem? Raul ficou olhando
o casal que se perdia naquele m o n t e de carros, atraves��
sando a Avenida Ipiranga. Aonde ir?
Olhou para o alto e os an��ncios luminosos piscando
e a p r e s e n t a n d o esse ou aquele produto. Atravessou a
Avenida Ipiranga e foi a n d a n d o pela rua S��o Lu��s. O
neon indicou-lhe o Cine Metr��pole.
��� 131 ���
O vagalume indicou-lhe uma poltrona em uma das
�� l t i m a s fileiras. Estava cansado! Sem olhar para o
filme, ficou r e l e m b r a n d o tudo o que lhe acontecera
naquele dia. N��o pensara estar com o esp��rito t��o
a l q u e b r a d o e com o corpo t��o sem energia.
Acordou com um a m a r g o r na boca e com o est����
mago doendo de fome. Saiu para a galeria, j�� quase
deserta ��quela hora. Duas horas. Apalpou os bolsos.
Nem um cruzeiro. Relanceou o olhar pela galeria e
levou um susto, q u a n d o foi rodeado por um bando
de meninos sujos e m a l t r a p i l h o s que lhe estendiam as
pequenas m��os oferecendo um bot��o de rosas.
��� Mo��o, compre uma rosa. ��le j�� vendeu pr��
mo��a bonita. Compra a m i n h a , v��, mo��o.
��� Compra a minha, doto, �� mais b a r a t a , �� s�� mir
cruzero.
Era u m a m e n i n i n h a que falava.
��� Eles j�� t��m dinheiro. Est��o m e n t i n d o . Com��
pra a m i n h a pr�� ajuda a m��e, v��, dot��.
Raul sentiu u m a dor no cora����o e correr um frio
pela espinha. Mas seria assim em todos os lugares?
Deus! At�� na cidade que mais cresce no m u n d o ? !
Apertou a cabe��a. Estaria mesmo em S��o Paulo? N��o
estaria enganado?
Afagou a cabe��a de um dos meninos.
��� N��is todo ajuda a m��e e a famia, dot��.
��� E n t �� o voc�� vende flores p a r a ajudar sua m �� e .
Os meninos falavam a um s�� tempo.
��� Eu vendo fr�� desde os seis anos, agora tenho
nove. Sabe, dot��, tenho um outro irm��o de q u a t r o anos
que vende dropes l�� na Avenida Paulista. �� duro vende
dropes, mas a m��e t�� doente.
Raul estava gelado mas n��o sabia o que fazer.
Nos seus belos l��bios perpassou um leve sorriso.
��� E se eu lhes disser que estou na m e s m a situa����o
que voc��s e n��o tenho nem uma flor para vender?
��� 132 ���
Naqueles rostinhos tristes, encovados pela fome,
nasceu um ar de surpresa. Mas logo sa��ram correndo
para cercar um casal.
��� Compra uma rosa pr�� mo��a bonita. V��, seu
dot��. Ela gosta de fr��, n��o ��, mo��a?
O casal passou indiferente. Raul apertou a correia
do rel��gio. O rel��gio! Sim, poderia vender o rel��gio.
Tirou o rel��gio, e com a manga do palet��, come��ou a
lhe dar uma lustradinha.
��� Quanto o senhor quer pelo rel��gio?
Raul olhou assustado para o homem que estava
�� sua frente.
��� Como o senhor sabe que eu quero vender o . . .
��� Ora. O homem ficou pensativo alguns minutos
e depois, olhando para Raul, perguntou:
��� Voc�� n��o �� de S��o Paulo?
��� Sim. Quero dizer, eu nunca tinha vindo para
esse lado da cidade. Conhe��o o lado de l�� do Viaduto
do Ch��, a Pra��a da S��, a . . .
O homem n��o o deixou terminar.
��� N��o entendo. Voc�� �� de S��o Paulo e n��o
conhece a cidade? Onde diabo estava voc��?
��� Eu fui criado no Abrigo de Menores desde peque-
nino. Fui solto hoje.
��� Cuidado com mentiras, mo��o, eu n��o sou tira,
n��o. Fale a verdade. Ent��o voc�� quer fazer-me acre��
ditar que os asilados andam com essas roupas finas e
com r e l �� g i o s . . . �� de ouro, n��o ��?
��� Sim.
��� Bem, quem voc�� �� n��o interessa. Quanto quer
pelo rel��gio?
��� Bem, n��o sei. E u . . .
��� Roubou?
133
��� Como o senhor se a t r e v e . . .
��� Bem, meu rapaz, n��o vamos prolongar a conver��
sa. Daqui h�� pouco os tiras passam, a�� �� cana mesmo.
Vamos l��, deixe ver. AH��s, eu quero examinar o rel��gio,
poique aqui nesta galeria s�� d�� vigarista. Se voc�� n��o
sabe, deve ficar sabendo que a Galeria Metr��pole �� o
local que mais* d�� e.icrenca. Aqui se trafica entorpe��
centes, vende-se artigos roubados e c o n t r a b a n d e a d o s .
Est�� cheia de p r o s t i t u t a s e pederastas.
��� �� de ouro, mesmo. Olhe, leve l�� cem cruzeiros
novos e d�� o fora.
O homem j�� ia longe quando Raul divisou nova��
mente os meninos das rosas, agora sentados na cal��ada,
uns bem j u n t o dos outros, t i r i t a n d o de frio.
Foi at�� l��.
��� Por que voc��s ficam sentados a��, assim, t��o
j u n t i n h o s ?
��� A gente tem frio.
��� Por que voc��s n��o v��o para casa?
Raul viu naqueles rostinhos erguidos, onde a can��
dura da inf��ncia tinha morrido e onde, em seu lugar,
havia sulcos de cansa��o.
��� N��is num tem casa.
��� Eu moro com a m��e, na favela l�� da Avenida
Pacaembu O senhor sabe onde ��? �� longe pr�� burro.
Das veiz eu chego l�� e j�� �� de m a n h �� clarinho.
��� Eu durmo ali, mo��o, debaixo daquela ��rvore.
Ali perto da parede da Biblioteca Municipal.
��� Por que voc�� dorme ali? N��o tem fam��lia?
��� Pruqu�� qu�� sabe? S�� a pol��cia que fais per��
g u n t a .
Raul sorriu.
��� N��o, n��o. �� que eu os acho t��o pequenos, t��o
crian��as para a n d a r e m assim t��o a b a n d o n a d o s .
��� Das ve:s o j u �� s de menor pega n��is. Mas eu
j�� fugi. L�� �� ruim pr�� cachorro. Quando eu fazer
doze anos vou n u m a televis��o pedir pr�� algu��m pega
eu, pr�� eu estudar. Eu ainda n u m sei l�� purqu�� n��o
tenho pai nem m��e. D u r m o na Esta����o da Luz.
��� E quem d�� essas rosas para voc��s venderem?
��� O senhor n��o �� j u i z de menor, ��?
��� N��o, j�� disse. Eu t a m b �� m sou jovem abando��
n a d o . T a m b �� m n��o tenho ningu��m. Sou igual a voc��s,
s�� que mais velho. Tenho dezenove anos.
��� Ah! Assim t�� bem.
��� Olha, nois compra as fr�� de uma mui��, por
q u i n h e n t a s p r a t a s e vendi por mir.
Um g r u p i n h o de pessoas aparece na esquina e os
menores saem n u m a carreira desenfreada.
��� Mo��o, compra rosa pr�� mo��a bonita. Compra,
v��, ela t�� q u e r e n o . . .
��� N��o.
Os garotos olham para os lados com um sorrisinho
d e s a n i m a d o .
L�� vem outro casal.
L a r g a n d o aquele e, como se houvesse surgido um
salvador, correm todos para o outro poss��vel comprador.
N��o conseguindo vender, v��o seguindo devagar o
casal. At�� que o mo��o j o g a fora qualquer coisa e os
meninos caem em cima e um sai vitorioso com o toco
do cigarro.
��� Puxa! Desta vez eu peguei a bituca.
Vai fumando com as rosas na m��o, at�� e n c o n t r a r
outro comprador. Vendo a pra��a vazia, voltam a sen��
tar-se na cal��ada.
��� Eu compro as rosas, disse alto Raul.
Os meninos p u l a r a m .
- 1 3 5 -
��� Compra a m i n h a .
��� N��o, a m i n h a .
��� Ah! mo��o, preciso vende tudo, sen��o, quando
chego em casa vai t��.
��� Compro todas as rosas.
Num m i n u t o os garotos desapareceram c o n t a n d o o
dinheiro todo a m a s s a d o que t i r a r a m do bolso, j u n t a n d o
o de Raul.
Numa pra��a tranq��ila, com a maioria das luzes
a p a g a d a s , um ou outro t r a n s e u n t e , Raul reuniu as
rosas e apertou-as de encontro ao peito, p e n s a n d o :
��� E existem crian��as fugindo dos abrigos de me-
nores. F u g i n d o ! Fugindo para onde, Deus m e u ? ! Se
todo S��o Paulo, todo Brasil era um vasto abrigo de
menores. Aquelas miser��veis crian��as -talvez j a m a i s
conheceram um brinquedo. Pobres garotos perambu��
lando pelas avenidas asfaltadas, t e n t a n d o algum di��
nheiro para ajudar a fam��lia ou conseguir algo para si.
O olhar de tristezr- e o semblante envelhecido pela
fome, frio c os m a u s t r a t o s daqueles pequeninos seres
s��o os mesmos que me cercaram no abrigo de menores.
��� Comprou todas as flores, heim, mo��o?
Esfuma��ando no ar aqueles rostinhos sujos, Raul
encontrou um rosto simp��tico e sorridente de um
homem bem vestido e de m a n e i r a s finas.
��� A h . . . foi sim. Comprei todas as flores. Essas
crian��as me fazem lembrar de outras centenas que
deixei h�� alguns meses.
��� O senhor �� professor de algum asilo?
��� Oh, n��o. E u . . . bem, isso n��o vem ao caso.
O homem ficou em frente a Raul, falando sem
parar.
��� �� para o senhor ver. A cidade de S��o Paulo se
h u m a n i z a . Isso ouvimos todos os dias. Mas se huma��
niza sob o ritmo dos tratores e concreto, bate-estacas
e escavadeiras. Veja l�� na Pra��a Roosevelt, ou mais
- 136 ���
certo, veja a cidade inteira vestida de monte de terra,
removida por milhares de homens. Respira-se a poeira
.de cimento e ouve-se vinte e quatro horas o titilar de
ferro. �� a cidade que cresce e se humaniza.
Luxuosos carros passam por viadutos rec��m-cons-
tru��dos. Ruas ganham roupagem nova de asfalto cin��
zento. O senhor est�� aqui hoje olhando aquela cons��
tru����o velha. Olhe ali, naquele lado. Daqui h�� um
m��s o senhor se assusta pois, naquele lugar, estar�� a
constru����o de um edif��cio de dezenas de andares. As
pra��as s��o modeladas vertiginosamente. Muitas ��rvo��
res replantadas, descansam resplandescentes pela luz de
merc��rio. A cidade se humaniza, mo��o. Mas, a cada
passo nessa constante e iluminada cidade, o senhor
trope��a em uma crian��a esqu��lida e de olhos sem o
brilho da inf��ncia, sem a inoc��ncia da idade.
��� Compra uma rosa, mo��o. T�� barato pr��
burro! Compra um dropes! Olhe o mentex. Compra,
mo��o, �� pr�� ajuda!
O vento da madrugada j�� come��a a despontar.
Vai levando longe dos olhos de Raul, o homem bem
vestido e simp��tico. Sozinho, ��le aperta mais e mais
as rosas, e com os olhos cheios de l��grimas vai andando
devagar. Vagou pelas ruas silenciosas e indiferentes,
at�� que chegou �� rua dos Protestantes.
Olhou assustado para as mo��as paradas nas cal��a��
das, chamando os homens. Uma aproximou-se dele.
��� Al��, lindo! Quer fazer nen��? Olhos lindos,
dentes brilhantes, rosto ainda infantil. Quantos anos
teria, pensou Raul. Quinze? Dezesseis? Olhe, como ��
madrugada, eu deixo por cinco pratas. V��, vamos,
mo��o. Est�� barato pr�� burro.
Raul sentiu uma tonteira. Aquela voz parecia a
da menininha l�� da Galeria Metr��pole.
��� Compra uma rosa, dot��. Compra, t�� barato pr��
burro.
Quando se recuperou, viu as mo��as correndo e gri��
tando: olha a pol��cia!
- 137 ���
Olhou para procurar a mocinha, quando sentiu
uma m��o pesada como c h u m b o em seu ombro.
��� Documentos.
Virou-se. Sentiu o sangue gelando nas veias.
��� Pol��cia. Vamos, ande, palerma. Se n��o tiver
documentos, cana.
Os l��bios secos e descorados iam se despregando,
quando foi e m p u r r a d o p a r a d e n t r o do carro de m��sos,
j�� superlotado. Ap��s alguns m i n u t o s , chega v.. ao
Recolhimento Tiradentes.
O corredor estava cheio de homens que, num _m-
p u r r a - e m p u r r a , esperavam a vez de dar o nome para o
recolha .
Cansado e emocionado com todo o acontecido nas
�� l t i m a s horas, Raul p e r m a n e c i a num canto, quando o
g u a r d a o apontou para o delegado.
��� Olhe ali. N��o t i n h a documento. Deve ser
rufi��o ou veado.
Raul sentiu qualquer coisa bulir, a p e r t a r dentro de
seu c��rebro. Sentiu um tremor esquisito no est��mago
vazio e come��ou a apertar mais e mais as rosas entre
as m��os, at�� sentir os espinhos lhe r a s g a r e m a pele.
Seus olhos azuis se revestiram de ��dio e se fixaram
na g a r g a n t a a r r o c h e a d a e e n r u g a d a do policial. Jogou
as flores e come��ou a e m p u r r a r , at�� chegar bem perto
daquela suja g a r g a n t a . Levantou as m��os ensanguen��
tadas e sua voz cobriu o alarido dos detidos.
��� Quem �� veado? Fale, filho da puta.
Quatro bra��os o s e g u r a r a m .
O delegado, com as m a n g a s da camisa arrega��
��adas, encarou o jovem e p e r g u n t o u :
��� Seu nome.
A voz do delegado era calma.
��� Quero aju��ar, mo��o. Sou o delegado Wilson Ri-
chetti. J�� ouviu falar a meu respeito?
A fisionomia de Raul clareou e, meio e s p a n t a d o ,
p e r g u n t o u :
��� O que foi diretor l�� na Deten����o?
��� Sim, largue-o. Raul esfregou o est��mago. En��
t��o j�� esteve preso?
��� J��.
��� Qual crime?
��� Assassinato.
O delegado baixou os olhos.
��� Por que?
��� Queriam fazer-me veado. Olhou t a m b �� m para
o guarda, que t a m b �� m parecia penalizado com a decla��
ra����o do belo jovem.
��� Quantos anos pegou?
��� Absolvido.
��� Como �� seu nome?
��� Raul.
��� Raul?
��� Da Silva.
��� Quantos anos?
��� Dezenove.
��� Tem documentos?
��� Meu registro est�� l�� no Abrigo de Menores. O
delegado tremeu. Passando as m��os pela fronte, per��
guntou :
��� Qual j u i z o absolveu?
��� O dr. Paulo de Albuquerque, que pretendeu aju��
dar-me, mas sempre com inten����es ocultas.
��� O que tem o dr. Paulo com isso?
��� ��le quer ajudar.
139
O jovem, belo e din��mico delegado paulista obser-
vava-o em longo sil��ncio, quebrado pela voz de um
policial.
��� Desce, dr. Richetti? Desce para a carceragem?
��� N��o, ��le j�� explicou e eu sei ser verdade. Muitos
meninos do Juizado de Menores levam algum tempo
para ter os documentos em ordem. Leve-o para a
minha sala e telefone para o juiz.
Raul ficou branco. Rever o juiz? N��o. Preferia
a carceragem.
F��z men����o de descer com os outros detidos, mas
o guarda puxou-o pelo bra��o.
��� Por aqui, rapaz.
Foi um advogado amigo do juiz, chamado dr. Ant����
nio, a quem Raul j�� conhecia, que apareceu depois de
algum tempo e apresentou o "habeas corpus".
Agora andavam os dois, ombro a ombro, pela Ave��
nida Tiradentes.
��� Raul, voc�� me �� mais do que um conhecido. Di��
gamos, um amigo. Por isso gostaria de lhe dar alguns
conselhos.
��� Dr., e u . . .
��� Calma, meu r a p a z . . . deixe explicar-lhe o que
desejo. Depois voc�� fala. Vamos para o meu aparta-
mento. �� ali na Avenida S��o Jo��o. Voc�� comer�� algo
e conversaremos. S�� lhe pe��o deixar-me mostrar-lhe
que, realmente, sou seu amigo. Voc��, sem amigos, n��o
faz id��ia do que possa ser a vida numa cidade grande
como S��o Paulo. Voc�� acabou de conhecer a cidade e
foi detido. Muita gente n��o compreende direito o que
sucede na vida de rapazes na plena flor da idade, que
descambam para o crime, roubando ou matando. Voc��
precisa saber do que se livrou. Sei que teve uma inf��n��
cia terr��vel. O desabrochar de sua mocidade foi envol��
vido em sangue. Mas tudo isso �� passado. Agora voc��
precisa de algu��m que o proteja. Mas esta �� outra
conversa. Aqui �� o pr��dio. Subamos.
140
A grande sala do apartamento terminava em portas
envidradas, ricamente acortinadas de rosa p��lido, caindo
no aveludado tapete rosa mais escuro. M��veis rosa e
outros azuis, todos encrustados de dourado, em bela
decora����o. Sentado no sof��, enquanto o dr. Antonio
preparava um lanche, Raul perguntou:
��� Voc�� �� casado?
��� N��o.
��� Um homem respeit��vel deve ser casado, n��o,
perguntou Raul.
��� Eu sou um homem respeit��vel, respondeu o
advogado, pondo �� mostra os dentes perfeitos e brancos
num sorriso que real��ava seus belos e faiscantes olhos
castanhos. O dr. Ant��nio, em seguida, depositou o
lanche sobre a mesa e sentou-se em frente a Raul.
��� Sou um homem respeitado em todo o Brasil,
qui���� no Exterior. Sou tamb��m muito rico. Riqu��s��
simo. E u . . .
Raul sorriu.
��� �� para falar sobre isso que o senhor convidou-me
para vir aqui?
��� Isso que estou lhe contando tem rela����o com o
assunto a ser abordado, meu jovem e ing��nuo rapaz.
Mas, vamos pelo come��o. Voc�� sabe que foi o juiz quem
pediu para solt��-lo, n��o?
Raul, que ia colocando um peda��o de p��o na boca,
colocou-o de volta no prato e, apoiando as m��os na
beirada da mesa, encarou o dr. Antonio com o rosto
branco, cheio de ira.
��� Ouvi o delegado mandar um funcion��rio tele��
fonar para ��le. Nova express��o de raiva marcou o
rosto do jovem, quando resolveu perguntar:
��� Foi o juiz quem pediu para o senhor trazer-me
aqui?
��� Sim, Raul. ��le pediu-me para conversar com
voc�� e mostrar-lhe os perigos em que voc�� poderia cair.
��le o q u e r . . .
141
��� Se for para falar nele, eu me retiro.
��� Voc�� prometeu ouvir-me.
��� Mas n��o a respeito dele.
��� ��le quer ser seu protetor.
��� Eu n��o quero protetor que quer comer o meu cu!
A cadeira arrastou-se e o mo��o viu o dr. Antonio
crescer �� sua frente e, ent��o, reparou o advogado a
olh��-lo com uma express��o de piedade.
��� Pobre m e n i n o ! Se voc�� soubesse de onde eu o
tirei hoje!
��� Ora, tirou-me do Recolhimento Tiradentes.
��� N��o. Eu o tirei do primeiro passo para voc��
n��o cair com qualquer um. Dentro da cadeia qualquer
um o possuiria.
Leu uma interroga����o a s s u s t a d a no olhar do mo��o.
��� Vamos, termine o seu lance. Prometo n��o lhe
falar do juiz. Os ru��dos das cadeiras e o titilar de
lou��as voltou a encher o a p a r t a m e n t o .
��� Voc��, meu rapaz, n��o sei se compreendeu, mas
s�� lhe digo uma coisa. Se voc�� f��r preso mais algu-
ma vez, n��o poder�� salvar-se da desonra. Jovens lin��
dos, como voc��, s��o o prato predileto de todos os presos.
Ouvi mesmo dizer que, e n q u a n t o voc�� ficou na deten����o,
precisou ficar em cela separada, pois os criminosos fi��
caram loucos para agarr��-lo e comerem o que voc�� faz
t a n t a quest��o de. . .
Raul tremeu e sentiu as faces arderem. Pousou
seus olhos firmes nos do advogado.
��� Eles me puseram em cela separada porque qui��
seram. Pois duvido que qualquer preso, por mais va��
lent��o que fosse, conseguiria subjugar-me. Eu fa��o e
farei quest��o de n��o ser pederasta. Ningu��m vai obri��
gar-me a dar o meu rabo. Se o senhor me trouxe aqui
para aconselhar-me a e n t r e g a r - m e ao juiz, est�� redon��
d a m e n t e e n g a n a d o . ��le n��o me ver�� mais. Tenho
nojo, asco, de velhos que s�� se satisfazem com o cu
142
de outros h o m e n s . Hoje o senhor tirou-me de l�� por-
que eu estava sem documentos. Isso n��o �� crime a l g u m .
��� Mas voc�� j�� teve um crime.
��� E o que �� que tem?
��� A pol��cia, n��o o deixar�� mais em paz.
��� Por que? Ora essa! Constatou-se que eu era
menor. Estou vivo e limpo para com a sociedade. Ago��
ra s�� quero t r a b a l h a r e ser um homem h o n r a d o . N��o
posso ser honrado com o cu aberto por outro h o m e m .
��� Mas n��o precisa outros h o m e n s abrirem, meu
pobre rapaz ��� o meu foi aberto no p a u - d e - a r a r a .
Raul sentiu o cora����o p a r a n d o . Ia falar, mas sua
voz n��o saiu.
��� N��o a d i a n t a ficar assim Raul. Eu sou um pe��
derasta mas n��o quero nada com voc��. N��o t-;nha
medo. Somente quero ser seu amigo. A gciM iem
de ter um amigo, veado ou n��o. A amizade n��o tem
sexo. Eu, naquele dia, se tivesse um amigo, tudo aqui��
lo n��o teria acontecido e, talvez, hoje eu seria um pobre
diabo t r a b a l h a n d o em qualquer servi��o bra��al. Talvez
fosse um criminoso caindo mais e mais nessa podrid��o,
que �� ser fora da lei. Voc�� n��o sabe o que �� pau-de-
arara, n��o?
��� Eu t a m b �� m n��o sabia. Naquele tarde voltava
de entregar a l g u m a s m a r m i t a s da pens��o onde traba��
lhava. T i n h a quinze anos, era alto e forte.
��� Como ia dizendo, eu era entregador de m a r m i t a .
Naquele dia vinha trazendo duas m a r m i t a s vazias, quan��
do um mo��o pediu-me para ir at�� o Banco, que estava
bem pr��ximo de n��s, p a r a entregar um bilhetinho ao
caixa.
��� S�� tive tempo de p��r as m a r m i t a s no ch��o e
dar o bilhete ao caixa, quando ouvi:
��� N��o se mexam ou m o r r e m . . .
��� Virei-me e vi tr��s homens e m p u n h a n d o a r m a s .
Reconheci num deles o do bilhetinho. M a n d a r a m to��
dos os funcion��rios e cu para urna sala dos fundos e
��� 143 ���
nos trancaram. Quando fomos libertados, vi que as
marmitas estavam em cima do balc��o. Apanhei-as e
fiquei do lado de fora do Banco, j u n t o a um amontoado
de gente, vendo o trabalho policial. Ouvi o barulho da
tampa da marmita que ca��ra, e algu��m gritando:
��� Pol��cia, pol��cia, um dos ladr��es est�� aqui!
Fui preso.
��� Vamos, "entrega", garoto,��� dizia-me um investi-
gador, numa sala do DI. Ah! �� teimoso? N��s temos
um m��todo eficaz para fazer ladr��o falar. Agarrou-me
pelo bra��o e gritou, com toda a for��a em meu ouvido:
��� O pau-de-arara.
Olhei para um peda��o de ferro colocado entre duas
cadeiras. Era para mim um simples peda��o de ferro,
m a s . . .
��� Vamos, vamos, tire a roupa.
��� Fiquei nu, e eles me puseram pendurado, com
as dobras dos joelhos no cano e as m��os atadas no tor��
nozelo. Depois levantaram o cano e o puseram entre
duas mesas. Eu fiquei, pendurado como um frango que
estivesse sendo assado. Mas ainda n��o sabia o que iam
fazer-me, quando um dos tiras pegou um peda��o de
borracha tipo cacet��te e virou-me.
��� Assim, cachorro. Agora que voc�� est�� com essa
bunda virada bem pra cima, vamos faz��-lo confessar.
Com toda a for��a ��le enfiou aquela borracha no meu
��nus. Gritei. Gritei. Gritei! Lembro-me que acordei
numa cela e os presos todos rindo �� minha volta, co-
mentando :
��� O cu est�� todo ensanguentado. Olhe, garoto.
Agora n��s tamb��m vamos lhe furar. Voc�� tem uma
bunda bem legal, hein? �� gordinha pr�� xux��. Senti
bra��os me levantando e me levando para algum lugar.
��� Coloque-o naquela cama, vamos. �� uma hemor��
ragia. Precisamos andar logo, sen��o o mo��o morre.
Fiquei na enfermaria por uns dias, at�� que recebi
a visita de um tira.
- 1 4 4 ���
��� Olhe, voc�� est�� livre. Sabemos que �� inocente,
porque pegamos os ladr��es. Eles confessaram que es��
conderam algum dinheiro na m a r m i t a , mas quando
viram que n��o ia dar certo, l a r g a r a m - n a em cima do
balc��o.
Um sil��ncio profundo encheu a sala. O advogado
olhou com surpresa para Raul, pois o seu rosto parecia
c o m p l e t a m e n t e modificado. Dir-se-ia que todo o ��dio
do m u n d o tinha ali se concentrado, mas isso foi s�� por
um m o m e n t o . Logo verificou que um sorriso foi assi��
nalando os cantos da boca e se espalhou por todo o
rosto e foi crescendo, transformando-se em uma garga��
lhada nervosa, cortada b r u s c a m e n t e por uma argu��
m e n t a �� �� o .
��� Pau-de-arara! Ora, doutor. Eu sou homem, sou
macho, n i n g u �� m vai me p��r no pau-de-arara. Ali��s,
por podem, mas me enfiar uma b o r r a c h a no meu cu!
Ora, ora, isso j a m a i s . Deu um m u r r o . n a mesa, fazendo
a lou��a pular e repetiu:
��� J a m a i s , j a m a i s . O advogado esperou que se
acalmasse e continuou.
��� O investigador a c o m p a n h o u - m e at�� o elevador.
Quando estava a n d a n d o pela av. Ipiranga, senti uma
moleza pelo corpo e uma dor aguda nas pernas. J�� me
sentia no ch��o, quando bra��os me a m p a r a r a m .
Era uma mo��a m o r e n a e simp��tica que levou-me
para sua casa.
Quando soube ser um s�� no m u n d o e haver sido
injustamente preso, telefonou para algu��m, voltando
logo em seguida p a r a j u n t o de mim e dizendo-me:
��� Voc�� vai ter um rico protetor!
O protetor era um homem que t i n h a uns t r i n t a
anos, m��dico, riqu��ssimo. Levou-me para sua fazenda.
Eu n��o sabia naquele tempo haver homens que gosta��
vam de h o m e n s .
��� Por isso, quando meu protetor me abra��ava e
alisava meus cabelos, ou ficava com m i n h a s m��os en��
tre as suas, eu achava n a t u r a l e at�� me sentia orgu-
��� 1 4 5 ���
lhoso de ter um amigo. Voc�� sabe, com quinze anos,
n��o se tem no����o de que, q u a n d o se �� sozinho no mun��
do, tem-se de construir a pr��pria vida. Eu s�� sentia,
dia a dia, a cidade parecer mais solit��ria. Sem u m a
distra����o a oferecer a meninos pobres ou gente pobre,
como eu. T r a b a l h a v a de sol a sol e �� noite ficava na
esquina, encostado num poste, com outros mocinhos,
olhando as pessoas passarem. Aos domingos e feriados,
depois de um cineminha, ficava a n d a n d o , sem r u m o ,
at�� que ca��a a noite, indo ficar n o v a m e n t e encostado
no poste. Pensei que todos tivessem aquela vida. Mas
n��o sei quem me disse que existiam para meninos ricos,
clubes, piscinas, carros, praias, festas, col��gios, viagens,
pr��tica de esportes etc. E n t �� o , e n q u a n t o ficava encos��
tado no poste, passei a pensar em ser rico, m u i t o rico,
mas n u n c a pensei que seria daquela forma.
��� N��o me arrependo, pois fiz o que toda a alta
sociedade a d m i r a . Vesti-me de ouro. Hoje a sociedade
n��o quer saber como. Quer-me somente presente em
seu meio, como advogado i n t e r n a c i o n a l m e n t e famoso.
O advogado alto, m o r e n o e bonito, que tem como hobby
a cole����o de carros e, como distra����o, fazer cruzeiros
no seu iate ou pilotar seu avi��o pelos q u a t r o cantos do
m u n d o . T a m b �� m n��o interessa �� nossa sociedade estar
o meu traseiro ardendo, quando fico elegant��ssimo, num
esmoque enfeitado, em suas festas. Tenho moral? N��o
tenho moral? Naquela tarde quente de ver��o, depois de
estar uns meses na fazenda n��o pensava em moral,
quando me retorcia debaixo de um homem, sem saber
que isso era profundamente conden��vel. Nunca apren��
di que devia afastar-me dos m a r c a d o s pelo destino. Na��
quele tempo s�� u m a coisa interessava. N��o estar mais
s��. N��o precisava mais ficar p e r a m b u l a n d o pelas ruas
da g r a n d e cidade sentindo crescer mais e mais o meu
isolamento.
��� Agora tinha um amigo que pensava em mim e
me fazia viver com o m��ximo conforto.
��� T a m b �� m n��o pensava o q u a n t o de horr��vel t i n h a
aquela posi����o; quando sentia o peso do amigo a me
furar no meio das n��degas, e com a m��o a acariciar��
me o p��nis. N��o raciocinava com essas coisas gostosas
que meu amigo me fazia sentir eram escandalosas.
146
��� Quando comecei a frequentar um dos melhores
col��gios de S��o Paulo, compreendi que, at�� ent��o, tinha
vivido uma vida secreta, mas n��o para as outras pes��
soas. No come��o senti-me desprezado, sendo tamb��m
motivo de chacota dos alunos. Mas, quando comecei
a aparecer guiando um luxuoso carro e gastando muito
com festinhas nas mans��es de meu protetor, com muitas
bebidas e garotas, todos tornaram-se meus amigos.
N��o sei se me fizeram ou se nasci pederasta, s�� sei que
naquelas festinhas de col��gio eu apenas reparava nas
garotas, no modo delas se trajarem e sentia uma inveja
tremenda de n��o poder ter cabelos ca��dos nas costas,
usar vestidos coloridos e de n��o ter uma vagina polpuda
e bem cabeluda para poder oferecer ao meu protetor.
Mas depois compreendi que se fosse igual ��s mocinhas,
��le jamais me amaria.
��� Foi meu protetor que me explicou sermos dife��
rentes. Ainda me lembro daquela tarde, quando voltei
do col��gio com um vazio no est��mago e um tremor pelo
corpo. Sentei-me na sala �� espera do meu protetor e,
mal ��le abriu a porta, atirei-me em seus bra��cs, solu��
��ando. ��le apertou-me com for��a e senti que seu co��
ra����o batia assustadoramente.
��� Que foi, meu amor? Aconteceu alguma coisa
grave? Est�� doente? Eu s�� fazia balan��ar a cabe��a e
apertar-me mais e mais a ��le. Beijava-me os cabelos,
os olhos, depois sugou minha boca com loucura. Tal��
vez, at�� ent��o, nunca me parecera como eu me sentia
feliz, sob aqueles l��bios quentes j u n t o ao meu, aquele
peito arfando e aquele sexo tremendo, endurecido, gri��
tando por mim. Quando ��le afrouxou os bra��os, eu
me encolhi todo e implorei que ��le me levasse para a
cama.
��� Ent��o n��o �� nada de grave, ca��oou.
��� N��o sei.
��� N��o sabe?
��� Eu n��o entendo nada. Quero lhe explicar de��
pois. A g o r a . . .
��� A g o r a ? . . .
��� Agora quero voc��.
��� 147 ���
��� Oh, meu m a l a n d r i n h o ! . . .
��� Aquela tarde tive certeza de que pertencia com��
pletamente aos homens, pois eu ardia, solu��ava e gri��
tava, enquanto ��le lutava furiosamente com aquele fer-
ro grosso, machucando-me as entranhas. Ficamos assim
furiosos por longo tempo, sem querermos que termi��
nasse. Quando de sua garganta escaparam alguns ru-
gidos animalescos e sua m��o se abria e fechava sobre
meu p��nis, olhei mais e mais meu trazeiro contra seu
corpo molhado. ��le tremeu e gritou longamente o meu
nome.
��� Depois virei-me para ��le e, apertado naqueles
bra��os protetores, ficamos silenciosos, arfando devagar,
bem devagarinho. O som de sua respira����o j�� era bem
calma, quando me falou.
��� Ent��o, meu bem, conte agora porque estava
chorando.
��� �� que eu n��o topo essas chupadas pelos cantos.
��� Chupadas?
��� Sim, quase todos os dias, algum aluno se es-
conde e, quando eu passo, me puxa por um bra��o, tira
o neg��cio, querendo obrigar-me a chup��-lo.
Meu protetor pulou da cama.
��� E voc��- chupa?
��� N��o, mas eles me chamam de veadinho. Afas��
tam-se sempre quando chego perto. Eu n��o compreen��
do, nunca os maltratei, nunca fiz o que quer que fosse
para mago��-los e para me desprezarem.
��� Voc�� faz tudo para ser desprezado, meu amor.
��� Eu?!!!
��� Sim, querido. Seus gestos, sua voz e seu olhar
de desejo. Tudo isso, por mais indecifr��veis que sejam
para voc��. Est�� escrito em tudo e por isso �� condena��
do aos olhos de todo o mundo.
��� Mas, afinal, por que sou diferente?
��� Porque tudo l�� no seu ��ntimo �� feminino. Voc��
tinha um medo de se revelar. Mas me encontrou e
agora nada mais �� segredo. Voc�� �� minha mulherzinha.
148
Levantei-me e olhei para o meu corpo. A ��nica
coisa que eu t i n h a de homem estava l�� p e n d u r a d a , mur-
cha e cinzenta. S�� pulsava, esticava e latejava com o
refor��o de um homem.
M i n h a m u l h e r z i n h a ! Aquela frase ficou clara no
meu c��rebro. Penso mesmo ser isso o que eu esperava
com ansiedade. Que algum homem me chamasse dessa
forma. Naqueles m i n u t o s em que fiquei de p��, diante
do meu protetor, me vi pequeno, com nove ou dez anos.
Sempre diante dos espelhos, com algum vestido que
encontrava, e u s a n d o m a q u i l a g e m . Meu maior prazer
era passar batom nos l��bios e falar em sussurros para
a m i n h a pr��pria imagem, imitando m u l h e r e s .
��� Mulher. Como era confort��vel ser c h a m a d o mu-
lher! Fui para j u n t o de meu amigo e encostei a cabe��a
em seu peito. Ele rodeou-me cs ombros com o bra��o e
apertou-me contra si. Levantei a cabe��a e meus l��bios
tr��mulos c h e g a r a m aos seus, quentes e macios. Foi um
beijo longo, onde nossas l��nguas se cruzaram. Deba��
tiam-se num desejo diab��lico. O que havia de ins��lito
naquele beijo? Havia qualquer coisa, at�� ent��o colada
dentro de mim. Algo inexplim��vel, irrealizado. Era esse
algo que ainda n��o t i n h a atingido os u m b r a i s de
m i n h a i m a g i n a �� �� o . Era como um sol caindo dentro de
m i n h a alma, a r r e b e n t a n d o , j o g a n d o fagulhas douradas
por todo meu ser.
��� Eu beijava me sentindo mulher. Eu, por dentro,
era m u l h e r . Mulher. Mulher!
��� Desde esse dia, senti que n��o poderia mais viver
longe do cheiro e do contato terr��vel do corpo dos
h o m e n s .
Raul, com a cabe��a baixa, batia a colherinha no
p r a t o . Era o ��nico ru��do que se ouvia, at�� que a voz
do dr. Antonio se levantou n o v a m e n t e .
��� Estudei, me formei, adquiri fama, debaixo do
corpo do meu protetor. Morreu h�� cinco anos, legando��
me sua incalcul��vel fortuna.
��� Sou pederasta, Raul, mas pederasta milion��rio.
Querido e bajulado por todos. Curvo-me s�� para ser
p e n e t r a d o , porque, de resto, ando de cabe��a alta, ereto
e sorridente.
149
Dos l��bios brancos de Raul sa��ram sons rouque-
nhos mas o advogado entendeu perfeitamente.
��� Asqueroso. Asqueroso. Continuou batendo com
a colherinha no prato. Ele queria levantar-se, andar,
descer pelo elevador e sair correndo pelas ruas. Sim,
correr pela av. S��o Jo��o. Correr. Correr. Mas, por
mais que corresse, sempre estaria com o c��rebro marca��
do por aquela s��rdida est��ria que acabava de sabei, em
um luxuoso a p a r t a m e n t o da av. S��o Jo��o. Pobre Raul!
Se ��le soubesse q u a n t a s avenidas, pra��as, viadutos, ruas,
teria de correr para n��o ser despeda��ado!
��� N��o sou asqueroso, meu amigo. Voc�� mesmo
agora vai entrar nessa cidade de cora����o de ferro e, em
cada passo, ir�� encontrar um anormal, ou seja, um pe��
derasta t e n t a n d o convenc��-lo a fazer o neg��cio com
ele. E n c o n t r a r �� pederastas de todos os tipos. H�� os
que voc�� e n c o n t r a r �� em cinemas. Eles v��m com a m��o
de leve, bem de leve, passando pelas suas coxas, at�� en��
contrarem o que buscam. ��s vezes o homem macho,
assim como voc��, diz estar t��o distra��do e t��o "atrasa-
do" que, i n v o l u n t a r i a m e n t e , deixa o p��nis crescer e en��
durecer ao contato da m��o profissional. Quando sen��
tem o ocorrido, revoltam-se e d��o um safan��o no suave
sujeitinho. H�� os que voc�� vai encontrar na pra��a da
Rep��blica e tamb��m o vigarista. Nessa pra��a os vea��
dos proliferam. T a n t o , que a pol��cia at�� desistiu de os
prender. Tamb��m, prender para que? Muitos s��o doen��
tes. Quando presos, se recebessem t r a t a m e n t o s ade��
quado, ainda v�� l��. Dirigem-se �� gente assim:
��� Ol��, benzinho! Est�� triste! Vem comigo e o fa��
rei feliz. Alguns v��o e, depois de ficarem felizes, s��o
roubados por outros, que est��o escondidos em algum
canto do a p a r t a m e n t o . H�� tamb��m os que voc�� en��
c o n t r a r �� em festes da alta sociedade. Um desses eu
encontrei na G u a n a b a r a , em recep����o que o embaixador
ingl��s oferecia �� sua soberana. Esses est��o empertiga��
dos no traje a rigor, e dizem assim:
��� "Gentleman", gosta de arte? Logicamente todos
dizem sim. N��o �� polido deixar de gostar de arte, co��
mo t a m b �� m de m��sica, literatura, p i n t u r a etc.
��� 150 ���
��� Gosta? Ah! Ent��o precisa vir ao meu aparta-
mento um dia desses. Tenho um Eug��ne Delacroix, que
�� uma das mais belas pinturas modernas do mundo. O
meu Dante Gabriel Rossetti �� fabuloso. O senhor admi��
rar�� os dois Paul Cezzanne, ou ent��o, escolher�� entre
Vicent Van Gogh, Paul Gaugrin e muitos outros. Vou
deixar meu cart��o. Pode telefonar-me antes que man��
darei meu chofer busc��-lo enquanto esfrio uma cham��
panha.
��� Tome cuidado, meu caro, pois, se voc�� conseguir
sobreviver sem ter se entregado ou usado outro homem,
ent��o direi que voc�� �� um homem macho. Duvido mui��
to, pois um jovem bonito, pobre, sem profiss��o, anal��
fabeto e sem amigos, tem dificuldade, muita dificuldade
de ser um homem macho. Tem de cair para a pederas��
tia ou ser gigol��.
Raul esfor��ou-se para sorrir.
��� Pois eu sobreviverei. N��o sou t��o pessimista.
Mas, no fundo estava terrivelmente assustado. Se n��o
se considerasse homem, exteriorizaria naquele instante
todas as l��grimas amargas, magoando seu esp��rito.
Mostrou os dentes sem rir, e disse, levantando-se:
��� Lamento n��o me tornar pederasta, como �� seu
desejo, doutor. Agora posso ir?
��� Pense mais um pouco, Raul. O juiz est�� lou��
camente apaixonado por voc��. ��le �� muito rico e mui��
to importante. Voc�� poderia ter tudo com que os jovens
de sua idade sonham.
��� Eu s�� tenho um sonho. Caminhar com a ca��
be��a erguida. Por isso, doutor, uma vez j�� matei um
homem. Juro que n��o serei um fracassado. Sei que a
cidade desaba sobre os desamparados, esmagando-os
pela mis��ria e solid��o. Mas fa��o parte de uma multi��
d��o que tem os erguidos e os tombados. O senhor,
doutor, apesar de vestido de ouro, �� um dos tombados.
Todos os grandes que o adulam e o respeitam tamb��m
est��o, est��o no rol dos tombados, porque s��o sem moral.
Como pode um homem ser considerado, honrado, quan��
do faz o cu de buceta? Voc�� �� um aleijado sexual. Um
aleijado. Um aleijado! N��o, doutor, eu n��o o respeito
e cuspo no seu dinheiro e no daquele velho que me
quer ver ca��do.
O advogado sorria, e disse, c��nico:
��� Guarde-se, amigo e, se o seu dia chegar, tele��
fone para o juiz. ��le ficar�� felic��ssimo.
��� Prefiro mendigar, doutor e at�� roubar, r o u b a r . . .
g a l i n h a s . . .
Com as m��os nos bolsos, cabe��a levantada e sor��
rindo para todos, Raul saiu do pr��dio do advogado e
ficou passeando pela grande cidade, perdido naquele
vai-e-vem de milhares de pessoas agitadas, colorindo e
enfeitando as avenidas, ruas e pra��as. Cobertas aqui
de um sol e mais ali, envolvidas nas sombras dos gran��
des edif��cios que, como lan��as, apontavam o azul bri��
lhante do infinito. Relanceava seus belos olhos pelos
transeuntes, normalmente bem trajados, demonstrando
com coragem e decis��o que n��o se tomba �� t��a, pois a
metr��pole sempre oferece grandes oportunidades. Vi-
rava-se para as in��meras mo��as bonitas e sorria para
as crian��as. Admirava tudo da bonita e amada S��o
Paulo, bancas de jornais, cheias de revistas coloridas,
portas de bares, com grupinhos de jovens alegres e
falantes.
Em seus ouvidos penetravam os assobios de gente
chamando taxi. Esbarrava com pessoas apressadas, le��
vando pastas debaixo dos bra��os. Guardas paravam o
tr��nsito e uma leva de gente cruzava as ruas. Parava
em quase todas as vitrines, luxuosamente decoradas, com
mil e uma novidades: j��ias, pratarias, cristais, rendas,
veludos. Como era bela a cidade, com aquele aroma
de caf��, e aquela m��sica que ouvia agora. Parou em
frente a uma casa de discos e ficou rindo �� t��a, ouvin��
do os sons estrepitosos, arremessados para longe, de en��
contro ao ru��do das buzinas de milhares de carros, con��
gestionando o tr��nsito de ve��culos e pedestres.
Ficou pensando nas mentiras que o dr. Antonio que��
ria lhe incutir.
��� A cada passo voc�� dar�� de encontro com um
"fresco". Girou sobre os calcanhares, rindo.
Onde estavam os frescos, os veados, os pederastas?
��� 152 ���
Quando as luzes come��aram a se acender �� que
Raul teve consci��ncia de ser t��o tarde. Enfeiti��ado
com a maravilhosa S��o Paulo, n��o sentiu nem as dores
fundas da fome a roncar em seu est��mago.
Sentindo ainda todo o deslumbramento que lhe ia
na alma, entrou num bar, sentou-se j u n t o ao balc��o e
pediu um sandu��che.
��� Cad�� a ficha?
��� Ficha?
��� Sim, mo��o, sem ficha, n��ca.
��� Onde tem ficha?
��� Ora, quer nos gozar, hein? N��o sabe o que ��
ficha, n��? Tenho cara de bobo, tenho?
��� �� aqui, mo��o.
Foi at�� o homem da caixa registradora e, apalpando
os bolsos, ficou escarlate. Nem um tost��o! Mas como?
E o dinheiro do rel��gio? Olhou sem gra��a para o caixa.
��� N��o entendo. Ainda ontem vendi meu rel��gio.
��� Algu��m o roubou.
��� Como?!
��� Ora, algum batedor de carteira.
��� N��o, n��o �� poss��vel, hoje s�� encontrei gente
alegre.
O homem j�� n��o o ouvia, apressado, batendo o
dinheiro de outro fregu��s.
Sentiu que todos o olhavam e seu rosto mais e
mais se abrasava mas quando se virou para sair, j��
ningu��m o olhava, pois ningu��m se interessava por
problemas t��o comuns.
Saiu e parou na porta do bar, olhando para todos
os lados. Que rumo tomar? Saiu e ficou andando no
meio da multid��o apressada,- que naquele vai-e-vem
febricitante procurava o melhor caminho para chegar
a seu lar. Continuou a andar j u n t o ao povo. Parou
no Viaduto do Ch�� e debru��ou-se para olhar l�� em baixo
o movimento enervante de carros e pedestres apressados.
O Vale do Anhangaba�� coberto de autom��veis que,
em filas contr��rias, iam se movimentando lentamente.
Ali debru��ado por um instante, teve a impress��o de que
ia desmaiar. Seria a altura, ou a fome que, como uma
garra de ferro, apertava mais e mais?
Um suor gelado come��ou a aparecer em sua testa.
Estava t��o frio, por que suava? Sacudiu a cabe��a e
continuou ali parado olhando, sem vontade de se me��
xer Mexer pr�� que? Seus belos olhos passavam por
todos os lados. Edif��cios e mais edif��cios. Estava cer��
cado pela mort��fera cidade.
Agora os carros l�� emba.'xo come��avam a rarear,
e as pessoas no V i a d u t o . . . onde estaria toda aquela
gente que, alguns minutos antes, passavam atr��s dele?
Aqui e ali avistou algu��m a caminhar. Voltou-se e
recome��ou a andar sem rumo. Entrou na Bar��o de
Itapetininga, tamb��m agora tranq��ila. Havia apenas
alguns grupinhos espalhados pelas portas das galerias.
Perguntou as horas. Vinte e tr��s. Nessa hora a
pra��a da Rep��blica tamb��m estava quase vazia. Sen��
tou-se num banco. Cruzou os bra��os e se encolheu to��
do para se aquecer um pouco. Olhou para cima. Nas
grandes folhas das frondosas ��rvores sa��am fracas pia��
das de passarinhos. Buscou mais longe o alto coqueiro
que, quieto, parecia adormecido. Lembrou-se de quando
por ali passara, no cair da tarde. O velho coqueiro es��
tava invadido por alegres p��ssaros que chilreavam sem
cessar. Aonde estavam? Seriam esses que estavam en-
roscadinhos na folhagem que os cobria? N��o aguentou
ficar por muito tempo sentado, porque o frio cortava.
Levantou-se e continuou a andar, batendo com for��a os
p��s no ch��o, pois pareciam que iam endurecer. Entrou
no mit��rio p��blico e o cheio forte de urina misturado
com desinfetante f��z com que seu est��mago rodasse,
em n��useas. Por um segundo sentiu tudo vacilar em
sua frente e encostou-se firmemente �� parede. Com
muito esfor��o foi at�� a pia e, cabisbaixo, segurou o
p��nis. Enquanto olhava o jorro de urina amarelar
tudo, ouviu uma voz bem perto do seu ouvido:
��� Essa coisa t��o grande e maravilhosa que voc��
tem, benzinho, me inspira a lhe dar o dinheiro que trago.
Virou-se e deparou com um homem simplesmente
vestido, sorrindo para ��le.
Enfiou rapidamente tudo para dentro e, abotoando
as cal��as, saiu tr��pego, sentiu aumentar-lhe o mal-estar.
Jogou-se novamente num dos bancos da pra��a. O
ar frio f��-lo sentir-se melhor do est��mago, mas o frio
aumentava, cobrindo a din��mica cidade de um vapor
di��fano. Fechou os olhos e uma sonol��ncia ia de man��
sinho lhes vestindo o c��rebro. Sentiu uma m��o em
seu joelho, mas nem teve for��as para se mover. A m��o
foi subindo e agasalhou seu p��nis carinhosamente. Dei��
xou-se acariciar, enquanto fazia esfor��o para afugentar
o sono, o cansa��o e a fome. Queria abrir os olhos, mas
eles estavam dan��ando em suas ��rbitas. Quando con��
seguiu, viu a m��o fina e morena, depois o bra��o envolto
em l�� azul e depois o rosto. Era um rosto magro de
olheiras fundas. Rosto de homem. Levantou-se de um
pulo e reuniu todas as suas for��as para vibrar aquele
soco. O homem estava mais fraco do que ��le, pensou,
enquanto se afastava, deixando o pederasta ca��do.
O medo de o ter machucado levou-o a olhar para
tr��s. O jovem estava sentado no ch��o. Esfregava o
rosto e gritava:
��� Puxa, que homem! Que macho! �� desses que
eu gosto, e como �� lindo! L i n d o ! . . .
Raul apressou o passo. Pensou no que faria. Es��
tava como na noite anterior, j�� na Galeria Metr��pole,
ornamentada, com algumas pessoas. Tiritava, esfre��
gando as m��os e sentindo mais fortes as pontadas
da fome.
As mesmas crian��as sentadinhas umas contra as
outras e as rosas nas m��os.
Ficou morrendo de vergonha dos pequenos e infe��
lizes seres. Tentou esconder-se na escada rolante. Mas
j�� tinha sido visto e, como rel��mpago, chegaram �� sua
frente. Enrubescendo, Raul explicou a sua situa����o.
��� Olha, meu bem, disse a uma das menininhas.
Eu troco essa gravata de seda italiana por uma rosa.
Essa gravata vale mais de vinte cruzeiros novos. Se
vend��-la. dar�� para comprar muitas e muitas rosas.
��� 1 5 5 ���
A menina concordou e, com a flor na m��o, ficou
na porta de uma boate. Depois de algum tempo, um
casal hai abra��ado e rindo alto. Raul, gaguejando,
implorou:
O casal riu mais alto. Tentou mais um tempo na
boate. Depois saiu correndo atr��s de outros casais
que passavam ou que sa��am do cinema. Ningu��m lhe
comprava a rosa. Encostou-se j u n t a �� parede para
n��o cair de exaust��o, com zonzeira na cabe��a. Ent��o
uma vozinha o f��z virar-se.
��� Eu compro a sua rosa, mo��o. Era um dos
meninos maltrapilhos e sujos. Eu fiquei olhando o
senhor todo esse temp��o. Sei que o senhor n��o vai
vender, porque �� gente grande e todos pensam ser brin��
cadeira. Pr�� mim �� mais f��cil. Deu os cinquenta cen��
tavos da flor e emprestou mais, pois a m��dia com p��o
e manteiga custava oitenta centavos, cedendo-lhe ainda
para dormir o lugar escondido perto da parede da Bi��
blioteca P��blica Municipal.
Raul ajoelhou-se para ficar ao mesmo n��vel da ca��
becinha de cabelos desgrenhados e fixou aqueles olhos
tristes. Pretendeu falar qualquer coisa, mas um n�� na
garganta n��o deixou sair nem um som. Levantou-se,
engolindo as l��grimas e se afastou pensando:
��� Se Deus quiser, eu n��o tombarei. Fui erguido
pela m��ozinha de uma crian��a faminta. Isso quer dizer
que Deus me ajudar��.
Levantou-se sentindo um gosto amargo na boca.
Havia gravetos em seu fino terno, agora sujo e amas��
sado. Procurou ver o sol, mas n��o o conseguiu, pois o
que ��le conseguia ver ali perto da Biblioteca, foi um
mont��o de c��u azul, que parecia ser a tampa da pra��a
D. Jos�� Gaspar. Olhou para o lado da Galeria Metr����
pole, agora cheia de gente, para ver o garotinho.
��� Coitadinho, onde teria dormido? Andou pelos
caminhos acidentados do jardim e sentou-se na mureta
que existe perto da escadaria da entrada principal da
Biblioteca. Queria pensar qual seria a chance que a
grande e mort��fera cidade lhe poderia oferecer. Rezou
para conseguir qualquer coisa, qualquer trabalhinho.
��� Mo��o, �� mo��o!
Raul olhou para o Galaxie e encontrou o sorriso
de uma senhora.
��� Eu?
��� Sim.
��� Pois n��o.
��� Quer guardar um lugar para o meu carro, en��
quanto dou uma volta? Olha, corra l��, vai desocupar
aquele.
Raul guardou o lugar.
��� Olhe, enquanto fa��o compras, pegue esse pano
de l�� e de uma lustradinha no carro, sim?
Quando a mo��a voltou, deu-lhe dois cruzeiros no��
vos, o pano de flanela e um cart��ozinho.
��� Quando precisar, me procure. Meu nome �� esse
que est�� a�� no cart��o, L��dia.
O Galaxie ia saindo.
��� Mo��o, guarde esse lugar.
��� Quer que eu limpe?
��� Sim.
A noite apalpou os quatro cruzeiros novos que lhe
tinham rendido o trabalhinho de guardar e limpar
carros.
Deu para o garotinho das rosas dois cruzeiros novos
e acertaram que Raul dormiria durante a noite perto
da parede e o moleque durante o dia.
J�� fazia dias que trabalhava naquele ponto, sempre
prestativo, educado e alegre, quando:
��� Pol��cia.
Olhou como bobo a lapela levantada do palet��
do investigador. De seus l��bios brancos o som saiu
rouquenho.
��� Por que? Que foi que eu fiz?
��� Por enquanto nada. Mostre os documentos.
��� Oh! Eu, e u . . .
��� 157 -
��� Seu Alexandre, ele �� nosso chapa. T�� com tudo
em ordem. Mas hoje ele deixou os documentos l�� no
quarto, onde mora com a gente.
O tira fixou Raul.
��� Dessa vez passa. Olhe, rapaz, andar sem do-
cumentos �� perigoso. Virou-se para os dois pretos ���
olhe, passarei mais tarde.
Os dois pretos eram altos e fortes. L a n �� a r a m - l h e
um olhar estranho, m o s t r a n d o os dentes brancos e bri��
lhantes, sem sorrirem.
��� Obrigado, amigos. Voc��s me salvaram de u m a . . .
��� ��, n��o o deixamos mofar um dia na cadeia, por-
que, afinal de contas, n��o somos t��o ruins assim. N��s
conhecemos o tira e cooperamos com a sua caixinha.
��� Caixinha?
��� ��. A gente faz u m a s e outras e o tira quebra
o galho. Damos-lhe uma certa quantia por m��s. Mas
isso n��o vem ao caso, o que nos interessa �� voc�� deixar
o nosso ponto.
��� N��o entendo.
��� Quem toma conta dos carros aqui na pra��a so��
mos n��s, e n��o queremos intrusos. T�� avisado. Se vo��
c�� voltar a m a n h �� , n��s lhe arranjaremos uma bela cana.
Agora vai embora, n��?
��� Mas eu quero t r a b a l h a r . N��o tenho profiss��o.
Se deixar de tomar conta dos lugares para carros, o
que irei fazer?
O preto riu.
��� Ora, para branco h�� muito emprego. Al��m do
mais, um branco, como voc��, pode ser at�� bibel�� das
b a c a n a s .
Raul sentiu como se um sopro forte de vento o
fizesse oscilar. Cerrou os punhos e ia levantando-os,
quando se lembrou de que se fosse preso sem documen��
tos, seria bem pior. Devido a isso, virou-se bruscamen��
te e deixou a pra��a com um p e n s a m e n t o : tirar os
documentos.
158
XV
Policia Federal
L��dia morava sozinha em bel��ssima casa no Ibira-
puera. Em sua rica resid��ncia, sobressa��a, no muro de
pedras brancas, um grande port��o de madeira, com
desenhos em alto-rel��vo. Estaria em casa ��s tr��s horas.
Raul tocou a campainha. Com o cora����o batendo ace��
leradamente, disse �� empregada de vestido azul e aven��
tal branco que queria falar com dona L��dia. Bem, pen��
sou, o melhor �� contar tim-tim por tim-tim a ela e
enfrentar o neg��cio.
Uma grande sala, artisticamente decorada com
mob��lia de jacarand��, estilo colonial, quadros famosos,
prataria, cristais e porcelanas, enfim, tudo que des��
lumbrava os olhos de Raul. Logo mais encontrou os
belos olhos castanhos de L��dia que descia as escadas
envolta em um palazzo pijama branco, com z��per na
frente. Raul imaginava os duros e pequenos seios e
as coxas grossas, que se escondiam por baixo daquela
renda macia da roupa da linda mulher, parada em sua
frente, olhando-o sem parar, desde a cabe��a at�� os p��s.
Virou-lhe as costas e fingiu examinar qualquer coi��
sa para fugir ao exame, pois s�� agora sentia-se feder
e dava-se conta de qu��o sujo estava. S�� agora percebia
que, h�� um m��s, estava sem tomar banho. Reclinou-se
e sentiu seu rosto pegando fogo, pois via-se como um
monte de lixo afundando no aveludado tapete. Estava
envergonhado perante t��o bela jovem, sadia e limpa.
��� Ent��o?
��� A senhora se lembra de mim?
��� Claro. Gosto de falar com pessoas, olhando-as
nos olhos. L��dia sentiu uma pontada no cora����o quan��
do aquele azul pousou em seu rosto.
��� Sabe, voc�� �� o homem mais bonito quef tive a
oportunidade de admirar. Raul correu os olhos pela
sala e os pousou novamente em L��dia. Ela reparou que
eles estavam cobertos de um estranho brilho.
��� Falei algo que o tivesse aborrecido?
��� Sim.
��� O qu��?
��� N��o gosto quanao falam que sou bonito.
��� Por que?
��� Acho que o homem sendo bonito, tem de acei��
t a r . . . quero dizer, tem de livrar-se de muitas coisas
estranhas em rela����o a outros homens.
��� Voc�� j�� se deitou com um homem?
Um sil��ncio pesado encheu a sala. L��dia reparou
que o rosto de Raul se cobria de uma palidez mortal.
Quando ��le se virou, dirigindo-se a passos longos
para a porta, ela correu e segurou-o por um bra��o, fa��
zendo-o parar.
Passou para a sua frente, sem larg��-lo, falando
alto.
��� N��o posso adivinhar o seu ��ntimo, mocinho.
Mas se �� alguma coisa muito desagrad��vel, �� bem me��
lhor a gente atacar a situa����o de frente. Voc�� veio at��
minha casa porque tem algum problema e, pela sua
condi����o f��sica, vejo que �� um problema igual a milha��
res de brasileiros: dinheiro. Gostaria que, desde j��, me
considerasse sua amiga.
Raul a olhava im��vel.
��� Vamos, n��o seja crian��a. Se com qualquer coi��
sa desagrad��vel que ouve voc�� se esquenta e vai
saindo assim, sem mais nem menos, acho que nunca
��� 160 ���
arranjar�� um amigo, n��o ��? O castanho e o azul se
encontraram.
Raul riu.
��� A senhora tem raz��o. Eu tenho ��dio, ali��s, eu
sinto no fundo do meu ser assomar um ��dio tremendo
a tudo e todos relacionados a pederastia. Tudo porque
levei meus dezenove anos defendendo-me de homens.
Prometi a mim mesmo que nenhum homem encostaria
em mim com essa inten����o. Sinto n��useas quando ou��o
perguntas bobas a meu respeito, c o m o . . . c o m o . . .
��� Como eu fiz agora. Vou lhe dizer uma coisa.
Pela parte que me toca, jamais falarei sobre isso, t��?
��� N��o �� isso, dona L��dia. Eu n��o gosto de ouvir,
mas acho que a gente .deve ser sincero a respeito do
que pensa. A senhora pensou que eu fosse pederasta,
porque me acha bonito.
��� Pois ent��o! J�� existe uma possibilidade de voc��
me perdoar por eu ter sido sincera e ter dito o que pen��
sava. Levantou o indicador em riste e encostou-o no
nariz de Raul. O que eu pensava, veja bem.
��� Isso faz sentido, porque realmente �� o que a
senhora pensava pois, ha realidade, sou um homem e
u m h o m e m . . .
��� Um homem?
��� Um homem macho. Fitaram-se com intensida��
de profunda.
��� Bem, disse L��dia, puxando-o pelo bra��o, eu pen��
so, sem a menor d��vida, que o melhor, o mais gostoso,
mesmo, �� entre o homem e a mulher. �� bem mais
f��cil. Voc�� j�� pensou um homem estrupando o outro?
A gargalhada de L��dia como uma lufada, varreu
a sala, mas Raul sorriu engolindo l��grimas, pois as ce��
nas macabras dos abrigos de menores tomaram sua
mente.
��� Bem, bem, disse L��dia alegremente, acendendo
um cigarro e oferecendo outro a Raul. Voc�� queria
falar comigo. Pois fale, mas, antes, sente-se aqui perto
de mim.
161
Raul tirou uma profunda tragada.
��� Ah! Eu estou muito sujo. Lavei muitos car��
ros . . . e, depois, n��o tinha onde tomar banho. Virou-se,
procurando um cinzeiro. Esmagou o cigarro. Eu vim
para que a senhora me ajude a encontrar um emprego.
��� B e m . . . qual �� a sua profiss��o?
As m��os crispando no encosto da cadeira de veludo,
e aquele ardor a lhe tomar todo o rosto.
��� N��o tenho profiss��o.
��� O que sabe fazer?
��� Nada.
��� Sabe pelo menos ler e escrever.
��� Um pouco.
��� Que diabo, de onde veio voc��, rapaz?
��� Fui criado pelo governo.
��� Chiii ��� e n��o aprendeu a fazer qualquer coisa.
Meu Deus, rapaz, num tempo desses, ser analfabeto!
Voc�� veio de onde, afinal?
��� Sa�� do Abrigo de Menores para a Deten����o.
��� Por que?
��� O r a . . . Raul apertava mais a cadeira, e disse
de um s�� f��lego ��� matei um dos meninos que queriam
fazer-me pederasta. Mas fui absolvido porque era me��
nor, ou sei l�� porque. Ali��s, eu sei. O juiz l�� do F����
rum e s t �� . . . est�� apaixonado por mim e arrumou a
coisa. Desconhe��o a forma. Depois ��le me levou para
a sua mans��o, dizendo-se curado da mania de deitar-se
com jovens. Mas come��aram a falar e eu o deixei.
Logo que vim para o centro da cidade vendi meu rel����
gio para comer ou arranjar um quarto. Fui preso por��
que n��o tinha documentos. O juiz me soltou. Fui
tomar conta de carros, mas dois crioulos me expulsa��
ram, e aqui estou.
��� Creio que terei algo para voc�� fazer. Por en��
quanto voc�� precisa de um banho e comida. Est��
com fome?
162
��� N��o, agora n��o. Mas diga-me o que farei.
��� Calma, n��o ser�� um trabalho dif��cil. Mas va��
mos ao banho.
Depois de banhar-se, Raul vestiu o roup��o de L��dia
e ficou tocando discos, at�� que ela voltasse da compra
de algumas roupas para ��le, as quais seriam desconta��
das do seu futuro ordenado.
L��dia jogou os pacotes sobre o sof�� e estacou encan��
tada. De p��, �� sua frente, alto, com o rop��o azul aber��
to, mostrando o peito forte e cabeludo e os olhos cinti��
lantes, l��bios vermelhos os dentes brancos e mais, so��
bressaindo sua pele bronzeada. Raul era todo um amor,
indiscutivelmente maravilhoso.
As m��os de L��dia apertaram os bra��os de Raul.
Fixando seus olhos, disse:
��� Meu Deus, Raul, seus olhos s��o os mais lindos
do mundo. Francamente, n��o se sabe a sua c��r real.
Olhando-se, assim de repente, s��o azuis e, prestando-se
mais aten����o, percebe-se tamb��m nuances esverdeadas
e douradas. Afastou-se alguns passos e disse:
��� Juro, Raul que, nem se todas as mulheres do
mundo se ajoelhassem aos seus p��s, nada seria suficien��
te para homenagear sua beleza. Seria p r e c i s o . . . seria
preciso que a pr��pria m��e de Deus ca��sse em sua frente
p a r a . . .
A risada l��mpida e franca do jovem apagou-lhe
a voz.
��� Ora, dona L��dia, nem tanto. Isso �� pecado, hein?
Olhos nos olhos. Observaram-se por longos minutos.
��� Voc�� acha pecado uma mulher achar um ho��
mem lindo?
��� Sem envolver a m��e de Deus, n��o acho.
��� E se eu tirar a m��e de Deus e ficar assim em
sua frente, rode��-lo assim, com meus bra��os, e beij��-lo
assim? O que voc�� acha?
Raul sentiu-se apertado e beijado.
��� 1 6 3 ���
Os cora����es pulavam loucamente e n��o consegui��
ram esconder o tremor percorrendo-lhes os corpos.
Raul sentia que o homem crescia nele, endurecia
e fazia uma for��a enorme para sair do roup��o, que��
rendo encostar-se nas coxas bonitas e grossas de L��dia,
s�� um pouco-coberta pela m��ni-saia.
A agulha do hi-fi arranhava suavemente o disco.
Raul desvencilhou-se delicadamente dos bra��os da mo��a
e desligou-a, ficando onde estava. L��dia olhou-o inter��
rogativamente.
��� Como ��, vai responder minha pergunta?
��� Pergunta?
��� Se �� p e c a d o . . .
��� Ah! Claro que n��o ��.
��� Ent��o por que voc�� est�� t��o longe?
Raul abaixou os olhos, desviando-os dos da mo��a,
buscando uma resposta, l�� no fundo do seu ��ntimo.
Olhou-a novamente.
��� Bem, no meu caso a gente n��o sabe quando se
deve ficar perto ou longe. Eu sou quase u m . . . diga��
mos, um mendigo, e a s e n h o r a . . .
��� Ora, menin��o, n��o se subestime tanto. Nunca
ouvi falar que a diferen��a de dinheiro impedisse o desejo
entre o homem e a mulher.
��� Mas, no meu caso, �� mais dif��cil. Nem saberia
por onde come��ar.
��� Todas as portas est��o abertas para o amor, ra��
paz, n��o h�� caminho dif��cil.
��� Talvez seja verdade. Todavia, meu sexo s�� en��
tra em porta em que eu desejar.
��� Ora, quando o homem se julga macho, tem de
entrar em todas as portas que se lhe oferecem.
��� ��s vezes o homem n��o quer tornar-se bibel��
de madame e tem de refrear seu mach��o.
L��dia apanhou os pacotes e, antes de subir, virou-se
para Raul.
��� 164 ���
��� Bem, examine o caso sob outro ponto de vista
enquanto me banho, e depois suba para experimentar as
roupas. A h ! . . . espere um pouco. Jogou os pacotes
outra vez no sof��, abriu a bolsa e apanhou um papel,
atirando-o a Raul. T��, �� a notinha das roupas que
vou descontar.
Sobressaltado, o mo��o gritou:
��� Mas �� uma soma exorbitante! Acho prefer��vel
ficar com as roupas velhas.
��� Ora, Raul. S��o mil cruzeiros novos, e voc�� ga��
nhar�� mensalmente a metade dessa quantia.
Raul ficou ext��tico, enquanto ela retomava os em��
brulhos e subia correndo as escadas. O barulho do
chuveiro, o aroma delicioso do caro perfume e sua voz
suave e meiga. Oh! Tenta����o!
��� Suba, Raul.
��le ficou emoldurado pela porta, im��vel, olhando
o corpo nu de L��dia diante do espelho. Era como ��le
imaginara. Carnes brancas acetinadas. Ela deu mais
umas escovadelas nos cabelos negros e brilhantes e,
jogando a escova em uma gaveta, veio at�� Raul e este
sorriu.
��� Ent��o?
��� O que?
��� Examinou o nosso caso?
��� Vendo-a assim, s�� tenho um pensamento. As-
sumir toda a responsabilidade de macho. Fazer tudo.
��� Quando come��a?
��� Agora. Levantou-a em seus bra��os fortes es-
magando-a de encontro ��os p��los do seu peito, sugou-lhe
a boca ferozmente. Colocou-a na cama e, sem largar
seus l��bios, ajoelhou-se e tirou o roup��o. Sua m��o ��gil
e nervosa aprofundou-se no meio das pernas de L��dia
que, gemendo e retorcendo-se no mesmo lugar, sentia
seus dedos lhe queimarem as entranhas. Sugadas va��
garosas em seus seios a fizeram movimentar furiosa��
mente os quadris, enquanto a boca no rosto transfigu��
rado se abria para lhe implorar que viesse para ela.
165
Raul deitou-se suavemente em cima dela e, recome��an��
do a chupar-lhe o bico do seio esquerdo, penetrou-a
sem viol��ncia. Acelerou as estocadas, sentindo aquelas
carnes macias tremerem debaixo das suas. Naquela
posi����o inc��moda, mas que sabia agradar muit��ssimo
��s mulheres, ��le ouvia L��dia gemer, grunhir e gritar,
debatendo-se, como se estivesse sufocada. A coisa cres��
ceu dentro dele, fazendo-o forcejar, sem parar e, quan��
do ela arrebentou, Raul sentiu uma moleza e zonzeira
t��o fortes que pensou que fosse ser engolido do mundo
dos vivos.
Exausto e suado, caiu para um lado, respirando
forte.
Ela virou-se e, apoiando-se num cotovelo, debru��
��ou-se sobre ��le. Escondeu o rosto em seu peito e
disse-lhe:
��� Puxa, senti-me ligada a uma tomada el��trica.
Voc�� foi maravilhoso. Que experi��ncia, hein? Aonde
aprendeu?
��� A senhora n��o disse que o amor sabe sempre
encontrar o caminho?
��� N��o me chame de senhora. Agora somos aman��
tes, n��o ��?
Raul sentou-se rapidamente na cama e L��dia viu
aquele rosto, muito branco, cobrir-se de uma expres��
s��o assustada.
��� Mas vou trabalhar. Quero trabalhar e tra��
balhar muito.
��� Claro, meu bem. Por enquanto trabalhe em
mim novamente. Venha. Estendeu o bra��o e puxou
carinhosamente.
O juiz estava sentado de costas para a porta, exa��
minando alguns pap��is. Virou-se bruscamente, quando
ouviu a voz do dr. Antonio e gritou nervoso.
166
��� Ent��o, encontrou-o? Levantou-se e andou at�� o
advogado. N��o vai dizer-me outra vez que n��o tem
uma pista. Isso me deixa louco.
��� Grandes not��cias, meu caro, grandes not��cias.
O seu menino est�� forte e robusto.
��� Em que lugar? Vamos, diga.
��� Numa casa, no Ibirapuera. H�� mais ou menos
um ano que mora l�� com uma mulher.
O j u i z mordeu os l��bios, sentindo que as pernas
amoleciam.
��� Com uma mulher! Quedou-se pensativo por uns
segundos. Bom, antes com uma mulher. Quem �� ela?
��� Uma contrabandista.
Do fundo do cora����o" sentiu subir-lhe uma golfada
quente de felicidade.
��� ��timo. Conte-me a hist��ria direitinho.
��� A mulher �� muito bonita. Tem quarenta anos,
mas aparenta trinta. Veste-se com etiqueta dos maio��
res costureiros do mundo. Possui uma butique no cen��
tro da cidade. Em sua luxuosa casa no Ibirapuera,
existem salas com grande quantidade de coisas con��
trabandeadas, que s��o negociadas com atacadistas.
��� Que faz meu querido Raul?
��� Entrega a mercadoria. ��s vezes fica na casa,
atendendo os clientes mais ��ntimos.
��� Como voc�� soube tudo isso?
��� Encontrei uma mo��a que mora na rua R��go
Freitas, que j�� foi s��cia de L��dia na butique. Briga��
ram. A mo��a viu-se lesada em alguns milh��es. Para
vingar-se, vive espalhando aos quatro cantos que a tal
L��dia �� uma fora da lei.
��� ��timo, ��timo. Pagarei a essa mo��a qualquer
quantia para denunciar L��dia.
��� N��o ser�� f��cil prend��-la, meu caro Paulo, pois
est�� bem encoberta. Divide seu amor com muita gente
de influ��ncia. Para voc�� ter uma id��ia da for��a dessa
��� 167 ���
dona, �� s�� saber que tem passagem garantida de ida
e volta para toda parte do globo, �� hora que quiser.
��� Como a mercadoria entra no pa��s?
��� Com o s��cio de um avi��o de um delegado de
pol��cia. Ali��s, esse mesmo delegado �� o piloto. Essa
mo��a j�� denunciou L��dia �� pol��cia v��rias vezes, mas
nada adiantou.
��� Caro caus��dico, agora o regime vai ser outro.
Mande-a denunciar L��dia outra vez.
��� Est�� bem, quer que eu v�� agora?
��� O juiz olhou-o com ast��cia e suspirou.
��le �� feliz?
��� Como se pode saber? Vive a sua vida. Trabalha
muito, m��o n��o tem sorte, pois �� um trabalho que o
levar�� �� cadeia.
O j u i z sorriu.
��� Isso �� formid��vel. Quanto mais cadeia, mais
depressa chegar�� at�� mim, seu querido papai.
Ambos riram.
��� Se a pol��cia os prender, que fa��o? Perguntou
o dr. Antonio.
��� Distribua quanto dinheiro desejar, mas solte-o e
fa��a-lhe a mesma proposta.
A express��o de interroga����o nascida no rosto do dr.
Antonio, o juiz respondeu:
��� Que seja meu e eu o cobrirei de ouro.
��� E se ��le n��o aceitar?
O juiz contemplou o advogado longamente, e em
seus olhos foram se formando tra��os de ��dio. Fechou
uma das m��os e bateu fortemente na mesa. Seus gritos
fizeram eco longe.
��� Se ��le n��o me aceitar, jogue-o na rua, pise-o,
massacre-o, mas de um jeito que ��le venha at�� mim.
As l��grimas cobriam o ��dio de seus olhos e, aper��
tando uma m��o na outra, encostou-as no cora����o e
disse suavemente:
168
��� Deus! Deus! Como ele est�� encravado aqui den��
tro! Que ang��stia terr��vel me sufoca o peito s�� em
pensar nele. Oh! Se ele me amasse!
Com as m��os tr��mulas, segurou o amigo por um
bra��o e deixou escapar do peito um solu��o.
��� Se voc�� soubesse como eu o adoro, como o amo!
Aqui dentro, e apontou o peito, fervilha um desejo ani��
malesco de enterrar-me em suas carnes, beij��-lo, mor��
d��-lo inteirinho. Quero apert��-lo, esmag��-lo! Sacudiu
fortemente o amigo. Se voc�� soubesse o que �� sentir��
se longe do ente amado! Oh, Ant��nio, sinto que o amor
vai roendo mais e mais meu cora����o. Como d��i! Em
cada pensamento, cada recorda����o, sente-se aqueles den��
tes pontiagudos a nos roer! Roer!
��� Mas se voc�� n��o o conseguir, procure destruir
esse animal feroz que o devora, meu amigo. H�� tantos
Raul colorindo S��o Paulo, o Brasil, o mundo.
O j u i z deixou-se cair p e s a d a m e n t e em uma cadei��
ra e suas palavras sa��ram entrecortadas de solu��os:
��� Ah! Se eu pudesse amar o u t r o ! . . . Se n��o tivesse
todas as entranhas, todo meu sangue, todos os meus
m��sculos, todos os meus poros envenenados por ��le,
pelo meu Raul! Raul!
��� N��o se deixe abater assim, Paulo. Estamos tra��
balhando para que voc�� o tenha inteirinho. N��o resta
a menor d��vida de que ele tombar�� nos seus bra��os.
Vamos, meu amigo. O dinheiro sempre vence. Co��
me��aremos dando uns milhares �� mo��a da R��go Freitas.
A porta de madeira com desenhos em alto-rel��vo
abriu-se lentamente. A empregada respondeu �� voz de
Raul, que vinha l�� de dentro.
��� S��o dois homens.
169
Raul veio at�� eles.
��� Em que posso servi-los?
Os homens eram simp��ticos, e at�� mesmo se lia um
t��nue sorriso nos l��bios de um deles, quando falou mos��
trando a carteirinha.
��� Pol��cia" Federal.
Raul sentiu um mal-estar. Batidas fortes no cora��
����o e a voz saindo-lhe fraca da garganta seca.
��� Por que?
��� Contrabando.
��� M a s . . .
��� Explique na pol��cia. Agora acompanhe-nos pa��
ra uma visita �� casa.
Era exatamente como a ex-s��cia da butique de
L��dia falara. Havia por todos os cantos dos quartos,
montes de mercadoria contrabandeada.
Encostado ��s grades pretas e desbotadas da velha
casa que servia como Departamento da Pol��cia Federal,
Raul avistou o dr. Antonio. Seu primeiro pensamento
foi de alegria. ' Mas, sentindo um n�� forte na garganta,
desviou a vista e passou por ��le ereto e de cabe��a esguida.
��� Depois de alguns passos, teve de parar, junta��
mente com os agentes, que foram cumprimentados pelo
advogado. Este ��ltimo disse:
��� Esse j o v e m �� meu constituinte.
Subindo as escadas que os levariam ao andar su��
perior, onde ficava a sala do delegado, Raul prestou
aten����o ao cochicho do advogado, j u n t o ao seu ouvido!
��� Eu trouxe a procura����o dentro deste jornal.
Vamos, pegue isso. D�� um jeito de assinar e deixe so��
mente eu falar. Voc�� fica de bico calado. T��?
Mas Raul n��o p��de permanecer calado, porque ago��
ra, na Pol��cia Federal, n��o existem mais apadrinhados.
Teve de responder a um severo interrogat��rio, e depois
��� 170 ���
desceu para o por��o, a fim de deixar as impress��es
digitais.
Depois entrou no carro do advogado, que estava
estacionado no jardim do D.P.F. Encostou-se no assen��
to e, jogando a cabe��a para tr��s, soltou um suspiro.
��� Puxa, como �� bom a gente livrar-se dos tiras!
��� Voc�� n��o est�� livre ainda, Raul. A pol��cia vai
fazer um levantamento completo sobre as suas ativida��
des j u n t o aos contrabandistas. S�� que voc�� vai esperar
o resultado em liberdade.
��� Mas nada tenho a temer, pois n��o sabia que
ela agia ilegalmente.
��� Precisamos provar. Essa sindic��ncia vai longe,
pois ela n��o est�� no Brasil.
Raul voltou-se, encarando-o.
��� N��o est�� no Brasil? Como, se ainda hoje pela
manh�� estivemos juntos?!
��� Um dc seus amantes levou-a para Recife em um
de seus avi��es, embarcando-a para a Europa.
��� Amantes?!
��� Ora, voc�� �� bobinho, Raul. Aquela matrona
enganou-o em tudo: idade, atividades, a m o r . . . A sem-
vergonha abria as pernas para todos os compridinhos
que aparecessem, e voc�� n��o desconfiava de nada, quan��
do enfiava o seu. Empurrava, rindo, com a m��o aberta,
a cabe��a de Raul para o lado. Como voc�� �� inocente
rapaz! �� bom que veja o quanto as mulheres s��o fin��
gidas, falsas e simuladas. S�� assim dar�� um pouco de
valor aos homens que o . . .
��� Cale-se, por Deus! Falou Raul com ferocidade.
Seja l�� o que as mulheres s��o, mas elas t��m uma bu��
ceta. Para mim buceta �� buceta. Prefiro mil vezes
uma buceta velha, criminosa e falsa, a um cu de ho��
mem, de h o m e m . . . Raul escondeu o rosto com as m��os
abertas, e o advogado ficou assustado, ouvindo-o solu��ar,
sem encontrar palavras para o consolo. Depois de al-
g u m tempo o jovem limpou os olhos com as costas da
m��o, for��ando um sorriso.
��� Desculpe, hein? A gente tem de enfrentar tan��
tas coisas diferentes que v��o aparecendo! Ainda ontem
pensei que tivesse um futuro. E, no entanto, aqui es��
tou, deixando marcada em uma delegacia, mais uma
passagem. Sem mesmo saber que estava fazendo coi��
sas erradas. Parou um pouco e tornou a limpar os
olhos. Depois pensei que L��dia fosse amiga. Eu vivia
chateado e sozinho e e l a . . . ��la me f��z tudo isso. �� . . .
o pre��o de um ano de paz �� bem elevado.
��� Voc�� precisa desconfiar mais das pessoas, me��
nino. Aqui em S��o Paulo tem muita gente vigarista.
N��o v�� se metendo com qualquer vagabunda que apa��
rece, s�� porque lhe d�� um emprego ou algumas coi��
sas mais.
Raul falou, ir��nico:
��� Todo aquele dinheiro n��o deu para ver que
esp��cie de podrid��o a encobria, meu caro advogado.
O dr. Antonio ficou escarlate, e disse, sem gra��a:
��� Bem, bem, voc�� n��o poder�� sair da cidade en-
quanto o seu caso n��o ficar esclarecido na pol��cia. Gos��
taria que aceitasse um de meus apartamentos para es��
perar o resultado do inqu��rito.
��� N��o, n��o, obrigado.
��� Aonde vai ficar?
��� Tenho um amigo que mora no centro.
��� Qual �� o endere��o? Voc�� sabe, sou seu advo��
gado, e qualquer deslize de sua parte vai prejudic��-lo.
��� Ah! N��o existe segredo de endere��o. Meu ami��
go mora no Pr��dio Copan.
��� Telefone-me se voc�� precisar de alguma coisa.
O advogado refletiu. Quer dizer que voc�� n��o quer
ver o juiz?
��� Mude de assunto.
��� �� ��le que est�� me jogando para tratar de seus
casos!
��� 172 ���
��� Casos? Que casos? S�� existe este.
��� Mesmo assim �� um caso dif��cil.
��� Eu n��o pedi.
��� Mas voc�� �� s��. Se o juiz n��o se interessar por
voc��, ficar�� esquecido na cadeia.
��� N��o haver�� mais cadeia, eu lhe garanto. Estou
com os documentos em ordem. Estudei um pouco ��
noite, durante este ano. O meu amigo tem f��brica de
bijuterias. Trabalharei com ele e pagarei ao juiz o que
est�� gastando comigo.
O dr. Antonio riu.
��� Olha, sou um advogado muito caro. S�� trato de
casos da alta sociedade, e assim mesmo dos mais ricos.
��� Eu desconfio. Mas eu pago, nem se f��r para
trabalhar s�� para isso, e mando aquele velho asqueroso
para o inferno.
Num dos trinta andares do Edif��cio Copan, Raul
olhava a cidade mort��fera, que parecia ca��da a seus
p��s. Observava daquela altura vertiginosa que os edi��
f��cios n��o tinham aquela impon��ncia esmagadora. Eram,
agora, simplesmente umas casinhas de pombos que, com
apenas um ponta p��, se ele quisesse, destruiria tudo.
Debru��ou-se na marquise das amplas janelas, re��
lanceando os olhos por tudo que conseguia alcan��ar.
Sorriu, pensando que se a empregada n��o estivesse
no apartamento gritaria bem alto:
��� Cidade de S��o Paulo, olhe para cima. Estou
aqui, est�� vendo? Claro, voc�� est�� me observando com
os milhares de olhos que s��o as janelas dos seus ma��
jestosos edif��cios. Voc�� �� uma floresta de cimento ar��
mado. Quando estou a�� cm baixo, andando pelas ruas
cheias de vida, sinto um medo louco de voc��, pois sei
que devora, com essa intrusa boca esfuma��ante e t����
trica, dezenas de seres, todos os dias. Mas agora estou
por cima. Voc�� me parece t��o insignificante! T��o in��
significante que ��.s�� eu estender o bra��o e poderei es��
mag��-la com minhas m��os. Esmag��-la, esmag��-la, essa
�� a minha vontade.
��� Esmagar quem, hein Raul?
Raul virou de um golpe e falou, fixando Heitor, que
o olhava sem parar.
��� Esmagava, matava a cidade, essa cidade injusta
que agasalha em seu seio alguns de seus filhos cobertos
de seda e veludo. Joga outros pelas ruas mortas, com
fome ou frio. Faz com que eles comam lixo das feiras,
morem embaixo de pontes e n��o frequentem escolas.
Faz com que eles sejam escravos dos que voc��, cidade
maldita, cobre de ouro.
��� Engra��ado, todas as pessoas que me visitam fi��
cam a�� na janela, conversando com a grande cidade.
Parece que todo paulistano tem o mesmo pensamento,
quando est�� bem alto. Mas �� um fato. A gente, daqui
de cima, parece esquecer todos os problemas, parece
que �� inating��vel ��s punhaladas desses pr��dios pontia��
gudos. Mas vamos l��! Que prazer voc�� me d�� com a
sua visita! At�� que enfim lembrou de mim. Puxa, pen��
sei que aquela dona n��o o largasse nem por um ins��
tante. Mas sente-se e conte-me como v��o as coisas.
��� Mal, Heitor, muito mal, disse Raul, caindo num
sof�� estofado de curvim branco, correndo os olhos pelo
amigo.
��� Brigou?
��� B e m . . . n��o �� isso. �� caso com a pol��cia.
��� A pol��cia est�� �� sua procura?
��� Vim de l�� agora. N��o precisa ficar com essa
cara preocupada. Est�� tudo bem por enquanto. A L����
dia �� contrabandista.
��� Eu j�� sabia.
��� Sabia?!!!
��� Sim.
174
��� E por que n��o me avisou?
��� Ora, Raul, a gente n��o pode ir se metendo com
essa gente assim, sem mais nem menos. Heitor dirigiu-
se para a pequena cozinha e trouxe dois drinques. Be��
ba. Isto lhe far�� bem, pois voc�� est�� com uma ca��ra!...
��� Qual a cara que voc�� queria? Agora estou na
estaca zero outra vez. Tenho de come��ar tudo de novo.
Raul reclinou-se, fincou os cotovelos no joelhos e
escondeu o rosto nas m��os.
��� O que pretende fazer? Voltar para l��?
��� N��o, ela fugiu para a Europa e, depois, a casa
est�� interditada. Ningu��m pode entrar. Assim eu ouvi
l�� na pol��cia.
��� Ent��o voc�� ficar�� aqui, at�� lhe aparecer coisa
melhor.
Raul levantou-se e foi �� janela. Olhou longa��
mente para o Cine Metr��pole e sorriu. Voltou-se e
disse, meio embara��ado:
��� Mas n��o trouxe nenhum dinheiro. Nem mes��
mo para o cigarro.
Heitor abriu uma caixa, em cima da mesinha de
m��rmore branco e, entre os v��rios ma��os de cigarro,
apanhou um e ofereceu ao mo��o.
��� Quando acabar pode pegar mais.
��� N��o sei como agradecer-lhe.
��� A nossa amizade n��o significa nada? Heitor
sorriu. Tenho um lugar de vendedor l�� na minha
fabriquinha. Trata-se de um produto muito em mo��
da ��� "maria-chiquinha" ��� voc�� conhece? Ah! �� l����
gico! Estava acostumado a vender s�� coisas finas e
estrangeiras, n��? Agora, meu caro, voc�� vai ficar rico
vendendo as "marias". O riso de Heitor tomou o apar��
tamento. Garanto-lhe que n��o d�� cana porque est��
tudo em ordem. Heitor explicou o servi��o a Raul. De��
pois tomou-lhe o copo e o encheu novamente.
��� Voc�� come��ar�� amanh��, t��? Agora vou trocar de
roupa e vamos dar um giro pela bela cidade que tanto
o assusta.
Andando lado a lado com Heitor, jovem e alegre,
Raul ria, brincava e jogava piadas ��s mo��as. Sentia
que a cidade n��o era assim t��o antip��tica. N��o havia
pensado at�� .ent��o, que valia no meio de toda aquela
resplandente balb��rdia, estar-se bem com o esp��rito.
Nesse momento, seu esp��rito enfrentava o barulho en��
surdecedor da cidade que se humanizava sem aquela
preocupa����o de n��o ter futuro ou ser destru��do. Esta��
va alegre e sabia que essa alegria estava sendo exte��
riorizada, pois os passantes o olhavam com admira����o
e simpatia. Sentiu que Heitor o observava com uma
express��o c��nica.
��� Que �� que h��?
��� Puxa, voc�� �� um sucesso, rapaz. S�� vejo den��
tes arreganhados para o seu lado e gente que o olha e
vai andando e olhando para tr��s. Deixe-me ver o que
h�� com voc��. Fique a�� parado, assim. Heitor afastou-
se alguns passos, fixando o jovem de alto a baixo, gri��
tando depois.
��� Oh! Isso �� evidente. Voc�� sobressai a todos.
N��o tinha reparado at�� ent��o. Mas um homem assim
atl��tico, c��r de cobre, com os olhos azuis e cabelos de
ouro, n��o existe em S��o Paulo.
��� Como n��o existe? Raul ria, andando para Heitor
N��o estou aqui?
Riram.
��� N��o �� �� t��a que a balzaqueana estava gamada.
Voc�� �� mesmo um p��o.
Raul n��o sabia com exatid��o, mas sentiu alguma
coisa desagrad��vel esbarrar-lhe o c��rebro por alguns
segundos. Olhou de soslaio para o amigo e n��o gostou
de ser admirado por ��le. Mas logo voltou a ser feliz.
��� Vamos, Heitor, vamos. Voc�� ficou a�� parado,
em plena Bar��o de Itapetininga com os bra��os abertos.
A turma vai cham��-lo de louco. Raul enfiou o bra��o
no do amigo e cochichou:
��� 1 7 6 ���
��� O neg��cio �� a gente arranjar umas garotas.
Dois frangos assados, duas garotas. Raul e Heitor
entraram no apartamento.
��� Voc�� trate de ser o dono da casa, hein? Disse
Heitor. Vou fingir que sou visita.
Raul colocou discos na vitrola, abriu a mesinha
da sala com a ajuda das mo��as. Cantarolando e pu��
lando de c�� para l�� os jovens se divertiam. Jantaram.
Dan��aram e bebericaram algo.
Depois de algum tempo Raul piscou para Heitor.
��� Bem, disse Heitor, voc�� prefere o quarto ou
a sala?
Raul abriu o sof�� branco da sulinha e Heitor lhe
jogou algumas cobertas.
��� Se voc��s quiserem ocupar o banheiro, v��o l��
agora, n��, porque depois vou armar a cortina que ��s
vezes faz de porta. �� sempre nessa hora que lembro
de mandar colocar uma porta aqui. Mas juro, amanh��
vou providenciar.
Raul deitou-se com a mo��a e n��o esperou nada para
come��ar. Afagou-lhe o corpo, olhando-a nos olhos.
Beijou-a na boca, apertando-a de encontro a si. Al��
guns momentos depois os corpos suados se desgruda��
ram e Raul, de costas, ficou ouvindo. N��o queria ouvir,
mas era como se os outros dois estivessem deitados
em sua cama.
��� Ah, ah! Tro��ava a mo��a. Voc�� n��o faz nada!
��� N��o estou com pressa, dizia Heitor, com a voz
um pouco irritada.
��� Ora, os outros dois j�� gozaram, e n��s aqui fei��
tos bobos.
��� Cale-se!
��� Hei, Heitor, que �� que h��? Voc�� est�� atrasado.
J�� vou pr�� segunda. E melhor voc��s fr.larem mais
baixo porque se ouve tudo.
��� Heitor riu e disse:
��� Amanh�� vou mandar p��r a porta, voc�� vai ver.
��� 1 7 7 ���
XVI
Dois homens em ��xtase
��� Hoje faz dois anos que trabalho com Heitor,
pensava Raul, enquanto se dirigia para o apartamento
do amigo. Puxa, como o tempo passa! Estou com vinte
e dois anos e tudo est�� como antes: trabalho, trabalha
Quando recebo um aumento e penso em ajuntar um
pouco de dinheiro, tudo aumenta. Sorte que n��o pago
moradia. Imagine, se pagasse, n��o poderia nem vestir��
me decentemente. A vida �� muito dif��cil, mas a gente
tem vinte e dois anos e muita esperan��a. Esperan��a!
��� O juiz tem esperan��a, Raul. ��le sempre diz que
a esparan��a �� a ��ltima que morre e, mais dia menos-
dia, voc�� ser�� dele. A voz do dr. Antonio veio de longe.
Relembrou quantas cartas do j u i z rasgara nesses
dois anos. O dr. Antonio o esperava, na porta da ��a-
briquinha, e lhe estendia a carta.
Raul nem queria pegar no envelope. Olhava o
advogado, branco de ��dio, e gritava: rasgue! Era quase
todos os dias a mesma coisa. Ontem o advogado disse��
ra, rasgando a carta:
��� Voc�� vai matar o velho de paix��o, rapaz!
��� Pois que morra! Se fosse por mim, j�� n��o exis��
tiria sobre a terra esse velho canalha e imoral.
��� Ent��o, no mundo dos homens, abrir-se-ia um
v��cuo, hein, Raul?
179
��� Nem tanto. H�� muito n��o encontro sujeitos
da esp��cie de voc��s.
��� Fa��o votos para que j.ssim seja. Pois, mais um
que se curvasse para receber, menos um para me fazer
curvar.
Entrou no elevador e apertou o bot��o. Encostado
no fundo do elevador, lembrou de Jo��ozinho. A ��ltima
vez que fora a Batatais, soubera que o jovem pretinho,
agora com dezesseis anos, havia fugido com Carlinhos.
Recebera o endere��o das m��os de um dos menores in��
ternos e fora visitar o amigo. L�� chegando, fora in��
formado de que o mesmo n��o aparecia h�� muitos dias.
Saiu do elevador, desceu a rampa que levava ao cor-
T e d o r dos apartamentos. Estranhou encontrar a porta
do apartamento entreaberta mas, ao entrar, ouviu vo��
zes cochichando no quarto e sossegou, pois reconhecera
que uma das vozes era do amigo. Mas a o u t r a . . . a
outra tamb��m era de homem.
��� Bem, Heitor deve estar com um amigo e garotas.
Olhou o peda��o de cortina grossa fazendo de porta e
sorriu. Heitor n��o tinha jeito, mesmo. Dois anos e
neca de porta.
��� Ah! vou mandar colocar a porta amanh�� logo
cedo, dizia, mas a porta n��o aparecia.
Silenciosamente, pois n��o queria revelar sua pre��
sen��a, Raul esticou-se no sof�� e, pondo uma almofada
debaixo da cabe��a, ficou olhando para o nada.
Logo que descansasse um pouco, sairia para deixar
o amigo �� vontade com suas visitas. Mas por que Hei-
tor n��o o avisara? Haviam combinado que, quem fosse
ocupar o apartamento para encontros amorosos, avisaria
o outro. Ficou cismando no escuro, com os olhos fixos
no teto.
Agora a voz de Heitor passeava pelo quarto.
��� Eu o amo, eu o amo. Eu o amo tanto!
Raul sentiu um tremor horr��vel percorrer-lhe o
corpo, arrepiando-se todo. Quis levantar-se, mas sentia
uma ang��stia terrificante agindo como garras de ferro
a apertar-lhe o cora����o, impedindo-lhe os movimentos.
��� 180 ���
Limpou o abundante suor da testa. Sacudiu a ca��
be��a, esperando que tudo n��o passasse de um sonho.
Heitor! Teria ouvido direito? N��o, n��o! Talvez sonhasse.
Ou fosse muito malicioso. Heitor com um homem?
N��o, n��o. Oh! Deus, fa��a com que tudo seja engano.
Sacudia a cabe��a, sem for��as para levantar-se.
A voz de Heitor vinha cheia de l��grimas.
��� N��o me fa��a chorar, S��lvio, pois tudo o que
amo no mundo �� voc��.
��� Sim, meu amor, eu sei, eu sei. Mas os ci��mes
me matam. S�� de pensar que voc�� possa voltar a ser
totalmente homem me deixa louco.
��� Voc�� precisa compreender, dizia Heitor, que
pensei haver chegado a minha oportunidade, quando
fiquei apaixonado por Helena. Lembra-se, querido, que
me sentia feliz em mudar. Mas foi somente um sonho.
Tamb��m pensei em voc��, S��lvio. Se eu o deixasse na��
quela ocasi��o, provavelmente voc�� se faria homem.
Mas voc�� n��o quis renunciar. Voc�� se agarrou a mim
e me f��z prometer que n��o amaria outra pessoa na vida.
��� Agora n��o sou livre. N��o posso iludir e pro��
meter amor a quem quer que seja. Tenho a seguran��a
de o amar e ser amado. Por isso, meu queridinho, n��o
deixe que as l��grimas sejam a recorda����o desse nosso
encontro.
��� �� que voc�� me parece t��o distante!
Raul os ouvia, petrificado. Viu a cortina afastar-
se e a figura alta e magra ae Heitor, completamente
nu, atravessar a sala banhado com a luz p��lida, vinda
da porta. Pensou em levantar-se, agarrar os dois pelo
pesco��o e apertar, apertar at�� que ca��ssem arroxeados
e com a l��ngua de fora. L��nguas nojentas daqueles se-
mihomens. Sentiu-se sufocado, sem poder respirar,
quando viu S��lvio tamb��m nu. Vinha ao encontro de
Heitor, que estava no meio da sala. Raul fazia um es��
for��o enorme para fechar os olhos. N��o queria ver,
n��o suportaria ver aqueles dois homens nus na sua
frente, agarrados, boca na boca, e as m��os afagando
ou apertando os p��nis.
Aquela vis��o queimava-lhe os olhos, que permane-
��� 181 ���
ciam esbugalhados. Sentia uma dor aguda a trans-
passar-lhe o cora����o, enchendo-o de ang��stia. Mental-
mente pedia a Deus que o amigo o visse ou que
acontecesse qualquer coisa, at�� mesmo o matasse, mas
n��o o deixasse presenciar aquilo. Queria tapar os olhos,
mas os bra��os permaneciam hirtos e pareciam pesar
toneladas.
Procurou pensar em outra coisa, quando sentiu
que eles, do jeito que estavam, jamais notariam a sua
presen��a. Por que fora ficar naquele cantinho t��o
escuro? Por que eles ficavam assim, naquele foco de
luz? Por que n��o iam para a cama? Por que? Deus,
Deus, Deus! Viu-os largarem os sexos e apertarem-se
as n��degas. Com m��os ��geis, que subiam e desciam,
��s vezes parando por minutos no meio das carnes sa-
lientes. Olhavam-se fixamente, com os olhos em fogo,
bocas semi-abertas. Heitor ajoelhou-se e levou a boca
ao p��nis do outro, sugando freneticamente. O corpo
de S��lvio tremia, balan��ava como um coqueiro vergas��
tado pelo vento, jogando pelo infinito seus uivos laci-
nantes. Aquele m��sculo que se esticava, que latejava
na boca de um outro homem. Era um m��sculo de
homem. Oh! Santo Deus! Que seria aquilo? Raul sen-
tia escoar-se sua consci��ncia. Fazia um esfor��o sobre��
humano para quebrar aquela t��trica muralha e perder��
se no sono ou na morte. Mas os dois homens, como
dois guerreiros, lutavam na busca da lux��ria que cres��
cia ins��litamente, arrogante, cruel e, contudo, mes-
clada de beleza. Dois homens. Talvez l�� no fundo,
bem no fundo do seu ��ntimo fossem machos. Dois ma��
chos que n��o se sentiam contrafeitos ou humilhados
por aquela terr��vel luta. S�� tinham um pensamento:
satisfazer as necessidades que sabiam ser importantes
para qualquer um dos dois. Nenhum dos dois queria
fracassar. Eram dois machos arriscando tudo na vida.
Jogados no ch��o, sexo contra sexo, em estocadas r��pi��
das, em gemidos surdos. Eles n��o pensavam em asco
ou desprezo. Sentiam-se unidos, sem mesmo saber como
acabariam a luta. Heitor deitou-se sobre aquele corpo
masculino que esperneava e se mexia debaixo do seu, se��
quioso de desejo. Agarravam-se, apertavam-se beijavam-
se, gritavam e gemiam. Debateram-se, estremeceram.
182
Heitor jogou a cabe��a para tr��s, e rangendo os dentes,
caiu exauto para o lado, respirando assustadoramente.
Animais, c��es. Uiavam, rangiam. Eram uns per��
feitos animais.
��� C��es, c��es, c��es! A voz rouca e t��trica de Raul,
como uma f��ria, saiu em vulc��es atrav��s de sua gar��
ganta seca, caindo como ducha fria nos dois amantes
enrodilhados no ch��o.
Heitor pulou, acendeu a luz e aproximou-se do
sof��. Viu que Raul estava com os cabelos empapados
em suor, olhos fixos, parados. O rosto abrasado e as
m��os crispadas.
Os dois mo��os vestiram-se rapidamente e procura��
ram prestar ajuda ao j o v e m que se debatia, como em
pesadelo. Aos poucos Raul voltou da inconsci��ncia. A
voz de Heitor parecia vir de longe, muito longe. Ouvia
a pr��pria respira����o arquejante, num esfor��o enorme
para os pulm��es receberem ar. Sentia-se fatigado mas,
mesmo assim, quando viu o rosto de Heitor debru��ado
sobre o seu, sentiu-se vestido de uma for��a herc��lea,
que f��z seu punho fechado ir de encontro ao nariz sua��
do do amigo. Depois, cambaleante, saiu do apartamen��
to e, ante o olhar assustado do pessoal do elevador, deu
vaz��o ��s l��grimas, que jorravam dos seus olhos. Pen��
sou em sair correndo. Correndo para fugir. Mas fugir
para onde?
Estava outra vez completamente s��, fazendo parte
daquela imensa multid��o de paulistanos.
Novamente, os altos pr��dios eram admirados por
aquele olhar de um azul profundo, trazendo-lhe a recor��
da����o de que a seus p��s caminhava algu��m espiando
para dentro do seu ser. Via tudo ser assassinado aos
poucos. A ��ltima punhalada ainda sangrava abundan��
temente, e fora desferida por seu ��nico amigo.
��� ��nico a m i g o . . . mas, e o Jo��ozinho? Limpou
os olhos, levantou a cabe��a e com um p��lido sorriso
f��z sinal a um taxi.
Na Rua Volunt��rios da P��tria deram-lhe o novo
endere��o do pretinho.
Na Vila Guilherme. Raul dispensou o carro e bateu
��� 1 8 3 ���
�� porta de uma casa. Um homem mal-encarado o
atendeu.
��� Aqui n��o mora n e n h u m Jo��ozinho de S a n t o . . .
��� Mas, l�� no outro e n d e r e �� o . . .
��� O que o senhor quer dele?
��� B e m . . . fui criado no abrigo de menores j u n t o
com �� l e . . .
��� Deixe-o entrar, Portuga. ��le �� chapa. De bra-
��os abertos, com todos os dentes b r a n q u i n h o s aparecen-
do, Jo��ozinho veio para ��le. Que diabo o trouxe aqui.
amigo?
��� Ora, que p e r g u n t a ! Respondeu Raul, a p e r t a n d o
com a m��o aberta o pesco��o do pretinho, fazendo-o do��
brar-se sobre a barriga.
��� A nossa amizade n��o vale nada?
��� Claro. Mas n��o gostaria que voc�� me encon��
trasse assim.
O rosto do menino demonstrava uma tristeza
imensa.
J�� estavam no q u a r t o do rapaz. Raul sentia a tes��
ta m o l h a d a de suor e secura na g a r g a n t a , e n q u a n t o ia
olhando o que Deus reservara ao a m i g u i n h o , depois
do abrigo do governo. Um q u a r t i n h o com as paredes
sujas e m a n c h a d a s , de onde exalava um cheiro acre
de urina.
Uma cama com colch��o quase sem palha, coberto
parcialmente por um len��ol encardido, endurecido de
esperma, e sangue de pulgas. Sobre uma velha mesi��
nha, alguns cigarros, estojo, seringa, agulhas de inje��
����o. Na parede, uma blusa verde desbotada, p e n d u r a d a
em um prego. Raul voltou-se para encarar o amigo,
mas seus olhos ficaram colados a t r �� s da porta, onde
u m a figura mostrava Jesus, com doze anos, p e r a n t e
os doutores do templo. Como Jesus era belo! Os rolos
de cabelos dourados brilhando e os meigos olhos azuis.
Jesus sorria suavemente para ��le. Jo��ozinho seguiu
o olhar de Raul.
��� Est�� ali porque ��le se parece com v o c �� . . . e
t a m b �� m porque parece lavar toda a sujeira com que o
��� 184 ���
governo me cobriu. Essa lama que me cobre parece
feder menos quando olho para ��le.
Raul emocionado, n��o p��de responder.
Sentou-se na imunda cama, envergando-se com as
m��os, escorando a testa, e fitou demoradamente o ch��o
sujo de madeira apodrecida. Depois levantou o rosto
e encarou o amigo, que procurava fazer desaparecer as
coisas que estavam em cima da mesinha. Com voz
triste o chamou.
��� Jo��ozinho?
��� Sim.
��� Por que?
��� Por que o qu��?
��� Toda essa imund��cie.
��� O Brasil me ofereceu.
��� M a s . . . Jo��ozinho.. .
��� N��o h�� "mas", Raul. Voc�� vai dizer para eu
lutar, enfrentar tudo de cabe��a erguida, pois ainda
sou novo. Quando fugi da Col��nia Agr��cola de Ba��
tatais, tentei. Mas n��o existem portas abertas para
um semi-analfabeto, sem profiss��o, e ainda por cima
negro. Negro no Brasil �� jogador de futebol, cantor,
lixeiro ou marginal.
��� Mas voc�� n��o �� um marginal, Jo��o.
Jo��ozinho riu debochado, relanceando os olhos pelo
quarto.
��� E essa toca imunda pode guardar algo que n��o
seja um criminoso?
��� Jo��ozinho! Raul levantou-se e agarrou o preto
pelos bra��os. N��o fale assim. Voc�� ainda �� uma
crian��a e n��o sabe o que �� estar com uma mancha
rubra de sangue no c��rebro. Sangue que fizemos bor��
bulhar de um ferimento feito por nossas m��os, num
ser igual a n��s. Voc�� n��o sabe, meu amigo, o que ��
sentir em todos os minutos da vida, a sensa����o comi��
chando na m��o da gente, da faca entrando na carne
mole, e depois o cheiro de sangue. Isso n��o nos larga
mais. Eu n��o consegui esquecer, amigo. Penso que
'amais esquecerei.
185
Jo��o arrancou-se de suas m��os e encostou-se ��
porta, com as m��os para tr��s, olhando para Raul.
��� A possibilidade de ser um homem honrado, eu
a perdi nos abrigos do governo. O governo f��z gelar
as ra��zes do que se chama amor, afei����o, respeito. Eu
sei que tudo isso poder�� matar-me, mas meu cora����o
j�� n��o aceita * qualquer bom sentimento. L�� dentro
est�� tudo em sombras, tudo gelado, tudo e s c u r o . . .
Ah! Se algum diretor, algum vigilante, algum graduado
algu��m, uma alma qualquer, tivesse alimentado uma
luzinha, uma t��nue luz no meu esp��rito! Tenho certeza
de que a aumentaria pouco a pouco, at�� torn��-la lumi��
nosa, brilhante e jubilosa como o sol. Mas eles, os do
governo, jogaram-me neste po��o fundo, e f��tido. Sei
que n��o ficar�� s�� nisso. Eles ainda v��o encher o po��o
de estrume, lixo e lama e eu ficarei esmagado, sufo��
cado a t �� . . .
��� Jo��o, por Deus! Por esse Jesus que est�� acima
de sua cabe��a! N��o pense assim! Se voc�� praticou algo
errado, estou aqui para ajud��-lo a erguer-se. Agar��
re-se a mim. N��s dois n��o tombaremos. Vamos sair
dessa podrid��o. Vamos, v a m o s . . .
��� Para onde, Raul? Voc�� est�� na escurid��o, como
eu. N��o tente enganar-me, pois tamb��m a voc�� eles
fizeram sentir na escurid��o. O pior �� que vemos dia
a dia, reunir-se a n��s um parceiro. N��o tenho ainda
as m��os tintas de sangue. Ainda n��o matei. Meu
neg��cio �� no assalto. Estou metido numa quadrilha de
ladr��es assaltantes. Guardamos as mercadorias rouba��
das nesta casa e aqui temos nossas reuni��es.
Raul come��ou a andar pelo quartinho, com as duas
m��os apertando a cabe��a.
��� Por Deus, Jo��o! Voc�� n��o ter�� um jeito de sair
disso?
��� N��o, Raul! agora existe uma grande dist��ncia
entre eu e a sociedade. N��o posso mais incluir-me en��
tre os que esperam ter um futuro. Eu estou tombado.
Em dois anos tive mais de vinte passagens pela pol��cia.
Raul parou de andar e caiu pesadamente na cama.
��� Mas como voc�� entrou nessa? Olha que eu passei
��� 186 ���
o diabo. Dormi na rua, passei dias sem comer, mas
nunca pensei em me enchamerdear pelo crime.
��� ��, Raul, eu acho que o preto �� mais fraco. O
sangue do preto, penso eu, �� mais revoltado, grita mais
alto pela vingan��a. No come��o, eu tamb��m pensei em
me dominar, mas, Deus seja louvado, j�� era muito
tarde. No meu primeiro assalto, na hora em que esta��
va revistando os bolsos da v��tima abatida por mim
com uma coronhada, elevei uma prece ao Senhor, im��
plorando para que n��o o deixasse morrer. Lembro-me
que era uma noite escura e fria. Eu tinha vagado o dia
inteiro tiritando de frio e com pontadas doloridas no
est��mago vazio.
��� Sentia um suor gelado banhar minha testa.
Lembro-me que, por alguns instantes, tive a impress��o
de que ia desmaiar. Amparei-me no tronco de uma fron��
dosa ��rvore, assolada po*r um vento leve, jogando ao
ch��o in��meras flores em formato de orqu��dea. Olhei
meio estonteado aquela chuva dourada, quando um
carro freou bruscamente e, da portinhola, um j o v e m
perguntou:
��� Hei, est�� passando mal? Que �� que h��, chapa?
��� Estou com fome.
��� Fome? E voc�� vai cair de fome justo no bairro
mais elegante de S��o Paulo? E na rua Canad��? Burro,
hein, crioulo? Com fome a gente deve cair nos "moc��s"
dos companheiros. Venha, vamos dar uns giros por
a��, eu tamb��m estou duro e preciso levantar uma nota.
��� Entrei no carro e ��le logo me perguntou:
��� H�� quanto tempo voc�� est�� em perigo?
��� H�� dias eu fugi do Abrigo de Menores.
O mo��o deu uma cotovelada no que guiava.
��� Mais um daquele inferno. Quanto tempo voc��
ficou l��?
��� Entrei com seis anos e fugi com quinze.
��� Quer dizer que voc�� tem quinze anos? Juro que
lhe dava uns dez. Puxa, como voc�� �� franzino, deve
ter passado muita fome, hein chapa? Agora vamos ver
se voc�� �� linha de frente. Pegue essa "m��quina" e
��� 1 8 7 ���
v�� buscar a grana daquele trouxa que vem vindo. V��
logo, chapa e se n��o a s s a l t a r . . . bem, meu dedo est��
co��ando no gatilho, ent��o vamos ver de que c��r s��o
os miolos dos pretos. Foi dizendo isso e me empurran��
do para fora do carro.
��� Eu acho que nem precisava dar a coronhada,
pois o pobre velho, assim que viu a arma apontada
para o seu peito, ficou apavorado e pediu:
��� N��o me mate, garoto, por Deus. Vou indo para
o trabalho, tenho filhos pequenos que precisam de mim.
��� Meu dedo est�� co��ando, negrinho. Vamos, tra��
ga a grana do velho. A voz do bandido, l�� do carro,
e a voz tr��mula do velho ali t��o perto. Eu tremia
tanto! N��o sei porque o velho n��o dava um tapa no re��
v��lver e saia correndo. Que velho idiota! Mas logo ima��
ginei o motivo. Atr��s de mim, o mo��o do carro tam��
b��m apontava sua arma.
��� Raios o partam, negrinho filho da puta. Va��
mos, pegue a grana. D��-lhe uma coronhada na cabe��a,
vamos, e deu, ent��o, uns tirinhos.
��� N��o, n��o! Eu t e n h o . . . f i . . .
��� Nheque, nheque, nheque, o a��o no cr��nio do
velho, e eu pensando que uma maneira de sobreviver ��
matar. Levei um pesco����o.
��� Vamos, pegue a grana, negro mole. Acho que
n��o vai servir para o nosso bando. Como se aquele
velho estivesse a��, Raul, eu o estou vendo agora, com
as roupas velhas, desbotadas, e alguns trocados no
bolso. Uma terr��vel m��goa penetrou em meu cora����o,
enquanto eu olhava o sangue escorrer daquela feia fe��
rida em sua testa. Curvei-me para limpar-lhe o san-
gue, de repente, a cara do velho foi-se transformando
na cara do vigilante l�� da Col��nia, que quase me mas��
sacrou na ��ltima surra que me deu. A��, ent��o, fui
possu��do de uma for��a estranha, que me cegava, e me
levava a dar pontap��s naquela cabe��a envolvida pelo
sangue vermelho vivo. Quando a raiva passou, senti
que o mo��o do carro me contemplava com um sorriso
c��nico. Puxou-me pelo bra��o e empurrou-me para o
carro, dizendo ao que guiava:
188
��� Ele �� brasa, chapa. Poder�� ficar conosco. ��
um pivete que dar�� trabalho aos tiras. ,
Jo��ozinho calou-se. Depois virou-se para Raul, que
permanecia de cabe��a baixa, com os cotovelos apoiados
nos joelhos.
��� Vou ver se cavo alguma coisa pr�� gente c o m e r . . .
roce deve estar morto de fome.
��� N��o, agora n��o. Mas me conte o resto. Raul
levantou-se, apoiou a m��o na mesinha, ouvindo atenta��
mente o pretinho.
��� Desde ent��o, passamos a dar uma s��rie de as��
saltos. Como eu era magrinho, entrava pelo vitr�� das
casas, quando as pessoas estavam viajando, e abria a
porta para a turma. Depois comecei a dar ordens.
Agora aqui estou, comandando uma quadrilha de peri-
gosos delinq��entes. Esse a�� que lhe abriu a porta �� o
Portuga, chefe dos traficantes de entorpecentes. ��le
passa "fumo", "bolinhas", "garrafinhas". Com a gente
n��o tem problema, vai tudo. O engra��ado �� que a
gente, ��s vezes, tem medo. Sente um medo enorme
desse bruta burac��o que se cavou, e que vai ser a sepul��
tura da g e n t e . Mas n��o pode mais afastar-se, pois j��
se est�� praticamente enterrado. De um lado �� a pol��cia
que nos cal��a devagar, pois, se voc�� resolve regenerar��
se, arranjar um empreguinho e ir levando a vida, qual��
quer crime misterioso que acontece, a pol��cia vem �� sua
procura. De outro lado s��o os companheiros. Se a
gente pretende regenerar-se, nos chamam de covardes,
de sub-homens, e mais outras pedradas. A gente fica
com vergonha e cada vez se atola mais, s�� pr�� mostrar
que �� c o r a j o s o . . . Jo��o deu alguns passos de l�� para c��,
levantando-se, abaixando-se e levantando-se novamen��
te, batendo as m��os nas coxas.
��� Pois ��, chapa velho. Comecei a rolar com seis
anos e at�� agora n��o parei. Bem, agora vamos ouvir
voc��. Que est�� fazendo? Por onde tem andado? Acho
que n��o est�� muito feliz, hein? Sua apar��ncia n��o ��
das melhores. P��lido, nervoso, mal-arrumado.
Raul ficou pensando que, talvez, fosse um erro
ter vindo. Mas Jo��ozinho era o ��nico amigo que lhe
restava na vida.
189
��� Bem e u . . . quero d i z e r . . . trabalhava.
��� Trabalhava?
��� Sim, despedi-me hoje, p o r q u e . . . p o r q u e . . . Ora,
o porqu�� n��o interessa. Fiquei sabendo agora que n��o
�� t��o importante como os seus problemas.
��� Pioblem��s?! Que problemas? J�� os tive, quando
deixei a Col��nia. Comi at�� lixo. Mas agora, agora
pr�� frente, Raul.
��� Pr�� frente no crime n��o �� solu����o. Eu vou aju��
d��-lo a fechar o buraco.
��� De que maneira? Dentro do buraco existem vin��
te crimes, vinte advogados, que levam quase todo o di��
nheiro dos assaltos, e alguns pol��cias, que vivem abrin��
do a caixinha para a gente encher de grana alta. Se
n��o encher, cana alta. Cana. Cana.
��� Mas o mais importante n��o �� isso, chapa. O
mais importante �� como lhe d i s s e . . . dentro do peito,
dentro do esp��rito n��o h�� mais nada. Est�� vazio.
��� Podemos encher novamente. Tenha confian��a
no futuro. Eu tenho um conhecido que �� advogado, e
dos bons. Se eu pedir ��le o ajudar�� a tapar o buraco,
e gr��tis. Voc�� vai v e r . . .
��� Voc�� �� que vai ver, se eu sair daqui. H�� por
a��, escondidos, nas malocas, dezenas de policiais �� mi��
nha procura. Acho at�� bom dar o fora, pois se eles o pe��
garem aqui, voc�� ir�� para o belel��u. Voc�� sabe, n��? A
pol��cia, quando est�� �� procura de algu��m que tem mais
de vinte passagens, pode ter certeza, ��lej atiram mesmo ��
pr�� matar. Agora a pol��cia n��o est�� de brincar, n��o.
O pretinho pigarreou, observando Raul. Talvez fosse
uma boa id��ia eu mudar de ambiente, isso sim, pois na
pr��xima semana farei dezoito anos, e quero entrar na
maioridade como "mo��o" mais limpo, pois aqui tenho
a impress��o de que vou sufocar.
Enquanto o pretinho falava, Raul sentiu o esp��rito
perturbado, pois lembrou que n��o tinha para onde ir
e perguntou a si pr��prio se aquela apar��ncia jovial e
corajosa do amiguinho n��o estaria escondendo o horror
da solid��o de n��o ter um lar.
- 1 9 0 ���
��le sorria e estufava o peito, quando falava na
maioridade. Maioridade em um novo "moc��". Havia
qualquer coisa de estranho nos modos do menino Raul
percebia que ��le sentia-se mal com a sua presen��a.
Por isso levantou-se e despediu-se.
��� Bem, Jo��o, voc�� n��o quer mesmo tentar? Passar
uma esponja no negro passado, n��o ��? Pois bem, o que
importa agora �� que voc�� vai ser. Cuidado, amigo. O
senhor ser��, na pr��xima semana, o respons��vel pelos
seus atos. At�� aqui era o juizado. Mas daqui pr��
frente, cadeia. E voc�� sabe, cadeia faz da gente um
outro homem. Nos fomos feridos l�� no juizado por
uma por����o de coisas que n��o sabemos bem o porqu��,
mas cadeia fere a gente. Se voc�� j�� tiver uma ferida
aberta, eles j o g a m salmoura.
Jo��ozinho sorriu.
��� Eu n��o posso mais escolher, chapa. Tanto faz
o juizado como a cadeia. Jamais conseguirei esquecer
que o Brasil me feriu fundo e que transformou meu
mundo para sempre,' destruindo meu esp��rito. Agora
n��o adianta mais nada, nada, nada.
Raul chegou at�� �� porta e Jo��ozinho pulou �� sua
frente.
��� Calma, chapa, preciso manjar o caminho. Saiu
para o corredor e, pela fresta da porta da frente, relan��
ceou o olhar pelo bairro. Venha, Raul, a barra est��
limpa.
Eles se despediram, m��os nas m��os e, quando fixa��
ram-se nos olhos, Raul sentiu um arrepio percorrer-lhe
o corpo. Estava vendo aqueles olhos de doze anos atr��s,
quando o pretinho surgiu no banheiro em que ��le estava
se banhando, l�� no Abrigo de Menores da Celso Garcia e,
com os olhos cheios de desespero, implorou-lhe para es��
cond��-lo, pois o graduado queria espanc��-lo mais, devido
haver urinado na cama. Tamb��m agora seus olhos pa��
rariam pedir socorro.
Foi com essa vis��o que Raul comprou um jornal.
Apanhou um ��nibus para o centro e, lendo, chegou ��
cidade. Tinha recortado alguns an��ncios de emprego.
O que mais lhe interessou foi o de chofer particular.
��� 191 ���
XVII
O Sr. Ministro
A grande e- luxuosa mans��o enfeitava o Jardim
Europa. Seu dono, um milion��rio, ministro do governo,
homem de idoneidade indiscut��vel.
Raul fora contratado para ser o chofer da esposa
do ministro. Mulher bonita, alta, de trinta e seis anos,
cabelos negros e olhos aveludados, longos c��lios que
acariciavam Raul o tempo todo, atrav��s do espelho
retrovisor do luxuoso Mercedes.
Raul aprendeu a curvar-se ao abrir a porta e cha-
m��-la de 'madame". N��o era dif��cil lidar com uma
mulher milion��ria, fina, cheia de vontades.
Passava quase todas as tardes e parte da noite
encostado no carro, em frente ao fin��ssimo clube, en��
quanto a madame praticava esporte e fazia gin��stica,
sauna etc. Terminava a noite escostado no carro, en-
quanto a madame jantava, jogava ou participava de
festas. Dificilmente o sr. ministro a acompanhava.
Neg��cios de Estado o prendiam em companhia do pre-
sidente da Rep��blica.
Dormia num quartinho que dava fundos a um par��
que. Quando o dia come��ava a vestir-se de dourado,
levantava-se l�� pelas duas horas, quando come��ava a
vida da madame.
Almo��ava sempre correndo e jantava algum petisco
comprado em bares, enquanto a madame estava no clu��
be ou nas festas.
193
Tinha folga uma vez por m��s, e foi numa dessas
folgas que aproveitou para deixar o endere��o ao Jo��o��
zinho.
Com paci��ncia e respeito ele servia aos patr��es, at��
que madame sentou no carro e disse a Raul:
��� Eu vou guiar. Hoje n��o iremos ao clube. Va��
mos a Santos.
Vestida em mini-saia e uma blusa colante, fazendo
ressaltar os grandes seios, ela guiava com aten����o.
Uma vez ou outra, quando parava num sem��foro, olha��
va para Raul com um leve sorriso.
Embarcaram na balsa que os levaria ao Guaruj��.
Ela olhou para Raul, que havia encostado a cabe��a no
banco e fechado os olhos, tremendo, pois n��o queria
ver o lugar que lhe trazia t��o amargas recorda����es.
��� Pode acordar agora, j�� passamos o perigo.
Raul sobressaltou-se, 'levantou a cabe��a e fitou-a
assustado.
��� N��o fique assustado, o ministro est�� bem infor��
mado, e depois, tenho um amigo que o conhece, o qual
nos deu as melhores informa����es do mundo a seu res��
peito.
��� Um amigo?
��� Sim, S. Excia. o Juiz Paulo de Albuquerque.
��� Ei!?!
Um sol de fogo envolveu-lhe a cabe��a. Guaruj��
inteiro desapareceu. O rosto dela balan��ou num vai-e-
vem lento. Algu��m lhe batia no cr��neo com martela��
das doloridas.
O rosto dela estava bem pr��ximo do seu. Olhos
brilhantes, l��bios entre-abertos e ��midos. Sentiu-lhe o
perfume suave e o cheiro de f��mea.
��� Est�� sentindo alguma coisa?
��� J�� passou. Foram as recorda����es do crime.
194
��� Pensei que voc�� fosse desmaiar. S a b e . . . n��s
somos amigos do j u i z h�� anos e respeitamos muit��ssi��
mo as suas recomenda����es.
Se ��le nos disse que voc�� praticou um crime invo��
luntariamente, n��s n��o temos mais o que discutir.
Todos no mundo est��o sujeitos a se envolver em qual��
quer trag��dia sem querer. O ministro e eu o queremos
muito, por isso n��o se preocupe mais com o que pas��
sou, certo?
��� Certo. Raul respirou aliviado. Gra��as a Deus
eles n��o sabiam quem era S. Excia., o Juiz Doutor Pau��
lo de Albuquerque.
Passaram pela praia da enseada e se afundaram
em outras praias, todas solit��rias e tristes, naquela tarde
fria, chuvosa, negra e silenciosa.
A casa de madame era uma bela morada de praia,
como s�� pode ser a casa de um milion��rio.
Logo que entraram ela andou rebolante at�� o fundo
da grande sala. Ficando atr��s do bar, chamou o
mo��o.
��� Conv��m tomar algo, est�� muito frio.
��� N��o, obrigado. Raul permanecia de p��, com as
m��os cruzadas atr��s das costas, segurando o qu��pi. Ela
veio com dois copos de u��sque e deu um ao rapaz.
��� Beba, isto lhe far�� bem. Depjis pode tirar
essa farda horr��vel, vestir um biquini de banho. Olha,
ali naquele quarto h�� dezenas deles sem uso. �� s��
escolher.
Raul ficou olhando o biquini amarelo. Virava o
copo de c�� para l��, sem coragem de encar��-la. Sentiu
as orelhas arderem quando falou, fitando-a nos olhos.
��� Madame, permite que eu fique no carro?
Ela afundou-se na macia poltrona, esticou as per��
nas sobre um banquinho e, tomando o uisque aos go-
linhos, fixou Raul sem pestanejar.
Raul desviou a vista, pois a mini-saia tinha subido
��� 195 ���
tanro que toda a sua beleza de mulher aparecia envolta
em seda rosa transparente.
��� Sente-se, garoto. Se eu vim �� praia com voc��
�� porque me sentia muito s��. S��o Paulo, apesar de
oferecer-me tudo, est�� hoje para mim muito solit��ria.
Voc�� nunca se sentiu s��?
Raul n��o respondeu e continuou de p��.
��� Se voc�� quiser, poder�� passar um ��timo dia em
minha companhia.
Raul olhava os quadros na parede, os m��veis, os
bibel��s, os vasos. Foi at�� a janela, que estava com a
cortina descerrada, e fixou as ondas altas que se encon��
travam em um estrondo e depois deslizavam suavemen��
te, perdendo-se mar a dentro. Sem se virar, disse alto:
��� Tamb��m o mar, a praia, os coqueiros, as plantas,
as flores e a chuva s��o cheios de solid��o. Tudo o que
me cerca h�� vinte anos eu acho cheio de solid��o. Mas
a senhora do ministro, com seus amigos ricos! Sincera��
mente n��o acredito. Madame tem tudo na vida. N��o
compreendo.
Bebeu o uisque de um s�� gole. N��o compreendo,
repetiu. Ela veio at�� a janela com a garrafa de bebida
e encheu o copo do j o v e m outra vez.
��� N��o sou a mulher que todos pensam, meu bem.
Meu perene sorriso diante dos amigos, nas festas, nas
fotos das grandes revistas e jornais do Pa��s �� falso.
Eu coloco uma m��scara para essas ocasi��es, mas a ver��
dade �� que eu, l�� no fundo, sou infeliz. Falta-me o
principal: o amor. Entende o que quero dizer?
Raul abaixou a cabe��a. Ela apanhou o qu��pi de
sua m��o e o colocou no sof��, repetindo: entende o que
quero dizer?
��� E u . . . eu. Bem, eu n��o sou o homem que ma��
dame procura. Eu sou de classe inferior. N��o sirvo.
Esvaziou o copo novamente e, apanhando o qu��pi,
correu para a porta, mas parou bruscamente, quando
ouviu:
196
��� Ent��o �� fresco, como quase todos os que me
rodeiam.
Virou-se e andou com passos pesados at�� ela que,
rindo cinicamente, permanecia de p��, j u n t o �� janela.
Chegou o rosto bem j u n t o ao dela, estreitou os belos
olhos e, cerrando os dentes, ia falar, quando ela o
interrompeu.
��� Voc�� disse que n��o serve para mim. Como
sabe? O juiz a esse respeito sou eu.
Raul ia sacudi-la, mas mentalmente implorou a
Deus que lhe desse calma, pois precisava daquele em��
prego, como as plantas precisam de ��gua. Devido a
isso procurou alguma coisa para falar sem ofender uma
mulher daquelas.
��� Eu sou homem, homem macho. Tenho tudo
para dar a qualquer mulher. Tudo. Mas, por favor,
n��o me fa��a, n��o me obrigue a envolver-me com o que
mais detesto. Mulher velha com carnes fl��cidas, l��bios
brutais e cheiro, cheiro de suor.
Uma palidez de morte cobriu o rosto da madame.
Abaixou os olhos e Raul p��de ouvir as batidas do ��dio
que jorravam de seu cora����o. Por f i m . . . levantou os
olhos cheios de l��grimas.
��� Vamos para casa. Ela sentou-se no banco de
tr��s e n��o disse uma palavra at�� chegarem �� mans��o.
��� Pode guardar o carro.
Raul esticou-se na cama de seu quarto, e ficou o
resto do dia esperando, de minuto a minuto, que algu��m
batesse na porta, vindo dar-lhe a not��cia de que fora
despedido.
Ningu��m apareceu.
No dia seguinte como de costume, ��le estava encos��
tado no carro, estacionado na alameda da mans��o,
quando ela chegou de ��culos escuros.
��� Para o clube.
Raul sorria enquanto a observava pelo espelhinho.
Ela ficava olhando l�� para fora e Raul sabia que a
��� 197 ���
vaidade gritava em cada pedacinho da mulher. Na
carne, ossos, m��sculos, pele, nervos, tudo se retezava
quando ela se lembrava de que tinha sido ofendida no
mais fundo do seu ser. Velha e fl��cida. ��le tamb��m
estava consciente do que realmente ela representava.
Elegante, desej��vel, linda. Linda com aquelas coxas
acetinadas, um bronzeado brilhante. Aqueles olhos mei��
gos e luminosos. Aqueles s e i o s . . .
Como ��le a desejava!
Mas, seu emprego. O ministro t��o bom, t��o distinto!
Chegando ao clube, Raul saiu r��pido do carro, e
tirando o qu��pi, curvou-se, como sempre. Ela desceu
num repel��o e jogou no ar, com voz autorit��ria:
��� Siga-me.
A alta e elegante figura do j o v e m a seguiu com
um leve sorriso passeando em seus l��bios, mas levou
um choque quando o porteiro do clube o olhou com
desd��m.
��� Desculpe, madame, mas �� proibida a entrada
de choferes.
Madame virou-se afetada.
��� Hoje ��le n��o �� chofer, �� meu convidado. E de��
pois, sei que s�� �� proibida a entrada de choferes pretos.
Agora tamb��m os brancos? Isso para mim �� novidade.
��� �� proibida a entrada de empregados, minha se��
nhora. Mesmo as pagens que as patroas pagam uma
taxa especial para zelarem pelas crian��as, t��m entrada
por outro port��o.
Os olhos de Raul perderam-se l�� para o fundo do
aristocr��tico clube, onde brilhava no grande parque,
a encantadora piscina azul, coberta de coisas e pessoas
que andavam, deitavam, nadavam, numa balb��rdia en��
volta em risadas cristalinas. As alamedas floridas e
bem cuidadas, as frondosas ��rvores, jogando sombras
escuras nas pessoas esticadas nas longas cadeiras. Tu��
do isso o trouxe para a fria realidade. Existia um ne��
voeiro maci��o, cinzento e frio entre ��le e aquela so-
198
ciedade. O fator branco ou preto n��o ajudava muito
a cerrar aquela cortina nevoenta. O que valia mesmo
era o dinheiro. N��o sabia porque, mas lembrou-se do
dr. Antonio: "N��o interessa para a elite se a gente
arranjou o dinheiro vendendo o rabo'.
��. N��o era muito dif��cil romper o nevoeiro e
pular l�� para o outro lado, com montes e mais montes
de dinheiro para cobrir e mesmo afogar aqueles snobes
nojentos. ��le poderia desvanecer aquela extensa nebli��
na e renascer do outro lado, sentindo sempre aquele ar��
dor na sua dignidade de homem ou fortificando os cor��
nos do ministro.
Dos dois jeitos a cortina se abriria, mas s�� em pen��
sar nisso Raul sentiu-se t��o sujo, t��o enlameado que f��z
sua mente correr para buscar algo, em qualquer lugar
do infinito. O pensamento alcan��ou o o��sis na figura
do menino Deus, pendurada atr��s da velha porta do
quartinho imundo do Jo��ozinho.
Depois de receber uma polpuda gorjeta da madame,
o porteiro olhou para Raul e disse, guardando o dinhei��
ro no bolso:
��� Precisa entrar sem a farda.
Raul deixou no carro a t��nica, o qu��pi e a gravata
e com a camisa azul aberta ao peito, entrou no clube
olhando de soslaio para a bela mulher que seguia ao
seu lado, com um ar de aventureira h��bil, procurando
lev��-lo sob seus passos ou atra��-lo para uma cilada. ��le
n��o se recusara a segu��-la s�� por curiosidade.
O que pretendia mostrar-lhe a rica senhora?
Sentiu-se como um grande astro representando uma
com��dia, quando esticou-se nas almofadas de uma es��
pregui��adeira e, sorrindo, fixou as pontas lustrosas dos
seus sapatos. Adivinhariam os que o observavam ad��
mirados, que eram sapatos de um chofer? Da ponta dos
sapatos, seus olhos foram para madame que, rodeada
de rapazes, voltava num min��sculo biquini branco.
As m u l h e r e s . . . as mulheres s��o todas iguais, pen��
sava ��le. Tanto faz ser pobre ou rica. Quando se
��� 199 ���
v��m rodeadas de homens, ficam daquele jeito, como
cadelas no cio. Ela se jogou em uma cadeira em frente
a Raul e falava e falava, com cs belos dentes a mostra.
Os mo��os sentaram-se no ch��o, com as pernas cruza-
das fazendo parecer que seus sexos queriam voar bi��
quini afora.
Madame punha em execu����o seu plano. Queria
que Raul visse o quanto era querida e admirada por
rapazes jovens, bem mais jovens do que ��le. Queria
mostrar que mulheres de meia-idade ainda s��o jovens.
Que n��o precisava tentar ficar com os jovens, eles ��
que vinham a ela. Mostrava languidamente que o seu
corpo ficava t��o bem num biquini como uma mo��a de
quinze anos. Estava ali com os seus quase quarenta
anos, querendo ser disputada para o jogo de t��nis, o
banho na piscina, a corrida a cavalo, o jogo carteado
e t c , por jovenzinhos que poderiam ser seus filhos. N��o
queria imitar as mocinhas, que diziam nunca mudarem
porque eram jovens, e que mudava era quem queria
entrar no mundo delas, ou seja, essas donas j�� maduras.
Ela n��o, procurava ser aut��ntica no seu im�� de atrair
mo��os para o seu lado.
Foi quando ela o chamou para a beira da piscina,
depois de p��r a nocaute um j o v e m de dezoito anos, que
disputara com ela idas e vindas a nado. Chegou at��
Raul engolindo o ar aos solavandos, e disse:
��� Eu ganhei, e saiba que ��le �� mais jovem do
que voc��.
Raul compreendeu onde ela queria chegar e disse,
curvando-se:
��� J�� a entendi, madame. Agora pe��o permiss��o
para ir-me e recolocar a farda.
��le a observava jogar para tr��s, com as m��os, os
cabelos molhados, abrindo os olhos, com aquele brilho
de quem est�� ofendido.
��� Aposto que voc�� n��o entendeu. Segurou com
tanta for��a o bra��o do jovem, que este sentiu as unhas
cravarem em suas carnes.
200
��� Entendi, sim, madame. N��o sou assim t��o es-
t��pido e depois, n��o gostei do seu contato.
��� Que contato?!
Raul fitou a m��o morena e bem tratada.
��� Ah! Ela retirou a m��o rapidamente e finou es��
carlate. O que tem o meu contato?
��� Enoja-me.
��� Como se atreve? Os olhos dela fuzilaram.
��� Estou sendo sincero. Eu n��o sou como qualqusi
um desses jovens arrogantes, que freq��entam esse lu��
xuoso lugar, se portariam numa hora dessas, quando
tivessem diante de si, oferecendo-se escandalosamente
para ser penetrada, uma mulher que poderia ser sua
m��e. M��e muito necessitada. Penso e u . . . Raul sentiu
um zumbido forte no ouvido, quando levou a bofetada.
��� Palavra de honra, pensava Raul, enquanto pro��
curava o caminho da sa��da. N��o h�� nada que se possa
comparar com uma mulher sedenta de amor. Elas
s��o capazes de tudo. Essa agora cismou comigo. Puxa
vida! Que falta de sorte! Era a mulher de seu patr��o.
Se fosse lev��-la para a cama, s�� como distra����o, tinha
certeza de que nunca mais poderia libertar-se e teria
de ficar vivendo com aquela horr��vel sensa����o de que,
a qualquer hora, seria devorado por ela. A mulher,
pelo jeito, s�� pensava naquilo.
E tudo aconteceu exatamente como Raul deduzira.
Raul estava deitado em seu quartinho, quando o
chofer particular do ministro entrou e lhe disse:
��� Sabe que a cidade est�� limpinha de mendigos?
O governador mandou recolher todinhos.
��� ��timo. O jovem sorriu. Eles precisavam mes��
mo ter algu��m que olhasse por eles, coitadinhos. Espe��
ro que encontrem um tratamento humano e decente.
�� chocante ver tanta gente jogada daqui para ali, num
Estado t��o rico como �� S��o Paulo.
O chofer bateu o jornal dobrado que tinha nas
m��os, nos p��s de Raul.
��� 201 ���
��� Ora, bobo, n��o se iluda, �� s�� por um dia que eles
ter��o amparo. Depois da visita da Rainha Elizabeth
II da Inglaterra, eles ser��o jogados na rua novamente.
Raul n��o respondeu. Tamb��m, responder o que?
��� Tem mais, continuou o chofer. Hoje n��s vamos
ter a honra de conhecer essa tal de rainha Elizabeth.
Raul o olhou interrogativamente. Os sal��es da mans��o
ser��o aberto para render-lhe uma homenagem. Diz o
patr��o que ser�� uma festa informal. Voc�� vai ver
hoje o que �� festa. Por falar nisto, eu trouxe-lhe um
recado do mordomo. �� para voc�� vestir o uniforme de
gala e n��o esquecer de usar as luvas brancas. Haver��
muitos convidados que n��s teremos de levar para casa.
quando desejarem.
Da j a n e l a do seu quarto, Raul avistava, atrav��s das
in��meras ��rvores do grande parque multicolorido, pes��
soas que rodopiavam ao som de uma orquestra invis��vel.
J�� ia alta a noite, quando algumas pessoas come��aram a
retirar-se da bela recep����o que reuniu o mundo oficial
e militar e a sociedade brasileira.
Atendendo ordens, postou-se de m��os para tr��s,
para atender aos convidados.
Olhava distraidamente para o ch��o, quando o outro
chofer lhe disse:
��� Como o seu carro est�� na frente, voc�� leva aque��
le senhor que vem vindo em companhia de madame.
Raul levantou os olhos para o casal que vinha
chegando, e como um louco, saiu correndo. J�� quase
perto do quarto, encontrou um empregado, pedindo pelo
amor de Deus dizer �� madame, se ela o procurasse, que
estava passando mal e n��o podia trabalhar.
��� Ele deve estar muito mal mesmo, pois estava
branquinho como um len��ol e suava por todos os poros,
dizia o empregado para a mulher do ministro, enquanto
o outro chofer levava o dr. Paulo de Albuquerque atra��
v��s da imensa alameda, circundada por entre roseiras
que embalsamavam o ar com um aroma suave. Se��
guindo uma outra alameda igual, madame caminhou a
202
passos felinos e com a cabe��a levantada, aspirando apres��
sada o cheiro de macho que vinha do quarto de Raul.
Empurrou a porta, entrou e encontrou, surpresa
nas duas chamas azuladas que iluminavam o corpo nu,
alto, elegante e musculoso daquele j o v e m bronzeado de
cabelos de ouro.
Recuperando a sua presen��a de esp��rito, o j o v e m
enrolou rapidamente a toalha, colocando-a em volta de
seus quadris.
��� Desculpe, madame.
O olhar dela, cheio de risos se alongou para o sexo
do homem, agora encoberto, trazendo uma umidade ver��
melha e ardente para seus l��bios.
Sua beleza ampla de mulher fina e bem tratada ia
passo a passo se aproximando dele que, im��vel, aguar��
dava com o cora����o aos pulos. Sentiu a espuma rosa
de seu vestido de plumas brincar com os p��los do seu
t��rax, mas era nos p��los l�� de baixo que ��le sentia uma
ligeira comich��o, fazendo com que seu sexo tremesse,
como se tocado por um vento gelado de inverno. Raul
tragou o f��lego e se afastou alguns passos, encontrando
como ��ltimo ref��gio a parede. Estava encurralado.
De repente ��le se lembrou que tinha j�� passado por
muitas situa����es assim, l�� no juizado, quando era pe��
queno e ia ser castigado. O graduado, em sua frente,
com os olhos cobertos de ��dio, com a chibata na m��o,
e ��le pulando assustado de l�� para c��, at�� achar um
jeito de sair. Mas nunca conseguiu. Tamb��m n��o
haveria de escapar agora, quando sentiu, em vez de
lambadas em suas costas, as m��os macias e suaves de
madame que o alisavam, o apertavam e o amassavam.
Suas m��os estavam ca��das ao longo dos bra��os e fazia
um esfor��o enorme para que eles permanecessem assim
para sempre. Pensava em seu emprego. N��o podia
perd��-lo. Ai, Deus do c��u, n��o permita que minhas
m��os se mexam. Ela esmagava os l��bios grossos e sen��
suais contra os seus e, com uma das m��os arrancou a
toalha e foi ao encontro daquele nervo enorme e duro,
esticado e latejando freneticamente.
203
Uma raiva esquisita perpassou pelo seu esp��rito.
N��o queria estar daquele jeito. N��o queria, n��o devia.
Seus dedos abriam e fechavam e suas m��os iam subindo,
subindo, e seu c��rebro j�� n��o obedecia, pois o desejo
de f��mea urrava dentro do seu ser, e s�� tinha um pen-
samento : entrar na mulher, fosse ela patroa, empregada,
rica, pobre, casada, solteira. Ela, a mulher do ministro,
largou-se num abandono, oferecendo-se toda. Como um
louco, ��le beijou-lhe a boca, o pesco��o, os cabelos. ��s
vezes fazia sua l��ngua ��vida entrar na orelha, onde pen��
diam brilhantes que chocavam seu brilho com o p��lido
clar��o do luar infiltrando-se pela janela aberta. Pro��
curou seus seios, e ela, gemendo, os tirou de entre as
sedas de seu modelo parisiense, oferecendo-os ��queles
l��bios sequiosos, que os sugavam com tanta f��ria que
ela pensou que fosse at�� �� alma. Ela queria arrancar
o vestido e ser possu��da logo, pois o seu sexo la tejante
n��o podia esperar, mas ��le achou melhor s�� suspend��-
lo e, quando sentiu que ela n��o tinha nada por baixo,
viu redobrar o desejo. Respirando forte, for��ou, empur��
rou, empurrou para que tudo coubesse l�� dentro e, se��
gurando-a fortemente pelos quadris, levou-a �� loucura,
em estocadas profundas. Madame gemia e se retorcia,
gritava, chamava por ��le. Por um segundo, na mente
de Raul f��z-se um clarozinho de deboche, pois ��le era
a crian��a de ningu��m, o menino criado no asilo do
governo, assassino, analfabeto, estava deitado em cima,
misturando suas carnes nas carnes de uma das mulhe��
res mais vaidosas do Brasil. Uma mulher que s�� nesse
momento trazia sobre seu corpo j��ias que dariam para
matar a fome, durante anos, de crian��as asiladas. Mas
isso foi s�� pensamento de segundos, porque, sentindo
aquele corpo rebolar debaixo do seu, em gemidos acom��
panhados de breves gritos, n��o havia crian��a abando��
nada ou o diabo que o valha que o poderia deter. Ma��
lhava, malhava, com todas as for��as de seus vinte e
dois anos at�� sentir-se jorrar dentro dela. Depois, de��
pois, chegados um ao outro, e escutando a m��sica que
vinha l�� da festa, ela perguntou-lhe num sussurro.
��� Voc�� gostou dessa carne velha?
��le sorriu, pulou da cama, enrolou a toalha na cin��
tura e foi para o chuveiro.
- 204 ���
Ela levantou alizando o vestido.
��� Voc�� n��o respondeu.
��� Voc�� n��o se limpou.
��� N��o vou faz��-lo, pois quero sent��-lo comigo. Mas
voc�� n��o respondeu �� minha pergunta.
Nisso ouviram uma voz chamando o mo��o. ��le,
com a garganta a sufocar, foi at�� a janela, com a ��gua
a lhe escorrer pelo corpo.
Era um dos empregados, que o chamava para co��
mer algo.
Raul fechou a janela, pedindo ao empregado que o
esperasse. Vestiu-se rapidamente, e curvando-se ante
a madame, disse:
��� Vou com ��le para limpar o caminho. Ela o
agarrou, e beijando-lhe a boca, disse:
��� L�� fora gritarei toda a noite �� lua, ��s estrelas,
��s ��rvores, ��s flores, ao ar, que o amarei sempre. Mas,
responda por Deus minha pergunta, Raul.
��� Voc�� �� a velha que tem as carnes mais mo��as
do mundo.
Os dois jovens foram at�� a cozinha. Raul comeu
com apetite e depois saiu para um passeio e seus passos
o levaram para a frente da mans��o.
Fumando encostado numa ��rvore, ��le olhava l��
para dentro da mans��o os convidados dan��ando. Es��
treitou os olhos para ver se entre aquele amontoado de
smokings e elegantes modelos coloridos, divisava a sim-
p��tica e elegante rainha. Seus olhos encontraram ma��
dame, que rodopiava jovial e risonha nos bra��os do
marido. Bateu a cinza do cigarro e sorriu, quando
lembrou que a poucos momentos ��le estava dentro dela
e a g o r a . . . agora a cortina de neblina estava cerrada
diante de seus olhos. Do lado de l�� o dinheiro e do
lado de c �� . . . Mas s�� que dessa vez a cortina n��o estava
totalmente fechada. Tinha um rasg��o por onde ��le
via l��, no luxuoso sal��o, alguma coisa sua. Sim, pelas
belas e morenas coxas da linda mulher da sociedade,
corria o seu esperma.
205
No dia seguinte madame amanheceu alegre e can-
tando. No momento em que Raul passou sob as jane��
las de seu quarto para ir lavar o carro, olhou para
cima, quando a ouviu cantar e divisou, n u m amontoado
de rendas e fitas, o rosto cheio de risos, que lhe atirava
beijos. Admirou-se por ela estar acordada ��s sete ho��
ras da manh��. Ela tinha'horror de levantar-se antes
das quatorze. Pensou sorrindo: �� uma f��mea satis��
feita, uma f��mea feliz.
Apanhou o balde d'��gua e come��ou a ensaboar o
pano, quando aquela m��o morena e bem tratada, cober��
ta de j��ias, arrancou-lhe o sab��o.
��� Querido, disse baixinho. Vamos passar nossa
lua-de-mel no Guaruj��?
��� M a s . . .
��� N��o tem "mas" nem meio "mas". O ministro
vai para a Europa e eu n��o quis acompanh��-lo por sua
causa. Est�� ouvindo? Por sua causa.
��� Madame, eu n��o posso ficar muitos dias, prometi
a um amigo que iria visit��-lo esta semana.
��� Ora, meu bem, passaremos por l�� e voc�� far��
a visita antecipadamente.
Raul sobressaltou-se
��� L��?!
��� Sim. Est�� com ci��mes que conhe��a o seu
amigo?
Se ela soubesse! Raul divisou mentalmente o bairro
imundo, a casa caindo aos peda��os, e o sujo quartinho
do seu amigo. N��o, n��o. Preferia ir na volta. Entrou
no carro cheio de raiva, pois n��o era aquilo que buscava.
Queria trabalhar em paz mas nada contribu��a. Sempre
entrava em complica����es. Que chata! E agora aquela
m u l h e r . . . Bem, ficar em cima dela, em embalos ascen��
dentes e descendentes, com viol��ncia ou docemente, n��o
seria problema. Mas o ministro! ��le n��o merecia, era
t��o bonzinho!
206
XVIII
A Rainha da Inglaterra
��� Ele �� bonzinho, mas murcho. Ainda �� muito
mo��o, pois n��o tem quarenta e seis anos, mas vem sem��
pre esgotado. Voc�� sabe, pol��tica �� uma calamidade,
est�� quase sempre cansado para a cama.
Estavam sentados na areia, em frente ao mar. Ela
deitou-se com a cabe��a no colo dele.
��� Voc�� sabe, ainda sou j o v e m e preciso ao amor.
Vai ser triste, quando tiver de voltar. Sou t��o feliz aqui!
Ele afagou-lhe o rosto, em sil��ncio. J�� que esta��
vam juntos, tinhaqueser gentil. Ele n��o queria j u l g a r
nada, s�� que n��o ia dar certo. Nesses poucos dias, na
praia, madame mostrava uma fome sensual inesgot��vel.
Ele a sustentava, como o ar sustenta os p��ssaros livres:
oferecendo-se todo, com brisas leves e suaves ou com
rajadas violentas, na profundidade infinita. N��o que
isso importasse, ele tinha tanta pe��onha dentro de si
que daria para fazer inveja ao mar. Mas ele queria era
trabalhar. Trabalhar. E trabalhar como?
Como agora. Ela deitada de barriga, com o rosto
a fu��ar no meio de suas pernas, procurava o macho, e
n��o tinha passado meia hora que a tivera debaixo de
si, solu��ante e tr��mula. ��, ela n��o tinha jeito. Esti��
cou-se na areia, deitado de costas e arrancou o cal����o
de banho, mostrando ao sol ardente, ao c��u de um azul
puro e ao pl��cido mar, a sua juventude ereta. Gritan-
207
do virilmente, perdeu-se latejante dentro da boca fa��
minta da mulher.
Seus olhos se perdiam nas labaredas azuladas do
infinito, sentindo correr por suas veias o fogo que o
deixava embriagado.
Todo ��le se retorcia, estrebuchava dentro daquela
boca quente. Agarrou-a pelos cabelos, puxando-a para
cima de si. Focinhou nos seios morenos, mamou nos
bicos arroxeados e duros. Gritos, gemidos e choramin��
gos vinham daquele rosto suado, transfigurado sobre o
seu, onde os olhos se abriam assustadoramente. Bru��
talmente a jogou para o lado e, caindo-lhe por cima,
tentou tirar-lhe o biquini, mas ela j�� o tinha feito: ��le
mesmo n��o sabia como. Livre, rijo, entrou desvairado
na luta de carnes contra carnes.
Forcejou em movimentos lentos, naquele entra-e-sai.
Conforme a sentia mexer-se debaixo dele, ia acelerando
os movimentos, at�� atirar-se, em punhaladas profundas
e apressadas.
Resfolegando como um animal, ela o mordia, beija��
va-o, arrancava-lhe os cabelos e cravava as unhas em
suas costas, depois ficava mole, ca��da, sobressaltando-se
com qualquer toque em seu corpo.
Deitado de costas ao seu lado, Raul pensou que
aquela luta terminada haveria de deix��-la satisfeita por
uns dias.
��� Foi tudo t��o lindo, amor! Gostaria que, logo
mais, voc�� usasse esse mesmo m��todo de malhar, malhar
insistentemente com essa arma sem ponta, as minhas
entranhas. Oh! Deus, como �� maravilhoso!
Raul sentou-se r��pido e olhou-a assustado.
Ela estava de p��, vestindo o biquini.
��� Que olhos assustados! Disse algum inconve��
niente?
��� N��o. Raul riscou a areia com o dedo. S�� que
essa luta foi t��o grande para mim, tal como uma tor��
menta, e para voc�� f o i . . . f o i . . .
��� 208 ���
Sua gargalhada cortou o ar.
��� Uma chuvinha. Ora, bem, voc�� tem vinte e
dois anos. Eu j�� sou uma velha. N��o foi isso que
voc�� disse a primeira vez que aqui viemos? Lembra?
Foi l��, bem pertinho daquela janela.
E sua m��o apontou a luxuosa casa de praia.
Um m��s na praia e voltaram para a mans��o.
O chofer do ministro olhou perplexo para Raul.
��� Como a mulher o chupou, rapaz! Voc�� est��
com o rosto encovado. �� incr��vel como emagreceu!
Nossa Senhora!
Raul ficou escarlate.
��� Que mulher? Voc�� deve estar sonhando.
��� Ora, menino, essa mulher enlouquece qualquer
um. O outro n��o aguentou e deu o pira. Parou de
falar e foi at�� a janela, relanceando o olhar pelo par��
que. Bem, estou lhe falando isso porque tamb��m vou
dar o fora desta mans��o, pois o ministro est�� com os
bofes fora do lugar. Sabe que a mulher estava com
o neg��cio co��ando todos os instantes e pensa at�� que
ela voltou toda inchada, ou sei l�� como. Ela �� doente,
sabe? O ministro n��o pode fazer dessas extravag��ncias
de chegar ao osso. Ent��o d�� as suas escapadinhas
para o Exterior. Mas quando volta, fica nervoso e
amargurado. Sabe como ��, ��le a ama profundamente.
��� N��o sei do que voc�� est�� falando, disse Raul,
ligando o r��dio e fazendo o quarto encher-se de sons
musicais. O chofer praguejou e saiu.
Nos dias que se seguiram, o mo��o n��o teve um
momento de descanso. Madame, em vez de ir ao clube,
como fazia sempre, o levava para o apartamento no
centro da cidade e a�� passavam as tardes.
209
Ela comprava jornais e revistas, que ficavam lendo
depois das lutas sexuais. Uma tarde, ao ler o jornal,
Raul viu que fora formado um "Esquadr��o da Morte"
na policia, que estava limpando a cidade de criminosos
irrecuper��veis. Estremeceu ao pensar em Jo��ozinho, e
decidiu visit��-lo.
Olhou para madame, que preparava algumas be��
bidas.
��� Amanh�� n��o virei aqui.
Ela encolheu os ombros e n��o disse nada.
��� Escutou?
Ela limitou-se a olh��-lo e n��o disse nada.
��� Responda.
��� Ela chegou sorrindo, com os dois copos cheios de
bebida c��r de ��mbar.
��� Sei que voc�� vir��. Ela estava sufocada de ci����
mes, mas n��o queria que ��le percebesse. Queria que
alguma id��ia lhe assomasse a mente, pois n��o queria
ficar sem ��le nenhum dia.
��� N��o, n��o virei.
��� Querido, amanh�� pensei em ir ver o carro que
lhe prometi. Lembra, combinamos que ia emprestar
o dinheiro para voc�� colocar um carro na pra��a. Voc��
n��o ia ser s��cio de um tal Jo��ozinho?
��� �� esse amigo que quero visitar amanh��. ��le
Erecisa saber que h�� um jeito de recuperar-se pelo tra-
alho. Ela o beijou, mostrando a fome sensual nos
olhos.
��� Ent��o a visita ao amigo fica para depois de
amanh��, t��?
No dia seguinte ela o usou a tarde inteira na cama.
e quando se lembrou de comprar o carro j�� era noite.
Raul voltou para o seu quartinho amargurado, e
l�� encontrou o chofer que estava se despindo. Os olhos
do chofer eram maliciosos, quando Raul lhe contou
210
que tamb��m ia embora, pois a madame tinha lhe pro��
metido emprestar o dinheiro para um taxi e . . .
��� �� mentira, bobo. Ela �� uma vagabunda. Com
os outros ela f��z a mesma coisa. �� desculpa para ter
mais um dia um caralho para satisfaz��-la. N��o v��
nessa. Caia fora logo, sen��o voc�� se afunda. A co��
zinheira disse que ouviu a madame dizer a seu respei��
to a uma amiga:
��� N��o o largarei nunca, pois ��le tem um p��nis
maior que o de um cavalo. Disse que voc�� j�� a usou at��
por tr��s.
Raul pulou como um animal feroz.
��� �� mentira. Eu nunca faria isso. Por tr��s nun��
ca! Lembrou-se do juiz e seu ��dio aumentou. Nunca!
Aquela catraia mentirosa !
Raul n��o dormiu �� noite pensando, e de manh��,
tomou uma resolu����o: ia embora da mans��o. Foi falar
com o mordomo, e este arreganhou os dentes, dizen��
do-lhe :
��� Acho que a sua cabe��a est�� funcionando muito
bem, meu rapaz. Desejo-lhe toda a sorte do mundo.
Os port��es se fecharam em suas costas, e em seu
c��rebro encontrou a pergunta de sempre:
��� Para onde ir?
211
XIX
O Esquadr��o da Norte
Jo��ozinho j�� tinha mudado de "moc��" e foi uma
dificuldade tremenda para Raul encontr��-lo, l�� no Alto
da Vila Maria. Afinal abra��aram-se rindo,
��� Meu Deus! Exclamou Jo��ozinho. Quem n��o
est�� morto sempre aparece. Que diabo o trouxe ao
meu "moc��"?
Abra��ou o rapaz pelo ombro e o puxou para o
centro do quarto. Os dois fixaram-se e sentiram que
crescia dentro deles a onda de afei����o que nutriam
um pelo outro.
��� Tire o palet��, companheiro velho, e vamos beber
alguma coisa. Olhou �� sua volta, satisfeito por poder
receber o amigo no quarto luxuosamente mobiliado.
��� �� um quarto para despistar a pol��cia. O neg��cio
agora est�� dando at�� para comprar uma casinha. Estou
com uma "caranguejeira", fazendo transplante em
"fuscas".
Raul aceitou a bebida, olhando interrogativa��
mente.
��� O neg��cio �� f��cil, chapa, a gente alugou este
armaz��m para guardar os Volks que alguns dos inte��
grantes da quadrilha roubam. Depois a gente se man��
da com os "carangos" l�� para um lugar de mato cer��
rado, perto de S��o Roque, e l�� trocamos o n��mero do
motor e do chassis.
Raul balan��ava a cabe��a com o semblante s��rio
213
��� Ningu��m vai pegar a gente n��o, chapa, pois
sabe como �� a nossa oficina l�� no mato? Entrasse por
uma rampa e vai-se para l�� num subterr��neo ilumi��
nado a pilhas.
A porta da oficina existe uma por����o de plantas,
colocadas em cima de uma chapa de a��o m��vel. Quan-
do voc�� chega "v�� s�� mato, mas depois a gente faz fun��
cionar uma alavanca que movimenta a chapa nos trilhos
e a afasta para o carro entrar.
��� Olha, eu n��o sei explicar muito bem, mas levo
voc�� l�� qualquer dia desses.
��� Quer dizer que voc�� n��o vai mesmo mudar de
vida?
Quando o pretinho ia responder, entraram dois
rapazes e cochicharam qualquer coisa em seu ouvido.
Jo��ozinho caminhou afobado para a porta do fun��
do e desapareceu, deixando no ar sua voz.
��� Fique �� vontade a��, hein, chapa. Daqui h��
pouco estamos de volta.
Voltou e entrou como um roj��o no quarto. Com
o rosto todo lambuzado de sangue, que lhe ca��a sobre
a camisa rasgada. Raul correu para ��le.
��� Que raio foi isso?
��� Pol��cia.A Fuja, Raul, fuja. Eu j�� estava no
"fusca" da Policia, mas lutei com os tiras para vir
lhe avisar.
Raul ficou branco, e batendo uma m��o contra a
outra, correu para a porta.
��� Onde pensa que vai, hein, cara?
Raul recuou uns passos, com os olhos fixos no
rev��lver do tira, ouvindo a voz do amigo.
��� Esse �� um amigo que veio me visitar. Com
��le n��o h�� sujeira.
O agente riu seco e curto, algemando Raul enquanto
o tira colocava as algemas no pretinho, que falava,
nervoso:
��� Assim n��o d�� p��! ��le n��o f��z nada. Pol��cia
�� pr�� prender criminosos, n��o i n o c e n t e . . . e u . . .
Levou um pesco����o do tira, que disse:
��� V�� andando, v��, ti����o. Se voc�� tiver algum
papo, esclare��a l�� na delegacia.
��� Mas a barra dele est�� limpa, juro.
O policial riu, empurrando os presos.
��� Jura pr�� quem?
��� Juro por Deus.
��� V��, v��, negrinho, quem acredita em bandido,
s�� mesmo se f��r "boca mole". Isso quer dizer, s�� se
voc�� f��r alcagueta, assim a gente acredita e perdoa
muita coisa.
Foram para o recolhimento Tiradentes, sendo jo��
gados numa cela com mais alguns presos, que logo co��
me��aram a dizer coisas que eles *n��o entenderam,
procurando, isso sim, ficar o mais longe poss��vel dos
mesmos, num canto da cela. Encostados na parede,
discutiam o que fazer, quando um dos encarcerados
chegou bem perto de Raul e disse, c��nico:
��� Hei, voc�� a�� com essa camisa azul, deve ser
veado, n��? N��s (e estendeu a m��o para a cela) resol��
vemos comer o seu cu.
O sangue do rosto de Raul desapareceu e, como
um possesso, pulou sobre o homem, derrubando-o e
enchendo-o de socos. Os outros procuravam arranc��-lo
de cima do colega, quando tiveram pelas costas pon��
tap��s, socos e mordidas do pretinho, que gritava louca��
mente pelos guardas, que entraram fazendo funcionar
o cassetete.
Jo��ozinho levou uma borrachada na cabe��a e cam��
baleou at�� j u n t o do amigo, que esfregava o punho
ensanguentado.
��� Como est�� se sentindo?
��� Bem.
��� Bem feito! Voc�� foi valente, hein?
��� Mas voc�� se machucou.
��� Ora, �� uma coisa �� t��a. Jo��ozinho via que
Raul estremecia e suava abundantemente, mordendo
os l��bios.
��� Voc�� tem certeza de que est�� bem, chapa?
��� Que diferen��a faz?
��� Chamo o guarda que est�� a��, em frente da cela,
e v o c �� . . .
Raul apertou a fronte.
��� N��o, n��o, Jo��o. Meu neg��cio �� que n��o posso
ver grade.
Os presos novamente come��aram a rodear, com
caras petulantes de debochadas, falando entre dentes.
��� Depois que os guardas mudarem, n��s vamos te
enfiar no cu de qualquer maneira.
Raul j�� tinha preparado os punhos, quando o pre-
tinho interveio:
��� Te aguenta a��, chapa. Quietinho, hein? Em-
purrando os presos, foi at�� o guarda e, chamou-o, co-
chichou algo que f��z com que ele, a passos largos, fosse
at�� o diretor.
O guarda voltou, abriu a cela, algemou Raul e
Jo��ozinho e os levou ao diretor.
O diretor e dois investigadores os receberam. Um
dos tiras perguntou:
��� Qual �� a nuvem?
��� Primeiro a promessa de soltarem meu amigo,
que n��o tem nada com os meus crimes. Ele estava
de visita.
��� Primeiro fala pr�� ver se interessa.
��� Interessa o esconderijo dos "Crioulos Doidos"?
��� Os agentes pularam da mesa em que estavam
sentados, enquanto Raul, com os olhos fuzilando, gri-
tava:
��� Voc�� est�� louco, Jo��ozinho. Se voc�� alcaguetar,
est�� morto.
��� Ora, disse o tira, ele diz que deu a dicha s��
no "canibau" (1)
(1) Nome que os presos d��o ao Pau de Arara
��� 216 ���
��� Nessa hora eu n��o tenho em mente o "c��digo
de honra"dos bandidos. Eu quero "bater uma caixa"
com os senhores, porque quero salvar meu amigo das
m��os sujas daqueles ratos que est��o l�� dentro.
��� T�� a�� uma pedida de bom tamanho, crioulo.
Chuta, vamos, falou o investigador tirando-lhe as al��
gemas.
��� Mas a gente n��o combinou nada, ainda.
��� Ora, prometemos que soltaremos o mo��o. Pa��
lavra de honra.
��� N��o acredito em honra da pol��cia; solta o Raul
que eu falo, ou melhor, os levo l��, bem dentro da toca
dos negros.
A atitude do negrinho azedou os tiras.
��� N��o tem "caixa" nada. Vamos l�� crioulo, fala
logo sen��o vai falar no pau-de-arara.
��� Calma, n��o temos d��vidas em soltar o jovem,
se ��le f��r inocente, mas primeiro devemos interrogar
os seus companheiros, Jo��ozinho. Eles �� que v��o resolver.
��� N��o tem mosquito. Sei o que estou falando.
Mas tamb��m est�� valendo o resto da minha quadrilha,
se o senhor colocar meu amigo em uma cela separada,
at�� que tudo fique esclarecido.
Os dois foram colocados em uma cela, em frente
��quela em que estavam antes. Quando os guardas de��
sapareceram os presos fizeram chacota dos dois.
��� Ol��, trouxa! Foram relaxar a pris��o dando o cu
pr��s tiras, hein? Como ��, est�� ardendo? Que moleza,
hein? Deram a bunda de algema e tudo. Nisso calaram
porque os guardas chegaram com outro preso.
Todos o conheciam. Era um jovem mulato de
vinte anos que, dias antes tinha esturpado e assassi��
nado uma menininha de cinco anos.
Mal as costas dos guardas se perderam ao longe,
os presos arrancaram as cal��as do mulato e ordenaram:
��� Curve-se para a frente, vamos. ��le relutou, mas
um pontap�� o f��z envergar-se. Agora, abre bem as
pernas. Assim. Agora firme as m��os nos joelhos e
encoste bem a cabe��a na parede. Tire as m��os dos joe��
lhos e com as mesmas abra bem as n��degas. M a i s ! . . .
217
B e m . . . Agora, quem �� o primeiro?
A fila de presos, com "os p��nis duros �� mostra, ia
um por um ao mulato que, calado, aceitava tudo. Uma
vez caiu, mas foi levantado a socos e recome��aram tudo.
Das n��degas do homem corria um sangue verme-
lho-vivo, escorrendo pelas pernas e pingando no ch��o
imundo da c��la. Raul, com as m��os apertando forte��
mente as -grades, e com os olhos arregalados, assistia
petrificado. Sua mente o levou para outra fila de me��
ninos de nove a dez anos, l�� no abrigo. Os pequenos
iam como aut��matos, para cima de outra crian��a dei��
tada de bru��os.
Os meninos giravam em sua cabe��a. Os presos
gargalhavam, usando o mulato. As crian��as, o homem,
o sangue. Raul come��ou a sacudir a grade, e a gritar
em uivos animalescos.
��� N��o fa��am isso, pelo amor de Deus. N��o fa��am
isso !Guardas! Guardas, tirem-me daqui! Tirem-me da-
qui! ��le sacudia, sacudia as grades e os presos gar��
galhavam.
O negrinho o sacudia, mas Raul parecia n��o sentir
e continuava a gritar. Desmaiado, foi levado para a
enfermaria, de onde saiu alguns dias depois, em compa��
nhia do dr. Antonio.
Outra vez no centro da cidade, cabe��a baixa, ia
vendo as pernas dos transeuntes, apressados, de um
lado para outro.
J�� tentara tantas vezes afastar-se para fugir ��que��
les perigos da grande cidade!
��� Quanto tempo estive l��?
��� Pouco mais de quinze dias.
��� E o Jo��ozinho?
��� Vamos tomar um taxi. Voc�� est�� muito abati��
do. L�� no apartamento saber�� de tudo.
��� Do Jo��ozinho gostaria de saber agora. Estou
p r e o c u p a d o . . .
��� Olha o taxi.
Abaixou a cabe��a para entrar no taxi e sentiu a
vista turvar-se. Sentou-se, sentindo as pernas moles e
um suor frio correu-lhe pela espinha.
��� 2 1 8 ���
XX
O advogado Pederasta
Deitado no sof�� ouro e branco, forrado de seda
rosa, com a nuca aparada ��m almofadas de veludo de
um rosa mais escuro, ele ouvia o advogado.
��� O ministro avisou o juiz que voc�� tinha deser-
tado. O juiz me telefonou e eu o procurei nas dele��
gacias. Raul come��ou a sentir um comich��o de raiva
e, olhando para o advogado, disse, r��spido.
��� Que �� que esse velho pretende? Me montar guar��
da a vida inteira? E por que o senhor foi logo procurar��
me na pol��cia? Sou por algum acaso malandro ou va��
gabundo?
��� Meu rapaz. A advogado acendeu um cigarro
naquele seu jeito de mocinha. Meu rapaz, as coisas
n��o andam boas para os que j�� tiveram passagens pela
pol��cia. Existe agora um "Esquadr��o da Morte".
��� Mas eu n��o tenho passagens pela pol��cia. Raul
ironizou. Eu tenho um crime: fui a b s o l v i d o . . .
��� O de contrabando j�� sabem que voc�� era ino-
cente, e neste ��ltimo voc�� tamb��m est�� inocente.
��� Jo��o falou?
��� Calma, Raul, vamos por etapas.
��� Mas onde est�� Jo��ozinho?
O advogado levantou-se espremeu o cigarro contra
o cinzeiro, foi at�� uma mesa no canto da sala, e voltou
desdobrando um jornal. Chegou bem �� sua frente e
disse:
2 1 9
��� Olhe.
As m��os de Raul tremiam tanto, impedindo-o de
ler o jornal, mas vira bem aquele rosto infantil de olhos
tristes era de seu amiguinho. Mais calmo, leu com o
cora����o aos pulos: esse bandido est�� no list��o do "Es��
quadr��o da morte". N��o escapar��. Cair�� fuzilado
igualmente, como os trinta "presuntos" executados
at�� hoje.
��� Presunto. Presunto. Raul falava algo. Que
diabo vem a ser isto?
��� "Presunto" �� o nome que o Esquadr��o d�� aos
que caem mortos por eles.
��� Ent��o o meu a m i g o . . .
��� ��le n��o escapar��.
��� Mas ��le n��o estava preso?
��� Chegarei l��. Como estava falando, quando re��
cebi recado do juiz, fui procur��-lo e soube onde voc��
estava. O diretor olhava o "habeas-corpus" a seu favor,
quando ouvimos os seus gritos. Corremos todos a tem��
po de providenciar o fim daquela macabra cena. Os
presos enfiavam uma colher no ��nus daquele assassino
que, com uma abundante hemorragia, foi parar no Hos��
pital das Cl��nicas. Dizem que j�� est�� fora de perigo.
E u . . . Parou de falar, quando viu que Raul tinha o
rosto mortalmente p��lido.
��� Bem, voc�� quer saber de Jo��o, n��o ��? Eu falei
com ��le. Raul o olhou interrogativamente.
��� ��le j�� tinha dado o servi��o da quadrilha dos
"Crioulos Doidos". Disse-me que estava valendo a sua
soltura. Coitado, caiu direitinho.
Os olhos de Raul se abriram.
��� Caiu como?
��� Os tiras sa��ram para a captura dos criminosos,
mas nem ligaram para o pedido do negrinho. Se n��o
fosse o nosso trabalho, do juiz e meu, voc�� n��o esca��
paria facilmente. Dias depois, soube que ��le tinha fu��
gido bem na cara da pol��cia. Estava sendo levado
para o Departamento de Investiga����es Criminais, l�� na
Brigadeiro Tobias. O carro parou na porta do DEIC
e os agentes o empurraram para fora. Vinham saltan-
220
do lentamente, quando seus olhos se perderam naque��
le menino negro, que corria como um louco, em zigue��
zagues, para n��o se encontrar com os transeuntes.
Raul sentou-se no sof�� para dar vas��o ao riso e,
meio engasgado, exclamou:
��� Esse ti����o �� mesmo uma lebre. Se Deus quiser,
��le vai se safar desse tal Esquadr��o.
O advogado abaixou a cabe��a, calado. Depois sen��
tou-se em frente ao mo��o e disse, respirando lenta��
mente:
��� Infelizmente do Esquadr��o ��le n��o se safar��.
Eles o procurar��o at�� o inferno. Voc�� n��o entende que
o Esquadr��o da Morte apareceu para vingar a morte
do agente Par��, assassinado por Carlos Eduardo da
Silva, o "Sappnga"?
Raul levantou-se.
��� Eu vou ajud��-lo, doutor. Eu n��o vou permitir
que matem o meu amigo.
��� De que forma?
��� N��o sei. S�� sei que ��le n��o morrer�� feito pe��
neira, furado por tantas balas. Eu o salvarei. Juro
que o salvarei.
��� ��le n��o ter�� chance, Raul.
��� Eu o salvarei. Eu o salvarei.
O passado veio at�� ��le e o envolveu com dois olhi��
nhos assustados num corpinho franzino, que caiu no
box onde ��le se banhava, a implorar pelo amor de Deus
que n��o deixasse o graduado aplicar-lhe outra surra,
porque tinha feito xixi na cama. Raul lembrava que
lhe afagara a cabe��a de carrapichinhos e lhe dissera:
��� Ningu��m vai judiar de voc��. Pode contar co��
migo, sou seu amigo e serei sempre.
Deu uns passos pela sala, e parando em frent�� ao
advogado, ficou escarlate ao dizer:
��� Por favor, arranje-me dinheiro. Era a primeira
vez que pedia.
��� Claro, Raul, quanto voc�� quiser.
221
��� Vou procurar o Jo��o. Para quem j�� passou
pela c a d e i a . . . quero dizer, para bandido �� mais f��cil.
Bandido acha bandido r��pido, �� s�� visitar os "moc��s".
��� Concordo, jovem, mas voc�� n��o vai sair agora,
assim agitado como esta. Descanse. Vamos!
��� N��o, n��o. D��-me o dinheiro. Eu sei mais ou
menos onde encontr��-lo. Depois volto e descanso.
Raul saiu e o advogado correu para o telefone,
alegre.
��� A l �� o o o o . . . Paulo? Sou eu, Antonio. ��le est��
se aproximando cada vez mais de voc��. N��o dou nem
trinta dias para ��le cair em seus b r a �� o s . . . Oh! Est��
desesperado porque o amigo est�� condenado �� morte.
Pediu dinheiro, j�� lhe dei. quinhentos cruzeiros novos.
Sim, sim, pelo Esquadr��o. Far�� de tudo para salv��-lo.
Tudo, tudo, tudo!
O taxi rodava de um esconderijo de criminosos a
outro. At�� que algu��m deu o servi��o.
��� Oh, o Jo��o. Est�� num "moc��" l�� no Parque
Independ��ncia, Jardim Santo Amaro.
O taxi ficou na estrada e Raul, em companhia de
um caipira que sabia muito, embrenhou-se pelo mato
e desceu barrancos. Pulava um riozinho, quando sen��
tiu um tiro passar bem perto de sua orelha. Gritou:
��� N��o atire, Jo��o. Sou eu, Raul.
A porta do casebre de pau-a-pique se abriu-e Jo��o,
ainda com aquela camisa imunda, cheia de sangue, o
olhava fixamente. Seu rosto contorceu-se, num esfor��o
para que as l��grimas n��o lhe saltassem dos olhos.
Raul correu para ��le e, com voz embargada, disse:
��� Jo��o!
O pretinho desabou sobre ��le e, rodeando-o com
os bra��os, come��ou a tremer.
��� Oh! Chapa! Oh, chapa!
Raul o conduziu para dentro do casebre e sentou-se
num caixote, fixando o olhar num jornal com a mesma
foto que, horas antes, tinha visto. Apertou a m��o do
pretinho.
��� 222 ���
��� Vim ajud��-lo, amig��o, ningu��m vai matar voc��.
Jo��o suspirou e apertou a cabe��a nos bra��os cru��
zados, que descansavam nos joelhos.
��� Deles ningu��m escapa. S��o como abutres, sen��
tem de longe a carni��a que exala da gente. Eu sei,
n��o escapo. Sei tamb��m que errei. Levantou-se e seus
sapatos velhos, rasgados, marcavam o ch��o de terra en��
lameada, com passos febris de l�� para c��.
Parou um momento, e olhando para o amigo, disse:
��� Como eles conseguiram apertar a corda atada
ao meu pesco��o, esses filhos da puta? Como odeio
esses miser��veis! Eles trazem os ��rf��os abandona��
dos atados �� corda e nos balan��am daqui para ali e,
quando querem, v��o apertando a corda at�� nos verem
com a l��ngua inchada, coxa, fora da boca e com os
olhos saltados das �� r b i t a s . . .
Raul levantou-se com ��mpeto.
��� N��o, Jo��o, n��o fale assim. Vim busc��-lo, vou
lev��-lo e algu��m, juro, algu��m vai afrouxar a corda. ��
um homem poderoso. Vamos, vamos.
��� �� besteira, chapa. Nenhum poderoso vai que��
rer "papo" com um p��-rapado, negro, sujo, ladr��o.
Eles v��o querer rir, isso sim, quando a gente aparecer
vazado de balas, no jornal. A�� todos dizem: Mais um filho
da' puta que se foi. Mas eles, o povo, sabem o caminho
porco os do governo nos fizeram trilhar? N��o, cha��
pa, ningu��m vai querer ajudar, n��o adianta implorar
para que algu��m nos acuda. N��o adianta gritar, gri��
tar, pois o grito da crian��a asilada �� gritos sem som,
um grito mudo. F��z uma pausa. Seus olhos brilha��
vam de ��dio, molhados de l��grimas. Eu n��o disse a
voc�� que eles nos jogariam num buraco e nos calcariam,
at�� nos verem gemer, sufocar, s a n g r a r . . . morrer?
Voltou para o amigo com o rosto em p��nico. Eles
v��o matar-me, e eu tenho medo. Sou um covarde, mas
tenho medo. As vezes fico deitado, a�� nessa palha do
ch��o, escutando, escutando, �� espera que minha m��e
entre por essa porta (eu fa��o de conta que tenho m��e)
pegue-me em seus bra��os e diga:
��� N��o tenha medo, filho. Voc�� sonhou. Voc�� n��o
��� 223 ���
�� um marginal. Voc�� n��o foi criado pelo governo. Vo��
c�� n��o apanhou centenas de vezes, at�� ficar desacor��
dado, voc�� aprendeu uma profiss��o, voc�� n��o comeu
lixo. N��o tenha medo, meu filho, sua m��e n��o morreu,
sua m��e est�� aqui. A q u i . . . Caiu sentado no ch��o, jo��
gou a cabe��a para tr��s e seus solu��os encheram o
casebre.
Raul esperou ��le se acalmar um pouco.
Acendeu um cigarro, fumou em sil��ncio, at�� que
os solu��os foram enfraquecendo, enfraquecendo.
��� Agora vamos, Jo��ozinho. J�� est�� escurecendo.
O chofer est�� esperando no t��xi, l�� na estrada.
Levantou-se enxugando os olhos. Bateu nas cos��
tas de Raul.
��� Desculpe, hein chapa, mas essas l��grimas esta��
vam guardadas h�� dezoito anos.
��� Todos n��s, fortes ou fracos, chegaremos ao dia
em que teremos de desabafar. Esse neg��cio de "homem
n��o chora" �� conversa. Agora, vamos.
��� Irei, sim, mas voc�� acha que dar�� certo? Ouvi��
ram o caipira chamar.
��� Hei, mo��os, o chofer est�� chamando.
Quando chegaram, o chofer disse que tinha visto
de longe dois carros parados, l�� na outra estrada.
Os dois sentiram o sangue abandonar-lhes as faces.
��� Eles o viram? Viram seu carro?
��� N��o, acho que n��o. Eu os vi, quando subi na��
quele morro.
Entraram r��pidos no t��xi, e Raul mandou o chofer
correr a toda brisa.
Depois de algum tempo sentiram que eram per��
seguidos.
Raul tirou depressa um monte de dinheiro do bolso
e, escrevendo em uma das notas o endere��o do advo��
gado, disse ao chofer:
��� Aqui tem quinhentos cruzeiros novos para levar
o meu amigo at�� este endere��o. Arranjarei mais um
��� 224 ���
milh��o amanh��. Voc�� pode procurar no mesmo en��
dere��o.
��� Que �� que h��, chapa, o que pensa fazer?
��� Vou saltar do carro e, enquanto eles se preocu��
pam comigo, voc�� estar�� salvo.
��� ��, voc�� pensa que vou deix��-lo nessa sozinho?
��� Eles n��o t��m nada contra mim, amig��o. Eu
n��o estou sendo procurado pelo Esquadr��o. Salto e
corro para o mato. Tamb��m precisa ver se eles me
pegam. Bateu no ombro do preto. Correr, e muito,
n��s aprendemos l�� no abrigo. Vai ver que pelo menos
isso ira salvar-me dos tiras.
��� N��o vou permitir i s s o . . . E u . . .
O soco que Raul lhe aplicou na cabe��a o f��z sen��
tir-se zonzo. Quando se recuperou. Raul j�� tinha sal��
tado e o chofer voava pela estrada.
Raul ouviu a freada brusca do carro. Homens sal��
taram e uma voz gritou para algu��m do outro carro,
que tamb��m tinha parado.
��� P�� na t��bua. O outro �� Jo��o. O que procura��
mos fugiu.
Raul levantou-se e, como um doido, correu para o
carro, que come��ava a sair e abriu a porta. De um
arranc��o, puxou o chofer que, desprevenido, caiu no
ch��o, indo o carro espatifar-se contra um barrac��o.
Nessa hora Raul levou a maior surra da sua vida.
Os tiras o esbofetearam, deram-lhe pontap��s, socos
por todos os lados, mas o sorriso n��o morria de seus
l��bios, e mesmo riu at�� as l��grimas, quando um dos
tiras, alto e forte, que usava uma bengala e mancava,
disse, irado:
��� Esse negro filho da puta escapou. Depois pu��
xou o mo��o pelo bra��o e jogando-o todo machucado
dentro do carro, disse:
��� Voc�� vai nos contar para onde foi o negrinho,
nem que para isso seja preciso execut��-lo.
Um dos agentes, chegando perto e encarando Raul,
exclamou:
225
��� Eu conhe��o essa pe��a. Foi preso por mim dias
atr��s, juntamente com o preto e s�� h�� um meio legal
para faz��-lo falar.
Chamou o manco, que parecia ser o chefe.
��� Olha, temos hoje quatro presuntos para serem
executados. Vamos levar esse a�� para assistir. Se ��le
se abrir e contar onde est�� o negro, n��s o perdoamos e
ser�� riscado do "list��o".
��� Ora, e se ��le nos denunciar na justi��a?
��� Que nada! Eu o conhe��o. �� sentimental ao
extremo, quase morreu quando assistiu alguns presos
comerem o rabo do tal que matou a menininha.
Raul, algemado, sentado no banco de tr��s de uma
Kombi, sentiu o corpo arepiar-se todo, quando viu o
emblema pregado na janela. Era um desenho horizon��
tal, mostrando duas Winchester cruzadas, encimadas
por uma caveira e rodeadas por cinco morcegos. Sob
as Winchester, um rel��gio com os ponteiros no n��mero
doze (significando meia-noite). A direita do rel��gio a
letra "D" e �� esquerda "I" (Departamento de Inves��
tiga����es). Abaixo do rel��gio as letras A.M. (agentes
motorizados) e acima da caveira escrito escuderia Rudi.
Desviou o olhar da t��trica figura e os fixou nos
jovens p��lidos, algemados, que entravam no Volks da
Pol��cia que estava ao lado da perua. Viu o chofer da
Kombi dar um sinal, e os carros come��aram a rodar,
perdendo-se na noite escura e fria.
Estremeceu, quando um dos agentes, sentado ao seu
lado, falou:
��� Olhe, mocinho. Aqueles quatro v��o ser execu��
tados. N��s somos do Esquadr��o. Temos o seu amigo
no "list��o", e s�� voc�� poder�� salv��-lo, contando onde
est��.
��� E para que voc��s querem encontr��-lo?
��� Para ��le nos ajudar a desbaratar algumas qua��
drilhas que est��o implantando o terror em S��o Paulo.
��� Mas ��le j�� denunciou uma e os senhores n��o
cumpriram o prometido.
��� 226 ���
��� Bem, amigo, com a gente n��o tem "papo".
Voc�� vai assistir uma bela festa.
��� Uma macabra festa.
��� Seja.
Chegaram num trecho da Rodovia Rondon, quil��-
metro 33, e enveredaram por um caminho tortuoso.
Pararam em uma clareira e desceram todos.
Raul se encolheu todo, ao descer do carro, quando
sentiu o vento cortante e gelado, que uivava longa e
tristemente, a��oitando seu corpo, coberto apenas pela
camisa. Esticou as pernas doloridas, pois faziam horas
que estava sentado naquela perua. Virou o rosto para
cima e sentiu a chuvinha fria que come��ava a cair.
Ao dar alguns passos, sentiu os sapatos pregarem-
se numa lama viscosa e vermelha, que as ��ltimas chuvas
tinham deixado.
Estremeceu quando, devassando a penumbra, depa��
rou com os quatro malandros encostados num barranco.
Seus olhos foram dos p��s enfiados em po��as de ��gua
suja, para os rostos macilentos, nos quais brilhavam
olhos arregalados, cobertos de terror. Viu que alguns
afrouxaram as pernas e as esticavam novamente. As
m��os torciam-se convulsamente, fazendo apertarem-se
mais e mais as algemas.
Um dos tiras o empurrou para mais perto, enquan��
to os outros se postavam em frente daquelas crian��as
criminosas (pois tinham dezoito a vinte anos) e apon��
taram as armas.
Com a garganta em fogo e com todas as fibras do
seu corpo vibrando, Raul pulou, levantando peda��os de
barro para a frente dos tiras e implorou, com voz tr����
mula, levantando os bra��os algemados:
��� D��-lhes mais uma chance, por Deus. Os senho-
res n��o t��m o direito de tirar a vida assim, ��de seres
humanos, sem julg��-los. Se eles erraram, os senhores
t��m de saber o porqu��. Devem compreender que eles
tamb��m s��o v��timas.
Um dos agentes piscou para os companheiros, di��
zendo:
��� 227 -
��� Vamos brincar um pouco com esse trouxa.
Agora a chuva era mais forte, trazendo rajadas de
vento, que j o g a v a para o ar as capas imperme��veis dos
agentes da lei, espalhando-as a g i t a d a m e n t e , bem como
os cabelos dourados daquele corajoso jovem que osten-
tava no rosto toda a r e v o l t a ' q u e lhe ia na alma.
- E n t �� o quer dizer que eles s��o v��timas? E as
pessoas que m a t a r a m , o que s��o? Por acaso esses ratos
tiveram piedade dos que m o r r e r r a m aos seus p��s, im-
plorando para n��o serem assassinados? Onde est�� o
amor ao pr��ximo? O respeito �� vida h u m a n a ? Diga, meu
rapaz, que piedade merecem esses frios criminosos?
Raul foi para mais perto dos tiras e, com dificul��
dade cruzou os dedos, levantando as m��os postas.
��� Eles n��o a p r e n d e r a m a amar, porque n u n c a fo��
ram amados. Ningu��m lhes ensinou a respeitar quem
quer que seja. Nasceram nas favelas, comeram lixo,
n��o tiveram escolas. Alguns foram criados como ani��
mais ferozes pelo governo. Sua silhueta era fant��sti��
ca, assim sob a chuva, fustigado pelo vento e seus belos
olhos rebrilhando, na noite t��trica e negra. Pelo amor
de Deus, dizia, n��o os m a t e m , os senhores precisam
c o m . . .
��� N��s s�� compreendemos que queremos acabar
com esses criminosos, queremos limpar a sociedade des��
ses p��rias.
��� Mas por Deus do c��u, ent��o os senhores n��o
compreendem que, e n q u a n t o m a t a m esses quatro, est��o
nascendo, nas espeluncas s��rdidas, nas favelas, nos cub����
culos das p r o s t i t u t a s , por todos os bairros miser��veis da
cidade que mais cresce no m u n d o , milhares e milhares
de criminosos? O 'que a d i a n t a os senhores m a t a r e m
alguns, quando as cadeias est��o lotadas de infelizes que
n��o tiveram quem lhes desse a m �� o 0
Um dos agentes gritou:
��� Ora, chega de lero-lero. Vamos, companheiros,
vamos m a t a r logo, que a noite est�� crescendo. Foi fa-
lando e fazendo sua Winchester cuspir fogo sobre um
dos jovens, que caiu p e s a d a m e n t e ao solo.
��� 228 ���
Raul olhou para tr��s e, horrorizado, viu que os ou��
tros tr��s se ajoelharam e vinham se arrastando peno��
samente na lama, implorando para lhes darem nova
oportunidade, jurando que agora que viram a morte de
perto, haveriam de se recuperar. Mas uma saraivada
de balas foi a resposta aos seus rogos. Um deles con��
seguiu dizer ainda, com a l��ngua enrolada, jogando
sangue pela boca:
��� Salvem-me! Eu j�� tinha conseguido um em-
p r e g u i n h o . . . Mas sua voz se perdeu, quando foi pisado
por um dos tiras, que lhe calcou o rosto na lama. Raul
foi se afastando, gelado de terror, enquanto assistia ��
agonia de. um outro, que estrebuchava em sua pr��pria
urina e fezes.
��� Meu Deus! Gritou, virando-se para os tiras.
Voc��s s��o uns monstros. Uns monstros que jamais
pegar��o Jo��ozinho. Jamais, nem que para isso eu tenha
de me t o r n a r . . .
N��o teve coragem de terminar a frase.
Entrou no carro e se atirou no banco, solu��ando.
J�� no centro da cidade, os agentes, depois de con��
fabularem, resolveram solt��-lo, pois ��le iria lev��-los ao
esconderijo do pretinho. Mas Raul dessa vez foi mais
esperto. Percebendo estar sendo seguido, entrou no
pr��dio da Copan, subiu pelo elevador at�� um dos an��
dares, pediu licen��a para uma das moradoras e desceu
pelas escadas que existem atr��s do pr��dio. Pegou um
t��xi, foi ao apartamento do advogado, com aquelas ce��
nas terr��veis agitando-se em seu intimo.
Tocara a campainha gritando pelo nome do amigo.
��� Jo��o, Jo��ozinho!
O advogado abriu a porta assustado.
��� Que foi? Jo��o est�� dormindo. Estava t��o ner��
voso por sua causa, que lhe dei um calmante.
��� Quero velo, onde ��le est��?
O rosto negro saindo das fronhas brancas, com
os l��bios secos entreabertos, engolindo o ar suavemente,
estava t��o tranq��ilo que Raul sentiu uma pontada no
229
cora����o, quando se lembrou de que ��le poderia estar l��,
fucinhado na lama, com dezenas de buracos de bala,
esguichando sangue vermelho e quente. Cobriu os olhos
com as m��os e o advogado o ouviu m u r m u r a r :
��� Oh! �� de e n l o u q u e c e r ! . . ,
��� Que foi, Raul?
Saiu do quarto e sentou-se na primeira poltrona.
��� Dr. Antonio, disse, o que os homens fazem?
Vi hqje como �� f��cil destruir q u a t r o vidas h u m a n a s .
�� s�� pegar a arma e atirar. O corpo cai, estrebucha
no ch��o, esvaindo-se em sangue, a cabe��a cai para o
lado e pronto. Tudo acabado. Nada. A Escurid��o
eterna.
��� O que aconteceu? Voc�� est�� t��o e s t r a n h o !
��� Eu assisti o "Esquadr��o da Morte" assassinar
quatro jovens.
O advogado arregalou os olhos.
��� Raul, isso �� grave. Pense bem no que vai falar.
Raul levantou-se e come��ou a a n d a r agutadamen-
te. Quatro coitados, sem a possibilidade de defender-se.
Seriam todos criminosos? N��o teriam outro meio de ex��
plorar o crime?
O advogado viu que o mo��o estava febril. Prepa��
rou-lhe um calmante, mas Raul n��o quis tomar. Que��
ria que o advogado o ajudasse a salvar o amigo.
��� V�� dormir, Raul, j�� �� quase madrugada. Ama��
nh�� conversaremos. Tenho uma id��ia que salvar��
Jo��ozinho.
Seus olhos brilharam alegres.
��� Jura?
��� Juro. Agora tome o calmante e deite-se.
No dia seguinte os tr��s, discutiam o melhor jeito
de Jo��ozinho livrar-se do Esquadr��o.
��� O ��nico jeito �� ��le ir para o Exterior.
O pretinho riu.
��� Isso �� imposs��vel. N��o tenho dinheiro, e depois,
como �� que me manterei l��?
��� 230 ���
O advogado olhou para Raul.
��� Raul sabe arranjar quanto dinheiro quiser.
O mo��o estremeceu e fixou o pretinho. O rosto
simp��tico e quase infantil sorriu candidamente. Raul
apertou a fronte, pois o mesmo girava, juntamente com
o outro rosto que, com a boca a jorrar sangue, tentava
dizer aos tiras que tinha arranjado um empreguinho.
Lembrou do outro cad��ver. Aquele jurava que nin��
gu��m seria capaz de identificar, pois tinha levado mui��
tos tiros. A cabe��a era uma por����o de massa misturada
com terra vermelha.
Lembrou-se tamb��m de que, quando o agente chegou
perto desse mesmo morto para lhe tirar as algemas, fe��
chara os olhos, pois os olhos do morto eram duas bolas
brancas saltadas para fora. Parte do maxilar havia
sido arrancedo a bala e os dentes restantes estavam
fora da boca, num sorriso macabro. Esse jovem era o
que mais chorava e tremera diante dos agentes, implo��
rando que n��o o matassem.
Raul levantou-se esfregando as m��os e foi at�� a
janela, para que o dr. Antonio e o pretinho n��o vissem
l��grimas em seus olhos. Encostou a cabe��a no vidro
frio da janela, como sempre fazia quando estava preo��
cupado e pediu a Deus para que esmagasse aquelas
tristes recorda����es odiosas, intoler��veis. Mas sabia que,
enquanto n��o ajudasse o amigo a sair das garras do
Esquadr��o, nada ficaria no esquecimento. Voltou para
j u n t o dos amigos, que o olhavam s��rio. Chamou �� par��
te o advogado, concordando em pedir um empr��stimo
a o . . .
��� J�� sei. Vou falar com ��le.
Raul sentou-se, passando as m��os pelos olhos cheios
de sofrimento, e desatou a chorar.
��� Sei que �� terr��vel, Raul, mas �� o ��nico jeito.
Talvez o juiz n��o queira nada em recompensa.
��� Que importa? Oh! Dr. Antonio, depois do que
vi hoje, nada mais importa. Por dentro estou vazio.
Penso que at�� minha alma est�� morta. V��, v�� logo
para que tudo isso acabe de uma vez.
Quando o advogado saiu, Jo��ozinho, esquecendo do
passado, e mesmo do E s q u a d r �� o da Morte, a n d a v a pelo
a p a r t a m e n t o , a d m i r a n d o t u d o . Foi at�� a sacada e
chamou o amigo, que o viu passar as m��os abertas pelo
peito estufado e gritar:
��� Sinto-me at�� um Pr��ncipe E n c a n t a d o . Voc�� n��o
acha, hein chapa? Agrada-lhe esse pr��ncipe preto? De-
satou a rir. Imagine. Eu, num a p a r t a m e n t o luxuoso
na av. S��o Jo��o, e aqueles caras me p r o c u r a n d o , l�� nas
malocas. Esses tais do Esquadr��o, se me vissem agora,
seriam capazes de cairem duros. Ficou a olhar cs
carros que corriam l�� em baixo. Voc�� j�� pensou, cha��
pa, que s�� pobre e criminoso? Voc�� j�� viu algu��m falar
que algum Esquadr��o matou um rico? T a m b �� m , n��o
tem rico ladr��o. Pr�� que �� que rico quer roubar, se n��o
sente fome? Ser�� que rico j�� pensou o que �� ter o es��
t��mago queimando, queimando de fome? Ah! J�� me
lembrei de alguns ricos que roubam. Uma vez, l�� no
abrigo de menores, ouvi um diretor dizer que os mais
i m p o r t a n t e s do governo, mesmo o Presidente da Rep��-
blica, roubava t a n t o , mas t a n t o dos cofres p��blicos, que
isso fazia falta para m a t a r a fome dos pobres ��rf��os
do Brasil. Puxa, e que fome a gente tinha l�� no Abr
go de Menores. Mas, aposto que com esses, o Esqua��
dr��o da Morte n��o se mete, n�� chapa? Jo��o deixeou-sc
cair sentado no ch��o, rindo, at�� que as l��grimas come��
��aram a lhe escorrer pelo canto dos olhos. Era um
riso cheio de revolta, fazendo com que Raul o sacudisse
sem parar.
��� O que voc�� viu de engra��ado em tudo isso eu
n��o entendo.
��� N��o entende? Voc�� j�� pensou, o Presidente da
Rep��blica diante do Esquadr��o da Morte? Sufocou e
p��s-se a rir de novo. Raul compreendeu a revolta do
amigo e disse:
��� Tudo isso �� infernal, amig��o, mas logo voc�� es��
tar�� livre.
O advogado chegou, com um tal��o de cheques as��
sinados, em branco, e o estendeu a Raul, encarando-o
sorridente.
232
P��lido, ele apanhou o tal��o e, como que picado por
uma v��bora, o atirou longe.
��� Ele sabe que voc�� o odeia.
��� N��o me fale nele por enquanto. Vamos tratar
do Jo��o.
O advogado tratou de tudo. Prontos os pap��is, com-
prou passagem para Portugal. L��, o pretinho ficaria
hospedado em um hotel, at�� que Raul fosse juntar-se
a ele. Raul foi quem escolheu um luxuoso enxoval para
Jo��o, sem esquecer do rel��gio e de um par de abotoa-
duras de ouro.
O advogado o acompanharia at�� o exterior e l�� fi-
caria para ver se o pretinho estaria bem acomodado.
Tudo pronto, o advogado telefonou para o juiz.
��� Ele j�� est�� indo para a��.
Um frio mal-estar invadiu o jovem, quando ele
tocou a campainha do apartamento do juiz. Era um
belo e grande apartamento na av. S��o Luiz, de onde se
avistava uma boa parte da cidade. Com o est��mago
dando voltas, olhou para o homem, elegantemente tra-
jado, de aspecto risonho, alisando com a m��o nervosa,
o cabelo preto entremeado de fios brancos. Sua voz era
quase sussurrante.
���Entre, Raul.
Raul n��o se mexeu. Seu pensamento o levou para
uma corrida louca dali. Dolorosamente, lembrou-se do
Dr��to. Ainda eram oito horas. Eles tomariam o avi��o
das dez.
��� Vamos, entre. Vamos tomar um drinque. Est��
um frio b��rbaro a�� fora.
Raul entrou e gaguejou:
��� Vim lhe trazer o resto do tal��o.
��� �� seu, fa��a o que quiser com ele.
��� 233 ���
��� N��o o quero. O que eu precisava para o meu
amigo, j�� gastei.
��� E ��le ficou bem servido?
��� Creio que sim, nesta hora est�� muito feliz, pois
escapar�� do E s q u a d r �� o . . . gra��as ao senhor.
O juiz trouxe as bebidas. Raul bebeu o uisque,
que o f��z sentir-se mais enjoado, mas depois sentiu seu
corpo aquecer-se e pediu mais, mais e mais, que virava
num trago.
Nesse momento, Jo��ozinho sa��a do luxuoso carro
do advogado.
��� Espera a��, que vou deixar o carro nequela bom��
ba de gasolina. Amanh�� um amigo vir�� busc��-lo.
O pretinho relanceou a vista pela ala internacional
do aeroporto e sentiu tudo arrebentar-se por dentro
dele, durante o terr��vel segundo que se passou antes
que sentisse as g��lidas algemas fechando-se em seus
pulsos.
��� Onde pensa que vai, hein ti����o, assim fantasiado
de gente?
Era o Esquadr��o da Morte.
XXI
A Lei Assassina
Raul deitou-se, sentindo tudo girar �� sua volta.
Sabia que estava embriagado, pela maneira como seus
dedos ficaram amolecidos, sem for��a sequer para segu��
rar o copo, que agora estava ca��do no ch��o aveludado
do quarto, e pela fixidez com que olhava a garganta do
juiz, que, como envolto em neblina, debru��ava-se sobre
��le. Tinha uma vontade louca de apertar ali suas
m��os, e fechar seus dedos apertando, apertando, at��
v��-lo morto. Virou a cabe��a, quando viu o rosto do
j u i z bem perto do seu e aqueles l��bios fl��cidos procuran��
do a sua boca. Olhou para a janela aberta, e seus olhos
encontraram as luzes dos grandes pr��dios que pareciam
dan��ar num requebro macabro, rindo ��s gargalhadas
dele que ali, �� merc�� de S. Excia., elevava com voz d��bil
uma prece aos c��us.
��� Oh! Deus! Meu Deus! N��o permita que isso
aconte��a. N��o sou nada, n��o sou ningu��m, mas ainda
resta-me o muito de saber-me macho. Para mim isso ��
tudo. Deus, Por isso lhe imploro, n��o deixe que eu sinta
o contato desse homem.
Sentiu, a tremer, a m��o macia e morna do j u i z
apertando-lhe o sexo.
O ruido da cidade rugia dentro de sua cabe��a, fa��
zendo com que as l��grimas saltassem daquele mar azul
dc seus belos olhos, quando olhou mais uma vez atrav��s
da janela, os altos pr��dios que agora pareciam cair
sobre �� l e . . .
2 3 5
O juiz aconchegava-se.
A cidade que mais cresce no mundo, a cidade que
se humaniza, desusando, desusando sobre ��le. J�� sen��
tia-se sufocar. Queria falar, falar alguma coisa para a
bela cidade, mas s�� conseguia fazer com que saissem
de sua boca grunhidos animalescos, envolvendo a frase.
��� Eu tombei, mas meu amigo, que a essa hora est��
l�� em cima, bem l�� em cima, voando para outro pa��s,
n��o tombar��.
Jo��ozinho, encostado num barranco, esperava, em
companhia de mais dois criminosos, a hora de ser as��
sassinado pela lei. Os carrascos estavam em sua fren��
te, altos, fortes e l��gubres, como as ��rvores negras que
os rodeavam, a��oitadas pelos ventos gementes, trazendo
para ��le a tristeza e a ang��stia sufocante do dobre de
finados onde parecia ouvir sua voz infantil.
��� Tia, por que os sinos tocam t��o tristes?
��� �� que Jesus est�� levando para os c��us os seus
pais, meu bem. Todas as pessoas que s��o boas aqui na
terra, Jesus as recebe com m��sica e sinos tocando.
��� Ah! Tia, mas �� t��o triste esse sino! Quando
Jesus levar-me eu quero que os sinos batam bem alegres.
��� Jo��ozinho voltou dos seus seis anos, com o cora��
����o aos pulos, quando ouviu a ordem para um seu
companheiro de infort��nio:
��� Corra, sen��o morre.
Os olhos do pretinho seguiram o jovem que tinha
o corpo desengon��ado de tuberculoso, com o peito cavado
para dentro coberto com roupas velhas e desbotadas.
Correu depressa, para em seguida, levantar os bra��os
magros, onde brilhavam as algemas e caiu ap��s alguns
metros, furado a bala.
Petrificado, Jo��ozinho viu um dos da lei vir at��
��le, levantar a arma, e uma dor aguda varou sua ca��
be��a e tudo escureceu. Coberto de terror, sentiu que
o tiro o havia cegado.
��� Jesus, Jesus, Jesus. Sua voz se encontrou com
a chuva que come��ava a cair, cortando a escurid��o da
noite com rel��mpagos de fogo e foi levada, sibilante e
a g o n i a n t e , at�� os ouvidos dos respons��veis por essa
m o r i b u n d a inf��ncia a b a n d o n a d a de um pa��s onde a lei
m a t a .
��� Jesus, Jesus, J e s u s ! Agora o clar��o vermelho dos
proj��teis, das "22", "32", "44" calaram para sempre sua
voz rouca, que queria gritar.
��� Eu queria ser um homem honrado, mas n i n g u �� m
me ensinou. Ningu��m ligou, ningu��m ouviu. Escor��
regou devagar do b a r r a n c o e tombou peneirado por
t r i n t a e dois tiros.
Tombou com a cabe��a n u m a po��a de ��gua, que
logo ficou rubra de sangue. Do sangue de um filho
do governo.
��� Ele n��o tombar��, repetia Raul debaixo do corpo
s��rdido e nojento de um homem que destribu��a a jus��
ti��a, tamb��m, nesse g r a n d e e belo Brasil Ele n��o tom��
bar��, n��o ��, Senhor? E eu tamb��m n��o pertencerei
a este homem nem se para isso o Senhor tiver de me
levar j��, agora, para j u n t o de V��s.
Os olhos azuis come��aram a revirar, o resto tornou-
se viol��ceo, a respira����o come��ou a falhar. Aquele belo
corpo de homem m a c h o , foi agitado por tremores e mo��
vimentos convulsivos que t r o u x e r a m p a r a sua l��ngua,
que se esticava p a r a fora da. boca, uma espuma b r a n c a
e viscosa, que m a n c h o u a seda macia da fronha per��
fumada.
O juiz, sentindo Raul gemer e tremer sob si, sentia
mais fortemente o esperma que come��ara a j o r r a r de
seu sexo. Gritava.
��� Raul, Raul, Raul!
S. Excia., em ��xtase, gemia, chorava e se contorcia
em cima de um cad��ver.
�� N D I C E
I ��� ��RF��O 13
II ��� O BOM COL��GIO 17
III ��� O JUIZ COME��A A AMAR O MENINO 27
IV ��� A MULHER DO JUIZ TAMB��M AMA O
MENINO 39
V ��� O JUIZ QUER O CORPO E A ALMA
DO MENINO 45
VI ��� A MOEDINHA 53
VII ��� SERA, QUE TAMB��M SOU BRASI-
LEIRO? 57
VIII ��� SOU HOMEM, SOU MACHO 69
IX ��� SUA EXCEL��NCIA 73
X ��� RAUL ACREDITA QUE O JU��Z N��O ��
MAIS PEDERASTA 79
XI ��� RAUL, O BOM AMIGO 91
XII -- MALDITOS PEDERASTAS 105
XIII ��� PRESIDENTE DA REP��BLICA, OLHAI
POR N��S. AM��M 115
XIV ��� COMPRE UMA ROSA, DOT�� 131
, XV ��� POLICIA FEDERAL 159
XVI ��� DOIS HOMENS EM ��XTASE 179
XVII ��� O SR. MINISTRO 193
XVIII ��� A RAINHA DA INGLATERRA 207
XIX ��� O ESQUADR��O DA MORTE 213
XX ��� O ADVOGADO PEDERASTA 219
XXI ��� A LEI ASSASSINA 235
Mas o leitor l��cido, pers-
picaz, sempre compreende o
realismo ae Adelaiae, pois ela
�� uma escritora que se ins-
pira naquilo que �� vis��vel,
concreto, nas cenas c��micas,
pat��ticas e dolorosas da pr��-
pria vida, da vida que n��o
pode ser comparada a um e s -
pet��culo sereno, harmonioso,
como o �� por exemplo, quase
sempre, a tela de um pintor
acad��mico.
Neste seu ��ltimo livro, inti-
tulado "Podrid��o", Adelaide
Carraro revela-se, uma pro-
funda e extraordin��ria psic��-
loga, uma admir��vel conhe-
cedora de todos os meandros
da alma humana, at�� mesmo
nos seus aspectos mais re-
c��nditos, estranhos e esca-
brosos.
Os personagens de "Podri-
d��o" vivem, sofrem, amam,
odeiam, lutam, s��o seres de
carne e osso, seres atormen-
tados, representativos de um
mundo ca��tico, turbulento,
de um mundo no qual os
valores morais se acham em
estado de desagrega����o, em
decomposi����o.
O drama de Raul. de Jo��o
e do Dr. Paulo pode ser o
seu drama, prezado leitor,
pois a vida muitas vezes imi-
ta a fic����o, ao contr��rio do
que se sup��e, e em v��rias
ocasi��es esta �� mais veridica
do que a realidade, porque ��
a reprodu����o exata, fidedig-
na, do que existe.
Assim sendo, o Leitor est��
de parab��ns, porquanto tem
em suas m��os um livro fasci-
nante, perturbador, um livro
que prende a aten����o do co-
me��o ao fim e que pode ser
considerado, sob todos os
pontos de vista, uma auten-
tica obra prima.
Livro doado por Leandro Medeiros e digitalizado por Fernando Santos
Neste livro Podridão ,Adelaide revela-se uma profunda e extraordinária psicóloga uma conhecedora de todos meandros da alma humana até mesmos nos seus aspectos mais recônditos, estranhos e escabrosos. Os personagens de Podridão sofrem, amam, odeiam lutam, são seres de carne e osso.
Sobre a autora:
Nasceu em Vinhedo, interior de São Paulo, em 30 de julho de 1936. Ficou órfã com mais onze irmãos, e passou a viver em um orfanato. No decorrer de sua vida publicou cerca de quarenta livros e seus maiores sucessos foram as obras publicadas pela Global Editora: O Estudante, O Estudante II, O Estudante III e Meu Professor, Meu Herói, que ultrapassam mais de trinta edições, sendo possível afirmar que mais de 2 milhões de livros foram vendidos. Adelaide Carraro nunca se casou, mas foi mãe adotiva de duas crianças. Morreu em janeiro de 1992.
Livros:
http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/
Áudios diversos:
http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/
--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-
---
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "clube do e-livro" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para clube-do-e-livro+unsubscribe@googlegroups.com.
Para ver essa discussão na Web, acesse https://groups.google.com/d/msgid/clube-do-e-livro/CAB5YKh%3DxwT0bpP-1i2-SDktnm-doH5MuOZ7eAYOuJfJvYwshtw%40mail.gmail.com.
Para mais opções, acesse https://groups.google.com/d/optout.
0 comentários:
Postar um comentário