sábado, 20 de junho de 2020 By: Fred

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Desculpe, n��o ouvi!


Lak Lobato


S��o Paulo

2014





Copyright �� 2014


Lak Lobato





Projeto gr��fico, capa e diagrama����o:


Eduardo Suarez





Editora:


Atitude Terra

www.atitudeterra.com.br



Austregesilo, Lakshmi Eliane Lobato, 2014.

Desculpe, n��o ouvi! / Lakshmi Eliane Lobato, S��o Paulo: Atitude Terra, 2014.

1.Autobiografia. 2.Defici��ncia auditiva. 3. Implante coclear.



www.DesculpeNaoOuvi.com.br

contato@DesculpeNaoOuvi.com.br

Todos os direitos reservados.



De acordo com a Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nenhuma parte desta publica����o pode ser fotocopiada, gravada, reproduzida ou armazenada em um sistema de recupera����o de informa����es ou transmitida sob qualquer forma ou por qualquer meio eletr��nico ou mec��nico sem o pr��vio consentimento da autora.





�� minha m��e, Eliane Lobato

e ao meu marido, Eduardo Suarez





���Quem quer passar al��m do Bojador

Tem que passar al��m da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele �� que espelhou o c��u.���



Fernando Pessoa





Pref��cio


A surdez �� uma defici��ncia que prende as pessoas que a possuem numa bolha de solid��o e sil��ncio. S��o poucos os que conseguem furar a bolha, transform��-la num detalhe e falar sobre o assunto abertamente. Lak Lobato �� uma dessas pessoas. Leve, destemida e agregadora, Lak �� um grande exemplo de ser humano que n��o se deixou definir pela falta de um sentido. Pelo contr��rio: usou a tecnologia a seu favor ao fazer um implante coclear e voltar ao mundo dos sons.

Este livro traz uma s��rie de textos nos quais ela conta, com bom humor e leveza, suas experi��ncias na ���clausura silenciosa���, como chama a ��poca de sil��ncio total, e na orquestra po��tica dos sons redescobertos ap��s tantos anos. Imposs��vel n��o se emocionar a cada p��gina. Lak compartilha seus medos, alegrias, tentativas e sucessos de forma muito envolvente. E, muito importante, desmistifica aspectos completamente equivocados sobre a surdez que o senso comum teima em apresentar como verdadeiros. Os surdos oralizados, grupo no qual me incluo, agradecem!

Sua jornada de reencontro ao som pode ser de grande valia para aqueles que est��o iniciando a sua ou acompanhando de perto a de algum familiar/amigo/colega/c��njuge. A surdez �� infal��vel em derrubar o ��nimo e a alegria de viver daqueles que convivem com ela. E as palavras cheias de sensibilidade de algu��m que transcendeu esta n��voa escura s��o um alento para o cora����o de quem ainda precisa percorrer seu pr��prio caminho em dire����o �� luz. A despeito dos seus aspectos sombrios, a surdez pode ser uma interessante estrada de autodescobrimento, como voc��s poder��o constatar nas p��ginas deste livro.

Quem, como eu, j�� acompanha h�� tempos o trabalho da autora no delicioso blog ���Desculpe, n��o ouvi!���, vai desfrutar com prazer desta leitura. Lak �� o tipo de pessoa em falta no mundo: doce, generosa e que n��o se importa, nem um pouco, em dividir o seu conhecimento. Meu eterno agradecimento a ela, pois foi atrav��s da nossa amizade que me senti pronta para fazer meu primeiro implante coclear ��� espero que minhas redescobertas sonoras sejam t��o lindas e me toquem t��o profundamente quanto as que Lak divide conosco todos os dias. Para mim, Lak �� como um farol poderoso que guia os navegantes de ��guas turbulentas em dire����o ao mar calmo.

Boa leitura!!

Paula Pfeifer





Agradecimentos


Agrade��o a todas as pessoas envolvidas no processo do meu implante coclear. Desde o criador desta tecnologia, at�� o m��dico que a trouxe ao Brasil.

Aos profissionais que cuidam do meu caso, Dr. Robinson Koji e Fga. Val��ria Goffi. Agrade��o, inclusive, pela colabora����o escrevendo os cap��tulos finais deste livro.

��s fonoaudi��logas de reabilita����o auditiva, Aline Pessoa e L��lian Khun, pela paci��ncia, boa vontade e incentivo constantes! �� L��lian, agrade��o tamb��m pela autoria do cap��tulo que explica o que �� o implante coclear, t��o importante para a compreens��o deste livro.

Ao jornalista Jairo Marques, por ser um exemplo para eu me inspirar ao querer levar informa����es ��s pessoas via internet.

Aos meus amigos implantados, que passaram anos tentando me convencer a experimentar essa tecnologia maravilhosa: Anahi Guedes de Mello, Raul Sinedino, Alice In��cio, Leila Atthie e Ol��via Cranwell.

�� Paula Pfeifer, autora do blog ���Cr��nicas da Surdez���, pelo carinho ao escrever o pref��cio.

Ao meu marido, Eduardo Suarez, por todo apoio ao longo destes anos de divulga����o do grupo de surdos oralizados e pr��teses auditivas, pelo layout do blog, pela capa do livro, pelas apresenta����es das palestras, pelo incentivo constante, pela paci��ncia e pela companhia.





Apresenta����o


Eu nasci sem nenhuma caracter��stica diferente da maioria das crian��as. Tive uma inf��ncia comum. Gostava de brincar, assistir a desenhos animados. Ouvir m��sica. Amava quando meus pais me levavam ao teatro.

E, um dia, poucas semanas antes de completar 10 anos, acordei numa segunda-feira qualquer de manh��. Todas as manh��s, eu era tirada do sono por conta de uma obra que come��ava pontualmente ��s oito horas. Era barulho de escavadeira, de trator, etc.

O que houve de especial nesse dia, para eu estar citando ele agora, �� que eu n��o ouvi o barulho da obra. Comecei a chamar a minha m��e, porque tudo parecia mergulhado numa redoma de sil��ncio. Apesar de ser dia claro, n��o havia nenhum ru��do ao meu redor���

Levantei da cama e procurei minha m��e. Como n��o encontrei, andei at�� a janela, para saber por que a obra n��o tinha come��ado. E, contra tudo o que eu poderia imaginar, ela estava l��, funcionando normalmente. Eu �� que n��o conseguia ouvi-la.

Havia perdido a audi����o, subitamente, durante a noite.

Nunca tive uma explica����o muito exata do que causou minha surdez. Foi diagnosticada como sequela de caxumba, embora fuja bastante ao padr��o desse tipo perda. Mas isso n��o faz muita diferen��a.

Fui a um monte de m��dicos, que disseram um monte de coisas importantes e tamb��m um monte de bobagens. Mas todos deram o mesmo diagn��stico: perda bilateral, profunda e irrevers��vel.

Lembro at�� hoje como minha m��e escolheu me dar essa not��cia. Eu era uma crian��a e, numa das consultas em que estivemos para receber o diagn��stico, a express��o da minha m��e foi de luto. Ela tentou n��o demonstrar, mas ficou bem evidente e eu percebi.

Saindo do consult��rio, ela me levou para uma loja de brinquedos e me disse: ���Escolha tudo o que voc�� quiser���.

Eu estranhei. Acho que era a primeira e ��nica vez que ela me disse isso. Minha m��e nunca foi de nos dar tudo o que quer��amos. Geralmente, presentes tinham data certa, vinham como surpresa ou eu e minha irm�� ganh��vamos quando insist��amos muito. Mas, nesse dia, foi diferente.

Escolhi timidamente alguns brinquedos, mas percebi que aquilo se devia ao motivo que fez o rosto dela entristecer, embora eu s�� tenha entendido o real motivo quando perguntei, anos mais tarde. Ela disse que foi a maneira que ela encontrou de me dizer que havia coisas que eu poderia ter, outras n��o.

E, diante dessa ���senten��a��� com a qual eu tive que lidar aos 10 anos de idade, pensei: ���A vida vai ter que continuar���. Testei v��rios aparelhos auditivos (nenhum servia para nada al��m de criar um ru��do incompreens��vel) e o tempo foi passando���

Estudei at�� a faculdade, me formei. Aprendi franc��s e fiz um r��pido interc��mbio de espanhol em Madrid. Comecei a trabalhar. Namorei, casei. Viajei pelo mundo. Tive uma vida bem tranquila, apesar de n��o conseguir ouvir nada.

Eu me comunicava falando pela voz que adquiri nos parcos anos que ouvi normalmente e usando somente a leitura labial. Sou surda oralizada.

Mais de vinte anos depois de perder a audi����o, encontrei uma tecnologia que talvez pudesse devolver a minha capacidade de ouvir, o implante coclear. E foi por conta dessa descoberta que decidi contar a minha hist��ria na internet, num blog chamado ���Desculpe, n��o ouvi!���, onde eu relato minha experi��ncia de vida e troco informa����es sobre os grupos a que perten��o: surdos oralizados e usu��rios do implante coclear.

Gra��as ao sucesso do blog em divulgar um assunto pouco conhecido pela maioria, nasceu a ideia de transformar esse blog em livro.





Sum��rio


1�� Parte:

Desculpe, n��o ouvi!

Lendo o mundo

Uma aluna mais que especial

Quem tem medo de palco?

A deusa, o ��nibus e o salgadinho

O aluno cego

Luz, c��mera e cad�� a bateria?

Introdu����o �� filosofia

Pedra no sapato

Era uma vez um est��gio

N��o adianta buzinar, sou surda!

Seja corajoso

Parlez-vous en fran��ais, s���il vous pla��t?

Na balada

O estranho caso do duende de quatro orelhas

Mem��ria auditiva

Ai, que praga!

Banquete de casamento

Interc��mbio em Madrid

Telefonema decisivo

Chegou a hora de mudar

30 minutos de um mundo pr��-implante

Mar portugu��s





2�� Parte:

Um mundo grita e canta

Sil��ncio no corredor

Cyborg ativada

A placa de som nova

Efeitos sonoros

O canto do cabelo

Ru��dos pipocantes

Latido de cachorro

O som da chuva mais desejada do mundo

A singela arte de amar

O dom de voar (ou n��o?)

A vida em cor de rosa

Passagem proibida

Rumo �� fonoterapia

Lembran��as sonoras

Na Copa das vuvuzelas

Pequenos passos de independ��ncia

Um beijo a mais

Amo Steve Jobs

Can����es do mundo

Sons do Mediterr��neo

A beb�� Joana

O poder da atra����o

Um sonoro parab��ns a voc��

Videoconfer��ncia bi��nica

Como ouvir o mar

Sonoridade ��cida

Ao som do sol que se p��e





3�� Parte:

Deslumbramentos sonoros

Palavra de m��dico

22 estrelas sonoras

O duplo sentido

Em frente ao aeroporto

Tarde em Itapu��

Um rio nos pensamentos

Liga����o para uma vida toda

Mudan��a de h��bitos

A simplicidade das coisas complexas

26 anos depois daquela manh��

Trovadores Urbanos

Chega de saudade

No r��dio

A voz do professor

Bibi Ferreira canta e conta Piaf

Deslumbramentos Sonoros





Ep��logo

Escutar com o cora����o

Cada caso �� um caso





Ap��ndice

Quem s��o os surdos oralizados?

O que �� o implante coclear

Preparo antes do implante coclear





Sobre a Autora





1�� parte:

Desculpe, n��o ouvi!





Lendo o mundo


As pessoas costumam me dizer, quando conto que perdi a audi����o ainda crian��a: ���Que triste! Foi muito dif��cil lidar com isso?���

Eu sempre respondo que acredito que foi na melhor idade poss��vel. Ainda que ningu��m mere��a ter que lidar com o trauma de tornar-se deficiente da noite para o dia (ou em qualquer outra situa����o ou espa��o de tempo), perder a audi����o cedo teve a vantagem de que eu n��o era capaz de compreender a gravidade da situa����o e podia, em vez de gastar tempo em tristeza, focar meu esfor��o em reaprender a viver.

A primeira coisa que aprendi, ap��s perder a audi����o, foi a ler. Pode soar estranho, mas apesar de j�� ser alfabetizada ��quela altura, foi somente depois de ensurdecida que comecei a ler de verdade. Antes, eu dava prefer��ncia �� m��sica, televis��o e aos programas de r��dio. Como tudo isso se tornou inacess��vel (salvo os programas legendados de televis��o, rar��ssimos na ��poca) o jeito foi encontrar outro passatempo: a leitura.

Aprender a ler foi uma das coisas mais importantes que fiz na vida. Ler me permitiu aprender muita coisa, aprimorar meu intelecto, informar-me sobre assuntos que talvez jamais conhecesse se n��o tivesse ensurdecido. Eu lia tudo o que via pela frente: jornais, revistas, livros, hist��rias em quadrinho. Essas ��ltimas foram a minha paix��o por toda a adolesc��ncia. Cheguei a ter uma cole����o de tr��s mil exemplares, que foram doados a uma gibiteca do Estado alguns anos depois.

Aprendi tamb��m a me concentrar. O sil��ncio favorece a concentra����o e eu, uma crian��a inquieta presa ao sil��ncio for��ado, finalmente aprendi a focar a mente num ��nico pensamento. Isso �� algo que eu tenho o h��bito de fazer at�� hoje: desligar os aparelhos quando preciso me concentrar em algo (muito embora, com o passar do tempo, venha aprendendo a ignorar os sons mentalmente, sem precisar do sil��ncio f��sico).

Ler tamb��m me trouxe a facilidade de escrever, pois como se sabe, quem l�� muito escreve bem. E, realmente, ap��s criar o h��bito de ler, descobri esse meu talento para a escrita.

E, claro, aprendi a ler l��bios. Na verdade, foi meio que autom��tico, n��o sei explicar como aprendi a fazer leitura labial. Simplesmente foi assim. Ler l��bios pode at�� n��o ser f��cil, mas serviu muito bem como a base da minha comunica����o a partir do momento em que me vi sem audi����o. E, por consequ��ncia, acabei desenvolvendo um pouco mais da intui����o, pois a leitura labial depende disso tamb��m: deduzir contextos.

Por fim, o aprendizado mais importante com a perda auditiva foi aprender a observar o outro. Quando voc�� se torna diferente por alguma raz��o, o mundo passa a te olhar de outra maneira e voc�� se torna mais observador. Observa como o outro vai te receber antes de voc�� se apresentar. Observa o ambiente antes de chamar aten����o para si.

Todos esses aprendizados, por mais dolorosos que tenham sido, me transformaram na pessoa que sou hoje e, apesar do qu��o dif��cil foi, sou grata pela oportunidade que tive de aprender tudo isso.





Uma aluna mais que especial


Perder a audi����o representou tamb��m uma s��rie de mudan��as, inclusive no sentido literal.

Como havia ficado um ano de licen��a m��dica fora da escola, quando retornei ��s aulas, no ano seguinte, fui estudar em outra escola.

Minha m��e conta que houve uma escola que rejeitou minha matr��cula, alegando que alunos com defici��ncia davam muito trabalho, mas a maioria das escolas visitadas se mostrava disposta a receber uma surda oralizada.

Coincidentemente, na escola em que fui matriculada, havia outro aluno com defici��ncia auditiva moderada que usava aparelhos, justamente na minha sala.

Ao contrario do que costumam imaginar, voltar a estudar sem audi����o n��o fez as minhas notas ca��rem, muito pelo contr��rio.

Quando ouvinte, eu era uma aluna bastante relapsa. Raramente me dava ao trabalho de prestar aten����o na aula sem receber reclama����o da professora. Depois de ensurdecida, eu tinha mais facilidade de me concentrar. Tamb��m n��o tinha dificuldade de acompanhar a aula por leitura labial. Conseguia entender quase totalmente o que os professores falavam e tinha interesse nas aulas. Al��m do mais, quando sentia dificuldade em alguma coisa, n��o tinha vergonha de conversar, pedir um material de apoio, nem de estudar sozinha em casa.

O primeiro ano que fiz, j�� surda, foi a quarta s��rie (hoje, quinta s��rie do ensino fundamental). Minha professora era atenciosa, n��o costumava explicar a mat��ria caminhando pela sala, passava muita mat��ria escrevendo na lousa e dava bastante leitura. Gra��as a isso, minhas notas aumentaram bastante. De aluna mediana, passei a estar entre os primeiros da turma.

Quanto ��s crian��as, elas n��o tinham preconceito com a defici��ncia, porque eu era capaz de entend��-las e minha voz n��o tinha sotaque nenhum, ainda. O que me restou da inf��ncia foi bastante tranquilo e agrad��vel.

Eu gostava tanto de ficar na escola, que pedi para meus pais me deixarem permanecer l�� em per��odo integral. Eu gostava de ficar com os amigos, at�� depois da aula, fazer nata����o no per��odo vespertino e continuava me sentindo plenamente integrada no mundo. Acredito que essa sensa����o de integra����o p��s-surdez foi fundamental para que eu percebesse que o mundo continuava o mesmo, apesar da minha mudan��a sensorial.

Foi tamb��m nessa ��poca que comecei a fazer fonoterapia para manuten����o da fala e reabilita����o auditiva pelo uso de pr��teses das quais, como n��o serviam bem para o meu caso, nunca gostei muito e n��o levei isso l�� muito a s��rio.





Quem tem medo de palco?


Um dia, pedi para mudar de escola. Eu queria estudar em uma escola diferente da que minha irm�� estudava, porque queria testar mais ainda a minha independ��ncia. Fui, ent��o, estudar num col��gio maior, comparado �� escola anterior, embora nenhum dos dois fosse muito grande.

Estava ent��o, na 6�� s��rie e, por causa das notas altas, fui bem recebida nessa escola.

A adapta����o n��o foi t��o f��cil. O motivo da minha dificuldade inicial foram os professores que, por n��o saberem lidar bem com uma surda oralizada, queriam que eu olhasse para eles o tempo todo. Sempre que desviava o olhar, por meio minuto que fosse, chamavam minha aten����o, algo do que eu reclamava sem a menor preocupa����o com n��veis hier��rquicos.

O resultado foi que, pela primeira vez na minha vida, fui parar na sala da coordenadora.

Ela me olhou severamente e disse:

��� Lakshmi, n��o estou gostando da sua atitude com os professores.

��� Qual atitude? ��� chateada com a bronca, mas feliz, porque na outra escola, em vez de me chamarem, costumavam chamar minha irm�� e era exatamente disso que eu queria me livrar.

��� Disseram que voc�� responde a eles.

��� U��, mas eles perguntam��� ��� respondi, sendo meio c��nica.

��� Voc�� n��o �� uma crian��a e entende o que estou dizendo.

��� Ah, sim, claro. O problema �� com eles, que pegam demais no meu p��. N��o me deixam descansar os olhos nem cinco minutos.

��� �� porque voc�� tem que prestar aten����o no que eles est��o dizendo. ��� argumentou ela.



Foi nesse dia que percebi que ouvintes n��o sabiam lidar comigo, porque eu era a novidade. Ent��o o jeito era eu, que lidava com eles todos os dias, explicar minhas necessidades:

��� Entenda, ��s vezes, eu preciso de uma pausa. �� imposs��vel ficar horas olhando outras pessoas falarem sem jamais poder fechar os olhos ou virar o rosto. Ler l��bios n��o �� igual a ouvir, �� bem mais cansativo.



Ela deu-se conta que era uma situa����o nova e, realmente, os professores estavam menos preparados do que eu e cabia a ela compreender o que eu dizia. S�� n��o deixou barato as minhas respostas mal educadas:

��� Entendo, mas isso n��o lhe d�� o direito de responder-lhes mal.



Para variar, eu n��o cedi sem contra-argumentar:

��� Nem eles t��m o direito de me estressar, exigindo uma aten����o exagerada.



Vendo que a situa����o era mais complexa do que meramente uma aluna malcriada, ela disse:

��� Certo, vamos fazer um acordo, voc�� n��o �� mais est��pida com eles e converso com eles e pe��o para respeitarem seu ritmo, combinado?

��� Combinado. ��� sorri, era exatamente o que eu queria.



Ap��s essa conversa, os professores passaram a me tratar como uma aluna qualquer e pude estudar em paz e aproveitar tudo o que a escola me oferecia.

L��, havia um curso extracurricular de teatro. Sempre quis fazer curso de teatro. Desde crian��a era uma das minhas paix��es.

As aulas eram ��s ter��as-feiras de manh�� e a turma, muito pequena. Contando comigo, havia quatro alunos. Eu, duas meninas da minha sala e um menino de outra turma.

N��o chegava a ser uma aula de teatro convencional, era apenas ensaio de uma pe��a.

Pass��vamos dois a tr��s meses ensaiando e havia uma ��nica apresenta����o. Eu n��o gostava muito dos ensaios, pois decorava com facilidade as falas e acabavam caindo na rotina. Mas, como amava o teatro, nunca faltava ��s aulas.

O enredo da pe��a do final de ano era de um consult��rio terap��utico que atendia os mais exc��ntricos pacientes.

Convidei minha fonoaudi��loga que me tratava na ��poca, Eliane, para assistir �� pe��a. Ela fez quest��o de ir e levou a filha, ent��o com tr��s anos de idade.

Quando a pe��a acabou, havia a apresenta����o de outro grupo e sentei-me ao lado da Eliane para assistirmos.

��� Ent��o, gostou da pe��a? ��� perguntei-lhe, baixinho.

��� Adorei! Voc�� ficou calma no palco e sua voz saiu muito clara. ��� respondeu.



Fonoaudi��loga �� assim mesmo, n��?

��� Qual personagem voc�� gostou mais? ��� perguntei.

��� Todos.



Olhou a filha, Laura, e virou-se novamente para mim.

��� Ela gostou da dan��arina, n��? ��� olhando novamente a filha.



Um dos meus pap��is era o de uma dan��arina indiana, que hipnotizava os homens com a sua dan��a. Como muito da pe��a era �� base de improvisos, eu criei a pr��pria coreografia e dancei na frente da plateia.

A menina me olhou com uma cara s��ria, com uma express��o de quem pergunta ���quem �� voc��?��� e n��o disse nada.

��� Ela falou para mim: ���Olha, m��e! Que linda! Parece uma bailarina.��� e eu lhe respondi ����� uma bailarina de dan��a indiana���.



Contou-me, virou-se novamente para a filha e disse:

��� Sabia que essa mo��a �� aquela bailarina que voc�� gostou? ��� perguntou ela para Laura, enquanto eu a olhava e sorria.



Laura ficou zangad��ssima e respondeu:

��� N��o �� n��o! A bailarina foi embora, essa �� outra!



Dei risada! Quem �� que vai discutir com uma crian��a de tr��s anos?

Depois, fui encontrar minha m��e que tamb��m assistia �� pe��a, ela me contou que uma senhora, que sentou-se ao seu lado durante a apresenta����o, virou-se para minha m��e e disse:

��� Ela n��o �� uma gracinha? E faz os papeis t��o bem feitos. E voc�� acredita que ela �� surda?



Minha m��e sorriu:

��� Na verdade, acredito sim, ela �� minha filha.



A senhora corou.

��� Puxa, nesse caso, parab��ns para a senhora!

��� Quem merece os parab��ns �� ela! ��� completou minha m��e.



No final da pe��a, o professor apresentou cada um de n��s ao p��blico.

Quando foi a vez de apresentar-me, disse:

��� Esta �� Lakshmi Lobato. No come��o, fiquei assustado com o desafio, pois ela �� deficiente auditiva. Mas, durante os ensaios, pude perceber que esfor��ava-se tanto e sua voz sa��a t��o firme e clara que conquistou, por m��rito, o meu respeito e orgulho de professor.



Abra��ando-me, completou:

��� Ela n��o �� uma ��tima atriz?





A deusa, o ��nibus e o salgadinho


Depois de brigar com minha m��e para ela largar m��o de ser superprotetora ��� m��e j�� �� assim, mas, dizer que a m��e de algu��m com defici��ncia �� excessivamente protetora �� pleonasmo, e a minha n��o fugiu �� regra ��� e me deixar viajar sozinha de ��nibus, fui contente, curtir a minha mais nova aventura, eu tinha dezesseis anos.

Minha m��e tinha medo de algo besta: que eu n��o ouvisse a chamada avisando que o ��nibus iria partir e fosse ���esquecida��� na parada que o ��nibus faz durante a viagem.

O jeito que encontrei para acalm��-la foi jurar que eu daria um jeito de estar no ��nibus quando ele partisse.

Tive que perguntar para o motorista quanto tempo durava a parada, cronometrar o tempo e passar os ��ltimos dez minutos em frente ao ��nibus.

Mas, ao contr��rio de minha receosa m��ezinha, eu estava animad��ssima com a ideia de viajar sozinha, pois representava uma independ��ncia enorme, afinal eu j�� tinha quase 17 anos.

No come��o da viagem, ao meu lado, sentou-se um rapaz. Eu n��o prestei muita aten����o nele e fiquei olhando a estrada at�� a tal parada, onde comprei um pacote de salgadinho e voltei ao ��nibus. Quando o ��nibus finalmente iria partir, o tal mo��o chegou e me ofereceu o que comia. Comecei a rir, pois notei que era o mesmo que eu estava comendo. Isso serviu como uma ��tima desculpa para ele puxar papo comigo:

��� Voc�� est�� mais calma agora?

��� Eu? Como assim?

��� Tentei conversar com voc�� v��rias vezes, mas voc�� nunca me respondia.

��� N��o estava brava. ��� respondi rindo muito ��� Sou surda.

��� Verdade? ��� ele perguntou surpreso.

��� Ora, qual outro motivo teria para ignorar voc��?

��� Mau humor, timidez, ser antissocial��� ��� respondeu ele.

��� Lamento, mas sou surda mesmo.



Ele fez as perguntas de sempre:

��� Voc�� n��o ouve nada? Nasceu assim?



Contei-lhe minha hist��ria���

��� Nossa, voc�� �� incr��vel! N��o sei o que faria se ficasse surdo. ��� tapou os ouvidos com as m��os ��� Como deve ser n��o ouvir nada?

��� Geralmente escuto o som dos meus pensamentos. Quando vejo algo se movendo, qualquer coisa, minha cabe��a tenta criar um som parecido.

��� Como assim?

��� Por exemplo, eu imagino um som para o mar, outro para o movimento das folhas balan��adas pelo vento, do fogo ardendo numa fogueira.

��� Ent��o, voc�� ouve tanto quanto n��s mas pela sua interpreta����o? ��� ele entendeu muito bem.

��� Talvez seja o melhor modo de definir���

��� Quantos anos voc�� tem?

��� Dezesseis, e voc��?



Ele me falou rapidamente sobre ele e continuou:

��� Sabe que nunca havia encontrado algu��m como voc��, assim, que n��o ouve!

��� Isso �� bom ou ruim? ��� respondi, rindo mais ainda ��� Qual o seu nome?

��� �� ��timo. Uma nova experi��ncia na minha vida. Sou ator, gosto de experi��ncias novas. Meu nome �� S��rgio e o seu?

��� Lakshmi.

��� At�� o seu nome �� diferente. Significa alguma coisa? ��� sorriu.

��� �� da deusa hindu da fortuna.

��� Deve ser por isso que voc�� passa uma ideia t��o tranquila dessa defici��ncia, n��o?

��� Tenho os meus altos e baixos ��� argumentei.

��� N��o duvido. Mas j�� conheci pessoas que t��m menos problemas e s�� t��m baixos���

��� A vida �� assim mesmo.



E continuamos conversando por umas duas horas, at�� que ele desceu em S��o Jos�� dos Campos e nunca mais nos vimos.





O aluno cego


Quando eu estava no segundo colegial (ensino m��dio), passei uns meses morando em Saquarema, onde minha melhor amiga de inf��ncia, Kali, morava.

Na escola onde eu iria estudar, havia um professor de matem��tica que tinha uma fama de ser muito severo, r��gido, que dava provas dific��limas, mas que todo mundo adorava e, por conta disso, o apelidaram de Paulo Diabo, ou simplesmente PD.

No primeiro dia de aula, eu estava parada na porta da sala durante o intervalo, quando o tal professor se aproximou de mim. Ele chegou repentinamente e disse alguma coisa que eu n��o entendi e tive que pedir para ele falar outra vez. Ele repetiu e eu continuei n��o entendendo. Ele achou que era pouco caso da minha parte e me disse algo bem ir��nico do tipo:

���Se eu mandar voc�� se &%#@*, voc�� me entende?���



Arregalei os olhos, sem saber se ria ou chorava.

Kali, que tinha ouvido ele falar comigo, veio correndo ao meu aux��lio e explicou que n��o era m�� vontade da minha parte, eu apenas era surda.

A express��o do professor mudou quase imediatamente e ele me fez o mais sincero pedido de desculpas que eu j�� ouvi na minha vida. Sabe aqueles pedidos que v��m do fundo do cora����o?

Achei que fosse ficar s�� nisso, mas antes de come��ar a aula, quando j�� est��vamos sentados e ele de p�� sobre o tablado, o professor se p��s a contar o que havia acontecido:

���Hoje eu cometi uma gafe. Fui falar com uma aluna nova e, sem saber que ela era surda, fui infeliz ao tentar me comunicar com ela.

J�� pedi desculpas, mas quero que todos voc��s ou��am tamb��m esse pedido de desculpas, porque eu fiz a promessa de jamais destratar uma pessoa com qualquer defici��ncia que seja.

N��o porque eu seja uma pessoa caridosa, voc��s sabem que eu n��o sou assim. Mas porque aprendi que defici��ncia n��o torna as pessoas menos dignas do meu respeito.

Quando eu estava iniciando a carreira, dei aula num curso de matem��tica avan��ada para uma turma. Um dos meus alunos era cego, mas ele era t��o inteligente que n��o demandava nenhuma necessidade especial de aten����o.

Ele apenas pedia para eu verbalizar toda e qualquer coisa que escrevesse na lousa: n��meros, sinais, letras. Dissesse quando mudasse de linha, de coluna, para que ele pudesse copiar em seu caderno.

Eu tinha admira����o por esse aluno, porque ele era esfor��ado e dedicado, dava prazer ensinar para ele, tanto quanto para qualquer outro aluno que estivesse interessado em aprender o que eu tinha para ensinar.

Um dia, eu estava em frente �� lousa, naquela ���dita����o��� necess��ria, ensinando uma equa����o muito complexa, que j�� vinha ocupando a lousa quase toda. At�� que eu me dei conta de que eu tinha cometido algum erro e o resultado n��o batia com o que deveria ser. Fiquei parado em frente �� lousa, tentando identificar o erro que nem eu nem ningu��m consegu��amos achar. At�� que eu me cansei e decidi sentar um pouco, em sil��ncio, procurando pelo erro.

O aluno cego me perguntou:

��� Qual o problema, professor?

E eu expliquei que a equa����o estava errada, porque o resultado n��o era o esperado, mas eu n��o conseguia saber onde tinha errado.

No que ele respondeu:

��� Eu posso te ajudar. Fique de frente para lousa. Volte tantas colunas, suba tantas linhas. Verifique se o erro n��o est�� ali.

E realmente, o erro era exatamente aquele. O rapaz era cego, mas foi a ��nica pessoa capaz de enxergar aquele erro.

A partir desse dia, eu passei a respeitar de verdade as limita����es de cada pessoa, porque percebi que uma defici��ncia f��sica ou sensorial n��o significa uma m��cula na ess��ncia do ser humano que ele ��.

Por isso, Lak, mais uma vez, me desculpe. Eu n��o sabia que voc�� n��o ouvia, mas tenho certeza de que voc�� �� capaz de escutar meu pedido de desculpas.���





Luz, c��mera e cad�� a bateria?


Certa vez, voltei de uma viagem a Visconde de Mau�� e mostrei algumas fotos que tinha feito �� minha fonoaudi��loga Eliane, xar�� da minha m��e. Eu tinha por volta de uns 14 anos de idade e as fotos eram absolutamente amadoras, mas Eliane disse que via uma sensibilidade incr��vel nelas.

Por causa disso, quando estava terminando o col��gio, decidi que queria ser fot��grafa.

Apesar de, na ��poca em que terminei a escola, n��o haver nenhum curso de gradua����o em Fotografia, existia uma escola de artes bastante conhecida que oferecia certificado de fot��grafo profissional.

Quando comecei o curso, n��o entendia nada de t��cnica e nem tinha c��mera. S�� fui compr��-la depois de iniciar o curso.

N��o houve problema, porque as primeiras aulas eram te��ricas, o professor explicava muito sobre imagem, luz, sombra, cores e tipos de pel��culas (filmes), j�� que a fotografia digital ainda n��o existia.

A escola era linda, com uma arquitetura ��nica, e l�� se ofereciam v��rios cursos de artes.

A turma era grande, todo mundo falava ao mesmo tempo, dois professores e um assistente se revezavam para ensinar alunos interessad��ssimos no assunto, queriam absorver tudo a respeito de fotografia.

Era uma realidade diferente da que eu conhecia, com alunos desanimados e professores que repetiam a mat��ria de maneira quase mec��nica. Discut��amos fotos famosas, t��cnicas usadas, truques e trocas de experi��ncia, j�� que quase todos os alunos eram fot��grafos amadores.

As aulas eram aos s��bados e iam das 9 ��s 15 horas, mas o tempo passava na velocidade da luz, j�� que o assunto prendia totalmente a minha aten����o.

Quando as aulas te��ricas deram lugar a trabalhos pr��ticos, comprei uma c��mera modelo Pentax K1000 e, como nunca tinha sequer tocado uma c��mera profissional, pedi ajuda ao professor para aprender a us��-la.

Pegou a c��mera, me mostrou todas as fun����es dela ���aqui, voc�� controla o obturador, ali o diafragma. Para trocar de objetiva, aperte esse bot��o para poder tirar a atual���, com toda a paci��ncia e boa vontade do mundo.

Finalmente, ele percebeu que estava sem a bateria ��� as c��meras profissionais anal��gicas usavam uma bateria que fazia funcionar o fot��metro ��� e eu n��o havia levado a que veio junto com a c��mera. Sem a refer��ncia do fot��metro, era imposs��vel saber a intensidade da luz que entrava na abertura da c��mera, com dada velocidade do obturador e tal abertura do diafragma (explica����o completa da equa����o), de acordo com a sensibilidade X da pel��cula (agora exagerei?) e eu ficaria impossibilitada de fotografar.

O professor me mostrou onde ficava e como era a bateria, para confirmar se realmente n��o estava na bolsa do meu equipamento sem que eu soubesse.

Como a explica����o dele n��o foi nada convincente, ele chamou outra pessoa com uma c��mera similar e pediu para a pessoa abrir o compartimento e me mostrar a tal bateria.

Qual n��o foi a minha surpresa de perceber que ela era absolutamente similar �� pilha do meu aparelho auditivo, em tamanho e formato. Dei um sorriso maroto e disse que, apesar de n��o ter trazido a tal bateria, eu tinha a solu����o perfeita para o caso.

Tirei o AASI da orelha, abri o compartimento de pilha e a entreguei a ele, dizendo:

��� Ser�� que essa daqui n��o funciona?



Realmente, era compat��vel e fez a c��mera funcionar praticamente o curso todo.

O professor ficou t��o surpreso com a minha rea����o, que transformou isso em lenda e, ��s vezes, contava essa hist��ria no meio da aula!





Introdu����o �� filosofia


Apesar de n��o ter o curso que eu queria fazer como gradua����o, n��o abri m��o de fazer faculdade. Acabei optando por fazer Comunica����o Social, com ��nfase em Publicidade e Propaganda.

Como boa aluna que se preza, certa vez, fui avisar uma professora que era deficiente auditiva. J�� era o 2�� semestre de faculdade e eu deveria estar acostumada com a conversa que era (sou) obrigada a ter com todos os professores (e seres humanos em geral).

A professora havia deixado alguns minutos do final da aula para esclarecer d��vidas, mas a maior parte da turma retirou-se da sala, de modo que ela estava praticamente vazia. Respirei fundo e dirigi-me �� mesa da professora. Parei ao lado dela e disse, com um tom de voz baixo e pausado:

��� Professora, eu preciso ter alguns minutos de conversa com a senhora, tudo bem?



Ela sorriu e acenou com a cabe��a afirmativamente.

��� �� que sou deficiente auditiva. Gostaria de saber se a senhora poderia me indicar algum livro para que eu possa estudar. Apesar de acompanhar as aulas tranquilamente, j�� que fa��o leitura labial, gosto de ter material de apoio.



Ela indicou-me um livro de introdu����o �� mat��ria e perguntou se conseguia ler seus l��bios com facilidade. Respondi que sim, ent��o ela me fez a bizarra pergunta:

��� Mas voc�� sabe escrever?



Fiquei surpresa, perguntando de volta:

��� Como assim?

��� Ora, voc�� sabe copiar a mat��ria que passo na lousa? Sabe escrever como os outros?



Percebi que ela queria saber se eu fora alfabetizada! Fiquei algum tempo olhando-a, tentando assimilar como �� que ela me perguntava uma coisa dessas.

Finalmente disse:

��� Estou na faculdade, precisei fazer a prova de vestibular. Claro que sei escrever.



Ela deu um sorriso meio sem gra��a (n��o sei se ela se tocou do absurdo que havia me perguntado) e eu sa�� da sala, perplexa, enquanto via meus colegas chorarem de rir da situa����o.

Muito depois, compreendi que existem surdos que realmente n��o t��m pleno dom��nio da L��ngua Portuguesa, eles usam a sintaxe da LIBRAS at�� mesmo na modalidade escrita. Mas n��o sei se foi realmente essa a pergunta da professora.

Quando a gente reclama do preconceito, n��o �� apenas dos maus tratos, a gente reclama tamb��m desse tipo de coment��rio equivocado. Algumas pessoas poderiam evitar esse tipo de constrangimento simplesmente parando para pensar antes de abrir a boca. Acho que quem tem uma limita����o deve ser compreensivo sim, ningu��m �� especialista naquilo que n��o vive ou com que n��o convive, mas tem coisas que o simples bom senso �� capaz de responder.

Eu, como sou uma boa pessoa, respondi �� pergunta da professora tirando somente 10 nesta mat��ria.





Pedra no sapato


Querendo eu admitir ou n��o, houve momentos em que eu passei por situa����es em quem a defici��ncia era sim, uma verdadeira pedra no sapato.

Estava no primeiro ou segundo ano de faculdade, n��o lembro. S�� sei que eu estava indo a p�� �� faculdade e encontrei a dona de uma livrolocadora (o nome �� obvio, mas como explicar o obvio �� uma del��cia, o lugar tratava-se uma loja onde se alugava livros). Como eu era s��cia da tal locadora, a dona fez quest��o de me cumprimentar:

��� Lakshmi! Voc�� sumiu��� ��� exclamou, com um sorriso ��� Nunca mais vai pegar livros?



Tentei desconversar, pois agora pegava livros na biblioteca da faculdade e eram de gra��a. Mesmo s�� podendo ficar com eles uma semana, n��o era problema, pois leio r��pido e levo menos que isso para l��-los.

��� Pois ��, n��o tenho tido tempo. Estou estudando muito.

��� Est�� trabalhando, menina? ��� ela sabia que eu fazia faculdade, pois j�� tinha contado.

��� N��o, fiz uns testes para trabalhar numa livraria, mas n��o me ligaram de volta. Uma pena, eu adoro livros.

��� Sei disso. ��� sorriu ��� Se souber de alguma outra livraria precisando, entro em contato com voc��, t��?

��� Certo ��� nos despedimos, pois eu estava meio atrasada para a aula de ingl��s.



Tempos depois, j�� no come��o das f��rias, quando ia para a faculdade s�� saber minha nota de uma mat��ria e buscar um trabalho extra que havia feito, encontrei de novo a dona da livrolocadora:

��� Oi, tudo bom? Estou indo �� faculdade s�� para pegar notas ��� disse eu, com uma voz de quem estava morrendo de pregui��a de fazer isso.

��� E a��, tirou um monte de dez? ��� respondeu.



Ela deduzia que, se eu lia com tanto gosto, deveria ser estudiosa.

��� N��o, alguns setes tamb��m ��� sorri. Minha m��dia tinha sido essa.

��� E a��, j�� encontrou o emprego que estava procurando?

��� N��o, mas desisti de procurar at�� o ano que vem��� Gosto de ficar de f��rias���



Ela sorriu.

��� Que pena��� Voc�� gosta tanto de ler, hoje em dia �� raro.



Fez uma pausa como se aguardasse uma resposta minha, mas eu n��o disse nada.

��� Olha, vou precisar de uma pessoa para trabalhar aqui, s�� n��o chamo voc�� para trabalhar aqui porque voc�� �� surda���



Arregalei os olhos, n��o esperava um coment��rio desses.

��� Teria que falar com as pessoas e entender o que elas querem��� ��� continuou.



Ainda n��o acreditando no que estava me dizendo:

��� E qual o problema? Eu leio os l��bios e sei falar muito bem.

��� Ah, mas teria que falar no telefone, n��? ��� enfatizando o n��. ��� Tem esse problema, voc�� n��o pode atend��-lo.



Comecei a me perguntar exatamente para que ela estava dando aquela explica����o totalmente desnecess��ria.

��� E se acontecesse de voc�� ficar sozinha? Quem atenderia o telefone por voc��?



N��o tive tempo de responder, pois uma amiga dela chegou e pediu-me licen��a um instante. Fiquei parada, sem conseguir pensar em nada, estava perplexa com o que acabara de ler nos l��bios da mulher. De repente, disse para a amiga, com o rosto voltado para mim:

��� Fulana, quero lhe apresentar uma das minhas clientes. Ela �� um doce de pessoa. Adora livros. S�� n��o contrato para trabalhar comigo, porque �� surda, acredita?



N��o aguentei. Disse que estava atrasada, pois iria encontrar algu��m e que precisava ir. Despedi-me das duas e fui para a faculdade, com vontade de chorar e me perguntando por que esse tipo de coisa acontece.





Era uma vez um est��gio


Apesar dessas situa����es bizarras, a vida seguia normalmente e fazia faculdade sem maiores dificuldades. Salvo, �� claro, nas aulas em que os professores usavam retroprojetor o tempo todo e a sala ficava numa eterna meia luz. Aquilo dificultava bastante a compreens��o da aula. Mas sempre fui boa em me virar por contra pr��pria. Eu conversava com os professores, muitos se dispuseram a escrever um resumo das aulas para mim. Tamb��m pedia cadernos de colegas emprestados e sugest��es de livros que pudessem servir de leitura de apoio.

O meu maior problema, l�� pelo terceiro ano de faculdade, foi aquele tal de est��gio obrigat��rio.

Meu curso exigia est��gio antes do quarto ano e, na ��poca, ningu��m queria ouvir falar em lei de cotas. 90% das empresas que ligavam em casa, j�� batiam o telefone na cara da minha m��e ao ouvir falar em ���defici��ncia auditiva���.

Mas come��aram a ligar bastante, porque a mo��a da empresa que indicava est��gios simplesmente tinha me adorado e dava a maior for��a para eu conseguir trabalho. Um dia, depois da segunda ou terceira liga����o nesse esquema de desligarem quando ouviam sobre a surdez, eu tive uma crise de choro e me tranquei no banheiro, porque simplesmente detestava a sensa����o de impot��ncia que me dava.

Uns 10 minutos depois, minha m��e passou um bilhetinho sob a porta escrito ���Sai da��, eu consegui uma entrevista para voc��!���

Li aquilo, meio que n��o acreditando, mas enxuguei as l��grimas, sa�� e fui �� entrevista no dia seguinte, ��s 7h30 da manh��.

Levei, como portf��lio, alguns trabalhos que tinha feito para a faculdade, j�� que nunca tinha trabalhado na ��rea.

Meu futuro chefe gostou do meu portf��lio, disse que n��o dava import��ncia para defici��ncia e que entraria em contato.

Alguns dias de extrema ansiedade depois, recebi a liga����o t��o esperada avisando que eu havia conseguido o tal est��gio.

Os primeiros dias de trabalho foram assustadores, porque havia muita coisa que eu n��o sabia e a did��tica do meu chefe era p��ssima. Ele n��o tinha muita paci��ncia de explicar e, tampouco, de repetir quando eu precisava.

Mas, apesar disso, me enturmei com as pessoas da empresa e acabou sendo agrad��vel trabalhar l�� pelas amizades que fiz.

Por v��rios motivos pessoais, nenhum deles relacionado �� defici��ncia, acabei n��o ficando muito al��m do exigido pela faculdade, mas valeu pela experi��ncia de iniciar a carreira de publicit��ria.





N��o adianta buzinar, sou surda!


Quando eu tinha uns vinte e poucos anos, minha irm�� foi renovar a CNH (carteira nacional de habilita����o) dela e, na consulta m��dica, resolveu perguntar como eu deveria fazer para tirar a minha. O m��dico respondeu: ���Ela n��o tem que tirar carteira de motorista nenhuma. Estou cansado dessa mania de deficiente achar que pode dirigir������

Claro que, apesar de n��o estar presente na hora, fiquei sabendo pela minha irm��.

Mas essa era a opini��o do tal m��dico, n��o da lei. Portanto, pude aprender a dirigir mesmo assim.

Confesso que eu sou medrosa at�� para andar de bicicleta, por isso tirar Carteira de Habilita����o n��o foi assim a primeira coisa que eu fiz quando me tornei maior de idade. Tudo aconteceu mais ou menos por impulso.

Calhou que, um dia, minha m��e foi ver n��o-sei-o-que no DETRAN e eu estava junto. Aproveitei a deixa para pedir informa����es sobre como eu deveria proceder. O funcion��rio, com extrema simpatia, me respondeu: ���Como assim? Voc�� ainda n��o tem carteira? N��o sabe que os surdos s��o os melhores motoristas?���

Disse que eu tinha que subir e fazer o exame m��dico l�� mesmo, porque �� o procedimento de praxe nestes casos. Fomos ao setor de Exame M��dico, pegamos o canhoto para pagar ��� j�� avisaram que era para entrar em fila preferencial ���aqui no DETRAN n��o importa a defici��ncia, se voc�� vai pagar taxa especial, entra na fila preferencial���.

Volto para fazer o exame m��dico, com um m��dico lindo e fofo (eu estava solteira na ��poca, posso falar isso sem culpa) que parecia mais interessado em bater papo comigo do que tentar me ajudar ou atrapalhar em tirar a CNH.

Perguntou: ���Voc�� s�� n��o ouve, n��? N��o tem labirintite nem tontura?��� (como �� o mesmo ��rg��o respons��vel pela audi����o e equil��brio, �� comum ter mais de uma patologia concomitante). ���Voc�� tem o otoneurol��gico? N��o tem? Que pena. Voc�� faz e volta que eu autorizo na hora voc�� ir para autoescola. N��o fica triste, �� regra do DETRAN, sen��o te autorizava agora mesmo!���

E me mandou embora. Depois foi correndo atr��s de mim, porque, nesse papinho simp��tico dele, esqueceu de me pedir para assinar alguma coisa. Mas, me dar o telefone dele que �� bom, nada! C���est la vie!

Alguns dias depois, fui ao hospital realizar o tal exame. Realiz��-lo foi uma das piores experi��ncias da minha vida, confesso. Por mais que seja necess��rio, �� uma tortura, porque testa seus ��rg��os de equil��brio provocando tontura o tempo todo. Isso, sem falar da parte que jogam ��gua quente e fria no t��mpano para testar rea����es sob press��o (suponho, nunca tive vontade de saber para que realmente servem) e eu me recusei a fazer, porque tenho HORROR de ��gua entrando no meu ouvido. A alternativa era usar ar quente e frio, e foi o que fizeram. Mas n��o fez diferen��a, porque ��gua ou ar tiveram o mesmo efeito: otite. Apesar de eu n��o ter predisposi����o a inflama����es no ouvido, as ��nicas vezes que tive foram justamente quando entrou ��gua nos meus ouvidos em alguma viagem �� praia, piscina ou cachoeira.

O exame n��o acusou nada al��m de surdez. Eu pude voltar ao DETRAN e receber a autoriza����o da banca m��dica. Foram quatro m��dicos para avaliar e autorizar, especialmente porque, naquela ��poca, eu n��o estava usando AASI (aparelhos auditivos) e queria poder dirigir sem eles.

Procurei uma autoescola perto de casa. O professor era um senhor muito simp��tico, que teve toda a paci��ncia do mundo de me dar aula at�� acabar com meu medo. Foram umas 20, com direito a eu atropel��-lo numa das aulas.

Juro que a culpa foi dele, que saiu do carro enquanto eu fazia baliza e, sei l�� porque, se pendurou na janela para me falar algo e ainda caiu no ch��o, embaixo do carro. Apesar de ter parecido descri����o de cena de pastel��o, foi exatamente isso o que aconteceu, sem qualquer licen��a po��tica.

Fiz o curso te��rico ��� sem adapta����es, j�� que eu fazia faculdade e tirava de letra isso de explicar que era surda, sentar na frente e acompanhar a aula por leitura labial de boa.

No dia da prova te��rica, a minha condi����o me permitia escolher onde queria sentar. Sentei o mais na frente poss��vel, para n��o sofrer com o ditado. Eu fiz o ditado normalmente. Uma mulher ditou uma frase e eu escrevi.

A prova pr��tica tem banca especial para pessoas com defici��ncia. Entra um m��dico no carro, antes do exame, que pergunta qual a sua defici��ncia.

��� Auditiva. ��� respondi.

��� S�� essa? ��� questionou ele.

��� Que eu saiba��� ��� disse eu.

��� Ok, boa sorte.



Fiz a prova e passei. Finalmente pude ter a minha CNH e segundo meu marido, eu dirijo muito bem hoje em dia!





Seja corajoso


Como todo mundo sabe, ��ltimo ano de faculdade �� estressante. Trabalho de Conclus��o de Curso (TCC) pode ser um tremendo pesadelo, especialmente quando envolve apresent��-lo em p��blico.

Sei que existem pessoas que falam em p��blico de boa, mas essas s��o a minoria. A esmagadora maioria que conhe��o ��� especialmente aquelas que est��o na faculdade ��� n��o gosta tanto assim. A simples men����o de ter que apresentar o trabalho num audit��rio cheio assusta qualquer um.

No meu caso, envolvia um medo a mais. Apesar de falar bem, expor minha voz a desconhecidos n��o era l�� meu passatempo favorito, ainda mais em cima de um palco. Enquanto organizava a parte te��rica do TCC, cheguei a pensar em defici��ncia como desculpa e pedir para ser dispensada da apresenta����o oral.

Mas quis o destino que eu nunca tivesse oportunidade de agir como covarde. Durante uma reuni��o com professor, para orienta����o do trabalho, ele virou-se para mim e disse:

��� Lak, voc�� j�� pediu dispensa na apresenta����o de audit��rio?



A pergunta me pegou de surpresa, porque n��o tinha comentado com ningu��m a respeito dos meus receios. Minha rea����o foi de psicologia reversa:

��� Como assim? Eu pretendo apresentar como todo mundo! ��� respondi sem qualquer convic����o de querer apresentar, eu apenas n��o suporto que algu��m me diga que n��o posso fazer algo.

��� Ah, mas voc�� n��o deveria. Voc�� n��o vai conseguir falar em p��blico. Todo mundo tem vergonha, imagina voc�����



Tenho certeza que o professor estava bem intencionado e queria me proteger, mas as palavras dele machucaram meu ego. Como eu sou do contra, naquele instante decidi que eu iria apresentar o trabalho no audit��rio, fosse como fosse.

��� N��o deveria, mas vou. ��� respondi eu, com um tom desafiador, que fez o professor n��o me dizer mais nada.



Na v��spera da apresenta����o, caiu minha ficha. O audit��rio comportava mais de 200 pessoas e tinha uma p��ssima ac��stica. Sem a refer��ncia de ouvir a pr��pria voz, fica dif��cil acertar tudo: velocidade, altura, entona����o da voz, etc.

Somando isso ao nervosismo, as horas que antecederam a apresenta����o soaram como um pesadelo desperto.

Eu tinha chegado cedo �� universidade. Queria sentir o ambiente e esperar um milagre acontecer, porque o pavor tomava conta de cada poro do meu corpo. Quando faltava pouco mais de duas horas para a apresenta����o do trabalho, encontrei um professor antigo meu ��� tinha me dado aula no quinto e sexto semestre ��� que me perguntou do TCC.

Respondi:

��� �� hoje! Eu cometi a aud��cia de dizer que ia apresent��-lo no audit��rio, s�� porque falaram para eu n��o fazer isso. E, voc�� sabe, eu fico corada at�� de falar em sala de aula.



Ele olhou para mim com um carinho e ternura quase palp��veis e disse:

��� Esque��a o TCC, esque��a o audit��rio, esque��a as pessoas. Suba naquele palco e fale comigo. Eu fa��o quest��o de estar na plateia. Voc�� fala o que tem que falar s�� para mim. N��o importa se voc�� fale r��pido, devagar, baixo, alto. Eu vou entender o que voc�� estiver falando. Sempre te entendi e voc�� sabe disso.



Depois, meus pais, minha irm��, meu namorado, meu cunhado, meus amigos e a torcida do Corinthians, que encheu a plateia, chegaram.

Subi junto com as pessoas do grupo no palco. Um rapaz do grupo fez a introdu����o, apresentou a parte dele. Entregou o microfone para outra menina, que apresentou a parte dela. E cada segundo que faltava para a minha parte, fazia com que parecesse que o ch��o sumia sob meus p��s e o ar me faltasse.

Chegou a minha vez. Peguei o microfone tremendo absurdamente e comecei a falar. Para o meu desespero, a minha voz n��o saiu. Sempre tive uma voz absolutamente emocional e, naquele instante, eu estava �� beira de um colapso nervoso. Olhei para a minha m��e na plateia, vi os olhos dela encherem d�����gua, porque ela percebeu que a voz travou na garganta.

Eu olhei para a banca de professores ��� com direito ao que tinha mandado eu n��o apresentar ��� respirei fundo e procurei o Luis Fernando (era esse o nome do professor que tinha me acalmado antes do trabalho) que estava sentado no fundo do audit��rio, com o olhar mais sereno do mundo. Ele fez um movimento com a cabe��a, surpreendentemente acolhedor e eu me acalmei e disse:

��� Perdoem-me, eu estou nervosa. Sou deficiente auditiva���



Quando falei isso, senti que minha voz tinha voltado ao normal e sorri. Um simples olhar de alento tinha me proporcionado o milagre que eu estava esperando.

Apresentei o trabalho da maneira que precisava, com a voz calma, na altura certa, falando o que precisava dizer e, quando acabou, at�� fiquei surpresa com como tinha sido r��pido. Falei que outra pessoa iria apresentar a etapa seguinte e virei-me de costas �� plateia para entregar-lhe o microfone. Ela pegou o microfone, olhou para mim e pediu para eu virar de frente ao p��blico.

Virei e, para a minha total surpresa, vi o audit��rio inteiro aplaudindo. Muitas pessoas de p��, incluindo os professores. Tanto aquele que tinha me apoiado, quanto aquele que tinha me desafiado.

No final do trabalho, os professores elogiaram o trabalho, mas todos deram aten����o especial para a minha coragem. Um dos professores fez quest��o de falar que tinha me incentivado a continuar, porque eu tinha pensado em desistir durante o curso. Outro me deu parab��ns e brincou que eu fazia jus ao sobrenome Lobato.

Aquele professor que tinha me sugerido n��o apresentar o trabalho no audit��rio, disse que eu havia lhe dado uma li����o de coragem.

Luis Fernando, o anjo, que n��o estava na banca examinadora, ele n��o era professor do ��ltimo ano. Mesmo assim, deu um jeito de pegar o microfone para me dar parab��ns tamb��m. Fez quest��o de contar da nossa conversa antes da apresenta����o e dizer que tinha encontrado uma menina com medo, mas que ele sabia que era capaz de mover montanhas.

Acho que foi por causa dessa experi��ncia que, anos mais tarde, me tornei a palestrante que sou hoje.





Parlez-vous en fran��ais, s���il vous pla��t?

*Fale em franc��s, por favor?


Quando eu tinha uns 17, 18 anos, vi um grupo de dan��a, com bailarinos cadeirantes se apresentando na TV. Uma das bailarinas (o nome dela me foge �� mem��ria), disse uma frase que ficou marcada na minha cabe��a: ���A sua limita����o n��o �� o seu limite���.

Pode ser uma frase banal de autoajuda, mas eu tomei aquilo como um mantra de vida.

Um dos assuntos que aparenta ser um verdadeiro tabu dentre os deficientes auditivos �� o aprendizado de l��nguas estrangeiras. Mas percebo que, dentre os surdos oralizados, o interesse por outros idiomas �� normal, n��s temos interesse por aprender ingl��s, espanhol, franc��s, alem��o, hebraico, esperanto e aramaico, como qualquer pessoa.

A quest��o �� que, junto com a vontade de aprender, somos bombardeados com a pergunta: ���Mas como?���

Pois bem, eu j�� estudei ingl��s, franc��s e espanhol. No ingl��s eu me considero hors-concours, porque foi um idioma com o qual tive contato antes de perder a audi����o. Na escola que eu estudei, tinha ingl��s desde o jardim de inf��ncia. Portanto, n��o foi um idioma que eu tive medo de estudar mesmo depois de ter a audi����o comprometida.

J�� o franc��s foi uma paix��o que nasceu muito depois disso. Minha m��e fala franc��s desde crian��a, pois �� do tempo que se aprendia idiomas como latim e franc��s na escola. Quando eu estava para me formar na faculdade, ela me deu de presente uma viagem �� Fran��a.

Na ��poca, tudo o que eu falava era ���Bonjour��� (bom dia), ���Merci��� (obrigado/a) e ���Pardon, je ne parle pas fran��ais��� (Desculpe, n��o falo franc��s).

Mas tudo bem, porque minha m��e foi junto para fazer tradu����o simult��nea em tempo integral. S�� que eu voltei da viagem verdadeiramente apaixonada por esse idioma e decidi que iria estudar franc��s a ponto de fal��-lo sem nenhuma cerim��nia.

Comecei, ent��o, minha peregrina����o para achar algum professor maluco que se dispusesse, n��o apenas a ensinar a gram��tica, mas ensinar a pron��ncia para uma pessoa que tinha audi����o beirando o zero.

Encontrei uma pequena escola de idiomas, perto da minha casa. Como n��o tinha ningu��m na recep����o, deixei meu cart��o de visitas, com os dizeres: ���Gostaria de estudar franc��s. Por favor, entre em contato���.

Uns dias depois, ligaram da escola. Minha m��e atendeu e a pessoa falou:

��� Gostaria de falar com a ���Lakismi��� (ou algo assim, ningu��m acerta meu nome de primeira).



Minha m��e respondeu, sem qualquer cerim��nia:

��� Ela n��o fala no telefone.



A professora disse que era da tal escola, mas pensou: ���Ah, meu Deus, mais uma patricinha cheia de frescuras!��� (ela me contou isso depois, claro).

Minha m��e explicou que eu era deficiente auditiva, queria muito aprender franc��s e perguntou se ela se dispunha a me ensinar nessas condi����es.

Imagino que a maioria dos professores recebesse essa not��cia com espanto, mas a Cris viu essa ideia inusitada como uma oportunidade e me convidou para assistir a uma aula teste, na qual fui maravilhosamente bem e at�� melhor que os demais alunos, ouvintes.

A aula era normal, com gram��tica e pron��ncia treinada com v��deos e m��sicas. O diferencial foram as pequenas adapta����es feitas �� minha condi����o:

A primeira coisa que ela me ensinou a fazer foi a ler o c��digo fon��tico do dicion��rio. Sempre que, por qualquer motivo, eu n��o entendia a pron��ncia de uma palavra apenas por leitura labial, ela escrevia a palavra sob o tal c��digo.

Ela transcrevia todo o di��logo do v��deo/m��sica e me fazia repetir em voz alta. Tamb��m nunca me poupava de ditados e tinha toda a disposi����o de repetir at�� eu entender a palavra. Sempre que eu reclamava dessas aulas, ela dizia: ���Voc�� precisa aprender a ler os l��bios nesse idioma, n��o adianta s�� falar, pronunciar bem e n��o entender a resposta que ir��o lhe dar���.

Nas aulas de conversa����o, ela corrigia minha pron��ncia sem a menor compaix��o. Nunca a minha surdez era desculpa para deixar passar uma palavra mal pronunciada. Se eu tivesse a petul��ncia de reclamar, ela dizia: ���N��o deixe que as pessoas tenham motivo para usar a sua defici��ncia auditiva para justificar m�� pron��ncia. Exija a perfei����o de si mesma���.

Quanto a compreender outro idioma, a d��vida era: Como compreender o que n��o ou��o? A resposta era simples: usando a ferramenta que havia �� minha disposi����o: a leitura labial.

Apesar da leitura labial ser um complemento da audi����o, ela n��o �� um substituto id��ntico. Ler os l��bios pode assemelhar-se a ouvir, mas n��o reproduz perfeitamente a audi����o. Portanto, quem depende de ler os l��bios, preocupa-se, antes de tudo, em compreender o sentido da mensagem, n��o se atendo a entender 100% das palavras ditas.

Enquanto o interlocutor fala, usamos muito a intui����o e a percep����o visual do rosto e do corpo. Temos que eliminar, em tempo absurdamente r��pido, todas as similaridades fon��ticas que a leitura labial produz, como por exemplo: faca e vaca. Ambas as palavras soam absolutamente iguais na leitura labial, mas o contexto da frase indica a diferen��a chave: entre ���Gosto de leite de vaca��� e ���Gosto de leite de faca���, a segunda n��o teria o menor sentido l��gico.

Eu mantenho isso em qualquer idioma que eu venha a falar/entender: compreender o sentido da mensagem toda e n��o pelo som das palavras isoladamente.

Pareceu dif��cil? Ora, dependi exclusivamente da leitura labial desde os 10 anos de idade, estava absolutamente habituada. Foi fac��limo quando se praticava isso todos os dias, o tempo todo!

Ent��o, para aprender a ler os l��bios em franc��s, bastou que eu tivesse um bom vocabul��rio no idioma e reproduzisse o que fazia em portugu��s.

Quanto �� pronuncia do franc��s, eu percebi outra particularidade: 90% dos sons do franc��s existem em portugu��s e os poucos que n��o existem podem ser aprendidos mesclando-se dois sons existentes na l��ngua portuguesa. Por exemplo, o E em ���Je��� fala-se posicionando a l��ngua para falar um �� (dEdo) e os l��bios, em posi����o de �� (dedO).

Diz a Cris, que a minha pron��ncia em franc��s �� excelente e t��o f��cil de compreender como se eu falasse em portugu��s. Nativos do idioma tamb��m elogiaram bastante a minha pron��ncia.

Basicamente, para aprender outro idioma, s�� foi necess��rio saber aplicar o que eu j�� fazia no dia a dia, adaptando ��s particularidades idiom��ticas, estudar a gram��tica e somar tudo isso a uma enorme vontade de aprender.

Mas o mais importante �� que junto com o franc��s, naquelas aulas, eu aprendi que quando a gente quer algo de verdade faz acontecer.





Na balada


Certa vez, numa sexta-feira �� noite, minha irm�� me convidou para ir �� balada. Eu n��o costumava ser muito baladeira, mas, de vez em quando, eu gostava. Na ocasi��o, aceitei o convite de bom grado, tudo o que queria naquele instante era saborear os sedutores prazeres da noite que corria levemente fria na capital paulistana.

Fomos a uma balada na Vila Madalena que, para quem n��o conhece a cidade de S��o Paulo, �� um rico reduto da vida bo��mia alternativa.

A porta da casa noturna era de metal, com uma fachada pintada de rosa e nela nos recebia um porteiro grandalh��o com cara s��ria, mas que sorriu simp��tico quando abriu o port��o para n��s.

Assim que entramos, a primeira sensa����o que me invadiu fora olfativa: um aroma forte de tabaco queimado, misturado com o cheiro embriagante de ��lcool e cheiro de gente. Junto com esses cheiros, senti meu peito vibrar pelo som alt��ssimo que vem da pista de dan��a, mas que para os meus ouvidos n��o soou como mais que um sussurro, pois eu estava sem AASI (aparelhos auditivo) nesta noite.

O primeiro pavimento tratava-se de um bar t��pico. Um balc��o num canto, com uma porta ao fundo, de algo facilmente dedut��vel como se tratando de uma cozinha. O barman mexia-se com destreza entre os copos e garrafas e fazia malabarismo (nesse caso, n��o literal) para atender os gar��ons e clientes que pediam bebida diretamente no balc��o. Na ponta oposta do recinto, havia um grupo reduzido de mesas, devidamente acompanhadas de cadeiras cheias que, nalguns casos, suportavam mais de uma pessoa por vez. A ��nica janela de vidro era lacrada, transformando aquelas mesas, cadeiras e pessoas numa imensa vitrine de seres humanos.

Percorremos um corredor em desn��vel descendente que nos levou �� pista de dan��a. Cada passo que eu dava me trazia �� pele e aos ouvidos um som que crescia progressiva e rapidamente, at�� que nos deparamos com um dos lugares que mais me intrigava, na minha condi����o de pessoa sem audi����o. Encabe��ada por um pequeno tablado, onde um DJ trabalhava de ��culos escuros (coisa que nunca entendi) comandando o som. A pista era pequena e quadricular, regada por uma luz estrobosc��pica que, somada ao ensurdecedor som ambiente, tornava a m��sica quase palp��vel. Observei as pessoas se mexerem freneticamente acompanhando o ritmo audiovisual, que parecia preencher seus corpos com uma emo����o transbordante.

M��sica era, ��quela altura, uma das mais emocionantes e distantes aventuras. Eu, do meu ponto de vista, for��adamente silenciado pela doen��a que me roubou parte consider��vel da audi����o, imaginava a m��sica de forma visual. Ela era, pra mim, uma for��a m��gica que transformava cada mol��cula do ambiente em energia capaz de compenetrar os seres humanos com tal magnitude, que parecia atingir simultaneamente cora����o e c��rebro.

Enquanto observava o ambiente, percebi que o corredor levava ainda a um pavimento inferior, mas nenhuma de n��s duas se interessou por vasculhar aquele c��modo no momento.

Dado o fato de que a luz piscante me dificultava a leitura labial ��� tornando-a completamente inacess��vel ��� perguntei para Parvati, minha irm��, se ela se importava de ficarmos mais perto do bar, onde a luz era fixa e adequada �� minha necessidade, para poder conversar.

No corredor, ela dan��ava animadamente, embriagada pela pr��pria felicidade. Essa rea����o t��pica da m��sica, eu percebia com uma frequ��ncia absurda. A m��sica causava rea����es f��sicas e org��nicas nas pessoas, sem que elas mesmas percebessem, moldando um estado de esp��rito muito al��m do habitual.

Como eu n��o tinha costume de dan��ar, encostei na parede, observando aqueles seres que habitavam tal ambiente. N��o era a primeira nem a ��ltima vez que ia �� balada, mas nunca conseguia deixar de ficar fascinada com os outros habitantes do local. Via pessoas descerem para a pista portando uma garrafa de bebida, ao mesmo tempo que outras subiam pro bar, suando ��s bicas. Observava casais esmagando-se um ao outro contra a parede, dando a impress��o de uma pintura abstrata e viva. Observava grupos de amigos que conversavam e riam e me perguntava como eles conseguiam diferenciar o som berrante da m��sica das vozes que ali falavam. Eu n��o nasci surda e sabia que isso �� poss��vel, mas, com o tempo e pela defici��ncia auditiva, comecei a achar que sons eram naturalmente todos mesclados, perdendo suas particularidades.

Vez por outra, algum rapaz vinha falar comigo e fazia um ru��do que me soava como abelhas, ao p�� do ouvido. ���Bzi Bzi Bzi��� era tudo que conseguia compreender do que eles diziam.

Mas tamb��m pouco me importava. Eu gostava de passar a noite observando as pessoas sob o efeito da m��sica, do ��lcool, do ambiente. Aquilo tudo era, para mim, um cen��rio deveras fascinante.





O estranho caso do duende de quatro orelhas


Quem convive com defici��ncia auditiva sabe o quanto �� comum ser associado �� l��ngua de sinais, independentemente dela ser ou n��o parte da sua vida.

Como perdi a audi����o j�� no final da inf��ncia, tinha plena leitura labial e fala j�� formada, os m��dicos e fonoaudi��logos insistiram para que meus pais me mantivessem o mais longe dela poss��vel.

Embora hoje a corrente pr��-LIBRAS seja forte, naquela ��poca a l��ngua de sinais era vista como algo que isolava o surdo.

Somente anos mais tarde, j�� adulta, acabei aprendendo o b��sico e por necessidade. Algu��m me indicou para trabalhar num evento que precisava de um tradutor de LIBRAS. Como eu n��o tinha trabalho fixo na ��poca e eu sempre quis trabalhar em eventos de Natal, como assistente do Papai Noel, aquela foi a oportunidade que surgiu para botar em pr��tica um monte de coisas.

Na ocasi��o, ainda n��o existia cursos de LIBRAS t��o acess��veis, ent��o tive que procurar uma professora particular. Fiz cerca de dez aulas, o que s�� deu para aprender o b��sico, mas que bastava para o que eu precisava fazer: contar hist��rias de Natal na l��ngua de sinais.

Durante dois meses, trabalhava de sexta-feira a domingo, contando hist��rias em LIBRAS, quatro vezes ao dia. S�� que, como praticamente nunca apareciam surdos para assistir ��s hist��rias, eu acabava contando-as para ouvintes, que n��o ficavam l�� muito interessados e eu passava a maior parte do tempo ajudando os outros contadores de hist��ria a cuidar da crian��ada.

Uma coisa que chamava a aten����o das crian��as era o meu sotaque. Elas achavam que eu falava daquele jeito n��o porque era surda, mas porque estava fazendo voz de duende, por conta da fantasia que eu usava.

Mesmo que eu explicasse que era por conta da surdez, a maioria delas dizia que se eu conseguia entend��-las, era porque ouvia, afinal, surdos n��o entendem, j�� que n��o ouvem. A argumenta����o delas era t��o engra��ada que, muitas vezes, eu desistia de ���discutir��� e as deixava acreditando que se tratava da voz de duende mesmo e ponto.

Embora surdos n��o fossem um p��blico numeroso, era comum pais de crian��as com outras defici��ncias virem falar comigo e ficarem encantadas com o fato de haver algu��m com defici��ncia cuidando das crian��as. Eles faziam quest��o de trazer a crian��a para falar comigo e me cumprimentavam sempre que retornavam ao shopping onde esse evento foi realizado.

Ainda que eu n��o tivesse experi��ncia trabalhando com crian��as, confesso que aquele foi um dos melhores momentos da minha vida.

Mais do que contar hist��rias, eu interagia com as crian��as e ouvia as hist��rias que elas me contavam. Crian��as adoram contar as pr��prias hist��rias!

A maioria dos surdos que estiveram no evento eram adultos e vinham conversar em LIBRAS, me dando milhares de dicas e ficavam absolutamente encantados de haver um int��rprete no evento, porque isso ainda era rar��ssimo.

A ��nica crian��a usu��ria da l��ngua de sinais para quem contei hist��rias foi um menino de sete anos. A m��e dele descobriu que havia essa op����o de hist��ria em LIBRAS e pediu para eu divertir o filho dela. S�� que n��o pude contar grandes coisas, porque ele me interrompeu a hist��ria dizendo que j�� conhecia (embora fosse uma hist��ria inventada por n��s). Perguntei se ele preferia me contar alguma hist��ria que ele achasse que eu n��o conhecia. Ele concordou, me contou ���Jo��o e o P�� de Feij��o��� e ainda me pediu para acompanh��-lo at�� o Papai Noel, para poder traduzir a conversa dele com o bom velhinho.

Eram tantas crian��as, que fica dif��cil lembrar-me de todas. Mas houve uma que me disse algo que me arrancou boas gargalhas, por conta de uma boa dedu����o l��gica que s�� uma crian��a �� capaz de fazer.

Minha fantasia inclu��a um capuz com orelhas de pl��stico pontiagudas. Essa menina, ao observar as orelhas, me disse:

��� Voc�� n��o ouve, tia?



Ao que eu respondi que n��o, sorrindo.

Ela continuou:

��� E voc�� tem duas orelhas?

��� Sim, tenho duas orelhas de cada lado. Imagine, sou uma duende de quatro orelhas. ��� disse eu.



Ela me olhou com uma indigna����o falsa, de quem estava segurando a risada e disse:

��� Puxa vida, voc�� tem quatro orelhas e n��o ouve?



Era verdade! N��o tinha me dado conta desse detalhe. Dei uma sonora gargalhada, seguida de uma cara triste, t��o falsa quanto a indigna����o dela e comentei:

��� Poxa, eu n��o tinha pensando nisso! Agora fiquei triste!



Ela riu da minha ���tristeza��� e completou:

��� N��o fica triste n��o, me d�� aqui um abra��o!





Mem��ria auditiva


Eu sabia que o implante coclear existia desde os meados da d��cada de 90. Mas era uma informa����o confusa porque a primeira fono que me falou sobre eles explicou, com um tom de realidade distante, algo feito nos Estados Unidos e na Europa, completamente fora da minha realidade.

Anos mais tarde, procurei meu otorrino de confian��a, mas ele n��o indicou o implante coclear para o meu caso, alegando que algu��m que tinha comunica����o plena atrav��s da voz e da leitura labial, com dom��nio perfeito do portugu��s, era caso de aparelho auditivo e n��o de implante.

Testei os aparelhos que ele indicou, mas eram muito caros, na ��poca n��o me senti em condi����es de comprar e fui adiando���

Em 2004, 2005, comecei a conhecer, pela internet, cada vez mais usu��rios do implante coclear. E cada um relatava um ganho diferente. Por mais interessante que fosse, era imposs��vel mensurar um poss��vel sucesso em compara����o ao caso de cada um deles, porque cada um tinha uma hist��ria e uma trajet��ria.

Em 2006, Eduardo, meu marido (na ��poca, ainda namorado) assistiu a uma entrevista de um m��dico em um programa de televis��o e procurou sobre o hospital onde ele trabalhava para ver se eu conseguia me inscrever. Achamos o site na internet, que tinha uma ficha de inscri����o, a qual preenchi de maneira incr��dula. N��o acreditava que fossem responder.

De fato, a resposta demorou alguns meses e, quando veio, marcava a consulta para mais alguns meses adiante.

Aguardamos sem qualquer expectativa, passamos pelo processo burocr��tico e, finalmente, tivemos uma consulta com m��dicos e fonoaudi��logas.

Os m��dicos perguntaram por que eu n��o usava aparelho. Respondi que n��o tinha bom resultado. Eles me mandaram passar por testes e exames, dizendo que dariam um parecer futuramente. No entanto, enfatizaram que o meu progn��stico n��o era bom, porque 20 anos de priva����o auditiva significavam que eu j�� provavelmente teria perdido a capacidade de entender o que viesse a ouvir.

A fono que nos atendeu, para apresentar o implante coclear, foi incrivelmente antip��tica. Disse que n��o via muito sentido de eu fazer o implante. Que ele era indicado para pessoas que tinham acabado de perder a audi����o e para crian��as. N��o para algu��m como eu, que nunca treinou a audi����o com aparelhos de amplifica����o sonora individual (AASI).

Para completar esse balde de ��gua fria, o psic��logo do programa encasquetou com o meu trauma de perder a audi����o de maneira t��o s��bita e nunca dava o parecer psicol��gico.

Gra��as a essa p��ssima recep����o e desest��mulo constante, eu acabei me afastando do programa de implante coclear e s�� retornei anos mais tarde.

Ainda assim, na primeira etapa do programa me foram emprestados AASIs (aparelhos de amplifica����o sonora individual) para testes. Depois, esse empr��stimo acabou sendo uma doa����o.

A sensa����o de voltar a ouvir depois de 8 anos de sil��ncio absoluto, mesmo que por pr��teses convencionais que n��o me permitiam mais do que meia d��zia de identifica����es, tal como buzina e sirene de ambul��ncia, era prazerosa, porque, depois de tanto tempo sem aparelho, a tecnologia, inclusive, tinha evolu��do um pouco e as pr��teses eram relativamente melhores do que as ��ltimas que eu havia experimentado.

Nessa ��poca, eu trabalhava como fot��grafa de uma grande loja de artigos para casa.

Nos primeiros dias, ficava mentalmente exausta com o barulho constante da loja. Era o ar condicionado, o som da m��sica ambiente, milhares de pessoas falando. Tudo aquilo produzia um zumbido em un��ssono constante, parecia que um enxame de abelhas estava sobrevoando a minha cabe��a.

Pior, aquele barulho me desconcentrava durante as sess��es de fotos. Por isso, nos primeiros meses, eu deixava os AASIs desligados boa parte do dia.

Mesmo assim, foi justamente por conta do trabalho em loja que achei t��o importante buscar tecnologia para ouvir. Fazia diferen��a saber que algu��m vinha falar comigo, mesmo n��o compreendendo o que me diziam.

Uma coisa que tamb��m sempre me fez implicar com aparelhos auditivos era a cor bege que eles costumavam ter. Acredito que para imitar a cor da pele, mas achava isso horr��vel! Fiz quest��o de trocar a cor da caixinha da parte que fica atr��s da orelha para preto, a cor dos meus cabelos. Isso contou no quesito de me fazer sentir ainda mais confort��vel com eles. Acho importante esse ponto de vista est��tico, por mais f��til que pare��a. Usar pr��tese n��o �� algo natural, desperta a aten����o das pessoas. Se ela n��o for motivo de inc��modo ou vergonha, ainda que n��o haja qualquer diferen��a pr��tica, faz uma enorme diferen��a no ponto de vista psicol��gico.

Usei-os por dois anos e meio, at�� fazer o implante coclear. Continuei usando por mais um ano e meio, na orelha n��o operada, e aposentei-os de vez quando me tornei implantada bilateral.

Pude perceber que a principal diferen��a entre o IC (implante coclear) e o AASI, �� que o AASI s�� amplifica o som, usando a audi����o residual. Como essa amplifica����o produz um chiado chato, �� praticamente imposs��vel um segundo que seja sem ru��dos, o que torna o uso do AASI mais cansativo que o do implante coclear. At�� hoje, brinco que compar��-los �� como comparar um Fusca a uma Ferrari. Ambos podem te levar a qualquer lugar, mas faz diferen��a ir de Fusca ou de Ferrari, n��o acha?





Ai, que praga!


Numa tarde qualquer, tinha sa��do mais cedo do trabalho, n��o me lembro por qual raz��o. Estava na casa da minha m��e, morgando em frente ao computador, quando ela aparece na minha frente e diz:

��� Lak, Beto (um ex-namorado) est�� aqui no telefone querendo falar com voc��. Pediu para voc�� entrar na internet para falar com ele.



Achei esquisito, porque n��o mantivemos contato ap��s o t��rmino do namoro e fiquei curiosa.

Liguei o MSN e vasculhei na minha lista de amigos. N��o, ele n��o estava dentre os listados. Havia apagado o endere��o de contato depois que terminamos. A sorte �� que tenho uma mem��ria absurda para informa����es desnecess��rias e sabia o endere��o dele de cabe��a. Digitei nomeesobrenome@blabla.com e, logo em seguida, ele ficou vis��vel para mim e veio conversar comigo:

��� Lak, tudo bem? Como voc�� est��?



E seguiu-se uma conversa educada e r��pida, porque estava mais interessada em saber o que ele queria do que em jogar conversa fora.

��� Ent��o, lembra do meu amigo, o Andr��? Ele est�� trabalhando na p��s-produ����o de um filme do Mojica (Jos�� Mojica Marins, mais conhecido por seu personagem Z�� do Caix��o) e a produtora est�� precisando de algu��m para fazer leitura labial de um material. Posso dar seu contato para ele?

��� Uau, claro! Adoro cinema! ��� disse eu. E a conversa morreu por ali mesmo.



Pouco tempo depois, recebo um e-mail:

���Prezada Lak, estamos fazendo a p��s-produ����o de um filme antigo do Mojica, cujo ��udio n��o chegou a ser gravado. Ser�� que voc�� poderia nos ajudar fazendo a leitura labial das imagens que foram gravadas?���



Ele explicou que, al��m de n��o terem gravado o ��udio, o roteiro tinha sido perdido, portanto a leitura labial dos atores era a ��nica maneira de manter o di��logo o mais pr��ximo do original poss��vel. Descobri tamb��m que o Andr��, o que me indicou, era Diretor de Fotografia do filme (da equipe que trabalhou em 2007, j�� que o filme foi rodado em 1980).

Fiquei empolgad��ssima com a oportunidade. Marcamos para o dia seguinte, um s��bado, no final da tarde.

Cheguei �� produtora, que ficava num sobrado num bairro bem distante da minha casa. O pessoal foi bem simp��tico.

Foram 8 horas de trabalho, para um filme de aproximadamente 80 minutos, j�� que muitas cenas estavam desfocadas, com atores olhando para tudo quanto �� dire����o ou filmados de longe. O resultado ficou bastante satisfat��rio e cheguei a voltar uma vez, para completar algumas cenas que n��o estavam inseridas da primeira montagem.

Pude conferir o trabalho na Mostra de 50 anos de carreira do Mojica, no Centro Cultural Banco do Brasil, em novembro de 2007. Afinal, cheguei a conhecer pessoalmente o Mojica, que me deu um livro autografado.

Tempos depois, dei busca no Google (se algu��m tiver interesse de saber, o nome do filme �� ���A Praga���), para ver se meu nome aparecia em algum lugar, ��� afinal, n��o �� sempre que a gente tem oportunidade de ganhar dinheiro usando nossos dotes de pessoa com defici��ncia ��� mas, infelizmente, n��o cita meu nome. Os textos que falam desse trabalho se limitam a dizer que ���o ��udio foi recuperado por leitura labial com a ajuda de uma deficiente auditiva���. Mas tudo bem, �� a vida!





Banquete de casamento


Acordei cedo, umas seis horas da manh��. E, apesar de eu detestar acordar cedo, aquele era um dia especial e inesquec��vel da minha vida.

Nunca foi assim, prioridade de vida, me casar. Mas seria mentira admitir que no dia do meu casamento n��o me senti empolgada, ansiosa, medrosa e mais milhares de emo����es simultaneamente.

Por outro lado, a decis��o de casar foi tomada meio que por impulso, porque a ideia inicial era apenas assinar um contrato por motivos burocr��ticos. S�� virou uma festa, �� nossa maneira, porque os familiares e amigos mais chegados queriam comemorar.

Como ir��amos casar de manh��, meu dia da noiva se resumiu a duas horas no cabeleireiro, que abriu mais cedo por minha causa.

O pior �� que, na ansiedade de casar e por estarem mexendo nos meus cabelos, tirei os AASIs no sal��o e n��o me lembrei de coloc��-los novamente.

Chegando ao cart��rio encontrei Edu, o noivo, na porta. J�� est��vamos juntos havia mais de dois anos, mas o sorriso dele em me ver de vestido branco e rosa, simples e delicado, com modelo de princesa medieval, foi exatamente igual ao sorriso que ele me deu no dia em que nos conhecemos.

Quando fomos chamados para a presen��a das ju��zas que nos casaram, dei-me conta de que estar sem aparelho, o que, somado ao nervosismo, n��o me permitia entender nada do que elas diziam.

Tampouco, quando chegou minha vez de responder que aceitava o Edu como esposo, de livre e espont��nea vontade, n��o consegui responder tranquilamente. Minha voz travou na garganta e fui incapaz de consentir, sen��o com a cabe��a. �� engra��ado como, quando fico nervosa, minha voz simplesmente n��o sai.

Em seguida, fomos almo��ar num restaurante bonito, perto de uma pra��a. O que Edu n��o sabia �� que eu tinha feito uma surpresa para ele. Chamei os Trovadores Urbanos (uma trupe de cantores que faz serenatas pela cidade) para tocar em nosso casamento.

Muita gente acha que, por ser surda, n��o tenho interesse por m��sica, mas isso n��o �� verdade. Para mim, tudo tem que ter uma trilha sonora ideal. E, no caso, os Trovadores tocavam justamente m��sicas que eu conhecia, inclusive que eu achava perfeitas para aquele momento como ���Eu n��o existo sem voc�����, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Consegui acompanhar as m��sicas por leitura labial e cantarolando aquelas que conhecia.

A parte mais especial disso tudo foi que, de presente, Edu legendou nosso v��deo de casamento, para que eu pudesse compreender tudo o que eu perdi. Ele �� amor���





Interc��mbio em Madrid


Um sonho que sempre tive, mas que tamb��m tinha receio de realizar, era o de estudar fora do pa��s, em sistema de interc��mbio. Meu receio era n��o conseguir me virar t��o somente com a leitura labial o tempo todo, sozinha.

Como eu e Edu casamos fora do per��odo de f��rias, tivemos lua-de-mel de apenas uma semana, quando fomos at�� Florian��polis de carro.

Quase um ano depois, ambos est��vamos trabalhando como freelancers e resolvemos finalmente nos dar aquela lua-de-mel que n��o tivemos.

Eu queria ir para Paris, porque sou apaixonada pela Cidade Luz (e convenhamos que o fato de eu falar franc��s ajudava bastante). Edu, que �� de ascend��ncia espanhola e tem fam��lia da Gal��cia, queria, obviamente, ir para a Espanha.

Ent��o, ele teve a ideia de unir o ��til ao agrad��vel: passar rapidamente por Paris e ir �� Madrid estudar espanhol. Em princ��pio, eu n��o sabia nada de espanhol e n��o fiquei l�� muito animada com o idioma, mas, como era a maneira de realizar o sonho antigo de fazer interc��mbio, acabei topando.

Entrei na internet, achei um curso com acomoda����o e mandei e-mail usando a ferramenta de tradu����o online que achei dispon��vel, para traduzir do portugu��s para o espanhol. Logo em seguida, recebi a resposta, acertamos todos os detalhes, foi s�� fazer as malas e partir.

Chegando l��, percebi de imediato o quanto o espanhol da Espanha (da Am��rica Latina, fui constatar que n��o �� assim, tempos mais tarde) �� excessivamente articulado e, mesmo sem qualquer dom��nio no idioma, dava para deduzir o que as pessoas me diziam.

No primeiro dia de aula, fizemos uma provinha para confirmar nossos n��veis no idioma (b��sico II) e fomos mandados para uma sala com dois alem��es, uma russa, uma americana e um coreano.

As aulas de gram��tica me eram fac��limas, por v��rios motivos. Boa parte achava similar ao portugu��s e o resto, com o franc��s. A professora passava tudo na lousa e tinha uma pronuncia t��o perfeita (como todo bom professor) que era absurdamente f��cil acompanhar as aulas. Raramente eu pedia ajuda ao Edu. Em geral, eu s�� pedia ajuda a ele quando algum dos outros alunos contava alguma coisa com sotaque carregado.

J�� nas aulas de conhecimento geral, n��o havia muito apoio de mat��ria por escrito, mas, felizmente, conseguia entender bem pela leitura labial o que os professores falavam.

No come��o, eu morria de vergonha de abrir a boca, j�� que entender �� uma coisa, falar �� outra. Mas, dada a similaridade entre os idiomas, eu falava em portunhol e era entendida facilmente. S�� l�� pela terceira ou quarta aula fui me lembrar de avisar que tinha defici��ncia auditiva.

Qual n��o foi minha surpresa da cara de ���ent��o t����� dos professores, quando comentei ���Yo soy sorda���, mostrando os AASIs. Percebi que, pelo menos em Madrid, n��o havia qualquer distin����o entre aparelhos auditivos e ��culos, por exemplo.

Todo mundo via meus aparelhos (eu sempre gostei de usar cabelo preso), mas ningu��m parecia dar qualquer import��ncia. Aqui no Brasil, os ��culos s��o bem aceitos, mas usar AASI �� quase motivo de vergonha. Para os madrilenhos, usar aparelho era sinal de que eu ouvia, mesmo que de forma artificial e, se eu ouvia, ningu��m tinha nada a ver com a minha vida.

Essa experi��ncia foi importante para eu me sentir maravilhosamente bem com os AASIs.

Quando decidi escrever meu blog, um ano mais tarde, usei-a para falar de como �� importante quebrar o preconceito com pr��teses auditivas que, infelizmente, ainda existe muito aqui no Brasil.

Foram apenas duas semanas de curso, portanto n��o posso falar que sou fluente no espanhol, mas valeu pela realiza����o de um sonho!





Telefonema decisivo


Anahi, uma amiga, �� surda desde 18 meses e foi implantada j�� adulta, surda oralizada desde sempre, e veio a S��o Paulo para uma palestra.

Um dia, ela me mandou e-mail perguntando se n��o gostaria de almo��ar com ela.

A gente conversava pela internet havia anos e ela sempre me incentivava a usar o implante coclear, coisa que eu queria meio n��o querendo. Morria de medo do resultado n��o ser t��o melhor do que os AASIs. Tinha medo da decep����o.

Fiquei de encontr��-la num shopping, na hora do almo��o, junto com uma outra amiga, Marcella, que ia para Paris e queria que eu traduzisse algo em franc��s para ela.

Chegando ao shopping, ansiosa para conhecer essa mulher t��o cheia de fibra ��� ela �� autoridade na luta pela acessibilidade e inclus��o ��� a primeira coisa que fiz, ao encontr��-la, foi perguntar do implante coclear, que ela usava na orelha direita apenas.

Ela me mostrou a parte externa do aparelho, disse que ouvia bem e que n��o sentia necessidade de usar AASI na orelha n��o implantada. N��o questionei, porque n��o entendia muito do IC. S�� sabia que ele era diferente do AASI porque n��o usava a audi����o residual, mas criava audi����o por impulsos el��tricos e, portanto, evitava que o som fosse distorcido.

Enquanto a gente conversava, comentei que n��o estava conseguindo resposta da Marcella sobre onde ir��amos nos encontrar no shopping. Eu mandava SMS, mas ela n��o respondia, o que me dava a sensa����o de que o celular dela poderia estar desligado.

Anahi me respondeu com um sorris��o:

��� Quer que eu telefone para ela?



Bastante surpresa, disse eu que sim, que adoraria. Mas n��o consegui ser racional o suficiente para n��o endossar a resposta com um: ���Mas voc�� consegue falar ao telefone?���

Surdos perilinguais (que perdem a audi����o antes da completa forma����o da fala por via auditiva, mas naturalmente quando beb��s) implantados depois de adultos, caso da Anahi, nem sempre conseguem discriminar a fala sem um m��nimo de ajuda da leitura labial.

Ela falou que sim e pediu para eu discar o n��mero do telefone da Marcella.

Observei-a falar no telefone, sentindo um misto de espanto e felicidade. A ��nica diferen��a que notei �� que ela encaixava o telefone um pouco acima da entrada do ouvido, encostando-o no microfone do implante e n��o na entrada do pavilh��o auditivo.

Elas conversaram e a Marcella avisou que j�� estava na pra��a de alimenta����o e iria descer para nos encontrar.

N��o sei se Anahi se deu conta de que, ao fazer isso, fazia algo muito al��m do banal. Naquele instante, todas as minhas d��vidas e medos ca��ram por terra. Eu s�� pensava: ���Nossa, eu quero! N��o importa que n��o seja perfeito, n��o importa que eu leve anos para conseguir falar ao telefone, mas eu quero tentar! Eu preciso do implante coclear!���

A partir desse dia, algo se firmou dentro de mim e eu decidi que, at�� o final daquele ano, estaria implantada!





Chegou a hora de mudar


Decidi, depois de 2 anos fora do programa do implante coclear do Hospital das Cl��nicas, que queria fazer o implante. Foi por v��rios motivos, mas posso dizer que simplesmente decidi fazer o implante e coloquei a ideia em pr��tica.

Pedi para o meu marido marcar uma consulta, desta vez atrav��s do conv��nio, o que tornou tudo mais r��pido.

Entrando no consult��rio, o m��dico me reconheceu. E perguntou por que eu tinha desistido de implantar.

Expliquei que precisei desse tempo para ter coragem de encarar uma cirurgia. Mas tamb��m que quis ter condi����es de fazer atrav��s do plano de sa��de, porque n��o me sentia confort��vel com o atendimento via SUS. Ele compreendeu e n��o disse nada a respeito.

Perguntou se agora eu me sentia preparada e disse que iria passar os exames que faltavam, antes de decidir qual orelha ir��amos operar, e s�� ent��o marcar��amos a data.

Ficou bem claro que ele j�� tinha avaliado meu caso e era favor��vel �� cirurgia, �� revelia de todas as coisas negativas que uma fono havia me dito alguns anos antes.

Como j�� contei, o que tinha me desanimado, a ponto de eu ficar 2 anos fora do programa, foi aquele coment��rio desencorajador da fonoaudi��loga que me atendeu. Eu entendo perfeitamente que ela precisasse ser realista, mas o tom que ela usou para falar do implante, logo de in��cio, foi deprimente. Disse para eu nem ter qualquer esperan��a de falar ao telefone ou conseguir ouvir m��sica. Eu iria, no m��ximo, compreender algumas coisas, mas iria continuar dependendo da leitura labial. E o problema maior nem era o conte��do dessas palavras, mas o tom de descr��dito que ela usava. Como se eu estivesse insistindo numa causa perdida.

Mas, voltando �� consulta em que decidi que faria a cirurgia, sa�� de l�� animada. Fiz todos os exames solicitados e tomei as vacinas indicadas.

Voltei para mais algumas consultas, conversamos, chegamos a um acordo de que seria operada a orelha esquerda.

Antes da cirurgia, passei com outra fonoaudi��loga, Dra. Val��ria Goffi, que n��o me conhecia, mas sabia que eu tinha um blog que falava sobre assuntos voltados para defici��ncia auditiva. Ela me pediu para fazer planos sobre o que eu queria com o implante e ter f�� de que iria conseguir, s�� pediu para n��o colocar prazos. Isso era imprevis��vel, mas ningu��m poderia dizer que era imposs��vel. Quando estive com ela, percebi a import��ncia de ter apoio da equipe que far�� o implante coclear. Quando o paciente sente que o profissional est�� do lado dele, n��o existe espa��o para medos e especula����es negativas.

Meses depois, a data da cirurgia foi marcada e pude finalmente vislumbrar alguma mudan��a poss��vel no meu caso.





30 minutos de um mundo pr��-implante


Uma das coisas que as pessoas viviam querendo saber era como era a minha vida sem audi����o. Por isso, escrevi um texto no blog, contanto sobre todas as percep����es que tinha, com a ��nfima audi����o que tinha atrav��s dos AASIs.

Meio dia e meia, sa�� para almo��ar.

Meia hora de almo��o j�� passada, mas nem ligava. Quando se tem duas horas de almo��o, a gente desperdi��a sem d��.

Normalmente, tinha vontade de almo��ar sozinha, para poder ir e voltar no pr��prio tempo, sem precisar esperar ningu��m, nem para ir nem para voltar.

Sa�� da ag��ncia passando pelo departamento de cria����o. Ouvi a menina do atendimento falando ao telefone ���u��u��u�����, mas ignorei. Com o AASI, eu era incapaz de discriminar a fala. Para entender o que ela dizia e que certamente nem me interessaria, teria que olhar para ela.

Desci uma escada, subi a outra (essa ag��ncia onde eu trabalhei era bastante singular) e sa�� para a rua. Ouvi ao longe o inconfund��vel som do tr��nsito pesado na avenida paralela. Embora meus olhos n��o os vissem, sei que aquele som devia ser mistura carros, motos e caminh��es na vida fervilhante da capital paulista.

Caminhei pelo bairro adentro que, apesar de ser dia de semana, tinha um tr��fego suave de carros de tal modo que, por algumas fra����es do tempo, fiquei restrita apenas aos sons das casas. A maior parte desse tempo, mergulhei no mais absoluto sil��ncio, pois, das casas, n��o me chegava som nenhum. Vez ou outra, ouvia um ���auauau��� que identificava como o latido do cachorro da fam��lia que ali mora, muito embora eu reconhecesse melhor o som pelo padr��o produzido do que pelo som em si.

Os sons, para mim, tinham um apelo quase visual, pelas duas d��cadas de surdez profunda vividas. Na medida que me aproximava da rua mais movimentada do bairro, o barulho dos ve��culos passava a tomar conta do sil��ncio de vez. N��o chegava a me incomodar, porque n��o era muito alto. O dia corria tranquilo.

Passei num sebo, porque procurava um livro. Dentro do estabelecimento, vi apenas duas pessoas: um rapaz que procurava alguma coisa em sil��ncio e a atendente que falava ao telefone. Ouvi a mesma coisa de quando passei pelo atendimento da ag��ncia e ignorei.

Procurei meu livro. ���Sess��o de Literatura Estrangeira���, ���Livros organizados pelo sobrenome do autor���, dizia a placa. Olhei rapidamente os nomes que constam na capa. A, B, C��� K, Kundera, Milan. Procurei Ris��veis Amores e encontrei. Sorri. Abri a capa e vi o pre��o. Perfeito!

Segui para o balc��o, a atendente me viu e disse ao telefone (de maneira que consegui ver): ���Te ligo depois, tchau���.

Entreguei o livro sem falar uma palavra. Ela abriu a capa e confirmou o pre��o, sem perguntar ou dizer qualquer outra coisa.

O rapaz que l�� estava se aproximou do balc��o logo em seguida. Ele falou alguma coisa para a atendente. Ela respondeu. A conversa soou misteriosa para mim, que n��o prestei aten����o nenhuma. N��o me interessava.

Paguei em dinheiro e agradeci: ���Obrigada, tchau!��� com uma voz t��o inaud��vel para mim, que at�� me perguntei se ela teria conseguido me ouvir. Mas sim, ela sorriu e disse obrigada.

Caminhei mais algumas quadras e cheguei �� lanchonete onde pretendia comer. Algumas pessoas conversavam atr��s do balc��o. O gar��om me olhou e deu um sorriso for��ado, ele me conhecia e j�� tinha reparado que eu era deficiente auditiva.

Caminhei at�� o sal��o de mesas, onde havia uma televis��o ligada num volume baixo, mas suficiente para eu ouvir, ainda que n��o compreendesse nada. O sal��o estava vazio, exceto por dois rapazes que conversavam em voz baixa o suficiente para mesclar-se ao som da televis��o. Eu n��o diferenciava de onde vinha o qu��.

O gar��om veio em minha dire����o. Ele s�� falava o necess��rio. Na primeira vez em que estive naquela lanchonete, percebi que ele reparou nos meus aparelhos, mas nunca me perguntou nada. Fiz o pedido, ele repetiu e disse que logo traria.

Abri o livro rec��m-comprado e comecei a l��-lo.

Enquanto lia, os sons ambientes desapareciam e eu mergulhava num estranho transe. No come��o, logo que coloquei aparelhos ap��s oito anos sem eles, eu achava dific��limo desviar a aten����o de qualquer barulho que fosse. Mas, com o passar do tempo, consegui chegar ao est��gio de ignorar completamente o que ouvia.

O gar��om trouxe meu almo��o sem fazer qualquer som que eu conseguisse perceber, mas era capaz de notar a sua presen��a por vis��o perif��rica, que aparentemente fazia as vezes do meu instinto de alerta (fun����o da audi����o).

Almocei em sil��ncio, ouvindo os rapazes conversarem junto com a televis��o. Vez ou outra, o barulho aumentava, provavelmente quando passava algum carro, mas n��o o suficiente para tirar a minha concentra����o do almo��o ou do livro.

Terminei de almo��ar e perguntei quanto deu a conta. Em vez de me dar um papel, o gar��om respondeu:

��� Doze reais.



Fui ao caixa, tirei o cart��o de vale-refei����o da bolsa e falei para o rapaz que l�� se encontrava:

��� Doze reais.



Ele repetiu com o sotaque carioca carregad��ssimo

��� Doix?



Eu corrigi:

��� DOZE.



Mesmo assim, ele me entregou a m��quina com ���R$ 2,00��� marcado. Eu devolvi e falei mais alto e devagar: ���DO-ZE���.

Ele repetiu: ���Ah, doUze?���

Segurei-me para n��o rir. Ele devolveu a m��quina e eu digitei a senha.

Saindo do local, o gar��om falou algo olhando para mim ��� enquanto eu n��o fixava os olhos na boca dele ��� que eu deduzi que seja algo tipo ���obrigado, tchau��� e falei a mesma coisa, suponho.

E, na minha cabe��a, eu pensava na cirurgia do implante que faria em breve: ���O que ser�� que, na minha rotina, mudaria com audi����o a mais?���





Mar portugu��s


Voc�� conhece a poesia ���Mar Portugu��s���, de Fernando Pessoa?

Provavelmente conhece dela, a famosa frase:

���Tudo vale a pena, se a alma n��o �� pequena.���



Mas a poesia inteira �� linda e explica, com toda a licen��a po��tica que Fernando Pessoa se permitiu, porque o mar �� salgado (e faz uma homenagem aos marinheiros que enfrentaram o mar e morreram nele durante a ��poca da descoberta das Am��ricas).

Sou apaixonada pela estrofe seguinte �� que todos se lembram.

A poesia toda, com destaque �� minha parte favorita:

�� mar salgado, quanto do teu sal

S��o l��grimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas m��es choraram,

Quantos filhos em v��o rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, �� mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma n��o �� pequena.

Quem quer passar al��m do Bojador

Tem que passar al��m da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele �� que espelhou o c��u.



Uma noite, passei horas conversando com minha amiga Anah��, ent��o estudante de Ci��ncias Sociais. Fal��vamos sobre a condi����o das pessoas com defici��ncia e, em dado momento, comentei dessa poesia e do quanto eu gostava do trecho que fala sobre o Bojador.Ela gostou do meu coment��rio e perguntou se podia guardar de recorda����o.

Muito tempo depois, estava novamente conversando com ela, quando ela me contou que tinha se formado, que iria apresentar o Trabalho de Conclus��o de Curso nos dias seguintes e perguntou se poderia me mandar uma c��pia. Comentou: ���Aquela frase que voc�� gosta �� a ep��grafe do meu TCC���.

Respondi que adoraria ler o trabalho dela, porque o imaginava com essa abertura de Fernando Pessoa: ���Quem quer passar al��m do Bojador���. O trabalho dela fala justamente da condi����o das pessoas com defici��ncia.

Enfim, recebi o arquivo, abri para ler porque o assunto em muito me interessa e, qual n��o foi a minha surpresa, dar de cara com este texto (admito que chorei na hora):

���Voc�� sabe o que �� o Bojador, n��? As pessoas achavam que o mundo era plano, mas se seguissem pelo mar at�� o horizonte, havia uma queda e acabava.

Esse limite do mundo se chamava Bojador. Um dia, algu��m atravessou e descobriu que o Bojador n��o existia.

Exatamente o que a gente tenta provar quando mostra que existe supera����o para a defici��ncia. Que existe vida al��m do Bojador imagin��rio das pessoas.���

��� de Lakshmi Lobato para Anahi, numa noite daquelas de papo sobre transcender-se �� pr��pria defici��ncia.



Ler isso me fez perceber que chegara o momento de atravessar o pr��prio Bojador!

E foi o que fiz���





2�� Parte:

Um mundo grita e canta





Sil��ncio no corredor


Apesar de todos os meus medos e a minha ansiedade, preferi, no dia da cirurgia, entrar acordada no centro cir��rgico. Eu tinha dormido muito bem a noite e estava bem tranquila quando cheguei ao hospital.

Chegando ao Hospital das Cl��nicas, o estacionamento fechou bem na hora que ir��amos entrar. Eu, que normalmente n��o sou de pedir coisas para desconhecidos, implorei para o seguran��a nos deixar entrar, j�� que eu precisava dar entrada no centro cir��rgico em poucos minutos. E ele concordou, apesar do estacionamento estar cheio, s�� pela maneira educada-mas-implorando como eu pedi.

J�� na recep����o, preenchemos a papelada e fiquei esperando ser chamada para ser levada ao quarto.

Nisso, minha m��e chegou. Enquanto isso, minha amiga Miriam mandava milhares de SMSs para o meu celular, avisando que logo chegaria.

A cirurgia de implante coclear, apesar da anestesia geral, �� relativamente simples e dificilmente requer muito al��m de 24 horas de interna����o.

Chegando ao quarto, me entregaram um avental, me mandaram tirar toda a roupa e vesti-lo, pois logo mais viria uma enfermeira me perguntar algumas coisas.

Pouco depois, chegou ela com uma prancheta e me fez um question��rio. Ficou fazendo umas perguntas bem ���t��cnicas��� como o meu peso e se eu tinha perdido peso nos ��ltimos dias. Que horas tinha comido pela ultima vez. Quais os rem��dios que eu tinha tomado nas ��ltimas setenta e duas horas, enfim���

L�� pelas tantas, ela me pergunta:

��� Voc�� fuma?



Eu respondi:

��� N��o.



E ela continuou:

��� Voc�� bebe?



E eu:

��� N��o.



E ela:

��� Voc�� tomou caf�� ou Coca-Cola recentemente?



E eu:

��� Bom, ontem �� noite.



A�� o quarto ficou um sil��ncio, todo mundo se entreolhando. A enfermeira me olhando com uma cara de apavorada���

E eu:

��� Bom, ningu��m me avisou que n��o podia consumir cafe��na na v��spera da cirurgia. Eu tomei coca-zero ontem no jantar, mas j�� fazem mais de 12 horas.



Ai o Edu caiu na gargalhada e me disse:

��� Lak, ela te perguntou se voc�� usa drogas���



Na leitura labial ��� at�� porque ela abaixou a cabe��a um pouco para ler a pergunta ��� eu confundi ���alguma droga��� com ���Coca-Cola���!

Depois de ficar vermelha e rir feito uma hiena de vergonha, respondi: ���N��o, n��o uso nenhuma droga���.

Depois de um certo atraso, fui chamada para a cirurgia. Em trajes hospitalares e sendo empurrada numa cadeira de rodas, pude me despedir da minha m��e e do Edu, que pareciam mais assustados do que eu.

Tentei externar a serenidade inacredit��vel que eu sentia, mas v��-los quase em l��grimas fez com que as minhas amea��assem saltar dos olhos. Resisti bravamente, porque sabia que qualquer medo de minha parte os deixaria ainda mais apreensivos e eu os queria em paz naquele instante.

Finalmente, o elevador chegou e eu parti, rumo ��quela mesa onde me seria inserido o aparelho que mudaria minha vida.

Eu deixaria de ser meramente humana para me tornar, tamb��m, um pouco m��quina.

Senti-me parte de uma gera����o pioneira de cyborgs, ainda que saiba que o implante coclear j�� est�� h�� v��rias d��cadas no mercado. A enfermeira levou-me a um corredor, onde havia algumas pessoas aguardando, deitadas em macas.

Pediu para que eu me deitasse numa delas e disse que logo viriam me buscar.

Pus-me na posi����o solicitada e fiquei um tempo incont��vel (na aus��ncia de rel��gio e pelas emo����es que sentia, sou incapaz de precisar quanto tempo esperei) olhando para o teto, envolta em milhares de pensamentos que me vinham �� cabe��a.

Eu listava mentalmente todos os sons que gostaria de (re)ouvir. Sons que gostaria de conhecer e pensava em toda a minha trajet��ria at�� a eternidade daquele instante.

Toda a vida em que vivi surda, ���escutava��� as pessoas falando sobre o quanto eu era forte e corajosa. Mas, tudo o que eu tinha feito at�� ent��o, tinha sido natural para mim. Coisas que eu fazia porque queria e dava um jeito de conseguir, dependendo basicamente da minha for��a de vontade e interesse.

Pela primeira vez, me sentia audaciosa, corajosa. Sentia que meu cora����o estava ansioso e receoso, com medo da cirurgia, de poss��veis frustra����es, mas certa de que era um passo necess��rio.

Embora estivesse sozinha com totais desconhecidos, durante todo o tempo que esperei me sentia acolhida de alguma forma. Era um momento fr��gil e especial. Talvez por isso eu estivesse t��o serena e confiante. Parecia ter certeza do futuro que me aguardava.

A cirurgia levou cerca de quatro horas. Acordei no centro cir��rgico levando tapinhas no ombro, do cirurgi��o que me operou, Dr. Robinson Koji. Ele avisou que tudo havia ocorrido bem e que, em pouco tempo, seria levada de volta ao quarto.

Perguntei se ele havia avisado minha m��e e o Edu. Ele disse que sim e eu voltei a dormir, pois o efeito da anestesia s�� foi passar na manh�� seguinte.

A ��nica coisa que n��o estava perfeita era minha c��clea. Ela n��o estava em perfeito estado e s�� foi poss��vel inserir 18 dos 22 eletrodos que comp��em um feixe completo do implante coclear. O que isso representaria, na pr��tica, ningu��m sabia dizer.

E, depois de 55 dias de ansiedade em n��vel extra m��ximo, meu implante finalmente foi ativado.





Cyborg ativada


Uma coisa que percebi, depois de 22 anos de sil��ncio, era o quanto eu amava ouvir e como sentia falta disso. Vivi por duas d��cadas com a sensa����o de que a surdez separou a minha alma em duas. Sempre me senti uma pessoa ouvinte, presa em um corpo surdo. Eu era duas, embora fosse uma s��. E o implante vinha com a for��a de reparar essa rachadura na minha alma.

O dia da ativa����o amanheceu lindo. Fui trabalhar, embora n��o tenha conseguido me concentrar muito em nada ��� havia dormido �� base de meia garrafa de vinho. Voltei para casa, almocei, busquei o Edu no trabalho e fomos para o consult��rio da Dra. Val��ria Goffi, o anjo que ativaria os eletrodos inseridos na minha c��clea, finalmente.

Neste dia, enquanto ativava o implante, a sensa����o que me dava era de que ele iria reunificar a minha alma. O que �� ir��nico, j�� que passei a ser meio humana, meio m��quina. Por��m voltaria a ser uma s��, mas agora uma ouvinte cibern��tica.

Chegando ao consult��rio, a espera parecia eterna, mas n��o apenas pela ansiedade. Realmente atrasou bastante, j�� que era um encaixe de consulta.

Fui chamada e a fonoaudi��loga abriu uma caixa enorme do kit que acompanha o implante. Tirou um coala de pel��cia (mascote da Cochlear, a marca do meu aparelho) e colocou um implante de brinquedo nele, que vinha na caixa, dizendo: ���Ele vai receber o implante dele antes de voc�����.

Eu ri e botei ele no colo, xingando ele em pensamento, dada a minha ansiedade: ���Como assim, ele primeiro?���

Logo em seguida, foi a minha vez. Ela demorou s��culos para montar o aparelho todo, mas era um prazer olhar para aquela montagem e saber que dali uns segundos come��aria uma nova etapa da minha vida.

Ela conectou a antena (a parte do im��) na minha cabe��a, junto com o processador que foi conectado ao computador. Ent��o, come��ou a ligar os sons at�� chegar ao limite aud��vel suport��vel. O implante coclear �� um processo gradual e lento, leva anos para se ter uma audi����o razoavelmente pr��xima da audi����o de um ouvinte.

A sensa����o inicial �� de levar leves choques auditivos, similares ao que a gente tem quando bebe algo muito gelado, por exemplo.

Logo ap��s a ativa����o, tudo �� t��o baixo (porque mais alto costuma dar tontura) que tem coisas que eu ouvia, mas ficava em d��vida se n��o teria imaginado.

Embora, no come��o, eu n��o fosse capaz de discriminar nada do que ouvia, percebi de imediato o qu��o diferente era do aparelho convencional.

Com o AASI, ouvia o tempo todo como se falassem num alto-falante, todo som era acompanhado de ru��dos e chiados, muitas vezes parecendo que tudo era um som s��.

Com o IC, eu imediatamente escutava sons separados, cada coisa era uma coisa. Consegui, por exemplo, reconhecer o som dos carros passando numa avenida, sabendo que estava longe de mim. Com o AASI, nunca consegui saber se o som estava pr��ximo ou distante.

Na semana seguinte, eu mesma aumentaria um pouco o volume do IC, mudando o programa. Foram feitos quatro programas nesta vez, que eu mudava a cada semana.

Assim que deixamos o consult��rio, Edu me perguntou se eu queria ouvir m��sica. Respondi que sim e ele foi testando v��rias, at�� eu gostar de uma. A m��sica era ���Save Tonight��� do Eagle-Eye Cherry. Eu adorei, especialmente porque, depois de tantos anos sem ouvir com um m��nimo de clareza, pude finalmente ouvir uma m��sica ��� mesmo nem chegando perto de discriminar a letra ��� em que a melodia me soava pr��xima do que eu lembrava ser uma m��sica. Escondi o rosto entre as m��os e chorei de lavar a alma!





A placa de som nova


Antes de implantada, gostava de brincar que eu n��o era surda, apenas tinha queimado minha ���placa de som interna���.

Por uma ironia do destino, no dia em que ligaram a placa nova da minha cabe��a, substituindo aquela que ficou queimada por vinte e tr��s anos, houve uma festa.

Como j�� contei, atrav��s dos aparelhos auditivos convencionais, os sons t��m um chiado inconveniente que torna tudo muito cansativo. Independente de poder ter um som ambiente, n��o era raro eu ser incapaz de passar o dia todo com eles.

Quando liguei o implante coclear, percebi de imediato o prazer que �� ouvir atrav��s dele. O som reproduzido �� tal como ��. Barulhento ou silencioso, conforme o som ambiente.

Quando cheguei �� festa, ouvi ao longe a m��sica da banda que tocava ao vivo e passei um bom tempo pensando como as pessoas ouvintes conseguem perceber a diferen��a entre um som ao vivo e, por exemplo, um CD.

Esses pequenos detalhes, que qualquer pessoa percebe f��cil, eram algumas das milhares de milhares de d��vidas sobre sons cotidianos que surgiam em minha mente.

Quem convivia comigo estava bem ciente de que eu tinha sido ���ativada��� naquela tarde, todos queriam ver a parte externa do implante. �� engra��ado, ningu��m tem qualquer tipo de compreens��o de como se ouve atrav��s de uma m��quina, mas faz quest��o de v��-la. E, para quem est�� encantado com o que aquela maquininha produz, exibi-la �� um prazer.

Quando alguma pessoa se aproximava para conversar, a voz dela n��o se destacava muito da m��sica, mas era poss��vel perceb��-las, com certo esfor��o da mente.

A m��sica soava como um perfume suave que chegava devagar e preenchia o ambiente, alterando o estado de esp��rito de cada um que podia perceb��-la.

A sensa����o era de sentir a alma dan��ar pelo som que pairava no ar.

Eu olhava as pessoas encantada, como sempre fiz durante os meus tempos de sil��ncio. Por��m, um encanto diferente, porque, pela primeira vez em muito tempo, eu entendia o que estava acontecendo com elas.

Podia sentir a m��sica chegar ao meu c��rebro e acionar um comando que fazia meu cora����o tentar bater no mesmo compasso. Era como se cada c��lula do meu corpo vestisse malha e sapatilha, querendo bailar num palco, ao som daquela m��sica.

Sentia, mais que tudo, que eu era parte do ambiente ao meu redor. Via a redoma de vidro, que durante muito tempo me afastou de tudo, estilha��ar-se em milh��es de peda��os �� minha volta.





Efeitos sonoros


Fazia apenas duas semanas que eu havia ativado o aparelho. E a melhor parte �� que coincidiu com o recesso de final de ano no trabalho. Portanto, tinha alguns dias para exclusivamente curtir o implante e suas inesgot��veis descobertas.

Edu perguntou se eu queria ir ao cinema. Bateu uma pontinha de medo. Desde crian��a cinema era algo silencioso para mim, j�� que com aparelho convencional jamais consegui ter uma percep����o boa o bastante do som e era comum eu desligar o aparelho durante o filme, pois achava que mais atrapalhava que ajudava.

Escolhemos um filme que estava fazendo um sucesso enorme na ocasi��o. ���Avatar��� e decidimos assisti-lo na vers��o 3D Imax, porque achei que, depois de 22 anos de espera, precisava come��ar logo de maneira realmente especial.

Chegando ao cinema, comprei pipoca, bala e refrigerante, porque realmente queria que a experi��ncia fosse completa em todos os sentidos e n��o consigo imaginar uma sess��o de cinema completa sem essas guloseimas!

E, ao entrar na sala, recebemos aqueles ��culos imensos que possibilitam a visualiza����o das imagens 3D. S�� que isso me deixou apreensiva: minha orelha estava rec��m-costurada, mal havia se adaptado ao peso do aparelho. Ser�� que a pobrezinha iria aguentar algo mais pendurado? Tive um impulso de quebrar a haste esquerda dos ��culos e deixar o peso s�� para a orelha direita e o nariz. Mas, claro, n��o o fiz porque n��o queria ter que pagar pela pe��a quebrada! Da�� passei a sess��o inteira ajeitando a haste na orelha, para tentar amenizar o peso.

O filme em si eu achei bonitinho, mas confesso que senti uma identifica����o forte com o personagem, que vivia nas telas justamente algo que eu estava vivendo naquele momento. Para quem n��o sabe, era a hist��ria de um rapaz cadeirante que tinha oportunidade de correr novamente usando outro corpo, o tal avatar do t��tulo. Eu vivia a mesma experi��ncia: podia finalmente ouvir de novo, s�� que atrav��s do IC.

Sei que foi apenas uma coincid��ncia escolhermos justo esse filme. Mas minha vida sempre foi assim. Quando ensurdeci, o filme que fazia sucesso era ���Filhos do Sil��ncio���, com a atriz e surda Marlee Matlin, e contava a hist��ria de uma surda que queria viver a vida dela em paz.

Lembro que sa�� do cinema, depois de assistir ���Avatar���, meio atordoada pelo barulho. Era muito recente meu retorno ao universo sonoro e foi dif��cil identificar tudo o que ouvia: os sons, as m��sicas, as explos��es, di��logos, etc.

Mas confesso que, reconhecendo ou n��o, fiquei encantada pela oportunidade. Ouvir era algo que, em todos os sentidos, valia a pena!





O canto do cabelo


Estava me arrumando para sair���

E, pelo tempo sem ouvir somado �� recente redescoberta dos sons, eu prestava aten����o em todos os detalhes.

Para quem ficou tanto tempo em sil��ncio, ouvir era uma experi��ncia riqu��ssima. O mundo �� barulhento demais.

Quando pegava a cal��a jeans, ouvia barulho. Vesti-la tinha um som pr��prio. Quase nada �� poss��vel fazer em sil��ncio, porque o mundo grita e canta o tempo inteiro. Tal como uma crian��a querendo chamar aten����o, o mundo parecia falar comigo constantemente.

Quando estava pronta, levei as m��os ao cabelo. Meu marido assistia �� cena com uma carinha de entediado, porque sabe que demoro bastante para me arrumar. Ainda mais nessa ��poca, em que eu estava mergulhada num estado de deslumbramento sonoro.

Mas, nesse instante, mais uma (re)descoberta: passar as m��os no cabelo fazia barulho.

Fiquei ressabiada, aquilo n��o me parecia poss��vel. Por que passar as m��os no cabelo produziria som?

Repeti o ato. Sim, era poss��vel, embora t��o baixo que qualquer pessoa distra��da seria incapaz de perceber.

Exclamei com espontaneidade:

��� Acariciar os cabelos tem som!



Edu riu de mim, mas um riso de ternura, de contentamento de quem observa algu��m descobrir uma novidade. Disse, com toda a candura de quem compreende tamanho entusiasmo: ���Sim, faz um barulhinho���.

E trouxe a cabe��a para perto de mim, para que eu tamb��m pudesse toc��-la e ouvir o som feito nos cabelos aparados com m��quina que usa desde sempre. Outro som, mesmo som���

Foi imposs��vel segurar as l��grimas que brotavam junto com o riso. Emo����es complexas n��o geram rea����es simples.

Corri para contar ao mundo essa experi��ncia inesperada: as pessoas precisavam saber!

Houve quem tenha acreditado sem contestar.

Houve quem quisesse provar e escutar com os pr��prios ouvidos e cora����o.

Houve quem contestasse: ���N��o faz, n��o. �� imposs��vel que passar as m��os no cabelo fa��a barulho���.

Estes ��ltimos, sem saber, estavam t��o ou mais surdos do que eu j�� fui um dia. Mas era uma surdez mental e n��o f��sica.

S�� pude responder com serenidade: ���Busque um local silencioso e tente ouvir por si mesmo���.

�� preciso conhecer um pouco do sil��ncio para reconhecer a magnitude do som.





Ru��dos pipocantes


Curtindo a madrugada vendo filmes, me bateu aquela vontade t��pica de comer pipoca ��� sozinha, porque o Edu n��o curte.

Compro pacote pequeno, porque sen��o a consci��ncia pesa depois���

Antigamente, os implantados eram aconselhados a ter os mesmos cuidados que portadores de marca-passo e, at�� hoje, comenta-se sobre o micro-ondas dar interfer��ncia na programa����o. Portanto, todo implantado que se preze tem receio de ficar muito perto de um micro-ondas em funcionamento. Apesar de eu n��o levar muito a s��rio essas recomenda����es, prefiro n��o concordar nem discordar dessa regra. Siga o que o m��dico que fez seu IC mandar.

Por��m, era de madrugada e o sil��ncio reinava. Da sala, comecei a ouvir pequenas explos��ezinhas: ploc ploc ploc.

Arregalei os olhos e falei:

��� Edu, estou ouvindo daqui as pipocas estourarem!



E, naquela noite, a pipoca teve um gosto todo especial.

Al��m de sabor, tinha aroma. E al��m do aroma, tinha som. Poder ouvir esse som era um privil��gio. Ouvir o milho estourando para virar pipoca, naquele instante, era como escutar um milagre.





Latido de cachorro


Parei o carro num sem��foro praticamente vazio, s�� meu carro por ali. Ouvi um barulho. Ele se repetiu. Fiquei tentando deduzir o que era, at�� que me lembrei de j�� t��-lo ouvido antes e de ter perguntado ao Edu o que era aquilo.

Lembrei dele responder: ���Latido de cachorro, Lak!���

E, como n��o havia nenhum cachorro vis��vel, logo, foi uma quest��o de segundos para achar a refer��ncia na mem��ria auditiva e reconhecer o som.

Nada como reaprender a ouvir o mundo!





O som da chuva mais desejada do mundo


Eis que, no meio das enchentes que aparentemente n��o parariam mais, no come��o de 2010, o barulho da chuva teve um significado todo especial.

Numa tarde, para variar, come��ou mais uma dessas chuvas que alagava a cidade toda.

Eu estava no trabalho quando ouvi um barulho forte e pensei: ���Uau, est�� chovendo de novo���. Dei uma espiada pelo canto do olho, para confirmar se era uma chuva forte ou um temporal. De reflexo mesmo, porque pela barulheira dos trov��es que come��aram logo em seguida, j�� ficaria bem f��cil deduzir.

Segundos depois, dei-me conta: era a primeira vez, em 23 anos, que eu reconhecia auditiva e espontaneamente o som da chuva.





A singela arte de amar


Quando eu decidi colocar o implante coclear, sempre me perguntavam qual era a primeira coisa que eu queria escutar.

Porque a diferen��a entre ouvir e escutar ��� comumente tidas como sin��nimos ��� pode ser confusa, mas existe. Ouvir �� o ato de captar o som e ele chegar ao c��rebro. Escutar �� assimilar o que ouviu e interpretar o som.

Eu sabia que a primeira coisa que iria escutar n��o seria voz. Foi uma garrafa de refrigerante sendo aberta.

Foi uma experi��ncia boba, mas m��gica. Um barulhinho que eu n��o conhecia, mas reconheci de imediato e que achei delicioso.

Aquele ���tichiiiiiii��� havia sido o primeiro passo de um prazeroso caminho de descobertas e redescobertas sonoras.

Mas, ainda assim, quando me perguntavam o que eu gostaria de ouvir, eu respondia: ���Pois bem, a primeira coisa que quero escutar �� ���eu te amo��� porque nunca escutei essa frase se n��o dos meus pais��� (o que �� maravilhoso, mas n��o �� tudo).

Todas as vezes que algu��m havia me dito isso, eu lera nos l��bios, nos olhos e no cora����o. Ali��s, ���eu te amo��� �� uma frase f��cil de ler. Mesmo sem perceber, a maioria das pessoas �� capaz de ler l��bios, pelo menos o b��sico. E ���eu te amo���, assim como xingamentos, �� justamente uma frase que praticamente todo mundo entende.

Enfim, continuando, por mais completa que fosse essa experi��ncia de amar e ser amada, eu queria poder ouvir, escutar, entender e assimilar a frase dita ���eu te amo��� com todas as letras, auditivamente falando. Essa era uma experi��ncia que eu ainda n��o havia vivido.

Uma noite, estava falando com o Edu e ele disse ���eu te amo���. Fechei os olhos, pois estava com o IC e pedi para ele repetir. Escutei algo como ���tchenhamu��� e comecei a rir, porque foi a primeira vez que ouvi essa frase de olhos fechados.

Ri de contentamento, porque a frase vinha carregada de um sentimento m��tuo. Era a primeira vez que eu a ouvia. Era a primeira vez que a voz dele seria ouvida, literalmente, pela pessoa que ele ama.





O dom de voar (ou n��o?)


Certa vez, estava vendo um v��deo no trabalho. Meu computador do trabalho ficava com a caixa de som desligada porque trabalh��vamos em 20 pessoas numa sala. As pessoas s�� ouviam v��deos e m��sicas se estivessem de fone de ouvido.

Todo implantado da marca que uso recebe um kit que, entre outras coisas, vem com um cabo especial que conecta a parte externa do implante diretamente no computador, na TV ou qualquer aparelho eletr��nico, mas eu sempre esquecia de coloc��-lo na bolsa.

Dado o fato que n��o tenho, at�� hoje, o h��bito de usar o som do computador, acabava n��o tendo muita necessidade dele mesmo.

Mas, naquele dia, eu estava vendo um v��deo de uma dan��a e ouvia perfeitamente a m��sica. Linda! At�� que���

Me dei conta de que n��o estava realmente ouvindo a m��sica. O ��udio do computador n��o estava ligado e, auditivamente, eu n��o estava captando nada, era meramente a minha imagina����o.

Um sil��ncio enorme se fez na minha cabe��a. A m��sica imaginada havia sumido de repente.

Sabe aquelas cenas de desenho animado que o personagem est�� correndo, passa por um abismo, continua correndo at�� que se d�� conta de que o ch��o sumiu e a gravidade finalmente surge, fazendo o personagem cair ao ch��o?

Pois ��, foi exatamente isso. Uma sensa����o absurda de cair num abismo de sil��ncio!

Pela primeira vez, me dei conta de que realmente retorno a ser uma ouvinte comum, que ouve com os ouvidos e n��o com os olhos���





A vida em cor de rosa


Quando crian��a, o que eu mais gostava nessa vida era de assistir a desenhos animados. Claro que havia um ou outro de que eu n��o gostava tanto, mas certamente adorava a maioria.

Gostava de tantos desenhos que ficaria dif��cil eleger um favorito, mas algo que eu amava de paix��o era ao tema de abertura do desenho ���A Pantera Cor de Rosa���.

Uma vez, quando eu ainda tinha um outro blog, que era mero di��rio virtual, sem nenhum foco aparente, fiz uma lista das m��sicas que gostaria de ouvir de novo algum dia. Nem que fosse depois da morte (se houver vida ap��s a morte, por que n��o?). E, dentre elas, a m��sica que mais me do��a n��o poder ouvir era esse jazz.

Eu at�� tenho uma caixinha de m��sica, movida a corda, com um trecho da m��sica, comprada ao acaso em uma loja em Paris. Era uma tentativa de sentir a m��sica, embora n��o fosse a mesma coisa.

Quando meus amigos souberam que eu faria o implante coclear, fizeram quest��o de me listar um monte de m��sicas que gostariam que eu conhecesse. Houve quem me mandasse v��rios v��deos do YouTube e ainda me fizesse uma an��lise de milh��es de motivos pelo qual o gosto musical dele era impec��vel e superior a qualquer outro���

Mas demorou uns meses depois do implante para eu sentir coragem de procurar minha m��sica amada e ouvi-la.

Uma noite, sentada ao computador conversando com o Alex, um amigo meu, comentei que ia procurar a m��sica e finalmente iria ouvir. Ele deu a maior for��a.

Encontrei o v��deo, deixei-o carregando, enquanto ligava meu implante no computador com o cabo especial dele.

A m��sica come��ou���

Ouvi.

Senti uma sensa����o muit��ssimo estranha.

Fiquei anestesiada de choque.

Comentei que tinha ouvido a m��sica.

E continuei com a sensa����o de anestesia���

Pouco depois, a ficha caiu, eu tinha conseguido ouvir cada trecho da m��sica novamente. E, o melhor: como �� m��sica instrumental, n��o havia voz para ���atrapalhar���.

A emo����o que senti foi t��o violenta, que parecia que meu peito iria explodir. Eu chorei copiosamente, sem sequer compreender direito o que estava sentido.

Ouvi de novo a m��sica e chorei at�� rosto inchar.

O pior de tudo foi perceber que eu realmente cheguei a acreditar que nunca mais poderia ouvir essa m��sica. E perceber que ela era parte de tudo o que eu queria poder ouvir de novo.

Durante muito tempo tive dificuldade de ouvir essa m��sica sem relembrar aquela emo����o. Uma emo����o de gratid��o eterna �� pessoa que inventou o implante coclear e p��de me devolver algo que eu queria demais nessa vida: ouvir o tema de abertura do meu desenho favorito!





Passagem proibida


Uma ���regra��� que todo implantado ouve �� de que �� proibido passar por detectores de metais.

Isso porque, quando o IC chegou ao mercado, n��o sabiam quais eram os riscos para esse dispositivo. Ent��o resolveram usar as mesmas regras recomendadas para o marca-passo card��aco.

Quando conversei com a Dra. Val��ria Goffi, ��� fonoaudi��loga que havia pego meu caso para mapeamentos ��� antes da cirurgia, perguntei sobre todas as regras de que havia ouvido falar.

Basicamente, o implante coclear �� feito com a proposta de melhorar a qualidade de vida de uma pessoa que tem defici��ncia auditiva em graus severo e/ou profundo. Mas, como todo dispositivo eletr��nico, ele tem algumas restri����es que o corpo naturalmente n��o teria.

Normalmente, nos avisam para ficarmos longe de detectores de metais e micro-ondas ligados. Somos proibidos de fazer cirurgia com bisturi eletr��nico e tatuagens a menos de 15cm do receptor interno (que fica 1 ou 2cm acima da orelha). E pede-se para evitar qualquer coisa que possa gerar eletricidade est��tica, tais como tocar na televis��o ou monitor tubular, brinquedos de pl��stico (que geram energia por atrito), roupas de material sint��tico, etc.

Nessa tal conversa com a Dra. Val��ria, ela disse que a maioria das regras s��o mais por precau����o do que por perigo real. E, no caso de detectores de metal, os riscos de interfer��ncia ou desprograma����o nos modelos atuais s��o m��nimos. At�� porque a quantidade de metal presente no receptor interno e na parte externa n��o �� suficiente para disparar o alarme. Em resumo, seria o mesmo risco de ter problemas com obtura����es dent��rias. Apenas poderia ser o caso do campo magn��tico afetar a programa����o, ent��o a gente deveria evit��-la.

Enfim, depois de implantada, nos primeiros meses, eu tinha a preocupa����o de desligar o IC todas as vezes que entrava e sa��a do banco. Depois, fui esquecendo e, hoje, at�� em aeroporto eu passo com o IC ligado sem nunca ter o problema de ser barrada por conta dele. Mas falo por mim e assumo os riscos que corro, n��o recomendo que todo mundo saia fazendo o mesmo.

Na primeira vez que fui viajar depois de operada, indo para Buenos Aires, reparei na placa que havia no detector de metal da Pol��cia Federal:

���PROIBIDA A PASSAGEM DE USU��RIOS DE MARCAPASSOS OU IMPLANTES COCLEARES.���



Virei para o Edu e disse:

��� Olha, vou testar o que acontece se eu avisar que sou usu��ria do IC s�� para relatar no meu blog, ok?



Ele concordou e passou na minha frente.

Quando chegou minha vez, virei para a policial que estava ao lado do detector e disse, apontando a placa:

��� Senhorita, eu uso implante coclear.



Ela arregalou os olhos como se eu tivesse sido a primeira pessoa a falar algo que ela aprendeu mas nunca botou em pr��tica e, depois de alguns segundos pensando, disse:

��� Voc�� tem algo que comprove que voc�� �� implantada?



Entreguei, junto com a passagem, a carteirinha fornecida junto com o IC, que garante que sou usu��ria do aparelho.

Ela anotou algo e disse:

��� Voc�� pode passar por ali��� ��� apontando para uma ��rea que permitia o acesso sem passar pelo detector.



Mas ficou em posse da minha passagem e carteirinha de implantada.

Nisso, come��ou uma discuss��o entre ela, outra fiscal e mais um terceiro: ���E agora? A gente faz o qu��? Voc�� chama o supervisor? N��o, voc�� chama! Olha, a menina �� implantada, voc�� tem que tomar uma provid��ncia!��� Enquanto eu e o Edu nos entreolh��vamos vendo aquela cena inacredit��vel.

No fim, um rapaz da pol��cia foi at�� uma sala e, dois segundos depois, berrou da porta:

��� Algu��m pergunta para ela se o aparelho �� vis��vel!



Levantei o cabelo e mostrei a parte externa.

Em seguida, me devolveram meus documentos e me mandaram andar.

Virei para o Edu e fiz piada:

��� Nossa, se eu soubesse que nem revista manual teria, traria a minha AK-47 que ficou em casa.



Edu me olhou feio e respondeu:

��� Fala baixo, doida! O pessoal aqui n��o leva esse tipo de piada na boa!





Rumo �� fonoterapia


Quando entrei para o programa de implante coclear do Hospital das Cl��nicas de S��o Paulo, recebi a informa����o de que era obrigat��rio fazer reabilita����o sonora com fonoaudi��loga. Tudo porque o sucesso do IC depende muito do treinamento. N��o adianta coloc��-lo esperando aprender a ouvir com ele naturalmente (embora tenha quem fa��a isso, claro) porque ele �� uma tecnologia e, como tal, temos que aprender a us��-la.

Eu dei uma boa enrolada, depois da cirurgia, at�� come��ar as consultas, simplesmente porque estava curtindo tudo sem pressa.

Mas, como n��o achava uma profissional especializada em Implante para me atender, pedi indica����o aos amigos.

Uma amiga, Renata, me indicou a fono a que ela ia. Mas a mo��a disse que estava se mudando para a Esc��cia em breve e n��o queria pegar casos novos, mas poderia me indicar outra profissional excelente: a Aline.

Marquei, via e-mail, uma consulta, para ver se ela se interessaria em pegar o meu caso.

A primeira coisa que ela me perguntou foi se eu queria dar prioridade ao aprendizado auditivo ou fazer terapia para a fala.

Eu disse que preferia me dedicar a aprender a ouvir. O sotaque da voz, achava eu, melhoraria por consequ��ncia da capacidade de ouvir melhor.

Confesso que cheguei �� consulta sem grandes expectativas. Tenho uma tend��ncia natural a implicar com fonoaudi��logas. E com psic��logos. E com m��dicos��� Pensando bem, eu implico com todo mundo e, por isso, estava receosa.

De imediato, senti uma afinidade tremenda com Aline. Ela n��o tinha essa postura de ���sou algu��m que vai cuidar de voc��, doentinha���, mas de algu��m que queria iniciar uma parceria para a constru����o de algo. Que, no caso, tratava-se da minha compreens��o auditiva.

Acredito muito que o sucesso de uma fonoterapia depende da afinidade entre o terapeuta e o paciente. Quando existe vontade de trabalhar em conjunto, o neg��cio flui. Se um dos lados n��o se sente �� vontade, o tro��o empaca e n��o vai a lugar nenhum���

As consultas eram t��o boas, que eu ficava a semana toda aguardando a pr��xima e fazia em casa todos os exerc��cios que ela me passava.

O IC havia, ent��o, aberto mais uma porta, da certeza que reabilita����o auditiva �� realmente poss��vel!





Lembran��as sonoras


Foi um prazer perceber quando entrei na segunda etapa da recupera����o auditiva.

A primeira �� ouvir, conhecer, identificar e discriminar ��� o aprendizado inicial de utilizar a audi����o de qualquer ser humano. Claro que, para aqueles que n��o nasceram surdos ou nem adquiriram defici��ncia auditiva, esse processo se d�� nos primeiros 2 anos de vida e, portanto, a maioria nem se lembra���

Depois disso, vem a etapa emocional: criar v��nculo com o som, relacion��-lo a situa����es, criar uma mem��ria sentimental quanto a determinados sons. Muita gente faz isso com m��sica. Uma m��sica para cada emo����o espec��fica.

Eu n��o vinculava nada com nada ainda. Mas, certa noite, um som ativou uma lembran��a da minha inf��ncia e veio aquela sensa����o gostosa de esfor��o recompensado.

90% dos sons de coisas, eu n��o me lembrava bem. A maioria caiu no mais absoluto esquecimento, simplesmente porque n��o havia espa��o na mem��ria para me lembrar de coisas bestas, como o barulho que um copo faz ao esbarrar em outro. Em 23 anos de sil��ncio, havia muito mais coisa importante para me lembrar do que esse tipo de amenidade.

Enfim, vinha fazendo frio e eu tenho as extremidades frias. Vivo com os p��s e as m��os gelados o inverno inteiro, portanto, tenho o h��bito de atrit��-los para esquentar, especialmente quando come��a a sumir a sensibilidade da ponta dos dedos.

Naquela ocasi��o, estava esfregando as m��os, nessa tentativa de esquent��-las, quando percebi nitidamente que isso faz um barulho bem particular. Achei o som gostoso e fiquei repetindo o som ��� gosto de fazer isso para criar mem��ria auditiva ��� at�� que uma imagem veio na minha mente���

Meu pai �� massoterapeuta e, durante toda a minha inf��ncia, acompanhei aulas de Massagem Oriental que ele ministrava. Em determinado ponto da aula, ele dizia: ���Vamos atritar as m��os para esquent��-las������ e a sala se enchia desse som, feito em un��ssono por todas as pessoas da sala. Acho que eu gostava muito desse barulho, porque fechei os olhos e me lembrei nitidamente das aulas, em sala acolchoada, cheiro de incenso e, ��s vezes, um mantra tocando baixinho ao fundo. Luz azul ��� muitas vezes, a aula ficava �� meia luz para propor relaxamento ��� e a voz do meu pai, preenchendo o ambiente com pessoas de olhos fechados, falando de forma calma e pausada.

Senti uma vontade enorme de chorar. Naquele instante, eu me senti abra��ada pelo meu pai���





Na Copa das vuvuzelas


Desde 1986, quando eu ainda era uma ouvintezinha ing��nua e indefesa, que Copa do Mundo n��o era sin��nimo de barulheira para mim.

Minha audi����o residual era fraqu��ssima e eu nunca fui muito de prestar aten����o em sons baixinhos (para mim, claro).

Na Copa de 2010, pela primeira vez, em 23 anos, tive o prazer de assistir e ouvir os jogos da Copa e rolei de rir com as reclama����es infind��veis do povo quanto ��s ���vuvuzelas���, porque reclamar de barulho �� infinitamente melhor do que o sil��ncio permanente.

Ademais, eu tinha a op����o de desligar os aparelhos, quando o barulho me enchia o saco, ent��o, eu me divertia!

Como o frustrante jogo Brasil x Portugal foi pela manh��, l�� na ag��ncia que eu trabalhava, optaram por fazer uma festa em vez de liberar os funcion��rios para ver o jogo em casa.

Por um lado, o povo deu aquela chiada ���eu queria ver o jogo na minha televis��o de 72 polegadas���, por outro, tamb��m foi gostoso compartilhar a partida com gente com quem pass��vamos oito horas por dia.

Tinham me pedido para fotografar o evento e eu topei, j�� que nunca conseguia assistir a um jogo quieta. Fico ansiosa e entediada (v�� se pode?) e era bom ter algo para me distrair.

Mas o que me chamou mesmo a aten����o nesse dia foi descobrir como ���ouvir��� a emo����o do jogo ��� ainda que esse n��o tenha tido nenhuma ��� �� uma das coisas que mais une as pessoas.

S��o os gritos de decep����o, s��o as risadas, �� aquele burburinho de descontentamento que as pessoas lan��am no ar porque a emo����o transborda.

Num dado momento, fiquei de costas para todo mundo e percebi que o som me mantinha atada �� aura emocional daquele lugar/instante.

Voltar a ouvir, para mim, era a mais m��gica das experi��ncias, porque simplesmente conseguia prestar aten����o em coisas que, provavelmente, ao longo do tempo, se tornariam banais.

E, as tais das cornetas apelidadas de vuvuzelas, de que todo mundo tanto reclamava, nem me incomodaram tanto assim!





Pequenos passos de independ��ncia


Num s��bado, ap��s ter sido implantada, o Edu precisou sair e eu fiquei em casa esperando para ir buscar a Kali, minha amiga de inf��ncia, no aeroporto (ela mora no Rio de Janeiro) at�� que ela me mandou uma mensagem de texto, via celular, dizendo que preferia vir de t��xi. Respondi para ela dar um toque no celular quando chegasse que eu desceria para busc��-la. Como durante duas d��cadas eu n��o podia ouvir o interfone ou a campainha, essa era a maneira que eu recebia minhas visitas em casa. A gente sempre d�� um jeito!

Mas resolvi apagar o recado e tentar algo inusitado.

Escrevi: ���Interfona quando voc�� chegar���.

Pode parecer besteira, mas, para mim, era um passo enorme de independ��ncia poder usar a audi����o para receber algu��m em casa.

Depois de enviado o recado, veio a sensa����o de inseguran��a: ���Ai, socorro! Ser�� que eu consigo atender o interfone estando sozinha em casa?��� pensei.

Tudo porque seria uma situa����o totalmente nova. E at�� avisei-a para, qualquer coisa, mandar recado via celular quando chegasse. Precisava de uma rede de seguran��a, n��?

Logo depois, o interfone tocou. Levei uns 3 segundos para reconhecer que tratava-se do interfone, de t��o poucas vezes que o tinha ouvido tocar. Atendi e ouvi o porteiro falar, embora n��o tenha compreendido exatamente as palavras que ele disse, simplesmente deduzi. A voz dele soou t��o baixinha, que me pareceu um ratinho fazendo barulho.

Respondi:

��� Ok, pode mand��-la subir. E desliguei.



Pouqu��ssimo tempo depois, ela estava aqui na porta. Tinha dado tudo certo!

Uma conquista t��o pequena, mas que representou um enorme salto de independ��ncia!





Um beijo a mais


V��nhamos andando pela rua, minha m��e e eu.

T��nhamos almo��ado num restaurante perto de casa, de modo que fomos e voltamos a p��.

Fazia um sol gostoso, estava um dia lindo! A rua estava quase deserta, exceto pelos carros que passavam de maneira bem pregui��osa, porque era tarde de s��bado.

Eu caminhava atenta aos ru��dos, porque tudo me despertava a aten����o. O mundo, silencioso por duas d��cadas, agora tinha milhares de sons e eu queria saborear cada um deles. A aus��ncia deles significara tamb��m a sensa����o da minha aus��ncia no mundo.

Na ocasi��o, eu ainda n��o identificava todos os barulhos que ouvia, mas j�� os ouvia; ora atenta, ora distra��da e isso era uma felicidade por si s��.

Passando por uma loja, um carro ligou o motor para sair da cal��ada onde estava estacionado e voltar �� rua.

Num reflexo impressionantemente r��pido, minha m��e me segurou para que eu n��o ficasse na frente do carro, com essa candura que as m��es t��m com os filhos, tenham oito ou oitenta anos. As m��es s��o assim��� Ela n��o percebeu que eu j�� tinha parado. Ent��o, eu disse sorrindo:

��� N��o se preocupe m��e, eu ouvi!



Ela sorriu de volta, com os olhos cheios d�����gua ��� l��grimas que poderiam ser descritas como um oceano de tranquilidade ��� e, sem dizer uma s�� palavra, acariciou meu rosto e deu-me um beijo na bochecha, transbordando uma emo����o que, mesmo vivendo em estado de total deslumbre, sou incapaz de descrever.

Dei-me conta do quanto fico feliz com cada som que reconhe��o. Todos me permitem aquela sensa����o profunda de realiza����o! Mas nenhum deles teve o impacto inenarr��vel do que ver a plenitude do rosto da minha m��e���

Fora aquela sensa����o de que, finalmente, algu��m tinha sido capaz de ouvir o mundo, pela primeira vez, outra vez, atrav��s dos meus ouvidos. Simples assim���





Amo Steve Jobs


Quando lan��aram o iPhone 4, que permitia videoconfer��ncia via conex��o wireless (ou seja, de boa qualidade, j�� que n��o dependia da fraca conex��o de internet dos celulares que j�� tinham essa modalidade), fui imediatamente compr��-lo.

Inicialmente, a ideia era poder simplesmente telefonar para o Eduardo, que �� fan��tico por tecnologias.

Mas, a novidade de ter uma conversa elaborada no telefone me fez n��o ser nada discreta e comentei com todos os meus amigos que havia adquirido aquele aparelho.

Qual n��o foi a minha surpresa saber que meu amigo Raul, tamb��m implantado e surdo de nascen��a, havia comprado o mesmo celular, o que nos permitia conversar ao telefone pela primeira vez.

Eu estava no trabalho, ent��o sa�� da sala e liguei para ele. A liga����o foi r��pida, porque ele parecia simplesmente n��o ter assunto para conversar.

Soube depois o quanto ele havia ficado emocionado, pois era a primeira vez na vida que ele conversava ao telefone sem ajuda.

Como sua m��e �� jornalista, ela pediu que ele escrevesse um texto sobre como havia sido, que foi enviado para v��rios sites (inclusive meu blog):

���Conversar pelo FaceTime ��� uma novidade do iPhone 4 ��� pode ser banal para as pessoas acostumadas a falar ao telefone, mas �� uma verdadeira revolu����o na vida dos surdos oralizados. A primeira ���liga����o��� entre dois deles foi de uma emo����o especial. Os dois falam e fazem leitura labial, mas sempre dependeram de algu��m para resolver coisas rotineiras que complicam bastante a vida de quem n��o tem o recurso quebra galho do telefone. Por exemplo, desbloquear cart��o de cr��dito. Os atendentes do outro lado exigem falar com o titular. Outra via crucis �� cancelar um plano de telefonia. S�� o titular pode fazer isso. S�� na hora de solicitar o servi��o, a exig��ncia cai, liberam na hora, sem qualquer preocupa����o se falam com o dono da linha ou n��o. Quem ouve tamb��m pode telefonar para algu��m e contar qualquer bobagem, o que �� muito bom. N��s, surdos, nunca pudemos.

Num passe de m��gica, a inven����o de Steve Jobs acabou com a depend��ncia e o aprisionamento emocional dos surdos. Ou quase. O pre��o do iPhone cobrado aqui no Brasil �� muito alto, devido aos impostos. Nos Estados Unidos, a operadora AT&T cobra U$ 199 d��lares (R$ 340). Aqui, o pre��o ainda gira em torno de R$ 1.200, o que impede que parentes e amigos pr��ximos de pessoas surdas se comuniquem com elas. Outro entrave �� o fato de ser necess��rio a rede wi-fi para falar atrav��s do FaceTime. N��o funciona em 3G. Mas Steve Jobs j�� �� idolatrado pelas pessoas com defici��ncia auditiva at�� pelo que j�� promete: a videochamada em 3G.

Eu intu��a a pequena revolu����o que o iPhone 4 iria me proporcionar. Por isso, nem me importei com o custo de fazer um plano iPhone, no qual est�� inclu��do pagar por 400 minutos de conversa que nunca vou ter, R$ 1.149 pelo aparelho e R$ 250 de mensalidade. N��o me enganei. Moro em Porto Alegre e, hoje, recebi minha primeira liga����o na vida. Era uma amiga surda, residente de S��o Paulo, querendo compartilhar o seu estado de gra��a pela compra do iPhone. O marido ouvinte sentia a falta de falar com ela ao telefone, por isso foram os dois resolver o problema, comprando o aparelho.

Confesso que fiquei sem rea����o durante a minha primeira videochamada. N��o sabia se chorava ou se continuava a conversa. N��o sabia nem como reagir, o que fazer ou responder, porque jamais falei desse jeito com ningu��m ao telefone. Muita coisa passava minha cabe��a ��� a briga cotidiana, desde crian��a, por autonomia, principal motivo de estresse entre os surdos. Pelo menos dos que falam, fazem leitura labial e est��o inseridos na sociedade ouvinte, mas se deparam com muitas barreiras, na maioria das vezes apenas criadas pela falta de bom senso de algumas empresas e ��rg��os governamentais ou de uma pol��tica voltada ��s necessidades espec��ficas de uma nova gera����o de surdos ��� oralizados e implantados.

O Steve Jobs deve achar apenas que, mais uma vez, foi respons��vel por um avan��o na tecnologia. Com certeza, jamais ir�� saber da pequena revolu����o pessoal que provocou na vida de dois surdos brasileiros no dia 20 de setembro de 2010. Sem qualquer exagero.���



Raul Sinedino





Can����es do mundo


T��nhamos decidido aonde ir��amos nas f��rias: Espanha e Paris, outra vez.

Na verdade, da outra vez que hav��amos ido �� Europa eu ainda n��o era implantada e morria de curiosidade de saber como eram os sons por aquelas bandas.

Fazia um tempinho que eu n��o praticava o meu franc��s, mas decidi ensinar algumas coisas ao Edu, porque ele tem facilidade de compreender o idioma, embora n��o fale praticamente nada.

Estava eu, explicando as diferen��as entre os sons das vogais francesas ��� todas aprendidas depois de surda ��� at�� que me dei conta de que o som que eu imaginava ao falar n��o era o som que eu escutava quando ouvia minha pron��ncia.

A verdade �� que, quando eu penso, imagino algo entre sons e letras. Foi tanto tempo sem ouvir, que minha ���voz interna��� (aquela voz que a gente normalmente ouve em pensamento) tinha dado lugar a uma voz visual. Era quase como se eu pensasse vendo as letras, embora n��o chegasse a ser t��o visual assim. Era um h��brido de som e forma.

Quando comentei disso com o Edu, ele ficou ressabiado:

��� Lak, eu acho que voc�� vai ter mais dificuldade de compreender o franc��s desta vez���



Ler os l��bios em franc��s n��o �� l�� das tarefas mais f��ceis, porque os nativos do idioma fazem muita liga����o nas palavras, parecendo que a frase n��o tem pausas. Mas at�� que sempre consegui me virar suficientemente bem.

N��o fazia ainda nem um ano que eu estava implantada, mas j�� sentia uma certa dificuldade de ler l��bios sem o IC, porque o c��rebro come��ava a usar muito o som como apoio para a leitura labial.

Isso porque, muito do que a gente l�� nos l��bios pode soar confuso, especialmente no caso de fonemas visualmente similares. A audi����o resolvia essas diferen��as, mesmo n��o estando perfeita a ponto de discriminar a fala sem o apoio do IC. Portanto, ler os l��bios agora dependia tamb��m de ouvir e vice-versa.

Quando chegamos a Paris, notei que o Edu estava certo. Era dific��limo compreender o que qualquer pessoa me dizia.

Normalmente, tinha que estar com o Edu o tempo todo. Ele ouvia, traduzia o franc��s para o portugu��s e eu respondia em franc��s���

Que dupla, n��?

Numa noite, precisamos descer �� recep����o do hotel para imprimir uns documentos (passagens, acho) e eu tinha acabado de tomar banho. Como n��o �� bom colocar o aparelho com os cabelos ainda molhados, desci sem o IC.

Resultado: eu e o recepcionista do hotel tivemos a conversa mais longa da minha estada em Paris.

Sem o IC para o c��rebro tentar ouvir, a leitura labial fez perfeitamente a compreens��o da fala sozinha.

Por isso, no dia seguinte, quis sair sozinha para fazer compras, desliguei o aparelho e pude me virar perfeitamente bem em franc��s.

Tudo porque eu simplesmente n��o tinha vocabul��rio auditivo em franc��s suficiente. Ou seja, terei que reaprender franc��s. Desta vez, ouvindo.





Sons do Mediterr��neo


Confundimos o hor��rio do voo e eu fiquei nervosa. T��nhamos apenas quarenta e cinco minutos para chegar, do centro de Madrid at�� o Aeroporto de Barajas. Com a desvantagem de que eu, como n��o tenho passaporte europeu, teria que passar pelo balc��o de check-in.

Mas, felizmente, correu tudo bem e pudemos voar tranquilamente para Palma de Mallorca.

Como era dia de semana e fora de temporada, o aeroporto de Mallorca estava t��o vazio que dava a impress��o de que era uma cidadezinha do interior.

Quando chegamos ao hotel, minha ficha caiu:

��� Edu, amanh�� ser�� a primeira vez, em quase vinte e quatro anos, que ouvirei o mar!



Ele confirmou e disse que tinha me levado l�� para que eu pudesse redescobrir esse som no Mar Mediterr��neo, porque sabe que sou apaixonada por esse mar desde quando me encantei com o azul turquesa da praia de Nice, na Riviera Francesa.

Senti-me inquieta, ansiosa. A vontade de chorar me invadiu quando encostei a cabe��a no travesseiro, pensando no barulho das ondas. Eu ���lia��� o barulho do mar, mas n��o fazia mais ideia se isso tinha a ver com a realidade ou se o som teria sido apagado da minha imagina����o���

Na manh�� seguinte, fomos passear pelas ruas de Mallorca, a procura de um bom caf�� da manh��, j�� que escolhemos ficar no centro da cidade e n��o �� beira da praia.

A primeira coisa que eu reparei era que o espanhol dos mallorquinos n��o soava como o espanhol de Madrid, embora eu n��o soubesse exatamente qual era a diferen��a.

A nossa caminhada nos levou, ironicamente, at�� onde era poss��vel ver o mar. Bom, obviamente, tratava-se de uma ilha e isso era meio esperado.

Edu comentou, assim que foi poss��vel ver o mar, longe de n��s:

��� Voc�� est�� ouvindo o barulho do mar?



Eu respondi:

��� Desculpe Edu, mas isso �� o barulho do tr��nsito.



Afinal, moro numa das cidades mais barulhentas e com um dos piores tr��nsitos do mundo e, para mim, esse barulho �� inconfund��vel.

Edu tentou falar que era o mar sim, mas parou um segundo para prestar aten����o e realmente era o barulho do tr��nsito, de uma avenida que separava o forte, onde est��vamos, do porto. Ele ficou vermelho e disse que estava me testando. Respondi que ele estava h�� tanto tempo quanto eu sem ouvir o mar e, provavelmente, nem se lembrava mais.

Finalmente, algum tempo depois, chegamos a uma praia onde era poss��vel ouvir umas ondinhas.

O Mediterr��neo, ali onde est��vamos, n��o fazia ondas, apenas meras ondula����es. Ainda assim, era poss��vel ouvir um barulhinho gostoso, muito melhor do que a minha imagina����o permitia.

Caminhamos em sil��ncio pela praia, enquanto ouvia as pequenas ondinhas quebrando aos meus p��s e o barulho que a areia fazia, quando era pisada.

Puro deleite sonoro���





A beb�� Joana


Desde 2001, existe na internet um f��rum dedicado exclusivamente a divulgar, esclarecer, compartilhar informa����es e experi��ncias relacionadas ao implante coclear, o FIC (F��rum do Implante Coclear).

Como quando resolvi fazer o IC j�� escrevia meu blog e j�� tinha contato com amigos implantados, confesso que demorei muito para me cadastrar e participei pouco do FIC ao longo da vida. Mas sei a import��ncia do F��rum e fa��o quest��o de citar e aconselhar as pessoas a fazerem parte dele. �� l�� o maior local para intera����o virtual de pessoas usu��rias do implante coclear, familiares e interessados.

Numa das poucas vezes que acessei o FIC, havia um e-mail de um pai comentando sobre a filha rec��m-nascida com perda auditiva bilateral, profunda, detectada ainda na maternidade, pelo teste da orelhinha.

Era um caso de surdez gen��tica com interven����o precoce e, naquela altura, j�� usava aparelho auditivo com 40 dias de vida e j�� estava sendo avaliada se era candidata ao implante coclear.

Dificilmente eu respondia qualquer e-mail que fosse, especialmente de pais de crian��as com surdez, porque nunca me senti muito em posse de experi��ncias v��lidas minimamente ��teis para esses casos. Sou surda adquirida p��s-lingual.

Nesse dia, n��o sei explicar o porqu��, mas resolvi responder o e-mail e me coloquei �� disposi����o para ajud��-los, explicando que n��o era um caso similar, mas poderia ser de alguma ajuda.

Bruno me respondeu dizendo que conhecia meu blog e que foram meus textos o ajudaram a compreender melhor o implante coclear.

E, a partir da��, nasceu uma grande amizade entre mim e a fam��lia daquela menininha.

Os meses foram passando, ela recebeu a indica����o para o implante coclear e a cirurgia foi marcada.

Eles eram do Rio de Janeiro, portanto, n��o pude estar presente fisicamente no hospital durante a cirurgia, mas estive alguns dias antes e conversamos muit��ssimo sobre as expectativas, possibilidades e eventuais receios que surgem na cabe��a dos pais.

A verdade �� que era fac��limo lidar com eles. Eram pais amorosos e preocupados, mas n��o medrosos. Eles, tal como eu, pareciam acreditar no implante como uma forma real de aux��lio, n��o como um mal necess��rio. E quando eles me disseram que n��o tinham como agradecer tanto apoio, respondi que o agradecimento viria na contribui����o que eles dariam, futuramente, para pais aflitos.

A cirurgia da Joana (esse �� o nome da minha bebezinha adotada como afilhada de IC) foi um sucesso, com recupera����o r��pida e muita ansiedade, o que �� natural at�� a ativa����o.

Ela teve, como era esperado, um excelente resultado. N��o apenas gra��as ao implante coclear, mas �� dedica����o dos pais em rela����o ao treinamento auditivo dela.

Mais de dois anos depois, quando voltamos a nos encontrar fisicamente outra vez (embora tenhamos mantido contato todo esse tempo por e-mail, redes sociais, telefone, fotografia, v��deos etc.) a Joana era uma crian��a incr��vel. Muito mais falante e comunicativa que a maioria das crian��as da idade dela, gra��as ao est��mulo constante do Bruno e da mam��e Mariana, para o desenvolvimento da fala.

No final das contas, o que quer que tenha me levado a responder aquele e-mail fez uma diferen��a enorme na minha vida. Gra��as �� Joana, tive oportunidade de acompanhar desde cedo o processo do implante para uma crian��a nascida com surdez.

Quando o caso �� fisicamente favor��vel e a fam��lia tem condi����es financeiras e comprometimento emocional, o implante coclear �� sim, capaz de fazer um verdadeiro milagre!





O poder da atra����o


Passeando com minha m��e, resolvemos ir ao shopping, depois jantar e ainda fui �� casa dela depois dar um tempo at�� o Edu ir me buscar l�� (ele estava trabalhando e eu, de folga).

L�� pelas tantas, ele chegou e eu desci. Minha m��e mora no oitavo andar, ent��o desci me olhando no espelho ��� porque tenho claustrofobia e precisava me distrair.

De repente, vi uma coisa meio estranha no meu cabelo, bem na altura da antena externa do implante coclear���

Pensei se eu estaria com o im�� de outra cor (cheguei a testar um im�� bege porque era mais forte, por algumas horas e, como meu cabelo �� preto, destaca muito).

Mas n��o��� quando mexi para ver o que era, meu Deus!

Tinha uma moeda grudada no im��. E eu passei o dia todo assim, porque a ��nica hora que fiquei sem o aparelho foi para dormir��� hehehe.

Na hora, bateu uma vergonha tremenda e me peguei pensando como �� que minha m��e n��o viu, mas depois resolvi rir da situa����o.

Claro que ningu��m merece, mas quantas pessoas podem dizer que atraem dinheiro direto para a cabe��a?





Um sonoro parab��ns a voc��


Final de expediente no escrit��rio. E a tarde tinha se desenrolado vagarosamente, afinal, era sexta-feira.

A pregui��a imperava no ar, com aquela tentativa disfar��ada de empurrar o que podia ser adiado para segunda-feira. E todo mundo olhava discretamente os ponteiros do rel��gio, para saber quanto tempo ainda faltava para largar o servi��o para deliciar-se com a noite de sexta, que sempre representa o marco de in��cio de algumas horas de liberdade do trabalho.

Mas esta sexta-feira coincidia com o dia em que se comemoravam os anivers��rios do m��s. E os funcion��rios subiram para o andar onde o bolo-com-refrigerante seria servido.

E ficaram em p��, bem de costas para mim, que tentava parecer ocupada em frente ao computador.

Na verdade, eu fugia das cantorias, porque surda desde os dez anos de idade e implantada h�� quase um, ainda n��o me sentia confiante nem mesmo para cantar m��sicas infantis, assim, na frente de meio mundo.

De repente, eles come��aram a cantar acompanhando com palmas. Sempre ouvira as palmas (imaginava o som mentalmente, n��o ouvia de fato) e, depois de fazer o implante coclear, at�� conseguia ouvir e reconhecer a melodia. Mas faltava a letra. N��o sou l�� muito ambiciosa, pois sei que essas coisas levam tempo. Mas chegariam quando fosse a hora.

De repente, comecei a ouvir a m��sica sendo cantada. Cada palavra dita podia ser compreendida, gra��as ao contexto fechado. Senti o cora����o acelerar, senti medo de ser apenas minha imagina����o. Mas as palavras flu��am bem claras, acompanhadas de uma melodia que era at�� mais r��pida do que me lembrava. Segurei as l��grimas. N��o havia como explicar porque chorava por conta de uma m��sica infantil.

As pessoas n��o entenderiam como uma coisa t��o simples poderia causar uma emo����o t��o complexa.

Preferi simplesmente escrever no meu blog, para as pessoas que se davam ao trabalho de acompanhar uma jornada de reencontro ao som, que decidi compartilhar porque sabia que a aventura seria poderosa demais para se vivenciar sozinha.

E, enquanto escrevia, dava-me conta da ironia. Era como se o universo sonoro inteiro se dispusesse a cantar, especialmente para mim: Parab��ns a voc��.





Videoconfer��ncia bi��nica


Quinta-feira, antev��spera de natal, cheguei em casa sozinha ��� Edu tinha ido tomar cerveja com os amigos do trabalho, confraterniza����o de final de ano ��� e resolvi tirar uma soneca.

S�� tem meia d��zia de ocasi��es em que tiro o IC: para tomar banho (chuveiro, piscina, cachoeira e mar), para dormir ou quando preciso me concentrar e o ambiente est�� muito barulhento.

Mas, como esperava que o Edu me ligasse para busc��-lo ��� porque quem bebe n��o dirige ��� deixei o celular no vibracall dentro da fronha.

Horas mais tarde, o celular tocou.

Achei que fosse o Edu e acordei���

Qual n��o era a minha surpresa: uma liga����o em FaceTime (a videoconfer��ncia via wi-fi do iPhone) do Drauzio.

Drauzio �� um amigo meu, da internet, de longa data. Conhecemo-nos na comunidade de surdos oralizados de uma rede social que ambos frequent��vamos.

T��nhamos uma hist��ria de vida parecida. Ele perdeu a audi����o com mais ou menos a mesma idade e do mesmo jeito que eu (acordou surdo).

Assim como eu, tinha procurado sobre o implante coclear, quando a cirurgia come��ou a ser divulgada no Brasil, l�� pelo final da d��cada de 90, in��cio dos anos 2000. E recebeu o mesm��ssimo ��� as coincid��ncias s��o muitas ��� diagn��stico que eu. Algu��m que se virava t��o bem com as pr��teses comuns, n��o tinha porque fazer a cirurgia. Ela era recomendada s�� para quem n��o tinha qualquer ganho com AASIs e, preferencialmente, crian��as.

Ele desencanou do IC e contentou-se em seguir com a vida. Fazer o qu��?

Quando, ao ler meu blog, soube que eu faria a cirurgia, ficou de ���anteninhas em p�����. Logo depois, quando comecei a relatar os primeiros resultados, ele criou coragem e veio conversar comigo. Queria saber se eu acreditava que ele teria ganhos, se compensava fazer tamb��m.

S�� consegui dizer: ���Drauzio, voc�� merece ouvir de novo. Permita-se!���

Passei o contato do Dr. Robinson Koji, o anjo que trouxe os sons de volta ao meu ouvido esquerdo e desejei toda a sorte do mundo.

Meses depois, ele foi operado e logo estava ativado.

Quando soube que eu havia comprado um iPhone que permitia videoconfer��ncia, seguiu o mesmo caminho do IC: perguntou se eu achava que valia a pena e comprou um aparelho para ele!!

Naquela noite, atendi ao celular sonolenta ainda. Pedi desculpas por estar descabelada ��� afinal, tinha acabado de acordar ��� e falei:

��� Drauzio, espera que vou colocar o IC (vantagem-mor de falar com outro implantado, ele entende essas pausas) e conversamos alegremente por um bom tempo.



Ele contou do progn��stico favor��vel do Implante. Que estava podendo ouvir um monte de coisas novas. Podia conhecer v��rias coisas que n��o conhecia.

Que finalmente sentia coragem de desejar muito mais do que a condi����o dele, como surdo, permitia. Simplesmente porque estava ouvindo de novo.

Para quaisquer outras pessoas, poderia at�� parecer algo besta ligar/receber liga����o de um amigo na antev��spera de natal.

Mas, para mim, era uma novidade incr��vel, porque n��o me lembro da ��ltima vez que (e se) isso aconteceu. E, melhor ainda, da parte do Drauzio tamb��m era novidade.

A gente conversou, riu, compartilhou as experi��ncias de estar redescobrindo o som na mesma ��poca, depois de quase o mesmo tempo de pausa ��� temos a mesma idade ��� e, em v��rios momentos da conversa, tive que segurar o choro, porque a desvantagem do FaceTime �� que a pessoa v�� a sua cara-de-mam��o emocionada.

Acabou sendo um dos melhores presentes de natal para fechar o ano m��gico de reencontro ao som, 2010 com chave de ouro!





Como ouvir o mar


E quando a gente pensa que j�� viveu/viu/ouviu de tudo, a vida ainda nos surpreende���

Estava eu em Ilhabela at�� que algu��m me disse: ���Voc�� n��o vai colocar o implante coclear para ouvir o mar aqui?���

Esse aparelho, que eu uso para ouvir o mundo agora, tem duas partes. Uma interna, que n��o tiro nunca. E outra externa, que posso colocar e tirar ao meu crit��rio, sendo poss��vel saborear sil��ncio e som.

Neste dia, eu tinha deixado a parte externa na bolsa, por receio da maresia corro��-lo. Quando a gente tem uma parte de si fora do corpo, tende a querer proteg��-la a exaust��o.

N��o era a primeira vez que eu ouvia o mar. J�� o tinha feito quando crian��a. E j�� o tinha feito depois de operada tamb��m, mas havia sido o Mar Mediterr��neo.

Mas, nesse momento, me senti instigada a ouvir o barulho das ondas. Ser�� que o Atl��ntico tinha voz diferente? Ser�� que sua melodia �� particular? Senti que precisava ouvir a voz de cada praia, saber se o mar canta em un��ssono ou s��o milhares de can����es.

Desafios, adoro-os.

Para a minha surpresa, o som era diferente do que eu imaginava. Comentei at�� ���que estranho, o mar s�� faz barulho quando vem, n��o quando volta?���

A pessoa que estava ao meu lado, respondeu: ���Faz barulho quando volta tamb��m, mas �� mais baixinho���.

Prestei aten����o.

Realmente fazia, mas tinha bem menos presen��a. S�� prestando aten����o, o som do mar recuando se fazia perceber. N��o sei por que eu imaginava que fosse tudo na mesma altura.

Eu ri, bobamente, surpresa com os barulhos que ainda me despertavam esse entusiasmo infantil. ��, ainda tinha muito deslumbramento sonoro pela frente!





Sonoridade ��cida


Pedi um suco de laranja.

Ora bolas, o que teria de especial num mero suco de laranja?

�� s�� um suco de frutas. E nem �� das frutas mais ex��ticas.

Ainda se tivesse pedido um suco de marmelo com rom��s, a�� sim seria raz��o de sobra para tamanha exalta����o.

Mas, pouco depois, ouvi um som repetitivo, que sumia e reaparecia.

Eu n��o sabia o que era, pois n��o me soou nada familiar.

Passeei os olhos ao redor da ���Livraria da Vila���, onde h�� um caf�� com cozinha americana. Aquela vista, por si s��, me �� um eterno deleite. O lugar �� t��o lindo que agu��a toda a minha percep����o visual.

Finalmente, meus olhos pousaram sobre a m��quina onde uma eficiente atendente espremia as tais laranjas.

Laranjas estas, que me agraciaram com seu sumo, para a del��cia do meu paladar, ��vido pela do��ura ��cida daquela fruta rica em vitamina C.

Penso que o som das laranjas sendo espremidas, para qualquer pessoa, deve soar at�� irritante.

Mas para mim, rec��m-liberta de mais de duas d��cadas de clausura silenciosa, soaram como uma das melodias mais instigantes que j�� ouvira at�� ent��o.

Fechei os olhos e apreciei aquele instante, percebendo o suco sendo feito longe dos meus olhos, mas que podia perfeitamente acompanhar o seu preparo. O suco deixara de ser um mero suco, para dar lugar a um banquete inteiro.

Tocara, antes mesmo de chegar �� mesa, muito mais do que meus l��bios, minha l��ngua e meu est��mago. Ele preenchia meu c��rebro, meu cora����o e minha alma, que chorava pela sede de sons finalmente saciada.

Quando o suco me foi trazido, toquei-lhe o copo de vidro liso e gelado. Levei o canudo �� boca, percebendo sua textura branda, que num habitual movimento de suc����o, me trouxera aquele suco que cheirava �� laranja fresca, rec��m-espremida, �� boca.

E enquanto sorvia, olhei o copo cheio de l��quido amarelo e ri de contentamento ao perceber que tinha o prazer de apreciar algo t��o simpl��rio valendo-me dos cinco sentidos.

A sensa����o era de estar bebendo pela primeira vez suco de laranja, embora soubesse que j�� o tinha feito um n��mero incont��vel de vezes���

Talvez nenhuma outra experi��ncia com bebida volte a me ser t��o completa, complexa, intensa. E tenho ci��ncia de que isso aconteceu somente porque fugiu do habitual. Fora algo banal que, por uma raz��o inusitada, despertou meu interesse. Mas, era justamente por tais circunst��ncias ��nicas que um suco de laranja me inspirara de forma t��o bela.

Foi como, literalmente, beber da mais pura poesia.





Ao som do sol que se p��e


Ningu��m gosta de contar dos equ��vocos que comete, mas esse vale a pena contar, porque me rendeu uma hist��ria engra��ada.

Eu passei a vida toda achando que o p��r do sol fazia barulho. N��o sei se vi isso em algum filme ou desenho animado e fiquei com isso na cabe��a. Mas a verdade �� que sempre que eu via o sol se por, imaginava uma m��sica na cabe��a. E acabei ficando com a sensa����o de que era isso mesmo, �� revelia de ter ou n��o l��gica o p��r do sol fazer barulho.

Pois bem, eu e Edu t��nhamos ido para Ilhabela e eu estava sentada olhando o sol se por, enquanto Edu tirava um monte de fotografias, uma mais linda que a outra.

Fiquei esperando ouvir aquele barulho que eu imaginava, por mais louco que isso possa soar.

A�� o sol se p��s atr��s do continente e���

Fez-se sil��ncio.

Olhei para Edu com uma cara de surpresa e exclamei, com uma decep����o indisfar����vel:

��� Como assim? O p��r do sol n��o faz barulhos?



Edu me olhou com espanto e tentou segurar a risada.

��� Por que faria barulho?

��� Porque tudo o que move faz barulho, oras. E o sol mergulha no mar, atr��s das montanhas��� ��� engra��ado, enquanto falei isso, percebi que a minha argumenta����o era digna de algu��m de 6 anos explicando, sei l��, o sabor das cores���



Ele n��o conseguiu mais segurar o riso e respondeu:

��� Querida, o sol se move no espa��o sideral, n��o teria porque fazer barulho.



E a�� eu fiquei triste, porque percebi que passei a vida toda imaginando algo errado.

��� Explique, por que voc�� acha que o sol faria barulho ao se por? ��� o tom dele mudou do desd��m para o carinho fraterno, de quem se dava conta de que existem coisas que s��o poss��veis de forma imposs��vel.

��� Ora, eu perdi a audi����o aos nove anos ��� afinal, �� preciso ser um tanto racional para se fazer entender, percebi eu. Fiquei com isso na cabe��a e se tornou uma regra. Para mim, tudo o que se move faz barulho, independentemente das leis da f��sica.

��� ��, nos desenhos animados �� meio assim��� ��� concluiu ele ��� Mas��� Conte-me �� esse barulho que voc�� imagina?



Cantarolei, tentando imitar o som de um violino, finalizado por um prato, quando sol finalmente se enterra sob o horizonte.

E, dei-me conta, 20 anos de sil��ncio me permitiram ouvir o p��r do sol. Nesse momento, apesar de amar ter recuperado o sentido da audi����o f��sica, vi que, mesmo sem ouvir, a minha vida sempre foi po��tica e me senti uma pessoa aben��oada! At�� hoje, mesmo ouvindo de tudo, quando quero ouvir o p��r do sol, fecho os olhos e consigo imaginar! E �� lindo���





3�� Parte:

Deslumbramentos sonoros





Palavra de m��dico


Dois anos e seis meses depois de ativada da orelha esquerda, voltei a procurar pelo Dr. Robinson Koji, meu m��dico de implante. De tanto me perguntarem quando eu faria o implante do lado direito, resolvi que era hora de saber a opini��o da pessoa mais indicada para me ajudar a decidir se valia a pena.

Marquei o hor��rio e fui sozinha ao consult��rio. Somente meu marido sabia da consulta, porque eu n��o queria criar expectativa alheia. Confesso que lidar com a pr��pria j�� �� dif��cil, lidar com a expectativa dos outros, acho insuport��vel.

Ele me recebeu no hor��rio, todo sorridente. Dei-lhe uma revista que continha uma entrevista comigo, sobre meu blog, de presente. E falei:

��� Presente por ter sido praticamente a ��nica pessoa favor��vel ao meu caso, desde sempre.



Ele sorriu e agradeceu. Depois perguntou o que eu fazia l��. Perguntei o que ele achava de fazer o implante na orelha direita, j�� que meu resultado com o IC era de sucesso do ponto de vista emocional, mas n��o f��sico. Eu continuava dependendo da leitura labial praticamente para tudo.

Ao contr��rio do que eu poderia imaginar como resposta, ele disse:

��� Acho que seria ��timo e que voc�� daria um salto enorme.



Arregalei os olhos e perguntei, quase gaguejando de surpresa:

��� Voc�� acha mesmo?



E ele:

��� Sim, �� o que observo em pacientes com casos com o seu.



Respondi apenas que me contentava de localizar o som, que �� a ��nica coisa garantida do implante bilateral, pois tinha medo de criar expectativas irreais e me frustrar.

Ele riu e disse para eu fazer o que achasse melhor, mas que realmente acreditava que eu conseguiria muito mais do que isso!

E ficou combinado que eu enviaria a documenta����o necess��ria para dar entrada no processo de autoriza����o do conv��nio. Tudo feito por e-mail atrav��s da secret��ria do m��dico, de maneira que eu tivesse a liberdade de resolver sozinha, sem ficar dependendo da boa vontade de ningu��m.

Sa�� da consulta direto para a casa da minha m��e, meio preocupada com a rea����o dela, por ela ser meio avessa a procedimentos cir��rgicos. Mas, contrariando minhas m��s expectativas, ela foi t��o ou mais empolgada que o Dr. Koji. Deu a maior for��a e falou: ���Acho que dessa vez voc�� consegue tudo o que tanto quer���.

Dei a mesma resposta que tinha dado ao m��dico, que pretendia me focar nas possibilidades garantidas e n��o nos meus desejos.

Confesso que levei alguns dias para mandar a papelada, por pura pregui��a de separar tudo o que me fora pedido. Sem falar que eu precisava agendar os exames pr��-operat��rios, algo que s�� pretendia quando j�� tivesse uma ideia da data da cirurgia.





22 estrelas sonoras


Eu fiz alguns an��ncios discretos no meu blog e demais redes sociais que pretendia fazer o implante do lado direito.

Mas nenhuma declara����o oficial, porque s�� soube a data na v��spera e, confessando, eu tinha um pouco de trauma da primeira cirurgia e tamb��m para evitar a expectativa dos outros.

Dei entrada no hospital bem cedinho. At�� rolou um stress de praxe com o conv��nio, que n��o tinha liberado ou o hospital que n��o tinha recebido a libera����o, nem sei. Mas nada que realmente tenha atrasado a cirurgia.

Lembro de estar sentada na cama, j�� com a camisola hospitalar e sem a parte externa do IC que eu j�� usava, pensando se eu realmente queria mesmo passar por tudo aquilo de novo. Se n��o estava apostando muito alto para, talvez, ter apenas um retorno similar ao primeiro. Ok, ele era fant��stico, mas, no ��ntimo, eu sabia que queria mais. Queria ouvir vozes e compreend��-las, queria ouvir m��sica, falar ao telefone, aprender conversa����o em ingl��s.

Enquanto eu matutava sobre a vida, veio um enfermeiro e deu uma canetinha hidrocor para o Edu. Mandou ele fazer uma marca na orelha que seria operada. N��s rimos, mas minha m��e disse que isso evitava operarem a orelha errada e era uma pr��tica hospitalar excelente. Ent��o, Edu fez uma seta abaixo da minha orelha direta.

Pouco depois, fui enviada para o centro pr��-operat��rio.

Uma m��dica veio conversar comigo e fez algumas perguntas de praxe, antes de entrarmos na sala de cirurgia. Quando falei meu nome, ela respondeu com um sorriso:

��� �� voc�� quem tem um blog?



Confirmei, com o mesmo tom de simpatia.

Ela completou:

��� Se voc�� soubesse a quantidade de pacientes que chega aqui falando de voc�� e do seu sucesso���



Eu ri e pensei ���Bom, se o meu IC n��o �� um sucesso do ponto de vida m��dico, ao menos permite que outras pessoas tenham o pr��prio sucesso. Nada �� em v��o! Que bom!��� Nessa hora, aquele medo que eu estava sentindo desapareceu e entrei confiante e animada na sala de cirurgia.

O Dr. Koji chegou, sorriu e me perguntou se eu estava preparada. Falei que sim, mas que queria os 22 eletrodos do feixe completo. Ele disse que ir��amos conseguir!

Acordei algum tempo depois, ainda na sala de opera����es, completamente grogue da anestesia. A m��dica assistente me avisou que j�� havia acabado e que a cirurgia tinha sido um sucesso.

Perguntei: ���Vinte e dois?��� e ela confirmou.

Mas s�� fui acordar de verdade no setor de p��s-cir��rgico e n��o sabia se aquilo tinha acontecido ou sido um sonho.

Perguntei para uma enfermeira que passava, mas ela disse que n��o sabia de nada e que me informariam no quarto, aonde eu iria dali quarenta e cinco minutos.

Quarenta e cinco minutos que pareceram uma eternidade e, pior, a ansiedade pela resposta me impediu de dormir de novo. Contei os segundos num rel��gio em frente �� minha maca.

Finalmente, vieram me conduzir ao quarto e eu nem precisei perguntar nada. Minha m��e, assim que me viu entrar pela porta, fez um sinal com dois dedos, repetindo duas vezes.

Olhei assustada e perguntei:

��� Vinte e dois? Confirmado?



E ela me deu a melhor resposta que eu j�� recebi na vida:

��� Sim!



Ca�� no choro, solu��ando sem parar. Eu sabia que eletrodos a menos poderiam ser a causa da minha incompreens��o da voz. Na verdade, nem sei se sabia, mas acreditava do fundo da alma que era isso. E que os 22 eletrodos captariam todas as frequ��ncias da fala.

Nessa hora, entrou uma enfermeira no quarto e achou que eu estava passando mal. Da�� respondi que n��o, era de felicidade pelo sucesso da cirurgia. Os olhos dela encheram d�����gua tamb��m e ela me deu parab��ns.

Quinze minutos depois, eu estava de p��, super bem. Nem parecia que tinha feito uma cirurgia. S�� me senti um pouco cansada, mas nada que diminu��sse a minha felicidade.

Pouco depois da cirurgia, aparecem no meu quarto com uma caixinha e um buqu�� de mini-rosas laranja. Presente do meu grande amigo Raul, que estava feliz com o sucesso da cirurgia. O bilhetinho era super fofo, me dando parab��ns e tamb��m dizia ���Fa��a fono!��� Coisas de implantados���

Tive que passar vinte e quatro horas no hospital para poder ter alta, ent��o o jeito foi ficar na internet, recebendo um monte de parabeniza����es (e algumas indaga����es ���o que aconteceu?��� j�� que n��o avisei ningu��m), o que tornou a minha estada no hospital muito boa e tive alta na manh�� seguinte.

Antes de sair do hospital, a m��dica assistente veio trocar meu curativo e perguntei se, com 22 eletrodos, eu iria conseguir ouvir perfeitamente a fala. Ela disse que sim, mas pelo tempo que fiquei sem ouvir, era prov��vel que demorasse e dependeria de aprendizado por fonoterapia.

Simplesmente respondi que eu tinha todo o tempo do mundo para isso e fui para casa, com o cora����o feliz de esperan��a e quase explodindo de ansiedade.

No mesmo dia, pedi para minha m��e ligar para a cl��nica de fonoaudiologia, marcando a ativa����o. Trinta dias depois, em 25 de outubro, ficou marcado para ser o dia D do meu implante bilateral.





O duplo sentido


Trinta dias exatos se passaram e chegou o grande dia de ligar o aparelho que me permitiria ouvir bilateralmente.

N��o, minto, 25 anos, 9 meses e 9 dias se passaram e chegou o dia de ouvir bilateralmente de novo.

Dormi pouco e acordei muito cedo. O tempo simplesmente parecia n��o passar.

Cheguei ao consult��rio bem na hora marcada. E logo que a Fga. Val��ria Goffi sa��a da sala, trouxe com ela uma menininha de uns 2 anos bi-implantada. Sorri e chamei-a para mostrar meu implante, igual ao dela. Ela n��o gostou nem um pouco de ver outro implantado e se recusou a falar comigo. Dei risada, mas entendi. Nem todo mundo quer se identificar com os demais, alguns de n��s gostam de ser especiais.

Entrei na sala, levando comigo a minha plateia. M��e, marido e ainda uma amiga, Dorot��ia, que queria assistir �� ativa����o bilateral de um adulto.

A primeira coisa que fiz foi tirar da mochila meu raio-x, que mostrava os dois implantes e permitia ver como o feixe de 18 eletrodos do lado esquerdo n��o forma uma espiral perfeita como o feixe de 22 do direito. Portanto, era vis��vel a diferen��a entre eles, o que poderia significar uma diferen��a na compreens��o do som. Ou n��o, mas eu n��o queria pensar muito nisso.

Val��ria me disse:

��� Ai, que lindo! Olha o caracol perfeito que os eletrodos formaram! Da primeira vez, a gente viu que n��o estava perfeito, mas quis que voc�� preservasse a sua c��clea para tecnologias futuras.



Eu disse a ela:

��� As tecnologias futuras s��o para outras pessoas. Eu j�� esperei 25 anos! ��� sem, claro, desmerecer as outras tecnologias, que possam inclusive representar uma cura para a surdez ou desmerecer quem prefere esperar. Eu falo de mim e para mim. Vinte e cinco anos de espera me bastaram.



E fui conectada ao computador de programa����o. N��o sem sofrer horrores para encaixar o im�� na cabe��a, porque s�� sabia fazer isso do lado esquerdo e me dei conta de como �� dif��cil, no come��o, para achar a posi����o do im�� interno, tendo eu mesma como par��metro de compara����o.

Testamos os sons, at�� chegar num n��vel confort��vel para volume baixo e alto, sons graves, m��dios e agudos.

O primeiro som que eu ouvi foi a voz da fono, seguida pela minha. Fiquei assustada com a minha voz, ouvida pela orelha direita. N��o sei explicar, mas soou t��o estranha.

Ligar o esquerdo, logo em seguida, foi apavorante. Deu medo da audi����o ficar desconfort��vel.

Mas n��o, ouvir pelos dois ouvidos foi perfeito. Tive a sensa����o de que, finalmente, ouvia de verdade, sem parecer que faltava alguma coisa. N��o sei explicar porque, mas, para mim, ouvir tem que ser pelos dois ouvidos.

Ainda estava bastante baixo. Tudo que ouvia parecia sons de grilos, bem agudinhos���

Raul tinha me pedido para gravar a minha choradeira, mas n��o foi poss��vel. Minha vontade era de rir, de maneira compulsiva. Fa��o isso quando fico nervosa.

N��o sei dizer se ter dois implantes �� necessariamente melhor que um. Ou se apenas um implante acompanhado de aparelho n��o supra realmente as necessidades de um surdo profundo bilateral. S�� posso dizer que, para mim, dois implantes �� mais completo. Ponto e basta.





Em frente ao aeroporto


Os dias foram passando e minha orelha direita ia se acostumando ao peso do implante. No come��o, ela doeu um pouco, eu estava acostumada a ter essa orelha livre de aparelhos fazia mais de um ano.

Finalmente, chegou a festa de anivers��rio do meu grande amigo Jairo Marques, cujo blog ���Assim como voc����� ��� um dos blogs oficiais do jornal Folha de S��o Paulo ��� foi um marco importante na minha vida.

Reencontrei pessoas amadas, que acompanhavam meu caso desde que decidi implantar e cujas vidas eu acompanhava, de perto e de longe. Curtimos a festa, que foi maravilhosa como sempre. E, saindo de l��, pegamos um t��xi, Edu e eu.

Ele tinha tirado algumas fotos bonitas naquela noite e eu queria post��-las na internet. Entrei no t��xi, saquei o celular e fui logo mexer na pasta de fotos, enquanto Edu dava as coordenadas para o taxista. J�� era tarde e estava escuro, e eu estava ocupada com minhas bobagens virtuais, de forma que ouvia a voz do Edu, mas me soava incompreens��vel como sempre. Inesperadamente, aquele som indecifr��vel ganhou a forma uma frase de palavras soltas, mas cujo contexto eu conseguia entender perfeitamente: ���Vire �� esquerda, em frente ao aeroporto���.

Engra��ado como o tempo se torna relativo em alguns momentos! Em menos de 2 segundos, tive tempo suficiente para duvidar de que realmente poderia ter entendido, confirmar que tinha sim compreendido, ficar emocionada por escutar e sussurrar, porque a voz falhou de emo����o: ���Edu, entendi perfeitamente o que voc�� falou para o taxista.���

Naquele momento, o ��xtase! A confirma����o de que os 22 eletrodos faziam diferen��a. E que a minha mem��ria auditiva estava ali, latente e esperando para ser usada. Que 25 anos n��o me atrofiaram nada. S�� colocaram minha audi����o em modo de espera.

Edu tentou falar coisas pelas minhas costas, mas eu me recusava a prestar aten����o. Queria saborear aquela pequena imensa conquista.





Tarde em Itapu��


No dia seguinte, Edu me perguntou por que eu n��o tentava ouvir uma m��sica conhecida, pois o conte��do previamente conhecido ajudaria na compreens��o.

A princ��pio, eu recusei, pois o medo de frustra����o era gigantesco. Mas logo em seguida liguei o cabo de ��udio especial do implante no celular e escolhi aleatoriamente uma m��sica de que gostava quando crian��a: ���Tarde em Itapu�����, na voz do Gonzaguinha.

Cliquei no play do v��deo na internet e a m��sica come��ou. Para a minha surpresa e meu deleite: Sim! Eu conseguia entender a letra cantada. N��o era preciso procurar os l��bios do int��rprete e deixar a imagina����o cuidar do resto. Simplesmente entendia. N��o perfeitamente, n��o totalmente, ainda apelando um pouco para a mem��ria. Mas sim, a m��sica tinha letra e melodia. Era bem pr��xima do que eu me lembrava que era ouvir m��sica. Explodi de chorar. N��o consegui conter as l��grimas de saudade. Escolhi uma m��sica que cresci ouvindo. Bossa Nova, porque minha m��e adora Bossa Nova e ouvia sempre, fazendo com que a minha inf��ncia tivesse essa trilha sonora.

Procurei outras m��sicas ��� todas cuja letra sabia praticamente de cabe��a, j�� que ainda dependia de contexto fechado ou, no m��ximo, semiaberto ��� e pude ouvir muito bem a grande maioria. Sempre tem um cantor ou outro que a voz ainda me escapava.

Chorei de lavar a alma. L��grimas de alegria de reencontrar essas minhas ���amigas de inf��ncia���, um pouco por saudade, um pouco por descren��a. Uma parte de mim j�� tinha desistido de acreditar que isso seria poss��vel.

No dia seguinte, repeti a dose e ouvi mais algumas m��sicas. At�� algumas infantis que faziam sucesso em meados dos anos 80, quando o mundo ainda tinha efeitos sonoros naturais.

Depois que me dei conta de como sentia falta de ouvir m��sica, ficava um temp��o ouvindo sem parar. Quando gostava de alguma, ouvia de novo mais de dez vezes seguidas. O que, provavelmente, devia estar enlouquecendo meus vizinhos.

E chorava de solu��ar quando me deparava com alguma m��sica que, por raz��o desconhecida, foi marcante e me deixou saudade. Peguei-me chorando, por exemplo, por ouvir a m��sica de abertura de uma novela antiga. Choro at�� hoje pelo tempo que queria ouvir e n��o podia. E lembro de situa����es em que meu cora����o doeu de vontade e me vejo falando comigo mesma: ���Oh, Lakinha, voc�� ainda vai poder, n��o se preocupe���.

Meu cora����o chorava, meu corpo vibrava ao som das notas e meu c��rebro s�� pensava, entre uma m��sica e outra ���bem vindas de volta, velhas amigas���.

E pensei que elas sempre estiveram aqui, infelizmente, totalmente fora do meu alcance��� Agora, n��o mais!

Tinha 25 anos de m��sicas para resgatar. S�� torcia para que houvesse pilha suficiente no mundo!





Um rio nos pensamentos


Pouco tempo depois da ativa����o, fomos eu e Edu para Penedo, RJ. Descobri uma coisa engra��ada a meu respeito. Sempre fui de viajar calada e achava que era porque a paisagem mudava o tempo todo. Mas n��o �� s�� isso, �� porque, ouvindo, gosto de ouvir o som que o carro faz na estrada. Meu pensamento viaja para longe. Edu ligou o r��dio umas vezes e aquilo me irritou. Gosto do barulho do vento entrando pela fresta da janela, do barulho do motor, do barulho dos outros carros que passam. A paisagem faz parte, mas o pacote completo depende do som.

Em Penedo, fomos at�� um rio, que �� o mesmo de Visconde de Mau��. Foi l�� que passamos o ��ltimo Natal quando eu ouvia e o barulho daquele rio, depois de quase 26 anos, foi uma d��diva sonora. Fiquei um temp��o ouvindo a ��gua de olhos fechados. De vez em quando, eu colocava a m��o para senti-la correr entre os meus dedos, mas s�� o som j�� me bastava. Quase entrei numa esp��cie de transe. Ouvir com os dois ouvidos transporta os sons para dentro de n��s. E, naquela hora, havia um rio inteiro correndo pelos meus pensamentos.

Nem me importei com a ��gua gelada, com as pedras onde sentei, que estavam molhadas. Tudo isso n��o importava, s�� importava o prazer de ouvir.

Porque ouvir �� o que, na minha opini��o, nos conecta com o mundo. O implante coclear n��o cura a surdez, mas cura o isolamento da alma!

Durante a viagem, Edu me pegou com sorriso no rosto mais de uma vez. Sorriso bobo, s�� porque eu entendia alguma coisa que algum desconhecido me dizia. Algo como: ���Bom dia!���, ���Posso ajudar?��� ou ���Voc�� quer provar nosso licor?��� Coisas inesperadas, ditas pelas minhas costas, mas que, mesmo assim, eu era capaz de entender. Tive que me conter v��rias vezes, porque tinha uma vontade louca de dar um abra��o em cada uma dessas pessoas���

As quatro semanas que se passaram desde a ativa����o at�� aquele dia em que pude ouvir o rio, foram m��gicas na minha vida. Dei-me conta de que, mesmo sendo surda h�� vinte e cinco anos, sou uma pessoa totalmente auditiva.

Passei a vida ouvindo as pessoas me dizerem ���eu n��o suportaria se estivesse no seu lugar, porque sou muito ligada ao som���. Creiam, ningu��m �� mais ligado ao som que eu, essas pessoas apenas n��o foram colocadas �� prova!

Se �� poss��vel ser feliz sem ouvir? Certamente���

Mas, sinceramente, ouvindo tudo sempre fica muito melhor!





Liga����o para uma vida toda


Uma bela noite, falei com o padrinho da minha irm�� ao telefone ��� que estava em Paris, ent��o a liga����o foi r��pida e cheia de interfer��ncias ��� e, na manh�� seguinte, minha audi����o havia desaparecido e me tornei a pessoa que eu sou hoje, surda oralizada.

O tempo passou e a vida continuou. Fiz todas as coisas que sempre conto que fiz: estudei, viajei, casei, escrevi, vivi, etc.

Dentro de mim, a esperan��a de poder fazer de novo as coisas que pude uma vez na inf��ncia: ouvir m��sica, ouvir as hist��rias contadas pelos outros (eu adorava ouvir os papos das pessoas adultas, sempre achava interessant��ssimas as narrativas) e falar ao telefone. Fora do meu ��ntimo, no entanto, eu mantinha uma postura inabal��vel de que sempre posso ser feliz do jeito que for. Manter a esperan��a n��o significava jamais autocomisera����o, depress��o ou qualquer sentimento ruim. Apenas uma centelha de f�� de que seria poss��vel saciar essas vontades algum dia da vida.

Num domingo �� noite, um m��s e mais alguns dias ap��s a ativa����o, uma nova conquista. Ainda pequena, ainda de maneira simpl��ria, mas suficientemente significativa para ser comemorada, como tudo o que o implante coclear me permite.

Eram umas 19 horas do domingo e enviei um SMS: ���Voc�� est�� ocupada?��� A resposta demorou uns 20 minutos, que para mim pareceram 2 d��cadas e meia: ���Desculpa, eu estava no telefone. Tudo bem?��� Imediatamente, respondi ���E agora?��� E ela: ���Agora estou livre���.

Digitei ��� olha s��, ia escrever disquei, porque sou do tempo do telefone de disco ��� o n��mero com as m��os tr��mulas, ouvi o toque de chamada (sei l�� se mudou, para mim continuava o mesmo, quase 26 anos depois). Ela atendeu e falei ���Al�����. E do outro lado da linha, vindo de 450km de dist��ncia ��� essas dist��ncias que jamais podem ser mensuradas quando se trata de dois cora����es que batem em sintonia ��� veio a voz da Kali, minha melhor amiga, irm�� de outra vida (somos g��meas siamesas de pai e m��e diferentes) direto na minha c��clea, passando no meu c��rtex cerebral e explodindo direto no meu cora����o, dizendo ���Oi, queriiidaaaaa���. A liga����o foi r��pida, feita apenas com frases curtas, muitas repeti����es, voz pausada. Essas coisas que requerem paci��ncia de quem est�� falando do outro lado da linha, mas que eu tinha certeza de que a Kali jamais iria me negar���

�� preciso um universo inteiro de sil��ncio e quase tr��s d��cadas enclausurada nele para compreender a for��a que uma frase compreendida sem nenhum apoio visual pode ter.

�� como uma onda de amor que invade e te destr��i em milhares de peda��os e, quando eles voltam a se juntar, voc�� se v�� muito maior, muito mais forte!





Mudan��a de h��bitos


De repente, eu percebi que estava tendo que reaprender a ser quem eu era. E comecei a experimentar milhares de sentimentos diferentes.

Eu me senti animada com as descobertas de poder ouvir m��sica, falar ao telefone, ouvir a conversa alheia, etc.

E percebia que ainda tinha h��bitos de quem permaneceu 25 anos enclausurada no sil��ncio. Tinha horas que eu me pegava de olhos fechados cantarolando m��sicas mentalmente, em vez de simplesmente pegar o fone e conect��-lo em qualquer meio que me permitisse ouvir a m��sica. Porque, nos meus anos de surdez sem implante, era assim que eu ���ouvia m��sica��� e n��o conseguia me desapegar totalmente do h��bito, de uma hora para outra.

E ria e chorava diante dessas descobertas. Mas, em outros momentos, sentia uma dor que parecia me sufocar. E ficava irritada quando tentavam me impedir de fazer qualquer coisa que fosse, por mais banal pudesse ser. Eu simplesmente n��o conseguia lidar com nada que se parecesse com uma limita����o.

Ao mesmo tempo, eu n��o queria demonstrar essa confus��o emocional porque, para algumas pessoas, eu era uma esp��cie de exemplo, de musa inspiradora. Ent��o s�� sorria e falava das descobertas maravilhosas, mas, no ��ntimo, os primeiros meses p��s ativa����o foram os mais emocionalmente confusos que lembrava de ter tido. Todos os meus textos, por mais bonitos que fossem, tinham uma dor enorme nas entrelinhas. Aqueles que me conheciam bem o bastante conseguiam ver.

Procurei, ent��o, ajuda psicol��gica, com a terapeuta de florais que me tratara na adolesc��ncia, pois naquela ��poca foram a minha fonte de equil��brio emocional.

Minhas consultas eram de duas horas, quando ela ouvia com paci��ncia eu relatar sobre meus medos e frustra����es. E ela foi me receitando florais para tratar de cada uma delas, inclusive as que eu sequer conseguia relatar.

Um dia, acordei ��s 5:30h. da manh��, sem motivo nenhum, e n��o consegui dormir de novo. Levantei, fui tomar banho e ca�� no choro. Enquanto a ��gua do chuveiro lavava meu corpo, as l��grimas lavavam a minha alma.

Sa�� do banho e comecei a secar os cabelos. Enquanto me olhava no espelho, compreendi a dor que eu vinha sentindo. Era mais do que a dor de perder um sentido, de passar anos privada de algo que amava: ouvir. Era a dor, vinda de maneira retroativa, que eu n��o consegui sentir aos 10 anos, porque era crian��a demais para entender o que tudo aquilo significava e significaria ao longo da minha vida.

Tenho um certo bloqueio de lembrar as semanas seguintes de quando perdi a audi����o. Mas uma das coisas que me lembro �� de ser uma menininha de 10 anos assustada, sem entender o que estava acontecendo, inclusive porque ningu��m sabia me explicar. Eu me lembro da televis��o ficar silenciosa, de n��o poder ouvir m��sica, de n��o poder ouvir as conversas dos outros. Dos olhares de compaix��o e de nojo dos adultos em rela����o a mim (sim, os adultos olham com nojo para crian��as deficientes, n��o pensem que elas n��o percebem!). Lembro dos meus pais e da minha irm�� desnorteados e nada, nada ser suficiente para tir��-los daquele desalento de incerteza. Vi uma vida inteira desmoronar na minha frente e n��o saber como seria a partir dali.

E naquela manh��, vinte e tantos anos depois, enquanto chorava, senti uma vontade imensa de correr ao alento da minha fam��lia. De confort��-los. De dizer para que eles tivessem coragem, for��a, que n��o se deixassem abater. De botar aquela menininha que eu fui aos 10 anos no colo e falar: ���N��o fique assustada! Voc�� ter�� uma vida completa, maravilhosa. Vai poder estudar. Vai poder trabalhar. Vai ter amigos. Vai se casar. Vai viajar. Vai ser feliz. E quando tudo isso tiver acontecido, as pessoas v��o se espelhar em voc��. V��o dizer que voc�� �� tudo o que elas esperam poder ser. E um belo dia voc�� vai poder, atrav��s de uma tecnologia, ouvir de novo. N��o tenha medo! Vai demorar, mas vai ser poss��vel, tenha f��! N��o se sinta sozinha, porque voc�� tem a mim���.

Se fosse poss��vel essa viagem no tempo, tudo teria sido t��o mais f��cil. Mas n��o. Foi preciso 25 anos sem saber, para que eu chegasse at�� aqui.

Meu peito do��a pelas dores que eu sentia sem perceber. Que eu me congelei para n��o sentir. E finalmente sentia���

Viver um milagre �� maravilhoso. Mas ele tem o pre��o de derrubar todas as barreiras anti-dor que a gente constr��i ao longo da vida. �� necess��rio para que a gente supere os traumas, afugente as m��goas, esclare��a as d��vidas, se fortale��a, sacuda a poeira, arrume o cabelo e enfrente um novo dia com gra��a e entusiasmo.





A simplicidade das coisas complexas


Era meu primeiro Natal depois do meu milagre.

E eu me divertia por perceber como as pessoas falam o tempo todo. Descobri que, nesta ��poca do ano, em qualquer lugar que voc�� entre, v��o te desejar ���Feliz Natal��� quando voc�� for embora. Ou ���Boas Festas���, caso a pessoa prefira algo mais ecum��nico.

Neste ano, tamb��m estive num orfanato para entregar presentes de Natal a crian��as carentes. Era um servi��o volunt��rio da empresa onde trabalho. O pessoal se re��ne para comprar um kit de roupa/sapato/brinquedo/comida para a crian��ada. Crian��as de todas as idades, at�� 17 anos.

L��gico que no orfanato as crian��as estranharam a minha voz (se adulto estranhava, imagine crian��as) e o aparelho colado na minha cabe��a, j�� que meu cabelo estava preso por causa do calor. Minha chefe explicou para eles o que era ��� sou p��ssima com did��tica ��� e acabei sendo uma das atra����es da tarde.

Eram perguntas sobre como o IC funciona e o que acontece se eu tirar. Houve at�� uma crian��a que me fez tirar o aparelho para mostrar que sa��a. Crian��as precisam de provas, elas n��o acreditam em qualquer coisa! Perguntaram tamb��m se eu realmente conseguia ler l��bios, essas coisas de crian��a curiosa���

Mas, havia um menino que quis conversar comigo por mais tempo. Ele quis saber se eu tirava o aparelho para dormir. Respondi que tamb��m tirava para tomar banho. Exclamou, decepcionado com a resposta:

��� Poxa, mas a�� voc�� n��o ouve o som do chuveiro!



Eu ri e disse:

��� N��o, isso n��o consigo ouvir.



E quando ele quis saber mais sobre a minha maneira singular de falar, meu sotaque, expliquei que fiquei 25 anos sem ouvir a voz das pessoas e agora estou aprendendo a ouvir de novo.

Ent��o, ele quis saber com quantos anos perdi a audi����o. Contei que foi aos 9 anos ��� coincidentemente, a idade dele ��� e ele me olhou com a maior candura do universo, um olhar de compreens��o, de empatia, sem qualquer tom de piedade ou compaix��o e disse:

��� 25 anos sem ouvir, deve ter sido muito dif��cil���



Respondi, suspirando e sorrindo:

��� Foi.



E ele disse a frase mais importante que algu��m j�� havia me dito at�� ent��o:

��� Que bom que agora voc�� ouve���



�� preciso ser crian��a para entender a simplicidade de algo t��o complexo���





26 anos depois daquela manh��


Acordei no dia 16 de fevereiro de 2013, o dia em que completei 26 anos como deficiente auditiva e, em vez do costumeiro des��nimo que me acompanhava nesta data, acordei tranquila.

Tenho certeza de que muita gente n��o se incomoda com a surdez, mas n��o era o meu caso.

Como j�� expliquei, adoro ouvir���

Mas na ocasi��o, ao acordar, em vez de tristeza, m��goa, saudade ou melancolia, sentia-me simplesmente acordando relaxada, depois de uma noite bem dormida.

Do lado da cama, pousavam as partes externas dos meus implantes cocleares. Eles n��o curam, mas driblam a minha surdez biol��gica e me d��o acesso a som.

Sa�� da cama para fazer caf�� e deixei-os ainda no desumidificador, local onde passam a noite. Agora posso curtir o sil��ncio matinal por escolha.

Fui tomar meu caf�� com bolachinhas de pistache assim, sem aparelhos, de bem com a vida.

E sabe? Sentir paz n��o tem pre��o! E da�� que uma manh�� acordei surda? No fim, o tempo passou, ouvir voltou a ser poss��vel e a vida tem sido plenamente vivida!

Esses 26 anos me permitiram apreciar muitas coisas a que a maioria das pessoas nem d�� valor. Fazer descobertas fant��sticas em rela����o �� vida.

Imagine eu, uma mulher com trinta e tantos anos nas costas, sentir um enorme entusiasmo de descobrir que as pessoas falam enquanto abra��am. Eu passei um bom tempo me deliciando com isso. As pessoas vinham me abra��ar e sempre falavam alguma coisa, sem querer, direto no meu ouvido. E levavam um susto quando eu respondia. Afinal, elas sempre fizeram isso, mas nunca tinham tido uma resposta minha, j�� que eu jamais conseguira saber disso. Ou ent��o, fazer uma mini poesia, em homenagem ao barulhinho feito por insetos. Bem assim:

Serenata de grilos

Antes de dormir

E a vida canta

Como �� bom ouvir!

Boa noite���

Cri cri

Ou simplesmente algu��m que tinha um ataque de gargalhadas cada vez que conseguia fazer uma liga����o boba de dois minutos. E que teve vontade de correr pelo escrit��rio, quando conseguiu marcar a primeira consulta por telefone.

A vida me roubou 26 anos de sons. Mas, quando me devolveu, permitiu uma alegria e um entusiasmo que dificilmente algu��m consegue sentir, sem ter passado por uma priva����o t��o grande.

Portanto, em vez de pesar, comemorei aquele 26�� anivers��rio de modo bem sonoro!





Trovadores Urbanos


Como j�� contei, quando me casei, ainda n��o era implantada.

Por isso, n��o pude ouvir as m��sicas tocadas no meu casamento.

Se eu lamentei por isso? �� dif��cil expressar em palavras o tamanho da minha dor. Sou ouvinte por natureza, eu preciso ouvir tanto quanto preciso de ar, mas a vida me obrigou a segurar o f��lego por 25 anos.

Por��m, tudo nessa vida tem compensa����o quando a gente se abre para os milagres.

Minha irm�� se casou quando eu j�� estava bi-implantada e ouvindo bem.

Durante a festa, ouvi anunciarem pelo microfone: ���Os Trovadores Urbanos est��o aqui, como presente de Eliane Lobato���.

Pulei da cadeira. Foram eles que tocaram no meu casamento.

Eu os tinha visto na Pra��a Benedito Calixto e, mesmo sem ouvir, quis porque quis que eles fossem tocar na minha festa de casamento. Porque eu sabia a letra de muitas m��sicas que eles tocavam e cantei junto, imaginando a melodia, acompanhando a letra por leitura labial. Mas, claro, n��o era a mesma coisa.

De presente para minha irm��, mas tamb��m por minha causa, minha m��e contratou os mesmos trovadores, para tocarem as mesmas m��sicas e, assim, homenagear minha irm�� e me dar aquilo que n��o pude ter anos atr��s.

Corri na dire����o dos m��sicos e os ouvi cantar aquelas m��sicas que rechearam o meu casamento. Cantei, novamente, junto com eles, mas sem medo de perder o compasso, j�� que agora podia ouvir m��sica e letra.

Era engra��ado ver as pessoas me olhando, sendo que eu nem era a noiva. E ver a carinha de contentamento dos meus pais, que sabiam exatamente o que eu estava sentindo.

Fui um pouco injusta e roubei um instante m��gico do casamento da minha irm��, mas fazer o qu��? Escutar �� pura poesia!





Chega de saudade


Fui convidada para ir ao encontro de implantados de Curitiba. Aceitei, claro, j�� que amo aquela cidade, tenho amigos que amo que moram l�� e todos se dispuseram a ir ao encontro, independente de n��o serem surdos nem implantados.

Cheguei junto com os amigos no shopping onde seria o encontro.

As pessoas n��o se conheciam, portanto, estavam espalhadas pela pra��a de alimenta����o. Foi preciso chamar uma por uma, porque a maioria estava receosa e se sentindo deslocada.

Conversa vai, conversa vem, um monte de gente desconhecida, algumas conhecidas, muitas d��vidas esclarecidas e muita informa����o trocada.

Vi uma senhora sentada junto com uma mo��a a uma mesa. O semblante era triste. Ela olhava para o grupo sem expressar muito interesse de se juntar a n��s. Foi ent��o que uma das organizadoras do encontro resolveu cham��-las.

A senhora, que se chamava Denise, veio na minha dire����o e me perguntou, de maneira bem t��mida, se eu era implantada. Respondi que sim, que era usu��ria bilateral. Come��amos a conversar e ela contou que a ��nica dificuldade que a incomodava era n��o conseguir falar ao telefone muito bem. Que acabava optando pelo viva voz, que era a maneira de ouvir melhor.

Lembrei de que, uns dias antes, liguei para um amigo e ele n��o atendeu, me retornou 10 minutos depois, s�� que n��o consegui ouvir o que ele dizia porque j�� tinha entrado num restaurante muito barulhento e desliguei. Logo depois de desligar, me veio a ideia de que eu poderia ter usado o tal cabo de ��udio do IC para reduzir o barulho ambiente, j�� que funciona muito bem na academia.

Testei com minha m��e e funciona que �� uma maravilha.

Ent��o comentei com a Denise para ela tentar usar o celular assim.

Meu marido deu a ideia de fazermos uma demonstra����o pr��tica e, como us��vamos o mesmo processador, testamos a percep����o auditiva via cabo com uma m��sica.

Ver a rea����o da Denise foi como me ver no espelho. Inicialmente, ela n��o queria sequer testar m��sica, porque ���n��o gostava��� (aqui entre n��s, �� um n��o-gostar que a gente desenvolve por defesa, para n��o sofrer, conhe��o muito bem essa sensa����o), mas aceitou diante de um pouquinho de insist��ncia nossa.

Liguei a m��sica, escolhida aleatoriamente e��� Deu para ver os olhos dela brilharem ao exclamar: ����� a primeira vez desde que ensurdeci que ou��o m��sica com clareza���. Respondi ����� bossa nova!��� E ela ���Bossa Nova������ sorrindo, at�� as l��grimas transbordarem. Chorei junto, porque foi a situa����o mais linda que j�� pude assistir���

Depois, me dei conta de que a m��sica escolhida n��o poderia ser mais simb��lica: ���Chega de saudade���.





No r��dio


Um amigo de uma amiga me adicionou no Facebook. Tanta gente me adiciona desse jeito, que n��o vi nada demais.

Ele veio conversar comigo, pois ela havia sugerido meu nome como algu��m que poderia ajudar em algumas ocasi��es, tais como uma audi��ncia na C��mara Municipal, em rela����o aos surdos oralizados e usu��rios de pr��teses e implantes auditivos. Beleza, ficou por isso mesmo e, vez ou outra, fal��vamos sobre o tema.

Uma bela noite, ele me perguntou algumas coisas sobre meu caso. E queria saber especificamente se minha voz era boa, se eu tinha audi����o que me permitisse falar ao telefone. Respondi que minha voz �� boa dentro das minhas possibilidades ��� j�� ela ainda tem sequelas de 25 anos de priva����o sonora ��� e que minha capacidade de falar ao telefone �� menor que a de um ouvinte natural, por limita����es emocionais muito mais do que f��sicas.

Pois bem, o motivo da pergunta era se eu seria capaz de dar uma entrevista no r��dio explicando sobre tudo isso.

Primeiro, tive vontade de sair correndo, porque r��dio significa exposi����o m��xima da minha voz e, como boa parte dos deficientes auditivos, minha autoestima em rela����o a ela �� bem fr��gil. Mas, acabei topando o desafio e falei que ele poderia sim me indicar.

A�� come��ou a confus��o com a equipe do programa. Por causa do trabalho, eu nunca conseguia ir ao est��dio no hor��rio que eles precisavam. Foi ent��o que sugeriram que eu gravasse a entrevista por telefone. Muito a contragosto, acabei concordando, porque sabia da import��ncia de falar do implante coclear.

Atendi a liga����o j�� avisando que estava nervosa, porque era a primeira vez, em 25 anos, que eu falava ao telefone naquelas circunst��ncias.

Pela rea����o da voz da apresentadora, Fab��ola Cidral, que apresenta o programa Cidade Inclusiva, ela n��o tinha muita informa����o sobre meu caso e ficou realmente surpresa de saber que eu tinha recuperado a capacidade de ouvir depois de duas d��cadas e meia.

Conversamos por cerca de 15 minutos. Ela fez diversas perguntas em rela����o �� minha hist��ria, ao IC, �� minha percep����o atual do mundo.

Quando terminamos de gravar a entrevista, eu me sentia como se tivesse sido atropelada por um trator, de t��o forte que foi a emo����o. Porque, gra��as ��s respostas que ela me dava, eu percebi que ela, algu��m que eu nunca tinha visto e provavelmente n��o tinha grandes contatos com surdos oralizados, havia conseguido me entender perfeitamente.

Uma semana depois, outra emo����o. Ouvi, pela primeira vez, um programa de r��dio com facilidade. E, a melhor parte, era a minha entrevista.

Foi tamb��m a primeira vez que pude realmente ouvir minha voz com clareza e poder formar a pr��pria opini��o. O que percebi e n��o gostei, passei para a minha fonoaudi��loga e pudemos trabalhar com esse feedback auditivo pessoal.

E a melhor parte? A maioria das pessoas preferiu elogiar o conte��do das minhas palavras, muito mais que ficar dando palpites em rela����o �� sonoridade da minha voz. Isso foi m��gico por si s��!





A voz do professor


Decidi fazer um curso de aperfei��oamento profissional. Escolhi um curso na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM, eu j�� trabalhei l��) de Design. Porque atualmente trabalho com isso e achei que me faria bem dar uma lapidada nos meus conhecimentos.

O ��nibus que passa perto do meu trabalho passa longe da ESPM, mas como sa�� cedo, em vez de pegar outro ��nibus, decidi caminhar.

Enquanto caminhava, dei-me conta de que eram as mesmas ruas onde cresci. Onde tamb��m me vi surda numa bela manh�� de segunda-feira, em fevereiro de 1987.

Caminhei pelas ruas pensando nas voltas que a vida d��. Passei pela padaria onde eu comprava meus quitutes de crian��a. Pela banca de jornal (fechada, claro) onde comprei milhares de revistas em quadrinhos logo que ensurdeci (foi o passatempo que encontrei para compensar a aus��ncia de som). Passei em frente �� casa onde meus pais trabalharam durante alguns anos���

Caminhei por aquelas cal��adas onde brinquei com barulho e em sil��ncio. Onde conheci meu primeiro amor. Onde sonhei pela primeira vez com meu futuro. Onde temi pela primeira vez um futuro incerto, num lugar onde pessoas com defici��ncias s�� t��m incertezas.

Quase 20 anos se passaram desde que me mudei de l��.

E voltava a caminhar por aquelas ruas, bem diferente da menina que saiu de l��.

Agora, eu ouvia bem e com os dois ouvidos. Tinha uma hist��ria de vida bem bonita para contar. Tinha dois trabalhos que amo (o meu trabalho aqui com marketing interno de uma empresa e esse que fa��o pela vida a fora, de divulgar o implante coclear). Tenho um casamento feliz. Milhares de amigos. Alguns por quem eu daria o meu cora����o todinho, inclusive. Tudo aquilo que, aparentemente, a sociedade acha que nenhuma pessoa com defici��ncia jamais teria. E que, em algum momento da nossa vida, nos avisam que n��o vamos conseguir. E nos ridicularizam se tentarmos. Mas, nada disso teve import��ncia para mim, porque, por mais que me dissessem o contr��rio, eu nunca deixei de acreditar que teria uma vida plena. E, enquanto caminhava por aquelas ruas, degustava a felicidade de estar certa.

Cheguei ao curso e, pela primeira vez em 26 anos (excluindo as minhas aulas de idioma, porque elas n��o contam, j�� que a professora �� quase como se fosse minha m��e e sempre deu um jeito de entrar na minha cabe��a, mesmo quando a aus��ncia de audi����o n��o permitia), ouvi a voz do professor encher a sala, minhas orelhas e minha cabe��a. Eventualmente, ouvia tamb��m a voz dos outros alunos.

Sabe, primeiro, eu n��o sabia direito como deveria agir. Quando o professor pediu para a gente se apresentar, meu cora����o disparou, como disparou todas as vezes todos esses anos. Medo de falar e n��o ser entendida. Mas, nos segundos que antecederam minha fala, eu pensei ���poxa, mas j�� dei at�� uma entrevista de r��dio, j�� dei palestra, porque estou com medo de me apresentar para um grupo de 12 pessoas?��� E, nessa hora, meu cora����o se acalmou e pude falar tranquilamente.

Ouvi as horas de explica����o do professor com gosto. ��s vezes, as l��grimas amea��avam cair, porque ele n��o tinha ideia do milagre que eu estava vivendo e, sem querer, falava umas coisas bonitas, tipo explicar o que s��o as artes puras ou o que �� uma obra de arte.

Pude ouvi-lo claramente ao corrigir o exerc��cio que me passou.

E tive que rir quando ele me perguntou por que eu n��o estava fazendo o exerc��cio passado e respondi ���estou trocando a pilha do meu aparelho��� e ele parou a aula para que eu n��o me atrasasse em rela����o aos demais.

O curso era de uma semana, ent��o pude observar as mudan��as que ocorreram durante essas cinco noites.

L�� pela terceira aula, eu j�� estava bastante confort��vel para assistir aula olhando para a tela de proje����o e n��o para o professor. Aula com luz fraca por causa do projetor costumava ser um pesadelo para mim.

S�� sentia uma certa dificuldade de entender quando algum aluno falava. A solu����o foi trocar o programa para o que tem filtro de ru��do. Isso facilitava relativamente a capta����o das vozes dos meus colegas, mas sempre ficava ainda melhor se eu me virasse para eles, direcionando o microfone do processador para a pessoa.

Usar o IC bilateral ajudava a saber prontamente quem estava falando, porque eu conseguia localizar a fonte de som.

Como era curso de reciclagem, eu me senti bem �� vontade para n��o prestar tanta aten����o aos assuntos sobre os quais eu tinha conhecimento claro e poder dar prioridade ao trabalho que o professor Collaro nos passou. Mas, at�� nessa hora, percebi como ouvir faz diferen��a. Eu nunca deixava de prestar aten����o totalmente no que ele dizia. Era como se meu c��rebro colocasse a voz dele em segundo plano e, quando alguma coisa despertava a minha aten����o, a voz dele voltava a se destacar e eu parava o que estava fazendo para prestar aten����o na aula.

Isso permitiu que eu aproveitasse 100% do tempo de aula, �� revelia de ser ou n��o um assunto do meu interesse, sem qualquer dificuldade de administrar o tempo e sem perda de informa����o.

Na ��ltima aula, eu j�� estava at�� dando palpite em resposta do professor para d��vidas alheias que eu ouvia, mesmo sem estar sequer prestando aten����o direito. T��o coisa minha, n��?

Quando terminou o curso, fiz quest��o de me despedir pessoalmente do professor. Ele perguntou se o curso tinha sido v��lido para mim, porque era mais indicado para iniciantes no assunto. Respondi que foi duplamente v��lido, pela experi��ncia de ouvir uma aula pela primeira vez e porque tamb��m foi a primeira vez que, por mais que eu domine o assunto, tive uma aula sobre algo com o que trabalho h�� muitos anos.

Finalmente, descobri que a vida deu uma volta absurda. E que s�� posso agradecer por esse dia chegar. N��o estou curada da surdez e nem deixei de ser deficiente auditiva. Mas, agora, eu ou��o e ou��o bem. Gra��as ao implante coclear.





Bibi Ferreira canta e conta Piaf


Minha fonoaudi��loga de reabilita����o auditiva, L��lian Khun, comentou que havia uma pe��a de teatro da atriz Bibi Ferreira cantando m��sicas de Edith Piaf.

Isso porque, ao passar exerc��cios de canto para treinar nos dias sem consulta, escolhi uma m��sica da Piaf ���Non, je ne regrette rien���. Escolhida por v��rios motivos: a m��sica �� linda, a letra �� forte, amo franc��s e idolatro Piaf. Ela, como eu, sofreu um grande trauma durante a inf��ncia: ficou cega. Mas ela tamb��m teve sorte e voltou a enxergar. Claro que a vida dela foi muito mais desgra��ada que a minha e ela teve muito mais sucesso do que eu jamais terei. Ent��o, por causa dessa identifica����o, Piaf �� minha musa em diversos sentidos.

Comprei o ingresso logo depois, mas para uma data futura, porque eu queria a primeira fila.

Edu n��o quis ir ��� ele n��o �� t��o f�� assim da Piaf ��� ent��o convidei minha m��e, que compartilha a idolatria.

Contei nos dedos o dia da pe��a chegar. Porque, como voc��s devem imaginar, teatro �� algo de dif��cil acesso a surdos (salvo pe��as com recursos de acessibilidade, o que, infelizmente, ainda �� algo raro).

Teatro �� a minha paix��o de inf��ncia! Eu adorava ir ao teatro (nem sei quantas vezes fui assistir �� pe��a ���As 7 chaves m��gicas���) quando ainda era ouvinte. Ali��s, tentei algumas vezes, p��s-surdez, mas nunca era uma experi��ncia v��lida e, no fim, desisti e passei a recusar todas as oportunidades. Uma vida desperdi��ada!

Ap��s fazer o segundo IC, quando finalmente recuperei a capacidade de compreender o que ou��o, sabia que logo mais viria a chance de voltar a viver essa paix��o! S�� queria que fosse uma estreia triunfal, digna de um reencontro depois de 25 anos de aus��ncia���

Por isso escolhi ���Bibi Ferreira canta e conta Piaf���. Bibi �� uma deusa do teatro, uma diva que vale uma espera de 1/4 de s��culo!

Enquanto subia as escadas rolantes (o teatro Frei Caneca fica no s��timo andar do shopping com o mesmo nome) j�� sentia que a emo����o amea��ava dar as caras. Mas consegui me conter.

Entramos no teatro e minha m��e, que n��o sabia que sentar��amos na primeira fila, me perguntou ���N��o tinha um lugar mais no meio da plateia?��� Respondi ����� a primeira vez nessa vida (de cyborg) que vou ao teatro. Sentaria no palco, se pudesse���. Ela riu e disse: �����, d�� para perceber���.

Assim que a cortina levantou, deparei-me com uma orquestra. Piano de cauda, violinos, contrabaixo, obo��, etc. Quando o regente entrou e o som dos instrumentos encheu a sala, tive a sensa����o que ia explodir de tanta emo����o e, da maneira que o corpo encontra para extravasar essa emo����o que n��o cabe, as l��grimas saltaram com for��a dos meus olhos. Foi imposs��vel cont��-las.

Chorei quando vi a Bibi vindo em dire����o ao microfone ��� essa temporada comemorava os 30 anos de sucesso dessa pe��a ��� e quando ela soltou a voz pela primeira vez��� E pelos 60 minutos seguintes. Quando o mestre de cerim��nia citou que ���Piaf era aquela menina que perdeu a vis��o aos 8 anos���, nem consegui ouvir o resto, porque comecei a solu��ar��� T��o alto que a mo��a sentada ao meu lado perguntou se eu estaria passando mal!

Terminada a pe��a, comentei com minha m��e que queria abra��ar a estrela deste espet��culo. Ela, que melhor que ningu��m compreendeu o que eu queria dizer, foi na dire����o do contrarregra e explicou que eu tinha perdido a audi����o aos 10 anos e recuperado recentemente, depois de 25 anos de surdez, que era a primeira vez que eu ia ao teatro e queria muito abra��ar a Bibi. Ele respondeu: ���Como a Bibi Ferreira est�� muito gripada, ela avisou que n��o receberia ningu��m, mas �� um caso especial, vou ver com ela e j�� volto para falar com voc��s���.

Uns quinze minutos depois, ele voltou sorridente e disse que ela nos atenderia assim que estivesse deixando o teatro. N��o no camarim, mas no pr��prio palco!

Ficamos uma boa meia hora sentadas no teatro, esperando pela sa��da da estrela. Nesse meio tempo, outro funcion��rio do teatro veio falar conosco para saber por que est��vamos esperando. Minha m��e explicou e um senhor sentado atr��s de n��s nos ofereceu ingresso para a pe��a seguinte ���Os homens querem casar e as mulheres querem sexo���. Ficamos sem entender nada, mas aceitamos, porque a noite estava m��gica demais para simplesmente ir embora���

Bibi voltou ao palco digna de uma verdadeira estrela. De casaco longo e ��culos escuros, recebeu, com uma carinha de cansada, um outro f�� que pediu para tirar fotos.

Quando chegou minha vez, eu tremia tanto, meu cora����o batia t��o r��pido que nem sabia o que dizer. Repeti, gaguejando, a minha hist��ria e ela respondeu, com os olhos marejados (essa foi a surpresa m��xima da noite): ���Eu sei, minha florzinha, eu sei!��� e beijou meu rosto todo. Me deu um abra��o forte e aceitou tirar fotos comigo! Agradeci pelo presente daquela noite e disse que voltava no ano seguinte para ouvi-la cantar Frank Sinatra. Ela respondeu: ���Minha florzinha, toda a felicidade do mundo para voc��!���, com uma candura que, naquela hora, vinha com uma for��a de humanidade que �� um talento de poucos!

Quando desc��amos do palco, o tal senhor que nos ofereceu ingresso estava com uma mo��a. Ela comentou que a Bibi era maravilhosa. Respondi que sim. E ela endossou: ���Uma pena que ela esteja t��o gripada���. Minha m��e responde ���Estamos todos gripados, coisas de cariocas em S��o Paulo���. Ela respondeu para mim: �����, d�� para perceber pela sua voz��� (meu sotaque de surda havia virado voz de gente gripada, fase transit��ria)��� A�� minha m��e explicou de novo minha hist��ria e���

Descobrimos que os dois eram donos do teatro, que tamb��m ficaram encantados com a minha hist��ria. A mo��a me levou para ver o camarim da Bibi e me fez 800 perguntas sobre como foi ficar tanto tempo sem ir ao teatro, como foi poder ir ao teatro, se pude ouvir bem, o que senti e mais um monte de d��vidas sobre o IC���

Ficamos para a pe��a seguinte ��� que era praticamente um mon��logo ��� que pude assistir com extrema facilidade, gra��as ao IC. Lembrei de todas as vezes que fui ao teatro, n��o entendi o di��logo e voltei para casa entediada e sem entender nada. Ri das piadas ��� sim, entender piadas tamb��m depende de uma audi����o boa ��� participei das brincadeiras que o Carlos Sim��es fazia com a plateia e me senti parte daquele momento, de verdade.

Acordei na manh�� seguinte, depois de uma das noites mais m��gicas da minha vida e fiz aquele ���check��� mental ���Foi sonho? N��o! Que bom!���





Deslumbramentos Sonoros


���Voc�� aceitaria gravar um v��deo para o TEDx Vila Mad��?���



Recebi essa frase num e-mail, para integrar um evento chamado ���Hist��rias Transformadoras: Atitudes que Inspiram���.

Aceitei, obviamente, porque sou louca por esse tipo de palestra.

A pessoa que me convidou, Iracema, veio conversar comigo algumas semanas antes da data marcada, para saber exatamente do que eu pretendia falar e se isso se encaixaria no tema do evento.

Falei que gostaria de falar da import��ncia de prestar aten����o nos detalhes, de escutar al��m de ouvir, usando como pano de fundo, a minha hist��ria de vida. Ela achou lindo, perguntou quanto tempo eu queria e, no fim, ficou decidido que seriam 12 minutos.

Imagine eu, a pessoa mais prolixa do mundo, resumindo a minha hist��ria, com direito a elucubra����es sobre ouvir e escutar, em apenas 12 minutos?

Pois bem, depois de uma semana preparando o texto e enxugando o texto por vezes infinitas, ensaiando sozinha; com a L��lian, minha fono; sozinha de novo, consegui chegar ao tempo premeditado.

Antes da palestra, havia um evento s�� para os palestrantes. Com direito a ensaio, din��mica e muita conversa.

Comecei o meu ensaio bem nervosa, tremendo, mas o texto fluiu como ��gua pela minha boca e, quando terminei, vi a rea����o das pessoas. Era um misto de emo����o, simpatia, empatia, pena, orgulho.

Ningu��m fez qualquer cr��tica em rela����o a minha voz. A ��nica pessoa que comentou algo foi o Marcio Libar, que �� palha��o, que sugeriu que eu retirasse a ���moral da hist��ria��� do meu discurso e terminasse com a historinha infantil que eu contei sobre o p��r do sol. Primeiro, eu recusei, porque n��o queria mudar meu texto ensaiado. Mas, depois de conversar com o Edu, acabei aceitando a sugest��o.

Finalmente, come��ou o evento e pudemos ouvir as hist��rias contadas uns pelos outros.

Quando faltava 10 minutos para chegar a minha vez, meu cora����o acelerou e eu pensei: ���N��o, n��o vou ficar nervosa, eu nasci para este momento!���

Pode ter sido um pensamento besta, mas funcionou. E quando chegou a hora de ir para a frente das c��meras, eu estava calma e pude ouvir minha voz sair tranquilamente, contando as palavras que eu ensaiara tantas vezes.

Quando contei a primeira parte, sobre acordar surda aos 9 anos vi a cara de desespero da plateia. Como se dissessem: ���por que essa mulher est�� aqui contando essa hist��ria horr��vel?��� Mas, logo depois, pude ver tamb��m as express��es e alento quando citei minha experi��ncia com o implante. Ouvi-os rir e chorar comigo pelos minutos seguintes. E fui abra��ada por v��rias pessoas maravilhadas ao final do evento.

Foi quando percebi que a minha hist��ria era capaz de tocar at�� quem n��o tinha a menor experi��ncia com surdez ou com qualquer outra defici��ncia. �� uma hist��ria triste, mas ao mesmo tempo alegre, de quem nunca perdeu a f�� na vida.

O v��deo est�� dispon��vel na internet, lembrando as pessoas sobre como �� bom prestar aten����o nos detalhes para viver plenamente. �� disso que se faz a poesia de estar vivo!





Ep��logo





Escutar com o cora����o


Faz mais de um ano que a minha vida se refez por completo. O implante coclear, sem querer, acabou se tornando o pilar da pessoa que eu me tornei. Tive uma vida completa antes dele, �� verdade. Mas ele me devolveu o prazer de apreciar os detalhes. Sou uma pessoa comum, adulta, a rotina j�� havia me roubado esse talento.

N��o digo que o IC fa��a o mesmo para todo mundo. Algumas pessoas conseguem excelente resultado, outras n��o. Inclusive, nem todo mundo tem a possibilidade de fazer o implante coclear.

Mas a verdade �� que esse dom de amar ouvir n��o vem com o implante coclear, isso �� meu! Afinal, s��o tantas as pessoas ouvintes biol��gicas que n��o veem nada demais no barulho do vento, do risoto suspirando, da respira����o da pessoa amada ao p�� do ouvido.

Ainda assim ��� falando apenas por mim ��� s�� tenho a possibilidade de viver tudo isso por causa do implante coclear.

Ent��o, minha declara����o de amor mais sincera por essa tecnologia! Para quem s�� pode ouvir atrav��s dela e tem a alma sedenta de sons como a minha, certamente o IC vale a pena!

Beijinhos sonoros,

Lak





Cada caso �� um caso


Depois de contar a minha hist��ria, na minha vers��o dos fatos, quando o livro j�� estava praticamente pronto, recebi um e-mail muito importante, do m��dico que me operou duas vezes, Dr. Robinson Koji Tsuji que acho que vale a pena ser compartilhado:

���Ol�� Lakshmi,

Eu assisti ao seu v��deo do TEDx com aten����o e depois fui ler o seu blog e confesso que fiquei bastante emocionado.

�� emocionante saber o quanto voc�� est�� bem, feliz e evoluindo dia a dia.

�� emocionante saber que mesmo n��o tendo conseguido um ��timo resultado no primeiro implante, voc�� levou informa����o, esperan��a e f�� a muitos pacientes que precisavam de for��as para enfrentar a cirurgia.

Posso mencionar dezenas de pacientes que citam voc�� como quem deu coragem para enfrentar o desafio e, ao contr��rio do que alguns escreveram para voc��, voc�� n��o exagera nas expectativas. Pois a expectativa �� uma coisa totalmente pessoal e que jamais ser�� igual para todo mundo, pois cada um tem a sua ���pr��pria r��gua���.

Voc�� mesma tem hoje uma ���r��gua mais comprida��� do que antes, e talvez por isso tenha passado este per��odo de depress��o depois do segundo implante. Eu sempre acreditei que o resultado do segundo implante seria melhor, mas tive por op����o respeitar o seu tempo e esperar que voc�� me procurasse.

Afinal, ainda havia uma d��vida: E se a segunda c��clea tamb��m estiver com fibrose?

Mas gra��as a Deus tudo deu certo e, apesar de j�� ter mais de 1000 pacientes implantados, o dia da sua cirurgia foi um dia especial.

Lembro-me de ter acordado mais animado do que o normal e tamb��m bastante feliz em v��-la naquela sala de cirurgia, pois eu teria a oportunidade de fazer ainda mais por voc��. Lembro-me de ter entrado na sala bastante confiante, algo dentro de mim me dizia que daria tudo certo, n��o porque eu confiava na minha capacidade, mas porque eu sabia que voc�� merecia isso e que era chegada a sua hora.

Hoje, passado mais de um ano, confesso que o resultado do seu segundo implante est�� superando as ���minhas��� expectativas.

Acredito que o primeiro implante tem papel nisso, pois ���preparou��� as suas conex��es neurol��gicas e c��rtex auditivo para o som que viria do segundo implante, ou seja, como voc�� mesma disse, nada �� por acaso.

J�� estou nesta jornada h�� muito tempo, passei por v��rios est��gios do implante coclear, desde a ��poca que ele era desacreditado e combatido, inclusive por m��dicos. Muitas pessoas (pacientes e familiares) hoje fazem parte da minha vida, e os resultados, como voc�� j�� sabe muito bem, variam muito para cada paciente.

Alguns pacientes jamais atingir��o o resultado que voc�� tem hoje, seja porque t��m fibrose em ambas as c��cleas ou porque foram pouco estimulados na inf��ncia.

Outros pacientes t��m resultados espetaculares melhores ainda que os seus.

O engra��ado de tudo isso �� que nem sempre o que est�� com o melhor resultado �� aquele que est�� mais feliz. Saber enxergar a vida positivamente, saber a lidar com as frustra����es e n��o se deixar abater pela primeira dificuldade s��o essenciais em todo esse processo. Mas isso �� uma coisa totalmente pessoal e, apesar de sempre tentar preparar nossos pacientes para isso, ningu��m nunca est�� 100% preparado.

Eu sinto que tenho uma enorme responsabilidade com voc��. Responsabilidade de cuidar para que seu implante continue funcionando por toda a vida.

Agrade��o por ter me confiado seu tratamento e acima de tudo ter me dado oportunidade de fazer parte dessa aventura.���





Por: Dr. Robinson Koji Tsuji


M��dico Otorrinolaringologista Especialista em Neurotologia e Cirurgia de Base de Cr��nio.

Fellow em Neurotologia e Cirurgia de Base de Cr��nio no Hospital das Cl��nicas de S��o Paulo.

Membro do Grupo de Otologia do Departamento de Otorinolaringologia do HC-FMUSP.

Doutor em Otorrinolaringologia pela FMUSP.





Ap��ndice





Quem s��o os surdos oralizados?


Desde que perdi a audi����o, sempre me perguntam sobre as formas de comunica����o dos deficientes auditivos.

Afinal, todo mundo j�� ouviu falar de surdos que se comunicam por sinais e pessoas que ouvem usando aparelhos auditivos e entendem quase normalmente.

Por conta dessa falta de divulga����o sobre o grupo de surdos oralizados, decidi que precisava fazer um blog contando a minha experi��ncia. Minha preocupa����o principal era esclarecer sobre a diversidade que existe dentro da defici��ncia auditiva.

Atualmente, com a divulga����o da LIBRAS, muita gente fica encantada com a L��ngua de Sinais e acha que este idioma �� comum a todo deficiente auditivo. A LIBRAS �� uma l��ngua bel��ssima e reconhecida oficialmente, mas ela n��o �� a principal nem a ��nica forma de comunica����o de toda e qualquer pessoa com defici��ncia auditiva.

Existe mais de um grupo de pessoas que convivem com a limita����o auditiva. H�� quem consiga driblar a defici��ncia com aparelhos auditivos comuns. Estes, normalmente, possuem perda em grau leve ou moderado, ou at�� perda severa com a sorte de ter uma audi����o residual que se adapta aos aparelhos de amplifica����o sonora individual (AASI). S��o chamados apenas de deficientes auditivos.

Existem os surdos que usam LIBRAS, que representam o grupo de deficientes auditivos mais conhecido e dispensam explica����es.

Mas h�� tamb��m quem tenha defici��ncia auditiva severa e/ou profunda e n��o fa��a uso da L��ngua de Sinais. Pessoas com defici��ncia auditiva que falam normalmente (ainda que com sotaque t��pico) e se comunicam valendo-se da leitura labial, acompanhada ou n��o de pr��teses e implantes auditivos. S��o pessoas que perderam a audi����o depois da aquisi����o da fala via audi����o ou cujos pais acreditaram na oraliza����o atrav��s da fonoterapia. O que os diferencia dos deficientes auditivos de graus mais leves �� justamente o fato de muitos serem incapazes de discriminar a fala auditivamente com clareza e continuarem a depender da leitura labial como apoio, mesmo utilizando pr��teses auditivas. O termo usado para referir-se a essas pessoas �� surdo oralizado.

Os surdos oralizados, geralmente, n��o costumam ter muito interesse pela l��ngua de sinais, porque a l��ngua que se tornou natural �� o portugu��s (no caso do Brasil).

Quando um surdo fala portugu��s oral e LIBRAS, �� chamado de bil��ngue ou bimodal.

Os surdos oralizados s��o comumente confundidos com deficientes auditivos que ouvem perfeitamente com aparelho comum, pois conversam normalmente, por isso, muitas vezes, t��m direitos e necessidades negados.

Embora um surdo oralizado n��o negue as necessidades dos surdos que n��o s��o oralizados e respeite a LIBRAS, ele tamb��m precisa de algumas adapta����es para si.

N��o adianta deduzir que todo deficiente auditivo sabe a l��ngua de sinais e achar que isso basta por si s��. Um surdo oralizado dificilmente vai entender uma janela com interprete de LIBRAS na televis��o, uma vez que n��o domina esse idioma. Ele precisa de legenda, porque geralmente tem facilidade de leitura e tem o portugu��s como base lingu��stica.

Um surdo oralizado n��o quer um int��rprete de LIBRAS numa palestra (a alternativa seria um int��rprete oralista, que traduza oralmente o que �� falado), mas quer sentar numa posi����o que lhe d�� boa visibilidade do palestrante. Ou que se utilize tecnologias de transmiss��o fechada de som (Sistema FM ou Aro de Indu����o Magn��tica) ou ainda que coloquem legendas de alguma forma.

Um surdo oralizado quer apenas um pouco de paci��ncia e boa vontade do interlocutor, para falar com calma e de forma natural, sempre virado para ele.

Muita gente acha que �� obriga����o do deficiente auditivo aprender a l��ngua de sinais, numa tentativa de homogeneizar a defici��ncia. S�� que isso �� um desrespeito �� individualidade e �� diversidade. Se o primeiro idioma que ele aprendeu foi o portugu��s, �� seu direito como cidad��o brasileiro t��-lo como primeiro (e at�� ��nico) idioma. N��o �� porque uma parcela de deficientes auditivos usa a l��ngua de sinais ��� que para eles �� ��til e absolutamente necess��ria ��� que toda pessoa com d��ficit auditivo tem obriga����o de utilizar essa forma de comunica����o no dia a dia. Seria a mesma coisa que for��ar todo deficiente f��sico, �� revelia das suas condi����es, a usar cadeira de rodas e ponto. Rejeitar-se-ia o uso do andador, da muleta, das pr��teses e ��rteses. Reduzindo todo e qualquer deficiente f��sico a cadeirante, sob alega����o de que assim �� mais f��cil fazer adapta����es.

Ler os l��bios �� uma forma de comunica����o aceit��vel sim! Muita gente consegue se virar bem com ela. A leitura labial pode at�� n��o ser uma c��pia fiel da audi����o, mas �� uma forma de comunica����o t��o v��lida quanto a audi����o ou a l��ngua de sinais.

Todo surdo que quiser falar oralmente tem o direito de se expressar dessa forma, mesmo que a voz dele tenha um sotaque caracter��stico de quem usa, no lugar do feedback auditivo, a vibra����o e resson��ncia ��ssea como controle da voz.

Atualmente, existe tamb��m a op����o de um surdo oralizado ou n��o, que n��o consegue ouvir com aparelhos convencionais, recorrer ao implante coclear (IC). Os usu��rios do IC s��o chamados de ���implantados���.

Mas, �� importante lembrar que o implante coclear n��o cura a defici��ncia auditiva. Um surdo n��o deixa de ser surdo porque usa o IC, pois s�� ouve quando usa tamb��m a parte externa do aparelho. Por isso, mesmo um surdo implantado continua sendo parte da diversidade dessa defici��ncia.

Numa ��poca que se fala tanto em diversidade, em inclus��o e em respeito �� individualidade, as pessoas precisam conhecer todos os tipos de integrantes do vasto universo da defici��ncia auditiva, al��m de respeitar as particularidades intr��nsecas e caracter��sticas de cada grupo, sem se sobrepor ou negligenciar as necessidades dos demais.

Como disse, certa vez, um g��nio chamado Charles Chaplin:

���Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros?

Neste mundo h�� espa��o para todos.���





O que �� o implante coclear


Por: L��lian Kuhn Pereira


Fonoaudi��loga - CRFa 14684

Especializa����o em Audiologia

Mestrado e Doutorado em Lingu��stica Aplicada



O implante coclear (IC) �� um dispositivo eletr��nico constitu��do de duas partes principais: componente interno e componente externo:

No componente externo, tem-se: o microfone direcional, que capta os est��mulos sonoros e os transmite para o processador de fala, o qual codifica o som e passa para a antena transmissora com im��, onde o sinal �� transformado em impulsos el��tricos. �� atrav��s dessa parte que os componentes externo e interno se conectam.

O componente interno �� colocado atrav��s de uma cirurgia e �� formado por: antena interna com im��, que est�� localizada em posi����o subcut��nea na regi��o temporal do cr��nio e recebe as informa����es el��tricas atrav��s da pele para conduzir ao receptor estimulador, o qual converte e transmite os sinais el��tricos para o cabo com feixe de eletrodos que, inseridos em diferentes partes da c��clea, transmitem eletronicamente o est��mulo sonoro ao nervo auditivo.

Como tamb��m acontece em um indiv��duo ouvinte, o som (agora, sinal el��trico) �� conduzido do nervo auditivo ao c��rebro, onde �� decodificado e d�� a sensa����o auditiva. Com um sistema refinado de decodifica����o em tempo e frequ��ncia, o IC oferece limiares auditivos similares aos de uma audi����o normal.

De modo geral, o implante coclear �� indicado para pessoas com defici��ncia auditiva neurossensorial, bilateral e de grau severo/profundo, e que n��o t��m bom aproveitamento dos aparelhos auditivos convencionais. Entretanto, a aprova����o para a realiza����o da cirurgia �� feita ap��s rigoroso processo de avalia����o multidisciplinar (m��dicos, fonoaudi��logos, psic��logos e assistentes sociais).

�� v��lido ressaltar que o resultado da cirurgia de IC varia para cada indiv��duo, devido a in��meros fatores, como, por exemplo, na etapa pr��-cir��rgica: estado cl��nico e n��mero de eletrodos inseridos na c��clea, tempo de surdez, mem��ria auditiva, uso pr��vio de aparelhos auditivos convencionais. Al��m disso, s��o partes essenciais, j�� na fase p��s-cir��rgica, as programa����es peri��dicas do processador de fala e um efetivo processo de reabilita����o auditiva.

A (re)habilita����o auditiva �� um trabalho terap��utico realizado por fonoaudi��logo e voltado primordialmente para o (re)estabelecimento das habilidades auditivas, visto que o ���ouvir��� transp��e as fases de cirurgia e ativa����o do IC. Logo ap��s a ativa����o, o usu��rio do dispositivo j�� come��a a perceber a presen��a/aus��ncia dos sons no ambiente. A esta habilidade, denomina-se detec����o. A segunda habilidade desenvolvida �� a de discrimina����o, que permite diferenciar os sons (por exemplo: uma voz masculina de uma voz feminina).

Em fases conseguintes, tornam-se poss��veis a localiza����o (ou seja, ���de que dire����o vem aquele som?���) e o reconhecimento auditivo de sons ambientais, palavras e comandos verbais simples. E, por ��ltimo, a habilidade mais complexa que �� a compreens��o auditiva, a qual envolve a capacidade de entender a fala, a ponto de responder ��s perguntas e manter um di��logo. Em uma pessoa sem defici��ncia auditiva, o desenvolvimento das habilidades auditivas �� natural e se encerra por volta dos dois anos de vida. Entretanto, para aquelas que nasceram sem ou perderam a capacidade de ouvir, todas as habilidades ter��o que ser (re)aprendidas.

Ainda, a defici��ncia auditiva que �� cong��nita (desde o nascimento) ou pr��-lingual (antes da crian��a come��ar a falar) afeta diretamente a aquisi����o da linguagem oral e pode trazer consequ��ncia para a alfabetiza����o e aprendizado das crian��as. A priva����o auditiva em fase p��s-lingual (adquirida ap��s a pessoa j�� saber falar) interfere muito na qualidade da produ����o de fala e de voz, podendo diminuir a inteligibilidade da fala dessas pessoas e dificultar a comunica����o. Assim, no processo terap��utico de (re)habilita����o auditiva, o fonoaudi��logo tamb��m trabalhar�� a adequa����o de tais aspectos. Desta forma, a (re)habilita����o auditiva abrange as fun����es auditivas e lingu��sticas no c��rtex cerebral, e ��, portanto, um processo ativo, cont��nuo e intenso, mas que poder�� trazer excelentes resultados!





Preparo antes do implante coclear


Por: Val��ria Goffi


Fonoaudi��loga, Graduada pelo Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da USP

Doutora em Ci��ncias dos Dist��rbios da Comunica����o

Coordenadora da Equipe de Fonoaudiologia do Grupo de Implante Coclear do Hospital das Cl��nicas da Faculdade de Medicina da USP



Queridos leitores, quando a Lak me convidou para escrever algumas linhas falando sobre expectativas, pensei em mostrar as diferen��as dos resultados nas pessoas que fazem o implante coclear, com base tanto em nossa experi��ncia no HCFMUSP como na experi��ncia dos outros centros ao redor do mundo; mas seriam n��meros, estat��sticas que pouca rela����o teriam com a hist��ria de cada um de voc��s. Ent��o, preferi contar sobre do que depende o sucesso do implante coclear.

O primeiro aspecto mais importante a se pensar �� o pr��prio nome do procedimento. O implante �� realizado na c��clea para tentar substituir o papel das c��lulas sensoriais, que transmitem o som ao nervo auditivo. Isso funciona quando a surdez �� resultado de uma les��o nessas c��lulas sensoriais que est��o na c��clea. S�� que a c��clea n��o �� a ��nica parte do sistema auditivo e a surdez nem sempre �� resultado de uma les��o s�� nas c��lulas da c��clea.

Para escutar e entender os sons, entender as palavras, as piadas, a mensagem que est�� ���por tr��s das palavras���, o sistema auditivo �� muito mais do que a c��clea. Ele �� composto de v��rias esta����es e cada uma analisa e codifica os sons para que cheguem ao c��rebro auditivo (c��rtex auditivo), onde os sons s��o interpretados e onde �� dado significado a eles.

Al��m disso, a surdez pode acontecer antes da pessoa (crian��a) aprender os sons da fala, chamada de surdez pr��-lingual (antes do desenvolvimento da l��ngua oral) ou depois de aprender os sons da fala, chamada de surdez p��s-lingual.

Surdez pr��-lingual: antes do desenvolvimento das habilidades auditivas e da linguagem oral (antes da representa����o simb��lica dos sons no c��rebro) e antes de escutar a fala;

Surdez p��s-lingual: ap��s o desenvolvimento das habilidades auditivas e da linguagem oral. Ap��s a escuta da fala e a representa����o das palavras no c��rebro.



A depender da ��poca de instala����o da surdez, se a pessoa nasceu surda (surdez pr��-lingual) ou ficou ensurdecida (surdez p��s-lingual), o c��rebro tem representa����es totalmente diferentes dos sons ou da falta de sons.

Se a surdez se instalou antes do c��rebro ter sido alimentado com experi��ncias auditivas e com palavras e ter dado significado a elas, mesmo fazendo o implante, o processo de armazenamento de informa����es representativas dos sons ter�� que come��ar do zero. Isso exige um tempo ideal para acontecer, quanto mais cedo melhor (antes dos 4 anos de idade).

Se surdez foi adquirida depois de aprender a fala, isso faz com que o c��rebro j�� tenha armazenado o significado dos sons e o implante coclear ir�� restabelecer a conex��o entre a entrada dos sons e a chegada ao c��rebro. Ainda assim, o som chegar�� bem diferente do que �� o natural, pois o implante codifica os sons e os distribui em alguns eletrodos. Bem diferente do que as 20.000 c��lulas sensoriais fazem naturalmente. Por isso, algumas pessoas, mesmo j�� tendo aprendido a escutar n��o conseguem entender rapidamente ap��s o implante. Porque o c��rebro tem que aprender a reconhecer os sons codificados.

Porque ouvir �� diferente de entender.

Se eu escuto um som, por exemplo, uma palavra ���busolim���, eu posso escut��-la perfeitamente: ���busolim���. Mas, quando esse som chega ao meu c��rebro e n��o encontra um significado para ele, de nada adiantou eu ter escutado, pois n��o tirei proveito disso para nada. Escutei, mas n��o entendi.

O implante vai devolver a audi����o, o poder de ouvir. Mas, a estimula����o dada em pelos pais e familiares no dia a dia, a curiosidade de querer saber o que �� cada som (o que significa e de onde vem), somada �� reabilita����o, �� que dar�� a compreens��o dos sons.





O que esperar do implante em diferentes idades de implanta����o


At�� 3 anos de idade:


Com a percep����o auditiva, o desenvolvimento da l��ngua se faz mais f��cil com a reabilita����o e com o uso di��rio do processador de fala. V��rias situa����es no dia a dia da crian��a acontecem repetidas vezes, como ���papai chegou���, ���mam��e vai fazer sua comida���, ���quer ��gua?���, ���quer dormir?���, ���vamos tomar banho���, ���vamos brincar���.

Essas repeti����es de atividades rotineiras s��o os momentos significativos de cada um desses e tantos outros sons.

Percy-Smith (2009) observou em 155 crian��as que o modo de comunica����o dos pais �� essencial na aquisi����o da l��ngua. (Percy-Smith. Associations between auditory capacity, speech and language, level of communication and parental assessment of children with cochlear implant. Cochlear Implants Int. 2009. DOI: 10.1002/cii).





Ap��s os 3 anos de idade:


Quanto maior a crian��a maior o n��mero de vari��veis:

Uso efetivo de pr��tese auditiva convencional antes do implante;

Terapia fonoaudiol��gica especializada e sistem��tica;

Desenvolvimento das habilidades auditivas;

Desenvolvimento da linguagem;

Fam��lia e escola;

Atitude comunicativa oral da crian��a (aten����o ao falante). Para aprender uma l��ngua, h�� que se conhecer e saber respeitar regras, troca de turnos, etc. Isso �� t��o importante quanto a quantidade de audi����o que ela possa alcan��ar. Se ela n��o ficar quieta, escutar, esperar a vez, o c��rebro n��o ter�� a oportunidade de armazenar o que �� importante.





Na adolesc��ncia:


O reconhecimento da fala somente pela via auditiva se torna cada vez mais dif��cil, principalmente se o c��rtex auditivo (c��rebro auditivo) n��o foi efetivamente estimulado desde a primeira inf��ncia, com pr��teses auditivas convencionais.

O beneficio maior �� na integra����o LOF/audi����o e, muitas vezes, a LIBRAS pode ajudar a dar sentido aos sons.

O mais importante �� querer escutar, aprender a escutar e saber que se vai escutar muito mais sons. Mas ser��o muito estranhos e sem sentido, no come��o. A motiva����o deve ser do adolescente e n��o da fam��lia. Ele �� quem vai ter que construir os ���arquivos��� de representa����o do significado dos sons no c��rebro e isso pode demorar v��rios anos. Se o adolescente n��o estiver muito motivado, pode desistir.



O implante �� um bom recurso para aprender a escutar. Mas, sozinho, n��o �� a solu����o para uma dificuldade de comunica����o.

A fam��lia e todas as pessoas que est��o no c��rculo social de quem receber�� o implante coclear ��� na escola e no trabalho ��� devem saber que, ap��s o implante, poder��o passar v��rios meses (ou anos) at�� que o resultado apare��a.





Fatores que interferem no resultado do implante coclear


Aspectos m��dico-cir��rgicos (inser����o satisfat��ria dos eletrodos e causa da surdez);

Mapa no processador de fala;

Mem��ria auditiva/experi��ncia auditiva e c��digo lingu��stico (capacidade de aquisi����o e armazenamento);

Quantidade de fibras do nervo auditivo e como est�� funcionando;

Sistema nervoso auditivo central: reabilita����o e significa����o dos sons;

Escola;

Fam��lia: �� quem est�� mais tempo com a pessoa implantada, principalmente no caso de crian��as. Mesmo que ela v�� �� escola (4 horas por dia), mesmo que ela v�� �� reabilita����o fonoaudiol��gica (2 horas por semana), o resto do tempo que a crian��a fica acordada est�� brincando em casa com os pais e cuidadores.





Expectativas adequadas do paciente e da fam��lia


Sempre que avaliamos um candidato ao implante coclear, temos que considerar qual ser�� o objetivo do implante neste indiv��duo. Os crit��rios de indica����o podem variar bastante de acordo com o que considerarmos como resultado satisfat��rio para cada paciente.

Se o objetivo do implante coclear for apenas dar ao paciente a detec����o de sons, os crit��rios de indica����o ser��o amplos. Por��m, se o objetivo for melhorar a sua comunica����o pela linguagem oral, certamente a indica����o dever�� ser muito criteriosa e ser�� menor o n��mero de pacientes que atingir��o este objetivo.

De um modo geral, os protocolos de avalia����o e indica����o de implante coclear visam selecionar pacientes que t��m potencial de desenvolver ou melhorar a sua linguagem oral com o uso do implante coclear.

Adequar as expectativas �� essencial para o sucesso do procedimento, pois na maioria das vezes o paciente e a fam��lia apresentam expectativas bastante irreais quanto ao progn��stico e sobretudo, esquecem que existe o fator tempo para que o resultado apare��a.

Desse modo, n��o importa quanto os resultados sejam bons para aquele caso, se eles forem abaixo das expectativas do paciente isto trar�� frustra����o com um preju��zo muito grande no processo de reabilita����o.





Conclus��o


Quando uma pessoa com surdez faz um implante coclear, deve entender que ter�� a oportunidade de contato com os sons ambientais e de fala, permitindo novas experi��ncias auditivas ��s pessoas privadas do sentido da audi����o. Mas o implante coclear n��o �� uma m��gica que faz ouvir, �� uma porta de entrada para os sons e cada indiv��duo deve aprender a escutar e dar sentido a eles.

O mundo faz barulho. Cada som a nosso redor tem um significado e nos mostra alguma informa����o, mas aprender o significado de cada som faz parte desse processo. O sucesso do implante s�� acontece quando essa liga����o entre o som que entra e o seu significado for feita. E isso n��o vem com a cirurgia, isso vem no dia a dia, no parquinho, na can����o antes de dormir, na hist��ria lida e relida todos os dias, no bar, no supermercado, na reabilita����o, na escola: da disposi����o para ouvir e relacionar os sons ao seu significado, todas as horas, em todos os momentos.

Queridos candidatos ao implante, se o seu caso for considerado como sendo indicado ao implante coclear, mantenha acesa a chama de sua vontade de aprender a escutar, de escutar cada vez um n��mero maior de sons, mas n��o se assuste se demorar. Pode ser r��pido, e em 1 ano voc�� pode estar falando ao telefone, ou pode ser que em 2 anos voc�� ainda esteja se esfor��ando para usar a ajuda dos sons que escuta para melhorar sua leitura oro-facial. Portanto vai valer a pena e vai ser muito bom, desde que voc��s estejam dispostos a percorrer esse caminho no tempo que for preciso.

Boa jornada!!!!

Com carinho, Val��ria Goffi





Sobre a autora




Carioca, criada em S��o Paulo e formada em comunica����o social, Lak Lobato ��� autora do blog "Desculpe, n��o ouvi!" ��� �� surda oralizada desde os 10 anos. Depois de mais de duas d��cadas de sil��ncio, voltou a ouvir atrav��s do implante coclear bilateral.





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