DO GATO PRETO
ERICO VER��SSIMO
A VOLTA
DO GATO PRETO
16�� Edi����o
Copyright �� 1987 by Herdeiros de Erico Ver��ssimo
Ilustra����o de capa: Carlos A. Petrucci (detalhe)
Direitos de edi����o em l��ngua portuguesa, para o Brasil,
adquiridos por
EDITORA GLOBO S.A.
Rua D o m i n g o s S��rgio dos Anjos, 277
CEP 05136-170 - Fax: (011) 836-7098, S��o Paulo, SP.
Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edi����o pode ser uti-
lizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mec��nico ou
eletr��nico, fotoc��pia, grava����o etc. - n e m apropriada ou estocada em
sistema de banco de dados, sem a expressa autoriza����o da editora.
Impress��o e acabamento:
RR Donnelly & Sons Compay
CIP-Brasil - Cataloga����o na-fonte - C��mara Brasileira do Livro, SP
Verissimo, Erico, 1905-1975.
A volta do gato preto / Erico Verissimo - 16. ed. - S��o Paulo :
Globo, 1996.
ISBN 85-250-0335-2
1. Caracter��sticas nacionais americanas 2. Estados Unidos -
Descri����o e viagens 3. Estados Unidos - Usos e costumes I T��tulo.
CDD-917.3
-155.8973
87-1421 -390.0973
��ndices para cat��logo sistem��tico:
1. Estados Unidos : Caracter��sticas nacionais : Psicologia 155-8973
2. Estados Unidos : Descri����o e viagens 917.3
3. Estados Unidos : Usos e costumes 390.0973
PREF��CIO
No p��s-escrito ao bilhete que dirigi aos leitores, e que apareceu
na edi����o original de Gato Preto em Campo de Neve, eu lhes infor-mava que este t��tulo n��o tinha nenhum sentido simb��lico: ele me
fora realmente sugerido por um gato negro que, da janela dum trem
em movimento, no Colorado, eu vira atravessar um campo coberto
de neve... Era, portanto, uma sugest��o puramente pict��rica.
Os leitores, por��m, n��o aceitaram a explica����o, pois pareceram
achar que o gato preto era o pr��prio autor, isto ��, um sujeito de tez
morena a caminhar por entre gente clara e paisagens hibernais. Essa
id��ia se generalizou de tal forma, que ao procurar um t��tulo para este
segundo livro de impress��es sobre os Estados Unidos, ocorreu-me
logo o seguinte, que adotei sem dar maiores esclarecimentos: A Volta
do Gato Preto.
Aqui v��o as minhas impress��es de dois s��lidos anos passados
na Calif��rnia, para onde fui em setembro de 1943 com o fim de dar
um curso de confer��ncias sobre literatura brasileira na Universidade
da Calif��rnia, em Berkeley, a convite ainda do Department of State.
Nada mais poderei dizer sobre esta obra que, pela sua natureza,
est�� habilitada a falar por si mesma.
ERICO VER��SSIMO,
1961
SUM��RIO
PREF��CIO VII
1 - OS ARGONAUTAS 9
2 - DIARIO DE SAN FRANCISCO 123
3 - INTERLUDIO 257
4 - DIARIO DE HOLLYWOOD 293
5 - DUAS CARTAS DA ERA AT��MICA 513
1 - O S A R G O N A U T A S
"OS ��RF��OS DA TEMPESTADE"
EDONHO desastre. Perdido na procela, o avi��o pre-
cipitou-se no mar, a pouca dist��ncia da costa de
Fl��rida. Era noite fechada quando as lanchas do ser-
vi��o de salvamento da marinha norte-americana che-
garam ao local do sinistro. E ali sob a chuva, na negra
noite, come��aram a pescar os cad��veres de passageiros
e tripulantes. O primeiro a aparecer foi o da Princesa
Hindu, que sorria com uma estrela-do-mar aninhada
entre os seios. O gordo Homem de Neg��cios boiava
abandonado, como um fofo boneco de borracha, e em
sua boca aberta mexia-se um caranguejo. Vieram ou-
tros. O Mo��o de Bordo com uma medusa na testa..
A Americana Loura com os cabelos soltos e os olhos
vidrados... O Comandante todo condecorado de an��-
monas .. . Tinham os bra��os enredados em algas, e a
morte lhes pintara nos rostos as cores mais doidas. Por
fim ficaram faltando apenas os corpos dos brasileiros.
Holofotes aflitos varejavam as ��guas. Longe cintilavam
as luzes de Miami. A chuva ca��a, o mar gemia, o vento
dizia ��� nunca mais, nunca mais, nunca mais. . . E assim
uivando foi-se continente a dentro, rumo do outro ocea-
no e das luminosas terras da Calif��rnia, para onde havia
poucas horas fugira tamb��m o pensamento e o desejo
de muitos dos passageiros daquele tr��gico avi��o. Nun-
ca mais...
Vi quando pescaram meu pr��prio cad��ver. Meu
rosto estava esverdinhado �� luz dos holofotes. Como
um estranho peixe fui i��ado para bordo e atirado para
o fundo da lancha, como uma coisa sem dono nem
serventia. No fundo da minha mem��ria antepassados
fatalistas murmuraram: "Morreu? Acabou-se".
12
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Imagina����o �� coisa do diabo. De mil modos j�� fan-
tasiei o desastre. J�� li em cem jornais e de cem ma-
neiras diferentes a not��cia do sinistro.
Faz quatro dias que entramos neste gafanhoto de
alum��nio que pulou do Rio para Recife, de Recife para
Bel��m, de Bel��m para Tort of Spain, e que agora se
aproxima de Miami.
S��o seis da tarde de 7 de setembro de 1943. Voa-
mos sobre o mar a uns mil metros de altura, e j�� avis-
tamos terra. �� o fim da viagem, mas para n��s bem
pode ser tamb��m o fim de tudo, pois uma tremenda
tempestade est�� prestes a desencadear-se. Visto atrav��s
da janelinha do avi��o, o mundo �� um quadro l��gubre
pintado em tons de s��pia, negro e medo. Nuvens desco-
munais, pesadas e escuras, cobrem o c��u. H�� no ar
carregado de eletricidade algo de sulfuroso e mau, de
pressago e opressivo. Rel��mpagos clareiam o horizonte,
refletindo-se no mar, onde j�� se avistam as ilhas de
Coral da costa de Fl��rida.
Volto a cabe��a e passo em revista a fam��lia. No ros-
to de minha mulher e de meus filhos vejo refletido o
verde da tempestade, da n��usea e do pavor. S��o tr��s
caras l��vidas e ansiosas. Sorrio para elas, mas obtenho
como resposta apenas olhares de interroga����o e d��-
vida.
O Homem de Neg��cios cochila a meu lado, com a
cabe��a quase a tocar-me o ombro. No fundo do avi��o
a Princesa Hindu sorri enigmaticamente. Embarcou na
Guiana Holandesa, �� dum moreno bronzeado, tem uma
face de ��dolo oriental e est�� toda vestida de branco, com
um vaporoso v��u a escorrer-lhe pelos ombros. Talvez
n��o seja nobre nem tenha nascido na ��ndia, mas est��
claro que n��o vou perder esta rara oportunidade de
meter uma princesa hindu na minha hist��ria.
Os outros passageiros preparam-se para descer. A
Americana Loura trata de apaziguar o seu baby rosado,
que choraminga e esperneia. O calor aumentou; em v��o
busco al��vio aproximando o rosto dos renovadores de ar.
A VOLTA DO GATO PRETO
13
A trovoada estala. Parece um sinal para que as
nuvens se rasguem e abram para a cena do Ju��zo Final.
Chegou a hora ��� penso ��� chegou a negra nora. Sem-
pre achei que estes saltos sobre o oceano, de ilha em
ilha, eram um desafio ao Destino. N��o se pode fazer
uma coisa dessas impunemente... Os rel��mpagos se
sucedem. O baby chora, assustado. O Homem de Ne-
g��cios desperta, e seus olhos piscam quase em p��nico.
A trovoada continua. E aqui vamos, encerrados nesta
c��psula prateada que avan��a imp��vida na dire����o da
tormenta. O ronco dos motores parece uma amplia-
����o descomunal do pulsar destes vinte cora����es inter-
nacionais.
Lembro-me de um dramalh��o que li ou vi quando
adolescente ��� "As ��rf��s da Tempestade". Sim, n��s so-
mos os ��rf��os da tempestade. Estamos �� merc�� dos ven-
tos e da sorte, desligados da terra e das outras cria-
turas. ..
Que id��ias estar��o passando pela mente dos outros
membros da fam��lia? Olho furtivamente para Lu��s,
que aperta o nariz contra o vidro da janela. Decerto
imagina que vai bombardear T��quio no seu "Liberator".
Dentro em pouco os "Zeros" japoneses estar��o enxa-
meando como vespas assanhadas ao redor do bombar-
deiro, e Lu��s os ir�� derribando, um por um, com rajadas
de metralhadora. Grande proeza! Soltar�� uma bomba
em cima do pal��cio do Imperador, e depois voltar�� ��
sua base, para uma orgia de coca-cola.
Clara, de olhos parados e brilhantes, naturalmente
imagina-se chegando a Miami, ao som duma banda de
m��sica. O Prefeito, de fraque e chap��u alto, recebe-a
com um discurso; ela fica toda ofegante e aflita, por-
que n��o sabe uma palavra de ingl��s. Mas Margaret
O'Brien, que lhe trouxe uma bra��ada de flores, per-
gunta-lhe milagrosamente, em claro portugu��s, se a
viagem foi boa e se os meninos
gostam de
ice-cream...
14
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Quanto a minha mulher, n��o �� dif��cil imaginar o
que est�� pensando. P��lida, de olhos cerrados, Mariana
decerto faz a si mesma perguntas que ficam sem res-
posta. Chegaremos vivos e inteiros? Que ser�� de n��s
nessa terra estranha onde n��o existem criadas? Onde
iremos morar? Quem ser��o os nossos amigos? Como
irei me arranjar nos mercados e nas lojas se de ingl��s
n��o sei mais que duas palavras ��� yes e no?
Agora voamos j�� por sobre terras dos Estados
Unidos. L�� em baixo, branca e rasa, Miami parece um
cemit��rio.
O letreiro �� nossa frente se ilumina: Afivelem os
cintos. Proibido fumar. Obedecemos. O avi��o co-
me��a a perder altura. Sinto essa manobra nos ouvidos
e no peito...
DIALOGO ENTRE ANJOS
Leio a not��cia num jornal. Miami (Associated
Press) Hoje ao anoitecer, bem no momento em que
aterrissava no aeroporto desta cidade, capotou um
avi��o da... N��o quero ver o resto...
Algu��m no Brasil murmura: "Sete de Setembro...
Belo dia para morrer!" L�� est�� Dom Pedro em cima
do seu cavalo, erguendo no ar o chap��u de dois bicos
e gritando ��� "Independ��ncia ou Morte!". E no alto
dum estrado a professora dona Eufr��sia Boj��o, de bu��o
cerrado, ��culos de grossas lentes, seios virginais e fana-
dos, disserta com a voz m��scula e seca sobre a Grande
Data.
Por onde andar�� agora a alma de dona Eufr��sia,
que morreu durante um g��lido inverno ga��cho, sem
nunca ter sequer mordiscado o fruto do amor? Talvez
ela esteja �� minha espera em algum lugar para al��m
daquela nuvem negra. �� bem poss��vel que dentro de
A V O L T A DO GATO P R E T O 15
alguns minutos eu a encontre toda de camisol��o branco
e asas imaculadas, com uma lira nas m��os que na vida
terrena manejaram com tanta efici��ncia o ponteiro e
a palmat��ria.
Fecho os olhos e imagino o encontro.
��� Bom-dia, dona Eufr��sia.
��� Bom-dia, menino. Sente-se. J�� aprendeu a
fazer conta de dividir?
��� N��o, senhora.
Estamos ambos sentados numa nuvem cor-de-rosa.
H�� um s i l �� n c i o . . . de quantos segundos? Imposs��vel
dizer, pois na eternidade o tempo n��o existe.
��� Tenho lido os seus livros ��� diz dona Eufr��sia,
ajeitando a sua aur��ola.
Fico gelado e mudo. De repente, numa f��ria nada
ang��lica, ela rompe:
��� Voc�� n��o tem mesmo nenhum respeito pela
gram��tica?
Baixo a cabe��a. Dona Eufr��sia pigarreia, e o som
estridulo de seu pigarro corta o ar como um p��ssaro,
rumo das grandes montanhas do Al��m.
��� Bom ��� continua ela. ��� Vamos afinar os instru-
mentos. D�� um d��.
Dou um d��. E depois ��� afinados e em perfeita
harmonia ��� ficamos tocando um dueto de lira, repou-
sado como as coisas eternas, belo como a nunca ouvida
m��sica das esferas.
Abro os olhos e espio para fora. Vejo o mundo
subir como uma enorme baleia que se erguesse do
oceano, para apanhar o avi��o numa rabanada. Tenho
a impress��o de que as casas de Miami v��o resvalar
para o mar.
A terra avan��a e cresce para n��s. . . H�� um mo-
mento de expectativa, surdez e tens��o nervosa. Final-
mente sentimos o impacto das rodas do aparelho no
ch��o, num primeiro choque ��spero. Depois o avi��o
16
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
come��a a rolar, trepidante, na pista cimentada. Nossos
nervos se relaxam.
Dona Eufr��sia ��� murmuro nos meus pensamentos
��� nosso encontro fica transferido indefinidamente.
Guarde a lira. Recolha as asas. Quem falou em morrer?
N��s queremos �� viver. Todos n��s. O Homem Gordo,
a Princesa, o Mo��o de Bordo ��� todos. E principal-
mente esta fam��lia brasileira. Olhe s�� o apetite de vida
que h�� nos olhos dessa trindade...
O comandante deixa o avi��o. Os passageiros co-
me��am a desembarcar. Chega a nossa vez. Sa��mos
do ventre do gafanhoto para entrar nas entranhas dum
forno.
Este �� um grande momento. Tontos, suarentos,
meio bisonhos, mas felizes, pisamos o ch��o de Fl��rida.
E de m��os dadas seguimos em sil��ncio os outros
passageiros.
SALA DE ESPERA
Entramos numa sala do aeroporto, imediatamente
uma enfermeira aproxima-se de n��s e, sem dizer pala-
vras mete-nos term��metros na boca. Ficamos a nos
entreolhar, entre divertidos e surpresos, com estes ri-
d��culos cigarrilhos de vidro apertados nos l��bios. Pou-
co depois a nurse volta, arranca-nos em sil��ncio os
term��metros, examina-os, d�� a entender que tudo est��
em ordem, e manda-nos passar para uma sala mobiliada
com poltronas de couro escuro, e onde um grande ven-
tilador zumbe, geme e gira, num esfor��o in��til para
refrescar o ambiente.
Sentamo-nos, e como h�� um milh��o de coisas a
dizer, permanecemos calados. Os outros passageiros
tamb��m aqui est��o, e um a um v��o sendo chamados
para o exame dos passaportes e da bagagem. Eis uma
cerim��nia detest��vel. Venho dum pa��s em que apren-
A VOLTA DO GATO PRETO
17
demos a temer ou aborrecer tudo quanto diga respeito
�� burocracia. Lei para n��s chega a ser uma palavra
tem��vel. Nos meus tempos de menino, sempre que ��
noite, nas sombrias ruas de minha cidade natal, eu
encontrava um guarda da pol��cia municipal, estreme-
cia de horror, porque esses homens de m�� catadura, de
uniforme zuarte e espadag��es �� cinta, eram o s��mbolo
do capanguismo pol��tico, tinham uma tradi����o de
viol��ncia e arbitrariedade. Cresci com esse medo na
alma, e com a subterr��nea id��ia de que o funcionalis-
mo p��blico �� uma organiza����o destinada especialmente
a dificultar as coisas e de que no fim de contas o Go-
verno n��o passa mesmo dum instrumento de opress��o.
Tenho ainda nos ouvidos o ronco dos motores. O
calor me aniquila. A camisa empapada de suor cola-
se-me ao corpo. N��o vejo nenhuma janela aberta, e
isso aumenta o meu mal-estar.
O sil��ncio continua contra o macio pano de fundo
tecido pela zoada do ventilador. Escarrapachado
numa poltrona, observo meus filhos.
Lu��s tem sete anos e grandes olhos castanhos to-
cados ��s vezes de muita ternura humana, e quase sem-
pre dum vago ar de aus��ncia. Sei que neste momento
ele n��o est�� em Miami, Fl��rida, mas em algum outro
lugar remoto, imposs��vel e provavelmente inexistente.
Sorrio vendo sua franja rebelde que se recusa a aderir
ao resto da cabeleira, eri��ando-se como um penacho
agressivo e caricatural. Lobo solit��rio, Lu��s gosta de
brincar sozinho, e de vez em quando afunda em pro-
longados sil��ncios, e anda perdido n��o sei por que mis-
teriosos mundos de faz de conta. Quando interpelado,
contrariado ou perturbado em seus devaneios, sabe de-
fender-se com uma obstina����o verdadeiramente muar,
usando n��o raro uma dial��tica quase adulta. Recon-
centrado e pouco amigo de exibi����es, pode dar �� pri-
meira vista a impress��o de frieza e desligamento. No
entanto, no aeroporto do Rio, na hora em que dissemos
18
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
adeus aos amigos para entrar no avi��o, vi que seus
olhos se enevoaram de l��grimas, numa t��o intensa ex-
press��o de tristeza e saudade antecipada, que eu, o res-
pons��vel pela viagem, cheguei a ter uma sensa����o de
culpa e remorso... Lu��s fez todo o percurso em sil��ncio.
Quando desc��amos do avi��o, nos diversos pontos de
escala, tomava coca-cola, comia roscas e fazia algumas
perguntas. Em Paramaribo, olhando para aquelas gen-
tes louras que falavam uma l��ngua t��o esquisita, per-
guntou-me de repente:
��� Papai, que estar�� fazendo o Dr. Borges de
Medeiros?
Mariana desatou a rir. Fiquei s��rio, pois julguei
compreender o sentido da pergunta. Foi a maneira
que o menino encontrou para dar voz �� sua sensa����o
de estranheza por estar naquele mundo t��o diferente
do brasileiro.
Clara ergue-se, caminha at�� a janela e espia para
fora, atrav��s da vidra��a. Est�� naturalmente ardendo
por ver os Estados Unidos. Se Lu��s �� um peixe solit��-
rio de ��guas fundas, Clara �� um p��ssaro inconseq��en-
te de asas inquietas. Onde quer que esteja est�� sempre
psicologicamente num palco. Para ela tudo �� teatro.
Morena da cor do amendoim torrado, nariz arrebitado,
olhos pretos e lustrosos, atravessa ela essa hora mara-
vilhosa em que essas criaturinhas descobrem o pr��prio
corpo, apaixonam-se por si mesmas, e vivem conver-
sando com "a outra, a do fundo do espelho"... Com
a boina vermelha atirada para a nuca, num desleixo
que, longe de ser casual, �� pelo contr��rio estudado
(Oh! A audaciosa menina brasileira em suas aventuras
por terras estrangeiras!) ��� Clara fica longo tempo junto
da janela. Aposto como j�� desligou a aten����o do que
vai l�� fora, e est�� apenas a olhar a pr��pria imagem
refletida na vidra��a...
A VOLTA DO GATO PRETO 19
FUNCION��RIOS E ELEFANTES
Finalmente somos chamados. Como um r��u apro-
ximo-me dum balc��o por tr��s do qual se acham sen-
tados tr��s homens de uniforme caqui. Mostro os
passaportes. Tudo parece em ordem. O interrogat��rio
principia.
��� Qual o objetivo de sua viagem?
Sinto que minha l��ngua �� de chumbo, quando
come��o a responder em ingl��s.
��� Fui convidado pelo vosso Department of State
para lecionar literatura brasileira na Universidade da
Calif��rnia, em Berkeley.
Digo estas palavras constrangido, porque sei com
a mais absoluta certeza que tenho cara de tudo, menos
de professor. No passaporte meu retrato parece o de
um scroc internacional, ou de um desses tipos sem
p��tria que fazem o tr��fico de brancas.
O homem que me interroga �� jovem e tem uma
fisionomia amiga.
��� O senhor traz alguma prova desse convite?
��� Prova?
��� Sim. .. Um documento qualquer, uma carta...
Apalpo os bolsos do casaco num gesto puramente
formal, porque sei que n��o tenho comigo nenhuma
prova. Tudo foi resolvido atrav��s de telegramas tro-
cados entre Washington e o consulado americano de
Porto Alegre.
��� Sinto muito. N��o tenho nada.
O mo��o sorri, segreda qualquer coisa ao ouvido
do companheiro que est�� �� sua esquerda, e depois me
diz:
��� �� pena. Se o senhor tivesse essa prova poupa-
ria dezesseis d��lares.
��� N��o compreendo...
20 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Os convidados do governo est��o isentos de qual-
quer imposto.
��� A h . . .
Passo o len��o pelo rosto suado. Com o rabo dos
olhos vejo a meu lado os outros membros da fam��lia,
cristalizados no seu atarantamento, acompanhando sem
compreender este di��logo entre o chefe da tribo e a
Lei ��� lei com um imenso L mai��sculo, lei dum pa��s
de fala e costumes abstrusos.
Como o americano �� em geral um homem que
sempre est�� disposto a ouvir uma anedota, arrisco:
��� Por falar em prova, conhece a hist��ria do ele-
fante?
Os tr��s funcion��rios de repente ficam atentos.
��� Do elefante? N��o. Como ��? ��� perguntou um
deles.
Conto:
��� Pois uma vez, no pa��s dos bichos, o rei baixou
um decreto mandando cortar a orelha a todos os ele-
fantes. Um macaco ouviu a not��cia e tratou de fugir.
Saiu a correr desabaladamente e no caminho encontrou
um burro que lhe perguntou: "Aonde vai com tanta
pressa, amigo?" "Vou fugir" ��� respondeu o macaco,
ofegante. 'O rei mandou cortar as orelhas de todos
os elefantes." O burro ficou espantado. "Mas voc��
n��o �� elefante!" E o macaco, muito s��rio, replicou:
"Isso sei eu. Mas antes que eu possa provar que n��o
sou elefante eles me cortam as orelhas." E dizendo
isto, abalou.
Os funcion��rios desatam a rir. E um deles diz:
��� Sinto muito, my friend, mas tenho de lhe cor-
tar as orelhas. Dezesseis d��lares, faca o favor.
Pago e passo com a fam��lia para a se����o onde
nossas bagagens v��o ser revistadas.
A V O L T A DO C A T O P R E T O
21
O "GETULINHO"
Ver nossas malas abertas ��� com toda essa s��rie
de roupas e objetos ��ntimos ��� diante de olhos estra-
nhos, produz em mim um mal-estar quase t��o intenso
como o que eu sentiria se fosse obrigado a passear de
pijama pela avenida ao meio-dia ou se tivesse de assis-
tir �� leitura em p��blico duma carta confidencial em
que eu discutisse, sem estilo nem gram��tica, rid��culos
segredos de fam��lia.
Mas o fiscal n��o �� exigente. Suando e sorrindo,
com piadas e piscadelas de olhos, apalpa superficial-
mente as roupas.
��� Traz alguma bomba escondida? ��� pergunta. ���
N��o? Est�� bem. Pedras preciosas? Okay. Pode fechar.
No atrapalhado e constrangido af�� de abrir e fe-
char malas (por que ser�� que a gente sempre apanha
a chave errada?) sinto ainda mais calor e fico quase
a me derreter. Finalmente fecho a derradeira mala.
Somos ent��o encaminhados a um outro funcion��rio,
que me pergunta se trazemos dinheiro brasileiro. Es-
vazio diante dele o conte��do de minha carteira: um
livro de cheques e duas notas de vinte d��lares. Por
fim, quando tudo parece terminado, pinga da carteira
na mesa, com um som leve e breve, uma moedinha de
tost��o, um "'Getulinho". O funcion��rio apanha a moe-
da, curioso, e rola-a na ponta dos dedos. Sorri, e no seu
sorriso julgo ver a nostalgia de viagens nunca feitas,
de pa��ses ex��ticos com palmeiras e nativos, serenatas
e guitarras, morenas c��lidas e punhais.
��� Quem �� este? ��� pergunta ele.
��� �� o nosso Presidente.
��� V a r g a s ? . . .
��� Isso mesmo.
��� Muito interessante...
��� Muito.
22
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Tem mais dinheiro?
��� N��o. Nada mais.
��� Okay. Podem passar.
Finalmente estamos livres. Ansiamos pelo ar da
noite. Por um gelado. Por um o��sis. Fa��o um sinal
para o resto da tribo. Apanhamos as nossas malas e
encaminhamo-nos para a porta. Mas n��o! Ainda n��o
soou a hora da liberta����o. Dois homens sorridentes
nos barram o caminho. Um deles ��� sujeito baixo, ca-
be��udo e sangu��neo, metido em roupas esportivas ��� me
estende a m��o, cordialmente, pronunciando seu nome,
enquanto o outro se conserva a dist��ncia, acariciando
uma m��quina fotogr��fica. S��o representantes duma
ag��ncia telegr��fica e querem uma r��pida entrevista.
Que est�� fazendo o Brasil para o esfor��o de guerra?
Que venho fazer nos Estados Unidos? Os brasileiros
gostam dos americanos? Respondo como posso. Sinto
que meu ingl��s me sai viscoso, sonolento e grosso.
��� Agora, uma fotografia, please!
A fam��lia prepara-se.
��� Mais juntos! ��� diz o fot��grafo, ajustando a c��-
mara.
Obedecemos. Minha mulher murmura:
��� Estamos horr��veis.
��� Fica firme ��� respondo. ��� Deus �� grande.
Clara cutuca o irm��o.
��� Tira essa boina.
Lu��s retruca:
��� N��o empurra. N��o tiro. A boina �� minha.
��� Bobo.
��� Boba ��s tu!
Intervenho:
��� Vamos acabar com essa baderna.
O fot��grafo pede:
��� A smile.
Traduzo:
��� Um sorriso, minha gente.
A V O L T A DO GATO P R E T O
23
��� Sorri ��� diz Clara ao irm��o.
��� N��o sorrio.
Mariana toca o ombro de Clara:
��� Sorria, minha filha.
A menina sorri. Todos sorrimos.
��� Agora, firmes!
Clic. A l��mpada emite um clar��o. Est�� tudo
pronto.
O homem cabe��udo vem de novo, aperta-nos a m��o
e deseja-nos uma feliz estada na Am��rica.
Um atencioso major do ex��rcito norte-americano nos
diz que um auto nos espera fora e recomenda-nos o
Hotel Urmev, no centro de Miami.
Somos os ��ltimos a sair do aeroporto.
VIAGEM ATRAV��S DUM FORNO
Entramos na cidade de Miami num autom��vel
dirigido por um sargento do ex��rcito, um homem ma-
gro, baixo, de bigodinho preto, e que na vida civil era
guarda-livros em Filad��lfia.
Desapareceram das ruas os coloridos letreiros
ne��nio e as luzes dos combustores est��o amortecidas. ��
o dim-out; �� a guerra. A ilumina����o das vitrinas ��
amarelenta e t��bia. Pelas cal��adas as pessoas passam
como sombras silenciosas.
Nosso carro estaca �� porta do hotel. Descemos,
apertamos a m��o do simp��tico sargentinho, que j�� p��s
todas as nossas malas sobre a cal��ada, e subimos na
dire����o do hall. P��lidos, cansados, de ar um pouco
acanhado, creio que oferecemos um aspecto de derrota.
Pod��amos bem ser uns desses muitos milhares de euro-
peus que, fugindo da invas��o nazi, buscam ref��gio nos
Estados Unidos. Digo isso a minha mulher e ela, muito
desanimada, pergunta:
��� Tu e u r o p e u . . . com essa cara?
24
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Nunca viste um grego? ��� replico, vagamente
ofendido.
O sagu��o do hotel tem um aspecto agrad��vel.
Predomina nele o bege claro e o laranja, numa com-
bina����o alegre. L��mpadas veladas, sof��s e poltronas
assentam-se solidamente sobre um ch��o macio, forrado
de tapetes. Velhos e velhas l��em revistas ou jornais, num
sil��ncio de clube ingl��s. Junto do elevador uma negri-
nha uniformizada cabeceia de sono.
O calor continua aqui dentro. Suados e l��vidos,
sob esta luz fluorescente, estamos agora diante do bal-
c��o da ger��ncia, por tr��s do qual sorri para n��s, aco-
lhedoramente, uma mulher ainda mo��a, �� qual a gor-
dura d�� um ar matronal. �� morena, est�� vestida de
branco e nos seus cabelos castanhos e crespos canta
uma rosa vermelha.
��� Italiani? ��� pergunta ela.
��� N��o, senhora.
��� Mexicanos?
��� Brasileiros.
��� Oh! Buenas noches, amigos.
��� Buenas noches. Queremos quartos.
A mulher faz-me assinar um cart��o e depois, com
clara pron��ncia, l�� meu nome. Tem uma voz pastosa
e doce como marshmellow. Vem dela um morno per-
fume de violeta.
��� Bay! Quarto 345.
O hoij apanha a chave e nossas malas, e n��s o
seguimos em fila indiana. Somos como zombies. Que
perverso sortil��gio tomou conta de n��s? Meus pensa-
mentos correm ou, melhor, arrastam-se todos na mesma
dire����o. Gelo, p��lo, chuva, gelo, banho, sorvete, p��lo,
chuva, banho. Entramos no elevador. A ascensorista
preta e cabelizada nos lan��a um olhar morti��o e sem
curiosidade.
O corredor sombrio do terceiro andar me d�� uma
ang��stia de pris��o.
A VOLTA DO GATO PRETO
Entramos no quarto. Pe��o ao boy que traga be-
bidas geladas e cubos de gelo.
Ao verem a cama, Clara e Lu��s atiram-se sobre
ela e ali se deixam ficar, enquanto lentamente v��o
tirando as roupas com gestos morosos, como figuras
vistas em c��mara lenta. O ar parece um lago de ��leo
quente onde nossos corpos b��iam molemente.
Quando me meto debaixo do chuveiro, a ��gua
que me cai no corpo n��o traz nenhum refrig��rio. ��
morna, grossa, e eu a sinto como o contato desagra-
d��vel de cem dedos de azeite. E mal come��o a me
enxugar com a toalha felpuda, j�� o suor me escorre de
novo pelo corpo todo.
Chegam as bebidas. O refrig��rio que elas nos
d��o �� apenas moment��neo. Nossa sede parece in-
saci��vel. Come��amos a chupar cubos de gelo.
Meia hora depois estamos todos deitados, em estado
de agonia.
��� Que terra! E isto no outono!
Quem foi que falou? Talvez tenha sido eu mes-
mo. N��o sei. N��o interessa. Procuro imaginar que
estou num mato de sombras verdes, mergulhando num
arroio fresco e claro, que corre por entre pedras e
avencas. Ou ent��o que chove, chove muito, uma
chuva fria e torrencial, e eu saio a correr pelas ruas,
com o rosto erguido para o c��u, a boca aberta...
Miami est�� com febre e delira. N��o ficarei sur-
preendido se o hotel dum momento para outro come-
��ar a tremer com sez��es. Boto a ��ltima pedra de ge-
lo sobre o peito, e sinto-a derreter-se; a ��gua me es-
corre pelos flancos e pinga no len��ol, que parece uma
chapa quente, como se debaixo da cama houvesse
um braseiro vivo.
Da rua sobe at�� n��s de quando em quando
o som agudo duma buzina, ou ent��o uma que outra voz
humana. Curioso. Eu tinha esquecido os Estados
Unidos. N��o sinto essa alegria que nos vem da id��ia
26
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
de que estamos no estrangeiro, de que vamos come-
��ar uma vida nova... S�� sinto o calor e uma ang��s-
tia de emparedado.
Sil��ncio. De repente uma voz:
��� Pai...
A palavra atravessa a custo o ar espesso e me che-
ga, derretida, aos ouvidos. Quero responder, mas a
l��ngua me pesa toneladas. H�� uma pausa, e depois:
��� Pail
Fa��o um esfor��o e gemo:
��� Hum?
��� E se tu fosses l�� em baixo buscar um sorve-
te?...
Sinistra sugest��o.
��� Fecha os olhos e dorme, Lu��s ��� resmungo.
Agora �� a voz da menina:
��� Telefona...
Mariana interv��m:
��� Fica quietinha. �� tarde.
De novo o sil��ncio. Um sil��ncio de forno. For-
no... O estonteamento do sono me sugere id��ias
doidas... Forno. Estamos sendo assados em fogo
lento... Para que monstruoso banquete? O suor
me escorre pelo rosto, pelo peito, empapa o traves-
seiro, o len��ol... Assado, servido com rodelas de li-
m��o. .. Imagino um descomunal cozinheiro de aven-
tal e gorro branco, perguntando ao fregu��s: "Bem
passado ou mal passado?" Leio o menu escrito em
fogo: Brasileiro assado �� moda da casa. ��gua! ��gua
por amor de Deus. Chuva... A r . . . P��lo... Ge-
l o . . . Chuva... ��gua... Um avi��o voando contra
um c��u de brasa. O avi��o treme de febre. A cabe��a
lateja de dor. Os motores roncam e trepidam dentro
do meu c��rebro.
Finalmente caio num sono pesado, assombrado
por sonhos confusos, um sono que d��i como uma so-
va, um sono que n��o traz al��vio, porque atrav��s dele
continuo a sentir a canseira, a sede e o calor. ..
A VOLTA DO GATO PRETO
27
RUAS DE MIAMI
No dia seguinte o c��u amanhece despejado de
nuvens. Brilha um sol amarelo e a sombra dos edif��-
cios no asfalto da rua tem uma leve tonalidade vio-
leta. (Diz minha mulher que esse toque de violeta
est�� mais na minha imagina����o que nas sombras. Vai
mais longe: assegura-me que quando descrevo paisa-
gens tenho a obsess��o dos tons arroxeados.) N��o so-
pra a menor vira����o, e na atmosfera morna sinto uma
promessa amea��adora de morma��o.
Mo��dos e meio estonteados dum sono sem repou-
so, descemos ��s nove, tomamos um breakfast frugal e
sa��mos a andar sem rumo certo.
Miami �� uma cidade alegre, plana, limpa, sim��-
trica e colorida. N��o tem ladeiras nem ruas tortas,
nem casas antigas ou monumentos hist��ricos. De t��o
nova e clara, parece at�� cheirar a tinta fresca. �� um
burgo de turistas, parque de divers��es de milion��rios,
os quais t��m suas belas vilas de inverno ao longo des-
tas l��nguidas praias brancas que a n��voa e o frio nun-
ca visitam. Na sua Ba��a Biscainha branquejam iates
e veleiros.
H�� quatrocentos e trinta anos, Ponce de Leon
desembarcou nas costas do que �� hoje o estado de Fl��-
rida, tomando posse da terra em nome do rei de Es-
panha. Segundo as lendas correntes, havia nela n��o
s�� ricas minas de ouro como tamb��m fontes m��gicas
cuja ��gua daria a quem a bebesse a juventude eterna.
�� procura dessas maravilhas meteu-se Ponce de
Leon terra adentro, e ap��s muitas andan��as infrut��fe-
ras, acabou desistindo da busca e voltou �� Espanha.
Continuou, por��m, de tal modo dominado pelo feiti-
��o de Fl��rida, que alguns anos depois voltou para
perseguir, mas sempre inutilmente, a mesma miragem.
N��o encontrou a fonte da juventude, mas a frechada
28
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
que recebeu num dos muitos combates que com seus
homens teve de travar contra os ��ndios, abriu-lhe no
corpo uma fonte de sangue por onde a vida se lhe
esvaiu.
A data em que o malogrado Dom Juan Ponce de
Leon assentou p�� nesta terra de promiss��o parecia
conter em si uma profecia e uma predestina����o. Era
o dia da P��scoa de Flores, raz��o pela qual esta regi��o
recebeu o nome de Fl��rida. E hoje este estado do
extremo sul dos Estados Unidos �� uma esp��cie de
permanente "p��scoa das flores", com suas fantasias
aqu��ticas, seus jogos florais, seus concursos de beleza
em que raparigas representantes de todos os estados
da Uni��o desfilam �� sombra de palmeiras, sob um r��-
tilo c��u azul, numa exibi����o de caras, bustos, coxas,
pernas.. De certo modo se confirmam as lendas
dos tempos de Ponce de Leon. Fugindo aos g��lidos
invernos do Norte, velhotes e velhotas ricos v��m bus-
car neste sol e ao conv��vio dessas criaturas mo��as um
pouco de calor e juventude.
Se eu tivesse de eleger um s��mbolo vivo para Mia-
mi eu escolheria por exemplo aquela rapariga que a��
vem atravessando a rua com passadas firmes. Tem
uma gard��nia enfiada nos cabelos escuros e soltos. Sua
pele �� de marfim claro, os olhos azuis, os zigomas um
pouco salientes, a boca rasgada. Em seu olhar ���
agora que ela est�� a dois passos de mim ��� n��o vejo
profundidade nem mist��rio, apenas uma certa ino-
c��ncia juvenil. Est�� metida num vestido estampado
de flores vermelhas, azuis e amarelas. Ela �� o ver��o,
a praia, o vento, o sol. Ela �� um feriado, um veleiro,
uma onda. Ela �� Miami.
Algu��m me puxa pela aba do casaco. Volto a
cabe��a e vejo minha filha.
��� Que ,�� isso, pai? ��� repreende ela. ��� Chega de
olhar pra mo��a...
Pietomamos caminho.
A V O L T A DO GATO P R E T O
29
��� Que impress��o tens de Miami? ��� pergunta-me
Mariana.
��� Parece uma cidade de brinquedo, feita de pa-
pel��o, gesso pintado e papel estanhol. . .
Vitrinas exp��em vestidos de ver��o e de praia, ar-
tigos de esportes, grandes bolas de gomos coloridos,
p��ra-s��is, b��ias, barcas, colch��es flutuantes, ��culos
escuros, flores artificiais. Manequins esbeltos, cujas
caras lembram vagamente as de certas estrelas de ci-
nema, exibem vestidos de tecido leve em padr��es fan-
tasticamente berrantes.
Os homens em sua maioria andam sem casaco.
Noto que suas gravatas procuram fugir a extravag��n-
cia de cores e padr��es dos vestidos das mulheres. H��
por toda a parte ��� nas cal��adas, caf��s, bares, lojas,
��nibus ��� uma grande quantidade de soldados e ma-
rinheiros. E o curioso �� que as criaturas humanas aqui
de certo modo tamb��m parecem de brinquedo.
Tudo nesta cidade cheira a turismo. As curi�� shops
��� casas de curiosidades e lembran��as ��� abundam. V��-
se nelas o mais estonteante bricabraque: bandeiras e
estandartes com d��sticos; cart��es-postais com vistas da
cidade, da praia e da se����o residencial de Miami;
j��ias mexicanas e ��ndias, an��is, braceletes e colares ba-
ratos; b��bel��s chineses, amuletos africanos, havaianos e
polin��sios; cestos de flores e frutos artificiais em mi-
niatura. Tudo isso numa riqueza de tintas e num bri-
lho de verniz.
Nossa caravana p��ra junto duma dessas pequenas
casas que vendem refrescos e sucos de frutas. Est�� ela
toda decorada com motivos havaianos. Vejo pelas
prateleiras e montras uma profus��o de caquis, pa-
paias, cocos, mangas e ananases. Um escultor mode-
lou a canivete uma cara diab��lica numa casca de coco
e pintou-a de cores vivas, e o dem��nio agora arrega-
nha os dentes para n��s. Num poleiro de alum��nio uma
cacatua branca ginga inquieta. A casa �� atendida por
30
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
uma ��nica pessoa, uma mulher magra, de pele um
pouco terrosa, que nos sorri acolhedoramente. Con-
fraternizamos logo. A criatura se enternece ao sa-
ber que estamos t��o longe da p��tria.
��� Por que �� que a menina est�� t��o p��lida?
��� Enjoou muito na viagem ��� explico.
��� Coitadinha! Olhe c��. Tenho um rem��dio mui-
to bom pra ela.
Mariana quer saber:
��� Que �� que ela est�� dizendo?
Fa��o a tradu����o, enquanto a nossa nova amiga d��
a Clara um copo c��nico de papel com um l��quido de
cor alaranjada.
��� Tome isto. �� suco de papaia.
Traduzo:
��� Papaia �� mam��o.
Com alguma relut��ncia a menina leva o copo ��
boca, toma um, dois, tr��s goles de suco de papaia...
De repente atira o copo no ch��o, leva a m��o no est��-
mago, d�� uma viravolta e sai, atarantada, na dire����o
da cal��ada. Senta-se no meio-fio, inclina a cabe��a
para o ch��o, leva a m��o �� testa, e seria uma nota rea-
lista in��til descrever o que se seguiu.
A dona da tenda corre em socorro da cliente. Al-
guns transeuntes param, olham, perguntam, d��o palpi-
tes, e depois seguem o seu caminho. Finalmente a or-
dem se restabelece. E quando de novo a nossa cara-
vana se apresta para partir, tiro do bolso uma moeda
de um quarto de d��lar com a inten����o de pagar a des-
pesa. A americana ergue a m��o, num protesto. N��o
quer receber nenhum dinheiro. Ora, j�� se viu? Se o
rem��dio s�� piorou a situa����o do doente...
��� N��o senhor!
Tenho uma id��ia. Tiro da carteira o "Getulinho"
e digo:
��� Olhe, guarde esta lembran��a. �� uma moeda
brasileira. Esta ef��gie �� a do nosso Presidente.
A VOLTA DO GATO PRETO 31
Encantada, a mulher apanha a moedinha e excla-
ma:
��� How cute!
Cute �� um adjetivo muito usado neste pa��s, e po-
de ser traduzido por engra��adinho, bonitinho, interes-
sante.
��� Muito obrigado e adeus! ��� despe��o-me.
A mulher se inclina sobre o balc��o e grita:
��� Vou guardar esta moedinha na minha caixa
registradora, como um talism��. Fique certo de que
ela n��o sair�� mais daqui, nunca mais.
��� Quanto a isso n��o tenho a menor d��vida... ���
digo. E abalamos.
BOOM!
Os Estados Unidos s��o a terra das carreiras fan-
t��sticas, tanto para as pessoas como para os lugares.
No caso das pessoas a palavra m��gica �� sucesso. No
caso das cidades ou estados, boom. O boom (pronun-
cia-se bum) �� o crescimento r��pido, um s��bito bafejo
de prosperidade. Uma boom town �� uma cidade cujo
ritmo de progresso se acelera, cujas propriedades se va-
lorizam e cuja popula����o aumenta ��� tudo isso duma
maneira espetacular. Os mais famosos booms da his-
t��ria norte-americana foram causados pelo descobri-
mento de minas de ouro ou jazidas de petr��leo.
Fl��rida teve tamb��m o seu boom. N��o foi origi-
nado por nenhuma riqueza de seu subsolo, mas sim pe-
lo seu clima e principalmente pela habilidade e aud��-
cia dum grupo de propriet��rios de im��veis que resol-
veram chamar a aten����o do resto do pa��s para as suas
terras chatas e pantanosas, conseguindo valoriz��-las co-
mo se elas contivessem minas de ouro e po��os de pe-
tr��leo. Tinha-se o exemplo da Calif��rnia que pro-
gredia ��� serenada a f��ria da corrida do ouro e de pe-
32
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
tr��leo ��� progredia e enriquecia, explorando o turismo,
gra��as �� insist��ncia com que sua C��mara de Com��rcio
apregoava aos quatro ventos, em frases bem feitas e car-
tazes bem pintados, as belezas de suas montanhas,
de seus verdes vales cheios de laranjas e limoeiros, e
principalmente a amenidade de seu clima de sol eter-
no. Perguntaram os homens de Fl��rida: Que �� que
a Calif��rnia tem que n��s n��o temos? Dos banhados
pareceu-lhes vir a voz dos sapos que bradavam em
resposta: Nada. Voando e zumbindo os mosquitos
repetiam: Nada. Nada! murmurava o vento. E as
ondas, estirando-se nas praias claras, gemiam: Nada.
Resolveram ent��o esses propriet��rios de terras co-
me��ar uma campanha com o fim de atrair turistas e
milion��rios para Fl��rida. Essa foi a origem de um dos
mais espetaculares rushs da hist��ria americana em
torno do neg��cio de im��veis. A mais exagerada, bom-
b��stica e pirot��cnica das literaturas come��ou a cir-
cular pelo pa��s, exaltando a terra por onde quatro s��-
culos antes Ponce de Leon andara como um doido em
busca das fontes da juventude, ignorando todo tem-
po, pobre cego, que a verdadeira fonte de mocidade
eterna, era o sol de Fl��rida, o vento de Fl��rida, o ch��o
de Fl��rida... ��� o melhor vento, ch��o e sol do mun-
do! A troco de que haviam de os americanos ficar en-
colhidos e tr��mulos de frio no meio das neves n��rdi-
cas, sob um c��u de cinza, quando a poucos quil��me-
tros para o Sul estava Fl��rida, a "Riviera americana"?
Espertalh��es compraram por baixo pre��o grandes
tratos de terra e dividiram-nos em lotes. S�� em Miami
havia em 1925 ��� o ano ��ureo do boom ��� 2 000 escri-
t��rios imobili��rios e cerca de 25000 agentes anda-
vam dum lado para outro, suados, sem casaco, o cha-
p��u atirado para a nuca, mostrando plantas a poss��veis
compradores, aos quais se concediam facilidades e se
faziam fabulosas promessas. Esses vendedores de ter-
renos fechavam neg��cios sentados no meio-fio das
A V O L T A DO GATO P R E T O
33
cal��adas, nos bancos de pra��a, nos v��os de porta, no
meio da rua. Em torno deles juntavam-se grupos de
curiosos. Disputavam-se os lotes mais bem situados.
Havia discuss��es, discursos, promessas douradas. N��o
raro o transito era interrompido e a pol��cia tinha de
intervir. Os pre��os dos terrenos subiam fantastica-
mente. Conta-se que uma senhora que em 1896 havia
comprado um peda��o de terra por 25 d��lares vendia-o
agora por 150 milh��es. Por toda a parte em Miami
constru��am-se casas. Eram hot��is, cassinos, teatros,
edif��cios de apartamentos. A cidade crescia para os
lados e para o alto. A publicidade continuava, deli-
rante. Apelava-se para o sentimento rom��ntico dos
americanos, para os quais a palavra tr��pico tem ma-
gia. Enamorados do ex��tico, uma simples palmeira
contra um c��u azul iluminado �� para eles um s��mbolo
de pitoresco e aventura. Agora ��� afirmavam os came-
l��s ��� n��o era mais preciso ir a Cuba, ao M��xico ou
ao Brasil em busca do feiti��o tropical, pois bastava
descer um pouco para o Sul para encontrar Miami, ���
"A Cidade Maravilha", "A Loura e Branca Deusa das
Cidades", "O Parque de Divers��es do Mundo", "A Me-
tr��pole Invenc��vel." P��ntanos eram transformados em
jardins encantados ��� um dos quais recebeu em batis-
mo o nome de "Hollywood �� Beira-Mar". E a fantasia
rastacuera dos maiorais da cidade fez construir junto
da ba��a uma Veneza miniatural. Para se ter uma id��ia
de como era conduzida essa publicidade, �� preciso ler
pelo menos alguns trechos duma proclama����o conjun-
ta lan��ada pelos prefeitos de Miami e de outros con-
dados circunvizinhos, os quais se consideravam mem-
bros da mais Ricamente Aben��oada das Comunida-
des do mais Generosamente Dotado dos Estados do
mais Altamente Empreendedor dos Povos do Universo .
(Devo esclarecer que as mai��sculas s��o dos senhores
prefeitos e n��o minhas. . . ) Ao anunciar ao resto da
Am��rica e do mundo a sua "Fiesta dos Tr��picos Ame-
34
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
ricanos", afirmavam que essa seria uma ocasi��o em
que "o Amor e a Boa Camaradagem, a Alegria, e os
Esportes Saud��veis v��o prevalecer atrav��s de Nossos
Dom��nios". Acrescentavam que "nossos Largos, Bu-
levares, nossas Belas Pra��as e Sal��es de Dan��a, nos-
sos P��tios, Clubes e Hospedarias ser��o a cena em que
a Badiosa Terpsicore e seus Esfuziantes Devotos h��o
de acompanhar com Passo Gracioso o Ritmo das Dan-
��as". Como se tudo isso n��o bastasse, asseguravam
ainda os ardorosos prefeitos que "atrav��s de nossas
Ruas e Avenidas se mover�� uma Parada de Sublime
Beleza a Pintar em Encantos Florais as B��n����os que
nos Concederam o Amigo Sol, a Graciosa Chuva, e o
Sedativo Vento dos Tr��picos". E, nesse tom grandi-
loq��ente, nessa prodigalidade de adjetivos e mai��s-
culas, seguia-se o bestial��gico.
Tudo isso, como se v��, �� uma express��o de novo-
riquismo, de mau gosto, mas �� tamb��m uma inocente,
juvenil afirma����o dum povo otimista, faminto de su-
cesso, prazer e a����o. E o que causa tamb��m estra-
nheza �� o contraste entre a vulgaridade dessa litera-
tura suburbana e o bom gosto que inspirou a constru-
����o das resid��ncias, parques e jardins de Miami. Co-
ral Gables, que o bairrismo local considera "o mais
belo sub��rbio da Am��rica", �� uma cidade dentro dum
parque, com o seu centro comercial, hot��is, bancos,
cassinos, clubes, escolas, jardins p��blicos, ��� e uma ci-
dade como n��o haver�� muitas no mundo inteiro.
As constru����es foram t��o numerosas durante esse
ano da "corrida" que se calcula seu custo em cerca de
4 0 0 milh��es de d��lares. O Estado de Fl��rida despen-
deu 8 milh��es com estradas de rodagem e 50 milh��es
em melhoramentos ferrovi��rios. �� medida que os dias
passavam Miami enchia-se de arrivistas. Primeiro
eram homens de neg��cios, hoteleiros, jogadores pro-
fissionais, capit��es de ind��stria, arquitetos, urbanistas,
��� gente que vinha em busca de oportunidades de en-
A VOLTA DO GATO PRETO
35
riquecer ou simplesmente dum emprego. Depois che-
garam turistas de todas as partes do pa��s. Vieram n��o
s�� gentes ricas, mas tamb��m representantes de v��rias
camadas da- sociedade. Por esse tempo o autom��vel
come��ava a mudar a vida americana. Ford punha as
suas "latas" ao alcance da bolsa de pequenos agricul-
tores, empregados do com��rcio e at�� dos oper��rios. As
estradas se faziam melhores e mais numerosas, e as
que levavam a Miami estavam sempre congestiona-
das de carros. Os hot��is da cidade regurgitavam. Ha-
via gente dormindo em barracas, dentro de autom��-
veis, nos bancos de pra��a, nos corredores dos grandes
edif��cios...
Nesse frenesi, nessa atmosfera de feira, ��� passou-
se o ano de 1925, entrou o de 1926 e a f��ria imobili��-
ria come��ou a decrescer. Surgiam as primeiras difi-
culdades e o otimismo j�� dava sinais de esmorecimen-
to. �� que a aflu��ncia de turistas n��o fora t��o grande
como se esperava. Os que contavam revender seus
terrenos rapidamente com grandes lucros convenciam-
se de que isso n��o seria poss��vel, e come��avam a des-
confiar de que haviam sido ludibriados. J�� n��o pa-
gavam suas presta����es com regularidade, e ao cabo de
alguns meses descontinuavam de todo o pagamento,
tratando de esquecer o mau neg��cio, que a carga dos
impostos tornava ainda pior. Durante a primavera de
1926 come��ou o descalabro. Houve um princ��pio de
p��nico que nenhuma literatura conseguia neutralizar.
J�� de nada servia proclamar que Fl��rida era o para��-
so terrestre, que seus grapefruits eram mais sumaren-
tos que os de Texas, e suas laranjas mais doces que as
da Calif��rnia. O pre��o dos terrenos ca��a sempre...
E como se todos esses contratempos n��o bastassem,
na manh�� de 18 de setembro de 1926 um pavoroso fu-
rac��o varreu Miami, arrancando ��rvores, destelhando
e fazendo emborcar casas, e levando por diante pes-
soas, animais e coisas. A ventania ergueu as ��guas da
36
OBRAS DE ERICO VERISSIMO
ba��a com tamanha f��ria, que jogou uma escuna de cin-
co mastros para cima do cais, empurrando-a at�� as
ruas centrais da cidade. Atirou barcos pelas praias e
avenidas, arrastou para longe autom��veis, projetan-
do-os dentro de casas e vitrinas. Parecia um fim de mun-
do. E quando a ira do c��u serenou, a Cruz Vermelha,
chamada a atender as v��timas da cat��strofe, verificou
que havia 400 mortos, 6 400 feridos, e que o n��mero
dos que tinham ficado sem casa era de 40 000. Mais
tarde os t��cnicos calcularam que os preju��zos subiam
a 165 milh��es de d��lares. Sem luz, sem ��gua, sem
meios de transporte, Miami estava parcialmente arra-
sada. Por toda a parte reinava a devasta����o e a tris-
teza. E por sobre os escombros brilhava um sol de
ouro ��� um sol irrespons��vel e indiferente.
Miami era agora uma cidade em bancarrota. Seus
t��tulos ca��ram tanto, que quando alguns deles se ven-
ceram a cidade teve de pedir morat��ria. O ��ltimo re-
curso do estado era a safra de frutas c��tricas, mas essa
mesma no ano do furac��o foi danificada por insetos
nocivos. Parecia a morte de Miami. Mas no fim de
contas l�� estava o clima, o c��u, o vento, o cen��rio tro-
pical. A propaganda recome��ou e em pouco tempo o
otimismo de novo contagiava a cidade inteira. As ca-
sas foram reconstru��das, os jardins e ruas reparados.
Vieram novos turistas. E outros furac��es. 1929 trouxe
a grande depress��o econ��mica. Mas os milion��rios
continuavam a chegar. O n��mero de turistas e resi-
dentes de inverno no estado de Fl��rida subia a
2 250 000 anualmente. Depois da guerra essa cifra
elevou-se a 3 000 000.
E aqui temos diante de nossos olhos uma Miami
matinal e jovem, que n��o mostra no corpo nenhuma
cicatriz de suas batalhas com os ventos.
A VOLTA DO GATO PRETO
37
ESTA VIAGEM �� NECESS��RIA?
Almo��amos numa cafeteria e agora estamos a nos
entreolhar, meio decepcionados, por cima de restos
de peixe e salada. O colorido das ruas como que se
reflete nos alimentos. O fil�� de salm��o �� cor-de-rosa e
veio acompanhado duma gel��ia de hortel�� cor de es-
meralda. A salada ostentava o vermelh��o dos tomates,
o p��lido verde da alface e do aipo, e estava al��m dis-
so toda lambuzada dum molho rosado, duma consis-
t��ncia de pomada. As crian��as recusaram-se a comer,
e ficaram chupando milk shakes de chocolate em ca-
nudinhos de palha. Volto a ter a mesma impress��o de
h�� dois anos, quando visitei este pa��s pela primeira vez.
A comida dos drugstores e cafeterias �� sadia, colori-
da, mas sem gosto. A primeira coisa que o fregu��s faz
ao receber o seu prato �� apanhar com uma das m��os
o saleiro e com a outra o vidro de pimenta-do-reino, e
salpicar a comida com o conte��do deles. �� um gesto
quase autom��tico que todos repetem nas cafeterias,
drugstores e restaurantes populares de norte a sul e
de leste a oeste. Parece que a comida aqui �� prepara-
da para dois fins principais: um de car��ter cient��fico
e o outro de natureza pict��rica. O que para esta gen-
te parece importar, depois das vitaminas e calorias, ��
o aspecto exterior dos alimentos. E se eu quisesse cair
numa explica����o caricatural diria que isso �� influ��ncia
das magn��ficas litogravuras que vemos em revistas e
nas quais ��� para anunciar farinhas, presuntos, molhos
ou vinhos ��� aparecem pratos t��o artisticamente colo-
ridos que valem por espl��ndidas naturezas-mortas.
Outra coisa que chama a aten����o do estrangeiro
nesta terra �� o tamanho das frutas e dos legumes. Afir-
mam os estat��sticos que a ra��a tamb��m est�� crescendo
de maneira muito sens��vel. E eu desde j�� me confesso
38
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
embasbacado diante do vi��o e do tamanho das mulhe-
res e das cenouras.
Aos poucos vamos percebendo os efeitos da guer-
ra na vida americana. O servi��o nos caf��s, restauran-
tes e lojas �� mais demorado e menos eficiente que nos
tempos de paz. H�� uma escassez de manteiga, pre-
sunto, queijo e carne. O racionamento �� feito por meio
dum sistema de pontos. Todos os membros de cada
fam��lia, inclusive as crian��as ��� t��m direito a um li-
vrete que leva seu nome, e que cont��m uma grande
quantidade de estampas. As vermelhas servem para
comprar carne e derivados, queijo e manteiga; as
azuis, para sucos de frutas, doces e outros alimentos
em conserva. H�� estampas especiais para a����car e pa-
ra sapatos. A fim de evitar que as comadres usem to-
dos os pontos ao mesmo tempo, trazendo um desequi-
l��brio na distribui����o dos g��neros racionados, as es-
tampas s��o marcadas com as letras do alfabeto, e o es-
crit��rio da administra����o de pre��os ��� conhecido e te-
mido pelas iniciais O. P. A. ��� determina a ��poca em
que as estampas de tal ou tal letra entram em vigor.
Afora essas restri����es, que outros sinais de guerra
se fazem vis��veis a olho nu? Vemos pelas ruas uma
quantidade enorme de soldados e marinheiros, e pe-
las paredes e muros belos e sugestivos cartazes con-
vidando o povo a comprar b��nus de guerra. H�� me-
nos autom��veis particulares trafegando por causa do
racionamento de gasolina, e das casas comerciais desa-
pareceram v��rios artigos como meias nylon, torradei-
ras el��tricas, ferros de engomar, brinquedos mec��ni-
cos, r��dios, refrigeradores, canetas-autom��ticas finas,
fon��grafos, e uma s��rie de engenhocas de metal desti-
nadas ao uso dom��stico.
Os cigarros come��am tamb��m a escassear e ��� oh!
golpe terr��vel para os americanos! ��� a goma de mas-
car desapareceu quase por completo do mercado. Pa-
A VOLTA DO GATO- PRETO 39
ra muita gente aqui a falta de chewing gum parece ser
mais funesta que a de qualquer outro artigo.
O u��sque e outras bebidas andam raras e caras,
de sorte que come��a a repetir-se o drama da ��poca da
proibi����o em que milh��es de pessoas se envenenavam
lentamente com bebidas alco��licas da pior esp��cie.
Com a guerra, velhos aposentados voltaram �� ati-
vidade substituindo os homens e mulheres jovens que
est��o no ex��rcito, na marinha ou que mourejam nas
f��bricas de avi��es e nos estaleiros. Eles trabalham em
elevadores, escrit��rios, lojas, caf��s, bancas de jornais,
etc.
Miami tinha em 1920 cerca de 30 000 habitantes.
Com o boom de 1925 a popula����o subiu a 75 000.
O recenseamento de 1940 acusava 170 000, mas agora
que as ind��strias de guerra atra��ram para c�� trabalha-
dores de outras regi��es, a popula����o deve ter ultra-
passado a casa dos 300 000, e h�� mesmo quem afirme
que n��o est�� longe do meio milh��o. Essa aflu��ncia
de gente criou um problema que est�� atormentando
centenas de outras cidades: a escassez de habita����es.
Os hot��is est��o atopetados, e n��o permitem que os
h��spedes ocupem seus quartos por mais de cinco dias.
N��o h�� casas para alugar. Muita gente resolveu o pro-
blema de moradia vivendo em reboques de autom��-
vel ou barracas, nos arredores da cidade.
Os transportes tamb��m oferecem problemas. N��o
�� f��cil conseguir lugar nos ��nibus e bondes. E quanto
��s viagens por estradas de ferro, as dificuldades n��o
s��o menores. As companhias ferrovi��rias declaram que,
estando tamb��m mobilizadas para o esfor��o de guerra,
o transporte de tropas, armas e muni����es vem em pri-
meiro lugar. Suplicam aos civis que evitem as viagens
de recreio, e que s�� utilizem os trens em caso de ex-
trema necessidade. H�� uma frase que se l�� em carta-
zes e tabuletas, nas ruas, nas esta����es de estrada de
ferro, nas agencias de turismo; uma frase que j�� se
40
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
tornou c��lebre e que tem dado motivo a anedotas.
Trata-se duma pergunta dirigida ao civil: Is this trip
neccssary.
Paro com minha tribo diante dum desses carta-
zes em que a vejo escrita e traduzo:
��� Esta viagem �� necess��ria?
Quatro caras perplexas contemplam o cartaz em
que Tio Sam, numa tricromia, lhes faz a embara��osa
pergunta.
Pensamos nos milhares de quil��metros percorri-
dos de avi��o e nos mais de tr��s mil que ainda nos se-
param da Calif��rnia. Trocamos olhares de d��vida,
encolhemos os ombros e n��o chegamos a concluir se
nossa viagem �� ou n��o necess��ria...
O PINTOR FRUSTRADO
Estamos ainda a andar pelas ruas, procurando
sempre o lado da sombra. �� medida que o dia avan-
��a, o sol se torna mais quente e o ouro de sua luz em-
palidece.
As cal��adas fervilham de gente. Passam mulhe-
res como p��ssaros de plumagem ex��tica. Muitas est��o
sem chap��u e trazem flores nos cabelos. Entre elas
vejo velhas: velhas enchapeladas, pintadas, faceiras,
que caminham depressa, fumam e andam dum lado
para outro, entrando ou saindo de cinemas, bares e
lojas, sobra��ando pacotes, tagarelas, alegres, serelepes.
Os vendedores de jornais parecem excitados.
Aproximo-me duma banca e leio cabe��alhos: A IT��-
LIA CAPITULOU.
Giovinezza, giovinezza! Agora os sons marciais do
hino fascista me v��m �� mente. Ponho-me a assobiar
automaticamente a melodia.
A VOLTA DO GATO PRETO
41
��� P��ra de assobiar isso ��� diz Mariana ��� sen��o
acabas na cadeia.
��� Aha! ��� fa��o eu. ��� Bem se v�� que ��s brasileira.
Vens dum pa��s em que tudo �� pretexto para meter um
homem na cadeia. A terra do "n��o pode". Tudo proi-
bido. Dip. Deip. Dasp. Censura. Hora do Brasil. Po-
l��cia Especial. Fernando Noronha.
�� curioso. Todas essas palavras agora parecem
ter perdido o seu sentido. S��o lembran��as apagadas
dum mundo remoto n��o s�� no espa��o como tamb��m
no tempo.
Vejo um cartaz em que um soldado americano fe-
rido estende a m��o para o p��blico e diz: "Eu dei meu
sangue pela liberdade. E tu, que deste?"
Sinto uma p��lida sensa����o de vergonha. Meus
magros d��lares n��o me permitem comprar b��nus de
guerra. Por outro lado j�� passei da idade militar...
��� Estou fazendo boa vizinhan��a... ��� respondo
mentalmente.
Julgo ouvir a voz da figura do cartaz:
��� Podias trabalhar num estaleiro.
��� Vou ensinar literatura brasileira numa univer-
sidade da Calif��rnia.
��� Literatura bra... Qu��?
Meu embara��o cresce. Sei o que o soldado vai
perguntar. Que import��ncia pode ter a literatura bra-
sileira nesta hora em que os povos est��o empenhados
numa luta de morte?
��� Perd��o ��� justifico-me. ��� A culpa �� de Mr.
Cordell Hull.
Algu��m me aperta o bra��o. �� Lu��s.
��� Falando sozinho, pai?
Detendo-nos aqui e ali para olhar uma vitrina, ler
os dizeres dum cartaz ou contemplar uma beldade-
que passa, chegamos ao ponto central da Main Street.
42
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
O pintor frustrado que mora dentro de mim sente c��-
cegas nos dedos: ��� Ah! Um pincel, uma tela, uma
palheta, tintas ��� sim, talento tamb��m! ��� para fixar es-
ta cena de rua... Casas quadradas, lisas, algumas de
linhas aerodin��micas, com lampejos de metal cromado
nas fachadas, outras de tijolo nu ou madeira revesti-
da de celotex... Marinheiros de branco, soldados de
caqui, mulheres com vestidos claros ou de tons vivos.
Vitrinas chamejando cores. A luz, as sombras. E o
movimento, que tamb��m tem uma cor, imposs��vel de
reproduzir. E os t��xis vermelhos, amarelos e verdes,
chispando �� luz do sol, num contraste com o negro do
pavimento.
No ar, um cheiro de asfalto, e de fuma��a de ga-
solina e ��leo cru. E quando uma rapariga passa jun-
ta-se a essa mistura um perfume de gard��nia ou flor
de ma����.
��� Ah! Uma tela, tintas, um pincel...
Lu��s de novo interv��m.
��� Pai! Outra vez falando sozinho?
ENCONTRO
Caminhamos at�� a beira da ba��a. Uns dez ou
doze PTboats esses pequenos botes lan��a-torpedos
que t��o saliente papel tiveram no princ��pio da guer-
ra contra o Jap��o, acham-se ancorados a poucos pas-
sos de onde estamos. Pintados dum cinzento-azulado
de a��o, balou��am-se de leve na ��gua cor de jade. Lu��s
fica exaltado, pois pela primeira vez v�� ao natural, e
de perto, um barco de guerra j�� t��o seu conhecido
atrav��s de revistas ilustradas.
Num parque vizinho do cais, marinheiros metidos
em uniformes de zuarte fazem exerc��cios. E suas ca-
ras rosadas est��o reluzentes de suor. Uma brisa mor-
A VOLTA DO GATO PRETO
43
na bole de leve nas folhas das ��rvores. No alto dum
mastro tremula a bandeira dos Estados Unidos. Um-
dois-tr��s-quatro! ��� A voz ��spera e cadenciada do sar-
gento-instrutor chega a nossos ouvidos. ��� Direita, vol-
ver! ��� Meia-volta, volverl L�� se v��o os pobres rapa-
zes sob o morma��o, suando naturalmente e odiando o
sargento.
J�� agora sentimos necessidade de fazer alguma
coisa, de ir a algum lugar determinado. Voltamos pa-
ra o centro, quando atravessamos o parque uma brisa
nos traz uma m��sica vagamente familiar. Paramos.
Entreolhamo-nos. Ficamos atentos, tentando acompa-
nhar o desenho da melodia... Agora n��o h�� mais d��-
vida. �� o "Tico-Tico no Fub��". Assumimos o ar de
quem encontrou inesperadamente um compatriota.
Vontade de abrir os bra��os para estreit��-lo contra o
peito. Sentamo-nos num banco. Isso �� um bafo de Bra-
sil. Donde vem a m��sica? Daquele bar? Ou do alto-
falante da galeria de divers��es? Nos olhos de Lu��s
h�� uma n��voa de saudade. Os de Clara brilham e, sem
poder conter-se por mais tempo, ela se ergue e sai a
dan��ar pela cal��ada.
A melodia se esvai no ar. Retomamos o nosso ca-
minho seguidos de nossas sombras, quatro companhei-
ros fi��is e silenciosos.
UM NOVO ��DOLO
�� noite, depois dum descanso de duas horas no
hotel, voltamos �� rua. Os bares est��o cheios. Marinhei-
ros e soldados passam pelas cal��adas de bra��os dados
com raparigas em sua maioria tamb��m uniformizadas.
Formam-se longas bichas nas bilheterias dos teatros e
cinemas, e nessas filas, homens> mulheres e crian��as co-
mem pipocas, conversam, mascam goma ��� contentan-
do-se com o pobre suced��neo que h�� no mercado ���
44
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
e esperam. Por cima dos altos edif��cios, contra um c��u
violeta, passeiam os feixes luminosos dos holofotes,
buscando identificar os avi��es que por ventura pas-
sem sobre a cidade. Os juke-boxes, esses grandes gra-
mofones autom��ticos que tocam um disco por cinco
centavos, berram foxes, rumbas, valsas e blues. A
grande sensa����o em mat��ria vocal �� Frank Sinatra,
que se ergue h�� j�� alguns meses como um rival de
Bing Crosby. Sinatra �� um jovem p��lido, magro, de
ar doentio, que segundo informa seu agente de publi-
cidade gosta de spaghetti frio e de gravata-borboleta.
Retratos do novo ��dolo aparecem por toda a parte. Tem
o her��i um ar faminto de crian��a abandonada. Deve
ter sido isso ��� acho ��� que atraiu o instinto maternal
das mulheres americanas. Sua legi��o de f��s cresce, e ��
extraordin��rio que em ��poca de guerra ��� safra de he-
r��is m��sculos, a maioria deles atl��ticos, espada��dos e
agressivos ��� um t��o pobre exemplar humano possa
empolgar as multid��es. Aqui est�� um ponto a discutir
com mais calma. Mas n��o agora. Agora quero olhar
esta noite quente e perfumada, este ambiente de
festa...
Entramos num cinema e s�� depois duma espera de
meia hora no hall �� que conseguimos lugares. O filme
�� uma xaropada tremenda, uma hist��ria em torno do
amor materno. E como aqui minha mulher e meus
filhos n��o podem gozar dos benef��cios dos letreiros
superpostos em portugu��s, sou chamado freq��ente-
mente a fazer tradu����es ao ouvido de Mariana, que
passa minhas palavras a Clara e esta a Lu��s que, como
de costume, n��o presta a menor aten����o ao que a irm��
lhe diz. Quando o filme termina vem um ato varia-
do em que a principal atra����o �� uma orquestra de re-
nome nacional. Desfilam acrobatas, prestidigitadores,
crooners e malabaristas. E quando o mestre-de-ceri-
m��nias come��a a contar anedotas, o teatro inteiro
parece vibrar com as risadas e os aplausos do p��blico.
A VOLTA DO GATO PRETO
45
Perto de mim um velhote se retorce todo num riso
convulsivo. E a todas essas minha fam��lia permanece
indiferente: tr��s rostos de express��o fechada e s��ria.
Por fim uma senhora que est�� ao lado de Lu��s n��o se
cont��m e pergunta:
��� Mas voc�� n��o est�� achando mesmo nenhuma
gra��a, meu filho?
Sem dizer palavra o menino fica a olhar para a
desconhecida com um ar de tamanha abstra����o que ela
decerto imagina que est�� tratando com um imbecil.
OS HER��IS SEM ��DIO
Sa��mos ��s dez horas para o calor pesado da noite.
Continua a pantomima nas ruas. �� admir��vel a manei-
ra como esta gente encara a guerra. N��o faz drama.
Luta, trabalha, mas nos intervalos entre as horas de
combate e trabalho, trata de evitar que a lembran��a
da guerra lhes roa os nervos. Ningu��m usa luto. N��o
h�� choro nem o b��blico ranger de dentes. No peito de
muitos soldados e marinheiros vemos as cores simb��-
licas das condecora����es recebidas. Esses rapazes de
pouco mais de vinte anos ��� e alguns deles t��m ape-
nas dezessete e dezoito ��� j�� entraram em a����o na
��frica e nas ilhas do Pac��fico. Voltam do inferno com
a mesma express��o juvenil. Sem baz��fia, sem atitudes
teatrais e ��� �� incr��vel! ��� sem ��dio. E, quando de
volta �� p��tria, em gozo de licen��a, o que querem ��
rever a fam��lia, comer uma torta de ma���� "como s��
mam��e sabe fazer", sair com a sua pequena favorita e
com ela dan��ar, beber e entregar-se ao necking. (Pa-
lavra importante da g��ria americana, derivada do verbo
to neck que, traduzido ao p�� da letra, seria pescocear,
mas que significa trocar beijos e abra��os apertados.)
E n��o deixa de ser comovente ver esses marinheiros e
soldados que h�� pouco manejaram canh��es e metra-
46
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Ihadoras de verdade contra inimigos de carne, osso e
��dio, entrarem nessas galerias de divers��es e ficarem
a lidar com metralhadoras e canh��es de brinquedo, fa-
zendo alvo em avi��es e cruzadores pintados num
quadro de vidro. E como se divertem! Como riem
e cantam e comem pipoca e amendoim! E como ma-
mam com gozo no gargalo das garrafinhas de coca-
cola!
Aqui estamos dentro duma penny-arcade. O ba-
rulho �� infernal. Funcionam febrilmente m��quinas de
experimentar os m��sculos, o base-ball de mesa, o pr��-
av�� do cinemat��grafo, o quinetosc��pio, no qual a gente
espia por um buraco fotografias animadas de coristas
seminuas ��� mas coristas de 1912, matronas de busto
desenvolvido e cadeiras largas. �� inacredit��vel que
estas m��quinas e estas fotografias ainda existam. E
mais curioso ainda que tenham "fregueses" nesta era
aerodin��mica que vive, pensa, se move e fala sob o
signo de Hollywood.
��� Tamb��m quero espiar, pai! ��� pede Lu��s.
��� N��o ��� respondo. ��� Impr��prio para menores.
E continuamos a andar por meio desta emaranhada
floresta de ��rvores vivas e barulhentas.
Vemos jogos de toda a natureza, inclusive uma
vers��o americana e estilizada do nosso jaburu. Role-
tas das mais variadas esp��cies. E galerias de tiro em que
her��is condecorados atiram com arma de sal��o em pa-
tinhos de lata que l�� no fundo nadam em fila indiana
num lago imagin��rio.
Mariana est�� admirada por n��o descobrir nestas
caras nenhum vest��gio da guerra.
��� Como se explica isto? ��� pergunta. ��� Parece
que estamos em tempo de paz. Esta gente brinca, can-
ta, dan��a, vai ao cinema, ri, bebe... como se nada
estivesse acontecendo...
��� Est��s acostumada �� nossa maneira sul-ameri-
cana de encarar a vida ��� respondo. ��� Somos povos
A VOLTA DO GATO PRETO
47
dram��ticos. Cultivamos com carinho m��rbido as nos-
sas dores e desgra��as. Temos um prazer pervertido
em escarafunchar nas nossas pr��prias feridas.
Lembro-me das gentes simples de minha terra
para as quais morte e doen��a s��o os assuntos predile-
tos. Ah! as senhoras tristes que gostam de contar suas
dores e opera����es... Para elas um cancerzinho �� um
prato raro! De doen��as passam para espiritismo e
ficam-se a ciciar hist��rias de almas do outro mundo.
De repente em meio da conversa fazem-se sil��ncios
fundos. Estala uma viga no telhado. Uma das velhas
suspira. Na alma de cada uma delas est�� plantado um
cemit��rio.
��� Como explicas a diferen��a? ��� pergunta Mariana.
CICLOS
Meto um n��quel no orif��cio duma metralhadora
e entrego-a a Lu��s. E enquanto ele fica a derribar
avi��es nazis e Clara gasta o seu ��ltimo n��quel com-
prando um cone de sorvete, ponho-me a pensar na
pergunta de Mariana.
��� Portugal. .. Talvez.
��� Queres dizer ent��o que �� uma pura quest��o de
ra��a?
��� Sei l��. Ra��a, diferen��a de n��vel de vida, de
educa����o e principalmente de sa��de.
Olhando para estes latag��es e para estas belas
raparigas e crian��as fico a pensar no que poderia ser
a nossa gente brasileira no dia em que passasse a co-
mer direito, a ter assist��ncia m��dica e mais escolas; no
dia, enfim, em que a mortalidade infantil fosse redu-
zida ao m��nimo poss��vel, e em que houvesse melhor
distribui����o de oportunidade para todos...
Acodem �� minha mem��ria aspectos do Recife, ao
longo da estrada que leva do aeroporto ao centro da
48
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
cidade. Enquanto nosso autom��vel rodava, eu via
passar com a rapidez dum filme maluco e tr��gico, mo-
cambos, crian��as seminuas, esquel��ticas e barrigudas,
mulheres de face terrosa ��� pele em cima dos ossos ���
olhos fundos, express��o est��pida. E como uma esp��-
cie de tecido conjuntivo desse organismo em decom-
posi����o que s��o os mocambos ��� o barro. Lembro-me
dos tempos em que alguns escritores corajosos do Bra-
sil come��aram a voltar seus olhos para esses aspectos
sociais e a retrat��-los com olho realista em seus ro-
mances. A s��rie parece ter come��ado com a Bagaceira,
de Jos�� Am��rico de Almeida. Veio depois Amando
Fontes com os seus Corumbas. E Graciliano Ramos,
esse cl��ssico moderno, com suas hist��rias sombrias.
Dois grandes romancistas iniciaram a voga dos ciclos.
Jos�� Lins do Rego escreveu sobre o da cana-de-a����car
e Jorge Amado, o rapsodo da Bahia, celebrou o ciclo
do cacau. Por esse tempo, com humor tr��gico, algu��m
se referiu a um ciclo negro e b��rbaro que estava pedin-
do um romancista: o do sururu, que �� o s��mbolo da
mis��ria dos moradores dos mocambos. Para saciar a
fome eles desencavam do barro o sururu, comem-no e
depois, como n��o disp��em de instala����es sanit��rias,
defecam no ch��o, onde suas fezes v��o alimentar os outros
sururus que por sua vez s��o por eles comidos, com-
pletando-se assim o s��rdido ciclo. Ao passar por aquela
zona de mis��ria n��o pude deixar de sentir uma sensa-
����o de culpa. Que estava fazendo eu como escritor
e como homem para melhorar a sorte daquela pobre
gente? Que podia fazer? Como? Com quem? E de
novo, aqui nesta galeria, repito a mim mesmo essas
perguntas.
Penso tamb��m nos outros pontos do Brasil onde
nosso avi��o pousou ��� Natal, Fortaleza, Macei��, Be-
l��m . . . Recordo a minha sensa����o ao olhar do alto
as muitas cidades, aldeias, vilas e regi��es por onde
passamos, e de minha comovida impress��o daquele
A VOLTA DO GATO PRETO
49
Brasil t��o grande, t��o belo, t��o l��rico e t��o mal cuida-
do. Rumino a ternura que senti ao verificar que no
fim de contas aqueles rapazes e mo��as que passeiam,
pela tardinha, �� sombra das mangueiras da avenida
principal de Bel��m do Par�� n��o s��o diferentes dos jo-
vens que nas tardes de retreta caminham sob os cina-
momos das pra��as das pequenas cidades ga��chas. T��m
os mesmos olhos vivos, inteligentes e um pouco me-
lanc��licos. E ��� grande milagre! ��� falam a mesma
l��ngua, apenas com pequenas variantes de entona����o;
o mesmo idioma gostoso, flex��vel, rico de g��ria, o mes-
mo portugu��s, apesar das dist��ncias, da falta de col��-
gios e de meios de transportes e comunica����o. O
mesmo denominador comum ��� a heran��a portuguesa,
��� se traduz em todo o Brasil no estilo das casas, das
igrejas, das pra��as, das comidas; no costume de fica-
rem as mulheres debru��adas no peitoril das janelas
"olhando o movimento" no h��bito de vestirem as melho-
res roupas aos domingos; nas festas, nos sonhos, nas
can����es...
RUMO AO PACIFICO
Mr. Walters, o representante do Department of
State em Miami, �� um homem moreno, magro e af��-
vel. �� ele quem resolve o problema das passagens
para a Calif��rnia. Com um simples telefonema con-
segue-nos num trem da Southern Pacific um confort��-
vel camarote e entrega-me a requisi����o do governo
americano com a qual devo retirar minha passagem.
Quanto ao transporte da fam��lia, o tesouro dos Estados
Unidos nada tem a ver com ele; �� assunto exclusivo do
meu tesouro particular, que acontece estar neste mo-
mento sensivelmente dilapidado. O escrit��rio de Mr.
Walters ��� amplo, cheio de ventiladores, poltronas e
mapas ��� �� teatro duma cena decisiva. Temos diante
50
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
dos olhos o or��amento da companhia ferrovi��ria. Meus
olhos n��o se desprendem da cifra, fascinados.
Batendo distraidamente com o l��pis na mesa, nosso
prestimoso amigo vai dizendo:
��� Pois ��. Um ��timo camarote, com ar refrigerado,
pequeno quarto de banho, conforto absoluto...
A pouca dist��ncia de n��s a fam��lia se entret��m
vendo figuras de revistas.
��� Claro ��� continua Mr. Walters ��� nessa cifra n��o
est�� inclu��da a comida. Cinco pessoas... vamos ver...
uma m��dia de dez d��lares por dia... em quatro dias...
quarenta d��lares s�� para as refei����es. Ah! Tem de
contar um dia de estada em Nova Orleans, onde o
senhor ter�� de mudar de trem... Vamos dizer... a��
uns vinte d��lares mais. Acrescente gorjetas, despesas
inesperadas... digamos um total de setenta d��lares.
Okay?
Engulo em seco. Porque contando todo o dinhei-
ro que tenho comigo, incluindo os cheques, depois de
compradas as passagens para a fam��lia sobrar��o apenas
quarenta d��lares.
��� Okay? ��� repete Mr. Walters.
Sorrio amarelo.
��� Com licen��a...
Afasto-me e vou levar o problema �� fam��lia Expo-
nho o dilema. Ou vamos bem instalados comendo
pouco; ou comemos bem mas com acomoda����es menos
confort��veis e mais baratas. Como vivemos numa de-
mocracia, procedemos a uma vota����o. Resultado:
Iremos at�� a Calif��rnia instalados como milion��rios,
mas comendo como imigrantes.
Ao anoitecer entramos no trem. Nosso comparti-
mento �� todo estofado de veludo pardo. N��o se v�� o
menor gr��o de poeira e a atmosfera aqui dentro �� uma
fresca primavera, em contraste com o c��lido ver��o l��
de fora.
A VOLTA DO GATO PRETO
51
Fizemos uma boa provis��o de sandu��ches e frutas,
e aqui estamos preparados para a travessia. O trem
come��a a mover-se vagarosamente. Olho o rel��gio.
Sa��mos atrasados quinze minutos. Nestes tempos de
guerra o hor��rio das composi����es n��o pode ser obser-
vado a rigor.
Estes trens s��o confort��veis, de marcha veloz e
macia. �� proibido abrir as janelas, de sorte que assim
�� poss��vel conservar os vag��es limpos. O ar condicio-
nado garante uma temperatura agrad��vel, uma atmos-
fera pura. Os porters que atendem estes Pullman s��o
pretos, em geral de meia-idade, vestidos de cal��as
azuis de flanela e casacos de linho branco. S��o limpos,
atenciosos e calmos. D��o uma impress��o de solidez,
e seguran��a. T��m em geral a voz grave e falam um
ingl��s arrastado e musical muito mais rico de inflex��es
que o ingl��s nasalado e monoc��rdio caracter��stico de
certas regi��es deste pa��s.
�� noite. Atrav��s da janela vemos as luzes de
Miami, a silhueta de seus arranha-c��us, trechos de mar,
vultos de barcos, luzes de lanternas e estrelas.
S�� depois que o trem entra no campo �� que perce-
bemos a presen��a da lua. Est�� claro que seria rid��-
culo se nesta altura da vida eu ficasse aqui a buscar
novas imagens liter��rias para descrever a lua. Ao cabo
de tantas andan��as no mundo dos livros e no mundo
real a gente acaba convencendo-se de que no fim de
contas lua �� lua mesmo. Mas a verdade �� que, com
ci��ncia ou sem ci��ncia, com realismo ou sem ele, com
experi��ncia da vida ou sem ela ��� a lua sempre comove.
Bole com o romantic��o que mora dentro de n��s, le-
va-nos a recordar coisas.
Uma noite h�� vinte anos, numa pequena cidade
brasileira, passeava sozinho um mo��o que sonhava com
viagens. Parou a uma esquina, olhou para o c��u e
pensou: "Esta mesma lua ilumina as noites de S��o
Francisco, de Paris, de Barcelona e de Xangai. Esta
52
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
mesma lua conheceu Cle��patra, S��crates, Cristo, Na-
pole��o . . . " Passou algu��m pela cal��ada e apanhou-o
falando sozinho. Desconcertado, o mo��o tratou de
disfar��ar: "Linda noite!" ��� exclamou. E o outro, com
o cigarro de palha entre os dentes, respondeu: "Linda
mesmo. Pra ca��ar tatu". E a lua daqueles tempos ��
a mesma lua que agora clareia o c��u de Fl��rida. A
lua dos namorados e dos agricultores. Dos astr��nomos
e dos fantasmas. Dos vira-latas noturnos e dos bo��-
mios. A lua de J��lio Verne e do Bar��o de Munchau-
sen. A lua dos almanaques e dos...
Lu��s interrompe meus pensamentos.
��� Pai, queres um sandu��che?
Quero.
PANTOMIMA
Chegamos pela manh�� a Jacksonville, ainda no
Estado de Fl��rida. Guardamos nossas malas no check-
room da esta����o ��� pois temos de mudar de trem den-
tro de duas horas ��� e sa��mos com passo e alma de
turistas em busca dum caf�� com doughnuts. Ningu��m
poder�� descrever os Estados Unidos sem mencionar as
doughnuts, essas deliciosas roscas fritas ��� elemento
importante na vida deste pa��s como o applepie ou torta
de ma����, a coca-cola, o peru assado do Thanksgiving
Day, a goma de mascar e o base-ball.
Encontramos um caf�� nas proximidades da esta-
����o e l�� nos aboletamos ao redor duma mesa. Estamos
cansados de sandu��ches e laranjas. Pedimos caf��, ros-
cas e ovos mexidos. S��o oito da manh��. Uma luz cor
de u��sque com soda inunda as ruas. Comemos voraz-
mente e, quando chega a hora de pagar, procuro em
v��o minha carteira. Come��a ent��o essa pantomima
desordenada em que a gente apalpa inutilmente todos
os bolsos. Os olhos de Mariana est��o arregalados.
A VOLTA DO GATO PRETO
53
��� Perdeste a carteira... ��� balbucia ela.
��� Parece... ��� murmuro.
��� E agora? ��� pergunta Lu��s.
��� E agora? ��� repete Clara num eco.
Depois de infind��veis segundos de busca minucio-
sa, met��dica, concluo que perdi mesmo a carteira.
Deve estar no trem, penso. Mas... por onde andar��
o trem?
��� Olhem. Fiquem firmes aqui que eu vou ver se
encontro a carteira. N��o se afobem, haja o que houver.
Atravesso a rua, entro na esta����o, vou at�� a plata-
forma onde havia pouco se encontrava nosso trem. A
plataforma est�� deserta. Adeus! Olho para os lados
e vejo aproximar-se um carregador mulato, de quepe
vermelho.
��� Onde est�� o trem que veio de Miami? ��� per-
gunto.
Ele tira o quepe, co��a a cabe��a, olha para os
lados, aponta para um determinado setor da esta����o
e resmunga com sua voz pregui��osa palavras que n��o
consigo entender.
��� A h . . . ��� fa��o eu, fingindo que compreendi. ���
Obrigado.
Passam-se os minutos. De repente avisto um trem
que faz manobras. Reconhe��o o nosso vag��o pelo n��-
mero. Salto da plataforma e saio a correr atravessando
os trilhos, e entro no trem, que felizmente parou.
Avisto o nosso porter. Conto-lhe o que aconteceu.
Responde que n��o viu carteira nenhuma. Embarafus-
to pelo corredor, entro no compartimento que ocupa-
mos a noite passada e come��o uma busca apressada,
aflita e sem nenhum resultado. J�� agora estou suando,
com a impress��o de que mil formigas de fogo me
percorrem o corpo. Entro, j�� sem esperan��a, no lava-
t��rio do camarote e l�� encontro a carteira sobre a
prateleira de vidro, por cima da pia. Apanho-a s��-
frego, e abro-a. Est�� vazia, completamente vazia.
54
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Volto macamb��zio e lerdo para a esta����o; atravesso a
rua com uma impress��o de desastre e, ao chegar ao
caf��, sob o olhar ansioso da fam��lia, despejo a m�� not��-
cia. H�� um hiato dram��tico. Sento-me.
��� E agora?
�� a pergunta que leio nesses tr��s pares de olhos.
J�� devoramos as roscas, os ovos mexidos. J�� se-
camos as ch��caras de caf�� e os copos de leite. Agora...
pagar. Meto a m��o no bolso num gesto puramente
mec��nico. E meus dedos pescam milagrosamente de
dentro dele um pequeno ma��o de notas verdes. De
repente raia a luz: na v��spera eu havia tirado o dinheiro
da carteira e posto naquele bolso. H�� um coletivo
suspiro de al��vio.
PORTA DOS FUNDOS
Sa��mos a andar �� toa; mas pouco, quase nada ve-
mos de Jacksonville, que �� a terceira cidade de Fl��rida
e um dos portos mais importantes do sudeste dos Es-
tados Unidos.
As cidades norte-americanas parecem n��o fugir a
uma regra universal ��� t��o conhecida no Brasil ��� e
segundo a qual "os lados da esta����o" s��o sempre o dis-
trito mais pobre e sujo da ��rea urbana. Estamos em
pleno bairro negro. As ruas s��o em geral arborizadas
e pavimentadas de tijoletas vermelhas. As cal��adas
acham-se um tanto esburacadas e o aspecto das casas ��
em geral de pobreza. Velhos bangal��s de madeira ali-
nham-se de ambos os lados da rua, separados por jar-
dins mal cuidados e sem flores. Seguem geralmente os
mesmos estilos e t��m todos o seu porch ou alpendre, e
uma ��gua-furtada. Em alguns desses alpendres, negras
e mulatas balou��am-se pregui��osamente em cadeiras de
balan��o, espantando com ventarolas ou jornais dobrados
as moscas que lhe voejam em torno dos rostos escuros
A V O L T A DO GATO P R E T O
55
e lustrosos. Pretinhos brincam ruidosamente pelas
cal��adas e tabuleiros de relva. Aqui e ali negros
adultos, com jeito de calaceiros (��! Camilo Castelo
Branco, por onde andas?) lagarteiam ao sol. A cena
lembra certas pinturas de Thomas Benton sobre a vida
do Sul. Deve ter chovido por aqui recentemente, pois
a terra est�� um pouco ��mida e v��em-se muitas po��as
d��gua na rua e nos jardins. De quando em quando
passa, num ru��do de ferragens, um Ford de bigode
pilotado por um preto em mangas de camisa, com o
chap��u de feltro de abas reviradas e um charuto preso
nos bei��os. Numa dessas casas um velho gramofone
rouqueja um blue. Uma mulata gorda chega �� sua janela
e grita para fora, esgani��adamente: "Wilbuuuuuur!".
Wilbur, um mulatinho de olhos enormes que parece
ter sido pintado por Portinari, est�� trepado numa das
��rvores que orlam a cal��ada. "Yes, mammy?" ��� res-
ponde ele com sua voz de melado. A mulata desata a
falar um ingl��s inintelig��vel.
Um avi��o cruza o c��u. Nossas sombras conti-
nuam a nos acompanhar como anjos da guarda. Um
cachorro fu��a numa lata de lixo.
Naturalmente meus filhos me crivam de pergun-
tas. Como �� que os negros aqui falam ingl��s? Por
que o ch��o n��o �� de pedra-ferro ou de cimento? Quantos
habitantes tem esta cidade?
Mariana p��ra, olha em torno e volta para mim um
rosto decepcionado:
��� Quer dizer ent��o que os Estados Unidos s �� o . . .
isto?
��� Espera at�� chegarmos �� Calif��rnia, ��� explico-
lhe. ��� N��o te esque��as de que est��s entrando na casa
do Tio Sam pela porta dos f u n d o s . . .
Damos meia-volta e nos encaminhamos para a es-
ta����o, depois de fazer uma nova provis��o de sandu��-
ches e biscoitos, a cuja vista sentimos uma angustiante
secura na garganta.
56
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Temos ainda trinta e cinco d��lares. E esperan��a,
muita esperan��a.
AH! OS BURGOS SEM HIST��RIA...
De novo no trem em movimento. Encontramos
agora as primeiras eleva����es de terra de Fl��rida, cujo
sul �� plano e cheio de p��ntanos. O solo, que nos ar-
redores de Miami era claro e arenoso, agora toma um
tom avermelhado de argila. A vegeta����o se faz mais
rica �� medida que nos aproximamos de Alabama.
Passamos por vastos laranjais e por pequenas ci-
dades das quais vislumbramos perspectivas de ruas que
nos d��o a impress��o de Miami em miniatura.
Por estas paragens ��� penso, olhando atrav��s da
janela do trem ��� andou decerto Ponce de Leon e seus
conquistadores. Por aqui vagueava tamb��m em 1564,
em busca dum ref��gio seguro, um grupo de hugue-
notes franceses, os quais acabaram massacrados pelos
espanh��is de Pedro Menendez de Aviles. Nos tempos
da Guerra Civil esta regi��o foi cen��rio de muitas ba-
talhas. E os lugares onde confederados e unionistas
se atracaram em lutas ferozes (por que ser�� que as bri-
gas de fam��lia s��o sempre as mais selvagens?) hoje
est��o cortadas pelas fitas de cimento das estradas, por
onde rolam os gigantescos ��nibus prateados da Grey-
hond Lines, e os jeeps cor de oliva do ex��rcito americano.
O trem est�� cheio de soldados que em sua maioria
viajam sem leito. Muitos deles dormem, a cabe��a re-
costada no respaldo de veludo dos bancos. Outros jo-
gam cartas. Muitos l��em. Noto nessas caras sempre o
mesmo ar de jovialidade e despreocupa����o. A guerra
�� para eles um nasty business, um neg��cio sujo que ��
preciso acabar duma vez; mas quando n��o est��o lutando
o melhor que t��m a fazer �� n��o pensar nela...
A VOLTA DO GATO PRETO
57
Jantamos sandu��ches e bebemos ��gua gelada. Che-
garemos fatalmente �� Calif��rnia com a falta dum grande
n��mero de vitaminas. Pendurado na beira do leito su-
perior, Lu��s agora �� Tarzan, o rei das selvas, ao passo
que Clara, com um toque de sophistication, folheia uma
revista ilustrada.
As rodas do trem cantam a sua can����o ritmada.
As horas passam. Outra noite chega. A lua torna a
aparecer. Que doido par de estrelas �� aquele ��� uma
verde, outra encarnada ��� a mover-se pelo c��u? Um
avi��o.
Sem sono, fico �� janela. Acho um encanto todo
especial nessas pequenas cidades adormecidas pelas
quais o trem passa vagarosamente �� noite. H�� uma
melanc��lica beleza nos combustores que iluminam ruas
desertas. E nos jardins dilu��dos na sombra. Ponho-me
a pensar nas criaturas que moram nesses lugarejos per-
didos. Na vida que levam, sem hist��ria nem aventura.
No ramerr��o de cada dia. Nos domingos de missa. No
cineminha semanal. No caixeiro do drugstore que
apoja soda das torneiras prateadas e sonha com Nova
York. Nesses burgos que os mapas n��o mencionam,
sempre h�� algu��m que est�� lendo uma novela de amor
num volume antigo. H�� tamb��m um idiota e um c��o
sem dono. E velhos que jogam p��quer em tomo
duma mesa redonda, num fundo de caf��. Ah! As ci-
dadezinhas adormecidas por onde o trem passa api-
tando . . . Ah! os lugarejos sem hist��ria onde as mo-
cinhas ficam sonhando depois que o trem passa...
OS CANIBAIS
Verifico que meus filhos ainda est��o psicologica-
mente no Brasil, recusando-se a tomar conhecimento
dos Estados Unidos. Seus pontos de refer��ncias ���
pessoas, coisas, lugares, fatos, ��� s��o todos brasileiros.
58
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Chamam a coca-cola de guaran�� e d��o o nome geral de
Gibi a toda essa vasta s��rie de revistas americanas que
trazem hist��rias em quadrinhos. Fechados neste com-
partimento, eles brincam, conversam, vivem enfim
como se ainda estivessem em casa. Essas duas criatu-
rinhas nos isolam, fecham-se no seu mundo. Mas h��
momentos em que elas mesmas se separam. Lu��s en-
tra no seu avi��o e sai a ca��ar "Zeros". Clara, improvi-
sando uma boneca com um casaco e um travesseiro, fica
muito quieta, sentada no seu banco, conversando com
a filha imagin��ria. Neste momento, por exemplo, h��
aqui dentro quatro mundos separados. ..
�� hora das refei����es processa-se uma fus��o de
mundos, gra��as a um interesse comum: o de comer.
Mal, por��m, come��amos a mastigar, de novo cada um
se entrega a seus pr��prios pensamentos, lembran��as e
sonhos. No entanto fisicamente a tribo se mant��m
mais unida que nunca. Minha gente vive numa per-
manente sensa����o de temor que lhe vem do fato de n��o
saber ingl��s. As crian��as n��o se querem afastar de mim,
nem um minuto, no imenso horror de que algu��m lhes di-
rija a palavra nessa l��ngua barbaramente complicada. ..
Deixamos para tr��s o estado de Fl��rida e come-
��amos agora a atravessar a estreita faixa meridional
de Alabama. Este nome tem m��sica e magia. Dizem
alguns que Alabama, na linguagem dos peles-vermelhas,
quer dizer ��� "aqui descansamos". Outros, entretanto,
afirmam que �� apenas uma corrutela! de Alibami,
nome duma tribo. Rico em carv��o e min��rio de ferro,
Alabama �� o centro da ind��stria do a��o no sul dos
Estados Unidos. O algod��o tamb��m constitui uma das
principais fontes de riqueza desse estado cujas terras
est��o em muitos trechos sujeitas a freq��entes inun-
da����es.
Fa��o perguntas sobre Alabama ao nosso porter.
�� um gozo ouvir um negro pronunciar o nome dessa
regi��o. Ele abre bem a boca, e com os bei��os moles
A VOLTA DO GATO PRETO
59
canta: �� -la-baaaaama ��� prolongando musicalmente o
terceiro a.
O porter me informa que a flor simb��lica deste
estado �� o goldenrod, uma flor amarela e mi��da, cor
de ouro, que desabrocha no outono, na extremidade de
longas hastes. Sim, os estados norte-americanos tem
cada um a sua flor simb��lica. A de Fl��rida �� a flor
de laranjeira. A de Mississipi e Louisiana, a magn��lia.
��� E a da Calif��rnia? ��� pergunta Clara.
Traduzo a pergunta. O negro faz uma pausa, re-
vira os olhos, atira o quepe para a nuca, co��a vaga-
rosamente a cabe��a e murmura:
��� Deixe ver. .. A flor da Calif��rnia. .. a a a . . .
e . . .
De repente seu rosto se ilumina, os dentes apa-
recem.
��� Yes, sir. A papoula dourada.
Digo-lhe muito obrigado, ele faz meia volta, d��
alguns passos e depois torna a voltar-se, com alguma
relut��ncia.
��� O senhor me d e s c u l p e . . . N��o �� da minha
conta. Pergunto porque talvez o senhor n��o conhe��a
bem as regras do t r e m . . . Isso tem acontecido com
estrangeiros. Ainda o outro dia um vaqueiro de T e -
xas. . . ��� Desata a rir, interrompendo a hist��ria, e
quando o acesso de riso cessa, ele prossegue:
��� M a s . . . a sua fam��lia n��o come nunca?
Nesta altura da viagem naturalmente j�� percebeu
que ainda n��o fomos nenhuma vez ao carro restau-
rante.
��� Ah! ��� fa��o eu. ��� N��o v�� que somos do B r a s i l . . .
��� Yes...
O rem��dio aqui �� recorrer �� pilh��ria, concluo.
��� N��o acredito que voc��s tenham na cozinha do
trem o nosso prato predileto.
��� Algo de muito especial?
��� Muito.
60
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Ser��o. . . vegetarianos?
��� N��o. A�� �� que est�� o problema. Somos antro-
p��fagos.
��� Hein?
��� Canibais. Comemos carne humana.
O rosto do negr��o conserva-se grave por um ins-
tante. Mas aos poucos a boca se lhe vai abrindo, num
arreganhar de dentes muito brancos e regulares. E,
rebatendo pilh��ria com pilh��ria, fingindo seriedade, ele
sacode a cabe��a com ar de quem est�� penalizado e diz:
��� Sinto muito, patr��o. Mas comer carne humana
�� contra a Constitui����o dos Estados Unidos.
F a z meia volta e se vai, sempre sacudindo a ca-
be��a, rindo o seu riso de garganta, sonoro e fundo.
F i c o a pensar que, se em vez de ter conversado
com esse preto empregado de carro Pullman eu tivesse
tido o mesmo di��logo com algum rep��rter americano
provavelmente no seu pr��ximo artigo ler��amos que "os
brasileiros s��o um povo ex��tico que ainda se entrega
ao estranho h��bito da antropofagia".
O NEGRO DO BANJO
Depois de Alabama atravessamos um pequeno
trecho do Estado de Mississipi, antes de entrar em
Louisiana. Estamos no que se chama o Deep
South ��� o extremo sul. Dizem que em nenhum outro
estado �� t��o grande como neste o preconceito de cor.
Da janela do trem em movimento olho essas terras
baixas e alagadi��as, cobertas duma vegeta����o pujante
dum verde escuro e lustroso. Passamos por vastas
planta����es de algod��o e cana-de-a����car. O trem ��
uma primavera sobre rodas. Mas de meu ponto de
observa����o m��vel eu vejo o calor ��� um calor ��mido,
pegajoso de morma��o tropical. De vez em quando
vislumbro, por entre ��rvores, o p��rtico e as colunas
A VOLTA DO GATO PRETO
61
brancas duma casa senhorial, duma plantation house.
Negros e negras chegam at�� a beira da linha f��rrea e
fazem sinais para o trem.
Com o nariz apertado contra o vidro da janela,
Lu��s olha tamb��m. Mas n��o creio que ele esteja em
Mississipi. Talvez ande por uma rua de Porto Alegre.
Ou pelas selvas da ��frica. Ou ��� quem sabe? ��� pelas
montanhas da Lua.
As chuvas nesta parte do pa��s s��o muito freq��entes.
O clima, segundo os prospectos da C��mara de Com��r-
cio de Mississipi �� mild, ameno, mas a realidade ��
equatorialmente quente. Esta �� talvez uma das re-
gi��es dos Estados Unidos onde h�� mais pobreza, n��o
apenas entre os negros, mas tamb��m entre o grupo co-
nhecido como white trashy ou seja a "esc��ria branca".
Sinto em tudo aqui um bafejo da ��frica. Nas
comidas, nas cantigas, nas supersti����es e at�� no jeito
de falar dos brancos.
Agora o trem come��a a perlongar planta����es de
milho ��� o que d�� a estas paragens um certo ar de
Brasil. Depois continuam a passar pelo quadro da
janela, p��ntanos, cabanas, planta����es, bosques, estra-
das, arroios ��� e, enquanto olho esse r��pido desfile,
um negro toca banjo e canta em minha mente.
I came from Alabama
Wid my banjo on my knee...
�� Suisanna! Quando ser�� que a gente se vai li-
bertar dos filmes e das pe��as que viu, dos livros que
leu, das hist��rias que escutou? Quando nos ser��
poss��vel olhar o mundo com olhos sem mem��ria, puros
e naturais? Nesta altura da vida s��o j�� inevit��veis
certas associa����es de id��ias e imagens. Para quem vi-
veu desde a adolesc��ncia sob o signo de Hollywood, do
jazz, e de toda essa literatura que surgiu depois da
Primeira Guerra Mundial, ��� Alabama, Mississipi ou
62
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Louisiana s��o nomes que trazem �� mente negros a
cantar um spiritual numa planta����o de algod��o...
Eddie Cantor vestido como os menestr��is do velho
Sul, a cara pintada de preto, um banjo sobre os joe-
lhos, a gemer ��� �� Susanna, don't you cry for me! J��
meu pai teria outra rea����o ouvindo o nome Susana.
Pensaria na "Casta Susana", no Moulin-Rouge, em
coristas a dan��ar o can-can, em Paris ��� uma Paris
civilizada e frasc��ria, onde velhos gag��s bebem cham-
panha na banheira onde h�� pouco a jovem vedeta to-
mou seu banho. Nenhum viajante que se preze pode
contemplar os fjords da Noruega sem evocar Ibsen, a
Dama do Mar ou Romersholm. O mecanismo dessas associa����es �� t��o infal��vel que um livro de viagens
corre o risco de a todo momento trope��ar ��� e n��o raro
cair ��� em monumentais lugares-comuns. Fa��o o pos-
s��vel para afugentar da mente o negro do banjo. Vai-
te! Esconjuro-te! Quero olhar a paisagem sem in-
flu��ncias. Nada de romance. Nada de literatura. Aqui
estamos cruzando o sul do estado de Mississipi, que
n��o tem o encanto das novelas, nem das falsifica����es
de Hollywood. Aqui h�� calor, mosquitos, banhados,
preconceito e mis��ria.
Na minha mente o negro do banjo d�� um salto e
pergunta:
��� And so what? Na tua terra tamb��m h�� ealor,
mosquitos, banhados, preconceitos e mis��ria.
��� Mariana est�� decepcionada ��� digo. ��� Imagi-
nava que tudo neste pa��s fosse tocado de glamour. Tudo
aerodin��mico, limpo, rico...
��� Quem �� o culpado de ela pensar assim?
��� N��s escritores e pintores, que em geral n��o
vemos as coisas como elas s��o, mas sim como desej��-
vamos que fossem.
��� E por qu��?
��� Talvez medo da realidade. Escapismo. Como-
dismo. Ou defeito de vis��o.
A VOLTA DO GATO PRETO
63
O negro do banjo atira os bra��os para o ar.
��� Mas n��o h�� por onde escapar. Mais tarde ou
mais cedo o problema nos esmaga.
��� Toca o teu banjo.
O negro sacode a cabe��a:
��� Esse conselho �� escapista.
��� Ent��o chora.
��� Escapismo tamb��m.
��� Que fazer, ent��o?
O negro encolhe os ombros:
��� Voc��s os brancos que se entendam. N��s est��-
vamos quietos na ��frica. Trouxeram-nos de l�� para
c�� a for��a. Fizeram-nos trabalhar abaixo de chicota-
das. E a todas essas continuavam a usar palavras gran-
des, como justi��a, fraternidade, humanidade, sentimentos
crist��os.
��� Cala a boca. Vai-te!
��� N��o calo. N��o vou. Agora tens que ouvir.
Milhares de pretos americanos est��o neste momento
lutando na Europa no ex��rcito de Uncle Sam. Dizem
que esta �� a guerra do direito contra a for��a, da tole-
r��ncia contra a intoler��ncia, do bom-senso contra o
racismo. Eu s�� queria saber se depois da vit��ria eles
v��o dar liberdade �� India e tratar melhor a China ���
isso para mencionar apenas dois dentre cem proble-
mas . . .
Ponho-me a assobiar para n��o ouvir a voz min��s-
cula dentro de meu c��rebro. Mas �� in��til.
��� Que podemos n��s os negros esperar do futu-
ro? ��� Come��a a brandir o banjo como um tacape. ���
Ser�� que estes orgulhosos senhores de planta����es de
agora em diante passar��o a considerar-nos seres hu-
manos com direitos iguais aos seus?
Fa��o um gesto de d��vida.
��� O problema �� de voc��s... ��� digo.
��� Perd��o! ��� replica o menestrel. ��� O problema
�� de natureza humana e de interesse geral. O mundo
�� um s��, como afirma o branco Wendell Wilkie.
64 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Sons do mundo real quebram o meu devaneio.
Olho em torno e vejo que o resto da fam��lia est�� rindo
de mim.
��� O velho falando sozinho! ��� exclama Clara.
E a m��e acrescenta:
��� E em ingl��s.
��� Claro ��� retruco ��� o negro do banjo n��o fala-
va portugu��s.
Os tr��s miram-me com express��o de estranheza.
Torno a olhar para fora. Longe, �� orla dum bos-
que, uma negra de avental vermelho corre atr��s du-
ma galinha branca. Um gar��on mulato passa pelo cor-
redor do trem batendo num gongo e gritando: "Ulti-
ma chamada para o almo��o!"
LARANJAS E PROFECIAS
Parece que os primeiros conquistadores brancos
a pisar o solo do que hoje �� o estado de Louisiana fo-
ram os espanh��is. Chegaram, viram e inexplicavel-
mente n��o trataram de tomar conta da terra em nome
de seu rei. Um s��culo e pouco mais tarde um tal
M. la Salle desceu o Mississipi, chegou a essa mes-
ma regi��o e imediatamente decidiu inclu��-la nos dom��-
nios de Sua Majestade Louis XIV, em cuja honra o
territ��rio rec��m-anexado recebeu o nome que ainda
hoje conserva. Perceberam os franceses as possibilida-
des comerciais da regi��o e trataram de coloniz��-la. A
terra, entretanto, parecia indom��vel. Periodicamente o
velho Mississipi transbordava, alagando os campos
em derredor. Havia ainda os mosquitos, os tremedais,
as feras e at�� a fome. E mais a febre amarela que vi-
nha das ��ndias Ocidentais. E a pelagra, o amarel��o e
a mal��ria. Os franceses, por��m, bateram p�� e ficaram.
Fundaram em 1718, a pouco mais de cem milhas da
A VOLTA DO GATO PRETO
65
foz do Mississipi, um aldeamento a que deram o no-
me de Nova Orleans. Mais tarde a Fran��a cedeu aos
espanh��is as regi��es que ficavam a leste do Missis-
sipi, e Nova Orleans, apesar dos protestos de seus
turbulentos habitantes, foi inclu��da na transa����o. J��
por essa ��poca era uma verdadeira cosm��pole tropi-
cal ��� centro de traficantes de escravos e flibusteiros,
mercadores e bandidos, jogadores profissionais, espa-
dachins e prostitutas. O a����car, o algod��o, as peles, a
madeira, o arroz e o melado faziam a riqueza da ci-
dade. Havia nela uma profus��o de bord��is, casas de
jogo, teatros, cabar��s, e postos de com��rcio. Mas em
contraste com tudo isso l�� estava tamb��m um conven-
to de ursulinas onde estudavam as filhas das fam��-
lias daquela curiosa "aristocracia" em forma����o. Nova
Orleans era uma cidade sem rei nem roque. Em Loui-
siana, verdadeiro cadinho de ra��as, misturavam-se
franceses, espanh��is, ingleses, pretos e ��ndios. A l��n-
gua que l�� se falava era um franc��s que j�� muito pou-
co tinha a ver com a l��ngua de Montesquieu. Cors��-
rios faziam visitas peri��dicas �� cidade. Freq��entes ve-
zes a honra de um cavalheiro era lavada a sangue em
duelos, �� sombra dos carvalhos frondosos dos arredo-
res de Nova Orleans, �� melhor maneira latina. E um
visitante da puritana Nova Inglaterra que por um in-
feliz acaso chegasse ��quela cidade de pecado, ficaria
escandalizado e at��nito ao se ver dentro daquele tu-
multuoso mundo de desordem, cobi��a, viol��ncia, ma-
cumba, supersti����o, pestil��ncia e crime.
Em princ��pios do s��culo XIX Napole��o Bonapar-
te negociou com a Espanha um tratado secreto segun-
do o qual voltava �� Fran��a o territ��rio de Louisiana,
o qual tr��s anos depois ele vendia por 15 milh��es de
d��lares ao governo dos Estados Unidos.
�� nesse territ��rio que nosso trem agora entra.
Chupando laranjas e comendo sandu��ches, olhamos de
66
OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O
nossa janela a rom��ntica Louisiana dos piratas e es-
padachins.
A regi��o que atravessamos est�� cheia de bayous,
que s��o esp��cies de canais de comunica����o entre rios.
Nos tempos anteriores �� Guerra Civil havia em Loui-
siana grandes latif��ndios, imensas planta����es que ago-
ra est��o subdivididas em pequenas propriedades, cujo
n��mero sobe provavelmente a mais de 170 mil. O go-
verno tratou tamb��m de diminuir o imposto sobre
propriedades rurais e ��� segundo a minha cultura de
almanaque ��� entre 1929 e 1937 o decr��scimo foi de
mais ou menos 34%.
Louisiana �� a maior produtora de cana-de-a����car,
melado, morangos e arroz. �� famosa tamb��m pelos
seus p��ssegos, p��ras e pelos pecans ��� que s��o nozes
comest��veis, de delicioso sabor. Nas regi��es alagadi-
��as de sudoeste ficam as grandes planta����es de arroz.
E todos esses produtos se escoam pelo porto de Nova
Orleans.
Li recentemente um artigo do romancista Louis
Bromfield, que tem uma grande fazenda experimen-
tal em Pleasant Valley, no Estado do Ohio, e no qual
ele afirma que por fevereiro do ano que vem o pa��s
estar�� passando fome. �� uma asser����o n��o s�� dram��-
tica ��� parece-me ��� como tamb��m exagerada. Brom-
field critica o minist��rio da agricultura, e como um
Jeremias republicano anuncia dias negros para a p��-
tria.
O trem passa agora �� beira de limoeiros e laran-
jais, entrando depois numa zona em que se balou��am
ao vento vastas planta����es de milho. A impress��o que
se tem neste verde sul �� de abund��ncia no que diz
respeito aos produtos da terra.
Irm��o Bromfield, acho que est��s enganado! Teu
antagonismo ao New Deal, teu ��dio aos democratas
turvam-te os olhos e a mente.
A VOLTA DO GATO PRETO
67
Come��o a descascar uma das laranjas que com-
prei na ��ltima esta����o. S�� agora percebo que foi esse
o pior neg��cio que fiz desde que pisei terras dos Es-
tados Unidos. Por quatro laranjas p��lidas e raqu��ti-
cas paguei sessenta centavos, ou seja o equivalente a
doze cruzeiros.
Com ar meio desconsolado, concluo, chupando
uma delas:
��� E as do Brasil s��o muito mais gostosas!
ESPELUNCA
Chegamos a Nova Orleans ��s nove horas duma
clara manh��, saltamos para a plataforma da esta����o,
respiramos com gosto este ar dourado e fresco, mete-
mos nossas malas e nossos corpos num t��xi amarelo,
e pedimos ao condutor que nos leve ao Hotel Palm,
cuja di��ria ��� segundo nos informou o guia de turis-
mo que folheamos no trem ��� est�� perfeitamente ao
alcance de nosso tesouro.
Dez minutos depois o carro estaca em Charles
Street diante duma casa de tr��s andares, de fachada
estreita e triste, enegrecida pela patina. O nome do
estabelecimento est�� pintado numa velha tabuleta por
cima da marquise enferrujada. Descemos e contem-
plamos o pr��dio.
��� �� horroroso... ��� diz Mariana.
��� Sinistrinho ��� concordo eu. ��� �� melhor pro-
curar outro...
Mas �� tarde. Um mulato p��lido e retaco deseja-
nos boas-vindas em nome do hotel, apanha a nossa
bagagem e nos pede que o sigamos. �� a fatalidade.
Obedecemos.
��� Olha s�� o "uniforme" dele... ��� observa mi-
nha mulher.
68
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Cal��as de riscado, chinelos sem meias, camisa ras-
gada e encardida ��� o "porteiro" d�� bem uma id��ia do
que nos espera l�� dentro.
��� Hey! ��� grita uma voz. ��� E eu?
Volto-me. �� o chofer. Eu o havia esquecido.
��� Sessenta centavos ��� diz ele.
A atrapalha����o me torna subitamente generoso.
Dou-lhe um d��lar.
Fa��o meia-volta e sigo o cortejo, escada acima.
O balc��o da gerencia fica no patamar e d�� uma im-
press��o de hotel do far-west. Numa saleta sombria
com mob��lia de vime, uma velha faz tric��, com os
��culos na ponta do nariz, sentada numa cadeira de
balan��o. S�� falta um gato para completar o quadro.
Mas n��o: l�� est�� ele, deitado, sonolento, ronronante,
de p��lo fulvo. �� demais. Vejo tamb��m uma cuspidei-
ra oblonga de lat��o, dessas que t��m chumbo na base
e s��o como esses bonecos que nunca tombam por mais
pancada que levem.
Quando nos ouve chegar, a velha ergue os olhos,
ajusta os ��culos e nos contempla com uma curiosidade
meio vaga: depois baixa a cabe��a e continua o seu
tric��. O gato nem se moveu: manteve os olhos semi-
cerrados, na sua modorra ol��mpica e asm��tica.
Por tr��s do balc��o da gerencia surge, n��o sei de
onde ��� talvez duma velha hist��ria de E �� a de Quei-
r��s ��� um homem baixo, calvo, seboso e soturno, que
me apresenta em sil��ncio uma caneta com a qual de-
vo assinar meu nome num cart��o. Naturalmente a
ponta da pena est�� quebrada e minha assinatura sai
irregular, borrada e ileg��vel.
��� Quantos dias v��o ficar? ��� indaga o homem.
��� Embarcamos amanha pela manh�� ��� respondo.
E l e fita em mim os olhos de gelo cinzento.
��� Quatro d��lares.
A VOLTA DO GATO PRETO
69
Meto a m��o no bolso. Onde est�� o dinheiro? Re-
come��a a pantomima: apalpo o peito, �� direita, �� es-
querda ��� ao mesmo tempo que sinto postos em mim
os olhares entre apreensivos e repreensivos do resto da
fam��lia. Finalmente encontro o ma��o de notas. Pago
e aqui de novo vamos seguindo o mulato atrav��s dum
sombrio corredor que cheira a mofo, velhice e triste-
za. Tenho a impress��o de que estas coisas n��o est��o
acontecendo agora, e sim h�� trinta anos passados. Tu-
do isto parece falso. A mob��lia de vime, o gato, a ve-
lha, a cuspideira, o gerente, o mulato, o hotel. Ma-
riana caminha em sil��ncio a meu lado. Sinto que es-
t�� desnorteada. Este n��o �� os Estados Unidos de seus
sonhos, o pa��s que os magazines ilustrados sempre lhe
pintaram, moderno, limpo, belo, monumental ��� uma
terra de conforto e facilidades em que basta apertar
num bot��o para. ..
��� Cuidadol ��� grito.
Puxo-a pelo bra��o antes que ela se precipite es-
cada abaixo. �� que na penumbra do corredor n��o
enxergamos bem o caminho.
Dobramos �� direita, depois �� esquerda. Final-
mente chegamos ao quarto. Entramos. O ar est�� sa-
turado de sarro de charuto. A cama desfeita. Por to-
da a parte vemos vest��gios do h��spede que acaba de
sair. O papel da parede �� cor de malva, com magn��-
lias brancas que o tempo amareleceu. Os m��veis, pe-
sados, sugerindo uma vers��o pobre do quarto de
Scarlett 0'Hara. O mulato larga as malas no ch��o,
apanha a moeda que lhe jogo, faz algumas perguntas
convencionais e se retira. N��o ouso olhar para Maria-
na, que por sua vez n��o tem coragem de sentar-se
nestas velhas cadeiras de estofo cor de vinho com lar-
gas n��doas de sebo. Clara e Lu��s andam dum lado
para outro, reconhecendo o terreno.
70 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
No espelho oval que tenho �� minha frente posso
ver a express��o de desapontamento de meu pr��prio
rosto.
��� N��o penses que todos os hot��is de Nova Or-
leans s��o como e s t e . . . ��� digo com algum esfor��o.
Mariana continua calada. Prossigo:
��� H�� o St. C h a r l e s . . . O R o o s e v e l t . . . grandes
h o t �� i s . . .
Minha mulher completa a senten��a:
��� Onde tu paras quando viajas s o z i n h o . . .
No fundo do espelho um homem infeliz e descon-
certado me contempla.
A CIDADE MORENA
Se podemos comparar cidades com pessoas, direi
que Nova Orleans �� uma mulher morena em cujas
veias corre sangue franc��s e espanhol ��� uma dama
dengosa, de fartos seios e olhos c��lidos, que passa as
tardes debru��ada num balc��o de ferro rendilhado.
Mora numa casa recendente a doces perfumes tropi-
cais e atravancada de m��veis antigos: c��modas trazi-
das de Fran��a, camas pesadas com doss��is e mosqui-
teiros, um rel��gio dourado dentro duma redoma de
vidro, quadros ovais com retratos de remotas bisav��s
pintados por artistas an��nimos e sobre pequenas me-
sas que lembram ora a Espanha, ora a Fran��a de Lu��s
X V , uma cole����o de bibel��s e bugigangas. Na sua
cozinha h�� uma chaudi��re �� trois ou seja uma caldei-
ra de ferro sobre um trip��, e na qual se fazem os mo-
lhos mais esquisitos e picantes. A cozinheira da casa
�� uma mammy, preta velha que sabe secretas recei-
tas culin��rias que aprendeu de antiga dama que veio
de Fran��a, ou que lhe foram transmitidas por uma
bisav�� africana. Na casa dessa mulher morena h�� um
A VOLTA DO GATO PRETO
71
p��tio espanhol onde cresce um p�� de magn��lia, e onde
uma buganv��lia cor de p��rpura sobe pela coluna que
sustenta a galeria de ferro batido.
Aos domingos a morena vai �� missa na Catedral
de Saint Louis. N��o usa slacks nem masca goma, co-
bre o rosto com um v��u e chupa balas de pecan, que
s��o a guloseima mais famosa do lugar. E quando ela
passa por essas ruas que t��m nomes franceses ��� Gra-
vier, Fontainebleau, Bienville, St. Louis, Rampart ���
vai deixando uma esteira de perfume: jasmim ou
magn��lia.
E a nossa morena ��� (os outros americanos lhe
chamam creole, crioula, nome que aqui se d�� aos des-
cendentes de franceses e espanh��is) vive como que
insulada, separada do resto do pa��s. Est�� claro que
ela vai ao cinema, j�� provou coca-cola e torta de ma-
����. Mas a tudo isso prefere romanticamente o teatro,
a ��pera, os pratos regionais e os doces das pretas ve-
lhas. Apesar de cat��lica, tem um secreto medo do
vodoo, da macumba. Porque lhe contam hist��rias de
despachos, de pretas que preparam filtros m��gicos. E
assim sob um c��u de tr��pico, �� margem oriental do
Mississipi, Nova Orleans vive metade no presente, me-
tade no passado. Tem um grande aeroporto mas mui-
tos terreiros de macumba. M��dicos que prescrevem
penicilina, e curandeiros e benzedeiras pretas que acre-
ditam no poder m��gico de ervas e feiti��os.
N��o tenho d��vidas: esta �� a mais pitoresca das
cidades norte-americanas. E �� preciso n��o esquecer
que ela j�� tinha um s��culo de idade quando foi in-
corporada ao territ��rio dos Estados Unidos.
Quem tiver o amor dos contrastes deve visitar a
puritana e aristocr��tica Boston ��� pudica, tradiciona-
lista, e formal ��� e depois descer para esta condescen-
dente metr��pole do Mississipi, onde existem at�� pen-
s��es de prostitutas �� melhor maneira latina.
72
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Um quarto da popula����o total da cidade �� for-
mado de gente de cor, e os brancos de origem estran-
geira representam mais ou menos um quarto da po-
pula����o branca. No s��culo passado as ra��as aqui se
dividiam por sub��rbios. Os creoles viviam no Vieux
Carr�� ��� ou Quarteir��o Latino ��� no lugar onde come-
��ou a cidade. Havia a zona dos americanos, a dos ir-
landeses e a dos negros. Estes ��ltimos continuaram
segregados atrav��s do tempo, mas houve entre as outras
ra��as um intenso cruzamento atrav��s do casamento
(e fora dele tamb��m) de sorte que hoje a divis��o n��o
�� t��o r��gida. Encontramos muitos creoles no Vieux Carr��,
mas l�� tamb��m moram negros e italianos.
Muitas s��o as religi��es nesta Cidade do Crescen-
te. Os negros em geral pertencem �� Igreja Batista,
embora nos tempos dos conquistadores espanh��is e
franceses houvesse um "C��digo Negro" segundo o
qual os escravos tinham de ser obrigatoriamente ba-
tizados e instru��dos dentro da Igreja Cat��lica. Apesar
de tudo, os pretos preferiam ao Deus ��nico os seus es-
curos deuses africanos, e por mais pomposo e atra-
ente que lhes parecesse o ritual cat��lico, eles continua-
vam a achar mais encanto nos sombrios ritos de sua
p��tria de origem. E quando se reuniam na Pra��a do
Congo ��� hoje Pra��a Beauregard ��� era para cantar,
dan��ar, pular e cair no candombl��.
Contam-se hist��rias mirabolantes da famosa fei-
ticeira Marie Laveau, "A Rainha da Macumba", que
com seus poderes sobrenaturais imobilizou os guardas
da pol��cia que haviam sido mandados para prend��-
la. Hoje em dia os crentes v��o ao cemit��rio, atiram
moedas sobre a sepultura de Marie e fazem promes-
sas. Isso me lembra ��� e a analogia me diverte ��� a
lenda de Maria Degolada, a negrinha milagreira de
Porto Alegre. As circunst��ncias misteriosas de seu
assass��nio �� beira duma ravina, num dos sub��rbios da
A VOLTA DO GATO PRETO
73
cidade criaram uma lenda; e o lugar em que seu san-
gue caiu ficou sendo ponto de romaria. Ergueu-se ali
uma capela r��stica e min��scula, onde os pedintes v��m
orar, acender velas e fazer promessas.
Conta-se que entre 1921 e 1922 apareceu em No-
va Orl��ans, irm��o Isa��as um profeta branco que se-
gundo se dizia, obrava milagres. Por um preconceito
de cor recusou-se ele a curar a preta Catherine Seals,
que fora v��tima dum ataque de paralisia. Tomada de
paix��o, Catherine p��s-se a orar dia e noite, com um
fervor hist��rico, e a frase que mais repetia em suas
ora����es era esta: "O Senhor cura gente de todas as
cores".
Uma noite um esp��rito desceu sobre ela e lhe su-
geriu fizesse uma reuni��o de pecadores, assim que
suas ora����es fossem atendidas; ela obedeceu, logo que
ficou restabelecida. Come��ou ent��o a sua s��rie de
curas milagrosas por meio n��o s�� da imposi����o de
m��os, como tamb��m do processo nada b��blico de fa-
zer cada paciente ingerir uma boa quantidade de ��leo
de r��cino, seguida duma menor de sumo de lim��o "pa-
ra tirar o gosto". Foi essa a origem de mais um culto
negro. "A Igreja do Sangue Inocente", cujos fi��is se
reuniam na Manjedoura. A pr��pria Catherine mode-
lou as est��tuas e fez as pinturas que ornam o templo
onde h�� pequenas mesas, ao redor das quais no ver��o
os crentes tomam "limonada benta" e no inverno "ca-
f�� bento". As imagens de barro sa��das das m��os da
sacerdotisa negra s��o uma mistura de mau catolicis-
mo e macumba. A igreja conta com um coro que en-
toa hinos e litanias. Quinhentas l��mpadas de ��leo
ardem pelos cantos, e todo o fiel que deseja fazer uma
promessa derrama ��gua na l��mpada votiva; e se a
��gua fica preta isso �� um sinal de que o pedido vai ser
satisfeito...
74
OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O
ANJOS
Gra��as �� sua tradi����o espanhola e francesa, No-
va Orleans �� uma cidade americana onde a gente v��
anjos, isto ��, imagens de anjos e id��ias em torno de
anjos. O protestantismo me parece uma religi��o sem
anjos. Vejo aqui anjos em pinturas murais e pain��is
de igrejas. Anjos de terracota, barro, lou��a, metal, vi-
dro e mat��rias pl��sticas nas vitrinas de lojas, princi-
palmente nos antiqu��rios. Anjos h�� nos t��mulos dos
cemit��rios locais, t��o diferentes, com suas est��tuas e
jazigos pomposos, da simplicidade dos cemit��rios de
outras cidades, onde os t��mulos s��o lajes de pedra cin-
zenta com um nome e duas datas, plantadas no ver-
de bem cuidado de tabuleiros de relva, �� sombra de
��rvores. E nestas casas antigas de Nova Orleans pu-
lulam anjos: em relevo na escarpa das lareiras; em ci-
ma de consolos de m��rmore; bordados em almofadas
ou pintados em quadros.
��� E que anjo ali vem... ��� digo eu a minha mu-
lher, fazendo com a cabe��a um sinal na dire����o da
mulher que se aproxima de n��s. �� uma crioula mo-
rena, de andar ondulante. Vem lenta a caminhar por
esta cal��ada de Royai Street, e n��o seria de estranhar
que viesse descendo uma ladeira em S��o. Salvador da
Bahia. Tem um ar que os americanos chamam sultry
��� adjetivo este que em geral se aplica �� atmosfera
quando ela est�� carregada de calor e umidade. Seus
cabelos s��o dum castanho-escuro, sua pele tem o cre-
me rosado da manga madura, e seus olhos um azul
met��lico e lustroso. Depois que ela passa, paro e me
volto. Diferente das outras americanas que pisam fir-
me e andam depressa, esta creole ginga, dan��a, num
ritmado mexer de quadris, com um certo jeito que ��
ao mesmo tempo faceirice e pregui��a. Deve chamar-
se Josephine Saucier ou Marie La Rochambeau.
A VOLTA DO GATO PRETO
75
��� Vamos, velho!
Meus filhos tomam-me das m��os e me arrastam.
Estamos a caminhar sem rumo. �� uma manh�� mor-
na e calma. Parece que o melado e o a����car que se
produz nas redondezas de Nova Orleans satura o ar,
tornando-o adocicado. O desinfetante que se usa nas
casas tamb��m tem um perfume doce. E quando a
gente passa por essas lojas que vendem "doces feitos
em casa", vem l�� de dentro uma onda quente que
cheira a chocolate, baunilha e lim��o.
B U R L E Q U E A N D O . . .
Paramos a uma esquina da Canal Street, que se-
para a cidade velha da nova. �� uma art��ria comer-
cial larga e alegre, que tem um movimento caleidos-
c��pico e fervilhante de feira estival. Nossos olhos se
perdem nesta longa perspectiva que foge para o ho-
rizonte azul. Passam bondes e ��nibus com nomes pi-
torescos: Napoleon, Pontchartrain, Lake Andubon
P a r k . . .
Aqui se v��em coisas que s��o positivamente dos
Estados Unidos. Cartazes grandes em tricromia anun-
ciando p��o, cigarros, autom��veis, manteiga, leite e vi-
nho. Grandes casas de "nada al��m" que cheiram a
verniz e onde o movimento �� t��o grande e o colorido
dos objetos nas montras e prateleiras t��o intenso, que
depois de andar por dentro dessas lojas por alguns
minutos, ficamos estonteados e s�� desejamos uma coi-
sa: fugir para o ar livre. H�� ainda os stands que ven-
dem pipocas, as food-shops nas quais, atrav��s da vi-
trina, vemos a mo��a ou o mo��o de branco que frita
um punhado de carne mo��da em cima da chapa quen-
te do fog��o a g��s, para depois comprimi-la, com mui-
to picles, entre duas fatias de p��o redondo, formando
76
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
assim os famosos hamburgers. E como em mil outras
casas algu��m sempre est�� fritando roscas, anda no ar
um cheiro enjoativo de graxa vegetal, que fica nas
nossas narinas, que satura as nossas roupas e que nos
persegue sempre como uma mosca importuna ou uma
id��ia fixa. Aqui tamb��m vemos muitos soldados e ma-
rinheiros. E Wacs ��� mulheres do corpo auxiliar do
ex��rcito ��� nos seus uniformes caqui. E Waves ��� as
do corpo auxiliar da marinha ��� nos seus costumes
azuis. E Spars ��� do grupo de guardas da costa ���
nos seus fardamentos pretos e seus quepes que lem-
bram os do antigo ex��rcito russo do tempo do czar.
Tem-se a impress��o de que todos estes milhares de
pessoas que enchem as cal��adas, entram nas lojas, ci-
nemas, caf��s e restaurantes, foram tomados de furor
aquisitivo. Compra-se muito porque h�� muito dinhei-
ro. Os sal��rios s��o altos. Pretos e pretas que ganha-
vam 40 ou 50 d��lares por m��s como criados, ganham
agora tr��s vezes mais em f��bricas de avi��es ou em es-
taleiros. Passamos por uma loja onde se vendem do-
ces e vemos uma longa bicha �� espera de que as por-
tas se abram. Outras casas ��� caf��s, restaurantes, con-
feitarias ��� est��o com as portas fechadas, e nas suas
vitrinas um cartaz anuncia: "J�� vendemos toda a
nossa cota de hoje". Dizem que nunca os restauran-
tes e cinemas estiveram t��o cheios. �� dif��cil encon-
trar uma mesa vaga nas confeitarias e food-shops. E
enquanto comemos, outros sempre esperam, a pouca
dist��ncia, lan��ando-nos olhares interrogadores e an-
siosos. Afirmam os livreiros que nunca o seu neg��cio
prosperou tanto. Os editores por sua vez desesperam
quando surge um best-seller, porque h�� crise de pa-
pel e eles n��o podem atender a todos os pedidos. Al-
guns jornais falam em infla����o e fazem s��rias adver-
t��ncias ao governo. Mas a verdade �� que o OPA ���
o escrit��rio da administra����o de pre��os ��� marca ine-
A VOLTA DO GATO PRETO
77
xoravelmente um teto para o pre��o de tudo, e esse
limite �� rigorosamente observado pelo comercio.
Seguimos ao longo da Royal Street, na dire����o do
Vieux Carr��, que �� a parte tradicional e pitoresca da
cidade. Paramos a olhar as vitrinas dos antiqu��rios,
onde se exibe o mais variado bricabraque imagin��vel.
Vamos passando por velhas casas com p��tios, corredo-
res escuros e port��es coloniais. As tabuletas e os no-
mes das lojas e caf��s que aqui vemos decididamente
n��o s��o americanos. H�� uma atmosfera de romance
nestas fachadas antigas, nestas gelosias meio desman-
teladas, nestas ruas pavimentadas de pedras irregula-
res, nestas cal��adas estreitas de lajes gastas e orladas
de velhos lampi��es. As caras est��o tamb��m de acor-
do com as fachadas e tabuletas. H�� velhos barbudos
sentados �� frente de suas lojas. Vagabundos modor-
rando ao sol. E a l��ngua que falam, manes de Sha-
kespeare! Ora �� um ingl��s sulino, negroide e arrasta-
do, ora um franc��s anglicizado, com pronunciadas tin-
turas africanas. E, envolvendo tudo, sempre os chei-
ros doces de flores, guloseimas ou ess��ncias.
Naquela meia-��gua antiqu��ssima Madame Lucien-
ne declara, num pequeno cartaz pregado na porta,
que tem uma bola m��gica de cristal atrav��s da qual
ela vislumbra o futuro. Vemos numa vitrina um ca-
mafeu que pertenceu ��� afirma o antiqu��rio ��� a uma
prima da Imperatriz Josefina. Quadros originais atri-
bu��dos ao naturalista John James Audubon. Um pu-
nhal que andou na cinta do pirata Lafitte. A fivela
do cintur��o do General Andrew Jackson. Um cande-
labro da casa dum grandee of Spain. E uma infinida-
de de bugigangas an��nimas mas curiosas.
Entramos na primeira rua �� esquerda e estamos
em pleno Vieux Carr�� onde a maior atra����o s��o as
casas em "estilo crioulo", com seus balc��es com ba-
laustradas de ferro batido, em arabescos caprichosos.
78
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Tem-se a impress��o de que o Carr�� �� uma cidade-
museu. Quase tudo aqui est�� como era h�� cem anos
passados. Nos degraus gastos destas casas de t��bua,
em p��ssimo estado de conserva����o, gordas mulatas de
fartos seios conversam, tricotam ou simplesmente
olham os passantes. T��m os cabelos crespos muito
lambuzados de brilhantina e delas vem um perfume
enjoativamente doce. E aqui e ali, num monstruoso
anacronismo, letras brancas contra um fundo verme-
lho, chameja um an��ncio de coca-cola. E n��o deixa
de ser gracioso quando um t��xi amarelo desliza por
estas ruas antigas e modorrentas, como mensageiro
dum outro mundo, duma ��poca que parece estar ain-
da no futuro.
E aqui vamos n��s ��� quatro ga��chos perdidos nes-
ta cidade singular ��� falando a nossa l��ngua estranha,
uma l��ngua que deixa intrigadas as mulatas e pretas
que nos olham com curiosidade e ficam a se fazer per-
guntas.
��� Em dire����o �� direita... marche! ��� digo.
��� Aonde vamos? ��� pergunta Mariana.
Dou os ombros. N��o sei. O melhor �� andar sem
rumo.
AO TROTE DO PILUNGO
Tomamos a direita. Nossas sombras nos seguem.
Sinto-me com obriga����es de guia, porque j�� andei an-
tes por estas paragens. Conto hist��rias, mostro, expli-
co. Digo que nos primeiros tempos as casas de Nova
Orleans tiveram que ser constru��das em cima de pila-
res, como as vilas lacustres, por causa das enchentes
do Mississipi. A ��nica ��gua que naquela ��poca se
podia beber era a da chuva, que os habitantes guar-
davam em grandes cisternas. Nos tempos da Guerra
A VOLTA DO GATO PRETO
79
Civil, quando os yankees mandaram seus navios cheios
de soldados para se apoderarem de Nova Orleans, os
defensores da cidade estenderam fortes cabos atrav��s
do rio, para impedir a passagem dos navios. Os cabos
se romperam, os invasores passaram e os sulistas quei-
maram todo o algod��o, o a����car e o melado que se
encontravam no cais, para que essas mercadorias n��o
ca��ssem intatas em poder dos inimigos.
De repente verifico que estou pregando no de-
serto. Nenhum dos membros da minha fam��lia est��
me ouvindo, pois acham-se os tr��s absortos num es-
pet��culo curioso. Duas pretas conversam a uma es-
quina. Ambas equilibram na cabe��a trouxas de rou-
pa. Est��o vestidas quase como as negras da Bahia,
com roupas de cor e avental branco, e trazem na ca-
be��a um desses turbantes que aqui se chamam tig-
nons. Suas caras pardas e seus dentes alvos reluzem
ao sol. As mammies gesticulam, falando uma l��ngua
que �� uma m��sica, mas da qual n��o consigo perceber
patavina. Por tr��s delas, como, um cen��rio pintado es-
pecialmente para a cena, quatro ramos lustrosos du-
ma bananeira espiam por cima dum muro antigo de
reboco partido.
��� Mas isto n��o �� Estados Unidos! ��� exclama Ma-
riana.
Seguimos o nosso caminho. De repente Clara e
Lu��s come��am a gritar e gesticular. Olho e vejo uma
cale��a (�� carros da velha Cruz Alta, com seus boleei-
ros de bombacha e chap��u de aba larga e barbicachol
�� carros dos tempos em que era "chie" passear aos
domingos pela cidade, de tolda arreada!) O ve��culo
est�� parado junto da cal��ada, �� esquina da Rua Dau-
phin. Seu magro matungo, com um florido chap��u de
palha na cabe��a, espanta as moscas. Um preto de rou-
pa ru��a e um velho chap��u alto puxado sobre os olhos,
dormita na bol��ia. Tenho uma premoni����o do que
vai acontecer.
80
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Pai! Vamos passear de carrol ��� diz Clara.
��� Isso mesmo! ��� exclama Lu��s.
Aconteceu... Despertamos o boleeiro, que abre
os olhos e mostra a dentu��a.
��� Yes, sir!
��� Quanto custa uma corrida?
��� 50 cents o quarto de hora. Yessiih!
��� Dinheiro posto fora ��� observa Mariana. ��� Lem-
bra-te de que temos ainda quase quatro dias de via-
gem.
H�� um breve momento de hesita����o. L�� no fun-
do de minha mem��ria meu av�� tropeiro me diz:
��� Desgra��a poca �� bobage, mo��o!
��� Saltem para dentro do calhambeque! ��� grito.
E dentro de poucos segundos estamos todos abo-
letados na cale��a.
Digo ao preto que nos leve "por a��". As crian��as
est��o excitadas. O pilungo trota, seus cascos tocam
uma musiquinha clara nas pedras do cal��amento. Re-
tomo as fun����es de guia. Naquela casa ��� digo ��� mo-
rou o pirata Lafitte. Aquele casar��o maci��o �� o mer-
cado franc��s, onde se bebe o melhor caf�� da cidade,
e onde os farristas tresnoitados v��m tomar o seu
bre��kfast pela madrugada, enquanto o sol, que tam-
b��m passou a noite em claro, iluminando a outra me-
tade da terra, surge l�� para as bandas do delta... Sa-
bem o que est�� vendendo aquele sujeito que ali vem
empurrando uma carrocinha? �� snow ball, ou bola de
neve, gelo picado com ess��ncias doces: morango, aba-
caxi, baunilha, amora...
Passamos por perto do rio, onde se acham anco-
rados muitos navios, e por cujas ��guas, dum pardo
rosado, passa providencialmente um desses navios mo-
vidos a roda, que nos tempos antigos eram tamb��m
teatro ��� os show boats. De p�� no carro, Clara e Lu��s.
A VOLTA DO GATO PRETO 81
o contemplam fascinados. E sua exalta����o cresce,
quando o navio come��a a tocar com seus apitos mu-
sicais uma valsinha antiga.
Quando se aproxima o fim da corrida, pe��o ao
boleeiro que nos deixe na frente da Catedral de St.
Louis. Atiro-lhe uma moeda de cinq��enta centavos.
E apeamos.
NA CATEDRAL
Aqui est�� a famosa catedral com as suas tr��s tor-
res pontiagudas e a sua mistura de g��tico modifica-
do e romano. Entramos. �� uma igreja espa��osa, cla-
ra, limpa e sem cheiros. Mariana se ajoelha e ora, en-
quanto os filhos, num sil��ncio meio espantado, olham
em torno e cochicham.
Um padre vem caminhando atrav��s do corredor
central entre os dois grupos de bancos, e seus passos
ecoam no recinto. Dois homens trabalham na insta-
la����o dum microfone ao lado esquerdo do altar-mor.
O padre posta-se junto da porta da igreja e grita:
��� Vamos experimentar o mike.
Um dos homens aproxima-se do microfone e diz:
��� Um-dois-tr��s-quatro-cinco-seis-sete-oito.
O padre ergue a m��o, formando um c��rculo com
a ponta do indicador a tocar a ponta do polegar. Isso
em m��mica americana quer dizer que est�� tudo okay.
Mariana ergue-se e vem sentar-se a meu lado.
Ficamos conversando aos cochichos. Chamo-lhe a aten-
����o para as diferen��as que h�� entre o catolicismo nor-
te-americano e o catolicismo sul-americano. H�� menos
cheiros nestas igrejas cat��licas dos Estados Unidos, nas
quais at�� a fisionomia dos santos �� mais desanuviada
e otimista. Uma cat��lica americana que visitou o Bra-
sil, um dia me chamou a aten����o para o "car��ter ag��-
82
OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O
nico" das igrejas brasileiras, onde tudo lembra morte,
pecado e castigo.
Nos Estados Unidos os padres cat��licos n��o usam
batina na rua. Com seus trajos negros, seus colarinhos
duros e altos abotoados atr��s, seu peitilho negro ���
eles se parecem com os pastores episcopais. S��o mais
esportivos e tolerantes que os sacerdotes brasileiros.
Unem-se com protestantes e judeus para formar comi-
t�� e promover campanhas em prol dos ideais crist��os.
Jogam golfe, t��nis e at�� futebol; fumam, tomam o seu
u��sque e ��� por que n��o? ��� jogam o seu bridge.
O FANTASMA DO MUSEU
Visitamos a seguir o museu do Cabildo, que fica
ao lado da Catedral, e damos um mergulho no passa-
do. Vamos aos tempos coloniais por entre uniformes
de generais, espadas, lan��as, carabinas, pistolas, me-
dalhas, apetrechos de piratas e bandeiras desbota-
das . . .
A casa �� velha e a esta hora da manh�� est�� de-
serta de visitantes. Andamos sozinhos por estas salas
cujo cheiro nos lembra o dos velhos ba��s em que as
murchas vov��s guardam rel��quias da mocidade. Nos-
sas sombras ficaram l�� fora, a esperar-nos junto da
porta.
Debru��amo-nos sobre montras de vidro onde se
enfileiram pergaminhos amarelentos, pap��is antigos,
B��blias, leques, tabaqueiras, pepas de pato que assi-
naram documentos memor��veis, e objetos do uso par-
ticular de figuras hist��ricas. Passamos depois por um
longo corredor, sob o t��nel invis��vel formado pelos
olhares que nos deitam de quadros a ��leo pendurados
nas paredes, ��� generais, estadistas, governadores e fi-
dalgos. Entramos a seguir num sal��o que lembra os
A VOLTA DO GATO PRETO
83
museus de cera. Aqui est��o expostos os vestidos usa-
dos pelas damas de Nova Orleans desde a funda����o
da cidade. Logo ao entrar temos a impress��o de que
os manequins s��o pessoas humanas. Parece que al-
gu��m acaba de pedir sil��ncio, porque uma destas da-
mas vai recitar... Caminhamos na ponta dos p��s. Ve-
jo no rosto de meus filhos uma express��o de medrosa
expectativa. Vestidos com uma abund��ncia de sedas
e rend��es, os manequins sorriem para n��s o seu cada-
v��rico sorriso de cera. Parecem conversar uns com os
outros numa linguagem para n��s inaud��vel. Que dir��o?
Talvez zombem de n��s, pobres vivos. N��o ousamos
dizer palavra. Paramos aqui e ali. A imobilidade des-
tas figuras, dentro de suas redomas, �� impressionante.
Mas de quando em quando eu me volto, brusco, com
a impress��o de que um desses manequins se moveu,
fez um gesto ou sussurrou uma palavra. E o que mais
concorre para esta atmosfera de mist��rio �� a penumbra
em que o sal��o se acha mergulhado.
De repente Clara solta um grito. (A mocinha
perdida no museu de cera. Segundo ato. Cena pri-
meira). Olho. .. Um dos manequins realmente se mo-
v e . . . N��o est�� vestido de seda como os outros, mas
pobremente, como uma simples criada. Tem uma ca-
ra macilenta, enrugada, e de express��o perversa. Mo-
ve-se em sil��ncio e nem sequer olha para n��s. Parece
uma feiticeira, uma g��rgula, um monstrengo. Paramos,
fascinados. Levo alguns segundos para compreender.
Trata-se de uma das mulheres encarregadas da limpe-
za do museu. Est�� esfregando com um pano o vidro
de uma das redomas. Essa verifica����o, entretanto, n��o
me tranq��iliza, pois a qualidade fantasmal da criatu-
ra permanece. Tenho a sensa����o que vem dela um
bafio de morte. Passamos de largo, olhando furtiva-
mente para a l��vida criatura que, parecendo n��o ter
84
OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O
dado ainda pela nossa presen��a, continua nos seus mo-
vimentos regulares de aut��mato. Ningu��m me tira da
cabe��a a id��ia de que essa mulher est�� morta, e de
que se ela se move �� apenas por obra do vodoo.
Descemos as escadas em sil��ncio e de novo sa��-
mos para a rua.
P��TIO
Estamos famintos e procuramos um restaurante.
Paramos diante do Antoine's, que passa por ser dos
melhores do pa��s. Tem quase cem anos e j�� foi visita-
do pelas personalidades mais famosas do mundo mo-
derno, as quais lhe elogiaram o servi��o e a cozinha.
Penso nas suas famosas huitres en coquille �� la
Rockefeller , no seu pompano papillote um peixe cozido apresentado ao fregu��s dentro dum saquinho de
papel. E fico l��rico ao relembrar o gosto de seu poulet
chanteclair que �� frango em molho de vinho.
Mas um r��pido estudo das finan��as da tribo me
leva �� conclus��o de que o Antoine's est�� fora do al-
cance de nossa bolsa.
Acabamos entrando no "P��tio das Duas Irm��s",
cujo nome nos titila a fantasia. Entramos por um velho
port��o enferrujado e seguimos por um corredor cal��ado
de lajes irregulares na dire����o do p��tio. Vemos nas
paredes velhos pend��es dos tempos coloniais, inclusive
um estandarte desbotado, sujo e pu��do no qual amare-
lece a flor-de-lis de Fran��a. H�� uma velha lareira
centen��ria com um caldeir��o tisnado onde provavel-
mente muito cors��rio cozinhou sua sopa, e muita
mammy fez seu bouillabaisse. Duas carabinas dos
tempos coloniais ��� decerto das que os soldados da
imp��vida Nova Orleans usaram em 1812 contra os in-
gleses ��� cruzam-se na parede, por cima da lareira.
A VOLTA DO GATO PRETO
85
No p��tio, mesas cobertas com toalhas de xadrez
vermelho e branco espalham-se em graciosa desordem
�� sombra de figueiras e salgueiros. Todas elas t��m no
centro um casti��al com um toco de vela. Homens e
mulheres com aspecto de turistas mastigam o seu al-
mo��o. Por entre as mesas, gar��ons mulatos passam
carregando coloridas saladas. Os muros que cercam
o p��tio ostentam na face de reboco v��rias feridas
que nunca s��o curadas, pois elas acentuam a nota de
antiguidade do estabelecimento. P��ssaros cujo nome
ignoro, est��o empoleirados nos galhos das figueiras, e
de quando em quando voejam por sobre nossas cabe-
��as, mudando de pouso.
Creio que Nova Orleans �� uma das poucas cidades
dos Estados Unidos que sabem comer e que t��m uma
tradi����o culin��ria. Pouco se fala aqui em vitaminas e
calorias; o que importa �� o gosto, o tempero. Escre-
veu Mark Twain que o "pompano" preparado em
Nova Orleans �� "delicioso como as menos criminosas
formas de pecado". Entre os quitutes famosos da
terra encontra-se o gombo aux herbes que no franc��s
dos pretos se transformou em gombo zh��bes. O gom-
bo �� uma planta que uma pessoa culta descreveria co-
mo hibiscus esculentus, mas que eu prefiro chamar
simplesmente de quiabo. Segundo a lenda esse famo-
so gombo zh��bes deve ser preparado numa Quinta-
Feira Santa, pois que isso "traz sorte". Nesse prato
entra espinafre, mostarda, beterraba, alface, folhas de
aipo, cebolinhas, nabos, salsa, tomilho, piment��o e
uma s��rie de outras pimentas. Quem me explica tudo
isso com luxo de detalhes �� o gar��on que nos vem
atender. Esclarece que �� preciso primeiro lavar as ver-
duras, depois cozinh��-las em ��gua abundante. Ah!
Enquanto as verduras fervem, �� bom ir fritando a
carne, picando as cebolas e a salsa...
��� Nesse gombo zh��bes ��� concluo ��� h�� de tudo
menos quiabo, n��o?
86
OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O
O gar��on sorri e um canino de ouro rebrilha.
��� S��o dessas coisas, meu chefe.
Enquanto ele disserta sobre as outras especiali-
dades da casa, com aten����o vaga examino o menu e
me perco em meio de pratos com nomes franceses, in-
gleses, espanh��is e africanos. Olho do gar��on para o
menu, do nome dos pratos para o pre��o dos mesmos,
do pre��o para os rostos ansiosos que tenho na minha
frente.
Hollandaises sauce supr��me... Grillades... Calas
tout chaud... Double glac��. Inclino-me sobre a mesa.
Estudamos em conjunto o card��pio, com ar de conspi-
radores. O mulato espera com sorridente paci��ncia.
Por fim chegamos a um acordo. Empertigo o busto,
atiro o menu sobre a mesa e digo:
��� Spaghetti para quatro!
E quando o gar��on se vai para dar nossa ordem
�� cozinha, ficamos mordiscando aipos com sal e olhan-
do o p��tio. Novos fregueses chegam. Um soldado e
um Wac sentam-se a uma mesa, de m��os dadas, enle-
vados um no outro. Deve ser um desses id��lios casuais
que a guerra proporciona e que ela pr��pria depois se
encarrega de romper. A sombra das ��rvores desenha
no ch��o um rendilhado que lembra o dos balc��es das
casas do Vieux Carr��. Por cima de n��s o c��u �� dum
azul puro e liso.
Chegam os pratos de spaghetti. E por alguns ins-
tantes, faz-se entre n��s um sil��ncio grave. Alguns
p��ssaros est��o pousados nos galhos da figueira por cima
de minha cabe��a ��� o que me deixa levemente inquieto.
De outras mesas chegam at�� n��s, trazidos pela brisa,
ricos cheiros de pratos esquisitos. De repente sinto
uma leve batida no ombro direito. Nem quero olhar.
Presumo o que seja. Clara arregala os olhos, estende
o bra��o por cima da mesa e aponta:
��� Pai, uma coisa branca a�� no teu ombro...
A VOLTA DO GATO PRETO
87
��� Eu sei... ��� digo, com resigna����o evang��lica.
Ergo os olhos.
Como s��o belos, r��tilos e gloriosos esses p��ssaros
contra o azul!
ADEUS!
Adeus, Nova Orleans! Adeus cidade rococ��, barro-
ca, mourisca, coloniall Adeus cidade imprevista! Have-
mos de voltar um dia com mais tempo e mais dinheiro!
De novo nos achamos instalados no trem, num
bom camarote, com atmosfera primaveril, ��gua gelada,
bancos estofados, um ma��o de revistas, uma provis��o
de sandu��ches e frutas e dispostos a enfrentar a longa
travessia. Teremos de ficar dois dias e duas noites
neste trem antes de chegarmos a Los Angeles onde
passaremos uma noite, tomando na manh�� seguinte o
trem mais colorido deste pa��s para vencer dentro dele
as 480 milhas que separam aquela cidade de Berlceley
��� o fim desta imensa, intermin��vel linha que come-
��ou em Porto Alegre h�� duas semanas.
E quando entramos em Texas mertrulho na lei-
tura do substancioso livro de H. L. Mencken, The
American Language.
De vez em quando ergo os olhos do livro para
olhar a paisagem. Este sul de Texas com seus campos
ondulados, suas fazendas e aramados, seus moinhos de
vento e a��udes, lembra muito o Rio Grande do Sul.
E assim com a aten����o dividida entre o livro e os
campos avan��o por estas p��ginas de composi����o cerra-
da, numa maravilhosa viagem atrav��s da l��ngua ame-
ricana. E sob o sortil��gio da prosa escorreita de
Mencken, atiro o livro para o lado, tomo da caneta-tin-
teiro e de papel e vou rabiscando para meu pr��prio uso
algumas reflex��es sobre o ingl��s que se fala deste lado
do Atl��ntico.
88
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
TEXAS
Texas �� um verdadeiro imp��rio. Talvez eu j�� me
esteja deixando contagiar pelo entusiasmo desmedido
que os texanos t��m pela sua terra, mas creio que pou-
cos territ��rios do mundo ser��o mais ricos e pr��speros
que este. Trata-se duma riqueza e duma prosperi-
dade vis��veis a olho nu. Basta olhar pela janela deste
trem em movimento e atentar nos vastos trigais que
se estendem a perder de vista; nas torres de a��o que
se erguem ativas sobre po��os de petr��leo; nessas largas
estradas de concreto que se cruzam e entrecruzam em
todas as dire����es; e nos rebanhos de gado que enchem
estes campos. Nos descampados onde h�� menos de
um s��culo cow-boys broncos la��avam potros selvagens,
erguem-se hoje cidades modernas como Dallas, Hous-
ton, San Antonio e Forth Worth.
Tenho a impress��o de que faz um s��culo (outro
exagero texano) que estamos viajando atrav��s de Texas.
Um avi��o que atravessasse o estado, saindo de Port
Arthur, na extremidade oriental, e pousando em El
Paso, que fica na ponta oposta, teria percorrido uma
dist��ncia maior do que a rota a��rea que separa Nova
York de Chicago. Qualquer texano afirmar�� que os
grapefruits daqui s��o os mais doces do mundo, o algo-
d��o, o melhor do continente; as mulheres, as mais
belas do universo; os homens, os mais corajosos do
planeta. E contar�� que os regimentos formados de
boys nascidos nestas paragens e chamados os Texas
Rangers s��o os mais bravos e audaciosos soldados das
Na����es Unidas. E como algu��m um dia expressasse
suas d��vidas quanto �� vit��ria dos pa��ses democr��ticos
sobre o Eixo, um texano decidiu tranq��iliz��-lo: "N��o
se preocupe. Texas �� aliado dos Estados Unidos".
Existe nesta parte do pa��s grande n��mero de cam-
pos de treinamento de aviadores. E de quando em
A VOLTA DO GATO PRETO
89
quando, contra este c��u de outono, c��lido e desbotado,
lampeja um avi��o. Pelas estradas passam jeeps e ca-
minh��es cor de oliva do ex��rcito, ou ��� prata e azul, ���
esses enormes ��nibus de passageiros de Greyhound
Lines, com um galgo em plena corrida pintado nos
costados. Passamos ��s vezes por longu��ssimos trens de
carga que conduzem tanques anf��bios, canh��es e "at��
avi��es desmontados. E n��o raro, �� beira da estrada
real, ergue-se um enorme cartaz em que aparecem
Waves, Wacs e Spars de bra��os dados. Mas o que
elas dizem ao observador n��o tem car��ter de reclame
comercia], �� um conselho patri��tico: Compre b��nus
de guerra! Todos os an��ncios agora s��o feitos com
esse esp��rito. Na maioria dos casos esses cartazes ���
belas tricromias onde o desenho tem uma perfei����o fo-
togr��fica ��� s��o financiados por empresas industriais,
cujo nome aparece discretamente a um canto, em letras
menores.
�� medida que nos aproximamos do estado de
Novo M��xico, o terreno toma mais o aspecto de deserto.
No oeste de Texas chove menos e h�� menos ��rvores.
Quando sa��mos de Louisiana os verdes eram mais vi-
vos, os matos freq��entes, as cidades maiores e mais
pr��ximas umas das outras. Come��am agora a aparecer
montanhas, pois esta parte do territ��rio texano �� mais
acidentada que a do leste.
Lu��s fica excitado ao ver os primeiros cow-boys
em carne e osso. Eles passam pela estrada a cavalo ou
ent��o, com seu andar gingante, suas pernas um pouco
arqueadas, passeiam indolentes pela plataforma das
pequenas esta����es onde nosso trem p��ra por alguns se-
gundos ou por onde passa em marcha lenta.
FRONTEIRA
Em El Paso, que fica na linha divis��ria entre os
Estados Unidos e o M��xico, saltamos para espichar as
90
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
pernas. �� primeira vista a cidade nos parece mais
mexicana que norte-americana. O n��mero de pessoas
morenas aqui �� maior que o de gente de pele clara.
As cabe��as louras e os olhos azuis escasseiam. E em
algumas caras que andam nesta sala de espera da esta����o,
notam-se zigomas salientes, olhos obl��quos ��� vest��gios
de sangue ��ndio.
Um homem aproxima-se de mim, mostra o dis-
tintivo de metal que traz escondido debaixo da lapela
do casaco, declara que �� do servi��o de imigra����o e
pede meus documentos de identidade. Isto tinha de
acontecer. O homem desconfia que eu seja mexicano
e quer saber se estou legalmente deste outro lado da
fronteira. Mostro-lhe meu passaporte, que ele exa-
mina e depois me devolve, sorrindo. "Okay bud"! ���
diz. D��-me uma palmadinha no ombro e se vai.
Minha fam��lia desapareceu. Descubro que orga-
nizou um assalto ao restaurante. L�� est��o os tr��s jun-
to do balc��o, numa orgia de saladas de tomates e al-
face, de frutas e salsichas. Re��no-me a eles e
confraternizo.
Atrav��s da janela vemos uma pracinha de El Paso,
que lembra todas as pracinhas de todas as nossas ci-
dades do interior, com seu coreto para a banda de
m��sica, os seus bancos pintados de verde, os seus can-
teiros, as ��rvores e os seus vagabundos.
El Paso fica �� margem do Rio Grande, tem um
porto e produz cobre. �� tamb��m um cow town, centro
do com��rcio de gado. A empregada do restaurante
me assegura que esta cidade produz os mais gostosos
frutos do mundo. Quando sabe que somos do Brasil
e vamos para a Calif��rnia, pergunta, intrigada:
��� Vieram de t��o longe... para morar na Cali-
f��rnia ?
��� Sim. E que tem isso?
A VOLTA DO GATO PRETO
91
Ela sorri significativamente e por algum tempo fica
sem dizer nada, numa pausa cheia de inten����es ocul-
tas. Eu espero, mastigando uma ma����. A empregada
passa o pano em cima do balc��o laqueado de vermelho.
��� Well, well, well. Ent��o v��o para a Calif��rnia!
A terra do sol eterno, dos laranjais floridos e n��o sei
mais de qu��. Ha-ha!
��� Mas que �� que h�� com a Calif��rnia?
��� Quer saber mesmo ?
��� Claro.
��� A Calif��rnia �� phony.
Traduzo o di��logo para minha gente. Phony ��
uma palavra da g��ria que quer dizer: artificial, fal-
sificado.
��� Movie stuff ��� esclarece a empregada. "Coisa
de cinema". E explica que Texas �� a melhor parte dos
Estados Unidos. Clima, conforto, riqueza, cidades...
Ah! e as gentes, principalmente as gentes. O texano
�� franco, hospitaleiro, amigo. Com ele tudo �� ali "na
batata".
N��o consegue terminar a sua enumera����o. Por-
que a hora de o trem partir se aproxima. Arrebato das
m��os da mulher a nota de despesa e arrasto a fam��lia
na dire����o da porta. Junto da caixa, repete-se a infal��vel
cena da procura do dinheiro. A caixa, uma senhora
gorda de cabelos brancos que ouviu nosso di��logo,
sorri e diz:
��� Ent��o, v��o para a Calif��rnia, n��o?
��� �� verdade.
��� Grande terra!
Enquanto arrecado os n��queis do troco, digo:
��� Finalmente encontro uma texana que faz justi��a
�� Calif��rnia...
A caixa inclina-se sobre a mesa, pisca o olho e me
segreda:
92
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� N��o conte a ningu��m. N��o sou de Texas. Nas-
ci em San Francisco. Sejam felizes!
Voltamos para nosso compartimento, onde j�� prin-
cipiamos a nos sentir como em nossa pr��pria casa.
Este cub��culo j�� tem o nosso jeito, j�� absorveu os nossos
h��bitos. J�� imprimimos nossa marca neste ambiente
que espelha prodigiosamente nossa desordem. Tudo
aqui dentro se encontra numa deliciosa anarquia. De
quando em quando o porter negro vem pacientemente
limpar o ch��o e os bancos pintalgados de farelo de
p��o, casca de fruta e peda��os de papel.
O trem arranca. Vamos entrar dentro em pouco
no estado do Novo M��xico.
O DESERTO
Come��amos a penetrar no deserto. Montanhas de
pedras, rosadas �� luz da manh��, erguem-se contra um
c��u p��lido e quente. O ch��o �� dum amarelo-arenoso
e a vegeta����o escassa, dum verde que ��s vezes se de-
grada em pardo ou cinza. Aparecem os primeiros
cactos, alguns dos quais t��m mais de dois metros de
altura e parecem pessoas im��veis, com os bra��os er-
guidos. Outros semelham verdes torpedos plantados
na terra. Para al��m das montanhas nuas e averme-
lhadas, estendem-se cordilheiras dum azul-arroxeado.
Clara deixa o compartimento e vai postar-se jun-
to da janela do corredor. Diminui aos poucos a velo-
cidade do trem. De repente a menina solta uma
exclama����o.
��� Venham ver depressa!
Mariana e Lu��s erguem-se e v��o. Deixo-me ficar
junto da outra janela e uma pregui��a boa me cola ao
banco. Que ter�� visto Clara? Um avi��o? Um jeep?
A VOLTA DO GATO PRETO
93
Um regimento? Se fosse um drag��o talvez eu me er-
guesse daqui. Por menos que isso n��o me movo.
��� Vem, pai! ��� chama Clara.
O trem p��ra.
��� Que ��? ��� pergunto, de olhos semicerrados.
��� Uma ��ndia!
��� A h . . . ��� fa��o eu. Mas n��o me movo.
��� Uma ��ndia de verdade! ��� afirma Lu��s.
E como continuo sentado, meus filhos me v��m
buscar a for��a. Tenho de segui-los. Vou at�� a janela
e olho. �� sombra duma casa de adobe acha-se uma
��ndia gorda, sentada no ch��o, de pernas e bra��os cru-
zados, numa atitude de quem dormita. Est�� vestida
de grosseiro pano pardo, mas tem sobre os ombros um
xale tricolor. A seu lado no solo v��em-se cobertores
de algod��o em padr��es de rico colorido, estatuetas de
barro, chap��u de palha de tipo mexicano, cestos e es-
teiras. Meus filhos querem descer-para ver de perto
a maravilha, mas o porter nos informa que seria impru-
d��ncia deixar o vag��o, pois a parada �� apenas de um
minuto.
Quando o trem retoma a marcha, voltamos ao nos-
so compartimento. Percebo que Lu��s est�� intrigado.
Sentado em sil��ncio, olhar fito num ponto insitu��vel
no espa��o, as sobrancelhas erguidas, ele pensa.
��� Isto ainda �� Estados Unidos? ��� pergunta, ao
cabo de alguns minutos.
��� Claro! ��� responde a irm��.
��� Mas como �� que a gente v�� ��ndios... n��o v��
arranha-c��us?
��� Estamos no Novo M��xico.
��� Isto pertence ao M��xico ?
��� Burro! ��� exclama Clara. ��� Aos Estados Unidos.
Come��am ambos a crivar Mariana de perguntas.
94
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� De onde vieram os ��ndios? S��o amigos ou inimigos
dos americanos? Por que esta parte dos Estados Uni-
dos �� um deserto?
��� Perguntem ao pai de voc��s ��� sugere Mariana,
fazendo um sinal na minha dire����o.
Lu��s me lan��a um olhar obl��quo e diz:
��� Ele n��o sabe.
Abro um olho, como ��nica resposta. N��o sei a
causa de meu desprest��gio intelectual junto dessas cria-
turinhas. L��em as hist��rias que escrevo, as absurdas
aventuras de bichos e gentes, e depois, como ��nico
coment��rio, dizem sorrindo:
��� Esse pai �� uma bola!
Quando t��m de fazer perguntas, de pedir infor-
ma����es, recorrem �� m��e.
��� Isso �� o resultado dos teus sil��ncios ��� j�� me
disse Mariana mais de uma vez.
��� Est�� bem ��� murmuro. ��� Que �� que voc��s que-
rem saber?
Lu��s atira a primeira pergunta:
��� Quem �� que morava aqui antes dos americanos?
��� Os ��ndios.
Clara:
��� ��ndios... como os do Brasil?
��� N��o. Como aquela ��ndia que voc��s viram h��
pouco. Os "��ndios pueblos". S��o peles-vermelhas que
se distinguem das outras tribos errantes por viverem
em "pueblos", palavra espanhola que significa povoados.
Lu��s e Clara trocam um r��pido olhar. Interesse?
Incredulidade? Finjo que n��o percebo nada e prepa-
ro-me para prosseguir quando o menino me interrompe:
��� E antes dos ��ndios?
Sinto que a situa����o piora. Ajeito-me no banco
e come��o:
��� H�� muitos, muitos anos... talvez mais de mil...
Clara solta um assobio de admira����o.
A VOLTA DO GATO PRETO
95
��� . . . morava nesta regi��o que hoje se chama Novo
M��xico, uma tribo de ��ndios. Viviam da agricultura
e eram trabalhadores e pacatos...
��� Como �� que tu sabes?
Reprimo um suspiro de impaci��ncia e digo:
��� Ora, meu filho, essas coisas a gente l �� . . .
��� Ou inventa... ��� interv��m Mariana.
��� Continua, pai ��� pede Clara. ��� Estou gostando.
��� Bom. Um belo dia ferozes guerreiros duma
tribo agressiva desceram l�� do lado das grandes mon-
tanhas, isto ��, do Norte, e se precipitaram contra esse
povo pac��fico... Que �� que voc��s pensam que os
agricultores fizeram?
��� Defenderam-se, ��� opina Lu��s.
Sacudo a cabe��a negativamente.
��� Azularam. Fugiram para as montanhas.
Pausa dram��tica.
��� E depois?
��� Ficaram morando nas montanhas.
��� Como?
��� Constru��ram as cidades mais fant��sticas deste
pa��s. Imaginem voc��s enormes casas cavadas na rocha
viva, na encosta dos penhascos.
��� Pai, n��o uses palavras dif��ceis! ��� protesta Lu��s.
��� Encosta dos penhascos? Quer dizer no lado
dos rochedos. Cavavam na pedra, aproveitavam as
cavernas, as plataformas e ��s vezes completavam essas
habita����es erguendo paredes de adobe. De longe essas
constru����es pareciam castelos, com suas torres redondas
e quadradas. L�� viveram por muitos anos esses ��ndios
pac��ficos, numa sociedade em que n��o havia ricos nem
pobres.
Lu��s:
��� Como �� que a gente pode descobrir todas essas
coisas?
96
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Na maioria dos casos ��� explico ��� pelos de-
senhos e inscri����es que esses povos antigos deixaram
nas paredes de suas casas ou cavernas. Tudo indica
que os habitantes dos penhascos n��o tinham alfabeto.
Pelo menos nas suas cidades de pedra n��o se desco-
briu nenhuma inscri����o. Mas nas rel��quias que eles
deixaram ��� peda��os de roupas, farrapos de pano, ob-
jetos de uso dom��stico, caveiras e esqueletos ��� os
cientistas leram a hist��ria dessa gente.
Olho atrav��s da janela. Os cactos parecem ace-
nar para n��s. A luz do sol reverbera nas montanhas
de pedra.
��� Os cientistas chegaram �� conclus��o de que a
vida dessas fam��lias era muito bem organizada. Ha-
via entre elas perfeita igualdade. Os homens sa��am para
ca��ar, plantar ou a fazer a colheita. As mulheres man-
davam dentro de casa.
��� Por onde se conclui ��� observa Mariana ��� que
a vida nos penhascos n��o era muito diferente da vida
nas cidades modernas...
��� Pois �� ��� continuo, ignorando a interrup����o. ���
E em muitos respeitos reinava entre os habitantes dos
penhascos uma esp��cie de comunismo. Havia cozi-
nhas coletivas em p��tios abertos ou em cima dos telha-
dos. Os instrumentos de trabalho pertenciam a todos.
N��o havia exploradores nem explorados. A mob��lia das
casas era resumida. E sup��e-se que essa curiosa gente
guardava suas roupas e utens��lios em nichos cavados
nas paredes.
��� Os precursores dos arm��rios embutidos... ���
diz Mariana.
��� Os bebes tinham os seus ber��os feitos de cor-
ticeira. E numa dessas ru��nas descobriu-se at�� um
chocalho feito de uma casca de noz.
��� N��o vais me dizer ��� interrompe minha mulher ���
que as mulheres dessa na����o se pintavam...
A VOLTA DO GATO PRETO
97
��� A�� �� que te enganas. Pois pintavam-se. Usa-
vam um rouge muito vivo feito de p�� de tijolo.
Tr��s pares de olhos incr��dulos se fixam em meu
rosto. Desvio o olhar para fora. Predominam na pai-
sagem os tons de ouro velho e o pardo - amarelado.
Passamos agora por uma floresta miniatural de yuccas,
com as suas folhas verdes em forma de espada. Ao
longe, pesadas, silenciosas, antigas, as montanhas su-
blinham irregularmente o horizonte.
��� E depois? ��� pergunta Clara.
��� Parece que os habitantes dessas cidades de
pedra costumavam queimar os seus mortos ��� prossigo
��� pois a quantidade de esqueletos encontrados pelos
arque��logos foi muito pequena.
��� Como foi que esses ��ndios se acabaram? ��� in-
daga Luiz.
��� N��o se sabe ao certo que fim tiveram. Que
n��o morreram de peste �� f��cil de ver, pois se isso ti-
vesse acontecido teriam ficado milhares de esqueletos
insepultos. Como foi, ent��o, que desapareceram?
Mist��rio.
��� E depois? ��� insiste Clara.
��� Depois vieram os ��ndios pueblos. E mais tarde
os espanh��is. Houve um tempo em que o Novo M��-
xico foi prov��ncia de Espanha. Santa F��, que �� ainda
hoje sua capital, foi fundada em mil seiscentos e. ..
mil seiscentos e n��o me lembro quanto. Depois o Novo
M��xico foi cedido aos Estados Unidos. Muito mais tar-
de, em 1916, houve conflitos na fronteira entre os me-
xicanos e norte-americanos, e o general Pancho Villa...
��� Wallace Beery ��� exclama Lu��s.
��� Isso mesmo ��� confirmo eu, baixando a cabe��a
ante a autoridade de Hollywood, que amea��a suplan-
tar a da pr��pria Hist��ria. ��� Pois o caudilho Villa
invadiu o Novo M��xico e, segundo a vers��o norte-ame-
98
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
ricana do fato, atacou uma cidade e massacrou civis
e soldados. O governo dos Estados Unidos mandou
contra o M��xico uma miss��o punitiva comandada por
Pershing. E por muito tempo as rela����es entre os dois
pa��ses ficaram abaladas.
Clara torna a perguntar:
��� E agora?
Dou de ombros.
��� Agora o Novo M��xico �� isto... ��� Fa��o um sinal
na dire����o da janela.
E explico que o estado �� riqu��ssimo em minerais.
Que seu clima �� seco e quente, muito procurado pelos
tuberculosos. E que existem aqui v��rios monumentos
religiosos ��� igrejas e miss��es ��� erguidos por padres
espanh��is, alguns h�� mais de duzentos anos. Sim, e
ia j�� me esquecendo de mencionar as grutas de Carls-
bad...
Como Clara e Lu��s querem saber do que se trata,
tenho de contar que, h�� uns quarenta e poucos anos,
dois cow-boys certo dia viram enormes bando de mor-
cegos levantar-se da terra. Esporeados pela curiosi-
dade, caminharam at�� o ponto em que a negra nuvem
se havia erguido e encontraram a�� uma cavidade. De-
cidiram, ent��o ver "aonde ia terminar aquele buraco",
meteram-se terra a dentro e acabaram descobrindo uma
imensa caverna, a qual vinte anos depois foi "industria-
lizada" com o fim de atrair curiosos.
Como vejo interesse no audit��rio, prossigo.
��� Imaginem voc��s uma sala imensa e abobadada,
debaixo da terra, duma altura de quase cem metros
e com uma c��pula maior que a da catedral de S��o
Pedro em Roma... Mais que isso. H�� ainda galerias
e subgalerias. Enormes cachos de estalactites pendem
do teto da caverna, formando os desenhos mais com-
plicados, nas cores mais incr��veis. E se a gente bate
A VOLTA DO GATO PRETO
99
com um ferro nessas estalactites, um som musical de
sino enche a caverna, ecoa pelas galerias...
H�� um sil��ncio breve.
��� Quando foi que estiveste l��, pai?
��� Nunca. Mas podem acreditar no que estou
contando. N��o �� inven����o.
Neste momento penso uma vez mais na minha
quase indiferen��a diante da paisagem. At�� hoje n��o
me interessei por nenhuma das belezas naturais dos
Estados Unidos. Passei de largo pelo Yellowstone Park,
pelo Grand Canyon, pelos lagos Arrowhead e Tahoe,
pelas cataratas do Ni��gara... Ca��ador de almas, pre-
firo as cidades. Sinto um contentamento que n��o se
descreve quando caminho pelas ruas duma grande
metr��pole. O ru��do feito de vozes humanas e das
vozes de todos os ve��culos, de todas as m��quinas, ��
quase m��sica para meus ouvidos. Aspiro com del��cia
o cheiro de asfalto e gasolina queimada, como se
fosse um esquisito perfume. Sou capaz de ficar horas
e horas sentado �� mesa dum caf��, olhando as pessoas
que est��o a meu redor e as que entram ou saem. Ah!
Uma grande cidade ao anoitecer... Gente apressada,
��nibus e bondes apinhados, a massa do tr��fego a se
mover lenta, regulada pelas luzes vermelhas e verdes.. .
As cores do poente na boca ocidental das ruas... Os
grandes edif��cios a subir para um c��u que empalide-
ce. . . E as caras! As m��scaras humanas que vislumbra-
mos de repente �� janela dum bonde, na penumbra dum
t��xi, ou no v��o duma porta. .. O rosto que vemos
rapidamente no meio da multid��o e n��o esquecemos
mais... Os bra��os abertos dos policiais, os letreiros lu-
minosos, as vitrinas, os cheiros que se escapam de
dentro dos caf��s, o ru��do de passos, os farrapos de
m��sica que andam no ar, os nomes nas marquises dos
teatros, e, para al��m do pico dos arranha-c��us, as
estrelas t��midas e eternas...
100 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Quando caminho pelas ruas duma grande .cidade
todo o meu desejo �� deixar-me levar, sem plano nem
b��ssola, como que erguido na crista da onda humana
que coleia nas cal��adas. H�� momentos em que tenho
o desejo de multiplicar-me para poder estar no mes-
mo minuto em muitos lugares, vendo tudo, ouvindo
tudo, e tentanto sentir e compreender tudo, conver-
sando com os b��bedos e os vagabundos, com os var-
redores de ruas e os leiteiros, com os vendedores de
jornais e as mulheres perdidas...
Haver�� parque, lago, canyon ou caverna que en-
cerre tanta beleza viva como uma cidade ao anoitecer?
O SIL��NCIO
O entardecer deste dia me encontra ainda junto
da janela, mastigando melancolicamente um sandu��-
che e pensando em D. H. Lawrence que um dia veio
para Taos, no Novo M��xico, em busca dum clima fa-
vor��vel para seus pobres pulm��es doentes. Imagino-o
a caminhar por estes desertos, com um chap��u mexi-
cano na cabe��a. Vejo-o a pintar as dan��as rituais dos
��ndios, a discutir com Frieda, a criticar os absurdos da
civiliza����o moderna, com todos os seus preju��zos, ta-
bus e hipocrisias. Ou��o-o bradar no deserto todos os
nomes feios que seu povo recalcou durante tantos s��-
culos. Acompanho os passos desse profeta macilento
e barbudo, ��spero e esguio como um cacto. Chego a
ver-lhe a sombra no ch��o arenoso e ressequido...
Se em mim o adulto evoca Lawrence, o menino
recorda Tom Mix no seu cavalo branco, perseguindo
os peles-vermelhas pelas plan��cies do Novo M��xico
num filme silencioso, ao som duma valsa antiga bati-
da por um homem triste no piano desafinado dum ci-
nema provinciano. E as lembran��as do menino en-
A VOLTA DO GATO PRETO
101
tram em luta com as do homem; e chega o momento
em que ambas se misturam, se fundem. O resultado ��
monstruoso. Tom Mix escreve "O Amante de Lady
Chatterley" e D. H. Lawrence salva Ruth Roland das
garras dos ��ndios.
Mas o que h�� l�� fora mesmo �� o sil��ncio. O enor-
me sil��ncio do deserto. Um sil��ncio de eternidade. E
o nosso trem trespassa essa quietude com o seu apito
prolongado, que deve ecoar l�� do outro lado das mon-
tanhas, que bem pode ser tamb��m o outro lado do
mist��rio ��� o pa��s ignorado para onde foram os habi-
tantes dos penhascos, D. H. Lawrence, Tom Mix, seu
cavalo branco e minha inf��ncia...
MARATONA
Um novo dia ��� e Arizona! L�� fora sempre o de-
serto, as montanhas, a terra amarelada, os pueblos;
aqui dentro, sandu��ches de queijo e bolachas com
manteiga de amendoim... De quando em quando
arriscamos uma excurs��o ao carro-restaurante, e temos
de esperar durante dez, quinze ou vinte minutos na
bicha. Essas bichas s��o um exemplo vivo da demo-
cracia norte-americana. Se o soldado chega antes do
cabo, o cabo antes do sargento e o sargento antes do
capit��o, n��o h�� nenhuma lei capaz de alterar essa or-
dem. O oficial esperar�� a sua vez com a maior natu-
ralidade, pois sabe que todos os cidad��os t��m direitos
iguais perante a constitui����o dos Estados Unidos e n��o
ser�� pelo fato de serem soldados que eles deixar��o de
ser cidad��os...
Duma feita, olhando o rosto rubicundo mas se-
reno dum coronel que espera, lendo um jornal, en-
quanto o soldado que estava �� sua frente, na fila, se
aboleta, satisfeito, num lugar que acaba de ficar va-
go, digo a Mariana:
102
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Ah! Se pud��ssemos incutir no homem comum
brasileiro a consci��ncia de sua import��ncia como indi-
v��duo. .. Mas qual! �� preciso primeiro elevar-lhe o
n��vel de vida, melhorar-lhe a sa��de, a educa����o...
tudo! Mas quando? Quando?
As rodas do trem parecem repetir ritmadamente:
quando... quan-do. .. quan-do... quan-do...
De ordin��rio ficamos no camarote resignados ��
nossa condi����o de imigrantes. E quando os v��veres se
esgotam, trato de renov��-los nas esta����es onde acon-
tece o trem parar. Como essas paradas geralmente s��o
curtas, tenho de recorrer ��s vezes a desesperadas ma-
ratonas. Corro ao drugstore mais pr��ximo a comprar
sandu��ches, biscoitos e frutas.
Aqui vou agora em mangas de camisa, sem gra-
vata, escabelado, suarento, numa das minhas sensacio-
nais corridas. Atravesso a plataforma da esta����o sob
o sol esbranqui��ado de Arizona, e precipito-me na di-
re����o dum boteco. Ora, a pequena cidade americana
n��o difere muito em h��bitos da pequena cidade de
qualquer outro pa��s do mundo. Nela ningu��m tem
pressa, ningu��m se afoba. Onde est�� o dono desta jo-
��a? Bato no balc��o. Ningu��m responde. O tempo
urge.
Entram soldados num bando barulhento. S��o ra-
pag��es louros e espada��dos, de rostos rosados e lus-
trosos. Um deles encaminha-se para mim, bate-me
jovialmente no ombro e diz:
��� Depressa, amigo. Quatro cervejas!
Ofegante e humilhado, retruco:
��� Eu tamb��m estou no trem, mo��o!
��� Oh! oh!
Encaminha-se para o balc��o. O empregado do
boteco finalmente aparece com cara sonolenta. Aten-
de primeiro os soldados. E quando estes se retiram
A VOLTA DO GATO PRETO
103
com suas garrafas de cerveja, fico a escolher ataran-
tadamente as poucas coisas comest��veis que a loja
exibe.
Chego ao meu carro um segundo antes de o trem
partir. Depois de toda esta maratona aflitiva, que
trago eu? Um bife? Um prato raro? N��o. Apenas
uns magros pacotes de biscoitos. Espera-me a ingra-
tid��o da tribo. Quando chego, meus filhos me olham,
s��fregos. N��o v��em que estou cansado, pingando
de suor e infeliz. Olham para as minhas m��os, fazem
uma careta, e exclamam ao mesmo tempo:
��� Outra vez manteiga de amendoim?
Atira-me sobre o banco; lan��o-me de ponta ca-
be��a num lago de sil��ncio. N��o vejo nada do que se
passa a meu redor. Olho para fora e desejo ser por
um instante aquele ��ndio que fuma pl��cidamente seu
cachimbo de barro �� sombra duma casa de adobe.
��� Queres um biscoito, papai?
��� N��o. Quero uma dose de ars��nico.
OS ARGONAUTAS
O deserto de Arizona nos parece intermin��vel
Passamos ��s vezes por cidades modernas como Tucson
e Phoenix. Vemos, num relance, perspectivas de ruas
limpas, com grandes edif��cios, letreiros luminosos,
tr��fego animado e muita gente nas cal��adas. Depois
v��m os sub��rbios, com suas casinhas claras e verdes
jardins, mantidos �� custa de irriga����o artificial. Den-
tro em pouco entramos de novo no deserto.
E quando chegamos �� fronteira da Calif��rnia,
penso nos milhares de homens que para c�� vieram em
1849, tomados da febre do ouro. Com sua inclina����o
para o eufemismo, os americanos deram a esses aven-
tureiros o pomposo nome de "Argonautas".
Sim, n��s tamb��m somos argonautas. Mas em bus-
104
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
ca de que vimos? De ouro n��o ��. De aventuras, en-
t��o? Duma mudan��a de vida? De novos horizontes?
Creio que a gente viaja muitas vezes por culpa
duma gravura que viu na inf��ncia, num velho livro.
A ilha de Bali... Cena de rua em Hanoi... Cere-
jeiras floridas em Washington... Voltamos a p��gina,
devaneamos um pouco, depois aparentemente esquece-
mos a figura. Mas acontece que a lembran��a do cli-
ch�� se transforma num desejo, e esse desejo fica co-
mo que adormecido durante anos e um dia, em a sor-
te ajudando, ele nos leva a viajar. Vamos ver a ilha
m��gica, as cerejeiras �� beira do Potomac, a capital da
Indochina ��� para chegar �� conclus��o de que todos
esses lugares e coisas n��o possuem na realidade me-
tade da gra��a e da sugestiva poesia j�� n��o digo da ve-
lha gravura, mas do mundo que elas criaram em nos-
so esp��rito. Verificamos tamb��m, quando em viagem
pelo estrangeiro, que nossa casa, nossa quer��ncia ���
que nos pareciam antes foscos, prosaicos e repetitivos
��� ganham com a dist��ncia um lustro, um encanto t��o
grande como o da gravura da inf��ncia. Voltamos li-
ricamente para a casa, julgando saciada nossa fome
de horizontes. Mas um dia o velho livro nos cai de
novo sob os olhos. L�� est�� a rua de Hanoi, a ilha ver-
de, e as cerejeiras em flor. Ficamos outra vez a de-
vanear, nost��lgicos, e nosso desejo de viajar �� t��o
grande que acaba nos jogando dentro dum trem ou
dum avi��o, nem que seja para uma viagem intermu-
nicipal.
Besta, n��o �� mesmo?
UMA NOITE EM HOLLYWOOD
Pernoitamos em Los Angeles, onde s�� por mila-
gre conseguimos acomoda����es num hotel de Holly-
A VOLTA DO GATO PRETO
105
wood. O gerente nos destina ao quarto n.�� 650, e um
be��-boy nos acompanha at�� o sexto andar. Mete a
chave na porta, abre-a e eu vejo l�� dentro do quarto
um soldado seminu dar um pulo da cama, gritando:
��� Quem �� l��?
A fam��lia recua. O boy desculpa-se:
��� N��mero errado. "Sorry, bud".
Torna a fechar a porta, e, sacudindo a cabe��a
lentamente, explica que um engano nestes tempos de
guerra e amontoamento �� uma coisa muito natural.
Ficamos finalmente instalados no 610, onde h��
quatro engra��adas camas com rodas. Custa-nos con-
ciliar o sono, pois toda a vida noturna de Hollywood
como que nos entra pelas janelas escancaradas. As
conversas l�� de fora, na Vine Street, sobem no ar cla-
ro e fresco com tal nitidez, que ��s vezes tenho a im-
press��o de que h�� estranhos dentro do quarto, falan-
do alto. O vento nos traz os ru��dos do bulevar. Pre-
g��es de vendedores de jornais, sons agudos de buzi-
nas, e principalmente vozes humanas ��� vozes alegres,
com pouco ou muito u��sque, vozes de pares que en-
chem as cal��adas em suas andan��as de bar para bar,
de cabar�� para cabar��.
A fam��lia n��o se resigna a passar assim t��o ra-
pidamente por Hollywood, da qual vimos apenas as
ruas centrais num r��pido passeio noturno. Prometo-
lhes que voltaremos para ficar aqui por muitos meses,
depois de terminado meu curso em Berkeley.
Na manh�� seguinte entramos num trem colorido
e confort��vel, de marcha veloz mas doce. Os cheiros
de flit, estofo, couro e lin��leo d��o ao carro em que
nos instalamos uma atmosfera de casa nova e limpa.
Em Los Angeles o c��nsul do Brasil me entregou
um cheque de meus editores de Nova York, de sorte
que com esse papelucho verde na carteira sinto-me
106
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
encorajado a gastar os ��ltimos d��lares num grande al-
mo��o. As toalhas do carro-restaurante t��m uma bran-
cura imaculada. Os gar��ons s��o atenciosos mulatos de
ar patriarcal.
Estamos atravessando o Vale de San Joaquim. Co-
linas com veludosos tons de mate, manchadas de bos-
quetes dum verde escuro, quase negro, desdobram-se
maciamente sob um sol de ouro temperado por uma
n��voa leitosa, transparente como um v��u. O vale es-
t�� tapetado de flores cujos nomes, como bom brasi-
leiro, ignoro. Aos poucos v��o aparecendo laranjais,
limoeiros, bosques de eucaliptos, vinhas imensas; e
avenidas de palmeiras reais que se espicham em pers-
pectivas longu��ssimas contra a encosta azulada das
montanhas; e pastagens dum verde novo e lustroso,
granjas brancas em estilo de miss��o espanhola, mon-
tes de feno, moinhos de vento, pomares...
Mariana declara que esta �� exatamente a Calif��r-
nia com que ela sonhava. E eu, com um tolo orgu-
lho, verifico que esta �� precisamente a Calif��rnia que
eu lhe prometia.
O FIM DA LINHA
Quando chegamos a Berkeley �� noite fechada.
Creio que somos os primeiros e os ��ltimos a descer do
trem. A plataforma, mergulhada na sombra, parece
deserta. C�� estamos n��s cercados de nossas malas e
de nossas d��vidas, enquanto o trem come��a a se mo-
vimentar outra vez, rumo de Oakland. O ar est�� frio,
com um leve toque de umidade.
Sombras movem-se na sombra. Dois vultos avan-
��am na nossa dire����o. Um homem retaco, de ��culos,
aproxima-se de mim, sorridente, e arrisca:
��� O senhor �� o doutor, professor. ..?
A VOLTA DO GATO PRETO 107
Diz o meu nome. Est�� claro que n��o sou doutor
nem professor, mas o nome que ele acaba de pronun-
ciar �� sem a menor d��vida o meu.
��� Sim, e o senhor?
��� Sou Yacob Malkiel, do Departamento de Es-
panhol e Portugu��s da Universidade. O Dr. Morley,
diretor do Departamento, manda-lhe as boas-vindas.
Tudo isto �� dito num tom portugu��s de Portugal,
muito claro e muito cantado. Outro vulto se aproxi-
ma.
��� Este �� Don Madrid ��� apresenta Malkiel ��� aluno
da Universidade.
Don Madrid ��� cujas fei����es tamb��m n��o posso
discernir com clareza ��� fala um portugu��s sofr��vel.
Um terceiro vulto avan��a. Reconhe��o com alegria o
meu amigo Sab��ia Lima, c��nsul do Brasil em San
Francisco. No seu tranc��o calmo, ele se aproxima de
n��s, e com sua inalter��vel fleuma, me aperta a m��o e
depois cumprimenta os outros membros da fam��lia.
Surge ent��o um desses probleminhas tolos mas
inevit��veis. Ir no carro de Mr. Madrid ou no do c��n-
sul? Para o hotel onde a Universidade nos reservou
c��modos ou para o hotel que Sab��ia Lima nos reco-
menda?
O c��nsul me chama �� parte:
��� O Departamento de Espanhol reservou c��mo-
dos para voc��s no Chattanooga. �� um hotel triste de
gente velha.
Fico indeciso.
��� Mas voc�� compreende, ��� digo ��� n��o quero
criar um caso assim de chegada. Com voc�� tenho in-
timidade, ao passo que com o Departamento...
E o Departamento passa por ser uma entidade res-
peit��vel, uma pessoa de cerim��nia, importante e grave:
108
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Sab��ia Lima encolhe os ombros.
��� Bom, filho, quem vai morar no hotel s��o vo-
c��s, portanto...
Enquanto minha fam��lia entra no Packard do c��n-
sul, eu me meto no Ford de bigode de meus novos
amigos. Madrid explica:
��� Esta lata velha estava fora de combate, mas
com a guerra e a falta de autom��veis ela voltou ao
servi��o.
��� Mas est�� magn��fica! ��� asseguro-lhe.
Estamos os tr��s no banco da frente. Vou ensan-
duichado entre o Prof. Malkiel e Don. O primeiro me
pergunta:
��� Vossa Excel��ncia fez boa viagem ?
Vossa Excel��ncia! �� indescrit��vel o que sinto ao
ouvir essa express��o formalista. �� como se eu esti-
vesse no palco do S��o Caetano tomando parte numa
pe��a representada por atores portugueses.
��� O h . . . ��tima, muito obrigado.
Depois duma pausa, o Prof. Malkiel diz:
��� H�� v��rios alunos muito interessados no seu
curso...
��� Palavra que n��o entendo! ��� exclamo, num s��-
bito acesso de franqueza.
��� Que �� que o ilustre colega n��o entende?
Fa��o um sinal na dire����o da rua sombria.
��� Este pa��s est�� em guerra. H�� din-out nestas
cidades, pois uma esquadrilha japonesa pode duma
hora para outra soltar bombas em cima dos estaleiros
e dos navios que est��o na ba��a. Milh��es de soldados
acham-se lutando, em v��rias frentes, na mais cruenta
das guerras. . . Os civis trabalham nas ind��strias de
guerra. Velhos aposentados v��m ocupar na vida civil
o lugar dos mo��os que o ex��rcito chamou. O calham-
beque de nosso amigo Don foi tamb��m chamado ao
A VOLTA DO GATO PRETO
109
servi��o ativo. O mundo est�� convulsionado. E ainda
h�� gente que pensa em assistir a um curso de litera-
tura brasileira.
Don solta uma risada. Mas Malkiel limita-se a
sorrir.
��� Vossa Excel��ncia �� muito modesto ��� murmura
ele.
O auto desliza ao longo de ruas sombrias. H��
em tudo aqui um ar de coisa antiga. Este Ford, esta
cidade acad��mica e morta, a pros��dia portuguesa do
Prof. Malkiel ��� tudo isto me d�� uma sensa����o esqui-
sita que n��o consigo definir. Em todo o caso posso
desde j�� afirmar que n��o era esta a Berkeley que eu
esperava.
Poucos minutos depois estamos todos no sagu��o
do Chattanooga Hotel, vagamente viol��ceos sob uma
luz fluorescente.
Neste "lobby" superaquecido vejo uma cole����o de
velhos e velhas que conversam em voz baixa, l��em
jornais ou ent��o se movimentam dum lado para outro.
(Esta �� a terra dos velhos inquietos.)
Despedimo-nos de nossos amigos e, depois de
passar pela gerencia, subimos ao nosso apartamento ���
duas pe��as razoavelmente amplas, com um quarto de
banho. A mob��lia �� antiga. Os tapetes que cobrem o
ch��o, escuros. O aspecto geral �� de discreta tristeza:
o tipo de quarto para um professor aposentado, vi��vo
ou solteir��o, passar nele os ��ltimos anos de sua vida.
Aqui estamos a nos entreolhar em sil��ncio. Mais
um dia e mais um hotel em nossas vidasl Abrimos ma-
las, examinamos gavetas, guarda-roupas, c��modas; ex-
perimentamos torneiras; olhamos de perto os qua-
dros. ..
Dentro de vinte e quatro horas estaremos habi-
tuados a este ambiente como se tiv��ssemos passado
aqui toda a nossa vida.
110
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Abro a janela que d�� para os fundos do hotel.
Esfumadas pela n��voa, brilham indecisas as luzes de
San Francisco, l�� do outro lado da ba��a. Os telhados
de Berkeley est��o ��midos de sombra. Fico por um
instante a escutar os ru��dos da noite que o nevoeiro
parece amortecer.
Depois sento numa poltrona e procuro descrever
para mim mesmo o que sinto. Que ser��? Fecho os
olhos, penso, recordo, indago. Aspiro o cheiro deste
quarto por onde passaram tantas vidas, tantas hist��-
rias. Concluo finalmente que isto tudo j�� aconteceu
h�� muitos anos. N��o estamos em 1943, n��o. Viajamos
para diante no espa��o mas recuamos no tempo e vie-
mos parar nesta cidade, neste hotel, neste ponto do
passado. Murmuro nomes de pessoas e coisas de ho-
je. Franklin Delano Roosevelt... bazooka Hitler...
ciclotr��nio. . . penicilina. In��til. S��o palavras que n��o
significam nada, pois designam pessoas que ainda n��o
nasceram, coisas que ainda n��o se inventaram ou des-
cobriram.
Levanto-me e pergunto:
��� Voc��s querem descer e caminhar um pouco
pela cidade?
A resposta �� negativa. Est��o todos cansados e
pretendem ir para a cama cedo. Des��o e saio. Estou
na Shattuck Avenue, a via comercial de Berkeley. Pe-
lo centro dela passa iluminado o trem el��trico que vai
para San Francisco, atrav��s da grande ponte. Das
"food-shops" sai o cheiro de picles e frituras ��� o mesmo cheiro que havia em Miami, o mesmo cheiro que
me perseguiu h�� mais de dois anos atrav��s de Was-
hington, Nova York, Saint Louis, Baltimore, Den-
ver. . .
Um nevoeiro baixo encobre o topo dos morros.
Que luzes estranhas ser��o aquelas? S��o os feixes dos
holofotes que fiscalizam as estradas do c��u. Num
A VOLTA DO GATO PRETO
111
drugstore a voz de Frank Sinatra, escorrendo de den-
tro dum juke-box pede �� sua bem-amada que n��o lhe
atire buqu��s, pois os outros v��o pensar que eles es-
t��o apaixonados. Mais adiante Bing Crosby e as An-
drew Sisters cantam em coro que vai haver o diabo
quando os ianques entrarem em Berlim. Dois homens
saem do caf�� e eu ou��o a voz de um deles: It's a long
way to Berlin, brother. Sim, irm��o, Berlim est�� longe.
Quando sair�� a invas��o? Essa �� a pergunta que leio
no cabe��alho dum jornal, a uma esquina, sob um com-
bustor de luz amortecida. Berlim est�� muito longe. E
a paz, mais longe ainda. Neste mesmo jornal, nesta
mesma primeira p��gina, algu��m j�� fala na terceira
guerra. �� uma id��ia horr��vel. Chega a dar calafrios.
Deve ser por isso que sinto um arrepio nesta noite de
Berkeley.
Lembro-me de que a Universidade fica para a
banda das colinas. Encaminho-me para l��. Depois
duns tr��s minutos de marcha, avisto o pared��o do
est��dio e o maci��o das ��rvores do campus. O ar chei-
ra a eucalipto molhado. H�� um mist��rio nessas som-
bras do parque adormecido, atrav��s do qual dentro
de um m��s andarei caminhando na minha rotina se-
manal de aulas.
Fico olhando as ��rvores em sil��ncio. Ou��o ru��-
dos de ramos que se quebram, de folhas secas pisa-
das. �� singular esta sensa����o de solid��o e quase de
medo que sinto agora como se eu estivesse perdido
numa floresta. Perdido na floresta... Lembro-me da
hist��ria de Jo��ozinho e Ritinha perdidos na mata, por
culpa dos pais. Penso nos jovens americanos que nes-
te mesmo instante est��o morrendo e matando nas v��-
rias frentes de batalha. S��o tamb��m crian��as perdi-
das na floresta, por culpa das gera����es que as prece-
deram. Os mais velhos n��o souberam preservar a paz.
Embora afirmassem que detestavam a guerra, fizeram
112
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
e disseram coisas que acabaram conduzindo-os �� guer-
ra. De nada serviu o sacrif��cio dos outros soldados
americanos que em 1917 foram "regar com o seu san-
gue as papoulas de Flandres". O sacrif��cio se repete.
Haver�� salva����o para Jo��ozinho e Ritinha?
Vejo sombras min��sculas. S��o coelhos ou esqui-
los ��� vultos ariscos que se silhuetam de repente na
penumbra e num segundo se dissolvem nas sombras
mais fundas.
Fa��o meia-volta e me encaminho para o hotel.
POEMA PARA O CHATTANOOGA HOTEL
Se eu fosse poeta, escreveria um poema para o
Chattanooga Hotel. Vou enumerar, sem metro nem
rima, os elementos desse poema.
As velhinhas verdes que passam encurvadas, en-
feitadinhas e risonhas, pelos corredores superaquecidos
que t��m um cheiro quente e limpo de roupa rec��m-
passada a ferro...
Os velhinhos empertigados, os professores de ca-
vanhaque e pincenez, que l��em livros incr��veis senta-
dos nas poltronas do bobby. Uma certa velha, vestida de
acordo com a moda de 1912, e que sempre est�� es-
crevendo cartas ��quela escrivaninha ali perto do ele-
vador. ..
A nossa vizinha, dama inglesa idosa e vi��va, que
j�� nos levou ao seu quarto, e nos mostrou o retrato do
falecido ��� um juiz togado de vastos bigodes ��� e que
tem o di��rio de sua vida e suas viagens em doze vo-
lumes encadernadinhos, enfileirados na prateleira...
(Oh! se eu pudesse ler esse di��rio!)
O perfume daquela senhora triste, de cabelos
completamente brancos ��� um perfume seco, remoto,
A VOLTA DO GATO PRETO
113
morto, que evoca bailes com valsas, quadrilhas, oficiais
com dragonas, leques, mantilhas, e essa mesma lua
que ainda hoje ilumina as colinas de Berkeley...
E o homem triste do elevador, que caminha
apoiado em muletas. E o velho magro, calvo, sarden-
to e de olhos compridos, que fica de plant��o �� noite.
Os ru��dos do drugstore, no andar t��rreo ��� suco
de laranja! dois milk-shakes! roscas a dois! bolo de
baunilha! ice-cream! ��� batidas de pratos, tinir de co-
lheres, e as vozes musicais das gar��onetes que so-
nham com a hora da sa��da, pois os boy friends estar��o
esperando ali na esquina, para irem com elas ao cine-
ma, ao rinque de patina����o, aos dancings...
E o bett-boy filipino de cabelos besuntados de
brilhantina... E uma cole����o de cachorrinhos de es-
tima����o ��� uns melanc��licos, de orelhas ca��das; outros
antip��ticos e agressivos; outros apenas aborrecidos...
E os casais de velhinhos que de bra��os dados saem
para o cinema...
Ah! E principalmente esses septuagen��rios e octo-
gen��rios que �� hora das refei����es me causam inveja,
porque comem com gula, sem a menor reserva, pepi-
nos, salsichas, chucrute, presunto com ovos e toucinho
frito...
Nesse poema naturalmente entrariam tamb��m qua-
tro brasileiros que andam dum lado para outro como
pe��as soltas numa velha m��quina ��� ��s vezes depri-
midos, outras vezes exaltados... Quatro brasileiros
para os quais o simples ato de escolher um almo��o ��
uma aventura.
E BOM ESTAR A Q U �� . . .
Teria valido a pena deixar o Brasil para vir mo-
rar nesta pacata cidadezinha universit��ria, sem encan-
to nem imprevistos?
114
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��s vezes chegamos a detestar o hotel, os seus
cheiros, os seus sonidos, as suas gentes... Procuramos
em v��o uma casa para alugar. Berkeley tinha pouco
mais de 80 000 habitantes antes da guerra. Agora tem
cerca de 120 000, pois milhares de pessoas que vie-
ram trabalhar nos estaleiros de Oakland, Richmond,
Alameda e San Francisco instalaram-se aqui. Os ho-
t��is est��o superlotados e todas as casas alugadas. Vi-
vemos lendo os "Aluga-se" de todos os jornais. De vez
em quando temos uma esperan��a. Um dia escalamos
uma colina, por uma estrada ��ngreme, porque o jor-
nal anunciou que a casa moderna l�� no alto daquele
morro verde est�� para alugar. Ofegantes, ansiosos,
cansados, chegamos finalmente �� vivenda encantada,
para descobrir que ela foi alugada apenas h�� duas
horas!
Descemos para o vale num sil��ncio de derrota.
Temos ainda outros problemas. As crian��as ema-
grecem. Est��o p��lidas, e sua magreza faz que seus
olhos escuros ainda pare��am maiores. N��o gostam das
comidas dos restaurantes e acham que podem viver
de sorvetes e "milk-shakes". Apavorados �� id��ia de
que algu��m lhes possa dirigir a palavra em ingl��s,
andam sempre agarrados a n��s, de sorte que quando
caminhamos pelas ruas somos como esses peixes gran-
des que carregam colados ao ventre peixinhos para-
sitas.
Como o ano letivo ainda n��o come��ou, as ruas
est��o agora um pouco despovoadas de estudantes. O
que vejo s��o marinheiros e soldados ��� jovens entre
dezessete e vinte anos ��� que fazem cursos militares
especiais na universidade.
Saio �� frente em passeios solit��rios pelas ruas de
Berkeley. �� interessante andar por um mundo de des-
conhecidos. �� quase o mesmo que n��o existir. Agora
eu sei como deve sentir-se um fantasma. Mas esse pa-
A VOLTA DO GATO PRETO
115
pel de espectro me agrada pelo que tem de novo e re-
pousante. Diverte-me, dando-me al��m de tudo uma
sensa����o de humildade e ao mesmo tempo de segu-
ran��a.
Nos dias em que a n��voa que vem do Pac��fico,
desce sobre a cidade, entrando-me tamb��m no c��re-
bro, tenho de recorrer a um rem��dio que descobri h��
pouco, e que tem a virtude de me reanimar. Entre
na campus da Universidade e vou deitar-me num de
seus tabuleiros de relva e fico a contemplar a esguia
torre que se ergue no centro do parque, e cujo carri-
lh��o de hora em hora toca melodias folcl��ricas, reli-
giosas ou c��vicas. Olho as ��rvores tranq��ilas, as nu-
vens e os esquilos; as cores amareladas que o outono
come��a a pintar nas folhas; os grandes edif��cios que
dentro de uma semana estar��o vibrando ao som das
vozes e dos passos de milhares de estudantes. .. Pen-
so nas gentes que vou conhecer, nas coisas que vou
fazer e concluo que no fim de contas �� bom estar
aqui, neste lugar e nesta hora.
Volto para o hotel, de m��os nos bolsos, assobi-
ando furiosamente.
O C��NSUL ILUMINADO
Sab��ia Lima me comunica que "el muy distingui-
do se��or don Roberto de Bermejo y Bermejo, c��nsul
de la Republica de Metagalpa" (vamos fazer de con-
ta que existe na Am��rica Central um pa��s com este
nome) vai deixar sua casa de Fulton Street, n.�� 3650,
pois acaba de ser transferido para Nova York. Se
nos apressarmos talvez consigamos que ele me tres-
passe seu contrato de aluguel. Atravessamos a ponte
no Packard do excelente Sab��ia Lima, e quarenta mi-
nutos depois paramos em San Francisco, diante duma
116
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
casa quadrada, de tijolos nus, com um ar pesado e
maci��o de fortaleza.
Apertamos o bot��o da campainha da porta e S.
Ex��. o c��nsul de Metagalpa vem pessoalmente nos re-
ceber.
��� Mi querido amigo ��� exclama ele, abra��ando o
c��nsul do Brasil. ��� Pero que agradable sorpresa...
Apresenta����es, apertos de m��o, curvaturas, ama-
bilidades. Vejo uma escadaria s��lida, de madeira la-
vrada, que leva ao andar superior. Meus p��s afundam
num tapete azul e fofo. Avisto num relance minha ca-
ra no fundo dum espelho de moldura dourada. Pas-
samos para o vasto living-room, onde h�� uma lareira
acesa, poltronas orelhudas estofadas de veludo cor
de vinho, um pesado sof��, um piano de cauda e mui-
tos candelabros e lustres dourados. As paredes est��o
forradas de damasco cor de ouro velho. Os rodap��s
de madeira t��m quase um metro de altura. Esta n��o
�� positivamente a casa que eu escolheria de livre von-
tade para morar. Mas acho-a confort��vel, s��lida, e
quase acolhedora. Depois ��� concluo ��� ela �� diferen-
te. Tem aquele jeito, aquela atmosfera que a gente
espera encontrar em terras estrangeiras.
Mas por que estou a perder tempo com descri-
����es dum interior inanimado quando tenho diante de
mim um t��o espl��ndido exemplar humano?
Don Roberto �� um homem alto e corpulento,
cujo rosto ostenta as cores da sa��de e da prosperida-
de. Respira e transpira otimismo. Tem um princ��pio
de obesidade, uma voz retumbante e musical e, se-
gundo me informaram, antes de Ser c��nsul de seu pa��s
era vendedor de r��dios em San Francisco.
��� Que bebem? ��� pergunta ele. ��� Whiskey and
soda, gim... um Porto?
Aceitamos um high-ball e quando poucos minutos
mais tarde estamos todos empunhando nossos copos,
A VOLTA DO GATO PRETO
117
Sab��ia Lima conta a don Roberto de minhas preten-
s��es.
��� Deixarei esta casa dentro duma semana. Tudo
depender�� dum entendimento com Mrs. Burke. ��� E
num cochicho teatral, explica: ��� �� a "viejecita" dona
da casa. T��o gentil, t��o querida, "tan distinguida".
Digo-lhe sempre que sou seu papacito, ela me traz
flores, e minha senhora a adora. Mrs. Burke mora num
pequeno apartamento no subsolo desta casa. T��o so-
lit��ria, pobrecita!
Don Roberto passa a falar na sua carreira. Ago-
ra, sim, vai ter uma grande vida. Nova York �� um
consulado muito movimentado, e sua transfer��ncia
equivale a uma promo����o. Num assomo de entusias-
mo, faz confid��ncias:
��� Mirem, vou contar a voc��s um segredo. Mi
mam�� e mi madrina est��o trabalhando para conse-
guir que me nomeiem embaixador de Metagalpa em
Washington...
Tenho uma vis��o dessa mir��fica rep��blica em que
gordas mam��s e titias influem na pol��tica.
Don Roberto sorri, feliz, com os olhos muito bri-
lhantes. Compreendo que est�� vivendo um grande
momento de sua vida.
Espero que se fa��a a pausa respeitosa que deve
separar dois assuntos de natureza t��o diversa ��� os
neg��cios estrangeiros da rep��blica de Metagalpa e
meus miser��veis interesses particulares ��� e come��o
a fazer perguntas sobre o pre��o do aluguel, o n��mero
de pe��as que tem a casa... Olho as estufas el��tri-
cas e indago:
��� Perdoe a indiscri����o... mas quanto gasta de
luz por m��s?
Don Roberto fica pensativo por um instante, es-
tica o l��bio inferior, entorta a cabe��a e finalmente
diz:
118
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Doze d��lares...
Anima-se de s��bito, ergue o bra��o num gesto
que lembra um floreio de espadachim e explica, glo-
rioso:
��� Si, pero yo me ilumino mucho!
Ergue-se e sai a apertar em comutadores, a acen-
der l��mpadas cuja presen��a eu n��o havia notado ���
vermelhas, verdes, brancas ��� e em breve, ante o meu
silencioso horror, a sala est�� toda acesa, como uma
��rvore de natal.
��� Y que tal? ��� pergunta Don Roberto de Ber-
mejo y Bermejo, sorrindo no meio do living-room.
Refletidas no seu copo de u��sque, as l��mpadas
coloridas parecem pequenas estrelas naufragadas
num lago de ��mbar.
GOOD NEWS!
O dim-out foi hoje levantado em toda a costa
norte-americana do Pac��fico. Os capuzes opacos foram
retirados dos combustores das ruas. Tornam a brilhar
os letreiros ne��nios.
�� noite, de nossa janela, avistamos San Francisco,
l�� do outro lado da ba��a como um enorme presepe,
todo enfeitado de luzes coloridas, pisca-piscando atra-
v��s da bruma noturna.
ESPET��CULO
Hoje �� o Commencement Day, isto ��, o dia em
que a Universidade faz a entrega solene de diplomas.
A cerim��nia vai realizar-se ao ar livre no teatro gre-
go. Recebo uma entrada e instru����es. Devo estar ��s
dez menos quinze junto ao Campanile, onde haver��
A VOLTA DO GATO PRETO
119
uma concentra����o de professores, os quais seguir��o
depois em prociss��o, rumo do anfiteatro. Miro o bi-
lhete, pensativo, e decido que ser�� muito mais diver-
tido assistir ao show como espectador e se poss��vel
sem casaco.
Perto das dez encaminho-me para o Greek Thea-
ter. A manh�� veste as cores da Universidade da Ca-
lif��rnia: ouro e azul. O ar, fresco e doce, cheira a n��-
voa. Avi��es sobrevoam Berkeley. De todos os pon-
tos do campus e das colinas vizinhas, das ruas e ca-
sas pr��ximas, rapazes e raparigas caminham para o
teatro grego como formigas disciplinadas rumo do for-
migueiro. Ver essas caras jovens iluminadas por um
sol tamb��m jovem (��! astr��nomos, perdoai os pobres
poetas, que n��o sabem matem��tica!) ver esses corpos
esbeltos e el��sticos que caminham num ritmo ao mes-
mo tempo rijo e gracioso ��� equivale para mim a um
t��nico, a uma inje����o de otimismo. Absorvido pelos
meus pr��prios pensamentos, esque��o por um instante o
espet��culo a meu redor. Os latinos acusam os ameri-
canos de n��o terem alma po��tica. Uns chegam ao exa-
gero de afirmar que os Estados Unidos s��o um pa��s
sem poesia. Mas por acaso esta Universidade com
estes rapazes e raparigas em flor n��o ser�� um grande
poema vivo? E esses parques p��blicos? Esses jardins?
Essa alegria diante da vida? Esse amor ��s cores e ��
forma, ao ritmo e �� m��sica? Tudo isso n��o ser��, por
ventura, poesia aplicada?
O teatro grego fica dentro dum bosque de euca-
liptos e, segundo me informa o estudante de ��culos
com o qual acabo de fazer camaradagem, foi constru��-
do de acordo com o plano do teatro de Epidaurus da
Gr��cia, e pode acomodar 8 500 pessoas sentadas.
Descubro um lugar ideal �� sombra de ��rvores,
num declive coberto de relva que se ergue depois dos
��ltimos degraus da arquibancada, bem no alto do an-
120
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
fiteatro. Os estudantes come��am a encher os degraus
de pedra cinzenta. Por tr��s do palco ergue-se uma
muralha, ao longo da qual cai enorme bandeira dos
Estados Unidos. Na frente desse pared��o estende-se
uma fileira de colunas d��ricas. Ao longo do semic��r-
culo do est��dio, ao alto, bandeiras coloridas tremulam
ao vento. Os carrilh��es do Campanile batem as dez
horas e depois come��am a tocar um hino religioso. De
t��o vibrante e clara, a m��sica dos sinos parece au-
mentar a luminosidade do ar. Numa sensa����o de bem-
estar que promete transformar-se em exalta����o, tiro o
casaco e sento-me na relva. O meu novo amigo apre-
senta-me uma colega que acaba de chegar. Helio!
��� diz ela, como se fosse uma velha conhecida. Sem-
ta-se tamb��m junto de n��s, abre a bolsa, tira dela
um par de agulhas de galalite e um novelo de l��
amarela, e come��a a tricotar.
Estudantes em uniforme da marinha entram por
um lado do teatro, ao mesmo tempo que outros cole-
gas metidos no fardamento do ex��rcito entram pelo
lado oposto. Dentro de alguns minutos acham-se to-
dos acomodados l�� em baixo: uma mancha azul-ma-
rinho e uma mancha caqui.
As arquibancadas est��o repletas de estudantes em
trajos civis. A banda da universidade come��a a tocar
uma marcha processional. O som de seus instrumen-
tos met��licos como que se esfarelam no ar em part��-
culas faiscantes.
��� A prociss��o! ��� grita algu��m perto de n��s.
Olhamos. Assoma ao port��o, do lado esquerdo do
palco, a bandeira norte-americana, conduzida por um
cadete ladeado por dois soldados. Seguem-se outras
bandeiras e estandartes. Vem depois o Presidente da
Universidade, seguido de centenas de professores, em
fila dupla. Est��o todos de borla e capelo. �� um cor-
tejo negro e grave, em contraste com o azul do c��u,
A VOLTA DO GATO PRETO
121
o ouro do sol e a popula����o inquieta e jovem das
arquibancadas.
Em passo lento e ritmado a prociss��o desfila pela
frente do palco, e em breve todos os professores se
instalam nas cadeiras, na frente das imponentes colunas.
A banda toca o hino nacional norte-americano, que a
multid��o canta, de p��. A seguir um capel��o da ma-
rinha pede a b��n����o divina para esta cerim��nia.
N��o me interessa contar o que disseram os ora-
dores; nem descrever o ato da entrega dos diplomas
e dos t��tulos honor��ficos. Minha aten����o fica todo o
tempo voltada para este maravilhoso quadro.
Olhado aqui do alto, o grupo de marinheiros l��
em baixo semelha uma lagoa dum azul profundo, e
seus gorros brancos parecem marrecos boiando �� tona
d��gua, em forma����o militar.
Passeio o olhar pelas arquibancadas onde os
su��teres coloridos das alunas inquietas lembram um ca-
bdosc��pio em cont��nua muta����o de desenhos. E as
caras! Vejo criaturas entre dezesseis e vinte e tr��s
anos, com as fisionomias mais variadas. H�� aqui des-
cendentes de ingleses, escandinavos, alem��es, espa-
nh��is, judeus, mexicanos, filipinos, chineses... Os
cabelos t��m todos os tons imagin��veis ��� louros, ruivos,
castanhos, pretos, cor de palha. Quanto rosto sarden-
to! Que belas dentaduras! E como esses jovens fazem
barulho, como gritam e cantam e se agitam!
O vento nos traz o perfume dos eucaliptos. Ago-
ra uma borboleta amarela deixou o bosque em torno,
e voa sobre o anfiteatro. Muito mais alto, num v��o
ruidoso, passam avi��es de guerra. A banda do col��-
gio come��a a tocar uma polca do Shostakovisch. ��
uma pe��a cheia de disson��ncias. Alguns estudantes
riem, pois n��o podem seguir a melodia. Num dado
momento a turba entra num solo caricatural. As risa-
das aumentam e de repente, ante um floreio do grave
122
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
instrumento, rompe uma gargalhada geral, que agita
as arquibancadas, que sobe no ar, dominando o ronco
dos avi��es, a m��sica, tudo...
Ocorre-me ent��o que este espet��culo �� bem sim-
b��lico desta na����o. Esta mistura de Shostakovisch e
Gr��cia antiga, de filhos de imigrantes e de togas aca-
d��micas; de avi��es de guerra e borboletas; de colunas
d��ricas e goma de mascar ��� todas essas coisas s��o os
Estados Unidos, "na����o de na����es", express��o de aven-
tura, mocidade e for��a construtora.
Acho que estou vivendo um grande momento.
Sinto-me enriquecido e feliz por ter vindo.
2 - D I �� R I O D E S A N F R A N C I S C O
(De 24 de outubro de 1943 a 28 de junho de 1944)
O SOLAR DE METAGALPA
de outubro. Grande dia! Vamos nos libertar
das velhas esverdinhadas e dos cheiros do Chatta-
nooga Hotel. Vamos abandonar a peregrina����o atrav��s
dos caf��s e restaurantes, e a nossa dieta de peixe e legu-
mes. Depois de longas negocia����es com o agente de
Mrs. Burke, consigo convenc��-lo de que meus filhos
s��o verdadeiros anjos, e que saber��o respeitar as pol-
tronas de veludo, os espelhos, os tapetes e os m��veis
da casa de Fulton Street. Mr. Costelo, um homem cin-
q��ent��o e calmo, me informa em tom confidencial:
"Mrs. Burke �� um odd character. Com isto quer dizer
que. nossa senhoria �� uma pessoa esquisita, estranha,
exc��ntrica. "Vive sozinha ��� acrescenta ��� e a solid��o
lhe ataca os nervos. S�� desejo que o senhor e sua fam��-
lia se d��em bem com ela." Asseguro-lhe mais uma vez
que somos "gente direita". Assino um contrato pelo
prazo de um ano e pago adiantadamente a import��n-
cia correspondente ao aluguel do primeiro e do ��lti-
mo m��s.
Atravessamos a ba��a, sempre no autom��vel do pro-
videncial Sab��ia Lima, e com armas e bagagens nos
instalamos na casa que ainda guarda vest��gios da
imensa personalidade do c��nsul de Metagalpa.
Minha mulher est�� vagamente assustada. O casa-
r��o tem quinze pe��as: um vasto living-room, tr��s quar-
tos de dormir, duas salas de refei����es ��� uma para o
breakfast e a outra para o almo��o e o jantar; tr��s
quartos de banho ��� isso sem contar o subsolo, e os
halls da escada que s��o dum tamanho exagerado. Sinto
126
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
um vago remorso por ocupar com t��o pequena fam��lia
esta casa t��o grande, num tempo em que tantos lutam
com tanta dificuldade para encontrar acomoda����es.
Esta profus��o de tapetes, gavetas, espelhos, cub��-
culos, l��mpadas, candelabros e lustres nos desnorteia
um pouco. Sa��mos os quatro a explorar a mans��o de
Mrs. Burke, s��mbolo do novo-riquismo que se ergueu
neste pa��s na crista da onda de prosperidade surgida
ap��s a Primeira Guerra Mundial. Levamos verdadei-
ros sustos ao descobrir vultos de estranhos no fundo
de pe��as sombrias, mas acabamos verificando que s��o
as nossas pr��prias imagens refletidas em espelhos ines-
perados. Dentro de poucos minutos, por��m, Clara e
Lu��s j�� t��m intimidade com a casa, correm dum lado
para outro, fazem descobertas que os deixam excita-
dos ��� revistas antigas, livros de gravuras. E sua ale-
gria cresce quando encontram numa prateleira, dobra-
da com patri��tico carinho, a bandeira de Metagalpa.
Organizam uma parada ruidosa, e saem a marchar por
toda a casa enrolados no pavilh��o tricolor.
A. BOMBA
25 de outubro. Mrs. Burke nos visita, trazendo
uma bra��ada de flores. �� uma senhora sessentona e
gorda, de cabelos completamente brancos, mas de ros-
to liso e rosado. Conta-nos que �� vi��va e que nos tem-
pos do falecido viajou por todo o mundo. Leva-me at�� o
living-room e mostra-me uma cole����o de bugigangas
��� bonecos, bibel��s, livros miniaturais, j��ias ��� recor-
da����es de todos os pa��ses por onde passou. Confessa-
nos que anda muito nervosa, pois seu neto de dezenove
anos �� "paratrooper" e est�� na Inglaterra, preparando-
se para tomar parte na invas��o do continente. D��-nos
as boas-vindas e as flores, faz algumas recomenda����es
A VOLTA DO GATO PRETO
127
e volta para o seu apartamento. Quando ela sai, Ma-
riana pergunta:
��� Qual �� a tua impress��o?
��� Nem boa nem m��. Mas seria melhor que ela
morasse noutro lugar.
Sabendo que essa senhora solit��ria e nervosa mora
l�� em baixo, vamos viver com a impress��o de que temos
no subsolo uma bomba que pode explodir a qualquer
momento.
��� E se explodir... que podemos perder? ��� per-
gunta minha mulher filosoficamente.
��� Sabes duma coisa? ��� digo. ��� A minha impres-
s��o �� de que ela gostou bastante de ti e do Lu��s, menos
um pouco de Clara, e nada de mim.
Mariana me olha em sil��ncio por alguns segundos
e depois conclui:
��� �� poss��vel. Deve ser racista e desconfiou da
cor de tua pele.
O REL��GIO
Ainda a 25 de outubro. Oito da noite. Decidimos
ver o que �� que h�� no por��o da casa, na parte que nos
toca por contrato. Organizamos uma caravana e pre-
paramo-nos para a excurs��o. Clara e Lu��s est��o me-
tidos nos seus pijamas de pel��cia. "N��o fa��am barulho"
��� recomendo. N��o conv��m dar �� nossa senhoria mo-
tivos de queixa desde o primeiro dia.
Descemos a estreita escada que leva ao subsolo
e penetramos numa sala onde impera um grande bilhar
snooker. Ao verem as bolas coloridas, as crian��as
precipitam-se sobre elas, falando alto, e come��am a
atir��-las umas contra as outras, procurando tamb��m
met��-las nos bojos que se abrem nos quatro ��ngulos
da mesa. "Sil��ncio!' ��� digo eu, quase berrando.
128
OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O
As paredes desta sala est��o cobertas dum papel
num tom de folhas secas, com figuras em duas cores re-
presentando nobres ingleses que saem nos seus re-
dingotes escarlates para a ca��a �� raposa. Penso nos
tempos do falecido, quando este room ��� mais novo e
mais alegre ��� vibrava ao som de risadas, das claras
batidas das bolas de bilhar e do tinir dos copos cheios
de u��sque escoc��s. Chego a "ver" Mr. Burke que imagino
alto, vermelho e de olhos muito azuis ��� a fazer caram-
bolas. E Mrs. Burke, mo��a e delgada, com uma ban-
deja de sandu��ches nas m��os, obsequiando os con-
vidados.
Sentimo-nos como intrusos nesta casa. Esta id��ia
nos leva a andar na ponta dos p��s e a falar em co-
chichos . . .
Vejo em cima de velho fon��grafo af��nico um belo
rel��gio e imediatamente concluo que ele ficar�� muito
bem em cima da lareira do living-room. O rel��gio
parou na meia-noite dum dia remoto, e aqui est�� como
uma coisa in��til e morta. Seja como for, tem um valor
decorativo e por isso decidimos lev��-lo para cima.
Clara toma-o nos bra��os com todo o cuidado. Apaga-
mos as luzes e tratamos de voltar.
Sst! ��� fa��o eu. Tenho a impress��o de que estamos
cometendo um roubo. Todo o cuidado �� pouco. ��
preciso que Mrs. Burke n��o nos ou��a... Quando
estamos no meio da escada, o sil��ncio �� de repente
varado por nervosas badaladas de sino. De-l��in-de-
l��in-de-l��in! O velho rel��gio acordou! Acordou e
falou depois d e . . . quantos anos? Clara estremece,
seus olhos se abrem desmesuradamente. Por alguns
instantes o rel��gio badala como um doido. Depois
torna a calar-se. Voltamos para cima na ponta dos
p��s...
A VOLTA DO GATO PRETO
129
TRINTA S E G U N D O S . . .
Dez da noite. Estou s�� no living-room, olhando para os anjos barrigudos esculpidos em alto-relevo no
frontisp��cio da lareira. Um grande sil��ncio pesa sobre
esta casa. Vejo atrav��s da janela as luzes da avenida
Park-Pres��dio. Passeio os olhos em torno. Um fantas-
ma toca um noturno no piano de cauda ali no canto...
Vozes falam na minha mem��ria. De repente tenho a
impress��o de que mais algu��m est�� comigo nesta sala.
A alma do falecido Mr. Burke? Ergo os olhos. Ah!
�� um busto de m��rmore que, de cima dum arm��rio
envidra��ado me contempla com seus olhos vazios: ��
uma rapariga de perfil cl��ssico, com um chap��u ��
moda do s��culo dezoito. Acho-o detest��vel, dum mau
gosto clamoroso. �� preciso tomar uma provid��ncia
com rela����o a essa monstruosidade. Remover o busto
para o por��o? Escond��-lo numa gaveta? Descubro
solu����o mais simples. Aproximo-me da cara de m��r-
more e com uma caneta-tinteiro pinto nela um bigode.
�� o meu sinal de protesto ��� a maneira mais discreta
que encontro para dizer que n��o levo a s��rio essa
poltrona. O sil��ncio continua. Tento convencer-me
de que moro aqui. Sim senhor ��� reflito ��� estamos
em San Francisco, cidade pela qual sempre tive grande
fascina����o. Nesse fasc��nio haver�� um toque de mor-
bidez, porque o nome San Francisco evoca em mim
coisas sinistras. No fim de contas ��� concluo ��� ela
n��o passa duma cidade burguesa, duma cid...
Diabo, que �� isso? Tenho a impress��o de que dan-
��am e batem p��s no andar superior. Imposs��vel. Deve
ser na casa vizinha. Mas n��o: algu��m ��� talvez um
gigante, talvez um s��bito furac��o ��� est�� sacudindo a
casa... Algu��m? Minhas m��os agarram com for��a
as guardas da poltrona. Com o busto retesado, es-
130
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
pero... A casa toda agora treme, o lustre que pende
do teto, no centro da sala, oscila dum lado para outro.
Um tremor de terra! Sim, sem a menor d��vida.
Que fazer? Sair para a rua? Correr para cima?
Esperar? Que sei eu! Im��vel, olho e escuto... O tre-
mor continua. Quanto tempo durar��? Um minuto,
dois, dez? A casa ag��entar��? Ou vai desmantelar-se?
O lustre dan��a. O ch��o como que ondula. Vigas es-
talam, copos tinem, vidra��as tremem.
De repente o tremor cessa. A cara branca de m��r-
more continua a fitar em mim os olhos vazios. Os
anjos da lareira permanecem imperturb��veis. Ergo-me
e corro para cima.
Mariana acha-se no meio do quarto, com uma in-
descrit��vel express��o no rosto, mistura de susto e de
curiosidade.
��� Que foi isto? ��� pergunta.
��� Um terremoto, minha gente. Leg��timo!
Clara e Lu��s: prorrompem em exclama����es, pu-
lando da cama.- Descemos os quatro, alvorotados, e
vamos abrir o r��dio. Porque estamos ansiosos por ou-
vir a descri����o do "nosso" tremor de terra. Dentro de
poucos minutos a voz grave e melodiosa do speaker
d�� a not��cia. A dura����o do tremor foi de tr��s minutos,
segundo o sism��grafo da Universidade. Acredita-se
que este tremor tenha sido o mais forte e prolongado,
depois do grande terremoto de 1906. Ao ouvir estas
palavras n��s nos entreolhamos com certo orgulho.
Porque, para usar uma express��o de meu filho, desta
vez; "n��s tomamos parte na coisa".
ECOS
26 de outubro. Lemos nos jornais da manh�� no-
t��cias do tremor de terra da noite passada. Em Oakland
A VOLTA DO GATO PRETO
131
um violinista famoso executava uma ��ria, num con-
certo, quando o teatro come��ou a tremer. Houve um
princ��pio de p��nico, e muitos espectadores ergueram-se
para fugir. O artista n��o perdeu a calma. Interrompeu
a ��ria e come��ou a tocar de, maneira vibrante o hino
americano. O p��blico acalmou-se como por encanto
e ficou de p��, im��vel, escutando em atitude respeitosa.
Num teatro de San Francisco, John Carradine e
sua companhia representava o Hamlet de Shakes-
peare. Recitava Carradine o famoso solil��quio ���
To be or not to be ��� quando o tremor principiou.
Registrou-se um princ��pio de tumulto, mas o ator ape-
nas ergueu um pouco a voz, e tudo continuou como se
nada tivesse acontecido.
Observa����o dum romancista: Cenas como esta
��ltima, quando inclu��das num romance, parecem in-
veross��meis, rebuscadas e artificiais.
AS VELHAS N��O MORREM NA CAMA
30 de outubro. �� gostoso come��ar de novo: explo-
rar os arredores, descobrir onde fica a mercearia mais
pr��xima, o cinema, o correio, o mercado. Est�� claro
que n��o temos nem nunca esperamos ter criados. De
dois em dois dias vamos "chopear", palavra que aca-
bamos de criar para uso interno, aportuguesando o
verbo to shop, que significa ir ��s lojas fazer compras.
Afreguesamo-nos numa pequena mercearia cujo cai-
xeiro se chama Schmidt, nasceu na Alemanha, e fala
ingl��s com forte sotaque, num desperd��cio de erres
rolados. No segundo dia toma intimidade comigo.
Quando me v�� cantarola: "Ver��ssimo... pian��ssimo...
general��ssimo". �� um homem de meia-idade, sempre
barbeado e limpo, e que apesar de trabalhar neste
mercadinho de San Francisco tem cara de confeiteiro
de Berlim,
132
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Sinto um certo prazer em tomar conhecimento duma
s��rie de aspectos da vida dom��stica e burguesa e fa��o isso
com um interesse que �� em parte profissional e em parte
humano. Dentro de pouco estou conversando com estas
senhoras que v��m ao market com cestos no bra��o. Ficam
todas alvoro��adas (tr��pico . . . rumba . . . cinema. .. via-
gens) quando lhes digo que sou do Brasil. Discutimos a
falta de criadas, o pre��o dos g��neros, e ��� ah! o grande, o
supremo assunto destes dias! ��� o problema do caderno de
racionamento. Os ricos pontos vermelhos! S��o mais precio-
sos que j��ias ou perfumes. Valem at�� mais que money uma
vez que n��o podemos compr��-los com dinheiro.
Estes markets cheiram a frutas e a verniz. O arroz vem
limpinho, lavado, dentro duma caixa de papel��o. Os ovos,
cuidadosamente acondicionados em caixas oblongas, pa-
recem bolas de pingue-pongue de t��o lisos, limpos e bran-
cos. A cebola j�� vem picada dentro de latinhas. O alho ��
vendido num pequeno frasco, em forma de sal. Os molhos
para saladas vendem-se prontos em vidros de tamanho
v��rio. O p��o vem envolto em papel encerado e cortado em
fatias; seus r��tulos falam em vitaminas que praticamente
cobrem todo o alfabeto. Existem sopas enlatadas de toda a
esp��cie. Verduras frescas e congeladas s��o metidas em
caixas de papel��o e guardadas num refrigerador. Bichas
imensas formam-se junto dos balc��es dos a��ougues. No
Brasil o barbeiro tem fama de conversador e de contador de
novidades. Neste pa��s quem conversa sem parar, quem
sabe de todos os mexericos do distrito s��o os carniceiros.
Homens de bom aspecto, metidos em aventais brancos e
gorros tamb��m alvos, parecem cirurgi��es. S��o am��veis,,
sorridentes, bem-educados e chamam as velhas de "Minha
jovem freguesa. ..", contam hist��rias, comentam a quali-
dade da carne, falam no tempo e parece que nunca perdem
o bom humor.
A VOLTA DO GATO PRETO
133
Estou agora junto do balc��o da nossa mercearia,
e Schmidt l�� vem vindo com a sua cantiga habitual:
"Pian��ssimo... fort��ssimo... brav��ssimo." Quase sem
sentir deixo escapar: "Chat��ssimo". Ele quer saber o
que significa esta palavra, mas eu desconverso. Perto
de mim uma senhora extremamente idosa tamb��m faz
compras. Tem um rosto muito enrugado e p��lido, e
suas m��os tremem. De repente eu vejo que sua ca-
be��a pende para um lado, sua palidez se acentua, seus
joelhos se dobram e ela tomba. Corro a socorr��-la,
ajudado por outras pessoas. Dentro de alguns minutos
conseguimos reanim��-la. Ergo-a nos bra��os e conduzo-
a para dentro do t��xi que acabamos de chamar. Uma
desconhecida oferece-se para acompanh��-la. "Pobre
senhora!" ��� diz algu��m. Schmidt sacode a cabe��a,
penalizado, pesa dez laranjas... controla, pisca o
olho para uma freguesa e n��o se fala mais no assunto.
Uma frase me fica a dan��ar na mente: Neste
pa��s as velhas nunca morrem na cama. Os Estados
Unidos me d��o uma impress��o de mocidade, pois em
nenhuma outra parte jamais vi maior quantidade de
adolescentes e mo��os. Mas por outro lado em nenhum
outro pa��s encontrei tantas pessoas de idade avan��ada
a tomar parte na vida ativa de suas comunidades. Esses
velhos e velhas dirigem autom��veis, v��o a teatros, ci-
nemas, festas, confer��ncias; fazem parte de clubes,
metem-se em comit�� de toda a sorte. As vov��s ves-
tem-se como mo��as e muitas delas come��am a fazer
coisas ��� por exemplo: estudar espanhol, arte oriental
ou pintura ��� aos setenta anos, como se contassem viver
cem. S��o em geral sorridentes e otimistas. Dificil-
mente ficam em casa e recusam-se a ser tratadas como
inv��lidas.
Prossigo nas minhas compras. J�� tenho amigos
em outras mercearias. Em toda a parte encontro a
mesma cordialidade natural e sem-cerim��nia, as mes-
134
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
mas preocupa����es dom��sticas. Sei que quase todas
estas senhoras t��m filhos, maridos e irm��os lutando na
Europa ou no Pac��fico. Muitas delas j�� receberam o
temido telegrama do Departamento da Guerra anun-
ciando-lhes a morte do seu boy. Mas aqui est��o de
queixo erguido, continuando a viver como em tempo
de paz. Ningu��m fala na guerra. Ningu��m se lamen-
ta. Devo confessar que acho uma tremenda dignidade
nesse sil��ncio.
OS PIRATAS
31 de outubro. Soa a campainha. Vou abrir a
porta. Tenho diante de mim duas crian��as vestidas
como piratas: um menino e uma menina, de seus
cinco e sete anos, respectivamente.
��� Hello! ��� dizem eles, com ar bisonho.
��� Hello! ��� respondo, meio intrigado. ��� Querem
entrar?
Sem pronunciar palavra eles entram, de m��os
dadas. Levo-os para o living-room e convido-os a se
sentarem. Os piratas aceitam o convite e ficam sen-
tados na ponta do sof��. Faz-se um sil��ncio dif��cil. A
custo contenho o riso, olhando para essas duas caras
redondas e s��rias, onde negrejam bigodes, su����as e
olheiras pintadas a carv��o.
��� Ent��o? ��� pergunto.
Nenhuma resposta. Miro a pistola e os punhais
dos flibusteiros e pergunto a mim mesmo: "Que diabo
ser�� isso?" De repente compreendo tudo. Hoje �� dia
de Ilalloween. Antigamente dava-se a 31 de outubro
o nome de All Hallow Eeve, ou seja a v��spera do Dia
de Todos os Santos ��� data que os romanos e os ingle-
A VOLTA DO GATO PRETO
135
ses da antiguidade comemoravam supersticiosamente,
segundo as legendas druidas. Diziam eles que nessa
noite de fantasmagoria gatos pretos e feiticeiros, fan-
tasmas e duendes voltavam �� terra para assombrar os
mortais. Hoje em dia o Halloween �� uma esp��cie de
carnaval, ocasi��o em que os garotos se fantasiam e tra-
��am de pregar sustos uns nos outros.
��� Como �� teu nome, menina? ��� pergunto.
��� Sharon.
O nome b��blico confirma minha suspeita. A pe-
quena pertence mesmo ��� como seus tra��os fision��-
micos me haviam sugerido ��� �� ra��a de Israel.
��� E o teu, boy?
��� Peter.
Ocorre-me uma id��ia. Pe��o aos visitantes que
subam ao andar superior para brincar com meus filhos.
Eles obedecem. Sem dizerem palavra, saem de m��os
dadas na dire����o da escada. Fico esperando o resulta-
do do encontro. Poucos minutos depois ou��o passos
apressados nos degraus, e Clara e Lu��s irrompem,
assustados, na sala, protestando:
��� Pai! Pai! Eles n��o falam brasileiro! N��s n��o
falamos ingl��s! Como vai ser?
Ofegantes, de olhos saltados, meus filhos me pe-
dem uma solu����o, enquanto vejo surgir por tr��s deles
os vultos tenebrosos dos dois piratas.
Nestas noites de Halloween alguns cinemas pas-
sam filmes de fantasmas e assombra����es; e as esta����es
de r��dio transmitem um programa de "m��sicas sinis-
tras". (Que crian��as grandes!)
Assim hoje escutamos a "Sinfonia Fant��stica" de
Berlioz, "Noite na Montanha Calva", de Mussorgsky e
a indefect��vel "Dan��a Macabra" de Saint-S��ens.
136
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
O VENDEDOR
l.�� de novembro. Berkeley est�� para San Francis-
co assim como Niter��i para o Rio. Tenho hoje a pri-
meira aula na Universidade. ��s nove da manh�� ��
frente de minha casa entro num bonde lento e meio
guenzo que em meia hora me deixa na esta����o termi-
nal de San Francisco ��� Oakland Bay Bridge ��� onde
tomo um dos trens el��tricos que atravessam a ba��a.
Terei de fazer este percurso de ida e volta pelo menos
tr��s vezes por semana. Isso, por��m, n��o me d�� o me-
nor cuidado, pois a travessia �� sempre uma novidade.
Para come��ar, o el��trico percorre a ponte, numa ex-
tens��o de 12 quil��metros, passando atrav��s dum t��nel
pela ilha de Yerba Buena, e continuando depois at��
a outra margem. H�� ainda o espet��culo da ba��a, com
suas ��guas que mudam de cor de acordo com as cor-
rentes ou com o aspecto do c��u; e suas montanhas,
cujo perfil o nevoeiro n��o raro altera.
Hoje, por exemplo, divido minha aten����o entre a
paisagem l�� fora e a paisagem humana aqui dentro
do trem. Um homem gordo e ruivo puxa conversa
comigo e, vendo que carrego uma pasta de couro,
pergunta:
��� �� vendedor?
��� Sim.. . uma esp��cie de vendedor...
��� Que �� que vende?
��� Bom, vou tentar vender a um grupo de estu-
dantes artigo muito esquisito...
��� Pode-se saber o que ��?
��� Literatura brasileira.
O homem me olha de soslaio, intrigado. Mas
quando lhe explico do que se trata, rompe a rir.
A VOLTA DO GATO PRETO
137
A PRIMEIRA AULA
S��o dez e vinte da manh�� quando entro no campus.
Confesso que estou comovido, pois me ocorre que
por aqui deve ter passado h�� muitos anos um estudan-
te rebelde, de su��ter azul de embarcadi��o, cabeleira
bronzeada e revolta e ar meio adoidado. Chamava-se
Jack London e sonhava com viagens e aventuras.
Estas ��rvores devem lembrar-se dele. �� bem
poss��vel que seu canivete tenha deixado marcas nestes
troncos enegrecidos. ..
Sala n.�� 306 do Wheeler Hall. Onze da manh��.
Encontro aqui uns vinte e poucos estudantes, em sua
maioria mo��as ��� um interessante mostru��rio de tipos
humanos, bem representativo da mistura de ra��as que
�� o povo dos Estados Unidos. �� uma sala pequena,
de paredes de cor bege, mesa e cadeiras envernizadas
de amarelo claro, ch��o de lin��leo cor de tijolo ��� tudo
~uito agrad��vel e discreto.
Falo assim aos estudantes: Interpreto o interes-
se de voc��s pela literatura brasileira como sendo resul-
tado dum desejo de conhecer o Brasil e seu povo. N��o
me parece que a literatura brasileira seja coisa de
import��ncia universal, mas estou certo de que a melhor
maneira de compreender uma na����o �� ler a obra de seus
escritores. Hoje, mais que nunca, n��s os americanos
do norte, do centro e do sul, precisamos de conhecer-
mos melhor. Fora da esfera econ��mica, pouco tem sido
feito nesse sentido. O Brasil que voc��s conhecem ��
mm Brasil falsificado, feito em Hollywood, que em geral
nos apresenta ou como um pa��s de opereta, em que
homenzinhos que vestem fraque, usam cavanhaque e
gesticulam como doidos, beijam na rua e em plena
face outros hom��nculos igualmente grotescos; ou ent��o
com os recursos do tecnicolor nos mostram como uma
138 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
terra de mirabolantes maravilhas. N��o somos nem ri-
d��culos nem sublimes. Na minha terra, como aqui, h��
de tudo.
Neste meu curso ��� que ser�� a nega����o do acade-
micismo, do formalismo e de qualquer outro ismo ���
procurarei mostrar a voc��s o estofo de que n��s brasi-
leiros somos feitos. Est�� claro que n��o fomos chama-
dos a escolher os nossos pr��prios antepassados, nem
o clima ou o aspecto f��sico do meio em que vivemos.
Somos... o que somos.
Por outro lado voc��s norte-americanos n��o s��o
obrigados a amar os povos estrangeiros. Aprendamos
a usar com menos leviandade a palavra amor, pois que
n��o poucos dos males que afligem a humanidade hoje
s��o o resultado do escapismo, do falso otimismo, e do
nosso v��cio de olhar o mundo apenas com ��culos cor-de-
rosa. Mas a verdade �� que n��s, os habitantes da terra,
estamos todos no mesmo barco numa travessia incerta
e tempestuosa, e o menos que podemos fazer �� tratar
de compreender nossos companheiros de viagem. Com-
preender �� ser tolerante; a toler��ncia �� a base da ami-
zade e da paz; e paz e amizade s��o as nossas maiores
preocupa����es nos dias dram��ticos que estamos vivendo.
Tudo isto parece um pouco solene, mas devo dizer
que pronuncio estas palavras em tom de palestra e
sentado na mesa, com as pernas balan��ando no ar.
Prossigo: Pretendo contar a voc��s o que geral-
mente os livros de textos omitem. Esses comp��ndios na
maioria dos casos se mant��m na atmosfera dos sal��es,
das academias e das mentiras c��vicas e convencionais.
Quero trazer voc��s para as ruas brasileiras, contando-
Ihes da vida, dos sonhos, das dificuldades, dos defei-
tos e qualidades do John Doe Brasileiro, o Jo��o Ningu��m,
o homem comum, o que cria o folclore, o cancioneiro
popular, o que comp��e as m��sicas que toda a gente
toca, canta ou assobia, mas cujos autores ignora; o que,
A VOLTA DO GATO PRETO
139
em ��ltima an��lise, modifica e enriquece a l��ngua, para
esc��ndalo, espanto ou encanto dos fil��sofos. �� desse
Brasil que eu lhes vou falar. E sem esquecer nossos
escritores que ficaram no terreno das id��ias ou dos
problemas universais, tratarei principalmente daqueles
que em seus livros ��� poesia, romance, conto, ensaio,
teatro ��� procuraram descrever, interpretar e compreen-
der as gentes, paisagens e problemas de sua terra .
Atrav��s da janela avisto as colinas de Berkeley.
No topo duma delas vejo um edif��cio circular encimado
por uma c��pula vermelha. �� l�� que est�� o ciclotr��nio,
o esmagador de ��tomos. A ningu��m �� permitido apro-
ximar-se daquela torre, onde cientistas se ocupam com
o aperfei��oamento duma "arma secreta". Se fosse no
Brasil, o homem da rua diria com um risinho ir��nico:
"Arma secreta? Conversa pra boi dormir..." Mas os
boys e girls da universidade acreditam piamente em que de l�� daquela casa h�� de um dia vir uma arma t��o
eficiente e mort��fera que poder�� mudar o curso da
guerra. E a melhor maneira que encontram para co-
laborar nesse trabalho �� guardar sil��ncio a respeito
dele.
��s onze horas ou��o os sinos do Campanile tocan-
do uma melodia familiar. Termina a aula. Tenho a
impress��o de que ganhei vinte e dois amigos novos.
RA��AS...
8 de novembro. O nosso c��u amanhece cheio de
dirig��veis da marinha, os "blimps". Vejo-os flutuando
no ar, como bojudos peixes de prata no aqu��rio dum
milion��rio megaloman��aco. L�� v��o eles navegando
na dire����o do mar. E aqui em baixo vou eu de m��os
dadas com meus dois filhos, seguindo o mesmo rumo.
Num certo momento, por��m, os "blimps" continuam a
140
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
voar para o Pac��fico, e eu paro �� Rua 18, junto duma
escola p��blica onde vou matricular Clara e Lu��s.
A Argonne School, que recebeu o seu nome em
mem��ria dos soldados americanos que tombaram em
Argonne, na outra Guerra Mundial, �� um edif��cio de
tijolo nu, dum ��nico andar. N��o tem nenhum glamour,
mas inspira confian��a pelo seu ar de austeridade.
A principal da escola �� uma senhora simp��tica,
que nos acolhe com uma aten����o comovedora.
��� Deixe suas crian��as aqui e n��o se preocupe.
Dentro de pouco tempo estar��o falando ingl��s t��o bem
quanto eu.
D��-me alguns formul��rios para preencher e uns
question��rios a responder. Despe��o-me de meus filhos,
que est��o p��lidos, de m��os frias, mas que n��o dizem
palavra. Imagino a aventura que ser�� para eles fica-
rem aqui perdidos neste mundo em que ningu��m fala
o portugu��s. Acresce ainda que nunca freq��entaram
escola, nem mesmo no Brasil onde Clara teve apenas
uma professora particular. Quanto a Lu��s, ele realiza
agora o prod��gio de ser analfabeto em duas l��nguas: in-
gl��s e portugu��s.
A caminho de casa vou pensando no meu primeiro
dia de col��gio, de sorte que a lembran��a de Dona Eu-
fr��sia Roj��o me acompanha pela Cabrillo Street como
um anjo da guarda. Os blimps desaparecem, e agora
no c��u que aos poucos se tolda, nuvens brincam de
dirig��vel.
Mal chego �� casa, come��o a ler os formul��rios.
Mariana fica impressionada com uma das perguntas:
Em caso de alarme, por ocasi��o dum ataque a��reo ini-
migo, quer que mandemos seus filhos para a casa ou
que os levemos para o abrigo da escola? Mas a per-
gunta que mais me surpreende est�� no formul��rio de
matr��culas, onde tenho de escrever meu nome, profiss��o
e ra��a. Pergunta-se-me se sou branco, preto, mexicano
A VOLTA DO GATO PRETO
141
ou japon��s. Fico mordendo a ponta da caneta, indeciso.
Como responder? Depois de s��rias cogita����es resolvo
deixar em branco o espa��o reservado para a resposta,
e escrevo um bilhete �� diretora da escola. Assim:
Dear Principal: O formul��rio da Argonne School criou
para mim uma d��vida que nunca me havia preocupa-
do no Brasil. Estou agora diante dum espelho a per-
guntar a ele e a mim mesmo se sou branco, preto,
mexicano ou japon��s. Se me declaro branco, o espe-
lho ��� que espero seja fiel como o da hist��ria de Bran-
ca de Neve ��� por certo replicar��: "Se te consideras
branco, �� pretensiosa criatura, como se poder�� ent��o
classificar uma loura como Lana Turner?" Realmente
n��o posso afirmar que perten��a �� mesma ra��a de Miss
Turner. Que n��o sou negro isso sei eu, pois n��o cons-
ta dos anais de minha fam��lia que tenhamos sangue
africano. N��o sou mexicano porque n��o nasci no M��-
xico, nem japon��s porque n��o nasci no Jap��o. Sem-
pre desconfiei que tivesse sangue ��ndio, mas num mel-
ting pot como �� o Brasil (e, diga-se de passagem, tam-
b��m os Estados Unidos) a gente nunca sabe ao certo
que esp��cie de sangue traz nas veias. Assim depois
de muitas e s��rias cogita����es resolvi fazer uma afir-
ma����o que pode n��o ser esclarecedora, mas que ser��
absolutamente honesta: "Sou um ser humano." Isto
n��o �� bastante, minha, prezada diretora?
O PARQUE
11 de novembro. Neste dia, h�� vinte e cinco anos,
foi assinado na Europa o armist��cio que p��s fim ��
Primeira Guerra Mundial que havia sido travada ��� di-
zia-se ent��o ��� para acabar definitivamente com to-
das as guerras, e para salvar o mundo para a Demo-
cracia.
142
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Vou passear sozinho no parque, que fica do ou-
tro lado da rua, �� frente de nossa casa. O Golden
Gate Park, com as suas nove quadras de largura e seus
sete quil��metros de comprimento, �� dos maiores e
mais belos parques deste pa��s, e possui n��o somente
tudo quanto a gente espera encontrar num parque co-
mo tamb��m dezenas de coisas que nem imaginamos
possam fazer parte dum logradouro p��blico dessa na-
tureza. Dentro dele est�� situado o Museu de Young,
de arte antiga e moderna, um edif��cio em estilo Re-
nascimento espanhol do s��culo XVI, feito de pedra
cor de gemada com vinho. A uns trezentos metros ��
sua frente erguem-se os pavilh��es dedicados �� hist��-
ria natural, incluindo magn��fico aqu��rio. N��o longe
deste fica um audit��rio, onde aos domingos �� tarde
uma banda de m��sica uniformizada d�� retretas.
Espalhados por este parque encontramos lagos
pequenos e grandes; lagos com cisnes e lagos sem cis-
nes; lagos para pescaria, e lagos onde �� proibido pes-
car; lagos para amadores de yachting, e lagos onde
os namorados podem passear de bote...
Ao p�� duma doce colina vemos o arboretum, que
�� um jardim cientificamente organizado de maneira
sistem��tica, e dedicado apenas a ��rvores e arbustos;
e mais um jardim bot��nico, onde se cultivam, em es-
tufas ou fora delas, flores dos sete climas da terra. A
direita do museu fica um jardim japon��s, o qual, de-
pois do ataque nip��o a Pearl Harbour, passou a cha-
mar-se "jardim chin��s".
O parque conta tamb��m com pra��as de esporte,
courts de t��nis, diamantes de base-ball, e rinques de
patina����o. E a todo o momento estamos topando com
monumentos erguidos em honra das personalidades
mais variadas: escritores de fama mundial, sacerdotes,
estadistas, guerreiros e at�� jogadores de futebol.
A VOLTA DO GATO PRETO
143
Ao contr��rio do que acontece em muitos parques
que conhe��o, o Golden Gate tem ��rvores, e com que
abund��ncia! E flores, com que riqueza!
�� gostoso andar de manh�� por estas estradas, ao
longo de canteiros prateados de rocio, aspirando o
perfume dos pinheiros e dos eucaliptos. De vez em
quando fa��o uma pausa para dar de comer a um es-
quilo ou para ler a inscri����o dum monumento. Ali
naquela pedra cinzenta est��o gravados os nomes dos
filhos de San Francisco que tombaram nos campos da
Europa, em 1917 e 1918.
Mais al��m, do alto duma rocha parda, Cervantes
��� uma grande cabe��a de bronze ��� contempla Dom
Quixote e Sancho Pan��a, que est��o abra��ados e de joe-
lhos diante dela, em atitude de rever��ncia.
No alto dum mastro esmaltado de branco tremu-
la uma bandeira dos Estados Unidos. Crian��as brin-
cam, gritam, correm sobre estes tabuleiros de relva.
Soldados e civis passeiam dum lado para outro.
"O PESCADOR SOLIT��RIO"
Sento-me num banco e come��o a rabiscar notas
para um romance que talvez nunca chegue a escre-
ver. Algu��m se aproxima de mim. Ergo os olhos e
vejo um chin��s que traz algo na m��o. Vendedor am-
bulante ��� penso. E torno a olhar para o papel. Ou��o
uma voz:
��� Good morning!
Torno a al��ar o olhar.
��� Bom-dia.
��� Quer me fazer um favor? ��� pergunta o chi-
n��s.
Levanto-me.
��� Pois n��o. Que ��?
144
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Ele me d�� uma m��quina fotogr��fica e diz:
��� Quero que tire o meu retrato. Basta enqua-
drar minha figura a��... est�� compreendendo? De-
pois �� s�� puxar nesta coisinha .. assim. Okay?
��� Okay.
O homem se afasta alguns passos e recomenda:
��� Quero que apare��a no fundo a torre do mu-
seu . . .
Fa��o com a cabe��a um sinal de aquiesc��ncia. Fe-
cho um olho e vejo o chin��s enquadrado no visor. ��
um homem de idade indefin��vel; tanto pode ter vin-
te e oito como trinta e oito ou quarenta anos. L�� es-
t�� ele sorrindo. Um tipo simp��tico. Quem diabo se-
r�� ele? Dono dum caf�� em Chinatown? Turista? Que
me importa?
��� Pronto? ��� pergunto.
��� Pronto.
Clique! E as imagens do chin��s, da torre do mu-
seu, daquele pl��tano, e daquela crian��a est��o agora
presas dentro da "kodak" min��scula.
��� Muito obrigado! ��� diz o desconhecido, sor-
rindo e caminhando para mim.
Devolvo-lhe a c��mara. Ele me aperta a m��o e
se apresenta:
��� Chang-Shu-Chi.
O nome n��o me �� estranho. Espere um minu-
to. . . Onde ser�� que li ou ouvi esse nome? O homem
faz meia volta e se vai na dire����o do museu. Mu-
seu . . . quadros... pintura. J�� sei!
��� Mister! ��� grito.
O chin��s se volta. Aproximo-me dele.
��� Por acaso ser��... o famoso pintor?
��� Famoso, n��o... ��� sorri ele. ��� Mas sou pin-
tor, sim. Tenho uma pequena exposi����o ali no mu-
seu. Quer ir er?
��� Claro!
A VOLTA DO GATO PRETO
145
Seguimos juntos, passamos pela fonte ��� em que
um menino ��ndio de bronze toca flauta para dois
le��es feitos do mesmo material, e que o escutam fas-
cinados ��� e entramos no museu.
Estou agora diante dos trabalhos de Chang-Shu-
Chi. O pintor desapareceu. Por onde andar��?
Mr. Chang �� um aquarelista, e sua arte tem uma
s��bria beleza, um toque t��o delicado que lembra o
leve e reticente encanto dos "hai-kais". N��o usa nun-
ca tintas cruas, nem colorido berrante, e cada qua-
dro seu tem um valor poem��tico.
Ali est�� um que n��o passa duma- mancha. "O
bambu e o l��tus branco." A gente" tem a impress��o
de que as linhas e as cores n��o passam de sombras.
O pincel parece mal ter tocado a superf��cie do papel.
O quadro "Beb�� felizes" mostra um bando de patos
negros e brancos nadando sob cerejeiras em flor. Os
t��tulos das pinturas s��o po��ticos: "O bambu e o p��s-
saro". "A carpa e o l��rio aqu��tico". "A rosa e a bor-
boleta". "L��tus de outubro'.
Gosto daquele gato vago ah no p�� dum vaso de
vidro com flores. Em "Primavera no rio", peixes com
reflexos de ouro nadam na ��gua transparente ��� tudo
em desmaiados tons de s��pia, verde e ouro. Em o
"Pescador Solit��rio" o observador sente a branca so-
lid��o do rio com as suas brancas ribanceiras a pique;
l�� em baixo, como um pontinho negro, o pescador so-
lit��rio navega na sua sampana, e a ��nica nota colori-
da do quadro s��o as flores que o pintor tirou como
borrifos dum amarelo alaranjado sobre os galhos sem
folhas duma ��rvore.
Encontro cores mais quentes no quadro "Her��is",
dois galos de rinha de crista cor de lacre a se defron-
tarem, antes de come��ar o combate.
Chang-Shu-Chi �� uma esp��cie de embaixador cul-
tural de Chiang-Kai-Shek nos Estados Unidos. Antes
146
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
da invas��o japonesa vivia em Nanquim com a mulher
e quatro filhos e lecionava pintura na Universidade.
Mais tarde quando a capital foi mudada para Chunking,
a universidade tamb��m o foi, e Chang-Shu-Chi seguiu
com ela. Veio para este pa��s em 1941, e faz agora
quase quatro anos que n��o tem not��cias da fam��lia,
que ficou em territ��rio ocupado pelos japoneses.
Chang reaparece e me convida para ir ver uma
demonstra����o de sua arte. Senta-se a uma mesa, so-
bre a qual se v�� um papel branco, tubos de aquare-
la, e pinc��is. O papel �� mantido horizontalmente so-
bre a mesa, e o artista empunha o pincel como n��s
segurar��amos um punhal com prop��sitos agressivos. E
o que este homenzinho faz �� simplesmente inacredi-
t��vel. Pinta as asas dum p��ssaro em tr��s cores mas
com uma ��nica pincelada. �� que a ponta do pincel
tem uma tinta, o interior do pincel outra e a terceira
cor �� obtida com uma mistura das duas primeiras. O
observador presencia um pequeno milagre: o pincel,
que come��a pintando com azul, sem erguer-se do pa-
pel continua pintando com amarelo e acaba com
verde.
Num momento Chang tem o quadro pronto.
Um americano que est�� a meu lado, olha para
mim e pergunta:
��� Quanto tempo uma pessoa precisa estudar pa-
ra ficar com essa destreza?
Respondo:
��� Dois mil anos, meu amigo.
CONTAR! CONTAR] CONTAR!
24 de novembro. Meu amigo o escritor Raimun-
do Magalh��es me escreve de Nova York contando
que a pol��cia em S��o Paulo abriu fogo contra os es-
A VOLTA DO GATO PRETO
147
tudantes que desfilavam pelas ruas num silencioso
protesto contra o chamado Estado Novo. Procuro an-
siosamente nos jornais e revistas norte-americanas a
not��cia desse fato, que, segundo parece, deve ter ocor-
rido em princ��pios de outubro passado. N��o encon-
tro nada. H�� como que um absoluto "black-out" com
rela����o a not��cias sobre o Brasil. A censura brasilei-
ra �� um prod��gio de hermetismo. Fico a pensar em
que �� mais f��cil ludibriar a Gestapo e descobrir o que
vai pela chancelaria de Hitler em Berlim do que fi-
car sabendo o que se passa nas ruas de S��o Paulo
ou Rio.
Casualmente estive a discorrer em aula esta ma-
nh�� sobre a "bondade essencial" do brasileiro, o nosso
horror �� viol��ncia, e a nossa am��vel t��tica que con-
siste em usar a mal��cia em vez de a maldade. Contei
a meus alunos que proclamamos a Aboli����o e a Re-
p��blica sem nenhum derramamento de sangue. Mos-
trei como tudo isso indica que temos, se n��o uma ci-
viliza����o, pelo menos uma cultura, uma serena sabedoria da vida.
E mesmo agora, diante dessa sombria not��cia,
n��o vejo nenhum motivo para mudar de opini��o so-
bre meus compatriotas. Porque tenho a certeza de
que apenas um grupo reduzido de homens de men-
talidade fascista �� respons��vel por esse crime. N��o
compreendo ��� ou, antes, compreendo mas n��o justi-
fico ��� a raz��o por que esta mesma imprensa norte-
americana que ataca t��o ferozmente a Argentina pe-
las suas tend��ncias nazistas, deixe passar em branco,
sem a menor men����o, uma t��o b��rbara express��o de
nazismo como foi o atentado contra os estudantes
paulistas.
26 de novembro. Os russos capturaram Gomei.
Os aliados tomaram Satteburg, na Nova Guin��. Bri-
lha o sol no c��u de Berkeley. Esquilos brincam nas
148
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��rvores. Os carrilh��es do Campanile tocam uma mar-
cha triunfal. Mas aqui vou eu de alma escura a ca-
minho de mais uma aula. N��o posso esquecer o que
se passou em S��o Paulo. Por mais duma vez falei ��que-
les estudantes... Lembro-me de muitos dos rostos,
que de meu estrado de conferencista eu divisava.
Quantos desses mo��os a esta hora estar��o feridos?
Qual deles ter�� sido morto? Num monstruoso para-
doxo muitos desses mesmos estudantes talvez sejam
chamados a integrar a For��a Expedicion��ria Brasi-
leira que vai para a It��lia combater o nazismo, a in-
toler��ncia, e a viol��ncia, em nome da liberdade, da
igualdade e da fraternidade. Palavras! palavrasl pala-
vras! Est�� tudo errado. Tudo errado! Chuto um sei-
xo com for��a e ou��o-o cair com um glu musical no;
arroio que margeia a estrada. Estudantes passam. Ou-
tros est��o sentados nos degraus destes imponentes
edif��cios do campus, estudando seus pontos. Vejo ou-
tros tantos deitados na relva, tomando sol. Que acon-
teceria se a pol��cia americana chegasse a fazer fogo
contra estudantes? Este pa��s viria abaixo ante o cla-
mor de tantos protestos. E n��o seria de admirar que
o respons��vel pela agress��o acabasse na cadeira el��-
trica ou ent��o pelo menos fosse passar o resto da sua
vida na penitenci��ria de Alcatraz, aquela casa cinzen-
ta que se ergue numa ilha em meio da ba��a.
Que posso fazer? Paro e repito a pergunta. Os
esquilos n��o respondem: eles n��o sabem de nada. Os
estudantes que me sorriem e que gritam Hello! ao
passar tamb��m ignoram tudo. O pa��s em que vivem
n��o �� perfeito, mas aqui h�� coisas que s��o sagradas,
como sejam a liberdade e a vida do indiv��duo. Este
�� um mundo sem caudilhos e com um m��nimo de
pol��cia.
Que fazer? ��� torno a perguntar. Os carrilh��es
do campan��rio continuam a tocar a "Marcha das For-
A VOLTA DO GATO PRETO
149
��as A��reas". Acabo contagiado pela m��sica, e meus
passos, sem que eu d�� por isso, come��am a seguir a
cad��ncia militar. Sim, j�� sei qual �� a minha obriga-
����o. �� contar, contar a meus alunos, ao p��blico das
minhas confer��ncias, aos amigos, a toda a gente;
contar o que se passa no Brasil, sinceramente, da
mesma maneira franca com que freq��entes vezes cri-
tico as coisas deste pa��s que me desagradam.
Sim, contar, falar sem hipocrisia nem falso oti-
mismo. Fazer sil��ncio nesta hora �� servir a causa do
fascismo.
Esta simples id��ia me devolve a alegria, me d��
uma for��a nova.
AVENTURAS DO JABOT��
5 de dezembro. Na aula de hoje falo do folclore
brasileiro, onde o observador pode descobrir o fio
dessa complicada meada que �� o car��ter de nosso po-
vo. Qual �� o her��i de nossas f��bulas? O homem for-
te, o guerreiro, o conquistador? N��ol ��, antes, um ani-
malzinho min��sculo, pacato, lento e paciente: o ja-
boti, s��mbolo da esperteza e da mal��cia.
Outro s��mbolo nacional �� Pedro Malazarte, cujas,
hist��rias escabrosas fizeram a del��cia de muitas gera-
����es de brasileiros, embora esse "her��i sem nenhum
car��ter" como diria o grande M��rio de Andrade, te-
nha sido recentemente desbancado por esses ��dolos
estrangeiros de idade da m��quina que nos v��m nos in��-
meros suplementos com hist��rias de quadrinhos fabri-
cadas nos Estados Unidos.
Os brasileiros ��� explico ��� preferem a ast��cia ��.
for��a bruta como arma pol��tica e social. Seus cam-
pe��es s��o os que usam mais o c��rebro e a sol��rcia do
que os punhos e a viol��ncia. Tomo dum giz e ilustro
150
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
com caricaturas no quadro-negro algumas f��bulas em
que o jaboti aparece em suas lutas com a on��a e os
outros animais da floresta. Das proezas do jaboti
passo para as proezas do presidente Vargas ��� her��i
de mil anedotas que nosso povo repete, deliciado.
Concluo que a popularidade de que Vargas goza no
Brasil encontra a sua explica����o no nosso fabul��rio
ind��gena. Ocorre-me tamb��m que o Departamento de
Imprensa e Propaganda cometeu tremendo erro psi-
col��gico ao impedir que jornais, revistas e pe��as de
teatro continuassem a reproduzir anedotas e piadas
a respeito de Get��lio Vargas. �� que faltou ao chefe
desse Departamento o esp��rito de Malazarte na hora
em que resolveu transformar o jaboti que o povo ama-
va e admirava na on��a que deve ser respeitada e te-
mida, e conseq��entemente odiada. ..
O TEMPO, MINHA AMIGA...
22 de dezembro. O excelente Dr. Fernandes, m��-
dico portugu��s residente em Oakland e grande admi-
rador do Brasil, oferece em sua casa uma festa a seus
amigos brasileiros. Aqui vamos num autom��vel, Ma-
riana, as crian��as e eu, rumo daquela cidade. Creio
que n��o h�� nada de extraordin��rio neste fato se n��o
se encontrasse tamb��m neste mesmo carro, bem aqui
a meu lado, algu��m que foi o meu grande e l��rico
amor quando eu tinha dezesseis anos; algu��m cujo
retrato, arrancado duma revista, eu mantinha prega-
do na parede, junto de minha cama: Norma Tal-
madge. As gera����es de hoje que admiram as Betty
Grables, as Bette Davis, as Greer Garsons ficar��o in-
diferentes �� men����o deste nome. Mas os veteranos,
os de minha classe, h��o de me compreender.
Olhando de soslaio para Miss Talmadge, custa-
me acreditar que esta seja a mesma criatura dos meus
A VOLTA DO GATO PRETO
151
sonhos de adolescente. N��o h�� Max Factor que su-
plante o tempo, esse cruel maquilador. Magra, mur-
cha, grisalha, Miss Talmadge n��o �� nem sombra da-
quela imagem que nos era remetida para o Brasil
numa fita muda de celuloide ou em clich��s de revis-
tas e jornais. Para n��s ela n��o era uma pessoa como
as outras, sujeita a sardas, disturbios na ves��cula bi-
liar, engrossamento do sangue ou cachumba. Era prin-
cipalmente a hero��na de muitas historias em que dois
ou mais homens ��� um o mocinho, o sem bigode, e o
outro o vil��o, o de bigode ��� disputavam seu amor.
Ela era a encarna����o do romance, da poesia, da bon-
dade e da beleza.
Informaram-me que Miss Talmadge abandonou a
carreira art��stica com um saldo respeit��vel em caixa,
o que n��o aconteceu com a maioria das estrelas que
brilharam nos tempos do cinema mudo. �� propriet��-
ria de diversas casas de apartamentos e vive alterna-
damente em Hollywood e San Francisco.
Vestida de preto, elegant��ssima, Norma procura
por todos os meios combater a idade. N��o se rende.
Vista de alguma dist��ncia parece vinte anos mais jo-
vem. Contou-me algu��m que o boy friend de Miss
Talmadge est�� na guerra. �� por isso que ela aqui
vai, com seu ar abstrato, a falar com voz fatigada dos
horrores da guerra. "Quando ir�� terminar isso?" ���
pergunta ela retoricamente. N��o me parece que esteja
pensando nos outros soldados, mas apenas no seu
"boy". E est�� certo. Digo-lhe coisas banais, que natu-
ralmente n��o a interessam. E evito olhar para ela,
para manter a ilus��o. Faz de conta que Norma Tal-
madge �� ainda a hero��na dos filmes. Faz de conta
que e u . . .
N��o. �� in��til. Depois devo fazer aqui uma con-
fiss��o. N��o tenho saudade da inf��ncia. N��o escrevi
nem creio que jamais chegue a escrever mem��rias da
152
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
meninice. Acho mil vezes mais interessante esta rea-
lidade presente, o dia de hoje, o minuto que esta-
mos vivendo...
V��SPERA DE NATAL
24 de dezembro. Clara e Lu��s nos d��o uma sur-
presa. Ao chegarem da escola aproximam-se de n��s,
muito s��rios, e come��am a cantar em ingl��s uma can-
����o de Natal popular��ssima neste pa��s:
Jingle bells! Jingle bells!
Jingle all the way.
Oh what fun it is to ride
In a one horse open sleigh!
A noite acendemos o pinheirinho. Fora a chuva
cai mansamente. Os speakers das esta����es de r��dio
de Nova York anunciam "a white Christmas", um na-
tal branco, isto ��, com neve.
Comemos passas, nozes, avel��s e falamos no Bra-
sil e nos amigos que l�� deixamos. Mrs. Burke apare-
ce com presentes para as crian��as. A chuva bate nas
vidra��as. O vento agita as ��rvores do parque.
O clima de San Francisco �� dos mais absurdos
de quantos tenho not��cia. As chuvas de inverno co-
me��am em dezembro e v��o at�� fins de mar��o. A pri-
mavera que se segue �� ainda fria e nevoenta. E quan-
do o ver��o chega, continua a neblina, ao passo que
o frio aumenta. Mark Twain afirmou que de todos
os invernos que conhecia o mais rigoroso era o ver��o
de San Francisco... O outono aqui oferece avara-
mente alguns dias luminosos e frescos, principalmente
em outubro e durante a primeira parte de novembro.
O vento sopra durante quase todo o ano, com peque-
nos intervalos de calmaria. A C��mara de Com��rcio
A VOLTA DO GATO PRETO
153
local assegura que este clima, sem extremo de calor
nem de frio, �� "invigorating". Eu ��� que gosto do sol
��� acho-o deprimente. E quando me queixo do vento,
da chuva e da bruma, Mariana toma do livro que es-
crevi sobre este pa��s em 1941 e l�� em voz alta o tre-
cho em que canto l��ricos louvores ao clima de San
Francisco da Calif��rnia...
HAPPY NEW YEAR!
31 de dezembro. Meia-noite. Os sinos repicam.
As f��bricas apitam. Os autom��veis buzinam. Estamos
reunidos numa pequena sala, ao p�� duma lareira bran-
ca aquecida a eletricidade. Pelo r��dio ouvimos os
gritos e as can����es na Times Square em Nova York.
Afirma-se que este ser�� o ano da invas��o da Europa,
talvez o ��ltimo ano da guerra. L�� no por��o, no seu
apartamento solit��rio, Mrs. Burke decerto pensa no
neto p��ra-quedista. Que se estar�� passando nessas ca-
sas em cujas vidra��as se v��em bandeiras com estre-
las azuis ��� cada estrela representando um membro
da fam��lia que est�� alistado nas for��as armadas? E
naquelas em que h�� estrelas douradas, simbolizando o
n��mero de membros da fam��lia mortos em a����o?
Penso nos Sullivans, aquele casal de Iowa que
perdeu duma s�� vez os cinco filhos marinheiros que
estavam a bordo dum cruzador americano que voou
pelos ares em ��guas do Pac��fico. A coisa toda �� du-
ma brutalidade que fica muito al��m de qualquer co-
ment��rio. Temo que a morte de todos esses soldados
e marinheiros ��� russos, ingleses, americanos, gregos,
poloneses, franceses, etc. ��� n��o traga para o mundo
um benef��cio �� altura de seus grandes sacrif��cios. Pa-
ra usar duma imagem t��o ao gosto desta gente, di-
rei que se est�� pondo em risco um vasto e precioso
154
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
capital em vidas humanas para se conseguir, ao ca-
bo da sangrenta transa����o, um magro, triste lucro em
benef��cios sociais.
Enquanto Mariana l�� ao p�� do r��dio e as crian-
��as brincam, meto papel na m��quina e escrevo uma
carta ao meu amigo Vasco que est�� no Brasil e tanto
se preocupa com os problemas do mundo.
DESABAFO...
1.�� de janeiro de 1944.
... e o que me deixa apreensivo, meu caro Vasco, �� verificar
que estes comentaristas pol��ticos raramente ou nunca mencio-
nam em seus artigos as causas profundas desta guerra. Porque
a coisa n��o pode ser simplificada a ponto de afirmarmos que a
responsabilidade do conflito cabe unicamente a Hitler, �� sua ca-
marilha de gangsters e mais �� "vontade de poder" do povo ale-
m��o. N��o devemos esquecer que a Inglaterra encorajou ou pelo
menos tolerou simpaticamente o rearmamento da Alemanha, pela
simples raz��o de que, temendo a expans��o da R��ssia sovi��tica
e desejando o seu aniquilamento, ela esperava que os nazistas
atacassem os comunistas numa guerra de que ambos os conten-
dores sa��ssem de tal modo esgotados, que no fim da hist��ria a
Gr��-Bretanha seria a ��nica vencedora num conflito em que n��o
disparara um tiro, nem sacrificara um ��nico soldado.
N��o se pode afirmar, Vasco, que esta seja uma guerra de
ideologias. Veja bem. Uma alian��a da R��ssia com a Alemanha
seria, pelo menos no momento, um fen��meno compreens��vel, n��o
porque eu ache que comunismo seja sin��nimo de fascismo, mas
sim porque ambos esses pa��ses onde impera o capitalismo de
Estado, t��m um inimigo comum: as pot��ncias dirigidas pelo
capital privado. O natural seria que, unidas, a R��ssia e a Ale-
manha tratassem de derrotar a Inglaterra, os Estados Unidos e
a Fran��a, deixando o ajuste de contas definitivo para ser feito
entre ambas, para ver qual das duas ficaria com a parte do
le��o. Mesmo essa guerra final dificilmente poderia ser classi-
ficada como "ideol��gica". Porque seria ainda uma guerra eco-
n��mica, uma luta pela amplia����o de zonas de influ��ncia, de
dom��nios de mercado. N��o creio que o fator econ��mico seja
todo-poderoso como for��a hist��rica. Os homens e os povos s��o
movidos tamb��m pelo orgulho, pela inveja, pelo fanatismo po-
A VOLTA DO GATO PRETO
155
l��tico ou religioso, pelo desejo de vingan��a, pela adora����o da
for��a, pela sede de gl��ria ou de dom��nio... Mas neste ano de
1944 s�� um ing��nuo, um d��bil mental ou um fan��tico do es-
piritual poderia negar a grande import��ncia do econ��mico na
vida dos indiv��duos e das na����es.
Claro, no dia em que os homens estiverem todos bem ali-
mentados e bem vestidos, gozando de boa sa��de e morando em
casas confort��veis ��� nesse dia ainda haver�� problemas, conflito��,
dramas, e as criaturas humanas estar��o ansiando por saber o
que haver�� para al��m desta vida, perguntando se Deus existe,
e desejando que a chama do esp��rito n��o se apague na morte.
Acontece que como o problema da fome, do conforto e do bem-
estar s��o problemas temporais, eles ter��o de ser for��osamente
resolvidos no plano temporal. �� um absurdo, uma trai����o at��
(e aqui eu me refiro particularmente ao Brasil) prometer o c��u
com anjos, arcanjos, ambrosia e del��cias as subcriaturas que ve-
getam no lodo e na mis��ria, j�� n��o digo como porcos, porque ao
menos estes t��m quem os alimente �� farta na preocupa����o de
engord��-los para o matadouro, mas como os mais abjetos ani-
mais da escala zool��gica pois que, possuindo consci��ncia, vivem
como minhocas. Matemos primeiro a fome de nossos marginais;
curemos-lhes as feridas; demos-lhes enfim uma vida mais sau-
d��vel, mais feliz e mais digna. Depois disso tudo, podemos en-
t��o falar-lhes em Deus.
Mas o que me levou a te escrever foi a lembran��a de que
a presente guerra est�� matando a flor da juventude da terra.
Costuma-se dizer e escrever por aqui que o presente conflito �� a
luta do bem contra o mal. �� uma figura de ret��rica que ter��,
n��o nego, o seu valor demag��gico. N��o mentir�� quem afirmar
que os americanos est��o defendendo o seu ideal de vida, pois a
vit��ria do nazismo significaria a destrui����o irremedi��vel de seus
sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade. Significaria que
o seu padr��o de vida teria de baixar formidavelmente, e que
o seu individualismo esportivo e otimista acabaria esmagado pelo
tac��o dos agentes da Gestapo. Essa �� uma verdade indiscut��vel,
lias �� uma verdade horizontal. A verdade vertical tem ra��zes
econ��micas. Os soldados de Tio Sam que foram lutar na Europa
em 1917 tamb��m estavam convencidos de que iam destruir a
barb��rie e salvar a democracia. Seus filhos agora est��o lutando
no mesmo terreno, contra o mesmo inimigo, e os escribas tentam
faz��-los repetir as mesmas frases e os mesmos gritos de guerra ���
desta vez, parece, sem grande resultado. Porque embora esses
soldados de hoje lutem com coragem e sem ��dio, eles se atiram
aos combates sem alegria. Esta �� uma guerra sem can����es. O
seu hero��smo �� um hero��smo amargo e sombrio, sem ret��rica
156
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
nem romantiza����es. As gera����es que est��o agora nas trinchei-
ras sabem que a guerra �� uma coisa s��rdida, cruel, destruidora
e absurda. Livra-os da deser����o e da covardia, da in��pcia ou
da indecis��o o seu esp��rito esportivo, o seu senso de compa-
nheirismo, e a consci��ncia de que no fim de contas eles est��o
defendendo sua terra e seu povo, o "American way of life" e
uma s��rie de coisas que lhes s��o caras. Impele-os tamb��m o
desejo de acabar com a guerra o mais depressa poss��vel, a fim
de que possam voltar para o "home" e para a paz.
Afirma-se que a guerra est�� na natureza do homem, e que
sempre haver�� guerras. N��o sei at�� que ponto se poder�� manter
a paz, se �� que o mundo algum dia conheceu a paz verdadeira.
O que sei �� que, enquanto a sociedade capitalista competitiva e
faminta de lucros pensar em termos de vantagens e expans��o
de neg��cios e n��o de bem-estar social; enquanto n��o houver um
entendimento internacional como o proposto por Emery Reeves
em seu admir��vel livro "A anatomia da Paz"; enquanto houver
nacionalismos exacerbados ou exacerb��veis que possam ser usa-
dos como meio de alargar imp��rios econ��micos ��� sempre haver��
guerras. Talvez eu esteja a repetir platitudes. Mas ha platitudes
que devem ser repetidas. E num princ��pio de ano como este,
Vasco, a gente sente vontade de desabafar. Perde esta conver-
sa toda, que provavelmente ter�� tido um tom dogm��tico. Mas
�� que olhando para meu filho que desenha cenas de guerra ali
junto da lareira, cheguei a uma conclus��o amarga, que pode ser
resumida numa frase: "No estado atual de coisas, a ��nica cer-
teza que um pai pode ter quanto ao futuro, �� a de que est��
criando seu filho para morrer na pr��xima guerra..."
O M��DICO E O MONSTRO
5 de janeiro, 1944. Des��o ao centro da cidade,
entro numa dessas monumentais casas de neg��cio que
aqui se chamam department stores, e compro umas
cal��as amarelas de corduroy, que �� um tecido de algo-
d��o com estrias aveludadas. Naturalmente Mariana se
escandaliza e as crian��as se riem da minha extravag��n-
cia. Na verdade, as cal��as s��o dum mau gosto cla-
moroso. Explico a minha mulher que vestir estas
cal��as equivaler�� para mim a uma mudan��a de per-
sonalidade. Vivemos demasiadamente de acordo com
A VOLTA DO GATO PRETO
157
a id��ia que os outros fazem de n��s. Meus filhos, por
exemplo, acham que sou um alegre companheiro. Pa-
ra a maioria das outras pessoas sou um homem seco,
sisudo, calado, incapaz duma palavra ou dum gesto
espont��neo. Como escritor sou considerado em certos
c��rculos apenas como um fabricante de hist��rias ado-
cicadas para mocinhas sentimentais. Noutros setores,
apare��o como um indecente autor de livros imorais, dum
realismo repugnante. Os cat��licos me classificam de
herege. Os fascistas afirmam que sou vermelho. Os
vermelhos murmuram sorrindo que sou apenas cor-de-
rosa. Pois bem. Agora decidi ser amarelo. �� uma mudan-
��a salutar que no fim de contas, me custar�� apenas
o pre��o das cal��as, isto ��, tr��s d��lares. Estes "panta-
lones amarillos", como diria o c��nsul de Metagalpa,
passar��o a ser o meu protesto contra todas essas pri-
s��es criadas pelas conven����es sociais e pela opini��o
dos que me cercam.
Compro tamb��m um jaquet��o grosso de l�� azul,
desses usados pelos lenhadores do Canad��. Combina
detestavelmente com as cal��as amarelas, de sorte que,
quando os visto, me sinto feliz. N��o tenho nenhuma
responsabilidade com o passado. Nunca escrevi livros.
Nunca fiz confer��ncias. Nunca dei li����es. Nem mes-
mo cheguei a ter um nome.
Des��o �� zona do cais e entro nessas espeluncas
que William Saroyan t��o bem reproduziu na sua pe-
��a "The Time of Your Life". Dentro delas vejo ho-
mens de todos os mares da terra, caras e tipos da mais
inesperada esp��cie. Acho excitante andar por estes
caf��s e casas de pasto de embarcadi��os, sem plano
nem prop��sitos certos, a conversar com criaturas que
n��o contam sua hist��ria nem perguntam pela nossa,
pois para muitas delas passado �� palavra que n��o tem
sentido. Paro na cal��ada do Cais dos Pescadores, on-
de caranguejos agitam ag��nicamente seus tent��culos
158
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
dentro de enormes caldeir��es de ��gua fervente; fico
olhando os mastros dos navios, o movimento dos
guindastes, o v��o das gaivotas... Depois volto pa-
ra casa, como duma longa e misteriosa viagem.
��s segundas, quartas e sextas, vestido como um
bom burgu��s, sou o senhor professor que vai �� Uni-
versidade dissertar perante seus alunos sobre Greg��-
rio de Matos, Santa Rita Dur��o e Frei Santa Maria
Itaparica, figuras que para mim t��m tanta realidade
como o Bicho Tutu e o Lobisomem, isto ��, seres que
assombraram a nossa inf��ncia mas a respeito de cuja
exist��ncia sempre tivemos nossas d��vidas.
Trecho duma carta a Vasco Bruno . . . Queres um
conselho de amigo? Quando te sentires cansado, abor-
recido de toda a rotina da vida, compra umas cal��as
amarelas.
HELLO, LOUIE!
12 de janeiro. Lu��s, que agora passou a ser Louie-
��� pois �� assim que os colegas lhe chamam ��� tem um
amigo, David, guri grandalh��o de cara simp��tica que
mora na vizinhan��a e que de vez em quando apare-
ce para brincar. �� um gozo ver como ambos se en-
tendem sem que um possa falar a l��ngua do outro.
N��o necessitam de muitas palavras. David entra e
diz Hello! Louie limita-se a sorrir. Mete na cabe��a
uma imita����o desses capacetes de a��o dos soldados
americanos, empunha a metralhadora de pau e den-
tro em pouco est�� ao lado de David ��� que tamb��m
veio armado at�� os dentes ��� entrincheirados os dois
atr��s duma poltrona, e fazendo fogo contra soldados
japoneses imagin��rios. Ficam assim por algum tempo,
falando a dura l��ngua das metralhadoras ��� ra-ta-ta-ta-
ta-ta-taaa... Depois, aborrecem-se do brinquedo, jo-
A VOLTA DO GATO PRETO
159
gam longe o capacete e as armas, e deitados no ch��o,
com os cotovelos apoiados em cima dum jornal aber-
to, os rostos repousando nas m��os espalmadas, ficam
olhando a p��gina c��mica. De quando em quando Da-
vid cutuca Louie e mostra-lhe uma determinada coi-
sa. Louie solta uma risada, a que o amigo se une. No
momento seguinte tornam a botar na cabe��a os capa-
cetes e a empunhar as armas, pois o inimigo trai��oei-
ro atacou-os de surpresa. Mas de novo enfaram-se da
guerra e voltam a folhear revistas ilustradas. Durante
todo o tempo n��o dizem palavra. Por fim vem o mo-
mento em que David decide ir embora. Diz: Good-
bye, Louie! Meu filho responde: "At�� logo, David!"
E separam-se.
Um dia ��� reflito com amargura ��� esses dois me-
ninos ser��o homens e capazes de empunhar metralha-
doras de verdade. Em caso de guerra talvez estejam
na mesma trincheira, lutando contra um inimigo co-
mum. Mas n��o �� imposs��vel que os dois amigos se en-
contrem em campos opostos, como advers��rios, pois
a experi��ncia nos tem mostrado que as coisas mais
absurdas e cru��is podem acontecer. Que estou eu fa-
zendo para que nenhuma dessas duas hip��teses se
possa realizar? As coisas que pensamos, dizemos e fa-
zemos agora podem redundar, no futuro, num Inferno
ou num para��so para nossos filhos. Parece fora de d��-
vida que esta guerra cont��m j�� a semente da pr��xi-
ma. Os jornais de Hearst empenham-se, por meio de
alguns de seus comentaristas, em intrigar o povo ame-
ricano com o russo. Representam uma corrente rea-
cion��ria e imperialista conhecida pelo nome de "Ame-
rica First". Atacam Roosevelt, e todos os l��deres e es-
critores liberais deste pa��s. J�� come��aram sua cam-
panha contra o Presidente, no sentido de impedir que
ele seja reeleito. Ora, uma campanha pol��tica n��o ��
s�� natural como perfeitamente desej��vel dentro du-
160
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
ma verdadeira democracia. Mas acontece que esses
isolacionistas que acusaram Roosevelt de ter arrastado
deliberadamente o pa��s �� guerra, agora o acusam pa-
radoxalmente de n��o ter preparado a na����o para essa
mesma guerra, e por n��o ter compreendido que ela
viria...
PROBLEMA?
15 de janeiro. Fa��o uma confer��ncia para um
grupo de estudantes interessados em problemas ra-
ciais. �� num jantar na Associa����o Crist�� de Mo��os,
perto dos port��es da Universidade. Sento-me entre
um preto e uma chinesinha. Pedem-me para falar no
problema racial do Brasil. Levanto-me e come��o:
"Para principiar, n��o h�� nenhum problema".
O VELHO MACHADO
23 de janeiro. L�� fora, a chuva. Aqui dentro da
sala 306, vinte e cinco estudantes e eu. O assunto do
dia, Machado de Assis. Conto a hist��ria do mulati-
nho Joaquim Maria, filho duma lavadeira, e que aca-
bou sendo uma das maiores figuras da literatura de
l��ngua portuguesa. Para os norte-americanos em geral
essa hist��ria tem dois lados. Um escuro e outro lu-
minoso. O lado escuro �� fornecido pela cor do her��i.
O outro, pela sua carreira, pois este povo adora as
hist��rias de Cinderela, as que narram as perip��cias
dum homem ou mulher que caminha from rags to ri-
ches, isto �� da mis��ria para a riqueza, ou ent��o do
anonimato para a celebridade. Felizmente meus alu-
nos s��o em maioria, ou talvez na sua totalidade, con-
tr��rios �� discrimina����o racial. Esta Universidade acei-
A VOLTA DO GATO PRETO
161
ta alunos de todas as cores, credos e ra��as. H�� aqui
chineses, japoneses, filipinos, hindus, sul-americanos,
italianos, havaianos, arm��nios...
Falo na vida de Machado de Assis e acabo eu
mesmo comovido com a hist��ria. �� sempre assim. N��s
latino-americanos somos o que se chama por aqui sen-
timental fools; nossas emo����es est��o sempre �� flor da
pele. N��o espero que meus estudantes participem da
minha como����o. Minhas palavras s��o simples e a bio-
grafia que tra��o de Machado de Assis �� bastante re-
sumida. Acontece, por��m, que eu vejo para al��m das
minhas pr��prias palavras. Imagino Machado de Assis
em sua casa do Cosme Velho, vi��vo, velho, doente e
s��, sentado numa cadeira, esperando a morte com um
xale sobre os ombros. Pessoas v��m saber de sua sa��-
de, ficam na sala de espera, cochicham. E o velho
Machado diz a um amigo: "Escuta.. . n��o reconheces
esses cochichos? �� como num vel��rio." Pouco antes
de morrer, ele, o escritor que tanto castigara a vida
e os homens, confessa: "A vida �� boa." Dizendo isto
ele se identifica com o Judeu Errante da sua f��bula
"Viver", que n��o odiava tanto a vida sen��o porque a
amava muito.
Os alunos escutam com interesse. Eu quisera s��
poder ler seus pensamentos, observar suas rea����es ��n-
timas a esta hist��ria. �� estranho que neste dia, nesta
hora, neste lugar e para esses jovens eu esteja a fa-
lar em Machado de Assis, enquanto avi��es da patru-
lha do Pac��fico passam roncando l�� no alto, e naque-
le edif��cio circular em cima da colina s��bios lidam com
a energia at��mica. Acho singular esta mistura de ci-
clotr��nio, guerra, Calif��rnia e literatura brasileira. E
tudo ficar�� ainda mais esquisito se eu tentar penetrar
no passado desses estudantes, em sua maioria filhos
de imigrantes ou ent��o eles pr��prios nascidos em outras
terras.
162
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
L�� est�� Lu��s Mongui�� moreno, rosto cheio, bi-
gode escuro, ��culos de lentes grossas; nasceu na Ca-
talunha e lutou em 1937 contra os mercen��rios de
Franco; imigrou para este pa��s no ano seguinte e le-
cionou espanhol nesta Universidade. Se o tipo da
pessoa pode indicar sua origem e profiss��o, eu diria
que ele �� um paulista de Taubat�� que faz corretagem
de caf�� em Santos. O outro a seu lado �� Fernando
Alegria, um simp��tico e inteligente chileno que leciona
espanhol neste Departamento; um jovem de voz man-
sa que acaba de tirar um premio no concurso liter��-
rio institu��do para escritores sul-americanos por edito-
res de Nova York.
Aquela mo��a de rosto de boneca, olhos dum azul-
esverdeado e express��o vivaz, �� Patr��cia Mc Ewen,
descendente de irlandeses e escoceses. A outra, de
grandes e belos olhos escuros, �� Helen Leopold, fi-
lha de m��e salvadorenha e pai alem��o. Ana Golden-
baum �� de origem sem��tica e ali est�� com o seu ar
encolhido de passarito. A esbelta loura platinada com
o rosto pintalgado de sardas �� Maryfrances Stilles. A
robusta rapariga que acha a l��ngua portuguesa terri-
velmente dif��cil chama-se Virg��nia Bohr. E aquela ri-
sonha senhora de cabelos brancos �� Maria Antonieta
Cincotta, que alia um temperamento italiano a uma
educa����o americana; interessa-se por problemas sociais
e suas id��ias s��o nitidamente socialistas.
Marion Rita de Paar deve ter sangue holand��s.
L��dia Braccini descende diretamente de italianos. Loui-
se Dias, Loraine Borba, Mercedes Silva e Edna Leal
s��o filhas de portugueses radicados na Calif��rnia.
Sheila Malloy tem av��s na Irlanda.
E aquele sujeito moreno de ar melanc��lico e voz
de obo�� ��� don Rem��dios Mirando Sarazate ��� �� na-
tural do M��xico.
A VOLTA DO GATO PRETO
163
GARDEN PARTY
30 de Janeiro. Vou com a fam��lia a uma festa nu-
ma casa de campo dos arredores de Oakland. Trata-
se dum desses parties em que se nota uma abund��n-
cia de velhotas ricas, sandu��ches de peru, saladas de
aipo e bebidas sem ��lcool. O Sr. e a Sra. Lyons, os
donos da casa, s��o admir��veis de cordialidade, e que-
rem que todos fiquem �� vontade. Mr. Lyon, um ho-
mem de neg��cios, um rotariano e um humorista to-
ma-me do bra��o e pergunta:
��� Sabe quais foram os dois livros que mais in-
flu��ncia tiveram na minha vida?
Imagino que tenha sido a B��blia e a "Cabana do
Pai Thomas", mas, farejando anedota, respondo que
n��o sei. O anfitri��o, muito s��rio, esclarece:
��� O livro de receitas culin��rias de minha m��e e
o livro de cheques de meu pai.
Solta uma risada, faz meia-volta e se vai.
No jardim desta bela resid��ncia acham-se umas
doze mesas. Sobre as mesas, os pratos de comida. Ao
redor das mesas, os convidados: c��nsules de quase
todos os pa��ses da Am��rica Central e do Sul, damas
e cavalheiros interessados em pan-americanismo. Fa-
zem-se apresenta����es apressadas, e a gente n��o guarda
os nomes que nos dizem: ��s vezes nem chega a ouvi-
los. Mas estamos todos muito alegres e loquazes.
O vento frio sacode as flores naturais do jardim,
as artificiais dos chap��us das damas, e os ralos cabelos
que cobrem o cr��nio da maioria destes c��nsules qua-
rent��es e cinq��ent��es. As colinas em torno s��o dum
verde-oliva opaco e triste.
Mrs. Mayo, dama russa casada com um rica��o de
Oakland, atrai-me para um canto do jardim. �� um
tipo de valqu��ria, de amplos seios, senhora duma voz
164
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
grave e dram��tica. Gosta de ler e escrever, preocupa-
se com problemas internacionais, sonha com a frater-
nidade universal, e considera-se uma esp��cie de m��e
de todos esses sul-americanos que andam extraviados
pela Calif��rnia. Contaram-lhe que escrevo livros e
que sou um liberal. Espalmando a m��o cheia de an��is
de brilhantes sobre o peito, ela me diz com ��nfase
teatral:
��� Qualquer dia destes, se��or, virei sentar-me a
seus p��s para beber o vinho da sabedoria.
Fico constrangido, olho para a ponta dos sapatos,
n��o encontro nada a dizer. Mas um moleque que
mora dentro de mim exclama, numa voz que felizmen-
te s�� eu posso ouvir:
��� Sinto muito, madame, mas presentemente minha
cantina est�� fechada para reparos.
O HOLAND��S VOLANTE
6 de fevereiro. Temos hoje a alegria de receber a
visita de Vianna Moog e sua senhora. O autor de
"Her��is da Decad��ncia" acha-se neste pa��s h�� quase
seis meses, numa viagem de estudos. Boa mistura de
holand��s e brasileiro, �� ele um belo tipo de homem, cor-
pulento, de olhos azuis, fisionomia aberta ��� uma dessas
criaturas que sabem rir com naturalidade e n��o per-
mitem nunca que complica����es intelectuais lhe tirem
o simples prazer de viver. Como escritor tem um es-
tilo enxuto e claro; e sua ironia �� seca e cintilante..
Acha ele que o que h�� nos Estados Unidos �� uma
civiliza����o passada a limpo. Nestas casas fr��geis de
madeira, constru��das ��s pressas, sem nenhuma preo-
cupa����o de solidez, descobre a tend��ncia dos ameri-
canos de viverem apenas o momento presente, sem
A VOLTA DO GATO PRETO
165
compromissos com o passado e muito menos com o
futuro.
S��o nove da noite e n��s dois caminhamos a con-
versar por uma rua deserta, nas proximidades do par-
que. Por sobre nossas Cabe��as paira um nevoeiro
denso, cor de pelo de rat��o. Recordamos nossas an-
dan��as pelas ruas de Porto Alegre e achamos engra��a-
do que estejamos aqui �� beira do Pac��fico, nesta cidade
de aspecto n��rdico t��o diferente da id��ia que o resto
do mundo faz da Calif��rnia.
��� O mal de voc��s ensa��stas ��� digo-lhe, parando
a uma esquina, ��� �� que quando visitam um pa��s v��m
simplesmente em busca de premissas que sirvam para
a conclus��o que tiraram antes de desembarcar...
��� Seu romancista de m�� morte! ��� exclama Vianna
Moog, soltando uma risada.
�� um homem sem recalques, um dos poucos es-
critores brasileiros com quem a gente pode ser abso-
lutamente claro e franco.
ATRIBULA����ES DUM MARIDO
15 de fevereiro. No Brasil ficamos com uma sen-
sa����o de inferioridade quando somos vistos na rua
carregando pacotes. E quanto maior for o pacote,
tanto mais forte ser�� nosso sentimento de humilha����o.
Pois c�� vou eu em plena Fulton Street, gemendo ao
peso duma bra��ada de sacos de papel pardo cheios
de comest��veis, e de cujas bordas emergem pontas de
cenouras, folhas de salsa, hemisf��rios de laranja ou
cocurutos de cebolas. Vou ao armaz��m de dois em
dois dias. E uma vez por semana des��o a Funston
Street sobra��ando uma trouxa de roupa, rumo da la-
vanderia. Ora, essas coisas aqui s��o consideradas na-
turais. Ningu��m olha, ningu��m repara. Primeiro
166
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
porque elas n��o t��m realmente nenhum sentido "moral";
segundo porque nestes tempos de guerra as lojas me-
nores acabaram com o servi��o de entrega a domic��lio.
�� muito comum nas casas particulares, depois do
jantar, trazer os convidados para a cozinha, a fim de
que ajudem a dona da casa a lavar e enxugar os
pratos. E do marido americano ��� seja ele m��sculo ou
maricas, gordo ou magro, grave ou fr��volo ��� espera-se
que ajude a mulher nesses trabalhos dom��sticos.
Sou dum estado brasileiro em que as atribui����es
de marido e mulher s��o marcadas com rigorosa niti-
dez. H�� coisas que um homem l�� nunca poder�� fazer,
sob a pena de ficar desmoralizado. Vivemos de acor-
do com um c��digo antigo que tem ra��zes nos tempos
feudais. Acrescente-se ainda a influ��ncia espanhola e
a do homhre macho do tango argentino, o tipo de voz
grossa e faca na cava do colete, e que nunca debe
llorar...
Se l�� do outro mundo meu av�� tropeiro ��� para
o qual a ��nica atividade digna dum homem de ver-
dade era a lida dura do campo ��� se l�� do outro mundo
esse av�� ga��cho me visse agora na cozinha de Mrs.
Burke, de avental cor-de-rosa, enxugando pratos, ha-
via de sacudir a cabe��a penalizado murmurando:
��� Pra que havia de dar o pobre do meu neto!
O PROFESSOR
20 de fevereiro. O "Faculty Glade" da Univer-
sidade �� uma bela clareira aberta em meio dum bos-
quete de carvalhos, orlado pelo Strawberry Creek, ou
seja o Arroio do Morango, e cortada por uma estradi-
nha de are��o que vai do edif��cio da Uni��o dos Estu-
dantes at�� o Faculty Club, que �� o clube dos professores,
onde ��s vezes almo��o. Sobre a veludosa relva desta
A VOLTA DO GATO FRETO
167
clareira o famoso metteur-en-sc��ne Max Reinhardt fez
representar em 1935 o Sonho duma Noite de Ver��o, de
Shakespeare.
O Faculty Club �� um edif��cio de madeira constru��-
do num estilo que lembra certas casas de campo inglesas.
�� dum pardo-avermelhado e tem a fachada toda co-
berta de hera. O seu interior, duma simplicidade
r��stica, parece o dum pavilh��o de ca��a. O menu aqui
�� geralmente simples, as mesas n��o t��m toalhas e s��o
atendidas por mocinhas, estudantes da Universidade que,
para fazer esse servi��o, recebem 50 centavos por hora
ganhando assim algum dinheiro para ajudar o custeio
de seus estudos. Gosto do contraste entre essas jo-
vens rosadas e os professores cinzentos. Sim, o cinzen-
to parece ser a cor oficial dos professores. T��m eles
uma certa predile����o pelas roupas cor de cinza, e suas
id��ias pol��ticas s��o geralmente cinzentas, com raras ex-
ce����es, como ser�� o caso deste grande liberal que te-
nho agora �� minha mesa, ��� meu amigo o professor S.
G. Morley. No fim da casa dos sessenta, �� ele um homem
magro, alto, um pouco encurvado, de rosto mi��do cor
de marfim velho. O cabelo grisalho, mas ainda abun-
dante, cai-lhe ��s vezes sobre a testa �� maneira de
franja, dando-lhe um descuidoso, agrad��vel aspecto de
mocidade. O cavanhaque curto confere-lhe um ar
europeu. Morley �� um verdadeiro scholar, um huma-
nista de boa tempera. Ama a Europa e principalmente
a Espanha, cuja l��ngua, hist��ria e povo conhece a fundo.
L�� intensamente todos os g��neros liter��rios e interes-
sa-se por tudo. J�� tive ocasi��o de ver as admir��veis
tradu����es que ele faz para o ingl��s dos versos de Ro-
s��lia de Castro e dos sonetos de Antero de Quental.
Vive em Berkeley e em sua casa tem um piano de
cauda ao qual ��s vezes se senta para tocar Mozart ou
Beethoven. Nutre uma afei����o particular pelas pontes
cobertas da Calif��rnia, a respeito das quais j�� escre-
168 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
veu uma monografia, e seu hobby �� tirar fotografias
coloridas.
Olhando agora para ele tenho a impress��o de que
o conhe��o n��o h�� dois meses, mas h�� muit��ssimos anos.
MOMENTO
24 de fevereiro. Desde 12 de janeiro tenho feito
todas as quartas-feiras �� noite num dos sal��es da Uni-
versidade uma s��rie de confer��ncias p��blicas sobre
literatura brasileira. Apesar da chuva, do frio e do
vento a assist��ncia tem sido animadora.
Hoje vou realizar a ��ltima palestra. S��o cinco e
meia da tarde e estou na casa do Dr. Morley batendo
na m��quina as minhas notas e um pouco perdido numa
floresta de nomes de livros e autores. A confer��ncia
desta noite ter�� de cobrir o per��odo entre 1930 e 1943.
Quando tratei de escritores de s��culos passados, tive
a meu lado, como conselheiro, um cr��tico seguro e im-
parcial: o tempo. Mas agora que vou falar nos contem-
por��neos, j�� n��o posso contar com esse colaborador.
Que nomes mencionar? Que nomes omitir? Como
evitar os muitos al��ap��es de que nossa mem��ria est��
cheia ��� al��ap��es armados por nossas idiossincrasias?
Quantos desses escritores brasileiros que hoje fazem
sucesso ser��o lembrados no futuro como figuras real-
mente representativas?
De cotovelos fincados na mesa, dedos metidos
entre os cabelos, olho fascinado para um bojudo vaso
de cristal de cujas bordas se escapam ramos floridos
de pessegueiro. O vaso se acha em cima do piano de
cauda, e o sol da tardinha incendeia-o de reflexos de
ouro e prata. Uma abelha voa ao redor das flores;
minha aten����o voa com ela, escapa-se pela janela, sai
pela ruazinha quieta... Uma crian��a solta um grito.
A VOLTA DO GATO PRETO
169
A abelha bate na vidra��a. Torno a olhar para a m��-
quina ou, melhor, para meus pr��prios pensamentos,
onde se amontoam nomes, faces, frases, t��tulos de li-
vros, vultos humanos...
O tempo passa. Em breve vir�� a noite e eu preci-
so terminar estas notas. Mas aquele vaso florido e
faiscante me fascina...
O Dr. Morley entra na sala silenciosamente como
uma sombra. Posta-se atr��s de mim com sua m��quina
fotogr��fica e, sem dizer palavra, fotografa em cores,
por cima da minha cabe��a, o vaso com todos os re-
flexos do sol. Fico contente por saber que este momen-
to de beleza foi aprisionado. Quanto a mim sei que
n��o o esquecerei mais. A casa dum amigo ao entar-
decer, um vaso florido, o v��o duma abelha, o grito
duma crian��a... E minha perplexidade.
VOC�� SABE COM QUEM ESTA FALANDO?
3 de mar��o. No Faculty Club. Meio-dia. A mo��a
que me serve ��� e que �� uma estudante de filosofia ���
traz-me o caf�� e um sorriso, e depois se vai. Pe��o ao
cavalheiro que est�� do outro lado da mesa que me
passe o a��ucareiro. Ele passa, sorrindo, e ent��o en-
tabulamos conversa����o.
��� De onde �� o senhor?
��� Do Brasil.
��� Do Brasil? Pois saiba que sou um f�� do Alei-
jadinho.
Conta-me que compra tudo quanto encontra refe-
rente a Ant��nio Francisco Lisboa, a sua vida e sua
obra. Espera um dia tirar f��rias especialmente para
vir visitar as igrejas e monumentos em Minas Gerais.
Meu interlocutor �� um homem alto, corpulento,
de olhos azuis e rosto sangu��neo. Quando ele termina
170
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
de almo��ar e se vai, o Dr. Morley me declara que
acabo de conhecer o famoso Dr. Herbert Evans, o
descobridor da vitamina E, e dos horm��nios da gl��n-
dula pituit��ria estimulante do sexo e do crescimento.
Informa-me tamb��m que aquele homem de ��culos que
ali est�� tomando o seu sorvete de baunilha, �� o pro-
fessor E. O. Lawrence, do Departamento de F��sica.
Trata-se simplesmente do s��bio que tornou realidade o
sonho dos alquimistas, conseguindo a transmuta����o
dos elementos por meio do bombardeador de ��tomos,
de sua inven����o. O ciclotr��nio deu-lhe o Pr��mio Nobel
de F��sica em 1939. Lawrence conseguiu tamb��m pro-
duzir sinteticamente elementos radioativos que podem
eventualmente substituir o radium.
Aquele homem baixo e moreno que fuma sosse-
gadamente o seu cachimbo junto da lareira, �� o prof.
Babcock, uma das maiores autoridades mundiais em
gen��tica.
Esses homens todos s��o duma simplicidade exem-
plar. Com pouco mais de quarenta anos, com essa
sua cara sem mist��rio, suas roupas incaracter��sticas,
Lawrence bem podia ser tomado por um modesto
m��dico da aldeia, por um caixeiro-viajante ou ��� por
que n��o? ��� pelo ec��nomo deste clube.
Fico a pensar em certos homens presun��osos de
minha terra, os quais s�� porque t��m fortuna, posi����o
ou algum parente importante julgam que s��o o sal
da terra e vivem a perguntar:
��� Voc�� sabe com quem est�� falando?
O ENCONTRO DAS PARALELAS
6 de mar��o. Sou hoje apresentado a Maur��cio
Wellisch, vice-c��nsul do Brasil em San Francisco. Con-
versamos por algum tempo, e verifico que nossas opi-
A VOLTA DO GATO PRETO
171
ni��es sobre pol��tica, arte, literatura e sobre a vida em
geral divergem muito. �� como se ele estivesse dum
lado da ba��a de San Francisco e eu do outro, tentando
uma comunica����o imposs��vel por meio de sinais. Tenho
a impress��o de que nunca poderemos ser bons amigos.
No entanto, gosto deste vivo, ir��nico e inteligente
brasileiro. (Acho muito dif��cil n��o gostar das pessoas.)
Estou resolvido a come��ar a constru����o duma ponte
aqui de meu lado. Se ele fizer o mesmo l�� da outra
margem, �� poss��vel que um dia nos encontremos no
centro da ba��a na ilha de Yerba Buena. Vamos esperar.
8 de mar��o. A ponte ficou pronta mais depressa
do que eu esperava. Maur��cio e eu discordamos um do
eutro em muitos pontos, principalmente no que se
refere �� aprecia����o desta terra e desta gente. Wellisch
�� um desses intelectuais que viram Paris "nos bons
tempos" ��� e essa vis��o encantada ainda o persegue,
impedindo-o de adaptar-se a outras terras, a outros
tipos de vida. Tudo que h�� por aqui ��� afirma ��� se
toma desinteressante e sem import��ncia comparado com
Paris. Mas apesar das diverg��ncias ��� ou talvez por
causa delas ��� fazemo-nos amigos e dum modo muito
natural. �� um prazer conversar com os Wellisch. A
Sra. Wellisch, uma belga morena de olhos azuis,
fala portugu��s com flu��ncia e com um delicioso sotaque.
Esta noite no carro desses novos amigos atraves-
samos a ponte de Golden Gate e vamos ver os estaleiros
de Kayser no seu trabalho noturno. Do alto duma
colina olhamos para os cascos dos navios oue l�� em
baixo �� beira d��gua parecem silhuetas de grandes
paquidermes.
O espet��culo �� fant��stico. Saltam fa��scas cor de
fogo e rel��mpagos, dum azul l��vido, sobem para o
c��u, enquanto oper��rios ��� vultos negros de cujas m��os
jorra fogo ��� trabalham no costado dos navios. O ru��-
do trepidante das brocas el��tricas chega at�� n��s. Guin-
dastes movem chapas enormes. Tinem e rangem metais.
172
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
A ��gua se estria de coriscos e de quando em quando
vozes humanas se destacam, gritando ordens. Dia e
noite essa gente trabalha, em turmas que se revezam.
Chegam �� perfei����o de aprontar um navio em tr��s ou
quatro dias.
Olho os meus companheiros aqui no autom��vel.
Nos seus rostos reflete-se a luz dos rel��mpagos criados
pelos empregados de Kayser. E por cima de nossas
cabe��as, dos navios, dos oper��rios, dos guindastes, das
montanhas, das cidades e da ba��a palpitam as estre-
las ��� as mesmas estrelas que brilharam h�� mais de
tr��s s��culos sobre as caravelas de Sir Francis Drake.
RAPTADOS!
9 de mar��o. Anivers��rio de Clara. Suas amigas e
colegas aparecem com presentes e gritos, devastam a
mesa de doces, enxugam as garrafas de coca-cola,
p��em o r��dio a berrar, organizam um baile e me obri-
gam a entrar tamb��m no boogie-woogie. Num dado
momento a campainha da porta soa, e o grupo todo
corre a ver quem �� a convidada que vai entrar. Da
sala onde me deixei ficar estendido no sof��, exausto
do esfor��o, ou��o um oh de decep����o, seguido de ex-
clama����es impacientes: "N��o pode entrar! �� uma
festa s�� de meninas! D�� o fora! Scram!" A porta se
fecha com estrondo. Levanto-me, caminho at�� a ja-
nela e vejo Peter-Cal��a-Frouxa, a olhar desconsolado
para a porta que acabam de fechar-lhe na cara sar-
denta. Bato na vidra��a, chamo a aten����o do garoto,
e por meio de sinais lhe digo que procure a entrada
dos fundos. Vou abrir-lhe a porta da cozinha, fa��o-o
entrar clandestinamente, tiro do refrigerador algumas
garrafas de coca-cola, e ambos nos pomos a beber num
A VOLTA DO GATO PRETO
173
grave sil��ncio de conspiradores, enquanto a algazarra
continua no living-room.
Por volta das cinco horas a festa se transfere da
casa para a rua, e as crian��as v��o brincar nos canteiros
da avenida. Ao cabo de alguns minutos aparecem
duas garotas que me dizem, alvorotadas:
��� Mister, Clara e Louie desapareceram!
��� Desapareceram... como? ��� pergunto.
��� Sumiram-se... evaporaram-se...
Seguido por Peter, des��o �� rua para investigar.
Onde estar��o esses dois diabos?
��� Foram para aquele lado... ��� diz uma das
meninas.
��� Vi um homem num autom��vel conversando com
eles... ��� informa outra.
��� Um homem? ��� pergunto. ��� Como era ele? De
que cor era o carro? ��� D��o-me informa����es confusas.
Um autom��vel verde... N��o! Era azul. .. ou preto.
O homem estava vestido de escuro, com a aba do cha-
p��u puxada sobre os olhos. Era moreno, parecia es-
trangeiro. .. Muito misterioso ��� acrescentam.
Saio acompanhado de Peter ��� Dom Quixote e
Sancho Pan��a ��� �� procura de Clara e Louie. As me-
ninas nos seguem como um bando de gralhas assanhadas.
��� Foram raptados! ��� grita uma delas.
��� Acho que foi o homem de preto! ��� exclama
outra.
Volto-me e vejo caras ansiosas, mascarazinhas
duma trag��dia grega em vers��o infantil. M��scaras que
n��o exprimem apenas susto, mas tamb��m uma esp��-
cie de prazer ��� a vol��pia de estar tomando parte numa
hist��ria real, de mocinho e bandido. A verdade �� que
estou come��ando a me inquietar. Clara! ��� grito ���
Louie!! E Peter repete esses nomes, como um eco
galhofeiro. E assim percorremos uma quadra inteira.
Sou como o Pied Piper da lenda, tocando a sua flauta
174
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
m��gica e conduzindo para fora do burgo um regimento
de ratos. Clara! Louie! Entramos na Cabrillo Street, de-
pois na Balboa. As garotas est��o cada vez mais excitadas.
Recorda����es me visitam a mente. O palha��o montado
num burro, percorrendo as ruas duma cidadezinha bra-
sileira, e gritando: "O palha��o que ��?" E atr��s deles, os
p��s descal��os levantando a poeira vermelha do ch��o, os
moleques respondem: "Ladr��o de mui��!" O palha��o de
macac��o metade azul, metade encarnado. Eu de cal��as
amarelas. "Hoje tem marmelada?" E o coro: "Tem sim
senhor!" Grito o nome de meus filhos. O bando de
gralhas os repete, num un��ssono esgani��ado. E
agora n��o sei se j�� estou mesmo alarmado ou apenas
irritado diante desta situa����o rid��cula. Ou��o uma das
meninas dizer:
��� Gee! �� sensacional, bem como nos filmes de
gangster!...
E outra:
��� You bet! Parece uma hist��ria de Dick Tracy.
E assim, sem descobrir os desaparecidos, volta-
mos �� Fulton Street. Entro em casa sem saber que fazer
e vou direito ao living-room, para l�� encontrar, muito
serenos, sentados no sof�� e lendo o jornal da tarde,
Clara e Louie.
��� Onde �� que voc��s andaram? ��� pergunto.
Quatro olhos tranq��ilos fitam-se em mim.
��� U��, pai... N��s n��o sa��mos daqui. Estamos
vendo a p��gina c��mica do jornal.
Atr��s de mim o bando come��a uma algazarra feita
de surpresa, alegria e ��� talvez ��� decep����o. Volto-me
para as meninas e vocifero.
��� Voc��s n��o t��m mais nada que fazer?
Amaldi��oo os suplementos infantis dos jornais e
os filmes de crime e mist��rio que enchem de carami-
nholas as cabe��as dessas crian��as. Mas a maldi����o
n��o tem vida longa. Porque no momento se-
A VOLTA DO GATO PKETO
175
guinte estamos todos n��s, inclusive o homem de cal��as
amarelas, ajoelhados no ch��o, diante dos jornais aber-
tos, a ver e comentar em voz alta as proezas do Super-
Homem...
OS CISNES
14 de mar��o. Depois duma semana de chuva
quase incessante, o c��u hoje amanhece limpo e azul.
Tenho a impress��o de que estamos criando bolor, que
o m��ldio nos brota na ponta dos dedos, no rosto, na
alma. �� preciso tirar esta fam��lia para rua, a fim de
que todos tomem sol, sol, muito sol.
Sa��mos, manh�� cedinho, para o parque. Vem do
mar um vento frio e cortante ��� uma esp��cie de vers��o
americana do minuano. A relva dos canteiros est��
grisalha de geada. Nossos p��s esmagam no ch��o bo-
lotas de eucaliptos, que desprendem um cheiro acre
e agrad��vel.
Clara e Mariana trazem len��os amarrados na ca-
be��a. Lu��s est�� de cal��as compridas, casaco de couro
e tem na cabe��a um quepe militar, o que lhe d�� um
jeito de guerrilheiro russo.
Dizemos bom-dia para a est��tua do Padre Juni-
pero Serra, o fundador das famosas miss��es da Cali-
f��rnia, atiramos um al��! casual para o le��o de pedra
que monta guarda a uma das alas do Museu Young, e
paramos um instante para uma prosa com Cervantes,
Dom Quixote e Sancho Pan��a.
Atravessamos o jardim chin��s, passando pelo mo-
numental port��o de madeira que lembra a entrada dum
templo chin��s.
Caminhamos por entre cam��lias e maples por estes
estreitos sendeiros pavimentados de lajes, e orlados por
gradis r��sticos feitos de taquara de bambu. Paramos
176
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
diante da imagem dum Buda que est�� placidamente
postado �� sombra de esbelto pagode pintado de ama-
relo, vermelho e preto. Olhamos nossas caras no es-
pelho duma sucess��o de pequenos lagos onde b��iam
l��tus brancos e l��rios aqu��ticos, e em cujas ��guas trans-
parentes, de fundo limoso, nadam peixes vermelhos.
Clara e Lu��s fazem quest��o de atravessar a ponte semi-
circular, cujo reflexo na ��gua completa a circunfer��n-
cia perfeita.
Deixando o jardim chin��s vamos passear �� beira
dum lago, que fica numa esp��cie de plat��, no interior
do parque. Ficamos olhando um patinho morto que
b��ia lentamente �� flor da ��gua., com um mont��culo de
geada acumulado sobre o peito. (Em algum lugar da
Europa ��� penso ��� a esta mesma hora deve haver um
jovem soldado americano, russo ou ingl��s, morto, esten-
dido no ch��o, com um punhado de neve sobre o peito.)
E mais adiante, sob uma ponte r��stica de pedra,
dois cisnes ��� um branco e outro preto ��� nadam sere:
namente, bem como num fecho de soneto parnasiano.
FINIS
18 de mar��o. Contaram-me hoje uma hist��ria im-
pressionante. Acaba de suicidar-se um professor de
qu��mica dum destes col��gios dos arredores de San
Francisco. Era um judeu austr��aco que se refugiara
com a esposa nos Estados Unidos, depois que Hitler
anexou sua p��tria ao Reich. Apesar do carinho com
que fora aqui recebido o pobre homem n��o se sentia
feliz. Achava dif��cil recome��ar a vida depois dos ses-
senta, num mundo de l��ngua e h��bitos diferentes dos
daquele onde nascera e sempre vivera. Sua mulher,
atacada a princ��pio da mania de persegui����o, acabou
caindo num t��o profundo estado de melancolia que
A VOLTA DO GATO PRETO
177
teve de ser internada num sanat��rio. Sem coragem
para continuar a viver, o velho professor ��� ao cabo
n��o sei de que tremendas lutas ��� decidiu suicidar-se.
Era um homem calado, am��vel e de ar t��mido. As suas
alunas o adoravam. Antes de ingerir veneno escreveu
uma carta ao Presidente do col��gio, agradecendo-lhe
por todas as suas gentilezas, e pedindo-lhe desculpas
pelo que ia fazer. Rogo-lhe encarecidamente que n��o
conte ��s minhas alunas que me suicidei. Diga que foi
um acidente . E ao bedel que provavelmente ia encon-
trar-lhe o cad��ver na manh�� seguinte quando viesse
limpar o escrit��rio, deixou uma c��dula de dez d��lares
e este bilhete: Perdoe-me pelo choque que lhe causei.
Como compensa����o deixo-lhe esta pequena lembran��a.
Adeus, meu amigo.
Quando o dia amanheceu e o bedel entrou, o
professor de qu��mica parecia dormir tranq��ilamente,
debru��ado sobre sua escrivaninha. E a express��o de seu
rosto n��o era de ��dio ou pavor. Era ainda uma ex-
press��o de timidez, como se aquele homem simples e
discreto estivesse a pedir desculpa �� sociedade pelo que
acabava de fazer, por achar talvez que um suic��-
dio era coisa demasiadamente melodram��tica, exces-
sivamente espalhafatosa para quem como ele atraves-
sara a vida sem acotovelar ningu��m, sem fazer ru��do,
com um sagrado horror de chamar a aten����o do mundo
sobre sua pessoa.
CROMO
23 de mar��o. A primavera chegou. Cessaram as
chuvas. Em San Francisco continua o nevoeiro, mas em
Berkeley h�� sol, e sob as macieiras e ameixeiras flo-
ridas que orlem as cal��adas destas ruazinhas de ordi-
n��rio calmas, caminham velhos professores e passam
178
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
cantando em claros bandos, raparigas que nunca ou-
viram e por certo nunca ouvir��o falar em Ant��nio
Nobre.
O BRASILEIRO DOS MOSQUITOS
27 de mar��o. "H�� aqui na Universidade um bra-
sileiro entendido em mosquitos" ��� disse-me algu��m
h�� dias. Perguntei o nome desse homem fabuloso
que, segundo as informa����es, vive fechado numa sala
a dissecar mosquitos e a descobrir coisas novas a res-
peito deles. �� Ot��vio Mangabeira Filho, que venho
a conhecer hoje em seu laborat��rio, a cuja porta bato.
Aparece-me em mangas de camisa um homem ainda
jovem, moreno, de ��culos, com uma cara p��cara, que
�� a mais absoluta nega����o de todas as coisas que me
contaram dele.
��� Vim aqui ��� digo-lhe ��� na esperan��a de que
voc�� ainda se interesse um pouco por seres humanos.
E l e me aperta a m��o e eu sinto que j�� somos ami-
gos. Passamos a nos entender desde o primeiro mo-
mento e para isso n��o precisamos de muitas palavras.
Almo��amos juntos numa dessas graciosas food-
shops freq��entadas por estudantes, e depois sa��mos
a visitar livrarias de segunda-m��o e antiqu��rios. Mas
n��o prestamos aten����o a livros nem a objetos antigos,
porque passamos todo o tempo a falar na pol��tica
brasileira.
De volta a seu laborat��rio ele me fez olhar um
mosquito ao microsc��pio. Que riqueza de cores e
desenhos h�� na asa dum mosquito! Voc�� j�� olhou a
asa duma mosca? E dum gafanhoto?
De insetos passamos a conversar sobre o Brasil, e
ambos manifestamos o desejo de ver nosso pa��s de
volta ao regime democr��tico.
A V O L T A DO GATO P R E T O
179
��� Existe uma Fran��a Livre ��� digo ��� uma Pol��-
nia Livre. Por que n��o fundamos aqui o Brasil Livre?
Manga tira a l��mina do microsc��pio com infinito
e amoroso cuidado, e depois responde:
��� N��o adianta. O Departamento de Estado n��o
reconheceria nosso governo...
E em seguida, esquecendo-se de mim, entrega-se
aos seus mosquitos.
OS TR��S DEM��NIOS
1�� de abril. Germ��n Arciniegas, natural da Co-
l��mbia, mas cidad��o do mundo, �� um dos raros hispa-
no-americanos que conhe��o dotado de verdadeiro
sense of humour. N��o trouxe para este pa��s nenhum
complexo de inferioridade, nem adotou nenhuma da-
quelas atitudes extremas t��o perigosas, como seja a de
"achicarse" e embasbacar-se diante das coisas que aqui
v��em, passando a achar que tudo quanto temos "l��
em baixo" �� mesquinho, pobre e in��til; ou ent��o a de
andar num triste quixotismo investindo contra moi-
nhos de vento, ver por todos os cantos inimigos da
'latinidad", e proclamando que a "civiliza����o ianque"
�� puramente mec��nica e que s�� n��s, os latinos, �� que
conhecemos e amamos a vida do esp��rito.
Arciniegas, que j�� foi ministro da Educa����o em seu
pa��s, �� um admir��vel escritor. Seu espanhol �� escorrei-
to, gracioso, l��mpido, sem nenhum excesso de adjeti-
va����o. Seus livros sobre hist��ria, sociologia e litera-
tura s��o uma del��cia, e v��rios deles j�� foram traduzi-
dos para o ingl��s.
Hoje Don German ��� que �� um homem ainda jo-
vem de estatura mediana, testa larga, rosto comprido
e que, pelo aspecto, tanto podia ser espanhol, como
180
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
franc��s, argentino ou brasileiro ��� me declara que es-
t�� escrevendo uma hist��ria do mar das Cara��bas, mas que
o livro est�� progredindo muito lentamente. Conta-me
de sua pregui��a, de sua relut��ncia em escrever. E
como Mongui��, el Catalan, se re��ne a n��s para um
r��pido lanche num restaurante de estudantes, o tema
de conversa����o �� simplesmente a bo��mia sul-americana,
sinal de nossa am��vel sabedoria da vida.
��� O que faz falta a este pa��s ��� digo ��� �� um
pouco mais de pausas ociosas.
��� Exatamente ��� concorda Mongui��. ��� Olhe s��
essa gente como come ��s pressas.
��� E como �� poss��vel n��o comer ��s pressas? ��� per-
gunta Don German. ��� Veja o olhar ansioso, fam��lico
daqueles rapazes e raparigas que ah est��o de p�� es-
perando que uma das mesas fique vaga!
��� Outra coisa estranha ��� prossigo ��� �� que n��o
vemos nas ruas das cidades americanas gente que ande
simplesmente passeando. Eles v��o a algum lugar deter-
minado, porque t��m um encontro a uma certa hora, ou
ent��o ��� andam fazendo compras.
��� Nunca se v��em grupos parados ��s esquinas,
proseando ��� diz Mongui��.
Falamos num gostoso costume das gentes das ci-
dades sul-americanas: passear ao redor das pra��as
principalmente nos dias de retreta. Na vida de caf��,
onde pessoas que nunca t��m pressa ficam em torno duma
mesa discutindo pol��tica, mulheres, futebol ou a imor-
talidade da alma.
��� Esse ��� digo ��� �� um tra��o ib��rico que me pa-
rece digno de ser conservado. No fim de contas a arte
da conversa����o... �� uma das belas-artes.
E para provar que n��o somos apenas um grupo
de te��ricos, sa��mos do restaurante e vamos nos deitar
num tabuleiro de relva, �� sombra de pinheiros. De
onde estamos se avista, por cima dos altos eucaliptos
A VOLTA DO GATO PRETO
181
e carvalhos, a ponta da torre do Campanile. Para
muitos destes estudantes a import��ncia do Campanile
est�� em que ele �� das torres mais altas dos Estados
Unidos; oferece ainda a particularidade de ter sido
feita de granito da Calif��rnia. Acrescentar��o outros
que ele tem cem metros de altura e que seu carrilh��o
�� formado de doze sinos fundidos na Inglaterra. Para
n��s o Campanile �� apenas uma torre cujos sinos de
hora em hora tocam uma musiquinha agrad��vel. E
essa musiquinha agora marca a dura����o desta nossa
conversa mole e pregui��osa. Porque �� bom ficar aqui
deitado, mordiscando talos de grama, olhando o c��u
ou as estradas povoadas de estudantes, e conversando
sobre tudo e sobre nada.
Passa pela cal��ada que perlonga esse tabuleiro
de relva um professor do departamento de geografia.
Ao ver-nos, det��m-se por um minuto e pergunta:
��� Que conspira����o �� essa?
��� Ol��, hombre! ��� exclama Arciniegas. ��� Venha
tomar parte nesta discuss��o.
��� Sobre que �� que discutem? ��� indaga o pro-
fessor.
��� Sobre nada ��� respondo. ��� E ainda n��o chega-
mos a um acordo.
��� Vem ou n��o vem? ��� pergunta Mongui��.
O homem olha o rel��gio.
��� N��o posso. Estou com pressa. Tenho de tomar
um trem. Good-bye!
Vai-se. Ficamos com o sol e a nossa pregui��a.
Arciniegas conta que o Almanaque de Bristol, a grande
leitura de sua inf��ncia, em Bogot��, �� o principal res-
pons��vel pela sua voca����o liter��ria. Fica entusiasma-
do quando lhe afirmo que o mesmo se passou comigo.
Cito ainda o Almanaque Ayer, o da Cabe��a de Le��o.
De almanaques passamos a falar em caudilhos; de cau-
dilhos saltamos para comidas; de comidas para a ener-
182
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
gia at��mica. (Que estar��o fazendo os f��sicos l�� no
alto da colina, metidos naquele edif��cio circular?)
Os carrilh��es tocam uma melodia do velho Sul.
Que horas ser��o? N��o poderei nem ao menos por uma
vez esquecer o rel��gio? Vejo delinear-se-me na mente
uma figura; o velho An��lio, capataz de est��ncia. Tem
na cabe��a um chap��u de abas largas ��� para ele som-
brero ��� e veste largas bombachas.
Devo abrir aqui um par��ntese para uma expli-
ca����o. Como �� sabido, todos n��s temos os nossos de-
m��nios particulares. S��o criaturas que moram em algum
recanto de nosso c��rebro, ou, melhor, misteriosos
peixes que vivem escondidos no fundo do lago da
mem��ria e que, de quando em quando, independen-
temente de nossa vontade, aparecem �� tona e dizem
uma coisa, fazem um gesto, soltam uma exclama����o.
Dum certo modo eles dirigem nossa vida. S��o os
nossos censores.
Tr��s dem��nios me atormentam ��s vezes os pensa-
mentos. Dona Eufr��sia Roj��o, Jesualdo e o velho
An��lio. Sempre que fa��o, digo ou escrevo alguma coisa
que �� luz da boa educa����o pode ser considerada im-
pr��pria; sempre que tomo alguma liberdade com a
l��ngua portuguesa ou com qualquer outra l��ngua ���
dona Eufr��sia, minha professora bota a cabe��a para fora
do lago, franze o sobrolho, ergue o dedo e diz: "Ai-
ai-ai!" E eu fico frio. Jesualdo era um padeiro italia-
no da minha inf��ncia, um homem de dentes mi��dos e
estragados. Dizia-se carbon��rio, fumava cachimbo e
n��o tinha ilus��es sobre a natureza humana. Se lhe
apresentavam os dados dum problema, fosse ele in-
dividual, social, pol��tico, financeiro ou psicol��gico ���
sacudia a cabe��a e dizia: N��o tem jeito, que, na sua
meia l��ngua era: ��� No t�� j��to. Esse pessimismo uma
vez que outra perturba minha vis��o do mundo. Sem-
pre que tento olhar a vida e os homens com esperan��a,
A VOLTA DO GATO PRETO
183
Jesualdo me aparece em pensamentos, solta uma ba-
forada de fuma��a e diz: No t�� j��to.
Quanto a An��lio, era um fan��tico do dever e do
trabalho. Para ele um homem "direito", uma pessoa
de bem, devia pular da cama ��s cinco horas da manh��
e trabalhar honestamente at�� o p��r do sol. "Eta, ��ndio
ruim!" ��� era a frase que ele atirava, como uma pedra,
na cabe��a dos pregui��osos.
Pois �� An��lio que agora me aflora �� tona do lago
da mem��ria, gritando:
��� Eta, ��ndio ruim! ��� N��o lhe dou aten����o. Es-
tou gostando desta pregui��a mole. Sei que tenho de
estudar o romantismo para a li����o de depois de ama-
nh��. Preciso ir at�� a Biblioteca para fazer um trabalho
que aqui se designa com uma palavra muito impor-
tante: research. Mas vou ficando...
��� V�� trabalhar, vagabundo ��� vocifera An��lio. ���
Ganhando �� toa o dinheiro do governo!
Picado de remorso, levanto-me.
��� Bom. Vou andando ��� digo. Tenho de fazer
um estudo sobre o romantismo.
Jesualdo me aparece, faz uma careta e diz:
��� Romantismo? No t�� j��to.
E parece que n��o tem mesmo.
JACK O ESTRIPADOR
3 de abril. O sol aparece por uns instantes, rom-
pendo as nuvens pardacentas que cobrem o c��u de
San Francisco. Como n��o preciso ir hoje a Berkeley,
meto-me no parque.
Naturalmente vou fantasiado de Mr. Hyde, isto
��, de jaquet��o de lenhador e cal��as amarelas. Crian��as
brincam no declive da relva perto duma das alas do
184
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
museu. Distraidamente levo a m��o �� cabe��a duma
delas. �� uma meninazinha magra, com os cabelos
cheios de papelotes. Ao sentir o contato de meus
dedos a criaturinha ergue os olhos para mim, solta
um grito e deita a correr na dire����o dos amigos. L��
do alto do declive ela aponta para baixo e grita:
��� Ele quis me pegar! Deve ser um desses gangs-
ters, um raptor de crian��as!
Creio que estou vermelho, tenho as faces e as
orelhas ardendo. Estugo o passo e embarafusto pelo
t��nel, procurando a sombra como um morcego. Ago-
ra me ocorre que n��o me barbeei esta manh��. Vendo
uma cara sombria e morena, a criaturinha, trabalhada
por centenas de suplementos dominicais com hist��rias
sobre raptores de crian��as, e por centenas de filmes de
gangsters ��� julgou ver em mim um desses bandidos
cujos retratos ��s vezes aparecem na cr��nica policial dos
jornais.
Ainda ou��o o grito esgani��ado e vejo o dedo
acusador. Sinto-me culpado e cruel. Aqui vou numa
verdadeira retirada, com a impress��o de que todas as
crian��as dos Estados Unidos est��o em meu encal��o.
Sou Jack o Estripador. A sombra da forca me perse-
gue. O remorso me espica��a os flancos.
Saio no outro lado do t��nel. A luz do sol me ofus-
ca. Caminho apressado para a casa, atiro longe o
jaquet��o e vou direito ao quarto de banho para fazer a
barba.
De tr��s da porta surge um vulto... Ou��o um
tiro. Volto-me, num sobressalto. De capacete de a��o
na cabe��a, Lu��s aponta para mim a metralhadora de
pau.
��� Ora, v�� assustar a sua v��! ��� grito, antipedag��-
gicamente.
A VOLTA DO GATO PRETO
185
IGUARIA
4 de abril. "Muitos bons dias!" A voz macia e
aflautada do Prof. Yacob Malkiel soa no corredor de
Wheeler Hall. "Bom-dia", respondo no singular. E fi-
camos frente a frente, a sorrir um para o outro. Aqui
est�� diante de mim um dos mais not��veis ling��istas
que tenho encontrado em toda a minha vida. Nasci-
do na R��ssia, criado na Alemanha, doutorou-se com
distin����o em filologia, na Universidade de Berlim. Fa-
la russo, italiano, alem��o, ingl��s, franc��s, espanhol e
portugu��s. Conhece latim, grego e hebraico. No en-
tanto quem v�� este mo��o de rosto carnudo, com um
jeito de mocho e gestos de seminarista, n��o d�� um
centavo por e l e . . .
��� Quero oferecer-lhe um exemplar do meu ��l-
timo op��sculo ��� diz Malkiel, entregando-me um fo-
lheto. �� a separata dum estudo publicado numa re-
vista filol��gica, sobre a origem da palavra portugue-
sa iguaria: setenta p��ginas de tipo mi��do.
��� Oh! Muit��ssimo obrigado.
E quando Yacob Malkiel me deixa e sai no seu
passinho macio na dire����o do escrit��rio, fico a folhear
o livreto. Escritor de fic����o, homem do mundo do
faz de conta, estreme��o diante de tanta erudi����o, de
tanta paci��ncia, de tanta pesquisa. E n��o posso dei-
xar de admirar esse incr��vel professor que ��� junta-
mente com Ronald Hilton, da Universidade de Stan-
ford e com esse not��vel Marion Zeitlin ��� �� dos que
mais t��m contribu��do na Calif��rnia para a difus��o e
conhecimento da l��ngua portuguesa, essa "flor do La-
cio, inculta e bela" e ��� permita-se acrescentar ��� tre-
mendamente complicada...
186
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
DOIS MUNDOS
S de abril. Uma de minhas alunas, Miss Wolf, ��
uma refugiada europ��ia que em tempos idos foi bai-
larina e professora de dan��a em Viena. �� uma mu-
lherinha de meia-idade, apagada e triste. Assiste ��s
minhas aulas de literatura, e revela um interesse es-
pecial pelo folclore brasileiro.
Vou hoje tomar ch�� no seu apartamento de sol-
teirona solit��ria. Miss Wolf me diz de sua esperan��a
de poder um dia ir morar no Rio ou em S��o Paulo.
Para ela a vida em Berkeley n��o �� das mais f��ceis. J��
deu um curso de confer��ncias sobre dan��a na Uni-
versidade, mas presentemente n��o tem aqui nenhuma
fun����o docente. Ganha a vida fazendo trabalhos de
pesquisas para professores ou revisando provas de li-
vros para autores que vivem em Berkeley. Conta-me
que est�� organizando uma antologia po��tica sobre a
amizade, e na qual espera incluir autores de todas as
terras e de todos os tempos. Confessa-me, entretan-
to, que os editores a quem j�� escreveu contando de
seu empreendimento n��o se mostraram interessados na
edi����o do livro.
Enquanto bebericamos ch�� e mordiscamos biscoi-
tos, penso no drama de Miss Wolf, que n��o consegue
adaptar-se �� vida americana. Suas ra��zes sentimen-
tais ainda se acham metidas em solo europeu. Qual!
Pior ainda. Foram brutalmente arrancadas de l�� e n��o
puderam ainda afundar neste ch��o da Calif��rnia: es-
t��o no ar, meio ressequidas e quase mortas. Nada sa-
be dos poucos parentes que lhe restam. Talvez te-
nham morrido sob os bombardeios, ou estejam defi-
nhando num campo de concentra����o. Compreendo
que envelhecer deve ser doloroso especialmente para
uma mulher como Miss Wolf para quem a beleza, a
A VOLTA DO GATO PRETO
187
harmonia do corpo e a gra��a dos movimentos pare-
cem ter sido a sua maior fonte de alegria e esperan-
��a. Ela me mostra fotografias da mocidade. Vejo-a
envolta num manto grego, dan��ando ao vento �� som-
bra das ru��nas dum templo.
Num dado momento sinto que Miss Wolf est�� ��
beira duma confid��ncia. N��o sei por que as pessoas
acabam sempre por me fazer confid��ncias...
��� Vou lhe mostrar uma coisa... ��� diz ela, er-
guendo-se. ��� Mas sob o mais absoluto sigilo...
��� Pode contar com a minha discri����o ��� asse-
guro-lhe.
Miss Wolf abre a gaveta duma c��moda e tira de-
la uma pasta. Imagino que dali v�� sair um di��rio ��n-
timo, ou ent��o, cartas de amor, escritas talvez por
algum arquiduque austr��aco. Mas n��o. O que vejo ��
uma s��rie de desenhos em papel ��spero. E enquanto
os estende no ch��o, vai dizendo:
��� Eu s�� mostro estes trabalhos para aqueles que
julgo capazes de compreend��-los, e de compreender
tamb��m o motivo por que eu os fiz.
Sua voz sem cor perde-se no ar. Ela mal cont��m
um suspiro. Olho os desenhos. S��o c��rculos, tri��ngu-
los, retas que formam complicados ornamentos cujo
sentido n��o logro penetrar. N��o me dizem nada. Dei-
xam-me indiferente. Confesso isso francamente a
minha amiga, e ela murmura:
��� A�� est��. N��o querem dizer nada mesmo. Isso
�� arte abstrata.
Sacudo a cabe��a silenciosamente. Percebo que
todas as paix��es, lembran��as e sonhos recalcados de
Miss Wolf tomaram a forma desses desenhos. Para
n��s, homens, a dan��a e o ritmo est��o intimamente li-
gados �� forma humana. Ora, dificilmente podemos con-
templar um belo corpo de mulher sem ao menos al-
guma paix��o, e ��-nos por isso dif��cil dissociar da dan-
188
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��a, do movimento do corpo a id��ia de sexo. Est�� tu-
do ligado, amalgamado duma maneira insepar��vel, e
no que diz respeito �� dan��a, me parece tolo falar so-
bre arte pura, etc... Na sua timidez de solteirona,
Miss Wolf deve temer tudo quanto possa lembrar o
corpo humano e suas paix��es. �� por isso que busca
uma v��lvula de escape nesses desenhos angulosos, as-
sexuados do abstrato. (Ou ser�� que sou apenas o
que os americanos do norte chamam de lousy latin ���
latino s��rdido?)
Das janelas do apartamento de Miss Wolf tem-se
uma vis��o panor��mica da Universidade. Vejo l�� em
baixo, no est��dio, um grupo de rapazes de cal����es cur-
tos e torso nu a jogar voley-ball. Seus corpos reluzem
ao sol e o vento traz at�� n��s as suas vozes estridulas.
Aqueles mo��os ��� reflito ��� decerto n��o pensam em ar-
te abstrata. Para falar a verdade n��o devem pensar
em arte nenhuma. N��o buscam suced��neos para a
vida, pela simples raz��o de que t��m o artigo genu��no.
Olho para Miss Wolf aqui a meu lado, e, num
berrante contraste, vejo-a murcha, a buscar nestes
desenhos o que aqueles belos animais encontraram no
contato com as coisas concretas. Depois do jogo, uma
ducha fria. Depois da ducha, as suas roupas frouxas,
despretensiosas e esportivas. A seguir, o encontro com
as namoradas, e uma excurs��o doida atrav��s de caf��s,
dancings rinques de patina����o ��� tudo isso numa tro-
ca de beijos e abra��os.
Penso na minha curiosa posi����o entre esses dois
mundos. N��o perten��o a nenhum deles ��� concluo.
Mas devo confessar que se meu corpo est�� aqui nes-
te apartamento, minha aten����o est�� l�� fora, seguindo
os movimentos daquela pelota de couro ao sol.
De resto n��o ter�� este contraste uma natureza
simb��lica? Os desenhos abstratos de Miss Wolf re-
presentam uma civiliza����o "sofisticada" em artigo de
A VOLTA DO GATO PRETO
189
morte; e os rapazes seminus l�� em baixo corporificam
a civiliza����o instrumentalista e sadia do novo mun-
d o . . .
Literatura! Pura literatura. A vida n��o cabe as-
sim em conceitos e imagens. Al��m do mais, o mundo
ideal parece-me, seria aquele em que a cultura e a
experi��ncia da velha Europa pudessem ser revitali-
zadas, rejuvenescidas ao calor desta contente e tumul-
tuosa terra americana.
A "NONA" E O MARINHEIRO
10 de abril. Tenho dois bilhetes para a ��pera,
onde a orquestra sinf��nica de San Francisco e o Coro
Municipal v��o executar a "Nona Sinfonia" de Bee-
thoven, sob a reg��ncia de Pierre Monteux. Como Ma-
riana infelizmente n��o p��de vir, aqui estou agora na
frente do teatro a procurar algu��m a quem dar a ou-
tra entrada. Vejo um marinheiro de quase dois me-
tros de altura, com cara de boxador, encostado a
uma coluna.
��� Quer entrar? ��� pergunto-lhe, sem muita espe-
ran��a de ouvir um sim.
Ele me olha, meio intrigado.
��� Por que pergunta?
��� Tenho uma entrada aqui..
��� Quanto ��?
��� N��o custa nada. Dou-lhe de presente.
Ele me faz ent��o a pergunta que quase todos os
americanos fazem em circunst��ncias como esta:
��� Est�� certo de que n��o vai precisar desse bi-
lhete?
��� Absolutamente.
��� Thanks! ��� diz ele sorrindo.
190
OBRAS DE E R I C O V E R �� S S I M O
Quinze minutos depois estamos lado a lado, no
balc��o da ��pera.
�� um belo interior de paredes cor de marfim quei-
mado. No centro do teto pende enorme lustre na
forma duma flor estilizada. As cadeiras s��o estofadas
de veludo cor de vinho. O teatro est�� completamen-
te cheio. Os membros da orquestra e do coro j�� to-
maram seus lugares. Entra, sob aplausos, Pierre Mon-
teux, e n��o posso deixar de lan��ar m��o duma ima-
gem zool��gica para o descrever: parece-se com uma
capivara com bigodes de foca.
E n��o h�� imagem, nem zool��gica nem de esp��-
cie nenhuma, que possa descrever minha emo����o
quando rompe o coro da sinfonia ��� trazendo consi-
go, a refor��ar as sensa����es deste momento, a lembran-
��a de todas as outras emo����es que senti nas muitas
vezes do passado em que ouvi a Nona.
No intervalo converso com o marinheiro e fa��o
uma s��rie de coment��rios liter��rios, desses brilharetes
que em geral usamos para esconder a nossa ignor��n-
cia em mat��ria de m��sica. E este marmanjo de cara
amassada e est��pida me arrasa com uma longa, minu-
ciosa disserta����o t��cnica e erudita sobre harmonia e
contraponto...
OS ANT��PODAS
12 de abril. Travo hoje conhecimento com um
dos professores do Departamento de L��nguas Orien-
tais da Universidade. �� natural da Cor��ia e tem um
nome de tal modo complicado, que nem tentarei re-
produzi-lo aqui. Tomamos o mesmo trem de volta pa-
ra San Francisco. Conversamos sobre a guerra e so-
bre a paz que h�� de vir. Ele me pergunta do Brasil;
eu lhe pergunto da Cor��ia. Quando o trem deixa Ber-
A VOLTA DO GATO PRETO
191
Keley, principiamos a palestra um tanto bisonhos e
cerimoniosos. Mas chegamos ao outro lado da ba��a
em t��o boa e natural camaradagem, que decidimos
jantar juntos numa cafeteria para prolongar o di��logo.
Empunhando nossas bandejas corremos o balc��o, sele-
cionando o menu. Verificamos que, sem a menor com-
bina����o, escolhemos os mesmos pratos. Agora estamos
sentados �� mesma mesa, um na frente do outro. O
meu amigo coreano �� um jovem retaco, dum amarelo
p��lido e seco, os olhos obl��quos e humildes. Usa ��culos
de grossas lentes e sua voz �� aguda e pobre de modu-
la����es. Acho interessante que estes dois ant��podas se
tenham encontrado por acaso e agora estejam masti-
gando em sil��ncio um sum��rio jantar numa cafeteria
de San Francisco da Calif��rnia.
O coreano me diz de sua esperan��a de voltar ��
p��tria, e de v��-la um dia livre do dom��nio japon��s.
Falo-lhe do Brasil e do meu desejo de v��-lo com um
governo democr��tico. Trocamos id��ias sobre homens
e coisas. �� interessante: nossas opini��es n��o diferem
muito; nossos sonhos seguem na mesma dire����o.
Despedimo-nos com um prolongado aperto de
m��o.
��� Se um dia aparecer pelo Brasil ��� digo-lhe ���
n��o se esque��a de me procurar.
Dou-lhe um cart��o com meu nome e endere��o.
Ele me d�� o seu cart��o em que seu nome vem escri-
to em caracteres orientais, com o correspondente em
pros��dia inglesa logo abaixo.
��� E se o senhor algum dia for �� Cor��ia...
��� Quem sabe? O mundo est�� ficando muito pe-
queno.
Separamo-nos. O coreano some-se no meio da
multid��o de Market Street.
Wendell Wilkie, voc�� tem raz��o. O mundo �� um
s��.
192
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
LANTERNAS NA FLORESTA
14 de abril. A Universidade da Calif��rnia comemo-
ra hoje o dia pan-americano. Alunos e professores
reunem-se no gymnasium ��s dez da manh�� para ouvir
os dois oradores oficiais. Um deles �� German Arci-
niegas; o outro, eu. Toca-me falar em primeiro lu-
gar. Dr. Deutsch, vice-presidente da Universidade,
diz algumas palavras de apresenta����o, eu me aproxi-
mo do microfone e olho em torno. Nunca em toda a
minha vida falei para um p��blico t��o grande. Neste
vasto sal��o acham-se sentadas nada menos de cinco
mil pessoas. Avisto caras conhecidas. L�� est�� o Prof.
Herbert Evans. Mais al��m o Prof. Lawrence, o alqui-
mista. De sua cadeira Morley sorri para mim encora-
jadoramente. Vejo tamb��m generais do ex��rcito, almi-
rantes . .. Aqui e ali vislumbro uma barbicha ilustre.
E nas arquibancadas ��� toda uma multid��o de su��teres
coloridas e faces jovens.
Come��o o discurso falando na hist��ria de Jo��o-
zinho e Ritinha perdidos na floresta, e comparo as
gera����es modernas com os dois her��is do conto. Falo
nos tempos medievais em que, entre as classes po-
bres, prevalecia a antiga id��ia de que a felicidade era
imposs��vel neste "vale de l��grimas". Os bar��es feu-
dais procuravam fomentar essa id��ia, porque ela ser-
via admiravelmente seus prop��sitos. Ser feliz e sen-
tir prazer ��� diziam eles, secundando os padres ��� era
um pecado, uma pedra de trope��o no caminho do
c��u. No c��u �� que estava o verdadeiro pr��mio...
Assim adormentados por esse ��pio os servos resigna-
vam-se a uma vida de pobreza e duros trabalhos, ao
passo que os bar��es viviam �� tripa forra.
Falo nas mudan��as que com o passar dos s��culos
se operaram nesse conceito de felicidade. O progres-
A VOLTA DO GATO PRETO
193
so t��cnico e cient��fico dos ��ltimos cinq��enta anos
contribu��ram para a felicidade e o bem-estar material
dos povos. A ci��ncia, servida pela ind��stria, nos deu
coisas que aumentaram o prazer de viver e aliviaram
o fardo que as doen��as impunham. In��meras desco-
bertas e inven����es de v��rios modos contribu��ram para
tornar a vida mais higi��nica, mais bela, mais f��cil e,
conseq��entemente, mais agrad��vel.
Fa��o uma pausa e, destacando bem as palavras,
ponho uma ��nfase toda especial no que vem a se-
guir:
H��, por��m, um importante problema social que
est�� longe duma solu����o justa. Como fazer que a
maioria do povo goze dos benef��cios desse progresso?
Porque at�� agora os ��nicos que desfrutam dele s��o
os que podem pagar. E o mesmo acontece com a
educa����o!
Menciono o problema do lucro, que me parece
um dos pontos nevr��lgicos da quest��o. Em pa��ses
onde popula����es inteiras vivem ou, antes, vegetam
num estado de subnutri����o, g��neros de primeira ne-
cessidade s��o queimados ou jogados ao mar. Os
t��cnicos explicam friamente: �� uma quest��o de pre-
��os. Concluo: Um mundo que coloca o lucro acima
das vidas humanas �� um mundo perdido, corrupto e
hediondo .
Passo a falar nos "idealistas" que se recusam a
examinar a crise dos tempos modernos �� luz da eco-
nomia. Por qu��? V��em a tremenda luta pelo petr��-
leo, pelo trigo, pelo carv��o, pelo algod��o, pelos mer-
cados e por maiores lucros e continuam a proceder co-
mo se os homens fossem anjos. Na����es inteiras t��m
sido conduzidas como casas comerciais com um olho
nos lucros. Mais uma vez confundiram-se os meios
com os fins. Esqueceram que o Estado deve servir
o povo e n��o o povo o Estado. N��o compreenderam
194
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
que os interesses do homem comum, isto ��, da maio-
ria, devem ser colocados acima das corpora����es pri-
vadas, dos cart��is e dos trustes.
Esta guerra ��� prossigo, fazendo o poss��vel para
n��o assumir ares prof��ticos ��� �� at�� certo ponto uma
guerra ideol��gica, mas �� principalmente uma guerra
econ��mica. E se quisermos descobrir um rem��dio
eficaz para esse horr��vel flagelo peri��dico, n��o deve-
mos ignorar a sua verdadeira natureza. H�� um fato
que ilustra de maneira dram��tica o que estou dizendo.
Os avi��es japoneses que bombardearam Pearl Harbour
empregaram, ao que se diz, gasolina americana, e as
bombas que lan��aram eram provavelmente feitas de
ferro velho tamb��m americano.
Olho o rel��gio. Tenho apenas mais dez minutos
para salvar o mundo ��� digo para mim mesmo. Falo
na coopera����o interamericana e na aproxima����o que-
se operou entre as na����es do continente, e motivada
pela guerra. E termino assim:
Um soci��logo vosso compatriota comparou a hu-
manidade com um grupo de homens com lanternas
acesas a buscar um caminho atrav��s de escura e in-
comensur��vel floresta. Sim, a imagem �� quase perfei-
ta. Digo quase porque lhe fa��o uma obje����o. N��o
devemos esquecer que muitos dos componentes desse
grupo se recusam a cooperar, por pessimismo, ego��s-
mo, pregui��a ou simples estupidez. E h�� tamb��m os
malvados, os que preferem riscar f��sforos e deitar fo-
go �� floresta.
O que importa, meus amigos, �� manter acesas
nossas lanternas e continuarmos �� procura do caminho
para a liberdade e para uma vida melhor. A jornada
�� longa, e terr��vel �� a noite. Mas agora estamos des-
cobrindo o verdadeiro sentido da fraternidade. Avan-
��amos de m��os dadas. E sabemos que, aconte��a o
que acontecer, n��o estaremos s��s .
A VOLTA DO GATO PRETO
195
N��o sei como v��o receber minhas palavras. Ter-
mino o discurso e meto meio nervosamente os pap��is
no bolso. H�� um hiato de mais ou menos dois segun-
dos. Depois rompem os aplausos, ��� aplausos espon-
t��neos, fortes, prolongados, que s��o uma resposta ��
minha d��vida.
Passo o len��o pelo rosto, que est�� alagado de suor,
e volto para a minha cadeira. Ao passar por Arcinie-
gas, n��o resisto a tenta����o de piscar-lhe o olho...
CREPUSCULAR
15 de abril. Quem �� aquele homem que ali vai
com a gola do casaco erguida, e o chap��u de feltro
negro desabado sobre os olhos? �� um professor do
Departamento de Espanhol da Universidade, um ho-
mem crepuscular, de olhos escuros, barba sempre azu-
lando, rosto emaciado, olhos fundos e ar soturno. ��
calado, retra��do e franquista. Para falar a verdade, ��
o ��nico partid��rio da Falange num Departamento em
que todos os professores adoram a Espanha e detes-
tam Francisco Franco.
L�� vai essa personagem medieval atravessando a
rua, rumo do port��o que d�� para Telegraph Street.
Nada tem a ver com o sol, com estas raparigas e ra-
pazes que por aqui andam. Ele n��o caminha atrav��s
da vida e das criaturas: ele se esgueira. Seu primeiro
nome �� Erasmo. O segundo, n��o posso dizer. �� um
nome anat��mico, desses que a gente n��o pode pro-
nunciar diante de senhoras. Se nosso her��i tivesse de
ir morar no Brasil, na certa seria obrigado a mudar
de sobrenome.
Nunca ouvi a voz desse sombrio professor nem
espero ouvi-la nunca. Se ele j�� me evitava antes, ago-
ra depois do meu discurso de ontem, foge de mim co-
196
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
mo o diabo da cruz. Acontece, por��m, que neste ca-
so a cruz �� ele e o diabo sou eu.
UM RATO �� UM BICHO
16 de abril. Sou tamb��m orador oficial do Mills
College, nas suas comemora����es do dia pan-america-
no. A cerim��nia se realiza num belo teatro dentro do
campus. �� o Mills um dos col��gios femininos mais im-
portantes desta costa do Pac��fico. Aqui se educam
mo��as ricas, que, al��m de fazer o curso de letras, ar-
tes e filosofia, aprendem equita����o, nata����o e dan��a.
Diante de mim tenho um microfone. Pouco abai-
xo do microfone, as bandeiras das vinte e uma na����es
americanas dispostas em forma de leque. Para al��m
delas, seiscentas faces numa quase penumbra, e um
mar agitado de cabe��as. Atr��s de mim, no palco, Mr.
Lynn White, diretor do Mills, e que acaba de fazer
minha apresenta����o; e mais alguns membros da Junta
Administrativa do col��gio, senhores simp��ticos de
meia-idade, bem barbeados, bem vestidos ��� todos
eles pessoas de alta posi����o no mundo das finan��as
de San Francisco e Oakland. Acho que este �� o am-
biente menos adequado para um discurso no qual
lan��o a maior culpa dos desacertos do mundo e das
guerras para cima das largas costas do capitalismo.
Que fazer? Meus dem��nios particulares come��am a
manifestar-se. Dona Eufr��sia me diz que n��o devo
repetir o discurso que fiz ontem na Universidade,
porque ser�� uma indelicadeza. N��o terei eu por aca-
so o senso da oportunidade? Indiferente e a encolher
os ombros, Jesualdo murmura: No t�� j��to. Mas quem
me d�� ��nimo neste instante �� An��lio, o velho ga��-
cho. Quebra a aba do sombrero e grita: "Um homem
�� um homem; um rato �� um bichol"
A VOLTA DO GATO PRETO
197
Est�� decidido. Para essas seiscentas meninas
bem tratadas, que esperam decerto ouvir um discurso
cor-de-rosa em que se diga que as vinte e uma na-
����es americanas s��o hermanitas, sisters, irm��zinhas
que vivem num para��so, dan��ando valsas e atirando
flores umas nas outras; para essas seiscentas mocinhas
admir��veis come��o a falar na floresta escura, na mi-
s��ria em que vive a maior parte da popula����o da ter-
ra, nos absurdos do mundo capitalista e do horror
de Pearl Harbour, para o qual algumas firmas norte-
americanas cooperam, porque no fim de contas, dear
friends, neg��cio �� neg��cio, amigos �� p a r t e . . .
Quando termino, os aplausos s��o prolongados e
entusiastas. Os americanos s��o muito espont��neos no
que diz respeito ao aplauso. V��m para o teatro, pa-
ra o cinema, para a sala de confer��ncias decididos a
gostar. Imaginemos um sal��o cheio de gente. De re-
pente algu��m come��a a bater palmas. Em menos de
um segundo todos ali dentro estar��o aplaudindo sem
saber por qu��. Essa disposi����o para o aplauso �� um
dos tra��os mais simp��ticos deste povo, pois �� um si-
nal de boa vontade, de aus��ncia de mal��cia, e de de-
sejo de estimular.
Mr. Kendrick, o presidente da Junta Administra-
tiva, caminha para mim. �� um homem alto, de rosto
comprido e anguloso. Sei que �� um milion��rio. N��o
posso esperar que concorde com o que acabo de di-
zer. Vejo-o, por��m, estender a m��o para mim. Aper-
to-a fortemente, enquanto ele diz:
��� Como capitalista, discordo de muitas de suas
id��ias, mas felicito-o pela maneira clara e corajosa
com que exp��s sua maneira de ver o problema.
E depois, com ar casual:
��� Tem condu����o para San Francisco?
��� N��o ��� respondo.
198 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Venha ent��o no nosso carro. Minha senhora
e eu teremos muito prazer em lev��-lo.
T��VOLA REDONDA
20 de abril. Dificilmente se passa uma semana
em que eu n��o seja convidado a falar duas ou tr��s
vezes fora da Universidade. Assim, tenho feito con-
fer��ncias para grupos de senhoras interessadas em
problemas sociais, para clubes de damas amigas do
pan-americanismo, para homens de neg��cios preocupa-
dos com o rumo do com��rcio deste pa��s com a Am��-
rica Latina depois da guerra, e para associa����es de
estudantes. Gosto principalmente do conv��vio destes
��ltimos. Tenho discutido os assuntos mais imprevis-
tos. Na minha ��nsia de explicar o Brasil e os brasilei-
ros para essa gente (e de certo modo para mim mes-
mo) procuro fugir o mais poss��vel �� literatura oficial,
t��o falsamente otimista e simplificadora. N��o escon-
do os aspectos da vida brasileira que me parecem
maus, a fim de que tenha cr��dito suficiente para uti-
liz��-lo mais tarde, quando tiver de mostrar o que me
parece elogi��vel na nossa terra. Esses audit��rios ame-
ricanos querem saber tudo: como somos, o que come-
mos, o que amamos, o que odiamos, o que fazemos,
como vivemos. ��s vezes surgem perguntas tolas,
mas estas s��o paradoxalmente as que mais se pres-
tam para uma resposta viva e oportuna.
Tenho hoje uma experi��ncia nova. Tomo parte
numa dessas round tables, ou t��volas redondas, isto
��: discuss��es entre quatro, cinco ou mais pessoas ���
escritores, professores, profissionais, industrialistas ���
em torno de problemas de interesse geral. H�� um
"moderador" que apresenta ao p��blico os componen-
tes da mesa, que exp��e o ponto a discutir, e que,
A V O L T A DO GATO P R E T O
199
quando a discuss��o est�� acesa, trata de evitar que os
contendores se afastem demasiadamente do assunto.
A round table de hoje vai ser irradiada. Uma das re-
gras do jogo �� que nenhum pode ler o que vai dizer,
pois o desenvolvimento da discuss��o �� imprevisto. O
tema a debater �� "Boa vizinhan��a", e aqui no estu-
dio estamos reunidos ao redor do microfone ��� uma
senhora nicaraguana, um venezuelano, um arquiteto
americano, o Dr. Eloesser, famoso cirurgi��o e filan-
tropo, e outras personalidades. Quando chega a mi-
nha vez, a pergunta que me toca ��:
��� Os brasileiros gostam dos americanos?
Resposta:
��� �� muito dif��cil responder com um sim ou com
um n��o. Nossa tend��ncia, no Brasil, �� de gostar das
pessoas. Mas para n��o cair em nenhum otimismo
convencional preciso dizer que h�� no meu pa��s v��-
rias fontes de propaganda antiamericana.
��� E quais s��o elas.. . pode dizer?
��� Em primeiro lugar, temos os integralistas, ou
seja, os fascistas brasileiros, que gostariam de ver seu
pa��s do lado do Eixo. Depois, temos os pr��prios ale-
m��es que residem no Brasil. . . Refiro-me apenas aos
nazistas...
��� Muito bem. Continue.
��� H�� ainda alguns membros influentes da Igreja
Cat��lica que baseiam seus sentimentos antiamerica-
nos na id��ia de que os Estados Unidos s��o um pa��s
protestante, que manda mission��rios para o Brasil, e
cuja influ��ncia lhes parece indesej��vel. Esses mem-
bros . . .
O moderador ergue a m��o:
��� Espere um momento. O senhor n��o deve dis-
cutir religi��o...
200 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Quem �� que est�� discutindo religi��o? Estou
apenas dizendo...
O homem me interrompe de novo:
��� Se o senhor conhecesse as leis dos Estados
Unidos nem mencionaria esses fatos...
��� Perd��o. O senhor me fez uma pergunta e eu
estou tratando de responder honestamente, e o que
ia dizer n��o envolvia nenhuma cr��tica ao catolicismo
brasileiro ou americano...
��� Bom. Vou passar adiante...
��� Pois passe adiante, j�� que n��o quer ouvir a
verdade...
O moderador est�� vermelho. De meu lugar posso
ver o controlador do som, l�� do outro lado do vidro,
como um peixe de aqu��rio. E o peixe sorri, divertin-
do-se com a discuss��o.
Mas estou perturbado. Nunca esperei que me
cortassem desse modo a palavra. Eu ia fazer pelo r��-
dio um apelo aos cat��licos dos Estados Unidos, pe-
dir-lhes que tratassem de explicar aos cat��licos brasi-
leiros que a Igreja �� forte e influente neste pa��s, e
que a liberdade de culto que aqui existe, e a toler��n-
cia religiosa que aqui se exerce devia servir de mo-
delo para os pa��ses da Am��rica do Sul.
O moderador de novo se prepara para me fazer
uma pergunta:
��� Agora, meu amigo brasileiro, quer me di-
zer... ?
Interrompo-o:
��� Eu n��o quero dizer nada. N��o acredito que
o senhor esteja interessado numa resposta sincera.
Quando sa��mos do est��dio Mr. W. me procura,
toma-me cordialmente do bra��o e diz:
��� Sabe que s�� por aquelas palavras suas a esta-
����o de r��dio podia ser processada?
A VOLTA DO GATO PRETO
201
��� N��o compreendo.. .
��� Pois ��. Neste pa��s as seitas religiosas s��o su-
persens��veis e reagem imediatamente ante qualquer
palavra que possa parecer um ataque, por leve que
seja, �� liberdade de culto garantida pela Constitui����o.
��� Quer dizer ��� replico ��� que por causa da li-
berdade de culto a liberdade de palavra �� atingida.
��� Que quer? Num livro o senhor poder�� escre-
ver o que quiser contra qualquer religi��o, e arcar
com as conseq����ncias. Mas n��o num programa de
r��dio ou num jornal. O assunto �� tabu.
��� Nesse caso. . . pe��o desculpas por ter estra-
gado o seu programa.
Ele me bate nas costas, esportivamente.
��� Esque��a-se disso.
E me aperta a m��o.
A ISCA
23 de abril. Minha magra contribui����o para o
esfor��o de guerra consiste em fazer palestras pelo r��-
dio, nos programas transmitidos para a Europa sob
o patroc��nio de Office of War Information, e ocasio,-i
nalmente falar em hospitais de marinheiros e soldados
convalescentes.
Cabe-me hoje fazer uma confer��ncia para qui-
nhentos soldados num grande hotel de Oakland que
foi transformado em hospital. O audit��rio �� dos mais
dif��ceis. Vejo aqui gente que pelo aspecto parece de
poucas letras. Ora, sei como falar a clubes femininos,
a grupos de estudantes, e a rotarianos. Mas esta �� a
primeira vez que falo a soldados. Vejo entre eles
alguns pretos e muitos descendentes de mexicanos. O
ar geral �� de indiferen��a. L�� na terceira fila est�� um
j�� de olhos fechados, na atitude de quem vai dormir.
O oficial encarregado do programa me comunica que
202
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
o microfone levar�� minhas palavras diretamente aos
doentes que ainda est��o de cama nos duzentos quar-
tos espalhados pelos andares superiores. O problema
me parece dif��cil. Como interessar essa gente no Bra-
sil? Como podem esses homens que viram o horror
da guerra, que sofreram no esp��rito e na carne toda a
sorte de viol��ncia e de prova����es interessar-se por
not��cias dum pa��s t��o remoto? Saber��o vagamente
que o Brasil �� uma terra tropical onde nasceu Car-
men Miranda e de onde vem o caf��. Nada mais. O
que eles querem �� recuperar a sa��de, ver a guerra
terminada e poder continuar a viver normalmente
suas vidas. A estes pensamentos e diante dessas ca-
ras ��� em sua maioria p��lidas, emagrecidas e doloro-
sas ��� quase me confesso vencido. Tenho, por��m, uma
id��ia. No fundo, esses homens devem ser um pouco
crian��as. Murmuro ao ouvido dum oficial:
��� Arranje-me um quadro-negro e giz de muitas
cores.
��� Okay. Em seguida!
Agora tenho aqui um quadro-negro, v��rios peda-
��os de giz, e um plano. E antes de come��ar a dizer
"Meus amigos. . .", ou "Soldados..." ��� ponho-me a
desenhar as caravelas portuguesas onde marinheiros
escrutam ansiosamente o horizonte, em busca de si-
nais de terra. O interesse do audit��rio come��a a ser
despertado. Algu��m solta uma risada quando me v��
rabiscar a cara barbuda de Pedro ��lvares Cabral. Ou-
tras risadas brotam. Por fim �� uma gargalhada ge-
ral. Noto uma transforma����o nas fisionomias. Leio
nelas interesse, curiosidade. Decerto esperavam e te-
miam um discurso solene, liter��rio, erudito. Mas ve-
rificam que nada disso vai acontecer. E entregam-se
de tal maneira, que engolem a p��lula a��ucarada que
lhes meto garganta abaixo. Com caricaturas na pedra
e com anedotas explico-lhes como o Brasil foi des��o-
A VOLTA DO GATO PRETO
203
berto e, em linhas gerais, conto-lhes tudo que acon-
teceu para virmos a ser o que somos hoje. O re-
sultado �� ��timo.
Despe��o-me deles, feliz n��o s�� porque lhes pro-
porcionei alguns momentos de distra����o, como tam-
b��m porque como conferencista descobri uma nova
t��cnica que devo aperfei��oar e usar daqui por diante,
seja para que audit��rio for...
O HOMEM DE PRETO
26 de abril. Quem �� esse velho pobremente ves-
tido de preto, de longas barbas brancas e melenas
crescidas que parecem de algod��o sujo e ressequido?
Quem �� esse velho que caminha com a cabe��a t��o
baixa que ela chega a formar um angulo reto com o
resto do corpo? Parece uma figura pintada por Pi-
casso ��� digo para mim mesmo, quando o vejo passar
como uma sombra silenciosa por estes corredores do
quarto andar do Wheeler Hall.
Hoje encontro a misteriosa criatura sentada nas
bordas dum canteiro, no Campanile Way, com os co-
tovelos apoiados nos joelhos, as m��os espalmadas a
cobrir o rosto. Queda-se nessa posi����o por longo, lon-
go tempo. Escondido atr��s dum arbusto, tico a obser-
v��-lo, intrigado. Porque esse homem que n��o fala com
ningu��m e cuja voz, creio, ningu��m jamais ouviu, ��
um verdadeiro contraste com os jovens cheios de vi-
da que entram e saem destes edif��cios, ou que andam
por estes sendeiros da Universidade.
O velho tem uma pele terrosa e emurchecida.
Suas m��os s��o longas, ossudas e dessangradas. Sua
roupa, que j�� foi preta, tornou-se ru��a com o tempo e
o uso; e como esteja agora suja de terra ��� a impres-
204
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
s��o que tenho �� a de que estou diante dum cad��ver
rec��m-desenterrado.
Quem ��? ��� pergunto a professores e alunos. Eles
encolhem os ombros. Ningu��m sabe ao certo. O ze-
lador do edif��cio me diz que se trata ��� parece ��� dum
velho professor de matem��tica que agora faz as vezes
de explicador para um grupo de alunos. Mas �� a mi-
nha aluna Patsy Mc Ewen quem me oferece a vers��o
mais fascinante da hist��ria do homem de preto. Con-
ta-se que h�� quarenta anos nosso her��i foi contem-
plado com uma heran��a da parte dum tio que aca-
bara de morrer, deixando expresso em testamento o
desejo de que o sobrinho cursasse uma universidade.
Para evitar d��vidas, disp��s que a fortuna lhe fosse en-
tregue n��o duma vez s��, mas em pagamentos mensais,
sob a condi����o, por��m, de que o "rapaz" nunca aban-
donasse o curso, pois no caso de isso acontecer as
mensalidades cessariam automaticamente de lhe ser
entregues. Desse modo, para n��o deixar de receber
a mesada, o nosso homem continuou a freq��entar a
universidade. O tempo passou, passaram-se as gera-
����es, subiu o custo da vida mas a import��ncia dos pa-
gamentos mensais n��o aumentou. Tudo se tornou di-
f��cil para esse homem solit��rio, que at�� hoje ��� eter-
no estudante ��� vagueia como uma alma penada pe-
los corredores da universidade.
Essa hist��ria pode n��o ser ver��dica, mas �� inte-
ressante. Temendo que algu��m a desminta, decido a
n��o perguntar mais nada sobre o homem de preto...
LIBERDADE
27 de abril. Na Market Street. Parado junto da
porta monumental do magazine The Emporium olho
as pessoas que passam. De repente, no meio desta
A VOLTA DO GATO PRETO
205
espessa e c��lida onda humana que enche confusamen-
te as cal��adas, vejo um grupo que me lembra os ran-
chos carnavalescos do Brasil. S��o meninas de high-
school que pagam seu tributo �� tradi����o colegial, des-
filando em trajes grotescos, e com as caras pintadas,
pela rua mais movimentada de San Francisco. Fazem
uma grande algazarra, cantam can����es humor��sticas
e dan��am. As veteranas imp��em ��s calouras v��rias
penit��ncias. Agora, aqui, a poucos passos de onde es-
tou, uma menina est�� de joelhos sobre a cal��ada, com
as m��os amarradas ��s costas, e com a boca quase a
tocar as lajes sopra numa casca de amendoim, pro-
curando desse modo empurr��-la at�� uma determinada
raia. Ao redor dela amontoa-se uma multid��o de curio-
sos. As outras estudantes incitam-na com gritos. Um
marinheiro que, pelo jeito, acaba de chegar da guerra
em gozo de licen��a, bate-me no bra��o e diz:
��� �� pra isso que estamos lutando. Pra que todos
tenham Uberdade de religi��o, de palavra, e liberdade
tamb��m para serem doidos como melhor entenderem.
Diz isto e se vai, abrindo caminho com os coto-
velos atrav��s da multid��o.
ACORDO
29 de abril. A um estudante que me pede uma f��r-
mula para promover um mais harmonioso entendimento
entre brasileiros e norte-americanos, digo: "Muito
simples. Voc��s nos ensinam a f azer todas essas coisas
que tornam a vida mais confort��vel e f��cil e n��s, em
troca, ensinaremos voc��s a goz��-las..."
O pior de tudo �� que o rapaz toma a minha f��r-
mula ao p�� da letra e quer discutir pormenores.
206
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
A NOVA AMIGA
2 de maio. H�� pelo menos quatro grandes roman-
cistas mulheres na literatura norte-americana. S��o elas
Edith Wharton, que conhecia como ningu��m a t��c-
nica do romance, e cujo Etham Frome �� um cl��ssico
moderno; Willa Cather, que reagiu contra o realismo
de Theodore Dreiser e cujo ideal era "o romance des-
mobiliado", isto ��, desatravancado de detalhes in��teis
e reduzido ao essencial; Pearl Buck, que em suas his-
t��rias retratou a vida e a alma da China, e que agora
come��a a escrever sobre a vida norte-americana; e fi-
nalmente Eilen Glasgow, cujo romance In This Our
Life acabo de ler. �� inexplic��vel que, apesar de eu ter
passado estes ��ltimos quinze anos ��s voltas com escri-
tores de l��ngua inglesa, s�� agora tenha "descoberto"
essa romancista de setenta anos... Quando fechei o
livro foi com a impress��o de que havia encontrado um
novo amigo. N��o creio que ningu��m tenha usado a
l��ngua inglesa com mais gra��a, limpidez e precis��o
que Miss Glasgow. Escrevendo sobre o seu estado
natal de Virg��nia, teve ela a coragem de ver o Sul sem
esse romanticismo e pitoresco que leva o leitor a ver
naquela vida apenas as mans��es de estilo georgiano,
com brancas colunas, e em cujo alpendre fazendeiros
cavalheirescos tomam refrescos trazidos por velhas
pretas, enquanto ao longe negros cantam cantigas so-
bre o Mississipi, e as magn��lias despedem um perfume
doce e morno, sacudidas pela brisa do entardecer. N��o,
Eilen Glasgow olhou o Sul com olhos l��mpidos; viu a
intoler��ncia, os germes de dissolu����o da aristocracia
da terra, a incompreens��o entre a gera����o antiga e a
moderna, e a inutilidade de viver chorando uma causa
perdida.
A VOLTA DO GATO PRETO
207
Neste seu In This Our Life sinto um ambiente
ibseniano ��� exatamente o tipo de clima que os cr��ticos
estrangeiros dizem faltar �� literatura dos Estados Uni-
dos, em geral t��o rosadamente otimista, t��o preocupa-
da com as hist��rias de sucesso, e n��o raro enamorada-
mente voltada para as possibilidades de Hollywood.
Encontro neste romance alguns trechos preciosos
para o observador da vida norte-americana. Um deles
�� o que descreve os pensamentos de Asa, uma das
personagens centrais da hist��ria, quando ele contem-
pla um jovem mulato que est�� tentando fazer uma
carreira: Mas �� singular como conhecemos pouco a
ra��a negra. Nossos criados sabem tudo a nosso respei-
to, ao passo que nada sabemos deles. Est��o ligados a
nossas vidas cotidianas; acham-se presentes em todas
as nossas crises ��ntimas; conhecem ou suspeitam de
nossos motivos secretos. No entanto somos completa-
mente estranhos �� maneira como eles vivem, ao que
na verdade pensam ou sentem com rela����o a n��s e a
qualquer outra coisa. E quanto menos pretos s��o,
mais inescrut��veis se tornam at�� que, quando chegam
quase a cruzar a linha divis��ria, como este menino
Parry, parecem at�� falar outra l��ngua e pertencer a outra
esp��cie que n��o a nossa.
Asa chega pela madrugada �� casa da filha, cujo
marido acaba de suicidar-se. Est�� cansado da viagem,
e enquanto sobe as escadas vai dizendo para si mesmo
que espera l�� em cima encontrar a oportunidade de
ao menos tomar um banho e fazer a barba. Toda a
trag��dia �� dolorosa ��� pensa ele ��� mas a trag��dia em
que a gente n��o se pode barbear �� sard��nica.
Aqui est�� um pensamento revelador. A trag��dia
americana �� geralmente uma trag��dia de barba feita.
A latina em geral �� uma trag��dia em que a v��tima ou
o criminoso n��o est�� barbeado. Entra aqui uma raz��o
econ��mica de n��vel de vida; e tamb��m essa esp��cie
208 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
de supersti����o que, al��m do puro prazer da limpeza,
leva os norte-americanos a crer que um homem barbea-
do pode encarar o mundo com mais otimismo e possi-
bilidades de ��xito.
Mais tarde Asa discute a trag��dia com a enfer-
meira. E lhe pergunta:
��� Profissionalmente falando, n��o lhe ocorreu algu-
ma vez que o amor �� o dem��nio?
Quantos puritanos assombram a alma de Asa neste
instante?
E a nurse:
��� Falando n��o profissionalmente, j�� me ocorreu,
sim.
Depois a enfermeira pergunta a Asa, que pertence
�� velha gera����o:
��� As pessoas sempre foram levianas como s��o
hoje? Ou ser�� ent��o que agora n��o existe mais privado?
ALERGIA
5 de maio. Estarei ficando al��rgico a livros? Sem-
pre que entro na biblioteca da universidade e caminho
por estas galerias de a��o, percorrendo as estantes de
livros, come��o a sentir um mal-estar que ora me pare-
ce febre, ora canseira. Tento em v��o descobrir a causa
disso. Saio para o ar livre, vagueio sob os eucaliptos,
respiro o ar embalsamado, e em poucos minutos o
ma��-estar se vai. Fa��o ent��o nova tentativa. Torno ��
biblioteca, convencido de que tudo foi apenas "uma
impress��o". Mas aos poucos me volta ao corpo o for-
migueiro, a lassid��o de membros, a afli����o, o desejo de
ar livre.
Hoje a coisa se repete. No hall da biblioteca en-
contro Arciniegas a consultar fichas. Tomo-lhe o bra��o:
��� Queres ouvir um segredo?
A VOLTA DO GATO PRETO
209
��� Que ��?
��� Acabo de descobrir que sou al��rgico a livros.
Meu amigo ajeita os ��culos e responde, s��rio:
��� N��o �� de admirar. Onde se viu um escritor
gostar de livros?
Des��o as escadas de m��rmore branco na dire����o
da porta. Bustos de gente importante que escreveu
livros ou que os amou dardejam na minha dire����o
olhares de censura. N��o leio os d��sticos ilustres gra-
vados nas paredes, exaltando o papel do livro na civi-
liza����o. Sou um r��probo. Um traidor. Um monstro.
Devo consultar um m��dico? Ou ir apresentar-me ao
Presidente e dizer: Non sum dignus?
De novo o ar livre. O perfume do parque. O
vento fresco do mar. O azul do c��u. um verso abo-
min��vel me vem �� mente: "Porque a verdadeira b��-
blia, ��! Natureza, ��s tu."
Finalmente depois de muito andar por estas ave-
nidas, pisando folhas secas e assustando coelhinhos
distra��dos, descubro uma explica����o para o fen��meno.
�� que o interior da biblioteca est�� de tal modo super-
aquecido que seu efeito �� exatamente o de um dia
abafado de calor.
Reconciliado com a cultura, volto para as gale-
rias de a��o...
IDADE DIF��CIL
7 de maio. Estamos todos ao redor da mesa do
breakfast. Lu��s olha para mim e diz:
��� Pai, eu acho que tu ficavas muito bem fardado
de tenente da marinha.
��� De onde te veio essa id��ia?
Ele d�� de ombros.
��� N��o sei. S�� pensei isso...
210 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Clara explica:
��� Ah! Eu sei. Quase todos os meninos na escola
tem pais ou irm��os no ex��rcito ou na marinha, e o
Louie anda envergonhado porque ��s civil...
Isso me faz lembrar que ainda n��o me apresentei
�� junta de alistamento do distrito. Fa��o-o hoje mesmo
e recebo o meu cart��o militar. Sou classificado como
4-A, isto �� ��� casado, com filhos e maior de 36 anos.
�� hora do almo��o mostro o cart��o a Lu��s e explico-
lhe tudo.
��� Ent��o n��o foste aceito?
��� N��o �� bem isso, meu filho. N��o serei chamado
agora. S�� os 1-A �� que v��o para o ex��rcito.
O menino nada diz. Limita-se a olhar para o car-
t��o em sil��ncio.
��� Pai.
��� Que ��?
��� Estiveste na outra guerra?
��� N��o.
��� Por qu��?
��� Era muito crian��a.
��� E agora n��o entras nesta... porque est��s muito
velho?
��� Bom, muito, muito velho n��o... quer dizer. ..
�� dif��cil explicar...
Mariana sorri. E eu me lembro duns versinhos que
li h�� dias numa revista. Diziam que n��o h�� idade ideal
para guerra; em nenhum tempo da nossa exist��ncia
achamos que podemos deixar a vida segura e ir en-
frentar a bomba, a bala e a baioneta. A ��ltima quadra
era assim:
Como �� poss��vel uma escolha justa,
Se a gente sempre vem a ser
Ou muito velho para a luta
Ou muito mo��o para morrer?
A VOLTA DO GATO PRETO
211
O ATLETA E A GRAM��TICA
12 de maio. No meu escrit��rio. Dez da manh��.
Rabisco notas para a aula de hoje sobre a "Semana da
Arte Moderna" no Brasil. Batem �� porta: Come in!
Primeiro entram os ombros ��� uns ombros largos
de fullback; depois, uma cabeleira cor de sol a coroar
uma cara juvenil e rosada.
��� Bom-dia!
O rapag��o olha em torno, indeciso. Diz que est��
�� procura do Prof. Schevill. Informo-lhe que meu amigo
n��o apareceu esta manh��.
��� Em que lhe posso ser ��til? ��� indago.
��� Well, o senhor sabe espanhol?...
��� Um pouquinho. Que �� que h��?
��� Tive uma dificuldade com este exerc��cio... ���
diz o estudante, ainda com ar t��mido, mostrando-me
um livro aberto.
��� Fa��a o favor de sentar-se.
Ele se senta e me confessa a sua incapacidade de
compreender a diferen��a entre muy e mucho.
��� �� muito simples. ��� Muy �� adv��rbio. Mucho ��
adjetivo.
Os olhos cinzentos do mo��o fitam os meus, com
uma express��o vazia. Seus l��bios se abrem, deixando
aparecer uma dentadura regular, forte e nacarada.
��� Adjetivo. . . adv��rbio... ��� repete ele, co��ando
a cabe��a.
��� Naturalmente voc�� sabe o que �� adv��rbio e o
que �� adjetivo. .
��� Bom. . .
��� N��o sabe? Nem mesmo em ingl��s?
��� N��o tenho muita certeza. O senhor me des-
culpe. A gente esquece essas coisas. �� o diabo.
212
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Fico olhando para este torso musculoso, apertado
num su��ter grosso de l�� verde-musgo. O rapaz deve
ser um astro do futebol. Deve ser popular com as me-
ninas e possuir uma sa��de de touro, mas n��o sabe o
que �� adv��rbio. .. Perco-me em divaga����es, enquan-
to meu jovem interlocutor resmunga desculpas. Acabo
concluindo que n��o h�� nenhum mal em que esse es-
pl��ndido esp��cime humano n��o conhe��a gram��tica.
Miro-o com simpatia, e com grande paci��ncia tento
explicar-lhe o que �� adjetivo, adv��rbio, preposi����o,
conjuga����o... Muito humilde e cheio de gratid��o,
ele escuta, sempre sorrindo. Por fim se ergue e aperta
minha m��o na sua manopla de atleta.
��� Gee, sir. It's mighty nice of you. Thanks a lot!
Oferece-me um peda��o de goma de mascar. �� a
��nica maneira que tem de pagar os meus servi��os.
Est�� claro que aceito. Partimos uma barra de chewing
gum como se part��ssemos a frecha da paz.
��� Hoje em dia isto vale mais que ouro ��� diz ele.
��� Meu irm��o que est�� no ex��rcito, me mandou um
pacote do campo de treinamento.
Faz meia-volta e se vai.
Ou��o seus passos ��geis na escada. Meu amigo
Schevill chega alguns minutos depois e eu lhe conto
o que acaba de acontecer.
��� Muitos desses rapazes ��� diz ele ��� v��m para
a Universidade apenas porque �� bonito ser um c����lege
boy. Pensam que se s��o bons jogadores de futebol tudo
est�� bem.
No fim de contas ��� penso ��� eu podia dizer que
n��o tenho aquela radiosa mocidade nem aqueles ombros,
nem aqueles olhos, nem aquela face ��� mas em com-
pensa����o posso distinguir a olho nu um adv��rbio dum
adjetivo. Encarapitado em cima duma pilha formada
pelos volumes que tenho lido na minha vida, eu po-
deria baixar os olhos para esse menino com superio-
A VOLTA DO GATO PRETO
213
ridade, toler��ncia e complac��ncia... Mas que pobre,
p��lido consolo isso ��! ��� reflito, mascando melancoli-
camente o meu peda��o de goma.
VISITAS
13 de maio. Mas tipos como esse louro amigo n��o
constituem regra geral. De quando em vez aparece no
meu escrit��rio uma girl de ��culos que vem discutir
Freud; ou um marinheiro que disserta sobre eletr��-
nios; ou estudantes que se interessam por trabalhos de
assist��ncia social. Pedem opini��es, indagam, sugerem,
tomam notas e depois se v��o. Tudo isso �� feito com
uma admir��vel aus��ncia de esnobismo, com um ar
pr��tico e com uma esp��cie de candura.
Um estudante negro pede licen��a para me visitar.
Tenho-o esta noite aqui no living-room de minha casa
de Fulton Street. Esse rapaz de vinte anos, de pele
dum preto-azulado e enxuto, grandes olhos l��quidos e
nariz surpreendentemente fino fala um ingl��s positi-
vamente diferente da l��ngua dos negros americanos.
��� �� que fui educado na Jamaica ��� explica ele.
Visitam-nos tamb��m hoje o c��nsul do Brasil e sua
senhora, e o estudante colored parece deliciado por se
encontrar sentado no mesmo sof�� que a Sra. Sab��ia
Lima que nasceu em Viena, tem a pele alva e os ca-
belos cor de ouro.
Conversamos sobre o problema racial nos Esta-
dos Unidos e sobre a posi����o do negro no Brasil. E
pulando de assunto para assunto, o estudante conta
que comp��e m��sica. Pedimos-lhe que toque alguma de
suas composi����es. Ele se levanta sem se fazer rogar,
e caminha para o piano de Mrs. Burke. Senta-se, es-
palma as m��os sobre o teclado e tira dois acordes. E
depois come��a a tocar um noturno de sua autoria.
214
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Quando olho atrav��s da porta que d�� para o hall,
vejo Clara e Lu��s que, metidos nos seus pijamas, des-
ceram do quarto e est��o sentados num dos degraus da
escada, escutando a melodia com ar absorto e s��rio.
Sigo com os olhos os dedos do preto que se movi-
mentam sobre o teclado como tent��culos dum escuro
polvo, e penso em que hoje, por uma significativa
coincid��ncia, �� treze de maio...
O TEMPO
15 de maio. O tempo passa levado pelo vento ou
enrolado na bruma ��� ��s vezes l��pido, outras vezes
lerdo. O tempo cheira a maresia, a n��voa, a eucalipto
e umidade... A chuva o amolece e tolhe, d��-lhe um
jeito triste. Mas sob o sol o tempo �� ��gil, fluido e
alegre.
Nas ruas de San Francisco o tempo trepida, tem
todas as cores e sons, cheira a gasolina, molhos, fri-
turas e humanidade. Dentro dos bares o tempo �� um
gentleman sem mem��ria que recende a u��sque e se
deixa embalar pela melodia dum blue. Do outro lado
da ba��a, na Universidade, o tempo tem vinte anos e
passa cantando. Mas nas ��guas do mar o tempo ��
tr��gico e nervoso como a guerra; e toma um ritmo de
eternidade para acalentar os afogados.
Ah! O tempo sobre as montanhas, vales, campos,
cidades e almas... Quem sabe mesmo como �� o tempo?
��s vezes ele �� apenas uma invis��vel aranha a
tecer insidiosamente dentro de n��s a teia do h��bito.. .
SHAKESPEARE! SHAKESPEARE!
18 de maio. Milagrosamente Clara e Lu��s j�� es-
t��o falando ingl��s. Nos primeiros meses vinham para
A VOLTA DO GATO PRETO
215
casa repetindo palavras ou frases, como papagaios.
Agora aqui est��o �� mesa do caf��, falando fluentemen-
te, n��o direi a l��ngua de Shakespeare, mas pelo menos
a de Jimmy Durante, pois est�� claro que os compa-
nheiros de col��gio lhes ensinaram palavras e ditos da
rica e pitoresca g��ria americana.
Como meus filhos est��o num animado di��logo em
ingl��s, resolvo entrar tamb��m na conversa, e tenho
dentro em breve o desprazer de verificar que eles j��
zombam de minha pron��ncia. Num dado momento Lu��s
chega a corrigir a minha sintaxe! N��o posso deixar de
sorrir, lembrando-me de que esse menino n��o tinha
ainda nascido e eu j�� andava ��s voltas com Bernard
Shaw, Aldous Huxley e Edgar Poe.. . no original.
"A CASA DO PAI TEM MUITAS MORADAS'
25 de maio. No Brasil nossa casa sempre vivia
cheia de crian��as; era o ponto de reuni��o dos garotos
da vizinhan��a. Parece incr��vel que o mesmo aconte��a
aqui neste casar��o de Fulton Street. Os colegas de
meus filhos em geral aparecem depois das aulas da
tarde e por a�� ficam a brincar. A bandeira de Meta-
galpa anda de m��o em m��o. Ora serve para vestir
solenemente uma dessas Bettys, Sallys ou Marys; ora
se transforma em bola que salta no ar dum lado para
outro, pondo em perigo lustres, estatuetas e vasos,
para depois voltar a ser bandeira e cobrir o "cad��ver"
de David, Lu��s, ou Peter ��� her��is tombados na guerra
contra o Jap��o. De vez em quando um desses garotos
ou garotas monta no corrim��o da escada e vem desli-
zando velozmente l�� de cima para cair de costas,
com estrondo, no fofo tapete do hall. ��s vezes os
pequenos dem��nios decidem fazer bailes, cantar e
bater p��s ��� casos em que o barulho �� ensurdecedor.
216
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Fico a olhar a cena, entre atordoado e divertido, e n��o
posso deixar de achar extraordin��rio estarem meus
filhos aqui com essas crian��as, falando a l��ngua delas,
vestidos como elas e portando-se como se nunca tives-
sem vivido em outro ambiente.
O telefone tilinta. Sento-me calmamente ao p��
dele e levo o fone ao ouvido. A voz de Mrs. Burke.. .
��� Que barulho �� esse? Sua casa foi invadida por
um bando de doidos? Por favor, Mr. Ber��s...
Nemir. .. sei l�� como �� o seu nome! Por favor, mande
esses v��ndalos embora. Que v��o brincar em suas casas.
Que v��o...
Quero dizer alguma coisa mas a nossa senhoria
n��o cessa de falar. �� uma torrente. N��o tenho outro
rem��dio sen��o assobiar baixinho. �� a melhor coisa do
mundo, quando estamos na presen��a dum interlocutor
enfurecido. Assobiar. Em casos excepcionais reco-
menda-se o ad��gio da Sinfonia n.�� 7 de Beethoven. E
quando o assunto n��o tem muita import��ncia, at�� a
"Serenata de Schubert" serve.
��� Est�� certo, Mrs. Burke.
Ponho o fone no lugar. Levanto-me e vou acabar
com o baile, naturalmente sob protestos dos convivas.
Ao cabo de alguns minutos de discuss��es, projetos
para o dia seguinte, risadas, as crian��as se v��o. Uma,
duas, tr��s, cinco, sete... Saem numa algazarra. L��
vai o Peter-Cal��a-Frouxa... A Sharon Sardenta...
O David-Mangol��o... A Mary Espevitada... a Nel-
ly-Porky...
E o solar de Metagalpa volta �� calma, e do alto
do velho arm��rio a estatueta de m��rmore, que ainda
ostenta o bigode de tinta que lhe pintei, olha com seus
olhos vazios a sala vazia.
A VOLTA DO GATO PRETO
217
DEUS DE SUBSOLO
26 de maio. No Brasil �� costume dizer-se a crian-
��as travessas: "N��o fa��a isso, que Papai do C��u cas-
tiga". E os pequenos ficam com a id��ia de que Papai
do C��u �� um senhor de barbas compridas que mora
l�� em cima e vive debru��ado numa janela, a ver tudo
quanto se passa aqui em baixo, com aquele seu olho
triangular e fiscalizador.
No seu admir��vel "Vento Sul", Norman Douglas
p��e uma de suas personagens a falar na diferen��a entre
o Deus dos crist��os e os deuses dos gregos antigos. O
primeiro �� um "Deus de andar superior", que nunca
vemos de perto e com o qual nos comunicamos preca-
riamente atrav��s de gestos, e a dist��ncia, ao passo que
os outros s��o deuses am��veis de "andar t��rreo", que
se misturam com os mortais.
Estas notas me foram sugeridas por um telefone-
ma de Mrs. Burke, que l�� de baixo torna a reclamar
contra o barulho que aqui em cima fazem meus filhos
e seus amigos. Passamos os dias a pensar em Mrs.
Burke tentando fazer o poss��vel para n��o cair-lhe no
desagrado. Seguimos os seus mandamentos, procura-
mos viver de acordo com seus preceitos e como recom-
pensa desejamos que n��o nos expulse desta casa e nos
deixe em paz. Ocorre-me agora que essa corada
velhota solit��ria passou a ser para n��s uma esp��cie de
"deus de subsolo".
Mas ��s vezes sinto um prazer m��rbido em subir
a escada aos pulos, fazendo barulho. A esse gozo po-
der��amos chamar, de acordo com a t��cnica do roman-
ce-folhetim, "vol��pia do pecado".
218 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
O MIST��RIO DA CHARNECA
28 de maio. O que me agrada nesta vida univer-
sit��ria �� a diversidade de gente que encontro e a
variedade de assuntos que sou convidado a discutir.
Almo��o com o Prof. Pepper, do departamento de filo-
sof��a, e toda a conversa gira em torno de "uma teo-
ria de valores", que vai ser o assunto do pr��ximo livro
desse humanista, cuja cabe��a lembra a de Spengler,
numa vers��o menos germ��nica e mais simp��tica.
Quando vou para a sala de leitura do Faculty
Club um outro professor me faz sentar a seu lado para
que eu lhe d�� minha opini��o sobre a origem das pra��as.
Das pra��as? Sim, das pra��as t��o t��picas das cidades
portuguesas, espanholas e sul-americanas.
Um outro professor quer saber se ainda se culti-
va a orat��ria no Brasil e fica surpreendido quando lhe
digo que nossas universidades n��o oferecem cursos de
public speaking.
Uma jovem que conheci ontem, queria saber como
se escreve um romance. Assegurei-lhe que ela se es-
tava dirigindo �� pessoa menos indicada para lhe dar
informa����es seguras a esse respeito.
��� Mas o senhor n��o �� romancista?
��� �� exatamente por isso.
Mas de todos os interlocutores que tenho tido,
talvez o mais dif��cil de seguir seja Miss Merivale, se-
cret��ria dum destes departamentos de l��nguas da Uni-
versidade. Almo��amos juntos ��s vezes no Black Sheep,
a "Ovelha Negra", um agrad��vel restaurante de Ber-
keley em cujas paredes se v��em ��timas reprodu����es de
C��zanne, Gauguin e Van Gogh. A comida tamb��m ��
post-impressionista. Mas tudo l�� �� limpo, e as mo��as
que servem as mesas s��o estudantes.
A VOLTA DO GATO PRETO
219
Miss Merivale leu o meu romance "Caminhos
Cruzados" na tradu����o inglesa, e n��o gostou. Quanto
a mim, gosto da franqueza com que ela me confessa
isso.
��� Suas personagens s��o tipos, mais que pessoas.
Tome dona Dod��. �� imposs��vel que essa senhora n��o
tenha tra��os que n��o sejam caricaturais.. . enfim, qua-
lidades humanas apreci��veis...
��� De acordo.. .
��� .. . imposs��vel que n��o tenha uma part��cula de
bondade. O senhor pintou as suas figuras de tal for-
ma que elas t��m apenas duas dimens��es...
��� Perfeitamente. Mas a minha inten����o foi sa-
t��rica. Reconhe��o que "Caminhos Cruzados" �� um
livro c��nico e frio. Fi-lo assim de prop��sito.
Miss Merivale acha que um romance n��o deve
apenas fotografar a vida, mas ilumin��-la. Conta-me de
vagos planos que tem de fazer fic����o. O que lhe in-
teressa s��o as experi��ncias interiores. O resto pouco
importa.
Fala-me de Proust, Joyce e Virg��nia Woolf. Pro-
cura provar-me que tenho capacidade para escrever
o romance que se lhe afigura ideal.
Minha amiga �� uma criatura complicada. De vez
em quando mergulha em sil��ncios misteriosos. Ou en-
t��o desconfia que n��o lhe estou seguindo as palavras.
Conta-me coisas extraordin��rias, que lhe aconteceram
certa noite, nas charnecas da Esc��cia, na regi��o onde
nasceram seus antepassados. Dizia-se existir por ali
um monstro, um animal fant��stico ��� mastim ou lobo ���
cujos olhos eram como carb��nculos...
N��o sei se meu olhar me traiu, ou se sorri sem
querer. A verdade �� que Miss Merivale faz uma pausa
e pergunta:
��� O senhor n��o est�� acreditando, n��o �� mesmo?
��� Prossiga, por favor.
220
OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO
Ela baixa os olhos para o prato onde o seu san-
du��che de peru jaz intato. E sem me olhar continua:
��� Uma noite resolvi ir l�� sozinha.. . O senhor
n��o pode fazer uma id��ia do que �� uma charneca da
Esc��cia, especialmente numa noite sem lua. A gente
tem a impress��o de que a terra antes do aparecimento
da vida devia ser assim...
A gar��onete se inclina sobre nossa mesa para
apanhar o pote de mel. De seus cabelos vem um per-
fume doce.
Miss Merivale continua:
��� O silencio era aterrador. Fiquei im��vel, espe-
rando. De repente vi uma sombra caminhar na minha
dire����o. Era um animal.. .
Cala-se. Fita em mim os olhos azuis.
��� O senhor n��o est�� acreditando. ..
��� Por favor, n��o interrompa.
��� Pois bem. Esperei. O animal parou. Seus
olhos fuzilavam na sombra. Ficamos ah... minutos,
horas? quanto tempo?... a olhar um para o outro.. .
Eu estava hipnotizada. E depois de novo me senti
sozinha em meio da charneca...
Miss Merivale me olha com express��o dura, quase
agressiva.
��� O que �� que o senhor acha? Foi uma ilus��o?
Ou qu��?...
Encolho os ombros.
��� Se essa cena fosse duma novela minha, creio
que a deixaria sem explica����o... Teria melhor efeito.
��� Efeito! O senhor est�� pensando em efeito. Eu
lhe estou contando uma experi��ncia pessoal que n��o
pode ser descrita em termos de realidade, de coisas
concretas... cotidianas...
��� Eu sei, �� o mist��rio...
��� A�� est��. Quero escrever um romance cheio de
experi��ncias como essa. Menos c��pia da vida, menos
relat��rio. ..
A VOLTA DO GATO PRETO
221
Ficamos por alguns instantes em sil��ncio.
��� Uma outra vez fui passear no campo ��� prosse-
gue Miss Merivale ��� . . . isto foi aqui mesmo, do outro
lado das colinas de Berkeley. Eu estava sozinha, e
era uma manh�� muito luminosa, de c��u azul. Vi um
p��ssaro pousado nos ramos duma ��rvore. Fui tomada
duma alegria t��o grande, diante daquele momento de
beleza, que sem querer comecei a cantar... N��o posso
explicar como foi, mas tenho a impress��o que a voz
saiu sem que eu fizesse o menor esfor��o. E o p��ssaro
cantou comigo. Senti que naquele momento eu e o
p��ssaro nos entend��amos. N��s cant��vamos para a
manh��, num desejo de horizontes, de v��o.. . ��ramos
como uma ��nica criatura... Mas o senhor n��o est��
compreendendo.
��� Qu�� quer? No fim de contas n��o passo dum
nasty realist.
��� N��o �� verdade. O que h�� no senhor �� um temor
de mexer em coisas profundas.
��� E por que pensa isso?
��� Vejo nos seus olhos.
��� Com tanta clareza assim?
Ela sacode a cabe��a afirmativamente.
��� Seus olhos v��em uma coisa e suas m��os escre-
vem outra. Se em seus olhos h�� uma t��o funda com-
preens��o da vida... por que escreve s��tira? O senhor
precisa vencer esse medo...
��� Medo?
��� Espero que o seu pr��ximo livro seja diferente...
Sei que vai ser.
E eu, que durante todo esse tempo estive a comer
as minhas alm��ndegas com batatas cozidas, sinto-me
de repente grosseiro, materialista.
Descanso o garfo nas bordas do prato e olho fi-
xamente para Miss Merivale. Eu s�� quisera saber o
segredo dessa alma. Por um instante ficamos a nos
222
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
entreolhar, como na cena da charneca escocesa ��� ela
a bela e eu a fera.
Miss Merivale afasta o prato e, sem tirar os olhos
de mim, conclui:
��� Tome nota disto. Daqui h�� muitos anos o senhor
vai se lembrar de mim...
Sacudo a cabe��a lentamente.
TORMENTA"
29 de maio. George Stewart �� um homem alto, de
rosto anguloso e cabe��a quase triangular. Encontrei-o
nesta mesma Universidade h�� dois anos e meio, quando
por aqui passei no meu marche-marche de turista que
tem dia e hora certos para chegar e sair dos lugares.
Almo��amos juntos e ele me contou, com a sua voz mo-
n��tona e nasal, que estava escrevendo um romance.
��� Sobre qu��? ��� perguntei.
��� Sobre uma tormenta.
��� Uma tormenta?...
��� A personagem principal �� uma tormenta. Narro
sua biografia desde o momento em que ela se forma na
��sia e vou mencionando todas as coisas que aconte-
cem pelos lugares por onde ela passa atrav��s do Pac��-
fico e dos Estados Unidos...
��� Mas isso �� duma dificuldade tremenda!
O rosto de meu interlocutor continuava inexpressi-
vo como sua voz.
��� O homem do observat��rio meteorol��gico que
acompanha o progresso da tormenta, d��-lhe o nome
de Maria. Maria vai vivendo e fazendo estragos, in-
fluindo na vida de v��rias comunidades...
J�� nessa hora eu n��o ouvia mais o que Stewart
dizia, porque estava pensando na maneira como eu ha-
via de escrever esse romance. Assim a voz monoc��rdia
A VOLTA DO GATO PRETO
223
de meu amigo soava-me aos ouvidos como essas vozes
de caixeiros-viajantes que a gente ouve no vag��o en-
quanto o trem marcha e n��s nos deixamos levar de
olhos semicerrados, num estado de modorra.
��� O livro vai chamar-se Storm.
��� Bom t��tulo.
Olhei para George Stewart, para seus ��culos pro-
fessorais, para os seus l��bios estreitos e duvidei que
aquele homem seco conseguisse dar interesse noveles-
co �� hist��ria de Maria, a tormenta.
Voltei para o Brasil e alguns meses depois revis-
tas e jornais americanos me levaram a noticia do sucesso
do romance The Storm, que entrou para a lista dos
best-sellers, e cujos direitos cinematogr��ficos foram
comprados por um est��dio em Hollywood. Consegui um
exemplar do livro, li-o e fiquei surpreendido por ver o
interesse "humano" que Stewart deu �� hist��ria de sua
tormenta.
Neste instante tenho-o de novo diante de mim do
outro lado da mesa, no Faculty Club. Conta-me que
est�� terminando um livro em torno da hist��ria dos no-
mes de lugares dos Estados Unidos.
��� No princ��pio, ��� diz ele ��� essa vasta extens��o
de terra que vai do Pac��fico ao Atl��ntico jazia sem
nomes...
Acho a frase fascinante, e George me conta que
esse �� o per��odo inicial do livro. Os Estados Unidos
s��o o pa��s dos nomes inesperados. Existem aqui lu-
gares que se chamam Paris, Roma, Tr��ia, Brasil, Ho-
landa, Moscou, etc, e Arkansas, Nantucket, Chi-
ckasha... De onde vieram? Como se formaram?
��� E quando terminar este trabalho ��� prossegue
Stewart ��� pretendo escrever a biografia duma certa
regi��o deste pa��s, come��ando do princ��pio...
��� Que princ��pio?
224
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Dos tempos pr��-hist��ricos. H�� milh��es de anos
passados...
Positivamente, este meu amigo tem a vol��pia dos
assuntos dif��ceis.
E eu estou come��ando a aprender que n��o se deve
avaliar a capacidade de imagina����o duma pessoa pela
espessura dos l��bios, a cor dos olhos ou o tom da
voz...
CONFRONTO
30 de maio. Para caracterizar uma das muitas di-
feren��as entre o brasileiro e o norte-americano, in-
vento a cena seguinte, que conto hoje aos meus alunos:
Estou sentado �� minha mesa, escrevendo a m��-
quina, e tenho diante de mim um brasileiro e um norte-
americano. Ambos sabem que sou escritor. O bra-
sileiro aproxima-se de mim, por tr��s, procura ler o que
estou escrevendo, e pergunta com voz carregada de
mal��cia:
��� Que "cava����o" �� essa?
O americano se limita a indagar de longe, com
ar inexpressivo:
��� Quantas palavras o senhor escreve por minuto?
Essas perguntas definem duas psicologias dife-
rentes. Malicioso, esperto, o brasileiro sempre est��
farejando a "cava����o", o neg��cio ilegal, o "golpe".
Conhecedor dos homens e da vida, ele "n��o acredita
em hist��rias da carochinha".
O americano, por��m, �� o fascinado da efici��ncia,
da produ����o e do m��todo. Tem a paix��o da estat��s-
tica, e sua pergunta traduz o desejo das minhas rela-
����es com o meu tool, o meu instrumento de trabalho.
E este povo em geral acredita em hist��rias de caro-
chinha, porque neste pa��s elas de fato acontecem.
A VOLTA DO GATO PRETO
225
N��o se poder�� por acaso dizer que enquanto o
americano se preocupa com a t��cnica o brasileiro d��
mais import��ncia �� t��tica? Ou ser�� que o uso do ins-
trumento n��o deixa de ser uma t��tica e o golpe uma
t��cnica?
Bom, �� melhor parar. Porque lidando com pala-
vras a gente acaba quase sempre como o cachorro
Pluto de Walt Disney naquela cena em que colou as
patas num papel ca��a-moscas...
O VOV�� RANZINZA
2 de junho. Gaetano Salvemini, historiador e soci��-
logo vivia tranq��ilamente sua vida na It��lia como um
pacato professor quando Mussolini tomou o poder.
Preso como antifascista, deixou a It��lia em 1925 e foi
para Londres, de onde come��ou a bombardear II Duce
e o fascismo com artigos violentos. Encontro-o agora
aqui na Universidade a dar um curso de confer��ncias
sobre a hist��ria da It��lia. Homem de estatura me��,
cheio de corpo, a calva reluzente, barbas abundantes
dum branco amarelado, conserva aos setenta anos uma
vitalidade espantosa. Polemista apaixonado, escreve
agora artigos pol��ticos para a imprensa norte-america-
na. Como II Duce caiu e a It��lia foi invadida pelos
aliados, ele atira seus petardos contra o Departamento
de Estado, criticando-lhe a pol��tica com rela����o ��s
zonas italianas ocupadas.
Faz pouco, aqui no Faculty Club, vi-o trovejar
contra bispos, arcebispos, cardeais e papas que, a seu
ver, transigiram com o fascismo.
��� Eu n��o ataco a Igreja Cat��lica ��� explicava ele
com sua voz musical ��� mas sim o seu alto clero. Como
poderia eu atacar os trezentos milh��es de pessoas que
formam a Igreja Cat��lica no mundo? Estou certo de
226
OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO
que nem toda a ra��a germ��nica est�� alucinada por
Hitler, e sei tamb��m que nem todo o Estado fascista
italiano sofre de ��lceras quando Mussolini passa mal
do duodeno.
Agitava a cabe��a em movimentos vivos. Tirava os
��culos e limpava-lhes as lentes com um len��o.
��� A troco de que afirmar que quando um bispo
espirra, toda a Igreja espirra com ele? O que eu afir-
mei no meu artigo ��� prosseguiu ele, erguendo o dedo
no ar ��� foi que certos sacerdotes altamente colocados,
bispos e cardeais n��o s�� favoreceram o fascismo como
tamb��m fizeram elogios extravagantes e sacr��legos a
Mussolini.
Seus olhos brilhavam como carv��es vivos. E seus
l��bios grossos e vermelhos, contrastavam com a bar-
ba e com os dentes, que s��o dum branco amarelado.
Gaetano Salvemini ali est�� na sua poltrona ao p��
da lareira. J�� papou o seu almo��o, o qual, como bom
italiano acostumado a pratos ricos e temperados com
arte, ele deve ter achado detest��vel. E agora, enquan-
to espera a hora das aulas, cochila com a cabe��a ati-
rada para tr��s, a boca aberta, um jornal abandonado
sobre os joelhos. Os cabe��alhos desse jornal d��o uma
id��ia dum mundo convulsionado de viol��ncia, desen-
tendimentos e ang��stias. E Salvemini o antifascista,
Salvemini o indom��vel, Salvemini o orador est�� agora
aprisionado nas redes do sono. Com suas barbas
brancas, a sua calva reluzente parece um tranq��ilo
vov�� a dormir ao p�� do fogo, a sonhar talvez com as
travessuras dos netos. ..
BOA-TARDE, DOUTOR1
4 de junho. Tr��s da tarde. Estou de borla e ca-
pelo, formando numa fila de doutores e professores,
A VOLTA DO GATO PRETO
227
no campus do Mills College. Hoje �� dia da cola����o de grau, as alunas rec��m-formadas v��o receber seus
diplomas e o board of trustees decidiu conferir-me
um t��tulo honor��rio de doutor em literatura. Parados
�� sombra de pl��tanos que o vento da tarde agita, fa-
zendo a poeira verde de suas folhas cair sobre nossas
togas acad��micas ��� aguardamos a hora de nos enca-
minharmos para o teatro grego, onde se realizar�� a
solenidade. Arciniegas aqui est�� na minha frente,
muito compenetrado. Vai tamb��m ganhar um t��tulo
honoris causa, "por causa do Hon��rio", ��� segundo a
sua tradu����o.
A prociss��o p��e-se em movimento. Nossos p��s
produzem um ru��do rascante, ao pisar o are��o da es-
trada. Vamos em grave sil��ncio. E em grave sil��ncio
entramos no palco do teatro grego, que fica atr��s do
teatro de m��sica de c��mara. Somos precedidos por
vinte alunas de longos vestidos azuis, com grandes ca-
be����es brancos, que entram em passo de marcha nup-
cial, cantando um hino religioso.
As arquibancadas do anfiteatro est��o cheias. ��
um conjunto colorido ��� vestidos vivos, flores, gravatas,
j��ias, faces, m��os, bolsas, luvas. Tamb��m metidas em
vestes acad��micas, as quarenta mo��as que v��o receber
seus diplomas acham-se sentadas em nossa frente.
O orador oficial faz um belo discurso. O presi-
dente entrega os diplomas. Chega finalmente a minha
vez. O Prof. Smith, do departamento de Ingl��s do
college, acompanha-me at�� o lugar em que se encon-
tra o Presidente White, que �� um homem ainda jovem,
de complei����o atl��tica, cara aberta de guriz��o ameri-
cano, e especialista em hist��ria da Idade M��dia. O
Prof. Smith faz minha apresenta����o, enumera os meus
t��tulos ��� coisa que, segundo uma express��o americana
"cabe dentro duma casca de noz" ��� e o presidente de-
clara ent��o que, usando dum direito que lhe concede
228
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
a junta administrativa do Mills College me confere o
t��tulo de doutor em literatura, por ter eu em meus ro-
mances servido a causa da justi��a social e com meu
trabalho de professor, conferencista e autor promovi-
do uma aproxima����o entre as Am��ricas do Norte e do
Sul. Neste momento uma professora, que se acha ��s
minhas costas, pendura-me ao pesco��o o hood, um
capuz simb��lico com as cores do col��gio. (A todas
essas vejo com o rabo dos olhos Clara e Lu��s que l��
nos ��ltimos degraus do anfiteatro, se torcem de riso e
me fazem sinais fren��ticos.) O Presidente White me
aperta a m��o e me entrega um pergaminho, enquanto
um fot��grafo bate uma chapa.
O ato est�� consumado. Boa-tarde, doutor!
O NEGRINHO DO PASTOREIO
6 de junho. Visito uma escola t��cnica de Oakland.
Mais de dois mil estudantes de ambos os sexos aqui
aprendem gratuitamente diversos of��cios. Almo��o com
o diretor do estabelecimento e com algumas professo-
ras do Departamento de Economia Dom��stica. Foram
as pr��prias alunas que arrumaram a mesa e fizeram a
comida, que est�� deliciosa. S��o elas pr��prias que nos
servem ��� e com que gra��a! Aqui elas aprendem a
tomar conta de uma casa, por assim dizer "tecnicamen-
te". E nesse aprendizado entra tamb��m a arte de
decorar um interior, de dispor flores nos vasos, de com-
binar cores. ..
Percorro outros departamentos, onde rapazes in-
clinados sobre pranchas de desenhos trabalham em
blue-prints, plantas de casa, etc. Em outras salas vejo
estudantes de avental de couro a lidar com fornos
fazendo mob��lias finas, de estilo. Num sal��o pavimen-
tado de tijolos, alguns meninos com as m��os e as caras
A VOLTA DO GATO PRETO
229
manchadas de ��leo, trabalham ativamente com um
motor Diesel, ao passo que outros se divertem apren-
dendo os segredos dum motor de avi��o.
��� Eles saem desta escola ��� explica-me o diretor
��� capacitados a encontrar imediatamente um emprego
de sal��rio bastante razo��vel.
O que noto aqui �� um ar de boa camaradagem e
contentamento. O ambiente revela a mais absoluta au-
s��ncia de convencionalismo. A maneira como os estu-
dantes andam vestidos �� a mais c��mica e simp��tica
que se possa imaginar. Ningu��m nem sequer sonha
com usar gravata. Vejo cal��as de corduroy em diver-
sas cores e muitas cal��as de zuarte dessas usadas pelos
cow-boys. Dir-se-ia que estes meninos cujas idades
v��o de quinze a dezoito anos, est��o mais num parque
de divers��o que numa escola.
��s duas horas os dois mil estudantes desta es-
cola se encontram num vasto auditorium para me ouvi-
rem. Conto-lhes hist��rias do Brasil. Quando termino
a palestra, crivam-me de perguntas. Querem princi-
palmente saber como vivem os estudantes brasileiros,
o que comem, o que fazem e quais s��os os seus diverti-
mentos prediletos. Em dado momento levanta-se no
meio da plat��ia um estudante de seus quinze anos. ��
um preto retinto de grandes olhos brilhantes, bei��ola
vermelha como a sua camiseta bordada de ursos pretos.
Faz-se um sil��ncio de expectativa. Com uma voz
desmanchada como sua boca, mas com ar grave, o ne-
grinho diz:
��� Fale-nos, senhor, da delinq����ncia juvenil no seu
pa��s.
Delinq����ncia juvenil! A solenidade com que ele
pronuncia essas palavras, a sua voz de taquara rachada,
a dentu��a branca que rebrilha, e seus grandes olhos
espantados ��� s��o um verdadeiro espet��culo. Toda
a assembl��ia desata a rir. Muito s��rio, de p�� e imper-
230
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
turb��vel, o estudante negro espera. Sinto por ele neste
momento uma grande ternura. Ele n��o �� apenas um
s��mbolo de sua ra��a ��� um "colored" que est�� tentando
subir de categoria social, fazer uma carreira; ele re-
presenta tamb��m todos os meus companheiros de in-
f��ncia negros. Na gargalhada dos estudantes sinto n��o
hostilidade ou inten����o sat��rica, mas uma grande sim-
patia por esse colega de cor.
Respondo como posso �� pergunta embara��osa. E
depois digo:
��� Em homenagem ao estudante que fez essa per-
gunta . . . Como �� o seu nome?
��� George Washington.
��� Muito bem. Em homenagem a George Washing-
ton vou contar uma lenda da minha terra.
George Washington senta-se com dignidade. Faz-
se um grande sil��ncio no recinto. Tomo dum giz e
risco na pedra uma paisagem de coxilhas.
��� Era uma vez, no interior do estado do Rio
Grande do Sul, um fazendeiro muito mau que tinha
em sua fazenda um escravo negro. ..
E conto para estes dois mil estudantes a hist��ria
do Negrinho do Pastoreio.
QUADRO
8 de junho. Seis da tarde. Sentado sozinho nos
degraus do alpendre do Faculty Club, olho um trecho
de jardim: uma ac��cia copada toda pintalgada de flo-
res amarelas no centro dum tabuleiro de relva, contra
um fundo de arbustos e sombras; por cima, um c��u
manso de elegia.
Um p��ssaro de plumagem azul risca o quadro num
r��pido v��o diagonal e fere como um dardo a fronde da
A VOLTA DO GATO PRETO
231
ac��cia. Os carrilh��es do Campanile come��am a tocar
uma lenta melodia, e as notas l��quidas dos sinos se
espraiam no ar, que �� como um lago dormente. Um
coelho sai da zona de sombra negra, sob os arbustos,
caminha at�� a zona de sombra verde, sob a ��rvore, e
ali fica im��vel, de orelhas em p��y como que escutando...
OS CEGOS
10 de junho. Sou convidado para dizer algumas
palavras no almo��o semanal dum destes inumer��veis
clubes cujos membros em geral s��o gente das "classes
conservadoras". �� no sal��o de banquete dum grande
hotel de San Francisco, e os convidados de honra hoje
s��o dois soldados que voltaram cegos do teatro de
guerra do Pac��fico. L�� est��o eles no centro da mesa,
por tr��s dum vaso de d��lias vermelhas. Um deles tem
uma atadura de gase a cobrir-lhe os olhos; o outro est��
de ��culos escuros. S��o ambos extremamente jovens:
n��o devem ter muito mais de vinte anos.
O sal��o vibra ao ru��do de vozes alegres, tinir de
talheres, bater de copos e ch��caras. Uma orquestra
cubana come��a a tocar nimbas e seus sons met��licos,
vibrantes, dominam todos os outros sons. Os soldados
cegos sorriem.
O mestre-de-cerim��nias ergue-se, quando a m��-
sica cessa.
��� Como nossos convidados de honra dois her��is
de guerra do Pac��fico, n��o podem ver o que se passa
neste sal��o, quero ter o privil��gio de descrever-lhes o
ambiente. O sal��o �� vasto e a luz entra pelas altas
janelas, fazendo brilhar os pomposos lustres de cristal
que pendem do teto...
Os cegos continuam a sorrir.
232
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Sobre um estrado encontra-se uma orquestra
cubana, cujos componentes trajam um bolero cor de
fogo...
Segue-se uma descri����o dos boleros. Depois o
mestre - de - cerim��nias menciona os outros convidados
ilustres. E os soldados cegos sorriem, sorriem sempre.
Quando a outra guerra terminou ��� penso ��� esses
mo��os n��o eram nascidos. E daqui a vinte anos quem
estar�� ali talvez seja Lu��s, o meu filho ou David, o seu
amigo, ou Peter... Tento comer, mas a comida se me
tranca na garganta. Um tremendo mal-estar toma
conta de mim. Vontade de gritar, de vociferar. Ou
ent��o de dominar-me e fazer um discurso sarc��stico.
O senhor que est�� a meu lado ��� homem de meia-
idade, grisalho e corado ��� volta-se para mim e pergun-
ta, com ar casual:
��� Acha que haver�� boas oportunidades para ne-
g��cios na Am��rica do Sul, quando terminar esta guerra?
Os soldados cegos sorriem por tr��s das d��lias ver-
melhas. E agora me ocorre que todos estamos cegos.
Nascemos cegos e vivemos ��s cegas, num mundo sem
mem��ria.
NOITE EM CHINATOWN
17 de junho. �� s��bado e, aproveitando a primeira
oportunidade que temos de sair �� noite, Mariana e eu
decidimos visitar a International Settlement, situado no
Quarteir��o Latino de San Francisco.
�� uma noite ��mida e fria. Estamos em Pacific
Street bem no lugar em que, em fins do s��culo pas-
sado, ficava a zona conhecida pelo nome de Barbary
Coast, que fervilhava de bord��is, casas de jogo e ca-
bar��s, onde homens rudes que haviam descoberto ouro
A VOLTA DO GATO PRETO
233
vinham divertir-se, aumentar ou diminuir suas fortu-
nas, e ��s vezes matar ou morrer.
O que hoje por aqui se v�� est�� longe de ter o
perigoso encanto da Terrific Street dos velhos tempos.
Vemos uma sucess��o de pequenos cabar��s e bares onde
soldados e marinheiros bebem ou dan��am com suas
companheiras, enquanto algu��m bate desanimadamente
num velho piano ou uma mulher muito pintada e mui-
to loura canta e quase lambe o microfone que lhe am-
plifica assustadoramente a voz. Em muitos bares apenas
se bebe numa penumbra vermelha ou verde. Outros,
numa tentativa de criar o ex��tico, est��o decorados
como se fossem cabanas havaianas e os criados que
servem as mesas s��o realmente naturais do Hava��. Num
desses night-clubs uma chuva artificial cai por tr��s de
grandes vidra��as, com rel��mpagos e trov��es imitando
os temporais dos mares do Sul. No Gay Nineties a
decora����o e o show, bem como os gar��ons, as l��mpa-
das, os lustres e as can����es lembram 1890.
Em todas essas casas entramos, olhamos e delas
sa��mos ap��s alguns instantes. As cal��adas est��o cheias
de pares alegres. De vez em quando vemos soldados
da Pol��cia Militar que por estas ruas andam a manter
a ordem e a recolher os que passed out, ou seja aqueles
que a bebedeira fez perder os sentidos.
Na Grant Street, a principal art��ria de Chinatown,
muitas das casas parecem pagodes chineses. E o res-
plendor dos letreiros ne��nio d�� a esta rua um ar de
noite de S��o Jo��o, com fogos de artif��cio.
Sa��mos �� procura dum restaurante, pois s��o dez
horas e ainda n��o ceamos. A "Forbidden City", ou
"Cidade Proibida", est�� completamente cheia. Na sala
de espera homens e mulheres aguardam vagas, numa
fila paciente. O Sky Room regurgita de soldados e ma-
234
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
rinheiros. T��xis amarelos passam pelas ruas cheios de
bandos barulhentos. Pelas cal��adas pululam os pares
festivos.
Depois de muito andar, de entrar e de sair de uma
infinidade de bares e cabar��s, de antros e freges; de-
pois de ter passado por corredores indescrit��veis, becos
��midos e sombrios, encontramos uma mesa na "Cova
do Drag��o", pequeno cabar�� situado num segundo
andar. A sala �� apertada, e o ar est�� t��o grosso de fu-
ma��a, que a gente tem a impress��o de que o pode
cortar em talhadas, com uma faca. Como acontece
em quase todas as casas desta natureza, a atmosfera ��
crepuscular. Luzes veladas e azuis d��o um tom fan-
t��stico ��s faces das pessoas. Toca-nos pequena mesa
circular perto da estreit��ssima pista onde, daqui a pou-
co, girls chinesas vir��o dan��ar. Um homem louro e
triste, de dinner-jachet, bate desinteressadamente num
piano, enquanto um chin��s, de aspecto mais triste
ainda, sopra num saxofone. Gar��onetes chinesas, os-
tentando costumes de sua terra, passam como sombras
��geis por entre as mesas, carregando pratos de aspec-
to e cheiro ex��tico. A esta hora quase todos aqui est��o
embriagados. O ar fica cada vez mais viciado e es-
pesso, cheirando a uma mistura de fumo e de u��s-
que, temperada pelo morno odor dos pratos chineses.
O homem do piano canta o Hong-Kong Blues, uma
can����o triste, de ritmo oriental em que um sujeito diz
que quando morrer quer ser enterrado em San Fran-
cisco. Oh! A tristeza sem rem��dio do saxofonista,
uma tristeza amarela, seca e milenar de coolie. Perto
de nossa mesa um fuzileiro naval com o peito todo
cheio das fitas simb��licas das condecora����es, bebe em
companhia dum marinheiro. Est��o ambos de tal modo
b��bedos, que j�� nem falam. Limitam-se a olhar estu-
pidamente para seus copos. S��o ambos muito mo��os
e muito louros. O fuzileiro �� o que se acha em pior
A VOLTA DO GATO PRETO
235
estado. Seus olhos est��o mortos, como que velados por
uma pel��cula fosca; a boca contorcida e fl��cida; a
express��o do rosto �� de sonolenta estupidez. Mariana
lan��a-lhe um olhar obl��quo e murmura:
��� Vamos para outra mesa. Acho que alguma
coisa desagrad��vel vai acontecer...
��� Qual! Fiquemos aqui mesmo.
Num dado momento o fuzileiro come��a a regur-
gitar, como uma garrafa que transborda. O vomito
lhe jorra da boca, lhe escorre pela t��nica, pelas conde-
cora����es, cai na mesa, no copo, no ch��o.
Mariana ergue-se revoltada, e foge para o fundo
da sala. Sigo-a e acabamos encontrando uma mesa
num canto remoto. Sentamo-nos. Uma chinesinha
vem saber o que desejamos comer. Pedimos u��sque
e soda, e escolhemos um prato no menu cheio de nomes
esquisitos.
A algazarra aumenta. Marinheiros andam dum
lado para outro com um copo na m��o, cantando e
trocando abra��os com toda a gente. Desconhecidos
confraternizam, trocam amabilidades, com essa ternu-
ra que �� um subproduto do ��lcool.
O ar azeda. O homem do piano geme o blue: quer
por for��a ser enterrado em San Francisco. A confra-
terniza����o �� geral. Um soldado vem at�� nossa mesa
e nos abra��a. Obriga-me a beber no seu copo, declara
que �� muito meu amigo. Olhamos" em torno e, aflitos,
n��o vemos nenhuma abertura para o ar livre.
Trazem-nos a comida. Omelete de camar��o ��
moda chinesa. Mariana, ainda impressionada pela
cena do fuzileiro, olha para o seu prato com repugn��n-
cia... N��o sei por que, sinto-me feliz. Feliz e um
pouco inquieto. Alguma coisa parece que vai acon-
tecer. Come��o a comer distraidamente. O mestre de
cerim��nias, um chin��s ossudo e p��lido, anuncia o show.
236
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Uma chinesa min��scula vem dan��ar na pista, com-
pletamente nua. Os marinheiros aplaudem e gritam.
Um deles ergue-se cambaleando, e quer tomar da cin-
tura da dan��arina, mas um companheiro puxa-o pelo
bra��o para faz��-lo sentar, e ele rola para o ch��o, sob
gargalhadas. De onde estamos n��o podemos ver sen��o
a cabe��a da dan��arina. Desinteresso-me do show.
��� Em que �� que est��s pensando? ��� pergunta
Mariana.
��� Espera l��. Acho que est�� me nascendo uma
id��ia...
��� Uma id��ia? D��i muito?
��� D��i um pouco.
��� Que ��?
��� Talvez um romance.
��� Sobre... isto?
��� Talvez. O diabo �� que estas coisas em litera-
tura tendem a soar falso. ��� Fa��o uma pausa e olho em
torno. ��� Mas isto existe! ��� afirmo, batendo com o pu-
nho fechado na mesa.
��� O u��sque est�� te subindo �� cabe��a.
��� U��sque? A�� est��. U��sque. Ele nunca tinha
bebido antes...
��� Ele quem?
��� A minha personagem.
��� Voc�� ainda n��o me apresentou a ela. Homem
ou mulher ?
��� Homem. Quarenta e cinco anos no m��ximo.
Paulista... ou carioca, n��o sei. Pode chamar-se...
Orlando. Orlando �� um bom nome, n��o ��?
��� N��o tenho nada contra nenhum Orlando.
��� Imagina s�� um professor de Hist��ria, um su-
jeito que se tem na conta de equilibrado, senhor duma
rica experi��ncia... pelo menos �� o que ele pensa.
A VOLTA DO GATO PRETO 237
Educa����o a s��culo dezenove. N��o. Leituras e id��ias
a s��culo dezenove, mas educa����o portuguesa com tin-
turas medievais. Muita conven����o, muito preconceito,
muita hipocrisia...
��� Bom, mas como �� que esse camarada veio parar
aqui em Chinatown, na "Cova do Drag��o"?
Fico pensando...
��� Acho que veio representar o Brasil num con-
gresso de Hist��ria em Los Angeles.
��� Por que em Los Angeles? �� melhor trazer logo o
homem para c��.
��� Ah! A�� �� que est�� a coisa... O congresso ter-
mina, o nosso her��i tem passagem num avi��o para
Miami. Mas resolve vir primeiro a San Francisco por
uma raz��o muito boa. �� que sempre teve uma fas-
cina����o por esta cidade...
��� A Cidade do Pecado?
��� Coisas desse g��nero. Quando menino viu numa
revista fotografias da cidade ap��s o terremoto e o in-
c��ndio, e ficou impressionado. Assim, ele vem...
��� Para ser enterrado aqui, n��o �� mesmo? Influ��n-
cia do blue que o pianista estava cantando.
��� Influ��ncia de coisa nenhuma. Orlando n��o
morre em San Francisco.
��� Encontra uma mulher?
��� Claro. �� sempre bom fazer o her��i encontrar
uma mulher.
��� Esse Orlando �� . . . casado?
��� Casad��ssimo.
��� S��rio?
��� Bom... Guarda as apar��ncias, como a maioria
dos homens. Mas �� um po��o de desejos recalcados...
��� Autobiografia?
��� Assim n��o vale!
��� Bom. Continua.
238
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� O homem embarca pra c��. No trem noturno.
��� Por que n��o no "Luz do Dia?"
��� Espera. A hist��ria come��a quando Orlando
acorda com a impress��o de que vai ser enterrado vivo.
Ergue as m��os para atirar longe a tampa do ata��de. ..
luta com a falta de ar... E l�� est�� o pobre homem
sentado na cama, suando, aflito, e s�� depois de alguns
segundos �� que ele percebe que est�� no leito superior
dum trem. . .
��� Em que ano se passa isso?
��� No ano passado. Orlando salta do leito e na-
quele carro superaquecido sai em busca duma janela,,
de ar livre, pois sente que n��o poder�� dormir. ..
��� E est�� claro que n��o encontra ar livre, porque
nos trens americanos n��o h�� janelas abertas.
��� Isso mesmo. Resolve vestir-se e ir para o carro
comum...
��� E l�� encontra uma estranha mulher...
��� N��o. Encontra um homem, um desses portu-
gueses da Calif��rnia.
��� Por que "portugu��s?"
��� N��o sei. A coisa aconteceu assim. Orlando v��
nos olhos do homem qualquer coisa de familiar...
��� A voz do sangue...
���... come��am a conversar. O homenzinho
fica contente por encontrar um brasileiro. Conversa
vai, conversa vem, o desconhecido se abre. �� pobre,
mora num desses lugarejos do vale de San Joaquim e
sua filha de dezesseis anos deixou a casa, para ir ten-
tar a vida em San Francisco.
��� Ah!...
��� Ah! coisa nenhuma. Espera. Passaram-se dois
anos sem que a menina desse sinal de vida. Um dia
o homenzinho v�� num jornal de San Francisco o retra-
to da filha com uma crian��a no colo. A legenda ao p��
A VOLTA DO GATO PRETO
239
do clich�� deixa-o estarrecido... Por ela o portugu��s
fica sabendo que a filha se casara com um rapaz de
dezessete anos, o qual, desesperado pela falta de em-
prego, acabara cometendo um crime, deixando a es-
posa e um filho pequeno ao abandono...
��� N��o acha isso melodram��tico?
��� Acho. Mas aconteceu que eu vi esse clich�� e
essa hist��ria no "San Francisco Chronicle". �� ver��dica.
��� A vida tamb��m escreve romances-folhetim.
��� O pobre homem vai em busca da filha e do neto,
e est�� um pouco assustado, pois n��o conhece ningu��m
em San Francisco...
Fa��o uma pausa para partir a omelete de camar��o.
Agora quem dan��a na estreita pista �� uma havaiana.
Os marinheiros gritam.
��� Um novo dia amanhece. O trem chega. Or-
lando perde de vista o luso-americano. O ��nico co-
nhecido que nosso her��i tem em San Francisco �� um
m��dico brasileiro que estuda na Stanford University.
��� Quantos dias teu homem vai passar em San
Francisco?
��� Um ou dois. Quero fazer um romance de a����o
r��pida. Pouca gente. No primeiro plano, apenas
Orlando...
��� E tu.
��� Naturalmente.
Um estrondo. Volto a cabe��a. Um marinheiro
caiu por cima duma mesa, que emborca num tinir de
copos quebrados. A algazarra aumenta. O homem
louro bate no piano. O chin��s triste mama no seu ins-
trumento. Parece que o nevoeiro l�� fora entrou para
dentro da "Cova do Drag��o".
��� J�� tenho um t��tulo para a hist��ria ��� digo.
��� Qual ��?
240
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Nevoeiro. Puro e simples. O nevoeiro �� tam-
b��m personagem da novela. H�� uma esp��cie de nevoei-
ro na cabe��a de Orlando.
��� Mas vamos �� hist��ria.
��� Lembras-te da cena que te contei... soldados
cegos homenageados num almo��o? Pois bem. Orlando
�� um dos convidados desse almo��o. E olhando para
aqueles dois rapazes cujas vidas est��o cortadas, ele
fica comovido, e com um sentimento de remorso. De
certo modo ele �� culpado daquilo. A guerra ��, em
suma, um resultado dos erros dos homens de sua ge-
ra����o. E aqueles mo��os est��o pagando pelos erros
dos pais...
��� E esse m��dico amigo de Orlando, que tipo ��?
��� Cinq��ent��o, bom camarada, bom vivedor, ho-
mem sem ilus��es... meio c��nico mas extremamente
simp��tico.
��� Disseste h�� pouco que havia nevoeiro na ca--
be��a de Orlando...
��� Sim. Desde o momento em que chega, ele
sente um vago mal-estar, uma esp��cie de premoni����o
de desastre. Uma sensa����o de medo acompanha-o por
todos os lugares aonde vai... O nevoeiro que paira
sobre a cidade parece-lhe uma amea��a. Continua, de
certo modo, aquela sensa����o de sufocamento come��ada
no trem. De repente Orlando se lembra dum sonho...
Mariana sorri...
��� Tuas personagens sonham muito.
��� Um sonho que ele teve quando mo��o. Sonhou
que tinha morrido e que quatro homens esguios, de
sobrecasaca preta e chap��u alto, como o de Abra��o
Lincoln, carregavam seu caix��o. E que ele tinha sido
enterrado em San Francisco da Calif��rnia.
��� Outra vez o "Hong-Kong Blues".
��� N��o interessa. A verdade �� que Orlando passa
todo o tempo esperando que algo de mau lhe aconte��a.
A VOLTA DO GATO PRETO
241
��� Ainda n��o sei como foi que ele veio parar na
"Cova do Drag��o". No fim de contas teu her��i �� um
homem s��rio, um professor...
��� Vou explicar. Depois de muitas andan��as...
o almo��o no clube... digamos que se chama "Clube
dos Alegres Ursos..." o amigo convida-o para ir ��
noite ao teatro onde John Carradine representa Hamlet.
��� E nessa noite h�� um tremor de terra.
��� Precisamente. E Orlando fica ainda mais aba-
lado. Volta para o hotel cansado, decidido a ir dormir.
Mas quando vai atravessar o hall na dire����o do ele-
vador, um homenzinho se aproxima dele. �� o portugu��s-
americano do trem.
��� Que sujeito cacete!
��� N��o sejas cruel. �� um pobre diabo. Mas Or-
lando fica contrariado. "Que querer�� este homem"? ���
pergunta a si mesmo. O outro lhe conta que descobriu
a casa da filha e l�� encontrou o neto aos cuidados
duma vizinha. A filha, essa tinha sa��do com um mari-
nheiro. "Mas que �� que o senhor quer que eu fa��a?"
pergunta Orlando. O outro responde: "Quero que me
ajude a ir procurar minha filha. Dizem que ela cos-
tuma ir com os amigos a esses cabar��s do International
Settlement".
��� Mas por que o homenzinho n��o esperou que a
menina voltasse?
��� Porque segundo informou a vizinha, a pequena
��s vezes ficava dois ou tr��s dias sem aparecer em casa.
��� E o portugu��s n��o podia esperar dois ou tr��s
dias?
��� N��o. O dinheiro estava curto.
��� Mas por que havia ele de ir procurar logo o
teu her��i?
��� Bolas! Porque era a ��nica pessoa que ele co-
nhecia na cidade. E seja como for preciso que a coisa
242
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
se passe assim, pois do contr��rio n��o descubro jeito de
trazer o meu homem at�� este antro.
��� Est�� bem. Adiante.
��� A�� come��a a peregrina����o do meu her��i e de seu
companheiro atrav��s da vida noturna de San Francisco.
Eles visitar��o todos os freges e cabar��s por onde anda-
mos hoje.
��� E as rea����es de Orlando?
��� Est�� claro que fica a princ��pio escandalizado,
porque �� um professor, um homem de "costumes mori-
gerados". Mas a verdade �� que, no fundo, a coisa o
atrai. Vou explicar que o ponteiro sentimental da
vida desse homem recalcado oscilou desde a adoles-
c��ncia entre dois p��los; um representado pelo pai,
juiz austero, homem de alguns bens, amante da ordem
e do direito; e o outro, o p��lo da aventura, do instinto,
dos desejos livres. Acabou fixando-se no p��lo positivo.
��� Qual �� o positivo no caso ?
��� Bom. N��o sei. Refiro-me ao p��lo do pai.
��� Ah!...
A havaiana se vai, e agora aparece em cena um
palha��o chin��s tocando flauta.
��� Ali est�� uma boa sugest��o ��� digo, fazendo um
sinal na dire����o do clow. ��� Meu her��i, ao ver aquele
chim, lembra-se dum palha��o de sua inf��ncia. Uma
vez, quando menino viu num circo uma mo��a que
trabalhava no trap��zio volante e ficou liricamente apai-
xonado por ela. Desejou fugir com o circo. Desde
ent��o a mo��a do trap��zio ficou sendo para ele o s��m-
bolo da aventura, a nega����o do convencionalismo, do
m��todo, da ordem, da tradi����o.
��� Mas depois que cresceu... ele nunca se en-
tregou �� aventura?
��� Timidamente. E quando teve de escolher en-
tre uma aventura amorosa que podia ser o sacrif��cio
A VOLTA DO GATO PRETO
243
duma carreira s��lida, teve medo e ficou �� sombra do
pai. Formou-se, fez um casamento burgu��s, ganhou
boa posi����o.
��� E viveu feliz ?
��� Sim... superficialmente. E agora, longe do
Brasil, ele como que se livra daquele sistema de coor-
denadas, entra numa outra dimens��o. Olhada de longe,
no tempo e no espa��o, sua vida se lhe apresenta dife-
rente. E nesta noite estranha ele come��a a dar voz a
d��vidas, a fazer perguntas, a sentir estranhos desejos. . .
��� Por que n��o fazer o teu her��i visitar tamb��m o
""Finnochio's"?
��� Excelente. Ele vai. Fica chocado, repugnado
vendo aqueles homens vestidos como mulheres e pin-
tados como mulheres, falando e rebolando as ancas
como mulheres. Fica chocado mas ao mesmo tempo
n��o pode afastar os olhos daquele palco, num inven-
c��vel fasc��nio.
��� Finalmente o homenzinho encontra a filha?
��� S�� depois de visitar muitos antros. E o curioso
�� que eles come��aram a jornada sozinhos e aos poucos,
sem que percebam, bo��mios se v��o juntando ao grupo,,
que no fim �� um bando alegre. Boa oportunidade para
pintar em pinceladas r��pidas algumas "aves noturnas".
��� E finalmente acabam neste cabar��...
��� Sim. E ali naquela mesa do canto... est�� a
filha.
��� Grande cena, n��o?
��� A�� �� que te enganas. A menina diz apenas
"'Hello, pop! Senta-te e toma alguma coisa".
��� E o velho?
��� O velho senta-se. E Orlando tamb��m. Todo
o mundo confraterniza. Porque o pai da menina j��
nessa altura tem v��rios u��sques no bucho.
244
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� E Orlando ?
��� S�� mais tarde, depois de muita relut��ncia, ��
que come��a a beber.
��� Por que essa relut��ncia?
��� Um tio b��bedo na fam��lia. Um tio que seu pai
desprezava, um tio que ele aprendeu a olhar como sen-
do o s��mbolo do pecado, da bo��mia, da auto-indul-
g��ncia e do v��cio. Ora, como podes calcular, todos;
esses fantasmas acompanham Orlando. E mais o ne-
voeiro. Especialmente neste ambiente...
��� E depois?
��� Orlando v�� os soldados b��bedos. Pensa em
que o mundo dele, Orlando, est�� em processo de dis-
solu����o. Pensa tamb��m na posi����o que ocupa, nas
casas de sua propriedade, nos seus t��tulos. Lembra-se
do filho, da mulher, dos amigos. Teme o mundo que
poder�� vir, depois da guerra.
��� Como �� o teu her��i, politicamente ?
��� Reacion��rio fantasiado de liberal. Desses que
��s vezes quando escrevem se revelam liberais mas que
se portam como os mais ferrenhos conservadores. Em
1936 foi pr�� Franco, porque achava que Franco era
um baluarte da civiliza����o crist�� contra o bolchevismo.
��� Em 1938 bateu palmas para Chamberlain.
��� Exatamente, porque Chamberlain e seu guarda-
chuva simbolizavam a paz. Orlando �� um tremendo es-
capista. Viveu sempre de acordo com a t��cnica da
avestruz: enterrando a cabe��a na terra para n��o ver
o perigo. E agora, neste cabar�� sem aqueles "censores"
que o coibiam no Brasil, ele se deixa levar pelo instinto
e porta-se com naturalidade. Olha para esses jovens
soldados que amanh�� talvez estejam mortos, com a
cabe��a decepada, ou os intestinos �� mostra...
��� Uuu! N��o v��s que estamos comendo!..
��� Perd��o, Em��lia. .. que amanh�� estejam mortos
A VOLTA DO GATO PRETO
245
num lugar qualquer do Pac��fico ao passo que e l e . . .
ele que faz? Nada. Apenas deseja a manuten����o do
seu mundo, deseja conservar suas casas, seus t��tulos, e
sua posi����o. Mas n��o luta.. Enterra a cabe��a no ch��o.
E reconhece, embora n��o o confesse, que esse mundo
de mentiras, hipocrisias e injusti��as n��o merece ser
defendido.
��� Ele pensa isto antes ou depois de tomar u��sque?
��� Durante. E sob o efeito do ��lcool, o verdadeiro
Orlando acaba por subir �� tona. Confraterniza com os
marinheiros, e pela primeira vez em sua vida faz ges-
tos espont��neos. Canta, abra��a desconhecidos, sente-
se feliz. E conclui, no nevoeiro da embriaguez, que
talvez esse sentimento de ternura e aceita����o humana
��� uma esp��cie de misticismo, n��o vertical rumo do c��u,
mas horizontal, rumo dos outros homens ��� possa sal-
var o mundo.
��� E o homenzinho e a filha?
��� Essa gente n��o me interessa mais. Vamos ver
o que faz Orlando. Num dado momento ele se ergue
e come��a a dizer em voz alta nomes feios. Nomes que
ele recalcou desde menino, que desejou dizer aos pro-
fessores, ao pai, a medalh��es. Berra os nomes sonora-
mente. As palavras lhe voltam contra o rosto, feitas
cinzas. N��o significam nada: s��o meras conven����es
como tantas outras que levam os homens a matar e a
odiar.
��� Mas como �� mesmo esse Orlando na sua vida...
digamos normal, no Brasil?
��� Um desses tipos que a gente considera bom
sujeito. N��o matam, n��o roubam, n��o ferem... Cheios
de virtudes negativas. Mas como professor de hist��ria
ensinava aos alunos uma Hist��ria convencional, que
ele sabia errada.
��� E por que ensinava se sabia que estava errada?
246
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Porque essa �� a historia que conv��m ��s classes
dominantes. E porque, se contasse a outra, a secreta,
perderia seu lugar. Ao proceder assim Orlando sente-
se traidor. Na juventude teve grandes ideais cava-
lheirescos, sonhou ser uma esp��cie de Cirano de Ber-
gerac, e achou que sempre estaria disposto a sacrificar
tudo para salvar o seu penacho simb��lico. Meteu-se
em campanhas pol��ticas, desejou salvar o pa��s... fa-
lou em liberdade, igualdade e humanidade... Mas
quando subiu...
��� Esqueceu os sonhos.
��� E terminou, como tantos outros de sua gera����o,
acomodado num cart��rio. Guardou o penacho no guar-
da-roupa, com naftalina. E tratou de garantir a sua
estabilidade, uma c��moda aposentadoria para a velhice
sob a prote����o da lei.
��� Mas todas essas coisas... Orlando s�� compre-
ende agora?
��� N��o. H�� muito que essas id��ias lhe tumultua-
vam na cabe��a, mais ou menos informes. Mas s��
agora �� que acham express��o clara, porque ele est�� num
outro mundo, chocado pelos aspectos da guerra, e por
outro lado os "censores" ��� parentes, amigos, interesses
de classe, ��� n��o podem exercer aqui uma influ��ncia
direta.
Fa��o uma pausa e depois:
��� Gar��on! ��� digo. ��� A notai
CL��MAX
Pago. Levantamo-nos. Descemos a estreita es-
cada que leva �� Grant Avenue. �� bom respirar de novo
ar livre. O nevoeiro est�� mais baixo. As ruas, menos
movimentadas. Damos algumas passadas em sil��ncio.
A VOLTA DO GATO PRETO
247
��� Tu abandonaste teu her��i na "Cova do Drag��o"
��� diz Mariana.
��� Ah! Eu vinha justamente pensando nele. Nessa
mesma noite Orlando conhece uma mulher. Uma dessas
muitas criaturas cujas vidas a guerra cortou. Perdeu o
marido e n��o teve, como a maioria das americanas, a
coragem de manter a cabe��a erguida. Entregou-se.
Vive por a�� a beber...
��� Bonita?
��� Creio que sim. Atraente. E o nosso Orlando
no fim de contas �� um homem cheio de desejos recal-
cados. Imagina s�� as centenas de mulheres que em
todos esses anos ele desejou possuir mas n��o p��de, por-
que queria guardar as apar��ncias, porque temia um
esc��ndalo. . . ou ent��o porque elas n��o o quiseram.
��� Como se encontram?
��� N��o sei exatamente. Mas encontram-se. Ela
n��o se interessa especialmente por ele. Acha vaga-
mente engra��ado aquele homem moreno com sotaque
estrangeiro. No fim de contas os homens n��o a atra-
em nem a assustam. O que ela quer mesmo �� morrer.
Acha que n��o vale a pena arrastar essa vida.
��� E como termina a noite?
��� Orlando sai com a mulher, e v��o para o aparta-
mento dela. Est��s vendo aquele edif��cio ah? Pois
bem. �� l�� que mora a desconhecida. Terceiro andar,
apartamento 315. H�� na vidra��a uma bandeirinha
com uma estrela dourada.
��� Orlando est�� embriagado?
��� N��o. Apenas "alegre". N��o te preocupes. Uma
ch��cara de caf�� resolveu tudo.
��� E depois?
��� Naturalmente ele ama a mulher violentamente.
Para Orlando a criatura que se entrega a ele n��o �� mais
uma desconhecida. �� a Bem-Amada, uma esp��cie de
248
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
s��mula de todas as mulheres que ele desejou. Uma
soma das namoradas da adolesc��ncia, das amantes
sonhadas. Mais ainda, ela �� a menina do trap��zio vo-
lante, a Aventura!
Paro, entusiasmado com o "achado". Duma ca-
sa pr��xima chega-nos o som duma orquestra. Um ar
frio nos bafeja o rosto. B��bedos passam por n��s e
nos dizem coisas que n��o entendemos.
��� E a mulher?
��� A mulher naturalmente n��o sabia de nada.
Apenas se deixou amar. Passivamente, desinteressa'
damente. Sabia que aquele homem iria embora no
outro dia, desapareceria de sua vida. E por falar em
desaparecer da vida...
��� Qu��?
��� Nada. Imagina isto. A f��ria passou. Orlando
agora est�� deitado, o corpo lasso e abandonado, mas
o esp��rito inquieto. Atrav��s da vidra��a v�� o nevoei-
ro, sempre o nevoeiro. Pensa no Brasil, naquele mun-
do t��o distante.... Ter�� ele coragem de voltar �� ve-
lha vida? De -ser o mesmo de antes? N��o ter�� agora
os olhos abertos? A vida que sempre viveu foi uma
vida ego��sta, demasiadamente cautelosa e est��ril. On-
de ficaram os seus sonhos? Ele sente uma verdadeira
ternura humana por essa desconhecida silenciosa que
respira de leve a seu lado...
��� A mulher a todas essas n��o diz nada?
��� Nada.
��� N��o se queixa? N��o conta sua hist��ria?
��� N��o. O seu sil��ncio �� impressionante.
Continuamos a andar. Longe gemem as sereias
dos carros do Corpo de Bombeiros.
��� Finalmente a mulher se ergue e vai para o
quarto de banho. Orlando fica com seus pensamentos,
suas d��vidas, suas perguntas e j�� com uma leve sen-
A VOLTA DO GATO PRETO 249
sa����o de constrangimento. O tempo passa. O ne-
voeiro l�� fora se adensa. O sil��ncio do quarto �� um
sil��ncio frio de jazigo perp��tuo. A mulher n��o volta.
Que aconteceu? Orlando levanta-se e vai at�� o quar-
to de banho.
��� E encontra a mulher estendida no ch��o...
��� Isso mesmo.
��� Suic��dio?
��� Sim. Seconal. O vidro est�� preso nos dedos
crispados...
��� Folhetim...
��� Qual nada! Vida. No duro.
��� Bom. Continua.
��� Imediatamente aquela mulher que para Orlan-
do era o s��mbolo de tantas coisas, passou a ser ape-
nas . . . um inimigo... o perigo...
��� E que faz o teu her��i?
��� S�� pensa em sair: sair dali sem ser visto. Es-
t�� apavorado �� id��ia de que seu nome possa apare-
cer num jornal, ��s voltas com a pol��cia, envolvido na-
quele suic��dio. Imagina a repercuss��o do caso no
Brasil... o esc��ndalo, a sua vida estragada... Co-
me��a a vestir-se, ��s pressas, atabalhoadamente, ner-
vosamente, com os olhos na porta, temendo v��-la abrir-
se de repente...
��� De s��bito o telefone tilinta.
��� O detalhe �� de bom efeito. Mas muito falso.
Cinema...
Descemos na dire����o de Sutter-Street. Num ter-
ceiro andar, as coristas do cabar�� de Mr. Wong can-
tam. No fim da perspectiva duma rua avistamos fos-
camente em meio da n��voa o colar de luzes amarelas
que perlongam a ponte que leva a Oakland.
��� Tu compreender��s que vou tirar todos os efei-
tos poss��veis daqueles momentos passados por Or-
250
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
Iando no apartamento, depois de descobrir a mulher
ca��da no ch��o. Abre a porta, vai sair, mas ouve o ru��do
do elevador que sobe, e recua. Olha apavorado para
o telefone, com medo de ouvi-lo tilintar. Por fim des-
ce as escadas, com o pavor na alma. .. Finalmente
ganha a rua. P��e-se a caminhar na dire����o do
hotel...
��� E de repente descobre que deixou o rel��gio
de pulso em cima da mesinha-de-cabeceira da sui-
cida.
��� ��timo. Descobre e fica gelado. Mas metendo
a m��o no bolso, mais tarde, encontra ali o rel��gio.
Chega ao hotel. Sobe para o quarto mas n��o conse-
gue dormir. Clareia o dia. Clareia n��o �� bem o
termo. ..
��� Porque o nevoeiro continua.
��� Exatamente. Orlando n��o pregou olho duran-
te toda a noite. E s�� agora lhe ocorre uma id��ia hor-
r��vel. E se a mulher n��o estava morta? No seu ata-
rantamento esqueceu-se de verificar isso. Podia t��-la
socorrido, chamado a Assist��ncia... No entanto, por
covardia, por pura covardia tratara apenas de safar-se,
para que seu nome, seu honrado nome n��o fosse en-
volvido naquilo.. .
��� E o amigo m��dico?
��� O amigo telefona pela manh��, promete vir
mais tarde. Orlando examina, s��frego, os jornais da
manh��, procurando a not��cia do suic��dio. Estar�� ape-
nas ansioso para saber se a criatura de fato morreu?
Ou apenas quer verificar se a pol��cia descobriu ves-
t��gios de sua visita?
��� Est�� ficando sensacional.
��� E ali fechado naquele quarto do hotel, Orlan-
do pensa na sua vida, nas muitas vezes em que fa-
lhou como ser humano, em que, velado pelo ego��smo
ou pelo medo, ele prejudicou outros, ou negou-se a
A VOLTA DO GATO PRETO
251
auxiliar os que recorreram a ele. O tempo passa. O
nevoeiro continua.
��� V��m os jornais da tarde.
��� No primeiro que examina, Orlando n��o encon-
tra "nada. Finalmente descobre no "Call Bulletin"
uma pequena not��cia que lhe conta que Nancy Ro-
gers, residente em Calif��rnia Street n.�� 1543, no apar-
tamento 315 foi encontrada em estado de coma por
sua companheira fulana de tal que partilha o quarto
com ela, trabalhando �� noite e dormindo durante o
dia. Gra��as �� interven����o da amiga, que a levou para
um hospital, Miss Rogers est�� fora de perigo.
��� Ufa! Que al��vio.
��� Al��vio para ti, para mim e para Orlando.
��� No fim de contas esse pobre homem consegue
dormir?
��� N��o. Vai voltar no trem da noite. O amigo
m��dico aparece. "Que cara �� essa, homem?" diz ele,
achando Orlando p��lido e abatido. Finalmente o nosso
her��i se v�� de novo no trem a caminho de Los Ange-
les. Volta-lhe a sensa����o de ang��stia, de pris��o...
��� L�� est�� num dos carros o portugu��s...
��� Isso! Mas n��o est�� s��. Tem no colo o neto.
��� E a m��e da crian��a?
��� Ficou em San Francisco. O pobre portugu��s
est�� abatido, triste, desmoralizado.
��� Naturalmente entabula-se um di��logo.
��� Sim, mas um di��logo chocho.
��� E como termina a hist��ria?
��� Ah no trem. Orlando pensa em tudo quanto
se passou em San Francisco. Seja como for ��� con-
clui egoisticamente ��� est�� vivo. E que tremendo ape-
tite de viver ele sente agora! Daria tudo, tudo para
voltar a ter vinte e cinco anos... para recome��ar...
Olha para a crian��a que dormita nos bra��os do av��
252
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
e pergunta a si mesmo qual ser�� o destino da gera-
����o que a criaturinha representa, entregue assim aos
erros, �� imprevid��ncia e aos v��cios das gera����es re-
presentadas por aquele homem. E embalado por esses
pensamentos, Orlando deixa cair a cabe��a contra o
respaldo do banco e dorme. Acorda dentro em pou-
co, sobressaltado, com uma sensa����o de ang��stia, de
pris��o. De novo sonhou que tinha sido enterrado vi-
vo. Precisava de ar livre, de muito ar. E assim, ainda
estonteado, sai pelo trem �� procura duma janela, duma
janela, duma janela...
��� Esse �� o fim?
��� ��.
��� E quando vai come��ar a escrever a hist��ria?
��� Nunca.
��� Por qu��?
��� Escuta. Primeiro, porque a hist��ria ter�� um
tom falso, pela simples raz��o de se passar em San
Francisco da Calif��rnia...
��� Talvez sim, talvez n��o...
��� Segundo: o leitor ficar�� com uma impress��o
errada desta cidade, deste pa��s. Imaginar�� que toda
a gente vive bebendo e tomando seconal. Voc�� bem
sabe como esta gente est�� se portando com rela����o
�� guerra. Os rapazes que encontramos hoje na "Cova
do Drag��o" s��o soldados que voltaram da guerra em
gozo de licen��a; querem divertir-se, querem esque-
cer . . . e bebem.
��� E nem todos os soldados que voltam da guer-
ra se embriagam.
��� Claro. E mulheres vencidas como a minha
pobre hero��na s��o raras.
Tomo o bra��o de Mariana, e mostro-lhe um gran-
de ��nibus parado a uma esquina.
��� Olha. Aquele ��nibus est�� esperando os tra-
balhadores que v��o para o turno da madrugada num
A VOLTA DO CATO PRETO
253
desses estaleiros de Richmond. Olha s�� quantas mu-
lheres est��o l�� dentro, metidas em cal��as de homem,
com capacetes de alum��nio na cabe��a. Ali est��o bran-
cas, mulatas, pretas, mo��as, velhas... E h��, tamb��m,
homens de todas as classes, de todas as cores...
Pausa.
��� E depois ��� prossigo ��� um romancista n��o po-
de nunca escrever uma hist��ria interessante em torno
de gente normal e feliz.
��� Mas haver�� no mundo muita gente normal e
feliz?
��� Essa �� uma pergunta dif��cil. ..
Continuamos a andar.
��� Ent��o.. . n��o sai hist��ria?
Sacudo a cabe��a negativamente e acrescento:
��� Acontece tamb��m que Hollywood deitou tudo
a perder. Invadiu o mundo com suas conven����es
e f��rmulas. N��o h�� mais espontaneidade. Tudo soa
falso, porque tudo lembra o cinema. E a coisa �� de
tal maneira besta que um leitor me confessou um dia
que quando l��. um romance de amor, imagina sem-
pre uma m��sica de fundo, como nos filmes.
��� No entanto tua hist��ria �� veross��mil...
��� Queres dizer que ela podia ter acontecido.
Sim. Mas nem tudo que acontece �� veross��mil.
��� De sorte que. .. nada feito?
��� Nada feito.
Ditas estas palavras, encerramos o assunto e tra-
tamos de chamar um t��xi.
CARA DE PAU
20 de junho. A ��ltima aula. Fa��o uma r��pida
recapitula����o de toda a mat��ria dada durante o se-
mestre. Depois fico a conversar com os meus estu-
254
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
dantes, a maioria dos quais talvez eu nunca mais torne
a encontrar.
Sou muito sens��vel ��s rela����es humanas, e habi-
tuei-me a ver pelo menos tr��s vezes por semana estes
jovens que aqui tenho diante de mim. Com muitos
deles andei a caminhar pelo campus ou almocei nes-
ses caf��s bo��mios dos arredores da Universidade.
Muitas dessas mo��as foram a meu escrit��rio e me le-
varam seus "casos", alguns dos quais o romancista es-
cutou com del��cia e o homem com embara��o...
N��o acredito possa afirmar honestamente que
meus alunos conhe��am literatura brasileira. Em com-
pensa����o, estou certo de que despertei neles n��o s��
o interesse e a curiosidade pelo Brasil, como tamb��m
uma certa simpatia pelo nosso povo, nossos sonhos,
pelo nosso jeito.
Pergunto-lhes agora que pretendem fazer no se-
gundo semestre de 1944. Alguns permanecer��o na
Universidade para terminar o curso. Outros tencio-
nam procurar um emprego. Patsy vai para Nova York
tentar uma carreira no r��dio. Helen quer visitar o
Brasil. Marion Bita vai para o M��xico, Mongui�� foi
chamado para o ex��rcito. Maryfrances vai casar. Ma-
ria Antonieta destina-se a uma universidade em
Minnesota.
Dou-lhes o ponto de exame. Quero que me es-
crevam um ensaio sobre o povo brasileiro, atrav��s do
que puderam depreender de minhas confer��ncias e dos
livros lidos em aula.
Finalmente ou��o as badaladas dos carrilh��es do
Campanile, anunciando que a hora terminou.
Good-bye! Estou comovido, mas aposto que meu
rosto n��o revela esse sentimento.
Algu��m j�� disse que, na sua impassibilidade, ele
lembra ��s vezes essas caras talhadas em madeira nos
postes tot��micos dos ��ndios do Alasca...
A VOLTA DO GATO PRETO
255
MINUTO PARA LEMBRAR
Ainda a 20 de junho, ��s tr��s horas de minha
��ltima tarde na Universidade da Calif��rnia. Da janela
de meu escrit��rio vejo um campo de relva parelha e
verde, onde oito universit��rias, postadas numa longa
fila, empunham arcos e lan��am setas contra grandes
alvos com grossos c��rculos conc��ntricos azuis, verme-
lhos e brancos. Ao se cravarem nos discos, as setas
produzem um ru��do cavo e breve. Nas quadras de
t��nis vultos brancos movimentam-se dum lado para
outro, e a batida da bola no cordame das raquetas
tem um tom claro, el��stico e alegre. Na piscina do
gin��sio feminino banhistas espadanam na ��gua, e seus
gritos trespassam o ar como frechas atiradas contra o
azul. Longe os arranha-c��us de Oakland parecem
flutuar na bruma dourada. No Music Building algu��m
com arco incerto arranha enjoativamente as cordas
dum violino. L�� em baixo ao p�� da fonte de m��rmore
um par de namorados conversa de m��os dadas. A
luz da tarde �� doce e madura nas colinas de Ber-
keley.
Mais um momento para lembrar.
3 -
I
N
T
E
R
L
U
D
I
O
(De 30 de junho a 6 de agosto de 1944)
MAPA DO PARA��SO
IMAGINE-SE um parque, ao norte de Oakland,
num calmo vale, ao p�� de colinas que a m��o morena
do est��o ordinariamente pinta de s��pia, e as chuvas
de inverno fazem reverdecer. . . Um parque cortado
de estradas de cimento debruadas de altos eucalip-
tos, ciprestes, carvalhos, pl��tanos e lampi��es anti-
gos. . . Dentro desse parque, edif��cios brancos erguem-
se em meio de vastos tabuleiros de r e l v a . . . O teatro
para m��sica de c��mara, num estilo de igreja do Re-
nascimento espanhol, tem a seu lado um lago circular
sobre o qual salgueiros se debru��am, como que a brin-
car de poema simbolista. Tamb��m branco, mas sem
estilo, o "auditorium" fica perto duma ponte de pe-
dra, sob a qual um airoio desliza, calado e sereno,
por entre pedras e arbustos, rumo das c o l i n a s . . . A
galeria de arte, cuja fachada �� uma longa sucess��o de
arcadas brancas, est�� guardada pelos dois C��es de
Fu, talhados em m��rmore branco, �� maneira da di-
nastia Ming. Num bangal�� simpl��ssimo encontramos
uma livraria, a casa de ch�� ��� "A Lanterna de Ouro"
��� e uma ag��ncia postal. H�� ainda v��rios grandes
halls, com seus jardins, fontes e lagos artificiais... E
casinhas em estilo de miss��o espanhola, dentro de pai-
sagens com cactos e magn��lias. . . No edif��cio da
biblioteca, cujas persianas verdes se abrem para um
largo de forma oval, todo tapetado de relva, reina
sempre um sil��ncio erudito.
Mas h�� em geral gritos alegres e claros nas qua-
tro quadras de t��nis, no gymnasium e na piscina.
260
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
E durante nove meses de cada ano letivo, esse
para��so ��� que se chama Mills College ��� fica povoa-
do de belas raparigas que a�� fazem cursos de belas-
artes, l��nguas, literatura, e ciencias sociais, naturais e
matem��ticas.
De 30 de junho at�� o fim da primeira semana de
agosto o colegio se abre para a "Summer Session" ou
seja "Sess��o de Estio", em que oferece tanto a mu-
lheres como a homens ��� estudantes e professores de
outras universidades ��� cursos especiais intensivos de
ingles, espanhol, franc��s, portugu��s, chin��s, artes pl��s-
ticas, bem como confer��ncias sobre literatura, hist��ria,
arte e costumes da China, da Fran��a, e dos pa��ses
latinos-americanos. E para que esse estudo siga o es-
p��rito pr��tico e instrumentalista do ensino americano,
o Mills proporciona tamb��m aos estudantes a opor-
tunidade dum conv��vio com professores naturais des-
ses pa��ses, em casas separadas que s��o como hot��is,
nos quais os grupos vivem, discutem problemas, assis-
tem a palestras e realizam festas t��picas, dispondo tam-
b��m duma biblioteca especializada e dum pequeno
museu.
Durante o ver��o, funcionam aqui as chamadas
"Casa Pan-Americana", a "Maison Fran��aise", "o En-
glish Language Institute", e o "Chung Kuo Yuan" ou
"Casa Chinesa".
A "Summer Session" n��o tem finalidades comer-
ciais, e s�� pode ser mantida gra��as �� subven����o que o
escrit��rio do "Coordenador de Assuntos Interamerica-
nos" d�� ao Mills College especialmente para esse fim.
O que mais agrada neste "college" �� a gra��a des-
pretensiosa de seus edif��cios e jardins, nos quais se
nota uma aus��ncia absoluta de novo-riquismo. Todos
estes halls t��m um ar de "casas vivas", um calor de
intimidade. Decorados com discreto gosto, com suas
poltronas fofas, as suas lareiras r��sticas, as suas l��m-
A VOLTA DO GATO PRETO
261
padas veladas e seus tapetes ��� ele realiza o milagre
de fazer que quatro brasileiros extraviados possam
neles sentir-se "em casa", desde o primeiro dia.
Nesse para��so entro com minha tribo numa do-
ce tarde de junho, perfumada de eucaliptos.
CHUNG KUO YUAN
O Chung Kuo Yuan ou Casa Chinesa fica na
parte ocidental do campus. �� uma mans��o quieta e
triste como um mosteiro, onde alunas americanas, es-
cassas em n��mero, caminham miudinho e falam bai-
xinho, como que influenciadas pelo ambiente chim.
Mr. Chan ensina chin��s elementar para princi-
piantes, e a l��ngua mandarim para estudantes mais
adiantados; ao passo que Mr. Mach, que fisicamente
n��o difere muito de Mr. Chan, faz confer��ncias sobre
a cultura chinesa e sobre as rela����es entre a China e
os Estados Unidos. Herr Otto Maenchen, que n��o
se parece com Mr. Mach nem com Mr. Chan, inter-
preta para seus alunos as formas de arte e t��cnica chi-
nesas, desde seus princ��pios at�� nossos dias.
E no lago artificial do jardim nadam peixinhos
dourados.
OS MONGES E OS MEXICANOS
No "Orchard-Meadow Hall" estudantes aperfei-
��oam seus conhecimentos da l��ngua inglesa, e uma es-
pecialista em pros��dia tudo faz ��� inclusive meter o
cabo duma colher na boca do paciente para lhe as-
sentar a l��ngua na posi����o conveniente ��� a fim de
conseguir determinados sons. O Coordenador de As-
suntos Interamericanos proporcionou a um grupo de
262
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
professores e professoras mexicanos a oportunidade de
freq��entar este curso de ver��o aprofundando seus es-
tudos de ingl��s, especialmente no que diz respeito ��
pros��dia. Assim, o campus est�� cheio de faces e vo-
zes mexicanas. As vozes em geral s��o musicais e a
l��ngua que falam, agrad��vel. As faces, nem todas s��o
musicais e muito menos agrad��veis. Os homens apre-
sentam um aspecto fa��anhudo e agressivo, e vivem nu-
ma atitude de franca hostilidade com rela����o ao am-
biente. Sei que os mexicanos t��m velhas diferen��as
com os Estados Unidos; n��o discutirei a raz��o dessa
desconfian��a que lhes torna o olhar torvo e as pala-
vras ��speras. Acontece, por��m, que todos os repre-
sentantes de outros pa��ses ��� e especialmente os "do-
nos da casa" ��� procuram trat��-los com a mais cari-
nhosa aten����o, o que n��o impede que os "maestros"
mexicanos se ericem como porcos-espinhos, dando a
entender que ��� "n��s estamos aqui porque queremos,
e n��o acreditamos que estes gringos tenham alguma
coisa a nos ensinar..."
Mariana, que freq��enta um curso de fon��tica, me
conta da atitude agressiva e sarc��stica de alguns des-
ses "maestros" em aula. Um deles ��� um indiota de
nariz quebrado, ex-jogador de box ��� acende seu ca-
chimbo e fica com os p��s em cima da mesa, numa
atitude provocadora. Alguns sorriem sorrisos miste-
riosos, dizem coisinhas. Conduzem-se, enfim, como
"ni��os malos".
A tudo isso os professores Smith e Rotunda ficam
indiferentes, portando-se com uma paci��ncia benedi-
tina.
Dom��nico Rotunda, americano descendente de
italianos, �� um homem robusto, de ar pachorrento, bi-
gode negro ��� desses tipos que sempre andam com a
lapela do casaco polvilhada de cinza de cigarro. Fa-
la devagar e quase sempre em voz baixa. �� um apai-
A VOLTA DO GATO PRETO
263
xonado dos estudos ling����sticos, e ��s vezes convida-
me para ir conversar sobre Pirandello �� sombra das
��rvores do p��tio. Alto, louro, vermelho e sardento,
Willard Smith, lente de ingl��s do Mills, �� um enamo-
rado da filologia.
Freq��entes vezes esses dois homens s��o vistos a
caminhar lado a lado por estas alamedas. Rotunda e
Smith s��o amigos insepar��veis, irm��os na gram��tica
e oficiais do mesmo of��cio. Voluntariamente votaram-
se �� tarefa de ensinar ingl��s aos oper��rios mexicanos ���
em sua maioria analfabetos ��� que foram contratados
para trabalhar nas ferrovias da Calif��rnia. Tr��s ve-
zes por semana v��o esses dois monges misturar-se
com os "paisanos", tentando meter-lhes nas cabe��as
no����es de ingl��s que tornem mais f��cil e proveitosa
para eles a estada neste pa��s.
E aqui no Mills, todas as manh��s, dia ap��s dia,
eles suportam com paci��ncia as palavras e atitudes
agressivas dos maestros, pagando de certo modo pelos
pecados imperialistas do falecido Coronel Theodore
Roosevelt.
ILE DE FRANCE
Insulada no alto dum outeiro, ergue-se orgulhosa
a Maison Fran��aise, no meio dum bosquete de euca-
liptos e carvalhos. Cada ver��o ela hospeda escritores
e professores ilustres de Fran��a. Em 1941 aqui es-
teve Andr�� Maurois, e em suas "Mem��rias", que ele
come��ou a escrever �� sombra destas ��rvores, encon-
tro o seguinte trecho: P��tio �� espanhola onde mur-
mura uma fonte em meio de ciprestes. L��amos e co-
ment��vamos grandes livros; o quarteto de Budapest
executava Beethoven �� noite; Darius Milhaud ensina-
va m��sica; Fernande L��ger ensinava pintura; Mode-
264
O B R A S D E ERICO V E R �� S S I M O
leme Milhaud ensinava a fon��tica; Ren�� Belle, a poe-
sia ��� todos com ardor e talento. Essa "Maison Fran-
��aise" �� uma tradi����o no Mills College, e, dos lados de
Middlebury, um dos centros de estudos franceses da
Am��rica .
Este ano venho encontrar aqui quase toda essa
gente. Darius Milhaud, um dos grandes composito-
res modernos de Fran��a, leciona m��sica neste col��-
gio durante o ano letivo regular. �� um homem gor-
do, dum moreno p��lido, e de express��o imensamente
triste. E a bondade desse artista, que o reumatismo
agora confina a uma cadeira de rodas, revela-se na
maneira terna com que ele olha as pessoas e as coi-
sas. Sua esposa Madeleine, professora de dic����o e
arte dram��tica, �� uma criatura mi��da, de porte alti-
vo, cabelos claros e ar de quem sempre est�� no pal-
co, no terceiro ato duma trag��dia.
M. Bell��, alto, moreno, com o cabelo cortado ��
escovinha, �� um homem gentil, de "maneiras conti-
nentais" ��� como se diz neste pa��s ��� isto ��, um gen-
tleman cheio de curvaturas e de express��es como ���
"Enchant��". . . Mais non, mon cher monsiew... Pas
du tout, ch��re madame.
Solene como uma preceptora, mas t��mida como
uma estudante provinciana no seu primeiro dia de
internato, Mlle. C��cile Reau, diretora da Maison, pa-
rece ter um medo p��nico aos homens. Fala baixo,
n��o encara o interlocutor e, depois dum relutante e r��-
pido aperto de m��o, vai recuando aos poucos, como
uma ave acuada por um mastim, como que no temor
de que sua virgindade cinq��entona possa ser compro-
metida pela simples presen��a duma pessoa do sexo
oposto.
Aos s��bados e domingos estudantes e professores
organizam uma soir��e liter��ria e musical. E no jar-
dim espanhol l��em, sob as estrelas, pe��as de Racine
e Moli��re.
A VOLTA DO GATO PRETO
265
Seguindo um h��bito americano, neste campus
estudantes e professores come��am a confraternizar des-
de o primeiro dia. �� hello! para c�� e hello! para l��.
Ningu��m espera apresenta����es formais. Mais non! Os
habitantes de Maison s��o diferentes. Caminham de-
vagar e com mais dignidade. N��o atiram hellos! es-
portivos para os passantes. Limitam-se a sorrir, incli-
nar a cabe��a e murmurar: How do you do? ou Com-
ment ��a va? Essa maneira de ser formalista contagia
at�� certo ponto os pr��prios estudantes americanos que
vivem na "casa do alto da colina". Parecem pensar
que, pertencendo ao mundo de Voltaire e Montaigne,
de Gide e Debussy, n��o devem misturar-se c�� em bai-
xo com estes b��rbaros adoradores do jitter-bug e le-
dores de suplementos dominicais. Eles l�� em cima s��o
a Cultura, a Sabedoria dos S��culos. �� por isso que
passam como sombras ilustres, com um sorriso condes-
cendente e meio ir��nico por entre esta colorida, des:-
recalcada e jovem popula����o da plan��cie.
JARDIM FECHADO
Este ano a "estrela" de Maison n��o �� Andr�� Mau-
rois e sim Julien Green, romancista nascido em Paris,
filho de pais norte-americanos, educado na Fran��a.
Escreve em franc��s, pensa em franc��s, sente como um
franc��s. ��, em suma, um escritor franc��s, e seus li-
vros, em que predomina um tom noturno, encontram-
se entre os melhores romances psicol��gicos destes
��ltimos vinte anos.
Julien Green �� um homem de estatura me��, cons-
tru����o s��lida, tez dum moreno claro, cabelos e olhos
escuros e um nariz gaul��s, longo e fino. �� retra��do
e t��mido, dessa timidez que �� primeira vista pode pa-
recer emp��fia.
266
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
S�� depois duma apresenta����o formal, durante a
qual ele tirou da cabe��a o Panam�� creme, �� que pas-
sou a me cumprimentar, mas sempre cerimoniosa-
mente.
Assisto a uma de suas confer��ncias sobre a arte
da fic����o. Afirma ele que o essencial para um roman-
cista �� acreditar na hist��ria que est�� contando. O fic-
cionista ��, em ��ltima an��lise, um alucinado que acre-
dita nas cousas que ele pr��prio inventa. Acha Green
que sem sinceridade n��o �� poss��vel escrever-se uma
boa hist��ria. Algu��m lhe perguntou se um autor de-
ve aplicar a seus romances os ensinamentos da psica-
n��lise. Sua resposta foi negativa. Conta tamb��m que
o famoso professor Steker escreveu que sua "Adrien-
ne Mesurat" era o romance psicanal��tico dum escritor
que n��o conhecia psican��lise.
"Com isto estou de perfeito acordo ��� prossegue
Julien Green ��� porque na verdade n��o conhe��o psi-
can��lise."
Escreveu certo cr��tico que Adrienne Mesurat era
um auto-retrato de Green, ao que este, irritado, re-
trucou que no fim de contas ele era um pouco todas,
as personagens de seus livros.
Por que escreve o senhor romances t��o sombrios?
��� perguntam-lhe ��s vezes. Green responde que Ti-
ciano achava o negro a mais bela de todas as cores.
Como pintor de caracteres, Green confessa-se inca-
paz de tirar bons efeitos com cores claras.
Falando no car��ter das personagens de fic����o,
afirma que n��o �� poss��vel criar um tipo absolutamen-
te bom e ao mesmo tempo veross��mil. Referindo-se
�� pequena Neil, de Dickens, classifica-a como um tipo
affreux.
Conta tamb��m que, conversando um dia com
Jacques Maritain em Nova York, algu��m perguntou
a este ��ltimo se seria poss��vel p��ra um homem verda-
deiramente voltado para a vida do esp��rito escrever
A VOLTA DO GATO PRETO
267
vim bom romance. Maritain respondeu pela afirmati-
va, mas Green replicou com uma pergunta: Conhece
algum santo que tenha escrito romance?
E aqui desta ��ltima fila de bancos, onde me en-
contro instalado, a ouvir interessante confer��ncia de
Green, penso em que na verdade o romancista tem
mais de dem��nio que de anjo.
Green tem uma voz branda e atenorada. Rara-
mente nestas confer��ncias se permite fazer uma ob-
serva����o humor��stica. Vim para c�� esperando uma
s��rie de revela����es autobiogr��ficas. Entretanto Green
mostra-se reticente, relutante em contar seus segredos
de homem e de escritor. Aflora apenas os assuntos
e um exemplo dessa tend��ncia para a evasiva �� a
men����o da frase de Ticiano sobre a cor preta para
justificar o tom sombrio de seus livros.
O seu "Adrienne Mesurar" ��� romance cujo titulo
�� o nome da hero��na da hist��ria ��� foi traduzido para
o ingl��s como "Jardim Fechado".
Creio que o pr��prio Julien Green �� um jardim
fechado, um jardim de sombras e de mist��rio, povoa-
do de almas penadas, e onde s�� de raro em raro pe-
netra um raio de sol. Mas um grande e profundo-
universo, esse jardim crepuscularl
CASA PAN-AMERICANA
De todas as casas, esta �� talvez a mais amiga, a
mais sem-cerim��nia, a mais alegre, e, por tudo isso,
a mais freq��entada por elementos de outros halls, os-
quais de vez em quando aparecem ��� principalmente
�� noite ��� em busca duma atmosfera mais familiar e
festiva.
Ocupo com minha gente um bom apartamento, e
minhas obriga����es como professor consistem em duas-
268
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
horas maci��as de aula por dia ��� portugu��s para al-
guns estudantes adiantados, hist��ria e literatura do
Brasil para um grupo mais numeroso ��� e uma que ou-
tra confer��ncia extracurricular sobre assuntos que s��o
determinados ao sabor da fantasia do audit��rio.
Lu��s e Clara fazem amigos e h��bitos, e andam
felizes, duma felicidade ruidosa e alvorotada. O me-
nino vai todas as manh��s �� mesma hora ler livros na
biblioteca da Casa. Faz isso com uma t��o s��ria e com-
penetrada regularidade, que Miss Garden, a loura
bibliotec��ria, me disse h�� pouco:
��� Enquanto o Louie n��o aparece, eu n��o consi-
dero o meu dia oficialmente come��ado.
Rudolph Schevill e sua senhora s��o os diretores
da Casa Pan-Americana. Mrs. Schevill, uma simp��tica
morena de olhos vivos e negros, nasceu no M��xico
mas foi educada nos Estados Unidos. Rudolph e eu
continuamos aqui a boa camaradagem come��ada na
Universidade. Cada vez estimo e admiro mais este
homem de setenta e dois anos que em muitos respei-
tos �� muito mais jovem que eu. ��s vezes, quando me
encontra no hall, entrincheira-se atr��s duma poltrona
e, muito s��rio, come��a a fazer fogo contra mim com
uma metralhadora imagin��ria; e eu n��o tenho outro
rem��dio sen��o defender-me, alvejando-o com um re-
v��lver invis��vel ��� tudo isso para espanto das pessoas
que acontece passarem no momento, e que n��o sa-
bem do que se trata. Pela tardinha sa��mos juntos por
essas avenidas, e Rudolph me conta de suas viagens
por terras da Europa, e das muitas gentes que viu e
das muitas cidades que visitou.
Entre os outros professores da Casa Pan-Ameri-
cana destaca-se Enrique Rodriguez Fabregat, um uru-
guaio admir��vel, autor de v��rios livros, ex-ministro
da educa����o de seu pa��s, orador e polemista de reno-
me. Adora o Brasil, onde viveu muitos anos como
A VOLTA DO GATO PRETO
269
exilado pol��tico. Visitou a floresta Amaz��nica, a res-
peito da qual est�� escrevendo um livro com apaixo-
nado ��mpeto. Outra de suas afei����es arraigadas �� a
que tem pela figura de Abra��o Lincoln, em cuja bio-
grafia trabalha h�� dois anos com lento e amoroso
cuidado. Esse uruguaio que viajou por toda a Am��-
rica do Sul, deixando nos lugares por onde passou
partes de sua bagagem e muitos, muitos amigos ���
esse homem inquieto e imprevisto percorreu, comovi-
do o estado de Illinois, seguindo a rota hist��rica do
grande Presidente.
Rodriguez Fabregat �� um tipo de estatura me-
diana, calva lustrosa, rosto comprido de express��o p��-
cara. O que mais impressiona nele �� a voz, redonda,
profunda e veludosa, que ele sabe modular magistral-
mente. Pelas manh��s aparece-nos na sala de refei����es,
metido numa esp��cie de d��lm�� de veludo marrom,
que lembra a de Stalin, e sua voz ecoa na sala como
que amplificada por um alto-falante. Paciente, tole-
rante e amiga, a Sra. Fabregat, que segundo suas pr��-
prias palavras �� brasileira e uruguaia, "mitad por mi-
tad", parece-me uma admir��vel combina����o de espo-
sa e secret��ria.
�� um gosto ver no meio das girls deste col��gio,
Rodriguez Fabregat de bonezinho na cabe��a, empu-
nhando uma cuia e chupando por uma bomba de pra-
ta o seu chimarr��o ga��cho. As pequenas o cercam e
lhe fazem perguntas, encantadas. Muito grave, com
voz misteriosa e cava, ele lhes conta hist��rias inven-
tadas no momento, coisas fant��sticas sobre a Am��ri-
ca do Sul, a jungle, as montanhas e os ��ndios. A ex-
press��o de seu rosto �� s��ria. O seu ar, dram��tico. E
de vez em quando ele faz pausas para dar um chup��o
na bomba.
Um dia uma velhota de San Francisco, dessas
que l��em um pouco de espanhol e se interessam pela
270
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
hist��ria das rep��blicas do Pac��fico, leu que certos
manuscritos "fueran devorados por las llamas". Tra-
duzindo a palavra llama por lhama em vez de por
chamas, ela ficou t��o excitada, que n��o resistiu �� tenta-
����o de comentar t��o interessante particularidade com
Rodriguez Fabregat.
��� Mas que ex��tico, se��orl Eu n��o sabia que as
lhamas do Peru comiam papel.
Fabregat baixou um pouco a cabe��a, mirou a in-
terlocutora por cima dos ��culos e depois, lentamente,
com uma gravidade doutoral, disse:
��� Comem, madame, pois n��o. .. Comem...
A RONDA DAS ESTA����ES
O clima �� de tal maneira delicioso nesta parte
de Bay Area, que num mesmo dia a gente v�� e sente
passar, numa esp��cie de par��frase, a ronda das es-
ta����es. Quando saio pela manh��, ��s oito, para ir bus-
car a correspond��ncia ao correio, �� inverno; o c��u es-
t�� coberto de cerra����o, o ar �� frio. ��s dez, quando me
dirijo para o pavilh��o das aulas, vem chegando a pri-
mavera; o sol doura o nevoeiro, que come��a a esgar-
��ar-se e erguer-se, e as primeiras nesgas de azul apa-
recem para al��m das fran��as dos eucaliptos. Do meio-
dia ��s cinco da tarde estamos em pleno ver��o, brilha
um sol de ouro, o ar �� quente e seco, o c��u em ge-
ral limpo, e a piscina se enche de banhistas. Depois
das cinco come��a o outono, a luz se faz mais madu-
ra, entra a soprar um vento fresco, e os banhistas,
meio arrepiados, deixam a ��gua. Com a noite vem
o inverno, e as mesmas raparigas que ainda h�� pouco
nadavam na ��gua azul da piscina enfiam seus su��teres
e saem em grupos por essas estradas, v��o para os di-
versos halls onde h�� concertos, confer��ncias, reu-
ni��es . . .
A VOLTA DO GATO PRETO
271
E num c��u onde a bruma �� como um v��u muito
t��nue, brilham estrelinhas de gelo.
O POETA
Alto, corpulento, monumental, com seu bigode
aparado, olhos de ��ndio, Carlos Carrera-Andrade me
d�� a impress��o de ter fugido dum quadro mural pin-
tado por Diego de Rivera para o hall de alguma re-
parti����o p��blica em Quito. C��nsul do Equador em
San Francisco, �� ele um dos mais interessantes poetas
modernos da Am��rica espanhola. Viajou pela Europa
e pelo Oriente, casou-se com uma francesinha loura
de olhos cor de violeta, e agora aqui est�� no cam-
pus do Mills a fazer confer��ncias sobre a poesia l��-
rica latino-americana. Temos feito longos passeios pe-
lo parque, a conversar sobre homens e livros, viagens
e id��ias. Carrera-Andrade me pede que lhe fale em
portugu��s, pois diz amar essa l��ngua que "suena tan
exquisitamente bella", e que tanto se parece com a
espanhola.
Ao cabo de dois dias come��amos a divergir em
quase todos os assuntos que atacamos. Com sua voz
macia e apertada, e a sua pros��dia quitenha, o poeta
de vez em quando p��ra e diz:
��� Pero es una cosa tremeenda!
Prolonga o segundo e de tremenda, cerrando os
dentes e apertando os l��bios. E o que ele acha tre-
mendo �� que eu goste deste pa��s e desta gente, e que
discorde de sua afirma����o de que n��o h�� vida espi-
ritual nos Estados Unidos. Carrera-Andrade vive tam-
b��m perseguido pela vis��o duma Paris feliz, bo��mia
e liter��ria, que conheceu nos "bons tempos", e acha
que a civiliza����o americana �� grosseira e vulgar. Sua
m�� vontade para com este povo se revela nas meno-
272
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
res coisas. Vive em permanente estado de desconfi-
an��a com rela����o a tudo e a todos.
Um dia, ao cabo de uma disserta����o que lhe fiz
relativamente �� minha atitude diante do mundo, con-
cluiu :
��� Mas voc�� n��o �� um escritor latino.
��� Por qu��?
��� �� um homem frio, met��dico, insens��vel.
��� Insens��vel? Frio? Essa �� boa...
��� Eu o tenho observado todos estes dias, tenho
acompanhado as suas rea����es ��s coisas que lhe di-
zem, ��s pessoas que o cercam.
Sorrio e acho que n��o vale a pena explicar a es-
te inteligente e inquieto equatoriano que se ele arra-
nhar esta casquinha de apar��ncia ilus��ria que me re-
veste, h�� de encontrar um sentimental��o.
Fala-me de seu amor pelo povo e de seus pen-
dores socialistas. Mas escandaliza-se quando ponho
em d��vida esse amor pelas massas, achando-o dema-
siadamente te��rico e vago. Faz um gesto de impaci-
��ncia quando levanto a hip��tese de que esse amor
n��o passe de pura atitude liter��ria.
��� Pero es una cosa tremenda! Usted no ama el
pueblo?
Sacudo a cabe��a negativamente.
��� Amo um reduzido n��mero de pessoas e coisas.
Gosto dos meus amigos e do g��nero humano duma
maneira geral. Interesso-me por todas as pessoas.
Desejo ser-lhes ��til na medida do poss��vel. Mas esse
amor de que voc�� fala, t��o grande, t��o sublime, t��o
c��lido. . . eu simplesmente n��o posso compreender.
Olhe aqui. Vamos sentar neste banco. Veja bem...
Procuremos definir a palavra amor e depois a palavra
povo.
Carrera-Andrade d�� uma palmada na coxa.
��� Mas assim n��o se pode discutir...
A VOLTA DO GATO P R E T O
273
Pela estrada passam raparigas num bando alegre.
Acompanho-as com o olhar. Como pisam firme! Co-
mo reluzem de ouro suas cabeleiras! Volto-me para o
meu interlocutor:
��� �� natural, meu amigo, que neste campus a
gente veja aumentada a sua capacidade de amar...
��� Pero usted es malicioso, amigo...
Carrera sorri e desconversa. Fica olhando para
o Mills Hall, que se ergue, �� nossa frente, branco e
imponente. Depois torna a falar dos Estados Unidos
e dos absurdos desta terra.
��� Que se pode dizer dum pa��s onde nem cria-
dos existem!
��� Mas, meu caro poeta, ��� observo ��� voc�� n��o
me disse que era socialista?
��� Pues si, amigo. . . Pero eso es diferente. Si-
empre habr�� se��ores y esclavos.
��� Fresco socialismo!
De longe chegam-nos as vozes das raparigas. Um
repuxo de ��gua irisada atira diamantes sobre as co-
rolas dos hibiscos.
O MAJOR E O NIRVANA
De vez em quando saio deste para��so e vou a
Oakland, Berkeley ou San Francisco fazer confer��n-
cias ou tomar parte em t��volas-redondas. Hoje par-
ticipo do programa de r��dio de Miss Margo, que en-
trevista "celebridades" em torno duma mesa de al-
mo��o. �� em San Francisco, no roof do Hotel Mark
Hopkins, uma sala quadrada com paredes de vidro,
e de onde se avista toda San Francisco, a ba��a, as ou-
tras cidades para al��m desta, e um bom trecho do
oceano Pac��fico. Este bar ��� conhecido na cr��nica
mundana da cidade como o Top of the Mark ��� ��
um ponto de rendez-vous social. Uma fauna variada
274
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
e ruidosa re��ne-se aqui depois das cinco, para o ape-
ritivo. Um empregado da casa, junto do elevador,
interpela os cavalheiros, perguntando-lhes se as mu-
lheres que trazem consigo j�� passaram dos vinte e um
anos. Se acontece dirigirem a pergunta a uma da-
ma que j�� entrou na casa dos trinta, ela sorri, encan-
tada, e diz simplesmente: Oh, thank you!
Estamos ao redor duma mesa redonda, papando
o nosso almo��o. Aqui est��o Dicke Tyler e Joan She-
pard, duas crian��as prod��gios que aparecem com
grande sucesso na pe��a antinazista Tomorrow the
World que se representa num dos teatros de San
Francisco. A terceira celebridade �� o Major Meraj ud
Din, do 10.�� Regimento Panjab do ex��rcito hindu. ��
um homem baixo, refor��ado, de pele bronzeada e ca-
belos ralos. Enverga um uniforme caqui com gola e
ombreiras vermelhas. Traz no peito muitas condeco-
ra����es, pois �� um dos her��is da campanha da Birm��-
nia. Quanto a mim, creio que estou aqui n��o em ca-
r��ter de celebridade, mas de raridade, pois n��o �� to-
dos os dias que esta gente v�� um romancista do Bra-
sil. (Gee, how interesting!)
Miss Margo, magra e loura, come��a as entrevis-
tas. O microfone est�� no centro da mesa. Os peque-
nos narram suas experi��ncias teatrais, dizem da im-
press��o que tiveram no primeiro dia em que se vi-
ram no palco diante do p��blico. O major hindu con-
ta com muita discri����o suas experi��ncias na Birm��-
nia, ��s voltas n��o s�� com os inimigos japoneses mas
tamb��m com as febres, os mosquitos, os jacar��s, as co-
bras e a mata.
Que posso eu contar? N��o creio que os ouvintes
deste programa estejam interessados na minha bio-
grafia. Por isso lhes falo no Brasil, nas qualidades do
nosso povo, e no que seremos no dia em que as clas-
ses desprotegidas tiverem assist��ncia m��dica e esco-
lar, melhores oportunidades de progresso material
A VOLTA DO GATO PRETO
275
e espiritual; em suma: no dia em que ��� para usar
duma frase de Sidney Hook ��� os nossos marginais
passarem do plano animal para o plano humano. A
seguir falo mais uma vez no que uma melhor distri-
bui����o dos benef��cios proporcionados pelo progresso
cient��fico poder�� trazer para as massas. Durante essa
disserta����o, mais de uma vez emprego a palavra feli-
cidade. Terminada a palestra o major hindu me cha-
ma �� parte e diz:
��� Eu gostaria de conversar mais longamente com
o senhor...
��� Por que n��o nos encontramos em algum lugar
esta tarde?
Ele sacode a cabe��a.
��� Imposs��vel. Sigo dentro duma hora para Nova
York e de l�� para Londres.
��� �� pena...
��� Mas deixe que lhe diga uma coisa. O senhor
est�� enganado...
��� Claro. H�� um mundo de coisas em que devo
estar enganado. Mas a que �� que o senhor se refere?
��� Refiro-me �� sua id��ia de felicidade. Para n��s
na ��ndia, felicidade n��o �� comer bem, vestir bem e ter
essas coisas que o progresso mec��nico pode dar...
Contemplo-o em sil��ncio e ele continua:
��� Para n��s felicidade �� a comunh��o com o Ab-
soluto. �� o Nirvana. Essa �� a profunda, a verdadei-
ra felicidade.
��� Bom. Eu me referia a felicidade social e n��o
�� metaf��sica.
��� Para n��s hindus a metaf��sica �� a mais impor-
tante.
��� Pois ��. Enquanto os senhores vivem em con-
templa����o, em comunh��o com o Absoluto, os ingle-
ses, que n��o acreditam em absolutos, v��o mantendo
o povo hindu em escravid��o, encorajando nele essa
276
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
id��ia de que a felicidade n��o consiste em ter melho-
res casas, melhor alimenta����o, melhor sal��rio e . . .
liberdade.
O major sorri, olhando para a ponta do seu ci-
garro. Sorri porque compreende que a felicidade que
eu busco pode durar quando muito o tempo duma
vida, ao passo que a sua felicidade durar�� por toda
a eternidade...
QUARTETO
Os membros do quarteto de cordas -de Budapest
��� talvez o melhor conjunto de seu g��nero do mundo ���
passam o ver��o na "Maison Fran��aise". Eu os vejo ��s
vezes pela tarde na piscina, em trajos de banho, ou en-
t��o em outras horas, metidos em frouxas roupas espor-
tivas, a passear por estas alamedas. Nas noites de
quarta-feira eles v��o de dinner-jacket para o palco do
teatro de m��sica de c��mara esfregar seus arcos nas
cordas de seus instrumentos, mantendo em estado de
verdadeiro, sortil��gio um audit��rio dumas seiscentas
pessoas ��� residentes do campus ou estranhos vindos de
Oakland, Berkeley e San Francisco.
Os aplausos s��o fren��ticos. E Roisman, Orten-
berg, Kroyt e Schneider curvam-se, imperturb��veis,
agradecem e se v��o. Como as palmas continuam, tor-
nam a voltar... duas, tr��s, quatro vezes. E sempre
serenos.
Depois do concerto, v��o comer batatas fritas e
beber cerveja num restaurante de beira de estrada ���
o P al's ��� que fica a dois passos do port��o do campus.
�� uma casinha de madeira, pequena e fumarenta, que
cheira a frituras. Um homem de avental branco atira
chuma��os de carne mo��da para cima da chapa quente
dum fog��o. E com uma atividade espantosa serve a
um fregu��s, batatas fritas, d�� a outro um cachorro-quen-
A VOLTA DO GATO PRETO
277
te e a um terceiro uma cerveja e um sandu��che. Por
cima do fog��o, acha-se um cart��o com estes dizeres.
Sil��ncio! O g��nio trabalha . E nos fundos dessa gos-
tosa espelunca, numa saleta estreita de paredes r��s-
ticas forradas de papel��o pardo, onde cada fregu��s
deixa uma marca ��� assinatura, verso, desenho ou
frase ��� os membros do quarteto de Budapest, pedin-
do f��rias a Beethoven, Mozart e Brahms, cantarolam
e batem com os p��s, acompanhando o ritmo dos boogie-
woogies que saem duma juke-box barulhenta.
A ALCACHOFRA
Acha Carrera-Andrade que Julien Green habita
uma torre de marfim, alheio aos conflitos e inquieta-
����es sociais do momento.
��� E se promov��ssemos um encontro... por exem-
plo, um almo��o com Green, para submet��-lo a uma
sabatina? ��� pergunta-me ele.
��� �� uma boa id��ia, ��� respondo.
Seaver Gilcreast, professor da Universidade de Buf-
falo, excelente ling��ista e um mestre consumado na ar-
te de fazer amigos ��� leva o convite a Julien Green,
que vem sentar-se �� nossa mesa, sem suspeitar da ci-
lada que lhe arrumaram.
Muito empertigado e meio constrangido, ele olha
fixamente para a alcachofra solit��ria que est�� no seu
prato, como uma verde granada de m��o.
Falamos do racionamento, de Gide, do tempo e
da guerra. Finalmente Carrera-Andrade aproveita
uma deixa e entra no assunto:
��� Mr. Green, n��o encontramos nos seus romances
nenhuma inquieta����o relativa aos fen��menos sociais de
nosso tempo. N��o h�� neles nem mesmo men����o desses
problemas...
278
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Green fita no interlocutor seus olhos sombrios. O
poeta continua:
��� Talvez tenha sido para evitar essa dificuldade
que o senhor situou a a����o de "Adrienne Mesurat"
antes das duas Guerras...
Todos n��s esperamos a resposta com interesse.
Uma express��o quase de agonia passa pela fisionomia
de Julien Green. Ele olha para os lados, como a pedir
socorro. Finalmente tartamudeia:
��� Problemas sociais? Como poderei escrever a
respeito deles... se n��o os conhe��o? S�� posso escre-
ver minha experi��ncia humana... Essas quest��es so-
ciais est��o fora da minha experi��ncia... N��o �� que eu
n��o me interesse... Acontece que me sinto verdadei-
ramente perdido nesse mundo.
Carrera vai insistir. Isso me parece crueldade.
Crueldade de toureiro que, depois de farpear um tou-
ro, de v��-lo sangrando, exausto, quer ainda ir at�� o
golpe final de espada.
Penso que um escritor da import��ncia de Green
merece n��o apenas admira����o, mas tamb��m respeito.
��, sem a menor d��vida, um romancista s��rio. N��o fa-
lar�� a nossa l��ngua, o que n��o quer absolutamente
dizer que seja mudo. N��o pertence ao nosso mundo,
o que n��o quer dizer que deva ser votado ao inferno.
Por outro lado parece-me que seus livros ser��o lem-
brados muitos anos depois que a obra de alguns dos
escritores modernos de propaganda tenha sido com-
pletamente esquecida.
Carrera-Andrade continua a tirar suas farpas.
Acho melhor desviar a conversa do assunto. V��-se
claramente que Julien Green est�� infeliz. Pergunto a
Smith de sua atividade entre os trabalhadores mexi-
canos. E o professor de ingl��s toma a palavra. Green,
por��m, parece n��o escutar o que ele diz. Continua
a olhar perdidamente para a sua alcachofra.
A VOLTA DO GATO PRETO
279
GEO
Entre os homens que admiro e estimo neste cam-
pus, encontra-se George Hedley. Baixinho, franzino,
encurvado, ��gil e ativo como um esquilo; de rosto ro-
sado, marcado de rugas, mas nem por isso envelhecido;
um cigarro sempre preso aos l��bios ��� ele anda em passo
acelerado por estes sendeiros, entra na "Lanterna de
Ouro", toma um ch�� ou um caf��, toma a sair, distri-
buindo para a esquerda e para a direita al��s cordiais,
atravessa canteiros, vara halls, det��m-se- aqui e ali para
falar com um e outro, e finalmente se enfurna no edi-
f��cio da administra����o, onde fica a lidar com os proble-
mas da "Summer Session", da qual �� diretor. No dia
em que fez, no auditor��um, a apresenta����o oficial do
corpo docente do curso de ver��o para um audit��rio
composto de alunos e visitantes, mencionou de cor ���
sem o menor erro ou hesita����o, com partes dum hu-
mor irresist��vel pela discri����o e pelo ar casual ��� o no-
me, os t��tulos e as atribui����es de uns quarenta profes-
sores de pelo menos oito nacionalidades diferentes.
George Hedley �� um humanista e um liberal. No
curso regular do Mills, leciona teologia. E nesta tem-
porada de ver��o aos domingos faz serm��es na capela
do campus.
Tem um autom��vel pardo, de modelo antigo que
"lhe fica muito bem". �� um carro sem glamour mas extremamente simp��tico, que parece ter absorvido a ma-
neira de ser do dono. Um dia George me convida para
entrar no seu autom��vel. Abro a porta, salto para
dentro da engenhoca e no momento seguinte me vejo
atrapalhado, sem saber onde sentar, perdido no meio
de medonha confus��o feita de jornais e revistas velhos,
garrafas vazias de ��gua de soda, sapatos, tacos de
golfe, e discos de gramofone.. .
280 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Ontem assisti a um espet��culo que para mim foi
dum grande pitoresco. Ia George Hedley passando
pelas quadras de t��nis quando um dos jogadores gri-
tou l�� de baixo:
��� Helio, Geo!
��� Helio there! ��� respondeu o meu amigo.
��� Vamos jogar uma partidinha?
Geo olhou o rel��gio.
��� Tenho quinze minutos. Okay.
Desceu correndo para a quadra, descal��ou os sa-
patos de passeio, enfiou sapatos de t��nis ��� sa��dos n��o
sei de onde e n��o sei por que artes m��gicas ��� tirou o
casaco e, com as cal��as do seu insepar��vel terno azul
arrega��adas at�� meia canela, come��ou a jogar. Corria
dum lado para outro, sempre de cigarro na boca, e,
cada vez mais vermelho e mais agitado, dava tremen-
dos golpes na bola. Passados quinze minutos, desen-
rolou as cal��as, trocou os sapatos, enfiou o casaco e
l�� se foi, sempre apressado, a continuar sua atividade.
Estou agora a seu lado, junto duma mesa, debai-
xo dum p��ra-sol, no p��tio da "Lanterna de Ouro". Geo
conta-me que um dia escreveu uma pe��a de teatro em
torno do conflito moral dum pastor protestante que
lutava indeciso entre suas inclina����es liberais e a es-
pessa burrice duma par��quia hip��crita e reacion��ria.
Em dado momento Geo ergue-se e, como se fosse
um desses vendedores clandestinos de alguma droga
proibida pela lei, ele me passa discretamente um pe-
queno livro de capa de percalina parda. Feito isso d��
meia volta e se vai. Olho o volume. �� uma colet��nea
de poemas. O t��tulo: In Brief. O autor: George
Hedley.
OS SIL��NCIOS DO GENERAL BARROWS
Torno a deixar hoje por algumas horas o campus
do Mills para ir tomar parte num "f��rum", na Univer-
A V O L T A DO GATO P R E T O
281
sidade da Calif��rnia. Professores vindos de San Fran-
cisco e los Angeles v��o discutir a origem das dita-
duras na Am��rica do Sul. Tenho a meu lado, silencio-
so e imponente, o Gen. David Prescott Barrows, oficial
reformado do ex��rcito americano, doutor em ci��ncias
pol��ticas ��� um homem alto, corpulento, de porte mar-
cial, cabelos e bigodes brancos, e rosto dum vermelho
arroxeado. Metido num grosso trajo de tweed cinzento,
parece um desses gentlemen ingleses que v��o periodica-
mente ca��ar tigres na ��ndia. Tem um vozeir��o retum-
bante e grave, mas fica em profundo sil��ncio enquanto
os outros colegas, que se encontram em cima do es-
trado, na frente dum audit��rio atento, exp��e seus
pontos de vista.
O Prof. Macdonald dirige a discuss��o como mo-
derador. Chega-se preliminarmente �� conclus��o de que
o fator ra��a nada tem a ver com o caso. V��o passar
adiante quando pe��o a palavra.
��� Est�� claro ��� digo ��� que falar em superioridade
de ra��as �� entrar em terreno incerto e perigoso. Mas
parece-me que n��o podemos deixar de levar em conta
as diferen��as raciais.
��� Que diferen��as? ��� pergunta um louro profes-
sor de Los Angeles.
��� Diferen��as de temperamentos, de inclina����es...
��� respondo.
��� Exemplifique ��� pede o moderador.
��� Tomemos os alem��es... ��� prossigo. ��� Amam o
m��todo, a organiza����o, as paradas, as demonstra����es
coletivas de for��a, e t��m uma tend��ncia perigosa para
seguir fanaticamente o primeiro messias que lhes acene
com qualquer cruzada tendente a demonstrar a supe-
rioridade do Vaterland sobre o resto do mundo... J��
os norte-americanos s��o diferentes. Amam com menos
paix��o o m��todo e a organiza����o, sabem pensar cole-
tivamente, compreendem a necessidade da coopera����o,
282
OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO
mas recusam-se a seguir cegamente os demagogos, e
me parece que s��o incapazes de fanatismo.
Ao meu lado o Gen. Barrows funga, e ao ritmo de
sua respira����o forte, os p��los de seu nariz vibram como
finas antenas.
��� Tomemos os chamados latino-americanos... ���
continuo. ��� S��o povos rebeldes, dif��ceis de governar.
Na minha terra cada homem �� um partido pol��tico.
Coopera����o para n��s �� palavra quase sem sentido.
Somos improvisadores imaginosos mas desorganizados.
Creio que as diferen��as raciais n��o podem deixar de
ser levadas em conta...
O general sacode a cabe��a, aprovando silenciosa-
mente o meu ponto de vista.
Quando chega a minha vez de opinar sobre as
causas das ditaduras na Am��rica do Sul, digo mais ou
menos o seguinte:
��� Os sul-americanos, principalmente os povos his-
p��nicos, s��o uns enamorados do hero��smo, coisa que
acontece em grau menor com os brasileiros. Para nossos
vizinhos o her��i �� o caudilho, o general, o bandoleiro.
Honra e coragem s��o as palavras que eles usam com
mais freq����ncia. Ora, os her��is norte-americanos s��o
homens de a����o social ou cient��fica, homens que n��o
vestiam farda e que andavam geralmente a p��. Os
her��is hispano-americanos s��o homens de a����o militar
e pol��tica, no que esta ��ltima palavra tem de mais es-
treito. Usam fardas e quase sempre est��o em cima dum
cavalo. Em suma: s��o her��is eq��estres.
(Confesso que vim para este f��rum sem ter es-
tudado o assunto da discuss��o; para n��o desmentir o
que disse h�� pouco dos brasileiros, estou tamb��m im-
provisando. .. )
��� Outra coisa... ��� continuo, depois de breve
pausa. ��� N��o devemos esquecer que n��s na Am��rica
do Sul fomos colonizados por dois pa��ses essencial-
mente feudais: Portugal e Espanha. De certo modo o
A VOLTA DO GATO PRETO
283
regime feudalista existe ainda em maior ou menor
grau atrav��s das rep��blicas centro e sul-americanas.
O senhor do engenho, o homem da casa-grande �� um
chefe de cl�� e um l��der pol��tico que eventualmente se
transforma em general. O pe��o em tempo de paz �� o
eleitor e em tempo de guerra o soldado. Nossas dita-
duras s��o uma conseq����ncia dessa organiza����o feudal,
combinada com o problema das dist��ncias, da falta de
meios de transporte e comunica����o, mais o analfabe-
tismo e a falta de sa��de das massas, ��� tudo isso agra-
vado pela indiferen��a ou mesmo pela cumplicidade de
boa parte das classes intelectuais. Entre n��s os bons,
os justos, os honestos, os l��cidos em geral s��o fracos
ou c��pticos ou ambas as coisas juntas. H�� um corajo-
so grupo de rebeldes que formam a popula����o cr��-
nica das pris��es; em suma: sua voz �� abafada pela
pol��cia. Infelizmente �� grande, por outro lado, a legi��o
dos aproveitadores, que tudo fazem por prestigiar,
amparar e prolongar um regime pol��tico que lhes pro-
porciona vantagens, lucros, favores e posi����es. Temos
ainda as massas ap��ticas, subalimentadas, doentes e
ignorantes. Tudo isso forma uma engrenagem mons-
truosamente s��lida que vem funcionando durante s��-
culos. Um entrela��amento de interesses mant��m em
constante funcionamento esse hediondo e cruel Robot
que se alimenta de vidas humanas, sem o menor sen-
so de justi��a social. A mola real desse Robot me parece
o lucro e a sua t��tica a explora����o do homem. Por que
as massas sacrificadas n��o destroem o monstro? Porque
for��as poderosas o protegem, uma vez que seu desman-
telamento seria a ru��na de uma s��rie de organiza����es,
as (juais por seu turno alimentam outras organiza����es,
cuja destrui����o implicaria no preju��zo de uma centena
de outros interesses nacionais e estrangeiros.
O Gen. Barrows continua silencioso.
��� Ora, somos povos semicoloniais ��� continuo, ���
devedores cr��nicos, e aparentemente em estado de in-
284
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
solv��ncia, de pa��ses como a Inglaterra e os Estados
Unidos. A nossa liberdade por isso tem sido muito
relativa durante toda a nossa Hist��ria. Tomemos o caso
atual do Brasil, onde prevalece o patriarcalismo de
tipo portugu��s... Dissolvendo a assembl��ia em 1937,
instituindo a censura postal e a de imprensa, passando
a governar por decretos sem dividir a responsabilida-
de de governo com nenhum grupo de representantes
do povo, Get��lio Vargas destruiu os ditadores muni-
cipais e estaduais e promoveu a unidade nacional reu-
nindo por assim dizer todos os baronatos num s�� pa��s
do qual se fez ele o ��nico ditador. E esse caudilho de
cidade, inteligente e malicioso, compreendeu que os
tempos mudaram, que a era do homem comum se apro-
xima, e que o her��i tende a descer de seu cavalo para
ser o chefe de consci��ncia social que caminha na di-
re����o das massas e trata de conquist��-las n��o mais com
discursos bomb��sticos, mas com atos de alcance pr��-
tico. Deu, assim, ao Brasil leis de trabalho avan��adas.
Do conflito criado por ele pr��prio entre o desconten-
tamento das classes conservadoras a que timidamente
aparou as asas, e o vago contentamento das classes tra-
balhadoras, que favoreceu sem contudo chegar a me-
lhorar-lhes efetivamente a vida ��� desse conflito o Di-
tador tira habilmente o seu equil��brio. Diferente da
generalidade dos ditadores a cavalo, que adoram o
��mpeto das, cargas de lan��a, que se entregam a del��-
rios epil��pticos de alegria ou pesar, Vargas ��� que n��o
�� cruel nem truculento ��� porta-se urbanamente, com
um am��vel maquiavelismo temperado de humor. E
�� preciso a gente fazer um grande esfor��o para resis-
tir ao fasc��nio dessa personalidade serena e sorriden-
t e . . . Porque por tr��s desse sorriso aliciante o que h��
�� ainda corrup����o pol��tica, irresponsabilidade e opress��o.
O moderador me interrompe:
��� Parece-me que o senhor est�� particularizando
demasiadamente o assunto.
A V O L T A DO GATO PRETO
285
��� Sorry.
��� E a sua vis��o do seu pr��prio pa��s �� muito pes-
simista ��� diz outro.
��� Chamberlain foi um otimista em 1938... ���
retruco. ��� Mas.. . voltando ao assunto de ditadores, n��o
posso deixar de mencionar "o perigo vermelho" que
tem sido o grande pretexto para os golpes de for��a na
Am��rica do Sul.
��� At�� onde esse perigo existe? ��� indaga Mr. Mac-
donald.
��� Est�� claro que h�� comunistas na Am��rica do
Sul como os h�� neste pa��s. E parece-me que o n��me-
ro deles cresceu recentemente no Brasil n��o tanto pelos
m��ritos das teorias de Marx e Lenine como em virtu-
de do sucesso dos ex��rcitos russos nesta guerra, e da
absoluta cegueira e estupidez da alta burguesia que se
entrega a uma orgia de lucros extraordin��rios e que
continua a achar que o problema social �� um caso de
pol��cia.
O Gen. Barrows toma a sacudir a cabe��a, sempre
em sil��ncio.
��� Em suma, acha que essa "doen��a ditatorial" ��
incur��vel na Am��rica do Sul?
��� Absolutamente! O que estou mostrando �� a
tremenda complica����o do problema. O mundo se faz
cada vez menor. H�� quest��es que s�� poder��o ser re-
solvidas no plano internacional. N��o esque��am que
muitas vezes os destinos duma republiqueta centro ou
sul-americana �� at�� certo ponto resolvido dentro duma
sala dum edif��cio de Wall Street, por um grupo de ho-
mens para os quais Guatemala; El Salvador ou Bol��-
via s��o apenas nomes sem nenhum sentido humano.
Esses homens de neg��cios s��o em sua maioria ��timos
cidad��os que doam milh��es a universidades, bibliote-
cas e hospitais; que dizem hello democraticamente ao
menino do elevador; que amam a mulher, os filhos e
os amigos. Mas esses admir��veis cidad��os se acham
286
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
de tal modo deformados pela profiss��o, que s�� racio-
cinam em termos de lucros. Seriam incapazes de puxar
o gatilho dum rev��lver para matar um rato, no entanto
deflagram guerras e revolu����es a dist��ncia pela sim-
ples raz��o de que os dados que o papel lhes apresenta
s��o apenas s��mbolos matem��ticos ou estat��sticos, e di-
zem respeito a lucros...
��� O senhor n��o estar�� fantasiando? ��� pergunta
algu��m.
Retruco:
��� Nesta altura dos acontecimentos, depois do bom-
bardeio de Rotterdam, dos massacres dos campos de
concentra����o, n��o teremos o direito de perguntar se
por acaso tudo isso que se est�� passando no mundo, n��o
ser�� apenas a fantasia dum c��rebro doentio, ou ��� como
diria Wilde ��� o pesadelo dum louco?
A discuss��o se prolonga. Noto que todos estes
homens s��o cultos e bem informados quanto a teorias
sociol��gicas, mas quase completamente ignorantes dos
dados da realidade sul-americana. E o f��rum termina
sem que tenhamos chegado a um acordo quanto ��s
causas das ditaduras na Am��rica do Sul.
Fico por algum tempo a palestrar com o Gen.
Barrows, que finalmente quebra seu sil��ncio. Fala-me
da Universidade da Calif��rnia, de cujo Departamento
de Ci��ncias Pol��ticas j�� foi diretor, e, para frisar a na-
tureza cosmopolita do campus de Berkeley, conta-me
a seguinte hist��ria:
��� Em 1917, como o senhor sabe, o nosso governo
mandou uma for��a expedicion��ria �� Sib��ria. Eu era
assistente do chefe de estado-maior, e o Gen. Seme-
noff, comandante dos Russos Brancos, me nomeou
aide-de-camp dum cossaco cujo aspecto jamais es-
quecerei. Era um homem de dois metros de altura,
de ombros largos e bela cabe��a coroada por uma juba
leonina. Tinha o peito cheio de medalhas e suas ves-
tes revelavam um esplendor asi��tico.
A VOLTA DO GATO PRETO
287
O Gen. Barrows faz uma pausa para acender
seu cachimbo.
��� Eu estava um pouco perturbado ��� continua
o general ��� imaginando o trabalho que ia ter para me
entender com aquele cossaco, quando o vejo dirigir-se
a mim num ingl��s de primeira ordem, claro e correto.
E sabe o que ele me disse?
Sacudo a cabe��a negativamente. O general solta
uma baforada de fumo e conclui:
��� Disse exatamente estas palavras: "O senhor
n��o me conhece, general, mas eu o vi muitas vezes no
campus de Berkeley. Estudei durante dois anos no
vosso Col��gio de Mills".
H�� uma pausa breve, ao cabo da qual o general
me diz:
��� Estive h�� alguns anos no seu pa��s. O Rio ��
uma cidade portentosa...
Por tr��s da fuma��a, seus olhos cinzentos t��m um
brilho l��quido.
��� Que fim levou aquele romancista que tanta
f��ria estava causando nos tempos em que visitei o Rio?
��� Que romancista?
��� N��o me posso lembrar do nome... S�� sei que
era um realista. Tive a honra de receber um exemplar
autografado de seu primeiro romance.
��� Como se chamava o livro?
��� Espere l��... chamava-se... ah! "O Mulato".
��� O senhor se refere a Alu��zio de Azevedo...
��� Exatamente. That's it!
��� Mas isso foi no s��culo passado, general...
�� com ar sonhador que ele murmura:
��� Pois ��. Foi no s��culo passado...
288
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
HOMENS E N��MEROS
Trecho duma carta a Vasco Bruno:
.. .talvez Goering n��o tivesse nervo para matar a frio, com
suas pr��prias m��os, meia d��zia de judeus. Mas sentado atr��s
de spa escrivaninha era-lhe f��cil assinar uma ordem condenando
�� morte 120 000 filhos de Israel. Porque esses milhares de seres
humanos estavam representados no papel por uma cifra, eram
o que se poderia chamar "uma tecnicalidade". (Os estrategis-
tas falam ��s vezes em "material humano" quando se referem aos
soldados). Quando as pessoas s��o transformadas em s��mbolos
aritm��ticos ou alg��bricos, elas perdem perigosamente n��o s�� a
sua individualidade, como tamb��m a sua condi����o humana. ��
relativamente f��cil a destrui����o de s��mbolos, porque na sua ex-
press��o gr��fica eles n��o t��m carne nem sangue nem nervos.
Essa �� uma das muitas raz��es por que n��s os "liberais ro-
m��nticos" ��� se assim nos quiserem chamar ��� devemos combater
com todas as nossas for��as qualquer regime, seja qual for o
seu nome, que tenda a roubar a pessoa humana de sua indivi-
dualidade, reduzindo-a a uma express��o num��rica e conside-
rando-a como combust��vel para as insaci��veis caldeiras da m��-
quina do Estado...
"CINCO SEMANAS EM BAL��O"
Li num pref��cio de Julien Green que os homens
s��o palavras duma frase cujo sentido s�� Deus conhece.
Olhando as gentes que povoam o campus do Mills, per-
gunto a mim mesmo qual ser�� o sentido desta t��o es-
tranha e variada combina����o de palavras... Ser��
apenas uma legenda ociosa escrita na superf��cie dum
lago? Uma frase f��til atirada ao vento? N��o creio.
Esta sociedade heterog��nea em que se misturam chi-
neses, franceses, brasileiros, guatemaltecos, salvado-
renhos, mexicanos, alem��es, judeus, filipinos, peruanos,
chilenos, pode bem ser o s��mbolo do mundo do futuro,
um mundo de fronteiras apagadas, sem barreiras al-
fandeg��rias, sem passaportes e sem nacionalismos agres-
A VOLTA DO GATO P R E T O
289
sivos ��� um mundo de cordialidade e compreens��o.
Sonho? Que outra coisa se pode fazer sen��o sonhar,
neste doce clima, neste am��vel conv��vio?
Os dias aqui deslizam dourados e fluidos.
De onde estou agora, posso ver, atrav��s da janela,
um grupo de crian��as �� sombra de altos eucaliptos, ao
p�� do arroio. S��o os alunos do curso de artes pl��sti-
cas; Clara e Louie est��o entre eles. Com as pranchas
de desenhos sobre os joelhos e um peda��o de carv��o
entre os dedos eles procuram copiar a paisagem, os
troncos das ��rvores, a ponte de pedra, o fio d �� g u a . . .
�� hora das refei����es professores e alunos sentam-
se em grupos de oito em torno de mesas redondas.
Fala-se em geral espanhol, mas h�� momentos em que
palavras inglesas, francesas, espanholas, italianas e
portuguesas se entrecruzam e chocam no ar.
A primeira impress��o que este campus d�� �� a de
um maravilhoso hotel de veraneio. Mas se atentarmos
mais nos movimentos, atos e palavras dos h��spedes
veremos como trabalham, como dividem bem o tempo
entre o estudo e a conversa����o, a piscina, as confe-
r��ncias, as aulas e as divers��es. Para escrever seus
papers sobre hist��ria ou literatura latino-americana, es-
sas raparigas passam horas na biblioteca a consultar
livros e revistas, com uma f��ria erudita de que eu n��o
as julgava capaz.
Miss Marta Allen ��� que ama a l��ngua e as gen-
tes do Brasil ��� leciona portugu��s a principiantes, cuja
grande dificuldade �� a pron��ncia das palavras termi-
nadas em ��o. Ontem, no hall da Casa, Aurora Quiros, uma bela mexicana educada neste pa��s, leu admiravelmente, em ingl��s e espanhol, versos de poetas das
tr��s Am��ricas. Magda Arce, com o seu jeito calmo e a
sua discreta veia humor��stica, contou-nos hist��rias do
Chile.
Norma Addleston, que tem a voca����o do teatro,
representou um di��logo da pe��a "Vidas Particulares",
290
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
de Noel Coward, fazendo ao mesmo tempo os pap��is
do her��i e da hero��na, e tudo isso num delicioso ingl��s
de Oxford.
Para uma plat��ia de cinq��enta crian��as eu me pres-
tei um dia destes a ir para tr��s dum palco de fantoches
a fim de "ser" a voz de oito dos personagens da famosa
farsa de "Punch and Judy". Creio que, pela primeira
vez na hist��ria do teatro de marionetes, Polichinelo,
Arlequim, o Prefeito, o Fantasma, o Carrasco e o Dou-
tor falaram ingl��s com sotaque brasileiro.
��s quartas-feiras �� noite vamos ouvir o quarteto
de Budapest, no teatro para m��sica de c��mara. S��o
momentos de pura magia, em que a gente fica como
que suspensa no a r . . .
O programa da semana est�� sempre cheio de con-
fer��ncias, sess��es de cinema educativo, festas t��picas
nas diversas casas, e representa����o ou leitura de pe��as
de teatro.
Certas noites o espl��ndido Ted Nichols, um jovem
estudante de Oakland, vem para o hall com a sua vi-
trola, as sua sinfonias de Shostakovisch, o seu Brahms
e o seu Beethoven.
�� tarde vou para junto da piscina, onde fico se-
guindo os movimentos das raparigas que saltam da
prancha e mergulham na ��gua azul.
Ontem Mariana aproximou-se de mim exatamente
no momento em que eu estava absorto na contempla����o
duma adolescente que se preparava para o mergulho.
��� Pra que o livro? ��� perguntou ela.
��� De vez em quando leio uma p a l a v r a . . . ��� ex-
pliquei.
- Mas com o livro de ponta cabe��a?
��� Claro. Por que n��o? Neste col��gio acontecem
milagres. Duvidas?
��� N��o. Mas n��o te esque��as da hist��ria do Dr.
F a u s t o . . .
A VOLTA DO GATO PRETO
291
As tardes s��o douradas, as noites azuis, o vento ��
fresco e o conv��vio destas gentes, doce e amigo. Mui-
tas vezes dou minha aula no jardim do nosso ha ll, ou
sob os p��ra-s��is da casa de ch��.
Aos s��bados h�� "fiesta" na Casa. "Muchachos"
de diversos pa��ses latino-americanos aparecem para dan-
��ar com as girls num sal��o do subsolo, onde ao som de
nimbas ficam a rebolar festivamente as n��degas com
um vago ar de gigol��s. E uma noite, vendo Mr. Fook
Tim Chan a dar pulinhos ao ritmo duma conga, acre-
ditei mais que nunca na fraternidade universal.
o o o
E assim se escoam cinco semanas, e chega o dia
de dizer adeus ao Mills College e aos nossos novos
amigos.
EM BUSCA DE SOL
Fernanda: ��� Terminei minha tarefa no Mills e, de volta
a San Francisco, encontro de novo o mau tempo. Estou can-
sado de nevoeiros e, de c��us de cinza. Vou com o meu bando
para o sul da Calif��rnia, em busca de sol. Espero alugar uma
casinha nos arredores de Hollywood, cidade fr��vola mas de
clima ador��vel. Tentarei realizar ali um grande, antigo, auda-
cioso profeto: passar uma larga temporada sem obriga����es de-
finidas de trabalho, livre tanto quanto poss��vel da tirania
do rel��gio. Num desafio aos meus dem��nios particulares es-
pero passar os dias conhecendo gente e lugares. Est�� claro
que continuarei trabalhando para o "Ojfice of War Information".
fazendo "broadcastings" para a Europa e falando de quando em
quando para soldados e marinheiros, pois isso �� o m��nimo que
um cidad��o 4-A como eu pode fazer como contribui����o ao es-
for��o de guerra. Quanto ao resto, n��o quero outros compromis-
sos sen��o o de viver, olhar, escutar, indagar, conversar, observar,
numa tentativa de compreender este povo, esta terra e esta hora,
dando ao mesmo tempo um balan��o mental na minha pr��pria
vida. Quando permanecemos por muito tempo num s�� lugar,
vendo as mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas, acabamos
292
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
ficando prisioneiros de h��bitos, supersti����es e preju��zos que nos
entontecem, turvam os olhos e deformam a nossa vis��o do mundo
e de n��s mesmos. Faz um ano e meio que n��o escrevo uma linha
sequer de fic����o. Creio que passarei tr��s anos nessa abstin��ncia
liter��ria. N��o h�� nada melhor para um autor que fazer de quando
em quando uma longa pausa, entregando-se a uma esp��cie de
"cura pelo sil��ncio". Ora, s�� poderemos fazer isso de maneira
efetiva se viajarmos. C�� estou eu a v��rios milhares de quil��me-
tros dos lugares onde sempre vivi e n��o quero perder esta opor-
tunidade, que bem pode ser a ��ltima...
Confesso-lhe que me sinto um pouco como uma persona-
gem que tivesse sa��do do romance a que pertence, e no qual
tem uma fisionomia psicol��gica definida, e obriga����es determi-
nadas ��� para entrar clandestinamente numa outra hist��ria cujo
autor e cujos leitores de mim nada esperam pela simples raz��o
de eu n��o estar no elenco...
Meus dem��nios interiores lan��am protestos. Dona Eufr��sia
me diz que vou cometer um erro, pois o trabalho nobilita e a
ociosidade �� a m��e de todos os v��cios. O tropeiro An��lio me
fulmina com uma frase: Eta ��ndio vadio! Mas Jesualdo sacode
os ombros c��pticos e me assegura que, fa��a eu o que fizer, a
coisa simplesmente "n��o tem jeito"...
4 - D I �� R I O D E H O L L Y W O O D
(De 10 de agosto de 1944 a 28 de junho de 1945)
O TREM, O TEMPO E O CHIM
10 de agosto. Estou de novo dentro do "Luz do
Dia", a caminho de Los Angeles. Deixei minha fam��lia
em San Francisco e vou �� procura duma casa para
alugar nos arredores de Hollywood.
Meu companheiro de banco �� um chin��s de cara
triste, que est�� fardado de fuzileiro do ex��rcito norte-
americano. Quando embarquei na esta����o de San
Francisco, ele me saudou com um hello desanimado e
d��bil. Depois fechou-se num mutismo providencial
para mim, pois ao cabo dessas cinco agrad��veis sema-
nas no Mills, atrav��s das quais andei dum lado para
outro a fazer confer��ncias, a dar aulas e a tomar parte
em t��volas-redondas, estou precisando de sil��ncio, de
muito sil��ncio.
O trem rola maciamente. H�� sol l�� fora sobre os
campos amarelecidos. A meu lado o chin��s dormita.
Temos dez horas de viagem pela frente, mas para o
meu companheiro, que deve ter herdado o esp��rito fi-
los��fico e a paci��ncia de seus ancestrais, o tempo no
fim de contas n��o existe, e s�� esses tolos ocidentais ��
que est��o sempre a fazer coisas para encher as horas.
Come��o a ler uma novela policial, mas em breve
meu esp��rito foge do livro, volta para San Francisco,
para Oakland, para o Brasil. Revejo mentalmente faces,
ou��o vozes, melodias...
As horas passam. O chin��s continua em sil��ncio.
Ao meio-dia vamos at�� o carro-restaurante, almo��a-
mos �� mesma mesa e n��o trocamos uma ��nica pala-
vra. Voltamos para nossos lugares e sentamo-nos pa-
ra enfrentar a longa tarde. A janela a nosso lado ��
296 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
como uma tela de cinema onde passa um filme natu-
ral, em tecnicolor: O vale de San Joaquim. ��s cinco
horas o chin��s suspira. Volto a cabe��a e digo:
��� Que viagem comprida, hein?
��� Muito.
Dou-lhe a minha novela.
��� Por que n��o l�� um pouco?
Ele apanha o livro, folheia-o, com indiferen��a, e
depois mo devolve.
��� N��o gosta de ler hist��rias policiais? ��� pergunto.
��� N��o tenho paci��ncia ��� responde o chin��s.
E de novo mergulha no sil��ncio.
ONDE O AR SABE A MEL
Chego numa tardinha calma, clara e quente, e
hospedo-me no Hotel Plaza, em Hollywood.
Quem foge das n��voas da Bay Area e desce pa-
ra esta c��lida regi��o, n��o pode deixar de ficar conta-
giado pela alegria de feriado que nada na atmosfera
luminosa. Porque o ar do sul da Calif��rnia sabe a
mel. A luz aqui �� em geral t��o intensa, que ��s vezes
chega a ser esbranqui��ada. Dizem que nesta parte do
estado h�� um m��nimo de 355 dias de sol por ano. As
tormentas s��o praticamente inexistentes, de sorte que
os californianos do sul nunca ouviram o ronco do tro-
v��o nem ouviram o fuzilar dos rel��mpagos. No inver-
no as chuvas caem mansas e discretas. A temperatura
baixa sensivelmente em dezembro, janeiro e fevereiro,
mas n��o a ponto de exigir-nos o uso do sobretudo ou
roupas demasiadamente grossas. E durante os restantes
nove meses do ano reina o ver��o ��� um ver��o seco
que est�� longe de ser abafado e suarento como o do
Rio, o de Washington, Nova York ou Miami. E as
A VOLTA DO GATO PRETO
297
noites, durante a primavera, o ver��o e o outono, s��o
sempre frescas e, de dezembro a mar��o, quase frias.
Entre Los Angeles e San Francisco existe velha
rivalidade. Se ped��ssemos a um san-franciscano uma
defini����o de Los Angeles, ele provavelmente diria: ��
uma reuni��o de vilarejos com pretens��es a grande ci-
dade. Fica a 482 milhas ferrovi��rias ao sul de nossa
Metr��pole. Ind��strias principais: petr��leo, frutas c��tri-
cas e loucos. Comparada com San Francisco, onde
h�� cultura e tradi����o, Los Angeles �� um circo de cava-
linhos em que palha��os desvairados vivem a fazer pi-
ruetas e a exibir roupas espalhafatosas para chamar
sobre eles a aten����o ao resto do mundo. A tempera-
tura que gozamos aqui. onde nunca faz calor, �� revi-
gorante, mas Los Angeles tem um clima de deserto.
Se por ventura o rio Colorado secasse, aquele conglo-
merado de aldeias ficaria mais morto que o Saara .
Fundada por espanh��is em 1781, Los Angeles
chamava-se a princ��pio Nuestra Se��ora de Los Ange-
les. Sessenta e seis anos depois passou definitivamen-
te para o dominio dos Estados Unidos, e desde ent��o
o seu crescimento tem sido fant��stico. Primeiro hou-
ve o "boom" causado pela descoberta do ouro; de-
pois, a corrida do petr��leo; e mais recentemente, a
do cinema. O n��cleo inicial ��� aldeia de indios, me-
xicanos, espanh��is e mission��rios ��� foi se expandindo
de tal forma que, procurando o caminho do mar, ab-
sorveu Wilmington e S��o Pedro; espraiando-se para
leste, alcan��ou Hollywood e transformou-o num su-
burbio; avan��ou depois na dire����o das montanhas e
cercou Beverly Hills, cidade residencial e, descendo
na dire����o do oeste, abra��ou Santa M��nica. O auto-
m��vel facilitava esses espichados avan��os, de sorte
que dentro em pouco Pasadena, Burbank e Glendale
ficaram tamb��m ligados a Los Angeles que ��� segun-
do afirmam orgulhosamente os "angelinos" ��� �� a mais
vasta ��rea urbana do mundo inteiro. Diyem que se
298
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
pode viajar quase cem quil��metros sem sair de dentro
desta cidade descomunal. A megalomania local tem da-
do origem a muitas anedotas. Referindo-se recente-
mente na sua coluna di��ria de jornal a soldados ame-
ricanos que passeavam em Paris, Gracie Allen escre-
veu que esses "boys" estavam ainda praticamente den-
tro dos limites da cidade de Los Angeles.
Com seus largos e longos bulevares, os seus ses-
senta parques, Los Angeles �� a cidade mais sem ce-
rim��nia que conhe��o. Aqui ningu��m sente a ang��s-
tia da falta de espa��o, do abafamento, da claustrofo-
bia. Tudo �� amplo, arejado, luminoso e abundante. A
vegeta����o destes jardins e parques �� em parte um pro-
duto da m��o do homem com a colabora����o do rio Co-
lorado, cuja ��gua �� trazida para c�� em aquedutos. Re-
puxos e fontes fa��scam ao sol na relva dos jardins par-
ticulares ou nos parques p��blicos. Por todos os lados
se nota a presen��a refrescante da ��gua. Homens de
torso nu trabalham nos seus jardins cortando a relva
ou regando as flores, os arbustos e a terra. O resulta-
do de tudo isso �� que os angelinos transformaram um
deserto adusto num verde e r��tilo o��sis.
Raul Bopp, c��nsul do Brasil em Los Angeles, e
em cujo autom��vel tenho corrido estes bulevares e ruas,
na ansiosa busca duma casa, n��o se cansa de dizer:
��� Veja s�� o que a ��gua faz! ��gua, meu caro,
��gua! Tudo isto �� um milagre da ��gua.
E com seu jeito agitado e pitoresco fala apaixo-
nadamente dos problemas do Brasil e nos benef��cios
que a ��gua abundante poderia trazer para certas re-
gi��es de nosso pa��s. Esse extraordin��rio Raul Bopp,
poeta e andarilho, �� uma verdadeira figura de lenda.
Um dia saiu a cavalo da sua pequena Tupanciret�� pa-
ra uma grande conquista de horizontes. Foi parar no
Amazonas onde, segundo suas pr��prias palavras, fez
a volta do mundo. Escreveu depois disso um dos mais
not��veis poemas folcl��ricos da nossa literatura ��� Co-
A VOLTA DO GATO PRETO
299
bra Norato. No ano seguinte estava na China, mon-
tado num jumento, visitando templos milenares. E
assim, sem plano nem b��ssola, viajou por quase todo
o mundo. Segundo a express��o feliz de Vargas Neto,
Bopp sofre de "dom-juanismo geogr��fico". Homens de
fala pitoresca, a agita����o ��s vezes nem lhe permite ter-
minar as frases. E andando em sua companhia por
estas ruas, conven��o-me de que de certo modo Raul
Bopp ��� desordenado, inquieto, generoso ��� se parece
maravilhosamente com a cidade de Los Angeles. De-
ve ser por isso que de todos os c��nsules que aqui vi-
vem, �� ele o mais querido e admirado.
Com uma ��rea capaz de abrigar oito milh��es de
almas, Los Angeles tem normalmente 1 600 000, e nes-
tes tempos de guerra viu sua popula����o crescer de
tal forma que se calcula tenha passado de 2 000 000.
Quanto �� alma de Bopp, creio que vive assombrada
por incont��veis milh��es de fantasmas e lembran��as ���
pessoas e paisagens e coisas dos lugares por onde an-
dou e dos sonhos que sonhou.
RUAS, GENTES E H��BITOS
20 de agosto. A crise de habita����es em Los An-
geles �� assustadora. O clerk do hotel me comunica
que se me permite ficar aqui apenas cinco dias, pois
devo ceder meu quarto a outros... E esses outros n��o
cessam de chegar. Aos s��bados surgem soldados aos
magotes em busca de acomoda����es para o weekend.
V��m das cidades ou acampamentos dos arredores de
Los Angeles, trazem uma maleta de pano caqui e uma
imensa vontade de se divertirem. Hollywood para eles
�� o para��so da vida noturna, das aventuras f��ceis, e
muitos desses soldados nasceram em vilarejos do in-
terior e sempre desejaram visitar a Meca do cinema.
Ali naquela esquina ficam os est��dios da NBC e da
300 - OBRAS DE RICO VER��SSIMO
CBS, para cujos espet��culos eles t��m prioridade na
distribui����o de bilhetes. A duas quadras deste hotel
est�� situada a "Cantina de Hollywood", onde podem
ver em carne e osso estrelas como Bette Davis, Betty
Grable ou Greer Garson; e onde Ronald Colman ou
Ida Lupino vir��o em pessoa servir suas mesas...
O Hotel Plaza fica perto duma encruzilhada de
ruas ��� o ponto onde o Hollywood Boulevard cruza a
Vine Street ��� a que a C��mara de Com��rcio local con-
vencionou chamar "a esquina mais famosa do mundo".
E nestas duas quadras que medeiam entre essa
esquina e o Sunset Boulevard encontram-se lugares
c��lebres como o restaurante "Brown Derby" ��� a cuja
porta estacionam os ca��adores de aut��grafos, na espe-
ran��a duma gorda ca��ada ��� e uma s��rie de pequenos
cabar��s e bares. �� por aqui que vive essa gente de
r��dio ��� atores, t��cnicos, speakers, m��sicos, diretores
de orquestra, escritores. �� preciso distinguir a gente
de r��dio e de cinema do resto dos mortais. Para prin-
cipiar, esses exemplares da fauna hollywoodiana ves-
tem-se de maneira particular. Falam alto, sempre com
o sentido no p��blico, e empregam uma g��ria toda es-
pecial. Quando saem �� rua, as estrelas usam ��culos
escuros para n��o serem reconhecidas pelos f��s ou pe-
los curiosos. As outras mulheres usam tamb��m ��culos
escuros para que os basbaques pensem que elas s��o
estrelas.
Nestas duas quadras pulula uma humanidade nar-
cisista e espetaculosa, que busca a notoriedade atra-
v��s da excentricidade.
Vivem de mitos numa atmosfera de mitos, de
sorte que acabam mit��manos. Show e success s��o aqui palavras m��gicas.
Alguns atores n��o se limitam a representar no
palco, ante o microfone ou na fonte duma c��mara ci-
nematogr��fica. ��s vezes representam tamb��m na rua,
nos caf��s, nos restaurantes. Almocei ontem no Brown
A VOLTA DO GATO PRETO
301
Derby com um grupo de amigos perto da mesa a que
se achava Eddie Cantor, e para a qual em dado mo-
mento o gar��on trouxe um telefone: "Um chamado
para voc��, Eddie". O que se seguiu foi uma perfeita
cena de com��dia. Quando Cantor percebeu que o
est��vamos observando, come��ou a representar: "Al��!
N��o ou��o. . ." Olhava para dentro do fone, fazia ca-
retas, limpava o ouvido com o indicador. Com isso
chamou a aten����o da maioria das pessoas que se en-
contravam nas vizinhan��as: e seu furor histri��nico
aumentava na raz��o direta do crescimento do p��-
blico . . .
O negro que me engraxou as botinas h�� pouco
tamb��m representou para mim. A menina que esta
manh�� me serviu grapefruit, torradas e caf�� no res-
taurante do hotel estava com o rosto maquilado de
modo a torn��-la parecida com Katherine Hepburn. O
gerente do hotel usa bigode �� maneira de Warner
Baxter.
E essas mo��as que andam pelas ruas preocupam-
se de tal modo com os penteados e a pintura do ros-
to, e seguem de tal forma um tipo padronizado de
"beleza", que ��s vezes chegamos a ter a impress��o de
que todas est��o usando m��scaras feitas de acordo com
o mesmo molde.
O bulevar ��� centro da vida comercial de Hol-
lywood ��� �� um espet��culo policr��mico. O pavimento
da rua �� cor de chumbo, quase negro, em contraste
com as casas claras, os cartazes de colorido vivo, o
amarelo-gemada dos t��xis e o vermelho dos bondes.
Todo o movimento das ruas se concentra numas cin-
co ou seis quadras, onde ficam as filiais dos maiores
magazines de Los Angeles, os cinemas, e um grande
n��mero de casas de modas, de curiosidades e brica-
braque e mais caf��s, bares, livrarias, etc. . . E se o
visitante espera encontrar aqui bom senso urban��s-
tico ou estilo nas casas, ficar�� decepcionado ao ver
302
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
que os edif��cios ou semelham caix��es cheios de janelas
ou ent��o constituem extravag��ncias arquitet��nicas co-
mo o "Teatro Eg��pcio", o "Teatro Chin��s" e essa s��-
rie, de casinhas brancas de madeira que imitam cha-
l��s b��varos, mans��es Tudor, castelos medievais, ou
miss��es espanholas... Porque as resid��ncias gracio-
sas e confort��veis de que tanto se orgulham os cali-
fornianos, ficam em Beverly Hills.
O movimento de pedestres �� grande e vivo no
bulevar. Predomina nas roupas uma absoluta aus��n-
cia de formalismo e a paix��o da cor. O turista aqui
se distingue em geral dos residentes por usar grava-
tas e chap��u. As mulheres que vivem nesta parte de
Los Angeles costumam sair �� rua de stocks e blusa le-
ve de seda ou j��rsei; mas mesmo quando seus trajos
s��o sum��rios e esportivos, elas nunca descuram a pin-
tura do rosto e o penteado, de sorte que se o corpo
est�� vestido para a rua, a cabe��a est�� como que pre-
parada para um baile.
Ao cabo de algumas andan��as ociosas por este
bulevar, o observador acaba convencendo-se de que
o mal de Hollywood �� que ela sofre demasiadamente
a influ��ncia de Hollywood. N��o �� paradoxo. Olhan-
do esta cidade e seus habitantes, penso num cachorro
que andasse �� roda tentando morder a ponta do pr��-
prio rabo. �� um c��rculo vicioso. Turistas v��m para
c�� a fim de ver as celebridades do cinema, e por sua
vez adoram a id��ia de serem tamb��m tomados por
estrelas ou astros, de sorte que se portam de modo
a encorajar nos outros essa ilus��o. Assim, s��o atores
e ao mesmo tempo espectadores duma pe��a tola que
eles acham altamente excitante. Para essas pessoas,
Hollywood �� um lugar de prazer e imprevistos, uma
cidade que vive numa perp��tua atmosfera de feira e
de feriado. E por isso tudo a metr��pole do cinema ��
uma das comunidades mais coloridas dos Estados Uni-
dos. Em parte alguma encontrei como aqui t��o gran-
A VOLTA DO GATO PRETO
303
de e variada exibi����o de cores nas roupas, nas faces,
na linguagem, nos h��bitos e na moral.
Sem d��vida alguma, Hollywood tem um encanto
especial. Mas ��s vezes pergunto a mim mesmo se o
glamour de suas ruas, gentes, casas e coisas n��o ser��
apenas uma lenda fabricada e mantida pelos cronistas
de jornais e revistas cinematogr��ficos, e pelos depar-
tamentos de publicidade dos est��dios.. . Porque o
pr��prio esp��rito de Hollywood torna dif��cil para o
forasteiro discernir o falso do genu��no. Seus filmes pa-
dronizaram gestos, frases, modas e at�� sentimentos, e
essa padroniza����o estendeu-se alarmantemente pelo
mundo inteiro, chegando a penetrar at�� em certos se-
tores de pa��ses como a China e a ��ndia, os quais, pe-
la sua idade, sabedoria e peculiaridades pareciam im-
perme��veis a influ��ncias de tal natureza.
Como exemplo dessa padroniza����o citarei um
gag que os filmes exploram com freq����ncia: O her��i
conversa pelo telefone com a hero��na: de repente a
liga����o �� cortada e o homem exclama impaciente:
Hello! hello!; por fim, desanimado, trata de repor o
fone no lugar, mas antes olha para dentro dele com
uma express��o de perplexidade.
Ora, isso �� um gesto artificial, que nunca ningu��m
fez mas que muitos j�� est��o come��ando a fazer (prin-
cipalmente quando se sentem observados) por influ-
��ncia do cinema. Outro gag deplor��vel ��� mas de efei-
to sempre c��mico ��� �� o da rea����o retardada. Uma
pessoa n��o entende no primeiro momento o que lhe
dizem ou n��o presta a devida aten����o a uma coisa
que v��, e ap��s um ou dois segundos, quando a com-
preens��o lhe vem, ela sacode a cabe��a, rapidamente,
com uma express��o de imbecil espanto no rosto.
Todas essas coisas, enfim, constituem a superf��-
cie de Hollywood. Se quebrarmos esse revestimento
de verniz, encontraremos aqui todos os eternos ele-
mentos da com��dia humana: hist��rias de fracassos, vi-
304
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
t��rias, paix��es, mesquinharias, trai����es, invejas, gestos
de nobreza, de coragem ou de desespero... ��s vezes
a deforma����o profissional leva essa gente de cinema a
proceder cinematogr��ficamente nos dramas ou com��-
dias da vida real. Por outro lado estou convencido de
que o prest��gio er��tico desta cidade �� mantido e en-
corajado principalmente pela popula����o flutuante, pe-
los turistas, pelos aventureiros por todos aqueles, ���
em suma ��� que v��m para c�� apenas em busca do
prazer f��cil e despreocupado. Porque os que traba-
lham e produzem em Hollywood precisam repousar e
habitualmente n��o ficam at�� a madrugada nos bares
e cabar��s. Al��m disso a cidade para eles h�� muito dei-
xou de ser "novidade". Depois de 1920 ��� quando o
cinema come��ou a ganhar import��ncia mundial ��� as-
tros e estrelas entregavam-se a verdadeiras orgias, vi-
viam escandalosamente e muitos cultivavam v��cios que
n��o procuravam esconder, na cren��a de que eles pu-
dessem acrescentar um ex��tico prest��gio a seus nomes.
Duns quinze anos para c��, tudo mudou. A "col��nia"
cinematogr��fica �� em geral muito respeit��vel e o tra-
balho exige de atores e atrizes que durmam cedo e
bem ��� para que no dia seguinte �� hora da filmagem
os vest��gios da noite mal passada n��o lhes apare��am
no rosto e na voz ��� e que se portem com moralida-
de, para que nenhum esc��ndalo lhes diminua aos
olhos do p��blico a estatura de her��is ou de ��dolos. H��
estrelas e astros que v��o �� missa todos os domingos.
E a estat��stica prova que a percentagem de div��rcios
em Hollywood n��o �� t��o alta como em geral se ima-
gina.
Seria coisa errad��ssima e injusta julgar os Estados
Unidos por Hollywood. Porque, ��� com um pouco de
fantasia ainda hollywoodesca, ��� podemos dizer que
a capital do cinema n��o �� apenas uma cidade diferen-
te das outras: �� um pa��s, ou melhor, um mundo ��
parte.
A VOLTA DO GATO PRETO
305
ROOSEVELT OU DEWEY?
25 de agosto. A propaganda eleitoral est�� acesa.
Quem ser�� o futuro Presidente dos Estados Unidos ���
Dewey ou Roosevelt?
Hearst atirou todo o peso de seus dezenove jor-
nais contra o candidato democr��tico. Dewey desfecha
tremendos ataques contra a atual administra����o. Clai-
re B. Luce, escritora e congressista, esposa de Henry
Luce, propriet��rio das revistas Time e Life ��� fez recentemente um discurso em que lan��ou toda a culpa
desta guerra sobre os ombros de F.D.R. Por que ��
que nossos boys est��o morrendo na Europa e nas ilhas
do Pac��fico? Por culpa de Roosevelt. Por que �� que
os g��neros aliment��cios e tantos outros artigos est��o
racionados? Por culpa do Presidente. Por que foi que
os japoneses bombardearam Pearl Harbour? Por culpa
do ''homem da Casa Branca"!
Tenho visto e ouvido Dewey na tela dos cinemas,
em newsreels. Ele me d�� a impress��o dum desses me-
ninos ricos que v��o �� escola bem vestidinhos e pen-
teadinhos, que sabem a li����o na ponta da l��ngua, e
que de vez em quando trazem uma ma���� para a pro-
fessora. .. Nota-se que seus discursos s��o previamente
estudados diante do espelho. A modula����o de sua
voz �� desagrad��vel e pretensiosa. Por tudo isso Dewey
est�� longe de ter a simpatia e a espontaneidade de
Roosevelt.
Em Los Angeles um ��nico jornal ��� o "Daily
News" ��� �� favor��vel ao candidato democr��tico. As
pessoas com quem tenho conversado ��� homens de ne-
g��cios, industrialistas, banqueiros ��� s��o em sua maio-
ria violentamente anti-Roosevelt. A campanha que a
alta finan��a move pela imprensa contra o atual go-
verno n��o visa apenas o candidato: alveja tamb��m o
homem.
306
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
O que acho admir��vel �� que em meio duma guer-
ra de vida e morte como esta em que os Estados Uni-
dos se acham empenhados, as elei����es v��o processar-
se como em tempos normais, e a propaganda se de-
senvolva sem a menor censura. Tenho lido e ouvido
ataques ao Presidente, �� esposa do Presidente, aos
filhos do Presidente e at�� ao cachorro de estima����o
do Presidente.
Ontem �� noite vi um newsreel em que Dewey,
com sua voz teatral, seu colarinho duro, seu dedinho
dogm��tico, investiu contra o New Deal. Numa deter-
minada passagem de seu discurso ��� preparando o es-
p��rito do audit��rio para uma tirada demag��gica ���
ele fez esta pergunta: "Em ��ltima an��lise, quem ��
que deve governar este pa��s?"
Do meio do p��blico, na vasta plat��ia, ergueu-se
sonora entre gaiata e irritada, uma voz masculina:
��� Wall Street! N��o �� isso que voc�� quer, seu
bobalh��o?
O DRAMA DE DON MANOLO
10 de setembro. Um dos boys do elevador do
Hotel Plaza tem mais de cinq��enta anos e �� um tipo
espigado, de postura digna, rosto murcho e raras fal-
ripas grisalhas a cobrir-lhe o cr��nio lustroso. Quando
entro no elevador esta manh�� o homem me sorri aco-
lhedoramente e, enquanto vamos descendo, cantarola
coplas espanholas.
��� �� sul-americano? ��� pergunto.
��� N��o, senhor. Sou espanhol.
��� A h . . .
��� Nunca ouviu falar em Manolo Alba, o famoso
tenor de Espanha?
��� Manolo Alba? ��� repito. ��� O nome n��o me ��
estranho...
A V O L T A DO GATO P R E T O
307
O elevador chega ao andar terreo. Os passagei-
ros saem. O boy se perfila todo e recita:
��� Eu sou Manolo Alba, primeiro tenor de zar-
zuelas. Cantei no "Teatro Dona Amelia", de Lisboa,
no "Solis" de Montevid��u, no "Municipal" do Rio de
Janeiro, e em todos os teatros de Espanha. .. Um
cronista madrilenho escreveu que eu era o "melhor
jeune premier do teatro opereta".
Manolo sorri e no seu rosto vejo uma inef��vel ex-
press��o de devaneio.
��� "Bela presen��a", escreveu o cronista, "bom
jogo de cena, voz educada e firme, de timbre agra-
d��vel. .
Outros passageiros entram, ao passo que me deixo
ficar no fundo do elevador, imaginando Manolo Alba
metido na casaca do conde Danilo e cantando a "Vi��va
Alegre".
��� Mas que �� que voc�� est�� fazendo aqui, hom-
bre? ��� pergunto.
Manolo faz um gesto dram��tico.
��� La fatalidad, se��or...
Um sujeito grandalh��o que masca um toco de
charuto, berra:
��� Esta jo��a sobe ou n��o sobe?
��� Perd��o, cavalheiro ��� desculpa-se Manolo, res-
peitoso mas digno.
Movimenta a alavanca e l�� nos vamos de novo
para arriba. E em duas viagens de ida e volta Ma-
nolo Alba me conta sua vida, suas gl��rias e viagens,
desde o primeiro sucesso teatral at�� o dia em que veio
para Hollywood, h�� quinze anos, para tentar a car-
reira no cinema. Com o advento dos talkies conse-
guiu bons pap��is em filmes falados em espanhol. De-
pois andou pelo M��xico com uma companhia de "vau-
deville" formada por canastr��es hispano-americanos
encalhados em Hollywood. A sorte levou-o a hospe-
dar-se mais tarde num hotel de pequena cidade do
308
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
interior dos Estados Unidos, onde uma vi��va de meia-
idade, seduzida por seus encantos, pediu-o em casa-
mento. Manolo deu-lhe o sim, casou-se e voltou a
Hollywood para de novo bater ��s portas dos est��dios.
Os tempos tinham mudado. O "Screen Actors' Guild",
ou seja a "Sociedade dos Atores de Cinema" com o
prop��sito de acabar com o desemprego entre os ex-
tras, reduzira estes a um n��mero razo��vel, a fim de
que pudessem sempre encontrar trabalho.
��� E agora aqui estou ��� conclui Mano��o, baixan-
do os olhos para o seu uniforme. ��� N��o consegui na-
da.. . a n��o ser esta libr�� de lacaio. . .
Fico em sil��ncio, sem saber que dizer. Finalmen-
te pergunto:
��� Mas n��o consegue trabalho nos est��dios?
��� N��o posso.
��� Por qu��?
��� Porque n��o sou s��cio do "Actors' Guild".
��� Por que n��o entra?
��� Imposs��vel. O n��mero de extras est�� limitado.
Faz cinco anos que venho tentando entrar. Cinco
anos! E tudo em v��o!
Conta que a mulher �� inv��lida, vive em casa sem-
pre estendida na cama, com um c��ncer no est��mago.
��� A velhinha gostaria tanto de me ver de novo
na minha antiga profiss��o. . . ��� diz ele com voz do-
lorosa e tocada de ternura.
��� Mas voc�� n��o tem nenhum amigo influente
que o possa ajudar?
Manolo faz um gesto de desamparo.
��� Quem �� que vai se lembrar de mim nesta ci-
dade ego��sta em que uns espezinham os outros sem
piedade, para agarrar as melhores oportunidades?
Dou-lhe uma pancadinha no ombro.
��� N��o h�� de ser nada, Manolo. Um dia tudo se
arranja...
A VOLTA DO GATO PRETO
309
Saio para Vine Street acompanhado pelo eco des-
sas palavras f��teis. Um dia tudo se arranja. Como?
Manolo est�� liquidado. Fala mal o ingl��s, deve ter
perdido a voz. N��o tem amigos. N��o tem padrinhos.
N��o conseguir�� jamais sair da gaiola do elevador. Da-
li s�� para o cemit��rio... S�� para o cemit��rio... Es-
tas palavras me perseguem, como que marcam a ca-
d��ncia de meus passos. S�� para o cemit��rio... Adeus,
sonhos de gl��ria! "Do��a Francisquita..." "Los Gavi-
lanes". .. Noites de triunfo no Rio, em Santiago, Bue-
nos Aires, Barcelona. .. Adeus, don Manolo! Sim,
um dia, a morte arranjar�� tudo... Mas... se eu re-
solvesse o problema de Manolo? Tolices! Como em-
pregar em Hollywood a t��cnica brasileira do pistol��o?
Entro no "Ch��nese Theatre". As lajes de sua en-
trada mostram a impress��o de m��os, p��s, pernas e
narizes ilustres. Aqui tamb��m est�� o aut��grafo e a
marca do tac��o de Carmen Miranda. E o aut��grafo
de artistas que j�� morreram ou ent��o andam por a��
pobres e esquecidos.
N��o consigo prestar aten����o ao filme. Penso na
"viejecita" que vive com a aten����o dividida entre a
carreira de Manolo e a perversa flor que lhe desabro-
chou no est��mago. Do elevador para o caix��o. Do
Hotel Plaza para o cemit��rio.
Saio antes de o filme terminar. A noite est�� fria,
e contra um c��u violeta fa��sca um an��ncio de Coca-
Cola.
O CONDE DE LUXEMBURGO
12 de setembro. Des��o ��s nove da manh�� para
tomar meu breakfast. Manolo Alba mete-me no bolso
um chuma��o de papel.
��� Quando tiver tempo leia isto, senhor.
��� Est�� bem, Manolo.
310
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Enquanto tomo o meu caf�� vou examinando estes
recortes de jornal amarelados e velhos. S��o cr��nicas
a respeito do tenor Manolo Alba, e todas elogiosas.
Encontro entre elas um programa impresso em papel
cor-de-rosa, com estes dizeres:
Grandiosa Cia. de Opereta y Zarzuela de Ambos G��neros
RENACIMIENTO
DebutI Debut!
Del celebrado y aplaudido tenor
M A N O L O A L B A
PROGRAMA
1 ��� Sinfonia por la orquestra.
2 ��� La inspirada y popular opereta dei glorioso Maes-
tro Franz Lehar
EL CONDE DE LUXEMBURGO
Num outro recorte: uma caricatura em preto e
branco de Manolo Alba, metido numa casaca, de cha-
p��u alto. A legenda diz: O ��rbitro da Eleg��ncia.
Tenho amanh�� um jantar na casa do ator Walter
Abel. Lembro-me vagamente de ter lido n��o sei onde
que Abel faz parte da diretoria de Actors Guild...
E se eu tentasse convenc��-lo a ajudar o meu pobre
tenor?
��s tr��s da tarde batem �� porta de meu quarto. ��
Alba, que terminou o seu turno e deseja conversar co-
migo. Convido-o a entrar e sentar-se. Ele entra, fe-
cha a porta e fica parado no centro do quarto, olhando
fixamente para mim.
��� Se��or brasile��o... Mi amigo...
Sua voz �� dram��tica e a express��o de seu rosto
dolorosa. Faz avan��ar na minha dire����o ambas as
m��os, uma apertando a outra, num gesto de s��plica.
De repente sua m��scara se altera. O que vejo nela ��
um esgar de revolta.
A VOLTA DO GATO PRETO
311
��� Cristo! No fim de contas eu sou um ator. Que
s��o esses extras todos? Estivadores que n��o conhe-
cem a arte de representar. Burros! Cretinos! Brutos!
Sentado numa poltrona, olho e escuto. A cena ��
dum grotesco constrangedor. Porque brotam l��grimas
nos olhos de Manolo, ao mesmo tempo que sua boca
se abre num sorriso de dentes mi��dos e escuros.
��� Imagine s�� isto... Eu entro para o Guild,
consigo logo uma pontinha numa pel��cula... O dire-
tor est�� me observando... V�� logo: "Aquele sujeito
sabe representar. .. sabe envergar uma casaca... tem
boa presen��a... Como �� mesmo o nome dele?" O
assistente do diretor consulta a lista e diz: "Manolo
Alba!..." E estou feito!
Manolo deixa cair os bra��os. De novo a triste-
za e o desalento lhe acentuam as rugas do rosto, en-
velhecendo-o ainda mais.
��� Mas como �� que vou conseguir trabalho se
n��o sou do Guild? Como �� que vou entrar para o
Guild se n��o tenho quem me ajude? Todo meu de-
sejo agora est�� concentrado nisso: terminar meus dias
honradamente, como artista...
Devo dar-lhe esperan��as? N��o ser�� pior, mil ve-
zes pior fazer-lhe promessas v��s? Perco-me em con-
jeturas e quando volto a prestar aten����o em Manolo
ele est�� dan��ando e cantarolando, com as m��os ora
na cintura, ora no ar, num estralar de dedos imitati-
vo de castanholas. Suas magras pernas se movimen-
tam ao ritmo da m��sica.
��� Posso bailar, cantar e representar... ��� diz
ele, meio ofegante.
��� Sente-se, Manolo. Descanse um pouco.
��� Gracias, se��or. Agora preciso ir. A viejecita
est�� me esperando.
Apanha os recortes e mete-os melancolicamente
no bolso. De repente deixa-se cair sobre a poltrona,
312
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
esconde o rosto nas m��os e desata a chorar como uma
crian��a. Os solu��os lhe sacodem os ombros ossudos.
N��o sei que fazer nem dizer. O melhor �� deix��-
lo chorar em paz. Vou at�� a janela. Fora o dia �� um
clar��o cegante. L�� em baixo as capotas dos autom��-
veis chispam, reverberando a luz do sol. Os montes
que se erguem para as bandas do norte, cobertos du-
ma vegeta����o escura, est��o envoltos numa bruma li-
l��s. H�� no ar uma indiferen��a pregui��osa e narcoti-
zante.
Finalmente Manolo Alba levanta-se, enxugando as
l��grimas e diz:
��� Perdoe-me, amigo.
��� Est�� bem, Manolo. Um dia tudo se arranja.
Outra vez me escapou a frase idiota! Traduzir��
ela verdadeira esperan��a ou ser�� apenas uma expres-
s��o convencional, de sentido puramente ret��rico?
Manolo est�� com a m��o na ma��aneta da porta.
��� Olhe ��� conto-lhe ��� vou jantar amanh�� com
um big shot do "Actors1 Guild". Talvez eu possa fazer
alguma coisa por voc��...
O rosto-do tenor se ilumina de repente, remo��a,
ganha brilho.
��� Se��or... ��� balbucia ele. Mas cala-se, engas-
gado.
CAIM E ABEL
13 de abril. Os Walter Abel moram numa bela
vivenda de estilo californiano, situada nesse gracioso
labirinto de Brentwood, um bairro residencial de ruas
curvas que se cruzam e entrecruzam no prop��sito ���
parece ��� de desorientar os intrusos. Por alguns mi-
nutos meu t��xi anda perdido sem encontrar a casa
que procuramos. Finalmente chegamos ao nosso des-
A VOLTA DO CATO PRETO
313
tino, ajudados por um providencial jardineiro de bar-
bas brancas, vaqueano do lugar.
Walter Abel �� um simp��tico sujeito a quem nun-
ca deram a categoria de astro pela simples raz��o de
que n��o tem dois metros de altura nem a cara que
os f��s esperam do mocinho dos filmes. �� no entanto
um ator consciencioso, que conhece a sua arte e que,
al��m do mais, tem uma razo��vel erudi����o. Mais in-
teressante ainda que ele �� sua esposa, dona duma voz
impressionante, grave e seca. Conversamos sobre li-
vros e ela fica escandalizada ao saber que admiro o
urbano J. P. Marquand. Seus favoritos s��o decidida-
mente John Steinbeck e Ernest Hemingway.
A cozinheira preta dos Abel nos serve perdizes
com arroz selvagem e salada verde. �� mesa conver-
samos sobre vinhos ��� um dos muitos assuntos a res-
peito do qual minha ignor��ncia �� completa, e sobre
livros. Vamos tomar caf�� no "living-room", onde co-
mento filmes e atores, pois quero levar a conversa pa-
ra o caso de meu amigo Manolo. Walter Abel me
conta que o ��ltimo filme em que apareceu foi "Ame-
rican Romance". Com um copo de u��sque na m��o,
ele parodia o "ator desesperado de Hollywood".
��� N��o tenho trabalhado nestes ��ltimos seis me-
ses. . . ��� diz ele. ��� Ando irasc��vel, nervoso... R��o as
unhas. Quebro vasos. Maltrato os criados. Bato na
minha mulher...
��� Espero que n��o bata nos visitantes... ��� ob-
servo.
��� Quem sabe?
A conversa salta de cinema para bebidas. Fabri-
ca-se u��sque no Brasil? Qual �� a bebida favorita dos
brasileiros?
Aproveito um sil��ncio para falar nos extras ���
nessa legi��o de pobres criaturas que vivem sonhando
com a gl��ria. A senhora Abel procura levar-nos para
outro terreno. Quanto tempo lecionei na Universidade
314 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
de Berkeley? Oito meses ��� respondo apressadamente,
e volto ao assunto que me interessa.
��� L�� no meu hotel conheci no elevador...
O tilintar duma campainha me interrompe. Wal-
ter Abel pede licen��a e vai at�� o hall e l�� fica a con-
versar longamente ao telefone. E quando volta para
o living, informa:
��� �� o Brian Donlevy... conhece?
��� De cinema...
��� �� dono de minas de cobre. Sabia?
��� N��o. Essa �� novidade.
��� Est�� muito preocupado porque n��o tem ne-
nhum contrato para este ano...
��� Para o cobre?
��� Para filmes.
Tento voltar ao meu assunto:
��� Imagine s�� o drama desses pobres extras...
Walter me apresenta a caixa de cigarros.
��� Obrigado. N��o fumo.
Mrs. Abel acende um Camel e diz:
��� A primeira vez que vi Donlevy em carne e
osso fiquei decepcionada. A gente se acostuma a ver
nele um her��i... um sujeito forte, decidido, seguro
de si mesmo. Na realidade �� um homem triste, preo-
cupado com a calv��cie e com o desenvolvimento do
pr��prio abd��men...
Bi a sua risada curta e seca.
��� Mais u��sque? ��� pergunta-me o marido.
��� Aceito. ��� E, mudando de tom: ��� Pois... co-
mo eu ia dizendo, l�� no meu hotel conheci um tenor
espanhol...
Conto-lhes toda a hist��ria de Manolo Alba e de-
pois, com o ar mais casual que posso fingir no mo-
mento, acrescento:
��� Por falar nisso... voce n��o �� membro da di-
retoria do "Actors' Guild"?
A VOLTA DO GATO PRETO
315
Walter Abel olha para o seu copo de u��sque e
diz:
��� Sim, sou vice-presidente.
��� Que �� que podia fazer em favor desse pobre
homem? Ele cr�� que toda sua felicidade depende de
sua entrada para o Guild. Acha voc�� que com sua
influ��ncia... ele poderia.. . quero dizer... pelo me-
nos facilitar... pobre homem!... talvez... que me
diz?
Fico esperando. Abel faz avan��ar o l��bio inferior,
num trejeito que reflete seu cepticismo.
��� �� in��til ��� diz. ��� Sinto muito. Mas nem tente.
Outros j�� tentaram isso sem resultado. Centenas, mi-
lhares . . . O Guild �� inflex��vel...
��� Mas �� uma crueldade!...
Abel encolhe os ombros.
��� �� uma lei tola, mas �� uma lei.
��� Ent��o n��o h�� nada mesmo a fazer?
Abel hesita. Finalmente diz com alguma relu-
t��ncia:
��� Mande seu amigo fazer nova proposta... Mas
n��o lhe fa��o nenhuma promessa positiva. E �� quase
certo que a solu����o ser�� desfavor��vel.
Leva aos l��bios o copo de u��sque. Penso em Ma-
nolo, na velhinha e na sua flor...
A BOA ESTRELA
20 de setembro. O novo requerimento de Mano-
lo Alba foi indeferido. No Guild disseram-lhe que de-
sistisse duma vez por todas de suas pretens��es. En-
contro-o hoje abatido.
��� N��o perca a esperan��a ��� digo-lhe.
��� Enfim ��� responde ele ��� faz cinco anos que
ando nesta luta. J�� devia estar habituado...
316
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Tomo a bater-lhe no ombro, mas desta vez n��o
lhe afirmo que tudo se arranjar��. Estou, entretanto,
decidido a n��o desistir. Deve haver algum meio de
empurrar Manolo Alba para dentro do Guild.
Passo a manh�� na busca duma casa. Finalmente
�� tarde recebo um telefonema do consulado. ��lvaro
Diniz anuncia que me conseguiu uma bela vivenda
em Durango Avenue, nas vizinhan��as de Beverly
Hills. Vou v��-la em sua companhia.
��lvaro Diniz �� um pernambucano que veio para
esta cidade h�� vinte anos e aqui exerceu com sucesso
extraordin��rio a profiss��o de vendedor de autom��veis,
a qual abandonou h�� quatro anos para vir trabalhar
no consulado do Brasil como funcion��rio contratado,
�� um homem cordial, que conhece toda a gente, que
sabe tudo; a pessoa, enfim, a quem os brasileiros levam
seus problemas quando est��o em Los Angeles. Com
sua voz grave, o seu jeito de falar com a cabe��a ati-
rada para tr��s ��� Diniz �� duma franqueza que a mui-
tos choca, mas que acho admir��vel.
A casa de Durango Avenue pertence a um tenen-
te do ex��rcito que acaba de ser transferido para Wyo-
ming. �� branca, de telhado cor de ard��sia, com um
torre��o ao centro, e um jeito elizabethano.
Fica numa rua calma, sombreada de ��rvores, e a
pouca dist��ncia do Pico Boulevard, centro comercial
da zona.
O tenente e a esposa mostram-se am��veis e f��-
ceis. Cedem-me a casa por um ano, n��o exigem con-
trato nem nos d��o invent��rio dos m��veis e utens��lios.
Tudo se ajusta com simplicidade e rapidez. Mi-
nha boa estrela continua a brilhar ��� concluo.
Dou a not��cia a Manolo, que fica melanc��lico.
��� Agora o senhor deixa o hotel e me esquece. . .
��� Qual, Manolo!
��� Esquece, sim. Esta cidade �� infernal. Aqui n��o
h�� amigos; h�� competidores.
A VOLTA DO GATO PRETO
317
��� N��o seja t��o derrotista.
��� Se fosse j�� teria metido uma bala no cr��nio
��� exclama o tenor, teatralmente. ��� E n��o seria o pri-
meiro nem o ��ltimo.
DURANGO AVENUE, 1625
30 de setembro. Minha tribo chegou ontem de
San Francisco. Ficaram todos encantados com a casa
e a rua. Temos uma boa escola p��blica, mercados,
lojas, cinemas e bancos a curta dist��ncia.
Mariana come��a a fazer arranjos na nova mora-
da. Muda a posi����o dos m��veis e trata logo de es-
conder um navio a vela que se encontra no living-
room, sobre um consolo. ("No creo en brujerias, pero
que las hay. . . las hay") Descubro uma m��scara ver-
melha, de terracota no fundo da garagem ��� a cara de
um fauno ��� trago-a para o living-room e penduro-a
por cima da lareira. Removo da sala de jantar para
o fundo da garagem uma horrenda tela pintada por
um amador (amigo da fam��lia do tenente), e substi-
tuo-a pela reprodu����o dum quadro de Van Gogh
(meu amigo).
Conheci esta manh�� um de meus vizinhos. Est��-
vamos ambos metidos em cal��as velhas, e de torso
nu, cortando relva em nossos jardins. Olhamo-nos,
sorrimos um para o outro e:
��� Al��! ��� disse ele.
��� Al��!
��� Lindo dia.
��� Muito lindo. O outono a�� est��. ..
��� �� o novo inquilino?
��� Yes.
��� Espanhol?
318
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Brasileiro.
��� A h . . .
Digo-lhe o meu nome.
��� O meu �� Ericksen, Christian Ericksen.
Apertamo-nos as m��os por cima da cerca de f��cus.
Isso feito, fazemos a volta de nossos jardins, em-
purrando o cortador de relva. H�� mel e leite no ar.
Folhas secas desprendem-se das ��rvores, tombam so-
bre as cal��adas. Longe azulam as montanhas da Sierra
Madre.
Meu vizinho e eu tornamos a nos encontrar junto
da cerca viva.
��� Trabalha no com��rcio? ��� pergunto.
��� N��o. No est��dio da Fox.
��� Ator?
��� Eletricista.
��� A h . . .
Tornamos a nos separar. Sinto nas costas, nos
bra��os, no rosto a car��cia morna do sol. O cheiro ver-
de e ��mido da relva cortada sobe-me ��s narinas.
Clara e Lu��s v��m correndo comunicar-me uma
descoberta sensacional. No fundo de nossa casa mo-
ra um ator caracter��stico de cinema ��� um sujeito alto,
vermelho, de rosto comprido, que em geral faz pap��is
de gar��on ou de chofer imbecil.
Passa pela rua um autom��vel esmaltado de bran-
co tocando musiquinhas de realejo. Meus filhos j��
sabem que se trata do "carro do sorvete", e precipi-
tam-se na dire����o dele.
�� incr��vel, mas come��o j�� a ter a impress��o de
que moro nesta casa h�� muitos meses. Fico a pensar
em se essa capacidade de adapta����o ��� que toda a
minha fam��lia tamb��m parece possuir ��� �� uma coisa
boa ou m��. E chego a conclus��o de que ela ape-
A VOLTA DO GATO PRETO
319
EP��LOGO
20 de outubro. Nestas ��ltimas semanas tenho
feito novas tentativas para fazer o pobre Alba entrar
para o "Actors' Guild". Cheguei a interessar no assun-
to o meu excelente amigo Geoffrey Shurlock, do Hays
Office. Tudo in��til.
Esta manh�� Manolo me telefona:
��� No Guild me disseram que s�� h�� uma coisa
capaz de me dar o cart��o de s �� c i o . . .
��� Que ��?
��� Uma carta assinada por um producer impor-
tante, dizendo claramente que me vai contratar para
o seu pr��ximo f i l m e . . .
��� B o m . . . isso �� o diabo. ..
��� Cristo! Eu sei que isso �� imposs��vel. Quem ��
que vai me dar essa carta?
��� Imposs��vel talvez n��o seja. ..
Um hiato na conversa����o. Sinto que a respira����o
de Alba foi subitamente cortada.
��� N��o �� imposs��vel?... "Di��s mio!" Acha que
me pode c o n s e g u i r ? . . .
��� Calma, Manolo. Pode-se t e n t a r . . .
��� "Bendita la madre que te puso nel mundo!"
Reponho o fone no lugar e fico pensando. Onde
diabo vou eu encontrar nesta cidade de gente ocupa-
da e preocupada um producer capaz de assinar tal
carta? De repente me ocorre um nome. Walter Wan-
g e r . . . Sim, a�� est�� o homem. �� um liberal, um su-
jeito inteligente e compreensivo. Al��m do mais, tenho
com Wanger um pequeno cr��dito, pois a seu convite
tomei parte em dois programas por ele organizados
para entreter soldados convalescentes.
Olho o rel��gio. Dez da manh��. Telefono para o
est��dio da Universal. A secret��ria do producer me
p��e em comunica����o com o chefe. O di��logo �� r��pi-
320
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
do. Comunico a Walter Wanger que tenho um assun-
to importante a tratar com ele. "Venha hoje almo��ar
comigo aqui no est��dio".
Depois de rodar em dois ��nibus e num bonde,
chego, ao cabo de uma hora maci��a de viagem, ��
"Universal City". Almo��o com Wanger no restaurante
do est��dio. Charles Laughton, de cal��as e camisa pre-
tas, come, com cara aborrecida; um sandu��che. A pa-
pada fl��cida cai-lhe cor-de-rosa sobre o peito, e a ca-
beleira muito longa d��-lhe a apar��ncia duma velha
gorda. Perto dele, esbelt��ssima, os olhos muito claros,
Ella Raines mordisca uma alface. Franchot Tone tam-
b��m aqui est��. E Yvonne de Carlo, que Wanger me
apresenta. �� a estrela de Salom��, Where She Danced,
cuja filmagem est�� sendo terminada. Passam por en-
tre as mesas mulheres e homens vestidos �� moda de
1810. E agora, l�� vem entrando, de cabelos tingidos
de ouro e de slacks azuis, Deanna Durbin. Quando
voltamos ao escrit��rio de Wanger e ele me con-
vida a sentar, acho que chegou a hora de en-
trar no assunto. O marido de Joan Bennett me ofere-
ce um cigarro. Infelizmente n��o fumo. Mais uma vez
me conven��o de que fazer a personagem fumar �� um
excelente recurso para o ficcionista, um jeito natural
de criar pausas na narrativa. "O mancebo tirou uma
baforada de fumo e ficou olhando a espiral azulada que
subia no ar". .(Ah! os folhetins que l��amos aos dezoito
anos... O "Abade Constantino'... "Elzira a Morta
Virgem"... "Jo��o de Calais"...)
Wanger j�� acendeu o seu cachimbo e agora espera.
Tem uma cara larga, morena e tranquila, os cabelos
muito grisalhos, as sobrancelhas espessas. Sua voz ��
fosca e branda.
��� What is up, my friend?
��� Pois... o que me traz aqui �� o desejo de aju-
dar uma pessoa. Devo dizer-lhe, antes de mais nada,
que meu interesse nessa criatura �� puramente senti-
mental . . .
A V O L T A DO G A T O P R E T O
321
Wanger sorri.
��� Loura ou morena?
��� �� um homem, Walter. . .
��� A h . . .
Conto-lhe a hist��ria de Alba da maneira mais dra-
m��tica poss��vel.
��� Mas que quer voc�� que eu fa��a?
��� Quero que assine essa carta m��gica.
��� �� muito f��cil. Dite-a �� minha secret��ria.. .
No momento seguinte estou na outra sala, ditando
�� simp��tica secret��ria de Wanger ��� que tamb��m j��
est�� comovidamente interessada no caso ��� a carta que
vai ter a virtude de abrir para Manolo as portas do
para��so, libertando-o da gaiola do elevador. Segundo
minhas palavras, nessa carta Mr. Wanger declara ao
presidente do Guild que conhece Manolo Alba, sabe
que �� um bom ator, e est�� decidido a contrat��-lo para
o seu pr��ximo filme. Resta agora saber se Wanger
concordar�� em assinar uma declara����o t��o positiva,
uma vez que nesta terra os producers e executives dos
est��dios vivem em cont��nuo sobressalto, temendo chan-
tagens, processos por quebra de contrato e coisas desse
g �� n e r o . . .
Mordendo o cachimbo e sorrindo quase imper-
ceptivelmente, Walter Wanger l�� a carta e assina-a
sem a menor hesita����o.
��� S�� isso? ��� pergunta, entregando-me o papel.
��� Voc�� acaba de fazer a felicidade dum homem.
De um? Qual! De dois. Eu tamb��m estou feliz. Deus
lhe pague!
Tr��s horas da tarde. No sagu��o do Plaza. O ele-
vador desce, a sua porta se abre, os passageiros saem.
Diviso Manolo Alba no seu d��lm�� azul com bot��es
prateados. A princ��pio n��o me enxerga. Fa��o-lhe um
322 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
s i n a l . . . Novos h��spedes come��am a entrar no ele-
vador. Ergo a carta no a r . . . Alba me avista, tem
um sobressalto e corre para mim, de m��os p o s t a s . . .
��� Se��or...
Mudo e ofegante, fica olhando para o envelope.
��� Que �� isso? ��� pergunta.
Est�� p��lido. Seus l��bios tremem.
��� Uma carta dirigida ao Guild e assinada por
Walter W a n g e r . . . dizendo que voc�� �� um c o l o s s o . . .
��� No!
��� Sim. E declarando que vai contratar voc�� para
o pr��ximo f i l m e . . .
��� No! No es possible! No! Di��s mio!
Atabalhoadamente abre o envelope, come��a a ler
a carta, segurando-a com m��os tr��mulas. L��grimas
lhe escorrem pelas faces.
��� Bendita la madre... ��� balbucia.
A voz se lhe tranca na garganta. Num salto Ma-
nolo Alba me enla��a o pesco��o com ambos os bra��os
e me aplica um sonoro beijo na face. No elevador
os h��spedes nos miram, indiferentes, pois em Hollywood
tudo pode acontecer. Manolo volta cantarolando e pu-
lando para sua gaiola. Agora est�� livre! Amanh��
ser�� membro do Guild, depois ter�� trabalho nos
est��dios... A "viejecita" ganhar�� novo alento.
Libertad! Oh, do��a Francisquita-a-a! Libertad!
Antes de fechar a porta do elevador ergue o dedo
para o alto e exclama:
��� Abajo de Di��s. . . usted! Solamente usted ��� e
me atira um beijo.
Fa��o meia-volta e me vou. Penso em que h�� al-
guns dias um brasileiro que visitou Hollywood e pas-
sou aqui quatro dias gabou-se de ter sido beijado por
Ver��nica Lake. Vejam s�� como s��o as c o i s a s . . . Ao
cabo de dois meses nesta cidade de lindas mulheres
s�� fui beijado por um homem. E por um tenor!
A VOLTA DO GATO PRETO
323
BRINCANDO DE SOLDADO
Carta a Vasco Bruno:
Voc�� me pergunta como �� que a juventude americana, edu-
cada para a vida ��� e para uma vida de conforto, f��cil, agrad��vel
e emoliente ��� pode enfrentar com tanta coragem e efici��ncia
gera����es fanaticamente educadas para o sacrif��cio e para a mor-
te, como as japonesas e as alem��s.
Quero primeiro deixar bem claro que, nestas cartas dirigidas
a voc�� e Fernanda e nas quais procuro dar-lhes minha opini��o
sobre gentes e costumes dos Estados Unidos, tentando ��s vezes
tra��ar paralelos entre brasileiros e americanos, ��� tempero sem-
pre minhas observa����es "com um gr��o de sal, pois seria tolo
fazer afirma����es categ��ricas, principalmente nesse terreno...
Creio que o sucesso das armas deste pa��s na presente guerra
se deve aos seguintes fatores:
1.�� ��� Os americanos amam as m��quinas em geral, sen-
tem prazer e s��o h��beis no trato delas.
2.�� ��� A escola prim��ria, o gin��sio e a universidade en-
sinaram-lhes que o modo de vida americano �� o
melhor e o mais belo do mundo, e que portanto deve
ser defendido e mantido; mais ainda, prepararam-nos
para o "team work", o trabalho de conjunto, dentro
dum sentido de coopera����o e boa camaradagem.
3.�� ��� O n��vel de sa��de e prepara����o f��sica deste povo ��
muito alto ��� e isso e um resultado de sua prosperi-
dade econ��mica, de seu desenvolvimento t��cnico e
ainda da aten����o que a escola prim��ria, o gin��sio e a
universidade dispensam �� educa����o f��sica.
4." ��� O poderoso e eficiente parque industrial do pa��s foi
posto a trabalhar para a guerra; e tem fornecido ��ti-
mas armas mec��nicas a soldados capazes de manej��-
las com habilidade e efici��ncia.
Dentro de cada americano agita-se um pequeno Thomas
Edison ou um Henry Ford em estado potencial. N��o esque��a,
meu caro Vasco, que os her��is da Hist��ria desta na����o foram
homens que fizeram coisas. Benjamim Franklin �� um admir��vel
s��mbolo nacional, pois ele foi tudo quanto o americano comum
admira e deseja ser:
324
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Um homem que se fez pelo pr��prio esfor��o;
um curioso, no que diz respeito a m��quinas;
um fil��sofo pr��tico;
um humorista;
um filantropo;
e um turista...
Algumas cenas do filme Winged Victory forneceram-me a
chave do segredo do sucesso das armas americanas nesta guerra.
Uma delas foi a em que jovens aviadores se acham postados dian-
te do avi��o que acaba de ser-lhes entregue: um bombardeiro
Liberator. Comentam eles a m��quina com tal paix��o e encan-
tamento, que a gente tem a impress��o de que se trata dum
grupo de meninos diante do brinquedo novo ou ent��o de adultos
fascinados por uma mulher bonita. "Olhem s�� as curvas... Que
seios! Que ventre liso! Como bate com ritmo regular seu grande
cora����o! Como deve ser macia sua marcha, ��geis seus membros,
mornas suas entranhas!"
Esse amor dos jovens aviadores pelo seu instrumento de
trabalho, que �� ao mesmo tempo o seu ve��culo e a sua arma,
lembra-me a paix��o do ga��cho pelo cavalo. Entre as muitas
hist��rias pitorescas que se contam em fam��lia a respeito de meu
av�� tropeiro, encontro uma que me parece particularmente reve-
ladora do car��ter do homem da campo. Um dia sa��ram ele e
um compadre ��� amigo do peito ��� a percorrer a cavalo uma in-
vernada. De repente a cavalgadura do compadre desembestou,
tomou o freio nos dentes e frechou em t��o doida velocidade coxi-
��ha abaixo, que acabou rolando par terra e atirando longe o ca-
valeiro. Meu av�� precipitou o cavalo a todo o galope na dire-
����o do infeliz compadre e ao chegar junto dele, apesar de v��-lo
estendido no ch��o, empoeirado, esfolado e quase sem sentidos,
perguntau-lhe apenas isto: "Machucou-se o cavalo?"
Hitler cometeu um grande erro ao desafiar para uma guerra
mecanizada uma na����o de mec��nicos. �� dif��cil encontrar um
americano que n��o saiba dirigir autom��vel ou que n��o goste
de lidar com motores.
Tenho a impress��o de que estas gentes s��o g adget minded,
isto ��, t��m a mania das engenhocas, dos aparelhos mec��nicos.
No seu desejo de conforto e simplifica����o, aceitam todas as in-
ven����es que possam tornar-lhes a vida mais f��cil e agrad��vel.
S��o um povo de engenheiros (engineer em ingl��s quer dizer
tamb��m maquinista) e um povo engenhoso.
Essa afei����o ��s coisas mec��nicas como que as leva ��s vezes
a fugir dos problemas que n��o possam ser resolvidos pela t��cnica.
�� dif��cil encontrar aqui grupos a discutir Deus e a imortalidade
A VOLTA DO GATO PRETO
325
da alma ��� temas t��o do agrado das gentes latinas. E n��o ��, pois
de admirar que se d�� o nome de instrumentalismo a certa forma
de pragmatismo t��o do agrado de pensadores e educadores ame-
ricanos.
Segundo os instrumentalistas ��� que se op��em a qualquer
forma de absolutismo ��� a realidade n��o �� nada de fixo ou de
completo, e sim algo suscet��vel de mudan��a e desenvolvimento.
Para eles as id��ias s��o. instrumentos de a����o e sua utilidade ��
que lhes determina o grau de verdade. Vemos assim que aqui
at�� as id��ias s��o ��s vezes transformadas em gadgets, engenhocas
aparelhos... John Dewey �� um dos sumos sacerdotes do instru-
mentalismo, e sua filosofia aplicada ao ensino nos Estados Unidos
levou este pa��s a abandonar os m��todos autorit��rios em favor da
experimenta����o e da pr��tica.
Nas universidades americanas (e nisso elas se parecem com
as inglesas), o esp��rito esportivo e o de boa camaradagem s��o
levados em alta conta, e o jogo limpo deve ser observado por
todos os estudantes, n��o s�� no campo de esportes, no tratamento
do advers��rio e dos companheiros, como tamb��m nas aulas, onde
colar �� considerado um ato indesculp��vel e desonroso.
Numa outra cena de Winged Victory observei uma coisa
que j�� me havia chamado aten����o na vida real. �� que os ameri-
canos lutam sem ��dio e nunca declararam dramaticamente que
querem morrer pela p��tria. No entanto suas miss��es de combate
s��o cumpridas com o mais completo sucesso; e a efici��ncia do
ex��rcito e da armada americanos nesta altura da guerra j�� ��
coisa que n��o pode ser objeto de d��vida.
Penso que ainda a universidade �� em grande parte respon-
s��vel por esses tra��os do car��ter americano. Quando esses jo-
vens soldados saem numa miss��o qualquer, eles procedem sem-
pre com esp��rito de team. O que est�� em jogo �� a bandeira do
seu clube, a sua honra de esportistas, o seu orgulho masculino.
N��o precisam excitar-se com hinos e discursos bomb��sticos. Bas-
ta-lhes a id��ia de que v��o tomar parte numa competi����o, num
match. (Nisso eles se parecem muito com seus primos ingleses,
cujo comportamento na Primeira Guerra Mundial Andr�� Maurois
estudou com tanta finura e penetra����o em seu livro "Os Sil��ncios
do Cel. Bamble"). Estes "boys" sabem que vencer�� o team que
aliar ao ��mpeto uma verdadeira disciplina, e a capacidade de se-
guir um plano, blueprint ��� eis uma palavra importante para eles.
��, antes de mais nada, necess��rio obedecer ao capit��o do
team. Mas acontece que ��� diferente dos alem��es que v��em nos
chefes homens superiores a que obedecem cegamente e diante
dos quais se portam com fanatismo ou obje����o ��� o americano v��
no sargento, no capit��o, no coronel, no general um homem como
326
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
ele: o companheiro. N��o pertencemos todos a um pa��s de liber-
dade e igualdade? N��o descendemos todos de imigrantes? Mais
que isso: o soldado sabe que se jogar bem, poder�� galgar
posi����es e um dia botar tr��s estrelas em suas ombreiras.
Foi, pois, a escola prim��ria, o gin��sio, o col��gio e a uni-
versidade que ensinaram esses soldados a fazer jogo de conjunto, e jogo limpo.
O mesmo esp��rito se observa na frente interna. Cada tra-
balhador ��� perten��a ele a uma f��brica de muni����es, de jeeps,
de tanques, de canh��es ou de avi��es ��� recebe uma incumb��ncia
e procura cumpri-la com regularidade e "de acordo com as re-
gras do jogo". Se se trata de bater pregos durante sete horas
di��rias ele bate pregos desde a hora em que entra na f��brica
ou na oficina at�� a hora em que sai, e o fato de essa tarefa
ser ridiculamente mon��tona e ingl��ria n��o o preocupa. Porque
esse oper��rio tem em mente esta convic����o: "Bater pregos ��
necess��rio �� produ����o; �� parte dum trabalho complicado que s��
poder�� ser completado com a colabora����o de centenas de tra-
balhadores an��nimos, alguns dos quais fazem coisas aparente-
mente tolas e sem import��ncia como bater pregos todo o santo
dia". Ora, n��s latinos (usemos por conveni��ncia esta palavra t��o
imprecisa) em mat��ria de jogo somos antes de tudo tremendos
dubladores. Dificilmente passamos a bola ao companheiro; des-
prezamos o fogo de conjunto e estamos sempre prontos a dizer:
"Eu n��o sou homem pra fazer um trabalho desses." O indivi-
dualismo americano �� de natureza cooperativa. O nosso �� um
individualismo um pouco orgulhoso e exclusivista. Lembro-me
de que quando instalaram sinaleiras de tr��fego num movimen-
tad��ssimo cruzamento de ruas em Porto Alegre, alguns ga��chos
consideraram-se cerceados na sua liberdade pessoal s�� porque
n��o podiam atravessar a rua quando bem lhes desse na veneta!
Reconhe��o, entretanto, que quando se trata de improvisar, n��s
brasileiros talvez sejamos mais vivos e imaginosos que os ameri-
canos. Mas n��o ter�� sido o v��cio da improvisa����o um dos nossos
maiores males?
A preocupa����o americana com o show e o conforto, levava-
os a conduzir esta guerra como uma esp��cie de espet��culo e a
procurar diminuir-lhe o mais poss��vel as agruras. O equipa-
mento do soldado americano �� de primeira ordem. Belos, bem
concebidos, bem pintados e bem impressos s��o os cartazes que
fazem propaganda dos b��nus de guerra ou transmitem instru-
����es ao povo com rela����o �� espionagem e ��s provid��ncias em ca-
sos de bombardeio. Muitas das batalhas travadas pelo ex��rcito
americano na Europa e no Pac��fico t��m sido filmadas ��� e
algumas at�� em tecnicolor! ��� e esses filmes s��o usados n��o s��
A VOLTA DO GATO PRETO
327
no preparo de novos combatentes como tamb��m exibidos em
todos os cinemas do pa��s. Nos intervalos entre combates, n��s
acampamentos, nos hospitais organizam-se shows em que atores
e atrizes da Broadway e de Hollywood cantam, dan��am e repre-
sentam para divertir os soldados. Goma de mascar, cigarros da
melhor qualidade, sorvete e at�� peru no Dia de Gra��as ��� s��o
levados aos doughboys nas frentes mais long��nquas.
Um observador apressado concluiria, ap��s um exame super-
ficial da vida americana, que este povo tem tend��ncias militaris-
tas. Puro engano. A afei����o desta gente aos uniformes e ��s pa-
radas, a curiosidade com que eles olham, comentam e manejam
m��quinas e instrumentos de guerra s��o sentimentos e interesses
que nada t��m de belicosos. Tudo isso n��o passa duma atra����o
juvenil por essas engenhocas e uniformes em si mesmos ��� pelo
que eles possam oferecer como espet��culo, curiosidade ou obra
ao engenho humano. �� algo completamente desligado da
id��ia ou da inten����o de agredir, ferir, matar, destruir.
UM DIA DECISIVO.
7 de novembro. Realizaram-se hoje as elei����es
presidenciais. Tudo correu na maior ordem, e os sol-
dados americanos nas diversas frentes do Pac��fico, da
Europa e da ��frica votaram, est��o votando e ainda
votar��o nos pr��ximos dias, nos intervalos entre os
combates.
Esta noite Clara e Lu��s ��� que t��m um entusiasmo
espont��neo e quase delirante por Franklin Roosevelt ���
deixam de ouvir seus habituais e queridos programas
de radioteatro para acompanhar os resultados parciais
das elei����es. E quando verificam que seu candidato
vai na dianteira, come��am a dar pulos e vivas.
V��o para a cama excitados e s�� a muito custo con-
seguem dormir.
Fico a s��s no living-room, olhando para os giras-
s��is de Van Gogh e pensando naquele homem envelhe-
cido e cansado que a esta hora deve estar ao p�� do fogo
na Casa Branca, refletindo, lembrando, esperando, con-
fiando, sonhando...
328
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
Ter�� for��as para ir at�� o fim? E que acontecer�� se
ele morrer?
A m��scara vermelha do fauno sorri ali na parede
o seu sorriso sard��nico. Na casa vizinha um rel��gio
bate as doze badaladas da meia-noite. Penso no Car-
rilh��o do Campanile e de repente a sala se povoa dos
espectros de meus amigos da Universidade. E ent��o
vejo o meu pr��prio fantasma a caminhar na bruma
pelas ruas de San Francisco. ..
O ESPET��CULO CONTINUA
8 de novembro. J�� se sabe que a vit��ria de Roose-
velt est�� garantida, embora n��o se tenha ainda o re-
sultado total da vota����o entre os soldados. Dewey
passou um telegrama ao advers��rio reconhecendo sua
derrota eleitoral e dando sua solidariedade ao presi-
dente.
Esta elei����o foi um grande exemplo objetivo de
democracia. Um latino que tivesse observado de perto
o desenvolvimento da campanha de propaganda jul-
garia que este pa��s estava ��s portas duma nova guerra
civil. No entanto a vota����o se processou dentro da
maior ordem e dec��ncia. Hoje ningu��m mais fala nela.
Ningu��m parece guardar ressentimentos e os que vo-
taram em Dewey est��o de acordo em que chorar uma
causa perdida �� o mais tolo e in��til desperd��cio de
tempo e energia que se possa imaginar.
Apesar dos jornais de Hearst, de Wall Street e
de todas as for��as de rea����o, Roosevelt foi eleito. Os
votos dos sindicatos oper��rios desta vez pesaram na
balan��a em seu favor. O homem do povo, o homem
do campo, das f��bricas, das ruas n��o precisaram que os
grandes jornais viessem dizer-lhes qual entre os dois
candidatos era o melhor...
A V O L T A DO G A T O P R E T O
329
RETRATO DE JEAN
15 de novembro. Passo a tarde a conversar com
Jean Renoir, diretor de filmes em Fran��a, e agora pre-
so a Hollywood por causa da guerra e dum contrato
com a Twentieth Century-Fox. �� um homem de meia-
idade, pesado e corpulento, de pele rosada e olhos mui-
to azuis. Verifico que de seu famoso pai, o pintor
Auguste Renoir, s�� possui em casa um original, pe-
quena mancha a ��leo.
Conta-me que est�� dirigindo a vers��o cinemato-
gr��fica do livro Hold Autumn in your Hand, e que vai
amanh�� para Santa M��nica com sua equipe de fot��-
grafos especialmente para filmar nuvens.
��� Nuvens?
��� Sim. Preciso de nuvens fant��sticas para o fundo
duma cena.
Acrescenta que a hist��ria do filme �� em torno de
agricultores pobres do Texas, na sua luta contra a in-
temp��rie.
Jean Renoir, que �� casado com uma brasileira,
refere-se com simpatia ao Brasil. �� um homem de jeito
t��mido que evita falar de si mesmo. N��o sei por que,
desde que o vi fiquei vagamente a pensar num edif��-
cio de fachada escurecida pela p��tina, com uma
vasto escadaria na frente... Aos poucos outros por-
menores me v��m �� mente: nessa escadaria h�� dois le��es
de pedra... �� um dia de forte nevada. O lago con-
gelado. .. Chicago! O "Art Institute"! Sentado numa
poltrona, Jean Renoir tira do bolso um len��o. Agora
sei por que pensei no "Art Institute". �� porque h��
quase quatro anos encontrei em sua pinacoteca o retra-
to que Auguste Renoir pintou de seu filho Jean quando
menino. Sim, parece que ainda vejo o quadro. .. Com
seus tr��s ou quatro anos, metido numa camisola ver-
melha, os cabelos muito louros e longos, como de me-
nina, o pequeno Jean, de cabe��a baixa, olha para um
330
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
len��o que tem nas m��os pequeninas e rosadas. Lem-
bro-me perfeitamente da express��o de seu rosto; um
ar de choro, um jeito bisonho e recolhido. E agora
aqui na frente do original ainda descubro neste homem
de cinq��enta anos tra��os de menino; a mesma bolsa
desmanchada, a mesma express��o reconcentrada, os
mesmos olhos t��midos, dum azul vago e distante...
O PATRIOTA
22 de novembro. Meu admir��vel amigo Carl
Dentzel ��� um americano t��o exuberante, t��o emotivo e
t��o barulhento que at�� parece latino, me telefona pela
manh��.
��� Qual �� a sua opini��o sobre Villa-Lobos? ��� per-
gunta.
��� Villa-Lobos? Acho que �� um dos cinco maio-
res compositores da atualidade.
��� Quais s��o os outros quatro?
��� Ora, Carlos! Uma pergunta dessas ��s oito da
manh��!
��� Okay, okay! Pois Villa-Lobos chega hoje. Vem
visitar a cidade a convite do maestro Warner Jansen,
e sob o patroc��nio do Southern California Council.
(Dentzel �� o secret��rio do Council em Los An-
geles. )
��� Espl��ndido. Eu j�� havia lido nos j o r n a i s . . .
��� My friend, vou lhe pedir um f a v o r . . .
��� Diga l��.
��� Eu queria que voc�� fosse o int��rprete do maes-
tro durante a sua estada a q u i . . .
��� Voc�� sabe que o maestro �� um homem dif��cil,
explosivo, irritadi��o?
��� Sei, mas seja patriota, fa��a um sacrif��cio.
H�� uma pausa em que o hino nacional brasileiro
me soa na cabe��a, tocado por long��nquas bandas de
m��sica militares.
A VOLTA DO GATO PRETO
331
��� Est�� bem, Carlos. Pela P��tria, por voc��, pela
minha admira����o pela m��sica de V i l l a - L o b o s . . . fa-
rei o que me pede.
��� Wonderful! Agora, escute. O homem chega
hoje �� tardinha, e hoje mesmo �� noite o Occidental
College lhe conferir�� em sess��o solene um t��tulo ho-
noris causa. Vai ser uma festa muito bonita. Eu passo
por sua casa ��s 6 para levar voc�� em meu carro. Est��
bem?
��� Est��, Carlos.
Segue-se a s��rie de perguntas que Dentzel sempre
faz. Como est�� a senhora? E Clara? E Lu��s? That's
wonderful! E voc�� como vai? Splendid! Tem tido not��cia do Brasil? Fine! Fine!
Ponho o fone no lugar e fico refletindo. Minha
admira����o pela m��sica de Villa-Lobos data de h��
uns bons vinte e tr��s anos. Creio que nasceu quando
da minha cidade natal, adolescente, eu acompanhava
a Semana de Arte Moderna de S��o P a u l o . . . Vinte
anos mais tarde fui apresentado a Villa-Lobos, que
me pareceu um homem distra��do, desligante e ego-
c��ntrico.
BACHIANAS
S��o oito da noite e acho-me em companhia dum
grupo de professores togados, na frente do auditorium
do Occidental College. A situa����o �� angustiosa. At��
h�� poucos minutos o avi��o que traz Villa-Lobos e sua
companheira n��o havia ainda chegado. O teatro do
col��gio est�� completamente cheio de gente. At�� as es-
trelas sobre nossas cabe��as parecem ter um brilho in-
quieto. Carl Dentzel, o maestro Jansen e o represen-
tante do Prefeito de Los Angeles encontram-se no ae-
roporto. Para encher o tempo converso sobre "O Pa-
ra��so Perdido" com um professor de literatura inglesa
332
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
que por for��a me quer convencer das belezas do poema
de Milton, que considero um dos mais cacetes dos gran-
des livros da humanidade.
A noite est�� agrad��vel, perfumada e fresca. E n��o
deixa de ser curioso a gente ficar olhando homens ves-
tidos de togas pretas a conversar aos grupos num jar-
dim de ciprestes, sob o c��u noturno.
De repente ouvimos o som de muitas sereias,
como um gemido long��nquo que se vai fazendo cada
vez mais forte. Dentro de cinco minutos os holofotes
de seis motocicletas da pol��cia dardejam seus feixes
de luz por entre as ��rvores do parque. As sereias ces-
sam. Cessa tamb��m o ru��do explosivo dos motores das
motocicletas. E uma vasta limusine preta estaca a
pouca dist��ncia de onde estamos. Os homens togados
se agitam e acabam formando uma fila ��� na ordem em
que devem entrar no teatro. De dentro da limusine
saltam algumas pessoas. Avisto Carlos, que arrasta um
homem pelo bra��o. Reconhe��o nesse homem Villa-
Lobos. Seus cabelos voam, soprados pela brisa desta
noite acad��mica, seus olhos brilham e seu ar �� de ata-
rantamento. Atr��s dele, muito loura, sua senhora
caminha.
Carl puxa o maestro para o meu lado e apresenta:
��� Maestro, este �� o Ver��ssimo.
Villa-Lobos olha para mim com ar espantado,
aperta-me a m��o e diz, abstrato:
��� L u i s ? ��� E com ar mais ��ntimo: ��� Como vais,
Lu��s?
�� in��til explicar que n��o me chamo Luis. De
resto, que �� que h�� num nome? ��� como dizia Shakes-
peare.
Enquanto pergunto ao maestro (que n��o me es-
cuta) se fez boa viagem, algu��m veste nele um capelo
negro e mete-lhe na cabe��a a borla. Pedem me que
lhe indique o lugar que ele tem de ocupar na bicha.
Sigo-o como uma sombra. Estou feliz. Isto equivale
A V O L T A DO GATO P R E T O
333
a um novo par de cal��as amarelas. Agora eu me cha-
mo Lu��s e sou o Int��rprete.
A prociss��o p��e-se em movimento e entra no tea-
tro ao som duma marcha triunfal. Rompem os aplau-
sos. Subimos para o palco e nos instalamos em nossos
lugares. Uma orquestra toca o hino americano e de-
pois o brasileiro. Um coro, composto de dez alunas
do Occidental College, canta uma can����o de Villa-
Lobos. Depois o London String Quartet executa um
dos quartetos do maestro.
A cerim��nia da entrega do t��tulo �� tocante. Um
dos professores faz o elogio da obra do compositor
brasileiro, e este recebe o t��tulo das m��os de Mr. Byrd,
presidente do "Occidental". Desta vez os aplausos s��o
mais ruidosos ainda que antes.
Voltamos para nossas cadeiras. Werner Jansen,
cuja orquestra Villa-Lobos dirigir�� dentro de poucos
dias, caminha para o microfone e l�� um caloroso elo-
gio da obra do homenageado.
Villa-Lobos me cochicha ao ouvido:
��� Luis, pergunta ao Presidente se eu tenho de
falar.
Aproximo os l��bios do ouvido de Mr. Byrd e tra-
duzo-lhe a pergunta ��� pedindo �� Provid��ncia que a
resposta seja negativa. Mas o presidente sorri e diz:
��� Se ele quiser, pode falar. �� uma boa id��ia.
Trago a resposta para o maestro, que decide:
��� Pois diga que vou falar.
Fico frio. Inclino-me para Mr. Byrd e informo:
"O maestro vai falar". Quando Warner Jansen termi-
na a sua apologia, o presidente ergue-se e anuncia que
Villa-Lobos vai fazer um discurso.
��� Vamos embora, Lu��s. Voc�� vai traduzir.
Erguemo-nos e aproximamo-nos do microfone.
Quando os aplausos cessam, Villa-Lobos pigarreia;
imito-o, num eco. E o maestro principia contando de
sua viagem pelos c��us da Am��rica, de sua c h e g a d a . . .
334
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Vou traduzindo como posso. Depois duma pausa, mu-
dando de tom, o orador diz:
��� Sou um filho da Natureza...
Traduzo:
��� O Sr. Villa-Lobos declara que �� um filho
da Natureza.
��� Aprendi a can����o da liberdade com um p��ssa-
ro da selva brasileira...
Ponho essa frase em ingl��s e, mudando de tom,
volto a cabe��a para o maestro e lhe pergunto com ar
familiar, mas ainda em ingl��s.
��� Que p��ssaro �� esse, hein?
Na plat��ia explodem risinhos. Villa-Lobos co-
chicha ao meu ouvido. "De que �� que eles est��o
rindo?" Como ��nica resposta encolho os ombros de
leve, na certeza de que o microfone n��o poder�� am-
plificai' meu gesto.
��� Sim ��� continua o orador ��� foi na selva brasi-
leira que aprendi a can����o da liberdade!
Traduzo:
��� O Sr. Villa-Lobos diz que aprendeu a can-
����o da liberdade na selva brasileira... E eu acredito,
porque liberdade no Brasil hoje era dia... s�� mesmo
na selva...
O adendo se me escapou quase sem eu sentir.
Lembro-me de que neste mesmo palco, nesta mesma
sala, falei h�� poucas semanas para uns oitocentos es-
tudantes, aos quais contei da verdadeira situa����o pol��-
tica do Brasil.
O discurso prossegue sem novidade at�� o fim.
Depois de encerrada a cerim��nia o homenageado
�� levado para uma sala, onde fot��grafos de todos os
jornais de Los Angeles batem chapas. Nessa hora fujo,
vou para o jardim a assobiar confusamente um trecho
do quarteto que ouvi esta noite.
Villa-Lobos e sua senhora s��o conduzidos para
outro pavilh��o do col��gio, para uma sala onde ser��o
A VOLTA DO GATO PRETO
335
servidos frios e bebidas, e onde o maestro receber��
seus admiradores. S��o estes, gente de Los Angeles
e adjac��ncias. Vejo entre eles alguns atores e atrizes
de cinema, c��nsules, escritores, compositores, m��sicos,
jornalistas. A um canto do sal��o, cansado, aborrecido,
o maestro assina aut��grafos, responde a perguntas que
lhe fazem em franc��s e espanhol, e olha com seu ar
abstrato para a cara dos f��s, com o jeito de quem deseja
que tudo isto acabe o mais depressa poss��vel...
CHOROS
23 de novembro. Dez da manh��. Estamos no palco
do Philarmonic Auditorium. Na minha frente, sobre um
estrado, o maestro, sem casaco, de su��ter cor de cinza
e cal��as e polainas da mesma cor. Atr��s de mim, a
orquestra sinf��nica de Werner Jansen. Para al��m do
maestro, a vasta plat��ia, boiando na penumbra, com
suas poltronas vazias, o seu teto dourado, as suas co-
lunas, galerias e cortinas...
O ensaio come��a. Sinfonia n.�� 1 de Villa-Lobos:
"Ascens��o". Tudo vai muito bem. Eu me deixo em-
balar por uma longa frase de violino, dessas que produ-
zem mesmo em n��s um desejo de ascens��o. Estou pe-
netrando a estratosfera e continuo a subir com tal ��m-
peto, que espero em breve descobrir os mist��rios do
c��u. Mas de repente tombo com a velocidade do raio e
de novo me vejo no palco do auditorium. Villa-Lobos
bate freneticamente com a batuta na estante e grita
para mim:
��� Diga pra esses animais que eles t��m de dar essa
nota juntos!
Transmito aos instrumentos de corda a ordem do
maestro. O trecho �� repetido e Villa-Lobos, satisfeito,
exclama sorrindo:
��� ��a va! ��a va!
336
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
A sinfonia prossegue e de novo estou pairando no
ar. Mas novas interrup����es v��m. Num dado momento
o maestro larga a batuta, senta-se no estrado, fita os
olhos no ch��o e fica murmurando:
��� Isto n��o �� orquestra nem aqui nem em Cas-
cadura. S��o uns barbeiros. Estou arrependido de ter
vindo.
Mas ao cabo de alguns instantes torna a erguer-se,
e o ensaio recome��a. Terminada a sinfonia h�� um in-
tervalo de descanso. �� meio-dia e Carl Dentzel ���
sempre muito vermelho e agitado ��� aparece com mon-
t��es de sandu��ches e garrafas de coca-cola. O maes-
tro n��o tem fome. Eu tenho. O maestro n��o come.
Eu como.
Um novo drama se esbo��a. Para os seus "Choros
n.�� 6" Villa-Lobos mandou fazer nos est��dios da Uni-
versal uns tambores quadrados, que devem ficar na
ponta de hastes de madeira, �� maneira de estandartes.
Aproxima-se a hora do ensaio dos "Choros" e os ins-
trumentos n��o chegam. O maestro olha o rel��gio, im-
paciente, e come��a a resmungar coisas, e a andar
dum lado para outro, com um ar de alma perdida. Fi-
nalmente chegam os tambores. Villa-Lobos toma duma
maceta e fere com ela um dos instrumentos.
��� N��o foi isto que eu pedi! ��� vocifera. Bate de
novo, uma, duas, tr��s vezes. ��� Escutem s��... N��o foi
isto! Preciso dum som retumbante, vibrante. Isto est��
malfeito. N��o fizeram o que pedi!
Carl Dentzel, carinhoso, tenta consol��-lo numa
mistura de espanhol, franc��s e ingl��s. Mas o maestro
parece n��o querer deixar-se confortar em l��ngua nenhu-
ma. Senta-se de novo na plataforma e segura a cabe��a
com as m��os. Entra Werner Jansen e vem abra����-lo
e dizer-lhe palavras amigas.
��� Tenha paci��ncia. Isso se arranja. N��o h�� de
ser nada...
A V O L T A DO GATO P R E T O
337
Outra celebridade entra em cena. �� Alfred Fran-
kenstein, do "San Francisco Chronicle", considerado
um dos cr��ticos musicais de maior autoridade nesta
costa do Pac��fico. Quer conversar com Villa-Lobos
para escrever sobre ele um ensaio para seu jornal. Pede-
me que sirva de int��rprete nesse coloquio. Conseguimos
arrastar o maestro para o restaurante do Biltmore Hotel,
que fica do outro lado da rua.
O maestro detesta a cozinha americana. Depois
de muito estudar o menu, decide-se pela broiled chicken.
J�� descobriu que meu nome n��o �� Lu��s ��� o que muito
me entristeceu ��� e responde sem muito interesse ��s
perguntas do cr��ticov
Confesso que come��o a gostar desse homem fran-
co, que diz o que pensa e sente, e que parece n��o dar
a menor import��ncia ao que possam pensar ou dizer
dele.
"SALUDOS, AMIGOS!"
26 de novembro. Finalmente, o concerto! Os
jornais t��m andado cheios de Villa-Lobos. O audito-
rium est�� completamente lotado. E quando me vejo
instalado junto de Mariana na plat��ia, olho para a or-
questra de Werner Jansen com um certo sentimento
de orgulho, como se eu pudesse dizer ��� "Foi eu quem
ensaiou aquela charanga".
O Concerto ��� Sinfonia, os Choros e o Rudepoema
��� �� um sucesso absoluto. Os aplausos s��o prolongados
e entusi��sticos. E quando o espet��culo termina, o ca-
marim do maestro se enche de admiradores e admira-
doras, jornalistas e cr��ticos de m��sica. No meio desses
grupos vejo Igor Strawinski, o grande compositor
russo que recentemente declarou que o melhor meio
de um artista livrar-se de Hollywood �� vir morar em
Hollywood. Ele cumprimenta Villa-Lobos, que co-
338
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
nheceu em Paris h�� alguns anos, e com o qual mant��m
correspond��ncia.
�� noite no Women's Club oferecem um jantar ao
maestro, que, com sua senhora, fica sentado �� mesa
principal, junto do representante do Prefeito, de Raul
Bopp, e do vice-c��nsul do Brasil ��� Ot��vio Dias Car-
neiro, um homem inteligente e culto que realiza o pro-
d��gio de ler fil��sofos alem��es neste ambiente ensolarado
da Calif��rnia.
O representante do Mayor aproxima-se do micro-
fone e come��a a explicar a Villa-Lobos, atrav��s da
minha tradu����o, quem s��o as pessoas que aqui se acham
a homenage��-lo. Fulano de Tal, famoso pianista.
Beltrano, not��vel escritor. Sicrano, consagrado com-
positor . . .
Fumando o seu charuto, Villa-Lobos escuta com
indiferen��a. Est�� de t��o bom humor que quando lhe
traduzo um t��tulo ��� magnata do petr��leo, presidente
de banco, autor disto ou daquilo ��� ele murmura em por-
tugu��s: "E eu com isso?" 'N��o interessa!" Finalmente
anuncio a presen��a de Jack Cutting, representante de
Walt Disney, e acrescento:
��� O est��dio que recentemente produziu "Saludos,
Amigos!"
Com um risinho de garganta Villa-Lobos comenta
com pachorra:
��� Que por sinal �� uma boa droga!
MOMENTO MUSICAL
28 de novembro: Temos hoje o almo��o que a as-
socia����o dos compositores do cinema oferece a Villa-
Lobos, no Beverly Hills Hotel. Aqui est��o Jerome Kern,
autor de melodias que correm mundo, Nat Finston,
Joe Green e v��rios outros autores que o filme e o disco
popularizaram. Tenho a meu lado um senhor idoso, de
A V O L T A DO GATO P R E T O
339
��culos, de fisionomia pl��cida e simp��tica. Fico sur-
preendido por saber que se trata dum compositor cujo
nome li in��meros vezes nos programas de concertos
vocais no Brasil: Castelnuovo Tedesco.
Minha surpresa vem do fato de que eu o julgava
morto h�� muito tempo. �� um velhinho de ar triste.
Conta-me que comp��e acompanhamentos musicais para
um est��dio, e que detesta o esp��rito de Hollywood.
��� Mas que �� que se vai fazer? Veja como est��
a I t �� l i a . . . a Europa toda. Tenho uma casinha em
Beverly Hills onde vivo em paz com minha f a m �� l i a . . .
O almo��o decorre sem gra��a nem cordialidade.
Villa-Lobos est�� caceteado. Percebe-se que os outros
desejam livrar-se o quanto antes da homenagem. Dizem
reconhecer g��nio no compositor brasileiro, mas eu s��
queria saber quantos desses autores de foxes, valsas e
boogie-woogies compreendem e aceitam o enfant terri-
ble da m��sica.
Pergunto ao ouvido de Walter Wanger, que est��
�� minha esquerda:
��� Voc�� tamb��m comp��e m��sica?
Ele sorri e responde:
��� N��o. E voc��?
��� Tamb��m n��o, mas se este almo��o continuar
assim, vou acabar compondo uma marcha f��nebre.
Em breve tenho de exercer de novo minhas fun-
����es de int��rprete. Nat Finston j�� leu ��� a toda veloci-
dade e muito mal ��� o seu discurso em nome do Guild.
Villa-Lobos, com o charuto a fumegar-lhe entre os
dedos, levanta-se. Levanto-me tamb��m. E ficamos a
discursar a quatro m��os. . .
RUDEPOEMA
3O de novembro. Tenho andado por jantares e
festas como a sombra de Villa-Lobos. Nunca vi ho-
340
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
mem t��o franco e t��o rude. Cheguei �� conclus��o de que
como um menino, como um verdadeiro child of nature,
ele simplesmente diz o que pensa e sente. N��o con-
cordo ��� agora que o conhe��o melhor ��� que ele seja,
como muitos querem, simplesmente um cabotino. E l e
sabe o valor que tem, e fugindo �� falsa mod��stia,
proclama-o aos quatro ventos. N��o recalca nenhum
desejo, nenhum impulso natural. Seja como for, isso ��
um ato de coragem.
Outro tra��o simp��tico da psicologia de Villa-Lobos
�� que ele adora os filmes de cow-boys, os palha��os de
circo e as "com��dias de pastel��o". A "Motion Pictures
Society for the Am��ricas" ofereceu ao casal Villa-Lobos
um jantar no Earl-Carroll's, o mais pomposo cabar��
de Hollywood, e o maestro assistiu impass��vel e abor-
recido ao espet��culo, at�� o momento em que apareceu
o clow da noite ��� Pinkv Lee, um sujeito fisicamente
parecid��ssimo com Proc��pio Ferreira. Durante todo
o ato n��o olhei para o palco, mas sim para Villa-Lobos.
�� que esse m��sico t��o requintado e intelectual parecia
uma crian��a sentada nas arquibancadas dum circo, co-
mendo amendoim e rindo ��s gargalhadas das piruetas
do palha��o. E se alguma d��vida eu tivesse sobre a
personalidade de Villa-Lobos como criatura humana
ela teria desaparecido naquele momento.
S��o quatro da tarde e estou com Mariana e um
nequeno grupo de brasileiros numa vasta mans��o de
Bel Air, bairro residencial que fica para al��m de B e -
verly Hills e onde vivem os mais ricos artistas, produ-
cers e diretores de cinema. �� uma maravilhosa cidade
no meio dum bosque. As sombras aqui s��o verdes e
frias, e o ar est�� cheio de perfumes agrestes. O sil��n-
cio �� t��o grande que chega a lembrar o sil��ncio lugar-
comum da floresta virgem embora seia um absurdo
associar a Hollvwood a id��ia de virgindade.
A casa onde nos encontramos �� a de Mr. Sthal,
diretor e producer. Est��o aqui reunidos hoje os s��cios
dum clube de amigos da m��sica, e vejo entre os pre-
A VOLTA DO GATO PRETO
341
sentes o compositor George Antheil, e mais uma in-
teressant��ssima cole����o de belas mulheres muito bem
vestidas, entre as quais se acha uma starlet da Metro.
Convidaram-me para fazer uma confer��ncia sobre o
Brasil, coisa que me �� n��o s�� f��cil como tamb��m agra
d��vel, e que eu fa��o em tom de palestra, sentado numa
poltrona, ao p�� dum piano de cauda, numa sala com
pesadas cortinas de veludo verde-musgo, m��veis Chip-
pendale e estatuetas antigas. Mas o que me impressio-
na realmente s��o essas estatuetas grandes que se movem,
que respiram, donas desses olhos azuis, castanhos,
verdes, cor de malva que neste momento est��o vol-
tados para o conferencista. (V�� para o diabo, An��lio!
Retire-se, dona Eufr��sia!)
Conto maravilhas do Brasil, e sinto que dentro de
cada uma das pessoas que aqui se encontram mora
um turista.
Mas no fim de contas esta festa foi organizada
especialmente para Villa-Lobos, que ainda n��o chegou.
Olho para o rel��gio de ouro �� Lu��s XV que est�� dentro
duma redoma de vidro sobre a lareira. Parado! Ergo
o pulso esquerdo �� altura dos olhos. Cinco e meia.
E o maestro n��o aparece. ..
Ofere��o-me para uma sabatina. Chovem per-
guntas. Em sua maioria s��o tolas: perguntas de gen-
te feliz. O tempo passa. Finalmente noto uma co-
mo����o �� entrada da mans��o dos Sthal "�� e l e . . . " ���
murmura-se. �� ele". E Villa-Lobos irrompe na sala,
sob aplausos. Caminha para mim, aperta-me a m��o e
pergunta, j�� meio irritado.
��� Que neg��cio �� este?
��� Fique firme. E fa��a o favor de sentar-se
aqui...
Ele senta-se na minha poltrona e eu me empoleiro
na guarda da mesma. E quando se faz sil��ncio ���
quando todas essas mulheres bem tratadas e perfu-
madas, cujos custosos casac��es de pele repousam no
342
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
guarda-roupa da entrada, tomam posi����o, umas no
fundo de fofas poltronas, outras sentadas no ch��o ���
uma loura balzaquiana, com sua voz de clarineta,
come��a a falar, dirigindo-se a mim:
��� Fa��a o favor, meu amigo, diga ao maestro que
este clube tem recebido em seus sal��es celebridades
como Toscanini, Stravinsky, Stokowsky, Rachmaninoff
e outros.
Fa��o a tradu����o para Villa-Lobos, que resmunga,
azedo:
��� N��o interessa... n��o interessa. . .
��� Que foi que ele disse? ��� indaga a loura.
��� A h ! . . . ele disse: espl��ndido... espl��ndido...
A balzaquiana sorri e continua:
��� Diga tamb��m ao Sr. Villa-Lobos que o fato de
ele n��o falar ingl��s n��o tem a menor import��ncia.
N��s o admiramos tanto, que s�� de ficar aqui a olhar
para ele sentimo-nos felizes. . .
Transmito estas palavras ao maestro, que exclama:
��� Diga a ela que n��o sou papagaio nem palha��o
de circo!
Volto-me para o audit��rio e traduzo:
��� O maestro declara que se sente felic��ssimo por
estar aqui h o j e . . .
H�� um murm��rio de contentamento no sal��o. Se-
gue-se uma sabatina, que me d�� um grande trabalho.
As respostas de Villa-Lobos s��o ��speras, contundentes
e quase sempre paradoxais.
Por fim o maestro decide tocar uma composi����o
sua. Deixa a cadeira e caminha para o piano. Senta-
se, tira um acorde, faz uma careta e volta-se para mim:
��� Diga pra dona da casa que o piano dela est��
desafinado. Um verdadeiro realejo!
Depois que o maestro termina de tocar somos
levados para outra sala, onde sobre longa mesa vejo
uma profus��o de pratos com os mais variados tipos de
A VOLTA DO GATO PRETO
343
sandu��ches, empadas e canap��s. As conversas enchem
o ar perfumado e morno. Formam-se os grupos. F a -
zem-se apresenta����es. Combinam-se encontros, jan-
tares: trocam-se amabilidades e n��meros de telefone.
Quando procuro o maestro e sua senhora, infor-
mam-me que eles j�� se retiraram.
RELIGI��ES
Fernanda: Voc�� me pede que lhe fale das religi��es dos
Estados Unidos, e eu acho melhor fazer isso num di��logo em
que procurarei dividir-me em dois. No fim de contas todos
n��s precisamos do nosso Dr. Watson, e quando isso n��o seja
para outra coisa mais s��ria, ser�� pelo menos para que esse
tolo imagin��rio fa��a perguntas acacianas a fim de provocar
nossas disserta����es sublimes ou eruditas. Suponhamos que meu
interlocutor se chame Tobias, e vamos ao di��logo:
Tobias ��� Voc�� afirmou o outro dia que os americanos, ena-
morados das m��quinas, fogem dos problemas que n��o podem
ser resolvidos por meio de aparelhos mec��nicos. Muito bem.
Como explica, ent��o, a exist��ncia de tantas seitas religiosas nes-
te pa��s? Melhor ainda: a que atribui a preocupa����o religiosa
dos americanos?
Eu ��� Parece-me que o problema da alma e o problema
de Deus perderam neste pa��s a sua qualidade metaf��sica para
se transformarem de certo modo em problemas quase t��o pr��-
ticos e objetivos como o da irriga����o do sul da Calif��rnia e do
combate �� pelagra. No fundo, religi��o para esta gente �� um
tipo de gadget, de engenhoca. Uma esp��cie de "m��quina de
ir para o c��u."
T. ��� Mas isso �� caricatura!
E. ��� De acordo. Mas caricatura n��o exclui parecen��a. Ela
tem sempre sua dose de verdade. De resto, esta terra ama a cari-
catura. N��o sou um ensa��sta nem um soci��logo e muito menos
um homem de ci��ncia. �� ainda com os instrumentos de fic����o
que estou procurando examinar esse problema da realidade.
T. ��� A��as eu gostaria que voc�� me explicasse seu ponto
de vista, embora n��o me sinta nem um pouco inclinado a con-
cordar com ele.
E. ��� Olhe. As criaturas humanas em geral sentem-se em
maior ou menor grau inclinados para o mist��rio, a cabala, o
344
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
ocultismo. N��o direi que os americanos fujam �� regra. O que
eles gastam anualmente consultando "swamis", videntes, car-
tomantes, �� simplesmente fabuloso, segundo informam as es-
tat��sticas. Isso revela uma inclina����o juvenil: mistura de curio-
sidade quanto ao futuro, simplicidade de esp��rito e gosto pelo
mist��rio. Mas por outro lado os americanos s��o extrovertidos,
objetivos, arejados e pr��ticos de sorte que querem ver o pro-
blema da "outra vida" posto sobre bases deste mundo. Enfim,
seu esp��rito �� por assim dizer, a nega����o do misticismo. Estas
criaturas podem gritar, pular, ficar num entusiasmo delirante
diante duma luta de box, numa partida de futebol ou num
concerto sinf��nico, mas s��o em geral incapazes dum senti-
mento de verdadeiro ��xtase religioso. Voc�� n��o conhece nenhum
santo americano, conhece?
T. ��� N��o. Mas como explica voc�� a exist��ncia dessa seita de
fan��ticos que pegam cobras venenosas, p��em-nas na cabe��a, en-
rolam-nas no pesco��o?
E. ��� Trata-se duma psicose local, duma minoria no meio
destes 130 milh��es de almas.
T. ��� E como explica a atitude desses milhares de america-
nos que fazem parte da seita chamada "O Evangelho dos Quatro
Costados" e acreditam em Aim��e Mac Pherson, a sacerdotisa que
declama dramaticamente os serm��es, aparecendo como uma mis-
tura de Bertha Singerman, Santa Maria Egipc��aca e Greta Garbo?
E. ��� Isso �� ainda o resultado do esp��rito juvenil do ameri-
cano, de sua curiosidade e inclina����o para o ex��tico e para o es-
petacular. �� ainda a confirma����o de minha tese de que para
muitos habitantes deste pa��s, mesmo que eles n��o saibam disso,
religi��o �� uma esp��cie de "m��quina de ir para o c��u".
T. ��� Voc�� ainda n��o explicou sua absurda teoria.
E. ��� O problema do tempo �� muito s��rio num pa��s que des-
cobriu tantas formas de divertimentos, tantas atividades, e que
n��o encontra tempo suficiente para gozar desses divertimentos
e exercer essas atividades. �� preciso inventar coisas que simpli-
fiquem a vida e portanto espichem o tempo. Essas coisas s��o
m��quinas e f��rmulas. Tome como exemplo a m��quina de la-
var roupa. Voc�� compra uma dessas engenhocas, pega o livro
que traz as instru����es para o seu manejo, coloca a roupa suja
no lugar indicado, aperta no bot��o, tudo de acordo com as
recomenda����es do livrete, e a m��quina come��a a funcionar.
Voc�� pode ir tratar doutra coisa, na certeza de que no momento
devido a roupa sair�� l�� do outro lado, alva, limpa, imaculada,
numa economia de tempo, esfor��o e preocupa����o.
T. ��� Mas que �� que isso tem a ver com as religi��es?
A VOLTA DO GATO PRETO
345
E. ��� Com o devido respeito que as religi��es e os religiosos
merecem, direi que para o esp��rito pr��tico dos americanos reli-
gi��o �� em ��ltima an��lise uma m��quina de lavar almas. Com-
plicada, n��o h�� d��vida; s��ria, sim senhor, mas m��quina. No caso
dos protestantes a B��blia �� o livro que cont��m as instru����es sobre
como usar a m��quina que leva ao c��u. Ora, o sucesso de certas
religi��es novas como a de Aim��e Mac Pherson ��� que n��o sei se
ser�� uma iluminada, uma chantagista ou ainda uma estranha
combina����o de ambas as coisas ��� nada mais �� que a atra����o da
m��quina nova. Babbitt tem hoje um Chevrolet de 1940 mas est��
ansioso por comprar o modelo de 1941 que traz simplifica����es
pr��ticas... Amanh�� Babbitt comprar��, em vez de um auto-
m��vel, um avi��o ou um helic��ptero. Esta gente americana ��
doida por novidades, principalmente as mec��nicas.
T. ��� De sorte que voc�� acha que religi��es como a do "Four
Square Gospel" e outras seitas modernas oferecem simplifica-
����es. ..
E. ��� Exatamente. �� a m��quina de manejo mais simples.
A novidade.
T. ��� E voc�� tamb��m n��o estar�� simplificando demais o
problema?
E. ��� Claro que estou, homem! E esta n��o �� a terra da
simplifica����o?
T. ��� ��! E n��o acha que tanta simplifica����o acabou criando
uma complica����o dos diabos?
E. ��� Acho. E por falar em diabo voc�� n��o observou que,
como um vest��gio do puritanismo, palavras como diabo, dana����o, inferno s��o aqui consideradas blasf��mia e por isso pessoas verda-
deiramente religiosas n��o as pronunciam nunca? E a coisa pas-
sou do terreno religioso para o do bom-tom. Um cavalheiro ou
dama de "boas maneiras" n��o usa essas palavras na conversa����o.
T. ��� E a todas essas... onde coloca voc�� a f��?
E. ��� Est�� claro que este �� um pa��s de homens n��o s�� de
f�� em Deus como de boa-f��. Esta afirma����o n��o destr��i minha
teoria caricatural. E h�� uma coisa que me parece certa...
T. - Diga l��...
E. ��� Os americanos n��o t��m tend��ncias m��sticas e preferem
trazer os problemas religiosos para este mundo.
T. ��� E como explica isso?
E. ��� A fonte de tudo est�� no protestantismo, que �� uma re-
ligi��o de car��ter pr��tico. Dum modo geral os pastores protes-
tantes tratam mais de servir que de doutrinar. Para eles, a pr��-
dica �� mais importante que os sacramentos. Empenham-se
em campanhas tendentes a reformar os pecadores, a combater
a delinq����ncia juvenil, o crime, a prostitui����o, enfim: todas as
346
OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO
formas de pecado. As Associa����es Crist��s de Mo��os ��� que s��o
em ��ltima an��lise esp��cies de c��us terrestres e inocentemente
mundanos onde os mo��os encontram oportunidade para se educa-
rem, gozarem de boa companhia e se entregarem a divertimentos
sadios ��� s��o uma cria����o protestante, como o �� tamb��m o Ex��r-
cito da Salva����o, que teve sua origem na Inglaterra.
T. ��� Os Estados Unidos, portanto, s��o um pais protes-
tante. . .
E. ��� Poderemos afirmar isso? N��o resta d��vida que id��ias
protestantes t��m dirigido este pa��s. Mas a Igreja Cat��lica ��
muito importante aqui. Todas as denomina����es protestantes
reunidas perfazem um total de cerca de 33 milh��es de crentes
ao passo que s�� a Igreja Cat��lica tem quase 23 milh��es de
membros, e nos ��ltimos tempos tem crescido muito, ganhando
segundo suas pr��prias estat��sticas, cerca de 500 novos adeptos
por m��s. Talvez se possa afirmar que a atmosfera americana
�� protestante, no sentido de que mesmo as pessoas que n��o
pertencem a nenhuma congrega����o evang��lica e nunca v��o ��
igreja procedem de acordo com o esp��rito protestante...
T. ��� E que vem a ser esse esp��rito?
E. ��� �� o do homem que l�� a B��blia e trata de seguir-lhe
os mandamentos. O do homem que na vida procura portar-se
como o Bom Samaritano, evitar a blasf��mia e fazer boas obras.
T. ��� Voc�� afirmou que a Igreja Cat��lica �� importante nos
Estados Unidos. Refere-se �� import��ncia apenas num��rica?
E. ��� N��o. Trata-se de import��ncia que j�� se traduz em
influ��ncia social e pol��tica. Afirma-se que Roosevelt n��o pres-
tou apoio decidido aos republicanos espanh��is na sua luta con-
tra Franco para n��o desgostar os cat��licos americanos. Obser-
ve que Hollywood est�� filmando hist��rias cujos her��is s��o sa-
cerdotes cat��licos. Os protestantes j�� come��aram a ficar en-
ciumados. Ora, �� sabido que os diretores dos est��dios s��o em
sua maioria judeus, protestantes ou homens sem religi��o, e
mesmo assim t��m procurado cortejar o p��blico cat��lico. Est��
claro que nenhuma empresa comercial perderia tempo nem
arriscaria dinheiro para agradar um grupo que n��o tivesse in-
flu��ncia social ou express��o pelo menos num��rica...
T. ��� At�� que ponto foi o catolicismo influenciado pela
maneira de ser americana?
E. ��� O catolicismo nos Estados Unidos sofreu mudamente
a influ��ncia (na superf��cie, �� claro) do modo de vida americano.
Seus sacerdotes n��o usam batina na rua e suas igrejas s��o menos
dram��ticas e sombrias que as igrejas dos pa��ses latinos. Como
o catolicismo neste pa��s �� uma minoria, e como em tempos pas-
sados chegou a sofrer com a intoler��ncia protestante, a tend��n-
A VOLTA DO GATO PRETO
347
cia dos cat��licos aqui �� para a toler��ncia e para a colabora����o
com o protestantismo e o juda��smo. Nestes tempos de guerra
tenho visto comit��s inter-religiosos formados de sacerdotes ca-
t��licos, pastores protestantes e rabinos judeus...
T. ��� H�� realmente liberdade de culto nos Estados Unidos?
E. ��� A mais completa.
T. ��� Como s��o em geral os padres cat��licos neste pa��s?
E. ��� Americanos... isto ��, homens joviais que fazem espor-
te, amam a vida ao ar livre, sabem rir, bebem o seu u��sque, gos-
tam de ouvir e contar anedotas... E por falar nisso ou��a a se-
guinte hist��ria: Quando passei pela cidade de San Antonio, em
Texas, numa excurs��o de confer��ncias, tive a oportunidade de
jantar uma noite com seis padres cat��licos no campus dum col��-
gio de religiosas. Pois bem. A mesa era farta, o vinho de pri-
meira ordem e a companhia amabil��ssima. Falamos de tudo,
menos religi��o. E ao fim do jantar um monsenhor, velho de voz
rouca, convidou-nos para subir a seu quarto, onde continuamos
a boa prosa. Comodamente sentados em fofas poltronas, os seis
padres come��aram a fumar com vis��vel del��cia. De todo o grupo
eu era o ��nico que n��o fumava. Num dado momento algu��m
falou em Harry Truman, que naquele dia prestava juramento ao
tomar posse do cargo de Presidente. Acendendo com toda a
pachorra seu cachimbo, o mais jovem dos padres observou:
��� Disseram-me que o novo Presidente n��o bebe nem fu-
ma. ..
Houve um curto sil��ncio ao cabo do qual, sem tirar o charuto
da boca, o espl��ndido monsenhor resmungou:
��� Aposto como Truman �� um desses malditos puritanos!
T. ��� Que s��o os negros em mat��ria de religi��o?
E. ��� Batistas, em sua maioria. Mas alguns entregam-se
�� macumba e muitos s��o adeptos do Pai Divino, um negro que
mora em Nova York, anda de Rolls Royce, e mant��m os "c��us",
casas onde d�� de comer a seus fi��is, que se chamam "anjos".
T. ��� Onde fica a maior concentra����o de protestantes deste
pa��s?
E. ��� Nos estados do Sul.
T. ��� E h�� aqui estados de tradi����o nitidamente cat��lica?
E. ��� Sim. Maryland, Calif��rnia, Novo M��xico e Louisiana.
T. ��� De sorte que, resumindo, o esp��rito protestante predo-
mina na vida americana...
E. ��� Parece-me que sim. Para usar novamente da t��cnica
de caricatura, direi que protestantismo �� catolicismo desidratado.
E a Igreja de Roma simplificada e trazida para a terra
ou, antes, para o n��vel de Babbitt, o homem pr��tico que deseja
ver as coisas claras e os resultados imediatos. Em suma: o bom
348
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Babbitt quer colher dividendos concretos e materiais de seus
"neg��cios" espirituais.
T. ��� E as outras religi��es?
E. ��� S��o in��meras. H�� os m��rmons, cujo n��mero n��o vai
muito alem de 600 000. A eles se deve o desdobramento e
a coloniza����o do estado de Utah e a funda����o dessa interessante
Salt Lake City. A poligamia foi abolida entre os m��rmons, que
s��o gente piedosa, muito honesta e de costumes severos. H��
ainda os adeptos da "Ci��ncia Crist��", que �� uma igreja baseada
nos ensinamentos de Mary Baker Eddy. Afirmava esta que
Deus �� Pessoa no sentido infinito e n��o no sentido humano
limitado. Os membros dessa igreja acreditam em Deus, em
Jesus Cristo e no Esp��rito Santo. N��o recorrem nunca a m��-
dicos, pois para eles s�� Cristo tem o poder de curar. Boston ��
a Roma dessa igreja, que conta com milhares de membros, e
cujo jornal "The Christian Science Monitor" �� considerado um
dos di��rios mais s��rios e autorizados dos Estados Unidos.
T. ��� E que me diz dos outros milh��es de americanos n��o
filiados a nenhuma igreja?
E. ��� Em geral como j�� lhe disse antes, eles procedem
mais ou menos crist��mente, porque os ensinamentos b��blicos
como que andam no ar. E porque os her��is da Hist��ria ameri-
cana eram homens que liam e seguiam a B��blia, e lendo a vida
desses vultos os leitores naturalmente absorvem um pouco de
seu esp��rito e de sua f��. Mas n��o me parece que o problema
espiritual dos Estados Unidos deva ser estudado �� luz dessa
divis��o do pa��s em dois campos: o cat��lico e o protestante.
Seria mais sensato dividi-lo assim: mundo crist��o e mundo semi-
pag��o. Nas grandes metr��poles como Nova York e Chicago
tende a formar-se uma esp��cie de filosofia da vida c��nica e
amoral, cujos objetivos s��o imediatos e puramente materiais.
N��s vimos como o protestantismo e o catolicismo, ambos sadia-
mente crist��os, nunca entram propriamente em conflito com o
conforto e a felicidade terrenas, n��o se op��em ao autom��vel,
ao avi��o, ao refrigerador, ao r��dio, ��s vitaminas, e ��s m��quinas
em geral, embora continuem prevenindo seus fi��is contra a
preocupa����o de amontoar tesouros terrenais. Mas o esp��rito
pag��o tende a adorar o Progresso quase como um fim e n��o
como um meio. E na sua ��nsia de sucesso, de lucro e de prazer
ele p��e em perigo muitos dos ideais americanos nitidamente
crist��os. �� por isso que protestantes, cat��licos e judeus n��o
raro se unem em suas cruzadas contra o v��cio, a cobi��a e o
ate��smo.
A VOLTA DO GATO PRETO
349
T. ��� Para terminar, voc�� acredita mesmo que os america-
nos considerem a religi��o como uma "m��quina de ir para o
c��u?"
E. - N��o.
E aqui, Fernanda, terminou o nosso di��logo. Vamos guar-
dar Tobias, pois sinto que esse belo mo��o ainda me mi servir
para outros di��logos.
GARY COOPER E CAM��ES
12 de dezembro. Le Roy Johnston, agente de pu-
blicidade da Internacional Films, me pede que escre-
va algumas palavras em portugu��s para Gary Cooper
pronunciar diante da c��mara, num trailer destinado
a anunciar no Brasil o seu filme "Casanova Brown".
Convida-me tamb��m a ir ao est��dio, a fim de ensinar
Mr. Cooper a ler o seu "discurso".
Estou agora num dos sound stages da Internacio-
nal. Chove torrencialmente e Gary Cooper ainda n��o
chegou. Tudo aqui dentro lembra uma caixa de tea-
tro: cen��rios, cortinas, refletores, bastidores, cabos...
Finalmente entra o astro. Tira as galochas e a
capa de borracha. Est�� metido numa roupa de "tweed
cor de cinza, impecavelmente cortada e tem na cabe-
��a um vasto chap��u branco de cow-boy...
Gary Cooper �� um homem calad��o de ar t��mido,
e que parece nunca saber onde botar as m��os e co-
mo acomodar as longas pernas. No fundo n��o passa
dum vaqueiro. Adora a vida do campo, e ��s vezes sai
a ca��ar em companhia do escritor Ernest Hemingway
ou de Clark Gable. O segredo de seu sucesso e da
sua perman��ncia em cartaz est�� num misterioso' tra-
��o de simpatia de seu rosto, na sua voz ou no seu
jeito, pois n��o me posso convencer de que deva me-
recer o t��tulo de grande ator quem como Gary Cooper
tem apenas duas ou tr��s express��es fision��micas,
que usa de acordo com a cena.
350
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Enquanto, no camarim, o maquilador lhe passa
no rosto uma camada de pintura cor de tijolo, leio em
voz alta o discurso em portugu��s.
��� Que l��ngua! ��� exclama Gary Cooper. ��� O es-
panhol n��o me parece t��o dif��cil...
Repito a leitura, pronunciando lentamente as pa-
lavras, enquanto ele as figura num peda��o de papel,
da melhor maneira poss��vel. Depois disso escrevo to-
das as palavras num quadro-negro, seguindo a grafia
figurada de Gary Cooper, e finalmente, ao cabo de
v��rios ensaios, tudo fica pronto para a filmagem.
Gary Cooper sai de tr��s duma cortina vermelha
e caminha at�� o primeiro plano. Sorri para o p��bli-
co e come��a a falar... Na terceira linha, por��m, mu-
da de tom, faz um gesto de impaci��ncia e diz:
��� Nuts! Cortem... Errei tudo.
Mas continua a sorrir, sempre com calma, como
se no fundo se estivesse divertindo com a coisa.
Novo ensaio. E a filmagem recome��a. Enquanto
o filme rola, Gary Cooper l�� disfar��adamente o que
est�� escrito na pedra. Tudo vai muito bem at�� a
quarta linha, quando:
��� Christ! ��� exclama ele. ��� Que l��ngua complica-
da!
E assim as horas passam. E enquanto l�� fora a
chuva cai incessantemente, fico eu acocorado debaixo
da c��mara, olhando para esse sujeito grandalh��o, de-
sajeitado mas simp��tico, que luta com as palavras da
bela l��ngua em que Cam��es escreveu "os Lus��adas",
mas que para esse cow-boy de Montana n��o passa dum
hell of a language uma l��ngua dos diabos.
"QUEM TE DEU TAMANHO BICO?"
15 de janeiro, 1945. A diretora da Biblioteca P��-
blica de Visalia me escreve, convidando-me a ir a
essa cidade realizar uma confer��ncia. A signat��ria da
A VOLTA DO GATO PRETO
351
carta esclarece que estava presente �� conven����o das
bibliotecas da Calif��rnia no dia em que falei sobre
"Books in Brasil", e deseja que eu repita essa palestra
na sua cidade. Mas. .. onde fica Visalia, que eles
aqui pronunciam "Vaiss��ilha?" Informam-me que ��
a sede do condado de Tulare e est�� a meio caminho
entre Los Angeles e San Francisco.
O dia ainda n��o clareou e aqui vou de mala na
m��o, rumo do Pico Boulevard, onde apanho um ��ni-
bus azul, do qual me transfiro, dez minutos depois,
para um bonde amarelo que, ao cabo de quarenta mi-
nutos, me deixa na esquina da Broadway com a Rua
9, onde entro num outro bonde que me leva em quin-
ze minutos �� esta����o. Meu lugar no "San Joaquin
Daylight" est�� reservado faz j�� alguns dias. Portan-
to n��o levo pressa nem d��vidas.
Chego a Tulare ao meio-dia. Avisaram-me que
algu��m aqui me espera para me conduzir a Visalia
em seu carro. Esse algu��m acontece ser uma senhora
idosa e morena, esposa do juiz de direito da cidade.
A meio caminho o auto engui��a, bem na frente duma
casa de madeira, cujo alpendre est�� encimado por
uma tabuleta com este nome ��� Tony Pimentel. L�� de
dentro sai um homem grande, gordo e grisalho, de
bochechas coradas e com um toco de cigarro colado
aos l��bios muito vermelhos. Est�� de avental branco
e sua pan��a oscila ao ritmo lerdo de seus passos.
��� Hello, Mr. Pimentel! ��� diz a minha compa-
nheira.
��� Como vai o Sr. Juiz? ��� pergunta o homem
gordo.
Por causa da palavra Juiz fico a repetir mental-
mente os absurdos versos dum jogo infantil:
Bico-bico surubico
Quem te deu tamanho bico?
Foi a velha chocarreira
352
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Que andou pela ribeira
A procura de ovos de perdiz
Pro filho do senhor Ju-iz
Mr. Pimentel, que lembra esses estalajadeiros dos
romances de capa e espada, vem muito obsequioso
oferecer seus servi��os. A senhora do juiz pergunta:
��� Posso usar seu telefone? Vou pedir a meu
marido que mande um carro para nos rebocar at�� Vi-
salia.
E enquanto a simp��tica senhora entra no arma-
z��m, fico a conversar com meu estalajadeiro.
��� Voc�� �� portugu��s? ��� pergunto.
��� Yes.
��� N��o fala mais sua l��ngua?
��� Not much.
��� Pois eu sou brasileiro.
��� Fine.
Pimentel debru��a-se �� janela do autom��vel. Seus
olhinhos negros brilham. Seus dentes escuros, mi��dos
e parelhos, apertam o toco de cigarro. De repente,
com um riso p��caro a alargar-lhe as bochechas cora-
das, ele pergunta em portugu��s:
��� Que fazes aqui, rapaz?
E como que excitado pelo simples fato de ter fa-
lado portugu��s, come��a a rir convulsivamente. Conta-
me a seguir que veio de Portugal ainda crian��a e que
este condado de Tulare est�� cheio de portugueses
propriet��rios de tambos, granjas e f��bricas de queijo.
��� Eu ia ser padre ��� explica Pimentel. ��� Cheguei
a cursar um semin��rio.
��� E por que n��o se ordenou?
Pimentel pisca o olho e confessa:
��� �� que eu gostava demais das boas coisas da
v i d a . . .
Com a volta da esposa do juiz, a conversa passa
a ser feita em ingl��s e com um pouco mais de digni-
dade.
A VOLTA DO GATO PRETO
353
Vinte minutos depois entramos a reboque na ci-
dade de Visalia, cuja popula����o n��o vai al��m de quin-
ze mil almas, e que, para n��o fugir �� regra, tem a s��a
Rua Principal, onde ficam os cinemas, hot��is, drug-
stores, bombas de gasolina e filiais de bancos.
Hospedo-me num hotel tranq��ilo, igual a cem
outros onde j�� estive. O condado de Tulare passa por
ser um dos distritos agr��colas mais ricos do mundo.
Seus queijos e conservas s��o renomados, e o algod��o,
as nozes, as uvas e o vinho acham-se entre os princi-
pais produtos desta privilegiada regi��o do vale de San
Joaquim.
�� tardinha saio a andar pelas ruas, a olhar faces
e vitrinas. No fundo dum caf�� alguns velhotes, com
chap��us de cow-boy na cabe��a, fumam e jogam p��-
quer ao redor duma mesa coberta de pano verde, e
por cima da qual pende uma l��mpada el��trica com
um quebra-luz c��nico. Rapazes jogam bilhar num sa-
l��o. Sentados junto dos Dalc��es dos restaurantes e
caf��s, homens e mulheres comem. Mocinhas passeiam
pelas cal��adas... E uma fresca paz, uma doce paz
parece descer das grandes montanhas e do p��lido c��u
onde come��am a apontar as primeiras estrelas. (O
diabo �� que eu tenho a impress��o de que tudo j�� acon-
teceu antes...)
Entro num cinema para ver uma fita de "Far-
West". O p��blico faz um barulho infernal, torce, gri-
ta, ri, aplaude, d�� vaias. O menino que est�� sentado
junto de mim agita-se de tal modo que a todo o ins-
tante est�� a dar-me violentas cotoveladas. Resolvo
ent��o participar do entusiasmo geral, entro no coro
dos bravos e dos fiaus, e passo a me interessar pela
sorte do mocinho e da mocinha, e a odiar com todas
as minhas entranhas o bandido. Isso, entretanto, n��o
me �� f��cil. Porque tanto o her��i como o vil��o e mui-
tos dos cow-boys s��o gente que estou acostumado a
encontrar em Hollywood na rua, nos mercados, e nas
vizinhan��as de minha casa. ..
354
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Depois do cinema ��� o quarto do hotel, o sono,
e um estranho sonho.
O SONHO
�� madrugada e sei que estou em minha cidade
natal, �� esquina da quadra em que fica a casa onde
nasci e sempre vivi. A escurid��o em redor �� absolu-
ta. De repente sinto a presen��a de mais algu��m. ��
meu pai, que j�� morreu, e que aqui est�� junto de mim,
parado, silencioso ��� um vulto escuro envolto numa
capa como a que G. K. Chesterton usava. De onde
estou n��o lhe posso ver o rosto. Sei que ele est�� mor-
to, mas aceito sua presen��a sem estranheza nem te-
mor. Aos poucos percebo que ele tem erguido na
m��o direita um guarda-chuva aberto, que parece um
cogumelo preto. Ou��o sua voz no sil��ncio: "Tua m��e
est�� te esperando, meu filho". A voz e a escurid��o
s��o como que feitas do mesmo elemento. Des��o na
dire����o de casa com o cora����o a bater descompassa-
do, numa sensa����o de culpa, porque sei que �� ma-
drugada e h�� muito eu j�� devia ter chegado. Sinto-
me como um filho pr��digo e temo pelo que possa acon-
tecer. �� preciso apressar o p a s s o . . . E se a porta es-
tiver fechada? N��o. Lembro-me que em minha casa
as portas nunca eram fechadas a c h a v e . . .
Depois fica tudo confuso e eu passo a me preo-
cupar com um ��nibus que vai sair para Los Angeles
��� ou para o Brasil? ��� e que n��o devo p e r d e r . . .
OS MICROSC��PIOS
16 de janeiro. Visito esta manh�� a Biblioteca Mu-
nicipal, onde Miss Dorothy Woods me conta que dis-
p��e duma verba de sessenta mil d��lares anuais para
A VOLTA DO GATO PRETO
355
empregar na compra de livros para as escolas e bi-
bliotecas dos distritos de Tulare.
Ao meio-dia um grupo de senhoras de mais de
cinq��enta anos ��� todas alegres e muito enfeitadas ���
querendo proporcionar-me um almo��o "com cor lo-
cal", levam-me a comer no restaurante mexicano " E l
P��tio", e quase me matam com enchiladas, tamales e
chile con carne.
��s quatro estou numa sala da "Visalia J��nior
High School" diante dum audit��rio de criaturas sim-
patic��ssimas, para as quais falo no Brasil, nos brasi-
leiros e nos livros que escrevemos e lemos.
Depois da confer��ncia, oferecem-me um ch�� du-
rante o qual, como uma bola, ando de m��o em m��o,
atirado de grupo para grupo, respondendo as pergun-
tas e sorrindo. . . ("Como �� dif��cil ser um gentleman!"
��� meu filho me disse um dia.)
O ��nibus para Los Angeles parte ��s seis. ��s cin-
co e meia ainda visito o edif��cio da escola, que �� de
linhas muito modernas. Na sala de leitura da biblio-
teca, cujas paredes est��o pintadas em v��rios tons de
bege, Miss Woods me pergunta:
��� Quantas grada����es de bege o senhor calcula
que haja na pintura desta sala?
Olho a parede com ar de conhecedor e arrisco:
��� Umas d o z e . . .
Ela sorri e me corrige:
��� Cinq��enta.
Passamos agora para outros departamentos. Visi-
to o laborat��rio de f��sica, o de qu��mica, e no de bio-
logia Miss Woods com a maior naturalidade deste
mundo, respondendo a uma pergunta ociosa que lhe
fa��o ��� "quantos microsc��pios tem o col��gio?" ��� abre
vasto arm��rio em que vejo, nov��ssimos em folha, v��-
rios desses aparelhos, e diz:
��� Sessenta e quatro.
��� S�� para este col��gio?
356
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Sim. Que �� que h�� de extraordin��rio no fato
de um col��gio ter 64 microsc��pios?
Penso nas escolas e universidades brasileiras e,
muito desanimado, respondo.
��� Realmente. N��o h�� nada de extraordin��rio
nisso. �� . . . Nada.
No ��nibus, a caminho de Los Angeles, penso
ainda nos microsc��pios, ponto de partida duma s��rie
de reflex��es melanc��licas.
O HER��I E O VIL��O
26 de janeiro. Almo��o com Lou Edelman no Sa-
l��o Verde do est��dio da Warner Bros., em Burbank.
Edelman �� o que se chama no jarg��o de Hollywood
um producer, isto ��, o homem respons��vel perante o
est��dio por um certo n��mero de filmes, dos quais ele
�� o coordenador: o que escolhe a hist��ria, o elenco,
o diretor, e o que sabe quanto deve gastar e como
distribuir as verbas.
Lou Edelman, que visitou o Rio recentemente,
gosta do Brasil e espera poder um dia produzir um
filme capaz de mostrar aos americanos a verdadeira
vida brasileira, sem exageros nem fantasias.
Conta-me que est�� terminando uma pel��cula ba-
seada no livro de Vicky Baum, "Hotel Berlim".
��� Golpe errado... ��� digo-lhe.
��� Por qu��?
��� Primeiro, porque a hist��ria �� falsa e med��ocre.
Segundo porque tudo indica que a Alemanha em bre-
ve se render��, e assim o filme perder�� a atualidade.
Edelman sacode a cabe��a.
��� Acho que voc�� est�� enganado. Vou lhe mos-
trar as altera����es que fizemos na hist��ria.
Leva-me depois do almo��o ao seu escrit��rio, faz-
me sentar numa poltrona, acomoda-se na sua cadeira,
A VOLTA DO GATO PRETO
357
atr��s da escrivaninha para cima da qual atira os p��s,
apanha o script de "Hotel Berlim" e diz:
��� Vou ler uma das cenas que acrescentamos ��
hist��ria. Preste bem aten����o neste di��logo. �� um
quarto de hotel, e um velho professor de universida-
de, que foi obrigado a colaborar com o nazismo, afo-
ga sua humilha����o na bebida. De repente entra na
sala um membro do underground que est�� refugiado
no hotel. Ora, acontece que esse jovem foi em tem-
pos passados um dos alunos prediletos do professor...
Durante uns dez minutos Lou Edelman fica a ler
o di��logo.
��� Ent��o? ��� pergunta, ao terminar.
��� Acho ainda que a hist��ria �� fraca e falsa. E
que vai ser mau neg��cio.
��� E eu s�� fa��o votos para que voc�� n��o tenha
raz��o... ��� E mudando de tom. ��� Vamos visitar al-
guns sound stages?
Entramos no set de "San Antonio", pel��cula em
tecnicolor, em que aparecem Errol Flynn e Alex Smith.
Os filmes coloridos s��o muito mais caros que os
em preto e branco, e todas as cores ��� a dos trajos
dos artistas e comparsas, a dos m��veis e tape��arias,
cortinas, objetos ��� s��o antes cuidadosamente estuda-
das e determinadas por t��cnico que por assim dizer
"desenha a produ����o". Filmes dessa natureza exi-
gem uma ilumina����o mais forte e um makc-up espe-
cial.
A cena que v��o filmar agora se passa em San An-
tonio, vilarejo de cow-boys, em fins do s��culo passa-
do. Vejo o interior duma estalagem de estilo mexica-
no com sua lareira r��stica, suas mesas e cadeiras de
pau tosco, e sua cer��mica ind��gena. �� frente dessa
estalagem h�� um trecho de rua, casas de t��bua com
alpendres, vendo-se no primeiro plano a fachada du-
ma taberna. Sento-me com Edelman a uma das me-
sas da estalagem e fico olhando... Por aqui andam
extras vestidos como p��ons e tropeiros mexicanos, com
358
OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO
seus chap��us de copa c��nica e largas abas, jalecos es-
curos, cal��as muito justas, pistolas na cintura, caras
tostadas e lustrosas, onde a barba azula. H�� tamb��m
mulheres morenas, com vestidos de cores vistosas,
len��os no pesco��o, e todas enfeitadas de braceletes,
colares e an��is. E cow-boys americanos, com duas
pistolas na cintura e as cartucheiras recheadas de ba-
las. No meio desse mundo de faz de conta, os em-
pregados do est��dio movimentam-se dum lado para
outro, a ajustar fios e refletores, a tomar medidas com
uma trena, a verificar com um fot��metro a intensi-
dade da luz, e a dar ordens aos gritos. Alta e esbel-
ta, chega Alex Smith ��� que est�� vestida �� moda da
��poca, com saia rodada, anquinha, cintura de vespa,
golilha, e um chapeuzinho de palha sobre o qual re-
pousa uma ave empalhada de plumagem azul. Tem
ela (a atriz e n��o a ave) um belo rosto no qual se no-
ta, entretanto, uma express��o n��o sei bem se de cruel-
dade ou se de frieza. Aqui est�� tamb��m o velho Sza-
kall, metido num fraque pardo. E uma pitoresca ve-
lhota gorda, com ar de cantora de caf��-concerto apo-
sentada, fumando com gosto um cigarro e soltando
grandes risadas ��s hist��rias que Monte Blue lhe con-
ta. Este ��ltimo acha-se vestido �� maneira deste ano
de 1945 e nada tem que ver com o filme. O antigo
gal�� do cinema mudo faz agora pontinhas em filmes
para a Warner e freq��entemente vem assistir ��s fil-
magens e conversar com os amigos. Mora no meu
bairro e eu o encontro freq��entemente no ��nibus.
Errol Flynn sai de seu camarim seguido do ho-
mem encarregado do make-up. Ao v��-lo t��o bem cui-
dado, t��o belo, vem-me uma compreens��o aguda do
que o cinema tem de falso. Como seria poss��vel exis-
tir no impetuoso Texas do s��culo passado ��� numa re-
gi��o de viol��ncia, aventuras e asperezas ��� um tipo
t��o bem cuidado? Ali est�� o her��i, o "mocinho", o
bravo cow-boy, de rosto barbeado e rosado, com re-
flexos de bronze nos cabelos ondulados. Para ele n��o
A VOLTA DO GATO PRETO
359
existe sol nem poeira. Sua barba nunca cresce, assim
como a carga de balas de suas pistolas nunca se es-
gota. Como ��nica concess��o ao realismo, Errol Flynn
deixou crescer um pouquinho as pontas do bigode ���
mas n��o tanto que isso lhe pudesse prejudicar a apa-
r��ncia mundana.
Agora a gorda senhora das risadas hom��ricas es-
t�� no nosso grupo. Algu��m lhe pergunta se ela seria
capaz de se apaixonar por Errol Flynn.
��� Qual! Aquilo ali? Esses meninos n��o me inte-
ressam . . .
E depois, baixando a voz, cicia:
��� Prefiro um tipo como Walter Pidgeon. .. ma-
dur��o. . . isso �� que �� homem!
E solta ao mesmo tempo uma baforada de fumo
e uma risada. Szakall est�� a dizer piadas para um
p��on mexicano, que ri t��o convulsivamente que sua
papada treme como gelatina, enquanto ele segura o
ventre que o riso tamb��m sacode.
O diretor acha-se sentado numa cadeira de lona,
em cujo respaldo est�� pintado seu nome. O assisten-
te do diretor ��� que �� em ��ltima an��lise uma esp��cie
de mo��o de recados, aquele que vai dizer aos extras
onde eles devem ficar e como devem portar-se, ��� an-
da agora dum lado para outro distribuindo as ��ltimas
instru����es. Um mexicano cochila na bol��ia duma di-
lig��ncia, cujos cavalos foram escolhidos de acordo com
as exig��ncias do tecnicolor. Outro p��on est�� senta-
do no alpendre da casa de jogo. Na frente dessa, pa-
rado no meio da rua, um cow-boy alto, de cara com-
prida e express��o antip��tica espera...
��� Quem �� aquele sujeito? ��� pergunto a Edel-
man.
��� �� o heavy da hist��ria.
Heavy traduzido ao p�� da letra �� pesado, mas no presente caso quer dizer vil��o.
360
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Soa uma campainha. O diretor pede sil��ncio, o
que n��o consegue imediatamente. A gorda matrona
ainda ri. Sil��ncio! ��� berra o assistente. Um oper��-
rio aparece diante da c��mara com um pequeno qua-
dro-negro, no qual est��o escritos a giz o nome do fil-
me, e o n��mero da cena. "A����o"! ��� grita o diretor.
Algu��m perto de mim d�� um tiro de rev��lver. Estre-
me��o. O homem no meio da rua tamb��m estremece.
(O estremecimento dele esta no script; o meu, n��o).
Errol Flynn avan��a e fica de costas para a c��mara,
empunhando duas pistolas. O vil��o n��o reage.
��� Que foi que aconteceu com tuas armas? ���
pergunta o her��i.
O outro faz meia-volta e se dirige, cambaleante,
para a casa de jogo, mas antes de chegar ao alpendre
tomba por terra, num baque surdo. Os cow-boys que
estavam no "saloon" precipitam-se para fora e esta-
cam junto do corpo.
Nesse ponto termina a cena.
��� Por que t��o pouca luz? ��� pergunto a Edel-
man, que me informa:
��� Porque a cena se passa �� noite.
Dentro de alguns minutos tudo fica pronto para
que a mesma cena seja de novo filmada. �� costume
tomar a mesma seq����ncia tr��s, quatro e n��o raro at��
cinco vezes, para que mais tarde os t��cnicos esco-
lham dentre todas a que ficou melhor.
O homem do make-up com a sua caixinha de cos-
m��ticos aproxima-se de Errol Flynn e esfrega-lhe no
rosto uma esponja com uma pintura cor-de-rosa. De-
pois, tomando dum pente, passa-o pelos cabelos do
valente cow-boy.
Como eu esteja olhando a cena com interesse, o
maquilador volta a cabe��a para meu lado, pisca o olho
e me diz, sorrindo:
��� Preciso conserv��-lo bem bonitinho...
A VOLTA DO GATO PRETO
361
CONFRONTOS
Fernanda: Esse admir��vel e paciente Tobias parece ter
tomado gosto pelas discuss��es, pois aqui est�� novamente a me
convidar para uma conversa em torno de confrontos entre norte
e sul-americanos. Sente-se, fique quieta e escute.
T. ��� Costuma-se dizer que os sul-americanos s��o mais
vivos que os norte-americanos. Por qu��?
E. ��� Talvez porque em geral falamos mais alto e gesti-
culamos mais; porque gostamos ou desgostamos das coisas e
pessoas com mais ardor; porque nos apaixonamos com maior
facilidade...
T. ��� O simples fato de predominar entre nossos homens
o tipo moreno, de cabelos e olhos escuros e barba cerrada, faz
que eles existam duma maneira mais contundente, e que sua
presen��a se fa��a sentir, digamos, com mais for��a.
E. ��� Se tomarmos um norte-americano de pele clara,
l��bios estreitos, cabelos louros e olhos azuis e o colocarmos ao
lado dum sul-americano moreno, de l��bios grossos e vermelhos
e cujos olhos s��o como dois carv��es vivos ��� teremos a impress��o
de que o primeiro �� um desenho apenas delineado, e o segundo
um retrato completo em que o desenhista carregou nas tintas,
principalmente no preto. O mesmo se passa tamb��m com rela-
����o aos sentimentos.
T. ��� Parece tamb��m certo que somos mais epid��rmicos e
saltamos do ��dio para o amor com muita rapidez.
E. ��� E a atitude do sul-americano na sociedade �� de des-
confian��a e cr��tica, com uma leve tintura de ironia e n��o raro
de sarcasmo. �� a posi����o do homem que espera ser sempre
enganado pelo competidor (isto ��, pelo pr��ximo) e que por-
tanto tem de estar sempre "com um p�� atr��s"... O nosso
homem tem um olho agudo para descobrir o rid��culo, e teme ao
mesmo tempo ser posto em rid��culo pelos outros; mas �� com
um prazer enorme que ele ridiculariza os que o cercam...
T. ��� Tomemos um exemplo do dia a dia. Numa festa de
americanos do norte quase todos os convivas acabam cantando
alegre e naturalmente. Numa festa de sul-americanos em geral
s�� canta aquele ou aquela que tem boa voz e que pode, por-
tanto, fazer bonita figura. E se por acaso o cantor ou cantora
desafina, come��am os risinhos, e os coment��rios �� socapa. Tudo
�� motivo para s��tira, para o exerc��cio de nossa mal��cia.
E. ��� O que n��o deixa de ter a sua gra��a...
T. ��� Os norte-americanos cantam pelo puro e simples
362
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
prazer de cantar, pouco lhes importando que os cantores sejam
ou n��o espl��ndidos. Eles sabem que os cantores realmente
bons podem tornar-se profissionais e ganhar bons sal��rios no
teatro, no r��dio ou no cinema. O que eles querem �� ter good time, divertir-se. Tudo �� pretexto para isso. Um anivers��rio,
um cocktail party, uma reuni��o improvisada...
E. ��� E n��s esperamos pelos tr��s dias de carnaval para dar
vas��o ao nosso desejo ��� recalcado durante todo o ano ��� de
pular, gritar, brincar, cantar e vestir fantasias.
T. ��� Olhando a sociedade norte-americana os latinos sor-
riem com adulta condescend��ncia e exclamam: "Que crian��as
grandes! S��o uns palha��os..."
E. ��� Ao passo que os americanos do norte acham que n��s
somos excessivamente apaixonados emotional, e demasiadamente
preocupados com o sexo, al��m de muito selfconscious, isto ��,
muito preocupados conosco mesmo, com nossas roupas, gestos,
palavras, e com a impress��o que os outros possam estar tendo
de n��s.
T. ��� Voc�� tem exaltado as facilidades da vida dos Esta-
dos Unidos. Pode dizer-me qual ��, na sua opini��o, a raz��o
principal por que tudo aqui parece rodar r��pida e macia-
mente sobre os trilhos da normalidade e da efici��ncia?
E. ��� �� o fator confian��a rec��proca. Todas as criaturas
aqui s��o consideradas honestas at�� o momento em que algu��m
prove o contr��rio. Ora, nos nossos pa��ses temos de andar cons-
tantemente provando, com documentos selados, que somos
honestos e n��o estamos tentando enganar ningu��m. A con-
fian��a aqui facilita tudo. O servi��o postal, o comercial e ban-
c��rio, as rela����es sociais...
T. ��� Ainda ontem comprei num "stand" cinco revistas,
que eu mesmo tirei das prateleiras, pondo-as debaixo do bra��o.
Quando fui pag��-las a mo��a da caixa perguntou: "Qual �� o
total?" Respondi: "Um d��lar e cinq��enta." Ela registrou a
venda, apanhou o dinheiro e me sorriu, sem tentar sequer veri-
ficar se eu tinha feito a minha soma direito.
E. ��� H�� nesse pa��s um ditado popular segundo o qual "a
honestidade �� a melhor pol��tica." O norte-americano, criatura
de fundo religioso, porta-se de acordo com os dez mandamen-
tos. N��s em geral gostamos de fazer pra��a de nossa honesti-
dade. Em certos casos, temos o que se poderia chamar "a
vol��pia da honra". (Uso desta express��o tirando o chap��u para
Luigi Pirandello). Os americanos do norte, entretanto, encaram
o problema da honestidade duma maneira mais fria e mais pr��-
tica. N��o pedem pr��mio nem louvores por serem honestos.
Porque sabem que fazer jogo limpo nas transa����es comerciais
A VOLTA DO GATO PRETO
363
e sociais facilita a vida. Chegaram tamb��m �� conclus��o de que
um dos truques mais eficientes �� o de falar a verdade.
T. ��� Isso me faz lembrar a facilidade, a naturalidade com
que os norte-americanos dizem e recebem um n��o.
E. ��� Coisa important��ssima! Nossa gente brasileira, por
exemplo, n��o est�� preparada para aceitar respostas negativas.
Somos criaturas am��veis e gostamos de parecer aos outros sim-
p��ticos, e isso nos impede de dizer n��o aos convites e pedidos
que nos fazem.
T. ��� Porque quem diz n��o �� nosso inimigo ��� refletem os
sul-americanos. Assim, fazemos as voltas mais incr��veis para
n��o usar a nega����o. Ficamos no "talvez", no "apare��a depois",
no "vou estudar o caso", no "volte na segunda-feira"...
E. ��� E n��o raro usamos o eufemismo dos eufemismos,
dizendo sim quando na realidade queremos dizer n��o.
T. ��� No desejo de ser agrad��vel ou de resolver depressa
uma situa����o embara��osa fazemos promessas que sabemos n��o
vamos cumprir. Tudo isso dificulta formidavelmente a vida.
E. ��� Mas tem l�� a sua gra��a, meu caro Tobias. Pode n��o
ser uma coisa pr��tica, l��gica ou direita, mas �� divertido. Afinal
de contas, se as pessoas chegassem �� perfei����o, que seria dos
romancistas? Onde iriam eles encontrar condimento para as
suas hist��rias?
T. ��� Outro tra��o que admiro no norte-americano �� a cora-
gem de dizer "N��o sei" quando na verdade n��o sabe.
E. ��� N��s brasileiros dificilmente usamos essa express��o.
Temos o horror de parecer incultos.
T. ��� Preferimos "tapear". Gra��as a nossos dons de im-
provisa����o e a nossa capacidade de versar com certo brilho
sobre assuntos que na realidade n��o conhecemos, conseguimos
quase sempre dar a impress��o de que sabemos...
E. ��� N��o �� de admirar que Pedro Malazarte, o grande
empulhador, seja um s��mbolo ib��rico. Mas convenhamos que
esse esp��rito nos torna mais pitorescos e interessantes que os
norte-americanos. Apesar de toda a minha admira����o e sim-
patia por esta gente continuo a achar que um c��rculo de conver-
sa����o em que haja latinos ��� em que se fala mal da vida alheia,
em que se discute religi��o, espiritismo, futebol, cinema, livros,
mulheres, m��sica e pintura ��� �� mais vivo, mais teatral, mais
animado e pitoresco que os c��rculos americanos em que gente
controlada (a que o u��sque pode eventualmente dar um certo
brilho e gra��a) fala de cachorros, cavalos, autom��veis e hot��is.
E aqui, meu caro Tobias, quero outra vez fazer uma ressalva.
Todas essas afirma����es que tenho feito a voc�� v��o temperadas
com um gr��o de sal. �� danadamente perigoso generalizar.
364
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� E saltando dum assunto para outro, j�� observou voc��
a import��ncia do judeu na vida americana?
E. ��� Existem duas minorias raciais important��ssimas nos
Estados Unidos. Os judeus e os negros. Este pa��s muito deve
ao judeu e ao negro no que diz respeito �� m��sica e aos shows
dum modo geral. Digo-lhe mais. O famoso "sense of humour"
americano n��o ser�� mais anglo-sax��nico que judaico.
T. - Como?
E. ��� Veja bem. Quais s��o as fontes de humorismo aqui?
As charges dos magazines e jornais, os filmes, o teatro de
"vaudeville", e o r��dio. Os gag writers, os escritores que inven-
tam essas piadas, cenas c��micas e anedotas para o cinema, o
r��dio e o teatro s��o em sua maioria judeus. Muitos dos mais
famosos caricaturistas deste pa��s s��o de origem sem��tica. A
esp��cie de humorismo criada pelos irm��os Marx n��o s�� encon-
trou aqui um p��blico entusiasta como tamb��m fez escola. O
povo absorve esse esp��rito e depois, saturado dele, passa a adot��-
lo como seu e da�� por diante as anedotas que inventa, as panto-
mimas em que toma parte s��o influenciadas por esse tipo de
humor.
T. ��� N��o acredito que voc�� encontre muitas pessoas que
concordem com esse seu ponto de vista.
E. ��� Tanto melhor para o ponto de vista e para mim.
Outra coisa: Voc�� deve ter observado que as can����es que este povo
mais canta e ama foram compostas por judeus como Irving
Berlin, George Gershwin, Dave Rose e tantos outros. Judeu
�� Oscar Lewant, pianista e humorista. Judeus s��o Charlie Cha-
pim e Walt Disney. Por outro lado...
T. ��� H�� grandes pianistas e violinistas judeus.
E. ��� Sim, Horowitz, Jascha Heiftz, Yehudi Menuhin. E
volte os olhos para o teatro. Uma enorme percentagem de
atores judeus voc�� encontrar�� na Broadway. Em Hollywood
se passa o mesmo. E voltando �� m��sica, veja esta coisa interes-
sante: Duas ra��as sofredoras e perseguidas encontraram-se neste
novo mundo americano e aqui criaram uma m��sica que n��o
ser�� sublime, mas que �� muit��ssimo interessante.
T. ��� E que talvez um dia se torne importante.
E. ��� E quando judeus e negros se juntam, o resultado c ��s
vezes um maravilhoso espet��culo como "Carmen Jones" vers��o
negra da ��pera Carmen. Oscar Hammerstein II (judeu) escre-
veu um libreto especial para essa pe��a, aproveitando com leves
modifica����es a partitura de Bizet. A mulata Carmen Jones
trabalha numa f��brica de p��ra-quedas. Don Jos�� ��� que no caso
�� apenas Joe ��� �� um sargento do ex��rcito e Escamillo, um cam-
pe��o de box. A pe��a tem um sabor negro. Negros s��o os
A VOLTA DO GATO PRETO
365
artistas, negras as dan��as e as vozes. A montagem de Carmen
Jones, (feita tamb��m por judeus) �� um primor de colorido e
gra��a.
T. ��� Para terminar esta conversa, eu lhe perguntarei qual
foi na sua opini��o o trecho da B��blia que consciente ou incons-
cientemente mais influ��ncia tem exercido sobre o esp��rito dos
norte-americanos?
E. ��� A par��bola do bom samaritano. O americano �� o
homem preocupado com a caridade, com as boas obras. Est��
sempre disposto a ajudar o vizinho. Sociedades de assist��ncia
social existem aos milhares neste pa��s. Seu raio de a����o passa
��s vezes as fronteiras e atinge as mais remotas regi��es do globo.
O Rotary n��o deixa de ser uma express��o de bom samaritanismo.
As Associa����es Crist��s de Mo��os e o Exercito de Salva����o, em-
bora n��o sejam institui����es de origem norte-americana, s��o
muito populares aqui e elas tamb��m s��o animadas pelo esp��rito
do bom samaritano.
T. ��� E que me diz do escoteiro?
E. ��� No boy scout combinam-se o bom samaritano, Robin-
son Crusoe e o pioneiro.
T. ��� O escoteiro �� enfim, o audaz menino que sabe ori-
entar-se no meio da floresta, fazer fogo esfregando pauzinhos
cil��ndricos uns nos outros, finalmente, �� o boy de bom car��ter
que gosta de ajudar os outros e que anda pelo mundo a semeai
boas a����es.
E. ��� O pr��prio Babbit ��� o her��i de Sinclair Lewis ��� tem
tinturas de bom samaritanismo. Bons samaritanos foram Wash-
ington e Lincoln. At�� o pr��prio Buffallo Bill foi um bom
samaritano truculento que n��o se limitava a deitar vinho e
azeite nas feridas do homem que ia para Jeric��, e a lev��-lo na
sua cavalgadura para uma estalagem; ele sa��a em persegui����o
dos malfeitores e liquidava-os a bala, um a um... E pra fina-
lizar, veja que espl��ndido samaritano �� esse Franklin Delano
Roosevelt.
T. ��� Um samaritano que vive ��s turras com os vendilh��es
do templo.
E. ��� Sil��ncio, Tobias!
ENTRE ROMA E HOLLYWOOD
28 de janeiro. Mora na minha rua e chama-se
Ros��rio Guadalupe Cabeza de Vaca Morales. Nasceu
no M��xico, viajou por todo o mundo em companhia
366
OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO
do marido, um diplomata de carreira, e agora ��� vi��-
va e j�� avan��ada na casa dos cinq��enta ��� vive nos
arredores de Hollywood e ganha a vida nos est��dios
fazendo pontas em filmes. �� uma criatura ador��vel.
Muito gorda e morena, de fartos seios contra os quais
ela bate ritmadamente o leque nos dias quentes, du-
plo queixo, bu��o cerrado a coroar uma boca carnuda
de querubim, olhos negros e gra��dos, cabelos leve-
mente estriados de prata, dona Ros��rio nos lembra
esses retratos de grandes damas de linhagem espanho-
la, que se erguem nos vest��bulos das casas senhoriais
do M��xico, por cima de velhas arcas de ferro batido.
Tem um temperamento apaixonado, uma voz levemen-
te rouca, e seus bra��os gorduchos e inquietos pare-
cem sempre querer estreitar o mundo em amoroso
abra��o.
Na Warner Brothers precisam duma senhora me-
xicana para fazer papel de m��e da mocinha, num filme
de "Far-West"? O est��dio telefona para o Central
Casting Office, faz a encomenda e o funcion��rio dessa
reparti����o aperta em v��rios bot��es correspondentes
aos caracter��sticos ��� mexicana, gorda, meia-idade, ���
e como resultado de tudo isso, do maravilhoso arqui-
vo autom��tico salta uma ficha com o nome de Mrs.
Ros��rio Guadalupe Cabeza de Vaca Morales, seguido
de seu endere��o e do n��mero de seu telefone. O fun-
cion��rio disca esse n��mero, e numa casinha branca
de estilo californiano, a dez quil��metros do Casting
Office, uma m��o gorda e pequena, onde cintila um
brilhante, toma o receptor:
��� Al��!
��� Dona Ros��rio?
��� Yes.
��� Aqui �� o Joe.
��� Que Joe ?
��� Do Casting Office.
A VOLTA DO GATO PRETO
367
��� Oh! Como vais, Joe? Como v��o os meninos?
Ent��o, comprou sempre aquele carro? E a Sally j��
sarou da coqueluche? Splendid!
��� Dona Ros��rio, a Warner precisa duma m��e me-
xicana.
��� Que tipo de fita ?
��� "Far-West".
��� Parte grande?
��� Pequena.
��� Okay, Joe.
��� Apresente-se amanh�� ��s nove no est��dio, ves-
tida de camponesa. Essa m��e mexicana �� cozinheira
num hotelzinho em Tia Juana.
A m��o gorda agora segura um l��pis e toma notas.
��� Est�� bem, Joe.
��� Good-bye, meu bem.
Em Hollywood a linguagem �� doce e carinhosa.
Minha querida, meu bem, meu amor, querid��ssimo ���
s��o express��es t��o correntes como as moedinhas de
cinco centavos.
E assim l�� vai dona Ros��rio no seu carro, j�� com
a cara preparada, isto ��, coberta por uma camada de
pintura cor de tijolo. E se acontece haver no caminho
qualquer interrup����o no tr��fego, dona Ros��rio desce
do carro, fantasiada de m��e mexicana, e come��a a
gesticular e dar ordens aos condutores de autom��veis
at�� descongestionar a rua.
Nossas rela����es s��o as melhores poss��veis e um
destes dias estava eu a uma esquina esperando o ��ni-
bus que me levaria ao centro de Los Angeles quando
dona Ros��rio passou no seu carro, parou e me ofere-
ceu uma "carona". Aceitei e come��amos logo a con-
versar sobre a inf��ncia do cinema sonoro, e minha
amiga lamentou que houvesse passado o bom tempo
das operetas. "O senhor se lembra daquelas lindas
valsas?" Come��ou a cantarolar, enquanto o carro des-
368
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
lizava com um chiado agrad��vel sobre o cimento da
rua, e dum lado e de outro passavam casas, terrenos
baldios, arranha-c��us, jardins e cartazes. A alegria de
dona Ros��rio era t��o contagiosa que acabei aderindo
��s valsas, e foi cantando em dueto "Noites Vien��nses"
que entramos na Broadway.
Uma destas noites estava eu com minha fam��lia
no cinema do bairro quando, de repente, numa cena
que representava uma fiesta mexicana, ouvimos, vin-
da do fundo, uma voz familiar. Por fim a dona dessa
voz avan��ou correndo para o primeiro plano. Dona
Ros��rio! ��� exclamamos todos n��s ao mesmo tempo.
Sim, l�� estava na tela a imagem de nossa amiga ��� ro-
li��a, "rebosante" de alegria, gesticulando, gritando no
meio da algazarra geral. Viva M��xico!
Mas h�� ainda uma outra face muito interessante
do car��ter de dona Ros��rio. Apesar de todo o seu
exterior expansivo e ruidoso, da sua condi����o de ex-
tra de Hollywood, sua conduta moral �� irrepreens��-
vel. Dona Ros��rio �� uma dama respeit��vel e piedosa.
Cat��lica, confessa-se e toma a comunh��o regularmen-
te e vai todos os domingos �� missa. Em sua casa, on-
de vive com uma sobrinha, tem sempre as portas
abertas para os amigos. Sua mesa �� farta e dona Ro-
s��rio sempre tem comensais.
Contou-me ela que est�� agora com um papel mui-
to bom num filme da Metro-Goldwyn-Mayer. Vejo-a
hoje passar no seu Cadillac preto, rumo dos est��dios,
em Culver City; quando seu carro defronta nossa ca-
sa, ela acena para n��s e atira-nos beijos.
E assim se passam os dias de dona Ros��rio Gua-
dalupe Cabeza de Vaca Morales, nessas andan��as en-
tre a igreja e o est��dio, acendendo com igual devo����o
uma vela a Roma e outra a Hollywood.
A VOLTA DO GATO PRETO
369
A VIAGEM
7 de fevereiro. Claremont, que fica a uns cin-
q��enta quil��metros de Los Angeles, vive apenas em
fun����o de seus dois famosos col��gios, o Scripps e o
Pomona. O primeiro, s�� para mo��as, �� um estabele-
cimento de ensino caro, para gente rica; o segundo,
que �� misto, est�� mais ao alcance dos estudantes que
v��m de fam��lias da classe m��dia baixa. Ambos esses
col��gios t��m uma administra����o comum, e dessa ad-
ministra����o recebi um convite para passar tr��s dias
no campus do Pomona e do Scripps como "professor
visitante".
Assim, hoje ��s sete da manh�� fa��o a combina����o
do ��nibus azul com o bonde amarelo e finalmente com
um ��nibus vermelho e, ao cabo de duas horas e meia
de viagem por entre laranjais, e sempre a avistar gran-
des montanhas de pico nevado, passando por uma su-
cess��o de belos vilarejos, granjas e cidadezinhas, che-
go �� esta����o de Claremont, onde um homem me es-
pera.
Imaginem um sujeito j�� entrado na casa dos cin-
q��enta, alto, de pernas finas mas de tronco avanta-
jado, cabe��a grande, rosto redondo, nariz largo, l��-
bios delgados e uma express��o um pouco sard��nica
no rosto de tez muito clara... Ponham-lhe uns ��culos
de lentes redondas, finquem-lhe na boca um cachim-
bo de sabugo de milho, vistam-lhe uma roupa meio
amarfanhada, enterrem-lhe na cabe��a um chap��u mar-
rom que de t��o amassado j�� perdeu a forma... Fa-
��am tudo isso e ter��o uma id��ia da pessoa que me
espera, e que se chama Hubert Herring, jornalista,
escritor, e professor do Pomona College. Especializa-
do em hist��ria latino-americana, visitou ele v��rias ve-
370
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
zes a Am��rica do Sul e a respeito do Brasil, da Argen-
tina e do Chile escreveu um livro intitulado Good
Neghbors. �� um realista e um humorista �� maneira
��cida de Swift. Mas �� principalmente um homem sin-
cero. Odeia o escapismo, a hipocrisia e essa falsa boa
vizinhan��a baseada em mentiras, ilus��es douradas e
contemporiza����es. Acha que nossos problemas t��m de
ser estudados com olho realista e atacados de frente.
��� Boa viagem? ��� pergunta, ao me apertar a m��o.
��� ��tima.
E a caminho do dormit��rio do Pomona, onde me
vou hospedar, ele me d�� conta do programa. Querem
que eu fale sobre Hist��ria do Brasil, sobre as dife-
ren��as de costumes e psicologia entre os brasileiros
e os norte-americanos, e sobre literatura brasileira.
Al��m disso serei levado a v��rias classes, em ambos
os col��gios, e convidado a dirigir a palavra aos estu-
dantes.
��� E se depois de tudo isso voc�� estiver ainda vi-
vo ��� conclui Herring ��� . . . pode voltar para casa.
��� Perfeitamente.
Falo para as alunas do Scripps, num pequeno
mas confort��vel auditorium. Para ilustrar a palestra
rabisco caricaturas a giz num quadro-negro. Ao meio
dia almo��o com professoras e alunas. O menu �� du-
ma sobriedade impressionante s�� explic��vel pelo fato
de estarmos num col��gio de mo��as preocupadas com
fazer dieta. Servem-nos uma modesta por����o de sa-
lada de alface e feij��o branco... Durante as refei����es
as meninas cantam. .. Um sol alegre entra pelas vi-
dra��as, respingando de ouro estas cabe��as jovens. A
meu lado est�� uma francesinha de cabelos ruivos e
rosto sardento, olhos castanhos e express��o meiga.
Conta-me que com a invas��o de sua p��tria teve de
fugir com a fam��lia para os Estados Unidos.
A VOLTA DO GATO PRETO
371
��� As meninas fazem tro��a de meu sotaque... ���
queixa-se ela, sorrindo, meio vexada, e olhando para
as companheiras.
��� N��o perca nunca esse sotaque ��� pe��o-lhe. ���
�� uma marca de personalidade. Lembre-se de que
Thomas Mann ainda n��o perdeu o seu.
��� Nem Charles Boyer... ��� acrescenta a ameri-
canazinha loura que nos escuta.
Quando servem a sobremesa ��� sorvete de bau-
nilha ��� a De�� do col��gio me pede que fale ��s suas
alunas sobre as mo��as brasileiras. E c�� estou eu mais
uma vez a pairar, a pairar, massacrando impunemente
a l��ngua de Mark Twain, enquanto a francesinha me
sorri como uma aliada, pois verifica que, como ela, te-
nho um sotaque t��o espesso que ��s vezes chego a dar
peso de chumbo a palavras leves como p��ssaros de
papel...
o o o
Quatro da tarde, na "Casa Espanhola" do Pomo-
na College. �� aqui que o professor Herring vem dis-
cutir com seus alunos problemas interamericanos. O
tema de hoje �� o caso da Argentina. Os alunos v��o
comentar e criticar a pol��tica do Departamento de
Estado com rela����o ��quele pa��s.
�� uma sala mobiliada bem como uma resid��ncia
particular: sof��, poltronas, tapetes, cortinas, l��mpadas
veladas, quadros nas paredes. Os alunos, em sua maio-
ria mo��as, sentam-se �� vontade, como numa visita sem-
cerim��nia. Umas fazem tric��. Outras apenas descan-
sam sobre o colo as m��os entrela��adas, e escutam. H��
em tudo um ar de intimidade, de natural camarada-
gem que predisp��e a gente a ficar neste ambiente aco-
lhedor, conversando, perguntando, ouvindo, respon-
dendo . . .
372
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Sou mais uma vez sabatinado sobre assuntos sul-
americanos. Que penso dos argentinos? E de Mr.
Hull? E da atitude dos Estados Unidos com rela����o
aos seus vizinhos do sul? O interrogat��rio dura uma
hora maci��a.
* * *
Saio a caminhar �� noite por Claremont. Fico lon-
go tempo parado a uma esquina, contemplando as
montanhas cujos picos nevados o luar clareia. N��o se
v�� viva alma nestas ruazinhas. Nos bangal��s dos pro-
fessores as janelas est��o iluminadas. De repente um
trem apita. Outros trens apitam em minha mem��ria.
Onde est��o os trens de antanho? ��� indaga o poeta. Ha-
via um que apitava sempre ��s dez da noite, quando
eu j�� estava na cama e o sono me atirava areia nos
olhos. Vinha-me ent��o uma vontade dorminhoca de
viajar. E agora este apito de trem na Calif��rnia des-
perta outra vez em mim o apetite de horizontes no-
vos. Viajar. .. Mas que tolice! Pois n��o estou agora
viajando? N������o! ��� responde tremulamente o apito.
�� extraordin��rio ��� reflito. A verdadeira Viagem nun-
ca est�� no tempo presente, mas sim no passado, no
futuro ou ent��o naquele quarto e misterioso tempo
que n��o sei se chamo de desejo, sonho ou imagina����o.
O melhor mesmo �� voltar para o quarto e ir para
a cama. Adeus, lua, ��rvores, casas, montanhas! Adeus,
que eu vou viajar. Porque o sono, amigos, �� uma via-
gem atrav��s dos quatro tempos.
UM CACHIMBO E VARIOS PROBLEMAS
Oito da manh��. Um sol de ��mbar tinge a neve
dos cimos. Piso geada na estradinha que leva do hall
onde estou hospedado ao edif��cio onde fica o refeit��rio.
A VOLTA DO GATO PRETO
373
Tomo o meu breakfast num vasto sal��o abobadado, que
lembra o interior duma catedral. Vejo l�� na parede do
fundo um quadro mural pintado por Clemente Orozco:
enorme Prometeu a erguer os bra��os para o c��u. Seu
corpo d�� a impress��o de estar todo esfolado, e suas
carnes, dum vermelho arroxeado, parecem j�� em pro-
cesso de decomposi����o. �� um painel admir��vel, mas
sua figura principal tem uma qualidade t��o cadav��rica,
que me parece a coisa menos apropriada que se possa
imaginar para um refeit��rio.
��s nove estou numa aula riscando na pedra a ca-
ricatura de Dom Pedro I, pois tenho de comprimir nos
cinq��enta minutos que se seguem a hist��ria pol��tica e
social do Brasil, desde Os dias do amante de dona Do-
mit��lia at�� a era getuliana. Os estudantes querem saber
se no Brasil todos os professores costumam transformar
as li����es em hist��rias ilustradas.
Quando termino a aula, Hubert Herring vem me
apertar a m��o e dizer-me ao ouvido:
��� Irm��o, voc�� ainda n��o percebeu que ensinar ��
a sua verdadeira voca����o?
Retruco:
��� Quer saber duma coisa? O que sou mesmo ��
um viajante nato. Levei quase quarenta anos para
descobrir isso...
�� tarde estou diante de uns seiscentos rapazes e
raparigas, professoras e professores, com a dif��cil in-
cumb��ncia de falar-lhes nas diferen��as de temperamen-
to, inclina����es e gostos entre brasileiros e norte-ame-
ricanos.
��� Para principiar ��� digo ��� suponhamos que eu
tenha aqui �� minha direita um brasileiro, e �� esquerda
um americano. Digo-lhes: Se a vida �� uma pe��a de
teatro... que esp��cie de pe��a ser��? O americano dir��
logo: "�� uma com��dia musicada". ��� Mas o brasileiro
sacudir�� a cabe��a, murmurando: "N��o. A vida �� um
drama".
374
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Passo a falar na maneira como encaramos a vida,
a morte e o amor. Menciono nossos tabus sociais, re-
ligiosos, econ��micos e hist��ricos. E nessa conversa
levo mais de uma hora.
�� noite janto com Hubert e sua esposa, uma se-
nhora franzina, de cabelos e olhos claros, que esta tarde
vi pelas ruas de Claremont pedalando bravamente a sua
bicicleta e comprando a galinha, as cenouras e os to-
mates que agora aqui temos sobre a mesa, deliciosa-
mente preparados.
Vamos tomar caf�� no living-room, sentados perto
da lareira acesa.
��� Visitei o Brasil h�� uns quatro anos... ��� diz o
dono da casa.
Faz uma pausa para meter fumo no cachimbo.
Espero em sil��ncio.
��� Os brasileiros ��� diz ele com sua voz musical ���
benza-os Deus!... s��o o povo mais exuberante, mais
am��vel e menos pr��tico de todos os filhos da Ib��ria.
��� Filhos de quem?
��� Da Ib��ria...
��� A h . . .
Herring risca um f��sforo, aproxima a chama do
bofo do cachimbo e fica a dar-lhe fortes chup��es, en-
quanto bebo o caf�� que sua missus acaba de trazer.
��� Quem visita Copacabana e v�� arranha-c��us,
cassinos cheios de gente bem vestida, bem manicurada,
perfumada de ess��ncias caras fabricadas em Paris
quem vai num domingo ao Jockey Club e olha aquelas
mulheres bonitas que exibem vestidos e chap��us ele-
gant��ssimos, tem a impress��o de que o Brasil �� um pa��s
rico e feliz...
Atira o f��sforo, na lareira, onde a lenha crepita.
��� Mas, meu irm��o, que mis��ria naqueles morros
que ficam a dois passos do Jockey Club e dos cabar��s
de Copacabana! Visitei essas favelas com um amigo
norte-americano, um belo dia de sol e de mar verde.
A VOLTA DO GATO PRETO
375
Jesus Cristo! Aquelas casinholas feitas de peda��os de
madeira e de lata velha, de ch��o de terra batida...
aquelas crian��as com farrapos imundos a cobrir-lhes os
ventres inchados. . . Tudo isso �� de causar arrepios
no homem mais insens��vel. Meu amigo inocentemente
apanhou alguns instant��neos. . . -Um policial muito
delicado nos convidou a ir �� delegacia, onde outro
funcion��rio da pol��cia, com a mesma delicadeza, nos
tirou o rolo de filme... ��� Mudando de tom ele per-
gunta: ��� Que �� que voc�� acha?
��� �� uma velha atitude reacion��ria, muito comum
no Brasil. O que eles fizeram com seu amigo t��m
feito tamb��m com livros e artigos que fotografam ou
comentam a situa����o de mis��ria em que vive a maior
parte da nossa popula����o. Censurando os artigos e
os livros eles pensam criar a impress��o de que os pro-
blemas est��o resolvidos. Odeiam os escritores obje-
tivos e sinceros porque estes revelam aos leitores as-
pectos desagrad��veis de nossa vida, que aos "pais da
p��tria" conv��m sejam escondidos e ignorados. Tratam
por isso de desviar o assunto para o lado da moral.
Acusando os autores de indecentes, erguem-se como
her��is duma cruzada em prol da moralidade e dos
bons costumes. E enquanto isso os ��nicos problemas
realmente s��rios que h�� no Brasil, isto ��, o da mis��ria,
do analfabetismo e o da falta de sa��de das massas,
continuam sem solu����o...
��� O trabalhador brasileiro, segundo pude ob-
servar, mora em casas miser��veis, sem ��gua corrente,
sem nenhum conforto, e muitas vezes fam��lias enormes
se aglomeram em duas pe��as estreitas. Comem pouco
e mal e n��o t��m assist��ncia m��dica...
��� A mortalidade infantil �� pavorosa... ��� acres-
cento.
��� Quem �� o culpado disso? Os trabalhadores?
Claro que n��o. Os patr��es? O governo? Talvez. Mas
n��o creio que a resposta seja t��o simples assim.
376 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Ent��o..
��� Essa pobreza tem origem em defeitos vindos
dos tempos coloniais. Portugal e Espanha sofreram do
mesmo mal que o Brasil.
Observo:
��� Com rela����o ��s suas col��nias em certos res-
peitos Portugal foi mais indulgente que a Espanha.
��� E menos eficiente... ��� retruca Herring. ��� Exi-
gia impostos exagerados, impunha-lhes restri����es tre-
mendas . . . Portugal conservava o monop��lio do sal,
do pau-brasil e da pesca da baleia. Nunca encorajou
os brasileiros no uso pleno da terra e muito menos na
expans��o da ind��stria.
Herring levanta-se e, tomando dum ati��ador de
ferro, acocora-se junto da lareira e come��a a mexer
nos toros ardentes.
��� Outra das causas dessa mis��ria ��� prossegue
ele ��� foram os tr��s s��culos de escravatura negra. Os
brancos eram os donos da terra e os pretos trabalha-
vam nela.
��� Esses senhores de planta����es nos transmitiram
o horror ou melhor, o desprezo ao trabalho manual.
At�� hoje quando nos referimos a algum servi��o que
tem de ser feito com as m��os, dizemos "isso �� coisa
pra negro".
Herring ergue-se e volta para a sua poltrona.
��� Falei no Brasil com v��rios empregadores que
me contaram de sua absoluta impossibilidade de levar
para o campo esses mo��os que se formam em agrono-
mia e veterin��ria. Parece que eles acham desmora-
lizantes as ocupa����es rurais.
��� At�� hoje muitas fam��lias pensam que seus filhos
s�� podem ser pol��ticos, m��dicos, advogados, sacer-
dotes . . .
��� E literatos... ��� acrescenta Herring.
��� Nossa l��ngua �� um convite �� aventura liter��-
ria ��� digo. ��� Literatura no Brasil �� uma coisa bonita,
A VOLTA DO GATO PRETO
377
mas nunca ��til. O t��tulo de literato �� uma esp��cie de
flor no peito, e por isso nossa literatura por tantos
s��culos nada teve a ver com a nossa vida, nosso povo,
nossos problemas. Ainda a heran��a dos tempos coloniais!
A Sra. Herring entra e vem com o seu tric�� aco-
modar-se silenciosamente num canto do sof��.
��� Outra das causas da pobreza do Brasil ��� pros-
segue Herring ��� �� a sua exagerada depend��ncia de
um ��nico produto. O caf�� recebeu todos estes anos
um cuidado tal, que as outras fontes de riqueza eco-
n��mica do pa��s foram negligenciadas.
��� Essa hist��ria pode ser contada paralelamente
com a hist��ria do a����car, do ouro, do cacau, do algo-
d��o, da borracha e do caf��.
��� Voc��s perderam o mercado do a����car no s��-
culo XVIII para as ��ndias Ocidentais.
��� O do ouro n��o durou mais de dois s��culos...
��� Perderam o da borracha para o arquip��lago
Malaio. E s�� depois de 1930 �� que se convenceram de
que o caf�� se tornava um produto cada vez menos se-
guro e por isso se voltaram para o algod��o.
H�� um breve sil��ncio, em que penso na popula����o
das favelas e dos mocambos; no vaqueiro e no pe��o
de est��ncia; nos retirantes da seca e nos habitantes
dos corti��os. Vem-me �� mente a imagem duma gra-
ciosa brasileira que encontrei em San Francisco e que
pulou da sua cadeira, indignada, quando lhe falei no
pauperismo brasileiro. "N��o senhor! No Brasil n��o
h�� mis��ria. O senhor est�� esquecido..." Esquecido...
E preciso fazer um tremendo esfor��o para que o sol da
Calif��rnia, as ameixeiras floridas do vale de San Bernar-
dino e os jardins de Beverly Hills n��o me fa��am es-
quecer que h�� mis��ria no Brasil... Por alguns instantes
meu esp��rito foge pela janela da casa do professor
Herring e se vai por cima das montanhas na dire����o
do sul... E quando minha aten����o volta a esta quieta
e morna sala, o dono da casa est�� falando outra vez.
378
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
��� . . . vossa distribui����o de terras defeituosa, uma
sociedade ainda semifeudal, uma demasiada depen-
d��ncia de venda de mat��rias-primas baratas...
���.. . as tremendas diferen��as de c��mbio ��� digo
��� e mais o pre��o alt��ssimo de vossos autom��veis, re-
frigeradores, r��dios e outros artigos...
Herring aponta para mim com a haste do ca-
chimbo, acusadoramente:
��� . . . e a gan��ncia de vossos comerciantes... n��o
se esque��a disso.
Falo-lhe da industrializa����o do Brasil que tudo
indica parece estar em boa marcha.
Herring faz uma careta de d��vida.
��� At�� onde a industrializa����o poder�� melhorar a
vida de vossos trabalhadores? Acha que o homem
comum brasileiro viver�� melhor na f��brica que na la-
voura, na granja, no campo? Acha que um crescente
consumo de artigos manufaturados vai aumentar o con-
forto e a seguran��a da vida de seu povo?
��� Mas n��o foi isso que aconteceu neste pa��s? ���
pergunto.
��� O que temo �� que essa industrializa����o, longe
de aumentar as rendas da na����o, sirva apenas para
encher a bolsa -dos exploradores, dessa minoria esperta
que tem dinheiro.
��� Tudo isso prova uma coisa: o absurdo mons-
truoso do sistema econ��mico dentro do qual n��s vi-
vemos e os marginais vegetam...
Herring encolhe os ombros. E de olhos cerrados
fica chupando o seu cachimbo.
O NEGRO DA VOZ DE VELUDO
9 de fevereiro. Tivemos hoje um grande dia. ��
tarde Mariana e eu assistimos a um concerto do pia-
nista brasileiro Bernardo Segall no "Philarmonic Au-
A VOLTA DO GATO PRETO
379
ditorium"; e �� noite fomos ver Paul Robeson no "Othelo",
de Shakespeare, no Biltmore Theatre. Creio que nun-
ca me emocionei tanto num espet��culo, nem presenciei
uma mais perfeita representa����o t e a t r a l . . .
Foi um grande momento aquele em que Robeson,
o espl��ndido negro, entrou em cena com suas roupa-
gens vistosas. Da primeira fila onde est��vamos, pod��a-
mos ver-lhe bem o rosto. Achamo-lo um pouco enve-
lhecido: alguns cabelos brancos riscavam-lhe de prata
a carapinha. Seu rosto �� de cor acobreada, lustrosa e
lisa, sem o menor make-up. Sua voz ��� que uma es-
critora inglesa descreveu como sendo de veludo negro
��� sua voz grave, redonda, musical, enchia o teatro. E
era esquisito ouvi-lo dizer com m��scula ternura ��� Sweet
Desd��mona!
Nascido em Princeton, foi Paul Robeson um es-
tudante aplicado e ao mesmo tempo um atleta de re-
nome, chegando a ser campe��o de futebol. Freq��entou
a Faculdade de Direito da Universidade de Columbia
e entrou para o teatro por acaso, pois uma certa Miss
Dora Cole, que dirigia no Harlem um espet��culo de
amadores, convenceu-o a aceitar pequeno papel.
"Eu estava estudando direito ��� conta Robeson ���
e andava muito ansioso com rela����o a meu futuro,
pois queria fazer alguma coisa em favor de minha
ra��a. Acontece tamb��m que fui educado segundo a
id��ia de que o teatro �� um lugar de v��cio e maldade.
Um dia um sujeito chamado Jasper Deter veio me pro-
curar, leu para mim a pe��a 'Imperador Jones' de
O'Neill e declarou que desejava oferecer-me o papel
principal. Fiquei t��o indignado com a hist��ria, que
quase expulsei Deter da minha casa. Foram precisos
v��rios anos para eu me convencer de que tudo aquilo
tinha sido tolice. Finalmente concordei em fazer o
'Imperador Jones' e depois a pe��a 'Tabu', de sorte
que com o tempo me fui habituando �� id��ia de ser ator
e mais tarde, cantor."
380
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Poucos negros t��m feito tanto por sua ra��a como
Paul Robeson. Conven��o-me agudamente disso esta
noite, ao ver e ouvir centenas de espectadores que o
aplaudem delirantemente, que o obrigam a voltar ��
cena, muitas, muitas vezes.
Vendo esse homem preto abra��ando a lour��ssima
Desd��mona, fico a imaginar a rea����o de muitos dos
americanos brancos que aqui est��o e para os quais
um negro �� um ser �� parte na escala zool��gica, natu-
ralmente mais alto que o macaco, n��o t��o belo como
o cavalo, e positivamente muito abaixo do homem...
Por mais empolgado que eu estivesse por Paul
Robeson n��o deixei de observar que muitas cenas em
que ele aparecia foram roubadas por Jos�� Ferrer, um
porto-riquenho de extraordin��rio talento histri��nico, que
faz o papel de Iago, um dos melhores lagos ��� afirma
a cr��tica, ��� que o teatro jamais teve.
E a gente aceita todas as conven����es do teatro
Shakespeariano para acreditar na hist��ria do Mouro
de Veneza, e seguir, tenso, sentado na beira da poltro-
na, o desenvolvimento do drama.
E agora ��� meia-noite passada ��� estou na frente
de minha casa a caminhar insone na cal��ada, para
cima e para baixo. A voz de Iago (Put money inthy
purse!) e a voz de Othello (A soldiers a man; a lifes
but a span) ainda me soam na mem��ria. N��o sei que
estranhos ecos essas duas figuras despertaram em mim.
Elas me trazem �� mente pensamentos v��rios. Reminis-
c��ncia de velhas leituras. Considera����es sobre o pro-
blema racial neste pa��s.
Mas em breve esque��o Shakespeare, Othello, Iago
e as quest��es de ra��a para tentar descobrir por que as
noites suburbanas de Los Angeles s��o menos silencio-
sas e evocativas que as dos sub��rbios brasileiros. E
concluo que �� porque as nossas noites t��m a acentuar-
lhes a poesia e a quietude, o canto dos galos. A�� est��!
O sil��ncio desta rua �� leve e azul; �� um sil��ncio que
A VOLTA DO GATO PRETO
381
a bruma amortece ainda mais. Mas esta calma notur-
na n��o me diz nada, ao passo que nas madrugadas
brasileiras o canto dos galos nos terreiros me fazia
pensar em cemit��rios sob o luar, trazia-me vozes do pas-
sado, acordava fantasmas, e parecia ecoar longe nos
corredores insond��veis da noite.
O MINISTRO
21 de fevereiro. Sou convidado a fazer um dis-
curso por ocasi��o do jantar que o "Southern Calif��rnia
Council for Inter-American Affairs" oferece hoje, num
clube de Los Angeles, ao ministro da Guerra da Re-
p��blica de Metagalpa, o qual, com oficiais de seu Es-
tado-Maior, percorre os Estados Unidos em visita de
cortesia.
Fico sentado entre Mr. Rosencrantz, presidente do
Council, e um capit��o metagalpense. No lugar de
honra, sua excel��ncia o general Urbina luta com a sa-
lada, faz prod��gios de equil��brio para evitar que o
molho amarelo lhe salpique a t��nica. �� ele tudo o que
a gente espera dum homem de sua nacionalidade e
profiss��o: gordo, de meia-idade, bonach��o e cheio de
alamares dourados. Aqui est��o nesta mesma mesa uns
cinco outros oficiais do ex��rcito de Metagalpa, com
seus la��os h��ngaros e as suas condecora����es. Premido
pela falta de assunto, pergunto ao capit��o que tenho
�� minha esquerda:
��� Qual �� o efetivo do ex��rcito de Metagalpa?
O homem permanece num curto sil��ncio reflexivo
e depois diz:
��� Uns quinhentos homens.
Repito intempestivo:
��� Quinhentos?! ��� Mas em seguida, dominando a
surpresa, baixo a voz e digo com calma: ��� A h . . . qui-
nhentos . . .
382
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Mr. Rosencrantz levanta-se para fazer as apresen-
ta����es.
��� Considero um privilegio rar��ssimo para este
Council ter como convidado de honra uma personali-
dade t��o ilustre como a do Gen. Urbina, Ministro da
Guerra de Metagalpa, essa rep��blica amiga centro-a-
mericana.
Respirando forte como um touro, as p��lpebras ca��-
das, o ar sonolento, o general escuta...
��� Devo dizer ��� continua o Sr. Rosencrantz ���
que o nosso convidado, que �� primo irm��o do Presi-
ente de Metagalpa, exerce tamb��m fun����es de vice-
presidente da rep��blica.
Mr. Rosencrantz, evidentemente um humorista,
inclina a cabe��a na dire����o do general, e acrescenta,
gaiato:
��� De sorte que tudo l�� fica em fam��lia, n��o ��
mesmo nosso amigo?
H�� uma pausa dif��cil. Risinhos constrangidos bro-
tam de v��rios pontos da sala. Mr. Rosencrantz percebe
a gafe que cometeu e come��a a ficar vermelho: suas
orelhas parecem de lacre. Enquanto isso "el general"
brinca pachorrento com uma bolinha de miolo de p��o,
talvez com a mesma indiferen��a com que jogar�� com
os destinos de Metagalpa...
GLAMORIZANDO A VIDA
Minha querida Fernanda: Quem observa a vasta, variada
e tumultuosa superf��cie da vida norte-americana conclui que
estas gentes procuram, por assim dizer, passar uma camada de
verniz na vida. Essa tend��ncia tem muito a ver com a palavra
glamour e com o verbo dela derivado, to glamourize. Segundo
"The Oxford English Dictionary" glamour quer dizer. ��� "Magia,
encantamento, sortil��gio; beleza m��gica ou fict��cia que se atri-
bui a uma pessoa ou objeto; encanto ilus��rio e fascinante".
Hollywood deu prest��gio universal �� palavra glamour. Gla-
mour, quando atribu��do a uma mulher, n��o significa pr��pria-
A VOLTA DO GATO PRETO
383
mente beleza, por��m algo mais profundo (ou superficial?) uma
irradia����o, um lustro, um fasc��nio que at�� certas mulheres que
n��o podemos considerar belas possuem. H�� beleza sem gla-
mour explicam os entendidos.
Dum modo geral os filmes de Hollywood glamorizam a
vida no sentido de lhe emprestarem um colorido e um encanto
que nem sempre ela tem. Esse v��cio de Hollywood �� uma con-
seq����ncia do esp��rito americano t��o inclinado para os contos
de Cinderela, de sucesso, e t��o disposto sempre a fugir de tudo
quanto �� m��rbido e triste. Uma prova disso �� que os escritores
mais cruamente realistas s��o os que encontram menos p��blico
neste pa��s. Ora, glamorizando a vida e as pessoas, Hollywood
contribui para que se agrave essa tend��ncia glamorizante ���
digamos assim ��� do car��ter nacional. S��o, pois, os est��dios,
fant��sticas f��bricas de glamour cujos produtos ��� curiosa forma
de entorpecente ��� encontram mercado entusiasta em todo o
mundo.
Examine os livros e revistas que se publicam neste pa��s.
S��o bem impressos, bem ilustrados, em suma, cheios de glamour.
Suas ilustra����es falam-nos dum mundo admir��vel, aerodin��mico,
vitaminizado, mecanizado e colorido. N��o conhe��o um ��nico
magazine americano que publique hist��rias realistas, em que
a mis��ria e as paix��es das criaturas apare��am nuas.
As pr��prias frutas e legumes s��o aqui glamorizados n��o s��
pelos agricultores que, por meio de drogas especiais, procuram
produzi-los maiores e mais belos, como tamb��m pelos revende-
dores que os apresentam em inv��lucros de celofane ou em caixas
de papel��o com r��tulos brilhantes e vistosos.
Neste pa��s at�� os cemit��rios t��m glamour. N��o exagerou
Aldous Huxley ao descrever um cemit��rio califoriano cujo nome
rom��ntico aparece �� sua entrada em letras luminosas de g��s ne��-
nio. (Explicar��o os americanos do Leste, n��o sem alguma verdade,
que tais extravag��ncias s�� acontecem na Calif��rnia...) Co-
nhe��o um cemit��rio que faz an��ncios em programas de teatro
e em magazines de luxo, apregoando as del��cias de seu "Jardim
das Lembran��as" (a palavra cemit��rio �� tabu) onde podere-
mos repousar �� sombra de carvalhos, pinheiros e faias, ao som
de regatos murmurantes e, a certa hora do dia, sob o sortil��gio
da m��sica de Bach ou H��ndel tocada num ��rg��o invis��vel...
A ind��stria do glamour, no que diz respeito ��s mulheres, ��
explorada neste pa��s atrav��s da venda de cosm��ticos, de per-
fumes, e duma s��rie de pequenas coisas relacionadas com a
maquilagem. Helen Rubistein, Max Factor, Elisabeth Arden
s��o alguns dos sumo-sacerdotes desse colorido rito de vaidade
e ilus��o.
384
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
A mania do glamour chega em certos casos a contagiar
at�� as religi��es. Diga-se de passagem que a igreja cat��lica ���
com o seu s��lido glamour latino e milenar ��� �� mais imperme��-
vel que as seitas protestantes a esse tipo de "glamour americano.
Muitas igrejas e capelas evang��licas glamorizam suas fachadas
e jardins, e alguns de seus pregadores ��� pelo menos aqui na
Calif��rnia ��� escolhem t��tulos glamorosos para seus serm��es,
chegando ao ponto de fazerem estampar, na p��gina religiosa da
edi����o de s��bado dos jornais, an��ncios dos servi��os dominicais
de suas igrejas ��� mas an��ncios ilustrados com seus retratos,
como se eles pr��prios fossem glamour boys.
O glamour por sua vez tem uma certa rela����o com as palavras
sexo, show, personalidade, sucesso. Em mat��ria de fasc��nio
sexual, o glamour �� uma isca poderosa. Muitas glamour girls
saem do gin��sio ou da universidade e v��o para a Broadway ou
para Hollywood. O glamour lhes abre muitas vezes a porta do
casamento ou a do sucesso na vicia comercial ou art��stica. Afir-
ma-se que as pessoas que t��m glamour quase sempre t��m per-
sonalidade, coisa t��o apreciada num pa��s em que h�� ��� for��a
�� confessar ��� uma certa tend��ncia para a padroniza����o.
Os americanos chegaram �� perfei����o de glamorizar at��
a morte. Quando uma criatura morre �� ela entregue a um t��c-
nico que se encarrega do vel��rio, do funeral e do resto. Esse
t��cnico poderia chamar-se simplesmente undertaker, ou seja
armador. Mas n��o! Oh n��o! Eles se d��o o glamoroso t��tulo
de mortician, e o corpo inerme que lhe confiam deixa de ser
um defunto para ser um paciente. O mortician embalsama-o,
lava-o, veste-o, pinta-o; se se trata dum homem, escanhoa-
Ihe o rosto. Se �� mulher, poder�� em certos casos chegar ao
requinte de fazer no cad��ver uma ondula����o permanente. En-
fim, o mortician tudo faz para que na sua ��ltima morada ���
o esquife ��� o paciente mantenha uma postura n��o s�� digna
como tamb��m at�� certo ponto agrad��vel aos olhos dos vivos.
Ningu��m guarda defunto em casa, Fernanda. O morto �� en-
tregue aos mortuaries, empresas mortu��rias que se encarregam
de tudo, desde o preparo do corpo at�� o enterro com acompa-
nhamento de "t��cnicos" passando pelo vel��rio, que �� uma ce-
rim��nia que se parece mais com um cocktail party que com
qualquer outra coisa. Esses mortu��rios s��o casas de aspecto
risonho e gentil, algumas em estilo Tudor, outras �� fei����o das
mans��es espanholas, e n��o poucas imitando templos gregos ou
mans��es georgianas. T��m nomes rom��nticos como "Jardim do
Sil��ncio", "Morada das Recorda����es", "Mans��o do Bom Sama-
ritano", "Casa do Consolo"... Seus jardins s��o verdes e �� noite
fa��scam em suas fachadas letreiros de luz ne��nio. Dentro des-
A VOLTA DO GATO PRETO
385
ses mortuaries h�� espelhos, tapetes fofos, vasos com flores, qua-
dros de arte e uma atmosfera glamoiosa que procura tirar ��
morte toda a sua qualidade macabra. Minha amiga, morre-se
muito confortavelmente neste pa��s!
N��o ser�� a glamoriza����o da vida uma forma de escapis-
mo, um desejo de fugir de tudo quanto a realidade nos oferece
de feio e desagrad��vel? Sim, �� poss��vel, mas talvez essa ten-
d��ncia possa ser interpretada tamb��m como uma inclina����o
art��stica se n��o para a beleza profunda e rara, pelo menos para
o bonito de superf��cie, para o que �� agrad��vel aos sentidos.
Porque apesar dessa voca����o para o escapismo que man-
teve os Estados Unidos por tantos anos isolados, os americanos
quando necess��rio sabem enfrentar a realidade. E n��o preci-
sarei invocar exemplos da hist��ria passada. Basta lembrar a
maneira como agora eles se est��o portanto na presente guerra.
Uma guerra ��� confessemos ��� que procuram por todos os meios
glamorizar... uma vez que n��o lhes �� poss��vel ignor��-la.
OF GANGSTERS AND TOMATOES
17 de fevereiro. Um dos gangsters mais odiosos
do cinema �� Sheldon Leonard, sujeito alto, moreno e
corpulento, de ondulados cabelos negros, e uma ex-
press��o de sarcasmo e maldade constantemente a cris-
par-lhe os l��bios. Pois encontrei esse tem��vel fac��nora
hoje pela manh�� no mercado do nosso bairro, a fazer
compras com um cesto no bra��o. Apanhei-o em fla-
grante no ato de escolher legumes. . . E com a mesma
m��o assassina afeita ao punhal e �� metralhadora, ele
apalpava delicadamente berinjelas, cenouras, aipos e
t o m a t e s . . .
O SIL��NCIO �� DE OURO
5 de mar��o. Minha mulher me considera um su-
jeito muito mal-educado e vive criticando meu com-
portamento social. Assegura-me ela que costumo
dormir de olhos abertos na sala, diante das visitas. Diz
386
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
que n��o presto nunca aten����o ao que me perguntam,
e que em geral me fecho num sil��ncio n��o de ouro,
mas de pedra.
Lembro-me duma cena pat��tica no refeit��rio do
Mills College, na noite em que �� mesa do jantar me
fizeram sentar ao lado duma visitante ilustre, com o
fim de entret��-la. Era uma senhora ainda mo��a, a que
o pince-nez e um coque antiquado envelheciam cari-
caturalmente. Disseram-me que se tratava de pessoa
muito culta e profundamente interessada na Am��rica
Latina. Por mais que me esfor��asse eu n��o encontrava
assunto. J�� havia esgotado todas as perguntas formais
��� "De que estado �� ? " "Vive h�� muito na Calif��rnia?"
"�� a primeira vez que visita o campus?" ��� e n��o queria,
por uma quest��o de dignidade, falar no clima de San
Francisco. Houve um momento em que andei voando
por um vago mundo de abstra����es, mistura de sonho,
sono e distra����o... De repente senti um golpe na ca-
nela. Era Mariana, que usava a contundente linguagem
do bico do sapato para me chamar �� realidade. Tive
um sobressalto. Olhei para os lados, atarantado, en-
quanto minha mulher explicava:
��� Essa senhora acaba de te fazer uma pergunta...
��� Oh! I am so sorry.. . Que foi que a senhora
perguntou?
Com uma voz de cinza fria a cair de l��bios des-
corados e estreitos, ela repetiu:
��� Que provid��ncias foram tomadas para restaurar
a biblioteca p��blica de Lima, Peru, destru��da pelo
fogo?
Por um instante fiquei como que cristalizado de
espanto. Depois, lentamente, respondi:
��� Sinto muito, minha senhora. N��o tenho a menor
id��ia.
E desse ponto em diante mais fundo e espesso foi
meu sil��ncio.
A VOLTA DO GATO PRETO
387
Hoje somos convidados para uma festa na casa de
Gerald Smith, que mora em North Hollywood. Refiro-
me ao admir��vel Gerald Smith, que representa o "Coor-
denador dos Assuntos Interamericanos" em Los Angeles
e n��o ao odioso Gerald J. Smith, imperialista, isolacio-
nista e reacion��rio.
Gerry convidou umas duas dezenas de amigos
para assistirem �� exibi����o de filmes sonoros de 16 mi-
l��metros que mostram trechos do Rio, de S��o Paulo e
de Belo Horizonte.
A reuni��o est�� muito agrad��vel. Mariana me se-
greda que espera com ansiedade a hora das bebidas,
pois descobriu que s�� depois do primeiro copo de
u��sque �� que ganha coragem e desembara��o para falar
ingl��s.
��� Estou com a l��ngua amarrada ��� diz ela. ��� E
por falar em l��ngua j�� reparaste como aqui ningu��m
fuma?
��� Fica firme ��� digo-lhe. ��� N��o te esque��as de
que todos s��o m��rmons. Os m��rmons n��o bebem
��lcool nem fumam.
��� Mas eu vou arriscar...
Inclina-se para uma senhora e pergunta-lhe:
��� Ser�� que posso fumar?
A dama sorri delicadamente e hesita:
��� B o m . . . a senhora compreende. .. n��s n��o apro-
vamos . . . mas se a senhora quiser, quem s a b e . . . na
outra s a l a . . .
E sorri um sorriso que �� em si mesmo um aca-
nhado pedido de desculpas.
��� Ah! N��o, absolutamente.
Chegam as bebidas e os sandu��ches. Enormes
copos com um l��quido esbranqui��ado. Limonada. . .
Mariana me olha significativamente.
Depois da exibi����o dos filmes, Gerald Smith me
pede que fa��a uma palestra sobre o Brasil. Recost��-
me numa porta e come��o a conversar... N��o sei se
388
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
foi a limonada que me soltou a l �� n g u a . . . S�� sei que
vou falando, sem atentar no tempo que passa. Maria-
na me lan��a olhares de surpresa. Conto como foi des-
coberto o Brasil, que tipos entraram na forma����o da nos-
sa ra��a; descrevo em tra��os gerais a geografia brasileira,
e procuro contar das diferen��as que hoje h�� ��� no f��-
sico e na psicologia ��� entre os diversos estados do
Brasil. E assim nessa digress��o gasto uma hora inteira.
De volta para casa no autom��vel, digo a Mariana:
��� Bem, hoje n��o podes dizer que n��o f a l e i . . .
Com a cabe��a atirada para tr��s no respaldo do
banco, ela murmura:
��� Hoje falaste demais.
SEGREDOS DA MATERNIDADE
22 de mar��o. Vou almo��ar com Robert Nathan
no est��dio da Metro-Goldwyn-Mayer. O autor de "O
Retrato de Jennie" ocupa um gabinete no edif��cio cen-
tral do est��dio. Reina tamanho sil��ncio nestes corre-
dores limpos e reluzentes, que este departamento da
Metro �� conhecido pelo nome de "maternidade". Creio
que o nome �� apropriado, pois quando os manuscritos
saem destas salas prontos para serem entregues ao ho-
mem que lhes dirigir�� a filmagem, eles podem ser com-
parados a crian��as que acabam de vir ao mundo de-
pois de longo, laborioso processo de gesta����o; e sua
entrada neste vale de l��grimas muitas vezes se pro-
cessa gra��as a interven����es cir��rgicas. Porque o que
se faz nesses scripts ��� cortes, emendas, adi����es ��� equi-
vale a verdadeiras opera����es. Outro pormenor impor-
tante: dificilmente se poder�� determinar o pai das
"crian��as" que nascem nesta "maternidade", cujo pre-
sidente �� Mr. Louis B. Mayer.
Tomemos por exemplo um caso concreto. Imagi-
nemos que um romance intitulado "Borborigmos do
A VOLTA DO GATO PRETO
389
Cora����o" (tudo �� poss��vel neste pa��s em mat��ria de
t��tulos. . .) conseguiu grande sucesso de livraria. H��
uma corrida para a compra de seus direitos cinemato-
gr��ficos, mas a Metro ganha a concorr��ncia e aboca-
nha o romance.
Isso feito, o est��dio entrega o livro a um grupo
de peritos na arte de transformar uma hist��ria liter��-
ria numa hist��ria cinematogr��fica. Os peritos terminam
o trabalho e submetem-no �� leitura dos chefes. Os che-
fes acham que falta ��� digamos ��� um "toque de Robert
Nathan", isto ��, uma coisa que pode ser reduzida ��
seguinte f��rmula: sophistication + p o e s i a + leve melan-
colia+mist��rio. O script �� enviado a meu amigo Nathan,
que lhe p��e a sua marca, introduzindo di��logos e cenas
novos, e alterando os antigos. Assim em sua nova forma,
como o "Nathan's touch" volta o manuscrito para o che-
fe da produ����o, que o l��, franze o nariz e diz que est��
faltando ainda qualquer c o i s a . . . Que ser��? Masca
o charuto, atira os p��s para cima da mesa, brinca com
um l��pis e de repente uma palmada na coxa. Achei!
O que falta �� um toque m��sculo, um pouco de vio-
l��ncia �� James Cain. Ora, James Cain �� um escritor
de novelas patol��gicas, cujos her��is em geral s��o gente
rude com inclina����es para o homic��dio, para a fraude
e para a viol��ncia. Assim o manuscrito �� remetido ao
escrit��rio de Mr. Cain, que funga, tosse, franze as so-
brancelhas h��spidas e introduz nele umas cenas vio-
lentas, uns di��logos brutais, esmagando assim com seus
coturnos de ferro as lindas flores que Robert Nathan
com gosto art��stico e sentimento po��tico semeara pela
hist��ria. E de novo l�� vai o script, cheio de novas
emendas, para as m��os do producer que acaba achan-
do que ainda falta na coisa toda um toque de humor.
Mas quem �� que poder�� dar esse toque? Ora q u e m . . .
Ludwig Bemelmans, o famoso humorista sat��rico! Mas
Mr. Bemelmans est�� em Nova York! N��o faz mal.
Consigam-me uma liga����o telef��nica com ele. Okay.
Dez minutos depois Mr. Bemelmans, que est�� no seu
390
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
apartamento em Nova York, metido num banho morno,
comunica-se por telefone com Mr. Producer, que est��
no seu escrit��rio, no est��dio da Metro., em Hollywood.
��� Helio, Ludwig!
��� Helio there! Como v��o as coisas?
��� Aqui em Los Angeles faz calor como sempre.
��� Pois aqui em Nova York est�� caindo neve.
��� Veja s�� como �� a natureza!
��� Hey! Voc�� me chamou s�� para conversar sobre
o tempo?
��� Oh! N��o. Escute, Ludwig. Tenho um script
aqui e queria que voc�� desse uma m��o nele. . .
��� Estou muito ocupado, meu velho.
��� Mas �� uma coisinha de nada. Quero meia d��-
zia de boas piadas.
��� Honest? S�� meia d��zia?
��� Palavra de honra.
��� Mande-me ent��o o script.
��� Satj, Ludwig. Temos pressa.. . queremos co-
me��ar a filmagem Togo.
��� Okay. Em quatro dias tudo ficar�� pronto.
��� Splendial! . . .Escuta, Ludwig, qual �� o teu
pre��o?
��� Vinte mil.
��� Phew! Vinte?
��� Vinte. Nem um cent menos.
��� Est�� bem. Bye-bye!
E assim no pr��ximo avi��o o manuscrito voa para
Nova York, a fim de que Mr. Ludwig Bemelmans in-
clua nele um par de piadas. E ao cabo de alguns meses
de trabalho, e ao pre��o de v��rias centenas de milhares
de d��lares, o manuscrito fica finalmente pronto para
ser filmado. E na sua forma definitiva qualquer se-
melhan��a que possa ter com o original de "Borborigmos
do Cora����o" ter�� sido mera coincid��ncia. . .
Contaram-me que faz mais de um ano que os es-
critores da Metro est��o trabalhando na vers��o cinema-
A VOLTA DO GATO PRETO
391
togr��fica do livro de Marjorie Rawlings, "The Year-
ling". E afirma-se que at�� esta data a companhia j��
gastou perto de 700 000 d��lares s�� com esse trabalho
de adapta����o.
e o o
Almo��o no commissary da Metro, que �� um vas-
to restaurante decorado em bege e azul. Sento-me
entre Robert Nathan e Leslie Charteris, escritor de no-
velas policiais e criador do "Santo", figura rom��ntica
de aventureiro. �� um homem grande, de cara larga de
guriz��o. Na nossa frente James Cain luta com uma
perna de galinha. �� um tipo moreno, de ��culos, cabe-
leira grisalha e revolta, nariz largo, boca apertada e
amarga, sobrancelhas muito cerradas; tem exatamente
a express��o que o leitor espera encontrar no rosto do
autor de "Pacto de Sangue". Suas personagens, que
falam g��ria, est��o sempre inventando estratagemas in-
fernais para acabar com a vida de algu��m, a fim de
ficar com alguma coisa ��� a mulher da v��tima ou a im-
port��ncia de seu seguro de vida.
Olho em torno e vejo faces familiares. L�� est��
Walter Pidgeon. Mais al��m. Gene Kelly e Marsha
Hunt. De quem �� aquele rosto miudinho t��o conhecido?
�� de Margaret O'Brien, que est�� ao lado de Edward
Robinson, horrendo na sua caracteriza����o para Our
Vines Haves Tender Grapes ��� um bigod��o escuro a
cair-lhe pelos cantos da boca. Lana Turner passa por
n��s, e seus cabelos muito claros reluzem.
Depois do almo��o saio com Robert Nathan a visi-
tar os sound stages. Apresenta-me ele a Judy Garland e
Robert Walker que est��o filmando uma cena de The
Clock em cujo script Nathan imprimiu sua marca. Co-
nhe��o tamb��m o diretor Vincent Minnelli que nos inter-
valos dos ensaios abra��a e beija Judy com quem, dizem,
vai casar. �� um homem magro, de cabelos escuros e de
ar serelepe. Conto-lhe que vi as ilustra����es que ele
392
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
desenhou para uma edi����o especial das "Mem��rias de
Casanova". Minnelli faz um gesto de horror, pois con-
sidera esses desenhos um pecado da juventude; acha-os
n��o s�� amaneirados como tamb��m uma p��ssima imi-
ta����o de Aubrey Beardsley.
Fico para assistir �� filmagem. Quem imagina que
a feitura duma pel��cula tem muito encanto e pitoresco,
engana-se. �� um trabalho lento, cacete, sonolento, re-
petido. Levam ��s vezes uma tarde inteira para filmar
uma cena cuja exibi����o na tela n��o gastar�� mais de
cinco minutos.
Vejo por aqui uma quantidade enorme de tra-
balhadores. Cada um tem sua fun����o. Dois encarre-
gam-se da c��mara, outros dois puxam o carro em que
a c��mara est�� montada e muitos outros tomam conta
dos refletores, do microfone, do controle do som, etc. . .
Imagino que haver�� milhares de pessoas que gos-
tariam de estar agora no meu lugar, que dariam tudo
para entrar aqui e aproximar-se de Judy Garland ou
Robert Walker. No entanto anseio por sair deste barra-
c��o. Faz calor e j�� estou cansado de ver a mesma
cena repetir-se tantas vezes: Judy e Robert andam ��
procura dum juiz para cas��-los. A arrumadeira do es-
crit��rio lhes informa que o juiz acaba de sair. Os dois
jovens voltam correndo e encontram o homenzinho
junto do elevador. H�� um di��logo r��pido, impaciente,
ao cabo do qual o juiz decide voltar para casar os dois
jovens.
Robert (o Nathan, n��o o Walker) e eu n��o espe-
ramos pelo casamento.
Sa��mos para o ar livre e voltamos rumo da mater-
nidade. No caminho pergunto a Nathan se est��
escrevendo algum livro.
��� Que �� que se pode escrever nesta hora do mun-
do? E depois ��� acrescenta ele, com a sua voz calma
��� como �� poss��vel escrever alguma coisa s��ria na Cali-
f��rnia, com este sol, com este a r . . .
A VOLTA DO GATO PRETO
393
Passa por n��s Jos�� Iturbi, fumando cachimbo e
com a cara maquilada. Vai decerto tocar o concerto
de Crieg ou um boogie-woogie de Duke Ellington.
Ginger Rogers cruza a rua no seu autom��vel. E um
cow-boy solit��rio fuma sentado num caix��o vazio ��
sombra dum caminh��o.
��� O que eu fa��o agora ��� continua Robert ��� ��
escrever argumentos para cinema. N��o tem a menor
import��ncia. Eles pagam bem e no fim de contas meu
nome mal aparece nessas c o i s a s . . .
(Nathan ganha dois mil d��lares por semana.)
Quando voltamos a seu escrit��rio, sento-me �� sua
mesa e ele se estende no sof��, acendendo um charuto.
Confesso que tenho uma grande simpatia por esse ho-
mem tranq��ilo, que escreve com ternura e compreen-
s��o sobre menininhas antigas, pintores bo��mios e artis-
tas not��vagos. Descendente de judeus, tem ele um
perfil fino, uma tez p��lida, cabelos e olhos escuros.
Atirando para o ar a fuma��a do charuto ele
pergunta:
��� Voc�� se preocupa com o futuro de seus livros?
Quero dizer.. . deseja que eles sejam lidos muitos anos
depois de sua morte?
Encolho os ombros:
��� Sei que n��o ser��o. Mas confesso que isso n��o
me d�� o menor cuidado.
��� Pois a mim me d�� ��� diz Nathan, depois duma
curta pausa. ��� Muitos cr��ticos negam minha obra. Mas
h�� uma coisa que me traz grande conforto e me faz es
perar que meus livros n��o morram t��o cedo. �� que a
gente mo��a parece gostar muito d e l e s . . .
Essa confid��ncia c��ndida me sensibiliza. Ela n��o
revela o touch ir��nico de Nathan. Mas feita sem ne-
nhum alarde nem falsa mod��stia, dentro dum est��dio
de Hollywood, e por um homem que realizou uma
obra s��ria que ele pr��prio parece amar profundamente
��� tem um sentido extraordin��ria
394
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Estamos ainda a falar na sobreviv��ncia de livros
quando James Cain irrompe na sala e vem pedir infor-
ma����es a Nathan sobre a men����o dos direitos para
televis��o nas cl��usulas de novos contratos em torno
de livros. Quando Cain se retira, fico a sorrir.
��� Por que �� que est�� sorrindo? ��� pergunta Nathan.
��� Porque dificilmente se poder��o encontrar numa
mesma sala dois tipos t��o diferentes. O poeta que es-
creveu "O Retrato de Jennie" e o "ogre" que engendrou
o crime de "O Destino Bate �� Porta".
Nathan soergue-se no sof��.
��� �� curioso, n��o �� mesmo? E sabe que na rea-
lidade Cain gosta de ca��a grossa, adora ver sangue?
Depois dum sil��ncio acrescenta:
��� E o mais estranho �� que de n��s dois o reacio-
n��rio �� ele. Votou em Dewey porque abomina
Roosevelt.
H�� uma pausa em que mais fundo se faz o sil��ncio
da maternidade. Penso no processo de gesta����o de
tantos scripts que a esta hora est��o tomando forma,
como monstruosos fetos que antes de surgir para a luz
andassem de ventre em ventre, para depois, sem pai
certo, sem outro nome de fam��lia que o da M. G. M.,
sa��rem pelo mundo a divertir milh��es de criaturas, atra-
v��s duma vida que por mais gloriosa que seja n��o dei-
xar�� nunca de ser ef��mera.
Todo esse processo n��o ser�� por acaso mais um
desses muitos horrores da idade da m��quina?
O PRESTIGIO DO AMANH��
25 de mar��o. Os jornais e revistas americanos tra-
duzem bem a mania que uma parte da popula����o deste
pa��s tem de correr �� frente do tempo. As revistas de
agosto por exemplo s��o postas �� venda em princ��pios
A VOLTA DO GATO PRETO
395
de julho. E h�� jornais que se gabam de dar hoje as
not��cias de amanh��. E o mais melanc��lico ou, melhor,
o mais tolo �� que com tal preocupa����o essas publi-
ca����es s�� conseguem andar atrasadas...
Vejo hoje num magazine esta charge: �� no cor-
redor duma maternidade, e uma enfermeira sai de um
dos quartos com um rec��m-nascido nos bra��os. Uma
segunda nurse aproxima-se dela e pergunta, surpresa:
��� Mas esse beb�� n��o estava sendo esperado para
o m��s que vem?
��� Estava, sim ��� responde a primeira, ��� Mas acon-
tece que ele �� filho dum diretor de revista. . .
Positivamente, o que salva este povo �� a capaci
dade que ele tem de zombar de si mesmo.
O PROBLEMA NEGRO
Fernanda: Tobias, que se tem especializado ultimamente em
assuntos dif��ceis, esta manh�� me tomou do bra��o e lan��ou em
rosto esta pergunta: "Que me diz da discrimina����o racial neste
pa��s?' Est��vamos sentados num banco de Pershing Square, to-
mando sol e olhando pregui��osamente os vagabundos, os p��s-
saros e as crian��as.
��� Custa-me acreditar ��� respondi ��� que um pa��s onde im-
pera o bom samaritanismo; que uma na����o de crist��os empenha-
dos em jazer boas obras; que um povo, enfim, t��o pronto a falar
em democracia e igualdade mantenha os negros segregados, por-
tando-se com rela����o a eles dum modo t��o desumano.
T. ��� Qual a raiz desse sentimento antinegro?
E. ��� Para principiar havia essa coisa absurda, errada e
cruel que era a escravatura. E a necessidade de bra��os para
as lavouras do Sul. Depois, esse sentimento aristocr��tico que
�� um dos caracter��sticos da ra��a anglo-sax��nica. O pioneiro
anglo-sax��o dificilmente ou nunca se misturava com os ��ndios.
Ora, esses descendentes de ingleses que eram e s��o os brancos
do Sul achavam e acham o negro ainda mais repulsivo que o
ind��gena. A repulsa assumiu propor����es tamanhas, que de certo
modo o escravo acabou sendo olhado mais como um animal do
que como uma criatura humana. Algumas pessoas de fundo re-
ligioso tratavam de conciliar a B��blia com suas idiossincrasias ra-
396
O B R A S D E ER1CO V E R �� S S I M O
cistas, dizendo que Deus fez todos os homens iguais, n��o h�� d��-
vida, mas ficou claro que as Escrituras n��o classificam os negros
dentro do g��nero humano.
T. ��� S�� esse sentimento anglo-sax��o explica a posi����o dos
negros hoje?
E. ��� Claro que n��o! Em cima desse erro, isto ��, do traba-
lho escravo, ergueu-se toda uma estrutura econ��mica cuja segu-
ran��a e integridade ficariam em perigo caso os negros obtivessem
sua liberdade. Essa depend��ncia duma ra��a que eles considera-
vam inferior, criava um ressentimento que se traduzia em muitos
casos em maus tratos.
T. ��� Teve ou tem esse sentimento antinegro alguma causa
sexual?
E. ��� Sim, at�� certo ponto. Apesar de todos os preconceitos
raciais, alguns homens brancos tinham curiosidade sexual com
rela����o as mulheres negras. Muitas vezes (e n��o raro tinham de
se embriagar para isso) coabitavam com elas. Os resultados des-
ses casos eram quase sempre: a) a produ����o dum mulato, que
ainda continuaria a ser "um negro"; b) esc��ndalo entre os bran-
cos e uma atitude de repulsa para com o branco renegado que
dormira com a negra; c) ��dio pela negra, principalmente da parte
das mulheres brancas. Aconteceram freq��entemente hist��rias
como a que o nosso Jorge de Lima conta no seu admir��vel poe-
ma "Essa Nega Ful��". E quando um negro assaltava e violava
uma branca, ele era perseguido e linchado.
T. ��� Ainda h�� linchamentos hoje em dia?
E. ��� Apenas nos estados mais atrasados. Os linchamentos
eram mais freq��entes na ��poca que se seguiu ao fim da Guerra
Civil. E observe esta coisa curiosa. O destino do negro sem-
pre esteve ligado intimamente �� economia do Sul. Ficou pro-
vado que, quando o pre��o do algod��o baixava, o n��mero de lin-
chamentos aumentava.
T. ��� A velha teoria do bode expiat��rio...
E. ��� Hoje em dia os linchamentos diminu��ram sensivel-
mente a ponto de se tornarem rar��ssimos, e isso se deve em gran-
de parte �� atitude, com rela����o a eles, do resto do pa��s, a qual
deixou de ser tolerante ou desligante para ser de franca censura.
T. ��� Que outros fatores causaram ou exacerbaram a discri-
mina����o racial?
E. ��� A competi����o. O trabalhador negro, antes da abo-
li����o, era um concorrente ��� involunt��rio, �� verdade ��� do tra-
balhador branco, pois trabalhava mais e de gra��a. Depois da
aboli����o entrou na competi����o livre.
T. - Livre?
A VOLTA DO GATO PRETO
397
E. ��� Na verdade n��o se pode usar o termo livre, uma vez
que os empregadores sempre deram prefer��ncia ao trabalhador
branco.
T. ��� Por alguma raz��o t��cnica?
E. ��� N��o. Ainda por um preconceito racial.
T. ��� Em que consiste a discrimina����o racial no Sul?
E. ��� O negro ��, no dizer do sulista, "mantido no seu lugar".
Nos cinemas, nos ��nibus, bondes e trens, eles t��m lugares se-
parados. At�� mesmo nas igrejas essa separa����o existe. Nas
esta����es de estrada de ferro dos estados do Sul vemos uma sala
de espera para brancos e outra para negros. Quando levado a
j��ri, o negro sempre tem menos chances de absolvi����o, pois seu
caso raramente �� examinado com simpatia ou toler��ncia, como
poderia acontecer se se tratasse dum branco. Mais ainda: se-
gundo uma conven����o do Sul n��o se deve dar a um negro o tra-
tamento de Mr. (mister).
T. ��� Os negros t��m direito ao voto nesses estados sulinos?
E. ��� Teoricamente sim. Mas na pr��tica existem muitos tru-
ques legais, semilegais, ou ilegais para evitar que o negro vote.
T. ��� Que oportunidades tem o negro para se educar?
E. ��� Muitas. H�� escolas prim��rias e secund��rias gratuitas
para os pretos e situadas nos distritos onde eles vivem. H�� tam-
b��m universidades s�� para gente de cor.
T. ��� E que chances encontra neste pa��s o negro educado?
E. ��� Um negro que se forma em direito, engenharia ou me-
dicina pode fazer carreira entre os de sua ra��a. Mas a educa����o
torna-os ainda mais infelizes, pois o negro esclarecido sente
ainda mais agudamente o isolamento social em que vive.
T. ��� Mas essa discrimina����o existe legalmente em todo o
pa��s?
S. ��� N��o. H�� muitos estados em que tal segrega����o n��o
�� legal. Em geral a situa����o dos negros nos Estados do Norte
e na Calif��rnia �� melhor que no resto do pa��s. Nessas regi��es
eles podem votar sem precisar pagar poll tax e podem freq��en-
tar universidades de brancos. (�� o caso da Universidade da Cali-
f��rnia, onde vi muitos negros, alguns dos quais assistiram a
algumas de minhas confer��ncias.)
T. ��� Fazem-se campanhas em prol dum melhor tratamento
para os negros?
E. ��� Muitas! �� preciso fazer justi��a a uma boa parte da
popula����o americana que n��o aprova o tratamento que se d��
aos seus compatriotas de pele escura. H�� in��meros escritores,
educadores e jornalistas liberais que conduzem atrav��s do livro,
do jornal, do r��dio, da tribuna e da c��tedra uma s��ria campanha
contra a discrimina����o racial. Mas dum modo geral o assunto
398
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
negro �� tabu nos Estados Unidos. Agatha Christie escreveu um
romance policial que se publicou na Inglaterra sob o t��tulo de "O
Caso dos Dez Negrinhos". Pois bem. Na sua edi����o norte-ameri-
cana esse t��tulo teve de ser mudado para "O Caso dos Dez In-
diozinhos", pois a experi��ncia aconselha os comerciantes a evitar
a palavra negro sempre que seja poss��vel.
T. ��� Mas �� incr��vel1
E. ��� Ainda mais. Hollywood produziu recentemente uma
com��dia em que o ator negro Rochester faz papel relevante.
Essa pel��cula n��o foi passada no estado de Mississipi porque ���
alegaram alguns "mississipenses" ��� nela se d�� a um preto um
papel social demasiadamente importante, o que n��o s�� �� absurdo
como tamb��m pode tornar-se mau exemplo...
T. ��� Em suma, o negro n��o �� considerado propriamente
um ser humano...
E. ��� Alguns americanos levam sua repulsa pelos pretos
ao ponto de n��o os considerarem seus semelhantes. Li a carta
que um americano escreveu a uma ag��ncia brasileira de Nova
York perguntando at�� que ponto Gilberto Freyre, em seu livro
"Brasil", escrito em ingl��s e contendo uma interpreta����o de nosso
pa��s, falava a verdade ao afirmar que no Brasil os pretos t��m
direitos iguais aos dos brancos. Dizia o feroz missivista: "Esse
Sr. Freyre comete grave erro se est�� procurando provar-nos
que essa miscigena����o �� o caminho certo. Acho que a univer-
sidade americana que convidou um professor com t��o perigo-
sas id��ias para dar um curso de confer��ncias a seus jovens alu-
nos devia ser repreendida." Mais adiante continuava: "Eu e
minha senhora pretend��amos em breve visitar o Brasil. Mas
se o Sr. Freyre falou a verdade, n��s n��o poderemos nos sen-
tir bem num pa��s em que tais absurdos acontecem". Quando
terminei a leitura dessa carta murmurei: "O Brasil n��o precisa
de gente dessa esp��cie."
T. ��� Mas como �� que os protestantes (Eles s��o maioria no
Sul, n��o s��o?) encaram o problema? Melhor, como justificam
a discrimina����o?
E. ��� N��o conhe��o o pensamento oficial do protestantismo.
Mas um metodista um dia me disse que a B��blia ensinou aos
americanos que Deus pro��be a fornica����o, um de cujos aspectos
sacr��legos �� a mistura de branco com negro. ��� Em suma ���
concluiu ele ��� segundo as Escrituras a separa����o entre brancos
e pretos corresponde a uma vontade expressa do Alt��ssimo.
T. ��� Mas h�� realmente na B��blia alguma passagem que con-
dene claramente essa uni��o?
E. ��� Que eu saiba, n��o. Mas devo confessar que o protes-
tante que me deu essas raz��es n��o era nem um pastor nem mes-
A V O L T A DO G A T O P R E T O
399
mo um homem culto. Se eu lhe recolhi e aqui registro o pen-
samento foi porque me parece que ele traduz o modo de sentir
e pensar dum vasto grupo.
T. ��� H�� outro problema que me intriga. �� a origem, fun-
����o e sobreviv��ncia da sociedade secreta Ku-Klux-Klan.
E. ��� Quando terminou a Guerra Civil os brancos sulistas
viram com um sentimento de revolta e agonia que os negros
adquiriam direitos de cidad��os e que num certo estado ��� Carolina
do Sul ��� chegavam a ser maioria na Casa dos Representantes.
Por outro lado, exploradores sem escr��pulos vindos do Norte
usavam o negro com o fim de afrontar ou prejudicar os brancos
do Sul. Como conseq����ncia de tudo isso, os ex-confederados,
feridos no seu orgulho, na stia economia e na sua tradi����o, resol-
veram tomar medidas de repres��lia contra os pretos. Levando
em conta o esp��rito supersticioso do negro, t��o pronto a acreditar
em assombra����es e almas do outro mundo, fundaram os brancos
sociedades secretas como os "Caras P��lidas", a "Fraternidade
Branca", os "Cavaleiros da Cam��lia Branca". (Veja a insist��ncia
com que a cor branca �� usada no t��tulo e nos s��mbolos dessas
sociedades.) De todas essas associa����es, por��m, a que mais
poder reunia e a que maior raio de a����o teve foi o chamado
"Imp��rio Invis��vel da Ku-Klux-Klan"...
T. ��� �� singular como essas coisas possam acontecer nos
Estados Unidos!
E. ��� �� por isso que eu sorrio quando alguns observadores
latinos, do alto de sua sufici��ncia, pensam que podem definir este
povo como sendo apenas "uma na����o de crian��as grandes". Agora,
�� poss��vel que, no fundo, esses membros adultos da terr��vel K. K.
K. n��o tenham passado de eternos adolescentes fascinados pelos
romances de capa e espada. Nota-se entre os americanos o gosto
pelas sociedades e clubes combinado com o amor ao mist��rio. A
Ma��onaria �� uma grande institui����o neste pa��s. A Ku-Klux-Klan,
pois, n��o s�� teve uma finalidade pol��tica e social (de acordo com
os interesses dos brancos do Sul) como tamb��m correspondeu ao
estado de esp��rito duma coletividade.
T. ��� Mas qual era a sua finalidade?
E. ��� A principio simplesmente a de assustar os negros.
Aconteceu, por��m, que os pretos estavam cada vez mais "sabidos"
e ao cabo de algum tempo j�� n��o se impressionavam com aqueles
homens metidos em togas brancas e com as cabe��as cobertas
por misteriosos capuzes. Come��aram ent��o os Klan men passar
de outros recursos: flagelavam os negros e, em muitos casos,
encorajados pelo anonimato, pelo segredo, cometiam crimes que
nada mais eram que a explos��o de diferen��as pessoais e de de-
sejos de vingan��a longamente recalcados. A Ku-Klux-Klan es-
400 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
tendeu o seu imp��rio por todos os estados e passou a ter um
sentido terr��vel, chegando a preocupar a opini��o p��blica.
T. ��� Mas a K. K. K. s�� hostilizava os negros?
E. ��� N��o. Era uma organiza����o de car��ter, digamos p��ra-
fascista. Combatia negros, cat��licos e estrangeiros indesej��-
veis. O caso da K. K. K. foi levado ao Congresso. Queixas
chegavam de diversos pontos do pa��s. Dizia-se que a Ku-Klux-
Klan era antiamericana, cruel, absurda e punha em perigo os
ideais democr��ticos da na����o. Finalmente o congresso apro-
vou uma lei suprimindo a Klan.
T. ��� E a sociedade foi extinta?
E. ��� Sim, mas reviveu anos mais tarde, por ocasi��o da
crise que se seguiu �� Primeira Grande Guerra. Nessa segunda
fase, ela n��o tinha car��ter apenas sulista, mas seus caracter��s-
ticos continuavam a ser fascistas. A Klan hostilizava judeus,
comunistas e cat��licos. Diz Brogan em seu admir��vel livro
"The American Character" que Indiana h�� vinte anos atr��s
era governada pela Ku-Klux-Klan a qual estava empenhada em
salvar a Am��rica para o Herrenvolk, isto ��, para os protestantes
brancos e gentios, que na sua opini��o eram os ��nicos cidad��os
americanos de verdade...
T. ��� Mas que esperan��as h�� de que o problema do negro
seja resolvido?
E. ��� A minha opini��o sincera �� a de que ele n��o se re-
solver�� nem dentro de cem anos...
T. - Por qu��?
E. ��� O n��mero de negros nos Estados Unidos em 1930
correspondia a 9,7% da popula����o total. (Apenas dois ter��os
desses 12 milh��es de pretos viviam no Sul.) Pois bem. Os
casos de miscigena����o n��o s��o muito numerosos, embora existam
de maneira vis��vel. Algumas dessas americanas escuras, de
fei����es regulares (veja-se o caso da bela atriz Lena Home) e
que no Brasil seriam "morenas", aqui s��o consideradas "negras".
E mesmo para elas a discrimina����o continua. Assim, n��o h��
nenhuma esperan��a de que com o tempo o sangue negro desa-
pare��a na grande corrente desse misturado sangue americano.
Por outro lado a discrimina����o cria nos negros um sentimento de
revolta que os torna na maioria dos casos insolentes e at�� agres-
sivos nos distritos em que s��o maioria. Da�� os conflitos, quase
sempre originados por motivos econ��micos ou sexuais.
T. ��� S��o de ontem os riots de Illinois.
E. ��� A�� est��. Em estados como Illinois e Massachusetts,
o primeiro no Middle West e o ��ltimo na Nova Inglaterra, a
discrimina����o racial n��o existe legalmente. Mas os conflitos
entre pretos e brancos ocorrem de tempos em tempos. S��o repre-
A V O L T A DO G A T O P R E T O
401
s��lias, desabafos, diferen��as, irrita����es... E o mais tr��gico,
meu amigo, �� que mesmo as pessoas que teoricamente tomam a
defeza do negro na imprensa ou na tribuna, na pr��tica n��o
se mostram l�� muito dispostos ao conv��vio com seus irm��os
pretos.
T. ��� E que rumo podem essas rela����es entre brancos e
negros tomar depois da guerra?
E. ��� Creio que elas piorar��o, porque durante a guerra a
ind��stria lan��ou m��o indiscriminadamente de todos os tra-
balhadores que se lhe apresentaram, tendo contratado mediante
altos sal��rios milhares de pretos. Quando a paz vier e essas f��-
bricas come��arem a dispensar oper��rios, �� certo que dispensar��o
os pretos, preferindo conservar os brancos.
T. ��� E isso naturalmente causar�� irrita����o entre os negros.
E. ��� H�� ainda outro aspecto absurdo da quest��o racial nos
Estados Unidos. �� que em certos setores negros cresce o sen-
timento anti-semita.
T. ��� A�� est�� uma coisa inexplic��vel. Era natural que essas
ditas minorias fossem aliadas. Qual a raz��o desse sentimento?
E. ��� Econ��mica. Veja bem. Na sua quase totalidade, os
propriet��rios de casas no Harlem, o bairro aos negros em Nova
York, s��o judeus. Trata-se de casas caras e sem conforto e toda
a irrita����o e descontentamento dos negros com rela����o aos se-
nhorios judeus se traduz em atitudes e sentimentos de anti-semi-
tismo.
T. ��� Creio que no terreno racial o Brasil �� um pa��s feliz.
O negro entre n��s goza de outra situa����o.
E. ��� Mas n��o nos iludamos com as apar��ncias, meu caro.
Mesmo entre n��s a~ posi����o do negro �� economicamente a pior
poss��vel e socialmente n��o �� l�� muito melhor. �� uma grande
coisa ��� reconhe��o ��� n��o existir no nosso pa��s uma discrimina-
����o organizada, reconhecida, oficial ou semi-oficial como �� o ca-
so em muitos estados desta na����o norte-americana. Mas o negro
no Brasil n��o tem oportunidade de se educar, n��o porque seja
negro, mas porque pertence em geral �� classe dos marginais.
Por outro lado, muitas vezes ouvi brasileiros brancos dizerem:
"Esse negro n��o conhece o seu lugar..." ou ent��o "Isso �� coisa
de negro . Devemos reconhecer que se aqui nos Estados Unidos
impera a discrimina����o racial, em compensa����o n��o existe discri-
mina����o de classe, como entre n��s. Todas as profiss��es neste
pa��s s��o consideradas dignas, ao passo que no Brasil julgamos as
pessoas pela profiss��o que exercem ou pela maneira como se
vestem. Quantas vezes amigos nossos exclamam com desprezo.
"Mas ele �� um simples gar��on!" ou ent��o "�� um humilde
oper��rior
402
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� �� verdade. Tenho notado que qualquer profiss��o legal
aqui �� considerada digna, sem que se procure criar uma hierar-
quia de trabalho.
E. ��� Um estudante ganha a vida lacando pratos ou traba-
Ihando como gar��on em caf��s ou restaurantes. Meninos de fam��-
lias remediadas ��� filhos de m��dicos, advogados, engenheiros, ne-
gociantes ��� nas horas de folga ganham dinheiro distribuindo jor-
nais entre os assinantes do seu bairro. Encontrei um dia como
elevator boy um professor de m��sica, o qual, embora desejasse
voltar �� antiga profiss��o, n��o se sentia constrangido naquele ele-
vador porque o fato de ele exercer aquelas fun����es n��o levava
as outras pessoas a trat��-lo com desprezo ou superioridade.
T. ��� E para encerrar nossa conversa, que me diz do esc��n-
dalo recente havido em torno do livro "Fruta Estranha"?
E. ��� Eis um caso interessante. Uma escritora corajosa, uma
metodista, escreveu um romance em torno dos amores "il��citos"
entre um branco e uma mulata. O livro foi banido em Boston
por mencionar claramente uma palavra tabu de quatro letras.
Esse livro nos prova: a) que o problema racial continua vivo
no Sul, e que seus dados n��o mudaram, com o passar do tempo;
b) que existem pessoas esclarecidas como Lilian Smith, autora do
livro, e corajosas ao ponto de tratar desse problema duma manei-
ra clara e contundente ��� o que nos leva a esperar que se possam
erguer no Sul, dentro do pr��prio reduto racista, vozes em favor
do negro americano; c) que o puritanismo bostoniano continua
tamb��m aceso, intolerante como nos tempos dos Fundadores,
e que talvez a sua rea����o tenha sido menos contra a "palavra
feia" do que contra o sentido "pornogr��fico" do livro, isto ��, a
miscigena����o olhada com toler��ncia se n��o com simpatia.
T. ��� E de tudo quanto ficou dito se conclui que...
E. ��� Artigo primeiro: O racismo �� um sentimento inexpli-
c��vel neste povo t��o democr��tico, t��o cheio de sentimentos equa-
lit��rios. Artigo segundo: O problema negro �� de solu����o difi-
c��lima. E artigo terceiro: Nem eu nem voc��, meu caro Tobias,
poderemos resolv��-lo...
E neste ponto nos separamos com pensamentos sombrios.
O SAL DA TERRA
29 de mar��o. Elizabeth Chevalier, autora de "The
Driving Woman", um best-seller do ano passado, con-
vida-nos para um jantar. �� uma criatura encantado-
A VOLTA DO GATO PRETO
403
ramente simples, casada com um dos mais famosos ad-
vogados dos Estados Unidos.
Moram os Chevalier em Pasadena, numa espl��n-
dida casa, com uma piscina em meio de vasto jardim.
Fala-nos ela do novo romance que est�� escrevendo,
mas recusa-se ��� com uma insist��ncia que me intriga
��� a revelar-lhe o t��tulo e o assunto.
Quando estamos tomando caf�� no living-room Mrs.
Chevalier nos conta uma anedota que me parece uma
admir��vel ilustra����o para o egocentrismo da maioria
dos escritores.
��� Uma vez ��� come��a ela, fitando em mim seus
calmos olhos cinzentos ��� um romancista encontrou num
desses coquet��is de Nova York um velho amigo que
havia muito perdera de vista. Levou-o para um canto
e come��ou a contar-lhe o que estivera a fazer todos
aqueles anos. Depois de uma hora de narrativa na
primeira pessoa do singular, o escritor fez pausa, mu-
dou de tom e disse: "Bom. T�� falei demais sobre
minha pessoa. Agora vamos falar da tua: Que foi
que achaste de meu ��ltimo romance?"
MR. CHOPIN
2 de abril. Levo duas estudantes brasileiras ��� que
est��o de passagem por Hollywood ��� a visitar os es-
t��dios da Columbia Pictures, que s��o os mais sem ce-
rim��nia dentre todos. Neles as formalidades est��o re-
duzidas ao m��nimo. Basta que eu apare��a no escrit��-
rio de seu diretor de publicidade estrangeira, Mr.
Levy, ��� um simp��tico judeu levantino, que fala um bom
espanhol e que j�� est�� come��ando a falar portugu��s ���
para que ele me abra imediatamente as portas dos
"sets" .
A Columbia Pictures fica bem no centro de Holly-
wood. �� uma companhia muito menor que a Metro,
404
O B R A S DE E R I C O V E R �� S S I M O
a Twenty Century Fox e a Warner Bros, mas de quan-
do em quando produz excelentes com��dias, e agora
acaba de lan��ar um filme que est�� fazendo furor,
"A Song to Remember", baseado na vida de Chopin,
que no presente caso �� Cornel Wilde.
As minhas compatriotas ficam alvorotadas quando
lhes digo que v��o conhecer Mr. Chopin em pessoa.
Entramos num destes barrac��es que s��o os "sets", ca-
minhamos por entre uma quantidade desnorteadora de
montes de sarrafos, escadas, cabos, cen��rios, m��veis,
para chegar finalmente ao lugar onde se est�� filmando
uma cena da hist��ria intitulada "O Bandido da Flo-
resta de Sherwood", que s��o as aventuras do filho de
Robin Hood ��� o her��i encarnado no cinema h�� alguns
anos por Errol Flynn.
A pel��cula �� em tecnicolor. A cena representa c
interior duma cabana de mobili��rio escasso e r��stico.
Num canto, h�� uma lareira acesa, por sobre a qual se
v��em penduradas uma perna de porco defumada e al-
gumas espigas de milho. Al��m dos empregados do
est��dio, operadores, t��cnicos, assistentes, etc. v��em-se
por aqui alguns membros do bando de Robin Hood
com suas cal��as de meia, muito justas nas pernas e nas
coxas, chapeuzinhos de feltro com uma peninha do
lado, punhais �� cinta, aljava a tiracolo, e um arco na
m��o. Sentado numa cadeira est�� o gordo frade Edgar
Buchnan, de espadag��o �� cinta.
Consigo que minhas companheiras sejam apresen-
tadas a Cornei Wilde, que tem uma cara de "bom
mo��o" e que diante de n��s se porta bem como cente-
nas desses boys de boa sa��de que tenho encontrado nas
universidades americanas. Tem uma cara simp��tica e
limpa, e uns olhos serenos que sugerem uma alma sem
complica����es. Est�� apoiado no seu grande arco, e a
roupa de meia cinzenta lhe modela as pernas mus-
culosas.
A VOLTA DO GATO PRETO
405
��� Ent��o o senhor �� o filho de Errol Flynn... ���
digo-lhe numa absoluta falta de assunto.
Ele sorri e, fazendo uma alus��o ��s aventuras amo-
rosas de seu colega na vida real, responde:
��� Pois ��. Sou um dos muitos de seus bastar-
dinhos.
E depois, mudando de tom:
��� Bom, mas isto que acabo de dizer n��o �� para
publicar... est�� entendido?
As duas brasileiras conversam com o filho de
Robin Hood, fazem-lhe perguntas e pedem-lhe um
aut��grafo.
��� Cornel! Hey, Cornel! ��� chama algu��m.
O her��i se despede de n��s e caminha para a ca-
bana, onde a hero��na da hist��ria o espera, muito loura,
toda vestida de verde, os olhos brilhantes e um rosto
duma beleza de tricromia. �� Annita Louise.
Mr. Levy me apresenta ao producer do filme e ao
autor da hist��ria. Eis uma dupla inesquec��vel. Ambos
s��o baixinhos e agitados, muito esquisitos nas suas rou-
pas �� la Hollywood, dum verde t��o intenso que at��
parece escolhido especialmente para o filme em tec-
nicolor. Um deles, o producer, �� um homenzinho ma-
gro, de cabelos tingidos, bigodinho muito fino, tamb��m
pintado. Temos um di��logo r��pido e vazio. A dupla
tem de voltar para seu lugar, pois a filmagem vai
come��ar.
��� Sil��ncio! Vamos ensaiar.
Mas os empregados continuam a falar, a bater
pregos, a arrastar cabos.
��� Sil��ncio, eu j�� pedi! ��� vocifera o diretor.
Finalmente faz-se sil��ncio. O ensaio come��a. ��
um di��logo entre o filho de Robin Hood e a donzela
nobre do castelo. No fim ela tenta esbofete��-lo mas n��o
consegue, pois o rapaz lhe segura o pulso e, rindo cini-
camente, beija-a na boca. O ensaio se repete. Por fim,
quando o diretor acha que tudo est�� bem, decide fo-
406
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
tografar a cena. Os refletores se acendem. Um dos
empregados derrama gasolina sobre os toros da larei-
ra e atira sobre elas um f��sforo. A chama sobe, ama-
rela e l��pida. A filmagem vai come��ar. Sil��ncio!
Ouve-se uma campainha.
A meu lado as brasileirinhas vibram. Creio que
este �� um grande dia em suas vidas.
O DIABO
3 de abril. Com as mesmas brasileiras e Mariana
visito hoje o estudio da RKO, onde assistimos �� filma-
gem de uma cena que representa um palco de show
boat um desses navios-teatros que no s��culo passado
costumavam percorrer o Mississipi, parando nas ci-
dades ribeirinhas para dar espet��culos com menestr��is,
atores dram��ticos e dramalh��es entre os quais estava o
infal��vel ��� "A Cabana do Pai Tomaz".
Como esta cena est�� sendo tomada de longe, e a
c��mara se acha a uns cinco metros de altura, podemos
ficar sentados na plat��ia do "teatro" uma vez que s��
o palco ficar�� em foco.
Sobre este vemos nuvens de algod��o, por tr��s das
quais se acham tr��s anjos de vestes e asas imaculada-
mente brancas, e aur��olas ao redor das louras cabe��as.
S��o anjos do sexo feminino, desses que depois da filma-
gem saem em baratinhas de tolda arreada, de cabelos
ao vento, e seguem na dire����o de Beverly Hills. H��
tamb��m anjos menores, meninas entre cinco e oito
anos, e o ensaiador est�� tendo grande trabalho para
ensinar-lhes o que devem fazer. S��o Pedro, um velho
alto e corpulento, de longas barbas e longa cabeleira
branca, acha-se parado a um lado do palco, com um
b��culo na m��o. E atr��s duma nuvem, Satan��s com suas
roupas vermelhas, seu cavanhaque pontudo, seus chi-
A V O L T A DO G A T O P R E T O
407
fres e seu rabo, l�� pacatamente um exemplar do "Daily
N e w s " , enquanto espera a hora de entrar e m cena.
Na plat��ia se encontram as m��es das crian��as que
v��o tomar parte na cena. Cochicham, riem, comentam
as filhas, acham que elas est��o muito engra��adinhas.
A cena consiste nisto: Um pobre negro velho, de
macac��o zuarte e chap��u de palha, chega ao c��u per-
seguido por Satan��s. Cai ao ch��o e esconde o rosto
nas m��os, num gesto de horror, enquanto o Pr��ncipe
das Trevas procura espet��-lo no seu tridente. Nesse
momento entra em cena S��o Pedro, que estende o bra-
��o na dire����o da direita e grita:
��� Para tr��s, Belzebu! Deixa em paz a alma deste
pobre homem!
Belzebu ergue a capa �� altura dos olhos, faz meia
volta e se vai, desmoralizado. Nesse momento os an-
jos rompem a cantar uma can����o religiosa dos negros
do Sul ��� Sioing Low, Sweet Chariot.
Mariana cochicha ao meu ouvido.
��� Onde est�� o microfone?
��� N��o est��... ��� respondo.
��� Ent��o como ��?
��� Esse canto e todas aquelas palavras pronunciadas
por S��o Pedro j�� foram gravadas antes. Presta aten����o.
A cantiga est�� saindo daquele alto-falante ali... e n��o
da boca dos anjos. Eles reproduzem a can����o para que
o anjo cantor possa mover os l��bios de acordo com as
palavras. Mais tarde o som �� impresso no filme numa
fita ao lado das imagens e a gente tem a ilus��o de que
essa girl cantou no momento em que a filmagem foi
feita.
��� Mas por que fazem isso?
��� Por v��rias raz��es. Primeiro, uma pessoa que
est�� preocupada com a voz, n��o pode ao mesmo tempo
representar bem. Depois, o esfor��o para emitir as no-
tas agudas obriga o rosto a contor����es que n��o ficam
408
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
bem quando fotografadas, principalmente em primeiro
plano. Acontece, tamb��m, que h�� dias em que os ar-
tistas est��o com a voz melhor que em outros, e rara-
mente esses dias de voz boa coincidem com os de
filmagem. Mas h�� raz��es de ordem t��cnica. Se o som
fosse registrado ao mesmo tempo que a fotografia,
como acontece no caso dos di��logos, a m��quina teria
de ficar s�� numa posi����o.
��� Por qu��?
��� Olhe. Suponhamos que Betty Hutton est�� can-
tando num night-club. N��s a vemos em primeiro pla-
no. Depois de longe. Ora, para mudar de posi����o, para
tomar um angulo novo, �� necess��rio mover a m��quina
e portanto interromper, cortar o canto e a m��sica. Se
n��o fosse essa id��ia de gravar o canto antes ��� o que
se chama play back ��� ter��amos a melodia toda cortada,
toda cheia de "solavancos", de diferen��as de tom e in-
tensidade.
Enquanto explico estas coisas os anjinhos dan��am no
palco. Toda a cena pretende ser uma esp��cie de s��tira
a esses espet��culos de show boat, ��� e portanto tem um
tom vis��vel de caricatura.
No intervalo entre o ensaio e a filmagem aproxi-
mo-me do diabo para reconhecer com surpresa, por
tr��s da pintura, da barba posti��a, a fisionomia de
Adolph Menjou ��� com o qual ficamos conversando
longamente. �� dos poucos homens bem informados
sobre o Brasil que tenho encontrado aqui. Repete-nos
um pequeno discurso em portugu��s. E, rindo, exclama
em ingl��s:
��� N��o se impressionem. Estou falando como um
papagaio. Decorei estas palavras para pronunci��-las
no r��dio, durante uma festa pan-americana em Nova
York.
Assina um aut��grafo para as estudantes brasileiras,
aperta-nos as m��os, apanha o seu tridente e l�� se vai
no seu tranc��o pesado rumo do c��u e dos anjos, e do
A V O L T A D O G A T O P R E T O
409
que se me afigura melancolicamente o fim de sua car-
reira no cinema.
MEM��RIAS DE MARCO POLO
17 de maio. Acabo de chegar dum vasto giro de
confer��ncias atrav��s dos estados de Texas, Oklahoma,
Kansas, Missouri e Indiana. Foi uma excurs��o muito
curiosa e estimulante, embora n��o oferecesse nada de
realmente sensacional ou imprevisto. Do ponto de
vista paisag��stico, foi uma viagem pobre. E quem j��
viu Nova York e Chicago n��o pode esperar novidade
das outras cidades americanas no que diz respeito a
cosmopolitismo, vida urbana de ritmo agitado, museus,
teatros, bibliotecas, galerias de arte... Em mat��ria de
clima, para meu gosto, nada existe no continente que se
possa comparar com este claro e morno sul da Cali-
f��rnia. Assim, o que trago mesmo dessa excurs��o que
durou pouco mais de um m��s, �� uma impress��o de nor-
malidade, progresso e seguran��a.
Depois de visitar doze cidades de Texas, atra-
vessei Oklahoma e fui at�� o Middle West, que �� o cora-
����o ou, melhor, a espinha dorsal dos Estados Unidos
��� uma regi��o cujos h��bitos e habitantes t��m dado a
Sinclair Lewis assunto para romances sat��ricos como
"Babbitt" e "Main Street".
A excurs��o toda se fez num ritmo t��o acelerado, que
n��o me foi poss��vel manter em dia o di��rio. E agora,
de volta a Hollywood, rabiscando estas notas no meu
jardim, sob um sol que a bruma amorna, penso nos lu-
gares por onde passei, vejo mentalmente um desfile
de faces ��� eu nunca esque��o as m��scaras humanas! ���
faces em grandes e pequenos teatros universit��rios,
faces nas ruas, em trens, em ��nibus... Sim, e tamb��m
410
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
faces misteriosas em sonhos... Minha mem��ria, como
uma caverna dos ventos, est�� agora cheia de sons, vozes,
melodias, sussurros, ecos... Revejo perspectivas de
ruas vertiginosas; e casas, montanhas, plan��cies ��� prin-
cipalmente plan��cies rasas, pardacentas, tristes, tudo
num cont��nuo movimento.. . Vejo-me entrando em ou
saindo de autom��veis, trens, avi��es... Apertando a m��o
de desconhecidos que horas depois (Adeus! Volte de
novo!) j�� me parecem velhos amigos. .. Subindo em
palcos e estrados, para d�� alto deles medir com o
olhar um agitado mar de cabe��as inquietas e jovens ���
mais faces, e que belas faces!. .. Entrando em sal��es
para tomar ch�� ou coquet��is e andar de grupo em gru-
po, respondendo a perguntas s��rias, tolas ou f��teis.. .
Repetindo frases como "Acreditem que o Brasil �� um
pa��s admir��vel..." ou "Mas �� preciso compreender os
brasileiros..." Vejo-me tamb��m sentado tranq��ilamen-
te junto de mesas, �� hora da ceia, contemplando faces
amigas �� luz de velas, ouvindo conversas familiares.
(O encanto da prov��ncia, a vida calma, os eternos as-
suntos ��� o tempo, os filhos, as flores do jardim, os
bichos dom��sticos, a torta de ma����s...) E de novo o
trem, as plan��cies, as florestas, as bombas de gasolina,
as esta����es, as cidades. Oh! Os companheiros de via-
gem. "O senhor �� do Brasil? Que interessante! �� a
primeira vez que vejo um brasileiro em carne e osso."
O carro-restaurante, a bicha, fil�� de truta, caf�� com lei-
te, sorvete de baunilha. Abrir malas, fechar malas.
Como ser�� San Antonio? Como ser�� Wiehita? E To-
peka? E Tulsa? Novos hot��is, novas faces, novos
adeuses...
E assim nesse ritmo visitei mais de vinte cidades,
percorri mais de cinco mil quil��metros como um cai-
xeiro-viajante que procurasse impingir ��s gentes de
todos esses lugares a id��ia de que o Brasil �� um
grande pa��s e os brasileiros um povo admir��vel..'.
Mas em v��o procuro em minhas notas um inci-
dente realmente sensacional. Ou um tipo excepcional-
A V O L T A DO G A T O P R E T O
411
mente pitoresco. Com letra quase ileg��vel encontro
em meu caderno de notas os seguintes rabiscos apres-
sados:
Texas
H�� aqui um ditado que d�� bem uma id��ia do orgulho que
os texanos t��m de sua terra: Nunca perguntes a um americano
se ele �� de Texas; porque se ele ��, dir�� logo; se n��o ��.., n��o
conv��m deixar o pobre homem atrapalhado .
Durante minhas visitas a diversas cidades deste estado, tenho
ouvido as seguintes declara����es orgulhosas: "Texas n��o s�� �� o
maior estado da Uni��o como tamb��m j�� foi um pa��s independente.
Viveu sob cinco bandeiras diferentes: a espanhola, a francesa,
a da Rep��blica de Texas, a confederada e finalmente a dos Esta-
dos Unidos. Sem Texas a Uni��o n��o poderia continuar a guerra.
Porque ela depende de n��s no que diz respeito a comidas, com-
bust��vel e tecidos. * Para transportar por estrada de ferro toda a
nossa produ����o de petr��leo de 1944 ��� dois milh��es de barris ���
seria necess��rio um comboio de nove l��guas de comprimento.
* Nosso estado �� o maior produtor de algod��o do mundo.
* Desde Pearl Harbour mais de 40 milh��es de soldados foram
transportados nos nossos trens. * Aqui se encontram os mais
ricos po��os de petr��leo, as mais importantes f��bricas de borracha
sint��tica, os maiores rebanhos de gado vacum e lan��gero."
Que pros��pia, a dos texanos! Mas que impress��o de segu-
ran��a, for��a e confian��a em si mesmas suas gentes e cidades
nos d��o!
Oklahoma
Uma esp��cie de fundo de quintal de Texas. Plan��cies ondu-
ladas que lembram ��s vezes as coxilhas do Rio Grande do Sul.
Terra vermelha. O nome Oklahoma na l��ngua dos ��ndios
Choctaw significa "gente vermelha". Esta regi��o ocupa o quarto
lugar na produ����o de minerais. Oklahoma tira mais petr��leo de
seu solo que qualquer outro estado, �� exce����o de Texas e Cali-
f��rnia. Mas seu "team" de basquetebol ��� informa-me o senhor
ruivo que est�� aqui a meu lado, no trem ��� �� o melhor do pa��s.
O Middls. West
A paisagem de boa parte desta regi��o nada tem de interes-
sante. Pelo contr��rio: a monotonia de suas plan��cies cansa.
412
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Suas cidades, sob o ponto de vista arquitet��nico e urban��stico,
nada oferecem de not��vel. Pode-se at�� dizer que uma �� a repe-
ti����o da outra.
Os habitantes do Middle West s��o hospitaleiros, francos, con-
servadores em mat��ria de pol��tica, e revelam todas as boas quali-
dades e todas as desconfian��as do homem do campo. Represen-
tam melhor que qualquer outro tipo de americano o esp��rito do
pioneiro, e fisicamente se parecem mais com os escandinavos e
com os alem��es do que com os ingleses.
Nas suas cidades principais j�� se nota grande atividade in-
dustrial, mas menos "sophistication" que em certos grandes cen-
tros urbanos do Leste. Parece ter raz��o o escritor ingl��s Graham
Hutton ao afirmar que no Middle West existe o "culto da me-
diania".
�� preciso levar em conta a import��ncia da casa na vida
desta regi��o. Em Nova York o homem que anda de apartamen-
to em apartamento, de hotel em hotel, n��o chega nunca, na
sua mobilidade, a possuir esse ponto de refer��ncia ao mesmo
tempo material e sentimental que �� a for��a e o sentido de per-
man��ncia da prov��ncia: a casa. Casa �� mulher. Representa
como que o ventre materno, o abrigo. A vida nas comunidades
novas dos tempos da conquista do Oeste estava baseada na fa-
m��lia. E ainda hoje nos Midlands a fam��lia tem grande impor-
t��ncia. Como suas cidades sejam em geral pequenas, �� poss��-
vel aos membros de suas fam��lias encontrarem-se muitas vezes
durante o dia; em suma, eles vivem mais unidos. H�� ainda a
influ��ncia do campo, dos contatos com a terra. Por isso tudo ���
apesar de sua falta de gra��a, de brilho, de glamor ��� os estados do Middle West significam equil��brio, ch��o firme e ra��zes fundas.
O Esp��rito de Middletown
Um dia, por volta de 1925, Robert e Helen Lynd, dois so-
ci��logos americanos, escolheram uma cidadezinha representa-
tiva do Middle West e l�� se aboletaram com o fim de obser-
var-lhe os habitantes, a vida e os costumes. O resultado disso
foi um livro admir��vel, que se tomou uma esp��cie de cl��ssico
moderno. Chama-se "Middletown" e �� um estudo da cultura
contempor��nea dos Estados Unidos. Essa Middletown �� na rea-
lidade Muncie, (Indiana) cidade que acabo de visitar. Dez
anos depois de terminado esse trabalho, voltaram os Lynd a
"Middletown", e o resultado da nova estada e do novo per��odo
de observa����o foi o livro intitulado "Middletown in Transition".
um estudo de conflitos culturais. Tenho comigo aqui no trem
A V O L T A D O G A T O P R E T O
413
um exemplar dessa obra. Leio num de seus cap��tulos que o
habitante de Muncie dum modo geral acredita:
Em ser honesto.
Em ser bondoso.
Em ser leal.
Em ser amigo, "bom vizinho" e "bom sujeito".
Em conseguir sucesso.
Em ser um homem mediano. "Praticamente todos com-
preendemos que somos homens comuns, e temos uma tend��ncia
para desgostar e desconfiar daqueles que consideramos fora do
comum."
Em que ter car��ter �� mais importante do que "ter miolos".
Em ser simples, despretensioso e nunca "assumir ares" ou
ser um esnobe.
Em dar apre��o ��s coisas comuns, "reais" e "saud��veis".
Em ter senso comum.
Em ser s��o e firme.
Em ser um bom companheiro e saber transformar os adver-
s��rios em amigos.
Em ser corajoso e bem humorado diante de situa����es
dif��ceis.
Em, no caso de d��vida, ser como os outros.
Em, diante de problemas, ater-se a pr��ticas que deram
resultados no passado.
No que diz respeito a id��ias pol��ticas e sociais, o habi-
tante de Muncie (e nisso ele representa admiravelmente o es-
p��rito do Middle West) acha que "progresso �� igual a cres-
cimento", e portanto toda a coisa que cresce necessariamente
progride. Assim, para ele s��o mais importantes as mudan��as
quantitativas que as qualitativas. Pensa tamb��m que devemos
seguir "o processo natural e ordeiro de progresso", e desse modo
a evolu����o tem que ser lenta, e as revolu����es, com suas brus-
cas mudan��as, lhe s��o indesej��veis. O "middlewestern" acredita
tamb��m em que os "radicais" (e sob esta ep��grafe ele classifica
vermelhos, comunistas, socialistas e ateus) desejam o aniquila-
mento da civiliza����o americana. Os que seguem a linha m��dia
��� conclui ��� s��o os mais s��bios, pois a boa vontade acabar�� re-
solvendo todos os problemas.
Middletown cr�� no poder da efici��ncia, da honestidade e
da habilidade; acha que as pessoas devem ser pr��ticas e efici-
entes, e que "Deus ajuda aquele que se ajuda a si mesmo".
("Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga"
��� dizemos nos no Brasil.) Quanto aos estrangeiros, h�� em
Middletown uma tend��ncia para consider��-los em sua maioria
"inferiores". Outra das cren��as do' middlewestern �� a de que
414
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
os negros s��o positivamente inferiores e de que os judeus in-
dividualmente podem ser O. K., mas como ra��a seu conv��vio
n��o �� l�� muito recomend��vel...
Entre as observa����es mais reveladoras que os Lynd fize-
ram em Muncie, encontro as seguintes id��ias e cren��as locais:
"Sexo �� uma coisa que "deram" ao homem para prop��-
sitos de procria����o e n��o de gozo pessoal. * As rela����es se-
xuais antes ou fora do casamento s��o imorais. * As mulheres
s��o melhores e mais puras que os homens. * Ser propriet��rio
da casa onde moramos �� coisa boa para a fam��lia e tamb��m
auxilia a gente a ser bom cidad��o. * As escolas devem ensinar
os fatos da experi��ncia passada sobre os quais as pessoas s��s
e inteligentes est��o de acordo. * Uma educa����o universit��ria
�� uma boa coisa, mas o homem que a possui nem por isso ��
superior ao que nunca freq��entou universidade; e como o primei-
ro deles tende a ser menos pr��tico, deve aprender tamb��m as
"coisas da vida" para contrabalan��ar sua carga de teorias".
O homem do Middle West, repito, n��o �� brilhante nem pi-
toresco, mas �� dotado de apreci��veis qualidades morais e lem os
p��s solidamente plantados na terra.
Aquele dia de Abril...
De todas as minhas recorda����es dessa excurs��o, as mais
vivas s��o as daquele dia sombrio em Commerce, pequena lo-
calidade de Texas em cujo Teachers' College eu tinha ido falar.
Ao entrar no campus vi, na frente do edif��cio principal, a bandeira brasileira ondulando ao lado da americana. E durante
a sabatina que se seguiu �� minha palestra no audit��rio do co-
l��gio, um rapazote de seus doze anos levantou-se e perguntou:
"O senhor pode me explicar o significado das cores da ban-
deira brasileira?" Nesse instante dona Eufr��sia Roj��o me sur-
giu na mem��ria e, de cima de seu estrado de professora, me
soprou a resposta.
�� tarde uma dama de Commerce me ofereceu uma recep-
����o em sua casa, mans��o t��pica do Sul, com sua escada em
espiral, seus m��veis antigos e retratos avoengos. Era eu o
��nico homem no meio dumas trinta mulheres, algumas das
quais notavelmente belas. Pediram-me que lhes contasse coi-
sas do Brasil e depois me fizeram toda a sorte de perguntas.
Enquanto convers��vamos uma mocinha de olhos azuis e cabelos
castanhos tocava em surdina, num piano de cauda, melodias do
Velho Sul.
Da casa vizinha chegavam at�� n��s os sons dum r��dio.
De repente houve uma interrup����o na m��sica que se irradia-
A VOLTA DO GATO PRETO
415
va e uma voz grave de homem se ouviu... n��o pude entender
o que dizia o speaker, mas tive um estranho pressentimento.
Terminou a guerra ��� pensei ��� o u . . . morreu Franklin Roosevelt.
Poucos minutos depois deixei aquele ambiente morno e sa�� com
Miss Adelle Clark para a tarde fria e gris. A primeira coisa que
vimos foi, na cal��ada oposta, uma menininha duns sete anos,
toda vestida de branco, e que naquele momento apeava de sua
bicicleta. Ao ver-nos, gritou atrav��s da rua: "O r��dio disse que
nosso Presidente morreu". Sua vozinha fina se esfarelou no ar.
Mas despertou dentro de mim ecos tremendos. Tive a impres-
s��o que de repente me faltava amparo. E por mais tolo que isso
agora pare��a, tive uma s��bita impress��o de orfandade... Miss
Clark empalideceu, ficou por um instante como que paralisada.
"Meu Deus, n��o �� poss��vel..." ��� balbuciou ela. Come��amos a
andar em sil��ncio, lentamente. A not��cia j�� se havia espalhado
pela vila. Vi mulheres e homens com os olhos cheio de l��grimas.
E �� noite daquele mesmo dia, sentado num banco, na plataforma
da esta����o quase deserta, esperando o trem que me levaria de
volta a Dallas, fiquei a conversar com um professor e com um
maquinista. Come��aram ambos a recordar discursos do grande
Presidente, do qual falavam com respeito e ternura. Um deles
recitou um trecho da primeira ora����o de Roosevelt ao tomar
posse de seu cargo em 1933: . . .a ��nica coisa de que devemos
ter medo �� do pr��prio medo ��� do terror sem nome e sem ra-
z��o que paralisa os esfor��os necess��rios para transformar a re-
tirada num ataque . Um guarda-freios juntou-se ao nosso grupo.
E em voz baixa, como rapsodos que celebrassem os feitos duma
figura lend��ria, cada qual contou uma hist��ria sobre F. D. R.
��� Que ir�� fazer o Harry? ��� perguntou um deles.
Referia-se a Traman. �� um velhote que at�� ent��o estivera
calado, mascando seu toco de charuto, aproximou-se de n��s e
disse:
��� N��o se aflijam, boys. O Harry vai dar conta do recado.
O professor observou com sua voz cansada:
��� Os tempos s��o duros, amigo. Ser�� que Mr. Truman
est�� �� altura do cargo?
O velhote fez uma pausa para acender o charuto.
��� Que duvida! ��� exclamou por fim. ��� Harry �� de In-
dependence, Missouri. �� um homem do Middle West. Tem
o bom senso do vendedor de cavalos. Stalin que tome cuidado
com ele.
Um trem apitou longe. As estreias tinham um brilho mor-
ti��o.
Em Dallas li os jornais do dia. Todos traziam comoventes
biografias de Roosevelt. Mas de mistura com os necrol��gicos ha-
416
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
via neles uma nota de esperan��a, um ar de quem quer dar a
entender que morreu um grande l��der mas seu grande povo
continua de p��. A Vit��ria est�� a vista. Todos apoiam Harry
Truman e confiam nele para a arrancada final.
E como eu estivesse sentindo a morte do Presidente como a
dum velho amigo, telefonei para minha gente numa esp��cie de
busca de consolo. Tive a sorte de conseguir uma liga����o com
Hollywood em menos de dez minutos. Mariana me contou que
ao saber da sombria not��cia, toda a fam��lia desatara o pranto.
E quando voltei para casa encontrei no di��rio de minha fi-
lha ��� escrito num ingl��s estranh��ssimo ��� as seguintes palavras:
12 de abril. ��� Roosevelt morreu. Meu Deus, faz que tudo
isso seja um sonho. Eu e o Lu��s gostamos tanto dele!
SEXO
Meu caro Vasco: Tobias quer hoje discutir comigo os aspec-
tos do amor nos Estados Unidos, e eu j�� o adverti dos perigos
deste tema, que nos pode levar a um terreno escabroso. Fiz
isso pensando apenas na inoc��ncia de meu prestimoso amigo, por-
que eu ��� ai de mim! ��� perdi a minha no dia em que comecei
a escrever "Caminhos Cruzados."
T. ��� Acha o tema complicado?
E. ��� Complicad��ssimo, exatamente por causa da aparente
simplicidade da alma americana.
T. ��� De que amor falaremos?
E. ��� Naturalmente deixaremos de lado o amor maternal,
o filial, o fraternal. E o amor de certas damas pelos seus c��es e
gatos... Em suma: falemos em sexo.
T. ��� E eu desde j�� confesso minha perplexidade diante dos
aspectos contradit��rios que este pa��s oferece no que diz respeito
ao sexo. �� que ora os americanos me parecem puritanos, ora
verdadeiros man��acos do sexo.
E. ��� O que lhe vou dizer n��o li em nenhum livro. �� re-
sultado de observa����o pessoal. Tenho conversado sobre o as-
sunto com muitos homens e mulheres, principalmente com mu-
lheres. Tenho rodado pelas estradas deste pa��s, visitando-lhe
praticamente quase todas as regi��es...
T. ��� E de todo esse conv��vio e essas andan��as voc�� con-
cluiu que...
E. ��� H�� nos Estados Unidos quatro atitudes principais com
rela����o ao sexo:
1.a ��� A atitude puritana: Sexo �� uma coisa indecente que
deve ser escondida o mais poss��vel.
A VOLTA DO GATO PRETO
417
2.�� ��� A atitude cient��fica: Sexo �� uma coisa natural; pode
e deve ser explicada sem falso pudor.
3.a ��� A atitude comercial: Sexo �� um chamariz poderoso
e como tal deve ser explorado.
4.a ��� A atitude esportiva: Sexo �� uma coisa boa; n��o h��
raz��o para que a gente n��o goze dela.
T. ��� Tudo isso me soa bem, mas n��o posso deixar de lhe
pedir que desenvolva melhor sua teoria.
E. ��� Boston �� o reduto da atitude puritana. Nessa cidade
s��o banidos os livros de fic����o que tratam os problemas sexuais
com crueza ou que usam palavras que o c��digo de dec��ncia lo-
cal considera impr��prias. Mas essa atitude �� em geral a de gran-
de parte das comunidades religiosas, tanto protestantes como ca-
t��licas. Ela originou a famosa "Liga da Dec��ncia" que obrigou
os est��dios de Hollywood a criarem um "bureau" pr��prio de
censura com a finalidade de "limpar" os filmes. Pode-se dizer
que �� uma atitude que encontra suas origens na B��blia, cujo ve-
lho testamento ��, paradoxalmente, um dos livros mais cruamente
livres que o mundo conhece.
T. ��� Oh! J�� est�� voc�� de novo com caricaturas.
E. ��� A atitude cient��fica �� assumida por grande n��mero
de professores, psicanalistas, m��dicos, escritores e pensadores
liberais. Advogam eles uma ampla educa����o sexual tenden-
te a tirar ao ato f��sico do amor todo o mist��rio e portanto
muito de sua natureza pecaminosa.
T. ��� Quais os resultados dessa educa����o sexual?
E. ��� Ela evita deforma����es, quando bem dirigida, e ajuda
a criar uma atmosfera de maior sinceridade ou pelo menos de
menor hipocrisia nas rela����es entre os sexos. Por outro lado,
por��m, pode levar as pessoas a tratar o sexo como muitos aqui
tratam os alimentos, isto ��, preocupando-se muito com as vita-
minas, as calorias, a boa qualidade dos g��neros, mas pouco com
o gosto, com o simples prazer de comer. Comem ��s pressas,
sem cuidado nem requinte. Ora, no caso dos alimentos trata-
se de coisas sem vida, sem sensibilidade. Mas no caso do amor
essa atitude desligada e semicient��fica de uma das partes pode
deixar a outra parte ressentida, humilhada e insatisfeita.
T. ��� Essa atitude comercial me intriga. Onde se mani-
festa ela?
E. ��� No teatro, no cinema, nos night clubs, nos jornais, na
literatura e na publicidade.
T. - Como?
E. ��� Certas pe��as de teatro e shows de cabar�� exploram
o nudismo e a anedota ou o di��logo picante. Controlados pela
censura os filmes evitam as piadas pornogr��ficas mas por outro
418
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
lado em muitos casos procuram explorar o sexo numa exibi����o
de pernas e corpos femininos. Os jornais publicam reportagens
detalhadas em torno de div��rcios, infidelidades conjugais e
crimes sexuais.
T. ��� Lembro-me dum caso recente de investiga����o de
paternidade que envolveu Charlie Chaplin.
E. ��� Esse processo ocupou p��ginas inteiras nos di��rios,
relegando para um lugar menos importante as pr��prias not��cias
da guerra. Joan Berry, que afirmava ser Carlitos o pai de seu
filho, narrou no j��ri suas intimidades com o famoso "clown".
E confesso que at�� hoje n��o cheguei a perceber aonde queriam
os advogados chegar quando perguntavam se em tal e tal oca-
si��o Chaplin se havia despido completamente. Lembro-me de
que um dia o "Cali Bulletin" de San Francisco trazia no alio
da primeira p��gina um cabe��alho em letras negras e grossas,
de cinco cent��metros de altura: "JOAN DECLARA QUE
CARLITOS TIROU TODA A ROUPA".
T. ��� Mas voc�� n��o afirmou em outra ocasi��o que os ame-
ricanos detestam as coisas m��rbidas?
E. ��� Eu me referia principalmente aos assuntos ��� doen��a,
morte e deprava����o sexual. Quanto ao resto eles n��o fogem ��
regra geral. T��m uma grande curiosidade, n��o s�� com rela����o
ao sexo como tamb��m a tudo quanto diga respeito a "perso-
nalities", especialmente quando se trata de celebridades do
mundo do cinema, do teatro, da pol��tica e das artes. E de
resto, meu caro, voc�� n��o conhece aquele fasc��nio que exerce
sobre n��s o que achamos horrendo? Nunca se viu poderosa-
mente atra��do por coisas que voc�� diz e pensa detestar?
T. ��� Como �� que a publicidade explora o sexo?
E. ��� Usando o nudismo como isca para seus cartazes e
an��ncios. Empregando frases cheias duma vol��pia clara ou
subentendida. No seu livro "Gera����o de V��boras", estudando
com feroz crueza os problemas e "mitos" dos Estados Unidos,
Philip Wylie assim se refere �� qualidade sexual dos an��ncios:
"... in��meros anunciantes estampam a cabe��a e os ombros ou
todo o torso nu de "soubrettes" org��acas, por baixo da declara����o
de que um determinado produto as tornou mais beij��veis, atra-
entes, cas��veis, populares nas festas, e mais convid��veis para
passeios ao luar; ou ent��o que outros produtos as tornaram
"okay" em mat��ria de higiene feminina, h��lito, suor das axi-
las. .. etc..." Segundo esse mesmo escritor o assunto sexo ��
olhado pelos americanos como algo que pertence mais ao dom��-
nio das convic����es pessoais do que ao da lei natural (e portanto
da ci��ncia). Ataca Wylie seus compatriotas que insistem em
proclamar que a na����o �� sexualmente "virtuosa", recusando-se
A VOLTA DO GATO PRETO
419
a encarar o problema do sexo com franqueza e objetividade.
Estudando ainda a "castidade" americana o mesmo autor es-
creve: "Cerca de setenta e cinco por cento dos mo��os ame-
ricanos solteiros t��m rela����es sexuais com mo��as. Entre as
mulheres adultas, jovens e solteiras, o n��mero de virgens ir��
no m��ximo a cinq��enta por cento." N��o sei at�� onde ser��o
exatos esses algarismos e n��o sei at�� onde podemos aceitar as con-
clus��es de Philip Wylie nos seus violentos ataques ��s institui-
����es americanas. N��o representar�� ele por acaso uma outra
atitude extremada, em oposi����o �� daqueles que proclamam a
castidade da na����o?
T. ��� Poderemos dizer que Hollywood �� um centro repre-
sentativo dessa atitude comercial com rela����o ao sexo?
E. ��� Penso que sim. Hollywood n��o s�� �� uma f��brica de
sonhos, de fantasia, como tamb��m um laborat��rio que fornece
ao mundo estimulantes afrodis��acos.
T. ��� E a atitude esportiva?
E. ��� Para principiar n��o sei se "esportivo" ser�� adjetivo
exato. Mas v��! Essa �� a atitude de boa parte da mocidade e
de muitos homens e mulheres adultos sem preocupa����es reli-
giosas s��rias. Mesmo os que adotam essa atitude diante do
sexo podem ainda ser influenciados em maior ou menor grau
por id��ias puritanas e por preconceitos de outra natureza,
mesmo que n��o tenham consci��ncia clara disso. Eles em geral
exercem a atividade sexual como sadios animais e em geral n��o
a supervalorizam. E �� curioso observar como o autom��vel veio
influir na vida amorosa do pa��s, facilitando as aventuras er��-
ticas dos americanos.
T. - Como?
E. ��� O autom��vel �� por assim dizer a cama port��til, a
alcova sobre rodas. Em seu romance "This Side of Paradise"
Scott Fitzgerald, que pertencia �� chamada "gera����o perdida"
que emergira das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, conta
a agitada hist��ria da mocidade americana dos novecentos e
vinte. E os puritanos, horrorizados, verificavam que seus pri-
meiros filhos ou netos, enfim, que a mocidade do pa��s estava
longe de ser uma legi��o de anjos, de "good boys and girls" que
liam "Alice na Terra das Maravilhas" ou os romances de Louisa
May Alcott; eram, isso sim, jovens dem��nios que bebiam, que
se entregavam a aventuras sexuais e que pareciam n��o levar a
s��rio a tradi����o, os bons costumes e os preceitos da B��blia.
T. ��� E a que conclus��o chegou voc�� ap��s o conv��vio de
dois anos com a mocidade universit��ria?
E. ��� Numa palavra: eles s��o okay. Existe entre eles algu-
ma liberdade sexual mas essas mo��as e rapazes t��m uma po-
420
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
derosa inclina����o para a dec��ncia e para a limpeza. �� natu-
ral que entre eles haja tipos do mais variado estofo moral...
Mas se procurarmos ver a diferen��a entre pr��s e contras encon-
traremos consider��vel saldo a favor da juventude americana
��� um saldo de bons costumes e boas qualidades. Para isso muito
tem contribu��do a sa��de de que gozam e o tipo de educa����o
que se lhes d��.
T. ��� Mas acha que o sexo �� um problema neste pa��s?
E. ��� Onde n��o ser��?
T. ��� Mais s��rio do que entre n��s?
E. ��� N��o creio. Temos de lutar com o nosso temperamento
e com os resultados duma educa����o defeituosa.
T. ��� Os brasile��os que chegam a este pa��s admiram-se de
ver que as mulheres americanas n��o "namoram".
E. ��� A palavra "namorar" aqui n��o tem o menor sentido.
Quando duas pessoas se gostam, elas imediatamente se falam.
Depois de trocarem as primeiras palavras, combinam um encon-
tro, um date. O date �� uma institui����o importante. Para uma
jovem, ter muitos dates �� um sinal de prest��gio. Esse date
consiste em sair, em geral �� noite, com o boy para jantar e ir
depois ao cinema, ao teatro, ao parque ou ao rinque de patina����o.
T. ��� E at�� que ponto esse date tem um sentido er��tico?
E. ��� O fato de um rapaz e uma mo��a sa��rem juntos n��o
significa que tenham em mente uma liga����o sexual. (Embora
algumas vezes esse pensamento possa estar no fundo do esp��rito
de um dos dois, ou de ambos.) Nem significar�� que j�� est��o
ambos apaixonados um pelo outro.
T. ��� Qual �� ent��o o sentido do date?
E. ��� O date significa que o rapaz acha que a pequena ��
interessante e a pequena acha que ele �� um bom camarada.
Significa, em suma, que ambos querem divertir-se na compa-
nhia duma pessoa do sexo oposto.
T. ��� E durante esse date trocam beijos?
E. ��� Talvez n��o no primeiro. Mas se continuarem a sair
juntos, o rapaz acabar�� pedindo o good night kiss, isto ��, o beijo
de despedida, junto da porta.
T. ��� E a mo��a concede?
E. ��� Essa pergunta eu fiz a uma pequena que costuma
ter muitos dates. Respondeu ela: "Se �� um rapaz simp��tico e
bem-educado, concedo". Indaguei: "Mesmo que n��o esteja
apaixonada por ele?' Ela arregalou os olhos e disse: "Mas ��
preciso a gente estar apaixonada por um rapaz para deixar que
ele nos beije?"
T. ��� Observei que o beijo aqui tem um sentido um tanto
diferente do que lhe damos na Am��rica do Sul.
A VOLTA DO GATO PRETO
421
E. ��� O beijo no Brasil �� uma esp��cie de senha para entrar
no quarto de dormir. Mas neste pa��s seu significado n��o �� t��o
tremendo. Vi mulheres beijando homens que n��o s��o seus
maridos nem noivos nem amantes, mas simplesmente amigos.
Est�� claro que nem todas s��o assim pr��digas com seus beijos...
T. ��� E por todas essas coisas os latinos cometem aqui
gafes colossais.
E. ��� Sei de casos de estudantes brasileiros que vieram
para c�� e interpretaram mal alguns gestos de camaradagem das
mo��as americanas. Porque elas os abra��assem com naturalidade
ou lhes tomassem da m��o, eles julgaram que tinham feito uma
conquista e aventuravam-se a um convite para o amor. O re-
sultado era triste. As meninas respondiam: "Voc��s vivem com
a cabe��a cheia de pensamentos sujos". E depois disso os iso-
lavam. .. N��o faz muito uma americana que veio do Rio se
declarou horrorizada ante a maneira como os homens brasileiros
olhavam para ela. E concluiu: "Eles como que nos despem
com os olhos".
T. ��� Acha voc�� que o americano tem um temperamento
mais frio que o nosso?
E. ��� Mas, afinal de contas, que �� um americano? H�� os
descendentes de irlandeses, de italianos, de espanh��is, de fran-
ceses, de escandinavos. Conhe��o-os moderados, frios, apaixo-
nados. .. enfim, de toda a esp��cie. N��o creio que apreciem
menos que os latinos o ato sexual. O que acontece �� que, como
resultado dum tipo de educa����o diferente do nosso e de sua
vida num meio tamb��m diferente daquele em que vivemos e
fomos criados, eles t��m outros interesses.
T. ��� Que quer dizer voc�� com interesses?
E. ��� O homem americano preocupa-se muito com os ne-
g��cios, com o esporte e com urna infinidade de "hobbies" ou
passatempos. Tudo isso ajuda-o a desviar o pensamento do
sexo.
T. ��� H�� tamb��m a bebida.
E. ��� Precisamente. Bebe-se muito neste pa��s. Parece-me
que em 1942 o consumo de bebidas alco��licas nos Estados
Unidos correspondeu a uma m��dia de 60 d��lares por cabe��a.
Multiplique isso por 130 milh��es e ter�� uma soma fabulosa.
Sim, a bebida tamb��m �� um derivativo poderoso.
T. ��� De sorte que os latinos, na sua opini��o, pensam de-
masiadamente em sexo.
E. ��� Quanto a isso parece haver pouca d��vida. E, usando
outra vez de tra��os caricaturais, direi que os americanos sentem
prazer durante o ato sexual; ao passo que os latinos gozam
antes, durante e depois do ato...
422
OBRAS DE E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� E esse seu coment��rio por acaso n��o ser�� tamb��m...
latino?
E. ��� Claro que ��. Mas vamos a outro exemplo. Pergunte
a um latino que �� que se pode jazer com uma mulher, e dentre
dez homens nove dar��o uma e a mesma resposta, que n��o pre-
ciso dizer qual seja. Mas se voc�� perguntar a um americano
que �� que se pode jazer com uma mulher, ele responder��: Ter
um date, passear, ir ao cinema ou ao teatro, fazer um piqueni-
que, jogar gin rummy, beber, dan��ar, ir ao futebol, jogar t��nis,
conversar... Eventualmente ele mencionar�� a outra utilidade
da mulher que tanto preocupa o latino.
T. ��� E voc�� acha que isso tudo se deve �� educa����o e ao
fundo religioso do povo americano e mais aos muitos outros
interesses e divertimentos que lhe ocupam as horas e os pen-
samentos?
E. ��� Sim. E h�� ainda outra coisa. Um fator poderoso que
nenhum observador dos Estados Unidos poder�� deixar de levar
em conta. �� a atitude das mulheres, que t��m papel importan-
t��ssimo na vida deste pa��s.
T. ��� A mulher tem estado presente na hist��ria dos Esta-
dos Unidos desde a chegada do "Mayflower" at�� nossos dias.
E. ��� A mulher do pioneiro era uma companheira dedicada
que o ajudava a enfrentar a intemp��rie, os ��ndios, os animais
ferozes e toda a sorte de perigos. Era uma mulher que lia a
B��blia, que tinha a sua f�� e que sabia fazer coisas. Enquanto
os homens iam para o mato ou sa��am em suas ca��adas e guerras,
ela ficava sozinha em casa com os filhos e muitas vezes tinha
de usar a carabina para se defender contra perigos eventuais.
O n��mero de mulheres que morriam de parto era consider��vel.
Os observadores modernos acham que os Estados Unidos s��o
um pa��s de vi��vas. Mas a Am��rica dos tempos coloniais era
um pa��s de vi��vos. Disso se depreende que hoje em dia �� maior
o n��mero de homens que morrem de doen��as do cora����o, dc
acidentes de tr��fego ou de ��lceras g��stricas, do que no passado
o de pioneiros de picadas de cobra, frechadas de ��ndio ou febres.
T. ��� Abraham Lincoln muito deveu �� sua madrasta, que
lhe incutiu o desejo de ser algu��m, e lhe deu uma vis��o do
mundo e dos seus deveres de cidad��o.
E. ��� E foram as mulheres que sempre prestaram apoio
aos mission��rios que vinham ��s col��nias pregar contra a bebida
e o v��cio. Elas se erguiam contra as injusti��as que os homens
brancos por acaso pretendessem fazer aos ��ndios. De certo
modo foram um elemento de ordem, de honestidade e de espe-
ran��a naquela sociedade primitiva.
A VOLTA DO GATO PRETO
423
T. ��� Mas desde quando come��aram elas a ter real influ-
��ncia na vida social, pol��tica e art��stica do pa��s?
E. ��� Creio que por volta de 1900, quando foi adotado nos
Estados Unidos o controle da natalidade, coisa que livrou as
mulheres de grande parte de sua carga, dando-lhes mais tempo
para estudar e tomar parte ativa na vida de suas comunidades.
T. ��� Pelo que tenho observado, sua import��ncia hoje ��
enorme.
E. ��� Isto, meu caro, �� em ��ltima an��lise um matriarcado.
Foram as mulheres que conseguiram a promulga����o da Lei
Seca, bem como a da lei que pro��be a prostitui����o organizada.
E como as mulheres t��m em geral uma tend��ncia muito maior
que a nossa para a dec��ncia, �� natural que sua atitude tenha
influ��do dum modo geral na conduta sexual dos homens.
T. ��� Acha sinceramente que as mulheres s��o felizes neste
pa��s onde parecem governar?
E. ��� N��o creio que sejam profundamente felizes. Talvez
procurem convencer-se disso narcotizando-se com todas as for-
mas de atividade social. Elas s��o jornalistas, escritoras, edu-
cadoras; tomam parte na vida comercial; realizam confer��ncias,
entregam-se a trabalhos de assist��ncia social, fazem-se m��dicas,
advogadas, engenheiras, enfermeiras, trabalham em escrit��rios,
em f��bricas... enfim, s��o competidoras dos homens em quase
todos os terrenos.
T. ��� E agora durante a guerra est��o prestando servi��os
admir��veis nos corpos auxiliares do ex��rcito, da marinha e da
avia����o.
E. ��� Sim, a guerra hoje em dia n��o �� mais um assunto
exclusivamente masculino. Mas... voltemos ao tema da feli-
cidade t��o. intimamente ligado �� quest��o sexual. Segundo
muitos psic��logos, a mulher americana �� uma frustrada. Ali-
menta-se das ra����es do romance que o cinema, os livros e os
magazines lhes oferecem atrav��s de hist��rias e novelas. Depois
que casam nem sempre encontram no casamento as promessas
douradas da fic����o e da poesia. Muitas delas passam toda a
vida de casadas prejudicadas pelos tabus sexuais impostos por
uma educa����o puritana. Algumas buscam no casamento uma
realiza����o sexual e raramente encontram um homem compre-
ensivo ou suficientemente inteligente (refiro-me principalmente
�� intelig��ncia dos instintos) para satisfaz��-las.
T. ��� Os homens se preocupam demasiadamente com os
neg��cios, com as carreiras...
E. ��� E sua atitude diante do sexo ou �� a semicient��fica
ou a puritana ou a esportiva, ou uma combina����o das tr��s. Por
outro lado as mulheres americanas t��m uru instinto maternal
424
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
muito desenvolvido. Tratam os maridos um pouco como a
filhos. Chamam-lhes o meu boy, o meu baby.
T. ��� At�� onde o marido �� culpado dessa atitude?
E. ��� Diz David L. Cohn em seu livro "Love in America"
que essa atitude maternal �� um resultado do fato de muitos
homens americanos serem: a) emocionalmente adolescentes;
b) n��o quererem dar muito tempo nem esfor��o no sentido de
construir uma vida sexual s��lida e sensata dentro do casamento:
c) olharem a mulher como uma lady, uma dama, no mesmo
sentido que sua m��e o �� ��� e isso, naturalmente, impede-os de
tratar a mulher como a uma amante. N��o �� pois de admirar
que o Dia das M��es seja uma inven����o norte-americana.
T. ��� N��o ser�� tamb��m que a vida moderna separa demais
o marido da mulher?
E. ��� Precisamente. �� o problema das muitas atividades,
dos mundos separados. H�� uma coisa curiosa. De certo modo
os americanos, principalmente os homens de neg��cios, olham as
atividades art��sticas e liter��rias como sendo coisas quase t��o
femininas como fazer tric�� e bordar. �� por isso que o mundo
liter��rio americano �� um mundo em que a mulher tem papel
preponderante.
T. ��� Essa rela����o entre homens e mulheres nos Estados
Unidos �� um assunto fascinante.
E. ��� E complicado, dif��cil e inesgot��vel. Porque h�� gente
de toda a esp��cie. Generalizar �� perigoso. Mas segundo o
mesmo Mr. Cohn, o homem americano geralmente n��o gosta
da mulher americana.
T. ��� E a rec��proca n��o ser�� verdadeira?
E. ��� Sei l��! O que sei �� que os americanos passam por
ser os melhores maridos e os piores amantes do mundo. As
mulheres americanas sentem uma certa atra����o pelos latinos.
�� uma atra����o temperada de medo. �� o fasc��nio da dama pelo
gigol��. Elas acham os latinos rom��nticos, atenciosos, exci-
t i n g . . . O homem americano tem para com suas mulheres uma
atitude ou filial ou desportiva. Os latinos assumem diante
delas uma atitude galante. Os primeiros simbolizam uma vida
segura, normal; os ��ltimos, o romance, o prazer e ��� oh c��us!
��� uma vida insegura e, no fim, desgra��ada.
T. ��� Voc�� n��o pode passar sem uma deforma����o..,
E. ��� Eu ou a vida? Mas voltando ao assunto das rela����es
entre homens e mulheres, muitos soci��logos conclu��ram que os
homens americanos n��o se interessam muito pelo mundo de
suas mulheres, por suas id��ias e atividades, mesmo que sc
sintam sexualmente atra��dos por elas. Tenho visto muitos stag parties nos Estados Unidos, isto ��, festas s�� de homens. S��o
A VOLTA D O GATO P R E T O
425
amigos que se re��nem para conversar, beber, falar em ca��adas,
bichos, autom��veis, neg��cios, viagens e ocasionalmente (s�� oca-
sionalmente) em mulheres, mas nas mulheres dos outros e n��o
nas suas. Diz Cohn que o americano n��o gosta das suas
mulheres porque foram dominados por elas durante toda a
inf��ncia e a adolesc��ncia. Depois da tirania da m��e, veio a
da professora. E desde a escola prim��ria at�� a universidade a
mulher come��a a ser a competidora...
T. ��� Em que sentido?
E. ��� Primeiro nos estudos, depois nos jogos, nos concursos,
nas festas. Mais tarde s��o concorrentes... nos empregos.
T. ��� E a guerra deu a milhares de mulheres que antes n��o
trabalhavam a oportunidade de ganhar altos sal��rios.
E. ��� E de habitu��-las a terem o seu dinheiro, a sua inde-
pend��ncia, as suas economias. Sim, elas n��o querer��o largar as
posi����es a que foram convidadas para substituir os homens que
o ex��rcito chamou.
T. ��� O que �� que h�� de verdade sobre a prostitui����o neste
pa��s?
E. ��� �� proibida por lei. Isso, entretanto, n��o impede que
haja "street walkers" isto ��, mulheres que andam pelas ruas
ca��ando homens discretamente, procurando n��o dar na vista
da pol��cia. Mas dum modo geral creio que nesse terreno os
Estados Unidos est��o em melhor situa����o que a grande maioria
dos outros pa��ses. Tive a oportunidade de verificar que o n��vel
moral de muitas das cidades do Middle West, do Oeste e da
Nova Inglaterra �� bastante alto, muito mais do que a gente
imagina quando v�� os filmes de Hollywood ou l�� certos livros
e magazines.
T. ��� Como explica voc�� a freq����ncia com que se verifi-
cam esses casos de rape, de estupro, de que os jornais andam
cheios.
E. ��� Para esse assunto tamb��m tenho buscado uma expli-
ca����o. Devemos antes de mais nada ter em mente que em
��poca de guerra aumentam a) a tens��o psicol��gica; b) os
crimes, principalmente os de natureza sexual; c) o consumo
de bebidas alco��licas. Tudo isso �� o resultado dessa psicose
horr��vel que tomou conta do mundo e que nasce da incerteza
quanto ao dia de amanh��, de todo esse espet��culo de viol��ncia
que presenciamos ou a respeito do qual lemos ou ouvimos falar.
A delinq����ncia juvenil tem aumentado. Nas casas em que o
pai est�� na guerra e a m��e trabalhando numa f��brica, e as
criadas positivamente n��o existem ��� os filhos ficam entregues
a si mesmos, a suas curiosidades, e �� sua fantasia morbidamente
despertada por certos filmes e pela leitura de livros e revistas
426
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
que reproduzem hist��rias de crime ou lubricidade. Com rela����o
aos "rapes", acontece tamb��m que a aus��ncia de prostitui����o
leva cs homens solteiros a uma esp��cie de castidade for��ada.
"Um dia todos os seus desejos recalcados sobem �� tona, rompem
todas as represas e precipitam-se... E l�� est�� a besta, cega
de desejo, disposta a tudo. E quando esse desejo, essa explo-
s��o se combina com alguma tend��ncia criminosa adormecida,
ent��o o quadro est�� completo. H�� um ditado segundo o qual a
ocasi��o faz o ladr��o. Mas o nosso Machado de Assis explicou que
a ocasi��o faz �� o furto, porque o ladr��o, esse j�� nasceu feito...
Em suma �� compreens��vel que entre 130 milh��es de seres huma-
nos haja gente anormal em boa quantidade. O essencial para o
observador �� n��o tomar como regra o que �� apenas exce����o.
T. ��� De sorte que at�� Machado de Assis entrou na nossa
conversa.
E. ��� Conversa que j�� vai longa. Mas n��o quero terminar
este di��logo sem chamar a sua aten����o para um aspecto muito
curioso da quest��o sexual, e das diferen��as de atitude entre
brasileiros e americanos. Eu preveni voc�� que o assunto era
perigoso...
T. ��� Fale com toda a franqueza. No fim de contas nin-
gu��m nos est�� escutando...
E. ��� H�� entre boa parte dos homens brasileiros uma certa
preocupa����o f��lica que se revela na m��mica e no anedot��rio.
Ora, segundo me tem sido dado observar, exatamente o contr��rio
se passa com os americanos, que evitam qualquer refer��ncia de
palavra ou gesto a essa parte da anatomia humana que uma
conven����o milenar declarou tabu. E ��� note bem ��� nos quartos
de banho tanto p��blicos como particulares deste pa��s, n��o
existem bid��s...
T. ��� Como se explica isso?
E. ��� �� talvez ainda a influ��ncia puritana, que procura es-
conder tudo quanto possa lembrar ou sugerir sexo.
T. ��� Que conclus��o, afinal, tiramos de tudo quanto ficou
dito?
E. ��� Nenhuma. A gente se limita a observar, registrar e
arriscar observa����es que corresponder��o quando muito a ver-
dades de superf��cie... Que atitude predominar�� na Am��rica?
A puritana de Boston? A pag��-er��tica-esportiva de Hollywood
e Nova York? Parece fora de d��vida que a atitude comercial
e pag�� diante do sexo se espalhou gra��as ao progresso mec��-
nico. N��o direi novidade se afirmar que nas comunidades
rurais e mesmo nas grandes cidades dos estados agr��colas a
moral �� mais alta que nas zonas de progresso industrial.
T. ��� De sorte que...
A V O L T A DO G A T O P R E T O
427
E. ��� Agora s�� nos resta encerrar este escabroso di��logo,
pedindo perd��o a Deus e aos americanos por todas as nossas
heresias...
ACONTECEU EM LOS ANGELES...
18 de maio. O "Celebrity Club" h�� dias me diri-giu uma carta convidando-me para dizer algumas pa-
lavras DO seu jantar anual, que se realiza no "Golden
Room" do Hotel Ambassador, em Los Angeles.
�� hora marcada chego ao hotel, esperando encon-
trar na sala, como de costume, umas cinq��enta ou
sessenta senhoras, e tenho a surpresa de ver aqui nada
menos de novecentas e tantas pessoas de ambos os se-
xos sentadas junto de longas mesas, num vasto sal��o
decorado em ouro e verde-jade. Sinto a vis��o bara-
lhada ante uma profus��o de vasos com flores vistosas,
bandeiras, chap��us com enfeites multicores, vestidos e
j��ias. Anda no ar morno uma mistura de cheiro de
comida, de caf�� com leite e perfumes diversos.
Uma jovem, que j�� encontrei n��o me lembro onde,
me conduz pela m��o at�� o lugar que me est�� reser-
vado. Fico agradavelmente ensanduichado entre duas
louras. Tonto, levo algum tempo para perceber que
tenho �� minha direita Ris�� Stevens, cantora do Me-
tropolitan, que apareceu com Ring Crosby em "O
Rom Pastor". �� muito simp��tica e atenciosa, mas in-
felizmente tem de retirar-se dentro de quinze minutos,
de sorte que fico entregue aos cuidados da outra
loura, que acontece ser a vi��va do ator Hobbart
Rosworth.
Esses jantares anuais do "Celebrity Club" s��o um
espet��culo singular, uma mistura de sublime e de ri-
d��culo. Um dos homenageados do dia �� Mr. L. Rehymer,
velho e querido empres��rio ao qual muitos astros e es-
trelas de cinema devem suas carreiras. O programa ��
o mais ecl��tico poss��vel.
428
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Come��am os discursos. Os oradores s��o artistas,
escritores, homens de neg��cios, atores de cinema e tear
tro e pastores protestantes. Wiiliam Farnum, com a
sua juba grisalha, a sua face risonha e vermelha, vem
fazer um comovido elogio do homenageado. Depois
�� Will Durant, que por algum tempo fala sobre m��-
todos de interpreta����o hist��rica. Os discursos se su-
cedem. O tempo passa. O calor aumenta. Olho o
rel��gio: duas horas. O programa continua. Os ru��dos
se fazem cada vez mais animados. Mulheres levan-
tam-se de seus lugares e v��o dizer segredinhos aos
ouvidos das amigas, em outros pontos das mesas.
Bacharelandos dum col��gio v��m para este sal��o re-
ceber seus diplomas, com discursos, togas e tudo...
A seguir o mestre-de-cerim��nias apresenta um menino
prod��gio, que toca uma ��ria no violino. Os aplausos
s��o generosos e deles, participa a mestra do pequeno
g��nio, que �� tamb��m chamada �� cena. Depois uma
menina, tamb��m prod��gio, toca no piano uma Sona-
ta de Mozart, enquanto os pais, que est��o �� minha
frente, ficam todo o tempo de olhos grudados no ros-
to dum empres��rio e dum diretor de cinema, pro-
curando escrutar-lhes as rea����es. A presidenta do "Ce-
lebrity Club" pede a Fred Bartholomew que se levan-
te para receber aplausos. Estralam palmas. P��lido,
esguio, com ar de nobre ingl��s, Fred Bartholomew
se ergue e faz uma inclina����o de cabe��a. Depois vem
outro orador. Santo Deus! S��o quase cinco da tar-
de e a minha vez n��o chega. As pernas me doem. O
calor me abafa. J�� esgotei todos os assuntos imagi-
n��veis nos meus di��logos com a vi��va. N��o sei mais
que vou dizer.
Agora o orador �� um senhor idoso que ao pro-
nunciar os ss solta assobios agudos que o microfone
amplifica e atira pelo ar quente do sal��o, como api-
tos. Os minutos passam e o velho assobiador n��o che-
ga ao fim.
A V O L T A DO G A T O P R E T O 429
A vi��va me mostra instant��neos, de seu falecido
marido. Bosworth, com a cabeleira de algod��o solta
ao vento, acaricia o pesco��o dum cavalo de ra��a. Mi-
ro a fotografia. Que �� que vou dizer? Muito boni-
to? Admir��vel? Ela continua a me mostrar instan-
t��neos. Hobbart Bosworth na frente de sua casa no
vale de San Fernando, pintando uma paisagem.
��� Ah!. .. Seu marido pintava?
Pergunta absurda. Claro que pintava.
��� Oh! Ele adorava a pintura.
O mestre-de-cerim��nias aproxima-se do microfone
e conta uma anedota. E depois, anunciando que vai
falar um representante do Brasil, estropia-me o nome.
Levanto-me, derrotado, e caminho para o microfo-
ne, enquanto a vi��va me deseja boa sorte.
W. C. FIELDS
19 de maio. Entro numa barbearia do subsolo
do Hotel Roosevelt, sento-me numa cadeira e quando
j�� estou quase cochilando, embalado pelo sonido da
tesoura do barbeiro, que �� um homem notavelmente
calado ��� abro despertamente os olhos ao ver entrar
uma figura familiar. �� W. C. Fields, o famoso c��-
mico exc��ntrico. Vem de chinelos, arrastando os p��s,
apoiado numa bengala, o vultuoso tronco metido num
casaco de l�� parda. Parece muito velho e muito do-
ente. Seu nariz, de ordin��rio vermelho e caricatural-
mente abatatado, est�� hoje ainda mais inchado, dum
rubro quase negro, semelhando enorme morango ma-
chucado.
��� Que foi isso, Mr. Fields? ��� pergunta um dos
barbeiros.
Com sua voz ��spera como uma lixa, ele responde:
��� Foi a maldi����o do licor!
430
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Conta que tomou ontem tamanha bebedeira, que
caiu com o nariz contra as bordas do copo, ferindo-o.
Aproxima-se do espelho e fica a mirar-se por algum
tempo.
��� Ele j�� era feio por natureza. . . ��� diz, olhando
para o ap��ndice nasal ��� e o acidente n��o o melhorou
nada.
Ao sentar-se na cadeira solta um gemido. De-
pois entrega o rosto ao barbeiro e cerra os olhos.
Lembro-me duma anedota que h�� pouco me con-
taram e cujo her��i �� W. C. Fields. Um dia apresen-
tou-se-lhe um jovem dizendo ser seu filho.
��� Filho? ��� repetiu o c��mico, com ar de d��vida.
��� N��o me lembro. . .
O rapaz insistiu e ele encolheu os ombros. E co-
mo estivessem ambos num bar, resolveu comemorar
��� embora ainda desconfiado ��� o retorno do filho pr��-
digo.
��� Um u��sque duplo, gar��on! ��� gritou ele para o
barman. ��� E tu que bebes, my boy?
O rapaz respondeu timidamente:
��� Coca-cola.
��� Coca-cola! ��� vociferou W. C. Fields. ��� Logo
vi que eras um impostor!
�� SOMBRA DO TALMUD
20 de maio. Baixinho, ativo, inquieto ��� bigode
aparado, cabelos escuros, "pince-nez" doutoral ��� Er-
nest R. Trattner, humanista, escritor e rabino, �� das
figuras mais interessantes que tenho encontrado por
aqui. Os judeus ortodoxos n��o v��em com bons olhos
esse rabino liberal e modernista, em cuja sinagoga se
entra sem chap��u, e cujos livros e serm��es t��m sem-
pre um tom de irrever��ncia.
A VOLTA DO GATO PRETO
431
Em sua "Autobiografia de Deus", Trattner nos
apresenta o Criador a contar na primeira pessoa Sua
vida, a narrar o G��nesis segundo Sua pr��pria vers��o,
a explicar Seu m��todo evolucionista, contando tam-
b��m, com agudo senso de humor, tudo quanto os ho-
mens escreveram, pensaram e disseram a Seu respeito,
bem como as coisas certas e erradas que fizeram em
Seu nome. E por fim ��� tema predileto de Trattner
��� Deus satiriza a intoler��ncia e revela Seus prop��si-
tos com rela����o �� humanidade e �� ordem universal.
Todos os anos a congrega����o da sinagoga de
Trattner oferece como pr��mio uma ta��a de ouro ao
ministro das outras seitas que mais se tiver destacado
no terreno da toler��ncia e da coopera����o inter-reli-
giosa. Este ano a ta��a coube a um pastor da Igreja
de Cristo, e vai ser entregue numa cerim��nia espe-
cial no "Emanuel Temple, no Wilshire Boulevard,
sendo eu um dos oradores da noite.
Esta �� a raz��o pela qual aqui estou nesta pla-
taforma, num belo e claro templo, na frente duma con-
grega����o composta em sua maioria de judeus ricos de
Beverly Hills. Tenho a meu lado o Cantor, metido
na sua toga negra. �� nossa frente, o Talmud. No
fundo da plataforma, coberta por uma cortina, a Ar-
ca que cont��m os rolos do Pentateuco. Na outra ex-
tremidade da plataforma acham-se o rabino Trattner
e o pastor que vai receber a ta��a.
A cerim��nia se inicia. O ritual deste templo est��
muito simplificado, pois para Trattner os serm��es s��o
a parte mais importante dele, depois das ora����es. Estas
s��o lidas em coro pela congrega����o e, de quando em
quando, o Cantor enche o recinto com o seu belo ba-
r��tono em cantigas duma beleza lamurienta e dolo-
rosa. Dos sete bra��os dum grande casti��al judeu bri-
lham l��mpadas el��tricas que imitam velas.
O rabino levanta-se para fazer o elogio do pas-
tor da Igreja de Cristo e entregar-lhe depois a ta��a
de ouro, com uma inscri����o expressiva. Enquanto ele
432
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
fala, meu pensamento foge... �� curioso que eu esteja
agora aqui numa sinagoga judaica, �� sombra do Tal-
mud. Ontem andei pelos est��dios da Metro. H�� dois
dias estive com Joan Crawford numa sala da NBC,
num programa de r��dio destinado aos soldados ame-
ricanos que est��o na Europa. Amanh�� vou falar para
um grupo de homens de neg��cios, num clube de Be-
verly Hills; �� incr��vel que tantas coisas diferentes
possam acontecer numa semana...
Dentro de alguns minutos estarei ali naquele p��l-
pito para fazer um discurso. Terei de dizer coisas
s��rias num tom s��rio, pois isto aqui �� um templo re-
ligioso e n��o um clube. N��o vai ser f��cil. Detesto
o tom solene. Sinto-me constrangido quando n��o pos-
so dizer o que penso e do jeito que me �� mais natural.
Em todo o caso, seja o que Jeov�� quiser...
Calma! Aproxima-se a hora. Trattner faz mi-
nha biografia em tra��os r��pidos. Olho fascinado pa-
ra o p��ssaro vermelho que est�� pregado ao chap��u
duma dama, na segunda fila. .. Chegou minha vez.
Levanto-me, grave; em quatro passadas estou no p��l-
pito. Ladies and gentlemen. Sou um brasileiro. Mas
que vem a ser um brasileiro? Ora, um brasileiro ��
em geral um sujeito baixo e moreno com um sotaque
horroroso..." L�� se me escapou uma tolice. Agora ��
tarde demais ��� reflito, numa fra����o de segundo. Mas
ou��o a meu lado uma risada sonora. Volto a cabe��a
e vejo que o rabino ri. A congrega����o ri com ele.
Prossigo. Digo-lhe o que �� o Brasil sob o ponto de
vista humano, geogr��fico e hist��rico. A l��ngua que
falamos? O portugu��s. E a prop��sito de l��nguas te-
nho c�� as minhas teorias. Se quisermos escrever uma
carta de amor, o italiano �� a l��ngua indicada: doce
como sacarina, flex��vel e cariciosa. O franc��s tamb��m
serve e �� pela sua precis��o, ductilidade e riqueza a
l��ngua mais indicada para o ensaio liter��rio. E se
quisermos escrever a um cavalheiro uma carta conci-
A VOLTA DO GATO PRETO
433
sa, en��rgica mas ao mesmo tempo cort��s, reclamando
o pagamento duma d��vida? Para isso o ideal �� a l��n-
gua inglesa. Agora, se pretendemos contar uma men-
tira ��� pescar��a ou ca��ada fant��stica ��� a l��ngua mais
indicada �� o espanhol. Mas se desejarmos falar duas
ou dez horas, e escrever duzentas ou mil p��ginas sem
dizer nada, nada. . . ��� bom, nesse caso n��o h�� l��n-
gua melhor que a portuguesa. . .
E aqui junto dos rolos do Pentateuco, fico a con-
tar nesse Templo de Emanuel cenas da vida brasi-
leira. E intoxicado pela excelente e generosa recep-
tividade do audit��rio, vou ao ponto de ��� para dar
exemplos de humorismo brasileiro ��� contar at�� algu-
mas anedotas cariocas irreverentes.
Quando a senhora da segunda fila ri, o p��ssaro
vermelho tremula no ar. E quando termino a pales-
tra fico surpreendido ao ver e ouvir que a congre-
ga����o aplaude, como se estivesse num teatro.
A FRONTEIRA
Meu caro Vasco: Reproduzo aqui mais um de meus di��lo-
gos com Tobias, que hoje me recebeu com estas palavras:
��� Temos conversado sobre este povo e esta civiliza����o,
mas permanecemos sempre no terreno das generalidades tate-
antes, de car��ter mais liter��rio que propriamente sociol��gico.
Eu gostaria de saber como foi que os europeus que colonizaram
os Estados Unidos tiveram aqui seus costumes, mentalidade e,
digamos, "t��tica de vida", transformados ou modificados a ponto
de dar origem ao que hoje chamamos de "car��ter e modo de
vida americanos".
Boa parte do di��logo que passo a transcrever, desenvolveu-
se �� sombra do admir��vel ensaio de Frederick Jackson Turner:
The Significance of the Frontier in American History.
��� At�� certo ponto ��� comecei eu ��� a hist��ria dos Estados
Unidos �� a hist��ria da conquista do Oeste. No estudo da ex-
pans��o das fronteiras ocidentais encontramos a explica����o do
car��ter e da civiliza����o americanos.
434
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� Frontier... Eis uma palavra que encontramos aqui
a cada passo, e que parece gozar dum prest��gio m��gico...
Afinal de contas, que vem a ser a frontier?
E. ��� Frontier �� o nome que se d�� �� por����o dum pa��s que
fica entre uma regi��o povoada e uma regi��o despovoada. ��,
em suma, a linha onde termina a civiliza����o e come��a o deserto.
T. ��� Mas a coloniza����o americana n��o principiou com
Jamestown, em Virg��nia, e com Plymouth, em Massachusetts?
N��o foi ela exclusivamente anglo-sax��nica na origem, na l��ngua,
nos h��bitos? N��o �� no litoral do Atl��ntico que ainda hoje se
encontra a parte mais civilizada dos Estados Unidos? Como se
pode dar tanta import��ncia �� frontier na forma����o do car��ter
deste povo?
E. ��� No princ��pio a fronteira era a costa do Atl��ntico.
(Usemos neste di��logo, um pouco arbitrariamente, a palavra
fronteira para traduzir frontier.) E a fronteira atl��ntica era
ainda um prolongamento da Europa. Aconteceu, por��m, que
�� medida que os pioneiros avan��avam para o Oeste, essa fron-
teira se tornava cada vez mais americana.
T. ��� Como? Por qu��?
E. ��� Quanto mais se afastavam do Atl��ntico, tanto mais
os pioneiros iam perdendo contato com a Europa. Dependiam
cada vez menos n��o s�� da Inglaterra como at�� dos colonos in-
gleses do litoral americano, ao mesmo passo que iam sendo
obrigados a mudar a sua t��tica de vida e seus h��bitos, n��o s��
para fazer face a todos os obst��culos que o meio desconhecido
e ��spero lhes deparava, como tamb��m para aproveitar as faci-
lidades que a natureza lhes proporcionasse nessa penetra����o
do interior.
T. ��� A que ra��a pertenciam os imigrantes que conquista-
ram o Oeste?
E. ��� Os pioneiros eram gente de v��rias regi��es da Europa.
Mas creio poder-se afirmar que predominavam entre eles os
escoceses, irlandeses e os alem��es ao Palatinado.
T. ��� Foi, ent��o, a fronteira um fator decisivo da ameri-
caniza����o?
E. ��� Sem a menor d��vida. Os pioneiros entravam no de-
serto vestidos �� maneira europ��ia e munidos de instrumentos
de trabalho, armas e h��bitos europeus. Ora, nos rios desse
mundo novo eles n��o encontravam as do��uras e as facilidades
do Reno, do Dan��bio ou dos rios da Esc��cia e da Irlanda. N��o
podendo contar com os tipos de embarca����o europeus, tiveram
de usar a piroga dos ��ndios feita de troncos de ��rvores. O
chal�� b��varo e a casa de pedra irlandesa tomaram na Am��rica
a forma da cabana de troncos, cercada duma pali��ada �� maneira
A V O L T A DO G A T O P R E T O
435
ind��gena. Aos poucos o pioneiro teve de mudar a indument��-
ria, de aprender a t��tica de guerra dos abor��genes e de seguir
a experi��ncia destes no que dizia respeito �� agricultura. Era
necess��rio adaptar-se para sobreviver. O contato com a natu-
reza selvagem e n��o s�� a hostilidade de certas tribos como
tamb��m a amizade de outras produziram no colonizador euro-
peu rea����es que acabaram criando uma nova maneira de ser,
pensar e sentir que se n��o chegava a ser id��ntica �� dos ��ndios,
pelo menos j�� n��o era mais europ��ia, e come��ava a ser ame-
ricana.
T. ��� Ainda n��o vejo em que essa atitude de imigrantes
europeus diante da natureza do Novo Mundo possa ser consi-
derada mais importante ou mais representativa desse povo que
a dos primeiros colonos ingleses que se estabeleceram nas treze
col��nias formadoras do n��cleo inicial da Uni��o, e que foram
cm ��ltima an��lise as promotoras das Guerras de Independ��ncia.
E. ��� O que quero dizer �� que essa marcha para o Oeste
e a cr��nica dos feitos dos pioneiros e seus descendentes, mais
os resultados econ��micos, sociais e psicol��gicos dessa expans��o
das fronteiras constituem a parte "americana" da hist��ria dos
Estados Unidos. Aconteceu tamb��m que os colonos do litoral
puderam conservar melhor seus h��bitos europeus e manter um
contato mais continuado e ��ntimo com a Inglaterra.
T. ��� Acha que todos os americanos concordar��o com seu
ponto de vista?
E. ��� Claro que n��o. H�� pouco um amigo meu nascido
em Boston veio �� Calif��rnia, em viagem de recreio, e quando
lhe perguntei que achava deste clima e deste sol, respondeu:
"Suport��veis, meu caro. Mas devo confessar-lhe que estou
ansioso por voltar aos Estados Unidos".
T. ��� Que queria dizer com isso?
E. ��� Referia-se evidentemente �� Nova Inglaterra.
T. ��� Mas, voltemos �� fronteira...
E. ��� Tome o americano moderno, seja ele de Indiana, Te-
xas, Colorado, Calif��rnia ou Pennsylvania... Examine-lhe os
sonhos, os planos, os gostos, a filosofia da vida, e voc�� encon-
trar�� nele muito do esp��rito do pioneiro.
T. ��� Sejamos precisos. Em que consiste esse famoso "es-
p��rito da fronteira."
E. ��� Ningu��m o definiu melhor que Turner, dizendo que o
americano deve �� fronteira "essa rudeza e for��a que se com-
binam com agudeza e curiosidade; esse esp��rito inventivo, pr��-
tico, r��pido no encontrar expedientes; esse magistral dom��nio
das coisas materiais, falho no que diz respeito ao art��stico,
mas poderoso no realizar objetivos grandiosos; esta energia
436
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
inquieta e nervosa; esse individualismo dominante que se exer-
ce para o bem e para o mal; e acima de tudo essa jovialidade
e exuber��ncia que v��m com a liberdade..."
T. ��� Compreende-se que a fronteira tenha produzido o in-
dividualismo, pois para arrojar-se a essas entradas rumo do
Oeste desconhecido, o colono precisava possuir em grau elevado
o esp��rito de aventura, a par duma grande f�� em si mesmo e
no futuro. Em suma, tinha de ser um otimismo corajoso.
E. ��� Esse individualismo gerou nele sentimentos de inde-
pend��ncia e democracia. O desbravador do Oeste odiava toda a
esp��cie de controle, fosse ele pr��ximo ou remoto, e era com ver-
dadeira m�� vontade e antipatia que os colonos recebiam o co-
letor de impostos.
T. ��� Como se processou a conquista da fronteira?
E. ��� �� natural que os pioneiros, no princ��pio, tivessem se-
guido o curso das art��rias geol��gicas. Subiram os rios que desa-
guam no Atl��ntico e foram at�� as proximidades do fall line, isto
��, na beira dos plat��s onde se achavam as quedas d��gua. O
fall line, pois, marca o limite da fronteira do s��culo XVII.
T. ��� Todos esses pioneiros eram colonos? Ou havia entre
eles tamb��m mercadores?
E. ��� Com o risco de ferir a sua natureza idealista, meu caro
Tobias, eu lhe direi que na Am��rica, como em muitas outras
partes do mundo, o mercador foi o abridor de caminhos da civi-
liza����o. Os mercadores de peles e os ca��adores embrenhavam-se
nas terras desconhecidas, entravam em contato com os ��ndios e
estabeleciam entrepostos em aldeamentos ind��genas, situados
em pontos privilegiados: vales f��rteis, vizinhan��as de fontes sa-
linas ou ent��o �� margem de rios naveg��veis.
T. ��� Alguns desses aldeamentos naturalmente com o correr
do tempo transformaram-se em grandes cidades...
E. ��� Exatamente. Foi o que aconteceu com Pittsburgh,
Chicago, St. Louis, Albany, Kansas City, etc...
T. ��� N��o esque��a que deixamos a fronteira imobilizada
na "fall line"...
E. ��� A fronteira do s��culo XVIII transp��s os montes Alle-
ghany.
T. ��� Custa-me crer que em princ��pios do s��culo XIX o Mis-
sissipi ainda n��o tivesse sido ultrapassado.
E. ��� Mas essa �� a verdade. Nos primeiros 25 anos do s��culo
XIX a linha da fronteira era o rio Mississipi. Em meados desse
mesmo s��culo ela avan��ou at�� o Missouri.
T. ��� E, a todas essas, que faziam os ��ndios?
E. ��� Uns colaboravam com os conquistadores. Outros lhes
eram hostis ou indiferentes. Dum modo geral iam sendo cercados
A VOLTA DO GATO PRETO
437
pelos aldeamentos dos brancos ou empurrados cada vez mais
para o Oeste. Em meados do s��culo passado as fronteiras orien-
tais de Nebraska e Kansas marcavam os limites do Territ��rio
��ndio.
T. ��� Qual foi a ��ltima fronteira?
E. ��� Os Montes Rochosos, atingidos em fins do s��culo pas~
sado.
T. ��� Como se explica que os Estados Unidos depois de pro-
clamada a sua independ��ncia n��o se tenham fragmentado numa
cole����o de estados independentes? N��o seria l��gico que isso
acontecesse devido �� falta de comunica����es e transportes f��ceis
e r��pidos?
E. ��� A resposta �� sua pergunta ainda se encontra na vida
da fronteira. Era costume dos colonos dos diversos aldeamentos
reunirem-se em congressos peri��dicos. (Como v��, data desse
tempo remoto a mania americana das conven����es...) Nesses
congressos eles tratavam de planos comuns de defesa contra os
ataques armados dos ��ndios. Mais que isso: faziam um inter-
c��mbio de experi��ncias. Os representantes de cada comunidade
contavam aos outros como resolviam ou procuravam resolver seus
problemas administrativos, religiosos, econ��micos ou dom��sticos.
Era uma troca util��ssima de informa����es. Tudo isso concorria
para que as diversas col��nias come��assem a pensar e a agir por
assim dizer nacionalmente. Habituados �� guerra em virtude dos
freq��entes ataques de tribos hostis, n��o lhes foi dif��cil em tempo
oportuno voltar contra os ingleses as armas adestradas na luta
com os abor��genes.
T. ��� Li n��o me lembro onde que muitos dos pioneiros ���
dinamarqueses, suecos, alem��es, irlandeses ��� quando marcha-
vam para o Oeste levavam consigo uma B��blia, sementes de ma-
���� e uma espingarda.
E. ��� Isso naturalmente �� uma estiliza����o dos petrechos do
pioneiro. Mas tem a sua verdade e vale tamb��m como um s��m-
bolo. Veja bem. A B��blia significava que esses colonos tinham
uma f�� e, mal ou bem, um c��digo de moral ou pelo menos uma
preocupa����o com problemas morais. A semente de ma���� sim-
bolizava suas rela����es com a terra, o desejo de plantar, de cons-
truir uma casa, em suma: de deitar ra��zes no ch��o conquistado.
A espingarda queria dizer simplesmente que eles estavam dis-
postos a se defender; numa palavra ��� sobreviver.
T. ��� Quando foi que os treze estados originais do litoral, on-
de come��ou a coloniza����o, receberam a ades��o das outras regi��es?
E. ��� Em 1821 Vermont, Maine, Mississipi, Alabama, Illi-
nois, Indiana, Kentucky, Louisiana, Missouri, Ohio entraram para
a Uni��o. Em 1845 Texas, Novo M��xico e Calif��rnia tamb��m
438
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
vieram para o aprisco, tudo isso �� custa de guerras e escaramu��as
na fronteira com o M��xico.
T. ��� �� incr��vel que a Uni��o tal como �� hoje tenha menos de
um s��culo.
E. ��� Vieram mais tarde os outros Estados do Far West; e
os do Noroeste, os do Meio Oeste e os do Sudoeste.
T. ��� N��o falamos dos problemas das comunica����es entre
essa fronteira m��vel e os estados do litoral...
E. ��� A navega����o a vapor auxiliou poderosamente o avan��o
da fronteira, mas em breve fizeram-se necess��rios caminhos ter-
restres. Ficamos hoje maravilhados diante do sistema de comu-
nica����es dos Estados Unidos. Mas �� bom n��o esquecer que, h��
pouco mais de cem anos, na maior parte do territ��rio da Uni��o
o que havia eram as trilhas feitas pelas patas dos b��falos, cujas
pegadas eram seguidas pelos ��ndios, pelos mercadores de peles,
pelos ca��adores, pelos pioneiros. Mais tarde essas trilhas foram
alargadas e por elas passavam as dilig��ncias e os "covered wa-
gons" ou sejam as carro��as cobertas dos colonos. A partir de
1848 sobre esses caminhos se estenderam os trilhos da estrada
de ferro.
T. ��� Ainda n��o falamos nos negros que eram trazidos da
��frica para trabalhar nas planta����es de algod��o do Sul...
E. ��� Sim, a escravid��o florescia nas fazendas sulinas. L�� por
fins do s��culo XVIII ela parecia declinar, pois os fazendeiros es-
tavam chegando �� conclus��o de que plantar algod��o "n��o era
neg��cio" por causa do custo da produ����o. Foi quando em
1793 Eli Whitney inventou o cotton-gin o descaro��ador de algo-
d��o, que deu tremendo impulso �� ind��stria algodoeira.
T. ��� Pode-se ent��o dizer que a ind��stria americana come-
��ou com o cotton-gin?
E. ��� Sim. E n��o esque��amos que depois de 1800 fizeram-
se sentir nos Estados Unidos as conseq����ncias da Revolu����o In-
dustrial. Os americanos come��avam a revelar n��o s�� o gosto
pelas m��quinas, como tamb��m uma grande habilidade mec��nica,
a par dum talento inventivo e pr��tico.
T. ��� Ergue-se ent��o a ind��stria do Norte...
E. ��� Para compreender os Estados Unidos em seus aspec-
tos presentes, �� preciso examinar o per��odo de sua hist��ria que
vai de 1830 a 1850. Por essa ��poca grandes mudan��as come-
��avam a operar-se na vida americana devido �� expans��o para
o Oeste e ao surgimento duma ind��stria ao Norte.
T. ��� N��o tinha essa ind��stria come��ado depois da guerra
de 1812?
E. ��� Sim, mas s�� depois de 1828 �� que principiou a ter real
import��ncia. Naqueles tempos, como hoje, o neg��cio de im��veis
era a maneira mais r��pida de fazer fortuna. Assim o real estate
A VOLTA DO GATO PRETO
439
business florescia principalmente nos estados do Norte, criando
milion��rios da noite para o dia. Aos poucos, por��m, os capita-
listas come��aram a voltar-se para a ind��stria manufatureira, e
muitas f��bricas surgiram, ao mesmo passo que se fundavam
bancos e mais casas de neg��cios.
T. ��� Tiveram essas f��bricas o problema de bra��os?
E. ��� Sim, e muito s��rio. Foi ainda na imigra����o que en-
contraram solu����o para o problema. Entre 1830 e 1850 entraram
nos Estados Unidos, principalmente pelos portos do Norte, perto
de dois milh��es e meio de imigrantes. S�� a fome na Irlanda
atirou com milhares de irlandeses nas costas americanas...
T. ��� E quem hoje os v�� a comer com tanta voracidade os
seus famosos cozidos tem a impress��o de que eles ainda n��o
mataram a fome...
E. ��� A Am��rica continuava a ser para o imigrante a terra
da promiss��o, o pa��s novo sem barreiras sociais, onde qualquer
criatura humana podia transformar-se rapidamente num milion��-
rio e fazer carreira no mundo pol��tico.
T. ��� At�� que ponto a Am��rica correspondia na realidade ao
sonho do imigrante?
E. ��� Muitos desses europeus que vieram trabalhar nas f��-
bricas americanas nem sempre conseguiam sal��rios altos e boas
condi����es de vida. Os patr��es, por sua vez tamb��m descenden-
tes de imigrantes, estavam preocupados principalmente com ga-
nhar muito dinheiro e no espa��o de tempo mais curto poss��vel,
de sorte que pouca ou nenhuma aten����o davam ao prolet��rio.
Este em geral permanecia numa situa����o que, comparada com a
que seus colegas gozam hoje, era de verdadeira mis��ria. Mas
mesmo assim se sentiam felizes por ter vindo, pois as agruras que
a nova terra lhes oferecia eram muito menores que as de seus
pa��ses de origem. E, fosse como fosse, havia a esperan��a de me-
lhorar de condi����o, pois sabiam que outros imigrantes tinham
conseguido sucesso e fortuna.
T. ��� Pode-se, ent��o, dizer que a Am��rica come��ava a com-
preender que seu futuro estava na ind��stria.
E. ��� Exatamente. E de 1830 em diante uma onda de otimis-
mo come��ou a varrer o pa��s, impelida principalmente pelas not��-
cias das carreiras fabulosas de financistas, industrialistas e "pro-
moters". A popula����o do pa��s crescia. As oportunidades pare-
ciam ilimitadas. O dinheiro jorrava. Repito: n��o havia barrei-
ras sociais. Ningu��m perguntava ao imigrante de onde vinha e
quem eram seus pais. A Am��rica estava aberta para quem qui-
sesse tornar-se americano. Essa era principalmente a atitude do
Norte e muito particularmente a dos estados centrais. Essa era
tamb��m a atitude desse fabuloso Oeste.
440
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� Deve datar dessa ��poca uma s��rie de supersti����es e
manias que passariam a colorir o pensamento e o sentimento
americanos da�� por diante.
E. ��� Sim. As preocupa����es do momento eram:
n��o entregar-se nunca ao pessimismo;
ganhar dinheiro;
esquecer o passado: olhar s�� para a frente;
fazer coisas grandes;
conseguir sucesso;
aproveitar todas as oportunidades.
T. ��� Devem ter nascido nessa ��poca certos slogans ameri-
canos como "Este �� um pa��s livre". "Somos pela iniciativa priva-
da". The sky is the limit ou seja "O c��u �� o limite" ��� o que valia
dizer: n��o conhecemos limites...
E. ��� Sim, para a maioria dessa gente a capacidade de
ganhar dinheiro, de fazer bons neg��cios passou a ser em si mes-
ma uma virtude. E respeitad��ssima.
T. ��� Estava, pois, o ambiente saturado de ambi����es mate-
rialistas.
E. ��� Mas n��o devemos esquecer que surgiram aqui e ali re-
formadores e idealistas, e em assunto de legisla����o social a Am��-
rica avan��ava mais que a pr��pria Europa. Eliminou a pris��o dos
devedores, reformou as cadeias, abolindo o castigo corporal, e
chegou a dar alguns direitos �� mulher. Seu proletariado come-
��ava tamb��m a organizar-se.
T. ��� Desde quando principiaram a diferen��ar-se essas re-
gi��es dos Estados Unidos que ainda hoje apresentam caracter��s-
ticas peculiares?
E. ��� J�� por 1850 se distinguiam quatro zonas diferentes da
Uni��o: o Norte, o Sul, o Middle West e o Far-West.
T. ��� E quais eram seus caracter��sticos?
E. ��� Ao estudar a regi��o geralmente chamada Norte, ou
melhor East (Leste) �� necess��rio separar os estados que forma-
vam e formam a parte denominada Nova Inglaterra (Massachu-
setts, Nova-Hampshire, Maine, Vermont, Rhode Island e Connec-
ticut) e os Estados Centrais, que s��o Nova York, Nova Jersey,
Delaware e Pennsylvania. A Nova Inglaterra representava prin-
cipalmente a tradi����o puritana de ledores da B��blia, descenden-
tes dos peregrinos do "Mayflower", deposit��rios da cultura e da
tradi����o dos Fundadores ��� gentes de costumes decentes, severos
mas com uma tend��ncia para o esnobismo e para a intoler��ncia.
Quem dava, por assim dizer, a nota t��nica ao chamado Norte
eram os Estados Centrais, zona menos inglesa mas por outro lado
mais representativa desta na����o comp��sita. Era uma regi��o cos-
mopolita, industrial, onde vivia uma sociedade variada e violenta-
A VOLTA DO GATO PRETO
441
mente competitiva, com pouca ou nenhuma preocupa����o com o
passado, e toda sua paix��o, seu ��mpeto, sua capacidade de tra-
balho, inven����o e adapta����o projetados para o futuro.
T. ��� Pode-se, ent��o, dizer que nesses estados predomina-
va o desejo de prosperidade material...
E. ��� Creio que sim. Tratava-se tamb��m duma zona que
estava em constante contato com a Europa, atrav��s do porto
de Nova York. Representava, na sua variedade de seitas reli-
giosas, um certo esp��rito de toler��ncia, a par duma aus��ncia de
tend��ncias regionalistas.
T. ��� E que esp��cie de gente predominava no Sul?
E. ��� No Sul havia o ingl��s modificado por um clima quente,
e por um tipo de vida semifeudal. O Sul era, pois, baronial,
racista, escravocrata, agr��cola e mantenedor duma tradi����o de
fidalguias e ��� digamos assim ��� epicurismo rural.
T. ��� Que representava o Middle West?
E. ��� Essa regi��o ��� formada pelos estados de Missouri,
Ohio, Minnesota, Iowa, Indiana, Illinois, Michigan e Wiscon-
sin ��� era a que melhor parecia representar a democracia de
agricultores sonhada por Jefferson. Zona povoada por descen-
dentes de imigrantes irlandeses, escoceses, alem��es e escandi-
navos, nela imperavam os tra��os de car��ter produzidos pela
fronteira.
T. - E o Far West?
E. ��� Essa se����o oferecia um aspecto completamente dife-
rente do das outras. Em meados do s��culo passado ela recebera
um tipo de imigrante que n��o se preocupava com abrir picadas,
plantar ro��as e estabelecer-se em comunidades permanentes. Os
forty-niners, isto ��, os aventureiros que para l�� correram a par-
tir de 1849, andavam apenas em busca de ouro e vinham de to-
das as partes do mundo. Saltando por cima da fronteira, que
ainda n��o havia atingido os Montes Rochosos ��� atravessando
penosamente o continente, dobrando o cabo Horn ou cruzando
o istmo de Panam��, chegaram numa onda turbulenta que trazia
em seu bojo um mundo de viol��ncia, crimes e v��cios.
T. ��� O panorama dos Estados Unidos, pois, n��o podia ser
mais variado:..
E. ��� E v�� a gente fazer afirma����es categ��ricas sobre um
pa��s t��o complexo, t��o colorido, t��o rico de aspectos naturais
e humanos!
T. ��� De tudo quanto ficou dito se conclui, ent��o, que a
Am��rica come��ava a tornar-se uma pot��ncia mundial impor-
tante.
442
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
E. ��� E quiseram ou n��o os Quacres, os Puritanos, os M��r-
mons, o que dava import��ncia a esse pa��s novo era a sua ind��s-
tria. A m��quina ganhava dia a dia um prest��gio maior...
T. ��� E por essa ��poca um gigante havia surgido no cen��-
rio americano: Abraham Lincoln.
E. ��� Outra vez a fronteira.
T. - Como?
E. ��� Lincoln era um homem do Oeste e filho dum pioneiro.
Nascera simbolicamente numa dessas cabanas de troncos, t��o
t��picas da fronteira. Era um lenhador, um homem simples que
lia e citava a B��blia, que sabia fazer coisas com suas grandes m��os
musculosas. Tinha um sereno senso de humor e era um idealista
pr��tico. Em suma: um americano. Em 1858, como candidato
republicano ao Senado, fez um discurso em que afirmou: "'Uma
casa dividida contra si mesma n��o pode subsistir". (Outra vez a
B��blia, meu caro Tobias!) "Acredito que este governo n��o pode
durar permanentemente metade escravo e metade livre. N��o es-
pero que a Uni��o seja dissolvida, n��o espero que a casa caia,
mas espero, isso sim, que a divis��o cesse. Ela ter�� de se tomai
inteiramente uma coisa ou inteiramente outra".
T. ��� O pa��s marchava para a guerra civil.
E. ��� Os republicanos em 1860 apresentaram Lincoln como
seu candidato �� Presid��ncia. O Sul declarou que repudiaria
qualquer candidato republicano. Lincoln, por��m, foi eleito c
no mesmo ano de sua elei����o a Carolina do Sul separou-se da
Uni��o. Outros estados a seguiram. De resto, essa id��ia de se-
cess��o f�� vinha de longa data, e devia-se ao car��ter regiona-
lista dos estados sulinos. Um homem de Virg��nia, por exemplo,
considerava-se primeiro um virginiano, depois um americano.
T. ��� Costuma-se apresentar a rivalidade entre escravocra-
tas e abolicionistas como sendo a causa principal da Guerra Civil.
E. ��� Isso �� elementar, meu caro Watson. �� uma raz��o
de superf��cie. Entre o modo de vida do Norte e do Sul havia
uma grande incompatibilidade. O aristocrata sulino, indolente
e amigo dos lentos prazeres da vida patriarcal, n��o estimava nem
compreendia o comerciante ianque, t��o agitado e preocupado
com neg��cios, bancos, empresas e lucros. Por sua vez esses ho-
mens de neg��cio do East n��o simpatizavam nem se preocupavam
com entender os senhores das planta����es. Havia ainda esse
eterno antagonismo entre cidade e campo, f��brica e lavoura,
trabalho assalariado e trabalho escravo. E, bem como acon-
tece na pol��tica internacional de nossos dias, Norte e Sul se em-
penhavam em alargar as suas zonas de influ��ncia.
A VOLTA DO GATO P R E T O
443
Os novos estados do Oeste que se aprontavam para se incor-
porar �� Uni��o seriam estados livres ou escravagistas? Iriam au-
mentar no Congresso as for��as do Sul ou as do Norte? Todos
esses ��dios, incompreens��es, diferen��as, paix��es pol��ticas e prin-
cipalmente rivalidades econ��micas ��� todos esses agitados rios de-
saguavam violentos num lago: o problema da escravatura.
T. ��� E nesse lago quase naufragou a Uni��o.
E. ��� E eu quero chamar aten����o para um fato curioso: a in-
flu��ncia do Oeste nesta guerra. Se a expans��o n��o se tivesse feito
ou, melhor, se os estados que ficavam para al��m dos Alleghany
n��o houvessem sido adquiridos pela Uni��o, a secess��o talvez se
consumasse. Mas a fronteira pesava n��o s�� na consci��ncia da
na����o como tamb��m nos seus cofres. �� bom n��o esquecer que
o ouro de Texas, estado que fora anexado �� Uni��o em 1845,
dera grande impulso �� constru����o e �� expans��o das estradas de
ferro.
T. ��� De que lado ficaram os estados do Oeste?
E. ��� A princ��pio uma fatalidade geogr��fica os levara a
contragosto para o lado dos sulistas...
T. ��� Explique isso melhor.
E. ��� O Mississipi �� um rio de curso providencial, de a����o
unificadora. Ora, o Oeste precisava duma sa��da para o Golfo c
n��o desejava que a parte do sul do vale do Mississipi ficasse
em m��os inimigas, de sorte que no princ��pio da Guerra Civil
foi, por essa circunst��ncia, compelido a entrar na Confedera����o
embora n��o simpatizasse com a causa sulina. Mas as estradas
de ferro, ent��o em pleno funcionamento, mantiveram as comuni-
ca����es entre Leste e Oeste, permitindo aos estados desta ��ltima
regi��o recusar alian��a com o Sul.
T. ��� E se o Oeste tivesse entrado para a Confedera����o que
aconteceria?
E. ��� Tudo indica que a ruptura da Uni��o seria fatal.
T. ��� E' dif��cil de compreender que, saindo dessa luta tre-
menda e debilitante, os Estados Unidos se vissem numa encruzi-
lhada dif��cil...
E. ��� Para onde iria a Am��rica? Que caminho seguiria? J��
se falava no Sonho Americano. Mas... que era esse sonho?
At�� ent��o ��� escreve Stephen Vincent Ben��t em seu "Am��rica"
��� esse sonho tinha sido muitas coisas. "A combativa independ��n-
cia da fronteira; a rep��blica livre e plutarquiana dos Fundado-
res; a rep��blica rural, sonhada por J��fferson; a democracia da
fronteira de Andrew Jackson; a democracia de Lincoln... Era
tamb��m a id��ia de honra e dever altru��sticos de que fora exem-
plo Lee, o chefe sulista, s��mbolo dessa alegre e pr��diga aristo-
444
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
cracia dos bem-nascidos, que desejavam uma rep��blica regida
pelo c��digo de cavalheirismo que vigorava no sistema de plan-
ta����es do Sul... Ou seria o Sonho Americano o ideal Puritano
da Nova Inglaterra, a vida simples e os pensamentos superiores
de Concord, e os dez mil sonhos que luziam e se extinguiam
nas Novas Sions (Sempre a B��blia! ��� e este par��ntese �� meu e n��o
de Ben��t) e nas experi��ncias comunais de toda a sorte que l��
se fizeram? Porque todos os meios de vida tinham sido expe-
rimentados em v��rias partes da Uni��o. E agora a na����o emer-
gia duma guerra cruenta em que perdera mais de 600 000 de
seus filhos. A era industrial havia come��ado. A unidade na-
cional fora preservada gra��as a Lincoln. Mas Lincoln estava
morto... Que ia agora acontecer?'
Foi neste ponto que Tobias come��ou a bocejar. Era noite
alta e n��s ainda caminh��vamos sob as ��rvores de Durango Ave-
nue, sob um luar p��lido e perfumado de jasmins. Foi ent��o que
tive pena dele, de mim e da hist��ria americana. E decidi que
f��ssemos todos dormir.
DE LINCOLN A ROOSEVELT
Meu caro Vasco: Era uma tarde cor de ch�� e eu caminhava
em calma sob as palmeiras reais duma dessas silenciosas ruas de
Beverly Hills quando Tobias me apareceu inesperadamente, exi-
gindo que continu��ssemos o di��logo sobre a hist��ria americana.
Assim, retornamos peripat��ticamente nossa conversa����o.
E. ��� Onde deixamos os Estados Unidos?
T. ��� Numa encruzilhada dif��cil. O princ��pio do per��odo de
reconstru����o que se seguiu �� Guerra Civil.
E. ��� Ah! O Sul estava falido, amargurado, ro��do de ��dios.
Os negros, que a vit��ria dos ianques transformara duma hora
para outra de escravos em cidad��os, ou se embriagavam de liber-
dade ou se deixavam ficar na in��rcia da estupidifica����o. Fosse
como fosse, a s��bita mudan��a, trazendo-lhes o grande bem da
liberdade e duma igualdade que no fim de contas era apenas te��-
rica, trouxera-lhes tamb��m graves problemas. Alguns nortistas
sem escr��pulos usavam os negros livres com a finalidade de
despojar e afrontar os brancos do Sul, o que aumentou a animosi-
dade destes para com os ex-escravos. Em suma: da "linha de
Dixie" para baixo o panorama era de desola����o, de descalabro
econ��mico e social...
T. ��� E enquanto isso o Norte florescia, projetava-se para
a frente..,
A V O L T A DO G A T O P R E T O
445
E. ��� A Guerra fora como um sopro a avivar o fogo das
caldeiras de suas f��bricas. O Oeste participou tamb��m da pros-
peridade do Norte.
T. ��� Nada disso, por��m, impediu que ap��s a guerra hou-
vesse uma crise econ��mica.
E. ��� Mas em breve a prosperidade voltou... Tudo quanto
as f��bricas nortistas produziam encontrava mercado imediato e
largo.
T. ��� E qual era a atitude das pot��ncias europ��ias diante
da vit��ria do Norte?
E. ��� De desconfian��a e ci��me. A Fran��a e �� Inglaterra,
onde imperava uma esp��cie de aristocracia, era desagrad��vel ver
o erguimento duma na����o jovem e de futuro em que qualquer
plebeu, qualquer imigrante, qualquer pobre diabo encontrava
oportunidade de fazer uma carreira e tornar-se um l��der na es-
fera comercial, pol��tica ou social. Acontecia tamb��m que, por
motivos econ��micos, tanto a Inglaterra como a Fran��a haviam
desejado a vit��ria do Sul agr��cola sobre o Norte industrial. Era
uma raz��o de competidor.
T. ��� L�� est�� voc�� outra vez com os seus fatores econ��micos]
E. ��� Em meados do s��culo XIX uma personagem poderosa
entra em cena.
T. ��� Rockefeller? Astor? Vanderbilt?
E, ��� N��o. O petr��leo. Descoberto em 1859 no estado de
Pennsylvania, quatro anos depois produzia uma renda enorme.
Come��ou a "corrida" do petr��leo, determinando o nascimento de
novas cidades ou acelerando o progresso de outras j�� existentes.
T. ��� A corrente da imigra����o continuava?
E. ��� Sim. Vinham novos imigrantes para as f��bricas ou
para as lavouras do vale do Mississipi, cuja prosperidade per-
mitiu que o 0"ste fosse dos melhores fregueses do Norte.
T. ��� Os "rushes" continuavam rumo das jazidas de ouro e
petr��leo.
E. ��� Descobriram-se ricas minas de ouro em Nevada. As
de Colorado continuavam a produzir com abund��ncia...
T. ��� Cidades cresciam. Desertos povoavam-se. As estra-
das de ferro encompridavam seus trilhos, atravessavam os des-
campados. . .
E. ��� Em 1869 os trilhos que vinham do Leste se encon-
traram no estado de Utah com os que vinham do Oeste. E as
paralelas de a��o ligaram os dois oceanos.
T. ��� A iniciativa privada produziu os seus frutos.
E. ��� Sim, e creio que nesse ��ltimo dec��nio do s��culo XIX,
quando se consolidaram as fortunas que deram origem ��s cor-
pora����es e trastes que hoje dominam o campo das finan��as e da
446
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
ind��stria nos Estados Unidos, com ramifica����es por quase todo
o mundo; nesse fim de s��culo agitado que pode ser considerado
a Idade de Ferro do capitalismo ��� come��ou o decl��nio da ini-
ciativa privada, da livre concorr��ncia.
T. - !!!
E. ��� Da�� por diante esses senhores de trustes e de mo-
nop��lios procuraram dar �� pol��tica dos Estados Unidos a forma
mais conveniente aos seus interesses. Homens detentores de
nomes como Rockefeller, Astor, Vanderbilt, Carnegie, Gugge-
nheim, Morgan, Mellon e outros eram como deuses que de seu
Olimpo de Wall Street dirigiam, cada qual no seu setor, os
destinos econ��micos de boa parte do globo.
T. ��� Fantasia!
E. ��� N��o. Apenas fant��stico. Estes ainda l�� est��o. S��o
descendentes desses milion��rios que no fim do s��culo passado
fizeram suas fortunas com petr��leo, ouro, companhias de estrada
de ferro e navega����o, ind��stria pesada, etc. E uma vez que
esses trustes e cart��is controlam o mundo da economia e das
finan��as, parece-me que "competi����o livre", o free enterprise,
�� uma express��o de sentido duvidoso...
Em 1898, depois da sua vit��ria sobre a Espanha na guerra
de Cuba, os Estados Unidos ganharam estatura de pot��ncia
mundial.
T. ��� Mas j�� n��o haviam conquistado essa posi����o logo
ap��s a Guerra Civil?
E. ��� Economicamente, sim. Mas agora o pa��s ganhava
import��ncia pol��tica.
T. ��� E qual foi o resultado dessa ascens��o?
E. ��� A abertura de uma nova era. O Bureau do Censo
declarara em 1890 que a Fronteira havia terminado. Numa su-
cess��o de crises, p��nicos financeiros, alternados com per��odos
mais longos da prosperidade, os Estados Unidos viam aumentar
sua riqueza industrial e agr��cola, sua popula����o e as oportu-
nidades de grandes neg��cios. Agora a sua medida era o
milh��o.
T. ��� Onde estava o sonho dos puritanos? O ideal dos
quakers? A simplicidade austera dos pioneiros?
E. ��� Imperava no pa��s o culto do dinheiro, a negociata,
a fraude, a aud��cia. Tudo era grande se n��o grandioso. E
como conseq����ncia dessa prosperidade industrial, come��ou a
nascer uma tend��ncia imperialista na ind��stria, com naturais
conseq����ncias pol��ticas.
T. ��� E outros pa��ses passaram para a ��rbita de influ��ncia
dos Estados Unidos...
A VOLTA DO GATO PRETO
447
E. ��� Sim. A Comunidade das Filipinas, Puerto Rico, o
Hava��...
T. ��� Como eram ent��o as rela����es entre capital e trabalho?
E. ��� Com a expans��o da ind��stria criara-se uma classe
prolet��ria cujo choque com os patr��es, que o desejo de lucro
cegava a ponto de lev��-los a ignorar as necessidades e problemas
dos empregados, era inevit��vel. Em 1877 houve na linha Bal-
timore-Ohio a primeira greve ferrovi��ria, que foi abafada pelo
ex��rcito.
T. ��� Que contraste com a nossa ��poca em que mesmo
nestes tempos de guerra os oper��rios fazem greve!
E. ��� �� que naqueles tempos os sindicatos n��o estavam
organizados nacionalmente, n��o tinham a for��a nem os recursos
financeiros com que contam hoje. Mas j�� em 1903 o ent��o
Presidente Theodore Roosevelt resolveu por meio de arbitragem
uma grande greve de trabalhadores das minas de carv��o de
antracite, em Pennsylvania.
T. ��� N��o foi Roosevelt um presidente que combateu os
trustes e os monop��lios?
E. ��� Exatamente. Era conhecido como o "trust buster"
ou seja o "rompe trustes". Gra��as a ele neste pa��s vigora uma
lei muito severa relativa �� pureza dos alimentos e das drogas
farmac��uticas.
T. ��� E assim chegamos ao s��culo XX e ao Wibhire Bou-
levard ��� (E neste ponto Tobias fez um sinal na dire����o da
grande art��ria que corta Los Angeles de leste a oeste. Auto-
m��veis passavam maciamente).
E. ��� E no princ��pio deste s��culo temos o come��o da "era
do autom��vel', que trouxe conseq����ncias extraordin��rias para
a vida americana, alterando-lhe o ritmo, o conceito comum de
dist��ncia e portanto de tempo.
T. ��� Mas todas essas influ��ncias se fizeram sentir desde
o princ��pio do s��culo XX?
E. ��� N��o. Come��aram a se fazer vis��veis e sens��veis prin-
cipalmente na d��cada que se seguiu ao Armist��cio de 1918.
T. ��� Procedamos com m��todo, meu caro Sherlock Holmes,
pois Tobias, o seu pobre Watson, s�� pode compreender a ordem
direta.
E. ��� Como vimos, durante a era da Reconstru����o o pa��s
se industrializou, e os ��ltimos vinte anos do s��culo passado
podem ser chamados a "Era dos Trustes", uma esp��cie de
grandiosa, monumental c��pula que por assim dizer coroou o
monumento da iniciativa privada, do individualismo. E nas
duas d��cadas seguintes ao ano de 1897, em que come��ou a
recupera����o duma grande crise, vemos surgir a idade do plane-
448
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
jamento cient��fico no campo da produ����o industrial e da pro-
du����o em massa.
T. ��� E que figura lhe parece simbolizar melhor essa
��poca?
E. ��� Eu ia dizer Frederick W. Taylor, o pai da racionali-
za����o da organiza����o comercial, da "tayloriza����o". Mas o
grande s��mbolo do tempo �� Henry Ford.
T. ��� N��o me diga que esse homem �� tamb��m um produto
da fronteira.
E. ��� Mas ��! Henry Ford nasceu em Detroit ��� Michigan ���
no Middle West. N��o passava dum mec��nico pr��tico que so-
nhava com a constru����o de autom��veis. Em 1892 fabricou o
seu primeiro modelo, e no princ��pio sua atividade no neg��cio
de autom��veis foi comercialmente desastrosa. Mas alguns anos
depois, com a Ford Motor Co., o obscuro mec��nico de Detroit
transformou-se num her��i nacional, atrav��s duma carreira espe-
tacular.
T. ��� Que grande novidade introduziu ele no motor do
autom��vel que a Europa j�� produzia e vendia?
E. ��� No motor propriamente, nenhuma. A sua novidade
consistia na produ����o em massa, que determinou o baratea-
mento dos carros, permitindo assim que eles fossem adquiridos
por pessoas de posses modestas e mais tarde at�� pelos ope-
r��rios.
T. ��� E essa popularidade do autom��vel trouxe, ent��o, ver-
dadeira revolu����o nos costumes...
E. ��� O pa��s, que tinha gasolina em abund��ncia, possu��a
agora uma boa quantidade de autom��veis. As estradas se mul-
tiplicavam e isso era mais um elemento de uni��o nacional, mais
um meio de poupar tempo. As cidades puderam alargar sua
��rea, porque o autom��vel resolvia o problema do transporte.
A freq����ncia nas escolas rurais aumentou gra��as aos ��nibus
que transportavam alunos.
T. ��� E qual era a atitude de Ford com rela����o aos seus
oper��rios?
E. ��� Deu-lhes um sal��rio melhor que o ordin��rio, um m��-
nimo de 5 d��lares por dia, oito horas de trabalho, e interesse nos
lucros. Mas por outro lado, individualista ferrenho, n��o queria
saber de neg��cios com os sindicatos.
T. ��� Qual foi o efeito da racionaliza����o da produ����o na
vida americana?
E. ��� Assim como o nascimento dos trustes determinou o
decl��nio da iniciativa privada ou, melhor, da liberdade econ��-
nica (embora aparentemente ela ainda existe) a racionaliza����o
da produ����o de certo modo alterou o individualismo do s��culo
A VOLTA DO GATO PRETO
449
XIX. Seu resultado concreto foi a produ����o em massa, que
poder�� oferecer suas desvantagens (se quisermos levar o as-
sunto para o terreno da contribui����o de talento criativo indivi-
dual, a necessidade do "diferente", do "pessoal) mas que por
outro lado, atrav��s do barateamento dos artigos manufaturados,
permitiu que um maior n��mero de pessoas gozasse dos bene-
f��cios do progresso industrial. Por exemplo: uma lata de sopa,
gra��as �� produ����o em s��rie, custa apenas 10 centavos.
T. ��� A "Princesa dos D��lares", opereta vienense que apa-
receu em princ��pios deste s��culo, �� de certo modo uma cari-
catura do milion��rio americano que procurava casar suas filhas
com nobres europeus arruinados.
E. ��� Veja o magn��fico s��mbolo que h�� nessa hist��ria tola,
feita apenas com o prop��sito de divertir, sem a menor respon-
sabilidade para com a verossimilhan��a. Em virtude de
sucessivas revolu����es a nobreza europ��ia decaiu pol��tica e
financeiramente, ao passo que, ao cabo de uma s��rie de outras
revolu����es da mais variada natureza, os imigrantes plebeus dum
punhado de pa��ses europeus, por sua vez v��timas seculares dum
estado de coisas injusto mantido por essa mesma nobreza, num
vest��gio dos tempos medievais ��� prosperavam na Am��rica,
merc�� do progresso industrial, e agora essa "plebe" se encon-
trava nos grandes sal��es em p�� de igualdade com os descen-
dentes empobrecidos daquelas velhas aristocracias.
T. ��� E n��o �� curioso que ainda hoje persista no intelec-
tual europeu uma atitude de ressentimento, desprezo e ironia
para com o "novo rico" americano?
E. ��� Muito! Mas acontece que esse desejo de nobreza,
essa preocupa����o com o t��tulo n��o existe em geral no homem
americano. Haver�� casos espor��dicos...
T. ��� Voltemos a essas duas d��cadas de paz que precede-
ram a Primeira Guerra Mundial.
E. ��� Foi um per��odo de grande desenvolvimento material
nos Estados Unidos. Era natural que um pa��s que come��ava
a bastar-se a si mesmo, que tinha um mercado interno riqu��s-
simo, coisas a fazer, conquistas a consolidar ��� era natural que
esse pa��s se tornasse isolacionista. Havia ainda outro fator a
conduzi-lo a essa atitude. Era a sua grande incapacidade de
compreender as sutilezas da pol��tica europ��ia, e a id��ia de que
aqueles estrangeiros se preocupavam com detalhes e abstra-
����es que, para homens pr��ticos e objetivos como os americanos,
n��o tinham a menor import��ncia.
T. ��� Mas a atitude do pa��s era de indiferen��a para com
a Europa?
450
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
E. ��� Claro que n��o. Em muitos setores procurava-se
copiar a Europa. Milion��rios iam �� Fran��a, �� Inglaterra, ��
Espanha, �� It��lia e l�� compravam quadros famosos ou ent��o
de l�� traziam mosteiros ou castelos hist��ricos para reconstru��-los,
pedra por pedra, ��s margens do Hudson ou do Potomac. Mi-
lion��rios como Carnegie, Rockefeller, Guggenheim, Morgan e
outros doavam milh��es para que com eles se erguessem univer-
sidades, museus, bibliotecas, funda����es de benemer��ncia so-
cial. .. Era preciso que o pa��s tivesse muitas daquelas coisas
que a velha Europa possu��a e que representavam cultura, pro-
gresso intelectual, bom gosto...
T. ��� A imigra����o havia cessado!
E. ��� Pelo contr��rio. O per��odo que vai de 1905 a 1915
�� o em que mais intensa se torna a imigra����o. At�� ent��o pre-
dominavam no pa��s os imigrantes de origem germ��nica, irlan-
desa e escandinava. Agora chegam gente do sudeste da Eu-
ropa, principalmente da R��ssia, do imp��rio Austro-H��ngaro
e do sul da It��lia.
T. ��� Eram esses imigrantes de t��o boa qualidade quanto
os primeiros?
E. ��� Positivamente n��o. De resto, a qualidade da imigra-
����o come��ou a piorar depois que as f��bricas do Leste come��a-
ram a precisar urgentemente de bra��os. Veja s�� isto: entre os
imigrantes que chegaram antes de 1890 a percentagem de anal-
fabetos era de 3%. Entre os que vieram depois daquela data,
ela subiu a 35%.
T. ��� Quais foram os reflexos das doutrinas marxistas nos
Estados Unidos?
E. ��� Durante a ��ltima d��cada do s��culo passado houve
alguns movimentos socialistas nos Estados Unidos, cuja popu-
la����o prolet��ria crescia, oferecendo problemas que se compli-
cavam de ano para ano. Acrescia ainda que deste lado do
Atl��ntico o problema era agravado pela situa����o das popula-
����es negras e pelo "white trash", ou seja o branco pobre do
Sul. Um tal Eugene Debs, de Indiana...
T. ��� Sempre o teu Oeste...
E. ��� . . . chegou a organizar um partido socialista. Estava
ele convencido de que o trabalho tinha como inimigos uma
alian��a reacion��ria composta de patr��es e pol��ticos ajudados
pela imprensa. Como candidato a Presidente em 1900 chegou
a obter quase 55 000 votos. Apesar de os socialistas n��o terem
conseguido posi����es politicas, sua influ��ncia se fez sentir de
algum modo atrav��s do desejo que todos manifestavam de jus-
ti��a social. Pol��ticos fizeram demagogia em torno da id��ia
socialista, a qual teve tamb��m seus ap��stolos sinceros. O pr��-
A VOLTA DO GATO PRETO
451
prio Woodrow Wilson revelou pendores esquerdistas, mode-
rados pela sua educa����o protestante. Era um socialismo vago
e te��rico de professor de universidade.
T. ��� N��o havia nesse homem qualquer coisa de prof��tico,
de religioso?
E. ��� Sim, e vinha talvez de sua origem calvinista. Esse
professor idealista, que tinha f�� na cultura, na democracia e
na justi��a, chegou a acreditar num chamado divino para aquele
alto posto. Ovelha inocente no meio dos lobos da politicagem,
da ind��stria e da finan��a, pediu ao Congresso a redu����o das
tarifas a fim de desembara��ar o com��rcio mundial. Pediu
tamb��m um sistema banc��rio est��vel e leis de trabalho que
oferecessem prote����o ao oper��rio. Ao tomar posse do cargo de
Presidente dos Estados Unidos, declarou em seu discurso inau-
gural que "Este n��o �� um dia de triunfo. .. Aqui se coligam
n��o as for��as dum partido, mas as for��as da humanidade..."
E enquanto ele pronunciava estas palavras com a veem��ncia e
a sinceridade de mission��rio protestante, os cabe��as dos trustes
e os politiqueiros decerto sorriam...
T. ��� Depois veio a Grande Guerra.
E. ��� E a Am��rica do Norte ainda continuou mergulhada
na sua modorra isolacionista, acreditando no sonho da neutra-
lidade.
T. ��� E quando finalmente foi arrastada �� guerra...
E. ��� P��s todo o peso da sua ind��stria, de sua capacidade
de organiza����o na balan��a da guerra, fazendo-a pender para
o lado dos Aliados.
T. ��� E quando veio o Armist��cio...
E. ��� Wilson, o idealista, apresentou os seus catorze prin-
c��pios. Era ainda o homem que acreditava na justi��a e nos
ideais humanos. Mas o Congresso o abandono", a Am��rica
retirou-se da Liga das Na����es, e de novo se encaramujou em
seu isolacionismo.
T. ��� E depois da guerra?
E. ��� Tempos de inquieta����o, de tumultos; os problemas
de desmobiliza����o, do desemprego... Novos caminhos se
abriam. A R��ssia se achava nas m��os dos comunistas e os capi-
talistas americanos estavam tomados de p��nico, enxergando
"vermelhos" por todos os lados.
T. ��� E economicamente, qual era a situa����o do pa��s?
E. ��� De prosperidade... Uma prosperidade sem igual.
T. ��� A par da palavra frontier, outra que freq��entemente
se menciona aqui �� twenties. Que significa ela?
452
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
E. ��� Os twenties, ou seja os vinte, s��o os anos que v��o
de 1920 a 1929. Foi uma ��poca agitad��ssima da vida americana
e sua influ��ncia se fez sentir no resto do mundo.
T. ��� De que modo?
E. ��� Escute. Ao terminar a primeira Guerra Mundial a
Europa estava depauperada e presa da desordem, ao passo que
os Estados Unidos se encontravam praticamente intatos. Ti-
nham enormes recursos tanto em homens como em material.
Ford era o ap��stolo do evangelho dos sal��rios altos, dos pre��os
baixos e da produ����o em massa. A exporta����o americana
cresceu. O poder aquisitivo na na����o aumentou. O sistema
de vendas a presta����es entrava na sua fase ��urea, tornando
maior o n��mero de compradores. Na Bolsa faziam-se jogos
fabulosos. Os "novecentos e vinte" se caracterizaram por um
individualismo delirante, pela destrui����o de muitos tabus
sociais e morais, por uma maior independ��ncia das mulheres
e pela Lei Seca, que por sua vez gerou o gangster e uma
onda de crimes.
T. ��� At�� que ponto essas coisas todas influ��ram na vida
das outras na����es?
E. ��� Ora, com suas mercadorias, com suas m��quinas, ins-
trumentos, engenhocas e novidades, a Am��rica exportava tam-
b��m h��bitos, modas... O cinema atingiu sua maioridade (n��o
confundir maioridade com maturidade) durante os "novecen-
tos e vinte", isto ��, deixou de ser uma experi��ncia para se tornar
uma grande ind��stria. Os filmes de Hollywood, as revistas
ilustradas e mais tarde o r��dio, que come��ava tamb��m a indus-
trializar-se, levavam atrav��s do mundo o novo "American way",
o novo "jeito americano".
T. ��� Para ser preciso, em que consistia ele?
E. ��� No com��rcio era o esp��rito de Ford e dos outros
l��deres da ind��stria. Na m��sica, o jazz barulhento, dissonante,
negr��ide, que traduzia melhor que qualquer outro tipo de m��-
sica a mentalidade do homem que vinha da trincheira, des-
crente de tudo, e o esp��rito daquela gente que se entregava a
aventuras na bolsa, �� bebida e a uma esp��cie de amor livre. Na
literatura, era a fic����o do tipo de F. Scott Fitzgerald, que re-
velava ao mundo uma mocidade c��ptica, audaciosa, desorien-
tada e ��vida de prazer e velocidade; ansiosa, enfim, por gozar
o momento que passa. Era a literatura dum Hemingway e dum
Dos Passos, que tinham voltado da guerra e que, como tantos
outros, intelectuais ou n��o, constitu��am o que a escritora Ger-
trude B. Stein chamou de "a gera����o perdida", "the lost gene-
ration".
Quanto aos costumes, era o h��bito da bebida e das dan��as
ex��ticas e tamb��m negr��ides, que acompanhavam o ritmo con-
A VOLTA DO GATO PRETO
453
vulsivo do jazz. Em tudo isso se notava o desejo de romper
com um passado que de repente todos descobriam n��o era mais
que uma conven����o, uma falsifica����o, um tolo tabu. A gera����o
dos "novecentos e vinte" procurou, por assim dizer, destruir,
abolir ou esquecer o templo grego, o padr��o da beleza cl��ssica,
a moral convencional, o metro, a rima, a melodia, a harmonia
e os dez mandamentos.
T. ��� E at�� que ponto esses costumes e modas foram
aceitos?
E. ��� Sua aceita����o foi quase universal. Formaram-se, ��
claro, ilhas de rea����o contra essa nova moral, ou aus��ncia de
moral. Mas mesmo esses redutos puritanos, religiosos ou tra-
dicionalistas foram lentamente penetrados e contaminados.
Preste bem aten����o numa coisa. A aceita����o duma moda, seja
ela liter��ria, art��stica ou, digamos, social, depende muito da ati-
tude das mulheres, principalmente num pa��s como os Estados
Unidos.
T. ��� E que tem isso a ver com os twent��es?
E. ��� �� que os twenties marcam uma nova era na hist��ria
do feminismo americano e, de certo modo, na hist��ria do femi-
nismo na maioria dos outros pa��ses.
T. ��� Estou esperando a explica����o...
E. ��� Os twenties representaram principalmente uma re-
volta da gera����o nova contra o passado. Ora, quando falo em
gera����o nova refiro-me tanto a homens como a mulheres. As
mulheres americanas obtiveram o direito de voto em 1920.
Como conseq����ncia da guerra e da nova mentalidade reinante,
as fam��lias come��aram a abandonar certas tradi����es patriarcais
e a deixar sitas casas de muitas pe��as em favor do pequeno
apartamento, onde havia o mesmo conforto e menos trabalho.
T. ��� J�� se fazia aguda a crise de criados.
E. ��� Os criados estavam exigindo ordenados cada vez
mais altos.
T. ��� Naturalmente as inven����es mec��nicas ajudavam as
donas de casa na simplifica����o do trabalho dom��stico.
E. ��� Havia j�� as m��quinas el��tricas de lavar roupa que a
presta����o punha ao alcance das fam��lias de posses reduzidas.
E os produtos em conserva ��� sopas, carnes, verduras, frutas,
leite ��� facilitavam a prepara����o das refei����es.
T. ��� Por que essa ��nsia de simplifica����o?
E. ��� Era o desejo de ganhar tempo para empreg��-lo em
outras atividades. A vida se fazia complexa. Havia novas
atra����es. O r��dio, o cinema, o teatro, os esportes, a p��gina
c��mica dos jornais. Mais ainda: as mulheres come��avam a tra-
balhar em escrit��rios, a meter-se na pol��tica, a fazer trabalhos
454
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
de assist��ncia social, etc. Elas diziam: "Queremos viver a
nossa vida". Com essa frase procuravam livrar-se da influ��n-
cia paterna e em certos casos tratavam at�� de libertar-se eco-
nomicamente dos maridos.
T. ��� E que reflexo teve essa atitude na vida americana?
E. ��� �� que a influ��ncia da mulher, que j�� se fazia sentir
na casa, na educa����o dos filhos, passou a sentir-se tamb��m
atrav��s de artigos de jornais e revistas, de campanhas pol��ticas
e sociais, enfim, em todos os setores. Data tamb��m dessa ��poca
a moda dos cabelos cortados e o h��bito de as mulheres fumarem,
usarem saias mais curtas, e pintarem-se com menos discri����o.
Ora, o cinema, refletindo e muitas vezes exagerando esses as-
pectos da vida americana, causava em muitos casos esc��ndalo
no resto do mundo, mas de certo modo preparava o esp��rito
das multid��es para a aceita����o lenta desses h��bitos. Por outro
lado, a Europa, que sofrera mais agudamente com a guerra que
os Estados Unidos, tamb��m se entregava a uma f��ria de pra-
zeres materiais e uma destrui����o de ��dolos... Entrementes a
ind��stria e o com��rcio encorajavam esses h��bitos, criavam ne-
cessidades artificiais para aumentar suas vendas. Constru��am-se
novas estradas de rodagem e em breve todo o pa��s estava
ligado por faixas de cimento. Milh��es de pessoas adquiriram
autom��veis. Aumentou o n��mero de div��rcios e a criminali-
dade. A era do transporte a��reo come��ava. Havia cidades
em que os gangsters imperavam, influindo pelo suborno ou pela
amea��a at�� nos chefes, pol��ticos e nas autoridades, policiais
Enfim, os "novecentos e vinte" s��o uma ��poca de grande signi-
fica����o na hist��ria deste pa��s. Ela representa um feroz recru-
descimento do individualismo, e foi, evidentemente, uma era
de crise, de febre.
T. ��� Que culminou com a crise de 1929.
E. ��� E essa crise foi o resultado duma s��rie de fatores
entre os quais estavam as cargas de impostos decorrentes do
custo fabuloso da Guerra, e mais a baixa constante dos pre��os
dos produtos agr��colas ��� o que diminuiu o poder aquisitivo
dos agricultores ��� e as doidas especula����es da bolsa entre 1927
e 1929, os quais arrastaram no seu fracasso o dinheiro de milh��es
de americanos.
T. ��� Depois da crise vieram os anos de depress��o eco-
n��mica.
E. ��� Um quadro desolador. As ruas cheias de homens
de barba crescida a pedir 10 centavos para tomar caf��. As
bread lines, as filas de desempregados que iam receber do
governo a sua ra����o alimentar. Os bancos fechados. Os trens
vazios. Muita gente obrigada a vender os seus carros. Lojas
A VOLTA DO GATO PRETO
455
falidas. Os pobres ficaram na mis��ria. Os que estavam bem,
tiveram de baixar seu nivel de vida. A delinq����ncia juvenil
aumentou.
T. ��� Alguns filmes da ��poca focaram o drama dos jovens
que fugiam de casa e viajavam clandestinamente nos trens de
carga, chegando em muitos casos a criar problemas de po-
l��cia. ..
E. ��� Mas os Estados Unidos s��o um pa��s que sempre teve
a fortuna de ver erguer-se um Homem, um L��der, em todos os
seus per��odos de crise. Tiveram Jefferson e Washington du-
rante as lutas pela sua independ��ncia. Contaram mais tarde
com Lincoln, isso se n��o quisermos mencionar vultos da tem-
pera de Hamilton, Jockson, Daniel Webster e tantos outros.
E agora surgia um novo gigante, num dos per��odos mais negros
de sua historia.
T. ��� Franklin D. Roosevelt.
E. ��� No dia 4 de mar��o de 1933, milh��es de americanos
estavam junto de seus r��dios acesos, esperando a hora em que
o novo Presidente ia dirigir-lhes a palavra pela primeira vez,
depois da sua inaugurat��on. Dentro de poucos minutos aquela
voz musical, de tonalidade t��o calidamente humana, aquela
voz que atrav��s de tantas outras crises n��o s�� eles como milh��es
de criaturas de outras ra��as haviam de esperar no futuro ��� aquela
voz se fez ouvir... Ela acusava os "vendilh��es do templo",
encarecia a necessidade da estabiliza����o da moeda, e duma
pol��tica de boa vizinhan��a no que dizia respeito aos neg��cios
estrangeiros. Mas era preciso agir, agir imediatamente. E agir
dentro da Constitui����o.
Ele n��o hesitaria at�� em pedir poderes t��o largos como os
que se concederiam ao Presidente se o pa��s fosse invadido por
um inimigo estrangeiro. E o dono dessa voz mais uma vez
afirmava sua confian��a na Democracia. E um dos mais not��veis
trechos desse discurso foi o em que Roosevelt declarou: "Esta
grande na����o sobreviver��... ela reviver�� e prosperar��. As-
sim, antes de mais nada deixem-me protestar minha firme
cren��a em que a ��nica coisa de que devemos ter medo �� do
pr��prio medo". E os primeiros 100 dias da administra����o de
Roosevelt tornaram-se famosos pela s��rie de medidas dr��sticas
que o Presidente tomou no sentido de fazer face �� crise.
T. ��� Quais foram essas medidas? Em que consiste o fa-
moso New Deal?
E. ��� Para principiar, Roosevelt cercou-se dum grupo de
auxiliares competentes ��� economistas, financistas, t��cnicos em
diversos assuntos, professores de universidade, engenheiros,
organizadores, etc.
456
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� O chamado "brain trust", o "truste do c��rebro"...
E. ��� Exatamente. Tratou de salvar as estradas de ferro,
de fazer reabrir os bancos, incitando os depositantes a redepo-
sitarem neles o seu dinheiro.
T. ��� Oferecendo garantias em nome do governo?
E. ��� N��o. Nenhuma garantia foi oferecida, mas a pala-
vra do Presidente restabeleceu a confian��a do p��blico. Os
bancos foram reabertos, os redep��sitos feitos. Outra medida de
alcance mais psicol��gico que econ��mico foi a que alterou a
Lei Seca, permitindo a venda de cerveja e vinho com um li-
mitado teor de ��lcool. Mais tarde a proibi����o de vendas
alco��licas foi completamente revogada.
T. ��� E com rela����o ao dinheiro...
E. ��� Os Estados Unidos abandonaram temporariamente o
padr��o ouro. A exporta����o deste metal n��o podia mais ser
feita a n��o ser com o consentimento expresso do Tesouro.
Como resultado disso, dentro de poucos anos uma quantidade
de ouro na import��ncia de 14 bilh��es de d��lares foi guardada
na caixa forte subterr��nea do forte Knox. Roosevelt instituiu
desde o princ��pio de sua administra����o os fire side chats isto
��, as prosas ao p�� do fogo, palestras em que, atrav��s do r��dio,
ele se dirigia ao povo, animando-o, dando-lhe conta de seus atos.
T. ��� Qual foi a sua atitude com rela����o �� ind��stria?
E. ��� Roosevelt chamou os industrialistas e lhes declarou
que os sal��rios deviam ser elevados e que o governo exigia
tamb��m o estabelecimento dum sal��rio m��nimo, e dum limite
m��ximo de horas de trabalho por semana nas f��bricas, nas
quais ficou terminantemente proibido o emprego de menores.
A esses homens de neg��cio o Presidente explicou: "Se voc��s
pagarem sal��rios mais altos, o povo ter�� mais dinheiro e por-
tanto comprar�� mais. N��o se preocupem com reduzir os pre��os.
Re��nam-se voc��s os industrialistas e cheguem a um acordo
quanto aos pre��os e as horas de trabalho. E tomem nota disso:
Se as f��bricas funcionarem menos horas por semana, haver��
no pa��s mais oportunidades de emprego."
T. ��� E que fez ele com rela����o aos oper��rios?
E. ��� Encorajou os sindicatos e fez passar uma lei de apo-
sentadorias e pens��es. No terreno da legisla����o social os Es-
tados Unidos, cujos trabalhadores ganhavam sal��rios mais altos
que o dos oper��rios europeus ��� estavam ainda atrasados. Agora
o Presidente tratava de libert��-los do medo do futuro, do desem-
prego e da mis��ria.
T. ��� E quanto aos agricultores?
E. ��� O Presidente fez uma proposta que os deixou per-
plexos. Mandou que produzissem menos. E disse-lhes: "N��s
A VOLTA DO GATO PRETO
457
compraremos n��o as vossas colheitas, mas sim o que n��o for
colhido..." Por outro lado permitiu que os agricultores ele-
vassem o pre��o de seus produtos.
T. ��� Qual foi a rea����o dos homens de neg��cio a essas
medidas?
E. ��� Est�� claro que em muitos setores Roosevelt foi cri-
ticado, principalmente porque para fazer face ��s enormes
despesas com todas as novas ag��ncias criadas pelo New Dea]
teve de aumentar o imposto da renda. Algu��m tinha de pagai
e era natural que pagassem os que tivessem demais. O imposto
sobre a renda �� progressivo, e h�� um ponto em que o contri-
buinte tem de dar ao Tesouro quase noventa por cento de seus
rendimentos.
T. ��� Li muitas vezes acusa����es da imprensa direitista dos
Estados Unidos ao New D e a l . . .
E. ��� Atrav��s de seus jornais Hearst sempre criticou acer-
bamente Roosevelt e o seu brain trust. Para esse magnata da
imprensa, N. R. A., National Recovenj Act, ou seja, traduzido
ao p�� da letra, "A����o de Recupera����o Nacional" foi por ele
ironicamente batizado de "No Recovery Allowed", isto ��:
"Nenhuma Recupera����o Admitida". Muitos chamaram Roose-
velt de comunista e compararam o New Deal com o Plano Q��in-
q��enal sovi��tico.
T. ��� E que fez o governo com rela����o �� juventude aban-
donada, aos mo��os que ao deixarem o gin��sio se viam sem
emprego?
E. ��� Criou o "Civilian Conservation Corps" (o C. C. C.)
organiza����o encarregada de tomar conta desses rapazes e man-
t��-los em acampamentos onde levaram uma vida sadia ao ar
livre, trabalhando em obras de reflorestamento, na limpeza dos
bosques, combatendo a eros��o do solo, etc. Ao mesmo tempo
que realizavam obra nacionalmente ��til, esses boys eram afas-
tados dos grandes centros onde a necessidade e a ociosidade os
poderiam levar ao v��cio, ao crime ou ao desespero.
T. ��� E que provid��ncias foram tomadas quanto aos outros
milh��es de desempregados em idade adulta?
E. ��� Numa de suas conversas ao p�� do fogo (e veja, meu
caro Tobias, o sabor "lincolniano", tipicamente americano dessa
palestra sem cerim��nia junto da lareira, reminiscente, sob
tantos aspectos, da lareira do pioneiro, na sua cabana de tron-
cos, nas longas noites de inverno...) ��� mas, como eu ia di-
zendo, numa de suas conversas ao p�� do fogo Roosevelt declarou:
"Ningu��m morrer�� de fome". E tratou de criar um fundo de
assist��ncia aos desempregados. Milh��es deles viveram durante
muitos anos a receber esse relief.
458
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� Mas" todos os "chomeurs" passaram a receber dinheiro
do Estado?
E. ��� N��o. Foi institu��do o "Works Progress Act", cuja
finalidade era dar trabalho aos profissionais desempregados.
Assim m��sicos foram tocar em orquestras c��vicas; pintores
foram contratados para pintar murais em edif��cios p��blicos
municipais, estaduais e federais; escritores passaram a trabalhar
na organiza����o de monografias sobre diversos estados, cidades,
rios do pa��s, enriquecendo assim a bibliografia Americana.
T. ��� A que outros problemas o New Deal fez frente?
T. ��� H�� neste pa��s zonas em que chove pouco. E o Dry
belt a faixa seca, certas partes de Kansas, Nebraska, Colorado
e principalmente Oklahoma. O solo seca, transformando-se em
poeira. O vento sopra e origina pavorosas tempestades de areia
que assolam vastas regi��es, inutilizando as terras para a agri-
cultura, soterrando ranchos, granjas, escurecendo o sol e provo-
cando, como em certas partes do Nordeste brasileiro, migra����es
em massa.
T. ��� E at�� que ponto esse paralelo �� v��lido?
E. ��� Meu caro, at�� a mis��ria aqui �� mais confort��vel que
no Brasil. Esses retirantes americanos mudavam-se para outras
terras em autom��veis. Eram verdadeiros calhambeques... mas
andavam.
T. ��� E para onde iam esses retirantes?
E. ��� Claro que iam para o Oeste, homem! A marcJia
para o West est�� no sangue desta gente.
T. ��� De sorte que o New Deal marca uma interven����o
do governo na economia americana...
E. ��� Sem a menor d��vida. A inten����o do governo foi a
de acabar com uma competi����o que at�� ent��o tinha sido ��til
��� pois s�� a iniciativa privada podia promover o povoamento,
a industrializa����o e a riqueza econ��mica da Am��rica, ��� mas
uma competi����o que agora estava tomando um car��ter suicida.
A inten����o do New Deal foi principalmente a de dar um plano
a essa economia desordenada que engendrava absurdos como
o dessa crise em ��poca de superprodu����o, e o do desemprego
e quase desespero num tempo que tudo indicava podia ser de
fartura e felicidade social.
T. ��� E qual foi o resultado do New Deal?
E. ��� Isso �� hist��ria recent��ssima. Apesar de todos os seus
erros ou exageros, o New Deal conseguiu tirar a na����o do caos
e rep��-la no caminho da prosperidade. O resto, meu caro, voc��
sabe. �� de ontem. O fascismo, o nazismo, Hitler, Munich e
finalmente a Guerra.
T. - E o futuro?
A V O L T A DO G A T O P R E T O
459
E. ��� Sou fraco em profecias. Para lhe falar a verdade,
nem sei se no pr��ximo ver��o estarei aqui em Los Angeles, cm
Berkeley, Nova York ou se j�� a caminho do Brasil...
T. ��� Quais s��o as oportunidades do comunismo na Am��-
rica?
E. ��� N��o creio que este pa��s se possa tornar comunista,
nem mesmo que o partido comunista americano possa crescer
a ponto de se tornar uma amea��a ao regime cigente.
T. - Por qu��?
E. ��� Por causa ainda da fronteira. E por causa tamb��m
duma s��rie de outros fatores hist��ricos e psicol��gicos.
T. ��� Explique melhor seu pensamento.
E. ��� Creio que ainda o Oeste �� o respons��vel pelas pou-
cas chances do comunismo aqui. O Oeste �� principalmente a
zona do pequeno propriet��rio rural, do homem dotado de
horse sense (senso de cavalo) que vem a ser um senso comum
rude e pr��tico. Ele recebe mal qualquer id��ia de reforma
social. N��o acredita em "contos de fadas" e a conquista
da fronteira transformou-o num individualista, num democrata
convicto. Ele acredita nas coisas que seu trabalho, dirigido por
seu senso pr��tico, pode conseguir dentro do modo de vida ame-
ricano. "Se este tipo de democracia era bom para homens
como Lincoln e Jefferson ��� raciocinam eles ��� por que diabo
n��o h�� de ser bom tamb��m para mim e para minha gente?"
Acontece que neste pa��s n��o existe ainda consci��ncia de classe.
(Est�� claro que no caso dos negros e dos judeus se trata de
consci��ncia de ra��a.) O que h��, como bem observou J. V.
C��lverton, s��o n��veis econ��micos. O oper��rio �� o homem, que
sonha com uma carreira como a de Henry Ford, e tem por
isso o esp��rito competitivo e deseja a manuten����o duma so-
ciedade competitiva. Sinto tamb��m aqui o desejo generalizado
de manter o "sonho americano". Acha o americano que, seja
como for, no fim tudo dar�� certo, porque Deus vela pelo des-
tino da Am��rica.
T. ��� E durante a depress��o de 1929 a 1933 houve aqui
novas manifesta����es comunistas?
E. ��� Sim, e dessa vez com fortes reflexos na literatura.
No seu manifesto liter��rio comunista de 1930, Michael Gold,
autor de "Judeus sem Dinheiro", tomando como bode expia-
t��rio Thorton Wilder, atacou os literatos que vivem fechados
na torre de marfim, alheios aos problemas sociais de seu
pa��s e do mundo. Um escritor ingl��s, estudando recentemente
esses pruridos comunistas, classificou-os de "depression measles",
"sarampo da depress��o".
460
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
T. ��� Que acontecer�� se depois desta guerra o desemprego
atingir propor����es alarmantes e o conflito entre capital e traba-
lho se agravar?
E. ��� Na minha opini��o o mais que poder�� acontecer, e isso
ser�� muito importante, �� a cria����o de um terceiro partido, que
talvez seja o do "Labor". Os sindicatos americanos est��o filiados
a duas grandes organiza����es que s��o a A. F. L. (American Fede-
ration of Labor) e a C. I. O. (Congress of Industrial Organiza-
tion). H�� cerca de dezesseis milh��es de oper��rios sindicalizados,
unidos em todas as campanhas relativas a seus interesses como
oper��rios. At�� agora essas federa����es n��o t��m tido car��ter p��-
blico. Mas nestas ��ltimas elei����es a C. I. O. votou a favor de
Roosevelt, e isso foi fator importante para a terceira reelei����o
do Presidente. No dia em que ,esses sindicatos come��arem a
pensar politicamente ou melhor, com o esp��rito de classe, �� pos-
s��vel que surja o falado (e temido) terceiro partido.
T. ��� Que talvez ainda tenha o "jeito americano"...
E. ��� Tudo indica que sim. S�� uma grande, profunda con-
vuls��o social �� que poder�� mudar o pensamento pol��tico dos
americanos, transformando-os de conservadores em radicais. Es-
sa �� a minha impress��o sincera.
Nesse ponto Tobias e eu tomamos um ��nibus e voltamos
serenamente para Durango Avenue.
CORDA EM CASA DE ENFORCADO
27 de maio. Lou Edelman me telefona, convi-
dando-me para almo��ar no est��dio em sua companhia.
E acrescenta:
��� Mas olhe... N��o estou mais na Warner, e sim
na Paramount.
��� Est�� certo.
Compreendo tudo. "Hotel Berlim" ��� lan��ado re-
centemente ��� foi o que aqui se chama um "flop".
Devo, portanto, ter o cuidado de n��o pronunciar ho-
je o nome desse filme nem o de Vicky Baum diante
de meu amigo.
Encontro Lou Edelman em seu novo escrit��rio,
��s voltas com v��rios manuscritos de hist��rias.
A VOLTA DO GATO PRETO
461
��� N��o sei que �� que vou fazer primeiro aqui na
Paramount. . . ��� diz-me ele. . . ��� Tem alguma id��ia?
Sacudo a cabe��a.
��� N��o tenho a menor id��ia.
No Brasil sempre imaginei que estava cheio de
hist��rias, para Hollywood. O cinema me interessava
tremendamente como instrumento de express��o. Mal,
por��m, cheguei aqui n��o sei por que perverso sor-
til��gio fiquei tomado duma esp��cie de desinteresse por
tudo quanto diz respeito a filmes. Stravinsky tem ra-
z��o. A melhor maneira de a gente se livrar de Hol-
lywood �� mesmo vir morar em Hollywood.
��� Que me diz duma hist��ria sobre o Rio de Ja-
neiro? ��� sugere Edelman.
Encolho os ombros.
��� Talvez me ocorra alguma coisa.. .
��� As aventuras dum americano que vai viver no
Rio . . . uma hist��ria para mostrar que os brasileiros no fim
de contas s��o seres humanos n��o muito diferentes dos
americanos.
��� O plano �� bom em princ��pio. Mas acabaremos
sempre caindo nas mesmas f��rmulas, nas mesmas con-
ven����es. E se voc�� sair fora dele o filme ser�� um fra-
casso . . .
Cala-te, boca! Eu n��o devia ter mencionado esta
��ltima p a l a v r a . . .
��� Escute ��� diz Edelman, com o seu jeito ali-
ciante. ��� O Brasil �� uma grande terra. Palavra, eu
acredito no Brasil. E sabe duma coisa? Tenho uma
grande esperan��a nesses soldados que est��o lutando
na It��lia. Quando eles voltarem h��o de trazer para
casa uma mentalidade nova, capaz de influir nos des-
tinos do p a �� s . . . Que �� que acha?
��� Acho uma bela id��ia. Mas n��o creio que isso
aconte��a.
��� Por qu��?
462
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
��� A guerra terminar�� em breve. O n��mero dos
expedicion��rios �� muito pequeno comparado com a
popula����o total do Brasil. Nossos problemas s��o mui-
to grandes, nossos v��cios muito arraigados.
��� Ent��o n��o tem nenhuma esperan��a?
��� Tenho muitas.
��� Em qu��. Em quem?
��� No povo... Vamos precisar mais. Tenho es-
peran��a em certas qualidades das gentes brasileiras:
na sua bondade essencial, no seu horror �� viol��ncia,
enfim, nessa misteriosa for��a que tem mantido unido
aquele pa��s t��o vasto, t��o despovoado, t��o pobre de
meios de comunica����o e transporte. Nessa for��a in-
descrit��vel que... bom, se �� indescrit��vel o melhor
mesmo �� n��o tentar descrev��-la...
Lou Edelman me leva para o restaurante do es-
t��dio. No caminho me diz:
��� Pois eu gostaria de dar a conhecer seu povo ao resto
do mundo atrav��s dum bom filme . ..
E quando estamos j�� �� mesa, exponho-lhe uma id��ia
que acaba de me ocorrer.
��� Imaginemos que uma revista de Nova York mande
ao Rio um jornalista que voltou da frente do Pac��fico .. .
Encomenda-lhe uma s��rie de artigos de interesse humano
sobre a vida brasileira . ..
��� Para principiar est�� ��timo...
��� O homem chega, espanta-se diante dos auto-
m��veis movidos a gasog��nio... Anda dum lado para
outro sem encontrar hotel. Vai olhar os banhistas na
praia de Copacabana. Uma peteca anda no ar...
de repente cai perto dele... o rapaz d��-lhe uma pal-
mada e no momento seguinte, sem saber como, est��
jogando peteca com uma mo��a.
��� Estab��lece-se ent��o um di��logo.
��� E como resultado desse di��logo o her��i vai
hospedar-se na pens��o da m��e da jovem. Agora, nos
dias que se seguem, fazendo rela����es com uma peque-
A VOLTA DO GATO PRETO
463
na gr��-fina, ele anda pelos cassinos para, ao cabo de
algum tempo, verificar decepcionado que n��o h�� mui-
ta diferen��a entre o Rio e Nova York ou San Fran-
cisco. Gente que bebe coquet��is e coca-cola, que
dan��a blues ou boogie-woogies... etc.
Passa por perto de nossa mesa Dorothy Lamour,
num vestido estampado viv��ssimo.
��� �� a primeira vez que a vejo sem sarong... ���
digo.
��� Mas voltemos �� hist��ria.
��� Bom. Finalmente a menina da pens��o deci-
de mostrar ao americano o verdadeiro Rio, o dos su-
b��rbios, e tamb��m a fauna da pens��o. O major re-
formado, a solteirona que suspira por um namorado,
o mo��o que toca violino, a pequena que veio do in-
terior para tentar uma carreira no r��dio, as comadres,
os compadres, o estudante bo��mio... Sobem juntos
as favelas, falam com gente da rua...
Vislumbro, por entre cabe��as inquietas, a calva de
Cecil B. de Mille. N��o muito longe de onde esta-
mos, Ray Milland come um sandu��che e bebe um co-
po de leite.
��� O que pretendo com essa hist��ria �� dar aos
americanos uma id��ia da vida brasileira ou, antes, do
Rio. Uma oportunidade para mostrar atrav��s de al-
gumas cenas o humor carioca, a sua bo��mia e des-
preocupada filosofia da vida.
Lou fica pensativo por alguns instantes e depois
diz:
��� A hist��ria �� quase boa. Mas �� preciso mais
enredo... e um cl��max.
Fa��o um gesto de d��vida.
��� Acabaremos ent��o caindo na f��rmula de Hol-
lywood.
��� Mas compreenda que para o p��blico ameri-
cano, que �� em ��ltima an��lise o p��b��co que paga, ��
464
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
muito dif��cil fazer engolir a p��lula quando ela n��o
est�� bem a��ucarada.
��� Mas nesse caso o humor carioca e a galeria de
tipos seriam o a����car.
��� Isso n��o �� suficiente.
Alan Ladd vem sentar-se junto de nossa mesa
com a esposa, Sue Carol, que foi estrela dos tempos
do cinema mudo. Lou me apresenta ao casal. Alan
Ladd, p��lido, duma palidez esverdeada e doentia, ��
muito mais baixo do que parece no cinema. Visto
assim ao natural est�� longe de parecer aquele sujeito
sempre pronto a usar a pistola e os punhos.
Sue Carol senta-se �� nossa mesa e fica a discutir
com Edelman problemas do marido. Ou��o apenas
trechos da conversa����o:
��� .. .porque voc�� compreende, aquele papel n��o
�� para Alan. .. porque a carreira dele...
Depois do almo��o saio a visitar alguns sets. Num
deles Ray Milland, Olivia de Havilland e Sonny Tufts
est��o a bordo do ferry-boat que faz o percurso de Ber-
keley a Oakland. Ray e Olivia conversam junto da
amurada, contra o fundo formado por uma tela na
qual se projeta um filme tirado realmente na ba��a de
San Francisco, dum ferry-boat em movimento. Fo-
tografados contra esse fundo, Olivia e Ray d��o a im-
press��o de estarem mesmo atravessando a ba��a. Por
duas vezes Miss de Havilland inutiliza v��rios metros
de celul��ide porque troca algumas palavras do seu
di��logo. Nos intervalos entre os ensaios, enquanto o
make-up man lhe passa no rosto um algod��o com pin-
tura, Sonny Tufts faz uma pantomima c��mica que pro-
voca risos no camera-man e nos eletricistas que se
acham nas proximidades.
De novo ao ar livre, Lou Edelman pergunta:
��� E a nossa hist��ria?
��� Nada feito.
A V O L T A DO G A T O P R E T O
465
��� Por qu��?
��� N��o encontro mais enredo.
��� Voc�� me disse que era ga��cho. Mas acho que
v^oc�� �� carioca: bo��mio e desligante.
��� E sabe por qu��?
��� N��o.
��� Porque este sol, este ar, estas montanhas, este
ritmo de vida ��� tudo aqui lembra o R i o . . .
E, lado a lado, voltamos em sil��ncio para o es-
crit��rio.
PERSHING SQUARE
31 de maio. �� uma pra��a no cora����o de Los
Angeles. Parece-se com as pra��as brasileiras: �� qua-
drangular, tem canteiros de relva, ��rvores e bem no
meio um grande chafariz no centro do qual, a dois me-
tros de altura do solo, erguem-se quatro anjos verdes a
sustentar nos ombros nus um prato de onde a ��gua
escorre para uma bacia de concreto, na base do mo-
numento.
Mas a nota curiosa desta pra��a �� ainda de na-
tureza humana. S��o as pessoas que a freq��entam, em
geral veteranos da outra guerra, empregados aposen-
tados, mulheres que vivem nos edif��cios circunvizinhos,
e turistas ociosos como eu.
Ando por aqui a olhar as pessoas, a ouvir as dis-
cuss��es. A pra��a tem os seus tipos populares, entre os
quais o mais conhecido �� um preto alto, com tipo de
argelino, a cabe��a metida num barrete negro. Tem um
nariz sem��tico, sua pele �� cor de cobre, e sua barba,
negra e longa, est�� estriada de prata. Anda vestido
de caqui e usa alpercatas pardas. Ao redor dele jun-
tam-se muitos homens para ouvi-lo. O preto tem uma
voz macia e aguda, fala com desembara��o e de vez em
466
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
quando solta uma risada que lhe deixa aparecer o in-
terior da boca desdentada e cor-de-rosa. O que mais
se discute aqui �� pol��tica e religi��o ��� principalmente
pol��tica internacional. H�� cavalheiros muito bem ves-
tidos e homens que pelo sotaque e pelas roupas s��o
imigrantes que n��o fizeram carreira. N��o raro um desses
tipos trepa num banco e come��a a fazer um discurso,
sendo muito aparteado. As discuss��es se acirram e o
c��rculo de curiosos se aperta em torno dos dois con-
tendores. E os latinos, acostumados ��s paix��es, aos ��m-
petos dos de sua ra��a, param, esperando que eles se
atraquem em luta corporal, que se dilacerem mutua-
mente a facadas. Mas nada disso acontece. A todas
essas, alto-falantes amplificam brutalmente a m��sica de
discos. H�� nesta pra��a stands que vendem b��nus de
guerra, escrit��rios de informa����es para soldados e ma-
rinheiros. Crian��as correm dum lado para outro. Va-
gabundos dormem estendidos na relva. Mulheres fa-
zem tric�� sentadas nos bancos. Velhos l��em jornais ou
lagarteiam ao sol.
Gosto de aparecer por aqui de quando em quando,
depois do meio-dia. Gentes de todas as ra��as re��nem-se
na Pershing Square. O som de muitas l��nguas ergue-
se no ar luminoso, enquanto pombas cinzentas es-
voa��am ao redor da fonte dos anjos verdes...
SALADA TROPICAL
3 de junho. Uma jovem brasileira, Evelyn Ashlin,
passou um ano na Universidade de Washington, em
Seattle, onde lecionou portugu��s e fez confer��ncias so-
bre sua terra e seu povo. Trocando Seattle por Holly-
wood, foi convidada para trabalhar no Departamento
Brasileiro dos Est��dios de Walt Disney. Certo dia, um
desses ca��adores de talentos da Paramount viu-a, achou
A VOLTA DO GATO PRETO
467
que ela era uma esp��cie de vers��o nova de Mima Loy,
com a vantagem de ser mais mo��a e sob muitos as-
pectos mais bela que a estrela, ofereceu-lhe um con-
trato longo e segundo o qual Evelyn come��aria ga-
nhando 500 d��lares semanais, com perspectivas de
aumento na medida em que seu nome fosse ganhando
notoriedade. Evelyn recusou a oferta, e quando lhe
perguntei por que jogara fora uma oportunidade com
a qual milhares de mo��as atrav��s do mundo viviam
sonhando, ela respondeu:
��� Quest��o de princ��pios...
Isso encerrou a quest��o.
Mas aconteceu que no pr��prio est��dio da Para-
mount, Evelyn encontrou Klaus Landsberg, um jovem
alem��o naturalizado norte-americano, e t��cnico em te-
levis��o. Conheceram-se, gostaram um do outro e den-
tro de poucos meses estavam casados.
Hoje, no Lucey's, restaurante que fica em frente
ao est��dio da Paramount, tenho aqui do outro lado da
mesa esse simp��tico casal. Klaus deseja que eu man-
tenha com Evelyn um di��logo em ingl��s sobre o Brasil,
no pr��ximo show de televis��o da Paramount, cuja es-
ta����o funciona em car��ter experimental.
��� Que �� que voc�� sabe de televis��o? ��� pergun-
ta-me ele, enquanto um pitoresco "ma��tre" espanhol pre-
para a nosso lado a "salada tropical", especialidade
da casa.
��� Muito pouco.
Com sua voz grave, Klaus ��� que �� um apaixonado
de sua profiss��o ��� explica:
��� A televis��o �� a arte ou ci��ncia, como quiser, de
transmitir imagens por meio de ondas de r��dio.
��� At�� a�� morreu o Neves ��� digo-lhe eu.
��� Como?
��� Nada. �� um modismo brasileiro dif��cil de tra-
duzir. Adiantei
468
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
��� Ora, �� necess��rio primeiro traduzir essas ima-
gens em impulsos el��tricos para que elas possam ser
reunidas opticamente nos aparelhos receptores de modo
a formar uma imagem ou imagens completas.
Vejo numa mesa pr��xima Dianna Lynn acompa-
nhada de sua m��e. Este restaurante �� muito freq��en-
tado por artistas e funcion��rios da Paramount. L�� est��
junto do balc��o, tomando um coquetel, Arturo de
Cordova, que espalha em torno olhares l��nguidos.
��� O fen��meno da televis��o ��� continua Klaus ���
depende da capacidade do olho humano de lembrar-se
duma imagem durante cerca de 1/25 de segundo,
compreende?
��� 1/25 de segundo? Teoricamente. . compre-
endo.
��� Pois bem. Isso se deve ao fator da persist��ncia
da vis��o, e fornece ao espelho transmissor uma quan-
tidade igual de tempo para focar a coisa, a pessoa, ou
cena que se quer transmitir.
��� E por qu�� ��� pergunto ��� a televis��o n��o est��
ainda divulgada e posta ao alcance do p��blico, como
o r��dio?
Klaus se anima:
��� Por causa de algumas dificuldades t��cnicas. As
ondas Hertzianas circundam a terra e fornecem um
ve��culo espl��ndido para o som, no caso do r��dio. Mas
na televis��o empregam-se ondas ultracurtas, que via-
jam em linha reta na dire����o do horizonte, e que n��o
acompanham a curva da terra, da qual tendem a afastar-
se. Assim �� preciso estabelecer de dist��ncia em dis-
t��ncia esta����es retransmissoras.
��� E haver�� o lado econ��mico tamb��m ��� disco. ���
Imagine a revolu����o que a televis��o vai causar. No dia
em que os aparelhos receptores ficarem ao alcance de
um maior n��mero de pessoas, ningu��m querer�� sair de
casa para ir ao cinema e ao teatro, uma vez que poder��
ter pe��as e filmes a domic��lio.
A VOLTA DO G A T O P R E T O
469
��� Exatamente. Mas como a televis��o for��osa-
mente vir�� mais tarde ou mais cedo, j�� se formaram
companhias que est��o funcionando em car��ter, expe-
rimental.
��� E Klaus ��� diz Evelyn ��� est�� tratando de pa-
tentear um invento seu para transmitir imagens em
cores!
Bettv Hutton entra ruidosamente no restaurante,
de slacks cor de mostarda, e, aproximando-se de Arturo
de Cordova, beija-o na boca.
O "ma��tre" espanhol come��a a praguejar em sua
l��ngua. Diz nomes horr��veis para um dos gar��ons. Na
mesa vizinha �� nossa Gay Russell sorri para ele, sem
compreender.
O CANASTR��O
5 de junho. Num lavat��rio dos est��dios da Para-
mount, ��s sete e meia da noite. Com o aparelho de
Gillette que trouxe no bolso estou me barbeando na
frente dum espelho, pois sob as luzes implac��veis em-
pregadas na televis��o, qualquer toco de barba avultar��
no meu rosto assustadoramente. E enquanto a lamina me
canta na face, penso em que, no fim de contas, tenho fei-
to de tudo um pouco nestes dois ��ltimos anos. Contudo,
nunca esperei estar neste lugar, nestas circunst��ncias,
e prestes a ter a minha imagem transformada em im-
pulso el��trico e projetada com a velocidade da luz
atrav��s do espa��o, para ser recolhida... onde? por
quem? E para qu��? Eis uma pergunta que h�� muito
deixei de fazer. Porque ela tira �� vida toda a espon-
taneidade.
O est��dio de televis��o fica num dos sets. Mariana
e os pais de Evelyn est��o na plat��ia, onde vejo v��rias
outras pessoas, para mim desconhecidas. Fazem-me
470
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
subir para uma galeria e entrar num camarim. Aqui
estou agora em companhia duma bailarina seminua, du-
ma velhota muito pintada, que amestra can��rios, dum
m��gico metido numa casaca, e dum caricaturista tcheco-
eslovaco de boina de veludo negro. Um rapaz de jeito
efeminado aproxima-se de mim. mira-me bem no rosto
e diz:
��� O senhor precisa botar uma camadinha de pin-
tura especial.
��� Mas isso �� mesmo necess��rio?
��� Oh... �� indispens��vel.
��� Est�� bem.
Toma uma latinha onde vejo um pancake cor de
tijolo, esfrega nele uma esponja ��mida e depois me
passa a esponja no rosto. A meu lado a mulher semi-
nua (agora vejo que n��o �� bailarina, mas sim contor-
cionista) est�� ensaiando o seu n��mero: deitada de
borco, ergue o busto apoiando-se no ch��o com ambas
as m��os espalmadas e depois traz os p��s at�� o pesco��o:
parece urna enorme aranha. A velha dos can��rios
mira-se, faceira, no espelho. O m��gico prepara a car-
tola de onde vai tirar o coelho, o qual tremulo e triste,
acha-se em cima da mesa do camarim.
O maquilador toma dum baton de cor parda e
come��a a me pintar com ele os l��bios.
��� Isso tamb��m?
��� Ahan.
��� Estou desmoralizado.. . ��� murmuro.
Finalmente des��o para combinar com Evelyn os
pormenores em torno de nosso di��logo, que ter�� de ser
improvisado, de acordo com as fotografias do Brasil
que teremos nas m��os durante o nosso n��mero".
O show come��a. O mestre de cerim��nias, um ator
c��mico do cinema, faz as apresenta����es. Quando chega
nossa vez, Evelyn e eu nos sentamos a uma mesa. As
duas c��maras de televis��o, que se parecem um pouco
A VOLTA DO GATO PRETO
471
com as de cinema, aproximam-se de n��s. Mandam-nos
prestar aten����o ao "olho verde" das objetivas. Sobre
nossas cabe��as pende, amea��ador e trai��oeiro, um
microfone.
Acendem-se os refletores. A luz �� duma intensi-
dade cegante. Sinto a pintura no rosto como uma fina
m��scara de barro que amea��a gretar-se. Tenho na
boca o gosto perfumado do baton. Tudo isto �� muito
tolo, mas muito novo. Ouvimos o sinal. O speaker anun-
cia o di��logo. O olho verde se acende. Nossas imagens
j�� andam correndo pelo espa��o. Evelyn me convida
para uma viagem ao Brasil. Est�� claro que aceito o
convite. Come��amos a olhar fotografias... Enquanto
falamos, essas fotografias s��o transmitidas em close-up
e n��s ficamos invis��veis. Depois as c��maras voltam a
focar-se em n��s. Acho-me alagado de suor. As luzes
me d��o a impress��o de que estou em pleno deserto,
ao meio-dia, sob o mais impiedoso e t��rrido dos s��is.
Finalmente os quinze minutos se passam. O nosso
"ato" termina. Creio que a conversa se desenrolou com
naturalidade.
Seguem-se os outros n��meros. O m��gico tira o
coelho de dentro da cartola. A velhota faz seus can��rios
sentarem-se em cadeiras min��sculas, balan��arem-se em
trap��zios... No meio da exibi����o um deles foge, voa
e vai pousar na balaustrada da galeria, fora do campo
de vis��o das c��maras. O caricaturista tra��a "portraits"
de celebridades em quadros brancos de papel.
Depois do espet��culo caminho para minha mulher,
ainda pintado e sentindo-me vagamente rid��culo.
��� Est��s incr��vel! ��� diz-me ela. ��� Com essa cara
pintada pareces um canastr��o dos tempos do cinema
mudo.
Em minha mente Dona Eufr��sia e An��lio me di-
zem tamb��m coisas horr��veis.
472 O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
MATERIALISMO E IDEALISMO
Meu caro Vasco: Mando-lhe hoje mais um de meus di��-
logos imagin��rios com Tobias. Seu assunto me foi sugerido
por alguns brasileiros que visitam este pa��s e voltam para casa
afirmando que os latinos s��o povos espiritualistas, ao passo que
os americanos s��o grosseiros materialistas. Fazemos poemas
enquanto eles fazem neg��cios. Cantamos modinhas �� lua en-
quanto eles fabricam m��quinas. Vivemos de acordo com o co-
ra����o, e eles com o livro de cheques. Amamos a arte e eles
amam o dinheiro. Cultivamos a amizade, mas os americanos,
frios calculistas, vivem com o olho no lucro.
T. ��� For que se recusa voc�� a aceitar a id��ia de que este
povo �� materialista e o nosso idealista?
E ��� Porque essa quest��o tem muitas faces. Porque as
palavras s��o perigosas. E porque, enfim, a coisa toda n��o �� t��o
simples e l��quida como parece �� primeira vista.
T. ��� 'Negar�� voc�� que se fala muito em dinheiro aqui?
Que os americanos afirmam que tempo �� dinheiro? Que car-
reira significa dinheiro? E que com dinheiro se pode comprar
conforto e sa��de? Negar�� voc�� que ganhar dinheiro �� o obje-
tivo principal desta gente?
E. ��� A chave do problema parece estar na maneira como
n��s e os americanos encaramos o dinheiro. Para eles dinheiro
�� um s��mbolo comercial. Para n��s �� um s��mbolo moral e liter��-
rio. Para os americanos dinheiro �� uma moeda ou uma nota
que serve como meio de troca ou medida de valor. Para n��s
dinheiro �� tudo isso e mais ainda um s��mbolo de paix��es gros-
seiras e materialistas, de cobi��a e imoralidade. Em suma, para
n��s o dinheiro �� antes de mais nada "o vil metal".
T. ��� E n��o haver�� nessa nossa aprecia����o do dinheiro a
defini����o duma atitude mental ou, melhor, moral?
E. ��� Sim, teoricamente, literariamente... Para come��ar,
meu caro, o dinheiro �� uma das inven����es mais pr��ticas do ho-
mem. Essa hist��ria de "vil metal' foi provavelmente criada por
gente que precisava de dinheiro para comprar coisas e que, n��o
tendo capacidade para ganh��-lo, tratou de rebaix��-lo moralmente,
glorificando por outro lado a pobreza e a bo��mia ��� transfor-
mando a necessidade em virtude.
T. ��� Mas n��o acha que aqui se fala demasiadamente em
dinheiro?
E. ��� Acho. Mas olhe a Fran��a que sempre consideramos a
p��tria da melhor literatura e da melhor arte que o mundo tem
A VOLTA DO GATO PRETO
473
produzido. Veja qual �� a atitude do homem franc��s comum com
rela����o ao dinheiro... Ele junta dinheiro, parece, por amor do
dinheiro, com o fim de t��-lo e ret��-lo, ao passo que o americano
quer dinheiro para gastar, para comprar coisas, para faz��-lo cir-
cular. E quanto mais dinheiro ganha, mais pr��digo se torna; e
essa prodigalidade gera mais prodigalidade e mais oportunidades
para fazer dinheiro.
T. ��� Mas acontece que nos Estados Unidos o dinheiro �� a
medida do sucesso.
E. ��� Em muitos casos. E a explica����o disso se encontra
na Hist��ria deste povo. Na����o de imigrantes, terra da oportuni-
dade, muitas vezes a ��nica maneira que os americanos tinham
para medir o sucesso ��� que se traduzia em poder e influ��ncia
social ��� era o dinheiro. Por outro lado, fazer coisas numa esca-
la muito maior que a europ��ia, foi desde o princ��pio a preo-
cupa����o desses imigrantes que para c�� vieram a fim de se livra-
rem da fome, da pobreza, da opress��o e ��� n��o esque��a! ��� da
ang��stia de espa��o de suas terras de origem.
T. ��� Explique melhor seu ponto de vista.
E. ��� Para a grande maioria dos imigrantes que vieram para
c��, a Europa significava pouco espa��o, pouca comida, vida mes-
quinha, escassas oportunidades de sucesso. Era natural que ao
chegarem ao Novo Mundo eles procurassem compensar todas
as passadas defici��ncias realizando coisas grandes. N��o admira,
pois, que acabassem fascinados pelo tamanho e pela quantidade,
os quais passaram a ter um valor por assim dizer moral; isto ��,
as coisas que fossem grandes ou numerosas deviam ser necessa-
riamente boas.
T. ��� Nessa id��ia est�� baseada a democracia. A verdade
�� igual �� metade mais um.
E. ��� Tobias! Tobias! N��o enveredemos por nenhum ca-
minho perigoso...
T. ��� Voltemos ent��o ao nosso assunto.
E. ��� Por outro lado, na����o jovem, os Estados Unidos n��o
podiam deixar de possuir todos os caracter��sticos da adolesc��n-
cia, um dos quais �� a fascina����o pelas coisas gigantescas, bri-
lhantes e ruidosas.
T. ��� Mas como explica voc�� a incapacidade dos americanos
de compreender, digamos, o ato gratuito? Por que atribuir a
tudo uma utilidade? Tenho observado que eles se irritam diante
da falta de esp��rito pr��tico dos povos latinos...
E. ��� Antes de mais nada �� preciso provar que os latinos
n��o t��m esp��rito pr��tico... Depois �� indispens��vel n��o esquecer
que foi a conquista do Oeste, a luta com a intemp��rie e com
os ��ndios, que moldou o car��ter americano. Veja bem. Diante
474
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
de tantos inimigos, de tantas dificuldades, o pioneiro n��o podia
perder tempo com coisas que n��o fossem pr��ticas. Ele era um
realista, um individualista, uma pessoa interessada em fazer coi-
sas: derrubar ��rvores, abrir caminhos, construir cabanas, plantar,
colher, ca��ar, defender-se dos ��ndios e das feras... Sua pr��pria
filosofia da vida tinha de ter um car��ter objetivo. Era pois na-
tural que se irritasse ante qualquer manifesta����o de natureza
acad��mica ou abstrata. Assim se explica o fato de muitos deles
considerarem as atividades liter��rias e art��sticas n��o s�� in��teis
como tamb��m indignas dum homem. Abrir uma picada ou
plantar uma ��rvore era para eles mais importante que ler ou
escrever um livro.
T. ��� Essa atitude diante da arte e da literatura ainda per-
siste?
E. ��� O homem de neg��cios moderno at�� certo ponto pare-
ce participar dela. �� por isso que neste pa��s s��o as mulheres
quem mais se interessa pelas letras e p��las artes.
T. ��� Mas a sua tentativa de justifica����o do culto do gran-
de, do numeroso por parte dos americanos s�� nos leva �� conclu-
s��o de que este pa��s �� realmente materialista.
E. ��� N��s os latinos confundimos idealismo com literatura
ou com religi��o formal. O fil��sofo George Santayana escreveu
que o americano �� "um idealista que trabalha a mat��ria".
T. ��� E qual foi o resultado da mat��ria trabalhada com idea-
lismo?
E. ��� Uma vida sadia, confort��vel e conseq��entemente bela.
Um operariado que vive melhor que a classe m��dia da maioria
dos pa��ses sul-americanos e europeus. Magn��ficas universida-
des, escolas prim��rias, gin��sios, jardins de inf��ncia, parques p��-
blicos, museus, bibliotecas... Centenas de laborat��rios da mais
variada natureza postos ao servi��o do bem-estar p��blico. Opor-
tunidades para cientistas, artistas e escritores prosseguirem, sem
preocupa����es financeiras, seus trabalhos de pesquisa, cria����o ou
interpreta����o.
T. ��� Mas voc�� n��o poder�� negar que a vida numa cidade
como Nova York ou Chicago �� uma pasmosa express��o de mate-
rialismo
E. ��� N��o negarei. Mas voc�� j�� notou como em certas cida-
des latinas tamb��m se luta pelo dinheiro, pelas posi����es, pelo
prazer? Voc�� acha que o Rio �� mais moralista que Nova York?
Ou que Buenos Aires �� mais puritana que Filad��lfia.
T. ��� Mas n��s nos preocupamos com outras coisas que n��o
o dinheiro e o lucro. Veja a literatura e as artes como flores-
cem nos pa��ses latinos.
A VOLTA DO GATO PRETO
475
E. ��� Voc�� apresentar�� como exemplo a Fran��a, a grande
Fran��a, e desfiar�� um brilhante ros��rio de nomes ilustres come-
��ando com Racine e terminando com Andr�� Malraux. Mas
acontece que a Fran��a �� um pa��s amadurecido, um pa��s anti-
go, ao passo que os Estados Unidos s��o um pa��s adolescente.
E seus defeitos, repito, s��o justamente os de um adolescente
que cresceu demais.
T. ��� Ent��o admite que os Estados Unidos t��m defeitos?
E. ��� Claro! Mas ningu��m poder�� negar que as artes flo-
rescem aqui tamb��m.
T. ��� Mas os melhores artistas que aqui vivem n��o s��o
americanos! Ou s��o estrangeiros naturalizados ou s��o filhos
de imigrantes.
E. ��� Meu caro Tobias, que ��, afinal de contas, um ame-
ricano? O homem louro do Middle West que tem nas veias
sangue escandinavo ou alem��o? O irland��s rubicundo e apaixo-
nado? O italiano de Nova York? O descendente de franceses
e espanh��is da Louisiana? Ou ainda o novaiorquino cujos an-
tepassados vieram da Holanda? N��o se esque��a que este �� um
pa��s de imigrantes, uma "na����o de na����es".
T. ��� Voc�� acha realmente importante a arte americana?
E. ��� Talvez n��o seja ainda importante comparada com a
francesa, a espanhola, a italiana e a alem��. Mas est�� a caminho
de tornar-se importante. Tem todos os elementos para isso.
Sangue novo e oportunidades na forma de universidades, museus,
bolsas de estudos, doa����es de milion��rios e ��� note bem! ��� boa
vontade e est��mulo da parte dum vasto p��blico, que sabe aplau-
dir e admirar mesmo quando n��o pode compreender.
T. ��� E a literatura?
E. ��� �� das mais vigorosas da atualidade. N��o julgue nun-
ca a literatura dos Estados Unidos por muitos dos best-sellers
que se traduzem na Am��rica do Sul, e muito menos pelas his-
t��rias de quadrinhos dos suplementos dominicais.
T. ��� N��o lhe parece que o gosto do p��blico deste pa��s vai
todo para o romance folhetim, para as hist��rias falsas de maga-
zine e cinema?
E. ��� Meu caro Tobias! Para esse g��nero vai o gosto da
maioria das criaturas humanas em todos os pa��ses do mundo.
N��o caia no erro de imaginar que o oper��rio e o campon��s
de Fran��a l��em Gide, Cocteau ou Giraudoux. O p��blico
dos romances de enredo �� imenso na Am��rica porque: a) a po-
pula����o norte-americana �� muito grande; b) porque tem o h��bito
da leitura; c) porque seu poder aquisitivo �� maior que o de
outros povos.
T. ��� Estar�� voc�� disposto a defender tamb��m essas de-
test��veis divulga����es liter��rias e musicais, essa tend��ncia de
476
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
transformar... digamos a "R��verie" de Debussy num fox, e
um trecho de Mozart num "swing"?
E. ��� At�� certo ponto estou. A nossa atitude latina com
rela����o �� literatura tem sido demasiadamente aristocr��tica. Acha-
mos que certo tipo de arte e literatura n��o deve ser posto ao
alcance do p��blico. Joyce e Proust s��o hoje como que santos
duma estranha igreja de poucos adeptos. No dia em que por um
milagre o p��blico come��ar a ler esses dois autores, essa igreja
exclusiva dos happy fevv se acabar��, porque seus fi��is demolir��o
os ��dolos e procurar��o refugiar-se noutras regi��es mais altas e
inating��veis para as massas.
T. ��� Mas que raz��o voc�� invoca em favor das divulga����es?
E. ��� Elas s��o educativas. Arrancam o p��blico da leitura
das hist��rias de Brucutu para o tipo mais alto de fic����o. Como
o desn��vel entre a literatura dum Thomas Mann e a dos suple-
mentos dominicais �� muito grande, �� necess��rio construir uma
escada com muitos degraus. As "Sele����es do Reader Digest"
representam por exemplo um degrau dessa escada. A revista
oferece seus perigos e tem seus defeitos, reconhe��o; mas os ser-
vi��os que vem prestando entre n��s s��o enormes. O mesmo se
passa com a divulga����o de m��sicas de autores s��rios.
T. ��� Voc�� viu "�� Noite Sonhamos?"
E. ��� A�� est��! Um filme artificial, errado e tolo. Mas pres-
tou bons servi��os. Falsificou Chopin o homem, mas trouxe Cho-
pin o m��sico para o n��vel do povo, atrav��s da interpreta����o dum
pianista como Jos�� Iturbi. O p��blico assobia as "polonaises" e
algumas das valsas e dos prel��dios desse compositor. �� natural
que os "m��sicos puros" fiquem ofendidos ao ouvirem o cobrador
do ��nibus cantarolando o "Estudo em Mi Bemol..."
T. ��� Voltando ao dinheiro... Noto que os americanos fa-
lam em dinheiro com naturalidade e n��o ficam como n��s "cheios
de dedos" quando conversam sobre transa����es comerciais.
E. ��� Ledores da B��blia eles compreenderam o sentido da
cena em que Jesus expulsou os vendilh��es do templo ��� n��o por-
que achasse que era il��cito fazer neg��cio, mas sim porque o tem-
plo n��o era o lugar apropriado para isso. Mais tarde, olhando
uma moeda com a ef��gie de C��sar e respondendo a uma per-
gunta capciosa, o Messias disse: "Dai a C��sar o que �� de C��sar
e a Deus o que �� de Deus". Essa frase permitiu ao ameri-
cano fazer a separa����o desses dois mundos. Assim ele faz ne-
g��cio durante a semana e aos domingos vai �� missa, ao servi��o
divino, em paz com o Criador, com os bancos e com a sua cons-
ci��ncia.
T. ��� Mas como �� poss��vel negar que haja aqui a Reocupa-
����o do sucesso, da carreira e do dinheiro?
A V O L T A DO G A T O P R E T O
477
E. ��� Mas eu n��o nego! Quero apenas mostrar que nos nos-
sos pa��ses essa preocupa����o tamb��m existe. Acontece apenas
que l�� eh toma outro aspecto, porque o ambiente �� outro, as
tradi����es s��o outras, o sentimento geral �� diferente.
T. ��� N��o acha que o alto n��vel de vida deste povo �� um
produto do dinheiro?
E. ��� Como vou negar uma coisa t��o evidente? O dinheiro
pode comprar coisas que tornam a vida mais f��cil, mais bela, mais
fecunda. Reconhe��o que h�� pessoas em todos os pa��ses do mun-
do que querem dinheiro por amor do dinheiro. Ora, n��o pode-
mos argumentar com exce����es, com anormalidades. Por outro
lado muitas vezes procuramos consolar-nos de nossas defici��n-
cias, de nossos fracassos e de nossa pobreza dizendo que n��o
temos dinheiro nem conforto simplesmente porque somos idea-
listas. �� uma reflex��o id��ntica �� do poeta franzino diante do
atleta: "Sim, ele �� forte, mas n��o �� capaz de escrever um poema
desses que comovem multid��es". Conhe��o europeus que, inve-
josos da prosperidade americana, dizem: "Os Estados Unidos s��o
um povo sem cultura nem tradi����o". E assim, invocando suas
elites art��sticas e liter��rias, essas pessoas procuram uma compen-
sa����o moral para o baixo n��vel de vida de seus oper��rios, a falta
de boas instala����es sanit��rias nas suas cidades, a aus��ncia de
boas estradas e de v��rias outras formas de progresso e conforto.
T. ��� Mas n��o acha que tem havido neste pa��s exageros no
que diz respeito �� preocupa����o com o progresso material?
E. ��� N��o nego que tem havido exageros. A vida em cida-
des como Nova York, Chicago, Filad��lfia, Detroit e algumas
outras �� assustadora. Gente atarantada, afobada, andando dum
lado para outro, apertando-se nos bondes, ��nibus e trens, me-
tendo o ombro nas multid��es, e assombradas sempre pelo fan-
tasma do tempo, do sucesso, da carreira, do dinheiro.
T. ��� Essa �� a imagem dos Estados Unidos que se conhece
no estrangeiro.
E. ��� Mas n��o encontraremos o mesmo quadro ��� apenas em
menor escala ��� em Paris, em Londres, em Buenos Aires e no
Rio de Janeiro? Tu sabes como se fazem negociatas fant��sti-
cas na nossa capital e como l�� se briga e discute em torno de
dinheiro e posi����es. N��s fazemos essas coisas e todo o tempo
estamos a gritar que somos espiritualistas e que desprezamos o
dinheiro...
T. ��� E que panorama oferecem as outras cidades america-
nas?
E. ��� Se voc�� visitasse as pequenas comunidades deste pa��s
verificaria que elas s��o compostas de gentes tranq��ilas, nada
gananciosas e de muito bom n��vel moral. Os sal��rios que ga-
478
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
nham s��o razo��veis mas nunca fabulosamente altos como sup��em
os estrangeiros que imaginam que todos aqui ganham milh��es,
como as estrelas de cinema. A vida dessas pequenas cidades ��
calma. Nos domingos as igrejas de todas as denomina����es se
enchem de fi��is. Est�� claro que tamb��m existem nesses lugares
hip��critas, mexeriqueiros, negocistas. E que os eternos ele-
mentos da com��dia humana est��o presentes tanto em Chicago,
Illinois, como em San Diego, Calif��rnia ou Newton, Kansas.
T. ��� Como se explica seja t��o grande aqui o n��mero de
pessoas que morrem de doen��as do cora����o e de ��lceras g��s-
tricas?
E. ��� Muitos americanos passam a vida correndo atr��s do
sucesso e duma carreira, multiplicando empresas e lucros, mas
multiplicando ao mesmo tempo preocupa����es e problemas. No
fim ficam prisioneiros da fant��stica engrenagem que eles mesmo
constru��ram e n��o podem mais libertar-se dela. J�� n��o se trata
de ganhar mais, pois nem tempo h�� para gastar tudo quanto
ganham. �� que aquilo que no princ��pio era um meio transfor-
mou-se tola e tragicamente num fim. Esses homens de grandes
neg��cios comem ��s pressas, dormem mal e vivem preocupados.
Acabam sofrendo do cora����o e de ��lceras g��stricas. S��o as in-
felizes personagens desse drama fabuloso que �� o progresso
americano.
T. ��� N��o acha que n��s no Brasil n��o temos esse tipo de
drama?
E. ��� Temos outro mais impressionante. O do homem que
passa a vida trabalhando como um burro sem nunca conseguir
um sal��rio decente. Sofre do cora����o, do est��mago, do f��gado
e vive em permanente estado de subalimenta����o. Sua pobreza
�� uma doen��a cr��nica. Sua desgra��a �� multiplicada atrav��s da
multiplica����o da prole. E entre n��s �� muito comum um outro
tipo de personagem. Refiro-me ao homem que passa a vida
acumulando dinheiro, mas que n��o multiplica suas empresas
e portanto n��o cria oportunidades de trabalho para outros.
S�� pensa nos juros que seu dinheiro rende, imobilizado nos
bancos. Vive mal, em casas ��midas e frias, onde a mesa ��
pobre e o conforto n��o existe. Homens como esse de certo
modo t��m entravado o progresso do pa��s. O dinheiro n��o
serve de nada nem para ele nem para os que est��o a seu redor.
T. ��� N��o foram esses americanos que sofrem do cora����o
ou de ��lceras g��stricas os construtores do progresso de sua p��tria?
E. ��� Sim, em grande parte. N��o fosse o tipo de sociedade
competitiva que existiu aqui desde o princ��pio, n��o teria sido
poss��vel aos Estados Unidos serem hoje o que s��o. Este pa��s foi
feito gra��as �� iniciativa privada.
A VOLTA DO GATO PRETO
479
T. ��� Que eles defender��o at�� o ��ltimo cartucho.
E. ��� Mas acontece, meu caro, que se no princ��pio era in-
dispens��vel que os homens trabalhassem sozinhos e sa��ssem a
conquistar o deserto, fundar cidades, criar ind��strias, chegou um
momento de tal emaranhamento de interesses, de t��o doida
competi����o, que tudo isso redundou na crise de 1929, a qual foi
debelada gra��as �� interven����o de Roosevelt com o seu New
Deal, que p��s ordem no caos e de novo trouxe a na����o para o
caminho da prosperidade.
T. ��� Acha ent��o que os Estados Unidos caminham para a
economia francamente dirigida?
E. ��� Quem sabe? Duas tend��ncias deste povo entram em
conflito. Dum lado o seu individualismo ferrenho, e do outro seu
esp��rito de coopera����o combinado com o gosto da planifica����o.
Os inimigos do New Deal s��o numerosos e fortes em todo o pa��s.
N��o sei para onde caminhar�� esta na����o. Mas me parece que
nunca mais a ind��stria e o com��rcio poder��o gozar da liberdade
que tiveram em tempos passados.
T. ��� N��o acha que estamos nos afastando da nossa estra-
da real, isto ��, do assunto "materialismo e idealismo"?
E. ��� O assunto �� rico de sugest��es. Poder��amos passar ho-
ras e horas sondando esse po��o sem nunca encontrar-lhe o fundo.
Mas antes de terminar eu queria chamar sua aten����o para alguns
aspectos da vida americana que nada t��m de material.
T. - Vamos l��...
E. ��� Veja o carinho e o respeito com que os americanos tra-
tam as mulheres e as crian��as, que neste pa��s gozam de prerroga-
tivas especiais. E o modo como cultivam as tradi����es familiares,
as festas como o Natal, o "Thanksgiving Day" e outras. O cuida-
do que dispensam ��s suas escolas e universidades, aos seus mu-
seus, bibliotecas, galerias de arte; e aos seus parques e jardins,
cuja gra��a chega ��s vezes a valer por um poema. O interesse com
que procuram os sal��es de confer��ncia, e a curiosidade que reve-
lam atrav��s de suas perguntas aos conferencistas. O amor com
que cuidam das coisas p��blicas. O respeito que t��m pela vida
humana e pelas liberdades individuais,
T. ��� E ao cabo de dois anos de estada neste pa��s, qual �� a
sua impress��o sincera deste povo?
E. ��� Olhe, tudo quanto eu lhe disse �� resultado de observa-
����o direta do homem e da vida americanos, mais do que produto
de leitura. Nestes dois ��ltimos anos tenho viajado extensamente
atrav��s dos Estados Unidos e tenho tido contato com toda a es-
p��cie de gente. Ora, quem se locomove no tempo e no espa��o,
entrando em e saindo de hot��is, trens, ��nibus, avi��es, bondes
480
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
caf��s, teatros, cinemas, lojas; quem passa por todos os setores da
vida duma na����o; quem vive o dia a dia com um povo tem ���
a menos que seja cego ou imbecil ��� todas as oportunidades de
ver esse povo em plena tarefa de viver... Apanha-o, por assim
dizer, desarmado, desprevenido, pois ele n��o est�� posando para
um cameraman, para um soci��logo ou um rep��rter. E as conclu-
s��es a que cheguei sobre os americanos s��o as mais favor��veis.
H�� neles, uma tend��ncia natural para a dec��ncia, para o jogo
limpo, para a boa camaradagem, por mais frios que pare��am na
superf��cie. Em todas essas minhas andan��as nunca topei com
ningu��m que me dificultasse o caminho; que me quisesse ludi-
briar ou lesar; que se mostrasse hostil ou mesmo dif��cil. Por
toda a parte encontrei um acolhimento amigo, e uma hospitali-
dade que muitas vezes escapa aos olhos dos latinos porque ��
falha de caracter��sticos teatrais. Este povo n��o �� nem pitoresco
nem brilhante, mas �� s��lido e eficiente, e ao cabo dum certo
tempo de conv��vio, acabamos depositando nele toda a nossa
confian��a. Conclu��mos finalmente que o americano �� um bom
companheiro, um bom cidad��o, um bom vizinho. Se voc�� acha
que todas essas coisas s��o express��o de materialismo... bom,
creio que ser�� in��til continuarmos a conversar.
T. ��� Terminemos ent��o o nosso di��logo...
E. ��� Mas n��o sem que eu lhe conte uma hist��ria real que
ilustra, de maneira simples mas eloq��ente, a diferen��a de ati-
tude entre o brasileiro e o americano com rela����o ao dinheiro.
Um dia, como eu precisasse dum n��quel para fazer funcionar
um telefone p��blico, pedi a um amigo americano que me tro-
casse uma moedinha de dez centavos. Ele me deu duas moedas
de cinco centavos e eu lhe passei o meu dime, que ele p��s no
bolso com a maior naturalidade. Dias depois, em circunst��ncias
id��nticas, pedi a um brasileiro que me desse duas moedas de
cinco centavos, mas quando lhe quis passar a moedinha de dez,
ele fez um gesto dram��tico, sacudiu as m��os, a cabe��a e todo
ele era uma veemente nega����o. Com seus gestos parecia dizer:
"N��o senhor! Ora essa! Que s��o dez centavos? Uma ninharia!
Havia de ter gra��a... N��o senhor. Deixe de besteira!" E
como eu insistisse ficamos por algum tempo a gesticular, a
soltar exclama����es, enquanto dois amigos americanos que es-
tavam junto de n��s se entreolhavam, sorrindo, sem compreender
por que est��vamos fazendo tanto barulho por coisa t��o simples.
Pois n��o se tratava duma transa����o normal: trocar uma moeda
de dez por duas de cinco? Seria dif��cil explicar-lhes que para
n��s brasileiros n��o se tratava dum problema de aritm��tica mas
sim de ��tica...
A V O L T A DO G A T O P R E T O
481
BELEZA POR CINZA
12 de junho. No cemit��rio de Hollywood, que
fica simbolicamente ao lado dos est��dios da Paramount
e da RKO, ergue-se um panteon de m��rmore branco,
onde est��o guardadas as urnas com os restos de Ru-
dolph Valentino, John Barrymore, Jean Harlow e deze-
nas de outras celebridades do cinema; cujo glamour a
morte reduziu a cinzas com a cumplicidade dum cre-
mat��rio.
E nesta fresca e silenciosa sala branca, enquanto
leio inscri����es, lembro-me dum vers��culo do profeta
Isa��as: "A ordena����o acerca dos tristes de Si��o que se
lhes d�� beleza por cinzas, ��leo por tristeza, vestido de
louvor por esp��rito angustiado..." Sim ��� reflito ���
essa me parece a grande preocupa����o dos norte-ame-
ricanos diante da morte: apagar com beleza a lem-
bran��a das cinzas, espalhar o ��leo do gozo para que
ele afogue toda a tristeza. ..
Nada, por��m, me interessa tanto neste cemit��rio
como uma laje que vejo aqui fora, onde est��o enterra-
dos os mortos sem gl��ria. Acha-se ela incrustada na
relva, com sua superf��cie bem no n��vel do ch��o:
PEGGY SHANNON
1910 - 1941
Aquela Pequena dos Cabelos Ruivos
Esperem! N��o posso passar de largo. Lembro-me
de Peggy Shannon... Vi seu retrato muitas vezes em
jornais e revistas. Tinha um rosto bonito e um corpo
bem feito. Mas �� est��pido que uma pessoa que viveu
trinta anos, que sonhou, sofreu, amou, desejou, acabe
sendo para os outros, ap��s sua morte, apenas a lem-
482
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
branca duma gravura, uma figura muda e im��vel de
duas dimens��es.
Peggy Shannon... Deve ter nascido numa cida-
dezinha do interior, de Iowa, Indiana ou Kansas. Teve
sarampo e cachumba, acreditou em Papai Noel, cantou
o Jingle Bells! foi �� escola de soquetes brancas e su��ter
azul... Aos dezesseis anos ia ao cinema e, enquanto
segurava a m��o do namorado e mascava goma na pe-
numbra da sala, soltava fundos suspiros ao ver John
Gilbert beijar na tela Ren��e Ador��e. Na cabeceira de
sua cama havia um retrato autografado de Rudolph
Valentino. Depois veio aquela doida viagem a Holly-
wood, com pouco dinheiro e muitas esperan��as. Che-
go a ver Peggy a discutir com a senhoria de sua casa.
N��o tem com que pagar o aluguel do pequeno aparta-
mento, pois ainda n��o encontrou trabalho. Acompanho-a
depois nas suas caminhadas pelo bulevar, �� noite, quan-
do ela anda �� procura de algu��m que lhe pague um
jantar no Sardi's ou no Brown Derby, ou ent��o em ��l-
timo caso um sandu��che e um copo de leite no drugs-
tore da esquina... Um dia chega finalmente a opor-
tunidade sonhada. Uma pontinha num filme... O
primeiro retrato numa revista de cinema... O caminho
do estrelato. E uma vida agitada, de festas, corridas de
autom��vel, sensa����es... Depois, quem sabe l�� o que
aconteceu?
Agora nada mais importa. A menina dos cabelos
ruivos est�� enterrada aqui a meus p��s. P��ssaros negros
voejam em torno da sepultura. Por cima daqueles
muros claros vejo os telhados dos est��dios, dentro dos
quais neste mesmo momento centenas de mo��as como
Peggy est��o vivendo o seu minutinho de gl��ria. Longe
azulam as montanhas da Sierra Madre, que parecem
dormir e sonhar com os tempos em que por aqui s��
andavam ��ndios e mission��rios, e o padre Junipero
Serra sa��a a visitar as miss��es, montado num burrico
de p��lo pardo com o seu burel de franciscano.
A V O L T A D O G A T O P R E T O
483
Peggy nasceu em 1910, quando o cometa de Haley
apareceu no c��u e toda a gente dizia que o mundo ia
acabar. Morreu no ano em que os avi��es japoneses
bombardearam Pearl Harbour. Foi uma dessas menini-
nhas que acenam para n��s quando nosso trem passa
pelas vilas perdidas na vastid��o das plan��cies de
Oklahoma, New M��xico ou Nevada... Por isso tudo,
Peggy, eu n��o podia passar de largo por tua sepultura.
E por isso tudo estou comovido. Sou uma besta.
Adeus, Peggy!
CARTA A UMA JOVEM BRASILEIRA
15 de junho. "Voc�� me pede em sua carta que lhe fale
de artistas de cinema, e eu n��o sei que dizer-lhe. Encontro-
me nesta cidade h�� uns dez meses, tomei j�� um fart��o de
est��dios e ��s vezes chego a esquecer que estou em Hollywood.
Voc�� afirma que sou um felizardo por viver t��o perto das es-
trelas. Sim, Beverly Hills �� um lugar delicioso, uma das mais
belas cidades residenciais do mundo. �� agrad��vel e repousante
andar por suas ruas quietas e limpas, orladas de ��rvores ��� pal-
meiras reais, faias, ac��cias, carvalhos, ��lamos... Alguns de seus
jardins s��o de tal maneira bem cuidados, que chegam a causar-
nos uma esp��cie de mal-estar, como o que sentimos diante de
certos homens demasiadamente bem vestidos, perfumados e
manicurados. Suas casas s��o de tal modo graciosas, que lem-
bram tricromias de revistas. V��mo-las de todos os estilos e
tamanhos. Umas parecem solares ingleses com telhados que
formam ��ngulos agudos, e paredes de pedra cinzenta ou parda,
cobertas de hera. Outras, com seus p��rticos de brancas e altas
colunas, lembram as "plantation houses" do velho Sul. E
quando passamos de autom��vel por estas avenidas, n��o raro
vislumbramos no fundo de parques e jardins, fachadas com
influ��ncias mouriscas, chinesas, maias, incaicas, a alternar com
outras em que saltam aos nossos olhos reminisc��ncias do g��tico,
do rococ��, do eg��pcio, do bizantino e n��o sei mais qu��...
Voc�� �� muito jovem e naturalmente n��o sabe quem �� ou,
antes, quem era Theda Bara. Pois era a femme fatale de vinte
cinco anos passados, a mulher vampiro de negros cabelos
484
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
lambidos, olhos enormes, muito bistrados, de cilios longos, e
labios pintados em forma de cora����o. Essa criatura que, no
tempo da adolesc��ncia do cinema americano, simbolizava a
paix��o que mata, hoje em dia ��� velha, serena e av��, ��� mora
ali naquela casa parda de torre��o g��tico, em cujo jardim brin-
cam gnomos de barro e netos. B��ris Karloff, fiel ao tipo que
representa no cinema, mandou construir uma vivenda de linhas
ag��nicas que lembra essas casas dos contos de horror, cujas
janelas nas noites de sexta-feira vomitam bandos de morcegos,
e bruxas montadas em cabos de vassoura. Mas devo dizer-lhe
que ��� afora essas excentricidades arquitet��nicas ��� as resid��n-
cias de Beverly Hills s��o em geral dum ineg��vel bom gosto.
Predomina entre elas o estilo miss��o espanhola e o californiano.
N��o resisto �� tenta����o de lhe contar a hist��ria da origem deste
��ltimo, segundo a vers��o ir��nica de meu amigo Hubert Herring.
"Um dia ��� contou-me ele ��� um turista americano foi �� cidade
do M��xico e l�� viu num de seus bairros uma casa em mau
estilo espanhol que lhe excitou a fantasia. Disse ent��o para
si mesmo: "Ah! Eis uma vivenda genuinamente mexicana!"
Tra��ou a l��pis um esbo��o dela nas costas dum envelope, voltou
para los Angeles e mandou construir em Beverly Hills uma
casa de acordo com o precioso modelo. Meses depois turistas
mexicanos viram essa casa j�� pronta e plantada em meio dum
jardim. Murmuraram: "Ah! Casa t��pica da Calif��mia!' E
levaram para sua terra um esbo��o dessa maravilha arquitet��-
nica. E assim nasceu esse estilo conhecido pelo nome de cali-
forniano".
Mas... voltemos a Beverly Hills. Tenho uma restri����o
muito s��ria a fazer �� cidade das estrelas. �� que num certo
respeito ela se parece com a Itaoca de Monteiro Lobato: ��
uma cidade morta. Nos seus jardins bem cuidados vemos p��r-
golas, flores, estatuetas, repuxos, lagos artificiais, grutas, pontes
e verdes sombras; ��s vezes um c��o de ra��a, de ar enfastiado,
atravessa lentamente seus vastos tabuleiros de relva; ou ent��o
um jardineiro solit��rio poda arbustos japoneses... Fora disso
n��o se v�� sinal de vida em Beverly Hills. As janelas e portas
de suas vivendas est��o sempre fechadas. Beverhj Hills �� um
distrito sem humanidade.
Gostaria voc�� de viver num bairro em cujas ruas e pra��as
crian��as nunca corressem, nunca jogassem bola, patinassem,
cantassem ou brincassem de ciranda? Um bairro sem c��es vira-
latas, sem vendedores ambulantes, sem preg��es e sem vaga-
bundos?
Deixemos de lado as casas, para que esta carta n��o fique
tamb��m vazia de humanidade.
A V O L T A D O G A T O P R E T O
485
Voc�� quer saber como s��o os atores e atrizes de cinema...
S��o pessoas como as outras, �� claro. Pergunta tamb��m se vistos
de perto, em carne e osso, s��o t��o bonitos (o adjetivo �� seu...)
como parecem nos filmes. Sim, creio que muitos s��o at�� mais
interessantes ao natural. Ingrid Bergman tem umas leves sardas
que lhe d��o um encanto ainda maior, e o mesmo acontece
com Joan Crawford. Na minha opini��o o make-up e uma s��rie
de outras conven����es cinematogr��ficas deixam astros e estrelas
um tanto amaneirados e estandardizados: roubam-lhes um
pouco a humanidade e a individualidade.
Em muitos casos, por��m, o homem do make-up pode
fazer prod��gios, empregando beleza ou glamour a faces que
n��o os possuem ao natural. E um diretor habilidoso consegue
��s vezes fazer que um ator ou atriz destitu��do de qualquer
talento art��stico desempenhe seu papel diante da c��mara de
maneira sen��o magistral, pelo menos satisfat��ria.
Quando se quer afirmar que um escritor �� escravo da
realidade, costuma-se dizer que ele �� fotogr��fico. Compara����o
inexata! Porque a c��mara fotogr��fica n��o �� t��o realista como
parece. Ela tamb��m tem seus caprichos e fantasias; ela tam-
b��m deforma ou transforma. Como certos pintores dotados
duma perversa tend��ncia para a caricatura, elas costumam
ampliar as imagens ��� e isso constitui o horror das estrelas
que se entregam �� mais rigorosa dieta, a fim de conservar a
esbeltez do corpo. Quando conheci Geraldine Fitzgerald no
est��dio da Warner fiquei surpreendido por v��-la t��o delgada;
de t��o fina, sua cintura me lembrou um tubo de retr��s...
Paul Henried, com quem conversei durante um intervalo entre
a filmagem de duas cenas de "Servid��o Humana" ��� em que
ele faz o papel de Philip Corey, o jovem que arrasta pela vida
um p�� torto e um complexo de inferioridade ��� Paul Henried
tem de tingir os cabelos de ouro, a fim de que na tela eles
apare��am mais escuros. A fotografia transforma as ruivas em
morenas de negros cabelos. E quando o vestido da estrela
tem de parecer preto na tela, na realidade ele �� vermelho, pois
os cameraman evitam sempre o preto ��� que absorve luz em
demasia; e o branco, que tende a reverberar perigosamente a
claridade, �� em geral substitu��do pelo azul claro. Muitas vezes
a carreira duma atriz de cinema depende do cameraman. N��o
��, pois, de admirar que muitas estrelas se habituem a depender
tanto dele, que cheguem ao ponto de confundir essa depen-
d��ncia com amor, bem como acontece com a paciente que
entrega seu caso, seus segredos, sua alma, ao psicanalista, e
acaba por ele apaixonada. Linda Darnell ��� que �� bela e ainda
est�� na casa dos vinte ��� casou-se com um cameraman que
j�� passou dos quarenta e que est�� longe de ser um glamour-boy.
486
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Outro problema do cinema, principalmente para os alores,
�� o da altura. Num pa��s de homens geralmente altos e atl��-
ticos, era natural que o her��i dos romances (quantos vest��gios,
nisso, dos tempos medievais em que s�� os homens grandes e
fortes podiam manejar o espadag��o, a lan��a e o escudo!) fosse
um latag��o de ombros largos, campe��o de futebol ou de box.
Por muitos anos o papel ao gal�� no cinema s�� era confiado a
atores que tivessem no m��nimo l,80m de altura, S�� ultima-
mente �� que tipos baixos como Jimmy Cagney, Charles Boyer,
John Garfield, Alan Ladd, George Raft e Burgess Mereaith
conseguiram destruir em parte esse tabu. Mesmo assim o gal��
baixo d�� grande trabalho ao diretor, que tem de usar de v��rios
estratagemas para evitar que o p��blico tenha oportunidade de
comparar sua altura com a da hero��na. N��o �� poss��vel dar a
Cagney o papel de her��i num filme em que Alex Smith seja
a "mocinha", pois mesmo sem sapatos de salto alto essa estrela
�� mais alta que Jimmy. Muitas vezes Charles Boyer ou John
Garfield t��m de subir num pequeno estrado para representar
cenas de amor fotografadas em close up. E nas cenas tomadas
em "long shot", isto ��, �� dist��ncia, os truques usados s��o os
mais variados. Se o her��i �� da mesma altura ou pouco mais
baixo que a hero��na ��� quando ambos descem uma escada ela
em geral vai um degrau na frente do cavalheiro.
N��o sei tamb��m se devo falar-lhe num outro problema
dos "astros": o da calv��cie. Parece uma regra, n��o s�� do tea-
tro e do cinema, como tamb��m da vida em geral, que s��
depois dos quarenta os homens atingem uma verdadeira matu-
ridade de esp��rito. Ora, a natureza, que parece n��o ter a
menor considera����o pelos sentimentos e ilus��es dos her��is e
de seus f��s, �� de tal modo perversa, que quando come��a a
dar ��s pessoas uma mais funda sabedoria da vida, por outro
lado come��a a roubar-lhes os encantos f��sicos que porventura
possuam. Assim, n��o s��o poucos os atores de meia-idade que
quando aparecem diante das c��maras t��m de usar cabeleiras
posti��as parciais ou inteiras.
Mas creia, n��o estou a escrever-lhe com o prop��sito de
matar suas ilus��es. Nada disso! H�� mulheres e homens fisi-
camente admir��veis em Hollywood. E ��s vezes at�� encontramos
aqui reunidos numa mesma criatura, atrativos f��sicos e intelec-
tuais, como �� o caso de Rosalind Russell, Greer Garson e Ingrid
Bergman. Um destes dias entrei na livraria que fica junto do
restaurante Brown Derby e quedei-me a olhar lombadas de
livros. Junto de mim uma mo��a lia com grande interesse um
volume... Como �� natural, olhei primeiro para o rosto da
mo��a. Era Ann Baxter. Depois para as p��ginas do livro:
A V O L T A DO G A T O P R E T O
487
poemas de Emily Dickinson. Edward Robinson �� dono de urna
das mais importantes pinacotecas particulares dos Estados
Unidos; tem em sua casa originais de Renoir, Gauguin, Manet
e outros mestres. Em sua maioria esses atores que est��o "no
olho do p��blico" levam uma vida morigerada, raramente v��o
a cabar��s e evitam o esc��ndalo e a extravag��ncia. Muitos,
como Loretta Young e Bing Crosby ��� ambos cat��licos ��� s��o
conhecidos pelos seus pendores religiosos. Edward Arnold,
que em geral nos filmes faz papel de banqueiro patife, juiz
venal ou g��ngster, �� na realidade um homem muito s��rio, ex-
tremamente bondoso e preocupado com obras de assist��ncia
social. Peter horre ��� que ainda ontem me contou uma anedota
engra��ad��ssimo no restaurante da Warner ��� �� muito querido
nos est��dios, onde todos o consideram um "tipo gozado".
Nem todos os stars e diretores t��m a obsess��o da publi-
cidade. Pouca gente saber��, por exemplo, que Henry Fonda,
Melvyn Douglas e Frank Capra est��o nas for��as armadas dos
Estados Unidos. E que Jimmy Stewart e Clark Gable ��� ambos
da American Air Force ��� j�� entraram em a����o portando-se
admiravelmente. E que artistas como Joe Brown, Bob Hope,
Frances Langford e dezenas de outros t��m andado pelos teatros
de guerra do Pac��fico a entreter os soldados, nos acampamentos,
correndo muitas vezes risco de vida.
��, pois, um erro pensar que toda a popula����o de Hollywood
vive tomada da "loucura do cinema". �� verdade que a nota
t��nica destas ruas, caf��s, teatros, lojas, �� a extravag��ncia, a
exibi����o, a fantasia. Mas h�� aqui gente normal (se �� que tal
coisa existe mesmo) e grande �� o n��mero daqueles que encaram
seu trabalho nos est��dios com naturalidade, como um meio de
vida, uma voca����o, ou... como uma fatalidade.
A atitude de boa parte da popula����o dos Estados Unidos
com rela����o a Hollywood �� de curiosidade e encantamento.
Mas nos c��rculos de gente religiosa ou de r��gida moral a capital
do cinema �� olhada como sendo uma express��o de pecado.
Para as pessoas cultas ou artisticamente requintadas, ela �� con-
siderada como um s��mbolo de futilidade ou de m�� arte. E
todas essas criaturas estremecem de horror ao pensarem que
os padr��es art��sticos, liter��rios e morais de seu pa��s possam
ser julgados no exterior de acordo com a vida e os filmes de
Hollywood.
Esta vasta j�� vai longa, mas acontece que n��o estou escre-
vendo apenas para voc��, mas tamb��m para muitas outras mo��as
brasileiras que participam de sua curiosidade com rela����o a
estes assuntos.
488
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Voc�� quer saber se tenho tido a oportunidade de conhecer
muitos stars pessoalmente...
Voc�� ficar�� mais feliz se eu lhe disser que tirei um retrato
ao lado de Dennis Morgan, no stage onde, fardado de aviador
do ex��rcito norte-americano ele filmava uma cena de "Deus
�� meu Co-Pil��to"? Meu prest��gio com voc�� aumentar�� se eu
lhe disser que vi Bette Davis em The Corn is Green ���
numa cena em que ela desce duma carruagem, numa vila do
Pa��s de Gales, no meio duma nuvem de poeira, que na reali-
dade n��o passava de fuma��a de incenso? Gostar�� voc�� de
saber que as casas dessa vila s�� t��m fachada e telhado, e n��s
furamos que s��o feitas mesmo de pedra at�� o momento em
que batemos nela com os n��s dos dedos, para verificar que s��o
de papier mach��? Se essas not��cias lhe s��o agrad��veis, deixe que
eu lhe conte mais alguma coisa.
Vi Joan Crawford numa cena de "Mildred Pierce", uma
hist��ria dram��tica escrita por James Cain, novelista que ama
as personagens prim��rias, os di��logos crus e as cenas de vio-
l��ncia em que haja sangue, luta e morte. Joan, tanto nessa
hist��ria como na vida real, �� uma mulher de fibra. Muitos
cronistas acham que este papel lhe dar�� o "Oscar de 1945.
L�� estava ela sentada na frente do seu advogado, com as m��os
enluvadas a esconder o rosto. Chorava convulsivamente, mas
de repente conteve-se. N��o sei que foi que lhe fizeram, porque
n��o li o romance. S�� sei que Joan ainda est�� espl��ndida, con-
serva aquele seu ar de figura de radiador de autom��vel ���
um perfil impetuoso que se projeta para a frente, corajosa-
mente. Assim tem sido a carreira dessa menina que h�� menos
de vinte anos andou pelo bulevar, desconhecida, sem um cen-
tavo na bolsa, passando fome, olhando com olhos compridos
para as comidas das vitrinas dos restaurantes...
Noutro set assisti nesse mesmo dia �� filmagem em tecni-
color de uma cena da biografia do compositor Cole Porter.
Representava a sala duma bela casa, onde estava armada uma
��rvore de Natal. Monty Wooley achava-se sentado numa pol-
trona. Alex Smith de p��, toda vestida de verde, estaca junto
da ��rvore, que cintilava de l��mpadas, vidrilhos e esferas colo-
ridas. Ajoelhado ao p�� dessa mesma ��rvore, Gartj Grant abria
o pacote que continha o seu presente...
Outro dia vi uma mulherzinha metida num pijama de praia
no sagu��o do Bevery Hills Hotel. Como ela tivesse nos bra��os
um cachorrinho preto e lustroso, fiquei olhando, curioso, para
o animalzinho, e s�� depois de alguns segundos �� que percebi
que as m��os que seguravam essa preciosidade canina eram as
de Norma Shearer. N��o se inquiete; apesar de entrada nos
A VOLTA DO GATO PRETO
489
quarenta ela ainda est�� bonita e seu rosto ��� a que um leve
estrabismo d�� um encanto particular ��� guarda at�� uma certa
frescura.
Estive tamb��m, h�� alguns meses, no set que representava
o interior dum caf��-concerto de San Francisco, nos tempos de
Barbary Coast. Presenciei, entrincheirado atr��s da c��mara,
uma briga tremenda. Esse sururu foi ensaiado muitas vezes.
Houve um detalhe que guardei bem na mem��ria. Uma das
show girls fez um sinal para dois dos freq��entadores do frege.
Estes se precipitaram ao mesmo tempo, houve uma colis��o, que
resultou em uma luta corporal e na elimina����o de um dos
contendores, de sorte que o vencedor, glorioso, avan��ou na di-
re����o da beldade. O diretor elogiou os extras que tomaram
parte na cena ��� o que muito os envaideceu. Meses depois,
vendo no cinema esse filme j�� pronto, verifiquei que tal cena,
ensaiada com tanto cuidado, e filmada tr��s vezes, havia sido
completamente eliminada da hist��ria.
Assim �� Hollywood. Decepcionante? N��o. Sensacional?
s vezes. �� curioso a gente ir para o bulevar e ficar olhando
as pessoas que passam. H�� sempre sol nas ruas, e os pedestres
��s vezes s��o pitorescos. H�� tamb��m muitos lugares aonde ir.
Bares, restaurantes, night-clubs, cinemas, teatros... E n��o deixa
de ser engra��ado a gente estar encontrando a cada passo nossos
"conhecidos" do cinema. Voc�� se lembra daquele italiano
baixo, gordo e de bigode, que ��s vezes aparece em pontinhas
nos filmes, tocando realejo, com um macaco no ombro? Pois
ele trabalha na caixa da "Casa D'Amore", restaurante que fica
a dois passos do bulevar. E voc�� encontrar�� condes, banqueiros
e generais parados na frente do Hotel Plaza, sem colarinho, de
casaco esporte, a conversar ociosamente.
O forasteiro que aqui chega, procura ir a todos os lugares
e conhecer o maior numero de gentes e coisas poss��vel. No
princ��pio tudo �� novo. Depois o visitante fica enfarado. E
que aqui h�� muita coisa excepcional junta.
Olhe. Voc�� v�� um bolo muito colorido e de aspecto ape-
titoso, um doce que est�� �� sua frente, �� sua disposi����o. Voc��
se atira a ele e come��a a com��-lo com voracidade e encanto ���
uma, duas, quatro, seis fatias... at�� que se enfarta. Assim ��
Hollywood. Um doce bonito, gostoso, mas enjoativo. E se eu
voltar a esta cidade daqui a cinco anos, estou certo de que,
sem me valer da experi��ncia de hoje, eu me atirarei de novo
ao bolo vorazmente, para chegar mais uma vez ao enfaramento.
A vida �� assim mesmo.
Ficou decepcionada? Se ficou, queira perdoar seu amigo
E."
490
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
PARALELO
Fernanda: Agora quem me faz a pergunta embara��osa ��
voc�� e n��o meu imagin��rio Tobias. "Por que raz��o chegaram
os Estados Unidos ��� cujo povoamento �� mais recente que o do
Brasil ��� ao presente est��dio de civiliza����o, ao passo que n��s
ficamos t��o para tr��s?' Creio que �� preciso "mucho mas hom-
bre" que um simples contador de hist��rias para responder sa-
tisfatoriamente a essa enorme pergunta. Mas, seja como f��r
vou tentar um r��pido paralelo.
Desde a escola prim��ria ouvimos dizer que, de todos os
pa��ses do mundo, o Brasil �� o maior e o mais bem dotado pela
natureza; que nossas possibilidades econ��micas s��o ilimitadas;
que nossos rios s��o caudalosos, nosso solo ub��rrimo, nosso sub-
solo colossalmente rico... Garantiram-nos tamb��m que nossos
bosques t��m mais vida e nossa vida no seio da p��tria mais
amores. Passamos anos e anos embalados por essa inebriante
cantiga, mas me parece que j�� estamos suficientemente crescidos
para saber a verdade. Sim, sob muitos aspectos o Brasil �� um
pa��s privilegiado. Mas essa id��ia n��o basta. �� preciso
tornar real, palp��vel e ativa uma riqueza potencial que at��
aqui s�� tem servido como assunto de literatura e orat��ria c��-
vica . . . E' preciso usar esse solo e esse subsolo em benef��cio de
nosso povo, da eleva����o de seu n��vel de vida. Bom, mas o
que principalmente interessa ao nosso paralelo �� deixar claro
que se pusermos o meio f��sico brasileiro em confronto realista
com os Estados Unidos, chegaremos �� conclus��o de que esta-
mos numa situa����o de n��tida, vis��vel inferioridade. Isso explica
em boa parte o atraso material do Brasil.
Para principiar, o territ��rio dos Estados Unidos encontra-
se em sua maior parte dentro da zona temperada do Norte,
oferecendo portanto condi����es favor��veis ao estabelecimento
de imigrantes vindos da Europa setentrional, e conseq��ente-
mente ao florescimento duma civiliza����o de tipo europeu. Ora,
a por����o maior do territ��rio brasileiro se estende dentro da
zona tropical e subtropical, sendo que estados como o Ama-
zonas, o Par��, o Maranh��o, o Bio Grande do Norte, a Para��ba
e boa parte de Pernambuco ��� tudo isso numa extens��o de mais
de 4 milh��es de quil��metros quadrados ��� se acham na zona
t��rrida. Se voc�� retrucar que clima n��o tem maior import��n-
cia, eu lhe perguntarei: Que fizeram os ingleses nas suas
col��nias tropicais da ��frica e da ��sia? Que conseguiu realizar
o engenho franc��s, holand��s e brit��nico nas Guianas?
A V O L T A DO G A T O P R E T O
491
Segundo observa Caio Prado J��nior no seu admir��vel
"Forma����o do Brasil Contempor��neo", ao passo que na zona
temperada do continente americano se fundaram col��nias de
povoamento que receberam os excessos demogr��ficos do Velho
Mundo, e reconstitu��ram neste lado do Atl��ntico uma sociedade
�� semelhan��a de seu modelo e origem europeus ��� surgiu nos
tr��picos um tipo de sociedade inteiramente original, destinado,
em ��ltima an��lise, a explorar os recursos naturais dum terri-
t��rio virgem em proveito do com��rcio da Europa. Esse "sen-
tido" da coloniza����o tropical at�� certo ponto explica o que
somos hoje em dia.
Os colonos europeus encontraram nos Estados Unidos,
entre os Alleghany e os Montes Rochosos, terras geralmente
planas e f��rteis, o que n��o aconteceu no Brasil, pa��s de topo-
grafia muito mais acidentada e portanto menos prop��cia ao tra-
balho agr��cola e �� constru����o de vias de comunica����o A maior
parte de nossa terra �� um planalto, sim, mas um planalto de
dif��cil acesso, pois se encontra a uma altura que varia entre
trezentos e mil metros acima do n��vel do mar. Ademais, trata-
se dum planalto sem plan��cies, cavado de depress��es fundas,
cortado de rios encachoeirados e serpentinas. (Os rios de curvas
serpentinas, conquanto ��timos para poesia, s��o p��ssimos como
meio de transporte.) E j�� que estamos falando em rios, �� bom
lembrar que os da regi��o semi-��rida do Nordeste s��o rios de
regime muito irregular, rios tempor��rios que, por assim dizer,
desaparecem exatamente na ��poca em que as popula����es da-
quela zona mais necessitam deles... Segundo Gilberto Freyre,
nossos rios foram "colaboradores incertos" que "s�� em parte e
nunca completamente se prestavam ��s fun����es civilizadoras de
comunica����o". Os rios do planalto de pouco serviram aos po-
voadores do interior, pois na sua corrida de obst��culos na
dire����o do mar, eles tomam a forma de cachoeiras, saltos e
corredeiras... O pr��prio S��o Francisco ��� "o rio da unidade
nacional" ��� n��o �� t��o extensamente naveg��vel como se imagina,
pois de seu curso total de tr��s mil quil��metros, apenas mil e
duzentos s��o favor��veis �� navega����o. E voltando ��s plan��cies
que tanto nos poderiam facilitar o trabalho da lavoura, com
que podemos contar? Com a bacia do rio Paraguai? Mas
apenas pequena parte dela ��� a superior ��� nos pertence. A
do Amazonas? Ah! Aqui meus aedos come��am a dan��ar,
ansiosos por enfileirar no papel uma s��rie de adjetivos faiscantes
e sonoros, descritivos da pujan��a da selva amaz��nica, da gran-
deza do rio-mar, das maravilhas e horrores dessa regi��o
que, segundo Humboldt, poderia alimentar a humanidade in-
teira. Mas cair nesse al��ap��o c��vico-liter��rio seria um descuido
492
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
de adolescente... Ningu��m negar�� que o vale do Amazonas
�� uma regi��o fabulosa. Sabemos que a plan��cie amaz��nica se
estende numa ��rea de mais de dois milh��es de quil��metros
quadrados, s�� dentro do territ��rio brasileiro. Mas de que
nos tem servido toda essa grandeza? Compare a bacia do
Amazonas com a do Mississipi e veja como os americanos
foram mais bem aquinhoados que n��s no que diz respeito ao
meio f��sico. O vale do Amazonas op��e ao colono um clima
equatorial, terrenos alagadi��os, a incerteza das "terras ca��das",
o impenetr��vel emaranhamento de suas florestas tropicais, e
mais as febres, as cheias e o problema das enormes dist��ncias.
Nessa regi��o, o homem ��� seja ele de que ra��a for ��� acabar��
fatalmente vencido pela terra. (N��o creio que estas palavras
formem apenas um chav��o liter��rio.) Quanto ao vale do Mis-
sissipi, �� dif��cil encontrar no mundo inteiro regi��o mais extensa
que apresente tantos, t��o f��ceis e variados recursos naturais.
O vale tem uma fertilidade uniforme, seu clima �� constante,
sua superf��cie plana ��� raz��es pelas quais o trabalho agr��cola
nele se processa com facilidade e a um custo relativamente
baixo. Desde o estado de Pennsylvania at�� o de Wyoming
encontram-se jazidas de carv��o betuminoso, petr��leo e g��s na-
tural. Esses len����is de petr��leo se estendem ainda para o
sul, na dire����o do Golfo do M��xico. Em Minnesota h�� ricas
jazidas de ferro. Os afluentes do Mississipi oferecem meios
de transporte barato e pr��tico, e o fato de o vale ser plano
facilitou a constru����o e a manuten����o de estradas de ferro.
Por outro lado a explora����o do ferro foi facilitada pela proxi-
midade das minas de carv��o. Ora, o ferro e o carv��o acaba-
ram fornecendo a base desse formid��vel parque industrial ame-
ricano, financiado em boa parte pelo ouro extra��do das minas
de Montana, Colorado, Texas e Calif��rnia.
Al��m de f��rtil, o solo americano foi trabalhado desde o
princ��pio por agricultores h��beis. Plantou-se milho, trigo, algo-
d��o, tabaco e v��rias esp��cies de cereais; e esses produtos se
escoavam facilmente pelos tribut��rios do Mississipi, o qual se
encarregava de lev��-los para o Golfo. N��o devemos esquecer
o impulso que a navega����o a vapor deu �� vida n��o s�� do vale
como tamb��m da zona dos Grandes Lagos. Praticamente todas
as regi��es dos Estados Unidos foram aproveitadas pela agri-
cultura e pela ind��stria pastoril. Cerca de metade da sua
superf��cie terrestre, ou seja um bilh��o de acres, est�� coberta
de fazendas, granjas e planta����es. A pluviosidade de grande
parte do pa��s �� favor��vel ao trabalho da lavoura. No Middle
West fica a zona do milho e do trigo onde se processa o
curioso ciclo que consiste em transformar o milho em banha,
A V O L T A DO G A T O P R E T O
493
via-porco o (corn-hog cycle). Na proximidade dos Grandes
Lagos est�� a zona dos latic��nios. No sul se desdobra a rica
"faixa do algod��o". Para as bandas do Oeste ficam vastas
pastagens povoadas de gado e de rebanhos de ovelhas; nessa
regi��o as planta����es se mant��m gra��as a um eficiente sistema
de irriga����o. V��m depois as regi��es das frutas c��tricas da
Calif��rnia. E como Fl��rida tenha clima semelhante ao do sul
daquele estado ocidental, e como produza os mesmos tipos de
frutas c��tricas, sempre que um parasita danifique ou destrua
as colheitas duma regi��o, h�� todas as probabilidades de que
a outra se salve. E muitas vezes, quando a seca prejudica
a colheita na regi��o no oeste do Missouri, verifica-se em com-
pensa����o uma alta de pre��os nos cereais que se produzem para
leste desse mesmo rio. A todas essas, que se passa no Brasil?
Temos dependido durante longos anos dum s�� produto, o caf��,
que est�� longe de ter a import��ncia do trigo; s�� recentemente
�� que intensificamos a produ����o de algod��o. Que vemos na
vasta superf��cie do Brasil? Desertos. Em algumas regi��es eles
s��o verdes, belos, mas a beleza e a cor n��o lhes tira a qualidade
de deserto. De nossa superf��cie total de 8 511 118 quil��metros
quadrados, cerca de 4 800 000 t��m uma densidade de deserto,
isto ��: menos de um habitante por quil��metro quadrado. Nossas
lavouras s��o pobres, primitivas e escassas.
Temos as mais ricas jazidas de ferro do mundo! ��� excla-
mar��o os patriotas, exaltados. Claro, ningu��m lhes poder�� con-
testar a afirma����o. Mas acontece que esse ferro est�� nas mon-
tanhas de Minas Gerais, a seiscentos quil��metros do mar, longe
das minas de carv��o do Paran��, de Santa Catarina e do Rio
Grande do Sul, as quais produzem um carv��o de m�� qualidade
e numa quantidade insuficiente para nossas necessidades
internas.
Por outro lado nosso solo n��o �� t��o f��rtil como imaginou
Pero Vaz Caminha e como muitos compatriotas nossos ainda
insistem em afirmar. O professor C. Sauer, ge��grafo da Uni-
versidade da Calif��rnia, me falou um dia longamente da ilus��o
em que vivem os brasileiros quanto ��s possibilidades de seu
solo para a agricultura. Nossa terra n��o �� rica em azoto e
��cido fosf��rico, como a famosa terra preta da R��ssia. Al��m
disso ela cansa depressa e n��s nada fazemos para regener��-la.
Pense, Fernanda, nos prodigiosos meios de transporte e
comunica����o dos Estados Unidos e no isolamento que, �� falta
deles, vivem nossas cidades do interior ��� sim, e tamb��m muitas
do litoral! Tentamos explicar essas diferen��as dizendo com um
encolher de ombros: "Os americanos s��o mais ricos que n��s."
Mas esta �� uma frase est��pida que n��o explica nada. �� o
494
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
mesmo que dizer: "Jo��o goza de sa��de e eu n��o, simplesmente
porque eu estou doente e Jo��o n��o est��".
Resumindo: O colono europeu encontrou nos Estados
Unidos um meio f��sico mais favor��vel ao trabalho e �� vida,
e em muitos aspectos parecido com aquele donde provinham.
O solo era f��rtil e, atravessando os Alleghany, os pioneiros
encontraram o vale do Mississipi. Quando extra��ram o ferro,
contaram com carv��o abundante e pr��ximo das jazidas daquele
min��rio. J�� em 1775 havia nas treze col��nias americanas do
litoral do Atl��ntico mais forjas e fornos de fundi����o de ferro
do que na Inglaterra e no Pa��s de Gales. Essa foi a origem
da siderurgia americana, que serviu de base para sua poderosa
ind��stria. Essas coisas todas somadas resultaram em caminhos
de ferro, locomotivas, vag��es, instrumentos para a lavoura e mais
m��quinas de toda a sorte. As companhias de estrada de ferro,
as de navega����o, as jazidas de ouro e outros metais, os neg��cios
de im��veis, deram origem a grandes fortunas, fizeram milion��-
rios que passaram a empregar sua atividade e seu dinheiro
na cria����o de novas ind��strias, as quais se multiplicavam em cen-
tenas de outros empreendimentos comerciais e industriais.
Em 1859 jorrou petr��leo do solo de Pennsylvania, criando
novas companhias, novos milion��rios, determinando a possibi-
lidade da fabrica����o e da expans��o do autom��vel e das estradas
de rodagem. Da�� por diante nada mais pode deter a marcha
do progresso americano. O resto foi uma conseq����ncia desse
"princ��pio". Com a sua tremenda prosperidade econ��mica foi
poss��vel aos Estados Unidos dar uma vida melhor e mais con-
fort��vel a seu povo, a par dum mais alto n��vel de sa��de.
Mas at�� aqui deixamos de mencionar um elemento sem o
qual todas essas possibilidades econ��micas teriam ficado para
sempre adormecidas na terra: ��� o elemento humano. Est��
claro que n��o vou levantar a quest��o da superioridade racial
e engrossar o coro daqueles que lamentam tenhamos perma-
necido como col��nia de Portugal e n��o da Holanda. Parece-
me que isso seria t��o tolo como bradar agora: "Sou contra a
Revolu����o Francesa!" Mas em que pese �� minha ternura e
simpatia pelos portugueses, tenho de confessar que n��o acre-
dito pudessem os Estados Unidos, apesar de todas as suas ri-
quezas naturais, chegar ao presente grau de desenvolvimento
se em vez de terem sido colonizados por ingleses, alem��es,
holandeses, escandinavos, tivessem sido presenteados pelo des-
tino com o tipo de colono que povoou o Brasil. Os portugueses
mandados para a nossa terra, quisessem ou n��o, tiveram de
proceder de acordo com a pol��tica econ��mica monopolista que
Portugal seguiu com rela����o ao Brasil. S��o de Limeira Tejo
A V O L T A D O G A T O P R E T O
495
as palavras seguintes: "A falta de liberdade de com��rcio du-
rante o per��odo colonial, foi, sem d��vida alguma, o mais im-
portante obst��culo ao empreendimento industrial." "Se como
as col��nias norte-americanas, houv��ssemos sido livres de co-
merciar com o exterior, ter-se-iam gerado entre n��s as circuns-
t��ncias de riqueza e progresso econ��mico determinantes do
surto fabril. Dessa maneira, n��o nos ter��amos atrasado de um
s��culo com rela����o aos Estados Unidos, os quais, depois da
independ��ncia, n��o foram for��ados, como n��s, a come��ar tudo
do princ��pio."
Sabemos que a prosperidade econ��mica dos Estados Uni-
dos se deve especialmente �� sua ind��stria. Ind��stria �� algo
que tem a ver com m��quina, com engenho, com habilidade
mec��nica. Ora, est�� provado que os ib��ricos n��o s��o parti-
cularmente h��beis no trato das m��quinas, ao passo que exata-
mente o contr��rio se passa com os anglo-sax��es e os germ��nicos.
Comparemos tamb��m as nossas penetra����es do interior com
a conquista do Oeste pelos pioneiros americanos. No que diz
respeito a coragem, aud��cia e resist��ncia f��sica, creio que os
bandeirantes absolutamente n��o s��o inferiores aos pioneiros.
Conhecemos, entre dezenas de outras, as fa��anhas dum tal
Pedro Teixeira que em 1637 deixou o Par�� e subiu com uma
expedi����o o rio Amazonas, indo at�� seu curso superior, seguindo
dali por terra rumo do Equador, e atingindo Quito. O pau-
lista Raposo Tavares numa entrada espetacular alcan��ou o Peru
e possivelmente viu as ��guas do oceano Pac��fico. N��o se trata
tamb��m de insinuar que portugueses e paulistas tenham sido
menos inteligentes ou menos sagazes que o "frontiersman".
Existe, por��m, uma s��rie de fatores que temos de levar em
conta. Nossas penetra����es foram feitas sem ordem, ao sabor do
esp��rito portugu��s um tanto rom��ntico e improvisador. Havia
nesses desbravadores um imediatismo (prear ��ndios, descobrir
pedras e metais preciosos) que se transmitiu como uma mal-
di����o a seus descendentes. Acresce ainda que os bandeirantes
encontraram na sua marcha obst��culos naturais muito mais duros
de vencer que aqueles que se opuseram ao avan��o dos pioneiros.
Os Estados Unidos foram colonizados segundo o esp��rito anglo-
sax��nico, met��dico e h��bil no que diz respeito a empresas pr��-
ticas. Portugal estava interessado principalmente em duas coi-
sas: drenar para seus cofres as riquezas de sua fant��stica col��nia
e repelir o conquistador espanhol. Os bandeirantes serviram ��
maravilha esse duplo prop��sito. Parece-me at�� que no caso bra-
sileiro o termo fronteira, para designar a linha de avan��o da civi-
liza����o, tem mais raz��o de ser que no caso dos pioneers, pois nos-
sos bandeirantes n��o s�� penetravam o sert��o na sua busca de
496
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
��ndios e riquezas, como tamb��m iam repelindo os espanh��is e
alargando desse modo nossas fronteiras geogr��ficas propriamente
ditas. Outra circunst��ncia que deu �� coloniza����o americana
um car��ter diferente da nossa foi o fato de o imigrante europeu
ter trazido consigo n��o s�� para as col��nias do litoral como tam-
b��m no seu avan��o para o Oeste, mulheres ��� mulheres brancas
e em sua maioria alfabetizadas. Isso se me afigura de impor-
t��ncia capital. Assim, pois, as comunidades dos pioneiros foram
fundadas sobre a base da fam��lia, ao passo que os ban-
deirantes, �� falta de mulheres brancas, derrubavam ��ndias em
qualquer canto, ao sabor de seus desejos, de sorte que iam
assinalando sua passagem pelo interior com esses marcos vivos,
os seus descendentes mesti��os, que ficavam depois ao aban-
dono... Os n��cleos fundados pelos bandeirantes eram entre-
gues �� pr��pria sorte, permaneciam isolados �� m��ngua de meios de
transporte e comunica����o, ao passo que as col��nias americanas,
c��pia r��stica e miniatural das europ��ias, comunicavam-se umas
com as outras gra��as ��s vantagens dum terreno menos aciden-
tado e �� estrada natural oferecida por seus rios de curso es-
trat��gico.
N��o esque��amos tamb��m que as treze col��nias que se es-
tabeleceram na costa norte-americana do Atl��ntico eram com-
postas de gente que viera da Europa em virtude de lutas po-
l��ticas e religiosas, gente, portanto, que vinha voluntariamente
come��ar uma vida nova numa terra onde pudesse seguir a reli-
gi��o e o modo de vida que lhe aprouvesse. Havia entre esses
Fundadores uns cem diplomados pelas universidades de Oxford
e Cambridge. Claro, muitos dos primeiros colonos eram homens
que vinham apenas em busca de fortuna... Mas mesmo esses
estavam sujeitos a um plano determinado por uma companhia
organizada de acordo com a experi��ncia e o tino comercial dos
anglo-sax��es. A primeira coisa que os Peregrinos fizeram ao
pisar as terras do Novo Mundo foi redigir o famoso "Mayflower
Compact", uma esp��cie de constitui����o miniatural que determi-
nava a natureza da nova comunidade, bem como as respon-
sabilidades de seus membros para com ela. Esse "compact"
continha os germes da atual democracia dos Estados Unidos.
Outro fator de import��ncia capital foi ter a na����o nor-
te-americana contado, ainda no per��odo colonial, com vultos
da estatura dum Jefferson, dum Washington e dum Hamil-
ton ��� coisa que n��o se explica s�� em termos de clima, riqueza
econ��mica ou mesmo sob a vaga ep��grafe de "superioridade
racial.
Quem em 1775 visitasse Filad��lfia ou Boston encontra-
ria nessas comunidades jornais, teatros, bibliotecas, ao pas-
A V O L T A D O G A T O P R E T O
497
so que n��s s�� tivemos nossa imprensa depois que a Curte
portuguesa se transferiu para o Rio, em 1808. (Achavam os
portugueses que a Fran��a era corrupta porque tinha mui-
tos jornais...) At�� aquela ��poca nossos portos estavam fe-
chados ao com��rcio exterior; n��o se nos permitia plantar algo-
d��o, distilar ��lcool ou fabricar sab��o, pois tais produtos eram
monop��lio da Coroa. Tudo nos chegou tarde. "Esperamos
trinta anos pela locomotiva ��� escreve Pedro Calmon ��� qua-
renta pelas f��bricas de fia����o, ainda mais pela navega����o de
vapor, pela ilumina����o de g��s, por um regime banc��rio, pelas
companhias de coloniza����o, pelo maquin��rio agr��cola, pela
industria que em 1800 transformara a Inglaterra, e em 1820 a
Europa."
Poder-se-�� observar que todas essas coisas s��o express��es
de progresso material, e eu responderei que elas representam
riqueza que se pode traduzir em sa��de e conforto. Reconhe��o
que devemos aos portugueses um punhado de apreci��veis qua-
lidades humanas ��� uma alma l��rica, uma inclina����o rom��ntica,
um certo esp��rito de toler��ncia e uma falta quase completa de
preconceito de cor. Reconhe��o tamb��m que o brasileiro tem
boa ��ndole e que se levarmos em conta as circunst��ncias em
que a maior parte de nossa popula����o vive, o que temos feito
e principalmente o que somos �� algo de admir��vel. Temos uma
bondade essencial, um horror �� viol��ncia e uma esp��cie de
am��vel sabedoria da vida, e por esse conjunto de qualidades
parece-me que o negro e o ��ndio s��o tamb��m respons��veis.
Somos dotados dum sentimento de solidariedade humana, que
nos vem duma natureza sentimental; mas falta-nos o sentido da
responsabilidade social, que �� principalmente um produto da
educa����o. Se o primeiro desses sentimentos nos leva �� com-
paix��o e �� caridade diante do sofrimento do pr��ximo, por outro
lado a falta do segundo impede nos portemos na vida de modo
a evitar que nossos apetites e interesses perturbem o equil��brio
comunal; e impede tamb��m que trabalhemos no sentido de
melhorar as condi����es de vida de nossos marginais, abolindo
para sempre esse deprimente e inoperante sistema da esmola.
Nosso imediatismo ��s vezes nos leva a acreditar mais no "golpe"
que no trabalho lento, organizado e persistente. O americano
ao norte tem uma f�� inabal��vel no futuro e vive permanen-
temente com a consci��ncia de que est�� no caminho certo, a
mover-se rumo dum belo e nobre destino. N��s temos tamb��m
um "senso de destino", mas deixamo-nos levar por um fatalis-
mo que com rela����o ��s coisas imediatas pode ser pessimista,
ao passo que com respeito a um futuro vago n��o deixa de ser
otimista. Vejamos alguns de nossos ditados populares:
498
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Deus �� brasileiro.
Vamos deixar a coisa como est�� para ver como fica.
No fim tudo d�� certo.
Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga.
Como muito bem observa Afonso Arinos de Mello Fran-
co, acreditamos na salva����o pelo acaso, e, fi��is a essa cren��a,
vivemos �� espera de milagres, da sorte grande ou de uma pe-
pineira na forma dum bom emprego p��blico.
Temos sido ��� com rar��ssimas exce����es ��� governados por
golpistas, imediatistas e "carreiristas", por homens sem esp��rito
p��blico que nunca olham para o futuro. O que os move ��
um insaci��vel apetite ou, melhor, uma insopit��vel gula: desejo
de lucro, grande e imediato, vaidade de posi����es de mando,
vontade de poder. Nosso cristianismo tem sido um cristianis-
mo de fachada, e se menciono isto �� porque ainda acredito
em que uma aplica����o honesta dos princ��pios crist��os possa
ajudar-nos a sair do caos em que nos debatemos. Nossa demo-
cracia, essa ��s vezes nem de fachada ��. N��o temos plano:
improvisamos. O trabalho que um secret��rio de Estado inicia
n��o �� continuado por seu sucessor, pois este quer ter "seu
plano", que no fim de contas n��o passa de outra improvisa����o.
Tem predominado entre n��s o paternalismo. Temos tido gover-
nos de classes, grupos e fam��lias. Nossa produ����o �� baixa: o
Brasil �� um pa��s de intermedi��rios. Como resultado disso, tudo
nos fica mais dif��cil e mais caro. (Um oper��rio qualificado vive
nos Estados Unidos com mais conforto que um funcion��rio de
banco ou um pequeno comerciante no Brasil. Ele pode ter um
bom autom��vel, um excelente refrigerador e um ��timo r��-
dio, pois todas essas coisas lhe custam tr��s, quatro ou cinco ve-
zes mais barato que para o brasileiro.) H�� no nosso pa��s um
t��o grande excesso de burocracia que muitas vezes o produ-
tor chega �� conclus��o de que os governos foram mesmo cria-
dos para opor dificuldades �� distribui����o e �� venda de seus
produtos. Gastamos mais dinlieiro com pol��cia que com ins-
tru����o, como se adi��ssemos que cadeia �� coisa mais ��til que
escola. ��s vezes procuramos resolver nossos problemas sociais
por meio da for��a, e isso me faz lembrar um m��dico doido
que amorda��asse o paciente para, impedindo-o de gemer, criar
a ilus��o de que ele deixou de sofrer.
N��o me parece que a um escritor ��� principalmente quan-
do se trata, como no meu caso, dum romancista ��� caiba a res-
ponsabilidade de oferecer solu����es, planos e rem��dios para
a salva����o nacional do dom��nio da pol��tica e da economia.
A VOLTA DO GATO PRETO
499
(O ficcionista raramente sabe o que diz quando entra nesse
terreno...) H��, por��m, uma responsabilidade muito s��ria a que
ele n��o deve fugir. �� a de ver a realidade com os olhos claros
e a de apresent��-la com verdade e franqueza em suas his-
t��rias, apontando direta ou indiretamente os males sociais e
procurando, como diz Arthur Koestler, "criar uma necessidade
de cura".
N��o creio que a resposta a uma ditadura de direita ou de
centro seja uma ditadura de esquerda, pela simples raz��o de
que n��o creio em ditaduras, nem mesmo nas que se dizem t��cni-
cas e tempor��rias. Parece-me, Fernanda, que ao procurar um
rem��dio para nossos males devemos levar em conta n��o s��
a natureza da doen��a como tamb��m a natureza do doente, pois
casos h�� em que o paciente pode morrer da cura...
FAZER E SER
Vasco, meu velho: Voc�� leu a carta que dirigi a Fernanda e
se declara deprimido e desesperan��ado, com o resultado de meu
paralelo... Mas deixe que lhe diga, com toda a sinceridade, que
na minha opini��o n��o temos motivos para alimentar nenhum
complexo de inferioridade diante dos norte-americanos e de sua
civiliza����o. Vou dizer-lhe por qu��.
Psicologicamente somos mais ricos que eles, e emocio-
nalmente talvez mais adultos. Quando os escritores brasilei-
ros dizem que os Estados Unidos oferecem campo mais vasto
e variado para a literatura de fic����o, eles naturalmente se re-
ferem ��s possibilidades de a����o, a uma maior riqueza epis��dica
resultante de maior variedade de tipos, profiss��es, interesses;
dum ritmo de vida mais agitado, do progresso mec��nico e
de todos os problemas que a civiliza����o cria para o homem
moderno nas grandes metr��poles. Referem-se, em suma, a
uma riqueza mais horizontal que vertical. (N��o �� de admi-
rar que os romances mais profundos dos Estados Unidos se-
jam os de autoria de escritores do Sul que, como Ellen Glasgow
e William Faulkner, contam hist��rias de sua regi��o, a qual no
clima, nos costumes e no car��ter de seus habitantes se parece
um pouco com o Norte brasileiro.)
Nosso sentimentalismo, nossa mal��cia; nossa capacidade de
apreender rapidamente as coisas; nossa agilidade no jogo das
imagens, se n��o das id��ias; nosso agudo senso de rid��culo; nos-
sa veia humor��stica combinada com uma certa inclina����o para
500 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
o drama; nossa esperan��a no acaso, contrastando com um pes-
simismo de superf��cie; nossa preocupa����o te��rica com as do-
res do mundo ��� tudo isso faz do brasileiro um povo complexo,
interessante e dif��cil de explicar. Mas... que nos falta ent��o?
No terreno material, falta-nos quase tudo. A era da fronteira
j�� terminou nos Estados Unidos; mas n��s ainda temos fron-
teiras internas a conquistar. Os americanos j�� realizaram uma
preliminar important��ssima: deram �� grande maioria de sua po-
pula����o uma exist��ncia de conforto e bem-estar, a par duma
apreci��vel educa����o, ao passo que no Brasil apenas uma pe-
quena minoria �� que goza dum n��vel de vida realmente de-
cente.
Voc�� quer saber que rumo tomar��o os Estados Unidos
depois da guerra... Eis uma quest��o que est�� preocupando
este povo. Muito antes de come��ar o presente conflito mun-
dial, Herbert Agar, no seu livro Land of the Free", pergunta-
va at�� que ponto estava o americano preparado para tomar
a s��rio o ideal de ser alguma coisa em vez de viver fazendo
um barulho dos diabos. Procurando definir cultura e civili-
za����o, esse mesmo autor dizia que o americano que se muda
de sua terra natal para Nova York, na realidade n��o percorre
nessa mudan��a apenas algumas centenas ou milhares de quil��-
metros de espa��o; ele marcha tamb��m atrav��s de s��culos de
tempo. Pois quem deixa Nashville (isto ��, uma cidade repre-
sentativa da cultura do Sul) ou Indian��polis (representativa da
cultura do Middle West) e vai viver em Nova York, que sim-
boliza a civiliza����o generalizada de todo o mundo ocidental,
��� faz um movimento perigoso para a alma, pois essa troca
equivale ao arrancar de ra��zes profundas para substitu��-las
por outras novas, fracas e superficiais. Isso significa tamb��m o
abandono do lar, da quer��ncia, onde o esp��rito pode crescer em
profundidade e intensidade, para reunir-se ao que Spengler cha-
ma "a massa de inquilinos e ocupantes de camas num mar de
casas". Porque a cidade da zona rural ainda tem ra��zes nas terras
cultivadas que a cercam, de sorte que suas rela����es com o cam-
po s��o ainda org��nicas, ao passo que a vida na grande cidade
tem ra��zes na alta finan��a, "a mais abstrata e inumana das in-
ven����es do homem". Assim, esse nativo do Sul ou do Middle
West se perde num deserto de a��o e cimento armado, empobre-
cendo sua cultura regional sem chegar a enriquecer a metr��-
pole que o devora.
Entre os caracter��sticos do homem civilizado, Agar apon-
ta a tend��ncia para o pacifismo e para a cren��a de que nada
existe no mundo digno de ser defendido e preservado com
A VOLTA DO GATO P R E T O
501
nosso sacrif��cio. O homem civilizado n��o tem preconceitos
e �� incapaz de indigna����o ou surpresa; para ele os valores
morais n��o t��m a menor for��a. A ess��ncia da cultura, entre-
tanto, �� a cren��a num certo n��mero de absolutos, a capacidade
de levar a vida a s��rio e de reagir com indigna����o e vee-
m��ncia a qualquer provoca����o. Numa cultura ��� continua
ainda Herbert Agar ��� a verdade �� algo que o homem desco-
bre e depois acha que deve ser defendido a todo custo; ao
passo que numa civiliza����o a verdade �� uma coisa que o ho-
mem fabrica e diante da qual pergunta: "Valer�� a pena lutar
por essa coisa que eu mesmo inventei?"
Ao cabo de tais reflex��es conclui Agar que a esperan��a dos
Estados Unidos repousa mais na cultura representada pelo
Sul que na civiliza����o de que Nova York �� paradigma. E
agora ��� pergunto eu ��� quais s��o os absolutos que essa cultu-
ra aristocr��tica de plantadores de algod��o acha dignos de se-
rem mantidos e defendidos? O da superioridade da ra��a anglo-
sax��nica? O ideal da segrega����o dos negros? A sua organiza-
����o semifeudal? Os princ��pios da Ku-Klux-Klan? N��o negarei
que haja no Sul uma tradi����o de "gentility", de cavalheirismo
e uma vida mais am��vel e lenta que a de Nova York. Concordo
em que essa descren��a, esse cepticismo desligante apresentam
suas desvantagens, uma vez que podem redundar num com-
portamento c��nico ou niilista diante das id��ias e dos ideais. Que
seria de n��s se os habitantes de Londres tivessem assumido
uma "atitude civilizada" diante dos ataques dos avi��es nazis-
tas? Por outro lado, n��o devemos esquecer que a incapacidade
de se apegar demasiadamente a certos absolutos de ordem mo-
ral ou filos��fica �� at�� certo ponto coisa saud��vel, pois constitui
um ant��doto para o fanatismo e para a intoler��ncia.
Correndo todos os riscos que oferece a simplifica����o, eu lhe
direi, meu caro Vasco, que o problema dos Estados Unidos pode
ser resumido em dois verbos: fazer e ser. At�� hoje de certo
modo tem predominado entre os americanos a preocupa����o
de fazer e como resultado disso conquistaram as fronteiras, in-
dustrializaram o pa��s, criaram uma civiliza����o. E agora, mais
que nunca, pensadores, pregadores, escritores, professores est��o
a perguntar atrav��s de seus escritos e discursos ��� "Que somos
nos? Como conquistar as fronteiras espirituais? Que fazer
da Vit��ria que se aproxima? Que rumo dar a nossas rela����es
com os outros povos do mundo?"
E desse modo, meu amigo, encontram-se agora os ameri-
canos diante de novos problemas, novas fronteiras, e vagamente
alarmados, como sempre acontece quando os problemas que
te lhes deparam n��o podem ser resolvidos apenas com a t��cni-
502
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
ca, de acordo com um plano, ou por meio duma engenhoca.
N��o �� preciso ter vis��o prof��tica para prever que os problemas
mais s��rios que este pa��s ter�� de enfrentar depois da guerra
ser��o os do desemprego, os das greves e o recrudescimento dos
atritos raciais.
Meu conv��vio com os americanos nestes dois anos me en-
sinou muita coisa de seu car��ter e me levou principalmente
�� convic����o de que um povo com tamanha for��a de juventude,
t��o grandes reservas de boa vontade e coragem, t��o bela tradi-
����o de luta, pode por algum tempo trilhar caminho incerto e
at�� mesmo errado, mas acabar�� fatalmente encontrando a dire-
����o certa. William Allen White, diretor do "Emporia Gazette"
de Kansas, referiu-se, num discurso pronunciado em 1935, ��
irrepar��vel mudan��a que a idade da m��quina havia trazido para
a vida tradicional americana, e acrescentou: "N��o tenho suges-
t��es, mas deposito uma grande f�� no que podemos chamar o senso
comum subconsciente do Americano para resolver esse pro-
blema".
Estou convencido de que o mundo n��o tem raz��o para
temer os Estados Unidos. Este povo jamais se atirar�� a uma
guerra de conquista. N��o fosse a trai����o de Pearl Harbour,
que galvanizou a opini��o nacional, dificilmente ou nunca esta
na����o se decidiria a entrar na guerra.
Na Am��rica do Sul muitas vozes se erguem alarmadas con-
tra os perigos da influ��ncia do "esp��rito ianque". Ora, acontece
que milh��es de americanos, nos pr��prios Estados Unidos, vi-
vem tamb��m alarmados diante desse mesmo esp��rito, que tles
detestam como um s��mbolo de escravid��o �� m��quina, ao su-
cesso e ao dinheiro. �� um engano pensar que todo o povo
americano se entrega a essa febre de fazer. H�� comunidades
que se preocupam mais com ser. S��o cidades como Denver,
Indian��polis, Nova Orleans e San Francisco. E �� bem sintom��-
tico que nestas duas ��ltimas haja uma n��tida influ��ncia latina.
Em ambas se nota uma preocupa����o de andar com menos pres-
sa; ambas t��m uma tradi����o de bem viver. San Francisco ��
considerada "a cidade que mais gosta de m��sica nos Estados
Unidos". Na Nova Inglaterra encontramos a preocupa����o da
cultura, o amor aos livros, ��s id��ias, �� tradi����o. E se quiser-
mos levar mais longe nossa busca dessas ilhas de s��bia e am��-
vel filosofia da vida, descobriremos que at�� em Nova York
existe um bairro, Greenwich Village, onde se vive boemiamente,
�� melhor maneira do Quartier Latin parisiense.
Se o esp��rito duma metr��pole tentacular como Nova York
leva seus habitantes a uma adora����o do progresso mec��nico
como um fim e n��o como um meio, por outro lado nosso des-
ligamento, nossa indol��ncia e nosso descaso nos est��o levando
A V O L T A DO G A T O P R E T O
503
�� miseria. Parece-me que o sensato seria descobrir uma linha
m��dia em que se encontrasse a habilidade do fazer com a ca-
pacidade de ser.
N��o devemos imitar os Estados Unidos; n��o precisamos nos
transformar em fan��ticos da coca-cola, do jazz e dum certo
tipo de vida delirante que teve sua origem nos novecentos e
vinte (um tipo de vida, devo repetir, que nem todos os norte-
americanos levam...) Devemos aproveitar n��o s�� a amizade
como tamb��m a experi��ncia desta grande democracia e adapt��-
la sabiamente ��s nossas necessidades, temperando-a de acordo
com nossa maneira de ser. Penso que essa influ��ncia que nos
entra pelo cinema, pelo r��dio, pelos magazines �� apenas uma
influ��ncia de superf��cie. N��o ser�� por nos mandarem penici-
lina, m��quinas, t��cnicos; n��o ser�� por nos transmitirem seus
conhecimentos cient��ficos e industriais que os americanos v��o
mudar nossa maneira de ser, de sentir, de viver.
Correndo todos os riscos de fazer um frasalh��o, eu lhe
direi, para terminar esta carta, que povos como o chin��s, o
hindu, o russo e o brasileiro s��o psicologicamente inconquist��veis.
TABU
18 de junho. H. S. Latham, vice-presidente da
Macmillan Co., de Nova York, a corajosa casa editora
que publica meus romances em ingl��s, chegou ontem
a Los Angeles e me telefonou esta manh�� convidando-me
para um almo��o no restaurante do Biltmore Hotel.
H�� em torno da mesa uns doze outros convidados
��� gerentes de livrarias, cr��ticos liter��rios e funcion��rios
da Macmillan Co. Mr. Latham �� um homem alto e cor-
pulento, de maneiras af��veis e naturais. No seu rosto
rosado e carnudo, h�� um aliciante tra��o de simpatia.
A Macmillan Co. publicou h�� pouco um romance
sensacional de Kathleen Winsor, "Forever Amber". A
hist��ria, que se passa durante a Restaura����o inglesa,
�� em ��ltima an��lise a carreira er��tica duma mulher bo-
nita, atrav��s de muitos homens e leitos.
504
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Noto que Mr. Latham est�� um tanto encabulado,
pois o livro se tem prestado aos coment��rios mais ma-
liciosos, e �� uma fonte inesgot��vel de anedotas. O al-
mo��o decorre em meio da maior cordialidade. Fala-se
de livros, de autores, de livrarias e de cr��ticos. Comenta-
se a escassez de carne, o tempo, e menciona-se rapida-
mente a guerra, mas ningu��m toca no escandaloso livro.
Os nomes Kathleen Winsor e "Forever Amber" s��o
tabus.
Quando vem o caf�� Mr. Latham diz:
��� �� uma pena que o almo��o tenha terminado
t��o depressa. Mas podemos subir para meu quarto e
continuar l�� em cima nossa palestra...
Depois duma pausa, acrescenta:
��� Acho que n��o haver�� cadeiras para todos, mas
em todo caso alguns poder��o sentar-se na cama.
Neste ponto uma mulherzinha que est�� a meu
lado, e que durante todo o almo��o permaneceu calada,
diz:
��� Com efeito, Mr. Latham! Depois de Forever
Amber o senhor nem devia mencionar a palavra cama...
Os convivas desatam a rir. enquanto Mr. Latham
��� que tamb��m ri ��� vai ficando muito vermelho...
RINHA
20 de junho. O "United Nations Council" promove
hoje uma discuss��o em t��vola-redonda nos est��dios da
N. B. O, em Hollywood. Tomam parte nesse match
dois professores de universidade americanos, Sir Miles
Mander, ator de cinema e candidato ao Parlamento
ingl��s, um jovem equatoriano, filho dum ex-presiden-
te do Equador, e eu. A plat��ia do est��dio est�� repleta
de gente. A expectativa �� grande, pois v��o ser dis-
cutidos hoje problemas como o da Argentina e o das
ditaduras sul-americanas.
A VOLTA DO GATO PRETO
505
Tenho na minha frente sir Miles Mander, com o
seu rosto anguloso e descarnado, as suas fei����es aris-
tocr��ticas, e a sua eleg��ncia brit��nica ��� se �� que esta
express��o significa mesmo alguma coisa. Entre n��s
dois, um microfone. Atr��s de mim ��� o p��blico, que n��o
vejo, mas cuja presen��a sinto como uma esp��cie de
ponto ardente na nuca. (Ou estarei ficando surrealista?)
Cada um de n��s �� chamado a dizer o que pensa
da situa����o interamericana dum modo geral. Quando
chega meu turno, falo com a franqueza habitual. A
liberdade de palavra deste pa��s �� para mim um vinho
que me traz de tal forma embriagado que tenho de fazer
prod��gios de autodom��nio para n��o me exceder.
Inicia-se finalmente a discuss��o e o moderador,
um homem magro de cabe��a em formato de p��ra, de
vez em quando tem de intervir para evitar que os con-
tendores se afastem da estrada real, perdendo-se em
ramais que n��o levam a parte nenhuma. Fico a olhar
para Miles Mander e a querer saber com que �� que
ele se parece. Assim, meu esp��rito acaba fugindo do
est��dio, e se vai para todos os c��us com a onda da
N. B. C. Quando volto dessa doida excurs��o, o pro-
fessor americano que se acha na extremidade da mesa,
est�� interpelando Miles Mander:
��� �� curioso, �� surpreendente, �� inexplic��vel ��� diz
ele ��� que a todas essas a Inglaterra continue apoian-
do ou pelo menos tolerando em sil��ncio a atitude do
governo pr��-nazi da Argentina. Como �� que o senhor
explica isso, Mr. Mander?
O ingl��s tira calmamente um papel do bolso e co-
me��a a ler:
��� A Argentina, durante todos estes anos de guer-
ra tem fornecido �� Gr��-Bretanha os seguintes g��neros. . .
E com sua voz grave e bem modulada come��a a
enumerar esses g��neros e suas respectivas quantidades
com grande fleuma. E quando termina, eu lhe digo:
506
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
��� E aposto como depois disso tudo o senhor con-
tinuar�� a negar a import��ncia dos fatores econ��micos
na marcha da hist��ria, n��o �� mesmo?
Ele fita em mim os olhos cinzentos e vagos, tira
os ��culos e diz, meio abstrato:
��� Pois �� . . . n��o ��?
Risadas na plat��ia.
No minuto seguinte estou numa discuss��o com o
equatoriano ��� um jovem moreno, espigado e ardente.
��� N��o �� poss��vel haver democracia na Am��rica
do Sul ��� diz ele ��� porque somos em grande maioria
analfabetos...
Solto o meu aparte:
��� O senhor deve saber disso por experi��ncia
pessoal...
Imediatamente percebo que fui indelicado. Ago-
ra n��o h�� rem��dio. O microfone �� implac��vel: minhas
palavras a esta hora j�� chegaram a Londres, �� Birm��-
nia, �� China e ao Paraguai. O equatoriano continua:
��� As nossas popula����es ind��genas s��o enormes...
��� Fale pelo Equador mas deixe o Brasil de fora ���
digo. ��� N��o temos o problema do ��ndio.
��� O Brasil n��o �� diferente ��� replica ele.
��� O senhor j�� foi ao Brasil?
��� N��o, mas n��o me parece necess��rio que uma
pessoa visite ��m pa��s para poder falar dele. H�� os
livros, os jornais...
��� E os filmes de Hollywood, n��o ��? ��� interrom-
po-o.
��� E uma prova de que estou com a raz��o �� que
os senhores agora no Brasil t��m uma ditadura.
��� Isso n��o prova nada. Na Alemanha n��o h�� ��n-
dios e h�� uma ditadura.
��� Todos os pa��ses da Am��rica do Sul s��o feitos
do mesmo estofo. N��o �� poss��vel governar na����es
de mesti��os com democracia. De resto, nunca houve
democracia de verdade nos pa��ses latino-americanos.
A V O L T A DO G A T O P R E T O
507
��� Diga-me uma coisa ��� intervenho. ��� Se voc��
tivesse um dedo gangrenado, cortaria o dedo ou a m��o?
��� O dedo, naturalmente.
��� Pois uma democracia imperfeita �� prefer��vel a
uma ditadura. S�� h�� um caminho para a democracia,
e esse caminho �� a pr��pria democracia.
��� Frases...
��� No dom��nio das frases, n��s tiramos o chap��u
para os povos de "habla" espanhola...
��� Gracias!
Quando a hora termina e o sinal vermelho de "si-
l��ncio" se apaga, a discuss��o continua, e agora o p��-
blico tamb��m toma parte nela. Os outros membros da
round-table se calam e deixam que o equatoriano e o
brasileiro fiquem na arena, como dois galos de rinha.
E eu me sinto encabulado quando percebo que estou
de p�� e ��� contra todos os meus h��bitos ��� gesticulando
furiosamente na dire����o do advers��rio, e discutindo
com ele "nuestros problemas", a respeito dos quais creio
que n��o chegaremos a um acordo nem que fiquemos
aqui pelo resto deste s��culo.
O HOMENZINHO DOS CRUCIFIXOS
26 de junho. Para melhor apreciar-se a historie-
ta que vou contar �� preciso ter em mente o car��ter pa-
g��o de Los Angeles. Antes de mais nada, aqui impera
o sol ��� que �� a nega����o do mist��rio, da intimidade e,
segundo Wilde, o inimigo do pensamento. Acontece
ainda que Los Angeles �� a cidade do cinema, dos es-
pet��culos, do sucesso, do cartaz e do nudismo. Glamour
aqui �� moeda de grande valor, e nem por isso escassa.
E quem anda por estas movimentadas ruas fica eston-
teado ante t��o forte e quente express��o de vida.
Isto posto, vamos �� hist��ria. Uma tarde, ��s tr��s
horas, entro numa loja de roupas feitas e imediata-
508
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
mente sou atendido por um homenzinho franzino, de
ar cerimonioso, que se aproxima de mim sorrindo e es-
fregando as m��os.
��� O cavalheiro que deseja?
��� Uma roupa ��� respondo. Dou-lhe o meu n��-
mero e digo-lhe das minhas prefer��ncias.
O meu homem �� um desses velhotes que �� primei-
ra vista, por serem espigados, por andarem sempre em-
pertigados t��m uma apar��ncia quase juvenil. Est��
impecavelmente vestido, como conv��m a um empre-
gado de casa de roupas. Tudo nele combina: a fatiota,
a camisa, a gravata, o len��o... Sua cara, murcha mas
de express��o agrad��vel, acha-se bem escanhoada.
Experimento o casaco duma roupa tropical. O
homem se afasta dois passos, olha-me de cima a baixo
e diz:
��� Maravilhoso! Senta-lhe como uma luva. Es-
pl��ndido!
Tem uma voz branda, acariciante, quase feminina.
Resolvo comprar a roupa. E enquanto estou preen-
chendo um cheque na import��ncia da compra, o homem-
zinho examina o meu documento de identidade, que
acontece ser meu passaporte.
��� Ah! ��� murmura ele, maciamente. ��� Brasileiro,
hein?
��� �� verdade.
Com uma car��cia na voz, o clerck pergunta:
��� H�� lindos crucifixos na sua terra, n��o?
��� Crucifixos?
��� Sim.
��� Bom... H�� crucifixos, mas n��o me consta que
tenhamos coisas muito especiais nesse g��nero...
O homenzinho p��e os olhos em branco, solta um
fundo suspiro e murmura:
��� Sou louco por crucifixos!
Passa o mata-borr��o sobre o cheque. Projeto o
olhar por entre os balc��es, prateleiras e vultos huma-
A VOLTA DO GATO PRETO
509
nos, na dire����o das portas, que enquadram o clar��o
da rua. Os ru��dos da cidade ��� sinetas de bonde, a tro-
voada do tr��fego, apitos, vozes ��� chegam at�� n��s um
pouco amortecidos.
O empregado me aperta o bra��o. Suas unhas relu-
zem, polidas e bem cuidadas. E ao meu ouvido ele
segreda:
��� Sabe qual �� a minha grande paix��o?
��� N��o tenho a menor id��ia.
��� Colecionar crucifixos...
Recua dois passos, agora com o casaco nas m��os,
e fica observando em meu rosto os efeitos de sua con-
fiss��o.
��� �� extraordin��riol ��� digo. ��� Ent��o coleciona
crucifixos?
��� �� a minha loucura. Vivo para isso. Tenho cru-
cifixos de toda a esp��cie, de todos os lugares. Quando
viajo, em f��rias, e chego a uma cidade, o senhor pensa
que vou a cabar��s, museus, cinemas, teatros? ��� Saco-
de a cabe��a vivamente, entrecerrando os olhos. ��� No,
sir! Vou visitar antiqu��rios, igrejas, conventos, �� cata
de crucifixos.
Visto o casaco, apanho o tal��o que o homenzinho
me d�� e entrego-lhe o cheque.
��� Pode mandar levar a roupa �� minha casa?
��� Claro, meu amigo. Claro.
��� Muito obrigado. E adeusl
Estendo a m��o, que o caixeiro aperta nas suas,
fortemente, c��lidamente. Seus ��culos reluzem. Por
tr��s deles seus olhos s��o doces e azuis.
��� Eu gosto do senhor ��� confessa ele. ��� Vou fa-
zer-lhe outra confiss��o.
Olha para os lados, r��pido, puxa-me para perto
duma coluna revestida de espelhos e cochicha:
��� Sabe o que aconteceu?
Sacudo negativamente a cabe��a.
510
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
��� Uma coisa maravilhosa...
A voz do homenzinho �� um sussurro.
��� Uma coisa extraordin��ria. .. Interessado nos
crucifixos, comecei a estudar a sua hist��ria, as suas ori-
gens. Passei horas e horas �� noite lendo na biblioteca
p��blica tudo quanto l�� havia sobre crucifixos. ..
Faz uma pausa e, de olhos entrecerrados, fica a
me mirar demoradamente.
��� �� c u r i o s o . . . ��� murmuro, s�� para dizer alguma
coisa.
��� Curioso? ��� D�� um pulinho. ��� Diga antes mi-
lagroso. Sim, senhor! Depois que eu sa��a da biblio-
teca, com a cabe��a cheia de hist��rias maravilhosas, de
milagres, de vidas de santos, de sacrif��cios, voltava
para casa e n��o podia dormir... Ficava pensando, pen-
sando, esperando com ansiedade a hora de voltar �� bi-
blioteca e mergulhar de novo na hist��ria dos meus
ricos crucifixos.
O movimento dentro da loja �� intenso. Homens
entram e saem de pequenas cabinas, onde trocam de
roupa. Postam-se na frente de espelhos, olham-se de
frente, de perfil, recuam, alisam o casaco, lan��ando
olhares obl��quos e indecisos para as pr��prias i m a g e n s . . .
Meu fabuloso amigo parece esquecido de tudo e de
todos.
��� Meu quarto vivia cheio de crucifixos pelas pa-
redes, em cima das c��modas, das m e s a s . . . Crucifixos
de ��bano, de carvalho, de m��rmore, de pedra, de ma-
t��ria p l �� s t i c a . . . de tudo.
Este homem n��o existe ��� penso eu. E come��o
n��o propriamente a ouvi-lo mas a "escreve lo". Porque
ele deixou de ser uma personagem da vida real para
ser uma personagem de fic����o, E minha!
��� E sabe qual foi o resultado de tudo isso? Oh!
Uma coisa divina, senhor. Passei a interessar-me pela
hist��ria da Igreja Cat��lica de tal modo, que um dia
tive a Revela����o. Converti-me ao catolicismo e aos
A V O L T A D O G A T O P R E T O
511
sessenta e tr��s anos de idade .. sim, n��o aparento ter
essa idade, mas tenho... aos sessenta e tr��s anos fui
batizado...
Sacudo a cabe��a vagarosamente.
��� Um verdadeiro milagre ��� concordo.
��� E agora sou o homem mais feliz do mundo!
Torno a me despedir do homenzinho, que me acom-
panha at�� a porta, junto da qual me faz a nova con-
fiss��o.
��� Olhe s�� aqui... - diz ele a medo. E tira do
bolso um ros��rio. ��� Entre uma e outra venda, quando
n��o aparecem fregueses, vou dizendo as minhas ora����e-
zinhas...
Precipito-me para a rua. Los Angeles, brutalmen-
te iluminada, palpita de vida Vejo estampados nes-
tas faces todos os apetites. Fome de celebridade, de
sucesso, de prazeres. Fome de vida. Vou abrindo
caminho por entre a multid��o que enche as cal��adas.
E na minha mente o estranho homenzinho dos cruci-
fixos desfia as contas do seu ros��rio, enquanto aguar-
da o pr��ximo fregu��s.
Um dia ��� penso ��� sem que ele espere nem deseje
lhe aparecer�� uma misteriosa freguesa.
��� Que deseja, lady?
��� Levar-te.
��� Para onde?
��� Para o Outro Lado.
��� Quem �� a senhora?
��� Eu sou a Morte.
��� A Morte? Mas... deve ser engano. Talvez a
pessoa que a senhora procura esteja na loja vizinha...
��� Eu nunca me engano. Vamos.
��� Espere um momento. Tenho de dizer ao pa-
tr��o que vou sair...
��� N��o �� necess��rio.
��� Posso passar em casa para apanhar meus cru-
cifixos?
512
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
��� Tamb��m n��o �� necess��rio.
E assim o homenzinho ter�� sobre a sua sepultura
um belo, um enorme e definitivo crucifixo de granito
negro, sob o qual ele dormir�� tranq��ilo, e sobre o qual
brilhar�� este sol pag��o e f��til de Los Angeles.
5 - DUAS CARTAS DA ERA AT��MICA
A BOMBA E O BOM SAMABITANO
Mills College, 6 de agosto de 1945.
ERNANDA: Escrevo-lhe outra vez do campus do Mills, no
fim de mais uma temporada de ver��o. Reencontramos aqui
a mesma paz, os mesmos amigos, as mesmas del��cias do estio
passado. O sol de ouro, a piscina, a casa de ch��, o quarteto
de cordas, as ��rvores e as raparigas em flor.
E foi nesta calma de para��so que nos chegou hoje a not��cia
de que os americanos lan��aram a primeira bomba at��mica
sobre Hiroshima. Toda a gente est�� excitada. Os jornais tra-
zem cabe��alhos sensacionais. Conta-se como certo que o Ja-
p��o se render�� incondicionalmente dentro de poucos dias. E
as opini��es sobre essa medonha bomba s��o as mais variadas.
Uns acham que �� anticrist��o, monstruoso mesmo, usar armas
dessa natureza contra popula����es civis. Outros alegam que o
aniquilamento desses muitos milhares de japoneses em Hiro-
shima foi necess��rio para encurtar a guerra e, conseq��entemente,
poupar a vida de milhares de soldados americanos. H�� ainda
os que parecem considerar apenas o aspecto t��cnico da quest��o;
para esses os Estados Unidos ganharam mais uma m��quina,
mais uma engenhoca... N��o posso deixar de pensar naquelas
manh��s de Berkeley, quando, atrav��s da janela de minha aula,
eu contemplava a casa circular do alto da colina, onde cientistas
trabalhavam numa arma secreta. Os jornais hoje revelam que
se tratava da bomba at��mica! Eu mirava com vaga curiosi-
dade a c��pula vermelha da singular estrutura de cimento, e
depois a esquecia para falar aos meus alunos em poetas como
Casemiro de Abreu e versos como o "Oh! que saudades eu tenho
da aurora da minha vida!"
O que mais me alarma, Fernanda, �� que com a liberta����o
da energia at��mica, a humanidade parece atingir a sua matu-
ridade cient��fica, sem ter ainda nesta altura de sua hist��ria
chegado a uma completa maturidade moral. Imagine um "brin-
quedo" desses nas m��os travessas e irrespons��veis duma crian��a!
516
OBRAS DE ERICO VER��SSIMO
Creio n��o estar simplesmente fazendo uma frase se afirmar
que a explos��o dessa bomba sobre Hiroshima foi como o es-
trondo dum gongo colossal, marcando a abertura duma nova
era para o mundo.
Que significar�� a era at��mica? Uma idade de progresso
econ��mico sem limites? Ou uma cadeia de guerras formida-
velmente destruidoras que acabar��o levando os povos a condi-
����es de vida t��o primitivas quanto as de certas tribos n��mades
do ano 6 000 antes de Cristo?
A nosso redor nada mudou. O vento sacode as fran��as
dos eucaliptos. O sol �� doce e amigo como na idade que passou.
Sentada no parapeito da ponte de pedra, uma senhora gorda
l�� Thoreau. Dong Kingman, o aquarelista chin��s-americano,
pinta uma. paisagem junto do arroio. Rudolph Schevill me faz
um aceno cordial l�� de sob as arcadas da Galeria de Arte, onde
Clara e Luiz modelam um elefante de barro, ajudados por um
mexicano trigueiro e um gringo louro. As raparigas saltam e
gritam na piscina e nas quadras de t��nis. Hoje �� noite o quar-
teto de Budapest interpretar�� para n��s Mozart, Schubert e
Ravel.
Que significar��o todas essas coisas? Ser��o sinais de que
tudo vai continuar como antes, apesar da bomba at��mica? Ou
de que sou um otimista irremedi��vel?
E assim, minha amiga, n��s vemos o americano, esse Bom
Samaritano, na mais absurdamente dif��cil das situa����es. Pu-
seram-lhe nas m��os uma bomba at��mica e agora, com uma
express��o de perplexidade nos olhos ing��nuos, ele olha para
todos os lados, atarantado, sem saber que fazer com ela...
CARTA AO PROF. CLARIMUNDO
Num trem, a caminho de Nova York, 15 de agosto de 1945.
Meu caro Professor: Se as ��ltimas not��cias do mundo che-
garam at�� sua torre, a esta hora voc�� j�� saber�� que a primeira
bomba at��mica destruiu quase por completo a cidade de Hiro-
shima. Ora, naturalmente voc�� encarar�� a quest��o do angulo
cient��fico, mas eu n��o posso deixar de encar��-la pelo lado hu-
mano. N��o discutirei o sentido moral desse ato dos americanos.
Por mais que me repugne a viol��ncia, aceito pragmaticamente
o recurso de que eles lan��aram m��o para acabar uma guerra que
n��o provocaram nem desejaram. E se lhe escrevo agora esta
carta �� porque me lembrei h�� pouco da conversa que manti-
A VOLTA DO GATO P R E T O
517
vemos um dia sob as ��rvores de sua Travessa das Ac��cias, a�� em
Porto Alegre. Defendeu voc�� o ponto de vista segundo o qual o
cientista deve fazer ci��ncia pela ci��ncia, completamente desligado
dos problemas sociais. Isso n��o pode ser, meu caro professor.
Pense na guerra que h�� pouco terminou. (Ou voc�� n��o sabe que
houve uma guerra?) Veja como Hitler, Mussolini e Franco
utilizaram as engenhocas mort��feras que cientistas desligados
como voc�� inventaram ou aperfei��oaram, sem nunca procurar
saber quem ia us��-las, e para que fim. Ci��ncia pela ci��ncia?
Arte pela arte? Acho que isso seria ideal, mas a experi��ncia nos
tem mostrado de maneira dolorosa que nada do que fazemos e
dizemos pode ser completamente gratuito, e que o isolacionismo
tanto das na����es como dos indiv��duos nesta altura dos aconteci-
mentos pode ter conseq����ncias desastrosas. As coisas ditas,
escritas, descobertas ou inventadas por escritores, pensadores,
oradores e cientistas t��m sido em geral mal usadas pelos aven-
tureiros pol��ticos em proveito de suas ambi����es e como instru-
mentos de agress��o, coa����o e viol��ncia. Sou contra a literatura
dirigida, mas confesso que n��o tenho tamb��m nenhuma simpatia
pela arte que se encerra numa torre de marfim e ignora o
mundo sob o pretexto de que ela �� alta demais, bela demais,
pura demais para ser entendida pelo povo.
Meu caro Clarimundo, dos homens de ci��ncia, dos homens
de letras, de todos os homens, enfim, se exige coopera����o e
responsabilidade. O mundo �� um s��. Pois que seja um mundo
justo, um mundo belo, um mundo decente.
Des��a de seu s��t��o, professor. Limpe a lente de seus
��culos. Olhe a vida. Voc�� acabar�� convencido de que as cria-
turas humanas podem ser t��o ou mais interessantes que as suas
abstra����es de solit��rio. Aproxime-se delas, procure compreen-
d��-las. E, para principiar ponha um c min��sculo na sua Ci��ncia
e um H mai��sculo em Humanidade...
ULTIMA P��GINA
12 de setembro de 1945. Tr��s da tarde. Estamos a
bordo do "Jos�� Menendez", um calhambeque argentino
no qual entramos h�� pouco, ali naquele feio e sujo cais
de Brooklyn, e do qual com a gra��a de Deus preten-
demos sair dentro de vinte e tr��s dias, no porto do Rio
de Janeiro.
518
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
O vapor se afasta lentamente da terra. As ��guas
do Hudson s��o dum verde de pessegada. No tomba-
dilho ��� onde se fala portugu��s, ingl��s e espanhol ���
reina uma clara alegria de feriado. Estamos debru��a-
dos �� amurada. Mariana, Clara e Lu��s t��m os olhos
voltados para os arranha-c��us de Nova York, que ali
est��o bem como os temos visto em centenas de fotogra-
fias convencionais. Mas hoje. sob este sol de fim de
ver��o, a cidade parece uma suave aquarela. Vista
assim contra um horizonte ing��nuo, chega a ter uma
qualidade l��rica.
Olho para minha tribo e penso num anoitecer
pressago, h�� dois anos passados. Um avi��o a preci-
pitar-se contra a tempestade. .. Tr��s m��scaras ver-
des de medo e n��usea... Entre aquele momento
sombrio e incerto e o instante presente ��� quanta coi-
sa aconteceu! Estaremos diferentes? Que estamos todos
cronologicamente mais velhos, n��o resta a menor d��-
vida. Que temos menos dinheiro do que quando che-
gamos, �� tamb��m coisa indiscut��vel. (Meto a m��o
no bolso das cal��as e amarfanho a ��ltima c��dula de
cinco d��lares. A isso est�� reduzida a fortuna dos
bravos argonautas. No Rio ��� reflito ��� terei de pe-
dir dinheiro a algum amigo para pagar o t��xi...)
Mas, boy!, n��o trocamos por coisa nenhuma os momen-
tos que vivemos neste pa��s, nem os amigos que aqui
fizemos. Mariana me assegurou h�� pouco, comovida,
que os dois anos que passou na Calif��rnia foram os
mais calmos e felizes de que tem mem��ria. Mas quem
poder�� saber o que vai na alma de meus filhos? Ha-
bituaram-se �� vida de San Francisco como se habitua-
riam mais tarde �� Hollywood, ao ambiente do Mills
College, do trem que nos trouxe para Leste, e do quar-
to do hotel de Nova York, onde passamos estes ��lti-
mos dias. Seus rostos carnudos e corados reluzem ao
sol, e tenho a absurda mas agrad��vel ilus��o de que
A V O L T A D O G A T O P R E T O
519
eles refletem o puro azul deste c��u sob o qual vamos
navegando. Clara e Lu��s j�� tomaram intimidade com
o navio, chamam-lhe "o Z��" e falam dele como duma
pessoa viva.
Olho a torre do Empire Estate Building; domi-
nando a massa de cimento, a��o e pedra de Manhattan,
ela fa��sca como a ponta duma agulha descomunal. Mas
o que tenho agora na mente, �� uma outra torre para
mim mais significativa: o Campanile da Universidade
da Calif��rnia. Lembro-me da v��spera de nossa par-
tida de Berkeley... Eu sa��ra com Rudolph Schevill
para um ��ltimo passeio atrav��s do campus. Era uma
manh�� cinzenta e ��mida, e a n��voa escondia o cimo
das colinas. Conversamos sobre a guerra e a paz, e
Rudolph, que ama a Espanha, expressou a esperan��a
de ver um dia a terra de Cervantes livre de Franco
e do falangismo. Relembramos com saudade uma cer-
ta noite, no Mills, quando ouvimos juntos o Quarteto
N.�� 8, Opus 59, de Beethoven De s��bito, parando e
tomando-me do bra��o, Rudolph me disse:
��� Eu quisera que voc��s pudessem ficar conosco
para sempre!
Seu rosto rosado, em contraste com a cabeleira
completamente branca, era a ��nica nota de cor na
manh�� fosca. Rudolph sacudiu lentamente a cabe��a
e acrescentou:
��� Mas eu compreendo que tenham de voltar.
No fim de contas o Brasil �� a p��tria de voc��s...
Continuamos a andar e, sentindo mais agudamen-
te que nunca a futilidade das palavras, eu disse:
��� Voltaremos um dia...
Rudolph ficou um momento em sil��ncio e depois,
sem me olhar, murmurou com sua voz mansa e meio
rouca:
��� Talvez. .. n��o me encontrem mais.
520
O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O
Senti uma s��bita impress��o de frio, como se essas
palavras de morte tivessem sido sopradas pelo vento
cinzento do mar.
E no trem, durante todo o percurso de Berkeley
a Nova York, e mesmo atrav��s dos vinte e seis dias
que permanecemos nesta cidade tumultuosa, a cena
que com mais freq����ncia me vinha �� mente, como
uma esp��cie de s��mula de todas as nossas aventuras
sentimentais neste pa��s, foi a de Rudolph, com seus ca-
belos de tor��al branco tocados pelo vento, acom-
panhando na plataforma da esta����o a marcha de nos-
so trem, e acenando para n��s com os olhos brilhantes
de l��grimas. �� que naquele momento ele simboli-
zava tudo quanto os Estados Unidos t��m de melhor, de
mais nobre e mais humano. Ele era o Amigo. Seu
aceno tinha um sentido t��o maravilhosamente belo,
que nem ouso defini-lo.
��� o o
O "Jos�� Menendez" se afasta cada vez mais de
Nova York. Os passageiros se agitam ��� Adeus, Am��-
rica! ��� acenam para uma barca que passa cheia de
soldados. ��� Good-bye, boys! ��� apontam para a est��tua
da Liberdade, agitam len��os, cantam e gritam.
Mas n��s quatro continuamos silenciosos. Aposto
que, embora Mariana, Clara e Lu��s tenham como eu
os olhos fitos nos arranha-c��us de Manhattan, eles re-
almente est��o vendo as montanhas e os vales da Ca-
lif��rnia e, sobre esse fundo vago, as faces iluminadas
de nossos amigos.
Gaivotas esvoa��am em torno do vapor, que avan-
��a lentamente para o mar.
---------- Forwarded message ---------
De: Reginaldo Mendes <regismendes59@gmail.com>
Date: sex., 14 de fev. de 2020 às 15:54
Subject: <audioslivroslinks> Lançamento: A Volta do Gato Preto - Érico Veríssimo- Formatos : Pdf, epub txt
To: audiolivroselinksaudiolivroselinks <audiolivroselinksaudiolivroselinks@googlegroups.com>, bibliotecavirtualdodeficientevisual <bibliotecavirtualdodeficientevisual@googlegroups.com>, <grupo-de-livros-mente-aberta@googlegroups.com>, grupodelivrosepubpdfdoctxtaudiolivro <grupodelivrosepubpdfdoctxtaudiolivro@googlegroups.com>, <vidacomlivros@googlegroups.com>, amigos-da-cultura <amigos-da-cultura@googlegroups.com>, <arca_literaria@googlegroups.com>, bons_amigos <bons_amigos@googlegroups.com>, culturaonline <culturaonline@googlegroups.com>, expresso_literario <expresso_literario@googlegroups.com>, livraria-virtual <livraria-virtual@googlegroups.com>, <livros-loureiro@googlegroups.com>, oaconchegodonossolar <oaconchegodonossolar@googlegroups.com>, <solivroscomsinopses@googlegroups.com>
De: Reginaldo Mendes <regismendes59@gmail.com>
Date: sex., 14 de fev. de 2020 às 15:54
Subject: <audioslivroslinks> Lançamento: A Volta do Gato Preto - Érico Veríssimo- Formatos : Pdf, epub txt
To: audiolivroselinksaudiolivroselinks <audiolivroselinksaudiolivroselinks@googlegroups.com>, bibliotecavirtualdodeficientevisual <bibliotecavirtualdodeficientevisual@googlegroups.com>, <grupo-de-livros-mente-aberta@googlegroups.com>, grupodelivrosepubpdfdoctxtaudiolivro <grupodelivrosepubpdfdoctxtaudiolivro@googlegroups.com>, <vidacomlivros@googlegroups.com>, amigos-da-cultura <amigos-da-cultura@googlegroups.com>, <arca_literaria@googlegroups.com>, bons_amigos <bons_amigos@googlegroups.com>, culturaonline <culturaonline@googlegroups.com>, expresso_literario <expresso_literario@googlegroups.com>, livraria-virtual <livraria-virtual@googlegroups.com>, <livros-loureiro@googlegroups.com>, oaconchegodonossolar <oaconchegodonossolar@googlegroups.com>, <solivroscomsinopses@googlegroups.com>
Olá, pessoal:
Este é mais um livro de nossa campanha de doação e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.
Agradecemos ao Irmão Bezerra pela doação e ao irmão Fernando pela digitalização.
Pedimos não divulgar em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos.
O Grupo Mente Aberta lança hoje mais um livro digital !
Livro doado por Bezerra e digitalizado por Fernando Santos
Sinopse:
Este livro é continuação do livro Gato Preto em Campo de Neve.
Erico Verissimo narra com humor, faro jornalístico e olhar de romancista sua segunda viagem aos Estados Unidos, registrando suas impressões sobre o cotidiano dos americanos em plena Segunda Guerra Mundial.
Lançamento Grupo de Livros Mente Aberta
https://groups.google.com/forum/?hl=pt-BR#!forum/grupo-de-livros-mente-aberta
Nosso grupo parceiro:
https://groups.google.com/forum/?hl=pt-br#!forum/grupo-espirita-allan-kardec
--
---
--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-
---
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "clube do e-livro" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para clube-do-e-livro+unsubscribe@googlegroups.com.
Para ver essa discussão na Web, acesse https://groups.google.com/d/msgid/clube-do-e-livro/CAB5YKhk2MxLaTmt2NqApzr8%3D3xYks5LpbPmOcGPHhOBE3v_1TQ%40mail.gmail.com.
0 comentários:
Postar um comentário